Miss Kate: Edição para o ELTeC Velho, Cosme (1848-1911) Criação do HTML original Vanda Morgado Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 58660 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org Miss Kate Cosme Velho Miss Kate Cosme Velho Livraria Clássica Editora Lisboa 1909

português do Brasil Checked by checkup scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker script Adicionado à coleção ELTeC

Miss Kate

Cosme Velho

ADVERTENCIA

Miss Kate carece de classificação como genero litterario.

A intenção do auctor era fazer um conto, quando em 1901 traçou os primeiros capitulos. O conto, porem, que devia ser phantastico, tomou depois as proporções de uma novella; e o elemento phantastico amalgamou-se com alguns factos de observação colhidos por quem não possue competencia em psychiatria.

O leitor discreto e benevolente verificará, pois, até onde chega a realidade da acção mórbida traduzida no personagem Agrippino e quando começa a trabalhar a phantasia illogica do escriptor.

Em 1904 esse trabalho appareceu, com excepção da ultima parte do capitulo xi, nas columnas de uma revista litteraria d'esta capital.

Tendo-o lido, então, o eminente psychiatra Dr. Afranio Peixoto, achou que esta edição era digna de um prefacio de sua lavra.

Á tão grande generosidade, portanto, vae dever o cultor das bôas lettras o ensejo de apreciar uma pagina magistral, em que não se sabe o que mais admirar, se o brilho do estylo do poeta, se a cultura do medico, se a condescendencia de um homem versado nos segredos da arte e dotado de um espirito rutilante.

Rio, 15 de maio de 1909.

Cosme Velho.

CAPITULO I

O trem do Corcovado devia subir ás duas.

O Dr. Agrippino Simões, contrariado, puchou o Pool. Era exactamente a hora da partida, segundo o horário afixado na bilheteria; mas o seu relogio não combinava cora o da estação. Havia dez minutos de differença.

Nesse instante um rapaz, postado á porta do torreão, espreitava um vulto quasi infantil, de senhorita, que deslisava pela calçada opposta. Os olhos brejeiros da menina luziram por baixo de um grande chapéu de palha a Rubens, desgarrado sobre cabellos côr de oiro, e vibraram um sorriso de intelligente intimidade.

-- Queira desculpar, disse o doutor, pondo, carinhoso, a mão ao hombro do namorado.

Verifique si o erro é do meu ou do relogio da empreza.

O rapaz tirou do bolço do collete de flanela branca um remontoir de nickel e apresentou-lhe o rnostrador.

Era manifesto que o Pool, apezar do, aferido pelo Observatório do Castello, estava em grande atrazo. Agrippino afastou-se; não agradeceu a fineza.

Dardejavam raios fulgurantes sobre o verde alegre das montanhas. O bairro das Laranjeiras, com sua casaria discretamente occulta pelos arvoredos, exuberava de verdura e flores.

As caçoulas dos jardins despediam perfumes combinados; sentia-se o ambiente saturado de trevo, rosas e jasmins. O dia esparramava-se numa dessas claridades magicas, que dão vontade á gente de friccionar-se nellas, como no velludo. A luz era macia. O esplendor tropical, acariciando a vista, de concerto com a aragem tepida, solicitava os sentidos, dispondo para esse feticiiismo civilisado, que põe o homem nas mais secretas intelligencias com a natureza. Em dias assim o mau humor é quasi um crime; e os que reincidem fazem crer na existencia do demonio. Agrippino dir-se-ia, entretanto, hostil a tudo aquillo.

Debuchou-se-lhe no rosto um gesto de colera contra o bairro, contra as flores, contra a verdura, contra o sol, contra a natureza.

O moço, que o observava, muito attento desferiu uma rizadinha maliciosa. O doutor estremeceu, mas conteve-se. Voltando-se disse-lhe com vivacidade:

-- O cavalheiro permitte uma observação?

Conheço a delicadeza do meu chronometro.

Uma pequena commoção é quanto basta para atrazal-o. Os meus sobresaltos ráoraes, ás vezes, fazem-lhe estalar a mola... Fiquemos, por ora, nestas considerações...

O moço hesitou em retorquir, principalmente porque Agrippino atirara-lhe um olhar caprino. O assomo, porem, passou como um relampago. E porcjue o interlocutor o interessava, o doutor sorrio, mudando de tom.

-- Não falle... Já sei: -- vae pensar naturalmente que sou um exquisitão.

E sorrio de novo, mas desta vez com rara expressão de bonhomia.

-- Sou talvez, um malcreado, accrescentou.

É esta a forma ordinaria da minha ironia.

Aceite-a, peço-lhe, como significado, synonimo, -- não sei como diga--, da minha sympathia.

E deu com a mão para que esperasse. Num salto, ao guichet, tomou duas passagens de ida e volta.

-- Agora... Sei que os olhos de Ninon ...

Duas menos quinze... Sim... si esses olhos chegarem ainda a embaraçar em caminho o companheiro a quem espero para um passeio ás alturas, vou jurar que o senhor é o único homem capaz de subir commigo áquella torre Eiffel.

-- Isso é extravagancia!

-- Extravagancia ou não, subirá commigo.

-- Mas quem é o cavalheiro?

-- Um comparsa da vida.

-- Oh!

-- Agrippino Simões, bacharel em disponibilidade.

-- Um evadido da razão pratica...

-- E possivel. Todavia isso não impede que sympathisemos e façamos um passeio, juntos.

A sua graça?

-- Tiburtino Mendes, da Faculdade de Medicina.

-- Professor? E muito joven para isso!

-- Sexto annista.

O perseguidor de Ninon fez um parenthesis com a bôca, arrevesando os olhos.

-- A quem espera? pergutou. Si não é indiscrição?

-- Ao ex-reporter da Gazeta, o Navas.

O estudante franzio o nariz.

--É singular! O Navas, vi-o, ha vuna hora, embarcando na praia do Flamengo, com alguns amigos, para o convescote na ilha do Bom Jesus.

O pincaro do Corcovado estaria áquella hora, no logar do costume? De tudo já era licito duvidar.

Agrippino sopitou a objurgatoria contra o Navas.

Ludambulos inglezes desciam de um bonde, e invadiam estrepitosamente a estação, de binoculos a tiracollo. Rubros e loquazes, assaltaram a bilheteria aos gritos de beautiful e quickely! Do ex-reporter, nem vulto!

O doutor, então, pèla ultima vez olhou para a rua e, desenganado, voltou para a plataforma, a onde a locomotiva chiava engatada ao carro de passageiros, já repleto. Dando de chapa, neste momento, com o rosto jovial do estudante, e, ao mesmo tempo, notando que este troçava a sua irritação, pôz-se a medil-o de alto a baixo.

-- Quer ou não subir?

Não esperou pela resposta. Enfiou-lhe o braço, e atirou Tiburtino para o carro esconso, que, a esse tempo, impellido pela machina, principiava a mover-se no esforço difficil da cremalheira.

Sentaram-se justamente defronte de uma estrangeira, que gesticulava, -- elevando a voz á proporção que o trem progredia na ascensão, e ponteava de phrases interjectivas as transformações por que ia passando a paizagem, aberta em flor, sob aspectos sorprehendentes, inverosimeis.

Sómente na altura do Silvestre a victima de Simões poude, voltando a si da surpreza, pensar no flirt interrompido. Quanto ao primeiro, profundo era o desgosto que lhe causavam os gestos angulosos da miss, avassalada por furioso accesso de febre pictoresca.

-- Maldita mania, a destes bifes! murmurou, rangendo os dentes ao ouvido do rapaz.

E empallideceu.

-- Que é? perguntou o estudante sobresaltado.

Agrippino custou a responder. Depois balbuciou uma desculpa banal.

O rapaz, muito assustado, amparou-o. Os circunstantes riam-se.

-- Que lhe succede, doutor? Então era para isto ?...

-- Nada! Singular... muito singular...

O estudante experimentou a impressão de um pingo de agua gelada a correr-lhe pela espinha.

Apenas o carro tangenciou a curva do viaducto do Silvestre, quasi todos os passageiros ergueram-se. O doutor, convulso, sentara-se entre os dois bancos.

Um dos inglezes gritou, aggressivo :

-- Beware, Kate!

Agrippino tinha desfallecido.

A estrangeira, apparentemente compadecida, interpoz-se. O sorriso maligno insinuava uma suspeita.

-- Oh! poor Hamlet!

A reminiscencia shakespeareana salvou o doutor da aggressão imminente.

Auxiliado pelo companheiro, que ficara estupefacto, Simões levantou-se; mas, para sentar-se e equilibrar-se, foi preciso que a própria estrangeira, agora completamente distrahida do espectaculo ascencional, prestasse auxilio.

Uma senhora brazileira, que se achava entre os passageiros, desmaiava; e não faltaram commentarios para explicar a singularidade do caso.

Apezar da compostura do doutor, houve quem murmurasse contra a ficção pouco estudada de ressaca highlifeana.

Passado o susto, Tiburtino Mendes, candidato a Esculapio, inquerio.

-- Aquillo, respondeu Agrippino, é o que pode haver de mais intolerável! O horror á curva...

O carro, sahindo do viaducto, continuou a marcha, nesse movimento de vae-vem, soluçante e crebro, que a cremalheira imprime ao trem inteiro, tornando a viagem, para os que se não interessam pela paizagem, uma das coisas mais irritantes, que existem em matéria de viação.

A hilaridade dos inglezes modificara-se um pouco. Miss Kate simulava piedade. De vez em vez, volvendo-se para o doutor, observava-o com a fixidez de quem não recua diante da attenção do observado. Simões, com a cabeça inclinada, conservava-se vertiginoso. O olhar fixo na miss, livido, riso vasio de expressão, opaco, deliquescente, elle, quando a estrangeira inclinava-se para fora e recomeçava os beautiful e very nice, dava ligeiros signaes de impaciência, traduzindo-os em flutuações da vista num começo de anciedade.

A ascenção findou sem outro incidente de importancia.

Nas Paineiras, Tiburtino Mendes fel-o sahir do carro. Mal, porem, o doutor pizou na plataforma, recobrou as cores, o sorriso ironico, que lhe era peculiar, e a palavra aggressiva do bohemio.

-- All right! disse aos ludambulos inglezes, que seguiam para o pavilhão do pico.

Na plataforma, aproximou-se de Miss Kate, que lhe fora tão gentil, e balbuciou quasi ao ouvido; -- Poor Falstaff!...

O trem afastou-se, sempre soluçante, trepando a rispida cremallieira. Os inglezes, em côro, soltaram uma saudação á natureza virgem e feraz do Gorcovado.

Áquella hora a floresta desanuveada, verde, mas de um verde de palheta artistica, enviava aos passeiantes a frescura das cascatas próximas e uns ruidos meticulosos, harmonicos, wagnerianos, que expandiam o coração e agitavam a faculdade productora, imprimindo na alma alegrias infindas, integradas pela elevação do pensamento e pelo sentimento da grandeza e do magestoso. Agrippino tinha o gesto da indifferença. Mas que vinha elle então solicitar daquellas montanhas e altitudes? Alguma experiencia sobre si mesmo? Não o sabia. Suggestões do Navas! Acordara com a mania das ascenções; e uma força invencível o obrigava a subir.

No restaurante havia pouca gente. Em compensação, ao redor de uma mesa, alguns jovens, frequentadores da rua do Ouvidor, no desafio á grande mestra, que ali os escutava serenamente, sem protesto, discutiam questões de esthetica e de politica. Ora a estlietica prevalecia sobre a politica; ora a politica supprimia acintosamente a esthetica; e as arvores, as orchideas, os regatos, os rochedos adjacentes, todo aquelle amphitheatfo de coisas bellas, sublimes, por vezes terríveis, suspiravam a monodia do desprezo pela lógica do verme que se chama homem.

O doutor conhecia os palestradores de vista.

O sexto annista, seu companheiro, lembrou-lhe uns nomes reputados na imprensa da tarde e no bulevardismo fluminense. Eram: Olyntho Bravo, Evaristo Carneiro, Paulo Motta, Ambrosio Raposo, e o Juvenal das Flechas. Cada um destes esthetas produzia a sua opinião, com a liberdade própria da juventude e com o desassombro, que é a nota caracteristica dos temperamentos tropicaes. Imagine-se um bando de saguis phantasticos, jogralescos, cabriolando na floresta, celeres, de gallio em galiio, em sortes de humoristica acrobacia, atravez das pontes de lianas, a zombar da voragem dos abysmos, sagazes para as feras, intangíveis ao caçador; era o que faziam aquelles críticos excêntricos. Olyntho Bravo irradiava, eloquente como Asmodeu; Ambrosio Raposo o interrompia a todo instante com llechadas de Gupido; e emquando Paulo Motta, esgarçando a ponta do bigode, obtemperava, estribado tia pliilosopliia do quarto estado, Juvenal sorria empanzinado de scepticismo. Os outros gargalhavam. O paradoxo ia e vinha como uma rêde em balanço.

A imaginação espreguiçava-se, e si, de momento, dava um surto, era para transpor os alcantis do espirito, suggerindo aos discursadores proposições escandalosas.

Para Olyntho Bravo a poesia não seria mais do que o Satanaz de Milton atravessando o espaço em busca do sol entrevisto pelos anjos rebeldes. O escarneo dos vis; o desafio á immensidade. Poesia, aã astra! Na terra ou no templo, não a comprehendia íora da mulher esculptural, mas da mulher amada, suspensa no altar sagrado, divina como Maria, sensual como Aphrodite. O homem no socalco, bacchanalisando-a com o furioso amor de Pan: -- depois transfigurado pela cólera erótica, despenhado no abysmo de um dilúvio azul com os destroços do templo e o sacrilégio desse furor. Na rua, nos theatros, na praça publica --a ebridade do trabalho junto á satyra dos costumes; e elle, o poeta, o eterno jogral das kermesses loucas, boçal por calculo, hilariante por herança, afeito aos pontapés na realidade desta vida estúpida, sempre inexorável, a dar trambolhões nos factos e a aífligir os liomens com a ironia holophernica.

Pois, quanto a mim, exclamou Ambrosio Raposo, no diapasão do nortista que é como o grito da araponga; -- não a admitto, nem tão disparatada, nem tão cruel, nem tão mesquinha.

Os minimos da natureza, eram o seu forte.

Só por elles o amor; só por elles vida, paixão!

pjxtasiar-se deante do arco iris; ouvir na som- bra, o pipilar das aves; escutar o merencorio zumbir dos insectos, friorentos; seguir na teia a aranha evoluindo machiavelicamente em cata de um besoiro; descer como gymnasta ao fundo dos bosques; pendurado a uma restea de sol; perseguir em seus amores, as borboletas que se beijam no ar; os besoiros dourados que se occultam nos cactos; os grilos que trilham nos latibulos; ouvir a musica dos batracios pelas noitadas de luar; nos dias de rosiclér, saltar com os lagartos verdes para cima das pedras musgosas da montanha e abeberar-se de luz, de luz, de luz, -- eis a poesia de Ariel, a única que conseguia enlanguescel-o, a única que o transportava fora da matéria.

Contestações violentíssimas surgiram.

A gravata rubra de Paulo Motta esvoaçou como um ílabello; e uma apostrophe, a Marat, cahiu-lhe dos lábios trêmulos:

--A poesia, sangue!

Nisto resumia-se toda a sua esthetica. Robespierre tocando a symphonia dos Girondinos; o realejo da guilhotina fazendo jorrar a sangüínea harmonia das carótidas dos reis, dos padres, dos nobres e dos burguezes. Wagner descobrindo um novo estylo no monocordio da forca para divertir o povo e desopilar banqueiros. Ahi estava a grande idéa!

Estas palavras produziram escandalo. Simões não se conteve. Irritado, aproximou-se do grupo dos blasphemadores.

Uma discussão daquellas precisava de quem a tonificasse; o doutor não receiou iuterrompel-os. Os rapazes acolheram-no tempestuosamente.

-- Cerveja! gritou o Tiburtino Mendes, que o acolytava.

Emquanto o garção dispunha os copos e desarrolhava as garrafas, o sexto annista, amavel, esboçou uma apresentação.

-- O mais extraordinário dos homens; o homem que abomina o Gorcovado e aborrece os que o admiram.

--Hurrah, pelo extraordinário!

Abancaram-se todos, e a discussão cahiu.

Com a nota excentrica que lhes trouxera o novo interlocutor, deslocou-se immediatamente o centro de gravidade da palestra. O doutor captara-lhes no primeiro momento, a benevolencia e a sympathia; todavia Ambrosio Raposo e Evaristo Carneiro sentiram-se tocados pela hypocondria desse homem. Juvenal que de ha muito ouvia falar no publicista Povoa, pensou que o excentrico não fosse senão elle.

Mas o Povoa estaria naquelle instante no Espirito Santo.

Agrippino, desiludido, declarou logo que era puro carioca, filho da rua do Ouvidor, infelizmente estragado por viagens no extrangeiro, de onde voltara ultra-dyspeptico.

A locomotiva soltou do alto da montanha um grito dolorido.

-- Já agora vamos á dyspepsia, disse nervosamente Ambrosio Piaposo, phantasiando ura conto â Ia diaole. Não o abandonaremos sem que tenha derramado todo o tonei de Amontilado.

O doutor sorriu e accrescentou que a sua historia,-- e grifou com o gesto a palavra, -- era contagiosa.

-- E si destruir-lhes a esthesia? perguntou frisando a phrase com um ar grotesco.

-- Não o tememos e até o desafiamos.

-- Pois bem; seja. Mas previno-os de que o caso é demonstrativo, não supporta narrações.

Bebamos; e depois... ao pavilhão.

Decidiu-se que a ascenção se faria a pé.

Ambrosio Raposo sahiu na ponta, lembrando que em sua terra os andarilhos, para não cançarem, carregam ora sobre um pé, ora sobre outro.

-- São dactylos, ponderou Olyntho Bravo.

Pois, em verdade vos digo que, nas corridas, sou spondeu. Vamos ver qual o pé que mais depressa fará chegar ao Chapéu de Sol.

Houve um singular sfeeple-chase, serra acima; e spondeu ganhou. Muito pallidos e cançados, sentaram-se os corredores em roda da cabana rústica, emquanto Juvenal, nostálgico, fitava o fio d'agua, que, choramingando entre os rochedos, descia monte a baixo.

A sede era de rachar; mas por prudência, ninguém bebeu. Simões, que aié ali não abrira a boca, emittiu algumas reflexões pessimistas sobre as modificações que a cremalheira trouxera aos effeitos sensacionaes do Corcovado.

Antigamente, como o itinerante gastava cinco longas horas a subir, mergulhado na floresta, avistando a furto uma ou outra nesga do vale e da bahia, quando alcançava o pico, com o organismo fatigado, succedia que a contemplação imprevista da paizagem aerea, o engolfamento de luz, o infindo horizonte, todas as ma- ravilhas da região circumjacente obrigavam o espirito, por encantamento, a percorrer, de um salto, toda a gamma das sensações humanas.

Esta súbita transposição lançava n'alnia um prazer olympico, só comparavel ao que a gente experimenta sonhando, tal era o desvio das impressões diuturnas. Tudo isso, porém desapparecera. Do carro, ia-se agora descortinando essa paizagem, plaino por plaino; e logo que se attingia, sem luta, sem esforço, calmamente, o pavilhão, estavão extinctos todos os contrastes, operadas as transformações do scenario, pela gradual deslocação de eixo. Os olhos, acostumados á soberania das imminencias, nada admiravam. O passeio, em taes condições, poderia instruir; não sorprehendia, não deslumbrava.

O discurso de Agrippino passou sem contradicta. Ergueram-se todos; e, dado o signal de partida, devoraram o ultimo lance do zigzag com verdadeiro brio de sportmans americanos. Ainda desta vez ganhou spondeu.

Chegando ao pavilhão, Olyntho Bravo, deu um hurrah sonoroso, e offereceu a Apollo, recitando os versos lapidares do poema Le coureur de Heredia, a sua victoria immarcecivel:

Tel Ladas court encor sur le socle qu'il foule ly tiu pieã de bronze, svelte et plus vif que le vent.

Os inglezes, ainda não fartos de visão, soltaram um brado de enthusiasmo, e vieram receber os retardatarios na escadinha.

Miss Kate permanecia no gradil.

Immovel, erecta como uma estatua de mármore, fixava o binoculo na Ponta Negra, onde, trememovia-se, como um insecto naufragado, um paquete transatlantico que se orientava á barra. Simões sorprehendeu-a nessa posição hieratica; e lembrou-se da ridicula scena do Silvestre. Em que cogitaria essa elegante e ao mesmo tempo exquisita miss, pensou elle, medindo-a de alto a baixo como entendedor, que era, do genero niulier sapiens. Talvez, naquelle momento ao estase proprio dos viajantes juntasse ella a saudade do cottage paternal dos arredores de Londres e do poney dos seus passeios matutinos.

-- Poor Falstaff! murmurou a miss, deixando cahir o binoculo.

O trem apitou de novo, e começou a soluçar descendo.

No ar havia claridade de mais, tão intensa que as pupillas se dilatavam como á impressão de ura pingo d'agua sobreposto ao globo occular.

Correndo a vista em torno, e, perdida a noção do socalco da montanha, pensava-se atravessar o espaço na barquinha de um balão. Ceus, terra, nuvens, mares e a Babilônia fluminense a mostrar-se atravez de um véu de fogo!

Invadido o pavilhão, Juvenal, grave, correto, retomando o gesto de diplomata, propoz que se acalmassem os nervos com uma dose cordeal de kümmel.

Eram quatro horas da tarde, e os raios obliquos do sol lançavam sobre o carramanchel de ferro uns tons rubros de magica theatral.

Os passageiros do ultimo trem tinham descido.

Os estrangeiros, que eram tres, não contando a miss, estavam alegres, de uma alegria byroniana. A cerveja destemperava as linguas; e o clown, que existe no fundo de todo o anglosaxonio, appareceu, traduzindo-se em movimentos angulosos e bruscos, em caretas de sacripantes, em amabilidades sportivas de boxers.

Um delles, naturalista, o mais desabrido, embora menos joven, de vez em vez, atirava aos ares o chapéu cheio de besoiros pregados a alfinetes, e pondo-se de repente teso, aparava-o com a própria cabeça, como a bola no pino do bilboquet.

Sempre sereno, Juvenal atravessou o grupo e poz-se a traçar um capitulo da historia das origens politicas do Gorcovado. Mas os companheiros tiveram o bom senso de repellir a anecdota, que se pretendia impingir pela milésima vez relativamente á parte que a marqueza de Santos tomara na construcção da ponte de pedra, que une as duas berrugas do nariz do Gigante de Pedra.

Miss Kate tinha mudado de posição. Havia alguma coisa, que attrahia a sua curiosidade para o lado da Serra dos Órgãos. O seu modo de observar, em extremo analytico, denunciava uma excentrica ou alguma filha de pastor protestante. Foi o que Agrippino suppoz.

Olyntho Bravo lembrou que a miss talvez fosse a auctora do Daniel Deronda.

-- O espirito, reflectio Ambrosio Raposo; porque essa romancista já não pertence ao numero dos vivos. Sei apenas que essa miss é uma cocotte.

Os dois correram a juntar-se aos companheiros, que, do ultimo parapeito do pico, seguiam, cheios de curiosidade, as evoluções de uns urubús, que davam caça a um gavião por cima da floresta do Jardim Botânico.

CAPITULO II

Agrippino, recostado ao balaustre da varanda do pavilhão, sossobrava o pensamento na cacothymia incurável, que o andava periodicamente desalentando.

Os olhos penduravam-se-lhe do viso das serranias, implorando da opulenta natureza da região uma migalha daquella alegria franca e ruidosa, em que fluctuavam, despreoccupados, os seus companheiros de passeio. Cahia-lhe a noite sobre o espirito. A amplidão dos horizontes, o sumptuoso da paizagem, as audacias da floresta alcandorada da penedia abrupta, em vez de dilatarem-lhe a alma no remigio de uma phantasia oriental, estrangulavam a imaginação sob a garra do pesadelo em vigilia. E do fundo do peito subia-lhe ao cerebro uma emoção angustiosa, vaga, indefinivel.

Delírio? agonia? É bem possível que fosse tudo isto. Todavia, os factos não se evadiara ao raciocínio; e a lógica continuava a trabalhal-o na forma excruciante da subconsciencía.

Uma mão amiga premio-lhe o hombro. Voltou-se. Era Ambrosio Raposo, o estheta, cujas idéas, nas Paíneiras, o tinham interessado.

-- Oh! disse Simões. O Longino dos insectos!

-- Dos ínsectos, obtemperou o phantasista, e também das aguias alterosas. E a promettida demostração?

-- A<B! tornou o doutor.

Apontou para a cabeça; fez depois com os braços um gesto largo, como se indicasse o infinito.

A forma algebrica petrificou-se-lhe nos lábios. A expressão era satanica.

Os inglezes tinham desapparecido. Miss Kate deixara o seu observatorio e, afrontando a escarpa do rochedo, experimentava as sensações do abysmo.

Agrippino respirou.

-- Não exijam esforço!

Ambrosio Raposo recuou meio espantado.

Ligeiro estrabismo desvairava os olhos do seu interlocutor.

-- Soffro!

--Já o percebera. Mas isso se confunde com falta de cortezia?

--A synthese aguda, meu amigo... a syntliese...

--Explique-se.

Simões referio-lhe então uma historia curiosa.

Estava elle, alta noite, á janella da pensão em que morava, á praia do Flamengo. Martyrisava-o a insomnia. Distrahia-se analysando os contornos da bahia. As montanhas prateadas erigiam-se como phantasmas; a lua, vagarosa, atravessa um ceu acarneirado. De súbito, alguma coisa de estranho passou pela face do satelite. A lua justamente naquelle momento, como creança travessa, corria pelo ceu, negaceando.

Escondia-se por traz das nuvens. Logo adiante surgia a rir-se do contemplador. Que seria?

Nunca a vira tão luminosa, tão grande e com um halo tão colorido! O pasmo gerou o horror.

Não era a mesma. A cadeira de S. Pedro apagara-se. Em logar dessa figura viam-se bem claros os dois fiambres característicos do hemispherio americano. O satelite fizera uma rotação sobre o eixo. Do que posteriormente succedera lembrava-se apenas de um grito que puzera a casa em sobresalto. As pessoas que o tinham soccorrido naturalmente procuraram saber o que havia em seu espirito. Nada disse de positivo.

A palavra tinha-se-lhe tornado difficil; muito a custo conseguia indicar com o gesto que o seu mal vinha do astro.

Desde essa noite fatal os seus amigos e conhecidos, moradores na pensão, passaram a tratal-o com reserva. Por vezes o espreitavam com olhos de piedade; porque esses levianos não se recordavam das palavras sombrias do infeliz principe da Jutlandia.

--Neste mundo sublunar, Horacio, acolytou Ambrosio Raposo, ha coisas em que nunca a vossa vã philosophia cogitou.

-- Sabemos porventura o que é o cerebro?

accrescentou Agrippino. Já houve pbisiologista que o explicasse? Acaso a theoria mechanica do Universo já nos disse como se produzio a Iliada? E o Pronietheu, a Venus de Milo, os Pritaneus, a Divina Comedia, os dramas shakespeareanos, o Novum Organum, as Constituições politicas das republicas modernas? E as invenções do vapor, o telegrapho, o telephone, o phonographo, os raios X?

Ambrosio Raposo arregalou os olhos. O protesto, porém, não stereotypou-se na phrase, porque o doutor cortou-a bruscamente.

-- Fallo a um cavalheiro intelligente e illustrado, a quem não devem ser extranhas as palavras de Protagoras: o homem é a medida do universo.

E o doutor afundou-se por instantes na obra do pensador de Koenigsberg. Qual a razão porque ao grego não occorrera fundir a sua com a descoberta de Heraclito? O homem, sem perder a qualidade de medidor universal, bem podia agitar-se num meio que evoluísse e se transformasse espontaneamente, arrastando nessa transformação tudo quanto nelle existe de inerte ou de vivo e produzindo essa phenomenalidade, ou esse relativismo de apparencias, de que o grande Kant tirou as grandes conclusões da sua critica.

O mais importante para Agrippino; o que principalmente o interessava era que essa medida do universo, ou melhor, a exaggeração dessa faculdade humana, podia, hypertrophiando-se, nos indivíduos a qtie o vulgo dá o nome de predestinados, transformar o animal descripto por Labruyére num Buddha, num Ghristo, num Sócrates, num Apollonio de Tyana, num Mahomet, num Paracelso, num Luthero, num Colombo.

Que é emfim a matéria? Entre essa substan- cia, que, segundo Heraclito, evolue por si, independente do sôcco, que Newton poz no punho de Deus, -- entre essa matéria ignea, que se transfigura nos mundos e no mundo, e a nossa intelligencia, tão mysteriosa e confusa no seu elance primigenio, como se relacionam os factos? E o encadeiamento da lógica? Haverá poderes occultos em nós mesmos? Não é que o igneo se transforma em um intelligente querer, que se conhece e se distingue como differente do que o circunda e o attrae, o move e o abysma? Essa pergunta abala o Universo! Seria preciso que perscrutassemos, com olhos de um lynce colossal, os abysmos dos mares e da terra e o azul inexplorado da abobada celeste.

A intelligencia material é o vulgar; a visão no sentido metaphysico, é que não sabemos ainda até aonde, no homem, poderá chegar.

Que é a força psychica? e que ponto deve attingir em seu indefinito desdobramento?

Acaso Swedenborg teria sido um vidente da philosophia? Quando se cuida na obra colossal desse pensador genial, aíigura-se quasi Leibnitz, com sua monadologia e sua harmonia prestabelecida, sonhando nos espaços e penetrando na hypnose universal. O universo não será com eiíeito um crystal iníindo, cujas moléculas mantém-se numa ordem ininterrupta, conservando sempre essa unidade, que apavora e subjuga? Quem nos diz que os Archana coelesUa e o De coelo et inferno ex auditis et visis não contém a -verdadeira revelação desse mysterio, que o positivismo condemnou ás trevas exteriores do espirito? Não será o homem uma especie de ceu minusculo em tudo correspondente ao mundo dos espíritos e ao ceu que nos envolve? Doutrina empolgante essa das representações e correspondências. Nos corpos vivos, como nos inertes, de um a outro extremo da natureza, vê-se o reflexo das coisas supremas e supra-sensiveis. O mundo percebido pelos sentidos surge como uma traducção do invisível, explendido de clareza para a consciência, que se deixa penetrar do symbolismo universal.

-- Por muito tempo pensei, disse por fim Simões, em aprender a ler na natureza os altos mysterios de Deus, soletrando esse symbolismo que não nos engana. A reflexão, porem, não me permittiu adquirir a lucidez indispensável á pratica swedenborgiana. Tornou-se impossível substituir a operação do raciocínio pela intuição ou pelo estase. Que fazer? Assalta-me a nevrose; e quando procuro extrahir delia o máximo das suas vantagens, exalto-me e perco a consciência.

O doutor calou-se. O vento zunia açoitando furiosamente as varas de ferro do pavilhão. O explendor da luz diurna augmentava.

Nuvens, esgarçadas aqui e ali, dissipavam-se.

O amplo azul do ceu refulgia em a sua magnificência sem contraste.

Ambrosio Raposo parecia absorto. O doutor continuou.

Era a synthese que o estava trucidando, dizia, a moléstia da synthese, o trabalho fatal do cerebro em operação continua, mechanica, como um medidor automatico. Infelizmente, elle nem ascendia ás intuições dos theosophistas illuminados, nem descia a especialisação solida, segura, tranquilla dos analystas e manipuladores da experiencia pedestre. Para si, emquanto duravam as crises não existia outra medida do universo, senão essa infernal meclianica da lógica synthetica, de cuja engrenagem não podia por um instante se evadir. Como era horrivel perder a noção concreta das coisas!? Não se imagina o pavor intellectual dessa situação.

Asphixia psychica, era o nome proprio desse estado.

-- Agora mesmo, exclamou angustiado, lanço a vista para a cidade, que está ali em baixo, e o que é verdade é que nada enxergo do que os outros vêem e apalpam com a retina.

E rio-se como si ridicularizasse o proprio pensamento.

Os rapazes, que a este tempo tinham invadido o pavilhão, silenciaram. Apenas Ambrosio Raposo arriscou-se a perguntar si o doutor lera Papus. Agrippino erigiu o talhe num gesto sarcástico.

-- Papus! Papus! Um charlatão!

Deblaterou contra todos os occultistas que escrevem actualmente em França, onde nada se sabe de fakyrismo esoterico; e citou os escriptos do marajah de Gawnpore, que nenhum dos circumstantes conhecia, nem mesmo Ambrosio Raposo. Pois bem, esse marajah, um Índio de enormissimo talento, educado na Universidade de Ceylão, versado em todos os segredos da cultura occidental, mettia-os a todos num chinelo. Político profundo, tendo observado o que se passa na linha de contacto das duas civilisações, esse homem, não era só um régulo sagaz, que espreitava a potência ingleza para illudil-a opportunamente, mas preparava a futura libertação do seu paiz, insinuando no animo dos seus subditos idéas de insubmissão e de orgulho. Esse régulo estudava, philosophava, e, de posse de toda a sciencia europea, que conhecia de perto por ter freqüentado as Universidades allemãs e convivido por alguns annos em Paris com os maiores sábios do mundo, não se dignaria despender dois minutos com o charlatanismo de escriptores superficiaes, como Jacoliot e outros, que se julgam habilitados a fallar da sciencia dos brahamines somente por conhecerem as feitiçarias praticadas em Madras, Benarès e Calcuttá. Os occultistas. hypnotistas, spiritas, na sua opinião, os que por taes nomes são conhecidos na Europa não passariam de creanças ao lado dos sábios que, nos sanctuarios do Himalaya e nos delubros do Ganges, guardam a sciencia ancestral dos brahamines dos bons tempos. Que figura triste e ridicula a desses escriptores, quando discorrem sobre factos aliás por elles apenas conhecidos na epiderme, factos que ha dois mil annos os sacerdotes de Benarès, Lucknow, Cawnpore interpretavam para dirigil-os como hoje os phisicos dirigem a electricidade! Que conhecimentos positivos possuem esses pseudos-sabios da afamada sciencia psychica, de que presentemente tanto se falia e sobre cujos segredos tão abertamente discreteiam? Taes farfalhantes fautores de psychismo, pode-se dizer, sem medo de errar, ainda hontem mordiam a casca do fructo, cuja polpa mysteriosa os brahamines, ha milhares de annos, comeram e digeriram, incorporando o succo nelle contido á própria natureza. Deste modo, na opinião do illustre marajah de Gawnpore, que ultimamente professa, apezar das insignias de soberano, a theurgia comparada, explicando os Vedas e os Livros de Manú, as theorias de Kant, de Gomte, de Spencer, de Stuart MUI, de Schopenhauer, de Hartmann e até da recente philosophia paradoxal de Nietzsche; na opinião desse sábio os livros de Papus, Schuré, Ochorowicz, Rochas, Grookes, Wallace e as publicações da Dialectical Society não passam de balbucios de neophitos, que estão para os mestres da velha sciencia vedanta na mesma relação que os feiticeiros dos sertões da America e da África, meio padres, meio benzedores, para os grandes theologos e thaumathurgos da Igreja Catholica.

Simões estacou, estenuado. Torturava-o o esforço que empregava na emissão do pensamento? -- É possivel.

Ambrosio Raposo mal reprimia o seu humorismo.

-- Ora quer-me parecer que o doutor é o proprio marajah de Gawnpore, transfigurado.

Todavia a hilaridade do romancista não tinha sombra de malícia. Autor de vários contos, em que a demonologia fornecera-lhe inspiração e estylo, elle não podia deixar de recordar as muitas peças pregadas ao publico habitual em matéria de telepathia e seus dialectos. Agrippino, pois, interessava-o immensamente, e seria um caso de que não tardaria aproveitar-se para uma de suas novellas originaes.

O doutor, entretanto, perdera o fio das idéas. Balbuciava:

-- A<B... A<B...

E passou as mãos pelos cabellos. A anciedade mental crescia.

Ambrosio Raposo deixou de gracejar.

-- Olhem; continuou Simões, passados alguns minutos de repouso, um dia destes estava no Parque Fluminense. Distrahia-me, quando veio-me um sossobro. Tudo o que ali estava, bosques, palmeiras, tanques, pontes, grutas, cascatas, rios, tudo isso se me afigurava uma coisa provisoria, uma ornamentação festiva, realizada em vinte e quatro horas, no Campo da Acclamação, para receber algum hospede illustre. O vasio do antigo sitio que eu, ainda menino, conhecera immundo, cheio de charcos esverdeados, de lavadeiras insólitas, de coradores de roupa, de animaes ao vento, aonde apenas destacava-se o theatro Provisorio, como um sonho de arte; esse vasio enchia-me, permitiam a tautologia, a cabeça e obliterava todas as bellas coisas que ali agora existem. A realidade actual era inconciliável com a impressão, que persistia em minha insensibilidade, despertada pelo espectaculo semi-theatral, apparelhado pelo gênio do Glaziou. E eu, sem embargo dos raciocínios que fazia, sorprehendido por esse estado psychico, experimentava uma grande infelicidade.

Cada vez mais intrigado, Ambrosio Raposo poz-se a attrahil-o com perguntas insistentes ao terreno de explicações claras, positivas.

Súbito estremecimento agitou os membros de Agrippino. Miss Kate apparecera no pavilhão de ferro precedida dos yess e beautifiil dos seus companheiros de passeio.

Os rapazes, notando que o doutor rocobrava a jovialidade, recomeçaram os gracejos.

-- Seu maganão! disse Olyntho Bravo. Não vá succeder-lhe o mesmo que ao philosopho Xenocrates. Mantenha-se frio e invulnerável nos braços e sob a tempestade de beijos cáusticos da impudica Laís!

Agrippino sorrio.

-- Frio e insensível, disse com a voz sumida dos que revelam segredos inenarráveis, mais do que isto, incapaz de experimentar a sensação de um beijo. Não ha em mim olhos impudicos para aquella mulher. Na retina tenho neste instante ura apparelho radiographico; e vel-a é o mesmo que contemplar o schema anatomico do seu aliás formoso corpo. Que pavorosa creatura me parece quando nella firmo a vista e procuro analysal-a! E como me perturba!...

Com effeito, Miss Kate, a interessante ludambula, (que não havia muitos minutos embellezara-lhe o coração, num frêmito esthetico, e se lhe afigurava uma das muitas copias do ídolo da english speaking race, naquelle momento surgia no centro do campo visual sob o aspecto de um manequim de estudos de osteologia. Os movimentos gracis e flexuosos da miss convertiam-se no sacolejamento brusco de alavancas articuladas. Os contornos da carne divina dos seios, a ondulação do ventre bombeante e esculptural, a amphtude augural dos rijos quadris, a moldura das pernas roliças e erectas, a correcção das espaduas venusinas, o bem acabado pescoço alabastrino, a rutila expressão dos olhos côr de anil; tudo emfim, quanto constitue esse composto de matéria moldada pela natureza e fascinação suggerida pelo inferno, tudo desapparecera ou pelo menos perdera a usual nitidez, para mostrar-se como um phantasma sem nome e sem igual mesmo nos sonhos dos assombrados. Miss Kate passara a ser para Simões uma crescente complicação de linhas ósseas, formando uma equação. O seu desapontamento, então, reduplicouse; a respiração tornava-se-lhe difflcil e um suor abundante e frio borbulhava-lhe da pelle anesthesiada; offegava.

-- Não dê attenção á miss, ponderou Evaristo Carneiro. É triste que diante de tanta philosophia as alavancas femininas produzam destroço tão deplorável. Vamos. Mudemos de assumpto. Fallemos de política ou de botanica.

Simões tornou a sorrir; desviou os olhos do pavilhão e íixou-os na parte do horizonte, onde se esboçava o promontorio de Gabo-Frio; depois passou a percorrer com a vista incerta a cidade que, em baixo, digeria os seus prazeres e os seus pezares, trabalhando. Havia alli um zumbido de colmeia assanhada por súbita rajada de vento. O silvo das locomotivas, o rodar dos carros, o tilintar dos bondes, o malhar da bigorna nas ferradas, o surdo rumor das barcas e dos vehiculos marítimos na bahia; todos esses ruidos obtusos, vindos da planicie, fundiam-se em esquisita harmonia, que contrastava com os clamores estridulos das cigarras, das rãs, e dos reptis, com os gritos dos passaros, que esvoaçavam da falda da montanha em victoriosa assumpção para a luz tropical.

Nelle já os sentidos fundiam-se no percepto geral do ambiente. O som se convertera em côr, e a côr em som. A sensação geral era de vácuo com os iineamentos incertos da paizagem. Da perspectiva quasi nada lhe restava. A visão das coisas se transformava, de instante a instante, numa especie de quadro de Hogarth; verdadeiro delirium trernens geometrico. Não via nem observava coisa alguma; o que na sua cabeça existia era o continuo entrechocar dos theoremas: a dança macabra dos schemas históricos e topographicos.

O Rio de Janeiro colonial, o imperial, o republicano, iam, vinham, desappareciam, ao mesmo tempo que os serviços actualmente desempenhados por companhias, se systeraatisavam na sua imaginação, em movimento vertiginoso, produzindo, pela rapidez com que se coordenavam e desintegravam, ou se sobrepunham no espirito, uma clarividencia satanica, incompatível com a vida mental quotidiana. Ora surgialhe a carta geologica da região, onde a bahia de Guanabara se mostrava como a cratera de colossal vulcão extincto e inundado; ora, era o mappa das ruinas dos babitats dos mound bilders, em que o Pão de Assucar erigia-se nos termos precisos de uma construcção de culto phalico. Mal apagada a visão antecedente, delineava-se a planta do acampamento de Villegagnon e das aldeias dos Tamoyos. Logo, em violento illusionismo, as epuras da historia nacional, não mais successivamente, mas em recuo e em escorço.

Nesse charivari sem nome, raro era apparecer a figura humana; nem Anchiela, nem Thomé de Souza, nem o Tiradentes, nem Pedro de Alcantara. Larvas, sombras, resteas fugazes de personagens obscurecidos por typica amnésia.

Nada, porém, o angustiava tanto como a dança dos scliemas dos serviços municipaes. Dir-sehiam milhares de labyrinthos de Greta entretecendo-se em monstruosa orgia cartographica.

Estes systemas, parcellados, isolando-se na area branca da carta do Rio de Janeiro, causavamlhe pungentes alarmas na alma philosophica. O gênio da evolução berrava-lhe aos ouvidos coisas tenebrosas. E então elle desesperado, ao mesmo tempo ensoberbecido pela critica espontânea, que fazia em sua mente excitada, redigia no ar o que elle chamava os paralipomenos municipaes.

A alma de Agrippino empallideceu. Nem ha outro termo para exprimir o vasio, que de repente se produzio na sua cabeça. E teria cabido si não usasse do expediente heroico com que se reanimava nestes instantes atormentados. Correu ao botequim do pavilhão. O caixeiro servio-lhe uma garrafa de cognac; e elle bebeu fora de medida.

Os inglezes estavam completamente embriagados. Miss Kate, reservada e altaneira, havia posto o binoculo a tiracollo, e sentara-se num banco, distrahida.

Lobrigando Simões a alcoolisar-se, a miss ergueu-se sobresaltada. Os rapazes diante da attitude da moça, sorriram.

Com certeza, pensou Olyntho Bravo, uma hysterica de raça. Nas inglezas ha sempre um esboço de Ophelia, de Miranda ou de Lady Macbeth; ás vezes uma mistura de tudo isto.

Que estaria Miss Kate ruminando?

Simões não poude evitar-lhe o olhar e sentio um calafrio percorrer-lhe a espinha. Os joelhos vergaram. Dominado pelas pupillas da estrangeira, perdeu inteiramente a noção de si mesmo. A allucinação das alavancas conjugadas o obcecava infernalmente.

-- Poor Falstaff! gemeu a miss.

Essa transfiguração, acabou por perturbar de todo a Agrippino que olhou em roda. Não vio ninguém.

Os inglezes e os rapazes brazileiros tinham desapparecido.

Kate cresceu. Correndo ao encontro do doutor, suspensa, como se voasse, dirigida por forças invisíveis, sorria um desses sorrisos da alma e do semblante conjunctamente, que eternisavam num minuto toda a felicidade resumida no coração de uma mulher formosa e fascinante. Agrippino quiz fugir. Olhou para o balcão do botequim: o caixeiro retirara-se.

Tornou a fitar a estrangeira. Na ebriedade, em que o tinham posto os olhos, daquella mulher, dir-se-ia que um nimbo luminoso a envolvia.

Pareceu-lhe ao mesmo tempo desenharem-seIhe umas azas diaphanas por traz das espaduas. Uma onda de deliciosa angustia, mixto de confiança e de pavor erotico, invadio-lhe a alma.

Kate continuava, entretanto, a sorrir. Sorpreliendia-lhe o pensamento. Pousou a mão sobre o hombro, inclinou-se e imprimio-llie um beijo, que o abalou até as raizes da vida.

Passou-se em Agrippino um phenomeno inexplicável. A vista se lhe turvou de súbito, e no centro do circulo da visão surgio a estrangeira inteiramente transformada. Os olhos delia luziam com um fulgor infernal e aggressivo, e penetraram n'alma do infeliz doutor como laminas incandescentes. As palpitações do coração do paciente acceleraram-se; o sangue gelou-se-lhe nas veias. A vertigem' ia derribal-o. Agrippino sentio uma violenta pancada na viscera.

-- Miss Kate! bradou, angustiado.

O gesto da estrangeira era horrível e duro.

Os olhos, de azues tinham enegrecido como carbunculos; e a luz que despediam inflammava o ambiente de tons fosforescentes. O que mais enchia de horror a Simões era que o louro dessa mulher extraordinaria convertera-se no amorenado das mestiças de sangue africano. Os cabellos fulvos tinham agora o azulado equivoco da aza da graúna. Um riso cadaverico riçava-lhe os lábios encovados; os maxilares rangiam; os olhos desviavam-se no estrabismo nauseante dos epilepticos, emquanto pelas faces emagrecidas e pela pelle adherente aos ossos escorria a sanie dos sepulchros.

CAPITULO III

-- Dr. Simões! Dr. Simões !

Uma voz amiga o chamava.

Agrippino, despertando, vio duas pessoas que se acercavam delle.

-- Que lhe succedeu? tornou a mesma voz.

Foi só então que percebeu que estava deitado sobre um dos bancos do pavilhão do Corcovado.

O sol poente illuminava o cimo das montanhas com as rajadas sangrentas de um holophote ciclopico. Em baixo, na cidade, no valle, na bahia, um rumor surdo. Pelas faldas da Urca e da Gavea escorriam os últimos vomitos de luz.

Tiburtino Mendes pegou nas mãos do doutor e fel-o levantar-se.

-- Não esmoreça. Olhe: aqui está o seu amigo Salcedo.

-- Salcedo! exclamou Simões espantado.

-- Você sabe, Simões, que eu prevejo. Vi-o passar hoje no bonde das Laranjeiras. Pensei logo que o encontraria nas Paineiras. Não foi palpite, mas certeza. E ás tres horas subi.

Agrippino ergueu-se. Doia-lhe o corpo todo.

No estomago, indizivel mal estar. A cabeça ouça; as veias a arderem; uma magoa diffusa na base do cerebro. Reílectia com esforço. Desde que buscava coordenar as idéas, o pensamento entrava em syncope.

--Não cuide em saber o que lhe succedeu, ponderou o medico. Você precisa de repouso.

Desçamos mesmo a pé para o hotel. Os solavancos do carro agitar-lhe-ão os nervos. De vagar... De vagar...

O doutor olhou expressivamente para Tiburtino Mendes. O seu olhar continha uma longa exprobação. Porque o abandonara no momento angustioso?

O estudante comprehendeu tudo; mas, obedecendo a um gesto de Salcedo, conservou-se mudo.

O trajecto foi lento, interrompido, a cada instante, pela fadiga do enfermo. Quando chegaram ás Paineiras, era noite fechada.

O edifício do hotel, apezar do mau gosto que presidira a sua adaptação, illuminado a luz encandescente, produziu em Agrippino uma grande impressão de apaziguamento. Poucos hospedes. Ao entrarem o gerente gesticulava, indignado, contra certa clientela, que convertia o estabelecimento em sala de conferências.

-- Fazem-me favor de errar o caminho! No Internacional ha ministros estrangeiros e sábios naturalistas. Vão para lá!

Philosophia de Grandet. Esse gerente não tinha amor á arte. O melhor cliente era aquelle que menos escrupulo tinha em consumir.

Simões comprehendeu que a invectiva alvejava os seus ex-companheiros de ascenção, os esthetas que o tinliam esquecido no pavilhão.

De repente esfuziou-lhe na memória a scena que precedera o seu deliquio.

Tiburtino Mendes abraçou-o carinhosamente e pedio permissão para tomar o carro que descia. A sua auzencia podia inquietar a familia, que não estava prevenida.

Salcedo aconselhou ao doutor que não descesse para Cosme Velho áquella noite. A trepidação da cremalheira far-llie-ia muito mal.

Agrippino, então, pedio um quarto; e emquanto, se providenciava sobre a sua installação, estirou-se numa cadeira elastica, buscando acalmar os nervos.

O medico, silencioso e grave, sentou-se a ura banco proximo, e começou a fumar, resolvido a passar a noite nas Paineiras.

Ao chá appareceram os raros hospedes existentes no hotel. Entretinham-se conversando lenta, preguiçosa, enfastiadamente. Sentia-se nelles a ociosidade que recalcitra em resmoer assuiuptos esgotados. Não havia senhoras. Urn sujeito de physionomia opaca, mas com pretenções a espirituoso, era quem fazia as despezas da palestra. De vez em quando doutrinava. Os timidos ouviam. Os loquazes aventuravam uma ou outra reflexão incolor. Criticava-se a Republica; e o conductor da conversação tentava a apologia do regimen decahido. Salcedo ouvio a principio silencioso. Agrippino mostrava gírande impaciência. O medico acabou por intervir; e oppoz ás exaggeradas proposições do publicista improvisado o exemplo da confederação Argentina e da republica do Chile.

Passou-se a outro assumpto. Um dos companheiros do prelector lembrou que inglezes havia agora que se davam ao prazer, no Rio de Janeiro, de praticar em publico as maiores inconveniências.

-- No tempo do Império elles eram mais respeitadores.

-- Exercem o direito de expansão.

-- E ninguém lhes ha de ir ás mãos.

Referia-se aos naturalistas, que por ali tinham andado, durante o dia, a fazer praça do nenhum caso em que tem os brazileiros.

-- Que naturalistas! Conheço-os todos como as palmas de minhas mãos! São muito honestos guarda-livros da rua 1.o de Março e ainda melhores bebedores de rhum. No tempo do de- functo imperador, os bifes bebiam em demasia; também é verdade que respeitavam mais a terra.

-- Bateu-se até o Christie. Ainda mais: --e esta opinião era a de um velho negociante, que muito convivia com essa gente; -- quando os inglezes se embriagavam com cerveja Bass, podia-se não só confiar na sua palavra, como na ordem das suas festas. Agora, nem uma, nem outra coisa; bebem laranjinha e cerveja Logos, andam ás troças com cocottes, e não ha que fiar nos seus yess, nem nos seus all-right.

Agrippino procurou ver o rosto do desabusado interlocutor. Era um rapaz da turma, que ficara á espera do carro das nove horas. Como não houvesse dado pela presença do doutor, no salão, continuou a responder as coarctadas do outro com afrontosa liberdade.

-- Olhe, meu amigo, sr. commendador, aquella miss que d'aqui zarpou ha pouco, vio?...

conheci-a em Petropolis, dando de sota e basto no high-Ufe equivoco. Depois encontrei-a no Daury; e mais tarde com um conhecido diplomata, a quem causou não pequeno desgosto.

Já ouvi até dizer que essa dama estroina nunca foi americana; que é uma bohemia de Galcuttá.

Pinta os cabellos de cinabrio; e entrega-se a praticas de tal natureza, que nem mesmo por mundanas podem ser baptisadas.

Ás ultimas palavras, Agrippino, cujas dores recrudesciam, levantou-se e recolheu-se ao quarto.

Dormiu. Por volta, porem, de duas horas da madrugada despertou horrivelmente agitado, sob a pressão de um pesadelo.

-- Onde seria o aposento de Salcedo?

Só elle poderia subtrahil-o áquella oppressão insupportavel; era-lhe indispensável interromper, fosse como fosse, o curso das apprehensões que o demoliam. A dôr diffusa, na base do'cerebro crescia; a anciedade começava.

Agrippino sahiu. No corredor um creado itidicou-lhe o numero do quarto do medico.

Bateu á porta. A muito custo Salcedo veio abril-a.

-- Que novidade?

-- Prescreva-me um remedio. Olhe, Salcedo; eu estou a rodar como um fakir. Parece até que vou subverter-me. Uma attracção para baixo. ..

para as cavernas infernaes... Não faz idéa, meu amigo.. .

-- Tranquillise-se. Isto não é nada. Vá!

E fel-o entrar. Simões, impaciente, exclamava, ia, vinha, batia nos moveis, emquanto Salcedo sacava de uma mala de mão uma carteira homoeopathica.

-- Tome isto.

Agrippiuo ingerio o remedio sem hesitação.

No relogio da casa batiam tres horas.

Salcedo obrigou o amigo a recostar-se numa poltrona; puchoii uma cadeira, e pondo-a de fronte do doente, sentou-se por sua vez e impoz-lhe as mãos sobre a fronte.

-- Durma!

Agrippino dormiu; quando despertou alvorecia.

Salcedo resonava no leito, ao fundo do aposento.

Simões abrio a porta devagarinho e, pé ante pé, orientado pela claridade matinal, que filtrava através do corredor, foi ter á varanda.que dizia para o Jardim Botânico.

O amanhecer no Corcovado não deslumbra somente; também cura.

A natureza desatava-se áquella hora numa protophouia de opera wagneriana. Lembrava o effeito da alvorada do Lohengrin. Tudo era diaphano. A luz subia vagarosamente. Nem a orchestra faltava. Das mattas irrompiam pizzicatos confusos dos violinos; era o vento que feria de súbito o esgalhado da floresta. A agua dos mananciaes gemia, correndo pelas calhas de pedra. Do fundo do valle respondia o ribombar longínquo dos vehiculos, que começavam a rolar pelo calçamento da cidade.

O doutor approximou-se do despenhadeiro e poz-se a contemplar o crescimento gradual da luz. Não via o sol emergir do Oceano, porque a montanha o encobria; mas as flechas de fogo varriam a diaphaneidade da manhã. O ceu refletia o incêndio do horizonte opposto.

Um tiro de canhão echoou do lado de Santa Cruz; e, como si á ordem marcial a natureza obedecesse, o Jardim Botânico rompeu da penumbra em toda sua formosijra magestosa e tropical,-- empalmeirado, solemne no atufamento florestal, risonho nós meandros dos renques de longanas, brilhante nos seus repuchos e cascatas, mysterioso nos seus retiros de bambús.

-- Fez muito bem!

Não era o vento que fallava. Volveu-se. O medico, na varanda, limpava os dentes, enfronhado numa matinée de cretone azul, olhando para o doente num gesto risonho e sympathico.

Agrippino recolheu-se ao quarto; e, concertado o vestuário, feita a toilette"de asseio, dirigio-se para o salão do restaurante.

D'ahi a instantes appareceu Salcedo, empacotado numa sobrecasaca preta, correcto, com alguma coisa no semblante, que lhe dava ares de propheta ou dé sábio, o que vem a ser a mesma goisa.

Apezar de instruído, Simões admirava o poder de observação de que era dotado aquelle espanhol. Não argumentava quando recebia os seus conselhos médicos; e si o tentava, arrependia-se. Os seus conceitos eram decisivos; abatiam-no.

-- Está melhor?

-- Si não o encontrasse, não sei que teria havido. Talvez já houvesse rolado por um desses despenhadeiros a baixo. Ah! meu amigo!

Tudo gravita. E o espirito não é outra coisa senão a lucta contra essa lei inexorável. Que é viver? Que é ter consciência de si? senão a tendencia da raça para libertar-se da tyranica imposição dessa ordem mechanica que rege o Universo?

Salcedo rio-se com bonhomia.

--Sim. E si não me encQntrasse?

--Fallo franco. A crise de hontem foi medonha! Diga-me: a cremalheifa não é um optimo remedio para enfermidades como esta?

-- Ora, tome juizo. Que veio fazer aqui?

Agrippino contou-lhe tudo. A experiencia *das alturas, a obsessão da synthese, o horror á curva, a influencia do manequim de Miss Kate; tudo foi commentado no meio de muito espirito e de bôas gargalhadas.

Salcedo repisou o que elle estava cansado de ouvir.

Viajara muito; sabia-o; e o fizera como poucos brasileiros. Verdadeiro delirio deambulatorio. Gastara doidamente forças, a tôa, sem methodo, não dando tempo nem ao corpo, iiem ao espirito para restaurar-se.

Uma das viagens de Agrippino, que o medico commentava mais insistentemente, era a que elie realizara- em torno do mundo em poucos dias mais do que Filéas Fogg. Que extravagancia! que dispendio inútil! que desvastação! Com effeito, dessa tournée à la diable o doutor guardava, apenas um rumor confuso na imaginação, e a lembrança dolorosa do tempo, que foi preciso piara testabelecerse do enjôo psychico resultante do continuo transbordo de vapores, para paquetes, de paquetes para comboios de .estradas de ferro Dos mares que atravessara, das cidades em que estivera, de Lisboa, de Marselha, de Suez, do Mar Vermelho, do. Japão, da Califórnia, da via ferrea do Pacifico, de Chicago, de New York, ficara-lhe na memória a sensação como de uma travessia arrastada por um deserto, assaltado de miragens. Em seu espirito havia somente um traço de poeira geographica: o zunir do vento nas enxarcias dos transatlanticos, o silvar das locomotivas, o bruhaha dos ancoradouros, o brado da rnob nas grandes cidades. Da familia humana, da vida interior, nada, nada, nada.

Foram necessários muitos mezes de repouso para qvie elle se libertasse desse enjôo de grandeza mundial, producto da velocidade dos transportes.

A vida quieta da Tijuca, no hotel Itamaraty, bastou, entretanto, para restabelecei-o, desde que lhe passou este sossobro moral.

Outra circumstancia accrescera a essa tendencia dearnbulatoria, banal e estúpida: -- o gosto de Agrippino pelo jogo, quando não distrabida delle pela leitura, -- a ociosidade, emfim, junta alguma fortuna e a falta de objectivo pratico que le désse significação á vida.

-- E as perdas no Encilhamento, ponderou Salcedo. Ahi tem você a base principal da molestia que o afflige.

Simões quiz contestar. O espanhol, arrogando-se, porém, a tríplice autoridade de psychologo, medico e literato, pela décima vez afffrmava-lhe que as causas das nossas enfermidades não eram as que mais lisonjeavam a nossa vaidade, mas as que a natureza nos impunha. De facto, seria mais distincto dizer que Agrippino estava fatigado, surmené, em consequencia dag viagens extravagantes, que realisara, e dos estudos philosophicos, a que ultimamente se entregava, como verdadeiro sandeu, do que chamal-o louco, fraco de espirito ou idiota consecutivamente a desastres de bolsa.

-- Não ligo valor algum ao dinheiro.

-- E o que suppõe. Leviandade! -- Não se zangue com a rudeza da phrase -- Mas é assim.

Greia, todavia, que essas preoccupações o estão minando. Sem que nellas pense, na vigilia ou no sonho, ruminando os actos menos significativos, sob a forma de uma sensação vaga de insegurança, numa atmosphera moral de desalento, você o que está é se arruinando. Que quer? A sciencia não adula.

Agrippino reflectiu.

Salcedo já lhe dissera uma vez que em sua clinica tinha registrado um caso quasi semelhante; e esse seu doente sarara em menos de tres mezes. Tratava-se de um rapaz atacado de onomatomania e arithmonomania. A mania da synthese, de que Simões se queixava não seria senão uma modalidade da nevrosthenia chamada dos fartos.

Gomo podia ser assim, pensava o doutor, si para elle o goso não deixava de ser uma aspiração, e notava apenas, durante as crises, que o espirito recusava tomar as coisas sob o seu aspecto concreto?

-- Não creio que seja um facto, ponderou Agrippino.-A angustia que me faz soffrer em certos momentos não é a que resulta da sensação do vasio mental. Ao contrario disto; sinto plenitude; e o meu desequilíbrio se produz pela linha exclusiva da operação lógica, porquanto naquelles momentos não me é possivel condicionar o que é concreto. Desvario, então...

Salcedo accrescentou:

--Siga a prescripção. Animalise-se. Trabalhe; occupe-se. Olhe: faça o que fez o Stuart Mill de que tanto falia: dedique a sua existencia a uma obra absorvente; e como, por ora, não lhe convém trabalhos mentaes, muito aturados, emprehenda construir palacios para proletários.

Requeira burgos agrícolas. Encarregue-se de organisar a emigração para o Amazonas.

Simões com a infantilidade propria do seu estado morbido, quiz zangar-se, e protestou, chegando até a dizer que esses conselhos eram pura sandice de medicastros, sem talento.

-- Salcedo, quer a minha opinião franca a respeito da sua therapeutica?

--Diga.

--Ahi vae. E o conceito de Moliére, isto mesmo para não pedir a opinião de Tabarin.

Assabanãus, nequis, nequer, potarinum, quipso milus...

--Perfeitamente! Mas fique sabendo que um dos symptomas da sua enfermidade é a má-creação.

O doente calou-se. O silencio, porem, foi curto. E como reincidisse em illudir ao delirio rotatorio e ao systema de alavancas conjugadas de Miss Kate, Salcedo insistio.

--Deixe de fumar: e si não lhe servem os burgos agrícolas, emprehenda amar essa Kate, mas com moderação.. .

O medico espanhol adoptara, por systema, a gaiatice como prophylaxia. Não dava peso algum á realidade da doença do amigo. A sua influencia, com tudo, era suggestiva e actuava beneficamente sobre os nervos de Agrippino, que durante todo esse dia teve a sensação illusoria de uma completa reintegração da saúde.

Por volta das onze horas almoçaram. Desceram no trem das duas.

No largo do Machado, Salcedo apeou-se e tomou o bonde de Botafogo. Simões seguio para o centro da cidade, roendo um plano de vida, novo. Atirou ao chão o charuto, que mascava; affirmou mentalmente que nunca mais tocaria em fumo. Nisto surgiu-lhe uma lembrança, que, de tempos em tempos, o obsedava.

-- E a lua? a lua que elle vira pelo lado opposto?!

Essa idéa esvurmou-lhe o cerebro, até que o bonde parou no largo da Carioca.

-- Bem podia ter sido uma allucinação da vista. Si o fumo era capaz de produzir o delirio rotatorio, porque também não causaria essa angustiosa perturbação do apparelho optico?

Consolou-o a conclusão. Reapparecendo as dores intercostaes, tomou-as por um bom aviso.

Tratou de movimentar-se.

Na rua Gonçalves Dias embarrou-se com Ambrosio Raposo. Havia em seu semblante uma expressão de espanto, que requeria explicação.

Declarando a Agrippino que fora descortez, ao separar-se delle, no Gorcovaclo, pedio instantemente que desculpasse a falta involuntária, pela qual era único responsável o Juvenal das Flechas. Esse amigo o induzira a uma leitura-conferencia, que se devia realizar naquella noite; e não querendo faltar á palavra dada, fora obrigado a descer no carro das cinco, sem nada dizer aos outros companheiros.

Abi-aços e palavras doces. Alludindo ao accidente, ou antes aos discursos do pavilhão, accrescentou:

-- Sabe, doutor? prestou-me grande serviço na fatura do principal personagem de um conto que estou escrevendo. Sou um pouco occultista; e si bem que não ligue grande valor a substantividade dessa droga, ponho-a a serviço da imaginação para construir os meios intermundiaes e accentuar a atmosphera psychica, dentro da qual se agitam algumas das figuras que ponho em movimento.

Simões mordeu os beiços. A ultima phrase repercutira-lhe no pensamento com estrondo, como uma pedra que atirassem á vidraça de uma sala despovoada e ouça. O abalo, porém, passou; e Ambrosio Raposo, arregalando os olhos, perguntou-lhe como concluirá a aventura com a estrangeira.

O doutor, surprezo, ficou sem responder alguns segundos. Depois, muito irritado, começou a convencer o outro de que nada havia de commum entre elle e a estrangeira.

Bem ao contrario do que suppunha essa mulher despertava-lhe somente antipathia e desasocego.

-- E isso mesmo, ponderou o romancista, rindo. Tal e qual. Desasocego! Mas esse desasocego era muito fácil de acalmar. Um pequeno flirt e depois um passeio ao Daury e estava tudo acabado.

-- Gonhece-a? perguntou Agrippino.

-- E quem não a conhece?! Houve tempo aqui em que todo o Rio a via á noite cabriolando, extraordinaria écuijère, em cima dos mais bellos cavallos que o Franck Brown já expoz á curiosidade fluminense. Nunca vi mulher mais singular em meneios de acrobacia, nem mais seductora, nem mais dotada da arte de transfigurar-se. Sobre o dorso lustroso do Wild-Fire, observei-a, pasmo, assombrado, innumeras vezes, ficar feia, bonita, vermelha, pallida, rôxa, azul, crescer, diminuir, tornar-se delgada, fazer caretas de velha, rejuvenescer, em momices catitas, emfim realisar as diabruras de um clown semi-yankee, semi-japonez, de modo a pensarem todos que tinham diante de si uma baiadera ou wma. jongleuse de Benarès ou de Galcuttá. Oh! O doutor devia saber isto melhor que eu. Consulte Swedenborg.

Agrippino sentio um arrepio na consciência.

Era possivel que aquella ludambula, tão severa, á primeira vista, pertencesse ao numero dessas mulheres, que, educadas para o truc, andara pelo mundo a mystificar os incautos e a sugar dinheiro aos argentarios, com o fito único do goso e pelo único prazer que lhes causa o exercício da arte de enganar?! E o cortejo das scenas do pavilhão do Gorcovado invadio-lhe o espirito, provocando as mais desfibrantes recordações.

Ambrosio Raposo tirou-o dessa corrente de impressões, referindo casos imprevistos e hilariantes.

Afinal separaram-se. Simões entrou na rua do Ouvidor, tomou um copo de leite no Cascata, subiu e desceu essa viéla de luxo diversas vezes, até fatigar-se; e ás quatro horas estava mettido em vale de lençóes, na pensão da Praia do Flamengo.

Uma grande quebreira puzera-lhe nos nervos a sensação de um relativo socego. O somno foi-lhe reparador. Ao despertar, por volta de sete da noite, sentiu-se alegre, leve, e com disposições para conversar. Jantou. Mudou de roupa; e automaticamente tomando o bonde, dirigiu-se ao Lyrico.

Vendiam, á porta, por baixo preço, cadeiras de primeira. Cantava-se a Boliemia de Puccini.

Entrou. As luzes, o esplendor da sala, longe de incommodal-o, lançaram-lhe n'alma uma sensação jucunda de allivio e de sympathia collectiva. Dir-se-ia que toda aquella luzida sociedade se interessava pelo seu estado de saúde. Os cavalheiros olhavam-no num tom de respeitosa attenção. As elegantes senhoras, que alli ostentavam as suas graças naturaes e os seus custosos adornos, moviam-se dispostas a fuzilal-o com os seus olhares expressivos, vibrantes, incendidos de amor, sinão provocadores. Não era positivamente assim; mas não lhe parecia impossível. E tanto bastou para que o convalescente se sentisse em mysteriosa communicação com o publico do Lyrico. Reflectindo de súbito nesse optimismo singular, elle extranhou-se, e percebeu que ía encetar uma nova serie de duvidas mortificantes. O regente da orchestra dava entretanto, o signal com a batuta, e rompia a protophonia.

Nunca treclio de musica afagara tão carinhosamente os ouvidos de Agrippino como essa bella introducção da opera de Puccini.

Subio o panno e o singelo poema de Murger deliciou-o por momentos, restaurando-lhe a lembrança de scenas de que estava bem esquecido, A musica, por seu lado, applacava-lhe as revoltas surdas dos nervos, sempre promptos a insurreição, e vertia-lhe nas veias um socego, que se poderia dizer doce azulado, revivescencia dos tempos em que ignorava si existiam viceras -- os bons tempos do prazer puro, quando o exercicio da funcção da vida não incidia com a consciência da torpeza do orgão em trabalho difficil e arrastado. No fim do primeiro acto o doutor arrancou do peito um profundissimo suspiro; sentia-se feliz. Mas que felicidade! a felicidade do encarcerado, que" teve provisoriamente a liberdade, e que a degusta, sentindo, porém, a cada instante, o olho do guarda, que em breve o reconduzirá aos grilhões. Todavia, esperanças fagueiras o alimentaram por algum tempo.

O pessoal feminino era, quasi na generalidade, inteiramente desconhecido. O doutor lançou os ollios com avidez para alguns rostos, que estavam voltados para o seu lado, e começou a entreter o espirito no confronto dos traços physionomicüs das mais formosas e do estylo das toilettes das mais gentis e mais apurados nos instinctos de elegancia. Havia typos ali desde o louro scandinavo até o trigueiro da brazileira legitima. Os vestuários resentiam-se desse nephelibatismo invasor, de que nem as modas do sexo frágil escapavam,-- o nephelibatismo na sua forma mais piegas,---a religiosa, dos chamalotes, das fazendas rôxo-lyi-io, dos padrões de sacristia, das capas a peregrino e todas as imitações do ornato monacal. Não durou muito esse esforço de observação. Agrippino, em tempo, cuidou em si. A tendencia para a generalisação preparava-se para disparar pelo campo infindo da syntliese.

-- Sensualisemo-nos! disse comsigo; e buscou atravez do molde dos vestidos das formosas, mais em evidencia, pelo planturoso e opulento da carnação, as linhas ou antes o desenho dos manequins vivos.

Nesse instante os olhos pousavam sobre um busto de mulher esguia, esbelta, trajada caprichosamente, que se erguera de costas para elle, 6 que binoculava um camarote fronteiro. Notou que os seus cabellos eram tintos de cinabrio. A imagem de Kate fuzilou no espaço. Houve um estremecimento de pavor. Si fosse ella? Esta pergunta fez-lhe um disparo no coração. Alguma coisa de estranho se agitava em seus lábios com o voejar do osculo infernal recebido no Gorcovado, e que ainda lhe resaibava n'alma e lhe queimava o sangue. A casa rodou em torno delle. Suppoz que ia dehquescer. Não esperou mais; poz o chapéu na cabeça e, atordoado, quasi sem atinar com as sabidas, procurou o vestibulo do theatro.

Chegando á garçonnière assaltóu-o um accesso de frio. O tempo estava morno. Não lhe eram desconhecidos esses repentinos arrepios, -- precursores de grandes abatimentos. Chamou o creado; exigiu um banho bastante esperto; e esperou, batendo o queixo. Quando o serviçal avisou-o de que o banho estava prompto, arrependeu-se. Teve medo; e mandou que o friccionasse com agua de colonia.

Alliviado, deitou-se. Invadira-o uma fadiga indifinivel, assignalada por insistentes trepidações no tronco e nos braços. Por volta de duas horas da madrugada adormeceu. Sonhou que a estrangeira, ou coisa que o vallia, resonava ao lado. De repente, transformava-se num animal exquisito, rubro, de pernas muito compridas, assim como uma aranha de dimensões incalculáveis. Todavia, sob essa forma infernal de insecto, nem o rosto da mulher desapparecia, nem a unctuosidade de sua palavra deixava de afagar os seus ouvidos. As patas do arachnoide, vermelhas de cinabrio como os cabellos de Kate, envolviam-lhe o corpo, enleiavam-o, constringiam-o. Simões sentio, por fim, que os dentes desse animal terrível ferravam-se-lhe ao rosto. Não lhe produziram dôr; communicaram-lhe apenas uma volúpia indizivel, ao mesmo tempo que a massa rubra, de que era formado, ia-se diluindo e escorrendo sangue, logo transmudado em hquido negro como borra de nanquim.

Eram seis da manhã quando despertou.

Julgou que tinha febre. Apparecendo o creado, determinou-lhe que mandasse um proprio a Botafogo chamar Salcedo. O medico não tardou; achou o enferno dormitando. Não querendo acordal-o, receitou e retirou-se, sem rumor, tendo recommendado ao enfermeiro que lhe desse o remedio de duas em duas horas.

Nada havia que receiar. No dia seguinte estaria bom.

CAPITULO IV

Salcedo enganava-se.

Sobreveio uma febre de mau caracter. Agrippino esteve entre a vida e a morte, sob as vistas do amigo; todavia, arribou depois de longos dias de enfermidade. Resurgindo e entrando em franca convalescença, experimentou varias modificações nos seus hábitos physiologicos e nos mentaes. De irritadiço, que era, começou a sentir uma formidável disposição para a bonhomia e para a tolerancia. O seu humor desigual tornou-se alegre, expansivo; e as coisas, que de ordinário se lhe aíFiguravam tragicas, insoluveis, se lhe íipresentavam agora sob um as- pecto fortuito, rabelaiseano. Só lhe agradava o movimento; e si não fossem as recommendações do doutor, teria entrado om todos os clubs de natação e de corridas, convertendo-se num fanatico da vida sportiva.

A philosophia deixou de interessal-o. Absleve-se, naturalmente, sem esforço, desse eterno esgravatar da intelligencia em busca do incognoscivel. Profundamente confiado agora no que elle chamava agrippinismo inconsciente, entregou ao cerebro o trabalho de modificar automaticamente, sem critica de sua parte, os seus estados de consciência.

Duas proposições de Mansel ou de Spencer como fortes ancoras firmavam-no na angra do socego espiritual.

-- O absoluto é incondicionavel, portanto impensável; logo é perder tempo e saúde occuparmo-nos com elle. Existem estados de consciência irreductiveis. Esses estados tem sua origem no desconhecido. Apoiemo-nos nessa base; e o resto ao acaso. Ao diabo o tal Swedenborg.

E uma beatifica tranquillidade baixou sobre aquella pobre alminha.

Concedida a permissão pelo Esculapio, Agrippino poz-se a agir. Divertia-se, perambulava, envolvia-se no movimento diurno, pensando unicamente nos objectos materiaes que se lhe offereciam á vista. Diante de tão bellos resultados Salcedo, abraçou-o com effusão, um dia.

-- Afinal, eil-o com juizo! Bem lh'o tinha affirmado, não uma, mas centenas de vezes; o seu melhor tratamento consistiria em banir esse subjeclivismo demolidor que o ia, a pouco e pouco, liquidando.

-- Deixe dar-lhe um novo conselho. Cultive o pantheismo pratico. Entregue-se á natureza; goze o que estiver a seu alcance. Colha o que for encontrando á borda do caminho. Não se metta, por tal motivo, a grimpar eminencias, arriscando vida e socego por similares do que está a mão ou por productos exoticos sem valor especifico. Mergulhe, emflm, no bruhaha da vida, e conforme diz o povo, em sua eterna sabedoria, deixe Deus ir escrevendo pelas suas linhas tortas. Olhe: não suba mais ao sotão em que mora esta senhora sua intelligencia especulativa, para fazer-lhe consultas irrespondíveis. Digo-lhe ainda: não a chame nunca.

Guarde quieta que ella não o comprometterá com suggestôes infernaes. Ponha na frente a vontade; e creia que com semelhante propulsor, umas em cheio, outras era vão, tudo irá da se.

O convalescente, ou convalescido, ficou pensativo. Dando o devido peso aos factos, convenceu-se de que o maior factor do seu resurgimento era a influencia curativa de Salcedo.

Fosse ou não verdade, a realidade era esta:

viesse de onde viesse, o factor não alterava a sua felicidade relativa.

Nesse dia os amigos e conhecidos de Agrippino extranharam a sua alacridade, na rua do Ouvidor.

Ambrosio Raposo, com quem apertara relações, convidou-o para uma excursão a Caldas, fazendo escala pela Paulicéa. Estava o romancista ruminando o plano da sua celebre narração os Urubús. Simões aceitou o convite, mas estabeleceu como condição que não lhe fallaria em coisas tetricas.

Prepararam as malas e seguiram no primeiro trem uocturno.

A noite, tropical, clara, deliciosa, proporcionou uma sabida a contento de ambos. O vagão-leito ia repleto de passageiros. Perto dos dois viajantes amigos, um casal, que parecia de noivos, arrulhava o seu noivado, á europea, posto que coacto pela curiosidade indiscreta dos companheiros de viagem. 0 romancista notando o blocus que oppriniia o par interessante, não poupou invectivas contra o mau costume dos occidentaes. Mil vezes preferia o bucolismo de um retiro agreste e socegado.

Amar em vagões de estrada de ferro, em quartos de hoteis, em cabinas de transatlanticos, -- proh-pudor! só inglezes. Latinos não comprehendem lua de mel sobre aguas ou sobre rodas. A estes -- na Italia: Ischia, Sorrento, Gapri, Gastelamare; no Rio de Janeiro:

Leme, Copacabana, Tijuca, Paquetá.

Agrippino concordou. Em Belem pedio permissão para fazer ponto na palestra. Correu a cortina do beliclie; e d'ahi a minutos dormia a somno solto, o que fez, sem interrupção, até Taubaté, onde ha baldeação.

Ás oito e meia da manhã descortitiava-se a Paulicéa.

Tentou-os a Rôtisserie. Gomo, porém, pensassem nos preços fabulosos desta casa, foram aboletar-se no Hotel de França.

S. Paulo, a esse tempo, ainda não possuia o serviço electrico da Liglit & Power, que hoje, com os seus carros esplendidos, com o rumor dos sinos de seus veliiculos, com a presteza das viagens, dá-nos a sensação de cidade americana; nem a capital ostentava esse grandioso palacio da estação da Luz, que promette continuar a illusão monumental dos grandes emporios do mundo.

Logo depois do almoço foram visitar a Avenida Paulista e Hygienopolis. Os bellos prédios, de capriciiosa e variada architectura, que ali existem, encantou-os immensamente, provocando dithyrambos a Ambrosio Raposo, que já imaginava-se transportado a Calculttá.

-- Este Ramos de Azevedo, dizia elle, é um engenheiro como eu entendo. Teve a bellissima idéa de dar á Paulicéa o aspecto de uma cidade da índia Ingleza e o tom architectonico que mais convém a um povoado tropical, mesclando-o de todos os typos adaptaveis ao nosso clima variavel. Olhem aquelle gothico e aquelle palacete Renascença! Qae bello clialet suisso!

Olhe: um perfeito bangalow indiano.

Emquanto o bonde corria, a palestra deslisava sobre os incrementos de S. Paulo. Voltaram tarde para o hotel. Jantaram cora grande appetite e á noite percorreram os cafés-coucertos do Braz. Estavam em plena Italia, na terra dove si suona, dos anarchistas, dos partidarios de Gipriani, um tanto desaceiada, mas sempre musical, repletas de harpas e violinos, de nichos e cruzes pelas esquinas, e velas de sebo extinctas nos batentes das portas. Os dois perambulantes julgaram-se por momentos em alguma rua de Nápoles, onde a cada passo topavam uma Santuzza ou um Tamagno in herbis a soltar do peito vibrantes notas de opera lyrica.

Na manhã seguinte, ainda muito cedo, penetravam na estação do trem de bitolinha que conduz á Cantareira. Foi um bello passeio. Não se imagina o que é o retiro saudoso, entre bosques e montanhas, dentro do qual a Companhia collocou os reservatórios da agua que se bebe em S. Paulo. O sitio é uma bacia de verdura; no centro, dois tanques descobertos, onde as aguas reílectem como espelhos collossaes as florestas adjacentes; em torno, jardins inglezes, em planos ascendentes; pelas encostas, caminhos e veredas artisticamente praticadas no matto e recantos alcatifados e dispostos para pequeniques, ou para espíritos meditativos e poéticos, habituados ao silencio dos bosques.

Agrippinò e Anibrosio Raposo dominados, pela formosura da paizagem, demoraram-se nesse exquisito parque mais tempo do que era indispensável para acalmarem os nervos irrequietos. Pensavam baixinho e bucolisavam, cada um para o seu lado. Quasi não se dirigiam a palavra, tal era a doçura que lhes punham n'alma a frescura e a amenidade do logar, a temperatura da luz, a combinação do matiz das flores, o balancear dos palmares, o reflexo do ceu azul nas aguas, o canto das aves e o chilrear de algumas creanças, que bricavam sobre a relva. Tréguas á imagluação. Em somnolencia, deixaram-se por ultimo rolar no tapete de verdura era concorrência com as creanças.

De súbito Ambrosio Raposo ergueu-se; e atirou aos ares uma blasphemia bacchica.

Sahiram do recinto. No vagão estava placidamente á espera da partida do trem um sujeito de cabellos grisalhos, bigode curto, e de physionomia sympathica. A seu lado, no banco de palhinha, via-se uma machina photographica. Era o pintor Almeida Júnior, que andava a tirar clichês para estudos de paizagem destinados a uma grande tela projectada. Durante a viagem fallou-se em arte; e o auctor da Monção, meio acaipirado, mas seguro das suas idéas, entreteve-os com as suas theorias sobre pintura nacional, que elie via muito abastardada pelo syrabolismo europeu.

Quando chegaram á estação da Avenida davam cinco horas da tarde. Ambrosio Raposo, que, como Balzac, é perseguido por instinctos de luxo, quiz á força que n'aquella noite jantassem na Rôtisserie, embora se arriscassem a sahir d'ali completamente depennados. O susto pelos preços entraria como um dos condimentos dos acipipes.

A ideia pareceu excellente; e os dois, após algumas voltas pelas ruas centraes, dirigiramse para o restaurante. O salão das refeições, que é um dos mais luxuosos de S. Paulo, estava cheio de coramerciantes estrangeiros, principalmente allemães. Senhoras poucas; estas mesmas acanhadas e silenciosas.

Ao abancar-se, Agrippino notou que uma moça loura fallava inglez com um cavalheiro, que fazia-lhe a côrte. Não poude, porém, ver quem era, porque estava de costas. O timbre da voz não lhe era desconhecido.

O cardapio foi organisado por Ambrosio Raposo, que pediu coisas phantasticas.

-- Sopa á Ia Barbedienne; vol aux vents d'Eole; jambons des javards d'Erimanthe; trimbaillades aux cornes de Ia lune... E assim por diante.

Passados alguns minutos, o creado voltou sorrindo. O niaitre dUiotel não entendia o cardapio.

Grane, saugrenu... Um verdadeiro cardapio do Chat Noir.

Ambrosio Raposo, esbravejou.

-- Diga a Mr. Quelque-chose qae por menos do que isto o seu compatriota Vatel se suicidou. Venha pois o jantar pela forma do logar commum. Queria um jantar inédito, um jantar a Flaubert.

O gerente appareceu. Gomo todo francez, muito cheio de delicadezas e phrases espirituo-, sas, applacou-lhes a ira; mas a fome os espreitava. Ambrosio Raposo fez um ligeiro remoque.

-- Pois um homem, que estava habituado a resolver casos mais intrincados de arte culinaria, embaraçava-se diante de um cardapio tão simples e de tão fácil execução! Na Rôtisserie, era inacreditável! Si permittisse, e para que de futuro não se deixasse surprehender por iguaes embaraços, remetter-lhe-hia na primeira opportunidade a obra do celebre cozinheiro de Gambetta, Trompette, Das tendencias modernas da cozinha franceza.

O francez rasgou um cumprimento respeitoso e afastou-se.

-- Seja como Deus quizer, disse Ambrosio Raposo; e que traduzam esse cardapio, como puderem, do clássico para o burguez. É isso, amigo Agrippino, cada vez me convenço mais de que a França degenera. Ah! a decadencia latina! Veja você se no tempo de Lucullo podia-se dar uma desgraça destas.

Apezar do pessimismo do novellista, a traducção do cardapio não esteve abaixo da critica; e os dois jantaram muito a seu contento.

Ao champagne alguma coisa de estranho fez rumor no fundo do salão.

A loura, que então parecia uma ruivela, pelo menos aos olhos de Agrippino, altercava, sotto voce, com o seu gentil companheiro de hotel. A primeira impressão foi de que ali havia uma degringolada amorosa.

O cavalheiro, um inglez muito enfreiado no gesto britannico, ergueu-se bruscamente e desappareceu. A dama voltou-se, então, para os dois amigos, implorando com os olhos desculpas, e esboçou uma explicação com o gesto perturbado. Agrippino estremeceu. Era miss Kate.

Ambrosio Raposo não deu pelo incidente, talvez illudido pela transformação, que se operava nas maneiras e no vestuário da estrangeira.

Agrippino empregou toda a energia de que dispunha para encobrir a sua confusão. Levantou-se e preparou-se para sahir. Miss Kate, porém, encarou-o com esse olhar fascinante, de que elle já experimentara o poder inhibitorio, e obrigou-o a sentar-se.

Ambrosio Raposo, observando a passada vacillante do amigo, disse:

-- Chegou-te a aura prophetica, Agrippino.

Sacode a grenha e improvisa o dithyrambo anacreontico. Vamos... Evolié! Evohé!...

O doutor emudeceu. Os olhos de miss Kate, que se encostara a uma columna, na penumbra do salão, estavam fitados nelle; e de longe o hostilizavam de um modo inexprimivel.

Simões regogou. Os cabellos fulvos da miss empreteciam, e a coloração da face sobre a alvura da tez, íluctuou entre o moreno escuro e um azulado faisandé. Ella ria-se mas de um riso doido, voluptuoso, infernal. O doutor abaixou a vista; depois ergueu-se impetuosamente, e atirou-se escada abaixo.

Ambrosio Raposo chegou ao hotel de França poucos minutos depois do amigo.

-- Que diabo, Agrippino! Parece que a moléstia está voltando ?

No dia seguinte Ambrosio Raposo partia para Caldas, só. O outro resolvera não acom- panhal-o. Tinha perdido o equilíbrio; e não pensava senão em regressar ao Rio; o que realisou no primeiro trem nocturno.

Os novos incommodos manifestavam-se na região puramente psychica. As vertigens e a sensação de agastura na base do cerebro não lhe reappareceVam, por felicidade. As idéas acudiam claras, nitidas; apenas o affligia, como um pesadello permanente, a imagem de Kate.

O vagão-leito acalmou-o. Por volta de onze horas adormeceu; ao chegar o trem á raiz da serra, despertou.

A luz branca e saudavel da manhã invadia o carro. Os passageiros remechiam-se e principiavam os preparos para abandonarem as camas. Simões promptiíicou-se para imital-os. Ao deixar o beliche reparou que tinha-lhe cabido por visinha uma senhora, no leito superior. Do gancho junto á cortina pendia por fora uma saia de seda, de que se evolava um perfume combinado de mulher e de essencias inglezas, que o entonteceram.

Que estravagancia a dessa senhora que não escrupulisara empoleirar-se num leito superior!

Quem seria? Com certeza alguma viajante, es- posa de naturalista insexuada, que não tinha olhos para as impurezas da carne, nem receio de comprometter-se pela visão do indecoroso.

Todavia, usava perfumes e envergava saias de seda entremeiadas de rendas custosas de Inglaterra.

Chegavam a Belem. Os passageiros, todos despertos, precipitaram-se na plataforma da estação, ávidos de café. Agrippino sahiu, tomou uma ligeira refeição matinal; e quando voltou ao carro, os leitos tinham sido desfeitos e transformados em commodos assentos, com excepçâo de uni que continuava com as cortinas corridas, o da perfumosa sua visinha.

Intrigou-o o somno daquelia passageira. Seria uma doente? Não era provável, pois que vinha só. Não a perdeu mais de vista, até que a travessia pelos suburbios o distrahio daquelia insistente curiosidade. Ao desembarcar, na Estação Central, notou que o leito ainda mantinha-se de cortinas arriadas. Não resistio; e passando pelo beliche roçou com o hombro propositalmente, buscando arrepanhar uma das cortinas. O mesmo perfume acre e embriagante ferio-lhe o olfato. Não poude descobrir senão um vuito indeciso de mulher, que se sentara.

Comtudo, ouvio-lhe a voz. Fallaria sosinha?

Então era uma maniaca.

Ao abandonar a gare, envolvido pela multidão que entrava para tomar ura trem de suburbio, volveu involuntariamente o rosto para traz.

A retardataria pulava do carro. Era Kate, que, no seu roupão de viagem pareceu-lhe mais esbelta e formosa do que nunca. Debaixo do veu fulgiam os seus olhos fascinantes. Os cabellos louros voejavam em torno do rosto, que sorria para elle de um sorriso provocador e irresistivei. Miss Kate obsedava-o.

Agitado, agitadissimo, entrou no primeiro bonde; e fugio com o desespero n'alma.

Passou alguns dias sem sahir, acalmando-se, lendo romances e livros de hygiene. Quando sentio-se menos agitado, e disposto a cominunicar com os amigos, fez uma cautelosa diversão pela rua do Ouvidor.

Seriam duas horas quando ali chegou. Não era o dia do high-life. Havia pouco movimento.

Não achando conhecidos com quem conversar, desceu até á rua Primeiro de Março, suhio, tomou um chopp no Paschoal e, após alguns momentos de indecisão, entrou no salão Segreto. Principiava a exhibição. Sentou-se na primeira fila de cadeiras e esperou. As vistas que nesse dia apresentavam não o distrahiam.

No salão havia dez ou doze pessoas, entre as quaes uma senhora obesa que soltava exclamações de surpreza a cada quadro que surgia.

O apparellio projectou na tela primeiramente uma scena de gare de estrada de ferro; depois a passagem da Opera de Pariz; seguiram-se alguns quadros caricatos; por fim o sexto, que quasi sempre é um pas de quatre, em que figuram dansarinas do Moulin Rouge. Apenas as quatro dansarinas começaram a balançar as pernas e a sacudir as saias de tarlatana, nesse movimento molle, fluctuante, vaporoso, que caracterisa a choreographia cynematographada, Agrippino assustou-se. Parecera-lhe descobrir no rosto de urna das cocottes os traços physionomicos de miss Kate. O mesmo riso sardonico; os mesmos olhos penetrantes; os mesmos cabellos de cinabrio. Apagou-se o disco Juminoso. Simões sahiu, mas sahiu com uma oppressão indefinivel na alma, -- um sentimento que se poderia comparar com o que se experimenta em sonho, depois do despertar de um pesadello diffuso, sine matéria.

Desceu outra vez a rua do Ouvidor e seguio até á Praça do Mercado. Esteve ali alguns instantes a contemplar a dispersão das verduras e dos fructos de refugo. Retirou-se enojado, engulhando, perseguido por um cheiro nauseante de peixe arruinado, palmitos e laranjas podres.

No regresso por volta da rua da Quitanda, reparou que diante de si pisavam na calçada com expressão nervosa umas botinas de pellica fulva com botões de madreperola, e que carregavam uns pésinhos caprichosos pelo feitio, pois eram peitudos e cambrés, catitas, engraçados. Esses pésinhos tinham o geito de irem fallando entre si; pelo menos assim se afigurou a Agrippino, cujos olhos lhes deram caça, tal era a garridice com que se dirigiam e se apartavam desviando as irregularidades dos lagedos, taes os meneios com que se empinavam, quando a dona erguia o vestido, num movimento de arregaço pondo a mão na anca e deixando a descoberto a fôrma de uma perna roliça. Agrippino acompanhou-os insistentemente, sem dar attenção ao rosto de quem os utilisava. Ao chegar á casa de modas de M. Dreyfus os pésinhos desappareceram subindo os degraus da loja. Só então, atravessando a calçada fronteira, procurou descortinar o vulto da gentil proprietária de tão curiosissimos hibelots.

Lá estavam os cabellos de cinabrio. Miss Kate,--uma cocotte, sem que mais duvida podesse haver sobre este ponto, -- escolhia, experimentava, pondo sobre os seus cnbellos de medusa, um chapéu de palha de estardalhaço, ornado de pennas revoltas e de uma extensão impossível. Simões ficou estatelado.

Illusâo, ou victima de alguma influencia spirita? O seu espanto redobrou adiante. Passando pelo estabelecimento de M.TM Rosso vio a miss na mesma posição de quem experimenta chapéus. Perturbado desceu a rua Gonçalves Dias, e enveredou pela confeitaria Colombo.

Sentou-se e poz-se a reflectir. Vieram-lhe á memória fragmentos da obra de Wallace sobre os milagres e o espiritualismo moderno; e quiz lhe parecer que a theoria, relativa ao perspirito dos spiritas confessos, por meio da qual escriptores como Delanne buscam explicar o desdobramento da personahdade mediumnimica, não era talvez tão destituída de realidade como suppunha.

As suas idéas materialistas, ou antes o seu evolucionismo com tendencias materialistas, sacudiram taes hypotheses como estravagantes e insensatas. Era muito mais provável que a sua psychose estivese tomando forma nova. As modificações pareciam evidentes.

-- Si é verdade, pensou elle, o que dizia Kant, isto é, que as formas são a vestimenta com que o nosso espirito envolve os objectos exteriores a nós, não ha maior disparate do que affirmar que a alma precisa desdobrar-se para produzir os effeitos de que se servem os spiritas para espantar o mundo dos ignorantes.

Que impede que o meu espirito enfermo, que o meu cerebro sobrexcitado projecte sobre toda mulher loura o vulto extraordinário de miss Kate, com os seus cabellos incendiados e seus olhos de carbunculo?

Para confortar-se, Agrippino tomou um cálice de Ghartreuse; levantou-se valente, e dispozse a vencer a obsessão. Firmado no aphorismo de Protagoras, jurou a si mesmo que afrontaria todas as misses Kates que ousassem interporse á sua visão. Só havia um sentido que se não enganava, nem no caso de saúde, nem no de enfermidade; era o tacto. Resistes, logo coexistes. A' primeira tentativa da estrangeira, ou á primeira illustão que o assaltasse, poria o tacto em funcções de juiz incorruptível. E que o diabo levasse a Swedenborg!

Quando procurou sahir do Colombo, um grupo de rapazes e de elegantes fazia irrupção na confeitaria. Agrippino varou o grupo violen tamente e apressou o passo em direcção ao largo da Carioca.

Um vulto de mulher esbelta, envolta numa pelerina farfalhante^ ornada de arminhos, descia de um electrico. A principio não poude distinguir-lhe o rosto, tantos eram os adornos e rendas que lhe afogavam o pescoço. Mas logo que a senhora approximou-se, o doutor sentiu um sobresalto. Que diabo! Era uma outra miss Kate. O seu primeiro movimento foi evital-a; mas, fazendo um esforço sobre si mesmo, para afrontal-a, conforme promettera, conseguio vencer-se; e atalhou-a no meio do largo.

--Miss Kate! disse.

A senhora da pelerina, quem quer que ella fosse, encarou-o, cheia de espanto, e desviou-se delicadamente.

A illusão estava dissipada. Os cabellos que lhe tinham parecido muito louros, eram apenas castanhos claros e os olhos de azues se tinham transformado em" pardos.

Simões correu para casa alegre como nunca. Conversando, logo depois, com Salcedo, narrou-lhe minuciosamente todos os incidentes daquelle dia. O que mais interessava era que tinham desapparecido as manias anteriores. A nevrose evoluia; e gradativamente passava da região intellectiva para a sentimental. Convinha antecipal-a.

-- Olhe, accrescentou o medico, tome o meu conselho. Occupe-se. Alugue uma casa em Icarahy. Metta-se de rijo no rowing. E quanto a essa miss Kate, ame-a... ame-a por um mez...

Depois, veremos que droga se lhe pode receitar.

CAPITULO V

Na barca de Nictheroy, ás duas horas da madrugada. Faz um luar plácido, sereno. No ceu não ha uma nuvem. Retardatarios, que regressam dos theatros, uns cochilara, estirados sobre os bancos; outros, impacientados pela marcha lenta da embarcação, passeiam de um lado para o outro.

Simões galgou a escada, e, no tombadilho, pôz-se a contemplar a bahia. O Pão de Assucar, o Gorcovado, as montanhas adjacentes, envolviam-se num pó luminoso. A cidade jazia mergulhada na penumbra da luz derramada languidamente pela lua, que corria para o occaso. O mar, calmo. Da barra soprava uma brisa fresca; e as ligeiras fluctuações da superfície liquida faziam palhetar, ás rajadas, a claridade que cahia de revez. No meio de muralhas semi-destruidas, Villegagnon silenciava, como um sonho da Revolta. As embarcações, espalhadas pelo ancoradouro, dormiam.

Fatigado da noitada, o doutor sentou-se em um dos bancos, e deixou o espirito á mercê da paizagem.

O tombadilho estava deserto.

Trepidavam-lhe ainda nas cordas do cerebro as harmonias da A%da.

A barca arfou passando junto de um couraçado. Repousavam todos a bordo; e o monstro de guerra, embrulhado nos grandes toldos, apenas dava signal de vida pelo pestanejar dos dois pharoes, verde e encarnado, que pendiam do mastro militar. Um cão veio á prôa e uivou para a barca.

Agrippino voltou-se. Ao pé vio uma sombra feminina.

-- Poor Falstaff!

Ouvira elle essas duas palavras ou seria uma allucinação auditiva?

A sombra resvalou. Era uma mulher embrulhada em ampla capa de sahida de theatro. O vulto afastava-se olhando para elle. Um perfume de sMne exhalava-se dos vestuários roçagantes. A desconhecida sentou-se no banco opposto.

Agrippino ouvia um suspiro. Arripiaram-se-lhe os nervos, vibrados por aquelle offego de mulher sensualisada.

Seria a própria miss Kate que o provocava, ou alguma retardataria moradora na Praia Grande? Os olhos, o olfato, o ouvido mentiriam; o tacto é que não. Os primeiros attestavam que era ella: o perfume, que respirava no vagão-leito, os seus gestos, o timbre dos seus gemidos. A occasião era propicia para pôr á prova o sentido da resistencia. Afoitou-se. O momento urgia; e, num instante de optimismo, de impulsão agressiva, sentio-se senhor da situação. Ergueu-se, foi até á cabina do mestre, voltou e sentou-se perto da mysteriosa.

Entonteciam-no os effluvios desprendidos do corpo dessa mulher. Porque não agia? Resolveu, pois, tomar o conselho de Salcedo.

Miss Kate, pela primeira vez, falou-lhe na parlenda brazileira. Mal percebia-se-lhe o sotaque inglez. Não parecia a mesma mulher de cabellos de cinabrio, da enigmatica scena do Gorcovado, em que a allucinação doentia tinha-a por certo desfigurado. Nem elle a via ao pé de si, como naquelle momento, nem ainda experimentara, em vigilia, o contacto de seus lábios de ecuyère illusionista.

-- O Dr. Simões, disse-lhe ella, julga-me talvez algum espectro malfazejo...

Agrippino voltou-se.

-- Pronuncia meu nome? Quem lh'o ensinou?

-- O seu amigo Salcedo, que é meu medico.

Miss Kate pronunciava estas palavras com encantadora naturalidade; e explicou-lhe o mysterio. Ella residia bem perto delle em Icarahy.

Fôra o proprio seu amigo que lhe recommendara uma estação de banhos ali, de preferencia á Copacabana.

Tudo d'ahi por diante passou-se numa intimidade, que para Agrippino teria sido aterradora, si de ha muito não se tivesse farailiarisado com a sobre-naturalidade de sua vida de bohemio.

Que differença fazia essa Miss Kate, que agora o afagava com o olhar ílexuoso, com o gesto infantil e com o babil de uma menina, daqueüa ludambula de movimentos angulosos, que observara no Gorcovado, excentrico manequim de junco, de que os sábios e naturalistas britannicos costumam fazer-se acompanhar durante as suas excursões!

Miss Kate retirou a capa, e pedio que a carregasse. Agrippino pol-a no braço bem conchegada ao corpo, e deixou-se penetrar do seu perfume. Ella desfolhou um sorriso, que desatou-lhe todo o enleio. O doutor estava vencido.

As lembranças más tinham-se varrido da sua memória. Só pensava no amor dessa formosíssima mulher.

Então, á claridade da lua, poude analysar as bellas formas, a elegancia, as flexões desse corpo adoravel. A inspecção foi rapida. Todos os horrores evaporaram-se. Nisto, sentio que a estrangeira apoiava-se-lhe ao hombro; fez um movimento audacioso e os dois rostos tocaramse; os hálitos confundiram-se.

-- Si soubesses, quanto estou soffrendo ?!

Tamanha familiaridade e esta queixa, na clave do amor, acabaram por subverter as suas prevenções. Os lábios de miss Kate quasi roçavam os seus. Chorava.

Receiando que a estrangeira desmaiasse, enlaçou-a francamente, premindo sobre o busto aquelle corpo perfumoso, leve, delgado como o talhe de uma vespa. Voltando a si do ligeiro espasmo, miss Kate ergueu-se, tremula, palpitante, num assomo de revolta, que, todavia dissipou-se como um floco de neve.

A barca abicava á prancha. Desceram. Ella apoiada fortemente no braço de Simões; elle esquecido de si mesmo.

-- Soffre? perguntou-lhe.

Miss Kate murmurou um yes quasi imperceptível.

Dirigiram-se vagarosamente para o bonde de Icarahy. Agrippino, ajudando-a a subir encostada ao hombro, vio-a quasi desfallecida. O vehiculo partiu. Eram os únicos passageiros.

O cocheiro de vez era vez, volvia os olhos, curioso.

Na volta de uma rua, a uma Hgeira indicação da moça, Agrippino fez parar o carro; e ella, mais animada, saltou, dispensando o seu apoio. Seguiram por uma travessa arenosa, que ia dar á praia. Alii, entre cajueiros, murtas e magnolias, havia um chalet suisso, construido de madeira, precedido de uma varanda engrinaldada de trepadeiras, e que dizia para o mar.

Á porta cochilava ura groom, que, despertando aos passos dos retardatarios, correu a tomar a capa da senhora.

Entraram. Os aposentos de miss Kate eram pequeninos; tudo, porém, quanto uma bohemia pode de improviso juntar em torno de si para dar encanto á vida e relevo á sua pessoa, encontrava-se nesse retiro provisorio, numa desordem confortável, mas artística.

-- Está melhor?

-- Ah! junto de ti...

E, pela segunda vez, Agrippino sentio nos lábios e no sangue o influxo agredoce e electrico do prestigio erotico dessa creatura singular.

O coração sublevou-se; não tinha mais consciência da carne; o espirito voava.

Quiz retirar-se. Kate protestou.

-- Não! Não saias! Não me abandones.

E pendurou-se-lhe ao pescoço, implorando, soluçante, duma agonia lubrica, que não a desprezasse. Simões fixou os olhos nos olhos delia, e sentio que por esse raio de vida a feiticeira suggeria-lhe desejos infernaes. Suspendeu-a como se faz a uma creança manhosa, e -- coisa extranha! -- não pesava; e, depondo-a num divan, custou a desprender-se dos seus braços.

Conseguio, por fim, que se aquietasse, beijando-a effusivamente, com ternura. Estava de uma formosura irradiante. Dir-se-ia, que o amor até lhe tinha diminuido a estatura. Era agora uma minuscula, -- creança em tudo: -- no riso, na voz, nos meneios, na recusa pudica dos afagos. Poz-se, então, a contempla-la em silencio; e verteu lagrimas de prazer intenso.

Os cabellos eram de um louro de trigo, que nada tiaham dessa côr de cinabrio que o espavorira. Os olhos azues de saphira desmaiada pareciam calmos como os de um cherubim; apenas invocavam mimos, protecção. Beijou-a, de novo, na bocca, convuLso de paixão.

Nisto, ou porque o gaz baixasse de pressão, ou porque a vista estivesse fatigada, pareceulhe que a luz diminuía. Uma semi-obscuridade os envolvia.

Agrippino assustou-se.

Miss Kate, agitava-se, e sahindo da morbidez encantadora em que se deixara ficar, levantou-se hirta, com o olhar crotalico, fascinador.

Reproduzira-se o phenomeno, que terrificara o doutor no pavilhão do Gorcovado. De azues os olhos da estrangeira se fizeram glaucos; os cabellos tomaram outra vez a côr da aza da graúna; a sua tez amorenou-se. Seria uma nova allucinação?

Simões correu para a porta de sabida. A luz do gaz readquirira toda a sua intensidade.

Era, com effeito, uma illusão de óptica.

Voltou-se. Kate de joellios, implorava piedade, ainda mais formosa do que d'antes. As pupillas dos seus olhos humidos despediam raios lunares, tranquillisadores. Estava, entretanto, muito pallida. O doutor não ultrapassaria os limites que se impuzera. Aquelie ambiente o estava perturbando. Arreceiou-se de uma crise.

Abrindo a porta com fragor, evadiu-se ás seducções da feiticeira.

A casa em que residia não ficava longe. Recolheu-se aos aposentos e tomou um cordeal.

A agitação, porém, não o deixou dormir senão ao clarear.

Os exercicios, prescriptos por Salcedo, tonificavam-no. Todos os dias, ao romper da aurora, Agrippino já tinha tomado o seu banho, e completava as horas matinaes com um passeio á ponta do Cavallão. Ia vagarosamente pela praia, cuidando nos minimos incidentes da vida dos banhistas; e no regresso, raro era que não fizesse escala pelo chalet de miss Kate.

As suas relações systematisaram-se judiciosamente. A estrangeira desapparecia de completo para elle. Calmo, tranquillo, reconciliado, via apenas em Kate uma figura delicada, loura, vibrante, um tanto mysteriosa, que lembrava os perfis descriptos por Walter Scott ou por Shakespeare.

Uma Lais anglo-saxonia, aclimatada á vida tropical, intelligente e bem mulher para o amor, de raro instincto para as sensações translatas.

Que lhe importava o resto, si o seu contacto dava-lhe o sentimento de uma vida nova, como nunca imaginara? Amou-a com capricho, com ardor, para não dizer, que a desejava como artista.

E elia ou simuLava, com astucia comsumada, uma paixão que não existia, ou compenetrava-se da necessidade de completar essa illusão. O que, porém, mais concorria para o estado dithyrambico de Agrippino era a saúde. Salcedo tinha carradas de razão. O seu cliente suppunha-se curado. E assim, para que não se dissesse que em nada se occupava, o doutor, que, por esse tempo, regulara a sua vida economica, tratou de assumir qualquer responsabilidade. Essa responsabilidade traduzio-se na collaboração de uma folha diaria. Ao mesmo tempo fez-se director de uma cooperativa.

Durante as horas vivas escrevia artigos políticos ou de sociologia, no escriptorio da Companhia; dirigia nos intervallos os seus negocios; e quando, á tarde, regressava a Icarahy, era com um bem estar na consciência e grande disposição para ser feliz., Tres mezes durou essa vida isochronica, temperada pelo idylio dourado, no qual a miss Kate consumia-lhe as horas do pôr do sol e as noites com uma conversação de mulher culta, viajada e com o seu am.or terno e sedativo.

Um dia, porém, a serenidade dessa existência poética foi interrompida por um incidente, que tomou proporções gravíssimas. Voltando do Gavallão, como de costume, Simões approximou-se do chalet, que era o seu oásis. Davam sete horas da manhã; a praia estava coalhada de banhistas. Duas baleeiras exercitavam-se no mar. Das barracas de lona sahiam algumas senhoras lentamente, espreguiçando-se, em passos timidos, na areia; depois avançavam, aos pulinhos, para a vaga que vinha, mergulhavam, assustadas, e iam surgir adiante, no balanço liso e escorregadio da segunda vaga, entumecida, mas que não quebrava.

Nessa manhã o doutor experimentara uma super-excitação inexpHcavel. Reparando que miss Kate ainda não sahira, apezar da hora, entrou no chalet com o coração aos pulos.

Kate, com effeito conservava-se em casa, vestida de zuavo de lã encarnada, adornado de in- sígnias navaes a cadarço branco. Estava sentada ao piano, tocando um trecho de Ghopin. Simões, pé ante pé, penetrou na sala e ferrou-lhe ura beijo na espadua quasi nua. Ella volveu-se num movimento brusco e quiz correr.

Agrippino recuara horrorisado. Naquella espadua nua, quasi na inserção do musculo cervical, tinha descoberto uma tatuagem repugnante, indecentissima. Immediatamente veiolhe á memória o que dizem os psychiatras a respeito desse estigma e das marcações symbolicas dos degenerados e dos criminosos natos.

Enojado, fiigio para a sua garçoniére, e não quiz mais avistar essa mulher.

Passou o dia inteiro em casa submerso em um pezar sem nome. Recapitulando, então, certos incidentes, que haviam occorrido durante as suas ingênuas relações com essa dissoluta, recordou-se de que ella, no desalinho doméstico, nunca deixara de trazer o corpo guardado por uma cota de íinissimo crépe azul, que lhe encobria o tronco quasi todo, com um ligeiro decote pouco acima das espaduas; o que não deixava de augmentar o fulgor da sua explendida carnação.

Tomava-o uma anciediide infernal. Bastava pensar na miss para que o assaltasse a lembrança dos transportes extranlios de sua insensata paixão. Via-a pallida, de uma pallidez cadaverica, nariz atilado, em forma dé bico de ave de presa, olhos estrábicos, brilhando sinistramente.

A recordação das contorções de incubo, dos processos dessa mulher fatal, provocavam-lhe sensações retrospectivas, tão agudas, que se lhe afigurava morrer num espasmo de epileptico.

Decorreram quinze dias.

A sua saúde peiorava; e si bem que não sobreviessem os antigos phenomenos, elle sentia-se fatigado de espirito; e por isso dispoz-se a interromper o trabalho e até os exercicios de natação.

Deixou Icarahy, meio espavorido; e, a conselho de Salcedo, foi estacionar na Gavea, num sanatorio, que o medico acabava de fundar ao alto da montanha.

Deram-lhe um delicioso aposento, com vista, de um lado, para o vale do Jardim Botânico, de outro, para o Oceano. Não levou livros; escusou-se a toda communicação com os hospedes; e si appareciam jornaes apenas corria com os olhos os telegrammas. Dormia ou contemplava a natureza. Eram as suas exclusivas occupações.

Ao termo de alguns dias Agrippino tinha perdido a noção da rua do Ouvidor, o que era uma grande conquista no ponto de vista da tranquillidade psychica. As manhãs, de ordinário, despendia-as em digressões para o lado da barra da Tijuca. Os dias corriam-lhe desanuveados. Aos poucps, as impressões antigas dissolveram-se na placidez daquella paizagem alpestre, cujos alcantis suggeriam-lhe passeios ás vezes extravagantes.

O pessoal do estabelecimento era discreto.

Quanto a convalescentes, havia poucos: um commerciante, um inglez excentrico, que mal falava com os creados, e um casal mineiro, acompanhado de duas mocinhas de dezeseis a dezoito annos, doentias, debilitadas pela reclusão collegial, intemperantes na conversação.

Essa mesma companhia 'pouco ou nada interessava ao doutor, que apenas uma vez trocou duas palavras com o cliefe da familia, respeitável ancião de maneiras simples e cordatas.

Uma manhã clara e fresca Agrippino, sahindo pelo fundo do estabelecimento, penetrou numa vereda que ia ter ao cimo da montanha.

Seguio até onde permittio-lhe o folego. Em meio caminho havia uma esplanada. Parou; e estasiado pôz-se a observar o painel que d'ahi se descortinava. O mar verde de esmeralda, por cima da Urca, confundia-se ao longe com o ceu, nessa indecisão característica das alturas, em que a terra adjacente, perdida nos espaços, entre nuvens, parece diluir-se na transparência de uma magica theatral. Perto, quasi a topetar a pedra enigmatica da Gavea, o pico do Leão. Em baixo, a rua dos Voluntários da Patria, como uma cidade liliputiana. Do lado opposto a varzea da Tijuca, contrastava cora os rochedos abruptos do Corcovado e da região visinha. A orla arenosa da praia de Copacabana desfilava na linha austral; e o azul se expandia tão intenso nas encostas das montanhas da Tijuca, que dii-se-ia que um pote de anil em alguma tinturaria de Ciclopes, derramara, deixando correr á flux, o liquido extranho, que o pincel gigante e ausente não tinha aproveitado para compor a iraraensa tela.

Uma voz sonora e dolorosa despertou-o dessa especie de lethargo visual, no qual experimentava uma deliciosa sensação, como se dormitasse após larga digestão. A voz era dolente, e vinha impregnada de saudade. Subindo, lenta, queixosa, lançava-o num oceano de tristeza vaga e édulcorada de reminiscencias não menos indecisas. De onde vinha? Provavelmente do vale, bem do sopé da montanha.

O vento rondou; uma rajada forte fez perder-se o som meigo do canto argentino, que se fugia e voltava como um elfo wagneriano revoluteando na amplidão. Agrippino sentio que os accordes da alma dolorida casavam-se com as harmonias da tloresta; e por momentos gozou na solidão os effeitos de uma musica não escripta, e que só dependia de um gênio para transformar-se na arte cogitada pelos grandes mestres. A voz mysteriosa reviveu ferindo de novo e intensamente os seus ouvidos; depois baixou gradativamente e emudeceu.

Cessara a influencia curativa da natureza.

Chegando ao hotel, os ruidos da cozinha e dos hospedes, que despertavam, lançou-lhe outra vez o desasocego na alma. Aquella actividade de serviçaes creava-lhe uma intensa fadiga cerebral. Ingerio um cordeal e foi deitar-se. O somno reparador, embora rápido, dos estenuados, desceu sobre os seus nervos, como um orvalho capitoso de primavera.

Eram tres horas da tarde quando uma restea de sol ardente penetrou pela janella do quarto, e fel-o despertar.

Nesse dia almoçou infringindo todas as regras do estabelecimento.

Salcedo, de passagem, vendo-o abancado, reprehendeu-o. Ha dias não lhe fallava, preoccupado com a sua recente instalação hydrotherapica. Finda a refeição Simões dirigio-se lentamente para o salão. Abrio alguns jornaes e regeitou-os logo, enfastiado. Percorreu com os olhos os Gorots que pendiam da muralha; mudou da mesa dos jornaes para a dos álbuns e livros illustrados e nada achou que o distrahisse. Prendeu-o por fim o D. Quixote de Doré. Demoradamente pôz-se a folhear as paginas do livro. As situações cômicas e extravagantes de Sancho faziam-o sorrir de vez em vez; e quando lhe apparecia o cavalleiro da Triste Figura, naquelles transportes estupendos, em que a musa de Cervantes o afundou para sempre, como o representante mais completo da loucura da especie, Agrippino tinha um ligeiro estertor de consciência, e passava adiante em busca dos aspectos jogralescos da actividade pratica do camponio arvorado em escudeiro.

Nisto abrio-se uma porta e entrou Mr. Ironside, o inglez silencioso, que espairecia do seu spleen.

Agrippino, sem querer, largou o livro e passou para a janella. Dava-se um phenomeiio curioso: dir-se-hia que o hálito do inglez perturbava o ambiente plácido do apartamento e fazia-lhe cócegas no fígado, derramando a bile.

Mr. Ironside sentou-se rijamente n'uma poltrona fumando um caximbo de espuma quilotado. Sua indifferença pelo companheiro era a mais completa. Questão de raça, ou nostalgia do cognac, que os médicos lhe haviam prohibido?

Simões atravessou o aposento bruscamente; deu um -- viva -- que não foi correspondido, e fugiu do salão aborrecido. A impertinencia do inglez produziu-lhe uma corrida de idéas negras, angustiosas, que durou mais de uma hora. Exhausto tornou a deitar-se e dormiu.

Ergueu-se quasi ao anoitecer; havia luzes nas salas; um movimento que não era usual na casa, dava a perceber uma alteração nos hábitos dos hospedes. O grande piano de cauda do salão gritava flagelado pelas mãos trefegas de uma das meninas da família mineira. A principio essas mãos Irefegas ensaiavam trechos de valsas e policas, que irritavam o convalescente; nisto porém os dedos ágeis começaram como a se estender preguiçosamente pelo teclado melancólico, desfiando pérolas de sons em apojaduras e phrases vagas e indecisas; e, de motivo em motivo, passaram a coordenação de alguma coisa que se parecia com um fragmento symphonico. Com surpresa do doutor, atacaram a Dansa de Anitra de Grieg. Era uma pianista, com effeito, e uma artista consumada, essa menina chlorotica, que dedilhava ao piano. A expressão original, como executava a composição do maestro scandinavo, fez-lhe bem; alliviando-o da fadiga, que o premia, sacudio-lhe a alma num movimento de prazer e o impellio de novo para o salão.

O inglez desertara. Mas em compensação havia gente extranha ao sanatorio, ou novos hospedes, como logo verificou.

A mãe e irmã da pianista garrulavam com outras raparigas, não menos intémperantes na conversação e no modo de admirar a vida arrehaldina.

Os novos hospedes eram do norte, uma familia de deputado, afeiçoada á vida fluminense.

-- Basta de piano e vamos passeiar; disse a mais moça das nortistas com o desgarre proprio dos quinze armos innocentes a vasios ainda de impressões da vida real.

A pianista voltou-se sorrindo maliciosa, interrompeu de cliofre a execução do trecho musical, e, erguendo-se, correu a juntar-se ás companheiras. O chefe da famiiia não estava presente; mas em compensação dirigia o grupo de meninas um cadete da escola do Realengo, que parecia exercer naquelJa casa toda a influencia da calça de garance. Não era destituído de graça o rapaz. Dando o signal da partida para a excursão nocturna pela estrada não se esquecera da giria, nem da technica militar.

-- Meia volta á direita! Sentido! Marcha!

Qu'é d'a bagageira?

O bando ruidoso sahiu, deixando Agrippino nostálgico. Tanta era a alegria em tão formosa juventude! Já os gritinhos do bando se perdiam na encosta da montanha, quando Agrippino, volvendo-se, notou qne uma senhora se detivera na penumbra do Salão. Folheava inclinada sobre uma mesa um álbum de Stoddart. Correu-lhe um calafrio pela espiriha dorsal; as pernas bambearam.

Era miss Kate. Os olhos azues da moça ergueram-se do álbum e cravaram-se nos seus como uma expressão de meiguice, senão de angelitude intraduzivel. O sangue, que se gelara nas veias do enfermo, retomou o seu curso natural e o ambiente encheu-se de fulgurações bemditas de saudade e de amor. Estaria outra vez vencido? Teria acaso esquecido as impressões que o contacto dessa mulher llie filtrara nos nervos em Icarahy? Nada era impossivel; mas, de certo, a natureza de repente se transmutara para permittir-lhe a audiência, que aquelles olhos mysteriosos lhe estavam supplicando.

O salão tinha-se esvasiado completamente.

Kate dii'igio-se a Agrippino com discreção; e, pegando-lhe nas mãos, obrigou-o a sentar-se no divan com a mesma familiaridade dos dias passados no chalet de Nictheroy.

-- Porque a abandonara com tamanha ingratidão? foram as suas palavras iniciaes. Acaso descobrira nas relações, que tanto a haviam encantado e ao mesmo tempo ensoberbecido, algum motivo de vergonha? Os inimigos, pois elia os tinha em quantidade, conspiravam para fazel-a perder amizade tão preciosa.

Chorou. Agrippino sentiu-se subjugado por um desses movimentos que supprimem de todo a lógica e transformam o homem no automato do desejo. A lubricidade daquellas lagrimas, vertidas de uns olhos azues, voluptosos, o matava. O amor o ensandecia.

-- Esta casa é de Salcedo, disse ella num gemido doloroso.

-- Sim. Pertence ao meu medico, o bom Salcedo.

-- Ah! accrescentou Kate crispando insensatamente as mãos e arranhando as de Agrippino. Não sabes? Este homem terrível é talvez a minha perdição.

-- Não comprehendo, obtemperou o doutor, acariciando-a com o olhar.

O gesto de miss Kate respondendo a esse «não comprehendo» foi de uma significação eloqüente; e poz o ultimo remate á fascinação do enfermo, que quasi se prostou a seus pés implorando.a reconstituição do goso excelso, que experiraentai-a, por assim dizer em degustações olympicas, na vivenda paradiziaca da praia de Icarahy.

-- Não ignoras, Kate, o poder que exerces sobre mim. Para que, portanto, essa imperdoável angustia? Porque tanto susto, tanta, inquietação? Amo-te perdidamente. Sinto mesmo que tu acabarás por enlouquecer-me, e, todavia, essa loucura e esse arrastamento infernal já constituem para mim a suprema felicidade. Desmorone-se em torno de nós o mundo inteiro; desappareçam todas as condições dessa miserável existencia de cada dia; comtanto que gozemos tudo quanto permitem as forças humanas, num minuto embora, e morramos... sim, morramos, unidos no supplicio de ura beijo, cuja dehcia só eu posso agora avaliar, um beijo que seja o resumo de toda a minha vida, de todasas vidas das mulheres, que gozei e que ainda poderei gozar!

Agrippino empunhou o corpo dessa mulher numa vibração viril, que a ella própria causou não pequeno sobresalto; e, subjugando-a num desses abraços, que se não descrevem, por que amalgamam dois corpos num só frêmito de volúpia, osculou-a com a sede erótica do naufrago de uma quadrilha de bacchantes.

Um ruido fizera-se na porta principal do salão.

Salcedo entrava. Os dois amantes compuzeram-se; e o interrogaram com o olhar.

O medico, muito irritado, encarou a miss e fulminou-a com o olhar prenhe de ameaças.

-- A senhora, nesta casa?

-- Perdão! balbuciou Kate esboçando uma desculpa.

Salcedo espumava de cólera. Agrippino, agitadissimo, interpoz palavras de amigo, dando como razão da scena uma imprudência, de que só elle era o responsável.

-- Sou o único culpado; vi-a na estrada; suggestionei-a; e ella veio até a mim.

-- Essa mulher teve então o arrojo de penetrar numa casa de familias...

-- Não insultes!

O medico olhou espantado para Agrippino; depois sorrio. Sahindo brutalmente do salão, ao encobrir-se, olhou de novo, terrível, para o enfermo, e desappareceu.

Agrippino, dissipada a exaltação momentânea, recahiu no abatimento desolador, que para elle era mais que muito conhecido. Quando voltou-se para regular a situação com a mulher, que provocara tão desagradavel incidente, não a encontrou. Miss Kate tinha-se evaporado.

CAPITULO VI

Agrippino passou uma noite horrivel, obse- dado por aquella exquisita expressão, que elle nunca tinha visto nos olhos de Salcedo. Letn- brou-se do primeiro encontro que com esse medico tivera em Montevideu e da convivência que entre ambos se estabelecera a bordo do Nile, de regresso ao Rio de Janeiro. Como fôra leviano aceitando a confiança desse sujeito, que já agora, em sua imaginação, se sobre-carregava de todos os negrumes característicos da vida do aventureiro perverso e sem escrupulos.

Kate naturalmente conhecia a parte da biographia desse medico, que se conservava na penumbra. Ella fallaria, e as situações tornarse-iam claras. Era indispensável que a ouvisse quanto antes, e então saberia porque esse homem o illudira, apresentando-se-lhe como um espirito bemfazejo e um industrial, como lia muitos, de bons alvitres e da caridade. De subito os véus cahiram, e o philantropo se lhe mostrou na nudez do hypnotista vulgar, explorador da ignorancia e da boa fé dos nacionaes.

E assim, de raciocínio em raciocínio, o seu espirito fatigado não tardou chegar á conclusão de que Salcedo era um homem perigosissimo, contra cujos sortilegios elle Agrippino precisava pôr-se em guarda. E porque não romperia logo com esse falso amigo? As suas idéas baralharam-se, o curso dos seus argumentos transtornou-se. Angustiado, ergueu-se do leito e buscou fixar no papel o que convinha fazer para evitar uma crise, que lhe parecia de conseqüências dolorosas. A penna recusou-se ao trabalho que o cerebro não quiz realizar. Desesperado, o doutor abrio as janellas do aposento; o sol raiava. O espectaculo matinal interrompeu a marcha dolorosa que tomara o pensamento enfermo.

As montanhas iam-se delineando nas sombras, que se dissipavam. Uma facha rubra extendia-se para o lado de Nictheroy. Auras frescas e balsamisadas levantavam-se da floresta adjacente; os passaros ensaiavam o vôo matutino, rompendo no alarido da vida resurgente.

De uma mangueira frondosa, próxima, crocitou um sussurro de folhagem, e Agrippino ouviu distinctamente o bater de azas, estalado, de ave vulturosa. Era um urubu, que tendo pernoitado ali sahia para o repasto diurno. Supersticioso, o convalescente não se eximiu a um movimento vago de terror.

Não dormira um momento; a cabeça parecia-lhe completamente occa.

Ás seis lioT'as abriram-se as portas do edifício. O doutor lavou o rosto rapidamente, vestio-se, accendeu um cigarro, e metteu-se pela estrada que vae ter á barra da Tijuca. Em meio caminho sentio-se melhor; e o pensamento poude, um pouco desanuviado, descriminar os factos mais recentes. O vulto fascinante dessa miss Kate, no seu conceito, uma verdadeira Cleopatra de tombadilho de paquete transatlantico, povoou-lhe docemente a imaginação; e em suas veias correu o sangue na febre do ideal. Pairou-lhe n'alma a reminiscencia sensual da noite anterior. Foi como um banho electrico. O seu ser quasi por encanto reassumio a força resolutiva, que lhe faltava. A eliminação moral desse miserável especulador, que lhe estava, desde horas, envenenando a existencia, ficou assentado como um preceito de hygiene indispensável. Os pulmões encheram-se do ar puro da manhã; a sua vista alegrou-se, engolphada no verde da paizagem, e, por uma dessas transfigurações que são peculiares aos temperamentos nervosos, o convalescente experimentou o enthusiasmo agudo dos que presentem a aproximação dum momento de felicidade translúcida -- felicidade ao mesmo tempo passageira, como as procuradas, por excitantes, que o excitado aceita embora certo de pagal-as muito caro.

O convalescente parou no meio da estrada.

O olhar circumvagou como á espera de alguma coisa.

A manhã estava divinal. Dir-se-hia que tudo em roda conspirava para exalçar a alma de Agrippino no enlevo dessa natureza dyonisiaca, que tem sido tantas vezes objecto de poemas, em verso, em prosa. A luz erguia-se victoriosa, explendente, cheia de polarisações. Havia no ar um cheiro de ozona; e das folhas das arvores pendiam gotas de orvalho, -- diamantes espalhados prodigamente por mão de fada. As aves chilreavam, esvoaçando, cantantes, dos arbustos para a copa dos arvoredos, n'uma crescente inquietação de alegria. Embora fosse agosto os vortilhões de nevoas tinham fugido inteiramente ao amanhecer; e a nitidez do azul do ceu e o intenso fulgor do verde da floresta contrastavam com o torvo das grotas, que em baixo, escancaravam o seu mysterio apregoado pelo grito soturno da araponga.

Simões havia estacado por acaso no ponto do caminho de onde se avistava o rochedo da Gavea, no qual, segundo dizem, existe um Jetreiro cryptogamico. Lançando os olhos para esse lado, teve a idéa de que talvez o agitava o genio do logar, o genius loci. Seguramente a sympathia da região lhe annunciava acontecimentos concordantes com o seu intenso desejo de curar-se e de voltar em paz a goso do seu temperamento antigo.

Ferio-lhe os ouvidos um ruido surdo de vozes intercadentes. Na volta da estrada apareceram acompanhadas das amas, creanças, que passeiavam alegres, festivaes. O bando jucundo e papagueador passou rápido, deixando-o mergulhado no sentimento da duvidosa convalescencia, que elle, por illusão, acreditava estar firmando.

Tudo voltou ao silencio relativo das solidões. O doutor poz-se então a apurar o ouvido, attento, mas sem objectivo. Da matta partiam, de vez era vez, os gemidos de uma rôla que chamava o amigo. Estes sons confundiram-se logo com um gargalhar sonoro, que vinha de cima da volta da estrada; e immediatamente o estrupido de patas de cavallos e o rasgar da areia pelas rodas de um carro chamaram-lhe a attenção para aquelle ponto. Um pequeno break, puxado por animaes de raça, e guiado por cocheiro inglez, mostrou-se a poucos passos trazendo uma rapariga em toilette matinal.

Simões não poude vel-a a principio; mas sentia que se tratava desse alguém, que o ambiente lhe annunciara.

Era miss Kate.

Assoberbou-o uma sensação de júbilo intraduzivel. A um signai, o break parou e a estrangeira descendo, atirou-se-llie nos braços. O cocheiro seguio discretamente; e os dois, inlaçados, soluçando palavras desconnexas, quasi sem fallar, metteram-se pelo primeiro trilho que se lhes offereceu á vista. Adiante havia uma iage posta a geito de um divan. Sentaram-se.

-- Sabes, disse miss Kate, que adivinhei-te.

Esperavas-me. Eu te presenti. Assim?

Agrippino respondeu-lhe, beijando-a na bocca. Ella estremeceu.

-- Também pensava em ti; e, si não acreditasse na telepathia, agora seria um convencido, porque senti positivamente a tua approximação.

Miss Kate sorrio e retribuio a audacia do amigo com um osculo, que lhe queimou os lábios.

-- Não expliquei ainda a minha presença aqui. Moro perto d'aqui; um pouco abaixo do Sanatorio. Fugiste-me; mas as circumstancias trairam-te. Mudando-me de Icarahy, vim, sem o saber, cahir perto de ti. Que ventura! Que delicia! Não me desmintas...

E a fada, sorrindo, deitou os olhos languidos para Simões, que, agitado pelo desejo, cui dou que a estrangeira penetrava pelo seus, derramando-lhe n'alraa o filtro de uma paixão sem nome.

Kate levantou-se arrebatadamente.

-- Vamos. Quero mostrar-te o meu segredo.

O retiro, a que a miss se referia, ficava situado no ponto do caminho da Gavea mais enflorestado e pictoresco. Em dez minutos o hreak tinha chegado á casa, atravessado o portão de entrada, e deposto os dois amantes junto ao vestibulo do palacete, -- Isto é o que se pode chamar um rapto invertido, ponderou o doutor, dando ás suas palavras a gravidade joco-seria, que exigia a phrase.

-- Sou tua Armida, my heart; és meu prisioneiro. Verás si a da fabula de Tasso pode fazerme inveja.

Pendurando-se-lhe ao pescoço, esteve por segundos a beber-lhe o olhar, a fascinal-o como serpente tentadora, e com um novo beijo sellou a sua posse.

Agrippino, apezar do estado jubilante da sua pobre alminha sentio nos archanos delia, esquecida e triste, alguma coisa sinistra, que o avisava de que seu inferno phisiologico não se fechara. Mas esta sensação, que lhe vinha das camadas inconscientes do temperamento, passou como um raio; e elle precipitou-se em delírio ao encontro dos gozos, com que aquella mulher enfeitiçante acenava á sua imprevidente tendencia para amores phantasticos, fallaciosos.

Tirando o chapéu e depondo-o no cabide vestibular, miss Kate tocou no timpano, e as portas do salão abriram-se. Simões fez de novo conhecimento com o groom de Icarahy, que, perfilado, aguardava as ordens da senhora.

-- Café.

Kate descerrou com as próprias mãos as janellas, proferindo phrases de intima satisfação. A luz illuminou os ricos objectos, a mobilia de laça, o grande piano de cauda, os bronzes, as telas que compunham a formosura daquelle delicioso front-room.

Sentaram-se os dois e a conversação rolou por instantes sóbre as aprasibilidades da Gavea e sobre os objectos de arte que alli estavam. O doutor não teve palavras bastante elogiosas para exaltar o gosto de sua Armida. Não tardou, porém, que o dialogo se encaminhasse para o que a ambos mais interessava, -- o ponto obscuro dos seus amores. Kate adivinhando o que se passava no espirito do hospede, balbuciou umas palavras chorosas, e pondo-lhe o dedo sobre o coração accrescentou:

-- Agrippino, este perjuro não é bem governado pela cabeça.

Levantou-se.

-- Sejamos francos. Salcedo é um monstro; e como um demonio introduzio-se no mundo da nossa felicidade para enlouquecer-nos.

Desgrenhando os cabellos, era affectada intimidade, foi até a uma das janellas para occultar as lagrimas. Esteve ali um instante, e voltando disse em inglez:

-- Beware! beware! Não percas a confiança.

Tremo só diante da idéa de que o miserável triumphe entre nossos corações. Então seria o dilúvio; seria a subversão de Pompeia; seria a queda dos continentes; seria o fim do mundo!

O doutor sorrio.

-- O teu affecto, Kate, sobrecarrega-se de muita litteratura. Prefiro ver-te núa de sabenças, na selvageria nativa da raça anglo-saxonia.

-- Quem te disse? Anglo-saxonia!

-- Nasceste em Londres!...

-- Nunca. Em Cuba. Paes oriundos de Nova Orleans. Sou, portanto, uma norte-americana.

Não pertencia ao typo snob de Boston, nem ao dos exaltados yankees de New-York, Chicago, Bufalo ou S. Francisco da Califórnia. Seu pae era francez, sua mãe, irlandeza. Delles só recebera a educação, porque tendo elles empobrecido na guerra de successão, pois eram lavradores, e possuiam escravos, tinham emigrado para as Antilhas, onde quasi na miséria, viera ao mundo havia 28 annos.

Tudo isso ella lhe disse numa explosão de despeito e de raiva.

Chegava o café.

Simões tomou de uma taça e degustou o liquido aromatico como quem bebia um philtro para propositalmente envenenar-se. Mas era o novo aspecto de miss Kate e a sua doce loquela o que o applacava e ia transferindo o seu espirito para um mundo inteiramente outro, de devaneio e de esquecimento. O que mais singular lhe parecia era que elle, um gasto, um viajado, um homem de trinta e poucos annos de idade, experimentado em toda a casta de conforto e de prazeres, pudesse cahir naquelle estado dithyrambico, no qual não sabia o que mais admirasse, si a sua innocencia como sujeito, si a intensidade da sensação, que não era nova. Fosse como fosse, parecia exacto que o doutor achava uma volúpia sedativa naquelle começo de fascinação; e no momento, pelo bem que lhe fazia, pelo esquecimento que lhe dava do passado, pedindo-a, desejava que ella se realizasse, completa e absoluta.

Murmurou o verso de Leopardi:

-- Il naufragare in questo mare m'e dolce!

-- O que é que te é doce, love? perguntou a miss na voz de ouro acontraltada que lhe era particular, em momentos de effusão.

-- Love unto the hell! disse elle.

Kate estava de uma alegria crepitante e infantil; e no impulso da artista, que era, correu ao piano e abrindo o teclado tentou executar um delicioso trecho de Chopin.

-- Chopin! Foi um soffredor como eu. Era um mago. Eu sou apenas um doente.

Erguendo-se, aproximou-se de miss Kate e debruçou-se-lhe sobre o hombro.

-- Não é verdade que me escravisaste? Peçote, imploro-te; dá-me saúde. Mas olha bem, não me envenenes!

Um lampejo extranho fuzilou nos olhos da miss. Agrippino recolheu-se em si mesmo; e foi placidamente sentar-se para ouvil-a.

-- Paderewski!

Os dedos da sereia revolutearam no teclado como aves doidas, e a inspiração do pianista polaco, transcripta pelas mãos ágeis, que ali mecanisavam tudo quanto ha de difflcil e complicado no estylo daquelle compositor, transportou o enfermo para as regiões do sonho, de que só a musica tem a chave e o segredo.

O doutor, estasiado, cahio na somnolencia precursora da explosão do erotismo. Estava vencido, subjugado, aniquilado; e desse momento por diante não pensou senão em afundar-se de todo nesse mare tenehrarum, no qual se esboçava a America do seu amor rejuvenescido e de uma vita nuova, nunca presentida.

-- Kate, gemeu elle, tu és Armida!

-- Sou a tua Armida, disse ella, correndo a abraçal-o doidamente. Para que, porém, a nossa felicidade não se transforme em desolação, é preciso que esse mágico infernal, esse Salcedo ignóbil, não a surprehenda, nem possa lançarnos os sortilegios, em que é mestre jubilado.

Osculando-o ainda uma vez nos olhos, accrescentou, quasi moribunda.

-- Vaes abandonar o sanatorio.

Agrippino silenciou; mas os seus lábios esboçaram uma resposta affirmativa.

Miss Kate, de súbito, fugio para o interior da casa, deixando-o entregue aos seus pensamentos Íntimos e á contemplação dos objectos de arte, que caprichosamente ornavam o salão.

A diva naturalmente ia mudar de toilette.

Puchou o relogio e verificou que eram quasi dez horas. O tempo tinha corrido sem que o houvesse percebido. Gonservando-se na cadeira, em que estava como hypnotisado, Simões passou a matutar sobre o que havia de sobrenatural em tudo quanto o cercava havia duas horas eletricas; e convenceu-se de que em realidade o phantastico pode de um momento tornar-se palpavel, perfeitamente concreto. Gahirani entretanto, seus olhos sobre um cavalete ornamental, em que repousava uma pequena tela, emoldurada por um caixilho artistico. Pareceu-lhe que aquillo representava a classica pedra da Itapuca em Nictheroy. Levado pela curiosidade aproximou-se do quadro, e examinou-o, com tanto mais attenção, quanto nesse quadro surgiam duas figuras, que não lhe pareciam desconhecidas.

--Mas que significa isto? disse comsigo, admirado. Uma surpreza!?

Espiou a tela mais de perto. A pintura reproduzia exactamente uma scena muito sua conhecida. Era a praia de banhos de Icarahy.

O pintor collocara-se num dos comoros de areia do sitio, e d'ahi, tomando para fundo da tela a celebre pedra do romance de Leonel de Alencar e o longinquo perfil do Corcovado, desenhara, na boca da scena, como diríamos em linguagem theatral, a vulto largo, um episodio comico de banhistas. Os protagonistas desse episodio eram elle e miss Kate. Não era uma scena de praias, colorida a Fachinetti. O trabalho, que trazia a assignatura de Kate, revelava um talento admiravel. Sem que o pincel em nada derrogasse da fidelidade, que o pintor deve guardar, não só quanto á natureza phisica, como á dos personagens, todavia, um facto, que elle nunca observara em producções artísticas daquella especie, avultava de modo original. Riam-se os banhistas, perdidamente, da posição a que as vagas haviam forçado os amantes; mas, coisa nunca vista, o immaterial também ria-se; as arvores, os arbustos, as próprias barracas, levantadas sobre a praia, pareciam convulsionar-se em um riso inextinguivel.

O doutor levou largo espaço de tempo a contemplar essa obra d'arte extravagante. O colorido nada deixava a desejar; desenho admiravel.

Onde fôra miss Kate buscar tanto talento? Afinal, afastou-se da tela e outras singularidades attraiam-lhe a curiosidade. Nos ângulos do salão erigiam-se sobre columnas de alabastro quatro bronzes polycromos, de meio metro de altura, representando as quatro estações em caricatura.

Imaginem-se raparigas desenvoltas a fazer caretas, ameaçando-se com os symbolos da sua funcção na natureza. Que singular lembrança a da sua amiga mandando executar aquella chalaça de metal!

A mobilia correspondia, em tudo e por tudo, ao espirito zombeteiro, que presidia a tão excepcional ornamentação. O divan tinha a forma de um grypho, e as poltronas a de clowns epilépticos. Em cada medalhão das cadeiras, variadas no feitio, havia ou um gesto ou uma figura hilariante. Aqui, um gobelin representava Tersites castigado por Ulysses. Ali, um kakemonos japonez de Utamaro espantava os olhos com a terrifica visão de um jaburu moleque a tripudiar no solo delirante da dansa macabra do oriente. As cortinas evadidas dos dóceis das portas simulavam transparências, através das quaes perdiam-se passaros estranhos de feições humanas, em que symbolisava-se a baia nos espaços e nas nuvens.

Agrippino estava verdadeiraipente maravilhado. No fim de alguns minutos, começou igualmente a rir contagiado pelo ambiente.

Logo, porém, refreiando essa immoderada expansão, tomou de um álbum, que estava sobre uma pequena estante de ébano em forma de genuflexorio. Abrio-o; era um memorandum ou livro de notas traçado pela mão da sua Armida. Sentou-se e passou a folheal-o. Havia ali transcripções de Schopenhauer, de Dickens, de Tliackeray, de Wittmann, de Nietzsche. Uma vez por outra um conceito libertário de Kropotkine de Bakunnine, de Tolstoí, principalmente sobre o amor, sobre o adultério, sobre a posição da mulher na sociedade do futuro. Nas ultimas paginas escrevera miss Kate os seus proprios pensamentos.

«A resistencia humana tem sido calculada no homem; mas na mulher existe um cifrão por preencher.» «Eva não sabia que gerava o século XIX, quando offereceu o peccado á imprevidencia do homem.» «O homem conhece os limites do pensamento e rege-se por leis de logica inexoraveis.

Kant, todavia, não fez a critica da razão pura da mulher. Nella é o coração que pensa; e o coração nem se fatiga, nem pôde hmitar-se á esphera do icognoscivel.» E assim por diante.

Durante longo tempo esteve Simões deliciado com essa litteratura feminista. Soaram doze horas. O reposteiro da porta, que dava para o interior do palacete, moveu-se, e aos olhos delle appareceu um ser novo e explendente, victorioso de formosui-a e de arte extranha.

Miss Kate vinha em toiletle de circunstancia. Um grande apasiguamento descera sobre a alma do doutor. Aquella visão de idolo moderno completou-lhe o prazer e deu-lho a posse do proprio juhilo.

Estava a miss fascinante. Gingia-a um riquíssimo vestido á Directorio. O bolero de rendas irlandezas a hombros mis, sobre uma saia cloché de cintura curta, azul turqueza com incrustações em relevo, terminando em gaze e cahindo sobre o peito desses pés cambrés que já uma vez o haviam entontecido na rua do Ouvidor, dava-lhe ura tom verdadeiramente infantil; -- infantilidade que era auginentada ainda mais pelo penteado em caliptra grega, pelo colar de pingentes de pérolas e o bracelete em forma de serpente armada de dois formidáveis olhos de rubins.

Agrippino levantou-se. Miss estendeu-lhe os braços, cujas luvas azues davam-lhe uma graça inexcedivel, ameaçando-lhe o rosto com o leque phantastico de pennas raras.

-- Oh! disse Simões no auge do enthusiasmo. De onde vieste Kate? Quem és? Para onde me conduzes?

Miss Kate não respondeu. Rainha, atravessou o salão, a passos rápidos, e tirando de uma jarra japoneza o crysantherao mais viçoso, poz-lh'o na iapella do veslon, e sorrio-lhe com os ollios humidos de prazer.

Gorreu-se o reposteiro. O groom, postado á porta, como ura soldado prussiano, murmurou; -- As ordens da senhora.

Miss Kate tomou o braço do doutor e ambos penetraram solemnemente no refeitorio.

A sala envidraçada, a côres cambiantes, tinha um aspecto mysterioso e vago.

Faziam o serviço o groom e um copeiro de igual porte, no rigoroso apuro das casas inglezas de tratamento.

-- Sentemo-nos e façamos o grande sacrifício que exige a hête. Quero, todavia, que este nosso banquete intimo, no qual beberemos á nossa ventura, fique gravado em tua memória como a maior época da nossa vida conjugai...

Angelica!...

-- Infernal! queres dizer.

Por alguns momentos reinou silencio entre os dois amantes. Fóra zumbiam os insectos; uma cigarra esporadica encheu a solidão com os silvos chromaticos do canto precursor do estio.

O banquete foi sobrio, discretissimo. Não houve ambrosia; mas em compensação Armida fez servir as mais deliciosas ostras que se encontram na baliia de Guanabara. Fructas do paiz sazonadas, peras do Rio da Prata, damascos de Santa Gatharina, pinhas do Ceará, abacaxis de Taubaté, -- o europeu e o tropical juntavam-se ah em symphonia do paladar de que aliás o hospede pouco ou nada se apercebeu.

A dispepsia punha-lhe como um veto da natureza á goludice provocada por tão bellos specimens da flora dos dois mundos.

-- São automatos, disse a miss, rompendo o silencio. A vontade! Elles nada enxergarão, nada entenderão.

Os creados retiraram-se.

Kate tomou uma garrafa de Ghampagne; -- Quero que tu mesmo a abras para saudarmos as nossas relações.

Agrippino fez, como poude, o seu papel de escanção. A garrafa espocou e o liquido espumando encheu as taças.

Ao estourar da garrafa Armida teve uma phrase cruel:

-- Fosse esse estrondo o signal da morte de Salcedo!

Seus olhos brilharam sinistramente. Agrippino sentio passar pela alma uma tenue nuvem de pezar. Galou-se, porém, e bebeu á saúde da amante, desapossado de si mesmo.

O automato não seria elle? Instinctivamente tirou do porla-cliaruto um fino liavano, e pozse a fumar numa indolência de verdadeiro oriental.

-- Conversemos, disse Kate. Queres maldizer do monstro? Não. Demos trégua ao mal.

Fallemos em coisas aprasiveis.

O collo, tumido, offegante, imprimia ao talhe do vestido um vaivém ondeado, que lhe dava a graça voluptuosa da Aphrodite moderna.

-- Falia, my heart; falia; quero beber as tuas palavras. A parladora tenho sido eu. Basta. Sê agora tu o meu guerreiro, o meu eloquente Antonio.

Aquella reminiscencia de Plutarcho perturbou-o. Que a miss representasse ali o papel da feiticeira Armida, e fosse elle apenas o fanciullo Rinaldo, descripto por Torquato Tasso, nada havia de estranhavei. Segundo esse typo de poesia as coisas se passariam como elle desejava; a feiticeira succumbiria, e seriara o seu amor e a sua força moral os triumphadores.

Além disto no poeta italiano tudo era ficção.

No caso de Cleopatra, porém, a situação se apresentava muito outra. O facto era real; a egypcia existira e os auctores diziam delia coisas estupendas, innarraveis. Do fundo de inaudita perversidade dessa mulher tinham brotado calamidades sem igual no amor; o amor nella transformara-se no poder de fascinação, na co lera voluptuosa, a mais tremenda de que resa a historia.

A Agrippino, por fôrma alguma, cotiviuha representar o papel de Antonio.

Kate, notando o silencio torvo do amigo, despertou-o com uma phrase de espirito.

-- As esphinges são de pedra. Não te arreceies do meu coração, que é de carne, e sangra por ti, minha vida. Tu duca, tu maestro, tu signore!

-- Ah! Kate adorada, quanto te preferia Beatriz!

-- Beatriz! Então reputas esse amôr azul, por madonas impalpaveis, superior ás que fez arder Gliopin, Musset, o nosso E. Poê e tantos outros, que uniram a alma ao culto de Venus como Prometheu ao Goucaso?! Não creio nisso.

Tu és uma intelligencia, tu és um coração; deves ter comprehendido que a carne, fora desse Inferno, que Alighieri descreveu, seria um flatus voeis, sem encantos, sera A^ida, sem entendimento.

Um ligeiro pavor esvoaçou no semblante de Agrippino, já não tanto admirado da competência dessa mulher em matéria de cynegetica amorosa, como pasmo da sua illustração e de sua envergadura psychologica.

--És uma doutora, disse elle rindo, tranquillisado, -- uma doutora nas sciencias de amavios... Tu não eras assim em Icarahy!

Levantaram-se da meza, e quasi abraçados, percorreram o parque encantador, que cingia o palacete.

Pararam, porque se sentiram fatigados, numa gruta, atravessada por ura regato, na qual sorria uma herma de Pan.

Novos commentarios; e a mythologia grega forneceu a Kate matéria para enti'etecer os seus amores com farrapos do buccolismo anacreontico.

Lembrou a Agrippino o que havia de plácido, edulcorante, e capitoso nos versos desse velho poeta grego que aliás dizia amar apenas o vinho e as mulheres. Entretanto, no seu poetar havia tudo quanto podia exigir uma alma sedenta como a dos que olhavam extremunhados para aquelle Pan mal reproduzido por fabricantes occidentaes. Na sua fraca opinião de mulher, as visões do Dante, as inferneiras de Shakespeare, o mephistophehsmo de Goetlie e a ridícula psycologia dos modernos, tinham obscurecido por uma vez a vida no Occidente.

O homem afundara desgraçadamente na consciência de si, e como de si mesmo elle nada podia tirar para o gozo e para a felicidade, o que succedia era ticar seqüestrado do mundo, da natureza, que é a única fonte do prazer, da alegria.

--Ah! Agrippino, como não seriamos venturosos si houvesse meio de voltar a Pan.

E no delirio da volúpia pagã beijou a herma com effusão.

O fulgor dos olhos do doutor augmentava; e na alma, como um orvalho de felicidade olympica, chovia o amor de Kate. Tal é o poder das evocações mythologicas, quando são realisadas por uma bacchante secular.

Bacchantel Na illusão que o dominava, pareceu-lhe com effeito que miss Kate transfigurava-se na classica figura mythologica; e se não fossem o seu vestido parisiense cheio de fiorituras e a traine exagerada, elle estaria vendo-a já de thirso em punho, traçando, a bater com o pé, a dança aligera das festas dyonisiacas.

Chegaram até ao fundo do parque a onde a montanha começava a inclinar-se. Um trecho de floresta ainda selvagem continuava. Agrippino vio um caminho umbroso, que se perdia no mysterio de um ambiente verde negro. Os insectos ensaiavam, zumbindo uma cryptofonia encantadora. O doutor fez um gesto de ascenção. Miss Kate obtemperou, pois não lhe parecia agradavel que a bacchante fosse visitar Pan em vestuário de etiqueta.

-- É num momento. Volto já; a blusa de passeio...

-- Não, Kate; assim mesmo é que eu te quero... Os contrastes enchem-me de prazer e de facundia.

-- Digas antes, tens disparates n'alma.

Sorrio comprehendendo o capricho de Agrippino.

CAPITULO VII

Subiram. Na parte mais tufosa da montanha, num respaldo pedregozo, preparado pela natureza, havia um belvedere de madeira, em estylo jonio, construído pelo inquilino anterior.

Esse indivíduo fora homem de gosto. Á contemplação das bellas perspectivas do valle eram-Ihe preferíveis as digressões, á tarde, pelo bairro, mal empedrado e povoado de casebres sujos. Era uma rotunda em columnatas, quasi sumidas sob madresilvas entrelaçadas. No centro via-se um pequeno repuxo, cercado de ban- cos de ferro. Ao lado uma guarita, em que o jardineiro guardava os utensihos do officio.

Sentaram-se os dois. A traine do vestido de miss Kate cobrira-se de carrapixos e cardos seccos.

-- Que desastre, my darling! disse o doutor.

E pretendeu tiral-os. Kate obstou a que elle se abaixasse. E a bacchante, penetrando, de um salto, na guarita, fechou-se. Passou-se um minuto. A miss sahio transfigurada.

-- Tu és a própria Hermimone, my heart.

A moça abandonara a traim. O decote desapparecera. Gingia-a agora um vestuário de jardineira. A sua phantasia era assim. Pela chacara havia, a todos os cantos, com que satisfizesse os seus caprichos. Uma simples ordem aos seus serviçaes bastava para que se fizessem, instantaneas, essas mutações de scena.

-- Queres ver? disse ella; e procurando o botão de um tympano electrico, calcou.

Dois minutos decorridos, o groom mostrouse por entre as madresilvas. Kate murmurou palavras que Agrippino não poude ouvir.

-- Não é verdade, Simões? Que obsta que transformemos esta vida, á nossa phantasia, num paraizo ou num inferno?

O doutor contrahio os lábios.

Miss Kate fez um gesto de agastura.

A ironia não lhe assentava. A primeira condição, observou ella, para que podessem viver affectuosamente, era que as suas almas se desnudassem em face uma da outra.

A ironia é o requinte da civihsação. Ora, Kate ambicionava justamente usar dos recursos da intelligencia, aperfeiçoada pelos progressos dessa mesma civilisação, para reconquistar O estado, não propriamente de cretinismo selvagem, ou de barbaria feroz, mas esse delicioso momento, de que a cultura grega dera o exemplo, -- o estado dithyrambico das festas dyonisiacas, dura ale as quaes o povo helleno entrava numa especie de delirio, em que todas as forças vivas da natureza faziam erupção na sociedade.

Gomo o philosoplio allemão ella suppunha que em todos nós existem satyros e faunos.

Occultos por traz da arte e das apparencias reflectidas da philosophia, dissimulam-se sob os rigorosos apparelhos do direito, da disciplina, da moral, da contiaencia, da religião. Nada, entretanto, impedia que esses entes symbolicos, em dados momentos da existencia, ao sopro da paixão, se concretizassem era actos reaes, tão legitimos como os que constituem a vida quotidiana regrada pelo codigo e pelo agente de policia. Gontrarial-os, supprimil-os, eqüivalia a asphyxiar a própria natureza, que tudo reivindica, e de todas estas violências vinga-se com ferocidade inexorável.

E pois que este era o seu peusar, não extranhasse que ella se submetesse gostosamente aos dictames de tão excelsa soberana; tanto mais perdidamente quanto a fúria dithyrambica, esse sensualismo transcendente, essa glorificação da força do amor, da embriaguez da vida, era o caminho verdadeiro para a pacificação dos orgãos, que nos põem em contado immediato com os segredos da existencia, e nos levam ás grandes transformações do espirito pela esthetica, pela grande arte.

Simões, ouvindo a tirada enthusiastica de Kate, esbugalhou os olhos, cheios de pasmo.

Lembrara-se de um quadro, que vira no museo real de Madrid, uma das Bacchanaes do Ticiano, no qual o furor de Dyonisos e a vida dos faunos são postos numa luz verdadeiramente terrifica, reveladora do que existe de resistencia para o gozo na natureza humana.

O groom voltava trazendo uma salva japoneza, carregada de garrafas de vinhos escolhidos e de copos de crystal fmissimo.

Notou Agrippino que o pequeno transformara-se em escanção. O seu vestuário era festivo. Vivo, sagaz, malicioso, esse precioso menino devia ser o ministro dos seus prazeres.

-- És italiano? perguntou.

-- De Nápoles, respondeu.

-- Conheces, portanto, a lenda do sangue de São Genaro?

O rapazote olhou admirado para o doutor.

Demonstrava a mais completa ignorancia das coisas de sua terra.

-- Deixa-o, reflectio Kate; não o botes a perder. Benedetto veio da Italia ainda muito tenro; não pode conhecer as lendas que leste no Corricolo de Dumas pae.

O groom depoz a bandeja numa pequena meza de vitne, que havia junto ao belvedere; e, a um gesto da senhora, desarrolhou uma das garrafas.

-- Os vinhos da minha adega são raros.

Preferes Samos?

-- Prefiro tudo que venha dos teus labios.

Benedetto encheu os cálices irisantes e crystallinos com o vinho dihcioso.

-- São fabricados ainda hoje pelos descendentes de Polycrates!

Os dois amantes, á vista dos satyros que a imaginação de Kate dizia que estavam a espial-os por traz das arvores, beberam a Pan e ao Eros do poeta de Cos.

Aquelle vinho, como os seus rivaes de Chianti, como o Moscatel de Smirna, como o Vaivana do Gabo, é um veneno subtil, que induz reincidências, e depois provoca exaltações febris e extranhas energias.

Repetiram-se as libações.

Agrippino tornou-se loquaz. Fallou... fallou. A facundia terminou pela recitação de versos de Musset e de Petrarcha.

-- Petrarcha! exclamou a miss desadorada da esthetica italiana.

-- Una dona piú hella assai che'l sole...

Vergine bella che ãi sol vestita...

-- Amas Petrarcha, niy heart?

-- Incontestavelmente, depois de Dante, é o poeta de minha maior paixão, quando estou em Italia.

-- E fóra da Italia, que é que amas, Simões?

-- A ti, Ophelia, temperada a Salammbô.

Kate destrahira-se; e a Agrippino pareceo que aquella extraordinaria mulher voava em espirito atravez de regiões, aonde a imaginação não poderia penetrar talvez.

De onde vinha e para onde ia essa mysteriosa creatura?

Animava-o o calor do vinlio dos filhos de Polycrates. Por associação de idéas, lembrado dos singulares predicados do annel, que tornou celebre esse tyranno dos Samienses, atirou a Kate uma palavra pérfida, envenenada, para obrigal-a a revelar os seus segredos.

-- Kate, perdoa o que te vou dizer. Sabes que o vinho induz verdade. É preciso, pois, que, fieis ao prograrama pagão, ha pouco alardeado, nos dêspidamos, por uma vez, das convenções dessa moral hypocrita, que perverte o mundo, e entenebrece a alma. Desnudemos os nossos corações...

Miss Kate estremeceu ligeiramente; mas em um segundo retomou a calma; os ollios brilharam com um doce fulgor ainda desconhecido para Agrippino.

-- O monstro Salcedo não desertou, de vez, de tua memoria criminosa.

--Perdão, Kate; não é o medico Salcedo que me preoccupa, nem a sua sciencia, nem o seu hypnotismo, nem a sua arte de calumniar. Dizeme: quem foi que te iniciou nessas abominaveis leituras de Nietzsche? Sim. Tu és mulher; e as mulheres de ordinário não buscam leituras dessa ordem. É preciso que alguém, de larga influencia intellectual, te houvesse propinado esse veneno. Lembras-te do que succedeu com Garolina Vicker? Quem sabe si algum Dostoiewsky não assaltou-te um dia a consciência!

Quem foi esse homem?

Kate desferio uma gargalhada; que logo se contrahio em um amúo enternecido.

-- Adivinhaste; e estou contente. Si effecti- vamente não me amasses, não terias presentido no meu espirito, agora confundido com o teu, o hahto desse predecessor terrivel, e que, aqui o digo, cora toda a sinceridade de que sou capaz, occupou-me por alguns mezes, exercendo a mais completa soberania. Permitte, porém, que me sirva da pouca litteratura ingleza, que possuo, para tranquilisar-te. Como Ricordo 11 não posso dizer «rny kingdom is my soul». Não, Agrippino: eu não dispunha de minha alma, quando esse homem entretinha-se em illustrar o meu espirito; ao contrario, eu sentia que a poverina tinha sido inteiramente invadida por esse tyranno, que não foi tanto do meu coração, como hoje felizmente tu o és, -- senhor, possuidor, dominador, á discrição.

Aggripino fez um gesto de duvida. Kate sorrio de modo enigmático.

-- Greias ou não creias, o que é certo é que o tufão da vida varreu essa conquista, esse fantasma.

-- Gomo varrerá a mim também.

Kate abraçou-o; beijou-o ternamente sobre os olhos.

Uma aragem perfumosa soprava de leste.

As folhas das gardênias farfalhavam; e um rumor symphonico de insectos, casado ao chiar dos beijaflôres, que zigzagueavam, avançando, recuando, agredindo as flores silvestres, dava á sesta um tom de paz amoravel e sedativa.

Eram tres horas; o sol luzia; o ceu estava limpido. Agrippino e Kate haviam perdido a noção do tempo.

-- Gonta-me, pois, o teu romance, love, disse o doutor, apaziguado e disposto a ouvir e a acreditar nas mentiras da bacchante.

A americana, então, com os olhos humidos, luxuriosos, murmurou-lhe o seu poema biographico.

-- Não sou a globe trotter, rabiscadora de novellas, em tres volumes, que julgaste vêr no pavilhão do Corcovado. Ah! se soubesses como me sangra a alma quando penso na cocotte excêntrica, no bibelot de luxo, na partner de banqueiros devassos, com que a imaginação dos teus patrícios me tem vestido, desespero, mas também rio-me da sua miséria de sentimentos.

-- Então não és feliz!

-- Feliz? Seria preciso definir a felicidade. E poderia eu fazel-o, em linguagem comprehensivel? N'este assumpto tudo é sanscrito. Affirmo-te: os que me vestem com aquelles farrapos da mascarada da vida, causam-me tédio. Ha dias em que sinto desejos de decapital-os todos.

Mas o meu humor é saturnino. Elles o disseram; também já morderam a própria lingua e a cuspiram sobre a própria infamia.

Agrippino olhou espantado para miss Kate.

Julgava que o seu semblante fuzilasse odio. Illudia-se. Os seus olhos langorosos solicitavam o mais delicioso dos beijos. Fazendo um bico de beiços, a americana soltou um suspiro e banhou-o num sorriso de extraordinaria bonhomia amorosa.

-- Vamos, Plutarcho, conta essa grande vida.

-- Vida! Dize antes -- sonho.

-- Fantasia!

-- Seja o que tu quizeres. O que é verdade é que grande parte de nossa vida se compõe de sortilegios.

O doutor abaixou a vista numa absorpção profunda. Foi preciso que a miss o despertasse, batendo-lhe nos dedos carinhosamente.

-- Cora que então nasceste na America.

-- Em Nova Orleans. Ah! darling, não calculas como foram duros meus primeiros annos.

Sou filha de um irlandez e de meu pae herdei a agitação que me atormenta. Minha mãe, coitada, deu-me o temperamento trágico. Quando morreu, crescia-lhe a fama da mais intelligente actriz, que pisava no palco americano.

A historia de Kate não era complicada.

Tinha dez annos quando os paes, então empobrecidos, recuperaram a fortuna em Havana. Depois de varias alternativas, aborrecidos da vida tropical, haviam-se transportado para Paris, aonde ella fizera a sua educação no Sacré Goeur. Nesse collegio aprendera tudo quanto se ensina, bem ou mal, ás meninas da aristocracia franceza.

Aos dezoito annos operara-se a maior catastrophe de sua vida. Isto succedera por volta de 1879. Em viagem pelas costas da Noruega, seus progenitores eram tragados num naufragio. Sem parentes, sem outro protector senão o dinheiro, que ao mesmo tempo se lhe constituirá objecto de inconfessáveis appetites, por parte de pretendentes, ridículos, uns, perversos, outros, tevê que esperar tristemente a sua maioridade para tomar uma resolução, e encetar a vida que lhe convinha, -- independente, instinctivamente independente. Soccorrera-a, abrindo-lhe os olhos, uma sua compatriota, mais idosa, também collegial do Sacré Coeur, que participava dos mesmos ideaes, dos mesmos sentimentos, e que, alem disto dispunha de uma força de vontade masculina. Sahiram as duas de Paris; e emprehenderam uma viagem em volta do mundo, para começar. Eram os instinctos yankees que as impelliam corajosamente para o desconhecido. Um anno mais ou menos gastaram as duas raparigas nessa viagem, em que o mundo, com a variedade de aspectos, diversidade de costumes e a sorpreza do imprevisto, deixara-lhes na retina a impressão de um kaleydoscopio gigantesco, pavoroso, sobrenatural.

Kate, pelo menos, quando se recordava do que vira, de carreira, atravessando vertiginosamente o Egypto, o mar Vermelho, Jeruzalem, Calcuttá, Shangay, Yedo, Yokohama, S. Francisco, Utah, Chicago, New York, depois Londres, a Suissa, a Italia, julgava despertar de um pesadelo; e as suas impressões muito fugitivas conservavam-se taes e quaes as que ficam em nossa retina depois de folhearmos um álbum de Stoddart.

Esse anno de aprendizagem fora-lhe, porém, de grande utilidade, porque vendo e comparando, tornara-se-lhe fácil eliminar do cerebro muitas illusões, que as raparigas guardam, a titulo de innocencia, até aos 30 annos. A idéa do casamento varrera-se-lhe da cabeça; e o seu pensamento fixara-se na de conservar a sua completa independencia.

Agrippino se impacientava. A narradora protestou e interrompeu-se. Tocou de novo no botão; o groom appareceu.

-- Champagne!

E nas taças espumou o vinlio capitoso e infernal.

-- Digo-te, Kate, que não amo o genero biographico.

-- Que de minha vida te interessa então?

-- As relações com esse sábio de Genebra...

-- Como sabes que foi era Genebra que me encontrei com Katoff?

Havia em Agrippino alguma coisa de singular, de estranho. Lera, por ventura, no pensamento da miss o nome da cidade; porque em verdade elle disso nada sabia; e nem havia razão para o saber.

Miss Kate, ligeiramente abalada pela lucidez do doutor, olhou-o fixamente. Os dentes cresceram-lhe na bocca num riso africano.

O calor era intensissimo; o tempo quasi subitamente mudava, preparando uma dessas trovoadas que o Rio de Janeiro conhece, e que nura momento transformam a cidade em um infindo lagamar.

Agrippino limpou as bagas de suor que cahiam-lhe dos olhos. O champagne produzia o seu effeito...

Quem seria esse Katoff? Que fora miss Kate buscar em Genebra?

Em rapidas palavras tudo se explicou.

Katoff era... fôra... porque o homem não vivia mais... Katoff fôra um grande talento.

Encontrando-a em Paris, apaixonara-se por ella.

Por fim ella mesma o amou. Esse amor acabou por transfundir-se na sua educação artística, literaria e scientiflca. E o russo tinha sido o mais dedicado dos mestres. Profundamente affeiçoado a seu temperamento, não só poude ensinar-lhe o que sabia, mas também preparou-a para sacudir-lhe o jugo, -- viver a vida incomparavel. No fundo era um nihilista. Si não morresse logo, seguramente teria acarretado sua perdição.

-- E foi então, inquirio Agrippino, que o monstro injectou-te na alma todo esse veneno philosophico?

A americana reprehendeu-o com o costumado sorriso, abanando a cabeça.

Não. Não fôra Katoff quem a iniciara nas boas theorias. O fructo, que obtivera dessa convivência fora aprender um pouco de historia e adestrar-se em uma moral um tanto darwinista.

Separada do esposo e mestre pela morte, ella sentia-se, todavia, mais livre do que nunca. Fixara-se, então, por algum tempo na Allemanha, onde continuara a estudar, principalmente pintura e musica. Durante esse periodo encantou-a Schopenhauer. Leu Nietzsche nas aguas de Vichy. Cahindo-lhe as obras desse infeliz philosopho nas mãos, devorou-as com uma avidez, tan- to maior quanto a sua anterior iniciação na philosophia de Schopenhauer a tinha preparado para comprehender o jogo paradoxal das theorias sustentadas por esse poeta do genial.

Gonhecera-o em Carlsbad, em 1889, quando ja a loucura o tinha empolgado; e durante alguns dias levara a reflectir na inconsistencia da philosophia, acabando por interrogar a si mesma si valia a pena dar importancia aos sonhos, ás phantasmagorias de um cerebro, que o microbio da loucura desmantelara num momento.

-- E, sem embargo disto, ponderou Agrippino, essa poesia apaixonou-te, fez mais do que isto, -- impedernio-te o coração.

-- És injusto, dear; és muito injusto. Si é verdade que eu incorporei ao meu patrimonio intellectual as novas idéas, e enchi-me de enthusiasmo pela philosophia da energia, conforme escrevi no álbum, que encontraste no meu salão; si encantou-me a theoria sobre o espirito dyonisiaco, sobre a alegria humana; todavia não me seduziram por completo as taboas de valores dessa nova civilisação imaginada pelo sábio allemão, que mutilou o amor das filhas do homem, banindo do mundo a piedade e a faculdade romantica, sem as quaes a vida não seria uma coisa divinamente eintegrada.

Agrippino bebia a facundia de Kate. Essa mulher estaria sonhando ou reflectia o tumulto do seu proprio espirito por uma dessas transmutações do pensamento que se não explicam? Decididamente não era a mesma mulher de prazer que elle encontrara em Icarahy.

Cahindo em si, miss Kate deteve-se; e voltando ao humor natural:

-- Pensei que estava em Berlim. Desculpa estas distracções; e descança, porque do poeta allemão só aproveitei a alegria como força propulsiva da vida. Voltemos, pois, aos nossos satyros, ao grande Pan; e emquanto a dynamite não liquida a conta aberta pelos desclassificados aos que se acham indebitamente de posse das riquezas e dos instrumentos da felicidade, creados pelo trabalho collectivo, vamos nós aproveitando as horas, que restam de tranquillidade, em contactos festivos e reparadores com a santa madre natureza. Por hoje basta de philosophias. E quando quizeres conhecer mais de perto a minha methaphysica, pedir-me-ás, e eu promptamente dar-te-hei, os artigos que mandei, como legitima yankee, para os mazinos americanos.

-- Em summa: ficaste uma yankee superfectada de teutonismo. Entretanto seria preferivel que como as meninas de Haward não passasses das audacias do grand-écart.

Ao longe rolavam surdos trovões. O calor era intensissimo. Pelo rosto de Simões desciam copiosas pérolas de suor. Começava-se a abafar.

O sol ia illuminando, rutilo, a vegetação do panno da montanha. Zumbiam os insectos, na surdina de pregoeiros da tormenta, que vinha.

Atiçada, assim, pela canicula, Kate foi a primeira a protestar contra a permanencia naquelle ponto da encosta. A vereda alpestre subia em zig-zag até o fundo da grota. Descobria-se ahi um pequeno manancial. De onde estavam ouvia-se perfeitamente o murmurio das aguas, que se precipitavam d'uraa pequena muralha de pedra.

Seguiram os dois; era preciso desalteraremse. Não ja o vinho, mas a pressão barometrica tinha posto naquellas creaturas a loucura dos tropicos. Agrippino sentia um principio de delirio; a americana murmurava palavras apaixonadas.

Sob um docel de lianas intrincadas, onde a luz penetrava, coada através de um cortinado verde, o doutor empallideceu e cambaleou, Kate, assombrada, correu a amparal-o.

-- Que tens, dear? Voltam os deliquios?

Agrippino não respondeu. Apoiou-se a um tronco e esperou que passasse a crise. A vertigem fora rapida. Tornando-lhe o espirito, elle, então lamurioso, começou a failar nas misérias do seu imperdoável temperamento.

As forças decresciam-lhe visivelmente, dizia, em tom grave e solemne; e a continuar assim, não se admiraria de uma liquidação em tempo proximo. Reanimado, porém, pelos afagos da amante, erigiu o busto e deu alguns passos para sentar-se logo adiante num comoro de barro.

A pequena queda d'agua ficava á vista, e uma temperatura relativamente fresca e balsamisada tonificava o ambiente.

-- Sabes de que me lembrei agora? É singular esta reminiscencia! O champagne ás vezes é caprichoso.

Agrippino tinha uma repugnancia invencível de fallar em suas viagens. Quando interrogado tolhia-o uma estranha amnésia; outras vezes as suas travessias passavam-lhe de esfusiada pela memória como um sonho desacordado. Incoherente, extravagante, a successão dos quadros, que vira, dava-lhe a sensação de haver commettido um crime. Que outro nome teria essa corrida doida pelo Universo, não perdendo tempo, porque era a credito, e os seus haveres nesse tempo não lhe permittiam viagens nababescas?

E afinal o que é que vira? Vira o que hoje se vê, sem sahir de casa, num bom cynematographo.

Sem embargo d'isto, liavia fragmentos vivos na sua memória, desse percurso; mas esses fragmentos não duravam muito e só reviviam quando o cerebro experimentava especial excitação.

-- De que te lembras, my heart ? inquirio Kate cheia de curiosidade.

-- Do Cairo...

-- Do Cairo! ? Naturalmente da dança das alméas.

-- Justo. Num enterro.

-- Tu extravagas, my darling!

-- Estive no Cairo vinte e quatro horas. Vi bazares; vi mulheres; vi minaretes; vi musulmanos. Dessa cidade carnavalesca, porém, lembro-me apenas das ruinas de Mesquita de Amrú e do enterro de uma Fathma qualquer, a que o guia me fez assistir. Havia nessa ceremonia a dança das alméas; e tu não imaginas o horror que me causou uma rapariga de dezoito annos, em botão ainda, executando a dança do ventre.

-- Já sei. Essa alméa descarada, no fim da dança, fez, como os japonezes, o seu arakiri.

-- Foi o que vi.

Agrippino, então, contou por miúdo a historia desse teterrimo sensualismo oriental.

-- O epitome da luxuria humana!

O seu humor tornou-se saturnino. De subito mudou de idéas.

Kate olhou para elle estremecida.

-- Sinto, disse elle, um desejo invencível, extravagante !

-- De que, doutor Simões? Um doutor não perde a linha.

--Si adivinhasses... Que fascinação tem a agua agora!

Fallaria com sinceridade?

Agrippino insistio. E como a amiga considerasse as suas palavras expressão de um voto extravagante, elle agitou-se demonstrando-lhe que as suas theorias dyonisiacas não passavam de leitura; não eram verdadeiramente sentidas, nem se concretisavam no arrastamento real para o encontro da natureza virgem.

-- Olha, Kate adorada, como os voláteis nos festejam!

Um cardume de borboletas, precedido de tres ou quatro beijaílores, invadio a clareira.

Os beijaflores investiam contra os manacás; iam, vinham, revoluteavam no espaço doidamente; em vôo electrico, tocavam tudo, produzindo com as azas invisíveis, um sussurro de pequenas bobinas, tangidas vertiginosamente por motor electrico; depois disparavam como flechas e desappareciam, para d'ahi a instantes surgirem adiante, aligeros, petulantes, atrevidos, magnificentes.

Agrippino, seguindo-os cora os olhos maravilhados, despertava do torpor em que o puzera a calentura da canicula.

A obsessão da agua, porém, não o deixava.

--Em que pensas, Simões? perguntou a miss, pondo, por arte ou de proposito, lagrimas na voz.

O doutor calou-se.

De súbito, estremecendo dos pés á ponta dos cabellos, ergueu-se de um salto e, desabotoou o vestão de flanella azul.

--Cuido que estou com a doença da mãe d'agua. Sabes o que é isso?

-- É uma obsessão. Sei. É uma doença dos nervos unicamente.

-- Pois então retira-te. Porque ou eu atiro-me á agua ou rebento. Desespero!

Kate procurou acalmal-o; mas Agrippino, esquecido de todas as conveniências, ainda mesmo d'aquellas que entre si devem guardar os amantes mais indiscretos, tinha sacado o que elle chamava trapo da civilisação, e, meio nú, meio vestido, avançou para o tanque natural, em que tombavam as aguas em espumarada.

A americana, a rir, em vão tentou obstar áquella extravagancia; e lembrou-lhe que ao menos esperasse um traje de banhista. A nada, porém, cedeu Agrippino, já agora transformado em fauno.

Não foi longa a ablução; e o falso fauno que se deixara entoxicar pelo que de capitoso se exalava d'aquelle ambiente em estremo tropical: resfriado, arrependido, pensando nos perdões que teria de exigir da sua naiade, emigrou da cachoeira como um desertor de uma piscina, a pedir o soccorro de uma toalha.

Kate fora previdente. Gelere desceu até o kioske; e regressando, quasi por encanto, com um peignoir felpudo, atirou-lh'o de longe. Era o único decoro compatível com aquella estúpida situação.

Ulysses diante de Nausicaa. O doutor, meio escondido pelas orchideas e nenuphares, rapidamente desembaraçou-se dos trapos humidos e enfronhou-se no roçante roupão de banho.

A miss, entretanto, não fizera essa diligencia sem accidente grave. Correndo violentamente, ella não reparara, que o corpinho de cassa, tomado por uns espinhos de corona-christi tinhase dilacerado no peito, e que os folhos da fazenda desciam adelgaçados sobre o cinto como a delicada pelle de um figo a mostrar toda a pujança de sua polpa doce, perfumosa e sazonada.

A ardilosa creatura, quando se despojara das sedas e jóias preciosas, com que se adornara para o almoço, sacara também o collette. Esta simplicidade de toilette permittia agora que Agrippino, sem o esperar, sem o pedir, lobrigasse um dos mais bellos espectaculos da vida real. Pulando do colo alabastrino da americana, as duas pomas rijas, ligeiramente coradas, tumidas do sangue erotico, que as animava, desembaraçavam-se das rendas do corpinho e os tentavam-se como em desafio á cobiça das próprias aves que chilreavam entre o arvoredo.

Kate, tarde percebendo o desastre da sua toilette infantil, ou talvez fingindo não tel-o percebido, deixou-se cahir offegante sobre a primeira pedra que se lhe offereceu aos olhos fatigados.

Agrippino que por esse tempo tinha-se libertado dos sipós e do feliz encerro de vegetaes, saltou para o caminho, e, hypnotisado, poz-se a olhar fixamente para aquelle fructo sem classificação na flora indigena do Brasil. Uma circumstancia veio, entretanto, prolongar essa posição contemplativa, distrahindo a raiss do recato a cujo aguilhão não despertara.

O cardume de borboletas, accrescido de outras tantas, que a canicula tangera para as visinhanças da queda d'agua, invadio o recesso e desdobrou-se, quasi occultando o solo, num cortinado de riqueza incomparavel, como nenhum fabricante seria capaz de imaginar, muito menos executar, -- um cortinado vivo, oscillante, em que não se sabia o que mais admirar, si as combinações iriantes do azul marinho, da esmeralda, da turqueza, da amethista, do amarello topazio, da opala, do rubim, si a agitação pluriforme em tudo isso impressa pelos mais caprichosos movimentos.

Agrippino quasi não podia ver o busto de Kate, tal era o revolutear do cardume aereo em torno delia.

-- Que scena é esta? perguntou elle, fazendo Kate despertar de seu silencio. E diga-se que não estamos em plena Thessalia? Começa o reinado das feiticeiras.

Kate ergueu-se, compoz a toilette, e correu montanha abaixo. As primeiras gottas d'agua annunciavam o desabar da tempestade.

Na primeira volta do caminho ella volveu-se para Agrippino, que, enleiado, procurava meios de recompor o vestuário em parte humedecido, e fez voar um beijo insolito.

-- Olha, filho! O meu terror é grande. Não vás pensar num d'aquelles faunos mettidos a frades do poema de Parny. Antes que tentes alguma brejeirada, fujo para a fortaleza da modestia. É lá em baixo que ha virtude!

CAPITULO VIII

Desabou a trovoada. Relampagos diffusos rasgaram o ílatico negro da montanha. Uma chuva torrencial cascateou, por fim, sobre a cidade já inundada. As ruas ficaram intransitáveis. A circulação pedestre cessou de súbito.

Simões assistio a esse dilúvio do palacete de miss Kate, profundamente contrariado.

Benedetto, solicito em prover a mutação do vestuário do doutor, fôra ao sanatorio, e voltara, em minutos, com tudo quanto era preciso para que o ex-fauno se humanisasse.

A americana, para não vexal-o, deixou-o em liberdade. O groom, intelligente e adestrado, fez-lhe as honras da casa. Abrio-lhe um aposento de circumstancia, aonde Agrippino repousaria o tempo necessário para que voltasse a si do destroço moral, em que o puzera o banho da cascata.

Seriam oito horas da noite, quando Kate penetrou no salão num desalinho que contrastava singularmente com a toilette de grande recepção da manhã. Vinha abatida, quasi chorosa, com os olhos vermelhos; trazia na mão direita um vidro de ether, que, de vez em vez, levava ao nariz.

-- Uma formidável enxaqueca!

-- A imprudência do passeio! reflectio Simões; e, ávido, procurou lêr nos seus olhos azues o mysterio que se passava.

A americana comprehendeu e buscou tranquillisal-o.

-- Nada se alterou, accrescentou ella. Nada temas. É uma enxaqueca sem conseqüências.

E mirando-o, com um sorriso seductor:

-- Não censures. És meu prisioneiro, graças á borrasca. Não penses, pois, em fuga. O palacete é teu. Si tentares sahir, arrepender-te-ás, ó meu Antonio. Lembra-te de Cleopatra...

Esta volta á egypcia agitou-o de novo. Mas a miss, apezar da enxaqueca, fallou em sepultal-o na crypta de,uma pyramide com o Pão de Assucar por cima, com tamanha graça, que elle não poude deixar de rir-se.

Passaram-se minutos. Kate emudecia. Agrippino para encher o tempo, poz-se a folhear de novo o álbum, era que a diva lançara os seus pensamentos philosophicos.

«Schopenhauer reputa um escandalo estas palavras do judaísmo: E viu Deus que tudo estava bem. No seu eterno odio a Jaweh, que se gabava, assim, de ter feito essa bella obra, essa desgraçada obra chamada o mundo, para com- pensar o desequilíbrio de seu espírito, lançou-se no seio do Buddhismo com o mesmo prazer sataníco com que o coolie se entrega á beatificação do opio.» Agrippino levantou os olhos do livro, e os poz, encolerisado, no rosto de Kate, que, immovel, curtia a sua mysteriosa dôr de cabeça.

-- Dize-me, love, aonde aprendeste tanto optimismo?

-- Na saúde; na comprehensão da vida.

-- Amas então a vida?

-- Tanto quanto permitte a energia do meu temperamento. Procuro pelo menos sorvel-a pelo que ella possue de mais capitoso e divinal. Tenho, felizmente uma enervação intrepida. Liberta da hypocrisia social, cultivo a força de que disponho, e d'esse instrumento, chamado a vida, extraio o maximo prazer pela simples alegria de viver.

Simões sentiu como um crepusculo encher-lhe a alma.

Kate era o verso da medallia humana, de que elle era o anverso, desaventurado e triste.

Porque não lhe concedera a natureza essa intrepidez de nervos, de que se gloriava, tão acintosamente, essa enigmatica americana?

Terrível era a verdade! Elle não passava de um enfermo. E enfermidade quer dizer a conspiração da morte e a inconfidência de tudo o que é hostil á expansão de nossa vida, ao crescimento daa nossas forças, á conquista da potência e ao triumpho da vontade.

E, no emtanto, si havia individuo a quem a natureza devesse flagellar menos com o seu desprezo, esse individuo era elle. Não lhe faltava intelligencia, nem acolhimento da sociedade em que vivia. As circumstancias da vida exterior tinham-lhe sido mais que propicias, senão pródigas em cercal-o de vantagens, de posição e de dinheiro. Illustrara-se, fizera mais de uma viagem ao velho continente; percorrera todas as capitaes da Europa; estudara o Oriente e as instituições admiraveis da America do Norte.

E durante esse cyclo de viagens, atiçado por uma curiosidade mórbida, numa indefinivel anciedade psychica, atravessara todas as civilisações, penetrara em todas as regiões do pensamento. De todo esse trabalho, entretanto, que lhe restava? Um residuo amargo, corrosivo, bem semelhante ao vasio d'alma. A cultura que devera resultar de uma tão completa licção das coisas se transformara em zero.

Que lhe faltava, portanto, para ser feliz?

A americana o dissera. Era a saúde, essa plenitude da intelligencia e da vontade, que dispensa o homem do triumpho não só dos livros e universidades, mas tambem de viagens e revistas mundiaes.

O microcosmo suppre tudo, quando, pela intensidade da luz que ahi se faz, elle pode reflectir espantosamente as riquezas infinitas do macrocosmo.

Kate, vendo Agrippino com olhar fixo na pagina, em profunda meditação, interrompeu-o.

Sentia-se melhor da enxaqueca. Fêl-o conversar.

-- Que pensamento, podia ter eu escripto nesse livro que te enlevasse tanto?

-- Importante e desolador...

-- Como desolador?

Agrippino reproduzio as considerações que acabava de debulhar.

E como digo, dear; falta a mim essa intrepidez sadia, sem a qual, como aíTirmava o teu grande conterrâneo Aldo Emerson, o homem não consegue descobrir esse potencial da vida, esse elemento de que a natureza inteira está saturada, e que retribue amplamente todo esforço intelligente, honesto, pertinaz. Mas como poderei eonseguil-o, se me é vedado empregar esforço correlativo aos obstáculos que o ambiente me offerece? E tu bem conheces a phrase cruel de Napoleão; desgraçado do capitão a quem falta o sentimento da proporção e a certeza do quociente triumphal. Ora, eu, minha boa Kate, tenho justamente consciência do quociente opposto. Sou, portanto, o capitão virtualmente derrotado. Ainda bem os obstáculos não se produziram e já no meu cerebro dissolveram-se os elementos de comando. Eis a razão porque, nos momentos de desespero, sai-me fatalmente aquella formula terrivel ennunciada pelos signaes A<B. O meu mal demonstra-se por via mathematica. Julgo-o irreductivel.

Miss Kate fez um gesto de zombaria. Por mais hieratico que fosse o tom, em que Agrippino se exprimia, ella não se mostrou impressionada.

-- Nada ha irreductivel, disse; e passou os dedos pelos cabellos do amigo, hypnotisando-o.

A influencia era magnética e sedativa.

O doutor acalmou-se. Mudavam de curso as idéas atormentadoras.

-- Não acabaste de referir-me a historia da tua vinda para o Brazil. É extranho! Gomo te fizeste tão brasileira? Já se não percebe a tua nacionalidade.

E o doutor recordou os contrastes sorprehendentes, que notava entre a Kate, turista do Gorcovado, a Kate, banhista de Icarahy e a Kate, que se lhe desvendava agora, aclimada, senhora de quasi todos os segredos da vida fluminense, sabia, artista, mais fascinante pela intelligencia do que nunca o fora pela arte de ser bella.

A americana ergueu-se e divagou por alguns instantes através do salão, olhando para os seus objectos d'arte, sem fallar.

Agrippino insistiu.

-- Pensei, meu perfido amigo, que em tua cabeça não havia mais conceitos obscuros a meu respeito. Isto é ainda um resto do salcedismo.

-- Mera curiosidade; retrucou Simões. Não fallemos nisso. O assumpto te aborrece; basta; occupemo-nos de arte, por exemplo. Kate, porém, antes de dissipar-se a nuvem, illuminou-a com um raio do seu espirito semi-infernal.

Gomo e porque viera para o Brazil? Visitara a bacia do Prata. A bahia do Rio de Janeiro posteriormente a attrahira. Os relatos de Herbert Smith, sobre a região dos tropicos, deu-lhe o appetite de um passeio ao Brazil.

Um dia, em Lisboa, tomara a resolução de embarcar, o que fez no prazo, quasi miraculoso, de vinte e quatro horas.

Era o momento em que o Rio se debatia na revolução de 6 de Setembro. A bahia, silenciosa e triste, parecia de primitivos. Os rumores do trabalho, os silvos das lanchas a vapor, as sereias das fabricas, o movimento do ancoradouro, a labuta de bordo, a faina dos navios mercantes e dos saveiros, tudo quanto constitue o encanto dos portos commerciaes, tudo tinha como que desapparecido. O espasmo do medo e a tensão dos aprestos militares, apenas interrompidos, ás tardes, pela artilharia dos fortes da barra, que faziam fogo para Villegagnon e para os navios revoltosos, davam encanto trágico a essa região acroceraunea, em que o Pão de Assucar representava de vigia troglodita.

A conselho do cônsul americano, seguira logo para Petropolis, viagem que teve de fazer com immenso incommodo pela Central.

A bella cidade dos diplomatas compensou-a do sacrifício e das decepções. Ahi, demorou-se mezes, adaptando-se á vida brazileira, aliás não muito differente nos costumes da que encontrara no valle do Mississipi, onde a vida do agricultor era apenas mais intensa.

Para o manejo da lingua servira-lhe o que aprendera em um anno de Lisboa e Cintra.

Petropolis, puzera-a em contacto com Salcedo. O medico ousado, que conseguira impor-se ali como celebridade clinica, passava, então, por um grande gymnecologista. Esterilisava mulheres casadas; de onde tirou estrondoso preconicio. A sua figura, apresentada, planturosa, cora ares de bonhomia infantil, mas fundamentalmente alvar, illudira-a por alguns dias; e como era natural que succedesse a uma estrangeira procurou colher informações de um emigrado de preferencia a nacionaes. Delle obtivera as primeiras indicações sobre o paiz. E manifestou desejos de visital-o para escrever um livro de viagens. Graças a essas primeiras indicações fez rapidas digressões a Minas e a S. Paulo; depois das quaes fixara-se naquella cidade, aonde permaneceu, alternando, nos invernos, com esta capital, até aquelle anno de 1895.

Dir-se-hia que o Brazil matara-lhe a ancia das viagens, porque, de dia a dia, como que uma preguiça sem nome a prendia a esta terra, apezar de tudo quanto delia dizem nacionaes e estrangeiros.

Por mais reservada que fosse a sua existência, entre Petropolis, Rio de Janeiro e S. Paulo, não tardou que a sua figura destacasse do meio do anonymato da rua do Ouvidor. Salcedo foi assiduo junto a sua pessoa; não tardou que se trahisse; mas suas pretenções ficaram num cifrão eterno.

-- Imagina, Simões, que esse monstro um dia offereceu-me os seus prestimos e o seu segredo.

-- O que tu por forma alguma autorizaste?

-- Nunca! Ghicoteei-lhe as faces com o olhar do nojo, repetidas vezes. Mas o cynico, fingia inintelligencia, e permanencia na situação anterior. Essa proposta era o que de mais concreto podia apresentar como argumento contra as minlias reluctancias. Comprehendi. Disse-lhe o que o mais baixo dos homens não pode ouvir silencioso. Salcedo calou-se. Ao sahir percebi do seu olhar sinistro, que havia ah a jura de vingar-se.

-- Não ponhas mais na carta. Conheço a formula do typo. Os consectarios são sabidos.

Benedetto annunciava o jantar.

A miss sentio-se indisposta para a refeição.

Ergueu-se, conduzio o doutor até o refeitorio, e retirou-se.

Agrippino tocou ligeiramente em algumas iguarias, mastigou, sem appetite, uns figos seccos, e abandonou a mesa.

Voltando ao salão poz-se a lêr, salteadamente, os livros, que a diva tinha sobre um gueridon, junto ao piano. Contos de Thieck, um volume de Novalis, o Fausto, de Goethe, Historias extraordinarias, de Poê, Titania, de J. Paulo Richter. Tudo isto elle foi degustando, aqui, ali, acolá, folheando ao acaso, como quem numa confeitaria depinica marrons-glacés, as guloseimas da pastelaria moderna. Por fim deparouse-lhe uma brochura da casa Calmann Levy.

Era o volume dos Contos chineses do general Tcheng-Ki-Tong. O exotico excitou-lhe o paladar.

-- Bom! murmurou comsigo, evocando antigas aptidões suas para esse genero de literatura. Vejamos que extravagancias inventou esse chinez para embrutecer o gosto parisiense.

E começou a folhear o livro, em busca de uma narração, que o empolgasse. Derreou-se numa poltrona, e dispoz-se a mergulhar no estylo desse escriptor oriental.

Os Contos cliinezes são, em verdade, de um colorido rápido, vibrante e que em muitos pontos faz lembrar a imaginação nevrotica, e ao mesmo tempo raciocinante, do auctor do Escaravelho de ouro. O escriptor cbinez não usa de recursos rhetoricos, nem de imagens, nem de amplificaçôes, nem de metaphoras. O facto e só o facto, narrado simplesmente, mas de um modo terrivel e suggestivo.

Passados quinze minutos de leitura, Agrippino estava em plena atmosphera do maravilhoso infernal dos aziaticos. A vida subjectiva e doentia que assombra a alma desses infelizes tomadores de opio apossara-se-lhe do cerebro; e, em sua imaginação sobre-excitada, desenrolou-se o drama original da feitiçaria, em que, a cada passo, sente-se o espirito pratico de Gonfucio em lucta com as viagens da fé buddhista.

E no theatro de sua alma, apavorada, desfilaram fakirs immundos, a mostrarem serpentes adestradas; letrados encarniçados em discussões eternas; mandarins ferozes, a revirar os olhos de preguiça; donzellas de porcellana e de pés invisíveis e douradas; a infinita colleção de bonzos rezadores; torres em forma de chapéus de sol sobrepostos; pagodes nebulosos; florestas mysticas; jardins de crysanthemos; florestas de coral; cidades aquaticas; ilhas fluctuantes; cabines mysteriosas; -- e no meio de tudo a fúria assanhada dos senhores do occulto, a torturar o iiomem com as transformações do mal, da dôr, da angustia, como nunca cerebro dantesco, siquer de leve, o concebera.

Agrippino transpirava. Agitava-o uma emoção convulsa e por isso aquecia-se a essa leitura mórbida, exactamente ao modo dos que se saturam de opio, sabendo o veneno que se propinam.

Um rumor fez-se atraz da poltrona.

Simões volveu-se e soltou um grito. Estava assombrado. Dir-se-ia que junto á porta de entrada, alguma cousa de terrível oscillava sinistramente. Pareceu-lhe vêr miss Kate transfigurada na visão cadaverosa, que por mais de uma vez o obsedara.

Deixou cahir a brochura; levantou-se; e, revestido de coragem, avançou para o phantasma. Nada havia de extraordinário; apenas os folhos do cortinado japonez bamboleavam.

Uma figura extranha de Utamaro, causaralhe todo aquelle sossobro de ignóbil cobardia.

Recobrada a calma, tornou a sentar-se; mas a brochura, que determinara tão grande susto, permaneceu no chão. Causava-lhe odio a vivacidade do estylo suggestivo desse autor maldito.

Da porta, fallou-lhe Benedetto.

Kate mandava prevenil-o de que recolherase incommodada; mas que esperava que não a desfeiteasse retirando-se. A casa pertencialhe; dispuzesse, pois, de tudo com a franqueza de um estudante em casa de um collega amigo.

Aquelle singular desapparecimento motivou uma sensação de exquisita desconfiança; como, porém, a tempestade, recrudescia e a agua diluvial descia das montanhas em roncadoras cachoeiras, era inútil, pelo menos naquelle instante, pensar em sahir do palacete.

O vento assoviava furioso. O edifício gemia, abalado, quasi a desconjuntar-se. As bategas d'agua, cuspidas sobre as vidraças, davam á relativa solidão da casa um tom de scena theatral.

Agrippino, resignado, entregou-se a Benedetto, que, subtil e conhecedor dos estylos de domesticidade, conduzio-o ao aposento, destinado aos hospedes; e installou-o, supprindo todas as gentilezas da senhora.

Apezar do conforto do leito e do perfume da roupa, que o guarnecia, o doutor não reconciliou o somno senão depois de meia noite. O ultimo conto, que lêra no livro do general TchengKi-Tong, esvnrmava-lhe a cabeça; era mal assombrado o aposento. A phantasia chineza, em que appareciam caveiras e esqueletos, repontava a cada instante lembrando-lhe a mysteriosa Kate dos primeiros dias. Ao mesmo tempo castigava-lhe o pensamento, em começo de estenuação, a contrariedade daquella noite assim dormida em um quarto de bohemio, quando tudo dizia-lhe que, segundo a lógica, a scena do belvedere deveria ter findado por novas nupcias e uma requintada scena de amor.

A rapida mudança de Kate hypertrophiava-lhe a tortura. Nada lhe parecia explicito. O anceio das horas passadas no jardim, junto á cascata, depois do idylio do belvedere, não justificava a transformação em tão exquisita frieza e esquivança.

Assim, abysmado na incoherencia das idéas e dos factos, adormeceu e sonhou coisas horriveis.

Sonhou que o despiam e o deixavam numa praça publica, entregue á sanha de populares ferozes. Os mais importunos atiravam-lhe pedras; outros ainda mais audazes fallavam em lynchal-o ali mesmo. Mas porque crime? Não o podia descobrir. Finalmente um leader do povo opinou que o untassem de petroleo e o queimassem como a um rato.

Já Agrippino sentia as chammas lamberem-lhe a pelle, quando os sons festivos de uma charanga marcial derramaram-se no espaço.

Estaria salvo? pensou elle. Estava, sim...

do pesadello.

Despertando teve uma sensação de allivio.

Accordes do piano, no salão, continuavam a fanfarra do sonho. Estaria elle bem acordado?

Saltou do leito e correu até á porta. Uma torrente de luz invadio o aposento. Vinha essa luz do corredor. Sahiu. Não era luz matinal. O palacete, illuminado como em noite de festa, silenciava. Os criados dormiam. Que seria aquillo?

O doutor deu alguns passos para o salão. Vacilava. Os sons do piano recomeçaram. A Dansa dos anões de Grieg encheu o ambiente com o seu rithmo extravagante e original.

O doutor teve, então, um espasmo de admiração. Kate, ao piano, muito pallida, olhava para o tecto, emquanto os dedos corriam vertiginosos pelo teclado. Vendo-o, de súbito, levantouse e encostou-se logo á parede, hirta como uma estatua de alabastro. Cobria-a apenas uma tenue camisa de gase preta. O relevo da sua esculptura intima era desesperador!

Agrippino julgou que o sonho persistia; e foi preciso que avançasse para convencer-se da realidade objectiva. Acaso a enxaqueca de Kate resolvera-se naquelle excentrico derpertar?!

A quasi nudez dessa [mulher e a sua belleza mysteriosa, em infernaes cicumstancias, punham-lhe na alma sensações de uma volúpia extremunhada e jubilante. Não existem palavras para exprimil-a.

Volvendo-se para o outro lado, reparou que o dormitorio estava escancarado; e delle rompia um dilúvio de fogo, intensissimo, porém anilado pelo effeito de apparelhos de luz incandes- cente.

-- Que phantasia é esta, love? perguntou com a voz embargada pela commoção de um brutal desejo.

Kate conservou-se hirta como estava. Os olhos brilhavam-lhe com fulgor sinistro. O seio arfando, communicou a todo o corpo um ligeiro movimento ondulatorio, que lhe retirava a illusão marmórea. Agrippino, assustado por esse aspecto trágico, não se atrevia a aproximar-se delia; por fim, quebrando o encantamento, suspendeu-a, cheio de febre, nos braços, e cobrio de beijos esse corpo divino de Venus Aniadomene, que se lhe afigurava envolvido em uma nuvem de vapores perfumados.

Kate não se agitava. Agrippino sentio-a verdadeiramente estatua, porque estava algida.

Quão differente da Kate do belvedere, da voluptuosa prelectora do naturalismo bacchico!

Nem mesmo o convencional pudor da Kate que o salvara de um resfriamento junto á cascata; nada existia na executante de Grieg, que agora se lhe entregava fria e insensível como uma bacchante assassinada.

Agrippino, pousando-a sobre uma poltrona, baixou a cabeça, e reílectio. Elle sentia rugir por traz do luxo, das luzes e daquella nudez inexplicável, todas as scenas sinistras de outr'ora. Era a realidade aquillo ou a nevrose que voltava?

O perfume capitoso e o contacto, embora frio, de Kate atordoavam-no, e atordoando-o infundiam-lhe energia factícia de que elle precisava.

-- Que importa o que ha de vir? disse comsigo. Isto é um brado da carne! O vinho dos filhos de Polycrates!

E tornou a cobrir de beijos esse corpo de bacchante morta, que, todavia, começava a reviver.

-- Que tens, Kate? Emudeces?

-- Sinto que vou morrer.

E o seu corpo esbelto, sem o minimo recato, desenrolou-se, em sinuosidades serpentinas.

-- Morro de ti, Simões, my love, disse em voz quasi sumida, dolorosa, edulcorada. Morro da vida que te dou. Devoro-te o coração! Sintome perturbada pela vertigem.

O doutor olhou atonito para Kate. Não a comprehendia.

-- Estás quasi núa, minha boa Kate. Resfrias-te. Não estarás desacordada?

Kate sorrio, ergueu-se, e, lentamente, como somnambula, entrou no dormitorio.

Agrippino acompanhou-a de longe.

Esse dormitorio, única peça da casa, que elle não conhecia, era ainda uma confecção extravagante do gênio inventivo da americana.

No centro, sobre uin estrado tapetado, havia um leito de carvalho, meio renascença, meio romano, de aspecto monumental, cheio de encrustações de bronze e pedras fingidas, suspenso sobre quatro columnas leves striadas. Cobria-o um docel, em sacada, de lambrequins guarnecidos de franjas doiradas, de onde pendiam, no mesmo estylo, sanefas de veludo violeta, arrepanbadas por amplas fachas de rendas d'Alençon e grinaldas de flores exóticas.

Sobre o entablamento dessa rica peça, o colxão, coberto por .um edredon de setim negro, matisado nos cantos e com o campo apenas interrompido por flores de liz brancas.

A ornamentação e o mobiliário do quarto correspondiam-se. Flanqueando a cabeceira viam-se dois grandes candelabros sobre columnas doricas de mármore preto. Uma enorme pelle de tigre para os pés; e, junto ao primeiro degrau do estrado, um porte-nuit de laca, em cima do qual repousava um queima-tudo de bronze em forma de dragão. Não havia armarios nem dunquerques; em logar destes moveis, quatro enormes bahús medievaes, de pregarias, cintados de fitas de ferro fosco, tauxeados de cabeças de pregos octognas, com encrustações de lapis-lasuli e medalhões de cobre cinzelado. Das paredes não pendiam quadros, mas panoplias de armas orientaes; quatro estatuas de bronze, symbolisando a noite, o sonho, o amor e a vigilancia, sustentavam os combustores de gaz.

Em uma mesa de carvalhio e de pés entortiIhados, guardavam-se os agulheiros, relicarios, pulverisadores, vasos etruscos para aromas, incensadores, e todo o mais arsenal de pequenas coisas, de que uma elegante viciosa necessita para tornar-se bella e fascinante.

O aposento immediato servia de boudoir e toílette.

Agrippino mal poude apreciar esse apparato inútil para uma mulher simples. Kate estava encostada a uma das columnas dos candelabros.

Parecia desmaiar.

O doutor avançou, e sustentando-a nos braços, a depôz sobre o negro edredon, que cobria o leito. Desfallecida, bella, loucamente bella, destacando-se nesse fundo negro, qual uma sphynge de carne, essa mulher o entontecia.

Durante toda a sua vida de solteirão jamais houvera tido a folicidade de vêr coisa semelhante.

Kate, por fim, descerrou os olhos e sorrio.

O seu sorriso agredoce tinha uma expressão indeíinivel.

-- Que tens, Kate? perguntou-lhe o doutor cora anciedade. Soffres ?

-- Sim. Soffro de ti. Soífro de que não te absorvas todo em mim.

As suas narinas palpitavam; o seu collo arfava; os olhos, agora languidos, proraettiain- Ihe o supremo gozo da vida quando despojada de todas as contingências sociaes. A sua lividez tornava-a ainda tnais encantadora.

Agrippino e Kate amarara-se nessa fatalissima madrugada, com desespero, com intensidade de tigres famulentos.

Dir-se-ia que a luz dos archotes, dissimulados sob os candelabros de gaz, Dionysos os espreitava, tripudiando a festa dos amores clássicos da Grécia pagã.

O dia ia alto quando Agrippino despertou.

A luz eclyptica dos candelabros continuava a dar ao aposento o tom da noite. Todavia, através das persianas sentia-se a claridade diurna exterior. Os rumores do bairro annunciavam que a vida e a labuta iam ja adiantadas. Só então o doutor comprehendeu onde estava.

Olhou de esguelha. O corpo de Kate tinha a immobilidade de um cadaver. Aquellas luzes mortuarias; a posição da adormecida sobre a colcha negra; a sua pallidez; o contraste do silencio, que ali reinava, com os gritos de alegria vindos de tora, deram-lhe a sensação penivel como de um crime perpetrado durante o somno.

Essa idéa abstrusa fel-o reassumir a plenitude de consciência. Kate respirava profundamente; do peito rompeu um gemido doloroso.

Agrippino inclinou-se e procurou beijal-a na raiz dos cabellos entortilhados sobre a nuca.

Subito, acudio-lhe outra idéa. Estremeceu. A lembrança da tatuagem, que se obliterara nelle desde a sua entrada do palacete, atravessou-lhe o espirito como um raio e fulminou todo o prazer.

De leve foi afastando a manga da camisa da americana; e as letras fatidicas appareceram em toda a sua hediondez canalha e indecente.

A moça abria os olhos; os lábios desfolhavam um sorriso primaveril. Apenas, porém, percebeu a attitude de curiosidade indiscreta do amigo, ergueu-se de um salto e cahio inteiriçada no meio do tapete.

Era terrivel o aspecto dessa mulher enraivecida.

-- Kate, bradou o doutor, no auge do assombro; tu me illudias! Não és a bacchante dos sonhos gregos como apparentaste; és uma creatura infernal, a quem se attribuem praticas criminosas, exercidos de occultismo.

As feições de Kate tumultuavam numa cólera, que faria recuar o homem mais intrépido.

Agrippino teve, não obstante, um momento de energia. Exprobou-lhe a duplicidade de sua vida de anjo e de ignóbil feiticeira. Gomo explicaria ella as mystificaçôes da rua do Ouvidor, de Icaratiy, da Paulicéa e a viagem mysteriosa pela Central? Aquelle estigma, si não era signal da posse do diabo, indicaria a baixa procedência dos seus costumes e das suas indignas vesanias!

Kate, de pé, no centro do tapete, convulsionada, rôxa, possessa, lançava sobre Agrippino olhares coruscantes, e o ameaçava com o gesto dominador.

-- Que fazer diante de tanta estupidez, doutor Simões? disse, porfim. Expliquei uma vez que essa tatuagem nada exprimia. Foi um abuso de confiança. Basta de brutalidades!

O doutor não se lembrava de haver ouvido tal explicação.

Kate, não obstante, accrescentou:

-- Mystificações! Tu não passas de uma victima de continuas suggestões. Nenhuma culpa cabe-me por isto.

Agrippino media-a de alto a baixo, indignado. A indignação communicava-llie uma força facticia que, entretanto, o devastava.

-- Kate, disse-lhe, eu não sou um imbecil, nem um ignorante. Conheço o assumpto de sobra para comprehender que tudo aviltas, exercendo o papel de bruxa. És elegante, não usas cabo de vassoura; mas isto não impede que andes a illudir os inespertos. Não sou anima vili.

Tenho uma tara; sei perfeitamente o que sou, e deploro as inhibições da vontade que me assaltam periodicamente; mas fica também sabendo, que, apezar disto, não me dominarás como pretendes.

Kate desferio uma risada irônica e regogou:

-- É o que veremos!

Agrippino tinha os olhos fixos nella, e, sem embargo da segurança, com que a repellia, não deixava de presentir a approximação de alguma coisa desconhecida.

A americana ter-lhe-ia acaso constituído por influencia própria essa atmosphera phantastica em que elle vivia mergulhado havia perto de quarenta e oito horas? Não era possível! Esperou, com tudo com anciedade febril.

Miss Kate, envolvida em uma matinée de seda japoneza, voltava ao seu antagonista completamente transformada; e tentou, ainda uma vez fascínal-o com a doçura do seu olhar e com uma melopea de palavras repassadas de indifinivel ternura.

Agrippino recebeu-a hostil. Tudo aquillo não passaria de uma cilada que a americana lhe armava com a sua consummada arte de thessaliana.

Fitou-a com firmeza.

Kate atinou cora o seu intento. Só restava perturbal-o.

Súbito, o conto chinez, com todos os horrores do seu estylo infernal, repontou-lhe na imaginação para asphyxiar-lhe o raciocinío.

Terrível foi, então, a scena que se passou.

Kate assumira a faculdade absoluta do assombro. Sews cabellos enegreciam; a face cadaverica mumiíicava-se; os olhos vesgos fosforeciam em tonalidades cambiantes, entre verde e rubro; e a diva, surgindo dentre as rendas da matinée, como um pesadello, avançava grasnando em movimentos de abutre sanguisedento.

Agrippino experimentou uma dôr lancinante no pescoço.

As garras do monstro rasgavam-lhe as carnes, tentando subjugal-o. Kate mordia-o na jugular.

Agrippino, de um salto, alcançou a panoplia, e, sacando o sabre marroquino, atirou um golpe furioso.

O monstro soltou ura grito e desappareceu no boudoir.

O esforço de Agrippino fôra tão intenso e o seu terror tão desmesurado que elle mal poude suster-se ura segundo sobre as pernas, que tremiam; e correndo para o salão cabio, desfallecido sobre o divan.

CAPITULO IX

-- Dr. Simões!...

Era a voz de Benedetto.

-- Que horas são? perguntou-lhe Agrippino, voltando a si.

-- Quasi doze horas.

-- Ba senhora?

-- O groora enfreou-se num gesto de intelligencia discreta.

-- A senhora passeia no jardim.

Simões ficou atonito.

Nada, portanto, denunciava que naquella casa se tivessem passado scenas diabólicas. Mas então essa miss Kate era com effeito uma creatura que dispunha da faculdade dos sortilegios.

De repente acudio-lhe uma idéa. Voltou ao dormitorio. Examinando a panoplia, verificou que faltava o yatagan. Não havia duvida; elle usara, pouco antes, dessa arma. Onde, porém, a tinham occultado?

Descoroçoado sahio do dormitorio, ébrio de medo. Andou alguns instantes esbarrando pelos moveis, quando, porflm, ao reparar que a casa estava toda aberta, penetrou no refeitorio e desceu uma pequena escada que dizia para o jardim.

Benedetto olhava, espantado, para Agrippino. Gomo este nada dissesse, o groom falou com timidez.

-- O senhor passou mal a noite. A senhora esteve muito inquieta; e provavelmente desceu ao jardim para dar tempo a que o doutor se accordasse.

Simões fixou o groom, com intimativa; depois agarrando-o pelo braço, grosseiramente, perguntou-lhe:

Que foi que houve, de noite, nesta casa?

Benedetto conservou-se mudo. Agrippino, extranhando o silencio, julgou sorprehender indícios de que a estrangeira havia tomado precauções contra a loquacidade dos creados.

-- Anda d'ahi! tornou o doutor, apertando-o.

Dize o que se passou, ou eu... Onde escondeste o yatagan?

O groom soltou um grito de dôr.

-- Não sei. A senhora é que pode dizer. O senhor á noite levanta-se dormindo, de olhos abertos.

Sentindo rumor, miss Kate, que examinava as suas begonias, correu ao encontro do amigo.

Estava ou parecia estar ainda um tanto pallida, pelo menos aos olhos de Agrippino. Gingia-a um peignoir de rendas brancas, onde a sua alvura e os seus cabellos, mais louros do que nunca, resaltavam como um sonho. O pescoço envolvia-se numa faixa de linho branco, ligeiramente nodoada por tons violaceos de uma substancia oíTicinal. Ao notar essa circumstancia, Agrippino sentio reviver todo o horror da scena do dormitorio.

Kate, não obstante, sorria com esse mesmo sorriso fascinador, que tantas vezes subjugara o espirito do doutor.

-- Olha, my darling, o que me fizeste. Tu és um somnambulo perigoso.

Agrippino sossobrava.

Nada objectou.

As palavras de Kate transpiravam bondade e uma divina tolerancia.

Acaso em seu espirito dispersavam-se os sustos e as visagens. Era difficil affirmal-o; e elle proprio não sabia o que pensasse do seu proprio pensamento. A alma cahia-lhe no vácuo.

Afastou-se de miss Kate indifferente a tudo.

Sentou-se num dos bancos do jardim, ao lado de uma magnolia, que explodia, e aspirou o perfume sedativo que invadio o ambiente. E um choro convulso atacou-o, como a uma creança, a quem houvesse ferido alguma dessas grandes contrariedades que causas futeis provocam em cerebros infantis.

Miss Kate deixou-o expandir-se em liberdade. Logo, porém, que o vio mais calmo e que as lagrimas cessaram, approximou-se cnutelosamente.

-- Não me sentes juntinha do coração, love?

disse ella nos graves acontraltados da sua voz de ouro. Gigante hoje; amanhã creança! És um poeta doentio.

E o envolveu num effusivo abraço.

-- Não, Kate, exclamou o doutor, erguendo-se e impellindo-a com expressão colérica. Não é possivel que isto continue. Sou um somnambulo... e, todavia, penso que tu não és a mulher que eu suppunha. Ha factos inexplicáveis. Salcedo talvez tenha razão!

Falou assim; e abandonou bruscamente o jardim da ex-Armida, com a alma afogada em um mar de duvidas lancinantes.

Na rua, volveu-se a olhar para a mansão, onde tão feliz e tão desgraçado se sentira no decurso de algumas horas. O vulto de Kate deslisava por entre os rosaes do jardim.

Neste momento chegavam ao portão, e o transpunham, em verdadeira gritaria, estrangeiros montados em bicycletas. Agrippino, enciumado, parou e poz-se a observal-os. Eram os companheiros de miss Kate no passeio do Gorcovado. Um delles o entreconbecera, na occasião em que dava a volta para entrar; e por signal, dirigindo-se ao da frente, proferio palavras de desprezo, entre as quaes Agrippino poude apanhar os vocábulos -- brasilian, drunkard. Ondas de odio sublevaram-lhe o sangue ja envenenado.

Escondido por traz de uma arvore, o doutor observava tudo. Passaram-se alguns minutos.

A sua impaciência, por um phenomeno singular, suspendera o curso das idéas, e concentrava-o inteiro no movimento que se fazia no jardim.

Kate recebeu os seus amigos com ruidosa effusão. Depois fel-os entrar para o palacete. A demora foi pequena. Queimado de pasmo, Agrippino vio a americana, trocado o trajo matinal por um roupão de cyclista, sabir, em disparada de bicycleta, á frente dos camaradas. Palavras ao vento; correram, em transmonto, pelo alto da Gavêa.

A alma do doutor afundou-se, de todo, no mar tenebroso de um ciúme angustiado. A passos vacilantes seguio em direcção ao sanatorio.

Duas palavras badalavam-lhe no cerebro como vozes de dois sinos oppostos -- somnambulismo e bruxaria.

O hotel de Salcedo, alegre, cheio de falas cantantes e felizes, recebeu-o ern festiva matinada.

As duas familias, que ahi estavam, divertiam-se na ausência dos respetivos chefes. Dansava-se ao som do piano, tangido agora pelas manoplas de um amador adventicio.

Agrippino, penetrando nesse meio hilariante, foi como um morcego, que, sahindo do escuro, de repente cahisse num salão cheio de luz. A principio nada enxergou; mas logo uma voz conhecida chamou-o á realidade.

Era Ambrosio Raposo.

Admirado de encontral-o naquella casa, foi prompto em dizer-lhe que para ali viera pela manhã. Raposo pretendia demorar-se uma quinzena. A paizagem era aprazivel e agradava-lhe.

--Realmente esta natureza fortalece, retempera e inspira. Estou um tanto fatigado. Aconselhou-me o medico que repousasse. É o que venho fazer. Repousar! ouviste? Nada de compor. Todavia, como o espirito não pode permanecer em plena quietação, porquanto o Nirvana foi feito somente para tomadores de opio, gastarei as horas silenciosas de encerro, no meu quarto, ruminando um novo conto phantastico.

E Ambrosio Raposo desfiou o plano da composição projectada, na qual, segundo dizia, navegaria nas aguas de alguns phantasistas modernos.

-- Não gostas de Marion Crawford? perguntou elle; e como Agrippino não respondesse enraiveceu-se.

-- C'os diabos! Estás distrahido!...

O romancista americano enchia-lhe as medidas. Os seus romances sobre a Italia empolgavam-no; dir-se-hia que a imaginação yankee pedia meças á do proprio D'Annunzio no Innocente, no Trionfo delia morte, em Fuoco. Na opinião delle Raposo, o delirio hysterico do estylo meloso e enfastiante deste ultimo mestre era corrigido em Grawford por uma intensidade de vida peninsular, por estremecimentos de resurreição latina, que mais pareciam a revivescencia genial do espirito de Benvenuto Gelline e de Miguel Ângelo, transfigurado no romance actual da Italia. E Rudiard Kipling? Que lhe dizia deste novo phantasista inglez? Não achava nos seus livros alguma coisa de exotismo, que estudado como arte, poderia aviventar a narração dos relatos e dos dramas nacionaes?

Agrippino continuava obtuso. Sentia nos ouvidos um rumor intolerável; e como empregasse inaudito esforço para acompanhar o engrazamento das idéas, não tardou em experimentar uma inhibição excruciante.

Do rosto cahiam-lhe bagas de suor aos punhos, como si a temperatura, aliás agradavel, tivesse subido ao máximo; a garganta seccava; os olhos ardiam-lhe na febre dos esfalfados por uma grande depressão moral.

Ambrosio Raposo encarou-o com curiosidade.

--Julgava-te de todo restabelecido, amigo Simões! Vejo, entretanto, que sofíres. Que é isto?

Agrippino conservou-se mudo, agitando-se, todavia, sobre o assento.

As meninas da familia mineira, associadas ao primo cadete do Realengo e alguns outros rapazes da mesma procedencia, assanhavam-se nas dansas, enchendo o ambiente duma alegria insobria.

Esse ruido augmentava o mal estar do enfermo.

-- Avant-qiiatre! corbeille! pas de charge!

Agora as metralhadoras! ataca os boers! golpe final! Toca a degola!

Semelhantes vozes militares eram futilidades; mas o povinho divertia-se.

-- Dansa ingênua! diriam. Entretanto, durante essa dansa não eram os abraços e os contactos livres o que menos ameaçava a candura das raparigas.

As duas mães de familia, sentadas de parte, conversavam descuidadas; e si levantavam a vista, uma vez por outra, era para com o gesto cobrirem a retirada dos boers, cujas defensoras seriam ellas.

Ambrosio Raposo e Agrippino sahiram para o jardim, onde o ultimo sentiu-se mais a gosto.

O autor dos Urubus insistia em expôr o plano do conto que tinha em elaboração.

-- Imagina, amigo Agrippino, que a minha novella.. . Chamo novella, porque hei de darlhe não pequeno desenvolvimento. Imagina que a minha novella vae dever a ti o seu maior interesse. Não será propriamente a tua historia, que eu respeito; mas aquella scena do Gorcovado e aquella ecuyère phantastica, que conseguio enfeitiçar-te -- não negues -- pois não somos cegos, -- e o E. Carneiro, delia sabe boas; -- a scena e a ecuyère despertaram-me, pois, a idéa de escrever uma historia macabra -- verdadeiramente macabra, -- o que se pode dizer, evidentemente macabra.

Agrippino não protestou, porque, de facto, não ouvia. O pensamento estava todo cheio de Kate, mas Kate desfeita num furacão, que, dos mais profundos recantos do seu ser, levantava a loucura como uma poesia infernal, e a varria através da sua existencia passada e talvez provável como um bando de figuras desintegradas, esqueleticas, sem proporções, figuras, sonhos, visagens, que lhe lembravam vagamente a tentação de Santo Antonio.

-- Parece que não me estás prestando attenção, disse Ambrosio Raposo, notando os movimentos distrahidos do amigo.

-- Enganas-te; estou muito attento; mas é que preferia recolher-me. Não me sinto bom.

Raposo contristou-se, teve, entretanto, de fazer o resumo da sua historia a um desattento para fartar esse aiitegosto, só conhecido de escriptores, e que lhe borborinhava no cerebro, engatilhado, prompto a sahir.

Ambrosio Raposo imaginava uns amores satanicos, na realidade pavorosos.

O primeiro episodio passar-se-hia numa varanda de theatro. O narrador, na platéia, durante um dos intervallos da peça, examina a galeria dos specimeus da fauna feminina, e de súbito deixa cahir o binoculo.

O que acontece? Depara-se-lhe o real, o verdadeiro nariz de Gleopatra, Cleopatra, sim; a Cleopatra indigena; a Cleopatra, que lhe tem de pôr a urucubaca nos miolos. A Gleopatra dos seus sonhos. A ideal!

Aqui, uma digressão sobre o poder maravilhoso, que os tupinambás attribuiam a certas cunhas, de lançarem dos olhos, com o aroma despedido das axilas, a luxuria na alma dos homens, por quem se interessavam.

O narrador, por influencia da urucubaca, perde o tacto, e o binoculo cahe-lhe das mãos; então vencido, é transportado até aos pés da sereia da noite, que, subjugando-o, impõe-lhe a pena de acompanhal-a ao seu palacio, situado numa das ilhas encantadas da bahia de Guanabara.

É escusado dizer que para o autor do conto, como verdadeiro charmeur, que é, não ha difficuldades. Elle em dois tempos transforma a vida pacata, monotona e suja do Rio de Janeiro, na mais deslumbrante das enscenações de uma historia no genero Gendrillon.

As illuminuras dos Contos Azues de Iwan d'Argent fornecem os apparelhos, as visualidades, as gambiarras, os fogos cambiantes, indispensáveis, para num instante, em plenas Mil e uma noites, pelo poder do gênio, transmutar as enseadas da bahia em fiords alcantilados. As montanhas do Corcovado, da Tijuca e o Pão de Assucar cotivertem-se em abruptos penhascos, perdidos em nuvens iriantes. Os picos dos rochedos são castellos encantados, mysteriosos, de onde griphos e cavallos alados, como no poema do Ariosto, fazem de Santos Dumont; estabelecem communicações apropriadas a essa vida aerea. Saurios verdes, monstruosos, velozes, agitam as aguas simulando o trafego das actuaes barcas da Praia Grande.

A victima embarca num crocodillo, armado em bonde marítimo. Preso aos olhos faiscantes da princeza indigena, acorrentado por seus cabellos negros, orientado pelo seu nariz cleopatrino, atravessa a bahia, no meio do alarido da esquadra de saurios espantosos. D'ahi arrebata-os um hippogripho e os depõe ás portas dou- radas de um palacio aereo, deslumbrante em suas torres phantasticas e barbacans floridas, construido pelo genio no cimo do mais alcantilado rochedo da bahia.

Segue-se a descripção dos mysterios de architectura pensil dessa maravilha. Depois as festas os banquetes e as nupcias. O mytho de Psyché pelo avesso. Aqui o raptado é o esposo.

Assim, o phantasista, de scena em scena, de surpreza em surpreza, chega ao momento terrível.

A fada ministra ao amante o filtro mágico e desvenda o santuario, em que tem escondidos os thesouros do Ibake, que é o Walhala dos Tupys.

A luz cósmica que illumina essa mansão extraordinaria decresce gradualmente; e a feiticeira Oyara, desnuda-se em verdadeira scena pagã.

A victima sente todo o horror do sortilegio.

Ao rosto moreno e alongado a Odyara se superpuzera a feia mascara do destino; e esse corpo, que sob vestes divinaes lhe annunciava perfeições calipigicas, surge como uma ossada, apenas dissimulada pelo pergaminho da múmia.

O narrador repelle, então, horrorisado, o monstro. Mas a deusa ou o demonio o tinha empolgado. Cumprem-se os fados; seguem-se as nupcias da Magra.

Estas nupcias da Magra valeriam ao autor um dos seus melhores capítulos e talvez dos mais licenciosos.

Theorias novas seriam postas em contribuição para justificar o amor dos ossos. E esse recente phenomeno de occultismo dar-lhe-ia base para provar, pelo menos em dialectica sucubica, que a sensação disto que se chama o amor é propriedade exclusiva do espirito, só do espirito. Nada tem com a carne. Phenomeno pura- mente subjectivo.

Agrippino quasi nada ouvira da resumida narração do escriptor dos Urubus. Tomava-o uma somnolencia exquisita; mas ao mesmo tempo, elle sentia que, apenas se deitasse, a agitação e a insomnia atiçariam a vigilia dolorosa.

-- Eis o meu conto ou a minha novella, em substancia, concluio Ambrosio Raposo, despertando o amigo. Os desenvolvimentos, as machinas farão o resto, que, aliiás, é tudo. Terminarei com uma scena fulminante. Oyara não carre- gará o meu heroe para o fundo do mar, como devia fazel-o, obedecendo á sua natureza de amadriade tropical; ao contrario disto, ficará na terra santiflcada em ossos. Ao despertar daquella noite nupcial o narrador descobrirá a terrível verdade. Desposara um esqueleto de nariz cleopatrino. Os ossos, dispersos pelo turbilhão da felicidade, religiosamente recolhidos do pavimento do seu quarto, guardados numa urna de ébano, são entregues ao estudante de anatomia da republica visinha.

A este tempo appareciam Olyntho Bravo e Paulo Motta.

Sempre alegres, cercaram Ambrosio Raposo, a quem vinham visitar.

-- Ora aqui está! Si vocês não fossem retardatarios por vicio, teriam apreciado, em companhia do nosso Dr. Simões, a exposição de um plano de novella.

-- E por signal que bem cheia de caveiras e ossadas, obtemperou Agrippino.

Os dois recemciiegados fizeram pausa. A ladeira tinha-os fatigado. Uma coisa, porém, os estava interessando mais do que a saúde do amigo e as novidades do companheiro de passeio do Gorcovado.

-- Ora, espera ahi, disse Olyntho Bravo a Paulo Motta. Uma daquellas meninas já tarrafeou-me na rua do Ouvidor.

E volvendo-se para Agrippino:

-- Desculpa, caro amigo Simões; sei que teus progredido muito na resolução do teu problema A<B, etccetera, etcoetera,... Disse, quando subiamos o pico do Gorcovado, naquelle dia, si bem me recordo, pavoroso, que eu não sou dactylo, como aqui o nosso Raposo. Sou spondeu.

Portanto, permitte que faça agora ura heraistichio com uma daquellas raparigas interessantes que se estão damnando.

E os dois visitantes adherirara a flirtation, que andava doida pelo salão.

Entre os primos havia conhecidos dos dois poetas. Não lhes foi assim difficil entabolar relações com o grupo alegre.

Para Agrippino, entretanto, recomeçava a crise de susceptibilidade. Repellio as ultimas allusões de Ambrosio Raposo á sua enfermidade; o fechou-lhe a cara.

Não lhe tinha agradado servir de modelo vivo ao conto projectado pelo autor dos ürubús.

-- Mas, filho, acredita: foste apenas suggestivo.

Agrippino exagerava o comico da situação.

De ordinário, nestas occasiões, fallecia-lhe o raciocínio. O impulso animal induzia-o então a volições violentas. Eram como exigencias da dignidade.

Não se prestaria de forma alguma ao ridiculo, que o amigo pretendia lançar-lhe. Uma serie de hypotheses, cada qual mais extravagantes, esfogueteou-lhe o cerebro obtuso, sem que nenhuma dellas conseguisse determinal-o.

Palavras offensivas, truculentas, fulminantes vinham-lhe á bocca; parecia que iam projectar-se como schrapnells sobre Ambrosio Raposo e acachapal-o, sem replica; os lábios moviam-se, mas não chegavam a proferir um som. O impulso covardemente retrocedia como se o atacasse uma embolia da vontade.

O suor tornou a cahir-lhe era bagas da fronte; e o circulo vicioso de idéas adynamicas embrulhou-o por uma vez na elipse da vontade.

Afinal, num supremo esforço, levantou-se e, lançando um olhar de odio facticio a Ambrosio Raposo disse-lhe:

-- Cuido que você não passa de um desleal plagiario da vida intima dos que comsigo convivem.

E deixou o amigo na varanda mais pasmo do que se lhe tivesse apparecido de repente a figura do Tiradentes.

Agrippino atravessou o salão automaticamente; entrou para os seus aposentos; e por largo tempo esteve sentado em uma cadeira a olliar para o chão, sem coragem de despir-se e de recolher-se ao leito. Não jantou. Cahio a noite e as raparigas e os estudantes voltaram a divertir-se.

Até tarde permaneceu naquella posição, quasi inconsciente, apenas sentindo que vivia, porque, uma vez por outra, o despertavam os sons do piano e os brados do marcador das dansas.

CAPITULO X

Ás nove horas do dia seguinte Simões despertou n'um estado de fraqueza indisivel.

A noite fôra-lhe tormentosa.

Recomeçavam as obsessões das formulas de logica synthetica e as torturas do vasio cerebral.

Apezar, porém, do seu desmemoriamento, tomou uma resolução.

Chamou o creado, pediu cognac, e atordoouse. Nesse estado de actividade facticia foi ter com o gerente e liquidou a conta. Isto feito, começou a mudar de roupa para sahir. Nesse instante Salcedo penetrou no quarto como um furacão. O primeiro movimento de Agrippino foi de acobardamento; quiz esconder-se; e si a janella, que dava para o jardim, não estivesse a grande altura, ter-se-ia por ella evadido.

O alcool actuava. Passado o primeiro sobresalto, o doutor sentio que das entranhas subialhe uma cólera de animal acuado. Abotoou o paletot, e, mudo, rôxo de raiva, resoluto para a aggressão physica, encarou Salcedo com energia. O medico, experiente, notando a súbita transformação do seu cliente, mudou também de attitude.

-- Porque abandona a casa? perguntou paternalmente.

Agrippino conservou-se calado. Desviou a vista, e continuou a arrumar numa mala de mão pequenos objectos de toilette.

-- Ora, Simões, não seja creança... Ingrato !

Á palavra -- ingrato -- Agrippino volveu os olhos.

Salcedo notou-lhe no rosto uns tons violaceos, que o assustaram. Agrippino, além disto, estava estrábico. Quiz articular alguma coisa, mas não poude. Então Salcedo admoestou-o, como medico, aíFirmando-llie que, si não cuidasse em si, sobrevir-lhe-ia um accidente grave.

-- Saia! bradou Simões espumando. Saia!

Já lhe disse!

Salcedo sorrio, amarello.

-- Sahirei; mas devo advertil-o de que esta casa é minha. O senhor é hospede.

-- Seja como fôr; não quero vêl-o.

O medico achou prudente retirar-se. Apenas, porém, deixou o quarto, percebeu que Agrippino soluçava. Voltou.

Era deplorável a situação desse infeliz. Uma criança de dois annos, irritada, não offereceria espectaculo tão triste e insensato.

Salcedo, sinceramente ou não, mostrou-se compadecido. Com o carinho, que lhe impunha a profissão, procurou erguel-o, dando-lhe todas as seguranças de que o poria bom, si elle se dispuzesse a ter juizo.

Ministrou-lhe um calmante efflcaz e principiou a chamal-o á razão, contando-lhe casos analogos com muito espirito e apimentando tudo de sainetes castelhanos Trabalho perdido. Agrippino lembrou-se subitamente dos sortilegios de miss Kate.

A imagem dessa mulher, confusa, contradictoria, sinão illogicamente satanica, enchia-lhe o cerebro de uma poeira phantasníagorica, na qual o seu espirito boiava, incerto, como ura navio desgovernado sobre vagas enormes, mas que nunca se quebravam. A sua consciência nadava nos intermuadios da vida espiritual. A imaginação, tomada de enjôo, num dihrio rotatorio, dava-lhe a sensação de circulos, ora muito amplos, ora muito estreitos, cujo eixo deslocava-se a cada instante.

Voltando a si, por momentos, desse afflictivo redemoinho psychico, o enfermo perguntou ao medico:

-- Dr. Salcedo, falle com a mão no coração.

Desde quando conhece essa miss Kate?

-- Desde 1885, respondeu Salcedo.

-- E verdade que o senhor fez-lhe propostas que se não fazem a uma mulher honesta, e que ella o repellio offendendo-o phisicamente?

Salcedo ruborisou-se.

-- Quem lh'o disse?

-- Ella.

-- É tudo exacto; menos num ponto. Não se trata de uma mulher honesta. Si ella repellio-me nessa occasião, não procedeu igualmente de outras vezes.

-- Neste caso foi sua amante?

-- Por dias... como o foi de muitos cavalheiros, que não lhe são desconhecidos.

Agrippino, num assomo de vergonha, começou a passeiar de um para outro lado do aposento.

-- De sorte, que eu fiz um bellissimo papel!

Salcedo soltou uma risada. Condescendia.

-- O senhor cahiu como tem cahido tanta gente bôa nesta terra. Pensou em divertir-se.

Divertio-se. Não o censuro por isso. Mas o que eu não perdôo é a extravagancia dos últimos dias, quando se lhe recommendava que tivesse juizo.

-- Diga-me, tornou Agrippino consternado, diga-me: quem é, emfim, essa mulher?

Salcedo protestou, fazendo-lhe vêr que seria melhor abandonar essa indagação e voltar á hygiene antiga.

A imagem de Kate, porém, não o deixava.

Insistio; encolerisou-se. Salcedo cedeu.

Quem era essa miss Kate? Não havia na colonia estrangeira, principalmente na ingleza, quem não a conhecesse como a brilhante ecuyère do Frank Brown. Uma mulher de rara formosura, de formas admiraveis, de uma inteUigencia extraordinaria, educada funambulescamente por illusionistas celebres. Salcedo pouco sabia de sua vida anterior á vinda para o Brazil. Constava-lhe que estivera com Barnum e que depois se exhibira como médium em companhia dos Davenports. Dizia-se que em uma excursão á Rússia, como mulher de imaginação, que era, além disso yankee, tivera o capricho de acompanhar um nihilista e instruira-se na literatura libertaria. Suppunha-se que, sendo perseguida, fugira para a Inglaterra onde, o Frank a acolhera como ecuyère do circo, que aqui deu tão bellos espectaculos.

O Rio de Janeiro então arrebatara-a. Aventureira de alto cothurno, não lhe foi difficil mystificar nesta capital um banqueiro celebre e cobrir-se de diamantes. Nada de mais haveria em toda essa historia de funambula, si Kate não houvesse pretendido embahir a roda higlilifeana, apresentando-se como rainha de um salão artístico. Deu festas equivocas no seu palacete da rua da Gavea e não foram poucos os magnatas, que ou no jogo, ou na antecamara de Aphrodite, se deixaram arruinar pelas loucuras dessa diva.

Ultimamente, porém, as aptidões adquiridas com os Davenports induziram-na a thronejar em praticas de occultismo. Desde essa epocha a sua casa convertera-se em casa de sabbats.

O Cagliostro feminino a não poucos fizera o juizo andar á roda. Propinou philtros e realizou experiencias, que passavam a exercícios de pura bruxaria.

Em summa: Kate era uma mulher perigosa.

Perigosissima porque tinlia sido abandonada pelo banqueiro. Sem recursos, queimava os seus navios. As suas faculdades de aventureira intelligente já a tinham posto sob a vigilância da policia.

E a historia que ella própria contava da sua vida? Quanto a essa historia, tudo mentira.

Uma das suas manias era inventar romances biographicos.

Agrippino, ouvindo esse relatorio terrível, ficou pallido. Não podia descer a um estado de infantilidade mais característico. A sua credulidade era de tal ordem, que nem por instincto comparativo, lembrou-se de cotejar essa narração com a de Kate, que no emtanto lhe parecera tão natural.

No semblante de Salcedo, divisou, porém, um rictus extranho. A expressão dos olhos mordicava-o. Essa perversidade do olhar do medico despertou todo o passado de quarenta e oito horas vivido phantasticamente no palacete da Gavea.

Resurgia o monstro. O fingido amigo, o charlatão, o sacripante, o explorador da bondade publica, o homem dos sanatorios e de quejandas assistências caritativas fundadas no azinhavre da uzura, cresceu deante delle como o assombro da sua existencia. Agrippino recuou, espavorido, pondo-se em guarda; interrogou-o com o olhar quasi desvairado.

A voz custava a desprender-se-lhe da garganta. Por fim a palavra estertorou num vomito de indignação.

-- E apezar de tudo, o senhor que era medico dessa aventureira, em Icarahy, recommendou-me que a amasse... por um mez.

-- Mas note... que foi só por um mez. É o senhor mesmo que o confessa.

Salcedo sentio que um movimento aggressivo se processava contra elle naquelle organismo desbaratado. Afastou-se para um canto do quarto e, por instincto de conservação, poz a mão sobre o encosto de uma cadeira.

O enfermo continuava a olhal-o desvairado.

-- Dr. Agrippino! Dr. Agrippino! bradou elle, dando ao gesto a maior energia de que podia dispor a sua arte de expressão tragica.

-- Não, Salcedo, infame! miserável! Não me illudes mais! Bem conheço agora os teus processos de hypocrisia sensual Avançou, de punhos cerrados, para o seu ex-amigo e medico, e tentou esbofeteal-o. Salcedo ergueu a cadeira e a antepoz como escudo á attitude hostil do enfermo.

A furia de Agrippino tomara proporções aterradoras. Rangiam-lhe os dentes; e dir-se-ia até que os cantos da bocca aljofaravam-se de uma espuma ensangüentada. Dos seus lábios romperam palavras entrecortadas.

-- Pensas, então, monstro, que te não leio n'alma o que premeditas contra mim? Vejo tudo. Desejas Kate como um satyro bebedo; e calculas inutilizar-me com as tuas drogas.

O medico estremeceu.

A porta abrira-se. Appareceram os criados e um enfermeiro.

Agrippino, empallidecendo outra vez, estacou, e cahio sobre uma cadeira, frio, gelado, com o olhar vidrado, sem que, entretanto perdesse os sentidos.

-- Uma crise macbetheana, murmurou Salcedo para o enfermeiro. Acaba de despertar da vertigem epileptica.

Com effeito o doente passou a mão pelos olhos, depois pelos cabellos, e vagarosamente, como si nada houvesse succedido, juntou a mala de mão e os mais objectos miúdos, entregou-os ao creado de quarto, poz o chapéu na cabeça e sahio.

Pelos corredores as meninas mineiras e al- guns empregados da casa espreitavam atoni- tos a despedida do doutor.

Ao passar pelo porteiro disse, dando-lhe uma nota de cinco mil reis:

-- Lembranças ao Ambrosio Raposo. Não se esqueça!

Durante esse dia Simões não parou por muito tempo na pensão da praia do Flamengo. Sahio de casa varias vezes como atacado de uma febre de locomoção. Por ultimo dirigiose a pé para o centro da cidade.

Que ia buscar? Não sabia; Sentia uma necessidade imperiosa de andar, de mover as pernas, de deslocar-se. Dava-lhe allivio esse movimento. Embora esquecido de tudo, para dizer melhor, adormentado, apenas agitava-se e reflectia em qualquer assumpto, sentia invadir-lhe o pensamento a maldita formula A<B.

-- Que tenho eu com essa formula inexpressiva? dizia comsigo mesmo.

A formula, entretanto, repontava-lhe no espirito, como uma dessas moscas importunas que teimam em pousar em nosso rosto, na testa, sobre os olhos, nas faces, nas orelhas, no pescoço.

Produzia a agonia terebraiite do pingo d'agua a correr tenaz pelo fio da espinha dorsal.

A volta insistente da idéa fixa acabou por trazer-lhe um principio de ainnesia de si mesmo. Assim como os membros do corpo tornamse dormentes por influencia do narcotico, o eu também, em certas occasiões, esquece-se, e o agente, entregue á vida puramente vegetativa, divaga, perambula, inaccessivel á fadiga phisica.

Agrippino conheceu que ia entrar nesse estado de transição mórbida, e todavia não buscou reagir por meio de excitantes. Deixou que a natureza seguisse o seu curso logico.

A rua do Ouvidor foi-lhe nesse dia de uma indifferença mazorral. Percebeu no fim de algum tempo que a tinha percorrido, de vante á ré, repetidas vezes, sem que guardasse a mais leve impressão das lojas e das vitrinas. Os vultos das pessoas, que por ali andavam, fugiam como figuras de kaleidoscopio. Desse passeio ficaram apenas sensações vagas de sombras phantasticas. Um rumor cryptogamico e diffuso, oscillações de luz e encontrões com os corpos dos transeuntes; de mais nada se lembrava.

No meio dessa obtusão dos sentidos somente a vista trabalhava, guiando-o através do confuso movimento da rua; mas, a cada instante, as linhas das hombreiras das portas, ou os meios fios da calçada se transformavam na forma cabalística, que absorvia toda a sua intelligeucia.

-- A<B... A<B... A<B...

Onde quer que se lhe offerecesse um angulo, estava a formula suggestiva, ajustando-se, conibinando-se. E assim, entregue á ruminação psycliica, que já não o atormentava, que o fazia adormecer em pé, antes o entretinha, como a masca de fumo, que o vicioso leva a resmoer na bocca por longas horas. Agrippino, andando sempre, gyrando, locomovendo-se, quando deu acordo de si, estava mergulhado num grande tumulto de gente, dentro de vasto galpão de ferro. Era a plataforma da Estrada de Ferro Central.

Partia um trem suburbano. Simões entrou; sentou-se. Vagamente se lhe afigurava que toda aquella gente fugia da cidade. E tornou a cahir na ruminação extravagante.

Em Cascadura o conductor o despertou para que sahisse do carro.

-- Tão cedo! exclamou, admirado.

Tinha perdido a noção do tempo.

Na plataforma íiavia um rumor insolito de pessoas que entravam e sabiam. Agrippino custou a perceber que se tratava de uma festa suburbana do orago da freguezia. No adro da povoação uma banda militar executava um taiigo amaxixado.

Entre kiosques embandeirados, arcos de folhas de mangueiras, barracas de jogos, onde se bebia cerveja e capilé, o povo circulava numa agitação vermicular, sem ordem, sem harmonia, sem esthetica, mal vestido, disposto mais ás rusgas do que a alegria verdadeira.

O doutor andou pelo meio dessa turba incolor e aicoolisada durante alguns minutos; depois voltou a metter-se no carro, que descia. Ao approximar-se do trem alguém fallou-lhe. Um irmão das almas, de opa esfarrapada, empunhando a classica vara de metal oxidado, resmungou-lhe era voz fanhosa:

-- Para a cêra de Santo Antonio!

E estendeu-lhe uma bandeja estanhada, na qual, entre cocadas, ovos e moedas de nikel, dormia symbolicamente um calunga mal encarnado, com pretenções á imagem do respeitável patriarcha.

O doutor olhou de esguelha p^ra o esmolador e automaticamente lançou-lhe uma moeda de tostão.

Nisto pareceu-lhe que o resplandor do santo traduzia-lhe a ineffavel formula A<B. Agrippino já se não revoltava; nem mesmo pelo cerebro lhe passou a idéa da sua miséria intellectual. Em melhores dias, um facto como aquelle seria motivo para uma hora deliciosa de considerações sociologicas sobre as superstições populares, sobre a degenerescencia das religiões: uma pagina de mythologia comparada.

Mas naquelle instante a sua erudição estava talvez dez pontos abaixo de zero; e tudo quanto aprendera varrera-se-lhe da cabeça, como pó soprado por tufão de agosto.

Sacudido pelo impulso deambulatorio, tomou o carro, e, no mesmo estado apathico, saltou na estação central. Saltou é um modo de dizer:

de envolta com o povo, que regressava dos suburbios, foi vomitado para dentro de um bonde das barcas Ferry.

No largo Quinze de Novembro sentio uma impressão horrivel de vacuidade no estomago.

Seria fome? As pernas formigavam-lhe. Desceu do vehiculo; passou pelo gradil da igreja do Carmo e embarafustou pela escada do hotel do Globo. Sentou-se a uma mesa. Havia luzes. Um vulto de creado chegou-se a elle e murmuroulhe palavras inintelligiveis.

-- Que lhe desse qualquer coisa para jantar.

Que horas seriam? O dia passava com pasmosa rapidez. Não soube o que comeu. Levantou-se; sahio.

Ao chegar em baixo, na rua, assaltou-o uma duvida. Teria pago o jantar? Não havia certeza disso. Voltou. O creado mostrouse surprehendido.

Agrippino pagara effectivamente a nota com uma cedula de dez mil reis, e até, com um aceno, dispensara o troco.

Tornou a descer, angustiado; mas a angustia, mal esboçou-se, desappareceu. Os sons fanhosos de um graphophone, na estação das barcas, dissiparam-lhe o mal estar. Parecia-lhe que a voz da Patti, no Bacio, vinha de um subterrâneo, de muito longe, através do um corredor muito escuro e cheio de humidade. O pensamento voou ao passado. Eram scenas do Scala, em Milão, que esfusiavam dos recantos da memória.

Não se demorou muito tempo entretido pelo graphophone.

Partia a barca. Confundio-se com a multidão e transpoz o pontilhão. Durante a travessia, derreado num banco, com a cabeça inclinada sobre o encosto, dorniio. Era effeito da digestão; o somno não lhe fez mal.

Quando despertou davam nas torres das egrejas onze horas da noite.

Provavelmente Agrippino tinha realisado duas viagens á Praia Grande, sem se aperceber disto. A barca atracava á ponte do Pharoux.

Á meia noite, emfim, recolhia-se á pensão da praia do Flamengo, com a consciência vasia e o corpo estenuado.

CAPITULO XI

O mez de Setembro no Rio de Janeiro corre quasi sempre numa temperatura branda e favoravel ás pessoas nervosas. Simões atravessou-o tristemente, mas sem exaltações. Outubro entrou, porém, com um veranico e grandes calores.

Despertando uma manhã muito fatigado de pesadelos, o doutor olhou para o creado mudo e vio que ahi tiniiam posto duas cartas. Abrio-as com sofreguidão. A letra era de Salcedo. Leu com difFiculdade a primeira. Atirou-a ao chão indignado: continha conselhos ironicos e terminava por uma proposta irrisória de tratamento por via epistolar, annullando o que em missiva anterior lhe suggeria relativamente a um possivel encontro com miss Kate.

Na carta de data anterior, que Agrippino passou a examinar letra por letra, liavia uma inaudita perversidade.

Kate, estava enferma, dizia Salcedo. Entregue aos seus cuidados médicos, pedira-llie com instancia que fizesse chegar essa noticia ao conhecimento do seu estremecido amigo Simões.

Na miseria e gravida! Agrippino horrorisado deixou cahir o papel cujo sentido não lhe parecia claro; apanhou-o e releu. Os vocabulos caminhavam. De súbito pela face lisa e branca da carta a phrase crespa, abominavel, feroz, infernal, corria como um escorpião, de antenas suspensas e croques abertos, ameaçando picar-lhe os dedos e saltar-lhe aos olhos.

Ás onze horas almoçou, sem appetite; deu algumas voltas pela casa e sahio ruminando um capitulo de psychiatria calcado sobre a carta de Salcedo. Mas então reparou que o bonde, que havia tomado, era o da Gavea.

A carta do medico, apezar do proposito, em que elle estava, de não ligar-lhe valor, movia-o numa direcção desconhecida.

Ao passar pelo palacete de Kate notou um movimento extranho. Desceu do bonde. Varou o jardim e approximou-se do perestylo, onde havia um cartaz do leiloeiro.

Curiosos estacionavam do lado de fóra. Dentro pretendentes a trastes usados percorriam as salas e examinavam vagarosamente os moveis de luxo, fazendo cálculos pechincheiros. A casa offerecia em sua totalidade o aspecto triste das liquidações por motivo de penhora.

Agrippino sentio uma brusca reviravolta para o passado.

-- A quem pertence isto? perguntou a um indivíduo magro e esgalgado, que pareceu-lhe ser o ajudante do leiloeiro.

-- A uma estrangeira do high-life, respondeu o interpellado, sublinhando com os olhos piscos a ultima palavra.

Um dos circunstantes interveio.

-- Do high-life?! Diga: uma cocotte e das de trez assobios.

-- Porque falla assim? inquerio Agrippino, quasi a explodir.

-- Então, não sabe? Essa mulher envenenou aqui a muita gente bôa. Veja os artifícios de que se utilisava.

Instinctivamente Agrippino correu ao quarto de dormir. O que ali se passava renovou-lhe todas as angustias que cor tira durante um mez.

Lá estava a panoplia, privada do seu yatagan.

O leito, profanado pelas vistas dos licitantes, servia de motivo ás mais cruas pilhérias dos que iam chegando. Agrippino, enjoado, procurava com os olhos alguma coisa. Por fim, rompeu-lhe do peito um ah! estrepitoso. Curvou-se, e, mergulhando o braço, sacou de baixo do rico movel a arma mourisca, cujo desapparecimento tanto o affligira.

-- É da panoplia, reflectio um curioso.

Simões, sem se importar com a observação, metteu o yatagan debaixo do braço e dirigio-se ao leiloeiro, que nesse momento entrava em funcção. Propoz-lhe a compra da panoplia fosse por que preço fosse; e quanto a arma elle a levaria desde já. Por mais exquisita que parecesse essa proposta, o leiloeiro não se oppoz.

Agrippino experimentou um allivio enorme, quando, enrolada a arma em ura jornal, poude descer as escadas e regressar a casa com o seu tropheu.

Aquelle pedaço de ferro afiado e recurvo era um documento de altissima importancia. Provava simplesmente que elle, como bem dissera a americana, não passava de um somnambulo perigoso. Um grande apasiguamento desceu-lhe n'alma.

-- Kate, uma cocotte! murmurou. Não lhe negarão, porém, a soberania com que exerce as suas qualidades de mulher affectiva e intelligente!

No bonde, deu-se um incidente, que interrompeu esse principio de reconciliação mental, que se ia processando no espirito do doutor.

Dois passageiros discutiam Kate. Agrippino apurou o ouvido.

--Suspeita-se, dizia o primeiro, que a americana fugio para os Estados Unidos, levando comsigo grandes quantias.

-- Ora! Mulheres dessa laia descem e sobem caprichosamente como o cambio!

-- Você engana-se. Miss Kate não é uma cocotte vulgar. Especie de Rattazzi, ultimamente envolveu-se em altos negocios bancarios; e como era de esperar, fallio.

O outro interlocutor deu uma gargalhada, e passou a referir casos estramboticos da Rattazzi americana.

Essa versão coincidia com as historias de Salcedo. O narrador continuou a referir successos, que bem pareciam com os delle proprio Agrippino. Fallava em filtros, em experiencias de vaporisações aphrodisiacas, em captações de dinheiro, em tanta coisa feia, que o doutor esteve quasi a intervir. Conteve-se. Não era conhecido dos dois passageiros indiscretos; ficou silencioso.

Muitos nomes da haute-gomme do Rio de Janeiro foram pronunciados; mas Simões achou extravagantes as allusões a esses nomes, porque, durante a sua estada ao lado da americana, não percebera o minimo vestigio dessa gente.

A policia, diziam, andava-lhe na pista, não pelo que se lhe attribuia como mulher de altos negocios, mas porque, deixando a bella vivenda da Gavea, fizera-se entremetteuse e cartomante.

-- Ha ahi um marido, que acaba de crear-lhe um situação difficil.

Agrippino, escutava tudo isto maravilhado.

Como poderia admittir que essa baixa exploradora da concupiscencia alheia fosse aquella mesma miss Kate, que dias antes, no salão do palacete da Gavea e no belvedere da montanha, lhe dera sensações tão elevadas? Uma mulher bella, seductora, cultivada, de imaginação artística, por mais depravada que fosse, nunca desceria ao vil papel de proxeneta. No vigor dos annos, na flôr da formosura, na primavera do espirito, seria o maior dos absurdos! O proxenetismo só é compatível com a velhice e com a feialdade. Nada disto, portanto, tinha visos de verdade.

A imagem de Kate plantou-se-lhe de novo no coração; mas agora essa imagem assumia as proporções de um sonho balsaraico, restaurador.

Desvaneciam-se todas as particularidades da vida singular, da existencia mysteriosa dessa mulher; e aos olhos da sua alma surgia com exclusão de quanto podesse perturbar-lhe o extase, a imagem que elle contemplara junto ao piano, hirta e bella, fremente de amor e de volúpia.

Chegando á garçonnière do Flamengo, recolheu-se engolfado na contemplação de Kate; guardou o yatagan; e conservou-se por algum tempo envolvido nessa atmosphera de mysticismo. A imagem de Kate, em todo o esplendor de sua belleza divina, não o deixou por longas horas. Á tarde, porém, depois de ter jantado, quiz evocar a figura da amante; baldado esforço! A imaginação, rebelde, fatigada, recusava reconstruir os traços, ainda que vagos, daquella, que momentos antes vivia junto de si tão viva e palpitante como se presente fosse.

Uma lucta feroz travou-se entre o desejo e memória recalcitrante. Agrippino tentava esboçar no espaço o desenho das formas de Kate, as suas feições, o seu talhe, as originalidades das turvas do seu corpo divino; mas era vez dos relevos sensuaes das carnes, surgiam os schemas daquellas alavancas conjugadas, que o tinham perseguido tantas vezes.

Cessaram os haustos platonicos que horas antes lhe estavam pondo n'alma um socego tão delicioso.

A orgia da synthese, como elle dizia, apossou-se-lhe do cerebro. Não vio mais nada de concreto; e no meio de uma atmosphera cinzenta, para hão dizer incolor, tripudiavam zig-zagueando as mais estúpidas combinações de cifras, de formulas, de termos technicos, de signaes algebricos. Porfim surgio o miserável, o impudente, o assassino A<B. Começava a dansa macabra. E assim esteve o desventurado enfermo até quasi escurecer.

No relogio da casa soaram seis horas. Agrippino deu um pulo. Lembrara-se da segunda carta de Salcedo. Não havia tempo a perder. Pôz o chapéu na cabeça; metteu por cautela um revolver no bolso da calça e correu para a rua do Gattete. Passava ura bonde do Jardim Botânico; subio. Nos miolos ardia-lhe uma palavra obsedante.

-- Leblon, n.o 13... Leblon, n.o 13.

A impaciência o devorava. A idéa de que ia ver a ex-amante transmittia-lhe uma energia extraordinaria.

Como era vagarosa a tracçâo do vehiculo!

Ao lado delle um passageiro lia um jornal da tarde. Agrippino poz os olhos nos caracteres da folha para distrahir-se, e leu a palavra -- democracia -- no cabeçalho de um artigo. Os typos normandos fixaram-se-lhe por alguns segundos na retina; depois desarticularam-se; e diante dos seus olhos começaram a passar todas as combinações em que podiam entrar as letras radicaes desse vocábulo.

-- Democracia, democrata, democraticamente, democratisação, democratisante. Democrito.

Porque Democrito? A que vinha esse Democrito? E bruscamente as suas idéas embaralharam-se no atomismo do philosopho grego.

-- Só duas coisas existem em realidade, pensava elle, o átomo e o vácuo. Seria então verdade que os mundos, a vida e o espirito do homem não existissem senão como resultado da queda perpetua das myriadas no espaço immenso e insondavel? Esses atomos subtis, de que o pliilosoplio pretendeu compor a alma, não eram uma brincadeira?

Soltou uma risada. O visinho, que lia o artigo sobre a democracia, estremeceu.

O sujeito olhou espantado para Agrippino.

Vendo-o, porém, quieto, continuou a leitura difficil á luz do lampeão de kerozene que toscanejava.

Os atomos, entretanto, continuavam a solicitar a imaginação de Simões. Agora eram pontos, vírgulas, pontos de exclamação, signaes interrogativos, colchêas, e tutti quanti; signaes ortographicos, musicaes, algebricos, que pareciam cahir como uma chuva no espaço e escureciam o tempo. Depois engalfiniiavam-se, alongavam-se, retrahiam-se, abraçavam-se, iam, vinham, rodopiando em valsas delirantes; perdiam-se ao longe, logo concentravam-se e, por ultimo, dividindo-se em columnas cerradas, empenhavam-se num combate truculento, no qual esquadrões de semifusas, cavalgando formidáveis bemóes e empunhando sustenidos, levavam de vencida toda a infantaria grammatical e algebrica, que tentava resistir-lhes.

Agrippino não ria mais; nem mesmo para dentro. Transpirava, reflectindo, com esforço, na puerilidade que se encerrava em tudo aquillo.

-- Não vejo, murmurou elle, como dois atomos possam dar uma sensação ou uma idéa.

Uma... Digo eu... 1 + 1 = 1... absurdo!

Maior absurdo, entretanto, era o angulo recto que o balaustre do bonde formava com a linha horisontal da architrave. Este angulo, aberto para fora, voltando-lhe o vertice, offerecia-lhe a menor. Porque? Porque sentia-se eternamente repellido e amesquinhado a resvalar pelos lados externbs desse angulo e o Universo, triumphante, superior a tudo? Quem inventara essa miséria? Qual o mathematico que concebera essa formula trucidante? Ah! Si elle pudesse tornar-se superior ao angulo! Si o engulisse pelo vertice! Era possivel engulir um angulo?

Por que não?

E Agrippino experimentou a necessidade imperiosa de dirigir essa pergunta a quem quer que fosse.

-- O senhor acha que um burguez, -- não direi um burguez, mas que um mathematico possa engulir um angulo?

O interrogado deixou cahir o jornal e encarou o interlocutor, exclamando:

-- Não sou maluco!

-- Obrigadissimo! tornou Agrippino muito pálido.

E fez parar o bonde. Apeou-se, puchou o relogio; eram 7 horas. A rua para onde ia estava perto.

Dirigio-se ao ponto. O sitio era pouco habi-tado; os lampiões de gaz lançavam uma luz mortiça sobre cercas de espinheiros e muros de alvenaria. A rua não tinha calçamento. Ás apalpadelas, porque o terreno era encharcado, Agrippino foi andando em cata do numero fatidico, até que alcançou uma taberna. Ahi provavelmente dar-lhe-iam indicações precisas. O caixeiro, encostado ao balcão, conversava com uma preta, que fazia compras; dois mulatos pernósticos fallavam sobre as ultimas correrias da policia contra os gatunos nocturnos. Agrippino entrou desconfiado. Ninguém poude informal-o si por ali morava uma estrangeira. O n.o 13 até poucos dias não tinha morador. Si ahi morava alguém era pessoa habituada a entrar tarde da noite.

Descoroçoado Agrippino sahio no proposito de procurar outros informantes; quando, porém, havia dado uns vinte passos, ouviu um sciu! e estacou. Era a preta.

-- Portuguez não quiz fallar, disse ella soltando baforadas de aguardente. Meu senhor quer saber quem mora no n.o 13? A negra póde dizer.

-- Mas quem é você?

-- Sou a mucama da madama. A senhora prohibio que eu dissesse quem ella era.

Agrippino tossiu, fazendo um gesto de desagrado, -- Ah! meu sinhozinho. Preta não entende coisas de branco. Moça ingleza, muito bonita, está ahi ha poucos dias. Diz que foi rica; mas está pobre. Não sae de dia. De noite vae a theatro, quando não vem coupé á porta.

Agrippino ouvio tudo, suspenso por um terror crescente.

-- Vem cá. Tu serias capaz de prestar-me um serviço? Dar-te-hei dinheiro.

E ao mesmo tempo tirou do bolso uma cédula de dez mil reis.

-- Toma. Si fores fiel dobrarei a parada.

A preta empalmou a cédula com avidez e desfez o semblante num riso de indizivel satisfação.

-- Que é que meu senhor quer?

-- Nada; apenas que me digas a verdade.

-- Meu senhor pergunta.

-- Essa ingleza, como dizes, recebe namorados ?

A preta hesitou. Depois de alguns segundos respondeu.

-- Não senhor.

-- Em que se occupa durante o dia?

-- Lê livros bonitos. Canta; toca piano.

Dorme.

-- Só?

-- Ás vezes vem ahi outras moças bonitas como ella; mas quando estas chegam, sinhá ingleza fecha a sala. Negra não vê nada.

Ouviu-se um tropel de cavallos, e perto rodaram dois carros. Passou uin coupé fechado e logo outro, os quaes pararam adiante, defronte de um chalet, que se occultava na folhagem.

Agrippino prestou attenção e vio apeiarem-se successivamente dos dois vehiculos, uma dama envolta em peliças que lhe escondiam a figura, e um cavalheiro, em quem immediatamente recoaheceu Salcedo. Agrippino ficou fora de si.

Voltavam os sortilegios. Para elle não havia mais duvida de que os dois combinavam-se cora o fim único de perseguil-o.

As obsessões anteriores relativas ás mysteriosas tendencias de Kate invadiram-lhe o campo da consciência. A repugnante phisionomia da preta ainda por cima vinha fortalecer esse estado. Recordou-se das bruxarias do celebre conto de Tcheng-Ki-Tong.

Que fazer? Como defender-se?

Nunca em sua vida Simões sentira o que estava então sentindo. A mais vil superstição o dominava; e o assombro se lhe estampara no rosto por tal feitio que a preta recuou assustada.

-- Não me deixes, rapariga; não me abandones, pelo menos por agora. Acompanha-me.

Era triste de ver-se um homem, eifectivamente illustrado, e que por tantos annos flana- ra através das idéas do século, com o riso ironico nos lábios, reduzido a tão deplorável infantilidade. Agrippino bestialisava-se. A natureza não recuava diante da nobreza intellectual do personagem, e inexorável impunha-lhe o veto á vontade, encarcerando-lhe a intelligencia num infernal sabbat.

O doutor, apezar de todos os orgulhos de casta e de sciencia, teve de pedir, de implorar, naquelle momento de naufragio psychico, o soccorro e as luzes de uma preta boçal e aguardentada, que compadecida o guiou até junto de uma cerca contigua ao chalet de Kate.

Que ia acontecer? Agrippino estava assombrado. Os cabellos plantavam-se-lhe na cabeça como estrepes; o sangue gelava-se nas veias; paralisava-se-lhe a vida, tudo, até a sensação da própria resistencia physica.

Do lado opposto da rua resvalaram sombras; trilaram apitos acompanhados de um clamor de vozes desencontradas, e, antes que esse clamor se aproximasse, Simões poz a mão como uma garra no braço da negra e arrastou-a, através dos espinheiros, para dentro do terreno baldio contiguo ao n.o 13.

-- Não precisa isto, murmurou a mucama, procurando desenvencilhar o braço dos dedos hirtos de Agrippino. Policia anda atraz de gatuno.

-- Gatunos! exclamou elle com os olhos quasi fora das orbitas. Gatunos! Tu dizes que são gatunos ?...

Internaram-se, apezar da opposição da preta. O alarido posto na rua pela policia e pelos chacareiros que aliçavam o ladrido dos cães, perdeu-se ao longe. Ouviram-se algumas detonações de revolvers e tudo voltou ao silencio antigo. O pavor de Agrippino não se desvanecia.

O sitio era suspeito. Havia no fundo do terreno uma meia agua abandonada, cujas portas já o tempo destruirá. A luz dos lampeões da rua mal deixava esboçarem-se na sombra os vultos de algumas mangueiras velhas e a parede empenada do edifício quasi derruido. Aflgurava-se um antro qualquer de feitiçarias, igual a tantos outros, cuja descripção lêra, quando menino -- e com que prazer! -- nas paginas de Walter Scott e de Anna de Radcliffe.

O assombro crescia. O sussuro do vento na ramaria do arvoredo transformou-se-lhe aos ouvidos em suspiros de larvas e lemures que desfilavam por entre a meia escuridão do sitio.

Os pyrilampos palpitando no meio das folhas verde-negras pareciam-lhe olhos de animaes phantasticos, que o espreitavam com a ferocidade esgarçada nos dentes.

Os ladridos recomeçaram e aos poucos se foram avisinhando. Agrippino quiz fugir; mas a preta poz-lhe a mão no hombro:

-- Meu senhor, não corra. Soldado vae pensar que é gatuno.

Agrippino quedou-se. Entre os arbustos apontava o kepi de uma praça. Ao longe uma matilha de cães acuava um animal que se escondia. Simões, no auge do terror, desorientado, desenvencilhou-se das mãos da preta, que lhe seguarava a roupa e atirou-se, louco, desesperado, em direcção ao muro que separava o terreno baldio do chalet n.o 13.

A escalada foi violenta. Do lado opposto o nivel do solo ficava muito a baixo da aresta do muro. Na precipitação com que o transpoz, Agrippino perdeu o equilíbrio e projectou-se com todo o peso do corpo sobre o meio fio de uma calçada, que dava accesso para as dependencias da casa. E perdeu os sentidos. Não foi longo o deliquio causado pela queda. Erguendo-se, ainda atordoado, procurou saber onde estava. Não custou a reconhecel-o, apesar da nevoa crepuscular que lhe turvava a intelligencia. Uma intensa dôr de cabeça o aífligia. Sentou-se no meio fio da calçada e esperou. Súbito lembrou-se de Kate. Era ali que ella devia estar,-- à hedionda feiticeira.

Da casa partia um rumor de vozes de pessoas que falavam baixinho. Da preta, nem vulto. Agrippino olhou para o chalet. Havia luz discreta na sala da frente. Ampla varanda, atufada de orchideas e madre-silvas, precedia o aposento. A vivenda tinha a feição de uma cottage ingleza. Cautelosamente elle approximouse do outão, trepou num canteiro; e d'ahi conseguiu enfiar a vista por uma janella, de onde rompia a luz tenue do gaz, a meia força.

Uma mulher de cabellos avermelhados, estendida sobre uma mesa, quasi nua e cercada de apparelhos, cuja utihdade não poude descobrir, contorcia-se como num accesso epileptico. Ao lado delia um homem armado de um instrumento, observava-a fazendo justa-posições, aqui, ali, além, como quem explora as superfícies de um corpo. Havia outras pessoas na sala. Numa volta o rosto desse homem appareceu illuminado pelo gaz.

Agrippino sobresaltou-se e desceu. Tumultuavam-lhe no cerebro idéas pavorosas. Pensou na fuga; dirigio-se para o portão, mas presentindo que as portas da sala estavam escancaradas, recuou, e foi esconder-se entre a folhagem dum caramanchão.

Passaram-se minutos em atroz anciedade.

Duas raparigas, duas elegantes, sahiram, dando gargalhadas, e, transposto o portão, sumiramse na penumbra da rua. Ouviu-se o rodar de um dos coupés e depois fez-se o silencio. Gerraram-se as portas da frente. Agrippino percebeu então, um movimento de cadeiras e uns gritinhos de hysterismo. Sussurrou a voz masculina. Mas não lhe foi possivel entender o que dizia.

Transcorreram novos angustiados minutos.

Nisto escancarou-se outra vez a janella e a voz de Kate soou-lhe aos ouvidos nurna volata de contralto, que nutri segundo, fez-lhe passar pelo cerebro todo o formoso idylio de Icarahy. Era a suggestão mysteriosa da voz feminina; o symbolismo de uma alma incompreliensivel.

Agrippino escutou. Depois descerrou-se uma das portas, e, antes que elle tentasse vencer o espaço que o separava da rua, um vulto de mulher estacava diante do caramanchão. Deslisou como um espectro. Não se distinguia senão o recorte da figura na penumbra, porque a luz que vinha do chalet illuminava o vulto pelo lado opposto, cercando-o de um nimbo phosphorescente. O doutor quiz fallar, quiz erguerse do banco; não poude. Sentiu-se paralytico e completamente aphonico.

O espetro o estaria contemplando?

Agrippino, immobilisado, vio-o sumir-se lentamente por entre os arvoredos do jardim.

Alguma coisa, todavia, repercutiu-lhe nos ouvidos ou na alma. Ou quem sabe si não teria sonhado com Kate? Ella então exprobava-o da ingratidão. Dizia-lhe de Salcedo coisas horríveis. E acenava-lhe com paraisos novos e indisiveis. Tornavam as antigas humilhações eróticas.

Num movimento de quem se assenhorea de si, conseguio erguer-se, e sahir do caramanchão que o mystificava. Tudo voltara ao silencio e á escuridão. Encorajado, atravessou o jardim, e ganhou a rua deserta. As tabernas já se tinham fechado.

Ao chegar ao ponto onde descera do bonde, parou. Puchou o relogio; eram dez e meia. O tempo, portanto, transcorrera com uma enorme rapidez. O som de uma campainlia repercutio ao longe. Uma matilha de cães vadios atravessou, a trote, silenciosamente, farejando a sargeta da rua.

Um coupé rodou dando volta na esquina próxima e veio parar justamente defronte delle.

Na portinhola agitou-se uma mão. Agrippino pensou que fosse o segundo vehiculo que estacionara perto do chalet. Não o vira mais ao sahir.

Era com effeito Salcedo que o chamava.

-- Dá-me uma palavra!

Agrippino hesitou; balbuciou uma negativa; quiz recuar, mas, por fim, attrahido por uma curiosidade invencível, approximou-se do carro.

-- Desculpe a minha imprudência. Vendo-o não quiz deixar de communicar-lhe o desastre de miss Kate.

Agrippino estremeceu.

-- Como desastre?

Salcedo explicou-lh'o em poucas palavras.

A americana mudara-se para o chalet n.o 13, havia poucos dias. Sobrevindo uma molestia de fundo nervoso, fôra chamado para medical-a.

Os seus esforços tinham sido infructiferos.

-- E assassinou-a, disse Agrippino enfurecido.

-- Pode dizer o que quizer... O senhor é um irresponsável.

O cocheiro fustigou os cavallos e o carro disparou.

As palavras esmagadores de Salcedo cahiram-lhe na consciência como um peso de mil kilos. Não tardou, porém, a reacção, que se traduzio num brado, que elle mesmo não saberia dizer si de angustia ou de raiva homicida. Sacou violentamente do bolso o revolver e fez fogo sobre a trazeira de coupé. A detonação perdeu-se no silencio da noite. O vehiculo sumio-se incólume entre as luzes incertas dos combustores. Ninguém appareceu.

Agrippino, parado como um espectro no meio da rua, pensava, ou melhor, na indecisão das emoções que o assaltavam, esforçava-se dolorosamente por colher a primeira idéa que atravessasse o campo da visão interna como um passaro tonto de esfusiada num salão deserto.

Nada. E Kate? Morrera, dissera-lhe o embusteiro. De que? E a scena do chalet? Teria acaso fallecido ás mãos do inhabil operador?

Quem lh'o diria? Talvez uma vingança?

Nisto lembrou-se das cartas que recebera no flamengo. Tudo mystificação!

Aturdido, incapaz do mais rudimentar raciocinio, Agrippino seguio rua abaixo, e, automaticamente, numa especie de somnolencia deambulatoria, tomou o primeiro bonde para a cidade.

Na altura da praia de Botafogo despertou sobresaltado. De baixo de uma arvore repontava uma sombra de mulher. Era uma amorosa retardataria. Recordou-se de Kate.

Kate morrera. Estava agora certo disto. Fôra o seu espirito que lhe apparecera logo depois do trespasse na penumbra do jardim. A alma, porém, entrou-lhe em hilaridade.

Só lhe faltava, acreditar no espiritismo!

Galou-se o cerebro. Entorpecido Simões esvaia-se em cocliilos.

Soavam onze horas na torre de S. Francisco, quando o bonde chegou ao largo da Carioca. Agrippino apeou-se e subio a rua deste nome.

Que viera fazer ao centro da cidade áquella hora? Porque não descera no Flamengo?

Estava diante do Variedades; entrou. Representava-se o ultimo acto de uma opereta. Os actores, fatigados, resavara os seus papeis pela centesima vez.

Simões ouvio um numero de musica, tomou uma garrafa de cerveja, e sahio perturbado.

Na praça Tiradentes havia um grande movimento de carros. A multidão, sahindo dos theatros, invadia os cafés, a Maison Moderne, o Stadt Münken.

A luz ecliptica do holophote do Variedades, cahindo de súbito sobre o calçamento, destacava como espectros os vultos dos transeuntes.

Agrippino seguio até a rua do Rio Branco.

Parou, hesitante, junto a uma rotula. Uma hetaira fez-lhe um aceno; indignado, voltou sobre os passos e' andou era volta da praça, sem direcção, até fatigar-se. Um impulso brusco levou-o ao Largo de S. Francisco. Ao atravessal-o alguém fallou-lhe. Era ura conhecido que lhe perguntava para onde ia fora de horas.

-- Para a Saúde, respondeu elle.

Esta extravagante resposta fora despertada pelo bondinho que naquelle mesmo instante parava junto á, esquina da rua do Ouvidor. E por ter proferido a palavra -- Saúde --, entrou para o vehiculo automaticamente, sem dar conta a si mesmo do ponto para onde queria ir.

O cocheiro destravou o carro e mudou os burros. O break solto produziu um ruido de ferragens velhas arrastadas e o bondinho seguio.

Aquella viagem á Saúde, pela hora que era, indicava o gráu de desordem do espirito do doutor.

O bondinho arrastou-se pelas ruas tortuosas da cidade até ao caes da Imperatriz. Durante o trajecto o carro recebeu um marinheiro ebrio. Agrippino, porém, não chegou a vel-o no começo. Estava somnolento, de uma somnolencia mórbida. Os objectos turbavam-se e confundiam-se com a noite. Só na volta do caes deu pelo desvio do seu itinerário. Apeou-se. O marinheiro também desceu. O doutor pensou em retroceder; mas lembrou-se da sua situação.

Dormir, esvair-se, esquecer-se... desapparecer do mundo! No estado crepuscular de espirito, em que se achava, vinham-lhe desejos de deitar-se a um canto de rua e esperar que algu- ma carroça de lixo o recolhesse como um gato morto para envial-o á ilha da Sapucaia. Si aquelle marujo ebrio quizesse ao menos allivial-o da existencia?!

A pressão do revolver, que elle, de vez em quando, sentia no bolso da calça, era como um estribilho táctil, que ali estava a recordar o tiro, que desfechara no coupé de Salcedo. Começou a ter medo de familiarisar-se com a idéa do emprego da arma homicida. E porque não? Que era a vida para que? Seria mais do que um crepitar de candeia de azeite mal alimentada? Não bastaria um tenue sopro para extinguir esse estado crepuscular da intelligencia?

Si provocasse o marinheiro? Um frio mortal derramou-se-lhe nas veias. Os cabellos se eriçaram na cabeça.

Foi andando em direcção ao caes. O ebrio, que se antecipara, de repente desappareceu.

Agrippino apressou o passo, movido por uma força extranha. Logo adiante deparou-se-lhe uma scena inesperada. Havia um sussurro como de colmeia assauliada. O diapazão das vozes variava; ouviara-se brados, juras, obscenidades. Simões defrontava as portas entreabertas de um ship-chandler. Apezar da hora adiantada e em flagrante contravenção ás posturas municipaes, um grupo de marinheiros entoxicava-se á luz mortiça do gaz. O doutor entrou attrahido pelo vortilhão da embriaguez.

A sua presença não causou estranheza, porque a marujada justamente nesse instante altercava de modo a não entender, nem ver ninguém.

Sentou-se a uma das mesas immundas do antro e pedio ao caixeiro que lhe servisse Altona.

Havia no ambiente um fartum acre de alcatrâo, sêbo e maresia. O cheiro de sarro de cachimbo faria ingulhar o estomago mais valente. Nas prateleiras desmantelladas enfileiravam-se promiscuamente artigos náuticos e garrafas de cerveja; no fundo viam-se rolos de cabos, bexigas de gráxa e cadernaes.

O doutor olhou para tudo aquillo com indifferença. Lembrou-se de fumar; mas os cigarros tinham-se acabado. A Altona produzia-lhe nos ouvidos infernal zoada. O estomago começava a revoltar-se. Subio-lhe á boca uma golfada. Nauseava. A carga de álcool excedera á capacidade natural.

Sentado sobre um dos rolos de cabos, um mestiço de dezoito a vinte annos bamboleava o corpo como se estivesse no tombadilho de uma embarcação. O rapaz vociferava contra ura preto, que, do lado opposto, derreado sobre uma mesa, atirava-lhe sorrisos provocadores. Typo de marinheiro perverso, que não recua deante de nenhum perigo no mar, nem se arreceia da cólera de outro homem, o preto, grunhia, de vez em vez, de modo especial, e revirava os olhos rubros numa cólera surda e portanto perigosa. Ambos tinham attingido o periodo da embriaguez, em que o vinho promove a valentia rixosa nos que a não possuem e transforma em fúria a coragem dos ordinariamente corajosos, comquanto pacificos.

Nas mesas adjacentes beberricavam, zumbindo em disputas ridiculas, outros marujos de aspecto não menos aggressivo.

--Tu não és homem! disse por íim o preto, em voz guttural e sarcastica.

E, fazendo um gesto de caricia escarninha, avançou a mão espalmada para a cabeça do grumete. O rapazinho não esperou que a mão lhe tocasse; erigio o busto juvenil e vibrou sobre o seu agressor um olhar truculento, em que a cólera tirava-lhe ao rosto todo o aspecto de creança. O ephebo convertera-se em Hercules menino.

-- Commigo não se brinca! Quebro-lhe o vidro da bitacula!

Um ferro luzira no espaço. O pequeno saltou para o meio da bodega com tamanha rapidez que o preto não teve tempo siquer de metter a mão no bolso. Uma lista rubra apontaralhe na face negra. A navalhada fôra vibrada por mão de mestre.

-- Desgraçado!

Só então poude o preto sacar do quarto a faca catalã. Era tarde. No sliip-chandler estoirou um tumulto diabolico. Os circumstantes saltaram armados; garrafas, pratos, talheres, cadernaes, bexigas de gráxa voaram pelos ares, quebrando vidraças, derribando mesas, reduzindo a cacos os miseráveis moveis da bodega.

O preto, trepado num monte de cabos, os olhos betados de sangue, ameaçava não só o grumete, mas toda a companhia, que por instincto tomara francamente a defeza do menino.

O heroe desta scena pertencia a uma raça de homens igual á dos gaios brigadores. Uma vez excitado, não havia outra coisa a fazer senão desviar os botes, e esperar que, com o esgotamento nervoso, cessasse a congestão da raiva.

O caixeiro espavorido tinha corrido para a rua. Trillaram apitos, a distancia; e emquanto a policia não chegava, o preto feria a um dos marinheiros no baixo ventre e atirava um golpe terrivel ao peito do grumete, que cahio inundado em sangue.

Agrippino ficou estatelado atraz da mesa que o separava da rusga.

-- Morcegos! gritou um dos desordeiros.

E todos, num tole geral, precipitaram-se fora do schip-chandler para fazer frente aos eternos adversarios.

O doutor sentio a vista escura. Assistio ao combate das praças e dos marujos como a uma visão, semi acordado.

Quando um dos policiaes que chegavam poz-lhe a mão sobre o liombro para prendel-o foi que despertou daquelle terrível pesadelo.

Teve um assomo de dignidade; quiz reagir; era tempo perdido; outras praças se acercaram delle e o subjugaram.

Não se descreve o que se passou em sua alma aviltada. Resignou-se. E como não resignar-se, si, reduzido a automato, sentia-se inteiramente excluido da vida social? Gomo não submetter-se áquella situação miserável, si o mundo se lhe mostrava através de um veii espesso e caliginoso, e a vida real se lhe offerecia semelhante a uma paizagem extranha -- longinqua e inattingivel?

Âgrippino foi conduzido á estação policial da rua da Saúde. O infeliz, perdera a noção das coisas. Horas depois vagava pelo caes junto ás docas, sem rumo, na mais completa ignorância do logar em que estava. O espirito, vagabundo, boiava sobre a lembrança bruxoleante dos factos anteriores em busca de uma impressão que o determinasse. Na memória fatigada, a cada instante fragmentada por eclipses desoladores, delineavam-se traços fugitivos de uma figura tosca, rebarbativa, de verbo alto, que bem podia ter sido o delegado que o relaxara da prisão. Que lhe dissera essa autoridade"?

Porque o tinham distinguido e alijado do inquérito num barulho de marujos, que provavelmente havia terminado por uma morte? De nada se recordava. Só uma coisa se lhe fixara na retina; era o vulto desse grumeto estendido num mar de sangue ao centro da bodega.

As barras da luz nascente iam quebrando; o horizonte illuminava-se. Um rumor surdo crescia para o lado da cidade. O porto foi-se agitando a pouco e pouco. Os silvos roucos das sereias das lanchas a vapor annunciavara que o trabaliio maritimo ia encetar-se. Um rugeruge de rodas e elices nas aguas da bahia, perto a principio, depois a distancia, por fira a perder-se ao longe, e os bufos das caldeiras, que soltavam o vapor, despertavam o sentimento da vida industrial em agitação. Á medida que a luz matinal subia, a alacridade do trabalho commercial se expandia; e a bahia, poucos momentos antes quieta, gradualmente inflammava-se no tumulto da lucta quotidiana.

O doutor deixou-se surprehender pelo dia em pé no caes como a estatua da miséria intellectual. O movimento do porto não lhe modificara o estado apathico. As scenas marítimas, em vez de agital-o, cavavam no subconsciente da alma esse presenlimento de dôr não existente ainda, mas que todo o enfermo daquella natureza conhece por experiencia como um demonio, prompto, ao primeiro signal, a entrar em scena.

As aguas, que se revolviam em baixo, fizeram não obstante, esfuziar-lhe no espirito a idéa negra que já uma vez o assaltara.

Porque não se matava? Não era a morte a única solução lógica para os males que o atormentavam? Que esperava para realizal-o? Mas a morte o repellia. Só o pensar nella seriamente causava-lhe revoltas truculentas, que bem demonstravam quão pouco amadurecido estava para esse passo decisivo.

Horrorisado deixou o caes e subio um beco que ia ter á rua da Saúde, beco immundo, onde resíduos de toda a especie exhalavam cheiros nauseabundos. Cães gosos, disputando um osso, grunhiam, com os croques alvos e brilhantes entre o rubro da comissura da bocca. Agrippino passou depois de tel-os ameaçado com uma pedra. Adiante, junto a uns frades de pedra, dois pretos com cestos de ganho arriados, teimavam em dialecto africano.

Na Saúde já formigavam os vehiculos. Carroças, transbordantes de café, entorpeciam a circulação dos bondes.

-- Que horas serão? perguntou o doutor a si mesmo. O seu Poole não regulava.

Olhou para o fundo de um armazém. O relogio acusava oito horas. Assim pois elle estivara plantado no caes, a olhar indeciso para as aguas, sem o sentir, cerca de duas horas.

Acontecera ter parado justamente defronte de um armazém de café. Rescendia o fermento da rubiacea atacada pela humidade do solo mal vasculhado. Perto via-se o Moinho fluminense. Imponente em sua construcção ingleza, o estabelecimento, regorgitante de trigo, bufava como um colosso animal a digerir o grão que se transformava em farinha. Carroças, repletas de saccos, começavam a desfilar pelo calçamento irregular. Do lado opposto, morro acima, grimpavam viellas em zig-zag, orladas de casebres que ameaçavam despenhar-se sobre os transeuntes.

Agrippino desceu a rua em direcção á Praínha. Emanações humidas sopravam de armazéns enormes, que davam para os caes, abrindo sobre o costado de navios atracados aos trapiches. Ao aproximar-se da estação das barcas de Petropolis, receiando instinctivamente encontrar algum conhecido, metteu-se por um d'aquelles armazéns a dentro, e poz-se a olhar para os pretos que faziam o serviço de transporte das saccas de café para os trapiches.

O movimento febril dos estivadores aterrou-o. Voltou á rua num desalento indizivei.

Morrer! Era preciso morrer... A vida e o trabalho tornavam-se-lhe impossiveis.

Ao pisar na calçada alguém segurou-lhe o braço por detraz. Ouvio uma voz conhecida.

--Mudaste de profissão?

Era o Navas.

Foi tamanho o esforço de Agrippino para explicar a sua presença ali, que a palavra, embargada na garganta, estertorou numa gargalhada alvar.

O ex-reporter encarou-o, desconfiado.

-- Que é isto? Estás doente?

-- Muito doente, respondeu o doutor com os olhos razos d'agua.

-- Aconteceu-te alguma coisa?

-- Tudo quanto ha de peior.

E desviando-se arrebatadamente deixou o amigo assombrado. Atravessou o largo e fez signal para um tilbury vasio, que vagarosamente regressava ao centro da cidade. Entrando para o vehiculo deu com a mão no cocheiro afim de que seguisse.

-- Para onde?

-- Toque o cavallo, com mil diabos!

O cocheiro encolheu os hombros e tocou pela rua da Imperatriz. No largo de S. Francisco Agrippino pagou o tilbury e apeou-se.

Descendo a rua do Ouvidor, ao se lhe deparar uma mulher ruiva e envolvida em amplo capote, sobresaltou-se. Por segundos se lhe afigurou a phisionomia da americana. A illusão dissipou-se. Inteiramente esquecido de Kate, uma hora depois elle conseguia recolher-se a casa para dormir, talvez esperando a morte ou a loucura.

CAPITULO XII

A pensão do Flamengo mudara de aspecto.

A casa pertencia agora a uma hespanhola, e esta não tinha os escrupulos do antigo proprietário.

A clientela modificara-se. Havia hospedes do sexo feminino e não raro appareciam ahi casaes de legalidade duvidosa.

Agrippino, por isso, esteve quasi a abandonar a garçonnière, A mudança, porém, importaria na remoção da sua não pequena bibliotheca, e o horror, que lhe causava o encaixotamento de tantos volumes, foi quanto bastou para que o projecto abortasse. Uma vez chegou mesmo a fallar á dona da pensão; a hespanhola provou-lhe, temperando a phrase com olhares meigos, que em menos de quinze dias elle estaria arrependido de deixar o único com modo, que existia naquella redondeza, capaz de consolidar-llie a saúde.

O creado cora o qual estava acostumado fora despedido. Esta circumstancia mortificava-o.

Succediam-se reclamações; e o novo serviçal de dia para dia se lhe transformava numa especie de Gabrion. A hespanhola, percebendo essa aversão, retirou-o do serviço e encarregouse ella mesma de arranjar-lhe o quarto. Adivinhava-lhe os pensamentos. Depois dos últimos acontecimentos essa dedicação se extremara.

Despertando daquella noite terrível de vagabundagem, terminada na Saude por modo tão desalentador, o doutor cahira na garçonnière como um criminoso relapso no fundo de um ergastulo. Durou dias o seu encerro. Adormentado, deixou-se tomar de uma especie de lethargia.

A porta do aposento só se descerrava para a hespanhola, que vinha em pessoa trazer-lhe as refeições. Perspicaz e pratica, essa mulher, de raciocínio simples, comprehendera a situação.

-- Solteirão gasto! pensou ella.

Acreditava que se tratasse do rompimento de alguma relação antiga. Notando que elle estava abusando do alcool acabou por convencer-se de que seu hospede procurava atordoar-se em correrias nocturnas. Comiserou-se da sua desventura.

Um dia apresentou-se á porta fallando muito carinhosa. O doutor jazia estirado numa espreguiçadeira. Envolvia-o um chambre de seda de côres vivas estampado de figuras japonezas.

Era a imagem do doente imaginario de Molière.

Estava pallido, olhos pisados, e com um semblante profundamente devastado pela depressão moral.

-- Amores compridos de mais, Sr. Simões?

Si quizesse cortal-os, dava-lhe uma optima tesoura.

O doutor, prostrado, somnolento, não ouvio ou não fez caso das palavras da hespanhola.

-- Que dia do mez é hoje, Rosário?

-- Seis de Outubro.

-- Que data singular! Ha oito annos estava eu em Madrid, na tua terra. Rosário... Que differença! E por signal que uma tua patrícia quasi me fascina e faz-me mergulhar de paixão no Manzanares.

-- O Sr. doutor tem viajado muito?

-- Fil-o quando era moço. Vi muito; andei por todas as grandes cidades do mundo; mas queres que te diga a verdade? Esqueci-me de quasi tudo!?

-- Mas o Sr. doutor não é um velho. Aposto.

-- Apparentemente moço... Nasci em 1860.

-- Trinta e cinco annos! exclamou a Rosário rindo voluptuosamente. E nessa idade que os homens pensam em casar na minha aldeia.

-- Sem embargo dos costumes da tua terra sinto-me decrepito, Rosário. Não tenho mais luz nesta cabeça. As coisas perderam a côr. Os alimentos fazem-me mal; são todos insipidos. A vida carece de expressão. Tudo neste mundo, para mim, deu á ossada. E a impressão qtie tenho hoje dos logares por onde me arrasto e do ruido feito pelos que parecem mais intensamente saborear a existencia.

-- É pena! porque o Sr. Simões podia muito bem felicitar uma mulher que o soubesse comprehender.

E a Rosário votou-lhe uns olhos de cabra espantada, cuja extranheza passou despercebida para Agrippino.

-- O Sr. doutor está doente, accrescentou ella com uma voz edulcorada pela sensualidade própria do seu temperamento. Não exige nada?

Si soubesse que enfermeira eu sou?!

-- Vae-te embora, Rosário! respondeu Agrippino, mostrando uma ponta de enfado. Vae-te embora!

-- E com a mão fez o gesto cora que os italianos exconjuram os jettatores.

A Rosário era ainda moça; regulava a mesma idade de Agrippino. A sua planturosidade, porém, dava-lhe apparencia de uma rapariga de vinte e tres annos. Pequena, cheia de carnes, possuia a linha flexuosa da andaluza, que trae no andar, no modo de fallar, a innata dançadora de seguidilha. Os cabellos negros emolduravam um rosto oval e polpudo, onde, ao primeiro relance, viam-se uns olhos também negros, movediços, orlados de pestanas longas, aos quaes se sobrepunliam supercilios curvos correctissimos. Os lábios rubros e humidos abriamse sobre uns dentes alvos e curtos em contraste permanente cora um buço de menino de quinze annos. Não era uma creatura extraordinaria; tinha, comtudo, o salero adestrado de toda a hespanhola, que se propõe dar caça á imprevidencia masculina. A vida de trabalho, que, por ultimo, adoptara, havia posto sobre esse predicado nacional uma crosta de grosseria. As suas mãos já não eram finas; apresentavam calos e em alguns pontos sentiam-se emaciadas pelo uso do sabão; o rosto, por vezes afogueado ao calor da cosinha, não guardava mais o viço perfumoso que a vida de salão conserva. O timbre na voz, apezar de tudo, retinha as modulações e o sainete incisivo da ex-cantora de zarzuelas.

A falla da Rosário acontraltava-se, quando ella se commovia; e Agrippino gostava de ouvil-a papaguear com o sotaque andaluz.

Nesse dia, infelizmente, o sotaque da hespanhola ferio o amago das suas reminiscencias amorosas.

-- Gira, gira, Rosário. Não me sinto hoje com disposição para conversas.

A proprietaria da pensão vocalisou uma risadinha de zarzuelista, e sahio cerrando a porta.

O doutor ouvio ainda a sua voz a provocal-o do lado de fora, -- Quando precisar de uma enfermeira carinhosa, é só tocar no timpano.

Depois de meio dia a Rosário servio-lhe a dieta no quarto. Agrippino levantou-se; e ensaiava engulir um mingau perfumoso, que a hespanhola preparara, quando alguém bateu á porta.

Rugiu o verbo exaggerado do amigo Navas. O primeiro movimento do doutor foi esconder-se; mas a porta abrira-se e o ex-reporter cahio no aposento como um furacão. O Navas deblaterava contra os jornaes que diariamente, e como de proposito, offerecem aos seus leitores um pratinho especial -- a noticia condimentada de um suicidio reles e injustificável.

-- Diabo! Estes meus collegas não se convencem, nem a páu, de que a lei da imitação de Tarde.. .

-- Que Tarde? interrompeu Agrippino, furioso. Que sabes tu de Tarde?

-- Nunca o li; sei, porém, entre que gente vivo. Cavalgaduras! Não lhes citasse eu Metchnikoff, Proust, Sarrabulhovitch, e as minhas opiniões seriam tão aceitas como as do Principe Natureza.

Agrippino estirou o braço e tomou do creado mudo um vidro de saes inglezes.

-- Não aumaentes a minha dôr de cabeça.

Ouviste?

-- Arthritismo e crapula: é o que isto é!

-- Dar-te-ia a resposta, si não conhecesse o teu coração de ouro.

O Navas approximou-se da janella e escancarou-a. A penumbra, que reinava no aposento, dissipou-se. A claridade poz em evidencia os livros, de encadernação luxuosa, que enchiam grandes estantes de vinhatico.

-- Augusto Comte! Olá! Tens este autor?

Has de emprestar-me, a Política positiva. Quero estudar o systema e mostrar ás cavalgaduras como se governa sem rei, nem Deus. Ah! pensam que eu não tenho idéas... Gontar-lhes-ei essa historia... A lei dos tres estados... a incorporação do proletariado.. . a moralisação do capital.

O Navas, correndo as lonibadas dos livros do amigo, trauteava a aria do tio Gaspar nos Sinos de Corneville. De repente soltou uma gargalhada que fez Simões saltar espantado da espreguiçadeira.

-- A incorporação do proletariado á sociedade, caro amigo Simões, é tudo quanto pode haver de mais santo e sublime. Mas esta operação é longinqua. Ha, entretanto, coisa mais próxima e, portanto, mais positiva: é a incorporação de alguns nickeis ás minhas algibeiras, que estão tão vasias como a consciência de um frade bernardo. E como sabes os capitaes dos nossos tios portuguezes ainda não se moralisaram. Vê tu a que estado de decadencia chegamos! Não ha quem queira emprestar dinheiro!

-- Olha, Navas, disse Agrippiuo, vamos fazer as pazes.

E, abrindo a secretaria, fez o Navas tirar o que precisava.

-- Agora, róda! A minha enxaqueca não tolera o teu espirito, que está hoje muito philosopliico.

O ex-reporter derriou-se numa cadeira.

-- J'y suis, j'y reste! Tu sabes, Simões, que eu poderei ser tudo, menos ingrato.

E mudou de tom; depois lembrou-lhe a situação em que o encontrara dias antes no largo da Praínha.

O bohemio incorrigivel, segundo a fama, era elle Navas; entretanto, o seu bom amigo Simões, com toda a fortuna que possuia, apezar da posição que occupava no mundo, não se dava por desiionrado abrindo parentlieses, corno aquelle, na sua vida de celibatario honesto, para desafiar era extravagancias e desregramentos aos mais refinados calaceiros.

Quanto a elle Navas era preciso não esquecer a tradição. Ninguém punha em duvida que os antecedentes fossem a garantia do futuro. A sua conducta estava traçada de antemão; não havia que receiar imprevistos, nem catastrophes eschilianas. Os tempos correriam sempre os mesmos até que a morte o viesse colher um dia ao meio da sua carreira, ou arrebatal-o em uma nuvem como aos heroes nas comédias de Aristoplianes.

O caso de Agrippino, na sua opinião, porém, era muito differente. No fundo de seus actos, dos seus desregramentos, sentia-se alguma coisa de cataclysmal, e a um amigo, como elle se presava de ser, factos dessa ordem não podiam passar despercebidos.

O dinheiro era o menos. Os amigos, sempre francos, não o desamparariam. O que o trazia até ali não era, portanto, o interesse, mas aconselhal-o, talvez salval-o.

De subito o Navas inclinou-se para a secretaria e empunhou alguma coisa que o doutor esquecera sobre o movel.

-- Estás vendo? disse, encarando o amigo tragicamente. É o teu corpo de delicto!

Os olhos de Agrippino estavam marejados de lagrimas.

-- Pensaste outro dia em suicidar-te. Anda; confessa.

O enfermo olhou espantado para o ex-reporter. Quiz fallar; a voz paralisou-se na garganta, Um riso de escarneo voejou-lhe então no semblante. Por ultimo a palavra estertorou.

-- Psychologo de feira!

-- Falla.

-- Es muito pretencioso.

-- Disse-te a verdade.

-- Não entendes disto. Vae fazer reportagem entre beocios. Seria preciso que eu tivesse uma alma muito raza, uma consciência muito á flôr da pelle, para que um espirito banal como o teu pudesse penetrar os meus mais íntimos pensamentos.

-- Com este revolver, pelo menos, garantote não conseguirás fallar ás almas do outro mundo.

Agrippino estava exhausto. Ergueu-se da espreguiçadeira, e, lentamente, como para dormir, estirou-se no leito, volvendo o rosto para a parede.

O Navas calou-se; deu duas voltas pelo quarto, correu os titulos de alguns livros, e sentou-se. O olhar tixara-se-lhe no chão; e assim conservou-se largo tempo, o que no exreporter era sigrial de descommunal contenção de espirito. O seu coração, que, effectivamente como dissera o doutor, era um coração de ouro, trouxe-o ali enleiado por quasi uma hora, a parafusar em como arrancaria o amigo d'aquelle cruel abatimento.

-- Homem, falia! dize alguma coisa. Este silencio mata-te.

O mutismo de Agrippino cada vez se tornava mais impenetrável. Uma nuvem negra descera-lhe sobre a alma. Invadira-o um torpor mortal. Estava quasi aphasico.

-- Anda d'alii. Levanta-te. Isto não pôde continuar.

Inútil esforço. Agrippino attingira esse periodo de depressão moral, em que o homem se sente enterrado vivo e olha para a vida ou para o mundo, que se move em torno, como o sepultado através do vidro do sarcophago. Podem dirigir-lhe a palavra; não consegue ou não sabe responder. Não percebe o que se passa; e perdido o significado exacto das coisas, olha mas não vê, anda mas não pisa; si conduzido pelas ruas, deixa-se levar como um cadaver, completamente extranho ás pessoas que o carregam.

Desde a noite fatal, em que, partindo da rua Leblon, fôra dar comsigo no ship-chandler do caes da Imperatriz, o mundo se lhe convertera nessa coisa tetrica, que fugitivamente lhe apparecia como tendo existido, longinquo e estranho. Das scenas outr'ora vividas, quasi esquecidas, desprendiam-se no espaço farrapos de memória. Aqui e ali um incidente incolor.

O seguimento dos factos, porém, isso era-lhe impossível perceber; e então o que lhe restava era uma sensação sobreaguda do irreparável.

A essa paralysia da vontade, a essa impotencia de agir, succedia a incapacidade de pen- sar e de viver.

O Navas tentou, em balde, até quasi ao cahir da noite arrebatal-o áquelle estado de apathia estupida. Desenganado, sahio do quarto a entender-se com a Rosario. Por volta das sete horas, conseguiram, graças á influencia suggestiva da hespanhola, pôr o enfermo de pé.

-- Vê, Rosário, disse o Navas, que o revolver já o tenho aqui.

E bateu no bolso da calça indicando a apprehensão do contrabando.

-- Agora é tomar muito cuidado. Quanto a esta noite, encarrego-me de distrahil-o.

Aos gritos do Navas e excitado pelos biocos da Rosário, Agrippino poude afinal vestir-se.

Os lampiões da praia do Flamengo já estavam accesos quando os dois amigos sahiram.

Logo adiante era a residencia do ex-reporter, numa republica de estudantes. Agrippino, percebendo nelle a intenção de entrar, insurgio-se; gesticulou que não o acompanharia.

-- Pois dize com todas as letras do alphabeto para onde queres que te acompanhe.

Agrippino com uma voz clandestina murmurou; -- Para o club das ostras.

Palavras não eram ditas e o Navas viu-o com sorriso galgar o paredão do caes e descer para os arrecifes que a maré deixara em secco.

A noite estava clara e o aspecto da bahia não desmerecia de uma noite de luar.

-- Tens, na realidade idéas que não lembrariam ao defunto Lagartixa.

Agrippino sentara-se sobre uma saliência de rocha e olhava para o íluxo e refluxo das ondas.

-- Anda d'ahi. Nos clubs da cidade, nos jardins dos theatros, ha ostras muito mais appeteciveis.

Com uma paciência angélica o ex-reporter levou a catechisar o companheiro para que deixasse aquella posição archi-ridicula de trovador dos tempos do Onça. Por fim conseguio mettel-o a caminho. Passava um bonde. O Navas fez parar o vehiculo, ferrou o braço do amigo, e antes que resistisse, deu com elle num banco vasio.

O doutor lembrou-se vagamente de que procedera da mesma maneira, não havia muito tempo, com o estudante Tiburtino, forçando um passeio ao Corcovado.

Saltaram no largo da Carioca. O Navas em communicação cora diversos passageiros do bonde, fallara pelas tripas de Judas. O doutor sempre taciturno, deixava-se arrastar sem proferir um lamento, um monosyllabo.

--Não perguntas para onde és conduzido?

Agrippino não gesticulou.

O Navas, entretanto, lembrai-a-se de atordoar o amigo levando-o a um hotel, onde a bohemia costumava repastar-se á larga nos primeiros dias do mez.

-- Ao palacio de Gargantua! E para ahi que vamos. Tu precisas de injecções de aristophanina. Vaes ver como em meia hora um abbade respeitável se transforma em clown ou em frade desfrocado.

O Navas, dando o braço ao doutor, atravessou a rua Gonçalves Dias, seguio depois pela do Ouvidor e Ourives; na rua da Alfandega, parou á porta de um restaurante italiano. No andar terreo havia um salão destinado aos freguezes communs. Os dois subiram por uma pequena escada. Ao fundo via-se todo o serviço da cosinha.

Telemaco e Mentor! disse uma voz de dentro da sala para onde a escada dava accesso.

Era Ambrosio Raposo quem fallava.

Em torno de uma grande mesa ornada de flores uma meia dúzia de amigos comiam desassombradamente.

Quando o Navas assomou á porta foi um alarido. Ergueram-se quasi todos.

-- Ahi vem o pae da troça!

-- Hurrah! Viva o Navas!

-- Pensavam que falharia hoje? ponderou o ex-reporter. Sou pontual, precisamente nos estabelecimentos em que não existe ponto. E esta uma virtude de reis, que a Republica não deve desdenhar.

-- Original! tornou Ambrosio Raposo.

-- Justamente por isso trouxe commigo a hypocondria em pessoa.

O banquete ia em meio. As linguas já se tinham desenferrujado, graças ao Ghianti e ao Bourgogne. Presidia a mesa o Paulo Motta. Ao seu lado o pintor Rademaker intercalava as libações com calemburgos de atelier. Baixo e gordo, olhos verdes e espantados, respiração difficil, esganiçava-se, quando emittia a phrase. As suas pilhérias pareciam-se extraordinariamente com as figuras abracadabrantes das telas que expunha, onde buscava imitar o grotesco dos cartazes de Mucha.

Emborcado sobre um prato de toicinho do ceu, Evaristo Carneiro articulava, de vez em vez, um texto de missal, consagrando o que ingeria.

Os outros convivas beberricavam e deglutiam com um appetite de principio de mez. Faziam côro Olyntho Bravo, o jornalista Cleto Azambuja, o comediographo Azarias Gomes, e Pedro Palhano, o mais assiduo leitor de livros allemães que existe no Rio de Janeiro.

Agrippino comprimentou-os com uma ligeira inclinação da cabeça e sentou-se.

O aspecto grave, sorumbatico, do recemchegado produzio um silencio de minutos.

-- Alguém discorria aqui em tom de prelecção, disse o Navas, deixando-se cahir numa cadeira.

-- O Raposo explicava um capitulo de Brillat Savarin.

-- Pois continua, Raposo amigo, e vê si o teu verbo hilariante tem o poder de restituir ao nosso Simões a alegria que lhe desertou da alma apaixonada.

-- Para hypocondria não conheço especifico melhor do que o que receitava o Dr. Dialbirius da comedia molieresca.

Agrippino estremeceu e repellio o prato que o creado lhe servia.

O autor dos Urubus passou a sustentar uma these escabrosa de sociologia. Referio-se á lei da offerta e da procura; e, fundado em Ruskin, o seu estheta predilecto, condemnou-a como uma lei própria de lobos e chacaes. O cannibalismo actual das sociedades civilisadas não se exphcaria senão pelo favor que gosava essa doutrina, graças á propaganda dos biologistas.

Em seu parecer de artista, que encara a vida do homem em sociedade como alguma coisa mais valiosa do que o desenvolvimento da funcção intestinal, nunca a terra se mostrara tão carecedora da colligação dos intellectuaes para amordaçarem-se as feras, que pretendem decidir dos destinos da humanidade. E num rapto de eloquencia ruskiniana provou que no momento actual a theoria dos carnívoros inellior apparelhados de dentes e de unhas era infelizmente a que encontrava mais freneticos apologistas.

-- Discordo, ponderou em voz grave o pintor Rademaker. Discordo. Agora mesmo ruminava a creação de uma sociedade destinada a libertar os artistas do jugo vil da moral quotidiana.

-- Ora, vocês são uns loucos! gritou o Navas. Vocês ainda cuidam em organisar?! O espirito das organisações morreu de esgotamento neste íim de século. Toca a destruir agora p.ara que a Santa Madre Natureza veja se das cinzas deste mundo pode sacar alguma coisa nova, capaz de restabelecer o appetite e a faculdade de inventar.

-- Foi o tedio que armou Caim contra seu irmão Abel, accrescentou o imitador dos cartazes de Mucha.

-- Vamos vêr que também esse malvado organisou o progresso e creou o amor do proximo A observação partia de Olyntho Bravo.

-- O tedio! Sem eile não estariamos aqui reunidos.

-- E é para matal-o que eu penso em crear uma associação, que terá por fim a eliminaçã, o do vicio e da virtude, as duas coisas, que a meu vêr, mais tem embaraçado o desenvolvimento da arte.

-- Vejamos si desta vez uma idéa rademakeriana vale alguma coisa mais do que o seu ultimo cartaz, --desse portentoso cartaz diante do qual andam as turbas embasbacadas, a perguntar si no tempo de Christo já havia cerveja Pilsen, e se nas bôdas de Cana podia a agua ser transformada pelo divino thaumaturgo nesse precioso liquido.

-- Tu és um ingrato, Navas! Injurias-me justamente quando eu santifico a cerveja, offerecendo-a aos desalentados da vida, como tu, pela mão do martyr do Galvario. Lembra-te das palavras de Jesus. O meu reino não é deste mundo; quem amar o verdadeiro espirito abandone pae e mãe, esqueça-se da familia e tome a sua cruz.

Que espirito era esse que consolava os afflitos, dava luz aos cegos, levantava os paralyticos e illuminava a escada por onde se subia á bemaventurança ?

-- Seguramente o espirito de 40 gráus, observou Ambrosio Raposo.

-- Tu o disseste, retrocou o Navas, Mas tu és um blasphemador. Tens sempre entre os lábios a phrase satanica a investir contra a innocencia, como a serpente que no Paraiso seduzio a vossa mãe Eva.

O Rademaker extendeu então o gadanho, empunhando um garfo, e espetou tragicamente uma maçã.

-- Vêm este fructo? Pois bem, supponham vocês que têm diante dos olhos o planeta. Que idéa formaria desse planeta um gigante a quem fosse dado observal-o como estou agora fazendo com esta maçã? Que diria esse gênio, dos actos, da moral, dos sentimentos, cultivados pelos animalculos que povoam a sua epiderme assucarada? Diria que essa moral, esses actos e esses sentimentos valeriam tanto como a matéria que lhes dá vida. E se achasse gosto em transformar o planeta em alimento, devoral-o-ia, sem escrupulos, fazendo desapparecer no mesmo bolo alimenticio, com a massa, a vida e todos os seus prazeres, a philosophia e todos os seus systemas, as artes e todas as suas manifestações, a historia e toda a civilisação. Ha pois, em torno de nós, e acima de nós, um critério, do qual não fazemos a minima idéa. Esse critério pode nullificar quanto concebemos como bem ou como mal.

-- Ergo, ponderou Olyntho Bravo, a moral é pura mystificação.

-- Justo. Ha uma illusão universal. E tolo é aquelle que ao emergir no infinito turbilhão da vida, como um dos seus momentos, não aproveita as suas energias para dar a essa illusão toda a intensidade que ella comporta.

O Navas opinou que o pintor de cartazes estava ensandecendo.

Agrippino, sempre silencioso, conviera apenas em tomar um cálice de vinho do Porto.

Tanto bastou, porém, para que se sentisse mal.

Dominado pela acidia, que o torturava, nada percebera, em começo, dos despauterios emittidos pelo Rademaker. Comtudo, ou porque o vinho lhe tivesse clareado subitamente a intelligencia, ou porque as ultimas palavras lhe abrissem um parenthese no estado de embrutecimento em que se achava mergulhado, o doutor ergueu-se com o olhar esgazeado para apoiar o ex-reporter.

-- Não estamos, supponho, numa reunião de imbecis, accrescentou elle. Este senhor artista acreditará acaso que as suas fumisteries nos estão impressionando? Quer fazer paradoxos?

Fume opio. Uze dos processos de Thomaz de Quincey. Escreva livros com titulos estupefacientes. Mas não repita as idéas daquelle autor sobre o assassinato considerado como uma das bellas artes.

O pintor, um tanto alcoolisado, protestou violentamente. Seguiram-se phrases injuriosas.

Foi necessaria a intervenção dos amigos para que expressões tão desagradaveis ficassem sem effeito.

Servido o café, despovoou-se a sala. Essa providencia evitou que a cólera de Agrippino, então muito excitado, reproduzisse a scena do sanatorio da Gavea.

O Navas levando-o para a rua, conseguio acalmal-o; depois seguiram em companhia de Anibrosio Raposo para a confeitaria Colombo.

Eram oito horas da noite.

-- Mas é estupido tudo isto, disse o ex-reporter. Queria distrahir o Simões; e o resultado foi comprar-lhe um mau quarto d'hora.

E lembrou o theatro. No Recreio Dramatico representava-se uma comedia do reportorio francez, muito engraçada. Ambrosio Raposo, porém, contestou, accrescentando que destinara aquella noite, a uma interessante sessão de thaumaturgia scientifica, cujos processos muito o interessavam. O amigo Simões talvez preferisse esse genero de distracção.

Agrippino conservou-se taciturno. Ambrosio Raposo fez um signal de intelligencia ao Navas.

Tomaram agua de Caxambú e andaram até ao largo da Carioca.

-- As curas, segundo dizem, são miraculosas, murmurou o noveliista ao ouvido do companheiro.

-- Um doutor Silva aperfeiçoado!

-- Veja! Aqui não ha charlatanismo. Disse-me a pessoa que me convidou para essa reunião que ha uma mullier que pratica assombros.

O club para onde se dirigiam ficava situado nos fundos de um sobrado suspeito da rua da Guarda Velha. Os visitantes não encontraram difficuldades de introducção. Ambrosio Raposo entendeu-se com o porteiro e a entrada lhe foi franqueada. No fim de um longo corredor havia uma grande sala fracamente illuminada, aonde homens e mulheres, em promiscuidade, recostados em poltronas, pareciam dormir. No centro via-se um globo estriado, de côres variegadas, que girava vertiginosamente sobre um eixo, projectaiido clarões intermittentes. No fundo do aposento uma cortina de reps escondia um estrado em que existia uma cadeira.

Parando á entrada da sala Agrippino exprobou cora o olhar seus companheiros.

-- Isto é um antro ignóbil de feitiçaiia.

Antes, porém, que voltasse as costas áquelle quadro de hypnotisados, correu-se a cortina e appareceu uma mulher,--typo de pythonisa extranha. Era formosa; o talhe esbelto. Emoldurava-lhe a cabeça um capacete de cabellos louros, que se despejavam pelo colo. Gingia-a um vestido preto; e do cinto cahia-lhe um avental de pellica branca, ornado de figuras cabalisticas. Os olhos muito azues fixaram-se em Agrippino, com expressão energica e intelligente, ao mesmo tempo que um projector electrico a envolvia como em um nimbo de luz cósmica.

A este tempo o ex-reporter e Ambrosio Raposo tomavam assento em duas poltronas e dispunham-se a observar a experiencia. A pythonisa empunhou uma varinha doirada e fez um gesto descrevendo um circulo. O globo luminoso escureceu e os adormecidos, despertando do somno magnético, ergueram-se com as physionomias a transluzir de alegria.

Baixou a luz. O projector desappareceu.

Agrippino, irritadíssimo, soltou uma phrase obscena e precipitou-se pelo corredor, sem attender aos companheiros que o chamavam.

O Navas, receioso de que lhe sobreviesse algum accidente, não'quiz deixal-o.

-- Pareces, creança; ou estás doido varrido.

Perdeste até o espirito.

E na rua:

-- Desde que a nada cedes e não ha distracção que te sirva, o melhor é voltarmos á pensão.

O doutor não respondeu. E não houve palavras que o demovessem de tornar á rua Gonçalves Dias.

A paciência de ex-reporter estava quasi esgotada, quando de novo na confeitaria Colombo, deu-se um incidente que determinou-o a abandonar o exquisito amigo.

Passavam cavalheiros e senhoras para o Theatro Lyrico. O Navas, cujo espirito jovial não se extinguia, em pé na porta, fallava a uns, comprimentava a outros, sempre com uma phrase incisiva e uma apostrophe hilariante.

De subito voltou-se para o doutor e apontou para uma elegante que deslisava pela calçada opposta.

-- Não conheces?

Agrippino fez um gesto negativo. Não lhe tinha visto o rosto e a elegante já ia longe.

-- A Vampiro!

-- Que Vampiro?

-- Oh! A amante do Dr. Salcedo.

Grande foi o assombro do interlocutor, porque Agrippino deu ura salto e atirou com força a bengala ao chão. Os olhos se lhe injectaram de sangue e brilharam cora ferocidade felina.

-- Não digas mais!

E apanhando a bengala, poz-se era attitude aggressiva. O ex-reporter ficou assombrado. Estaria effectivaraente louco o seu infeliz amigo?

Gontel-o, seria impossível naquelle estado de exaltação. Chamar quem o auxiliasse para mettel-o num carro e conduzil-o para casa provocaria um grande escandalo; achou, pois, prudente affastar-se e deixar que o accesso de ira se dissipasse.

O doutor, então, não encontrando resistência, vociferou; -- São todos uns miseráveis!...

E accelerando o passo, dirigio-se para o largo da Carioca.

A elegante, a que o Navas se referira, estava só, no meio do largo, como se o esperasse.

Agrippino encontrou o rosto de miss Kate. Ella, portanto, não morrera; e o seu olhar penetrou-lhe n'alma, como sempre, produzindo uma revolução inexprimivel. Bastou ouvir a sua voz.

O fulgor da sua belleza illuminou-lhe o cerebro.

Kate o hypnotisava; vencia-o, transportando-o para o mundo phantastico dos seus amores.

Sentio o perfume que o matava de desejos, e ali mesmo um osculo, tremulo de paixão, roçou-lhe a face.

-- É isto um sonho, Kate; ou é começo da vida de alem tumuío?

-- O que quizeres, com tanto que me sigas.

É inutil fugir. Tenho um talisman de união perpetua.

-- Não és, portanto, a Vampiro que um mau amigo julgou descobrir em ti.

A americana sorrio e procurando encontrar os olhos de Agrippino, fitou-os.

-- Olha bem para o fundo de minha alma.

Vês alguma coisa que não seja o azul do ceu?

Tomaram o bonde do Jardim Botânico, Até á praia da Lapa o doutor conservou-se mudo. Seria bem estar ou suspensão da vida?

Kate retrahira-se. Contentava-se com miral-o, de instante em instante, filtrando-lhe pelos olhos esse estado de torpor amoroso, em que ella era mestra portentosa. Certa do seu prestigio mysterioso, esperou que o doutor fallasse.

As scenas da casa da rua Leblon n.o 13, reproduziram-se na imaginação do doutor.

Que succedera a Kate naquella noite? perguntou. Salcedo mentira-lhe referindo-se á horrorosa situação em que a deixara? Com certeza elle fôra victima de uma nova perfídia do hespanhol, lendo as suas cartas extravagantes e perversas.

Kate sorrio adoravelmente e pondo-lhe a mão na boca disse:

-- Silencio! Não permitto que falles nisso. A condição para que nos reconciliemos é que não te debruces mais sobre o passado.

Agrippino hesitou durante segundos. Depois suspirou e expandio-se. O contacto da americana fizera descer-lhe n'alma uma tranqüilidade doce, que contrastava singularmente com o abatimento mortal das horas anteriores.

Revivia ou sonhava?

Sonhava, talvez!

Ao chegarem ao Flamengo apeiaram-se. Na porta da pensão Agrippino hesitou. Havia silencio no estabelecimento. Os pensionistas pela maior parte estavam nos theatros ou andavam a passeio. O doutor lembrara-se da Rosário.

O olhar de miss Kate fuzilou um gesto magoado e ao mesmo tempo cheio de acrimonia.

-- Amores novos... Adeus!

-- Estás louca ? Entra!

Quando penetraram na garçonnière, houve um ruido surdo de portas interiores que se abriam e fechavam. Agrippino vio a Rosario a espial-os pela fresta da porta do parlatorio. Era uma tempestade que se armava. Kate, fingindo nada perceber, andou para os aposentos, triumphal. Desprendeu o chapéu de longas plumas, pol-o sobre a secretaria, e, volvendo-se para o amante, beijou-o, angustiada, sobre os olhos.

Foi como um incêndio. Agrippino esqueceu a hespanhola e, poz-se a beber os perfumes que se exbalavam do corpo da americana confundidos na ílorescencia do olhar e do fluido despedido por essa boca admiravel.

-- Sabes, my darling, de que me lembrei?

-- Alguma phantasia yankee.

-- Justo. Mas só fallarei, si protestares obediencia.

Agrippino presentio de novo a proximidade da Rosário. Pela lei dos contrários, aquella mulher dócil, aveludada e raza, começava a obsedal-o como a antithese de miss Kate. Os seus olhos de corsa espantada, aos quaes dava realce o buço de adolescente, de súbito transfiguraram-se. Dir-se-ia o rosto imperioso, ás vezes atroz, da americana.

-- Que diabo! exclamou elle.

A miss fitou-o, prescrutando-Ihe o pensamento. Aquella reticencia irritou-o. A irritação, porém, apenas durou segundos. Simões implorou com o gesto submisso indulgência e que reincidisse no carinho.

-- Juras, então, satisfazer-me?

O doutor gaguejou; não respondeu.

Miss Kate, que se tinlia atirado na espreguiçadeira, ílexuosamente, sorrindo enfeitiçada, ergueu-se, de salto, num movimento serpentino, que apavorou o amante.

-- Juras?

-- Juro!

-- Pois bem. Aprompta as malas. Partiremos para Montivideo, amanhã.

Agrippino sentio-se fulminado.

-- Um dueto em transatlantico, disse Kate.

Que encantamento! No Glyde... amanhã...

E passou-lhe os dedos pelos cabellos; acariciou-lhe a barba; e, tomando-lhe o rosto entre as mãos, encostou-lhe os ollios aos olhos. Beijou-o na boca. O beijo, longo, suspirado, inebriante, foi como uma lamina de doçura a atravessar-lhe a alma; inundou-lhe o coração. O philtro damnado o estava intoxicando.

Agrippino não se corrigia. Depois de tantas provas, depois de recebidas tantas offensas, ainda experimentava sensações de collegial inexperiente; e os olhos daquella cobra-coral conseguiam, sem embargo disso, verter-lhe na alma as sublevações de uma alegria desordenada.

Simões não se comprometteu por palavras.

Para que? Estava vencido. No dia seguinte partiriam. Era fatal; uma decisão irremediável.

Abrio, pois, a secretaria e mostrou letras ao portador representando somma avultadissima.

Os olhos da americana não luzirara; e contra a espectativa do amante, recolheram o proprio brilho num recato que não tinha explicação.

Estava advinhando essa viagem, reflectio Simões. Amanhã terei os cheques no bolso.

Para as despezas miúdas bastarão algumas libras. Comprarás tu mesmo as passagens de ida e volta.

E recolhendo as letras á carteira, já agora impacientado pela idéa da viagem, deu diversas voltas pela sala, e fez mensão de tomar o corredor.

-- Vou fallar com a Rosário.

Mas a hespanola, mal proferidas estas palavras, mostrou-se á porta. Vinha vermelha, com lagrimas nos olhos e na voz.

-- Que queres Rosário?

-- O sr. doutor vae despedir-se da pensão...

-- Não creias nisto. Vou apenas fazer uma diversão. O medico receitou-me o mar. Parto amanhã. Toma conta de tudo quanto é meu.

Não te esqueças dos meus livros.

A Rosário, sobresaltada, voltou-se para o corredor. Agrippino, pondo-lhe a mão no hombro, disse:

-- Olha: é possivel que não nos vejamos mais; e neste caso arruma a roupa e os objectos de que preciso nas malas de viagem e manda-as para o caes do Pharoux.

-- Ás duas horas da tarde, accrescentou miss Kate, acontraltando a voz.

Foi só, então, que a Rosário ousou encarar a americana. Ella bem a conhecia; mas de longe, e do tempo em que cantava nos theatros.

Assim, de perto, e sob o prestigio da belleza, da intimativa do porte e do espirito inebriante da antiga écuyère do Frank Brown, nunca a ouvira, nem lhe soffrera a influencia. Tremeu.

Kate medio-a, todavia, com certa complacência, examinando-a com muita curiosidade.

A hespanhola, perplexa, enleiada, mergulhou a vista para surprehender o novo gesto da americana.

-- Estamos, pois, entendidos, minha cara Rosário; e até a volta. Não me queiras mal.

Abraçou-a paternalmente; depois a despedio. Kate sorria. A Rosário transpoz a porta, e sahio em pranto. Soluçava. Agrippino, espantado, foi soccorrel-a. A americana soltou uma risada estridula.

-- Não faças isto, my darling, disse ella da porta entre-aberta.

A hespanhola, porém, correndo até ao refeitório cahio sobre uma poltrona com um ataque histérico. Era fingido, porque apenas Simões aproximou-se e pensava consolal-a, ella ergueu-se para beijal-o, o que não conseguio.

-- Que pretendes com semelhante fingimento? -- Fazer um pedido muito serio. Creia: é a salvação do sr. doutor.

-- Estás sonhando?!

-- Não acompanhe essa impostora.

-- Roda, Rosário; vae dormir.

-- Dê-me, ao menos, um signal de que não se enoja de mim.

-- Vamos. Larga-me!

-- Não é assim... -- E, passando os braços pelo pescoço de Simões, apertou-o sobre os seios tumidos, nos paroxismos de um desejo insatisfeito, que se esvahia com a fuga do objecto cobiçado, no melhor dos momentos.

Na sala miss Kate esperava-o com uma ponta de ironia petulante.

-- Com effeito! nunca pensei que a tua caridade chegasse até ao convívio das creadas.

Agrippino fez-se rubro; depois, estrábico.

-- Neste caso, podes seguir sozinha para o Rio da Prata.

-- Isso, nunca!

-- És má; perversa! Viste bem como as coisa se passaram.

-- Basta. Vamos despender o resto da noite num theatro.

Desceram.

No Apollo trabalihva uma companhia dramatica portugueza. Eram dez e meia. Representava-se a Zazá; corria o terceiro acto.

Os actores executavam balordamente os seus papeis, mal estudados. Agrippino sentio-se indisposto. Findo o acto, aborrecidos os dois do pouco movimento do espectaculo, foram ceiar no Stadt München.

Miss Kate tornara-se sombria.

-- Estavas tão alegre, reflectio o doutor.

Agora pareces um salgueiro. Será a lembrança da Rosário?

-- Rosário! Quem é Rosário? Ah! Esquecia:

é o nome da tua cosinheira.

-- Ciúmes de uma cosinheira! Não conhecia esta face do teu caracter. Estás doente. Nunca uma viagem te foi tão necessaria.

-- Não estou doente; mas volto á idéa primitiva, a idéa da Gavea. É indispensável que façamos o sabbath.

Agrippino angustiou-se. E a formula algebrica A<B bruxoleou no fundo do abysmo da psychose amortecida.

-- Que entendes por sabbath.

-- O meu sabbath. Digas assim. O sabbath que vae ser teu, -- teu e meu. O nosso sabbath.

-- Fazes trocadilhos. Não percebo. Detesto callimburgos e sabbaths.

-- Ó meu Antonio! Lembras-te?...

-- Na Gavea. Se me lembro...

-- Nada de idade-media. Nem missas negras. .. nem cabos de vassouras. Naveguemos para o Oriente. Corramos para o Egypto. Como si é feliz, quando se tem imaginação!

Sahiram do Estadt München. Simões ciiamou um carro; mas antes que se movesse, miss Kate dirigio-se ao cocheiro.

-- Leblon, 13.

O cocheiro olhou aturdido. A distancia era muito grande; o serviço penoso; só por bom dinheiro faria a viagem áquella hora.

-- Ninguém lhe perguntou por isso, disse Agrippino. Se os animaes são bons toque o vehiculo. Não argumente sobre o preço.

Em caminho Simões levantou uma objecção.

Parecia-lhe extravagancia aquelle passeio fora de horas, quando no dia seguinte ás duas hohoras da tarde ou antes naquelle dia, pois já soara meia noite, deviam estar embarcando no Pharoux.

A objecção não era procedente. A americana tinha que preparar as malas; devia, pois, ir até a casa; além de que não era prudente que fizesse o trajecto sósinha num carro de praça, sem pessoa que a defendesse de qualquer aggressão, principalmente no ultimo trecho do caminho. Simões reconheceu a sua inconsequencia. Estavam fatigados; poucas palavras trocaram durante o percurso. Modorravam de vez em quando.

Ao chegarem ao chalet da rua Leblon veio abrir-lhes o portão o groom.

-- Ainda Benedetto! disse Agrippino surprehendido.

Na penumbra da saudade resurgio tudo quanto gozara naquella praia phantastica de Icarahy, e ao mesmo tempo tragica para sua memoria.

-- Dize-me uma coisa, Kate, accrescentou elle. Não é verdade que estava aqui a teu serviço uma preta, por signal, que uma creatura tiedionda e ignobil?

-- Como sabes disso?

-- Como? Neste caramanchão, a noite era que morreste.

A americana estremeceu. Lagrimas verdadeiras ou fingidas correram-lhe dos olhos.

Tinham-se sentado num dos bancos do belveder de madresilvas. Benedetto entrara para illuminar a sala.

-- De onde te sahio esta lembrança?

-- Aqui... Foi aqui, repetio Simões.

-- Sonho; talvez telepathia. Má digestão...

-- Vieste; não me fallaste. Depois a tua sombra resvalou por entre as arvores; desappareceste. Vi o miserável, na pratica infame da sua cirurgia detestável.

-- Tu?! Com certeza estás cultivando o espiritismo.

-- Sim... daqui! Lá fora desfechei-lhe um tiro de revolver. O coupé rodou, engolido pela escuridão. Depois não o vi mais. Si o encontrar. .. Um assassinato? É bem possível.

Tragédias não se planejam. Levantam-se de improviso.

Benedetto veio prevenil-os de que a casa estava aberta.

A cottage não transpirava essa decadencia a que na carta alludira o charlatão. Havia conforto e arte compatível com aquella habitação provisória destinada a uma estação de banhos de mar.

A aragem fresca atravessava a sala impregnando o ambiente do perfume das madresilvas e roseiras. Num pequeno relogio de jaspe, sobre o piano, soaram duas horas. Simões recostou-se a um divan de vime e silenciou. Não se sentia bem, ou por eífeito do trajecto forçado no carro de molas perras que os conduzira, ou porque o despertavam os symptomas da enfermidade que o atormentava.

A experiencia o advertia de qualquer coisa; começava, pois, a desconfiar de si lembrando-se de que ao chegarem as crises a maldita formula algebrica se lhe apresentava sempre desviando a attenção dos factos que constituem o trama da vida. O subsolo da alma se convulsionava; e quando elle percebia esse rumor surdo que lhe vinha das camadas subterrâneas do inconsciente, perdia o equilibrio; a calma desapparecia.

Kate, porém, dissipou a nuvem, usando de um truc clownesco, que lhe era familiar. Sumio-se da sala, desferindo uma volata da canção do pagem nos Huguenotes. Quando Simões voltou-se, a americana appareceu travestie, como em Icarahy.

-- Que extravagancia! exclamou o doutor.

Kate envergava um roupão de banho igual ao que usava naquella praia de banhos.

Antes que elle lhe exigisse explicações accrescentou sorrindo:

-- Confessa que és sujeito a terríveis allucinações visuaes.

Agrippino vio uma coisa que o maravilhou.

Kate tinha desnudado as costas, e ostentava a forte carnação do pescoço e desse musculo cerviçal, que outr'ora o escandalisara, causando a súbita ruptura das suas relações com aquella mulher. A tatuagem fôra eliminada. Essa parte formosa do corpo da americana apenas tingiase de um colorido roseo, que fazia crer na collaboraçâo de um pincel.

A visão foi rapida, porque o roupão fugaz voltara ao seu logar. Não foi, porém, tão grande a rapidez que impedisse Agrippino de notar uma extranha formosura na epiderme daquella zona muscular.

Galou-se. Kate, todavia, encarou-o com expressão inquisitorial.

-- O que ruminas, sei eu.

O doutor abrio os olhos desmesuradamente.

-- Estás recordando, aposto, um episodio da noite em que morri, tornou ella; da noite em que viste a minha alma vagando como sombra penada pelas aléas do jardim.

-- Kate!

-- Vaes saber tudo.

-- Despe este roupão carnavalesco. Horrorisas-me!

A resposta, deu-a a miss, premindo um timpano.

Benedetto appareceu. Kate fez-lhe um signal particular, e logo o groom voltou com uma bandeja de crystaes e uma garrafa de Tokay.

-- Nunca tomaste haschisch?

-- Em Constantinopla. Recordo-me... Em Stambul.

-- Quero hoje atordoar-me. Preciso mudar de temperamento.

-- E a viagem ?

O relogio marcava quatro horas.

-- A viagem ?

Miss Kate deformou a face com o rictus que lhe era particular.

-- Sei que não acreditas no sobrenatural.

Os segredos da flora brazileira são, entretanto, divinos...

A americana encheu os copos com o delicioso vinho hungaro, e poz-lhe algumas gottas de um liquido muito brilhante, de um frasco esguio que sacara da frasqueira, que Benedetto, a um gesto seu, fôra buscar.

Não tardaram os effeitos dessa bebida extravagante.

Simões recostou-se sobre o divan, deliquescente e ao mesmo tempo hilariante. Uma infinidade de sensações macabras, visuaes, auditivas e do olfato, invadiram-lhe os sentidos, arrebatando-o para longe de si mesmo. Vagava no rubro, no violaceo, no azul, num oceano de côres; percorria toda a gamma do arco iris. Os objectos, que o cercavam, transformavam-se a distancia era phantasmas das coisas reaes, fluidos, dourados; e o ceu abria-se em auroras boreaes que o inflamavam nos horisontes de uma esphera, onde tudo se desarticulava.

Miss Kate erradiava no Oriente dessa região etherea, envolvida no manto diaphano de uma nuvem rosicler, onde a vida se transfundia num sorriso tremulo, que o anniquilava nas ultimas convulsões do amor.

Simões dormia, sonhava, morria.

Quando despertou, era muito tarde. Doia-lhe todo o corpo. O cerebro obtuso.

-- E Montevideo?

Foi a pergunta que lhe acudio aos labios, vendo Kate, que se debruçava curiosa sobre o seu rosto.

-- Não penses em viagens, ao menos por hoje.

Simões ergueu-se, encolerisado.

Eram quatro da tarde. Elle, portanto, dormira durante dez horas. Tel-o-ia traindo a americana? On ella mesma fôra victima do infernal Tokay ?

Agrippino sentio na boca um resaibo esquisitissimo: -- a amargura de uma vontade e de uma inteiligencia já decomposta em vida.

Benedetto trouxe-lhe uma ligeira refeição. O doutor que nem sequer se lembrou de fazer a sua toilelte, cambaleou. Quiz tomar uma taça de chá. O estomago revoltava-se. Kate afagou-o; mas a debilidade de Simões era tamanha que nem ao beijo que a feiticeira lhe offerecia poude elle corresponder com um sorriso. Morria.

A cabeça pendeu e um torpor profundo avassalou-o. Não dormia; mas entrevia a vida, os movimentos da amante como atravez de um nevoeiro igual aos que precedem as grandes calmarias. Ouvia, mas não enxergava coisa alguma; e si Kate tomava-lhe as mãos, percebia fugitivamente o contacto dos seus dedos carinhosos e aveludados.

-- Simões!

Inútil exclamação! O doutor permaneceu no divan, languido, desfallecido, inconsciente.

Uma restea de sol varou o aposento. O vento descerrava a janella proxima e de um grande espelho que defrontava o divan, emergio um ponto luminoso que ferio a retina do paciente.

O sentido da vida despertava.

-- Salcedo! bradou elle.

Kate abraçou-o, tranquillisando-o.

-- Que Salcedo ?

-- Estou-o vendo, ali, naquelle espelho.

O foco luminoso tremia; zigzagueava na face polida do vidro, por effeito talvez das arvores, que, fora, eram batidas pela aragem vinda do mar.

-- Salcedo! O miserável rouba-me, sem pudor.

-- Que é que te está roubando? O meu amor? Socega...

-- Os meus titulos ao portador.

Apalpou o bolso; e logo veio-lbe um sorriso.

-- Estás sobresaltado. Isto são ainda restos do Tokay, -- A culpa é tua.

E sacou do bolso a carteira. Era uma carteira de couro da Rússia lavrado, em que existia o seu monogramma em arabescos, sobreposto a um escudo, brasão de phantasia, representando um hippogripho, azul, cábré, en champ d'argent.

-- Está intacta; a quantia que ella contem não é para desprezar-se. Guarda-a para uma joia.

-- Vaes empobrecer-te, disse a miss.

E no seu semblante fulgurou um raio de alegria.

--Cinco; talvez dez vezes mais. Sou único.

Posso perpetrar destas e doutras extravagancias. Entendes-me? Sou neste assumpto inexorável.

Sabes? Inexorável!

Levantou-se. Foi até á varanda do chalet.

Do mar soprava um vento rijo. O dia rutilava, lindíssimo. Todavia, o ar estava tepido. A aragem, de vez em quando, calida.

Voltando-se, então, rapidamente para Kate que o espiava, Simões comprimio-a ao peito num hausto de febre, que a assustou. Não condizia com o quasi apagamento da vida sexual que pouco antes lhe notara.

-- Kate, rainha adorada Cleopatra, vou dizer-te o meu segredo; essa revelação causara o maior assombro de toda a tua carreira de mulher bonita.

-- Dize. Sou impenetrável aos teus assombros.

Simões emudeceu. Pendida de seus lábios, a americana esperava. Simões continuou silencioso. A vivacidade do semblante desvaneceu-se.

O doutor afastou-se delia como se nada lhe tivesse dito.

Kate também não fez o minimo movimento de protesto.

Atravessaram o jardim e no passo automatico de verdadeiros somnaniliulos alongaram-se na direcção da praia.

O mar, revolto; a resaca, formidável. A ventania crescera. O estrondo das vagas, quebrando-se em toda a extensão do littoral, retumbava na encosta dos penedos com o fragor, pronuncio das catastrophes. A penumbra da montanha da Gavea lançava sobre aquelles sitios arenosos um veo de mysterio, que fazia contraste com o clamor que as vagas levantavam. Kate, então, sentio-se jungida pela fascinação daquelle espectaculo magestoso. Sentou-se sobre ura comoro de areia e descalçou-se; tirou a facha que cingia-lhe a cintura, e, suspendendo o vestido até ao meio da perna, prendeu-o á moda das ovarinas de Portugal.

-- Que vaes fazer? perguntou-lhe Agrippino atterrado.

A americana não respondeo. Num salto estava de pés mergulhados na onda que ia e vinha. Era uma imprudência. Embora a vaga quebrasse ao longe, o reíluxo não era isochrono; crescia, diminuia, conforme o enfurecimento das ondas que se erguiam, emborcando sobre as que morrendo se escoavam humildemente em diffusa espumarada. Os brados de Agrippino foram inúteis. Kate não os ouvia.

Que coisa extranha aquella! Não era elle, então, o louco. A americana contagiava-se; e acaso um accesso de spleen, tão commum na raça, retorcia-lhe o espirito, impellindo-a para o paradoxo do suicídio.

Simões avançou; mas um grande medo do mar revolto o supplantava. Lembrou-se, então, de alguma coisa que lera num livro de viagens, no qual se relatava um phenomeno singular que periodicamente se verifica no litoral das ilhas do Japão. Ergue-se no horizonte uma vaga collosal, tumida, escura, ameaçadora. Aproxima-se da terra, silenciosa, como um phantasma negro em noite de luar. E vem chegando sorrateira, cada vez mais perto, cada vez mais tenebrosa. O povo das praias assombra-se e busca as eminencias. De subito, ouve-se um estrondo, que repercute em milhares de brados espaventosos. A vaga immensa attingio a praia; empinou-se e, cavada pela base, em golfâo medonho, quebrou-se numa espumarada em desespero, e galgou a encosta dos oiteiros, lambendo a terra como um monstro mythologico.

Agrippino experimentava essa illusão. Perturbado correu cobardemente, e escondeu-se atraz dos arvoredos marinhos.

Uma revolta, entretanto, acendeu-lhe na alma o brio. Kate morreria sem auxilio. Voltou.

Não a avistou mais. Aturdido, esmagado pela desventura, espraiou o olhar em todos os sentidos. Nem vestigios da excentrica americana.

Os últimos raios do sol, por ultimo, muito ao longe, feriram um vulto de mulher correndo sobre a areia pela restinga do Ipanema. Era Kate.

Agrippino, desfilou numa carreira doida.

A onda enorme, neste instante, varria a praia sinistra.

Um grito de angustia confundio-se com o fragor da tempestade.

CAPITULO XIII

O sol ia alto.

Pelo caes do Flamengo corria uma viração fresca e impregnada de perfumes marinhos.

Ura electrico parou junto á pensão, em que Agrippino tinha a sua garçonnière; um passageiro apeou-se e penetrou no quarto do doutor.

O creado á porta murmurou algumas palavras alegres. No leito de peroba o doente dormia em apparente tranquillidade.

Aos passos do visitante Simões agitou-se; abrio os olhos e sorrio.

-- Tiburtino, você estava ahi?

-- Para conversar... Somente para isso; sabe que não sou seu medico.

Os olhos do enfermo fuzilaram.

-- Nunca! Esse miserável Salcedo não virá aqui.

-- Oh! isso não.

O doutor acalmou-se.

O amigo era esse mesmo rapaz com o qual o vimos travar relações ao subir ao Corcovado.

Por que o encontrara na pensão entre a vida e a morte, constituira-se seu enfermeiro e exercia agora sobre elle um grande prestigio. Era a mocidade, a vida, agindo sobre a sua velhice precoce.

-- Como estou? Que lhe parece?

O rapaz hesitou; depois disse medindo as palavras:

-- Esteve muito mal. Grave, tão grave que julguei-o morto ou coisa peior. Graças á solicitude do Dr. Castro, posso affirmar que a sua cura vae ser radical.

-- Vae ser... murmurou Agrippino melancolicamente. Da febre sei, -- e não precisa ser grande medico para sabel-o, -- da meningite sei eu que estou escapo. Mas o resto...

E poz ura dedo sobre a fronte.

-- Sinto que isto aqui está exhausto. Quem terá o poder de reconstituir a vida que se esvaio? Acaso não sei o que perdi?

Triburtino reflectio; e depois com segurança affirmou:

-- Ha muita coisa que a medicina, que a physiologia afiança e que é evidentemente falsa.

Olhe, doutor, o seu caso preoccupou-me. Estudei-o a fundo; e si me permittisse fazer-lhe uma revelação, si essa revelação não o offendesse, dir-lhe-ia que tomei-o para assumpto da minha these.

-- Ah! é verdade. Voçê forma-se este anno.

Simões tornou a sorrir; depois fez um gesto superciliar.

-- Que foi? inquerio o rapaz.

-- Ainda o pergunta? Diz que estou bom.

Entretanto, a minha decadencia já chegou ao ponto de dar assumpto para uma these.

-- Mas, doutor Agrippino, não pense que eu o tomei como um caso vulgar de hospital. Sou antes de tudo seu amigo. Sua enfermidade interessa-me como si se tratasse de um irmão.

Alem disto o doutor é um intellectual. Ousei, portanto, ligar as minhas observações ao valor especifico do trabalho.

E para tranquillisar o espirito do convalescente citou as torturas do grande escriptor russo Dostoiewsky, cuja vida de epileptico não impedira que fosse o maior romancista do século XIX.

Agrippino suspirou e calou-se.

Já então queria saber como Tiburtino desenvolvera o assumpto.

Discorrendo sobre a these, o doutorando receiou a principio fatigar o doente; mas por ultimo, enthusiasmado, perdendo a noção do tempo, fallou com eloquencia; e o retratado poude, sem angustia, sentir toda a, belleza do espirito juvenil, do seu amigo.

Dado a leituras poeticas e grande amador do bello sexo, Tiburtino escolhera assumpto mais literário do que medico. Escrevera sobre a mulher moderna no ponto de vista da obsessão erotica. A these occupava-se largamente desse phenomeno que a idade media conheceu sob o nome de succubo. Schopenhauer, o inimigo do eterno fiminino, inspirara-lhe as primeiras paginas. Tiburtino refutava-o. O autor do Mundo como vontade e representação era, em matéria de amor, na sua opinião, apenas um desnorteado, o que se explica perfeitamente pela sua qualidade de celibatario e pelo seu egoismo destructor. Para reduzir a uma dosagem supportavel o seu pessimismo sobre o amôr e sobre a mulher, elle coufrontava-o com Tolstoi, um metaphysico do amor de escola opposta.

Schopenhauer, que só tinha encontrado razão contra a polygamia na multiplicidade das sogras; que nunca comprehendera a mulher senão era tacita confederação para bater o homem pelo espirito de classe de que a honra vinha a ser uma especie de arma de Lysistrata; esse philosopho, que nunca soube o que era o enlevo dos sexos e o materialisou até quasi a titillatio de Spinosa, fôra o mesmo que tentara erguel-o, attribuindo-o á especie, como si esta em realidade constituisse um ser organisado, dotado de intelligeucia e de vontade. Quem ama, quem poetisa o amor, quem enlouquece na contemplação dos olhos azues e celestiaes de Julieta não é Romeu; é a especie: é esta quem põe a escada de seda ao balcão de Gapu- letto e tece aquelle idylio sonoroso que o rou- xinol matinal veio interromper. Tudo, mascara miserável da luxuria, que é a única coisa séria para a natureza, conforme diz Sterne pela bocca de Tristram Shandy: no passion so serious as lust. A bestialidade não ri e a voluptuosidade não admitte brincadeiras.

Tolstoi cabia no extremo opposto. Gomo succedeu a Swedenborg, esse quasi mystico do amor, apezar de tão amoroso da vida, em odio á bestialidade, Tolstoí acabou por descobrir o amor era si. Mas o amor em si é phantasia igual a da especie exaltada por aquelle adversado das mulheres. E si é verdade que com elle não se «racha a madeira, nem se cosem tijolos, nem se caldeia o ferro», não é menos certo que o amor e a mulher, desde que se subtraem ás leis naturaes da existencia terrena, tornam-se phantasmas mais perigosos, pelo vácuo a que reduzem o homem, do que a sua caricatura infernal, o succubo da idade media.

Como muito bem diz Tolstoi todo e qualquer raciocínio destroe o amor; e por isso o encontramos crucificado na metaphysica do solitário Schopenhauer. Mas também querer definil-o pela única renuncia da individualidade, como pretende o auctor de Anna Karenina, é cahir no Nirvarna erotico, que passa a ser também uma das maiores loucuras do pensamento, quando não se limita a mero exercicio ou disciplina da sensibilidade, como aconselhava Ignacio de Loyola e o praticaram, sem quebra da razão, alguns homens fortes do Catholicismo.

Agrippino ouvia attento a exposição do doutorando. Uma repentina inquietação, porém, assaltou-o, e fel-o interromper o discurso de Tiburtino.

-- Que relação tem tudo isto com o meu caso pathologico?

O rapaz sorrio.

--Toda! E é aqui que começa a minha these. O ponto de partida achei-o numa observação verdadeira desse mesmo Schopenhauer, que detesto. Quero fallar do amor degenerado, desse amor que se desbraga e investe contra a natureza.

Simões deu um pulo no leito e sentou-se meio desvairado.

--Mas assim... eu...

Tarde Tiburtino percebera que tinha comettido uma indiscreção. Buscou neutralisal-a. Acalmando o convalescente, disse que aquillo era uma metaphora... simplesmente uma metaphora -- a da musca vomitoria, de que fallava o mestre, a qual em vez de depositar os ovos, de acôrdo com os seus instinctos, n'algum pedaço de carne em decomposição, ia pol-os justamente na flôr do aurum dracunculus, illudida pelo clieiro cadaverico desse vegetal.

Agrippino abalou a cabeça.

-- Palavra que não comprehendo.

-- Eu explico, tornou o doutorando. O amor, no meu caro e bom amigo, depravou-se. Não pense que vou classifical-o entre os ruminantes eroticos. Era o que o senhor receiava.

E continuou docemente, como solfejando.

A depravação de Agrippino era aristocratica. O seu desvio sexual operava-se apenas no terreno da moral; o que devia ter-se como muito comrauin em pensadores fatigados por excesso de trabalho mental e de meditações peripatheticas. Entre o amor serafico, symboiico, dos deliquescentes, cheio de dislates medievaes e ecclesiasticos e de anceios por esse Alem, involto em incenso e myrrha, que os poetas celebram em versos de ritual, e o amor satanico, em que o aspecto exterior da mulher amada toma formas carnaes, planturosas, explendentes, o doutor escolhera o que de modo mais efficaz podia aguçar-lhe o appetite esthetico.

Surgira-lhe miss Kate. Kate o endoidecera.

E elle á semelhança da musca vomitaria depositara o seu amor nessa falsa fulgurancia feminina.

-- Pare um momento, disse subitamente Simões levando-lhe a mão á bocca. Nunca me illudi com essa aventureira. A theoria da musca vomitoria está, portanto, errada. Si por vezes embarafustei pelo caminho da volupia ao lado dessa americana, não foi por julgal-a de outra especie, mas simplesmente por sentir necessidade de embriagar-me com vinhos estranhos, não conhecidos, estupefacientes.

Tiburtino deu uma risada que desconcertou o amigo.

-- Dr. Agrippino, o senhor sabe o que em physiologia se chama sugar uma alma?

-- Calculo o que seja essa extravagancia. Tem havido tantas! Os livros acceitam tudo quanto nelles se quer escrever.

-- Pois bem; extravagancia ou não extravagancia, foi o que lhe succedeu. Essa miss Kate, physiologicamente fallando, sugou-lhe a alma.

Esse abysmo carnal enguliu-o por algum tempo; e, quando o devolveu, tinha-o diluido até a ultima molécula da capacidade amorosa; porque, como mulher, Kate é perfeitamente o aurum dracunculus, mas com a diíferença de que reúne as qualidades das plantas carnivoras, que fazem dentro de si a mais bella das putrefações, anniquilando os insectos, absorvendo quanto possam dar de seiva e de vida. O senhor foi restituido ao mundo exterior exactamente como um carangueijo chupado pelo polvo e de que resta unicamente a parte calcarea.

Simões pôz-se a meditar. Correu-lhe uma lagrima comprida pela face.

-- Tiburtino, você é ainda uma creança. Faça romances; não escreva theses.

-- Ora ahi está! Fui talvez indiscreto. Não lhe devia fallar em coisas tristes.

Agrippino puchou-o para si o apertou-o ao peito.

No estado em que me acho o que você diz é inocuo. Responda-me. Que titulo deu á sua these?

-- O succubo e a mulher á luz da sciencia moderna.

-- Não gostei do nome. Cheira-me á época em que Balzac escrevia physiologias.

-- Tem talvez razão. Si se tratasse de uma publicação não official, eu baptisaria a obra com o nome de Gordelia.

-- Porque Cordelia?

-- Ou Miranda ?

-- Que tem Sliakespeare com a musca vomitaria?

-- Eu lhe digo. O meu livro consta de duas partes. Na primeira -- diagnostico e prognostico -- é Kate quem triumpha; na segunda -- a therapeutica, -- o tratamento, a prophylaxia, -- quem vive é a verdadeira mulher, a mulher perfeita, a mulher que se confunde com a propria vida, que se não analysa, triumphal, complementar da belleza, da saude, da energia, --o amor reconstituinte do homem, inaugurando entre elle e o mundo o nexo festivo da ventura.

-- E foi você incommodar o pobre Will pe- dindo-lhe emprestadas as suas mulheres incomprehensiveis e phantasticas.

Tiburtino trauteou um trecho de Puccini.

Ergueu-se e foi até á janella do quarto que dava para a praia do Flamengo.

A bahia fulgura ao sol do meio dia. Na fortaleza de Santa Cruz explodio um turbilhão de fumaça; segundos depois ouvio-se o trom de uma salva. Um paquete transatlantico demandava a barra.

Os vidros dos quartéis de Villegagnon esparramavam a luz que cahia quasi a pino sobre as construcções civis da fortaleza. Não corria uma só nuvem no céu; e sob a cupula de um azul profundo, do lado opposto da bahia, a casaria de Nictheroy, arrumada em filas, envolviase numa pulverisação de fogo.

-- Em que pensa, amigo Tiburtino?

-- Estou imaginando em que naquelle paquete bem pode vir Miranda. Lembra-se, dr. Simões, de uma menina a quem o senhor deu o nome de Ninon e que passeava em Cosme Velho, no dia em que pela primeira vez nos encontramos, por occasião da nossa extravagante subida ao Gorcovadof -- Lembro-me e por signal que ainda hoje sangra-me o coração. Que direito tinha de praticar a crueldade, que pratiquei, interrompendo o seu idylio.

-- Pois essa menina é minha noiva.

-- Deve ser muito feliz quem a tiver escolhido para companheira eterna, porque, si não me engano, os olhos dessa menina eram de uma pureza imniorredoura.

-- Divinalmente azues e de uma limpidez que deixa vêr até ao mais recondito do coração. Quando quero sentir a verdade debruço-me sobre essas duas janellas e contemplo o paraizo. Dos seus labios, então, deflue um riso tão crystallino e doce ao mesmo tempo, que por momentos supponho-me em plena Via Lactea.

-- Vejo que está bebedo de amor.

-- Não comprehendo o amor sem hypnose.

Só ella tem o poder de tornar a carne soberanamente impeccavel.

-- E de eliminar os calos da alma, quando não os leva até a gangrena.

Tiburtino voltou-se violentamente:

-- Creia, que de Ninon para Kate vae um abysmo intransponível. Kate é o succubo moderno. A sua morada é nos antros do inferno.

Ninon habita aquella região deliciosa, em que os corpos se tornam transparentes, e onde Dante pintou Beatriz deslisando na diaphaneidade de um sorriso de luz divina.

Tiburtino estava nesse dia atacado de um verdadeiro delirio poético. Só por julgar possivel que a noiva regressasse da Europa, sentia entrar-lhe na alma o dithyrambo.

Agrippino ouvia aquella musica cora prazer, numa especie de modorra. As palpebras, de vez em quando, cerravam-se e abriam-se; e nesse intervallo o sonho completava o discurso do academico.

-- As mulheres de Sakespeare! E porque não as das Santas Escripturas?

-- Porque, respondia o doutorando, nada ha que valha o gênio do trágico inglez.

As creações da Biblia são monotonas, como é monotona toda a poesia hebraica. Entre as figuras de Salomão e Job formigam mulheres extraordinarias; mas essas mulheres participam ou da sensualidade de um, ou da rude e severa resignação do outro. Entre os dois extremos ha um enxame de creações ethicas, que não vivem senão pela arte dos poetas e pintores da Renascença, que as encarnaram na reminiscencia dos artistas gregos e romanos. Nas letras sagradas esses typos femininos são duros e têm as arestas dos rancores dos prophetas, os quaes, porque não sabiam o amor, os vilipendiavam, com o titulo de fortes, quando não representavam sinão o papel de instrumentaes da perversidade politica de seu tempo. Judith com alfan- ge na mão vingando a patria no excidio de Holophernes; Esther, sensualisantlo Assuero, em troca da influencia de Mardocheu; Dalila, abatendo as forças de Sansão para entregal-o aos pigmeus. Prolíficas e submissas como Sarah e Rebecca, não são mulheres, são symbolos. De sorte, que só ficam a Sulamita e Maria como expressão real da vida. Mas, ainda assim, a Sulamita é o amor carnal, o delirio erotico levado ao extremo peccaminoso. Os seus lábios, doces como o favo de mel, os seus peitos cheirando a vinho e balsamo, o mel e o leite debaixo de sua lingua, entontecem, fazem delirar. Quanto a Maria, a dôr materna vale o mais extraordinario dos poemas. Pulchra na dôr sublime. Não é por essa mãe angélica, cheia de graça, benta entre as mulheres, que o nosso coração trepida e se evola em adorações infinitas. Esse sentimento transcende da capacidade do homem como ente terrestre. Para que a mulher viva no amor é indispensável que não tenha perdido a humanidade.

Foi preciso que um Shakespeare surgisse para que a mulher se nos representasse era todo o seu fulgôr naturalista. Novo Pygmalião, o autor de Hamlet pegou da Galathea antiga e fez a mulher como nós a sentimos e não sabemos exprimir.

Porque Miranda? Porque Miranda, como Ophelia, como Perdita, é a natureza na sua ex- pressão ingênua, innocente, eterna. É a mulher!

a mulher resignada, tomando a forma que o homem, a quem ama, lhe quer dar. Opheiia reflecte a loucura que bruxolea em Hamlel. Gordelia encarna as angustias do velho Lear, louco e abandonado. Miranda, todavia, candida creatura, ignorante do que é e do que existe em torno, nasce para a vida no primeiro sorriso, ao ver o primeiro mancebo que a requesty. Que ha de comparavel a essa visão, que surge do lodaçal da vida, ao lado de Calliban?... Foi assim que o gênio de Siiakespeare descobrio a verdadeira natureza da mulher.

Si é certo que elle nos mostrou o lado opposto desse fair defect of nature em Lady Macbeth, não é menos exacto que as suas mulheres truculentas não são equivocas como Judith, nem dissimuladas como Dalila; são positivamente más, horrendas de caracter, porque assim o quiz a natureza.

Agrippino tinha adormecido ao som dessa musica sedativa.

Tiburtino Mendes, nascera para poeta e não para medico. Notando que o amigo não o ouvia mais, levantou-se e foi sentar-se junto á janella, observando a marcha dè ura patacho de velas enfunadas, que surgia á barra.

O enfermo despertou. A voz sahia-lhe da garganta tremula; parecia quasi embargada.

-- Porque não vae receber a sua noiva?

-- Tiburtino voltou-se fazendo um gesto de desconsolo.

-- Não tive aviso. Nem é mesmo provavel que a minha suspeita corresponda a um facto.

Si Ninon voltasse a familia ter-me-ia communicado o telegramma.

Calarara-se de novo.

Agrippino encostou-se aos travesseiros; pegou de uma brochura que o doutorando deixara sobre o creado mudo.

-- Você está lendo isto?

-- Porque faz a pergunta?

-- Porque ahi ha veneno crotalico, peçonha capaz de estragar uma alma em quanto o diabo esfrega o olho.

Tiburtino rio-se, e tomando-lhe delicadamente a brochura, começou a folheal-a, procurando trechos assignalados a lápis.

-- Cuido que esse malvado adversario de Socrates vae-lhe transformar Miranda numa infernal Medea.

-- Não creia nisto. Ora veja si não é consolador um moralista, quando nos assegura que «é preferível cahir nas mãos de um assassino do que no sonho de uma mulher ardente».

E continuando a extractar o livro:

-- «Não ha vinho mais delicioso para o homem do que dormir nos braços de uma mulher...

porque o homem tem lama no fundo d'alma e desgraçado delle se essa lama tem espirito»...

«... Dou-te um conselho; não mates os sentidos, mas a innocencia dos sentidos»...

«... Não te aconselho a castidade, porque si em alguns ella é virtude, na maior parte é quasi um vicio »...

«... Estes são também continentes, mas a cadella da sensualidade reflecte-se, com ciume, em tudo que elles fazem... e a piedade é muita vez uma forma da lubricidade» ...

-- Fecha este livro diabolico!

-- Vamos e venhamos, Dr. Simões. A forma é rude, talvez paradoxal, mas o que é certo é que estes conceitos nós os sentimos no coração, quando deixamos os raciocínios de convenção.

O philosopho germânico, portanto, não mente si affirma que a moral socratica é a própria decadência do mundo, moral de altitudes tragicas, não raro cômicas, transformada nos tempos que correm em moral de negociantes, de taberneiros e de constructores de officinas. A piedade ainda mesmo em Lourdes, é a volúpia disfarçada.

-- Poesia! Você está, com os seus novos mestres de philosophia, truncando a moral da especie.

Tiburtino deo uma risada gostosa.

-- Especie! Eis ahi uma superstição igual á da Santíssima Trindade! Fallemos de outro assumpto. Meu caro Dr. Simões, a vida é tudo, e não ha concebel-a senão como o triumpho da energia sobre a inércia do ambiente. Embriagar-se de sol, de luz, de verde; identificar-se com a paizagem universal: -- eis a unica philosophia que conheço no porlico da existencia.

Essa philosophia tel-o-ia salvado, se o amigo a houvesse conhecido a tempo.

Agrippino estirou o corpo n'um espreguiçamento languido e virou o rosto para a parede.

-- Não lhe agradou o conceito?

O doutor volveu-se com vivacidade. Os olhos scintillavam.

-- Tiburtino, você é um alliado de miss Kate!

A expressão physionomica era insólita; a voz guttural, cavernosa.

O doutorando estremeceu. Commettera uma falha imperdoável. Voltando a si:

-- Sobre taes assumptos não se brinca. Permitta, Dr. Simões, que me resinta da injuria.

O enfermo sorrio. Passou-lhe no semblante uma onda de estupidez, brnxoleando á ironia.

Arrependido de ter magoado o amigo. Agrippino sentio que o invadia uma tristeza mortal.

Lamentou-se como uma criança; injuriou-se, chorou.

No quarto reinava um profundo silencio. Tiburtino desertara. Um grande terror assaltou então o enfermo. Seus olhos tinham pousado por acaso sobre o yatagan de Kate, pendente de um dos portaes. Despertada por esta descoberta, a memoria entrou com lucidez anormal a recordar-lhe todo o seu passado extravagante.

Em um minuto recapitulou as scenas do Gorcovado, de Icarahy, da Gavea. A sua figura e a da americana passavam-lhe por diante dos olhos como reproduzidas sob a luz tremula e fantastica de um cynematographo. A febre começava a envenenar-lhe o cerebro. Não era ainda sonho; mas as scenas que se desenrolavam acaso pareciam vividas e de uma actualidade lancinante.

Logo uma angustia terrivel estringio-lhe o peito. Singular opacidade perturbou-lhe a ordem dos factos. A reminiscencia dos dois dias passados no chalet da rua Leblon, em rebeldia á vontade, fragmentava-se em scenas disparatadas, sem nexo, impossíveis.

Que houvera ali?

Nitidamente só lembrava-se do seu despertar no Sanatorio da Gavea e da sua trasladação para os proprios aposentos, onde agora convalescia.

Não havia como explicar a intervenção de Salcedo em casa de Kate, depois do encontro desta no largo da Carioca. E a imaginação, exhausta, por fira paralisou deante de um nevoeiro espesso, onde as linhas dos factos perdiam-se como vultos de uma paizagem nocturna. Alguma coisa de tremendo, todavia, se tinha passado durante esse desgraçado periodo, e essa coisa a memória recusava restaurar-lh'a produzindo em sua alma uma sensação pavorosa de que aos poucos iam-se impregnando os inoffensivos objectos que o cercavam. Dentre as sombras o espectro da vida occulta dos seres o estava espreitando com olhos sinistros. Tanto bastou para que o seu desespero attingisse proporções sobrehumanas.

E soltou um brado que encheu a casa.

A Rosário apparecia nesse instante.

-- Soceorre-me, gemeu o doutor; soccorreme ou eu enlouqueço!

A hespanhola abraçou-o, carinhosa, e buscou tranquilisal-o.

-- Que succedera ?

-- Uma coisa sem nome!

E o doutor descreveu a angustia que o tomara. Os objectos materiaes, os moveis do quarto agitavam-se em torno delle e o hostilisavam assumindo formas humanas. A memória recusava-se-lhe reproduzir os factos mais recentes. Si não lh'a restituissem estaria irremediavelmente perdido, e então só a morte poder-lhe-ia trazer allivio.

A Rosário, compadecida, e ao mesmo tempo interessada pela sorte de Agrippino, que a impressionava dia e noite, completou um movimento que se tinha começado a esboçar desde os primeiros instantes da convalescença do enfermo. Encostou-o ao seio e beijou-o.

-- Isto é febre; ponderou ella. Procure acalmar-se, que tudo irá embora.

Agrippino metteu-se no leito, como um pupillo obediente, sem vontade e, afagado pelos olhos da Rosário, pode-se dizer hypnotisado sob a influencia sedativa de tão planturosa enfermeira, aquietou-se, adormeceu, Não ignorava a hespanhola a natureza das praticas incantatorias de que o doutor fora victima no chalet da rua Leblon. D'ahi, como filha de Eva, o empenho que punha em conquistar aquelle, em quem já presentia um amante, libertando-o dos sortilegios da americana.

Tiburtino encarregara-se de verificar a realidade dos factos e a natureza das relações de Salcedo com miss Kate. Si bem que não acreditasse, nem comprehendesse tudo quanto lhe haviam referido sobre essas duas creaturas, convencera-se de que entre elles existiam ligações não só sensuaes, mas também de outra ordem. Porventura Salcedo e Kate entregavam-se a um commercio em que a titulo de hydroterapia, de hypnotismo, o primeiro explorava jogos prohibidos e a segunda exercitava uma intelhgencia altamente perversa, attrahindo cavalheiros da mais alta sociedade a praticas de occuitismo, para depois entregal-os, atordoados, á voracidade do socio sem escrupulos.

Taes relações, porém, não teriam impedido que a charmeuse, em continuas desavenças com o souteneur, se envolvesse por sua conta, em aventuras, nas quaes dava unicamente satisfação aos seus instinctos atrozes de vampiro feminino.

Do que pudera colher da estada de Agrippino no chalet da rua Leblon rezultava que na primeira noite o doutor soífrera a acção effectiva de filtros, de toxicos. Miss Kate incubava talvez a idéa de obter por um golpe de audacia mais largos favores de dinheiro e de jóias, e por isso tentava empolgal-o. A crise, porém, seguira-se-lhe violentíssima. E Salcedo, delia aproveitou-se. Acudindo ao chamado daquella mulher infernal, fizera transportar o louco como ella dizia, com annucios de mais uma cura miraculosa que ia obter com o seu systema de tratamento no sanatorio.

Frustrara-se o plano, porém, porque d'ali o fora arrancar o Dr. Castro, por empenho do Navas; e as melhoras do doente não tardaram em menifestar-se, graças aos cuidados desse sábio profissional.

Foi durante a convalescença que Tiburtino veio a comprehender a gravidade das causas dos males que affligiam ao amigo. Ora em sonho, ora em rapidas confissões determinadas pelo caracter excessivamente affectivo de Agrippino, que se lhe entregara numa cofiança doida, desvendaram-se-lhe gradualmente os mysterios que haviam precedido a noite catastrophica da rua Leblon.

-- Tudo quanto pode haver de vida triumphal na mulher amada, dissera-lhe elle uma vez, referindo-se ás impressões d'aquella noite, tudo quanto pode existir de electrico, fasciaador, mysterioso, nas formas femininas, reunia-se no corpo de Kate, nos movimentos de Kate, nos olhos de Kate para produzir a explosão sexual em toda a sua plenitude. Succumbi diante desse paroxismo de paixão carnal, victima de uma hedionda novidade de emoções: não devia, pois, ter resuscitado para a banalidade dos gosos mundanos e prosaicos do ram-ram da vida.

Porque não no tinham deixado morrer?

Já agora era humanamente impossível apagar os traços malditos que a feiticeira lhe deixara impressos na alma. As imagens e pensamentos rapsodicos da vida que tivera ao lado da americana nunca mais lhe permittiriam equi- librar as energias indispensáveis á existencia natural, proseguida á luz do dia, segundo os dictamens da virtude e da dignidade humana.

Agrippino, pois, não se afastara da idéa de que vivera um dia a vida diabólica. E na sua opinião de pensador, radicalmente transtornado pelas sensações do invisível, Kate devia ser uma mulher, dotada de prestigio infernal, com po- deres, desconhecidos pela sciencia, mas nem por isso menos verdadeiros, sobre as determi- nações da vontade do homem que pretendesse levar ás inauditas abominações da carne.

E quando num farrapo de memoria surgia-lhe a scena enigmatica da intervenção cirurgica praticada pelo Dr. Salcedo, os cabeilos se lhe eriçavam, pensando que talvez não fosse invenção a gravidez de Kate, e que o medico charlatão naquella hora fizera expellir por artes diabolicas o fructo dos seus amores.

Gommunicando" mais de uma vez as suas impressões a Rosário, Tiburtino manifestara duvidas sobre a possibilidade do completo restabelecimento mental de Agrippino. Em sua opinião seria um caso perdido, si não o conseguissem afastar do meio em que a sua enfermidade fizera explosão.

A hespanhola sorria dissimuladamente como quem possuia o segredo da reintegração do enfermo na vida quotidiana. Na sua simplicidade de mulher ignorante, mas equilibrada, ella nenhum credito dava aos symptomas aterradores dessas moléstias que andavam descobrindo; tinha como certo que bastaria uma nova ligação e vida marital para que Simões voltasse ao temperamento primitivo.

A Rosario por tanto, tornou-se mais assidua nos aposentos do doutor.

O dia seguinte trouxe ao doente um apaziguamento relativo.

Logo cedo a hespanhola veio servir-lhe a refeição matinal. A phisionomia do enfermo era jovial; a nevrose tinha-lhe dado quartel, permittindo que sonhos agradaveis lhe arejassem o cerebro durante a noite. Todavia o doutor conservava-se pouco communicativo.

A Rosário, hesitava. Por fim decidio-se a dizer tudo quanto delle desejava; e affirmou a confiança que tinha em restituir-lhe a saude, sem o uso de medicamentos, nem dos charlatanismos modernos.

A nevrose de Agrippino tomava novo aspecto. Seus olhos não deixavam os da hespanhola; e uma vez por outra enlangueciam numa contemplação muda das suas formas graciosas.

A sympathia que lhe inspirava agora essa mulher como que philtrava-lhe n'alma um principio de suave segurança e doce arrependimento; balsamisava-o.

Não passou despercebido a Tiburtino essa rapida transformação, também não se maravilhou, porque na sua clinica incipiente mais de uma vez tivera occasião de observar a subitaneidade de transições d'aquella natureza. Longe, assim, de alegrar-se, pensou que a calmaria não era senão prenuncio de crise mais grave do que as anteriores.

Essa troca de effluvios entre enfermos e enfermeira durou, comtudo, mais tempo do que previra o medico.

Simões rejubilava.

Uma manhã Tiburtino entrou no quarto muito alegre e loquaz. Vinha participar-lhe o seu proximo casamento. O doutor acarinhou-o, e apezar da lentidão das suas fallas, não encontrou difficuldade em tecer ali em phrase muito dolorida um dithyrambo á noiva. Apenas, porém, o amigo retirou-se, o coração sublevou-se num movimento retrospectivo de sensações perdidas desde os últimos annos de sua juventude.

Invadia-o, em turbilhão, uma luz branca e doce que annullava tudo quanto de negro e satanico o obsedara durante o anno que ia findar.

Pensou em sahir; e já enfiava o vestão de passeio quando surgio a Rosário. Agrippino, recuando risonho, sentou-se para recebel-a. A hespanhola não trazia o vestuário costumeiro; voltara á toillete garrida dos bons tempos de actriz e puzera nos gestos, nos olhos, uma seducção particular.

O doutor fel-a pousar sobre os joelhos e disse-lhe num tom exquisito que a fez extremecer:

-- Sabes? Resolvi casar-me comtigo.

Havia nos olhos de Agrippino um fulgor insolito. E fora mais a expressão desse olhar do que a estravagante proposta de casamento o que assombrara a Rosário. Refletindo, todavia, sobre o caso com a promptidão que lhe facultava o seu temperamento tranquillo, ella desprendeu-se dos braços do doutor, agitando o dedo sobre os lábios como impondo silencio a uma creança.

-- Tenha juizo! E cedo ainda.

A aurora consoladora que se levantava para o enfermo converteu-se instantaneamente numa noite negra e tempestuosa. A cólera suffocou-o dum rictus damnado, e um grito estertorante escapou-lhe da garganta.

-- Uma outra Kate! balbuciou elle.

Receiosa de que o doutor a offendesse, a Rosário fugio do quarto, descoroçoada do esforço de ternura que empregara numa inclinação frustrada.

Simões, entretanto, entregava-se a excessos de ordem diversa. Atirou um copo ao espelho do guarda casaca que se fez em mil pedaços, e, furioso, poz-se a despejar da estante os livros e a varejal-os pela janella fóra. Porfim, cahio sobre a espreguiçadeira convulso, desesperado.

Depois silenciou.

Do lado do caes repercutia o som monotono do timpano de um electrico que se approximava em carreira vertiginosa. O doutor escutava, attento, o zuuut do propulsor. Soaram tres badaladas: o carro parou; depois novo zuuut, novas badaladas, e o ruido sinistro perdeu-se ao longe num sussurro de azas de morcego.

-- Alguém saltou do bond e entrou na pensão, disse elle comsigo; e ergueu-se espavorido.

Uma singular allucinação olfativa acabava de atacal-o. PeTietrava-o o tom orgiatico dos perfumes, que miss Kate ordinariamente usava.

A porta abrio-se e Agrippino vio deslisar uma sombra por detraz dos moveis.

-- Kate! Kate! bradou nos paroxismos da agonia mental.

A americana não lhe disse uma só palavra.

Olhava-o, cora a íixidez macabra de um ser que já não pertencia a este mundo, e dissipavase apenas o doutor emprehendia tocal-a. O enfermo passou as mãos pela vista para verificar si estava accordado. Estava. Não obstante o que ali se lhe afigurava excedia a tudo quanto se pode imaginar de espantoso como invenção 6 ainda mais como realidade. O conto chinez do general Tcheng-Ki-Tong se reproduzia em seus aposentos com uma brutalidade feroz.

Um esqueleto esverdeado e de dentes agudos tripudiava no meio da casa, chocalhando os ossos de encontro ás cadeiras numa dança infernal. Pelo chão jaziam espalhados os vestidos, os adornos e um sacco enrugado e flacido de carnes informes e lividas, que miss Kate despira para representar aquella farça de alem tumulo. Era tudo quanto restava da formosa mulher que o enfeitiçara!

O esqueleto ria-se, entrechocando os dentes.

Por fim parou e sentando-se defronte de Agrippino, traçou a tibia e poz-se a falar.

-- Ouve, my darling: estamos no seio da morte e vamos conversar.

O enfermo sentio uma algidez que lhe tolhia as sensações que constituem a vida.

Kate gesticulava. E no cerebro do torturado agitavam-se as idéas num tufão vertiginoso, num outro mundo.

-- O que fôra a vida para elle senão uma embriaguez scientifica, uma lucta incessante contra o incognoscivel? Porque não ouvira a sua amante quando lhe mostrava o potencial da existencia liumana? Não comprehendera que ella teria sido a sua Beatriz e que do inferno da duvida por sua mão lhe fora fácil chegar até ao paraizo do amor terreno? Todavia a desprezara para naufragar num oceano de torturas philosophicas, acreditando hoje em Kant, amanhã em Swedenborg; e a ignominia do pensamento terminara por dissolver os proprios motivos de viver.

E então uma luz muito viva illuminou-lhe a intelligencia.

-- Era tarde. O conflicto, travado entre o amor pagão e as cogitações da sciencia espectral do mundo moderno, tinha-o arruinado para sempre. A sua felicidade desabara. Á ultima hora reconhecia que o ascetismo do raciocinio, que as construcções da synthese eram incompativeis com o sentimento da vida concreta, com a embriaguez e o enthusiasmo da existencia.

Kate offerecera-lhe uma ponte de passagem para salval-o das formulas, não a acceitou; foi então o cataclysmo da razão. A Beatriz convertera-se no Vampiro; e a vida que, podia ter com ella glorificado as alegrias da terra, acabava reduzindo todas as suas affeiçôes a lama, a putrefacçâo. Preferindo a lógica ao inslincto da vida perdera a própria força de viver. A vida fôra feita para ser, não analysada, mas vivida.

Esta verdade cahio-lhe sobre a consciência como um martello mechanico de trezentas mil toneladas, pulverisando-a.

O esqueleto gargalhava. E Agrippino sentio-se atordoado por um brado estridente:

-- A<B! A<B!

A formula maldita, emergindo do subconsciente e reproduzindo-se ao infinito, inundou a sala.

A vida se obscureceu; os olhos sahiram-lhe das orbitas. Nem mais garçonnière, nem mais Kate, nem mais amigos, nem mais nada! Uma sensação de animal acuado apossou-se delle e impellio-o até á varanda.

Em baixo na rua formara-se um ajuntamento de curiosos attrahidos pelo rumor que se fazia no sobrado e pela presença dos livros atirados ao lagedo. Percebendo entre essas pessoas o Navas, que o exhortava com o gesto apiedado e fazia menção de entrar, Agrippino deu um grito lancinante e recuou dois passos.

Houve um brado geral.

O infeliz jazia sobre o calçamento.

Rio, 1901 -- janeiro -- abril.