Tríplice Aliança: Edição para o ELTeC Azevedo, Raul de (1875-1957) Criação do HTML original Alina Baldé Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 30607 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org Tríplice Aliança Raul de Azevedo Tríplice Aliança Raul de Azevedo Parceria António Maria Pereira Lisboa 1907

português do Brasil Checked by checkup script Adicionado à coleção ELTeC

Triplice Alliança

DE

RAUL DE AZEVEDO

I

-- Amo-te...

E , ao ouvir a resposta largamente ambicionada, como um sonho irrealisavel, Jorge tomou-a nos braços, beijando-a muito, nos olhos, nas faces, na bôcca entreaberta. Isaura toda ella arfava, mal se debatendo, vencida pelo amôr e pelo desejo. E, ali, no silencio môrno da pequena sala atapetada -- á luz meio-esbatida pelos reposteiros avelludados, -- inebriado pela carne tépida e moça da mulher a quem ha muito queria, embriagado pelo aroma penetrante dos seus cabellos bem cuidados, possuio-a toda, na suprema loucura do gôzo.

...Depois foi um chôro surdo, manso, muito de leve. Jorge, carinhoso, enxugava as lagrimas de Isaura, tendo palavras de amôr e de consôlo. -- Que e má; continuasse a ser bôa para elle. Sabia bem quanto a amava, e os sacrificios que, se preciso tosse, faria por ella. Aquelle desenlace era fatal, desde que ha mezes adivinhara não ser indifferente á «sua Isaura». Seriam muito felizes, muito; confiasse nelle.

E, com vóz commovedora, falou espaçadamente. As palavras escapavam tremulas dos seus labios, pois que a consciencia despertara e via, precisamente via, a traição e a perfídia que acabava de praticar.

Num momento, como que sahindo do torpôr em que estava, Isaura, erguendo os grandes olhos escuros, teve uma phrase que foi um soluço de dôr:

-- Sim, mas o meu marido...

Avivou-se-lhe a miseria toda do seu proceder. E, passado um minuto de silencio esmagador em que os dois sentiram a responsabilidade tremenda da falta commettida, Jorge balbuciou:

-- Foi a fatalidade, minha querida. Tinha de ser.

E beijou-a longamente nos olhos.

... Aquella paixão de Jorge datava de um anno. Viera aos poucos, na convivencia do dia a dia, sem grandes preoccupações da sua parte. Não irrompera ao primeiro olhar, ao trocar o banal aperto de mão. Não. Fôra uma cilada do destino; elle, Jorge da Silva, habituara-se a ir, todas as noites, á casa do socio e amigo, tomar chá. Palestrava-se, fumava-se, tratava-se de negócios e de politica.

Isaura, a mulher do seu associado, Alberto Monteiro Gomes, a principio tinha parte insignificante na conversa. Bordava, a um canto da varanda, emquanto os dois muita vez discutiam este ou aquelle facto. Dava de quando em quando um aparte, distrahida, avivando a palestra.

Casara-se por amôr, havia uns trez annos. E fôra sempre feliz com Alberto, querida e respeitada por elle. Viviam os dois num Lar calmo, cheio de alegrias, e lamentando ambos não ter um pequerrucho que o alegrasse mais, que enchesse de risadas crystallinas aquella casa onde morava o socego.

Quando porém Alberto fez aquella sociedade com Jorge -- havia pouco mais de anno, -- entrara no seu Lar sorrateiramente a perturbação, e a sua alma essa vivia luctando entre o coração e o dever.

Desde que o marido lhe apresentara o moço fluminense, amaneirado e gentil, insinuante é cortez, sem pieguices de lamecha, sentira o coração bater mais apressado. E vacillara durante mais de anno, até que, vencida e fraca, entregara-se ao socio commercial do marido, que passava também a ser o socio do seu Lar.

Alberto tinha larga sympathia e estima por Jorge. Sabia-o intelligente, habil, uma vocação decidida para as grandes operações financeiras. De resto, o moço carioca, falando bem duas ou trez linguas, delicado e amavel, com meia duzia de idéas solidas e praticas, vestindo sempre com esmero, despido de affectação, insinuara-se no espirito do amigo, fazendo-se, sem preoceupações, necessario senão imprescindivel.

Era ouvido em quasi todas as questões intimas de Alberto, e este fizera do socio o confidente da sua felicidade, do amôr que tinha a sua mulher e de toda a bondade do coração da companheira adorada.

Jorge contava trinta annos. De temperamento impetuoso e ardente, educado no meio fluminense, a principio ouvia por gentileza as confidencias importunas do marido feliz. Depois, com a intimidade, insensivelmente Jorge habituara-se a escutal-o e já sentia prazer infindo em beber as palavras apaixonadas do, eternamente enamôrado, deliciando-se com detalhes...

Era só. Sem familia, os pais esses tinham morrido ha muito, solteiro, sem amôres, senão os de cada dia, fôra penetrando no Lar de Monteiro Gomes e, mezes depois da sociedade, percebera com estranheza que estava enamôrado de Isaura.

Quizera romper desde logo, fugir. Mas não havia um motivo justificavel, uma razão plausivel. A Alberto só devia obsequios, finezas, uma amizade de irmão. Como desfazer um contracto commercial que ia prospero, para partir para terras outras?

Alguns dias, num proposito inabalavel, deixara de ir á casa de Alberto. Queria esquecer, ficar bem com a sua consciencia, ser honesto e digno. Mas, num domingo claro e cheio de sol, manhã ainda, como uma tentação diabolica, o socio entrou pela sua casa, e, sem mais se poder conter:

-- Mas então, Jorge, que é isto ? Quem te fez mal lá em casa? Eu? A minha mulher? Porque não appareces, hein? Isto não se explica, não se commenta. Fala, dize lá a razão.

O outro, confuso, explicou: -- Não era nada; indolencia apenas, um pouco de preguiça. Ficava em casa, a ler. Tinha em mãos uma obra interessante. Que perdoasse.

E Alberto, mais tranquillo:

-- Anda, veste-te. A Isaura espera-te para almoçar.

Foi. E naquelle dia achou-a mais encantadora, mais alegre e jovial, bonita no seu simples vestido branco. E não mais querendo ou não mais podendo luctar, entregou se todo ao seu amôr, sentindo um largo prazer em olhal-a frente a frente, elegante e esbelta, com os seus vinte e dous annos em flôr, morena, alta, de olhos negros sombreados por grandes pestanas avelludadas, cabellos pretos e longos, dentes pequenos e brancos, seios que eram duas maçãs, -- um todo de mulher em plena vida, cheia de mocidade e de seiva.

Num momento os olhares dos dois encontraram-se e ambos, como se combinados estivessem, afastaram rapidos a vista. E, nesse dia, retrahiram-se trocando apenas phrazes banaes, de sociedade.

Alberto, calmo, tranquillo, confiante, feliz no seu Lar, amando cegamente Isaura, -- commentava um discurso pronunciado no Senado contra o Presidente da Republica. Era monarchista arraigado, e ali, apaixonada e cruelmente, fazia a critica do governo democratico...

Muita vez os dois questionavam. Jorge, republicano, defendia as suas idéas. Mas, nessa manhã, distrahido, deixou o outro discorrer francamente.

Quando se levantaram da meza, Alberto, batendo no hombro do socio, disse, gargalhando:

-- Já se cala. Em breve, Isaura, é soldado do meu partido.

Riram-se os trez, satisfeitos pela palestra se generalisar. Era uma especie de conciliação, -- pois que Jorge temera offender com aquelle olhar de desejos a mulher do amigo.

E fôra, só dahi a um anno, que se entregara, confessando o seu amôr por Jorge.

II

Ella, Isaura Araújo Gomes, tinha um amante! E, na calada da noite, no grande leito, olhos fechados, pensava. Que fatalidade -- Jorge o dissera, -- a arrastara para os braços dum outro homem que não o marido?! E, tão honesta que era, tão digna, tão orgulhosa do seu nome e da sua felicidade, tão apontada como modelo de esposa... Como se sentia aviltada, indigna, desprezivel!

Isaura, sem enrubecer, não podia mais censurar o procedimento das que esquecem os maridos, ultrajando-os. Seria, -- quem sabe ? -- apontada na rua como uma zabaneira, que inspira asco e nojo.

Entreabrio os olhos, como num sonho. O marido, na cama em frente, dormia, resonando baixo, ao de leve.

Olhando-o, o seu crime tomou proporções pavorosas. Via-o, ao marido, calmo, tranquillo, confiante, -- e ella, Isaura, em retribuição da felicidade que Alberto lhe dera, manchara a sua honra, enlameando-a para todo o sempre!

Voltou a cerrar os olhos, incommodando-a aquella cegueira illimitada do marido. Queria talvez que elle, resoluto, se levantasse d'ali e lhe batesse... Supportaria calada e feliz, por expiar a falta que já agora a torturava.

Ouviu ruido e julgou que era Alberto que se dirigia para o leito. Fez-se muito pequena, encolhendo-se nas dobras do lençol. Ouviu perguntar:

-- Dormes?

Alberto acordara e, cuidadoso, interrogava a mulher. Ella calou-se, fingindo repousar.

O silencio tornou ao aposento. Os seus pensamentos, em revoada, voltaram. Isaura analysava agora toda a situação emmaranhada a que o destino a levara.

Era, de facto, uma zabaneira que se entregara ao primeiro homem que a requestara?

Não e não. Luctara muito, um anno. E que de torturas, que de lagrimas, que de agonias ! Porque a verdade era esta: desde o instante em que vira Jorge, amara-o. Achava-o encantador, uma alma de eleição, como planeara nas suas phantasias de moça. Outra que não ella ha muito teria fraquejado. E doze mezes illudiu a Jorge, fingindo não perceber o seu amôr, os apertos de mão demorados, os olhares cheios de paixão, -- quando todo o seu desejo era desde logo atirar-se-lhe aos braços, dizendo: sou tua!

Depois não podera mais. Receiava que Jorge, não amando a bastante, fugisse para outra. E tinha ciumes intimos, que a torturavam, que a faziam chorar, lastimando a sua desgraça.

O coração poude mais que o dever. D'ahi, dar-se ao amigo do seu marido, trahindo este com a consciencia que fazia uma villeza.

E agora toda a sua vida, outr'ora calma e honesta, emmaranhava-se. Tinha que enganar dia e noite a Alberto, mostrar-se na sociedade indifferente a Jorge, ser, emfim, de dois, -- dum por amôr, doutro por obrigação...

E se o amante, um dia, farto, satisfeito o desejo, desprezasse-a, abandonasse-a de vez... Mas não! Nem pensar nisto: Jorge queria-a, amava-a.

Via-o, de olhos cerrados: alto, elegante, um homem de côrte, sempre lhano e gentil, idolatrando-a ha um anno como um louco, satisfazendo os seus menores caprichos, todos os seus desejos. E dormiu, sonhando que um bello cavalheiro beijava-a no rosto, em todo o corpo, dizendo-lhe ao ouvido: amo-te, amo-te...

Era o «casal a trez», com todas as suas vergonhas e cobardias, fingimentos e miserias. Para Jorge e Isaura começava a vida complicada da infidelidade conjugal, de sustos e temores.

O socego abandonara-os, e tudo eram receios, subtilesas, no pavor que uma phrase, um olhar, um aperto de mão viessem tornar conhecida de Alberto a vergonhosa perfidía.

O negociante de nada receiava. Depositava na mulher e no socio a confiança de sempre. Eram os seus melhor, os mais queridos amigos. E, muita vez, pressuroso, ia buscar Jorge para almoçar ou jantar...

O Lar estava installado: dum lado o marido bom e confiante, leal e honesto; doutro a mulher e o amante, figuras principaes da comedia eterna de miserias e villesas, trocando ás escondidas beijos que eram a mais abjecta prostituição.

E Isaura via toda a sua infamia, e Jorge enxergava a traição feita. Mas, acorrentados um ao outro por um amôr ardente, quasi feito de desejos, já agora não podiam recuar. O mal estava realisado: era ir para adeante, e que o

destino fosse o juiz daquella tragedia.

Era a carne a bramar, reclamando alto o seu quinhão. Temperamentos eguaes, impetuosos, cheios de vida, feitos para o gozo, o corpo entregava-se todo aos prazeres sensuaes, emquanto a alma esta se debatia, luctando, luctando sempre, vendo o despenhadeiro em que ia, o abysmo não muito longe, a lama a pintalgar todo aquelle amôr criminoso...

Quando Isaura, duas vezes na semana, se vestia para ir ver Jorge, lá numa casinha muito isolada da Cachoeira-Grande -- sempre com a desculpa, ao partir, duma visita, dumas compras, d'uma obra de caridade, -- sentia que ao seu espirito repugnava aquella cobardia, mas o corpo este tremia de desejos, toda a sua mocidade ardente cantava o hymno do amôr, e ia como que na sêde louca dos beijos e das caricias de Jorge...

Este, pressuroso esperava-a na pequena sala? -- simples e clara, o «ninho» como chamava, rindo. E trocados os primeiros abraços e os primeiros beijos, a palestra encetada, com ternuras de enamorado, Jorge, aos poucos, cuidadoso, ia despindo a amante. Tirava o chapéu simples, o vestido ligeiro, o espartilho, arrepelando a camisa de sêda branca, e beijando Isaura manso nos braços roliços. Sentava-a; de joelhos, tirava os pequenos sapatos de verniz,

tazendo-lhe momices, caricias de creança. Ella ria, nos olhos o desejo a boiar, e os dois, esquecidos da miseria daquella paixão, entregavam-se um ao outro, loucamente.

Mas, saciados os desejos, quando Isaura tornava a se vestir, havia silencio esmagador entre ambos. E a imagem de Alberto apparecia, serena e confiante, como um remorso eterno.

Os dois comprehendiam a enormidade da falta, e as despedidas eram sempre ás pressas, desejosos de se separarem, findando aquella situação embaraçosa creada pelo momento...

E, lá fóra, as cigarras continuavam a cantar, estridentes e sonoras, enchendo a matta com a musica vibrante de todos os dias.

III

Domingo claro de Abril, o mez florido dos poetas patricios. A tarde morria aos poucos, lentamente.

Jorge e Alberto tinham acabado de jantar, e conversavam no jardim do palacete deste, á avenida Moreira. No salão, Isaura, ao piano, dedilhava uma pagina de Suppé.

-- Pois, meu caro, é como já disse. Eu amo muito a minha Patria, e a Republica é a única forma de governo para engrandecel-a, para eleval-a. Não conheço outra. A Monarchia, meu Alberto, é um sonho...

O outro interrompeu, protestando:

-- Não, não era uma utopia. Ella havia de voltar, esperasse o 15 de Novembro e a revolução arrebentaria, Então sim, teríamos restabelecido o credito, o cambio ao par, e as outras Nações haviam, por bem ou por mal, de respeitar a nossa.

A discussão fechara. Isaura continuava ao piano e lá fóra, na rua áquella hora deserta, um realejo monotono e roufenho assaltava os ouvidos da visinhança indefeza.

As questões entre o republicano e o monarchista eram triviaes. Isaura esta aborrecia-se horrivelmente, e quando lhe pediam a opinião, ás vezes era favoravel a um, ás vezes a outro. Contentava-os, quando não cortava a polemica com uma pergunta extravagante.

Para Jorge a Republica era tudo, o sonho acariciado de moço. No Lyceu, em 87, elle redigira um periodico francamente republicano, com idéas subversivas, reclamando sangue, muito sangue, a guilhotina, emfim, coisas horriveis.

Fez-se homem e era sempre o mesmo incondicional pelo governo democratico. Mas, intimamente, como quasi todos os republicanos eminentes do Brasil, vindos da propaganda, Jorge via que esta Republica que ahi estava não era a que elle pensara. Falseava-se o regimen, illudia-se o povo, desmoralisava-se a Nação.

Por outro lado, Alberto era monarchista confiante, apaixonado, tendo veneração illimitada pelos vultos cahidos em 89. E não poupava argumentos para arrazar o contendor, citando factos, pormenorisando-os, na obra do politico parcial e suspeito.

-- Quando, Jorge, a Monarchia entregou como a Republica um pedaço da Patria ao extrangeiro, quando? Veja a questão do Acre...

Jorge ia responder, talvez sem convicção, para não ficar calado. Mas, neste momento, Isaura entrou no jardim, galhofeira:

-- Que?! Ainda discutem politica, desde o jantar?... Mas isto e intoleravel, meus senhores: conciliem-se e viva a Republica e viva a Monarchia!

Riram ambos. Alberto tinha um olhar baboso para a mulher e Jorge, se podesse, atirar-se-hia aos beijos á Isaura. De toda ella desprendia-se uma graça irresistivel, e o seu corpo triumphante de mulher moça e bella acorrentava os olhares dos dois, tão louca e differentemente apaixonados.

Foram para a sala, para a mesma pequena sala em que Jorge pela vez primeira tivera em seus braços o corpo adoravel de Isaura. E, aproveitando um momento em que Alberto fôra ao gabinete buscar o ultimo numero duma revista, Jorge pegando nas mãos da amante, disse-lhe baixo, como num sôpro:

-- Como te amo, Isaura!

-- Cala-te; elle pode ouvir.

Dahi a minutos a conversa animava-se. Falava-se em coisas diversas: a ultima representação duma comedia franceza, uma chronica, o escandalo dos Gouveia, a mulher abandonando o marido e seguindo o amante...

Alberto atalhou, despreoccupado:

-- Que cães! O Gouveia devia era matar ambos, á bala...

Cahiu silencio pesado. Isaura baixou os olhos, esmagando com os dedos a renda do vestido de gaze. Jorge, ainda commovido, perguntou a Alberto se confiava na operação financeira que tinham feito sobre uma partida de gomma-elastica.

-- Que sim, respondeu. E começou a demonstrar as vantagens, desde que o cambio ia soffrer uma pequena baixa.

O outro, agora mais calmo e tranquillo:

-- Estas operações, meu amigo, são arriscadas. Sabes que não sou um medroso em commercio; mas se um dia a estrella se apagar...

-- Não creias. Jorge. A nossa casa, tu bem o sabes, está solida e firme, como poucas na praça. E depois com a pratica que temos... Vamos de vento em popa; é confiar em Deus.

Isaura levantara-se, fugindo para a alcôva.

Tremia, olhos marejados. Elle, o seu marido, acabara de dizer: -- Gouveia devia era matar a mulher desprezivel e o amante... Estava, pois, condemnada! No dia em que Alberto soubesse...

Teve um arrepio em todo o corpo. E, erguendo os grandes olhos negros para a imagem immácula de Maria, que ali estava, balbuciou recolhida uma prece...

IV

Chegara ha dias duma longa viagem, com a sua unica irmã, o dr. Luciano Cerqueira Monteiro, advogado de nomeada, de alto criterio e esmerada educação.

Regressara depois dum anno de ausencia de Manáos, e voltara com a irmã, a gentilissima Clarisse, -- uma bella flôr que desabrochava para a vida e para o amôr.

Clara e esbelta, de olhos cheios de languor e de largas promessas, de cabellos castanhos, bôcca pequena continuamente frizada por um sorriso, Clarisse se fosse um pouco mais alta seria com os seus dezenove annos um verdadeiro typo de belleza.

Como o irmão, tinha a palestra facil, pontilhada de ironia, aqui e ali uma observa justa. E todos os que se approximavam della ficavam presos daquelles olhos ternos e fallar caricioso.

«O dr. Luciano era homem de trinta e seis annos, jornalista de tempera rija e escriptor e penetrante. Da altura de Clarisse, vestindo com simplicidade, impunha-se pelo talento e illustração.

Viera da propaganda republicana, mas conservava-se arredío da administração. A sua banca de advogado rendia o bastante para manter-se com a irmã num certo conforto, e duas ou tres vezes recusara logares cobiçados por diversos.

Alberto e Luciano eram muito amigos. E logo que regressara, no primeiro domingo, Alberto convidara-os a almoçar, numa festa intima. Jorge era conviva habitual.

O almoço desde o principio correu alegre, cheio de commentarios. Alberto, interessado, interessado.

-- Agora, Luciano, até onde foste?

-- Ah! realisei um dos meus sonhos dourados. Como sabes, a America do Sul sempre me attrahiu. E não fallo por ser brasileiro... Não. Conheço parte da Europa, mas tinha um grande desejo de ver todo o nosso continente. Fui ao Chile, fui a Republica Argentina... Que bonita viagem! Clarisse que o diga.

A irmã, americana do sul enthusiasta. confirmou as palavras pronunciadas. -- Que sim! Como o Chile e a Argentina eram dois grandes paizes, rivalisando talvez com os melhores da Europa! Que bellos palacios, que sociedade culta, que povos lhanos e bons!...

-- ... Tudo como no Brasil, commentou delicadamente Jorge.

-- Sim, como na nossa grande Patria, replicou o advogado. As mesmas qualidades caracteristicas do brazileiro, a bondade e o patriotismo nem sempre bem orientado. O progresso material muito e muito avantajado; eguaes os habitos e costumes. São bem nossos irmãos, por temperamento e pelo coração.

-- Dizem, atalhou Alberto, que as argentinas e as chilenas são typos de bellesa, de grande elegancia e cortezia.

-- Não são mais bonitas que as nossas patricias, disse Isaura, fingindo-se amuada.

Clarisse teve uma risada vibrante, e voltando-se para a amiga:

-- Não são mais bonitas do que tu...

Riram alegremente, e Isaura enrubeceu com o cumprimento.

Falou Luciano:

-- Não sejamos optimistas. Como em nossa terra, como em toda a parte, lá, na Argentina e no Chile, ha feias e bonitas. E peço licença para citar o auctor desta observação, que e o Snr. de La Palisse... Mas, vi nesses dois paizes verdadeiros typos de belleza, como bem disse Alberto. Ellas têm o mesmo encanto, a mesma doçura, a mesma elegância e graça das brazileiras.

A conversa animava-se. Os apartes eram trocados, a palestra ia viva e scintillante. Jorge dizia:

-- Mas, os gostos são tão differentes...

-- Claro, respondeu Luciano. O que e bello para você, pode ser feio para mim e vice-versa. Triste da vida se os gostos fossem eguaes, meu amigo. Eu, por exemplo, não encaro a mulher como uma machina de procrear. Quero-a elegante, educada sem arrebiques, cuidando do seu corpo, aperfeiçoando a belleza com que por acaso a natureza a dotou. Quero-a assim, bonita e airosa, bem tratada, e -- vejam lá, -- espartilhada! Sim, porque eu quando desejo ver a mulher como a natureza a fez, corpo á larga, fujo da cidade, ando algumas horas, vou para o campo. Mas, Deus meu, em plena capital, se nós vissemos por acaso, em um salão de alto estylo, com velludos caros e mobilias luxuosas, uma camponeza, que idéa teríamos?...

-- Mas, então, interrogaram, a maternidade também o revolta, porque desfeia o corpo?!

-- Que absurdo! Longe, muito longe disto.

Eu quiz apresentar a vocês o meu typo de belleza, humano e digno da palheta dum artista. A maternidade é, das obras da natureza, a mais bella, a mais surprehendente e maravilhosa, a unica que atravessará sagrada todos os seculos. Mas, por isto, se deve abusar da mulher? Tornal-a machina de procrear e, todos os annos, desfeial-a, deformal-a com a gravidez? Não é um organismo delicado, franzino. Uma mulher bella, verdadeiramente bella e encantadora, que se case e que comece a ter, todos os annos, um filho, fatalmente perderá essa belleza. É lógico: as melhores machinas, e são machinas, depois de muito usadas, gastam-se.

-- Então, tornou Alberto troçando, qual é a sua conta?

-- De vagar, meu amigo. Sabe bem que sou um solteirão, por temperamento. Tenho um Lar organisado, e uma irmã cuidadosa. Emquanto ella fôr solteira, não me caso, e depois... creio também que não me casarei. «Não tenho

conta», e seria tolice marcar tantos filhos para cada casal. Isto váe de temperamentos, e de educação. Mas, não é bárbaro, diga-me, vêr uma pobre senhora com dez e doze filhos! E, em conclusão, a minha these é outra: nós devemos amar a mulher pela sua belleza, pelos seus encantos e pelas qualidades affectivas, e nunca enxergar nella apenas um instrumento de prazer, emfim, uma machina de procrear!

Levantaram-se. Na sala, Clarisse abrindo o piano, executava um trecho da Carmen. Jorge voltava a pagina da musica, respirando o aroma embriagador dos cabellos de Clarisse, olhando em cheio todo o seu perfil airoso e leve, adivinhando através do decote suave do vestido dois seios arredondados... Isaura, impressionada, ouvia distrahida a Luciano e Alberto, com os grandes olhos pousados no bello par que via adeante...

V

A manhã ia alta quando Isaura chegou a casinha da Cachoeira-Grande. O sol, como um grande lençol amarello, estendia-se por toda a matta. Era a natureza em pleno triumpho, cheia de bellezas e maravilhas surprehendentes.

Aquella hora reinava um grande silencio em todo o aprasivel suburbio. Na estrada deserta dois bois mansos gosavam os raios do sol. Uma graúna, num galho de frondosa mangueira, grazinava alegre. Ao longe ouvia-se o rodar celere do bonde.

Oito mezes tinham aquelles amôres, e as entrevistas estas eram insensivelmente espaçadas.

Isaura continuava a ter a mesma paixão por Jorge, mas a sua consciencia despertara, remordia-lhe mais e mais, condemnando o crime já agora inapagavel.

Nos dias combinados levantava-se cedo e, horas a fio, perdia-se em longas divagações. -- Iría, não iría! E apparecia-lhe a imagem de Alberto, tão bom, tão digno, tão distincto!

-- Mas, se não fosse, pensava, Jorge podia zangar-se e -- quem sabe? -- deixal-a para amar uma outra. E, aos poucos, na indecisão habitual, vestia-se, em busca dos beijos do amante e desprezando-se pela traição feita marido. Era a lucta que a torturava, que lhe roubava o socego de espirito, -- castigo para a falta imperdoavel.

Jorge recebeu-a com delicadesas, mas sem arrebatamento. Lia um romance empolgante nem notara a demora de Isaura. Esta mordeu os labios, despeitada, e queixou-se logo d'uma cephalalgia, que a não deixara dormir.

Sentaram-se. E começaram uma palestra banal, para encher o tempo. Falaram no livro que Jorge lia, e, de repente, n'uma crise de nervos, Isaura desatou a chorar, soluçando alto, commovida.

-- Mas, querida, que tens tu? O que é isto? Não sejas creança; porque choras? Quem te fez mal! Dize...

E Jorge beijava-a nas mãos, acariciando-a, enxugando as lagrimas que corriam em borboletas dos bellos olhos da amante. E esta, balbuciando:

-- Sou muito infeliz, Jorge! Que loucura a nossa!

Era o mesmo remorso a castigar os dois. Jorge tinha tambem a alma em desassocego, e, ás vezes, largo tempo levava a pensar em que dariam aquellas relações criminosas. E accusava-se de ser duplamente infame, com Alberto e Isaura. Pagava alguns dias de gôso ephemero, com uma expiação tremenda. E todos os dias, quando apertava a mão leal do socio, sentia-se vil, amesquinhado, cobarde.

A sua falta, como um polvo de cem garras, prendia, dominava o espirito. E, satisfeita a carne, aquillo que elle pensava ser uma paixão revelava-se-lhe com surpreza ao espirito apenas como um desejo impetuoso e ardente. E, mezes passados, via com horror que a atração que lhe inspirava Isaura era apenas a do macho pela femea.

... Quando, agora, fechava-a nos braços, cobrindo de beijos o seu corpo esculptural, Jorge adivinhava, via que entre elle e a amante estava a figura de Alberto. E as suas caricias, os seus afagos, tinham menos ardor, menos vehemencia, -- sabendo o crime que praticava ao beijar o corpo de Isaura.

Esta, mulher, percebia que os afagos de Jorge não tinham a espontaneidade de outr'ora e acreditava que o amante, enfastiado, não mais a quizesse, repudiando-a por outra.

Não se lembrava, na sua idéa persistente, que tambem os seus beijos e os seus abraços não tinham a paixão de outrora, pois que o remorso triumphava na sua consciencia honesta. Torturavam-se.

Mas Isaura não se podia conformar com aquella friesa delicada de Jorge. Ella amava-o, como louca. E se, pressurosa, ardente, não corria mais ás entrevistas, era porque o seu espirito se revoltava com aquelle procedimento asqueroso, apesar do coração mandar que fosse, que se entregasse mais uma vez a Jorge, que o não deixasse escapar das suas mãos de apaixonada sincera...

Partia. Jorge, commovido, ajudou-a a collocar o chapeu simples. E, á porta, quando se despedia, Isaura interrogou, desarrufando-se :

-- Ainda me amas, Jorge?

-- Sempre, louquinha, sempre!

E o seu coração batia por Clarisse.

VI

O dr. Luciano realisara, no Gymnasio, a annunciada conferencia sobre a America do Sul. A concorrencia fora enorme e selecta; os applausos vibrantes cortavam de momento a momento a sua palavra.

Elle bem sabia que uma conferencia reclamava dotes especiaes de erudito e palestrador. Era preciso não fatigar o auditorio, -- instruir, deleitando. Quanta conferencia ouvira aborrecido, cançado, num estado de espirito desolador!

Fôra, porém, feliz. As suas palavras fizeram écho: abordara assumpto patriotico, -- o amanhã da America do Sul. E Luciano, em phrase burilada e sem arrebiques, em estylo claro e limpido, desenrolara a grande idéa pela qual vinha se batendo ha muito: a Triplice Alliança na America do Sul -- o Brazil, o Chile, a Argentina...

Sim! Elle queria a união a mais completa, commercial e social, de defeza, das trez grandes Nações americanas. Politico experimentado, inteligente e habil, via que se a cadeia fraternal não se apertasse mais e mais, estavam estas Patrias sempre ameaçadas. O temor e a desconfiança eram de todos, dos bons patriotas.

O perigo vinha da Europa, dos grandes paizes, e, reflectissem, da America do Norte... Sim, da doutrina verdadeira de Monröe, como hoje elles a adoptam: «a America para os Americanos... do Norte.»

Dissera o dr. Luciano:

«... É preciso que o Brazil, o Chile e a Argentina façam uma alliança mais absoluta, na guerra como na paz. Que a Europa e, principalmente, a America do Norte saibam que a America do Sul é um só territorio patriotico: -- solus, totus et unos. Está forte porque é unida.

Formando um só todo, seremos grandes e respeitados; representando apenas Republicas isoladas, duma insignificancia positiva comparadas com velhas e poderosas Nações, seremos espesinhados na lucta. Hoje, quem vence é o direito da força e não a força do direito. Os exemplos suecedem-se dia a dia; desnecessario enumeral-os. Cuba, o Transwaal...

Sejamos precavidos e, se quizermos ser livres e independentes, façamos a Triplice Alliança.»

De resto, era esta a idéa antiga de Luciano.

As suas viagens ás Republicas da Argentina e do Chile obedeceram mais ao desejo de estudar de perto, de vêr os dois grandes paizes americanos. E voltava-com a convicção arraigada, absoluta, de que deviamos formar, como a Europa formara, a nossa Triplice Alliança.

Tudo nos chamava para ella. Raça, costumes, habitos, topographia... Temperamentos, estes eram quasi os mesmos. Interesses material e moralmente já estavam quasi presos, ligados. Para que demorar a união que nos traria, forçosamente, o respeito e o poder?

Eram trez grandes Nações amigas, ricas, novas, com um largo e assombroso futuro. Porque não evitar o mal, a ter de remedial o? A politica americana do norte dum imperialismo atroz já olhava cobiçosamente as nossas terras e riquezas... "Continuemos amigos da Patria de Washington, mas sejamos cautelosos... Não arrependeriamos d'isto.»

E Luciano, abraçando a idea com enthusiasmo, exaltava-se. Elle conhecia bem, accrescentara, o Brasil, sua Patria querida. Sabia da sua riqueza colossal, maravilhosa, e da generosidade illimitada dos seus patricios. Conhecia o paiz do sul a norte: ao sul -- o café, ao norte -- a gomma elastica. E só ahi estavam dois elementos de grandeza sufficientes para despertar a cobiça de poderosas Nações. elle conhecia também o progresso e as riquezas do Chile e da Argentina: a fertilidade espantosa do seu sólo, -- tão productivo como o nosso, todas as suas grandes fontes naturaes de prosperidade. Era necessario trabalhar, agir.

E, na tribuna, e na imprensa, no jornal e no pamphleto, o dr. Luciano entregava-se ardentemente á sua grande campanha. No circulo os fizera proselytos; ia, a golpes de talento e de razão, abrindo caminho, solapando o terreno, e a idéa ganhava vulto, era discutida, commentada. A maioria de brazileiros, argentinos e chilenos tinha o mesmo pensamento do propagandista fervoroso. Podia-se mesmo dizer que nos corações a alliança estava feita.

O dr. Luciano exultava n'esse dia. A sua conferencia tivera grande exito. E rejubilava por fer feito mais alguns partidarios.

De volta para casa, já no carro, dizia á irmã :

-- A idéa caminha. Havemos de triumphar.

VII

Jorge voltara bastante impressionado da conferencia de Luciano. E, uma noite, em casa de Alberto, feriu a questão, no amago.

Luciano explicou logo. Era incondicionalmente pela Triplice Alliança. Unidos os trez paizes da America do Sul, os outros, os menores, haviam de agrupar-se em redór da bandeira liberal e protectora. Era fatal, concluiu.

-- Mas, accrescentou Jorge, nós precisamos da Europa e da America. O commercio...

-- Exacto, retrucou Luciano. Mas, é preciso não confundir: a Triplice Alliança não vem desafiar, declarar guerra; é a defezsa previdente e direi mesmo imprescindivel. Tudo continuará como está, com a differença de sermos mais respeitados... E isto, hoje em dia, é tudo.

Mas precisamos também de tratar da nossa independencia commercial. O solo brazileiro é fertilissimo; entretanto, quasi tudo importamos da Europa e da America!

-- A lavoura, falou Alberto, é a maior riqueza do Brazil. Se os nossos governos fossem previdentes a ella dedicariam todo o seu esforço e actividade. É o futuro do paiz; na lavoura está a nossa grandeza.

-- Sim, concluiu Luciano. Querem salvar a America do Sul, fazel-a forte e livre? Façam a Triplice Alliança e cuidem da lavoura que é a grande felicidade dos povos!

Dia a dia Isaura estava mais triste e distrahida. O marido notara aquella subita mudança da mulher, e duplicava de cuidados. Chamara medicos, e todos respondiam que não era nada, nervoso apenas. E receitavam calmantes.

Mas Isaura continuava aborrecida. Agora tudo a enfastiava, e tinha prazer especial em torturar Jorge com allusões ferinas, procurando attrahil-o a força.

Porque Isaura tinha já a certeza que não era mais amada como outr'ora por Jorge. As entrevistas dos dois, na Cachoeira-Grande, tinham espaçado. Viam-se, todos os dias, mas em casa de Alberto. Andavam mesmo arrufados, com alegria do amante e enorme desespero de Isaura.

Elle via, porém, apprehensivo, a amante adoecer. Sentia-se, no intimo, culpado. Isaura tinha ciumes, talvez sem razão, de Clarisse. E zangava-se, revoltava-se.

Jorge percebera que amava a irmã do dr. Luciano. Mas, nada lhe tinha dito, e so trahia no olhar. Se ainda não tinha falado, declarado o seu amôr, era porque isto importava numa perfidia para com a amante, e sabe Deus o que aconteceria!

Isaura surprehendera os olhares de Jorge, e adquirira quasi a certeza da paixão deste por Clarisse. E, comsigo, jurara numa obra de vingar, frustrar aquelle casamento. Jorge esquecera-a, abandonava-a quasi, mas não realisaria o sonho almejado.

Num dia em que os nervos lhe vibravam mais alto, perguntou, carinhosa, á amiga:

-- Então, Clarisse, como vamos de amôres?

-- Que amôres?! disse, intrigada e surpreza.

-- Ora! Então não se está vendo! Julgas que sou uma tôla...

-- Mas, minha querida, affirmo-te não saber do que se trata.

-- De quem? De Jorge...

A outra olhou a amiga e protestou. De Jorge?! Mas, nada havia, absolutamente nada. Nunca tinham trocado uma palavra, além de banalidades sociaes e duma certa intimidade travada na propria casa de Alberto. Que tolice a da amiga!

-- Mas, continuou Clarisse, a que proposito esta pergunta?

-- ... porque gosto muito de ti, queridinha.

Porque Jorge é tão leviano e tão extravagante com mulheres... Emfim, se nada ha...

-- Nada. E nem Jorge tem affeição por mim. É uma tolice tua, Isaura.

A amiga não se conformou. Era impossivel.

Certo. Jorge já havia declarado o seu novo amôr á irmã do advogado... A outra é que era reservada. Mas, «O Snr. Jorge havia de se arrepender».

VIII

Luciano e Jorge voltavam da casa de Alberto. Era tarde: onze horas da noite. Tinham feito musica e agora, de regresso, vinham a passo. As ruas estavam desertas, pintalgadas por grandes focos eléctricos, que espadanavam luz a jorros. Aqui e ali cães vadios ladravam, es torneados.

O bonde já tinha passado e não estavam para esperar outro. Foram andando, vagarosando o esplendido luar e continuando a palestra encetada.

-- Pois, meu Jorge, folgo em o vêr tão decididamente pela Triplice Alliança. Ella impõe-se: quem mais amigo nosso que o Chile? E não podemos contar com o apoio decidido da Argentina? Umas opiniões que ha em parte da sua imprensa e do seu povo, essas mudarão com a alliança. E Brazil, Chile e Argentina, farão uma inquebrantavel corrente, forte pela amizade e pelo valôr.

O commerciante, batendo com a bengala na calçada, respondeu:

-- Sim, eu hoje penso como você, doutor. Ao principio tive duvidas, confesso-o. Mas, pelo nosso interesse, felicidade e segurança precisamos fazer esta união. Nós, negociantes, também lucramos. Os trez mercados são fortes e abundantes, e muitos dos nossos generos, com lucros reciprocos, podem ser collocados nas praças apontadas.

-- Exactamente, respondeu o advogado. As vantagens são innumeras e, se a alliança já estivesse feita, outra seria a nossa situação.

Mas, emquanto devanearmos em politica, teremos sempre... isto que ahi está. É doloroso dizer, mas é a verdade.

Foram descendo, agora silenciosos. Um transeunte, apressado, cortou a rua, assobiando a valsa dos Granadeiros. Na Municipal a patrulha cabeceava de somno.

Palestraram, depois, em banalidades. Um artigo de jornal do dia; a ultima representação da Mascote, a xyllographia allusiva duma gazeta...

Falaram sobre o ultimo livro de Bourget, que tanto successo fizera na Europa. Já o tinham lido. E commentavam:

-- Bourget muda... disse Jorge.

-- Claro, accrescentou Luciano. A sua ultima obra tem outra elevação moral, e de molde diverso. Emfim, Bourget convenceu-se de que não adeanta estygmatizar no livro a traição da mulher. O thema está debatido e gasto, e, afinal, meu amigo, -- o principal castigo para o adulterio é proprio adulterio.

Despediram-se. Luciano estava á porta de casa. E Jorge, impressionado, repetia a ultima phrase do amigo, -- o castigo do adulterio é o proprio adulterio.

Que de verdade ia nestas palavras! -- pensava o negociante. Como se ajustavam bem ao seu caso: não tinha tido até áquella hora a tragedia, a bala ou o punhal do marido ludibriado. Mas, que de remorsos! Mas, que de tortura!

Que desassocego d'alma e de espirito! Que situação desgraçada, quando já amava outra e, por dever, -- um dever original -- estava acorrentado á adultera! Um drama de coração e que buscara; talvez o desmoronamento de

todo o seu futuro...

E, se fosse livre, completamente livre, se não receiasse uma loucura de Isaura, com que alegria já teria corrido para Clarisse, dizendo-lhe que a amava, que a amava como um doido!

Um carro passou, rapido, abalando os pensamentos de Jorge. Despertou, como que dum sonho. E, tirando uma fumaça do charuto, que se apagava, apressou o passo, rumo de casa.

IX

Ah! essa Triplice Alliança, como elle a desejava! E Luciano, muita vez, a sós no seu gabinete, formava um grande plano de amor e de concordia, deixando o pensamento atravessar os mares, ir aos paizes amigos, ao Chile e á Argentina, no sonho continuo a que se entregara, de vêr unidos, estreitamente ligados, como numa corrente ferrea, as trez grandes Nações da America do Sul. Elle queria, de vez, a união social e financeira desta America tão rica, tão exuberante e tão ambicionada!

Porque o perigo Luciano via-o na America do Norte, nas potencias imperialistas da Europa. Era a conquista moderna, subtil, quasi despercebida, lenta ao principio, habilissima e perigosa. Ao Sul já o allemão ia dominando no commercio, na politica, na imprensa, nas escolas... Sim! Elle assistira á desnacionalisação da sua lingua, brazileiros que em vez de aprenderem o portuguez, balbuciavam o allemão... Era o imperialismo de hoje, das grandes Nações civilisadas, a solapar o terreno que nós abandonavamos com tanta imprevidencia.

Ao Norte, a corrente ia-se desenvolvendo aos poucos, lentamente; a região não estava, como a do Sul, quasi empolgada por dois ou trez povos da Europa. Mas vinham chegando...

Um vaso de guerra americano, a Wilmington, sem licença do governo brazileiro, entrara de assalto no Amazonas, inspeccionara os rios principaes, levantara cartas, fizera sondagens... Os allemães tinham mandado um navio da sua flotilha de guerra ao extremo-Norte...

Era preciso cuidar do amanhã, sustentava Luciano. O Brazil era cobiçado por Nações poderosas: necessitava acaulelar-se. Para ser respeitado, tinha de ser forte. A sentimentalidade não fora creada para os paizes, e sim para os namorados. E, não seria com discursos, com meetings escaldantes, com artigos pavorosos, que se salvaria a Nação!

Luciano queria um exercito e uma armada como a sua Patria necessitava, sem canhões imprestaveis e navios estragados. Só assim seria respeitada, porque era temida...

Mas, a nossa hegemonia na America do Sul estava perdida. Outrora tinhamos a primeira armada, e um dos primeiros exércitos... Hoje, viviamos das glorias passadas, o que, nesta época de imperialismo, é pouco, e quasi nada.

Emfim, que Deus se compadecesse de nós...

Justamente lêra, nos jornaes da recente mala da Europa, um artigo do Temps que fizera grande écho. Dizia o velho orgam que só uma Triplice Alliança da America Meridional, em que entrassem o Brasil, o Chile e a Republica Argentina, poderia conter o imperialismo yankee, cujo apetite se desenvolvia a olhos vistos, e que, não contente de ter almoçado as Antilhas e jantado o isthmo da America Central, para se proporcionar com elle uma opipara ceia, apanharia agora de boa vontade o Amazonas...

Calaram no animo do ardente patriota os conceitos do habil polemista. Elle bem via o perigo, e, intimamente, folgava que a imprensa mostrasse ao povo o amanhã da Patria querida. Podia ser que surgisse uma vontade ferrea a conjurar a hecatombe que prophetisava no seu inquebrantavel patriotismo.

Mas o povo este já não sabia querer... O povo das Missões, da Trindade, do Amapá, conservava-se quasi indiferente ás grandes questões internacionaes. O Acre não o fizera ulular; apenas o povo da região protestara, e um ou outro individuo desmanchara-se num vivorio inexpressivo e monotono. As chamadas classes conservadoras estas, como sempre, foram levadas de enthusiasmo retumbante, saudar com musica e foguetes os heróes do dia...

Poderia esperar alguma cousa? Faría, com outros, o milagre espantoso de reerguer a opinião publica, abatida por tantas decepções? Tería, ao seu lado, ao menos, uma centena de trabalhadores leaes e intransigentes?

Sim! Luciano confiava na causa que abraçara com tanto ardor. Ella havia de despertar o animo publico. Não hoje, não amanhã, mas algum dia... E talvez ainda fosse tempo de salvar o Brazil e as outras Nações sul americanas.

Mas, perguntava-se, e o Chile, e a Argentina? Sim, o Chile sempre fora nosso leal e dedicado amigo; elle estaria pela Alliança, como a Argentina. Os contrários á idea só oppunham este argumento fraco: a Argentina não é nossa amiga... Mas é um erro; opiniões individuaes não prevalecem nas maiorias. É claro que pode haver algumas desaffeições, mesmo inimizades. Mas, são arrufos de visinhos... Sombra que pass, não manchando o quadro. O seu Governo, os homens eminentes, são nossos, e, depois, era uma Alliança de defeza, de interesses reciprocos, em que todos teriam a lucrar.

O Brazil retalhava-se. Era preciso uma vontade ferrea afim de acorrental-o. para que o estrangeiro audáz não viesse arrancar outros pedaços da Patria. Era necessario reerguer a opinião, levar a fé a todo um povo abatido e descrente por uma centena de erros e de crimes, convencel-o num trabalho insano mal não era da Republica, e sim de muitos dos que governavam.

Ah! elle bem sabia a descrença que avassalava o espirito do povo, a saudade que este ia tendo dos dias de outr'ora, que nos parecem sempre melhores dos que os de hoje. O mal não era do regimen, e sim da maneira porque em geral o executavam, -- já o tinha dito milhares de vezes.

Era republicano, e não perdera a confiança nos homens da sua Patria, tão rica em talentos e em patriotas. Dia viria, talvez não mui longinquo, em que os homens puros e bem intencionados seriam somente os directores deste povo demasiadamente bom e exageradamente calmo.

E a Patria estaria salva.

X

Noite. A tua, como uma roda de prata, illuminava o jardim alegre da pitoresca chacara de Alberto. No ar, havia um aroma suave de jasmins e cravos. De longe em longe, cortava o silencio o grito estridente de alguma amazonica. A agua espadanava da pequena cascata erguida ao meio do terreno, tomando cores variegadas com o reflexo das lampadas electricas.

No pateo, gosando a doçura daquella noite de verão, Isaura contemplavam a natureza. Havia uma grande quietude nas arvores, e, ha muito, elles ali estavam parados, olhando os jasmineiros em flôr, aspirando o aroma das madresilvas que se enroscavam como cobras nas grades prateadas da escada-

ria. Vibrava, no silencio, a Alma ignota das cousas.

Olhavam. E os seus pensamentos estes estavam bem longe... Passara o tempo em que elles andavam irmanados, vivendo a mesma vida. Agora, no recolhimento daquella noite enluarada, Jorge e Isaura sentiam-se constrangidos. Parece que um vácuo havia entre ambos, um abysmo cavara-se entre aquellas duas almas outr'ora tão estreitamente unidas.

Isaura, na quietude daquella hora, tinha o pensamento abotoado ao passado. Recordava, com delicia, todo o começo do seu amôr por Jorge, o anno de luctas que tivera, as pequenas phrazes cheias de malicia, os apertos de mão fortes e rapidos, e, emfim, aquelle momento inapagavel em que, sem mais se dominar, entregara-se toda ao amante vencedor!

E Jorge ali estava, alheio á mulher que prostituira, o coração todo elle com Clarisse. Via, -- precisamente via aquella hora de paz, -- a elegante patricia, e recordava o seu todo de mulher fidalga e gentil, simples e modesta, eternamente encantadora. Mas para que pensar nella, se nunca a possuiria, se nunca teria o seu amôr!

Amava-a, sim, mas no silencio, sem poder dar demonstração daquelle sentimento que já agora o torturava. Podia declarar a sua paixão? Não e não, -- era a resposta que a sua consciencia lhe dava. Não tinha o direito de desgraçar mais a Isaura, que se dedicara toda a elle. Era um cavalheiro, e ahi estava o castigo para o seu crime. E, de resto, Clarisse gostaria d'elle ?

Não, não poderia gostar, respondia a si proprio. Se não, já o tinha percebido nas longas palestras que sustentavam. E quem sabe se Clarisse, mulher intelligente, não havia percebido a sua ligação com Isaura?

Esta idéa despertou o. Como que se espantou de estar ali, junto a Isaura. Estava alheado a tudo, naquelle momento, a não ser o seu amôr. Vio, pela janella escancarada, Alberto, no gabinete, a trabalhar preoccupado. Olhou attento para Isaura.

Esta scismava ainda. Os cabellos ondeados cahíam espaduas abaixo. O luar, batendo em cheio sobre o seu corpo, dava-lhe um aspecto de monja. Os olhos semi-cerrados, as mãos delicadas estendidas na cadeira de vime, a fronte pallida, deixaram ao espirito impressionado de Jorge uma idéa assustadora. Pareceu-lhe que Isaura morria...

E, num grande gesto, num impeto de ternura e de remorso, pegou da mão da amante, e, beijando-a leve, perguntou:

-- Em que pensas, querida?

Isaura sahio daquelle estado d'alma que a deliciava. E, sobresaltada:

-- Mas o que é? O que tens?

-- Nada. Estavas tão distrahida. Em que pensavas?

-- No passado, Jorge. Nos dias felizes que tivemos, quando a esperança enchia os nossos corações. Ah! como eu vivia satisfeita no meu crime, porque, ao menos, era amada!

Jorge replicou. Não fosse injusta. Só os namorados é que julgam o amôr eternamente moço e ardente. Passado o primeiro impeto, vem a calma, a reflexão, a certeza de ser amado. As caricias já não são continuas, embora haja a mesma amizade... Para que lhe fazia esta injustiça?

Isaura, como continuando o seu sonho, sorrio. Para que responder? O amante vinha sempre com as mesmas palavras, as eternas phrazes de desculpa e bondade. Para que incommodal-o, tortural-o, afugental-o mais com observações e queixumes?

Cahira silencio pesado. Agora, acordados, para longe os pensamentos que os tornavam abstractos, se sentiam constrangidos. A vontade do amante, se não fosse o dever imperioso e original a que se traçara, era sahir dalli, ir para longe, para outras terras, viver apenas da recordação de Clarisse.

Isaura sentia-se doente. O seu espirito vivia num grande abatimento, sem vontade e sem desejos. O marido notara, angustiado, a mudança que se ia operando dia a dia, lentamente, na mulher querida. Passava dias quasi sem se alimentar, nervosa, ora irritada por uma ninharia, ora a chorar á tôa. Chamara mesmo, contra a vontade de Isaura, dois ou trez medicos amigos. Estes, depois de um exame attento, ficaram sem poder fazer um diagnostico serio. Nervoso... Passeios ao ar livre, boa alimentação, exercicios.

E Alberto observava, com afflição, que a doença de Isaura progredia. Estaría gravida?

Ah! que encanto para elle ter um filho, -- o seu sonho dourado que a Natureza ingrata lhe negava. Como desejava ter um pequerrucho, que alegrasse o seu Lar calmo, que viesse brincar consigo, nos joelhos, de volta do trabalho!

Mas Isaura, irritada, disse-lhe que não. -- Não fosse creança, tivesse juizo! E elle perdera a ultima esperança...

Propôz uma viagem. Iriam ao Rio de Janeiro, Buenos Ayres, ao Chile, -- terras tão festejadas por Luciano. Ou se não, iriam á Europa. Passariam uns mezes na França, na Hespanha, na Italia, naquella encantadora Suissa... Mas Isaura não quiz. Não sahiriam de Manáos. Não tinha nada, já lhe dissera. E, morrer por morrer, queria ir para o cemiterio da sua terra natal.

Estas idéas affligiam Alberto. Não vivia socegado, no receio continuo da vida de Isaura. Por momentos, parecia-lhe que um desgosto profundo torturava a sua amiga. Mas o que? Se ella tinha tudo, se nada, nada lhe faltava?... Uma estrella cadente passou, cortando fugidia o espaço numa linha de luz. Isaura falou, apontando a estrella:

-- O teu amôr, Jorge...

O amante rio, troçando. Chegava Alberto. E os trez, entrando na sala, foram fazer musica. Alberto reclamou o Rigoletto, a eterna e frivola ballata do duque de Mantua:

La donna é mobile...

XI

Clarisse era de certo uma das moças mais galantes da terra amazonense. Nos salões, nas festas dos Clubs principaes, despertava sempre áttenção pela simplicidade e elegancia do vestir, pela palestra variada e encantadora, salpicada d'uma ironia que ás vezes era o castigo para uns tantos preciosos «leões» de sala, vasíos de idéas e exuberantes em collarinhos e gravatas flammantes.

Bonita, sem ter porém a belleza fascinante e provocadora que estonteia, ella, mulher intelligente que era, sabia bem o poder que exercia na sociedade que frequentava, dominando pela modestia e pela intelligencia aquelle grupo que quasi sempre estava em desacordo de opiniões...

A sua mão fôra pedida duas vezes, -- por um medico gentil e um engenheiro afortunado. Não amando nenhum delles, nem tendo esta inclinação simples que muita vez é consagrada pela Lei e pela Egreja, recusara-os attenciosamente, pezarosa mesmo por fazer soffrer a dois bons amigos. Mas não tinha o direito, pensava assim, de sacrificar a felicidade de outrem apenas para ter a satisfação do casamento, -- unico premio, quasi sempre amargo, que a nossa

sociedade dá á mulher...

Não. Ella se casaria no dia em que amasse ardentemente um homem, -- fosse alguém que tivesse passado pelos bancos duma academia, rico ou pobre, fosse um simples e modesto amanuense. Queria apenas um viver simples e feliz, sem dourados falsos e lantejoulas de circo.

E se esse homem não apparecesse, dissera a Luciano, conservar-se-ia solteira, em sua companhia. Não tinha a ambição e a miragem do casamento, -- o problema mais importante e o mais descurado da sociedade. Viver alegre, viver tranquilla e satisfeita numa casa modesta e limpa, com alguem que retribuisse honestamente seu amôr, eis o seu sonho de moça, o seu castello que pedia a Deus não fosse derruido.

Ah! Clarisse não tinha, como tantas outras, a preoccupação do casamento. Ella pensava que a mulher, dotada de talento, tinha direito a não se restringir ao ról de roupa e á banalidade dos saraus. Não que fosse pelo feminismo incondicional, pela mulher dirigindo a politica ou as finanças; mas podia aspirar, a par do enlace matrimonial, servir a Patria em outro terreno. Ahi estavam as sciencias, as artes, as letras, chamando-a. A mulher medica, -- que maior serviço ella prestaria á humanidade, ás suas companheiras de sexo? Mas apenas um ou outro caso, isolado...

A ambição unica, o matrimonio. Claro que era o destino principal da mulher. Mas, por isto, abandonar-se numa apathía entristecedora, resumir-se emfim a ter filhos? Que incompatibilidade havia em se alargar a educação da moça, arredando preconceitos tolos e injustificaveis ? E, assim, ella não teria uma melhor idéa do casamento, não evitaria a derrocada de muito Lar, não trabalharia melhor pela sua felicidade pessoal?

O casamento era a miragem. Clarisse sabia, por duzias de amigas: antes a ambição dourada, o sonho do dia e da noite, o eterno viver entre falacias e carinhos, flôres e beijos... Depois, mezes passados, a amargura, a contrariedade, a surpreza dolorosa, a decepção.

Tudo porque? Pela imprevidencia, pela falta de educação solida e pratica. O noivado é feito nos salões, ao clarão de lâmpadas electricas multicôres, entre musica e risos, entre sedas e galanteios, espalhado no ambiente o aroma penetrante das rosas. Tudo um sonho... O génio, o temperamento, a educação do homem e da mulher que julgam-se amar, os habitos, os costumes, a «maneira» de cada um, -- são ninharias, ridicularias que não se estudam, que os pais imprevidentes abandonam num criminoso desdém. Não se perscruta, não se indaga: «elles» se encontraram num baile, numa festa brilhante de caridade, na kermesse, no sport, no club, no theatro... e se amaram.

Vem depois o casamento. E só do dia seguinte em deante, quando um juiz e um padre tornaram inquebrantavel aquella cadeia, é que «elles» começam a se conhecer. Examinam-se desconfiados, surpresos daquella intimidade que os acobarda, descobrindo dia a dia os defeitos que vão surgindo espontânea e mutuamente... E então a revolta intima começa, surgem os desacordos, as opiniões divergem, o instincto proprio reage, e ahi está a dèbâcle do casamento, -- apenas o dever ligando duas pessoas quando honestas.

Eram estas as idéas de Clarisse. Educada pelo seu irmão, lendo bons livros, tinha a experiencia dum velho sensato. E Luciano orgulhava-se daquella ajuizada maneira de pensar, que o fazia confiante no futuro da irmã querida.

Clarisse percebera que na róda dos seus adoradores estava Jorge. Ninguém, como as mulheres, para entender olhares mudos. Era, porém, de todos, o mais retrahido. Nunca lhe dissera uma phraze, uma só palavra que podesse ter interpretação amorosa, ou de grande sympathia. Nos seus encontros em passeios e salões, ou em casa de Alberto, nas suas palestras, era sempre delicado, intelligente, cortez. Mas Clarisse percebera olhares eloquentes de Jorge, que este não podia dominar. E, ao principio, interessara-se por simples curiosidade, julgando deparar um flirt original, sem palavras, sem salamaleques... Apenas olhares.

Passavam-se semanas, mezes. E Jorge, muito gentil e attento, limitava-se a olhar profundamente Clarisse. Ás vezes, parecia querer lêr dos seus olhos... E os dias succediam-se.

A irmã de Luciano impressionou-se. E, dahi, começou a pensar no moço fluminense. Seria uma facecia de Jorge? Mas não: elle era seu amigo e era um cavalheiro. Então?!

E ficava a pensar, interrompendo ás vezes a leitura dum livro. Voltava paginas e paginas, admirada da excentricidade de Jorge. E, quando despertava daquelle estado d'alma, verificava que nada sabia do que lera. E relía as folhas, agora toda attenta e aborrecida comsigo.

Um dia, no seu quarto de moça solteira interrogava-se em solliloquio: Mas afinal amo Jorge para me preoccupar tanto com os seus olhares?... E dera a resposta: não, não amava; tinha sim uma pronunciada sympathia por elle; era educado, gentil, vestia-se com elegancia e sem affectação, e tinha Alma e Caracter Era, pois, um homem nada banal nesta epoca de exibições e fanfarrices.

XII

Domingo limpido e cheio de sól. Tarde dum azul purissimo, o céo sem manchas, apenas uma pequena nuvem branca a franjal-o. Soprava uma brisa leve, agradavel. A natureza resplandecia em todo o seu brilho triumphal.

Alberto e Isaura, aproveitando a belleza daquelle dia de Abril, tinham planejado um passeio em aguas do Rio Negro. A pequena embarcação singrava rapida pelos igarapés, que se estendiam aqui como cobras, ali ramificavam-se como polvos de cem garras. Iam, gozando o encanto d'aquella tarde de verão Clarisse, Luciano e Jorge.

-- Bella natureza! disse Luciano.

Entravam justamente num dos igarapés mais bonitos, o da Cachoeirinha. A vegetação era riquissima e abundante. O verde variegado da matta em toda a sua gradação de côres, desde o escuro até o claro, casava-se com a agua do rio dum negro prateado ao receber o reflexo do sol. De quando em quando um passaro voava, cantando. Um bando de periquitos passou, grazinando alegre. A natureza estava num dos seus dias de festa

Os passeantes iam todos concentrados, gozando a belleza daquelle morrer de tarde. E, quando já estavam familiarisados com a paizagem, Jorge quebrou o pesado silencio como continuando um pensamento que o dominava:

-- ... Afinal, o Amazonas é uma terra que merece bem ser cobiçada!

-- Sim, respondeu Luciano. Não ha no Brazil, meu amigo, natureza mais rica e mais espontânea do que esta. Veja... Toda a matta é duma fertilidade espantosa: incalculaveis as madeiras preciosas que ahi estão, os óleos duma grande raridade, a caça variada e abundante, os fructos dum refinado sabor e duma variedade immensa, as flôres dum perfume penetrante, as parasitas como talvez não haja eguaes no mundo!

-- Não falando, atalhou Clarisse, na belleza da paizagem que é surprehendente.

Alberto commentou:

-- Sejamos justos. Deixando de lado o patriotismo, não me surprehende que estas terras sejam tão desejadas...

O bote passava rente a um barranco. Isaura, com um gesto de espanto, chamou a attenção dos companheiros para uma orchidea que ali estava enroscada no alto duma arvore frondosa. O galho forte, onde estava presa, se estendia trez ou quatro metros acima do rio.

Ouvio-se uma só phrase, sahida de todos:

-- Que linda!

Jorge olhou, e disse para Isaura, entre risonho e serio:

-- É sua.

Os companheiros protestaram. Não e não. O galho poderia ceder, e Jorge cahiria ao rio. Seria uma queda fatal. Isaura e Clarisse, afflictas, pediam que não fizesse aquella loucura.

Mas Jorge já tinha feito parar a embarcação.

E, ligeiro, subia o barranco, entre os protestos de Alberto e Luciano.

Era ágil, e cultivava com amôr o sport. Sabia guiar um cavallo de raça, remar, e era um gymnasta e bom nadador. Trepou na arvore, e, num momento, estava proximo da orchidea. Com o peso do corpo, o galho ficou bamboando.

Todos, assustados, tinham os olhos fitos em Jorge. Clarisse e Isaura não escondiam a afflição, e estavam ligeiramente pallidas. Havia grande silencio.

Jorge estendeu o braço e apanhou a flôr desejada. Baixou a vista, e o seu primeiro olhar foi para Clarisse. A orchidea era de Isaura, a intenção para a irmã de Luciano...

Quando o moço cavalheiro pisou em terra, gritaram do bote, num desafogo:

-- Bravos!

Só Alberto, reprehensivo, disse:

-- Foi uma loucura, Jorge.

Este, dum salto, estava na embarcação, e, gentil, offertava a flôr á Isaura:

-- Ha de permittir...

A moça, alegre como uma creança, agradeceu o brinde. -- Mas fôra uma doidice! Não repetisse a graça, porque não mais lhe agradeceria...

E, no intimo, se sentia feliz e orgulhosa. «Elle» amava-a ainda: -- arriscara a vida apenas por um desejo seu, mal expresso!

Agora, passado o perigo, todos riam. Alberto tinha um sorriso baboso para o amigo, admirando a sua coragem e destreza. E, num commentario malicioso, olhando de soslaio á Clarisse, disse:

-- Ah! Se eu fosse mulher, Jorge, me apaixonaria por ti neste momento...

O outro respondeu, rindo:

-- Só neste momento!... Graças, amigo!

Isaura, mudando a palestra, chamou a attenção para o trecho de rio que o bote cortava em meio. Era duma grande calmaria: dir-se-ia que a agua estava parada. Formava uma bacia, aqui e ali pedras soltas pontilhavam o igarapé. Um menino, á beira do rio, pescava, cantarolando versos duma grande simplicidade.

Cahía a noite. A cidade illuminava-se, num enorme jorro de luz. As lampadas electricas espadanavam raios brilhantes.

A elegante embarcação chegava a uma das pontes de ferro da Cachoeirinha. Viam-se transeuntes passarem, lentos, desoccupados. Um bonde electrico desfilou rapido pelos rails da ponte, ouvindo-se o bater forte da campainha.

Era noite. Voltavam, conversando sobre banalidades. Clarisse troçava as Medeiros, que tinham chegado da Europa, muito pernosticas, falando um francez difficil de ser entendido por francezes, e não sabendo mais onde era a Cachoeirinha ou Flôres...

A matta tinha agora outro aspecto. A noite fechara; apenas uma ou outra estrella no céo escuro. O rio era como um immenso e infindavel lençol negro. Nenhuma agitação nas aguas, -- tudo calmo, manso, morto. Apenas os pirilampos, em centenas, em milhares, davam a nota da vida triumphal na matta frondosa. Uma luz phosphorescente sahía dos troncos, da folhagem variegada, num espectaculo surprehendente e commum na região amazonica. E os insectos, em numero incalculavel, como as areias do mar, continuavam a voar, ferindo a vista e deixando a matta crivada de luz...

XIII

Um telegramma que nessa manhã Luciano lera nos jornaes, impressionara-o fortemente. Era datado de New-York e, diziam os correspondentes, fallava-se na grande cidade norte-americana que o Brazil, o Chile, a Argentina, a Bolivia, o Equador iam fazer uma alliança contra as pretenções dos Estados Unidos, -- pretenções de conquista e annexação de territorios na America do Sul.

Exultara. Era a propaganda que lentamente ia fazendo o seu trabalho solapador. Já na capital da America do Norte fallava-se, os seus jornaes discutiam, a idéa espalhava-se duma Alliança entre Nações da America do Sul. O dia da victoria estava proximo.

Em breve tratariam tambem da Venezuela, Uruguay Colombia, Peru, Paraguay. E, assim, a liga estaria feita, para jubilo de todo o bom patriota.

Conquista e annexação de território! Com que sobranceria os jornaes americanos se occupavam do melindroso assumpto! Parece que era quasi um facto consumado: -- no dia em que a poderosa Nação quizesse, tomaria conta destas terras uberrimas. O ouro, o petroleo, a borracha, o café, o ferro, o mercúrio, o guano, o salitre, os diamantes e as pedras preciosas, as plantas uteis, as fructas, os cereaes, os animaes, tudo, tudo emfim, ella teria numa abundancia espantosa... A conquista de Cuba fascinara-a.

Era por isto que o advogado vinha batendo-se na imprensa e na tribuna, por uma união seria entre todos os paizes desta parte da America, união representada pelo Brazil, Chile e Argentina. As outras Nações sul-americanas, é claro, se agrupariam ao redor da Triplice Alliança, no interesse commum de evitar o imperialismo devastador...

Para se obter a paz era necessario, dissera Luciano na imprensa, estar armado ate os dentes. Hoje para se ter esta paz tão almejada e dia a dia tão fugidia, era preciso que se inspirasse temor, que a gente se fizesse respeitada.

O Brazil, num grande exemplo dado ás velhas Nações da Europa, reclamara a arbitragem para duas das suas mais melindrosas pendencias, -- as Missões e o Amapá. Mas, -- era preciso não esquecer, -- o Imperador absoluto da Russia fôra um dos iniciadores do Tribunal do Arbitramento de Haya e... provocara o Japão á tremenda guerra que o mundo assistia assombrado.

O exemplo ahi estava. Bastava ser pernicioso, para se propagar. Antes evitar o mal que remedial-o, dizia o conhecido brocardo brazileiro.

Uma vez, em palestra, Alberto dissera a Luciano:

-- A sua idéa, afinal, é uma utopia, meu amigo. Bom assumpto para gazetas, para comicios patrióticos. Mais nada, creia. Nem a Argentina e o Chile fazem uma liga desta ordem com o Brazil, nem as outras Nações se sujeitarão a ser representadas como astros de segunda grandeza. Julgarão mesmo que é uma conquista desfarçada.

-- Não e não, retrucara o advogado. Tinha ainda a esperança de ver em realidade o seu sonho de todos os dias. No momento em que o perigo surgisse, sem véos a desfarçal-o, frente a frente, a união estaria feita. Esperasse.

O outro, incredulo, sorriu. E Luciano, de pé, continuou:

-- Mas então querem negar que a America do Sul seja cobiçada? Não vêm, continuadamente, o leão, ou os leões, aliando as garras?... Por nós precisarmos de braços temos de alienar terras ao extrangeiro? Não. Necessitamos da immigração, de gente que venha trabalhar comnosco sincera e honestamente na nossa industria e na nossa agricultura, mas nunca de protectorados que nos repugnam e que nunca admittiremos. É a nossa natureza, a flora, a fauna, tudo, emfim, numa grande abundancia, despertando a tentação de muitos...

-- Mas na Europa ha tudo isso, respondeu Alberto.

-- Ha, mas a terra não tem a fertilidade espantosa da nossa. Aqui a natureza é surprehendente, é nova, é unica. Uma das maiores riquezas do globo, a arvore da gomma elastica, nasce no Brasil espontaneamente. Quasi que só temos o trabalho de colher... Deus equilibrou os erros dos nossos homens e as suas loucuras, dando-nos uma natureza excepcional e maravilhosa.

Num grande gesto de orgulho, Luciano continuou a falar para Alberto:

-- Veja a Argentina. Ahi tem um grande paiz, com exercito e armada que podem ser citados. Notavel a sua riqueza, meu amigo, principalmente em minas e cereaes. Estradas de ferro cortam o territorio, augmentando diariamente o seu progresso. Já não fallo de Buenos Ayres, uma cidade elegantissima; ahi estão Corrientes, Santa-Fé, Rioja, Cordoba, Entre-Rios, Tucuman, Mendoza, Salta, Catamarca, Cuyo... Vá, agora, ao Chile, um bello e adoravel paiz. Santiago é uma capitai que póde rivalisar com diversas do velho continente. Val-paraiso, Iquique, Chillan, Concepcion, La Serena, Talca, Aconcagua, Conquito, Atacama, Antofogasta, Tarapaca, Taena, o territorio de Magellan, -- tudo uma assombrosa riqueza. Em avultado numero as minas, principalmente as de ferro e ouro. O guano e o salitre, -- outras preciosidades. A terra fertilissima. Madeiras duma enorme variedade. Encontra-se ahi tudo o que ha na Europa, de produções vegetaes e plantas tropicaes. Linhas ferreas e de navegação se estendem pelas provincias. Um paiz rico, meu amigo!

Basta ler Humbold, Le Gay. Pissis...

-- Sobre o progresso da Republica Argentina já li Mitre, Daireaux, Moussy, etc.

-- Mas é preciso viajar, vêr tambem, para fazer um juizo completo da nossa força e do nosso poder. É necessario unirmo-nos, juntar todos estes elementos que andam dispersos.

Trabalhar, trabalhar seriamente. Olhe o Peru, uma Nação prospera. Lima, a capital, e Callao, Ica, Huanuco, Puno, Ancaes, Arequipa, Cuzco, etc, são attestados do valor desta America fertil e espantosamente rica. Minas diversas, -- e entre estas as de ouro; o assucar, o tabaco, o café, -- fontes naturaes de fortuna.

Estude o Equador, a sua capital Quito, as suas cidades principaes desde Ambato e Cuenca até Guayaquil e Riobamba, e verá que é um paiz dum solo fertil, tendo milhões em minas ainda não exploradas. O mesmo com a Bolivia, desde Sucre e La Paz, até Oruro, Cochabamba, Chuquisaca, Tarija, etc. Riquezas, eguaes ás do Paraguay e Colombia. Aquelle tem, como esta, minas de subido valor e plantas medicinaes rarissimas. Em Assumpção se encontra em enorme quantidade o mate.

Ha florestas, como em Bogota, que são inesgotaveis riquezas. Estenda agora, a vista: ahi tem o Uruguay e Venezuela, com um clima delicioso, o primeiro: a agricultura prospera, como em todos os ramos do publico serviço, e uma capital attrahente como é Montevideo; em Venezuela, desde Caracas, Valencia, Maracaibo, Porto Cabello, Barquisimeto, etc, se vêm fontes naturaes de prosperidade. Têm o café, o cacau, a cana, o tabaco, o ouro, o petroleo, o asfalto, emfim, o bastante para enriquecer uma Patria!

-- Mas, commentou Alberto, quasi tudo isto anda tão desperdiçado...

-- Ah! Eis o grande crime. Nós que temos tudo em casa, quasi tudo importamos! A maior felicidade da America do Sul está na agricultura. Cuidemos della, e da industria. As minas ahi estão para ser exploradas. Acabemos, de vez, com o nosso maior mal, doença impenitente, crime que reclama castigo tremendo porque envolve a nossa desgraça, -- a revolução, os pronunciamentos militares, as deposições, as arruaças, os levantes caricatos e ridiculos. Isto foi que nos trouxe a fraqueza, a desconfiança, o temor, o receio. Façamos a reacção; trabalhemos pela felicidade destas Patrias e pela união de todas ellas, n'uma corrente ferrea e patriotica, respeitando direitos, fazendo da Constituição uma verdade, salvando, emfim, esta America tão rica e tão ambicionada!

XIV

Brazil! E a palavra sonora cantava sempre aos ouvidos de Luciano, fazendo-o vibrar. Era com orgulho, -- orgulho de bom e arraigado patriota -- que elle pronunciava as duas syllabas magicas, num grande respeito e num tocante carinho. Brazil! E, em turbilhão, vinham ao seu espirito toda a grandeza desta Patria querida e toda a generosidade illimitada dos seus filhos. Brazil!... E, alma aberta para o bem, coração dado ao amôr, pedia a Deus, lá no alto, ao Deus misericordioso e justo, que não abandonasse nunca esta Canaan tão desejada...

Quem, dos seus filhos, não amaria este paiz immenso? Quem, do estrangeiro, não admiraria as bellezas naturaes desta terra opulenta? Qual, das Nações conquistadoras, não almejaria um quinhão do sólo abençoado?

A riqueza extraordinaria ahi estava, a vista do menos perspicaz dos observadores, matizada toda ella duma belleza quasi unica no mundo: -- na America latina tinha o Brazil a superioridade, um território vastíssimo só inferior ao de quatro paizes do globo, e era ao terço de todos os latinos do Novo Mundo»; a população augmentava dia a dia, um povo laborioso e confiante; os seus rios eram duma belleza excepcional; florestas duma riqueza maravilhosa, que lembravam lendas chegadas em longinquas reminiscencias; minas dum valor incomparavel, desde o ferro até o ouro, - quasi tudo ainda por explorar; a abundancia incomparavel da caça, da pesca, dos fructos dum sabor raro e exquisito...

Tudo Luciano recordava tendo sempre uma sensação nova: era a Patria que elle via prospera e rica, englobando todas as riquezas espalhadas no mundo; era o dia d'amanhã, sem miserias e desconfortos, o pão assegurado para milhões de patricios.

Mas, pensava, era preciso trabalhar. «Confiar desconfiando» tinha sido a phrase celebre dum politico perspicaz. Porque não adoptal-a como divisa de todo o bom brazileiro?

Nós já tinhamos os exemplos. Desnecessario recordal-os, que viviam nitidos no espirito dos patriotas. Mas, preciso era falar ao povo, dizer a verdade como ella era, sem subterfugios sem ambages. Para que illudil-o, enganal-o? A vida hoje era sempre para o mais forte.

De que servira, então, a obra de 13 de maio? Libertara o negro, para escravisar o branco. A Nação precisava sacudir o torpôr que a manietava, aprender, em fim, a «querer». Assim pensava Luciano, no seu patriotismo intransigente.

A união era tudo. Elle se batia pela fraternidade a mais completa. Ao grito de separação, que ecoou no paiz como um sôpro de morte, respondera com um rugido de colera. Era o esphacelamento, a Patria aos pedaços, agonisante, morta, o que queriam!

Os Estados estavam ligados indissoluvelmente, desde o Amazonas a Matto-Grosso. As communicações eram diárias, grande o seu commercio. Eram bem irmãos, na vida e na morte. O que se tornava preciso era o povoamento intelligente de todas estas terras incultas que ahi estavam, capital que não rendia juros.

Necessitamos do immigrante, milhões de braços que venham plantar estas zonas incultas e fertilissimas. Mas queremos o immigrante honesto e leal, que não pretenda capciosamente illudir aquelles que a todos recebem de braços abertos!

Ah! Tinhamos a pequena Allemanha ao Sul, assim como a pequena Italia que lá estava, -- «Estados no Estado». Perdiamos a nossa nacionalidade, affirmava Luciano; havia agora uma mistura, uma mescla, um cruzamento desesperador e horrivel.

Elle recordava, aos amigos, as palavras de Elisée Reclus sobre o Brazil. -- Si o paiz se povoasse como as Ilhas Britannicas teria um bilhão de habitantes! Os vegetaes todos elles prosperam, nas duas zonas, a torrida e a temperada! A flora e a fauna incomparaveis, causando o assombro do homem intelligente.

Eldorado, Terra da Promissão, Canaan... Tudo o Brasil merecia que o chamassem, porque era grande e rico, porque a fortuna abençoada fôra aqui que fizera morada.

A população, esta, crescia sempre. O ultimo recenseamento, e todo o recenseamento era defeituoso, dava um grande augmento de vidas.

O paiz prosperava materialmente, de maneira espantosa. Estados diversos tinham colonias que iam dando os melhores resultados. E ainda havia terras, para abrigar milhares e milhares de trabalhadores.

O Brazil, dizia Luciano, estava prompto para receber o immigrante honesto. Viesse dar o seu contingente de trabalho, e o lucro para elle não seria uma miragem. A terra era fertil, e grata como nenhuma outra.

Não, elle não era contra a immigração, quando nós precisavamos de braços. Seria impatriotico. Queria, sim, que o extrangeiro viesse trabalhar comnosco, partilhar do nosso pão, tirar a remuneração do seu esforço. Mas tudo digna e honestamente, sem a ambição de estender o dominio da sua Patria, fosse qual fosse, até o sólo brazileiro. Nunca!

Mas, o Governo era o responsavel duns tantos erros. Como admittir até á desnacionalisação da nossa língua? Pois bem: no sul, em algumas escolas publicas, a lingua que se aprendia era a allemã... Pobres creanças, -- os nossos homens de governo d'amanhã; pobre Patria querida!

Com quem iamos povoar todas estas mattas virgens que ahi estão, duma riqueza incalculavel, e todos esses terrenos devolutos? Com o extrangeiro trabalhador e digno, com uma immigração regulamentada e seria, tendo-se em vista a qualidade e não a quantidade.

A cultura é facilima. A mandioca, a batata, o feijão, o milho, o inhame, o arroz, a banana, tudo, tudo se encontra numa fertilidade extraordinaria. O café, ao sul, é de abundancia unica e de qualidade sem competidor no mundo; no extremo-Norte, a gomma-elastica, sem egual no globo, enriquece o paiz assombrosamente.

O fumo, a canna de assucar, o cacáo, a castanha, a piassaba, o algodão, o mate, a laranja, vinho, o guaraná, a carnaúba, etc, -- ahi estão, fontes inexgotaveis de riqueza espalhadas no Norte e Sul. Que necessidade ha, por exemplo, de importarmos o trigo e o arroz?

E Luciano pedia, para firmar a vida economica do Brazil, que se cuidasse seriamente da agricultura. Ella, sim, é que era a maior fortuna duma Patria!

As fontes de vida andavam desprezadas. As próprias madeiras, duma abundancia incalculavel, não eram aproveitadas como deviam. O gado, que no paiz produz muito, não merecia cuidado especial, -- salvo o Rio Grande do Sul e mais uma ou outra excepção. No Norte, nos campos immensos e extraordinarios do Rio Branco, a cifra da creação era ainda muito pequena.

Na phrase dum escriptor, o «Brazil era o paiz do ouro». Minas havia riquissimas, desde o Sul até o Norte. As do Pará e Amazonas estavam inexploradas, sem o minimo esforço para o seu desenvolvimento. O proprio ouro, o diamante, as amethystas, granadas, corindos, berylos, topazios, esmeraldas, o cobre, as jazidas de carvão de pedra, o chumbo, o kaolim, o sal, o lignito, -- tudo, tudo o Brazil tinha largamente, em demasia, mas quasi sem cuidar, nababo que desprezava a riqueza...

Ah! Era preciso reagir. Luciano ficava desalentado, as vezes, ao perceber a indiferença criminosa da maioria dos seus patricios, mas ao ver esta fortuna immensa e maravilhosa, -- a despertar a cobiça dos menos ambiciosos, -- se sentia outro, o coração batia mais apressado, e, com o ardor dos combatentes de vinte annos, continuava fervoroso a sua grande batalha que, ao ser uma realidade, dizia, salvaria a Patria...

XV

Dia a dia Clarisse se sentia dominada por Jorge, sem saber explicar aquella transformação que se fazia no seu espirito. Nada lhe dissera o moço fluminense, nenhuma palavra que envolvesse mesmo de longe uma declaração de amôr. E, talvez por esta reserva, que ás vezes lhe parecia calculada, a sympatia que tinha por Jorge se accentuava, transformando-se involuntariamente em um sentimento mais forte e avassalador.

--... Mas, interrogava-se, se elle a amava porque este silencio que torturava a ambos?

E não encontrava uma resposta que a satisfizesse, Jorge era moço, livre, rico, e o casamento para elle seria apenas um desejo logo realisado. Receio de não ser correspondido? Mas, havia de ter comprehendido na affabilidade do trato, nas palestras agora mais intimas e prolongadas, num ou noutro olhar, que não lhe era indiferente aquelle amôr. E, depois, o que diziam então aquelles seus olhares, aquelles apertos de mão mais demorados?...

Ficava para ali, a scismar, deixando os minutos passarem, o bordado parado entre as mãos. -- Jorge era um homem de bem, incapaz de enganal-a. E na sua confiança de enamorada exaltava as qualidades moraes do amigo de Luciano, vendo-o bello e forte, carinhoso e honesto. Não, certo haveria na alma de Jorge um misterio que procuraria desvendar, para a sua propria tranquillidade.

Uma ligação? Quem sabe se elle se prendera a alguma mulher que arrancara do lodaçal, e, agora, talvez com filhos, estava impossibilitado, homem de bem que era, -- de abandonal-os?

Mas nunca ouvira falar de tal. Apenas, nas palestras mais intimas de Luciano, Alberto e Jorge, percebera feitas a este rapidas allusões sobre uma hespanhola ou uma franceza, quando não uma patricia ou uma italiana. E, mulher intelligente que era, Clarisse via com jubilo que nestes amôres fataes de cada dia, Jorge era verdadeiramente um cosmopolita. Tranquillisava-se.

Claro havia um misterio em tudo aquillo. Jorge não tinha o temperamento dum timido, e, para proceder em amôr com aquella tibieza de collegial, é que motivo extraordinario o manietava. Ah! se podesse descobril-o...

Lembrou-se da sua amiga intima, Isaura.

Quem sabe se poderia dar-ihe, com uma só palavra, a felicidade absoluta?

Mas, como interrogar a amiga sem deixar transparecer o seu interesse? Porque o segredo este lhe pertencia, e a sua honestidade se revoltava ao pensar que outrem, se não Jorge, podesse perceber o sentimento que a dominava. Mas, encontraria o meio...

Justamente nesse dia os seus amigos vinham jantar com Luciano. Era um feriado da Republica, e Isaura, Alberto e Jorge, aproveitando o dia de descanço, estavam convidados para passar a tarde com os dois irmãos. Seria uma pequena festa na intimidade.

Clarisse se aformoseara com um vestido azul claro, elegante e simples. De joias apenas um anel com uma bella esmeralda que Jorge lhe presenteara no dia do seu natalicio. Estava encantadora na sua modestia.

Ao chegarem, Isaura saudou a amiga festivamente. Estava linda! Aquelle vestido ia-lhe muito bem...

Jorge olhou-a, num momento, embevecido.

Decididamente Isaura tinha razão. Estava linda! E o seu coração bateu mais apressado, quando apertou com carinho a mão fidalga de Clarisse.

Correu alegre o jantar. Cruzavam-se os ditos de espirito, e Luciano fizera malicia com as ideas monarchicas de Alberto naquelle dia de festa republicana...

Finda a refeição, quando os homens começaram a falar seriamente de politica, -- não sem elles brazileiros! -- as duas moças dirigiram-se para a sala de visitas. Conversavam sobre os ultimos figurinos recebidos, a moda torturante que tanto impressiona as mulheres. E passaram a falar dumas revistas de Arte, de livros, de theatro... Clarisse, numa despreocupação aparente, levava a conversa para o ponto desejado. E quando se referiam ao espectaculo da noite antecedente, que tinham assistido, -- um drama emocionante de Dumas Filho -- ao passarem depois em revista as toilettes, Clarisse disse indiferente:

-- Muito bonito o vestido de sêda lilaz daquella hespanhola, a Dolores. Bem se vê que Jorge tem bom gosto...

A outra, surpreza:

-- Jorge?! Mas como, o que tem elle com essa mulher?

-- Disseram, não sei, que vive com ella. Parece mesmo que tem um filho. Talvez não seja verdade.

Isaura, numa aflição intima, mal podendo se conter, agitava o leque. Seria possível? E voltando-se para a amiga, procurando encobrir os sentimentos umúltiplos que lhe iam n'alma, falou:

Mas é a primeira vez que ouço falar disto. Creio que te enganas: essa Dolores é bonita, é elegante, mas supponho nada ter com Jorge.

Clarisse atirou, emfim, desfarçadamente, a pergunta suprema:

-- Como eu ouvi dizer que Jorge vive com uma d'essas mulheres e que tem até um filho... Julguei que fosse mesmo essa Dolores.

-- Não! Respondeu a amiga. Deves estar enganada. Jorge não vive com nenhuma dessas mulheres, nem tem filhos...

-- E como havias de saber? perguntou Clarisse, agora mais tranquilla. Comprehendes que el!e não havia de te fazer revelações...

Isaura, procurando desfarçar o seu embaraço, respondeu:

-- Mas saberia por Alberto. Jorge não tem segredos para este, que tudo me conta. Hade estar enganada, minha querida.

Entraram na varanda, mãos enlaçadas. Clarisse ia satisfeita e risonha, o espirito livre dum pesadelo; Isaura esta mordia os labios, procurando se conter, na eterna comedia que a matava aos poucos.

Foram recebidas risonhamente. Clarisse olhava agora, frente a trente, a Jorge que, para sahir daquelle embaraço que entretanto o deliciava, arriscou uma pergunta:

-- Então, em que conversaram tanto tempo para nos deixarem abandonados? A apostar que a moda foi o assumpto principal...

Isaura respondeu, asperamente, olhando fito o amante:

-- Enganou-se. A moda, apenas o inicio da palestra. O fim foi o drama que hontem vimos no theatro: o amante enganando mais uma vez a mulher que illudira, deixando-a para ir atraz de outra, da vid'airada...

Surpreso, Jorge olhava as duas moças, falando apenas para dizer algo:

-- Ah! Trataram então de coisas transcendentaes...

Clarisse tirou o embaraço d'aquella situação com uma phrase:

-- Não debique, meu caro senhor. Quem somos nós para fazer psychologia?! Mas emquanto discutiam politica, nós fallavamos desses «nadas» femininos que tanto impressionam as mulheres... e os homens.

A palestra agora animava-se. Conversava-se sobre os acontecimentos da semana, os ultimos telegrammas da guerra russo-japoneza. Havia partidos: Isaura e Alberto pela Russia; Clarisse, Jorge e Luciano pelo Japão. Falava o advogado:

-- Que espectaculo doloroso e tremendo este! Quem acreditaria, em pleno seculo XX, nesta guerra pavorosa entre duas grandes Nações? A Russia a pregar a paz, a semear a idea beneficiadora pelo mundo... e a forçar o

Japão a uma guerra extrema! A vida ou a morte, -- eis o lema. Está mais uma vez desfraldada a bandeira da ambição. Vencerá não a justiça, mas aquelle que for o mais forte! E e por isto que eu quero a minha Patria bem armada, com uma grande marinha e um grande exercito. Eduquemos o nosso povo, preparemol-o na paz para a guerra; que elle tenha uma educação militar, que esta seja obrigatoria como em quasi todos os paizes civilisados. É que eu desejo. E, bem armada toda a America do Sul, o Brasil, o Chile, a Argentina,

o Peru, o Uruguay, a Bolivia, o Equador, o Paraguay, a Venezuela, a Colombia, façamos uma alliança defensiva, salvaguardados direitos privativos. É preciso cuidar do dia d'amanhã. A posse, ostensiva ou desfarçada, duma só dessas Nações pela Conquista moderna, será o prologo da tragedia que se desenrolará lentamente na America do Sul. Sejamos cautelosos.

Os commentarios fervilhavam. Voltavam a tratar da guerra, cada um defendendo o seu partido O Japão triumphava em toda a linha...

Isaura estava nervosa. Alberto e os amigos notaram a sua excitação desusada, as phrazes rapidas e incisivas em favor da Russia. Jorge, impressionado, adivinhava algo naquella explosão de partidarismo. O que seria? Teria

Clarisse, ingenuamente, feito alguma confidencia a amiga?... E perdia-se em conjecturas.

A sahida, quando se faziam as despedidas, Isaura chegou-se para o amante, e, procurando dominar a raiva de que estava possuida, disse baixo:

- Amanhã, ás nove do dia, na casinha da Cachoeira-Grande...

XVI

Certo se passava alguma coisa de grave no espirito de Isaura. -- pensava Jorge ao se dirigir para casa. Aquella entrevista marcada inesperadamente pela amante, abalara-o. Não negava a si próprio que estava receioso, no temor duma cilada do destino, tão generoso até aquelle momento para elles.

O charuto se apagara ao canto dos labios, sem elle dar por isso. Jorge caminhava de vagar, procurando descobrir o segredo que só saberia no dia seguinte. É claro que Isaura, doente, com conselho dos médicos para ter grande repouso, só marcara aquella entrevista porque de certo tinha motivo excepcional para assim proceder.

Vivia deserta, ha muito, a casinha alegre da Cachoeira-Grande. As entrevistas de Jorge e Isaura foram espaçando, aos poucos, semana a semana. Desde a doença da amante, e a molestia ia em dois mezes, que ella não mais visitara o «ninho» de outr'ora.

Os dois se sentiam felizes no esquecimento da falta. Não repetir o crime, era como que um allivio para aquellas duas almas. E nenhum delles tinha coragem e animo para pedir uma entrevista. Viera, nessa época, a doença, ao principio insignificante, de Isaura, e os desejos, da carne foram quasi esquecidos.

Viam-se, todos os dias, mas no palacete de Alberto ou nas reuniões sociaes. E eram sempre bons e leaes amigos, procurando cada um apagar o peccado daquella ligação. Porque não serem apenas sinceros camaradas, vivendo como irmãos?

Jorge promettera a si mesmo não mais tocar em Isaura. Seriam, agora, amantes espirituaes. E, com esta resolução, vivia mais satisteito, e já apertava francamente a mão de Alberto, -- como no esquecimento quasi completo do passado que tanto o torturara.

A amante tambem jurara comsigo não manchar mais aquelle amôr, que agora queria puro e immáculo. O corpo pertenceria todo ao marido; a alma esta era sempre do amante. E, na execução desta moral moderna, Isaura se sentia menos culpada, tratando a Alberto com mais doçura e carinho.

Nada tinham dito um ao outro, nenhuma confidencia, nenhuma palavra trocada. Mas, almas feitas para o bem, comprehenderam que o crime material revoltava agora o espirito, era como que um borrão negro na sinceridade daquelle amôr...

E estavam mais satisfeitos na meia honestidade a que se tinham voluntariamente entregue. Excepção duma ou outra scena de ciume feita por Isaura, no delirio do seu grande amôr, nada turbava aquelle viver sereno e calmo. E, ás vezes, era com uma immensa doçura que recordavam esta ou aquella scena quasi esquecida...

Mas, num momento, tudo desabara. Aquella entrevista marcada inesperadamente por Isaura, trouxera a ruina do bello sonho em que estavam. Seria a fatalidade, ainda, a perseguil-os?

Mas porque e para que essa entrevista? -- pensava Jorge. Uma doidice da amante, talvez uma capricho de mulher. Mas, por um momento de gôso, elle deixaria fugir a felicidade que ia reconquistando com tanto cuidado? E, depois, realisado mais uma vez o acto sempre delicioso e eternamente brutal, não se repetiriam amiudadamente as entrevistas? Era preciso reagir, mostrar á amante o despenhadeiro a que voltavam.

Manhã cedo, Jorge já estava na sua pequena casa da Cachoeira-Grande. Era um dia cinzento, escuro, e soprava ar frio e humido. Na larga estrada, muito direita, não se via ninguem áquella hora matutina. Os trabalhadores estes já tinham ido para a cidade. Apenas bois mansos pastavam, e um, todo negro, perseguia na loucura do cio que o atacara, uma pequena vacca branca que fugia ligeira...

Na janella escancarada, Jorge estendia a vista espalhando-a por todo o horisonte sujo. Nenhum passaro cantava, alegrando a paizagem naquelle momento desoladora e monotona. E Jorge reatava o fio emmaranhado dos seus pensamentos, procurando phrases para convencer a amante que não deveriam praticar mais aquella loucura...

...Vio, ao longe, na curva do caminho que sahia na estrada ampla, um vulto de mulher. Vestia de negro, e caminhava apressado. Era Isaura. E Jorge, entre attencioso e commovido, foi recebel-a á porta. Beijou-a timido nas mãos.

A amante vinha fatigada. Era sempre receiosa que entrava naquelle atalho deserto, parecendo-lhe que atraz de cada arvore dois olhos a espiavam. E apressava o passo, no desejo de ficar abrigada daquella espionagem phantasiada pelo temor.

Sem uma palavra, sem um «bom dia», ella sentou-se na cadeira que Jorge lhe offertava, tirou o chapéo, descalçou as luvas. Havia um grande silencio, e um mal-estar entre ambos. Jorge, embaraçado, no receio de provocar com uma phrase uma tempestade, se contentava em olhar. Afinal, passa segundos, quebrou o silencio esmagador:

-- Passou bem a noite, Isaura?

Ella levantou os olhos para o amante, e frente a frente, respondeu, arrufada:

-- Sei que a minha doença lhe dá grandes cuidados... Passei bem, obrigada. E a sua Dolores vae sem novidade?

Surpreso, Jorge olhou-a intrigado. Dolores?! Mas quem era essa mulher, o que tinha com ella? Isaura estava equivocada: não conhecia nenhuma Dolores.

- Mas para que me engana? Não lhe bastam os meus sofrimentos? Que mal lhe fiz, Jorge, para você ser tão desleal e tão ingrato? Sei que você vive com uma hespanhola chamada Dolores, e que tem um filho com ella! Mas, afinal, quer mesmo a minha morte para ter a sua felicidade?

Jorge, olhos desmesuradamente abertos, fitava a amante. -- Mas estava louca! Não conhecia, tornava a repetir, essa Dolores. Filhos? Não os tinha, estava bem certo d'isso. Socegasse... E quem lhe dissera tal?

Commovida, Isaura guardou silencio por algum tempo. Depois, respondeu que ouvira numa palestra, e ali estava para saber a verdade. Mas como, se Jorge estava enganando-a?

-- Dou-lhe a minha palavra de honra, disse Jorge, serio, a physionomia fechada.

A moça levantou-se, e, contente, tomou as mãos do amante. Sim! Elle não mentiria em nome da sua dignidade. Acreditava-o.

Jorge beijou-a de leve, respeitosamente, nos cabellos. Não fosse creança: se tranquillisasse para poder ter saúde. Era uma menina de dez annos, então, para acreditar em tudo que ouvisse? Não sabia que o mundo era máu, que as injustiças, as calumnias, as traições, as miserias, eram de todos os dias? Tivesse confiança n'elle que além de estimal-a, era um cavalheiro.

Isaura olhava-o, como querendo ler no seu coração. Seria certo? Elle era sincero quando dizia aquellas palavras? E, n'uma prova ultima, segurando as mãos que o outro lhe entrega, fallou sahindo as palavras em turbilhão:

-- Pois bem, Jorge, se tu me amas, se tu me queres, se não és um ingrato, se tens pena d'aquella a quem perdeste, jura, dá a tua palavra de honra, que não viverás com outra mulher e que, emquanto eu fôr viva, não ligarás o teu destino a mulher alguma?

Era a sua morte que Isaura queria. Era a perda, para sempre, d'aquella a quem amava. A ruina e a derrocada do seu ideal: -- fôra um sonho aquelle de possuir Clarisse, de leval-a ao altar, de ter um «ninho» em que ella fosse a unica a mandar, de brincar com umas creanças bonitas e louras de volta do trabalho vivificante, de conseguir emfim um Lar com uma mulher honesta e encantadora, meiga e gentilissima! Fôra uma phantasia, passara. Ahi estava a realidade brilhante como uma espada núa ao sól! E como vinha expiando a falta que o destino e a fatalidade o tinham feito commettêr! O socego se ausentara do seu coração: tudo eram temores, pesares, afflições. Mentir ao socio e amigo, illudir a amante, enganar uma sociedade, e ter ainda de fingir indifferença pela unica mulher que amava como um louco -- eis a sua vida havia mezes, vida de amarguras, de desconsolos, de tristezas, de pezares e afflições. E, não contente com o castigo tremendo, o destino cego que o atirara nos braços d'uma mulher honesta, ainda lhe impunha a suprema prova, -- renunciar Clarisse! E podia recusar á amante o que ella lhe pedia? Elle que a prostituira, que levara a desgraça a um Lar tranquillo, que miseravelmente enganava um amigo incondicional? Elle, que matava aos poucos, involuntariamente, pelo remorso, a amante fiel? Elle, que se sentia no intimo indigno do amôr puro da irmã de Luciano?!

Todas estas idéas tumultuaram num minuto no espirito de Jorge. As phrases parece que ululavam nos seus ouvidos, como um castigo do Deus unico. Era a sua vida, a sua felicidade que se decidiam: a renuncia da mulher idolatrada, a viagem para terras outras, a separação talvez para sempre se impondo sem subterfugios. Ah! O supremo castigo!

Mas era o dever. Vibravam todos os seus sentimentos honestos, a sua dignidade mandava que correspondesse ao appello da amante que por sua causa manchara um Lar, enganara cobardemente um marido sincero e digno. A consciencia despertava em toda a sua plenitude, e foi com voz clara e segura, de homem de brio que Jorge, o coração enlutado, disse á amante apertando as suas mãos, olhando-a firme:

-- Pois bem. Isaura. Não pódes duvidar da minha sinceridade: -- dou-te a minha palavra de honra...

Onze horas. E as pancadas do relogio pareciam ao coração de Jorge dobres á finados. Isaura, levantando-se, pegou do chapéu e das luvas. Era tarde: partía. E enlaçando o amante beijou-o longamente na bocca, tendo para elle um profundo olhar mudo e expressivo, -- um poema de eternos agradecimentos, onde ia toda a sua alma de mulher apaixonada e ciumenta...

XVII

Emfim! E a amante rejubilava, os olhos cheios duma alegria immensa. Jorge, agora, lhe pertencia: elle era incapaz de faltar á palavra dada. E, na sua alcôva, olhos meio cerrados, Isaura pensava na grande, na deliciosa felicidade de possuir inteiramente o amante.

É claro que Jorge teria, como todo o homem, os amôres de cada dia. Mas estes não importavam ao seu espirito de mulher intelligente. Era unicamente a materia que agia, o macho a procurar a fêmea na funcção physiologica inadiável. A alma, o coração, estes estavam bem mortos no momento, não davam o seu contingente para o acto vulgar e obrigatorio. O que ella temia, sim, era uma ligação amôrosa, Jorge nos braços duma mulher que amasse...

Parece que chegara, emfim, a suprema felicidade. E Isaura se mostrava jovial como uma creança, satisfeita e contente, certa que teria agora uma vida calma, tranquilla e feliz. Jorge era sempre o seu amante, sem mais o crime da materia a tortural-a. Não se sentia, mesmo, com forças de voltar áquellas estonteadoras commoções amôrosas... Estava fraca, doente. E, depois, não queria mais o supremo peccado, que conhecia nas suas minucias. Uma vida a mais digna possivel para ella, eis o que desejava. Cumpriria de quando em quando com os seus deveres de esposa, e teria sempre o seu coração dado a Jorge. Não mais viveria assustada, não mais iria á casa misteriosa da Cachoeira- Grande, não mais fugiria de Alberto...

Áquella hora. Jorge, no seu gabinete, seguia com a vista a fumaça azulada do charuto. Em pequenos novellos subia, ondeando, a fumaça que se perdia no espaço. O jornal que começara a ler, resvalara da cadeira e cahira ao chão. Na rua, creanças brincavam, estalando forte as gargalhadas.

-- Agora, o que seria a sua vida? O vácuo, a tristeza, mortas a esperança, a felicidade, a alegria! Isaura lhe arrancara o seu amôr. Clarisse não mais lhe pertenceria... Seria de outro, que não tivesse na sua vida a tragedia que o anniquilava. E o que lhe restava? Viajar, ir para terras outras, procurar no estrangeiro o remedio efficaz para a ferida aberta?! Ah! mas havia de sangrar sempre a grande ferida... De que serviria embarcar, que lenitivo traria para o seu soffrimento, se o coração, se a sua alma ficavam com Clarisse?! Se podesse esquecel-a, apagar do espirito a imagem querida?

Mas não, era impossivel. Amava-a sincera e lealmente, e já agora era tarde para recuar, para mandar que o coração se fechasse áquelle amôr.

E Jorge tinha uma saudade intensa do seu passado, quando era calmo, sereno, em ondas revoltas. Ainda não conhecia Isaura... E vivia despreocupado, feliz, confiante e esperançado. Depois viera o amôr peccaminoso, cheio de baixezas, cheio de miserias, rapidos momentos de prazer em troca de dias, de mezes de torturas. O destino era bem cruel comsigo.

E tinha perante a sociedade, a eterna comediante, de se mostrar alegre, de afivellar ao rosto, como os outros, a mascara da hypocrisia! Quanto lhe custava ter de fingir, de se mostrar sereno e tranquillo! Como tinha vontade, ás vezes, de fugir, ir para além, se refugiar n'um logar distante onde ninguem, ninguem o conhecesse... N'um sitio onde se podesse mostrar em toda a sua verdade, onde todos lessem claramente na sua physionomia: -- este é um desgraçado!

Acabara-se o charuto, e Jorge continuava a pensar. Traçava o seu plano de vida, mais calmo, entregue ao seu destino. A fatalidade assim o quizera, assim o tinha. Renunciaria Clarisse. Os seus olhares para ella seriam agora banáes, sem vida, mortos. A sua palestra, vulgar, chã, d'uma frivolidade infantil. Não mais teria umas tantas gentilezas, umas phrases de carinho. Seria brutal, se preciso fosse. Era necessario cumprir a sua palavra.

O seu «ninho» da Cachoeira-Grande... De que lhe serviria agora? No dia seguinte acabaria com elle: o mariello do leiloeiro ajudal-o-ia nesta tarefa. As suas relações materiaes com Isaura tinham tido o seu epilogo. Para que, pois?!

Revoltar-se-ia com a amante? Não, não tinha esse direito. Seria bom, cordato, lhano para com ella. Procuraria apagar, de vez, o resto da sombra que a enlameara. Não era o unico culpado? Soffreria só, expiando a falta tremenda. Penitenciava-se.

Levantou-se, foi á escrevaninha. Começava a agir. Tinha, naquelle dia, de almoçar com Luciano. E, sentando-se, escreveu meia duzia de linhas ao amigo, escusando-se. Linhas frias, apenas de delicadeza social, sem uma saudação a Clarisse...

Enviou a carta e ficou para ali, muito só, num estado de espirito desolador. Tudo lhe era indiferente, -- não tinha caprichos, não tinha desejos, não tinha vontade. Mergulhara numa apathia enfastiadora e cruel. Áquella hora seria governado como uma creança, iria para onde lhe mandassem. Submettia-se ao destino, sem uma palavra de odio ou de revolta.

Mais tarde, quiz trabalhar. Abeirou-se da secretária e, nervoso, agitado, começou a escrever. Enchia tiras de papel, sem um plano traçado; a penna corria desordenada, impaciente, febril. O que escrevia? Se o interrompessem, no momento, não saberia dizel-o. Palavras, palavras...

Minutos depois, parava, jogando a penna. Mas, estava louco? Para quem escrevia, que doidice era aquella? E, agora curioso, mais calmo, releu:

-- «... Creio hoje, mais do que nunca, naquellas palavras de Luciano: o castigo do adulterio é o próprio adulterio. Sim! É elle a nos perseguir dia e noite, toda a hora, a todo momento, como o phantasma da tragedia shakspeareana. E vale, afinal, esse remorso que é a punição terrificante dos que têm Alma, dos que têm Coração?! O gôso não é ephemero, rapido, instantâneo? E as tristezas, as dores, o pezar, direi mesmo o remorso, não são continuos, de todos os minutos? Não compensa... Felizes daquelles -- tão poucos! -- que sempre tiveram a consciencia calma e tranquilla, que nunca se sentiram corar ao apertar a mão do amigo que mais estimam... Porque, commigo, dá-se este absurdo que eu não sei bem definir: -- estimo e quero Alberto como um irmão, é para mim, hontem como hoje, o meu melhor amigo. Por elle sempre estive disposto a fazer todos os sacrificios, todos. E é exactamente a mulher deste amigo, deste irmão espiritual que eu vou arrancar do Lar honesto, e socegado, onde sou recebido como um filho, para lançal-a á prostituição, despertando-lhe ao principio cobardemente o coração, para depois, aproveitando momentos physiologicos naturaes no individuo, forçal-a a pensar na materia, a sonhar com o gôso da carne como o unico epilogo dos seus sentimentos atfectivos?! E, num dia de loucura, em que os seus nervos vibravam alto, provocal-a ao peccado eterno, em que ellla amôrosa entregou-se toda como mulher que era! Mas, então, de que lama eu, feito que não trepidei em desgraçar uma mulher que era reconhecidamente honesta, em trahir como o ultimo dos homens aquelle de quem era amigo incondicional?! E, depois, que comedia pequena e baixa a se desenrolar, os sustos, os temores, as entrevistas em outra casa, os beijos trocados rapidamente, o perigo do crime ser descoberto, emfim, todas as circumstancias banaes do adulterio para todo o homem que tem um resto de brio e dignidade! E como o meu coração, a minha alma, se revoltam com toda esta miseria moral!...»

Parou, relanceando a vista pelo gabinete. Apenas o relogio dava na pequena sala uma nota de vida, com o seu bater enfastiador e monotono. E concluiu a leitura da pagina que lhe restava, num grande desabafo de todo o ser com o seu unico confidente, -- o papel mudo...

«... E tu, Clarisse, alma de minha alma, irmã do meu espirito, dona do meu Coração, -- perdida, perdida para sempre! Tu, a quem eu quero e a quem idolatro, morta para mim! Tu, a mais pura, a mais meiga, a mais intelligente de todas as mulheres! E não me posso queixar da Felicidade, não! Ella não foi uma ingrata para mim, porque eu sei agora, Clarisse, adivinhei nos teus olhares e nos teus apertos de mão, que não sou de todo indiferente a ti... Tu me amarias, porque os nossos corações andam irmanados! Tu serias a minha mulher, tu serias se o Destino o permittisse a minha esposa querida! E fui eu, com a minha loucura, que sacrifiquei todo o meu futuro! E fui eu que afastei a Vida, por um momento de goso material! Fui eu, sim, sómente eu o culpado de não seres tu, Clarisse, minha para sempre! Mas, que mal fiz ao Deus supremo, generoso e bom, para ter este castigo tremendo? Por acaso o meu crime é unico? Não ha, por ahi, tantos casos... Eu posso, como homem de honra que ainda me julgo em toda esta derrocada moral, ser o teu esposo, Clarisse? Não seria matar, assassinar cruel e friamente áquella que eu desgracei e que, como eu, soffre em todos os minutos? Seria não um, mas dois crimes... E ter de renunciar a ti, Clarisse, tão adoravel, tão boa, tão generosa e bella!... Ah! Como o Destino foi inexoravel para mim!...»

Agora, de pé, Jorge tinha a vista estendida para a rua». Machinalmente, rasgava as tiras que num momento de febre acabara de encher. E o seu olhar parou no grupo de creanças louras que brincava festivamente, ferindo o espaço com risadas cantantes como cristal estalando.

A suprema felicidade, para elle, seria aquella: -- ter, com Clarisse, a esposa amada, creanças joviaes e encantadoras que trouxessem para o seu Lar a bondade, a belleza e a alegria...

XVIII

Ao principio, e ao começar o novo seculo, Luciano teve um momento de duvida. Estaria a sua obra condemnada pela base? Tantos annos de trabalho, na imprensa, na tribuna, na palestra, ficariam perdidos? Elle via, coração contristado, alma amargurada, agitarem-se as questões internas da America do Sul. Então esta era uma raça fadada para o odio, a relembrar a pagina da historia sagrada, Caim e Abel? Pois em vez de fortemente unida esta raça combater o perigo tremendo que vinha de fóra, era ella que procurava-se retalhar, rompendo tratados, tentando-se illudir com direitos imaginarios, desafiando a cobiça do extrangeiro previdente e ousado?... E com que pezar elle via esses preparativos de guerra entre a Argentina e o Chile, entre o Brazil e a Bolivia...

Ah! Mas tudo passara. Não, a razão havia de sahir victoriosa. Nós eramos bem irmãos, e não iriamos derramar o sangue do nosso sangue, numa lucta civil que seria a morte da America Latina. E com que grande alegria elle viu o Chile e a Argentina se unirem, o Brazil e a Bolivia apertarem as mãos, desfraldada a bandeira branca da paz!

Luciano amava essas Nações, quasi como a sua Patria. E era por esta que elle vinha batalhando com denodo, apostolo convencido da Triplice Alliança. Seria, salvaguardados direitos reciprocos, a felicidade, a tranquillidade, aa fortuna commercial desta America extraordinaria. Por que, perguntava elle, vamos buscar na Europa aquillo que temos, ou podemos ter, com larga modicidade de preço na propria America do Sul? Para que em tudo esta monomania européa, a prejudicar o desenvolvimento nacional?

Precisavamos, sim, augmentar as nossas linhas de navegação e de estradas de ferro. Queria esta America ligada por uma grande rede maritima e terrestre. Reclamava a união; pedia a convivencia desses povos, irmãos e amigos, desejava que a fraternidade não fosse uma palavra vã...

Vejam o Chile, dizia. Ahi está uma Nação forte e digna; ahi têm um povo que está talhado para exercer grandes dominios. Tem as qualidades do bom trabalhador e um solo duma fertilidade espantosa. As suas provincias desde entre outras Tacna, Antofogasta, Comquibo, Atacama, Valdivia, até O'Higgins, Talca, Valparaizo, Aconcagua e Santiago são de riqueza bastante para impressionar as Nações imperialistas... O territorio de Magallanes, com seus cento e noventa e cinco mil kilometros, não é para ser desprezado. E toda a Republica tem a superfície de 8oo.ooo kilometros quadrados, pequena em extensão mas riquissima em productos.

Luciano exaltava-se, ás vezes. Via o quadro com cores carregadas. Tinha os olhos de parcial e apaixonado, diziam. Mas, afinal, elle não era um bem intencionado, alguem que trabalhava pela prosperidade e segurança da sua Patria? Não desejava vêl-a respeitada e pacifica? E os seus adversarios desculpavam o ardôr da defeza pela sinceridade com que elle trabalhava.

-- O Chile era bello! Ahi estava o seu territorio, uma enorme facha, a comprovar suas palavras. Que grandiosa a cordilheira dos Andes! Como elle a contemplara, tanta vez, com o olhar embevecido e banhado duma grande suavidade! E os seus rios, e os seus montes, e os seus bosques encantadores! O seu povo era homogeneo. O araucana cruzado com o hespanhol, dando uma raça sympathica, egual, forte, emprehendedora, activa, artistica e patriota. As zonas, a agricola, a mineral, a de madeira e pesca, muito ricas. O guano abundantissimo; e ha o salitre, o iodo, o ouro, o cobre, a prata em Antofogasta, Tarapacá, Tacna, Atacama; em Coquimbo e Aconcagua ha uma zona mineral e agricola digna deste nome; em Valparaizo, assim como em quasi todo o paiz, ha madeiras de construcção preciosissimas e mariscos em todas as suas diversas variedades; em Valdivia, principalmente, a producção agricola estava com toda a sua força e riqueza!

E Luciano, enthusiasmado, continuava muita vez, falando aos amigos:

-- O clima do Chile! Tem como o Brazil, todos os do globo. Conforme as provincias, é secco e frio, humido e fresco, ou secco e ardente. Tem todas as estações, como na Europa. As chuvas são continuas, agradaveis. E que velocidade nas celebres correntes marinhas, -- a chamada corrente de Humboldt o seu curso ordinario com uns 600 metros por hora! Quem ainda não ouvira falar nas duas grandes cadeias de montanhas do Chile? As Cordilheiras dos Andes são deveras notaveis, principalmente a segunda, duma imponencia magestosa, offerecendo aos olhos do artista uma paizagem de belleza extraordinaria. Já Humboldt chamara, -- a espinha dorsal da America, a essa Cordilheira eternamente cheia de neve, como se estivesse enrolada em uma phantastica toalha branca...

E o grande propagandista não se cançava de dizer:

-- Porque nós, brazileiros, não seguimos o exemplo do chileno e do argentino? Porque não cuidamos seriamente da nossa marinha e do nosso exercito? Porque não fazemos como essas Nações, afim dum dia não sermos surprehendidos sem meios de defeza? O que precisamos ter é uma educação militar, muito seria, muito rigorosa. Preparemo-nos na paz para a guerra, e façamos sempre votos para que esta não chegue nunca, e trabalhemos confiantes pela prosperidade da America. Sejamos pacíficos, -- mas sempre bem armados. Esta é que devia ser a bandeira dos nossos homens de governo.

E Luciano continuava:

-- O Chile era rico em productos que podiam abastecer de preferencia os nossos mercados, se não fossem as difficuldades de transporte. Elle tem numa grande abundancia o trigo, o salitre, a cevada, o iodo, carvão de pedra, cobre, prata, mineraes, ouro, emfim, uma grande riqueza ainda não explorada convenientemente. A sua industria, mineral e agricola, era admiravel. O cultivo dos campos, os vinhos, os licores dum sabor exquisito, a creação do gado, tudo uma fortuna que faz do Chile um paiz prospero. A agricultura elle desenvolvia com carinho; a vegetação espontanea auxiliava-o. Os cereaes são abundantes e de optima qualidade. As fructas, as arvores e os arbustos aproveitados na industria, as plantas medicinaes, a vinha, a horticultura, a raça cavallar bem cuidada, fazem dessa Republica um paiz de futuro largo e seguro. Leiam Espinosa, Murillo, Gajardo, Gay, Vasquez, Orrego Cortes, Tomero, Orrego Luco, Vildósola, Ricardo Bello, e tantos outros, tantos, e as suas palavras ficariam confirmadas.

O Chile era bem um grande paiz! Em mineralogia, riquissimo. A producção do ouro, da prata e do cobre elevava-se a um valor extraordinario. A Terra do Fogo, o archipelago situado no extremo da America, só por si era uma riqueza. O Chile phisico, politico, social, industrial e commercial era, como o Brazil e a Argentina, o orgulho da America do Sul. Com os seus oitocentos mil kilometros quadrados, era maior que a Austria, a Hespanha, a França, a Inglaterra, a Allemanha, a Italia... -- E não lembrava, agora, o Brazil com o seu terririo espantoso, 17.000:000 de kilometros quadrados. Estava marcado, acreditava, para a Republica transandina um porvir digno da Patria de San Martin e O'Higgins. Bastava lerem Gutierres, André Bello, Santa Maria, Barros Araua, Manoel Sallas, Lastarria, Amunategui, Machena, Errazuris, Blanco, Constantino Barreu, e muitos outros, que com as suas obras figuravam na sua estante. Veriam que tinha razão na sua fé ardente pelo poderio da America do Sul. Um dia ella havia de dominar.

«Nuestros pechos serán tu baluarte, Con tu nombre sabremos vencer, O tu noble glorioso estandarte Nos verá combatiendo caer.»

e predizia para a Patria chilena um futuro rico e prospero, desfraldado no alto o pavilhão tricolor, -- branco, azul e encarnado, -- fulgindo a estreita branca, isolada e immacula, como se fôra o guia altaneiro daquelle povo de poetas e de heróes...

XVIV

Quando Jorge, uma tarde, falou a Isaura na viagem que projectava, ella teve uma grande revolta. Pois que! Elle ia deixal-a, abandonal-a de vez, matal-a com uma separação? Agora que viviam mais calmos, quasi tranquillos, porque partiria? Não, não fizesse aquella loucura, lhe pedia.

Jorge bem sabia que a amante teria aquelle procedimento. Falara apenas como uma tentativa... E não ficara surpreso, nem revoltado, pois, no intimo, se sentia incapaz de deixar Clarisse. Planejara, é exacto, um passeio á Europa, -- voltar á França, Hespanha, Italia... Mas, de que serviria a distancia, o abismo entre ambos, o eterno oceano a separar os seus corpos, se a sua alma estava presa á alma de Clarisse, se o seu espirito estava cheio da imagem encantadora e querida?!

Entregara-se ao acaso. Elle seria o juiz supremo daquelle drama intimo. E, horas e horas, abstracto, ficava alheado de tudo, num desanimo que o torturava.

Via Isaura doente, debilitada, enfraquecendo mais e mais. O marido tratava-a com carinho de filho, adivinhando os seus minimos desejos. Os medicos chamados aconselhavam uma viagem, mudança de terra, tónicos, ar puro e vivificante, nada de commoções, de pezares, de tristezas. Mas a amante não se submettera ás recommendações medicas, e declarara, terminantemente, que não sahiria de Manáos. Morreria entre amigos.

Ella bem sabia que, se emprehendesse essa viagem, iria apenas com Alberto. O seu socio, Jorge, não poderia acompanhal os. Interesses commerciaes obrigavam sempre um delles a ficar, e não haveria motivo para os dois partirem, abandonando a casa commercial... E, apesar de se sentir morrer, Isaura deixava-se estar, para ter a convivencia de Jorge.

Mas o amante vivia agora n'um desolador estado de espirito. Ás vezes estava indiferente, aparentemente calmo, imbecilizado; outras vezes, tinha momentos de revolta intima, ciumes loucos de Clarisse, phantasiava scenas que o exasperavam e endoideciam.

-- Ella amaria outro? Era a pergunta que o inquietava e que vivia no seu espirito, como uma eterna ferida a sangrar. Sim. de certo amava alguem, que não elle. Mas, o que fazer? Podia declarar-lhe o seu amôr, confessar a sua paixão? Seria mais uma infamia, sem proveito. Se ella, afinal, viesse a gostar d'elle não seria sacrifical-a? Não podia casar com Clarisse, jurara sobre a sua honra. Ah! A fatalidade!

Clarisse não comprehendia o procedimento de Jorge. Advinhara, percebera que elle a amava, pelos seus olhares, pelos seus galanteios, pelos seus apertos de mão; mas, num momento, Jorge se retraira, tratava-a mesmo com um certo desdem, calculado e frio. Que seria? Em que teria desmerecido da sua confiança quando a sua consciencia estava tranquilla?! Que se teria passado?

-- Mas hei de saber, disse um dia a irmã de Luciano. Eu quero que elle me diga que mal lhe fiz. Sim, deve haver um misterio em tudo isto.

Porque, no intimo, ella não negava mais o sentimento que nutria por Jorge. Ao principio julgara uma phantasia, um capricho, um passatempo; mezes passaram, e vira, com surpresa, que estava seriamente enamorada, que amava pela vez primeira.

Fôra uma noite, no theatro, que abordara o assumpto. Estava em seu camarote, com Luciano. Assestavam-se os binoculos, da platéa,pois quasi todos que os manejavam adoravam a bella moça patricia. Estava deslumbrante no seu vestido claro, cheia de belleza e graça.

Jorge, de quando em quando, binoculava-a. Tinha os olhos presos em Clarisse, e se lhe perguntassem, não saberia dizer o que se passava em scena. Como que acordou daquelle estado d'alma, quando uma salva de palmas estalou no theatro.

Cahía o pano, lentamente. Era o intervallo; e Jorge, nervoso, se dirigiu para os corredores. Queria ver de mais perto Clarisse, admiral-a em toda a sua formosura.

Luciano vio-o, e chamou-o. Jorge teve de entrar no camarote. Cumprimentou Clarisse respeitosamente e saudou o amigo. Este conversava sobre a tragedia que se desenrolava no palco, e que Emmanuel fazia ao vivo, relembrando a personagem extraordinaria que é Hamlet.

Para falar, Jorge arriscara uma banalidade. Clarisse olhava-o frente a frente, perturbando-o. E num momento em que Luciano, reclamado por um amigo, fôra á porta do camarote, perguntou:

-- Esteve doente, Jorge? Acho-o pallido, se não triste...

-- Não, perfeitamente bem. E ando até muito satisfeito e alegre...

Clarisse bateo levemente o leque, despeitada. E entre meiga e nervosa:

-- Mas que maneira é esta de me tratar, Jorge?! Que lhe fiz eu, para fugir de casa, não mais ir conversar? Não sou, por acaso, a amiga de sempre?!

Attonito, surpreso. Jorge olhava-a, sem achar palavras para responder. Então era certo que ella se interessava por elle, que notara a sua ausencia, o seu novo modo de agir, e que isto a contrariava tanto que não poderá reprimir a pergunta? Ah! Como era feliz! E que desejo louco de lhe confessar ali que a amava, que a queria, que a idolatrava!

Mas a figura de Isaura lhe passou pelo espirito como um remorso. Vio-a, prostituida e quasi morta... E foi com vóz mal segura, sem olhar a Clarisse, que respondeu, fugindo á pergunta:

-- Mas engana-se, Clarisse. Sou sempre o mesmo. Porque mudaria?

Luciano voltava. A moça, nervosa, calou-se. Era demais! Jorge ainda troçava-a!

Mas como se illudira como uma collegial, ella que tinha pretenções de conhecer a vida, e que não era uma menina de dez annos! Jorge, porém, não havia de rir, tiraria a sua vingança...

O moço levantou-se. Quando apertou a mão de Clarisse esta, indifferente, olhava para a platéa. Jorge, surpreso e revoltado comsigo, sahío, arrependido da resposta que dera. Achava-se egoista, mesquinho, brutal.

O resto do espectaculo fôra um martirio para Jorge. Clarisse, na desforra a que se propuzera, olhava ás vezes o medico que fôra um dos pretendentes á sua mão, e que lá estava numa cadeira da sexta fila. Binoculara-o mesmo trez ou quatro vezes, rindo intimamente da alegria subita que illuminava a phisionomia do seu antigo e fiel apaixonado. E Jorge, quasi em frente, tinha impetos de com os seus fortes musculos castigar o rival feliz...

... Clarisse traçara o seu modo de vida. Ella amava doidamente Jorge, guardara por muito tempo a convicção que não lhe era indiferente. Mas, ás súbitas, o moço começara a quasi não se occupar com ella, como que tolerando-a. E, então, mulher intelligente que era, resolvera acceitar a curte dum dos seus adoradores, -- esse medico sympathico e insinuante que ha mezes a perseguia. Era a prova. Se Jorge tivesse por ella alguma affeição, se declararia. Se não, ella saberia, no momento dado, com delicadeza, afastar o candidato persistente.

Mas, na sua consciencia, havia uma continua interrogação. Certo Jorge tinha um misterio a envolver, a emmaranhar a sua vida. Elle era um homem de honra, e não a illudiria para depois desprezal-a. O que seria ? E perdia-se em conjecturas que a abatiam.

Num dia, concatenando factos, recordando scenas, aproximando casos, relembrando palestras e attenções, ella tivera uma idéa que estava agora persistente e fixa no seu espirito. -- Haveria algo entre Jorge e Isaura? E procurara afastar o pensamento perturbador. Isaura era tão bôa, tão meiga, tão honesta... Mas a idéa voltava, nitida, perfeita, como a sombra que não deixa o corpo.

Aquellas longas palestras entre elles, trocas de olhares, gentilezas especialissimas, a perturbação de Isaura quando perguntara a esta sobre um filho de Jorge... E tudo lhe vinha ao espirito, suffocando-a.

Mas havia de saber. Era o seu coração, a sua vida que estava em jogo. Não seria desprezada assim, á tôa, sem indagar ao menos o motivo. Tinha a convicção de que, sem ser belleza, era bonita. Não havia mulheres feias, excepção dos abortos da natureza. A mulher inteligente e educada, sabendo se vestir, se pentear, se aformosear, cuidando com grande zelo do seu corpo, sendo um pouco coquette, sem affectaçÕes, sem pedantismo, como que naturalmente, -- era sempre bonita. E Clarisse, sem ser bas bleu, sabia encantar pelo seu phisico, pelo vestir, pela elegancia suprema, pela palestra fina e intelligente, pontilhada de ironia, tratando dos mais variados assumptos com discernimento, educada que fôra carinhosamente pelo irmão.

Ella conhecia as fraquezas humanas. Não fôra educada como uma collegial. O irmão lhe pintara o mundo como elle era, e guiara a sua educação com os bons livros e os bons exemplos. Podia se illudir, se enganar, uma ou outra vez; mas tinha a noção do justo e do real. Quando pizara o primeiro salão, não ia com a alma cheia das phantasias romanescas de Ohnet e Escrich, a morte moral da maioria das nossas moças, -- e a côrte que desde logo tivera, vira surpresa que não lidava com uma mulher banal.

Para com Jorge o seu plano de vida estava traçado. Tratal-o-ia, embora amargurada, com indiferença. Iria mesmo, se preciso fosse, ao desprezo. Clarisse sabia que a maioria dos homens só ama, e só fica acorrentada, quando é tratada com pouco caso. O orgulho se revolta, o amôr proprio fica offendido, quer submetter á sua vontade e ao seu capricho aquella que para elles só tem o desdém... E, muita vez, com este jogo a sympathia se transforma em amôr, e quando a mulher intelligente se entrega, guardando sempre o domínio, é com a certeza de ser amada, e do marido ou o amante não escapar ao ouvir o primeiro frou-frou do vestido de outra mulher...

Ella sabia que o homem, ao ter a convicção de ser incondicionalmente amado, distante o primeiro momento de phantasia e de gôzo, começava a ver na mulher que o idolatrava, -- um terreno conquistado, uma propriedade de que era o senhor absoluto. E, depois, se enfastiava, vinha o aborrecimento, e a vontade imperiosa de se entregar a outras aventuras, em que tivesse de luctar, talvez de soffrer, para sahir vencedor.

Se Jorge a amasse, não resistiria. Confessaria a sua paixão, houvesse o que houvesse. E, com habilidade femenina, desdobrou o seu plano inteligente e habil.

Mas... e Isaura? De que maneira ella saberia a verdade? Interrogar a amiga, francamente, seria rematada loucura. Estava na sua dignidade negar o tacto, se o crime fosse uma realidade. E, depois, não poderia se equivocar, se illudir, apreciando familiaridades permittidas com olhos de ciumenta?

Urgia tomar uma resolução. E, no primeiro dia em que foi visitar a amiga, emquanto no terraço Luciano e Alberto conversavam em cousas varias, ella, a sós com Isaura na grande varanda, encaminhou desfarçadamente a conversa para onde queria.

-- Tens visto Jorge? perguntou Clarisse, distrahida. Ha alguns dias que não o vejo.

-- Sim, quasi todos os dias. Ainda hontem almoçou aqui.

-- Disseram-me que elle andava doente, e muito triste...

-- Doente, creio que não. Triste, talvez.

-- Amôres novos, naturalmente. Qualquer dia essa amargura acaba na Igreja, em casamento.

E Clarisse deo uma festiva risada.

Isaura, perturbada, retrucou afoita, não podendo dominar o primeiro impeto:

- Mas Jorge não casa. É tolice tua.

Houve um minuto de silencio embaraçoso entre ambas. Clarisse, desfarçando o olhar, tinha estampada na phisionomia a surpresa. Pois que?! Isaura dissera: -- Jorge não casaria. Mas então?...

A amiga, corada, num enleio denunciador, arrependida da phrase expontanea que dissera, falou, muito commovida:

-- Isto é, parece-me que ouvi Jorge dizer uma vez que não se casaria...

Clarisse, abafando a sua dôr, se occupou de outro assumpto, uma frivolidade qualquer. E, dahi a minutos, no pretexto duma enchaqueca, partia com Luciano, quasi na certeza da sua vida estar para sempre desgraçada, e desgraçada pelos dois entes que mais queria no mundo, depois do irmão, -- Jorge e Isaura, a amiga querida e o primeiro amado...

XX

Desse dia em deante Clarisse começou a tolerar com uma certa attenção á côrte agora assidua do medico, -- esse doutor Medeiros, homem rico e soffrivelmente intelligente, de quem os despeitados diziam ser uma negação absoluta para a sciencia de curar. Não o amava, de certo. Não tinha mesmo por elle sympathia ou estima. Tolerava-o, com as suas phrazes eivadas de pieguismo romantico, as suas gentilesas banaes, sem um cunho de originalidade.

Mas, admittia esta côrte que já estava sendo notada no circulo das suas amigas, o que provocara de Isaura uma malicia inoffensiva, -- como um instrumento do plano que traçara. Ella desejava provocar Jorge a uma palestra franca e leal, a uma confissão fosse ella qual fosse. Queria que clareasse a situação, movido pelo ciume se a amasse sinceramente, levado pela franqueza honesta se fosse apenas um desejo passageiro ou um capricho de homem. E, assim, fôra sem compromissos, delicadamente, instigando a ternura amorosa do fiel apaixonado. O doutor Medeiros rejubilava, caprichando no vestir, florindo sempre a lapella, e chegara mesmo a perpetrar algumas barbaridades em vãs tentativas poéticas...

Jorge de tudo era sabedor, porque Clarisse com a habilidade inegualavel da mulher intelligente, soubera explorar a alegria e a vaidade do dr. Medeiros. E o medico, amigo e antigo collega de Jorge, tomara-o agora como um dos seus confidentes, aproximado mais e mais do commerciante pela finura de Clarisse, fazendo-o sciente dos seus sonhos e das suas esperanças acastelladas sobre areia... Jorge, commovido, no desejo louco de espancar o namorado e na curiosidade maior de saber os progressos daquella paixão que o anniquilava, ouvia attento e sôfrego as confidencias do doutor Medeiros, -- os olhares de Clarisse, um aperto de mão mais demorado, aquelle cumprimento sobre o seu fato cinzento, em que não percebera a ironia, a phraze cheia de esperança para elle dum futuro proximo, compartilhado e feliz...

O amigo de Luciano não tinha mais duvidas. Clarisse amava o medico, e, com seu espirito e olhos de ciumento, achava o outro um homem detestavel, sem intelligencia, sem saber, sem elegancia, incapaz mesmo de receber um olhar da mulher fina a quem amava. Revoltava-se, e, todos os dias, promettia ter uma explicação com Clarisse, acabar com aquelle seu capricho desarrazoado pelo doutor Medeiros.

Mas, reflectia. Que direito tinha para assim proceder? Podia, por acaso, declarar o seu amôr? E, se por felicidade incomparavel, fosse correspondido, não seria maior a desgraça? A sua mão elle não podia dal-a á Clarisse: tinha

empenhado a sua palavra de honra.

Instado por Luciano, resolvera ir jantar no sabbado com o amigo. Fazia um anno que este voltara do seu passeio á America do Sul, e Clarisse quizera festejar intimamente aquella data. Era apenas um pretexto para chamar Jorge a ir á sua casa, resolver a batalha definitiva a que se entregara de toda a alma.

Quando Jorge chegou, lá estavam Isaura e Luciano, dois ou trez amigos deste, advogados como elle, uma família visinha, Saraiva, -- umas mocinhas garrulas e traquinas, sabendo apenas dansar uma valsa e falar mal da vida alheia, e o doutor Medeiros, António Sebastião Medeiros. Quando Jorge o vio, não poude conter um gesto de surpresa e desgosto, que não passou despercebido aos olhos perspicazes de Clarisse.

Pois que! Então Medeiros já frequentava assim a casa de Luciano?! De certo por desejo da irmã, e ella se tal quizera era porque estava inclinada para o outro. E este pensamento não mais o deixou, acompanhando-o durante o jantar.

Á mesa, Clarisse sentou-se junto ao medico. Em frente, Isaura, Jorge e Alberto. Do lado, as outras pessoas amigas. E Jorge, enciumado, durante a refeição, era todo ouvido para as phrazes trocadas entre os dois, observando os olhares que, ás vezes, Clarisse deixava cair propositalmente no doutor Medeiros.

Havia mais intimidade entre ambos do que pensara. Clarisse desfazia-se em gentilezas para o seu adorador, e Isaura, que nunca vira na amiga aquella franqueza, adivinhava um misterio no procedimento de Clarisse. Sim. a mulher de Alberto sabia que ella não amava, que ella não podia amar o medico... Devia haver um motivo imperioso para illudir assim o pobre apaixonado.

Jorge esse estava de todo empolgado pela idéa que lhe atravessara o cérebro. Nervoso, agitado, procurando debalde se conter, não teve durante o jantar uma só palavra de espirito. Respondia apenas, cortando quando podia a conversação. Pretextara uma enchaqueca.

Fazendo as honras da casa, attenciosa para com todos, gentilissima para o doutor Medeiros, Clarisse guardara uma friesa glacial para Jorge. Era como um conhecido daquella hora, com quem não sympathisara. E Jorge, num estado de espirito desolador, sem calma, sem poder se dominar, não percebia todo o fingimento daquella que amava, toda a cilada que ella lhe fazia para conseguir o fim almejado.

Quando se levantaram da mesa. Jorge chegando-se para Clarisse, disse-lhe baixo:

-- Clarisse, precisava lhe falar.

-- É urgente? retrucou a outra, fingindo indiferença, mas com o coração a pulsar de jubilo.

-- Não será urgente, mas também se houver demora...

-- Ah! Se se trata da paz europea... --

respondeu risonha e ironica, com um olhar que perturbou Jorge.

-- Peço-lhe...

-- Bem. Vamos descer ao jardim, e lá conversará.

No jardim, áquella hora calma da noite, banhados por um luar de prata, conversavam os amigos de Luciano. Fôra servido o café, e as moças, passeando, apanhavam flôres. Havia no ar um perfume embriagador de rosas e baunilha, alecrim e cravos. De momento a momento, ouvia-se uma risada festiva, um commentario alegre.

Clarisse, fugindo do medico e dos amigos, sentara-se num pequeno banco de pedra, escondido entre bambus. Jorge seguira-a, coração alanceado pela dôr. Todo elle estava commovido, na certeza de que ia ter a condemnação fatal e já esperada. A confidencia do seu amôr se impunha ao seu espirito desolado. Estava nesse estado d'alma em que nós temos a necessidade involuntaria de fazer partilhar o nosso sofrimento, de communicar a nossa dôr a alguem como um allivio para pezares e tristezas.

Jorge sentou-se junto a Clarisse. Sentia o perfume suavissimo dos seus cabellos, ouvia o bater apressado do seu coração, grande jasmineiro em flôr, ali ao lado, espalhava no espaço o seu aroma penetrante. Isaura, na sala que deitava janellas para o jardim, tocava ao piano uma pagina de Verdi, fazendo vibrar o velho instrumento.

Sahindo do embaraço em que estava, Jorge, olhando fito a Clarisse, muito serio, disse-lhe de manso:

-- Tenho que lhe falar seriamente, Clarisse. Peço-lhe que não ria, e que neste momento me poupe a sua ironia. E espero não revelará nunca a ninguem, seja a seu melhor amigo ou amiga, o que lhe vou dizer. Promette?

Clarisse ha muito esperava estas palavras de Jorge. Provocara-as mesmo. Mas, agora, sentia-se tremer, tal a seriedade e firmeza com que Jorge falara. O que resultaria de tudo aquillo, santo Deus? Talvez o seu futuro emmaranhado para sempre perdido...

E foi com vóz mal segura, que respondeu:

-- Prometto, Jorge.

O outro, passado um momento, falou:

-- Pois bem, Clarisse, deixe-me dizer toda a amargura em que tem estado o meu espirito, o soffrimento em que o meu coração está mergulhado. Não é de hoje, não... Eu falo com uma mulher intelligente e de espirito, que sabe ler nas entrelinhas e nas reticencias. Clarisse, não pode negar a amisade incondicional que lhe tenho, a estima de irmão amigo que nutro por si. E é por isto que eu, que lhe quero tanto, venho lhe avisar do perigo em que está...

Diga-me, sinceramente, como se estivesse respondendo a Luciano: ama esse doutor Medeiros?

Exaltava-se. E Clarisse, nervosa também, olhava agora para Jorge. Ah! A pergunta era bem indiscreta, mas como ella se sentia feliz!

Respondeu com outra pergunta:

-- Mas o que ha sobre esse moço ? Não é um medico distincto, de bôa familia, intelligente, rico, illustrado?...

Jorge desorientou-se. Mas então Clarisse amava a Medeiros, para lhe emprestar qualidades que elle desconhecia. E, subitamente, pegando nas mãos da moça, numa resolução que era incapaz de ter a sangue frio, disse-lhe em turbilhão:

-- Perdôe-me, Clarisse. Por ahi se diz que em breve esse homem será o seu marido. O que eu vi hoje, que eu sei, me faz acreditar na realidade desse boato. Ama-o?

A moça, procurando se conter, falou:

-- Amôr? Não; talvez sympathia, talvez amisade...

E Jorge, perdida a cabeça, apertando mais as mãos que tinha entre as suas, deixou que o coração se expandisse emfim:

-- Seja que fôr, Clarisse, agora que você ama a um homem, que váe fatalmente casar com elle, deixe-me dizer-lhe o segredo tremendo que eu queria guardar ate a morte. Perdôe-me, perdôe-me o que lhe vou dizer. Eu a estimo, eu a quero, eu a amo! Não lhe peco nada em troca deste sentimento, porque nada posso querer. Ha muito todo o meu desejo louco era que me amasse um pouco, para termos um Lar feliz e alegre... Mas não; a fatalidade não o quiz. Você, Clarisse, ama outro homem, váe ser a sua mulher e quanto a mim -- suprema desgraça! -- com o misterio que tenho na minha vida e que não posso devassar, ainda que me amasse hoje...

Clarisse, tremula, agitada, jubilosa e triste, por fim, balbuciou como num sôpro, concluindo a phrase:

-- ... não poderia ser o meu marido!

Jorge ficou numa surpresa absoluta. O que ella dissera?! Mas então o seu segredo, que só elle e Isaura sabiam, estava conhecido! Isaura teria falado? Mas então estava louca!

-- Que diz, Clarisse ? Quem lhe contou isto?

Com a perturbação de Jorge, num relampago, Clarisse teve a certesa absoluta da ligação que desconfiava. A phrase de Isaura -- que Jorge não casaria - era uma triste realidade. Como o destino tinha sido ingrato para ella!

-- Ouvi, uma vez, de Isaura, estava contrariada, nervosa, e deixou escapar a phrase. Guarde segredo, e responda-me, antes de tudo, como um homem de honra:

-- É exacto?

Chegara a vez de Jorge ficar silencioso. A sua loucura lhe saia bem amarga. E, tão impressionados estavam, que não ouviram que o piano se calara, e não perceberam passos leves, ligeiros, cautelosos, a machucar a areia...

-- Faz um appêllo a minha honra?! Pois bem. Vou lhe dizer aquillo que a minha dignidade permitte... Não queira indagar, não queira saber do misterio tremendo que é a minha vida. Saiba apenas que eu me considero feliz por amal-a muito, e que serei eternamente desgraçado, ainda que você, Clarisse, me quizesse! Mais não lhe posso dizer; e o meu segredo que levarei para o tumulo. E se soubesse como tenho sido infeliz, como não tenho calma e socego, como passo mezes de torturas soffrendo e fazendo soffrer alguem que eu respeito, e que hoje não é para mim mais do que uma irmã que eu idolatro, teria pena de mim! Que fatalidade cega a me perseguir, que castigo tremendo tenho eu tido para os meus erros! Mas quando você casar, Clarisse, seja com quem fôr, leve esta certesa absoluta em meio de toda a felicidade que merece: ninguém a amou, ninguem a amará tanto como eu, juro-o sobre a memoria querida de minha mãe...

Clarisse se encostara ao braço de Jorge. As lagrimas lhe saltavam dos olhos, rolando pelas faces pallidas da moça. E, apertando as mãos do amigo, com a vóz tremula, no sacrificio inglorio de todo o seu futuro, balbuciou:

-- Ah! Jorge, mas eu também o amo! Como eu tinha vontade de lhe dizer que o queria, que o idolatrava! O destino não quer que sejamos um do outro, diz você. Pois bem: eu serei sua ou de mais ninguém!

Jorge, não podendo conter um grito de alegria, disse, beijando manso a testa que se lhe offerecia :

- Ah! Como sou feliz e como sou desgraçado, Clarisse!

Um suspiro e um baque de corpo tiraram os dois do idyllio doloroso. Levantaram-se, pressurosos, agitados, presos dum temor immenso. E, num espanto glacial, tiveram apenas um olhar eloquentemente mudo, cheio de desolação e de dôr, transbordante de pezar e amargura, ao verem caído no chão o corpo esbelto e esguio de Isaura, a quem elles tanto queriam e tanto amavam...

XXI

Recrudescera a campanha de Luciano. A guerra que estalara, emocionando o mundo, entre a Rússia e o Japão impressionara-o profundamente. Era a Europa e o Oriente engalfinhados, e elle temia as consequencias fataes da batalha sanguinolenta. O seu coração este era bem pelo Japão, o paiz maravilhoso e sagaz; mas o seu cerebro estava com a Rússia, com o grande colosso europeu.

Luciano via nessa guerra tremenda uma questão de raças. As Nações entravam na lucta apenas como instrumento. Era o japonez contra a Europa, de quem elle bebera toda a civilisação, todos os requintes do progresso. E, agora, com um exercito e uma marinha formidaveis, educados os seus officiaes nos principaes centros militares europeus, insurgia-se, revoltava-se, e queria a ferro e a fogo ter o predominio do poder... conservando-se sempre, eternamente, japonez na alma e nos costumes!

O «perigo amarello» não era uma phantasia. Ah! Se o Japão vencesse... A lição cruel estaria dada á velha Europa, e o seu sangue fraco, quasi nullo, se derramaria pelo globo, se espalharia na America, surgindo então uma raça amôrpha, eivada de todas as fraquezas e vicios do Oriente!

A hegemonia do mundo tinha de ser da America. A Europa seria combatida em todos os terrenos. Estava fatigada, tinha dado o melhor da sua riqueza e do seu saber. Era fructo amadurecido que pendia da arvore.

E Luciano, na sinceridade com que abraçara aquella causa, falava aos amigos:

-- Chamamam-me de sonhador. Que importa? Dia virá em que reconhecerão a razão das minhas palavras. Eu bem sei que muitos de vocês me querem mal por dizer a verdade tal como ella é. Para que nos illudirmos? Não é uma ingenuidade infantil? A America é forte e é nova: ha de vencer essa batalha surda e violenta. Mas, para isto, é preciso nos unirmos, prepararmo-nos para o dia d'amanhã. Não que tenha a preoceupação duma guerra, que seria mais um crime inglorio. Sou pela paz, pelo amôr, pela concordia! Mas, por Deus, não sejamos indiferentes e indecisos. O Oriente já ahi está querendo abocanhar a Europa... Trabalhemos unidos, defendendo a mesma causa, que é a causa da nossa integridade!

Os outros, quasi sempre Alberto e Jorge e mais alguns amigos de Luciano, deixavam este continuar:

-- Pode ser um paradoxo, o que quizerem: mas hoje para se ter a paz é preciso se estar muito bem armado. O socego dum paiz está na razão directa do numero dos seus canhões.Precisamos de exercito, necessitamos de marinha como de pão para a bocca! De que serve a maioria dos nossos officiaes, intelligentes e patriotas, se não temos navios de combate, armamento para enfrentar o de outras Nações? As nossas fronteiras... Como ellas vivem desprotegidas e abandonadas! E julgam vocês que eu quero a guerra? Não, já o disse: sou pela paz! Mas é imprescindivel educar militarmente a nossa mocidade, fazer soldados, estar preparado para a desafronta, para a guerra, -- e semear o amôr, o respeito, a concordia! Não, nós não iremos provocar a batalha cruenta, -- ahi estão as Missas, o Amapá e o Acre que resolvemos pela arbitragem ou pelo accordo, dando um grande exemplo ao mundo. Mas é preciso estarmos fortes, armados, ter fortalezas, ter navios, milhares de marinheiros e soldados, -- para sermos pela paz! As idéas não são divergentes: hoje em dia uma é o complemento da outra para toda a Nação que se preza. Os nossos bons sentimentos não devem ser inspirados na fraqueza, e sim na força. «Amamos e queremos a harmonia, quando podiamos, pelo nosso poder militar, preferir a guerra». -- Eis o que eu desejava afirmar um dia!

Ás vezes, surgiam argumentos, apareciam contestações. -- «Era apenas um ideal! O brazileiro era essencialmente politico de campanario. Não se preoccupava, em sua maioria, com os grandes problemas sociaes. Estava indiferente, desanimado!»

-- Mas era um crime, volvia Luciano, Como admittir esse proceder? Questão de raça, talvez... Mas, no momento dado, elle saberia ter a coragem para enfrentar o grande problema. Nada de tibiezas, nada de pretenções tolas e improductivas. Devemos encarar a questão no amago, tal como ella é. A politica que governava o mundo desde a ultima metade do seculo XIX até os nossos dias não era o imperialismo? Ahi estava a Inglaterra, o poderoso leopardo bretão, estendendo os seus dominios, ahi estavam a Allemanha e a França, e, finalmente, a America do Norte, que como nenhuma outra Nação ia-se aproveitando da doença devastadora que lavra irresistivelmente, como se fosse o mal asiatico, nos grandes paizes modernos.

Luciano não se conformava com a doutrina imperialista, quer a europea, quer a americana. Para elles não havia o impossivel, tudo era razoavel e justo desde que ganhassem mais algumas leguas quadradas. Era a conquista do mais forte. Qual, perguntava, o paiz imperialista que não tinha a ambição de possuir mais uma centena de palmos de terra? Qual, o que não mandava poderosa e abertamente nos terrenos, alcançados? As colonias não eram hoje em dia, neste seculo de igualdade irrisoria, o pesadelo dos paizes pobres? Essa mesma Inglaterra não tinha anniquilado o povo nobre do Transvaal, e não tinha estendido o seu poderio ao Egypto e á India? Não vêm a Allemanha, a Russia, a França, a Italia, a Inglaterra, para não falar nos Estados Unidos, disputarem entre si a primazia da força? Consultem os orçamentos dessas Nações, -- a preoccupação e latente são augmento e o aperfeiçoamento da marinha e do exercito!

O que Luciano desejava era fazer vibrar proveitosamente esse povo bom e honesto, que é o brazileiro; mostrar-lhe o perigo dessa confiança illimitada; apontar os dias não mui longinquos em que teria forçosamente de agir, porque era patriota; conseguir que se reanimasse, combatendo dia a dia, frente a frente, certo de onde vinha o perigo: convencel o, emfim, de

que tinha elementos proprios, e que era um crime se deixar monopolisar pelo imperialismo arcado e astuto!

-- Mas então, continuava, vocês não se atemorisam com esse allemão louro e de olhos azues, com esse italiano pallido e de olhos negros? Pois elles vão dominando como que insensivelmente: nós temos Estados que quasi não são brazileiros! Eu já assisti, repito, a desnacionalisaçáo da nossa lingua, dessa lingua querida e altaneira, cheia de rugidos e de caricias cheia! Creanças que nasceram neste solo uberrimo, debaixo deste sól formoso, balbuciavam em escolas publicas um idioma que não era o nosso! Que esperar do dia d'amanhã? Quem domina, hoje, no globo, é o homem forte, é a Nação forte. Não nos illudamos, e, para a tranquillidade da nossa consciencia, é preciso repetir sempre a phraze eloquente. É o numero maior que tem a primazia, e que subjuga o inferior pela quantidade e pela habilidade. É

preciso, antes de tudo, sermos brazileiros, genuinamente brazileiros! E nós, que imitamos quasi tudo que o estrangeiro tem de ruim, façamos como o japonez ou o americano do Norte, -- sejamos eternamente brazileiros como elles são americanos e japonezes! Porque de toda essa gente que vem para a nossa Patria nós não fazemos irmãos? Porque, como o yankee, não lhe ensinamos a compartilhar das nossas alegrias e das nossas dôres? Porque, pelo exemplo, pelas leis, pelos costumes, não lhe dizemos: vem, trabalha comnosco, enriquece nesta terra, mas amolda-te a ella, porque ella de hoje em deante e a tua Patria! Para que, num grande crime, escurecer factos que ahi estão? Para que negar a influencia espantosa, em certas partes do paiz, do italiano ou do allemão? Quem domina, ahi, não é o natural, não é o nosso patricio: o poderio está nas mãos de outrem. E, se não zelarmos o sólo sagrado, se não defendermos a integridade da Patria, daqui a cincoenta, a trinta, a vinte annos, outros Estados se desnacionalisarão, e o Brazil apresentará este aspecto desolador e inacreditável duma terra essencialmente cosmopolita e quasi sem brazileiros genuinos...

Não, Luciano não era um «chauvinista», eivado de preconceitos tolos e ridiculos. Era, sim, um bom patriota, justo e honesto, querendo que o estrangeiro viesse trabalhar na sua Patria com lealdade, com sinceridade, que fosse não um hospede desconfiado mas um irmão amigo. Chegasse ao Brazil e fosse como o extrangeiro quando emigra para a America do Norte... Assim é que elle comprehendia o grande problema nacional.

As suas palavras não seriam entendidas por muitos. Nem elle se illudía. As suas phrazes estas teriam talvez uma interpretação descabida; seriam combatidas, mesmo ridicularisadas. Mas guardava a convicção de que, annos passados, quando o perigo irrompesse, -- um brazileiro, ao menos, relembraria a sua campanha... E elle se sentia satisfeito em ter atirado em tempo o aviso a milhares de patricios.

O Brazil era grande, o Brazil era enorme. Valia a velha Europa em territorio. Qual a Nação fertil maior em kilometros quadrados? Nenhuma. E a gente precisava não esquecer que o continente europeu tinha necessidade de augmentar as suas terras... Não era uma phantasia; a realidade ahi estava, palpitante e núa. O brazileiro podia, por acaso, desbravar e povoar essas centenas de florestas? É claro que não, desde que a nossa população é pequena, insignificante no numero para tão immenso territorio. -- Mas, sejamos cautelosos na immigração, guiemos aquelles que vierem trabalhar de maneira a não nos arrependermos um dia do agazalho dado!

Eram idéas conhecidas de todos, corriqueiras. Em livros, em jornaes, em revistas, já lêra essas opiniões que perfilhava com sinceridade. Escriptores eminentes tinham analysado a doença do seculo, com grande superioridade. Não pretendia dizer coisas novas, mesmo porque a originalidade hoje em dia era quasi uma phantasia. Nunca era demais uma vóz amiga e patriotica, a bradar pela integridade da Patria, accrescentava.

Ah! o nosso sangue! Como elle era fraco pela sua origem latina, como era avassalado sempre pelo mais forte! E nós o tinhamos nas veias, concluia Luciano, cruzado ainda com esse outro sangue quasi nullo que é o do indio! Como era preciso trabalhar, trabalhar sempre, para salvar este povo bom e hospitaleiro, generoso e altruistico, -- sangue do seu sangue, carne da sua carne, alma da sua alma!

XXII

Quando Isaura recuperou os sentidos vio que estava no leito branco e immaculo de Clarisse. Ao principio não distinguia bem as coisas, os objectos, não reconhecia as pessôas. Havia um grande silencio, apenas cortado de quando em quando pelas palavras tranquillisadoras do doutor Medeiros. -- Não era nada. Uma syncope que logo passara. Isaura estava muito

fraca. E voltava-se para Alberto explicando com minucias o caso, no desejo de mostrar também a Clarisse os seus conhecimentos profissionaes.

Isaura pousou os grandes olhos negros em Clarisse e Jorge, e não teve uma só palavra. Lagrimas correram dos seus olhos pisados pelo chôro. Os dois, commovidos, na consciencia da falta commettida, cheios de pezar, baixaram a vista... Alberto desfazia-se em caricias tratando a enferma como se fosse uma creança.

Pedio que a levassem para casa. -- Uma doidice! disseram todos. O medico mesmo se oppuzera. Devia ficar aquella noite ali; o abalo do carro talvez lhe fizesse mal. Clarisse, Luciano, Jorge, Alberto, pediam que Isaura ficasse.

-- Não, sentia-se bôa, passara. Não estivessem também a assustal-a!

As visinhas essas já tinham partido com aquella perspectiva dolorosa e triste duma doença... Os amigos de Luciano deixaram-o, sem a intimidade precisa para estarem ali por mais tempo.

Mas Isaura não cedia. Foi para casa, e todos a acompanharam sem embargo dos seus protestos. O medico receitou, aconselhando muito repouso. Não convinha por fórma alguma que a syncope se repetisse.

O doutor Medeiros fôra impressionado. Elle sabia que o mal de Isaura era temivel, se não irremediavel. Mas, teria animo para avisar ao marido? Não sabia como elle a amava, a idolatrava? E, no intimo, tinha uma enorme compaixão daquella pobre moça, tão nova, tão bonita, tão carinhosa, e já empolgada pela tisica devastadora...

Isaura se sentia profundamente doente. Era, porem, indiferente á moléstia. Para a vida que levava, ensombreada pelo remorso, era preferivel morrer. E a tuberculose tremenda ia minando pouco a pouco o seu organismo, devastando-o, matando-a aos bocados.

Era, como centenas, como milhares e milhares de pessoas, uma victima do mal pavoroso. Esta, sim, que era a verdadeira epidemia a lavrar no paiz! A febre amarella, a peste bubonica, a variola, -- mas nenhuma ceifava as vidas como a tuberculose! Ahi estavam as estatisticas do Sul, do Norte, e de todo o mundo, a comprovarem a afirmativa dolorosa! E quasi ninguém se incommodava...

... Agora, no seu quarto, noite alta, tingindo dormir, Isaura pensava. Estendida no seu leito, olhos fechados, mãos crusadas, muito pallida, -- era do aspecto duma «monja de côr macerada». Alberto olhava-a de quando em quando, mal podendo conter as lagrimas. O que não faria para a mulher querida se restabelecer?

E ella, espirito concentrado, seguia o seu pensamento:

-- O que lhe restava? Morrer. Não ouvira palavras de Jorge e Clarisse? Não lhe chegara ao ouvido o som daquelle beijo que sellara um grande amôr? E como ella amava a Jorge, como queria a Clarisse! E tinham sido elle lhe dar o desgosto tremendo, que ia apressar o fim de sua vida!... Como o castigo tinha sido cruel para o seu crime! Ah! bem desconfiara daquelle amôr dos dois! Mas também suppuzera sempre um capricho de Jorge. E via, com que mágua, que era uma paixão louca de ambos. Nada, nada podia fazer, nada queria fazer contra elles. Amava-os tanto... E Clarisse era tão bôa, tão meiga... Que culpa tinha ella? Nenhuma, não sabia daquella ligação peccaminosa. E como se sentia mesquinha, vil, ante a amiga! O que ella pensaria, o que ella faria, santo Deus?!

E, occultando o rosto com o lençol, deixava as lagrimas correrem:

-- Mas nada faria contra ella. Clarisse era sua amiga, era uma alma generosa, coração aberto ao bem. Iria sacrificar o seu amôr... em proveito d'ella, Isaura. Conhecia-a... Renunciaria a Jorge. E como este ia soffrer, desde que a amava tanto, a essa meiga Clarisse! Mas não, ella faria o ultimo sacrificio. Não teria uma só palavra de queixa, de amargura, de odio para o amante. Nenhuma allusão. E para a amiga dilecta redobraria de carinhos, -- nenhuma phraze sobre a scena inapagavel, nenhuma indirecta. Nada. Apenas se deixaria morrer... A morte ambicionada estava tão proxima!...

E Isaura pensava como o destino tinha sido ingrato para com ella, e que pena, que dôr, ao se lembrar do marido! Elle tão digno, tão honesto, tão justo, e amando-a tanto! E em retribuição de affectos, em paga de carinhos, a traição miseravel que a repugnava. Onde estava o Deus dos bons? Para onde fôra, que não a salvara, que abandonara Alberto?

Um accesso de tosse secca tirou-a d'aquelles pensamentos. Não era o primeiro, não... O marido, dum salto, estava junto d'ella, carinhoso. Um pouco de febre acabou de inquietar mais a Alberto. De resto, ultimamente era quasi esse o estado da enferma. Ella queria se mostrar forte, encobrir dos amigos as torturas que padecia. Não que soubesse ser uma victima da tuberculose... Mas desconfiava, sabia que estava profundamente doente. Sentia-se fraca, abatida, emmagrecera. Os suores em excesso, a febre moderada mas continua, a expectoração diferente, -- tudo a torturava.

O doutor Medeiros voltara no dia seguinte. Auscultara cuidadosamente Isaura, e confirmara o triste diagnostico. O murmurio expiratorio não era regular, havia um fervor mucoso. As dôres que a enferma sentia no peito, a falta absoluta de apetite, não offereciam mais duvida. Era o mal devastador.

Acima de amigo, era medico. E, no cumprimento amargo desse dever, o clinico chamou Alberto e, franca e lealmente, declarou emfim a sua opinião sobre o estado de Isaura. Era grave, estava minada pela tisica. Para que illudil-o? Era medico e amigo, -- ficava com a sua consciencia tranquilla.

O marido nunca pensara em tal. E, com o golpe brutal que soffria, na surpresa dolorosa daquella noticia esmagadora, deixara Medeiros falar. Fizesse uma viagem, -- aconselhava o outro. Fosse para a Europa, para Eeaux-Bonnes, ou para Portugal, onde houvesse caldas sulfurosas. Se não quizesse sair do Brazil, seguisse para Minas-Geraes, mas partisse.

Receitou, aconselhou medidas hygienicas, fez questão pela opinião de mais dois ou trez collegas abalisados. E, na conferencia havida, os medicos confirmaram o diagnostico: era a tisica pulmonar. Levasse Isaura immediatamente, para outras terras, onde podesse melhorar, talvez se restabelecer.

Alberto ficara estarrecido. Perder Isaura?! Mas antes preferia morrer. E fazia tudo, tudo, para salval-a.

Mas, quando falou á mulher querida nessa viagem, ella se oppuzera francamente. Cedera á conferencia medica, para não desgostar o marido. Mas, partir?! Não, sabia que ia morrer, e queria ficar na sua terra natal... Já lhe torturavam com tantos remedios... O proprio leite, os ovos, as comidas salgadas, incommodavam-a. E, agora, o marido queria que fosse para o sul, ou para Niça, Florença, ilha da Madeira, Cannes, sabia lá! Não, não partiria.

Dahi a dias, ella teve uma hemoptyse. E Alberto, então, não teve mais duvida. Isaura morria... Como um louco, implorava á mulher que consentisse na viagem, aos medicos que a salvassem. E Jorge, Clarisse, Luciano, todos que a queriam rogavam que fosse, ao menos, até ao Sul. Não, não iria.

Numa tarde em que Isaura estava só, Jorge lhe falou, lhe pedio que consentisse na viagem. Não que estivesse mal... Mas era melhor prever, que remediar. O estado de sua saúde impressionava-o. Sabía bem quanto a queria. E falou por largo tempo, de manso, tendo caricias na vóz.

Isaura mal respondia. Como ella amava o amante, como se sentia feliz em toda a sua desgraça ao vel-o terno e carinhoso! E, lagrimas a correrem, disse:

-- Não, Jorge, se você é meu amigo, não inste por essa viagem. Não irei. Para que partir?!

E, numa grande amargura, numa dôr immensa, no sacrificio do seu amôr, olhando fito o amante, muito commovida:

-- Jorge, restituo-lhe a palavra de honra que me dêo... Quero-lhe immenso, para não cortar a sua felicidade. É livre.

O amante vio claro que ella se referia á scena palpitante do seu casamento. Um dia ella lhe pedira a sua palavra de homem de bem que nunca se casaria... E, agora, alma generosa e grande, sabedora por um acaso do seu amôr, quasi morta... devolvia-lhe esse penhor de honra! Era uma santa!

-- Não, minha querida, retrucou Jorge. Estimo-a muito e respeito-a. A minha palavra está dada. Peço-lhe, em nome do nosso passado...

Os dois ficaram silenciosos, seguindo pensamentos desencontrados. Fôra a vez primeira que, depois da scena do jardim, ella fizera uma allusão... e essa mesma para lhe dar felicidade. Mas não, não se aproveitaria da generosidade da amiga.

E nunca mais trocaram uma só palavra sobre o drama angustioso. Jorge e Clarisse redobravam de cuidados, de caricias, para com Isaura. E quando a viam assim, doente, fraca, abatida, parece que a queriam mais, e tinham remorsos de terem involuntariamente apressado o desenlace fatal.

Os dois enamorados não mais falaram sobre o amôr condemnado. Sentiam toda a loucura daquella declaração, viam o estado desolador em que estava Isaura, e, como se combinados estivessem, guardavam um grande silencio sobre aquillo que chamavam o seu crime. Apenas olhares em que elles sem querer deixavam transparecer toda a paixão sincera, apenas apertos de mãos mais demorados e ardentes...

A conversa que tinham versava sempre sobre Isaura. A marcha da molestia, os medicamentos usados, a hora dos remedios, de tudo elles cuidavam com solicitude. Estavam numa grande afflição desde que o doutor Medeiros, -- agora apenas um amigo, desenganado lealmente e com requintes de gentilesa pela irmã de Luciano, -- declarara que a molestia era fatal, que Isaura morreria... A viagem, ao menos, prolongaria a existencia amada. Mas, o que fazer contra a sua opposição? Passara o primeiro período. O segundo ahi estava, -- o amollecimento dos tuberculos. E como elle sentia, elle que ali era mais um amigo do que medico!

E tinham sido Jorge e Clarisse os culpados daquella desgraça. As suas consciencias relembravam sempre o crime tremendo. Sim, tinham sido elles que apressaram a molestia de Isaura! Se não fosse aquella conversa no jardim, que a fatalidade a fizera ouvir, a enfermidade não se desenvolveria tão rapida, a pobre moça teria socego e calma de espirito, faria mesmo aquella viagem ao extrangeiro, viveria emfim... E que tinham adeantado? Nada, -- a não serem desgraças... Uma amiga, a quem tanto queriam, e que se deixava morrer por elles! Um amigo, a quem extremeciam, e que estava louco de dôr com a perspectiva angustiosa da perda da mulher querida! E elles? Apenas tendo a certesa que se amavam doidamente, guardando a convicção dolorosa que não podiam pertencer um ao outro!...

Ah! a fatalidade! Ella ali estava, a se patentear sem subterfugios. Parece que havia um destino marcado para cada individuo. Quem nascera para ser infeliz, via a desgraça dominar em todas as phazes de sua vida. Para que lutar? Mundo de tristezas e de miserias, o melhor era ir na onda... Se o destino marcara para ser desgraçado, não era uma loucura reagir? E Jorge, ás vezes, tinha tentações de findar aquella sua existência criminosa. Não fôra elle, afinal, que desgraçara Isaura e Clarisse, elle que as amava tanto, -- uma, irmã querida, outra, esposa ideal?!...

XXIII

A visita ao Brazil dum dos melhores navios de guerra da Republica Argentina provocara grande enthusiasmo em Luciano. A idéa caminhava, tomava vulto. Em breve, talvez em época não mui longínqua, o seu sonho estaria realisado, -- a America do Sul unida, apertados os laços de união e fraternidade entre os seus diversos povos, irmãos que a diplomacia ainda não soubera aproximar como devia...

E elle contava aos amigos, naquelle jubilo patriotico que o distinguia, as bellezas e a riqueza que vira no paiz adoravel. Relembrava o estuario do Rio da Prata, e essa grande cidade que era Buenos Ayres, -- uma pequena Paris, com quasi todos os confortos das capitaes modernas. Era uma bella cidade, elegante e luxuosa.

-- A construcção em Buenos Ayres essa pode rivalisar com as melhores da Europa. Bonitos palacios, casas dum gosto artistico exquisito. Hoteis de primeira ordem, como os de Paris ou Londres. A illuminação publica digna de ser assignalada. As grandes avenidas, a adoravel Avenida de Mayo...

E o advogado continuava a fazer a apotheose da Nação visinha. O Brazil, o Chile, a Argentina, -- eis o maior encanto da America do Sul. Como eram bellos e fortes!

-- Para a Argentina, dizia sempre Luciano, está reservado um extraordinario futuro. O seu progresso é sensivel, incontestavel. Na historia da America ella tem uma pagina cheia de luz, e um dos orgulhos da raça neolatina. O seu commercio é enorme, o porto Madero honra a iniciativa e a perseverança argentinas. E é preciso notar a preoceupação artistica com que são feitos esses trabalhos, desde os monumento até os palacios de cinco e seis andares. Ahi estão a Avenida Callao e o boulevard Alvear, que só por si fariam o envaidecimento duma cidade.

Não, Luciano não exagerava. -- Vissem as outras avenidas, os parques, os jardins. E o movimento nas ruas? Basta dizer que para mais de onze mil carros cruzam diariamente as grandes arterias da capital. Era ou não uma esplendida cidade, com o seu milhão de habitantes? Alguns dos edificios publicos e construcções particulares são dum primor esthetico que maravilha. Os theatros, então, desde o da Opera, são notaveis entre os da America do Sul, assim como diversos dos seus clubs. A imprensa, como a brazileira e a chilena, rivalisava com a de Paris ou Londres, nos serviços telegraphico e noticioso, na collaboração literaria e artistica. O calçamento esse é um dos melhores do mundo, e se estende por toda a cidade.

-- O que nos é necessario nesta America, falava Luciano, é cuidar da instrucção publica. Ahi está uma das bases do nosso futuro e do nosso progresso. É preciso zelar pela instrucção desses milhares de patricios. Quanto ao Brazil, triste era dizel-o... Avultava o numero de analphabetos. Deviamos não poupar dinheiro para educar esse povo, que era a nacionalidade de hoje e d'amanhã. Mas tudo com intelligencia, methodo e patriotismo.

Estradas de ferro argentinas cortam o paiz em todas as direcções, levando o progresso ao territorio inteiro. E a força naval, essa merece bem como a de terra, os maiores elogios. No nosso continente -- como era doloroso confessal-o! -- só o Chile e a Argentina é que cuidavam da sua marinha. Nós nem sabiamos zelar o que tinhamos! Não exagerava, -- lessem o ultimo relatorio do nosso Ministro da Marinha. Uma dôr para todo o bom patriota. Ao passo que na Argentina o problema naval era tratado com carinho, e havia uma esquadra digna desse nome. A guarda-nacional era uma realidade. O exercito estava bem armado. Nós não tinhamos talvez navios de guerra como o Belgrano ou o San Martin, isto na opinião de profissionaes

A industria, a agricultura, o commercio, eram prosperos. Fontes de riqueza, que iam sendo aproveitadas com zelo, tinha-as a Argentina em abundancia. Ella se desenvolvia rapidamente, aperfeiçoando dia a dia o typo argentino, cuidando com carinho da sua raça que não se perdia, que não se afundava, que não se deixava dominar pelos outros povos que completavam a população da Republica. E ella não esquecia de povoar o seu sólo, preferindo, porém, os bons elementos.

-- É claro, commentava, que lá existe como em toda a parte a paixão politica. Mas não absorve a vida pratica, como em outros paizes... A maior preoccupação é a farinha, a reducção de tarifas, a agricultura, a industria. Era necessario exportar mais do que importar, eis o programma que devia ser seguido por todos os paizes de elementos proprios como os da America do Sul. Esse Pampa tão falado e outr'ora deserto, estava hoje plantado, bem cuidado numa grande e vasta extensão. Produzia o milho, a alfafa, o trigo, emfim, dava a vida a milhares de pessoas. O gado vaccum, o lanigero havia lá em abundância. E fora hontem deserto árido e terrificante...

O Brazil precisava, como a Argentina, duma immigração seria. Ella fora a riqueza para a Republica visinha, transformara-a. Qual o paiz que dispunha de maior quantidade de gado lanigero do que a Nação irmã? Do gado vaccum era na estatistica produetora uma das principaes. E porque não aproveitavamos os nossos campos extraordinarios, não introduziamos o colono trabalhador e honesto para arrotear esses milhares de leguas quadradas?! O que eram ha annos Santa-Fé, Córdoba, La Plata, Paraná, Rosario, e tantas outras cidades argentinas? Pois bem, -- hoje eram fontes de riqueza devido quasi exclusivamente ao colono trabalhador e alheio a idéas imperialistas. Seguissemos este exemplo, nós que copiavamos quasi tudo que havia de máo...

E Luciano relembrava a maneira patriotica por que a Argentina se engrandecera. Era uma lição a algumas das Nações sul-americanas. Quanto a nós, os do Brazil, necessitavamos não nos deixar levar pela troça de jornaes caricatos que nada queria dizer, ou por phrazes de espirito de boulevard... Paizes irmãos, não podia existir entre elles uma prevenção justificada. O nosso litigio com a Republica visinha não fôra resolvido amistosamente, pela arbitragem? E as gentilezas, as cortezias, a amabilidade, a fraternidade com que o povo argentino recebeo em 1900 a comitiva brazileira, -- assim como brazileiros receberam argentinos, -- não falam mais alto ao coração e ao bom senso dos verdadeiros patriotas do que commentarios isolados e opiniões desarrazoadas dum grupo que não se recommenda e que é apenas uma interrogação?

A campanha pela Triplice Alliança devia ser feita com ardor, agora mais do que nunca. A imprensa que trabalhasse neste sentido, assim como a diplomacia. Que bello serviço prestariam a este continente os nossos embaixadores!

Não! Jornalistas e diplomatas precisavam firmar de vez essa Triplice Alliança na America do Sul. Quando ella estivesse feita no coração de todos os povos do continente, os governos firmariam o tratado de paz e de concordia.

E, assim, pelo menos, acabariamos com esse triste espectaculo que damos ao mundo, de pequenas rivalidades, dissenções mal encobertas dentro da propria America! E os nossos patriotas não se lembravam que, no dia em que estalasse uma guerra entre dois dos nossos paizes, o melhor quinhão seria para... a America do Norte!

Era necessario haver uma reacção. O perigo ahi estava, e era grave porque precisava ser adivinhado. Não se apresentava franca e lealmente, frente a frente, vinha ás escondidas, pela calada da noite, como o bandido da estrada. E nós, confiantes em demasía, ingenuos como uma creança, desfaziamo-nos em salamaleques perante as Nações imperialistas!

A Argentina fazia bem em não se deixar ir na onda, em zelar o seu typo nacionalista. Ella imitava nesse ponto com raro criterio os Estados Unidos. Aproveitara o colono, chamara-o, attrahira-o, mas se conservava sempre e sempre argentina. Era o essencial, para a segurança da Patria.

E Luciano, enthusiasmado, continuava a entoar o hymno em favor da Republica visinha, proclamando as suas bellezas, augurando-lhe esplendido futuro, na obra de paz e progresso a que se entregara, concorrendo assim para esta America ser poderosa e grande!

XXIV

Chegara dezembro. Dias ele chuva, sombrios, cinzentos. O céo era como uma grande placa de chumbo, pesada e monotona. O sól, o claro sól de verão, que é a alegria e a força, a vida triumphante, se fazia desejar. Irrompía um ou outro dia, fugitivo, como que confuso e medroso...

Com o inverno se aggravara a saúde de Isaura. Não mais esperanças de salval-a... O marido, -- pobre coração alanceado pela dôr -- perdera a confiança em medicos e medicamentos. Vivia torturado, mal se alimentando, mal dormindo, todo elle carinhos e mimos para a mulher adorada. Com que pezar via-a morrer, aos bocados... E ella, a sua meiga companheira de felicidades e desgraças, ella, tão bôa, tão razoavel, a se oppôr áquella viagem que seria talvez a unica salvação! E pedia, e rogava, e sempre, sempre, a eterna resposta desanimadora e fatal:

-- Que não. Ella ia morrer... Sentia bem que os seus dias estavam contados. Para que, -- sim, para que? -- ir para terras outras, deixar além o seu pobre côrpo ? Ou, então, ter de ir para o fundo do oceano immenso?! Não, deixassem-a expirar ali, na terra onde nascera, junto de todos os seus amigos. E, pedia, cobrissem a sua sepultura apenas com uma pedra de marmore, acima do seu nome essa palavra inconfundivel, -- saudade!

Saudade, sim! Ella partia para a viagem eterna, amando sem ser amada Saudade, sim, que ella ia com um pezar louco de deixar, de não mais vêr o amante querido, tão desleal no seu amôr mas tão generoso e cavalheiro! Saudade, sim, porque os seus amigos haviam de choral-a sempre.

E a tristeza empolgava-a, concorrendo para a molestia dominar de todo o seu organismo franzino. Deixava a vida com pezar, não pelo que ella lhe dera de prazeres e alegrias. O seu quinhão fôra tão rapido, tão passageiro... Mas, se sentia feliz em adorar o amante carinhoso, em vêl-o todos os dias, em falar-lhe manso, com ternuras na vóz. Mas o destino nem quizera que esta pequena felicidade se prolongasse...

E Isaura peiorava. A tosse agora era continua, não a deixava dormir. A febre quasi não cessava, os escarros tinham raios de sangue. A pectoriloquia chegara.

O doutor Medeiros bem tentara a petrificação dos tuberculos. Nada poderá fazer. Experimentara a cicatrização das cavernas, applicara as pontas de fogo, tudo. Mas era tarde, o terceiro periodo se declarara, e a tisica pulmonar mais uma vez triumphava...

Clarisse era enfermeira dedicada e amoravel. Dia e noite ella velava, attenta ao menor ruido. Lidava com Isaura como se tratasse uma creança cheia de mimos. Além de ser a amiga que mais queria, Clarisse julgava que concorrera embora involuntariamente para a doença assustadora. Tinha remorsos, e procurava suavisar o mal que fizera desfazendo-se em caricias e consagrando-se á saúde daquella que tanto amava.

E noites passava ao lado de Luciano e Jorge, que não se cançavam tambem em prodigalisar á enferma todos os carinhos de que ella necessitava. Alberto esse vivia abatido, não mais escondendo as lagrimas, o desanimo, a dôr que o prostrava.

Em toda a casa, outr'ora alegre, pairava uma grande tristeza, como se a morte tivesse desdobrado perto as suas azas agoirentas. Falava-se baixo, sussurrando. Andava-se na ponta dos pés, de leve. Os canarios outr'ora festivos como que compenetrados do pezar que se estendia na casa toda, sem as caricias costumeiras da senhora, sem mais ouvirem o som alegre do piano, -- tinham tambem entristecido. O riso que ali morara parece fugira de vez...

Jorge e Clarisse eram só cuidados para a enferma dilecta. Elle se julgava com a responsabilidade daquella morte que via proxima, não fôra elle, se não fôra a confidencia naquella noite enluarada, no jardim... De certo Isaura tinha consentido em partir, a molestia não tomaria marcha violenta, e, em outro clima, socegado o espirito, ella se restabeleceria. Sim, fôra elle o unico culpado, elle, que a queria como uma irmã e a respeitava tanto!

Os dois sentiam que tinham sido algozes involuntarios, e logo de alguem que tanto idolatravam! E, movidos pelos mesmos sentimentos, irmanavam-se, procurando suavisar o fim daquella vida preciosa.

Entre elles, que tanto se queriam, nunca mais se trocara uma só palavra sobre a grande paixão. Parece que aquella palestra no jardim fôra o prologo e o epilogo do amôr torturado. Silenciavam sobre a scena inesquecivel, embora ella vivesse palpitante e eterna nos seus espiritos. De que serviria avival-a? Para que soprar o brazeiro que se supporia extincto, -- se ali em frente estava o corpo da victima adorada?!

E passaram dias, e succederam-se mezes, sem Clarisse e Jorge falarem mais sobre o seu amôr. Esperanças e illusões não as tinham. Seriam noivos eternos, esposos em espirito. Elle não estava acorrentado, agora voluntariamente, pela sua palavra de honra? Para que revolver o estilete na ferida aberta, sempre gottejante, se nada adeantariam?

E todos trez tinham revoltas surdas contra o destino. Mereciam aquelle castigo cruel e barbaro? Clarisse que era tão simples e modesta, coração talhado para o bem, ser sacrificada assim no seu amôr, na sua vida, por um requinte de perversidade do destino omnipotente? Isaura que era uma alma pura, ahi estava amargurada com a dôr moral, esmagada por um soffrimento phisico! E Jorge, que era um homem de brio, a fatalidade o levara a trair o amigo dilecto, a matar a felicidade de Clarisse e Isaura, que tanto amava, que tanto queria, embora diferentes os sentimentos?!

O destino era bem cruel... Cada existem surgindo parece que trazia a róta a seguir. Tudo era fatal, tinha de ser. Elle não lutara, não reagira, contra o amôr peccaminoso? Não fugira do amôr puro que dominava o seu coração? E a fatalidade não o arrastara, não o subjugara, atirando-o ao crime, e, depois, não o fizera mais desgraçado ainda com o sacrificio espontaneo daquella que seria noiva eterna?

E desde que começara a ligação que sempre revoltara o seu espirito de amigo e de homem digno, nunca mais tivera socego, calma, felicidade. Como não acreditar no remorso se elle o perseguia dia e noite, se era o seu companheiro de tristezas e de festas, a sua sombra, o seu segundo «eu»? Ah! Bem razão tivera Luciano com aquella phraze, que vivia no seu pensamento: -- «o castigo do adulterio era o proprio adultério!» Sim! Como ella era desgraçadamente exacta! Ahi estava elle... Que de pezar, que de amarguras, que de tristezas, que de temores, em troca de raros momentos duma felicidade ficticia! E ella, a sua meiga Isaura, carinhosa e boa, outr'ora jovial e alegre, calma e feliz, pura e immácula, e desde o inicio da ligação dolorosa, sem um dia de socego, sem um momento festivo, toda ella susto e receio, desconsolo e afflição, amargura e dôr?!

Seria o seu um caso novo? Não, de certo. Os psychologos já o tinham estudado, em centenares de livros. A vida não era mais do que a repetição, a originalidade essa é que era quasi a verdadeira fantasia. E se a vida brutal era a falta, o crime, o gôzo momentaneo, o macho pela femea e a femea pelo macho, como ser o facto principal da sua vida um «caso novo»? Claro que outros, antes delle, ou naquella occasião, soffriam a mesma tortura desde que fossem almas honestas. Como ser original, se a vida era sempre a mesma, eternamente banal? Na maneira de dizer, de estudar, de fazer a psychologia, de desenvolver os factos, -- ahi sim é que se podia não ser commum, não ser vulgar. Mas a vida, nós que éramos pó, não podiamos transformal-a, aperfeiçoal-a, tornal-a perfeitamente honesta, quando era feita quasi de baixezas e de miserias!

O seu sonho dourado nunca se realisaria. Possuir um Lar onde morasse a felicidade, e onde Clarisse fosse a suprema senhora! Ter filhos, -- umas creanças bellas e encantadoras, de olhar avelludado e transbordante de caricias, buliçosas e trefegas, que enchessem o seu Lar de risadas crystalinas e vibrantes. Creanças eram as flôres da vida, creanças eram a innocencia e a graça, a alegria e a bondade!

... Sabado alegre e festiva o sól, claro e forte, banhava a cidade toda. O céo era dum azul purissimo, transparente, -- uma nota de luz inesperada naquelles dias sempre encobertos, cinzentos, escuros. Dia de alegrias, dia de amôr!

Isaura passara bem a noite. Os medicos quando vieram manhã cedo não se enganaram. Eram melhoras apparentes. A morte chegava... E, feitas as injecções, applicados outros medicamentos, a enferma repousou. Teve um somno curto, leve, cheio de quietude. De certo sonhava, talvez com o céo, pois Alberto, Clarisse, Jorge e Luciano viram os seus labios contrahirem-se num sorriso infantil...

Quando acordou, pedio que abrissem de par em par as janellas da alcôva. O doutor Medeiros recommendara, antes de se despedir, que não contrariassem a enferma, que lhe satisfizessem todos os caprichos. O sól, num grande raio de luz, entrou em jorros cortando o aposento em meio. A doente saudou-o com um grito jovial. E Alberto, illudido com aquella melhora, transbordava de jubilo e esperança.

Isaura quiz que a levassem para junto da janella, que deitava para o jardim florido. E quando os seus enfermeiros amoraveis a deixaram ali, ella pousou os grandes olhos tristes no pequeno bosque de bambus... Clarisse e Jorge, acompanhando o olhar, extremeceram e ficaram mudos. Falou a doente, olhos embalos pelas lagrimas trazidas pela recordação que lhe atravessara o espirito:

-- Sinto-me bem, Alberto. Deus foi generoso para commigo concedendo-me uma morte suave... Sim, porque eu sinto que hoje vou morrer...

Os outros não mais poderam conter as lagrimas. Alberto tentava falar, consolal-a, a voz embargada pelos soluços. A doente estava muito pallida, muito resignada, estendida ao comprido no fôfo divan.

Sinos bimbalhavam ao longe, chamando fieis para a missa habitual. Dobravam festivamente os velhos bronzes das igrejas dos Remedios e S. Sebastião. Na alcôva pairava um perfume suave de violetas e madresilvas, que se enroscavam junto da janella aberta. Dois passarinhos traquinas pulavam no jardim, de galho em galho, beijando as coróllas das rozas...

Isaura morria... Havia lá fóra uma grande felicidade, o sól cantante, a passarada festiva, sinos a bimbalharem, flôres a perfumarem o espaço... Contrastes da natureza! Parece que Deus fizera o dia mais lindo, o céo mais puro, para receber a alma torturada daquella que tanto padecera em vida... Deus era bom. Deus era generoso!

-- Sim, vou morrer! balbuciava Isaura. Ella ahi vem, essa morte misteriosa. Mas... não tenho medo, não sinto temor. Sorri me, e só tenho saudades de deixar vocês, a quem tanto quero.

E, pegando mansamente a cabeça de Alberto, beijou-o na testa, sussurrando palavras que elle não entendia e que mais o commoviam, na persuasão que era o delirio que chegara:

-- Perdôa-me! Perdôa-me!

Fizera-se um grande silencio, só quebrado pela respiração fatigada da doente. Os outros continham os soluços, cheios de dôr. E, dahi a minutos, quasi a expirar, ella, deixando os seus olhos desmesuradamente abertos fitarem Jorge e Clarisse, com as mãos fracas e transparentes pegou nas mãos dos dois amigos, que se lhe abandonavam, e disse baixinho, como num sôpro, a vóz entrecortada e quasi sem vida:

-- Vejo pouco... Sinto que estou morrendo... Façam o meu ultimo desejo, já que me querem immenso. Casem-se, sejam muito felizes, vocês que se amam tanto. Deus abençoará esta união, ha muito sonhada e desejada por mim. Eu, lá de cima, pedirei para que tenham um futuro transbordante de alegrias, cheio de felicidades. E lembrem-se da pobre morta ao ter a primeira filha, filha de amôr: chamem-n'a Isaura. Morro... Deus velará por vocês. Adeus!...

... Lá do alto o sól continuava a espadanar raios brilhantes numa estupenda orgia de luz. Sinos bimbalhavam cantantes e festivos, que Deus recebera mais uma alma santa que o destino cruel torturara. E Jorge e Clarisse, lagrimas a transbordarem dos olhos pisados, soluços a tolherem a vóz, cobriam com braçadas de flôres, -- rozas desabrochadas, botões a abrirem -- o corpo adorado da pobre martyr que, ao morrer, lhes dera numa rara abnegação e num grande amôr a felicidade immensa com que elles não mais sonhavam!...

XXV

Luciano se sentia mais animado na sua campanha. A esperança não o abandonava, e via com enthusiasmo de bom patriota que a semente germinava, que a idéa duma Triplice Alliança não era mais acolhida com um sorriso... Era discutida, era commentada nas palestras e, ás vezes, na imprensa. Logo, em annos próximos, calaria no espirito publico, e os Governos da America do Sul não mais se conservariam quietos e indiferentes.

Era preciso combater a interpretação dada hoje á doutrina de Monröe, -- «a America para os americanos... do Norte.» Ainda não ha muito, quando chegara a Washington a noticia, que era uma ballela, duma alliança entre as Republicas sul-americanas, o Governo dos listados Unidos dizia -- que a sua acção tinha sido mal comprehendida, que sempre que intervinha nos negocios das Republicas sul-americanas, era para garantil-as contra as preterições exageradas das potencias européas...

E nós, os patriotas, commentava Luciano, não devemos esquecer a ultima «garantia» dada pela grande Nação imperialista, -- o Panamá desannexado summariamente da Columbia!

Sim. nós deviamos fazer essa alliança. Não offensiva, porque eramos pela paz e pela concordia, -- mas defensiva, no direito sacratissimo de zelar a nossa integridade e a nossa independencia, de quando em quando ameaçadas pelas potencias conquistadoras. Necessitavamos trabalhar, estender e fechar a corrente de união, augmentar o nosso exercito e a nossa marinha, ter grandes meios de defesa, possuir uma rigorosa educação militar, para sermos não temidos mas respeitados, para não morrermos por ahi espesinhados no dia em que os paizes imperialistas, americano ou europeus, entenderem se apossar pela astucia ou pela força duma destas Patrias que fazem o orgulho da America do Sul!

«Confiar, desconfiando» era a phraze que devia estar eternamente viva ao espirito dos nossos estadistas. Ella encerrava uma grande previsão nestes dias de egoismo atroz, em que só o forte, -- forte pelo numero de canhões e couraçados -- era respeitado e querido pelo temor que inspirava. Como ser optimista quando a conquista desfraldava o seu pavilhão rubro, e se ia apossando de terras e riquezas?! Como ficar de braços cruzados, numa indiferença criminosa, quando o direito era representado pela força?

Nós deviamos dizer a verdade como ella era, falava Luciano. -- Por mais amiga, por mais dolorosa que fosse, não devia ser occulta ao povo. A nossa marinha não tinha quasi navios de combate, as nossas fortalezas estavam desguarnecidas. Pois bem, porque não franco e leal? Por acaso a nossa decantada ingenuidade chegara á demencia de suppôr que a situação militar do paiz não era demasiadamente conhecida lá fora? Qual a Nação imperialista que não sabia do estado dos nossos navios, do abandono em que estavam as nossas fronteiras? E tudo era por falta de officiaes e de soldados ou marinheiros? Não. Aquelles eram intelligentes, preparados, patriotas, e num confronto não ficavam aquém do official europeu, e o subalterno este era sempre dedicado. Mas, no momento dado podiam fazer milagres? É claro que a bandeira da Patria não a entregariam, mas haviam de morrer porque a coragem sem bons couraçados e canhões era hoje quasi improductiva. Augmentassemos a nossa esquadra e o nosso exercito. Fossem feitas outras economias, que se appellasse para o povo, que se creasse um imposto, comtanto que voltassemos ao tempo de outr'ora em que a nossa marinha de guerra era a primeira da America do Sul e uma das principaes do mundo!

Mas nós éramos imprevidentes. A guerra hispano-americana não nos despertara. Não tivemos, naquelles dias de sangue, o patriotismo de aperfeiçoar e augmentar a esquadra nacional. Nem o exemplo nos obrigara a sair da modorra!

Porque não fazer como o Chile e a Argentina? Porque não cuidar seriamente do exercito e da marinha, mover os nossos navios, exercitar continuamente soldados e marinhagem? Ao primeiro signal, elles deviam seguir, marchar... Mas, como conseguir tal se os navios não se mechiam, se os exercicios rareavam?

Era bem triste dizel-o... Nós nem estacionavamos, recuávamos. Perderamos por desidia a hegemonia militar do continente. A politica pessoal invadira todas as classes, fôra até onde não devia chegar. Defender a Patria, -- eis o unico roteiro do soldado ou do marinheiro. Não o distrahissem da sua profissão, -- que era a mais bella, a mais patriotica de todas! Mas o polvo tremendo tinha garras em profusão...

O Brazil era grande, o Brazil era vasto! Quasi todos o cobiçavam, que a preza era valiosa. Porque não fortificar o seu littoral nos pontos principaes, porque deixar em abandono essas fortalezas previdentes, por que não guardar bem todas as fronteiras? Quem poderia affirmar que o dia d'amanhã seria calmo e bonançoso, somente flôres?

Se fossemos bem avisados nos preparariamos na paz para a guerra. Povo sem marinha, ovo sem exercito, não era povo! Quem imperava era o forte, e como a gente se conservar no abandono, na indiferença, no crime?! E se ella não viesse, a guerra que nós odiamos porque somos pela paz, -- mas que podia chegar inesperadamente, porque temos brio e temos dignidade, -- melhor ainda... Seriamos respeitados, e recuperariamos o dominio dos mares na America do Sul.

Cada povo imperialista tem desgraçadamente o seu Chamberlain. E para responder á doutrina avassaladora quando em acção, só ha um meio, -- marinha e exercito. O exemplo palpitante da Russia ahi estava, dizia Luciano. -- Ella pregava a paz, era pela ordem, promovera o celebre congresso da Haya... E hoje estava a braços com uma guerra tremenda no Extremo-Oriente! Nós, os brazileiros, depois da batalha formidavel do Paraguay, tinhamos sido felizes, -- o arbitramento e o accôrdo resolvera pacificamente os litigios das Missões, Amapá e Acre... Mas, a sorte não podia nos abandonar, fugir de vez para terras outras?...

E, dahi, tirar a conclusão errónea que era pela guerra? Não, nada mais falso. Elle já o declarara centenas de vezes: queria a concordia com o extrangeiro, fosse elle qual fosse. Mas, também, não desejava que o brazileiro fosse surprehendido como um collegial. Se amanhã recebesse uma affronta, podesse immediatamente não com a certesa da derrota mas com a probabilidade da victoria reagir, mostrando ao mundo que era um paiz, previdente! E isto dependia apenas de todos nós, do esforço sincero de cada um, da vontade de todo o povo!

Mas com que, então, haviamos de nos defender? Com o direito, com a lei? Mas tudo isto era uma irrisão para os paizes conquistadores! O fraco não tinha direito neste seculo de super-civilisação: o direito era a espada, a bala, o canhão! De que servia o Brazil ser grande, rico, immenso, quasi tão extenso como a Europa, se não estava armado? O gigante poderia ser vencido pelo pigmeu.

E Luciano continuava:

-- A força e a prosperidade do Brazil estão na sua marinha e no seu exercito, e na agricultura. Façamos, antes de tudo, menos politica. É para o bem da Patria, para a segurança e felicidade deste paiz colosso! É preciso não distrahir o marinheiro ou o soldado da sua carreira. Os grandes intervallos fazem arrefecer os maiores enthusiasmos. Como ser um marinheiro quando se passa a vida na imprensa politica ou no parlamento? Ah! Era preciso prever tudo, evitar o mal para não ter de remedial-o. O Brazil tinha de se armar, de recuperar o tempo que esperdiçara como um nababo. E, cuidando da sua marinha e do seu exercito, devia arrotear dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, os seus campos immensos! Na agricultura estava a maior riqueza, o futuro certo, o «amanhã» de vez assegurado. A terra era fertil como nenhuma, uberrima e espantosamente rica! Pois bem: fossemos menos politicos e, unidos para sermos fortes, reerguessemos a nossa esquadra, augmentassemos o numero de navios, e emfim que a terra fosse lavrada, que os campos infindaveis tivessem o cultivo que reclamavam para o seu desenvolvimento e progresso!

Luciano não era um pessimista. Dias melhores haviam de chegar para a Patria adorada. Tinha fé, a fé ardente e sincera de todo o patriota, -- que ao Brazil estava talhado um grande futuro. Erros, faltas, leviandades, mesmo crimes, que maculavam a Republica assim como tinham maculado a Monarchia, haviam de passar.. Elle guardava a esperança de vêr a Nação forte e rica, prospera e feliz, menos politica e mais patriotica.

O Sul era grande, o Norte era immenso! E tudo por explorar. Florestas, sólo, quasi tudo virgem! O homem buscava apenas o el-dorado, -- a borracha e o café. Nada mais o fascinava: era o lucro immediato, a fortuna. E a terra, a uberrima terra brazileira, continuava esquecida, abandonada, á espera do colono activo e honesto. Quando este povo generoso ouviria os seus conselhos, as suas opiniões, -- opiniões e conselhos de todos os patricios sensatos que queriam a Patria bella e forte?!

E Luciano, olhar estendido para o além como que seguindo um sonho longamente acariciado, voz commovida, concluia a palestra que naquella tarde calma tivera com os amigos:

-- Sim! É por vera riqueza espalhada na minha Patria, derramada por todo este continente assombroso, que eu desejo, que eu quero, a união defensiva da America do Sul. Não é com palavras e salamaleques internacionaes que se occultam planos imperialistas... A época é de conquista, do mais forte. O fraco fatalmente cairá na luta, seja travada ás claras ou na sombra. Precisamos nos unir, estreitar os laços de fraternidade e harmonia, porque -- digamos a grande verdade, -- todos os nossos paizes são cobiçados porque são ricos, e todos nós, isolados, não podemos enfrentar o leão dominador, seja elle europeu ou americano... Ligados, saberemos nos fazer respeitar, e, no dia decisivo que peço ao Deus supremo nunca chegue, a onda crescerá e para vencel-a será necessario muito trabalho. Sim! Nós os da America do Sul, devemos ser pela paz, pelo progresso, pela ordem! Dar ás velhas Nações o exemplo do respeito e da concordia... Mas, no momento em que o imperialismo quizer nos estender as suas azas de côrvo, então, sob um mesmo pavilhão, como um só braço, devemos cerrar fileiras em prol destas Nações ambicionadas. Brazil, Chile, Argentina, Venezuela, Bolivia, Colombia, Uruguay, Equador, Peru, Paraguay, todos, unidos e fortes, saberemos zelar tradições guardadas com carinho e conservar immáculos os estandartes sempre gloriosos. Chamem-nos de utopista... Nem os Estados Unidos, nem as Nações conquistadoras da Europa, desejam se apossar de terras ou riquezas da America do Sul... Nada, apenas boatos infundados, calumnias que não merecem reparos! Mas, façamos sempre a grande união, e, bem armados, continuemos a troca amistosa de saudações e de visitas duma cordialidade fraternal. Ah! meus bons amigos, eu tenho um sonho que me acompanha, miragem fascinante e tentadora que me segue... -- Um dia, talvez não mui longinquo, esta America será o celleiro do mundo, prospera e feliz, forte e respeitada, armada e querida! As suas Nações, com grandes exercitos e grandes esquadras, pregarão a paz e o amôr! A agricultura e a industria prosperas, todos os campos immensos do Sul e do Norte arroteados! A fortuna e a concordia, a riqueza e a força, -- e, lá no alto, abençoada pelo Deus, generoso e bom, omnipotente e immáculo, desfraldada aos ventos bonançosos, acima o céo azul e vasto, abaixo a terra fertil e uberrima, -- a bandeira victoriosa e branca, estreitada e pura da Triplice Alliança!

Rio de Janeiro, março de 1903.

Manáos, março de 1904.

>Si vis pacem, para bellum.