Luz coada por ferros: Edição para o ELTeC Plácido, Ana (1831-1895) Criação do HTML original Adeliana Silva Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 15046 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org Ana Plácido Luz coada por ferros Luz coada por ferros Ana Plácido Livraria A.M. Pereira Lisboa 1863

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Luz coada por ferros

Escriptos originaes

por

D. Anna Augusta Placido

Lisboa

Livraria de A.M. Pereira

50, R. Augusta, 52

A' memoria de minha irman

D. MARIA JOSÉ PLACIDO

Mais alto podia ser o monumento da minha saudade, sempre viva; comtudo não excederia este, onde foram depositadas as lagrimas que a desgraça, no seu requinte de crueldade, o opprobrio e a ignominia arrancavam aos meus ?elhos.?

Grande parte d'estes escriptos nasceram na calamitosa época do carcere e do escarneo dos meus algozes, nunca saciados das torturas que me infligiram. Dedicar-te-hei, pois, estas paginas, onde por vezes apparece o teu nome como a estrella da manhan, rompendo a custo das sombras pesadas da noite: é um dever sagrado. Foste a minha unica amiga n'este mundo: não conheci affeição mais verdadeira.

Hoje que me acho só, filha, quando mal me amparo ás grades do sarcophago que te esconde, a nossos paes e familia, penso com tristeza nos nossos quatro irmãos, que ainda vivem, dos doze que eram. Nem um só se lembra de mim: todos esqueceram a que lhes serviu de segunda mãe! Ora, quando estes repellem a minha lembrança, para não afugentar a felicidade que lhes sorri, de que me admiraria eu, vendo que das muitas pessoas que me cortejavam nos dias opulentos, poucas ou nenhumas me conhecem hoje! Posso, porém, confessal-o: nunca esse mal, devido unicamente á pobreza, me foi espinho.

Se tu, lá do ceo, lanças a vista á terra, ó minha querida irman, pede ao Senhor que me adoce este meu ultimo transito, e proteja o orphão, que tanto amaste, no escabroso caminho da vida. São estas as únicas aspirações d'um coração crucificado pela dôr e pela crueza d'um mau destino.

Anna Augusta PlAcido.

30 d'outubro de 1862.

ADELINA

Les femmes voient tout ou ne voient rien, selon leur disosition d'âme; l'amour est eur seule lumière.

Balzac.

CAPITULO I

O Porto é o eden aonde mais infloram os amores angelicos, candidos, e infantis. Ninguem me desmentirá, creio. Aqui, não chegou ainda o contagio d'essa peste malefica que lavra já na capital, como em todas as capitaes dos grandes reinos.

Se ha aqui peccadora, empolgada nas garras satanicas de paixão menos pura, ai d'ella! por que as pedradas chovem-lhe compactas, e á penitente nem tempo lhe dão de repetir uma historia passada entre Jesus e os apedrejadores d'uma mulher, em Judea.

Estamos pois na cidade da Virgem.

É nesta divina padroeira que as mães descançam o cuidado de guardar intactos d'um desejo, ou pensamento equivoco, os coraçoes virginaes das filhas, muito além dos vinte e cinco annos, até que o marido predestinado lhes calque aos pés o gracioso e puro emblema da innocencia.

D'estes ha algum, vetusto arrapazado, que, sob o patronato de Baquet ou Augusto de Moraes1, deixa a esposa tristemente desilludida, vendo-o em trajes domesticos na primeira tarde d'essa celebrada lua,—saudosa para tantos como amarga para outros -- e á qual uma das nossas primeiras e elegantes pennas chamou, entre muitas, lua de jalapa.

Vamos, porém, ao conto. As minhas galantes patricias, investigadoras conscienciosas da moralidade das vidas e da moralidade dos romances, já estão franzindo o sobrecenho ás apparentes ironias do exordio. Não terão motivo para velar o rosto pudibundo. O seu pudor natural as vela.

Uma hora da noite sôa na torre da Trindade, e logo depois ouvimos o passo rapido de dois elegantes frequentadores do club, descendo a escada.

-- Aonde vaes tão cedo, Luiz? -- diz um d'elles, de rosto entre o branco e o ruivo, cabellos e bigode loiros, uma dessas physionomias que nós admiramos nos bonecos allemães, ajuntando-lhe sómente um sorriso de velhaca finura, e astuta sagacidade.

O outro, é alto e magro, tem ar presumido, e affecta sentimental melancolia.

1 Alfaiates notaveis do Porto.

-- Recolho-me, Fernando -- disse o interrogado. -- O espirito morre açaimado e esvaecido aqui na estreitesa d'este mundo em que se vê deslocado! Que horrivel coisa é a solidão moral, e ouvir estes homens que não fallam senão em primas-donas, cavallos, e toilettes! E são felizes! Fujo até de escutal-os para não ficar brutificado e boçal como elles. Mas tu que os aturas com tanta complacencia, ou com tão evangelica coragem, como tenho presenciado, recolheres tão cedo é admiravel!... a menos que não vás em cata de alguma deusa de duvidosa progenie, para acalentar-te o somno tardio da manhã!

-- Oh! continua que estás divino! -- replicou o interpellante -- não me faças perder agora o bocadinho mimoso, que deve seguir prefacio tão feliz... Estou já a imaginar que farei de tudo isso um picado saboroso para o folhetim de amanhã. Verás como te inquadro lá as maximas, collocando-te a par de Socrates, philosopho menos espiritualista do que tu. A proposito, ainda te inspiras dos negros olhos da gentil Adelina? Puro platonismo, já se vê... ou estás ecletico?... Descobriste talvez na sciencia plena novo apostolado? Portugal ha muito que nada apresenta de original nesse genero: caber-te-ha essa gloria. Desde já me tens a tirar sons agudissimos da theorba epica, e a dar-te as honras que Platão não gosou na decantada Athenas.

-- Ora, meu amigo -- atalhou Luiz -- estás enfadonho com tanta erudição ! Emprega melhor os teus philosophos, que eu não te aturo -- disse, e foi caminhando em direitura á travessa que vae abrir na rua do Almada.

Fernando olhou-o sorrindo desse geito que lhe era particular, e afagando as guias do bigode. Depois tomou pelo Laranjal, e foi dizendo, em monologo comsigo mesmo:

«Consegui só metade do que queria. Afugentei-o, mas nada colhi a respeito delia. Já me senti apaixonado por não sei que burguesinha dos nossos reciprocos affectos, e elle deu-me uma gargalhada, e não fui mais feliz com o expediente de hoje para o tornar alegre e fallador. Por ella tambem nada sei; e mais tenho estudado muito aquella mulher ! Ha ali uma vontade forte de mais, uma altivez, que não será muito agradavel para o mundo, e que me desgosta; mas é bella, tem espirito, o que é raro hoje, e deixemos lá os apologistas das innocentes estupidas, que nos matam com um riso parvo as expansões que não comprehendem. Além de que, a mulher tem oitenta mil crusados, o que é uma grande fortuna nesta epoca para quem não tem nem oitenta reis de seu, senão folhetinisando o mundo. A paixão, já se vê que a sinto, e que a tenho mostrado nos suspiros, que a bella finge não perceber, e nas poesias allusivas, que lê com indifferente semblante.

«Está dito! Amoroso como Bernardim, inspirado como o Tasso! Vou escrever... eu sei cá!... um poema! uma groza de sonetos! quero ser o Petrarcha d'esta Laura inédita! Heide ir adorar-lhe a porta todas as noites, escutar o rumor d'aquella ditosa morada, e espreitar-lhe a sombra atravez os cortinados do seu quarto. Heide fallar-lhe nos seus devaneios, coisa de que as mulheres gostam muito; dizer-lhe que a sinto em espirito adejanle a illuminar as trevas em que me jazia immerso o coração e a intelligencia! Ella hade amar-me, hade preferir o genio ao sandeu que eu desconfio a tem fanatisado com não sei que melindradas tristuras! A existencia seria depois bem formosa para mim! Casado, acaba-se o eterno artigo de fundo; o folhetim de todos os dias; e as maldictas provas para que eu já olho como para os sujos espectros da minha pobreza futura.»

N'este ponto solemne ia abismado o litterato, quando, chegando á esquina do Guichard, foi abalroado por um homem que corria pressuroso.

Firmou-se melhor nas pernas, ainda aturdido do embate, e gritou:

-- Ó sr., é muito... Ah! es tu? agora é destino! Ouve cá, Luiz!... -- como elle corre! corramos também... Olá, homem igual aos deuses alipedes, Mercurio roto, espera, e repara que te chamo eu, e que prometto fazer-te immortal -- foi elle dizendo, e dando-lhe palmadas no hombro.

-- Vae-te para o inferno, demonio, e não me appareças mais, que sinto desejos de te esganar!

-- Isso agora é serio, menino, retiro-me e lá te espero. Acceito o repto!

Luiz nem escutára o final. Livre do importuno, subiu pela rua do Santo Antonio ainda desesperado, cogitando na perseguição d'este homem de que elle não sabia o que devia julgar. Conhecia-o de pouco mais que tres mezes, desde que, vindo da provincia, lh'o apresentaram. Achava-o folgazão, e sempre prompto a rir-se das miserias da sociedade que elle conhecia melhor que ninguem, e aonde entrava e era estimado. Tinham-lhe dito que era um dos aspirantes á mão de Adelina, mas elle não tinha ligado importancia ao rival, certo e crente no resultado de seus planos.

N'aquella noite, decidia-se o seu destino de que já não duvidava. Adelina amava-o.

Em duas linhas, recebidas havia cinco horas, fallava-lhe na felicidade dos anjos, no viver santo da familia, e na harmonia de duas existencias ligadas á face do céo e da terra, com tudo que as torna respeitadas.

Anceiava por ouvir-lhe o complementa dos seus votos; esse sim tremendo de que poucas creaturas comprehendem o alcance!

Entretanto, Fernando scismava: «Para onde irá elle? ! Isto faz-me pensar que o caso está mais adiantado do que eu julgava... Pois hei de conhecer o desfecho da tramoia; estou resolvido a não o largar... E, depois, quem sabe? estes ares espiritualistas impressionam, e já vejo que as espertas resvalam na ladeira das tolas. Póde ser que seja bem succedido o maldito, mas eu não perco a occasião: hei-de desenganar-me.»

Coseu-se então com uma das portas onde projectava sua sombra um candieiro distante, e foi seguindo Luiz com olhar prescrutador. Viu-o, chegado ao cimo da rua, voltar-se, e procural-o talvez dois minutos n'essa rua, deserta áquella hora. Vacillou ainda, como se duvidasse da desapparição, e por fim tornou pela rua de Santa Catharina, a passo rapido.

Fernando saiu do escuro, e foi-o seguindo, a distancia de trinta passos, não duvidando já do caminho que levava. Perto de uma casa de rica apparencia, ouviu-o assobiar a sentimental melodia do Verdi no duetto da Traviata « Pariqi, ó cara noi la sceremo;» de prompto, como se fosse suspirado aquelle canto, a janella abriu-se com impeto, e appareceu o vulto de uma mulher.

Fernando conhecera-a. Não pôde vencer-se: foi-se aproximando, e escutou o seguinte:

«Amanhã fallarei á minha tia, Luiz. Creio em ti, e na felicidade. Dou-te a minha vida, e não quero que soffras mais, porque a minha alma accusar-me- hia. Minha tia é boa, ha-de escutar-me, e tu depois farás o resto, meu amigo. Estou que hade prezar-le muito, conhecendo o que és para mim...»

« Ó anjo ! -- respondera Luiz -- abres-me as portas do paraiso onde eu julguei que nunca poderia entrar. Sinto desejo de ajoelhar aqui, e adorar-te como faço na solidão do meu quarto, quando a tua imagem luminosa me apparece radiante como a da Virgem apparecendo aos apostolos...»

A expansão do amante feliz foi abafada por uma gargalhada estridente. Adelina fugiu. Luiz correu ao ponto escuro d'onde saira a cascalhada do riso. Viu Fernando de braços cruzados.

-- Que fazes aqui? interrogou Luiz.

-- O que faço em toda a parte: riu-me. Agora vou-me deitar. Boas noites.

Luiz ficou perplexo, com os olhos postos na janella de Adelina.

Attribuladas suspeitas lhe tumultuavam no coração, quando a voz de Fernando, já afastada, lhe trouxe a lettra e a toada da conhecidissima quadra:

La donna é mobile

Qual piuma al vento

Muta d'acciento

E di pensieri.

CAPITULO II

Adelina era filha natural do coronel Borges da Silveira. Ficára, aos dez annos, sem mãe; e, n'essa edade, entrou como educanda no convento da Encarnação, em Lisboa, onde seu pae residia. Este, sem outras affeições no mundo, não poupou cuidados nem meios para lhe dar uma educação brilhante.

Adelina primava entre suas companheiras, que todas lhe queriam como irmãs; fazia as delicias, e era a esperança risonha do coronel. A morte, porém, com as suas garras inexoraveis amanheceu um dia a dilacerar os debuxos graciosos que lavrara o extremoso pae na tela da phantasia. O coronel conheceu a eminencia do perigo, e tratou logo de perfilhar Adelina, deixando tudo em ordem para que ninguem lhe contestasse a herança. Depois recommendou-a a um amigo, e entregou nas mãos de Deus a sua unica filha.

Morto, Adelina achou-se aos dezoito annos, senhora de bens de fortuna, mas estava só! ninguem que a dirigisse na vida! Lembrou-se de ouvir seu pae fallar-lhe muitas vezes em uma irmã que presava muito, e vivia no Porto. Nunca descobrira a verdadeira causa, mas, por meias palavras do coronel, conheceu que um desgosto de familia o afastava d'ella, sem comtudo poder esquecel-a.

Adelina escreveu a sua tia. Expandiu a dôr d'aquella orphandade tão sentida e pesarosa, gemeu inconsolavel aquella perda para que não ha no mundo compensação possivel. O coração de um pae é thesouro superior a todas as riquezas da terra. É ali onde buscamos o refrigerio, sempre certos de encontral-o nas adversidades e desgraças, por mais grandes que sejam, e maiores que o destino nos mande supportar.

Ai d'aquelle a quem falta na epoca das paixões o abrigo do seio paterno, esse sublime tabernáculo àonde Deus depositou, á sua similhança, a sabedoria e a misericordia!

A resposta de D. Suzana foi o chamamento ancioso de um coração a adoptal-a como filha. Adelina commovida, despediu-se saudosa das companheiras da sua tranquilla infancia, e saiu no vapor para a terra que ouvira o primeiro vagido de seu pae, do ente que fôra para ella uma religião, e cuja memoria vivia sagrada e unica na sua alma. A viagem pareceu-lhe longa; e, ao primeiro annuncio de que se avistava a barra, apressou-se a subir para a tolda, impaciente por conhecer essa cidade a que se sentia já presa por sympathia.

Fundeava o vapor na ribeira, e, ao primeiro lance de vista, Adelina sentiu um aperto de coração, uma melancolia quasi angustiosa como de presagio funesto que lhe conturbasse a alma. Não via as margens risonhas e magestosas do seu Tejo, aonde ella tanta vez fitára os olhos enlevada. Tudo ali era mesquinho e triste! Uns braços, e uma voz, chamando-a de perto, a arrancou a esta contemplação acerba.

D. Suzana reconhecêra na joven as feições de seu irmão. Estreitou-a ao peito, e Adelina conheceu que seria ingrata d'ahi em diante, queixando-se do destino e do seu isolamento no mundo, como horas antes fazia.

Encontrava em sua tia uma amisade affectuosa e sincera, e admirava n'ella um d'esses typos grandiosos que o mundo raro se apraz em nos mostrar, como a perfeição da virtude na terra.

-- Ouve, minha filha -- lhe dizia ella dias depois da sua vinda -- receio por ti as tempestades em que vaes entrar cheia de inexperiencia e de candura. Olhas, e vês-me no ultimo periodo da velhice, e ainda não completei quarenta e cinco annos! Tenho feito longos, e, ás vezes, dolorosos estudos sobre o coração humano, minha Adelina. Adivinhei a tua indole, o teu espirito, e a tua nobre alma pelo grito gemente que me enviaste, e que veio echoar deliciosamente n'esta solidão tristonha em que vivo. Presagio-te grandes infelicidades, filha; estremeço cada vez que uma voz prophetica me brada ao ouvido: « Ahi tens mais uma desgraçada.»

« Queres saber? Estas cans -- continuou ella, afastando os cabellos da fronte ainda magestosa e bella -- nem sempre pesaram aqui. Fui o que tu és hoje, rica de crenças e de illusões formosas! O mundo é bello, mas os espinhos rasgam-nos a alma quando não lhe antepomos a circumspecção e a prudencia que só trazem os annos. O nosso espirito cega-se muitas vezes á primeira luz. Libamos o nectar sem reparar nas fezes negras e nauseabundas que se congelam no fundo do calix. Acordas hoje na sociedade, e sabes tu que mysterios assombrosos vão ahi? Que juizos se fazem, que reputações se criam? Deixa-me demonstrar-t'o n'um exemplo.

« Reparaste n'esta visinha que te olha com insolente curiosidade? Enche as suas salas com as primeiras notabilidades e illustrações d'esta terra que, com raras excepções, são tão illustres como ella. Vaes conhecer-lhe a biographia em quatro traços. Ha dez annos servia em uma casa, que eu frequentava com assiduidade. Soube depois que se casára com um embarcadiço que a espancava muito, por não sei que pundonores de marido honrado e grosseiro. O caso é que, morto elle, ella voltou ao seu antigo mister de criada, e veio para casa d'este homem, aonde pouco depois tomou já o ascendente de se fazer chamar, pelos companheiros, por sr.a Mariquinhas, e assim foi subindo até que hoje pompêa na melhor roda, e blasona das suas influencias com dois viscondes e quatro juizes da Relação, que a attendem nos seus pedidos. Se algum moralista menos tolerante se lembra de abocanhar a illegitimidade do seu viver, desde logo acha um defensor exaltado das suas virtuosas qualidades, e da caridade e amor do proximo, que a faz gastar todos os annos algumas libras a beneficio do asylo de beneficencia, e como priora da ordem do Terço, ou do Santissimo Coração de Maria.

« Em quanto ao resto, filha, livre-te Deus de a ouvir discursar a respeito d'alguma infeliz, esquecida de que não tem ouro para remir as suas faltas, nem um carro sumptuoso em que mostrar-se ao sol brilhante da opinião publica.

« E, como este, podia citar-te mil outros casos

« Tu conhecerás, com o tempo, tres ou quatro mulheres, rainhas na burguesia abastada, vivendo e alardeando os seus amores octogenarios, como os seus brasões, em que um ou outro critico encrava a medo alguma facecia burlesca. A melhoria d'esta sociedade honesta ahi está acurvada a acatal-as com tolerancia incrivel, e ninguem ousa denegrir o escandalo para que não se lhe fechem as portas, onde é uma honra entrar.

« Escandalo, filha, é a pobreza. O ouro tem um brilho que deslumbra, e dá um aroma de rosas ao fetido das chagas, moraes. É a unica desculpa para a infamia. Hasde rir-te, ou chorar algumas vezes, quando estiveres senhora dos galanteios d'esta deusa chamada fortuna, sempre prodiga com quem mais a arrasta no estrado da ignominia.

« Verás o homem, perdida a vista da razão, ou cynico para tudo o que lhe diz respeito, defraudar a honra alheia, e moralisar para os outros, esquecendo-se de si.

« É repugnante este quadro, minha Adelina, é. E acredita tu que sou generosa, ainda assim. Se a consciencia não fosse na maior parte d'esta gente uma palavra sem idéa, um broquel de covarde hypocrisia, eu diria que elles descarnam os outros com receio de que os conheçam, e pejo de se verem taes quaes são!...

« Ficas por tanto sabendo o valor d'esse metal maravilhoso, e por consequencia quanto os teus sorrisos serão disputados por alguns que tem gasto annos a descobrir um casamento rico, unica telha van por onde o oiro lhes póde cahir, a saciar-lhes essa ambição, que, á vista do que te expuz, é legitima. Quizera precaver-te contra as seducções de coração, e salvar-te talvez d'um pesar tardio, d'uma desgraça irremediavel, filha!

« Um dia hei de contar-te a minha vida, e a tua razão clara aproveitará com a lição tremenda que me deu o destino. Hoje, bemdigo-o. A minha velhice é solitaria, mas está livre d'esse jugo pesado imposto á mulher, e d'essas attribulações da esposa que vê fugir com a mocidade, ou mesmo antes, os carinhos do marido convertidos em completa indifferença e abandono, quando não é o aborrecimento, que é peior ainda.

Salva-te, pois, minha Adelina. Ás traiçoeiras e enganosas paixões mundanas oppõem-lhe o divino amor de Deus. Só esse é grande e sublime!

CAPITULO III

Adelina escutava sua tia com silencioso respeito e profunda admiração.

As pustulas da sociedade, assim a descoberto, nausearam-na a principio, e por fim tomou-a uma irritação quasi dolorosa. Alma extraordinariamente fadada, tinha crenças grandes e sublimes; possuia o germen do bem, prompto a desabrolhar, á luz do evangelho. O seu phantasiar era perfeito na pureza das creações que lhe deleitavam o espirito. Presentia na terra uma similhança identificada á sua. Sorria-lhe esta imagem, dormindo ou acordada: anciava por ella! A felicidade seria o que lhe mostravam agora; uma ficção irrisoria? Nada havia para ella que lhe parecesse tão sancto e seductor, como esse laço sagrado que une duas existencias, e converte a essencia de duas almas n'uma só.

Ahi temos uma romantica, dirão, rindo maliciosamente essas a quem uma noite perenne não deixa descortinar as magnificencias guardadas para o ente privilegiado, e chamam a irrisão em seu auxilio. Que importa? O escarneo das almas ignobeis não é sequer insulto.

Não, minhas senhoras, Adelina não era sequer romantica; não tinha estudado as paixões na linguagem vehemente de Alexandre Dumas, ou na tempestuosa de George Sand. A natureza revelava-se-lhe n'um som mysterioso e incomprehensivel para muitos. Embelesava-a essa poesia radiante que ora folga em gemer nas selvas sombrias, ora se exalta na campina em hymnos ao Creador.

Apresentada por D. Suzana n'essa Babylonia, Adelina inculpou sua tia de rigorosa nos seus juizos. Porque não vê os vermes, crê que não existem.

Encontra sempre Luiz de Albuquerque em toda a parte, e em todos os salões, onde as damas porfiam em arrancar-lhe um sorriso. A melancholia do mancebo floriu uma sympathia occulta n'aquelle coração sequioso de bens ignorados. Luiz tornava-se distincto no meio dos seus émulos por um nome celebrado já em remotas eras, e o resto d'uma casa defraudada pelas suas batalhas amorosas em Lisboa, e algumas outras de nome nos paizes estrangeiros, onde passára alguns annos.

Ficára-lhe de tudo isto uma reminiscencia amarga -- dizia elle: -- « Morto para o amor, para esse alimento espiritual, sem crenças, sem esperanças e sem visões, via passar os seus dias n'uma aridez selvagem que nem a gota d'agua faz reverdecer.» Isto, junto a uma presença que nada tinha de desagradavel, não seria calculo, mas sortia o effeito que elle podéra desejar, se o fosse. As mulheres distinguiam-no, e viram com inveja e rancor que os gelos da montanha se desfaziam ao calor da chamma luzente que despediam os olhos de Adelina. O desgabo d'ellas, tornava-se em louvor d'aquella superioridade que o homem experiente adivinha. Luiz conheceu o que se passava n'aquelle coração virgem, e a sua vaidade incitou-o a não afrouxar a corrente magnetica, a que tinha presa a victima que lhe sorria. Indo ao encontro d'ella, admirou a candura angelica, a par da nobreza e dignidade que aformoseava a joven. Sentiu o remorso, elle, homem gasto e sem alma !

N'um momento de sincera commiseração disse-lhe que lhe fugisse, que era um desgraçado a quem o caminho da felicidade estava vedado, que não quizesse compartir as dores d'uma existencia maldicta.

Adelina respondeu-lhe com nobre e amorosa altivez, que nem mesmo esse convencimento a afastaria d'elle, e que encontraria no coração d'ella o talisman para conjurar a adversidade do destino.

Depois d'isto, passaram dois mezes de enlevamento, e no dia seguinte áquella noite que a vimos fugir da janella assustada com o riso do indiscreto, faltou a D. Suzana, que tentou debalde demovel-a dos seus projectos.

Luiz apressou quanto pôde o momento em que podesse chamar sua á fortuna que cobiçava.

Estamos na madrugada d'esse dia. Seis horas bate o martello do relogio de escada, na asa que D. Suzana habita. Adelina levanta-se da cama, e, vestindo á pressa o amplo roupão de seda, corre á capella, onde por uma licença especial vae dar esse juramento sagrado que lhe será manancial de amarguras não conhecidas.

Absolvida de suas innocentes faltas, recebe no seio o symbolo da sacratíssima paixão do Filho de Deus; e, pura e casta como Rebeca, espera com sancto recolhimento o esposo promettido.

Que fervor nas suas orações! Que melancholico scismar, e ao mesmo tempo que fé tão viva, que confiança tão acrisolada no amor immaculado e protector da Virgem Santissima! Evoca a memoria de seu pae, dá-lhe ainda lagrimas d'uma saudade pungitiva, pede-lhe que veja lá do céo a sua filha, que abençôe esta união, dando-lhe as virtudes necessarias para a tornar modelo no meio d'esta devastadora corrupção do seculo.

Reconcentrada em si, n'esse extase affectuoso que tão grato deve ser aos olhos de Deus, é que Sophia vae encontral-a absorvida. Sophia era a sua unica amiga ali. De tres mezes que a conhecia; e queria-lhe tanto que chegava a perguntar ao seu coração se amaria mais uma creatura saida do seio de sua mãe, esse bem que não conhecera, essa irmã por que tanta vez suspirára desconfortada! Estava esta longe de parecer-se com a imagem que Adelina phantasiava, mas teve a habilidade de se insinuar n'aquella alma bondosa, e de se lhe tornar, por assim dizer, precisa.

-- Está chegado o teu dia, menina -- dizia ella com um gesto dolorido. -- Alegro-me pelo complemento da tua ventura, e intristeço lembrando-me que hoje acabam as tuas expansões amigas. Apressei-me a ver-te ainda livre, quiz que fosse meu o ultimo beijo a que ainda não tem direito o marido.

-- Que coração tão apoucado tu me dás, Sophia! -- respondeu Adelina abraçando-a. -- Creio que não posso amar Luiz, mais do que hoje; o seu logar, assim como o teu, é distincto. Mas sabes tu que tambem me sinto triste?! que sinto um pezo doloroso a opprimir-me a alma?... Anda, vem d'ahi até o jardim, vou colher o ramo de desposada, cuja primeira flor guardo para ti. Porque esse gesto de duvida? O teu Alberto deve presar-te muito; e na sua nova posição, já póde não receiar os encargos da familia que tão grandes medos lhe incutiam.

-- Tu não fazes idéa do que são os homens, Adelina. Esqueces que sou pobre ? Alberto está na carreira de se altear aonde a sua ambição o chama: verás que me sacrifica. Ha cinco annos que me illude com pretextos bem ou mal simulados, e por fim creio que acontecerá o que todos me prophetisam. Tenho sido muito infeliz, tenho gasto a minha vida n'estas intermittentes da esperança e desalento. Não reparas que estou envelhecendo, e sou mais velha do que tu apenas quatro annos? É isto Adelina, é o que te digo, não tenho de ser casada, a soledade na terra é o meu destino.

-- Esqueces então que te vou quebrar o encanto, minha tolinha. Deixa-me tambem ser propheta. De hoje a dois annos, estamos nós duas graves e sizudas matronas, fiando talvez mesmo na classica roca de nossas avós, e desdenhando a illustração dos nossos dias. Riremos então muito das nossas elevadas aspirações que nos pareceram tão sublimes, e acharemos que o verdadeiro e unico regosijo, é o amor da esposa e a doce contemplação d'um filho. Estaremos um pouco mudadas, minha amiga, mas creio que saborearemos uma paz invejavel, e só parecida com a primeira epoca da vida... Não estejas a sorrir-te, má; tenho crenças no que te digo! O peior são as saudades que já começo a sentir, tuas, e de minha pobre tia. Luiz quer que partamos esta mesma noite para Braga, e eu annui para me furtar aos olhares d'esta gente que me incommodaria, mas constranjo-me porque vos quizera ao meu lado testemunhando e compartindo a minha felicidade.

-- Pois eu suppuz que te fosse aprazivel a solidão, Adelina. O paraizo de nossos primeiros paes só era povoado pelos anjos do mysterio e do amor, que se acoitavam nas grutas sempre verdes d'aquellas margens ridentes que os olhos da nossa imaginação procuram ainda...

Esta conversação foi interrompida por D. Suzana que vinha lacrimosa, abraçar a sobrinha.

Começou, pouco depois, a afanosa lide de ajudar a noiva a vestir-se. Ás tres horas da tarde, Adelina caia nos braços de seu marido.

« Tua! -- exclamava ella -- tenho medo, atterra-me a felicidade demasiada que sinto aqui no coração onde a tua imagem está só, Luiz!

CAPITULO IV

No seculo dezenove, raream os prophetas, e accrescem as sybillas a quem só falta a cabelladura desgrenhada ao vento e as sandalias nos pés nus.

Nos dólmens druidicos dos celtas, nas florestas consagradas á magia, reina hoje o silencio e a mudez sepulchral, onde outr'ora se estorcia a rez destinada ao sacrificio; e na pyra já se apagou o fogo sacro, insuflado pelo espirito da pythonissa, que lia os successos felizes, ou as catastrophes, nas entranhas fumegantes da victima. Os clamores do triumpho ou os gemidos do terror já se não escutam ali. Os meninos encantados já não respondem ás consultas dos Trallios, predizendo-lhes o futuro em estiradas poesias. Os Fabios contemporaneos, quando perdem a bolça, lembram-se debalde dos Nigidios. Os oraculos emmudeceram; mas, como já o dissemos, as sybillas regeneram-se, guardando com recato mysterioso o espirito incubado no seio, e que lhes alimenta o septimo peccado mortal, graças aos enamorados, ás esposas ciosas, e ás jovens de crenças mais puras, desejosas por desencerrar o destino dos seus amores.

Adelina fôra má propheta.

Vamos encontral-a n'esse dia, por ella aprazado, para admirarmos a promettida transformação.

É tão aromatica e graciosa a athmosphera que a rodêa, que não podemos resistir ao desejo de a olhar muito, protrahindo um pouco as peripecias agoiradas por nós á predestinada da dor.

É pequeno aquelle recinto, mas recendendo o perfume da elegancia. Aquellas cortinas transparentes e caprichosas, quasi envolvendo no seu franjado o toucador, onde se empilham esses tantos vidrinhos de essencias, e outros accessorios indispensaveis, tem uma suavidade mysteriosa.

Adelina está recostada no sophá purpura e ouro, vendo a sua imagem perfeita no grande espelho de vestir que lhe está em frente. O seu roupão de cachemira côr de laranja, aberto adiante, deixa ver o rebôrdo do acolxoado de seda azul celeste, caindo graciosamente na saia de setim, egual na côr ao roupão. Aperta-lhe a cintura um cordão azul e preto, terminando com duas borlas eguaes. Uma camisa de dormir de finissima bretanha sem outro adorno mais que o seu alvissimo brilho, vem cingir-lhe os pulsos e a garganta, tão alva como ella. Um lencinho de blonde preto apertado debaixo da barba, inquadra-lhe maravilhosamente o rosto, dando-lhe um aspecto melancolico e encantador. Os pés, de uma correção pasmosa, calçam chinelas de pellica côr de flor de alecrim, cintadas de verniz, e repousam cruzados no banquinho de estofo egual ao sophá.

Está lendo o Camões de Garrett, e repete a meia voz, como sonhando:

«... Mais doce ainda

« De mais sabido prémio oatra esperança

« Me acalentava... Ai de mim! um longo sonho

« Minha existencia ha sido...

E, como se a poesia lhe acordára pensamentos dolorosos, pousou o livro sobre a pequenina meza de charão, que lhe estava ao lado, e caiu em profundo scismar. O toque da campainha q um criado tomando a permissão de annunciar o sr. Alberto de Sá, a chamou á vida real, tão differente d'essa por onde a sua alma folgava de altear-se.

-- Felicito-me de haver uma causa qualquer, que me ganhou a distinção de receber duas lettras de. v. ex.a -- disse Alberto, depois dos. primeiros cumprimentos, acceitando a cadeira que Adelina lhe apontara. Estou prompto a escutal-a, minha senhora.

-- E como sincera amiga, sr. Alberto de Sá, porque o sou na realidade -- Adelina, accentuando estas palavras, continuou:

-- É summamente delicado o assumpto em que vamos entrar; nem eu me atrevia a fazel-o sem invocar primeiro a sua lealdade cavalheirosa, que por mais d'uma vez tenho apreciado, e que me leva a pedir-lhe que seja franco comigo como se eu fôra sua irmã.

Alberto inclinou-se respeitosamente, e Adelina proseguiu: -- Sabe que sou amiga, direi antes, irmã d'alma de Sophia. Faz hoje dois annos, a esta mesma hora, que lhe vaticinava a felicidade opulenta, sem desejos a satisfazer, sem ambições a saciar. Menti; foi enganosa a luz que procurei nas trevas, e não só para ella!... mas não cuidemos dos outros... Sophia não me occultou as aspirações tão justas da sua alma em chegal-o a si, prendendo-o com essa cadêa tão florida e tão grata para os que verdadeiramente amam. Viu-o frio ás suas tentativas, e resignou-se ao soffrimento permanente do receio e dos cuidados em agradar-lhe no futuro incerto do seu amor. O sr. Alberto de Sá, apesar de lhe fallar, e dar mostras d'uma paixão acintosa, creio que não merecia esta dedicação. Eu quero convencel-o d'isto, ou antes quizera que v. s.a me convencesse a mim do contrario. Depois de sete annos, é injustificavel e indecoroso o abandono -- permitta-me a expressão. -- Tenho visto as lagrimas da infeliz sulcar-lhe a face, tendo-lhe ouvido o gemer da agonia, sem poder confortal-a. Creio que me poupa a uma mais longa, e talvez enfadonha dissertação sobre estes factos: peço-lhe, como cavalheiro, que me diga se a não ama já, ou se alguma intriga miseravel, e que eu folgaria desfazer, deu essa causa que felizmente póde ficar em nada. Quiz ouvil-o, porque me interesso muito e penso no futuro d'ambos.

-- V. ex.a honra-me demasiado -- respondeu Alberto. Infelizmente não posso mostrar-lhe o que sinto, só posso ouvil-a em silencio, escutar-lhe as exprobrações e calar-me. O appello de v. ex.a fortifica mais as minhas convicções: o futuro justificará o accusado. Nada mais tenho que dizer, minha senhora; beijo-lhe as mãos e retiro-me; conheço que estou sendo aos seus olhos um ente abjecto.

Alberto levantára-se disposto a sair com um ar de firmeza e dignidade, que tocou Adelina.

-- Não -- disse ella -- não sairá já, sr. Alberto de Sá. As suas palavras tem uma força de verdade que me espanta. A desillusão seria para mim terrivel, mas eu já sinto um abalo doloroso nesta crença fiel que eu tinha em Sophia, como a primeira e mais digna que senti e amei. Diga-me tudo, abra-me o seu coração sem repugnancia: sou digna da sua confidencia, acredite-me.

-- De certo, minha senhora, se algum dia duvidasse, estava hoje desenganado. V. ex.ª teve ainda ha pouco a bondade de chamar-me cavalheiro; é sagrada a minha vereda, não posso d'ella desviar-me. Mas, se me não engano, aqui vem quem pode desenganar a v. ex.a, respondendo por mim.

Era Sophia que entrava.

Alberto curvou-se diante das duas senhoras, tomou o chapéo, e saiu.

Adelina e Sophia ficaram silenciosas, sentadas no sophá.

CAPITULO V

Passaram cinco minutos de concentração profunda, e mudo discorrer. Aquelles dois semblantes tão differentes na expressão e nos toques da formosura revelavam a commoção violenta, e o esforço empregado para domal-a.

Adelina vacillava entre a voz interior que mansamente lhe repercutia as suspeitosas palavras de Alberto, e a bondade natural do seu caracter accusando-se da desconfiança malevola contra a sua unica amiga.

Esta, surpresa pelo encontro inesperado, sem saber o que se tinha passado, procurava dar-se ares de magoada tristeza, dando a furto um olhar para o espelho onde via Adelina, e impaciente por ouvir- lhe uma palavra que a orientasse no caminho, que devia tomar.

-- Ouve cá, Sophia -- diz Adelina -- Eu não comprehendi bem Alberto, mas as suas respostas foram nobres e grandes, em dignidade e força d'alma.

« Admiro-o, e condôo-me de ti, suppondo que algum inimigo de Alberto, invejoso de sua felicidade, te calumniou a ponto de o desvairar. Compungida pelo rompimento entre duas almas tão bellas, e que eu prezo tanto, chorando por ti a perda d'essas illusões brilhantes que talvez te ensinei a compor com a minha desgraçada imaginação, tentei curar o mal, chamando Alberto, e pedindo-lhe uma confidencia singela e verdadeira. Ouviu silencioso as minhas arguições, recusou responder a ellas, e saiu invocando o futuro, e apontando-me para ti. Aprehensiva como sou, dei-me a scismar, querendo vêr um mysterio no que não passa d'um erro. E o mais é, que quasi te culpo, minha pobre Sophia! Perdoas-me tu? Deves, pelo remorso, e pela sinceridade que emprego, tornando-te senhora até d'estes pensamentos maus. Ai, Sophia! quizera tanto contemplar em ti, vêr realidade aquellas visões formosas que nos doiraram o amanhecer! Lembras-te? Ha dois annos, e sempre, Sophia! Que amarga chimera!...»

Fallando assim, Adelina recostou o braço na borda da mezinha, e pendeu a linda e pensativa cabeça.

-- Tens razão, Adelina -- respondeu Sophia -- o despertar è negro e feio.

« De decepções em decepções, gasta-se a vida, consomme-se na febre da esperança, n'aquelles sobresaltos aprasiveis do coração, que nos fogem depois, deixando-nos logradas e feridas. Compensações não as ha, senão mediocres, mas nós devemos combater estes revezes com a razão e com o espirito. Eu estou na corajosa resolução de não dar mais um passo para convencer Alberto da injustiça do abandono ou da condemnação, depois do que acabo de ouvir-te. Acostumada ao soffrimento mesmo despoetisado pela incertesa do porvir, serei forte em sofrear os impulsos da dôr e da paixão, para que Alberto se não vanglorie da minha fraqueza, e a tome como falta de dignidade. Agora, Adelina, peço-te que não fallemos mais n'elle: o coração da mulher é ao mesmo tempo fragil e consistente como a hera que se desprende a custo do tronco... Fallemos de ti. Cada vez te encontro o parecer mais abatido, melancolico, e desgostoso. Olha para mim, e reanima-te, Adelina, vê-me como um modelo de infelicidade.

-- Tu, modelo de infelicidade! Que mal comprehendes a extenção d'essa palavra, Sophia!... És forte de mais, minha amiga, chegas a espantar-me com a rapidez da transição por que eu não esperava, sem comtudo te aconselhar a baixeza de mendigar d'Alberto a esmola d'uma falla ou piedade. Isso não! A mulher nunca deve abdicar do throno luzido onde o proprio Deus a collocou, dando-lhe por apanagio a altivez de coração que se não averga ás miserias da terra. Póde alguem duvidar d'isto, Sophia; mas conheço-as eu assim. Sabes tu quem são os infelizes? São aquelles que não teem fé, são os que já mal distinguem o prado viçoso onde lhe reverdecia o futuro, e sentem queimar-se a alma n'este torrão ágro calcinante, e maldicto da esperança! Tu, se és forte, Sophia, é porque ainda és rica de illusões; esperas, não digas que não; tens talvez a presciencia de que te verás em breve soberana d'esses ou d'outros affectos, e lhe fixarás os dominios. Eu nada ! Pobre de tudo que aligeira e encanta, o existir d'aqui, nada possuo que me alimente este anceioso desvanear do espirito, subindo aos alcantis nebullosos da imaginação. Os dias são-me iguaes em monotonia e cansaço d'alma, sedenta e ambiciosa. Tu sabes o que tenho passado com Luiz. Sabes que, demasiado altiva, não pude acostumar-me ás exigencias prescritas por elle e pela sociedade. Era preciso seguir de perto os triumphos amorosos de meu marido, aplanar-lhe muitas vezes o caminho, e gloriar-me das suas conquistas, prestando-me a receber mesmo as confidencias, e acceital-as com animo sereno e socegado. Lembra-me ainda do horror ingenuo da minha alma, quando, seis mezes depois de cazada, me vi affrontada assim, e viuva d'essa crença sagrada que eu tinha na ligação de duas pessoas que se amam. Tudo mentira, Sophia!... Luiz é de mais a mais uma d'estas creaturas incapazes de sentimento que não seja mau; deixa-me confessar-t'o. Aos primeiros bocejos de enfado, seguiu-se o aborrecimento, e após este o trato rude e insolente, a que eu correspondo com o silencio do despreso e do asco. Vê tu que viver este! A mente sempre afogueada, chamando e revendo-se n'uma imagem luminosa, meiga e acariciadora; e a materia caindo desluzida ao contacto mundano, e ante a nudez do raciocinio !...

-- É justo o teu queixume, Adelina, mas, permitte-me uma admoestação. Porque não fazes um estudo particular para afastar as visualidades, e assenhorear-te do que é real? ! Olha, não cries mundos novos, acceita este como elle é, minha amiga. És formosa, e sympathica. As primeiras elegantes mordem-se de inveja e de temor quando appareces. Eu não te digo que dês um passo n'essa senda tortuosa, em que é arriscado entrar e difficil o sair. Deus me livre de tal, Adelina. Mas, como verdadeira amiga, peza-me a tua solidão moral, que tão escura me pintas; receio que te marasme o corpo e o espirito, e lembro-te o meio de dispertares desta atonia. Ufana-te do que és, Adelina; repara nos olhos que te seguem fascinados, e presos ao teu natural encanto, e ahi tens já um incentivo para demover a desanimação que te acurva e faz esmorecer assim. Sae a tomar ar, passeia, e... digo? pensa algumas vezes em Julio, má. O pobre rapaz tem horas crueis, e outras de exaltação não menos magoadas...

-- Cala-te, cala-te ! -- atalhou Adelina -- não creio no que me dizes... aborreço-me, e chego a irritar-me. Mudemos de assumpto. As noites estão serenas e agradaveis, queres ir á noite até ao passeio? Consinto em ver ali o teu primo, e afilhado... Ouvil-o é que eu não posso nem prometto, menina... era o suicidio do espirito, certo e irremediavel. Agora sabes que mais? a conversação abriu-me o appetite. Vamos jantar?

-- Seja assim, creancinha -- disse Sophia, sorrindo, em quanto Adelina, já de pé, puxava o cordão da campainha.

CAPITULO VI

Duas horas depois, no aposento já conhecido, as duas amigas tomam o café a pequenos sorvos, e Adelina diz com um gesto de enfado que mais alinda a sua sympathica physionomia:

-- É admiravel que Luiz queira tomar parte no no nosso passeio ! Estranho-lhe a amabilidade, suppondo mesmo que te sou devedora da fineza. Olha tu que aborrecida companhia!... Repara como o destino é inexoravel comigo, a ponto de me ver constantemente contrariada nos menores incidentes da vida. Até este innocente prazer, a que me convidava o coração com tanta alegria, ahi está aguado com a resolução de meu bom marido!... Se soubesses como fiquei irritada quando o ouvi, e quanto custou a conter-me!...

-- E como estás fera! -- diz rindo Sophia. -- Sabes que me quer parecer, Adelina, que buscas illudir-te a ti propria, e que esse rancor, que apparentas, é superficial? De mais tu sabes que Luiz não era capaz d'essa condescendencia para obsequiar-me, nem eu o tomava como tal. Creio sinceramente que elle julga que a minha amizade te incita á reacção, e me odeia por isso mesmo. É por ti, Adelina; acredita que teu marido conhece o teu valor, e que essa indifferença de que o accusas, é talvez simulada para gozar da liberdade que o teu ambicioso coração lhe negava. Tenho conhecido, minha querida, que isto de maridos perdem toda a essencia de amantes, e mal d'aquellas que não vão amoldando o espirito ás fórmas do século!... E depois, tu deves sabel-o melhor do que eu; diz-se que entre casados ha certas intermittentes de senso commum, de bom gosto, e talvez mesmo de ternura. Por qualquer d'estes effeitos, um bello dia, esqueces as culpas e perfidias de teu marido, e vês a felicidade a sorrir-te mais mimosa e festiva, depois de tão longa provação.

-- Essa idéa tua enfada-me, Sopbia -- interrompeu Adelina -- Ai! não me falles no seculo. Deixa-o vangloriar-se dos seus desatinos, como velho libertino, que deleita o pensamento em torpezas, que lhe alquebraram o corpo. Inveja-me, se podes, esta força d'alma, revoltando-se á simples idéa d'essa voragem maldita, que o mundo nos apresenta a nós, as mulheres, doirando-nos o abysmo d'onde apenas se salvam aquellas que podem dar em exposição os seus salões, e castigam soberanamente com um só gesto d'alto desprezo os que se lembram de syndicar-lhes o viver intimo. Não cuides tu que isto é soberba: não é, Sophia. Tenho pensado muito. Na solidão d'este quarto, tenho-me interrogado a mim, para avaliar e conhecer os outros.

« Quem nos faz dar o primeiro passo, quem nos arrasta para o abysmo da perdição, é o homem. Que fazem elles, os maridos? Esquecem que a mulher tem a faculdade do raciocinio, esquecem que ella ouve, primeiro com impetos ciumosos e doridos, os escandalos por elles praticados sem recato. Á explosão d'esta dôr, ás lagrimas e aos justos queixumes, responde o enfado e o desdem. O tempo gasta a impressão dolorosa, chega a indifferença, e muitas vezes o despreso; e, depois, que virtude ha ahi que resista repellida pelo coração mal affeito ao desprazer, ao tedio, e á monotonia da vida que só o cansaço do marido creou? Sabes tu que soluços me rasgaram o seio quando soube que Luiz, o primeiro e unico amor da minha alma, me trahia sem pejo, abandonando-me sem dó, por creaturas indignas?

« Sabes que rancor fundo conservo ainda hoje á mulher que me matou illusões tão queridas ! ? Não sabes, não, minha amiga. Eu tenho um coração predestinado para o soffrimento, e para crear visualidades dolorosas que são só minhas. Já vês que desatei uma ponta do sudario. Perdoar! esquecer estas horas malditas, nunca, Sophia ! Aviltar-me aos meus proprios olhos, tambem não; só o coração me faria relevar a culpa, e esse, creio eu, é impossivel reviver.

Ditas estas palavras, Adelina levantou-se com vivacidade, e caminhou direita ao espelho, deslaçando o cordão do roupão, com mão distrahida. Minutos depois, Rosa, a sua criada de quarto, acudia a um toque phrenetico de campainha, e ajudava-a a vestir. As fartas pregas do vestido escuro, apenas visiveis na orla da saia que a grande manta quasi encobria, davam um realce maior a esta elegante mulher, que, em todas, as attitudes naturaes, tinha de sobra a distincção. Lançando a ultima vista ao toucador, as duas senhoras encaminharam-se á escada, tendo antes Adelina mandado previnir Luiz de que iam descer.

-- É pois verdade que os anjos, esse explendido adorno da mansão celeste, baixam algumas vezes á terra cegando os mortaes com o fulgor da divindade! E Fernando, o espirituoso jornalista, o amador conhecido da philosophia transcendental, cortando o dialogo, estendia as mãos que lhe foram tomadas com agrado pelas duas amigas. Depois de dois annos encontram'ol-o sempre o mesmo, sempre aquella alegria buliçosa, de que o anjo da amargura afastava as azas, e não ousava tocar: dom raro e especial em certas creaturas bem fadadas. Á porta do quarto de Luiz, Fernando assestou-lhe a luneta vendo-o afagar as guias do bigode, e gritou-lhe:

-- Olá, amigo, estás bello e radioso como eu creio que não estaria Marco Antonio ganhando os agrados da famosa rainha do Egypto ! E, na verdade, tens razão, meu amigo. A soberba Cleopatra, que se intitulava a rainha das rainhas, cairia fulminada do seu throno, se visse estas duas houris que te conduzo, e o mesmo Raphael, arrebatado e doido, queimaria as suas madonas que o fizeram immortal.

-- Basta, meu caro Parny do seculo dezenove -- disse Adelina graciosamente -- Venha a nós, miseras de engenho, com menos alambiques de galanterias Contentamo-nos com menos. Quer ser nesta noite o paladim de duas tristes e infortunadas damas ?

-- Prompto, e reconhecido a tão alta distincção, minhas senhoras. E tu, vens? -- diz elle voltado para Luiz -- Reveste-te pois de paciencia, que estou resolvido a reconhecer-te por meu Sancho Pança; e, se, como presumo, me vires enlevado em extasi esperitual, não te deslembres de me avisar no acommettimento dos muitos invejosos, que vai crear a minha dita.

-- Invejoso sou eu, ha muito, do teu bom humor -- respondeu este tomando o chapeo -- Esqueces que as senhoras são pouco pacientes quando lhes entre-luz o ar livre, a lua, e as estrellas scismadoras. Gosar todas estas perolas do céo é o relevo da poesia para almas verdadeiramente inspiradas como a de Adelina, e da sr.a D. Sophia. Felizes, pois nós que vamos contemplar-lhes o dulcissimo arrobamento.

Adelina, já de lado, disfarçava o frenezi de impaciencia, que apenas se tornava perceptivel no avincado do sobrolho, e não correspondeu ao fino sorriso de Sophia, nem ao olhar do marido: saiu do quarto, e tomou o braço que Fernando lhe apresentava.

A noite estava clara, e serena, e convidava a alma a procurar outros mundos. Depois d'uma conversação que de galhofeira fôra descaindo rapidamente para as negras realidades da vida, Adelina foi-se reconcentrando pouco a pouco, esquecida de que alguem a observava.

Fernando, melancolico como ella, a face assombrada por uma nuvem escura que nunca por lá passára, olhava-a em silencio, e por vezes, como se uma idéa subita o salteasse, voltava a cabeça sobre o hombro esquerdo, e relanceava um olhar sobre Luiz e Sophia, que vinham seis passos distantes, em animada palestra.

-- Tremi, quando vi Alberto com Adelina -- dizia Sophia com assustadora meiguice. -- Receio tanto a ousadia d'aquelle homem ! Sabes que na minha pre sença chegou a incutir desconfianças a Adelina com o estudo das palavras, que bem custosas me foram de destruir ! Temo, Luiz, temo os embates da calumnia, e a da inveja ociosa, tanto, como a desgraça que começa a ferir-me. Os momentos apraziveis são curtos, e fica-me sempre depois na alma uma dôr mais funda, do que a recordação d'elles. O que não soffri eu hoje, ouvindo Adelina commentar as tuas fidelidades, e parecendo-me mesmo que seria possivel ainda uma reconciliação ! Felizmente, pelo lado d'ella, estou tranquilla. Tua esposa aborrece-te, Luiz, e eu conheço bem a tempera d'aquella alma: não verga, nem se muda.

-- É louco o teu receio, Sophia. E podeste lembrarte de tal? respondeu amorosamente Luiz -- Não: diz-me que isso é uma invenção da tua ternura, diz-me que sabes que a minha vida está toda concentrada n'este amor que obscureceu e fulminou todas as lembranças do passado; deixa-me esperar a recompensa dos tormentos que tenho padecido.

Luiz exprimia-se com a vehemencia da paixão, e ella com os olhos baixos, aos quaes forcejava dar um ar languido e amortecido, pendia-se-lhe do braço como caminhando a custo, e debaixo de penosas e violentas commoções. Estavam á porta do passeio. Já ali Adelina despertou, e conhecendo a preoccupação que a tomara, perguntou rindo a Fernando se fôra copa ella na excursão aeria; ao que elle respondeu seriamente, sentindo fugir-lhe pela primeira vez dos labios a graciosa zombaria que costumava brincar nelles. Sentados em cadeiras na mesma linha, a conversação correu ligeira, e banal. Julio, o primo de Sophia, juntara-se ao grupo, e contemplava Adelina com a teimosa presistencia do homem, que não desespera em seu estupido amor proprio, de que tarde ou cedo lhe conheçam o valor. Ella, porém, nem o via, se quer.

Davam dez horas, quando Adelina se levantou, queixando-se d'uma ligeira dôr de testa que a obrigava a recolher tão cedo. N'este momento, a lua escondida entre uma moita de roseiras, levantou-se palida e formosa illuminando a face das duas senhoras, já de pé; e mostrou-lhes a dois passos um homem que para ali caminhava. Ainda, na penumbra, Adelina reparou na exquisita elegancia d'aquellas formas varonis, e perguntou rapidamente a Fernando: -- Conhece este homem? O desconhecido ouviu-a, e fitou n'ella os olhos em que havia um não sei que de magnetico que lhe fez estremecer todas as fibras do coração.

Cagliostro devia olhar assim aquelles que por vontade ou sem ella a sua sciencia adormecia.

-- Ó Henrique, tu aqui! -- bradou Fernando correndo a elle com os braços abertos.

-- É verdade, meu amigo. Gosto do ar do Minho, d'esta opulencia da natureza, de que me chegam saudades quando entra a primavera na minha Lisboa, tão arida d'este viço explendido como esperança do infeliz. Não quero roubar-te agora a estas senhoras; mas, ámanhã, procura-me na Foz para onde volto já.

-- Pois seja assim: conta comigo, Henrique... Até ámanhã, -- disseram os dois amigos, no ultimo abraço.

CAPITULO VII

Não será cedo para a biographia de Sophia; ahi vae, tal qual a ouvi d'uma amiga e condiscipula sua. Filha unica d'um empregado publico, foi creada com mimoso extremo, satisfazendo sempre as vontades caprichosas de creança. Aos quatorze annos, ficou orphã de mãe. Um typho arrebatou-lh'a em breves dias, roubando-lhe esse sanctuario sacratissimo que a providencia põem ao nosso lado para nos recolher os vagidos, e primeiras lagrimas. E que ha ahi na terra que possa comparar-se-lhe? Que mais tocante, e grandioso ! Que sublimidade não tem o amor maternal!

Que differença d'este aos que se encontram baratos no mundo! Estes são profundos, exaltados e ardentes; são como os orvalhos de julho que reverdecem por instantes as plantas requeimadas, e logo após de curta vida, aos primeiros signaes de velhice, o sol impallidece, fenecem as flores, e quantas vezes mesmo das raizes que foram fundas não resta vestigio, nem signal!...

Ficou portanto, Sophia, senhora absoluta na casa, que o pae abandonava por muitas horas no dia, entregue á sua laboriosa repartição.

Sophia não era formosa, nem mesmo bonita. Era um d'esses typos que chamam a attenção do homem, e que nos desagradam a nós as mulheres, como tudo o que achamos pesado, duro, e opaco, a empanar- nos as illusões. Illusões! minha querida leitora -- se é que hei de ter uma ! -- Que palavra esta tão significativa das amarguras que temos forçosamente de libar! Quem deixou na primeira vereda da juventude de phantasiar e ver por mil prismas enganosos, arrojando-se denodadamente a mundos desconhecidos? Almas predestinadas ás chimeras com que o genio doura o infortunio, nenhuma.

Nenhuma; e para as que não me entenderem, que valeria acclarar a idéa?

Voltemos a Sophia. Lindos eram talvez os olhos pretos, fuzilando de espaço a espaço com um não sei que de febril, que vinha, beijando-lhe a face escura, reflectir-se no avelludado viço, inimitavel e purpurino dom da primavera da vida.

Pouco a pouco a imagem lacrimosa e moribunda de sua mãe lhe foi fugindo do espirito, e o espelho distraiu-lhe parte do tempo que lhe corria enfadoso e triste. O mestre de francez admirava-se do ar senhoril da menina, recebendo enfadada uma leve admoestação, do pouco ou nenhum estudo que fazia. É que já n'essa epoca ella tinha olhado á volta de si, e outros olhos lhe disseram coisas desconhecidas, que a abysmaram em meditativo scismar.

Na mesma rua vivia uma familia, onde existia um moço, tres ou quatro annos mais velho que Sophia. A menina estava sob a vigilancia de Margarida, pobre velha que muitos annos havia, tinha abandonado a casa de seus paes, lavradores do alto Minho, que a amaldiçoaram por causa de fraquezas que a pobre creatura expiou na miseria, e depois na servidão. Só no mundo, sem parentes, sem abrigo, veio ao Porto, onde entrou como criada em casa da avó de Sophia. Desde então uniu-se a esta familia com a dedicação d'uma boa alma, e deixou correr o boato de que morrêra, com a tenção de acabar ali. Já no seu leito de agonia, a mãe de Sophia chamou a antiga serva que a embalára nos seus joelhos, e pediu-lhe que não abandonasse a orphã, que lhe prestasse todos os cuidados que exigia a sua idade, no meio do desamparo moral em que a deixava.

Margarida não o esquecera. Todos os dias invocava Maria Santissima, pedindo-lhe o auxilio da sua divina graça para livrar a sua menina das tentações de satanaz, em humana figura. Era assim que a boa velha contava debellar o perigo, deslembrada do antigo anexim: « fia-te na Virgem...» e trabalhava, descuidada de maus pensamentos, nos arranjos domesticos que estavam a seu cargo.

Segura por este lado, pôde Sophia entregar-se a todos os seus acreançados anhelos.

Amou Ernesto, e deixou-se cair na torrente impectuosa e arrebatada das paixões, entrando n'uma carreira longa em faltas e devaneios que caros custam.

Debaixo de tão fraca espionagem, precisava ainda assim de illudir o pae e Margarida que a julgavam, nas suas horas de palestra, um modelo de innocencia e de candura. Foi assim que ella ganhou uma grande dissimulação de caracter, accostumando-se a não delatar as suas commoções. Era a inveja sobre tudo o que n'ella predominava com mais força. Depois de cobiçar ás meninas da sua idade os vestidos, e os enfeites, quando não a formosura, enchia-se de emulação, e queria vencel-as por algum dom sobrenatural que a distinguisse. Seu pae dava-lhe uma educação esmerada, de que ella aproveitava muito, com o incentivo que a impellia. Mais velha tres annos que Adelina, e aspirando sempre a um casamento que lhe garantisse a opulencia, e importancia na sociedade, via com raiva surda que os seus planos caíam sempre, e, por um acinte da fortuna, quem lucrava era mesmo alguma d'essas que ella mais detestava na sua odienta e rancorosa imaginação. Depois de muitos enganos, que por uma vã ostentação a tornaram ridicula, deu-se a acceitar o coração de Alberto, fingindo-se captiva pela primeira vez.

Alberto era pobre. Formara-o em leis a generosidade de um tio; mas suas excellentes qualidades grangearam-lhe valiosas protecções que deviam fazel-o subir na honrosa carreira da vida publica em que entrava com o coração puro. Alma sincera e nobre, vivendo a maior parte do tempo em uma quinta com a familia, que não tinha meios para supprir as necessidades que se criam n'uma cidade; habituado a esta singeleza de costumes e de praticas, entregou-se gostoso á paixão de que elle sabia haurir delicias futuras com a mulher que o enfeitiçara com fingidas meiguices, e falso brilho de sentimentos. Dedicou-se-lhe cegamente, até que um dia um acontecimento que, por pouco lhe ia custando a vida, deu em terra com um edificio que elle julgava indestructivel, e em seu logar achou o desprezo que extuingue mesmo a commiseração.

Sophia trahia-o, e atraiçoava Adelina, a sua amiga intima, a confidente dos seus amores e das suas esperanças malogradas. Esporeada pela sua paixão dominante, sentiu um goso inesperado ás primeiras demonstrações de Luiz. Nunca ella perdoara a Adelina a superioridade physica e moral que não podia deixar de reconhecer nos estorcimentos do odio.

Lucta, se a houve, foi de curta duração. Acceitou a infamia por capricho, e descuidou-se de Alberto de quem já se ia deveras enfastiando, com quanto as suas frequentes idas ao campo lhe dessem folga.

Havia tres dias que elle para lá partira, contando demorar-se oito, para saciar o coração faminto de sua carinhosa mãe que via n'elle o seu unico filho, e amparo. N'essa tarde passeiava elle sósinho e pensativo, debaixo de uma ramada, que lhe atirava ás faces, a cada tufão de vento, as folhas já raras e amarelecidas pelo outomno. O doer da saudade chegou- lhe fundo, junto com um sobresalto doloroso de coração. A estas horas que fazia a mulher amada? Chamava-o talvez; gemia na anciedade da dor que tambem vinha feril-o. Pensar isto, e não voar aos pés de Sophia era impossivel!

Mandou sellar o cavallo, subiu a despedir-se de sua mãe, de quem não valeram supplicas e rogativas, e partiu, ás seis horas, açoitado por uma nebrina de dezembro, em direcção ao Porto. Ás dez, desmontava no hotel em que costumava hospedar-se na Batalha, e corria sem tomar folego, para a rua do Sol onde morava Sophia. Costumava o pae d'esta demorar-se até á meia noite por fóra de casa, e ella nas noites que passava só, ou esperando Alberto, descia ao andar inferior, e d'ali, meia occulta pelas persianas, ouvia-o alguns momentos. Esperando Alberto um logar que lhe désse independencia para satisfazer a sua nobre ambição de casar com aquella mulher, menos que elle rica, nunca lhe exigira mais, contentando-se com o que lhe estava promettido.

Chegando á porta, bateu com o cabo do chicote tres pancadas sem interrupção, e a porta abriu-se, depois de alguns momentos, áquelle signal conhecido.

-- Sophia está cá, Margarida? -- disse elle sem deixar fallar a velha. -- Está, respondeu esta -- mas, depois que é noite, queixou-se da cabeça, e fechou-se no quarto, como costuma n'estas ocasiões, prohibindo-me de ir importunal-a

Assim que ouviu o signal chamou-me e manda- lhe dizer que não é possível vel-o hoje, e ámanhã lhe dirá o motivo. -- Não posso -- diz Alberto -- Vá, minha boa Margarida, peça-lhe um só momento ; que me diga uma só palavra, e retiro-me.

Margarida voltou com um papelinho que Alberto leu á luz do candieiro que alumiava a escada:

« É-me custoso não obedecer ao coração, meu querido amigo. Socega, isto não passa d'uma prostração nervosa. Commove-me o cuidado que te dou, e d'ahi mesmo tirarei forças para te apparecer ámanhã restabelecida : hoje era augmentar o mal que não posso vencer.»

Alberto, saiu pallido, opprimido, e n'uma concentração dolorosa. Aquelle carinho nas palavras poderia encobrir uma perfidia? Elle, a não estar já frio e agonisante, teria forças para reprimir o impeto d'um verdadeiro amor, sabendo que ella estava ali a dois passos, pedindo-lhe um minuto da sua vida? Não. Alberto, engolphado n'estas cogitações, foi andando ao acaso, e sem saber mesmo por onde caminhava.

Tinha-se passado meia hora, e elle sentia cada vez mais forte a necessidade da agitação e do cançaso physico. Já no fim da rua Bella da Princeza, retrocedeu, e por um desejo apaixonado volveu a olhar aquellas paredes que encerravam o unico thesouro do seu coração. Caminhava com os olhos fixos lá, quando distante vinte passos ouviu abrir-se mansamente a porta e escoar-se um vulto, tomando o lado opposto. Alberto, tremeu. Uma sezão infernal lhe turvou a vista. Depois, correu sobre elle, a tempo que Sophia assomava á janella, seguindo com olhar inquieto e afflictivo o que se passava. Junto do desconhecido, Alberto tocou-lhe no hombro, sem mesmo reflectir no que fazia. Este voltou-se tranquillamente: era Luiz.

Alberto, estacou, perdeu o dom da palavra, e apegou-se a uma porta para não cair, emquanto Luiz tendo-o conhecido, aproveitava o seu estado de desanimação para fugir a explicações que temia.

No dia seguinte, foi chamada a toda a pressa a mãe de Alberto, que os medicos davam perigoso e atacado d'uma congestão cerebral. A pobre senhora veio assistir a um longo periodo de soffrimentos, de que felizmente no fim de tres semanas tirou o contentamento de ver seu filho restabelecido. Sophia não sentiu remorsos; o que ella procurava era uma explicação de que contava sair victoriosa; e não poucas horas de estudo lhe custára. Alberto, porém, cheio d'um nobre orgulho, respondia com um sorriso de desdem aos queixumes e lagrimas, de que Margarida vinha sempre bem provida.

Por fim, conhecendo que era inutil contrafazer-se, despresou o fingimento; e apenas diante de Adelina tomava um ar penitente. Foi então quando esta, condoida sinceramente, e cuidando aclarar uma situação que podia ainda tomar-se segura, pediu a Alberto a conferencia a que assistimos, e de que não colheu os resultados que previra.

CAPITULO VIII

Decorreram seis mezes, depois d'aquella noite fatidica que devia mudar o destino de Adelina. A embriaguez de coração, infiltrada pela esperança, sentiu ella, mais do que outra qualquer, já affeita a essas commoções. A paixão rapida e violenta assenhoreara-se d'aquella alma, abafando os gemidos da consciencia dolorida, e os deveres de esposa.

Muitas vezes dava ella uma vista retrospectiva ao passado, a esses dois annos de escuridão, onde lhe apparecia a imagem do homem escolhido na innocencia das suas aspirações, com o sorriso de Satanaz, arrancando-lhe uma a uma as crenças virgens da sua alma.

O mundo tinha sido um dezerto, sem gota de agua que lhe refrigerasse a sede inextinguivel; e, quando agora lh'a aproximavam dos labios requeimados, como repellil-a, como resistir a essa sofreguidão em que o espirito não tomava pequena parte?

Henrique não era o que se diz um mau homem: era excentrico, ou por outra: um grande desgraçado. O que hoje lhe dava duas horas de contentamento, aborrecia-lhe amanhã. A mulher que, á primeira vista o tomava pelo anjo annunciado na sua phantasia, tornava-se dentro em pouco uma vulgaridade custosa de supportar. Dos delirios da paixão caía no marasmo do desalento, e na descrença do tedio. Com o seu ar poetico e inspirado, Adelina arrebatou-o a enlevos de poesia. Era a filha dos seus sonhos, a fada dos seus pensamentos que elle revia encantado; era a estrella que devia guial-o a essas regiões desconhecidas d'um amor santo e duradouro. Estava ali o segredo da sua inconstancia, e dos vôos vertiginosos que o fizeram infeliz até esse momento. Na sua ardente imaginação, cuidava sentir a chamma d'um fogo sagrado que o elevava ao ceo. E o seio arfava-lhe, e os labios entreabriam-se como se lhe custasse a sorver o ar impregnado de aromas que lhe embalsamava a nova existencia. Seria a prelibação da bemaventurança, se o demonio familiar de Henrique lhe não bafejasse logo á lembrança as dores que o esperavam.

É verdade que estava ali a mulher mysteriosa que podia accender as vertigens doidejantes da felicidade : era ella a que elle via chorar a cada novo combate em que o coração lhe saia ferido dos desenganos; mas... outro lhe chamava sua ! Entre elles, que abysmo a transpor ! quantas agonias pagariam o goso divino de apertal-a entre os braços?

Henrique amou com o enthusiasmo meditativo e fervido do infeliz, quando se apega á ancora, mas pouco depois mergulhava-se esta no occeano do fastio. O inferno da solidão moral aterrava-o, mas o seu fatal sestro não cançou.

Condoamo-nos do infortunio onde quer que elle esteja, e não levantemos a voz para maldizer as obras do Senhor.

Era assim qne pensava Adelina, quando a verdade terrivel se desnudou ante ella de falsas lentejoulas, apparecendo-lhe com todo o seu medonho apparato.

« O Henrique! Henrique! -- escrevia ella -- amaldiçoar-te, nunca! Mas, para que me appareceste? Por que me queixava eu, quando a vida me corria monotona, mas livre das angustias que me assombram a face, e me envelheceram n'um dia?

« Vae infeliz, foge me. Levas comtigo o veneno lento e mortifero da tua e da minha vida. Que outra mulher comprehenderia a tua alma ? Que outra teria a coragem de respeitar a força mysteriosa que te impelle, e chorar mais por ti do que sobre as desgraças que lhe acarretaste ?

« Se tu soubesses como eu te amava!... e o grande coração que tu esmagas, Henrique?... Sabes, sabes, mas não se vence o destino. Mysterios de Deus!... não nos revoltemos contra o que não nos é dado conhecer.

« Deixas-me, no desespero de não poder salvar-te: de mim pouco me lembra. Creio que o peso da ig minia, o odio contra mim própria, e o desejo de acabar, hão de matar-me.

«Que excesso de vida em seis mezes! e que horrível quietação eu sinto n'esta hora! Parece que se me despegam uma a uma as libras do coração, e este mal surdo é d'um peso que me brutifica. A tempestade, que lavra dentro em mim, pela sua mesma violência, fulminou-me, meu amigo.

«É tremenda a expiação do crime!... Parte! eu não te verei mais. A paz do Senhor vá comtigo, e nunca te sejam tomadas, no tlirono do Altíssimo, as contas da minha desgraça.

« Agora, adeus Henrique: n'este momento solemne abraço-te até á eternidade.»

Henrique, leu, apartando com as mãos a fronte incendiada pela febre; emquanto que Fernando, o amigo e confidente d'este amor infeliz, seguia com vista observadora as rapidas transições que se davam n'aquelle rosto arado pela amargura.

-- Tudo está acabado -- diz Henrique com voz cava, e apresentando a carta a Fernando -- lê. Este, terminada a leitura, murmurou n'um suspiro: «pobre mulher! malfadada sorte!» e caiu em igual spasmo ao que tomava Henrique. Depois de dez minutos de amargo cogitar, Henrique levantou-se como sacudido por convulsão electrica, e exclamou:

«Seja assim. É preciso seguir os últimos preceitos d'esta mulher que eu infelicitei, e a unica que me acordou mais firmes as esperanças da felicidade.

Nem mais um dia n'esta terra maldita d'onde levo encravado o espinho do remorso, e onde a minha presença insulta a victima innocente. Fernando, abraça-me; transmitte ao anjo este aperto de mão; eu não poderia dizer-lhe senão blasphemias, contra Deus, o contra mim. A minha punição, diz-lhe, que é conhecer n'esta hora o valor do bem que perco. Consola-a, insta pelo meu perdão, e tu, meu amigo, lamenta-me : vou morrer só, é longe da patria. Hontem, no accesso da demencia, lembrou-me fugir para Lisboa, e de lá passar á America onde tenho um tio. Está decidido. Em meia hora tudo findou.

« Sonhos de poeta! esperança! felicidade! amor! aqui vos deixo ! O condemnado vae só. Anda, vem comigo, -- disse elle arrastando Fernando para fóra do quarto -- ajuda-me na descida a este antro de trevas e de horrores.

Ás tres horas da tarde d'esse mesmo dia, saia a barra o vapor Lusitania, e Fernando que acompanhara á Foz o amigo, sentado na fraga d'um rochedo, e os olhos fixos na immensidade, procurou até perder de vista esse lenço branco que se agitava, esse signal que significava um adeus eterno. D'ali partiu com o coração torturado a cumprir o final da sua missão.

Adelina, não era já aquella viçosa e arrebatadora formosura: era o vulto magestoso da desesperança. A dôr sulcara-lhe as faces; os olhos assombrados por orla escura, tinham perdido o brilho, e volviam-se á terra, escondidos, debaixo das longas pestanas.

Toda vestida de negro, com os cabellos mais negros ainda levantados na testa e caidos para traz, deixava adivinhar n'aquella fronte pendida, os pungitivos pensamentos que a dilaceravam.

Quando Fernando acabou de fallar, ella deu um gemido surdo, e caiu n'um lethargo. Fernando contemplou-a assim um momento, ajoelhou diante d'ella, tomou-lhe as mãos apertando-lh'as carinhosamente, e disse-lhe baixinho: chore, chore Adelina, aqui tem um seio de irmão. Um soluço doloroso provou-lhe que fôra ouvido.

Desde então, formou-se um laço espiritual entre aquellas duas almas.

Fernando já de muito que amava Adelina. Da admiração respeitosa, passara a um sentimento mais vivo, conhecendo o viver da infeliz senhora trahida pelo esposo, e pela amiga que ella mais presava. Funda foi a sua dôr, quando tornado confidente de Henrique, seguiu passo a passo, as peripecias d'aquella paixão progressiva, que tão de prompto devia gastar-se!

Para Adelina, não foi mysterio o amor de Fernando; e esta idéa não a assustou. No desalento, e na descrença d'essas illusões que lhe tinham sido incentivo de mil pesares, pensava com complacencia no homem que tantas provas lhe dava d'uma affeição extremosa, sem nada pedir-lhe que a aviltasse aos seus proprios olhos.

É tão doce para a alma, sentir-mo-nos amados com esta obediencia passiva, e cega !

Adelina cuidava conhecer bem o caracter de Fernando. Debaixo d'uma apparente frivolidade, que thesouro de sentimentos nobres, que coração tão grande e bem formado!

Pobre mulher ! diremos nós tambem.

Pouco a pouco a imagem de Henrique afastou-se d'entre elles, sem que nem um nem outro fizessem n'isso reparo. Os dias tornaram-se curtos, as faces de Adelina brilhavam outra vez com o clarão do bem- estar da alma, e Fernando, que via e sentia tudo isto, fazia um esforço supremo para suffocar as suas impressões, sacrificando-se a si pela mulher amada.

Uma manhã, levantou-se Adelina triste sem motivo, e opprimida por sobresaltos extraordinarios no coração. Visionaria não era ella, e comtudo não pôde repellir os pensamentos melancolicos que a assaltaram. Depois de jantar, sentou-se n'um banco do jardim, debaixo d'uma acacia, e entregou-se a profunda meditação. Havia um quarto de hora passado ali, quando Fernando veio encontral-a.

-- Que tens tu, anjo? « Soffro, soffro muito, meu amigo. Vejo revoar no céo aves medonhas e agoireiras, ouço vozes sinistras, a predispor-me a novas desgraças.» -- Ó filha -- respondeu Fernando beijando-lhe as mãos que ella lhe abandonava -- não penses assim. Isso, é um desvario da tua imaginação. O céo, está cheio de pompas, a terra abre-se em

flores aos teus pés, e no meu coração tens um throno digno de inveja.

« Ó minha vida, deixa-me dizer-te tudo o que não posso mais calar; deixa-me cair aos teus pés como escravo e com uma só palavra da tua boca adorada, levanta-me acima do estrado dos reis: Amo-te, Adelina, amo-te!.. Não, não me escondas a face, deixa-me ler ahi toda a minha ventura embora me enlouqueça o peso da felicidade. Por que me foges tu? As aves de mau agoiro fugiram, as vozes sinistras calaram-se. Que eu sinta o teu amor responder ao meu, que o teu halito bafeje a minha face. Anjo! anjo ! falla-me; quero ouvir as harmonias do paraizo, o hymno dos bemaventurados.»

Adelina escutou tremendo ao principio; e depois, agitada pelo fogo interior que a devorava, curvou-se um pouco, murmurando palavras sem nexo, suffocadas pelas ardentes caricias de Fernando.

CAPITULO IX

Em quanto estes acontecimentos se passavam em sua casa, Luiz de Albuquerque que tudo conhecia, fingia nada saber, senão por dignidade, por falta de brios, e completa estranheza dos actos de sua mulher. Todo entregue ao amor de Sophia, com quem despendia grande cabedal, sentia-se todos os dias mais apaixonado e preso, a cada novo capricho a que esta o acorrentava.

Refalsada ao ultimo ponto, Sophia continuava a escarnecer a boa fé de Adelina, rindo, ou chorando, quando a encontrava alegre ou desgraçada.

Já não era segredo para ninguem a intimidade de Luiz e Sophia: só Adelina o ignorava. Absorvida no constante phantasiar do seu espirito, vagos rumores lhe chegavam do mundo: nem ella procurava mais. A sua solidão, só era povoada pela imagem e voz querida, e a leitura era a unica distracção que lhe agradava. Estudar os movimentos da sua alma apaixonada, adivinhar as impressões do homem amado, sonhar com um futuro compensador de tantos tormentos, era o trabalho incessante da sua imaginação!

Sophia era sempre a sua amiga, mas começava a ser-lhe aborrecida.

Já não a via elevar-se nos vôos expansivos do sentimento. O viver calculista e material tinha ganho sobre ella tão grande ascendente, que, sem que o percebesse, já não podia transfigurar-se.

Da exaltação arrojada e audaciosa, caiu nas vulgaridades rasteiras que enojam um espirito distincto como era Adelina. Lembrava-se ella então de sua tia, d'aquella voz carinhosa que não attendera, quando tentava desvial-a da embriaguez de coração prophetisando-lhe a desgraça.

Logo depois do casamento da sobrinha, D. Suzana deixou o Porto e foi fixar a sua residencia n'uma quinta que possuia distante dez leguas. Ali vivia, toda entregue a exercicios de caridade e devoção. Havia oito mezes que não via Adelina, quando uma circumstancia imprevista a levou ao Porto, onde não contava mais voltar.

Foi um contentamento misturado de lagrimas a aproximação das duas senhoras: ambas tinham soffrido muito. D. Suzana apertava a sobrinha ao seio com estremecido afago, em quanto lhe contemplava as feições demudadas pela intensidade da dôr. Depois d'um longo silencio, D. Suzana afastou um pouco Adelina de si, e disse com voz commovida: -- Minha filha os decretos de Deus são imponderaveis. Venho a ti, fazer-te uma confissão penosa: oxalá que te aproveite. Escuta, minha Adelina.

-- Creio que já te disse, que fui como tu, formosa e rica de grandes crenças, mas amei, filha, e este amor perdeu-me. Adormeci um dia, e quando acordei, tinha perdido a honra, a estima de mim propria, e o bom nome da minha familia. O homem que me matou o futuro, era como todos: riu-se das minhas lamentações, e mais depressa me fugiu. Saiu de Portugal, e nunca mais o vi. Soube que vivia feliz, e casado no Rio de Janeiro com uma mulher que lhe levára grandes bens. Eu ficára sentindo os vaticinios amargos da maternidade, como expiação. Imagina o meu desespero, e as agonias por que passei. Despresada pelos meus mais proximos

parentes, escondida em casa d'uma mulher que nem o nome me sabia, ali fui mãe. Mãe infeliz, que devia remir a culpa pela abstinencia dos carinhos, e do goso santo de crear e ver crescer meu filho. Tiraram-m'o logo, e só depois de muitos annos consegui saber de meu pae qual fôra o seu destino.

Avalias tu, que dor me tem despedaçado o peito quando vejo essa porção da minha alma, e a vergonha abafa a voz que quer dizer-lhe: -- «Vem meu querido filho; diz-me que sentes o coração de mãe n'estes braços que te apertam.»

Ha dois mezes recebi uma carta do homem que tanto mal me causou. No leito de morte, lembrou-se dos deveres que tinha para com o orphão, e dizia-me que não tendo outro filho, perfilhava este, deixando-lhe uma fortuna de milhões.

Impõe, porém, uma condição. Exige que seu filho case com uma sobrinha de sua mulher, sem o que, não apparecem os papeis que o hão de reconhecer, e estão depositados nas mãos d'um amigo. Eu não quiz dar publicidade a isto sem ter noticias mais seguras, que felizmente chegaram hontem.

No proximo paquete espero minha futura nora, e o legatario das ultimas vontades do finado. Antes de tudo, corri logo aqui, minha Adelina, porque sei que grande dor vai ser a tua, e eu queria prevenil-a. Tenho, mesmo de longe, acompanhado os devaneios do teu coração, tenho pedido tanto ao Senhor por ti ! coragem, Adelina.

Teu primo, o meu filho, é Fernando.

« Fernando! Jesus! -- disse Adelina juntando as mãos n'um aperto angustioso. E logo diante dos olhos lhe perpassou o reflexo abrazado do ouro, e o coração opprimido gemeu como se um peso enorme o esmagasse.

CAPITULO X

Fernando ama-me -- pensava Adelina a sós comsigo -- mas terá elle coragem para regeitar os milhões de seu pae, sacrificando-me um tão brilhante futuro?... E devo eu consentil-o? -- acrescentava a triste. Não: terei força para suffocar os impulsos da minha dor; mas que eu o veja chorar-me, e comprehender a grandeza da minha dedicação.

Quando no fim de quinze dias chegou a futura noiva, Fernando, cuja vida se passava aos pés de Adelina, ou nos braços de sua mãe, que ensinava a ambos o segredo das grandes resignações, vio com bons olhos a sympathica creoula de quinze annos, que vinha trazer-lhe as riquezas e o fausto que elle sempre cobiçára. A imagem de Adelina escureceu, para dar logar a sonhos de ambiciosa grandeza.

A pobre mulher conheceu tudo.

Não se engana o coração que muito ama.

O anjo do allivio fugiu da cabeceira da infeliz, que

o estalar da dor sobre-humana, e o medonho desespero lançara ás portas da sepultura.

Na vespera das nupcias, Adelina teve forças para levantar-se, e apparentando ó socego que não tinha, acceitou o convite do marido para surprehender Sophia que se queixara de enferma, fechando a porta a Luiz, impacientado. Furtava-se ella assim ao martyrio de contemplar na fronte de Fernando os tumultuosos pensamentos em que já lhe não cabia parte.

Sophia, esquecera-se de prevenir Margarida, muito certa de que Adelina, a unica pessoa que ia direita ao seu quarto com a familiaridade de irmã, não podia procural-a. Na forma do costume, correu esta ali, empurrando docemente a porta. Ao primeiro relancear d'olhos, recuou como ferida pelo assombro. Sophia não estava só Julio, o primo que ella em tempo quizera fazer amado por Adelina, suspendia-se-lhe dos braços em que ella amorosamente o apertava.

A esta vista, Luiz que acompanhára de perto sua mulher, deu um grito furioso e lançou-se como um tigre entre os dois culpados.

Increpou então Sophia de todos os crimes que lhe conhecia, fulminou-a com os nomes mais injuriosos, e saiu desnorteado pela mesma porta que dois minutos antes dera saida a Julio.

As duas mulheres ficaram sós.

-- Mais esta dor. Meu Deus! meu Deus! poupae-me -- bradou Adelina.

Traíram-me todos! Atraiçoada por todos aquelles a quem dei entrada no meu coração. Tambem tu Sophia?! Oh! este mundo é maldito! Orphã de esperança, só no meio d'este cahos lamacento que eu adorei na pureza das minhas aspirações, que será de mim, Senhor? A cada passo mais descubro, e me entranho no abysmo. Abysmo medonho onde não ha borda a que se apegue mão salvadora. Como é pezada a minha cruz! Por toda a parte o engano, a traição, e a hypocrisia.

Nada me resta. Nem familia, nem marido, nem um amigo!... É de justiça. Jesus encontrou um só Cyreneu, e era o Justo, o Divino, o Rei dos mundos; eu sou a peccadora, o verme dos vermes, o átomo de pó que de turbilhão em turbilhão desapparece debaixo dos pés dos felizes.

Ó meu pae! porque me abandonaste? Não esqueças lá em cima a tua pobre filha. -- E duas grossas lagrimas correram silenciosas ao longo das faces já sulcadas por outras não menos queimadoras.

No dia seguinte Adelina desappareceu sem dizer a ninguem para onde ia. Veio a Lisboa bater á porta do convento onde fôra educada, pedindo que a recolhessem, e lá agonisa, se ainda vive.

Mudou logo de nome, e prohibiu que lhe fallassem do passado, e do mundo que ella odiava.

Fernando vive feliz. A ambição satisfeita abafou- lhe todos os outros sentimentos. Luiz congratulou-se da fugida da esposa, e reconciliou-se com Sophia.

Desgraçada foi só ella, porque só ella tinha coração.

A JULIO CEZAR MACHADO

Ella, a mulher! a companheira do homem, o ente a quem Deus concedeu a ternura d'amante, a dedicação d'esposa e o desvelo de mãe; o anjo ao qual a Providencia incumbiu robustecer o homem com o balsamo dos prazeres, e o nectar das consolações, desde o apertar das faxas infantis até o rematar do estadio da vida!

A sociedade não comprehende a aberração da natureza.

A sociedade despreza o circulo violaceo, que á volta d'uns olhos formosos fizeram noites de insomnias, e aconselha com um cynismo incrivel a cobrir com arrebique os vestigios da dôr. Vê desapparecer com o ultimo sorriso uma serie de illusões e sonhos de felicidade, e ordena imperiosamente que se suffoquem debaixo das pregas de riquissimo moiré antique e sob o peso de preciosos diamantes todas as expansões d'uma alma apaixonada e generosa.

Diante das idéas do seculo, a mão que vem calçada de ouro e gemmas não deve apertar senão a mão d'um automato ou um corpo escravo.

O agiologio póde esperar a martyr do dever. A burguezia nos seus desvãos tenebrosos sente pruir-lhe o desejo de ver sangrar os corações puros e nobres. Alma candida como a cecem, modesta como a violeta, e formosa como a camelia, é preza que as suas garras estão promptas a empolgar e polluir.

E o mundo não sabe vindicar os seus foros mercadejados. Impassivel e indifferente, assiste á agonia das victimas, e solta a gargalhada diante do holocausto. Insensato, quanto perde com o sacrificio da mulher!

Onde estariam as melhores paginas dos seus annaes, se em algum tempo não houvesse uma reação, um exforço contra as tendencias hoje tão desinvolvidas?

Como teria Lamartine sem Graziella escripto o mais esplendente, o mais romantico episodio das suas confidencias ?

Onde iria buscar Raphael a expressão divinal das suas madonnas, se o seu pincel não estivesse inspirado pelas graças do sexo, perante o qual fazia a genuflexão frequente?

Qual seria a Gerusalemme liberata, que Tasso cantára na sua lyra harmoniosa, se as cordas não fossem afinadas pelos enlevos de Leonor?

De que modo seria Bernardim o poeta das saudades e o auctor do mimoso livro Menina e Moça, se dos tectos reaes lhe não irradiassem os sorrisos feiticeiros de Beatriz?

Livremo-nos por um momento da pressão da epoca. Concedamos a eloquencia da palavra sentida, a quem sabe por experiencia o que valem as torturas d'um coração angustiado.

São folhas avulsas, que caem do livro intimo d'uma senhora. Leiam e respeitem o pesar que as dicta.

A primeira que hoje publicamos, e que é sagrada a uma das nossas mais floridas e espirituosas intelligencias; não será talvez a ultima. a. l.

Que grande manancial de estimulos, para que eu procure com avidez sympathica o clarão do seu espirito, e me concentre depois, chorando essas horas em que lhe lembra « tudo quanto ha de triste, de amargo, e de miseravel na existencia » !

Sei eu bem o que é isso, meu amigo, sei o que é pairar o espirito desconfortado da terra por esses mundos, que a imaginação cria, e ter de baixar a este atascadeiro de ignominias, anhelante de escandalos, ancioso de torpezas ou desgraças, que o façam tripudiar e rir. Eu então, na rainha audaciosa phantasia, confronto-o, e voltando-me para a immensidade, ouso interrogar este mysterio de Deus.

E eu posso, meu amigo. Provada por todas as adversidades, recosto-me já fatigada n'este marco da vida.

São vinte e nove annos que me pezam, depois de ver morrer, uma a uma, as flores da primavera, que tão viçosas foram. Começaram logo a cair murchas da corôa, que me avergou a fronte no primeiro dia de martyrio.

Pobre victima das minhas chimeras, tão bellas, tão radiosas, tão grandes de doudejante devanear, vi-as sumirem-se, como, posto o sol, a noite absorve os ultimos anhelitos do dia. Então os olhos nas trevas palpam só o positivo, e fecham-se cegos e desluzidos.

Vem logo o pensamento auxiliar a realidade, e diz- lhe : «Não avalies as obras do creador pela natureza magnifica, explendida e fulgurante como ella é!»

Quando o homem entra no sanctuario reservado das suas paixões, tentêa-lhe a alma, se é que a alma enojada de tão immundo receptaculo não fugiu d'elle.

É o cynismo asqueroso, que lá domina, é muita: vez a infamia e a torpeza, mascarada com um falso brilho.

Desgraçado d'aquelle que se mostra distincto a esta raça degenerada. Accossado, mal ferido, eil-o caido no abysmo do cynico, se o anjo da meditação não vem confortal-o, apontando-lhe para o caminho predestinado.

A mulher ! Quantas abnegam a sua essencia, fazendo chegar ao ouvido do infeliz, que n'um calvario está remindo as suas culpas com resignação sublime, o grito triumphador de Lucifer exultando com o estertor do condemnado ? Existe uma d'estas, que me está voltejando agora aqui.

É uma fronte roxa de vertigens asquerosas.

O infortunio fez-lhe chegar ao lado um verdadeiro e nobre typo d'elle. Era um coração golpeado em todas as fibras; era além d'isso, uma amiga de pequenina, que a tinha estremecido, e depois a quizera guiar na senda da vida.

Vejo-as ainda ambas a fugir da meninice, sonhando um porvir casto de idealidades tão singelas como as suas almas, ambicionando já esse mundo tão aprasivel, em que lançar estes thesouros tão ricos e tão candidamente guardados.

Pouco depois veio o destruidor geral da innocencia e do bem.

Uma, entrou n'esse mundo tão differente do que o pensara, mas tentador, e de folguedos incendidos.

A outra, curvou a fronte, acceitando o seu calix predestinado, e encommendando-se á Virgem Santissima n'aquella mystica linguagem: «Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céo.»

Darei um nome a uma d'estas duas mulheres. Porque não?

Rosa agitava-se entretanto no tumultuar das paixões: queimou-se cedo, mas não viu n'alma a mancha do fogo, riu-se de si propria, e da ingenuidade das aspirações do passado, quando viu delidas as doutrinas, que a sombra de uma mãe expirante lhe gravára na alma.

Estudou a sociedade, adorou o cynismo hypocrita, envolvendo-se n'esta capa, que a deixava mal coberta a muitos olhos, mas o bastante para ser bem recebida e acatada, como eu vejo tantas outras, dignas como ella, d'essa distincção.

Não é porém aqui na minha terra abençoada, onde se reproduzem anjos, como Rubens os não soube crear na tela.

Emquanto cingiu a fronte de Angela uma aureola faustosa e opulenta, Rosa continuava a ser a confidente das agonias e das elevações do espirito, como era sua hospeda e companheira nos festins de campo e nos theatros.

Depois, abutres esfomeados agarraram-se cobiçosos na presa, e roubaram-lhe este inoffensivo viver.

A pobre mulher, toldada e escurecida a estrella do seu destino, conheceu os dias negros e a dependencia triste e amargosa para todos, como ella é, e mais para os que nunca a presentiram.

Suffocou com nobre coragem o impulso primeiro do coração.

Era a morte que a chamava, era o aniquillamento que lhe acenava, sorrindo atravez as grades de um sepulchro, que lhe escondia uma familia.

De repente apparecia-lhe uma imagem luminosa, quasi divina; via uns labios que mal balbuciavam a santa palavra de mãe.

Viver, era o supremo esforço de constante resignação. Disse-o na consciencia, suspirou e viveu.

Crente no esgotar do infortunio, correu a uns braços, onde deviam existir lembranças da infancia, laços mais sagrados ainda, e gratidão pela grandeza d'alma, que n'um recente acontecimento lhe mostrára.

Enganou-se. Vestigios do passado estavam perdidos, a ambição gerára o esquecimento, morrêra tudo ali !

Rosa chamada por... silencio, a terra cobre esta creatura; possa Deus perdoar-lhe e salvar dois infelizes de uma justa e maldita condemnação.

Foram quatro contra a desgraçada, que se debatia entre quatro pulsos de homem, e duas vozes feras e implacaveis de mulher. Rosa, negro o carão, a voz rispida d'um demonio, uivava palavras estranhas, chegando-lhe os punhos fechados á face serena e magestosa, como a do pugnador da fé offereceu o seio á frecha hervada de morte.

A fera vomitava chammas, obrigada, por este aspecto de suprema superioridade, a retroceder no seu ignominioso intento.

Ora aqui tem, Julio Cesar, um typo da obra prima do creador.

Acceite o conselho da sua admiradora. Fuja dos prazeres do coração, d'esses haustos ardentes, que lhe volverão depois em soro purissimo das suas illusões choradas.

Dê-me um pensamento.

Veja-me. Corajosa e soffrida, ninguem me rouba o contentamento santo de identificar comigo o anjo da amisade e da redempção.

O meu espirito evoca essa visão magica, povôa essa região encantada, em que ella me apparece, e onde é a primeira no throno explendido em que a colloquei.

Roubar-m'a, quem póde ? ! Se ella é tão minha, se o meu coração é o senhor omnipotente d'ella !

Julio Cezar Machado, aquella flor graciosa do folhetim, alma juvenil, enthusiastica e sincera, mostra-se nos seus escriptos, e deixa em esboço traços apreciaveis do coração.

Quem o ouvir uma vez, estima-o; e eu que o escutei tantas, que lhe vi uma sombra melancholica entre um sorriso de delicada galanteria, e uma palavra de adeus, folgo de mostrar-lhe que chega até mim, como gota refrigerante no meu antro de agonias, n'esta infernal Estygia, onde o exilado virá um dia encontrar a sua amada, como a de Virgilio.

Depois falla-me de Lisboa, de Cintra, d'esse sonho fadado para os meus amores; e leva-me ainda mais longe pela saudosa recordação !

Lá está a asinhaga de Arroios, lá vejo erguida a cruz, aonde ajoelhei um dia !

Onde ha ahi, espiritos fortes da religião d'alma, magoa mais intima, tristeza mais funda, dôr mais pungente, do que a da mulher que geme as amarguras do desespero, quando o espelho ainda reflecte a imagem d'um rosto formoso e melancholico, quando as flores da juventude, se não honvessem sido crestadas pela ardente lava das desillusões, ainda teriam as petalas esmaltadas e fragrantes, as sepalas viçosas e rigidotas?

Onde ha ahi espectaculo mais afflictivo do que o quadro da mulher que se senta no limiar da existencia, passada por mil dissabores e infinitos pesares, para amaldiçoar os transportes d'um coração sensivel e dedicado?