O trovador da Infanta: Edição para o ELTeC Romance historico dos seculos 15.º e 16.º Oliveira Mascarenhas, Joaquim Augusto de (1847-1918) Criação do HTML original Alina Baldé Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 68424 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org O trovador da Infanta O Trovador da Infanta J. A. d'Oliveira Mascarenhas Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso Lisboa 1906

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O trovador da infanta

Romance historico dos seculos 15.º e 16.º

por

J. A. D'OLIVEIRA MASCARENHAS

LISBOA

LIVRARIA EDITORA

VIUVA TAVARES CARDOSO

5, Largo de Camões, 6

1906

PRELIMINARES

Diversos e abalisados escriptores se têem dado em varias epochas, ao difficil e fatigante trabalho de tirar a limpo a genealogia do grande bucólico Bernardim Ribeiro; a qual -- graças ás indefessas investigações do benemérito visconde de Sanches de Baena -- parece assentar hoje n'uma base indestructivel.

Será, pois, o meritório estudo do erudito titular (edição de 1895) servir de cicerone d'este nosso trabalho, através da dolente historia do auctor da Menina e Maça, cujas allegorias, entretanto, continuam a ser para muitos doutos e indoutos cerradamente sibyllinas.

Quanto aos amôres -- se bem que platónicos -- do mavioso trovador com a infanta Dona Beatriz, estamos completamente d'accordo com a crença do finado escriptor José da Silva Mendes Leal; ficando portanto considerados por nós, não como uma simples e encantadora lenda, mas como um dos lances mais dramáticos do século 16.", de que os reaes paços tantas vezes foram theatro.

Torquato Tasso -- o maior poeta d'Italia -- tambem ousara amar a princeza Leonor, formosa irmã do duque de Ferrara: mas a espontaneidade d'esta paixão ruidosa valêra-lhe o haver sido considerado louco (!) e encerrado brutalmente n'um hospital de doidos!!! ...

Costa e Silva, Camillo Castello Branco, e outros insignes escriptores crêem na desgraçada paixão da infanta e de Bernardim Ribeiro: «... as constantes allusões do poeta á desproporção de gerarchia entre elle e a mulher que amou, parece confirmarem a existência d'estes amôres infelizes».

Pinheiro Chagas participa também da mesma crença: «... eram vulgares estes amôres entre princezas e poetas das suas côrtes».

«Da analyse da Menina e Môça (accrescenta o finado escriptor) abusam-se até ao ponto de se ter deduzido erradamente que o poeta se não dedicára á infanta, mas sim a Dona Maria Quaresma, primeiramente, e depois a D. Joanna de Vilhena, sobrinha do duque de Bragança; procurando-se no anagramma de Aonia (Menina e Môça) a explicação d'estes amôres».

O eminente polygrapho doutor Theophilo Braga -- emendando antigos juizos, depois que veio a lume o estudo de Sanches de Baena -- ,diz-nos no brilhante introito, que enriquece o valioso opusculo do illustre titular: «... o longo intervallo que vae de 1516 a 1524, em que se não fala de Bernardim Ribeiro, accusa-nos uma ausência da côrte, um retiro ou desterro a que o poeta por vezes allude, e relaciona-se com a referencia dos linhagistas aos amôres com sua prima D. Joanna Tavares Zagalo, filha de D. Ignez, que, desde os dois annos d'edade, o protegêra. As genealogias traçam sêccamente este drama: ha noticias de ella se ter apaixonado por um seu parente, e de ter sido por interesses de familia obrigada a casar com Pero Gatto, que falleceu pouco tempo depois do seu casamento, e que essa morte fôra violenta».

Concordando nós, em parte, com a lição do laureado mestre, e, n'outra parte, com as dos illustres escriptores citados, temos como certo que os amôres de Bernardim com sua prima a hysterica D. Joanna Tavares (Aonia), serviram-lhe unicamente para esconder ou antes desnortear os novelleiros da côrte de D. Manoel, com relação aos que alimentára e eram correspondidos pela seductora infanta D. Beatriz, que, mais tarde, fôra a casta esposa do opulento duque de Saboya.

E é baseado n'esta crença que resolvemos compôr a novella que vae seguir, de cujas incorrecções pedimos desde já desculpa a quem fizer o sacrificio de nos lêr.

Lisboa -- 1904.

O auctor.

I

Prólogo

O solitário

Scena angustiosa, passada ha cêrca de quatro séculos, ao findar o anno de mil quinhentos e vinte e um.

Theatro: uma serra escarpada, com selváticos e caprichosos contornos --, altiva divisoria de granito, quartzo, e calcáreo, interposta entre uma planicie núa, salpicada de melancholicos monolythos, e a pradaria verde, tarjada d'arvores fructiferas e d'arbustos tropicaes.

Por entre a avelludada relva serpejam gargarejantes regatos, emergentes de dilatadas fendas d'arrogantes alcantis.

No cume da penedia -- negrejando como tôrvos phantasmas da velha crença medieva -- as álgidas ruinas d'um vetusto alcaçar; e, mais acima, um pequeno templo e mosteiro, convertidos hoje n'um magniflco castello feudal, cujo formidável conjuncto do mais puro normando gothico como que desafia os dos magniflcos castellos do Rheno e dos Alpes.

Para além das vertentes -- ao Norte -- frondosa vegetação inundando de frescas sombras o solo; pequenas casas rusticas e estancias senhoris, entre as quaes a velha Alhambra de émires, com as suas altivas chaminés similhantes a minaretes; deliciosos arroyos argenteos e sussurrantes; amplas campinas atapetadas de hervagem; e, ao Sul, altivos rochedos escalvados, e póvoas melancholicas e miseráveis.

Como o leitor inferiu já, fôra Cintra o theatro da romanesca scena, essa Cintra tão decantada... a formosa Cynthia dos celtas.

E um mancebo pensativo, com os olhos fitos na amplidão do mar, seguia uma pequena frota de vélas pandas, que se afastava para longe.

Depois... as alvas vélas desappareceram no horisonte; e, no espirito do moço, fez se uma noite negra... mais negra do que um remorso!

-- Tudo acabado! -- monologou elle, mentalmente.

E de seguida assentára-se sobre um pedaço de rocha, ficando a meditar.

-- Tudo acabado! -- continuou em solilóquio, «Ah! que desventura a minha!...

«Novo Prometheu, cá fico com o coração exposto á voracidade do abutre do desespero!

«Moderno Sisypho, resta-me arrastar hoje, e sempre, o pesado monolytho do infortúnio!

E no cérebro do infeliz ennovellavam-se desvairadas idéas, que lho contundiam e fatigavam.

-- Tudo acabado! -- repetia elle.

«Que desgraçados somos, minha pobre Beatriz!...

«Tu, casada com um príncipe... que não amavas, nem amas!...

«E eu... fugitivo d'um paço, e desterrado!...

«Por ti... pela tua tranquilidade, dei-me a todos os sacrifícios. Não me persegue o remorso de ter contribuído com loucas imprudências para o teu duplo e doloroso desterro!

«Não.

«Fiz me ser amado por uma infeliz mulher, só para desviar suspeitas que podessem comprometter-te.

«Porém... foi cumprida a cruel sentença da nossa separação!...

«Minha pobre Beatriz: adeus!

«Sob o céu d'ltalia, que é azul como este, recorda-te sempre do teu triste Bernardim. . . do teu pobre trovador!...

E as vistas do bardo repousaram mais uma vez sobre o amplo lençol do oceano, cujas ondas se quebravam nos rochedos da praia em espadanas d'espuma.

Tal qual o seu grande e singular amôr... a sua enorme e tradicional paixão.

Alterosa vaga -- feita de sentimentos castos -- que se quebrara depois, de súbito, d'encontro ás convenções humanas.

E ella -- a desolada Beatriz -- lá seguira com a alma em trévas e as lagrimas reprimidas, porque, mais infeliz do que o seu pobre trovador, nem sequér lhe era dado o alivio do pranto... o refrigério de carpir!

Após este monologo intimo, o vate fôra preso pelos arronbos de decrépito anachoreta.

Ah! quem podesse sondar-lhe o animo, descobriria, talvez, a idêa fixa de provar sophisticadamente aos adversários do seu amôr infeliz «que nunca trocára vistas apaixonadas com a casta filha d'el rei», e que só um simples galanteio de poeta o levára a celebrar-Ihe, d'improviso, n'um dos serões da Ribeira as longas e sedosas tranças louras como o mel do Hymetto; os grandes olhos azues, d'um bello azul cerúleo; a dôce alvura da tèz, que a côr da rosa tingia; os finos labios vermelhos, mais breves do que um suspiro; e o farto seio ebúrneo d'uma linha tão correcta, que podia ter sido o modelo das virgens de Raphael.

E quem sabe se -- n'esse momento de profunda concentração -- se esboçaria já no cérebro do vate o plano da tocante novella Menina e Môça , produzida, quiçá, para desfazer totalmente os damnosos effeitos de malignas delacções?

Quem sabe?...

Ah! quantos segredos não teem escapado ao dominio da Historia, para se sumirem por completo no fundo das sepulturas!...

II

Continuava a modôrra ascética do bardo, quando, de mansinho, se lhe approximára um homem de longas barbas brancas, envolto n'uma coçada estamenha, cujo capuz lhe occultava a face lívida e esquelética.

-- Dormes? -- lhe perguntou elle, em voz cava, parando e medindo-o com olhos baços d'ininterruptas vigilias.

«Olha que a noite já nos envolveu na sua aza de corvo, e os lobos famintos uivam alli -- no valle.

-- Quem és tu? -- interrogára-o o trovador, alevantando-se a custo, e como que sahindo das garras d'um medonho pesadèlo.

-- Vaes sabel-o.

«Ah! mas não te assustes.

«Porque se n'esta serra abundam os lobos, n'este instante estás em face d'uma inoffensiva creatura... d'um pacifico solitário.

«Socega, pois.

-- Todavia...

-- Assenta-te e tranquillisa-te, que eu vou assentar-me tambem.

E assentaram-se, dando o grupo a impressão d'um quadro céltico. . . de dois velhos druidas em mysterioso colloquio sob as copas da ramaria.

-- Disséste que és um solitário...

-- De ha pouco tempo para cá.

«Vês além aquelle rochedo, revestido de vegetação silvestre?

«Pois na base existe um algar escuro, que me serve de abrigo contra as tempestades da vida.

«E' alli que passo os meus dias orando, e fugido aos vulcões de lama em que se afunda a humanidade.

«Hypocrisia -- que engana traiçoeiramente os pobres desprecavidos -- não a conheço aqui n'este pequeno mundo feito de regalos, de féras, de pedras e vegetaes.

«Ambições ferozes -- que sôem muitas vezes transformar homens em bêstas -- não colleam aqui sob este bello céu azul, que serve de docel ao meu catre de cortiça.

«Egoismo -- que faz braços homicidas, e infames perversões -- nunca teve o seu pântano n'este pequeno deserto, pois que as aguas correntes não podem coexistir com o estêrco dos sapaes.

«Traições -- que, nas cidades, medram e enfermam a existência dos ingénuos --, morreriam de despreso e inanição aqui, pois que o lobo sanguinario é leal quando ataca.

«Calumnias -- nunca foram o uivar das féras, nem tão pouco o gorgear dos pintasilgos e rouxinoes.

«Aqui é tudo leal e simples, desde a brisa que beija, até ao tufão que destróe.

E o anachorêta -- entregando-se a um mutismo d'instantes -- aconchegára mais a si o coçado balandrau, emquanto uo cérebro do trovador accordavam reminiscências d'aquella voz soturna.

Após curto intervallo, o solitário continuou:

-- Já sabes o que penso dos homens, meu amigo.

«As minhas palavras deviam ter sido bem acceites pelo teu espirito de poeta...

-- Conheces-me acaso, anachorêta?!...

-- Se conheço?!...

E fizera se um passageiro silencio, que os uivos dos lobos por vezes interromperam.

Depois proseguira pausadamente:

-- Tu fôste o mais harmonioso vate d'essa côrte buliçosa, onde a insidia tem medrado ao som dos alaúdes, das harpas, e charamélas.

«As cordas da tua lyra geraram innocentes, mas apaixonadas notas, que, ao mesmo tempo que despertavam o coração d'uma virgem, chegavam envenenadas pela inveja aos ouvidos d'um soberano, como que se fossem silvos de cobra, predisposta a lançar peçonha sobre os tapetes d'um paço.

«Depois... o teu voluntário desterro... o rejubilar da canalha. . . e o despedaçar, lento, do teu coração amante...

-- Meu Deus!...

«Quem és tu, que tão bem sabes a minha desgraçada historia de cortezão ?

-- De que te serve o saberes o meu nome, Bernardim Ribeiro?

«Contenta-te com o teres no cérebro o da tua pobre Beatriz, que ha pouco gravaste nos troncos d'estas arvores bemfazejas. -- .

-- Serei ludibrio d'um sonho?! -- interrogava-se o trovador, esfregando os olhos baços e buscando reconhecer o sceptico ermitão.

«Quem és tu?!...

«Oh! por Deus, responde!

-- Queres saber quem sou, Bernardim Ribeiro?

-- Sim... sim... dize-me o teu nome...

«Pelo céu t'o imploro!...

E fizera-se um passageiro mutismo, que o solitário interrompeu.

-- Pois vou satisfazer o teu desejo; -- promettèra elle.

«Sou um homem que amou uma mulher que te amára, a quem tu -- apaixonado pela casta Beatriz -- simulaste corresponder.

«Sou um homem a quem arrebataram essa mulher, para a entregarem, depois, nos braços d'um libertino!

«Sou, emfim, o matador d'esse miseravel, que purga hoje o seu peccado por entre a penedia d'esla serra solitaria.

-- Mendo Vasques?!. . .

-- Sim... Mendo Vasques... o companheiro dos Gamas na viagem do Oriente ... o infeliz que, após o homicidio, se veio sepultar na profundeza d'aquella gruta.

«Ah! mas não sou um malfeitor:

«Sou a desgraçada victima da raiva e do ciúme!...

PARTE PRIMEIRA

INTROITO D'UM GRANDE DRAMA

Raudaes de sangue

Ao cahir da tarde do dia vinte e três d'agosto do anno de mil quatrocentos e oitenta e quatro occorrêra, nos reaes paços de Setúbal, unma scena extraordinaria, dolorosa, sangrenta, que puzéra em grande alarme tanto os moradores da régia estancia, como os habitantes da muito laboriosa, antiga e pacata villa do Sado.

Do interior do paço chegaram até aos ouvidos da multidão, que se agitava fôra, clamôres dolentes, amalgamados com o sussurro produzido por alguns homens que desciam, em fuga desesperada, a escadaria, na direcção da rua, e por um vociferar tão retumbante e aspero, que dava a impressão nítida e sinistra do estralejar d'um trovão.

-- O que terá acontecido?! -- interrogavam-se os boquiabertos, sem que a nenhum d'elles houvesse sido dado descortinar a causa de tal tumulto.

-- Ha gritos no paço!...

-- Gritos e imprecações!...

-- Appareceria, mais uma vez, o espectro do degolado d'Evora?!...

-- Cruzes!... Anjo bento!...

-- Morreria alguem?...

-- O que será?... O que será ?...

E n'esta allura do dialogo -- cortado sempre por interjeições d'espanto -- Transpôz o limiar d'um dos portões do paço, desapparecendo de seguida através da espessa massa de circumstantes, um homem alto e robusto, trajando vestes de velludo negro golpeadas de carmezim.

Quem o houvesse seguido tel-o-hia visto endireitar na direcção de Oeste, e caminhar sempre, sem um alto, até chegar a um pequeno povo d'uma das margens do Xarrama.

Quem seria o fugitivo?

Mais tarde o saberemos, leitor.

Regressemos agora a Setúbal, e vejamos o que se passára e está passando nos antigos paços reaes, mas deixemos galopar alguns dos ginetes de Fernão Martins de Mascarenhas e seguir um troço de bêsteiros do concelho, que vão em perseguição do mysterioso evadido.

Na antiga villa o povo alarmado não abandonára ainda as visinhanças do paço; e, como que na praia uma tempestade desfeita, murmurava tão intensa e confusamente, que fazia lembrar o monótono marulhar das ondas, quebrando-se, em fúrias d'hydrôphobo, d'encontro á penedia.

Mas a anciedade da plébe, debatend-se com a ignorância completa, profunda, do successo ou successos que haviam tido por theatro a velha alcáçova setubalonse já chegava á sua máxima tensão, quando uma das janellas fora ruidosamente escancarada, deixando vêr se de seguida a figura austera, sombria, quasi sinistra de D. João II, com as mãos ainda tintas do sangue d'um horroroso homicidio.

El-rei?! -- bradára a turba, descobrindo se machinalmente, e ajoelhando-se depois.

Erguei-vos! -- bradou o enérgico soberano, que havia de morrer cêdo, envenenado em Alvor, em holocausto á própria obra do restabelecimento do poder real, que a nobreza e o clero tentaram sempre arrebatar-lhe.

E fizéra-se um grande e sepulchral silencio, interrompido tão sómente pelo ôffego respirar da espantada turba-multa.

D. João II, em crispaturas, continuára com voz forte e bem timbrada, depois de ter fitado, com olhos de lynce, o mesclado auditorio que o ouvia:

-- Povo, e mais fieis vassallos: É morto meu primo e cunhado D. Diogo, duque de Vizeu, que foi.

«Se a punhalada que lhe arrancou a vida não fôr bastante para afogar em sangue o tôrpe egoismo dos grandes, o filho de Affonso V, que Nosso Senhor haja, não hesitará um momento em vibrar outras e outras, até que dessangrada fique uma nobreza cubiçosa e revolta, que, tendo calcado sacrilegamente o juramento de menagem, pensa apenas em se alevantar sobre o desprestigio e empobrecimento d'um sceptro, que eu herdei de meu pae e senhor como que se fôra um simples látego... o meu cruel azorrague.

«Deus sabe o quanto a minha alma soffreu, quando, em Evora, a justiça dos homens arrancára num infamante palibulo a vida do desvairado duque de Bragança, que, alliado a outros miseros conspiradores, pretendeu insensatamente despojar-me do throno, que é meu pelo direito d'herança.

«É que a nobreza ambiciosa e turbulenta não pôde levar a bem que as minhas côrtes de Vianna d'apar d'Alvito houvessem revogado as concessões que meu pae e senhor fizéra aos donatarios, em prejuizo da corôa; que tivessem abolido o irritante direito de vida e morte, que os senhores haviam nos vassallos dos seus proprios territórios; e que os tivessem justamente obrigado á jurisdição real, a despeito de vetustos privilegios, de que elles, senhores, tão mau uso fizeram sempre.

«É morto, pois, D. Diogo, como hão de sel-o os outros criminosos d'alta traição ha pouco delatados, se Deus Nosso Senhor me dér vida para perseguil-os, como tanto faz mistêr á integridade do poder da corôa, e ás prosperidades d'estes reinos, de que sou senhor legitimo.

«Depois... a protecção ás sciencias, ás letras e ás artes; o renascimento da nossa abandonada agricultura; a repressão d'um luxo pernicioso, que tem sido a origem de repelidas prevaricações; e, finalmente, o alargamento da área d'esle pequeno paiz, à custa de futuros e grandiosos descobrimentos, bem como de conquistas ruidosas.

D. João II calou-se, e applicou depois o ouvido aos clamôres da multidão,que lhe não foram nem podiam ter sido hostis, pois que o povo o respeitava e amava sinceramente; havendo-lhe resultado d'esta affeição uma poderosissima força para proseguir no seu programma d'enfraquecimento e represálias contra o poder irritante e illimitado dos insolentes senhores dos feudos.

De seguida as janellas do real paço foram fechadas; a populaça dispersou-se; e o cadáver do pobre duque de Vizeu passára do ensanguentado local em que cahira, para o interior d'um sarcophago, que representa, perante a Historia, o tragico monumento alevantado a uma época d'escravidão e excessos, que baqueára sob a manopla dura do grande rei empeçonhado... do immortal Príncipe perfeito.

Se -- algumas horas antes do sangrento facto que vimos de descrever -- o leitor se encontrasse occulto n'uma das amplas quadras do velho paço de Setúbal, teria visto e ouvido D. João II em cauteloso colloquio com um infame da peior espécie... um tal Diogo Tinoco, irmão d'uma das barregãs do muito alto senhor D. Garcia de Menezes, antigo e heroico companheiro d'Affonso V na batalha de Toro; ex-commandante da esquadra que, em 1480, fôra proteger o reino de Napoles contra os turcos; filho do valoroso D. Duarte de Menezes, 3.° conde de Vianna; antigo assistente do Vaticano no pontificado de Xisto V; bispo da opulenta diocese d'Evora; perpetuo administrador do bispado da Guarda; e, aos 31 d'agosto do anno de mil quatrocentos e oitenta e quatro, morto com peçonha na cisterna sêcca do castello de Palmella, em razão da delatada conspiração do duque D. Diogo, em que elle, bispo, havia tomado a mais activa parte.

Ah! como deviam ter sido duplamente excruciantes os ultimos momentos do potentado, ao vêr-se precipitado da propria grandeza episcopal no fundo húmido d'uma cisterna, e ao sentir trocados os gosos d'uma vida ininterrupta de prazeres pelos effeitos dantescos do veneno que ingerira!

Diogo Tinoco -- côncitado pela baixeza dos próprios sentimentos maus, e pela idéa torpe de merecer d'el-rei avultada recompensa em troca da sua infâmia -- não hesitou por um momento em ir d'Evora a Setubal revelar lhe todo o plano da conspiração do duque, tão depréssa a irmã lhe revelára tudo quanto, a tal respeito, presenceou.

E o filho d'Affonso V -- quando o miseravel pozéra ponto no exagerado relatorio -- erguêra-se, palido como cadaver, da poltrona d'espaldar em que se havia assentado, manifestando-se por momentos perplexo e enleado.

-- Acaso estarei sonhando?! -- perguntára-lhe depois o Principe perfeito com tufões de cólera na voz, e coriscos no olhar.

«Estarei sendo o joguete d'uma cruel mystificação?!...

-- A verdade vos disse, real senhor; -- respondêra lhe servilmente o desprezivel denunciante, cujas delacções iam cedo originar hediondos raudaes de sangue.

Mas o bandido -- como todos os delactores e espiões -- não se prendêra por um instante com a idéa da vindicta immane, a que a sua propria vileza deixava condemnadas as víctimas da mais infrene cobiça.

É que, psychicamente, tão monstruoso se manifesta o espião, que, a pratica das boas obras, produz-lhe quasi sempre a impressão exacta d'uma formal anomalia; a par e passo que considera normal e plausivel tudo quanto seja revolver na propria alma os monturos d'ascorosas paixões ruins!

D. João II -- de seguida a alguns momentos d'um profundo meditar -- mostrou nos labios crispados um feio rictus convulso; e, como que n'uma espécie de derivativo ás próprias maguas accumuladas, exclamou pausadamente, depois:

-- As cabeças dos pérfidos e turbulentos conspiradores, quer sejam de nobres e parentes, quer d'estranhos e plebeus, não valem uma hora da tranquillidade de que tanto necessito, para tratar, isento de perturbações, do bem estar do reino, que pode e ha de prosperar.

«A nobreza quer a lucta?

«Pois bem: luctaremos.

E fitando com olhos tôrvos o delactor:

-- Tens a completa certeza do que acabas de revelar-me?

-- Completa... absoluta, senhor.

«Vosso primo e cunhado conspira com D. Garcia e outros fidalgos contra vós e contra os direitos da corôa, exactamente como outr'ora conspiraram o duque de Bragança e o marquez de Monte-môr.

-- Basta! -- interjeiceonou el-rei, com um gesto sacudido.

«Mercê te será feita.

«Retira-te agora dissimuladamente d'estes paços, e volta a Evora com o encargo de vigiares de perlo os outros conspiradores.

«Absoluto segredo aqui e lá, comprehendeste?

-- Serei discreto, real senhor...

«E até mesmo porque o silencio me livrará de cahir sob os punhaes dos vossos inimigos, que são muitos.

Diogo Tinoco sahiu immediatamente dos paços de Setubal e encaminhára-se para Evora; cantando-lhe no espirito hymnos festivos a deslumbradora esperança da régia mercê, como premio dos últimos jactos de peçonha que esvurmára aos pés do recto e inflexivel rei.

E D. João II?

Esse -- tendo pensado por instantes na virtuosa esposa, a quem havia de magoar profundamente a morte do tresloucado irmão --, encaminhou se cabisbaixo e terrível para outra dependencia da velha alcáçova, d'onde, de seguida, mandára ordem ao primo e cunhado para que fosse falar-lhe sem a minima dilação.

D. Diogo, -- que, desde as ultimas duas horas, se encontrava em secreta conferencia com Damião Ribeiro, seu amigo, confidente, e recebedor das rendas da sua casa --, teve ura vivo presentimento, relativamente á tragedia em que ia figurar, quando um dos sumilhéres do paço lhe transmittira o recado de sua senhoria el-rei.

-- Suspeitará meu primo do que é concertado entre nós conjurados? -- perguntára o duque ao seu fiel thesoureiro.

E accrescentou:

-- Esta chamada fria, glacial, quando é certo que sua senhoria me ha tratado sempre com os maximos primores, veio radicar-me no espirito desagradáveis suspeições.

-- Não me parece que haja razão para tal, senhor duque.

«Sua senhoria necessita talvez falar-vos em objecto muilo extranho à conjuração, de que sois supremo chefe.

«Ah! quando virá o dia d'operar-se, senhor meu?

«Porque a nobreza já não pode supportar por mais tempo o cothurno esmagador do tyranno que a governa.

-- Silencio! -- interjeiceonára o infeliz irmão da rainha D. Leonor d'Alencastre.

«Lembraevos, Damião Ribeiro, de que as paredes também teem ouvidos... ás vezes.

E cingindo o talabarte, de que pendia fina espada de Toledo, encaminhára-se para a ampla quadra, aonde o filho d'Affonso V passeava ha muito n'uma enorme agitação.

-- Senhor meu, e meu primo; -- lhe disse o duque:

«Eis-me aqui no cumprimento do vosso ultimo recado.

D. João II, trémulo como um nevrotico, medira-o com olhos injectados de sangue, ficando porém silencioso por passageiros momentos, emquanto o joven D. Diogo, tendo empallidecido, se resignára a esperar o inicio da terrivel tempestade que já lhe propinqua.

-- Sois um villão ruim! -- explodira, alfim, o monarcha, com sinistros clarões nos olhos.

-- Eu?!...

-- Vós!...

«Dizei-me: o que farieis, se uma alcatéa de lobos tentasse contra a vossa vida... e contra o vosso patrimonio ?

-- Defender-me-hia, senhor.

-- Eis o que hei vindo a fazer:

«Ha poucos mezes vi cahir em Evora a cabeça do aleivoso duque de Bragança; e hoje vejome forçado a apunhalar-vos... como réu d'alta traição!

E alevantando o rijo braço de ferro, armado d'um bulhão agudo, deixára-o cahir abruptamente sobre o peito inerme do pobre duque de Vizeu!

-- Cobarde! -- exclamára o mallogrado moço, cahindo violentamente para nunca mais se levantar.

II

Fujamos!

Quem seria o «homem alto e robusto, trajando vestes de velludo negro golpeadas de carmezim», que seguira na direcção d'uma das margens do Xarrama?

Era Damião Ribeiro, thesoureiro do mallogrado duque de Vizeu, o qual, como o leitor não ignora, se encontrava em íntimo colloquio com sua mercê, quando o sumilhér appareceu e transmittira a D. Diogo o recado de sua senhoria el-rei.

O fugitivo do paço -- tendo atravessado depois algumas pontes de barcas, e percorrido difficílimos caminhos e atalhos salpicados d'altitudes e depressões -- encontrou-se alfim na muito antiga e pequena villa do Torrão, sua patria, onde vivia com sua mulher e dois fllhos de tenra edade, um dos quaes fallecêra pouco tempo depois d'occorridos estes trágicos e muito viridicos acontecimentos. Damião Ribeiro, tão depressa se encontrou entre a família que adorava, assentárase fatigadíssimo sobre um escabello; e dirigindo-se á esposa, que o contemplava n'um enorme sobresalto, lhe disse com a voz cortada por uma energica commoção:

-- Minha boa Joanna : a fatalidade persegue-nos!...

«Forçosa é a nossa separação, até que Deus se compadeça da nobreza d'estes reinos, cujo algoz, vomitado pelo inferno, é um rei tão egoista como feroz, tão traidor como cruel.

«Mais uma victima acaba de romper a sua garra de tigre!

«D. Diogo cahiu ha pouco, em Setúbal, a golpes do seu punhal alleivoso!...

-- Como?!... É morto o duque D. Diogo?! -- interrogou, meia incrédula meia aterrada, a mãe do futuro trovador.

-- Infelizmente!

E depois de breves instantes de mutismo:

-- Alguem, que vigiava de perto os conjurados, acaba de relatar ao monstruoso filho de Affonso V o que se ha passado entre os da liga, com relação ao justo e premeditado desforço do clero e da nobreza.

-- Queres dizer que se perdeu tudo quanto os nobres planearam?!...

-- Tudo... tudo!...

-- Ah!...

Damião Ribeiro, n'uma grande perturbação d'espirito, applicava de quando em quando o ouvido ao que se ia passando fora do muito amplo e antiquíssimo solar, manifestando d'est'arte o bem fundado receio de ser capturado á ordem do detestado soberano.

Depois ergueu-se do escabello; e, a meia voz, disséra á esposa, que tremia como um feixe de vimes assoprado por um tufão:

-- Faz mistér que, dentro de pouco tempo, te mudes d'aqui com os nossos dois pequeninos filhos para a granja de Val-de-Lobos, em Cintra, onde de certo terás boa acolhida de teu primo desembargador Antonio Alvares, e de sua irmã, a boa e caritativa Dona Ignez Zagalo.

«Contar-lhes-has tudo quanto acaba d'occorrer na velha alcáçova de Setubal, e accrescentarás a affirmação de que o punhal do desalmado rei paira sobre a minha cabeça, e sobre as dos fidalgos e clerigos que se encontram no segredo do desventurado duque de Vizeu.

-- Mas... e tu?!... e tu?! -- titubeou D. Joanna Zagalo, apertando contra o seio a pequenita filha, e afagando o tenro Bernardim Ribeiro, que, trémulo e choroso, se lhe agarrava com ancia ao farto roupão de vistosa valancina.

-- Eu... tenho de fugir para Castella, se não quizeres que morra aqui envenenado, ou rôto pelo bulhão de qualquer misero sicario!

-- Meu Deus!... meu Deus!...

-- Não te desanimes minha amiga.

«Na Hespanha saberei desfarçar-me, e esperar que os vingadores dos pobres duques D. Diogo e D. Fernando arranquem a vida á féra, como castigo das suas horrives iniquidades.

«Pensas, acaso, que ha de ser duradoura a vida do tyranno, e que o mallogrado irmão da rainha não ha de ter quem o vingue?

«Aguardemos resignadamente o tempo, e lembremo-nos de que a lei das compensações abrange senhores e servos.

«Ah! terriveis lhe vão sendo já as noites e os dias de completa solidão! Como Pedro I, é perseguido pelo phantasma do duque de Bragança, e sel o-ha pelos do duque de Vizeu e de todas as victimas da sua enorme crueldade.

«Depois ha de morrer violentamente o monstro... como morre um cão.

«Porque se não fere impunemente duas classes poderosissimas, como são as do clero e nobreza, cujos privilegios foram legitimamente ganhos em pelejas bravas, desde a planicie de S. Mamede até aos campos d'Aljubarrota.

Damião Ribeiro, arrepelando com gana as compridas barbas negras, calou-se por momentos, para se dar á dolente contemplação da lacrimosa esposa, cujos soluços lhe laceravam tão brutalmente o coração, como que se elles fossem agudas púas d'esporas.

-- Coragem te peço mais uma vez, Joanna.

«Nada tens a recear pela minha segurança: Em breve tempo estarei além monarcha felino ha convertido n'um açougue de carne humana! «Ah! mas como o monstro se illude!...

«Porque a perseguição tenaz encoraja quasi sempre os perseguidos, a par e passo que os perseguidores vão perdendo alentos na raivosa faina exgotante. E abeirando-se da inconsolável companheira, que chorava ainda convulsamente:

-- Não me tortures mais com o teu pranto, Joanna!

«Olha: vae pôr-te em arranjo para a partida que temos de realisar dentro em breve. «Em tua companhia e na de nossos filhos irão os mais antigos servidores d'esta casa, que vae ficar fechada, até que possamos um dia voltar a ella.

-- Receio muito por ti, Damião Ribeiro!

«Sabes o quão vingativo é o matador dos duques de Vizeu e de Bragança?!...

-- Porém...

-- Escuta: Para te haver ás mãos, não hesitará em enviar á Hespanha os scelerados que o rodeiam.

-- Ah! mas para que vou eu prevenido?

«Ora vamos... basta de pranto, e mostra antes, n'este memoravel momento, que sabes resignar-te com a adversidade, e aguardar que a ventura volte a este desolado lar.

-- Pois bem: resignar-me-hei.

-- Mas não ha tempo a perder: D. João II, depois de haver feito procurar-me, talvez, em todas as dependencias do paço, já deve ter mandado contra mim alguns troços d'esbirros e bêsteiros.

«Prepara-te, portanto, para a jornada, minha amiga.

«Que nem tu, nem nossos filhos, caiam nas mãos do desalmado homicida.

-- Ah! custa-me o maior de todos os sacrificios o ter de separar-me de ti, Damião!

«Porque me não deixas antes acompanhar-te no teu exílio, que será assim menor o teu e o meu soffrimento?

-- Impossível, Joanna, impossível!...

«Pois tu não vês que vou entregar-me nos braços do acaso, e que, levando te, e levando comnosco os nossos filhos, difficil se me tornará o homísio? E depois de passageiro silencio:

-- Em Cintra, com teus primos, ficarás melhor e mais segura, do que em terras e lares alheios, á mercê dos caprichos do destino.

-- Irei preparar-me, pois, para a fuga, já que o nosso cruel fadario assim o determina. «Ah! como vão ser-me cortados de terriveis amarguras os longos dias da nossa triste separação!

E a inconsolável mãe de Bernardim Ribeiro encaminhára-se para a sua alcôva, emquanto o esposo, muito pallido e trémulo, passava a pôr em ordem alguns documentos respeitantes á própria casa, e a do duque de Vizeu.

Ora, ao mesmo tempo que na muito antiga villa do Torrão se davam estas e outras eguaes scenas, os ginetarios de Fernão Martins de Mascarenhas avançavam sempre, com ordem expressa de sua senhoria el-rei de lhe levarem, vivo ou morto, o sequaz do primo assassinado; e, bem assim, a esposa, os filhos, e até os seus próprios serviçaes.

O cabo do troço -- homem estupido, e d'instinctos maus --, pensava, desde a sahida de Setubal, no modo mais nítido e summario de suppliciar o mísero fugitivo, os filhos, e a mulher, visto como (suppunha elle) a projectada barbaridade devia agradar a sua senhoria, de quem -- por tal motivo -- esperava receber generosa remuneração.

Foram sempre assim, e hão de continuar a ser, certos reptis humanos, cujo ascoroso servilismo não pode coexistir nunca com os sentimentos castos.

Damião Ribeiro nem por sombras enxergava o perigo que se lhe avisinhava d'instante a instante.

Entregue todo á lida de deixar o mais possivel em ordem os registos dos bens do pobre duque de Vizeu, encontrava-se embebido n'este afan, quando um dos servos do solar -- ao regressar d'Alcácer -- se lhe apresentou esbaforido e n'uma grande agitação.

O pobre homem ignorava tudo quanto se havia passado na alcáçova de Setubal, e longe estava de suspeitar que seu amo e a familia se preparavam activamente para fugir á sanha do filho d'Affonso V.

-- Senhor?!... senhor?! -- gritava elle, chamando por Damião Ribeiro, que não via.

-- Ah! és tu, Sancho Paes? -- dissêra-lhe o antigo thesoureiro de D. Diogo, apparecendo-lhe á porta do espaçoso cartorio.

-- Em corpo e alma, senhor meu.

E depois de ter limpado á manga do gibão o copioso suor, que lhe inundava a face:

-- Por Deus occultae-vos... ou, antes, occultemo-nos todos!...

-- Como assim?! -- inquirira o parcial de D. Diogo, que não suspeitava de que estivessem já á beira do Torrão os ginetes que o perseguiam.

Houve um ligeiríssimo silencio, de seguida ao qual Sancho Paes explicara n'uma forte commoção:

-- Acabo de encontrar me, a duas legoas do povoado, com um troço de homens de guerra, que me perguntaram por vós.

-- Ah!...

E o velho servo continuou:

-- Descansavam da fadiga da jornada ao longo d'um córrego, e lá ficaram, ainda, banhados em suor.

-- Mas... o que respondeste ás perguntas d'esses homens?

-- Que não sabia de vós... que mal vos conhecia... e que, certamente, andáveis fóra do solar.

-- E elles?!... e elles?!...

-- Elles... olharam uns para os outros e encolheram os hombros, como quem não dava grande preço ás informações que lhes dei.

-- Mais nada?...

-- Saudei-os depois, e arredeime delles... de ouvido á escuta, e muito devagar.

-- O que disseram nas tuas costas?

-- Que não sabiriam do Torrão sem vos terem capturado, assim como a vossa esposa, filhos e serviçaes.

-- Como?! -- interjeiceonou Damião Ribeiro, dando um pulo no tamborete em que se encontrava assentado.

-- Disse vos a verdade pura, senhor meu.

E, como que desvairado, o pae de Bernardim correu á dependência do solar, onde se encontrava a esposa já preparada para a fuga.

-- Não ha um momento a perder! -- lhe disse elle n'um grande insulto nervoso:

«Os ginetes de Fernão Martins encontram-se a duas léguas d'aqui!

-- Fujamos, pois, Damião !

-- Sim... fujamos. Mas tu, nossos filhos e os servos, primeiramente.

«Ficará commigo Sancho Paes.

-- A liteira está prompta a caminhar ; -- informou um dos velhos servidores da casa.

-- Pois bem. A caminho... depressa!...

«Dentro de duas horas devem estar aqui os quadrilheiros!...

-- Que direitura deverei tomar, senhor?

-- A d'Alvito. Ahi nos encontraremos todos muito antes do pôr do sol, e ahi se assentará nos diversos itinerarios que nos é forçoso seguir.

-- Seja.

D. Joanna Zagalo e os pequenos filhos entraram de seguida no incommodo vehiculo, que ia conduzil-os a Alvito, emquanto Damião Ribeiro ordenava a Sancho Paes que trancasse todas as portas e janellas do resistente solar.

E já ia a distancia a attribulada familia, quando, do grande portão da rua, alguem bateu brutalmente.

-- São elles! -- exclamou o velho servo a meia voz.

-- Devem ser!...

-- Demoramo-nos de mais, senhor meu.

«Eu bem vos disse que deixasseis tudo, e pensasseis simplesmente na vossa propria salvação.

E as pancadas continuavam isochronamente e com força, resultando d'ellas um monótono ruido, que echoava lugubremente.

-- Pois tu pensas, Sancho Paes, que devia partir para o exilio, sem ter posto a claro os negócios que respeitam aos haveres de D. Diogo?!...

«Se morresse, e não deixasse em termos estes velhos pergaminhos, os meus inimigos e detractores esvurmariam de certo sobre a minha honra, toda a peçonha do seu implacavel rancôr.

«Salve-se um nome que herdei limpo de meus maiores, e que desejo legar immaculado aos meus innocentes filhos.

E ás brutaes pancadas, descarregadas de quando era quando na rija porta do solar, succedêra um outro ruido produzido por alguns machados, que a mordiam sofregamente.

-- Fujamos!... fujamos!... -- bradava, de mãos postas, o dedicado servo.

-- Mas... por onde havemos de fugir nós, se as sahidas estão tomadas?!...

-- Pelo subterrâneo; que conduz, como sabeis, a muito longe d'aqui.

-- Pois seja assim ! -- exclamou por pundonoroso fidalgo, sobraçando, por ultimo, um grosso masso de pergaminhos.

E desceram apressadamente, e sem sussurro, ao andar térreo da casa.

Ah! mas quando já se encontravam ao pé da abertura do comprido e tenebroso subterraneo, notaram, n'uma grande afllicção, que a chave da porta férrea estava quebrada, e a grossa e enferrujada lingueta da fechadura, por completo corrida!

Pouco tempo depois o grande portão do solar cabia escavacado, penetrando seguidamente, no edificio, os estupidos e selvaticos ginetarios de Fernão Martins de Mascarenhas.

III

O assalto

Subiram tumultuosamente a extensa escadaria de pedra os janizaros de sua senhoria el-rei, e de seguida procuraram infructiferamente por todos os cantos da casa as pessoas que desejavam capturar.

Quem -- pouco tempo depois -- entrasse nas numerosas salas, alcôvas, e outras dependencias do velho predio solarengo, recordar-se hia fatalmente da mythologica boceta d'Epimetheu: não porque, n'aquella estancia da virtude, se encontrasse em presença do pandemonio de males que residiram empilhados no diabólico cofre de Pandora, mas sim porque teria que defrontar se com centenares de coisas variegadas, transferidas do interior dos arcazes para o meio dos taciturnos salões.

-- Nem fôlego vivo! -- declarou, raivosamente, o pequeno coudel do troço, á gente de bêsta e de ginete que o rodeava n'uma das grandes quadras, de seguida á ultima busca por todos os escaninhos do solar.

O maldito pôz-se era fuga com os seus!. . .

-- É de crêr-se; -- regougou um dos mal encarados besteiros do conto, que, como os companheiros, não reparára no facto de se encontrar fechada por dentro a grande porta de carvalho, que acabaram d'escavacar.

-- O que devemos fazer agora?

-- O que é costume fazer-se n'estes casos: peguemos fogo ao casarão.

-- Mas nós não revistamos ainda o andar térreo do solar; -- recordou um dos ginetarios, ao mesmo tempo que batia com os nós dos dêdos d'encontro aos differentes panos de parede, na ambição de descobrir um d'aquelles falsos em que muito abundavam as antigas casas medievaes.

-- Lembráste bem... lembráste bem: ainda não procuramos o homem nos baixos da moradia...

-- Pois procuremol-o! -- bradou o mais graduado dos janizaros, pondo-se logo em movimento.

-- Mas, se porventura o fugitivo se refugiou no andar térreo -- lembrou um dos do troço --, teve o tempo necessario e o desempedimento sobejo para se esgueirar.

-- Como assim?...

-- Pois seria elle tão parvo que se deixasse ficar nos baixos do casarão, depois de nos ter sentido subir a escadaria, e entrar n'este labyrintho d'alcôvas e salões?...

-- Isso é... isso é! -- bradaram todos a uma voz, entreolhando-se ao mesmo tempo.

-- Devia ter ficado um bêsteiro do conto junto a porta d'entrada...

-- Somos uns zotes!

-- Nem tudo lembra n'estes apertos, berrou um ginetario: Mas o homem e a familia, se acaso se refugiaram nos baixos do solar, devem estar n'este momento cheios de susto... embaraçados... immoveis.

«Colloque-se cada um de nós no seu logar...

-- Parece que tens razão, ó Sancho Ambrozio.

-- Depois, essa atrapalhada gente, não sabia se a grande porta d'entrada ficaria ou não guardada por qualquer dos assaltantes...

-- Estamos d'accôrdo, ó Sancho.

-- Em tal caso... a caminho!

-- A caminho! -- berraram todos.

E, de tropel, desceram ao pavimento térreo do vetusto edificio, onde, como o leitor sabe, haviam ficado Damião Ribeiro e o velho Sancho Paes.

D. Joanna, os filhos e os servos iam já longe da pequena villa, quando os janizaros de Fernão Martins lhes invadiram o solar.

O pequeno Bernardim Ribeiro -- altamente commovido -- perguntava á afflicta mãe, em linguagem infantil, o que significava aquella fuga repentina... qual o destino que levavam... e a razão da demora do extremoso pae, que elle tanto adorava, como que remunerando-o d'outra grande adoração.

D. Joanna -- com o coração torturado nos apertos dum receio cruciante -- respondia com evasivas e lagrimas ao futuro trovador, cujos grandes olhos d'azeviche como que buscavam descortinar o que se lhe passava no cérebro contundido por mil idéas revoltas. Depois apertava docemente a pequenina filha contra o peito... beijava o terno Bernardim... e murmurava uma prece, que a alliviava muito, pois que na castidade da sua alma residia a fé que fortifica, bem como a consoladora esperança -- a grande ancora do crente, quando em lucta com as terríveis tormentas que a miúdo se desencadeam no maré maguum da vida.

A liteira -- conduzida por dois machos possantes -- seguia, no seu andamento fatigante e monótono, na direcção d'Alvito, quando, a certa altura, um dos servos que a acompanhavam vira enorme clarão e successivas espiraes de fumo erguendo se d'um ponto distante, ao qual devia corresponder o assento da velha villa do Torrão.

-- O que será aquella fumarada? -- perguntou elle ao companheiro, no momento em que o vehiculo sahia d'uma das depressões do caminho, para subir um dos muitos e pequenos cabeços que a miúdo o salpicavam.

-- Ora espera -- disse o interrogado: não te parece que é fogo... mas fogo bravo?

-- Vejo-lhe esses geitos.

E reparando melhor, do alto da pequena collina a que depréssa chegaram:

-- Pois é um enorme incendio, não ha duvida.

-- Ah! e pelo que noto, entendo que rebentou na villa, pois não vês?

-- Sim... sim... tens razão... parece ter rebentado...

«Ora vae observar melhor do alto d'aquelle cômbro.

E o servo de Damião Ribeiro não esperou por mais convites. Subira ao topo d'uma grande pedra granitica, sobreposta a outras perpendicularmente collocadas no terreno penhascoso, as quaes formavam um dos antigos monumentos denominados dolmens, que ainda hoje abundam como venerandos vestigios da vetusta civilisação celtica.

-- É no Torrão o fogo! -- communicou o servo, empoleirado no dolmen.

-- E se fosse no solar?! -- observára o outro, quando aquelle já se tinha abeirado da balouçante liteira.

-- Quem sabe?!...

-- Ah! que se o nosso amo nos tivesse acompanhado?!...

«Mas... o que significará esta demora em apparecer-nos?...

-- Receio muito pela sua liberdade: muito!...

-- E eu tambem.

-- Aquella approximação dos ginetarios e dos bêsteiros do conto?!...

-- Quem nos diz a nós que o incendio não fôra posto por elles?...

-- Tudo pôde ser...

-- Se pôde!...

-- Entretanto confio muito no orago do Torrão, com quem o nosso infeliz amo tem grande devoção e fé.

D. Joanna Zagalo não ouvira, felizmente, nem uma unica palavra d'este ligeiro dialogo.

A pobre senhora continuava em lucta intima com uma série de pensamentos tristes, os quaes, a breve trecho, se lhe convertiam em extremos d'excitação.

Se -- qual espada de Damocles -- o punhal de D. João II lhe ameaçava a cabeça do esposo que estremecia, levando lhe á alma em trevas o mais pungente temôr, tambem lhe era motivo para cruentos receios o problematico futuro dos filhos, que ella via como que a dois simples passos do cairel d'um medonho e fundo abysmo.

Empolgada, pois, por tão cruel meditar, não dêra fé do que se havia passado durante a enfadonha jornada desde o Torrão até Alvito, onde, como o leitor não ignora, se devia encontrar com o esposo, que deixára no solar.

E passára o dia em sobresaltos do espirito e solavancos da liteira, até que, pouco antes d'anoitecer, o vehiculo chegara ao seu destino, alojando-se depois ella e os pequenitos na única e desconfortável estalagem que existia na pobre villa alemtejana.

Ah! mas as horas foram decorrendo: cahira já melancholica a noite, e Damião Ribeiro não chegava, nem sequér apparecia ao longe... não ia, emfim, tranquillisar o coração da agitada esposa, que não cessava de prantear nem por um único momento.

-- Meus Deus! -- exclamava ella, enclavinhando as alvas mãos, as lindas mãos de patricia.

E passava, de seguida, a orar mentalmente n'um recolhimento profundo de monja mumificada. -- oração convulsa e vehemente, que havia de chegar junto a Deus n'um côro de soluços reprimidos e de canticos nostalgicos de rouxinóes, que se expandiam, em ondas sonoras, nos soutos e nos pomares.

Continuaram os segundos, os minutos e as horas no seu correr galopante.

A joven senhora chorava ininterruptamente; os pequenos filhos perguntavam-lhe pelo pae e choravam também; os servos diziam entre si palavras de desconforto; e nos caminhos, emfim, não se ouvia mais do que o chiar dos carros ao longe; o gemer dolente das noras; os indolentes rumores da ramaria; o poetico gargarejar dos arroyos, e o lugubre piar dos mochos.

Ah! mas que esfuziar de tempestades no coração amante da triste mãe de Bernardim, a despeito dos affagos d'aquella noite perfumada e morna... da adoravel quietude d'aquella noite de verão!...

Porém - e como que na santa tarefa d'acabarem com um sonho mau -- aos ouvidos da desolada esposa chegaram os sons d'umas vozes ruidosas... d'umas vozes d'ale'gria... d'umas vozes de conforto!

-- Senhora?!... senhora?! -- gritára um dos servos, da rua:

«É chegado, emfim, o nosso amo e senhor Damião Ribeiro, acompanhado de Sancho Paes!

«Eil-os aqui, coitados, cobertos de pó e suor!...

-- De pó, de fadiga, e de terrores! -- accrescentou, notavelmente commovido, o parcial do pobre duque de Vizeu.

-- Damião?! -- soluçára a mãe do futuro trovador, assomando ao peitoril da casa, e manchando com a alvura do rosto feiticeiro o branco véu de luar, que a envolvia e toucava.

Damião Ribeiro subira a quatro e quatro os degraus de pedra da extensa escadaria que o separava da esposa, a quem apertara depois n'um amplexo fortissimo, cobrindo lhe ao mesmo tempo a face com os mais sôfregos beijos.

Os pequenitos, estendidos sobre dois frescos preguiceiros, dormiam agora o somno dos anjos, sonhando talvez -- quem sabe? -- com um futuro de torturas, de lagrimas, e de mortalhas.

-- Que longa demora foi a tua, Damião?!

«Eu cheguei a julgar-te victima do terrivel bulhão alleivoso do fraco rei carniceiro!

-- Em pouco falhou a tua conjectura, minha amiga.

E explicou :

-- D. João II, após o assassinio do mallogrado D. Diogo, enviara, como sabes, contra mim, alguns bêsteiros do conto e os ginetes de Fernão Martins de Mascarenhas, com ordem expressa de me levarem, vivo ou morto, á ensanguentada alcáçova de Setubal... ao vergonhoso theatro da sua ultima traição.

«Quando sahiste do solar, encontravam-se já em marcha os janizaros do pérfido rei homicida, de cujas garras me livrei por um milagre de Deus!...

E depois de ter tomado um immenso hausto d'ar, passou a relatar á assombrada esposa tudo quanto o leitor já sabe, desde a invasão dos bêsteiros e ginetarios no velho solar do Torrão, até ao momento em que Damião Ribeiro e Sancho Paes se encontraram impedidos de fugir pelo subterrâneo, que se encontrava fechado.

Dona Joanna Dias ouvia o esposo com ostensivos signaes de terrôr na face, e, de quando em quando, dava a liberdade a um ai reprimido, emergente do coração.

Damião Ribeiro rematára o relatorio com os ultimos pormenores do memorável assalto, -- pormenores que o leitor não conhece ainda, e que consistem na própria fuga e na de Sancho Paes pela porta principal do antiquissimo solar, que os besteiros e ginetarios, n'uma grande imprevidência, haviam deixado abandonada, depois de feita em bastilhas.

E concluiu :

-- Fatigados de me procurarem baldadamente, os malvados lançaram fogo à saudosa casa onde nasci, e onde nasceram nossos filhos... estas infelizes creanças!...

- Jesus! -- exclamou a mãe de Bernardim, synthetisando n'este grito d'alma um volumoso poema da mais cruciante dôr!...

A noite, até cêrca da madrugada, fôra passada entre protestos, combinações, soluços e desalentos.

Damião Ribeiro e Sancho Paes -- em trajes de peregrinos -- iriam, como foram, para Castella; e a inconsolavel senhora -- acompanhada por seus filhos e pelos dois servos leaes -- transferir-se-hiam para Cintra, para a quinta de Val-de-Lobos, onde viveriam, como viveram, completamente escondidos e absolutamente disfarçados.

Ah! mas a despedida dos dois esposos excedeu tudo de dolente quanto á mais sensivel creatura seja dado imaginar.

Ajuize-o quem tiver um coração de sentir, porque ha lances na existencia, cuja exacta descripção não pôde a penna fazer.

IV

Mau encontro

A jornada de Dona Joanna Dias desde o Torrão a Alvito, e desde Alvito a Cintra, foi bastantemente morosa e não pouco accidentada.

É que lhe conviéra sahir dos caminhos ordinariamente trilhados pelos homens d'armas de sua senhoria el-rei, e ainda pelos almocreves, bufarinheiros, estafêtas e outros traficantes, os quaes, nos provectos tempos em que se passaram estes factos, os procuravam de preferencia, e com razão, aos mais difficeis e extensos.

D'est'arte a desolada esposa de Damião Ribeiro não corrêra o perigo d'encontrar-se e ser presa pelos quadrilheiros d'el-rei, e evitou tambem o haver sido vista pelos transeuntes das vias ordinarias, que a poderiam denunciar áquelles, propositadamente ou não.

A este tempo o bispo d' Evora jazia encarcerado n'uma cisterna, onde, como o leitor já sabe e é veridico, havia de morrer dentro em breve envenenado; e os outros conspiradores e familias eram procurados assiduamente para terem um fim egual ao dos chefes da rebeldia.

Largo tempo gastou D. Joanna na sua amarga e assás perigosa peregrinação:

Ah! quantas vezes não teve de passar com seus filhos e servos a duro e negro pão de rala, cedido compassivamente pelos camponios semi-selvagens; e quantas noites não dormira a fatigada caravana exposta ás intempéries, e rodeada por alcatéas de lobos esfaimados, de que se defendiam por meio de fogueiras?!...

Na passagem por perigosas charnecas e pavorosos pinhaes, muitas vezes o fatigado grupo ouvira o agudo silvar dos bandidos, no aguardo de desprecavidas presas; mas, fôsse pelo que fôsse, ainda os bandoleiros se não haviam approximado da acanhada e não pouco incommodante liteira.

D. Joanna tremia como um nevrotico quando, pelos seus ouvidos, passava o som penetrante d'esses silvos convencionaes; pois que sabia bem que, a ser surprehendida pelos brutaes salteadores, não só perderia o pouco que levava em dinheiro e jóias de seu uso, como correria risco a sua honra, e a própria vida também.

Mas a afflicta senhora-- que fôra sempre um modèlo de virtudes e formosura -- não estava ainda livre d'um ultraje; porquanto, havendo rodeado muito, encontrava-se internada agora no ponto mais escuso e perigoso da interminável jornada.

Uma noite -- depois de se ter afastado d'uma póvoa miseravel, que lhe não inspirára a mais pequena confiança, -- acampára com os filhos e servos n'um espaçoso azinhal, e alli conseguira descançar um pouco da exgotante lida de tão penosa marcha.

Braz Caniço, e Marcos Andronio -- os serviçaes -- velavam alternadamente, emquanto D. Joanna dormitava, e os seus dois filhos dormiam um somno de bem-aventurados... o bom somno da innocencia.

Alli não havia felizmente lobos que obrigassem a accender fogueiras, nem tão pouco a armar as bêstas; mas, em compensação, abundavam os bandidos, sempre ávidos e sempre á espreita d'abastados viandantes.

E os apitos começaram quando a mãe de Bernardim Ribeiro já tinha entrado a dormitar, obrigada pela fadiga.

-- Ouves?!- perguntára o Braz ao Andronio, o qual, embebido na môrna tranquillidade da noite, não prestara attenção aos silvos, que começavam a soar a uma certa distancia.

-- Oiço... o quê?! -- inquirira o interrogado, como que despertando d'uma funda contemplação.

-- Pois não ouves assobiar, ao longe?!...

-- Sim... oiço agora... oiço agora.

-- E se tivessemos sido descobertos?! -- perguntára ainda o Braz, muito enfiado e trémulo.

-- Antes os bandidos, do que os ginetes de Fernão Martins, ou os bêsteiros do conto.

Depois... occorrêra um não pequeno silencio.

Os apitos haviam deixado de fazer ouvir os respectivos sons estridulos.

E os dois homens refaziam-se de coragem, visto terem entrado na crença de que o perigo da approximação dos bandoleiros estava agora passado.

Entretanto -- e decorrido algum tempo - ouviram os dois servos um sussurro baço... como que o fragôr produzido por um vivente que se encontrasse em difficuldades de transito, por efTeito do emmaranhado d'um massiço de vegetaes.

E o arruido ia augmentando de volume, á medida que decorria o tempo, até que por fim se tornára o mais completamente audivel.

-- Serão lobos? -- inquirira o Braz erguendo-se de golpe, e empunhando a besta que munira com um pelouro.

-- Lobos ou javalis! -- respondeu o Marcos lançando mão do chuço, o preparando-se para defender-se do que quer que se abeirasse.

-- Nem lobos, nem javalis! -- respondêra, com voz cavernosa, um homem de formas gigantes, o qual, seguido d'outros, sahia a muito custo do interior d'uma sarça.

E os dois servos, legitimamente abysmados, ficaram immoveis, como se fossem de chumbo.

Dentro do damnificado vehiculo D. Joanna e os filhos continuavam a dormir, sem que sonhassem sequér com o que se estava passando.

-- Ora até que emfim! -- continuou o homem agigantado, deixando vêr por debaixo do albornoz um cinto de bezerro, de que pendia comprida faca de matto:

«Soubemos, durante o dia, que uma vagarosa liteira, conduzindo formosa dama, percorrêra com precauções os atalhos, como quem evita o encontro com peões e cavalleiros.

Braz Caniço quiz interromper o discurso, mas sentira de momento como que entralhada a lingua.

E o desconhecido proseguiu:

-- Seguimos no encalço do mysterioso vehiculo, perguntando de póvoa em póvoa por elle... interrogando mendigos e viandantes... observando rastos... e fazendo, emfim, os maiores esforços por nos abeirarmos da desconhecida mulher.

«Ora, se no interior d'esta liteira se encontra a formosa creatura que procuramos, confessae-o já com verdade, se é que não quereis travar conhecimento com as nossas facas de matto, que envergonham as mais cortantes lancetas.

Braz Caniço continuava estupidamente immovel, como se fôra um dos vetustos cromleks que lhe ficavam fronteiros.

Marcos Andronio -- esse -- também não estava mais senhor da propria voz e movimentos.

Hirto como um defuncto... com o chuço entre as mãos inteiriçadas... e sentindo como que uma especie de rebate d'estupôr, nem sequér conseguira despregar os beiços trémulos .. duma tremura d'alcoolico.

-- Então?! -- trovejára o interrogante, que, tanto pelas palavras que proferia como pela correcção da figura, deixava adivinhar em si um salteador não vulgar:

«Acaso emmudecestes ambos?

«Está ou não está n'este vehiculo a seductora mulher que nos pintaram?

E dando um passo para os dois servos:

-- Não penseis por um momento que vos procuramos com tanto afan, para virmos roubar vos a miséria d'alguns reaes, que porventura hajaes comvosco.

-- Senhor-- começara Braz Caniço, n'uma enorme confusão --:

«Certo é que, dentro d'esta liteira, se encontra uma pobre dama com dois filhos ainda tenros.

«Por Deus vos peço, senhor, que hajaes compaixão da infeliz mãe, já de sobra trabalhada por um desgosto cruel.

E Braz Caniço -- a grande custo -- revelou aos recemvindos tudo quanto sabia, relativamente à fuga de Damião Ribeiro, e ao assassínio de D. Diogo na velha alcáçova de Setúbal.

-- Mais um traidor, que o braço de ferro de D. João II esmagou! -- ululára o desconhecido com um grande tremor na voz.

E continuou:

-- O sangue de D. Fernando de Bragança não fôra o bastante para afogar as irritantes pretensões dos nobres; e de crêr é que o de D. Diogo os não estorve ainda d'avançar na defeza d'ignobeis privilegios.

«Ah! que infames!... que infames!...

E calou-se por um momento, emquanto os apavorados servos o mediam, com a vista, em requintes da mais legitima e completa obstupefacção.

D. Joanna e os filhos continuavam sendo presas do somno produzido pela fadiga.

Depois o bandido concluiu:

-- Talvez vos seja estranha esta minha linguagem, que falar não costumam os bandoleiros vulgares?!. . .

«É que, perante vós, encontra-se um filho d' algo, que teve a infelicidade de não haver nascido primogénito d'um antigo senhor de vinculo, e que, como muitos outros desprotegidos da fortuna, fôra obrigado a sujeitar-se ás migalhas abandonadas pelo irmão, que o destino protegeu!

«Ah! mas entre a misera posição de lebréu esfaimado, e a de aventureiro de pinhaes e encruzilhadas, preferi esta, que me deshonrarà á face dos hypocritas, mas que me distingue dos sabujos, sustentados a ossos pelos irritantes morgados!...

E apertando com mão trémula o cabo de marfim d'um ferro ponteagudo:

-- Guerra, pois, aos abjectos adversarios do grande rei, que tem a peito dar o golpe de misericordia n'uns repulsivos restos de feudalismo, e fazer uma nova e santa era de prosperidade e justiça!...

Martim da Maia -- pois assim se chamava o agigantado desconhecido -- deixou-se raptar tanto pelo rancor que lhe creára no animo a idéa da propria situação, que, tendo procurado o vehiculo depois d'estimulado por um desejo libidinoso, se alheou por completo a elle, pois que, n'aquelle instante, o que mais o interessava era conhecer o paradeiro do pae de Bernardim, para fins assás sinistros que o leitor ha de saber.

E voltando-se com modos o mais possivel captivantes para os dois servos, perguntou-lhes:

-- Desejaes muito que vos deixe em paz, e que nem sequér desperte a dama que dorme profundamente ali?

Braz Caniço, e Marcos Andronio arrégalaram excessivamente os olhos; e, em face da inesperada pergunta, julgaram-se como que o ludibrio d 'uma espécie de pesadèlo.

-- Respondei-me por Deus, ou pelo diabo! -- insistira o salteador-fidalgo... o criminoso gerado pela peçonha dos feudos.

-- Pois não havemos de desejar, senhor?! -- respondeu meio desconfiado, meio tranquillo, um dos leaes servos do foragido Damião Ribeiro.

-- Bem está.

«Porém... para conseguirdes que nos ausentemos, e que vos garantamos a vossa passagem, sem perigos, atravez dos pinhaes e charnecas que ainda tendes a percorrer, convido-vos a revelar-me o logar, onde vosso amo se encontra fugido á justa cólera d'el-rei nosso senhor.

Se o volume d'uma montanha houvesse cahido aos pés dos dois honrados homens, certamente que a sua própria surpresa nunca poderia egualar a que experimentaram, tão depressa ouviram o convite do forçado bandoleiro.

Mas o que haviam de fazer elles em presença de similhante conjunctura?

Não denunciar o paradeiro do amo, equivaleria a entregar D. Joanna aos apetites brutaes do bandido, ou dos bandidos, e a ficarem todos, de seguida, alli, inexoravelmente apunhalados.

Não havia, pois, que hesitar.

Depois os dois homens não conheciam o fim que o rancoroso filho d'algo tinha em mente com relação a Damião Ribeiro, que elles julgavam muito a salvo de quaesquer traições ou surprezas.

Portanto, e depois de breve reflexão, disseram tudo quanto sabiam e quanto Martim da Maia desejava conhecer.

Seguidamente o salteador tirou da escarcella um pequeno pergaminho, entregando-o, acto continuo, a Braz Caniço, como salvo conducto que os livrasse, como livrou, de cahirem sob os ferros das quadrilhas que ainda haviam d'encontrar.

Martim da Maia -- acompanhado pelos seus homens -- retirou-se depois satisfeitissimo com as revelações recebidas; e os dois servos sentiram os corações libertos d'essa espécie de torniquete que lh'os apertára emquanto tiveram presentes os singulares bandoleiros.

D. Joanna e os filhos dormiam, ainda, no quasi desconjuntado vehiculo; e uma nova aurora d'agosto ia cêdo apparecer, exornada d'arrebóes seductores... de zephyros ciciantes... e de canticos festivaes dos diversos passaritos.

Pouco depois a liteira era vista a percorrer um estreito e cumprido côrrego, que se estendia no dôrso d'um cômbro escalvado, dando a singular impressão d'um grande e esguio reptil que fosse feito de pó.

Cintra -- a perfumada Cintra -- ainda estava a distancia com as suas edificações christãs e mouriscas, com os seus panoramas soberbos, com as suas levadas de prata, e com a sua odorosa e luxuriante vegetação.

V

Em Val-de-Lobos

Depois de varias inclemencias, sofridas sempre com singular resignação, a caravana chegou á pittoresca vivenda de Valde-Lobos, cêrca de légua e meia de Cintra, e a um kilometro exacto da actual estrada de Mafra.

Braz Caniço e Marcos Andronio haviam assentado entre si o não revelarem á ama aquella assustadora scena do azinhal, em que tivéra o papel de protogonista o agigantado Martim da Maia -- , intransigente adversário dos que se oppunham á grande obra do filho d'Affonso V.

Para que haviam elles d'acidular mais a situação moral da esposa de Damião Ribeiro, que tivéra a felicidade de não haver sido nem ao de leve incommodada pelo célebre salteador?

Depois -- tendo-lhe elles commmunicado, simplesmente, que seu amo havia ido para Castella em busca d'um refugio, que em Portugal se lhe negava --, futuravam o não terem feito uma revelação tão importante que podesse irremediavelmente perdel-o, visto como a Hespanha era grande, e como -- suppunham ainda -- as precauções do foragido haviam d'abranger todas as hypotheses, por mais difficeis e por mais extraordinarias que fossem.

D. Ignez Zagalo, e seu irmão o desembargador António Alvares, sentiram um mixto de satisfação e dó quando viram a prima e os filhitos, e depois que esta os puzéra ao fado da sua triste e assás critica situação.

Em Cintra -- e muito menos em Val-de Lobos -- não era conhecida a tragedia de Setubal: pois que, n'esses passados tempos, a maior parte dos factos -- ainda os mais sensacionaes -- ficavam á mingua de publicidade, pelo imperioso motivo de que não existia então a imprensa dos nossos dias, com o seu séquito d'informadores sempre ávidos de novidades.

Mas se o noticiário publico não era n'esta e n'outras remotas epochas nem sequér uma simples aspiração dos nossos extinctos avós, em compensação a sátyra pungentissima e o libello insultuoso tinham já, como as osgas, o seu logar nas paredes --, espécie de Pasquino da antiga Roma debochada, para onde a inveja e os ódios derivavam em letras escriptas com a baba venenosa das vindictas nauseantes.

Ora, em Lisboa, já era d'algum modo conhecido o assassinato do pobre duque D. Diogo: não pela descripção exacta e explicita dos factos, mas sim pelos pasquins affixados por mão invisivel nos pilares da alpendrada do Rocio, os quaes pasquins deixavam a escorrer sangue o immorredouro filho d'Affonso V -- esse principe sublime que, depois de ter conseguido, em parte, alevantar o reino do triste catre d'agonia politica e economica em que se debatia, morrêra estupidamente empeçonhado, com as derradeiras vistas da alma relanceadas aos veleiros galeões, que haviam de descobrir os caminhos maritimos da India... d'essa longinqua India com que tantas vezes sonhára.

Aos ouvidos d'Antonio Alvares tinham já chegado uns passageiros rumores da sangueira de Setubal, por mercê d'esses e outros pasquins affixados nas esquinas da capital; mas longe estava elle de suspeitar, sequér, que seu primo Damião Ribeiro era um dos attingidos pelo ódio implacável do inexorável monarcha.

-- Deploro-te e a teu esposo, minha prima! -- disse um dia elle á pobre mãe de Bernardim, n'um curto e hygienico passeio por intra-muros da granja.

«D'ora avante terás de viver aqui com teus filhos, como o misero presidiado no interior da masmôrra.

-- Como assim, primo António?!...

-- É que D. João II -- ao que se diz -- procura por toda a parte os conjurados, e já fez encarcerar e inquirir as famílias d'alguns dos foragidos, com o fim ambicionado de conhecer, ao certo, o paradeiro dos infelizes.

-- Ah!...

-- E se fôsse tão somente a prisão nos cárceres e nos mosteiros, minha prima?!...

E após ligeirissimo intervallo:

-- O peior... o mais amargo e cruel é a tortura applicada aos desgraçados, que não sabem, ou não querem fazer as desejadas revelações!...

-- Meu Deus!... meu Deus! -- interrompeu, debulhando-se em lagrimas, a formosa e desolada mulher.

-- Ah! mas não te desanimes, minha pobre Joanna! -- animou o desembargador Zagalo, pelejando heroicamente com a própria commoção.

«Porque os desprezíveis quadrilheiros não possuem o condão dos magos, para te adivinharem aqui.

«Socega, pois, minha amiga.

-- Respiro um pouco, Antonio.

-- O que faz mistér... absolutamenle mistér, é o teu completo recolhimento.

-- Recolher me-hei.

-- De resto... conta sempre com a minha dedicação e com a da tua bondosa prima Ignez, que é doida pelos teus filhos, mas, sobretudo, pela do teu terno e adorável Bernardim.

D. Joanna Dias agradecêra ao primo aquellas e outras palavras de confôrto, as quaes lhe serviram de allivio no meio de tão cruentos lances... d'esses lances insupportaveis em que, á dolorosa recordação dos perigos que a rodeavam, se juntavam os receios pelo esposo estremecido, de quem, nem uma vez somente, ainda havia recebido novas!

O tempo foi discorrendo vertiginosamente para uns, e lentamente para outros, sem que a situação dos Ribeiros melhorasse por um momento.

Certo dia o desembargador António Alvares, no seu regresso da côrte -- onde o chamaram as obrigações do seu cargo -- convidára a irmã, por um gesto, a ir ouvir-lhe confidencias.

O doutor Zagalo vinha tanto ou mais triste do que um condemnado à morte.

E aquelle vermelho sanguineo, com que o opulento ar do campo lhe tinha colorido a face d'um redondo abbacial, havia cedido o logar a um palôr de cêra virgem, que fizéra pensar a irmã n'um desarranjo qualquer.

-- Tão pállido?!... Adoecêste, acaso?...

-- Não; -- respondeu elle, assentando-se, de présto, n'uma poltrona de sola.

-- Mas essa côr doentia?!...

-- É a côr com que, muitas vezes, nos pinta o rosto uma agonia moral...

-- Tão enigmatico vens hoje?!...

«O que aconteceu... o que aconteceu, António?

-- Fecha melhor aquella porta, e fala baixo... por mercê.

E a intrigada Ignez Zagalo cumprira a ordem do irmão, não sem ter observado primeiro se haveria alguém no corredor que os podesse surprehender.

Mas ninguém havia alli: D. Joanna encontrava-se medicando a pequenina fllha; os servos estavam entregues ás suas várias occupações; e o melancholico Bernardim contemplava, no vergel, as lindas azas polychromas d'uma grande mariposa... seguindo-lhe, com olhos scintillantes, o volitar caprichoso e incerto em derredor dos cravos e ranunculos, dos lirios e girasóes.

De seguida o desembargador indicára á irmã um dos tamboretes, que se encontravam juntos da cadeira tauxiada em que se havia assentado.

-- Vaes ouvir revelações terriveis e dolorosas, minha bôa Ignez!...

«Ah! mas, por Deus, guarda em ti o que vou dizer-te...

«Que aos ouvidos de nossa prima não chegue nem uma syllaba sequêr...

-- Jesus! -- interrompera Dona Ignez, oscillando como um pêndulo.

E após ligeiro mutismo:

-- Faz-me já pavôr o teu segredo, e ainda m'o não revelaste.

-- Ah! é terrível... sangrento... medonho!...

-- Céus!...

-- Mas escuta, Ignez:

«Se não tens coragem para o ouvir, nem forças para o sepultares em ti, em tal caso faze-me a tua confissão, pois que, da ruptura d'elle, resultaria, talvez, a loucura ou a morte d'uma infeliz esposa e mãe!...

Ignez Zagalo não se atrevêra... não teve alentos para responder logo ao irmão.

E se, por um lado, a consciencia lhe segredava que era fraca em demasia para o guardar no mais recondito do seu peito, pelo outro a curiosidade -- tão própria dos individuos do seu sexo -- não se compadecia da ignorancia em que podesse ficar com relação a elle.

Era um dilemma difficilimo, cujas pontas muito a feriam moralmente, creando-lhe no espirito uma acérba situação.

António Alvares assistia mudo e contemplativo a esta pugna intima da irmã, e sentia que ella não estivesse já de posse do seu sigillo; pois que, incluindo naturalmente um desgosto que o pungia, ficaria d'algum modo mais reduzido, tornando comparte n'elle a excellente senhora, que sabia dar exemplos de resignação --, tão uteis e necessarios n'estas tristes conjuncturas.

Dona Ignez -- como era de esperar -- optára pela pavorosa revelação; mas promettêra ao grave magistrado que nunca repetiria, fôsse a quem fosse, uma só palavra do segredo que elle lhe ia confiar.

-- Pois bem. Vaes saber tudo, minha irmã.

«Ah! mas pensa bem... mas pensa maduramente no que acabas de prometter-me.

«Um grito de dôr, sabido d'esta casa, poderá converter-se n'uma sentença de exilio... se, antes d'isto, se não transformar n'um arranco de moribundo!...

-- Apavoras-me!... apavoras-me!...

E o doutor Zagalo, tendo-se alevantado da poltrona tauxiada, encaminhára-se para a porta da alcova, que abriu... applicou attentamente o ouvido ao que se passava no interior da vivenda, e, depois de convencido de que ninguém estava proximo, fechara de novo a porta dos aposentos, indo de seguida assentar-se junto da irmã, que aguardava a triste revelação n'uma anciedade pungente.

-- Infeliz Joanna! -- deplorou elle, com a voz entrecortada pelo pranto.

«Infeliz esposa... infeliz Damião Ribeiro... e infelizes creancinhas, que em nada concorreram para este escavar d'abysmos, que as rodeam!...

-- Dize o resto... dize o resto...

«Por Deus, tira me depressa d'esta anciedade, que me tortura!...

E António Alvares continuou, depois da curta interrupção:

-- D. João II, que se defende legitimamente dos inimigos que o cercam, acaba de saber que...

E não teve tempo para mais: fôra-lhe vedado o proseguir. Porque, á porta da alcova, batera alguém desesperadamente, e logo em seguida soaram gritos afflictivos, e o insistente appellidar de D. Joanna Dias pela innocente filhinha, a qual, insensivel a tudo, acabava de subir ao ceu, deixando-a immersa em lagrimas copiosissimas.

-- O que aconteceria, meu Deus?! -- perguntaram, erguendo se de golpe, D. Ignez e o irmão.

-- Morreu a pequenita! -- clamava, á porta da alcova, uma das servas da casa.

-- Morreu a pequenita?!...

-- Assim é... assim é, senhores meus!

-- Desgraçada mãe!...

E os dois irmãos correram rapidamente aos aposentos da prima, a qual, muito abraçada ao pequenino cadáver, lamentava, coberta de pranto, os seus cruéis e incessantes infortúnios... a sua triste e dolorosa situação.

Lá fora -- no vergel -- o pequeno Bernardim corria, como um louco, atraz da buliçosa borboleta, que, após demorados osculos nas flores, se alára em curvas graciosas, para ir tombar desastradamente, depois, nas aguas d'uma levada muito túrbida e murmurosa.

-- Morreu! -- balbuciava a custo o futuro bardo, alimpando com a mãosinha trémula uma lagrima que lhe cahia.

Ah! mas não sabia ainda o porvindouro trovador que a linda mariposa -- morrendo sem agonias na agua -- fora bem mais feliz do que as que morrem abrazadas... depois dum louco volitar.

VI

Em Valladolid

Qual seria a revelação que o desembargador começava a fazer á irmã, quando foi subitamente interrompido pelos clamores lancinantes da prima e pelo bater desesperado da serviçal?

Segredo é este assás difficil de desvendar, já, mas que ha de ser conhecido no lento decorrer d'esta veridica narrativa.

Deixemos por emquanto os dois irmãos na alcôva da inconsolável mãe de Bernardim... deixemos a pobre senhora entregue ás próprias e abundantes lagrimas... deixemol-a rodeada pelos cuidados e interesse dos dois primos compassivos... deixemos, finalmente, a pittoresca vivenda de Val-de-Lobos transmudada agora em estancia de soffrimentos moraes, e regressemos á pequena villa d"Alvito, onde, pela vez ultima, a infeliz Joanna Zagalo se encontrou com o pobre esposo.

Depois da tocante despedida, que não podemos nem soubemos descrever, Damião Ribeiro e Sancho Paes -- disfarçados em dois míseros mendicantes -- encaminharam-se para a fronteira de Hespanha, onde chegaram após dias de molestantes fadigas, e acurvados ao peso de justificados terrores.

O infeliz cumplice do pobre duque de Vizeu não podia esconder o pranto que lhe invadia a face, toda a vez que se lembrava dos filhos e da esposa... d'esses entes queridos e inolvidados, que fôra forçado a abandonar, para não deixal-os desde logo na orphandade e viuvez.

Ah! fôra elle, só, no mundo... estivesse solto d'esses liames, que prendem entre si os corações d'uma familia, que, longe de fugir para alheias terras, teria antes coragem para aguardar quaesquer punhaes aleivosos, com a mesma impavidez com que, nos estúpidos coliseos, os condemnados esperavam as bestas feras, morrendo ou matando, para desenfado dos césares.

Sancho Paes -- por suggestãò certamente -- sentia-se também assoberbado pelas agruras que molestavam o espirito do ameaçado amo: fallecendo lhe quasi sempre nos labios uma palavra de conforto, com que elle julgava poder suavisar as dolorosas situações d'alma, em que a miude cahia o inconsolavel fidalgo.

-- Meu amigo -- lhe disse um dia Damião Ribeiro, já á vista dos venerandos muros da opulenta Valladolid :

«É aqui, n'esta buliçosa cidade, que devemos occultar nos.

-- Aqui?!... Na côrte dos reis de Castella?!...

-- Sim. Aqui.

E philosophando:

-- Se te internarem n'um deserto, serás mais visivel ahi, do que confundido com as multidões das cidades.

Sancho Paes não respondeu.

É que não tinha contestação a affirmativa do amo.

Sim.

Porque n'uma epocha de convulsões politicas e sociaes, em que a lei fatal do progresso ia annunciando aos povos o baquear d'um systema de oppressão e preconceitos, tanto os reis como os senhores prestavam pouca attenção aos foragidos de fóra, e só muito estimulados por ponderosos interesses é que se dispunham a pôr de parte negócios da própria casa, para se occuparem, por momentos, dos respeitantes á casa alheia.

Portanto Damião Ribeiro poder se-hia dar por bem seguro em Valladolid, se porventura não houvesse a temer os bulhões d'assalariados bandidos, os quaes, então como hoje, se vendiam miseravelmente ao primeiro birbante que quizesse ajustar a consecução de quaesquer crimes ou infamias... de quaesquer traições ou torpezas.

E o parcial do mallogrado duque D. Diogo continuára:

-- Preveni-me com recursos para os dias do nosso amaro exilio: mas faz-nos mistér estender a mão á caridade, para podermos passar assim por verdadeiros mendigos.

«Que ninguem conheça aqui a minha qualidade de nobre, e que todos ignorem a amisade que me ligava ao pobre duque de Vizeu.

-- Socegae, senhor, e não me recommendeis o que me cumpre fazer; -- respondêra Sancho Paes, submissamente.

«A minha bôcca, no meio d'esta gente que desconheço, ha de abrir se apenas para lhe implorar o magro ceitil da esmola.

-- Bem está... bem está.

E fizera se um pequenino silencio.

Damião Ribeiro continuou depois:

-- Buscaremos saber noticias de Portugal; pois que é de presumir-se que á côrte dos reis de Castella venham, de quando em quando, algumas novas da nossa patria... da nossa querida terra.

E alimpando com a manga do escarçado albornoz uma lagrima ardentíssima que lhe brilhara na face, exclamou com grande tremor na voz... n'uma enorme commoção:

-- Ah! e a minha pobre mulher e os meus pequenos filhos?!...

«O que será d'elles... o que será d'elles, meu Deus?!...

Subitamente o foragido entregára-se a um profundo mutismo repassado de tristeza, que o servo leal e amigo tentára em vão destruir.

-- Ora vamos lá, senhor meu: basta de prantear!...

«Lembrae vos de que vossos filhos e esposa ficaram protegidos por vossos primos, que é gente de coração...

«No arredado esconderijo de Val-de-Lobos ninguem irá, de certo, embaraçar-se com elles.

«Assim nós estejamos tão seguros n'esta carrancuda Castella, como elles o devem estar na linda granja de Cintra.

Sancho Paes -- coitado -- também em lucta intima com o receio e com a activa nostalgia, não cessava, entretanto, de procurar meio que encorajasse o desalentado fidalgo, em cujo cérebro se lhe haviam indelevelmente gravado as imagens queridas da esposa idolatrada e dos filhos estremecidos... d'essas innocentes victimas dos seus grandes desatinos, combinados com o dominio que sobre si exercêra o pobre duque assassinado.

Ah! e que revoltas intimas... que tempestades horrendas se lhe não desencadeavam no espirito em trêvas, depois que as lagrimas da saudade se lhe evaporavam na face livida, e entrava no hediondo caminho das recordações acérbas e dos planos de represália?!...

O dedicado servo observava, estupefacto, estas continuas procellas psychicas em que se convertiam as crises nostálgicas do infeliz exilado; e, muitas vezes, capitulou de rebate de loucura aquelle estrebuchar de raivas comprimidas e de desejos impotentes alimentados pelo amo, no sentido d'uma vindicta tamanha, que excediam os horrores do supplicio moral e physico que o haviam transformado n'um moderno Prometheu.

Já intramuros da fidalga Valladolid, Damião Ribeiro nem ao de leve se deixára impressionar pela viva animação das suas turtuosas ruas e largos irregulares, nem tão pouco o seduziram os seus venerandos mosteiros, magnificos templos, e sumptuosos palacios de architectura gothica, onde se admiram hoje os esplendidos bustos de Hernandez e Berruguete, bem como as afamadas telas de Rubens, Ribera, Carduci, Bassano, Pereda, Zurbaran e Cardenas... esse celebérrimo Bartholomeu de Cardenas, que, no seculo XVI, honrára com o pincel, na Hespanha de Carlos V e Filippe II, a terra que lhe foi berço... este bello Portugal.

Muito vagarosamente; envoltos em andrajos; arrimados a nodosos bordões; com os pés ensanguentados das urzes das charnecas; muito pallidos; muito fatigados; muito abatidos; e, emfim, completamente exhaustos de forças, os dois homens deram entrada na capital de Castella ao anoitecer d'um dos primeiros dias do mez de outubro de mil quatrocentos e oitenta e quatro: cêrca de mez e meio depois da ruidosa tragedia da antiga villa de Setubal.

Os sinos tocavam ás avê-marias; os mechanicos abandonavam o trabalho; as alampadas dos nichos começavam a projectar clarões fúnebres sobre as lages das ruas; os serênos preparavam-se para roldar; os flammantes cortezãos da fanatica antecessora de Joanna a Doida recolhiam aos paços n'um ultimo curvetear de nervosissimos corceis; os bandidos espreitavam nos seus antros o lento desdobrar da espessura das sombras; e Izabel a Catholica -- a successora de Henrique o Impotente -- resava fervorosamente a Deus, ao mesmo tempo que pensava na sua fundação mais querida... a Santa Inquisição, com os seus equuleos, pyras, funis, e quemaderos, onde se torraram milhares e milhares de desgraçados em nome do manso Jesus, e para vigor da fé christã!...

No campanario do mosteiro de S. Paulo tocava-se ao côro, quando Damião Ribeiro e Sancho Paes acabavam de conseguir gasalhado, pelo amôr de Deus, na fétida estrebaria d'uma perigosa fonda, cerca do Campo de Marte.

Os dois fingidos mendigos -- muito rôtos e sujos, e com os cabellos crescidos excessivamente, -- poderiam apresentar-se em toda a parte sem perigo de serem reconhecidos, e até mesmo na presença de D. João II, que, em Portugal, perseguia raivosamente os imprudentes conjurados.

Quando elles se recolheram na estrebaria da fonda -- onde bruxoleava a luz funérea d'uma espécie d'absconsa -- divisaram, na penumbra, um grupo composto de três sórdidos mendicantes, os quaes, durante o dia, expunham aos transeuntes compassivos e ingenuos -- junto ás egrejas de S. Lourenço, S. Miguel e Huelgas -- umas nauseantes feridas cancerosas, puramente artificiaes, que, á noite, arrecadavam cuidadosamente em bocêtas, no momento de se abrigarem.

Um d'estes célebres mystificadores -- em excesso linguareiro -- salientava-se exuberantemente aos outros; os quaes, comquanto o não egualassem em fogosa verbosidade, nem por isso deixavam de responderlhe n'um castelhano vulgar.

Damião Ribeiro-- cuja preoccupação constante era a de saber novas da patria e da familia -- sustentára grande lucta com o somno, que conseguira a custo dominar, e heroicamente vencer.

É que necessitava d'ir ouvindo tudo quanto em derredor de si se dizia.

A seu turno Sancho Paes -- a despeito de todas as conveniências tanto proprias como alheias -- dormia um somno de comatoso, em razão dos muitos dias de fadiga que tivéra, e das muitas e longas noites que constantemente velara.

Ah! e que sonhos temerosos elle tivéra alli... n'aquella nojenta palha que lhe servia de leito, e que já o havia sido d'estafados quadrupedes, bem como de vários leprosos, bandidos e vagabundos?!...

Os mendigos castelhanos não cessavam de conversar:

O mais loquaz referira se á escacez da esmola, que havia tirado, durante o dia, junto á egreja d'Huelgas; e queixava-se amargamente, entre pragas e maldições, da bestial indifferença dos transeuntes pelas feridas nauseabundas que expozéra: feridas feitas artisticamenta em gesso pintalgado, com escorrencias purulentas trabalhadas em cêra virgem!...

Os dois restantes, ao contrario, não tinham queixa do dia, segundo as suas próprias e espontâneas declarações:

O do templo de S. Lourenço arrecadára boa gorgeta; não em razão d'um cancro que o minava desde os últimos trinta annos, mas sim em virtude das óptimas informações dadas a certa matrona rica, que andava parva d'amôr por um frade brutamontes.

E se ao mendigo de S. Lourenço o dia corrêra bem, ao outro -- ao da egreja de S. Miguel -- ainda corrêra melhor: visto que, encarregado por uma madre quarentona, se prestara a sumir no Pisnerga um niño de poucas horas, o qual, segundo a freira, havia nascido morto.

Damião Ribeiro escutava com engulhos os miseráveis. Exploradores da caridade publica, accumulavam com o logro, quasi sacrilego, os mistéres mais repulsivos, criminosos e degradantes.

A edade média, que já findara, então, mas cujos nocivos reflexos não estavam aioda extinctos, fôra fértil muito fértil, d'estas e d'outras torpêzas, delictos e perversões.

De seguida ao cynico relatório, os tres perigosos mendigos passaram a tratar d'outros assumptos egualmente irritantes:

-- Queres ouvir, ó Santyago? E tu lá, ó Perna-Pôdre ?

-- Dize o resto; -- responderam os dois patifes.

-- Talvez seja um ganchinho, percebeis?

-- Desembucha: vamos!

-- Ha coisa de quatro horas, arrastando eu para aqui o meu aleijão de gesso, vi... vi...

-- Viste, quem?

-- Vi um homem alto... muito alto... que me pareceu ser o picaro d'um portuguez...

-- Andam tantos por esta nossa Valladoli?!...

-- Parece que os malditos não teem em Portugal onde se escondam, quando às justiças d'el rei dá a gana de os engaiolar.

-- É que é tão pequena a terra d'esses velhacos, que se um raposo nosso quizesse esconder se alli, ficaria certamente com o rabo e a cabeça ao léo.

-- Ah!... ah!... ah! -- gargalharam, em coro, os trez bandidos, brutalmente.

Damião Ribeiro -- trémulo de raiva -- ouvia com toda a attenção o estupido dialogo.

Quizéra, por duas vezes, alevantar se da fétida estrumeira em que se encontrava deitado, para ir zurzir, com gana, os nojentos vagabundos: porém teve de soffrear tal desejo, pois que, além de ser perigoso este rasgo patriotico, deixaria de saber o fim da interessante revelação.

-- Conta o resto... conta o resto, ó Sevilhano?! -- imploraram, a um tempo, Santyago e Perna pôdre.

-- Sim. Vou contar tudo; -- acquiescêra facilmente o ascoroso malandrim.

E proseguiu :

-- O tal homem agigantado, apenas me mirou, approximárase de mim; e, n'um hespanhol de gallego, perguntou me se conhecia, ou não, todas as fondas da cidade e arredôres.

-- Disséste-lhe que conhecias, não é verdade? -- inquirira o Perna pôdre.

-- Exactamente.

-- E depois?... e depois?...

-- Depois... convidou-me a encontrar-me com elle, ámanhã cedo, na Calle de los sueños.

-- O que desejará de ti?...

-- Sabel-o-hei amanhã.

-- É um espião, talvez.

-- Póde ser. Não ponho duvida.

E calaram-se por fim.

Damião Ribeiro não perdera, nem uma syllaba, do interessante colloquio.

-- Um espião! -- murmurava elle mentalmente, recordando se, em sobresaltos, da índole tenazmente vingativa do filho d'Affonso V.

E pensando em espiões, venenos e punhaes, o pae de Bernardim entrara, pouco depois, n'um somno agitado... muito agitado e mau.

VII

Pacto nú

Tal como o antigo e valoroso Giraldo , Martim da Maia -- fidalgo e bandido como este -- estudára o meio de cahir nas boas graças d'el-rei, e de conseguir o perdão da horrivel série dos seus delictos.

E conseguira-o!...

Entretanto uma profunda diferença existe entre os dois :

É que o primeiro subira da degradante situação de chefe d'uma quadrilha até ás culminações da fama, por mercê d'um grande feito; e o segundo descêra da mesma repulsiva situação até ao nauseabundo lodo, onde se espojam os pérfidos e os cobardes.

Um d'elles redimira as próprias culpas pelo arrependimento do passado e consecução d'um rasgo d'heroicidade; e o outro emporcalhára mais e mais o já nojoso sudário das suas máculas, tornando-se de ladrão era espião e traidor!...

Depois da scena do azinhal, a que o leitor assistiu, e de seguida á retirada dos terriveis bandoleiros, Martim da Maia reunira toda a sua gente n'um vestuto casarão que lhe servia d'abrigo, e que se encontrava situado junto d'uma altitude, ao fundo d'uma extensa e solitária charneca.

Este homem que -- como é sabido -- era o filho segundo d'uma casa vinculada, dava, no meio dos seus bandidos, a impressão exacta do Sempavôr, quando, no tradicional castello de Montemuro, falára ao bando nas cordas de trez ramaes pendentes das ameias de granito, ou dos cutellos afiados dos desalmados sayões, se, infelizmente para todos elles, as justiças de el-rei lograssem captural os.

Escutemos, leitor, por momentos, o terrivel scelerado:

--... «ora, para que possaes frequentar estes pinhaes sem temor dos colmeneiros faz mistér que eu vá d'aqui prestar um importante serviço a el-rei, e que, por tal razão, haja d'elle concessões que muito importam a todos nós.

«Realisado o meu fim, sereis tranquillos senhores d'estas charnecas e encruzilhadas.

-- Muito bem... muito bem! -- berrou o bando.

-- Ocioso será dizer-vos que haveis de contar commigo nas partilhas dos vossos lucros...

-- Que lembrança a vossa, capitão?! -- observára o logar tenente da quadrilha, ao mesmo tempo que trocava olhares d'intelligencia com os temiveis companheiros.

E continuára :

-- Comquanto eu vos fique substituindo, haveis de continuar a ser nosso chefe, de quem receberemos sempre tanto ordens como conselhos...

-- Pois bem; -- interrompera Martim da Maia:

«Vou ausentar-rae, sem que possa dizer ao certo quando hei de voltar aqui.

-- Como assim, capitão?...

-- É que não sei se terei d'ir ou não a Castella, e de percorrer-lhe as cidades, uma a uma.

«Se fôr, enviar-vos-hei, de vespera, um proprio, com a gravura do meu firmal.

E como ultima instigação :

-- Sêde sempre unidos. Que no meu regresso tenha justo motivo de vos louvar a conducta.

-- Um por todos e todos por um! -- bradára, com enthusiasmo, o sanguinario logar tenente.

E accrescentou... com orgulho:

-- O nosso bando, recrutado entre monges divorciados do habito, e entre o que tem havido de melhor em filhos não primogenitos e bastardos de casas nobres, faz differença -- muita differença -- d'esses outros, cujos homens sahiram da escoria da relé, a mais estupida e faminta.

E após outras expansões d'este teor, Martim da Maia despediu se dos bandoleiros, e montára de seguida um possante marroquino, que ao cabo de pouco tempo o conduzira a Setubal, onde a côrte de D. João II se encontrava ainda.

Logo que o bandido chegou á velha villa do Sado, pedira a alguem da alcáçova, que o annunciasse a el-rei, «pois que havia ido a Setubal em razão d'um negocio muito urgente e ao mesmo tempo interessante».

-- Que interessante negocio será esse? -- perguntou D. João II ao encarregado de lhe communicar a pretensão do attrevido salteador.

-- Ignoro inteiramente, senhor meu.

-- Conheces, acaso, o inesperado recem-vindo?

-- Escassamente o conheço, real senhor.

-- Escassamente?...

-- Assim é. Penso eu que fôra elle o filho segundo d'um velho morgado, finado ha tempo n'uma terra alemtejana.

--Filho segundo d'um morgado?!...

É um pária, o infeliz!...

E os olhos de D. João II brilharam singularmente, como que se fossem dois pyrilampos mergulhados na escuridão.

-- Dize-lhe que venha; -- ordenou el-rei, passando seguidamente a consultar um velho mappa geographico.

«Ah! -- exclamou elle enthusiasticamente, pouco depois da sahida do cortezão:

«O descobrimento do caminho maritimo da India é por ora um delicioso desejo, que, em breve tempo, ha de ser o maior feito do meu difficil reinado!...

E tomando nota n'uma folha de pergaminho: «Bartholomeu Dias e Pero d'Alemquér devem ter o encargo de procurar a ignorada carreira para augmento d'estes reinos, e eterno padrão de seus valorosos filhos».

D. João II vibrava de legitima satisfação quando acabou de tomar nota dos nomes dos dois immorredouros nautas, os quaes ficaram ao pé dos d'outros marinheiros e descobridores de fama, bem como dos de PEro da Covilhã e Affonso de Paiva -- os impávidos exploradores e illustres caminheiros das inhospitas e adustas terras do longinquo Oriente.

Seguidamente o sumilhér annuuciára Martim da Maia, que, pouco tempo depois, se encontrava na presença de sua senhoria el rei.

*** -- Alevanta-te! -- ordenár-lahe D. João II, ao vêl-o submissamente ajoelhado.

E depois de tel-o lentamente mirado desde a cabeça atè os pés:

-- Ponderoso deve ser o negocio que tens a tratar commigo:

«Tamanha solicitude e tanta urgencia?!...

-- Ponderosissimo, real senhor! -- titubeou o bandido, n'uma enorme confusão.

-- Tremes e empallideces?!... -- exclamara, rijo, o monarcha, procurando no cinturão o cabo do seu punhal.

-- Senhor: Não é um miseravel traidor que se encontra junto a vós, senão um vassallo humilde... assás leal ao seu rei.

E o filho d'Affonso V fitou pela segunda vez o sicario, que continuava sob o energico effeito dum grande insulto nervoso.

-- Mas... o que desejas?... Responde!...

-- Real senhor: eu sou, por desgraça minha, o filho segundo d'uma casa vinculada. Durante annos fui sustentado quasi a ossos, como se fôra o misero mastim do solar onde nasci!...

D. João II, sem desfitar os olhos do antipathico adventicio, escutava-o, comtudo, com ostensivo interesse.

-- Sustentado a ossos por teu irmão primogenito, não é assim?-- inquirira o monarcha com grandes tremuras na voz.

-- Exactamente. Pelo morgado... pelo morgado, real senhor!

-- Continûa.

-- Não podia, senhor, supportar o despreso com que era tratado por meu irmão, que dividia por mim e pelos cães as migalhas da própria mesal...

- Ah!...

-- Um dia... um dia... já cansado de soffêr...

E Martim da Maia sentira-se como que estrangulado pelo terrível baraço d'um adorador de Kaly.

-- Dize o resto! -- intimou D. João II com relampagos no olhar.

-- Um dia... entontecido pelas agruras da minha triste situação... fiz-me bandido, real senhor!...

-- Bandido?! -- exclamou el-rei n'uma surpreza brutal.

--Perdão... perdão, senhor meu, e lembrae-vos de que o criminoso é quasi sempre a victima dos insensíveis... e o producto da miseria.

-- Lucta-se com ella até ao ultimo alento!...

-- Luctar se com a fome, real senhor, é tanto como o impossível.

«Ah! que se vós soubésseis o que é a fome com o seu cortejo de torturas e desesperos?!...

D. João II meditára por um momento; e Martim da Maia -- que era ultra-sincero quando falava da propria historia -- proseguira com firmeza, se bem que muito agitado:

-- Se ao homem, em perigo, a natureza exige a defesa própria, eu creio que não sou um criminoso, apesar de haver sido um scelerado...

-- Como assim, miserável?!...

-- É que me defendi, senhor meu!...

-- Mas és réo d'horrendos crimes, segundo as leis d'estes reinos!...

-- Convenções humanas, real senhor...

-- Convenções em que se baseia a ordem... e os interesses sociaes.

Martim da Maia não quiz, ou não pôde replicar, a despeito da sua própria philosophia um tanto ou quanto anarchica.

Como aquelles sublimes loucos, que pretendem endireitar o mundo, o repulsivo salteador esquecia se de que o estatuido é a obra lenta e observadora de largos seculos d'empirismo.

D. João II -- que, na confusão em que o pozéra a brusca prática, não sabia o que fazer do bandoleiro, perguntou-lhe ainda com aquelle tôrvo semblante, que o tornara tão temido e odiado do clero e da nobrreza:

-- Foi somente para implorares o meu perdão, que viéste hoje aqui... a estes paços de Setubal?

Martim da Maia, enveredando agora pelo terreno da hypocrisia, respondera servilmente:

-- Vim á vossa real presença para esse... e outros fins, senhor meu.

-- Quaes são elles?...

-- Salvar a vossa preciosa vida das vis surprezas de modernos conspiradores, e jurar sobre umas Horas que sou e serei sempre um vosso leal vassallo...

se bem que deshonrado e fraco, em razão do meu destino.

-- Vens salvar a minha vida?!...

-- Eu vos juro que venho, real senhor!...

-- Ah!...

E o filho d'Affonso V -- que via conjurados por toda a parte -- começára desde logo a pesar, em favor do bandoleiro, as attenuantes a que tinha realmente jús, as quaes resultavam da estupida e perversa lei dos vinculos, que reduzia homens nobres, mas infelizes, á situação deprimente de sabujos de irmãos... á misera situação de capachos dos morgados!!!...

Martim da Maia -- que conquistava terreno a olhos vistos -- baixára muito a voz, e segredou infamemente:

-- Das cinzas das conspirações dos execrandos duques, acaba de nascer outra, que tem o seu antro numa das terras d'Hespanha.

-- Qual é ella?... qual é ella?! -- ululou o soberano, em contorsões d'epileptico.

-- Castella, real senhor ! -- informára o bandoleiro.

-- Castella?!...

-- Castella, senhor meu.

-- E quem são os bandidos, a quem não amedrontaram ainda os golpes do meu punhal?...

-- Só d'um conheço o nome: é Damião Ribeiro, thesoureiro -- que foi -- do finado D. Diogo.

D. João II sorrira, então, um dos seus temerosos sorrisos, repassados de rancôr.

E após ligeira pausa, declarou:

-- Sei que o miserável conspira ha muito contra mim... infatigavelmente, sem descanso... sem trégoas... e sem receios!...

«Mais uma cabeça a entregar aos cuidados do sayão.

«Ah! mas o maldito foi certamente tragado pelo inferno, porque nem aguazis, nem bêsteiros, nem tão pouco os ginetarios de Fernão Martins conseguiram até hoje captural-o!...

«É que ginetarios, bêsteiros e aguazis teem dormido muito!...

-- Sem duvida, senhor meu. Entretanto, e emquanto elles dormiam, velava um forrado salteador pela vida e pela obra de vossa senhoria.

E Martim da Maia -- depois de ter fitado o monarcha, a quem similhantes mystificações conseguiram mergulhar n'um mare magnum de surprezas --, acrescentou, quasi ao ouvido d'el-rei, e abaixando excessivamente a voz:

-- O cumplice de D. Diogo -- talvez chefe dos modernos conjurados -- encontra-se, n'este momento, em terras d'Izabel a Catholica ou de Fernando d'Aragão, conspirando, com outros foragidos, activamente contra vós!...

-- O teu nome... o teu nome, que desejo galardoar-te?

-- Martim da Maia, real senhor.

D. João II ficou, por instantes, meditabundo.

Depois... ergueu a magestosa cabeça, e continuou:

-- Devo-te um grande serviço, Martim da Maia; mas juro-te, pelos ossos de meu pae, que mercê te será feita.

E o bandoleiro curvou-se profundamente, emquanto o surprehendido soberano proseguira:

-- Por emquanto limito me a perdoar-te passadas culpas... sob a condição da tua perpetua emenda.

-- Emendado e arrependido me rojo a vossos pés, real senhor! -- affirmára hypocritaraente o bandido, ajoelhando-se.

-- Ergue-te! -- ordenára-lhe el rei, com gesto largo.

Martim da Maia erguera se de presto, e o monarcha proseguiu:

-- Ora... desde que pertences ao grupo dos que desejam a emancipação da coroa -- emancipação que, por completo, se ha de fazer á custa da quéda d'uns restos de feudalismo, que infelizmente herdamos --, de direito é que dês todo o teu exforço em beneficio da santa cruzada que emprehendi, e de que hei de sahir victorioso, embora ferido de morte.

-- Real senhor: o antigo bandoleiro pertence-vos de coração e alma.

-- Queres dizer que poderei contar comtigo para qualquer missão arriscada, não é assim?

-- Podeis dispôr do meu braço, do meu agudo punhal, e da minha vida também.

-- Basta! -- exclamou el-rei, manifestando na turbidez do olhar o que lhe ia de pavorosamente trágico no espirito inexoravel.

E depois de mais algumas palavras -- proferidas agora em tom confidencial --, Martim da Maia sahiu da alcáçova radiante d'alegria.

De seguida encavalgára um brioso andaluz; e, dando-lhe d'esporas, desappareceu, na calada da noite, com a cabeça pejada de planos d'exterminio!

Para onde iria o miseravel bandido?

Para Evora? para Cintra? para a afastada Valladolid?

Vejamos, paciente leitor, se conseguimos, ou não, desvendar o segredo do terrivel scelerado.

VIII

Encontro aprasado

Voltemos mais uma vez, leitor, à buliçosa cidade de Vailadolid --, á corte da fanática Isabel a catholica e do impávido unificador da Hespanha, mas não menos fanático Fernando d'Aragão.

Poucos minutos antes da hora marcada para o encontro do Sevilhano com o mysterioso extrangeiro, os mendigos da immunda estrebaria adaptaram ás carnes illesas os falsos aleijões com que exploravam o publico; lançaram mão dos respectivos alforges e muletas; ergueram-se do nauseabundo pavimento, que lhes servira de cama; e, sem lavagens e preparos, pozeram-se vagarosamente a caminho da comprida e tortuosa calle denominada de los Sueños.

Os trez velhacos não tinham dado nem déram pela presença de Damião Ribeiro e de Sancho Paes, que, já despertos, observavam tudo quanto se ia passando no ascorosissimo estábulo.

Vigiados de perto pelos foragidos, atravessaram o espaço triangular que constituia o antigo Campo de Marte: entraram na estreitissima Calle del huerto; passaram além d'um pequeno labyrintho formado por emaranhadas viellas; e, logo depois, encontraram-se na demandada Calle de los sueños... uma espécie de rua de cemiterio, onde, a qualquer hora do dia, se poderia matar impunemente um transeunte qualquer.

O desconhecido de quem havia falado o Sevilhano encontrava-se á porta d'uma bodega quando entraram na calle os trez miseros vagabundos.

-- Eil-o além ! -- exclamara o repellente andrajoso, indicando-o com o dêdo ao Santyago e ao Perna-pôdre.

-- Gigante, como um dos abencerrages! -- affirmára o Santyago, que, antigo moço de cégo, levára velhas rapsódias até à côrte opulenta dos reis árabes de Granada.

E muito devagar -- pois que os miseraveis coxeavam fingidamente -- os três mendigos encaminharam-se para o desconhecido, que, como o leitor adivinhou já, era o antigo sicario Martim da Maia, enviado e protegido agora do filho d'Affonso V.

A seu turno Damião Ribeiro e Sancho Paes -- que sustentavam nitidamente o disfarce de mendicantes -- seguiram as pegadas dos hespanhoes; e, sem que houvessem dado nas vistas, conseguiram collocar-se em logar próximo da bodêga, d'onde ouviriam tudo quanto ia passar-se entre o antigo scelerado do azinhal e os trez repugnantes e perigosissimos vagabundos.

-- És um homem de palavra! -- começara Martim da Maia, dirigindo se ao Sevilhano.

E quasi ao ouvido do malfeitor:

-- Quem é esta gente que te acompanha?

-- É gente de vergonha e honra! -- respondeu o miseravel, confundindo sentimentos nobres com a lama dos sapaes.

-- Ora dize-me: será capaz d'ouvir segredos, sem perigo de os revelar ?

-- Nem se pergunta, senhor meu.

-- Bem está. Em tal caso... que se approxime.

E o Sevilhano fez signal, de se approximarem, aos dois cynicos mystificadores.

-- Dizei-me, amigos meus -- convidou o Maia, decorando as feições e as vestes dos ascorosos mendigos: -- quereis ganhar, sem canseira, uma escarcella com ouro?

-- Que pergunta a vossa, fldalgo!...

«Se queremos?!...

«Nós... que nos finamos de fome, dentro d'estes pobres andrajos!....

-- E tereis forças de sepultar dentro de vós o que revelar-vos vou, sem que me seja mistér punir, á punhalada, a mais somenos inconfidência?

-- Se temos?! -- bradaram, entreolhando-se, os trez mendigos a uma voz.

-- Bonda! -- interjeiceonou, com um gesto, o antigo bandoleiro.

E, após um passageiro mutismo, revelou:

-- Um homem ha -- um fidalgo -- que, tendo sido cumplice no nefando crime de rebellião contra um certo e poderoso rei, se refugiou em Castella, depois que o punhal e a peçonha derrubaram parte dos sacrilegos revoltosos.

-- Dizei o resto, senhor...

-- O criminoso encontra-se hoje n'uma das terras d'este estado, segundo a confissão arrancada por mim a um dos seus mais antigos e mais fieis serviçaes.

Damião Ribeiro -- no seu commodo esconderijo -- tremeu violentamente quando o Maia se referiu á confissão forçada do servo; mas o infeliz foragido conseguira recalcar no espírito attribulado os infernaes receios que o torturaram, ao lembrar se da familia e dos amigos.

Martim da Maia proseguiu:

-- É crença minha que o homem que procuro se encontra em Valladolid, onde -- n'este momento -- talvez se occupe de novos e sangrentos planos d'exterminio contra o seu e meu rei, que profundamente venero.

-- É provável... é provável... -- disseram os trez mendigos.

-- Ainda bem que estaes commigo, n'estas suspeitas que nutro.

«Ora... como vim expressamente aqui com o fim de punir o monstro, solicito, portanto, o vosso auxilio n'esta cruzada, e garanto-vos desde já, por meio da minha palavra d'honra, o premio de que vos falei... se porventura o merecêrdes -- Auxiliar-vos-hemos, senhor: mas resta-nos saber que auxilios desejaes.

E déra-se uma ligeira pausa.

Martim de Maia cuotinuou depois ; -- É fácil... assás fácil o que de vós desejo...

«Dizei-me: conheceis todos os velhacoutos d'esta populosa cidade, não é assim?

-- Como os nossos dêdos; -- respondera o Sevilhano.

-- Fondas, tabolagens, bodegas...

-- Tudo, tudo conhecemos.

-- Optimamente.

E de seguida a nova pausa :

-- Pois lemos de encetar já o trabalho da pesquisa.

«Somos quatro: um de vós servir-me-ha de guia; e os restantes começarão, sem delongas, a farejar os covis.

-- Mas que signaes nos forneceis do fugitivo ?

-- Sim... devo dizer- vos os signaes d'esse traidor, que não conheço.

E, tirando da escarcella um pedaço de pergaminho, lera depois a meia voz: «Alto; pallido; barba comprida e negra; e, n'uma das faces, uma funda cicatriz».

-- De nada mais precisamos; -- declarou o Perna-pôdre.

-- E a caminho! -- exclamara o Sevilhano.

-- Ainda não! -- observou o bandoleiro.

-- Todavia...

-- Escutae-me por um momento.

«É mister que fiqueis sabendo o resto.

-- Pois não dissésteis ainda tudo?!...

-- Não disse.

-- Falae, então, se vos praz.

-- Attenção...

Ah! mas quando o ex bandido ia para fazer as ultimas revelações, reparou, por acaso, em Sancho Paes e Damião Ribeiro, os quaes -- muito subtilmente -- acabavam de sahir do seu posto d'observação, com o fim determinado de passarem além das vetustas muralhas da muito antiga Valladolid.

IX

Fugindo para Burgos

Deixemos caminhar o tempo por cima da nova scena d'este dolente drama. Transformal-o-ha em tragedia a mão infame da aleivosia?

Quem poderá lêr no futuro, que se occulta por detraz do segredo... do mysterio?!... Ninguém.

A pythoniza de Delphos, ou é uma lenda, ou um embuste.

Os fakirs não passam de mórbidos sonhadores.

As sagas foram o parto dos cérebros escandecidos da velha Roma temulenta.

O fetchismo, emfim, serve e ha de servir apenas de nível, para accusar ao progresso as depressões do passado.

Poderemos saber, portanto, se o punhal vendido a el-rei pelo repulsivo bandoleiro virá, ou não, a tingir-se no sangue do foragido?

Não podemos.

Todavia -- para satisfazermos a nossa justa curiosidade -- sigamos leitor, muito disfarçadamente, as ultimas personagens d'esta despretenciosa novella.

Martim da Maia -- surprehendido pela apparição dos dois homens, que se afastaram,-- enviou o Sevilhano no encalço d'elles, com o expresso encargo d'impedir-lhes o passo.

E, apesar de tudo, a razão da violência era racional sobremodo... realmente justificavel.

Porque dois desconhecidos, que, occultamente, acabavam de apoderarse de segredos tão melindrosos, não podiam deixar de ser reconhecidos e até sequestrados, ainda mesmo que esses segredos não consistissem no assassinio traiçoeiro d'um homem, cujo paradeiro se pretendia descobrir.

Mas Damião Ribeiro e Sancho Paes como que adivinharam a resolução do sicário, ao mesmo tempo que comprehenderam o sério perigo que corriam, em razão do seu enorme attrevimento.

Portanto -- e fugindo sempre -- conseguiram ganhar não pequena deanteira ao falso aleijado, que, avassallado pelo receio, desistiu alfim de perseguir os fingidos mendicantes.

E retirára-se para a bodéga, na resolução de reunir se ao perigoso grupo, que falava acaloradamente nos dois ousados desconhecidos.

Ouçamos a ultima parte do exaltado dialogo.

É Martim da Maia quem fala :

-- A corpulencia d'um dos escondidos dá-me muito que pensar, agora...

«Ah!... a face!... a face!... Devíamos ter reparado na face d'esse attrevitlo velhaco.

«Mas... quem seria o outro picaco que o acompanhava?!...

E fizéra se um ligeiríssimo silencio, que o Santyago interrompeu:

-- A face... ia jurar que me pareceu marcada por um funda cicatriz...

--Devéras?! -- interrompeu Martim da Maia, com faíscas no olhar.

-- Devêras.

- Ah!...

-- Juro-o sob esta cruz, senhor meu, que venero como christão.

E o patife fez uma cruz com os dedos indicadores as duas mãos, que, de seguida, beijara unctuosamente, curvando o corpo em reverencia.

-- Em tal caso, persigamos por nossa vez os fugitivos!

«Uma escarcella d'ouro, comprehendeis?

-- Seja.

-- A caminho... a caminho!...

E, seguidamente, os trez homens partiram como raios na direcção tomada pelos pseudo mendicantes.

Santyago e o Perna-pôdre -- olvidados dos immundos aleijões -- corriam como gamos na rectaguarda do miseravel sicario... d'esse infame vendido aos ran- cores do filho d'Affonso V.

Uns e outros, fitando os corvos que voavam doidamente em busca de carnes pôdres, tinham-lhes inveja das rijas azas cortantes com que venciam vertiginosamente as distancias, soltando gritos selvaticos... estupidamente estridentes.

Mas os miseraveis se não voavam, corriam muito.

Não crocitavam monotonamente como as aves carnívoras, mas rumorejava-lhes nos ânimos derrancados a mais insoffreavel cobiça.

Não iam, finalmente, em busca das putrefacções da matéria, mas seguiam os as podridões da alma, desenvolvidas ao infernal calor de requintadas torpezas!...

E já fóra da denegrida cêrca -- onde outr'ora se haviam ferido mil combates d'exterminio,-- os três homens encontraram-se com o cobarde Sevilhano, o qual seguia á ilharga d'um requeimado gitano, que se havia encontrado n'um córrego com os tristes foragidos.

O emérito mystificador já sabia tudo quanto convinha saber ao perverso Martim da Maia.

É que, Sancho Paes, havia involuntariamente aggravado a difficil situação do amo.

Desconhecedor do terreno que pisava... perfeitamente alheio a Castella, dirigira-se ao gitano a quem pedira differentes informações, que se lhe tornavam, como é obvio, sobremodo indispensáveis.

Depois... caminharam em harmonia com as indicações recebidas, mas deixaram-o sciente dos próprios signaes particulares, que lhes convinha esconder, e do rumo que resolveram seguir.

E o vagabundo ficou sabendo, pelo gitano, que os dois fugitivos peões eram portuguezes; que um d'elles, de estatura elevada, exhibia na face uma funda cicatriz; e que ambos, finalmente, se dirigiam ás cegas para a cidade de Burgos, onde desejavam temporariamente ficar.

-- Então?!... então?! -- perguntara vivamente o Maia ao falso aleijado, referindo se á diligencia de que havia incumbido.

-- Está descoberto o criminoso; -- respondeu o miseravel.

-- Será possivel?!...

-- Não o duvideis por um instante, senhor meu.

-- Ah!...

E, a convite do Sevilhano, o homem de tez escura repelira tudo quanto já dissera a este infame e repellente mystificador.

-- Em fuga para Burgos?!...

-- Assim m'o declarou um dos mendicantes.

-- Um cavallo!... um cavallo!... -- solicitara o bandoleiro.

-- Em breve o tereis aqui; -- prometteu o Santyago, desapparecendo em seguida.

E, meia hora depois d'esta ultima occorrencia, Martim da Maia galopava na direcção de Burgos, seguindo os caminhos indicados pelos perigosos mendigos.

X

Duello nas trevas

São decorridos alguns dias d'indescriptiveis amarguras para os dois miseros foragidos, e de febricitante anciedade para o infame vendido á cholera justificável do torvo rei portuguez.

A antiga e veneranda cidade de Castella -- comprimida pelo cinto de granito dos seus muros seculares -- lá está ao longe, na gélida silenciosidade da noite, tal como pavorosa visão das velhas lendas scandinavicas.

Situada no declive d'um valle, parecia escutar do seu têso de rocha o eterno murmúrio das aguas do Arlazon, e segredar mysteriosas confidencias com as sombras que se agitam nos pomares do Vega , bem como com os sopros d'uma viração cortante, que faz rumorejar de quando em quando a abundante ramaria.

Do seu arco de triumpho, alevantado em honra de Fernando o Grande , resulta nitida a impressão d'um novo David acurvado sobre o solo, procurando a fatal pedra que derrubára o gigante philisteu... o terrível Goliath.

As arrogantes torres do castello... as rijas e denegridas barbacans... as esguias e quasi phantasticas guaritas... toda aquella mole de granito, emfim, parece contemplar, ainda, n'um duro rictus brutal, o estrebuchar dolente do musulmano, arremessado como um pêrro ás profundezas do fosso.

Recortam as lugubridades d'um céu frio e pardacento os ápices dos campanários da magestosa cathedral gothica, cujas portas e janellas ogivaes, adornadas de surprehendentes vitragens, como que completam o quadro silencioso d'uma das noites mais soturnas da antiga e heroica cidade... d'essa Burgos que fóra o berço do maior campeador.

Por uma das portas da cêrca dá entrada o infame Martim da Maia, o qual -- rendido á fadiga -- vem montado n'um causado rocinante, e é seguido por um moço andaluz, que ajustára, desde longe, para servir-lhe de guia.

A distancia annunciam os serenos a meia noite n'uma voz plangorosa, bem como o estado do tempo, que é deveras desagradável.

-- Eis-nos na cidade, senhor meu -- annunciára o guia ao terrivel scelerado.

-- Já não é sem tempo. Upf!...

«Ah! que malditas jornadas desde Valladolid até Burgos!...

-- É que, até ao momento que vos encontrei perdido, seguistes erradamente os mais difficeis caminhos.

-- Ora dize-me cá: E gasalhado?

-- Não é fácil o ser encontrado a estas horas, senhor.

-- Hein?!...

-- É tão tarde?!... Meia noite...

«Entretanto vamos vêr se poderemos encontrar, ou não, dois catres na antiga fonda da Isla.

-- É muito longe?

-- Pertissimo. Fica á beira do Arlazon.

-- Ainda bem.

E os dois homens encaminharam-se silenciosamente para a velha estalagem de Burgos, cujos moradores dormiam profundamente quando os noctívagos entraram na cidadella.

-- Parece um mausoléo! -- observára o Maia ao avistar a silenciosa fonda, ou estalagem.

-- Quereis que toque o ferrolho? -- perguntou o guia.

-- Mas isso já... depressa... com toda a gana.

E o andaluz bateu de rijo na grande e grossa porta de carvalho.

-- Nem um rumor, sequér! -- exclamou elle ao cabo de longa espera.

E batêra novamente, com mais força e isochronismo.

-- Nada!...

-- Morreram esses cachorros!...

E terceira vez mordeu o chapeamento da porta a rija cauda do ferrôlho.

-- Dormem como cevados!...

-- O que fazer agora ? -- interrogou o guia, após um chorrilho de pragas contra a Virgem e o Padre Eterno.

-- O que fazer agora?!...

-- Sim. Pois havemos de ficar aqui até ao dia?...

-- Não.

-- Em tal caso...

-- Em tal caso arromba se a porta.

-- É de carvalho... chapeada... á prova d'ariete!...

-- Maldito o picaro que a fez!...

E depois de breve silencio:

-- Não haverá em Burgos outras fondas que nos recolham ?

-- Sim... ha. Mas de que nos servem ellas, se estão fechadas como esta?...

-- Queres dizer que temos de ficar na calle... ao relento, não é assim?!... .

«Os demónios comam esta gentalha de Burgos!...

-- Ora esperae lá senhor... por mercê.

«Vedes aqnelle largo, além?

-- Sim, vejo, e depois?

-- É que existe alli um albergue para peregrinos, cujas portas nunca se fecham.

-- Já podias ter dito isso, ó zote?!

-- Nem tudo lembra, senhor.

-- Pois partamos para o albergue. Morro de somno e frio!...

-- A caminho, pois, se vos praz.

Em dez minutos os dois homens logravam abeirar-se d'uma espécie d'asylo de palmeiros, egual áquelle que, no século XIV, fora fundado em Lisboa por peregrinos bretões.

As ruas de Burgos -- como as de muitas outras cidades de Portugal e Hespanha -- eram então escassamente allumidas pelas luzes fúnebres e fumarentas de vários nichos de santos e d'almas do Purgatorio, praticados com profusão pelas paredes dos predios.

Os malfeitores e brigões folgavam assás com este estado d'atrazamento: sendo rarissimas as noites em que as roldas e os serênos não houvessem tropeçado em cadáveres de desordeiros e de transeuntes roubados.

As pessoas de qualidade que, por necessidade ou distracção, tinham de passar algumas horas da noite fóra das próprias residências, faziam-se acompanhar d'escoltas de serviçaes bem armados, e munidos d'archotes ou lampeões alimentados, quasi sempre, a óleos fétidos e fumegantes.

Ora, quando Martim da Maia e o guia se encontravam já ao pé do providencial albergue, eis que foram surprehendidos por um bando de perigosos ratas, os quaes, fazendo estralejar as molas das cuchillas, se defrontaram petulantemente com elles.

-- Eh! lá cavalleiro de má morte?! -- berrou, n'um hespanhol tirante a biscainho, um dos da malta, aproximando-se do Maia, que se encontrava montado ainda no lazarento solipede.

E, com ousada intimativa, dirigindo-se sempre ao temivel bandoleiro, regongou:

-- Salta-me lá d'esse throno, e pôe para cá, mas sem detença, os valores que houveres em ti.

Martim da Maia -- que se reputava leão perante os attrevidos chacaes -- não quiz, de principio, tomar a sério o assalto, nem tão pouco os chascos de que estava sendo alvo.

Limitou-se a ladear o fino punhal de Toledo, que o acompanhava, e a fitar do cimo do quadrúpede, com magestosa impavidez, a rêles quadrilha dos noctívagos descalços, que elle julgara mais despreziveis do que o célebre e porvindouro burro do famoso Lafontaine.

O andaluz tremia de medo junto á guarupa da lazarada besta, e chamava em seu auxilio a Virgem e o Padre Eterno, a quem, poucos minutos antes, sacrilegamente insultára.

-- Com que então -- começou o Maia, depois de varias intimações -- , ordenaes me que desça do throno, e vos apresente os valores que tenho em mim arecadados, não é assim?...

-- Mas isso sem demora, percebeste?...

-- Percebi de sobra, amigos.

-- Se quizeres que, n'outras noites, os morcegos continuem a admirar-te o garbo... e o rocinante.

-- E o rocinante?! berrou um dos da malta.

-- Então?!

-- Varro essa. O rocinante faz parte do saque d'esta noite.

«Não estamos nós tão ricos, que o possamos perder...

-- Muito bem... muito bem.

-- Falaste como um doutor de Salamanca.

Martim da Maia -- já de bulhão em punho -- fitava, á luz bruxoleante d'um nicho, os cinco attrevidos ratas; e, como um felino, calculava o salto que ia dar sobre o miseravel, que se lhe encontrava mais proximo.

-- Eh! lá, patifes?! -- gritou elle, realisado o pulo, e distribuindo cegamente punhaladas.

«Encommendae ao diabo as almas, se é que as haveis, malandrins!...

E, com a agilidade d'um tigre, saltava, feria e rasgava!...

Lá ao longe, na gélida calada da noite, murmuravam as aguas turvas do Alarzon e ouvia-se a voz dos serenos n'um tom soturno e convulso, similhante á dos fanáticos muzzins no alto dos minaretes.

XI

Horripilante desfecho

O andaluz -- transido sempre de medo -- houve por bem fugir com o rocinante, deixando entregue ao proprio exforço, e completamente abandonado, o homem que o ajustara para servir-lhe de cicerone n'uma tera, que elle por completo desconhecia.

E nunca mais apparecêra, o picaro; dando-se talvez por bem pago do trabalho que tivéra e dos sustos que apanhára, com o ter furtado ao Maia o estafado sendeiro.

O ex-bandido e enviado de sua senhoria el-rei já tinha dois ligeiros golpes de cuchilla, quando, a curta distancia do albergue, vira dois homens parados 6 como que contemplando aquella scena de sangue, em que elle, Martim da Maia, havia levado a melhor.

A seu turno os dois ratas que podiam brandir ainda as navalhas -- se bem que não pouco golpeados --, resolveram pôr se em fuga ao verem os adventicios: já porque os confundiram com a gente de segurança, e já porque, fatigados da lucta, temeram ter a sorte dos outros miseraveis, a quem o bulhão do bandoleiro havia ferido de morte.

E o antigo salteador encontrára-se repentinamente em face de trez cadaveres e dos dois inesperados desconhecidos, os quaes, como que pregados no solo, observavam horrorisados as varias pôças do sangue, que os trémulos clarões da luz do nicho deixavam vêr em toda a sua lugubridade.

Depois, o bandido, olhára em todas as direcções, procurando com a vista o andaluz, mas vira apenas o estúpido, cruel e repugnante quadro de cannibaes!

E nem o esquálido rocinante, pondo uma nodoa na espessa escuridão da noite!... Só os cadavares dos ratas... os dois vultos mudos e immoveis... e a luz amarella do nicho, como que lambendo o sangue das lages, á maneira de vampiro!...

Martim da Maia, começara a reflectir no crime que acabava de perpetrar... no cutéllo e no cêpo das justiças de Castella... e na presença dos mudos recem-vindos, que, como os ratas fugitivos, elle julgava serem as roldas ou os serenos, attrahidos naturalmente alli pelo fragôr da contenda.

E tentou fugir tambem: porém não conhecia os estreitos, tortuosos e emmaranhados caminhos da velha terra do Cid.

Depois... para que lhe serviria a fuga, se havia de cahir fatalmente nas mãos dos mantenedores da ordem?

N'esta situação, realmente embaraçosa, entendêra alfim approximar se dos dois homens -- que segredavam agora -- e dizer-lhes que, tendo morto os bandidos que jaziam na lama, se defendêra legitimamente d'um ataque violento, como o podiam testificar as ensaguentadas cuchillas, que se viam nas mãos hirtas dos miseros assassinados.

Mas custava-lhe a aventurar um só passo na sua frente!

Como os mysteriosos noctivagos com quem elle se defrontava, Martim da Maia encontrava se sob o dominio d'uma forte hesitação.

E monologava mentalmente:

-- Mas... se são roldas ou serênos, qual será o motivo que os impede d'avançarem contra mim?

E ficára a ruminar esta espécie d'objecção, emquanto os desconhecidos -- cochichando sempre -- acabavam por tomar a resolução de se internarem no albergue de peregrinos, encontrado por elles, a muito custo, depois das necessárias informações d'um noctivago que toparam, e a quem se haviam dirigido como lhes fôra mistér.

Martim da Maia ficou intrigadíssimo com o que acabara d'observar.

Não eram portanto roídas os silenciosos adventicios, senão peregrinos, e extrangeiros talvez, desde que procuravam -- como elle procurava -- o único asylo de Burgos, que os podia agasalhar áquella hora da noite.

E pelo cérebro do bandoleiro passára rapida uma idéa... tão rápida e luminosa como o fuzilar d'um relampago.

-- Ah! que se no grupo estivesse o cumplice de D. Diogo?! -- exclamava elle, mentalmente, brilhando-lhe na escuridão da noite a pupilla, como se fosse a d'um gato.

E após uma renhida lucta intima entre a incerteza e a desconfiança, Martim da Maia resolveu dirigir-se aos dois homens, os quaes, muito a seu contento, se encontravam já á beira da silenciosa albergaria.

-- Eh lá, amigos?! -- chamou elle em castelhano.

-- O que desejaes? -- interrogou Damião Ribeiro, que, como Sancho Paes, longe estava de convencer-se do encontro com um dos miseraveis da bodéga de los Sueños.

E o infame vendido á feroz vindicta de D. João II, sentira, acto continuo, uma immensa satisfação.

É que o foragido -- que elle não vira nunca -- acabava de denunciar-se na pergunta que lhe fizéra em correcto portuguez.

Martim da Maia -- a quem a escuridão da noite não deixava vêr a cicatriz do cumplice de D. Diogo -- sentiu robustecida, comtudo, a própria crença, no tocante ao encontro com Damião Ribeiro, desde o momento em que podéra notar-lhe os longos cabellos negros, bem como a elevada altura d'um Encélado ou Antéu.

E o malvado -- depois de ter empunhado o ferro, ainda tinto no sangue dos trez ratas --, inquiriu, em castelhano, com um fim de sobejo obvio:

-- Sois peregrinos portuguezes, não é verdade?

-- Exactamente, senhor.

«E vós?...

«Pelo pouco que presenceamos, ficamos certos de que fostes atacado por um d'esses bandos de malfeitores, que infestam as grandes terras.

-- Falaes verdade, peregrino.

-- Ah! mas os miseraveis tiveram a sua justa punição. Porque, se porventura fugiram dois, ao apparecermos aqui, os restantes cahiram mortalmente feridos, consoante se conclue d'aquella grande immobiridade.

E o bandoleiro -- sanguinário e impostor a um tempo -- teceu de prompto uma teia de mentiras, no proposito único d'afastar suspeitas, que não tinham invadido, ainda, os espíritos dos peregrinos.

E voltando, de seguida, ás primitivas indagações:

-- Para onde vos dirigis... se não haveis por impertinente a pergunta?...

-- Não temos destino certo; -- respondera Damião Ribeiro, tentando, d'est'arte, desnortear o salteador.

-- É Lisboa a vossa terra, não é assim?...

-- Não é. Nascemos e residimos a longa distancia da côrte.

E occorreu um profundo silencio, que o bandido quizéra interromper com um golpe traiçoeiro do temeroso punhal.

Ah! mas o infame hesitava.

Era a fatal consequência da cobardia a retardar a execução do crime, que já estava planeado.

E como que se lhe fosse mistér colher um incitamento em qualquer palavra azeda do foragido, o sicário continuou:

-- Que novas me daes vós do vosso grande e justiceiro rei?

-- Justiceiro?!...

-- Quem o duvida, peregrino?

-- Eu.

-- Vós?!

-- Já vol-o affirmei.

-- Mas... explicae-vos: vamos!...

-- Confundis a justiça com a iniquidade!

-- Iniquo D. João II?!...

«Iniquo o homem que se defende de privilegiados assassinos?!...

-- Assassino... é esse monstro!...

E n'um grande e manifesto azedume:

-- Em Evora envergára o farricôco dos algozes para -- de rôsto mascarado -- dar o golpe de cutello no pescoço, sempre altivo, do nobre duque de Bragança; e em Setubal feriu mais uma vez, traiçoeiramente, de morte, o não menos nobre duque de Vizeu... seu próprio primo e cunhado!...

-- Mentes! -- bradou o bandoleiro, apertando o punho do traiçoeiro punhal.

-- Moderae os vossos ímpetos e escolhei palavras menos agras, se é que desejaes ter direito ao respeito e consideração que uns aos outros devemos!...

E n'uma enorme energia:

-- D. João II é um traidor... um tyranno... um egoista!...

-- É um soberano a quem teem repugnado e repugnam, ainda, os excessos, os abusos e as torpezas dos grandes!...

Ah! mas ao mesmo tempo que o bandoleiro fazia a apologia do filho d'Affonso V, no espirito de Damião Ribeiro operava-se a tardia desconfiança de que se encontrava em presença do célebre espião que, dias antes, surprehendêra em torpes combinações com os três mendigos de Valladolid, junto immunda bodéga da escusa Calle de los sueños.

Sancho Paes ouvia o dialogo n'um mutismo absoluto; encontrando-se longe de suspeitar, sequér, o que, no espirito do foragido, ía assumindo os foros de completa certeza.

E sem que, portanto, se houvesse preparado para defender o senhor, ficou como que fulminado quando o vira cahir sobre as lages, com o coração retalhado pelo punhal do bandido!...

-- Ai! -- interjeiceonou dolorosamente o ferido, levando as mãos ao peito, emquanto Martim da Maia desapparecia rapidamente atravez da espessa escuridão das ruas.

«Morro!... minha pobre esposa... meus innocentes filhos!...

«Foi D. João II quem mandou assassinar-me!...

E n'um pavoroso ranger de dentes:

-- Malvado... egoísta... sanguinario feroz!...

-- Meu Deus?! meu Deus?! -- exclamava o velho Sancho Paes, mergulhado na confusão terrivel que lha semeára no espirito o tenebroso caso, de mistura com o agonisar do ferido... com as sombras que o rodeavam... e com a absoluta carencia de soccorros em tão critica conjunctura.

E batendo desesperadamente na porta, conseguiu chamar a attenção d'um bom homem de longas barbas brancas, a quem fizéra a descripção succinta de tudo quanto acabava de ter logar junto aos muros sombrios da vetusta albergaria.

XII

Morto!

-- Senhor?!... «Senhor?! -- chamava o afflicto Sancho Paes, tentando ao mesmo tempo estancar o sangue derramado pelo pobre foragido.

E, removido o moribundo para um dos catres da albergaria, o homem das barbas brancas applicava lhe comprêssas ao ferimento, mas observava, infelizmente, a approximação da morte com todo o seu cortejo de sensações afflictivas!

-- Está nos paroxismos! -- murmurou, era castelhano, um dos pouco circumstantes.

-- O ferimento foi profundo!...

-- Profundíssimo!

-- E quem sabe se o ferro estava hervado?!...

-- Talvez.

E depois d'um passageiro silencio :

--Quando acabará este apunhalar e acuchilhar selvaticos de quasi todas as noites de Burgos... de Valladolid... das Hespanhas?!...

-- Quando as roldas dormirem menos, e os serênos vigiarem mais.

-- Dizeis bem. Dispensava, os ultimos, de me annunciarem o tempo, as horas, e os trovadores que soluçam á theorba sob adufas de namoradas...

-- Sim. Grande serviço nos fariam, se se dêssem simplesmente ao trabalho de perseguir malfeitores.

-- Ah! que se podessemos trazer aqui um physico?!...

-- Mas... qual ha de ser?...

-- Ha tantos na cidade?!...

-- Dormem todos como cevados a esta hora, e não se prestariam a vir aqui... ao albergue.

«Sabeis de sobra como são os nossos physicos de Burgos...

-- Mas ha de morrer, sem soccorros, este infeliz, que, apesar dos andrajos que veste, me parece um homem de qualidade?!...

-- Nada conseguiria o physico! -- declarou sentenciosamente o homem das barbas brancas.

-- Como assim?...

-- Pois não vêdes que o desgraçado está nos ultimos momentos?!...

-- Sim... haveis razão... o golpe foi mortal...

-- Dado no coração, talvez.

E occorrêra um minuto de mutismo, interrompido apenas pelo soluçar reprimido de Sancho Paes, e pelo respirar baço e difficil do offegante moribundo.

-- Abriu os olhos! -- exclamaram todos a uma voz.

E de facto.

Damião Ribeiro, alevantando lentamente as pálpebras, deixára vêr os olhos embaciados, que, n'um grande exforço, procuravam no grupo o afflicto serviçal.

-- Procura vos certamente; -- disse um dos circumstantes, dirigindo-se ao portuguez.

E o Paes, alimpando as lagrimas á manga do albornoz, abeirou-se rapidamente do infeliz agonisante.

Ah! mas que grande lucta intima a de Damião Ribeiro, o qual -- n'um ultimo lampejo da consciencia, que se lhe apagava --, se recordava, talvez, por entre constricções crudelissimas, da casta esposa amantissima e dos filhos estremecidos... d'essas pobres e innocentes victimas que não via alli, e que, infelizmente para ellas, não tornaria a ver mais!...

Descerrando os labios calcinados pela febre, o moribundo tentou dizer qualquer coisa urgente ao velho servo; mas, vencido pela morte, pôde murmurar, apenas, umas simples trez palavras sem nexo, sem ligação, sem sentido: «.. filhos... Joanna... morro!...» E calára-se o desgraçado, para nunca mais abrir os labios em sorrisos e protestos d'amor infindo para a companheira... em beijos febricitantes para os filhos... em monólogos íntimos de consolação, que lhe produzia o lar... em phrases de perdão para os que erravam... em palavras de amisade para os íntimos... e em rajadas de execração para aquelles que detestava!...

Deixava um nundo de traições e imposturas com os seus diluvios de lama, para cahir no mysterioso laboratorio das transformações da materia, onde hoje podemos entrar como restos putrefactos de magnificos senhores, para, na successão dos tempos, sahirmos convertidos em miseraveis escravos.

XIII

Regressemos a Cintra

Damião Ribeiro morreu, pois, na soturna albergaria de Burgos.

A tenebrosidade d'essa noite do assassinio, que envolvêra em sombras a mão infame do sicario, serviu de hediondo fundo a um dos quadros mais tragicos da nossa Historia --, fundo naturalmente amalgamado com o mysterioso carrasco d'Evora... com a terrivel peçonha propinada nas cisternas... com o golpe inexoravel descarregado em Setubal... e com uma longa e ininterrupta série de activas perseguições e de sangrentas vindictas.

Ah! como seria grande, luminoso, épico, o cyclo do immorredouro filho d'Affonso V, se não fôsse o espésso véu das insidias, que lhe obumbra os clarões?!...

Mas... terá, ou não, attenuantes o grande e immortal monarcha?

Deve ter.

Porque o direito da legitima defesa não é vedado aos reis.

E -- como diz o povo na sua eterna philosophia -- d'uma nascente impura e turva não pode brotar nunca boa agua crystallina.

Ponhamos ponto, leitor, n'estas ligeiras e despretenciosas considerações, e regressemos á pittoresca granja de Val-de-Lobos, onde deixamos o cadaver da pequena filha do assassinado de Burgos.

O que se passára alli, de lacrimoso, julgue-o quem tiver um coração de sentir.

Depois... a creancita desceu á ultima morada; e no espirito da desolada mãe fez-se uma noite de trévas, que augmentavam d'intensidade, á medida que os longos dias iam passando sem uma unica noticia do esposo foragido!...

Ora quando na vivenda de Cintra o desembargador Zagalo fôra forçado a interromper a revelação que começava a fazer á irmã, longe estava a prima de saber o que se dizia na côrte, d'onde elle, magistrado, acabava de regressar.

Mas o que se diria alli... o que constaria em Lisboa?

Dizia-se -- n'um variável tom de mysterio -- a que um homem da nobreza, um tal Martim da Maia, acabava de regressar de Castella, e de communicar a el rei a tragica morte do infeliz fugitivo».

E accrescentava-se no mesmo tom mysterioso: «que sua senhoria ficara assás gostoso com a nova», como o ficava sempre que sabia da anciada suppressão de qualquer inimigo seu.

Mas isto não era tudo.

O inexoravel monarcha ordenára a captura dos filhos e esposas dos sequazes de D. Diogo , parte dos quaes -- áquelle tempo -- se encontravam já entre os ferros da clausura, vigiados por Cerbéros, e sufficientemente opprimidos.

Combinar, portanto, o modo mais efficaz de manter a viuva na ignorância do que se passára em Castella, e d'occultal-a absolutamente ás vistas perscrutantes dos bestiaes quadrilheiros, era o que o desembargador Zagalo tratava desfazer, quando a serviçal -- que o leitor conhece já -- lhe interrompera a revelação que fazia á irmã na confortável alcôva da vivenda de Val-de-Lobos.

Entretanto -- mais tarde -- D. Ignez Alvares ficou sciente de todo o segredo do irmão, tendo conseguido ambos o conservar a prima alheada ao caso do assassinio, e o defendel-a por completo das vistas dos beleguins.

XIV

Sancho Paes

Envolto nos andrajos de mendicante -- que lhe haviam servido d'infructifero disfarce -- tombára, emfim, em Burgos, sob seis palmos de terra, o cadáver apunhalado do cumplice de D. Diogo.

Tristissima ironia... cruel sarcasmo do destino!...

Elle -- que fôra um dos mais mimosos fidalgos do seu tempo -- nunca sequér sonhou que, longe de cahir um dia o seu cadaver na caixa marmórea d'um tumulo, havia de descer á misera valla dos anonyraos, encerrado n'um pobre esquife; e que, em vez de mysticos trintarios cerrados e de profanas elegias, teria, por suffragio, o chorar convulso do servo, misturado com ardentes e silenciosas preces, que não lisongeam vaidades, mas que se não perdem no labyrintho das imposturas, e que sobem até ao céu.

E como se casava bem com a lúgubre silenciosidade da morte aquelle tocante mutismo, unicamente interrompido por um ai insoffreavel que escapava ao servo, e pelo arruido d'uma enxada soterrando um ataúde?!...

Singular philosophia das campas, que nunca as vanglorias conseguirão sophismar.

Sancho Paes -- o bom servo dedicado -- só abandoára Castella depois de ter visto inhumado o seu chorado senhor.

Sim. Que não fôsse a immunda hyena devoral-o, depois de o ter lacerado tão cobarde e cruelmente!...

E lá deixava na sombria Valladolid os repellentes mendigos, que a generosidade do Maia gratificára bizarramente: mas levava de Burgos -- assás gravada no cérebro -- a triste e sangrenta memoria da tragica noite do crime.

Largos dias levára o pobre velho a percorrer os perigosíssimos caminhos que o separavam de Cintra.

E como que se fosse buscar a alheio pranto o allivio das proprias magoas, reagia heroicamente com a fadiga, e caminhava dia e noite sem cessar, tal como um judeu errante... tal como outro Ashavero!...

Ás vezes parava ao cimo d'um combro, ou na base d'outra altitude, não para dar um alto ás rijas pernas infatigáveis, mas sim para libertar uma espécie de rugido, que lhe contundia o peito, quando preso n'aquelle ergástulo d'acérbas penas, misturadas com legitimos mas impotentes rancôres.

Cerrando então as pálpebras, dir-se-hia que evocava as trévas da tragica noite de Burgos: e fazia seguidamente um grande exforço do cérebro, no empenho de reconstituir o sangrento quadro, que divisára escassamente á luz mortiça do nicho.

E murmurava depois em crispaturas:

-- Não pode ver-lhe o rosto, porque a escuridão era grande.

«Ah! mas se o encontrar no meu caminho, reconhecel-o-hei pela voz.

«Soam-me ainda na orelha os seus rugidos de tigre!...

E continuava na marcha interrompida, com o coração cheio de dôr... com os olhos cheios de pranto... e com o cérebro excandescido pelo fogo d'uma vingança.

Sancho Paes era o typo da mais authentica dedicação, elevada ao fanatismo.

Abundaram sempre n'este paiz d'incriveis perversões e de singulares virtudes estes novos essénios, que, firmes nas próprias índoles, e intransigentes nos seus propósitos, teem triumphado, em todas as epochas, das immundas levadas de gangrena, que vamos vendo engrossar.

A antiguidade remota admirava-os na sua austera impeccabilidade: mas, tal culto de justissima admiração, desappareceu já; sendo que os raros fanáticos da dedicação extrema passaram á cathegoria pathologica de doidos incuráveis, segundo a resolução dos concílios da moderníssima sciencia, em face da observação d'infalliveis diagnoses.

Affonso Henriques tivéra o seu fidelíssimo e adorável Egas Moniz.

Sancho II vira a enorme impavidez com que o leal Martim de Freitas arriscára por si a vida.

D. Pedro -- o infortunado regente -- encontrara sempre a seu lado o dedicado conde de Avranches, que perdêra heroicamente a vida, na infamada Alfarrobeira.

Affonso VI -- a misera victima da mulher e do irmão -- não teria, na própria chronica de desatino», um pedaço de grandeza épica, se não fora a honrada dedicação do seu primeiro ministro.

D. José não teria nunca merecido um vantajoso logar na Historia, se...

Mas para que hão de vir mais exemplos de fanatica lealdade?...

E se a velha Syracusa offerece aos séculos o commovente episodio dos seus Pythias e Damons, nós poderemos responder-lhe com os dedicados Ximénes, cuja enorme abnegação ainda hoje assombra o Indico!...

Longos dias eram passados sobre a traição do Maia, quando Sancho Paes -- arrastando-se a muito custo -- dêra entrada na vivenda de Val-de-Lobos, onde encontrára Joanna Dias na absoluta ignorância da monstruosa tragedia.

Bernardim Ribeiro corria, como louco, atrazdas borboletas, que lhe fugiam, quando o servo leal entrou no horto da granja.

-- Menino Bernardim?!... menino Bernardim?!... -- exclamou elle, beijando e abraçando sofregamente o interessante pequenito.

Ah! o que se passára depois, de triste e commovente, é bem fácil d'avaliar se.

É que o pobre serviçal necessitava de desabafar, em lagrimas e soluços, a tempestade de dôr que ameaçava abafal-o.

Depois -- e attrahidos por diversos clamôres -- appareceram, sobresaltados, os dois irmãos Zagalos e a crimosa prima... a joven e desventurada viuva do infeliz assassinado.

FIM DA PRIMEIRA PARTE.

PARTE SEGUNDA

LAGRIMAS E SORRISOS

I

Difficil situação

Sancho Paes, suffocado pelas lagrimas, e beijando convulsivamente o pequeno Bernardim, offerecia um quadro opulento de commoção, que um raio de sol poente frouxamente illuminava.

-- Estaes sem pae, meu querido e infeliz menino! dizia-lhe a custo o velho, emquanto o desembargador Zagalo arrepelava as barbas por não ter podido evitar a imprudente revelação.

-- Como?! -- interrogou, com doloroso accênto, a mãe do futuro trovador, sentindo que as pedras lhe tremiam sob os pés.

-- Não é nada, prima; -- acudira o magistrado.

«Sancho Paes affirmára, como eu affirmo, que o teu pequeno filho está sem pae... porque se encontra exilado.

-- Certamente... certamente... -- reforçou D. Ignez Alvares, exforçando-se por animar a prima, ao mesmo tempo que o commovido desembargador dizia breves palavras ao ouvido do recem-vindo.

Bernardim Ribeiro -- esse -- observava a scena na sua incomprehensão infantil, impressionando-o mais as mariposas que adejavam em derredor de si, do que as lagrimas derramadas pelo velho, pelos primos e pela mãe.

Ah! e que lagrimas eloquentes e desvairadas as que se choraram n'aquelle instante d'angustias, quando o sol se escondia pouco a pouco no horisonte, para lhe succeder uma das sombrias noites d'essas remotas eras d'insensatos preconceitos e de pavorosas visões!...

Sim.

Sancho Paes chorou sinceramente a morte do assassinado e as desventuras da familia; D. Joanna Dias chorára a desgraçada situação do esposo, que não julgava, ainda, morto e soterrado; e D. Ignez e o irmão, se não choraram com os olhos -- no santo empenho de prevenirem mais desanimos --, prantearam, comtudo, nas convulsões da voz, e recalcaram no coração as agonias moraes occasionadas pela origem de tão dolente conjunctura.

-- Dizei-me Sancho Paes:

«O que é feito do meu infeliz esposo?

«Para que o deixastes tão sósinho no seu voluntário desterro?...

«Ah! por Deus dizei-me tudo... tudo!

E o velho servo -- industriado já pelo sensato magistrado -- respondêra n'uma grande hesitação, reagindo com as lagrimas, que pretendiam rebentar-lhe em nutridos borbotões :

-- Socegae o vosso espirito, senhora minha.

«Vosso esposo e meu amo descansa agora, das cruéis fadigas e sobresaltos, em logar seguro, onde o não poderão descobrir os olhos raivosos do assassino de D. Diogo.

Sancho Paes, não revelando a brutal tragedia de Burgos, também a não negava; e até antes alevantava uma pontinha do véu, que occultava a terrivel e irremediável desgraça.

O doutor António Alvares ficára satisfeitissimo com a resposta do velho; a par e passo que a viuva formulava outras perguntas, na absoluta confusão do seu espirito attribulado.

-- Mas... o que significa o vosso inesperado regresso a Portugal?

-- Venho saber noticias vossas... e informar-me, na côrte, do que se ha passado depois do assassinio de Setubal... de horrorosa memoria.

-- Coisas terriveis! -- interrompêra D. Joanna Dias.

E após curto silêncio:

-- Descarregam-se punhaladas!... propinam-se venênos!... e perseguem-se as familias dos suppostos conjurados!...

-- Ah!...

-- E meu esposo, Sancho Paes?...

«Falae-me de meu esposo...

«Lamenta os seus infortúnios!...

«Chora a cruel separação da família, que o pranteia a toda a hora?...

O embaraçado velho não pôde responder de prompto, porque nem queria mentir, nem tão pouco desdobrar, a toda a luz da verdade, o sangrento sudario da calle da albergaria.

E, recorrendo ao manhoso systhema das meias palavras de duplo sentido, disséra ostensivamente perturbado:

-- Vosso esposo lamentou menos os próprios trabalhos, do que a separação dos filhos adorados e da esposa estremecida.

-- Lamentou?! -- exclamou a viuva, a quem fizéra impressão o tempo em que fôra empregado o verbo.

-- Sim... lamentou senhora, -- repetira o ex-donato.

«E se se não lamenta ainda e vos não lamenta já, consoante vos lamentára, é porque acabou por encontrar o melhor de todos os refúgios... confiado cegamente na segurança d'este vosso solitário asylo.

Joanna Dias não respondeu.

Meditára.

A ostensiva commoção do antigo monge donato, dava lhe assás que entender.

Ah! mas a subtileza das ultimas palavras do velho, serviram como que d'antidoto á venenosa suspeita, a qual esteve prestes a matar uns restosinhos d'esperança, que galvanisavara ainda a desolada viuva.

Entretanto o desembargador António Alvares houve por prudente acudir ao velho, ao mesmo tempo que D. Ignez Zagalo acudia ao espirito angustiado da intrigada senhora.

-- Para que havemos de revolver mais o punhal na ferida? -- perguntou o magistrado.

-- Sm... dizes bem, António... -- obtemperára D. Ignez.

E proseguiu:

-- Já sabemos que Damião Ribeiro está seguro, como sabemos também que, a esta ignorada granja, não virão certamente as justiças de sua senhoria el-rei.

«Portanto... ergue o teu espirito, minha pobre Joanna, e confia no advento de dias muito felizes para ti... e para todos nós.

Depois -- e tomando pela mão o pequeno Bernardim -- cingira com o braço esquerdo a cintura breve da prima, que arrastou suavemente para a espaçosa moradia.

Antonio Alvares e o antigo monge donato ficaram ainda no horto.

É que o desembargador desejava conhecer, em todos os seus detalhes, a historia da tragedia de Burgos, a qual -- como o leitor não ignora -- elle ouvira contar em Lisboa, nas suas linhas geraes.

-- Horrivel!...

«Horrivel, meu amigo! -- exclamou o magistrado, quando o velho Sancho Paes chegára ao termo da sangrenta narrativa.

E n'uns assômos de justificada indignação:

-- Ah! como eu começo a revoltar-me também contra o rispido monarcba, a quem não fazia mistér o macular a propria obra de justiça e de progresso no sangue repuxado pelos punhaes dos sicários!...

E com desusada energia :

-- Porque o caminhar sobre cadaveres é só proprio das hyenas... que revoltam e fazem nojo.

-- Decerto... decerto, senhor meu.

Antonio Alvares, continuou:

-- Não necessitam os reis de descer a assalariar assassinos infames, que os livrem traiçoeiramente dos que ousam impedir-lhes o passo no caminho dos grandes commettimentos.

«Accordaram as côrtes de Evora e de Vianna d'apar d'Alvito em revogar privilégios antagonicos com os interesses da corôa?

-- Accordaram.

-- Pois bem.

«Então... em vez de cobardes assassinios e d'irritantes perseguições, que houvesse el-rei remettido ás justiças os imprudentes conjurados.

-- Imprudentes?!...

-- Imprudentes.

Sancho Paes -- comparte nas opiniões do assassinado amigo e infeliz amo -- não ignorava que estava na presença d'um homem, que sacrificava tudo á verdade e á rectidão.

-- E saberia... e teria a justiça independência para obrar conforme fosse de razão? -- perguntára elle com ar de duvida.

-- Pois ousaes fazer-me tal pergunta?!...

-- Ouso!...

-- Ah!...

-- Ouso! -- repelira energicamente o velho.

-- Explicae-vos... vamos!

-- Sois magistrado de sabedoria e honra:

«Não necessitaes, portanto, d'explicações d'um simples homem do povo, que tem, apenas, o saber das coisas pelo que tem vindo a aprender n'uns estirados setenta annos de experiência e desenganos.

-- Não me satisfizeram essas vossas ultimas palavras.

-- O que desejaes que vos diga mais... se não sei?...

-- Que justifiqueis a vossa desconfiança, acerca da rectidão da justiça.

-- Rectidão?!...

«Rectidão?! -- exclamou zombeteiramente o velho.

-- Offendeis-me, Sancho Paes!...

-- Eu?!...

-- Vós!...

-- Não sei offender ninguém... e muito menos a quem é honrado e justiceiro.

-- Mas... as vossas palavras ultimas?!...

-- Pois não sabeis, senhor, que a justiça é feita pelos homens, e que os homens não são todos eguaes?

-- Eis o engano, meu amigo.

«Porque os homens, quer sejam eguaes quer não, têem perante si a lei quando julgam.

-- Lei... que nem sempre é escorreita de nascença, senhor meu.

-- Sabeis muito, meu velho! -- chasqueára por sua vez o magistrado, com um bom sorriso nos labios.

-- Tenho a sabedoria da velhice...

«Já vol-o disse senhor.

E occorreram uns segundos de silencio, que o desembargador gastou dando intimamente razão ao leal interlocutor.

Depois perguntára-lhe no melhor dos bons humores:

-- Que exemplos me citaes vós d'iniquidades, fóra da justiça dos coutos?

-- Muitos!... muitos!...

-- Estaes certo do que affirmaes?

-- Certissimo. Eu vol-o jurarei, se mistér fôr.

-- Por Deus, que gosaes da dupla vista!...

-- Vejo com estes dois, que Nosso Senhor me deu.

-- Mas... dizei o resto, se vos praz.

-- Para que hei de adeantar-me, senhor?

-- Para saber quaes são as justiças d'el rei, que teem atropelado as leis do reino.

Sancho Paes tivéra um momento de surpreza, originada pela ignorancia, fingida ou não, do integérrimo magistrado. E n'uma enorme bonhomia:

-- Pois nem sequér vos recordaes da iniqua sentença d'Evora, e d'essa infame execução em que el-rei fora o algoz... com o rosto mascarado?!...

E mudando rapidamente de tom:

-- Já lá vae mais d'um anuo, creio eu.

«Parece que ainda estou vendo o pobre duque de Bragança com a alvados pacientes... ah! mas de cabeça alevantada, e envolvendo n'um derradeiro olhar de despreso as justiças que o condemnaram... e ocarrasco que o degolou!...

Sancho Paes cerrou os punhos n'um grande accesso da mais sincera indignação.

Por sua vez, Antonio Alvares -- a quem agradava a discussão com os homens do quilate moral do velho --, continuou, em parte, applaudindo-o intimamente, mas defendendo a integridade das reaes justiças, de que elle fôra sempre um ornamento legitimo.

-- Errados são os vossos juizos, meu amigo.

-- Errados?!...

-- Não o duvideis.

-- Explicae-vos, senhor!...

-- É que, as justiças d'Evora, não sahiram fóra do caminho da equidade.

-- O que dizeis, senhor meu?!...

-- A verdade... simplesmente a verdade.

-- Não comprehendo...

-- Tem pouco que comprehender.

-- Dizei o resto, por mercê.

-- As justiças d'Evora, tendo condemnado ao cêpo o ambicioso D. Fernando, condemnaram tão somente um réu d'alta traição... o chefe dos inimigos do throno e da plébe.

-- Ah! mas não é isso o que dizem e asseveram o clero, a nobreza, e o próprio povo também.

-- O clero e a nobreza são suspeitos.

«O povo -- esse -- diz ou não diz o que as classes dirigentes pretendem que diga, ou que deixe de dizer.

-- Julgaes então justo o procedimento d'el-rei?

-- Até certo ponto.

-- Ah!...

-- é justo, quando trata de defender os direitos da corôa, que seu pae deixara assás compromettidos.

«É injusto... é cruel... é repellento, quando -- esquecido do poder nato dos reis -- appella, n'uma vergonhosa fraqueza, para o tôrpe auxilio d'assassinos e espiões.

-- Bem dizeis... bem dizeis, senhor meu.

«Ah! os assassinos de D. Diogo, do bispo d'Evora, e do infeliz Damião Ribeiro...

-- Temos que distinguir; -- interrompeu, abruptamente, o severo magistrado.

-- Continuae, senhor.

-- D. Diogo e o bispo de Evora foram mortos em legitima defesa de sua senhoria.

-- Nego!...

-- Nego! -- ululou o servo, com extranha vivacidade.

-- Negaes?!...

-- Nego... com todos os meus alentos.

-- Ah!...

-- D. Diogo e o bispo foram mortos á traição, sem que houvessem feito o mais pequeno gesto d'arremetter, contra el-rei.

-- É porque não tiveram tempo de o aggredir.

-- Quem poderia adivinhar o que se passava no seu intimo?

-- El rei... eu... vós... todos, emfim, quantos sabiam que o duque do Vizeu seguia nas tortuosas veredas, que levaram ao patibulo o mallogrado D. Fernando.

Sancho Paes emmudecêra.

E o desembargador Zagalo continuou na série dos seus sensatos raciocinios:

-- Quanto a Damião Ribeiro e aos outros perseguidos, sua senhoria não apagará nunca a nódoa, que lhe escurece o brilho da sua obra meritoria.

-- Nunca!...

«Nunca! -- gritou, como um possésso, o antigo monge donato, que tinha ainda bem presente o sanguinolento quadro da escura calle de Burgos.

E estorcendo-se, como que na violência d'uma subita epilepsia, grilou de novo, espumando:

-- Nunca!...

«Nunca!...

-- Socegae, por Deus, Sancho Paes! -- implorara o magistrado, a quem o honrado velho dava uma nova prova da sua grande dedicação pelo mallogrado parente.

E após breve silencio:

-- Se vós perdestes o amo e o amigo, eu perdi o parente querido e antigo companheiro de verdes annos, cuja tragica morte ha de enluctar-me sempre o coração.

Sancho Paes chorava.

Antonio Alvares, altamente commovido, continuou:

-- Mas não falemos mais na dolorosa desgraça.

«Exforcemo-nos, antes, por esconder as nossas lagrimas a essa infeliz viuva, que vive ahi attribulada.

-- Sim... exforcemo-nos... -- murmurou o serviçal, alimpando os olhos á manga do albornoz.

E fizéra-se um novo silencio, findo o qual Antonio Alvares ponderou:

-- É mistér illudir minha prima, até que o concurso das circumstancias exija a triste revelação, que deve ser feita com tino.

-- É prudente, senhor; é prudente.

O desembargador Zagalo proseguira, cravando os olhos no velho:

-- Ora -- tendo vós dito que viéstes de Burgos a Cintra com o encargo de colher novas -- de razão é que, decorridos poucos dias, vos afasteis d'este logar.

-- Eu?!...

-- Vós.

-- Todavia...

-- Escutae-me.

E Sancho Paes arregalara muito os olhos, entregando se ao mais profundo mutismo.

-- Portanto -- continuou o magistrado -- é forçosa a vossa partida para a côrte, aonde vos proverei do necessário para viverdes... modestamente.

-- Vou para a côrte?! -- perguntara o velho, com faíscas no olhar.

-- Sim. Deveis ir... deveis ir.

-- Ah!...

E calaram-se por momentos.

Sancho Paes, como que allucinado, exclamou depois:

-- Vou para onde devo ir... antes de morrer!...

-- Que incomprehensiveis palavras são essas?! -- interrogára Antonio Alvares, fitando muito o serviçal.

-- Só eu as comprehendo, senhor...

«Encerram o meu segredo... que jurei guardar!...

E, como algum tempo depois da horrivel scena de Burgos:

-- Ah! que se o encontrar no meu caminho, reconhecel-o-hei pela voz.

«Soam-me, ainda, na orelha, os seus rugidos de tigre!...

Era já noite cerrada quando o desembargador Zagalo recolheu, apprehensivo, á sua alcôva, e Sancho Paes se alojára na parte da moradia, onde residiam Braz Caniço e o quasi inválido Marcos Andronio, antigo cavallariço.

Quando os três homens se encontraram, houve uma explosão d'alegria, de revelações, e de abraços.

Depois... choraram todos a victima do mais infame dos espiões... do desprezivel Martim da Maia.

II

Na taberna de Lourenço Alho

Despedia-se, n'um rubro clarão, um dos últimos dias do anno de mil quatrocentos e oitenta e cinco, precisamente aquelle em que se completavam doze mezes, depois do traiçoeiro assassinato do mallogrado Damião Ribeiro. D. Joanna Dias conhecia já a sua própria desgraça, e vivia ainda em Val-de-Lobos... no tristissimo isolamento da sua alma espedaçada.

Viuva, e despenhada na miseria, porque os seus haveres lhe tinham sido estupidamente sequestrados, a joven e infeliz senhora teria d'estender a mão á caridade publica, se não houvesse na familia os corações generosos do desembargador Antonio Alvares e de D. Ignez Zagalo, a qual -- como a viuva -- contava então uns vinte e trez annos escassos, e fascinava, quantos a viam, pela sua não vulgar e celebrada formosura.

Sem que D. João II a podesse colher nas malhas do próprio odio tradicional -- graças ao ignorado refugio e á decidida protecção do sympalhico magistrado -- , a pobre D. Joanna soffria os effeitos d'ininterruptos sobresaltos, como que se lhe fosso pouco a viuvez e a pobreza que a envolviam, de mistura com o receio pelo futuro do innocente Bernardim, se lhe faltasse o amparo dos primos, que, como ella, lhe não podiam ser eternos.

E açoitada por estas aspérrimas tempestades da alma, que lh'a torturavam brutalmente, D. Joanna teria pela própria existência o mais inteiro despreso, se os lacrimosos olhos lhe não repousassem sobre a fronte scismadora do filho, como que para lhe arredarem o espirito de funéreas recordações.

Ora, emquanto estas e outras scenas dolentes se iam desdobrando na perfumada vivenda de Val-de-Lobos, na côrte passavam-se factos de não pequeno interesse, os quaes muito importam á sequencia d'esta mui veridica e despretenciosa narrativa.

Deixemos, portanto, D. Joanna Dias, os primos, e o filho, e encaminhemo-nos, leitor, para Lisboa... para a côrte de sua senhoria el-rei o senhor D. João II, que -- depois de castigados os principaes cabeças da suffocada rebeldia, e premiados os respectivos delactores --, se entregava agora á faina dos descobrimentos maritimos, e, portanto, á colheita dos fructos opimos, cultivados pela meritoria escola de Sagres, de que fôra fundador o grande e immorredouro infante D. Henrique, filho d'el rei D. João I, e da veneranda e virtuosa rainha D. Filippa de Lencastre.

Estava-se -- repetimos -- no occaso d'um dos ultimos dias do anno de mil quatrocentos e oitenta e cinco.

Recortavam caprichosamente o céu, manchado de nimbos, os arrogantes coruchéos dos reaes paços d'Alcáçova, que se encarrapitavam no cume d'um dos sete montes em que assenta Lisboa , e donde se via então, como que acocorada, a vetusta cidade, salpicada de grandes e de pequenos edificios mouriscos e christãos, envolvidos todos pelo cinto de pedra com que o voluvel rei D. Fernando lhe tolhêra, durante annos, a expansão insubmissa, e tenazmente indomavel.

As sombras espessas da noite haviam cabido, pouco a pouco, sobre a antiga Felicitas Julia dos romanos e Lisabona dos arabes, em razão do que crepitavam já, nas poucas ruas principaes, as tradicionaes candéas de cifa e tochas de cêra virgem, com que o mesmo volúvel rei houvera por bem dotal-as com o concurso dos homens bons da muito perigosa cidade... em noites sem luar.

Ora... se o leitor nos quizesse acompanhar n'um curto passeio até á rêde de immundas travessas, bêccos, e ruas tortuosas, que constituiam então o recinto da nossa actual Baixa, teria de parar comnosco junto a uma casa espaçosa, mas de sombrio aspecto, a qual formava uma das extremidades da velha rua dos Odreiros, e que, como a maior parle da cidade quinhentista, havia de cahir por effeito dos medonhos e implacaveis terramotos, que tantas e tão concatenadas vezes a açoitaram e derruiram.

Essa casa era a muito antiga, afamada, e frequentada bodéga e tabolagem de mestre Lourenço Alho, velho e experimentado petintal, que, desde os ultimos doze annos, se encontrava voluntariamente desligado do serviço das galés.

Algum tempo antes do sino de correr já a taberna rogorgitava d'apreciadores de petiscos, e de bons vinhos do reino; encontrando se, lá ao fundo, um homem perfeitamente isolado, a quem os clarões funéreos do unico lampeão de cifa deixavam vêr uns longos cabellos alvos como meadas de linho.

Lourenço Alho não tinha mãos a medir.

Era badulaque para aqui, frigideiras para alli, e picheis de vinho para acolá.

-- Mexe-te, com trezentos mil demonios, vamos!...

«Irra, que não faz senão rezar! -- berrava elle á mulher, que, encarregada das frituras e guisados, se esquecia ás vezes de metter tóros sob as trempes, religiosamente enviscada na resa d'umas sebentas e assustadoras camandulas.

-- Mestre Lourenço?! -- gritava a freguezia.

-- O que haveis de querer, amigos?

-- Mondongo a trez; e alguns picheis e trigas milhas.

-- Ahi vae tudo n'um crédo!... ahi vae tudo n'um credo!...

-- Lésto, que a lazeira aperta!...

-- Dilatae-vos um tudo nada, por mercê.

-- Mestre Lourenço: mais dois picheis a correr!

-- Mais badulaque para um!

-- Trigas milhas... lésto!

-- Vinho... vinho, mestre Lourenço, que tenho a garganta mais sêcca do que um côrno!

-- Ahi vae tudo... ahi vae tudo, honradissimos freguezes!

O antigo petintal girava sempre, como se fosse um sarilho.

Ah! e ainda não tinham apparecido os frades gastronomos e estroinas, que só depois do coro frequentavam a taberna!...

O homem das barbas brancas, que já vimos, chamou por sua vez o tasqueiro.

-- O que é que desejaes? -- lhe perguntou elle, depois de servidos os freguezes mais turbulentos e comilões.

-- Mais uma pequena medida d'aquella embôlha do branco.

-- Ides saboreal-a já.

Porém, antes que se afastasse o taberneiro, o homem dos cabêllos alvos como o linho perguntára-lhe a meia voz:

-- O que sabeis do assassino?

-- Nada que vos interesse.

-- Nem voltou à tabolagem?...

-- Anda, ha muito tempo, arrédio.

E ficaram ambos silenciosos por um momento.

Lourenço Alho continuou, de seguida:

-- Mas socegae. O promettido é devido.

«Sabeis que também sou dos que choram a morte de D. Diogo, do bispo, e do pobre Damião Ribeiro...

-- Eu sei; -- atalhou o velho.

-- N'esta honrada taberna e tabolagem reuniram-se muitas vezes -- fóra d'horas -- os fidalgos e clerigos da denunciada conspiração.

E com os punhos cerrados:

-- Ah! aquelle Diogo Tinôco... aquelle infame traidor?!...

-- Ficae certo de que ha de ter a recompensa, dentro de breve tempo.

-- Assim o creio... assim o creio...

-- Não o duvideis por um instante, Lourenço Alho.

«Não é só no outro mundo que se ajustam as contas.

-- Ah! não é... não é... dizeis bem.

E depois de ter olhado em derredor de si:

-- Mas falemos mais baixo, que póde alguém escutar-nos.

-- Quem são os fidalgos que estão perto d'esta mesa?

-- Antigos parciaes de D. Diogo.

-- Ah!...

-- O mais novo... aquelle de gibão negro acuchilhado d'azul, é filhote d'Extremoz, e chama-se Sancho Tavares.

E o dialogo teve de ficar interrompido por momentos, até que o taberneiro servisse vinho a um freguez e fechasse contas com outros.

Ah! mas o joven fidalgo extremocense não despegara a vista do grupo, e fizéra exforços para ouvir o que os dois homem disséram.

Mestre Lourenço Alho voltára uns dez minutos depois.

-- O homem -- cochichou elle, em seguida, ao velho -- esteve fóra da côrte; e, segundo se diz ahi, andou lá pelas provindas com o infame Tinôco, a espiar o que se passava nos coutos e nos solares!...

-- Que miseraveis... que miseraveis!...

-- Mas deixae-me dizer o resto, se fazeis gosto em ouvir-me.

-- Andae lá por mercê, amigo.

E mestre Lourenço accrescentou, com um sorriso amarello:

-- Depois... quando os dois bandidos foram descobertos, tiveram de fugir a unhas de cavallo, para não ficarem por lá.

E conservaram-se por algum tempo silenciosos, a despeito de Sancho Tavares - o fidalgo d'Extremoz.

Mas curtisimo fôra o silencio estabelecido pelos dois homens, que o aproveitaram, revolvendo, no intimo, as mais sangrentas recordações.

-- Com que então -- perguntou o homem das barbas brancas -- estaes na crença de que o assassino de Damião Ribeiro é o tal Martim da Maia?

-- Já vos disse cem vezes que é isso o que se affirma na côrte.

-- Ah! que se o visse e ouvisse, dir-vos-hia se estaes em erro, ou não.

«Infelizmente para mim, procuro-o, em vão, ha quasi um anno!...

E recordando se do vulto do scelerado de Burgos:

-- Alto... espadaúdo... voz de trovão... e de longas barbas negras, mais negras do que uma amora.

-- É esse... é esse mesmo o seu retrato!...

E Sancho Paes -- pois que, como o leitor já percebeu, era elle o interlocutor do velho petintal -- arrancára um fundo suspiro saturado de saudade pelo pobre assassinado, e repassado de rancor contra o cobarde assassino.

Lourenço Alho -- após mais algumas palavras, que nem sempre foram ditas a meia voz --, teve d'acudir ao chamamento d'uns frades, que acabavam de dar entrada na taberna; emquanto o antigo e dedicado servo do finado Damião Ribeiro se entregava a novissimas e pungentes recordações.

Sancho Tavares -- o joven extremocense -- não perdia um unico movimento dos que Sancho Paes não occultava; pois que, todo entregue ás suas tristes reminiscencias, longe estava elle de suspeitar, sequér, que a dois passos de si se encontrava o mais sagaz observador, que frequentava a taberna.

E tendo conseguido -- sem ser notado -- o desviar-se um pouco do grupo de fidalgos, que discutia acaloradamente o caso do estabelecimento dos portuguezes na Guiné, abeirára-se do antigo donato, o qual, desde que sahira de Cintra, não acariciava no cérebro senão o seu mysterioso projecto, nem tinha presentes outras imagens que não fossem a do finado amigo, e as do innocente filhito e inconsolavel mulher.

-- Noite feliz hajaes vós !-- saudára Sancho Tavares, dirigindo-se-lhe côrtezmente.

-- E vossa mercê também.

-- Ora dizei-me meu velho; -- convidou Sancho, um tanto ou quanto embaraçado:

«Fôstes servo de confiança do finado Damião Ribeiro, não é assim?

-- Isso é, senhor meu.

«Mas ... como o soubestes vós?!...

-- Pelo pouco que vos ouvi, durante a pratica que tivéstes com mestre Lourenço Alho.

-- Pois fui servo de confiança de sua mercê, que Deus Nosso Senhor tem.

Sancho Tavares, sempre embaraçado, inquiriu depois:

-- Vossa ama e minha senhora D. Joanna Zagalo, aonde é que pára?

E o antigo donato, tendo cravado olhos desconfiados no ousado interlocutor, ia para responder-lhe com um grosseiro repelão, quando se lembrou de que tinha na sua frente ura dos membros da nobresa.

Entretanto -- e buscando manifestar-lhe o mau humor que lhe produzira a pergunta -- respondeu-lhe azêdamente :

-- Se não fossem as esporas d'ouro dos vossos borzeguins, julgar-me-hia em face d'um miseravel espião.

-- Sois um imprudente, meu velho!...

-- Sou um homem que vive, ha muito, suspeitoso dos outros homens, depois que um fraco rei descêra a comprar o infame que lhe apunhalou o senhor.

-- Haveis razão em parte; -- concedêra o joven fidalgo, enfreando, pouco a pouco, a má impressão que lhe produziu o desabrimento do velho.

«Ficae entretanto sciente de que a pergunta que vos fiz, envolvia simplesmente o desejo que tenho de fazer bem.

E após um ligeiro intervallo:

-- Dona Joanna Dias é a infeliz viuva d'um meu parente, e saudoso amigo da infancia.

-- Sois parente do meu pobre senhor Damião Ribeiro?...

-- E muito próximo, meu velho.

-- Ah!...

-- Parente do vosso infeliz senhor... e inimigo rancoroso d'esse rei, que apunhala como os sicarios.

E sentira nos nervos vibrações de cholera, ao mesmo tempo que Sancho Paes cerrava os punhos n'uma grande excitação.

Sancho Tavares, continuou, de seguida a alguns segundos de mutismo:

-- Já vêdes, pois, que não sou um espião, que deseje conhecer o paradeiro da desgraçada, para ir vilmente denuncial a ao repulsivo monarcha.

-- Sou a confessar-vos que errei; -- declarára o velho, retomando, ao mesmo tempo, o seu aspecto bonacheirão.

-- Certamente... certamente; -- confirmou o joven cavalleiro, cuja voz, gesto e semblante o não trahiam por um momento.

«Se vos perguntei pelo paradeiro de D. Joanna Dias, é porque desejo e devo defendel-a, e sobretudo auxilial-a.

E ao ouvido do ex-donato, depois de bem certificado de que ninguem o ouvia:

-- Sou um membro da nova liga, que tomou a peito vingar as victimas do fraco filho d'Affonso V.

«Ah! mas silencio!... a Profundíssimo silencio!...

-- Serei discreto, senhor meu.

«E se na liga dos nobres poder entrar um plebéu, que vive ainda para uma vingança, contae com o meu braço velho, mas forte... com este braço de ferro que pode ainda, como o vosso, cravar com ancia um punhal.

Sancho Paes tremia como um nevrotico, quando acabou de falar.

-- Porque não, meu amigo, se sois valente e leal?...

E ao ouvido do amigo dedicado do assassinado de Burgos:

-- Alta noite vos encontrareis em face dos novos chefes da conspiração...

-- Obrigado... obrigado, senhor meu.

Sancho Tavares proseguiu:

-- Depois d'iniciado, dir-me-heis onde se encontra a pobre Joanna Dias, que desejo proteger.

-- Dir-vos hei já tudo senhor, porque hei agora a maior confiança em vós.

E o antigo donato relatou ao novo amigo tudo quanto sabia e presenceára, desde a fuga dos Ribeiros até ao momento do interessante colloquio, de que o fidalgo e elle eram unicos interlocutores.

Depois os dois homens separaram-se, e ficaram aguardando impacientemente a hora em que devia funccionar a nova seita de conspiradores contra el-rei D. João II e os seus terriveis satéllites... tão cobardes como traidores.

Os profanos frequentadores da taberna foram sahindo pouco a pouco, encontrando-se n'ella, a breve trecho, simplesmente, o grupo de Sancho Tavares, o ex-donato, o antigo petintal, e a adiposa taberneira, que ainda resava, nas camandulas, no mais profundo recolhimento.

Lourenço Alho -- contado o dinheiro da gaveta, e dado um pequeno balanço ás embôlhas, frituras e guisados --, arregalou muito os olhos e murmurou, mentalmente, n'uma enorme satisfação:

-- Hoje metti a unha a valêr!...

«Ah!... ah!... ah!...

«Isto não é taberna: é uma bonita encruzilhada!..

III

Conspiradores e espiões

Seria cêrca da meia noite, pouco mais ou menos.

Nas ruas, bêcos e viellas ia um silencio tumular, que os cães vadios alteravam, de quando em quando, com uivos de sêde e fome.

Lá ao longe soavam cordas de theorbas gemebundas, acompanhando sentidas endechas, arrancadas pelo amor aos cérebros e corações d'apaixonados amantes.

As roldas -- pesadas, silenciosas, sombrias -- percorriam a cidade adormecida, a despeito dos gatunos que se occultavam, e dos selvaticos brigões d'officio, que, a miude, assassinavam nas trévas, em honra da pimponice mais irritante e brutal.

A curta distancia, o Tejo, beijava languidamente as arêas da praia, ao som dôce e poético da branda viração do Norte.

A essa hora -- pois -- de sombras, d'amores, de sonhos, e de mysterios, desciam do terreiro do Rocio, e embrenhavamse no dédalo de ruas e travessas da antiga cidade baix, trez homens embuçados em amplas capas negras; os quaes -- pelos longos sombreiros emplumados, e pelo tinir das rosetas das esporas -- deixavam adivinhar em si outros tantos cavalleiros.

Silenciosos como espectros, e mergulhados n'um pêgo de laboriosissimas cogitações, não repararam em dois vultos que os seguiam, e que, de quando em quando, se cosiam com as paredes da secular casaria.

Um dos vultos era o do um bomem de formas avantajadas.

Vestia -- como o outro -- uma espécie de cerome com capuz, ou cirvilheira, e do talabarte pendia-lhe a antiga espada embotada, que finado lidador havia brandido, talvez com honra, nas pelejas da Mauritania.

O segundo era d'estatura somênos, mas avantajava-se ao primeiro, na agilidade, que presidia a todos os movimentos proprios.

-- Quedêmo-nos por um pouco! -- intimára, em baixa voz, um dos noctivagos, dirigindo-se ao outro.

E quedaram se, com effeito, ao mesmo tempo que os trez embuçados paravam e batiam á chapeada porta de mestre Lourenço Alho, que a abriu de mansinho, dando lhes depois entrada.

-- Entraram! -- exclamou, sempre a meia voz, o homem de fórmas avantajadas.

-- Eu vi... eu vi.

-- É mistér deixal-os começar.

-- É prudente.

-- Sim.

«Que não venha qualquer d'elles revistar a rua, antes de principiar o engraçado conciliábulo.

E após passageiro intervallo:

-- Sua senhoria el-rei deve-nos muito!...

-- Deve-nos a vida... simplesmente!...

-- Entretanto, como elle paga bem a quem o serve, dou por bem empregado o tempo que se gasta n'estas pesquisas trabalhosas e arriscadas.

-- Sou do teu sentir.

-- Ah! que se conseguissemos saber onde pára a formosa viuva de Damião Ribeiro?!...

-- Quê?!...

«Terias coragem para a apunhalar, ou lançar n'uma cisterna, como aconteceu ao bispo d'Evora?!...

-- Se sua senhoria o ordenasse, que remedio, meu amigo?!...

E nos lábios sensuaes do homem agigantado, fizéra-se um tremôr, que lhe impediu de momento a resposta, ao mesmo tempo que no cérebro se lhe avivavam umas certas recordações... concupiscentes, e fúnebres.

De seguida declarou:

-- Se conseguir encontrar o paradeiro da formosa viuva, hei de pedir a el-rei o perdão para ella, em troca d'um prazer sorvido nos seus lábios, que passam por ser mais vermelhos do que o próprio coral.

-- Sim...

«É uma fada... uma deusa... uma deidade!...

-- Ah! Diogo Tinôco... Diogo Tinôco:

«E eu que, na solidão d'uma enxára, já lhe ouvi os ais que gemêra, durante um sonho agitadissimo d'angustias e desalentos!...

E quasi ao ouvido do interlocutor:

-- Sua senhoria deve-me, além da vida, o sacrificio de não ter saciado, então, uma enorme sêde de deleite!...

Calaram-se de novo.

Diogo Tinôco -- o infame irmão da comborça do bispo d'Evora -- para meditar no modo mais efficaz por que havia de descobrir segredos na taberna do pelintal; e o repulsivo apaixonado de D. Joanna Dias para se lembrar, em éstos de volúpia, da seductora viuva do assassinado de Burgos.

O primeiro dos noctivagos, como que despertára depois.

-- Então? -- perguntou elle.

«Ficamos aqui immoveis?...

-- É tempo, sim; tens razão.

«Aproximemo nos da poria da taberna... com toda a habilidade e prudencia.

-- E se entrássemos dentro, e pedissemos a mestre Lourenço Alho alguns picheis com vinho?

O homem agigantado não déra logo uma resposta.

Meditou.

Mas, depois de curto mutismo, perguntou ao companheiro:

-- És conhecido do antigo pelintal?

-- Ligeiramente o sou.

-- Dar-te-hia um cubiculo reservado, se acaso lh'o exigisses?

-- Talvez.

E ficaram novamente calados durante uns ligeirissimos momentos.

Diogo Tinôco murmurou depois:

-- Bom seria que, sob promessa de boas gages, conseguissemos trazer para nós o taberneiro.

-- Lembraste bem... lembraste bem.

-- Ser-nos-ha facil, ou difficil?

-- O futuro nol-o dirá.

E desceram a extincta rua dos Odreiros até á extremidade em que se encontrava sita a bodéga, a qual, como outros muitos predios, desapparecêra no pó das derrocadas, por effeito do temeroso terramoto do dia sete de janeiro do memoravel anno de mil quinhentos e trinta e um.

Alli chegados pararam, mas ficaram ultra hesitantes sobre o que deviam fazer, visto como lhes não seria fácil realisar os seus planos, sem que fossem notados pelos fidalgos contra quem havia denuncias de conspiração, cuja veracidade os dois miseraveis iam averiguar a rogos de sua senhoria ei-rel o senhor D. João II.

A taberna, interiormente, dava a impressão nitida d'uma casa de duendes.

Dos tectos negros de fumo -- produzido pelo facho do immundo lampião -- pendiam colossaes teias d'aranha á guisa d'estalactites; e, nas paredes escalavradas, havia dejectos de môscas, morosamente accumulados durante dúzias e dúzias d'annos!

Nas bancadas e mesas de pinho bravo -- onde se encontravam agora os fidalgos e embuçados que já vimos -- havia, como nos tectos e paredes, immundicies estratiformes, muito de molde a fazerem pensar, um jogral, na hypothese geologica d'uma alluvião d'excremento!...

Mas na taberna não se encontravam apenas os principaes cabeças da novissima conspiração, que, mais tarde, haviam de propinar, em Alvôr, ao grande rei portuguez, esse toxico terrivel que o matára entre agonias medonhas, exactamente como, outr'ora, o infernal venêno de Locusta matára o desprecavido Britanico, na debochada Roma de Nero.

Sancho Paes tambem se encontrava alli, e já fizéra aos conjurados o relato da hedionda tragedia de Burgos, acabando por confessar-lhes que jurára, sobre o cadaver do apunhalado senhor, uma vingança estrondosa... muito estrondosa e cruel.

Era, pois, mais um conspirador firme e leal a engrossar o numero, sempre crescente, dos figadaes inimigos do eminente rei, o qual -- pelas mais sábias leis contra o jogo e contra o luxo... pelas largas vistas economicas, que o levaram a attrahir a Portugal os judeus expulsos de Castella... pela tenacidade e coragem com que reduzira á ordem a nobreza egoista e o clero ambicioso... e, finalmente, pelo impulso que deu aos homéricos descobrimentos maritimos -- se vira applaudido pelo povo, que o amava e estremecia, e rodeado pela admiração de muitos principes européus, alguns dos quaes vieram a Lisboa vêr de perto e abraçar quem - enriquecendo e celebrisando a sua terra -- sahia victorioso do primeiro assédio contra o velho estabelecido, concitando ao mesmo tempo os porvindouros braços para a peleja sublime da civilisação e do progresso!...

Os dois noctivagos -- com os ouvidos collados á grande porta da taberna -- davam se a pêrros por não ouvirem distinctamente o que os fidalgos diziam, e o que motivava as repetidas explosões d'odio manifestadas por valentes murros sobre as tôscas mesas de pinho.

-- Batamos! -- disséra um dos espiões ao outro.

-- Ainda não.

-- Como?!...

-- Prudente é que aguardemos melhor ensejo.

«Pois não percebes a tempestade de raivas, que vae lá dentro?...

-- Sim... ouço distinctamente.

-- E falam de D. João II!...

-- Já ouvi pronunciar esse nome.

-- Está, portanto, provado, que não foi falsa a denuncia ha pouco feita a el-rei.

-- Certamente... certamente.

E após um intervallo ligeiro:

-- Tudo conspira contra o disfarce d'esta gente, que se encontra aqui reunida.

--Tudo!...

Diogo Tinôco commentou:

-- O anonymo recebido... o aspecto da casa... a reunião a esta hora da noite... a qualidade dos individuos reunidos... o ar mysterioso dos embuçados...

-- Tudo conspira, tudo!...

-- E até as punhadas nas mesas... as rajadas d'imprecações que ouvimos... este vozear confuso... e o destaque do nome de sua senhoria el rei, que Deus Nosso Senhor guarde.

-- Não ha que duvidar.

«Estamos em presença d'um grupo de conspiradores, que, para se furtar ás vistas da justiça, reúne, fóra d'horas, n'esta tasca de má morte.

-- Estou d'accordo... estou d'accordo.

E quando os dois espiões iam bater na porta da bodéga -- afim de pedirem vinho e um cubiculo, para observarem o que se passava alli, -- eis que a mesma porta se abrira de mansinho, desenhando-se, pouco a pouco, na penumbra, a cabeça disforme do antigo petintal.

-- Quem está lá? -- perguntou elle, ao grupo, um tanto ou quanto agastado.

-- Gente de paz; -- lhe respondêra o Tinôco, que, como o companheiro, havia occultado o rosto no amplo capuz do cerome.

-- O que pretendeis de mim... e d'esta casa?

-- Desejamos beber, n'um dos logares occultos da vossa afamada taberna, alguns picheis de vinho das adegas da Trafaria.

-- Tenho o ahi, de fazer alevantar defunctos...

-- Nós o sabemos... nós o sabemos; interromperam os dois.

-- Mas uma dúvida ha, senhores meus.

-- Qual é ella?!...

-- Falae depressa: vá!

-- É que... impossivel se me torna o deixar-vos entrar hoje n'esta honradissima taberna e tabolagem.

-- Como assim?!...

E, adelgaçando muito a voz, Lourenço Alho declarou, mentindo:

-- Estão alli algumas donas cá do bairro, que não consentem o ser vistas por quaesquer desconhecidos.

-- Ah! -- interjeiceonaram os espertos espiões, fingindo ter acreditado no manhoso taberneiro.

-- Pois é tal e qual como vos disse, senhores meus.

-- Não duvidamos da vossa palavra honrada, mestre Lourenço Alho.

-- O que eu digo é tão verdade, como o que disse S. Matheus.

-- Nós o cremos... nós o cremos.

-- E a respeito de lisura no meu tráfico, peço meças ao mais pintado.

-- Estamos scientes de tudo; -- respondeu o homem agigantado, que, como o Tinôco, ainda não fôra reconhecido pelo velho taberneiro.

E n'outro tom:

-- Ide buscar dois picheis com vinho, e guardae bem os segredos das donas, que não viemos para devassar.

-- Eu sei... eu sei, senhores fidalgos.

E quando Lourenço Alho passou a cumprir a ordem dos dois freguezes, combinaram estes o meio mais fácil de o levarem a revelar-lhes tudo quanto elles ignoravam e desejavam saber.

O grupo de conjurados -- já bastante enthusiasmado pelo alcool -- não deu fé do que se passára e ia passando á porta da muito antiga bodéga.

Quanto aos espiões -- esses -- no empenho de bem aproveitarem o tempo, continuavam a applicar o ouvido ao que se dizia; mas debalde, infelizmente para elles, pois que, n'aquelle momento, tinha a palavra um dos fidalgos do grupo, cuja voz débil e pausada não podia passar além do reduzido auditorio.

Lourenço Alho -- servido e bebido o vinho dos dois picheis -- recebêra o convite d'afastar-se um poucochinho da tabolagem, afim d'ouvir uma proposta, que o Tinôco ia fazer-lhe.

-- Ouvirei! -- promptificára-se elle, afastando-se, obra de dez passos, da escalavrada e immundissima taberna da extincta rua dos Odreiros, emquanto os nobres conjurados -- completamente alheios ao que se passava na rua-- ouviam, com profundissima attenção, o mais figadal inimigo do filho d'Affonso V.

IV

Em caminho d'uma paixão

Sancho Tavares -- já sciente do ultimo capitulo da historia de D. Joanna Dias -- montára o seu nervoso marroquino e endireitou, para a villa de Cintra, ao despontar o dia que seguira á noite em que se déram os factos que vimos de narrar.

Não o levava á pittoresca vivenda da quinta de Val-de-Lobos o desejo de vêr a mulher, cuja belleza tantas vezes admirou: mas sim o d'offerecer-lhe a mais desinteressada protecção, apesar de não ignorar que a viuva de seu finado parente tinha alli um asylo seguro, rodeado de todos os confortos e dos espontaneos auxilios de seus primos, que elle, Sancho Tavares, conhecia de nome apenas.

Chegado que fôra á perfumada villa, Sancho Tavares fez parar o brioso solipede que o suor da jornada banhava abundantemente desde o dorso aos corvejões.

Depois procurou alguém que o puzesse no caminho da quinta de Val-de-Lobos, que elle nem sonhara, sequér, ser o caminho curtissimo d'uma futura paixão.

Sim.

É que n'aquelle trecho do Éden - transformado agora n'uma estancia de lamentos e de receios -- respiravam o ar embalsamado pelas rosas e cecéns duas formosissimas mulheres... duas empolgantes creaturas... uma das quaes havia de despertar no coração do joven fidalgo um d'esses colossaes amôres, que tornaram assás poéticos os nomes de Fornarina e Raphael, de Beatriz e Dante, de Laura e Petrarcha, de Tasso e Leonor.

Uma d'ellas, acurvada ao peso da sua enorme desgraça, esquecia-se da propria e não vulgar formosura, para passar o tempo -- que podia gastar, fascinando, - a recordar-se da orphandade quasi indigente do filho, e da morte inesperada e prematura do que amára com todas as véras d'um coração sensivel e leal: Era D. Joanna Dias, a desolada mãe do futuro trovador da côrte... d'esse grande e mimoso poeta, a quem o azar inexoravel havia ainda d'acompanhar e de perseguir brutalmente.

A outra -- cujas peregrinas formas podiam ter feito as delicias dos seguidores d'Epicuro -- como que escondia a propria belleza n'aquelle ignorado recanto, sem que do amôr soubesse mais do que o que lhe diziam os rimances e novellas: Era D. Ignez Zagalo, irmã do integérrimo desembargador Antonio Alvares, que -- como as duas apreciaveis senhoras -- o leitor já conhece desde os primeiros capitulos d'esta tosca narrativa.

Ah! mas se o coração da estonteadora Ignez era um accumulador de generosas paixões, na maior parte latentes, entretanto longe estava ella de manter a austeridade d'um estoico... a rispidez d'um Zenão.

Que sahisse da aljava para o arco a primeira setta do aleivoso Cupido, e -- como Achilles -- a formosa virgem de Val-de-Lobos seria fatalmente ferida, não no ponto vulneravel que perdêra o celebrado heroe grego, mas em todos os do proprio órgão muscular... d' esse caprichoso órgão que é, a um tempo, principal agente da circulação do sangue, e -- o eterno dueto dos negócios do amor.

Sancho Tavares -- devidamente informado dos caminhos -- chegou á vivenda dos Zagalos, em cujo horto encontrára o pequeno Bernardim, o qual, como sempre, corria atraz das borboletas, que lhe fugiam, ou morriam, deixando-o immerso em pranto.

O nervoso e infatigavel corcel fôra já entregue ao velho Braz Caniço, que passou a enxugal o, emquanto Marcos Andronio seguira a avisar o magistrado, relativamente á presença do inesperado recem-vindo.

Antonio Alvares Zagalo não se fizéra esperar.

E dirigindo-se ao logar onde se encontrava o moço extremocense, convidou a acompanhal-o á vivenda, depois de trocados, entre ambos, uns cumprimentos ligeiros.

-- A quem tenho a honra de falar? -- perguntára-lhe o desembargador, depois de commodamente assentados em preguiceiros, n'um dos salões da espaçosa casa.

-- Sou um dos Tavares d'Extremoz; -- respondeu-lhe o recem chegado, cravando vistas perscrutadoras no rosto franco e leal do sympathico magistrado.

-- Bem sei... bem sei:

«Vossa família está ligada á do mallogrado esposo de minha prima Joanna Dias.

-- Isso é; senhor desembargador.

-- Vosso nome é...

-- Sancho Tavares... um vosso servidor.

Antonio Alvares agradecêra com uma leve inclinação de cabeça.

Depois continuou:

-- Com que então viéstes de passeio a esta linda região de Cintra, não é assim?

-- Não acertastes, senhor meu.

-- Em tal caso...

Sancho Tavares interrompêra:

-- De sobejo conheço a encantadora Cintra com os seus arredores formosos, pois que muitas vezes hei vindo aqui para me deleitar, sómente. Mas hoje, não.

-- Ah!...

E proseguiu:

-- Vim a vossa casa para fim assás diverso:

«Vim para cumprir um dever, que de sobra espacei já...

-- Explicae-vos por mercê, senhor.

E o fidalgo alemtejano, como que cobrando animo, começou:

-- Como sabeis, senhor, vossa prima D. Joanna Dias ficou na extrema penuria, depois do feroz assassinato de Castella, e do revoltante confisco de lodos os seus bens...

-- Adeante, senhor, adeante.

-- Pois bem.

«Eu, que sou innupto, e que -- mercê dê Deus -- possuo o necessário para acudir aos contratempos de dois parentes, venho dizer á infeliz viuva que, além do vosso generoso auxilio, poderá contar com o meu, se acaso consentirdes que vos dispute parte do vosso caritativo encargo.

-- Sois um moço de virtude, senhor Sancho Tavares.

«Mas devo dizer-vos, em resposta, que não posso conformar me com o vosso generosissimo desejo, que, do fundo do coração, hei de, entretanto, applaudir sempre.

«Todavia não sei dizer-vos se minha prima será, ou não, do meu sentir.

«Se não fôr, terei então um desgosto profundo, pois que resolvido estou a servir-lhe d'irmão, e a proteger e a dirigir-lhe o filho, emquanto Deus me emprestar esta vida... já de sobra attribulada.

Sancho Tavares não teve que responder-lhe.

Emmudecêra por momentos para -- aprendendo na lição d'altruismo que acabava d'ouvir -- estabelecer o confronto entre as almas boas, e as que, esquecidas da curta duração da vida, sacrificam tudo ao egoismo, deixando muitas vezes atraz de si longa cauda de crimes, de maldições, e d'infamias.

E depois de ter philosophado mentalmente sobre a malvadez, hypocrisia, e grotescos da humanidade, arredára o espírito d'estas immundicies sub-lunares, para voltar de novo á realidade do momento.

-- Uma mercê vos peço, senhor desembargador; -- disse elle, dirigindo-se um tanto, ou quanto confusamente, ao generoso magistrado.

-- Estou aqui para vos servir em tudo quanto me seja dado fazer-vos

-- É que, antes de partir, desejava vêr D. Joanna Dias, e o seu pequeno filho Bernardim.

-- Antes de partirdes?!...

«Mas é que vós sois hoje nosso, se porventura negocios graves vos não chamarem a Cintra ou a Lisboa...

-- Nenhum negocio me reclama, senhor.

«Todavia não devo acceitar o vosso bizarro offerecimento, pois que é dever meu não curar d'importunar-vos.

E o desembargador Antonio Alvares, com um sorriso, respondeu-lhe de maneira a obrigal-o a ficar na aprazivel vivenda: o que, além do mais, lhe era d'extrema conveniencia, visto como elle e os conspiradores da taberna de Lourenço Alho deviam estar sendo procurados pelos quadrilheiros da justiça, em razão das sangrentas scenas da vespera, de que o leitor vae ter noticia.

-- Antes de mostrar-vos esta casa e dependencias, senhor Sancho Tavares, deixae-me chamar aqui minha prima, e minha irmã.

«Certamente não conheceis esta ultima, não é assim?...

-- Não conheço pessoalmente, senhor.

E n'outro tom:

-- Entretanto é tamanha a fama da belleza e virtudes de D. Ignez, que de ha muito me acostumei a pensar n'ella... e n'ellas.

Sancho Tavares mentia, para ser agradavel ao sympathico magistrado, que via na irmã -- e com razão -- o seu mais precioso thesouro.

Moço e rico, o fidalgo extremocense sentia o coração embotado para o amôr difficil... para esse sancto amôr que, alojando-se nas almas predestinadas, lhes povoa a existencia de gosos indescriptiveis, e quasi que desmaterialisa as creaturas que conseguira prender.

Compellido, pois, pelo modo de ser da sua propria organisação, e com a bolsa recheada d'ouro -- que tudo vence -- Sancho Tavares, se se preoccupava por mo- mentos com a belleza peregrina de qualquer mulher que via, era para, de seguida, tratar de fascinal-a com o brilho obcecante d'esse ouro tentador.

Vencêra não poucas vezes, mas perdeu outras tantas, consoante a miseria, o desejo, o morbo e o pudor que encontrava, ou não, a impedir-lhe o passo na vereda dos proprios caprichos e apetites materiaes.

Antonio Alvares, depois de ter agradecido os diversos madrigaes que Sancho Tavares disséra das virtudes e formosura da irmã, ergueu-se do preguiceiro em que se encontrava assentado; e, tendo-lhe pedido licença, fôra ao interior da vivenda convidar Ignez e a prima a apparecerem ao hospede, bem como participar lhes o fim da visita, e o offerecimento da temporaria demora em Val-de-Lobos, que elle, extromocense, sem grande exforço acceitou.

D. Joanna Dias sentia-se altamente commovida perante o communicado desejo do moço alentejano; em quanto D. Ignez Zagalo preparava os longos e sedosas cabellos, para apparecer, na sala, sem o menor senão na sua authentica belleza.

Ah! e como o coração lhe pulsava em mysteriosos presentimentos, ao lembrar-se de que -- n'aquella estancia perfumada e tão de molde para o amôr -- ia vêr um moço generoso e perfeito... um cavalleiro com as suas esporas d'ouro... com o seu vistoso gibão e calções de velludo, guarnecidos de finas rendas... com o seu chapéu ou gorro emplumado... como os seus firmaes de custosa pedraria... e com a sua fina espada de riquissimas incrustações, pendente -- ao lado esquerdo -- d'um garrido talabarte.

A seu turno Sancho Tavares -- sósinho na ampla quadra -- sentia o que quer que fôsse d'extraordinario... d'attrahente... de voluptuoso... ao pensar na ideal mulher que lhe pintaram, e que vivia alli n'aquelle odoroso jardim,-- onde apenas lhe chegavam aos ouvidos os gorgeios suaves dos pintasilgos e rouxinóes... o dôce gargarejar dos regalos... o poetico ramalhar do arvoredo... o chiar estridulo dos carros... o gemer monótono das noras... e as melancholicas balladas dos camponezes, no mourejar perpétuo do sacho e do arado.

E tremiam-lhe os labios sensuaes sob a influencia de lúbricos desejos, ao mesmo tempo que varava a porta da quadra com uns olhares insistentes incendidos pela volúpia.

Pouco tempo se conservaram occultas as formosas mulheres, pois que, decorridos uns dez minutos, entraram na sala acompanhadas pelo sympathico magistrado e pelo pequeno Bernardim Ribeiro.

Sancho Tavares, ao vêl-as, correu nervosamente para ellas; e, inclinando-se, cumprimentára e fôra cumprimentado com todo o requinte das vetustas etiquetas.

Depois -- assentados todos em preguiceiros e tamboretes -- passaram a falar em variados assumptos, alguns dos quaes provocaram aos circumstantes bastantes lagrimas, recriminações, e os mais profundos desalentos.

Mas deixemos, leitor, a parte elegiaca da scena, e passemos a observar as impressões recebidas pelo moço alemtejano e pela formosa irmã do sympathico desembargador.

V

Fatalismo?

Galathéa fascina Pygmalião!

O antigo libertino dos prostibulos de Lisboa... o assiduo raptor das lindas mouras dos aduares... o canóro D. Juan das adufas, em noites de luar... o incorrigivel frequentador dos volutábros, após ruidosos festins pantagruélicos... o callejado Lovelace, emfim, que fôra, ha quatro seculos, o sonho ávido de muitas Vénus desejosas, e o insoffrivel pesadelo de muitos chefes de familia, sentira se preso de singular arroubamento ao vêr-se em face d'Ignez Zagalo, cuja enorme formosura já estaria geralmente celebrada, se ella -- abandonada a calma Thebaida de Val-de-Lobos -- quizesse deslumbrar na côrte, e dar assumpto às lyras gemebundas dos mais mimosos trovadores.

Sancho Tavares não pôde ser superior á impressão que lhe produzira a imagem d'aquella estonteante mulher, cujas formas d'impeccavel correcção faziam lembrar as antigas esculpturas, que immortalisaram o cinzel do divino Praxiteles.

Fascinado pela singular plastica d'Ignez, respondia simplesmente, por ultimo, ás perguntas que lhe faziam; e agradava lhe sobremodo o ter, apenas, d'abrir os labios, para -- n'uma interjeição insonóra -- dar expansão ao espanto que o premia em presença da empolgante carnação da linda irmã do magistrado.

Ah! mas não era uma d'essas paixões filhas da alma, a que elle sentia apertar-lhe, com vaporosos dedos, o coração rebelde, onde se haviam quebrado centenas d'aspirações affectivas, tal qual se quebra a vaga contra o rochedo, para converter-se em escuma, que se apaga depois.

Não era.

Ha creaturas tão refractarias a tudo quanto é bellamente intangivel... tão avêssas ao que forma esse mundo de visões em que a alma se deleita, que o negar-lhes o espirito seria resolução plausivel d'um psychologo, que se désse ao mistér de sondar tão profundas depressões, em que o ideal nunca entrou.

Sancho Tavares era uma d'estas rebeldias psychicas.

Teria propinado a Platão e Aristóteles a letal cicuta que intoxicára o divino Sócrates, se porventura houvesse dirigido os destinos da vetusta Grécia, ao tempo em que os grandes philosophos aprendiam e ensinavam a doutrina do eximio mestre d'Athenas.

Para elle existia só a materia vil, que reverte ao nada absoluto, depois que a engrenagem da vida deixa de trabalhar.

Antigo Buchner, por instincto, equipararia um metaphysico a qualquer dizidor de praça, se se desse ao desfastio d'ouvir-lhe subtilezas penetrantes... enigmas apocalypticos.

Gosar ininterruptamente a existencia... enchê-la de seducções plasticas, palpaveis... dar em pasto á materia os prazeres das grandes noites de deleite, eis o que elle comprehendia e realisava, sem que, depois dos magnos éstos de deboche, lhe ficasse, a impedir-lhe o curso dos longos somnos animalisados, qualquer romantica visão... qualquer d'esses vaporosos agentes, que interessam sómente a alma.

Era este, pois, o retrato psychologico do joven alemtejano, que sahia a miude da patriarchal innocencia do seu solar, para atascar-se, na côrte, nos nateiros da intemperança.

Entre uma noite de Nero, abarrotada de monstruosas devassidões, e outra noite das que soía velar o amante de Leonor, não teria que hesitar por um momento sequér: iria pela noite do assassino de Poppéa... por uma d'essas noites d'aromaticos licôres, bebidos sôfregamente pelos intersticios dos seios nús das patricias sensuaes.

A presença d'Ignez Zagalo impressionára-o assás.

Não pelo effeito que lhe produzissem as suas palavras criteriosas... os seus finos racioconios... a cultura, emfim, do seu espirito privilegiado -- cuja acuidade se comprehendia e impunha --, mas pelo deslumbramento que recebeu d'aquelle conjuncto de perfeições physicas, que a poetica solidão da granja sobremodo realçava.

E devorava-a com olhos incendidos de volúpia... quasi alheado de tudo quanto o rodeava.

É que não estava alli o homem racional: estava a bêsta acurvada a um desejo, que a convenção dos tempos capitulou d'impuro.

A seu turno a formosa irmã do magistrado -- frivola, como quasi todas as mulheres --, deixára se enlevar pela physionomia realmente insinuante do moço extremocense... pelas flammancias das vestes que elegantemente envergava... pelas estudadas maneiras que exhibia... pelo adocicado das poucas e pretenciosas palavras que disséra... e, finalmente, pelo seu todo de Galaôr... d'esse grotesco Galaôr das velhas cavallarias, que a penna mordaz do grande e immortal Cervantes reduziu ás proporções do seu jogral D. Quichote.

Inclusa entre as quatro paredes da pittoresca granja, Ignez Alvares -- saturada de gorgeios de passaritos, e de todos os poeticos rumôres da aldeia, que já se lhe tornavam enfadonhos --, sentira se como que transportada a um mundo novo, ao ouvir a voz dulcissima do elegante mancebo, e ao servir lhe d'alvo dos seus olhares ultra-insistentes e voluptuosamente inflammados.

D'esta vez Pygmalião fascinava Galathéa.

E influenciada pela mesma corrente de paixão material, que envolvêra prestes o fidalgo alemtejano, a formosa irmã do desembargador Zagalo deixára-se seduzir pelas feições correctas do mancebo, e pelas formas másculas e impeccaveis, que as vistosas vestes de velludo deixavam sobresahir-lhe em toda a propria pujança.

Se lhe jurassem que o homem que admirava, quasi em extase, era um dos mais famigerados libertinos da côrte, e que o seu coração nunca podéra dar ingresso a sentimentos d'amor puro, ella -- arrastada pela infallivel fatalidade -- julgal-o-hia até mais captivante, e sacrificaria tudo por elle, sem que lhe repugnasse, sequér, o inquinar-se n'aquelle venenoso paúl das orgias quotidianas e devassidões successivas.

Porque foi sempre assim.

A mulher innupta -- aparte as excepções -- rende-se, d'ordinario, ao primeiro adventicio que a fascina; e quanto maior é o numero de defeitos que o caracterisam, tanto maior se torna esse affecto desgraçado, que, quasi sempre, a arrasta aos abysmos das grandes desillusões, e, muitas vezes, ás torturas insupportaveis do corpo e do espirito.

São poucas as que se arrependem de ter sacrificado o carinho dos paes amantíssimos e os dôces confortos do lar natal, á traiçoeira miragem d'uma união, que se lhes afigurou feliz... união ungida, mais tarde, pelas lagrimas mais intimas, e marcada pelo terrivel ferrete das desventuras crueis.

Cérebros envenenados pelos effeitos da cobiça impudica, para elles o supremo prazer... a supina felicidade resume-se n'um abraço e n'um beijo sensual, recebido -- muitas vezes -- dos beiços nauseabundos d'um infame... d'um bebedo... d'um imbecil... d'uma d'essas bêstas personificadas, que consideram a mulher como uma simples machina dos deleites da materia.

VI

Enlevos e receios

Ha exemplos -- muitos -- de ter o amôr modificado perversas indoles... limado aréstas vivas de corações duros... e disputado, aos abysmos moraes, myriades e myriades de condemnados.

Ignez Zagalo podia ser -- pelos primôres da propria alma immaculada -- a portadora d'esse sentimento sublime, que, a seu turno, se convertêsse no agente da salvação do homem, cuja presença a fascinára.

E fôra.

Por sua vez, Sancho Tavares, era susceptivel de regeneração completa..

Aquella alma entorpecida por excessos mundanaes, já despertára, por momentos, quando procurou a desolada viuva, para lhe offerecer, sincera e bizarramente, o mais espontaneo auxilio... a mais franca protecção.

Que importa que elle cahisse, depois, em novo torpôr do espirito, ao vêr a formosissima plastica da irmã do magistrado?

Não se deixara Ignez seduzir, tambem, pelas fórmas attrahentes do moço extremocense?

É que a alma mais pura, mais candida, mais ingénua aloja-se no vil invólucro que é feito de materia.

Sancho Tavares -- tendo acceitado gostosamente o offerecimento do desembargador Antonio Alvares -- deixou-se ficar em Val-de-Lobos mais do que o tempo conveniente, que devia permanecer alli.

A principio o desembargador attribuira o facto, simplesmente, á conveniencia que o seu hospede tinha dec onservar-se occullo ás vistas dos quadrilheiros, que o procuravam na côrte, como sendo, conforme era, um dos novos conspiradores contra o governo e segurança do filho d'Affonso V.

Ah! mas os dias foram se succedendo, e Sancho Tavares -- preso ás seducções da mimosa Ignez Zagalo -- não pensava em abandonar a vivenda, levando assim ao magistrado um certo mal estar, que devéras o opprimia.

Poderia -- como chefe de familia e senhor d'aquella casa -- convidar, e até mesmo obrigar, o hospede, a ausentar-se d'alli; mas os primôres da sua propria educação, e a profunda confiança que depositava na irmã, obrigaram-o, prestes, a por de parte projectos de violencia, que só em ultimo recurso teriam execução.

Portanto, resolveu unicamente o vigiar de perto o moço extremocense, que, por sua vez, se julgava impotente para abandonar a formosa mulher que o captivára, e que, pouco a pouco, lhe ia convertendo o coração -- quasi petrificado -- n'um verdadeiro centro de sensações affectivas.

D. Joanna Dias observava -- mergulhada nas proprias mágoas -- este progredir do amôr dos dois jovens, que a poesia de Val-de-Lobos e a castidade do coração da prima iam conseguindo metamorphosear n'um d'esses sublimes amôres mais do dominio da alma, do que enfeudado á materia.

E se Antonio Alvares a procurava, ás vezes, para desabafar a affronta que lhe fazia a tenaz permanencia do alemtejano, ella -- dando trégoas ás proprias lagrimas -- suavisava-lhe, o mais possivel, aquelle mal estar do espirito, que, por não poder explodir, se lhe ia tornando altamente doloroso.

Um dia -- passado um mez -- o desembargador, passeando sob o copado d'um formoso laranjal, vira approximar-se de si a viuva do assaássinado, que conduzia, pela mão, o melancholico Bernardim.

Antonio Alvares -- exhibindo um palôr proprio das grandes tribulações e vigilias -- correu ao encontro da prima; e, arrastando-a suavemente até um dos bancos rusticos do pomar, perguntára-lhe á queima roupa:

-- Onde ficou Ignez e o nosso hospede... que já de sobejo me enfada?...

-- Não receies pela segurança de tua irmã, nem duvides, tão pouco, dos primôres de caracter do joven Sancho; -- respondeu-lhe convictamente D. Joanna Dias, assentando-se no banco que o primo lhe indicára, ao mesmo tempo que dava liberdade ao pequeno Bernardim para correr atraz das joanninhas e das borboletas douradas.

Antonio Alvares Zagalo tomára então um fartissimo hausto d'ar, e como que sentira o coração meio liberto da mão de ferro, que pouco antes lh'o apertára.

É que não sabia, ainda, que o amôr tinha feito o milagre de converter n'um homem de coração e espirito o antigo e material libertino dos alcouces e tabolagens, e que, tanto elle como Ignez, já se amavam singularmente... por um modo ultra-intensivo.

E o desembargador Zagalo deu um pulo sobre o banco rustico em que se havia assentado, quando a viuva de Damião Ribeiro o pozéra ao corrente de tudo quanto se passava, ácêrca dos negocios do coração da prima e do alemtejano.

-- Affirmas-me que Sancho e Ignez se amam, e que desejam sanctificar n'um templo o seu amôr?!...

-- Affirmo-t'o na maior de todas as convicções, Antonio.

-- Mas não sabes tu... não sabe Ignez que esse mancebo tem sido um dos mais pervertidos frequentadores das grandes orgias da côrte?...

-- De sobra o sabemos, meu amigo.

«Mas não ignoramos, tambem, que a regeneração já despontou n'aquella alma boa, e tão boa, que -- condoendo-se da minha sorte -- viéra aqui, simplesmente, para me offerecer a mais desinteressada protecção.

Antonio Alvares Zagalo não apressou uma resposta.

Meditou.

Depois erguêra a cabeça -- onde começava a apparecer a geada alvissima de mais de meio seculo de canceiras -- e, dirigindo se á prima, disse pausada- mente:

-- Bem está.

«Todo o mau homem é susceptivel de regeneração, e regenera-se sempre que procura o meio d'onde brotam salutares exemplos de virtude.

«E esta casa tem sido uma eschola d'austeridade no viver... um meio onde a honra e o pudôr veem, desde ha muito, a lançar raízes fundas e vigorosas.

«Bem está, repito.

«Se se amam, que se casem.

«Ah! mas uma sombra ominosa ha de entenebrecer o presente e o futuro de minha irmã que -- como tu e esse moço -- terá de passar a ser mais um presidiado d'esta casa... convertida agora n'um cárcere.

-- Não comprehendo, Antonio?!...

-- Tem pouco... muito pouco que comprehender.

-- Explica-te, se te praz.

-- É que a cabeça de Sancho Tavares está posta a preço, e os quadrilheiros procuram-o, ávidamente, e aos outros novos conjurados.

-- Sancho Tavares conspira?...

-- Conspira, ou, antes, conspirou!...

E depois de curta interrupção :

-- D. João II -- informado por Diogo Tinôco -- mandou perseguir os novos conspiradores; e já dois se encontram entre ferros, para pagarem, no cêpo, a sua ousadia enorme.

-- Ah!...

-- Porque el-rei não perdoa a ninguem que pense -- sequér -- impedir-lhe a obra de remodelação social a que metteu hombros, e que deseja fechar com chave d'ouro, augmentando, com novos descobrimentos, os acanhados dominios d'este reino de Portugal.

Joanna Dias não respondêra ao primo, que, caracter immaculado e bom, lamentava a sorte dos conjurados, ao mesmo tempo que applaudia, intimamente, a incrivel energia do grande rei portuguez.

E proseguiu, envolvendo n'um demorado olhar de dó a viuva do assassinado de Burgos:

-- Já vês, pois, minha boa Joanna, que a occasião do consorcio se me afigura má, dado o papel de Sancho Tavares na ultima conspiração... descoberta, ha pouco, na tabolagem do petintal.

-- Descoberta n'uma tabolagem?!...

-- Isso é, minha amiga.

«Descoberta n'uma tabolagem, onde se deu uma scena de sangue, em que morreram, segundo ouvi, dois temiveis contendores.

-- Ah!...

E depois de passageiro silencio :

-- Entretanto... que se casem.

«Mas que não contem com a liberdade além dos muros d'esta granja -- que os quadrilheiros respeitam -- emquanto viver el-rei nosso senhor... cuja vida corre perigo.

E pelos olhos de D. Joanna Dias passára um vivo clarão, quando o desembargador alludiu ao perigo que corria a vida d'el-rei... d'esse rei que lhe matou, por intermédio d'um sicario, o esposo amantissimo, reduzindo-a depois, e reduzindo-lhe o filho, ás condições desgraçadas d'uma especie de mendigos!

É que a infeliz senhora suffocava a raiva de não lhe ser dado vingar o pobre assassinado de Burgos, e encontrar um lenitivo á propria dôr n'essa vingança tantas vezes esboçada, em vão, nas grandes noites de vigilia, para aggravar-lhe ainda mais esse martyrio lento, que tão impiedosamente a opprimia... que tão impiedosamente a infernava.

Sim.

Se a vingança foi o prazer dos deuses do paganismo, ah! como elles se deviam ter revoltado no Olympo, quando -- a despeito do alto poder de que dispunham -- a viam asphixiada pela baba epyleptica dos grandes rancôres impotentes... das grandes raivas comprimidas?!...

O dialogo, as interrupções, e os raciocinios de natureza vária continuaram ainda, por algum tempo, sob o copado do laranjal, emquanto Sancho Tavares e Ignez Zagalo -- assentados á beira d'alguns massiços de flôres -- diziam um ao outro dulcissimas palavras de ternura, bebidas no eterno vocabulario do idioma do coração.

A terna irmã de Antonio Alvares tivéra o poder de transmutar n'um alvo d'amôr vehemente o antigo libertino dos lupanares... esse novo Tibério, que gosava nos banhos d'alcool, nas ceias balthazarescas, e nos grandes e ininterruptos excessos das maiores depravações!...

Mas deixemol-os libar o mais saboroso hydromel terreno, e vejamos o que se passou, de tragico, n'aquella carrancuda noite de conspiradores e espiões, que o leitor e nós já vimos na taberna e tabolagem da extincta rua da Baixa.

VII

Nova tragedia

Como ficou dito n'um dos capitulos que antecedem, Lourenço Alho não reconhecêra ainda nenhum dos dois infames espiões -- , graças aos capuzes dos ceromes, que lhes tapavam, por completo, os rostos patibulares.

Dentro da taberna continuava aquella espécie de sessão, em voz convenientemente abafada, a que Sancho Paes assistia com relampagos no olhar, toda a vez que se alludia aos assassinios dos duques de Bragança e de Vizeu, bem como aos do bispo d'Evora e do pobre Damião Ribeiro... o assassinado de Burgos.

A seu turno os espiões -- a curtissima distancia da tabolagem -- conversavam, a meia voz, com o antigo petintal; preparando, por meio de periphrases ou circumloquios, o caminho em que desejavam mettel-o, para -- como o leitor comprehendeu bem - chegarem ao fim que desejavam athingir.

Reconstituamos parte do dialogo.

Mas, antes, deixemos passar duas cadeirinhas sopesadas por quatro mouros fôrros e rodeadas por um grupo de christãos, bem armados, empunhando archotes accêsos, a despeito d'uns tenues raios de luar, os quaes, pouco tempo depois, hão de ceder o seu logar á mais espessa escuridão.

Quem serão as personagens que -- no interior dos vehiculos, e tão guardadas por uma escolta armada até aos dentes--, atravessam, áquella hora adeantada da noite, as silenciosas e perigosissimas ruas e travessas da velha Lisboa de ha quatro seculos?

Se interrogassemos um dos homens do quasi fúnebre acompanhamento, haviamos de ter em resposta que, dentro das referidas cadeirinhas ou liteiras, iam suas mercês os muito afamados senhores João Affonso d'Aveiro, Diogo Cão, Pero da Covilhã, e Affonso de Paiva , os quaes -- a convite de sua senhoria el-rei -- haviam passado o serão na Alcáçova, combinando futuros trabalhos de mérito, e conversando ácêrca dos assumptos d'além mar, que muito interessavam o espirito do eminente monarcha.

Mas deixemol-os seguir para as respectivas moradias, e observemos nós, leitor, o que se está passando entre mestre Lourenço Alho e os dois repugnantes e perigosissimos delactores.

-- Dizem que el-rei nosso senhor -- asseverava falsamente, ao taberneiro, um dos espiões -- falára ha pouco, na Alcáçova, em mandar chamar-vos á sua real presença, para fins que muito devem interessar-vos... e honrar-vos tambem.

-- Como assim?!...

«Como assim?!... interrogou -- meio crédulo -- o antigo petintal, exforçando se, ao mesmo tempo, por conhecer o individuo que lhe falava, e que era o astuto e repulsivo delactor do envenenado bispo d'Evora.

-- Parece que sua senhoria tem em mente encarregar-vos do fornecimento de vinho e carne para bordo dos galeões, que vão seguir, dentro em breve, para terras d'além-mar.

Lourenço Alho ficara como que deslumbrado.

Fornecedor da carne e vinho das armadas, equivalia a enriquecer-se de prompto.

-- Quem vos affirmou isso, senhores?! -- inquiriu elle, radiante de inexcedivel satisfação.

-- Janifante... o opulento fornecedor dos mercadores da rua Nova .

-- Janifante?!...

-- Esse mesmo, Sancho Alho.

-- Ah!...

E o taberneiro -- na mais estupida de todas as illusões-- nem sequér se lembrou de que os fornecimentos das naus e galeões estavam a cargo d'officiaes da real fazenda, os quaes fornecimentos obedeciam a um certo e determinado rescripto, adrede preparado.

-- Pois se sua senhoria el-rei houver por bem o chamar-me á Alcáçova hei de dizer-lhe que farei tudo quanto fôr da sua real e muito sábia vontade.

Diogo Tinôco teria trocado um olhar triumphante com o outro desconhecido, se a espessa escuridão da noite -- que já envolvêra tudo n'um abraço tenebroso -- lhes não impedisse esta manifestação espontanea das suas almas derrancadas.

E o inconstante petintal -- que já acolhêra na tabolagem os perseguidos sequazes do duque de Vizeu, e que, sinceramente ou não, se havia de algum modo associado a elles,-- estava apto para se emporcalhar no monturo das traições e infamias, se el-rei o chamasse aos reaes paços da Alcáçova, e, outrosim, o encarregasse do fornecimento das naus.

Ah! que repellente reptil não é o egoismo, -- paixão tão velha como o homem... paixão feita de vicios e perversões, e, não raras vezes, de crimes e de torpezas!...

Mas Deus velava pelo ambicioso velho, e, muito mais, pela segurança das vidas dos imprudentes conspiradores.

É que Sancho Paes -- havendo notado a ausencia do taberneiro, e receando que houvesse occorrido qualquer coisa desagradavel,-- erguêra-se subtilmente do logar que occupava á mesa dos conjurados; e, tendo-se approximado, sem ser visto, da porta da tabolagem, olhou de seguida para a rua, que encontrára forrada de negro como se fosse um esquife.

Depois -- e applicando bem o ouvido ao que se passava em derredor de si, notou que alguem dizia, a meia voz, ao antigo petintal:

-- ... Pois ides ser o fornecedor futuro das futuras armadas d'Africa; mas esta graça, de sua senhoria el-rei nosso senhor, obriga-vos a ser-lhe duplamente fiel... duplamente dedicado.

Sancho Paes sentiu como que um longo calafrio correr-lhe o corpo todo, quando o irmão da antiga amasia do bispo d'Evora acabara de falar.

-- Alliciam o taberneiro! -- disse comsigo, buscando, ao mesmo tempo, approximar-se mais do grupo, que o não divisára ainda, por mercê da espessíssima escuridão.

E Diogo Tinôco continuou n'uma satisfação enorme:

-- Haveis de subir mnito, meu amigo, porque o senhor D. João II costuma pagar bem aos seus servos dedicados.

«Ah! que se eu estivesse na posse dos vossos preciosos segredos, julgar me-hia muito feliz, uma vez que me resolvesse -- como devia -- a revelal-os a el-rei.

-- Infame! -- interjeiceonou, quasi insonoramente, o honrado Sancho Paes.

Depois... apalpou, com a mão trémula de raiva, o cinturão de couro crú, onde se encontrava um punhal que herdára do seu amigo e senhor.

Lourenço Alho -- esse conservava-se mudo, como qualquer das largas lages que calçavam o pavimento.

Se possivel fôsse o penetrar-se-lhe no fôro intimo, certa seria a surpresa d'uma renhida lucta entre o interesse material, que não queria perder, e uns pequeninos restos de dedicação (?) á causa da nobreza --, restos que tinham a origem propria no temôr que lhe produzia a certeza d'uma vindicta da parte dos conjurados.

-- Então?! -- perguntára-lhe o outro desconhecido, n'um certo tom d'intimativa, e ao mesmo tempo d'enfado.

Sancho Paes -- ao ouvir esta simples palavra -- sentiu como que bater lhe no crâneo e commover lhe o cérebro, aquelle terrivel granito arremessado por David contra o féro Goliath.

E, n'um energico tremôr, approximára-se mais do grupo, no desejo sôfrego d'ouvir novas palavras ao desconhecido noctivago.

Mas Diogo Tinôco tomou novamente a palavra, tendo-lhe respondido por vezes, com monosyllabos, o ambicioso e mystificado petintal, cuja única idéa fixa era a de subir rapidamente da posição de taberneiro, á de fornecedor das armadas.

Ah! mas n'um dado momento em que o desconhecido teve de falar, Sancho Paes cambaleou por um momento... vira a cerrada escuridão convertida n'um enorme lençol de sangue... entrechocaram-se-lhe os dentes, como que na violencia d'uma sezão... levou machinalmente a mão trémula ao cabo do seu punhal... e, como que n'um rugido de leão, exclamou:

-- É elle! ... é elle!...

«É o cobarde assassino do meu desventurado amigo e senhor!...

E medira-lhe a corpulencia com olhos vermelhos de raiva, tendo-se cosido com a parede para o vêr melhor... mais de perto.

-- É elle! -- continuava, rugindo, o velho.

«É elle!...

E houve uns instantes de sepulchral silencio, que os espiões consagraram ao invento de novas mystificações, e que o estupido petintal gastára a planear delicias, emquanto Sancho Paes -- trémulo, revoltado, terrivel -- sentia o regresso d'essa antiga heroicidade de que tantas vezes déra provas nas pelejas da Mauritania.

Martim da Maia -- pois era elle o companheiro do repellente Tinôco -- fôra o primeiro a cortar esse silencio gélido, que reinava entre os quatro homens do grupo, e que punha como que estranhas nodoas na tenebridade profunda d'aquella noite de réprobos.

-- Meu amigo -- começou elle, dirigindo-se ao petintal:

«Amanhã encontrar-vos-heis comnosco no real paço da Alcáçova, onde el-rei nosso senhor vos fará grandes mercês, em troca da revelação da parte dos vossos segredos, que, n'este momento, nos não quereis revelar.

«Todavia muito nos disséstes já, para ficarmos certos, seguros, de que novos scelerados da nobreza e do clero tentam contra a preciosa vida de sua senho- ria el-rei.

E depois de pequenina pausa:

-- Ah! mas tremam os desordeiros, porque os cêpos, os cutéllos e os algozes ainda se não extinguiram... nem tão pouco os punhaes e os braços dos amigos do grande rei portuguez.

E, distendendo as palavras, n'uma goso de cannibal:

-- Está apto para apunhalar traidores, com mão firme, quem, em Burgos, arrancou a vida ao mais damnado e infame dos sequazes de D. Diogo!...

-- Mentes! -- rugiu Sancho Paes, approximando se n'um pulo de felino, deixando os faccinoras, por instantes, sob a acção inesperada de tão singular surpreza.

«Mentes, bandido! -- rugira elle, com mais força, e apertando nervosamente o bulhão.

«Infame, és tu!...

«Mil vezes infame!...

«Porque, além d'espião e delactor, és um assassino cobarde!...

-- Canalha! -- trovejou, babando-se como um epiléptico, o monstruoso sicario.

«Quem és tu, que tão estupidamente te condemnaste ao cutéllo... ou ao punhal?!...

-- Sou uma das testemunhas de vista d'um dos teus mais cobardes delictos!...

«Sou o teu mais rancoroso inimigo!...

«Sou, emfim, o antigo servo e amigo de Damião Ribeiro, que me envia aqui para o vingar!...

E -- sem que o scelerado tivesse tempo de defender-se -- um ferro scintillante brilhou nas trévas... um medonho berro soou... e de seguida ouvira-se o estrondo baço d'um corpo, que cahia no pavimento!...

Martim da Maia morria como um cão; e do interior da taberna sahiram tumultuosamente os conjurados, attrahidos pelo repentino motim que se produzira ua rua.

Depois... arrancaram se espadas dos talabartes; houve golpes terriveis, selvaticos; soltaram-se gritos de dôr e cholera; e ouvira se, por ultimo, um longo e medonho côro de pragas e maldições!...

Diogo Tinôco fugira com um dos braços atravessado por um espada... a escuridão da madrugada não deixava vêr o raudal de sangue, que tingia o lageado... e, junto ao cadaver do assassino de Burgos, jazia um outro com os labios entreabertos, por onde se havia escoado o mais horrífico anáthema!...

VIII

Depois do duplo assassinio

A manhã, que succedeu á trabalhosa noite do crime, exhibira-se escura e melacholica,comoque se de proposito houvesse escolhido um fúnebre traje, para assistir condignamente ao horrifico espectaculo, que o local da tragedia offerecia aos transeuntes pasmados.

Grupos de mesteiraes, servos, e collarejas, que se dirigiam ás officinas e mercados, paravam e faziam roda aos dois cadaveres, que já se encontravam guardados por um bando de beleguins, os quaes esperavam a comparencia das muito venerandas justiças da cidade de Lisboa.

Ouçamos, leitor, por um momento, os vários grupos de boquiabertos:

-- Ó mestre Pedro?!... mestre Pedro?!...

-- Quem me chama?

-- Sou eu... o Arameiro.

«Não parece a vossa mercê que é um dos novos creados d'el-rei nosso senhor, aquelle que está de ventre para o ar, salvo seja?

-- Falaes certo, mestre Fuas.

«E se não fôr, é então o demo por elle -- Nosso Senhor me perdoe.

-- É Martim da Maia, não ha que duvidar; -- asseverou, com firmeza, um antigo escanção do paço.

-- Foi vosso conhecido senhor Pero Ruivo?

-- Conheço-o como a estas mãos, que a terra ha de comer.

-- Mas como seriam feitos estes estragos?...

-- Não está má a pergunta, ó mestre Fuas.

-- Isto... foi briga nocturna tão certo, como eu ser indigno afilhado de Nossa Senhora dos Afflictos.

-- Não ha que vêr, ó thio Pisco: foi a repetição d'esses desaguisados de todas as noites de Lisboa.

-- Isto é uma terra de gatunos e brigões! -- gritou, indignado, um sachrista.

-- Chó! -- interjeiceonou, picarescamente, um estúpido alvenel.

-- Pespeguem uma lamparina n'esse escorripicha galhêtas?!...

-- Ora o estafermo?!...

-- Gatunos e brigões, hein?...

«Bem se vê que és d'Olhão.

-- Ah!... ah!... ah!... gargalhou a turba.

-- Mas... quem será o outro morto?... Aquelle já se sabe que é o tal Martim da Maia.

-- Não se lhe vê o rosto.

-- O coitado cahiu de barriga para o chão.

-- Voltem-o... voltem-o, para se vêr...

-- Ninguem bula nos defunctos! -- berrou, com intimativa, o mais antigo dos quadrilheiros.

-- Era para se vêr...

-- Não fazia mal...

-- As justiças o verão... e neja nós.

-- Pelo traje, bem se vê que não era p'ra hi nenhum bisbórria.

-- Pois isso não era, ó thia Brites Camêlla.

-- E como elle tem aquella roupa n'uma sopa de sangue?!...

-- Podéra não?!...

« Pois não enxergaes d'aqui aquelle golpe, que lhe veio sahir atraz, salvo seja?...

-- É verdade!... é verdade!...

-- Que o outro defuncto tambem apanhou a sua conta.

-- Se apanhou!...

-- Deve estar mais furado do que um crivo!...

-- Cruzes!...

-- Abrenuntio!...

-- Ah! que se as roldas não dormissem tanto?!...

-- São uma corja de dorminhôcos...

-- E de medrosos!...

-- Não que ellas, muitas vezes, vêem perdidas da batalha ...

-- Pois foi para dar e levar que se inventaram as roldas.

-- Ó Mathias Gago?!...

-- O que queres tu?

-- Quem ha de saber o que isto foi, é alli o homem da tasca.

-- O Lourenço Alho?

-- Esse mesmo.

-- Lembraste bem.

-- Mas o gajo tem o mosqueiro fechado.

-- E é para admirar!...

-- Sim. Porque n'outros dias já eslava aberto muito antes da missa d'alva...

-- P'ra vender rija aos freguezes.

-- Ora espera...

-- Dize o resto.

-- Quem nos diz a nós que este embrulho não sahiu lá da taberna?

-- O demónio o jure.

-- Pois não foi outra coisa.

-- Não quero teimas.

-- Chame-se o gajo.

-- É p'ra já.

-- Pranta-lhe um coice na porta, ó Gil Chibato?!

-- Não peças mais.

E o sujo ribeirinho applicou tão valentes ponta-pés á porta da tabolagem, que faziam lembrar os golpes d'um ariête contra o portão resistente d'uma velha fortaleza.

-- O salafrário não se mexe! -- gritou o Gago.

-- Está talvez a cozêl-a.

-- Ás vezes é cada uma... d'aquellas de caixão á cova!...

-- Pois se tem ás ordens a embôlha?!...

-- E, para acudir á medida, deita-lhe depois agua, que vende, por bom vinho, á freguezia pacóvia.

-- É um refinadissimo malandro!...

-- Que a mulher é um poucochinho peior.

-- E anda a resar sempre...

-- Dizem as más línguas, que se confessa a miudo a um frade de Santo Eloy...

-- Quê?!... Com aquella cara de monge de S. Bernardo?!...

-- Os frades topam a tudo... são de bom comer.

-- Deixae lá isso... que é para ir para o céu, coitadinha!...

-- Ó Chibato: mais dois coices!...

-- Uga!...

-- Eh! lá?! -- berrou, de novo, o cabo dos beleguins:

«Nada de bater ahi, até que cheguem as justiças de sua senhoria el-rei.

-- Queremos rija!...

-- Bate... bate, ó Chibato!...

-- Leva de rumôr!...

-- Eu corro tudo isto a tagante!...

-- Agua vae! -- gritou, d'um 2º andar, uma velha, esganiçando-se e emborcando sobre os grupos o contheúdo d'um vaso.

-- Esta só pelo diabo! -- praguejou um mesteiral, que ficára com a roupa n'uma desgraça, desde o sombreiro aos calções.

-- Ah!... ah!... ah!... gargalharam estrepitosamente os que não haviam sido attingidos pela materia do vaso.

E no meio de risadas, pragas, chufas, e doéstos, os boquiabertos dispersaram vagarosamente, indo uns para as officinas respectivas, e os outros para os varios tráficos, mercados, e diversas labutas, onde ganhavam o pão.

Pouco tempo depois de ter ficado o grupo simplesmente limitado aos quadrilheiros e a meia duzia de ociosos que passavam e paravam, abeiraram-se dos cadaveres as justiças de Lisboa, no seu habitual andamento assás pesado e grave.

Nas amplas e negras togas á romana, os carrancudos magistrados davam a impressão d'um bando d'enormes corvos, attrahidos ao lúgubre logar pelo cheiro de carne humana, que ia prestes putrefazer-se.

Depois tomaram nota de tudo quanto viram... fizeram perguntas... obtiveram respostas... escreveram autos... e examinaram, por ultimo, os dois cadaveres, que -- como já havia dito um popular -- faziam lembrar dois crivos!

Tal fôra o numero de estocadas que um e outro receberam!!!...

Um d'elles -- como o leitor já sabe ha muito -- era o do perverso e cobarde assassino de Burgos; e outro era o d'um dos fidalgos conjurados, que se encontravam na taberna, quando Lourenço Alho fôra attrahido á rua pelos dois terriveis e repulsivos scelerados.

Um dos magistrados -- depois de ter ordenado a inhumação dos mortos -- mandou chamar o antigo petintal e a companheira, na esperança de colher a desejada luz ácêrca do duplo assassinio: mas baldada diligencia foi esta, pois que Lourenço Alho e a mulher haviam fugido para fóra de Lisboa, obrigados pelo bem fundado receio de lerem de pagar caro a pequena parte tomada nas diversas conspirações.

De resto, o taberneiro, convencêra-se d'antemão de que as promessas do Tinôco e do Maia não haviam passado d'um lôgro e d'um ludibrio.

O miseravel irmão da comborça do bispo d'Evora conseguiu -- sem ser visto -- abandonar o ensanguentado theatro da lucta, tão depressa o punhal de Sancho Paes attingira o coração derrancado do assassino de Castella.

Depois -- e caminhando ás apalpadelas até aos paços d'Alcáçova -- esperou alli, n'um grande tremôr nervoso, que rompesse o anciado dia, e que se abrissem as portas e janellas do antigo alcaçár.

D. João II -- como quasi todos os soberanos da antiguidade -- erguia-se cêdo, muito cêdo, para se entregar, de seguida, ás multiplices e difficeis lides da sua vida de rei.

Seria cêrca das seis horas da manhã quando o monarcha entrou na sua alcôva de trabalho, onde abundavam vários mappas e alfarrabios, que a miudo compulsava.

E o Tinôco fizéra-se-lhe immediatamente anuunciar, para uma pratica inadiavel... de summo interesse e urgencia.

-- Seja introduzido n'esta alcôva! -- ordenou D. João II, ao servo, que acabava de levar-lhe, com o recado, o habitual quebra-jejum.

Quatro minutos depois, Diogo Tinôco encontrava-se servilmente agachado aos pés do soberano, que recebia o repugnante reptil só porque esvurmava denuncias de factos, que elle, raonarcha, não podia despresar.

É que se ama a traição e detesta-se o traidor.

E D. João II não faltava á velha e conhecida regra.

-- Ergue-te! -- bradára elle, com engulhos, vendo o sapo immundo muito agachado aos seus pés.

«Que importante nova é essa, que tão matinalmente te ha trazido até aqui?...

-- Senhor: Um grande crime foi perpetrado ha pouco... crime que muito ha de affligir o generoso coração de vossa senhoria.

-- Assustas me!...

-- Foi na rua dos Odreiros... de madrugada... junto á taberna e tabolagem de mestre Lourenço Alho...

-- Quem morreu?... dize... fala... não me impacientes!...

-- Morreu um dos vossos mais fieis vassallos!...

-- O seu nome?... o seu nome?...

-- Martim da Maia, senhor meu!...

-- Martim da Maia!?...

-- Esse mesmo, real senhor!

-- Ah!...

E o immundo espião relatou de seguida, a el-rei, tudo quanto se passára na taberna, desde a entrada dos mysteriosos embuçados, até ao momento em que o bulhão de Sancho Paes fôra cravado, com ancia, no coração pervertido do monstruoso sicario.

D. João II -- ouvida a narração -- ficou como que ferido por um raio.

-- Renascem os conspiradores, tal qual renasciam as cabeças da horrenda hydra!...

E depois de ligeiro mutismo, alterado, de quando em quando, por um medonho ranger de dentes:

-- Enganam-se, entretanto, os traidores á pátria e ao rei.

Porque D. João de Portugal não treme, nem esmorece.

«Ha de ser o Hercules da nova hydra, que conta esmagar com a clava da razão.

E erguêra-se do escabello, passeando, de seguida, a todo o comprimento da sala.

Ah! e que medonha tempestade de vindicta lhe não rumorejava no cérebro... n'aquelle grande cérebro privilegiado, que havia posto ao serviço da terra ingrata em que nasceu!

Depois parou, já não pouco fatigado, e atirou comsigo para cima d'um preguiceiro.

-- São conhecidos os novos conspiradores? -- perguntára elle ao Tinôco, que oscilava como um pendulo, e via tudo côr de sangue.

-- Alguns são, real senhor...

-- Quaes são elles?... quaes são elles?!...

-- Lourenço Alho poderá, se quizer, dar conta a vossa real senhoria de tudo quanto sabe a respeito de conjurados.

-- Se quizer?!...

«Ha de dizer tudo, sob pena de mandar arrancar-lhe a lingua, lá em baixo... no Pelourinho.

E com um gesto sacudido:

-- Corre immediatamente a prendêl-o, mas leva de companhia um ou dois aguazis.

-- Cumpridas vão ser as vossas ordens, real senhor.

-- Depréssa... depréssa!...

«Que nos não fuja o miseravel!...

E o repulsivo Tinôco desappareceu rapidamente da alcôva, dirigindo-se em passo estugado á extincta rua dos Odreiros.

Ah! mas o enviado d'el-rei não fôra mais feliz do que a justiça da côrte, pois que a porta foi arrombada e toda a casa percorrida, sem que mestre Lourenço Alho houvesse por bem apparecer.

D. João II quando soube do insuccesso do espião, deu ordens expressas para que os ginetes da côrte percorressem os arrabaldes de Lisboa em perseguição do foragido, o qual, ou havia de revelar tudo quanto soubesse dos novos conspiradores, ou seria irremediavelmente enforcado n'uma das hediondas ameias do antiquissimo castello.

E os ginetarios percorreram todas as visinhanças da côrte, mas o velho taberneiro nunca appareceu, inutilisando, portanto, as aturadas pesquizas dos zelosos enviados de sua senhoria el rei.

IX

Santa dedicação

Disfarçado pelos trajes de peregrino, Saucho Paes -- após a raivosa punhalada -- dirigiu-se apressadamente para a fronteira, e, de seguida, desapparecêra, vagarosamente, atravez de varias terras de Hespanha.

Não o acompanhavam remorsos de ter arrancado uma vida de perversões e infâmias.

Não.

Convencido de que prestára um bom serviço á humanidade, libertando-a d'um sêr damnoso -- como o agricultor liberta a vegetação util dos escalrachos nocivos --, o antigo donato caminhava de bem comsigo proprio, e não temia os horrendos pesadêlos dos assassinos convictos... esses terriveis e acerbos pesadêlos de todos os instantes, em que as victimas se mostram implacavelmente aos verdugos, e em que a côr do sangue do crime e a dos crépes das tumbas se combinam singularmente, para, n'uma visão do inferno, lhes ferirem os cérebros cansados d'horripilantes illusões, que se convertem depois nas torturas as mais pungentes.

Sancho Paes -- ao contrario dos verdadeiros assassinos -- não viu vermelho o azul-saphyra do céu... o verde luxuriante dos prados... e o amarello-dourado dos trigaes; nem tão pouco se lhe transformára nunca, na côr negra dos esquifes, o puro alvo castissimo das consciencias tranquillas.

Que importava que elle houvesse cravado um punhal... morto um scelerado... e alevantado uma lousa?

Não crava o honesto cavador a ponta da sachola no voraz parasyta, que lhe destróe sofregamente as promettedoras plantas?

Não se esmaga inexoravelmente o reptil venenoso cuja mordedura supprime uma existencia?

E que mais será do que um nocivo escalracho o bandido brutal, que, na ociosidade criminosa, se locupleta á custa do homem laborioso, que surprehende e assassina?

E que differença haverá entre a vibora rasteira, que morde e envenena, e o sicario traiçoeiro que assalta e apunhála?

Questão de forma, simplesmente.

Sancho Paes não era, pois, um criminoso.

Era um benemérito.

Não manchára as mãos no sangue d'um assassinio d'encruzilhada: fôra juiz e executor d'um malvado, que a imperfeita justiça dos homens deixára ficar impune.

E sorria de satisfação -- com os pés rôttos pelas urzes dos atalhos -- toda a vez que se recordava do espião e delactor... d'aquella funda punhalada, a que imprimira todos os alentos tirados d'um grande exforço... d'aquelle rugir de féra, que, horrendamente, lhe soava ainda aos ouvidos... e d'aquelle estrebuchar de javali mal ferido, sobre o lagedo frio da extincta e antiga rua.

Ah! e que sorriso tôrvo e nervoso -- o d'elle!...

Quem o visse n'aquelle rictus hediondo, julgal-o-hia evadido d'um manicómio, que, de trajes esfarrapados, seguisse, como Ashavero, um caminho incerto... ao acaso... sem ter norte!...

Sim.

Ninguem diria que ia alli o homem reflectido, e o verdadeiro modelo da mais santa dedicação.

Sorria?

Era o intimo prazer de ter visto acabar como um cão hydrophobo, o derrancado sabujo, que se agachava junto ao throno, deixando-lhe os degraus sujos com a baba immunda das delacções mais infames.

Era a satisfação intima de ter respondido, com um golpe certeiro, á traiçoeira punhalada que lhe arremessára á sepultura o pobre amigo e senhor. Na montanha da Thessália os velhos deuses deviam ter rictus assim, quando juntavam ás olympicas ambrosias as doçuras inexcediveis d'uma vingança realisada.

E, sorrindo sempre, o velho soldado da Mauritania e antigo monge donato, caminhava por montes e valles na direcção da Castella.

De dia estendia a mão mirrada á compaixão dos transeuntes, que o soccorriam; e de noite dormia nas anfractuosidades das rochas, ou sobre as urzes orvalhadas dos solitarios maninhos.

Que motivo o levaria -- com o sorriso nos labios e o coração cheio de penas -- áquella ágra peregrinação?

Não tinha elle, em Cintra, a granja, quasi coutada, do sympathico desembargador, a cujas portas os esbirros estacariam decerto, se uma denuncia qualquer os conduzisse até alli?

Para que era então esse penar dolorosissimo atravéz de mil perigos e privações, quando podia homisiar-se intra-muros d'aquelle asylo, sem que os quadrilheiros da justiça o podessem surprehender?

É que Sancho Paes ia em cumprimento d'uma missão, a que não queria faltar:

Não fugia á sanha d'el-rei de Portugal -- que teria a coragem d'encarar serenamente -- mas ia dar conta do seu feito d'amisade ás gélidas cinzas do que fôra seu senhor.

Longos dias peregrinou o heroico vingador de Damião Ribeiro.

Se a fadiga o prostrava de quando em quando, e se uma febre o minava cruamente ameaçando matal-o, elle -- tirando forças da recordação da vingança, que o lançára n'aquelle aspérrimo caminhar --, erguia-se de sobre as urzes... entrapava a custo os pés cheios de sangue... meditava nas passadas inclemencias das pelejas... e reconstituia na mente o sangrento quadro de Burgos, bem como a tragedia da tabolagem, n'aquella medonha noite de horripilante recordação.

Era o espirito activo e lúcido do velho a imperar sobre a materia já cansada por mil trabalhos e dissabores.

Chegado que fôra á velha cidade de Castella, Sancho Paes implorou e obtivéra agasalho na albergaria onde morrêra o pae de Bernardim, após a traiçoeira punhalada do apunhalado sicário.

Nos campanarios de Santa Agueda e S. Gil soava a meia noite, que era repetida, ao longe, pelo bronze plangente do mosteiro da Cartuxa.

Ah! o quanto custava ao peregrino o conciliar o somno, a despeito da fadiga que o prostrava, e da morbidez que sentia!

É que tudo lhe falava, em linguagem elegiaca, dos ultimos momentos de vida do seu senhor.

Se as palpebras paulatinamente se lhe cerravam, e se começava a entrar no periodo da passividade dos proprios sentidos, um extremecimento experimentava rapido... abria os olhos baços da vigilia... fitava a pobreza do albergue, que uma absconsa alumiava com uma luz bruxoleante... e, como que n'uma dansa macabra, figurava-se-lhe n'um rodopio o espectro do assassinado bandido e o da mallograda victima do filho de Affonso V.

E erguia-se a meio corpo no catre duro, que a commiseração offerecia aos desgraçados sem tecto.

Depois fitava tudo quanto se encontrava mergulhado na melancholica penumbra; e o cérebro, fatigado por impressões tão constantes, dava-se ao trabalho morbido d'avivar-lhe superstições, que lhe moravam no espirito desde os tempos de creança.

E d'uma vez em que o dormitar incommodo se lhe prolongára por minutos, para despertar de seguida violentamente agitado, Sancho Paes viu em delirio a figura insinuante da victima do bandoleiro, que, de repente, se transmutára n'um esqueleto envolto em negra mortalha já reduzida a farrapos!

Ardendo em febre... muito convulso... e ouvindo como que o zumbir das abelhas d'um enormissimo enxame, o antigo luctador d'Arzilla saltou do misero catre... ajoelhára-se a muito custo no pôdre pavimento... estendeu as mãos crispadas para a visão vaporosa... chamára em voz trémula e languida pelo pae de Bernardim, e tendo -- na propria allucinação -- ouvido a resposta cava, sepulchral, do velho senhor e amigo, começou a muito custo o seu lúgubre relatório:

-- Eis-me a dar-vos conta da minha missão, senhor!

-- É morto o vosso traiçoeiro assassino... o perverso enviado d'esse verdugo que se chama João II!...

«Sim... é morto... matei-o a golpes de punhal... tal qual elle vos matou a vós!...

«Foi de noite... noite d'escuridão... como aquella em que o bulhão infame vos feriu de morte!...

«Ah! e com que ancia lhe cravei o ferro n'aquelle peito de féra?!...

«Está cumprido, pois, o meu juramento, senhor!

«Agora... dae-me um cantinho na vossa sepultura, para poder esconder-me a este mundo de miserias.

«Eis o ultimo pedido do vosso servo amigo... do vosso amigo leal.

E o antigo donato e intrépido luctador nas pugnas da Mauritania -- exgotados que foram os ultimos restos de velhas forças colossaes -- cahira lentamente para um dos lados, e, como que n'um clarão que rapidamente se extingue, vira, com olhos túrbidos, brilhantes lagrimas de gratidão, derramadas por aquelle que lhe existia na mente.

Depois a madrugada veio vindo subtilmente... ouviram-se as ultimas toadas dos serênos, ao longe... apagára-se a lúgubre e fumosa luz da absconsa... uivaram mais uma vez nas calles os miseros perros famintos... e, das tristes scenas da noite, existia apenas, sobre o sujo chão esburacado, o cadaver, ainda quente, d'um velho, que legou simplesmente o exemplo d'uma amisade leal.

Mais tarde -- no merencorio adro d'um sanctuario de Burgos -- soterrava-se silenciosamente o pobre corpo inanimado do que fôra Sancho Paes.

X

Ainda em Val-de-Lobos

Não havia meio de tirar Sancho Tavares da quinta dos Zagalos.

E não era porque o embriagassem os arômas das mimosas dores, espalhadas em massiços pelos quatro angulos da granja, nem tão pouco porque o deslumbrassem ainda as empolgantes galas d'aquella natureza fascinadora, que fazia de Val-de-Lobos como que um segundo Éden.

Outra flôr de singular frescura, e outra natureza mais fascinante lhe solicitavam os olhares dôces e ternos... esses olhares em que não havia já a turbidez impressa pelas tumultuosas noites de vigilia e pelos deboches ininterruptos.

Ignez Zagalo era agora o unico alvo dos seus sentidos... essa formosa e candida Ignez, que soubéra arrancar-lhe da alma entorpecida uma especie d'agárico, que lh'a sugava e deprimia.

Engolfado na contemplação quasi mystica d'aquella plastica estonteante, e d'aquelles opulentos primôres d'um espirito d'eleição, o extremocense passava alli os dias n'uma ambrosia constante... perfeitamente enfeudado ao energico ascendente da terna irmã do magistrado.

E não era o excessivo receio dos beleguins da côrte e dos espiões d'el-rei que o detinham alli.

Não.

Porque em Extremoz -- onde possuía amplos terrenos, que poderiam occultar uma antiga legião --, sobravam-lhe os solares e esconderijos, e contava com o braço potente de enorme numero de servos, cada um dos quaes daria por elle a vida, se mistér lhes fôsse consumar tão cruento sacrificio.

Ignez Zagalo -- que o empolgára -- tambem se encontrava empolgada por elle.

Separarem-se, pois, seria para ambos um supplicio atroz.

-- Tu queres me muito... muito... não é assim, meu Sancho? -- perguntáva-lhe ella, um dia, sob o copado fragrante do arvoredo, reclinando a esculptural cabeça sobre o hombro do cavalleiro.

-- Se quero?!...

«Ah! que pergunta, Ignez!...

«Quero te tanto e tanto que, por ti, iria collocar o pescoço sob o cutello do algoz.

«Tu sabes lá como é o amôr, que irrompe subito nas almas d'aquelles que nunca amaram?

«Tu sabes lá o que estes olhos vêem da tua imagem peregrina, quer dormindo... quer despertos... fitando as nuvens brancas que se encastellam no horisonte, ou deixando se mergulhar n'um grande banho de luz?...

-- Não exageres assim, meu Sancho.

«Fôra mistér que em mim concorressem as seducções das huris, para se justificar essa tua embriaguez dos sentidos, que não passa, certamente, d'um vaporoso capricho.

-- Offendes a minha consciencia, Ignez.

E depois de breve intervallo:

-- Juro te n'este momento, como em tempo passado poderia jurar á mulher mais casta, que só me attrahiam então os lubricos festins, onde a virtude não entra e impera sómente a carne.

«Mas a alma é susceptivel de transmutações como o corpo: ou porque os annos e a experiência a transformem, ou porque uma luz providencial lhe alumie e mostre os negros algáres dos desvarios, que, quasi sempre, conduzem fatalmente á morte.

Ignez Zagalo suspirou, e o moço extremocense proseguira com ardor:

-- Fôste tu, Ignez, o miraculoso pharol. que me alumiou as perigosas tortuosidades, por onde outr'ora enveredei.

«Ah! mas além d'isto -- que equivale á salvação d'um desvairado -- ainda o nosso amôr veio encher-me d'estranhas sensações a alma, que jazia de ha muito n'um profundissimo lethargo.

«Hoje sou outro homem, minha amiga.

«O vicioso, que descria da efficacia das paixões santas como a nossa, curva o joelho, contricto... roja-se perante a creatura que conseguiu inspirar-lhe essa paixão sublime, e confessa que o amor casto e ardente é uma emanação de Deus, que converte ao bem o pervertido, e conduz ao céu os velhos cegos d'entendimento.

«Devo te a minha regeneração, Ignez.

«E se fôr -- como é -- deploravelmenle pouco o enlaçar-me comtigo para um unico destino, que seja a tua justa compensação a minha gratidão perpétua e irremissivel vassallagem.

-- Sancho?!...

-- Ignez?!...

E os dois jovens amantes mergulharara-se, extasiados, nos fartos jactos de luz que lhes partiam dos olhos.

XI

Conferencias

O apaixonado colloquio de Sancho Tavares e Ignez Zagalo prolongára-sebastante --: colloquio impregnado d'enthusiasticos protestos, que o amôr genuino e quente sabe extrahir quasi sempre dos corações que se adoram.

O separar forçadamente os dois amantes, seria difficil em extremo.

O esmagar aquelle sentimento casto, que se alojára em dois corações vasios, ou seria trabalho em vão, ou, quando o não fosse, equivaleria, certamente, a um triste e duplo assassinio.

Antonio Alvares -- na sua grande sabedoria -- antevia e comprehendia bem estes perigos, que não tratava de provocar; pois que, se lhe não agradava muito a permanência do hospede, não desapprovava, entretanto, uma futura ligação entre elle e a bella Ignez.

-- Sua senhoria el-rei -- murmurava a miudo o magistrado -- ha de morrer, talvez, cedo: e, desde o dia da sua morte, deverão acabar as perseguições movidas por elle contra os loucos conjurados.

Ah! mas aquelle permanecer do môço extremocense na vivenda de Val-de Lobos, punha-o em insistentes desgostos... fazia-lhe febres, até.

E -- repetimos -- não era porque não confiasse no grande pudôr da irmã e no respeito que devia consagrar-lhe o apaixonado mancebo: Era porque havia muitos olhos a vêr tão continuos galanteios... e porque, emfim, não poucas bôccas já falavam.

Sim.

Elle proprio -- que, como era do seu dever, vigiava de perto os dois jovens amantes --, sentia se tambem propenso a murmurar dos extremos de ternura, que, por muitas vezes, surprehendêra a seu pesar.

Por sua parte D. Joanna Dias exforçava-se por dirimir estes despeitos, fazendo vêr ao desembargador Zagalo que a demora do moço cavalleiro derivava, talvez, do receio d'expôr-se tão cêdo ás vistas dos espiões; e que, de resto, em negocios d'amôr alheio, o aconselhava a não interferir... a deixar lhes correr os trâmites.

-- D'accordo, em parte, minha boa Joanna; -- disséra-lhe, certo dia, o magistrado, n'um passeio pela granja.

«Mas has de concordar commigo...

-- Em quê? -- interrompêra a viuva.

-- Na inconveniência da manutenção d'este estado de coisas, que temos vindo a presencear.

E após breve suspensão :

-- Já disse em tempo, e repito-o agora, que, dada a grande affeição de Sancho e Ignez, se unam pelos laços da egreja, apesar de não poderem sahir d'aqui emquanto houver perturbações na côrte...

«Mas... continuarem assim -- solteiros --, e em incessantes devaneios por esta granja, açulando d'esta arte a curiosidade dos maldizentes, são factos, que me incommodam, e que não podem continuar; pois que, acima de tudo, desejo e exijo que se não dê origem a irritantes equivocos.

-- Pois bem; -- respondêra a mãe do pequeno Bernardim :

«Certo fica de que hão de ser hoje satisfeitos os teus desejos, que em parte são os meus.

«Sancho Tavares, ou terá de receber já Ignez por esposa, ou -- a adiar o casamento -- será convidado por mim a ir esperar o ensejo no morgado d'Extremoz.

«Não lhe faltará alli aquella segurança que tem gosado aqui...

-- Obrigado, Joanna; muito obrigado.

«Sê tu, pois, o meu advogado n'esta causa de razão «Que eu -- repito-o mais uma vez -- nunca duvidei nem duvido do juizo de minha irmã.

«Porém -- e como diz o aphorismo -- não basta que a mulher de Cesar seja honesta: é, e com razão, necessario que o pareça.

-- Ora dize-me, Antonio.

-- Pergunta-me o que te prazer.

-- E se Sancho se resolver a unir-se já á nossa Ignez ?

«Correrá grave perigo a segurança dos dois?

«Haverá a recear se uma denuncia... e de seguida duas prisões?

Antonio Alvares metteu a mão direita debaixo das fartas barbas... fitara a prima detidamente... e de seguida respondeu:

-- Já vieram capturar te aqui, apesar de se encontrarem encarceradas nos conventos e nos troncos não poucas familias dos imprudentes conjurados?

-- Não; -- respondêra a viuva de Damião Ribeiro.

-- Logo, não ha que recear pela segurança de Sancho, e, muito menos, pela da nossa querida Iguez.

-- Mas tu mudaste d'opinião, Antonio!

-- Como assim?!...

-- É que ainda ha pouco nutrias os mesmos receios que eu nutro...

-- E que ainda se não desvaneceram por completo.

E depois de breve pausa:

-- Entretanto -- penso eu -- as justiças hão de respeitar sempre a casa do seu infimo companheiro; e D. João II -- dado que saiba do asylo fornecido a ti e a Sancho -- viverá tranquillo a respeito de futuras conspirações do meu hospede... e até o considerará convertido, ou, antes, reduzido á obediência que o vassallo deve ao rei.

D. Joanna Dias não respondeu.

Antonio Alvares, continuou:

-- Além do que, o monarcha já não tem ginetarios nem quadrilheiros devolutos, que perseguir possam todos os loucos conspiradores, que vão surgindo dia a dia!...

-- Loucos?!...

-- Loucos, sim... mil vezes loucos.

-- Sempre do lado d'esse verdugo... d'esse maldito rei, que assassina e manda assassinar tão cobarde e cruelmente!...

-- Do lado da razão, minha prima.

E com toda a gravidade:

-- Deploro o sangue e o lucto produzidos por essa pugna travada entre el-rei e a nobreza; mas não posso deixar de ter por loucos os conjurados, o d'applaudir o soberano que se defende, defendendo o seu património tão de sobra prejudicado.

«Depois, el-rei, obedece a um pensamento de progresso, de que ha de surgir o bem estar e engrandecimento d'este desgraçado paiz.

«Curvemo-nos, pois, perante a auctoridade e os louvaveis propositos do monarcha, e não nos revoltemos insensatamente contra elle e contra elles, pois que, da revolta das ambições desenfreadas, nunca resultou nada de bom... de proveitoso... ou d'útil para os estados.

Joanna Dias ficara muda perante as considerações do primo, cujo caracter -- feito de rectidão e nobreza -- fora e era obstinadamente firme... teimosamente immutavel.

Recalcou em si o odio que votava ao mandante do verdugo de Damião Ribeiro; e -- para dar um momento d'allivio ao espirito attribulado -- evocára o desmesurado prazer que experimentou quando Sancho Tavares lhe annunciára a morte soffrida pelo antigo bandoleiro, e assassino do esposo!...

Depois -- e dirigindo se ao magistrado -- promettêra-lhe, mais uma vez, a solução rápida do negocio, que tão agitadamente o trazia.

E de seguida encaminharam-se ambos para a confortavel casa da quinta, onde eram aguardados, no refeitorio, por Sancho, por Ignez, e pelo pequeno Bernardim.

XII

Resoluções

Terminada a refeição, Joanna Dias fizéra signal aos dois amantes para se deixarem ficar.

Antonio Alvares -- após a resa habitual -- ergaeu-se do seu logar e caminhára em direcção do gabinete de trabalho, onde tinha differentes autos para vêr e despachar.

Portanto ficavam a sós, no refeitório, as duas primas, Bernardim, e o extremocense.

-- Ora ainda bem que nos encontramos reunidos e sem testemunhas; -- disséra a viuva de Damião Ribeiro, dirigindose, a meia voz, a Sancho e a Ignez Zagalo.

E chamando com um gesto o filho:

-- Vae brincar para o jardim.

«Andam por lá muitas borboletas e joaninhas...

-- Andam?...

-- Andam, sim.

«Vae pois, mas não cahas -- ouviste?...

E o futuro trovador da côrte desappareceu pressurosamente além da porta da quadra, sem que tivesse respondido á terna recommendação da mãe.

D. Joanna Dias -- cautellosamente fechada a porta do refeitorio -- arrastou uma das poltronas tauxiadas, e assentára-se, de seguida, á beira do enamorado grupo.

-- Grandes segredos -- ao que parece -- tens hoje a revelar-nos?! -- disse-lhe D. Ignez, tomando nota de todas aquellas precauções, associadas a um certo ar de mysterio.

-- Sim. Grandes segredos tenho a revelar-vos, e gandes pedidos a fazer-vos...

-- Assustas-me!...

-- Não é caso para tanto.

«Vaes ouvir.

E fizéra-se um ligeirissimo silencio, que a viuva seguidamente interrompeu.

-- Teu irmão -- começou ella, dirigindo-se pausadamente a Ignez -- continua a approvar o vosso futuro enlace: mas custa lhe o supportar a permanencia de Sancho n'esta granja, não porque não confie no decôro d'um e d'outro, mas porque teme a maledicencia, sempre prompta, dos estranhos que nos rodeiam.

-- Ah!...

-- Continúa... continúa, Joanna.

E D. Joanna Dias rematou:

-- Portanto pede vos... exora-vos... supplica-vos que, ou realiseis já o vosso enlace, ou vos separeis até ao momento opportuno de o poderdes realisar.

Ignez Zagalo não pronunciára nem uma palavra, sequér.

Levou aos olhos a fina mão de patricia, e alimpára uma lagrima ardente que d'elles brotou rápida, como que se fosse lava vomitada por um vulcão.

O separar-se de Sancho equivaleria a um degredo insupportavel, rodeado de dôces recordações, que se transformariam depois n'um supplicio cruel.

Por sua parte o mancebo sentiu como que o desabar, sobre si, d'um altivo Gorisankar, quando a mãe de Bernardim pozéra ponto na inesperada revelação.

E, com tremuras na voz, respondeu :

-- Como quer Antonio Alvares que se realise já o nosso enlace, se sou procurado como conspirador, e se amanhã -- em razão d'uma denuncia -- me poderá cahir a cabeça sob o cutello do algoz?!

«Ha de ficar na viuvez mais uma victima innocente das monstruosidades d'el-rei?!...

Joanna Dias alimpára as lagrimas que lhe innundaram repentinamente as faces, ao recordar se da situação dolorosa em que a havia deixado a tradicional inexorabilidade do assassino de D. Diogo.

E Sancho Tavares, muito commovido --, sem ter despregado a vista do fresco rosto d'Ignez -- disse ainda, a muito custo, n'uma enorme agitação:

-- Aguardemos, portanto, melhor ensejo.

«D. João II ha de morrer cêdo... muito cêdo... porque ás perseguições e ferocidades que move, hão de responder centenares d'inimigos rancorosos, com violentos venenos, ou acerados punhaes.

«É a lei das compensações -- , lei improrogavel... fatal!...

-- Mas haveis de continuar aqui, por mais tempo? -- perguntou-lhe D. Joanna Dias, dando-lhe a entender, na inflexão que applicára á pergunta, que devia, sem perda de tempo, ausentar-se d'aquella granja.

-- Não continuarei, senhora.

«Irei com o coração lacerado refugiar me nas minhas terras d'Extremoz, onde os esbirros d'el rei não lograrão entrar, porque velarão alli, por mim, centenares d'homens valentes e dedicados.

«Doloroso vae ser-me o exilio, separado d'Ignez... que não desejo arrastar ao abysmo que está aberto a meus pés.

-- Sancho?!...

«Por Deus não fales mais similhante linguagem!...

E cahira n'uma crise de lagrimas a inconsolavel irmã do estoico magistrado.

-- Não chores... que me fazes maiores as terriveis agonias d'este momento atroz.

«Não quiz dizer que vá cahir inevitavelmente n'esse abysmo em que falei, e que saberei evitar.

«Não.

«Mas é que entre mil probabilidades de triumphar da sanha d'el-rei, uma enxergo contra mim, porque a traição existe... porque existe a cobardia.

E após um dolorosissimo instante de mutismo -- em que o pranto demonstrára o que ia de doloroso nos corações dos dois jovens -- Sancho Tavares concluiu, altamente commovido e inexcedivelmente nervoso:

-- Pois bem.

«Vou partir, querida Ignez.

«Irá o corpo para longe, mas ficará aqui a alma... n'esta saudosa granja, onde nasceu e cresceu o nosso eterno amor.

«Aguarda-me, pois, e sê firme, como eu hei de sêl-o no meu doloroso exilio... no meu novo isolamento.

O que se passou, depois, de lancinante, que o diga quem amou com vehemencia, e que se vira forçado a ausentar-se da empolgante mulher que amou!...

Sancho Tavares -- após a mais tocante despedida -- montára o seu nervoso corcel, que trotou garbosamente em direcção á fresca Cintra.

Antonio Alvares tomara um farto hausto d'ar, e Ignez Zagalo recolheu ao leito, com os olhos como punhos e o coração em pedaços.

Bem armado, e disfarçado pela ampla capa negra que lhe tapava o gibão, o môço cavalleiro -- carregado sobre os olhos o sombreiro emplumado -- déra-se a um meditar profundo, tal como os dos velhos anachoretas que viviam alli, na serra.

Não via quem passava, de quando em quando, e se descobria cortezmente, saudando-o, porque os seus grandes olhos expressivos -- segregando ardentes lagrimas -- não viam outro objecto, que não fosse a visão querida da sua formosa Ignez.

E entrou na poetica villa, onde parára por breve tempo.

Depois -- e encavalgando de novo -- seguiu com destino ás terras d'Extremoz, d'onde tantas vezes sahira para os desvarios da côrte... para os excessos deprimentes da alma e da materia.

Ah! mas agora, o mancebo, regressava regenerado... convertido pelo amôr!...

Após minutos de paragem, o cavalleiro seguiu, pois.

Não lhe sahia do cérebro a encantadora imagem da sua querida Ignez.

E entrava elle n'um dos difficeis atalhos, que de sobra conhecia, quando -- a curtissima distancia -- divisára Diogo Tinôco, o qual, bem montado e armado, se encaminhava para Cintra.

Os dois cavalleiros pararam e fitaram-se.

Sancho Tavares, infundadamente, julgou-se perseguido.

E depois d'azêdas palavras, que inesperadamente se dirigiram, travára-se entre elles uma lucta terrivel, que só acabou quando a espada d'um dos contendores atravessára, o outro, lançando-o por terra para não mais se alevantar.

FIM DA SEGUNDA PARTE.

TERCEIRA PARTE

TEMPESTADES DO CORAÇÃO

I

Dez annos depois

O anno de mil quatrocentos e noventa e cinco fôra fértil de successos sensacionaes.

Os principaes foram a morte violenta d'um rei e a acclamação d'outro, que havia nascido sem esperanças de reinar.

Um d'elles -- após annos de encarniçada lucta com a nobreza, e d'extrema dedicação pelas prosperidades do seu paiz -- morrêra envenenado ao som dos soluços hypocritas dos que lhe velaram o leito, e das cynicas gargalhadas dos que lhe propinaram a peçônha!

Era a fria lei das compensações, que falha apenas por excepção.

Sim.

Elle que assassinára, e que fizéra assassinar... elle que -- com energia sem violência -- podia ter reduzido as classes privilegiadas ás suas proporções naturaes... elle que preterira o proprio prestigio e poder pelos punhaes e venenos... elle que, emfim, se rodeou d'inimigos rancorosos, que conspiravam na sombra, não podia ter outra morte que não fôsse aquella que o colhêra na pequena villa d'Alvôr.

Este rei -- tão tenaz como estorvado, tão patriota como infeliz -- , fôra o grande D. João II, a quem a historia presta a homenagem da mais sincera veneração.

O outro -- o que lhe succedêra -- chamou-se D. Manuel.

Filho d'um simples infante , não teria certamente empunhado o sceptro de Portugal se não fôra a morte desastrosa do legitimo herdeiro... d'esse joven e desventurado D. Affonso, a quem o destino, n'uma irrisão ferocissima, fizéra acabar, não entre as sumptuosidades do palacio d'Almeirim, que habitava então, mas sob o tecto desconfortavel e pobrissimo d'um pescador obscuro!

A este tempo, em Val-de-Lobos, já se havia dado um successo importante, o qual muito importa á sequencia d'esta verídica narrativa:

Sancho Tavares -- que matára o infame Tinôco no inesperado encontro de Cintra -- recebêra já por esposa a formosa Ignez Zagalo; e sem que tivessem de recear agora as perseguições das justiças, viviam placidamente, a meia legoa d'Extremoz, n'um dos seus mais pittorescos e espaçosos solares.

A separação dos dois irmãos fôra, e com razão, dolorosissima para ambos.

Mas como que para minorar o abalo que o desembargador sentiu, lá ficava na granja a honestíssima viuva, bem como o adoravel Bernardim Ribeiro que, contando então cêrca de treze annos, já dava ao primo -- arvorado em mestre -- optimas lições de rhetorica, de lógica, e de latim.

E emquanto que a vida discorria relativamente serena em Val-de-Lobos,-- na villa d'Extremoz os dois recem-casados gosavam as delicias do seu mutuo amôr, que havia de ser coroado, pouco depois, pelo nascimento do primeiro filho; o qual, como era naturalissimo, passou a ser o enlevo do venturoso casal.

Sancho Tavares -- que se horrorisava sempre que reflectia nos desregramentos do seu passado -- dava graças a Deus por lhe ter enviado um anjo para o lar... o mesmo anjo que, em Cintra, lhe havia despertado os sentimentos entorpecidos para as dulcissimas praticas do bem e do amôr.

Um dia -- ao findar o anno de mil quatrocentos e noventa e seis -- encontrando-se elle na ineffavel contemplação do seu querido primogenito, disséra á esposa estremecida, cingindo-lhe com o braço possante a breve cintura de vêspa :

-- Ás vezes, querida Ignez, tenho sonhos -- estando desperto -- que me horrorisam em extremo, como que para me tornarem mais deliciosa a ventura em que os horrôres d'esses sonhos pouco depois se convertem.

-- Ah!...

E descrevendo :

-- Encontro-me como que n'um fundo abysmo ficticiamente dourado... n'uma especie d'inferno de singulares disfarces, onde as torturas se apresentam artificiosamente transmudadas em prazeres servidos por aleivosas sereias!...

«Ah! e que phantasticas visões não passam então por estes olhos... baços ainda de mil excessos e vigilias?!...

«E com que sofreguidão não bebo as ultimas gotas de peçônha, traiçoeiramente convertidas n'um cordial saboroso?!...

Sancho Tavares fizéra uma pequena paragem, e de seguida rematou :

-- Porém -- e como a luz do sol quando apparece por entre nuvens que se dissipam -- a tua dôce imagem, balbuciando castas palavras d'amôr, como que desfaz as traiçoeiras miragens do meu passado, e me restitue á realidade d'este puro céu que desfructo.

-- Sancho?!...

-- Devo-te a minha resurreição moral, querida Ignez.

«Sou o novo filho da viuva de Naim... sou o Lazaro... sou o leproso... e tu és o adoravel Christo que me restituiu á vida, e me curou a lepra d'esta alma que não é má.

E enlaçaram se n'um d'esses abraços eloquentes, que são a expressão genuina das energicas commoções.

-- Milagres do amôr! -- lhe respondeu ella, cofiando-lhe ternamente os longos cabellos pretos.

-- Sim... dizes bem.

«Milagres do amôr... quando desperto, nos corações embotados, por uma sensata e casta mulher como tu.

E com grande vivacidade:

-- Porque, por mais seductora que a mulher seja, não conseguirá nunca realisar taes milagres, se a desacompanhar esse ascendente moral, que é o seu grande e onnipotente attractivo.

Ignez Zagalo -- muito ruborisada -- arrancára um fundo suspiro, emergente do coração.

Sancho Tavares, continuou:

-- Tu sabes lá, Ignez, qual seja o desprestigio das que não sacrificam no sanctuario do pudôr?!...

«E quando algumas d'estas miseras loucas... d'estas pobres desvairadas logram despertar no coração do homem um fugitivo affecto --, ah! similhante sentimento não é santo como o nosso: é uma ligeira sensação material, que desapparece entre o ruido de beijos peccaminosos... d'esses beijos sensuaes, impudicos, oriundos dos lupanares.

«É que o pejo, minha Ignez, está para a mulher como o perfume para a flôr.

«Extincto o pejo, o que fica?

«Fica a bêsta personificada... a simples machina de deleites!...

E remetteram-se, de seguida, a um silencio de galilé, ao mesmo tempo que os olhos se lhes encontravam para se sustentarem largo tempo na mais dôce fixidez.

Encontravam-se os dois esposos n'este gratissimo libar d'um amôr inexhaurivel, quando a porta da alcôva gemêra nas bisagras, despertando os d'aquella amena contemplação mutua, em que os seus olhares limpidos e serenos diziam mais do que os proprios labios.

-- Bernardim?! -- conclamaram, n'uma agradavel surpreza, correndo depois para o futuro trovador, que assomára junto da rija e velha porta da quadra.

-- Deus vos salve, meus primos! -- saudou o joven recemchegado, que contava, então, uns quatorze annos escassos.

-- Que milagre é este?! -- interrogára D. Ignez, depois de o ter abraçado e beijado com effusão.

«Assenta-te, e conta-nos o motivo da tua inesperada visita.

E assentaram se todos em escabellos e tamboretes, a um acêno rápido da esposa do alemtejano.

De seguida, Bernardim Ribeiro relatou:

-- Sua alteza el-rei nosso senhor, que, segundo a voz geral, possue um coração compassivo, ordenou a vosso irmão e meu primo que me enviasse aos reaes paços da Alcáçova, afim de conhecer o orphão do assassinado de Burgos...

-- Ah! -- interjeiceonaram, quasi que insonoramente, o Tavares e D. Ignez.

E Bernardim continuou:

-- Fui, com effeito, a Lisboa; mas, alli chegado na campanhia do servo que me acompanha, tive o dissabôr de saber que sua alteza havia vindo, com a côrte, passar algum tempo a Evora.

-- Continúa... continúa...

-- Enviei um proprio a Cintra, com letras minhas para minha mãe e meu primo.

«Depois -- e sempre acompanhado do servo, -- dirigi-me a Evora, onde, felizmente, consegui falar com el-rei nosso senhor.

E n'um grande enthusiasmo:

-- Ah! que bom... que agradavel sua alteza é!

«Estava com o astronomo Abrahão Zacuto, tratando de certas coisas da India: mas tão depréssa lhe disseram que me encontrava no paço, ordenou que me levassem á sua real presença, recebendo-me depois com carinhosos sorrisos... e erguendo-me do chão quando acabava d'ajoelhar-me.

Bernardim Ribeiro permittira-se uma ligeira solução de continuidade, e proseguiu depois:

-- Fizéra-me mil perguntas, el-rei: Como é que, aos quatorze annos, faço trovas tão sentidas...

«Se minha mãe pranteia muito o assassinio de meu pae...

«Quantos são, e quaes os nomes dos Ribeiros e dos Zagalos...

«Se meu primo Antonio Alvares me estima, protege, e educa...

«E após muitas outras perguntas, despediu-me sua alteza com a promessa de protecção.

Sancho Tavares e D. Ignez ouviram o relatório n'um recolhimento profundo.

E depois de terem elogiado em côro o compassivo, mas impolitico monarcha, -- que abrira os carceres aos antigos conspiradores, mas que expulsou os mouros e judeus, em holocausto á paixão que nutrira pela filha dos reis catholicos --, D. Ignez, assumindo por seu turno a palavra, perguntou a Bernardim:

-- Como ficaram meu irmão e tua mãe na saudosa granja de Cintra?

-- De saude, minha prima e senhora.

-- Ainda bem... ainda bem.

-- Prazer enorme vão ter, quando souberem da minha estada aqui.

-- Ah! são tão escassas as novas que me veem de Val-de-Lobos?!...

-- É que entre Cintra e Extremoz não transitam recoveiros.

-- Dize-me ainda: como estás a respeito d'alimentos?

-- Arranjei-me como pude, com o que trouxe no alforge...

-- Em tal caso, sou de parecer que se jante hoje mais cedo; alvitrou Sancho Tavares.

-- Sim, vamos jantar: é meio dia; -- annuira Ignez Zagalo.

E alevantaram-se todos.

-- Queres vêr o teu rosado priminho... o meu lindo Manoel?

-- Que formosura! -- exclamou Bernardim, beijando muitas vezes, no berço, as gordas faces do pequenito.

-- Deixemol-o agora entregue ao somno; -- solicitara Ignez, tapando-lhe as tenras carnes com um alvo lençol de linho.

-- E como elle dorme serenamente! -- exclamou, com voz trémula, o futuro bacharel, recordando se talvez dos continuos sobresaltos do seu passado... d'essa via-dolorosa, que elle, a mãe e a irmã tiveram de seguir, fugindo á raivosa perseguição do envenenado d'Alvôr!...

II

Historiando...

Deixemos, pacientissimo leitor, as amorosas scenas d'Extremoz e Val-de-Lobos, e acompanhemos o tempo no seu vertiginoso andar.

Já passaram mais quinze annos.

Estamos pois no de mil e quinhentos e onze, ao findar o poetico mez em que as flôres, desabrochando, embalsamam os ambientes dos prados e dos vergeis.

Ah! e quantos féstos e fúnebres successos se não déram no decorrer galopante d'estes ultimos cinco lustros?!...

D. Manoel já saciára a grande sêde d'amôr pela princeza Izabel, que lhe morreu pouco depois de casados, deixando vago o leito conjugal á outra filha dos reis catholicos, a prolifica D. Maria; já vira partir e regressar da arriscada empreza do Oriente o ousado Vasco da Gama e um punhado de companheiros; já vira augmentadas as descobertas e as conquistas -- que lhe deram gloria e ouro -- pelos intrépidos Pedro Alvares Cabral, João da Nova, Américo Vespuci, Gaspar Côrte Real, Ruy Lourenço Ravasco, Tristão da Cunha, D. Francisco d'Almeida, Affonso d'Albuquerque , e por muitos outros soldados e mareantes nascidos para assombrosos feitos: mas tambem já vira a peste assolar lhe impiedosamente o reino, e, entre outras calamidades e desbaratos, as ruas de Lisboa convertidas em lagos de sangue hebreu e musulmano, derramado por fanaticos e sicarios açulados pelos frades! -- .

Ora... no dia, mez e anno referidos no começo d'este capitulo, o monarcha Venturoso erguêra-se -- como era do seu costume -- pouco depois de terem soado nos bronzes as trindades da manhã.

Na cidade já havia o costumado movimento e rumôr, produzidos pelos mesteiraes que se dirigiam ao trabalho, e pelas lépidas servilhêtas e donas cuidadosas -- embrulhadas em alquicés e mongys, com os bucres tapados por honestos biôcos, e arrastando graciosos sambarcos de varias côres e feitios --; as quaes, em animados dialogos, se dirigiam ás boticas e açougues, a fornecerem-se de victualhas para os arranjos caseiros.

D. Manoel conversava com o conde de Portalegre, seu escrivão da puridade -- ao mesmo tempo que os môços do guarda-roupa lhe ajustavam o pelote --, quando um dos fidalgos de serviço o informára da chegada de sua mercê o doutor Bernardim Ribeiro, cavalleiro de S. Thiago, e escrivão da real camara.

-- É solicito este môço vate e letrado, -- não vos parece, conde amigo?

-- De facto... de facto, real senhor.

E após pequeno intervallo:

-- Bem avisado andou vossa alteza, encarregando o dos negocios da real escrivaninha...

-- Haveis razão, honrado conde.

E voltando-se para o camareiro, que aguardava uma ordem:

-- Acompanha aqui o doutor.

Acto continuo o fidalgo desapparecêra atravez do riquissimo reposteiro da alcôva, após não poucas mesuras, assás correctas e compassadas.

-- Boa escolha fiz, com effeito, e não peor fôra a d'Ignez Zagalo para ama da senhora infanta D. Beatriz, minha filha muito amada; -- continuou el-rei D. Manoel, referindo-se a Bernardim e á prima, emquanto o moço do guarda roupa lhe cingia agora o vistoso cinto d'ouro, de que pendia soberba espada cinzelada artisticamente.

E quando o conde ia a responder-lhe, eis que um dos reposteiros corrêra ligeiramente para o lado direito, annunciando o sumilhér -- sua mercê o doutor Bernardim Ribeiro, que, de seguida, déra entrada na real alcôva, com todos os rigores e preceitos da exigente pragmatica.

De joelhos, o môço vate recebeu depois a mão do soberano, que beijou respeitosamente, e que, despresando a etiqueta, o ajudou a levantar-se.

-- A boa hora viéste, doutor amigo.

«E ainda bem que presente está o nosso conde...

-- Real senhor?!...

-- Sabes, Bernardim Ribeiro, o que desejo hoje do teu saber e diligencia?

-- Vossa alteza ordenará consoante lhe prazer... e eu gostosamente cumprirei.

-- Pois bem.

«Encommendo-te a leitura das novas ordenações, que me hão sido remettidas pela junta de magistrados, a quem incumbi de as recopilar e recompor. E que a tarefa dos novos foraes continue, como é do meu desejo. --

«Trabalho árduo vaes ter: mas tão a limpo sahirás d'elle, que me obrigarás a fazer-te nova mercê, conforme fôr do meu agrado, de justiça, e de razão.

Bernardim Ribeiro não respondeu.

Inclinára-se profundamente e beijára a mão do monarcha, que lh'a estendeu, sorridente.

E de seguida D. Manuel concluiu:

-- O conde de Portalegre transmittir-te-ha resoluções minhas, e com elle te entenderás toda a vez que mistér seja.

«Vai pois dar inicio ao teu labôr, e que as horas sejam bem aproveitadas, pois que se faz indispensavel um novo codigo que enfreie tanto os ladrões e os assassinos, como os raptores e os feiticeiros, que trazem em sobresalto a gente boa d'estes reinos!

E havendo-se curvado, e observado outros mandamentos da etiqueta, Bernardim Ribeiro desappareceu com o desejo de bem servir o soberano, a quem devia varias graças que não podia esquecer.

Ora, como o leitor acaba de observar, o môço Bernardim e sua prima D. Ignez Zagalo encontravam-se a este tempo ao serviço do senhor rei D. Manuel.

Historiemos um pouco.

Mas -- como nos é indispensavel -- retrogrademos até ao anno de mil quinhentos e quatro:

A vida conjugal d'Ignez e Sancho nem sempre corrêra tranquilla e atapetada de rosas, a despeito do inquebrantavel amôr que se tributavam mutuamente, e dos infantis encantos que lhes proporcionavam os seus cinco filhos, que em extremo adoravam.

É que vicissitudes imprevistas lhes haviam reduzido profundamente os haveres, deixando-lhes sómente o vinculo, que era como que um grão de areia na amplidão d'um deserto, quando comparado com a opulência dos allódios, cuja posse foram perdendo por motivos de varia especie.

Avassallados por similhantes contratempos, D. Ignez e o esposo pensavam certo dia nas difficuldades domesticas, quando lhes apparecêra, como que por encanto, o sympathico desembargador Antonio Alvares, a quem sua alteza el-rei muito estimava e destinguia como a um dos mais sábios e integérrimos magistrados.

Doente d'uma enfermidade cruel, que havia de leval-o cedo á sepultura, o bondoso irmão d'Ignez não quiz sahir d'este valle de miserias, sem ter primeiramente garantido um relativo bem estar á irmã, ao cunhado, aos sobrinhos e aos primos: não o tendo preoccupado a sorte dos dois irmãos que lhe restavam ainda, visto que um d'elles lhe havia de succeder no morgado de Cintra, e o outro (uma mulher) vivia então com o maximo desafogo. --

E, assim, D. Joanna Dias ficaria -- depois da sua morte -- amparada pelo filho, que elle, magistrado, protegêra sempre até ao dia em que, na velha universidade de Lisboa, recebeu o diploma de bacharel em leis ; e a irmã Ignez iria gosar os favores do paço, que dividiria pelo esposo e pelos filhos, visto como havia a certeza de que seria chamada por el-rei, afim d'encarregal-a da creação do infante ou da infanta, que ia em breve vêr a luz.

E de facto :

No alludido anno de mil quinhentos e quatro D. Manuel nomeára-a ama d'uma infanta recem-nascida, a quem pozéra o nome de Beatriz; e, doze mezes depois, conseguira Dona Ignez o despacho do esposo para Sofala, com um logar assás rendoso, tendo ella passado a viver no paço -- como era imprescindivel -- desde o dia do nascimento da princeza supradita.

E ao mesmo tempo que estes successos se davam, transferia para Cintra a residencia dos filhos, cuja direcção entregára á infeliz e honesta mãe de Bernardim --, sua prima muito querida, e velha amiga dedicada.

Antonio Alvares Zapgalo surprehendêra pois a irmã e o cunhado, que, ao avistarem-n'o, emergiram rapidamente d'aquelle fundo desprazer em que os transtornos da vida a miudo os mergulhavam.

O desembargador vinha pallido e abatido, tanto pelos effeitos da doença, que inexoravelmente o minava, como pelos incommodos da jornada, que fôra feita acavallo.

Ia vêr a irmã, o cunhado e os sobrinhos -- talvez pela vez ultima --, bem como dar-lhes a animadora nova, do que, a respeito d'Ignez, lhe havia sido garantido por sua alteza el-rei.

-- Que inesperado milagre é este, mano Antonio?! -- interrogavam-o Sancho e Ignez, ao mesmo tempo que o abraçavam com a maior effusão.

-- A sua benção, meu thio?! -- solicitavam os pequenos.

-- Deus vos abençoe e fade bem! -- respondia o magistrado, dando-lhes a dextra a beijar, e abraçando-os a um por um.

-- Assenta-te, mano. Tens aqui este escabello.

«E a Joanna?...

«Que novas me dás da Joanna Dias e do nosso Bernardim?...

-- Todos vão passando conforme Deus é servido.

-- Vens tão abatido?!...

-- A doença... a jornarda...

-- Eu vou preparar-te um caldo d'ave...

-- Mas depréssa... depréssa! -- instigava Sancho, que já tomára conta e arrumára os alforges do recem-vindo.

-- Sim... sim, Ignez.

«Um caldo d'ave acceito-o reconhecido...

-- O mano deve estar bastante fatigado.

-- Moidissimo!...

«Ah! aquelle incommodo choutear da égua?!...

-- Por certo... por certo...

-- Isto já não é o homem d'outros tempos!...

«Foi-se-me a rijeza ha muito!...

-- Não te desanimes, meu bom Antonio...

-- Alma grande, senhor cunhado!...

-- Não sei que mal é este que me consome dia a dia, e que até nem mesmo os physicos se teem entendido com elle!...

-- O que Deus quizer.

-- É ter esperança.

-- Sim. Sem esperança e fé nada se faz n'este mundo.

-- São as ancoras dos infelizes.

-- Pois eu cá vou arranjar-te o caldinho.

E D. Ignez desapparecêra na direcção da lareira, onde, em breve tempo, tinha o caldo cosinhado.

Na sala o desembargador recebia as caricias de quatro gordos pequerruchos, e fitava sorridente um mais novito, que repousava no berço.

Depois -- e a chamamento da futura ama da infanta D. Beatriz -- Antonio Alvares, o cunhado e os filhos passaram-se para o amplo refeitorio do solar, onde fôra servido, ao primeiro, um apurado caldo de ave, que elle com apetite tomára, e muitas vezes gabou.

E de seguida travou-se entre as personagens do quadro um dialogo muito intimo, o qual fizéra verter lagrimas de gratidão a Ignez e ao esposo, que ficavam com a esperança consoladora de que as difficuldades da sua vida domestica, iam muito em breve acabar.

E essa reanimadora esperança teve inteira realisação, depois que sua alteza el-rei entregou á carinhosa Ignez Zagalo a creação da sua filha Beatriz, que ella amara extremosamente, como que se -- em vez de ama -- fôsse a verdadeira mãe.

III

Côrte d'amôr

A côrte de sua alteza o senhor rei D. Manoel fôra -- mais do que as outras -- verdadeira côrte d'amôr.

Já alojado nos sumptuosos paços da Ribeira, da sua fundação, o opulento soberano -- realisado o sonho de grandeza, herdado do antecessor --, passava o melhor do tempo era animadas caçadas, opiparos banquetes, dansas, jogos, certamens poeticos, representações d'autos, combates de féras, estrondosas cavalgadas, e outros variados folguedos, quasi sempre ao som de sacabuxas, harpas, charamélas, tamboris, rabecas e pandeiros, tocados por mouros conversos e por habeis menestreis christãos.

É que o Oriente despejava-lhe nos reténs grande copia de pimenta, canella, cravinho, drogas, ouro e valiosa pedraria: e o bom rei -- deslumbrado por abundância tamanha -- temia uma plethóra de riqueza, que tratava assim evitar.

Sim.

Para rebater a crescente rotundidade do herario appellára para a mais fácil e efficaz therapeutica, de que podia utilisar-se: Lançava ouro aos punhados pelas janellas fóra, conseguindo d'est'arte que a choruda burra do estado fosse emmagrecendo pouco a pouco, até que, por fim, chegara quasi anémica ao poder do filho e successor D. João III, o qual, por tal motivo, a mandou forragear na farta e opulentissima fazenda dos hebreus, que elle e a inquisição transformaram milhares de vezes em torresmos e archotes!...

Não havia parente nem amigo pobre ao pé do generoso rei afortunado!

Os vampiros surgiam-lhe de sob as solas dos vistosos sapatos flamengos, ao mesmo tempo que -- n'uma inexplicavel indifferença -- deixava definhar os grandes homens que lhe haviam tornado immorredouro o nome, rodeado de prestigio o throno, abarrotado de ouro as arcas, e convertido a pequena tira de terra dos seus dominios n'uma antiga Macedonia d'Alexandre, ou de velha Roma dos césares!

Leão X -- o grande João de Médicis, que tanto protegeu as letras e as artes --, tambem tivéra grande quinhão na divisão desperdiçadora, que o monarcha venturoso fazia das riquezas a miudo chegadas de Gôa, Malaca, Cochim, Calecut, Socotorá, Cananôr, Colombo, Chaul, Ternate, Sofala, Maldivas, Coulão, Zanzibar, e d'outros dominios e tributaes da Ásia, Africa, America e Oceania.

Tristão da Cunha -- acompanhado pelos doutores Diogo Pacheco e João de Faria; pelo adiposo poeta Garcia de Rezende; pelo futuro governador da India, Nuno da Cunha; e por não pequeno numero de fidalgos e cavalleiros portuguezes, assombrára a cidade eterna, quando -- no anno de mil quinhentos e qua- torze -- alli fôra, como enviado do magnifico rei de Portugal, entregar ao chefe da christandade as primicias dos seus novos e opulentissimos dominios.

A côrte do rei venturoso foi pois uma genuina côrte de amôr.

Ah! e com razão sobeja o fôra ella.

Pois quem poderia resistir ás graças estonteantes de uma D. Leonor de Mascarenhas... d'uma D. Violante de Lima... d'uma D. Joanna de Sande... d'uma D. Catharina d'Athayde... d'uma D. Francisca Zagalo... d'uma D. Elvira de Mendonça... d'uma D. Maria de Noronha... d'uma D. Joanna Tavares... d'uma D. Beatriz d'Abreu... e d'outras diversas deidades de peregrino espirito?

Quem?!...

E não havia peitos rijos -- d'esses peitos acostumados á dureza das armaduras -- que se não rendessem á gracilidade de tantos olhos mais penetrantes que hastilhaços de pelouros, ou finas pontas d'espadas.

Ah! e quantos d'esses peitos de heróes não sahiram malferidos, muitas vezes, das traiçoeiras pugnas do amôr?!...

Que o digam o maior épico portuguez e a sua immortal Nathercia... que o digam o desventurado Jorge da Silva, e a seductora infanta dos seus mais vivos affectos... que o diga, emfim, o enamorado D. João de Menezes, que tivéra d'estrangular com o cordão d'um habito o seu grande e tradicional amôr por outra formosa princeza.

Mas é maior... muito maior a lista dos attingidos pelas settas do traiçoeiro Cupido.

Quantos e quantos não acabaram a chorar paixões infelizes nos sombrios cubiculos d'isolados mosteiros, ou no fundo tenebroso de doentios algares?!...

Quantos?!...

Ah! que se as seculares paredes d'essas gehênnas falassem, tristes historias contariam de mil torturas do coração!...

Bernardim Ribeiro tambem havia de provar o fel da terrivel taça, que um destino embahidor lhe apresentaria tão saboroso e dôce, como o louro, saboroso, e dôce mel do Hymetto!...

A noite do primeiro dia de janeiro do anno de mil quinhentos e dezesete fôra noite de grande festa nos buliçosos paços da Ribeira, não obstante sua alteza a rainha D. Maria encontrar-se assás maltratada pela doença de que havia de succumbir cêrca de uns tres mezes depois.

Nas cosinhas do magnifico palacio vae um movimento enorme: Recheam-se perús com capões, e estes com varias aves, desde o tenro frangainho até á perdiz saborosa.

Vitellas de Lafões recebem, nas cavidades, cordeiros; os quaes, a seu turno, já receberam nas suas os mais gostosos picados.

Exquisitas frituras e manjares chilreiam nas sartãs aquecidas ao fogo da canella de Sumatra, que arde sob as trempes como se fôra carvão!

Cosinheiros, escanções, e vários outros serviçaes porcorrem, açodados, os compartimentos do paço; e no andar nobre já se ouve o mover de pés em mandós e minuetes, bem como os sons volumosos d'um robusto instrumental.

Dom Giboia, o bôbo -- muito bêbedo e insolente --, faz gaifônas á fidalguia que passa, e cobre impunemente de doestos e agua suja o pessoal da cosinha, que reprime a gargalhada.

Mas subamos nós, leitor, aos salões do andar nobre, e, com todo o recato, vejamos o que lá vae.

Não vestimos, é verdade, gibão e calções de velludo ou seda, golpeados de setins de varias côres; não ostentamos ricas opas de brocado, franjadas de prata e ouro; não exhibimos preciosos collares de brilhante pedraria; não nos pendem das dextras garridos gorros emplumados; não calçamos finos e vistosos sapatos á flamenga; e não cingimos, finalmente, riquíssimos cinturões flammantes, suspendendo espadas de rijo aço de Toledo, com artisticos punhos cravejados de diamantes: porém, na modesta graciosidade dos nossos trajos á seculo XX, colloquemo-nos por detraz d'um dos opulentos reposteiros, e -- emquanto o sumilhér gosa distrahido o espectaculo das dansas -- observemos nós detidamente a magnificencia das quadras, cujos lumes, porcellanas, crystaes, flores e mobiliario d'incalculavel valor teriam feito inveja ao velho Créso, se porventura estivesse alli... no deslumbrante serão.

Assentados em cadeiras de sandalo da Taprobana -- marchetadas d'ouro, prata, onix e madrepérola --, e rodeados pelos duques de Bragança e de Coímbra; pelo marquez de Villa Real; pelos condes de Portalegre, Marialva, Vimioso, Alcoutim, Feira, Penella e Villa Nova; pelo barão d'Alvito; pelo padre João Bravo; pelo physico mestre Affonso; pelo secretario Antonio Carneiro; e por outros fidalgos e clerigos, encontram-se suas altezas el-rei o senhor D. Manoel, e a rainha senhora D. Maria, cuja profunda tristeza, abatimento e palôr denunciam a presença da fatal doença, que pouco a pouco a vae minando.

D. Manoel fala em negocios do Oriente aos fidalgos que o cêrcam; e mestre Affonso conversa com a rainha, a quem faz a apologia d'uma certa mezinha da sua ultima invenção.

O ultimo mandó tem acabado.

Ouvem-se agora harpas, rabecas e charamélas.

Dispersos pelas salas, formando diversos grupos, vêem-se os jovens infantes D. João, D. Luiz e D. Fernando ; o marquez de Torres Novas, D. João de Lencastre, joven filho do duque D. Jorge e neto de D. João II; D. Braz Henriques, caçador-mór; Gonçalo Mendes Çacoto, capitão de Çafim e Azamôr; D. Pedro de Mascarenhas; Garcia de Mello, anadel-mór; Vasco de Foyos; Ruy Lopes; Nuno da Cunha; D. Pedro de Moura; D. Garcia de Noronha; Estevão Lobato; Mendo Vasques, futuro anachoreta; Ayres Barbosa, antigo lente em Salamanca, e preceptor dos infantes D. Affonso e D. Henrique; Pedro Nunes, o grande mathematico, e mestre e amigo do infante D. Luiz; Pero Gatto, cavalleiro da real casa, e filho do opulento contador de Çafim; Gil Vicente, bacharel em leis pela universidade de Lisboa, antigo mestre de rhetorica d'el-rei D. Manuel, glorioso fundador do theatro portuguez, e auctor da comedia Rubena, da Floresta dos enganos, da Ignez Pereira, e de muitos outros jocosos e afamados autos; D. João de Menezes, o antigo Tenorio das adufas de Lisboa; Garcia de Rezente, o célebre auctor do Cancioneiro e da Chronica de D. João II; o doutor Francisco de Sá de Miranda, maviosissimo poeta, e, mais tarde, illustre chefe da eschola classico-italiana, e festejado auctor dos Estrangeiros e Vilhalpandos; Jorge Manrique, o delicado trovador; o mimoso vate Affonso Valente; e, além d'outros, o delicioso poeta Bernardim Ribeiro... esse poeta tão sublime de sentimento e singeleza, como os velhos bucolicos de Roma e Syracusa.

Nos variados e fôfos assentos, que abundavam nos salões, encontrava-se ainda um copioso numero de formosas damas -- nos seus elegantes trajos de custosa téla --; sobresahindo entre ellas as jovens e deliciosas infantas Izabel e Beatriz; a viva e illustrada Leonor de Mascarenhas; a espirituosa e ingenua Violante de Lima; a requestada e infeliz Guiomar Coutinho; e a louca e voluvel Joanna Tavares... essa dementada filha de D. Ignez Zagalo, que -- como o primo Bernardim -- havia d'acabar por um modo desgraçado.

Mas deixemos, leitor amigo, começar e acabar uma nova dansa ao som dos instrumentos dos menestreis e da variada cavaqueira da gente velha, e sigamos os quasi escandalosos desmandos da hysterica Tavares, a qual, na maior de todas as impudencias, provoca -- com olhos azues-parados -- môços e velhos que encontra junto a si, mas muito particularmente o devasso Pero Gatto, e o impressivel Mendo Vasques -- o futuro anachorêta.

A curtissima distancia o velho conde de Marialva observa a filha Guiomar Coutinho, que é amada e ama o joven marquez de Torres Novas, mas que ha de ser violentada a receber por marido o môço infante D. Fernando, depois de se ter unido clandestinamente pelos laços da egreja ao infortunado marquez e futuro duque d'Aveiro.

Ah! que dramaticas scenas de sorrisos e lagrimas... d'esperanças e desalentos senão passaram, outr'ora, sob os dourados tectos dos paços da Ribeira... sob esses desapparecidos tectos, onde, tantas vezes, se quebraram em ondas d'amôr, de regosijo e lugubridade, suspiros inconfidentes... arrancos d'almas enamoradas... estertores de moribundos... e pragas e saudações de vencedores e vencidos!...

Que lyricas e horrentes revelações, se as campas e os entulhos falassem!...

IV

Uma louca

A hysterica Joanna Tavares Zagalo, que, como o leitor já sabe, fôra o quinto filho de Sancho e d'Ignez teria cêrca de dezeseis annos ao tenapo em que se passaram as scenas que vimos de referir.

Alta, clara, cabellos louros, pequena bocca, labios nacarados, nariz grego e rosto ligeiramente comprido, a nevrotica rapariga seria realmente a formosura preconisada por antigos linhagistas , se os seus pequenos olhos parados não fossem como que dois borrões azues, que estupidamente lhe maculavam o resto do semblante.

D'uma incorrigivel volubilidade, a desequilibrada môça era alvo d'incessante maledicência, e passava por catavento nas salas, locutorios, e outros centros de soalheiro.

Ignez Zagalo observava -- com profundissimo desgosto -- os continuos despropositos da filha: e já perguntára a mestre Affonso physico-mór do reino se n'aquella cabeça sui generis haveria ou não defeito... mazella... alguma coisa, emfim, que, tarde ou cêdo, a ameaçasse d'um internato em qualquer casa d'orates; ao que o physico respondêra, depois de detido exame, «que maridassem a môça, se a queriam sarada».

D. Ignez comprehendêra, por completo, o estado pathologico da rapariga; mas ficou não pouco apprehensiva com respeito á dificuldade da therapeutica, que o velho e perspicaz Esculapio lhe havia receitado.

Sim.

Porque o arranjar-lhe um marido com aquella facilidade com que poderiam ser-lhe applicados banhos de chuva ou d'immersão, era quasi um impossivel; e muito maior, desde que Joanna não era rica, e passava por doida, ridicula e inconstante na opinião de toda a gente com quem a doudivanas tratava.

E a pobre mãe via bem estes senões e difficuldades enormes.

Já ameaçára a môça d'obrigal-a a professar n'um convento d'Extremoz, se porventura não emendasse, por completo, os seus costumes incorrectos; já lhe revistára cuidadosamente o arcaz, na suspeição flagellante d'uma escada de corda que -- alta noite -- ella lançasse das janellas a qualquer audaz namorado; já entrára no systhema rispido de não condescender com os seus caprichosos desejos, que ordinariamente eram tolos; já lhe prohibira os amiudados passeios á margem arenosa do Tejo, onde a futura demente sohia ir pescar exemplares anthropologicos, com que enriquecia diariamente o seu farto museu d'amôr; e já lhe queimara, emfim, quantas novellas cavalleirosas lhe prejudicavam o espirito pouco agudo para extrahir das leituras o que de bom havia n'ellas.

Mas D. Ignez Zagalo pouco ou nada ganhára com similhantes prevenções.

A cura prompta, completa, efficaz, da desencabrestada môça, estava em maridal-a sem detença, talqualmenle havia sido receitado pelo physico mestre Affonso.

E pensava muitas vezes no melindroso assumpto.

Sabia que a voluvel rapariga recebia os galanteios de Pero Gatto e Mendo Vasques; mas a dupla conquista servia apenas para irrital-a mais, pois que eram mais dois nomes inscriptos na eterna, grotesca, e longa lista dos seus amantes.

Depois Pero Gatto era um devasso, um brigão, um picaro ... um homem de reputação duvidosa, apesar dos fartos meios de que dispunha, e das esporas de cavalleiro que conquistara em Ormuz.

Sancho Vasques -- o futuro anachorêta -- se não era devasso nem brigão, não possuia, todavia, a abastança de Pero, nem tão pouco o egualava em edade, dotes physicos, e attrevimentos, que tanto o distinguiam aos olhos azues parados da louca filha d'Ignez.

E se esta trocava com elle, ás vezes, um olhar languido e morbido -- profundamente languido --, era porque a inconstancia e o desejo insoffrido constituíam os principaes caracteristicos da sua indole enferma.

E ainda mais :

Sancho Vasques -- antigo fidalgo de raça -- amava-a com vehemencia, e para fins o mais ostensivamente honestos; a par e passo que o cavalleiro d'Ormuz deixava perceber que só via n'ella a môça provocadora e de formas assás correctas... uma simples machina, emfim, de desejados prazeres.

Portanto, Joanna, tinha o futuro anachorêta como uma espécie d'efficaz recurso, dado o caso de vir a falhar lhe o petulante descendente do contador de Çafím.

Decorreram, leitor, mais trez annos.

Estamos, pois, no de mil quinhentos e vinte; no mesmo anno em que o libidinoso D. Manoel realisára o seu terceiro casamento com a noiva de seu filho primogénito, a joven e formosa infanta Leonor, irmã do poderoso soberano Carlos V, e filha do impudico Filippe o bello, e da ciosa Joanna a doida -- a desventurada rainha.

A mulher de Sancho Tavares, e irmã do fallecido desembargador Antonio Alvares, seguia, resignada, a crescente série de loucuras praticadas pela filha, e a lucta de ciúmes que se travara entre o cavalleiro libertino e o futuro solitario.

Ah! mas o seu cérebro esclarecido havia gerado uma idéa que se lhe afigurou salvadora.

E um dia -- tendo solicitado a presença do joven primo -- fechára-se com elle n'uma das alcôvas que occupava nos extinctos paços da Ribeira.

-- Produziu-te extranheza o empenho com que te roguei para vires aqui, não é verdade Bernardim?

-- Senhora e prima: crêde, d'uma vez para sempre, que me praz obedecer-vos na maior submissão.

«Porque é a vós, senhora, a quem eu e minha pobre mãe devemos a relativa tranquillidade de nossas almas, que n'este instante disfructámos.

E Bernardim Ribeiro, quando falára na tranquillidade da propria alma, sentiu que a lingua se lhe negava a pronunciar taes palavras.

Quizéra seguidamente emendal-as para não faltar á consciencia: mas teve d'abandonar este proposito, pois que assim lho aconselhava a necessaria circumspecção.

D. Ignez Zagalo -- que ignorava tudo quanto se passava no intimo do trovador -- tendo-o abraçado com effusão, continuou seguidamente:

-- Reconhecido és, Bernardim Ribeiro.

«Proprios são das almas bem formadas os sentimentos castissimos que albergas.

«Ah! e são tantos os ingratos na humanidade?!...

«Tantos?!...

-- Prima e senhora?! -- exclamára, commovido, o mavioso poeta.

E pelas faces ainda bellas d'Igoez, deslisaram, trémulas, duas lagrimas fúlgidas como brilhantes.

De seguida continuou:

-- É mistér saberes, sem detença, qual o fim para que nos reunimos hoje, a occultas, n'esta alcôva reservada.

«Assenta-te n'este escabello ao pé de mim.

E assentaram-se.

Depois... fizéra-se, em derredor do grupo, um silencio d'alguns segundos, que D. Ignez interrompeu.

-- Sabes -- começou ella -- o que mestre Affonso me aconselhou com respeito á doença de tua prima?

-- Nada ignoro, senhora.

«E crêde piamente que me chora a alma, ao pensar na pobre Joanna... e em vós.

-- Tambem sabes que a infeliz recebe, ha muito, a côrte de Pero Gatto e Mendo Vasques... que se detestam um ao outro?...

-- E sei ainda que é vehementemente amada por esses homens... desde que a vibora do ciume lhes mordeu o coração.

-- Ah! mas nem Mendo Vasques deve ser o esposo de Joanna, porque é quasi velho e pobre, nem me praz a alliança de tua prima com um devasso incorrigivel, como é o filho do contador de Çafim.

«E, entretanto, é-me forçoso casal-a em breve tempo, porque assim me aconselham os physicos... e os seus proprios desvarios!....

Bernardim Ribeiro encontrava-se em presença d'um enigma, que não sabia decifrar.

Conhecia o estado pathologico de Joanna, por lh'o ter descripto o physico mestre Affonso; -- observava, com magoa, os quotidianos desatinos da infeliz; -- sabia que o casamento se lhe impunha como preventivo de futuras catastrophes; -- não ignorava o que resava a tradição, com respeito a muitos casos identicos; -- conhecia dolorosissimas historias de fidalgas e plebéas, maculadas no seu pudôr; -- sabia de paes duros, descaroaveis, que respondiam com estulta rispidez ás exigências da carne... enclausurando as filhas; -- ah! tudo isto conhecia o trovador, mas ignorava, por completo, o rumo que a santa mãe de Joanna tivéra em vista seguir.

É que D. Ignez Zagalo ainda não disséra tudo.

Já tentára, por duas vezes, o abrir-se com Bernardim, mas outras tantas sentiu como que o laço d'um barbante a enforcar-lhe nos labios o seu mais intimo segredo.

Entretanto tinha de tomar uma resolução... tinha de dizer-lhe o que sentia... tinha de dirigir-lhe, emfim, um ponderoso appêllo.

O que importava a ella que elle dissesse -- de si para si -- que buscava na imposição d'um sacrifício a compensação das mercês que lhe fizéra?

Quando se trata da salvação d'um filho, nada ha que -- aos paes de coração -- consiga tolher o passo.

E a bondosa esposa do escrivão de Sofala -- n'um indescriptivel exforço -- continuou, com voz trémula :

-- Sabes o que desejo de ti, Bernardim Ribeiro?

-- Escutar-vos-hei attentamente, minha senhora e prima.

-- Desejo que salves a honra da nossa familia illustre!...

«Desejo que me valhas n'este afflictivo momento!...

«Desejo, emfim, que ampares a minha infeliz Joanna!...

-- Como?! -- exclamou, attonito, o trovador, que comprehendêra rapidamente o sentido das breves palavras d'Ignez.

-- Recusas a esmola, que, de joelhos, te implora a tua devotada amiga?!...

E, debulhada em pranto, a pobre mãe de Joanna ajoelhára-se aos pés do primo, que, suffocando os soluços, a levantára do chão.

-- O que respondes, Bernardim? -- insistia ella, alimpando as lagrimas, que lhe inundavam as faces.

-- Somos muito desgraçados... muito! -- exclamára o vate, n'uma enorme commoção.

E depois de brevissimo intervallo:

-- Como quereis vós, senhora, que ampare... que salve... que me dedique a vossa filha?!...

«Porque não protegeis, antes, a sua alliança com o honrado Mendo Vasques?...

-- Para evitar que o imprudente fidalgo venha a ser uma victima, no futuro...

«Ah! tu comprehendes tudo, Bernardim!...

-- Mas Pero Gatto é um homem môço e abastado... que a ama, e que a quer.

-- Esse homem só poderá ser o esposo de Joanna, depois de tu dizeres que te oppôes á realisação do meu mais intimo desejo.

Bernardim não respondeu de seguida.

Meditou.

É que lhe brigavam no espirito os sentimentos de gratidão que nutria pela generosa Ignez, e o ousado e colossal amôr que alimentava por Beatriz, que havia de tornal-o -- muito cedo -- n'um enorme desgraçado!

Ah! e que singular affecto não fôra o d'elle por essa divinal creança?!...

Affecto grande, immenso, mas infeliz como um proscripto!...

Affecto que lhe levava agora aos labios o sabor das ambrosias, para lh'o converter, de seguida, em travôres de puro fel!...

Affecto que lhe enchia as noites de magicos prazeres, e que lh'as convertia depois em agitadas insomnias Affecto que, a um tempo, lhe povoava o cérebro de empolgantes e pavorosos visões!...

Affecto que, finalmente, o conduzia -- sonhando e desperto -- a deliciosos mundos desconhecidos, para o precipitar, depois, em tenebrosos abysmos!...

Longe havia ido o mutismo do vate: mutismo que poderia ter sido medido pela extensão da anciedade, que alanceava o coração da pobre mãe de Joanna.

Depois -- e para tranquillisar um tanto ou quanto a prima, que copiosamente chorava --, Bernardim affirmára sinceramente, com grande pranto na voz:

-- Amo!... amo loucamente... e sou amado!...

«Entretanto... é um infeliz amôr o meu, que ha de ter o seu sepulchro no coração que o gerou!...

E, n'este ponto, o pranto embargára-lhe energicamente a voz.

Mas após um titânico exforço, o trovador proseguiu:

-- Sim. A tampa d'esse sepulchro já se encontra alevantada!... Dentro em pouco terá de cahir rudemente... n'um rumôr funéreo de fechar de sepulturas!...

Bernardim Ribeiro fez uma pausa. Depois continuou:

-- Pois bem.

«Dizei a vossa filha que emende o seu passado, e que comece a pensar em mim; porque eu -- juro-o pelas cinzas de meu pae -- hei de empregar mil exforços para pensar muito n'ella.

-- Penso em ti ha muito, Bernardim! -- exclamára a infeliz louca, apparecendo inesperadamente na alcôva, mais livida do que um cadaver.

Ah! O que se passára depois foi uma scena de lagrimas muito intimas e dolorosas... foi uma commovedôra elegia, que o tempo anniquilou, e que a desventura escrevêra com um diluvio de fel!...

V

Platonismo

Bernardim Ribeiro amava e era correspondido com os requintes d'esse amôr, de que, outr'ora, castellos e paços muitas vezes foram theatros.

Mas não amava nem era amado com os olhos fitos -- por um momento sequér -- nas perfeições tentadoras da enganosa materia.

Não.

O seu amôr -- e o da escolhida da sua alma -- era um amôr platónico... ideal... e castissimo!...

Era um amôr feito de perfume das adoraveis endechas que lhe dedicava, quando -- por noites de festa nos antigos paços reaes -- se sentia evolar a um mundo de delicias... a vaporosas mansões!...

O seu éstro privilegiado foi a anthéra que encerrára o póllen fecundante d'aquelle amôr singular.

Sim.

Nem a sombra d'um pequeno desejo impuro maculara -- por um instante -- a santidade d'aquelle mutuo affecto, que os alheava aos apetites brutaes da carne... ás grosseiras sensualidades da bêsta.

Crearam um pequeno mundo intangivel, e ahi viviam como sylphides, durante o periodo dulcissimo dos seus cerúleos arroubamentos.

Deixassem n'os sonhar, na mornidão embriagadora d'aquelle innocentissimo sentir, que os dois candidos sonhadores não experimentariam o mais vago desejo de regressar ao mundo das realidades... a este perverso mundo de travôres e villanias.

E largos mezes gosaram os dois amantes as doçuras do seu Olympo, sem que vistas profanas conseguissem penetrar no escrinio dos seus mais intimos segredos.

Nos salões da Ribeira e nos Estáos , o mavioso poeta dedicava apenas os seus versos á linda infanta Beatriz: mas era tão nutural este preito rendido ás jovens princezas, que a delicada insistencia de Bernardim não dera nunca nas vistas.

Entretanto alguem havia já, entre as damas, que seguia de perto o mavioso trovador e lhe observava todos os movimentos, desde os gestos mais cautellosos até ás inevitaveis e agradáveis impressões que sentia, e manifestava no rôsto, toda a vez que -- nos salões em festa -- via apparecer a ingenua filha d'el-rei por entre os jorros de luz das tochas empunhadas pelos pagens, e atravéz dos activos odôres que embalsamavam o ambiente.

Ah! mas como tudo é transitório na vida!...

A intima ligação de Bernardim e Beatriz... essa ligação simplesmente psychica, que os dois amantes escondiam -- o mais possível -- aos olhos invejosos dos côrtezãos servis, fôra alfim descoberta no decorrer d'um dos mais ruidosos serões da côrte, pouco tempo depois do terceiro casamento de D. Manuel com D. Leonor d'Austria... com essa insinuante princeza, que fôra como que arrebatada pela sensualidade inexgotavel do soberano venturoso, ao futuro thalamo nupcial do filho -- o tôrvo, terrivel, e bestial Inquisidor!

A côrte exhibira-se em copioso numero n'essa grande noite de festa consagrada á nova rainha, que ostentava as peregrinas graças no meio das formosas castelhanas do seu séquito, e d'uma profusão de lindas damas portuguezes, clerigos, fidalgos, magistrados e poetas.

Nunca pelas opulentas tapeçarias da Ribeira passaram mais pés, nos seus aristocraticos sapatos de velludo, seda, e setim de varias côres, com bordaduras, ou não, de legitimo ouro e prata.

Até a velha rainha D. Leonor -- irmã do rei afortunado, e viuva do envenenado D. João II -- deixára n'essa noite o seu paço de Santo Eloy, para ir abrilhantar aquella festa ruidosa, grande... altamente principesca! E todos se encontravam bem, no meio d'aquelle perfumado e vertiginoso borborinho, mas muito principalmente el rei, que -- apesar de mais de meio seculo d'um existência agitada --, ainda contemplava embevecido a fresca face da esposa, que havia de ficar viuva uns vinte mezes depois.

Mas faltamos involuntariamente à verdade:

Porque nem todos participavam da ostensiva satisfação do monarcha venturoso, nem tão pouco da das varias damas e côrtezãos de que as salas regorgitavam.

Não.

D. João III cortia em silencio a tristeza que o salteava, toda a vez que os seus olhos se encontravam com os da formosa madrasta; a qual, por sua vez, apparentava certa satisfação que não sentia, nem que, naturalmente, nunca podéra sentir.

Mas ainda mais:

Joanna Tavares -- a infeliz hystérica -- procurava com vistas desvairadas o primo, que insistia em occultar-se-lhe, para ir entregar se á contemplação quasi ascética de Beatriz, que -- com elle -- se encontrava, em espirito, assás distante d'aquelle meio, em que reinavam a impostura, o servilismo, e as convenções revoltantes.

Mendo Vasques, a seu turno, fitava a louca Joanna com uns olhos d'infeliz mendicante; mas raras vezes recebia d'ella a esmola d'um fugitivo sorriso, que lhe acalmasse a tempestade de ciúmes, a qual tão impiedosamente o torturava e deprimia.

E o libertino Pero Gatto notava, por sua vez, que a desequilibrada filha de Ignez Zagalo buscava evitar-lhe os olhares concupiscentes; atoando-lhe d'esta arte, no animo, a inquisitorial chama dos zelos, que vinha ha certo tempo impiedosamente a queimal-o.

Ah! o que se teria passado na alcôva d'Ignez, entre ella, a filha, e Bernardim, ao findar aquelle drama de familia a que o leitor assistiu?!...

Nas torres da muito antiga cidade do Tejo, já soaram doze isóchrooas e monótonas martelladas, annunciando a meia noite.

Contrastando com o álgido silencio das estreitas, immundas e perigosas ruas e viellas, partiam ainda dos agitados salões da Ribeira os rumores da festa, que ia prestes terminar por mais um banquete balthazaresco... por mais uma ceia viteliana.

Gil Vicente já exgotára o comico reportorio dos seus apetecidos e afamados gracejos.

Sá de Miranda recitára já -- com adoravel mimo -- os improvisos d'aquella noite d'enthusiasmo para uns, e d'amáras e profundas tristezas para outros.

Os menestreis mouriscos, e os bufões, bobos, ou maninêlos, concluída tinham tambem a sua tarefa de gargalhada... ai! quantas vezes com sacrifício das proprias lagrimas, que os desgraçados eram obrigados a esconder.

As dansas tinham-se repetido muitas vezes, a despeito da enormissima fadiga que de ha muito salteára os vários pares -- .

Faltava apenas -- para rematar a festa -- que sua mercê o muito mimoso e apreciado vate Bernardim Ribeiro dissesse, ou recitasse, a sua ultima écloga.

E, rapido como um relâmpago, correu nas salas a noticia de que o poeta ia recitar perante os soberanos e os infantes: convergindo de seguida á esplen- dida quadra -- onde suas altezas se encontravam -- quantas damas e cortezãos haviam tomado logares nos outros salões do paço.

Bernardim Ribeiro -- sombreado o rosto por um pallôr esbatido, e correctamente vestido por um vistoso trajo de velludo negro, acuchilhado de sêda rôxa --, abeirára-se da extensa fila d'odorosos assentos de sandalo, occupados pela real familia e pelos magnificos duques de Coimbra e de Bragança.

Depois -- e mirado por muitos olhos, que não fitava, pois que as suas vistas se haviam confundido já com as da infanta Beatriz --, curvou se perante os monarchas, que lhe sorriram; e, com uma voz saturada de profunda melancholia, disséra um dos mais formosos improvisos da noite... verdadeiro arranco d'aquella alma enamorada.

Ah! mas se o sentido da apaixonada écloga não foi dominado pelos que irromperam em applausos a exemplo dos dois soberanos, é certo, todavia, que não passára despercebido ao agudissimo espirito de D. Ignez Zagalo.

-- Desgraçado!-- interjeiceonára ella, mentalmente, com muito dó do mavioso trovador.

VI

Salvando os imprudentes

Após um ruidoso e principesco festim... depois d'um banquete digno d'Apicio e de Vitélio, era fatal a perturbação dos convivas, que se deixassem seduzir pelas taças traiçoeiras.

Ah! e como tudo convidava ás delicias das lupercaes nos espaçosos refeitorios da Ribeira, onde os vinhos pulchros saltitavam nos vasos d'ouro, e os aromas provocadores das viandas desafiavam a gula?!...

Fatigados os convivas pelos excessos da dansa -- após horas e horas de penosissimo jejum -- quaes seriam pois os estomagos que se não rendessem aos olympicos cheiros dos manjares e eguarias, e quaes os labios que a miudo se não banhassem n'esses dourados liquidos d'antiquissimas lavras?...

Nenhuns.

Os proprios monarchas e infantes -- cujas libações se contavam pelas vezes que soavam sacabuxas, charamélas, e atambôres -- deram, n'essa noite pantagruelica, um trabalho de titans aos incansáveis menestreis!...

D. Ignez Zagalo -- aproveitando o hiato aberto na pragmatica pelos enthusiasmos d'aquella noite de orgia -- tivéra artes de praticar muito particularmente com a sua querida infanta, que creára aos peitos; e, bem assim, com o primo e protegido, o qual -- como a joven princeza -- vira decorrer as materialidades da festa, sem que n'ellas tomasse parte por um momento sequér.

A esposa do escrivão de Sofala -- que, no salão de baile, havia reflectido sobre o sentido da écloga -- , encontrava se agora firme nas proprias convicções, relativamente ao platonico amôr de Beatriz e Bernardim, desde que -- por vezes -- lhes surprehendêra olhares breves e melancholicos, que eram como que o exordio do ascetico recolhimento a que se davam depois.

E para a dissuadir de similhante loucura -- sem que lhe houvesse falado, uma vez sómente, no apaixonado poeta -- servira-se d'habilidosas ambages: ora contando-lhe veridicas historias de princezas muito infelizes, por terem imprudentemente amado quem não deviam attender, ora recordando-lhe as negociações que haviam começado já entre a casa de Saboya e a côrte de Portugal, relativamente ao seu casamento com o duque herdeiro d'aquella casa principesca.

D. Beatriz ouvira-a, ruborisada, ao mesmo tempo que sentira como que estalar-lhe fibra a fibra o coração.

É que -- apesar de nunca ter feito nem ouvido declarações explicitas ao seu pobre trovador -- amava-o com toda a propria ingenuidade, e antevia o martyrio da sua alma, quando fosse desmoronado aquelle pequeno mundo de dôce idealismo, que haviam construido n'uma adorável candura.

Ah! e que horas de lacinante desalento não atravessou depois a enamorada creança, quando -- acabado o ruidoso festim -- cahira sobre os fôfos coxins da propria alcôva perfumada!...

Que horas... que crueis horas d'alquebramento moral, de torturante desanimo, e de amargas desillusões!...

VII

Conselhos e reprimendas

Não estavam ainda extinctos ou ultimos rumôres da festa, e já a mulher do escrivão de Sofala se encontrava n'outra pratica muito intima com o primo e protegido... que ajudara a crear.

Bernardim Ribeiro havia sido por ella desperto de uma d'essas profundas lethargias, ou contemplações de fakir, a que a miudo se dava, para a acompanhar a um gabinete reservado, onde se encontrava a louca Joanna, com a face ainda humida dos ultimos beijos recebidos do cavalleiro d'Ormuz.

D'este mesmo gabinete havia-se retirado para os seus aposentos, a outra filha de Ignez Zagalo; a qual, trez annos antes d'estes ultimos successos, tinha desempenhado nos paços da Ribeira o logar de môça da camara da finada e virtuosa rainha a senhora D. Maria.

Ignez Zagalo -- fechada a porta do gabinete -- mandára assentar o primo.

«Ia tratar de assumpto ponderosissimo, cuja exposição não espaçava por lh'o não supportar o animo, que desejava tranquillisar».

E começára, dirigindo-se ao trovador:

-- Passaria, certamente, n'uma insomnia as poucas horas que nos restam d'esta noite memoravel, se guardasse para mais tarde o que vou dizer-te... e a minha filha tambem.

-- Principiae... principiae, senhora minha;-- implorou o vate, n'uma grande anciedade.

-- Julguei-te mais circumspecto, Bernardim.

-- Senhora, eu...

-- Escuta-me! -- interrompêra Ignez.

«Escuta-me... e segue o conselho que vou dar-te, se quizeres evitar o fundo abysmo que abordas!...

Bernardim Ribeiro, ao ouvir estas ultimas palavras, ficou como que fulminado.

É que -- atilado como era -- suspeitára de golpe que a esposa do escrivão de Sofala se encontrava na posse do seu mais intimo segredo.

E, sem ter respondido com um unico monosyllabo, ficou profundamente mudo, e esperando -- n'uma enorme impaciencia -- que a prima dissesse o resto... que continuasse a falar.

Ignez Zagalo não se fizéra esperar muito.

E proseguira:

-- Adivinhei o sentido da tua écloga, e surprehendi os vossos dialogos d'alma, proferidos pelos olhos, que, em negocios d'amôr, dizem mais que os proprios labios,

-- Ah!...

-- Já vês pois, Bernardim, que -- sem ser augûr -- consegui adivinhar o que se passa nas vossas almas de sonhadores! ...

E depois de ligeirissimo silencio, alterado simplesmente pelo offegar do poeta :

-- Que é feito do teu sizo... da tua antiga circumspecção... do teu grande talento, emfim, de que tantas vezes has dado provas ?

-- Prima e senhora!!...

-- Para que havias de levar o incendio dos teus olhos, ao coração immaculado d'uma donzella inexperta?!...

-- Para que havias de prender-lhe o espirito com os traiçoeiros liames dos teus versos seductores?!...

Bernardim Ribeiro sentia -- em cada palavra de Ignez -- como que o golpe d'um ariete, que lhe batesse no peito.

Queria falar... defender-se... mas sentia d'antemão a impotencia d'uma defesa qualquer, que intentasse produzir.

E entregue em holocausto á mais inexorável tortura, limitára-se a ficar silencioso; emquanto a louca Joanna dava tratos ao espirito para penetrar no âmago d'aquelle enigma... d'aquella especie de mysterio.

-- És um louco, Bernardim! -- continuou Ignez, reduzindo, pouco a pouco, a aspereza com que fallára.

«O que esperavas tu d'uma creança, que, dentro de breve tempo, ha de ser uma duqueza da nobre casa de Saboya?...

«A continuação de ridiculos devaneios, que, tarde ou cêdo, haviam de ser descobertos por essa horda d'hypocritas que se atropelam no paço?!...

«Ah! e depois, Bernardim, e depois... a nossa expulsão d'esta casa; o eterno escarneo de toda a gente; e, para ti, um deshonroso desterro, se, antes, a mão vendida d'um scelerado te não tirasse a vida com um punhal traiçoeiro.

«Esquece, pois, a ingenua filha d'el-rei... a quem pedi, ha pouco, que te esquecesse tambem.

«Olha que se morre e endoidece d'amôr, Bernardim Ribeiro!...

«Porque não has de ir chorar no seio da minha pobre Joanna, as amargas lagrimas dos teus loucos devaneios ?

«Porque não has de pensar n'ella, como prometteste ha pouco?

«Confessaste, então, que o teu affecto ia ter o seu tumulo no coração que o gerou: mas continuaste a alimental-o doudamente, como quem não visse um fundo abysmo... como quem gosasse em affontar um perigo... e um impossivel, tambem.

«Ah! que loucura... e que ingratidão, Bernardim!

E o desolado poeta continuava entregue a um silencio de catacumba.

É que na attribulada alma travára-se-lhe a lucta entre a paixão que o avassalára, e a consciência do desvario que ouvia estigmatisar.

-- Repito, Bernardim: Porque não has de ser o esposo de minha filha... porque não has de realisar este meu antigo anhêlo?

-- Nunca! -- bradára a desequilibrada Joanna, erguendo-se d'um pulo, e fitando morbidamente o poeta, que continuava silencioso.

D. Ignez ficou quêda como um granito, ao ouvir a inesperada interjeição da filha... que tambem era a filha d'um regenerado alcoolico.

E perguntára-lhe nervosamente, ao vêr cahir a primeira pedra do edificio dos seus antigos e insistentes desejos :

-- O que disséste, Joanna?!...

-- Nunca! -- repetiu ella, esgazeando hediondamente os pequenos olhos azues, e como que contorcendo-se nas furias d'um epileptico.

E dirigindo-se ao vale, após ligeiro mutismo :

-- Amei-te silenciosamente, como tu amaste e amas ainda a innocente creança, que os teus versos allucinaram.

«Promettêste um dia pensar em mim... pensar muito: mas desde que o teu olvido me feriu o coração -- que se tinha aberto unicamente para ti --, eu despreso-te desde este instante como tu me despresaste, e vou seguir o caminho que o destino me preparou.

E sahira rapidamente da alcôva, sem que a pobre mãe tivesse tempo de a impedir.

Para onde iria a louca ?

Quem a seguisse, vel-a-hia -- ao fundo d'um corredor, e na penumbra d'uma absconsa --, conversar depois, em segredo, com o cavalleiro d'Ormuz.

Ah! mas escutando o dialogo, alguem se encontrára, largo tempo, com o ouvido collado á porta do gabinete; retirando-se depois, rapidamente, tão despréssa a desequilibrada môça estigmatisára por sua vez o proceder do trovador.

VIII

Receios, e ardis

Quem seria esta nova, e mysteriosa personagem?...

Pero Gatto -- que passára, a occultas, o resto da noite em protestos d'amôr com a tresloucada Joanna?

Mendo Vasques -- que havia, durante o festim, atravessado momentos de lancinante ciume, toda a vez que o cavalleiro d'Ormuz recebia um sorriso, ou um amôroso olhar dos pequenos olhos azues da hysterica rapariga?

Algum dos bandidos-fidalgos, com moradia no paço, -- d'esses que constituíram, nos vetustos tempos do reinado venturoso, a célebre e terrivel quadrilha dos epistológraphos e espiões?

Qualquer dos truões ou maninelos -- que eram os auxiliares da seita dos fumosos, no dizer picaresco do jocoso Gil Vicente?

Ah! na Historia existem milhares de soluções de continuidade; e ao novellista não é dado o devassar segredos, que cêrca de quatro seculos soterraram no olvido.

Mas... quem sabe?... Talvez houvesse sido algum dos epistológrophos, pois que -- decorrido pouco tempo -- Bernardim Ribeiro recebêra uma carta anonyma, em que era ameaçado de ser expulso do paço e desterrado de seguida «em razão dos seus amôres com a infanta Beatriz», se porventura se demorasse mais um dia ao serviço d'el-rei, e dentro das muralhas da cidade de Lisboa.

D'esta vez não se exigia que fosse enterrada certa quantia em sitio determinado: mas impunha-se a desistencia dum logar rendoso, bem como a sahida do trovador para fóra da capital.

Bernardim Ribeiro lêra, em crispaturas, o infame escripto anonymo, que lhe fôra introduzido nos aposentos, quarenta e oito horas depois dos successos a que o leitor assistiu.

Conhecedor da existencia da mysteriosa quadrilha, fizéra o que -- em conjunctura tal -- devem fazer todos os homens de bem: desviar com a ponta do sapato o engulhoso anonymo... relaxal-o ao deposito do cisco, que é exactamente o logar proprio para recepção d'estes nauseantes dejectos da deslealdade e da infâmia.

Ah! mas, entretanto, ficára-lhe a bulir no cérebro a idéa incommodante d'uma revelação a el-rei, a quem elle devia quasi tudo quanto era... e a quem não podia deixar de ser perpetuamente grato.

Sim.

Porque o pae da loura princeza ficaria -- pelo menos -- n'uma d'essas insupportaveis dúvidas, que são muito mais dolorosas do que a propria realidade.

E fôra ter com a acabrunhada Ignez Zagalo, a quem revelára tudo o que acabava de succeder-lhe.

A pobre senhora soubera já, por um huchão, das scenas amôrosas que, entre a louca Joanna e o devasso Pero Gatto, se haviam passado na memoravel noite da ceia; mas tendo-se limitado a reprehender e a vigiar a dementada rapariga, sepultara em si o segredo, e pedira ao antigo servo do paço que, por piedade, o soterrasse no esquecimento, tambem.

E isto para que Bernardim Ribeiro -- em quem Ignez, apesar de tudo, via ainda o futuro esposo da infeliz nem sequér sonhasse com o que se havia passado entre esta e o antipathico filho do contador de Çafim!...

-- Socega o teu espirito, e vejamos qual será o meio mais efficaz de podermos inutilisar as ciladas d'essa maldita e mysteriosa seita, cujas infamias todos nós conhecemos, mas a quem, até hoje, ninguem logrou desmascarar...

-- Porém... como poderei evitar o ser intrigado perante sua alteza?! -- murmurára o trovador.

«E depois... chora-me o coração quando penso nas agonias moraes que ameaçam a candida, a ingenua, a innocente Beatriz...

E a atilada esposa do escrivão de Sofala meditára profundamente por espaço de alguns segundos.

Depois -- e fitando muito o poeta, cuja pallidez lhe fazia dó -- proseguiu a meia voz:

-- Socega, repito.

«Dona Beatriz nunca se manifestou... e tu foste simplesmente surprehendido por mim, nas loucas exibições do teu amôr platonico.

«Não abandones, portanto, o teu logar junto da escrevaninha d'el-rei -- ... logar que algum infame epistológrapho cobiça para si, ou para ser vendido a um pretendente qualquer.

-- Dizeis bem, minha prima e senhora.

«Ah! mas que a pobre Beatriz não soffra, por um momento sequér, os effeitos de qualquer insidia dos meus cruéis perseguidores.

Ignez Zagalo -- tendo-se entregado mais uma vez a laboriosas cogitações -- declarou depois:

-- Beatriz não soffrerá por um instante, porque tem a consciencia da propria candura... e a consciencia é tudo!

«Commetteu, é verdade, uma imprudencia, em haver acceitado os teus loucos devaneios: mas d'aqui a ter praticado um erro, que reflectir possa no seu pudôr, vae muito e muito, Bernardim!...

-- Certamente, senhora minha.

-- Ora dize-me:

«Porque não has de inutilisar, de prompto, os ardis dos teus mysteriosos inimigos?

-- Como?! ...

-- Fazendo-te amar por Joanna!... Dedicando-lhe sentidas éclogas, como as que dedicaste á ingénua Beatriz.

Bernardim Ribeiro meditara, a seu turno, profundamente, tambem.

É que n'aquelle coração de poeta não havia espaço para outro affecto d'amôr, que não fosse o que sentia pela adoravel infanta.

Além do que -- é míster dizer-se -- o filho do assassinado de Burgos não amára nunca, nem podia amar, a desequilibrada prima, cujas repetidas volubilidades a tornavam, dia a dia, mais abjecta e ridicula.

Ah! mas desde que -- para affastar suspeitas -- lhe era conveniente simular uma paixão por Joanna, não hesitaria portanto em lançar mão de tal recurso, e conciliaria, d'est'arte, os proprios interesses com uma manifestação -- posto que hypocrita -- do seu reconhecimento pelos muitos serviços que a prima lhe prestára.

-- Pois bem; -- disséra elle, alfim, emergindo da cogitação a que se déra.

«Resolvido estou a pôr em obra os vossos conselhos... e a realisar os vossos desejos com relação a Joanna.

«Ah! mas receio que ella repita o que disséra nesta alcôva, na memoravel noite do ultimo festim...

-- Não repetirá; crê.

«Porque minha filha é boa, dócil, se bem que uma infeliz doente.

E depois de pequenissima pausa:

-- Pensou em ti.

«Mas logo que soube dos teus loucos galanteios com a infanta, sentiu-se ferida no seu coração sensivel... coração que conservava intacto para o teu amôr, apesar de innocentes volubilidades tão proprias da sua edade.

Ignez Zagalo -- faltando á consciencia -- defendia simplesmente a filha, e aplanava o caminho a essa alliança que fôra sempre o seu principal e mais ardente desejo.

Estava no seu papel: era a mãe da tresloucada.

Bernardim não fizéra a mais pequena objecção.

Conhecia de sobejo a môça: mas via que na manifestação ruidosa d'um amôr -- que não sentia -- estava a propria conveniencia, e, mais que tudo, a tranquilidade da adorada Beatriz, por quem sacrificaria a propria vida, se tanto fosse mistér.

E acceitos por elle todos os alvitres d'Ignez, começára a provar á côrte que amava a prima: ora fitando-a com olhos fingidamente apaixonados, e ora dedicando-lhe versos, que, entretanto, tivéra sempre o cuidado de sequestrar ás vistas da infanta... da sua amada Beatriz.

E emquanto que a seita recolhia as garras -- adiando, por conseguinte, o projectado escandalo -- a doida Joanna Tavares chorava lagrimas mysteriosas, e occultava-se, o mais possivel, á mãe e a Bernardim; ao mesmo tempo que Pero Gatto -- na absoluta ignorancia do que se passava na Ribeira -- gosava, a vinte leguas da côrte, as lubricas recordações de mais um novo e indecoroso triumpho, alcançado com sacrificio do pudôr de Joanna, algumas horas após a pantagruelica ceia!...

E Mendo Vasques?

Esse -- atormentado por crudelissimos ciumes desde a noite do banquete -- tambem se havia retirado para longe da capital; e, como o filho do contador de Çafim, ignorava o que se passava no paço entre Bernardim Ribeiro e a pobre filha d'Ignez.

IX

Pobre mãe e pobre filha!

Bernardim Ribeiro -- como o leitor sabe -- não se submettêra ás exigências dos epistológraphos, que, a seu turno, o ameaçaram mais uma vez... baldadamente.

O que se passara então no seio da desprezível seita, mais tarde o saberemos pelo decorrer d'estas paginas.

E a par e passo que os successos transcorriam, o trovador continuava a dirigir forçadas finezas á desequilibrada prima, que, por sua vez, lhe fugia -- lavada em lagrimas -- sempre que podia.

Ignez Zagalo via, com desgosto, o proceder de Joanna: e tantas vezes elle se repetira, que, no seu espirito, entrara, alfim, um terrivel receio... uma cruel desconfiança.

E um dia -- encontrando se ella falando no extraordinario caso com Bernardim -- entrara a môça na alcôva, profundamente pallida e cabisbaixa.

Era a occasião opportuna para Ignez saber o que existia d'occulto na consciencia da filha.

Quanto a Bernardim, pouco ou nada se incommodava com a completa transformação psychica da prima; pois que no seu cerebro existia indelevelmente gravada a imagem de Beatriz, a qual -- apezar de tudo -- tambem não podia esquecer por um momento o seu querido trovador.

-- Ora dize-me Joanna, -- começára a mãe, depois de ter indicado á filha um escabello, em que ella immediatamente se assentára:

«Que profunda tristeza é a tua, d'um certo tempo para cá?

«Para que evitas -- sempre que podes -- a presença de Bernardim, que te ama com ternura; e que me prometteu conduzir-te até junto d'um altar?

«Abre-me o teu peito, minha filha.

«Pelo céo te imploro que me digas o motivo do teu incomprehensivel proceder.

Joanna Tavares como que sentiu na cabeça enferma tantos golpes de picareta, quantas haviam sido as palavras que a desolada mãe proferira.

Desejava alijar de si o grande fardo moral que a esmagava: mas faltavam-lhe as forças e minguava-lhe a coragem para tanto, ao mesmo tempo que os proprios labios se lhe negavam a abrir se n'um declaração desoladora e cruel.

E D. Ignez insistia -- até ás lagrimas-- em pedir lhe a declaração da causa que a mantinha n'aquelle ostensivo estado de prostração moral; emquanto pelo cerebro de Bernardim passava -- na fugacidade d'um raio -- a recordação do passado deprimentemente voluvel da hystérica e desacreditada rapariga.

Ah! mas depois de muitas e enternecidas solicitações por parte d'Ignez, a louca Joanna Tavares fitou morbidamente a mãe e o poeta, e -- no mais heroico de todos os esforços -- começára com grandes tremôres na voz:

-- Sou uma desgraçada!...

«Uma grande desgraçada, minha mãe!...

-- Meu Deus! -- murmurou nervosamente a pobre Ignez Zagalo.

-- Muito... muito infeliz! -- continuára a louca, enclavinhando os longos dêdos marmóreos.

E voltando-se para o primo, que a fitava mergulhado em grande compuncção, que lhe produzira o quadro:

-- Fôste infortunado nos teus amôres, Bernardim Ribeiro:

«Começaste por sacrificar o coração a um amôr impossível... a esse amôr que te tortura, ainda, e que ha de torturar-te sempre...

-- Joanna?!...

E depois de ligeirissimas paragem:

-- Mais tarde... quizéste, ou fingiste querer amar-me...

-- Amou-te e ama-te apaixonadamente, minha filha! -- interrompêra Ignez, na mais ingênua das convicções, ao mesmo tempo que, na consciencia de Bernardim, se travava uma grande lucta d'inculpações e desesperos.

-- Pois bem; -- proseguira Joanna:

«Quero crêr que houvesses desejado dividir commigo um boccadinho dos teus mais intimos e amorosos affectos: porém, se te não hei correspondido, como quizéra, é porque me diz a consciencia que não devo corresponder-te.

-- Ah!...

-- Como assim, Joanna?!...

«Por Deus explica-te, minha filha.

-- É que me considero indigna do amôr de Bernardim!...

Esta terrivel declaração soára aos ouvidos d'Ignez Zagalo, como que se fosse o explodir d'um monstruoso canhão.

E -- como que allucinada -- cravára, n'uma medonha fixidez, os esgazeados olhos na desventurada louca, que, por sua vez, dava a impressão exacta d'uma triste fugitiva de qualquer casa d'orates.

Bernardim Ribeiro fitava agora o quadro com olhos de piedade, e sentia, no torturado peito, qualquer coisa parecida com os apertos terriveis d'um pôtro da inexoravel inquisição.

E prolongou-se por alguns minutos a lancinante scena, até que a desolada mãe retomára a palavra, para convidar a filha a mais claras explicações.

-- Por Deus, Joanna, explica-te melhor... dize o resto... conta-nos tudo, embora hajamos de chorar todos uma triste fatalidade... embora hajamos de deplorar uma grande desventura!...

«Por que te julgas indigna do amôr que Bernardim te consagra?!...

«Oh! fala... fala... que no teu silencio ha punhaes envenenados, que me rasgam o coração.

-- Perdão... perdão, minha mãe! -- exclamára a desgraçada, cahindo de joelhos aos pés d'Ignez, e tapando com as mãos a pallida fronte abatida.

«Não posso acceitar o amôr de Bernardim... não posso pertencer-lhe... porque, desde a memoravel noite da festa, fiquei pertencendo a outro homem!...

-- Ah!...

-- Desgraçada! -- ululou Ignez Zagalo, medindo a filha com olhos inflammados de concentrada raiva.

«És a vergonha d'uma familia, onde a honra tivéra sempre um culto!...

«Ah! e não poder eu dizer-te: «sahe de minha presença, miseravel, e vae chafurdar no lodo do aviltamento!» «Não posso, não, desventurada creatura!...

«E não posso, porque és uma infeliz doente... e porque és... a minha filha!...

E -- n'um diluvio de lagrimas muito intimas -- Ignez Zagalo escondeu a face entre as mãos, e entregára-se a um profundo mutismo.

Joanna Tavares -- abandonada sobre o tapete -- arrancava nervosamente feixes de cabello, e dava livre expansão ao pranto, que, á maneira de levada, lhe sahia copiosamente dos pequenos olhos azues!...

Ah! que cruel poema de torturas fôra aquelle... poema, cujas estrophes, eram lagrimas ardentes como lavas, e ais tão sentidos e intimos, como os que só derramam e soltam as pobres mães alanceadas... as santas mães de coração!...

X

Rompe-se o segredo

O filho de Damião Ribeiro não pôde supportar por mais tempo a viva commoção, que o invadira, ao observar a desventurada louca, que chorava copiosamente --, e ao escutar os soluços da compungida Ignez, que lhe feriam os ouvidos como que se fossem puas d'infernaes esporas.

E tendo alevantado carinhosamente Joanna, e confortado, como pôde, a pobre Ignez Zagalo, dirigiu-se depois com voz vacillante ás duas lacrimosas mulheres, e disséra:

-- Basta de recriminações, e de lagrimas!...

«Ninguem pôde ser superior á fatalidade.

«Ninguem!

«Cumpre-nos agora o esconder a nódoa aos olhos da sociedade... d'essa cynica sociedade, que se esquece das proprias pústulas, para se enojar das alheias.

«Mas o mal produzido por um incorrigivel libertino, é felizmente d'aquelles que teem um remedio prompto... facilimo... efficaz.

-- Como?!... como?! -- interrogou avidamente a acabrunhada esposa do escrivão de Sofala.

E Bernardim Ribeiro proseguira:

-- Houve um homem que abusou d'uma pobre rapariga doente?

«Houve.

«Pois bem.

Esse homem ha de lavar, prestes, a mancha, que se alastrou por uma enorme familia honrada.

«Nada de lagrimas, pois.

«Eu irei d'aqui pedir... implorar ao seductor, que repare -- sem delongas -- o grave mal que nos fez.

-- E se elle se recusar, Bernardim?

-- Se se recusar... matal-o-hei!

E voltando se para Joanna, que soluçava ininterruptamente:

-- É Pero Gatto o infame, não é verdade?

-- É esse mesmo, Bernardim.

«Ah! mas onde has de encontral-o, se elle se retirou para longe da côrte, sem que, até hoje, haja dado rumôr de si?!...

-- Eu sei o rumo que o devasso tomou.

E após curtíssimo intervallo:

-- Pois bem.

«Soceguemos os nossos espiritos.

«Não se abusa impunemente... d'uma grande familia illustre.

«O filho do contador de Çafim, ou ha de limpar a nódoa que lançou nos Tavares, Zagalos e Ribeiros, ou terá de saber como uma espada immaculada penetra raivosamente no coração d'um infame!...

-- Oh! obrigada, Bernardim Ribeiro; -- agradecêra, commovidamente, a pobre mãe de Joanna:

«Entrego nas tuas mãos este desgraçado pleito... e espero do teu saber e amisade uma solução tal, que dê um futuro honesto a esta desventurada mulher.

-- Crêde em mim, minha senhora e prima.

«Ah! podeis crêr cegamente.

E depois de ter agradecido ao poeta, uma vez mais, D. Ignez observou:

-- Proveitoso nos será que te limites, por ora, a recordar ao filho do contador a grandeza do seu delicto, ou delictos: A violação d'uma menor -- doente -- n'um dos compartimentos dos reaes paços da Ribeira , e a affronta cuspida despejadamente sobre uma antiga familia nobre.

-- Tranquilisae-vos, minha prima.

«Tratarei, com o maior de todos os cuidados, este melindroso negocio, que envolve o presente e o futuro d'uma pobre rapariga, e a honra offendida d'uma familia de bem.

E após ligeiro silencio:

-- Certo estou de que hei de regressar victorioso, porque vou escoltado pela justiça e razão.

E erguendo-se do escabello em que se havia assentado:

-- Tende o maior dó de vossa filha, senhora!

«Infelizmente não é um caso unico o que estamos deplorando.

-- Sim... é verdade

«Ah! mas sinta cada um as suas magoas!...

Bernardim respondêra com um simples gesto.

Depois -- e pegando no vistoso chapéu emplumado:

-- O tempo urge.

«Vou agora pedir a el-rei a dispensa, por algum tempo, do seu real serviço.

-- Oh! sim... sim... vae.

-- Não faças tal, meu primo! -- exclamou, entrando na alcôva, a outra filha d'Ignez Zagalo, que ouvira as ultimas palavras do acalorado dialogo.

-- Como assim?! -- interrogaram, a uma voz, D. Ignez e o trovador.

E a antiga môça da camara da finada rainha D. Maria revelára a meia voz:

-- El-rei acaba de receber uma carta anonyma dos infames epistolographos ...

-- Ah!...

-- Meu Deus!...

-- Dize o resto... dize o resto...

D. Francisca Tavares, continuou:

-- Sua alteza, quando a leu, ficou como que allucinado!...

-- Céus!...

-- E, de seguida, mandou ir á sua presença a precavida infanta Beatriz: «Lê esta miseravel denuncia!» -- ordenára-lhe el-rei, muito pallido de rancôr...

-- E ella?!...

-- E a infanta?!...

-- Sua alteza negou tudo.

-- Ah!...

-- Respiro!...

-- Todavia, el-rei, ficou profundamente abalado.

-- É natural, minha filha.

-- Sim.

«Da calumnia fica sempre a sombra d'uma mancha... que é a dúvida!...

«E o calumniador infame e cobarde reverte, sorrindo, ao monturo d'onde emergiu!...

-- E depois?... e depois? -- volvêra, offegante, a desalentada mãe de Joanna.

-- Depois... sua alteza el-rei remetteu-se a um mysterioso concentramento! ...

-- Deverei abandonar silenciosamente o paço? -- perguntou, aturdido, o infausto trovador.

-- É prudente, Bernardim... é prudente! -- respondêra, convictamente, D. Francisca Tavares.

-- Um triumpho para os meus perseguidores!...

-- Embora...

«Tempo virá em que tu has de triumphar tambem.

Bernardim deixou fluctuar nos labios um sorriso de descrença.

-- Pois bem, -- concluiu elle, resolvido a abandonar a Ribeira... onde lhe ficava o coração:

«O filho do contador de Çafim ha de ser -- em breve tempo -- o esposo de Joanna, ou terá de pagar com a propria vida a sua ultima torpêza.

«Quanto a mim e á casta infanta Beatriz, urge propalar n'este meio d'enredos e intrigas, que Bernardim Ribeiro se havia dedicado unicamente á infeliz Joanna; e que -- devido a uma ruptura de relações -- desapparecêra d'estes paço inesperadamente, sem que deixasse vestigios da direcção que tomou». --

E depois de recebida a promessa de que os seus desejos iam ter a mais rapida realisação, o infeliz filho do assassinado de Burgos abandonára -- muito em segredo -- os antigos e extinctos paços reaes, com os olhos cheios de lagrimas e o coração em pedaços!

Ah! que dolorosa partida, aquella!... que lancinante separação, a sua!...

XI

Depois da fuga

A propaganda combinada entre Bernardim e as primas, sortira o desejado êxito.

No paço falava-se mais em quebras de relações amorosas entre o poeta e Joanna, do que na infame malsinação dos epistológraphos, que, entretanto, viram o seu desejo realisado, relativamente á vacancia do invejado logar d'escrivão d'el rei, e á sabida do trovador para fóra da capital.

Sim.

Porque o monarcha venturoso -- fosse qual fosse a propria crença no tocante aos factos denunciados no anonymo, e aos que depois propalaram D. Ignez e as duas filhas -- demittira o poeta, tão depressa lhe constou que elle havia abandonado o logar que exercia na côrte.

É provável que esse mesmo logar fosse depois preenchido por qualquer dos membros do ascoroso club, ou por pessoa indicada e protegida por elle; pois que «os epistológraphos eram -- na sua quasi totalidade -- fidalgos de muito valimento, com moradia no paço».

Tamanhas foram as intrigas, depravações e desordens da côrte do rei afortunado, que o critico imparcial ha de duvidar, fatalmente, da idoneidade dos documentos que existem para compulsar:

Vasco da Gama -- um dos mais legitimos heróes dos seculos 15.º e 16.º -- fôra victima dos monstruosos enredos da Ribeira, que (custa acredital-o!) tiveram mais podêr do que uma vida inteira d'heroismos... de dedicação pelo rei e pela patria... de inconcussa honradez... e de provada e indiscutivel isenção!

É que -- aos insignificantes e aos zoilos, que rastejavam nos régios tapetes --, affrontava-os a consciencia da propria inépcia: e, portanto, assestavam as baterias da inveja e do ciume contra os homens grandes, cujos nomes -- apesar de tudo -- figuram em letras d'ouro nas paginas mais honrosas da historia da humanidade.

Dar-se-ha que nas riquezas importadas do Oriente vieram os morbus do desvairamento, do cynismo, e da mais negra ingratidão!...

D. Beatriz -- informada pela antiga ama e amiga -- não ignorava o mais pequeno detalhe com relação a Bernardim, a Joanna, e ao filho do contador de Çafim.

Ah! e como ella deplorava, por sua vez, a desventurada louca, ao mesmo tempo que recalcava -- no coração lacerado -- o intimo pesar que lhe produziram os infortúnios do seu pobre trovador!...

Se no seu querer estivesse o descer da alta cathegoria d'infanta até á humildade d'uma posição precária, de certo teria acceitado gostosamente o sacrificio, só para poder ligar-se ao homem cujo porte a havia seduzido... cujos versos a haviam enfeitiçado.

Mas... como destruir as inexpugnaveis muralhas d'uma velha convenção, ella -- a débil creança de dezesete annos --, que estava prestes a receber sobre a cabeça esculptural uma coroa de duqueza?!...

Victima immolada aos interesses da politica e ás ridiculas phantasmagorias sociaes, de que lhe servia o coração amantissimo, e os naturaes desejos da propria alma sincera?...

Era uma infanta de Portugal?

Havia nascido sob dourados tectos? Sim.

Pois -- porque era infanta -- tinha d'acceitar por esposo, não o poeta cuja imagem se lhe gravara indelevelmente no cérebro, mas o duque, que as convenções lhe destinaram; porque os corações das príncezas -- mais infelizes do que os dos mais infimos viventes -- não tiveram nunca autonomia... não podem fazer escolhas !

E o d'ella -- coração limpido como um crystal, e perfumado como uma rosa --, havia de ir cumprir cedo o seu desterro; tendo depois como lenitivo para as nostalgias da patria e dolentes impressões do seu amôr, as recordações do Tejo soluçante, que tantas vezes acompanhára as endechas que lhe cantou o infeliz bardo... o seu terno trovador.

D. Beatriz chorava um dia estas desditas, quando lhe apparecêra a ama com uma carta de Bernardim Ribeiro, por onde este communicava á prima o franco assentimento de Pero Gatto, attinentemente ao seu futuro enlace com a pobre hystérica Joanna.

D. Ignez estava doida de satisfação legitima.

É que ia vêr amparada a desequilibrada môça, e extincta uma nódoa que ensombrava o nome immaculado de muitas mulheres e varões, que compunham as nobilíssimas familias dos Tavares e dos Zagalos.

A adoravel infanta participára rapidamente da satisfação da ama: não só pelo que respeitáva ao casamento de Joanna, mas tambem por haver noticias de Bernardim Ribeiro, o qual não regressaria á côrte, e iria -- como fôra -- para a companhia de Joanna Dias, que se encontrava ainda em Cintra com outros filhos d'Ignez.

Havia sido um proprio de confiança quem trouxéra a missiva do trovador; e por elle lhe enviára Ignez Zagalo uma outra, agradecendo-lhe os bons serviços prestados, e indicando-lhe o modo menos ruidoso de se realisar o enlace, que acabava de promover.

Quanto a Beatriz, a el-rei, e a tudo quanto occorrêra na Ribeira, após a sua desapparição, fizéra-lhe ella -- Ignez -- um relatorio assás circumstanciado; recommendando-lhe, por ultimo, que correspondesse com a maior prudencia á singular distincção que lhe dispensava a infanta, a qual, em breve tempo, havia de ser uma das muito poderosas e respeitaveis duquezas de Saboya.

Ah! mas o confidente de Bernardim não fôra apenas portador da carta para a ama de sua alteza: Trouxéra conjuntamente a ultima écloga do vate, que elle remetteu á prima com o duplo sentido d'acabar de desfazer -- por meio d'ella -- a bestial intriga do club, e de deixar no coração de Beatriz mais um novo echo da sua infeliz paixão.

-- Dize-me Ignez -- convidára a infanta, tão depressa a ama lhe fizéra a leitura da missiva recebida:

«O que fará agora em Cintra o nosso pobre Bernardim?!...

-- Lamenta, com a mãe, as suas proprias desventuras... distrae-se, pela serra, com os pastores que a povoam... e escreve sentidas écoglas, para abonançar o coração.

-- Ah!... sim?...

«Bernardim Ribeiro escreveu novos primôres?

-- E que primôres, minha querida senhora!...

-- Ser-me-ha dado vêl-os, ou ouvil-os?...

-- E por que não?...

«Se me ordenaes que leia, cumpre-me obedecer-vos com muito gosto.

-- Pois sim, sim, Ignez.

«Lê a écloga, que muito me praz ouvir.

E Ignez Zagalo -- arrastando o seu tamborete para a beira do da infanta -- tirou do seio os versos, que lêra, de seguida com voz trémula de commoção:

Ou quem me consolará? Ao longo das ribeiras Ao som das suas ágoas, Chorarei muitas canceiras, Minhas derradeiras mágoas. Ó meus desditosos dias, Ó meus dias desditosos, Como vos his saudosos Saudosos de alegrias, D'alegrias desejosos: Deixai-me já descançar Pois que eu vos faço tristes, Tristes porque meu pesar Me deu os males que vistes, E muitos mais por passar. Acceitei ser namorado, Não tive meio em o ser; Já sou mais que sepultado. Sou certo de me perder, Sem perder meu só cuidado: Não sei polo que espero, Nem o que espero de vêr Perco-me polo que quero, Nem me acabo de perder, Porque mais perder espero. Andarei de valle em valle, E de lugar em lugar, Náo acharei quem me falle, Nem com quem possa fallar. Nem quem diga que me calle; Subir-me-hei aos outeiros, E deital-os-hei a giros Polos pés dos sovereiros, Meus suspiros derradeiros, Meus derradeiros suspiros. Queixar-me-hei a grandes brados, Mas que aproveita bradar, Que trago os olhos quebrados. Quebrados já de chorar Todos os gostos passados?! ... Ó meus olhos saudosos, Minha grande soldade, Meus suspiros tão queixosos, Ó choros tão deleitosos, Por deleite, e por vontade! Quem suspirasse algum dia Pera só desabafar; Mas eu já não ousaria, Porque um suspiro daria Signal de quem mo faz dar. Tudo o que vejo parece Triste da minha tristeza, E tudo mais me entristece: Coitado de quem offrece A vida a quem lh'a despresa! Ando com a fantesia, A meudo maginando, Que a quantos vejo diria Que é o que ando buscando; Mas triste não ousaria. Quem se podesse fiar Do falso do pensamento. Falso, foste-me enganar Com falso contentamento. Pera me logo engeitar: Vinga-te agora de mim, Que é razão pois te aborreço; Mas uma cousa te peço. Que dês a meus males fim Pois que lhe deste o começo. Lembram-me cousas passadas, E quantas passadas dei, Horas bemaventuradas Por quem choro e chorarei Emquanto forem lembradas. A causa de meus cuidados Foi buscar longos desterros; Levae-me meus tristes fados De uns erros em outros erros, Por erros mui enganados: Os seus olhos me enganaram, Mas elles o pagarão Apesar do coração, Porque elles começaram O que nunca acabarão. Cada vez que anoutece Cobre-se-me o coração De uma grande escuridão; Com ella passo o serão, E com ella me amanhece: Dobra-se-me a fantesia Em mil castellos de vento, Coitado do pensamento. Que está, de noite e de dia, Antre tormento e tormento.

-- Bello!... seductor!... maravilhoso! -- exclamára nervosamente a apaixonada infanta, esforçando-se ao mesmo tempo por evitar as lagrimas, que tentavam denunciar o que d'amôroso e lancinante lhe occorria no coração.

XII

Cobarde!...

Pero Gatto -- intimidado pela altitude de Bernardim Ribeiro, bem como pela ameaça de uma severa punição --, prometteu receber Joanna por esposa, e de facto a recebeu, pouco tempo depois da pratica que tivéra com o moço trovador.

No paço correu prestes a noticia do inesperado enlace, não obstante o profundo segredo recommendado por Ignez Zagalo; e os côrtezãos -- divididos em dois partidos -- deploravam, uns, a sorte de Joanna, pois que attribuiam os mais baixos costumes ao filho do contador, deplorando outros a sina de Pero Gatto, porquanto «a filha d'Ignez não passava d'uma desgraçada hystérica, foragida dos hospitaes.

E o que os ingenuos acreditaram -- após a propaganda das Zagalos, e as éclogas do desapparecido da côrte --, foi que a desequilibrada môça havia desprezado o trovador, para se entregar, de seguida, ao homem com quem casára mais tarde.

E el-rei D. Manuel?

Esse -- segundo o silencio da historia -- nunca se manifestou; mas tivéra um dia de grande satisfação quando viu concluidos os negocios do casamento da casta infanta -- sua filha.

No meio dos fidalgos e cavalleiros frequentadores dos antigos paços da Ribeira, um havia que, apezar de ausente, se encontrava a par do que se ia passando entre Pero e Joanna, bem como entre a infanta e Bernardim.

Ha quem tenha o presentimento do que se passa no mais profundo dos sigillos, conseguindo-- com um sorriso d'escarneo -- desmoronar os reductos, onde os néscios suppozeram encontrar a inexpugnavel defeza de pretendidos mysterios.

Será a dupla vista? a telepathia? a suggestão?

Inventem os homens todas as terminologias: mas não se descreia da existencia do phenomeno, que é tão antigo e verdadeiro como o haver -- para contraste -- quem não deduza nem veja.

A natureza encerra myriades e myriades de segredos.

Junto aos escalrachos malignos vegetam as innocentes boninas!...

Os metaes preciosos coexistem com as fezes, nos filões!...

Mas quem seria esse cavalleiro ou fidalgo, que lia nos corações de Beatriz e Bernardim, e nos de Pero e Joanna, como que em quatro livros abertos?

Era Mendo Vasques -- o futuro solitario -- que, por aquelle tempo, já trazia em mente o ir cortir as proprias magoas para os recessos d'um algar... para um d'esses silenciosos isolamentos, onde os vencidos da vida tinham um seguro abrigo contra as perversões sociaes --, contra as levadas de grangrena se gregada pelos homens.

Ah! e como a realisação do enlace de Joanna lhe esmagava o peito, attribulado pelo ciume!...

Como esse presagiado successo lhe bicava as entranhas, como o abutre de Prometheu!...

Joanna-- que elle amou loucamente, e cuja voz parecia segredar-lhe ainda doidices d'um interesseiro amôr -- unira-se, alfim, ao seu rival, que detestaval ligárase ao impenitente devasso, que desejava dar em pasto ao seu immenso rancor!

E o desgraçado -- desde o dia do infausto casamento -- não mais podéra socegar, nem por um minuto sequér.

De dia... de noite... por entre os pomares da fresca aldeia, onde se escondêra, ou assentado sobre os monolythos da serra que a coroava, via a implacável imagem da desequilibrada mulher que o trahira, depois de o ter seduzido e interesseiramente empolgado.

E pensára já em correr a assassinal-a, e suicidar-se depois.

Pois havia de ter constantemente, perante os olhos, esse quadro infernal da mulher, que adorou, em continuos amplexos d'amôr cora o monstro que aborrecia?

Pois havia de sentir no coração o picar successivo das viboras do ciume, e não havia d'esmagal-as inexoravelmente... sem dó?

Ah! mas depois reflectia.

Á tempestade hórrida succedia a bonança tranquillisadora.

Para que havia de tirar a vida á louca rapariga, apezar de ter sido a origem d'aquelle estado de exaltação?

Não se vingaria melhor, poupando-lhe a existencia infeliz, para se lhe mostrar um dia prematuramente velho, e condemnado, por ella, á solidão d'uma cova?!...

-- E o meu rival? -- interrogára-se elle, certa noite, em soliloquio, ao som do temeroso uivar dos lobos, que, em alcatéas, percorriam o valle.

E não respondeu á pergunta que a si proprio fizéra.

Desceu da montanha á aldéa... vestira, pela vez ultima, os trajes de cavalleiro... afivelou o cinturão, de que pendia luzente espada... montára o seu velho e generoso andaluz... e, endireitando para a antiga Lisboa, entrou alfim por uma das extinctas portas da cêrca, quando o sol já era nado.

Depois... desapparecêra na alpendrada d'uma das vetustas casas da rua Nova, que o tempo esboroou.

Pero Gatto e Joanna habitavam a sua principesca moradia, na extincta Calcetaria.

Casados de fresca data, discorriam-lhes as horas como que n'um saboroso banho de mel, que um e outro libavam com a mórbida soffreguidão de dois puros materialistas.

Joanna nunca mais se lembrára de Bernardim, que -- a despeito de sabidas conveniencias -- jámais amou a inconstante mulher.

E se a pobre doida procedia assim com o primo -- em quem, outr'ora, tantas vezes pensara -- muito menos se preoccupava com Mendo Vasques, embora vivesse acabrunhado com deprimentes ciumes.

Approximára-se a noite do tempestuoso dia em que o futuro anachorêta chegou á capital.

Noite de trévas nas velhas ruas de Lisboa, funebremente enfeitadas por fitas amarellas, engendradas pelas melancholicas luzes dos nichos, como que se fossem galões de tumbas, que guarnecessem mortalhas.

Pero Gatto -- vicioso de vinho e de tábolas -- ia estabelecer um intervallo no epicurismo da lua de mel, para se entregar, durante algumas horas, aos velhos habitos inveterados, que lhe haviam grangeado o epitheto de libertino.

Ah! mas não sabia elle que era aquella a vez ultima que sahia do principesco palacio, entre cujas paredes havia soado mil vezes o tinir das taças dos ébrios, de mistura com o carpir das victimas dos mais bestiaes furores.

Sim.

Porque, occulto nas sombras de escalavrada rua, encontrava-se um homem de longas barbas brancas --, barbas encanecidas durante poucos dias de monstruo- sas torturas!...

E o desconhecido escondia, sob a opa da côr da noite, o mesmo ferro açacalado que havia entrado nas ferozes carnificinas da Asia, onde combatêra ao lado do homem que lhe esmagou o coração, e cuja vidaia tirar.

-- Eh lá?! -- bradára elle, como que n'um rugido, ao filho do contador de Çatim, tão depressa o reconheceu á luz bruxoleante da absconsa d'um nicho.

-- Quem és tu?!...

-- O teu mais figadal inimigo!...

«O homem a quem apunhalaste o coração, arrebatando-lhe a mulher... que é hoje tua esposa.

-- Mendo Vasques?!...

-- Eu proprio, maldito!...

-- És um picaro!...

E -- sem ter dado tempo a Pêro para se pôr em defeza -- um ferro fuzilou nas trévas, indo cravar-se no peito do cavalleiro d'Ormuz.

-- Cobarde! -- rugira o desgraçado, cahindo sobre a lama, onde de seguida soltou o derradeiro gemido!

Mendo Vasques desapparecêra, depois, com a rapidez d'um relampago.

E Joanna Tavares -- após a prematura viuvez -- fôra recolhida n'um convento d'Extremoz, onde vivêra alguns annos com a razão perdida! --

Ah! que desgraçada vida a da infeliz hystérica, e que doloroso fim fôra o seu... n'uma camisa de forças, sob o tecto d'um cubiculo!...

XIII

Scena dolorosa!

O romance de Beatriz e do seu triste poeta, vae ter um epilogo tocante... um doloroso epilogo!...

Corria o anno de mil quinhentos e vinte e um --, o mesmo anno em que o monarcha venturoso havia d'abandonar o tablado da vida.

Nos reaes paços Ribeira, e nos ancoradouros do Tejo, observava-se -- certa manhã -- grande faina ininterrupta... um bulicio não vulgar.

Defronte da régia estancia, e nos espaços adjacentes, agrupava-se o melhor d'um terço da população de Lisboa; e sobre as aguas azues do rio fluctuava grosso numero de diversas embarcações --, vélas dadas ao vento, que soprava de Nordeste.

O que produzira tamanha animação... um movimento tamanho?...

Quem perguntasse a qualquer dos milhares de boquiabertos que occupavam o largo, saberia de proprio que -- acompanhada d'embaixadores d'Italia, e d'um não pequeno numero de damas e fidalgos da côrte portugueza -- ia prestes embarcar, com destino a Napoles, sua alteza a infanta D. Beatriz, joven e virtuosa duqueza de Saboya. -- Mas deixemos, leitor, os ancoradouros do porto e os paços da Ribeira -- onde a castissima noiva se debulhou em pranto --, e dirijamo-nos á serra de Cintra, em cujo cume se encontra já um angustiado mancebo, pallido como um cadaver... immovel como um rochedo... com os olhos fitos na vastidão do Tejo... e aguardando os galeões, que hão de transportar para a formosa Italia a lacrimosa e inconsolavel princeza Beatriz.

Era Bernardim Ribeiro o mancebo que aguardava a pequena frota, a qual -- após algumas horas d'inquisitorial desespero -- apparecêra emfim á vista do desolado trovador.

E os navios -- de velas pandas, que lhe davam a impressão d'espiraes de fumo que se dissipasse --, lá foram seguindo... seguindo... até que desappareceram de todo na linha azul do horisonte.

E o desgraçado levára a mão trémula aos olhos, que encontrou enxutos.

É que o infernal calôr do cérebro -- que se lhe convertêra n'um activissimo vulcão -- havia-lhe seccado o resto do pranto, que os intumescidos olhos não tiveram tempo de chorar durante os dias e noites do seu doloroso desterro.

Depois... quasi louco... inconsciente... machinal... como que movido por mysteriosa força... gravou nos troncos das arvores um dôce e inolvidável nome --, o nome de Beatriz!...

O que se passára -- seguidamente -- de plangoroso e lancinante... de commovedor e doloroso... já o leitor o sabe, se acaso leu o prologo d'esta veridica narrativa.

Ah! quem podéra ter penetrado no peito do desgraçado poeta, para conhecer o limite da sua acerba tortura!...

Conclusão

Cêrca de trez annos são passados, depois do dolente successo que vimos de relatar.

D. João III -- que governava o reino a contento dos espíritos fanáticos, mas com profundo desgosto dos verdadeiramente liberaes --, tivéra um dia um rasgo de suprema generosidade... se não foi antes um acto de preclara justiça:

Reintegrara Bernardim Ribeiro no officio d'escrivão da sua camara, depois de longos mezes de infernaes tribulações, e d'indiziveis desesperos.

Ah! se na historia do torvo rei-inquisidor existem hediondas paginas, que ainda hoje -- depois de perto de quatro seculos -- nos revoltam e horrorisam, é certo que deve servir-lhe d'attenuante das proprias atrocidades, essa protecção dispensada ao vate, que nunca fôra um criminoso, mas sim um dos mais infelizes e singulares sonhadores.

Depois -- e quando o poeta já não podia supportar o peso esmagador das suas enormes penas --, entrou na cella d'um hospital e ahi morrêra doido, sem um amigo que lhe assistisse na agonia tremenda... n'aquelle cruel acabar d'uma vida de desventuras!...

FIM

Appendice

Como fica dito nos Preliminares d'este livro, é ao nobre e erudito investigador sr. visconde de Sanches de Baena que se deve o estudo da ultima noticia genealogica ácerca do grande bucolico Bernardim Ribeiro, publicado em folheto no anno de mil oitocentos e noventa e cinco.

Baseado o nosso romance nas preciosas excavações do incansavel linhagista, crêmos ter produzido obra que, se não prima no que respeita á arte, tira, comtudo, o valor, do que concerne á verdade genealogica, e até certo ponto á verdade historica.

E como, provavelmente, nem todos os que nos fizerem o favor de ler-nos terão á mão o valioso opusculo de Sanches de Baena, para, por meio d'elle, poderem certificar-se da probidade da nossa prosa, resolvemos -- em appendice, e com a devida vénia --, transcrever a parte do referido folheto, que mais nos convém como prova irrefragavel das nossas affirmações.

Vejamos, primeiramente, a apreciavel introducção do opusculo; e fechemos, de seguida, com a noticia genealogica das muito nobres familias dos Ribeiros e dos Zagalos:

«Ha cerca de nove annos (diz o notavel linhagista) que o bom amigo e illustre finado visconde de Benalcanfôr, me incumbiu d'escrever a genealogia da familia Zagalo. Era trabalho para mim assás obscuro, por me não constar que tivesse havido linhagista algum, que, seguida e detidamente, se houvesse occupado de semelhante materia.

«Depois de varias tentativas, deparou se-me um notável estudo genealógico, ácerca da familia em questão, de D. Flaminio de Jesus Maria , que me veio pôr ao corrente de todas as particularidades da mencionada familia, até ás proximidades do seculo passado.

«Resolvido assim o problema, dei começo ao encargo do meu extincto amigo, e consegui completal o e addicionar-lhe varios documentos comprovativos, em fins de mil oitocentos oitenta e seis.

«Durante aquella longa e difficultosa compilação, observei que desde o reinado de D. João II os Zagalos se prendiam por allianças de parentescos com os Ribeiros, do Torrão, e figurou-se-me que a origem da novella Menina e Môça andava alli representada n'uma D. Joanna Tavares Zagalo, parenta do poeta Bernardim Ribeiro; mas desviado então por affazeres que me absorviam todo o tempo, puz de lado essa investigação, para mais tarde, ou para quando um feliz acaso me deparasse o célebre fio de Ariadna.

«Passaram se annos, e já quando se me tinha esvahido a curiosidade d'envolta com o desanimo de aprofundar aquelle mysterio, e com menos forças do que outr'ora para me emmaranhar em taes labyrinthos, cahiu-me entre as mãos, quasi por encanto, a chave do enigma!

«O meu amigo, sr. Antonio Maria de Freitas, a quem eu tinha revelado as minhas apprehensões, por occasião de haver o sr. D. João Pessanha publicado em mil oitocentos e noventa e um a Menina e Môça, achou bem cabida aquella minha suspeita, e enthusiasmou-se por ella.

«E por então ficamos na impaciente espectativa de uma ulterior resolução.

«Haverá, porém, cêrca de anno e meio que o meu referido amigo, tendo sido apresentado em casa da senhora baroneza de Erick para examinar o seu museu de antiguidades, encontrou alli um mui antigo codice encapado em velho pergaminho, contendo inapreciaveis documentos, alguns originaes e outros por copia; e como se demorasse em admiral-o, a senhora baroneza quiz uzar da amabilidade de lh'o offerecer.

«Pois foi n'esse velhissimo codice, onde se encontrou a chave do enigma!

«Convencido, pois, da immensa luz que este escripto pode derramar sobre a vida e vicissitudes do nosso poeta quinhentista Bernardim Ribeiro, resolvi dal-o á estampa.

«É possível que, mais tarde, venham outros subsidios preencher as lacunas que por ventura possa ainda haver n'este assumpto».

Familia dos Ribeiros

O illustre linhagista visconde de Sanches de Baena dá começo a esta familia em Gonçalo Ribeiro, por ser este o primeiro que se offerece com descendencia continuada; e determina-lhe o numero trez por ser o correspondente ao do seu contemporaneo Martim Pires Zagalo, que tem identico numero, para assim mais facilmente se reconhecer a concordancia numerica da descendencia d'ambos.

§ 1° -- 3 - Gonçalo Ribeiro, vassallo do rei D. Fernando, e por este agraciado com o préstamo de Aguiar do Neiva, por carta de sete de janeiro de mil trezentos e setenta e dois; e com o couto do Carvoeiro, no almoxarifado de Ponte de Lima, por carta de quinze d'agosto do mesmo anno. -- Casou e teve

4-- Alvaro Gonçalves Ribeiro, alcaide-mór de Villa Viçosa, a quem el-rei D. João I coutou a herdade de Lope, no termo de Veiros. Casou com Mór Esteves, e d'ella teve, além d'outros, a

5 -- Affonso Ribeiro, herdeiro da casa de seu pae, e commendador da ordem de Christo, o qual teve os dois filhos

6 -- Damião Ribeiro, com quem se continua, e

6 -- Gonçalo Ribeiro, de quem se tratará no paragrapho segundo.

Este Damião Ribeiro nasceu na villa do Torrão e exerceu por algum tempo o cargo de recebedor das rendas do duque de Vizeu, passando depois ao serviço particular do mesmo duque --, mistér em que se achava, quando se deu, no dia vinte e trez d'agosto de mil quatrocentos e oitenta e quatro, aquella tremenda tragedia, em a qual o rei D. João II desempenhou o papel pouco sympathico de juiz e executor. Damião Ribeiro, sendo um dos compromettidos n'aquelle grave conflicto, refugiou-se em Castella, mas lá mesmo foi procural-o a vingança implacavel do dito rei, mandando-o matar, como o fez a muitos outros. Damião Ribeiro havia casado com D. Joanna Dias Zagalo, filha de Diogo Gomes Zagalo, de quem teve

7 -- Bernardim Ribeiro, com quem se continua, e

7 -- Uma filha de quem não temos outra noticia.

Bernardim Ribeiro nasceu na villa do Torrão no anno de mil quatrocentos oitenta dois; e pelas causas acima apontadas, que expatriaram seu pae e lhe déram a morte, foi recolhido, aos dois annos d'edade, com sua mãe e uma sua irmã, por seus primos o desembargador Antonio Alvares Zagalo, e sua irmã, D. Ignez Alvares Zagalo, que viviam na sua quinta denominada dos Lobos, em Cintra.

Bernardim Ribeiro, para escapar á colera de D. João II, esteve, pois, residindo em segredo na dita quinta, até ao fallecimento d'aquelle monarcha, que leve jogar a vinte e cinco de outubro de nnil quatrocentos e noventa e cinco, contando a esse tempo treze annos de idade e onze de reclusão. Seus primos não descuraram a sua educação litteraria, porque em mil quinhentos e três já Bernardim poetava. Em meiados de mil quinhentos e cinco, por influencia de sua prima a referida D. Ignez, então ama da infanta Dona Beatriz, obteve a doação das Terras e Azenhas dos Ferreiros com seus terrenos, citas no concelho d'Extremoz, alcançando por este meio os necessarios recursos que o habilitaram a entrar na Universidade de Lisboa, onde, em mil quinhentos e onze, ou doze, se graduou bacharel em leis, contando a esse tempo trinta e um ou trinta e dois annos. O rei D. Manuel, que o havia tomado sob a sua real guarda, nomeou-o depois escrivão da sua camara, como parece; e agraciou-o depois com o habito de S. Thiago.

É de crêr que o mencionado rei desapprovasse o escandalo que os amores do poeta com sua prima Dona Joanna deveriam ter causado na côrte, e por isso lhe retirasse a sua protecção e o privasse do officio de escrivão da sua camará, como tambem o desterrasse. -- Varios trechos das suas obras, e o facto de elle ser reintegrado dois annos e nove mezes depois da morte do rei D. Manuel, no sobredito officio, quasi que nos levam á comprovação das nossas suspeitas. D. João III, condoendo-se da sorte de Bernardim Ribeiro, ou porque tivesse sido completa a expiação das suas culpas, ou por motivos até agora ignorados, reintegrou-o, como já dissemos, no officio de escrivão da sua camara, por carta de vinte e trez de setembro de mil quinhentos e vinte e quatro. Bernardim Ribeiro, a concluir pelos seus escriptos repassados de tristeza e d'uma certa amargura, viveu bastante attribulado; e não menos afflictivos foram os dias da sua amada prima, que elle conheceu Menina e Môça e se finou no convento de Santa Clara de Extremoz, ao que parece, ensandecida. Quando ao poeta a luz do entendimento se ia apagando, teve em nove de outubro de mil quinhentos e quarenta e nove, doze mil reis de tença com nm moio de trigo pelo padrão instituido pelo mestre de S. Thiago. É de presumir-se que não lhe sendo possível, talvez, a esta data, satisfazer já as obrigações do seu officio de escrivão, e por conseguinte auferir os respectivos proventos, lhe proporcionassem o beneficio acima, para sua indispensavel manutenção. Seja como fôr, o que não temos duvida em affirmar é que elle morreu doido em mil quinhentos cincoenta e dois n'uma cella do hospital de Todos-os- Santos, no estado de solteiro. No mesmo anno em que falleceu Bernardim Ribeiro appareceram vários parentes eus a requererem a successão do referido senhorio; e muito mais tarde, em mil seiscentos quarenta e dois, apresentou-se Francisco Ribeiro, tenente de infanteria, allegando ser seu bisneto por descender d'uma filha ou filho que o mesmo Bernardim Ribeiro houve de uma sua prima. Esta pretenção foi indeferida como as anteriores, pelas razões estatuidas na primitiva doação, ficando definitivamente assente a reversão d'aquelle senhorio á Casa de Bragança. Francisco Ribeiro continuou a seguir a carreira das armas, achando-se reformado em capitão a vinte e dois de agosto de mil seiscentos e quarenta e seis.

§2.° -- 6 -- Gonçalo Ribeiro, filho d'Affonso Ribeiro, nasceu na villa do Torrão, e foi thio do poeta Bernardim Ribeiro. Foi morto pelos mouros, na Africa. Consta que havia casado com uma sua parenta, Guiomar Ribeiro, e d'ella teve, além d'outros filhos, a

7 -- João Ribeiro, primo germano de Bernardim. Fizéra duas viagens á India, onde foi morto. Este João Ribeiro, tendo casado com Izabel Calado, teve d'ella a

8 -- Gonçalo Ribeiro, que militou na India com valor, achando-se com D. Alvaro da Silveira na tomada das galés dos rumes, e ao lado de Pedro Barreto Rolin, no combate de Dabul. Não consta que casasse, ou que tivesse successão illegitima.

8 -- Duarte Ribeiro Sodré, que serviu na India com o governador D. João de Castro, por quem fôra armado cavalleiro, em Diu, no anno de mil quinhentos quarenta e seis. Casou duas vezes: a primeira com Dona Catharina Figueira de Souto-Mayor, e a segunda com a sua parenta D. Filippa de Brito Mascarenhas, filha de Jorge Corréa, o bello, administrador do morgado instituido por Payo Pires, seu bisavô, e de sua primeira mulher e prima D. Maria de Noronha e Athayde, filha de João Mascarenhas e de sua primeira mulher Maria Ribeiro, filha esta de Pedro Domingues Migueis, homem letrado, herdeiro do morgado de Payo Pires (filho de Payo Pires, instituidor do dito morgado em tempo de D. Affonso V) e de sua mulher D. Izabel Corréa, filha de João de Freitas, commendador d'Aljezur. Do primeiro matrimonio teve

9 -- padre Manuel Figueira Souto-Maior, e

9 -- Dona Catharina Figueira, mulher de Jorge Vaz Pereira, morador em Alvito.

Do segundo matrimonio teve

9 -- Duarte Ribeiro de Brito.

9 -- Dona Luiza Mascarenhas, segunda mulher de Lourenço das Donas, morador na villa do Torrão. Esta senhora, após a viuvez, professou n'um dos conventos d'Evora.

9 -- Dona Filippa de Brito Mascarenhas, que casou com Antonio de Carvalho Pereira, filho do primeiro matrimonio de Lourenço das Donas.

9 -- O referido Duarte Ribeiro de Brito, commendador da ordem de S. Thiago, casou na villa do Torrão com D. Gelearia da Silva, filha de Manuel da Silva e de sua mulher Joanna Borralha, neta paterna de Duarte da Silva; e teve d'este casamento

10 -- Manuel da Silva Mascarenhas, natural da villa do Torrão; o qual, sendo governador D. Jorge Mascarenhas, servira em Tanger, tendo andado mais tarde nas armadas de Castella com o general Fradique de Toledo. Este Manuel da Silva Mascarenhas foi um dos que denunciou a conjuração do duque de Caminha contra el-rei D. João IV, pelo que foi despachado governador da fortaleza d'Outão, em Setubal, e agraciado com uma commenda na ordem de Christo.

Era bisneto de João Ribeiro. Em mil seiscentos quarenta e cinco editou a primeira parte da Menina e Môça. Casou em Ourém com a sua parenta D. Gracia Pereira Sodré, de quem não teve filhos; mas tivéra os bastardos

11 -- Pedro da Silva Mascarenhas, morto em Setubal por um tal Roboredo; e

11 -- Paulo da Silva Mascarenhas, guarda-roupa, que foi, d'el-rei D. Pedro II.

Familia dos Zagalos

1 -- Martim Annes Zagalo, descendente dos antigos senhores da villa do Zagalo, em Castella. Viveu nos reinados de D. Affonso III e D. Diniz, e foi o principal povoador da villa de Monsaraz, na provincia do Alemtejo. Ignora-se o nome de sua mulher, mas sabe se que fôra seu filho legitimo

2 -- Pedro Martins Zagalo, casado com Dominga Pires, terceira thia de Gonçalo Pires, que, em quatro de julho de mil quatrocentos oitenta e tres, obteve carta de brazão das suas armas. Foi filho de Pedro Martins

3 -- Martim Pires Zagalo, morador em Evora. El-rei D. Pedro fez-lhe mercê d'uma herdade no termo de Evora. Casou e teve

4 -- Gomes Martins Zagalo.

4 -- Diogo Martins Zagalo.

Este Gomes Martins, vassallo d'el-rei D. João I, foi o primeiro d'esta familia que teve o senhorio de Villa Fernando. Casou duas vezes: a primeira com Dona Catharina Mascarenhas de Macedo, de quem não houve filhos; e a segunda com D. Brites Affonso, irmã de Martim Gil Lobo, e ambos filhos de Affonso Gil Lobo. -- Martim Gil Lobo foi o que instituiu um morgado em Cintra, que tinha por cabeça a quinta dos Lobos. A data da instituição d'este morgado é de dezenove de novembro de mil quatrocentos vinte e quatro. Do segundo matrimonio teve

5 -- Diogo Gomes Zagalo.

5 -- Affonso Gomes Zagalo.

5 -- Soeiro Gomes Zagalo.

Este Diogo Gomes, natural d'Extremoz, foi o segundo senhor de Villa Fernando. Casou duas vezes: a primeira com a sua parente D. Leonor de Sande Mascarenhas, de quem não teve filhos; e a segunda com D. Mór Fernandes de Pina, filha de Fernão Fernandes de Pina, de Montemor.

Do segundo matrimonio teve, além d'outros a

6 -- D. Izabel Dias Zagalo.

6 -- Ruy Dias Zagalo, terceiro senhor de Villa Fernando. Casou e teve, entre outros filhos, a Diogo Gomes Zagalo, quarto senhor de Villa Fernando, moço da Camara de D. João III, e agraciado pelo mesmo rei com o brazão das armas dos Zagalos. Por ter morrido sem geração passou o dito senhorio a sua irmã D. Izabel Mascarenhas, quinta senhora de Villa Fernando; e por tua morte veio succeder nelle sua neta D. Ignez d'Abreu Zagalo, 7.ª senhora da dita villa, e casada em Lagos com Manuel Côrte Real. O referido senhorio foi vendido á duqueza de Bragança D. Catharina em mil seiscentos e um, lendo sido a importancia da referida venda convertida n'um morgado com a mesma denominação do senhorio.

6 -- Gaspar Dias Zagalo, capellão da infanta D. Beatriz, duqueza de Saboya.

6 -- D. Joanna Dias Zagalo, mulher de Damião Ribeiro.

6 -- D. Izabel Dias Zagalo, primogenita, pelo que veio a ser herdeira do morgado de Cintra instituido por Martim Gil Lobo, o qual tinha por clausula succeder n'elle o filho ou filha que nascesse primeiro. D. Izabel casou em Cintra com Álvaro Pires Colaço, cavalleiro da ordem de S. Thiago, e teve os seguintes filhos:

7 -- Antonio Alvares Zagalo, desembargador da Casa da Supplicação, herdeiro do morgado de Cintra, e fallecido sem geração.

7 -- Alvaro Pires Zagalo, herdeiro do referido morgado por morte d'este seu irmão. Casou em Alcacer do Sal com D. Izabel de Sande, de quem teve o doutor Francisco Dias Zagalo, e Bastião Dias Zagalo, casado com Ambrosia Gonçalves, irmã de Lucrecia Gonçalves mulher d'Affonso do Monte e Heredia, e de Gaspar Gonçalves de Ribafria.

7 -- D. Maria Alvares Zagalo, mulher de D. Alvaro Velez de Guevara, fidalgo castelhano que viveu em Arronches. -- D. Maria casou com o dito D. Alvaro em circumstancias, ao que consta, bastante dramáticas, e d'elle teve, além d'outros filhos, a D. Ignez Velez Zagalo, que foi amante de D. Diogo Fernandes d'Almeida, grão prior do Crato, de quem houve a D. Pedro d'Almeida, D. Estevão, bispo de Cartagena, e D. Brites que foi freira. Do primeiro d'estes foi neta a 1.ªduqueza de Villa Real.

7 -- D. Ignez Alvares Zagaio, que nasceu em Cintra e alli viveu em companhia de seu irmão o desembargador Antonio Alvares Zagalo, na quinta dos Lobos, até se casar com Sancho Tavares, rico proprietario d'Extremoz, para onde D. Ignez foi viver depois de casada. Em mil quinhentos e quatro foi chamada por el-rei D. Manoel, a fim de servir d'ama a sua filha D. Beatriz, que acompanhou para a Italia, quando, em mil quinhentos vinte e um a dita infanta se casou com o duque de Saboya. D. Ignez conseguiu obter de D. Manoel varias mercês, sendo a primeira a de despachar seu marido, em mil quinhentos e cinco, com o officio d'escrivão de Sofala; a segunda, tambem no mesmo anno, a da doação das Terras e Azenha dos Ferreiros, com seus termos, para seu primo Bernardim Ribeiro, a titulo d'este poder estudar e manter-se na universidade de Lisboa; a terceira foi a d'alcançar para si quinze mil réis vitalicios de tença, com sobrevivencia para sua filha D. Francisca; e, afinal, já em tempo de D. João III, a confirmação, por este monarcha, d'aquelles favores, e de mais o de ser paga a dita tença pelo almoxarifado d'Extremoz. -- D. Ignez, logo que em mil quinhentos e quatro acceitou o encargo d'ama da infanta Dona Beatriz, e teve, portanto, moradia na côrte, transferiu a sua residência e a de seus filhos para Cintra, onde lhe restavam ainda parentes, e tinha para velar por elles sua prima D. Joanna, mãe do poeta Bernardim Ribeiro. Parece que Sancho Tavares, depois da sua viagem em mil quinhentos e cinco, á India, alli fallecêra, pois que não voltou mais do Oriente. De seu marido, houve D. Ignez os seguintes filhos:

8-- Manoel Tavares, fidalgo da casa de D. João III, e herdeiro de varias propriedades em Extremoz. Crê-se que morreu solteiro e sem geração.

8-- D. Izabel, cujo destino se ignora.

8-- D. Joanna Tavares.

8-- D. Maria Tavares, mulher do doutor João Rodrigues de Lucena, natural de Lisboa, commendador da ordem de Christo, e de quem teve cinco filhos, a saber:

9-- Antonio de Lucena, moço fidalgo, e antigo governador de Damão.

9-- Francisco Tavares de Lucena, tambem moço fidalgo.

9-- Diogo de Lucena, idem.

9-- D. Beatriz de Lucena, mulher, em primeiras nupcias, do desembargador Estevão de Brito; e, em segundas, de Nuno Furtado de Mendonça.

9-- D. Izabel de Lucena, mulher de Diogo Machado Cabral.

8-- D. Francisca Tavares, que veio d'Extremoz com seus irmãos, e que, mais tarde, foi viver com sua mãe D. Ignez, no Paço, onde occupou o logar de Môça da camara da rainha D. Maria. Foi com a dita sua mãe para a Itália, em mil quinhentos e vinte e um, na companhia da infanta duqueza de Saboya, e lá casou com João Duyn, natural de Saboya, barão de Valallera, e visconde de Tarentere. Do referido matrimonio descenderam os condes de Vala Hera, e outros que usaram do appellido de Marechal Duin.

8-- D. Joanna Tavares, filha de D. Ignez Alvares, ama da infanta Dona Beatriz, duqueza de Saboya. Esta Dona Joanna veio, com seus irmãos, d'Extremoz para Cintra, e, segundo varias memorias, era assás formosa, o que não deixou de concorrer para a sua desventura, porque ha noticias d'ella se ter apaixonado por um seu parente, e de ter sido, por interesses de familia, obrigada a casar com Pero Gatto, filho de Nuno Gatto e de sua mulher D. Ignez Correia da Silva. Pêro Gatto dizem que fallecêra pouco tempo depois do seu casamento, e que essa morte fôra violenta. Dona Joanna, depois de viuva, foi passar por algum tempo em casa de seu thio Alvaro Pires Zagalo, que residia em Alcacer do Sal, até que foi recolhida a um convento, e lá se finou professa.

«Até aqui -- conclue o illustre genealogista, sr. visconde de Sanches de Baena -- chegaram as noticias do conego D. Flaminio. Agora, o que o documento (que segue) nos veio revelar é que o seu intitulado parente era seu primo, o poeta Bernardim Ribeiro; e do qual documento consta que teve uma filha ou filho, segundo os certificados que em mil seiscentos e quarenta e dois apresentou seu bisneto Francisco Ribeiro, tenente d'infanteria.

«Sabe-se que em mil quinhentos e vinte e um já D. Joanna havia professado, por assim nol-o affirmar sua mãe na carta que escreveu de Chambery a D. João III, quando diz: «... Vossa Alteza sabe como eu lá deixei huma filha freira e tão doente que ha mistér sempre duas e trez mulheres que a sirvam, e uma escrava».

«Ora uma doença, aliás chronica, pelo que se conclue, e em que é mistér quatro pessoas para acudir ao seu tratamento, era pelo menos de natureza nervosa, e talvez subordinada a accessos curtos ou continuados de caracter espasmodico. E note-se que, em mil quinhentos e vinte e um, já a mãe a tinha deixado n'aquelle deploravel estado, e sabe Deus desde quando!

«Tambem se sabe que o convento em que D. Joanna havia entrado era o de Santa Clara, de Extremoz, para onde a mãe se havia empenhado para transferir a sua tença, no intuito, bem de crer, de occorrer por semelhante meio ás extraordinárias despezas que necessariamente haviam de ser feitas com aquella tormentosa doença».

Documento official

SENHOR: Em obediencia ao despacho lançado por Vossa Magestade no requerimento do tenente d'infanteria Francisco Ribeiro e remettido a esta Junta , cumpre informar que, das diligencias a que procedi e a que mandei proceder para verificar a verdade das allegações n'elle apresentadas sobre ser bisneto do doutor Bernardim Ribeiro e da justiça que lhe lhe assiste de ser empossado nos bens que d'este foram e passaram a esta Serenissima Casa, se conclue que Bernardim Ribeiro nasceu em mil quatrocentos e oitenta e dois e hera filho de Damiam Ribeiro, criado do Duque de Vizeu que cahido em desgraça por causa das desavenças de seu amo com El-Rei D. João II teve de se refugiar em Castella e lá morreu pouco depois com suspeitas de morte violenta.

Bernardim Ribeiro com sua mãe e huma irmã se soccorreram do amparo de seu parente o desembargador da Casa da Supplicação Antonio Alvares Zagalo e de sua irmã D. Inês a qual os levou para a Villa de Cintra e trouce recolhidos em segredo por algum tempo na Quinta denominada dos Lobos , té que sendo fallecido El-Rei D. João II e succedendo-lhe El-Rei D. Manoel, por mercê a D. Inês que depois foi ama da Senhora Infanta D. Brites (Beatriz) Duqueza de Saboya lhe fez muitos favores e accrescentamentos de fortuna e tomou o referido Bernardim sob sua Real Guarda e o mandou cursar os estudos na Universidade donde sahiu com o gráo de Bacharel em leys.

A doação que de Sua Alteza recebeo por essa occasião das Terras e Azenha dos Ferreiros com seus termos, e que agora he requerida na petição que veio a informar a esta Junta, já tambem fôra pleiteada por Gonçalo Ribeiro, primo germano do mesmo Bernardim, e por outros lateraes, depois da morte d'elle succedida no anno de 1552, e visto que elle, como he provado no processo que então correu e que existe no archivo d'esta Serenissima Casa, não tinha herdeiros legitimos obrigados. E como o termo da dita doação feita no anno de 1505, o qual vae junto por copia, declara mui formalmente que, no caso do amerciado não haver filhos legitimos que os bens passem a esta Serenissima Casa, em virtude de tal clausula já o Senhor Rey D. Sebastião indeferiu as petições citadas.

Allega o requerente agora ser bisneto de Bernardim Ribeiro, allegação esta que é inteiramente estranha e nova, porque nem mesmo por via illegitima se pode fundamentar, referida a Bernardim Ribeiro escrivão privado do Senhor Rey D. João III, o qual nunca foi casado nem consta de boas memorias haver lido descendencia bastarda d'uma sua prima, como allega o requerente. E quando assim fosse, que se provasse ser essa a descendência do requerente Francisco Ribeiro e por elle apresentada, nem isso lhe daria direito á emposse dos bens doados a seu presuposto bisavô, porquanto d'esse direito ficou excluida a descendencia não legitima.

Esta nova allegação torna-se tanto menos acceitavel, apesar dos certificados que a acompanham, quanto é certo que se o Doutor Bernardim Ribeiro houvesse filho ou filha, o Senhor D. João III, que tanto o protegia (e nem o desamparou da sua grande caridade nos ultimos annos da sua vida, em que a luz do entendimento, já fraca desde muito, o veio a desamparar de todo n'uma cella do Hospital de Todos os Santos, onde acabou), não tivesse remediado qualquer falta da sua mocidade, e fizesse algum bem aos que d'elle ficassem.

Ora mandando Sua Alteza que se dessem por vagos os bens pretendidos e julgada a sua incorporação n'esta Serenissima Casa, hé porque decerto ao tempo não se conhecia nenhuma das circumstancias apresentadas agora pelo requerente sobre a descendencia de Bernardim Ribeiro, a qual pezasse no animo de Sua Alteza para dispor dos bens a favor dos seus filhos, em justiça de herança ou em acto de caridade.

No entretanto, Vossa Magestade fará o que muito bem Lhe aprouver para galardoar os serviços de Francisco Ribeiro á causa da sua acclamação.

Deus Guarde e Conserve a preciosa Vida de Vossa Magestade por dilatados annos.

Lisboa, 6 de maio de 1642.

O dezembargador Rodrigo Rodrigues de Lemos.

Eu El-Rei faço saber aos que este meu alvará virem que havendo respeito ao tempo e bom procedimento com que me tem servido Francisco Ribeiro e a ser legitimamente reformado no posto de capitam d'infanteria hei por bem e me praz lhe fazer mercê que elle vença o soldo de capitam reformado que são quatro mil reis cada mez de mais da sua praça ordinaria que ha de gozar em qualquer das provincias d'este reino era que servir aggregado á companhia que escolher ou se lhe nomear; e que este soldo se lhe assente nos livros a que tocar para delle haver pagamento nos seus devidos e costumados tempos e deste alvará se tomará razão na contadoria geral que assiste nesta e na província em que o dito Francisco Ribeiro servir. Marcos Velho o fez em Lisboa aos 22 dias do mez d'agosto de 1646 annos. E eu Antonio Pereira o fiz escrever.

REI.

Conde de Castello Melhor -- O Conde Camareiro mór.

FIM DO APPENDICE.

A primeira edição da Menina e Môça (prohibida nos fins do reinado de D. João III) é do anno de 1557.

Na Bibliotheca Lusitana encontra-se o seguinte: «Por diligencia do seu parente Manoel da Silva Mascarenhas, fidalgo da casa d'el-rei e governador da fortaleza d'Outão, se imprimiu a primeira parte da Menina e Môça, ou Saudades de Bernardim Ribeiro. -- Evora, por André de Burgos, em 1557 -- 8ª; e ibid, pelo dito impressor, 1578; e Lisboa, por Pedro Crasbeeck, 1645.» Além d'estas ha a de 1785 -- Lisboa, officina de Domingos Gonçalves.

V Bibliotheca Portugueza -- Lisboa, 1832.

-- Tradiccional.

A conspiração do duque de Vizeu contra a vida de D. João II fôra descoberta a este por Diog Tinoco, desprezivel irmão d'uma das amazias do poderoso bispo d'Evora.

Entre outros muitos conjurados que D. João II perseguiu depois, um dos mais importantes foi D. Garcia de Menezes, prelado d'Evora, preso e mettido n'uma cisterna sêcca após a delacção de Diogo Tinoco, e envenenado de seguida por ordem do referido monarcha. (V. Misc. hist. de Theodoro J. da Silva, pag. 112 e 113.)

Nos primeiros seculos da monarchia portugueza (diz Emilio Monteverde) dava-se aos reis o modesto tratamento de mercê, a que se seguiu o de senhoria até D. Manoel.

«Veio depois o d'alteza, que foi substituido pelo de magestade, sendo el-rei D. Sebastião o promieiromonarcha portuguez a quem se deu este ultimo tratamento».

Chamava-se D. Joanna Dias Zagalo a mulher de Damião Ribeiro, e mãe do mavioso poeta Bernardim Ribeiro.

Veja-se o opusculo citado, do visconde de Sanches de Baena, extrahido, em parte, d'um antigo manuscripto genealogico do conego regrante D. Flaminio de Santa Maria.

Antigos portadores d'encommendas, e tambem distribuidores de cartas e vendilhões ambulantes, desde tempos immemoriaes até ao reinado de D. João III que estabeleceu o primeiro serviço de correio, desempenhado por postilhões.

D. João II abateu o poderio dos nobres, que chegara ao ultimo auge; tirou aos donatarios a jurisdicção criminal; enviou ministros seus a devassar por terras de senhores; contribuiu poderosamente para a decadencia dos deudos e suppressão da maior parte; mas, ainda assim, constinuou a subsistir a instituição dos morgados e dos direitos banaes.

Este direito de linhagem ou de successão em bens inalienaveis, em beneficio do filho mais velho, a que se deu o nome de morgado, fôra promulgado pelos godos e reconhecido por el-rei D. Diniz». (Craveiro, Hist., livro 6º)

Os vínculos e morgados -- com excepção dos da casa de Bragança -- foram abolidos e extinctos pelas leis de 30 de julho de 1860, e 19 de maio de 1863.

«Em carta de 3 de março de 1895 (diz o eminente escriptor dr. Teophilo Braga, no seu prefacio ao opusculo de Sanches de Baena) escrevia-nos o sr. Antonio Maria de Freitas noticiando o encontro da Quinta dos Lobos no concelho de Cintra, cêrca d'um kilometrp a léste da estrada de Mafra, de que fôra um dos ultimos proprietarios um tal João Soares Zagalo.»

Segundo outros investigadores, esta mesma quinta fôra conhecida pelo nome de Val-de-Lobos, havendo sido considerada como uma das mais pittorescas de «toda a Contra e seu termo».

Pasquino era o nome d'uma mutilada estatua de gladiador, onde furtivamente os antigos romanos affixavam papeis insultuosos e satyricos contra aquellas pessoas que desejavam affrontar.

D'este nome se derivou o substantivo pasquim, cuja definição é por demais conhecida.

Valladolid foi a côrte de Castella até ao tempo de Filippe II, qua a transferiu para Madrid, voltando a sêl-o novamente no reeinado de Filippe III, desde 1601 até 1621.

-- Pequeno rio d'Hespanha.

-- Como o leitor sabe, a edade média é o lapso decorrido desde a queda ou destruição do imperio romano do occidente, até á tomada de Constantinopla, pelos turcos, no anno de 1453.

Giraldo Giraldes, ou antes Giraldo Sempavôr, sendo chefe d'uma quadrilha de bandoleiros, arrependêra-se por fim dos seus crimes: e, para obter o perdão e a graça d'el-rei D. Affonso Henriques, ousára e conseguira conquistar aos mouros a cidade d'Evora, no mez de maio do anno de mil cento e sessenta e seis.

Affonso I -- em face d'este acto d'heroismo -- não só perdoou a Giraldo e aos seus bandidos, como lhe fez grandes mercês, nomeando-o perpetuo alcaide da cidade conquistada, com certos e honrosos provilegios e garantias.

(V. os diversos trabalhos sobre Historia de Portugal).

Colmeneiros: gruipos d'homens fortes e armados, os quaes tinham por dever d'officio o perseguir os salteadores.

(v. Elucidario de Vit.)

-- « Bartholomeu Dias. Nome honrosissimo nos fastos maritimos da nossa Historia. Foi elle que, auxiliado pelo piloto do seu navio o célebre Pero d'Alemquér, dobrou o grande cabo que termina a África pelo lado do Sul, a que deu o nome de Cabo das Tormentas, mais tarde mudado por D. Jooão II no de cabo da Boa Esperança. O descobrimento d'este cabo teve logar no annno de 1486».

(Theodoro J. da Silva -- Misc hist.)

D. João II enviou (1487) a Pedro da Covilhã e Affonso de Paiva para que, de jornada, penetrassem na India, e se informassem das producções e commercio do paiz. -- Affonso de Paiva morreu no Cairo, e e Pedro ou Pero da Covilhã buscou a India, regressando tempo depois a Portugal».

(T. Craveiro -- Hist. port.)

-- Algoz

Os abencerrages (gente d'origem arabe) reinaram em Granada na segunda metade do seculo XV. Devido a continuas dissenções com os zégris (mouros d'Hespanha) perderam o throno alguns annos antes de terminar aquelle seculo.

Antigo arrabalde de Burgos, separado da cidade pelo rio Arlazon.

Fernando Gonzalez, conde de Castella, e um dos maiores batalhadores que vira o seculo X.

D. Ruy Dias de Bivar (o Cid campeador) é uma das mais legitimas glorias militares da Hespanha, no reinado de Fernando I de Castella. Nasceu em Burgos no anno de 1026, e morreu no ano de 1099. Em sua honra alevantou a refrida cidade a columna, com um escudo e dois obeliscos, que ainda hoje se admira ali.

Segundo o erudito e elegante escriptor sr. visconde de Castilho «foi n'um minucioso regimento policial dado por el-rei à cidade de Lisboa, em carta de 12 de setembro de 1383, que se estatuiu que os homens bons determinassem se collocassem em certas ruas candéas, tochas, ou vellas que as allumiassem para afugentar os ladrões, pois que até então a illuminaçºao da cidade era devida simplesmente ás luzes de varios nichos de santos».

A illuminação municipal começou em Lisboa a 17 de dezembro de 1780.

Em 1791 já havia na cidade oitocentos e nove lampeões, que funccionavam em noites escuras, simplesmente.

Historico

Antigo officio religioso em que, durante trinta dias, os padres não abandonavam os mortos.

Havia tambem os trintarios abertos, em que os padres se retiravam todos os dias para as proprias residencias depois de feitas as orações do ritual.

O infante D. Henique foi o illustre cosmographo a quem Portu deve a iniciativa das suas glorias maritimas, graças á eschola de astronomia, cosmographia e nautica, que, em 1438, elle estabeleceu na sua villa de Sagres. Nascêra no Porto em 1394, e falleceu no anno de 1460.

Como é sabido, a cidade de Lisboa está edificada sobre os montes de S. Vicente de Fora, Santo André, Castello, Sant'Anna, S. Roque, Chagas, Santa Catharina do Monte Synae, e diversos valles.

Foi n'um minucioso regimento policial, dado por D. Fernando a cidade de Lisboa em carta de 12 de setembro de 1383, que se estatuiu que os homem bons determinassem se collocasse em certas ruas candéas, tochas, ou vellas que as alumiassem, para afugentar os ladrões. Até então a illuminaçáo da cidade era devida simplesmente ás luzes dos vários nichos de santos e d'almas do Purgatório. A illuminação municipal de Lisboa começou a 17 de dezembro de 1780. Em 1791 já havia 809 lampeões d'azeite, que depois passaram a ser de petróleo, e de gaz.

(V. a preciosa obra intitulada Lisboa Antiga, original do eminente escriptor, sr. visconde de Castilho (Júlio).

Os maiores terramotos que se sentiram em Lisboa desde o século XI até hoje, foram : o do anno 1009, que fez enormíssimos estragos; o de 1117, que foi seguido d'outros inferiores; o de 1146, que, como os de 1290 e 1344, foi sentido em todo o reino o de 24 d'agosto de 1356, que teve repetições durante um anno; o de 7 de janeiro de 1531, que se repetiu por espaço de cincoenta dias, obrigando a população da cidade a refugiar-se no campo; o de 1551, que também foi pavoroso ; o de 1575, que fora egualmente violento ; o de 22 de julho ue 1597, que subverteu trez ruas no bairro de Santa Catharina, dividindo o monte em duas partes; o de 1598, que fora um pouco mais benigno; e, além d'outros insignificantes, o do 1º de novembro de 1755, que, tendo sido acompanhado d'um pavoroso incêndio, destruiu metade da cidade de Lisboa, e occasionou a morte a quarenta mil moradores.

(V. Prior do Crato, romance histórico do auctor d'esta novella).

Segundo o escripto genealógico do cónego regrante D. Flatninio de Santa Maria, consultado pelo illustre escriptor visconde de Sanches de Baena, «Sancho Tavares casara com D. Ignez Alvares Zagalo, natural de Cintra, onde viveu -- na quinta dos Lobos -- com seu irmão o desembargador António Alvares Zagalo, até ao momento em que fora para Extremoz com o esposo.»

Esta quinta que, como já dissemos em nota, fora desco- berta pelo illustre homem de letras sr. António Maria de Freitas, constituira a cabeça do antigo morgado de Cintra, fundado por Martim Gil Lobo a 19 de novembro de 1424, «com a obrigação de missas no convento de Penha Longa e sob a clausula de que succederia sempre na administração do dito morgado o primeiro que nascesse, fôsse filho ou filha.»

A posse da quinta dos Lobos e morgado de Cintra passou para os Zagalos depois do casamento lie Gomes Martim Zagalo com D. Brites Affonso (irmã do fundador do morgado) de quem teve trez filhos: Diogo Gomes Zagalo, Affonso Gomes Zagalo, e Soeiro Gomes Zagalo.

A familia Zagalo -- descendente dos antigos senhores da villa de Zagalo em Caslella -- estabeleceu-se em Portugal nos reinados de D. Affonso III e D. Diniz, e fôra o principal povoador da villa do Monsaraz, na provincia do Alemtejo.

Nós -- apesar das opiniões contrarias -- somos dos que lêem a moral do grande philosopho fatalista na conta d'um incitamento aos prazeres mundanaes.

-- Pygmalião foi um dos mais célebres esculptores da remota antiguidade. Certo dia -- tendo concluído a estatua de Galathéa, em que elle pozéra todos os cuidados do seu celebrado cinzel -- apaixonou-se por ella; e, segundo as lendas mythologicas, que o evhemerismo classifica d'historia figurada, «desposou a estatua, logo que Venus lhe insuflou a vida».

— D. Juan é um dos typos lendarios da Hespanha, aproveitado por Gabriel Telles (Tirso de Molina) no seu famoso drama El burlador de Sevilla y convidado de piedra.

Tirso de Molina nasceu em 1585 e morreu em 1648.

Este drama foi imitado, na França, pelo célebre Molière.

Galaôr fora o heróe obrigado de todos os antigos romances cavalleirosos.

Miguel Cervantes de Saavedra, antigo creado d'estalagem; soldado do Lepanto, onde perdeu um braço; prisioneiro de piratas; captivo em Argel; célebre dramaturgo, poeta e novellista, nasceu em Alcaná d'Henares (Hespanlia) em 1547, e morreu no anno de 1616.

«Foi no auge das máximas tribulações (diz o fallecido poeta Simões Dias) que elle publicou desde 1605 a 1615 o celebrado D. Quichote de la Mancha- , novella destinada a extirpar da litteratura a mania estéril e ridícula dos romances de cavallaria. »

D. Quichote, e o seu immortal escudeiro Sancho Pança conseguiram matar pelo ridiculo essa antiga eschola tão estéril como jogral.

Nome vulgar d'uns insectos de quatro azas, duas das quaes, coriáceas. (Coleopteros).

João Affonso d'Aveiro foi o ousado descobridor do rei- no de Benis, ou Benim, na provincia da Guiné, Africa occidental. Diogo Cão descobriu o reino do Congo e rio Zaire, na Africa, chegando até aos 22 graus austraes. Fundou alli (1491) a primeira egreja christã.

Pêro da Covilhã foi um dos viajantes mais célebres do século 15°, o qual, enviado ao Oriente, por D. João II, descrevêra a este monarcha as magnificências da India, e até indicou o itinerário que Vasco da Gama havia de seguir mais tarde: «Quem caminhasse ao longo da costa de Guiné chegaria ao limite do continente africano; e, aproando então ao Oriente na direcção da ilha da Lua, por Sofala, estaria no paiz descripto a D. João II pelo rei de Benim».

Affonso de Paiva -- companheiro de Pêro da Covilhã n'esta ousadíssima jornada -- não chegou a vêr a índia, pois que morrêra no Cairo.

-- Dizem vários historiadores:

«O estrangeiro Janifante -- homem rico, e fornecedor dos mercadores da rua Nova -- era um dos bons marinheiros do seu tempo; e, como tal, recebera o encargo d'ir explorar terras d'alem-mar, conseguindo ter chegado até à Guiné, quando se embarcara no propósito d'encontrar os ignorados caminhos marítimos da India, que, mais tarde, Vasco da Gama encontrou».

Cintra e seus arredores foram cognominados de glorious E'den, por Byron.

O erudito príncipe de Lichnowsky diz a pagina 34 do seu curioso opúsculo intitulado Portugal -- Recordações do anno de 1842 :

« Todos encontraram Paris mais pequeno, o Monte-Branco menos elevado, e o Rheno mais estreito do que se tem escripto: outro tanto me succedeu era Cintra. No fim de três dias de residencia em Lisboa, quasi que me envergonhava de não ter visto ainda Cintra; quando porém a vi achei-me desencantado; e, com extranheza e admiração, procurava com ardor o momento importante em que deveria desenvolver-se a meus olhos o occulto prestigio da preconisada Cintra. Foi baldado o meu empenho; todavia, quanto mais tempo me demorava alli, tanto mais aprazível me parecia e mais sonhadamente romântica; até que quando finalmente me foi preciso partir, repassou-me um tão intimo desgosto, que de todo se tornou manifesto para mim, que alli havia muito mais do que aquillo que a principio tinham descoberto os meus olhos profanos. O pesar da minha separação era a vingança do encantamento que eu desconheci. Essas frescas veredas cobertas de folhagem; o crescimento magestoso e exuberante da vegetação; as cascatas e frigidos regatos; as montanhas e penedias; a perspectiva das campinas e Oceano, tudo isso nunca o esquecerei, e, com a auctoridade d'um Bryon e d'um Camões, com a opinião dos poetas, e com o parecer dos litteratos de todos os tempos e de todos os povos, proclamarei Cintra o mais bello de todos os povos da terra».

-- Dizem os historiadores : «D. Manuel deveu á desastrosa morte do príncipe D. Affonso a ascenção ao throno de Portugal.

«Filho do infante D. Fernando e neto d'el-rei D. Duarte, nasceu em Alcochete a 31 de maio de 1469, e fôra acclamado em 1495 por morte de seu primo e cunhado D. João II.

«Apaixonado peia infanta D. Izabel (viuva do primo D. Affonso) mandara sahir do reino os mouros e judeus -- que eram o capital e o trabalho -- como condição imposta pelos reis catholicos Fernando e Izabel, para poder casar com sua filha.

«D 'este consorcio teve um só filho. Passando a segundas núpcias com D. Maria, filha dos mesmos reis, tivera d'esta dez filhos; e ainda mais dois do seu terceiro casamento com D. Leonor, irmã de Carlos V.

«Foi este monarcha chamado Venturoso pela fortuna com que, no seu reinado, os portuguezes fizeram tantas conquistas na Africa, na America e na Ásia. O descobrimento da India por Vasco da Gama em 1498; o descobrimento do Brazil por Pedro Alvares Cabral em 15OO; e as conquistas de Gôa, Ormuz e Malaca por Affonso d'Albuquerque em 1510, 1511 e 1515, são os principais successos do seu feliz reinado».

-- V. as notas que antecedem. No seu reinado appareceu Christovão Colombo, que viéra a Portugal offerecer-se para fazer o descobrimento da America; mas D. João II rejeitou os serviços do grande navegador, que foram depois aproveitados por Izabel a Catholica.

-- V. notas anteriores.

-- O principe D. Affonso, filho d'el-rei D. João II e da rainha D. Leonor, nascido no anno de 1475, andando, em Santarém, no anno de 1491, a correr o páreo com D. João de Menezes, cahira com o cavallo que montava, resultando lhe d'esta desgraça o haver morrido instantaneamente. Fora casado com a princeza D. Izabel, filha dos reis catholicos Fernando d'Aragão e Izabel de Castella.

«Bernardim Ribeiro (diz o erudito escriptor visconde de Sanches de Baena) nasceu na villa do Torrão no anno de 1482, e, pelas causas que expatriaram seu pae e lhe deram a morte, foi recolhido aos dois annos d'edade, com sua mãe e uma sua irmã, por seus primos o desembargador António Alvares Zagalo e sua irmã D. Ignez Alvares Zagalo, que viviam na sua quinta denominada dos Lobos, em Cintra. Bernardim, para escapar á cólera de D. João II, esteve pois residindo, em segredo, na dita quinta até ao fallecimento d'aquelle monarcha, que teve logar em 1495, contando a esse tempo 13 annos de edade e 11 de reclusão. Seu primo não descurára nunca a sua educação litteraria.»

-- Segundo o cónego regrante de Santo Agostinho, D. Flaminio de Jesus Maria, descendente, por bastardia, da familia dos Zagalos, «D. Ignez houvera de seu marido Sancho Tavares os seguintes filhos : Manuel Tavares, fidalgo da casa de D .João III ; D. Izabel ; D. Maria; D. Francisca, que fora môça da camara da rainha D. Maria; e D. Joanna — senhora assas formosa, mas de grande volubilidade, que lhe acarretou não pequenas desventuras» .

V. notas precedentes.

Cabe aqui o dizer-se que se D. João II praticou um erro repudiando o genovez Christovão Colombo, que viera a Portugal oferecer-se-lhe para fazer o descobrimento do Novo Mundo (America) -- offerecimento que os reis d'Hespanha acceitaram -- , D. Manoel não procedera melhor deixando o grande navegador Fernão de Magalhães ir offerecer a Carlos V os seus préstimos, do que resultou «tel-o mandado como capitão-mór d'uma frota para a gloriosa empreza da primeira viagem que se fez á roda do globo». Fernão de Magalhães descobriu o estreito do seu nome, as ilhas Philippinas, e as Mariannas, e foi morto n'um combate a 27 d'abril de 1521.

Durante o reinado de D. Manoel deram-se os seguintes acontecimentos, que julgamos conveniente rememorar para lição dos indoutos.

A partida de Vasco da Gama (1497) para o descobrimento do caminho marítimo da India; o seu regresso em 1499; o descobrimento da Terra de Santa Cruz, ou Brazil (15OO) por Pedro Alvares Cabral; Gaspar Corte Real visita a Terra Nova (150O) sonda o rio de S. Lourenço, e costeia toda aquella parte da America chamada Terra do Labrador até o estreito d'Hudson, a que chamara estreito d'Anan; João da Nova descobre as ilhas da Conceição e Santa Helena (1501-1502); Américo Vespuci toma posse do Brazil em nome do rei de Portugal; Ruy Lourenço Ravasco descobre a ilha de Zanzibar, (1503) António Fernandes Pereira descobre a ilha de Socotorá (1505); o paiz é invadido pela peste, e D. Manoel retira-se para Abrantes (1506); dois mil judeos e mouros convertidos são mortos brutalmente pelos christaos velhos, nas ruas de Lisboa, concitados por dois frades, que el-rei fez justiçar depois (1506); Tristão da Cunha descobre a ilha de S. Lourenço ou Madagáscar (1506): a cidade de Saphim entrega-se aos portuguezes; D. Lourenço d'Almeida descobre as ilhas de Ceylão, Sumatra, e Maldivas (1506); D. Francisco d'Almeida, 1º vice-rei da India, funda fortalezas no Oriente e pratica altos feitos de valor; Affonso de Albuquerque conquista na India, colonisa, levanta fortalezas, expulsa d'Aden os árabes, e abre aos portuguezes a navegaçSo do mar-Vermelho (1507-1516); D. Manoel manda recopilar um código, ou ordenações, que só foram promulgadas em 1513; Diogo Lopes Sequeira vae até ás costas da Abyssinia (1514); Lopo Soares d'Albergaria faz a famosa expedição ao estreito do mar Roxo (1515); estabelecimento dos portuguezes em Macau (1517): Fernando Pires d'Andrade descobre o archipelago de Lieukieu (1518); António Corrêa toma a ilha de Baharem (1520), etc, etc., etc.

V. as notas antecedentes.

0 codigo affonsino, composição de Ruy Fernandes, foi o primeiro que Portugal teve. Promulgado durante a regência do infante D. Pedro, teve de ser substituído em tempo de D. Manuel pelas ordenações manuelinas. Os auctores d'este ultimo codtgo parece que foram os desembargadores Ruy da Grã, Ruy Bôtto, João Cotrim, João de Faria, Pedro Jorge, Christovão Esteves, e ainda outros jurisconsultos.

A'cerca de bruxos e de feiticeiros, diz o Livro V, Titulo XXXIII, das citadas ordenações: «Estabelecemos que toda a pessoa de qualquer localidade e condiçam que seja, que de lugar sagrado, ou nom sagrado, pedra d'ara, ou corporaes, ou parle de cada hûa d'ellas tomar, ou qualquer outra cousa sagrada, morra por isto morte natural.

«E isto mesmo qualquer pessoa que em circulo, ou fóra d'elle, ou em encruzilhada espíritos diabólicos invocar, ou a algûa pessoa deer a comer ou beber qualquer cousa para querer bem ou mal a outrem, ou outrem a elles, morra por isso morte natural, etc, ele.

El-rei D. Manuel reformou os velhos foraes, abusivamente am- pliados e falsificados pelos antigos donatários.

V. notas anteriores.

-- Diz o visconde de Sanches de Baena, acostado ao já referido escripto do cónego D. Flaminio: «Álvaro Pires Zagalo foi o herdeiro do morgado de Cintra, depois de vago pelo fallecimento do desembargador da casa da supplicaçáo António Alvares Zagalo, que não deixou geração.

«D. Maria Alvares Zagalo -- irmã do mesmo desembargador -- fora cazada com D. Álvaro Velez de Guevara, fidalgo castelhano, que viveu em Arronches. Este casamento fora feito em circumstancias não pouco dramáticas, resultando d'elle -- além d'outros filhos -- D. Ignez Velez Zagalo, que foi amante de D. Diogo d'Almeida, grão prior do Crato de quem houve D. Pedro, D. Lopo, D. Estevão bispo de Cartagena, e D. Brites d'Almeida, freira.

Do primeiro d'estes foi nela a primeira duqueza de Villa Real.

-- Segundo antigos historiadores, fôra el-rei D. Diniz quem -- em 1290 -- instituíra a universidade de Lisboa com a denominação d' Escholas geraes. O mesmo rei transferiu-a para Coimbra em 1308, dando-lhe os primeiros estatutos em 1309. Em tempo de D. Affonso IV (1338) regressou a Lisboa, voltando de novo para Coimbra em 1354. Em 1375 ou 1377 el-rei D. Fernando mudou-a para Lisboa: mas em 1531 ou 1534 D. João III transferiu-a novamenle para a cidade do Mondego. O marquez de Pombal fez era 1772 uma grande reforma n'este estabelecimento de instrucção, dando-lhe os célebres eslatulos que toda a Europa admirou.

Os illustres homens de letras srs. Gabriel Pereira e dr. Augusto Simões encontraram nos livros da universidade de Lisboa os assentos de matriculas de Bernardim Ribeiro, no livro 1.° a fls. 28, 53, 79, 92, 107 v., e 111., correspondentes aos annos de 1506 a 1511 ou 1512.

-- «D. Ignez Alvares Zagalo conseguiu obter d'el-rei D. Manuel varias mercês, sendo a primeira a de despachar seu marido (1505) com o officio d'escrivão de Sofala com bons proventos; e a segunda, também no mesmo anno, a da doação das Terras e Azenha dos Feireiros, com seus termos, para seu primo Bernardim Ribeiro, a titulo d'este poder continuar os seus estudos, para entrar e manter-se na universidade de Lisboa».

«A mesma D. Ignez, logo que em 1504 acceitou o encargo d'ama da infanta D. Beatriz, e teve, portanto, moradia na corte, transferiu a residência de seus filhos para Cintra, onde tinha para velar por elles sua prima D. Joanna, mãe do poeta Bernardim Ribeiro».

(Visconde de Sanches de Baena, Opúsculo, pag. 28).

Segundo conspícuos auctores, a influencia militar, commercial e politica de Portugal abrangia — quando senhor de todas as suas conquistas— uma área de muito mais de doze milhões de kilometros quadrados!...

-- Diz Silveira da Moita, a pag. 180 dos seus apreciáveis Quadros de historia portugueza:

«No dia 12 de março de 1514 entrava em Roma o préstito solernne, precedido pelos archeiros suissos e porteiros da guarda pontifícia. Seguiam-se os charamelleiros da embaixada porttgueza; os trombetas e atabales do papa; trezentas azemolas cobertas de ricos reposteiros, levadas de rédeas por outros tantos azeméis; um cavallo persa que o rei d'Ormuz offertára a D. Manuel, e que, montado por um indio, trazia sobre as ancas uma formosa onça domesticada; e logo um soberbo elephante de Ceylão, que despertava sobretudo a attenção dos espectadores, e que conduzia n'um cofre valiosíssimo o mais rico presente que o rei de Portugal offerecia a Leão X -- um ornamento pontifical completo, todo de chaparia e figuras d'ouro e pedraria preciosa, primor de arte que então avaliaram em quinhentos mil cruzados. Fechavam aquelle extenso séquito os embaixadores de Portugal, da Allemanha, de França, d'Inglaterra, da Polónia, de Veneza, de Milão, de Bolonha, e o governador de Roma, arcebispos, bispos, clérigos, frades de todas as communidades monásticas, os gentis-homens das cortes estrangeiras, e muitos cavalleiros portuguezes trajando todos explendidas telas e brocados, chapéus orlados de pérolas e aljôfar, e longas cadeias d'ouro a tiracolo, esmaltadas com diamantes e rubins».

-- A'cerca de Camões e Nathercia, diz o glorioso romancista Camillo Castello Branco:... «chamou-se Ruy Pereira de Miranda o esposo de D. Calherina d'Athayde, filha d'Alvaro de Sousa e dama da rainha D. Catharina. Esta dama (que tivéra e inspirara uma grande paixão a Luiz Vaz de Camões) finára-se pouco depois de casada, a 28 de setembro de 1551, e foi sepultada na capella-mór do convento de S. Domingos d'Aveiro»

Segundo graves historiadores, Jorge da Silva -- poeta do tempo de D. João III -- apaixonára-se pela formosa infanta D. Maria, filha terceira do consorcio de D. Manuel com a rainha D. Leonor. Esta erudita princeza -- que (1557) morreu em Lisboa no estado de solteira -- fizera dos seus paços uma verdadeira academia de senhoras eruditas, entre os quaes se encontravam Luiza Sigéa, e Paula Vicente, filha do immorredouro fundador do theatro portuguez Gil Vicente.

D. João de Menezes da Silva -- o beato Amadeu — apaixonára-se pela infanta D. Leonor, filha de D. Affonso V, e depois mulher do imperador Frederico III.

D. João fizéra-se, seguidamente, monge de S. Jeronymo, e morreu na Italia pelos annos de 1482.

— D. João, futuro rei de Portugal, contava então 15 annos d'edade ; D. Luiz, contava 11 ; D. Fernando, 10 ; D. Affonso, cardeal, 9 ; D. Henrique, que fora rei, e cardeal também, 5 ; D. Duarte, 2 ; D. Izabel, mais tarde imperatriz da Allemanha, 14 ; e a loira D. Beatriz, futura duqueza de Saboya, mais de 13 annos.

-- Bernardim Ribeiro -- que nascera no anno de 1482 -- devia contar n'esta épocha cêrca de 34 annos d'edade.

-- Historico.

-- V. notas antecedentes.

-- A fls. 31 do opúsculo de Sanches de Baena encontra-se a affirmação seguinte:

«.. sabe-se que, em 1521, D. Joanna havia professado, por assim o affirmar sua mãe n'uma carta que escrevera de Chambery a el-rei: «vossa alteza sabe como lá deixei uma filha freira e tão doente, que ha mister sempre duas ou três mulheres que a sirvam».

«Ora uma doença, aliás chronica, e em que é mister trez pessoas para acudir ao seu tratamento, era pelo menos de natureza nervosa, e talvez subordinada a accessos curtos ou continuados de caracter espasmodico. E note-se que em 1521 já a mãe a tinha deixado n'aquelle deplorável estado!.».

Historico.

-- Pinheiro Chagas, no 4.º vol. da Hist. de Port, e Alberto Pimentel, n'uma das notas do seu formoso romance Um conflicto na córte, dizem a propósito de paços rópios: «... tinha Lisboa seis : o da Ribeira, fundado por D. Manuel ; o de Santos, especie de casa de campo fundada por D. João II, destinado primeiro para convento de commendadeiras, que o mesmo rei transferiu para Santos-oNovo, ficando o seu antigo convento conhecido por Santos-o-Velho ; o dos Estáos, fundado pelo regente infante D. Pedro, duque de Coimbra -- palácio que D. Joáo II deu ao Santo Officio, e que depois da sua morte não tornou mais a ser residencia régia -- ; o de Xabregas, fundado pela rainha D. Leonor, mulher de D. João II ; o de Santo Eloy, fundado tambem pela mesma rainha ; e, finalmente, o da Alcáçova fundado por D. Diniz dentro do castello, e que fora residencia habitual dos nossos reis até D. Manuel».

Não falamos nos palos da Moeda, hoje Limoeiro, onde fôra assassinado o conde Andeiro, amante da rainha Leonor Telles, porque esses paços já D. Manuel os havia transformado em cadeia e Casa da Supplicação.

-- A infanta D. Leonor era a promettida do infante D. João, mais tarde rei de Portugal, quando os desejos sensuaes de D. Manuel e as conveniências politicas de Carlos V a obrigaram a casar com o rei afortunado.

Viuva daquelle monarcha partiu de Lisboa para Castella em 1523; e, em 1530, collocaram-lhe sobre a cabeça a corôa dos reis de França.

Antes da partida, e logo depois de ter ficado viuva de D. Manuel, o povo e a nobreza pediram a D. João III que recebêsse a madrasta por esposa : ao que elle se negara sempre, allegando que entre si e Leonor d'Austria se encontrava a tumba de seu pae.

D. João III -- despeitado com a futura mulher de Francisco I por não ter reagido com os caprichos de D. Manuel, e com as imposições interesseiras do irmão --, simulou sempre pela madrasta uma indifferença, que a torturou, torturando-o também.

Pouco depois de ter ella deixado Portugal, a muito custo, onde lhe ficara uma pequena filha -- a infanta D. Maria -- casou D. João III com D. Catharina d'Austria, irmã do Leonor, mais pelo prazer de a magoar moralmente, do que por quaesquer conveniencias politicas, em que não pensára talvez.

D. Leonor, filha do infante D. Fernando, neta d'el-rei D. Duarte, prima e esposa de D. João II, e irmã de D. Manoel, fôra uma piedosa e illustrada rainha. Governou habilidosamente o reino, quando o rei seu sogro e o príncipe seu marido foram guerrear os reis catholicos, e quando el-rei D. Manuel fôra a Castella, a fim de ser jurado successor d'aquelles reinos.

A rainha D. Leonor iniciou a irmandade da Misericórdia de Lisboa; erigiu o famoso hospital das Caldas chamadas da Rainha; fundára o mosteiro da Madre-Deus em Xabregas, etc. etc.

Falleceu em 1524, ou 1525.

D. Manuel morreu em Lisboa a 13 de dezembro de 1521.

Na epocha em que se passou a acção d'esta veridica narrativa, estavam muito em voga o minuete (dansa de passo vagaroso); a galharda; a magana; o gandú; o mandó (dansa importada da India, e de passo vagaroso como o minuete); e, além d'outras, a dansa pyrrhica, que tivera muitos cultores nas ruas e nos salões.

-- Histórico.-- D. Manuel comia ao som da musica, que augmentava a tonalidade, toda a vez que erguia a taça para beber.

-- Esta filha de D. Ignez e de Sancho Tavares, era D. Francisca, a que já nos referimos n'outra nota. Vejamos agora o que a seu respeito dizem Sanches de Baena no seu opúsculo a fls. 30; D. António Caetano de Sousa, na sua [list. genealógica; Damião de Góes na Chronica de D. Manuel; e M. Jouffroy D'Eschavannes no Armorial Universal:

«D. Francisca Tavares, que no baptismo teve o nome de Thoméa, e o mudou na chrisma em Francisca, veio com seus irmãos d'Extremoz, e, mais tarde, foi viver com sua mãe D. Ignez, no paço, onde occupou o logar de moça da camara da rainha D. Maria. Foi com a dita sua mãe em 1521 para a Itália na companhia da infanta D. Beatriz, duqueza de Saboya, e lá casou com João Duyn barão de Vala Ilera, senhor de Cambefort, visconde de Tarentere, e filho de João Marechal, d'origem franceza, e de sua mulher Urbana de Duyn, natural de Saboya, baroneza de Vala Ilera e viscondessa de Tarentere.

Do referido matrimonio descenderam os condes de Vala-Ilera, e outros que uzaram o appellido de Marechal Duyn. D. Francisca Tavares teve por morte de sua mãe a sobrevivencia na tença de quinze mil réis, e mais o dote que por escriptura nupcial os duques da Saboya se tinham obrigado a estabelecer ás damas portuguezas, que acompanhassem a infanta D. Beatriz a Saboya».

A'cerca dos epistológraphos, ou club dos epistológraphos, vejamos o que diz o insigne romancista Alberto Pimentel, no seu famoso romance Um conflicto na corte: «Já sabemos que era grande a corrupção dos costumes em meio do esplendor da corte manuelina...

« ... fidalgos e mechanicos jogavam, muitas vezes, em devassos convívios, extorquindo os fidalgos o suor do trabalho dos mechanicos, e procurando os mechanicos defraudar nas tenças e nos morgados os fidalgos corruptos...

«... em 1521 os abusos cresceram aponto de ser indispensável crear a multa de 300 reaes, pagos da cadéa pelos indivíduos encontrados na varandas do paço jogando o tintini...

«... os odios gerados no jogo desafogavam-se nas ruas em brigas violentas...

«... os moços bem nascidos ficavam no paço mantidos pela ucharia real... mas o que recebiam de moradia era migalha logo absorvida pelas exigências do luxo da epocha; D'aqui a necessidade de traficarem illicitamente...

«... ora os fidalgos conluiavam-se no propósito d'adquirir meios, e d'estes conluios nasciam infames emprezas, algumas das quaes eram o roubo descarado, e outras o roubo secreto. A esta ultima industria pertencia o club dos epistológraphos, miseravel associação de fabricadores de cartas anonymas, que, a peso d'ouro, promettiam vender importantes segredos de familia, denunciar traições latentes, e conspurcar o credito de pessoas abastadas e timoratas!...

«Ao certo não se podia indicar qual ou tal fidalgo pertencia ao club dos epistológraphos...

«... muitas foram as familias, e principalmente as damas, alvejadas pela carta anonyma, que originara graves conflictos...

«... um d'esses conflictos domésticos ensanguentara as mãos do poderoso duque de Bragança, D. Jayme...

«... o duque, sobrinho do rei, casara em 1502 com D Leonor de Mendóça, filha do duque de Medina-Sidonia -- , senhora de fina educação e nobres instinctos...

«... entre as pessoas suas affeiçoadas contava-se uma dama, a quem o moço fidalgo António Alcoforado amava perdidamente...

«... a duqueza era em extremo dadivosa com a dama, e esta com o fidalguinho...

«o club dos epistológraphos intimára por carta o moço fidalgo, a pôr entre as ruinas d'um muro do palácio de Villa Viçosa certa quantia e jóias, sob pena de ser denunciado ao duque como fa- miliar devasso. António Alcoforado correu a mostrar a carta á sua dama, e esta mostrára-a por sua vez á duqueza, que rira da ameaça, dando-lhe ao mesmo tempo uma jóia do seu uso para o Alcoforado a collocar no chapéu...

«... os epistológraphos enraiveceram-se e acceitaram o duello com D. Leonor e o fidalgo.

«... e, pouco tempo depois, recebia D. Jayme uma denuncia de que Antonio Alcoforado andava d'amôres com a duqueza, que já lhe havia dado uma das suas jóias mais valiosas...

«... exacerbou-se violentamente o genio sombrio do duque, que, confessado o supposto amante da duqueza, ordenara a um negro que lhe cortasse a cabeça com um manchil...

«... de seguida o capellão Lopo Garcia passára a confessar á infeliz duqueza, a qual, acto continuo, fôra morta ás mãos do próprio esposo !»

Gil Vicente tambem fôra ameaçado polo club de ser malsinado de plagiário, se porventura não dividisse com os infames epislológraphos o producto dos seus autos! Mas o grande poeta cómico sahira triumphantemente da infamissima emboscada.

-- No brilhante prologo com que Theophilo Braga opulenta o apreciado opúsculo de Sanches de Baena, diz o eminente polygrapho:

«... o longo intervallo em que se não fala de Bernardim Ribeiro, accusa-nos uma ausencia da côrte, um retiro ou desterro a que o poeta por vezes allude»...

«... há noticias d'ella (D. Joanna Tavares Zagalo) se ter apaixonado por um seu parente, e de ter sido, por interesses de familia, obrigada a casar com Pero Gatto, que falleceu pouco tempo depois do seu casamento, tendo sido essa morte violenta».

-- A'cerca dos excessos praticados no paço da Ribeira, e n'outros, veja-se o que diz Rebello da Silva no vol. V. da Hist. de Port.

-- Era D. Francisco Tavares Zagalo.

-- «... os motivos do desterro e demissão do poeta são ainda ignorados».

«E' de crer que D. Manoel -- que o havia nomeado escrivão da sua camara -- desapprovasse o escândalo que os amôres do poeta com sua prima D. Joanna devia ter feito na côrte, e por isso lhe retirasse a sua protecção e o privasse do officio d'escrivão da sua camará, e o desterrasse »

(Sanches de Baena, opúsculo, pg. 20).

-- V. nota antecedente.

-- V. Hist. Port.

-- Por conveniências diversas transcrevemos simplesmente uma pequena parte da écloga de Bernardim Ribeiro, cujos interlocutores são Silvestre e Amador.

V. Obras de Bernardim Ribeiro, pg. 298, edição de J. da S. Mendes Leal Júnior, c F. J, Pinheiro. — Lisboa, 1852.

-- D. Joanna Tavares Zagalo, depois de viuva, foi passar algum tempo em casa de seu tio Alvaro Pires Zagalo, que residia em Alcácer do Sal, até que fôra recolhida no convento de Santa Clara d'Extremoz, onde morreu doida e professa.

V. o opúsculo de Sanches de Baena, pg. 30 e 31, bem como uma das notas d'esta veridica narrativa.

-- D. Manuel falleceu a 13 de dezembro de 1521, e jaz no convento de Belém, que mandara edificar.

-- Como já dissemos, do séquito da infanta D. Beatriz fizeram parte D. Ignez Alvares Zagalo, e sua filha D. Francisca Tavares Zagalo.

-- Tradicional.

-- Diz Sanches de Baena: «... nove mezes depois da morte de D. Manuel, el-rei D. João III, por motivos alé agora ignorados, reintegrou o poeta no officio de seu escrivão privado, por carta de 23 de setembro de 1524».

«Bernardim Ribeiro, a concluir pelos seus escriptos repassados de tristeza e d'uma certa amargura, vivera sempre bastante attribulado.

«Quando a luz do entendimento se lhe ia apagando, teve, em 9 d'outubro de 1519, doze mil réis de tença com um moio de trigo pelo padrão instituido pelo mestre de S. Thiago.

«E' de presumir que não lhe sendo possível, talvez, satisfazer, a esta data, as obrigações do seu officio d'escrivão, e por conseguinte auferir os respectivos proventos, lhe proporcionassem o beneficio acima, para sua indispensável manutenção.

«Seja como fôr, o que não temos duvida em affirmar é que elle morreu doido em 1552 n'uma cella do hospital de Todos-os-Santos, com 70 annos d'edade, e em estado de solteiro»

-- D. Flaminio de Jesus Maria foi cónego regrante de Santo Agostinho e descendente, por bastardia, da familia dos Zagalos.

-- Archivo da Torre do Tombo, livro 1.° de D Fernando a fls. 90 v., e 110 v.

-- Nota-se n'este ponto da noticia genealógica, que o linhagista não affirma a existência d'amores entre o grande bucolico e sua prima Dona Joanna Zagalo (Aonia); amores que, segundo a nossa crença -- aviventada pelas presumpções racionalissimas de Mendes Leal, Camillo, Costa e Silva, Pinheiro Chagas, e outros escriptores de diversos tempos -- ter-se-hiam dado para esconderem os que o poela nutria platonicamente pela filha de D. Manuel. (V. Preliminares d'esta novella). Nem o escandalo, referido alli, tem grande cabimento, attribuido que seja ao galanteio de dois parentes solteiros, sem impedimentos para casarem. Ora tudo isto bem pesado e considerado, leva á convicção de que D. Joanna fora uma victima das conveniencias dos amôres da infanta com seu primo Bernardim Ribeiro; resultando pois que, tanto nós como os eminentes escriptores supracitados, estamos na mais perfeita harmonia com os echos da tradição.

O illustre linhagista justifica muitos dos seus assértos por meio de documentos authenticos, que não transcrevemos na totalidade; pois que o nosso fim, reproduzindo aqui uma pequena parte do seu opúsculo, consiste em provar que a novella O trovador da infanta foi architectada sobre uma base genealógica digna de confiança.

Quanto á controvertida questão dos verdadeiros amores do poeta, o leitor -- lido o romance, e as hesitantes allusões d'esta noticia -- tire as conclusões devidas... que são facilimas de tirar.

O auctor da novela

Nuno Gatto foi cavalleiro fidalgo da casa real, e antigo coutador em Çafim.

A Junta da Casa de Bragança foi creada por D. João IV em 1641, e compunha-se de ministros de maior reputação.

A quinta dos Lobos tambem é conhecida pela denominação de Val-dos-Lobos.