Por Bom Caminho: Edição para o ELTeC O'Neil, Maria (1873-1932) Criação do HTML original Adeliana Silva Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 16788

Adicionado à coleção ELTeC 17 de novembro de 2020.

Por Bom Caminho Maria O'Neill Biblioteca Nacional de Portugal Por Bom Caminho Maria ONeill Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora Lisboa 1914

português de Portugal Adicionado à coleção ELTeC

BIBLIOTECA PARA A INFANCIA

POR BOM CAMINHO

typographia da parceria antonio maria pereira — rua Augusta, 44, 46 e 48 Lisboa

POR

MARIA O'NEILL

POR BOM CAMINHO

NOVELA

Parceria António Maria Pereira

LIVRARIA EDITORA

Rua Augusta, 44 a 54

LISBOA

I

A bondade da sr.ª Camila

Manuelzinho tinha dez anos, mas era tão esperto e discorria com tanto acerto que a todos parecia de idade superior àquela que realmente tinha.

Vivia com seus pais numa casa pequenina situada á beira da estrada que vai da Merceana para Alemquer.

Não eram ricos, mas remediados: se o seu lar não conhecia luxos, tambêm ignorava necessidades. Levantavam-se cêdo, almoçavam em comum e depois Manuel ia para a escola, o pai punha a caixa de lata a tiracolo e, pegando num pau, tomava o caminho dos montes, enquanto a mãe, cantando alegremente, como coração que nada tem que lhe dê pena, tratava do arranjo da casa.

Ás três horas o pai voltava dos montes e o filho regressava das aulas.

Jantavam. Depois iam vêr as maravilhas que o herborizador encontrara e, ou saiam a novo passeio, ou o pai se entregava ao arranjo e classificação dos exemplares colhidos, acto a que Manuel dava tudo para assistir; mas, quando soavam oito horas, a mãe anunciava:

-- São horas de estudar.

E Manuel, por entretido que estivesse, sabia que era forçoso ir agarrar-se aos livros e fazer por estudar bem a lição, para no dia seguinte fazer bôa figura aos olhos dos condiscipulos. Às nove e meia da noite, gritava de novo a mãe:

-- Está a ceia na mesa.

E pai e filho largavam os seus trabalhos e vinham cear. Ás dez, cada um ia para a sua cama, contente por ter desempenhado como devia as suas obrigações durante o dia.

Aos domingos, quando estava bom tempo, não jantavam em casa. Iam comer para o campo e, nesse dia, a colheita era maior e cortada por exclamações de alegria da mulher e do filho do herborizador.

Era uma santa criatura a sr.ª Camila. Não havia para ela prazer que igualasse o de ir, num bom dia de sol, jantar ao campo com a sua gente. Já não era muito nova (devia ter uns trinta e cinco anos) mas tinha ainda um lindo cabelo loiro, onde não despontava um fio branco, uns olhos azuis muito vivos e escuros, e uma bôca pequena e graciosa, que sorria com infinita bondade. Era sobre tudo o sorriso que mais encantava na sr.ª Camila.

O herborizador chamava-se Pedro Ramos. Era um homem alto e magro, de cabelos castanhos e olhos garços. Tinha uma fisionomia risonha e um aspecto de constante bom umor.

Manuelzinho tinha o sorriso da mãe, o olhar do pai, e toda a gente da aldeia dizia, vendo-o passar:

-- Aquilo é mesmo a cara da mãe!

Um dia, Manuelzinho voltou mais cêdo do colégio, porque o mestre estava doente, e trouxe consigo um condiscípulo.

-- Este meu companheiro, disse êle á mãe, mora longe e não quer ir para casa mais cêdo com medo de que não acreditem que o mestre está doente. Por isso convidei-o a vir até cá.

-- Fizeste bem, meu filho. Deve causar-te sempre prazer a companhia dum amigo. Agora, o que eu não gosto de ouvir dizer é que êle tem mêdo de que o não acreditem. Pois, se é verdade, como não hão de acredita-lo?

O recenvindo, fazendo-se muito vermelho, respondeu:

-- E’ que eu já não tenho mãe e a minha madrasta, que não gosta de mim, diz que é mentira tudo quanto eu digo, e faz uma tal algazarra por dá cá aquela palha, que, só para a não ouvir, eu preferia nunca mais lá voltar.

-- ¿E teu pai?

-- E’ muito bom e meu amigo; mas, lá para êle, o que a minha madrasta diz ou faz é que está bem.

-- ¿E ela maltrata-te?

-- Isso não. Não é má mulher, mas detesta-me. Estou que perdia, só para me não vêr, cinco tostões com gôsto.

-- A vida em comum, nessas condições, deve ser profundamente desagradavel...

-- E’ Se eu vou a entrar, e estão falando, calam-se. Eu sou para êles um estranho que só serve para fazer recados.

-- ¿E a tua mãe já morreu ha muito? perguntou a sr.ª Camila sensibilisada.

-- Vai para três anos.

-- ¿E deixou mais filhos?

-- Não, senhora. Sou só eu.

-- ¿ E tu és amigo de estudar?

-- E’ o melhor da aula, elucidou Manuel.

A sr.ª Camila pareceu reflectir: depois, perguntou ao pequeno:

-- ¿Gostavas de vir viver cá para casa?

-- Quem me dera!

-- Então pede a teu pai. Dize-lhe que estás aqui mais perto da aula e que nós levamos em gôsto a tua companhia para o nosso filho.

O pequeno, alvoroçado com aquêlê inesperado convite que o livrava da insuportavel madrasta, despediu-se e saíu correndo enquanto Manuelzinho abraçava a mãe, dizendo:

-- Tu sempre és muito bôa, mãezinha.

-- ¿ Porquê, meu filho?

-- Por teres dito ao Romão para vir para cá. Tiveste dó dêle, ¿ pois não tiveste?

A sr.ª Camila sorriu tristemente e volveu:

-- Tive, e fiz-lhe aquilo que eu desejava que fizessem a um filho meu, em idênticas circunstâncias. Mas não falemos mais em cousas tristes; ¿ para quê?

Manuelzinho beijou-a muito e, como eram horas do pai chegar, foi espera-lo ao caminho.

-- ¿ Que quer dizer isto? perguntou admirado o herborizador; ¿ saíste mais cêdo ?

-- O mestre está doente.

-- ¿ Que tem êle ?

-- Uma dôr no peito. O médico mandou-o meter na cama.

-- ¿ Para vocês, pelo visto, foi uma festa?

-- Para alguns, não digo; mas a maioria teve muita pena dêle: é tão bom homem!

Depois, contou a ída do condiscípulo a casa e como a mãe o convidára a ir para lá.

-- A tua mãe é uma bôa criatura e vai sempre atraz do coração. Deus queira que a vinda do rapaz não lhe traga desgosto.

-- ¿ Que desgosto ha de trazer, meu pai?

-- Eu sei lá! Os trabalhos levantam-se debaixo dos pés. E trazer estranhos para casa é cousa que geralmente não dá bom resultado.

E o herborizador mostrava-se contrariado. Manuelzinho assustou-se:

-- Mas tu não vais manda-lo embora, se êle vier, ¿ pois não ?

-- Não, mas a sua vinda contraria-me.

Manuel pareceu hesitar e por fim perguntou a mêdo:

-- Não imitas a sua madrasta, ¿ pois não ?

O herborizador abraçou o filho, desatando a rir.

-- ¿ Achas-me então com ares de verdugo?

-- Não, volveu o pequeno envergonhado, não é isso; mas, como o Romão não é teu filho, podia ás vezes faltar-te a paciencia e...

-- Descansa. Eu terei com o teu amigo as atenções que êle decerto merece. Mas dize-me uma cousa:

¿ Porque é que tens tanto receio do meu procedimento e confias tão cega e completamente no de tua mãe?

E havia na pergunta um mal velado sentimento de ciume.

-- E’ que a mãe é mãe, Pensou logo que me podia suceder o mesmo, e tanto basta para tratar o meu amigo melhor que um rei. Eu vi que ela não chorou para nos não apoquentar... Depois despediu-se do Romão exactamente como se fôsse de mim.

Chegaram a casa.

-- ¿ Com que então a sr.ª Camila, sem me dizer nada, convida gente para casa? disse o herborizador mostrando uma zanga que estava longe de sentir.

-- ¿ Pelo visto já deste com a lingua nos dentes ?

-- Não pensei fazer mal.

-- Pois fica sabendo que uma pessoa discreta, oiça o que ouvir, não dá nunca novidades. Se o teu pai não fôsse a propria bondade, podias, com a pressa da noticia, arranjar-me uma questão.

-- Bem, mas como eu sou a propria bondade, segundo a tua expressão, não vale ralhar.

Sentaram-se á mesa e a sr.ª Camila contou o imenso dó que sentira por vêr o desamor com que a criança era tratada.

Estavam quasi no fim da refeição quando bateram timidamente á porta. Manuel foi abrir e introduziu na sala o Romão, seguido do pai.

II

O pai de Romão

O homem, dando voltas nas mãos ao chapeu de aba larga, dizia meio envergonhado:

-- Eu não sei se fiz bem em vir por aí abaixo, mas o meu rapaz foi-me dizer que vomecês o queriam para filho: ora, como o outro que diz, isto, nos tempos que vão correndo, aceitar mais uma bôca á mesa...

O sr. Pedro Ramos interrompeu:

-- ¿ Como se chama ?

-- Luís Augusto, para o servir.

-- Pois, sr. Luis Augusto, nós gostamos do seu rapaz. Não somos ricos, mas educação, comida e vestuário decente, estamos prontos a dar-lhe a troco da sua companhia e obediência ás ordens da casa.

-- Ai, senhor! Foi um anjo que me apareceu porque todo o inferno da minha vida é por causa dêste rapaz.

-- Pois não se amofine mais, e faça de conta que êle morreu.

-- Isso tambem não. A gente sempre quer aos filhos, embora padeça por causa dêles.

-- Pois, quando lhe apertarem as saudades, venha vêl-o. Não é muito longe.

-- Isso não é. ¿ Então o mocinho já pode ficar ?

-- Com certeza.

-- Deus Nosso Senhor lhe pague.

E, com muitos agradecimentos, retirou-se, acompanhado até á porta por Manuel e Romão.

Este, mal viu o pai pelas costas e se certificou realmente de que ficava ali, não cabia em si de contente.

Terminada a refeição, fôram ao sótão buscar uma cama de ferro, que lá estava arrecadada, e armaram-na no quarto de Manuel.

Depois, o pequeno tirou da sua pequena mala os livros, o seu tinteiro e aprestes de estudo, de forma que, quando a sr.ª Camila disse : -- Meninos, são horas de estudar -- ambos abancaram á mesa e se entregaram ao estudo.

Manuel, mais atrazado, tinha grande vantagem em estudar com Romão que lhe explicava tudo que êle não sabia.

Á ceia, a conversa correu animadíssima e a bôa Camila trocava com o marido um olhar de satisfação vendo a alegria do pequeno órfão.

No dia seguinte de manhã foram para a aula, mas foi-lhes dito que, estando o mestre muito doente, as aulas estavam suspensas por quinze dias. A sr.ª Camila afligiu-se com a ideia de que Manuel se ía atrazar, mas Romão disse-lhe :

-- Não atraza. Eu estou muito mais adiantado do que êle; dou-lhe lição todos os dias e, quando voltarmos ao colégio, êle pode ir sabendo tudo que eu sei.

Manuel, que gostava de estudar, aceitou penhorado o oferecimento do amigo e empenhou-se em aprender com afinco quanto êle lhe ensinava. Tinha um grande desejo de, quando voltasse á escola, saber tanto como Romão, pensando, como bom rapaz que era, que o seu amigo ganharia na estima de todos com o aproveitamento dêle como discípulo.

-- A mãe fica encantada, o pai nem pensar, o mestre honrará o Romão, e eu estudarei, aproveitarei, e serei o segundo da aula.

Chegou o domingo e o herborizador anunciou partida matinal. Romão nunca assistira a uma festa destas. A sr.ª Camila deitara-se tarde na véspera para deixar a carne assada e o arroz dôce pronto. Erguendo se de manhã, o seu primeiro cuidado foi meter tudo nos cestos, juntando-lhe vinho, queijo e fruta.

Tomado o café e arranjada a casa, partiram. Os cestos, presos nas costas da sr.ª Camila e dos rapazes, não lhes peiavam os movimentos. Lá fôram por montes e vales á busca de plantas e hervas medicinais.

Chegaram perto do rio e o pai de Manuel curvou-se para apanhar uma planta.

-- ¿ Como se chama essa? perguntou Romão.

-- Eu sei, disse Manuel: é uma selaginela.

-- Pertence ao grupo das Criptogâmicas, disse o pai; geralmente, esta planta só se encontra brava entre nós, não se cultiva, e apresenta umas espigas iguais ás das cavalinhas, mas que, como elas, não são reuniões de flôres nem de frutos; tem raizes subterrâneas e outras aereas, um caule um pouco ramoso, e pequenas folhas verdes. Possue, como vêem, as mesmas partes que os fetos e as cavalinhas.

-- Um ninho! um ninho! gritou Manuel com alegria; anda vêr, Romão.

-- Não mexam, ordenou o pai, aproximando-se tambêm. E’ um ninho de melro. Se a fêmea se levantasse agora, vocês veriam quatro a cinco ovos esverdeados com manchas escuras.

-- Faça-a levantar, pai! pediu Manuel.

-- Não, meu filho, seria uma crueldade. Ela enjeitaria os ovos e abandonaria o ninho. Afastemo-nos para a não transtornar no seu ofício de mãe. Quando cá voltarmos, havemos de ver melros novos.

Os pequenos obedeceram, embora a custo. Apanharam várias borboletas para a linda colecção que o pai de Manuel estava fazendo e, quando deram três horas no relógio da próxima aldeia, estenderam a toalha no chão e começaram a jantar. Todos estavam alegres, mas Romão mais do que todos.

-- ¿ É possivel, dizia êle, que se possa ter uma vida tão alegre, sem nunca ouvir ralhar, correndo, brincando, rindo, sempre acariciado, sem ouvir palavras rudes, nem vêr modos que ofendam e entristeçam ?

-- Bem vês que é, visto que nós vivemos assim e tu tambêm.

-- E’ verdade, mas tudo isto me parece ainda um sonho!

-- Pois olha que não é. Estamos todos acordados, disse-lhe Manuel rindo. E, para prova, vamos dansar.

E assim se fez. A sr.ª Camila cantava, o marido assobiava e os rapazes dansavam com êles as dansas da terra. Quando a tarde começou a resfriar, o herborizador disse que eram horas de recolher e todos se apressaram a tomar alegremente o caminho de casa. Uma vez ai, fôram logo deitar-se porque a fadiga d’um dia inteiro ao ar livre, andando por maus caminhos, tornava-lhes o repouso, alêm de necessário, desejado.

No dia seguinte de manhã, sentados ambos á mesa do seu quarto, os pequenos estudavam e o improvisado mestre dizia, n’um tom lisongeiro, ao seu condiscípulo:

-- Estou contente contigo. E’s um bom rapaz e fazes o possivel para aprender. O sr. Roque, quando voltarmos á aula, vai ficar admirado.

-- Vamos nós saber como êle está?

-- Vamos lá.

Com licença da sr.ª Camila, os dois pequenos pegaram nos seus chapelinhos e saíram em direcção á casa da aula.

Pelo caminho o Romão disse ao Manuel:

-- Muito gostava que a Zulmirinha estivesse lá.

-- Porquê ?

-- Gosto dela e já lho disse. Quando fôr grande e tiver um modo de vida, hei de casar com ela.

Manuel desatou a rir:

-- Daqui até lá não te dôa a cabeça. Depois, ¿ quem te diz que, quando fôres grande, lhe achas a mesma graça de agora ?

-- Tens razão. Não tinha pensado nisso. ¿ Quem sabe mesmo se ela, então, já me não quer?

E a voz de Romão tinha-se tornado triste.

Quando chegaram a casa do sr. Roque, foi justamente a menina Zulmira que veio abrir.

-- ¿ Como está seu tio? perguntou-lhe Romão fazendo-se muito corado.

-- Está melhor, graças a Deus. O médico conta que, de hoje a oito dias, já se possa levantar.

-- Que nome dá êle á doença do sr. Roque?

-- Diz que é uma pneumonia dupla. Êle está muito apoquentado pela falta que está fazendo aos meninos, mas não é por culpa dele.

-- Isso sabemos nós. Diga-lhe que se não apoquente que depois, com um bocadinho de bôa vontade, depressa se apanha o tempo perdido.

Despediram-se e voltaram a casa.

Manuel perguntou a Romão:

-- ¿ Como é que te deu para gostar da menina Zulmira ?

-- Eu sei lá ? Gosto dela porque gosto. Naturalmente porque foi a primeira pessôa que mostrou importar-se comigo depois que a minha mãe morreu.

-- Naturalmente foi isso. Eu não a acho nada simpática, mas, segundo diz o meu pai, gostos não se discutem.

-- Olha, aí estão mais daquelas hervas que vimos hontem.

-- São inflorescências de balanço, uma herva nociva, como te dizia meu pai.

-- Tu conheces quasi todas as hervas! Já podias ajudar teu pai na classificação.

-- E ajudo muita vez, quando estou disposto para isso. Uma planta, que anda por ai quasi aos pontapés, é a beladona: é uma planta herbácea, da familia das solâneas, que dá uma linda flôr e cujo fruto lembra uma cereja pequena. Todas as partes desta planta são venenosissimas, mas meu pai faz dela grande colheita porque a vende para as farmácias de Lisbôa.

E, conversando, tomaram o caminho de casa. Uns amigos do colégio jogavam ao eixo ribaldeixo.

-- O' Romão! Anda d’aí, homem!

-- Agora não pode ser.

-- E tu, Manuel ?

-- Tenho a mãe á espera. Vontade não faltava. E passaram de largo enquanto os outros ficavam chasqueando:

-- Aquilo é que são meninos bem comportados !

-- Como tem a mamã á espera, não quer dar dois saltos.

-- Lá isso faz êle bem.

-- Se tu não havias de vir! E’s outro que tal!

-- Ser bom filho não fica mal a ninguêm.

-- Qual bom filho nem mau filho! ¿ A que vem isso para aqui ?

-- Vem a tu estares a troçar de quem cumpre as suas obrigações.

-- Olha que te arranco as orelhas.

-- Isso tinha que vêr!

E já o Maurício crescia ameaçador para o pobre Paulo, quando o irmão mais velho dêste passou por ali a tempo de lhe pegar por um braço, acalma-lo, recomendando-lhe juizo, e mandar a Paulo:

-- Ora marche lá para casa adiante de mim.

III

O regimento

Entretanto, a Romão e Manuel ficara-lhes o olhar prêso das brincadeiras dos outros.

-- O’ Romão ¿ e se nós pedissemos á mãe e viessemos depois de jantar?

-- Ela naturalmente não deixa.

-- Mas nós em experimentar não perdemos nada.

-- Contanto que ela não julgue que é ideia minha.

-- ¿ Porque ha de julgar?

-- Não sei. O que é certo é que tu nunca brincaste com os outros. Naturalmente é porque os teus pais entendem que assim deve ser.

-- E’ verdade! Eu nunca brinquei com os outros! ¿ Mas como é que isto se fez tão naturalmente que eu nunca reparei em tal ?

-- Não sei.

Quando entraram em casa, já lá estava o sr. Pedro Ramos.

-- ¿ Então como está o vosso mestre?

-- Tem tido uma pneumonia dupla, mas o médico diz que já vai melhor. No entanto ainda se não pode prever quando tornará a dar aula. A’ vinda encontramos condiscípulos nossos a jogar o eixo. O Romão não quiz e eu disse tambêm que não por honra da firma, mas fiquei com vontade de ir um bocado. Que dizes, pai ?

-- Digo que não. A companhia dos rapazes em geral não me agrada.

-- ¿ Eu não te tinha dito que o teu pai não queria companhias?

-- Pois é pena. Eu andava com vontade de fazer um grande batalhão de soldados para comandar, mas visto isso...

A mãe lançou ao pai um olhar de intercessão. Êste volveu:

-- Desde o momento em que seja brincar aos soldados, consinto; mas proíbo expressamente qualquer outra brincadeira.

Manuel saltou ao pescoço do pai, cobrindo-o de beijos e abraços e dizendo:

-- Tu és muito bom, muito bom.

-- Em se te fazendo as vontades, lisonjeias. Sempre estás um manhoso!

Mal o jantar terminou, os dois rapazes correram em procura dos outros. O grupo tinha-se dispersado, mas a pouca distância dum carro desatrelado, cujo timão erguido para o ar parecia desafiar as nuvens, três pequenos, agachados no chão, jogavam o botão.

Vendo aproximar-se Romão e Manuel, olharam-n’os risonhos, e o mais novinho indagou:

-- ¿ Vocês vinham ao eixo? Já se fôram: iam jogando a pancada.

-- Não, nós vinhamos para lhes propôr a eles e a vocês se queriam fazer connosco um grande regimento, para fazermos exercícios e marchar como fazem os soldados.

Os três garotos aceitaram a ideia com entusiasmo, encarregando-se de a transmitirem aos outros e de, no dia seguinte áquella hora, reunirem todos ali para combinarem.

-- Já sabes, disse Manuel: o comandante é o Romão e o ajudante sou eu.

-- ¿ E eu? eu que hei de ser?

-- Tu és o médico do regimento, aquele o padre e tu o brigadas.

Contentes todos êles com os seus novos cargos fôram em busca de outros para os associarem á sua ideia que lhes parecia grandiosa, emquanto Manuel e Romão, voltando a casa, se sentavam á mesa de estudo e recomeçavam pacientemente as declinações latinas que o sr. Roque queria sabidas na ponta da lingua.

No dia seguinte reúniram-se quasi todos os rapazes da aldeia, de oito a treze anos, distribuiram postos, fizeram exercícios, e combinaram que no primeiro domingo o regimento percorreria todas as ruas da aldeia. A senhora Camila e o marido passaram os serões daquela semana, êle a fazer espingardas de cana, e ela bónés de pala, de pano vermelho. Arranjou-se a banda regimental com cornetas, pífanos e tambores, e uma bandeira para ir no centro do regimento.

Na véspera do grande dia, os pequenos quasi não dormiam a pensar na grande festa que os esperava. Romão, que era o comandante do regimento, sonhava alto com a glória de mandar 65 soldados. No domingo juntaram-se no Adro da igreja depois da missa e ali formaram. Levando a sua banda na frente, que seja dito em abono da verdade, não devia muito á afinação, percorreram as ruas da Merceana e seguiram estrada fóra em direcção a Alenquer. Todos corriam ás janelas para vêr os soldados pequeninos, marchando com garbo verdadeiramente militar, que encantava quantos os viam, e êles, muito perfilados e cheios de si não se trocavam por ninguêm.

A senhora Camila e o marido acompanharam o regimento. A entrada em Alenquer foi muito festejada e ali o pai de Manuel deu uma merenda a todos os soldados. Finda ela, regressaram á Merceana ao som das músicas que a pequena banda tocava com fúria verdadeiramente guerreira.

IV

O Alerta

Na semana seguinte, Manuel apareceu com nova ideia:

-- ¿ E se nós arranjássemos um jornal?

-- Isso tinha muita graça... Mas como?

-- Tu eras o director e eu o redactor principal.

-- ¿ Mas onde se havia de imprimir?

-- Na minerva do papeleiro.

-- Isso é muito caro.

-- Não é, porque não precisamos fazer uma grande tiragem.

-- ¿ E que título ha de êle ter?

-- A’lerta. E’ um jornal para o nosso exército. Vende-se a dez reis.

-- ¿ Quem ha de fazer o folhetim ? perguntou Romão.

-- Tu, que tens geito para contar histórias.

Romão ficou absorto pensando na imensa responsabilidade de ter de fazer o folhetim. Nessa noite, quando cearam, o Romão pediu ao herborisador:

-- Queria que me desse a sua opinião ácerca dum conto que escrevi.

-- Sim, senhor. Logo que termine a ceia, vamos ouvir essa maravilha

Realmente, finda a refeição, o sr. Pedro Ramos acendeu o seu cachimbo e, voltando-se para o seu pequeno protegido, disse-lhe:

-- Podes começar.

Romão, muito corado, com a voz um pouco trémula, começou lendo:

A vida pela Pátria

A época em que os franceses invadiram o território português, foi verdadeiramente calamitosa. A’ chegada dos franceses espalhava-se o terror, e todos fugiam abandonando a terra natal, trémulos, receosos, sem terem, muita vez, outro destino que não fôsse fugir. Na manhã de 10 de outubro, Massena, no Moinho do Cubo hesitava entre duas estradas. Mandou fazer um reconhecimento, mas não foi bem sucedido. Contudo, um dos destacamentos trazia dois prisioneiros: um homem velho, com a cabeça toda prateada, e um moço de dezoito anos, de olhar inteligente e expressão audaz. Ambos êles eram de condição umilde.

Massena quis falar-lhes e interrogou-os:

-- ¿ Que caminho seguiram as tropas de lord Wellington ?

-- Não sei, respondeu com firmeza o mais velho.

-- E tu? perguntou o general ao rapaz.

Êste mediu-o dos pês á cabeça, desdenhosamente, e ficou silencioso.

-- ¿ Não ouviste o que te perguntei?

-- Muito bem.

-- ¿ Então porque não respondes?

-- Porque os portuguêses não dão informações aos inimigos da sua pátria.

-- ¿ E se eu te mandar moer de pranchadas?

-- Não falarei. Não sou francês.

O general mandou executar a sua ameaça. Levaram os pobres prisioneiros e aplicaram-lhes barbaramente a sentença. Quando os soldados, que lhes davam as pranchadas, se cansaram de bater, perguntaram:

-- ¿ Vocês falam ou não?

Êles, com o corpo pisado, espirrando sangue por mais dum sítio, mas enérgicos nas suas resoluções, respondiam:

-- Portuguêses não se rendem á dôr. Tendes muito que aprender connosco!

As pranchadas recrudesciam.

O velho caíu morto.

-- Vê. Aquele já está pronto, e tu, se teimas, vais pelo mesmo caminho.

-- Então, rapazes, façam-mo andar depressa.

-- O’ alma do diabo! ¿ Então tu não queres viver mais alguns dias?

-- Sendo traidor, não. Prefiro morrer.

E de pé, sereno e altivo, viu erguer-se o golpe que o devia prostrar. Cambaleou e caiu inerte sem soltar um gemido.

-- Estes diabos parecem feitos de chumbo!

Foram dizer ao velho general que os dois prisioneiros tinham morrido.

-- Enterrem-nos, disse êle encolhendo os ombros.

E voltou a consultar o seu estado-maior acerca do caminho a seguir.

Dos pobres patriotas nem o nome foi conservado; apenas um pastor de ovelhas, apiedado da sua sorte se entreteve pondo-lhes na cova uma cruz de madeira que a caridade anónima tem substituido quando o tempo a estraga. Os que passam no Moinho do Cubo resam um Padre Nosso e uma Ave Maria por alma dos desconhecidos da cruz, pequenos heróis, cuja grandeza de alma se podia medir com um Cesar ou um Napoleão.

Acabando de lêr o seu conto, o Romão olhou timidamente para o herborizador.

-- Não está mal. Para a tua idade não se podia mesmo fazer melhor!

O rapaz corou de júbilo.

-- ¿ E o artigo de fundo? perguntou Manuel.

-- Qual artigo de fundo ? repetiu intrigado o pai.

-- O que eu escrevi para o jornal que nós vamos fundar.

-- Ah! ¿ vocês vão fundar um jornal?

-- São ideias do Manuel. Eu já lhe disse que era caro, mas êle não quer ouvir semelhante cousa.

-- Olhe, pai, chama-se «Alerta» e é destinado a defender os interesses do regimento.

-- Está bem. ¿ E então tu escreveste o artigo do fundo?

-- Escrevi, sim senhor.

-- ¿ E de que trata ?

-- Da disciplina, base indispensável do militarismo. Quer que lhe leia?

-- Amanhã. Agora estou a cair de sono. Vá, toca cada môcho a seu souto. Bôa noite.

-- Bôa noite.

E retiraram-se os quatro. Romão ia radiante com o seu folhetim, mas Manuel pesaroso de não ter conseguido impingir ao pai o artigo de fundo.

No dia seguinte fôram á escola saber do sr. Roque e, na volta, entraram no papeleiro para ajustarem o jornal. Era um bom homem o Justino papeleiro, amigo dos rapazes e sempre pronto a ser-lhes agradável. Quando lhe falaram no jornal, achou graça e, tambêm com vontade de brincar, declarou:

-- Eu não levo nada pelo trabalho. Vocês só pagam a tinta e o papel.

-- ¿ E isso é muito caro, senhor Justino ?

-- Não, pequeno; quaisquer dez tostões fazem a festa.

-- Mas isso é muito dinheiro, disse Manuel, abrindo os olhos com espanto.

-- Não, não é. E, se vocês não chegarem a juntados, eu não os vou demandar por causa disso.

Imprimiu-se o primeiro numero e todo o regimento comprou. Várias familias da Merceana, achando graça á brincadeira, compraram tambêm, e os pequenos ajuntaram os dez tostões para entregar ao Justino que, muito contente, dizia:

-- Está garantido o segundo número porque o material para o primeiro dei-o eu.

A farmácia, o sapateiro, o algibebe, todos deram um anúncio e o novo número saiu mais enriquecido e variado. O folhetim do Romão causara sensação entre a pequenada e era esperado o segundo com viva curiosidade.

Depois de muito meditar o assunto, o Romão escreveu o seguinte:

Um bravo!

Quando foi das lutas liberais de 833 e 834, Tomé de Jesus era criado duma senhora liberal residente em Monsão. Quis ela, muito extremosa pelo marido, receber novas suas e, não tendo outro meio, mandou ao Porto o seu fiel criado para que o fosse vêr e lhe trouxesse notícias. Mas, se esta ordem era facil de dar, era dificilima de executar. Os miguelistas, acampados na margem esquerda do Douro, mantinham uma grande vigilância sobre o inimigo e, não raro, após um combate de palavras, nem sempre limpo, rompia um tiroteio que se sustentava vivamente por largo espaço de tempo. Entrar no Porto era difícil. Mas o Tomé, servo cumpridor das ordens que lhe davam, nem por um momento hesitou em dirigir para ali os seus passos. Vestiu-se de mulher, pôs á cabeça uma cesta de regueifas e dirigiu-se para a cidade. Chegando ali, pediu com tão bonito modo que o deixassem vender as regueifas, que, como tinha uma cara bonita, deixaram-no seguir depois de lhe terem dito umas graças. Julgava êle, ao entrar na cidade, que os seus trabalhos estavam acabados, mas qual! Encontrar seu amo era tão dificil como achar uma agulha em palheiro. Contudo não desistiu. E um dia, vendo-o a falár com varios oficiais, foi ao seu encontro alegremente:

-- Senhor Moreira, a senhora mandou-me vê-lo e que lhe levasse notícias.

-- Tomé! Pois és tu, nessa figura?

E o amo de Tomé de Jesus ria até chorar.

-- E é que ficas lindamente de mulher! continuou êle.

-- Ficarei, mas não gosto. Vesti-me assim para poder entrar na cidade. D’uma mulher ninguêm suspeita, emquanto que dum homem...

-- Lá isso é verdade. Mas dize-me, como estão todos lá em casa?

-- Muito bem. A senhora é que chora que se fina: aquilo é uma dôr dalma. Nem ela tem socego emquanto eu não voltar com palavras do senhor. Veja se lhe escreve, ande.

¿ E tu julgas que é facil o tornar a ir?

-- Não, senhor: sei muito bem que não é facil, mas como devo fazê-lo... Escreva o senhor o que quizer porque, quanto mais cedo me puzer a caminho, melhor.

O oficial despediu se dos amigos e dirigiu-se para casa, seguido do seu fiel criado. Ali, pegou numa fôlha de papel e escreveu uma longa carta; depois fechou-a num sobrescrito e perguntou:

-- ¿ Como has de levar isto?

-- Aqui.

E erguendo as tranças postiças que se lhe enrolavam na nuca,meteu o papel dentro delas, tornando-as a segurar no seu logar.

-- ¿ E isso não te cáe?

-- Não senhor. Estão bem presas.

-- Então bebe essa garrafa á minha saude e põe-te a caminho antes que seja noite.

Tomé de Jesus assim fez. Mas quando, tendo passado através das tropas inimigas, êle começava a julgar-se livre de perigo, um soldado que, sentado no chão, jogava com outro ás pedrinhas, reparou nêle e exclamou:

-- Ou eu me engano muito, ou aquilo é um homem vestido de mulher.

E gritou-lhe:

-- ¡Caipira!

Tomé fingiu não perceber e continuou andando.

Então o outro ergueu-se, dizendo:

-- Não deixarei escapar o melro.

-- Joga, disse-lhe o outro soldado, enfadado com a interrupção; deixa lá ir quem vai.

-- Por esse processo não valia a pena pôr cêrco á cidade.

E erguendo-se, deitou a correr atrás do pobre Tomé que, vendo-se perseguido, pareceu achar asas para fugir.

Foi longa a corrida. Por duas ou três vezes o soldado miguelista esteve quasi a conseguir apanhar a falsa lavradeira que, furtando-lhe o corpo por um habil manejo, conseguia escapar-lhe de novo. Quiz porem a fatalidade que a saia se lhe prendesse nos espinhos duma piteira. Então o triunfo do soldado foi certo.

Por um movimento rapido, Tomé tirou a carta de entre as tranças e, amarfanhando-a, fez dela uma bola que enguliu. Os vestidos foram-lhe arrancados, maltrataram-no na esperança de conseguir informações, e êle a tudo respondia.

-- Eu não sou quem os senhores pensam: sou apenas um pobre negociante de regueitas e, como não me era facil, como homem, continuar o meu negócio, vesti um vestido da minha mulher para tentar vender alguma cousa por que ninguêm vive do ar.

Acabando por se convencerem de que êle falava verdade, deixaram-n’o retirar-se e, mais morto que vivo, fingiu retomar o caminho da terra; mas, logo que conseguiu pôr-se fóra do alcance da vista, retrocedeu e foi tentar entrar de novo no Porto. Rastejando como uma cobra, ferindo-se nos picos e nas urzes, conseguiu iludir a vigilância das sentinelas dos dois campos e penetrar de novo na cidade, onde imediatamente se dirigiu a pousada de seu amo. Êste, vendo-o chegar tão ferido e maltratado, ficou consternado e perguntou-lhe aflicto pela carta.

-- Enguli-a, senhor. Foi o único meio de a não deixar cair nas mãos daqueles malvados.

O capitão abraçou-o com reconhecimento e escreveu nova carta. Depois, pensaram no modo por que que havia de passar as linhas inimigas e resolveu-se que o faria de noite, pelo mesmo sitio por onde conseguira penetrar de novo na cidade. Assim foi, mas desta vez uma sentinela deu conta da sua passagem e intimou-o a fazer alto. Êle, em vez de obedecer, precipitou-se sobre ela, arrancou-lhe a arma da mão, quando a ia disparar e, dando-lhe uma forte coronha-da, que o prostrou desmaiado, despiu-lhe o capote, as calças, as botas, tirou-lhe a barretina e, envergando tudo á pressa, afastou-se apressado. Logo que chegou a distancia e perdeu de vista o acampamento, tornou a despir tudo e, enveredando por atalhos conseguiu escapar ás perseguições dos soldados miguelistas que, ao darem com o seu camarada desmaiado, corriam para todos os lados, desejosos de encontrar em quem se vingassem.

Tomé chegou são e salvo a casa da sua ama e pôde entregar-lhe a carta do marido que ela esperava anciosamente, cheia de cuidado.

Á noite, sentado na grande cosinha de pedra, Tomé contava ás criadas da casa os perigos por que passara e mostrava as cicatrizes que ainda conservava dos maus tratos sofridos. Quando os liberaes ficaram vencedores, o capitão Moreira, entrando em casa e sabendo que a mulher recebera a carta que lhe enviara por Tomé, disse aos filhos:

-- Chamem cá esse bravo; quero abraçal-o.

E’ que conseguir passar duas vezes através das tropas inimigas, sempre vigilantes, era uma verdadeira façanha.

Quando o Romão acabou de escrever o seu trabalho leu-o, fez-lhe algumas emendas e foi-se deitar, contente com a sua obra.

V

Os versos do herborizador

No domingo seguinte, havia novo passeio militar e saia o segundo numero do Alerta que era esperado com geral anciedade.

O herborizador fez uns versos a que deu o titulo de Cantiga do Regimento para os pequenos cantarem durante a marcha, e o mestre da filarmónica da terra compôz-lhe a musica. A letra era assim:

Somos todos portuguêses

E mais fortes do que o aço;

E’ pequeno o nosso braço,

Mas tem ancia de vencer.

Vai aprendendo, a brincar,

A manejar a espingarda

E a desnudar uma espada

Para a Patria defender.

E’ terra de heróis a nossa!

Somos soldados no berço.

Não damos á gloria aprêço

Que as honras prêço não têm,

Mas sabemos que é dever

Pela terra em que nascemos

Dar a vida e da-la-hemos,

Pois que a Patria é nossa mãe.

Se algum de nós, depois de homem,

A vida perder por ela,

Terá a morte mais bela

E mais digna de invejar.

¿Que importa morrer, se a morte

For util á nossa terra ?

Feliz o que tem por norte

Perder a vida na guerra

E possa ter a ventura,

No seu alento final,

De erguer um brado altaneiro

Ás glorias de Portugal.

Depois da missa, como no domingo antecedente, saíram os soldadinhos, desta vez em direcção á Carvoeira, ao som da sua banda de música; mas depois, na estrada, era um gosto vêr e ouvir a satisfação com que cantavam. O herborizador e o mestre da filarmónica, que acompanhavam o regimento, cantavam tambêm com grande entusiasmo. A’ volta, depois de terem merendado lautamente em casa d’um rico lavrador do sitio, a alegria era imensa. Quando regressaram ás suas casas, cansados da marcha, mas contentes, contaram ás famílias o grande prazer que tinham tido naquèle lindo passeio militar. Romão e Manuel, verdadeiramente incansaveis nos seus empreendimentos, mal chegaram, tiraram as fardas, vestiram umas blusas azuis e com uns bonés com o dístico de Distribuidor do Alerta e um maço de pequenos jornais sob o braço esquerdo, correram a distribuir pelas casas o jornalzinho que teve um sucesso como o do numero anterior, sendo o Romão muito cumprimentado pelo seu folhetim. Os artigos de fundo, que eram sempre escritos por Manuel e imitavam os dos jornais que de Lisboa vinham para seu pai, não mereciam grande aplauso, nem o tinham, por serem sempre uma macaquice de outros, enquanto que Romão, não imitando ninguêm, era muito mais louvado e apreciado. No domingo seguinte houve uma inovação na saida do regimento: o comandante e os oficiais superiores, à imitação do que e faz nos regimentos a valer, iam a cavalo, mas... em burros, muito galhardamente ajaezados. Emfim, de vez para vez, notavam-se grandes progressos e a maneira por que marchavam era citada com admiração pelo major reformado que vivia numa linda quinta chamada Flôr do Vale.

VI

A filha do major

A filha do major, Leonor, era uma bonita rapariguinha de dez anos, muito ajuizada e estudiosa, a melhor das alunas do sr. Roque, depois de Elisa, a filha mais velha do administrador, um rico vinhateiro do distrito. Para Leonor, vêr o Romão a cavalo no burro á frente do regimento, era uma fascinação. Comprava o Alerta e era leitora do folhetim e admiradora do seu autor. Dizia ela á sua amiga Elisa, falando de Romão:

-- E’ um rapaz cheio de talento e de nobres sentimentos. Gostava de casar com êle, quando fôsse grande.

A Elisa ouviu com muita seriedade e respondeu:

-- Eu tambem gostava de casar com o Manuel.

-- Qualquer dêles é muito pobre e os nossos pais preferirão de certo outros que tenham mais meios.

Elisa rebelou-se:

-- ¡Ora essa! ¿Então quem casa? ¿São êles ou somos nós?

-- Mas uma bôa filha deve obediência a seus pais, disse Leonor com convencimento.

-- E’ exacto, respondeu por traz dela a voz suave de sua mãe; mas os bons pais querem primeiro que tudo a felicidade dos filhos.

E, voltando-se para Elisa, ajuntou sorrindo com brandura:

-- Já vês que, mesmo quando procuram intervir no futuro dos filhos, é sempre com bôa intenção.

Elisa baixou os olhos ruborisada e respondeu em tom de desculpa:

-- Não tinha pensado nisso.

-- E’ natural, volveu-lhe sorrindo D. Clementina. As crianças falam e a maior parte das vezes não reflectem: é por isso que dizem ás vezes tantas tolices, quando se metem a discorrer sobre assuntos que não são próprios para a sua idade. Ora dize-me, ¿ que nome puzeste afinal á tua boneca?

-- Chama-se Violeta.

-- E' um lindo nome. ¿ E já lhe cortaste os vestidos ?

-- Não. A Leonor é que os vae talhar. Entende mais disso que eu. O pai trouxe-me de Lisbôa um bêrço para ela, muito bonito. E’ como o das crianças: pode-se embalar e tudo.

-- ¿ E ao teu irmão não trouxe nada?

-- ¿ Então não havia de trazer? Deu-lhe um lindo cavalo de balouço, mas êle é tão travesso e desinquieto, e tanta fôrça imprimiu ao seu imaginário galope, que voltou os pés por cima da cabeça e fez um grande galo na testa.

-- Ha de agora ter mais cuidado com as cavalarias. Bem: fiquem brincando que eu vou á leitura.

-- Ó mamã, enquanto nós cosemos, conte-nos uma historia: é um grande favôr que nos faz.

-- Conte, sr.ª D. Clementina, conte.

-- ¿ Que historia ha de ser? perguntou, sentando-se, a condescendente senhora.

-- A da Bela e da Féra.

-- ¡Oh! essa não: é já muito sabida.

-- ¿ Então qual ?

-- A da Gata Borralheira...

-- Essa tambem eu sei.

-- Eu não gosto de contar cousas que as meninas já saibam. Deixem-me pensar um bocadinho e contar-Ihes-hei uma historia que nunca ninguêm ouviu.

As pequenas saltaram de alegria, batendo as palmas.

-- Então, enquanto eu penso, preparem a sua costura.

Instantes depois, sentadas em duas cadeirinhas baixas, Elisa e Leonor cosiam cuidadosamente o vestido e a roupa branca de Violeta.

Logo que as viu sentadas, a sr.ª D. Clementina disse-lhes:

-- O titulo da minha historia é: O gás dos pântanos.

-- ¿Que vem a ser isso?

-- Já vão saber. Estejam com atenção: vou começar:

«Junto do muro que rodeava o pequeno cemitério de Vilarinho, havia um grande pântano onde enxameavam os mosquitos. A gente da aldeia, que fazia o seu caminho por ali, quando, uma vez por semana, se ia abastecer ao mercado da próxima vila, queixava-se daquela praga que tornava dificil a respiração com receio de absorver pela bôca ou pelo nariz os importunos e perigosos insectos. Nunca os habitantes do lugar passavam por aquêle sítio, ao qual davam o nome de pântano das aventesmas, que não se benzessem e apressassem o passo. E’ que, se de dia o pântano era incómodo, de noite era temido. Duas cruzes de madeira memoravam, ao longo do lamacento carreiro, dois crimes de morte ali praticados, ha longos anos, por noites escuras e invernosas. E o povo da aldeia e dos arredores afirmava ter visto, por noites quentes de julho e agosto, sair fogo do chão junto das cruzes Eram chamas que corriam atraz das pessôas. Diziam os crédulos que eram as almas dos assassinados a perseguirem as pessôas que não rezavam, ou rezavam raras vezes, quando passavam junto das cruzes. Por isso, de noite, nem os homens mais afoitos da aldeia eram capazes de passar por ali sosinhos:

«Ora sucedeu que o filho do José da Tulha fôra mandado pelo pai estudar para o Porto. O garoto não contava ainda quatorze anos e viera a férias pela primeira vez durante o tempo mais quente. Fôra dos primeiros alunos a fazer exame e, por esse motivo, regressou á casa paterna na segunda quinzena de julho, muito contente e vaidoso com a distinção que lhe haviam dado. Na véspera da sua chegada, o João das Luzes, conhecido pelo homem mais pimpão e destemido do lugar, tivera de ir á vila a um recado do seu amo, o morgado da Agreirinha. Em vão quiz arranjar alguêm que o acompanhasse com o pretexto de lhe dar conversa; todos declinaram esse prazer, por terem de passar pelo pântano. Dizer que tinha mêdo não o faria nunca João. Decidiu-se a ir só. Percorrendo o caminho que o separava daquêle temido lugar, ia pensando:

« -- ¡E' inegavel que o que eu sinto é mêdo... puro mêdo... parece incrivel, mas não é!

«Tinha impetos de voltar para traz, deitando a correr como se fôsse um rapaz pequeno; mas a sua enorme vaidade dota-se de ficar por medroso depois de ser tido por quantos o cercavam em tão alto conceito. Ao aproximar-se do cemiterio, as pernas tremiam-lhe; os dentes entrechocavam-se, mas andava para diante, dizendo a si proprio:

« -- Ter mêdo é humano e não fica mal a ninguêm, desde o momento em que o vença e proceda como se o não sentisse.

«Ao dobrar a esquina ocidental do muro, benzeu-se, murmurando:

« -- Deus me tenha na sua santa guarda!

«A noite estava escura. Eram apenas nove horas, mas a solidão e o silêncio eram desoladores. Chegando junto das cruzes, João reparou que do chão se evolavam chamas.

«Cheio de terror, começou a correr, mas a chama seguia-o. Esquecido dos seus protestos de vencer o mêdo, gritou por socôrro com tal fôrça, que foi ouvido na povoação, apesar dela ainda ficar distante dali.

«Vieram em seu auxílio alguns amigos, julgando que lhe tinha sido feita uma espera.

«Quando chegaram, encontraram-no caído junto duma das cruzes e com os sentidos perdidos. Improvisaram uma maca com os cajados e as jalecas e removeram-no para casa.

«Voltando a si, contou, não o terror que sentira, mas que tinha sido perseguido pelas aventesmas. Todos, na aldeia, atemorisados, juraram não voltar tão cêdo atrás do cemitério. A tia Ana dos Lameiros sustentava que isso não fazia cousa alguma porque os assassinados tambêm apareciam em outros pontos. O que era preciso era rezar-lhes por alma e estar bem com Deus.

«No dia imediato não se falava noutro assunto, e o filho do José da Tulha, ao chegar a casa, depois dos transportes de alegria e dos abraços que a sua vinda motivou, foi a primeira noticia que recebeu.

«Manuelzito sorriu, superior, e disse á família:

« -- ¡Qual aventesmas! Não tenho nenhum mêdo de lá ir, seja a que hora fôr. E não desmaio, apesar de ter só quatorze anos.

« -- Mas eu é que não quero que te exponhas a um perigo.

« -- Não ha perigo nenhum, minha mãe. Aquilo não são as almas dos assassinados, como a ignorância do povo julga: é um fenómeno vulgar, que geralmente se dá nos periodos mais quentes. Isto, que êles chamam almas, é simplesmente um gás que se fórma da decomposição de matérias orgânicas. Êste fenómeno é geralmente notado de noite porque a temperatura lhe é mais própria, o que não quer dizer que se não possa dar de dia.

« -- ¡Tu tens a certeza d’isso, rapaz ? perguntou o José da Tulha, olhando vaidosamente para o filho.

« -- ¿Então não tenho? ¿Lembra-se o pai do livro que o ano passado lhe emprestou o senhor morgado ?

« -- ¿ As índias Negras, de Júlio Verne?

« -- Esse mesmo. ¿Não está certo duma explosão que o velho queria fazer com um gás que chamava grisù ?

« -- Como se acabasse de o ouvir lêr agora.

« -- Pois nesse gás entra êste, embora produzido por outras causas. Eu vou buscar-lhe o meu livro de química.

«Enquanto o Manuelzito foi buscar o livro, dizia o José da Tulha para a mulher:

« -- ¡Ó Maria, que linda cousa é saber a gente a explicação de quanto vê! ¡Ora repara tu que súcia de bêstas somos nós todos! ¡A tremer de mêdo, homens e mulheres, duma cousa que não vale dois caracóis e faz rir uma criança que sabe pegar num livro!

«A sr.ª Maria concordava.

«Quando o filho voltou trazendo o livro na mão, o sr. José pôs os óculos na ponta do nariz e leu com atenção a página que o rapaz lhe indicava, Depois discutiram. E quando o pai meteu os óculos no estojo e êste no bolso, estava convencido de que o filho tinha razão.

«O pequeno, que conversava muito com os seus professores, tinha ouvido que a plantação de eucaliptos nos terrenos pantanosos, depois de lhe terem aberto valas de escoamento, os tornava salubres e produtivos. Lembrou portanto ao pai que era uma bôa ocasião de comprar o pântano. Decerto lho venderiam baratíssimo e em poucos anos poderia tirar á larga um lucro muito superior ao capital que empregasse.

«O José da Tulha, como camponês manhoso que era, recomendou ao filho e á mulher que não repetissem a ninguêm a conversa que haviam tido. Era forçoso que assim fôsse para poderem arranjar na aldeia uma fama de valentia muito superior á do João das Luzes.

«Nessa tarde, conversando com uns amigos na taberna do Taludo, o tio José afirmava a sua resolução de ir castigar as almas dos assassinados pelo susto que tinham metido ao João das Luzes. Os amigos e conhecidos tentaram dissuadido. O pai do Manuelzito não se deixava convencer e dizia:

« -- Digo-vos mais: se o raio do Zé da Chica me não quizer muito dinheiro pelo pântano, compro-lho e perseguirei por tal fórma as aventesmas que lhes acabarei com a casta.

« -- Não acabem elas com vomecê, que o contrario não me parece obra para a mão de homem.

«Houve logo quem corresse a dar ao Zé da Chica a noticia de que podia receber algum dinheiro pelo pântano. E aconselharam-lhe:

« -- Larga-lho por todo o dinheiro. Olha que é uma sorte que tu não podias nunca esperar, ¡O Zé da Tulha está doido!

« -- ¡Sim, concordava outro, que era incapaz de ir de noite ao pântano; aquilo só loucura!

«Emfim, a troco de três moedas, comprou o pai de Manuel o pântano, fez-lhe as obras que o filho indicara e as aventesmas nunca mais apareceram por detrás do cemitério.

«Na aldeia, as mães contam aos filhos que o José da Tulha foi de noite ao pântano e castigou por tal fórma as almas dos assassinados que nunca mais se atreveram a aparecer.

«Todos o olham com respeito, e a tia Ana dos Lameiros, vendo, passados anos, edificar-se no terreno do pântano uma pequena casa que o filho do José da Tulha havia de habitar, quando terminasse os estudos e casasse com a Luiza Pitorra, dizia:

-- Êle pode correr as aventesmas porque é um justo. Se não estivesse bem com Deus, outra lhe fôra a sorte.

«E o José da Tulha, ouvindo os comentários dos patrícios, sorria e ia gozando a alta consideração que todos lhe dispensavam por ter tirado a aldeia do constante receio das aventesmas.

«O Manuelzito revia-se no pai, contente de sentir no seu coração que fôra êle que o guindara a tais alturas pelos judiciosos conselhos que lhe dera; mas, modesto e bom filho, não exteriorisava as suas convicções, contentando-se de as têr.»

D. Clementina rematou:

-- Acabou-se a historia.

E deu um beijo na filha.

-- Outra... Outra, pediram com muito empenho as duas meninas.

-- Mais nenhuma; agora vou vêr como a Leocádia se desempenhou da incumbência que lhe fiz.

-- ¿Incumbência de quê?

-- De fazer um pudim de ovos para o jantar. Até logo.

-- Isso é que foi uma bela ideia, disse Leonor, lambendo os beiços como uma grande gulosa que era.

Ao jantar, o major não se cansou de gabar o garbo marcial do pequeno regimento, a maneira por que marchavam, etc. Leonor, ruborisada, por se lembrar que a mãe ouvira a confidência que fizera a Elisa, escutava com muito prazer quanto o pai dizia, mas sobre tudo o elogio que fez a Romão como organizador daquele divertimento tão interessante e util.

VII

A caminho da aula

No dia seguinte de manhã ergueram-se cêdo. Era o primeiro dia em que o sr. Roque dava aula aos seus alunos. Leonor, muito contente, despediu-se da mãe e com os livros na mão, seguida pela criada que lhe levava o cestinho com o lanche, tomou o caminho da Escola. Tinha dado talvez uns vinte passos, quando encontrou Manuel e Romão sobraçando os livros.

-- Muito bons dias, menina Leonor, disseram os dois pequenos, levando amavelmente a mão aos bonés.

-- Muito bons dias, respondeu ela, sem parar nem afrouxar o passo.

-- ¿Então já hoje temos aula? disse o Romão.

-- E’ verdade, respondeu ela, mas o sr. Roque ficou muito fraquinho. Deus queira que a canseira que vai ter connosco, lhe não faça mal.

Manuel, dando-se os ares de homenzinho, respondeu:

-- E’ natural que êle não tenha recomeçado a trabalhar sem licença do médico.

-- Decerto, apoiou Romão

-- Eu digo isto, insistiu a pequena fazendo-se vermelha, porque ouvi dizer ontem em minha casa que êle começava a trabalhar mais cêdo do que devia, porque, como é muito pobre, tinha absoluta urgência de começar a ganhar.

-- E' possivel, disse Romão. Tenho pena se assim é, porque êle é muito bom professor e amigo de todos os discipulos.

Chegando á escola, Leonor abriu o cestinho do lanche e tirou dêle uma rosa de papel, muito bem feita e bonita, que ofereceu ao professor, dizendo-lhe que lhe dava aquela flôr para comemorar o seu restabelecimento. E, fingindo querer dar-lhe um beijo, murmurou-lhe ao ouvido:

-- Quando estiver só, puxe-lhe a fitinha que está oculta no ôlho.

E foi sentar-se no seu lugar.

O sr. Roque recebeu muitas flôres e vários presentes, como galinhas, ovos, perús, pão de ló, marmelada, vinho, etc., mas nenhum que o cativasse mais do que a rosa de papel que lhe trouxera Leonor. ¡E ainda êle não sabia o que ela trazia em si! Era uma rosa vermelha, de folhas aveludadas, perfumada de modo que parecia ter aroma, e metida num canudinho de cristal, o que permitia ao sr. Roque pô-la sobre a secretária. Os olhos de todos os discipulos estavam prêsos da beleza da flôr, mas sobretudo Romão sentia se encantado.

Começaram dando as lições, e o professor foi notando que quasi todos se haviam atrazado um pouco; mas, quando chegou a Romão, fez-lhe um grande elogio. Êle não só não desaprendera, como se adiantára estudando todos os dias a lição que o professor lhe teria marcado se não estivesse doente. Isto fez com que o mestre se comovesse por êle ser tão cumpridor do seu dever e o abraçasse com ternura e afecto. Depois, quando chegou a vez de dar lição aos mais pequenos e viu o aproveitamento de Manuel, a sua satisfação não conheceu limites e disse a Romão:

-- Quero recompensar-te pelo teu zêlo. Ámanha terás um prémio e de hoje em diante serás tu que sempre me substituas e auxilies quando eu d’isso careça. Nos outros ha muitos que merecem bom, mas optimo só tu.

Romão fez-se muito corado e murmurou comovido:

-- Muito obrigado, sr. Roque.

A Zulmirinha, sobrinha do mestre, e Leonor rejubilaram ambas; parecia-lhes que Romão, desde que merecera aquele grande louvor diante de todos os seus companheiros, era mais bonito e mais alto. ¡Sêr o primeiro da aula, como o primeiro do regimento, sêr director do jornal e quem escrevia os seus lindos folhetins! Tudo isso eram títulos que tornavam o Romão superior a todos no conceito das duas meninas.

Quando a aula terminou e regressaram a casa, Romão e Manuel iam muito contentes pela bôa figura que tinham feito. O herborizador e a mulher tiveram uma grande alegria com o que êles contaram que se passara na aula, e a sr.ª Camila, em sinal de regosijo, demorou o jantar meia hora para lhes dar arrôz dôce á sobremesa. O marido, não querendo ficar atrás em generosidade, deu três tostões a cada um.

-- ¿Que vais tu comprar com o teu dinheiro? perguntou Manuel ao amigo.

-- Não compro nada. Guarde-o para quando precisar de alguma cousa.

-- ¡Sempre és bem tolo ! Eu vou á loja do Justino papeleiro comprar bonecos de estampar, lapis de côres para fazer bonecos, papel quadriculado... vou gastar tudo.

-- Fazes mal; quando precisares, não o tens.

Ao jantar o herborizador que tinha ouvido esta troca de palavras sem intervir, contou como os que gastavam unicamente pelo prazer de dispender chegavam depois a precisar e não tinham.

Romão deu muita atenção á historia, mas ao estouvado do Manuel entrou-lhe por um ouvido e saíu-Ihe por outro. Mal enguliu o arroz dôce, pediu licença á mãe e marchou para a loja do Justino, onde gastou tudo até aos últimos cinco réis. Vendo-o sair, o pai não tentou retê-lo, mas disse com pena a Romão:

-- ¿Vês o efeito que lhe fez a história que lhe contei ? E’ uma cabeça no ar.

-- Deixe lá, sr. Ramos; quando êle vir que eu tenho e êle não tem, ha de fazer mais caso da história; o sr. verá.

-- Tambem digo, concordou a sr.ª Camila.

Um quarto de hora depois, voltou Manuel trazendo as suas compras e abancou junto da mesa da cozinha onde estendeu maravilhado tudo quanto trazia.

Ninguêm o censurou, e, quando recolheu ao quarto, ia tão comente com as suas compras que as não trocaria por nada.

O sr. Roque, ficando só na casa da aula, pegou na rosa, aspirou-a, como se ela tivesse perfume natural, e depois procurou-lhe entre as fôlhas do ôlho a anunciada fitinha e puxou. Abriu-se uma caixinha de papelão e dentro dela viu um papelinho muito dobrado. Tirou-o para fóra e soltou um grito de surpreza e alegria vendo uma nota de vinte mil réis. Ia poder pagar a conta que fizera na botica e ficar com a sua vida direita. Êle tinha um grande horror a dever nada a ninguêm, sabendo que não ha nada, para se ser independente, como súprir as próprias necessidades. Começou a pensar no prémio que devia dar a Romão: queria que fôsse uma cousa que estimulasse os outros a tornarem-se estudiosos. ¿Mas que havia de ser?

Depois de pensar muito, sem achar solução ao que desejava, foi ter com o Justino papeleiro, que êle considerava homem sério e de bom conselho, e disse-lhe:

-- Eu tenho lá na aula um rapaz tão bom, que não ha outro que se lhe compare. Queria dar-lhe uma distinção que mostrasse a todos os outros quanto êle vale e eu o aprecio; mas, por mais que na minha imaginação procure, não encontro cousa alguma com que eu possa premia-lo e incitar os outros a seguirem-lhe o exemplo. Tu não te lembras de cousa alguma, Justino?

-- Mas isso está naturalmente indicado: arranjas uma fita larga de sêda vermelha, escreves-lhe em grandes letras doiradas «O melhor» e pões-lha a tiracolo, anunciando aos outros que todos o podem substituir naquela honra: basta estudar mais do que êle.

-- Isso parece muito justo, mas não é. Vou explicar-te porquê.

-- Tenho curiosidade de te ouvir ¡ Não é justo! ¡ Essa agora! ¿E porquê, não me dirás?

-- Porque nós somos os primeiros que involuntariamente não seremos justos. Por exemplo, o Romão estuda e sabe. E que êle saiba e continue a saber passa para nós a ser natural; mas, se de repente um grande cábula, unicamente para apanhar um prêmio, fingir que estuda e mesmo estudar, causar-nos-ha uma surpreza tão grande que somos capazes, no excesso da nossa admiração, de lhe dar o prémio que, em confronto com o outro, êle de fórma alguma merecia.

-- ¡ Isso não me parece possivel!

-- Pois não só é possivel, como natural. O pior é que não sei o que lhe hei de dar...

-- Vê isto. Não é extremamente barato, mas... pagarás como e quando quizeres.

E abriu-lhe uma grande caixa de madeira preta com os cantos de metal amarelo. Dentro dela havia um pequenino tinteiro, lapis, canetas, um guarda-papeis de madeira, um pesa-cartas de metal branco, uma esfera armilar, um carimbo, borracha, canivete, papel de cartas, sobrescritos, e bilhetes postaes pequeninos. O sr. Roque, apesar de já não sêr criança, sentiu vontade de possuir o lindo cofre, tão bonito êle era, e pensou:

-- O Romão decerto vai ficar contentíssimo. Depois perguntou:

-- ¿E’ muito caro ?

-- Não: para ti dou-to pelo preço do custo.

-- ¿Quanto ?

-- Dois mil rèis... E faço-te mais: mando gravar na tampa da caixa o nome dele a letras doiradas com a classificação que lhe costumas dar: ao meu melhor aluno.

O sr. Roque pertencia ao numero das pêssoas que levam muito tempo para decidir seja o que fôr. Pensou, tornou a pensar, e acabou por se convencer de que realmente aquela caixa era a mais bela recompensa que se podia oferecer a um estudante aplicado.

-- Pois sim, compro a caixa e pago-te já. Não gosto de arranjar dividas, quando posso passar sem elas; mas olha que a desejo lá ámanhã á hora de terminar as aulas.

-- Não ha dúvida: lá estará.

E os dois amigos despediram-se, ambos satisfeitos por terem feito negócio.

VIII

O elogio de Romão

Terminadas as aulas, no dia seguinte áquêle a que me referi no antecedente capítulo, o sr. Roque mandou perfilar todos os seus alunos e, pondo-se de pé sobre o estrado onde costumava presidir ás aulas, fez um pequeno discurso no qual elogiou grandemente o seu discípulo Romão. Findo êle, chamou-o junto do estrado e entregou-lhe o lindo prémio, depois de o ter mostrado a todos os alunos que soltavam exclamações de encantada surpreza, admirando-o.

Todos deram a Romão os parabens pela justa recompensa que acabava de receber, e êle, corado, radiante, com os olhos brilhantes de prazer, regressou a casa acompanhado de Manuel, não menos alegre e satisfeito do que êle.

Quando a sr.ª Camila e o marido o viram pousar a caixa sobre a mesa, tiveram um grande júbilo e abraçaram-se a êle enternecidos.

-- Tu, se estudares, has-de ser um grande homem.

-- Tambêm digo, afirmou o marido.

-- ¡ Mas que lindo! ¡ que lindo que é! exclamou Manuel com entusiasmo, saltando num pé e noutro, não se fartando de admirar o conteúdo do cofre.

Estavam ainda todos entregues á admiração do lindo prémio, quando bateram á porta. Manuel foi abrir e voltou muito atrapalhado, dizendo:

-- Meu pai, é o senhor major que lhe quer falar.

O sr. Pedro Ramos apressou-se a ir receber a anunciada visita. Passado um quarto de hora, chamou Romão e o filho.

Êles entraram na casa de fóra com um certo acanhamento. O major era um militar a valer e bastava isso para lhes merecer extraordinária consideração, sendo êles militares a fingir.

-- Venham cá, meus filhos, disse o sr. Ramos, que nunca fazia distinções entre êles; o senhor major vem cumprimentar o Romão pela justa homenagem que hoje recebeu aos seus merecimentos, e convida-los a ambos para irem jantar com êle. Vão portanto vestir os seus melhores fatos e não se demorem

Os rapazinhos, depois de cumprimentarem amavelmente o visitante, fóram dizer á sr.ª Camila o agradavel convite que tinham recebido e em seguida correram a vestir-se. Logo que estiveram prontos, fôram de novo ter á casa onde o sr. Pedro Ramos conversava com o major. Vendo-os entrar, o militar exclamou:

-- Vamos lá, meus rapazes: não quero demorar a anciedade que vai lá por casa na espectativa de que vão jantar connosco. As suas condiscípulas são muito admiradoras não só do seu bom comportamento, como do talento e aplicação que mostram no estudo.

Manuel baixou a cabeça confuso e Romão, muito corado, respondeu:

-- E’ favôr delas a que devemos ser gratos...

-- ¡ Qual favôr! Justiça, justiça é que é.

E despedindo-se do herborizador tomou, acompanhado pelos dois estudantes, o caminho de Flôr do Vale.

Mal entraram na azinhaga, que levava á linda vivenda do major, viram a mulher dêste com a filha e Elisa, a sua inseparavel amiga, filha do administrador do concelho, que, debruçadas no mirante, esperavam a sua vinda. Mal os avistaram, começaram a dar palmas e, deitando a correr, vieram abrir-lhes a porta da quinta.

Os pequenos cumprimentaram-nas com acanhamento porque, como eram pobrezinhos, não se sentiam á vontade naquêle rico ambiente de luxo e conforto, onde fôram introduzidos, porque o major levou-os para o seu escritorio, onde lhes fez vêr magníficas armas que possuia e conversou com êles como com dois homemzinhos. Depois duma grande paléstra, em que as duas meninas tomaram parte muito ajuizadamente, fôram falar a D. Clementina e brincar para a quinta. Ai, sentiram-se de novo á vontade porque, sós com as suas companheiras de estudo, e ao ar livre que tambêm lhes era familiar, perderam a impressão grata e ao mesmo tempo pesada que lhes causou a vista dum interior elegante que os seus olhos só nas estampas e gravuras conheciam.

-- ¿Vamos brincar ás escondidas? perguntou Leonor.

-- Não, respondeu Elisa, o balouço é preferivel.

-- ¿Vocês que dizem ? perguntou Leonor a Romão e Manuel.

-- O balouço é melhor, responderam ambos êles que, não tendo tal divertimento, ardiam em desejos de o experimentar.

-- Então vamos dois ao mesmo tempo, disse Elisa, eu com o Manuel e a Leonor comtigo.

-- ¿Vamos ambos em pé?

-- Vamos.

-- ¿Quantas vezes cada um?

-- Conta dôze.

-- ¿ Quem vai primeiro? perguntou Elisa.

-- Tu e o Manuel que são ambos visitas; eu, como sou de casa, fico para o fim e o Romão é bastante bom para sofrer os contras de ser meu parceiro, ¿ não é verdade ?

Romão respondeu-lhe afirmativamente e êle e Manuel, habituados a brincar com as filhas duma visinha, que eram mal educadas como quasi todas as crianças que brincam na rua, trocaram um olhar admirado por vêr a natural condescendência das duas meninas. Balouçaram-se alternadamente muito tempo e depois fôram apanhar morangos para o jantar. Leonor fazia as honras da casa como uma mulherzinha, e brincaram toda a tarde em muita harmonia sem haver entre êles uma questão. Quando soaram as horas de jantar, o major levou os rapazinhos ao seu quarto para lavarem as mãos e reparar o desalinho que pudesse haver no seu trajo, e perguntou-lhes:

-- ¿ Então gostaram de brincar?

-- Muito, senhor major.

-- Nêsse caso é preciso virem cá mais vezes, á quinta-feira, por exemplo, que não têem colégio. Eu hei de ensina-los a jogarem as armas. Fui um grande esgrimista... agora estou velho, mas ainda não troco a minha espada pelas melhores que aí andam.

Romão, com a ideia das lições de esgrima, exultou. Fôram jantar e a senhora D. Clementina ficou pasmada de vêr que se portavam á mesa como dois homens bem educados. Conversou com o Romão, perguntou-lhe pelo seu jornal e desejou saber se êle já tinha escrito o folhetim para o numero que ia sair proximamente.

-- Já sim, minha senhora.

-- ¿ E qual é o assunto? perguntou o major interessado.

-- E’ a Sensitiva. Li ha poucos dias em uma revista franceza, que o sr. Justino lá tem, uma noticia curiosa ácerca dela e, aproveitando-a, tomei-a para assunto do meu folhetim.

-- Conte o lá, pediu Leonor.

-- Logo; agora não quero incomodar seus pais.

D. Clementina e o major insistiram e Romão contou:

-- «Um dia, uma sensitiva que dormia, -- porque esta planta dorme, -- na rica sala duma consuleza Americana, foi repentinamente acordada pela luz brilhante em que se viu banhada. Havia festa. Ajustava-se o casamento da linda Beatriz com um dos mais ricos capitalistas de Nova York. Os cónsules habitavam no Natal. A sensitiva, que, da América, seguira para ali seus amos, ficou surpreendida com a noticia porque sabia que o noivo, sendo rico, tinha um péssimo caracter. Um dia, entrando em casa dos seus donos e conversando com Beatriz, aproximara-se do grande vaso em que ela estava plantada e arrancara-lhe uma haste que torturára entre os dedos enquanto falava, ¡ sem dó de a vêr retraída e triste ! Isto impressionara estranhamente Mimosa Pudica que, desde esse dia, o odiou, tanto mais que, falando com o seu futuro sogro, o rico Morlay dissera:

-- E' uma curiosa planta esta. Muitos botânicos estão convencidos de que ela e outras plantas da sua espécie possuem um sistema nervoso, e o Dr. Butonneau, de Tours, fez várias experiências nas quaes verificou que esta planta, sob a acção do clorofórmio, perdia a sensibilidade como qualquer animal. O Dr. Leclerc conseguiu adormecê-la por meio do láudano.

«Indignada, a Mimosa Pudica comentava:

« -- ¿ Então este homem está convencido de que eu tenho um sistema nervoso, e tortura daquela maneira, entre os dedos, as minhas fôlhas por simples distracção¿ ¡ ¿Que fará êle aos que o ofenderem, quando a mim, que nenhum mal lhe fiz, me maltrata assim ?!

«E, irritadissima, retraia-se para que esta criatura, que ela reputava monstro, lhe não tocasse nem de leve. Agora, vendo aparecer no Natal o tal sr. Morlay e sabendo imprevistamente que êle ia casar com a filha mais velha e mais bonita da consuleza, a pobre planta ficou consternada por ter acordado, e nas suas lamentações dizia:

« -- E’ possivel que eu me habitue a esta ideia, mas por agora ainda não; o meu sentimento é idêntico á minha sensibilidade: as primeiras vezes que o rodar dum rinchow se ouvia no páteo as minhas fôlhas, desagradavelmente impressionadas, irritavam-se e retraíam-se: depois habituei-me e, hoje. êles entram e sáem sem me produzirem a menor comoção. ¿ Será assim com o homem? Talvez.

«Mas a sua louca esperança enganou-a. Porque o homem, quando é mau, é pior do que as féras. Morlay não fez feliz a filha mais velha da consuleza, que chora por vêr que é tão rica e que o dinheiro não conseguiu dar-lhe a felicidade; e a formosa sensitiva recorda com tristeza a noite em que lhe interromperam o sono para celebrar o ajuste de tão funesto enlace. ¡ Pobre Mimosa Pudica! nunca se habituou á visinhança de Morlay. Irritou-se sempre tanto com a sua aproximação como se fôsse a dum assassino. E’ que a lembrança das suas fôlhas, torturadas entre os malvados dedos de Morlay, não a deixava um instante.

«Assim sucede aos pobres quando se sentem esmagados pela opressão que os orgulhosos lhe dispensam com a mesma inconsciência com que Morlay torturava as fôlhas da Mimosa Pudica.»

-- Acabou-se, disse Romão.

-- E’ muito lindo, disse D. Clementina, e tem o merecimento de fazer conhecer aos seus condiscipulos menos adiantados algumas particularidades ácerca da planta citada.

-- E’ muito curiosa essa experiência do Dr. Bretonneau com o clorôfórmio.

-- E’, disse Romão; e o que é certo é que, ao saber isto, fiquei com muito maior consideração e atenções por esta planta. No quintal lá de casa ha uma sensitiva: eu e o Manuel poupamos-lhe, tanto quanto possivel, a menor emoção.

-- Fazem muito bem, mesmo para que ela não os tenha na conta de maus, como ao tal Morlay.

Quando chegaram á sobremesa, o major fez-lhes uma saúde muito elogiosa, finda a qual chamou o criado e perguntou:

-- ¿ O Manuel já veio da vila?

-- Já, sim senhor.

-- ¿ Trouxe o que lhe encomendei?

-- Está no escritório.

-- Então vá buscar.

Momentos depois, o criado voltou trazendo um embrulho na mão. O major pegou nêle, desmanchou-o e ofereceu uma espada a cada um dos seus pequenos amigos, dizendo:

-- Como lembrança dêste dia em que travamos uma bôa amizade.

Romão teve um tal júbilo que, esquecido do cumprimento e natural cerimónia nesta primeira visita, se lançou ao pescoço do major, agradecendo-lhe efusivamente o grande prazer que lhe causava.

Eram dez horas da noite quando o criado do major foi acompanhar a casa os dois rapazinhos, contentes de terem tido um dia alegre e feliz, cuja memória os devia acompanhar toda a vida.

IX

O folhetim de Leonor

Leonor, no seu quarto, deitada na sua pequena e bonita cama de pau rosa, pensava que Romão era bem infeliz. Não tinha mãe, vivia da caridade alheia e a sua grande inteligência devia fazê-lo sentir muito tudo isto, apesar da estima de que se via rodeado, E pensava como seria feliz, se o pudesse trazer para casa e trata-lo como se fôsse seu irmão. Sabia muito bem que isso não era possivel, que nem o pai nem a mãe trariam para casa uma criança estranha: sabia tambêm que Romão não abandonaria os seus protectores, mas gostava de fazer histórias, como ela dizia, em que figurasse ela e todos os seus amigos. Depois lembrou-se de que na quinta-feira os dois rapazinhos voltariam a jantarem Flôr do Vale e que a sua amiga Elisa prometera tambêm não faltar. Haviam de passear de barco no lago e caçar tordos para comer com arroz ao jantar. Se o croquet que o pái mandára vir da cidade chegasse a tempo, poderiam convidar mais meninas e meninos e fazer uma grande partida, porque o jogo era para dôze pessôas. ¿Quem convidara? A Belmirinha, sobrinha do médico, a Maria Tereza, a Zulmira, sobrinha do sr. Roque... E reflectiu:

-- Não, essa não. Havia de querer ser a parceira do Romão. E êle, para brincar com ela, não brincaria comigo... Mas, se convido as outras e lhe não digo nada a ela, que é sempre tão amavel, tanto o tio como ela têem razão de se escandalizar. Nada, não convido ninguêm. Brincaremos só os quatro e passaremos um dia muito divertido.

Depois lembrou-se de que, no domingo, já Romão, no seu passeio militar, levaria a espada que o pai lhe tinha dado, e que nesse dia o veria duas vezes, porque êle não deixaria de lá ir pessoalmente entregar o Alerta, ¡ A graça que ela achava ao jornal! ¡Como gostaria de escrever lá tambêm um folhetim!

-- ¿E saberia eu ? Sabia, pois não havia de saber. ¿ E se eu pedisse ao Romão para o publicar e fizesse ao pai e á mãe a surpreza de aparecer um folhetim meu no jornal ?

Alegrissima com a ideia, saltou fóra da cama e, mesmo em camisa de noite, tentou vêr se saberia escrever um folhetim para o Alerta. Encostou o cotovelo na mão e ficou pensativa. Esteve assim quasi um quarto de hora; depois, pegando na pena, escreveu sem hesitar:

História duma môsca

Andava uma môsca, pequena e bonita, impertinendando todas as pessôas que em redor da mesa da casa de jantar assistiam á leitura que o poeta Urbino Telo fazia do seu último poema. O poeta era cálvo, e a môsca gostava de passear-lhe na cabeça. Êle, que dizia com grande entusiasmo e pompa os seus versos, não podia suportar uma môsca e, no melhor duma linda invocação ás musas, parava, chamava atrevida á môsca, sacudia-a com o lenço, com gestos agastados que causavam riso aos dois sobrinhos, rapazes entre os nove e dez anos, que diziam mal da sua vida por ter de assistir a tão maçadora leitura. A môsca, deixando em paz o poeta, voava ao lado oposto e ia pousar no nariz vermelho da dona da casa que a sacudia furiosa. Depois tentava-se com a orelha da linda Rosa, menina de quinze anos, para voltar a arreliar o poeta, quando êle estava mais enlevado na sua obra.

-- Estas perversas não me largam, bradava Urbino Telo fóra de si.

-- Se o tio quer, propôs o mais novo dos sobrinhos, eu vou para o pé do tio e, quando a môsca fôr a pousar, sacudo-a.

-- Pois sim, vem, mas não a sacudas; mata-a que é a maneira de me vêr livre de tal péste.

O pequeno foi para junto do tio, subiu ás travessas da cadeira em que êle estava sentado e olhou-lhe atentamente para a calva. Quando a môsca pousou na caréca do poeta, dizia êle com muito enlevo:

Na candidez dêsse olhar

Noto, Marciana, tal dôr...

O José, ao vêr a môsca pousada, levanta a mão e deixa-a cair com toda a sua fôrça na cabeça do poeta.

Êle, que não esperava aquilo, deu um grande grito, saltou na cadeira e perguntou o que queria dizer aquela brutalidade.

-- ¡Ora essa! dizia pasmado o José. ¿Então o tio não me mandou matar a môsca ?

-- Mandei, pateta, mas não na minha cabeça. Anda tu para aqui, Vasco; talvez tenhas mais tino do que teu irmão.

As pessôas presentes mordiam os beiços para não rir.

Vasco substituiu o irmão.

Durante muito tempo não apareceu outra môsca. Vasco estava já quasi tentado a ir tomar o seu lugar do outro lado da mesa, quando a uma môsca muito grande apeteceu pousar na cabeça do poeta.

-- ¡ Que belo cavalo para um carrinho de papel! pensou êle.

E quiz agarra-la viva.

Muito subtilmente cravou as unhas na cabeça do tio para conseguir pegar-lhe por uma aza.

Desta vez, o poeta, desesperado, persuadido de que era combinação entre os rapazes para troçarem dêle, volta-se rapidamente para dar uma bofetada no sobrinho. Mas êste, prevendo-lhe o movimento, saltou rapidamente para trás e a mão do poeta foi bater em cheio na face rosada da sr.ª D. Procópia, sua senhoria e muito antiga admiradora. As pessôas presentes, apesar de ser má criação, não se puderam conter e desataram a rir. D. Procópia, que tinha um génio muito violento, desmaiou de raiva, e o poeta, tentando suster-lhe o pesado corpo, que da cadeira resvalava para o chão, pedia aflito um copo de água, abanando-a com o seu poema. D. Procópia tinha uma grande paixão pelo poeta. A sua maior ventura seria desposá-lo, mas não tinha esperança de o conseguir porque êle era muito distraido, não reparava em ninguêm e passava a vida a fazer versos e a recitá-los a toda a gente, não dando a ninguêm importância senão enquanto o elogiavam. Apanhando a bofetada, a esperta da senhoria resolveu tirar dela proveito. Voltando a si do desmaio, olhou rancorosamente para as pessôas que ainda riam e disse ao poeta:

-- O senhor tem de me oferecer uma reparação.

-- Todas as que V. Ex.ª quizer. Eu estou confundido, umilhado...

-- E tem razão. E’ preciso que me escôlha para esposa e case comigo, que me dê tanta consideração agora como há pouco me umilhou.

O poeta refletiu e volveu:

-- Seja cumprida a sentença da gentil juiza. Peço-a em casamento e casarei com V. Ex.ª antes que finde o semestre.

-- Bem lembrado, tornou D. Procópia, já risonha; evita assim ter de me pagar a renda das casas.

Todos riram. E Vasco, entregue ao divertimento de fazer a pobre môsca puxar o carro de papel, pensava:

-- ¡ Como uma môsca decide ás vezes do destino dum homem ! se não fôsse esta beleza, continuava êle, apontando o seu improvisado cavalinho, não passaria o tio Urbino Telo, de pobre e miseravel poeta, a rico proprietário e senhorio de mais de cem inquilinos.

Quando as visitas se retiraram, D. Procópia disse a Vasco ao despedir-se:

-- Dá-me um beijo, maroto, que por tua causa levei uma bofetada.

Vasco sorriu com gaiatice e volveu-lhe:

-- Mas apanhou um marido, e dos que sabem fazer versos... Se não fôsse eu e a môsca...

De muito bom umor, D. Procópia concordou rindo:

-- Tens razão, ainda te sou devedora: muito obrigada.

Vasco ofereceu-lhe a môsca presa ao carrinho:

-- Guarde-a para recordação.

-- Guardo, guardo.

E, olhando para Urbino Telo, concluiu:

-- Sobre o coração.

De novo todos riram. Mas D. Procópia, contente de ter emfim um marido, não desconfiou.

Quando terminou o seu conto, Leonor leu-o e, ficando contente com êle, foi meter-se na cama, fazendo planos para o vêr publicado como desejava. No dia seguinte ergueu-se cêdo, tomou o seu banho, almoçou com apetite e, pegando nos livros, foi despedir-se de seus pais e tomou o caminho da Escóla, seguida pela sua criada que lhe levava o cesto do lanche. Passou por Romão e Manuel, que a cumprimentaram amavelmente, de entre o rancho de rapazes em que iam. Ela não os viu e por isso não correspondeu ás suas atenções. De olhos no chão, seguia abstraida, pensando na surpreza agradavel que faria aos pais e no próprio prazer que teria, se Romão lhe permitisse ser colaboradora do seu jornal.

X

Uma bô acção

Logo que entrou na aula, foi a primeira chamada á lição. Como de costume, deu óptima conta de si.

O sr. Roque elogiou-a. Ela mal o ouviu. Não pensava senão no recreio, cheia do desejo de conseguir a publicação da sua obra, e ao mesmo tempo com receio de que Romão a não achasse á altura de sêr publicada.

Finalmente deu meio dia e o sr. Roque agitou a grande campainha que dava sinal para o lanche.

Todos os pequenos e pequenas correram a buscar os seus cabazinhos apressando-se a satisfazer o grande apetite que já sentiam. Leonor desdobrou diante dela o seu guardanapo, partiu o pão, e ia começar a comer o bife, quando notou que, no extremo do banco em que estava sentada, uma pequenita, que não contava mais de seis anos, tentava com dificuldade roer um bocado de pão duro, acompanhando-o duma cebola crua: e, enquanto se entregava a esse dificil trabalho, devorava com olhos invejosos a carne e o queijo que se ostentavam em frente de Leonor.

Os olhos da filha do major marejaram-se de lágrimas. Hesitou um instante e, não podendo conter-se, ergueu-se e, dirigindo-se ao sr. Roque, pediu:

-- ¿Dá licença que troque o meu lanche com a Cacilda? Estou incomodada... não tenho vontade de comer, e a pobre pequena trás um pão tão duro...

O sr. Roque fitou Leonor com simpatia, viu-lhe os olhos ainda úmidos, e respondeu-lhe em tom benévolo, mas de censura.

-- Nem para fazer bem se deve mentir, menina. Dê o seu lanche á Cacilda, visto que assim o deseja, e depois venha ter comigo.

-- Muito obrigado, sr. Roque.

E, contente por socorrer uma miséria que ela sentia bem real, Leonor deu todo o seu lanche á pequena Cacilda que, quasi sem lho agradecer, começou a devorá-lo com gestos e modos que pareciam de animal esfaimado. Leonor sorriu piedosamente e foi ter com o sr. Roque que, tomando-a pela mão, entregou momentaneamente a vigilância da aula a Romão, levou-a à sua casa de jantar e, fazendo-a sentar junto da mesa, obrigou-a a comer dôce, pão de ló, e a tomar um cálice de vinho.

Leonor tentou recusar porque sabia que quanto o seu mestre lhe oferecia eram cousas necessárias ao seu tratamento de convalescente, e para tal lhe haviam sido dadas; mas o sr. Roque não consentiu.

Então aproveitou mostrar-lhe o seu conto enquanto os outros estavam no recreio, e, sem confessar quais eram as intenções que tinha, pediu-lhe para lhe dizer como o achava. O mestre riu, lendo-o, e elogiou a aptidão que a sua pequena discípula tinha para escrever.

Uma tarde, Romão e Manuel fôram dar um grande passeio pela estrada, no empenho de procurarem um sitio bonito para o seu passeio militar de domingo. Iam já bastante longe, quando, ao passarem na aldeia chamada da Azebreira, Manuel lembrou que fôssem visitar um velho amigo de seu pai que ali vivia. Romão acedeu gostosamente e, afastando-se da estrada real, tomaram pelo caminho inculto que conduzia ao povoado. Conversavam e riam alegremente quando Manuel, parando e tornando-se sério, disse ao amigo:

-- Escuta, ¿não sentes chorar?

Romão apurou o ouvido e afirmou:

-- Não sinto nada.

Continuaram a andar, mas Manuel, meio apreensivo, ia falando e dando atenção à bulha que julgára ouvir.

De repente tornou a parar.

-- Não ha dúvida que ouço chorar uma criança muito pequenina, e que o som vem dali. Ora presta atenção...

Desta vez não havia dúvida. Ouviam-se muito distintamente uns fracos vagidos de criança saindo duma alta sébe que servia de defeza a um trato de terreno.

-- ¡Mas ali não ha ninguêm ! exclamou admirado Manuel.

-- Contudo, não admite dúvida que é de lá que vem a voz.

-- Tens razão. Vamos vêr.

E trepando ligeiramente ao talude, afastou os ramos das silvas e plantas silvestres e espreitou.

Deitada sôbre uns trapinhos, uma criança que não tinha mais de 6 mezes, embrulhada num pedaço de chale muito velho, agitava-se desesperadamente dentro dele, levando as mãozinhas ora á bôca, ora ao ventre, num gesto inconsciente. Manuel curvou-se e pegou desjeitosamente no pesado fardo, exclamando:

-- ¡ Que lindo êle é!

Romão, que o seguira, notou que no chale estava pregado um papel em que se lia: «Esta menina chama-se Esperança: pede-se a quem a encontre a caridade de a recolher.»

-- E’ uma menina, lê.

-- ¿E que havemos nós de fazer dela?

-- Vamos consultar o senhor major. E' possivel que, como êle é rico, tenha dó da infelizinha.

-- Êle não digo que não, mas a mulher, apesar da amabilidade com que nos tem recebido, não tem ar de ser muito generosa.

-- Tambêm me parece. Dá cá a pequerrucha que eu a levo. Tu não sabes pegar-lhe.

-- Não admira: é a primeira vez que pégo numa criança tão pequena. ¿Que idade terá ela?

-- Não sei, mas d muito pequenina... talvez dois ou três mezes.

E conversando no seu estranho achado, retomaram, com a pressa possivel, o caminho da sua terra.

-- Olha, disse Manuel quando já estavam perto, parece-me que é a menina Leonor que está no mirante...

-- E’, não ha dúvida. Se ela nos viesse abrir a porta é que era bom. Faze-lhe sinal com o lenço na ponta da chibata, a vêr se consegues chamar-lhe a atenção.

Manuel fez o que Romão lhe aconselhou.

Momentos depois, agitava-se um lenço no mirante de Flôr do Vale.

-- Bem. Agora creio que não é preciso mais. Reparará em nós e, vendo que nos dirigimos para sua casa, não deixará de vir ao nosso encontro.

-- Assim o creio.

Realmente não lhes foi preciso tocarem a sineta, cuja corrente de ferro pendia do lado exterior do portão. Ainda ali não tinham chegado, já Leonor o abrira e se dirigia para êles, amável e risonha.

-- Venha vêr, menina Leonor, que linda bonequinha aqui lhe trago.

Leonor soltou uma exclamação de agradável surpreza e quiz logo pegar na pequenina.

-- ¡ Que bonita, e como dorme!

-- ¡Coitadinha ! Adormeceu á força de chorar.

-- ¿De quem è ?

-- Não sabemos. Estava abandonada atrás duma sebe. Queriamos falar com o senhor major. ¿Êle está ?

-- Está. Entrem para o escritório que eu já o vou chamar.

Os dois amigos entraram e sentaram-se. Alguns instantes depois, apareceu o major seguido da mulher e da filha que, pendurada no braço da mãe, lhe dizia em tom suplicante:

-- Ó mãezinha, não me recuze este favôr; dè-me aquela linda boneca viva, e nunca mais lhe pedirei nada.

D. Clementina, visivelmente contrariada, respondia:

-- Tu não sabes o que pedes, minha filha. E' uma tremenda responsabilidade e talvez a preparação dum grande desgosto para o futuro. Não sabemos quem são os seus pais... podem vir buscá-la quando fôr crescida e nós já lhe tivermos afecto... Não, isso não te faço.

-- ¡ Ora veja, mãezinha, como ela é linda! ¡parece uma bonequinha!

O major, sem dizer cousa alguma, tirara a criança dos braços de Romão e colocára-a nos de D. Clementina, olhando-a enternecidamente.

A mãe de Leonor, desde que a teve no cólo e que a criança, acordando, lhe estendeu os bracitos num movimento precoce, embora ainda inconsciente, sentiu os olhos umidos e fitou o marido como quem espera uma sentença de vida ou de morte.

O major, num tom quási solene, declarou:

-- Se a fortuna nos batesse á porta, correriamos a abrir-lha; quando a desgraça se apresenta, não devemos fechar-lha. De hoje em diante, Leonor, tens, não uma boneca, porque um ser humano não pode nem deve ser considerado por pessôas de caracter um brinquedo, mas uma irmã mais nova, que deves estimar e proteger como se fôsse do teu sangue.

Leonor, chorando e rindo de satisfação, agarrou-se aos beijos á pequenita que chorava de fome.

D. Clementina, impressionada, mas sem querer dar a percebê-lo, disse:

-- Vou dar-lhe leite. Ela está morta de fome.

E saíu em direcção á cozinha, onde conseguiu dar-lhe, por meio de colheres de sôpa, leite de cabra misturado com água, que a criancinha sorvia ávidamente. Depois de ter tomado seis colheres inteirinhas, sem desperdiçar uma gôta, adormeceu profundamente.

D. Clementina levou-a para a seu quarto e deitou-a em cima da sua cama, enquanto as criadas não retiravam do sótão o berço que tinha servido a Leonor.

O major convidou os pequenos a jantar, mas êles pediram licença para não aceitar, porque tinham de preparar ainda as cousas para o passeio militar do dia seguinte e desejavam deitar-se mais cêdo porque estavam cansados da grande marcha.

XI

Em casa do administrador

Eram os anos do administrador. Os pequenos estavam jogando aos quatro cantinhos, quando chegou o criado do major a dizer que Romão não ia jantar. Zulmira a custo escondeu o seu desagrado. Manuel teve um sorriso gaiato e os outros não se importaram para nada que Romão não fôsse; pelo contrário, alguns até estimaram porque o protegido do herborizador os censurára asperamente pela sua negligência e indisciplina no regimento.

-- Não faz cá falta, resmungou Fernando, que fôra aquele que Romão mais repreendera e vexara.

Zulmira ouviu a exclamação de Fernando e perguntou-lhe:

-- ¿ Tu não gostas do Romão?

-- Não. E’ um parvo enfatuado que todos assopram e que, mercê da toleima dos outros, lhe deu para se julgar alguêm.

-- Isso não é assim. O tio Roque não é um tolo e diz que o Romão è o melhor aluno que êle tem tido desde que é professor.

-- Não é tolo o teu tio, mas é faccioso. Em sendo amigo de alguêm atribue-lhe todas as qualidades bôas; quando não gosta, todos os defeitos. Fala-lhe em mim; de preguiçoso para baixo não ha nada que me não chame.

-- ¡Pudéra! Mas isso não é só êle. Todos que te conhecem sabem que não ès bom nem esperto.

-- ¿E’ essa tambêm a tua opinião?

-- E’.

-- ¿E que maldade me viste tu fazer para dizeres que eu sou mau? perguntou Fernando encolerizado.

-- ¿O que vi? Roubares o lanche ao Narciso.

-- E’ falso.

-- Romperes o tambor do teu irmão mais velho, e acusares o Pedro de ter partido o tinteiro do tio Roque, quando fôste tu que o fizeste de propósito.

-- Mentes.

-- Não minto tal.

-- Não me calunies... Olha que já te não vejo, bradou Fernando enraivecido.

-- ¡E’ verdade, é verdade, é verdade! Escusas de crescer para mim que me não metes medo.

Com a cabeça inteiramente perdida, Fernando levantou a mão, aplicou na face de Zulmira uma tremenda bofetada, e preparava-se a bater-lhe muito mais, se Elisa e Manuel não acudissem a proteger a sobrinha do sr. Roque.

A pequena, vendo-se agredida, desatou a chorar.

O administrador e a mulher, que estavam na sala com visitas, acudiram a saber o que era. E Luís, major do regimento, tomou imediatamente nota na sua carteira, para dar parte a Romão do mau procedimento daquèle soldado, que perdera já os galões de oficial por ser considerado incapaz de mandar.

A mulher do administrador convenceu Fernando a pedir desculpa a Zulmira e ela, que não era rancorosa, apesar de ter defeitos, perdoou-lhe prontamente.

Mas êle, chegando-se a Manuel, disse-lhe baixo:

-- De hoje em diante tenho tanta zanga á Zulmira como ao teu amigo Romão.

-- ¡Essa agora! ¿Então tu bates-lhe, e ainda por cima lhe ficas com zanga?

-- ¿ Então não viste que me umilharam, que me obrigaram a pedir-lhe perdão?

-- Isso não te umilha, Fernando, visto que andaste mal. O que é umilhante é teres batido numa mulher. Não sei mesmo como o nosso coronel encarará essa questão. ¡Uma scena dessas em público e em casa do senhor administrador!

-- ¡Importa-me lá com o Romão para nada!

-- Pois tens de te importar, se não queres ter todos os camaradas contra ti.

Amuado, Fernando foi sentar-se a um canto.

Os outros continuaram brincando, e Elisa propôs:

-- ¿Vamos brincar aos banhistas?

-- Não, isso não.

-- ¿Então que havemos de fazer?

-- Vamos cantar em côro.

-- ¿O quê?

-- O novo canto que o Romão fez para os nossos soldados cantarem em marcha.

-- ¿E é bonito?

-- Muito bonito.

-- Mas ninguêm sabe a música.

-- Sei-a eu.

-- ¿Quem é que a fez?

-- O regente da tuna académica de Santarem, que é um rapaz com muito talento musical.

-- Canta lá então para nós ouvirmos.

Manuel entoou:

Hei de levar-vos á glória,

¡Meus bravos soldados !

Tereis o nome na história

E galões doirados.

Amantes da pátria,

¿Quem pode vencer-vos?

CÔRO

Por ela contentes

A vida daremos.

Temos na vanguarda

Ferós inimigo.

Marchar sempre em guarda,

Não surja um perigo

Por qualquer dos flancos,

Que possa abater-nos.

CÔRO

Amantes da pátria,

¿Quem pode vencer-nos?

Já trôa o canhão,

Já chove a metralha.

Pula o coração

Em plena batalha.

-- Carregar, soldados!

¿Quem pode vencer-nos?

CÔRO

Ninguêm. Pela Pátria

Contentes morremos

-- Não gosto, disse Fernando. Cheira a pataratice. Logo se vê que é do Romão.

-- Tu, como não tens sentimentos de espécie alguma e não eras capaz de morrer pela pátria... disse Zulmira com desdêm, ainda lembrada da grande bofetada que apanhára.

Elisa interveio, dizendo-lhe em voz baixa:

-- Não te metas com êle. Pois já sabes que è mau ¿para que o desafias?

-- ¿Então que queres? Faz-me zanga vê-lo sempre invejoso, a desdenhar de tudo e todos.

Luís, que se aproximava, comentou:

-- Tu dantes tambêm assim eras.

-- E’ verdade, disse Zulmira corando, mas emendei-me; é por isso que queria que êle fizesse outro tanto.

Encolhendo os ombros com superioridade, Luis aconselhou:

-- Não queiras emendar o mundo: contenta-te de te corrigires a ti.

-- Esse dito não é teu.

-- E' tal.

-- Não é, E’ um proverbio que vem no Almanach Ilustrado.

-- Mentira, é mentira. Foi uma ideia minha. ¿Achas que eu não posso ter ideias?

-- Poder podes, mas não as tens.

Manuel enfiou o seu braço no de Elisa e afastando-se com ela, disse-lhe:

-- Deixa-os lá. Não têm propósito nenhum; são muito malcriados, desmentem-se uns aos outros: aquilo é muito feio, parece que não sabem o valor das palavras nem lhes compreendem a responsabilidade.

-- A quêm fica mal é a êles.

-- Também assim penso.

-- Mas não gosto que questionem, porque, havendo dissabores, a mamã para a outra vez não mos deixa convidar, e eu tenho pena porque fôram meus condiscípulos e sou amiga dêles.

-- Então, o melhor é propôr-lhes um jogo em que

estejam todos quietos: a Glória, por exemplo, ¿Não tens?

-- Tenho. Vou buscá-la.

Mas, quando Elisa se dirigia para a porta na intenção de fazer o que tinha dito, a criada anunciou que o jantar estava na mesa.

Então Manuel, na intenção de ser agradável a Elisa, aproximou-se de Fernando e disse-lhe amigavelmente:

-- Porta-te bem á mesa, não vás envergonhar a corporação com uma atitude malcriada. Bem basta a bofetada que déste na Zulmira.

-- E dou-te outra em ti, se te metes a pregador.

Manuel parou, olhou-o fixamente e respondeu-lhe com grande serenidade:

-- Isso afianço-te que não dás: nem aqui nem lá fóra.

-- ¡Fanfarrão! Olhem isto a querer dar-se ares de coronel... ¡Ah ! ¡ah!¡ah!

E Fernando desatou a rir ás gargalhadas. Mas aquele riso não era sincero. Não se atrevendo realmente a repetir alí uma scena desagradável e não tendo ânimo de a provocar na rua, meteu o caso á bulha para lhe dar um fim mais compativel com a sua natural covardia.

Manuel, percebendo-o, disse-lhe com um sorriso superior:

-- Ri, ri; não te levo isso a mal. Mais vale rir do que chorar.

E dirigiram-se todos para a mesa onde D. Lúcia, mulher do administrador, lhes indicou os sitios onde haviam de ficar.

O jantar correu muito animado. E os pequenos, apesar de não terem licença para falar senão baixo e entre si, estavam muito divertidos ouvindo o administrador e o padre da freguesia, questionando politica e quasi fazendo scenas iguais ás do Fernando. Êste lavava-se em águas de rosa. E quando o administrador, exaltado, deu um murro na mesa, bradando: ¡«A oposição é toda composta de burros!» êle não se pôde conter e, voltando-se para Luis, disse-lhe em voz baixa, mas que foi ouvida por todos, porque, a seguir á violenta apóstrofe do administrador, se fizera um dêstes longos silêncios em que ninguêm se sente á vontade:

-- ¡E digam depois que só eu é que sou malcriado!

Isto foi dito com tanto regosijo e sinceridade, que em volta da mesa estalou uma violenta gargalhada e a conversa tomou uma direcção menos perigosa e mais alegre. Mas a fúria do administrador tivera para Fernando um excelente resultado. Estando a sangue-frio, notou a ridicula e malcriada figura do seu hospedeiro e sentiu no seu intimo um forte sentimento de reprovação. Desde então nunca mais fez scenas lamentáveis.

Nessa noite, ao retirar-se, acompanhou Manuel a casa e, esperando ali que chegasse Romão que não regressara ainda de casa do major, pediu-lhe de mótupróprio desculpa da triste scena que fizera, envergonhando o regimento com o seu modo de proceder.

Romão ouviu-o atentamente e respondeu-lhe:

-- Estás desculpado: reconhecer os erros e arrependermo-nos dêles é resgatá-los.

E estendeu-lhe a mão, atenção que não tinha com os soldados senão quando os queria honrar ou distinguir.

Fernando retirou-se satisfeito e ia pensando pelo caminho que não esperava tirar daquêle acto, que horas antes se lhe afigurava umilhante, um tão vivo sentimento de prazer. E isto confirmou-o mais na intenção de continuar a proceder bem.

Todos esperavam que Romão castigasse sevéramente Fernando pelo seu procedimento em casa do administrador, e ficaram muito admirados quando, tendo recebido ordem para formar o regimento e julgando que era para o expulsar, Romão disse;

-- Fernando Mendes, promovido a cabo por reconhecer os seus erros perante o coronel dêste regimento e estar no propósito de se emendar.

Estas palavras deixaram todos espantados e o procedimento de Romão, depois da admiração que causou, foi muito elogiado. E, assim que o regimento destroçou, todos os camaradas de Fernando lhe vieram apertar a mão pelas bôas intenções que tinha.

Êle sensibilisou-se e prometeu a si mesmo que pelo seu procedimento futuro tornaria a readquirir todos os postos que tinha perdido.

Quando passaram os exames, em que Romão e e Manuel ficaram distinctos, o snr. Ramos consultou o major no destino a dar-lhes, e ficou decidido que, passado um mez de repouso natural, depois de tantas fadigas, o herborizador iria acompanha-los a Santarêm, onde ficariam em casa duns parentes da senhora Camila para poderem continuar proveitosa mente os seus estudos.

Chegou o momento em que deviam partir para Santarêm enquanto alguns dos seus condiscípulos iam para Lisbôa ou para o Porto. Leonor ficou muito chorosa, porque Romão e Manuel não vinham a férias, sendo o herborizador e a mulher que iriam visita-los àquela cidade.

Sete anos depois

Terminados os preparatórios do liceu, forçoso lhes era escolher carreira. Romão decidiu assentar praça. A carreira militar estava-lhe de há muito naturalmente indicada. Manuel, mais positivo, desejou dedicar-se ao comércio.

O herborizador veio a Lisbôa tratar destes dois graves assuntos, e em tão agradável e bôa hora para êle que, ao tempo que procurava emprego para o filho, arranjou para si a direcção dum grande estabelecimento de floricultura, onde, além de quarenta escudos de ordenado, tinha água, gás, e casa de habitação. Para Manuel conseguiu um lugar de escrevente num escritório de comissões da acreditada firma Jakson and Aliney. Romão assentou praça em infantaria 5 e matriculou-se na Escola Politécnica.

Voltou o sr. Pedro Ramos á Merceana a buscar a família, radiante por ter conseguido muito mais do que esperava. A sr.ª Camila ficou encantada por não ter de se separar de Manuel e de Romão.

Prepararam tudo para a partida, puzeram escritos na casa, tiveram a felicidade de achar alugador, e depois de estar tudo pronto, fôram a Flôr do Vale despedir-se do major e da família.

Esperança, que era já uma linda menina de oito anos, foi a correr, mal os avistou do mirante, anunciar a Leonor a sua chegada. Esta contava então dezassete anos e era uma linda rapariga.

Quando Esperança lhe veio dizer que a família Ramos se vinha despedir, o seu primeiro movimento foi não lhes aparecer, mas vencendo o grande desânimo que sentia foi á sala receber-lhes a visita, e no dia seguinte acompanhou-os á estação.

Ao voltar a casa, fechou-se a chorar no seu quarto, pensando que não mais veria os seus amigos de infância.

EPÍLOGO

Passaram sete anos e o sr. Roque mestre-escola escrevia ao Justino papeleiro, que se fôra estabelecer no Porto, a seguinte carta:

«Amigo Justino:

«¡ Que voltas o mundo dá! Acabo de vir da igreja onde assisti aos casamentos do Romão com a filha do major de Flôr do Vale, e da pequena Esperança com o Manuelzinho. ¿ Quem nos havia de dizer que tais factos se haviam de consumar? A Zulmira, -- ¿lembras-te? -- gostava muito dêle e sempre julguei que o rapaz viria a ser meu sobrinho. Afinal o que tem de ser tem muita fôrça. Vai casar com aquele Fernando, que era muito malcriado em pequeno e lhe deu uma bofetada em casa do administrador. ¿ Estás certo dêle? E’ hoje um bom rapaz, muito bem educado e trabalhador. Creio que todos êles serão felizes, mas aqui para nós, não me consolo de não ter o Romão por sobrinho. O major é que está contente: apanhou um genro que é uma joia. A divisa dêle é «por bom caminho» e, meu velho, quem como êle subordinar a sua vida a tão sensatas palavras, decerto será feliz.

«Aceita afectuosas lembranças da Leonor e do Romão de quem receberás a visita em breves dias.

«Teu amigo muito dedicado, que te abraça e se vai fazendo velho

Roque.»