A Mulata: Edição para o ELTeC Dias, Carlos Malheiro (1875-1941) Criação do HTML original Vanda Morgado Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 103676 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org A Mulata Carlos Malheiro Dias Biblioteca Nacional de Portugal A Mulata Carlos Malheiro Dias Rio de Janeiro 1896 A Mulata Arcádia Lisboa 1975

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CARLOS MALHEIRO DIAS

A MULATA

Edição comemorativa do centenário

do nascimento do autor

com um prefácio de

Alexandre Pinheiro Torres

Primeira publicação em Portugal

arcádia

A MULATA

A MULATA

A Laurinda da S.

EIS A COLHEITA DA TUA MÁ SEMENTE

« -- C'est bien là le délire de l'amour: -- il se frappe lui-même dans sa violence -- et entraîne la volonté à des entreprises désespérées --plus souvent qu'au- cune des passions qui, sous le ciei -- accablent notre nature.»

SHAKESPEARE, Hamlet. Cena VI

PREFÁCIO

«Ayant été atteint, jeune encore, d'une maladie morale abominable, je raconte ce qui m'est arrivè pendant trois ans. Si j'ètais seul malade, je n'endirais rien; mais, comme il y en a beaucoup d'autres que moi qui suffrent du méme mal, j'écris pour ceux-la, sans trop savoir s'ils y feront attention; car dans le cas ou personne n'y prendrait gard, j'aurai encore retiré ce fruit de mes paroles, de n'être mieux guéri moi-même, et, comme le renard pris au piège, j'aurai rongè mon pied captif.»

(Confession d'un Enfant du Siècle).

Eu queria fazer minhas essas palavras de Alfredo de Musset, e é a ti, rapaz de vinte anos, que eu diria, antes que tivesses voltado a primeira página deste livro: -- Possa servir-te de exemplo o que vais ler, se ainda abrigas ilusões, se ainda vives de mentiras, se ainda não ensanguentaste os pés na senda cheia de abrolhos da verdade.

Nunca te esqueças, oh moço que por ventura me leres!, de que tu amanhã serás a pátria, que a tua alma vai ser daqui a anos a alma da tua pátria, e para a encaminhares na estrada do triunfo precisas para isso de ter fé, de ter esperanças, de ter crenças...

Os teus vinte anos de hoje só pensam em amar e ser amados, mas repara bem que é desse primeiro amor que surgirás homem para a vida, para o trabalho, para o mundo... Pensa que esse primeiro amor é o balbucio de um outro, mais do que todos sagrado, austero e augusto; que dos braços da amante irás cair nos braços de tua noiva, a mãe de teus filhos, a doadora da pátria.

É necessário que para ela reserves ainda um quinhão de virtude, de bondade, de paixão. Livra-te de desperdiçares a tua alma inteira nas primeiras mãos pérfidas que te enlaçarem o pescoço.

Não vás tu esbanjar o teu único tesouro, esse que a pátria pode aceitar de ti, esse instinto de bondade e entusiasmo da tua mocidade, não o vás tu largando aos poucos nos espinhos da desilusão que ladeiam o caminho por onde vais cantando ao ideal...

Pensai um pouco o que será da pátria entregue aos vossos braços de positivistas e de materiais, vendo a alma através de uma definição de filosofia materialista, incapazes de um belo esforço, raça degenerada, desesperançada, carregando com um país virgem, que se entregou confiante como uma índia nua, embalada de amor e fantasia... O que será então do Brasil, abandonado a uma geração desequilibrada, com uma literatura perversa e mentecapta, sem artes, sem tradições, sem aspirações, sem uma grande ambição na vista, sem uma grande temperança no coração?

A fé, disse um grande médico da alma, é a coragem do espírito que se arroja para a frente, certo de encontrar a verdade. Essa fé, deixai falar o positivismo, não é a inimiga da razão mas a sua luz, o seu archote...

Para aqueles que a perderam irrevogavelmente, e são em grande número, só lhes resta seguir de olhos cegos a opinião do dia, sujeitar-se ao seu século em vez de lutar contra ele, resignar-se à dúvida e negação, consolar-se de todas as misérias humanas com um sorriso de cinismo.

Mas não é para estes que eu escrevi em quinze dias de febre estas quinhentas páginas... Foi só para ti, oh!

mocidade de que eu ainda julgo fazer parte, é para ti, camarada, que ainda acreditas ser o ideal a única realidade neste mundo fugitivo e inconstante... foi só, só para ti...

Para ti, que eu sei bem amas uns olhos negros, verdes, garços, azuis, que importa?, para ti que ainda não esqueceste as orações ensinadas por tua mãe e que aprendes agora a oração do amor, iniciando-te na religião do beijo e da carícia...

Repara bem, o momento supremo está batendo aos umbrais da tua pátria. A Inglaterra e a França julgaram-te mal, e tentaram já amordaçar-te. A república Argentina está em armas, os limites de teu território estão por marcar... Há uma boca aberta em face ao Amazonas...

Prepara-te, que a fé seja sempre o teu estandarte quando se trate de redimir ou desafrontar ou defender a tua pátria.

De anos a esta parte, tu bem o tens visto, o positivismo e os sofismas dos cépticos sustentaram do sul ao norte uma tempestade de guerras e revoluções...

Vai, meu amigo, a amante tem isso de bom, como já te disse, é que leva aos braços da esposa. A amante é a aprendizagem do amor... Faz o possível, irmão, por voltar mais cheio de esperança, de virtude e de crença.

Torna-se precisa uma nova geração, cheia de ideal e de virtude, em quem lateje forte uma alma, na fronte da qual resplandeça a fé, e no coração da qual pulse valente o patriotismo.

Torna-se preciso rever leis e costumes, jungir a justiça de misericórdia e humanidade, escrever uma grande bíblia de amor e de bondade.

Possas tu aprender qualquer pouco neste livro!...

Há aqui muito desprezo pelos homens e pelas coisas de hoje, possas tu um dia acabar com as razões que ditam, sugerem, inspiram, prescrevem, impõem livros destes...

Se entre vós não houvésseis muitos «Edmundos», eu não teria de certo escrito estas folhas tão cruéis..., mas até eu fui um deles, e lembrei-me prevenir-te, se ainda é tempo, para que te desvies sem tardar de um caminho errado e abras os olhos a meio da tua cegueira, oh moço de vinte anos!

I

A desolação desses dias passados a olhar as árvores por entre os vidros das janelas impossibilitava-o de pensar, depois de uma semana de febre a 39...!

Os livros eram-lhe suplícios se os tentava ler. Cada frase era uma tenaz que aperta e esmigalha a cabeça dolorida, e se lhe falavam em literatura, vinha-lhe a ânsia de contar toda a verdade do momento, o desejo de passar a vida sem pensar, de espírito fechado ao discernimento e de portas trancadas ao trabalho, viver sem fazer nada, odiando do íntimo, do fundo da alma, quantos se comprazem a arquitectar frases e rimar versos, como se com essas frases e esses versos a miséria deixasse de dormir ao relento, na soleira das portas, e o mundo tomasse outro caminho, porque na balança espiritual caiu mais um número de Rio-Revista ou mais uma folha da Thebaida!...

Para quê -- para quê essas páginas que menos querem dizer que o ruído do vento, e que tanto valem como o pó que esse vento levanta e leva para longe?...

Se nessas cabeças, erguidas na prosápia de «belos medalhões de artistas», a febre levasse o seu incêndio, queria ver se do rescaldo alguma coisa ficaria que não fosse um pouco de bom senso!...

Porque pode bem ser, meu Deus!, que isso ainda fossem malignos resultados da semana pavorosa, mas embora pensamentos de doente. Edmundo aprazia-se em escutá-los, achando-lhes até certa razão de ser.

... Todo o esforço busca um resultado prático, e desde um artista que compõe um poema até ao ourives que burila uma custódia, todos, inclusive o mendigo que se lastima e mostra as chagas para obter a esmola, todos seguem um rumo de uma ideia que o esforço materializa, de que o trabalho os faz senhores.

Assim, na literatura, os homens procuram estudar a grande alma humana, ou um sentimento, ou uma doença dos sentidos, uma enfermidade moral, um caso estranho de temperamento, uma vida levada a empurrões pela fatalidade, tudo o que ensina a desculpar cristianamente os nossos semelhantes, no que eles têm de mau «e que só o mundo lhes deu», tudo o que ensina a compreender, tudo o que ensina a exaltar, tudo o que desperta dentro em nós a piedade, a caridade, os sentimentos bons.

Nesse número estão as obras de Zola, de Tolstoi, de Goncourt, de Daudet -- a «Sapho» e o «Jack»...! --, de Dostoievski, de Bourget, de Dumas Filho, de Ibsen, de centenas de escritores ainda...

Ou então a literatura que nos balança os sentidos como uma partitura de ópera, a grande orquestra, a ideia levada na pompa do ritmo como um ídolo, a frase arrastada em andor como uma divindade, o período passando como uma procissão ou como um préstito...

Ou a literatura pessoal, toda do artista, e da qual este se serve para abrir as portas e a catedral do seu espírito em que trona o documento humano da sua alma posta a tratos.

E há a literatura que glorifica e escreve os Lusíadas e o Uruguai, há a literatura que anatematiza e escreve a Divina Comédia.

Ora, como se há-de chamar literatura àquilo que nada quer dizer, àquilo que nada exprime, àquilo que nada, absolutamente nada, pretende manifestar?

E Edmundo, a face encostada às vidraças, olhando distraído o poente do sol, que morria numa agonia tremenda, encharcando o céu de sangue e labaredas, rolava finamente todos aqueles pensares de crítica, sem trabalho nenhum de indução, deixando falar dentro em si a sua opinião, ouvindo-se a si próprio, não se responsabilizando muito pelo seu raciocínio mas esforçando-se quanto possível por torná-lo claro ao seu tacto espiritual, descrevendo-se as suas impressões, como frente a uma grande paisagem toda retocada de sol, sob os altos céus claros...

... Os homens debatiam-se em dolorosos choques pela vida, pela ambição, a fortuna ou a glória, e o solitário pensador, escrevendo, trabalhando, fixa-lhes o destino. É ele que acorda neles os sentimentos procriadores das ideias pelas quais vivem, e que logo se esforçam por transformar em realidades sociais.

É ele que, formulando os seus ideais obstinados, arrasta à acção as grandes reparações da equidade e da verdade. É ele que os encanta com a esperança juvenil, cujo apelo embriagador os conduz cheios de fé para a batalha da vida. É ele que os consola, os anima; e, curando-lhe a ferida, encaminha o vencido de hoje para a vitória de amanhã. Abre os corações, penetra as amarguras da vida, «revela o homem ao homem» e verdadeiramente o cria com a sua consciência e a sua vontade.

O artista é o maior perdulário de emoções. Como o pelicano, rasga o peito para saciar os que têm sede.

Com eles se aprende a desculpar os vícios, com eles se compartilha a comiseração pelos que padecem, são eles que nos dizem haver crianças famintas e velhos que mendigam. São eles os primeiros a chorar, os primeiros a implorar...

... Cristo não partiu para a mansão celestial sem deixar os apóstolos como escriturários do Evangelho...

São os artistas que levam o viático da esperança aos desesperados, e toda a força material da humanidade, toda a avalanche imensa dos sentimentos, toda essa leva infinita, é arrastada simultaneamente pelo pensamento dos pensadores... Se Deus é um espírito, porque não será o espírito a essência do próprio Deus?

O mundo, as raças, toda a engrenagem terrível complicada, fatal, da humanidade, desde Moisés a Mirabeau, desde Buda a Cristo, desde Alexandre a Napoleão, desde Arquimedes ao infante D. Henrique, e desde Virgílio, Demóstenes, Catão, Santo Agostinho, até Dante, Petrarca, Camões, essa enorme roda de leme, que revolteia há cem séculos, tem por timoneiro o pensamento supremo, a vontade divinamente sugestionadora dos seres predestinados! Uns nascem para alumiar o futuro, outros surgem para glorificar ou anatematizar o passado.

E quanto maior é a distância que nos separa desses vultos glorificados, mais a sua forma humana se perde numa sombra vaga, enorme, que tem qualquer coisa de sobrenatural.

Quando melhor se avalia a luz do sol é quando o astro refulgente se perde no horizonte, deixando o céu às escuras.

Ah!, sim, a arte, a grande arte, participava de um poder incrivelmente celeste.

O impalpável, o etéreo da espiritualidade ficava vagando no mundo, enquanto os homens, geração sobre geração,, acabavam.

Um poeta, num arroubo, desfere na lira os cânticos da Eneida, entoa alto a glorificação de um século que se julgou infinito. Um império era senhor desses cem anos, enchia-os com o resplendor das suas glórias, e esse império omnipotente morre, as religiões falecem, as raças extinguem-se, os monumentos vêem a terra, e esse poeta, dois mil anos depois, reergue com seus versos esse império enorme, levanta de novo os templos, faz surgir um povo, e o mistério divino e dogmático do dia do juízo final, em que os mortos devem levantar-se das tumbas, ei-lo antecipadamente realizado.

A trombeta do arcanjo soa triunfal em cada estrofe, os céus trovejam em cada anátema, os coros paradisíacos plangem em cada bênção, os versos acompanham préstitos de triunfos, rutilam clarões em cada glória cantada!

E Edmundo atirava toda a sua vista para o passado, balbuciando palavras incoerentes...

Para se firmar todo o divinal da arte é preciso perder o olhar no passado, sim...

É de lá que vem o exemplo, a luz, o irradiamento.

O sol sempre nasce no Oriente! Para trás são as lembranças, as recordações, a vida! O futuro é a morte presumível a todos os instantes.

Para ter toda a impressão da grande e imperecível fortaleza da arte são precisos séculos a arrebatá-la ao vento de todos os destinos. É o tempo que faz do homem um Deus. Assim Cristo, crucificado a mil e oitocentos anos, transfigurou-se. A humanidade injuriou-o, hoje adora-o. Uns que morreram de fome têm hoje túmulos sumptuosos como basílicas.

... E deixando cair a vista para a sua geração, Edmundo pasmava absorto, sentindo a queda imensa que dera, descendo à leitura dessa revista de doidos, desse jornal de «arte nova», em que ele percebia claramente o definhante requinte da exploração das impotências, esse truque da decadência na vitalidade intelectual do homem de letras, esse recurso improvisado, essa tábua de salvação dos que querem a todo o transe, e que usavam para isso arrevesadas terminologias, uma falsa prova polvilhada de um preciosíssimo ridículo, um embuste para atravessar os olhos de quem os lê...

Fabricar arte como fabricar ouro é uma utopia...

A palavra era apenas um sinal, signum, symbolum...

As retortas dos aliquimistas tiveram a importância que hoje muitos queriam vencer reduzindo sinais em alma...

A arte exprimia-se, sem dúvida, pela mesma razão que a luz alumiava, mas não era com certeza da palavra, ser morto e inconsciente, que se podia fabricar, compor, a essência toda espiritual do sentimento artístico... A arte é feita de pensamentos. A literatura de palavras estava inteira no dicionário. Era uma compilação desorganizada e por conseguinte sem préstimo.

Às vezes, um amigo queria-o convencer de que toda aquela gente tinha talento, mas Edmundo respondia sempre que ninca vira mulher de olhos lindos que deles não fizesse um bom emprego; e assim também não lhe constava que um leão se sustentasse de moscas e pernilongos...

O talento devora, não é parco como uma figura de pedra que nada absorve.

E ficava com as suas ideias, enfronhado no seu desprezo por aquela geração que vinha surgindo, larvada, com o cérebro em decomposição, sem forças e sem alma, rebentando para a emoção com alucinações doidas e disformes!

Era a grande nevrose, a doença que vai desbaratando a humanidade, sugando-lhe o sangue, espesinhando-a num tripúdio infernal para o aniquilamento, para a cova.

A impotência, a esterilidade, a loucura, iam removendo o mundo à tumba, vagarosamente, em segredo.

Aqui mesmo em nosso meio, o sangue degenerado foi injectado numa dosagem completa de Pravaz, e de todo esse enorme cruzamento de raças, dessa procriação sob o sol candente dos trópicos, as nevroses rebentaram, como flores dos cálices, ao calor...

Por toda a parte rugem religiões, praguejando contra o Deus que foi inventado para os bons e não pode servir por isso para os maus. Bocas escanceladas cuspiam injúrias contra as potestades, a quem as gerações passadas erigiram altares, e é tal a degenerescência no homem, que ele abocanhava os irmãos na guerra civil, tomado de fome horrenda de Ugulino.

A geração de que saímos arcabuzou-se familiarmente aos quatro cantos de seus domínios.

De 1831 a 1843, o Brasil andou a dilacerar-se com as próprias unhas, desde a Laguna ao Maranhão; Portugal era trilhado pelas rodas das carretas de artilharia, forças guindavam carcaças a cada esquina do Porto e de Lisboa; o leão de Espanha mordia a cauda e esgaçava as unhas no brasão elísio dos Bourbons; a França resplandecia sob os últimos clarões da guerra heróica e corria para 1870, tropeçando a cada passo, ferindo-se a cada queda, como uma ébria que se não tem de pé.

A África trazia-nos o seu sangue em fermento, mas a raça negra algemada, feita escrava, degenerou-se no sofrimento. Vingou-se assim dos brancos, dando-lhe, quando livre, um sangue terrivelmente mau, em que escorria ódio, cobardia e perversidade

O vício coleia, enganando as almas...

Diz Monin que é tudo uma manada de doidos!

Os melancólicos, a grande geração saída dos flancos de 1830, mórbida, sentimental, surgindo ao fim da gloriosa sangueira do Império, derramando-se no mundo como uma praga, perseguida pelos lamentos de Musset, e as tiradas tristemente líricas de Lamartine, doidos varridos... A melancolia uma loucura, a ambição uma loucura, a paixão-loucura, pessimismo loucura, todo o homem carregando o fardo de uma mania, apto para entrar os portais de um hospício.

É a corja dos nevrotados!... E tudo isso nasce do sangue como o menúfar do lodo.

Desde Roma, desde as épocas heroicas e bárbaras da matança, em que os homens nasciam, cresciam, viviam para dar a morte, pelo mundo antigo inteiro, o sangue gerou a nevrose como uma peste.

Os músculos iam a pouco e pouco encurtando o tamanho e o peso dos gládios, das lanças, das marretas, dos montantes. Um romano do império não sopesa já o espadagão das dinastias reais. O sangue vai ficando gota a gota pelos campos da batalha, e do tropel feroz e carniceiro, que sai a conquistar o mundo, entra em Roma uma procissão que entoa hinos a Heliogabalo e incensa Tibério.

É a herança latina.

O vício requintou-se, os temperamentos definharam-se, os homens e as mulheres sofrem de alienação mental!

Então do extremo do Ocidente, de entre as estepes nevadas e os mujiques bárbaros, um homem de grandes barbas levanta, brada e exorta os homens a que se exterminem da terra, sacudam de si a vida negando-lhe a sua prole...

Morrera a esperança.

Os mosteiros fecharam as portas, as comunidades e congregações religiosas extinguiram-se, e os nevro- mentais carregaram a cogula do pessimismo, espalharam os livros de reza da sua religião infernal.

50Os homens atiram-se à cara toda a verdade imunda a que se reduzem, outros, toda a corte dos desequilibrados, evacua pesadelos de maníacos e mentecaptos, numa disenteria provocada a purgantes e a clisteres de novas sensações.

Sobre toda essa desorganização, as leis imutáveis dos homens continuam a governar, e guilhotina-se um assassino com a consciência de que se está a decapitar um doente, um ser fatalmente nascido para o crime, de um pai bêbedo e de uma mãe epiléptica.

E a justiça, «instituição mais desagradante da sociedade», lava as mãos em sangue de inocente, quando essas mãos de harpia deviam ter aberto ao monstro irresponsável um asilo de alienados. E são assim centenas de cabeças caídas na guilhotina, e centenas de vidas extintas nas prisões e nos desterros, em nome de uma responsabilidade falsa, criminosa e indolente, que aos olhos de Edmundo fazia ver um juiz igual a um Papavoine ou um Timóteo capaz como homem de actos semelhantes aos desses aberrados, investido indignamente das vestes de Pilatos, mandando esquartejar um homem em nome da Justiça como quem manda abater uma rês no matadouro, para saciar a sociedade, hipócrita, vil, nojenta e mentirosa...

Sob o ponto de vista social, havia crimes, teorias de cinco séculos atrás, mas para a filosofia já não existiam crimes nem virtudes. Todos volitam em torno a factos de uma certa ordem regidos por certas leis, eis tudo... Mas a sociedade não se pode passar dessa teoria do Bem e do Mal que o espírito reputa como falsa, como uma convenção pueril, raras vezes útil como prevenção.

Para os magistrados, como para o vulgo, a loucura só é acreditada quando se manifesta como a raiva nos cachorros. Que um indivíduo ofereça uma completa ausência de senso ético, uma perversão profunda dos afectos ou uma inversão dos instintos, que apresente um alheamento de expressão aos sentimentos que o deviam determinar, que seja um assimétrico e um prognata, que seja o rebento de uma família condenada pela germinação constante de psicopatias multiformes, tudo isso é secundário e sem valimento. Desde que fala como os outros, não esteja louco de voz e não tenha delírios na vista, e não use camisa de força; o magistrado terá um frio sorriso de cepticismo, nunca o acreditará alienado, e mandará à forca ou à masmorra o delinquente larvado e irresponsável.

Justiça vil, alarve, estúpida e ignorante como um carcereiro ou um carrasco, que ainda chama «a ausência de faculdades morais 'perversidade', os hábitos de intemperança e as anomalias de sexualidade, 'vício', a vaidade mórbida, 'impudor', e a falta de remorso, 'sinismo'!» Debalde se procuraria demonstrar a um chefe ou delegado de polícia, a um juiz, a um jurado, a um promotor público, a toda essa comparseria ridícula desse drama fúnebre da Justiça, que a hereditariedade psicopática, os traumatismos e doenças anteriores, a degenerescência por vias ancestrais, a herança patológica, tudo isso explicam aos olhos da ciência, à observação da psiquiatria.

Debalde enfim se lhes afirma que a loucura moral, compatível com a lucidez de espírito e não excluindo mesmo as manifestações do talento, tem um lugar consagrado entre as formas degenerativas da alienação...

Condenar é julgar o criminoso, um reflectido, e que se podendo salvar com a intervenção da vontade, levou a cabo o seu crime, todo entregue aos seus instintos de malvadez e ódio... Mas isso é a teologia do Santo Ofício, a metafísica dos Autos de Fé, e um delegado de polícia ou um juiz julga-se assim capaz por esse poder miraculoso da vontade de ser um Cristo ou um Catão, Prazini ou S. Gonçalo! Imaterializar a matéria!

A vontade, tal como a concebem ordinariamente, é o pensamento tendendo à acção, e como a matéria, nas suas mais simples manifestações, nos parece inerte, segue-se daí uma certa repugnância em conceber uma matéria dotada de vontade. Mas essa repugnância tende unicamente a que só liguemos o pensamento aos corpos brutos; porque sabemos bem que os animais dispõem de vontade e não estamos contudo convencidos de que eles tenham uma alma imaterial, e estamos até persuadidos que os animais inferiores, os sapos, os vermes, a não poderia possuir. Se considerássemos bem o que se passa em nós veríamos que, em muitas circunstâncias, a vontade submete-se de tal forma às leis da matéria, que é bem difícil deixar de a atribuir a uma substância toda material, que ela é em definitivo.

Como pretender pois que a vontade seja uma dominante no espírito do homem, quando ela é apenas uma função toda dependente das moléculas ideais, das fibras sensíveis e musculares?

Não, a justiça, como a sociedade, não admitem a loucura moral compatível com a lucidez de espírito, porque a justiça foi criada para castigar e não para remediar.

Edmundo, pensando assim, tinha um instintivo horror e medo ao mundo. Largado da família e por isso arredado dela pelos laços afectivos que ainda o poderiam ter preso à sociedade, criara-se em doutrinas todas eivadas em livros de filosofia e psicologia, em que ele descobrira razões palpáveis de ser, a que se prendera espiritualmente por inteiro, comovido pela misericórdia e piedade das suas teorias, que tudo explicam, que tudo lamentam.

Palpara o lado humano da ciência e todo o seu grande instinto de bondade e perdão se refulgira na fortaleza imaculada das suas leis sagradas. E o que mais o fascinava é que toda essa grande luz se refundia na simplicidade toda divina das máximas de Cristo, esse adivinho sobrenatural, em cujos lábios brotara como a génese da psicologia, patologia...

E assim se isolava a mais e mais das coisas exteriores e do contacto dos homens, isolado, invadido por uma lenta e precoce indiferença moral assustadora.

Sentia um grande vácuo no seu círculo de vida.

Longe da mãe, da família, sentia uma grande precisão de amar, de gastar o coração. Por isso as suas amizades eram sinceras e extremadas.

Vindo para o Rio, o seu único amigo, a quem ele tratava como irmão, até esse, depois de umas cartas escritas após outras, no primeiro mês, deixara a pena em paz, e as saudades, por falta de tinta, acabaram. Sentia-se quase isolado, vivendo sempre rodeado de gente que o não compreendia, e que o tinha levado a trabalhar em escritórios, das sete da manhã às oito da noite, a ponto de ter que sair uma manhã do Rio, ao fundo de um vagão, o peito abalado de tosse, magro, os olhos afundados, mais triste do que nunca, desfigurado, um lenço enrolado ao pescoço, as mãos escondidas nas dobras do couvrepieds, despachado para Minas, precipitadamente, por ordem dos médicos...

Deixara-se ir, indiferente, sem apego a alguém, um amigo íntimo ou uma amante, o coração batendo um pouco mais desordenadamente à lembrança da mãe, tão longe, tão longe dele... E mais nada...

Três anos de aprendizagem da dor atulhavam-lhe o espírito, acabrunhavam-no. Lembrar um dia triste, os outros todos, negramente, surgiam... Ele pouco caso fazia desse grande tesouro de amargosa experiência da vida... Deixava apodrecer toda aquela imundície de desgraça e passava sempre arredado dela, de olhos fechados...

A sua vida de coração era um viver intermitente de saudades por um irmãozito louro como um anjo e pela mãe, que ele revia a bordo de uma lancha, de preto, com o véu levantado para enxugar as lágrimas, acenar-lhe desesperadamente com o lenço ensopado, estirar-lhe os braços trémulos na despedida, e fugir para longe, arrastada na lancha, perder-se entre os navios, desaparecer...

Havia uns nomes de mulher na sua vida, mas nenhuma o preocupara mais do que o tempo preciso para chegar à conclusão penosa de que era impossível chegar a amá-la de verdade... O hábito, o vício da carne que ganha intimidades, que se afeiçoa, prendera-o já a uma cama vinte dias, mas os seus nervos afinados revoltaram-se contra o uso material que faziam deles; os beijos começavam então a amolecer a boca dos dois, nas carícias eram mais os espreguiçamentos que os abraços..., havia bocejos nas conversas, antes de soprar à luz, e o coração, como sempre, continuava a sua lenta agonia de preso esfomeado a quem não deitam uma côdea de pão.

Desesperava-se porque a todas ele procurava insistentemente amar... Queria adorar-lhes o sorriso, os olhos, prendera-se a elas por um grande sentimento de paixão, mas, distante, não era esse olhar nem o sorriso nem a criatura, que lhe acudiam ao pensamento, era a facilidade do desejo já acostumado a morrer naquele corpo, e vinha a horas certas ter com a mulher, como o cachorro que, largado longe, vem de noite dormir nas palhas da casota.

Houvera uma loura, uma nervosa, de olhos azuis e pálida, a quem ele beijara por longo tempo o ouro dos cabelos, no regaço da qual chegara a chorar, mas, ai dele!, dessa, por quem fizera as mais desordenadas loucuras, só lhe restavam em lembrança uns insultos baixos de mulher de rua que ouvira soltar aquela boca tantas vezes fervorosamente beijada, por essa voz doce e cantante, tantas vezes ouvida em êxtases, alta noite, depois do chá, acompanhada ao piano numa melodia triste de Gounod ou numa barcarola de Tosti.

Só era só... O seu nome trazia-lhe o nojo daquela enfiada de palavrões, soltos na cara de uma companheira, no alto da escada, no patamar, pálida, de beiços brancos, desfeita, em peignoir e pantufas, os olhos ardidos de raiva entre as olheiras de uma noite de amor...

Nunca tivera nos braços uma mulher simples e amorosa, que lhe soubesse enlear o coração, tomar conta de si inteiro, fazê-lo sofrer, embora, mas que arrancasse dessa mortal e terrível indiferença sensacional que o definhava, o deixava morrer sem quase sentir, o obrigava a ver o mundo pelo seu lado apático e insensível, sem um apego de alma, sem uma afinidade para com outro espírito.

Tinham-no feito sofrer desde criança, e sensível como era sofria horrivelmente, como um hangora de raça a quem abandonaram a uma esquina de rua entre dois gatos magros de telhado.

Sentia-se sem família, e a primeira vez que experimentara o coração humano achou-o mau, perverso, ardiloso como visco...

O indiferentismo levara-o a esta teoria confusa:

a alma é a consciência do bem que cada um traz em si, ressalvando certas determinantes hereditárias que a enublaram. Através desse sentimento beato vê-se Deus, origem, do bem, encarnação ingénua da bondade...

Não se inquietava por isso com a sua alma imortal, mesmo porque não a acreditava imaterial. Trazia-a na consciência, no discernimento.

Era uma utopia cómoda. Crenças não as tinha, bem suas e bem definidas; dava esse trabalho à consciência-alma. Deus, a seu ver, não passava de ser a palpitação desse novo aparelho de seu invento: a alma-consciência. Ela muitas vezes fazia más obras, mas Deus também fazia maus homens: esse Deus dos outros.

A sua abstracção apática não lhe deixava sequer coordenar esses pensamentos desatados. Eram como que um colar de contas de coral a que se partiu o fio.

Assim, para ele, poeta, a mais bela poesia que o mundo desabrochou era o nascimento de Jesus: uma nuvem que se desfaz, um coro de anjos que desce num fremir de asas, um lírio que sucumbe e um Deus que nascei...

O poema mais grandioso, a Bíblia, o poema dos Deuses; depois Shakespeare, o poema dos homens.

A Bíblia era o S. Miguel Arcanjo do génio, Shakespeare o Lúcifer de lá arremessado, ainda com asas nas costas.

Todo o seu mundo imaginativo era assim fantástico e nevoento. Não apreendia as razões e as sínteses, admirava em contemplação as fórmulas.

O seu talento era uma águia com vertigens; abria a envergadura possante, espadanava os ares e abatia.

Em terra, tremendo, tiritando, a braços com o abandono, naquele marasmo de coração em que vivia, pensava na mulher, no amor, relembrando a frase de Tocqueville: «La grande maladie de 1'âme c'est le froid.»

No seu pobre corpo, a doença tinha escrito em mágoas e dor toda uma história negra de nevrose, acirrada por aquelas alternativas violentas que lhe entrecortavam a vida de gozos e sofrimentos.

A sua individualidade afectiva andava desorganizada como tudo o mais, e se o carácter é o conjuncto de reacções morais que abastecem comummente a sensibilidade e a vontade de cada um, essa fórmula era um desarrazoado nele, porque o egoísmo, o altruísmo, a apatia, a expansão, o pessimismo e o optimismo, tudo isso, num contra-senso, o inundava em marés...

A pobre criança era um produto mórbido e irresponsável de um atavismo nevropata. A sua passividade era apenas o resultado do seu temperamento anémico; era a sujeição à lei científica: «o temperamento linfático ou passivo, o temperamento sanguíneo ou activo».

As excitações nervosas determinavam nele uma enganadora, uma fictícia acitividade cerebral, levada por vezes ao exagero.

Daí esse vício da contemplação, do recolhimento, essas preocupações mentais que o deixavam horas e horas entregue ao «como» e «porquê» das coisas.

À sua grande anemia cerebral devia ele esses fenómenos de êxtases e alucinação, que experimentam no mais subido grau os ascetas e os iluminados, Santas Teresas e os São Bernardos.

E se o medo, o terror excessivo, uma angústia suprema e repentina, podem fazer parar o coração, cortar a respiração, encanecer de súbito os cabelos; quando se vê mesmo o sofrimento moral fazer a cama aos cancros e aos aneurismas, o ciúme causar a icterícia, compreende-se bem como as paixões de qualquer espécie podem fazer surgir a histeria em constituições já mórdidas pelo estigma ancestral da hereditariedade nervosa.

Dizia Thomaz d'Aquino ser a cólera uma doença aguda, violenta e imperiosa da alma. O amor tem a mesma génese do furor. 0 amor é o furor da meiguice.

E essa irritação sentimental, quer seja ódio ou paixão, é o mais cruel veneno que se pode dar a beber aos nevromentais.

Ele tinha razão para odiar, e isso confrangia-o.

Edmundo, com todas as mazelas que faziam dele um escanzelo, era igual aos outros, vivia na sua geração, era digno dela a todos os respeitos. Assim doente, esse degenerado, esses vinte anos em desequilíbrio, eram tão poeticamente românticos como o «Octave» da Confession d'un Enfant du Siècle.

Se tivesse nascido na família dos Césares, haveria talvez mais um monstro na dinastia, luxurioso e passivo como Heliogabalo, compassivo e indolente como Constantino; se a Idade Média o tivesse gerado, iria às Cruzadas em voto de amor, e de volta arremessaria aos pés da noiva o montante ensopado no sangue infiel; e talvez como o pajem de Maria Stuart, por uma rainha ele morresse no cepo, sorrindo e exclamando ao ver luzir a machada do carrasco que ia decepar a sua infantil cabeça de cabelos louros: «Cruel Senhora!» Tudo nele: a timidez, a submissão, o igualavam a esse pajem timorato, apaixonado, mudo, dormindo dedebaixo da cama da majestade Maria, que o mandava dormir no leito horrível do cadafalso, tendo por cabeceira o cepo e por carícia o gume dum machado, quando ela foi dormir no mesmo leito e encostou a sua real cabeça na mesma travesseira, mostrando o pescoço de cisne ao mesmo beijo amoroso da acha.

Edmundo vinha dessa geração que cantara os versos de Musset e Lamartine, dessa geração nascida e criada na guerra de 1839, e tinha fatalmente que ser assim.

O nervosismo e a histeria cresceram na revolução, numa atmosfera de sangue; o romantismo viera plantar o seu loureiro verde na angústia das almas, e após haverem desfeito no céu os nevoeiros da arcabuzaria, os homens esconderam a face arrepiada no regaço das mulheres e amaram.

As perturbações mentais trouxeram a anemia do cérebro, e daí a geração que surgia desses casais nevrotados e sentimentais, a geração desequilibrada, vindo ao mundo numa grande apatia física e moral, uma exageração de sensibilidade -- toda a fatal consequência da degenerescência.

Edmundo tinha assim os seus vinte e dois anos.

Se o herói de Alfredo de Musset era o rebento da cegueira triunfal e gloriosa do Império, este era o resultado da regência fatídica do padre Feijó. Seus pais tinham estremecido ao bombardeio da Laguna e tinham respirado a carnificina de Caçapava.

Por isso o Rio Grande oferecerá para todo o sempre um contingente enorme à guerra, toda uma geração predestinada, que morre sob as descargas de fuzilaria, sem um gemido, sem uma queixa.

Todo o problema de patologia mental que oferecia Edmundo tinha a sua solução no estudo das influências hereditárias que activaram na sua constituição...

Do seu recolhimento de meio-monge, na sua concentração de meio-frade, crescera um grande espírito de análise e como consequência o seu desesperante desprezo por todos e por tudo.

A humanidade fora-lhe adversa. Conservava no mais profundo do seu íntimo um instinto dela como um pobre cão que leva pedrada e foge dos homens...

A noite tinha caído, fechando a sua grande pálpebra lutuosa sobre a órbita infinita dos céus.

Não corria nem uma aragem. Um quarto minguante muito branco boiava nas alturas como uma catraia no mar tranquilo. As mangueiras do jardim ramalhavam quase em silêncio. Em frente à casa, do outro lado da rua, a serra crescia, enorme, corcoveando até à Tijuca, toda coberta de frondes e de palmas, e àquela noite, a luz dos astros mergulhava nas florestas que dormiam, devassava a meio abismos por onde corria água, que reluzia às estrelas.

Naquela semana de febre, atirado ao fundo da cama, cheio de suores frios, Edmundo passara em revista todo o último ano da sua vida, desde que tivera a triste ideia de ir buscar na literatura um modo de vida, que lhe trouxesse uns ganhos para somar à pequena mesada que recebia da mãe, e assim mais desafogado poder formar-se, levar a cabo esse sonho doirado da pobre senhora, que se sacrificava pelo seu filho estremecido, o mais amado dos dois...

Primeiro, tudo tinha sido flores... A grande recepção que lhe fizeram, ele lembrava-se bem! Quinze dias de jantares, de convites, de elogios, e logo dois ou três amigos conquistados pelo seu grande olhar bom e inteligente...

Mas o emprego tornara-se uma dificuldade...

As redacções sem um lugar, as colaborações todas preenchidas... Andara batendo com as suas esperanças por todas as portas de jornal, e encontrara-as abertas para os elogios e palestras, mas inexoravelmente fechadas para o trabalho. Os empenhos, as apresentações, cartas de homens de letras, apadrinhamentos de gente influente da política e da arte, tudo fora inútil...

Imberbe na sua maioridade de poucos dias, com um parecer de criança doentia e triste, ele já se fizera um nome com um livro de versos atirado ao público, uma imprudente confissão de alma, toda rimada pela melancolia, e em que badalavam de quando em quando os sinos de ouro da ambição sob o céu azul-turquesa da fantasia..., páginas de lástimas, todo um plenilúnio de sonho, de onde subia um triste cântico de desejos, como um vagir de récem-nascido, dentro de um cárcere filigranado de ouro.

Nas frases com que lhes receberam os sonetos, vira que tinha, se não amigos, pelo menos grandes simpatias literárias.

E Edmundo guardava religiosamente como relíquias aqueles adjectivos impressos nos grandes jornais, esses mesmos a quem ele mendingara pelo braço dos «grandes nomes» um lugar na redacção.

Quando tinha razões para desesperar um quase nada desta vida tão abominavelmente boa, relia as grandes colunas entrelinhadas onde se falava dele, onde lhe chamavam «artista, um delicioso metrificador de sentimentos», e aquilo contentava-o. O seu amor-próprio sentia-se bem no meio daqueles carinhos, e a sua vaidade, a sua vaidade de infeliz, vinha como uma amante abraçar-se nele, as longas carícias, que o faziam chorar de agradecido...

Ah!, as grandes noites passadas em vigílias, noites debruçadas sobre a mesa, pensando, fazendo versos...

com ele as sabia longas, intermináveis, essas doze horas de trevas, iluminadas por um bico de gás, lívido; levadas essas doze horas de agonia a riscar o papel com alexandrinos em que tropeçava a febre, ou a olhar o céu onde rutilam serenamente os astros, onde coleia alva, como diamante, a rivière celeste da Via-Láctea...! Até que a escuridão envelhece, fica grisalha, tremula, afinal embranquece nas brumas da madrugada, que desce por entre o canto ríspido dos galos...

E era agora, quando menos esperava, quando se sentia doente, que uma carta o convidava a aceitar um lugar de redactor literário num jornal de elevada importância política, estranhando que não o tivesse alegrado aquela boa notícia, através da qual via o empenho de um grande amigo, uma leal e extremada protecção que nunca o esquecera, que nunca o abandonara.

Agora, que pensava em ir rever a mãe, entregavam-Ihe aquele sonho dourado de dez meses atrás, que o obrigara a pedir empenhos e a contar a directores de jornal uma outra contrariedade da vida, com tintas severas, numa infantilidade pouco afeita a ser pedinte, sofrendo uma luta constante dentro em si, o amor-próprio acabrunhado, a sua vaidade de infeliz dobrando a espinha, a necessidade e o desejo balbuciando súplicas, o dinheiro a acabar, e o futuro abrindo na sua frente uma grande goela cheia de trevas e preocupações.

Deveria partir ou ficar sofrendo aquela alternativa da sorte? Decidiu enfim que aceitaria aqueles 400 mil réis que lhe ofereciam por mês, com um laivo de medo a aconselhá-lo intimamente que se fosse dali, que deixasse tudo, esperanças, ambições, que partisse para a beira da mãe, viver na tranquilidade, no sossego, no acalento daquele amor de que toda a sua alma andava precisando...

Vencera essa voz íntima, pensando que sempre seria tempo de ir embora...

Mas depois, a sangue frio, arrependera-se, mas já tarde...

O meio em que ia passar a viver era perigoso, ingrato, desleal, astuto, hipócrita, egoísta, invejoso...

Conhecia-o de esguelha. De casa dos bons vira e soubera dos maus...

E a essa ideia, que o atemorizava, soltou um grande suspiro, deixando cair as mãos.

A sua vista mergulhava fundo no meio literário, e arrepiava-o a lembranva de umas caras conhecidas, macilentas, deterioradas pelo vício pobre e pela necessidade, uns rotos sem botões no paletó... E o formigueiro dos novos, dos que lutam pelo nome e pelo emprego, sem arma escolhida, a primeira de que lançam mão; e a vida escondida de alguns jornais, em que os repórteres, sem terem jantado, dormem sobre as mesas das redacções ou numa cama de gazetas! Já vira aquilo, uma noite em que fora rever uns versos a uma redacção...

Eram segundas provas, só tarde. E fora para ver um rapaz magro dormir, a cabeça encostada a um dicionário...

e até lhe parecera que o infeliz tinha febre... Transpirava, e fazia contudo muito frio nessa noite de aguaceiro, em Agosto. Nada o cobria, e as fontes latejavam-lhe...

Reviu os versos a custo, achando-os mentirosos, com um ar feliz, descuidcso, alegre, que lhe repugnava agora ante aquela desgraça...

Conhecera meses atrás naquele mesmo rapaz aquela mesma roupa, mas nova... Os sapatos quase não tinham mais sola nem tacão...

Balbuciou-lhe o nome entre os dentes, abanou a cabeça...

Um leve sorriso de tristeza franziu-lhe os beiços.

Veio até à varanda, olhou longamente os montes, as mangueiras do jardim ramalhado no escuro, os altos céus cravejados de astros entre os quais a lua subia sempre, na sua novena de luz, monja pálida na nave obscura do firmamento, onde só as lâmpadas dos astros fulgem aos pés de Deus.

Acendeu um cigarro, tirou duas fumaças, tossindo.

«Esta tosse!...», e fechou bruscamente as janelas, subiu a gola do paletó, aconchegou as mãos ao peito, no meio do quarto, de pé, com um grande suspiro.

Depois veio sentar-se à mesa, falando só, discutindo consigo mesmo todo esse grande e quase ignorado meio literário onde ia entrar com os seus vinte anos ingénuos, simples e tímidos.

Artistas, bem honestos na sua arte, conhecia poucos...

Os nomes feitos, uns a poder de talento -- dois ? três ? --, outros de elogio, viviam retirados, ocupando altos lugares em secretarias ou fruindo postos cedidos por governos a quem foi fácil agredir de empenhos.

De resto, tirando uns dois directores de jornal -- Ferreira de Araújo e José do Patrocínio --, contavam-se a dedo os jornalistas e homens de letras. Destes últimos apenas se salvavam pelo seu sério Machado de Assis, Olavo Bilac, Coelho Neto, Aluísio de Azevedo, Luís Murat, Vítor Silva, Adolfo Caminha, alguns espíritos de crítica, sensatos... O resto era de uma banalidade pasmosa de vila de província. A rapaziada invadia tudo, dando-se ares, possuída de si, rilhando as reputações, vivendo da intriga e da calúnia...

O grande versificador das «Aleluias», agora refugiado em Minas, na desolação de uma secretaria de Estado, conhecera-o Edmundo numa casa de ferragens, junto ao Mercado, velho e fatigado, tolerado por uns comerciantes que lhe davam de jantar; e essa cabeça encanecida, que devia suportar os louros, vergava-se sob as graças dos alarves e as frases amigas dos ignorantes que vendiam panelas de ferro e tachos...

Oh!, toda a imensa agonia que ele tivera ocasião de ler naqueles olhos mortos, sempre distantes, desiludidos, que pareciam chorar sobre os ouropéis dos alexandrinos, que cantara em outros tempos o seu possante espírito de eleito!...

Esse sim, que era grande, no frio e ingrato esquecimento em que o largaram, longe de todas as suas glórias tão depressa fenecidas, como toques vibrantes e triunfais de clarins, que só duram o tempo em que há fôlego nos peitos que os sopram.

Os jornais eram invadidos por um exotismo com foros de arte, formas deturpadas, uma literatura com ossos desengonçados, um polichinelismo de ideias catadas por sede de nomeada, uma literatura decadente numa terra ainda sem literatura, um chinesismo na prosa, na poesia, a alma esquecida pelo termo difícil, uma arte de ignorantes que tem horror aos clássicos... E essa boémia sem pão, sem família, com colarinhos de borracha e roupa suja, propunha escolas, queria dar-se ao sério, falando em Papus e Pelladan, sonhando com Baudelaire depois das bebedeiras, debaixo das mesas de casas de iscas. Uma garotada de assobio que malandra às portas do Londres e Café do Rio, cubiçosa, imprestável, sempre de dentes à mostra... Quanta doença a precisar de cura, quanta calúnia a precisar chicote, quanto vagabundo a precisar trabalho!...

E Edmundo começava então a compreender o eterno ar sarcástico de Bilac, o seu rolar de olhos estrábicos e encolher de ombros, quando se lhe falava em arte, a ele, que era um artista...

Levantou-se da mesa, tossindo mais forte, e pôs-se a cruzar o quarto em largos passos, rilhando entre dentes: «Ah!, sim, a literatura, a literatura...» E pensava nos novos, de leve, com medo de ferir-se, e bocejava, com o seu sorriso doente: «Os novos! Ah!, os novos!...»

Mas logo uma grande simpatia o invadiu. Havia nomes que aconchegava com amor e respeito ao coração.

As suas predilecções literárias abriram ante ele as suas páginas, e como o seu fundo ingénuo e simples não lhe notava defeitos, entregava-lhes inteira, sem reservas, a sua admiração, com uma falta de critério perdoável aos seus vinte e um anos entusiastas e bons, a quem a desgraça dera, é verdade, um amargo travo, que se traduzia em antipatias sem razão, à toa, e ódios profundos, raivas surdas, mas que, apesar de tudo, à parte esta ração de bilis, era de uma dedicação bondosa e sincera, leal como uma espada...

Dentre todos os seus escritores favoritos Stendhal era o mais querido, o mais amorosamente lido. Quase todas as noites passava pelos olhos, com uma paixão na vista, algumas páginas do mestre, e conhecia-lhe bem a vida, as suas campanhas de Itália nos exércitos de Napoleão, os dias de Marengo, as noites do acampamento, e depois ainda os dias de sol na bela Itália conquistada, dias azuis, terras verdes, todas perfumadas de larangeiras e cidreiras, tapetadas de vinhas louras, e as noites de amor, as noites de conquista do soldado, com uma caseira de granja ou uma pastora de ovelhas, de seios lindos e quadris fartos...

Tinha-o como a um mestre espiritual, capaz de lhe reformar sentimentos, pensares, carácter e temperamento. Estudava-o com a minúcia de um relojoeiro que procura o grão de areia no maquinismo de um relógio, e era o único autor a quem ficara fiel.

Dantes, meses atrás, tivera um fervor pela obra de Dostoievski, mas uma tarde, na varanda, depois de um cigarro, fechara o Crime e Castigo na sua última página, para nunca mais. Esse russo abominável enchia-lhe as noites de alucinações e fazia-o chorar a todo instante.

Doente, detestava os novos, os desequilibrados, os decadentes...

Tinha ânsia de vida, sede de fazer arte sã, triste embora, em paridade com o seu temperamento, mas uma arte honesta, bem-amada, séria.

Fisicamente doente e moralmente desorganizado, tentava pôr em ordem os seus mais profundos e pessoais sentimentos, a inquebrantabilidade de orgulho, a firmeza de carácter, a rectidão em todas as suas obras, a consciência em todos os seus actos, até nos mais ínfimos e vulgares.

Era passivo por timidez, não contradizia senão raramente, e balbuciando, e era muito esse vício de receio que o levava a desprezar a muita gente.

Sujeitava-se a ouvir contradizer as suas convicções, as mais profundas, e a sós pensava com ódio na cobardia que lhe fechara então a boca. Ao fim de tirar todas as conclusões e a prova real às suas crenças, um desdém pelo outro acudia-lhe ao peito, agachava-se nele, a um canto, para todo o sempre.

Às vezes acontecia-lhe rezar, mas não sabia bem as orações. Voltava-se para Deus como se ajoelhasse ante o tempo feliz em que a mãe, juntando-lhe as mãos, o fazia repetir de joelhos, na cama: «Padre-Nosso que estais nos Céus; santificado o Vosso Nome.; venha a nós o Vosso Reino, seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no Céu...»

Sensível e místico, uma noite entrara na igreja do Carmo, no mês de Maria, durante a novena, para chorar à vontade.

Ajoelhado na pedra, escondido na sombra, perto de um altar lateral da grande nave, escondera a cabeça entre as mãos, e esse pobre isolado de alma, sem uma amor no coração, confiara à Virgem toda a sua vida de esperanças, caído em êxtases, enquanto no coro, plagências do órgão, vozes de mulher, cantavam: «Mater castissima, Mater inviolata, Mater intemerata, Mater admirabilis», e num grande soluço a igreja inteira respondia: «Ora pro nobis»...

Tinha um grande e piedoso respeito pelas irmãs de caridade.

Muitas vezes, à tarde, ia vê-las descer a escadaria do hospital, recolhidas, de olhos baixos, as mãos cruzadas aos lábios sussurrando uma eterna oração, vindas de cumprir a sua santa tarefa de misericórdia.

Um dia, à porta de um café, um companheiro reparara com uma frase cínica e velhaca de garoto que a irmã de caridade, que nesse momento passava, cheirava a iodofórmio. Edmundo, furioso, agarrara-lhe no pulso:

«O 'Rogert Jallet' não o trazem elas no lenço, como tu; é na alma...»

E era em tudo assim, apaixonado e irascível, quando amava ou se indignava.

Fraco e doente, tinha sempre consigo o tremendo desespero dos que sofrem sem remédio, e bem no íntimo Edmundo tinha a convicção profunda de que todos, mascarados em hiprocrisia ou couraçados de cinismo, todos sofriam, todos tinham sofrido...

Agora, sozinho, entre as quatro paredes do quarto, antes de se despir para deitar-se, ficava longos minutos a pensar naquela sua vida desnorteada e sem esperanças, enquanto pintava com o pincel do vidro de iodo, no mármore do lavatório, o eterno pensamento que o minava:

«Que será de mim amanhã?»

II

Amanhecera um dia azul, com um sol brando de Junho. Um grande silêncio invadia a rua batida de um sol morno. Nem uma aragem fazia oscilar as franças dos arvoredos ou a folhagem das palmeiras. Na serra, por entre os verdes da mata, um fio de água descia, reluzindo à luz como a artéria de vida no arvoredo enorme e cerrado. Para os lados da Tijuca, uma bruma leve, como um véu de noivado, escondia ainda os cumes dos serros.

Quase em frente, do outro lado da rua, de uma casa cor-de-rosa, de estores corridos, alguém calcava nas teclas de um piano a Marcha Turca de Mozart.

Edmundo, debruçado no peitoril da janela, demorava com muito amor os seus grandes olhos tristes pela serenidade quente do dia.

De longe, a espaços, vinha um ruído seco de bater de roupa na beirada de pedra de um tanque, e uma voz de mulher cantava. A cantiga dizia assim:

Quanto ma is vivo, ma is creio, Que a vida que custa tanto É um barco de recreio Vogando num mar de pranto...

Das mangueiras velhas do jardim, as folhas amarelecidas caíam no saibro, a modos que com suspiros, e Edmundo olhava-as a desprenderem-se das hastes, revoltear agonizantes no ar e vir morrer na terra, com um derradeiro e fraco extertor.

E pensava que as pobrezitas tinham durante meses agasalhado o amor e o sono dos passaritos, tinham vivido dias de temporal e dias de ardentia, sob um sol de fogo, tinham resguardado da chuva e do calor as violetas e os amores-perfeitos, e assim morriam, serenamente, desprendidas da vida, com um só murmúrio, e o primeiro pé de vento as arrastaria para longe, para as águas de um poço ou para um canteiro de roseiras...

A senhora Maria subia as escadas com o café.

-- Bom dia, senhor Edmundo...

-- Bom dia, senhora Maria... Parece triste... Que lhe aconteceu ?

-- Foi o pintassilgo que morreu esta noite, meu senhor...

E a velha enxugou os olhos ao avental.

O pintassilgo era o único amordosseus cinquenta anos.

Ela queria-lhe como a um filho, e conseguira que Edmundo compartilhasse a sua grande afeição pela avezinha.

-- Mas como foi isso, senhora Maria ?

-- Eu não sei, não senhor... Ontem já não cantou todo o santo dia, e à noite deu-lhe assim a modos de um tremor, caiu abaixo do poleiro, ficou agachado, a cabecita entre as asas, a piar... Depois caiu para um lado, o bico fora das grades, as perninhas estendidas... Estava morto, senhor Edmundo, morreu...

-- Pobrezinho!...

-- Eu vou buscá-lo para o senhor o ver, deixe que eu vou... Tome o café que arrefece... Cantava tão bem!

la fazer dois anos no São João que ela o tinha...

-- Tome, tome o café, que eu vou buscá-lo...

Edmundo encheu a xícara, entornou distraidamente duas colheres de açúcar e ficou a pensar no pintassilgo morto, por aquele hábito que lhe adviera de preocupar o vago do espírito com a primeira coisa que encontrava a seu jeito, como as crianças que de tudo arranjam um brinquedo, um entretenimento...

Foi bebendo aos goles o café, lentamente...

A morte daquele passarito, que o acordava havia seis meses com o seu gorjeio alegre, parecia-lhe arrancar de si mais uma alegria, mais um pouco de vida... A sua melancolia apercebia naquela morte a morte da natureza...

As folhas caíam, as flores murchavam, os pássaros morriam, os homens baixavam à cova onde essas folhas tombavam, onde essas flores abriam e murchavam, onde essas aves cantavam; só as estrelas ardiam eternamente no céu como flores perenes...

E o seu pensamento, num misticismo intenso, arrojava-se para Deus como as florestas para o sol.

A pobre velha entrava com os seus amores mortos no avental, o pobre passarinho que morrera como as folhas secas das mangueiras, sem um queixume, sem um ai! Hirto, a cabecita pendente, o corpo endurecido e enregelado, onde estavam agora os seus gorjeios, a sua voz que respondia aos outros pássaros, os seus olhos pequeninos que namoravam as borboletas brancas do jardim?... Pobre avezinha!... A sua vida tinha sido uma eterna clausura, e tinha morrido entre as quatro paredes do seu cárcere de arame num momento, como uma luz que se apaga ao vento... Nunca tinha conhecido a liberdade alegre que dorme entre a folhagem macia de uma madressilva densa, e faz ninho numa magnólia de jardim ou numa laranjeira de pomar... Nunca batera asas na liberdade azul de todos os outros passaritos, nunca voara senão de um poleiro a outro, como um homem que sempre viveu entre a desgraça de ter nascido e a desgraça de não ter logo morrido...

-- E agora, senhora Maria?

-- Vou enterrá-lo no canteiro dos cravos...

-- Compra-se outro que cante bem...

-- Este nunca mais há-de cantar...

-- Não se aflija... Logo ganha amor ao outro, verá...

-- Que esperança! -- suspirou a pobre velha. -- Uma pobre de Cristo toma amor a isto, a um bichinho destes, mas é uma vez na vida... Olhe que amizade, senhor Edmundo, se não merca, nem por muito dinheiro...

Vem por si, nasce assim a modos como nasce uma flor por aí à toa, sem plantio...

-- É verdade, sim, é verdade...

-- É, sim senhor, é verdade!...

E ficava-se alisando-lhe as penas vermelhas do pescoço, estendendo-lhe as asas pretas, cinzentas e amarelas, os olhos rasos.

-- Vamos... Eu ajudo-a...

-- Já?

-- Daqui a pouco cheira mal...

-- Ainda anteontem cantava...

-- A vida é assim mesmo...

-- Jesus!

-- É esta tristeza... O sol faz abrir as rosas e os cravos; deixe ao sol o seu pintassilgo e verá o que ele faz do passarinho morto...

-- Eu vou, senhor Edmundo, eu vou...

E ambos desceram ao jardim. Ela pousou a avezinha na grama, foi à busca de um ferro da cozinha, para revolver a terra, e os dois agachados, enquanto as folhas caíam sem ruído, abriram a cova, funda de dois palmos, na terra fresca, sob a sombra grande das mangueiras.

Ela beijou-lhe a cabecita e pousou-o no fundo da vala, com jeito, medrosa de o machucar... Depois a terra caiu sobre o pequenino trovador morto.

Galos cantavam nas chácaras. O piano de em frente calava-se. O sol subia sem calor.

Edmundo entrou no quarto, vestiu-se, pegou na bengala e no chapéu, e ao sair, como a velha criada chegasse à porta da cozinha:

-- Até logo, senhora Maria, vou trabalhar..., entrei para um jornal...

-- Deus o ajude.

E ficaram os dois a olharem-se, emudecidos.

A voz da lavadeira subiu clara no sossego do meio-dia, acompanhada do cair da água no tanque...

Não fites em mim os olhos Não me dês o teu olhar; Pois ainda não tenho penas, E vais fazer-me penar...

-- E está melhor do peito?

-- Estou bom, aquilo não foi nada.

-- Então até logo, senhor Edmundo...

À porta do Pascoal um amigo chamou-o -- que viesse tomar alguma coisa.

A confeitaria estava quase deserta.

A uma mesa do fundo dois militares falavam tomando grogues.

-- Deu oitocentos contos ao Custódio para abandonar o Saldanha...

-- Impossível! 0 Floriano não descia a esses meios vis...

-- Vil é quem os aceita. Oitocentos contos em ouro, recebeu-os ele em Santa Catarina...

-- E o combate no Rio Grande?

-- Fantasia! Questão de se achegar a Buenos Aires... 0 plano de traição estava concebido, fora traçado pelo marechal...

Depois as vozes baixaram e Edmundo não conseguiu ouvir o resto.

Voltou-se para o companheiro.

-- O que tomas?

--- Eu é que te pergunto...

-- Vermute e fernet.

-- Então entras para o Jornal da Manhã ?

-- Sim, convidaram-me, aceitei.

-- Não ficas lá muito tempo! Um artista acaba sempre por largar, desiludido, o jornalismo... Poetas a fazer notícias...

-- Se fossem eles a redigi-las sempre não se veriam mais adjectivos de facínora a pesar em cima de crianças que são presas por haverem roubado um pão, e não se chamava bêbedo com as três sílabas a um desgraçado que um dia se embriagou porque a mulher lhe tinha morrido nos braços, com vinte anos apenas...

0 outro tinha gestos cínicos, encolhendo os ombros...

A arte é incompatível com esse trabalho material de redacção...

Edmundo olhou-o com um franzir de beiços.

-- Não acredites nisso. Se tu sentes a tua arte como eu a minha, hás-de saber que ela vive cá dentro, na alma, no temperamento... É como um amor... O trabalho não mata as afeições de coração, assim a alma... E depois, se queres que te diga, ser artista é uma coisa bela e grande na vida, mas para quem sente com segurança que o é a valer... Pela minha parte, declino do título, pesa-me muito...

-- Mas os teus versos...

-- Qual! Um rústico pensa como a poesia! Para nós outros, sofistas desdenhosos ou positivistas brutais, um sentimento puro tem proporções logo de obra de arte, tão pouco acostumados estamos a prender os olhos a um ideal e a prender a vida a uma alma!... Tão afastados andamos todos do bom caminho, tão pervertidos estamos pelo materialismo, que nunca mais poderemos achar essa estrada abençoada por onde o simples caminha do berço à cova, a esperança pousada aos pés de Deus, a fé toda confiada aos Céus, o coração todo entregue à serenidade do amor... Sim, eu sei, e vais dizer-me que foram os homens a desviar-nos dessa senda feliz..., que foi a sociedade, essa aranha ardilosa, que nos prendeu jamais na sua teia..., mas mais uma razão para nos julgarmos falsos e desviados da luz...

Artista, eu ? Porque teci uns versos com todas as saudades de um passado inocente e santo! E as trovas da roça, então ? Eles não sabem metrificar; ser artista é ser como eles são, simples e bons... Têm mais sentimentos do que nós, mais puros, mais sadios, têm o coração menos gasto, acreditam ainda, quando nós desesperamos... Sabem amar, sabem sofrer...

E naquelas palavras uma saudade funda passava, escondida... Fora em Minas, quando ele lá estivera doente, num arraial. Uma caipira de olhos grandes, receosa e esquiva como uma onça nova, uns quatorze anos já em flor, com seios que já diziam poder amamentar um filho e tristezas no olhar dizendo já haver ali desejos e paixão: uns quatorze anos chamada Cândida, que o tinham amado com toda a igenuidade da sua alma simples, supersticiosa e beatífica...

E acudiu-lhe um suspiro. Pudesse ele, mesmo sem a amar, levar a vida de olhos mergulhados na febre daqueles olhos negros que o amavam!

Mas o companheiro arrancou-o àquelas lembranças que o tinham distraído, a vista perdida muito ao longe...

-- Já vistes o segundo número da Rio-Revista ?

-- Já, sim.

-- E então ?

-- Tenho medo até de dizer verdades sobre essa gente... São tão discordes da minha maneira de pensar!...

São os mais enleados na terrível teia de aranha... Afinal, digo toda a verdade..., sabes o que é passar perto de um carro quando há lama nas ruas?

-- Não te compreendo...

-- É exactamente o que a mim me acontece...

-- És injusto...

-- Já leste o Rei Lear?

-- De passagem...

-- Pois lê-lhe as passagens de vagar, medita-as; o Rei Lear responde a tudo...

-- Doido como é!

-- E o que vem a ser a humanidade, conforme a tua maneira de encarar as coisas, senão uma grande louca?

«Não está ela sofrendo as consequências da sua vaidade alucinada? Não desprezou ela os seus instintos?

Não se insurgiu contra os ditames de Deus? Eu penso assim, vês tu? A simplicidade dessa gente da roça causa-me inveja... É ela a tribo dos bem-aventurados... dos pobres de espírito, cujo reino é o dos Céus... Pensa um pouco o que será da pátria daqui a uns anos, entregue aos nossos braços de positivistas e de materiais, todos nós que vemos a alma através duma definição de filosofia materialista, incapazes de um belo esforço para o ideal, raça degenerada, carregando com um país virgem que se nos entregou como uma índia nua, a alma embalada de amor e olhos cegos de fantasia... O que será então do Brasil, abandonado a uma geração desequilibrada, com uma literatura perversa e desorientada, sem arte, sem tradições, sem uma grande ambição na vista, sem uma grande temperança no coração? Porque a pátria destes vinte anos somos nós, os cínicos, os egoístas, os falsos, nós todos que ainda não sentimos crescer em nós esse sentimento venerando pela Mãe Augusta, sagrada, divina, por esta pátria em que nós tripudiamos com os nossos egoísmos, que nós não tomamos a sério, para com quem não usamos de respeito, por quem nunca vertemos uma lágrima... É a verdade, é a triste e acabrunhante verdade...

«Para contentar uma vaidade crucifica-se uma província; com respeito fingido a uma lei, por um capricho, por uma vesânia, alimenta-se a guerra do Rio Grande...

Ah!, meu amigo!, quanto precisávamos de uma nova geração, cheia de ideal e de virtude, em quem latejasse forte uma alma, na fronte da qual resplandecesse a fé, a crença e o patriotismo!...

«Perguntas-me se já li a Rio-Revista... É com espíritos desses que tu contas alumiar os Te Deum de glórias da pátria? Com esses círios moribundos, sacudidos por todos os ventos da descrença, da perversidade e do egoísmo? O futuro parece-me um grande funeral...

Parecem luzes acesas para um féreto... Tornava-se preciso rever leis e costumes, jungir a justiça à misericórdia e à humanidade, escrever uma grande bíblia de amor e de bondade... É assim que eu penso... Aos outros é dada a liberdade de pensar de uma outra forma... Já tomastes o licor? Queres mais?

-- Não, obrigado...

-- Então vamos; preciso de almoçar, estou fraco; já hoje trabalhei de coveiro.

-- Como?

-- Sim, enterrei um pintassilgo sob um pé de cravos roxos.

-- Logo vou à redacção dar-te um abraço...

-- Sim, vai, não deixes de ir...

E Edmundo levantou-se, saiu, foi sentar-se no Londres, em cima, a uma mesa fronteira às janelas, sozinha.

Passou deliciosamente aquele almoço, todo entregue a si, apenas interrompido pelo garçon, de vez em quando, que trazia a lista e vinha mudar de prato, ou verter vinho no copo.

Estava ainda todo invadido por aquela saudade de um amor perdido entre serras, longe, um amor de pé descalço e olhos admiráveis.

Lembrava-se de tudo com uma grande tristeza...

As missas, ao domingo, onde ela ia com todos os oiros da mãe, forte e esbelta como uma grega antiga, de pescoço liso, perfeito e branco, e a sua pele divina de qua- torze primaveras crescidas à luz de cento e sessenta luas de roça, entre os acres perfumes das florestas, onde, desde que ela nascera, já quatorze vezes tinham brotado os cachos de oiro dos parasitas nos troncos musgosos das samambaias e das palmeiras... Revia-a de rojo, nova e virgem rente ao altar, respirando de perto o odor do incenso, que o turíbulo fumegava pelos talhos de metal, estremecendo à cantoria arrastada da ladainha, rezando por ele, que só ia à missa para a ver rezar.

Depois eram as noites enluaradas dos cateretés, ouvindo tocar violas e sanfonas e sapatear nos terreiros as cabritas, no meio de cantares ponteados ao violão pelo Salviano, um tropeiro do Amazonas, que trazia amarrados à voz todos os corações daqueles sítios.

Enquanto as verdegais das violas vibravam no terreiro, ao plenilúnio, e as trovas soluçavam os amores de toda essa gente simples, ele, sentado ao lado da Candinha, falava-lhe mentirosamente em esperanças de grandes dias felizes...

Revia-a na despedida, quando viera para o Rio com promessas de voltar, revia-a na janela, estirando os braços que oscilavam como colunas de um tabernáculo prestes a ruir, estirando os braços na chuva que caía lenta, gota a gota, do céu negro, como as lágrimas caíam do céu sempre negro de seus olhos, uma a uma, lentamente.

Embuçado no ponche, enterrara as esporas no animal, roído de remorsos, e desandara num galope, para longe daquela casa onde inconscientemente levara a angústia e o sofrer.

A chuva começara logo a cair com força, desancando os ipes e samambaias das grotas, chicoteando as frondes altas dos arvoredos, que erguiam a cabeça de entre o brenho verde das matas, cerradas como um cabelo de mulher.

A Mantiquira, desgrenhada, gania para o céu, e nas florestas que trepavam as serras, jurubás, perobas e palmeiras torciam-se, as franças balouçando como cabeleiras, as cachoeiras berrando pelos barrancos, rolando troncos, mugindo de encontro às rochas negras.

Os pés tremendo dentro das caçambas, as mãos alagadas e roxas pouco sustendo as rédeas, abandonando o alazão ao seu galope de animal de trato, seguia sempre o caminho rente aos bambuais, perseguido de longe pelo camarada, que enrouquecia a gritar: «Eh! russilho!

Eh! diabo!» Edmundo tremia ao pensar nessas dez léguas cavalgadas num dia, com paradas nas vendas e ranchos do caminho para beber cachaça, essas dez léguas transidas, subindo serras, no escuro do dia tempestuoso, vendo ao longe, para os lados da Divisa, abrirem-se os céus em grandes lençóis de luz e para as bandas de Itatiaia a chuva cair em cordas cerradas, quase negras...

O garçon trazia o bule de chá e a chávena. Serviu-se, pediu a conta, e saiu para a rua, acendendo um cigarro...

«Vou consultar o Julião... Ainda é cedo... ele pode bem ser que precise de dinheiro.»

Julião era um quintanista de Medicina, cearense, pobre, vivendo num sótão de mansarda no Beco da Fidalga.

Nunca Edmundo soube como ele se arranjava a viver na sua penúria, isolado de todos, indo poucas vezes à escola, fazendo os seus estudos de Anatomia 80entre as quatro paredes nuas do seu cubículo, em pedaços de carne compradas ao bedel por cinco mil réis.

Magro, tisnado pelo sol do Norte, meio curvado pelo vício constante do estudo e pelo peso da miséria, Julião não pagava quatro desde que salvara duma angnina a filha do senhorio, uma criança de quatro anos, raquítica e loura, de olhos azuis...

Comia ali mesmo na rua, numa taberna em que entravam catraeiros e carregadores de esquina. Os cem mil réis, mandados todos os meses do Norte, chegavam às suas despesas...

Edmundo conhecera-o um dia, em circunstâncias que nunca mais apartam da lembrança um indivíduo.

Uma noite de chuva, passando no Largo do Paço, Edmundo vê um homem estirado perto de um candeeiro, torcendo-se na lama, os olhos vítreos, rasgando as roupas com as mãos crispadas... Aflito, chamou uma ronda para que se examinasse o desgraçado, a ver se estava ferido. Gente parava em volta, a ver aquela agonia.

Já falavam em transportá-lo para o primeiro posto policial, quando um homem magro chegou, meio corcunda e olhos de esfomeado, ajoelhou na lama perto do homem caído que se babava pelos cantos da boca como um cão danado...

-- Deixem-no, é um epiléptico, isto passa-lhe já...

Algum dos senhores me poderia ajudar a levá-lo aqui perto, à minha casa?

Edmundo oferecera-se, comovido, à vista daquela grande caridade abnegada, que ajoelhava na lama perto de um doente, e o levava para sua casa sem lhe saber sequer o nome...

O ataque fora passageiro mas podia sobrevir um outro mais furioso...

Os dois, um segurando a cabeça e os braços, o outro as pernas, subiram os três andares escuros do Beco da Fidalga, e depuseram o epiléptico num catre, ao fundo do sótão.

Edmundo, ofegante, olhara em volta a pobreza que ia naquela mansarda tomado de assombro... Depois a sua vista tinha parado atemorizada em cima da mesa.

À luz de uma vela espetada num gargalo de garrafa, em cima de um pedaço de mármore, uma velha pedra de lavatório, pousava uma cabeça humana, de mulher, os cabelos cortados, a pele da face arrancada a meio, deixando ver todos os músculos, tecidos e fibras, da testa ao queixo! Em cima da mesa havia um livro, o Tratado de Anatomia Descritiva, de Jamain, e um escalpelo conservava o livro aberto a página 250. Na cadeira, ao lado, havia pinças, bisturis, tesouras e uma garrafa de água acidulada para as dissecações...

Edmundo compreendera... Era um estudante de Medicina..., mas a sua repugnância à vista daquela cabeça decepada largou-o sem forças numa cadeira, os olhos escondidos nas mãos...

-- Cubra-me isso, faz favor...

Julião atirara uma toalha sobre a mesa, e, tímido, pedia desculpa...

Tinham trocado os nomes à cabeceira do epiléptico, apertaram-se as mãos:

-- Edmundo de Sousa, jornalista.

-- Julião Teles, quintanista de Medicina...

E os dois, que a bondade juntara em socorro de um enfermo, separaram-se amigos para nunca mais se esquecerem...

Quando lhe chegara a primeira hemoptise o médico de Edmundo fora Julião, e era vê-lo, dedicado como uma mãe, passando as noites de vigília ao lado do amigo, baixando a voz para falar-lhe, todo apreensivo com aquela tísica renitente, que resistia a todos os esforços...

De então, Edmundo subia muitas vezes os três andares do Beco da Fidalga, para conversar com o estudante, já acostumado a ver rolar em cima das cadeiras o estojo de dissecação, e gotejar no mármore do lavatório um braço alvo ou um coração congestionado.

No silêncio mortuário da rua deserta falavam da mísera vaidade humana, e compreendiam-se bem os dois, sentindo-se irmãos na desgraça, camaradas no sofrimento.

Emprestaram-se mutuamente os livros. Edmundo trazia Spinoza, Kant, Spencer, Stuart Mill, Carlyle, Littré, e levava para casa Legrand du Saulle, Magnan, Echeverria, Charcot, Monin...

Julião cuidava do amigo como de um filho, curvado por uma triste desesperança de o salvar...

Às vezes falava da Suíça, da Itália, Nice, Florença, Pisa, como de um remédio impossível de obter..., e admirava a tranquilidade de Edmundo, a submissão e resignada melancolia com que ouvia falar dos seus pulmões quase desfeitos, inexoravelmente perdidos para sempre...

Uma grande e profunda afeição ligara aquelas duas almas gêmeas na dor...

Nesse dia Julião, constipado, conservara-se na cama lendo Les Spectres d'absorption du sang de Victor Fimouse.

Edmundo entrou, cansado de galgar os três lances de escadas, e parou à porta, espantado.

-- Estás doente ?

-- Não, não, sossega, uma bronquite apenas... O quarto era húmido, frio; tinha-se constipado, estava com tosse...

-- Porque não mudas? Esta rua cheira a crime...

Se eu fosse da polícia mandava escoar as sarjetas, para ver, cavoucar nos quintais, sondar as latrinas e os esgotos... Isto é lúgubre, é nojento...

Julião levantou a cabeça do travesseiro, teve um grande gesto de indiferença.

-- Qual!, para quê fugir daqui ? Deus é quem manda...

Como vivo sozinho, apartado do lixo da sociedade, o destino trouxe-me para o meio do lixo deste quarto...

É a lei do equilíbrio, das compensações... Às vezes acordo de noite com um choro de mulher batida ou uma cantiga de vício tresandando a vinho: é o mundo, penso eu...

-- Acabas por cair doente, e depois, Julião, quem me há-de tratar?

-- Socega, eu mudo..., faço-te a vontade...

-- Eu bem sabia que eras meu amigo...

-- Ouve cá, e o impaludismo?

-- Passou...

-- Toma cuidado...

-- Vinha dizer-te, Julião, que entrei para a redacção do Jornal da Manhã, já não vou para o Rio Grande; tão cedo ao menos...

O outro levantou-se na cama, assombrado.

-- Ficas no Rio?

-- Fico, sim, para te fazer companhia, para te animar, para te ver formado...

-- Ouve, Edmundo... Há quase um ano já que nos conhecemos. Foi à cabeceira de um homem enfermo, que já morreu, que morreu com os nossos nomes na boca... Assisti-lhe aos últimos momentos... É triste ver morrer um homem... Vai-te embora, Edmundo, vai para perto de tua mãe...

-- Assim, tu não me queres ver morrer, Julião?...

-- Não é isso...

-- Ah!, tu és um mau amigo!...

E Edmundo pôs-se a pé, arrancando a mão de entre as mãos dele.

-- És injusto...

-- E tu porque és assim cruel?

-- Não me compreendeste... Precisas de socego, a vida de jornal vai-te cansar... Mas tu queres, seja assim, não te contradigo, sê feliz... Começas hoje a trabalhar?

-- Sim, e já são horas... Queres alguma coisa?

-- Que sejas feliz...

Edmundo desceu as escadas e tomou pela Rua do Ouvidor, em direcção à redaçcão.

Às quatro da manhã, quando em casa, mais uma grande desilusão pesava em sua vida. Sabia que era preciso ter ombros e não só espírito para suportar aquela vida, pesada, fatigante, que cá de fora julgam de uma ociosidade favorita. Conhecia o quanto custava a um poeta encher de notícias as duas páginas de um jornal.

Aquele dia deixara-o derreado e desiludido... Julgava ir encontrar no jornal um diletantismo literário e deparara com a materialidade da pena ao serviço dos repórteres e dos anunciantes... A confusão de um primeiro dia de redacção atordoara aquele neurasténico.

Os tipógrafos, no provisório da instalação, naquela balbúrdia de primeiro dia, em que são tantos os importunos a trazer abraços, empastelavam a composição, mal emendavam as provas, desconsertavam a revisão, à qual tinham que juntar-se os redactores, revendo os seus escritos...

De toda a fadiga desse primeiro dia de noviciado jornalístico, uma só coisa restava, a admiração pelo mestre, pelo seu director...

Edmundo vira como se escreve à luz duma vela, na última e precipitada hora de a folha entrar para a máquina, um desses artigos à Rochefort, grandes, atrevidos e nervosos, que rasgam com a proa os caminhos à Nação, e dos quais muitas vezes rompem das frases revoluções e dos períodos guerras.

Sentira o latejar do talento quase génio, a sua beira.

Vira conceber um cérebro de eleito. Palpara de perto a grandeza do espírito.

De resto, mais um sonho roto. Aquela derradeira tábua de salvação não o arrancava à voragem tenaz do desapego e da apatia... Sentia-se incapaz de lutar, consciente de antemão que seria vencido. Deixou-se ir, vendo de dia a dia as engrenagens da Marinoni ranger sobre a sua cerebração, sobre o seu talento, sobre os seus esforços, e despejar tudo aquilo impresso, à avidez de um público que nunca compreenderia quanta vida, quanta mocidade e quanto espírito consumiam essas colunas sem paternidade...

Arranjara uma pensão onde almoçar e jantar, num restaurante bom, na Rua do Lavradio.

A primeira vez que lá foi almoçar, sentou-se a uma mesa do canto, quase encostado ao balcão, onde, em duas jarras da China, rosas frescas cheiravam bem.

Em frente, no grande aparador de nogueira, pelos espelhos, podia ver toda a grande sala, e mesmo no ângulo que ela fazia dando para uma porta ante a qual descia um reposteiro, enxergava uma mesa grande, onde havia garrafas já abertas de vinhos caros.

Demorou o almoço, intrigado com aquela grande mesa posta e vazia, e já ao café, quando pedia um conhaque, viu abrir-se um reposteiro, e uma mulher nova, de peignoir de seda azul-claro com rendas brancas, de cabelos quase louros, esmeraldas nas orelhas, ir sentar-se numa cadeira dessa mesa. Não era bonita, mas um sorriso bom abria-lhe uma cova no queixo, mostrava uns dentes brancos e iguais, iluminava-lhe os olhos castanhos, e quase a tornava bela sob a sua cabeleira de ouro fosco.

Chamou o criado.

-- Quem é aquela mulher?

-- É de cima, do hotel... uma francesa...

Edmundo levantou-se. Aquilo distraía-o. Deviam sentar-se àquela mesa mulheres mais bonitas do que essa...

E assim, a surpreza canalha que o levara a um restaurante onde comiam mulheres dava-lhe um bom ar alegre que ele há muito não tinha.

Sentia-se bem ali, ante aquelas mesas, de toalhas muito brancas, na sala clara, que o sol invadia pelas tabuinhas envernizadas das janelas, naquele silêncio adorável de restaurante pouco frequentado...

Estava um dia alegre, azul. Tomou um bonde para ir ao mercado comprar um canário para a senhora Maria.

Ao saltar na Rua Direita, um companheiro da redacção tomou-lhe o braço.

-- Aonde vais?

-- Ao mercado, comprar um canário...

-- Eu vou contigo, comer tangerinas.

-- Então vamos.

E caíram os dois em contemplação ante os viveiros de canários, amarelos como ouro novo, alegres, saltitantes, sacudindo as penas, abrindo as asas louras, chilreantes todas as gaiolas como palcos de lírico em noite do Barbeiro de Sevilha.

O dia aquecera, todo luminoso, e voos de gaivotas cruzavam os ares, precipitando-se para o mar, aos guinchos.

Naquele quarteirão do mercado, as frutas aromavam, abacaxis, mangas, maçãs, tangerinas, laranjas, fruta-do-conde, bananas, uvas, enquanto a distância o passaredo gorjeava e galos cantavam entre cacarejar de galinhas, aos casais.

Pombas arrulhavam mansamente, e no chafariz a água caindo parecia um novo canto monótono de pássaro.

Uma onça pintada, presa numa jaula, berrava a espaços, melancolicamente, e tudo em volta se calava com medo, os urus tremiam e as aves paravam de cantar por longo tempo.

Edmundo foi mercadejar a voz preciosa do canário belga.

-- E agora ?

-- Agora vamos comprar violetas, espiar as águas, o mar...

E dilatando as narinas, ficou-se a respirar a marezia, os olhos numa contemplação, pousados na grandeza das águas que estancavam na ilha das Cobras, se estendiam até Niterói, balançando as barças... E os navios da esquadra, o «Aquidaban», o «República», o «Benjamim Constant» as torpedeiras, os grandes cruzadores, todos brancos como garças inocentes, paravam na serenidade glauca, içando pelos ares as mastreações. Um paquete inglês entrava na barra, fumegando, enorme, passava Santa Cruz, a Laje, vinha parando em frente a Villegaignon.

-- Vamos embora...

-- Vamos, sim...

Saíram para a Rua 1.° de Março, toda cruzada de carroças, camiões, bondes, um vaivém de grandes rodas aos solavancos pelos paralelepípedos, um rolar de povo que atravancava a rua, tortuosa, alargando-se e estreitando como uma cobra cheia, subindo um pouco na imponência dos três prédios do Correio, da Bolsa, do Banco do Comércio, logo esmagada pelas casarias baixas, que descem até ao Arsenal de Marinha.

E foi um alívio quando se viram à sombra da Rua do Ouvidor, onde um formigueiro de gente arrastava enorme, até lá ao fim, ao Largo de S. Francisco.

Foram subindo, parando nas livrarias para falar mal do Magalhães, contar casos, a luta do literato pela edição, o mercantilismo que rouba os talentos, e isso já em frente às vitrines do Garnier, onde tronavam livros franceses, de nomes difíceis, assinados por gente desconhecida.

Edmundo parava muito em frente das casas de modas, demorava-se a ver sedas, chapéus, rendas, e as ourivevesarias e joalheiras, para descançar a vista na rutilação das pedras preciosas, brilhantes, esmeraldas, os colares de pérolas e diamantes, os broches de rubis e safiras, as grandes rivières tremeluzentes, em escrínios luxuosos, profundos, todos acolchoados a veludo negro, e os anéis finos, ferrando jóias com as garras, os anéis que enfiam preciosidades nos dedos...

Embevecia-se, ficava ali minutos, ante a étalage do luxo.

Era preciso arrastá-lo, não porque ele se sentisse preso de estupor, mais parecia arquitectar um sonho sobre cada adereço e parecia sonhar uma mulher em cada peça de seda, em cada nuvem de rendas, em cada pluma de chapéu.

Depois de uma hora inteira para subir a rua, eram ainda conversas, um refresco ou uma cerveja a tomar no Pascoal, até que se deixasse levar para a clausura da redacção e se sentava à mesa a trabalhar, com as alternativas de uma hora de conversa ou uma fugida a rua, a porta da Notícia ou do Londres, ver passar num frufru as caras lindas, que desceram da Tijuca e de Botafogo, para comprar um alfinete na Rua do Ouvidor ou provar um vestido na modista...

A noite não tardava a cair, e ante os montes de notícias pousados na sua mesa, para rever ou redigir, o desânimo assaltava-o, impossível de vencer, por aquela grande falta de tino jornalístico, aquela dificuldade que oferecia todo o trabalho material ao seu temperamento de contemplativo e de alheado.

Naquele dia, uma preocupação tinha-o seguro:

era a mesa grande do restaurante onde se sentavam as mulheres vindas de cima.

Esperou impaciente que chegassem as sete horas, e saiu para a rua.

Mas logo adiante, perto da Rua Gonçalves Dias, uma voz rouca e trémula chamou-o. Podia continuar, fingir que não tinha ouvido, mas uma grande piedade fê-lo parar para receber o abraço do ébrio, que lhe pedia:

-- Pagas alguma coisa?

-- Achava melhor que não bebesses, que fosses tomar um caldo e partisses para casa... Pareces doente...

-- Qual!... Vem pagar uma cerveja.

E os dois entraram no café Londres, onde Edmundo mandou abrir meia garrafa de «Pá»?

--Não bebes?

-- Não, vou jantar...

E o pobre doente verteu pela garganta, numa ânsia, o copo todo. Quando o criado se aproximou para acabar de esvasiar a garrafa, ele, julgando que a iam levar, agarrou-a pelo gargalo, os olhos numa chama medindo de revés o garçon, e despejou-a até à última bolha de espuma.

Bebeu assim o resto, na mesma ânsia aflitiva de ver o fundo ao copo.

-- Adeus, meu bom amigo, deixa esse mau vício; arruína-te. És um grande espírito, deves ter a força de o sustentar...

0 bêbedo fitou-o com desprezo.

-- Estás lúgubre, poeta, precisas de beber!

O restaurante estava cheio; só a sua mesa, encostada ao balcão, onde emurcheciam as rosas nos jarrões da China, estava vaga.

Edmundo sentou-se, abriu um jornal, passou distraído os títulos, os normandos, e levantando a cabeça olhou a mesa.

À cabeceira, uma rapariga quase criança, pouco maior que uma boneca grande, brincava com o garfo e sorria. Era morena, insignificante, e tinha aos ombros uma capa curta de veludilho, em xadrez vermelho e azul.

A seu lado sentava-se uma última tentativa de sedução; era um ser disforme, todo enfronhado no seu roupão de caça. Daquele monturo de carne, a cabeça emergia, pequena, com olhos menos mal e um buço debruçado sobre a boca mimosa. Tinha um ar de velha decaída, de patrona das novas, com o seu perpétuo risinho que mostrava duas carreiras de dentes de rato pequenos e brancos.

Mais adiante, uma que conhecera em São Paulo, abrilhantada, metia vista com um corpete de cetim preto e uma saia clara de seda. Aquela, sim, era velha como a Traviata de Verdi, uma arca de Noé, toda calafetada a creme «Limon», e boiando num dilúvio de água de «Ninon». Ainda herdava nas feições o ar de italiana que tivera em nova, com os seus cabelos cendrados e os olhos verdes, cheios de luz. O espartilho parecia fazer esforços para deixar de pé o seu peito farto e cansado.

Depois, uns olhos pretos que caíram distraídos sobre os dele, dois olhos tristes e profundos, que levantavam como auréolas umas pestanas compridas e sedosas.

Morena e magra, nem reparou mais nela...

Começou a jantar desconsolado.

Abriu de novo o jornal e começou a ler, mas quando levantou a cabeça viu os olhos negros vergados sobre si, como duas luzes que logo apagaram quando os olhos desceram.

Sem saber bem porquê, tremeu e evitou olhá-la outra vez. Durante todo o jantar sentia sem as querer ver aquelas sombras iluminadas pousando nele, e ao levantar-se, de face, fitando-a afinal, viu nas órbitas esplêndidas como que um misterioso interesse por si, surgindo do negrume triste onde rutilavam as pupilas...

Saiu, descendo a Rua do Senado até à do Espírito Santo, cheia de gente, iluminada pela fachada dos 91teatros, uns barracões de feira, desde lá ao fim, onde Dias Braga, o Frederic Lemaitre do povo, declamava o «Conde de Monte-Cristo», até ao Sant-Ania, onde o Colás se exibia em pantomimas, com esgares de palhaço sem espírito.

Entrou no Largo do Rossio, perseguido pelas floristas, apressado por entre os grupos que esperavam as oito e meia dos espectáculos, e adiante, na última porta da «Maison Moderne», a voz rouca chamou-o:

-- Porque não vais para casa?

-- Porque não quero...

Torcendo o bigode, encostava-se à porta para não cair.

-- Já jantaste?

A voz rouca perguntou:

-- Pagas alguma coisa?

Edmundo olhou-o consternado, invadido por uma piedade imensa. As roupas andavam enrugadas, como as de quem se deita vestido, e naquele olhar embaciado e já sanguíneo reluzia o prenúncio medonho da epilepsia ou do delírio.

E aí estava a uma esquina, mostrando-se pelos cafés e pelas ruas, um homem de letras... Aquilo era um resultado do meio literário... Ninguém que a tempo o tivesse obstado ao vício, ninguém que o levasse agora para casa como um irmão doente... Davam-lhe de beber, voltavam- -Ihe as costas, e o miserável lá ia cambaleande, pelas mesas, falando de Baudelaire, apregoando na sua voz rouca e pegajenta:

-- Eu sou um ser superior, eu sou um artista ... -- e os criados tinham que o por fora, humilde nas suas roupas pobres onde havia nódoas de vómitos, encostado à parede, a caminhar às cegas na noite, de encontro às casas, até cair...

Um ódio fundo sobressaltou-lhe o peito. Aquilo era a decadência, o último rebento pervertido e desorganizado de uma geração que findara, como uma árvore que vai estirando braços e ramarias até cair apodrecida...

Um país novo com gente velha... começava com o fim... Dantes, a boémia bebia, mas com um ideal no fundo do grogue, uma utopia no martelo de aguardente...

Lembrava-se de um que morrera debaixo da janela da namorada...

Ali estava crucificado a uma esquina, o nefelibatismo dos novos... As monjas maceradas e as virgens esquálidas, de olhar estagnado e cabelos soltos, místicas e larvadas, toda essa arte de palavras abstrusas como termos de psiquiatria, e ideias bêbedas de onanismo, ele revia-a naquela agonia de epiléptico, embriaguez a embriaguez...

E naquele rapaz morto em vida, imprestável, nulo, surgia ainda, lívida como um fogo-fátuo, a réstia divina do espírito tremeluzindo de quando em quando, nas palavras gaguejadas, como um pirilampo entre a matia.

Iam deixá-lo morrer a uma esquina, por uma noite de frio e chuva, iam deixá-lo extertorar na soleira de uma porta, qualquer dia...

Edmundo ainda instou com o pobre doente para que fosse tomar um caldo...

-- O meu estômago não são os seus versos!...

De caldos precisam as^ suas rimas, são fracas!

Edmundo afastou-se, vergado por uma gargalhada do ébrio, que soou fúnebre, como alguém a querer tocar a noivado no sino plangente de finados.

À meia-noite, em caminho para casa, os seus olhos iam seguindo no desvão das portas, longe a longe, ou a um canto da rua, o sono das crianças abandonadas, caídas de borco nas soleiras de pedra, esfarrapadas, a cabeça entre os braços cruzados, as migalhas dessa grande geração esquecida por Deus e que vivem da cidade como os cães vadios, ninguém sabe com quê...

Pensava no horror daquelas pequeninas almas de enjeitados, que o mundo deixa à míngua, roubados pela protecção divina, inocências a quem falta o pão de cada dia, nascidas no monturo, crescidas no desespero, e a quem a sociedade reservava um cemitério de presídio...

E como súbito lhe lembrassem os olhos negros, cresceu-lhe um nojo pela mulher da vida, essa por causa de quem um homem tudo esquece... O dinheiro gasto com elas em vaidades, carros, vinhos caros, flores, perfumes, todo esse dinheiro esbanjado sem proveito de que elas não fazem caso, pois bem, tudo isso chegava para dar pão a mil esfomeados, dar agasalho a mil indigentes, arrancar à ignomínia da prisão mil desgraçados, que podiam ser dignos como o chefe de polícia e honrados bastante para não apertar a mão aos polícias secretos...

Fazia um frio cortante, áspero. Às vezes dava-lhe ânsias de descer, ir deixar alguma coisa à cabeceira das crianças adormecidas, dar-lhes esmolas durante o sono... mas, saltar do bonde, esperar um hora a pé, batendo os passeios, pela noite sem lua, escura, atrasar de uma hora a comodidade, o aconchego de casa, os lençóis quentes.

E como todos os outros, aquela alma caridosa achava grande em demasia o sacrifício de uma hora de aborrecimento e de espera, ante a alegria de uma pobre criança sem amparo, sem mãe, sem Deus, sem pão, sem abrigo, que acordaria de manhã com dinheiro para almoçar num quiosque, com que passar um dia sem fome, com que passar um dia sem a precisão de roubar um pão numa padaria, um pão para comer...

Ah! mas por uma mulher ele como todos os outros esperaria duas horas um bonde..., por uma mulher, ele sacrificaria saúde, tempo, o futuro, e até às vezes a dignidade, o orgulho, enquanto aos pequeninos seres de que o mundo ia fazer maus homens, na sua inexorabilidade fatal, por esses, apesar dos piedosos pensamentos que o comoviam, por esses, ele, igual aos outros, não desceria do bonde, à meia-noite, com frio...

III

No dia seguinte, ao sentar-se à mesa, os olhos fundos e negros caíram placidamente sobre os dele, como duas águias que vergam asas e descem devagar sobre a presa.

Dois mistérios sob os flabelos das pestanas viviam naqueles templos sombrios, sob a arcaria das sobrancelhas.

As pálpebras subiam como cortinas de altar-mor, e as duas luzes imergiam...

Ele, medroso pela primeira vez ante a mulher, baixou os seus, pensando entretanto bem no íntimo que era de seu desejo deixar perpetuamente a sua vista ancorar naqueles lagos profundos.

Nunca mulher alguma o olhara assim. Não sabia daqueles quebrantos em olhados febris de amor ou de desejo.

Nessas órbitas havia lampejos, como luzes de ponche incendiado, e logo escuridões de um negro sinistro, trágicas como se a vaidade daqueles olhos fosse à pretenção insolente de parecer dois céus, onde sóis rondassem e noites acampassem.

Edmundo via tudo naquela vista de inferno.

Pareciam-lhe dois corvos que o espicaçavam no coração. Pareciam-lhe duas barças que se ofereciam para o levar a um paraíso ignorado de todos... Pareciam dois arcos de triunfo ante o caminho que leva aos pés da Alma.

E aqueles olhos entupiam-lhe a vista, não o deixavam, entrando dentro de si como feitiçarias...

O ingénuo, mosca enrodilhada na teia de aranha, só se lembrava das asas para mais se perder na meada transparente.

Onde estavam as lições dos mestres, que de Shakespeare só se lembrava do terceiro acto de Romeu?

Onde, Stendhal?

Deus fez tudo na homogeneidade de um par: a mosca e a aranha; assim o homem e a mulher, o rato e o gato, o mosquito e o pássaro...

Em casa, à meia-noite, Edmundo deitou-se a pensar.

Chovia e o vento brigava com a ramaria das mangueiras.

Todo o dia passara obcecado pelos olhos imensos e sensuais. Tinha prazer em pensar neles. Sentia às vezes uns arrepios nos nervos, nas carnes, depois serenava, gozando de se sentir desejado. Ele desejava também, quando de longe, e se lembrava daqueles sóis que se lhes ofereciam.

Tentava persuadir-se que o verdadeiro amor era humilde, entregava os pulsos às algemas. Amar era ser galé de coração. A força devia-se submeter ao capricho...

Mas, agora, o medo, apossava-se dele; a passividade gemia dentro de si, segredava-lhe toda uma profecia de desdita.

Lembrava-se da frase do Julião: «Quem já sofreu fuja de amar.»

Percebebia que na sua alma jazia um grande tesouro intacto e tinha medo de sentir garras nas mãos que mergulhassem nele.

Toda a sua grande tensão de ideal não devia arrojar-se para um céu em cujas abóbadas esmigalhasse a cabeça... Mas também, que fascinação: Amar!...

Voz, só a «dela», que nos sabe chamar bem pelo nome, entre dois beijos; olhos, nenhuns que aos «dela» se comparem; o seu pescoço, nenhum igual ao «dela» para tombar como o de um cisne morto e oferecer-se ao descanso da cabeça do amante, e corpo, ah!, nenhum, nenhum, desde os ideais antigos, que tenha a linha ondulosa do seu corpo... Desde as clavículas, a carne serpeia, apertando a cinta e deslizando nos quadris, descendo às coxas e afinando no tornozelo, delgado como uma cascavel de três anos...

Fantasiava um corpo a jeito de ser bem amado, e punha-se depois a contemplá-lo, desde os seios, pequenos como tampas de um hostiário, tremendo a meio do peito como as duas frutas da árvore proibida, oferecendo à fome do homem o perdão da sua alma...

Amar era lançar de rojo a nossa vontade ao serviço da mulher, era resumir o mundo em um só olhar, esquecê-lo pelo único sentimento da paixão, trocá-lo inteiro na sua maldade e no seu egoísmo, pela liberalidade do corpo que se nos entrega com a alma.

Amar era deixar entre as mãos da mulher todo o nosso ser ajoelhado. Um homem torna-se bom, amando...

Mas era também o despenhadeiro... Pobres das almas fracas, das almas que se deixam cegar pela gota serena da paixão!... Quanta leviandade irreparável, ignomínias atrozes, quanto crime cometido por mão inconsciente, que herança de dor, vergonha e desespero nos deixa às vezes o amor da suprema mulher da nossa imaginação!...

Esquecer o mundo é o ideal impossível... O mundo vinga-se sempre implacavelmente desse esgoísmo de duas almas... Os dois amantes esquecem-se em contemplação numa fraga deixada a descoberto pela vazante, a maré vem subindo, e quando a primeira onda se arroja espumando, vêem-se os dois em meio das águas, condenados à submersão. Desses náufragos perece o homem quase sempre... A mulher, se é bela, está salva... Depois de preso nos braços de onda da mulher, o homem torna-se a sombra do ente querido, esquece-se, tem a vista noutros olhos que não os seus, a vontade algemada à outra vontade...

António já chamava a Cleópatra a «serpe do velho Nilo» e nem por isso, senhor do mundo como era, teve forças para arrancar-se aos anéis da serpente que o estrangulou. Os seus exércitos, arrastados por ele, levavam no espículo das falaricas e no gume dos gládios os desejos de Marco António, o descendente de Hércules..., e o vencedor de cem batalhas não pôde vencer uma mulher sem forças...

É que custa menos a vencer os outros que a vencer-se a si próprio uma pessoa...

É raro conselhos passarem de um ouvido. O mau sabe do caminho que o leva ao bem. É questão de o seguir até lá. Os conselhos não servem de guia, mostram apenas o caminho a seguir... Deixa essa mulher: frases repetida tantas vezes e sempre sem resultado... Foge-se assim de um cárcere? É preciso que a porta esteja aberta...

Qual é o prisioneiro que não sente desejos de rever a liberdade? Quantas noites passa ele apalpando as paredes, esgaçando as unhas nas frinchas da muralha, tentando abrir os muros com as mãos?

O amor põe algemas aos pés de quem se deixa amar...

A salvação para as almas puras estava na paixão castíssima, essa que amarra dois corações virgens em arroubos, ao cimo de um deslumbramento, como dois cisnes brancos sacudindo asas nos píncaros nevados e intangíveis da lungfrau do sonho e da ilusão.

As exaltações que desconcertam e ferem, esses amores cheios de espinhos, são os que a voluptuosidade choca, o desejo alimenta e a sensualidade satisfaz...

É o amor que tem ciúmes da cambraia que roça o corpo da mulher amada, é o amor que se apossa num abraço e nunca se apercebe que os braços caíram do pescoço querido.

A «Carmen» não era mulher, era uma mulher...

Edmundo procurava desculpar-se a cobardia de se submeter aos olhos negros.

O seu temperamento de indolente comprazia-se a pensar-se subjugado por uma voz meiga; nunca ele chegaria a compreender na sua ingenuidade de poeta que o predomínio deixasse de ser dado ao mais fraco, à mulher...

Daí partiam todos os seus receios. Essa bela fantasia podia ser um presente de núpcias, mas era perigoso fazer tal outorga a uma mulher sem coração e com vícios.

Ah!, mas para ele, ser a mulher da mulher era o sonho!...

E tudo aquilo, bem observado, aquela fraqueza de indolente, aquele requinte de luxúria preguiçosa que se sujeita a ser o prazer de uma mulher, e ama com delírio nessa passividade de amor material, que ele desdobrava num sentimento de arte sensitiva, bem estudado nele, tinha razão de ser.

Uma precocidade de mágoa abatera-o, e os tempos de criança, passados entre sedas, pelo regaço das senhoras, que lhe cobiçavam os olhos, aquela vida recuada aos dias de hoje, já longe como um pesadelo, vivia entre tapetes felpudos e estofos caros, sob as meiguices dos dedos reluzentes de anéis, quebrada de súbito pela vida de um colégio de jesuítas, esses tempos nostálgicos de colégio de frades, passado entre missas, novenas e aulas, acabara de compor o seu pobre temperamento, já de per si preparado pela nevrose, numa passividade assustadora, subjugada apenas de vez em quando por uma repulsa de amor-próprio sempre latejante nele.

A religião, que não pudera ganhar a si aquele espírito, conquistara porém aquela alma, onde morava a mania da adoração. Desses longos anos passados diariamente em frente aos altares viera-lhe muito esse vício de contemplação, de êxtases. As doutrinas foram a base da religiosa bondade do seu carácter, e o abuso da confissão infiltrara-lhe o instinto santo do perdão.

Tinha tudo o que era preciso para ser uma boa criatura, sublinhado por tudo o que faz desnortear um homem.

Todas as suas pretendidas perfeições eram incompletas, e todas as suas funções de esforço e de equilíbrio estavam para todo o sempre desorganizadas.

Ponham Santa Teresa a ser mãe de família! Ou S. Bernardo a ser jornalista!

Edmundo era antes de tudo uma criança num corpo de homem; e o físico traía-o pela feminilidade dos traços, pela ausência dos músculos, que a ladra da anemia lhe roubara, se é que os tivera algum dia, pela proporção dos membros, que se recusavam a servir-lhe em carnes a completa virilidade dos seus vinte e dois anos incompletos.

A voluptuosidade amortecia-lhe os olhos, soberbos de grandes, e a doença cavara-lhe indelevelmente nas feições no seu ferrete. Trazia-o às vezes pálido, quase curvando, invadido de uma fadiga que o impossibilitava de andar, e de outras vezes arripiava-lhe os nervos terríveis, que o tornavam intolerável, descontente, cheio de teimas, de caprichos pueris, negando-se a subir a um passeio, embirrando em tomar o lugar de um outro homem, todo de arestas, como um gato que mostra de repente as unhas e dá de bufar agoniado.

Essas crises deixavam-no prostrado, lasso, incapaz de um esforço...

Com o peito arruinado pela tuberculose -- ainda a herança do sangue --, abrira os olhos para o mundo com essa melancolia idealizante e pujente dos tísicos...

Julião, sem esperanças, dava-lhe inalações de iodo, observando, aflito, a marcha lenta do mal, e só esse silencioso podia dizer o quanto Edmundo era um predestinado à desgraça, um vencido da vida...

Ninguém o pensava indolente e passivo como era, porque mesmo aquela lassidão escondia-a aos olhos de todos, como uma vergonha... Reagia com coragem, ia encobrindo ainda todas as íntimas feridas, mas sentindo as forças abandoná-lo, desesperando de poder resistir por muito tempo ao jugo da sua nevrose e do seu abatimento orgânico...

Aquele desmaio de todo o seu ser activo vinha-lhe sempre junto à nudez de uma mulher, e vivia só a vida efémera ou cheia de alternativas do cortinado.

Agachava-se aos pés da mulher quando as vozes afinam pelo mesmo diapasão de desejo e de embriaguez, mas cá fora, arrebatado como era, a uma imposição desdenhosa dessa mesma mulher, era capaz de lhe tapar a boca com a palma da mão. Daí, ele mesmo tinha medo de se deixar abater um dia, cobardemente, sob o cuspe de uma fêmea.

Era talvez só isto que o fazia recuar ainda diante do olhado negro.

Um pavor veio-lhe ao lembrar-se da Safo, daquela cena com o maestro de Cláudia e de Savonarola, no almoço de Rosa, rente ao lago de Eughien.

Ah!, o mundo era bem assim...

Edmundo abriu à toa um dos três grandes volumes da obra de Shakespeare. Folheou umas páginas onde passavam gravuras: Ajax e Heitor na arena, o banquete de Timon, a morte de Coriolano, o assassino de César, os cortejos de Cleópatra, a hecatombe de Roma, as feiticeiras de Macbeth, o desafio de Hamlet, a loucura de Lear, a alcova de Cimbelina, o desespero de Marina..., e fez cair metade das folhas, de uma assentada. Espiou o drama; era o Othello.

Começou a ler do topo da página. Era a cena II do IV acto.

Othello -- Quando aprouvesse ao céu fazer-me experimentar a desgraça; mesmo quando deixasse desabar sobre a minha cabeça toda a celeuma dos males e das vergonhas; quando mesmo me houvesse entrado na miséria até aos beiços; ainda que me reduzisse a cativeiro com as minhas derradeiras esperanças, inda encontraria um canto de minha alma uma gota de paciência: mas, ai de mim !, fazer-me um trapo à vista de todos, o miserável que o desprezo apontará, levantando com lentidão o dedo!... E entretanto eu teria ainda podido suportar ma is isso!... Bem, muito bem; mas ser escorraçado do santuário onde me é preciso viver, ou então renunciar à vida, para cuja fonte minha corrente vai, sem que seque!... Ser escorraçado ou então conservar esta gente, para que uns sapos lá vão copular e procriar...

Edmundo olhou em volta, folheou o livro até à gravura do desenlace trágico, e pôs-se a contemplar Desdémona estrangulada, a cabeça pendente da beirada de ébano, e Othello, braços cruzados, mirando a sua obra, com ar feroz.

Em uma mulher podia haver uma alma assim bravia, ferina, bárbara, selvagem como a confusão de uma batalha. 0 sangue de África trazia daquilo; pareciam raças cruzadas com tigres e leões, no nascer dos tempos, quando o continente negro era uma floresta de mares a mares, e nem o sol penetrava as brenhas profundas...

Se fosse rico como Fortúnio, compraria uma Soudgi num mercado da índia, como quem compra um leopardo ou uma capelo; tê-la-ia enjaulada como uma fera, como um beluíno, entre brocados e perfumes...

A mulher moderna, civilizada, era mesquinha como uma cobra-d'água. Enganava com máscara, escondia o amante no sorriso, entregava-se mais por luxo que por instinto eram infiéis como um caco de vidro esquecido no soalho. Educavam o coração com o espírito. 0 amor moderno sabia tocar piano e falava de Wagner. As mulheres usavam unguento para o rosto e para a alma.

Eram ínfimas...

Edmundo levava a pensar, sem saber porquê, cansando-se, deixando tudo enevoado, sem uma conclusão ou um resultado aos problemas, sem uma continuidade de tema sobre que rolassem as suas faculdades pensantes.

De toda aquela confusão, de todos aqueles fragmentos, restava-lhe a mesma dúvida, o mesmo ponto de interrogação, que o fazia tremer.

Depois de deitado, ainda ficou sem dormir, a braços com uma tristeza, dessas que vêm sem razão de ser, tormentosa, em que viviam mil desejos a contentar, uma indiferença horrível pela vida assim arrastada como um fardo, quando ele desejava, precisava, queria tanta coisa...

E a vida apresentava-se-lhe infindamente assim, banal, trabalhosa, crudelíssima...

E largava a pensar, raivosamente, no escuro, enquanto lá fora a chuva caía miúda e o vento ramalhava nas palmas das imperiais e na ramaria velha das mangueiras.

No dia seguinte amanheceu um céu límpido e sereno.

Levantou-se preocupado de novo com a doença.

Doía-lhe o peito e escarrava sangue.

Teve medo de se achar sozinho, chamou a criada.

-- Então, senhora Maria, o canário canta?

-- Canta sim senhor.

-- Quanto tempo vive um canário, senhora Maria?

-- Pode deitar até aos oito anos...

-- Oito anos!... Eu não vivo isso!... Não hei-de ser eu que lhe ajudo a enterrar esse...

-- Credo! Que tem? É ainda a tosse? Isso não é nada, senhor Edmundo, é ter cuidado fugir das mulheres como demónio da cruz..., isso não é nada, meu filho.

Edmundo ficara como quebrado, na cadeira, a cabeça atirada para cima da mesa, os braços estirados sobre os livros.

-- Então, acha-me assim tão mal que aos vinte e um anos me diz para fugir às mulheres?... Eh, senhora Maria? Todas as mulheres me hão-de fazer mal?... Todas são maldosas?

A pobre velha pousou-lhe as mãos sobre os ombros, e gaguejante, os olhos cheios de lágrimas, tentava arredar-lhe da cabeça aqueles pensamentos malignos.

-- Isso não é nada, filho..., foi ar que lhe deu no peito, passa... Eu rezo por si todas as noites à Senhora da Piedade... Que é isso? Que é isso?

Ele chorava também, mudo, ao ouvir aquela palavra estremecida, da qual os seus ouvidos já estavam desacostumados: «filho!».

E a voz trémula da velha continuava numa meiguice:

-- Deixe-se disso, senhor Edmundo, trabalhe, estude, nem tão longe é o Rio Grande... Se o senhor tivesse a família em Portugal, como eu, filhos que já têm filhos, e eu nem conheço os meus netinhos... 0 senhor é bem feliz, está na sua terra... Quando foi da saída da «Mindello» levei uma pedrada na cabeça por ser portuguesa...

Ah!, o senhor é bem feliz, está na sua terra... O senhor está doente mas é de pensar... Olha que mania!... Também não se agasalha, entra em casa com o sereno da meia-noite...

E os banhos de chuva, porque é que ele tomava banhos frios por aquele tempo de Inverno?... Ela só tinha cinco dentes e não pensava em morrer... O que ele precisava era descanso... Também, essa ideia de entrar para um jornal!... Recolher-se à meia-noite, às duas da madrugada!... Trabalhasse de dia... Era doente, não podia...

E a velha mulher, enxugando as lágrimas à manga do chambre, rilhou entre dentes:

-- Raios partam o jornal!...

-- Senhora Maria! -- gritou Edmundo, de olhar carregado.

A velha, àquele grito, compreendeu que, como criada e como pobre, não tinha o direito de o estimar tanto.

Era a primeira vez que erguia a voz para a pobre velha, talvez o único ente que o amava deveras, ali, naquele abandono em que vivia.

E um grande arrependimento fê-lo levantar-se, ir até ela, que chorava, disposta a sair.

-- Ouça, senhora Maria, desculpe-me, mas eu quero muito bem a esse jornal...

E mentindo disse-lhe ainda que lá não trabalhava até tão tarde; saía ao anoitecer... Já ela via... Magoara-o a injustiça da sua praga...

-- Mas então porque não entra cedo, até que fique são?... Aqui nada lhe falta... Eu faço-lhe chá todas as noites...Pelo amor que tem à sua mãe, senhor Edmundo, trate de si, dessa tosse...

Ele disse que sim, com a cabeça. Pediu o café; sentia-se bem... Eram mais de medo que outra coisa, essas queixas de doente...

E quando ela subiu com o café e um botão de rosa, achou-o já vestido, em frente ao toucador, perfumando o lenço... Ajeitou-lhe a gravata, prendeu-lhe a rosa com um alfinete, acompanhou-o até ao portão.

-- Posso fazer o chá ?

-- Sim, pode, prometo vir hoje cedo...

-- A sério ?

-- Venho, sim, sossegue... olhe, eu trago o chá, compro-o na cidade, é melhor...

-- Pois sim, pois sim...

Um bonde passava. Edmundo saltou, A criada parou ainda no portão, seguindo-o com a vista, falando baixo.

-- O médico bem mo disse..., não vive muito tempo, não.

E retirou-se com as suas lágrimas.

O canário, na gaiola, cantava, todo reluzente, doirado pelo sol, numa alegria doida.

Edmundo abriu a Cidade do Rio, ia a meio de um desses artigos admiráveis de Patrocínio quando uma voz conhecida o chamou.

-- Senhor Edmundo...

Voltou-se.

Um rapaz, estudante de Medicina, estendia-lhe a mão. Perto dele, uma mulher de uns trinta anos, grande e bela, cobria-o com um interesse imenso nos olhos negros.

-- Minha irmã... Desejava muito conhecê-lo..., é uma das suas admiradoras...

Edmundo sorria, voltado no banco...

-- Oh!, minha senhora, quanto ela tem de imerecida, quanto ela me é profundamente honrosa, a sua admiração...

-- A sua crónica de anteontem, tenho-a guardada, é uma maravilha.

-- Porque foram os seus olhos que a leram... A formosura tem a instintiva bondade de julgar tudo belo...

-- 0 que é belo é ter talento como o senhor...

-- Confunde-me, minha senhora... Nunca ninguém me falou assim...

-- As mulheres têm no geral a franqueza de serem sinceras.

-- A minha injustiça levou-me sempre a julgar o contrário.

E toda a viagem Edmundo levou a responder àquela voz tépida, que lhe ia contentando intimamente toda a sua vaidade...

Agradecia do íntimo a essa mulher, que tanto se interessava por si. Ela quis saber o tempo que gastava a escrever uma crónica..., se trabalhava muito..., quais eram os seus livros favoritos...

Guardavam-lhe as crónicas, havia uma mulher, bela e inteligente, que o lia, admirada, que se interessava misteriosamente pela sua vida, que desejara vê-lo, apertar-lhe a mão, dizer-lhe tudo aquilo...

E quantas como ela não o desejariam conhecer, depois de terem chorado sobre os seus versos e fantasiado mil castelos de Espanha em suas rimas!... E ele ia morrer!... Ele, que semeara tanto a sua alma, que dispersara aos quatro ventos as suas emoções!...

Vinha-lhe uma grande ânsia de se apegar à vida...

E parou, retido por uma ideia. Ali perto morava uma mulher que deitava cartas, uma húngara velha, uma boémia de olhos secos e mãos descarnadas.

Chamava-se..., mas como se chamava ela? Ainda na véspera lhe tinham falado precisamente na advinha- deira, nessa cartomante dos infernos...

Foi andando, a reparar nos números das portas, 15, 17, 19, 21, 23, uma casa baixa, com duas janelas, um corredor escuro e a porta ao fundo. Era ali.

Entrou, trémulo, como Romeu quando vai comprar o veneno à casa do judeu.

Uma criança loura veio abrir a porta, levou-o a uma sala grande caiada de branco, meia dúzia de cadeiras encostadas às paredes, uma mesa ao centro, coberta por um pano verde...

E mal se tinha sentado, a velha entrou, toda de preto, um lenço amarrado na cabeça.

Partiu o baralho com a mão esquerda, como mandam os livros de magia, e a cartomante deitou as cartas uma a uma, em cruz... Saíam naipes pretos, paus, espadas, uma dama de copas, e nem uma só carta de ouros. Os braços da cruz eram pretos, valetes, reis, o ás de espadas em cima, e sob a enfiada sinistra, a dama de copas...

-- Há uma mulher morena que gosta de si... É um amor que traz desgraça... 0 senhor é sozinho, é doente...

As cartas continuavam a cair formando quadrado...

-- Vai andar sobre as águas do mar... Há uma pessoa, uma mulher, que o estima, que o quer ver feliz... Terá um grande desgosto..., e uma grande doença...

Serena, a cartomante virava as cartas, e deixava cair da boca a profecia.

-- Desconfie dos seus amigos...

Depois, voltando-se ao fim do baralho, que caíra na mesa até à última carta, a profetiza perguntou serenamente:

-- Quer saber mais alguma coisa?

-- Sim, quero, quero.

-- Pode perguntar.

-- Diga, quanto tempo me resta de vida ?

Ela deu-lhe o baralho a cortar, tirou uma carta, o dois de espadas.

-- Morrerá quando o abandonar a esperança....

-- A minha vida futura e passada está toda então nesse baralho de cartas?

-- A sua e a de toda a gente.

Edmundo pagou, saiu e tomou um tílburi.

-- Para o Largo do Paço.

la ter com o Julião.

Subiu as escadas, empurrou a porta.

-- Então, o jornal ?

-- Escarrei sangue esta manhã.

-- Já não é a primeira vez.

-- Sim, mas a culpa é tua, que desesperas de me salvar... Desanimas, julgas-me os pulmões perdidos sem remédio... 0 teu iodo, o teu gaiacol, o arsénico, tudo isso são paliativos, não passam de remédios para me enganar...

Julião olhava-o admirado.

-- Não dizes nada?

-- Estava a pensar que os índios inventaram o curare, que mata num abrir e fechar de olhos... mas é pena haverem-se perdido as receitas de Locusta, de Lucrécia Bórgia, de Catarina de Médicis e da marquesa de Brinviliers... Estava a pensar no veneno que te serviria..., esse de que andas a fazer uso mata mais lentamente, sofre-se muito e por longo tempo, às vezes...

-- Então ?

-- Dantes consolavas-te com os filósofos e a amargosa experiência do mundo, de não teres a esperar uma grande existência de Matusalém... Hoje desesperas-te, vens acusar-me de não te impedir a morte, todo horrorizado só pela ideia de que hás-de morrer um dia, como todo o mortal... Vá, desespera-te, chora, soluça, acusa os céus, suicida-te a dosagens de desesperança, trabalha para que um aneurisma de engula... Suicida-te, pouco me importa...

-- Julião...

-- Procura um médico que te receite os ares da Suíça ou de Florença... Lê a Dama das Camélias, toma as mesmas drogas que ela tomava...

-- Ouve, Julião, é que até aqui nada tinha tocado sem retirar as mãos sujas de lama, tudo o que tinha conhecido havia-me deixado no espírito uma sombra de desprezo e de desgosto... Desde a cidade onde se começa apenas a respirar o embriagante perfume das mentiras, senti os pés sangrando nos espinhos da verdade; e a ironia e a blasfémia do meu cepticismo de vinte anos era apenas o extertor da minha derradeira ilusão..., mas hoje, meu amigo, quero viver, há uma mulher que lê os meus versos e há uma mulher que me deseja... Eu quero viver, Julião...

-- Pois vive, quem te impede? Deita-te cedo, leva uma vida tranquila, passeia na Tijuca, em Santa Teresa, lê pouco, não escrevas nada, vai tomando o teu arsénico, as inalações de iodo só te podem fazer bem, e o coração ao largo; homem, que enfraquecimento de pulmões não impede de amar e viver...

Julião dizia tudo, com um ar brutal, uma tremura na voz, como um homem que fala depois de ter levado uma bofetada...

Ele amava Edmundo como o criador ama a sua criatura... Há um ano que os seus cuidados o desviaram do caminho que o levava ao cemitério. Sem esperanças de o fazer desnortear em tão lúgubre estrada, demorava-lhe os passos e ia-o preparando suavemente para o instante supremo.

Fizera dele um companheiro, afeiçoara-se-lhe duplamente desde que o sabia infeliz. O seu egoísmo de feio, de homem que nunca ousara amar em dias da vida, consolava-se com a precoce desilusão dessa mocidade, que em vão batera com seu ideal a todas as portas da catedral do sonho e do amor...

Enquanto Edmundo lhe falava de uma mulher linda ou de uma boca encarnada, o estudante dizia-lhe:

-- Se queres vir amanhã à Escola, eu mostro-te uma rapariga formosa como um astro do céu, abro-a do pescoço ao ventre, à tua vista, para veres... É tudo ilusão...

Mas bem do íntimo, esse nortista sonhava como os outros, uma saia fazia-o estremecer, e sentindo-se incapaz de ser amado, acontecia-lhe às vezes ficar triste ante um cadáver de mulher, saído das geleiras. Onde o seu escalpelo tantas vezes trabalhara, nunca ele pousara os lábios sequiosos... Tinha vergonha de confessar essa verdade abominável, mas aquele materialista nunca gozara o prazer de uma mulher, nunca, nunca...

E foi com uma desesperante tristeza, uma inveja de infeliz, que se dirigiu ao amigo.

-- Então amam-te, não é assim?

-- Uns olhos que se prendem há cinco dias aos meus...

-- É mais fácil mostrar desejos do que declarar sentimentos...

-- Para que falas assim? É tão consolador, quando se tem esperanças... Ainda há pouco tu dizias ser o desespero um suicídio...

-- A desconfiança é a mãe da segurança... desconfiar de si é o primeiro passo para a virtude.

-- Amar é ainda a única e verdadeira virtude dos vinte anos...

-- Intemperans adolescentia effectum corous tradit senectuti...

-- Oh! Julião! Que velhice posso eu ainda esperar ?...

O teu Cícero é odioso.

-- Nimium ne credi colori...

Edmundo levantou-se.

-- Pareces-me Cláudio Frollo aconselhando o sobrinho...

Julião nem ergueu a cabeça, apenas disse:

-- Sou o teu médico.

-- Assustas-me por maldade...

-- Por dever.

-- Estás impossível; não me dás sequer um remédio contra estes escarros de sangue.

-- A sensualidade acaba depressa com eles...

-- Respondo em latim com a frase do nosso bom Virgílio: Omnia vincit amor. E agora, monge, deixo-te. Não tomo mais arsénico, nem mais iodo, nem os ares de Barbacena ou da Suíça. Vou respirar o mesmo ar que ela respira..., confundir de noite as nossas respirações.

Eh!, que dizes tu a isto, pessimista?

-- Que a tísica é doença contagiosa.

-- Em amor não se vive com os pulmões, senhor dissecador de cadáveres, vive-se só com o coração...

-- Sabes que eu não gosto de versos...

-- Porque nunca achaste uma rima...

-- Tem cuidado com mais essa doença...

-- Queres mais latim? Aí vai Propércio: Amoris vulvus sanat idem qui facit.

-- Pois bem, pareces-me alegre, hoje. Volta quando estiveres mais triste. Sê feliz, mas prepara-te para mais uma cruel desilusão... É isso que te fará mal... O amor, como a Primavera, vivifica, dizes bem...

-- O amor, Julião, se é tão raro no mundo, é porque hoje as ilusões não abrem ao Inverno que arrefece todas as almas. E depois, quem te disse que eu amava?

-- As mulheres são as sacerdotizas do desconhecido...

Todos tendemos ao mistério, o misterioso é olhar de cobra, que fascina... Em amor, os grandes prazeres avizinham-se das grandes dores... Tem mil cuidados... E é bonita, a tua amante?

-- Nem sei bem... Os olhos valem mais que todas as tuas máximas, calcam todos esses conselhos aos pés...

Depois, tu tomaste as coisas muito ao sério... Na minha vida há apenas uma mulher que me olha e uma mulher que lê os meus versos... É simples... Eu quero viver para ter muito tempo ainda sobre mim a luz desses olhos negros, e tempo de fazer ainda muitos versos para que ao morrer sejam muitas as mulheres a saber esses versos...

-- Só?

-- Por agora, só... Há ainda uma cartomante, judiciosa como tu, que me prediz a morte com o fenecer da minha última esperança...

-- Essa mulher diz verdade; até ao último sopro de vida a esperança resiste.

-- Então o escarro...

-- Deixa, não faças caso. Trabalha menos, dorme mais... Foje de ir ao teatro, procura o ar livre e bom dos campos e das matas... O demónio do bem tem asas tão compridas como o génio do mal... Deixa-te ir, e queira Deus que esses lábios que procuram os teus não sejam os de uma boca mentirosa e pérfida que...

-- Esqueces, Julião, os teus princípios e as tuas teorias... Não dizíamos nós que a mulher era a bondade, porque foi criada para a meiguice, para o carinho, para servir na terra de ideal ao homem ? Nós dizíamos que só o homem podia fazer da mulher uma criatura má...

-- E essa, de cujos olhos estás suspenso, Edmundo, nunca por ela roçou o anjo mau as asas sinistras? Nunca pecou? Nunca sofreu? Nunca desesperou e nunca se vingou ?

-- A sua vida é o seu mais ínfimo pecado...

-- Toma tento... A desgraça, o sofrimento, a desesperança envenenam a alma. Tem cuidado de chegar a tua onde renasce o desejo, a ilusão e a esperança a uma outra já contagiada pelo vício... A desgraça bronzeia os corações como a maresia cresta as faces. Não te deixes vendar os olhos. Vale mais às vezes a ignomínia secreta do cinismo que o ideal que perde a razão do homem no seu nevoeiro... Mais do que nunca desprezarás o mundo... pois mais do que nunca o deverás temer.

-- Fala, fala sempre assim, que eu quero ouvir-te...

-- E para quê, Edmundo? Estou a dar-te conselhos que eu desprezaria por um primeiro amor... Não tenho contas a dar ao mundo, abomino-o de mais... Vejo-o através desta ciência que tudo materializa, que tudo reduz a pó... Nós que conservamos aos ventos contrários da desgraça as flores elísias da dignidade e do carácter palavras vãs nos livros dos teus filósofos -- deixamo-las esfolhar pétala a pétala à viração lânguida e tépida dos beijos... Não nos podemos deixar guiar pelo coração...

Ele não conta com as leis implacáveis dos homens...

A sociedade e a justiça apenas compreendem o amor como o contacto de duas epidermes. Ouve, Edmundo, sê feliz, sê feliz por nós dois... Toda a felicidade que eu poderia esperar da terra, dou-ta, guarda-a para ti... Não a entregues às primeiras mãos que te enlaçarem o pescoço... Há mulheres que têm os olhos nas mãos... Sê cauteloso como um avarento... Sim, tu ainda tens direito a esperar, mas lembra-te que o sonho da felicidade é ainda uma felicidade real... Mais te vale viver sonhando que ver esse sonho acabar no teu regaço, sob a tua posse...

Admiras-te, não é verdade?, de eu te falar assim... Mas, que queres tu? Ninguém tem mais necessidade de ver no amor um ideal do que nós, os da medicina... Parece um paradoxo?... Mas a nossa vida, por ser tão material, tão falta de poesia, por isso ela tende a espiritualizar-se platonicamente, esquecendo os corpos e sonhando com as almas... Para nós, isso de alma é ainda um mistério, é ainda um ideal... O nosso escalpelo ainda não descobriu sob o seu gume de aço essa partícula misteriosa da criatura... Disso ainda nós não dissecamos... Quando nós ainda há um mês falávamos destas míseras gerações de hoje, sem fé, sem alma, sem crença, e sem abnegação, como nós desesperávamos! Tudo o que nós arquitectá- vamos de belas leis para reger um povo de eleitos... Lembras-te a comoção com que nós líamos o prefácio de Alexandre Dumas à Femme de Claude? Lembro-me ainda, como se o estivesse a ler agora...

Il ne s'agit plus d'être spirituel, léger, libertin, railleur, sceptique et folâtre: en voilà assez pour quelque temps au moins. Le Dieu, la nature, le travail' l'amour, tout cela est serieux, très serieux, et se dresse devant toi. Il faut que tout cela vive ou que tu meures...

«E o prefácio do «Disciple» de Bourget?... A tristeza com que tu me dizias ao recitar esse poema de amor da pátria, esse hino erguido de mãos postas ao ideal e ao amor, nada haver a esperar de todos nós, que deixámos abater o Império sem uma causa que não fosse a ambição de um punhado de homens, e que hoje deixámos a República arvorar pendões que não aqueles em que palpitavam as nossas tradições, as nossas únicas glórias, compradas à custa de tanto sangue pelas gerações passadas... Império, Monarquia ou República, é preciso que lhe votemos o mais abnegado dos amores, a essa Pátria, de quem ninguém se lembra... Ideal! Só à custa de muito ideal a poderíamos reerguer... Por isso eu sou feliz em te sentir amado... O amor dulcifica o coração... Quando se é feliz, uma pessoa tende forçosamente para o bem como as asas do pássaro tendem a elevá-lo... Quando uma pessoa sente um coração de esposa ou de amante bater de encontro ao nosso peito, não se pode desejar a carnificina do Sul, não se pode sofrer a morte de irmãos sacrificados à ambição de um homem ou às palavras de uma lei... Amar a pátria não é bradar contra o estrangeiro, que definitivamente é entre nós a virtude, a constância, o labor e o exemplo... Não, não é nada disso!... Vai, Edmundo, e não esqueças que tens a cumprir a penosa tarefa de arrancar ao mundo a felicidade de duas criaturas... Uma amante tem isso de bom, que leva aos braços da noiva... Uma amante é a aprendizagem do amor... Faz o possível, irmão, por voltar mais cheio de esperança, de virtude e de crença... É às mulheres que está confiada a sorte e o futuro da pátria... Sê feliz...

E Julião limpou à manga duas lágrimas que lhe enchiam os olhos...

-- E tu ? -- perguntou Edmundo.

-- Eu fico a estudar em como é futil a vaidade dos homens, naquele grande livro que não mente...

E apontava uma caveira pousada em cima da mesa.

-- Tudo se reduz a essa miséria, ao nada...

-- Não! -- disse Julião--, tudo se reduz a Deus!...

Aquele estudante de Medicina acreditava em Deus!...

Edmundo, às sete horas, saiu da redacção, dizendo ao companheiro que não voltava mais essa noite.

Jantou sem ver aqueles olhos onde ele já agora deixara abismar toda a sua vida.

Enquanto esperava o bonde, entrou numa loja, comprou meio quilo de chá, um bule de cristofle e duas gravatas que o tentaram.

Seguiu para casa, carregado de embrulhos, gozando a felicidade da velha, ao vê-lo chegar antes das nove horas, muito antes do sereno da meia-noite, de que ela falava com tanto medo.

Devia-lhe bem aquele momento de alegria.

Até ele estranhava essa dedicação fervorosa da velha criada, tratada um dia à porta de uma casa de penhores, faltando-lhe dois mil réis para retirar uma cruz de oiro que já fora da mãe.

Era lavadeira. Ele dera-lhe os cómodos baixos da casa, a sua roupa a trinta mil réis por mês e outro tanto para lhe arrumar em cima a sala e o quarto. Demais, ainda lavava para fora, ia fazendo a sua vida...

Mas, sobretudo, esse interesse de mãe que ela tomava pela sua vida espantava-o. Nunca a recebera em casa com a ideia interessada de que ia pagar barato uma dedicação sem preço.

Desde o dia em que tivera um ameaço de hemoptise, vira-a afectuosa, dedicada, passando as noites com o Julião à sua cabeceira, para lhe dar os remédios, a água morna, mudar as travesseiras aquecidas pela febre, tratando-o com os carinhos que se desperdiçam só com os filhos, extremada, aflita, chorosa de o ver sofrer, sem cura nem remédio...

De cabelos quase brancos, uns olhos castanhos, bondosos e invadidos de luz, aquela velhinha tinha neles a alma, a sua grande alma de simples, grande da sua humildade como um astro na pequenez com que o vemos...

A sua vida dividia-se entre a saudade dos filhos, largados longe dela como os pássaros que deixam o ninho ao sentir as asas, a gratidão a Edmundo, e um amor preso a uma gaiola onde cantava um pintassilgo ou um canário...

Três frémitos de asas aninhadas nesse coração virtuoso e puro...

Quando desceu do bonde e abriu o portão do jardim, ela, lá de entre as mangueiras, alumiando com uma vela, falou.

-- Já tardava, senhor Edmundo.

E ao entrar no quarto ele viu as jarras cheias de rosas e de cravos, e numa mesa pequena em que de costume rolavam ilustrações e jornais, um grande guardanapo estendido, muito branco e a chávena, e o açucareiro, a manteiga, e dum vaso pequenito de bronze um bibelot que ele tinha havia dois anos, um ramo de cravinas vermelhas rescendia num grande riso alegre de cor, aberto na loura do guardanapo. Nunca soubera até ali o que eram flores o pequenito vaso de bronze...

Ele desembrulhou o bule, todo reluzente como prata, pequeno, para duas chícaras, e entregou-o à criada com o pacote de chá, recomendando que o queria bem forte...

E logo que os seus dedos passaram na seda das gravatas, lembraram-lhe os olhos negros como abismos, e no quarto, todo cheiroso das flores, lastimou não se viesse sentar agora ali, com ele à mesa, aquela mulher de olhar magoado que, era bem certo, queria dele alguma coisa...

Como devia ser bom viver-se a dois, uma vida muito ignorada de amor, muito escondida, num grande egoísmo de paixão, naquela casa toda aromada de rosas e cravinas, à sombra carinhosa das mangueiras, à luz suavíssima dos grandes olhos profundos, velada pelas pestanas compridas...

Espreguiçou-se, veio até à varanda, à espera do chá, e daí, sem saber que fazer, atirou-se a uma cadeira, pegou de cima da mesa uma Gazeta esquecida e deixou-se a ler uns versos admiráveis de Bilac: «As Viagens», que já relera vezes sem conta...

Depois, de pé, olhou para o quarto e estirou as mãos, num bocejo que denunciava aborrecimento!...

Deitou-se na cama e nela quedou-se olhando para as tábuas do tecto.

-- Ó senhora Maria!...

-- Senhor...

-- O chá ainda não está pronto?

-- Quase... Estou fervendo a água...

-- O canário canta bem?

-- Canta, sim senhor...

-- E de noite?

-- De noite só as corujas...

Quando a velha subiu com o bule e as torradas, Edmundo dormia. Foi preciso acordá-lo.

-- Vê como anda cansado?

-- Sim, vejo sim, é verdade...

-- O que o senhor precisa é vir sempre cedo para casa...

IV

Ela não era bonita! Uma beleza vulgar de soldado, dessas que podem levar um cadete a matar a pranchadas um clarim do regimento... Não era só morena, como pensara, tinha o sangue mau da raça negra, mas parecia ter um cabelo admirável, fino como seda, liso, basto e castanho. Os dentes eram brancos, iguais, mas chatos como os de uma gata. O rosto tinha sardas que o creme «Simon» e o pó-de-arroz escondiam a furto. Ela também não parecia fazer um grande empenho em velar os seus defeitos. Os lábios eram vermelhos como flores de álcea, e o nariz, como o dos felinos e das voluptuosas, abria de contínuo umas ventas frementes de animalejo feroz. Tinha nos gestos o abandono e a preguiça da crioula. Era indolente até no falar. Os seus peignoirs largos, de grandes mangas e sem cinta, nada lhe deixavam advinhar do corpo.

Nas orelhas, dois pequeninos brilhantes fuzilavam sob as repas finas do cabelo, e na mão direita outros resplandeciam no moreno da pele de um dedo comprido e fino. Descuidosa, vinha de sandálias para a mesa, umas sandálias de cetim azul, que faziam realçar o pé pequeno, calçado numa meia preta de fio de Escócia...

Tudo nela acusava a mulher vulgar que nasceu na roça ou pelos subúrbios, sublinhado por um grande encanto misterioso, coado sobre ela toda pela luz dos dos seus olhos profundos como floresta virgem.

Não tinha essa banalidade das mulheres que chegam de Paris, de olhos mortos, o coração já com rugas, bem estudadas na ciência do beijo, da carícia e do amor.

Os olhos, enchia-os uma profunda escuridão de tempestade, prometendo relâmpagos.

Os dentes pareciam dever morder em certos momentos e aquelas narinas de bicho bravo falavam alto por aquela almazinha escondida. Então os beiços, dera-Ihos a natureza para beijar, vermelhos como as flores de cactos: era de recear que deixasse ulcerado de espinhos aquele que gozasse o seu perfume... A pele, quase branca no rosto, devia cobrear-se no corpo, desde a garganta às pernas... E tudo nela era bravio, respirava a sertão, lembrava o animal da mata. Edmundo contemplava-a enquanto ela comia, e um ódio enorme enchia-o, um ódio por aqueles peignoirs que não traíam do corpo nem a pequenez dos seios, que deviam ser rijos como frutas verdes.

Só daí a dois dias ele conseguiu vê-la descer, ajustada ao espartilho, e ficou preso àquele corpo delgado, terrível, de peitos baixos e cadeiras que quase deslizavam sem se pressentir da linha apertada da cinta até a recta da saia de gorgorão preto.

Os cabelos admiráveis, em que seria delicioso enterrar as mãos, penteados na nuca, num novelo de tranças, deixavam a descoberto a torre lisa do pescoço, perfeito, que fazia baixar por ele o pensamento, advinhando logo abaixo um ninho delicioso para os beijos.

Edmundo ainda não sabia o nome dela. Mas decidira-se. No dia seguinte ao almoço mandaria um cartão pedindo uma entrevista...

Não suportava mais a persistência daquele olhar que confessava um capricho. Havia de o cobrir de beijos.

Queria ter sob as mãos aquele cabelo desfeito e perfumado de mulata, fino como cabelo louro...

Já não lhe tinha medo. Arreceava-se dela, mas com a voluptuosa esperança da sua grande passividade de paixão. Sentia-a quase digna de ser o seu homem, ferina, de olhar ardido, bárbara e má como um jovem tigre...

E agora fitava-a desassombradamente, os olhos bem pousados nos dela, numa grande confissão libertina, e ela torturava-lhe por sua vez a persistência insolente, orgulhosa de lhe ter vencido o fingido desdém, que até ali aparentara ante os seus olhares de febre, que cevavam na contemplação dele os seus desejos.

Assim, durante todo o jantar, os olhos de um foram o pouso dos olhos do outro...

Essa noite passou-a quase em claro, relendo páginas esquecidas de livros queridos, La Confession d'un enfant du Siécle, Rolla, Sapho, Le Disciple..., e as horas correram ao voltar as páginas de Bourget, Daudet e Musset.

No silêncio meio iluminado do quarto, as rosas desfaziam-se nas jarras, as pétalas caíam brandamente no mármore do lavatório. Os cravos murchos rescendiam.

Lá fora, apenas de longe a longe o rodar de um bonde acordava a calma profunda da escuridão.

Deitado, a cabeça enterrada nos travesseiros altos, deixara enfim cair o livro nos lençóis, os olhos cerrados, numa beatitude feliz.

Dessem-lhe o nome de Lamartine, a glória de Hugo, nada trocara pela posse esperançada dos olhos pretos e fundos.

No tropor do seu sono sobrenadava uma como embriaguez dos sentidos... Antevia-se entre os braços morenos, atirado sobre aquele corpo ardente e que se estorcia como um escorpião a quem esmigalham a cabeça... Nos beiços sentia os lábios dela, colados como uma sanguessuga, e por sobre os dois, numa desordem, os cabelos longos e espessos como uma vaga, perfumados a violeta, e sob os seus olhos os olhos dela, expirantes como os astros ao nascer da alva, o baixar e erguer das pestanas, como palmares balouçados pelo vento, toda a agonia das pupilas, rolando sob as pálpebras, num vaivém de clarões, como relâmpagos entre nuvens, em noite ardente de Verão.

Cleópatra, a Rainha de Sabá, Nimsuba, deviam ser assim como ela era, abrasada pelo sol, de corpo de bronze, como uma deusa, de olhos ardentes como jóias, como o espículo de uma falarica, como na escuridão, bárbara e imperiosa como um beluíno, terrível como uma víbora, indómita como um condor...

De olhos fechados, sentava-se no trono dos Faraós, entre peles de felinos e sedas roxas bordadas a lotos de oiro, de coroa entre os cabelos rebeldes, a coroa do Egipto, onde a áspide ergue a cabeça viperina, e embruIhavam-no numa calasiris de estofos misteriosos, os dedos faisantes sob uma aluvião de pedrarias rútilas, a garganta também, os peitos arfando sob os peitorais, que assemelhavam escudos defendendo o coração... E de entre todo o luzir chamejante das jóias, duas luzes, nos olhos, como sóis num céu fervilhando de estrelas resplandeciam...

Despia-a, trajava-a de rainha de Sabá, a cabeleira enrolada ao pescoço, das orelhas pendentes duas enfiadas de carbúnculos e esmeraldas que lhe batiam os peitos desnudados, e aos ombros um manto que a embrulhava da cinta aos tornozelos... Rojava-lhe Salomão aos pés, balbuciando cântidos, a estrela-de-sete-raios da mitra hierática, o sinal do poder e da luz, arrastando nas lajes...

Pelas cassoletas esmaltadas de pedras de Farsis, as saras, de joelhos, queimavam o pó de mirra e sândalo vermelho, os aromáticos árabes, os grãos de incenso Flabelos espadanavam os ares com as asas de cisne branco e cauda de pavões sagrados do Hermon, e mulheres nuas faziam soar os címbalos de cobre, os Kinnoros de nervos e o timbril de vinte cordas... Os candelabros fumegavam ergendo a luz nos braços estendidos, incendiando o rosto sereno da rainha...

Estendia-lhe aos pés cenários de grande ópera, a sua imaginação fantasiava-a com a fantasia de um asceta que sonha o paraíso...

Dava-lhe a India, com os elefantes, as religiões, as florestas, os magos e o Ganges -- a serpente líquida...

Seguia-a de sacerdotes e pontífices de Kali, a Deusa do Desejo e da Morte, e fazia-a caminhar ao luar, carregada de rubis, escorrendo luz da gargantilha aos dedos dos pés, matando os prisioneiros de desejos, descendo nua aos cárceres, expondo-se aos presos algemados, suplicando-os com a formosura da sua carne...

Era um delírio de grandeza numa febre dos sentidos...

Pouco a pouco aquela mise-en-sene caiu, e sonhou-a tal qual ela era... Arrancava-lhe o peignoir, os grampos dos cabelos, e enfurecia-se contra a alvura das saias, das camisas, fremente por tê-la só em carne, de pé entre os cortinados, de ventas dilatadas, olhar ardido, dentes à mostra e braços estirados, numa bebedeira de paixão, os seios balouçando como ondas lascivas...

Ao almoço perguntou ao criado como ela se chamava.

-- Honorina.

Riscou num cartão três linhas ousadas.

«Queria falar-lhe às dez horas da noite.»

E sem esperar resposta saiu para a rua.

Passou o dia pelas redacções, ouvindo falar mal de toda a gente.

Discutiu a decadência com os decadentes que nunca tinham lido Sar Peladan e Gary de Lacroze. Falou-lhes da Ethopea do grande Sar e teve mesmo que explicar-lhes a palavra misteriosa: «Epthos», costume, «Poien» fazer expor...

Riu-se deles todos, atirando-lhes à cara a sua lenta leitura da Hicroflania e Estética da Rosa Cruz. Demonstrou-lhes a complicada teoria do esquema de concordância nos dois septenários supremos da obra de Josephin Pellanan. Esteve contando a diátese moral e mental da decadência, «Merodack», cúmulo da vontade consciente, tipo de entidade absoluta; «Alta», protótipo do frade em contacto com o mundo: «La Nive», o andrógina...

E o seu olhar vago de meio-místico perdia-se numa contemplação pasma, ante as ideias loucas da seita.

A sua arte era uma abstracção de ascetas, para os quais o amor devia ser místico, a beleza um êxtase, a realidade um passado longínquo. A lei que proclamava o canto gregoriano, as harmonias alucinadas de Palestrina, as missas do papa Marcello, o idealismo de Leonardo da Vinci, que incensava o catolicismo como religião de dogmas, desde que a criança fosse compreendida pela espiritualidade contemplativa de uma Santa Teresa de Jesus... Toda essa arte de requinte e de insexualidade da «Sanctis Ordinis Charta Esthetica Nova», passou de relance, com trémulos frios na sua voz sumida...

-- A arte é uma lira! É isso, é isso... Tirar som das palavras, como fumo das pedras de incenso! -- exclamava um decadente, os olhos em alvo...

Edmundo teve então um grande riso...

-- Sim é verdade, se a decadência latina não tivesse canonizado a frase célebre -- «Les grands sentiments viennent des idèes...»

A decadência é a única crença a ensinar à alma!

-- dizia um outro.

-- Pois façam-na professar às irmãs e filhas!

E todas a quem embalara com a formosura das suas frases olhavam-no com raiva, esse artista que tinha gargalhadas para a sua fé, para as suas crendices, para a sua religiosidade, lá deles...

Edmundo fugiu-lhe a tempo, não sem ouvir um magro, siflítico repórter por modo de vida e literato nas horas vagas, um desses piolhos que fazem de rufiões de actrizes e intriguistas de grupos, cuspir-lhe nas costas um «Imbecil!», resmungado entre dentes por lavar há quinze dias.

Nem se voltou, tinha nojo...

À porta de um café uma voz chamou-o.

Era o Flávio Reis, um músico.

Alto, magro, picado das bexigas, aquele pobre incompreendido tinha nos olhos uma vaguez de teutão, contemplativa e fria, através dos vidros dos óculos, de aros de ferro.

O hábito de tocar órgão na catedral dera-lhe uma curvatura ao peito magro e retraído e todo o seu ar tinha um quê de organista de igreja, uma abstracção de místico, de quem tinha os ouvidos sempre prenhes das harmonias pausadas, profundas, da música sacra.

Edmundo afeiçoara-se-lhe, compreendendo-o infeliz.

Tinha mãe e irmã em casa a sustentar... Trabalhava para elas mais do que para si, compondo valsas, romanzas, fantasias...

Em todos os seus trechos uma grande melancolia alinhavava as notas, e um lamento era raro não chorar a meio de uma valsa, num sumido soluço que dava frios...

Em todas as suas melodias, um como fremir de reza passava esvoaçando... Havia sempre bem no fundo da sua música uma irredusível e impalpável essência de coro gregoriano, numa inseparável recordação teogónica, uma contemplação ante altares carregados de círios e enevoados de incenso, com um Cristo ao topo, desfalecendo na cruz, todo chaguento.

O organista parecia escrever a música do amor, a música para dançar, na penumbra do coro, à luz coada pelos vitrais, ante o templo silencioso, onde apenas nas lâmpadas as luzes velam os deuses.

Um prestígio doloroso escorria nos acordes, como choro de criança perdida no vozear de uma multidão, e quando Edmundo ouvia tocar ao piano uma das suas valsas, que eram dessas que não dão vontade de dançar, pensava sempre e melancolicamente na alma orvalhada de sonhos tristes e de pressentimentos que houvera soluçado aquelas notas; lembrando-se quantas palavras de amor e de paixão não iam elas despertar quando os pares se deixam balouçar na harmonia como uma barca nas ondas de um mar manso... Calculava o suplício desse artista pobre e desgraçado, ouvindo a desoras, ao passar numa rua, sem haver jantado, um piano soltar por todas as cordas a sua música numa toada alegre, regendo as danças, desvendando segredos, fazendo cair no ombro de um homem novo uma cabeça de mulher loura... A sua pobre alma dilacerada recordaria então os momentos dolorosos que tinham suspirado aquela valsa, toda mascarada da alegria que ia nessas notas escondendo uma inspiração toda em lágrimas...

É triste ser-se artista para tão pouca coisa. Mas a arte parece-se nisso com a mulher, quanto mais faz sofrer mais é estremecida e mais amada.

Quando Edmundo encontrava o seu amigo, iam sempre os dois a uma casa de música, e esqueciam-se em frente ao teclado de um piano quartos de horas a fio... 0 músico sentava-se no mocho, concertava os óculos, limpava as mãos no lenço e deixava-se cair nas teclas, acordando as harmonias que primeiro tinham despertado bem ao fundo da sua alma, como sonhos que era preciso traduzir...

Entraram ambos no Pascoal.

-- Tens trabalhado muito?

-- Num poema sinfónico, para grande orquestra...

-- E os seus olhos de bruma esclareciam, cantavam todo o seu sonho harmónico...

-- E o assunto?

-- Nero, uma orgia de Roma com o imperador tocando lira e as bacantes cantando, batendo címbalos de oiro...

Um êxtase difundia-se na sua fala, e ele ia cantando talvez uma leitura de mestre que tentava reproduzir em acordes... Havia de trazer para as cordas dos violinos o rugir das túnicas e o frémito das púrpuras... Queria ouvir sistros e heptacórdios na orquestra...

-- E tens alguma coisa feita?

-- A marcha e uma coral de cimbalistas...

Mas parou a meio, batendo os nós dos dedos no mármore da mesa...

-- Dão-me licença para ouvir, já sei... «Um músico e um poeta descuidosos, cai um crítico dos céus tempestuoso»...

Era o Salvador Machado. Em 1830 decrépito, que criticava os novos ao fim da vida. Quando fora da proclamação do imperador rimara uma ode célebre que correu províncias e não galgou o Amazonas com medo de se afogar... Nos bons tempos em que se faziam odes!...

Edmundo gostava de o ouvir falar nos seus clássicos e verberar a descompostura dos novos métodos de exprimir o que se sente...

-- Que novidades?

-- O Coelho Neto, até que finalmente, acabou o Rei Fantasma.

-- Um grande livro... -- dizia Edmundo; olhando-se ao espelho, concertando o nó da gravata.

Reis apoiava com a cabeça...

-- Qual!... Parece-me obra escrita em Versailles, sob a protecção de uma duqueza!... Tem estilo de perruca e pó de Marechala!... É obra de bastidores com luz eléctrica. No género, Trianon é excelente...

Aquele velhinho falava sempre assim... Agudo, atilado, com ares augustos, e apaixonado eterno de Racine, conservava na fala os arrebiques de um tempo que passou com as gravatas à Morny e o queixo escanhoado.

Conhecendo Voltaire e Jean Jacques como as suas mãos, primando na compostura do sorriso a esconder numa fingida ironia cínica os dentes meio abalados, esse Zoilo era todo etiqueta, criticando sempre com a diplomacia de um Poidenot, sem mau humor, sem demasiado bom-senso, mas, o que é mais raro ainda, com uma clareza de Rabelais.

Acentuava bem as frases, calcando as palavras «No género, Trianon é excelente...»

Edmundo, que acabava de arranjar a gravata, soltou uma exclamação...

O crítico abriu vagaroso a caixa do rapé, e sorvendo a pitada, num gesto copiado em alguma gravura do Segundo Império, sentenciou, puxando os punhos.

-- O autor teve medo do romance histórico, da reconstrução.

-- Nunca pensou mesmo em fazê-lo...

O velho levantou a cabeça, e com o seu fino sorriso...

-- Como prova ?

-- Quem fez vinte conferências na Escola de Belas-Artes sobre o Egipto, e estudou cinco meses a terra dos Faraós...

-- Veja bem, a Salammbô, reconstrução de Cartago, é o manancial onde ele se foi inspirar...

E com todo o desdém de um fidalgo de há três séculos por um menestrel, o crítico ajuntou:

-- Romance de cronista...

Edmundo tinha ainda nos olhos todo o fulgor desses dez capítulos de sonho, embebia-se na recordação dos trechos mais formosos da grande fantasia, que lhe deixara o espírito sensibilizado como se ante a vista tivesse tido uma visão de pedras preciosas...

E num momento o livro abriu uma por uma as suas páginas, num deslumbramento...

Era a festa de ísis, ao rebentar a Primavera. Caindo a noite, o sol escabujante derretia-se na neve imaculada da Har-y-ar nevada, quando a deusa vem serena, entre a turba dos astros, e Amani, o rei trágico, essa alma penada atravessando o drama como um funeral de amor e felicidade, aparece ao alto da escadria espelhante, de lácteos lajedos esquartejados às montanhas da Numídia, mármores, jaspes e basalto, flanqueada de esfinges, entre os sacerdotes, as flabelíferas, concubinas e líristas, entre um nevoeiro de perfumes e um tremor crebro nas éneas cordagens das sambucas...

O velho deixava-o falar, o queixo entre as mãos, vendo o entusiasmo da mocidade, balouçando a cabeça aquela rajada de períodos, com o seu sorriso irónico de libertino que conhece os vinte anos dos rapazes.

Edmundo, tomando fôlego, continuou a cantar o livro apaixonado.

-- Que visse a distribuição da esmola ao rebanho ululante dos mendigos, dos escravos e dos velhos, que se arrojam como ondas pelos degraus enormes... Descrição a pulso firme, forjando as frases a visão tremenda...

O Zoilo teve um gesto de juiz em Supremo Tribunal.

-- Cena arquitectada na mesmíssima impressão do capítulo primeiro da Salammbô: a escadaria, os sacerdotes e as sacerdotizas, o rei ao cimo, entre a névoa dos amschifs, como um fantasma, imóvel, absorto, e depois em baixo numa brutalidade, aí de dor, ali de barbárie, a grande massa vozeirante...

-- E então? -- perguntou Edmundo, por convencer.

-- É o mesmo fim de acto... A filha de Amílcar, seguida dos pontífices eunucos de tanit vibrando enormes liras sob os dedos trémulos carregados de anéis, ao alto da escadaria das Galeras, falando aos mercenários, à luz dos jardins incendiados, por entre o rugir dos leões da Hircânia e o urro dos bárbaros do Norte...

Edmundo atirava as cenas, os olhos fulgurantes, os cotovelos apoiados na mesa...

-- A partida de Amani, na cauja de cedro, cujos remos esperneiam nas águas como as patas de uma enorme escolopendra rutila... À proa uma esfinge ia arreganhando com as garras de marfim a rota da nau real... Ao peito do senhor hierático e absoluto refulge um escaravelho encravejado de pedrarias, o nerus debruça-se com olhos de carbúnculos sobre a cabeça pendida do Faraó, que vai de pé, na popa, como um deus... Um bando de concubinas esplende, seminuas, os braços estirados entre fumaças de aromas, cantando... Pelo ar erguem-se com rutilações de sol as plúmulas dos flabelos, como asas pandas de miraculosos pernaltas. Estralejam os cordeames das sambucas e harpas, e tinem sistros, retinem tintinábulos...

-- Parece uma ópera -- balbuciou Reis.

-- É, sim, é uma ópera executada na orquestra do estilo...

-- Estilo Bernardo Palissy talhando o Hércules de Farnésio...

-- Que quer... senhor Salvador, nem todos podem ser da sua opinião...

Sim, concordo, mas basta olhar para ver os defeitos. O romance foi escrito com proporções mesquinhas.

A dificuldade da descritiva é um ardil para dar margem a um delírio de fantasia, sem valor... Em que país antigo se passa tudo aquilo? Amahôr é o Nilo? Soir é Alexandria? Malayat não é o Schahabarim da Salammbô?

A menos que toda essa pompa não esconda em Amany o imperador exilado! Aqui também houve escravidão!...

Edmundo levanta-se. Tinha que trabalhar ainda, a discussão ficava para outro dia...

E saiu, deixando o crítico com o músico, dizendo na sua fala de santidade crítica:

-- Veja, senhor Reis, «essas concubinas de seios dourados e outras sarapintadas como panteras»... Na terra onde os peitos se guardavam em peitorais!...

Eram quatro horas da tarde. Às esquinas falava-se na doença do Marechal, meio morto em Cambuquira...

Edmundo entrou na redacção, abriu os jornais.

Uma grande preguiça tolhia-lhe os movimentos... Passava os olhos distraídos pelas notícias de reportagem, ia fazendo as emendas, acrescentando as vírgulas.

Um homem subiu, indignado, a contar-lhe um facto passado num bonde de Itapagipe... Uma senhora tinha sido desfeiteada por um cocheiro... Pouca vergonha!, grunhia o sujeito, um gordo, de olhos piscos...

Edmundo prometeu falar no jornal e não pensou mais nisso...

Uma inquietação fervia-lhe no sangue. Tinha pressa das dez horas da noite... Os desejos de posse queimavam-no e pensava, a sorrir, numa mulher casada, de olhar negro, que durante dois meses o tinha desejado, maltratando-o com os olhos acesos, até em frente ao marido...

Olhos de mulher!... Tinha conhecido tantos!...

Desde uns verdes sombrios, frios e admiráveis como jóias, até os olhos sinistros de Mona Lisa del Giacondo, desses olhares em que há negrumes de mistério, até aos olhos secos, em chamas, e os olhos azuis em êxtase...

Olhos verdes são olhos de rainha; azuis, olhos de monja; mas bem negros são olhos de mulher...

Todo o seu espírito estava replecto da lenta e custosa angústia da «espera». Impaciente, os seus vinte anos viviam naquelas horas um destes momentos atordoadores da existência, em que se respira de narinas abertas o odor di femina, uma dessas bebedeiras de sangue novo, em que o menor ruído é um beijo, e se não acredita que a boca para outra coisa possa servir senão para beijar lindas mulheres...

Como foram longas essas três horas de luz, antes do descer calmo da noite...

Às sete horas, sem poder mais, levou um companheiro a jantar com ele no Papagaio, o restaurante dos artistas, de todos os rabiscadores de jornal.

Os novos, a decadência, escolhiam as mesas da esquerda...

Lá estava Silva Lima, o eterno impotente de concepção, falando na sua voz nervosa com Lúcio de Meneses, um artista rebuscado mas convicto.

Visconde Caminha, com uns ares de gentil-homem, sorria ao lado, com a sua barba loura e um grande posse de subtileza no olhar vicioso.

Ramalho de Alencastro, de monóculo, fumava charuto, jantando com um tenente da Guarda Nacional, e Max Linz fervilhava, com os olhinhos de rato, sentado só a uma mesa, bebendo vinho virgem, com um ar íntimo de gerente de hebdomadário, trincando um bife à inglesa.

Havia ainda Alberto de Aguiar e Sousa Cruz tomando café, discutindo Verlaine, enganando-se uma ao outro, nunca tendo lido nenhum deles as poesias do francês célebre...

Toda aquela gente dizia agora mal dele, Edmundo sabia-o, desde o primeiro, que quase lhe devia um lugar de redacção, até ao último, que não havia cinco meses lhe oferecera um livro com a mais adorável das dedicatórias...

Edmundo não lhes queria mal por isso... Achava-os pisando caminho errado, combatia-os lealmente, assinando os seus artigos de crítica, não negando talento ao autor de D. Carmen, ao poeta dos «Broquéis» entre todos, amigos e admirador desse outro que havia escrito a «Litania-Fúnebre», um grande farceur, esse rindo-se surdamente do grupo que lhe chamava Patriarca, não se dando muito ares de chefe de tribo, usando belas gravatas, bem num grupo, inconveniente às vezes nas casas de família, «demoches» dos pés à cabeça, conservando a linha, incapaz de tomar a sério qualquer coisa, conhecendo como se desconta uma letra endossada por pessoa séria, célebre, sarcástica além de tudo, com os defeitos de toda a gente e uma viagem ao Paraná, que o despachou um dandy perfumado, e com alfinetes ricos nas gravatas de seda...

Edmundo jantou depressa e atirou-se ao «Recreio», onde a Pepa levava o Tim-Tim pela centésima vez...

Mulheres no jardim miravam os homens, oferecendo-se. Bebia-se debaixo das árvores, e no botequim. A sala exalava um grande hálito morno, toda enluarada de gás, e a voz da actriz célebre cantava por entre o burburinho, uma voz de falsete, já velha e gasta, mas onde arrastava uma canalhismo endiabrado, num timbre abafado e quente.

Sozinho, espiando os camarotes, Edmundo aborrecia-se solenemente quando viu entre os bastidores três artistas, que o chamaram.

Tomou o corredor que ao lado esquerdo da escada leva ao palco, entre montes de cenários atirados em terra, bambolinas, lonas com borrões deflores negras e sinistras, telhados em dependuro e a sala de Danglars suja de pó, rolando ao pé das vagas furibundas de um mar de pano com rasgões.

Subidos os dois degraus, passou em frente dos camarins pelintras como alcovas da Rua do Senhor dos Passos, onde em cadeiras mancas arrastavam trajes de labrosta e lenços de assoar, quando uma corista chispando cólera pelos olhos se voltou com «ssssss» nos dentes.

Pepa, à luz da ribalta, cantava o célebre

Nesta estação d'amores, Nesta estação das flores...

Um silêncio fizera-se na sala, e os comparsas espiavam entre os bastidores, cheios de unção, numa religiosidade, a directora em cena.

As coristas, súcia de fêmeas apanhadas um pouco em toda a parte, Rua do Lavradio e Rua da Ajuda, pavoneavam-se, mostrando as pernas e a raiz dos seios, a escorrer carmim, com diademas de lata em cabeleiras de anjos de procissão.

A Carlinda, uma baiana de porta aberta, fazia graças a um actor que lhe apalpava os braços gordos.

Os três foram sentar-se no camarim da Pepa, uma saleta forrada a papel carmesim, com leques preparados nas paredes, o retrato de Dias Braga entre dois bicos de gás, um espelho ao fundo, frente ao divã, e a um lado, atrás de um reposteiro, a alcova da actriz, onde uma negra arrumava saias de seda, chapéus, meias, mantilhas, farrapos de cores, um xale de manola, uma farpela de toureiro... No tocador arrastavam bouquets, cartões, entre os frascos de essência, o estojo de caracterização, a pata de lebre, as caixas de pó-de-arroz e alfinetes...

Nisto, a Pepa entrou, entre o ruído do aplausos.

O pano descia, la um rumor de passos e cadeiras pela sala, e no palco as roldanas rangiam içando as lonas.

Apresentaram-no, puseram-no logo à vontade ante a diva, que cruzava as pernas acendendo um cigarro.

-- Jornalista ? -- perguntou-lhe ela olhando-o.

-- Sim, minha senhora...

-- Tão novo! Parece triste..., desgosto de amor?

-- Ah!, não, é doença que ainda não tive...

-- Então não gosta de nenhuma mulher?

-- Sem amor por nenhuma...

-- Nem por mim ?

Ela dizia tudo aquilo, rindo-se com a sua pronúncia de alfacinha, desatando as fitas do chapéu.

-- Bem, adeus, vou-me vestir... E sumiu-se atrás do reposteiro, levando consigo um grande odor de «musc...»

-- Que horas são? -- perguntou Edmundo.

-- Quase dez.

Despediu-se, tinha que ir...

-- Fica...

Não podia, precisava sair...

-- Mulher? -- perguntaram...

-- Talvez...

-- Ah!, então vai, não te retemos...

Edmundo atravessou a cena, desceu ao jardim.

Caía uma chuva miúda e fria. Rente às paredes seguia a Rua do Espírito Santo para comprar cigarros no Largo do Rossio. Tílburis rondavam em frente às portas do Variedades. No S. Pedro, onde se cantava a «Gioconda», um grande ruído de orquestra e coro saía. A meio do largo, o cavalo e o imperador estavam na treva, entre um punhado de árvores humildes, esguias, e ao longo das casas, desde a esquina da Rua do Espírito Santo à Rua do Lavradio, o vício abria portas, fazendo concorrência ao açougue.

Na soleira dos cafés e restaurantes, gente olhava a chuva a cair, as mãos nos bolsos, fumando.

Edmundo entrou no Stadt Munchen, pediu um kummel russo e um pacote de «Virgínia». Enquanto tomava o licor, os seus olhos erravam de mesa em mesa, tristemente...

Quantas vezes, depois do teatro, não se sentara ali invadido de desesperança e desalento, perdido na sua solidão de ser que não preocupa ninguém, o coração vazio, vendo cheio de inveja as mulheres entrar pelo braço dos homens, felizes esses, que tinham uma cabeça loura onde encostar a deles!... E pensava dolorosamente que todos amavam, que todos eram amados...

Quanta vez não tinha seguido com a vista os carros que galopavam para Botafogo, à meia-noite, depois da ceia onde estalou champanhe!

Desesperava sem razão; mas esses momentos cruéis tinham-no tornado sentimental, aturdido de mágoa, e nunca mais se poderia apagar aos cantos daquela boca o sorriso triste cavado lentamente pelo martírio...

Tinha sofrido tanto, e tão cedo! Essas feridas da mocidade crescem sempre com o homem. Era demasiado tarde para o arrancar ao terrível amargor, pouco a pouco enraizado na sua vida... Sonhava!...

0 sonho naquela idade é a sentença fatal. Aos vinte anos não se pensa, vive-se. 0 vinho da desgraça enfraquecera-lhe a cabeça... Já tinha conhecido o hospital, a miséria e o abandono, e a alma humana, má, egoísta, perversa... Tinha uma tísica a abrir-lhe a cova e um sangue fraco a arrefecer-lhe as veias, la ter com uma mulher, o coração batendo como se lhe dissessem: «Está ali a tua mãe, que não vês há três anos»...

Aquele amor, abrindo os braços mornos à sua pobre desesperança enregelada, crescia à sua vista... Parecia-lhe ter encontrado alguém com piedade dele, e bem-dizia a mulher que sobre o seu isolamento deixara cair um longo olhar de desejo... Sem paixão, ia beijar agradecido as mãos dessa mulher... Todo o seu instinto de volúpia adormecia... Sentia-se bem, como um doente erguido de uma enfermidade perigosa e sem esperança de cura, e um dia volta a ver as árvores e o sol...

Não se lembrava da sua mocidade, do seu grande olhar triste, de tudo o que em si levara essa mulher a desejá-lo, como um capricho a contentar... Ela é que ia ficar-lhe agradecida de ter ido lá para satisfazer-lhe a vontade... Queria tê-lo, ele entregava-se. Pelo seu lado, não o amava também; pensara no prazer de gozar aquela mocidade tão cheia de poesia e de tristeza, por uma noite, mais nada...

Edmundo, na sua ingenuidade, julgava-a à sua espera, ansiosa, depois de um dia inteiro levado a pensar só nele...

E assim essas duas almas aproximavam-se enganadas, inconscientes do que poderia resultar do seu encontro.

A mulher perfumara o corpo. Edmundo só cuidava do coração, pegando fogo ao incenso de ilusão com que o encheu.

Ele caminhava à comunhão de uma felicidade sonhada, ela esperava-o para o pecado, como a outro qualquer.

O dia ia ao encontro da noite, como dizia papá Hugo.

Batiam as dez horas nas torres de S. Francisco quando Edmundo subiu as escadas do hotel. A mão tremia-lhe apoiando-se ao corrimão, e chegado acima viu-a, a rir entre um grupo de homens, sentada numa poltrona de veludo, vestida com um peignoir cor-de-rosa.

Havia um grande corredor na sua frente, com um bico de gás ao fundo. Seguiu por ele adiante, desiludido...

Mas uns braços prenderam-se ao seu pescoço, uma cabeça veio encostar-se à sua, roçando-lhe na face cabelos pretos e finos, um doce perfume abraçava-o inteiro, e sentia a seu lado, sobre o seu peito, arfar um seio. Então a sua boca procurou a boca da mulher, as suas mãos enterraram-se na seda perfumada dos cabelos, e toda a sua alma abriu-se num beijo, o seu primeiro beijo enamorado.

No escuro, foi assim o seu primeiro encontro, sem uma palavra... Foi assim que abriu o seu primeiro amor...

Honorina levou-o para a sala, sentou-se ao lado dele, a um canto da chaise-longue, segurando-lhe as mãos.

Edmundo olhava-a, os olhos cheios de amor.

Ela sorria, tendo-o enfim. As narinas fremiam-lhe como as da onça ao farejar a presa, antes de a esgaçar com as unhas. As suas pestanas densas e compridas batiam sobre a febre da vista... Entregava-se, chegando-o a si, e cansada daquele silêncio, falava-lhe agora na sua voz meiga e arrastada como um canto.

-- Que idade tem?

-- Vinte e um... E a Honorina?

-- Vinte e um...

Ela contemplava-o, com um sorriso de um terno desprezo, o braço apoiado ao joelho, não lhe largando as mãos, inundando-o com a vista, numa violência de desejo, apertando-lhe os dedos...

Edmundo procurava palavras para dizer, e enfim, encostando-se ao seu ombro, falando-lhe quase ao ouvido, a boca entre o perfume dos seus cabelos, perguntou-lhe de vagar, pousando-lhe as mãos no pescoço:

-- Porque me olha sempre assim, há dez dias?

Ela calava-se, deixando-se beijar.

Fora, a chuva caia com força, batendo as vidraças.

De entre a noite, um toque de clarim, num quartel afastado, soava como uma lástima fúnebre.

Estiveram assim os dois, Edmundo invadido por uma grande felicidade, como um sedento que se desalterou.

Os carinhos da mulher roçavam todas as chagas da sua dor... Sentia um grande alívio, uma grande esperança, um sossego, uma piedade agasalhando-o, e beijava os cabelos de Honorina, como se vê às vezes nas igrejas um homem beijar os pés de uma santa que fez o milagre de o salvar de um grande perigo...

Um ruído de vozes do corredor fê-lo levantar a cabeça.

-Vá-se embora!, não o recebo... Nunca mais aqui entre, seu azeiteiro!...

Edmundo quis levantar-se, ir ver. Uma voz de homem suplicava baixo, trémula, e a outra voz, a da mulher, insultava-o.

-- Não preciso de si para nada... Muito o aturei eu!...

-- É a Zita com o velho... -- murmurou Honorina, retendo Edmundo. -- Deixa-os lá, não temos nada com eles...

-- Sacana! Até me apegou cabelos brancos!...

Puxe!... Nem mais um pio... Se tenho um amante é meu, não tenho que lhe dar satisfações...

E essa voz rouca de mulher veio rolando frases de rua até ao patamar, seguindo de insolências um homem de cabelos brancos e curvado que descia as escadas...

Edmundo, debruçando-se na chaise-longue, via agora tudo, e quando os seus olhos o arredaram dali, Honorina leu uma terrível desconfiança naquela vista compungida.

-- Como aquilo é infame e triste!...

Tinha agarrado as mãos dela, encostara a cabeça no seu peito, e fitando-a longamente, tinha na sua mudez o medo que um dia ela também o escorraçasse, que a sua boca o insultasse...

-- Um velho! Porque fez essa mulher isso?...

-- Tem um amante, e o velho é um amigo dela...

Uma mulher não é obrigada a gostar de um velho... O outro tem dezoito anos...

-- Cala-te, Honorina... Um dia tu fazes o mesmo comigo?...

-- Se eu gostasse de um outro...

Mas os seus beiços, mal acabada a frase má, abafaram na boca de Edmundo uma resposta...

-- Tu és moço... não pense nisso... Vamos dormir...

Levou-o até à porta do quarto, deu-lhe ainda um beijo, e abriu a porta.

O gás estava aceso. Encostada à parede havia uma cama larga, sobre que desciam cortinados de renda branca. Perto da janela o lavatório, coberto de vidros de essência. Num pequeno relógio de cabeceira, os ponteiros deitavam-se em cima da meia-noite. O espelho do guarda-vestidos descia um grande lençol de luz diante da cama manchado de oiro pelo gás.

Ao canto, perto da porta, um cabide estendia os braços carregados de saias e peignoirs.

Cadeiras estofadas encostavam-se às paredes forradas a papel, imitando tapeçarias turcas, rubras e pretas, serpeadas de doirados e riscos de prata.

Um vidro de heliotrópio deixado aberto perfumava todo o quarto. A chuva cada vez mais forte escorria nos vidros da janela e no telhado, como um regougo.

Sentaram-se os dois na cama, e ela fê-lo encostar a cabeça no seu regaço, passava-lhe as mãos pelos cabelos, estremecendo às vezes.

Toda a lascívia da mulata, a voz quente e preguiçosa, os olhos húmidos, e o seu corpo flexível meio pendido, numa moleza, e os cabelos negros, enrolados na nuca, apertados na testa como duas asas de corvo, os seus abraços, o seu sorriso de mistério, desses que só têm as mulheres, um sorriso crispado como um mar e como ele belo e terrível, abrindo um abismo entre os lábios, toda essa voluptuosidade inclinada para ele, embriagava-o, como se acordasse depois de haver dormido sobre um ramo de parasitas em flor, perfumado e venenoso...

E Edmundo não lhe disse que a amava, mas ergueu a cabeça, pousou-lhe as mãos nos ombros, e como um náufrago no abraço mole de uma onda, todo entregue à sua fraqueza terrível, disse-lhe, roçando as pestanas pelas dela, numa confissão de alma, como uma queixa de moribundo, uma súplica de desgraça:

-- Se me deixasses de amar e de querer, não sei o que seria!... Só te tenho a ti, só, e só...

Ela estremeceu ao seu olhar tão carregado de mágoa, um espanto na vista, aconchegando-o ao peito...

Depois separou-se dos seus braços, ergueu-se, começou a desabotoar o roupão cor-de-rosa..., despiu-se à vista dele, até ficar em camisa.

Veio abrir a cama, ajeitar os travesseiros.

-- Deita, benzinho, vou-me lavar...

E enquanto ela enchia a bacia e destapava frascos, ele, entre os lençóis, atordoava-se com o perfume errante nos cortinados.

Os desejos cresciam-lhe, e através das rendas cravava os olhos naquela mulher que embalsamava o corpo para lho entregar, como num ofício sagrado e misterioso, em que tudo fossem olores, luzes e sedas...

Depois, com tudo isso, Honorina tinha um ar selvagem, uns dentes de felino e uma desenvoltura lassa de serpente... Exalava de si uma grande sombra, como as florestas. A sua voz séria e doce parecia arrastar um paciente ao suplício: os seus defeitos davam-lhe a beleza de uma criatura perigosa.

Quando Honorina entrou na cama, como uma cobra, e se abraçou desesperadamente a ele, Edmundo, teve medo, a cara sepulta numa onda de cabelos, através de cuja treva embalsamada duas luzes o inundavam com clarões de tocha, num funeral.

Parecia-lhe estar dentro de um caixão, amortalhado, dois círios à cabeceira, e uma voz, a voz dela, tremendo frases abafadas de amor, eram como a reza de um padre, balbuciando o ofício dos mortos.

Trovões rolavam nos céus, esmigalhando nuvens.

A chuva batia as vidraças.

-- Vem, amorzinho, vem...

Edmundo deixou-se envolver por aqueles braços quentes, e enquanto lhe ouvia os sorvos e os suspiros, parecia-lhe tudo ter morrido para ele, e que um padre, no escuro, debruçado sobre os dois, as mãos postas, os olhos no tecto, ia dizendo: Tu paradisum deducant te Angeli: in tuo adventu suscipiant te Martyres, et perducant te in civitatem sanctam Jesuralem, Chorus Angelorum ie suscipiat et cum Lazaro quondam paupere a eterna m habea, requiem...

V

L'âme a un sexe comme le corps et parfois le sexe est opposé a ses organes. De là...

Sar Peladan, Le Gynandre.

De manhã, Edmundo saiu do quarto de Honorina, cuja porta ela mesma foi abrir, descalça, os olhos pisados, os braços ainda prendendo-o a si, numa derradeira carícia.

E ele levou nos lábios, para a rua, o perfume daquele último beijo, dado do limiar da porta dessa alcova onde tinha gozado.

O sol descia quente sobre as ruas enlameadas pela trovoada dessa noite.

Edmundo respirava em si o perfume que o corpo da mulata tinha deixado na sua pele. Os olhos brilhavam e nada viam. Saía da noite como de um deslumbramento de luz; entrava no dia como no negrume de uma noite.

Tinha visto a felicidade descer sobre si no clarão de um olhar de mulher.

Essas carícias de toda uma noite tinham-lhe trazido a serenidade e a calma. O seu primeiro olhar atirado para a vida, essa volta do feliz ao mundo, fez-lhe ver as árvores, o sol, as crianças, os pássaros, as mulheres inundados pela sua alegria. A esperança estendia duas asas brancas sobre a sua cabeça e seguia-lhe os passos, mostrando-lhe o futuro, acariciante e terno como os olhos de Honorina... Aquela vista benéfica caindo sobre a sua desgraça alagava de esplendores a estrada da sua vida.

Filha de uma raça que sofrera, caída na desgraça, ela tinha-o tornado feliz. Assim as dores humanas não ensinam a acusar Deus. De uma lágrima faz uma estrela...

O sofrimento é como o orvalho, que faz abrir mais belas e perfumadas as rosas e as cravinas. Ter chorado é novi- ciar-se na suprema alegria. O sol é mais brilhante quando rompe das trevas na aleluia da aurora, que ao sumir-se na escuridão, entre um rescaldo de incêndio.

Mas, apesar de tudo, nunca dia para ele foi tão triste como aquele. Os homens pareceram-lhe ainda mais perversos que de ordinário. O egoísmo invadia-o por sua vez.

Sentia claramente ser o coração o único guia da criatura na jornada da vida. Segui-lo de olhos fechados a tudo, deixar-se levar pela sua influência benéfica, os ouvidos tapados à razão, ele pensava naquilo, nessa norma ideal de conduta, e pisava aos pés conveniências e contemplações... Do mundo nada queria, coisa, alguma lhe pedia. A sociedade dera o nome de «último» ao único ser que se apiedara do seu isolamento e da sua grande desgraça. 0 mundo talhara-se por suas mãos a sentença da sua alma; abominava-o.

Dele só lhe tinham vindo misérias, luto, agonia.

Todos os seus sonhos de felicidade, toda a sua ambição, toda a sua vida, era tudo dela; pertenciam-lhe, entregava-lhos.

Se fosse ainda a desilusão deixar-se-ia morrer.

Era o último ramo a que se apegava... Tudo dependia da sua fragilidade ou da sua constância... Tinha ainda os inconscientes direitos de a julgar boa, ela que lhe tinha enxuto as lágrimas com seus beijos... O mundo era ingrato, injusto e cruel, acabar por acabar, antes mil vezes nos braços que o tinham amparado em uma noite de chuva e o tinham feito acreditar ainda, quando tudo em roda lhe parecia pregar o desespero. Se ela, como todos, vivesse para o sofrer ainda mais, ao morrer a bem diria, porque ela o havia feito feliz uma noite inteira e o mundo o havia perseguido durante toda a vida.

Tudo em volta era esforço; milhares de homens a lutar, a odiar, a mentir mercadejando honra, alma, fé, agarrando-se desesperadamente à vida, os olhos recolhidos num egoísmo atroz, cada um tratando de si, inexoráveis para todos os outros, defendendo palmo a palmo a sua ambição, e nessa guerra atroz e impura os infelizes caíam às bordas do caminho, exaustos, desfalecidos, e voltavam desesperadamente os olhos ao céu, acreditando enfim na sua miséria, que tudo que Deus faz o homem espezinha, e daí a amargura imensa que se vai arrojando por sobre a humanidade como a maré subindo...

Deus! O mendigo, o moribundo, o vencido, lembram-se só dele, enfim! A esmola é agradecida em nome de Deus, a vida é entregue à esperança da misericórdia de Deus, a adversidade é suportada como um castigo de Deus!...

Ele sempre enfim, sempre ele como a estrela de alva, abrindo na escuridão os seus raios de luz...

O que eram os homens?

Os de hoje não são os mesmos de ontem e não serão os mesmos de amanhã... E no mar imenso, que rola sobre a praia sempre as ondas, mas sempre outras, o egoísmo a rugir, a maldade a mostrar garras, uns possuindo milhões, outros morrendo de fome... E com que direito? Os céus só respondem com a morte que a todos nivela... Todos nascem do ventre da mulher e todos recolhem aos flancos da terra... E a terra faz brotar as mesmas flores sobre o túmulo do ladrão que roubou para comer e sobre o túmulo do que roubou para saciar a sua gula... E tudo isto banqueiro não é raiva, não é pessissimo, não é inveja, não é loucura, porque nada disso lembra a serenidade dos campos, onde os roceiros se levantam de manhã rezando, e vão capinar a roça de milho, e recolhem à tarde, rezando, às Trindades, pensando em Jesus, na mulher e nos filhos... Aí tudo é paz, crença amor, sossego... As ambições não roçaram aquelas almas simples, perdidas entre serras...

Ao fim da tarde, saindo da redacção, Edmundo foi ter com Honorina, e até de noite ficaram os dois juntos, olhando-se, falando pouco. Ele contou-lhe pedaços tristes da sua vida...

Ela calava-se com um triste sorriso de quem compreendia.

Nem uma palavra lhe abriu a boca sobre o passado...

Parece que nada tem de alegre o passado de uma mulher que se vende...

Elas fazem mesmo sempre o possível por se enganar...

Perguntem a uma mulher da vida pelos anos que lhe ficaram atrás, ela enche-os de oiro, de riqueza, de paixão, de romance, com uma voz e um sorriso que confesam mudamente a verdade, a miséria...

Às oito horas Honorina disse-lhe não ser livre...

Tinha um amigo, não o podia conservar aquela noite perto dela...

-- Vem amanhã...

-- Não... É melhor nunca vir mais ter contigo. Quem te diz que ele não virá também amanhã!

Edmundo falava, trémulo, torcendo as mãos...

Ela olhava-o nervosa, com um sorriso maldoso, rindo-se daquela ingenuidade.

-- É melhor irmos para a sala... Ele pode chegar e ver-te aqui...

Edmundo saiu, sem a beijar. Correu todos os teatros nessa noite, ceou, deitou-se às duas horas da madrugada desesperado, levou duas horas na cama a fumar cigarros, um depois do outro, e amanheceu com febre, a cabeça pesada e o coração dorido.

Ao almoço voltou-lhe as costas. As outras mulheres, quando ele entrara, tinham sorrido...

Leu os jornais. Um homem suicidara-se por não ter que dar de comer a cinco filhos nem com que pagar aos credores. A polícia ia prender os vagabundos... Portugal rojara-se aos pés do Brasil por lhe haver salvo 500 filhos...

O barão de Ladario dizia no Senado haver pais que não sabiam dos filhos, esposas que ignoravam o destino dos maridos... Nas grutas do Paraná desenterravam-se cadáveres... Numa prisão de Santa Catarina encontrara-se uma caveira...

Jornais perversos, que só sabiam do mal!... Que só contavam horrores!...

A história miserável dos homens escrevia-se naqueles pedaços de papel...

Edmundo estava sentindo dentro de si o desapego supremo desse quê misterioso e instintivo que nos apega à existência e nos faz contemplar embevecidos o sol.

Sentia na alma alguma coisa falecendo convulsivamente, como um pássaro ferido que agoniza.

Mas à noite não deixou de ir ter com ela. Fez um esforço por se mostrar alegre, descuidoso... Recitou-lhe versos à janela, em frente à cidade adormecida ao luar.

Quis saber o nome desse homem a quem ela pertencia..., e embriagando-se com a sua miserável desilusão, amarga como vinagre, tomou essa mulher conforme ela era...

não teve uma queixa, uma frase triste, mas no seu sorriso havia mais que nunca uma ruga desesperante, como os enforcados que morrem todos com um ar de riso...

Ele mesmo preparou um punch, com conhaque, chá, passas de Alicante, açúcar e sumo de limão. Ela despia a camisa quando ele deitou fogo à beberagem, e Honorina, nua, deitada na cama, toda iluminada pela labareda, como um inferno vivo, cruzou as mãos no cabelo e começou a cantar, de olhos cerrados, uma modinha no sertão...

Não sei porque tão pequena Como fez-te a natureza, Tens tanta força nos olhos Que trazes minh'alma presa...

Bem no íntimo, tinha-lhe o mesmo amor intenso, ainda que vago, mas sujeitava-se já àquela partilha de corpo feita entre ele e um outro homem...

Depois do almoço subia sempre a ir ter com ela, e ficavam os dois até à tarde, deitados, conversando, olhando-se, não se tomando muito a sério como na primeira noite... Às vezes os seus olhos encontravam-se, numa tristeza, e cada um pensava com receio que essa vida não podia continuar assim... Edmundo tinha horas tristes em que beijava silencioso as mãos de Honorina, a vista perdida, desviando os olhos dela. Nunca tinham falado dessa noite do punch... Quando algum deles se lembrava disso, corava. No seu amor errava sempre um grande calor de paixão, e quando se largavam, os olhos de um seguiam os olhos de outro, segredando coisas ignoradas, que as palavras não sabiam exprimir. A passividade de Edmundo abatera-o aos pés da mulher.

Deixava-se viver sob o seu mando, vinha quando o chamavam, e despedia-se sempre com o seu triste sorriso mais cavado... Muitas vezes era ela a dizer-lhe que fosse trabalhar, que fosse para o jornal... Era tarde... O sol escondia-se deixando-os ainda no quarto...

-- Não vai embora, benzinho?

-- Vou, sim...

-- Não vai, não, fica mais tempo com a tua cabocla...

E ficavam sentados, sem forças de se separarem, pensando, com as mãos dadas, as cabeças juntas...

Edmundo desesperava-se em segredo... Passava as noites na redacção, trabalhando, recolhendo a casa muito depois da meia-noite, no último bonde da Tijuca.

Um dia, depois dos teatros e da ceia, esperou a pé no Largo de S. Francisco o bonde das quatro horas.

Os candeeiros estavam já apagados. As patrulhas recolhiam-se aos quartéis; um grande nevoeiro toldava as primeiras claridades do dia...

E naquele bonde cheio de operários que iam para o trabalho das fábricas, ele, que ia descansar de uma noite estouvada, levada a beber, compreendeu as razões do seu sorriso cada vez mais triste e mais desesperante... Aonde ia ele assim?

Essa mulher tinha-o embriagado com um mau vinho...

Se lhe queria bem porque lhe fazia tanto mal?

Aqueles beijos roubados ao outro, esses abraços, essas carícias, arrastadas nos mesmos lugares que as do outro, esse amor a dois no mesmo corpo de mulher, era imundo, era infame, era vil...

Por mais que ela lhe dissesse o outro não a beijar, quem poderia acreditar em semelhante coisa?...

Era ele a dar-lhe os vestidos, a pagar-lhe as contas do hotel, a dar-lhe sedas, a dar-lhe jóias, e não a beijava ?

Honoria repetia-lhe sempre essa fala mentirosa de consolo, e no primeiro dia, como Edmundo duvidasse, ela dissera-lhe:

-- É que não sabes quem eu sou! Livra-te de o saberes um dia!

Se ela enganava o outro, é que também era capaz de o enganar a ele... Podia até haver um terceiro que passasse os lábios pelos mesmos caminhos, por aquela mesma face, por aqueles mesmos lábios, e lhe ouvisse as mesmas palavras de amor que a ele ela dizia.

Todos esses pensamentos de amargura o invadiam quando afastado dela, mas a seu lado a voz da mulata tinha a doçura de um regato a correr só para ele, os seus olhos pareciam veludo, e os seus braços eram tão quentes, as suas carícias tão meigas, que ainda lhe parecia estar essa mulher a tratá-lo assim por piedade, como uma irmã de caridade que se deixa adorar por um tísico, no hospital...

Aceitava-lhe o amor, não a acusava, sentia-se afinal quase feliz com a sua sorte.

Todos os dias lhe levava presentes, ia-a vestindo aos poucos com mil coisas dadas por ele.

Quando Honorina balouçava o pé nú na sandália de veludo carmesim bordado a ouro, Edmundo pensava satisfeito:

«Fui eu quem deu aquele pantufo vermelho àquele pezito branco...»

Começaram a almoçar juntos, passando os dias um ao lado do outro, até ao cair da tarde.

As outras mulheres do hotel vinham jogar com eles, ao quarto.

Honorina era muito amiga de uma chamada Emília, boneca de olhos lânguidos, que lia a Dama das Camélias.

Para essa, Honorina abria sempre a porta, e tinha as suas grandes carícias, grandes beijos.

As jóias de Honorina andavam nas orelhas e nos dedos da Emília; tal como a sua boca...

Muitas vezes estavam os três sentados, e Honorina estendia os braços, chegava os dois ao peito, rindo...

Mas Edmundo sentia que essa mulherzinha de olhos lindos não gostava muito dele... estendia-lhe a mão friamente...

Uma vez falou nisso à amante.

-- É génio dela, não faças caso...

E Edmundo deixava-se ir nessa vida preguiçosa, evitando os amigos, levando os dias no quarto de Honorina, entre as conversas das mulheres, jogando o sete-e-meio, fazendo o possível por parecer alegre, mas sempre com o seu triste sorriso, e cada vez mais pálido, mais abatido, mais fraco...

Honorina dominava-o completamente, e fazia-o sofrer, humilhando-o de contínuo. Quando ele parecia mais triste, ela tinha um riso alegre e mau, e havia dias em que era o contrário.

Perseguia-o com o olhar invadido de uma melancolia imensa, fazia-lhe repetir que a amava muito, que a amava sempre...

Não podiam continuar a viver assim, ambos o sentiam, mas sem forças para romper de uma vez para sempre.

Quando deixava de vir um dia, encontrava-a à espera, com palavras duras, enciumada, desviando-se dos seus beijos, escondendo a cara nos travesseiros.

Era preciso jurar-lhe cem vezes tudo o que ela queria...

Edmundo apercebia-se bem que aquilo agora era para sempre... Cada vez se desviava mais dos conhecidos...

Tinha preguiça em falar, o trabalho da redacção deixava-o desanimado, exausto às dez da noite, sem poder ligar duas palavras...

Em dias de plantão, quando era preciso esperar pelos telegramas da Havas, encostava a cabeça na mesa e às vezes chorava, pensando na mãe, sozinho naquela solidão de sala abandonada, onde os bicos de gás ardiam por cima das cinco mesas vasias...

O dia de trabalho deixava uma confusão por toda a parte, jornais atirados no chão, as cadeiras no meio da sala, livros rolando a todos os cantos, tiras de papel saindo das pastas, as tesouras abertas... e lá em baixo o bater dos tipos nas mãos dos tipógrafos.

Era triste... Na rua deserta não passava vivalma...

Só às vezes a voz do paginador subia, destribuindo matéria...

E enquanto os telegramas não chegavam, Edmundo pensava na amante, no outro, sentindo-se preso àquela mulher, sem meios de fugir à tentação dos seus olhos de cobra, em que forcejava por encontrar uma silenciosa tristeza igual à sua...

0 que lhe metia medo era o desapego intenso que ia votando a tudo, desejoso de passar a vida de olhos fechados, com uma grande ânsia de morrer...

Lembrava-se da mãe, tinha lágrimas, pegava na pena para escrever-lhe, mas às primeiras palavras escritas amarrotava o papel, sentia-se incapaz...

Dizer-lhe o quê? A vida causava-lhe nojo... Via-se indigno de ler até as cartas que recebia dela, dessa pobre mãe que se sacrificava por ele... Guardava-as no bolso, sem as abrir...

Dantes, o futuro trazia-lhe sérias apreensões, agora uma indiferença horrível vedava a seus olhos, esganava em seus pensamentos a compreensão desse sério amanhã que todos pressentem e todos temem. Não se inquietava.

Os nervos sofriam horrendamente ao mais pequeno abalo...

Fugia de Julião e mais ainda dos literatos. Escrevia como simples obrigação, e de noite sonhava com tesouros, riquezas de «Conde de Monte Cristo», minas da Golconda, erários de impérios mortos, fortunas de romances a Terrail.

Vivia a fazer planos, invadido pouco a pouco por esse progressivo delírio de grandezas... Fiava-se no destino como um turco. Levava horas a fumar, absorto, repartindo milhões de contos, assentando projectos...

Deu em comprar bilhetes de lotaria e esperava sempre ansioso a sorte grande...

Vinham-lhe tristezas profundas, desatava a soluçar nos travesseiros, em casa, alta noite, sem poder dormir...

Honorina, pelo seu lado, deixava-se arrastar pelos desejos, cada vez mais despertos ao lado daquela agonia criada por ela. Amava-o? Não, por certo que nunca pensara um só momento nisso, mas tinha momentos em que gozava por demais aquele amor intenso que se lhe agachava aos pés. Em certas ocasiões acontecia-lhe fechar os olhos sob as carícias dessa pobre mocidade apaixonada e sonhava-se feliz, orgulhosa de ter conquistado todas as ilusões e esperanças daqueles vinte anos.

Se ele se fosse embora, sofreria como isso. Ainda se não cansara dos seus beijos... Quando o apertava a si sentia-lhe o bater do coração e sabia tê-lo invadido inteiro... Às vezes tinha dó dessa dor crescida à sua sombra, mas o instinto de gata obrigava-a a gozar a tortura dessa alma entre as suas mãos terríveis... Comprazia-se em vê-lo padecer por sua causa e escondia bem dentro de si o grande capricho que a prendia apesar de tudo a ele. Entregou-lhe o corpo com todos os desejos, num impulso amoroso de todo o seu ser, dava-se toda nesses momentos, beijava-o com o coração nos lábios, e ele, se soubesse, podia nesses instantes obrigá-la a fazer tudo, a contentar-lhe todas as vontades; ela era toda dele, como nunca fora de ninguém... Mas vindo a si, arrancando-se ao adormecimento da volúpia, desatava a rir desses momentos, fingindo-se mentirosa e hipócrita nos suspiros soltos, convencendo Edmundo de uma comédia, vingando-se assim do homem que a tivera quebrada por minutos... Para o convencer ainda, para o dominar com mais poder e mais crueldade, pensara em ser-lhe infiel com o primeiro que a quisesse, mas não se sentiu forte, temeu vê-lo partir para sempre, para nunca mais voltar, e desistiu ou retardou esse curei intento.

E sem ela querer, pouco a pouco, um pensamento enraizava-se no seu espírito: largar o amigo, ficar só com Edmundo. E tê-lo-ia feito, se o acaso não viesse adiante dela para a servir...

Ia ficar sozinha por um mês, o amigo era chamado a S. Paulo para um negócio urgente.

Logo na sua primeira noite de liberdade, Honorina, vestida, esperava o amante para jantar.

Esqueceram-se os dois até às nove horas, bebendo champanhe pela mesma taça, as cabeças encostadas, murmurando a espaços, um e outro, sem querer, o «até que enfim» que haviam trinta dias guardado no íntimo os dois, numa secreta esperança...

A noite estava escura mas não fazia vento.

Saíram. Ela encostava-se ao seu braço, feliz de se sentir toda entregue a ele...

Edmundo perdoava-lhe tudo, confessando-lhe agora quanto ela o fizera sofrer, quanta noite de martírio, sonhando-a, desesperando-se de encontro à sua maldade, nunca pensando mais em ser feliz...

Tomaram uma barca, ferry, porque ela dissera gostar de ouvir as ondas.

O céu forrado de nuvens não acendera um só astro, parecia amortalhado.

No mar apenas os navios de guerra içavam nas vergas os faróis brancos, e ao longe, dentro do negrume em que rugiam as vagas, Santa Cruz e Lage tinham luzes nas bocas das casamatas.

Foram as bodas, os esponsais do seu amor, aquela hora no mar, ao frio da maresia, ouvindo o ressonar imenso das águas... Tinham-se sentado os dois em cima, na coberta, as cabeças encostadas, as mãos juntas, e ambos vendo fugir a terra atrás da popa da barca pareciam acreditar enfim na sua felicidade...

Quando voltaram, às onze horas, pelas ruas desertas, Edmundo ia beijando as mãos frias da amante, e no Largo do Paço um pensamento triste trouxe-lhe aos olhos duas lágrimas. Julião àquela hora em que para si passavam os primeiros minutos felizes da vida, Julião no seu quarto andar, escrevia na cal da parede a horrível e desesperante palavra «fatalidade».

Agora seria ele sozinho a sofrer a crueldade da sorte, e essa criatura bem-amada a dormir perto de um crânio, quando a ele só esperavam os travesseiros de uma cama perfumada, onde a sua cabeça, em que já tinham rolado tantos pensamentos funestos, ia sossegar perto de uma cabeça de mulher, de uma mulher que lhe escondia o mundo com os braços abertos e os lábios trémulos.

-- Em que estás a pensar?

-- Naqueles, Honorina, que vivem sem amor...

Quem são sentiu a alma abraçar carinhosa e compassivamente o mundo inteiro, nessa hora admirável em que se é feliz porque se vive numa outra criatura, porque se ama, porque se sente um coração batendo de encontro ao nosso braço, porque obtivemos o grande prémio da vida ?

Edmundo sentia renascer em si o mundo de coisas havia muito em ruínas, mas o amor, esse egoísmo de duas criaturas, guardava para si toda a primavera rediviva da mocidade, com ilusões, esperanças e poesias...

Cada dia se sentia mais confundido com a mulher que limitava as raias das suas ambições e dos seus desejos. A borboleta abrira asas dentro da pele tisnada da crisálida, mas essa borboleta pousara no cálice de uma flor perigosa, embriagara-se de perfume e adormecera após essa bebedeira de bálsamo...

Edmundo resumira em Honorina toda a sua vida, e todas as noites os dois adormeciam de mãos dadas.

Às vezes levava-a a esses quarteirões da miséria, onde as mulheres às portas chamam os homens, e recolhiam-se a casa, depois de terem roçado pela desgraça e pelo infortúnio, medindo mais alto a sua felicidade, abandonando-se com mais avidez de amor, compreendendo-o os dois como a única verdadeira consolação das criaturas nesta terra onde se sofre tanto...

Outras vezes ficavam à janela, de mãos dadas, sem falar, vendo o mundo passar na escuridão da rua, esse mundo anónimo que rolava lá em baixo vago e mudo, como sombras...

E ao vê-lo passar, as duas criaturas pensavam que ambos muito tinham padecido às suas mãos odiosas...

VI Façamos como os pássaros, façamos Como os pássaros fazem no arvoredo: Quando mão duvidosa agita os ramos. Fogem todos os pássaros com medo... Se o mundo descobriu que nos amamos. Sem perda de um segundo. Rapidamente, meu amor, fujamos Para longe do mundo!

Júlio Salusse.

Edmundo viu a porta encostada, o quarto às escuras. Entrou.

O dia quase morto ainda trespassava os vidros da janela com a sua agonia: o quarto desenhava-se na sombra, meio estabido pela última claridade opaca da tarde; e era triste, assim no silêncio da meia-sombra, com o reflexo dos espelhos aos cantos, os reposteiros caindo sem cor, com manchas, os cortinados fechando a cama como um nevoeiro. Não havia um sorriso de cor naquele crepúsculo. Faltava a alegria do gás ou do sol nesse ninho, que parecia desfeito...

Ficou à porta, parado, e sentiu o coração abrir-se-Ihe para uma melancolia funda, pesada, dolorosa...

Aquele quarto, onde tinham despertado os seus primeiros beijos enamorados, aquele confidente emudecido de tanta noite louca de carícias e gozo, de tanta manhã alegre e doirada, quando se acorda num abraço começado na véspera, e a boca se abre num beijo, o mesmo que os fechou de lassidão; aquele quarto onde ele só vira noites de dois astros -- os olhos dela -- e as auroras de ouro -- os sorrisos dela --, parecia-lhe morrer como o poente triste do dia invernoso.

Vinha-lhe a desolação das tardes em que as folhas caem das árvores, numa quietitude punjente de morte, sem um pé de vento, sem uma réstia de soalheira, sem o ocaso escaldante, cor de lacre, essas tardes pardas, em que a lua sobe às quatro horas e a natureza sucumbe, numa dor surda, chorando folhas secas.

Sem ruído, aproximou-se da cama, abriu o cortinado.

A sua onça dormia.

Sentou-se perto dela em silêncio, julgando-a doente, com mil cuidados para a não acordar.

Honorina, encolhida, as mãos morenas atiradas na alvura do travesseiro, os cabelos desfeitos, por pentear, os grampos caídos na coberta, a boca como a expirar num beijo, as narinas abertas, a garganta arfando como um mar em calmaria, dentro do peignoir cor-de-rosa, parecia ter ficado para ali, prostrada, num langor, num alquebramento, em que os olhos se fecham, o corpo se encolhe como no sono das cobras...

Debruçou-se, invadido de uma grande meiguice carinhosa por esse corpo que se lhe dera, num amor infinito, num abandono lânguido. Beijou-lhe os cabelos.

Sorria, vergado sobre a amante adorada, a sua melhor poesia, o seu mais humano ideal, aquele corpozinho de vibora, dócil nas suas mãos, aquela suave lassidão por nome mulher, que tinha vindo debruçar-se na sua indolência, seduzindo em si a sua vida...

Mas, porque dormiria ela, tão sossegada, tão tranquila ?

Tinham-se levantado os dois tão tarde, justamente naquele dia...

E Edmundo, vergado, contemplava-a, com uma súbita angústia nos olhos, que pesquisavam naquele rosto os indícios que podiam provar a desconfiança que se apoderara dele.

Ah!, de tão criança, não vira ele logo ser aquilo um torpor e não um sono? Os lábios pálidos... Alguém lhos tinha beijado... Olhos cansados, doloridos, circundados de negro, com olheiras fúnebres sob as pálpebras...

Os braços pareciam ter caído num último abraço, os olhos deviam ter-se fechado, cansados de rolar nas órbitas, como cotovias que batem depois de haver batido longo tempo as asas nas alturas...

A víbora mostrava-lhe que tinha aguilhão na língua...

As abelhas morrem ferrando, as mulheres é disso que vivem. Os seus dentes mastigam eternamente a maçã do pecado...

Ficou acabrunhado, tremendo, como se o crespús- culo se tivesse passado todo inteiro para dentro do seu pobre coração, onde nascia também um sol -- a ilusão --, num poente desolado, de agonia... E olhava-a como folha seca que cai da árvore, como a ilusão que cai da alma.

Assim, não havia canto no mundo onde tudo fosse paz, amor, sossego... Não restava do Paraíso nem uma só raiz...

O arcanjo inexorável tinha injustamente de lá escorraçado a humanidade com o primeiro homem!...

Estava tudo acabado... O que seria dele, agora?

Ela cuspira no seu amor, essa fortuna que ele tivera a leviana temeridade de pensar valer mais do que o mundo inteiro. Era o seu último refúgio...

Mais nada, mais nada... o Inverno tinha vindo, e a árvore a cuja sombra se acolhera, caíam-lhe as derradeiras folhas, ficara de braços estirados, hirtos, numa desolação...

Parecia-lhe ver deitada na cama a sombra da mulher tão doidamente amada...

Os beijos, essa pérfida repartia-os por outras bocas...

0 pistilo tinha ido colher noutra flor um outro es- tame, atraiçoando o companheiro que Deus soltara no cálice perfumado de sua vida...

A pobre criança nunca pensara que antes de ser sua essa mulher tinha sido de outros... Ela não o podia esquecer. Antes das suas tinha gozado outras carícias, e tinha talvez saudades de alguma havia muito não gozada.

Mesmo que o amasse, não lhe podia acusar a consciência de haver entregue o corpo a um rapaz que a não profanava, porque o sol não queima mais os lírios murchos.

Cansara-se depressa do seu amor passivo, dos seus beijos quentes e longos, arrastados por todo o rosto, num eterno fanatismo, e dos seus olhares tímidos em êxtase que a tinham alvoroçado a princípio, mas já fatigavam a fêmea bravia, com precisão de predomínio, com a sede femenil da inferioridade... A leoa larga o leão que a não morder...

Edmundo roubara-lhe o que ela tinha de mais cioso:

a passividade da mulher.

Acusava-a agora, enterrando as mãos arripiadas nos cabelos, mordendo os beiços para não chorar sobre a sua última esperança, desfeita nos beiços de um desconhecido, como uma margarida sob uma bátega de chuva.

Pôs-se a pé, fechou de novo os cortinados, foi em silêncio até ao toucador, a farejar, como um cão ladino...

O vidro de água de Lubin estava aberto... ela tinha-se esquecido de fechar o frasco de heliotrópio e o cofre de porcelana do pó-de-arroz... Portanto...

E não tinha feito sequer a toilette com que se vai para a cama...

Suplicava-se, à vista daqueles inocentes vidros de essência, cúmplices agora na infâmia da mulher à qual tantas vezes tinham servido sob o olhar carinhoso e agradecido da pobre criança. Eram eles que tinham perfumado os cabelos beijados dia a dia, havia um mês, eles que tinham humedecido e embalsamado os lábios onde tantas vezes bebera a embriaguez e a felicidade...

E o vácuo que havia em todos os cristais tinha sido promiscuamente consumido nos lenços de ambos...

Agora perfumavam a doce criatura para o prazer dos outros, os vis, que deviam ter conhecido na mão que os abriria uma pérfida e criminosa mão...

Mas não parou ali aquele inexperiente polícia secreto, que procurava todo o rastro do crime, que só a ele levava ao poste do suplício.

A mocidade é tão doida, que até brinca com a dor, até joga com o coração... Às vezes, quebra-o...

Deu-lhe vontade de levantar a tampa do balde, ver se tinha água, muita ou pouca!...

E ali sozinho envergonhava-se de si próprio de tanta baixeza...

Porque se não ia embora, para nunca mais, se tinha a certeza? O que ganhava ele com isso tudo? la ficar ainda, depois de ter sujado o amor com a desconfiança?

Torcia-se a pensar, e o desejo não o largava, de ir até ao fim, espiar por toda a parte, saber em consciência que tinha rido de si... Iria embora, mas depois de haver calçado de provas o coração tão cheio dela... Vê, coração, estes perfumes abriram-se para atraiçoar-te, vê, coração, esta água lavou o corpo nesta mulher, para safar o vestígio do crime, e nesse corpo que tu vives... Vê, coração, esses olhos insultaram-te, essa boca injuriou-te, vê bem, vê bem, ainda a amas?

Não pôde resistir, levantou a tampa do balde...

Estava cheio, e na água não havia a névoa branca que deixava o sabonete...

Ficou parado, os olhos a escorrer...

Era quase noite.

Honorina voltou-se na cama. Ele estremeceu, em silêncio, escondido pelos cortinados, esperando, receoso que ela se levantasse...

Foi até ao leito na ponta dos pés, cauteloso.

Fora um relógio batia lentamente as seis horas.

Que leviandade, entregar toda a vida, com todos os sonhos e todas as esperanças e todas as ilusões, às primeiras mãos macias que nos tapam os olhos!...

Em quatro horas as mãos de uma mulher puderam esfarrapá-lo todo, até ao mais profundo de seu íntimo!

Ter entregue nas mãos de uma ladra todas as fantasias dos vinte anos, uma mocidade, uma existência!...

Deixava-o sem coisa alguma, sozinho, abandonado, expulso da luz onde se refugiara, para cair de novo entre os homens, nas trevas, ainda cego pelo clarão em que se deslumbrara!...

Só quatro horas para encerrar tanta infâmia, para varrer tanta ilusão!... Triste, era triste!...

E o que fazer agora? Continuar como dantes, morrendo aos poucos naquele marasmo e apatia que o estrangulavam? Torcia-se num cavalete de tortura...

Deixá-la assim, sem mais nem menos, depois de ter vivido com ela trinta dias, de terem confundido os dois as respirações, dormido juntos trinta noites, num abraço infinito, largá-la assim, sem um último beijo, sem lhe deixar a saudade de uma lágrima, a punição de uma queixa, sem lhe ter aberto à vista todo o grande desespero que o matava, parecia-lhe imundo...

Uma desculpa, um abraço e um adeus, que devia ser para nunca mais, era isso... sim...

0 quarto enchera-se de treva, e aquele sofrimento vivia ali angustiado, silencioso, ao lado de uma mulher que dormia.

Estava trémulo, como saído de um susto... Deixou-se cair numa cadeira, que rangeu.

Julgou que ela ia acordar...

Minutos passaram-se numa ânsia aflitiva. Se ela viesse, com o seu nome nos lábios, estirando-lhe os braços, os cabelos soltos, não lhe poderia resistir e iria esconder na treva daquele cabelo a vergonha e o sofrer da sua vida...

Era impossível!... Enganá-lo, ele que nunca deixara amanhecer um dia ou cair uma noite sem lhe repetir de joelhos, os olhos ao fundo dos olhos, as mãos nas suas: «Vês tu ? Se me deixasses de amar e de me querer, morria! Só te tenho a ti, só, é só!...»

Era impossível, era impossível! O seu coração era demasiado grande para um peito humano, e ainda cria, ainda acreditava, como os cegos que recobram a vista, e nas primeiras horas ainda acreditam na sua cegueira...

Que provas tinha ele?

Pois ela não podia por descuido deixar uns vidros abertos em cima do lavatório?

Tudo, menos a lembrança de se separar do único ente ante o qual a sua alma ajoelhava... Sentia que todos lhe queriam mal, todos procuravam fazê-lo sofrer... Ela era a embriaguez da sua desgraça...

Era impossível, era impossível, era impossível!...

Tomado de uma resolução brusca, riscou um fósforo, acendeu o gás, e sem cuidados já, julgando-a acordada com a luz, correu os cortinados.

Ela, como a sua razão, ainda dormia.

Lavou as mãos, abriu uma gaveta, tirou um lenço, e foi à cesta da roupa deitar o lenço trocado.

Reteve um grito.

Em cima da roupa estava uma toalha atirada ali havia pouco.

Honorina enganara-o, tinha estado com outro homem!...

Ficou a meio do quarto, de olhos fechados, esmagado.

-- Edmundo!

Estremeceu. A víbora desenroscava-se.

Ele olhava-a num espanto, rangendo nervosamente os dentes.

-- Que é benzinho? Estás doente?

Levantou-se, os cabelos numa rodilha, as pestanas batendo, esperguiçando-se, e veio até a ele, vagarosa, sorrindo... Deitou-lhe os braços ao pescoço, chegou-o ao seio, beijou-o na testa, apertando-o a si.

Edmundo arredou a cabeça, fitou-a tristemente, com o olhar vesgo de sofrimento.

Ela, pérfida, com uma arte de gata, fazendo de amuada, encostando a cabeça ao seu ombro, disse-lhe quase ao ouvido:

-- Ein, morzinho, não quer mais bem à sua mulata?

Edmundo agarrou-lhe nos pulsos, levou-a à parede, e com os punhos cerrados rente à cara dela, escarrou-lhe o insulto:

-- Puta!

Honorina fechou os olhos, empurrou-o levemente com as mãos frias, sem olhar para trás, sem uma palavra, foi ao lavatório, encheu a bacia, entornou meio frasco de essência na água clara, desenrolou os cabelos.

Ele, abatido, a cabeça entre as mãos, sentara-se num puff de cetim e olhava-a distraidamente, os olhos baços de angústia.

De vagar ela passou o pente pelos cabelos, alisou-os, e depois de enrolados na nuca ajeitou as repas e frisados da testa, espetou os grampos compondo a sua belesa, possuída de um grande amor por si... Despiu o peignoir, desatou as fitas da saia, que lhe caiu aos pés.

Em sandálias, foi ao guarda-vestidos, tirou uma camisa de seda, o espartilho, o vestido preto. Pousou tudo em cima da cama.

Edmundo fitava-a, em camisa, os olhos cansados, húmidos, perdido num alquebramento de pântano, e um sorriso a esconder nos lábios o esforço que fazia para não desatar em choro.

O que fazia ele ainda ali?

A essa pergunta íntima respondia ele o que vou eu fazer longe daqui?

Como Fausto, que vendia a alma aos infernos à custa da mocidade, do donaire dos cabelos louros e dos gibões de brocado e as serenatas e as aventuras, e os duelos e era um sábio curvado sobre os mistérios da alquimia porque não aquele pacto mudo da inexperiência, que vendia o amor-próprio pela felicidade, nos lábios compartilhados de uma mulher?

O amor traz destas rudes dedicações... O orgulho descia ao peso do coração...

Honorina, ao lavar as mãos, partira três unhas no mármore do lavatório.

Indiferente, sem fingir reparar no amante, que a contemplava, despiu a camisa, tranquialmente.

Nua, com as meias de seda preta até ao meio da coxa, os pés enfiados nos pantufos de veludo carmesim, olhou-se por momentos no espelho, orgulhosa do seu corpo.

O pescoço deslizava nos ombros, descia na garganta, e a quase um palmo das clavículas os seios rebentavam na carne morena, que parecia ter sido branca e assim abrasada a beijos... A cinta era fina, o ventre era arqueado e belo como convém a uma pecadora e as pernas lapidadas na perfeição das carnes, crescendo em meandros entre o triângulo negro, como um grande lírio sinistro e os quadris em que a cinta resvalava.

Por sobre os mistérios desvendados do seu corpo, a seda da camisa correu até meio das pernas.

Nem uma palavra. Ele não desviava os olhos medrosos e envergonhados da nudez da mulher.

Honorina alargou as fitas do espartilho, ajustou-o ao torso, engatou os colchetes, serrou as fitas, e a cinta comprimiu-se, os seios tremeram, enchendo as duas taças de cetim que os aprisionavam, os quadris ressaltaram sob a compressão das barbatanas, o corpo inteiro, tomando a maleabilidade das cobras, aperfeiçoou-se linha a linha.

Pôs a saia preta, de seda, despiu as meias, calçou o outro par, e em frente ao guarda-vestidos, tomando o corpete, enfiou as mangas, apertou os colchetes da gola de veludo e dos punhos, vestiu uma saia coberta de rendas, passou a borla de pó-de-arroz pelas faces, espetou uma alfinete de brilhantes na fita do pescoço, pôs os brincos, aquelas pequeninas fagulhas que nunca lhe deixavam as orelhas, enfiou os anéis, perfumou o lenço, ajeitou os cabelos.

-- Honorina !...

Levantava-se, agarrado ao braço dela, os olhos a pedir piedade.

Ela nem pareceu ouvi-lo, olhando-se ao espelho, concertando as rendas do peito.

Debruçando-se, tirou do cabide uma toalha, humedeceu-a passou-a nas sobrancelhas... Abriu a boca, olhando os dentes.

Edmundo falava-lhe... Perdoasse, submetia-se a tudo...

Ela foi sentar-se numa cadeira, calçar os sapatos, ajeitando contrafeita a manga enrolada pelas mãos dele.

-- Não, não pode ser, Honorinal... Perdoa-me, eu amo-te, só te tenho a ti... Não me enganaste, eu sei, mas tenho sofrido tanto, vês tu que julguei ser de mais essa crueldade da sorte... se fosse verdade o que eu pensei era injustiça... não mereço que me façam tanto mal!...

Dizia tudo aquilo de pé, encostado à cama, as mãos caídas, numa voz que não era a dele, como se um mendigo falasse lá do fundo de seu peito, pedindo esmola.

-- E que tinha se o tivesse enganado com outro homem ?

Edmundo respondeu entre dentes:

-- Não tinha nada...

Ele podia ir embora, não o queria mais para coisa alguma... Tinha acabado tudo... Nunca jurara a homem nenhum fidelidade, nem ao marido... A porta estava aberta...

E Honorina dizia-lhe aquilo puxando as ligas, as saias levantadas, as pernas cruzadas.

Edmundo sentou-se perto dela, pousou-lhe as mãos nos ombros...

-- É que nunca sofreste como eu... Se te sentisses sozinha, tu verias o que se sente num momento destes...

Se eu te perdesse seria triste, nem eu sei bem... Ouve, eu tinha mãe e esquecia-a para me lembrar só de ti...

Hoje sou sozinho, sem amigos, sem companheiros, só contigo... Perdoa, não te sei contar, mas acredita que é preciso teres pena de mim...

Tremia ao falar e procurava-lhe a boca, para ver sair uma palavra de perdão ou uma sentença de morte.

Ela calava-se, pensativa.

Bateram à porta, Edmundo foi abrir.

Emília entrou, desfeita, pálida, os olhos pisados, com um roupão de seda creme, e foi sentar-se ao lado de Honorina, falando-lhe ao ouvido.

Ele pasmava ante o olhar da amante, um olhar distraído e embaciado.

Emília saiu.

Então Honorina deitou os braços ao pescoço da criança, beijou-o longamente, fazendo-o compreender tudo...

-- É um vício... Já com minha irmã era a mesma coisa... Mas sossega, é para nunca mais... Não continuo... Fiz-te sofrer?...

Edmundo curvou a cabeça, tristemente...

-- É ela que vem, eu faço-lhe a vontade... mas é sem amor, é um vício que eu tenho... Se tu queres mudamos daqui...

Havia um grande arrependimento nas suas palavras...

-- Vamos jantar, não penses mais nisso... Já não há remédio... E de noite, quando se deitaram, ela, cansada entorpecida, os olhos amortecidos, não procurou os seus abraços. Ficou sentada, as mãos no regaço, vendo arder a vela...

Começou a contar-lhe pedaços de sua pobre vida, com voz arrastada, sem erguer a vista para ele...

Às vezes dá-me vontade de morrer... Ter um homem que me espetasse uma faca, me matasse... Uma mulher como eu nunca sabe como acaba...Tive uma amiga que foi para o hospital... Tinha brilhantes... Nem tem cruz na sepultura...

E Edmundo percebia ao ouvi-la falar que deixara a desejar agora sem remédio, aquele corpo onde se torciam como no dele males incuráveis, desesperanças surdas, impotências inexoráveis, qualquer coisa de implacável e sinistro que a desgraça deixa na alma, como gotas de sangue, mas que o amor vivifica sempre, como sombra a seguir o sol desaparecido, o perfume conservado na flor emurchecida...

Tudo aquilo era demasiado cruel, as suas duas almas batiam asas na derradeira agonia, amar, desejar, ser feliz, era já impossível...

Cada um procurava fazer mal ao outro, torturar-se, apalparem-se mutuamente as chagas, gozando de se sentirem ulcerados, perdidos, sem poder erguer os olhos, sem poder falar verdade, ambos falsos, ambos torpes, ambos vencidos afinal, ela de ter calcado homens aos pés, ele de ter sido calcado por eles...

Não podia haver amor numa mulher que disso fizera modo de vida, e ele também não poderia amá-la assim envilecida, porque o seu pobre coração tinha aberto durante a noite, precisava de sol, não podia vingar naquela lama toda...

Nenhum dos dois conservava esperanças, ambos se sentiam feridos, postos de lado, irremediavelmente afastados da vida pela felicidade, pelo destino, pelo mundo...

Ambos tinham errado o caminho, ambos se viam perdidos, consolavam-se em silêncio, abraçavam as suas desgraças, como dois condenados à morte que se beijam, compartilhando a mesma sorte, antes de sair para o cadafalso onde a justiça humana os espera, implacável.

Teria sido melhor nunca se terem encontrado...

Haviam-se enganado e desejado um dia, depois toda essa vertigem terminara, compreendiam-se, e não podiam passar um sem outro... Em todas as horas passadas juntas, uma sensibilidade amarrava-os, e cada um, o olhar posto no passado, sem uma luz fulgindo no futuro, eram obrigados a gozar a felicidade triste das dores há muito mortas, sustentando-se com esse fel, embriagando-se com esse vinho amargoso da saudade, uma grande saudade pelos momentos de amargura, e os dois tinham consigo um novo amor, o único amor que lhes era dado possuir, a triste e pálida companheira de melancolia...

Ele precisava de uma doce bondade, confiante e ingénua, pura, santa, virtuosa, para poder ainda levantar os olhos e renunciar à amargura..., e não era essa mulher maldosa, impura, desgraçada, sem fé, sem crenças, sem esperanças, essa mulher pensativa, que caminhava para a morte fazendo amor, que caminhava para «amanhã» cantando coisas lúbricas, a alma já na cova, à espera dela, não era essa mulher, desenganada e incrédula, pervertida e invulnerável ao amor, essa mulher coberta por cem homens, que podia baptizar o seu coração de vinte anos e dizer-lhe com toda a alma nos lábios e toda a esperança nos olhos: «Tem fé, caminha!...»

E nenhum dos dois tinha a coragem de fazer aquela confidência. Ela deixava-se ir, na mortal indiferença que toda a mulher da sua vida sente em si; ele, que a tinha idolatrado um dia, como um doido, como um beato, sentia apagarem-se um a um os círios desse altar ao cimo do qual a erguera arrecamada de toda a sua fantasia, coroada com todas as suas esperanças, divina e imensa, calcando aos pés o mundo como a Virgem calca a serpente do Mal sob a sandália de prata... O Te Deum acabava em funeral, e ela, não podendo ser a sua vida, era ainda a sua morte. Vivia com ela como o defunto no caixão, e apaixonava-se pelo seu sofrimento, como se teria apaixonado pela vida... Era um poema acabando num pesadelo... Fora uma gopiara cavada sem um só diamante ao fundo da vala.

Mas que fazer agora? Um desânimo atava-lhe a vontade, e depois de se ter confessado essa miséria toda, parecia-lhe ainda uma consolação ter perto de si essa mulher, que lhe deixara no íntimo uma paixão, desligada já do objecto, mas iluminando ainda, como luar, como sombra do sol, a noite obscura e tenebrosa da sua grande mágoa...

Que fazer?... Que fazer?... Que fazer?

VII

Honorina, quando só, ia para os quartos das amigas, conversar. Às vezes passava horas fechadas com a Emília...

Deitavam-se fumando, os beijos caíam das bocas, sem querer, Honorina então tremia, arrancava o peignoir, a saia e a camisa, despia a companheira, mordia-lhe os peitos, enfurecia-se de lascívia, deixava-se beijar toda, torcendo-se sob as carícias dos lábios viciosos da amiga, entregando-se como uma deusa, os dentes a bater, as mãos no ar, delirante, medonha...

Ficava abatida, os olhos quebrados, prostrada, enojada por fim, nervosa, tonta, como uma bêbeda..., e quando Edmundo chegava, à noite, era preciso levá-la a passear; ela abafava, tinha ânsias, arrancava os colchetes, quebrava as unhas, tratava-o mal, imperiosa, com palavras duras, humilhando-o com o olhar, irascível à menor coisa...

Mas sempre havia um beijo, um arrependimento mudo, um grande suspiro, com que ela agradecia a Edmundo o carinho humilde e piedoso com que ele a tolerava assim má, injusta e ingrata...

Não fazia tudo aquilo de propósito, era o génio, era a desgraça, todo o fel que a ensopava e lhe vinha de quando em vez aos lábios...

Edmundo curvava-se. Tinham sempre disputas antes de se deitar. A voz dela injuriava-o, insultava-o. Ele calava-se, aturava-lhe o desprezo, a insolência, habituado ao martírio, sem forças para reagir.

É que entre dois amantes há momentos ignorados por todos, em que se pagam e esquecem esses instantes de ultraje e dor...

Quantas vezes, depois de três horas de cólera, depois dessas cenas odiosas, aquelas duas cabeças se não juntavam, aquelas duas bocas se não uniam em juramentos beijados, e esses dois corações, soltos enfim, batiam lado a lado, no seu secreto diálogo de aves moribundas!...

-- Edmundo! Meu pobre Edmundo!

Isso bastava para o consolar. O mundo devia ter feito sofrer muito essa mulher, para se ter tornado tão má e tão injusta...

Quando chegaria a vez dele? A sua vez de cuspir ultrajes a toda a caridade, de blasfemar sobre as coisas mais santas, de ser hereje de alma como aquela miserável criatura? Sabia bem que esse dia chegaria para ele, implacável. Porque ela arrependia-se sempre, e de entre toda a perversidade do seu coração, grande de mais para um corpo tão indigno, como numa fogueira apagada, chamejavam ainda sob a cinza algumas brasas ardentes.

Tinha minutos de uma compaixão amorosa e intensíssima, com palavras de uma piedade santa, palavras que ele dizia como nos tempos felizes da pobreza e da virgindade, como se fosse a fugitiva e doce sombra do seu passado que agradecesse ao céu.

-- É só para sofrer que estás perto de mim...

E os seus lábios apagavam tudo, como o vento arrasta para longe os miasmas e as pestes...

Entre as tormentas, havia sempre umas horas de sol, luminosas e quentes. Honorina, arrependida, tornava-se compassiva e meiga como uma criança... Não era senão ternura e adoração... Uma infantilidade, como uma luz vertida desse passado puro que tem toda a mulher por mais pervertida que se haja tornado, envolvia-a, inundava-a, vagia nas suas falas, como uma borboleta branca numa flor fenecida. Nessas horas ela parecia uma noiva saída da igreja, os seus olhos eram macios, húmidos, como duas lágrimas que tivessem o poder da vista... Eram horas felizes; não é dessas que é preciso falar...

Edmundo debatia-se entre uma quimera e uma realidade. Cada um deles desejava e exigia o impossível.

Para ela era demasiado tarde, e para ele, pela primeira vez doidamente fascinado, não havia esperanças já de amor, um amor que fosse acima de todos os amores, que fosse ao mesmo tempo um delírio e um culto...

Passava o tempo a tentar a escalada dos céus e a cair na lama... Quando se esquecia da hora antecedente, os minutos apressavam a sua hora futura... Quando se sentia renascer feliz e estendia os braços, um riso acabrunhava-o de novo. Mal o tinha feito sorrir ela fazia-o logo chorar.

Ambos porém estremeciam as sinistras e pesadas cadeias que amarravam as suas duas vidas ao pelourinho da dor, e as horas de serenidade pareciam-lhe sempre mais doces do que as más lhes tinham parecido amargas.

Edmundo curvava a cabeça e pensava em Deus.

Aquela mulher tinha razão de ser assim. Envenenem uma hóstia consagrada e a religião terá mentido aos olhos cegos dos homens. Nessa comunhão de morte com o corpo do Salvador, a humanidade rirá das potestades divinas.

Edmundo via em tudo flamejar o relâmpago sacro dos destinos, guiados pelo sobrenatural. Os homens escondiam a face nas mãos para não ver a luz e cometer os crimes... As leis desculpavam as infâmias e puniam as resultantes da sorte, esse invisível medonho criado pelos homens para fazer face ao destino.

O Ceará agoniza esfomeado. Um homem vende ao Estado sacos de cal como farinha. Os esfomeados agonizam, o homem torna-se banqueiro. É o mundo.

Materializa-se a alma para mascarar o crime de a haverem esganado de traição. Quando uma dessas pobres almas estranguladas geme, o mundo imundo volta a cara e a sociedade ri. A alma são as conveniências...

Sim, aquela pobre mulher tinha razão de ser assim...

Os seus olhos de criança viram o pai trazido ensanguentado para casa, com um tiro no peito... viu a mãe chorar de fome e entregou-se às promessas dos homens que lhe ferraram na fronte o estigma de última, que lhe roubaram o seu sagrado direito de ser mãe, que a expulsaram para sempre da família, do amor, e depois do estupro de uma alma e da violação de um corpo, lhe deixaram um pouco de dinheiro à cabeceira, o preciso para não morrer enquanto a ferida não cicatrizasse, e um outro não viesse arreganhá-la de novo, infamemente...

Tudo perdido e sem remédio, os olhos dessa vítima deviam cair furiosos sobre o mundo, com um clarão de vingança, uma chama que dir-se-ia o desejava incendiar inteiro.

Ah!, sim, o veneno dos homens envenenava até as hóstias do altar...

Uma vez contaminada uma alma, fujam dela, é como a vermina. Agarrem um animal bravio e não tenham cuidado... Os seus dentes vingam-se.

0 coração é um turíbulo; se o enchem de matérias fecais, quando se lhe pega fogo é uma fumaça de peste que rompe dos talhos... Um homem na tortura vocifera, geme, chora... Uma criatura que respira desgraça só pode exalar dor e sofrimento.

Edmundo compreendia essas coisas. Tinha para Honorina a caridade de um enfermeiro. Aceitava-a assim mesmo.

Noso lhos ciumentos de Emília adivinhava a razão dos abatimentos e prostrações da amante, e, muito no íntimo, admirava-a, assim impura e infernal, quebrando as leis da natureza, viciosa, admirável, gozando as mulheres, ela que era mulher...

De todo o seu corpo terrível de serpente, uma fascinação rebentava como o perfume de um cálice venenoso de flor tropical.

A cor da pele, quente e macia, da cor fulva do bronze e dos felinos, os cabelos sedosos e negros como um abismo, os olhos ensopados num fluido que arrastava, os seus modos de bacante lânguida, as suas ventas de gata brava, a boca vermelha, tinta de sangue de tantos corações trincados nos seus dentes, tudo nela participava desse poder magnético das cobras, que atraem os pássaros, tudo nela era uma acre bebedeira de carne que lembrava o pecado a quem a respirasse...

Edmundo tinha a certeza que ela lhe tinha sido fiel até esse momento, mas temia sentir um dia na treva um rival.

A sua melancolia, a sua passividade, não era isso que podia servir à mulher que ela era, indiferente, bravia, dominante e nervosa.

Nos braços de um outro homem ela esquecia mais o desastre da vida, o exterior da alma...

Por isso Edmundo entrou a desconfiar de um rapaz turco, moreno e de olhos escuros, com quem muitas vezes a encontrava a falar, debruçada na varanda... Pouco a pouco, essa intimidade foi crescendo, já se tratavam por «tu».

Um dia ouviu-lhes um farrapo de conversa.

Com um ar cínico, desses que convém ao homem ostentar diante dessa qualidade de mulheres, contava-lhe com uma calma de muçulmano o que fazia à amante, quando desconfiava dela. Era simples. Ajoelhava-a, prendia-lhe os cabelos numa gaveta, tirava a chave e a escrava esperava de joelhos, sem se poder mover.

Mas o homem que falava assim tinha uma dessas fisionomias que parecem estar sempre a pedir desculpa.

Um desses tipos de que uma mulher pode gostar por duas horas mas que nunca serão amados por criatura alguma.

0 seu credo de paixão era a pancada, fêmea batida era fêmea presa.

Edmundo perguntou a Honorina quem era esse homem.

-- Um jogador, um rapaz muito fino...

-- Pareceu-me grosseiro falando-te nas mulheres a quem esbofeteava...

-- Ouviste? -- perguntou ela inquieta.

Edmundo notou o seu franzir nervoso de beiços, disse que sim, e começou a espiá-la. Vinha de dia sem propósito, para ver se ela estava sozinha.

Honorina compreendeu.

A sua inexperiência excitou a curiosidade pervertida da mulher.

Ainda não tinha pensado em enganá-lo, mas de então essa ideia sorriu-lhe.

Lassa de todos os carinhos e de toda a cruel humildade de Edmundo, Honorina estremeceu pensando num homem que a calcasse sobre o tacão...

Uma noite Edmundo veio mais cedo, às seis horas e meia. Encontrou a porta do quarto fechada.

Perguntou ao criado, um espanhol que servia de porteiro, um pobre homem que entrava no quarto trazendo um licor, metia as mãos no bolso e contava a sua vida, falando da mulher e dos filhos, distantes dele, lá em Vigo...

-- Saiu, Romão?

-- Sim senhor...

-- Sozinha ?

-- Não senhor, com um moço, esse que vem aí às vezes...

Edmundo não perguntou mais nada. Tinha ouvido rumor no quarto. Desceu de novo as escadas, entrou no restaurante, sentou-se a uma mesa.

Estava fraco, fez o possível por comer. Depois de duas colheres de sopa pediu o peixe e não tocou sequer nele. Sentia as faces a escaldar e tremiam-lhe as mãos.

Voltou-se na cadeira para apanhar o guardanapo caído. Honorina estava sentada a uma mesa do fundo, jantando com Leão Absali.

Ferrando as mãos fechadas, Edmundo pensou em tirar a desforra de todo aquele tempo de vergonha, humilhado aos pés de uma mulher da vida, de uma mulata, de uma mulher à toa, arrastando por todo o hotel o descaro de se deixar insultar dia a dia por essa cabra, que se sentava à mesa com um outro, na sua cara, à frente de todos, rindo-se talvez dele com esse tipo, contando-lhe as suas baixezas, toda a história torpe da sua amigação, em que a mulher fazia de homem e o homem de mulher.

Via agora em todas as caras um sorriso de troça...

Os criados olhavam-no, esses criados, testemunhas das suas cenas humilhantes com essa mulher, que agora lhe cuspia na cara, agradecida...

E entre essa nuvem vermelha, de todo esse entulho, a imagem da mãe triste, compassiva, austera, de cabelos brancos e toda de luto, surgiu ante ele... Debaixo de toda aquela lama que lhe entupia o coração a imagem santa reaparecia, como Cristo depois dos três dias...

Bebeu o vinho num trago, mais calmo.

Ia-se embora, dali... Dava-lhe vontade de escarrar, com nojo de si próprio... Rangia os dentes, enraivado de ter sido tão criança, tão ingénuo por tanto tempo...

Sacrifícios, carinhos, perdões, todo esse amor tão grande que lhe dera, com as ilusões e as esperanças e as ambições da sua vida, toda essa outorga de si próprio, e vai a cabra ri-se dele e chega o ventre a um outro, quase à sua vista...

Lembrou-se de que na véspera lhe pedira trinta mil réis para pagar um carro. Tinha pago as contas, estava com pouco dinheiro no bolso.

Tirou então os trinta mil réis, desdobrou-os, pôs o chapéu e levantou-se da mesa.

Aproximou-se de Honorina.

-- O cavalheiro dá licença?...

-- Pois não... -- disse o turco, arrastando uma cadeira.

Edmundo estava pálido e trémulo.

A amante olhava-o, de pé, com as notas embrulhadas na mão.

-- Aí tem! -- e atirou-lhas no prato, à vista do outro...

Ficou um minuto de pé, esperando uma bofetada que não veio.

Honorina cravava os dentes brancos nos beiços.

Edmundo virou costas, saiu.

Andava pela rua como um bêbedo, falando só...

Um homem deu-lhe um encontrão, que quase o fez cair. la tão absorto, tão aflito, que nem se voltou. Parecia-Ihe ver os bondes e os tílburis encaminharem-se todos para ele, quase a esmagá-lo.

Quando sossegou mais, ergueu a cabeça: estava na Rua 1.° de Março. Só então reparou que chuviscava, As calçadas estavam todas molhadas. Tinha os pés húmidos. Tinha a face coberta de suor, doía-lhe o peito.

Encostou-se às grades do Carmo para tossir.

A dois passos era a casa do Julião... Havia um mês que lá não ia... Pensou em vê-lo, mas chegando a meio do Largo do Paço parou ainda, voltando costas... Lembrava-se que tinha por ali passado uma noite com ela, vindo de Nictheroy... Sentiu vontade de chorar... Mais do que nunca percebeu a agonia de toda a sua alma.

Teve frio, achou-se sozinho, debaixo de um candeeiro.

Lembrava-se de um homem a estorcer-se, rasgando-se, sob aquela mesma luz de gás..., e ainda uma vez pensou em ir ter com Julião..., mas estacou a meio do caminho, como da primeira vez.

Tentava sorrir de toda a sua aflição. Uma mulher, grande perca! Havia tantas mulheres!

E enfim, todas eram a mesma coisa. A mesma pele...

Mas amava-a, amava-a muito... Amor... Porquê amor?

Por essa coisa com que se fazem tambores?...

O que ele amava nela era a pele da mulher! Era pelo menos aquilo que ele beijava... Que sentimentos queria ele que tivesse a pele de uma mulher?

Sob ela havia as entranhas, as tripas, os pulmões, o baço, o fígado, e essa posta de sangue coalhado, o coração... Que pretendia ele de toda aquela imundície Pensava talvez que toda aquela fressura que recheava as formas da amante o havia de amar? Pensara estar compondo uma dolorosa poesia em todo aquele templo de imundície e torpeza... Tinha arquitectado um poema, ia rimando a sua humilhação com o desprezo de uma prostituta, ia fazendo versos dolorosos com hemistíquios de alegria... Era muito lírico e muito sentimental, esse poema...

Falava-se mal do mundo, trocavam-se beijos, insultos, frases de bordel e cânticos de igreja, acarinhava-se a fêmea e esquecia-se a mãe... Ah!, um idílio bem trabalhado, bem sentido... Hero e Leandro num mar de lama, Dafnes e Cloé num hotel de mulheres...

E Edmundo sorria dolorosamente.

Mas era bem amargo, era bem triste ver tanto sonho, tanta mocidade, tanta loucura e tanto sofrimento apodrecer como um monte de esterco... Em toda essa porcaria estava a sua alma... Todo aquele cinismo se voltava contra si... Era melhor que não pensasse mais nisso; martirizar-se julgando curar-se era imitar o gamo que arranca a perna com os dentes para se livrar do laço, era fechar os olhos enterrando nas órbitas dois punhais...

Agora mais experimentado, os seus lábios ainda amargos daquela boca pérfida, não se iriam pousar com tanta embriaguez na boca das mulheres.

O pássaro uma vez caindo no laço não se deixa prender tão facilmente, recuperando de novo a liberdade.

Tinham sido dois meses bem mal gastos , em que se havia esbanjado muita ilusão e muito engano, mas tudo tinha remédio...

Dois meses arrastados de joelhos, dois meses adorando e sofrendo... Que lhe restava ainda para dar?

Com outra seria preciso recomeçar ainda, desesperar ainda e sempre... A cada amor seria abrir uma cova a mil esforços inúteis... Era desesperante fazer do coração o coveiro da sua própria sepultura.

Tinha lido uma vez que no Oriente obrigam o condenado a abrir a vala; depois, decepando-lhe a cabeça, empurram o corpo. Ele vinha de sofrer esse suplício.

Levara dois meses a arranhar-se com as unhas, abrindo a cova, depois uma mulher tinha-lhe atirado ao fundo na sua própria alma, e ele agora chorava sobre o jazigo de tanta ilusão morta, de tanto sofrer perdido...

Ah!, não, não tinha perdido coisa alguma. Tinha amado como lhe ordenava a mocidade, tinha pago o seu tributo ao Ideal. De tudo aquilo restava uma saudade a mais... A vida é mesmo assim. Antes da suprema agonia na cruz o homem cai por vezes no caminho, ao peso do madeiro. O filho de Deus, crucificado no Calvário, ensinara os homens. Cada um leva às costas o seu instrumento de suplício, a vida... leva-a até ao lugar da execução e crucifica-se nela... A vida era a mais falsa das amantes; uma criatura sofre durante anos por causa dela e um dia vê agonizante que ele vai-se embora... Tinha das mulheres o feminino, era o quanto bastava para a desculpar....

Enquanto a si, tirava respeitosamente o chapéu ao destino. Quem entrara no mundo baptizado com lágrimas, era natural o sagrar-se na desesperança e morrer na dúvida, que é a mais terrível das mortes... la seguindo os «passos» da Paixão... Excusava bem a Maria Madalena para os seus derradeiros momentos, mas a mãe?...

Conceder-lhe-ia Deus o consolo de a ver chorar aos pés da sua cruz?...

Parou, porque ia andando sempre. Estava defronte de uma casa de jogo. Alguém que ia entrando parou também para acender um cigarro. Reconheceu-o. Era o músico, o Flávio Reis, o compositor do «Nero», poema sinfónico, e organista da catedral.

Edmundo começou a olhar as janelas dessa casa onde se aventura dinheiro no tapete verde... A vida era também uma banca de jogo. O roleteiro é a sorte...

E aquele desgraçado ia jogar? Não lhe bastavam as emoções sentidas a cada transe da sua pobre vida de infortúnio ?

Então, no silêncio da noite, ergueram-se as plangências de um piano.

O artista tocava Chopin para distrair os ficheiros...

Eh!, murmurou Edmundo, ainda há gente mais infeliz do que eu! Ele vai ganhar uns dez ou vinte mil réis em calcar umas teclas toda a noite, eu sou bem mais feliz, perdi uma amante... Ele, coitado, anda a vender a peso o seu único amor, a arte!...

E continuou a caminhar... Entrou no Largo do Rossio, e espantou-se de se ver ali, a dois passos do hotel, a dois passos dela...

Foi ao Recreio. Pareceu-lhe ser ainda o «Tim Tim» o que cantavam lá em baixo, entre aqueles panos de lona.

Aborreceu-se. No tempo do Dias Braga aquilo era melhor. Havia um segundo-secretário baixinho, meio calvo, que falava em mágicas, em revistas, contava enredos, expunha planos de tragédia, em que a Delorme tinha o papel de repolho e o Dias Braga por força o de caixa de rapé... Como diabo se chamava esse segundo-secretário? Autor da Fada de Diamantes, do D. Pacheco, drama histórico em redondilhas, pois não!...

Tinha talento, foi pena esse homem não ter começado mais cedo, quando o grande Artur traduzia Moliére, e o Furtado Coelho ainda não era pobre, e tinha boa mulher...

Coitado!, quem o havia de dizer capaz, aqui há uns trinta anos, de escrever livros só para homens, para não morrer muito desgraçado, numa enxerga!? O actor tem essa má sina consigo, leva a vida a vestir casaca e a figurar de duque, arrastando ouropéis e declamando de um trono de papelão, para acabar pedinte e sem vintém para o enterro, o que é mais triste...

Os bons tempos em que Furtado Coelho dava espetáculos em benefício de casas de caridade!... Hoje roi as coroas de louros; a esposa está longe e ainda é bela...

Má vida, a de actor, decididamente!...

E acabam sempre cornudos, como nascem os bodes...

Bastidores é o diabo... Edmundo pensava que, se chegasse a casar, nem um verso de Racine traduzia para o teatro... Demais, ele não fazia falta, ali estava o segundo-secretário do Dias Braga, capaz de emendar o Hamleth e pôr o Macbeth em vaudeville com as feiticeiras a dançar lundum, Lady Macbeth entre fogos de bengala num maxixe com Macduff, Banquo e Donalbain, e ao fim a apoteose, um cancã endiabrado, Offenbach na orquestra e gruta ao fundo entre moleques de joelhos, sob uma chuva de oiro e papéis de cor.

Edmundo tinha bebido cinco cálices de conhaque, estava tonto.

Chamou uma mulher, perguntou-lhe o nome, convidou-a a tomar alguma coisa.

Dizia-se Sílvia, queria cerveja.

-- Onde mora?

-- Botafogo...

-- Ah! sim, carne cara no bom sítio...

-- Não compreendo...

-- Dizia eu que nos açougues há carne para todos os preços...

-- Isso é comigo ?

-- Não, estava a pensar na ceia.

-- Não entendo disso...

-- Em casa de ferreiro, espeto de pau... Quanto é?

Edmundo levantou-se, saiu para a rua e depois de cinco passos encostou-se a um portal, começou a chorar.

As lágrimas embriagaram-no de todo. Encaminhou-se para o hotel, bateu à porta do quarto de Honorina.

Ela veio abrir.

-- Que me quer o senhor?

-- Saber quantas bofetadas levou já do seu amante...

-- Não tenho amante... já tive.

Edmundo viu-a fazer um esforço inaudito para pronunciar aquelas palavras.

Olhou-a fixamente...

-- Não posso falar-lhe mais tempo, espero alguém.

Honorina aparou com o braço a bofetada e recuou diante dele.

Edmundo quis agarrar-lhe os pulsos para a deitar ao chão, como um trapo, mas ela vergou-se, beijando-o, os olhos cheios de lágrimas...

-- Toda a mulher sabe chorar quando quer...

E desviou a cara dos beijos, com um movimento brusco.

Ela então sentiu o cheiro de conhaque, perseguiu-o com a vista triste, e disse-lhe numa voz grave e séria:

---Para que bebeste?

-- Estou acostumado. Ébrio de ti ou de conhaque é a mesma coisa...

Honorina prendia-se aos braços dele, olhando-o sempre.

-- Não quero que bebas...

E era tanta a tristeza daquela fala, que Edmundo deixou-lhe os pulsos e fitou-a bem de face.

-- Senta-te... Estás todo molhado...

-- Não posso mais, Honorina, tenho de ir..., tudo acabou...

Mas ela prendeu-se-lhe ao pescoço...

Tinha sido uma doidice... Não se tinha dado a ninguém, jurava... Tinha sido só pelo prazer de o amachu- car... Se ela o quisesse enganar, escondia-se, ele compreendia bem.

Edmundo sentia-se na necessidade de acreditar.

-- Então juras?

-- Pela alma de meu...

-- Não, não, por alma de ninguém...

-- Como tu foste malvado, grosseiro, estúpido... ali, em frente de todos... Não me podias fazer aquilo a sós?

No olhar dela passavam clarões no escuro denso...

Ele acusava-a torcendo-lhe as mãos.

-- Por piedade, não digas isso... Andei pelas ruas como um doido, estive chorando a uma esquina... Ah!, maldita hora em que eu te vi... Se eu soubesse que era para isto... Que te fiz eu para me quereres tanto mal, para me desprezares tanto ? Que te fiz eu para merecer os teus insultos, o teu ódio, para me calcares tanto aos pés?

Que te fiz eu?

Ela ergueu os olhos húmidos, encostou-os quase aos dele.

-- É porque gosto de ti!...

-- Que amor! -- disse ele, arredando a vista dos olhos dela, que pisavam...

-- É assim que eu amo...

-- Não dizes mais nada, não... É preciso teres a alma bem amarga, bem dolorida, para assim fazeres sofrer os que de ti se aproximam!... É melhor separarmo-nos... Não me posso livrar de ti, não te quero mais...

Parece-me até que era feliz antes de te conhecer...

-- Fica! -- suplicou ela amarrando-o com os braços.

-- Para quê? Somos dois a sofrer...

-- Não, não vás embora... Eu sei que tu não vais...

E as sobrancelhas arqueavam-se duramente, o olhar era duro como o aço, os lábios brancos. A sua voz, sossegada em cada sílaba, tinha um não sei quê de protectora, de grave, como se o que ela dissesse fosse bem sério, uma coisa de vida ou de morte.

Arrependia-se do que tinha feito... Não, imaginara fazê-lo padecer tão cruelmente... Esquecesse tudo aquilo, esse dia mau em que ambos tinham sofrido, em que ambos se tinham castigado... Ele insultara-a, fizera-a levantar-se da mesa capaz de o matar... Não devia ter feito aquilo... Era preciso pedir desculpa a esse homem, arrastado na sua afronta grosseira... Era preciso..., sim, devia pedir-lhe desculpa...

-- Ah!, tudo menos isso... Era ele o escarro que tu me cuspias na cara... Outro no lugar desse tipo tinha-me dado uma bofetada... Mas tu sabes, esses homens que batem em mulheres têm medo dos homens... Fala noutra coisa, este caften suja-te a boca e dá-me náuseas...

Honorina escutava-o, carregando as sobrancelhas.

-- Edmundo -- disse ela --, esse homem vai pedir-te uma explicação, na primeira ocasião que se encontrar contigo... Foste grosseiro... Foste estúpido... Não foi só a mim que insultaste, injuriaste-o também...

Os seus grandes olhos crepitavam, a sua voz tinha uma dolência comovida ao repreendê-lo, como a uma criança.

-- Somos muito doidos, tanto eu como tu... Precisamos tomar juízo benzinho, e esquecer o dia de hoje...

Edmundo disse:

-- Mas tu esperas alguém...

Ela estremeceu, falou-lhe angustiada, com uma serenidade mentirosa no olhar escuro.

Tinha-o esquecido, julgava que ele não tornasse mais... Que importava depois de sozinha?...

Foi fechar a porta, voltou a sentar-se, atirada sobre ele, mordendo-o silenciosamente, enchendo-lhe a cara de beijos; e um vago sorriso crispava a sua dolorosa boca, à procura da sua...

Edmundo deixava-se enterrar docemente na lama...

Balbuciava palavras incoerentes, farrapos de vontades diluídas antes de exprimidas, sentia o embriagante perfume da mulher atordoá-lo aos poucos, a cabeça cair-Ihe sobre o peito, pesada e cheia de fadiga, e no peito qualquer coisa que tornava a si, em grandes haustos, que serenava, após uma agonia horrendamente atroz...

O mundo era assim tão abominável que ele o trocava por aquela mulher?

Desesperava assim de tudo para ter voltado, sem coragem, sem fé, sem forças?

No momento em que palpara todo o nojento material da vida, quando com os olhos entupidos ainda daquele céu que o deslumbrara, o céu, que a sua alma imaginara, o seu amor, o seu único amor, o desgraçado olhara o mundo, uma mulher tinha vindo beber consigo, à sua mesa, tinha-lhe dito o nome e ia entregar-lhe o corpo, a porcaria, ia abrir-lhe as pernas, por uns papéis com que a sociedade compra o carácter, a honra, a virtude, o orgulho, a infâmia e o pão...

Naqueles minutos de vida enfrentara logo o vício à procura do dinheiro, percebera ainda toda a crueldade da sorte e todo o esterquilínio do mundo, injusto e prostituído.

Não pudera mais, saíra da latrina de olhos fechados, escondendo as vistas nas mãos. Por os ratos preferirem a podridão ao perfume, não se seguia que ele lhes tivesse os instintos como os outros... Que importava ser esse perfume uma droga falsificada, impura e venenosa.

Nem por isso tinha menos odor, nem por isso embriagava menos...

A sociedade só compreende o amor do umbigo para baixo, ele escalava essa teoria infamante, ia procurá-lo acima, e sem olhar os castiçais de oiro do altar, voltava os olhos para o topo, onde a alma refulge na sua custódia, entre os esplendores do sonho e do ideal...

Rebaixado, oprimido, abandonado, os seus olhos postos na ilusão não veriam o desprezo humilhante com que o esmagavam os homens...

Ah!, e que importava o desprezo dos seres desprezíveis?

Lastimava não ser mil vezes mais miserável para tripudiar com todo o peso da sua ignomínia nesse cisco, nesse esterco, nesse mundo nojento, que vivia repudiando Deus e clamando, a face contra terra, para Satanás ouvir melhor, «a alma é matéria»!...

E abraçou-se desesperadamente à amante, aconchegou-a bem a si, dizendo-lhe ao ouvido:

-- Mesmo que me tivesses enganado com o outro, ainda te acreditaria mil vezes melhor, mil vezes mais preciosa do que todo o mundo!...

E cravando-a com o olhar onde havia toda a torva tristeza de um cemitério, afogando-se no pântano profundo e negro das suas órbitas imensas, vendo todo um sonho nos seus olhos parados, entregou-se a ela, corpo e alma, como esses mártires místicos, hipnotizados pela religião do Cristo, como esses alucinados que se deixavam esgaçar pelos leões e morder pelas panteras, nos circos de Roma, entre os aplausos do povo e o escárnio das vestais...

Eh!, o mundo parecia um desses anfiteatros, e a sociedade apinhada nas galerias, no pódium, nos gradis, entupindo as arquibancadas imensas, de pólo a pólo, rugia de gozo ao ver agonizar na arena os criminosos de ter alma, de ter ideal, de ter fé no invisível, estraçalhados pelas feras da lei, da justiça e das conveniências...

Ria da morte, do suplício, da tortura, crente mais do que nunca haver dentro de si uma alma imortal, que as tenazes dos algozes humanos, os instrumentos de suplício da justiça das gentes, o tronco e as chibatas do mundo, não poderiam nunca torturar...

O desejo era a fascinação, o erguer de asas, da alma...

O desejo fazia santos dos ascetas, o desejo batia a envergadura para os páramos..., o desejo era o hipnotismo, era a sugestão, era a precipitação para o sobrenatural, o desejo era a vida e o instinto da alma...

A criança, aterrada, sentia todo o impulso do seu ser interior para o desconhecido, para o mistério, para o invisível..., e, debruçado sobre a amante, aspirava-lhe nos lábios todo o coração, todo o seu fluido de criatura, toda a noite clara da sua pobre alma angustiada, como alguém que respira o perfume de uma flor nascida, crescida e aberta no estrume, sem que tenha perdido por isso o seu aroma...

Das suas úlceras filtravam raios de luz; da medonha «morgue» da sua vida, onde descansavam mortas tantas ilusões e tantas esperanças, reinava um silêncio de igreja, errava um perfume de altar... E então num fanatismo, numa loucura, chegou à impiedade de ver a sua alma divina crucificada na carne, chaguenta, ulcerada, apodrecendo, como uma cadela leprenta, como um trapo, gangrenada, esgaçada, em postas, vertendo pus, sangue, matéria denegrida, sanguinolenta, nojenta, meia cadáver, soluçando, ganindo, chorando, mas iluminada como uma divindade, espalhando clarões em cada farrapo agónico de dor, uma alma ulcerada mas divina na sua essência, como um Deus estorcendo-se na cruz, como um Prometeu amarrado no dorso de uma montanha, de fígados arrancados pelo bico do abutre...

Via-a, sentia-a, apalpava-a em cada um de seus sofrimentos, que lhe importava o mundo?

Punha-se em cima do ideal, trepava até o cume, chegava as mãos à abóbada celeste, à morada de Deus...

Toda a sua amargura miserável triunfava... E fora aquele amor que lhe abrira os olhos para as influências incompreensíveis, para essa fascinação surda da alma que se arroja, que se arrebata, que aspira eternamente um desejo, um mistério, uma sensação extra-humana, um espasmo de sonho, um raio de luz subindo aos céus como os raios das estrelas descendo à Terra...

E patinhava no desconhecido, as carnes mortas, a alma extasiada, murmurando o «Credo quia absurdum», numa exasperação, todo fora do mundo, a diocese da matéria, cambaleando no sonho, o arcebispado do ignoto...

E tudo aquilo surgia da miséria, como a santidade da cela do monge...

Se o mundo não levasse a vomitar a alma pela boca, todo o homem se atordoaria de êxtase...

Estava ainda deitado em cima da cama, apertando a amante, e consubstanciava nela todo o seu sonho de milagre, vendo nos olhos misteriosos da mulher toda a inexplicável sugestão do além e da crença suprema...

Honorina tinha sido o archote que lhe tinha alumiado céus e mundo, perfeição e caos...

De encontro a ela tinha vindo quebrar a última esperança humana, a derradeira mentira carnal, a última ilusão e o desengano final. Nos seus braços tivera ainda um momento de mentira, julgara perceber a felicidade, a alegria da carne, mas a voluptuosidade dos instintos depressa morreu ante a voluptuosidade dos sentidos.

Tinha vindo, chicoteado pela sorte, ter aos braços da fêmea, esperançado de lhe encontrar no ventre a compensação do que ele sentia de doloroso na alma. E o ventre da prostituta repelia-o mas o coração dilacerado da mulher batera de encontro ao seu, segredara-lhe a ignomínia do mundo, e esse corpo envilecido tinha sido o pedestal dos seus arroubos, a escada com que tinha assaltado os domínios do sonho e conseguido cravar no ignoto o estandarte do ideal...

Ele amava Honorina como o carcereiro que lhe tinha aberto as portas da masmorra. Fora esse Satanás que lhe mostrara o mundo, do cimo da montanha da sua própria desgraça, fora ela que o levara a repetir o que está escrito: «Não adorarás senão o Eterno, teu Deus!» E a lei de Cristo fulgurou na treva: «A grande conquista faz-se pelo Amor e pela Caridade!» No seu grande bater de asas para a suprema realização da luz perpétua, à medida que descia do alto a claridade, espalhava-se em baixo uma sombra confiante...

A sombra que recortava esse deslumbramento era a certeza, era a verdade, era a parte acordada do seu sonho que o fazia acreditar na realidade idealista; essa sombra, de que não podia prescindir, era a mulher...

Em todas as religiões a mulher existe como substância, é nela que o ideal derrama a sua essência para que por sua vez ela crie...

Assim o Divino Espírito Santo, a Virgem Maria, Jesus...

A alma humana, a individualidade, é imortal por essência, e balouça contínua e alternadamente entre existências espirituais e corporais. Os seus dois extremos são Deus, o sobrenatural supremo é o amor, o mais profundo ideal da matéria.

Tudo aquilo resvalava por si, como uma visão correndo através de um sono.

A amante pousara a cabeça no seu ombro, deixando-o pensar.

Ele ergueu-se, pálido. Foi abrir a janela. O luar inundava a noite, arrastava-se pelo infinito. Numa casa junta, ouvia-se um choro de criança...

Honorina veio debruçar-se ao peitoril, aconchegando-se a ele, Edmundo sentia na face a seda perfumada dos seus cabelos.

Estiveram assim por muito tempo, os dois, as mãos dadas, ante a noite de plenilúnio.

Depois Edmundo abriu a porta, chamou o criado, pediu Kummel, mandou comprar cigarros...

A porta ficara aberta.

Ele percebia ter sonhado em muita coisa triste, nem se lembrava mais... Havia um circo, vinte mil pessoas berrando, estendendo os braços, enquanto na arena feras rasgavam um rebanho tranquilo e gemebundo de criaturas...

Tinha tornado lentamente à realidade.

Estava beijando uma mulher a quem atirara dinheiro, horas atrás. Insultara-a com o que era dela. Essa mulher tinha-se mostrado indigna; para a merecer também ele se infamara. Essa mulher, ferida no seu orgulho, prometera entregar-se a um outro naquela noite... Ele comprara-a com a sua vergonha. O interesse venceu. Mais vale um homem aos pés que um homem por cima. O outro tinha compartilhado o seu ultraje; pagava caro as suas carícias, mas ele cobria o lance, dava a dignidade...

Era por isso que estava vendo o luar ao lado dela.

O outro ia chegar, encontrava a porta fechada, vinha noutro dia qualquer, em que a achasse sozinha. Tinha a promessa de Honorina.

Edmundo olhava-a com raiva.

Quando o criado entrou disse que o senhor Leão estava na sala.

-- Vou lá...

-- Não -- gritou ela --, não quero que vás...

O criado, com medo, aventurou um conselho.

-- Podia sair, ele não o via.

-- Quem podia sair, eu?

-- Depois voltava...

Edmundo percebeu então essas palavras... Aquele criado, vendo-o assim tão indigno, tão rebaixado, tão sem-vergonha, julgava-o capaz de fugir para escapar de uma bofetada, como tinha vindo ainda depois de toda essa cena imunda do restaurante... Uma acção valia bem a outra.

E foi da boca de um criado que Edmundo ouviu a voz do mundo, e essa voz tinha razão.

Foi esse para ele o momento mais doloroso daquela cruel e indigna história do seu amor...

Aquele criado correra-o a pontapés...

Edmundo olhou-o longamente, com um sorriso triste. Depois ergueu a cabeça, puchou a amante para a cama, deitou-a para a parede, num esforço brutal.

A sua vista queimava. Foi abrir as portas... Sentiu-se homem, sentiu-se ferido. Deu dois passos para o criado, e em voz rouca, de modo a ser ouvido na sala, gritou, os dentes a bater, as mãos enterradas nos bolsos:

-- Pois ele que venha!...

Durante toda noite não pôde dormir... Tinha nos ouvidos o conselho da amante: «Foste grosseiro, foste estúpido, deves pedir desculpa...»

Via-se feito de escarradeira, onde um caften e uma fêmea cuspinhavam... Acabava naquilo todo o seu grande sonho.

Edmundo amanheceu triste e abatido. Falaram os dois por muito tempo, ela e ele...

Às dez horas desceu sozinho, foi sentar-se a uma mesa do restaurante.

0 turco almoçava com um amigo, ao lado.

Edmundo esteve ainda um instante, de olhos fechados, pensando, a mão no gargalo da garrafa de vinho, e tremia.

Levantou-se com esforço, desviou a cadeira, encaminhou-se para Leão Absali.

-- Queira perdoar-me se inconscientemente o ofendi ontem durante o seu jantar... Estava exaltado, julguei que insultar uma fêmea era como apedrejar um cão vadio e sem dono. Sei que tinha pensado em pedir-me uma explicação... Como vê, apresso-me em vir eu mesmo dar-lha para o poupar desse trabalho. Seria um traço de união bem reles para duas inemizades... Quando me quiser detestar um pouco deve escolher para isso outra causa, outra razão... Estou desculpado, não é assim?

-- Lastimo--falou o turco, com esse sorriso que têm os jogadores para os apresentados e para os fazendeiros --, lastimo ter-se passado uma cena daquelas entre mim e o senhor, a quem eu admiro, um rapaz distinto... um jornalista...

-Agradeço-lhe... Serve-se de almoçar na minha mesa ?

-- Oh!, agradeço, estou à espera do café, levanto-me já...

Edmundo virou as costas, evitando os olhares.

Quando Honorina entrou percebeu de longe o que se tinha passado e teve um sorriso mau, uma ardência nos olhos. Esse sorriso e esse olhar nunca mais a deixaram.

Haviam-se terminado entre os dois as velhas confissões de jamor e os longos abraços de desejos. Muitas noites adormeciam sem dar palavras, de costas voltadas, cada um pensando em si.

Tinham diálogos brutais grosseiros, em que se ultrajavam mutuamente quase todos os dias. Edmundo era o primeiro a perdoar e a pedir perdão... Tentavam voltar ao tempo antigo, de adoração, mas ambos desanimavam no primeiro beijo. Tinham tripudiado de mais em riba da ilusão, tinham feito dela um trapo, não a apanhavam mais do soalho.

Honorina, com o bico do saptato, empurrara-a para a roupa suja, entre as toalhas...

Não falaram mais de tal coisa depois desse enterro de cachorro.

Ela tomara uns ares da Rua de S. Jorge, de cigarro sempre na boca, fazendo olhos ternos aos machos.

E enquanto Edmundo perdia o amor da amante, Emília aproximava-se, confidente, meiga, amiga... Tinha-se apaixonado, deixando a companheira de prazer.

Honorina sentia-se, dizia mal dela, com olhos de desprezo.

De tão baixo que caíra, Edmundo começou a sentir uma afeição de irmão por essa pobre rapariga tão criança, tão alegre no seu amor, tão simples no fundo, tão carinhosa, tão virgem ainda.

-- Parece tão feliz, a Emília!...

A mulher fitava-o, radiosa.

-- Parece-me que o Alfredo gosta tanto de mim...

Desde que estou com ele, até me esqueci da minha vida, do que sou...

Edmundo apertava-lhe as mãos, a alma torcida de angústia... Tinham amiúde dessas conversas, às vezes em frente ao amigo dela, um rapaz alto, alegre, forte, um tipo antigo, desses Febus de Châteaupers com que sonham as mulheres de romance, um capitão medievo de archeiros, empenachado, de espada à cinta, morrião na cabeça, de esporas de oiro nos calcanhares. A pobre criança, que sonhava com os Montmerancy e os Nemours, idealizava, no amante, um personagem de aventura, um tipo de capa e espada.

Ele jurava e praguejava como um mosqueteiro, sentava-se nos joelhos como um príncipe, fingia amar como um Romeu, mandava-a como um rei, e os dois pareciam felizes como dois rouxinóis no ninho. Ao lado deles, da sua alegria, dos seus idílios, Edmundo sofria, amarrado à amante, subjugado pelos olhos sinistros e malvados da feiticeira, pela sua braveza de onça.

Ante as fanfarronadas do amante, Emília vergava a cabeça como uma corça, ante os olhos de Honorina, Edmundo termia como ao ouvir o uivo de uma fera.

Tinha-se habituado vagarosamente a suportar de cara erguida a sua mísera vergonha de criança.

Passara a ler livros de cavalaria e de proezas, e de noite, enquanto a mulher dormia, ele admirava-se perdido entre hostes luzidas e radiantes dos cruzados, nas galas orgulhosas da nobreza antiga, da velha arrogância da aventura arrojada, entre batalhas, torneios e saraus.

Foi então que se lembrou de continuar um romance começado havia quase um ano, um livro medieval, em estilo antigo, com grande pompa de frases, castiças, oiro de lei, bem forjado, como uma durindana saída das mãos de um alfageme de Toledo.

Esse romance, que abria pela partida de el-rei D. Sebastião para a África, tinha de feito dois capítulos, mais obra de rascunho que de última demão. Edmundo, para se embriagar, releu as páginas da Jornada de África, a epopeia lúgubre de Jerónimo de Mendonça, um exemplar raríssimo da edição de 1607, trinta anos apenas depois do desastre de Alcácer Quibir...

Deitou abaixo da estante tudo o que poderia trazer-lhe à vista a magnificência desse tempo do cavaleiros andantes.

Publicou dois trechos dessa reconstrução histórica num hebdomadário literário da capital... Eram períodos tersos, ricos, rebrilhantes de brocados, telas de oiro e prata, tecidos de seda... Viam-se os fidalgos ostentar saias de damasco, montados em corcéis escabreados, corcoveando os galões, balouçando plumas na cabeça.

Toda essa mocidade que partia para a guerra, alamarada de oiro, com rebanhos de escudeiros, pajens, arautos, cavaleriças e servos, passava radiante, romântica e descuidosa nessas páginas luminosas, em que o poeta esquecia as suas dores e o seu luto.

Havia ginetes com opulentíssimos jaezes em que só resplandecia o brocatel, o oiro e o veludo, e mancebos que saíam de pajens de el-rei para entrar nas hostes de guerra, de gorro, cabelos louros e punhal guardado na escarcela de cetim, ao lado da última missiva da castelã e as cordas de sobressalente para a guitarra das serenatas... E eram mais os filtros e gorrões que os capacetes e os elmos, mais as armas com bozantes de prata em campo azul que as boas coiraças de Milão e as valentes lâminas toledanas.

E ao vê-lo nesses períodos, alguém não pensaria em outra coisa que não fosse na escolta de D. Leonor, indo para a caça com seu séquito farto, pajens, senhores e falcoeiros, cortesãos ladeando o palafrém real, ao soar de charamelas e trinar das esgravatanas de oiro... A África era um torneio, a que se ia em galeões empavesados, nas naus venezianas e nas urcas altaneiras, de quilhas e rebordos agaloados, com altares, numa festança, sob o esparavel azul dos céus.

Mas todos os seus esforços para continuar a sua obra foram-se quebrar um a um em frente ao doloroso estado do seu espírito...

Era em vão que os amigos, esses poucos com quem ainda falava, lhe diziam para trabalhar, o animavam a prosseguir.

Um grande desânimo apoderara-se dele, implacável.

Desde uma noite em que ouvira dizer a Luís Murat o ter ele conversado com o espírito de Pardal Mallet, por intermédio de um médium, no Paraná, isso levou-o a estudar o espiritismo, a magia, a ciência oculta, o teosofismo, a mistagogia, o satanismo. Desanimou a meio do caminho, deixou de ler para continuar a sonhar.

Percebia bem que ao fim de toda essa imundície de positivismo, de materialismo, de cepticismo, a humanidade tendia mais que nunca ao seu ignoto, ao oculto, ao mistério. O satanismo não era mais do que o misticismo deste fim do século. Na Idade Média havia uma tensão para a luz, agora para a treva.

E afinal, ao cabo de uns vinte livros devorados, Edmundo parara ante o portal miraculoso do Mistério de Eleusis... Toda a sua secreta maneira de pensar estava ali intacta e maravilhosamente exposta. A vida é a sombra, a morte é a luz... Eis o grande princípio de iniciação.

O dogma, esse hieróglifo divino, decifrava-se... O artista envolvia-se em toda essa soberba loucura do desconhecido, a nervose cravara esporas no seu espírito desmantelado, Edmundo perdia-se no longínquo, retrocedia sem se afastar assim do mundo, indo e vindo, sem um instante de quietação e de calmo pensar, balouçando entre o que foi e que há-de vir, como o pêndulo de um relógio de parede.

E mais a mais sentia em redor todas as almas prestes a naufragar num mar de tormenta, a sagrada barca do espírito virar no dorso das ondas furiosas, e não haver um Cristo que fizesse parar a tempestade, estirando as mãos ao céu...

Não vira ele Coelho Neto tremer todo por ter caído um quadro da parede no instante em que se pronunciava o nornç do Pardal Mallet?

E Aluízio de Azevedo, o realista, jurar que tinha ouvido de noite a voz do finado companheiro, do grande irmão, do grande amigo?

Ao menos dessa noite em que se debatiam os homens rebentaria a aurora! Abrir-se-ia um dia o cálice dessa flor misteriosa, a que chamam sobrenatural?

Quem sabe se para adiantar o desabrocho dessas pétalas implacavelmente cerradas, dessa flor definitivamente em botão, é que a humanidade se reduz cada vez mais a esterco? Seria o espírito a epiciclóide da natureza?

Tudo o que era dúvida acabara a seus olhos. Acreditava, procurando a solução...

Que tudo apodrecia era palpável... Os vícios cravejam os homens.

Na Rua de S. J. existiam duas casas de pederastia, no Largo do Rossio bastava acender três fósforos...

Floristas de dez anos piscam os olhitos aos homens, no jardim dos teatros... Nos colégios a devassidão grunhe numa precocidade atroz. Do primeiro ao último, são uma só latrina. A mãe que à noite beija o filho vindo de aprender o á-bê-cê, mal sabe a pobre mãe que está beijando às vezes um anjo todo escarrado de infâmia...

As mulheres praticam o safismo, desde as condessas às cozinheiras...

No hospício de alienados, em São Paulo, naquele lúgubre casarão atulhado de doidos, morreu há uns dois anos uma pobre mulher, vendedeira de hortaliças no mercado, que tinha a monomania da fressura... Cobiçava todas as loucas, beijava-as, era preciso vesti-la com camisa de força para que a tríbade não se atirasse às companheiras, como uma fera. Essa mulher era virgem, tinha trinta e oito anos, nunca conhecera homem na sua vida.

O seu vício sensual era satisfeito pelo onanismo e pelo safismo, e não sabia lerI... Nunca estremecera com as páginas de Mefistofela de Catulle Mendès, da Filie aux yeux d'Or de Balzac, Mile, de Maupim de Teheophile Gautier, do Monsieur Auguste de Mery, da Nana, do Charlote s'amuse, nunca, nunca...

OhI, instinto da depravação, oh!, degenerescência das raças, o que escondes tu nesses olhos de encanto nessas virgens cobertas de sedas e brilhantes, que ouvem as músicas de Wagner e sabem ler francês?!...

Ele dantes duvidara dessas monstruosidades sexuais de que falam os médicos de hoje, julgara uma mise-en-scene de inferno a Prostituion Fin de Siécle de Leo Taxil, mas agora não... Sabia da boca de uma mulher que no Rio havia homens que pagavam para que ela lhe mijasse na bocal...

Punham-se de quatro patas e gozavam, os monstros!, com tamanho absurdo e contra-senso!...

E depois, se há uma inversão sexual na generalidade das mulheres, em Honorina, por exemplo, era ou não para acreditar que ta! nojo existisse no outro sexo?...

A Augusta «Vagabunda», a Carmen, a Xica «Polca», a Susana, a Peruana, todas essas mulheres que não escondem os seus vícios, os faziam triunfar a cada passo, confessando-os... E a Pepa Ruiz, que namora mulheres, lhes faz corte, promessas, juramentos, e se apaixona por um seio bem redondo e um artelho de estátua antiga ?

Ilusão? Fantasia, toda essa imundície a ver a luz do sol? Quimera, tanta realidade abjecta?

200Não se tinha visto um ministro, banqueiro de casa de roleta?

Eh!, muita infâmia! Os bons são os que sabem esconder, nada mais!

Tanta carne e tanto materialismo já cheirava mal!...

Quando havia a terra de comer todo aquele estrume para ver ao menos se ele podia apressar a germinação do ideal supremo? Pois não é verdade que se estrumavam os amores-perfeitos? Os cravos? As violetas?

E já que via tudo podre, suportava com mais resignação aquela sua vida. Ao menos não fazia mal aos outros!

Era bem possível que em Honorina a sua maldade fosse o resultado impotente do seu espírito acanhado de mulher ignorante para romper as carnes e precipitar-se no ideal!... Tinham-lhe cortado as asas, por isso o seu esforço constante e inaudito fazia chapinhar a lama em que se debatia...

«Quem seria capaz de dizer que não?» Ah!, ele não andava sonhando acordado, não!

Ao deixar-se ainda levar por essa criatura tão doce e tão terrível, por continuar a abdicar-se a essa mulher tão misteriosa e tão lânguida, não fechava com isso os olhos.

Sentia porém o irreparável daquela ligação, conservava ainda a volúpia de se chegar a essa mulher, de olhos de noite incendiada, de treva arranhada de labaredas e sentir enroscarem-se ao seu pescoço os seus braços de cobra, macios e mornos, como bichos-da-seda, a roçar-lhe a pele... Ante o seu porte melancólico e ardente, o seu ar impaciente e nervoso de felino, o seu sorriso de enigma a mostrar dentes de tigre novo. Edmundo sentia-Ihe escorregar-lhe um tremor no sangue e possuía de joelhos, como um mago no sacrifício da Kabbala...

Quanto mais cruel e malvada se fazia, mais ele se prendia indissoluvelmente a ela... Passavam dias sem se desejarem, ferindo-se..., mas uma noite curavam as chagas num delírio, embebiam o ressentimento no ópio de um espasmo, e mesmo assim era boa, dulçorosa, entregando-se sempre com o estupro de um prazer ainda não sentido.

Edmundo consentia a jantar entre ela e o turco, desconfiando muito que o cáften mordesse no mesmo fruto que ele, mas tentando convencer-se ainda do contrário, falta de provas, por mais que espiasse... 0 jogador tinha o seu interesse também empenhado em demorar quanto possível a conquista... Na mesa de Edmundo bebiam-se vinhos caros, licores esquisitos... Havia uma voz de mulher, doce e meiga, entre o tinir das taças e dos cálices... Edmundo fazia um papel de Gil Blas de Santilhana na hospedaria de Penaflor, mas transformava-se gozando mesmo aquele seu lugar de anfitrião e espiando o hóspede entre dois tragos de «Sauterne»... Deixava-o falar das mulheres em que batia, achava graça, nunca lhe perguntara pela vida, por instinto de repugnância, aceitando-o tal como ele era, falso, vil, boémio de casas de tavolagem, vivendo em casas de mulheres, sem dinheiro quando elas não lho davam, e dando-se ares com tudo isso de um adido de embaixada do sultão, poses de blasé, vestindo bem, torcendo o braço, encostando-se na cadeira como um paxá e escondendo a faca de capoeira na cava do colete.

Desprezava-o, e esse desprezo escondia-lhe muita pequena coisa. Tolerava-lhe as intimidades com a amante, e pagava sempre, como um príncipe que recebe os seus hóspedes.

Tinha às vezes curiosidade de saber como esse tipo viera de Constantinopla ter ao Rio, sem mãos tatuadas de azul e bau de armarinho às costas feito mascate...

Ouvia resmungar que era um patife, mas podia ser bem um infeliz. A boca do mundo mente tanto...

Tinham-lhe falado de uma história complicada entre ele e uma tal Sara, enteada da Rizza... A tal cena dos cabelos dentro da gaveta parecia verdadeira, mas para ganhar-se a vida faz-se tanta coisa!... Ser um maquereau honesto é já ser alguém nesta pocilga!...

Era preciso contentar os caprichos de Honorina, que diabo?

O turco bebia por dois, mas embriagava-se poucas vezes... Engolia os desejos libertinos na sua frente, podia-os contentar pelas suas costas, mas mostrava-se-Ihes nojento de mais esse coito de meretriz com rufião, não acreditava nele. A amante, nos grandes momentos de expansão e carinhos, tinha falas desprezíveis para o pobre súbdito de Sua Grandeza o Sultão da Turquia, isso acabava de convencer Edmundo que toda a mascarada não escondia nada de ignóbil e inaceitável.

Até que um dia pareceu-lhe ouvir um beijo na janela, onde os dois, Honorina e Leão, estavam debruçados.

Voltou-se, mas viu-os tão sossegados, tão distraídos, a falar de coisas tão prosaicas!...

Talvez não fosse beijo...

E toda a noite levou a pensar dolorosamente no escuro...

Podia bem ser que fosse..., podia bem ser, podia bem..., podia, sim.

Honorina andava doente. Sofria dores de cabeça, no alto..., umas dores cruéis. Tinha vontade de vomitar, um bolo na garganta, a angustiá-la.

Edmundo perguntou mesmo ao Julião, que lhe disse ser histeria. Dera-lhe conselhos, duas horas de máximas, sem citações latinas mas coisas difíceis de compreender, uns termos médicos de arrepiar os cabelos...

203Vendo-a assim doente e abatida, Edmundo começou a tratar a amante com os carinhos de um enfermeiro...

Foi-lhe tomando de novo um grande amor passional, terno, abdicado, todo de meiguice, ilusão, ternuras de romances à 1830. Acudiu-lhe um ciúme atroz, uma raiva pelo outro, que vinha trazer consolos e arrastar no quarto da doente os seus modos de xá da Pérsia crapuloso...

E quando Honorina olhava o turco com a luz quebrada e nevoenta dos olhos pretos, erguendo as pestanas, Edmundo crispava as mãos de ódio na coberta ou nas roupas.

Dava-lhe vontade de o pôr fora, como um cão.

O seu coração de lázaro confrangia-se todo, sentindo aquela sombra segui-lo atrás do seu egoísmo de paixão.

Lembrava-se do beijo, chegava a compenetrar-se de que Honorina o enganara... E via-os, os dois, ela nua como uma cabra, ele por cima, mordendo-a, passeando os beiços por aquela boca, aquelas faces, aquelas pálpebras, aqueles cabelos...

Via-a quebrar os rins debaixo do turco, os olhos trémulos, as pestanas palpitantes, os lábios abertos para esses farrapos celestes de alma que vêm aos dentes, no delírio do espasmo...

E de noite, agarrando nas mãos da amante adormecida, encostando as fontes às dela na treva, procurava sugestionar aquele sono, forçá-lo a desvendar segredos escondidos naquele corpo...

A imaginação dava-lhe respostas, sempre contraditórias; o oráculo desmentia-se a cada instante, e Edmundo julgava às vezes ser verdade, que o hipnotismo enfim falara...

Aquela nigromância infantil desesperava-o ainda mais..., porque chegou a perceber-se como um dominante nela... Pousando-lhe as mãos, de leve, num braço ou num seio, Honorina tremia no sono, arqueava-se, ficava arrepiada como uma lira em cujas cordas se esgravatou levemente com as unhas...

Noites de angústias, que o deixavam prostrado, inânime, fatigado, com o peito a doer, os pulmões arquejando.

Depois, a sua pobre cabeça não chegava para tanta coisa... Tinha contraído dívidas com esse «amanhã» de todos os pedintes, sem pensar na impossibilidade do pagamento... Devia dinheiro, devia jóias..., ainda não tinha pago à criada, a senhora Maria; não dormina em casa, ia lá para mudar de roupa, desorientava-se, mentia, escondia-se, arredava os amigos, acabou enfim por deixar o jornal, sem saber, à toa, desanimado num exaspero.

Tinha suores frios, uma atonia dolorosa aniquilava-lhe todas as últimas energias de carácter.

Os últimos fiéis retraíam-se, os últimos conhecidos voltavam-lhe costas na rua, e cada vez mais fugia da luz do sol, a multidão dava-lhe tonteiras, sentia-se malandro até à medula dos ossos, incapaz de um esforço, imbecilizando-se ao lado dessa mulher, que nem ao menos desculpava pela beleza uma tal abnegação insensata de sentimentos e virtude.

Acabou por se ver mesmo um patife romântico, acusava-se, sentia-se resvalar, chafurdar na lama, e as calúnias apertá-lo por toda a parte, a boca do mundo, essa boca de meretriz, colada ao seu nome, atormentando-o.

E cada vez se convencia mais da sua infâmia, sabia que o turco vinha de dia estar com ela, enquanto ele andava fora, arranjando dinheiro para lhe dar de beber, para pagar a lavadeira e o hotel à fêmea, cama e quarto para se rirem dele, como dum cabrão, como dum safardana!...

Uma noite -- a noite de S. João--, o turco tinha queimado as mãos com um foguete. Ela foi vê-lo. Toda chorosa de o presenciar a sofrer, com a pele lanhada, gretando puz...

Gemia de dor, sem vergonha de ser poltrão em frente a uma mulher, e repelira-a mesmo com um gesto brusco, como quem empurra um animal.

Edmundo via tudo aquilo, acobardava-se, fechava os olhos, fingia não ver e pedia a Deus, do íntimo da alma, que lhe desse a morte quanto antes, essa sagrada e bendita eucaristia do além...

De dia metia-se em casa, folheava os livros, de portas trancadas, queixando-se às paredes, olhando pasmo para o futuro, agonizando de solidão... E quando o sol recebia o esconjuro das trevas e descia atrás dos montes, espadanando clarões pelo infinito, evacuando no horisonte seu enxurro de luz, ia então recolher ao pé da amante, encerrar-se na sua enxovia, no seu chiqueiro...

Uma noite, sem poder mais, escaldando de febre, transido pela chuva, deitou-se aos pés de Honorina, escarrando todas as úlceras da alma, vomitando toda a dor do coração, confessando a sua desgraça, o seu martírio, o seu suplício, e como ela, com os olhos mortos em luz, esgravatados de centelhas, o aconchegasse ao peito, ele sentiu-se abrir por dentro, um trovão seco de tosse saiu-lhe da boca torcida, vergou a cabeça, abriu os dentes, lançou uma golfada de sangue em cima dos ombros da amante...

Ela, espavorida, arredou-o, e ele, sempre de joelhos, agarrando-se à cama, os olhos esgazeados, vomitou a himoptise na coberta, nos lençóis, no tapete, sem forças para se arrastar até ao balde, numa ânsia de verter toda a hemorragia dos brônquios aos arrancos, o peito balouçando, toda a carcaça a tremer, a tremer...

Honorina, horrorizada, ia chamar alguém mas já ele se levantava, lívido, a boca sanguinolenta, a camisa manchada de laivos rubros...

Lavou-se arquejando, sem forças, amparando-se ao lavatório...

Ela, de pé, pálida, cheia de lágrimas, contemplava-o, com um doloroso sorriso de compaixão, desses que uma pessoa tem ante um cadáver, ante uma cova onde desce um caixão, um desses sorrisos que são a continuação do choro, o desdobramento da mágoa, um desses sorrisos que parecem soluçar ao canto dos lábios, numa aflição, como o arreganho de uma chaga, aberta nas carnes a bico de punhal...

-- Que é isso, benzinho?

-- Maltrataste-me tanto o coração que deitou sangue...

Ficaram os dois, um em frente do outro.

Honorina tinha o peignoir todo ensanguentado no ombro; ele a camisa e a gravata toda salpicada...

-- Vou-me embora...

-- Não, não deixo!... Fica, manda-se chamar um médico...

Um sorriso frio escorria-lhe das fontes.

-- Já passou... Muda a roupa da cama..., preciso de dormir, de descansar...

Deixou-se cair numa cadeira, abatido, as mãos a roçar o tapete.

-- Mas diz, diz o que é isso...

-- É a morte a bater às portas...

-- Edmundo...

-- Ein ?

-- O que foi? Diz, manda-se chamar um médico...

Ele abanou a cabeça, respirando a custo.

Honorina desapertara o peignoir, tirou o braço para fora da manga, e assim, meia nua, sem mais uma palavra, arrancou os lençóis, deitou tudo a um canto, fez de novo a cama.

Ajudou-o a despir, silenciosa, com um ar de desgraça, os olhos invadidos de sombra, como dois cárceres onde morva trancado um penoso remorso...

E durante toda a noite, à luz da vela, Edmundo viu aqueles mesmos olhos em vigília, imersos numa tristeza infinita, como embaciados de fumo...

IX

Edmundo chegou a casa às dez horas, por uma manhã de sol, alegre e luminosa.

Entrou o portão, cambaleando de fraqueza. Foi até à porta da cozinha para chamar a criada, e encontrou-a sentada perto do fogão, lendo uma carta, chorando.

-- Bom-dia, senhora Maria...

A velha teve um sobressalto, levantou-se, escondendo o que estava a ler. Mas Edmundo reconhecera a letra da mãe...

-- Bom-dia, senhor Edmundo...

-- Não tenho cartas?

-- Não senhor...

A criada olhava-o espantada, assim pálido, os beiços brancos, os olhos sem luz, a gola do casaco levantada, para esconder as manchas de sangue.

-- Ah!, o senhor teve outro ataque!...

-- Senhora Maria, deixe-me ver essa carta de minha mãe...

Ela tremeu.

-- É uma carta de... meu... filho...

-- Não minta, eu vi bem...

-- Senhor...

-- Nunca lhe dei licença para abrir as minhas cartas...

A velha deitou-lhe um olhar triste... Tirou o papel debaixo do avental...

-- Pode ler... a carta era para mim...

Edmundo abriu-a, com as mãos trémulas.

Na sua face desfigurada passou um desvairamento da vista que fulgiu à boca que não reteve um «ah!» de espanto.

E leu isto:

Minha boa amiga.

Rio Grande, 3 de Maio de 189...

Peias cartas que dantes meu filho me escrevia, sei quanto lhe é dedicada e o quanto lhe devo de gratidão, ocupando perto do meu Edmundo o lugar que me pertencia...

Deus lhe pague toda a sua bondade... Não tenho palavras para agradecer todo o carinho com que o tratou na sua doença... Com certeza a senhora é mãe, sabe o que é ter fi/hos e não possa talvez compreender o que é tê-ios longe..., sem os ver, como eu, que há três anos não vejo o meu Edmundo...

Faz hoje três meses que ele não me escreve. Está doente ? Por amor de Deus, mande-me dizer o que e/e tem, que assim o faz esquecer a sua mãe. Conte-me tudo, não tenha medo. Diga toda a verdade, estou preparada para tudo. Diga-me que e/e não morreu, sim ?

Ele não se podia esquecer de mim, sem razão. Tenho-lhe mandado sempre as mesadas... Se ele está doente, é preciso vir, quero tratar deie, não quero que ele morra.

Peia resposta a esta carta fica-lhe eternamente grata uma desgraçada mãe que pede a Deus por si. Disponha, minha amiga, de quem o é sua...

Edmundo encostou-se à porta.

A velha chorava, olhando-o.

-- Eu respondo a esta carta, senhora Maria...

-- Eu já respondi há...

-- O que lhe disse? -- perguntou ele ofegante.

-- Nada faltar ao senhor, graças a Deus... Que saúde sempre havia...

-- Que mais ainda?

-- Estava trabalhando num jornal...

Edmundo segurou-lhe as mãos para as beijar, mas como ela se arredasse, ele subiu, fechou-se no quarto, tapando a boca para não desatar em soluços.

À tarde vestiu-se, depois de haver tentado por cinco vezes escrever uma carta à sua mãe.

Pôs o chapéu, desceu ainda à cozinha.

-- O senhor António já veio, disse-me para o senhor ir lá, precisava falar consigo...

Esse António era o seu correspondente e morava com ele.

Rico, ainda novo, trinta anos no máximo, inteligente e bom, religioso como todo o homem de negócios, caritativo como todo o religioso, ganhara-lhe uma afeição intensa, profunda, sincera.

Apesar de Edmundo morar com ele, poucas vezes se viam. António do Couto saía cedo, pela manhã, e voltava só à noite, quando Edmundo ainda não estava em casa ou já dormia. De tempos a tempos, o negociante ausentava-se por dois meses ou três, numa viagem a Minas, São Paulo ou Espírito Santo... Chegara na véspera de Ouro Preto.

Edmundo tomou o bonde, partiu para a cidade.

Só então se lembrou ser domingo. As ruas estavam desertas, tudo fechado.

Em frente ao Pascoal, deu de rosto com o correspondente.

Abraçaram-se, estiveram falando muito tempo.

Queriam-no encarregar de uma obra, um bom trabalho, coisa de ganhar uns cinco contos...

Edmundo aceitou, agradecido, prometendo ir lá no dia seguinte para falar mais longamente do negócio...

Com que pagar todas as suas dívidas e ir embora, para o lado da mãe, fugir do mundo para todo o sempre, ir acabar sossegado, longe dali, sob a bênção da virtuosa criatura que o amava tanto de coração... Deixava-se levar por esse belo sonho de paz e tranquilidade, sentindo-se quase feliz...

Partir, ir embora, não pensava em outra coisa... E admirava-se, ante essa ideia carinhosa, de haver por tanto tempo hesitado...

Tinha sede de respirar felicidade..., erguer a cabeça acima de todo o esterco em que caíra embriagado...

Desatava um por um todos os laços que o prendiam à amante... Via-se solto e balbuciava planos, como se tivesse tirado a sorte grande.

Foi passar o resto do dia a casa de um amigo casado, um grande artista...

E ali, nesse meio tão calmo e tão honesto, naquela sala cheia de tapetes felpudos, poltronas, reposteiros numa meia sombra de sossego, sentiu-se renascer para a vida, a alma reconfortada, o coração apaziguado enfim...

No gabinete, a dona da casa calcava nas teclas de ébano e marfim do piano um trecho de Mozart. A harmonia errava na pequena sala, como o rumorejo de um insecto maravilhoso, de asas de oiro.

Na sombra do gabinete luziam aços de adagas japonesas de alabardas, de cimitarras turcas. Um alfange mourisco pendia de um cinturão de couro, e ao canto da parede uma tapeçaria de Tóquio explandia, verde-clara, com fios de prata. Duas cegonhas mergulhavam os bicos numa lagoa branca, entre lótus, nenúfares e crisântemos cor-de-rosa. Um sol de oiro descia ao fundo da tapeçaria entre nuvens sanguentas, e um pássaro de plumagens turqueza e esmeralda batia asas sobre uma japoneira cravejada de camélias escarlates.

Havia mesas carregadas de livros e jornais. No damasco azul de uma chaise-longue o gato branco ronronava, pregando no escuro os olhos verdes.

E era a sala, entupecida de móveis curvando ao peso de bibelots, monstros de um palmo, Budas de marfim e laca, jarros de Saxe com a pastora de Florian a rir a um fidalgo, sob carvalheiras, mil nadas preciosos, bronzes, ídolos de sândalo, faianças, e em cima de uma coluna de pau-santo um vaso de cobre, batido no atelier de um artista de leddo, bojudo, com dragões de goela hiante e espadartes fabulosos, entre um hervaçal de bronze fundido em relevo.

A mesa de trabalho, enorme como um altar de sacrifícios, de pés torneados, parecia ter saído de um velho convento ou de um solar medievo, com as suas fechaduras feitas por mão de ourives e o seu ar augusto e antigo de móvel de outros tempos.

Havia em todo aquele aconchego um tal ar de felicidade, de sossego, que Edmundo sentia-se invadir de beatitude, os pés enterrados numa pele de urso, as mãos pousadas nos braços estofados da poltrona.

Falava-se de arte, devagar, em voz baixa, ouvindo Wagner e Chopin.

O artista, fumando, todo envolto numa nuvem densa de fumo, mostrava-lhe uma gravura antiga, comprada num leilão um dia antes.

Era um lutador dos Jogos Olímpicos, belo, grande, estendendo os braços, uma máscula formosura académica, de uma desenvoltura ao mesmo tempo feminil e hercúlea. A gravura, bem mordida num fundo escuro, figurava-o de perfil, e desde as espáduas aos jarretes, todos os músculos ressaltavam da carne, suavemente, numa doçura em que se percebia a força do ginasta...

213Advinhava-se no seu gesto de triunfo, nos seus braços estirados para o arconte, o herói dos jogos ginásticos, esperando os louros.

Ficaram-se os dois a falar sobre o aterrador definhamento do homem, lembrando os guerreiros antigos, os bárbaros, Vercingetorix, Alexandre, Marco António...

-- Se imaginamos o que seria um desses esquadrões de cavaleiros romanos, armados de falaricas e gládios, parecendo de ferro, desde o capacete às cunemides, pisando num fracasso sob os cascos dos estalões enormes as florestas druidas e as selvas germânicas, a imaginação treme apavorada...

E assim falavam os dois em falanges antigas de extermínio, enquanto o piano vibrava por todas as cordas um hino triunfal de Wagner e a marcha das Valquírias...

-- Jantas comigo...

Edmundo desculpou-se, sem saber o que dizia...

Tinha sido convidado por um amigo...

E quando se viu na rua arrependeu-se de não ter aceite...

Foi ali a dois passos procurar um amigo à praia do Flamengo, convidá-lo por sua vez a vir jantar com ele.

Tinha medo de se ver sozinho com Honorina à mesa.

Queria conservar em volta de si até o mais tarde possível essa atmosfera feliz e honesta que desde manhã o banhava, como um bálsamo.

Debruçado na banca, o artista retocava uma aguarela.

Um pajem, de gibão azul, pulava pelas correntes um atrelo de galgos brancos, e essa figura de criança, com cabelos louros e gorro, uma cadeia de ouro ao pescoço e chinelos de veludo nos pés, era de uma suavidade maravilhosa... As cores brilhavam, pareciam húmidas, e os olhos garços do pajenzito riam para os três galgos...

-- Vinha pedir-te um favor...

-- Oh!, não te sentes em cima da caixa de tintas...

-- Parecia um caixão...

-- Então diz lá o que queres...

Falava curvado, retocando a pena de gavião no gorro carmesim do lindo pajem.

Edmundo curvava-se para ver.

-- Mas o que queres tu? Diz...

-- Que venhas jantar comigo...

-- Vou, sim, mas deixa-me acabar... Tens aqui cigarros, fuma...

-- Diabo!, tu servias para modelo... Preciso fazer uma outra aguarela, um falcoeiro... Tens um tipo antigo, de trovador de crónica medieval... Que dizes? Arranjava-te em cima de um palafrém, ao lado da rainha, com um falcão em punho...

Edmundo ria, olhando o mar.

-- Vê lá... Visto-te com um gibão até meio da coxa pescoceira de veludo, dou-te um alazão engualdrapado, belo como o ginete de Bayard... e um gerifalte como os da rainha Ana...

-- Estás a caçoar... Acaba depressa, é quase noite.

Uma hora depois, ao entrar no restaurante, Edmundo, que ia alegre, não pôde esconder um movimento de contrariedade.

Honorina estava sentada a uma mesa com o turco.

Depois da cena da véspera, da hemoptise, julgava-o de cama, doente, e ficou espantada de o ver entrar, sorrindo, um pouco pálido, mas com uma rosa-chá na botoeira.

Edmundo apresentou o artista.

Leão, na cabeceira da mesa, dava-se ares de pouco contente com a visita inesperada.

Aquele tipo humilhava-o propositadamente, com as suas intimidades com Honorina, falando-lhe ao ouvido, deitando-lhe à cara a fumaça do cigarro... Ela sentia-se pouco à vontade, também.

O artista tinha trazido para a mesa os seus modos bruscos, e no seu olhar inexperiente brilhavam um desprezo fundo pela companhia que Edmundo lhe dera.

Afinal, sem poder mais, voltou-se.

-- Aquele sujeito é o amigo dela?

Edmundo já esperava aquilo.

-- Não, é uma coisa à toa, nasceu na Turquia, compreendes? Mercados de escravas, serralhos, concubinas...

O que é certo é que deu em cáften...

-- E jantas à sua mesa?

-- A mesa é de todos... Que vais fazer, João?

O artista voltara-se para o turco, e com uma voz de mandar lacaios, perguntou-lhe:

-- O senhor é actor, não?

O outro sentiu o escárneo, disse que não.

-- Capitalista, com certeza ?

-- Muito menos... -- gaguejou Leão, pálido.

-- Mas então o que é o senhor, afinal de contas.

Honorina ferrava os beiços.

E era agora mais do que nunca que Edmundo compreendia toda a baixeza do seu papel nessa comédia porca e reles, que a amante representava para com ele.

Num momento, o companheiro compreendera tudo e ressalvava o brio, descarregando a carga dos ombros...

Não se queria tornar conivente em tal chiqueiro...

Desviava de si a pia da barreia.

-- Mas o senhor sofre de escorbuto?

Leão Absali julgou prudente levantar-se. Despediu-se a saiu.

Honorina veio sentar-se perto de Edmundo, -- Já estás bom?

Já, sim.

E o próprio artista se sentiu comovido com essa pergunta tão cheia de carinhos, de meiguice, proferida com os lábios a tremer, os olhos nadando em sombra.

Subiram os três para o quarto.

Honorina, sem ser bonita, apesar de todos os seus defeitos, demorando-se uma pessoa a olhar para ela, sentia-se atraída pelo mistério daquela vista negra, a revoltante languidez de todos os seus gestos, o nervoso franzir dos seus beiços de cravelina, mostrando duas carreiras de dentes brancos, uma dentição de fera recém-nascida.

Havia qualquer coisa de diabólico nessa face morena, e se como diz o poeta a mulher é uma harmonia, essa tinha em si o arrepio de todas as cordas de uma orquestra no final do terceiro acto da Carmen de Bizet.

Era a mulher fatal de Baudelaire, a frimouse agile et fauve, le port mélancolique et ardent de Huysmans, a Hyacinthe do Lá-Bas.

O grande sonho de Hello e Moreas parece ser uma mulher assim: olhos confusos, largos, esgravatados de réstias de luar, boca doentia, sofredora, mordida de um sorriso de esfinge, e um corpo de víbora, com dois seios pequenos, dois pequenos escudos de carne, de umbos aguçados.

Felizmente para eles, entre as parisienses de olhar azul e cabelos louros, fausses-maigres de boulevard ou brasserie, nunca a encontraram, essa mulher de alma bárbara, libidinosa, lânguida e mole, mas escondendo as unhas de onça no seu veludo, como as gatas.

João Eduardo falou em que ela se parecia com um estudo misterioso de Goya na galeira espanhola do Louvre, com o olhar da Gioconda de Leonardo da Vin- ci, em que se advinha alguma coisa que se não vê.

Edmundo dissertou longamente sobre ideias de artistas e amores célebres. Alfredo de Musset e George Sand foram citados, e nesse quarto de amor, à luz mortiça do gás, com a cabeça no regaço de Honorina, Edmundo recitou a «Nuit d'Octobre...»

Honte a toi qui la première M'as appris la trahison, Et d'horreur et de colère M'as fait perdre la raison, Honte à toi, femme à l'oeil sombre, Dont les funestes amours Ont enseveli dans l´ombre Mon printemps et mes beaux jours !»

Os versos do poeta soaram tristemente... A melancolia desesperante que os rimara estava toda na voz de quem agora os acordava, cinquenta e oito anos depois que a mão febril de Musset os compusera em Fontainebleau.

E a alma de Edmundo parecia acompanhar as últimas quadras... Percebia ser bem verdade, ser bem sincera a poesia...

«Je te bannis de ma memoire, Rest d'un amour insensé, Mysterieuse et sombre histoire Qui dormiras dans la passé !

-- O que fazem mulheres!...

-- Queres saber, João, eu nunca as pude compreender... Desde crianças são enigmas... A psicologia anda à volta delas como mosquitos em redor da chama de uma vela. Queimam as asas, os psicólogos... Desde a criada que lava pratos até à mulher que lê Schopenhauer e ri do filósofo teutão, é tudo a mesma charada indecifrável.

-- Ninguém as compreende...

-- Eu tive uma amante -- disse Edmundo -- uma loura e de olhos azuis, que entre todas me parecia incompreensível como um dogma... É muito conhecida, a Louise de Voucoux...

-- Ah!, sim...

-- Pois bem, essa mulher fez fugir de bordo do «Congo» um segundo maitre-d'hotel...

-- Que diabo queria ela fazer dele?

-- Amores de bordo!... O mar, as noites passadas na coberta, o céu de África, Dacar, os dias de sol balouçados nas ondas verdes, que queres tu ? Leva muitas vezes uma cabeça loura a fazer tolices... Chamava-se Gabriel. Conhecio-o. Era um rapaz novo, triste, com uma grande sombra nos olhos...

-- Estás romantizando...

-- Não, demais eu conhecio-o pouco tempo antes da morte, já desgraçado, bem infeliz... Ele suicidou-se em 1893, com um tiro de revólver na cabeça...

-- Por causa da cabeça loura?

-- Sim, por causa da cabeça loura...

-- E esses lábios por quem ele morreu, beijaste-os?

-- Muita vez...

-- Mas vou contar-te em três palavras a história desses amores... Dá um romance... Talvez que o faça um dia... Conheci o pobre herói da tragédia, já fui amante da Luísa... Conheço-os bem aos dois...

Edmundo acendeu um cigarro e contou a história.

-- Esses amores de bordo deixaram-na tão doida que uma noite aproximou-se do paquete das «Massa- geries», numa lancha, e trouxe o amante para terra.

-- Mas os paquetes não demoram muitos dias no porto...

-- Sim, mas o «Congo» seguiu para Montevideu e Buenos Aires. Gabriel escreveu-lhe, e em duas cartas combinaram a fuga de bordo, quando o paquete voltasse ao Rio...

-- Ela deve ter essas cartas...

-- Sim, mostrou-mas até, li-as... Hei-de fazer o possível por consegui-las. O que nelas se lê de juramentos, de saudades, de paixão, não to posso dizer. O pobre rapaz amava tanto essa mulher que assim deixava família, futuro, pátria, para ficar numa cidade desconhecida, sem falar uma só palavra de português... A fatalidade levou a cocotte a embarcar no «Congo», a achar-se doente nos primeiros dias de viagem, a encontrar nesse criado um enfermeiro...

-- Mas uma mulher fina entregar-se assim a um criado...

-- Fina porque tem jóias e calça trinta e dois e veste sedas? Todas elas são assim mascaradas pelo dinheiro, ao cabo de algum tempo... Nasceram quase sempre pobres, rotas, conhecendo a miséria, a fome...

-- Como a Luísa, por exemplo...

-- Não, essa teve um conde aos dezoito anos...

-- Romance...

-- Vi as cartas datadas de 1886, com o brazão, a coroa...

-- Então Mlle. Louise de Voucoux tem vinte e sete anos ?

-- Tem, sim...

Honorina sorriu e disse:

-- É velha para ter paixões...

Aquela mulher já acabara com as suas aos vinte e um.

Edmundo compreendeu, passou adiante.

Gabriel viera para o Rio, pobre, com oitenta francos no bolso e 20 anos no coração... É pouco para se poder ser feliz. A Luísa, sem pensar, prometera-lhe empregos...

Conhecia ministros, banqueiros, jornalistas... Ele, criança, deixou-se levar por tanta promessa... Quem lhe escrevia tudo aquilo era a mulher que ele amava e isso bastaria para vendar-lhe os olhos...

Começou a viver à custa dela... Só imaginar o martírio dessa pobre criança apaixonada, vivendo do dinheiro com que se pagava o corpo da amante, causa pena... Quando ela, desesperada de lhe ouvir constantemente o choro, os soluços e as queixas, cuidou do emprego, era tarde. Os homens prometiam, mas quem se interessa por um rapaz que vive à custa de mulheres?

De nada lhe valeram os vinte anos... Os homens ouviam-lhe a história por comprazer da amante, e ao fim diziam em segredo: «Que patife! Que malandro! Ajuda-nos a comer o dinheiro e ainda pede emprego»!

-- É horrível! -- soltou o artista, acendendo um cigarro.

-- Vi-o chorar muita vez, ensopar o lenço de lágrimas...

Desde então, comecei a compreender o mundo. A criança falava em casar com a mulher da vida... E um dia em que lhe lembrei um lugar de restaurante, o mísero, sem dizer que não, lembrava-se que ela o deixaria de amar vendo-o servir à mesa, ouvindo as isolências dos fregueses, humilhado, com o guardanapo no braço, servindo champanhe às outras, a todas essas mulheres que o viam com a Luísa e se iriam rir dela, sabendo-a amancebada com um criado... Pensava na família, na mãe... O que pensaria a pobre velha sabendo na Companhia que ele tinha fugido de bordo?... Sempre que vinha de viagem a mãe ia esperá-lo ao cais... Não o vendo, havia de julgá-lo morto e atirado ao mar!... Fugia de mim na rua, temendo envergonhar-me...

-- Oh! -- gemeu Honorina, horrorizada.

-- Sim, com medo de envergonhar-me apertando- -me a mão diante de toda a gente, evitava encontrar-se comigo...

-- E a Luísa ?

-- Desesperava-se, ia ao teatro, bebia champanhe, andava de carro... É o que fazem todas as mulheres...

-- E tu, não lhe podias arranjar trabalho?

-- Conhecia pouca gente... Tentei diversas vezes, respondiam que esses conhecimentos faziam-me mal...

O mundo é assim mesmo, infame, vil... Luísa teve a febre-amarela, Gabriel não saiu de perto da amante, enfermeiro do primeiro dia ao último. Quando ela se levantou ele caiu por sua vez... Julgou morrer longe da mãe, como um maquereau... Três meses depois, dava um tiro na cabeça, às dez horas da noite...

-- Mas não vejo em nada disso a mulher enigmática de que me falaste...

-- Então ouve. A Luísa estava no Polytheama quando lhe trouxeram a notícia. Ficou rindo como estava. Ceou, teve espírito toda a noite, entrou em casa acompanhada, entregou-se, recebeu o dinheiro... Depois levantou-se, chamou um carro, foi vestir o cadáver e lavar o sangue, pagou o enterro, e nesse mesmo dia estava no teatro, toda de branco, com um ramo de violetas no seio...

-- É repugnante a tua Luísa...

-- Talvez... Mas no cemitério de S. João Baptista tem Gabriel uma lápide de mármore cercada de cadeias de bronze, entre um canteiro de roseiras... A Luísa paga vinte mil réis por mês ao jardineiro para cuidar das flores do seu querido morto, e quando lá vai fica rezando, ajoelhada, e as suas lágrimas enferrujam as lindas cadeias de bronze...

-- E quando lhe falam dele?

-- Ri, levanta os ombros, muda de conversa. Não quer saber dos mortos...

- E onde mora esta tua trágica Luísa de Voucoux!...

-- No Cattete, parece-me... A Rizza deve saber...

Honorina debruçou-se para Edmundo, deitou-lhe as mãos ao pescoço, beijou-o...

-- Esta é ao contrário, João...

Foi então que ela sentiu estar tudo acabado. Edmundo tinha um sorriso triste... Depois, voltando-se -- «E o pobre Gabriel morreu sem ver a mãe!...», pensando comsigo que ele também não estava muito certo de tornar a ver a sua...

-- Que pressa! Vais acabar o teu pajem e os teus galgos brancos?

-- Não, deixas-te-me triste com essa história, essa fantasia..., esse conto...

-- Ouve, João, juro-te que não é fantasia...

-- Queres então que eu acredite? Fazes muito empenho ?

-- Faço, sim!

E já na escada, entregando as mãos ao amigo, fitando-o bem nos olhos, Edmundo repetiu ainda, com voz triste:

-- Não é verdade, João, que se vê a fatalidade na vida desse desgraçado?

-- É, sim... Até amanhã...

Edmundo sentia-se ainda doente. A hemoptise prostrara-o. Apesar da ipecacuanha e do tártaro, o peito parecia estalado por dentro.

Passou a noite quase sem dormir, abraçado a Honorina, suando frio.

Ela, carinhosa como nos outros tempos, consolava-o, atenta nas horas, para lhe dar o remédio.

De manhã, quando se levantou, Edmundo estava com febre.

-- Talvez passe alguns dias sem vir cá... Vou para casa deitar-me, chamar o médico...

Honorina beijou-o longamente, pedindo-lhe para voltar logo que estivesse melhor..., e que escrevesse..., não fosse agora esquecer-se dela...

Havia tanto receio e tanta lástima naquela querida voz!... Mas ele sentia bem que tudo acabara... Esse amor todo trespassado de dores fatigara-o... Tinha dado a essa mulher tudo o que possuía... Agora não podia mais, ela tinha-o feito sofrer demasiado, estava exausto...

Olhou-a sem esperança, contemplando-a desconsolado... A ninguém aproveitara o seu horrível sacrifício. Ela ficava também mais abatida, mais velha, mais desiludida...

Despediram-se, como para uma separação indefinida, quase eterna...

Honorina debruçou-se para o ver partir, meio curvado, com o ar de um galé que saía do degredo...

Olharam-se ainda, quando ele dobrou a esquina, queixando-se com a vista..., e a mulata exugou os olhos humedecidos...

X

Julião estava escrevendo um livro -- A Grande Nevrose -- para ver se podia juntar uns cobres para a formatura. Uma febre palustre amarrara-o cinco dias na cama, sozinho, no sótão. Apenas a pequerrucha, essa que ele tinha salvo de uma angina, o vinha visitar de vez em quando, para brincar com a caveira e ver as gravuras dos livros de Anatomia.

Julião fazia-a sentar perto dele, contava-lhe histórias de fadas e almas do outro mundo... Ao menos, perto da criança não se sentia tão abandonado... E tinha por ela uma profunda piedade, ao vê-la tão raquítica, tão franzina, doentia como uma velha, com seus olhitos azuis, frios e sem luz, os beiços muito brancos, toda ela pálida como cera, sob os cabelos ruivos e ásperos.

Ao terceiro dia levantara-se, pouco acostumado à cama.

Pensava em Edmundo... Seria feliz? E sentia-se contente só com a lembrança de que o amigo morreria depois de ter visto um pouco o céu daqui de baixo, desta grande sombra...

Como devia ser bom amar e ser amado!... Ter um ombro a que encostar a cabeça, uma alma em que depositar a nossa...

Ante as provas de página estendidas sobre a mesa, ficava a pensar, tristemente, com um sorriso de dor...

Viver entre o perfume de uns cabelos negros...

Adormecer perto de uma criatura lânguida, carinhosa e meiga, que nos tenha desalterado de carícias e beijos...

Lembrava-se de uma mulher nova e branca, uma que tinham estendido a semana passada na mesa número três do anfiteatro anatómico...

Fazia ideia do que fosse a mulher por esses cadáveres frios que arrastavam continuamente pelos mármores...

Essas mortas povoavam os seus sonhos desesperançados de amor... Pensava noites inteiras nesses restos esquartejados de carne, dessa carne de gozo, que caía sob o seu escalpelo e o bisturi...

Ah!, esses dolorosos dias de estudo, em redor das mesas pingando sangue, ao lado dos companheiros, de mangas arregaçadas, avental branco, cigarro ao canto da boca, saqueando corpos mortos, arrombando-lhes o peito para roubar corações...

Ficou parado, olhando sem ver, as mãos caídas.

Estava magro, alquebrado por esses dias de cama e febre.

Levantou-se com cuidado, como quem teme cair inesperadamente no soalho. Passou as mãos enegrecidas pela cal suja da parede, e foi caminhando até à janela, espreitar a rua coalhada de noite, vazia, uma lepra de luz mordendo uma casa fronteira a um candeeiro.

Ficou-se ali tempos, a cabeça encostada à vidraça, espiando a silenciosa escuridão.

Ninguém passava, fazia frio, ventava, e a rua ao fundo daquele terceiro andar, negra, quieta, parecia um canal despejado, um dique de comportas fechadas à água, abandonado.

-- Preciso mudar-me, murmurou, passeando os olhos piscos pela escuridão.

De dia, com o sol, a solidão é boa, mas pela noite, não, não deve ser, é horrível...

O Edmundo tem razão, cheira a crime esta rua...

Às vezes parece-me sentir um fedor de cadáver apodrecendo numa sentina, de noite, quando abro a janela...

E a sua mão caminhava nos vidros, como uma aranha.

Voltou a sentar-se, chegado à parede, arranjando as provas. Era o capítulo terceiro, sobre epilepsia, e isso lembrava-lhe ainda Edmundo... Recordava-se do seu pavor ao avistar a cabeça toda lanhada pelo escalpelo, em cima do lavatório...

Passava a mão pela testa quente àquelas lembranças...

Suava frio nas fontes. Dizia ele ser a carne ganhando mofo...

Tinham-lhe vindo nos pés umas chagas entre os dedos e as covas do calcanhar. Ainda não atinara de onde lhe viera essa imundície de moléstia herpética, à última hora. Parecia lepra, bubões sifilíticos...

Experimentava o ácido bórico, o iodo com vaselina, o polvilho com óxido de zinco.

Não podia calçar um par de meias... Quando saía, para ir ao editor buscar as provas, tinha que roçar os muros e morder os beiços para não gritar. Voltava sempre a meio do caminho, tinha que lá mandar uma pessoa, desesperado de não conseguir aproximar-se sequer do bonde.

Um dia, precisando de dinheiro, não tendo quem mandar, fizera um esforço; as úlceras tinham reaberto todas uma a uma.

Era uma tarde escura. Na Rua Sete tinham começado a tombar gotas de chuva, grossas, espaçadas, dos úberes das nuvens russas, mas logo ao voltar a esquina a chuva escorregara dos céus tintos de negro.

O seu primeiro pensar fora agasalhar com as mãos o peito, subir a gola do jaquetão, encolher os ombros; e de cabeça baixa, sob as goteiras que escorriam dos telhados, foi andando, primeiro apressado, depois mais lentamente, tossindo, vergado, com arrepios na carne, os dentes a bater. O seu olhar de cão faminto caído sobre as pedras alagadas evitava deparar com os vultos que passavam.

Oh!, a tarde horrível! Sentia-lhe ainda o frio e os tormentos.

Entrara numa taberna para beber café. Ao lado do balcão, três homens magros, uma flauta, uma rabeca e uma harpa tocavam o intermezzo da Cavallaria Rusti- cana.

Lembrava-se com extraordinária precisão...

Agonizara ali, atirado a um canto, uma das horas mais cruéis de toda a sua vida. Uns bicos de gás alumiavam.

Era uma sala baixa cortada ao fundo em ângulo obtuso.

No vértice, caído na sombra, um cantar de bêbedo partia, miserável, trémulo, tresandando a cachaça.

Nas paredes forradas a papel cor de limão e flores roxas, miúdas, apagadas, um esparrinho de sangue em todo o muro, havia umas gravuras reles de jornal em caixilhos sujos pelas moscas, umas gravuras fúnebres de crime, que o arripiavam todo, sob o vidro. A primeira, arrumada de lado -- era preciso voltar-se para ver--, tinha três crianças famintas agarradas à mãe, esfarrapada, à esquina de uma rua em que passavam máscaras, em terça-feira de Entrudo. Debaixo desse quadro, sentado a uma mesa, um homem falava rouco a uma mulher, uma mulata, que fumava silenciosa num pito de barro, cuspinhava às vezes, ouvindo o homem, embrulhada num xale desbotado, os pés nus e enlameados na travessa da cadeira.

Noutra mesa, em frente, uns garotos jogavam dados para pagar um martelo de aguardente. Sobre eles caíra o outro quadro-- Deiblerguilhotinando Pranzini, entre dois padres...

E Julião, ao canto, que pensava no amigo, beijando a amante, entre os lençóis de linho, perfumados a sândalo ou jasmim.

Desde essa noite caíra ele de cama, todo escaldado em febre com o empaludismo...

Teve um arquejo no peito, molhou a pena, continuou a emendar as provas, debruçado, à luz podre do coto de vela espetado no gargalo da garrafa.

Bateram as sete horas numa torre, som a som, e ao findar a pancada do bronze, Julião ouviu que batiam à porta do seu quarto. Foi abrir. Uma velha de preto perguntou se era ali, não o reconhecendo no escuro...

-- O senhor Julião...

-- Sou eu mesmo... Que deseja?...

Mas viu então quem era.

- -- Entre senhora, Maria... Edmundo?

-- Está muito doente, manda pedir para o senhor ir lá...

Julião ficou pasmado, balbuciando baixo coisas só para si.

-- Muito doente? Muito doente, senhora Maria?...

-- Está na cama com febre... Ele teve outro ataque, senhor Julião...

-- Muito sangue?

-- Isso eu não sei dizer... Quando veio de fora, ontem pela manhã, vinha sem colharinho e a gravata manchada ainda de sangue.

O estudante vestiu as meias, calçou as botinas, sem uma palavra, pôs o chapéu,.

-- Vamos, vamos lá, senhora Maria...

Desceram as escadas, a tomar um carro.

Edmundo, no quarto às escuras, a cabeça enterrada nas travesseiras, parecia dormir.

Julião acendeu a vela, aproximou-se dele...

-- Obrigado por teres vindo... Senta-te aqui...

E chegou-se para a parede, dando-lhe lugar na cama para sentar-se.

A senhora Maria, de pé, na porta, escutava, silenciosa.

-- Deixa ver o pulso... Não é nada... Tens uns trinta e oito de febre...

Edmundo olhava-o tristemente.

-- Tive outra hemoptise no sábado à noite.

-- Forte?

-- Oh!, sim. Com que encher uma bilha...

Julião apalpava-lhe a testa húmida e quente.

-- Sossega... Abre a camisa...

A criada, perto da cama, debruçou-se, desapertou os botões, deixou o peito do enfermo à mostra.

-- Sentes dores?

-- Tenho tudo aberto por dentro, numa chaga viva...

Julião, agachado, aplicou o ouvido ao peito de Edmundo. Auscultou-o por longo tempo.

-- O que tomaste?

-- Ipecacuanha... Dei hoje uma fricção de iodo, guaiacol e morfina...

-- Sim... Não continues... Vou receitar um calmante para a febre e um adstringente... Estás fraco, muito fraco...

-- Pode tomar caldos... -- aventurou a velha.

-- Sim, só caldos, de três em três horas...

Edmundo agarrou nas mãos do amigo e disse-lhe com uma voz sumida e medrosa:

-- Tenho que ficar aqui muito tempo de cama?

-- Não, dois ou três dias no máximo...

Levantou-se para escrever a receita. A velha alumiava.

Edmundo ficara no escuro.

-- A que horas se costuma ele deitar, senhora Maria? -- perguntou Julião em voz baixa.

-- Há quase um mês e meio que não dorme cá...

-- Bem, era isso mesmo que eu desejava saber...

E alto, acabando de datar a receita:

-- Tem farmácia perto?

-- Aqui mesmo na rua...

-- Tire daí dinheiro, senhora Maria, do bolso das calças.

A criada saiu com a receita. Julião veio de novo sentar-se perto da cama...

-- Sossega, depois de amanhã estarás bom...

Os olhos cavados de Edmundo tranquilizavam-se.

-- Então ainda não morro? Ainda posso ir lá?...

-- Lá, onde?

Sem poder falar, o doente aproximou as costas da mão à boca.

-- Para perto de tua mãe?

Edmundo baixou as pálpebras, dizendo que sim.

-- Mas se eu te digo que depois de amanhã te podes levantar...

Houve um silêncio. Ambos se espiavam.

Julião torcia os pés doloridos.

A treva comia as árvores, a rua, deixava uma devastação de sombra rente às vidraças.

-- E tens sido feliz, Edmundo?

O enfermo estremeceu todo, abanou dolorosamente a cabeça.

-- Não! Não!

Julião tomou-lhe as mãos entre as suas, chegou-as ao coração.

Edmundo fitava-o tristemente, num sereno espanto, e ouviu-o murmurar baixinho:

-- Nem as mulheres têm piedade!...

-- Têm, sim, olha... -- e apontava com o braço fora dos lençóis a criada que entrava.

Julião deixou-o, prometendo vir no dia seguinte e demorar-se mais...

Ao amanhecer, Edmundo achava-se melhor, sem a pressão no peito.

Nesse dia, vendo morrer a tarde, sentado na cama, contou tudo a Julião, toda a medonha história do seu amor...

-- Que desgraça!... Deus é muito injusto!

-- Não, Julião, não... O que deseja mais quem tem uma mãe como eu tenho?...

Havia um sorriso resignado, quase feliz nos seus lábios roxos.

Badalavam vagarosas as Trindades, numa toada de toque a defuntos. 0 sol, vagarosamente, ia descendo à cova, na agonia, e pelos céus crescia o brilho das estrelas que vinham ver surgir a lua, o último sacramento do dia moribundo, o baptismo da noite recém-nada.

As últimas folhas secas das mangueiras tombavam, no saibro do jardim...

-- São as minhas últimas esperanças... Ouve, Julião:

sabes porque eu não quis ir embora há dois meses?

É que eu tinha tanta ambição a contentar! Quais são os vinte anos que as não têm? O meu nome tinha-me dado tanto trabalho a fazer!... Que de noites levadas a fazer versos, a medir alexandrinos, a partir hermistícios! A descrever visões!... Tu nunca escreveste, não sabes o que isso vem a ser... Trabalhar dois anos, cheio de fé, de esperança, de sonhos de oiro, vendo o futuro a chamar-nos noite e dia..., tudo isso perdido, morto, sepultado... E não poder recomeçar, porque me não sinto mais com forças; seria preciso abrir de novo o caminho através dos mesmos abrolhos...

«Quanta poeira luminosa erguida ao tropear de tanta ambição, e vê-la sumir-se na realidade pesarosa das coisas!... Fincar um pavilhão de vitória num belo sonho e sentir que ele hoje se faz em farrapos!...

«Levar dois anos em martírios, chorando pela forma, padecendo pela ideia, febre, vigílias, ranger dentes, ferrar os pulsos, danar ante as visões intraduzíveis, ver, querendo que os outros também vejam... Tanta abnegação, tanto trabalho, para entregar todo esse passado e todo o futuro aos dentes malvados de uma mulher, que os roi, os esgaça, os reduz a frangalhos!...

«Tudo está perdido, sem remédio... Agora estou sossegado, sereno, e tranquilo... Só me resta minha mãe...

A arte morreu para mim!... Era o meu único amor...

Morreu...

-- Não chores; que é isso?

-- Ah!, eu sei bem que tu não sabes... Ouve, Julião:

vês, ali, aquelas gavetas, pois bem, estão cheias de jornais... Tenho-os todos ali, desde o meu primeiro verso até à minha última crónica... Eu era rico, tinha tesouros...

e hoje vejo-me pobre...

-- Continua a escrever... .

-- Não posso mais... 0 que vale é o nome e eu perdi o nome...

-- Vais partir? Vais embora?

-- Vou, sim, em demanda da última esperança, do último refúgio... Só o tempo de acabar um trabalho..., dois meses ainda ou três, e depois parto...

-- Fazes bem...

---Não é? Lá... posso ainda ser feliz, sentindo à minha beira todo o conforto e todo o carinho de minha mãe... Tenho sido tão só, tão desgraçado...

-- E porque não vais no primeiro paquete?

-- Tenho dívidas preciso pagar...

-- Tudo isso por causa de uma mulher...

-- De uma mulher...

-- Bem..., eu vou, tendo ainda que estudar... Amanhã podes levantar-te, e se a tarde estiver bonita, dá um passeio que te não fadigue...

-- Adeus, Julião...

Amanhecera um dia alegre, que fazia cantar o passaredo todo. Edmundo passou o dia na varanda lendo o Werther. Ao almoço comeu como um abade.

Deixou-se perder duas biscas de três pela senhora Maria, depenou o jardim de todas as rosas, aborreceu-se muito, namorou da varanda uma criada que lavava roupa num quintal visinho, e acabou por se vestir, depois de experimentar todas as gravatas, de ter escolhido entre todas as rosas um ramo das mais bonitas, trauteando a famosa habanera: «L'amour est enfant de Bohême»...

Às seis horas partiu para a cidade, sem destino, pagar talvez a conta do restaurante, dar um último beijo em Honorina, arrumar a um canto toda a vida passada, e cuidar desse futuro, tão ameigado pela sua imaginação e pelo seu espírito.

Às nove horas, depois de jantar no Globo, sozinho, o que o entristeceu, estava perguntando ao Romão se a Honorina estava.

Entrou na sala, esperando-a. Debruçou-se à janela, vendo passar a gente para os teatros...

Quando se voltou, impaciente, a amante entrava.

-- Estás ainda tão pálido!...

Sentou-se ao lado dela, disposto a dizer-lhe tudo, a despedir-se para sempre.

Mas porque era tão cheia de tristeza e amargura essa felicidade que ele se imaginara? Custava-lhe assim tanto a pegar nas mãos dessa mulher, que o fizera sofrer, e dizer-lhe docemente, sem a magoar, acarinhando-a:

«Adeus, sê feliz, nunca mais nos veremos...»?

As palavras tão estudadas durante o dia, não se sentia com forças para as dizer... Parecia-lhe naquela despedida ir-se embora qualquer coisa que ainda morava no seu peito tão doente e tão fraco...

Faltava-lhe a coragem, sentindo-a tão entregue, envolvendo-o num longo olhar que confessava amor, que prometia carícias... com o seu sorriso de mistério pendente dos lábios tantas vezes beijados por ele em êxtases...

Percebia em Honorina os sulcos deixados por esses dois meses de paixão, de sofrimentos e de lágrimas...

Tinha emagrecido, parecia mais velha, mais cansada, via-se bem ter o coração muito ferido, como o dele...

-- Que noite bonita!... -- disse ela derrubando a cabeça no seu ombro, procurando beijá-lo.

Havia tanta submissão, tanta ternura nos seus olhos!...

Era tão confiante o abraço em que o envolvia...!

Sem forças, deixava-se beijar, relembrando o primeiro encontro, nessa mesma chaise-longue em que se ia agora despedir para sempre daquela criatura... Ter dormido a seu lado três meses e deixá-la assim, ir-se embora depois de ter abdicado por esse amor de todos os seus sonhos, desde a mais alta a mais secreta esperança? Ter-se despojado de tanta ilusão, ter-lhe cedido tanta mocidade, para a abandonar agora, como se ela não fosse a depositária de todo o seu passado, a testemunha de tanta felicidade perdida e tanta dor ainda latente!

Deixá-la desesperada também, sozinha, sem uma consolação, sem dinheiro, largada no mundo, pisando esse caminho que leva tanta vezes à Santa Casa, ao Hospital, às dissecações dos estudantes de Medicina... Ver que ela não era bonita, pensar só em encontrá-la de noite nos jardins dos teatros, com o seu triste sorriso para sempre incompreendido, ou sentir-se chamar um dia por essa voz bem-amada à porta dessas casas abjectas da Rua Sete, da Rua do Espírito Santo, da Rua do Senhor dos Passos, talvez!... Era horrível!... Ter-lhe entregue um futuro, a essa mulher que o não tinha, e perceber afinal que a nenhum aproveitara esse abnegado sacrifício...

Conhecera-a feliz, despreocupada, ao lado de um homem que nunca lhe pedira amor e se contentava com o que ela repartia com ele...

Recordava-se dessa primeira noite do seu idílio, viu-a, entregar-se de corpo e alma, tal como era, inconsciente do mal que fazia, indo toda a sinceridade de sua paixão de desgraçada a fazê-lo compartilhar da sua desgraça e da sua vergonha. Tinha-se-lhe entregue toda, infamante, maldosa, vingativa, mas com delírios sobrenaturais de adoração, todo o seu ser doando-se num beijo, toda a sua alma entregando-se num abraço...

Deixá-la assim impiedosamente, sozinha, abandonada, sem família, sem beleza, sem amor...

Não! Até ao derradeiro instante ficaria perto dela...

Viria vê-la, consolá-la falar-lhe nos bons tempos passados, tão doidos, tão dolorosos e contudo tão saudosamente lembrados...

Três meses a fazerem-se mal um ao outro... Quanto tempo perdido!... Quanta hora alegre desdenhada, para acabar tudo assim numa palavra... Uma palavra!... Dizer-se que com duas sílabas ele se podia desligar de tantos juramentos!...

O que era a vida?... Um homem deixa esganar entre as mãos de uma mulher todos os sonhos, todas as suas esperanças, todas as suas ambições, e essa mulher que nos torce implacável o caminho, que nos força a tragar a miséria, o ultraje, a vergonha, basta uma palavra para a afastar...

O destino serve-se da fragilidade para executar as suas leis de ferro... Tal homem que caminhava para a fortuna, para a felicidade, é preciso desviá-lo do caminho; a fatalidade desce ao mandado da sorte, encarna-se em uma mulher, e o homem estaca a meia estrada, volta sobre os seus passos e vai morrer numa prisão ou num degredo...

E enquanto sentia a consciência segredar-lhe tudo aquilo, Edmundo fitava a amante, debatia-se, julgava ouvi-la pedindo piedade, entre soluços, entre gemidos, esforçando-se por atiçar com as suas carícias trémulas e desesperadas as cinzas frias de tanto amor...

-- Edmundo, que tens? Estás tão triste...

Ele arredou-se ainda dos seus beijos, num derradeiro esforço, mas sentiu o coração tremer de cobardia, abandonou-se aos seus braços, que o procuravam, e sem paixão, sem desejo, mais curvado ainda ao seu olhar de pena e de mistério, deixou cair a cabeça entre as mãos dela, murmurando-lhe o nome, muito baixo, como respondendo à sua alma, para contentar o coração e apaziguar a consciência...

O nome destruído, a vida perdida, era pagar bem caro um instante de paixão e de loucura..., mas ela também não viera quebrar de encontro à sua passividade e à sua ternura tão pouco viril, o último sopro de alma, a última vontade de amar, o derradeiro desejo de sentir-se entregue até às entranhas a um ser que lhe concedesse o mundo, o terrível enigma do futuro, a infâmia brutal do seu presente, e lhe apagasse da testa o ferrete de última?

Tanto pior para eles dois, se ambos se tinham enganado, pobres borboletas que tinham queimado as asas na mesma luz doirada, perigosa e pérfida, a que se chama amor... Ambos se tinham desesperado, ambos se tinham expectorado toda a amargura e fel que lhes enchiam o peito... Se houvera beijos amargosos, só o mundo os envenenara... Coito de poeta com meretriz traz sempre desgraça... É como o de padre e feiticeira. Ambos têm uma religião a servir, ambos a conspurcam. Arrastar poesia na lama é como chafurdar os votos na blasfémia sacrílega.

Edmundo deixava-se mirar pelas pupilas de oiro de Honorina, contemplando-lhe a figura pálida, debruçada para ele, receosa, perturbada, tentando compreender no seu olhar o turbilhão de pensamentos que ali rolavam a seu lado, no espírito do amante que ela fizera infeliz, sem sua culpa, sem saber, largando-se irreflectidamente, sem calcular o sorriso, sem afogar dentro de si o que a revolvia no momento, farta enfim de calcar tanta coisa no peito, ante a indiferença e o desprezo dos homens, o interesse da vida, a incerteza do amanhã...

Era uma caridade conceder-lhe ainda uns dias de existência, na véspera de a deixar para sempre, abrindo um mar entre os seus amores, as suas doidices, as suas horas de embriaguez, de delícias e de mágoas...

Ela, exausta também, sem forças mais, prendia-se a ele, e ambos se sentiam finalmente reviver, rendidos, poupando-se, caminhando talvez para um verdadeiro amor, sereno, calmo, puro, constante, fiel...

Foram três dias sossegados, tranquilos, os únicos talvez da sua vida a dois.

Edmundo levantava-se cedo, ia trabalhar, agora cheio de fé, acariciando sempre esse sonho dourado de ir rever a mãe, pensando que bastaria prevenir Honorina no momento de partir, preparando-se contudo desde já para o lance que ia desatar a jamais os seus abraços e separar indefinidamente as suas bocas.

A Emília tinha ido morar com o amigo, e Honorina, sozinha, passava agora os dias a coser, a deitar as cartas, invadida de um vago terror pelo futuro, sentindo aproximar-se uma hora lúgubre, inexorável, fatal.

Paga a conta do restaurante, Edmundo comia agora em casa do correspondente, todo entregue à sua obra, assinado o contrato pelo qual o editor se obrigava a pagar os cinco contos à entrega do trabalho.

Sentia-se outro, julgando um sonho todas as baixezas de que o acusava um passado de ontem, julgando-se incapaz de recomeçar, inflexível no seu propósito, sedento daquela honesta e nova vida, onde se reanimavam os seus sentimentos de orgulho e de amor-próprio, como flores pendidas pela chuva e que se reerguem a um raio de sol.

Perto de Honorina, as palavras faltavam-lhe, não se sentia sincero. Os beijos rareavam, e muitas vezes, de manhã, ao levantar-se, era preciso que ela pedisse, mal acordada, vendo-o partir: «Abraça-me ao menos»...

À noite, naquele ninho tépido feito para si, Edmundo encostava-se, lia os jornais da tarde, fumando cigarros um atrás do outro, até lhe vir o sono. Chegava tarde, ia-se embora cedo...

Antes de se deitarem ficavam os dois à janela mudos, vendo a rua, olhando os carros passar a trote rasgado para o Botafogo, para os escândalos burgueses da Sereia, as orgias pobres do Campestre... E ambos estavam longe dali, a mil léguas um do outro, as cabeças juntas, roçando-se as faces.

Não havia mais como em outros tempos os grandes beijos demorados, as contemplações de vista, os delírios febris, insensatos, depois dessas rusgas em que os dois se injuriavam em frases de alcouce, em gíria do Sacco do Alferes.

Aquelas mãos, que antigamente arrancavam colchetes, atiravam a saia e a camisa para o meio do quarto, num frenesi, numa pressa abrasante de gozo, eram agora preguiçosas, moles, indolentes.

De noite, no escuro, quando se abraçavam, ele percebia por instantes nos olhos da mulher essa chama de incêndio, como um tremer de oiro na treva, mas depressa o relâmpago fugia, o seio deixava de arfar tão precipitadamente, havia um repouso e uma resignação súbita em todo o seu corpo de víbora, as bocas aproximavam-se húmidas, ela abandonava-se sem vontade, como um dever...

De manhã, eram inúteis os seus rogos para retê-lo na cama por mais tempo... Por mais que ela deixasse descair a camisa até ao bico dos seios e enterrasse a cabeça de bronze na escuridão dos cabelos de atados, erguendo as pálpebras, inundando-o de olhar, as pernas abertas, as mãos estiradas, Edmundo deixava-a, prometia vir mais cedo, dando-lhe o último beijo à porta, onde ela o acampanhava sempre, seminua, oferecendo-se ainda, suspensa do seu pescoço....

Uma vez na rua, Edmundo procurava um passeio, ia à Copacabana, à Tijuca, a Nictheroy, ficava a ler debaixo de uma árvore ou na praia, até às horas do almoço.

Honorina ficava na cama até à uma hora, indolente, entorpecida, sem nada que fazer... Aborrecia-se durante todo o dia, fumando, molhando os beiços em cálices repetidos de kerman verde, indo e vindo no quarto, sozinha, quase sempre caída no divã, sentindo a falta de alguma coisa bem inprescindível à sua vida, essas horas agitadas, que a erguiam como uma rainha coroada em face ao amante, para cair logo depois mais vergada, mais escravizada, torcendo-se de desejos, de febre, ardendo dos pés à cabeça, com o coração aos sobressaltos, o ventre em convulsões, a ganir como uma fera, trincando os beiços...

Tudo acabara... Ela sentia-se agora com forças para proferir a frase rebelde, essa confissão nunca murmurada em tempos de sua vida: «Amo-te!» Sim, se ele quisesse ainda, se a desejasse, os seus abraços podiam tornar-se cariciosos, meigos, trémulos como no primeiro dia, o único em que os dois se haviam entregue, sem hipocrisia, sem intimidade, sem mentira, julgando ser só por uma hora, uma noite, e que tudo acabaria depois, sem saudade, sem tristeza...

Mas não falava ele em partir para perto da mãe, ir-se embora, deixá-la? E com que felicidade ele dizia tudo aquilo, preparando-a, fazendo-a compreender o irremediável da sua resolução!... Em outros tempos, a um sinal seu, Edmundo resignaria tudo por ela, deixaria que lhe escarrassem na cara, e agora ia-se embora, feliz, calmo, com o seu olhar sereno que a calcava aos pés, desprezando-a por essa vida honesta, virtuosa e pura, que era todo o seu sonho de futuro...

la ficar sozinha, obrigada a chamar os homens da janela, debruçada ao mesmo peitoril onde tinha ouvido tantos juramentos falseados, tanta promessa mentirosa...

Tinha agora que correr todos os teatros, cuidar dos seus sorrisos, da pele, da toilette, reconstruir pouco a pouco os seus restos de beleza, envelhecida nesses dois meses de abandono e paixão...

Ficava horas em frente ao espelho, pesquisando as rugas, a morte do olhar, apagado como brasas frias, passava em revista todos os vestidos, a roupa branca, as meias de seda, vendo tudo reduzido a trapos, a rodilhas, sem um chapéu decente, um espartilho que prestasse, uma velhice em todas as gavetas, em todas aquelas sedas, usadas, gastas e imprestáveis...

-- O senhor Francisco está na sala; pede para falar-lhe...

Honorina, de um pulo, levantou-se, concertou os cabelos, pôs os brincos...

-- Manda entrar, que venha...

E atirou-se ao pescoço do amigo, arranjando-lhe o nó da gravata, repreendendo-o de se haver domorado tanto tempo em São Paulo...

-- Vinha ver-te, sei que estás amigada...

Ela encolheu os ombros; chegando-o a si, sem responder, entregando-se ali mesmo no sofá, sem desejo, sem vontade, por interesse, cuidando do futuro...

E quando veio a si, o tremor que ela passou, ouvindo a voz de Edmundo nas escadas.

Despediu o amigo, segredando-lhe para voltar ao outro dia, às duas horas... Teriam tempo de falar à vontade, mais longamente...

Foi fechar então a porta, passou a borla do pó de arroz pela face pálida, perfumou-se, espetou uma camélia nos cabelos, perto da nuca, como as creoulas de Cuba, o que lhe dava o ar de uma gitana.

Olhava-se ainda ao espelho, arranjando o penteado, quando bateram à porta.

-- Entra, Edmundo...

Honorina voltou-se, estendendo o pescoço para o beijo do costume, depois, parando diante da sua frialdade, ficaram os dois hesitantes, enfrentando-se, com receio da primeira palavra.

-- Boa tarde... -- disse ela baixo, com voz trémula.

E fitava-o com os olhos penetrantes, procurando advinhar a razão do seus modos tímidos de repulsa.

-- Pareces doente, Honorina...

Ela, receosa, não o largando da vista, balbuciou que estivera a dormir...

-- Com esse tipo que saiu daqui há pouco, não é?

Com as mãos estiradas para trás, debruçando o busto, aproximando a cara, parecia sorrir orgulhosa, desafiante, vendo-o chegar de novo enciumado, como dantes.

Ele, arredando-a, falava-lhe agora da sua felicidade, dessa viagem ao Rio Grande que o separava para sempre da vergonha, das suas perfídias, das suas mentiras...

Depois, bruscamente, queimando-a com os olhos incendiados:

-- Já deixaste o Leão, ein? Este é mais velho, mais seguro...

-- Ouve-me...

-- Não mintas, estiveste com ele...

-- É o meu amigo, o que foi a São Paulo... Deixei-o por tua causa...

-- Ah!, sim... É melhor acabar já de uma vez com toda esta porcaria... É melhor assim...

Ela aproximou-se, as pestanas batendo sobre um mar de luz libertina...

-- És injusto, digo-te... Veio ver-me, eu estava deitada, doente...

Recebi-o com a porta aberta... Esteve sentado ali, naquela cadeira... E depois, para quê ter ciúmes? Tu vais-te embora... que te importa?

-- Estavas com saudades dele, ein, minha fêmea?

Honorina tapou-lhe a boca com as mãos.

-- Queres continuar a vida antiga, benzinho? Não, eu não quero... É pior para nós ambos... Não quero, ouviste?...

Edmundo recuou, olhando-a assim desvairada, com uma flor de sangue nos cabelos...

Ela abraçava-se, envolvendo-o nos braços, chegando- -se a ele, fazendo-o respirar a sua carne quente perfufumada de íris e violetas.

-- Fica, não me deixes..., fica morzinho, meu bem...

Aquelas palavras da Rua do Senhor dos Passos enojaram-no. Viu-a tal qual ela era, vulgar, já velha aos vinte e um anos, baixa, reles, mulher da vida em Juiz de Fora...

Arrancou-se dos seus braços, esforçando-se por desatar a rir...

-- Deixa-te de impostura, filha...

Honorina, de pé, parecia não ter ouvido.

E enfim, compreendendo tudo, escondeu a cabeça nas mãos, toda vergada. A camélia vermelha desfazia-se, pétala a pétala, cobrindo-lhe os ombros e os cabelos de grandes nódoas escarlates.

Na rua já estavam os candeeiros acesos, o quarto embebia-se de escuridão.

Levantou vagarosa a cabeça, para uma derradeira súplica.

Edmundo, de pé, na porta, ria-se ante essa comédia da mulher.

Ela então cresceu dentro da sua miséria, e com as ventas dilatadas, estendendo o braço, gritou-lhe entre os dentes:

-- Puxe!... Nunca mais aqui volte...

Edmundo desceu as escadas, e ela ouviu mesmo o riscar de um fósfero com que ele acendia o cigarro no último degrau.

Deixou-se cair na cama, como um trapo, soluçando, até que ouviu passos no quarto. Ergueu-se a meio, com um sorriso de esperança na cara molhada pelo choro...

-- A conta da semana, D. Honorina...

-- Não tenho dinheiro, amanhã pago!...

E escondeu de novo a cabeça nas travesseiras, mordendo desesperada as fronhas brancas.

XI

...Si notre affection est traversée; si elle rencontre des obstacles, elle réagit, et cette reaction, impétueuse, convulsive, comme celle de tout ressort agité et comprimé, nous porte à des mouvements désordonnés, par conséquence accompagnés de souffrance. Notre affection, alors devient passion. Et comme les obstacles qui l'irritent ne peuvent jamais être placés que par les intérêts d'autres personnes, elle nous anime d'une violente haine contre ces personnes si offensive si importunes; elle change notre douceur en brusquerie, notre générosité en sentiments odieux.

Azais (Précis du système universel).

Por mais que ele quisesse odiar essa mulher, sentia-a dentro de si, envolta no seu passado, tolhendo-lhe o futuro...

Tinha-se encarnado nele, vivia no seu sangue, povoava-lhe os sonhos...

Às vezes, de manhã, estirava os braços julgando encontrar o pescoço macio da mulher, a que prender as mãos... No escuro parecia-lhe ver uma nuvem de cabelos pretos atirada nos travesseiros, e vergava-se para beijar esses cabelos...

Não a podia esquecer. A cara e o sangue pediam-lha a cada momento numa súplica lastimosa...

Não, ele não se arrependia de a haver deixado, mas desesperava-se de se ter visto forçado a fazê-lo.

Por mais que se convencesse da sua indignidade, não podia apagar da memória a sua imagem.

E a vida sedentária, vazia, nómada, que levava, predispunha-o a todo esse levante de ideias, a bater-lhe a imaginação, noite e dia, sem tréguas... Um desânimo intenso apoderara-se dele... Não trabalhava mais, e que tortura para conseguir encher duas tiras ou ler duas páginas!... Começava um soneto e largava-o na primeira rima, incapaz de um esforço... Passava dias no quarto, sem sair, atirado na cama, a cabeça cheia de Honorina.

A aparente tranquilidade do seu olhar escondia um desespero aferrolhado na alma. Como alguém fatigado de chorar, sentira exaurir-se toda a demonstração exterior do sofrimento interno e deixava-se viver dentro de si, escondido na sua carne, velando mudo o féretro de todas as suas esperanças...

A voz da razão consolava-o, mas a criança não desviava os olhos dessa lenta agonia do coração e da sua queixa trémula... Para salvar uma tinha de deixar morrer o outro... Resignava-se, mas não sem murmurar de olhos baixos ante a inflexibilidade do orgulho, do amor-próprio, de todo o seu carácter enfim, esse juiz da alma, sempre assentado no tribunal da consciência...

Como um réu tentando desculpar-se de um crime, procurava atenuantes, forjava subterfúgios para apiedar a força fria e calma da razão.

E talvez fosse possível dobrar esse verdugo, era essa a sua mais íntima esperança, no dia em que fizesse acreditar a si próprio a felicidade que daí lhe poderia porvir.

Mas como?

Essa mulher cegara-o, quase o desgraçara. Nos seus beijos de impura parecia haver um contágio de infâmia.

Não o amava, não o compreendia; o seu amor era uma humilhação sem nome, a sua vida a dois um chiqueiro abjecto de porcos, bebendo na mesma pia...

E daí? Os outros todos não viviam de igual sorte?

Era só ele a ser imundo e vil?

Ficava horas e horas remoendo vilipêndios ao mundo, rogando-lhe pragas... Tivesse ele uma só garganta, fosse ela de ferro, sentia-se com forças para o esganar, ali, como um cachorro...

O terror da morte convertera-se em desassombro...

Injuriava o mundo julgando-se já com os pés na cova.

Mas quem o impedia de ir outra vez parar aos braços dessa mulher? Fosse... Qual o quê! Não podia, era impossível... O mundo não estava somente a volta dele, estava também dentro de si!...

A dignidade, a virtude, a honradez, o orgulho, não eram só palavras que lhe berravam às orelhas, havia também na sua consciência uma voz a prendê-lo de medo, a agarrá-lo, crivando-o de martírio... Porquê essa voz?

Até onde a vista alcançava só via injustiça, maldade, egoísmo e ambição... E eram essas quatro bocas de meretriz que lhe gritavam: honra, dignidade, sentimentos e virtude!...

Toda essa infantilidade monstruosa, todas essas ideias nascidas corcundas, defeituosas, essa creche de raciocínios doidos, mais o irritavam ainda, porque não lhe davam razão e não o desculpavam.

Mais do que nunca, só, preso entre as quatro paredes de um quarto, rolava a sua pobre cabeça enferma atrás de mil sonhos impossíveis, atiçava ideias como matilhas de caça, desesperava-se, e ficava longos minutos murmurando, muito baixo, nas folhas de um livro, nas costas da mão, nas travesseiras: Honorina!... Honorina!...

Esforçava-se por trabalhar, impunha-se a tarefa de escrever tantas páginas em um dia, só se levantar às horas da comida..., mas deixava-se perder na nuvem de fumo de um cigarro, abria volumes, encharcava a alma de ódio, rindo às vezes com Voltaire, Montaigne, La Bruyère, Pascal, Spinoza, repetindo-se deliciosamente a frase de Boileau: ...Si notre affection est traversée; si elle rencontre des obstacles, elle réagit, et cette reaction, impétueuse, convulsive, comme celle de tout ressort agité et comprimé, nous porte à des mouvements désordonnés, par conséquence accompagnés de souffrance. Notre affection, alors devient passion. Et comme les obstacles qui l'irritent ne peuvent jamais être placés que par les intérêts d'autres personnes, elle nous anime d'une violente haine contre ces personnes si offensive si importunes; elle change notre douceur en brusquerie, notre générosité en sentiments odieux.

Azais (Précis du système universel).

Por mais que ele quisesse odiar essa mulher, sentia-a dentro de si, envolta no seu passado, tolhendo-lhe o futuro...

Tinha-se encarnado nele, vivia no seu sangue, povoava-lhe os sonhos...

Às vezes, de manhã, estirava os braços julgando encontrar o pescoço macio da mulher, a que prender as mãos... No escuro parecia-lhe ver uma nuvem de cabelos pretos atirada nos travesseiros, e vergava-se para beijar esses cabelos...

Não a podia esquecer. A cara e o sangue pediam-lha a cada momento numa súplica lastimosa...

Não, ele não se arrependia de a haver deixado, mas desesperava-se de se ter visto forçado a fazê-lo.

Por mais que se convencesse da sua indignidade, não podia apagar da memória a sua imagem.

E a vida sedentária, vazia, nómada, que levava, predispunha-o a todo esse levante de ideias, a bater-lhe a imaginação, noite e dia, sem tréguas... Um desânimo intenso apoderara-se dele... Não trabalhava mais, e que tortura para conseguir encher duas tiras ou ler duas páginas!... Começava um soneto e largava-o na primeira rima, incapaz de um esforço... Passava dias no quarto, sem sair, atirado na cama, a cabeça cheia de Honorina.

A aparente tranquilidade do seu olhar escondia um desespero aferrolhado na alma. Como alguém fatigado de chorar, sentira exaurir-se toda a demonstração exterior do sofrimento interno e deixava-se viver dentro de si, escondido na sua carne, velando mudo o féretro de todas as suas esperanças...

A voz da razão consolava-o, mas a criança não desviava os olhos dessa lenta agonia do coração e da sua queixa trémula... Para salvar uma tinha de deixar morrer o outro... Resignava-se, mas não sem murmurar de olhos baixos ante a inflexibilidade do orgulho, do amor-próprio, de todo o seu carácter enfim, esse juiz da alma, sempre assentado no tribunal da consciência...

Como um réu tentando desculpar-se de um crime, procurava atenuantes, forjava subterfúgios para apiedar a força fria e calma da razão.

E talvez fosse possível dobrar esse verdugo, era essa a sua mais íntima esperança, no dia em que fizesse acreditar a si próprio a felicidade que daí lhe poderia porvir.

Mas como?

Essa mulher cegara-o, quase o desgraçara. Nos seus beijos de impura parecia haver um contágio de infâmia.

Não o amava, não o compreendia; o seu amor era uma humilhação sem nome, a sua vida a dois um chiqueiro abjecto de porcos, bebendo na mesma pia...

E daí? Os outros todos não viviam de igual sorte?

Era só ele a ser imundo e vil?

Ficava horas e horas remoendo vilipêndios ao mundo, rogando-lhe pragas... Tivesse ele uma só garganta, fosse ela de ferro, sentia-se com forças para o esganar, ali, como um cachorro...

O terror da morte convertera-se em desassombro...

Injuriava o mundo julgando-se já com os pés na cova.

Mas quem o impedia de ir outra vez parar aos braços dessa mulher? Fosse... Qual o quê! Não podia, era impossível... O mundo não estava somente a volta dele, estava também dentro de si!...

A dignidade, a virtude, a honradez, o orgulho, não eram só palavras que lhe berravam às orelhas, havia também na sua consciência uma voz a prendê-lo de medo, a agarrá-lo, crivando-o de martírio... Porquê essa voz?

Até onde a vista alcançava só via injustiça, maldade, egoísmo e ambição... E eram essas quatro bocas de meretriz que lhe gritavam: honra, dignidade, sentimentos e virtude!...

Toda essa infantilidade monstruosa, todas essas ideias nascidas corcundas, defeituosas, essa creche de raciocínios doidos, mais o irritavam ainda, porque não lhe davam razão e não o desculpavam.

Mais do que nunca, só, preso entre as quatro paredes de um quarto, rolava a sua pobre cabeça enferma atrás de mil sonhos impossíveis, atiçava ideias como matilhas de caça, desesperava-se, e ficava longos minutos murmurando, muito baixo, nas folhas de um livro, nas costas da mão, nas travesseiras: Honorina!... Honorina!...

Esforçava-se por trabalhar, impunha-se a tarefa de escrever tantas páginas em um dia, só se levantar às horas da comida..., mas deixava-se perder na nuvem de fumo de um cigarro, abria volumes, encharcava a alma de ódio, rindo às vezes com Voltaire, Montaigne, La Bruyère, Pascal, Spinoza, repetindo-se deliciosamente a frase de Boileau: «Chacun trouve son plaisir oú il le veut; laissez vous emporter pour ce que vous prenne pour les entrai lies et ne cherchez jamais à avoir du deplaisir.»

E chasqueava, dava um pontapé em todas as convenções, tremia de ódio, gritava às paredes: «Então gatuno é o que rouba um pão para comer? E o rico que trabalha para possuir ainda mais? Não é gatuno? Não rouba os outros ?» Estirava o punho fechado para os lados da cidade: «choldra!»

Naquela vesânia confundia-se com todo o lixo da desgraça, empurrava teorias, desdobrava planos de conversão.

Passava horas a inventar suplícios, sem saber porque fazia tudo aquilo. Em instantes de febre atirava períodos ao papel, com o intento de forjar uma obra que tivesse por síntese «O mundo é uma esterqueira».

Uma noite levantou-se para rabiscar a lápis estas linhas confusas e desesperadas:

Como é possível ser o acto do amor uma coisa hoje em dia tão rebaixada e vil, que um homem o pode pagar a cada esquina? Se é do amor que nascemos, nós todos que veneramos nossas mães, se é o amor o dote que a noiva nos traz, em paga ao sacrifício de lhe entregarmos em mãos a nossa vida inteira, se é ainda do amor que nascem os nossos filhos, porque foi então que os homens o infamaram numa paródia infame?

Como se concebeu esse horrendo sacrilégio ? E os céus não se despenharam sobre a terra para a esmagar nesse dia?

As casas onde se compra por instantes um ventre parecem-se com os templos em que se calca aos pés a hóstia consagrada.

Vade retro Satanás!...

O amor é ou não a mais poderosa força do universo, aquela em que mais se percebe o poder sobrenatural de Deus ? Ê ou não do amor que brota a vida ? E conspurcam-no, os vis! Por isso, tudo é lama !...

Se querem a água pura limpem a fonte... 0 amor deve ser tão santificado como a religião, esta leva além do túmulo, aquela traz-nos ao sepulcro... A vida nasce do amor, assim como a religião nasce da morte. São as duas paralelas que descem do céu à terra. Uma parte do amor vem desaguar na vida, a outra brota na religião e vem terminar no aniquilamento. Tudo caminha entre essas duas barreiras de luz. Mas os homens tripudiaram em cima do amor e descreram de Deus...

Julgando abrir balisas, estreitaram o seu círculo de vida e caminham agora de ventre à tumba como um prisioneiro da porta à janela gradeada... Cachorros! O amor é tão puro que Cristo nasceu de uma mulher virgem...

Passava assim os dias, numa agitação, alanceada, sem saber para onde se voltar, tentando reagir, procurando desviar do futuro a treva espessa que a razão lhe figurava, chorando às vezes como uma criança...

Ter vivido para «ela» dois deploráveis meses de agonia e esquecê-la seria renegar a vida. Só ao pensamento de a perder via-se perdido sem remédio...

O que seria feito dela? Sofreria como ele, sem ânimo de o chamar, de lhe pedir que voltasse?

Talvez fossem os dois a padecer... Porque ela devia bem ter lido nos seus olhos os sacrifícios, os martírios, a que o forçara.

Devia saber que não podia viver assim sem ela, deixando-lhe entre mãos os despojos da sua alma posta a saque.

Ah! Ela roubara-lhe tudo!... Não, fora ele quem tudo lhe dera!...

Para quê viver assim, sem fazer nada, sem aspirar a coisa alguma, sem ambições, sem vontades, sem uma amizade, uma palavra de conforto, uma ilusão ainda?

Prendera-se àquela ideia, o resto era um grande vácuo...

E quando saía, raramente levava a bater as calçadas, sem um fio, sem uma paragem, andando sempre, como num grande deserto. Pisava nesses passeios as mesmas pedras que ela calcara, quando dantes saíam os dois durante a noite, caminhando ao acaso, com murmúrios de amor...

Estava possuído daquele ser maligno e não havia exorcismos que lhe valessem. A nevrose irritara-se e fizera-o um monomaníaco. Já não eram angústias nem desejos, era uma raiva atroz pelo «outro», uma raiva interior, surda, por essa consciência que o tentava amparar na sua queda. Essa «outro» que morava em si próprio, que o sustinha, o exortava a seguir pela vereda do Bem...

Mas seria um mal, esse pobre amor que padecia no seio de sua alma, prosternado, de joelhos? Era culpa dele não ser esta mulher digna de um tal benefício? Não era então o destino que plantava o amor nos corações?

Quem faz nascer a palmeira na brenha da mata? Quem obriga a samambaia a brotar à beira dos carregos? E o lírio a nascer neste vale e não naquele monte?

Pois não era a fatalidade? 0 decreto irrevogável, soberano, misterioso, que ia acendendo as paixões na terra e espalhando as estrelas pelo céu?

Assim, todo aquele grande amor seria admirado por uma esposa, e o desgraçado que se sacrificasse pela sua mulher seria bendito pela voz do mundo?

Em tudo se lia o desígnio da Providência, essa força invisível que é apenas o lado palpável do poder divino.

Tudo partia desse princípio imutável de génese, e extermínio... A cada passo se tropeçava na fatalidade.

De que serviam as leis dos homens? Os códigos esmagam-se aos pés, queimam-se ao fogo, renegam-se, revogam-se, mas o irredutível, o irregogável, o fatal, o que leva à cadeia um chefe de polícia e cobre de honrarias um miserável, ah!, com isso ninguém pode contar, são sentenças que se não podem desviar da cabeça do réu; nem mesmo que, à uma, todos os juízes da terra clamassem contra os céus...

O amor e a vida, a religião e a morte...

Engrenagem formidável!...

E por toda a natureza ruge essa fome de Ugulino, essa sede de extermínio, assim como em todos os seres rebenta a ânsia do amor, o desejo insaciável de vida...

A terra come os cadáveres e pare as flores. As flores sugam a podridão; no seu cálice vem a abelha buscar o mel, o homem rouba-lhe o mel e a cera. Essa cera trazida de um corpo em decomposição, acompanhando em tochas outros cadáveres à sepultura...

Depois de olhar assim o mundo, encadeando-se segundo a segundo por uma força de vontade sobrenatural, olham-se então os homens, tentando ainda desviar a fatalidade com as leis, emendando Deus...

Edmundo pensava, debatia-se, vendo as aranhas chupar as moscas, os pássaros engolir os mosquitos, os gatos estrangular os ratos, e a sociedade, meretriz de porta aberta, reger o mundo, ditando convenções!...

Qual é o destino do homem senão tragar até à última gota a taça da vida, seja ela de vinagre, de fel, de veneno ou de cidra e água de rosas. Para quê vacilar?

Tem que se beber, beba-se logo. Nem que se haja de morrer com a última gota que contenha, nem que se haja de agonizar cinquenta anos a fio... Veneno ou bálsamo, o homem devia-o tragar sem repugnância, sem retorquir... Está lá em cima quem manda!...

Ninguém foge à sua sorte. Nada de ser pusilânime!

Que importa o mundo!

Edmundo curvava a cabeça, resignado, chorando.

Quando a deixara, o seu primeiro pensamento fora que ela não tinha dinheiro. Entrou no Pascoal para lhe escrever duas linhas, mandando-lhe com que pagar a conta da semana.

Ao levantar o copo onde fervia o sifão despejado no vermute, Edmundo ouvia falar no seu nome. Reconheceu a voz. Quem falava não o podia ver, oculto como estava pelo espelho. Escutou.

Leão Absali, numa roda de poetas semidecadentes, respondia à pergunta de um rapaz de cor duvidosa e punhos positivamente muito sujos.

-- Se conheço a amante de Edmundo?... Mais do que ele...

-- Como se chama?

-- Honorina...

-- Nome bonito para romance...

-- Dizem que gosta muito dele...

E o turco, debruçando-se na cadeira, batendo os dentes com o castão da bengala, desatou a rir.

-- Se gostasse não estava comigo, que não lhe dou um vintém...

Houve dúvidas.

-- Não, fala sério... Ela é bonita?

-- O que tem de melhor são as pernas...

Falando desse episódio vergonhoso dos seus amores, Edmundo escrevia estes períodos numa carta para São Paulo:

... Deu-me vontade de partir a garrafa naquele pulha, mas contive-me e agradeci-lhe no íntimo. Subiu-me à garganta um nojo de todo esse passado de vergonha, e mais do que uma intensa vontade de ir embora, fugir para bem longe... Confesso-te que nunca me tinha compenetrado dessa suposição odienta, que ela me enganasse com esse tipo... Custa tanto uma pessoa a acreditar em coisas tão humilhantes !...

Ê como querer convencer um camponês de que não existe Deus. O simples estenderá o braço para a colheita, para as roças de milho, e a sua vista afirmará o contrário... Eu beijava-a tanto que nem tempo tinha para a julgar tão degradante !... Oh !, meu amigo, quando eles dois se deveriam ter rido de mim, vendo-me humilhado, triste, os olhos cobardes, a alma embebida de desespero, sacrificar-me, descer, descer sempre..., coberto de ridículo, com as gargalhadas deles nas costas !... E pensar que há um homem capaz de ser tão hipócrita, de possuir uma consciência tão negra, uma alma tão falsa !... Quase todos os dias ele jantava à minha mesa, bebendo do meu vinho, dizendo-se meu amigo, bajulador como um valido... E saía dali para os cafés, contar o meu papel, alardeando a sua infâmia e o meu ridículo... Dizem que o mundo desculpa sempre essas vilezas... Agora que te escrevo, que revolvo toda esta lama, lembra-me essa história do túnel, esse «a propósito» para fazer vomitar depois do jantar... Estou no lugar desse indivíduo, que tomando a garrafa onde a velha expectorava por um remédio contra tosse, engole todo o ranho da velha, e só então sente os escarros descer-lhe à garganta como lesmas, pegarem-se-lhe à língua, aos beiços, ao céu da boca, flácidos, moles, pegajentos, amarelos como puz...

Essa impressão tão justa de repulsa e de nojo afogara-se depressa no turbilhão de ideias, de evasivas, a que se entregara depois, no isolamento, no abandono.

Mas passados os primeiros dias de revolta, mais sossegado, percebendo não haver para si desculpa alguma se continuasse a persistir naquele opróbio, sobreveio-lhe um abatimento e uma melancolia funda.

Uma noite ouviu que o chamavam a uma esquina, de «lovelace em verso» e «pudim de amor». Não se atreveu a olhar para trás. Andava indiferente a tudo, fugindo a todos.

Julião, o único fiel, acabava de concordar sempre com as suas doidices. Liam em voz alta o Werther, e mesmo de uma vez, falando de Musset ao jantar, descuidaram-se na dose do vinho e Julião vira-se forçado a levar o poeta de carro para casa e a aturar-lhe as lamúmúrias em versos traduzidos da «Marion Delorme».

Andava pelas ruas, alta noite, sozinho, rondando de vez em quando as janelas da amante. Retraíra-se, caído numa indolência de que acordava febril, numa ânsia de caminhar, ir sempre a direito, até ao Jardim Botânico, até à Tijuca.

Tinha crises de choro, sentia que mais ninguém se importava com ele. Desviava-se das redacções com medo que lhe não correspondessem aos cumprimentos ou o olhassem de trás. Entrava nas igrejas, para ver os outros rezar. Ao menos ali entravam todos, os pobres e os ricos.

Deu em levantar-se cedo para ouvir a missa do Carmo, às oito horas.

E a sua vagabundagem isolada levava-o a entrar em tabernas, pedir «reino», embriagava-se quase. Deixava sujar a roupa, era preciso a criada lembrar-lhe para mudar a camisa.

Uma noite de chuva, como o chamassem de uma porta escura da Rua da Misericórdia, voltou-se. Debruçada na cancela, uma mulher falava-lhe, com um olhar triste.

Entrou. Viu-a despir-se, atirar-se na cama, sem desejos, por fome... Tinha um ar de cadela doente, dessas que se entregam na rua a todo o cão. E como ele a ficasse olhando, com um sorriso doloroso, a boca aberta, a mulher perguntou-lhe se estava «doente»...

Saiu repugnado, compadecido, sem lhe dizer uma palavra.

Habituara-se a dar esmolas a certos pobres. Havia um na Rua Gonçalves Dias com as pernas inchadas e os joelhos reduzidos a duas úlceras. Outro na Rua Primeiro de Março, estava cego e tinha dois filhos. À noite, vinham-no buscar. No Largo da Carioca rondava sempre uma desgraçada em farrapos pedindo para o marido, paralítico...

Assim se repartia a sua vida, numa perguiça revoltante, horas e horas a olhar os montes estendido na cama, sem forças e coragem para prosseguir a obra, mentindo ao editor, dizendo-lhe estar a trabalhar com afinco, inventando obstáculos imprevistos a princípio, falta de documentos imprescindíveis, falhas em todas as bibliotecas, o arquivo desfalcado, mil empecilhos a revolver a cada página...

E as poucas folhas escritas arrastavam-se pela mesa, entre os livros, abandonadas de há muito.

De uma vez, esquecendo a chave do portão, bateu as ruas toda a noite, arredando-se dos polícias, com medo que o prendessem, seguindo rente aos muros, lentamente, dobrado em dois pelo cansaço. Foi até à Escola Militar, voltou ainda pela praia de Botafogo, arrepiado de frio, atemorizando-se com o ladrar dos cães, de encontro às grades dos jardins.

E levou toda essa noite perdida a reviver todas as horas do seu amor... Os passeios de carro, os inolvidáveis momentos de carícias, os almoços alegres, com o vinho bebido pelo mesmo copo...

Falava sozinho pelas ruas desertas, parando às vezes a descansar, alagado em suor, as pernas bambas, sem forças. No silêncio, a sua tosse roncava como um mastim, aquele dobre agoirento de morte enchia a rua, fazia voltar as patrulhas...

Chegado ao Largo do Machado, espiou as horas no relógio da estação de bondes. Cocheiros dormiam estirados nos bancos, a cabeça no capote enrolado. Parelhas de bestas esperavam, dormindo em pé, carregadas de tirantes...

No cais da Glória viu-se forçado a cair nas escadas de pedra, sem poder adiantar um passo mais... Ao longe, no negrume que caía nas águas ressonantes, as luzes dos vasos de guerra tremiam brancas como lágrimas...

Nem vivalma passava... E quando um rodar de tílburi despertou a rua, ele ergueu-se, cambaleando, ébrio de sono, quebrado de fadiga...

Fingindo-se à espera de um bonde, esteve uma hora no Largo da Carioca, encostado a uma porta, dormindo de pé, e como se fosse aquela para sempre a sua vida, chamava baixinho a amante, numa súplica de mendigo a pedir pão... Tudo lhe metia medo, a solidão, uns passos no escuro, uma sombra pegada a uma esquina, o trotear das patrulhas a cavalo...

O mundo visto assim através duma noite de desgraça parecia-lhe vazio, parecia ter-se arredado dele para o ver morrer de fome e desespero no meio das ruas...

O dia demorava, e na mudez da escuridão, quando caíam das torres as vozes gemendo as horas, contava-as numa ânsia, esperando ainda um novo soluço do bronze, avançando mais uma hora para o romper da madrugada.

Os seus olhos trémulos, mal abertos, espantavam-se a cada instante... Era o despertar de uma cidade... Dos jornais saíam as carroças para a Estrada de Ferro; operários enchiam os bondes no Largo de São Francisco, e no escuro escorregavam sombras, com canastras cheias de hortaliças e frutas, a caminho do mercado. Havia grupos de esfarrapados em volta dos quiosques que abriam.

Apagavam-se os candeeiros, uma névoa entupia as ruas onde soavam agora passos vagarosos, de gente com ares de sonâmbula, caminhando a dormir, as mãos batendo as pernas...

As primeiras portas a abrir eram tabernas, esconderijos lúgubres de rondantes nocturnos, onde vultos entravam apressados, andrajosos, olhando para trás, medrosos de serem seguidos...

Até que enfim soaram as cinco horas, e o céu abriu uma pupila de cego, embaciada, vesga, as estrelas submergiram, e as sombras diluíam como um godet de nanquin em que se verte um pouco de água...

As casas romperam do nevoeiro, silentes, debruçadas, sem uma luz nas frinchas.

Edmundo seguiu atrás de um camião de verduras e foi parar no mercado.

Aí, nesse espaço que vai do chafariz à porta dos carniceiros, nesse largo fedorento que olha o mar, entre as canastras de peixe, os molhes de couves, os cestos de frutas, pôde ele ver uma cena horrosa... Eram os mendigos rondando com olhos famintos e apanhando na lama as laranjas podres, as folhas de verdura imprestáveis, esses restos comidos pelas lagartas e pelos ratos, esses frangalhos atirados fora, esses detroços que os pobres vinham apanhar de madrugada, para fazer o caldo, para enganar a fome aos filhos, para ter forças de gemer o dia inteiro, pedindo esmola...

Ah! Mundo abominável!...

Edmundo, depois de três dias em casa, desceu à cidade.

Andava cheio de nojo até à garganta. Quis tentar esquecer-se, procurando atentamente o que os outros achavam a cada passo na vida: esse prazer que traz do jardim de um teatro uma mulher, ceia num restaurante, dorme com ele, paga-lhe à vista, e amanhece na rua, descuidoso, alegre, de flor ao peito e riso na boca...

Fez como via os outros fazer, tomou absinto numa confeitaria, em que havia senhoras honestas bebendo licores e cocottes provando gelados. A Pepa, com um vestido azul-pavão, namorava uma rapariga loura, viva e magra, envolvendo-a com olhos de serpente. Pobre «passarinha» loura! Logo adiante, a Rizza falava nos seus versos, com meneios de um cadáver falando dos seus vermes. «Ah ! par exemple, mes vers...»

A Cármen, de preto, com um ar de quem, em prédios e brilhantes de imperatriz, levava de quando em vez à boca, com as pontas dos dedos enluvados a «Peau de Suède», uma colher de sorvete de tangerina.

A Laura S., de olhos baixos, fingindo família, ameigava uma criança que comia biscoitos de baunilha...

E ao vê-la assim tão recatada, séria, amimando a cabeça loura do pequenito, quem havia de a julgar essa serpente depravada de luxúria, libinosa, pervertida, com todos os vícios na carne, essa mulher cujos desejos, como uma mosca varejeira, esvoaçam sempre no deboche e na imundície ?!...

Havia um ex-ministro, figura esquálida, com modos de príncipe, curvada a fronte quase real sobre um prato de empadas de marisco... Era tal o aplomb desse estadista, que Edmundo julgou-o debruçado sobre um mapa, esbulhando o país de uma província... Nas mesas dos rapazes havia baixos pedidos de dinheiro, «até amanhã»...

Edmundo, encostado à bengala, assistia a tudo aquilo, sorrindo desdenhosamente.

-- O que fazes aqui ?

Era um literato, um boémio do 69 da Rua do Lavradio, esplêndido na sua gravata vermelha com pingos verdes.

Um calceteiro de frases, vindo de São Paulo, de luvas brancas e muita Rosa Cruz na craveira.

-- Aborreço-me... Senta-te, jantas comigo...

-- Sabes que morreu o Floriano?

Edmundo não sabia... Morre tanta gente a toda a hora!...

-- E de que morreu o Marechal, de arrependimento, de remorsos ?

-- Não, de um cancro...

-- Como Nero, então... Tive um criado que morreu da mesma coisa... Todo o tarimbeiro tem mau sangue...

Questão de principio...

-- Não falemos em política, sabes as minhas opiniões...

-- Ah!, é verdade, esquecia-me de que eras estudante de Medicina... Merece-te opinião, o cancro?

-- Deixa-te disso... Pareces-me Voltaire achincalhando a «Pucelle».

-- Não fales em «pucellage»... já nem Boccacio sabia explicar o mito, há bons duzentos anos...

-- A Cármen está bonita...

-- Não é?... Desde que o amante em tempos da rovolta levou com uma granada nos joelhos que quase o fez cair, a rapariga é isso, desabrocha como a couve-flor... É bem regada...

-- Isso é para fazer rir?

-- Ah!, não, respeito as opiniões... Rir no dia da morte!...

E voltando-se:

-- Garçon, outro absinto...

-- O Edmundo, tu sabes afinal quem vem a ser Papus ?...

-- Um gajo muito grande!... O derviche da «Rosa- -Crucifére» ?

-- Não conheces tu outro... Mas o que vem a ser, faz versos o Papus?

-- Não foi ele quem chamou à eternidade o limiar da morte... Um lobisomem, filho...

-- Pasmoso, esse Papus!... Mas, olha cá, rosnou-me que ele era um pouco teosofista.

-- Certo, certo...

-- Mas, desculpa-me ainda... O que vem a ser isso?

Alguma descoberta? Um novo continente? O balão dirigível ?...

-- É quase a mesma coisa... Assim como esmagar o absurdo nas mãos... escancarar o mistério... alumiar com a sombra, ouvir falar o silêncio...

-- É questão de um artigo sobre as novas escolas decadentes... Como nefelibata...

-- Homem! Não tens mau gosto... São tenrinhos, não são?

-- ...Estou fazendo em estilo alevantado uma defesa...

Tenho nomes difíceis na carteira... Elifas Levy, cirurgião contemplativo e astrónomo... Descobriu a Kabbala...

Sar Peladan, místico e romancista, dramaturgo, poeta e alquimista... E tenho muitos mais...

Edmundo pasmava, a boca aberta...

-- Já não te deixo mais... Explica-me bem tudo...

O outro emendou o pastron, puxou os punhos, abriu de novo a carteira.

-- ...Verlaine, o misterioso, o nigromante da rima...

Moréas, o céptico, Baudelaire, o imortal, Cruz e Sousa o «Morto». Azevedo Cruz, o asceta, Lima Cruz, o mago...

-- Deus Santo! Quanta cruz!...

-- E agora Papus, que eu não compreendo bem...

-- Meu Deus! Pois é bem simples... Vê lá se é o que eu digo... Um exemplo: para comer um ovo, a gente põe-lhe sal... pois bem, sustentando a galinha a banha de leitão, o ovo sai salgado... É uma ideia... Papus é como quem diria um idiota assim?

-- Pois não, meu bom amigo... E que a alta espiritualidade vos seja sempre junta, assim como o vosso espírito é todo dela...

Edmundo, à medida que os dias corriam sobre os dias, e como mais a mais uma atonia dolorosa lhe fizesse da mente um reptil vagaroso e indolente, mole e preguiçoso, deixava-se ficar em casa, só saindo pouco para espairecer o sarcasmo e o ódio que o atulhavam, rindo de tudo com o cinismo mais revoltante, largando frases, medindo todos pelo nível das pedras das calçadas, esbanjando a bílis, escarnecendo sem contemplações de todo o mundo, deixando aproximar-se a trote largo o derradeiro dia, sem um gesto para o deter em meio do caminho, não se importando mais com o tomar remédios, folheando os jornais à busca de um crime, com visitas aos necrotérios e curisiosidades monstruosas de saber as mil infâmias do mundo, um pai que violentou a filha de seis anos, os assassínios do Paraná, a revoltante passividade do governo em tanto crime, os desfalques no tesouro, os escândalos da Rua do Ouvidor, essas mil pústulas abertas em entrelinhas nas gazetas, esses mil nadas que andam pela boca de todos, em toda a parte...

Escondia assim a melancolia de isolado, bocejando da vida, aconselhando Julião a procurar mulheres de três mil réis e a beber conhaque, os últimos e supremos confortos desta choldra, tomando interesse em saber quanto doido andava na cidade, calculando-os pela venda dos bilhetes de lotaria e do jogo dos bichos...

Acabara mesmo por se convencer que o amor, tal como o sonhava, era impossível. À falta de melhor, tinha para contentar-se muita mulher bonita, de cabelos de toda a cor, pretos como os de Hero, louros como os de Cloé, castanhos como os da Manon..., e havia-os já vermelhos, como estandartes de vitória, espalhando nas espáduas o triunfo da carne...

Farto de caminhar à procura de outra coisa, estava quase resolvido a aceitar estes restos de gozo, mas tornava-se difícil, procurando uma que não fosse vulgar como mercadoria, que soubesse enganar, fingindo-se dada como um presente e não vendida como um livro em que se procura uma emoção... Alguma que mercadejasse a carne sem ser açougueira...

Daquilo era difícil. Acabara-se a raça. Dantes, era certo ter existido dessas mulheres de amor. A Augusta Vagabunda jogava navalha, comia nas tascas de perna traçada com os capoeiras e tinha ciúmes da Cármen, como de uma leoa. Desses tipos de romance, crescidos na boémia de há dez anos, não restava nenhum...

A mocidade dera em ostentar roupa nova para esconder a alma velha, camisa limpa para disfarçar aconsciência suja, e esse resto antigo de paladinos, os sobreviventes da vida airada de boémios, com a alma iluminada de ideal, a cabeça pesada de ilusões, e o coração bastante grande para o amor e para o sofrer, desse punhado de talentos, desse grupo de estudantes pobres de dinheiro e banqueiros de quimeras, uns estavam casados, os outros tinham de aguentar nomes feitos à custa de muito sacrifício e muito transe.

O estudante de hoje tem mesada, reparte-a com as fêmeas e embriaga-se por luxo, no primeiro botequim, como um cocheiro...

Passar aquela extraordinária fase da vida literária, esse adorável capítulo inédito das memórias de Murger.

Dali tinha saído esse admirável Pardal Mallet, os dias luminosos do Combate e os primeiros versos da moderna literatura brasileira, e os mais brilhantes períodos da geração actual, um punhado de carbúnculos nascidos na meia-sombra de dias aflitos, de meses de sofrimento, de anos de utopias... Esses pagavam às mulheres com beijos, e nos dias de fortuna repartiam um pouco com os pobres bem sabedores do que é a miséria... Tudo acabara... Também, que desespero insano a esganar os vinte anos crescidos hoje!... Que céus toldados vêem as almas quando abrem!...

Difícil de compreender, este raio de mundo!...

Chegara o dia 6 de Julho. Enterrava-se o Marechal Floriano Peixoto, numa câmara-ardente do cemitério de S. João Baptista. Desde cedo Edmundo conseguira um lugar a uma janela, na Rua do Ouvidor.

Na varanda do prédio vizinho, uma senhora de preto, com um grande véu de lástima, toda de crepe, esperava também, severa e lutuosa, a passagem do préstito.

Ao meio-dia a esquadra e fortalezas salvaram, erguendo no mar um nevoeiro branco.

Acabada a missa pontifical na igreja da Cruz dos Militares, fardas transbordavam dos portais entre alas de soldados com as armas em funeral, e logo a carreta de artilharia foi arrastada até aos degraus... Corrido o grande reposteiro de brocado negro, a essa surgiu ao meio da nave escura, rodeada de alampadários e tocheiros, esmagada de coroas.

O caixão, de madeira preciosa incrustada de prata, foi atirado em cima da carreta...

Começaram então as descargas de fuzilaria. Cada regimento, ao passar o féretro, despejava as Manlicher, e entre a fumaça, os sabres dos esquadrões de cavalaria, as lanças e as baionetas faiscavam. Havia um sacudir de ferragens e tropear de cascos ao fundo do Largo do Paço, onde se alinhava a polícia a cavalo e o esquadrão de lanceiros.

As vozes de comando berravam a espaço:

-- Fogo! --E àquele trovão os cavalos triniam assustados. Até que uma a uma as três divisões de tropa despejaram as armas ante os restos mortais do marechal.

Generais passavam o peito resplandecente de bordados e grã-cruzes, de espadas desembainhadas.

Um piquete de lanceiros tomou a frente do préstito, abrindo alas..., e começaram a passar, aos solavancos, as carroças militares, puxadas a mulas, arrastando as coroas...

Vinha depois o coche, a três parelhas, lento, como se os animais arrastassem um mundo...

Do fim da rua vinham toques de clarins, fúnebres, clamando a morte, e os soldados a cavalo, soprando a toada funérea, avançavam a passo, sustendo os ginetes brancos.

As escolas superior de guerra e militar marchavam lateralmente ao coche como guarda de honra...

Ao longo fanfarras soavam, e ouvia-se um torpel de cavalaria avançando, a passo, erguendo as lanças.

E o préstito passava, intérmino, com estandartes, almirantes, generais, ministros, os ajudantes de ordens, a casa militar do presidente da República, um mundo de homens alamarados de oiro, com o chapéu bicorne debaixo do braço, os peitos pesados de condecorações...

Levou duas horas a passar tudo aquilo, e já se perdiam do fundo da Rua do Ouvidor os últimos feixes de baionetas resplandecendo ao sol mortiço, quando Edmundo se voltou na janela.

Perto dele a viúva chorava. Viu-a estender o braço para o préstito longínquo, e sob o véu lutuoso uma maldição tremenda foi murmurada: «Maldito sejas tu que me mataste os filhos!...»

Edmundo fitou essa mulher coberta de crepe, espantado, mudo...

Ela afastou-se, levando o lenço ensopado aos olhos cheios de lágrimas.

E Edmundo pensou quanta maldição implacável cairia ainda sobre os restos gloriosos do grande morto, até que lhe dessem o descanso da câmara-ardente, no cemitério...

E todos esses clarins, todas essas fanfarras estrugidoras e triunfais, no seu berro metálico de lástima, todas as marchas fúnebres que atroavam os ares, não impediam que Deus, o único justiceiro, o único que pode punir, ouvisse as maldições balbuciadas pelas mães, pelas viúvas, pelos órfãos...

Quanta pompa para levar mais um cadáver à gula dos vermes!... Que mascarada, o mundo!...

XII

Dans le monde tout est confondu. Les juges ne sont plus que des borreaux, qui offrent des victimes humaines à ce Dieux mensonger q'on apelle le Droit et la Justice. L'homme sans foi devient un sage et le sage une dupe. Le héros qui donne sa vie pour la vérité n'est q'un malheureux fou, qui s'est sacrifié pour une chimére. Qu'il meure désespéré sur les pavés sanglants objet de l'indifférence de Dieu et de la raillerie des hommes.

Jules Simon (Le Devoir).

Edmundo voltava de novo à vida; trazendo consigo uma serena tristeza, uma calma resignada e um olhar sofredor, contando uma história inteira de martírio.

Arrebanhou de volta esses companheiros, que o tinham sido de outro tempo.

Nessa camaradagem encontrou sempre os mesmos vícios e de caminho deu em esbarrar com todos os monturos.

Entrou em casa de mulheres que sorriam para aquele que tinha mais dinheiro. Teve noites em que se descuidou de beber pouco e voltou por isso para casa sem saber ao certo onde ficava a fechadura do portão.

Fez tudo o que os outros faziam. Depois da ceia brigava com os cocheiros, deixava-se insultar pelas meretrizes de rótula... Era um divertimento passar duas horas no camarim da Pepa, rindo dos adoradores da actriz.

Havia frases ferozes para um deputado do Rio Grande e um negociante janota da Rua do General Câmara.

Davam-se orgias de Locusta nas casas de iscas, e bebia-se vinho verde em canecas vidradas.

O grande chic era falar em coisas torpes... Discutiam-se as aberrações do sexo com uma profundeza de princípios filosóficos... Negava-se a existência de Deus e do Dinheiro.

Pagavam-se amores à hora e nunca se pagavam as dívidas. Os carros algumas vezes...

Uma noite entrou numa roleta. Leão Absali contava fichas e o banqueiro olhava-o de soslaio, a ver se o gajo não guardava uma no bolso do colete.

Na sala tapetada, leques na parede, sofás e cadeiras de palha dourada, alguém tocava no piano uma fantasia sobre o Fausto de Berlioz.

Edmundo espiou.

Curvado no teclado, triste como se acompanhasse o ofício a defuntos no enterro do pai, Flávio Reis caminhava as mãos magras pelas teclas, sem erguer sequer a cabeça.

O banqueiro, que estava perdendo, gritou ao criado:

-- Dê vinte mil réis a esse tipo e que deixe de cace- tear com a sua música... Basta de realejo por hoje...

Rrrrrrr... tra... tra... tra... «quinze...» Três no «ímpar», vinte e dois no «pequeno», oito na «2.a dúzia...» Quantas no quinze?

E a pá arrastava os cartões e as fichas.

Edmundo saiu dali com o coração cheio...

Começou de novo a arredar-se, a fugir de toda a gente.

Fazia outra vez a romaria aos lugares por que passara com a amante. Deu de espreitar-lhe as janelas... Depois de a ter avistado entre as cortinas, voltava para casa mais desesperado e mais sombrio.

-- Talvez que ela ainda se lembrasse dele... Com quem estaria agora?

Uma tarde, na Rua do Ouvidor, chamaram-no.

Era o amigo da Emília, alegre, com o seu ar eterno de archeiro medieval, falando alto, atirando gragalhadas, cortejando as mulheres e bebendo como um soldado...

-- Como vai ela?

-- Quem? O camondongo?

-- Sim, a Emília...

-- Bem, nós estamos sempre bem... Somos um casal de pombos... E você, porque deixou a Honorina?

-- Porque a deixei tão tarde, quer você dizer!...

-- Não, não! Ela fala sempre de si... Coitada, está sozinha, doente...

-- Sozinha ?

-- Sim, está...

-- E fala de mim ?

-- Sempre...

Nessa tarde, Edmundo chegou até à porta do hotel, depois parou, voltou para trás, mais triste, balbuciando...

«Não, não devo ir... Não vou...»

À porta de um jornal, um companheiro fê-lo parar num grupo, pedindo um cigarro.

-- Que é feito de ti? Julgava-te morto, homem!...

Ainda não, ainda não tinha morrido; que pressa que eles tinham!...

-- A ver de vocês todos, quem seria capaz de me acompanhar ao cemitério? De me seguir o enterro?

-- Eu!... --disse um rapaz alto, forte, que tinha um grande ramo de violetas na botoeira.

Edmundo olhou-o fixamente, sem o conhecer...

-- Emílio de Alcântara, ex-saldanhista, ex-preso da ilha das Enxadas, ex-preso da Casa da Correcção, ex-federalista e ex-capitalista...

-- Edmundo de Sousa, homem de letras...

Apertaram-se as mãos.

-- E porque me seguiria o senhor ao cemitério?

Bem vê que é o único... Nem o conhecia sequer quando lhe ouvi a resposta, esse «eu» que o senhor deixou cair com tanta ênfase...

-- Porque o estimo, senhor Edmundo...

-- Sem me conhecer?

-- Exactamente por isso. Hoje em dia só se podem estimar profundamente as pessoas que se não conhecem...

-- Os seus amigos hão-de estranhar essas suas palavras...

-- Não tenho amigos, senhor Edmundo... Ou por outra, só tenho um, que a estas horas deve estar à tomar chá, perto da mãe e das irmãs...

-- Uma criança, então?

-- Uma criança, que se bateu na revolta como um homem.

-- Um «gavroche», então...

-- Não, senhor Edmundo, um aspirante de marinha...

Edmundo olhava com curiosidade esse rapaz janota, perfumado, correcto, de olhos verdes e frios, que já andara nas guerrilhas do Rio Grande, nas manadas bárbaras dos federalistas...

Ninguém o havia de dizer, ao vê-lo assim, risonho, um ramo de violetas na botoeira, e encostado à bengala, fumando charuto. Nada que lembrasse as noites do acampamento, atirado no cochonilho, dormindo ao relento... Ás marchas forçadas indo à batalha, através da desolação dos Pampas...

-- Deve ser bela, a guerra do Sul, senhor Emílio...

-- De uma poesia rude e selvagem... Caminha-se para a morte cantando... Às vezes as lanças são de varas de cipreste... As batalhas vencem-se a pata de cavalo, porque no geral nem há balas para fazer fogo... É medonho, é terrível!...

-- O que é ter uma causa a defender!...

-- Qual! Tirante os chefes, a tropa é um cardume de vândalos!... São guerreiros como os soldados de Spartacus.

A valentia, a heroicidade, o dessassombro vêm-lhes do sangue... É a raça de Canavarro... Aquela vertigem das batalhas, aquela sede de perigo, do sangue, da morte, é um instinto apenas...

-- Sabe que me desfez uma boa ilusão?

-- Mas isso tudo não obsta a que essa gente seja grande como deuses vivos... E quanto ao que acabo de lhe dizer, peço-lhe licença para o provar. Na batalha das Trairas vi uma criança de dez anos esfurancar com um pontaço de lança um clarim do 12.° de Infataria, que lhe tinha morto a mãe com um tiro de carabina...

-- Pois há mulheres nas batalhas do Rio Grande?

-- De certo... As chinas... Acompanham as guerrilhas, montadas, de bombachas, quase nuas até à cinta...

Há algumas que têm divisas... Essa que morreu era sargento... Já vê que tenho razão de falar no instinto de guerra desses homens... Está-lhes no sangue... Nasceram entre dois tiroteios, um pouco por toda a parte, em Caci, na Laguna, em Porto Alegre, em D. Pedrito...

Abriram os olhos na guerra, fecham-nos para sempre, vinte, trinta, cinquenta anos depois, em meio de uma batalha... Um grande poema a fazer, senhor Edmundo!...

Só a marcha do Gumercindo basta para tornar assombrosa essa revolta...

-- E o suicídio do Saldanha da Gama...

-- E a traição do almirante Melo...

-- E o enterro do Floriano...

-- O que é o mundo!

-- Ah! O mundo!... E se nós fôssemos tomar uma cerveja ?

Edmundo deixou-se arrastar aos teatros, a um restaurante, à casa de umas mulheres de nome difícil e vida muito fácil, acabando às quatro horas da manhã, falando de Alexandre Dumas e de Paulo Féval, querendo convencer-se que esses dois eram os primeiros poetas da Finlândia!...

O Julião foi encontrá-lo no dia seguinte com um ameaço de hemoptise, fê-lo guardar a cama dois dias.

Edmundo levou esses dois dias a pensar... Aquela vida parecia-lhe mil vezes mais ignóbil do que a primeira.

Não valia a pena gastar a mocidade a evacuar a alma pelas entranhas... Tudo isso era nojento e não o fazia esquecer toda a necessidade de amar que havia em si.

Desde que a sabia sozinha, quem o impedia de voltar a ser feliz?

Mas Emílio, ouvindo-o depois de lhe ter contado toda a lengalenga da sua paixão, dissuadiu-o de semelhante passo... Mulheres casadas encontram-se a cada passo.

Não é mulher casada...

-- Então é uma... ?

Edmundo romantizara todas as cenas, arquitectara um drama com fins de actos desoladores, quase trágicos...

Emílio achou indigna a pantomima... E pasmo, de olhos parados, teve apenas força para perguntar se ela era loura ou negra...

-- Uma cabocla.

-- Uh! Que horror...

-- Então não acreditas?

-- Só na imperatriz da China, porque a não compreendo...

Edmundo, envergonhado, sem forças para defender a sua paixão, procurava conformar-se àqueles teorias tão cómodas do amigo.

Mas sofria em silêncio cada vez mais.

Emílio vazava-lhe todas as suas opiniões... Talvez que o amor existisse ainda em raras almas bem virgens, bem ingénuas, ignorantes da verdade, boiando em sonho... Mas nessas mulheres que ouvem operetas, e lêem romances, para essas outras que passaram em colégios do high-Ufe e a quem a professora era obrigada a gritar de noite nos dormitórios... «As mãos em cima da colcha!

Não quero ver mãos debaixo dos lençóis!...», essas mulheres que só pensam em sedas, em jóias, em carruagens, esses monstrozinhos de face linda e coração desfigurado como um bibelot chinês, nessas era impossível acreditar-se... Aquilo era lá gente capaz de amar!...

-- A paixão da mulher de hoje é procurar fazer-se um enredo de romance em que ela seja a heroína!...

Quanto mais descer o homem mais ela cresce no trama urdido pelas suas unhas de gata manhosa... Paixão é enganar o marido, é enganar o amante, é procurar entrevistas perigosas, véus que escondam a cara, carros fechados, é sentir-se o gosto de serem procuradas através de mil dificuldades, de cem sacrifícios... O amor que tem a mulher de hoje é apenas o de sentir-se amada...

Isso desculpa-lhe as perfídias, as infidelidades, as felonias... O mais é tudo fantasia... Na roça, a sensualidade vence, nas cidades, o capricho domina.

E ainda a maior loucura era esperar coisa tão difícil nas mulheres fáceis... Mulher que vende o corpo vende até a alma a quem lha quiser comprar...

E uma vez, vendo Edmundo indignado, Emílio lembrara-lhe com o seu sorriso de céptico:

-- Luís XIII também assim amava a mulher... Mas Ana de Áustria, que não era rei, era rainha, andou procurando entre Gastão de Orleães, o duque de Buckingham e o cardeal Mazzarino, um que melhor prestasse que Sua Majestade... Mulher é sempre a mesma... É sempre o mesmo gato... Essa rainha, fêmea como as demais, obrigou Richelieu a fazer de truão diante dela... Provado pela sua obediência que lhe não podia servir, mandou-o embora... Mulher é tão cobra, que até como a serpente muda de pele, ela muda de capricho...

E acabavam sempre por se despedir discutindo eternamente esse lema de todos os séculos. Emílio armado de todos os filósofos que tinham apedrejado a mulher, Edmundo deixando falar o coração sem ir à procura de testemunhas para defesa de seu crime...

Um dia, Emílio atirou o amigo aos braços de uma loura esquisita, de olhos bizarros, uns olhos grandes como flores, e um sorriso de esfinge mostrando dentes brancos...

Edmundo achara-a linda, encantadora, com toda aquela meada de oiro na cabeça e essas duas safiras engastadas em sombrancelhas luminosas...

Mas Emílio veio encontrá-lo de novo triste, desiludido, apoquentado pela ideia fixa da amante.

E sentiu curiosidade em vê-la.

Três dias depois ia procurar Edmundo a casa para jantar.

Encontrou-o abatido, estirado na cama, fumando.

-- Que fazes em casa ?

-- Aborreço-me...

-- Então vem daí...

-- Aonde?

-- Que te importa, se em toda a parte te podes aborrecer como em casa ?

-- Mas aqui é mais cómodo...

-- Qual!... Das janelas do Globo, enquanto se come um attereaux aus huitres, pode-se ver rondar lá em baixo gente com fome...

-- Eu vou...

À meia-noite, Emílio tinha convencido o companheiro de que lhe era imprescindível tentar um reata- mento de relações...

Falou-lhe em termos de ministério e propôs-se para embaixador...

Edmundo delegou-lhe todos os poderes... Tratava-se de uma missão em extremo delicada. Emílio desceria da carruagem à porta do hotel e procuraria obter uma recepção para negócio importante... A meio da conversa o nome de Edmundo caía naturalmente, e ele, fingindo-se de Pilatos no Credo, teria ocasião de observar se a mulher acedia de bom grado aos desejos de Edmundo...

-- É isso, sim! Ah! Tu és um bom amigo!

-- Isto repugna-me até certo ponto, e não fosse a certeza que tenho de nem sequer ela se lembrar mais de ti, não me encarregava do papel nesta comédia de roça...

-- E prometes ser sincero?

-- Prometo fazer o possível por julgar essa mulher uma mulata a todos os respeitos e a ti um toleirão...

-- Vê lá o que dizes!... Possa ela enfeitiçar-te...

Edmundo esperou dez minutos no carro, impaciente, febril.

-- Então ?

-- Não me recebeu, estava já deitada... Mas não te aflijas, vamos passar uma noite divertida.

A carruagem rodou pela Rua do Lavradio acima, tomou pela Rua dos Arcos, dobrou uma esquina e parou.

-- Desce...

-- Para ir onde ?

-- Aí a essa casa...

Mandaram o carro embora.

Emílio tinha batido à porta, pouco depois aberta por um negro.

-- Boa noite, Chico...

-- Boa noite...

-- Já vieram?

-- Não podem demorar... Vamos subindo...

Edmundo, espantado, deixou-se guiar pelas escadas e entrou numa sala forrada a papel azul com florões dourados.

Encostados à parede, havia canapés e cadeiras austríacas, de palhinha. Nas janelas, cortinas de rendas.

Em cima de uma consola arrastavam-se cartões de visita, retratos de mulheres, cartas, bilhetes a lápis... Ao fundo da sala uma porta dava para uma alcova em que havia luz...

-- Mas onde estamos? -- perguntou Edmundo, baixo.

O companheiro debruçou-se, falou-lhe ao ouvido -- Mas não está em Lisboa? Não foi deportado?

-- Voltou, estás em casa dele...

-- Mas para quê ?

-- Para veres como um cachorro e um grande homem são uma e a mesma coisa, no geral...

-- Não compreendo...

-- Sossega... Enquanto esperas vais ouvir a profunda filosofia desse negro... Schopenhauer daria a alma ao demónio para saber tanto como ele no que respeita mulheres...

E voltando-se:

-- Estava a dizer, seu Chico, que não há mulher honrada neste mundo...

-- É, sim senhor... Eu ainda não encontrei nenhuma; não senhor... Havendo dinheiro...

-- Mas, seu Chico, como arranjou o senhor a mulher do X?

-- Muito fácil... Eu entrei para copeiro da casa...

As criadas era tudo gente minha... Foi preciso arranjar a Dolores para o marido...

-- Estás vendo, Edmundo? Para se arranjar um amante a uma mulher casada basta que se obtenha uma amante ao marido...

-- Nem todas...

-- Uhé! Senhor! Mulher é igual a toda gente...

Fêmea vai a pancada e cobre, mulher casada é só para as coisas difíceis...

Nesse momento parava um carro à porta.

O negro recomendou silêncio e apagou o gás.

Um minuto depois ouviram-se passos subindo a escada e um rugir de vestido...

Edmundo segredou ao amigo:

-- Já tinhas combinado tudo?

-- Já, sim... Hei-de mostrar-te amanhã ainda mais coisas... Os cosmoramas dos subúrbios, onde vão assassinos e ladrões; as roletas onde tu verás juízes do Supremo Tribunal, homens que já foram ministros, pais de família que empenham as jóias da mulher...

-- Que horror!...

-- Hei-de mostrar-te albergues onde dormem vagabundos seminus... Hei-de levar-te uma noite ao Sacio do Alferes e arredores, para seres roubado a uma esquina...

Vou mostrar-te todo o Rio de Janeiro... Desde os cortiços da Saúde e da Cidade Nova até as casas de banho da Rua do Sacramento...

-- Agora, silêncio... Espreita por essa frincha... Não tenhas receio, estamos no escuro, não te percebem...

Edmundo engoliu uma exclamação...

-- Então ?

-- Mas eu conheço aquela mulher... É casada...

tem filhos...

-- E a outra ?

-- A outra também, é uma fêmea...

-- Pois a mulher casada, essa que tem assinatura no Lírico e carruagem na cocheira, paga a essa p... para...

-- E o marido ?

-- Achacado do mesmo mal; tem uma inclinação funda pelas «capivaras»...

- «Capivaras»?

-- Sim, homem, é gíria...

-- E o mundo ?

-- Respeita-os... Ela é uma mulher honesta; não se lhe conhecem amantes... Ele da mesma forma, ninguém o vê em casas duvidosas...

-- Vamos daqui, Emílio...

-- Não queres esperar pelo resto? Ainda que isto esteja longe de ser o célebre 26 do Campo de Sant'Anna, é assim mesmo digno de ver-se...

-- Campo de Sant'Anna ?

-- Isso leva muito tempo a contar... Saiu de lá muita prenhez... Tanto, que agora um rapaz casa-se e tem que receber abraços comovidos de todos os velhos... Cada um duvida ser a noiva sua filha... Dizem-te ao ouvido:

«Faça-a feliz»... e a todo o momento ouvirás a frase:

«faça-a feliz»... Aconselho-te: se tencionares casar, guarda isso para quando passar esta camada de meninas casamenteiras... Ver-te-ias obrigado a ter vinte ou trinta sogros, afora o presumido...

-- Mas nós não estamos no Rio de Janeiro, Emílio...

-- Roma, Edmundo, isto é Roma, é Sodoma, é Babilónia, é esterco, é como em toda a parte... E fora o vício há ainda a miséria... Na Saúde vende-se virgens por atacado e a varejo... Oh! A polícia sabe, a polícia sabe de tudo... E queres saber ainda? De um preso político que passou vinte dias na Rua do Lavradio, sei eu, que trepou num polícia secreto... se mais tempo lá ficasse filho, nem os delegados escapavam!... É como diz o Chico, tudo se arranja, é questão de haver dinheiro para toalha e mais para cama...

Edmundo, uma vez em casa, deitou-se a pensar...

Sim, na vida é dente por dente, unha por unha... O que fazer com gente desta ? As sedas cobrem andrajos de alma. Os andrajos cobrem almas em lágrimas... A riqueza tem o reverso da miséria; é com essa moeda singular que a humanidade paga o imposto da vida...

Agora que tinha aberto os olhos, a sua profissão de fé estava lançada: «Se neste mundo te sorrir uma ilusão, esconde-a cuidadosamente, vive só para ela, mesmo que isso te custe os mais atrozes sacrifícios... Porque tu dirás: esta ilusão é a única coisa que me resta na vida e eu não quero ver morta esta ilusão...»

Pois bem, quem quer que tu sejas, se pensares assim e puderes conservar eternamente contigo esse dote divino, serás um homem feliz; mas se o mundo descobrir o teu tesouro, treme, porque o sicário irá esperar-te às dez horas, com uma faca escondida, rouba-te...

Se tiveres um filho, mostra-lhe toda a gangrena, toda a peste e toda a úlcera... Previne-o de que a mão direita que lhe estendem é companheira da mão esquerda que o atraiçoa... Não lhe escondas coisa alguma... Diz-lhe rudemente o que isto vem a ser aqui por baixo, não receies arrancar a máscara a este mundo, diante da ingenuidade do seu olhar... E diz-lhe então, ao cabo de lhe haveres desvendado a terra, desde o faminto ao avarento: «Filho, só um asilo te resta, puro, luminoso, santificado, onde refugiar a tua alma ainda virgem, ainda imaculada: é o amor! E se encontrares uma mulher virtuosa, honesta e simples a quem confiares a missão de velar esse amor, se essa mulher puder guardar intacto e puro esse depósito sagrado até ao derradeiro suspiro, tu terás sido feliz e bem-aventurado na terra.

«Nunca ajudes a degradar a mulher, que a cada uma que rebaixares terás aumentado a seara do mal... Aceita-as tais como elas são, vítimas dos homens, consequência da perversidade do mundo... E nunca te esqueças de que essa que vende o corpo a uma esquina de rua nasceu para ser mãe e semear a vida... Foje de gastares a alma inutilmente... Mais te valerá amar quem seja indigna desse benefício que não amar ninguém... Nunca olhes para a mão que se te estende pedindo esmola... que mais vale dispensá-la a quem a não merece que recusá-la a quem precisa...

«A maior desgraça que ainda pode acontecer a um homem é a maioridade precoce. Aquele que vive em demasiado moço, vive geralmente demasiado depressa.

Não te deixes mutilar pela experiência, e se encontrares no teu caminho um desses pobres desalmados, a alma prenhe de desencantos, o coração vazio, usa para com ele de uma piedade intensa... Consola esse ferido: os vinte anos descrentes é um pássaro de asas quebradas...

«Enfim, foge quanto puderes do mundo, procura viver recolhido em ti. Para conseguir amar o próximo como a nós mesmos é hoje preciso que o não conheçamos e nos julguemos bons. Retrai-te, porque no mundo a felicidade só tem aparência, e cada uma das tuas alegrias custar-te-á uma decepção; porque viverás numa sociedade onde a corrupção é quase uma necessidade de existência...

«Que o teu guia seja sempre o coração... Medita essa frase profunda de Murger e possas tu seguir-lhe à risca o conselho: 'On fait le bien avec le coeur, seulement, le mal exige la collaboration de 1'esprit et de la raisori.»

Edmundo recomeçara a trabalhar, agora com mais afinco.

Durante uma longa semana ficou em casa. Julião viera visitá-lo sempre estropiado, os pés chaguentos, perguntando notícias do Rio Grande...

-- Não tenho recebido cartas.

-- É curioso!...

E dissera aquilo numa voz que fizera estremecer Edmundo...

Aquele também teria escrito à sua pobre mãe, consolando-a no seu abandono? Parecendo não ter entendido, não falou mais nisso estranhando porém o estudante...

Julião queixava-se de estar sempre sozinho, sem um amigo...

-- Tu agora andas só com janotas... Pensas que não sei da tua vida? Hás-de arrepender-te cedo ou tarde, verás...

E eram mil frases odientas, cheirando a raiva, em que se percebia um desespero surdo, uma ânsia vingativa...

Ria de tudo, falava das mulheres em termos de anatomia, dissecava-as com a voz, tinha termos imundos, explicando o amor como um contacto nojento...

0 dinheiro que lhe tinha dado o editor, pois bem, gastara-o todo com uma rapariga...

Não eram só os poetas a ter amantes, ele também tivera uma...

Descrevia-a com minuciosidades repelentes, em linguagem grosseira, com palavras de tasca e de bordel...

Edmundo, pasmo, olhava-o, cada vez mais miserável, mais desgraçado, com a roupa suja, os sapatos sem tacão, as calças rotas... Percebia-o revoltado contra a sorte, e ouvia-lhe as acusações sem nome que atirava à cara de toda a gente...

-- Precisas de dinheiro, Julião? Tens aqui...

-- O teu dinheiro é para pagar os carros e as ceias...

Não queria, não aceitava esmolas... Antes de oferecer pagasse aos credores...

-- Julião, tu bebeste de mais...

-- Ah!, eu não sou como tu... Ainda ninguém me levou a casa...

-- Julião, não consinto que...

-- 0 que é que você não consente?

Edmundo caiu em si... Viu-o tão desgraçado, achou tanta razão naquele ódio, naquele desespero, que lhe respondeu numa voz com que se fala a crianças...

-- Não consinto que te vás embora sem levar dinheiro... Eu devo-te, tu tens sido o meu médico...

Acabou afinal por aceitar, contrariado, e despediu-se logo, sem agradecer, sem se mostrar arrependido das suas frases injustas e grosseiras.

«Chegou a vez dele!», pensou Edmundo tristemente, vendo-o partir...

Os homens vistos daquele sótão lúgrube devem parecer pulgas... O desgraçado coça-se... Caíram-lhe em casa os percevejos... Pobre Julião!...

Ficou a pensar, encostado ao peitoril da janela...

Assim, aquele também passara a ser como todos os outros!... A miséria, a injustiça, o sofrimento, tinham acabado por revoltar aquela criatura tão paciente, tão resignada e tão infeliz!...

Parecia-lhe que ele tinha inconscientemente preparado aquela queda... Havia muito tempo que se esquecera de subir os três andares do Beco da Fidalga. Deixara-o abandonado, só, entre as quatro paredes húmidas do cubículo... Fora ingrato... Apressara esse terrível momento em que a desgraça ergue o punho contra o mundo, numa revolta que faz estremecer andrajos e dá às almas dentaduras de tigre...

Era mais uma na embosca!... Decididamente, o mal era apenas a consequência prevista de uma série de factos produzidos pela marcha das coisas, tal como os homens e a sociedade as prepararam...

Edmundo foi arrancado da sua penosa e desoladora meditação pela voz do amigo, acabado de entrar o portão.

-- Alguma coisa triste, Emílio?

-- Não, um convite para jantar...

-- Mas...

-- Ouve primeiro... Estive com ela...

-- Ela?

-- Sim, a Honorina...

-- E então ?

-- Acho-a inofensiva... A pobre rapariga gosta de ti...

-- Eu bem sabia disso...

Emílio atirou-se, numa cadeira de balanço.

-- E ouve lá... Quando ela não andar direita, vai-lhe aos queixos... Iras mistus abundat amor, já disse Ovídio...

-- Oh! Emílio...

-- Uma boa correcção vale mais às mulheres do que um colar de pérolas... Isto é de Salomão...

-- Mas não falemos disso, por piedade... Conta-me...

-- O quê ?

-- Tudo, como conseguiste esse pedido dela...

-- És ingénuo como os três meses de um bebé...

-- Estás então convencido de que ela me quer bem ?

-- Quanto a isso, sossega... A mulherzita parece pensar com muito acerto... Eu a ela dou-lhe razão...

Depois de lhe ter passado pela cama a rua toda, viu-te um pouco diferente dos outros... Escolheu-te... Se tu tiveres o mau gosto de a aceitares, a rapariga julga-se feliz... Nada de poesia, sobretudo, Edmundo... Paga-a de manhã e não te lembres dela senão à noite...

-- Mais nada?

-- Alguma coisa ainda... A tua Dandé é feia como um raio... Se não tiveres cuidado engole-te num beijo, tamanha tem a boca...

-- E que te importa a ti, se eu gosto dela ?

-- Mas que diabo vem a ser isso de amor? Não é uma coisa que se paga, assim como um estrato, uma essência, um cachorro de raça, uma gravata inglesa?

-- Talvez...

-- Pois bem, promete... Entrego-te a mulata um dia, dois ou três... Mas não permito que faças dela à força uma mulher honesta... Inteira liberdade... Tu pagas para isso, mais nada, ouviste bem?

-- Sim...

Edmundo pareceu ainda vacilar...

-- Não, é preciso que venhas, a rapariga chorou, fez-me jurar... Veste-te, vamos, são quase cinco horas...

E saíram os dois pela tarde calma, ao descer do sol, quando os pássaros se recolhem ao arvoredo, e os trabalhadores largam as obras e partem para casa, contentes, satisfeitos, gente que cumpriu o seu dever e vai beijar os filhos, lá em baixo, na miséria honesta de um cortiço...

Era já noite quando chegaram à cidade. Edmundo demorava os passos, arrependido... Ouvia-lhe ainda nos beiços brancos a despedida enraivada: «Puxe! Não volte mais aqui!...» E tinha-a na frente, embaraçando-Ihe os passos, trémula, desfeita, em pé na meia escuridão do quarto, com uma camélia vermelha nos cabelos, batendo o tacão, os dentes cerrados, duas lágrimas a escorrer nas faces: «Puxe!...»

Sentia um frio na alma ao aproximar-se do hotel...

Era ela quem o chamava, o que tinha ele a recear ?

Sim, ela chamava-o, mas ele ouvia bater no coração uma hora lúgubre, que devia por força assinalar na sua vida um momento terrível...

-- Estás triste, Edmundo... Vá, grande criança, deixa de tomar tanto a sério o que o primeiro cocheiro faz a rir...

-- A solidão fazia-te mal, dou-te em que pensar...

Aí tens essa mulher de que tu gostas... Quando estiveres triste, bebe, é o grande remédio... E agora, não te vás apaixonar por essa criatura... Corrompe-te antes que ela te corrompa... E se ela te amar deveras -- o que duvido--, goza sem escrúpulos desse amor, nada lhe dês em partilha... Não deites fora o que te será talvez preciso um dia... Quando precisares de adorar tua mulher, não encontrarás no fundo da tua alma um ceitil desse tesouro desperdiçado com meia dúzia de tipas... Sê avarento, Edmundo, não queiras chegar os lábios onde outros passaram com os pés... Ouviste?

XIII

Edmundo sentou-se a uma mesa, trémulo.

-- Não, não subo... Vai tu chamá-la, que venha jantar...

Emílio sorriu, sem compreender.

-- Mas porquê ?

-- Não me quero ver só com ela... Consenti em jantar, não em fazer-lhe uma visita...

-- Como se não fosse a mesma coisa!...

-- Vim jantar contigo, pouco me importa que ela venha ou deixe de vir... Para mim, era ainda melhor jantarmos só os dois...

-- Bem, eu vou chamá-la...

Edmundo esperou. Os criados vieram falar-lhe, saber se estivera doente... As mulheres sorriam, compreendendo... Daí a pouco entrava o Romão, que se aproximou dele.

-- A Dona Honorina manda dizer para o senhor lá ir a cima...

-- Diga-lhe para vir ela cá em baixo... Não posso ir...

De novo veio o recado... Para fazer o favor, que era ela quem mandava pedir...

E ele então levantou-se, arrastado por um poder estranho, que o impeliu para as escadas, o ajudou a subir lentamente os degraus, com um pensamento a cada um, e duas forças misteriosas assaltando-lhe o espírito, uma voz a aconselhá-lo que não fosse, e enfim 285um desejo que o levou até à porta do quarto e lhe abriu de novo a porta do passado em frente ao seu futuro...

Ele entrou no quarto, humilhado, vergando os olhos para não a ver de uma só vez.

Perto da janela, sentados, Emílio e Honorina conversavam.

A mulher pôs-se a pé, sorrindo, ao enxergá-lo pálido, desfeito, e com aqueles modos tímidos de criança, que ela acentuara eternamente nele com o seu amor dominante de bicha brava.

Cumprimentou-a, sem erguer para ela os olhos tristes, em que Honorina adivinhou um grande desfalecimento de vontade, uma luz vergastada de paciência, uma vista de cão que vem latir aos pés do amo, oferecer-se ao castigo. E ela gozava, silenciosa, daquela tristeza suicidante, daquela grande prostração de vontade, que lhe caía nas mãos, numa fatalidade gerada dela para com ele.

Emílio ria, batendo com os anéis no parapeito da janela.

-- Aí o tem; adorem-se à vontade...

Mas ela parecia tomada subitamente de um vago remorso, e nas suas órbitas imensas e obscurecidas uma luz de piedade difundia-se, ante aquela pacificação, aquele abandono, aquela insónia de homem, que aninhava a seus pés a sua vida, que a amava desesperadamente desde que ela o fizera sofrer.

Um capricho trouxera-lho aos braços, românticos, despreocupado, feliz em sentir-se desejado por um corpo macio de mulher, e Honorina revia-o naquela primeira noite de amor que ela lhe fizera gozar na sua cama, satisfeito, passeando-lhe toda a face com os lábios abrasados, prendendo-a a si em carícias demoradas, olhos ao fundo dos olhos, cobrindo-se com os cabelos que ela deitava sobre ele subjugada, outorgando-lhe a beleza rendida por aquela ingénua adoração de livro de versos.

Agora, no seu tipo moreno e sombrio de árabe havia um grande traço de sofrer que afilava as feições, pacificava o brilho vivíssimo dos olhos e impunha uma resignação naqueles lábios tão habituados aos seus beijos.

Dantes, tudo nele marcava uma tendência à vida, uma ânsia de evidência, que acalentava uma imensa ambição toda doirada, como as mulheres bonitas e os escritores costumam ter, esses conquistadores eternos dos espíritos e almas.

Dantes, havia nele uma qualquer coisa que crescia desmesuradamente à vista, que arrebatava a sua mocidade num longo hausto de orgulho e independência, como um estandarte balouçando as pregas vitoriosas ao vento num céu todo azul em que refulge o sol.

Mas toda essa vaidosa alegria desbotara nele, enternecera-lhe de palidez o rosto, prostrara-lhe a vista numa absorvente melancolia de ser que se pressente inexorável e fatidicamente talhado para a desgraça.

Nesses dois meses de solidão, em que andara fugido ao cárcere daqueles olhos em que se confiava afinal toda a sua vida de emoção, sofrera ele o suplício da esperança, como o judeu do conto de Viliens. Nessa mão morna que apertava a sua ressentira as algemas.

Curvara-se, num desalento, sem uma revolta, numa sujeição de inconsciente.

Dos três, ninguém falava, durante um longo instante.

Emílio olhava o amigo, suplantado enfim à vista do companheiro enamorado. O seu sorriso de troça desaparecera ante a visão emudecida daquele grande amor que encadeara duas almas, uma simples e apaixonada, a outra impura e pervertida.

Já não lhe vinha vontade de rir. Achava-se ínfimo, ele que nunca sentira, que nunca dera um passo sobressaltado na vida, eterno sarcástico que viera da guerra e trauteara trechos de opereta nas batalhas, sensibilizava-se agora, ante essa mudez triste do companheiro abatido ao peso do coração.

Tinha quase inveja daquela melancolia feliz, que iria acabar lá para o meio da noite em duas lágrimas vertidas num ombro de mulher, na escuridão, entre palavras acariciantes de amor. A sua ironia compreendera o drama daquelas duas vidas, e parecia-lhe ouvir ainda a voz dessa mulher, preguiçosa e envenenada, pedir-lhe para que lhe trouxesse o amigo de novo à beira dela.

E olhando distraidamente a rua, fazia-se intimamente sentir o gozo transcendente de se deixar uma pessoa esgotar à vontade a vida nos braços de uma mulher.

Derivar como um rio para o mar, deixar-se ir, de olhos cerrados, como uma folha seca ao sabor da corrente de um regato...

Sentir morrer em si toda a «ânsia inquieta de colaboração na vida regular», todo o esforço da luta, todo o sentimento de ambição que equilibra o homem largado entre os homens.

Percebia a nulidade da vida, levada num latejo contínuo de aspirações, e a felicidade que pode advir de um esvaimento semelhante, quando se deixa morrer toda a humanidade que cada um tem em si, como um suicida que corta as veias no banho e deixa a vida escorrer lentamente com o sangue, num torpor de sonho feliz que nunca mais acaba.

Naquele homem forte nascia surdamente uma ânsia de debilidade, um desejo veemente de poder sentir...

No seu sorriso de céptico havia agora uma curiosidade.

De tantas mulheres que lhe tinham passado pelas mãos, nunca lhes pensara esse poder oculto, esse império surdo da carne, que leva Adão a sair do paraíso e as religiões antigas a dentificar mulheres... Sempre julgara lenda os barulhos que corriam na história de que as guerras, as conquistas, os flagelos, as omnipotências, os desastres, eram a consequência dessa criatura, que tendo seios amamenta ambições e tendo ventre fecunda, julgando-se por isso com o direito de a tratar muitas vezes como escrava ou coisa sua, sem remorsos de aniquilar o que ela pode restituir.

Toda a sua complicada teoria de estatística, essa difusa preocupação do belo, que era para ela uma desculpa do seu vazio de alma, ruia.

Ali estava um artista, afinado na sensibilidade como a cordagem dum violoncelo, e que soubera arrancar a uma lira meio desacordoada o seu cântico ideal, que o arrebataria acima do mundo, que o desprendera da vida, que o tinha suspenso numa contemplação horrivelmente intensa, num êxtase de iluminado.

Edmundo, confrangido, quase de costas voltadas à amante, foi o primeiro a romper o silêncio.

-- Para que me fizeste subir?

E uma voz, a voz dela, falou.

-- Fui eu quem te mandou pedir...

Aquela voz balouçada, indolente, que lhe lembrava frases doidas, de amor, soltas no escuro, quase na sua boca, deu-lhe um arrepio, e era tão branda e tão doce, que lhe parecia um bicho-da-seda a caminhar nos nervos.

Sentiu a mão dela pousar nas costas da sua cadeira, pelo bater dos anéis no bambu dourado.

Num momento, aquele gesto quase de posse, compreendeu o futuro implacavelmente amarrado àquela mulher inexplicável, que o deixara partir um dia, desolado, sem lhe estirar os braços, e agora era a primeira a retê-lo numa maldade, essa mulher que se apossara de si, que o mandava sem o olhar sequer; e o obrigava a sentir-se entregue inteiramente a ela, como um magnetizado.

-- Como vocês são crianças! -- disse-lhes Emílio, sorrindo a custo.

E ela, tomando-lhe as mãos e olhando Edmundo, ia dizendo:

-- Veja como está tão triste! Porque mo trouxe assim? Parece doente... É mais criança do que o deixei há dois meses...

Naquela intimidade entre dois lia-se toda a gratidão da mulher, e ela olhava Edmundo, tentando com o esforço da vista arredar-lhe os olhos pensativos, fitos nos frascos do lavatório todos comprados por ele em bons tempos...

Enfim, sem poder mais, debruçou-se para ele, as mãos no ar:

-- Benzinho! Olha para a tua negra!... -- E toda uma passividade de cadela rolava naquelas palavras humedecidas pela sua boca.

Edmundo agarrou aquelas mãos suspensas, em que faiscavam jóias, e trouxe-as ambas aos seus beijos, que pareciam um choro de alma, mudo e contrito.

Honorina encostou a face à face dele, e ambos, de olhos cerrados, pareciam pensar em qualquer coisa de medonhamente triste, que para eles dois se deixasse advinhar ao mesmo tempo.

Ela sentia dentro de si o que o mar sente quando sobe a maré: sentia uma intensa vontade de amor, cobrir e levantar-se sobre o lodo e as algas que a vazante dos sentimentos puros lhe deixara na alma. Sentia um grande desejo de apoiar a si aquela doida paixão estremecida de criança, a única que na sua ingenuidade confiante lhe poderia ainda resgatar a vida da torva desolação a que a sujeitara, banindo de si a possibilidade de ser amada, a única fortaleza que uma mulher tem neste mundo.

Ele, respirando aquele brando perfume de heliótropo com que ela humedecia os cabelos, abria-se inteiro àquele encanto fatal, que sabia bem o ia fazer tragar uma existência dupla de mel e fel, odiosa perante os homens e a sua consciência.

O que havia na sua alma de ideal era precisamente essa paciente dor que sustentava sempre, numa volúpia com paragens intensíssimas de vida, que o inutilizava, que o afastava do comum dos homens, fazendo dele um ser à parte, vivendo no seu místico egoísmo do coração.

E deixava-se rolar na fatalidade do seu destino, de olhos cerrados, resumindo o mundo em si, agredindo-Ihe as leis, rompendo com as conveniências, capaz de se tornar um miserável conquanto esse meio supremo na sua desorientação de cego e alienado lhe pudesse conservar a sua miragem, que ele guardava à parte tudo, só para si.

Amortecia-se nele a sensação da sua individualidade, julgava-se vivo apenas pelo sentimento único que o tinha ali, preso ao pescoço perfumado e morno de uma mulher morena, e esse instinto de amor rosnava a todas as considerações, como um leão, à boca da furna onde dorme a companheira, urra feroz afugentando os outros que rondam a caverna, perseguidos pelo calor, aguilhoados pelo cio.

A sua bela indolência imaginativa não estava senão ao serviço daquela grande e imperiosa necessidade de reter com a sua mulher a sua vida. Perdera de todo o instinto de pensar duas horas adiantadas.

Deixava-se ir, sem um gesto, como um afogado sem esperanças, que nem solta um grito, que nem sacode um braço.

Tudo era difuso como num crepúsculo de Outono, dentro dos seus pensamentos.

A nitidez acabara nele, completamente.

Em tudo via sombras, manchas, laivos, e daí, dessa definhante e enublada penetração das coisas exteriores, 291surgia ante os seus olhos, a uma distância incrível, um mundo que o não via, desterrado, longínquo, liquefeito em tintas de sombras como um fim de poente à sua existência de meio morto. A perspectiva das coisas embaciava- -se numa perturbação, e o seu maior prazer era acordar de noite, sentindo ao lado o bafejo da amante adormecida, e ficar de olhos abertos para a escuridão, para o negrume, resumindo na treva e no silêncio a sua vida inteira no torpor deixado pelo sono, sem um ruído, sem uma luz, no imenso mistério e alquebramento da sonolência, com o pensamento parado ante as vedetas da sombra impenetrável, amarrado na treva, sepultado no nada.

E era um martírio atroz para ele, a volta à vida, à luz, quando pelas janelas abertas apercebia o sol inundando os altos céus sobre a cidade, trepidante de vida, cheia de rumores, de carros e passos, calçada por trezentas mil pessoas em trabalho...

Com a luz, acordava a maldade, a luta da raposa e do lobo, o terrível combate atroz da existência, com hospitais, como ambulâncias sempre a extravasarem de feridos e moribundos e as pás dos coveiros sempre a remover a terra, que se vinga da humanidade que a pisa.

Com a luz rompia-se a morte aparente do sono em que tudo repousara, e essa vida cantada por todos era apenas um despertar para o ganho egoísta da subsistência, e o gatuno vai comer o que roubou a desoras, a mulher da vida o que ganhou com os beijos e o ventre, e o mendigo sai a mendigar o caldo amaldiçoando Deus por não ter acabado ainda o mundo naquela última noite.

A imensa torre de Babel da inveja e do egoísmo ruge as suas doze horas de vida à luz do sol; e todos se procuram fazer mal uns aos outros; o pai para dar de comer aos filhos, o rapaz para dar de comer à amásia, este para dar de comer à ambição, aquele outro para saciar o orgulho ou a infâmia, e o mundo rola sempre vertiginosamente, em torno ao sol, acarretando os seus milhões de vermes, que se matam, se estrangulam, se devoram, implacavelmente, até que o último coveiro enterre a dez palmos o penúltimo homem, e Deus enfim, aniquilando a serpente, faça voltar ao Éden o seu primeiro homem e primeira mulher, que viveram sozinhos, libertos do mundo, vivendo com a alma ajoelhada perante o seu eterno sonho acordado de adoração e amor.

Se isso era possível, Edmundo fazia-se espiritualmente essa vida. 0 mundo era apenas a sua emoção. Bastava estirar os braços até ao pescoço da amante e encontrava ali o fim da terra.

Aquela cabeça desequilibrada regressava apenas na essência do seu pensar à divina existência do ser criado por Deus. Transgredia as leis humanas, trazia na alma como ideal, o ideal primeiro, uno, indisível, o só permitido pelos céus, aquele em que se resumem todos os ideais, e por isso o único que existiu na terra até que o Arcanjo desceu empunhando o gládio flamejante e condenando para todo o sempre a humanidade inteira.

A degenerescência da raça esgotara nele todo o instinto adquirido por quinhentas gerações. Nele reaparecia o primitivo.

Talvez que desse facto incrível evacue a raiva e a revolta dos homens contra a sociedade: o anarquismo destruindo as balisas que impedem que a terra seja pasto para os homens como é para os leões; o niilismo espurgando o poder absoluto; o operário revoltado contra o patrão; o mendigo soltando pragas ao rico; a humanidade inteira evoluindo num regresso assustador para a época primitiva, retrocedendo de novo até Deus, depois de compreender que as religiões mentiram e que a vida, assim, levará tudo o que é desgraça à crise derradeira do assalto à felicidade, e a humanidade se esgaçará entre si, rico contra pobre, inexoravelmente...

O destino juntara aqueles dois seres, ambos largados da família; uma mulher que vendia o corpo e que enganara para isso a consciência ou o coração, como quem engana um filho, e uma criança inocente de ser assim como ele era, porque a idade não lhe dera sequer tempo de cometer o crime de se degenerar, surgindo para a vida havia poucos dias, irresponsável da desorientação sublime na sua cegueira absoluta.

O que queria o mundo fazer de gente igual? Com que direito se queixavam os homens? A humanidade era ou não a única responsável?

Ela tinha sido inocente, nascera sem saber falar, vagindo como um anjo a quem cruelmente cortaram as asas.

Nascida para ser mulher e por conseguinte mãe, o instinto nasceu por sua vez dentro daquela inocência.

As suas primeiras palavras balbuciadas foram de amor: pai e mãe.

O seu primeiro sorriso foi para a boneca.

A boneca! Essa irresistível necessidade da criança, e que põe, nos campos, entre as mãos das pequeninas guardadoras de gado, bonecas feitas com um trapo enrolado num punhado de erva seca. A boneca! Esta espécie de prenúncio do instinto maternal e talvez o tactear e a aprendizagem de cuidados que mais tarde dará à criança das suas entranhas a mãe da boneca!

E os homens roubaram-lhe o direito de ter filhos, de ser mãe.

Aos dezoito anos, quando ela sentia pulsar em si um recém-nascido -- o coração, os homens, obrigaram a mulher a matar esse primeiro filho, o filho da alma, que é a génese dos filhos criados nos flancos.

Como para ser mãe é preciso ter coração, Deus não dá filhos aos que o deitaram fora por um pedaço de pão.

Deus faz bem.

Ele, apenas os olhos abertos para o mundo, uma desesperança moral assustadora o invadira matando-lhe todo o consolo e coragem que nesta vida assenta apenas «na consciência de ser útil». E na sua desgraça de ser largado à parte, sem apego, o primeiro ombro que encontrou a que encostar a sua melancolia de indolente, esse ombro resumiu para si o objectivo de sua vitalidade na incongruência da sua maneira doida de pensar, com a cabeça cheia de uma miragem pavorosa do mundo, precocemente laço dele, trémulo e inexperiente ante essa terrível «guerreia de raposas contra lobos», numa desfalência de qualquer esforço, uma fraqueza desalentadora para a mínima luta, e tudo isso confundido no seu cérebro detraqué, numa ponta viva de horror instintivo, numa atordoadora nevrose de medo, horrorizado para todo o sempre, como uma criança que se esconde sob os lençóis, ao avistar de noite à luz da lamparina uma sombra na parede.

Ah! Até que enfim ele tornava a possuí-la, aquela mulher bem-amada, que tinha o poder sobrenatural de lhe esconder o mundo atrás das costas.

Encostado a ela descansava daqueles dois meses atrozes de sofrimento.

Aquele seu amor, quase insexual, era para ele mesmo um mistério que o desorientava, por ter tudo o que o fazia sonhar, sublinhado por tudo o que fazia sofrer.

Beijava os seus cabelos negros, cuja lembrança tinham sido as noites dos seus dois meses saudosos e tristíssimos de abandono, e um desejo vago de amor crescia nele, abria-lhe os lábios sobre o pescoço de Honorina, um grande desejo de a ter nos braços, na escuridão, abraçada a si, e chorarem os dois, na treva, as cabeças encostadas, as faces molhadas mutuamente.

Ela pensava-se feliz, desiludida amargamente de poder viver sem ele; enojada um dia pelas carícias de um velho, que lhe prometera, inconsciente do que dizia, toda a fortuna por um beijo daquela boca, que ela arredava dele...

Emílio fumara pacientemente dois cigarros, lendo um jornal.

Mas Honorina retirou de sobre si, com meiguice, a cabeça de Edmundo, e os olhos meio embaciados, voltando-se para ele, com uma carícia na voz:

-- Vou-me vestir, sim ? Para irmos jantar.

-- Emílio teve um suspiro de alívio.

-- Ah! Sim, jantar!

Edmundo sorria, feliz, e ficou à janela com o amigo, fumando, vendo passar a gente para os teatros, enquanto Honorina se lavava e vestia.

-- E tu, que vais fazer agora, sozinho?

Ele dava-lhe logo assim cruelmente a perceber que ia ficar para sempre sem o companheiro, sem o amigo.

Encolheu os ombros, franziu os beiços...

-- Mas para que me trouxeste tu aqui ? Bem te tinha dado a perceber que esta mulher me roubava tudo, amizades, companheiros, sei lá... Tu viste bem... Que amigos tinha eu dos que tinham sido meus quando te encontrei? Agora deixo-te...

Emílio ficava calado, chupando o cigarro apagado.

Edmundo lembrava-lhe companheiros... O Armando, um pouco esbandalhado por uma boémia, que tinha lido Murger e Gerardo de Nerval, aquela atrevida figura toda nervos, um belo camarada e leal como uma espada...

O Luís Machado, um artista, aí estava um capaz de o compreender, bom e ingénuo, um pouco romântico, sonhando em escaladas e aventuras de capa e espada, mas bom, franco, destestando o mundo... Ele não havia de continuar a ir sozinho aos teatros, ao Stadt Munchen, a Botafogo, dormindo à mesa com uma mulher loura convidada no teatro ou ressonando no carro, ao lado de uma cocotte, conhecida na véspera numa roda do Pascoal... A menos que não quisesse vir todas as noites tomar chá com eles, ao lado das suas carícias e dos seus beijos...

E baixinho, quase ao ouvido, Emílio disse-lhe:

-- Deixa esta mulher, não jantes aqui, vamos embora...

Edmundo não teve tempo de responder. Honorina aproximara-se com uma rosa e um alfinete entre os dentes, cerrada no seu vestido seda preta, com o travessão de coral e brilhantes no peito.

Curvou-se sobre o Emílio, e pregou-lhe a rosa na lapela.

Ele agradecia, tomando-lhe as mãos, enquanto Edmundo o olhava, sorrindo.

-- Agora vamos jantar.

Honorina ainda foi ao toucador, concertar o cabelo, perfumar o lenço, e os dois amigos seguiram-na depois, ao longo do corredor, atrás do ruge do seu vestido de gorgorão, sem trocar palavra.

A mesa, num gabinete particular em que ardiam três bicos de gás em arandelas de bronze, estava posta, os três talheres descansando na alvura da toalha, os pratos de porcelana inglesa, e ao centro, num vaso onde três cegonhas meditavam numa lagoa de águas azuis, uma palmeira abria três folhas de um verde húmido, debruçadas como ventarolas.

O balde atulhado de gelo esperava a primeira garrafa de vinho, e foi discussão para meia hora o que se devia tomar com o peixe...

Edmundo lembrava o Chateau Iquem, mas Emílio procurava um branco mais distinto, Chablis ou Húngaro; o Bordéus era reles.

Honorina não sabia ao certo, lembrou o Reno e o criado, aturdido, meteu no balde afinal uma Johannisberg esgalgada de rótulo verde, com grandes cordões doirados.

Emílio pedia faizões trufados e perus recheados, abandonando a lista como indigna. Exigia caça, um macuco, um jacu, qualquer coisa enfim que se pudesse comer, que não fosse os bifes de cebolada e a costeleta de carneiro.

Desceu à garrafeira para escolher o Bourgonhe, voltando com uma Pomard venerável, empoeirada e coberta de teias.

Mandou-se fazer punche para antes do frango assado que o garçon tinha ordem de anunciar como perua ao desarrolhar o velho Bourgonhe.

E enfim ao champanhe, Emílio, muito enternecido, levantou um brinde ao Nirvana.

Honorina, não conhecendo quem era, bebe silenciosamente, com o olhar já tão brilhante como o cristal das taças à luz do gás.

Edmundo deixava-se envolver naquela alegria, com um ar feliz no grande olhar profundo.

Lá fora, na rua, rodavam ruidosamente os carros em frente à porta do Apollo, onde se cantavam os «Sinos de Corneville».

-- Vamos ao teatro ?

Emílio protestou contra a ideia:

-- Era preferível um passeio de carro, a Botafogo, ir ver o luar boiando nas águas.

Romantizava a grandes tintas a baía, imersa num banho de madrepérola com umas catraias balouçando a maré ao lado do morro, e ao longe os faróis de Santa Cruz, rompendo das casamatas da fortaleza, à beira do pescoço esgalgado dos «Banges» monstruosos.

Inventava cenários de grande-ópera, sacudindo a cinza do charuto na chávena de café, e tinha gestos, falando do luar, que era a saudade do grande céu pela luz abrasada do dia...

Honorina ofereceu para se tomar o licor no quarto dela, e os três subiram, ela na frente, para acender o gás.

Só Edmundo parecia triste no meio de todo aquele estouvamento.

Tinha pressa de se ver só, de a ter só para si, sem alegrias, sem risos, contar-lhe como sofrera longe dela, aquelas noites passadas a espiar-lhe a janela, na rua, encostado a uma esquina, tentando reconhecer os vultos que se desenhavam atrás das cortinas. E a doida tranquilidade que lhe vinha quando a sabia só, dormindo em toda a grande cama, sem ninguém...

Era já tarde. Honorina pôs o chapéu, calçou as luvas, pôs aos ombros uma pelerine, e com o véu levantado tomou o cálice de kummel, gulosamente.

Mandou-se chamar um carro. A noite estava linda, toda resplandecente de estrelas. A vida láctea, como um formigueiro de luz, serpeava em meandros, desaparecendo ao longe. A lua parecia uma custódia de ouro fosco, rebrilhando serenamente ao cimo de um altar carregado de círios.

Edmundo, encostado a Honorina, não falava.

O carro desceu à praia, cujos candeeiros descendo a luz nas águas entranhavam por elas abaixo trémulas raízes de fogo. A baía estremecia, toda arripiada sob a carícia do luar, e o astro pálido rasgava no mar um grande rastro luminoso, como uma serpente de luz boiando nas vagas.

Edmundo, encostado a Honorina, beijava-lhe os cabelos, as mãos dela entre as suas.

Emílio então quebrou o silêncio, vergando-se, o queixo no castão de prata da bengala.

-- Esta noite suicido-me, esvazio um frasco de láudano, mato-me.

-- Meu Deus! Porquê? -- disse Edmundo encostado ao ombro da amante.

-- Esta vida é estúpida, não vale um esforço, bem dizes tu...

-- Que noite bonita!

-- Mato-me, tu verás... 0 que fui eu buscar na revolta e depois no Rio Grande do Sul ? As balas não me quiseram...

Há gente como eu que só morre com láudano... Fui besta em não me deixar fuzilar na ilha das Enxadas...

Edmundo acrescentou entre dois beijos:

-- Era heróico.

Emílio, com os olhos meios cerrados, falava, a face encostada nas mãos arrimadas ao castão de prata:

-- Estar quatro meses a bordo ouvindo o urrar dos canhões e vendo partirem-se as balas no convés, esperar quatro meses uma granada, ir à Armação de machadinha de abordagem, rachar cabeças na treva à espera de uma baioneta que me trespassasse ao menos, e ver os soldados fugir sem me darem um tiro, ante as machadas dos marinheiros; esperar depois, de kropatschet nas mãos, que os generais viessem por entre as nuvens de fuzilaria, e voltar para bordo, sem uma arranhadura, vendo morrer quinhentos homens!... Ter depois de certa a morte ante um pelotão e fugir a nado, por cobardia, perdendo a melhor ocasião de morrer, o peito varado...

E no Sul, ter caído com um pontaço de lança no ombro e uma bala nas pernas, e escapar das Trahyras como escapei da Armação, e da ilha do Governador, e da ilha de Bom Jesus, e da ilha das Enxadas, de toda a parte!...

É imbecil Depois de tudo isso, gastar a fortuna com três bailarinas, em Buenos Aires, e pobre afinal, levar a vida a ler Jacobino, a ver o Dias Braga representar o Conde de Monte Cristo, e beber champanhe falsificado em restaurantes pouco limpos...

E levantando a cabeça:

-- Achas que é pouco, para levar um homem a beber depois do café um cálice de láudano?

Honorina, no escuro, apertava nervosamente as mãos de Edmundo, e este, numa dormência, ouvindo falar de morte--a felicidade imperecível--, lembrava-se daquela noite fria de chuva em que a amante, sentada na cama, os olhos amortecidos de gozo, cavados de olheiras de tuberculosa, lhe contara aos arrancos, numa confissão de desabafo, que desejaria morrer apunhalada por um homem com ciúmes dela, que a arrancasse do mundo pelos cabelos, em plena mocidade, em plena beleza, amada até o derradeiro regongo, sentindo-se desejada até no bico da faca que a matava...

Seria o medo do hospital, da miséria, desses últimos tempos da mulher da vida, que morre como uma cadela engalicada e é atirada à promiscuidade da vala comum, depois de ter passado a juventude entregando o corpo à promiscuidade dos homens?

O medo da morte miserável e leprenta, que ainda aproveita às aulas de Anatomia, e cujos restos, embrulhados num lençol da Santa Casa, são arremessados à cova da desgraça ? Porque até na morte há desgraça!...

Edmundo sonhava com esse olhar de pobre que lhe confessava o desejo de se cerrar para sempre sob uma crueldade de amor, farto de tantas vezes ter-se fechado e obscurecido na vertigem dos espasmos, no marasmo aniquilante do gozo.

Aqueles pensamentos eram-lhe uma fascinação, atraíam-no como um abismo, e traziam para dentro dele essa reacção depressiva e dolorosa que era o sintoma característico e saliente da sua desorganização melancólica. Ao seu espírito a ideia terrível despertava como o «supremo refúgio», mas essa grande tendência do alie- namento cerebral diluía-se naquele temperamento mórbido, desfazia-se inofensivo na indolência e inactividade de toda a sua cerebração, numa sempiterna cobardia do esforço, incapaz até de ser um doido, por lassidão!

Quantas vezes ele também pensara no suicídio?

Mas a energia do momento faltava-lhe, as forças desanimavam e abatiam ante o momento, quebradas pela perspectiva do instante supremo da revolta prática, impotente para executar fosse o que fosse, quando isso lhe exigisse uma reacção, um choque, uma perturbação à inércia de todo o seu sistema nervoso adormecido.

Uma atonia dolorosa entorpecia-lhe o mínimo movimento enérgico, de carácter como de sensação, e deixava-se ir, numa vaguez inaudita de sonambulismo, abatido pela perene angústia do desalento infindo, que se lhe infiltrara nas veias.

Emílio, não, era um sanguíneo, um activo, um ser inflexível de acção. Não se deixava empolgar pela ideia, dominava-a. O seu poder de vontade era forte.

Quando se tratara de procurar a salvação a nado, não vacilara um instante, atira-se ao mar, no escuro, e depois de duas horas de esforços, rira da sentença que o tinha preso ao espingardeamento.

Com a mesma serenidade ter-se-ia deixado passar pelas armas.

Quando o almirante Saldanha fizera baixar a ordem do dia mandando o desembarque em Nictheroy, num assalto com as forças federalistas que o «Aquidabam» eo «República» deviam trazer nessa mesma noite à praia de Santa Cruz, ele fora um dos primeiros a pedir um posto de combate, com o lenço perfumado à «White Rose» e um cravo murcho na botoeira.

No Sul, entre as hordes selvagens dos gaúchos, usava camisolões de seda e arreios de prata no chucro bravo.

Quem o visse no teatro, alto e forte, no seu vestão de casimira inglesa, um enorme ramo de violetas na lapela, a mão no bolso das calças, ninguém julgaria que esse homem belo e novo tinha galopado todos os pampas à frente das guerrilhas bárbaras, que durante três meses se sustentara de churrasco assado nas brasas do acampamento, que durante cem dias vivera no meio das fumaradas dos combates e batalhas, cheirando a pólvora, e a cavalo, dormindo em cima dos arreios, a cabeça encostada à carona coberta pelo pelego de cabra.

No seu olhar verde e sereno como um mar em bonança não se liam os grandes dias de sol, levados em fuga ante o inimigo, por entre o faiscar das lanças da gauchada, toda a cavalgada enorme tomada de pânico, trotando num ruído seco de mil patas desferradas, socando o solo árido, num poente agorento, todo sangue em brasa, ou as noites escuras, acampadas à beira dum rancho incendiado, numa cochila, fogueiras ardendo espaçadas, pondo trémulos de luz nos pontaços das lanças cravadas na terra, as grandes noites negras, ouvindo piar as corujas nos álamos, jogando o bambá, encostado ao sirgote, sentado no cochonilho, tirando a espaços a borracha do pessoelo para beber um trago de cachaça.

Nada havia nele que desse a suspeitar todos aqueles transes.

Aborrecera-se de tudo aquilo, voltara tranquilamente, como sempre, à vida impessoal que antigamente arrastara, rindo pelos cafés e redacções dos jornais, com um soberano desapego por tudo, mas sem spleen, tomando a vida pelo seu lado fugitivo e vazio, sem uma preocupação grave, sem um desejo, sem precipitar um passo.

Da antiga abastança da família, restava uma casa de três andares, velha, e uma fazenda abandonada há muitos anos, onde vivia a mãe, num casarão afidalgado, de grande alpendre, e um largo pátio de pedra, onde em tempos idos o morgado deixava os cavalos da comitiva...

Edmundo percebia vagamente que Emílio era homem bastante para levar a efeito aquela ideia nefasta que lhe adviera depois do Bourgogne e do champanhe.

A tristeza amorosa de Edmundo era comunicativa.

O desprendimento de Emílio invejara talvez a paixão fatalista de Edmundo.

Vira de súbito, num grande relance iluminado, uma face da vida até aí perdida à sua fugaz contemplação de homem forte, que não lia, detestando os romances, mordendo a sentimentalidade com a sua ironia, conhecendo as mulheres depois das ceias, ou exigindo delas apenas um pouco de alegria e um pouco de prazer, julgando sempre que o amor ficava na bacia onde a mulher se lava e acaba com o sacudir das saias ao romper do dia.

Forte e sanguíneo, parecia-lhe que se os pálidos podiam amar, julgava-os bestas, dava-lhe vontade de lhes rir na cara.

E subitamente topara com um companheiro perdidamente enamorado por uma mulher, que ele olhava agora persistentemente, e que sem isso lhe teria passado desapercebida, na sua nulidade de mulher magra e morena, insignificante, sem grandes vestidos e sem grandes jóias.

Edmundo admirava-o, assim acabrunhado por uma ideia fixa que o devastava, tomando-lhe todas as faculdades, amordaçando-lhe todo o seu instinto de senso prático. E essa súbita lembrança de morrer, a fúnebre preocupação da morte, que invadira aquele carro, despertava naquelas três almas essse obscuro apetite do túmulo, de que Emílio se sentia possuído numa grande fome do seu ser físico, que se espreguiçava para o Nada, num longo desejo desmaiado, como uma tortura de momento, deliciosa; uma vesânia que tomava conta dele inteiro, passeando-lhe os desejos como uma larva.

A ideia da morte afigura-se ao dominado como uma ressurreição, uma liberdade que se levanta das profundezas do seu íntimo, e tende a desprender-se da carne para o eterno refúgio da tranquilidade.

E quem passasse por aquele carro onde ia uma mulher e dois rapazes, ninguém pensaria que a morte era o pensamento daqueles três espíritos, todos discordantes, e com os quais se poderia traçar o grande triângulo, onde se limitam os temperamentos: o activo, o passivo e o insexual; o homem na sua tendência, a mulher no seu inexplicável mistério de ser difusor incompleto, vagando entre dois extremos, como um crepúsculo entre um dia de sol e uma noite sem estrelas.

Dali ao hotel, Emílio falou incessantemente na morte, atordoando-se com aquela ideia extravagante, macabra, que lhe acelerava as palavras na boca, num frenesim; lhe toldava os olhos, como que se um delírio devastasse todo o seu ser íntimo, numa lancinante nevralgia moral.

Mas depressa a ideia fixa se espraiou em considerações que se estendiam a detalhes, que o faziam rir, falar em almas do outro mundo e em contos de fadas, e quando o carro rodou em frente ao Éden e ao Apollo, Honorina falava que tinha sono e Emílio atirava a um conhecido estas quatro palavras que ressoaram na noite:

-- Espera-me na Maison Moderne.

Despediram-se à porta. Edmundo, a sós afinal com a sua amante, abraçou-a longamente nos degraus que os dois subiram enlaçados, em um grande beijo sem fim.

O novo quarto de Honorina era grande, abrindo em quatro janelas sobre a rua. Tinha um ar frio, desconsolado, tristonho, desde os tectos pintados em quadros japoneses em tintas álacres, vermelhos, ouros, púrpuras, azuis da Prússia, até às paredes do mesmo estilo, em que se confundiam monstros de fauces hiantes, uma pintura rica desbotada pela humidade, descolori dapela soalheira. Ante as janelas as cortinas de repes escuro, cor de azeitona, punham um contraste pelintra com a lona exótica do tecto, a meio do qual os cortinados de renda caíam sobre a cama, fechando-a como um altar.

Ela tirou o chapéu, arrancou as luvas e veio sentar-se perto de Edmundo, que acendia um cigarro.

E os dois ficaram silenciosos, numa destas mudezes que nos invadem, que nos entorpecem a garganta.

Olhavam-se a furto e compreendiam-se. la recomeçar então para eles a eterna luta de desalento, ela sem forças dara se submeter aos caprichos dele, numa cegueira que o pressentia superior, mas que o não adivinhava; ele rendido a ela, numa docilidade, deixando definhar-se mais a mais, numa lassidão infinita, lassidão de tanto sentir sem nunca poder exprimir nada!?...

Ela nascera mulher para receber o complemento do homem, o ser da acção; ele contradizia o seu sexo numa passividade acabrunhante, sem uma energia, sem um passo, na sua deplorável tendência para finalisar, preso em si próprio, num grande desejo de se abolir da vida no conforto da insensibilidade fria da morte.

E os dois, frente a frente, viam-se incapazes da vida, fracos, sofrendo a imperiosa necessidade de se largarem cada um ao seu destino, mas sem forças para se abandonarem nas sua fraqueza, no seu desfalecimento.

Ele roía-se com o remorso duma insuficiência orgânica, inconfessável. Ela via-se incapaz de trabalhar para a sua vida sem a dor intensíssima que a lavrava, quando um homem lhe mostrava dinheiro e lhe exigia amor.

Edmundo fazia mil projectos de trabalho, prometia-se uma vida de esforços, de luta pela vida, mas mal elaboradas estavam as fantasias de realidade, de viver prático, um temor arruinava-as, punhas-as em terra, num baque...

Aqueles dois meses de solidão tinham-lhe apenas servido para embrulhar-se mais no seu nevoeiro de ser platónico, no seu abatimento moral, no seu definhamento, assombreando-lhe mais o olhar de uma luz crepuscular, pacificado num vago luarento, ante o qual se perdiam todas as objectivas. E não havia comédia na desesperança de todos os seus traços, a alma cheia transbordava-lhe nas feições, como as lágrimas transbordam das pálpebras. Tornava-se um espectador dos seus próprios gestos e admirava-se às vezes das suas palavras, tão em discordância com a sua maneira de sentir.

Tornara-se hipócrita, enraivado contra os outros, sabendo bem que nunca o desculpariam tal como era, e essa hipocrisia acabava de o desesperar, carregando-a como um fardo, uma exigência que lhe fazia o mundo abominado. Nesses momentos, sentia uma nostalgia imensa da mulher amada, e fora esse sentimento que o trouxera de novo perto dela, ávido de martírio, buscando o gozo sofredor que ela lhe dava e com que ele se alimentava para deixar de viver um pouco mais depressa...

-- Honorina...

Ela chegou-se a ele, as pestanas batendo, os lábios trémulos, os olhos sombrios.

-- Como eu sofri estes dois meses! E tu ? Lembravas-te de mim, às vezes, nas noites de chuva ?

Ela atirou-lhe os braços para cima dos ombros, e apertando-o a si e chegando-lhe a face rente à sua, gemeu-lhe ao ouvido:

-- Sim, lembrei.

-- E os outros homens?

Honorina levantou-se sem uma palavra, foi à gaveta do guarda-vestidos, agachou-se um momento a rebuscar entre as fitas e as luvas, e veio de novo, vagarosa, sentar-se ao pé de Edmundo, com dois papéis cor-de-rosa da mão.

Eram duas contas. Honorina devia duas semanas de hotel, a doze mil réis por dia.

-- E devo à lavadeira, à costureira, à Emília, até ao Romão, sabes? O criado que faz a limpeza nos quartos!...

Devo-lhe dois mil réis: foi para mandar comprar cigarros e alpista para os canários...

Ela dizia aquilo tudo, a voz pejada de vergonha, mas nos olhos irradiava-lhe um grande clarão de orgulho:

não tinha sido de ninguém.

Edmundo guardou as contas, beijou-lhe longamente as mãos morenas, e os dois caíram na cama, entrelaçados.

Ela abandonava-se, desfalecida sob os seus beijos, sentindo as mãos dele desmanchar-lhe os cabelos, e um arrepio sacudia-lhe as carnes magras sob o espartilho.

Levantou-se, desfeita, para se despir.

Ele deitou-se, e enquanto ela se lavava e abria frascos no toucador, Edmundo abriu a gaveta da mesa da cabeceira para procurar fósforos e acender a vela.

Numa confusão de nastros, fitas de seda, carrinhos de algodão, novelos de retrós, papéis de agulhas, as suas mãos encontraram um envelope.

E os seus olhos correram sobre as linhas escritas, que o atrocidaram, como se cada palavra lhe furasse os olhos até ao fundo.

«Querida Honorina Daqui de Juiz de Fora, escrevo-te, ainda na saudade dos teus beijos e dos teus abraços.

É impossível esquecer-te, separar-te da memória e do coração.

Tenho a certeza que também te lembras de mim.

Quem permitiu os meus beijos e a minha companhia durante quase um mês, sem nenhuma recompensa, é que, fácil de contentar, se satisfazia com a minha grande paixão.

Porque não vens morar aqui comigo?

Aí, pelo que tu me contaste, só tens sofrido.

Perto de mim terias ao menos o sossego dos pobres...»

Edmundo teve que guardar a carta debaixo da travesseira. Honorina aproximou-se, toda perfumada a verbena, cheirando bem a sua carne quente como um parasita de floresta virgem.

Ele respirou-a toda, chegando-a muito a si, fitando aqueles belos olhos desavergonhados de mentirosa.

Nem força tinha para a desprezar depois da leitura daquela carta, deixada a meio. Acobardara-se ante o êxtase dos sentidos, adormecidos nele havia dois meses, e que acordavam agora ao lado daquele corpo de carnes tenras e veludosas como pétalas de camélias.

-- Vem, meu amor...

E ela entregou-se-lhe toda, gemendo docemente, como uma rola moribunda, toda absorvida nele, chamando-o como se ele estivesse longe, abatida de gozo, fechando os olhos, torcida, as mãos batendo as fronhas e os lençóis, a boca entreaberta, como se estivesse a gozar a si própria, na alucinação de um incubo.

Soavam as duas horas numa torre. Ela dormia, prostrada, a cara meio encoberta pelos cabelos, as mãos atiradas na colcha de cetim azul-claro. Estava tudo escuro. Nem pelas frinchas das portas trespassava o luar que corria lá fora, na noite serena.

Um grande silêncio de túmulo submergira toda a casa. Mesmo na rua, nem vivalma passava ao frio da madrugada.

Edmundo, de olhos esgaseados para a treva, pensava, amarrado ali de olhos abertos num marasmo, a noite a entrar-lhe pelos olhos e a escurecer-lhe o crânio, numa maré de sombra, onde ideias nadavam a afogar-se, esbravejando nele, tal que se em vez das carnes a caveira dum morto se fosse enchendo de larvas, em cima de seus ombros.

Todas as sensações nele eram deliquências, desabrochavam murchas na sua grande noite hiperbórea de louco, e a parte mais martirizante da sua doença era talvez a mortal desilusão que confragia aquela alma penada e paciente de cão tísico, a desesperança da vida para sempre arruinada, uma vida de fim de raça, nascida espúria, para cair logo numa cova, inexoravelmente.

Recuava ante si, num esfuminho de ideias, tudo o que pudesse arrancá-lo daquela escuridão que o inundava, e na qual empurrava de todo o seu espírito.

Olhava para trás, com uma dolência triste de pensar, e percebia à grande essa imensa loucura que o sofrimento e a melancolia lhe tinham gerado, perante a saudade enorme da mulher, em que um dia encostara a sua lassidão e com quem numa noite esquecera o mundo, a vista entupida de cansaço, o turbilhão que o invadia como aos outros, e que só a ele lhe trazia a vertigem.

A ideia fixa, essa monomania terrível, exasperada por um misticismo e uma nostalgia aguda, recompusera a mulher abandonada, inventando-a em ideal, falho doutros, num enternecimento por cada carícia relembrada, atordoado por esse vapor de ilusão levantado em nós todos pelo desejo físico, essa embriaguez do sexo de que ele se sentia doente como dum vinho, e que lhe subia às narinas; só à lembrança dessa mulher bravia como uma onça, selvagem e ferina como um animal do mato, de voz aveludada e com demoras sentimentais em certas inflexões, amando as carícias e as músicas plangentes, os olhos sempre assombreados num crepúsculo de trovoada, imerso em meias trevas, dessa mulher que ele sentia mais forte do que ele externamente, e que carregava em si a mesma dosagem indolente e lassa da sua alma.

Olhava para trás, para esses dois meses de angústia, como um moribundo que lança um último olhar à sua existência, e espantava-se de se haver criado a ilusão estranha de que essa mulher, que ali dormia à sua beira, pudesse um dia compreender-lhe -- ser excepcional no mundo!--toda a dosagem de mistério e desalento que o oprimia e escorraçava da vida.

Não a abandonara ele como indigna?

Mas, ah!, a sua desacaroável cobardia desculpava-a ainda. Ele indignara-se ante o seu predomínio, o predomínio dela sobre si, ela que fora sentenciada como mulher a sofrer o homem. Ele revoltara-se porque ela dera o corpo a um outro.

E tinha ainda nos ouvidos, soantes e bruscas, ríspidas e odientas, as derradeiras palavras com que o despedira...

E agora aquela carta, que tinha sido deixada numa gaveta, esquecida, para que ele a lesse, para que ele soubesse que outros lábios que não os seus tinham passeado a cara da mulher estremecida, e os seus olhos tinham rolado como dois astros na escuridão sob outras carícias que não as suas, essa mulher por quem ele trocava o mundo na sua suicidante paixão idealizante, ela, como todas as outras, o repelia no íntimo, porque ele era menos que um homem e julgava-se um Deus na sua atonia imobilizada espiritualmente de desdém, de repulsa, de desprezo.

O que ia ele fazer agora, sem forças e sem vontade para se desprender daqueles braços?

Onde ia ele buscar dinheiro para a poder reter a seu lado, só sua?

Aquela grande obra de documentaria que lhe tinham entregue, com promessas que desculpariam os mais aturados esforços da sua parte, ele deixara-a em meio, num grande desalento e descoragem repentina, depois de ter trabalhado nela um mês consecutivo, pesquisando bibliotecas e arquivos, numa febre que descaiu um dia numa indolência imperdoável. Sentia-se ele por acaso com forças para concluí-la?

Não, não, era impossível...

E via-se assim a braços com o mundo, quando mais do que nunca se esforçava para sair dele.

Sentia-se rolar numa espécie de letargia completa e absurda da sua vitalidade, uma espécie de perda de acção e de raciocínio, numa falta de coordenação nos actos psíquicos, um medo de cão vadio que vê pedras em todas as mãos, um derretimento no pensar, que lhe escorria das células cerebrais, já liquifeito, infixável, e o mísero debatia-se, olhando o sono da amante, essa mulher que era ainda o seu último refúgio, pensando que se ela morresse ele morreria também.

Em todo aquele desvario lembrou-se da carta, tirou-a com cuidado debaixo do travesseiro, e sem a poder ler, no escuro, amarrotando-a nos dedos crispados, a pobre criança escondeu a cabeça sob os lençóis e desatou a chorar, silenciosamente, enquanto ao seu lado a amante dormia, os braços atirados para cima dos joelhos, a boca entre-aberta, sonhando com beijos e uma pulseira de esmeraldas.

XIV

Quando ela acordou, a sua primeira fala foi para saber se ele estava melhor do peito.

Lembrou aquela medonha hemoptise que tivera, que a deixara sempre atemorizada a seu respeito, sem poder mandar saber notícias, ignorando-lhe a morada, depois de terem vivido juntos tanto tempo...

Acusava-o de não ter vindo mais cedo; porque tardara tanto?

Contava-lhe as suas saudades, passando-lhe as mãos pelo cabelo, negro como a asa de um corvo, e os seus grandes olhos pisados pelo amor resplandeciam como invadidos na sua grande sombra por um grande luar.

Sentada na cama, debruçada sobre ele, a camisa repuxada debaixo dos joelhos, salientava na sua transparência de bretanha rendada a carne dura e morena dos seus seios, juntos como duas aves em um ninho. As grandes tranças escuras do cabelo, todas desfeitas, escorregavam-lhe pelos ombros nus.

Ele esquecia-se de tudo, recebia como um sedento as palavras que ela deixava cair dos lábios pálidos; escutava abismado, a cabeça enterrada na paina macia das travesseiras, a vista presa toda no olhar da mulher estremecida.

Tinha estado à sua espera, julgando sempre que ele viria uma noite ter com ela quando menos fosse para imaginar... Havia noites que ela ficava debruçada à janela, a ver se o enxergava, à saída dos teatros... Mas não, nunca o vira...

Que tinha tido ele como razão para lhe fugir tanto da vista, se lhe queria bem?...

-- Ein, morzinho?

Pendida sobre ele, com a face quase encostada à sua cabeça, Honorina abria a boca a todas aquelas palavras que lhe acudiam do coração, balouçando-as na sua voz arrastada, numa cadência de verso cantado numa moleza, numa preguiça.

Os perfumes que a embalsamavam tanto quando se deitara, depois daquelas horas de calor e de sono, rescendiam como soltas de um ramo de cravos emurchecidos.

Em todos os seus traços se lia a prostração, a languidez deixada pelo gozo, a que ele pouco a habituara na sua companhia.

As suas pálpebras tremiam como asas cansadas, mas ainda a sua boca parecia pedir silenciosamente beijos, prometendo carícias.

O sol entrava pelas bandeiras e frinchas das janelas, estendendo uma grande mancha de luz na coberta e na renda do cortinado.

Ela, toda iluminada por aquela transparência de ouro pálido, recortava-se na penumbra, na sua camisa fina e rendada, de cuja alvura se desprendiam os braços morenos, queimados pela raça, e o seu pescoço liso, que se espraiava nos ombros, resvalava no peito...

A sua cabeça, de cabelos numa rodilha, parecia mais que nunca a Edmundo de uma formosura bravia, com a luz patanosa dos olhos profundos sob a sombra arqueada das sobrancelhas, debaixo das franjas negras e sedosas das pestanas, o nariz de ventas dilatadas, como os de uma pantera ainda moça, umas ventas de felino, sobre uma boca que se havia de jurar tinha perfume como uma flor de carne cor-de-rosa.

Ela trazia em si, em todo o seu ar, a barbárie da raça em que nascera, e toda a sua meiguice não disfarçava aquele belo sorriso de maldade que lhe enrugava os beiços em certas ocasiões, quando a raiva se apossava do seu corpo de cobra e lhe atirava para o olhar uma faísca de luz brava e venenosa.

Calçando os pés nas sandálias de veludo carmensim, ela desceu da cama e foi abrir as portas ao sol do meio-dia.

Passarinhava por todo o quarto, falando aos canários que cantavam, apanhando uma saia caída, arrancando das jarras as flores murchas...

Ele seguia-a com a vista, sonhando com a felicidade de uma vida levada assim sempre numa doce paz em que tudo fosse amor, sem um atrito, sem um laivo de preocupação exterior à sua adoração religiosa de doente, e isso numa casa alegre, entre árvores na Tijuca, à beira de um correr de água clara em cima das fragas limosas onde coaxassem de noite as rãs... Como seria bom passar a vida em beijos, quer vendo cair no campo as folhas mortas quer olhando os céus dulcificarem-se numa religiosidade de mágoa, ante o réquiem do Verão.

Jantar na varanda, sob as folhagens das mangueiras, pelos fins de tardes violáceas maceradas, e dormir com as janelas abertas à noite, que geme ao peso das estrelas!...

E os seus olhos cavavam-se mais fundos seguindo esses desejos que lhe transpareciam já desfeitos em impossíveis, que lhe nasciam na imaginação como ideias mortas.

Caiu entre os travesseiros, as narinas cheias do perfume que Honorina deixara no linho dos lençóis, gozava duma grande beatitude, deixando agonizar todos os pensamentos, cerrando os olhos, invadido por uma vontade imensa de acabar ali, deitado naquela alvura perfumada por seu amor...

Ela, já lavada, os cabelos espetados na nuca por dois grampos finos de tartaruga, veio sentar-se a beira da cama, calçar as meias.

E naquele conjunto de vida reatada, o hábito antigo das conversas reapareceu em pedidos de toda a espécie...

Era preciso comprar um chapéu para o vestido cor de vinho que ele lhe dera, e precisava de meias, um metro de véu preto, um par de sapatos... sabia lá!... Tanta coisa que ela precisava!...

Ficavam os dois a falar, Honorina penteando os cabelos, Edmundo lavando a boca, embrulhado no roupão de banho, de capuz, que lhe dava um belo ar de beduíno queimado pelo sol do deserto.

Desceram os dois ao banheiro, no fundo do jardim, onde três árvores enfezadas estendiam para o sol morno de Inverno os galhos secos, como numa imploração de moribundas que recebem o viático.

E ele ria, ao puxar o cordão do ralo, vendo as carnes da amante arripiarem sob as primeiras gotas de água fria, e depois os mil fios de chuva alagarem-na toda, escorrendo-lhe pelas costas, pelos ombros, pelo ventre, humedecendo-a como uma Ondina.

Depois, ainda mil risos para a enxugar, e frases soltas naquela solidão fresca que os fechava perto da água correndo na tina de mármore...

-- Ai não, deixa...!

Ele protestava, de joelhos no estrado: havia de a enxugar por toda a parte!...

E o espanto, quando subiram, ao ouvir a pancada da uma hora da tarde! Já o sol descia. Galos esganiçavam-se pelos quintais, e os perus bufavam na capoeira, retesando as asas negras...

Vestiram-se apressados, e ao descer para o almoço a voz do Emílio fê-los parar, com o pé no primeiro degrau...

Trazia um grande ramalhete de rosas-chá, na sua correcção de sempre, com uma grande alegria nos olhos, barbeado, cheirando bem!

-- Também almoço, preguiçosos!

E com o chapéu na mão, curvado, cumprimentava Honorina, oferecia-se para ir deixar as rosas no quarto, no jarro de água, para que não murchassem.

-- Põem-se num copo, na mesa...

Almoçariam com elas ao lado, rescendendo...

Emílio deu o braço, desceram os três para a sala toda iluminada de um sol que não feria, coado obli- quamente pelas tabuinhas envernizadas.

E logo à mayonnaise, Emílio, enchendo o cálice de Bucelas, brindou os amores dos dois, debruçado na mesa, falando-lhes quase aos ouvidos, em frases de «Heloísa et Abeillard» de Lamartine, romantizando.

Levantaram-se da mesa por serem quase horas de jantar, e depois da promessa de voltarem muito cedo, saíram para a rua. Edmundo preocupado, Emílio, atirando os passos, transbordando saúde e alegria.

-- Achei o que me faltava!... Tu, que gostas do antigo, vês-me agora um Horácio que ainda há-de escrever odes... Tenho o meu Ligurino!

-- Oh! Emílio!

Mas ele entusiasmava-se. Era a única beleza, o efebo, de carnes tenras como as de um Apoio, peito branco e macio como o das virgens impúberes, olhos azuis como águas do golfo de Salamina... Ao menos ali não havia mentira, não existia a porcaria escondida sob a folha de parreira do amor...

Edmundo, enojado, voltava a cara.

-- Pudor? -- dizia Emílio--, mas tu leste o grande Juvenal, o sábio Heródoto, o severo Aristófanes... Tu sabes das bacanais da Hélade, dos Archontes e da Roma a dos Césares... Tu já cantaste mesmo o impudor da carne nuns versos e Heliogábalo...

Tinham parado à porta duma charutaria para comprar cigarros.

-- Impudico és tu que te rojas sob os tacões duma cabocla! Que chegas a esquecer tudo por uma carícia sabida de mulata! Impudico, Edmundo, és tu que atiras fora o teu amor-próprio e a tua dignidade à custa duns beijos.

Mas ele, repugnado, não se deixava convencer.

Deus castigara Sodoma, arrasara Gomorra...

Sim, ele tinha visto os poemas cantando amores, os filósofos alardeando amantes, as deusas baixando do Olímpio para gozar os homens, os Cartagineses adorando Tauit, a divina sensualidade, a Grécia erigindo em Efeso uma estátua de ouro à Tespiana Frinea, entre as dos reis...

Vira Babilónia consagrando o coito e adorando Milita, os sidónios ajoelhando aos pés de Astartea, os moabitas incensando Camos, Cleópatra fazendo estremecer o mundo com o pestanejar dos seus delíquios...

-- Mas era sempre a mulher!

-- E não viste Alexandre ostentando nas campanhas da Ásia libertos como amantes? E Heliogábalo, pontífice do sol, imperador e César, oferecendo o corpo aos machos fortes? O conquistador das Gálias é conquistado por Nicomedes da Bitínia; Horácio inspira-se nas carícias perversas de Lisiscus e chora quando ele morre...

-- Não voltes a cara. Tudo depende do ponto de vista e mais ainda da mise-en-scene, para imaginações como a tua...! A lei universal é a relatividade... Acho mais digna a sociedade numa inversão sexual, que ao menos não destrói o carácter, ao esquecimento a que os homens são às vezes levados nos braços de uma mulher, que se vende ao primeiro que lhe paga bem... Tem cuidado com a tua... A sentimentalidade é estúpida, meu amigo... Assim, tu como os mais, condenas um homem que matou às machadadas num momento de furor, um semelhante, e perdoas ao bedel de um anfiteatro que, a sangue frio, esquarteja o cadáver duma virgem, para distribuir pelos alunos da escola de Medicina as postas sangrentas do corpo estraçalhado à faca e a serrote...

Tinham-se sentado os dois fumando.

Edmundo abria os olhos do espírito sobre o mundo inteiro, e o seu amor crescia desculpado aos seus olhos.

Em silêncio, numa concentração, enquanto o amigo falava de Oscar Wilde e do rei da Baviera, arquitectando grandes frases, semeando insenso e mirra nos períodos, ele abatia sob o vício da contemplação, absorto entre o esmaecido ocaso que as células filtravam em cores fracas numa grande confusão que o embriagava.

Os velhos clássicos corriam ante os seus olhos gázeos as cortinas resplandecentes que encobriam os mistérios de Elêusis e de Ceres, as Lupercaes, as Priápicas, as Flores, as Isíacas, as Bacanais. Salomão tinha 700 mulheres e 300 concubinas, e havia ainda leilões de virgens no Oriente, e haréns e serralhos na Turquia, no Egipto, na Pérsia, em Marrocos, no Indostão! Via o mundo semeado de alcouces e a civilização nojenta andar a quatro patas, ganindo pela boca do marquês de Sade, pelos beiços de Philippe de Gilles; os cardeais rojar no chão as golas dos seus mantos escarlates, e a humanidade miseranda e duas vezes castigada pelo dilúvio e pelo fogo cuspinhar nas leis de Deus, fazendo requintadamente o ideal do sexo no «putant cadam marem ac geminan esse» de Macróbio!

Ele via-se puro e desculpava-se, indigno pela religiosidade do instinto, desta época de andróginas e ginandros, em que a decadência larvada se onanisa sobre as hóstias consagradas, no ofício alienado da Missa Negra, em que o ideal se arrojava para a cabeça loura dos pantoums cantados na poesia simbolista.

E daí, se ele não tivesse encontrado aquela doce mulher que cheirava a felino, terrível e embriagante como um desses perfumes venenosos das MH e Uma Noites, quem sabe aonde o teria levado a sua grande estagnação de sensibilidade, o seu grande desequilíbrio emocional ?

Emílio, com um cinismo rebuscado, fazia descrições, o cigarro ao canto da boca, batendo com a bengala na parede da charutaria.

Foram descendo a rua devagar...

No céu derramavam-se nuvens, num prenúncio de chuva. O sol amortecia.

De repente os dois voltaram-se. A uma varanda da Rua do Espírito Santo um homem chamava-os com grandes gestos.

Tinha morrido a amante de Ramalho de Alencastro, ainda não havia dois dias. Ele refugiado na sua grande dor, os olhos pisados pela insónia, veio recebê-los ao topo das escadas, em chinelos, sem colarinho, um paletot de alpaca aos ombros.

Naquela solidão e infinita tristeza, segurava os amigos, retinha-os a seu lado por uns momentos, num grande desespero de se ver só, entregue toda a memória querida de Celeste, que tinha partido para o mundo de onde não se volta mais.

Fê-los entrar na saleta de redacção do Contemporâneo, um jornal que ia vivendo de ciladas tecidas aos incautos, de elogios vendidos e de intrigas e calúnias políticas inventadas numa sala de casa velha, as paredes carregadas de panóplias setas, flechas, azagaias dos bugres do Amazonas, facas do mato punhais com cabo de osso apanhados no lixo das casas de ferro-velho, carabinas do tempo da revolta e quatro estantes carregadas de livros por abrir uns, e abertos outros, acusando compras nos «cebos». 0 desafio de Bayard, as duas gravuras encaixilhadas, pendiam sobre as portas que davam para o quarto, de cama desfeita, onde arrastavam peças de roupa, num recanto, de mistura com umas saias e caixas de chapéu.

-- Entrem, sentem-se... Para aqui tinha eu mudado quando me separei da Celeste, que tinha ido para a casa da mãe, coitadinha! Já nas últimas, eu não querendo que ela morresse nos meus braços, com medo de enlouquecer... !

Edmundo, espantado -- não sabia de nada!--, falava comovido dando os pêsames.

Alencastro, batendo com os anéis na mesa, contava tudo, o jantar que dera em São Cristovão, a uns amigos, um jantar de fim de ménagem, com que se despedira da casa onde vivera dois anos perto de Celeste. Tinham-se bebido três dúzias de garrafas enquanto ela agonizava na sua doença e na sua vergonha, ao lado da mãe e da irmã, assim enviada para a casa da família, quando já não servia para mais nada, batendo às portas da morte...

E ele, enterrando as mãos nos cabelos curtos, confessava que ela tinha sido o seu único incentivo de trabalho, de honra, de dignidade, de virtude... Tinha morrido!

Ia-se embora daquela cidade que vira de perto a sua felicidade agora enterrada no cemitério, a apodrecer...

Ia-se embora, ia vender tudo...

Edmundo, mudamente, pusera-se a observar aquele amor que escorraçara de casa uma mulher agonizante, imprestável, que atirava sem sentidos para a casa da família, onde a pobre moribunda iria entrar corada de pejo, pedir umas horas de cama e o enterro, pois o homem que dali a arrancara com promessas a mandava agora embora, esse homem por quem a mísera deixara mãe, sossego e virtude.

E à pura e infantil ingenuidade de Edmundo aquilo parecia uma crueldade e uma vilania.

Aquele que se não prende com todo o coração à companheira que se tornou o seu amor, esse, traindo o único sentimento cuja cegueira ainda os poetas e as almas compassivas e fáceis permitem aos homens, o que será ele de falso e impostor para com aqueles que nunca lhe entregaram docilmente entre mãos toda a esperança, todo o carinho, toda a felicidade possível, como essa desgraçada Celeste, que teve de ir mendigar à mãe ultrajada, pela sua doidice desonrosa, o último caldo, o último medicamento, a derradeira morada...

O seu único incentivo de trabalho, de dignidade, de virtude!... E os olhos de Edmundo pesquisavam todo o quarto, desde o estojo de Pravaz e o frasco de cloridrato de morfina e água de louro, com que ele devia ter-lhe muitas vezes adormecido criminosamente os gemidos, até esses restos de seda, esses vestidos de seda que ela nunca mais vestiria, e que ele ia vender, vender tudo...

Emílio, sentado numa poltrona, abrira o Barão de Lavos e enfronhava-se na sua leitura, sem erguer a vista das páginas, o chapéu e a bengala nos joelhos...

Edmundo procurava uma desculpa para sair, mas Alencastro fê-lo entrar no gabinete para tomar uma cerveja, e súbito, entre uma longa fala de saudades pela companheira extinta, lembrou:

-- Queres tu ficar com tudo isto ?

Que não, era impossível, não tinha onde pôr tanto móvel...

-- Vendo-te barato, quero desfazer-me de tudo, de todas estas coisas que constantemente ma lembram, ma trazem viva à memória, tal como ela era em vida...

Vê estas cortinas, Constantinopla verdadeira, sem direito nem avesso, vendo-te pelo custo, trinta mil réis o par com as sanefas e as abraçadeiras...

Edmundo deixava-se fascinar pensando na amante, e numa casa erma, entre folhagens... Deixava-se levar por aquele homem que fazia leilão de todos os vestígios do seu amor, como provas dum crime que lhe acirrassem os remorsos...

Mostrava-lhe a cama, larga, de cerejeira.

-- (Aqui dormiu ela noites felizes, a meu lado, e agonizou aqui longos dias de angústia, sob a minha vigília...

Custa-te cento e cinquenta mil réis; quase de graça...

Colchões de crina vegetal e de arame, travesseiros de paina... Vê lá, vê lá, vendo-te tudo; isto para mim é um martírio...

Edmundo envolvia todos os trastes num grande olhar de cobiça, e Emílio viera juntar-se aos dois, com o seu sorriso frio, detendo num desprezo de toda a vista aquele homem que negociava com móveis como tinha negociado com o corpo da amante, pondo-a na rua quando as despesas de médico e remédios lhe tornavam demasiado caro aquele seu luxo egoísta e interesseiro de ter mulher em casa.

Não havia ainda um mês a pobre mártir arrastara a sua desilusão e desesperança por todas aquelas poltronas, por aquele divã que ele vendia, fazendo o reparo do estofo, com um leiloeiro hábil...

Pobre desgraçada Celeste! Lá da tua cova ainda sem lápide, nesse letargo de pulverização em nada, que agora é a tua vida, a vida do retrocesso a coisa nenhuma, nessa tua vida misteriosa de decomposição, pudesses tu ver, misera mulher, para que serve ainda o teu nome na boca desse homem, por quem tu morreste de certo antes do tempo, antes de te embranquecerem os cabelos, como uma folha que cai da árvore antes de seca!...

Emílio pretextava um negócio, tinha que sair...

Alencastro, arrastando as chinelas, foi acompanhámos ao patamar, desolado, numa compostura de grande mágoa, e Edmundo, em imaginação, entalava-lhe no olhar pisado o monóculo que o tipo sempre usava, e mirava-o assim fantasiado um ser perverso e cínico, que tinha uma pálpebra a escorrer de lágrimas a saudade da companheira perdida e a outra piscando a uma costureira, com todo o descaro de um fadista.

E os dois, Emílio e Edmundo, quando se viram na rua, desandaram apressados, sem uma palavra.

No Largo de S. Francisco pararam para se separar, as mãos dadas.

-- Crês na transmigração das almas?

Emílio, parando de acender o cigarro, asseverou:

-- A de Celeste deve por força transformar-se em verme para roer o coração desse mariola...

-- Fica roubada!

-- A mãe, uma condessa de liga de elástico e unguento nos cabelos, esqueceu-se de pedir ao cocheiro que lhe fizesse um filho mais limpo que eles dois..., e vai a lesma pôs-lhe no ventre um biltre por esquecimento...

-- Até logo, às seis horas, no Pascoal...

E Edmundo já ia longe quando Emílio voltou atrás.

-- 0 que é ?

-- Sabes onde se vende o Barão de Lavos?

Tomou um tílburi, mandou tocar para casa, para o Largo da Segunda Feira.

Precisava de dinheiro para pagar as contas de hotel da Honorina e só se lembrara duma coisa, havia só um meio ao seu alcance; levar ao editor o que estava feito da obra encomendada, pedir um adiantamento com promessa de levar o resto dentro em dias... Aos poucos amigos a quem se poderia dirigir numa emergência tal, apenas a um não devia dinheiro e a esse, fazendo já dois meses que o não via, por nada deste mundo ele se atreveria a falar ainda em favores. Já lhe era devedor de muitos, dos que nunca se pagam.

E o medo de sempre tomava conta dele. Via o olhar perscrutador do livreiro cravar-se no seu pedido, e temia uma recusa, uma desculpa, que a dar-se o levaria a desanimar de todo e a deixar-se morrer desesperado.

E ele estaria em casa? Teria dinheiro de momento, àquela hora?

Sentia que todos os esforços de que se julgava capaz naquele instante acabariam ali.

A um momento dado as moléculas ideais ,as fibras sensitivas e musculares, todo o homem interior, acha-se em tal estado que já existe nele uma tendência surda a praticar um certo e determinado acto; se nada vem parar ou desviar essa tendência depressa os músculos se começam a moer e dá-se então o caso de a simples tendência se transformar em vontade.

O mesmo se dava então com Edmundo no intuito do seu ser moral. Ora, a vontade era nele uma pálida sombra, um vago reflexo que se não impunha, e a desesperança varria de si ao menor sopro.

Há arrazoados e julgamentos como há simples ideias, começam ordinariamente por ser actos produzidos na alma, depois ficam, subsistem, não mais como actos mas como qualquer coisa de material ou como uma força residindo no temperamento, invadindo todo o espírito como a cor invade a retina de um olhar fixo.

Assim em Edmundo, preparado a receber todas as impressões e a gerar todas as forças num ambiente cerebral que as debilitava, as enfraquecia, sem que ele tivesse consciência disso.

Chegou a casa, desanimado. Mandou esperar o tílburi.

Subiu ao quarto, cuja porta estava aberta, e à pressa mudou de roupa. Depois deitou-se na cama, sem saber, sem querer, abandonado por todo aquele poder de vontade meio morto nele, incapaz de gerar um impulso mais do seu ser para realização do desejo.

Quanto tempo ficou ali, olhando as madressilvas da varanda, contando as flores que abriam naquele trecho de grade apercebido pela porta aberta ?

Saiu daquele mundo longínquo e difuso quando uma sombra se recortou à porta e uma voz o chamou.

Era a criada.

-- Mando o carro embora?

-- Não, eu vou sair. Que horas são?

-- Bateram agora mesmo as Trindades... São cinco horas...

-- Meu Deus?

-- Que tem, senhor Edmundo? Está tão acabado, tão amarelo!...

-- Não é nada, é a vida...

Cruzes! Mas para que se havia ele de afligir tanto?

Aquilo fazia-lhe mal!... Ele já era muito doente... Precisava de uma mãe ao lado de si para o cuidar...

-- Não é nada, senhora Maria, é uma questão de dinheiro... apenas... tudo se há-de arranjar.

Ela aproximou-se, as mãos cruzadas no avental, com o seu olhar sereno de céu vergado sobre ele.

-- E é muito... esse dinheiro?

Havia uma carícia maternal naquela pergunta proferida a medo, a meia voz.

-- Não, senhora Maria, não é; tudo se há-de arranjar...

E senão, paciência!...

E essa última palavra quase se desfez num soluço.

A velha parecia absorta, com um sorriso bom nos lábios...

Edmundo levantou-se, foi debruçar-se à varanda, vendo a noite chegar...

A senhora Maria desceu à cozinha, foi à arca de pinho, tirou debaixo da roupa uma caixa de papelão, abriu-a, contou o dinheiro que tinha dentro.

Deixou vinte mil réis na caixa, fechou com todo o cuidado outra vez a arca e foi oferecer a sua pequena fortuna ao seu amo.

Edmundo chorava...

-- Que tem? Não esteja triste, sossegue... Com a ajuda de Deus tudo se há-de remediar.

E tímido, esse anjo que os céus tinham deixado envelhecer na terra, apertava o dinheiro nas mãos trémulas, sem ânimo, com um grande receio de uma recusa...

-- Senhor Edmundo... Se o senhor me fizesse um favor, se me pudesse guardar este dinheiro... São tresentos e quarenta mil réis... se fizesse o favor.

Edmundo olhava-a, espantado... Agarrou-lhe nas mãos para as beijar, àquela santa...!

Ela largou o dinheiro nas mãos dele e deixou-o pousar a cabeça no seu ombros...

-- Meu filho!...

A lua erguia-se na meia sombra do crepúsculo.

No poente ainda havia um grande clarão de forja. Os montes cobertos de folhagem perdiam a nitidez descambando em manchas. Havia um grande silêncio no adormecer da luz aos quatro cantos do horizonte.

A senhora Maria acompanhou Edmundo até ao portão, e na despedida teve uma pergunta: se «ela» era bonita!...

Ele disse que sim com a cabeça, tristemente...

Ao fim da Rua do Hadock Lobo, Edmundo reparou que ainda conservava na mão cerrada o maço de notas.

327Guardou-o, fazendo um grande esforço para não chorar, e disse então ao cocheiro:

-- Toca depressa para o Largo de S. Francisco, precisamos lá estar antes das seis.

Escondeu a cara nas mãos. Via-se perdido fatalmente perdido e para sempre.

Só pensava nela, em nada mais...

O orgulho do macho que se vingava de toda a humilhação do seu organismo, esse orgulho era tão forte que o facto de ter possuído uma mulher, de ter tido dela o corpo e a alma, sentimentos e sensações, satisfazia-os tão completamente que não fazia mais um esforço para reter em equilíbrio as ruínas de seu ser profundo e íntimo, a alma toda voltada para essa derradeira força que lhe restava: a do afecto. O poder de vontade, fria e intelectualmente concebido, apagara-se nele por completo, substituído pelo desejo, que tendia por sua vez ao aniquilamento como as asas de um pássaro tendem ao voo.

Ele sentia bem aquela derrocada interior, e esperava amedrontado, imobilizado, temendo que, ao cabo de uma tal desorganização, a alma, sentindo a jaula sem varões, se arrojasse para fora, fugisse de dentro dele.

Todas as suas moléculas ideais estavam vivendo naquela impressão viva de amor, e daí o desconcerto em que ele se achava sem poder prender-se ao guia do raciocínio.

0 labor da sua cerebração, posto que intenso, tinha sido sempre na mor parte dos casos pouco amplo; a imaginação vinha logo esfumaçá-lo quebrando-o impreterivelmente...

Era assim a modos como um sol entre nuvens dardejando nos nevoeiros matinais de um rio. Quando a luz fúlgida trespassava os cumes das nuvens, a neblina desmaiava e parecia tender a desfazer-se, mas logo o sol sumido, as névoas, sentavam de novo, prendendo-se nas ramarias e vagando suspensas sobre a corrente.

A definição do amor pelo poeta francês parecia ter sido arranjada para ele. A paixão reduzia-lhe o mundo a uma só criatura, o ente amado, e para essa sensação, por ela, ele vivia.

Deixara-se dominar inteiro como um rochedo que se deixa cobrir pelo mar ao encher a maré. E esse mar em crescente despertava-lhe grandes ruídos, como a vaga batendo a fraga, como uns dedos arrepiando a cordagem de uma lira.

Todo o seu íntimo, por todos os seus poros, havia um arrebatamento para a mulher amada, e toda a sua parte emocional, todo o seu poder nervoso e imaginativo, se despenhava para ela, como um bando de pássaros nocturnos que batem as asas em roda dos vidros quentes de um farol aceso na treva...

Tinha paragens completas nas fibras sensitivas, olhava sem ver, perdia até a sua afinada contemplação de tísico, que sempre pousava em todas as perspectivas, numa insistência dolorosa de quem sabe que via fechar os olhos sobre tudo aquilo, um dia não longe.

Esse instinto desesperado de doente recolhera intato aquele sentimento dominante, e era por isso que a revia sempre, essa mulher, como uma Átala selvagem e romântica, vagueando no brenho duma grande floresta virgem, húmida, verde, penumbrosa, repleta do rumor flácido das palmeiras, do deslizar mole das águas entre limos e troncos mortos, do romurejo das asas, do canto dos pássaros, do arrastar das serpentes, no desprendimento das pétalas de parasitas pelos cipós, e o zumbir dos insectos pela grande sombra misteriosa e humedecida.

Toda a sua muda contemplação da natureza se ligara como uma trepadeira a uma coluna, nessa sombra implantada nele...

O misticismo de extático que morara sempre nas suas retinas em frente às matas enormes e imponentes emigrava com o mesmo súbido grau de pasmo e adoração para os olhos negros e molhados de Honorina.

As duas órbitas, aprofundadas sob as pestanas pretas, percorridas de trémulos, como violinos, traziam-Ihe à ideia as florestas adormecidas numa volúpia, romurejando como beijos, densas e impenetráveis, macias, erguendo-se lubricamente no gesto lânguido das palmas e das samambaias enormes, com grandes plumagens que acariciavam os nervos de colosso das pérolas e dos jacarandás, que se empinam das grutas, estendendo os braços como apóstolos a toda a imensa natureza de rojo, caída em espasmo, bêbeda de perfumes, babada de líquenes, enquanto os lagartos e as corais serpeiam sob as folhas verdes e as jararacas dormem entorpecidas no toco dos ipés ou entre as raízes nodosas das jaboticabeiras...

Nela estava toda a natureza dos trópicos, languindo de odores, misteriosa como um precipício, indesvendável como um dogma... Ela era o pássaro cardinal da floresta virgem, e a sua alma batia asas ao seu lado, no denso coração da mata, onde ressoavam as onças ao luar, esperando as pacas que desciam ao rio...

Flexível como a palmeira, sinistra como a sombra das florestas, meiga como as jurutis, delirante como os perfumes das álceas, de voz doce, uma doçura em que havia plangências, como o escorrer das águas sob as abóbadas de verdura, ela arrastava em si todos os encantos da natureza americana, como uma deusa de amor nascida numa gruta, como a Vénus da Grécia que nascera das espumas do mar.

Edmundo, de olhos abertos, nada via em redor senão sombras bambas, numa deliquescência de meia tinta, com luzes trémulas boiando à superfície. Eram as ruas, as praças, os lampeões e revérberos já acesos -- golfando oiros falsos na meia treva, envolvendo em clarões bruxuleantes a fachada da Estação Central, onde resplandeciam no alto, como dois olhos de gato apocalíptico, os focos cor de fósforo da luz eléctrica.

As casas, em postura imóvel, paravam na semiluz crepuscular, e atrás os arvoredos do Parque da Aclamação, entre as unhas finas e verde-negras dos pinheiros, uns sangues rubros espaireciam ainda os céus, num último ganido à agonia do sol.

Tudo se esfarrapava na sombra, vultos caminhavam no chão, eram os homens, e vultos trepavam aos ares, na meia tinta crepuscular, sem forma, perdendo os contornos na obscuridade..., eram as torres, as obras dos homens...

Breve o tílburi, levado a galope, passou o Largo do Rossio numa corrida, e veio parar em S. Francisco.

Edmundo pagou e desceu.

No Pascoal, Emílio, sentado a uma mesa, sozinho, bebia absinto...

Largaram-se as mãos...

-- Ainda não encontrei o Barão de Lavos! Não se lê, nesta terra sem livrarias!...

-- Espera-me um pouco, vou ao Garnir, a ver se têm... Tu espera-me, fica olhando as fêmeas... A Louise perguntou por ti, vai falar-lhe...

Edmundo atirou a vista distraída por toda a sala, de mesa em mesa, cumprimentando conhecidos.

Encostado a um espelho, fumando um cigarro turco, olhando a Sara, que bebia um vermute com a Rizza, Leão Absali estava com dois literatos, agarrados a ele por uma grande curiosidade daquele tédio de maquereau, com gestos cansados, os olhos amortecidos pelas vigílias do jogo e do ofício...

Arredou a vista, com um nojo súbito na garganta, ante aquele homem que o fizera sofrer tão desesperadamente, e subiu para a porta à espera do amigo.

-- Vamos, sim, são horas...

E num desalento, tomando as mãos a Edmundo:

-- Não encontro; decididamente, não há livrarias nesta terra, ninguém lê... -- E baixando a voz: -- A pederastia morre à falta de incentivos! E é pena...

Honorina esperava-os, vestida, com três botões de rosa no peito do vestido de seda furta-cor, um pente de diamantes na noite profunda dos cabelos...

Jantaram, e Emílio foi embora cedo, inquieto, lembrando-lhe uma livraria talvez ainda aberta onde pudesse comprar o Barão de Lavos.

Os dois sozinhos, debruçaram-se na janela, vendo passar gente, encostando as cabeças como dois pássaros no ninho.

Um canto de bêbedo vinha do fundo da Rua do Senado, de entre a escuridão apenas apartada de espaço a espaço pela luz lívida que escorria dos candeeiros.

A voz rouca rolava uma cantiga deturpada canalhamente na taberna, e com a qual o homem saíra para a rua. Às vezes parava, e logo no silêncio acordavam as palavras...

Ai! compadre, chegadinho faz, faz... Ai! comadre, devagarinho faz, faz...

A gente que passava por ele afastava-se do passeio, e a sombra cambaleante aproximava-se àquele vulto descrevendo ziguezagues, rente às casas, tropeçando nas juntas das pedras, bambeando as mãos, de dedos abertos, um chapéu roto atirado para a nuca...

Ai! comadre, mais um bocadinho faz, faz... Ai! comadre, mais devagarinho faz, faz...

O bêbedo passava agora debaixo da janela, remoendo o estribilho da cantiga obscena, e parecia um cego andando às apalpadelas, a cabeça caída, a camisa desapertada, manchada de vinho, os joelhos dobrados como se fossem ajoelhar...

Parou encostado a uma porta, e agora era uma melopeia triste que ele cantarolava, com a sua voz de falsete, lúgubre a avinhada, numa cadência pungente que dava lágrimas.

Eu tinha um filho, Morreu... Tinha também um amor, Morreu... Ai! quem me dera o meu filho, Quem me dera o meu amor...

Apalpava as paredes com as mãos trémulas, a cabeça derreada entre os ombros.

Então o vulto dum polícia dobrou a esquina, encaminhou-se direito a ele.

O pobre homem estremeceu sentindo a mão pesada agarrar-lhe num braço. Fitou o polícia com um olhar idiota...

-- Vamos, marche para o xadrez.

E a voz rouca com soluços desfez-se em palavras...

Tinha-lhe morrido o filho ao meio-dia, ainda estava por enterrar, em cima da cómoda, entre dois círios...

Deixasse-o ir para casa, para perto do filho... Chorava, com o chapéu na mão, encostando-se à parede para não cair.

Por amor de Deus! Não o levasse, tinha o filho morto em casa... Entrara numa taberna para beber...

Não podia mais... deixasse-o ir embora... Falava da mulher à espera dele, e gaguejava, sem tino, estropeando as palavras...

O polícia, com frases brutais, levou-o aos encontrões, e o grupo sinistro dobrou a esquina, a aranha levando a mosca perdida... Honorina pendia a cabeça sobre o ombro de Edmundo, invadida de tristeza...

Assim, esse pobre homem que tinha ido buscar o esquecimento numa medida de aguardente, esse pobre homem, talvez um operário honesto, simples, bom, com um filhinho morto em casa e uma mulher desolada a chorar sobre o fruto das suas entranhas, ia para a cadeia, embriagado...

Mais do que nunca Edmundo compreendeu a inexorabilidade dos destinos que os homens se haviam a si próprios preparado, e o seu terrível desprezo pelo mundo invadia-o, subindo-lhe à garganta. O mundo! 0 mundo!...

Um grande desejo de amor e esquecimento penetrou-o, tomou conta dele, e deixando a janela aberta ao morno quarto crescente que escorria dos altos céus penumbrosos e sem astros, ele foi levando a amante para entre os cortinados... Desapertou-a, arrancou-lhe o espartilho, descalçou-a, e envolvendo-a, toda, a camisa aberta, agarrando-lhe a cabeça com as mãos trémulas e febris, foi beijando-a mudamente apertando-a a si, escondendo-se entre os cabelos dela, sentindo-a arfar como uma onda sob as suas carícias doidas...

Honorina abandonava-se, os braços suspensos ao seu pescoço, ferrando-lhe os beiços, os olhos num delírio, o corpo estorcido, fremente de se sentir trespassado...

O bico de gás, flambando no globo cor-de-rosa, inundava-os de uma luz coada de mistério, em que os beijos voavam, numa vaga de fluido emocional que ali rolava de alma a alma numa canturbadora volúpia de espasmo...

Os seios crispados arfando altos, rompendo das rendas, subiam e desciam como se a carne soluçasse de gozo, e todo o seu corpo, arqueando-se como o dorso duma gata, torcia-se, todo possuído, os dedos dos pés numa crispação, as mãos trémulas batendo no lençol, as narinas abertas, os quadris bamboleantes, a boca semiaberta num arepio em que havia sorvos como os calafrios de uma corda de violoncelo roçada levemente pela seda do arco, como uma destas arcadas «frisonantes», em que geme a sua alma, numa desfalência de sonho, num chio de angústia humana que se parte.

Edmundo, desprendendo-se daquelas mãos que o palpavam, o enlaçavam, abertas e trementes como asas, foi-lhe beijando todo o corpo; e ela, sabida naqueles segredos perversos de amor, batia as pálpebras, toda sacudida, gemendo surdamente, abraçando-o com as pernas, toda moribunda desde os cabelos às unhas dos pés, os dentes cerrados, esfarrapando palavras de amor, perdidas, os olhos em alvo, esgaçando a seda da camisa, agitada de sobressaltos, até rolar com a cabeça do travesseiro e ficar abatida, prostrada, como uma morta, as pálpebras descidas, os beiços secos presos à humidade dos lábios dele...

Ela foi-se lavar daí a tempos, apagou o gás, fechou as janelas, e veio cair de novo na cama, toda perfumada, numa sonolência, respirando alto, chegando-se ainda a ele, com uma tremura nos braços, estirados, e um grande calor, por toda a carne.

Estiveram assim por muito tempo, sem poder dormir, os olhos fechados, sentindo-se acordados, perdidos nessas tristezas que sobrevêm ao saciamento dos desejos...

E ele foi o primeiro a falar, lentamente, duma vida a sós, numa casa pequena, num arrabalde, entre sombras de magnólias e mimosas, com um jardim cheio de rosas, todo atapetado de amores-perfeitos.

Como devia ser bom sepultar assim entre quatro paredes o seu grande amor voluptuoso, lúbrico...

Tinha ciúmes dela, largada naquele hotel onde entravam homens... O que daria por tê-la só dele, vivendo ao seu lado, toda satisfeita das suas carícias e dos seus beijos... Se ela quisesse... Sim, ela queria...

A boa vida que os dois levariam, acordando cedo para ir apanhar as rosas abertas durante a noite, almoçando perto da janela, vendo os campos, olhando a estrada e os grandes montes cobertos de árvores...

Eram mil projectos que faziam, ela agarrada ao seu pescoço, fascinando-o, embriagando-o com essa miragem de vida feliz, quieta, toda de paixão e delírio, longe do mundo e dos homens...

Ela é que havia de cozinhar... Sabia todos os segredos da cozinha... Em casa, nos bons tempos pobres de família e de virgindade, era ela quem fazia a comida...

Deitavam cálculos, podiam viver muito barato, com uns quinhentos mil réis por mês...

Edmundo não via impossíveis, parecia-lhe tudo aquilo muito fácil de realizar, desde que era ela que queria...

Acenderam a vela, sentados na cama, as mãos dadas...

E a pobre criança, largada tão cedo da família, gozava aquela perspectiva feliz de ménage, numa nostalgia vaga da amorosa quentura do lar, de que ele estava apartado há tanto tempo. E deixava-se embalar àquela ideia inesperada que lhe acariciava o instinto secreto e vivo, entretanto da amizade e do conforto, aquela vida passada ao lado de umas saias...

Trabalharia com vontade, então, escrevendo enquanto ela cosia à máquina ou compunha um ramo de cravos nas jarras do aparador...

Era já uma hora da noite no relógio pequeno da cabeceira...

-- Estou com fome!... Se nós comêssemos alguma coisa ?

Edmundo foi acordar o criado... Para trazer uns frios e vinho do Porto, ameixas secas e passas...

E em camisa, os pés enfiados nas chinelas, os dois sentaram-se à mesa, comendo o frango com as mãos, numa alegria doida, bebendo pelo mesmo copo, tirando as passas do mesmo cacho...

Ela, numa confiança instintiva, contava toda a sua vida de desgraça... O pai morto com dois tiros de garrucha, numa estrada, ela casada com um vendeiro, fugindo-lhe para se entregar a um saltimbanco, um acrobata da companhia do Albano Pereira, que a ensinou a andar a cavalo, a saltar os arcos de papel, de cima do palafrém ajaezado, com plumas na cabeça e as crinas entrançadas com fitas de seda cor-de-rosa.

E a sua beleza selvagem, cheia de insolências altivas no porte e no olhar, com a sua cabeleira lisa e negra, torcida em grandes mechas revoltas em cima do oval afilado e suave do seu rosto moreno, onde se desenhava um tipo bárbaro e lúbrico de indiana, triunfou no circo, do dorso dos cavalos, com a saia de gaze e o corpete decotado mostrando a raiz dos peitos e os braços torneados, como fundidos em bronze.

Os seus olhos, em que havia negras claridades eléctricas, pensativos e tenebrosos, depressa desprezaram o saltimbanco para se entregarem abatidos e humildes ao hércules da companhia, um louro e de carnes brancas, que a enchia de pancada todas as noites.

E a sua graça maldita, a sua beleza bizarra, assim chicoteadas dia a dia, resplandeciam orgulhosas no circo, quando ela de pé nas ancas do cavalo fazendo sibilar a cravache, as mãos estiradas, envolta num nevoeiro branco de luz eléctrica, gritava: «Eh! Salero!

Hip! Hip!», e atirava-se por entre o papel de seda dos arcos, dominando em todos os corações, sorrindo ao amante, levada ao galope furioso do «Salero», que trinia branco de espuma...

Edmundo revia-a nesse tempo, nova e maldosamente bela, apertada no maillot de seda cor de carne, balouçando suspensa nos trapézios, atraindo todos os olhares, infernal e lúbrica como um demónio, toda possessa de filtros, feiticeiros, pendida pelas juntas dos joelhos nas cordas aos balanços, como um pássaro morto num galho de árvore... Depois, pendurada pelos braços na barra, rodopiava em volta, vertiginosamente, os cabelos desfeitos, e parava num suave langor de todo o corpo, flutuando suspensa, num ritmo cadenciado, batendo as pestanas...

Honorina, toda entregue àquelas lembranças, ficava triste, sem falar...

Toda a sua alma bárbara e incompreendida desejara ter um filho, um ser que ela amasse com todas as forças das entranhas de onde tivesse saído... Depois, caindo de braço em braço, desiludida, sem nunca ter sentido amor, e sempre escaldante de desejos como um inferno de carne, deixara-se ir naquela vida inundada para todo o sempre de uma misteriosa tristeza, onde viviam desejos impossíveis, os olhos cada vez mais sombrios, mais profundos, passando a mocidade a satisfazer os caprichos dos homens, entregando o corpo sem nunca ter entregue o coração, ciumenta às vezes, por instinto de fêmea vaidosa, má, gozando das paixões que despertavam os seus olhares trémulos e negros como lagoas durante a noite, sentindo pouco a pouco acabar a sua beleza, agonizarem os seus desejos de animal novo, o coração batendo sempre, mais apressadamente dia a dia, debatendo-se numa ânsia incontestável, e já ferrado pela boca de um aneurisma que lhe tinha vindo pelas noites de circo, quando ela revolteava no trapézio, a cabeça no vácuo, os braços batendo os ares como grandes envergaduras de asas depenadas...

Edmundo pegava-lhe nas mãos enternecido, a alma toda entregue àquela mulher...

-- Como eu te amo! Se tu soubesses...

Ela era sincera, confessava tudo: nunca amara ninguém... Sentia-se má, um desejo de ser cruel sempre aceso dentro de si... Não, ela não o amava ainda...

E Honorina fitava dolorosamente a pobre criança que lhe beijava as mãos, invadida subitamente de uma grande piedade, sentindo-se dominada naquela alma quase angélica de sofredor, compreendendo-o enfim, e impelida entretanto por um desejo imenso de lhe fazer mal, de o perseguir implacavelmente de amargura, tornando-se cúmplice do destino, vingando-se dos homens naquele ser ajoelhado contemplativamente aos seus pés.

Acudia-lhe uma sede perversa de o fazer para sempre desgraçado, desviando-se da sua vida, deixando-o despenhar-se na fatalidade injusta e crudelíssima da sua má sorte, da sua má sina.

Aos olhos daquela mulher, essa criança atirada a seus pés estava à sua mercê...

Então, como ele a arrastasse para a cama, Honorina desviou-se, embrulhando-se nos lençóis, escondendo-se ao fundo das travesseiras.

-- Dorme, benzinho, apaga a vela...

Edmundo viu-a adormecer sossegada, e como na véspera, sem saber porquê, sentiu uma grande vontade de chorar...

XV

Passados aqueles dois dias de febre, cravou-lhe dentes no desalento uma ideia má, a persegui-lo como uma mosca vareja. Era aquela carta, lida a meio, esquecida durante horas e relembrando-lhe agora a paixão da mulata por um rapaz sem vintém, um tipo dengue, de pastinhas, a ver pelo estilo, de quem ela não quisera um só real por uma dúzia de noites levadas a dar de alma por entre pernas. E a pensar nele nascia-lhe uma raiva surda, ciúme baixo, de cocheiro, vendo-o apelintrado, com mulher de graça e sentimentalidade no falar, oferecendo a casa à fêmea, com frases de romance barato, dando vestidos de chita e sapatos de liga àquela mulher, que parecia só estar bem dentro de sedas e veludos, encharcada de perfumes, sonhando com jóias.

Para ele, Honorina tinha um ar quebrado de voluptuosa, esquisita e bizarra, e o seu corpo mole de cobra, todo calor, macieza e nervos, pedia requintes, luxo, uma vida de harém, com escravas aos pés.

E um azeiteiro pudera-se prender, fazer-se desejado, na sua vulgaridade de D. Juan de lacinho verde e crorilopse no lenço. O que ele, Edmundo, nunca obtivera dela, um amor desinteressado e brando, passivo e por gosto, um outro já lho possuíra, na sua ausência, com uma grande felicidade de idílio piegas, dengue, de beijos lorpas e os «eu ti amo, negra» da adoração a cinco mil réis por hora.

Consigo, nem um instante só lhe dera desse amor de costureira, cheio de recatos, de prazeres trocados sem custo, naturalmente, como a paixão simples das rolas.

E era justamente numa vida assim, sem balouços, sossegada e mansa como um pequeno rio, que Honorina devia ser gostosa de tragar, langorosa, adormecida, de olhar quase morto de estagnado e tranquilo. Todos os seus nervos de gata raivosa de sete bofes deviam serenar apaziguados, como uma gibóia embebedada de ópio, emolecida entre cobertores...

Assim, enquanto ele sofria lá fora, crivado de saudades, leprento de dores, ela, para esquecer, matar saudades, desafogada enfim, livre daquele martírio inútil e idiota, sofrido dois meses à sua beira, chegara-se mansa e soluçante de lasciva a um homem que a possuíra tranquilo, como a uma cabra meiga e voluptuosa, sempre a balar de luxúria.

E era de vê-la então, com o seu sossego de mulher contentada, vivendo sem ruído, sem nervos, sem impaciência, sem delírios, com um homem simples e ignorante como ela, aceitando-a fácil e morna, sem se esbaforir nem desesperar, ajudando-a a levar a canga, como o boi ao lado de uma vaca.

Edmundo percebia bem aquele homem cruzado por azar na sua vida, uma criatura comum, sem nome, sem feitio, morando numa cidadezinha de Minas, de todo só, cantando ao violão as lamúrias bezuntadas da roça, olhos erguidos ao céu, gemendo o «E ai meu bem, sinhá, meu bem...», todo saudoso dessa quinzena de corte em que se lhe abriram uns lençóis alvos e perfumados, com uma mulherzinha lânguida e húmida como um jasmim do Cabo a pontos de emurchecer.

Via-o em frente aos olhos, besta e de lábios grossos, escrevendo à mulata num dia de saudades, convidando-a a compartilhar a sua cama banal de solteiro e os magros trezentos mil réis do ordenado. Sentia-o bem, advinhava-o, a esse homem que se deitara tantas vezes na mesma cama em que ele já sofrera e gozara tanto, rolando a cabeça na mesma travesseira em que ele encostara a sua, tão alvoroçada de ideias tristes, desesperantes, alucinadas...

Odiava-o por instinto, e torcia-se de raiva ao ver que os outros se aproximavam daquela mulher sem perigo e sem frémitos, enquanto ele a não podia ver sem paixão e temor, assombrado pelo seu olhar de maga fatal e o seu sorriso acre de moléstia. Era talvez porque os outros nunca tinham arrancado àquele corpo esses segredos escondidos ao fundo de todas as almas, esse mistério agachado ao fundo de cada criatura, que leva a mulher da roça, rústica e branca, a atirar-se de cabeça numa gruta, por causa de um tropeiro, ou de uma treva ponteada ao violão, e arrasta um negro, guardador de porcos, a torcer o pescoço da mulher, como a uma galinha, por ciúmes, pela honra...

Edmundo acordara naquele temperamento lúbrico e sobreexcitado a histeria sonolenta que aninhava a um canto dessa mulher.

Os seus desejos impossíveis, todo o devaneio do seu pessimismo de doente, pegara nevrose àquela organização doentia e insatisfeita. As lágrimas, os olhos que cavam ao fundo da alma os sonhos contados boca a boca, os desfalecimentos de todo o seu ser esgotado noutro corpo, a vida agitada, aos solavancos, passada entre um céu de beijos e uma estrumeira de insultos, toda de atritos, de descontentamentos, bocejos, horas em que se viviam anos e dias em que se assassinavam vidas, esses tempos atrozes levados a arranharem-se, tinha-os deixado a ambos feitos frangalhos, nus, frente a frente, conhecendo-se bem no íntimo e odiando-se por isso, não podendo dissimular um sorriso sem que a hipocrisia passasse desapercebida, advinhando-se pela vista, sondando-se até às entranhas, ambos criminosos, de mãos a abanar, sem esperanças, sem ilusões, sem amor, algemados por isso mesmo, sem forças para despedaçar as cadeias e estremecendo-as afinal sem ter outro remédio, para se aguentarem ao lado um do outro, assim como faziam.

Para ela, fora um alívio a separação, e gozara feliz, de ventas abertas, como um animal do campo, aquele amor sem esforço e sem dificuldade, que um rapaz de Juiz de Fora lhe oferecera de passagem na Corte.

Sendo a histeria uma loucura da sensibilidade, a vida compartilhada com Edmundo era uma irritação, uma provocação constante, um álcool, para a sua cabeça mal segura. A impressionabilidade nervosa a que a sujeitava sem descanso, aquela afeição predominante, exasperava-lhe a natureza débil de anémica, trazendo-lhe fatalmente para o corpo uma volubilidade de humor, uma ansiedade, melancolias sem causa, impulsos irresistíveis, agitações, furores uterinos, uma desorganização tremenda, que fazia da caipira uma esfinge mórbida, hoje irascível e meiga, amanhã um enigma de cólera e alegria sem motivo, um espírito da disputa e chicana, de indecisões, de inconstâncias, perversa e carinhosa, rude e meiga, obstinada e caprichosa, insuportável e daninha.

O regime tónico da vida de paz podre em que caíra logo adormecera pouco a pouco a irascibilidade do génio. A calma curara a doença, desperta à contradança de seis semanas intoleráveis de uma vida atribulada de emoções.

À falta de sangue, chupado pela anemia, o sistema nervoso, chicoteado por uma dúzia de anos de vida airada, tinha dominado. E dessa vida, recolhida ao quarto, com saídas para a sala asfixiante dos teatros, dos bailes, a obrigação imposta de se criar diariamente momentos de excitação lúbrica, o estômago estragando se aos poucos de ceia em ceia, o sangue enfraquecendo de noite a noite, gasto em espasmos, em vigílias, em perfumes, dessa vida, rebentara, viçosa, estranha, venenosa e terrível como as flores dos trópicos, essa flor bizarra da nevrose, que nessa cabocla nascida à toa, num catre de roça e crescida na terra, ao sol, podia parecer um devaneio.

E daí, a pardinha nascera nevropata como toda a fêmea, sujeita às influências da lua e das trovoadas.

Edmundo, por seu lado, passando na vida como um estrangeiro, fora contagiado pela melancolia, a dolorosa nevrose do espírito, caracterizada por um delírio triste, depressivo, com ideias persistentes de desesperança e temor. Aquela amargosa lesão das faculdades morais afectivas, excitada sem cessar por golpes repetidos, preparada desde criança pela educação religiosa, irritada depois pelo instinto poético de ser difuso, fantasista, sonhador, o abandono em que o largara a precoce separação da família, e por último, como golpe de massa, aquele amor de desgraça, deixara-o inconsciente, irresponsável, amarrando-o com tudo o que lhe restava a uma só ideia, a uma ideia fixa, fora à qual tudo era impossível, fumo, areia, impalpável, vertiginoso.

A sua personalidade moral, irregular, estranha, bizarra e extravagante, sempre toldada de dúvida ou arrastada irresistivelmente pela monomania, difundia-se, enevoava-se, transparente e impalpável como uma neblina.

Aquele eterno ruminar de um problema psicológico, procurando razões, tentando demonstrar opiniões, pensando em Deus, na eternidade, na morte, três problemas a solver e sempre presentes ao seu espírito de vago, uma súcia de teoremas absurdos, a cansá-lo, exigindo, persistentes, uma demonstração de axioma, tudo fazia dele, desse adorável tipo de melancólico, um desequilibrado e um irresponsável, perigoso a si mais do que aos outros.

A tísica, acima de tudo, cravara as garras naquele estado penoso de morbidez.

Era triste porque sofria dessa cruel doença da tristeza. Só a meiguice de uma noiva ou mãe lhe poderia suavizar tanta dor. À pobre criança enferma, o mundo só oferecia venenos, escondendo-lhe os remédios. Seria preciso criar-lhe um trabalho material, com preocupações intelectuais moderadas, evitar-lhe a vigília, que enerva e abate, entregar ao sono umas dez horas tranquilas, calmas. Era-lhe necessário viver ao ar livre, endurecer-se ao frio e fazer-se um novo organismo, em que o sangue predominasse, derrotando o poder absoluto dos nervos, e afastar-se o mais possível das excitações sexuais, abusivas, evitar na leitura tudo o que melancoliza a vida, não abrir as páginas desta desesperante literatura moderna analista de chagas, dissecadora de podridões e fetos. Era-lhe necessária a tranquilidade idílica do campo, onde só há árvores, regatos, pássaros e sol, e onde as mulheres só nascem para cantar e serem mães. Precisava de fazer-se inteiro, varrendo a anemia, que é o alicerce firme da nevrose, e readquirir um sangue forte, alimentado a ferro, a magnézia e quinquina, por um regime tónico, uma vida severa, banhos de cachoeira ao levantar da cama, passeios a cavalo, e para distrair, ocupar o espírito, um namorico de roça, muito simples, muito platónico, quando muito com um ou outro beijo às escondidas e serenatas de sanfona nas noites de luar.

Ao contrário de tudo isso, Edmundo levava uma vida agitada, aos tropeços, difícil e crivada de ratoeiras, preso entre cinco ruas de uma cidade quente, epidémica, em que as carroças do lixo atravessam às nove horas da manhã uma cidade empestada de vício, que choca lassidão e preguiça, uma capital infestada de meretrizes, e em que os teatros só representam peças em que há pernas nuas e maxixes.

Tudo concorria para acirrar a sua moléstia, alentada ainda naquele organismo depauperado pela tuberculose.

Os dois, tanto Honorina como ele, eram criaturas de fim de raça, destas que são de comum o último galho de uma família.

Aonde iria parar aquilo tudo?

Honorina sentia falta dele, vendo-se de novo só, esperava-o, ansiada por continuar uma vida medonha de violenta, mas que amarra as criaturas, como um par de cachorros vadios que se procuram, para roçar a lepra e consolarem-se com a sua igualdade de infortúnio.

Isolada, fechada em casa, gastando os últimos vinténs, descendo a dever as contas do hotel e pedir emprestado até mesmo aos criados, adormecendo só, sem ninguém para se agarrar, numa vaguez que lhe espicaçava saudades, Honorina tinha horas de uma nostalgia funda, em que arranjava as malas para partir, desesperando de poder encontrar de novo aqueles dias de êxtases e agonia, com febres de paixão e minutos de ódio, pendurada a uns braços que a estremeciam, que a não repeliam nunca, sustendo-lhe os delíquios e as raivas, amparando-lhe a vida, como um berço em que ela se podia estorcer, espernear à vontade, sem susto.

Sentia, enorme, encarcerando-a, a separá-la do mundo inexoravelmente, essa doença funda de toda a alma, o sentimento vivo, áspero, da solidão.

Via-se sozinha, como se achara sempre, mas agora via com os olhos mais de susto, com medo de enfrentar o futuro agoirento, assim só e sem forças. Ninguém a que contar o seu padecimento, os seus desejos, essa ânsia que marulhava lá dentro do peito, como um redemoinho de água num escoadoiro.

Tinha que se calar, imobilizando o mal-estar que a triturava penosamente, sem parar um instante, bem no fundo, e lhe erguia a alma em ondas ansiadas, como as vagas do mar, que levam toda a vida a ameaçar os céus.

Quantas vezes na cama, ao erguer-se, de manhã, não recaía entre a roupa, olhando longe, de braços cruzados na cabeça, rendida por um alquebramento de lagoa morta, sozinha entre as quatro paredes de um quarto, sem família, sem amigas, sem ninguém, a sós consigo mesma, espiando o descalabro de todo o seu ser, gastos aos poucos debaixo do prazer dos machos, que lhe fossavam o corpo para lhe tirar um gozo!...

Pensava nele então, lastimando a perca dos dias de raiva e de luxúria, compartilhados, com horas em que as mãos acariciavam e outras em que as unhas, nos dedos crispados, ansiavam por enterrar-se nas carnes, encharcar-se no sangue.

Ao menos, nesse viver abominável, trancado de dúvidas a cada passo, de desconfianças, nojos, repulsas, desdéns e arrebatamentos dos sentidos, com noites de amor e de fogo depois de dias de quesílias e insolências, os abraços no escuro, em que os braços ao estenderem-se para o pescoço do amante encontravam de caminho os braços de Edmundo a procurar o enlace dos seus ombros, noites em que eles eram todos um do outro, e ela má, pérfida, dominadora e escarninha, se entregava desfalecida, sincera, humilde e apaixonada, gemendo, estreitando-o, oferecendo-lhe o ventre, fazendo-se gostosa, agradecendo-lhe com o olhar torvo de lascívia e dando-lhe a boca para ele chupar, para ele humedecer a sua, e puchando a camisa para cima dos seios, para lhos oferecer à vista, retesos, empinados, com os bicos duros, para lhe dar a perceber que a possuía inteira, que a devassava toda por dentro, ejaculando-lhe tremores em todo o corpo, roçando-lhe a alma, fazendo-lhe arquejar o seio, arfar o ventre, bater as pálpebras e arrefecer a espinha, essas noites infernais que lhe povoavam os sonhos e a apoquentavam de desejos, ao menos esse viver terrível de outrora prendia-a, iludia-a, tinha-a sempre alvoroçada, roubando-lhe o marasmo lancinante em que se sentia enterrada até aos olhos.

Dera em pensar continuamente em Edmundo, imaginando mil coisas, consolando-se com a ideia de que ele também devia padecer e ter saudades.

Esperava sempre a sua volta, qualquer noite, a desoras, chegando atiçado de desejos, perseguido pela nostalgia dos dias felizes.

Adoentada, ansiada, com formigueiros na carne, palpitações, vontades súbitas de vomitar, arrastava os dias, melancólica e abatida. Erguia-se com um mal-estar indefinível, o ventre dolorido. Depois, o vazio do estômago dava-lhe uma aplição e parecia-lhe que uma bola trepava dos intestinos à garganta. Sentia constantes ruídos e silvos nos ouvidos, uma opressão no peito, dores nas fontes e no alto da cabeça, como se lhe enterrassem um prego. À tarde vinham-lhe as dores de dentes, e nunca a deixavam as nevralgias. Um fastio enorme levava-a à mesa sem quase tocar nos pratos, inventando comidas apimentadas, iguarias feitas por ela, que acabava também por desdenhar, mal as provando.

Via-se obrigada a coçar-se, arreitada, alta noite, com cócegas entre os lábios da vagina, uma comichão entre as pernas, que só acabava alagada.

Uma noite fora bater à porta de um quarto onde dormia um homem, que a olhava sempre com luxúria; mas logo, arrependida, voltara a deitar-se.

A solidão murava-a, trancando-a dentro em si, abatendo-a partida de desespero, inútil, insensível, fraca, sem domínio e sem jugo, largada de lado, arredada de todos, e ia então pelos quartos das companheiras, enrolando cigarros, entontecendo-se de fumo, com resoluções bruscas de falar, despejar a alma naquelas criaturas iguais a ela, desgraçadas com certeza, mas como elas fingidas, preparando o rosto com um sorriso falso, como se nos frascos do toucador, entre o carmim, o pó-de-arroz, o lápis das sobrancelhas, o azul das pálpebras e águas de toilette, guardassem também uma droga de feiticeira para mascarar o vestígio da alma.

E a mulata parava, olhando-as baixas e reles, alegres na sua infâmia, pousando-lhe a vista clara e vazia, num sossego e numa paz de criaturas puras.

Umas tinham vindo de longe, talvez acoçadas pela fome, pela miséria, fugidas de casa para vender o corpo.

Todas elas, assim caídas, tinham no passado um drama tenebroso, que só os grandes ventos derrubam as árvores e só as grandes desgraças abatem as mulheres. Mal sabe Deus por onde já tinham rolado aqueles corpos de mercenárias alegres e por que transes aqueles pobres seres desprezíveis haviam passado na vida!... E essas chagas horríveis tinham fechado, recolhido como cancros sifilíticos, sem deixar vestígios. Os antigos farrapos convertiam-se em sedas, e a miséria acabava ali onde nasce a humilhação.

Muitas eram talvez criadas, que tinham lavado pênicos e dado de comer aos porcos, outras filhas de assassinos, de criminosos presos nas cadeias, ou galés, deportados nos presídios, restos de famílias dispersas pela fatalidade, semeando o mundo, sem um apego, sem mãe, sem pai, sem ninguém.

Honorina fitava-as, trémula, tentanto em vão surpreender-lhes o grande inferno que ardia dentro delas, advinhando-as desesperadas e cravadas de chagas, vendo-as reles, caminhando descuidosas para a Santa Casa e para a vala comum do Caju, disfarçando a sua amedrontada miragem do futuro, sem pensar na velhice, sem economias, estouvadas e contentes como pássaros, tirando fumaças do cigarro-turco, falando dos amantes, dos homens, dos vestidos, das costureiras, das contas por pagar...

-- Aquele sacana de ontem deu-me só vinte mil réis...

E a Zita do lado, com o seu ar de patrona, atalhava à queixosa:

-- Bem bom, filha, muitos não pagam...

Nesses cenáculos de fêmeas chama-se a tudo pelos nomes, naturalmente. Mostram-se os defeitos, erguem-se as saias para mostrar as pernas e abrem-se os corpetes para gabar os peitos.

A Madalena tinha os bicos cor-de-rosa...

-- Olhai que lindeza...

Logo a Zita golfava do peignoir os seios de vaca leiteira, enormes, moles, de um branco pálido, cansado, com veias azuis, fartos e caídos, de pontas cinzentas, cor de charuto, alargando na brancura de marfim velho duas manchas redondas e enrugadas.

Honorina olhava tristemente aquilo tudo, deixando-se desapertar, mostrando também as suas carnes quentes e douradas de moça.

Jogava-se o monte, o sete-e-meio, o víspora, sentadas as parceiras na cama desfeita, cheirosas de perfumes mornos, murchos, de verbena e amor, de suor e águas de toilette.

Ainda a mulata pensara, para se entreter, chegar-se à mais nova, cantá-la para o prazer como passatempo, para matar as horas, mas via-as gastas, velhas, com carnes flácidas, e corrimentos de flores brancas, imprestáveis, incapazes de um momento de ardor, um delírio de gozo, uma bebedeira dos sentidos, e o seu grande e admirável instinto de lúbrica, o seu sangue de cabocla, fremente, os seus nervos de mulher nova, irritantes, desdenhavam esses restos de mulheres, débeis e fatigadas, cheirando a chulé e opoponax.

Lembrava-se da Emília, dando-se toda ardente, curvando a espinha sob os seus beijos furiosos, e assim longe, com o pensamento ao largo, sentia-se humedecer, pensando na boca cor-de-rosa da amiga, viva e perfumada como um gomo de laranja, colada ao cálice rubro do seu grande lírio negro, chupando-a como uma abelha sedenta, de gatinhas, roçando-lhe o clítoris com a língua seca...

Olhava-as todas uma por uma, notando-lhes os defeitos, como entendida, torcendo a cara, sem lhe agradar nenhuma delas.

Voltava para o quarto, desanimada, vendo o impossível de largar o coração nos ouvidos daquela gente, e, sozinha, arrastava os dias, enterrada no seu isolamento, padecendo de solidão, com crises de choro à janela, ante as noites escuras de Junho, frias, sem estrelas nos céus.

Havia só uma mulher com quem conversava e a quem abria a porta do quarto.

Ernestina era magra, alta, com mãos finas de tuberculosa, olhos castanhos, pisados, e com tudo isso um belo ar de actriz, uma Dama das Camélias fluminense, de sorriso triste e gestos de palco...

Honorina contava que a pobre rapariga já tivera brilhantes às mãos cheias e tudo caíra em casas de penhor, jóia a jóia, para satisfazer os vícios de um amigo, um jogador.

Toda uma história triste como há muitas para contar, a vida dessa pobre mulher, linda e tísica, apaixonada como um romance, pagando com as jóias as carícias do amante, um doido que lhe atirava hoje aos pés contos de réis ganhos na roleta, para lhos pedir outra vez no dia seguinte, e ir atirá-los logo ao pano verde.

Ela desculpava-o sorrindo dolorosamente... Perdoava-lhe tudo, essa boa rapariga...

-- Se o amor é felicidade, eu já fui feliz... Mas qual!

Já vejo mesmo que não há felicidade neste mundo.

O amor é como os remédios: fazem bem mas amargam...

E voltava-se para a amiga:

-- Vês tu ? É ainda a única coisa que podemos obter como as demais, uma paixão!...

Edmundo sentia-a viver daquela saudade, saudade desse tempo de febre e amor, em que se despojara de tudo vivendo num quarto andar, com um só vestido para sair, e feliz, embora, gozando a sua desgraça, entregando-se com prazer, corpo e alma, as gavetas cheias de cautelas de prego e a cabeça transtornada por esse vinho acre e delicioso da paixão... Tempos quase de miséria, em que ela lavava os lenços e as camisas na pia da cozinha descosendo até das ligas os fechos de ouro para empenhar também...

-- Se ele gostasse de ti, não te largava sem vintém -- dizia Honorina.

-- Que queres? De todos que me tiveram, foi ainda esse o único a quem julguei poder entregar-me inteira.

Os outros pagavam-me, iam-se embora... Esse nunca tinha dinheiro mas ficava... Não me insultava como os outros... Para ele, eu não tinha preço...

Naquela frase a Ernestina estava inteira... A meretriz aspirando a ser mulher...

Edmundo via-a melancólica e sorridente, arrastando os homens ao quarto, numa indiferença que serrava a alma, aproveitando o que lhe restava de beleza, economizando para o enterro, gastando com os homens, a pobre tísica, o que lhe sobrava de forças no corpo branco e fino, um corpo de decadência, escorregadio, sem saliências, com um doce e triste olhar de elegia, toda ela uma deusa de túmulo, dessas que se vêem nos cemitérios, cinzeladas no mármore, de bruços nos sarcófagos, chorando, estendendo na mão caída o facho apagado da esperança.

Honorina quase fizera dela uma confidente, falando-lhe também de um bom tempo de amor, com Edmundo.

Julgando-o longe, perdido para sempre, fantasiara-o outro, adorando-lhe a lembrança socorrendo-se com aquela saudade...

É tão comum uma pessoa ter devaneios e saudosas tristezas de passados tristes!... E os dias de transes, de aflições, de angústias, são esses exactamente os que mais lembram, os que mais se lastima terem fugido...

Parece que lhes deixamos um trecho de nós mesmos, uma parcela de alma, um pouco da nossa vida, da nossa existência, do nosso coração... Como é melancolicamente bom pensar num grande amor e dizer consigo mesmo: «Vivi-o!...»

As dores transfiguram-se, criam auréolas. Há uma como ressurreição de glória íntima em cada mortal padecimento... Apalpam-se as chagas cicatrizadas desse combate, e a alma veste-se de um orgulho, de uma vaidade, como mãe admirável que estremece os filhos, mesmo aqueles que a fazem padecer, principalmente esses, esses antes de tudo!... A alma é a mãe dos nossos sentimentos.

Mas isso não tira que se volvemos à desgraça não a achemos amarga de tragar, dolorosa a aguentar. Quanto mais se sofreu no passado tanto mais cruel e pesada nos é a adversidade presente.

Perto da transfiguração com que vemos os momentos idos, o menor dos transes toma proporções de avantesma.

A dor de que nos lembramos é uma lua que semeia sombras a cada perspectiva que se lhe ergue. Dada a ressurreição da mágoa, não é Cristo que rompe do sepulcro, pronto a subir aos céus, mas um Lázaro, chaguento e horriVel, que levanta a lousa com o crânio.

Assim Edmundo tivera essa desilusão e a amante também.

Ela voltara a tê-lo, sentimental e passivo; ele revia-a nervosa, má, arrebatada. Percebia-lhe uma ânsia de contar um segredo, fazer um custoso pedido, confessar um desejo vergonhoso, qualquer coisa de bem difícil de proferir, que a levava a mecher os lábios e calar sempre a confidência. Desesperava-se, vendo a má vontade de Edmundo em compreendê-la. Quando a beijava, numa ternura de beato ante um sacrário, acusava-o com a vista mendigando, muda, menos meiguice. Tratava-a como uma noiva, e não era isso que ela queria. Usava para com ele de um compassivo desprezo, valendo-se fêmea ante a sua adoração religiosa e beatífica.

A mulata nascera na roça, perto da Barreira do Triunfo, em Juiz de Fora. Tinha saído de um ninho de animal, bravo. Criada à solta, como uma pequena Átala vadia, a pardinha medrara no meio da mata, passando lá os dias, de manhã à tarde, como uma cotia brava.

Andava à cata dos maracujás, subia aos coqueiros para arrancar grampas doiradas de sumaré, que ela arrastava para casa, e com que enchia os vasos de louça do oratório da mãe, um pobre Cristo de latão, dentro de uma redoma de vidro, em cima da mesa.

Nas suas vagabundagens pelas capoeiras, seguia o rasto dos coatis, esfurancava os covis dos tatus, roubava os ninhos dos beija-flores, desmanchava os cupis, fazendo-se o terror do mundo, a não da mata, uma vândala de saúvas, destroçando as parasitas, espreitando a toca dos cachinguelés e dos guachinis, desassombrada, sabendo de todos os carreiros, e onde havia gabirobas e jaboticabas, devassando grutas, sumindo-se entre os cipós, as sapupemas, os imbés, arranhando-se nos gravatas, voltando a casa desgrenhada, com uma ninhada de gaviões no regaço, ovos de uru encontrados entre as folhas, o sangue da capoeira rebuscada, debaixo das lapas, nos troncos das árovres, por toda a parte.

Os arvoredos conheciam-na de a ver passar todos os dias, assenhoreando-se da solidão virgem da mata.

Lavava-se nos regatos, onde a água clara, entre as samambaias, corria sob o esvoaçar das lavandeiras transparentes, debaixo das frondes enormes dos jequitibas das cabiunas, dos mulungus, à sombra dos velhos colossos, de pé havia séculos, tremendos de velhice, enredados de linhéns, barbas de velho, enroscados de parasitas, florescendo na sua decrepitude, tamanhos como deuses, protegendo com os domos pesados de folhagem as palmas verdes das jacitaras e indaiás, as umbelas moles e húmidas dos samambaiassus, a neve cheirosa dos lírios de água o sono das corais e das cascavéis bravias.

No silêncio de catedral da floresta, no remanso dos brenhos verdes, onde só o zunir dos insectos e o canto dos pássaros desarranja a solidão tumular, a caboclinha entrava, quebrando os ramos, desviando os imbés, espiando como uma ladra todos os recantos.

As palmeiras e os bambus curvavam-se para a ver passar, esquiva como as jurutis, doirada pelo sol, andrajosa, descalça, com o cabelo amarrado por uma embira.

E de ter vivido ali, abismada no impenetrável do sertão, o seu olhar tinha ganho essa sombra profunda, húmida, cavando duas noites nas órbitas, sob os palmares densos e vastos das pestanas.

Às vezes levava um balaio de taquara e voltava carregada de flores, de uma pilhagem complicada, frutos, sementes de coco, ramas de pitanga, pedras de cor...

Um dia matara uma jararaca e trouxera-a de rasto, envaidecida da proeza. Ficava horas debaixo das aroeiras, ouvindo cantar os sabiás e os bem-te-vi. Balouçava-se dependurada nas palmas dos irurus. Brincava sozinha fugindo das outras crianças, esquiva e desconfiada como uma garça, bravia como as onças.

Na Barreira, as mulheres de vício, que ali iam aos bandos, de passeio, viam-na às vezes espreitando, escondida atrás de uma merindimba ou de um jenipapeiro, espiando com os olhos escuros, curiosa, aproximando-se sem ruído, como uma lagarta, surpreendendo os pares de amantes deitados no capim, fazendo amor.

Para ela, habituada a ver os touros atirarem-se às vacas e as pombas bravas esvoaçarem aos casais, nada a espantava.

Criada na pobreza, vira os pais fazerem-lhe os irmãos, e nem falava quando a mãe gemia no catre, com o ranger das tábuas, sob o peso do homem que lhe fecundava o corpo. Todos os seus instintos de cabocla, a sua selvageria de índia vadia e nómada, castigados a relho e a pescoções pelo pai, tinham-lhe dado um temperamento desconfiado e humilde de cadela, erradia, medrosa, levando-a a procurar a mata onde à vontade brincar, sem que as grandes árvores lhe ralhassem sequer.

Aos onze anos mandaram-na para Juiz de Fora, aprender em casa de uma costureira. Foi nesse meio vicioso, levando recados, incumbida de levar cartas de namoro e buscar respostas, que despertou mulher, atando fitas na trança e arregaçando a saia para que lhe vissem as pernas. Namorou como as outras, olhando os moços, deixando-se seduzir, irrequieta, ávida de homem, com as carnes arrepiadas de comichões desde a primeira menstruação, e veio cair afinal já desonrada nas mãos de um trabalhador da Estrada de Ferro, um português, que pusera uma venda logo ao casar.

Honorina era nova, bonita e aprendera muito com as costureiras.

O português batia-lhe, enciumado do seu corpo escaldante e novo de mulata. Ela corneava-o, fazendo olhos mortos a todos que vinham à venda jogar o truco, beber reino ou cachaça. Depois fugiu-lhe da cama, deixou de vender açúcar e pinga no balcão. Caiu num circo de cavalinhos. Quadrava-lhe aquela vida vagabunda, pousa hoje aqui, para levantar voo amanhã, balouçando-se nos trapézios rente ao tecto de lona, com mil pessoas debaixo dos pés, vestida de malha cor-de-rosa com um corpete de veludo bordado a borboletas de ouro e matiz... O corpo adelgaçou-se na ginástica, criando forças, retezando-lhe os músculos sob a pele morena de amor. Os quadris retraíram-se, compondo a sua escultura escorregadia de serpente, de peitos como rocha e pernas duras. Foi daí que lhe nasceram as suas belas linhas de estatuária, fina, de contornos de academia.

Vingou-se à larga. Sempre de tacão sobre a nuca, ergueu cabeça e dominou por sua vez, desforrando-se.

A mulata, a costureira, a vendeira, estava feita artista de circo! Até que do trapézio desceu à cama. Refocilou-se na luxúria como um jaguar no cio, deixando-se enlanguecer, prostrada, entregando-se num furor, desprezada mas ajeitando na infâmia um leito tépido, grunhindo de gozo na sua lama como uma porca no chiqueiro.

Habituada a ser maltratada em casa pelo pai, humilde e invejosa, moça de recados da modista, sentiu-se no seu elemento, quase feliz, adormecendo o macho entre os braços, era ínfima a trepar em grandezas, subindo aos poucos, da terra, conseguindo às vezes chegar às ameias do monumento -- o coração --, e espernear aí as suas cem raízes, até escondê-lo por inteiro grampa a grampa, rebento a rebento, folha a folha, até encarcerar na sua rede a rocha, peá-la sem lhe deixar sequer forças para esgaçar a trama ardilosa da trepadeira...

Tinha prazer em fazer-se gozar como um favo de mel, possuindo a vaidade de toda a mulher, essa vaidadezinha que se traduz vulgarmente pelo instinto de coquetterie, os olhares de rainha, os sorrisos de desdém, o ar de Junos, sobrancelhas imperiais, conhecendo-se dominadora, suprema, porque as suas carnes mornas, formosas como estatuárias, possuem o condão miraculoso, irresistível de prazer, de apascentar o desejo do homem, essa força irresistível da natureza animal, que encandeia gerações de misérias e raças de infortúnios, de ouvidos tapados, à Tolstoi, esse pai de doze filhos, que prega no meio das estepes a castidade perpétua, a vingança tremenda a Deus, a ameaça espantosa ao Criador...

Honorina tinha um secreto prazer em se prostituir.

Na sua humilhação havia o travo vingativo de abater, ainda que por segundos, o predomínio do homem, no instante do espasmo, e para saborear esse gozo era preciso sofrer o desprezo que o criava.

Ora Edmundo caíra nas mãos dessa mulher, apaixonado, humilde, passivo. Não era isso que ela precisava.

Habituara-se à pancada, não ia direita a beijos.

Edmundo não a compreendia, persistindo na sua paixão, na sua humildade, na sua passividade sentimental de mórbido afecto, de uma incipiente monomania religiosa, sempre tendente à adoração, de alma sempre de joelhos, ante um altar onde tronava uma fantasia idolatrada.

Honorina fazia por merecer um encontrão, uma bofetada, um pontapé, e só lhe arrancava lágrimas...

Forçosamente, aquilo mortificava-a, forçando-a a olhar a vida com outros olhos, estremecendo então à nova e medonha perspectiva do futuro, do presente, do passado. Não sabia, não queria, não podia amá-lo assim, de coração, como ele lhe exigia. Seria preciso operar-se, enterrar um bisturi na alma, arrancar a fórceps uma vida que vinha dentro dela... e esta operação delorosa amedrontava-a, amarrando-lhe os braços, sem forças para começar essa drenagem íntima, pensando no aterro depois a fazer nos pântanos cavoucados, um trabalho penoso e sem resultados, porque um dia só para acrescer mágoas ia servir este remédio de momento.

Os olhos da mulata acobardavam-se, reduziam-se a olhares de cadela, abatendo-se rasteiros. Edmundo agachava-se sempre mais abaixo, e caíam assim os dois, incompreendidos. Por mais baixa que se fizesse, predominava sempre nele.

As únicas vezes que o sentira homem para a merecer, homem para a amar, fora da primeira, quando lhe atirara dinheiro ao prato e viera depois, para lhe dar uma coça; da segunda, quando se apartara dela, rindo do seu desespero... Nesses momentos, calcada aos pés, sabendo-se desprezada mas amada até o delírio, nesses momentos a mulata amara-o como nunca tinha amado ninguém.

Sentira o preço da sua carne, gozara de se ver feita um farrapo, nas mãos de um homem de quem ela tinha o coração nas unhas. 0 prazer dela era fazer-se válida pelo corpo, ciosa da sua profissão de mulher de amor, e o seu elemento era na cama, derrubada, dando gozo aos homens com o bambear das coxas... Nessa vida, com esse mister, todas elas sabem forjar algemas e compor feitiçarias. Em gratidão, em amor, essa qualidade de mulheres não diz: «amo-te», mas diz: «gozo-te»!

A sua prova de adoração está no ter prazer... Tiram do corpo os sentimentos, não os vão buscar ao fundo da alma. Quem as quiser ter fiéis, submissas, humildes, é fazer-lhes valer as carnes sensuais. Disputem-lhes o corpo às pancadas à porta dos Fenianos ou dos Democráticos, esmurrem-nas, façam-lhes compreender que as desprezam mas que lhes sabem bem as suas pernas macias, batendo as costas, durante a noite, e elas serão gatas, virão roçar as suas carnes pelas vossas calças, sempre prontas, dando-se, todas húmidas...

De romance a fêmea não entende nada. As suas aventuras é uma briga por um de seus beijos, é um amante a fazer-lhes «mimi» às escondidas do marchante, é uma amiga companheira de cama nas tardes de calor, é uma ceia com champanhe e vómitos depois do licor.

Há ainda no Rio três qualidades de mulheres da vida:

a que vem de Paris atrás do ouro dos banqueiros, a que vem de toda a parte para abrir casa algures, a cinco ou dez mil réis por cabeça, e a brasileira, branca, cabocla ou mulata, mulher de soldado ou de vendeiro, que topa entrar como rameira um dia na cidade.

Honorina era destas. Longe de ser a Cármen, que de criada chegou a ser herdeira de brilhantes imperiais, ou ser a Maria Sanchez, que de ama de leite em Valença arribou ao espavento de ter carro, ou a Laura S., que de meretriz em alta escala soube entrar um dia pela igreja e ajoelhar aos pés do altar, longe, bem longe, dessa grande fornada de mucamas e regateiras hábeis e belas, douradas pelo ouro cúpido e libidinoso dos ricos, Honorina tinha de morrer costureira e caipira de Minas.

Se o da Geral lhe desse um jarro e bacia de oiro, mandá-los-ia pôr sob redoma ou guardar na casa de penhores, e nunca que ela se lembrasse que a gamela preciosa de metal servia só para lavar as partes, em água de toillette de Lubin... Havia de gostar sempre dos caixeiros, das modinhas, do violão e do capilé. A grande e admirável sobranceria da sua alma rude e simples, chafurdando no vício, só dava em fruto uma ciência profunda de lençóis e um catálogo completo de posições.

Requinte era saber que a pedra-ume aperta e a lagosta irrita...

Por mais que a cavem, não encontram na mulher vulgar mais do que isso. Honorina, como as outras, não passava de ser uma pardinha de Juiz de Fora, amiga de cocheiros, heroína da Barreira, mulher do tom no teatro Novelli, muito apreciada pelos «cometas» e pelos filhos dos fazendeiros. Naquela vida torpe e baixa, porém, três vezes a sua alma selvagem arquejara naquele corpo ardente.

Um médico, vindo de Paris, onde se formara, um rapaz de vinte e tantos anos, com muita grisette e cancanista na vida, muitas noites de Moulin-Rouge e Montagnes-Russes, impressionara-se à vista daquele tipo bizarro de mulata, com aqueles olhos molhados e as ventas frementes do felino. Sentiu-lhe o sabor acre da floresta, adivinhou-a nervosa, lasciva e toda febre.

A esse tempo, Honorina tinha casa, gastava uns contos de réis de um fazendeiro. O médico deu em passar à porta da cabocla, a cavalo, com roupas, do Boulevard des Capucines. Solto dos braços brancos e macios das parisienses, prendeu-se à denguice sensual daquela fêmea, de pestanas compridas e cabelos negros. Apaixonou-se. Honorina deu-se ao luxo de não lhe receber um vintém em três meses de amor.

Empenhou jóias, mobília, vestidos e deixou-o um belo dia, sem se queixar, atirando-lhe um beijo por despedida.

Muitas vezes Edmundo lhe ouviu falar desse tempo, com saudades na voz e uma sombra nostálgica nos olhos.

Havia ainda um Alfeno, filho de um senador, a quem ela dera brilhantes e de quem fizera um azeiteiro, para lhe saciar os vícios. Uma noite, aborrecida, despediu-o como um criado. Pagava-lhe momentos loucos de gozo, dando-se a beijar, roçando-lhe o ventre pela boca.

Tivera ciúmes dele, batera-lhe até às vezes.

Fora isso, Honorina passava a vida a dar de corpo, amasiada com o primeiro negociante que lhe desse para os vestidos e lhe pagasse as contas do hotel.

Edmundo transtornara-a, fizera-a sentir, obrigara-a a chorar. Essa criança tinha-a sensibilizado, estremecera-Ihe os nervos. Ela sentia um prazer doentio e doloroso em beijá-lo, em apertá-lo aos seios, em chegá-lo a si, unido, pegando-lhe fogo aos olhos sombrios.

A natureza nervosa de Honorina tinha actuado uma maneira decisiva em Edmundo. Dantes, nos dias de paixão, a sua diferença de temperamento fizera dessas duas criaturas um casal unido, pregado a beijos. Um completava o organismo do outro. Modificaram-se mutuamente.

Ele embebera-a de tristezas, de desalentos, de aspirações sem nome. Falara-lhe na morte; passara noites soluçando no seu ombro macio e redondo. Ela despertara-lhe uma nevrose que dormia a um canto de seus nervos. Sacudira-o todo, vascolejara aquele organismo depauperado, fraco, criando-lhe uma existência nervosa, sobressaltada, levada de choque, entre crises de espasmos e instantes de cólera, empurrando-o para uma rede traiçoeira, em que se debatia, roendo hoje uma malha para fugir, caindo logo noutro laço, soltando um braço para prender uma perna.

Andava aos encontrões, pede dinheiro aqui para se desculpar acolá, fugido de todos, aninhando-se perto da amante, sacrificando-lhe inteiramente a vida, como um ébrio que só pensa no vinho, acostumado como um morfinomaníaco, injectando-se na vida aquele amor, aquela mulher, sentindo o veneno, mas absorvendo-o de desviar. Aquela vida deculpara-lhe as voluptuosidades, engrandecera-lhe as tristezas por meio de uma sensibilidade aguda, entontecera-o como uma bebedeira.

Juntos de novo, espantavam-se logo depois do engano dos dois primeiros dias, gastos em declarações que os dois faziam por tornar sinceras, e beijos sedentos, e carícias intermináveis.

Passadas essas horas alucinadas, os dois enfren- taram-se e baixaram os olhos, assaltados pela mesma verdade.

Edmundo dera em pensar na carta, enciumado.

Honorina encontrara-a atrás da cama, amarrotada, percebendo logo que ele a tinha lido, enfureceu-se de se ver roubada até nesse segredo.

Quando ele chegou, à noite, ela esperava um desafogo de lamúrias, queixas, até ao insulto, mas teve que lhe responder a mil perguntas de amor, a todo um rosário de coisas não sentidas e com que a procurava enganar, enganando-se também.

A mulata assanhava-se de o ver dissimular o padecimento que lhe trouxera esse segredo descoberto.

Lia-lhe nos olhos a dor, o desespero, folheava naquela vista triste a história da carta, e esforçava-se para o fazer falar, para se desculpar, inventando uma trapaça, safar aquela nuvem de mau prenúncio, que podia de novo toldar os horizontes.

Bastava-lhes a certeza pungente de que precisavam um do outro, e que dos seus tristes amores bem pouco prazer já resultaria, sem ser preciso novas causas para mais supliciar as suas horas.

Depois, ela tinha mentido, assegurando-lhe não ter sido de ninguém na sua ausência, jurara até, e sentia uma necessidade de fortalecer essa mentira, apagar-lhe as desconfianças.

Farta de esperar dele uma palavra, resolveu-se a obrigá-lo a confessar, a dizer tudo.

Fez-se meiga, sentando-se ao seu colo, alisando-lhe os cabelos.

Ao jantar foi ela que o serviu, encostando as pernas às pernas dele, bebendo pelo seu copo, fingindo-se alegre, com um riso feliz.

Depois do café lembrou uma volta pelas ruas, ver o povo, podiam entrar num teatro, espiar um pouco e que se representava.

Edmundo consentiu, levou-a ao Recreio para lhe mostrar o palco.

Honorina nunca entrara na caixa de um teatro.

Naquela noite, o Dias Braga, de volta de São Paulo, levava a Filha do Mar, em benefício.

A meio do segundo acto, desceu com ela do camarote e empurrou a porta que vai à caixa.

Uma jumenta, imóvel, triste, com as orelhas caídas, guardava a entrada desse mundo misterioso dos bastidores, essa caverna de Ali Babá, em que se amontoam tesouros, em que se passam coisas de feitiço, em salas de oiro, com mulheres vestidas de seda, dançando entre jorros de luz eléctrica, entoando cânticos a deusas de papelão, com pedras de vidro ao pescoço em guisa de carbúnculos ou diamantes.

Gil Blas entrando no covil dos salteadores não ficou mais espantado do que Honorina ao penetrar no corredor escuro como um subterrâneo, sem soalho, com duas paredes de cenários embrulhados, mágicas deslumbrantes rolando na terra aos pontapés, empíreos, céus abertos, grutas encantadas, palácios de jaspe e bronze, que ali no escuro tinham remendos na lona e pastas de trolha a imitar tapeçarias...

-- Parece o circo...

-- Só há um burro ?...

-- Há mais lá dentro...

E levou-a para o palco a tempo de ver como se imitam os trovões com um tacho velho de ferro e os relâmpagos com um carreiro de enxofre. Encostada ao seu 364braço, Honorina espiava a cena onde uma mulher, momentos antes a fumar charuto e a ouvir um convite para dormir, chorava agora, torcendo os braços, na tolda de um navio de cartão e ripas, onde os comparsas se preparavam a entrar, besuntados de carmim, com olheiras, brandindo machadas de pinho e pistolas sem gatilho.

As mulheres olhavam com sorrisos de malícia o grupo de Edmundo com Honorina, ela toda debruçada no seu ombro, prendendo-se ao seu braço com ambas as mãos.

Já um oficial de marinha ali chegava, pronto a ir salvar a situação e arriscar o lance comovente da peça, quando um homem em mangas de camisa batia num bombo descargas de artilharia.

Honorina arregaçou o vestido, notando a sujeira do soalho.

-- Os palcos nunca se lavam, é a mascote, a porcaria...

-- Ah!...

A sala toda soluçava. Num camarote que se via de entre os bastidores, uma senhora de preto limpava as lágrimas.

-- Nunca choraste no teatro, Honorina?

-- Eu, já... Mas olha, Edmundo, aquele sujeito tem cabeleira postiça...

Era o galã, que fazia choramingar o mulherio. O pobre homem poucos cabelos tinha. Eram mais os anos do que as repas...

Um sujeito descalço, precipitou-se lá do fundo, esbarrando nas coristas.

-- Fecha o gás!

Chegava o momento da exibição de maravilhas.

Os anúncios punham nos cornos da lua aquela apoteose pintada por mão de mestre.

Dois moleques pegaram fogo a uns canudos de cartão, e logo os fogos de bengala romperam numa labareda rubra, incendiando o luar da luz eléctrica, rasgando no pano de fundo a aurora boreal com um arco- íris de oca e vermelhão e raios de papel de seda por onde trespassava a chama escarlate de fogo-de-artifício.

Saíram, quando já ia uma restolhada pelo palco, entre os gritos da plateia que chamava os artistas, entusiasmada.

Fora, na rua, fazia frio. Tinha chuviscado e as calçadas estavam ainda húmidas. Nas torres de São Francisco batiam sonolentas as dez horas.

Os dois, calados, iam caminhando, evitando as poças.

À esquina da Rua do Senado, um grupo de cocheiros e criados de botequim formavam círculos em volta de um homem, que se debatia nas mãos de um polícia.

Gente parava para ver...

Algum epiléptico, pensou Edmundo, lembrando-se de um ajuntamento semelhante, um ano atrás, em redor de um infeliz, escabujante, rangendo os dentes, as mãos crispadas, a boca torcida e escumante, revolvendo-se na lama.

Continuou a caminhar, quando um grito o fez estacar rápido, como se enfrentasse com uma parede.

Voltou-se.

O polícia arrastava Julião, bêbedo, por um braço.

Os cocheiros riam daquele pobre-diabo, corcunda e magro, sujo, roto, que suplicava em voz alta que o largassem, jurando ser um médico, um estudante de Medicina, do quinto ano.

-- Fora o sujo!

--Que chuva!

-- De médico precisa ele, já viram o raio do tipo!

Edmundo, encostado à parede, seguia com a vista o amigo arrastado pelo polícia e ouvia sobressaltado as chufas dos cocheiros.

-- Que tem, benzinho? Está doente?

-- Não, não, vamos embora...

Chegados a casa, disse ele à amante, pegando-lhe carinhosamente nas mãos:

-- Se tu soubesses como nós podíamos ser felizes...

Se tu imaginasses sequer o que nós temos desperdiçado de felicidade!...

Ela julgou que se tratava da carta, e sem saber ainda que resposta dar, olhava-o, muda.

Vio-o sentar-se numa cadeira, encostar os cotovelos nos joelhos, deixar cair a cabeça nas mãos abertas.

-- E tu acreditaste?

-- Em quê ?

-- Eu sei, encontrei-a debaixo da cama hoje pela manhã.

Edmundo fitava-a, espantado, sem compreender.

-- Estás-te fazendo tolo...

-- Mas...

Honorina chegou-se perto dele, pousando os braços nas costas da cadeira, toda debruçada.

-- Tu leste, não mintas?...

E a sua voz parecia harmoniosa, de branda.

-- Li?...

-- Eu sei...

-- Mas o que é que eu li, Honorina? Eu não compreendo, juro-te... Talvez seja de mim... Quando se vê um amigo levado para a polícia, bêbedo, um irmão...

-- É teu amigo, aquele chuva?

Edmundo estremeceu àquelas palavras de escárnio...

Pôs-se a pé, erguido num ímpeto de ódio, ante Honorina.

E viu-a insolente, sorrindo, achando graça que aquele jurubu fosse amigo dele.

-- Foi para o xadrez... Parecia-me um urubu a piar...

-- Oh!

Virou-lhe costas, escondendo a cara nas mãos:

foi cair na cama, quase a chorar, batendo as pálpebras.

Honorina perseguiu-o, sentou-se ao seu lado, passando a mão rebrilhante de anéis pela cabeça...

-- Está enrabichado, meu negro?... Você acreditou naquilo? Foi uma troça da Emília... Você não viu logo, morzinho, que aquela carta não era, seria?... Hein?...

Foi só então que compreendeu onde ela queria chegar com as suas perguntas, e esse homem esquecido por instantes voltou-lhe à vista, com o seu ar de caixeiro, com pastinhas na testa, esse alfaiate que dormira naquela cama onde ele estava agora...

-- Ah! A carta? Li-a, sim... Porque não foste morar com ele ?

-- Acreditas? Que lucro tinha eu em mentir...

-- Bem te conheço... minha gaja...

-- O quê? O que é que tu conheces?

-- Nada... Deita-te, despe-te, não fales mais...

-- Hei-de falar quando eu quiser...

-- Oh! Honorina!

Sem poder mais, pedia já piedade, abrandando a voz, doido pelos modos agressivos da amante, e assim dilacerava ele a sua pobre alma, encontrando espinhos por toda a parte, levado à dolorosa contingência de julgar ainda o derradeiro refúgio, aquele leito de ortigas, onde a amante lhe roía vagarosamente o coração, e esgaçava aos poucos a sua vida...

Honorina passara a tratá-lo com uma rudeza desdenhosa, olhando-o com sorrisos frios, de escárnio, despresíveis. Tudo o que fazia, um passo que desse, uma palavra, bastava para a mulata se rir dele como dum bobo, chamando-o de estúpido, maltratando-o com prazer, enfastiada, humilhando-o em frente a toda a gente, deixando cair o guardanapo no restaurante para ele o apanhar, obrigando-o a descalçar-lhe as meias, a desapertar as fitas dos sapatos, a despejar a bacia.

A sua timidez sujeitava-se a tudo, deixando-se espatifar aos poucos, como uma barata nas unhas de um gato, a alma feita pântano, o orgulho coisa morta, sem uma revolta, vergado a tudo. Não tinha mais nada de um homem. Deixava-se ralhar, como um garoto, e apenas nos seus grandes olhos inteligentes e bons, um espanto dolorido espiava, na sombria tristeza das órbitas, cavadas, vincadas de escuro.

Quando vinha de noite, para jantar, encontrava-a à janela, cantarolando, ou em frente ao espelho, acabando de vestir-se. O seu boa-noite já não tinha resposta.

Ela apenas voltava a cabeça, a ver quem era, continuando a cantiga ou mirando de novo o cristal do lavatório.

Era raro um beijo. Fugia sempre com a cara, continha-o de longe, arredado, sem lhe ligar uma sombra de importância. E à janela, quando chegava as mãos para agarrar as dela, Honorina bocejava, fitando-o com ódio, atirando-lhe um «não se enxerga?» de desprezo.

À mesa, ainda às vezes falavam qualquer coisa, ao acaso, sem interesse, para fingir em frente aos outros uma felicidade falsa e mentirosa.

Edmundo arrastava assim a vida, acontecendo-lhe com as suas esperanças o mesmo que as crianças que fazem covas na areia da praia e as vêem logo sumidas pela água.

Demorava de manhã no quarto, pelas cadeiras, fumando cigarros, um depois do outro, olhando silenciosamente a amante vestir-se, lavar-se, pentear-se. Esperava por ela para poder chegar-se ao lavatório. Ia-se embora depois, triste, com uma vontade imensa de ficar, sem saber ao certo o que fazer lá fora, arredado de todos, com medo que adivinhassem a dolorosa ignomínia daquele seu viver, daquele desbaratar de mocidade, vergonhoso e cruel. Passava os dias num ou noutro botequim, pelas ruas sujas, escondendo-se, à espera da noite, desse momento em que lhe era dado abrir uma porta e encontrar alguém. Porque o mais, tirante essa mulher, não tinha uma só pessoa a que chegar-se.

Passava três, quatro dias sem ir a casa, trocar de roupa.

Tremia ante o olhado da criada, percebendo a tristeza e a acusação muda da velha.

Honorina reparava nos colarinhos sujos, nos punhos ensuarados, nas meias húmidas.

-- Você já não tem casa? Anda-me porco que até cheira mal.

Ele entalava os soluços, deixava-a adormecer para entrar na cama, depois de ter ensopado as mãos e os pés em água-de-colónia.

Levava as noites a tossir, tonto de febre, fraco a não poder mais.

Para responder a uma pergunta titubeava, tinha suspensões de gado; temendo ser insultado a cada passo, descontentar a amante com uma observação, a ousadia de erguer a voz; e quando ligava uma conversa, estendia-a, sem saber o que dizia, para encher o tempo, poupar-se o silêncio martirizante com que ela se separava dele.

Via-a cair, pouco a pouco, num desleixo desesperado, os lábios cada vez mais brancos da doença, os olhos mais duros, os modos tombando em meneios laços de mulher de soldado, traindo-se a fêmea de cocheiro de Juiz de Fora, com aventuras no fundo das tipóias e encomendas de fazendeiros, que a mandavam buscar de troley, à noitinha.

Depois do jantar deixava-o só, ia jogar para o quarto das outras ou falar para as escadas, espreitando quem vinha, e contava às companheiras todo o infame derriço daquela amigação, a que ela, coisa notável, era fiel.

Raro se entregava, afastando-o quando se aborrecia, logo aos primeiros beijos, de que voltava a cara, repugnada.

Saíam pouco, deixando-se ficar em casa, no quarto, silenciosos.

Altas horas, cansados, olhando-se de través, caíam na cama, voltando as costas, com receio de se tocarem com o corpo.

Quando Edmundo arriscava um braço ou encostava a cabeça ao travesseiro dela, a mulata tremia, desviava-se, resmungando pragas.

Sentia-a acordada durante quase toda a noite, pensando, de olhos abertos no escuro. E essas vigílias dos dois povoavam-se de ideias fúnebres, medonhas.

Honorina sabia que Edmundo não tinha dinheiro, que se sacrificava para lho dar, e esse pensamento arredava-a dele, por uma desconfiança instintiva de mercenária.

Se a deixasse um dia, o que seria de si, sem dinheiro, sem beleza, sem jóias?

Punha-lhe frios no corpo aquele pensamento, vendo que estava a gastar sem proveito a mocidade.

A anemia acentuava-lhe no nariz um pano, uma mancha negra, que parecia um dartro. O cabelo, aqueles admiráveis fios sedosos de um castanho negro, macio como pêlo de lontra, caíam aos poucos. Já tinha uma gaveta cheia deles. Mais a mais, o seu sorriso doentio e nervoso empalidecia-lhe os lábios e enevoava-lhe os olhos, distantes agora, perdidos num longe de tristeza embaciada... Pelo corpo tinha saliências de ossos; os ilíacos esbarravam a pele nos quadris, e as clavículas arqueavam ao fim da garganta, deixando duas covas sobre os seios, que lhe doíam, como inflamados. A histeria agoniava-a com as dores de cabeça, as vertingens, o desarranjo do estômago. Nos dias foscos, sem sol, de nuvens baixas com trovões rumurejando pelo alto, uma melancolia profunda prostrava-a na cama, horas e horas, num marasmo.

Edmundo sentia-se mal, percebia aquela inquietação da amante, pensava em largá-la. Mas os hábitos amarravam-a àquela cama, àquele corpo, e um desespero incrivelmente atrós comia-lhe por dentro todo o esforço da vontade.

Deixava-se insultar, humilhado como um cão, sem dizer uma palavra, e nos olhos trazia a confissão muda de um padecimento inigualável. Escondia esse sofrer a quantos lhe falavam, e nunca que dissesse toda a sinistra verdade da sua vida ignorada de amor. Quando alguém estranhava ser a sua felicidade tão triste, ele sorria, inventando tesouros de paixão para enriquecer a amante, envergonhado, transido de tristeza, vazio de esperanças.

Os outros, olhando sem ver, julgavam-no gozando uma boa mulher, com noitadas de prazer e dias de carinho. Sussurravam daquela vida sustentava com dívidas, comentavam o seu cínico egoísmo, a sustentar a mulata à custa do próximo.

Que tratante!, murmuravam uns; que felizardo!, diziam outros.

Edmundo sabia-o, porque Deus nem lhe poupara sequer esse derradeiro suplício de conhecer nos olhos dos outros o que pensavam dele. Tinha consciência da sua ignomínia, o desgraçado!...

E nem uma só queixa à amante, nem uma só acusação!... Suportava tudo... De manhã, ao levantar-se, Honorina deixava a cama à pressa, arreceando-se das suas lástimas, dos seus pedidos lacrimosos, de que ele por fim se envergonhava, corrido de rubor!

Uma noite, em que saíram à rua, pelas onze horas, subiram a um gabinete do Stadt Munchen para comer, ela deixara cair a cabeça no ombro do amante, seguindo com a vista esmorecida e vaga o espelho, ao fundo, onde mil nomes de mulheres, traçados a diamantes, espalhavam uma branca, enredada e baça teia de aranha.

Edmundo beijara-lhe os cabelos, prendendo-a a si, e ela arrastou-o, tirando um anel de brilhantes do dedo, pediu-lhe que escrevesse ali, naquele espelho de amor, os seus dois nomes.

Pendurada ao seu braço, foi seguindo o risco das letras, sorrindo maldosamente. Ao lado, em caracteres tremidos, havia um «je taime, mon gars», em ponto, grande, e data de horas felizes cruzadas, embaralhadas todo o vocabulário misterioso das paixões que por ali tinham passado, gravando naquela lápide pública o «aqui jaz» do momento adorável. Nesse cemitério emoldurado a ouro, os bicos de gás enchiam os riscos mostrando no alto -- tinha sido preciso trepar a uma cadeira para se poder ali escrever esta divisa obscena e gaiata:

«Honny soit qui mal y baise» e em baixo assinado, «Gabrielle». Havia uma outra divisa em francês de Louise de Voucoux. Dizia assim: «Louise vaux le coup !» Um verso de Espronceda engatinhava com o epitáfio «Dolores».

Edmundo ferrava os beiços, tristes.

-- Quem há-de dizer? Os outros podem ser como nós!...

Ficaram-se os dois a olhar, compreendendo-se, contemplando-se mudos.

E ela, erguendo a cabeça, pousando-lhe os olhos, perguntou-lhe placidamente:

-- Porque você não me deixa, benzinho?

-- Para ir onde ?

A mulata roçou-lhe a face nas mãos, escondendo-se nos seus braços.

-- Vamos embora, morzinho?

E arrastou-o para casa, ansiada por se despir, dar-lhe o corpo.

Entregou-se a noite inteira, consolando-o, afogando-o de carícias, tratando de lhe curar toda a desgraça com palavras meigas de amor, aconchegando-o à macieza da carne, sumindo-se nele, terna, gemendo, calcando os seios ao seu peito.

Mas naquela entrega não havia nem as sombras desses ardores antigos, que estremeciam o corpo da mulata, dos calcanhares às fontes.

A posse insatisfeita, largada por ambos, num desalento, acabara de lhe varrer toda a poeira da esperança em que já se desfizera o esqueleto dessa fé, havia muito cadáver.

Sobre eles caía uma fina chuva de pesar; uma desolação envolvia-lhe a alma, com um crepúsculo prenhe de trevas, no último período de uma gravidez hedionda do fim próximo.

Ele tinha até medo de pensar, tratando os pensamentos como rondantes perigosos da sua noite, e por quem se sentia perseguido, apavorado, transido de susto. Desviava-se de toda a preocupação, quebrando esquina aos primeiros passos da razão, à primeira sombra de raciocínio.

Causavam-lhe inquietações principalmente os dias de sol, de ruído, de alegria, nas ruas povoados de gente, entre o rodar dos bondes e dos carros. Todo o movimento lhe lembrava a sua solidão. De tanto homem, não conhecia ninguém. Escolhia de preferência, para vaguear até a tarde, os bairros afastados, longe do seu meio.

Batia toda a praia Formosa, o Saco do Alferes, a Saúde, caminhando entre a miséria, vendo a faina dos negros carregando os sacos de café, despejando as carroças, e o formigueiro lamentável dos trabalhadores de trapiche, num vaivém de bestas de carga, curvados sob os fardos, imundos, descalços, negros de sol, com os pés inchados, arrastando para os armazéns o bojo monstruoso dos navios, escoadouros desses Leviatans disformes, mastodontes que engolem a safra de um país e a vão vomitar noutra nação... Os carregadores pareciam a Edmundo as ratazanas desses esgotos flutuantes, e ficava a olhá-los, durante horas, derreados, aumentando a cada passo doloroso a fortuna dos amos, dos ricos, dos patrões.

Levava a chafurdar nos becos dos pobres, espiando as mansardas, as vendas, os cafés escuros, os portais e escaninhos cheirando a lixo e espinhas de peixe, os antros imundos de onde rompem disputas, pragas, frases obscenas ou gritos de enfermo agonizando de moléstia...

À noite, voltava ao hotel, a agachar-se aos pés da amante.

Um aborrecimento persistente, ideias de impaciência e escrúpulos, uma estranha susceptibilidade, o prazer inconcebível da solidão, tornavam insondável, profunda, a sua dor. Havia muito que o livre arbítrio se afogava naquele sorvedouro que lhe cavava um caos no organismo, e a desesperação traduzia-se em uma série de actos hostis e lúgubres, um desgosto pela vida, uma invencível tendência para o suicídio. Lamentava-se, tinha medos repentinos, a propósito de tudo, desejava amorosamente a morte, o descanso, preso de angústias, de ansiedades, oprimido, inquieto. Insensível a todas as alegrias, ceifava todas as dores para fazer a cama à agonia do seu espírito atribulado.

A tísica ia galopando pulmões a dentro...

A febre ética afilava-lhe aos poucos o nariz, salientando-lhe as maçãs do rosto, de um rosa arroxeado na palidez da face. Os lábios retraíam-se, o pescoço parecia oblíquo, as omoplatas erguiam-se como envergaduras de asas, as costelas ressaltavam cavando os espaços intercostais. Mas todos esses vestígios do mal incurável acrescentavam uma poesia triste na beleza das suas feições. A cabeça parecia modelada por uma fantasia de artista, com os grandes olhos escuros, húmidos, melancólicos como duas lágrimas negras.

Da última vez que Julião o tinha auscultado percebera acumulação de tubérculos na parte superior dos pulmões, sobretudo no da direita. A ressonância era maior e desigual na parte anterior superior do peito, até ao nível da quarta costela. Ouvia-se um silvo, um sopro, por baixo da clavícula, na fossa subespinhosa e debaixo dos braços, com expiração prolongada.

A tosse tinha gorgulhos, ecoando nas cavernas, e a broncofonia difusa dava lugar à petoriloquia, dia a dia mais evidente. O tórax ressoava. As pontas de fogo já não faziam efeito seguro, quanto mais ele não se sujeitava a um tratamento seguido e persistente. O mesmo com a hidroterapia, os vesicatórios, as inalações, impossíveis por idênticas causas.

Julião pensara que não convinham nem eram precisos os balsâmicos, o bismuto, o láudano, o louro-cereja e o nitrato de prata. Ja tinha passado o seu tempo. O sulfato de atropina ia matá-lo mais depressa... 0 sulfato de quinino, a digitalis, nada valiam como antifebris para o seu temperamento de nevrótico e histérico. As fricções alcoólicas e terebintáceas, o hipofosfito de cal e soda, o fosfato de potássio em vinho de quinina, o creosoto, a glicerina, tudo inútil. Era tarde, no ver de Julião. Sem o poder ter preso ou exilado na roça, onde um tratamento seria possível, metodizado, com experiências alternadas de um ou outro remédio, um regime tónico, salutar, o estudante desesperava, cuidando só por fim em sanar as ulcerações dos vasos depois das hemoptises, dando-lhe ergotina, tanino e ipecacuanha em grandes doses, três ou quatro gramas absorvidas por dia.

Já três meses tinham passado sobre esse ajuizado temível, esse diagnóstico desesperado, que o atirava à morte, depois da última hemoptise. 0 mal crescera lenta e progressivamente, sem rumor, surdo, para rebentar num momento dado e engolir num só trago aquela vida.

Seria ele afogado pela escuma bronquial numa nova hemoptise? 0 fim seria o marasmo assassino da febre?

De qualquer forma, o instante supremo talvez não tardasse a bater às portas daquela existência. Um ano?

Um mês? Ninguém o podia dizer.

Um médico receitara-lhe bromureto de potássio para acalmar os nervos, e essa receita de idiota, lorpa e criminosa, é que lhe ia sustentando a melancolia, habituando-o à tristeza pungente da agonia, irritando-lhe sentimentos primordiais, das partes mais recônditas da alma, onde ainda não se tinha entranhado a sonolência sensitiva do marasmo.

Os ciúmes roíam-no, como se ninhadas de ratos lhe comessem o coração e os miolos.

Andava sempre com a sombra do «outro» a seguir-Ihe os passos. Odiava-o, mais, muito mais, do que odiara o turco. Este disputava-lhe os restos, viera fossar por divertimento na sua última miragem de moribundo.

E desde que Honorina recebera um sabiá de Juiz de Fora, o ciúme crescera a olhos vistos. Ninguém lhe tirasse da cabeça que esse pássaro preto não fora mandado pelo «outro». Debalde a amante afiançava ter sido a irmã...

Dava-lhe vontade de picar o passarito com o canivete, esborrachar-lhe a cabeça sob o tacão, moê-lo, atirá-lo vivo a uma sentina, esganá-lo e vê-lo apodrecer numa sarjeta, gozando de o contemplar devorado pelas formigas, pelos vermes, pelas moscas, as baratas e os camondongos, ou picado pelas galinhas, na capoeira, Namorava-o como um gato, e tinha que sair às vezes do quarto para ali mesmo, em frente da amiga, não se atirar à gaiola e espremer na mão o sabiá.

Tudo vinha enfurecer, por último. Não sabia mais a quem pedir dinheiro. Todos lho negavam, por menor que fosse a quantia. Um respondera-lhe que não sustentava vícios.

António do Couto estava fora.

Pensou em empenhar ou vender os trastes, mas a ideia de que ia ficar sem ter onde dormir no dia em que a amante o abandonasse causava-lhe frios.

Ultimamente contava, nos cafés as necessidades, chegava a dizer que passava fome.

Lembrava-se de escrever à mãe, pedindo dinheiro, mas largava logo esse alvitre ante a demora da carta e a angústia da pobre velha.

Honorina queria camisas de seda, um grampo para o chapéu, uma pelerine de veludo. E enquanto pensava no meio de arranjar aquilo tudo, o sabiá cantava, rindo-se dele.

Uma tarde chegou ao hotel por volta das cinco horas. Honorina tinha saído. Entrou no quarto e foi remecher as gavetas, à procura de provas de novas infidelidades, e encontrou a carta onde o «outro» tinha mandado a guia da Estrada de Ferro, remetendo o pássaro...

A sua alma profética não o enganara. Aquela ave danada, que a amante tratava com tanto cuidado, era uma prenda do outro...

Arrastou então uma cadeira para perto da janela, abriu a porta da gaiola, apanhou o sabiá, apertou-o na mão crispada. Viu-o abrir o bico, estirar a língua preta, sentiu-lhe o corpo quente estrebuchar entre os dedos, o papo inchar, arquejante, as pernas enteiriçarem-se e a cabecita afinal tombar, pingando sangue no bico, de onde a língua pendia, como trincada.

Ficou mudo, em cima da cadeira, olhando a rua, com o pássaro apertado na mão. Depois desceu, abriu a porta, e vendo um gato no telhado, voltou atrás, atirou-lhe o sabiá às barbas, escondendo-se para ver. O gato fugiu à queda do corpo, mas veio espiar logo, de uma goteira, atirando pelo telhado os olhos verdes. Aproximou-se, devagar, sem ruído, parando às vezes, e depois, de um salto, agatanhou o cadáver ainda morno, pousando-lhe as mãos, desconfiado. Cheirou-o, lambendo o focinho cor-de-rosa, e logo os seus dentinhos brancos, de carnívoro anão trincaram a presa. Atirou o sabiá longe, foi de rastilhada atrás, erguendo-o na boca, macerando-o de encontro às telhas, bufando, com mios de luxúria pobre de gato esfomeado, vingando-se da miséria naquele respasto caído do céu ainda tépido.

Edmundo, encostado ao peitoril, seguia-o com a vista, sorrindo, até que o bichano levou a presa, desaparecendo.

Honorina entrava nesse instante.

-- Estás aqui há muito tempo ?

-- Cheguei há pouco...

-- E então ?

-- Compro-te amanhã a pelerine e as camisas; tenho que receber um dinheiro... Hoje foi impossível...

-- Pois sim!... Não vê que eu acredito mesmo nisso!...

-- Podes...

-- Você também agora não sai daqui?... Sempre amarrado às saias, até aborrece... Você não trabalha?

E olhando a gaiola aberta, a cadeira, parou espantada, franzindo a testa.

-- Onde está o sabiá ?

Edmundo, sentado na cama, sentia a garganta apertada, a respiração opressa; esforçava-se para responder, sem que pudesse pronunciar uma palavra.

Honorina parou de desatar as fitas do chapéu -- Estás mudo? O sabiá? Onde está?

Então ele balbuciou:

-- O sabiá... sim... ó...

-- Hein ?

--... Morreu...

-- 0 quê? Eu vou saber...

Ele tornava-se aos poucos mais senhor de si, sentindo crescer dentro um ódio brusco contra essa mulher insolente, de pé, na sua frente.

-- Sim, morto... Deitei-o fora...

A mulata olhou-o, trincando os beiços...

-- Morreu de saudades, atirei-o ao telhado... Um gato comeu-o...

Tinha-se levantado, com um sorriso de vingança, olhando-a furiosa, torcendo as luvas.

-- Estúpido! -- e caminhou para ele, trémula, invadida de um desejo enraivado de lhe cravaras unhas na cara, de o machucar...

Edmundo recuou, deixou a cama entre os dois, acendeu um cigarro, sacudindo da manga a penugem do passaro.

Honorina, gaguejante, aproximou-se da porta, para chamar o criado.

-- Já te disse que morreu... Encontrei-o morto, deitei-o fora...

-- Então morreu ?

-- Já te disse...

Teve que a ameaçar para a fazer calar, entupir o enxurro de insultos que lhe atirava à cara, furibunda.

Que obrigações tinha ela de o aturar? Nem dinheiro tinha, andava-a engando, sem um níquel no bolso para o bonde...

-- Esta é a minha vida, você sabe perfeitamente...

Se você for embora eu fico sem ter para pagar a conta...

Devo os olhos da cara, preciso pagar...

Naquela criatura inconstante já o pássaro esquecera, mas acesa de raiva, acusava o amante, descompunha-o, lastimando-se, rangendo os dentes.

Que não estava nos casos de sustentar azeiteiros...

-- Lembre-se que fui eu que lhe paguei as suas contas atrasadas, mais de setecentos mil réis de dívidas e resgates de penhoras...

Ela cresceu para ele, encolhendo a cabeça, os punhos cerrados...

-- E agora, você tem? Pode pagar o que eu quiser?

Acha-se no caso de viver comigo? Quem lhe mandou ser tolo? Quem quer mulheres paga-as!... Já ouviu?...

Hein...

-- Creio que ainda não lhe faltou nada...

-- Neste andar!...

Edmundo chorava, tomando-lhe as mãos, serenando-a.

Pelos outros quartos as mulheres ouvim e riam-se descaradamente atrás das portas.

-- Fala baixo, Honorina, toda a gente ouve...

-- E que importa que ouçam? Olhe, não vá morrer de vergonha, agora!...

-- Sossega... Amanhã eu tenho dinheiro, dou-te o que quiseres...

E falando assim, lembrava-se do outro, que a tivera um mês sem gastar...

-- Pois trate de arranjar dinheiro, senão já sabe, a porta da rua está sempre aberta... Casas de fêmeas nunca fecham...

De manhã cedo, Edmundo saiu, tolhido de vergonha, depois de uma noite levada a ouvir insultos.

Foi procurar Emílio, a ver se arranjava dinheiro, e só às três horas o encontrou, subindo a Rua de Ouvidor.

-- Fui-me lavar... Arre! Cuidei lançar a ceia ao levantar-me... Imagina uma capivara porquinha que nem um rato.

-- Basta... Basta...

-- Pois sim, não vás ter náuseas... Diz cá, e o estupor da mulata?

-- Vai bem...

Encostaram-se à esquina da Rua do Carmo, acendendo os cigarros.

-- Tu, que gostas de saber coisas bem negras de romance, já te contaram a do padre em Campos?

--- Não, o que foi ?

-- Encontraram um sotaina escarranchado numa santa, fechado na sacristia.

Edmundo pasmava, querendo saber tudo. Que contasse... E depois?

-- Diz o povo que deu com ele de mangalho de fora, fossando debaixo da túnica... Quiseram-no matar...

-- Infame!...

-- Deixa lá, isto é mesmo uma choldra... Cada um nasce com o coração feito vagina de histérica... Parece que o sangue dos de hoje tem sarro de esperma...

-- Raça ignóbil!...

-- Mas sossega, que isto tudo acaba em São João Baptista... Dura menos que as tuas amigações... E por falar nisso, precisas deixar essa caipira. Falam de ti, pelas ruas...

-- Que me importa?

-- Dizem que tu deves a todo mundo...

-- E então?...

-- Então é preciso acabar com isso... Tu não tens emprego, já não estudas, já não escreves, não hás-de viver de empréstimos... Qualquer dia vais parar na polícia por causa de alguma dívida... Toma cuidado...

-- Proíbo-te que me repitas semelhante coisa...

Edmundo falava com a voz presa, a custo, tremendo os beiços...

-- És uma criança... Se eu soubesse, tinha-me acautelado contigo... Dizer que fui eu que te levei lá outra vez!... Ainda me hás-de acusar de ser o responsável nisso tudo... Se ela fosse bonita, ao menos, se valesse um sacrifício... Mas uma cabocla, uma mulata! Não, não te deixo ir... Aonde é que vais tu parar de maneira semelhante?

Emílio!...

-- Sabes que mais? Até me pareces parvo com esses amores com uma mestiça... É baixo, é sujo... Amar uma mulher por cima de quem já passou toda a rua I Lembra-te só dos tempos que ela esteve com o portuga do marido, um homem branco, vendeiro, de barbas sujas, uma cara denegrida pelo sol, quando trabalhador da Estrada de Ferro. Pensa um pouco nesse par ínfimo e reles dos dois vendeiros, unidos num catre de lençóis porcos, ao fundo da loja, numa alcova... E quando um português de pé no chão a tratou como uma mulher para dar de pernas, queres tu fazê-la deusa e adorá-la, consubstanciada na ilusão! Uff! Parece-me que estou até a ver esse casal ignóbil de roça, o marido fedendo a chulé, suando como um jumento, chupando os beiços à tua mulata! «Bai mais uma, mulher?» E ela, toda dengue, cadela ciosa, encostando a cabeça no braço cabeludo do vendeiro, o nariz debaixo do sovaco, puxava a camisa de algodão, suspirando: «Faz amorzinho, meu bem!» -- Deixa disso...

-- É repugnante. E depois cantas-lhe um poema...

Não, não quero que vás, proíbo-te, não deixo... Vamos ao teatro, ceamos, passamos a noite juntos até à uma ou duas horas. Amanhã levo-te e Willegaignon, anda daí... Estás pálido, magro, amarelo... Tens icterícia...

Isso são ciúmes...

Edmundo deixou-se levar, sem forças para resistir.

Compungia-o um desconsolo imenso, a que se entregava dos pés à cabeça, percebendo-se só no mundo, sem ninguém que pensasse como ele, sem encontrar uma outra alma semelhante à que casar a sua.

Julião, bêbedo, levado por dois urbanos, a dormir no xadrez, entre os gatunos e os vagabundos...

E àquela lembrança atirava a vista em derredor, pasmando de ver os homens, percebendo-os miseráveis como chatos. Julião, preso!...

Rolava aquilo no espírito, de coração esgravatado por essa ideia terrível. Recordava essas horas tranquilas de outrora, quando o estudante recolhia epilépticos em casa e se consolava na sua miséria lendo os filósofos...

Teve vontade de ir até ao beco, espreitar no sótão, mas teve medo, recusou ante esse pensamento, temendo não encontrar o pobre amigo... E diziam ainda não ser só o mundo o culpado de todos os crimes, de todas as más acções! Aquele fora bom, resignado como um santo, pobre, com uma alma maior do que um tesouro, e tinham-Ihe exasperado aquele dócil instinto de bondade, a ponto de fazerem dele um ébrio, e amanhã? Talvez...

O quê? 0 que seria ele amanhã? O que seria no dia seguinte qualquer criatura? Um falsário? Um cadáver, um ulcerado? Um feliz?

Era bem verdade ser a sociedade uma pantomima cruel, com palhaçadas que vertem sangue, nada mais...

Os homens viviam isolados, fechados em si, ínfimos e fracos como formigas.

Os dois subiram a Rua do Ouvidor, calados, Emílio, olhando as mulheres, Edmundo absorvido pela sua moléstia de pensador.

-- Olha a tropa...

Do Largo de São Francisco escoava um batalhão de infantaria, com as baionetas riscando raios brancos no ar, e lá ao fundo, no meio das estilhas de aço, a bandeira verde e amarela balouçava, debaixo de uma lança doirada.

O coronel vinha num alazão arreado à gaúcha, freios de prata, estribos largos, peitoral com meias luas de metal batendo a peitaria ensoarada do cavalo. 0 militar, de calça vermelha listrada de oiro, firme na sela assente sobre um pelego negro de cabra, levantava a espada nua de comando. Tenentes passavam, fazendo garbo em retesar as pernas nos estribos, prendendo a rédea, obrigando o cavalo a morder o freio e a avançar a passo, aos galões, espumando, branco de espuma nos flancos.

E as companhias batiam as pedras com as botas empoeiradas, alinhadas, de capacete, deixando pelo passeio um fétido de caserna, uma catinga de animais suados, trôpegos de fadiga, tresandando transpirações fétidas de negros e caboclos e mulatos.

-- É bonito um exército! -- exclamou Emílio.

-- A mim, mete-me ódio e nojo. É a morte oficial...

0 soldado é o assassino com salário do Governo...

-- Besta! E a pátria então?

-- Besta és tu! Se há direito para matar por causa de uma bofetada diplomática, também devia haver o direito impune de morte para o esbofeteado publicamente no meio da rua. Ou a honra da pátria cora mais depressa do que a de qualquer homem ? Os homens é que fazem a pátria.

-- A pátria tem o direito de vingar-se.

-- Sim, há-de ser isso... A pátria tem até o direito de assassinar para roubar...

-- Isso é infame, Edmundo...

-- São modos de ver... Eu estou pronto a morrer por ela, mas a matar por sua causa, nunca!...

-- Nem para a defender?

-- Não, nunca! A mim não me dá ela esse direito.

Para que o reserva para si ?

-- Ora, é que nunca estiveste na guerra como eu, para ver como se escorcha um homem...

-- Um irmão, Emílio, na revolta só matavas irmãos.

-- Confesso-te que não. Aqui no Rio, de três que esmigalhei com machadinhas, dois eram italianos e um argentino... 0 recrutamento não escolhia... Lá o teu Ramalho de Alencastro, quando tenente, roubava os mortos...

-- É português?

-- Infelizmente já não é... Portugal expulsou-o e o Brasil deu-lhe duas divisas de oiro...

-- Nunca lhe fizeste pontaria?

-- Escondia-se atrás dos sacos de areia...

-- Dizem que prestou serviços...

-- Sim, invadia as casas, mandava para os quartéis os literatos...

-- Um benemérito, se soubesse escolher...

-- E se não enchesse o hospício de mães... e noivas loucas...

-- Lembras-te quando nós lhe falámos depois da morte da Celeste? Talvez já fosse embora; ele ia para o Pará...

-- Sim, talvez partisse.

-- E leva de certo alguma coisa ?

-- Não sei, deixa a condessa Gamiani traduzida...

-- Bem, vamos jantar, é melhor sair desta viela...

-- Onde?

-- No Reinaissance: só tenho dez mil réis...

Emílio estendeu o pescoço, puxou o colete olhando a gravata num espelho de vitrine.

-- Eu também não tenho... Mais isso arranja-se...

Os teatros são de graça... Com dois mil e quinhentos de jantar ficam sete mil e quinhentos... Estamos ricos, Edmundo... Podemos tomar absinto no Pascoal, e comprar charutos... Ainda dá para o licor... Vamos embora.

Empresta dez tostões para um ramo de violetas... Não achas que preciso de fazer a barba? É um instante...

Dá-me cinco mil réis, que eu volto já...

Edmundo lembrou-se que não tinha onde comer no dia seguinte, mas deu o dinheiro e foi esperar no Londres a beber vermute.

Era meia-noite quando chegou a casa. Entrou como um gatuno, para não fazer ruído, não acordar a criada.

Tinha-lhe medo. Aqueles seus olhos límpidos, calmos, só eles lhe diziam mil verdades horríveis.

O que pensaria a pobre velha? Há um mês que ele não pagava a roupa lavada, e nunca mais lhe ousara falar no dinheiro emprestado...

Quem sabe se a pobre de Cristo andaria precisando, a tirar da boca por não poder gastar?

Ficou de pé, à porta do quarto, sem se atrever a abrir, chegou a voltar as costas, a descer o primeiro degrau, mas a noite estava fria, com cara de chuva, sem estrelas. As árvores ramalhavam com tremuras de pavor pela folhagem. Meteu a chave, riscou um fósforo, e entrou no quarto. Descalçou as botas, para não fazer barulho, e foi cair na cama, tolhido de desespero, ansiado, mordendo os beiços para não chorar.

Estava tudo arrumado, os papéis em ordem, a roupa dobrada em cima de uma cadeira e mesmo em cima da mesa, ao lado do tinteiro, numa jarra, havia flores frescas, colhidas talvez à tarde. Edmundo olhava aquilo tudo, emudecido.

De todas as vezes que vinha a casa, às escondidas, para mudar de roupa, encontrava sempre flores no lavatório, e um cheiro bom de alfazema em tudo, falando-lhe dos cuidados da pobre velha, que o esperava sempre sem uma queixa, sem uma revolta. Desde que se juntara de novo com a Honorina, não tornara a falar com a criada.

Ela, compreendendo os seus escrúpulos, a sua repugnância, fingia não o ver chegar, e mal o portão rangia nos gonzos, retirava-se para a cozinha, escondida também, sem aparecer. Depois via-o partir, apressado, sem olhar para trás, e enxugava as lágrimas ao avental. Subia depois a cima, a apanhar a roupa que ele trocara, rezando a Nossa Senhora que fosse em companhia de Edmundo.

Uma vez só, estando a estender roupa no jardim, não pôde fugir a tempo, e ficou parada torcendo um lençol, olhando-o chegar. Logo baixara a vista, ante os seus olhos inquietos e duros, que a fitavam enraivecidos.

Nessa noite, a velha, acordada, tinha-lhe ouvido os passos e pusera-se a escutar, julgando vê-lo sair logo outra vez. E sofria, calcava os olhos com os punhos, a pensar que ele vinha agora assim de noite, altas horas, pelo frio, só para a não encontrar.

Edmundo, em cima, vendo arder a vela, rodeado de silêncio, lembrava-se da amante. Com quem estaria ela, a essa hora ?

Ficou assim muito tempo, de mãos cruzadas em cima da travesseira, sem movimento, deixando esvoaçar à larga dentro da caveira o bando agoirento de ideias negras. Parecia-lhe que dentro do crânio, com efeito, um turbilhão espiralava, batendo asas, sussurrante, bicando-lhe às vezes as fontes, que latejavam.

Eram inúteis essas tentativas de fuga. Por mais que quisesse, estava algemado pelo vício àquela mulher dos infernos. Fora dela não lhe restava mais nada. Era preciso pagar-se a sua companhia, nem que fosse preciso ir cavar dinheiro com as unhas. Irritava-o a lembrança desse outro, que a gozara um mês sem gastar um vintém...

Com ele, Honorina exigia sedas, jóias, carros para passear de noite, vendia-se caro, a ladra, sabendo que lhe era precisa como pão para a barriga.

De repente, um tremor abalou-lhe o peito. Quis tapar a boca com o lençol, mas teve que se curvar, roncando de tosse.

No silêncio, aquele ruído seco, aquele ladrar cavernoso, abriu um eco.

-- Agora a carcaça vai acordar -- resmungou ele...

Em baixo, a criada, vendo que ele não tinha saído, ergueu as mãos ao céu, agradecendo a Deus.

Vestiu-se, passou uma saia, deitou um xale aos ombros, por cima da camisa, calçou os chinelos.

Edmundo não largava de tossir, estremecendo todo à violência do ataque, que lhe rebentava o peito. De joelhos, curvado, os olhos cheios de lágrimas, expectorava aqueles latidos secos, que pareciam vir de longe, subir de um poço.

Sentiu obscurecer-se-lhe a vista, já não enxergava a luz. Sacudia a cabeça, tossindo sempre, e só quando parou e ergueu a cabeça viu a criada ao pé da cama, que o olhava, e lhe limpou a boca, toda babada.

-- Está doente, senhor Edmundo?

Ele, julgando que lhe ia falar no dinheiro, avançou uma resposta de um modo bruto.

-- Sossegue... Estive fora, amanhã hei-de receber dinheiro...

-- Ah! Senhor Edmundo, que o que eu queria era vê-lo bom... Nem fechou a janela, assim constipado!...

Deixe que eu vou buscar outro cobertor... E um chá de flor de laranja? Quer o senhor tomar um chá?...

Talvez lhe faça bem... Deite-se, está a apanhar frio...

E a criada ia e vinha no quarto, arrumado, tirando uma camisa de dormir da gaveta da cómoda, enchendo a bacia de água, para ele se lavar, voltando-se, chegando o xale aos ombros quase nus...

Edmundo não compreendia.

Tinham-lhe feito tanto mal que estranhava o bem, vindo de quem quer que fosse... Julgava-se indigno daquelas palavras de mãe, carinhosas, todas de afagos, e revoltou-se, enraivecido, lembrando as frases da amante, na véspera, a descompostura da rameira da mulher com quem ele gastava, por quem ele se ia tornando um miserável.

-- Não quero chá, não, escusa de trazer... Melhor é que se vá deitar...

A velha parou, triste, com um olhar de compaixão...

-- Ouviu, senhora Maria? E quanto ao dinheiro, só amanhã...

-- Eu não preciso de dinheiro, seu Edmundo...

-- Mas eu é que não gosto de guardar dinheiro dos outros...

-- Seja pelas santas chagas! -- balbuciou ela, juntando as mãos. E aproximando-se da mesa:

-- Tem aqui uma carta do Rio Grande... Veio hoje pela manhã...

-- Boa noite... Acorde-me cedo, tenho que sair, receber dinheiro... Ainda há café?

-- Há, sim, meu senhor...

-- Como há ?

-- Ainda, sim senhor...

-- Mas há mais de um mês que não mando comprar...

-- É que ficou um resto...

-- Que horas são ?

-- Já passa das duas...

-- Pois faça-me uma chícara de café, mas depressa, que me quero deitar... Bem quente, ouviu? Se é para trazer requentado é melhor nem vir cá...

-- Sossegue, senhor Edmundo, eu vou fazer... Mas não era melhor uma pinga de chá?

-- Fale verdade, mulher, há ou não há café?...

-- Ele há, sim senhor, mas pode fazer-lhe mal, assim de noite... Até tira o sono...

-- Não lhe perguntei isso... Veja se quer aqui ficar a noite inteira...

-- Eu vou, eu vou...

E a velha, aconchegando o xale, desceu à cozinha.

Acendeu o candeeiro de petróleo, foi dependurar o saco, tirar da lata duas colheres de café e pôr a água ao lume, que ela arranjou às pressas, com folhas secas e um pouco de carvão de choça, do ferro de engomar, para que não levasse tanto tempo a ferver a água.

Fazia aquilo tudo, limpando os olhos embaciados, tropeçando, apressada, murmurando baixo coisas só para ela. Trouxe a cafeteira, a chávena, a colher, um guardanapo; arrumou tudo na bandeja, olhando o lume, impaciente, atiçando o carvão como ferro de cozinha, soprando, ansiada por ouvir chiar a fervura.

Chorava, a pobre velha, e os murmúrios eram orações.

-- Pobre senhor Edmundo! -- repetia ela baixo, passando a mão magra e rugosa pelas faces, enchugando o choro...

Fora ventava pela noite como breu, espessa, onde ramalhavam soturnamente os arvoredos desancados pela chuva. O negrume engolira tudo na sua fauce de treva.

As árvores, as casas, os montes, desapareciam nas máxilas da noite.

A senhora Maria, parada agora na soleira da porta, ouvia o rosnar da enxurrada no ralo da área, e no meio desse ruído monótono do aguaceiro, das goteiras vertendo cordas de chuva no jardim, o chap-chap das poças rente às árvores suando um dilúvio, o zunir das vidraças e telhas, pareceu-lhe escutar um choro sumido como de alguém que por ali estivesse a agonizar na sombra, ao relento, caindo na lama, transido de frio...

Saiu fora, erguendo o xale de lã acima da cabeça, à espreita, pendendo a cabeça para ouvir...

Talvez que seja a chuva, pensou, e foi de novo até à cozinha, atiçar o fogo, aquecendo nas brasas as mãos molhadas, roxas de frio.

Perseguia-a aquele grunhir a fungar de choro entre-cortado, que enchia a casa, partindo de algum canto.

Ficava silenciosa, ouvindo, sem saber ao certo o que seria aquilo, chuva ou choradeira...

Deitou o pó no saco, verteu-lhe a água a ferver, deixando coar o café, distraída, com a alma toda nos ouvidos, naqueles suspiros e soluços, que pareciam ecoar ao lado dela, ali na sombra, a dois passos...

Subiu vagarosa as escadas, com a bandeja, e parou à porta do quarto, surpreendida, de olhos pasmos...

Edmundo chorava, sentado na cama.

-- Veja, senhora Maria -- disse ele tremulamente, fitando-a com o seu olhar dolorido de sofredor--, veja isto...

Pegou de cima da mesa a carta da mãe, voltou as duas primeiras páginas.

A criada pousara a bandeja, aproximando-se.

-- Veja... Veja isto, senhora Maria...

E limpava os olhos embaciados à manga da camisa, para ler...

-- Que aconteceu? Nossa Senhora! O que foi?

-- Veja... Veja...

Chegou a carta perto da luz, e leu: «Há oito dias, meu filho, que recebi uma carta anónima em que me dizem de ti coisas que eu não posso repetir. Julguei morrer vendo-te através dessas linhas, tão injuriosas para ti. E preciso ser bem má a pessoa que assim não trepida em ferir tão cruelmente o coração de uma pobre mãe.»

-- Nossa Senhora!

-- Pobre mãe! Pobre de minha mãe!

A criada deu um passo, sentou-se no tapete, aos pés do amo, escondendo a cara entre as mãos.

Edmundo tinha soluços secos, desses que chegam depois das lágrimas e que abalam o peito, sacodem o pescoço e rebentam na garganta.

-- Sabe quem foi ?

A velha fitou-o, erguendo os olhos admirados, interrogando-o, muda.

-- O Julião!...

-- Nossa Senhora do Amparo!

E ficou de boca aberta, olhar pousado em Edmundo, por cujas faces duas lágrimas deslizavam vagarosamente.

XVI

De manhã, Edmundo mandou uma carta ao editor, pedindo um adiantamento de dinheiro à obra, que em quinze duas devia estar concluída, asseverava.

O portador trouxe como resposta um cartão dizendo:

«Lembro ao Sr. Edmundo de Sousa o nosso contrato.

Como sabe, sendo essa obra propriedade de terceiros, vemo-nos na obrigação de seguir à risca todas as cláusulas do nosso contrato. Queira desculpar-me o não aceder ao seu pedido, porquanto mesmo nesta ocasião a melhor boa vontade da minha parte encontraria um obstáculo: a impossibilidade de desviar qualquer quantia de minha caixa, tendo que satisfazer sérios compromissos a vencer esta semana»...

Edmundo vestiu-se, triste e sombrio. Essa tábua de salvação, que na véspera lhe dera coragem para pedir dinheiro a um homem, a quem três meses antes ele se recusaria apertar a mão, essa única esperança, tão enraizada, que o levara a deixar um documento terrível nas unhas desse moedeiro falso, desse homem sem contemplações e sem carácter, capaz de pôr fora da porta a amante moribunda, capaz de vender na revolta os companheiros, capaz de furtar brilhantes a uma pobre Nina de São Paulo, essa última esperança caía. Edmundo viu-se entregue às mãos desse homem, a quem se comprometera entregar ao meio-dia o dinheiro pedido emprestado na véspera.

Não lhe restava um único recurso. Ir procurar Emílio?

Encontrá-lo-ia antes da hora ajustada? Recorrer ainda ao seu correspondente? Estaria ele em casa? Reaver dinheiros emprestados a um e a outro? Tudo isso era impossível...

Não lhe acudia sequer a ideia de ir falar a Ramalho de Alencastro, pedir-lhe mais uma hora de espera.

Baixar em frente àquele homem, não o faria nunca, certo ainda de que o não atenderia, devesse ele descer até à indignidade de ele negar esse favor. Fosse ele outro, caminharia com desassombro, empenhando a palavra sob a promessa de que à noite, o mais tardar no outro dia, satisfaria o compromisso...

Mas fora logo bater àquela porta..., sem se lembrar um só momento de uma contrariedade presumível, quase fatal...

E dentro de duas horas o seu nome enxovalhado ia correr a cidade, de boca em boca... Havia só uma pessoa capaz de tal infâmia, mas exactamente a essa pessoa estava ele entregue...

O que teria ele escrito nesse papel, deixado em seu poder? Devia ser qualquer coisa de bem indigno, para assim se não lembrar... Passara um recibo, sim, comprometendo-se a reembolsá-lo no dia seguinte... Mas além disso havia uma carta... Porque tinha ele escrito e não falado ?...

Parecia-lhe ter desperto de um sonho... Ele, que na véspera podia olhar toda a gente de frente, sem tremer, vergava agora a vista, corroído de vergonha... 0 que diriam dele ?

Ficava a pensar, caído numa cadeira, ralado de desespero.

Honorina acordou, procurando-o na cama.

-- Edmundo!... Já te levantaste? Que horas são?

Ele foi sentar-se na cama, perto dela.

-- Estás triste, que é que tu tens? -- e passava-lhe as mãos pelo pescoço, chegando-o ao peito descoberto.

Edmundo beijou-a nos cabelos, longamente. Depois, olhando-a, os braços descansados nos ombros nus da amante, olhou-a cheio de tristeza, como querendo levá-la na vista, para uma separação eterna...

-- Vais para o Rio Grande?

Ele disse que não, chegando-a a si, roçando a face nos cabelos soltos de Honorina...

-- Mas que tem benzinho? Estás tão triste!... Que mal fiz eu ?

-- Nenhum, sossega...

Eram tão meigas aquelas palavras, mas escondiam ao mesmo tempo um desespero tão grande, que Honorina estremeceu involuntariamente.

-- Tu tens alguma coisa, amorzinho... Diz, conta-me tudo...

-- Lembras-te do primeiro dia que nos vimos?

-- Sim, se lembro...

-- Desde então que eu vivo só para ti...

Ela debruçou-se nas travesseiras, envolvendo-o num grande olhar de paixão...

-- Sim, eu sei o que tu querres dizer... Eu advinho...

Tenho-te feito sofrer muito... Perdoa... Quando vens ter comigo, buscar um pouco de sossego, de felicidade, encontras-me nervosa, má, para te dar ainda mais tristeza... Ontem ainda, eu não sei o que disse, vi que estavas chorando... Oh! Verás agora, benzinho...

E os seus olhos, meio acordados do sono, contemplaram-no, resplandecendo de desejos...

Falava-lhe agora numa vida calma, cheia de amor, acendendo um cigarro, quase nua, roçando-lhe quase na cara o seio morno e perfumado.

Tinha promessas de grandes noites de gozo...

O passado não valia coisa alguma ao lado do que ela tinha ainda para lhe dar; sabia doutras carícias, o seu corpo guardava ainda muitos segredos...

Envolta na fumaça do cigarro, agachada nos lençóis, o cotovelo enterrado na travesseira, os cabelos numa rodilha, mostrava os dentes brancos, tinha risos, chamava-o criança, beijando-lhe os olhos...

Edmundo deixava-se ficar, rendido àquelas meiguices, mole, estendendo o braço à procura de um cigarro...

-- Não está mais triste, benzinho?

Chegava-se a ele, encostando o joelho nas suas pernas, passando-lhe a mão pela cabeça, inundando-o com a lascívia dos seus olhos enfeitiçados...

E no quarto meio às escuras, na cama desfeita, na sombra embebida de perfumes pesados, ela entrega- va-se, falando-lhe ao ouvido, segredando-lhe palavras viciosas, frases de delírio, com carícias perversas, termos de fêmea amorosa, agarrando-lhe as mãos, escondendo-as dentro da camisa, entre os seios rijos e trémulos, fazendo-o respirar toda a sua carne de febre, estendendo-se como uma serpente, arredando as roupas, mostrando o corpo moreno, brincando com a ponta dos pés na renda do cortinado, com longos murmúrios de desejos, com pedidos entre dentes, os lábios arrepiados, seduzindo-o, suplicando-lhe coisas em voz baixa, toda agarrada a ele...

Mas, vendo-o sempre triste, os olhos sombrios como poças, estremeceu, levantou-se, perguntando-lhe de joelhos o que tinha..., prometendo acabar de vez com as suas iras, as suas recriminações, as suas cóleras...

Ela podia ainda apagar-lhe com beijos toda a lembrança dos dias tristes... Queria que ele a amasse muito, que ele a amasse sempre...

Edmundo abraçou-lhe o pescoço, ligando as mãos sobre aqueles cabelos desfeitos.

-- Não, eu quero-te mesmo assim, assim como tu és... Os insultos como os teus beijos, o teu ódio como o teu amor, é isso a minha vida. Desde que venham de ti, que importa? É a ti que eu adoro, injusta ou apaixonada, maldosa ou consoladora... Todo o sofrer de que és causa, não o pagas tu com um segundo de carinho, um olhar de ternura?... O mundo nada me dá em compensação ao que me faz perder... É preciso que tu sejas muito minha amiga... Ouves? Percebes? É preciso que me queiras bem... Não te posso dizer mais coisa alguma... Adeus...

Até logo...

-- Já vais? É ainda tão cedo...! São só onze horas...

vê...

-- Tenho que ir... Convidei dois amigos para almoçar...

-- Não, tu tens alguma coisa, diz... O que te aconteceu ?

-- Nada...

-- Teus olhos não enganam, benzinho... Fica hoje comigo...

-- Não posso...

-- Tu fizeste alguma coisa, meu bem!... 0 que foi?

Diz...

Edmundo pôs-se de pé pálido.

Batiam à porta. Foi abrir.

Ramalho de Alencastre, no corredor, de chapéu alto, sobrecasaca e luvas brancas, estava-o esperando.

Ninguém havia de dizer ao ver aquele janota com brilhantes, quem ali estava escondido, naquela alma...

Edmundo estendeu-lhe a mão, pensando nos companheiros vendidos à polícia por esse homem, no tempo da revolta, nas noites de recrutamento, em que ele invadia as casas, armado, a roubar gente para osquartéis. Olhava-o todo chique, de flor na botoeira, e via-lhe no pescoço a cicatriz da facada de um capoeira.

-- Eu desço já, vai tomando um vermute, enquanto esperas....

Honorina levantara-se. Edmundo, ao fechar a porta deu com ela pálida, desconfiada, a olhá-lo fitamente.

-- Quem é esse homem, benzinho?

-- Um amigo meu... Convidei-o a almoçar...

E desviando a vista dos olhos receosos da amante, foi buscar a bengala a um canto do quarto.

-- Dá-me um lenço dos teus; o meu está sujo...

-- Lenço é separação, Edmundo -- Que tolice! -- disse ele, tremendo sem querer...

Ela, sem uma palavra, trouxe-lhe o lenço, -- Até logo...

-- E nem me dás um beijo?... Ah! Edmundo, tu fizeste alguma... Esse homem, não sei porquê, parece-me não ser teu amigo...

No restaurante, Ramalho de Alencastro esperava-o, sentado a uma mesa.

-- Homem! Julgava que não vinhas... Pensei teres ido embora...

Edmundo trincou os beiços, sem responder, e teve que o aturar durante todo o almoço, dando-se ares de senhor tratando um criado descontente das comidas, rejeitando o pão -- só comia pão bem tostado, mandassem comprar, se não tinham--, insolente, falando alto, mostrando-lhe o recibo e a carta...

-- Trouxe para te entregar... Quando receber...

-- Sim... Eu vou ao editor buscar dinheiro...

-- Vou contigo...

Edmundo sentia o suor descer-lhe às fontes. Pensou por um momento em ir pedir uma jóia a Honorina, para empenhar... Mas a sua ingénua bondade de criança expulsou logo da mente tal ideia. E era a única que o podia salvar da vergonha, lembrava-se ele... Sim mas até ali, caminhando às cegas, aos encontrões, de leviandade em leviandade, a sua consciência podia adormecer tran- 399quila. Se ele tinha pedido emprestado um dinheiro que não podia agora pagar, não o fizera com mau intento, e a prova é que deixara documentos terríveis entre essas mãos que lhe haviam dado o dinheiro... Esses papéis representavam em poder desse homem nada menos que a sua honra, o seu carácter, a sua vergonha... E como reavê-los ? Porque é que justamente o seu futuro tinha ido parar à mercê de alguém indigno de tais depósitos?...

Era preciso que estivesse completamente alienado para assim ter entregue o nome e a dignidade nas unhas de uma criatura que costumava a mercadejar com especiarias semelhantes, depois de ter vendido a sua ração de consciência e honestidade... Aquele homem podia dar o destino que quisesse a esses papéis firmados pelo seu nome, desde que ele os não resgatasse...

E não valiam assim tão pouco esses papéis!...

Horrorizava-se só em pensar em tudo isso, e precisava aparentar tranquilidade, ter um sorriso, um ar despreocupado, para não levantar a mínima suspeita, para que esse homem não o chamasse ali mesmo de tratante...

Era para desvairar, para o deixar doido...

Pensava em Deus, esperando ainda qualquer coisa do acaso...

Sim, porque aquele recibo, onde ele empenhara a sua palavra, esse papel que valia nem mais nem menos que a perda da felicidade, do futuro, dos amigos, esse papel que se podia converter numa bofetada, representava apenas para Ramalho de Alencastro uma quantia...

Nas mãos de outro qualquer seria a abdicação de um carácter e como tal sagrado. Quem não se sente capaz de fazer mil sacrifícios para resgatar a honra perdida, a honra cativa a uns míseros patacos?

Mas isso teria razão de ser para qualquer que soubesse aquilatar a honestidade e a honra... Aquele homem ignorava o que aquilo fosse...

Edmundo via-se esmagado por uma fatalidade a toda a prova...

Fora ela quem encaminhara os seus passos até aquela armadilha... Que mal lhe podia advir o demorar mais um dia, dois, três, o pagamento de uma conta da amante?

Mas a sua má sorte empurrara-o aos pontapés, sentia-se perdido sem remédio...

Três vezes esteve para falar, pedindo uma demora, que lhe concedesse um dia para comprar a posse desse recibo, mas das três vezes a palavra recuou na garganta e a consciência impediu-lhe de suplicar tal coisa...

Fazia o possível por serenar, fazer entrar a ordem, a calma, entre o alvoroço e o desvairamento do seu espírito, e perguntava: É possível pagar daqui a uma hora esse dinheiro? Não, não tinha aonde o ir buscar em tão curto prazo. Então porque o pediste, se sabias que te não era possível pagar? Eu contava fazê-lo, julgava ser satisfeito o pedido da minha carta ao editor. Tinhas a certeza disso?

No momento em que, sem pensar no que fazia, ousei pedir emprestado esse dinheiro, tinha a certeza.

Como o provas? Se assim não fosse, como explicar o ter passado um recibo que valia todo o meu futuro?

Um recibo em que dava em troco de dinheiro o nome, a honra, a vida? E contas pagar esse dinheiro? Sim.

Com quê? Com a minha mesada, que devo receber por estes dias. Demais, o meu correspondente dar-me-á dinheiro numa circunstância destas.

E desse diálogo mudo, concluía que a sua consciência devia estar tranquila.

Repelia toda a ideia de pedir um anel ou uma pulseira à amante. Nem sequer algumas dessas jóias que lhe dera.

Não se queria desonrar à sua própria vista.

Valia ainda mais o opróbio dos outros que a repulsa de si mesmo.

A consciência ainda erguia um facho de esperança em toda a treva em que se debatia, e foi com um sangue-frio inesperado que, ao esgotar o copo de vinho, pensou na morte.

Até ao fim do almoço, conservou-se sombrio, respondendo distraidamente às perguntas que se lhe faziam.

-- Então vais receber muito dinheiro, hein?

-- Algum, com que te pagar isso...

-- Sim, mas com os móveis...

-- Posso arrepender-me ainda de lhos ter comprado...

Creio que estão em seu poder...

Ramalho de Alencastro olhou para ele, espantado...

-- Sim, eu apenas lhe devo a miserável quantia de cento e cinquenta mil réis... Bem vê não ser preciso muito dinheiro para pagar-lhe a minha dívida... Mas sossegue; se não for hoje mesmo, amanhã ou outro dia, eu comprarei os móveis, cumprirei a palavra dada.

Até que enfim!

Sentia-se com forças, capaz de correr com esse homem, que parecia abusar dele, por ter no bolso da sobrecasaca um pedaço de papel escrito por seu punho. Revoltava-se interiormente contra essa cega injustiça da sorte.

Parecia-lhe impossível cair tão baixo, sob tais tacões.

Julgou encontrar um amigo na rua a que pedir a quantia, e esteve mesmo para fazer esse pedido ao proprietário do restaurante, o qual lhe não negaria tal favor...

Mas a fatalidade quis que assim não fosse, desviou-lhe todos esses recursos, e ele deixou-se assim, um a um, com mil escrúpulos de consciência.

Saíram os dois para rua. Alencastro contava casos da infância, falando da viscondessa sua mãe...

Edmundo sentia-se como que embriagado, tolhido de pensar, lembrando-se só das últimas carícias de Honorina, e da sua frase agourenta de feiticeira: «Lenço é separação...»

E para duvidar chegava esse retalho de seda às narinas, absorvia-o com o seu forte odor de heliótropo branco, o perfume predilecto da amante.

Entraram os dois no Pascoal para tomar um licor.

Edmundo tremia. Foi espiar num jornal algum conhecido.

Perguntou pelo Emílio, ninguém lhe dava notícias...

-- Espera-me aqui um pouco, enquanto eu vou ao editor...

-- Não, não, eu vou contigo, o que é que tem?

-- Mas...

-- Qual história... A não ser isto tudo um conto do vigário...

A pobre criança estava numa tortura... Pensou em contar-lhe tudo, em mostrar-lhe a inesperada resposta do editor à sua carta... mas também não queria ceder um passo à desconfiança de Alencastro.

Aquela confissão de nada lhe valia, tinha a certeza.

Às primeiras palavras ressaltaria a mentira... Ele asseverara na véspera que tinha a receber dinheiro, isso que dissera tinha-o mesmo escrito... Seria preciso contar uma longa história e as desculpas só se toleram em três palavras... Tinha o receio de o ver sorrir, incrédulo, à primeira frase, e não ter coragem de continuar.

Viu o irremediável da sua situação... Acudiu-lhe nesse instante uma ideia, a única salvadora, a derradeira esperança a que lançar mão: ir a casa do correspondente, trazer o dinheiro... Mas era preciso ir só, esse homem não o deixava, como um polícia atrás de si...

-- Vamos engraxar as botinas?

-- Vamos, sim...

Era com certeza Deus que vinha em seu auxílio.

Quando o viu sentado, pretextou ir comprar um jornal.

Voltou a esquina, tomou um tílburi, mandou tocar a toda a pressa para a Rua Primeiro de Março.

-- O senhor António?

-- Deve chegar depois de amanhã de São Paulo.

Estava perdido, sem remissão.

Como um doido, seguiu em direcção às lanchas Ferry, para se deitar ao mar...

Daí a minutos o seu nome estaria na boca de toda a gente... Esse homem pensaria que ele tinha fugido, para não pagar... Ao meio do caminho de Nictheroy quis voltar, rangia os dentes, teve que trincar o lenço para não soluçar ali, à frente de todos, como uma criança...

Perguntava porque os outros pareciam tão felizes, quando ele era tão desgraçado, e o que mais o afligia, o que, mais do que tudo, o desesperava, era o não se julgar culpado, o imaginar-se incapaz de uma tal infâmia, de uma tal acção...

Iam chamá-lo de gatuno, nos cafés, nos jornais, pelas ruas, por toda a parte... Ramalho de Alencastro tinha-lhe falado em conto do vigário... Assim, Pai do céu!

Iam julgá-lo um larápio... um ladrão...

Ah!, como se arrependia da arrogância de outrora, esse desprezo com que tratara tanto infamado, talvez tanto inocente como ele, vítima da má sorte, do destino cego e implacável... Aí estava ele, cometendo uma acção de cadastro policial, numa inconsciência, numa leviandade, por uma série de fatalidades inexplicáveis... Prometia-se nunca mais em dias de vida acusar quem quer que fosse...

-- Tinha aprendido à sua custa e bem dolorosamente, ai dele! Vira Julião, essa alma mais cândida do que os três anos de uma criança, esse coração maior que o do mais resignado dos padres, envenar-se de desgraça, danar-se como um cachorro apedrejado, revoltar-se contra a felicidade dos outros, rangendo de inveja, alucinado de raiva, vingar-se na sua pobre mãe, porque o julgava feliz com uma mulher... Sim, tinha visto um amigo, o mais estremecido de todos, descer à infâmia para apanhar uma pedra, para a lançar ao mundo, numa bravata hedionda... Tinha visto este pobre amigo baixar da solidão do seu sótão para vir cair bêbedo na calçada... Vira voltar-se contra si a vendetta desse infortúnio... e perdoava-lhe, sim, perdoava de todo o coração, aquela punhalada vibrada ao peito de sua mãe pelo seu único amigo, porque percebia bem nesse braço pérfido, indigno e traiçoeiro, toda a alucinação da miséria, toda a cegueira da desafronta...

E nem ao menos aquele infeliz se tinha vingado na felicidade... Fora ferir uma velha inocente, julgando pagar-se assim numa fortuna que ria ao lado da sua indigência... Mal sabia Julião que essa fortuna era de lágrimas, que essa felicidade vinha cair na boca do mundo, reduzida a um conto do vigário...

Em Nictheroy deu em caminhar ao acaso, precipitadamente, como fugindo. Chegou assim, ao escurecer, a meio de uma estrada. Sentou-se, deixou-se cair, sem poder dar mais um passo. Voltou para a cidade, sem saber para onde ia, para se entregar...

No Largo do Paço encontrou Emílio, que vinha de jantar no Hotel de França...

Contou-lhe tudo, num portal, arrastou-o até ao mercado, levou-o para perto de um candeeiro, para que o visse chorar.

Emílio escutava, pasmo, sacudindo-o, dizendo-lhe apenas a momentos:

-- Estás doido?...

Edmundo, pálido, os olhos fundos, as roupas sujas de pó, soluçava, torcendo as mãos, desesperado, abatido, vergado por esse dia inteiro levado a andar, a andar, a andar...

-- Mas é verdade, isso tudo?

-- Oh! Se é verdade!... Não me perguntes, meu amigo...

-- Ouve, Edmundo, eu não tenho dinheiro...

-- Nem eu...

Ficaram os dois parados, mudos, em frente ao mar.

A espaços, um soluço vinha morrer nos lábios de Edmundo.

-- Não conheces ninguém, fora daqui ?

-- Para quê?

-- Nem eu sei... És ainda meu amigo?

Emílio apertou-lhe as mãos.

-- Estás com febre...

-- Que importa?...

Enxugou as lágrimas àquele lenço dado por ela, aquele lenço perfumado, o lenço da separação.

-- Vai à cidade, à Rua do Ouvidor, Emílio... Pergunta por mim e volta... Eu espero-te aqui... Sento-me neste degrau... Vai depressa...

Emílio viu-o esconder a cabeça vergada nas mãos e afastou-se.

Quando só, Edmundo ergueu-se, atravessou o largo, falando só, as mãos pendentes, caminhando a custo em passos trôpegos, de aleijado.

Entrou no Beco da Fidalga, subiu os trêstandares da casa do Julião, indo bater à porta, entrou.

O luar coado pela vidraça inundava o quarto, desde a cama, desfeita, até a mesa onde rolavam os livros, fechados havia muito tempo. Debaixo da cadeira estavam três garrafas de conhaque vazias e em cima do lavatório uma de cachaça pelo meio. Os estojos de dissecação, todo o arsenal de anatomia, que tinha custado tantos sacrifícios ao estudante, tinham saído para as casas de prégo.

A caveira estava atirada a um canto e uma aranha tinha feito a teia entre os queixos desse crânio. Edmundo apanhou-a.

A lua batia nesse caco de gente, nessa casca dura como pedra, que já contivera um pensamento, onde já morara um espírito. Edmundo estava tão lívido como a caveira.

Olhavam-se os dois. A caveira parecia rir pelas chanfraduras nasais, nas fossas cavadas das órbitas, arreganhando os dentes, os incisivos, os caninos, os queixais, as maxilas rasgadas até ao côndilo. Era medonha assim, essa caveira, porventura talvez de uma mulher bonita ou de um desgraçado, ou de um feliz, quem saberia dizê-lo?

Naquelas órbitas escuras, vazias, despejadas pelos vermes, pelas larvas, pelas toupeiras, existiram uns olhos que viram o mundo... Que julgamento teriam eles levado para a cova! Que pensamento preocupara por derradeiro aquele crânio? Qual teria sido a última palavra daquela boca aberta, escancelada, entre as duas maxilas ?

Edmundo, encostado à mesa, olhava tristemente essa caveira...

-- Se fosses minha, eu saberia responder a todas as perguntas que me assaltam... Estas arcadas, estes túmulos saqueados onde arderam os olhos, estas fossas, teriam guardado um olhar sempre vergado sobre a maldade e a infâmia dos homens... Nesta caverna amarela de osso teria rebocado no derradeiro momento uma ideia terrível, uma horrenda e tenebrosa maldição...

Nesta boca teria sido despejada a última praga de uma alma, enfim livre da carne...

«Ah! Se tu fosses minha, mísera caveira, esse teu riso seria uma gragalhada à face dos homens...

«Depois de oca estás cheia de filosofia, anónimo despojo de um homem!... Para que te abrigas tu, osso, os martírios, as lágrimas, a dor, o sofrimento, a alegria de uma criatura, se tudo tinha de acabar nesse aleijão mudo, disforme, horrendo e nulo?

E Edmundo deixou cair no chão a caveira, que rolou no soalho, surdamente. Sentou-se à mesa, escreveu numa folha de papel: «Não te quero mal pelo mal que me fizeste. Não invejes ninguém, sempre hás-de encontrar alguém que te inveje a ti. Eu, por exemplo, chego a invejar esta caveira que aí está no chão!» Assinou, largou a pena, saiu do quarto, desceu lentamente os três lances de escadas e foi esperar o amigo, sentando na pedra, no cais, a cabeça de novo escondida nas mãos.

Não esperou muito tempo. Sentiu tocarem-lhe no ombro, levantou a cabeça.

-- Tens ordem de prisão, precisas sair imediatamente do Rio...

-- Já sabia...

-- Quanto dinheiro tens?

-- Treze mil réis...

-- Má conta...

Edmundo sorriu... Lembrava-lhe a história do lenço.

-- Vamos tomar um bote...

-- Para onde?

-- Para a ilha do Governador... São oito horas; às nove estamos lá...

Edmundo deixou-se levar-se num bonde até o Largo da Imperatriz...

Ouviu fretar um bote para o Zumby. Sentaram-no; o remador pegou nos remos e o barco afastou-se.

Emílio parecia dormitar, cabeceando a cada movimento do bote nas vagas.

Edmundo pensava no futuro... Os seus olhos só alcançavam o cemitério... Via um vulto debruçado sobre uma sepultura, de joelhos, rezando... Era a mãe...

Aquela viagem pela noite dentro, sobre o rumor das ondas, parecia-lhe o enterro da sua vida, entre o murmúrio do mundo...

A lua iluminava toda a baía, como uma lâmpada suspensa sobre um palco. Os navios estacavam na claridade, estendendo a sombra dos mastros nas águas.

Toda a luz gera uma sombra. Assim, a alegria é seguida pela tristeza, o noivado da viuvez, a felicidade da desgraça, o bem pelo mal. Inclemência dos céus...

Mistério da providência, esse da sombra consequência da luz. Estava-se dando a mesma coisa com ele. A alma conservando-se branca mergulhava-o em treva.

Os seus amores iam dar na polícia.

A meio do caminho, Emílio, levantando a cabeça, apontou na cidade um clarão e disse:

-- Um incêndio...

Edmundo repetiu maquinalmente essas palavras:

-- Um incêndio..., -- e ambos recaíram no seu silêncio.

0 barqueiro começou a cantar. Os dois ouviam e olhavam-se de instante a instante, à lembrança desperta de dias alegres.

Até que ao longe avistaram-se umas luzes rindo ao luar.

Duas lanchas carregadas de telhas vinham da fábrica de Santa Rosa.

A olaria, a um debruço da ilha, despejava no luar uma leve mortalha de fumaça. A chaminé parecia um braço erguido num arremesso aos céus. Pequenas ilhas agachavam-se nas águas claras, cobertas de palmeiras, um casco de navio naufragado punha um risco preto rente à praia. Adiante uma capela em ruínas, bombardeada na revolta, com a cruz de braços partidos, depois uma torpedeira encalhada, mergulhando toda a proa no mar, e lá ao fundo, na areia branca, umas catraias diante de umas casas, vinte ou trinta, a povoação de pescadores onde Moreira César banqueteava a morte ao som da fuzilaria.

Emílio erguera-se, e apontando uma clareira entre o arvoredo de um monte, mostrou a Edmundo:

-- Ali é que enterraram os mortos, no fim do combate...

-- Sem uma cruz sequer?

-- Qual! Os túmulos da igreja encheram-nos eles de excremento...

-- Meu Deus!...

Ficaram os dois calados, dando-se as mãos.

A lua levantara o pano das trevas ante aquela cena de teatro. O mar lambia a praia, num balbúcio contínuo.

Redes estavam penduradas em cercas enterradas na areia. Todas as casas, como um bando de garças entre o arvoredo, eram brancas, caídas. Muma sanfona soava uma modinha e uma voz ilhoa, rouca da maresia, uma voz de pescador, cantava a trova.

-- Deve ser bem feliz quem aqui vive?...

-- Parece-te? Olha bem lá ao fundo, a cova dos mortos... É que tu não viste como eu os soldados saquear de casa em casa, e os pescadores, carregados de algemas, partirem chorando, vendo os barcos de pesca varejados pelas balas e as mulheres chorarem agarradas aos filhos...

-- Assim não há um canto do mundo onde tudo seja sossego, paz, amor, felicidade?...

-- Não!... Nem no beijo de uma mulher, que é um sopro...

-- É verdade...

0 bote atracava. Emílio desceu na ponte e estendeu o braço a Edmundo.

-- Agora vamos...

-- Aonde?

-- A casa de um revoltoso...

Emílio seguiu um atalho sombrio, entre árvores.

Estavam já todas as portas fechadas. Apenas numa venda a sanfona acompanhava a trova do pescador.

Pouco a pouco, a voz foi-se sumindo e tudo recaiu no silêncio.

Andaram assim os dois quase uma meia hora, num carreiro entre mato. Um cão ao longe latia. A uma volta o mar reapareceu, claro, vincado por um sulco de luz caído da lua, que subia lenta, cor de fósforo.

Atrás de uma cerca havia uma casa pobre de duas janelas.

-- É aqui -- disse Emílio, empurrando a cancela.

Sentado na cama, um homem de uns quarenta anos, moreno, de óculos, estava lendo. Esse homem levantou a cabeça, espantado, estendendo a mão a Emílio, que se voltara para apresentar o amigo.

O pequeno quarto onde se achavam, de paredes rebocadas, com dois trastes velhos encostados aos muros, era apenas alumiado por uma candeia de azeite. Respirava-se a miséria daquela soleira para dentro. Edmundo olhava essa pobreza e esse homem abatido, que deixara cair o livro nos joelhos... Estava descalço, enfiado numas calças de brim azul com remendos nos joelhos e uma camisa de algodão...

-- Ouve, Edmundo. Aqui onde o vês, o Castro foi o pai de todos estes pescadores... Estudou medicina para curar os pobres, farmácia para dar os remédios...

Aqui toda a gente lhe beijaria as mãos se ele deixasse...

Um dia viu os soldados desembarcarem na ilha, arrombarem as portas e roubarem as casas... Fez-se revoltoso...

Hoje está pobre... Hás-de estimá-lo muito em poucos dias... Como vês, há muita gente que sofre neste mundo...

-- E haverá alguém que não sofra? - -- Há gente para quem todos os castigos da terra são pequenos e que Deus reserva para castigar no outro mundo...

Fora Castro quem falara.

Uma criança rota veio espiar à porta.

-- Diz lá que façam duas camas na sala... e para aquecer o café.

-- Os colchões são de palha, mas agora não tenho de outros, hão-de desculpar-me...

-- Bem vês que não fui bater a outra porta, vim direito à tua... Mas deixemos isso de parte, para logo...

Tu agora o que fazes?

Os olhos de Castro tremeram. Edmundo fitava-o, cheio de veneração, atraído por uma simpatia imensa àquele homem tão resignado ao peso da desgraça.

-- Agora estou cavando casca para vender à fábrica de cal...

-- Tu? Um médico?

-- Não, um pobre... E depois, cada um trabalha como pode...

A criança tinha entrado e foi encostar-se ao pai.

Castro passava-lhe as mãos pelos cabelos, acarinhando-o, e no seu olhar tão calmo e tão sereno, Edmundo cuidou ver uma lágrima tremendo.

No dia seguinte à tarde, Emílio partiu para a cidade, levando uma carta de Edmundo para António do Couto.

Emílio prometeu voltar no dia seguinte na lancha das cinco horas...

Edmundo tinha passado toda a noite com febre e acordou escarrando sangue.

XVIII

Castro acompanhara Edmundo até ao Zumby.

Eram cinco horas e já ao longe, atrás do monte, subia a fumaça da lancha.

Na praia, um casamento esperava a chegada do escrivão, que tinha ido à capital. A noiva, uma rapariga branca, de olhos negros, magra e linda, estendia o pescoço, impaciente, ao lado do noivo, um latagão, um pescador queimado pelo sol e pela maresia, de cabelos ruivos e um olhar manso de gaivota.

Atrás, os velhos sorriam felizes, falavam aos conhecidos, estendiam as mãos a toda a gente.

Tinham vindo da freguesia, a pé, depois de terem casado os filhos na casa do Senhor, e pareciam perguntar para que servia isso de escrivão e juiz de paz em negócios de amor, abençoados na igreja aos pés do padre, nos degraus do altar...

Edmundo subira a gola do casaco, transido de frio...

Aquela lancha que lá vinha cortando as águas com a sua proa pintada de verde, o que traria ainda ela de horrível ao seu martírio?... Uma consolação, um abraço amigo? Ou uma recriminação, mais um ultraje, mais uma dose de desespero, de sofrimento, de dor?

E tremia, sentindo as forças abandoná-lo, sentindo bem que já não podia mais e cairia ali sobre uma nova desgraça...

Para essa gente tão simples, tão feliz, para esse casal tão alegre, sabia ele que nessa barca vinha a realização da sua felicidade... Seria possível que o infortúnio acompanhasse a boa sorte?

A lancha aproximava-se cada vez mais.

Distinguiu uma farda à ré, entre um grupo de homens.

Edmundo fechou os olhos, estendendo já as mãos para o prenderem.

Viu de um relance a polícia, os interrogatórios, a casa de correcção...

Mas o que tinha feito ele? Que crime cometera?

Ficou hirto, sem dar um passo, o coração parado, como se estivesse à borda de um abismo e bastasse abrir os olhos para se precipitar, tomado de vertigem... Nesses minutos de angústia viveu ele dez anos.

Ouviu o ruído da lancha que estacava... Abriu os olhos à procura de Emílio...

Alguém lhe entregou uma carta... Compreendeu que era forçoso partir...

Despediu-se do Castro, abraçando-o, com os seus olhos marejados de lágrimas.

-- Então já vai ?

-- Já sim, adeus...

E ficou de pé na proa, olhando a branca povoação de pescadores, a vista embaciada, as mãos trémulas, seguindo de longe aquele casamento, aquele punhado de gente, destinada por Deus a ser feliz.

Não tinha ânimo de abrir a carta, que ele conhecera ser do amigo. O que diria aquela folha de papel?

Fizera mal em não a ler antes de embarcar... Quem sabe se era exactamente para tolher essa viagem que Emílio lhe escreveu ?

As mãos caídas, angustiado, sentia um desespero, a cavá-lo por dentro, uma dúvida horrenda a quebrar-lhe a cabeça, parecia-lhe abrir-se a seus pés uma cova, e que o enterravam vivo, calcando por cima a terra com as costas de uma enchada.

Levantou os olhos, pregou-os nessa cazinhola onde agonizara as mais tremendas horas da sua vida... Aquelas paredes tinham ficado impregnadas do seu desespero, da sua dor, o do seu martírio...

Então deixou-se cair no banco, rasgou o envelope que deitou ao mar, e leu esta carta:

«Logo que cheguei soube que tinha intimação da polícia para dar explicações sobre um tal Edmundo de Sousa, que escrevia nos jornais.

Corri imediatamente à primeira delegacia, onde me interrogaram longamente sobre a tua vida, compreendes que as minhas informações, sinceras, leais, sem dissimulação, sem máscara, só conseguiram desnorteá-los na opinião que parece faziam de ti. Exigia-se de mim saber onde tu estavas para se fazer efectuar a ordem de prisão.

Declarei que não sabia, e que mesmo que o soubesse de modo algum seria um denunciante. A minha resposta exasperou-os.

Uma carta tua (entre parêntesis) cheia de erros de ortografia, a prova mais cabal de uma falta de brio nunca vista, ou de um estado cerebral pungente e por isso desorganizado, achava-se sobre a mesa. Roubeia-a.

À noite alta fui a casa de teu correspondente.

A cidade cheia da tua vergonha; eu mesclado a tudo isto como Pilatos no Credo... Não me defendo...

Os teus amigos ou «pseudo» teus amigos, a darem-me parte na responsabilidade de teus actos.

Francamente estou cheio...

Venho de impedir em três jornais «apedidos» que te cobriram de ignomínia, em que se folgava da tua desgraça...

Chego neste momento, extenuado, louco de cansaço, maldizendo a hora em que a tua afeição se me entranhou na alma, abandonando por ti amigos tão leais, tão sinceros, tão honestos... E no entretanto, apesar de tudo, eu tenho a insensatez de gostar muito de ti.

Assim, aliviando-te da rede das acusações de todos os labéus, com que os teus inimigos tinham forjado a perdição do teu nome, soulagé dessa grande aflição, respiro, como se de novo te houvesse encontrado puro aos meus olhos, sans tache, como no primeiro dia em que te encontrei...

Junto um cartão do Sr. António do Couto.

Abraça-te, pobre Edmundo, o teu Emílio de Alcântara.»

O cartão dizia apenas: «Comprei passagem para o Rio Grande, paguei ao Ramalho de Alencastro. Vem já para casa.»

Quando acabou de ler viu uma lágrima cair em cima do seu nome. Julgou-se doido. Passou as mãos pelos olhos para se certificar de que não estava chorando.

Um outro pingo de água caiu...

Não era dele que desciam as lágrimas, era do céu que tombava a chuva...

A tosse abalava-lhe o peito, rasgando-lhe lá dentro qualquer coisa.

O noroeste vergastava-lhe a cara roxa de frio.

Passou os olhos pelo mar, pelo céu, e arrepiou-se dos pés à cabeça...

Ao fundo do horizonte, além, ao cabo da baía, o sol desaparecia entre nuvens, já sepulto a meio num roldão negro... E esse sol cor de lava, vermelho como a brasa, cortado por um listrão negro, parecia, era mesmo, uma caveira, uma cabeça de morto, um crânio arreganhando os dentes, rindo-se dele, como um jornal mandado por Deus para lhe mostrar a sentença fatal...

Caiu com a cabeça entre as mãos, assombrado, louco...

A cidade avançava a olhos vistos, crescendo no mar. A chuva obscurecia o céu... O vento fazia jogar violentamente a lancha.

Os navios de guerra acendiam os faróis, 0 de todos os lados surgiam luzes, cravejando as duas cidades, Nictheroy estendida nasombra e o Riode Janeiro erguendo a dois passos as suas torres, o zimbório da catedral, a mancha negra das casas.

Sem saber, vendo os outros saltar, achou-se no cais das Marinhas, em frente ao Largo do Paço.

Caminhou ao acaso, pela chuva, enterrando os pés nas poças de água.

Lembrou-se que tinha fome, comprou um pão e foi comer para um portal, no escuro. Sentia-se enregelado até aos ossos. A tosse esgaçava-lhe o peito.

Teve medo que o encontrassem no meio da rua, assim alagado e esfomeado.

Desandou a caminhar, rente às paredes, para alcançar um bonde, mas já sentado, viu que só tinha um tostão e a passagem era de duzentos réis.

Cada vez chovia mais. Relâmpagos corriam os céus negros. Trovões tripudiavam sobre as nuvens, esfarrapando-as, rasgando-lhes o ventre, de onde sangravam raios lívidos de luz.

Quando chegou ao Campo de Santana, Edmundo tinha toda a roupa trespassada pela chuva. Batia o queixo, os dentes estalavam uns sobre os outros. A tosse empurrava-o sempre, como um frangalho, para a sepultura...

Nas suas faces alagadas desciam lágrimas, e ia assim curvado, ofegante, correndo quase, agarrando-se no mangue às grades do canal, arredando-se dos polícias, tremendo até aos ossos, gaguejante, murmurando destroços de orações, como um ébrio, tropeçando nas juntas da calçada, sempre à direita, sem parar, até ir à estação dos bondes, exausto, com o níquel apertado na mão, sentindo sempre no peito uma luta, uma convulsão, como se lhe estivessem escorchando qualquer coisa no fundo da caverna do peito, alguma coisa que ele sabia bem ser a sua vida, a sua vida que estavam a garrotar, a estrangular, a esganar...

Esteve à espera do bonde, quase uma meia hora.

Passavam-lhe pela lembrança bandos de dias tristes...

Todo um passado de dias sinistros precipitando um voo para aquela noite suprema, onde, sob os trovões e os relâmpagos, ele sentia acabar-se-lhe a sua existência...

Enfim chegou à casa, avistou a morte a seguir-lhe os passos na sombra projectada pelos reverberos.

Encostando-se à parede, depois às árvores, chegou às escadas, sem forças para subir, deixando-se ali ficar, à chuva, ao vento, sentado na lama.

-- Senhora Maria I... -- gritou ele em voz sumida... -- Senhora Maria!...

Vendo que não lhe respondiam, pensou que a casa estaria abandonada, que se tivessem ido embora dali para o não receberem.

Quase de gatinhas, soluçando, trepou os degraus...

Arrastou-se na varanda, foi cair de encontro a porta do quarto, ouvindo vozes...

O negociante e a criada correram com a vela, àquele baque de um corpo, rente à porta.

-- Sou eu, António... Senhora Maria, sou eu...

Sentiu que o apanhavam, lhe despiam as roupas encharcadas...

-- Edmundo! Que é isso...? Acorda...

-- Senhor Edmundo!

Ele abriu os olhos, tornou-os a fechar, sem uma palavra.

A cabeça caiu-lhe sobre o peito a que levou ambas as mãos batendo os dentes, os cabelos empastados de chuva, o corpo a escorrer...

A criada encostou-o no divã, rasgou-lhe a camisa, arrancou-lhe os sapatos, as meias, embrulhando-o num cobertor...

-- Preciso descansar -- murmurou ele sem levantar os olhos...

Deitaram-no.

Edmundo ardia em febre, agiava os braços, arredando visões no seu delírio... Pedia a carta, que lhe trouxessem a carta!...

Injuriava-se, debatendo-se debaixo dos lençóis, abalado de tosse, as palmas e as fontes alagadas.

O negociante procurava consolá-lo... Quem não tinha feito a sua doidice, nos bons tempos de rapaz?

Quem não pagara já esse tributo de mocidade? Se ele tivesse mais dívidas, pagavam-se... Não era caso para se desesperar assim, o dever dinheiro...

Edmundo fitava-o com os olhos espantados, falava na polícia, na casa da correcção, vertendo lágrimas, tremendo de medo...

Agitava-se na cama, descobria-se, atirava a roupa...

Sentia um inferno dentro do peito... Escarrava no soalho, nas travesseiras, na camisa, os cantos da boca ensanguentados, e lágrimas como punhos saltavam-lhe às faces dos acessos de tosse, rouca como um rosno de mastim.

Mandara-se procurar o médico a toda a pressa, mais antes de ele chegar a hemoptise galgou do peito, em golfões escarlates.

Fizeram de novo a cama, e deixaram-no adormecer mais tranquilo, prostrado, sem forças para gemer sequer.

Durante toda a noite o médico velou, temendo uma outra hemoptise que asfixiasse o enferno.

Era desesperador o seu estado. Tinha sobrevindo uma peneumonia, os pulmões já cavernosos não poderiam aguentar.

O desenlace era fatal, mais dia menos dia.

António do Couto mostrava-se aflito, com medo que Edmundo lhe morresse em casa, sem tornar a ver a mãe.

Pensou em telegrafar à pobre senhora, prevenindo-a, pedindo-lhe que viesse..., mas de manhã o doente acordou, bem disposto muito fraco, pálido, olhos amortecidos, porém quase sem febre...

Sentaram-no, encostado a um monte de travesseiras, amparado pela criada.

O médico abriu-lhe a camisa, apalpou-lhe o peito, batendo as costelas com a cabeça do dedo...

-- Não é aí senhor doutor, é aqui...

E apontava o coração...

-- Está cheio de vergonha, envenenado, sinto que vai cair podre cá dentro, que vai rolar até às tripas, todo trespassado...

-- Qual! Morre-se lá na sua idade! Levante a cabeça, isto não é nada...

-- Doutor, eu quero morrer... Deixe-me morrer, meu amigo...

-- Há-de ser quando Deus quiser, senhor Edmundo...

Aquela resposta deixou-o numa melancolia profunda, durante todo o dia, os olhos pregados nas vidraças, vendo o jardim.

Só desviava dali a vista quando lhe davam os remédios.

Tinha crises de choro, agarrando as mãos da velha criada, encostando-se ao seu ombro, murmurando-lhe ao ouvido, numa melopeia triste e desvairada, um «obrigado» eterno...

Depois voltava à sua muda contemplação, imóbil, olhando as árvores, os montes, os céus azuis.

De um quintal vizinho partia de quando em vez o mé de uma cabra. Os pássaros vinham pousar na varanda, nos galhos da madressilva...

Edmundo olhava os pássaros e via-os partir voando...

Lá em baixo, na cozinha, o canário da senhora Maria cantava...

Até que o sol baixou, como uma ilusão doirada, deixando a lua subir às seis horas da tarde ao toque das Trindades...

Duas lágrimas começaram a escorrer pelas faces cavadas de Edmundo...

Alta noite, a criada, ouvindo-o falar, aproximou-se do leito, descalça..., mas ficou parada, escutando-o murmurar no sono, num chamado meigo, enfraquecido como um sopro, brando como uma súplica: Mamã!...

Mamã!... Mamã!...

Ao outro dia Edmundo pediu para que mandassem prevenir Emílio... Queria despedir-se dele...

Esperou até anoitecer, sem que viesse ninguém.

O correspondente, vendo-o melhor, descera à cidade logo depois da visita médico... Não sobrevindo uma outra hemoptise, talvez que o pobre tísico se pudesse ainda levantar para ir morrer mais longe, ao lado da mãe...

Mas tudo isso era uma esperança de desesperado, o médico julgava quase um milagre a sua cura, se ela acontecesse... Aquelas melhoras eram enganadoras, falsas, um último e mais forte clarão de sol antes do descer inquietante das trevas...

Poupassem-lhe sobretudo a mais leve das contrariedades, a mínima das dores... Arredassem da sua pobre vista tudo o que pudesse lembrar-lhe o passado de ontem...

Edmundo passava os dias em silêncio, gaquejando às vezes monossílabos que ninguém compreendia...

Afastava os caldos, o leite, era preciso suplicar-lhe mil vezes repetidas para conseguirem vê-lo engolir duas colheres do caldo ou dois tragos de leite...

Só a velha criada não tinha esperanças de o ver arribar...

Sempre de guarda, tinha tido ocasião de contemplar aquele mutismo, aquele sorriso amargo, aqueles olhos sempre perdidos ao longe, obscurecidos por um pensamento fixo, de manhã à noite...

Ela sentia-o morrer aos poucos, de hora em hora, no seu silêncio, na sua melancolia, nas suas lágrimas, nos seus suspiros...

Quando a velha se ajoelhava aos pés da cama, Edmundo pousava a mão descarnada nos cabelos brancos dessa santa, fitava-a dolorosamente, abria a boca para falar, mas não dizia nada por fim... Retirava a mão, escondia-a debaixo dos lençóis, recaía na sua imobilidade, olhando o jardim, sorrindo...

Quantas vezes a criada chegava perto dele para lhe perguntar o que queria!...

Ah!, não era preciso mais do que vê-lo assim meditativo, sombrio, movendo os lábios em palavras sem voz, para perceber que ele queria alguma coisa!...

Mas o quê? O quê?... A velha quedava-se a pensar, por longas horas, e padecia por não ter ainda compreendido o mudo desejo daquele olhar tão triste, tão pungente, tão inundado de desgraça...

Até que uma tarde, quando entrava com o caldo, Edmundo fez-lhe sinal que lhe queria falar...

A velha sentou-se na beira da cama.

O Edmundo de agora era apenas uma sombra desse outro, que numa noite de Inverno fora jurar amor a uma mulher, entregar-lhe os vinte anos, com as ilusões ambicionadas e as esperanças contadas....

Lívido, os seus grandes olhos negros eram apenas duas manchas na palidez do rosto onde até os lábios tinham embranquecido.

A voz era perra, soava falso, como moeda de chumbo.

-- Ali disse ele -- naquela gaveta, estão duas cartas...

-- Quer que eu lhas traga, não é ?

Ele disse que sim, fechando os olhos...

A velha abriu a gaveta, tirou dois envelopes dirigidos a Edmundo e ainda por abrir. Conheceu serem duas últimas cartas da mãe, chegadas havia dias, e que ele tivera até medo de ler...

-- São estas? Quer que eu as abra?

-- Sim...

A criada rasgou os sobrescritos, desdobrou as páginas.

-- Deus lho pague...

E a sua mão trémula agarrou aquelas derradeiras palavras que a mãe lhe dirigia. Fez um esforço para sentar-se, mas ainda a vista não tinha percorrido duas dessas linhas, e já um soluço cavo o obrigava a descer a cabeça.

A tosse estremeceu-o todo. Fugiu-lhe a carta das mãos, levou o braço à altura da boca para impedir o vómito, a cabeça rolou nas travesseiras, ficou pendente da cama, pingando sangue no tapete...

O médico deu-lhe três dias de vida. O arsénico em grandes doses só conseguiu arrancá-lo ao marasmo em que caíra. Não teve mais uma hora de sossego e de calma. Sob a acção violenta dos remédios, sentava-se na cama, queria ver todos a seu lado, pedia que lhe abrissem as vidraças, precisava de respirar, sufocava arranhando a garganta, desviando as roupas de cima do peito.

As inalações eram já escusadas, nada restava a fazer, senão esperar a morte...

No acabar o quinto dia, a criada espantou-se de o ver voltar a si, sentar-se na cama, aconchegar as travesseiras... Pediu um caldo, tinha fome... Mandou acender o candeeiro, não queria estar às escuras...

António do Couto, ao entrar, teve uma grande surpreza, ao ver Edmundo deitado no divã, lendo um jornal.

-- Estás melhor?

-- Enquanto a Maria faz a cama...

-- Mas como pudeste vir deitar-te aqui ?

-- Ela trouxe-me ao colo...

-- A senhora Maria?

-- Peso tão pouco, António...

-- Sentes-te bem, então?

-- Sinto, sim... Ouve, conta-me alguma coisa lá de fora... O que dizem de mim?

-- Não sei... Essa gente que tu conheces, e que te conhecia, não a conheço eu...

-- E o Emílio, porque não vem?

-- Escrevi-lhe, dizendo que estavas doente.

-- Não disseste que estava para morrer?

-- Eu podia lá dizer semelhante mentira!

-- Mentira?... -- E os olhos de Edmundo elevaram-se ao céu...

-- Mentira?... Julgas então que eu não sinto?

Dentro de mim há uma voz a dizer-me tudo... Depois de amanhã morro... vais ver...

-- Oh! Edmundo...

-- ... Sossega... Diz-me ainda uma coisa, prometes ?...

-- Não sei o que é...

-- É o meu último pedido, o último, ouviste?

-- Mas...

-- É um pedido de moribundo, António... Ah!, não digas que não..., só eu sei, por isso o digo... Seja ou não, prometes?

-- Prometo...

Edmundo segurou-lhe as mãos, amparou-se ao negociante, olhando-o bem nos olhos.

-- E ela ?

-- Foi para Juiz de Fora...

O enfermo largou as mãos, fechou os olhos, encostou-se de novo às travesseiras.

-- Nem um só amigo dos que foram meus! Ela partiu!... Ramalho de Alencastro vai para Paris!... Eu morro...! E minha mãe, o que será feito de ti, minha mãe ?

-- Quem te disse, Edmundo, que ele tinha ido para Paris?

Levantou a cabeça, apontou um jornal caído no soalho...

-- E então ?...

-- Fui bem castigado...

-- Que tens? Edmundo!... Edmundo!...

A criada correu para o apanhar do chão onde tinha rolado, inerte, sem sentidos...

Levaram-no para a cama, onde passou a noite delirando, soltando frases desvairadas, rindo, chorando, agitando, pedindo a uma visão desconhecida que o largasse, que o largasse.

E foi chegando assim o derradeiro dia...

Quando pela manhã mudaram a camisa ao pobre enfermo, a criada desatou a soluçar, vendo as arcas do peito retesas sob a pele esverdeada. Se lhe desamparavam a cabeça, a cabeça caía.

Já o olhar era cova do olhar e nada mais. A luz morria ali, num crepúsculo sereno, e já só havia sombras.

As narinas dilatavam-se, sôfregas, em haustos, sem ruído, como um barulho de toupeira que lhe estivesse roendo a cabeça lá por dentro.

Da garganta, a momentos, uns grunhidos rompiam, vozes esfaceladas, sons extra-humanos, ruídos glóticos, a tocar a defuntos, nas goelas sangrentas esfalfadas...

Lá pelas onze horas pareceu sossegar e o ralo acabou por uns instantes...

O médico auscultou-o, percebendo chegado o último momento... E ao erguer a cabeça viu nos olhos do tísico a certeza, uma melancólica resignação de vomitar a alma, num arranco, sem queixa, sem pensar...

Para quê mais remédios?

Ele não os podia já sustentar, sem poder falar...

Abriram-lhes as cortinas, frente às vidraças, deixando-o ver assim o seu último dia, uma dia triste de chuva, escuro, enferrujado, o sol como um escarro de lava entre o fumo das nuvens, e um voo de urubus pairando num longe baço, denegrido...

O doente tinha horas tranquilas, em que pousava a vista apaziguada nos céus ermos, sombrios, ou nos montes em cujo regaço verde repousava o nevoeiro...

Mas logo, como se lhe estivessem a escorchar a alma, desandava na sua lamúria rouca e trôpega, a boca entupida de estrebuchos, a língua seca, as narinas sibilantes, procurando o ar, e exalava um fédito de sangue podre, qual se dentro do seu peito houvesse um morto em decomposição...

Foi impossível alimentá-lo ainda. Os beiços não fechavam, a língua grudava-se ao céu da boca, e o peito tinha convulsões, parecendo que a morte quebrava as costelas, à marreta, para soltar do cárcere a alma imperecível...

Toda a carcassa batia a pele, o esqueleto tinha pressa em ver-se livre da carne...

As cabeças dos dedos, em redor das unhas, ficavam negras pouco a pouco.

O mais leve ruído fazia estremecer o pobre enfermo.

António do Couto dormia no divã, prostrado por aquela terrível noite de vigília.

A criada, acocorada a um canto, dormitava também, a cabeça entre as mãos, rendida de fadiga.

Edmundo parecia extinguir-se serenamente fechando os olhos, encostando-se à treva...

De súbito estremeceu. A criada pôs-se de pé, lívida, e o negociante despertou em sobressalto.

Da cidade vinha um estrugir de música, um rolar de notas ríspidas de metal, alinhadas em marcha de triunfo.

0 silêncio desfazia-se com o ruído dos foguetes. De quando em quando um vozeirar confuso de uma multidão era trazido pelo vento.

Ficaram os dois parados à beira da cama, acabrunhados por aquela alegria de grande festa que vinha até a cabeceira de um agonizante.

Minuto a minuto, a banda de música aproximava-se...

Distinguiam-se agora o ruído dos pratos, o rufor dos tambores, o grito dos clarinetes, o ronco dos trombones...

Edmundo tinha sobressaltos, movia os ossos no colchão, os olhos estriados de sangue, rolando de dor...

-- Viva o general Galvão de Queirós!

Um grande berro, como se uma montanha falasse abrindo uma cratera, rompia logo...

-- Viva o general Silva Tavares! Viva o Dr. Prudente de Morais!

-- Viva!

Todos os metais rasgavam nos ares o hino nacional, e assim, durante um quarto de hora, até que a multidão virou uma esquina, música e berros foram sumindo...

-- É a paz... --disse António do Couto acercando-se da cama...

Edmundo fez um esforço para falar. As suas mãos frias e magras estremeciam, cruzadas sobre o peito.

Os olhos tristes pararam escuros na criada, volveram-se depois para o negociante, serenos e apagados.

Dos lábios transidos caíram então as suas derradeiras palavras.

-- Sim, é a paz...

Os olhos fecharam-se para continuar mudamente a poderosa frase. Ficou abatido, inânime, a boca entreaberta, as narinas fremindo em longos haustos... Depois o extertor rasgou-lhe as goelas, e continuou enchendo o quarto com o seu ralo tremente em que havia guinchos, ganidos, uma lástima grunhida surdamente, entortando-lhe a boca, dilatando-lhe os glóbulos sob as pálpebras, rodeando de anéis negros as órbitas fundas.

Os turbérculos estendendo-se até ao mesentério causavam-lhe uma dor funda que lhe fazia correr tremuras sobre as saliências ósseas de toda a face.

A dispeneia angustiava-lhe mais e mais a respiração.

As fontes latejavam, humedecidas de suor, e por toda a cabeça escorria a mesma humidade oleosa, que lhe gordurava os cabelos finos e negros.

Edmundo, sentindo passos, abriu os olhos...

Um caixeiro entrava com uma carta.

-- Senhor António, uma letra para assinar...

-- Deixe ver...

0 enfermo tremeu ao arrastar de uma cadeira, ouviu a pena ranger no papel.

0 caixeiro, à porta, olhava-o, sem trair a mais leve comoção...

-- Diga lá ao senhor Valentim que amanhã vou ao armazém...

Edmundo teve um estremecimento. Pensou que tudo aquilo estava por pouco...

Custava-lhe a respirar. 0 médico, sentado à cabeceira, não tirava a vista dele...

Fechou de novo os olhos, tentando remover a mão de cima do peito...

Soavam vagarosas as Trindades, toada a toada, tristemente.

Foi o médico que lhe segurou no braço quase frio e o encostou nos lençóis, como um membro de cadáver...

O correspondente chegou-se perto do médico, falando-lhe em voz baixa.

-- Cada vez os negócios vão pior... Ainda ontem um freguez de Indayassu chamou credores... Agora é um que pede moratória... Os tempos andam ruins, senhor doutor...

E esse pobre sonhador que ali morria, culpado de haver sonhado de mais, de haver sonhado sempre, longe da mãe, longe da família, sem mais uma ilusão, sem um consolo, sem um carinho, essa criança que passara na vida a sofrer e a fazer versos, escutava ainda nos últimos momentos o rumor infame dessa vida, o interesse, o egoísmo, a segredar nos seus ouvidos: a vida é isto!

Só lhe restava morrer, morrer sem ver a seu lado um único dos seus amigos... Emílio, desde aquela carta, nunca mais viera... Julião, a quem ele perdoava o mal que lhe fizera, a esse, vira-o pela última vez embriagado, à meia-noite, nos braços de um polícia.

Ninguém à sua beira... Era isso que o desconsolava naquele supremo momento... Uma palavra amiga, e morreria sossegado... Mas debalde esperou todo o dia...

Não vinha ninguém...

Só a senhora Maria chorava aos pés da cama. Quando subia as pálpebras, via-a curvada, a cabeça branca caída sobre o peito, o lenço na boca para afogar os soluços...

Quis agradecer-lhe ainda uma última vez, mas não podia já falar...

Às oito horas tentou virar a cabeça nas travesseiras, mas todos os seus fracos esforços foram inúteis.

Sentia pela garganta abaixo um braço que lhe arrancava do peito qualquer coisa...

Às oito e um quarto começou a agonia...

0 negociante deitou-lhe no peito um escapulário de Nossa Senhora do Carmo... A criada caiu de joelhos, rezando.

Edmundo gania, rosnando com regougo rouco.

Pareciam os lamentos da alma que lhe chegavam à boca ?

As pálpebras e os lábios tornavam-se roxos. A pele colava-se à caveira, do queixo as fontes, e só naquela face de cadáver a boca parecia sofrer, meia aberta, torcida, com os beiços presos às gengivas, mostrando os dentes, numa careta trágica.

Emílio subia as escadas, quando encontrou a criada, descendo, a cara escondida no avental, soluçando...

Ela levantou a cabeça para ver quem passava, e através das lágrimas os olhos da velha tiveram uma praga terrível- contra ele, exprobando-lhe uma cumplicidade no destino cruel, que assim atirava brutalmente à cova essa pobre criança que ela tanto amava, como um filho da roda deixado aos seus cuidados...

Entrou no quarto, sentindo atrás de si aquele olhar odiento que o acusava de um crime imaginário...

No escuro, uma lamparina arde frouxamente, deixando na sombra o leito, onde dois vultos de pé estão falando baixo.

-- Então? -- pergunta Emílio, trémulo, avançando no escuro...

-- Está já na agonia... -- respondeu-lhe uma voz surda lentamente.

Na sombra crescia um extertor, como de alguém que estavam esganando a um canto sob o joelho.

Emílio debruçou-se sobre esse ralo último da vida que se parte, e baixinho chamou -- Edmundo!...

Já o não pôde ouvir...

-- Meu Deus! Meu Deus! Morreu sem ter visto a seu lado um só amigo!...

E saiu do quarto, aos arrecuos, limpando as lágrimas com a palma da mão...

Na rua um vulto esbarrou quase nele.

-- O Edmundo?

-- Está a morrer...

Julião encostou-se à parede, gaguejando...

-- A morrer? Hein?

-- Sim, meu Deus, a morrer... Já não conhece ninguém...

Emílio viu o estudante cambalear... Amparou-o nos braços. Tresandava a cachaça, estava bêbedo...

Monin: Les races et les nevroses.

Não posso de momento precisar a data, mas tão pouco tempo dista desse suicídio, que o leitor se lembrará bem ainda.