A descoberta e conquista da Índia pelos portugueses: Edição para o ELTeC romance histórico Lobo de Ávila, Artur (1855-1945) Criação do HTML original Vanda Morgado Diana Santos Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 48481

Adicionado à coleção ELTeC 17 de novembro de 2020.

Os Caramurús A descoberta e conquista da Índia pelos portugueses Artur Lobo de Ávila João Romano Torres - Editor Lisboa 1898

português de Portugal Adicionado à coleção ELTeC

ARTHUR LOBO D'AVILA

A DESCOBERTA

E

CONQUISTA DA INDIA

PELOS PORTUGUEZES

ROMANCE HISTORICO

Premiado no concurso litterario do «Diario de Noticias»

EDIÇÃO ILLUSTRADA POR

F. CASANOVA, A. BRANDÃO E PELO AUCTOR

«Trabalha por mostrat Vasco da Gama Que essas navegaçõse que o mundo canta, Não merecem tamanha gloria e fama Como a sua, que o céo e a terra espanta.»

LUSIADAS--Canto V--XCIV.

LISBOA

JOÃO ROMANO TORRES -- EDITOR

Rua D. Pedro V, 84 a 88

1898

ADVERTENCIA

Escrevendo um romance historico para celebrar o descobrimento da India, julgámos dever abraçar o periodo que vae desde a morte de D. João II, e, prolongando-se pelo reinado de D. Manuel, termina no começo do reinado de D. João III. Assim pretendemos tornar conhecida a genése da descoberta da India, derivada das anteriores navegações portuguezas emprehendidas desde o tempo do glorioso infante D. Henrique, descoberta planeada por D. João II, e levada a effeito por D. Manuel, durante a governação do qual o nosso poder no Oriente tocou o seu zenith, começando a declinar nos ultimos tempos da gerencia do rei afortunado, substituindo-se ao Portugal navegante e conquistador, o Portugal estudioso, erudito e fanatico de D. João III.

Entretecemos o desenvolvimento do nosso romance na narrativa dos acontecimentos historicos, reproduzida dos chronistas do tempo, Damião de Goes, Gaspar Corrêa, Faria e Sousa e outros mais. Fizemos figurar os personagens historicos retratando-lhes os caracteres que ali vemos attribuir-lhes, e os que são filhos da nossa phantasia, o cavalleiro de Christo e D. Isabel, personificam o sentimento mais accentuado da epoca, a fé, manifestada nas duas paixões egualmente elevadas : o amor, e a dedicação á gloria da patria. Martinho, o centenario, esse não é filho da nossa imaginação ; fomos buscal-o ao immortal poema de Camões, que no ancião do Restello personificou o espirito da classe en tão denominada o terceiro estado, o povo, adverso ás emprezas de além-mar, que via occasionarem pezados sacrificios de vidas e cabedaes, para que em grande parte contribuia, e produzir riquezas loucamente gastas, que pouco ou nada lhe aproveitavam.

Resta-nos apenas explicar o nosso titulo :

A descoberta da India, realisada em grande parte pelo valor e altissimos dotes de Vasco da Gama, foi um successo que deu a Portugal a maior gloria, pela enorme influencia politica e economica que exerceu na situação da Europa d'esse tempo ; mas essa gloria accentuou-se, e cresceu ainda, com as nossas subsequentes conquistas, com a creação d'esse verdadeiro imperio portuguez no Oriente, que foi principalmente devida ao não menos illustre Affonso d'Albuquerque.

Entendemos, pois, que era justo reunir no nosso titulo a ideia d'esses dois factos, celebrando assim no conjuncto da gloria nacional os serviços de todos os que para ella concorreram , chamando por isso ao nosso modesto trabalho :

« A descoberta e conquista da India pelos portugueres.»

I

A successão de D. João II

Manuel, o monarcha que o conceito popular havia de cognominar de venturoso, acabava de subir ao throno. O príncipe D. Affonso, herdeiro de D. João II, morrera caindo d'um ca­vallo em Santarern, quando deante de seu pae corria à compita com D. João de Menezes. Então, o principe per­feito, afogando a sua dôr, tentou elevar a herdeiro do throno D. Jorge, seu filho bastardo. Mas, por um lado, os manejos da rainha D. Leonor, sua esposa e prima, irmã de D. Manuel, as sympathias populares e da nobreza, preferindo um neto de D. Duarte a um bastardo do pro­prio monarcha, e por outro, as difficuldades da côrte de Roma na sua legitimação, obrigaram el-rei D. João II a redigir o celebre testamento, aberto no castello de Alvor por occasião da sua morte, em que legava ao primo a corõa de Portugal e confiava D. Jorge á sua protecção.

D. Manuel recolheu essa herança com a grandeza de animo que havia de fazer d'elle um grande rei, não impeccavel, como alguns chronistas pretendem, porque era homem, e como tal sujeito ás mil influencias da epoca de ambições moraes e materiaes que o reino atra­vessava, e que extraordinarios successos mais haviam aind de desenvolver, mas que lhe dava a consciencia da grande missão que tinha a cumprir, e que, nomomento de ser investido na realeza, como que se lhe ac­centuava em dois encargos principaes : tornar-se o pae do bastardo a quem não arrancára a corôa, é certo, mas cujo logar no throno em todo o caso occupava, e proseguir no emprehendimento das conquistas e nave­gações que, desde o reinado do grande mestre d'Aviz e devido á iniciativa de seu inclito filho, o infante D. Henrique, eram o fito dos reis portuguezes, e ainda pouco antes de fallecer faziam uma das grandes pre­occupações de D. João II.

No momento em que principia esta narrativa, D. Manuel acabava de receber em Montemór-o-Novo as ho­menagens dos estados geraes que convocára, e os cumprimentos da côrte.

Em redor do paço, a multidão contente com a esco­lha do novo rei, que o clero, a nobreza e o povo levantaram e juraram, segundo o dizer do tempo, relem­bra a feliz coincidencia de elle ter nascido em dia do Corpo de Deus, resolvendo-se a crise do parto de D. Bea triz, esposa do infante D. Fernando, irmão de D. Affonso V, que durava havia tres dias, no momento em que passava a procissão, facto no qual as crenças religiosas do tempo tinham feito vêr milagre, deduzindo d'elle um feliz presagio.

Na morada régia, em volta do throno occupado pelo que ainda hontem era apenas o duque de Beja, está a nobreza, na maioria recem-chegada de Silves, em cuja sé foi depositar os restos mortaes do extincto monarcha, e na primeira fila os que D . João II, conjunctamente com aquelle, nomeou seus testamenteiros : Diogo Or­tiz, bispo de Tanger, o dr. Fernão Rodrigues, deão da sé de Coimbra, frei João da Povoa, seu confessor, D. Diogo d'Almeida, prior do Crato, D. Alvaro de Cas­tro, vedor da fazenda, do seu conselho e seu camareiro, e finalmente o escrivão da fazenda, Pero d'Alcaçova.

A' sua frente acha-se D. Jorge, como elles vestido com o burel que representa o luto.

E' solemne o momento.

O prior do Crato, aio do infante, tomando-o pela mão, encaminha-se para os degráos do throno e ambos ajoelham ; mas el-rei ergue-se, e abraça-se com o régio orphão, com os soluços do qual confunde o seu choro.

Passados instantes, o prior do Crato, ajoel h ado, com voz mal segu ra dirigiu-se a D. Manuel :

-- Senhor ! El-rei D. João II, vosso primo, que santa gloria haja, segundo me disse ao expirar, d'uma cousa ia muito contente d'este mundo, e de outra muito preoccupado : contente, por saber quão bom rei e senhor em vós deixava a estes reinos ; preoccupado, pela sorte d'este seu filho, que ante vós está como humilde vassalo. E por isso me mandou, que da sua parte vos dissesse, que, se julgaes dever-lhe alguma obrigação, pelos bens, hon ras e rnercês, que vos fez em vida, esperava da vossa bondade e virtude que a reconhece­ríeis n'este orphão, que por seu mando aqui vos trago, para ante vós da sua parte lhe recommendar, que em tudo vos guarde fé, lealdade e obediencia, como a seu rei e senhor que sois.

D. Manuel, em extremo commovido, a custo poude responder entre lagrimas e soluços :

-- Recebo a D. Jorge, como se meu filho fôra, e como tal o tenho e terei sempre, assim como cumprirei quanto el-rei D. João II, gue santa gloria haja, me manda em seu testamento.

Um m urmu rio de approvação acolheu estas pala vras do monarcha, e mais profund as, senão mais reverentes e sinceras, fôram por tal motivo as cortezias com que a côrte começou a desfilar ante o throno, beijan­do a mão a el-rei.

N'aquellas poucas palavras, D. Manuel, apezar da commoção que o dominava, revelára-se o fino politico á altura da situação, e o rei magnanimo, comprehende­dor e dadivoso, que mais tarde se mostrou, como en­tão convinha áquella pobreza, que só nos ultimos tem­pos do reinado do principe perfeito conseguira arrancar-lhe larga copia de mercês, quando começou a sen­tir-se, por assim dizer, cançado da lucta que em Portugal, seguindo as passadas de Luis XI, sustentára pa­ra restringir os privilegios da nobreza, apoiando-se no terceiro estado.

D. Manuel, que não fôra propriamente o que se cha­ma um pretendente militante á corôa, tendo-se conser­vado afastado e estranho ás instancias da rainha e dos seus partidarios a sua favor junto d'el-rei D. João II, tambem não procedeu como os pretendentes que, em geral, esquecem as promessas feitas e os compromis­sos tomados, ou lhes demoram o cumprimento, quan­do se acham finalment de posse da situação ambicio­nada.

Pelo contrario, mostrou-se desde logo rei trabalha­dor, attento aos negocios do estado, e exacto cumpri­dor da sua palavra. Assim o houvera sido em todo o decurso do seu reinado, ou não se visse compellido a faltar a tão bons principios, pela embriaguez da gloria e do poderio a que mais tarde ascendeu, que não ha­veria aqui e acolá, a empanar-lhe o brilho, essas man­chas que representam injustiças e ingratidões para com alguns dos seus mais illustres servidores, como o pri­meiro vice-rei da Índia, D. Francisco d'Almeida, e os heroes do Oriente, Duarte Pacheco e o grande Affon­so d'Albuquerque .

Começou D. Manuel por dar moradia no paço a D. Jorge, que ali viveu até que el-rei casou, confirmando-o nas mercês de duque de Coimbra, senhor de Torres Vedras e de Montemór-o-Velho, investindo-o nos mes­trados das ordens de S. Thiago e de Aviz, asim como confirmou as demais mercês concedidas pelo seu antecessor, mesmo aquellas que a cubiça e ambição ir­reverentes lhe tinham arrancado quando, já moribundo, quasi não via nem tinha alento para referendar os diplomas que lhe vinham trazer ao leito em que expirava.

Assim cumpridas estas obrigações para com a memoria do que lhe legára o reino, tratou D. Manuel de se inteirar dos planos de que, segundo era voz corrente , o principe perfeito secretamente se occupava, o sonho dourado das ambições portuguezas n'aquelle tempo: as conquistas e descobertas na Africa e na Asia, e sobre todas, a d'esse paiz, que andava pintado nas imagições com as côres mais phantasticas e deslumbrantes : a maravilhosa India !

Quando D. João II falleceu, o bispo de Tanger e o prior do Crato, seus dedicados amigos, encerrando-se n'uma sala junto da camara mortuaria, abriram um pequeno cofre, cuja chave el-rei trazia sempre comsigo, e no qual, segundo constava, tinha guardado o resto do veneno com que se dizia ter mandado matar o bispo de Evora, D. Garcia de Menezes, um dos compartes na conspiração do duque de Vizeu contra a vida d'el-rei, e a quem este apunhalou em Setubal, mandando-o chamar ao palacio de Nuno da Cunha, onde a côrte estava de passagem. Abrindo esse cofre, com o fim de fazcrm desapparecer tal recordação da nefasta tragedia que maculára o reinado do principe perfeito, volveram os olhos piedosamente agradecidos para o céo, encontrando, em logar do veneno, um livro d'orações, um cilício e umas disciplinas, as provas do arrependimento pela morte violenta do parente conspirador.

Um outro cofre, em que fôram encontrados papeis do fallecido monarcha, foi entregue a D. Manuel, que, transportando-se a Evora, e logo que poz em ordem os negocios do começo do seu reinado, os examinou cuidadosamente, mandando a seguir chamar a Beja o astrologo judeu Caçuto, a quem muito ouvia e consultava nos estudos geographicos e astronomicos, para que sempre tivera especial predilecção.

Vamos assistir a essa primeira conferencia do novo monarcha com o sabia, seu antigo conselheiro. Mandado introduzir por D. Manuel na camara em que se achava, o hebreu encaminhou-se curvado para el-rei, a quem beijou a mão.

-- Sêde bemvindo mestre Caçuto !

-- Dignou-se vossa alteza chamar-me ; eis-me aqui prompto para o seu serviço ...

Um sorriso deslizou dos labios de D. Manuel, comprehendendo a fina lisonja do israelita, que o tratava já por alteza, titulo pelo qual corria que el-rei ia trocar o de senhoria, com que até então os monarchas portuguezes se tinham contentado. E, como se quizesse retribuir largamente a cortezia, fazendo um signal ao pagem que introduzira Caçuto, para que se retirasse, elrei approximou-se da meza sobre a qual estava o cofre de D. João II, e batendo-lhe com a mão exclamou :

-- Tenho aqui um thesouro, mestre Caçuto, e quanto ao uzo que d'elle hei de fazer, quero pedir-vos conselho. E, sentando-se em uma cadeira de alto espaldar, indicou outra ao sabio, concluindo : assentae-vos !

-- Como senhor ? na presença de vossa alteza !

Mas D. Manuel repetiu :

-- Assentae-vos, assentae-vos, que, quando a sós se acham o discipulo que pede conselho e o mestre que lh'o dá , é justo que este não esteja de pé. E como Caçuto se assentasse, conservando-se em respeitoso silencio, continuou :

-- Segundo diz o povo, sois nigromante e feiticeiro; pois bem : adivinhae, se sois capaz, o que encerra este cofre !

O astuto judeu não deixou escapar o ensejo, que o acaso lhe deparava, para vibrar um golpe que ferisse profundamente o espirito do rei, susceptivel a crendices, como ainda os mais illustrados do tem po. Tão bem como D. Ma nuel, ou melhor ainda do que elle, sabia o astrologo que n' esse cofre estavam os papeis e apontamentos que D. João II guardava e colligia sobre o modo de tentar a descoberta da India. Sabia-o pelas confidencias de João Infante, o navegador estrangeiro que acompanhára Bartholomeu Dias na passagem do Cabo da Boa Esperança, e com quem el-rei fallecido muito conferenciava sobre novos emprehendimentos maritimos.

-- Estará por acaso n'esse cofre, por mercê de Deus a vossa alteza, a boa estrella que ha de levar os portuguezes á India ? -- interrogou o israelita. .

E como D. Manuel se erguesse n'um movimento de assombro, não isento de desconfiança, receiou Caçuto ter ido demasiado longe, e sagazmente accrescentou :

-- Não sei que outro thesouro possa hoje existir para vossa alteza, cujas ambições de gloria ha tanto tempo conheço e admiro ...

A lisonja, que assim afagava as aspirações do monarcha, chamando-lhe as idéas para o seu fito constan te, levou-o a responder alegremente :

-- Bem diz o povo, mestre Caçuto, que á noite, estudando o discorrer das estrellas, aprendeis a adivinhar. Com effeito, n'este cofre estão todas as informações que el-rei D. João o II, que santa gloria haja, conseguiu obter do rei africano que, como sabeis, veio a Portugal e se fez christão, por mercê de Nosso Senhor, quando Diogo Cão e João Affonso d'Aveiro descobriram os reinos de Benim e do Congo, sobre esse famoso imperio do Préste João das Indias ...

-- Sim, real senhor -- obtemperou Caçutoo, como tomando o fio das idéas de D. Manuel -- desde ha tres seculos que na Europa consta, segundo se diz, de noticia trazida da Africa e da India, por um bispo que a Roma veio pedir auxilio a Eugenio III contra os infieis, existir lá para as bandas do Oriente esse imperio do Presbyter João, a que hoje chamamos, por corrupção de nome, Préste João ...

-- Mas o que vós não sabeis, mestre Caçuto, é que n'este momen to lá andam por esses longinquos paizes, enviados de el-rei D. João o II, que santa gloria haja, aos quaes deu carrego de entregarem uma carta sua a esse príncipe com o qual desejava estabelecer amisade, para virem depois indicar o caminho que se deve seguir para chegar á India ...

-- Será possível ?! -- exclamou admirado o astrologo.

-- Sim. Como vereis n'estes papeis, que ides levar para os estudar e me dar conselho, ha annos fez el-rei partir dois embaixadores para essa côrte do Oriente. Mas chegados a Jerusalem, não poderam proseguiu no seu caminho, por não conheceram a língua dos arabes. Não desanimou el-rei, que santa gloria haja, enviando novamente com egual missão os seus dois moços de estribeira Gonçalo de Paiva e Pero da Covilhã, que bem conhecestes ...

-- Com effeito -- respond u o israelita, simulando desconhecer as secretas tentativas do principe perfeito -- ha tempo bastante que se ausentaram da côrte, e correu voz, que el-rei os mandára a uma demorada viagem ... Mas nada mais se soube ...

-- Por lá andam, e praza a Deus que possam cumprir as ordens que el-rei D. João o II lhes deu, para não regressarem a Portugal sem terem encontrado o caminho da India, e que lhes confirmou novamente quando vieram animal-o no seu proposito as informações do rei de Benim, tanto que lhes enviou cartas por dois hebreus mercadores, Rabbi Abrahão e José, que para o Cairo partiram, lembrando as muitas mercês que lhes faria se chegassem a trazer-lhe noticia segura de haverem encontrado o imperio do Préste João.

-- Deus fará a vossa alteza a mercê de elles regressarem, trazendo-lhe segura informação a tal respeito ...

-- Ah ! não me soffre o animo esperar pela sua volta ... Já el-rei, que santa gloria haja, depois que Bartholomeu Dias e João Infante dobraram o Cabo das Tormentas, a que chamou da Boa Esperança, porque pelo mar esperava chegar á India, emquanto que aquelles seus mensageiros a procurariam por terra, para tentar tal descoberta, deu começo á construcção de tres náos que lá estão nos estaleiros do Tejo -- Quero mandal-as acabar, e envial-as n'esta empreza, se o vosso conselho me disser o que devo fazer.

-- Grande honra me faz assim vossa alteza ...

-- Maior será a mercê que vos farei, se com os vossos estudos me indicardes qual o caminho que devem seguir os nossos mareantes, para que seja coroada de feliz resultado esta empreza a que estou resolvido a consagrar toda a minha fazenda. Ide, e estudae maduramente todas as noticias que el-rei D. João o II, que santa gloria haja, conseguiu obter de navegantes e mercadores estrangeiros vindos a Portugal, e pelo que a outros perguntou para Veneza, sobre o Oriente. Não vos apresseis. Ide, e que Deus Nosso Senhor vos inspire no conselho que voltareis a dar-me.

Beijou o israelita a mão que el-rei lhe estendia, e partiu levando para o seu retiro de Beja o cofre com os documentos do principe perfeito. Algum tempo depois voltava a Evora, a dar a D. Manuel o parecer que lhe pedira:

-- Senhor ! -- disse o astrologo -- com o muito cuidado que tomei no que vossa alteza tanto me encarregou, o que achei e tenho sabido, é que a província da India é muito longe d'esta nossa região, prolongada por vastos mares e terras, todas de gentes pretas ; n'ellas ha grandes riquezas e mercadorias que correm por muitas partes do mundo, com muito perigo, primeiro que possam vir a esta nossa região. O que tenho bem estudado e por querer de Nosso Senhor concluindo que vossa alteza a descobrirá, e grande parte da India subjugará em muito breve tempo ; porque Senhor ! vosso planeta é grande sobre a divisa de vossa real pessoa, a esphera, em que se contem os céos e terra, que tudo Deus quererá trazer a vosso poder, e tudo acabará do que nunca concluiria el-rei, que santa gloria haja, ainda que todo o reino n'isso gastasse, porque esta missão a tinha Deus reservada para vossa alteza. E mais achei que a India descobrirão dois irmãos vossos naturaes, mas quem elles sejam eu nao o alcanço. E pois que Deus assim o tem disposto. Elle os indicará. Pelo que tenho dito a vossa alteza toda a verdade, de que faço penhor a minha cabeça, sob o aprazimento de Nosso Senhor em cujo poder tudo está.

N'este pequeno discurso, que transcrevemos dos chronistas do tempo, o astrologo, o estrolico, como então lhe chamavam, traduzia o ponto mais adiantado dos conhecimentos geographicos d'então, e as idéas ao mesmo tempo mysticas, aventureiras e ambiciosas, que dominavam no espirito das primeiras classes da nação. Elle bem sabia que d'essa fórma o seu parecer seria grato a D. Manuel, que não precisava de ter lido nos apontamentos de D. João II a larga conta que os seus correspondentes de Veneza lhe davam da India e de suas grandes riquezas, dizendo-lhe que vinham a Alexandria ricas mercadorias e especiarias de que o turco auferia grandes lucros, e d'ahi corriam por trato de mercadores que as traziam a Veneza, que era o maior commercio que na republica se fazia, seguindo d'alí para todas as partes, como vinham nas galés venezianas para a Hespanha e Portugal, para se capacitar de que, como elles aconselhavam ao príncipe perfeito : "a descoberta da India era cousa para um grande principe emprehender e n'isso aventurar todo o seu reino e poder, porque, querendo Nosso Senhor mostrar-lh'a e d'ella fazel-o senhor, seria exalçado em riqueza e poderio sobre todos os príncipes christãos e glorioso em tempos vindouros pela propagação da fé.

Bem sabia pois o astrologo israelita, que, no seu parecer, afagava as ambições do monarcha e as ideias da côrte. E' natu ral mesmo, que, entre os apontamentos de D. João II, encontrasse qualquer referencia á escolha de Vasco da Gama para dirigir o emprehendimento, porque o principe perfeito, segundo escreve Garcia de Rezende na sua chronica, estudava muito os homens do seu tempo, suas ideias e aptidões, tomando nota dos serviços e d'aquellas missões para que mais competentes pareciam, e d'ahi a allusão semi-prophetica de Caçuto, de que a India seria descoberta por dois irmãos, os Gamas, introduzida na sua resposta a el-rei.

Muito animado ficou D. Manuel com a consulta do seu sabio mestre, e desde logo deu tal incremento aos preparativos da empreza a tentar, que deixou de ser um mysterio que el-rei ia mandar uma frota á desco berta da India e a breve trecho, o conselho regio era officialmente chamado, de surpreza, pela segunda vez, a sanccionar com o seu voto, o que, aliás, estava já resolvido.

A sciencia, ou arte politica, ainda n'aquelle tempo não tinha inventado o grande principio das maiorias, que se diz ser hoje quem governa e dá a lei. N'esse tempo, ainda se avaliava em mais a qualidade dos votos do que o seu numero. No conselho de el-rei D. Manuel, a maioria dos votos, foi contraria a que se tentasse a descoberta da India, mas, segundo escreve Faria e Sousa as razões contrarias foram sustentadas por menos vos pero mayores !

A maioria, contraria ao projecto, representava no conselho de D. Manuel o sentir de grande parte da nação, da burguezia e do povo, que entendiam serem bastantes já as glorias e as conquistas obtidas na Africa a preço de muitas vidas e enormes despezas. Outro, porém, era o sentir da nobreza, que, cerceada, por D. João II em bastantes privilegios e origens de rendimentos, antevia na conquista da India largo campo para façanhas guerreiras, que seriam retribuídas pelo monarcha liberalmente, uma especie de emancipação para exercer o governo em futuras capitanias, e os grandes thesouros orientaes como tributo de guerra que enriqueceria os vencedores.

D. Manuel ia, em grande parte, com estas ideias. Queria tentar a conquista da India, não só para augmentar a sua gloria, e para um dia accrescentar aos seus titulos os de Senhor da navegação e commercio da Ethyopia, Arabia, Persia e India, mas para economicamente tirar os resultados positivos d'essa navegação e d'esse commercio, como mostraremos no decorrer d'esta narrativa.

Portanto, poz no conselho o seu voto ao lado da minoria qualificada, e a descoberta da India foi, por assim dizer, officialmente resolvida.

Desde logo se apressou a conclusão dos tres navios começados no tempo de D. João II, mandando elrei que se fizessem o mais fortes possível, e, mal lançados ao mar, logo os marinheiros que tinham ido com Bartholomeu Dias e João Infante na passagem do Cabo da Boa Esperança, foram empregados no seu apparelhar e artilhamento. E desde logo tambem se proveu ao seu carregamento, para que n'aquellas náos, que haviam de ir sulcar mares nunca d'antes navegados, embarcassem juntas a fé guerreira e conquistadora e a especulação mercantil.

Em cima, nas vélas, a cruz de Christo a desenhar-se vermelha sobre o alvacento das lonas ; na coberta e no tombadilho, os berços, como então chamavam ás peças de artilheria ; e em baixo, nos largos bojos dos navios, ao lado dos barris de polvora, os fardos de mercadorias e fazendas de toda a especie, que Gaspar Corrêa enumera minuciosamente nas suas Lendas da India :

«as conservas, as aguas cheirosas, todas as cousas de botica para os doentes, e mestre e clerigo para os confessar, e muito dinheiro de ouro e prata, e pannos de ouro e seda, collares, cadeias e manilhas de prata branca e dourada, bacias de mãos e gomis ; e espadas, punhaes e traçados chãos e guarnecidos d'ouro e prata de feições, lanças, adagas, tudo guarnecido, para se poderem apresentar aos reis e senhores das terras a que aportassem ... e de cada especiaria uma pouca" ... E, segundo escreve ainda o mesmo chronista, mais ainda mandou el-rei comprar escravos que soubessem todas as linguas, que se podessem achar, e ... de todo o provimento que pareceu que cumpria se proveu com muita abastança dobradamente.

Póde calcular-se qual o enthusiasmo que, nos antigos cavalleiros d'Africa e nos jovens guerreiros ambiciosos, despertaria uma empreza assim delineada, e que ambições convergiram para o seu commando superior.

Mas se, como é de suppôr, D. Manuel tinha já a sua escolha feita, em virtude das notas deixadas por D. João II, não o dizia, mostrando-se pelo contrario muito preoccupado com tal assumpto, e pedindo a Deus que em tão melindrosa eleição o guiasse. E' o que dizem alguns dos chronistas do tempo, pretendendo que a escolha de Vasco da Gama, cavalleiro da casa d'el-rei e de nobre geração, homem prudente, valoroso e de bom conselho, foi o resultado d'uma subita inspiração do céo a D. Manuel, que fez que o futuro descobridor da India atravessasse a sala do paço d'Etremoz no momento em que el-rei celebrava conselho para assentar n'essa escolha.

Outros chronistas, como o conspicuo Damião de Goes, pretendem que esse conselho se reunia para approvar a escolha já feita pelo monarcha.

D'uma ou outra fórma, o que parece certo, é que n'essa occasião lhe foi commettida a capitania mór da armada que se aprestava, pois D. Manuel chamando-o, lhe disse :

-- Folgaria que vos encarregasseis d'um serviço, em que tenho mister de vós, e que será trabalhoso.

Ao que Vasco da Gama, ajoelhando e beijando-lhe a mão, respondeu :

-- Senhor ! pago estou de todo e qualquer trabalho, pois que vossa alteza de mim se quer servir, o que farei emquanto me durar a vida.

Então el-rei levantou-se, e passando á sala em que iam servir o jantar, sentado já á mesa, lhe disse que desejava tomasse o commando da esquadra que em Lisboa se preparava, e partisse quanto antes ; ao que o Gama respondeu que embarcaria quando lh'o ordenasse:

-- Não tendes um irmão ?

-- Tenho tres, senhor ! Um, moço ainda, outro que aprende para clerigo e outro mais velho, todos homens promptos para o serviço de vossa alteza.

-- Chamae esse ultimo para capitão de um dos navios, e vós escolhei das tres náos a que mais vos agradar, na qual arvorareis a minha bandei ra.

N'um bello rasgo se revelou desde logo o grande caracter de Vasco da Gama, que, beijando novamente a mão a el-rei, disse :

-Senhor ! não sou eu quem deve levar a bandeira, mas meu irmão Paulo da Gama, que é mais velho ; elle a levará e eu irei debaixo do seu commando.

-- Muito me agrada o que vos ouço, que é prova dos vossos sentimentos de obediencia, pelo que Deus vos a bençoará, esperando eu bom serviço de quem assim é virtuoso ... A vós escolhi, em vós confio, e a vós dou o commando. Ordenae pois tudo como quizerdes, e escolhei capitão para o terceiro navio.

Mas no rosto de Vasco da Gama pairava certa tristeza ; percebeu-a D. Man uel, que pareceu interrogal-o com olhar prescrutador.

-- Senhor ! -- disse então Vasco da Gama -- meu irmão tem um processo pendente, por causa d'um ferimento que fez ao juiz de Setubal, e sem o vosso perdão não poderá embarcar ...

-- Por amor de vós lhe perdôo, e pelo serviço que d'elle e de vós espero. Escrevei-lhe para que dê satisfação ao offendido, e para que logo parta sem detença. Entretanto providenciae em tudo que cumprir ao aprestamento dos navios, e escolhei os mareantes que mais vos agradarem e tudo disponde, porque tenho fé, que, com o favor de Deus, vós descobríreis a navegação da India. Peço ao Senhor que assim o haja por bem e para seu santo serviço, e a elle vos encommendae, que vosso trabalho por mim será bem galardoado.

Estava escolhido o futuro descobridor da India.

II

A partida de Vasco da Gama

Raiou finalmente o dia designado para largar do Tejo a armada que ia descobrir a India, sabbado 8 de julho de 1497, dia de Nossa Senhora.

O povo de Lisboa corria pelos campos que separavam a cidade do logar do Restello, em que ficava a capella da invocação de Santa Maria de Belem, mandada construir pelo infante D. Henrique, para n'ella os mareantes, que partiam para as descobertas maritimas, se prepararem como bons christãos, na hypothese da morte, facil de encontrar em tão arriscadas emprezas, confessando-se e tomando os sacramentos.

Era por todos sabido, que d'essa capella sairiam em procissão os frades da ordem dos Jeronymos, a acompanhar Vasco da Gama e as guarnições dos navios da sua armada, e que el-rei D. Manuel viria ao Restello dizer-lhe o ultimo adeus, não se dando por satisfeito com a despedida official que lhe fizera em Evora, entregando-lhe o estandarte com a cruz de Christo, destinado á náo S. Gabriel, no acto de lhe serem apresentados por elle os capitães das duas outras náos, S. Raphael, e S. Miguel, Paulo da Gama e Nicoláo Coelho.

Estas náos, e a barca que as seguiria carregada com mantimentos, a cargo de Gonçalo Nunes, serviçal da casa de Vasco da Gama, balançavam-se no rio, não muito distante da praia.

N'ellas estavam apenas os homens indispensaveis para as guardar. Todo o resto das guarnições, que no seu total não excediam cento e sessenta homens, entre soldados e marinheiros, achava-se na capella do Restello, onde os capitães haviam passado a noite, velando ajoelhados deante do altar da Virgem.

Chegaram em luzida cavalgada el-rei e a côrte, para ali entrarem em pequenas embarcações que acompanhariam a armada até á barra .

Terminada a ceremonia religiosa, começaram a sair processionalmente da capella os monges, de cruz alçada, entoando canticos religiosos. Seguiam-se-lhes as guarnições dos navios com os seus chefes subalternos, e logo o que hoje chamariamos o seu estado maior : os capitães já mencionados, e no meio d'elles o capitão-mór ; depois os pilotos, Pero d'Alernquer, que com Bartholomeu Dias passára o Cabo da Boa Esperança, João de Coimbra e Pedro Escobar. Vinham em seguida os escrivães dos navios, Diogo Dias, irmão d'aquelle navegador, Alvaro de Braga e João de Sá. Caminhavam após os línguas, e ao mesmo tempo pilotos, Fernando Martins de Lisboa e Martim Affonso, e por ultimo o confessor frei Pedro Cobilones, religioso da ordem da Santíssima Trindade.

Seguiam depois el-rei e a côrte, e, fechando o prestito, mais frades dos Jeronymos.

Quando chegaram á beira-mar, aquelles que iam partir e tinham uma graduação, vieram beijar a mão de el-rei, e no fim de todos, os capitães das náos, sendo o ultimo Vasco da Gama, a quem el-rei ergueu, de ajoelh ado que estava, e abraçou.

N'esse momento solemne, em que a commoção era geral, ergueu-se na multidão um murmurio de respeitosa admiração pelo nobre caracter do chefe da armada, vendo n'uma ascenção lenta a tremular ao vento e a destacar-se nitidamente do azul esplendido do céo, o estandarte com a grande cruz de Christo vermelha, que o monarcha entregára em Evora ao capitão-mór, até topetar na gavea do mastro grande da náo do commando de seu irmão, Paulo da Gama.

-- Tendes um grande coração ! Vasco da Gama ! disse-lhe D. Manuel. -- Deus vos fará a mercê de serdes o descobridor da India ...

Antes porém que o futuro heroe tivesse tempo de responder, uma nota extraordinariamente discordante quebrou o respeitoso silencio que se seguira ás palavras do rei :

-- Oh ! gloria de mandar! Oh! vã cubiça d'essa vaidade a que chamamos fama ! não abriga decerto em seu coração Vasco da Gama. Grande coração tem na verdade ! que bem mal arriscado vae n'esta empreza, que tantas mortes, perigos e tormentas, farão experimentar ao reino !

Todos se voltaram, e com espanto viram que taes palavras tinham sido proferidas por um ancião de veneravel aspecto, com longas barbas a alvejarem-lhe sobre o peito, e que apertava ainda entre as suas as mãos d'um joven soldado de quem acabava de se despedir, abraçando-o repetidas vezes. Conseguiu elle desprender-se d'aquella carinhosa cadeia, que parecia querer impedil-o de deixar a patria, e vindo junto de Vasco da Gama, disse para el-rei :

-- Perdoae, Senhor ! áquelle veterano d'Africa, que agora falou mais como pae do que como soldado portuguez.

Vasco da Gama fixou esse joven soldado que já conhecia como dos mais diligentes nos ultimos apréstos da armada, e, aproveitando o ensejo para partir, disse-lhe :

-- Embarcae no meu batel, Ruy da Cunha, e vamos para as náos, se vós, senhor ! -- concluiu para el-rei -- daes licença que partâmos ...

D. Manuel respondeu-lhe com uma inclinação de cabeça affirmativa, emquanto insistentemente seguia com a vista o ancião que de tal modo faiára, e a quem uma joven parecia arrastar em direcção á ermida do Restello, como para o furtar a mais dolorosas despedidas. Vasco da Gama estava já de pé dentro da embarcação que o ia conduzir á náo S. Gabriel, na qual se viam distinctamente os marinheiros promptos a soltarem as vélas logo que o capitão-mór chegasse, esperando só a ordem para partir, que D. Manuel lhe dirigiu com um ultimo adeus, já tambem embarcado no batel real, dizendo-lhe :

-- Ide com Deus e Nossa Senhora, que seu dia é hoje !

Poucos momento depois, a mastreação das náos cobria-se de panno, e as pezadas naves, libertas da amarração, singravam direitas á barra com as vélas cheias. No rio, o batel real, seguido por outros em que ia a côrte e os musicos com que D. Manuel se fazia sempre acompanhar nos seus passeios pelo Tejo, estava sob os remos, e puderam ainda todos vêr que, logo ao passar a barra, Paulo da Gama fazia arriar a bandeira, que só deixára arvorar na sua náo por obediencia ao capitão-mór.

Entretanto, na pequena ermida do Restello, o ancião e a joven oravam fervorosamente.

Contra o que a côrte esperava, el-rei não quiz voltar a Lisboa pelo rio, nem montou ao desembarcar, mandando que os escudeiros o fossem esperar á porta da capella do Restello para a qual se encaminhou.

Entrando n'ella, não poude occultar um gesto de satisfação, vendo ali ajoel hados o pae do soldado que partira e a joven que o acompanhava.

D. Manuel caminhou para o altar-mór, e ajoelhando orou por alguns momentos ; depois ergueu-se, e dirigindo-se para o velho, que ia tambem a retirar-se perguntou-lhe com modo affavel :

-- Como vos chamaes ?

-- Martinho da Cunha, para servir vossa alteza.

-- Estivestes em Africa ?

-- Ás tomadas d'Arzilla e de Tanger assisti, com el- rei D. Affonso o V, que santa gloria haja, vosso grande tio ...

-- E porque, sendo, como sois, um velho soldado portuguez, vos não agrada a conquista da India ?

-- Não vol-o posso explicar senhor ! mas um presentimento me diz que não será ditoso o reino com tal empreza ...

E como el-rei fizesse um gesto de espanto, o ancião, aproximando-se mais, disse-lhe baixo, de modo que só elle ouvisse :

-- Na Africa, senhor ! só trocavamos lançadas com os mouros ; ... á India, vamos agora trocar fazendas ... Não receei as conquistas de que só se pensava trazer bandeiras e trophéos, ... receio esta de que se ambiciona trazer ouro em pó ! Não tenho receio pela vida de meu filho, temo apenas que se lhe perca a alma e o coração, fazendo-se soldado soffrego de saques e despojos ...

D. Manuel nada respondeu, ficando por momentos pensativo, emquanto pelo espírito lhe passava a ideia de que aquellas palavras do velho pareciam um echo dos votos que, no seu conselho, haviam sido contrarios á descoberta da India. Mas de subito, acudiram-lhe tambem á memoria as prophecias lisongeiras de Caçuto, e a sua fé ardente, fazendo o volver os olhos para o altar da Virgem, deu-lhe uma feliz inspiração.

-- Deus que nos ouve permittirá que o vosso coração se engane em seus tristes vaticinios. Vós ! Martnho da Cunha ! vereis regressar Vasco da Gama coberto de gloria por ter descoberto a India, e vosso filho, como seu fiel e honrado companheiro, d'ella partilhará. Assim será para gloria minha e do reino, e assim o peço á Santa Virgem -- concluiu el-rei caindo de joelhos e estendendo as mãos supplican tes para o altar -- a quem faço voto de aqui erguer, em logar d'esta pobre capella, um grandioso mosteiro !

III

A bordo da náo S. Gabriel

Foram faceis os primeiros dias de nave gação da armada. O caminho até ás ilhas de Cabo Verde, já bastante conhecido dos maritimos portuguezes, foi percorrido sem difficuldade ; mas, d'ali para diante, até ao Cabo da Boa Esperança , começavam as incertezas, porque, menos frequentado, as notas das sondagens, os aponta mentos dos ventos e correntes encontrados, e o numero de horas de sol, constituíam todos os elementos colligidos pelos compa heiros de Bartholomeu Dias, e os unicos a que se podiam soccorrer. E do Cabo para diante, era então o desconhecido ; era o descobridor entregando-se á Providencia e ao destino, confiando na sua boa estrella, que o levaria ao paiz anciosamente procurado, como a que aos reis magos conduziu junto ao berço do Redemptor no humilde presepio de Bethlem.

Como áquelles reis magos, a fé, sobretudo, guiava Vasco da Gama ; e bem cedo, na primeira crise que se lhe deparou, deu evidente prova d'isso, revelando ao mesmo tempo as suas grandes qualidades de chefe. Nos primeiros dias da viagem, em que a derrota foi facil e o tempo bonançoso, a bordo da náo S. Gabriel reinava a alegria, e os navios approximavam-se uns dos

outros para trocarem fallas com o porta-voz.

A bonança dava folga aos marinheiros, na maioria companheiros de Bartholomeu Dias, para conta rem aos soldados as suas passadas excursões maritimas.

Então Vasco da Gama, que, nos momentos de tranquillidade de espírito, era por indole fagueiro e communicativo, percorria satisfeito esses grupos, e dirigia a palavra aos marinheiros e soldados, sempre com o fito de lhes sustentar o animo. Elle bem antevia que nem tudo seriam rosas, e dias de relativo ocio, no caminho que tivesse por premi a descoberta da India.

Ruy da Cunha era dos inferiores com quem o capitão-mór mais tratava. Interrogára-o sobre a scena da praia do Restello, e ficára tendo pelo joven soldado ainda maior sympathia, quando soubera que ia á India com a nobre aspiração de pelos serviços prestados á patria conseguir as esporas de cavalleiro, e poder casar com a donzella que vimos na ermida de Belem, sua prima e pupila de seu pae, que a educára desde a morte d'um irmão fallecido nas guerras d'Africa.

Passado Cabo Verde, os navios correram para o mar, d'onde era o vento, por saberem os nautas que muito pelo mar entrava a costa, e encontrando-a, tornaram-se na volta do mar, e, como escreve Gaspar Corrêa : indo pela bolina quanto podiam, correram muitos dias, e parecend o-lhes que já podiam dobrar, tornaram na volta de terra, assi pela bolina contra o vento até tornarem haver vista na costa muito mais avante do que chegaram as cavavellas, que os mestres conheceram pelas sondas que tinham escriptas na viagem de Joan Infante e os dias que achavam de menos sol pelos relogios"

Mas então começaram os trabalhos e os perigos !

O mar tornou-se temeroso ; dia e noite o vento soprava rijo, a temperatura era baixa, e quasi não havia seis horas de sol no dia. Durante um mez, soffrendo esta continua tormenta, fôram os navios forçados a correr contra o vento, até que fizeram volta á terra, pensando terem passado o Cabo ; mas quando a aperceberam novamente, o desanimo entrou no coração dos pilotos, que pelas sondas reconheceram haverem passado muito ávante, o que desanimados vieram participar a Vasco da Gama :

-- Não quiz Nosso Senhor que fossemos dobrados além da terra, que esta atravessa o mar e não tem cabo.

-- Enganaes-vos -- lhes respondeu o capitão-mórque estudára as informações do astrologo Caçuto, -- affirmo-vos que o cabo é aqui muito perto, e com outra volta que tornemos ao mar o dobraremos. E vendo a sua indecisão, concluiu em tom de commando :

-- Voltemos pois ao mar. Ordenae a manobra e não exagereis os trabalhos, que para nos mettermos n' elles agui estamos !

Mas Vasco da Gama bem percebia que a força moral das tripulações estava bastante quebran tada. Homens nimiamente crentes, em tudo viam manifestações da vontade Divina. Se fazia bonança, era a Providencia que lhes dizia que caminhassem ávante ; se as difficuldades e perigos sobrevinham, acreditavam logo que ella os estava convidando a renunciarem a empreza.

Por isso, o capitão-mór não tinha repouso nem socego. As noites, passava-as como os dias, sem dormir, no seu posto de commando, incutindo sempre animo na sua gente, vigiando as manobras que, segundo lhe parecia, mandava aos mestres que ordenassem com os seus apitos.

E assim se metteram ainda uma vez ao mar, cada dia mais temeroso com as cerrações, o vendaval desfeito e a escuridão assustadora do firmamento.

Adamastor recebia o audaz invasor dos seus domínios com a mais horrenda catadura.

O temor dos perigos e a faina incessante, fizeram cair doente uma grande parte das tripulações. Então, os que anteviam proxima a hora extrema, erguiam brados clamorosos pedindo misericordia, e maior era ainda o abatimento nos outros navios, porque da náo S. Gabriel chegaram a ouvir-se os desesperados clamores e as supplicas aos chefes para que voltassem ao reino, abandonando a empreza tentada. Mas estes lhes respondiam que só o haviam de fazer quando o ordenasse o capitão-mór.

Vasco da Gama, ora, persuasivo e moderado, procurava incutir-lhes animo, ora, em arrebatamentos de colera, os continha em respeito, quando os via préstes a tentarem algum acto de indisciplina.

Havia dois mezes que navegavam sob aquelle temporal desfeito, tendo já muitas vezes supplicado ao capitão-mór que voltasse á terra, quando uma noite Ruy da Cunha approximando-se de Vasco da Gama lhe disse:

-- Senhor ! a náo faz cada vez mais agua, e os pilotos e mestres dizem que a sua perda é certa, se não voltarmos á terra para a reparar !

-- Tambem vós ? Ruy da Cunha ! -- interrompeu arrebatadamente o Gama -- me aconselhaes a que volte á terra, e torne a Portugal deshonrado ?

-- Não por Deus !-- exclamou com ardor o joven soldado. -- Nunca até hoje, capitão-mór ! me ouvistes um lamento ou receio. Mas senhor ! -- continuou em tom respeitoso e como caindo em si -- lembrae-vos, não das vidas dos que ahi pedem misericordia ao céo, mas de que partimos de Portugal para descobrir a India, e não para nos afundarmos no mar !

Vasco da Gama ficou um instante pensativo ; depois, como quem cedia máo grado seu, ordenou-lhe :

-- Ide chamar os mestres e pilotos !

Estes vieram logo, seguidos a certa distancia pela marinhagem, entre a qual correu a voz de que se ia voltar á terra. -- Então, o capitão-mór que se achava encostado á amurada, dirigiu-lhes a palavra :

-- Com o favor de Deus vamos fazer outra volta ! Mas -- continuou, estendendo para elles a mão direita intimativamente -- tomae tento em irdes bem de ló quanto poderdes, que por Deus tambem vos juro ! que se agora não dobraes o cabo, voltarei ao mar novamente e tantas vezes, quantas fôrem precisas até que o dobremos !

A manobra começou, e d'ahi a pouco era imitada pelos outros navios que seguiam o pharol da náo S. Gabriel.

D'ahi a dias, as tripulações ajoelhadas entoavam em côro a Salvé Rainha, dando graças por terem passado finalmente o Cabo, o que conheciam por estarem á vista de alterosos picos de terra, que pareciam tocar as nuvens, paizes desconhecidos para os quaes Vasco da Gama mandava navegar.

Desembarcaram ali os capitães com alguma gente escolhida, entre a qual ia Ruy da Cunha, e depois de jantarem em terra, por ordem do capitão-mór partiu em um pequeno barco, rio acima, Nicolau Coelho, á descoberta, voltando, depois de ter feito quatro leguas da barra para o interior, a dizer que não encontrara gente.

No dia immediato repetiram a exploração, e depois de navegarem mais de vinte leguas para o interior, sem descobrirem habitantes, regressaram ás náos que saíram a barra encaminhando-se outra vez para o mar. Correndo depois ao longo da costa, com muito cuidado, e sempre sondando, entraram em varios rios não encontrando nunca habitantes na suas margens. Assim navegando, como acalmasse o vento, até cair de todo e cambiar para outro quadrante, temendo que outro se levantasse de travessia, se fizeram na volta do mar em novembro, até perderem a terra de vista.

Sobrevieram, porém, novamente as tempestades, e, depois de reunido conselho em que foi resolvido buscar a terra para se abrigarem, em vão procuraram fazel-o, por o tempo ser cada vez peior e temerem approximar-se de costas desconhecidas, não tendo a certeza de encontrarem porto em que fundeassem.

Voltou de novo o desanimo ás tripulações com o crescer das continuas tempestades, chegando o mestre e o piloto a pedirem a Vasco da Gama gue arribasse, e correndo a costa buscasse abrigo no rio em que primeiro tinham entrado. Mas elle lhes respondeu energicamente :

-- Não faleis em tal, que ao sair a barra de Lisboa, fiz voto a Deus de não tornar atraz um só palmo de caminho! E não m'o torneis a repetir, que lançarei pela borda fóra quem ousar ainda pedil-o !

O tempo cresceu então cada vez mais.

Novamente as náos começaram a fazer agua, o que juntava ao trabalho das manobras a incessante faina de dar á bomba para as exgotar. Os lamentos e as préces erguiam-se constantemente para o céo, emquanto os capitães das outras náos eram assaltados com identico pedido para que arribassem. A tempestade chegou ao seu auge. Os trovões ribombavam incutindo o panico nos mais animosos ; as vagas eram de tal altura que faziam com que os navios se perdessem de vista ; a escuridão do horisonte, assustadora ! O maior cuidado dos capitães, estava em manobrarem de fórma que se não afastassem uns dos outros, conforme as indicações recebidas de Vasco da Gama.

Tornou-se tão imminente o perigo, que o instincto da conservação prevaleceu em uma parte da tripulação da náo S. Gabriel, sobre o respeito e temor sustentados pela disciplina de ferro que Vasco da Gama mantinha a bordo : tramou-se uma sublevação, mas d'ella teve conhecimento Ruy da Cunha, que immediatamente veio prevenir o capitão-mór :

-- Senhor ! Os mestres e pilotos, feitos com a marinhagem, projectam prender-vos por traição e aos que vos são mais dedicàdos, para depois arribarem e voltarem a Portugal, indo lançar-se aos pés d'el-rei que contam lhes per'doará !

Vasco da Gama ia romper n'um gesto irado, quando, por entre o sibilar do vento, se ouviu o porta-voz de Nicolau Coelho falando para o capitão-mór :

-- Arribae, senhor ! arribae, que assim m'o pedem estes desgraçados ; arribae, antes que desesperados nos matem ou prendam para depois o poderem fazer.

Conhecia bem Vasco da Gama a coragem de Nicolau Coelho, para perceber que taes palavras não eram uma supplica, mas apenas um meio astucioso de lhe participar que a sua tripulação pretendia levantar-se contra elle, para arribar.

-- O mesmo querem fazer os da náo «S. Gabriel» -- disse baixo para Ruy da Cunha -- e depois, empunhando o porta-voz, bradou para Nicolau Coelho :

-- Socegae-os, que haverei conselho com os mestres e pilotos d'este navio, e se resolver arribar vos farei signal.

Ordenou então que se reunissem para tal fim, logo que o tempo abonançasse alguma cousa, e lhes permitisse abandonarem por um momento a manobra. - -Tendo dado esta ordem, que a tripulação conheceu com grande contentamento, voltou-se para Ruy da Cunha :

-- Ide esperar-me na minha camara.

Como se o tempo escutasse os rogos das afflictas tripulações, pouco depois começou a abonançar.

Vasco da Gama, que alguns momentos tinha estado encerrado com Ruy, convocou então os mestres e pilotos, e a marinhagem, anciosa pela arribada que bem sabia elles iam aconselhar, não notou que o joven soldado dissimuladamente transmittia aos da militança as ordens que o capitão-mór lhe dera.

Entretanto, Vasco da Gama dizia aos que convocára :

-- Não sou tão valente que não tema como vós a morte, nem coração tenho tão duro, que me não commovam vossos lamentos, esquecendo que a Deus tenho que dar conta das vossas almas ! Trabalhae, pois, para nos salvarmos, que, se o tempo ainda carregar, vos prometto que arribarei ... Mas para minha desculpa ante el-rei, cumpre que assigneis um auto das razões porque arribaremos.

Alegres e satisfeitos, todos se mostraram promptos a fazel-o, ao que Vasco da Gama observou que bastava que fossem passando pela camara, onde já estava o escrivão, aquelles que entendiam da navegação.

Então, á medida que entravam na camara, pelos fieis ao capitão-mór eram agarrados e postos a ferros. No momento em que todos os conspiradores acabavam de ser presos, Vasco da Gama encaminhou-se para a coberta, ordenando que todos o seguissem. Chegado ali perguntou :

-- Ruy da Cunha ? Onde está Ruy da Cunha ?

-- Eis-me aqui senhor ! venho de cumprir as vossas ordens, como vêdes -- respondeu o joven soldado, mostrando-lhe um braçado confuso de papeis e objectos diversos : as notas e cadernos de sondagens, e todos os rudimentares e grosseiros instrumentos de que os mestres e pilotos se serviam para determinarem a navegação.

O futuro descobridor da India deu alguns passos, e, tomando quanto Ruy da Cunha lhe apresentava, caminhou para a amurada, e tudo lançou ao mar ! Depois, voltando-se para os conspiradores aterrados, e para a tripulação, disse-lhes com voz segura :

-- Gentes ! olhae que não tendes mestre , nem piloto, nem quem vos ensine o caminho de hoje em diante, pois estes presos irão debaixo da coberta até voltarem a Portugal, se antes não morrerem. Só Deus é mestre e piloto ! que nos ha de encaminhar e salvar, por sua misericordia se o merecermos, e senão, que seja feita a sua vontade. A Elle vos encommendae, e a mim ninguem de hoje em diante me diga que arribe, porque sabei certo, que se não achar noticia do que venho buscar, a Portugal não tornarei !

O acto de arrojo do capitão-mór e as palavras energicas e decididas que o acompanharam, simultaneamente aterraram e infundiram confiança nos desanimados conspiradores, pois agora estava n' aquelle homem resoluto posta toda a esperança de tornarem a vêr a patria. N' um movimento geral, cairam todos de joelhos, e arrastando os pezados ferros que os prendiam abraçaram-se-lhe ás pernas, pedindo-lhe perdão, e explicando que se tinham ousado pensar em o prender, era para d'essa fórma provarem a el-rei quanto elle tinha sido contrario á arribada.

Accedendo aos rogos dos que lhe eram fieis, em vez de os mandar para a coberta, permittiu que ficassem presos nos seus camarotes, com expressa determinação aos pilotos de não intervirem no rumo a seguir, consentindo apenas em os empregar nas manobras. Em seguida Vasco da Gama mandou arribar ás outras náos, e quando esteve á falla bradou para os capitães :

-- Em ferros tenho meus mestres e pilotos, e em ferros os levarei ao reino, e para que não cuidem que hei mister do seu saber, todos os papeis e petrechos da arte de navegar deitei ao mar, pois só em Deus confio para me levar ao meu destino ; e pois que já tenho os meus seguros, fazei aos vossos o que vos parecer.

Exultaram Paulo da Gama e Nicolau Celho, vendo como o procedimento do capitão-mór se impunha ás suas tripulações, que, mostrando-se arrependidas dos seus projectos, prometteram solemnemente acompanhar a náo de Vasco da Gama, por maiores que fossem os perigos a arrastar.

IV

A traição de Calecut

Não tardou a Providencia como que a galardoar a cega confiança com que Vasco da Gama se lhe entregava.

As tempestades foram abrandando, tornando-se a navegação menos árdua, e permittindo ás tripulações, sem tamanha fadiga, o trabalho das bombas para exgotarem os navios, que faziam

muita agua, anciando o capitão-mór por encontrar terra em que os podesse reparar.

No começo de novembro, com grande alegria, descobriram emfim novas costas, de que se approximaram, encontrando primeiro uma bahia, a que deram o nome de Santa Helena.

Aqui, pediu um dos companheiros de Vasco da Gama, chamado Fernão Velloso, de espírito alegre e curioso, para ir a terra e reconhecer os naturaes. Assim fez, e, internando-se, dois dias esteve no meio d'elles, sendo muito bem acolhido e tratado. Ao vultar para bordo, acompanhado por muitos negros, que vinham armados, um singular engano fez com que se travasse um conficto. Velloso adiantou-se, correndo, para mais depressa chegar á praia, e de bordo dos navios, vendo-o em carreira, seguido por indígenas armados, suppozeram que fugia perseguido, e logo o capitão-mór, mandando desembarcar gente armada, se dispôz a defendel-o. Os naturaes, recebidos, a tiro de bésta, defenderam-se tambem, e n'esta briga, como se a honra de verter o primeiro sangue lhe estivesse reservada, foi Vasco da Gama accommettido pelos negros e ferido em uma perna, e mais grave se teria tornado o perigo se Ruy da Cunha, á frente de outros companheiros, não puzesse cm fuga os negros, ficando tambem ferido.

-- Olhae, Ruy da Cunha -- lhe dizia o capitão-mór d'ali a dias, no momento de novamente se fazer de véla -- que é preciso ser mais prudente ... Arriscastes por mim a vida, e grato vos estou ; mas que contas daria de vós a vosso pae e á vossa noiva, se tivesseis morrido para me defender ?

-- Bem estava, porque morria como bom soldado, defendendo o seu capitão. A culpa foi minha, que com a maldita pressa dei logar á rixa -- observou Fernão Velloso ; e concluiu : -- a mim, capitão-mór, deveis recommendar mais prudencia, e para o futuro a haverei. Pouco depois, em um domingo, dia de Santa Catharina, chegaram á aguada de S. Braz, e ali estiveram alguns dias, queimando n'essa occasião o navio em que iam os mantimentos, por já não ser necessario , não se demorando mais para evitar novas rixas com os indígenas, e partindo em 8 dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, chegavam dias depois á vista das ilhas da Cruz, onde Bartholomeu Dias puzera o seu ultimo padrão. D'ahi seguiu a armada até ao rio dos Infantes, descoberto por João Infante, e bordejando sempre á vista da costa, e vendo que ella era muito povoada, mandou o capitão-mór dar fundo em um rio em que entraram, chamado rio do Cobre, no qual fez aguada, communicando com os naturaes que se mostraram muito affaveis, trazendo-lhes mantimentos, fructas e aves a troco de varias fazendas que Vasco da Gama lhes mandou dar, entretendo-se a pedir-lhes noticias da terra e das costas seguintes, servindo para isso de interprete Martim Affonso, que conhecia diversos dialectos africanos.

Muito animado ficou Vasco da Gama com as informações que esses indígenas lhe deram, e das quaes concluiu que ia no verdadeiro caminho da India.

D'ali partiu em 15 de janeiro, e dez dias depois chegava á foz de um grande rio, cujas margens se cobriam de opulenta vegetação, e em cujas aguas navegavam pequenos barcos de novo formato, as almadias orientaes, conduzindo indigenas da mesma feição dos encontrados no rio do Cobre, mas trajando pannos e sedas como os que a Lisboa vinham, trazidos pelos negociantes arabes e turcos, e conhecidos como productos indianos. Eram signaes evidentes de que a India estava proxima, com o que muito exultaram os navegadores.

N'este rio, a que Vasco da Gama poz o nome de rio da Misericordia, se demorou a armada bastante tempo, procedendo a concertos nas náos 5. Gabriel e S. Raphael, queimando a S. Miguel em que ia Nicolau Coelho, não só por se achar extremamente arruinada, mas porque, para o numero dos tripulantes, muito dizimados pela morte, bastavam agora aquellas duas. Aproveitou habilmente o capitão-mór esta pequena estação, não só para estabelecer relações e commercio com os naturaes, fazendo-lhes dádivas de mercadorias e presentes d'armas, contarias e outros artigos que muito apreciavam, e em especial os cascaveis, mas para incutir novo animo no espírito das tripulações, com a perspectiva da proxima descoberta da India, e das honras e mercês que, por tal feito, a todos esperavam em Portugal.

N'estas boas disposições, sendo 24 de fevereiro, se preparou a armada a voltar ao mar e proseguir sua derrota. Antes de levantar ferro, mandou Vasco da Gama desembarcar toda a gente disponivel, e solemnemente ergueram na entrada do rio um dos padrões que levavavam a bordo, e no qual se lia :

Do senhorio de Portugal, reino dos christãos.

Emquanto alguns artifices trabalhavam na collocação do monumento, a gente da manobra e de guerra, de joelhos, respondia ás préces dos frades confessores da armada, dando graças a Deus por até ali os ter conduzido, e pedindo-lhe para os levar á India e tornar a Portugal a salvamento. Os canticos erguiam-se rythmados com o desdobrar das ondas pelo areal, e com o bater cadenciado dos piques e alviões a perfurarem a rocha em que se ergueria o padrão.

Quando o trabalho concluiu e as rezas emmudeceram, Ruy da Cunha, que parecia ser o espirito bom collocado pela Providencia ao lado de Vasco da Gama, percebendo que elle ia fallar ás gentes, approximou-se e disse-lhe baixo :

-- Senhor! porque não aproveitaes tão feliz momento mandado por Deus, para perdoardes aos que estão em ferros ?

-- Boas idéas tendes sempre, Ruy da Cunha ! Essa tinha eu tambem em meu coração !

Voltando-se então para as tripulações, a cuja frente se achavam os capitães, e depois os mestres e pilotos algemados, lhes disse :

-- Tudo o que é passado vos perdôo, para que tenhaes esperança em Nosso Senhor a quem aprouve livrar-nos de tantos perigos, e nos levará á India que já está proxima. Só para que el-rei conheça os muitos perigos e trabalhos que passastes, e castigos que soffrestes, os ferros, que agora vos tiro, vos porei quando á sua presença vos levar; e assim maiores serão as honras e mercês que vos fará !

-- Amen ! Amen ! -- responderam os tripulantes, n'um côro estrepitoso. -- Assim o queira Deus por sua grande misericordia !

Momentos depois as duas náos, a que a armada se achava reduzida, levantavam ferro, e desfraldando as vélas aproavam ao mar, seguindo depois o caminho que em breve as levaria a Moçambique.

Com os navios concertados, excellente tempo e feliz navegação, mais augmentou a alegria em que iam as tripulações o facto de encontrarem uma véla que vin ha do mar para a terra, o que lhes demonstrou estarem proximas de paizes de navegantes.

Logo Vasco da Gama mandou arribar e chegar á falla com essa embarcação, o que não conseguiram por se ter afastado, receiosa das desconhecidas náos.

Ordenou então o capitão-mór que se approximassem da costa o mais perto possivel, e seguindo-a, em breve descobriram uma ponta e uma grande enseada em que estava fundeado um zambuco, embarcação indigena. D'ahi a pouco era trazido a bordo da náo S. Gabriel, ante Vasco da Gama, um mou ro, qne não conseguira fugir, como os demais do zambuco, em uma almadia que lançaram ao mar ao approximar-se o batel partido das náos. Trajava o mouro uma camisa de seda branca e um panno sobraçado, de côres vistosas ; na cabeça uma especie de carapuça de côres differentes, bordada a ouro, e argolas nas orelhas.

Foi o indígena presenteado e bem tratado, mostrando-se affavel, apezar de vêr aprisionado o zambuco que os seus companheiros tinham abandonado, dando a Vasco da Gama todas as informações que lhe pediu por intermedio dos línguas, indicando-lhe o caminho que devia seguir, e que o levaria a Cambaya, onde lhe dizia que havia grande trato e negocio. E depois, na navegação, deu provas da sua lealdade, com o aviso pa-se afastarem dos baixos de Sofala, nos quaes teriam batido se não fôra tal prevenção.

Alargando-se um pouco para o mar, novamente encontraram uma embarcação indígena, com a qual o mouro falou, e vindo os seus tripulantes a bordo, e sendo banqueteados, prometteram que seguindo as náos o seu zambuco chegariam a Cambaya sem perigo dos m uitos baixos, que tornavam arriscada a navegação d'aquellas paragens para navios de alto bordo.

Assim navegando de conserva com o zambuco, a que Vasco da Gama fez dar um pharol que seguiam durante a noite, ao fim de vinte dias de navegação, pelos fins de março de 1498, chegaram a Moçambique. O xéque de Moçambique, então subdito do rei de Quiloa, depois de ter enviado os presentes de fructas e outros productos do paiz ao capitão-mór, pelo mouro que fizera desembarcar, não acreditando, como este lhe affirmára, que as gentes chegadas fossem christãos, quiz vêl-as, e no dia immediato veio a bordo em uma especie de jangada construida sobre duas almadias, na qual, descançando em coxins forrados de seda, se assentava.

Foi o xéque bem recebido, mas informando-se de que os portuguezes iam para negociar, e comprar com ouro e prata, cravo, pimenta e outras especiarias, cubiçou os seus valores, planeando trahil-os e roubar as náos. Recebidos os presentes do capitão, e tendo desembarcado na companhia do mouro, por este se informou do numero de combatentes que havia a bordo d'ellas e das armas de que dispunham, e pelo mouro mandou pedir a Vasco da Gama que viesse a terra, trazendo os doentes comsigo para ali se restabelecerem. O mouro, porém, que suspeitava dos máos desígnios do xéque, deu parte ao capitão-mór das suas desconfianças. Desejando evitar conftictos n'estes primeiros passos dados na proximidade da India, limitou-se o capitão-mór a responder que não podia desembarcar, e depois de mandar embarcações bem armadas a fazer agua, sob as ordens de Nicolau Coelho, em cuja companhia ia tambem Ruy da Cunha, mandou levantar ferro ás náos, e fôram fundear na ilha despovoada de Moçambique, a que deram o nome de S. Jorge, tendo préviamente ali feito erguer um altar e celebrar a missa, esperando entretanto que o xéque, o quem enviára alguns degredados que a bordo vinham, lhe mandasse o piloto promettido.

Mas não respondendo elle, e sendo o vento de feição, partiram em demanda de Quiloa, em que não poderam entrar por o vento ser contrario, e correndo ao longo da costa aportaram a Mombaça, onde a sua vinda era já conhecida por noticias mandadas pelo xéque. Pretenderam os naturaes novamente dar cabo da expedição christã, fornecendo-lhe pilotos que fizessem varar as náos ao entrarem no porto, o que já tinham planeado se tocassem em Quiloa. Mas aqui, para exemplo, Vasco da Gama, mandou pingar um dos pilotos enviados pelo rei, e este confessou a traição projectada. Não quiz mais o capitão-mór tratar com o rei, e enviando-lhe um dos degredados que levava com destino a ficarem nas terras descobertas, para de futuro darem informações ás novas armadas que chegassem do reino, partiu de Mombaça, e navegando ao longo da costa aportou á grande cidade de Melinde, em que finalmente havia de encontrar o primeiro potentado oriental que sinceramente o acolhesse, em domingo de Paschoa, dia festivo pelo qual reinava a bordo grande alegria.

Segundo dizem alguns chronistas, o velho rei de Melinde, que era muito supersticioso, tendo noticia da chegada d'uma armada desconhecida, consultou um feiticeiro para saber se das relações que com esses estrangeiros travasse viria boa ou má fortuna ao seu reino ; e tendo-lhe sido vaticinado que de tal commercio haveria venturas, nas melhores disposições recebeu os christãos.

Começou por lhes enviar presentes de fructos e mais productos da terra, e não podendo por sua avançada edade ir a bordo, ali mandou seu filho mais velho, que já por vezes governára o reino, o qual foi recebido por Vasco da Gama com todas as honras.

Em sua companhia desembarcaram Nicolau Coelho e outros cavalleiros, que da parte do capitão-mór fôram saudar el-rei, emquanto elle não ia pessoalmente fazel-o como enviado de D. Manuel.

Não quiz o capitão-mór ficar atraz do rei de Melinde nas provas de confiança que lhe dava, e assim recusou guardar com refens, emquanto os portuguezes estivessem em terra, o nobre caciz que lhe ma ndára, reenviando-o com a dádiva d'uma rica bacia de prata, entregando-lhe tambem uns prisioneiros que fizera em um zambuco tomado pouco antes de chegar a Melinde, de gente de Mombaça, que contra o rei andava levantada.

Ajustado o dia para a recepção de Vasco da Gama, partiu o enviado de D. Manuel de bordo com seu irmão Paulo da Gama, em seu batel, acompanhados de numerosos cavalleiros, armados e trajando ricamente. Com Vasco da Gama ia Ruy da Cunha, a quem o capitão-mór déra o encargo de mandar as salvas d'artilheria dos berços e bombardeiros que para esse fim levavam, e ordenar os toques de trombetas e atabales com que, no final da recepção, fariam signal ás náos

para salvarem por seu turno.

Das pôpas dos bateis pendiam para o mar ricas alcatifas que forravam as camaras improvisadas, nas quaes, em bellas cadeiras de velludo carmczim, se assentavam os capitães.

Fôra ajustado que se encontrariam com o rei de Melinde á beira-mar, mas este, logo que os bateis se aproximaram, fez-se conduzir a bordo d'aquelle em que estava Vasco da Gama, e para o qual seu irmão passou mal percebeu o designio do rei. Ambos com grande reverencia receberam o monarcha asiatico, e por nobre instancia do capitão-mór, foi Paulo da Gama o primeiro que por via de interprete lhe disse :

-- Grande rei ! tamanha honra nos fazes n'este momento, que de hoje em diante te ficamos obrigados como teus proprios vassalos, se com el-rei de Portugal nosso senhor, queres assentar paz e amisade como verdadeiro irmão !

Ao que el-rei respondeu :

-- Deus sabe que isso tenho assentado em meu coração de dia e de noite e sempre ; e quero e muito me apraz d'hoje para o futuro, emquanto vivo fôr, ser verdadeiro irmão do vosso rei de Portugal, e assim o affirmo pela minha fé !

Quizeram então os capitães, dobrando o joelho, beijar-lhe a mão, o que o rei de Melinde não consentiu, erguendo-os e abraçando-os, emquanto a multidão em terra soltava gritos festivos, a que as guarnições correspodiam bradando :

-- Boa viagem ! Boa viagem ! Nosso Senhor seja louvado.

Ruy da Cunha mandou tocar as trombetas e atabales, e ante os orientaes admirados a artilheria começou a troar.

Quando acabou a salva, Vasco da Gama tomou d'um estojo, que Fernão Velloso lhe apresentou, uma rica espada de guarnições d'ouro esmaltado, uma lança de ferro dourado e uma adaga com bainha de setim vermelho bordado a ouro, que outros cavalheiros lhe trouxeram, e depondo-as nas mãos d'el-rei disse :

-- A offerta d'armas é o maior signal de verdadeira amisade e irmandade ; o que nós agora vos fazemos em nome d'el rei D. Manuel, que é o maior rei do mundo! que assim costuma proceder com os que toma por irmãos e amigos. E por firmeza da verdade lhes dá armas para com ellas o ajudarem e defenderem, pois com a espada se ganha a maior honra do mundo, que é a cavallaria, e quem quebra a amizade que acceita recebendo a espada, perde a sua honra. E portaneto, senhor ! vos damos esta espada e armas em nome do nosso rei, e promettemos comvosco guardar paz e servir-vos como irmão d'el-rei de Portugal, que como tal agora tomasteis.

-- Prometto e juro novamente por minha lei -- disse o interprete, traduzindo as palavras que o rei proferia -- manter verdadeira amizade e paz com el-rei de Portugal, meu novo irmão, e em nada lhe faltar quebrando o que agora digo ante o meu povo, tendo por abençoada a amizade com tão grande rei como é o vosso !

As relações tão propiciamente estabelecidas com o rei de Melinde, sempre por elle e pelos seus successores foram sustentadas, sendo o mais fiel alliado de Portugal em futuras guerras com outros mon archas orientaes, especialmente com o traiçoeiro rei de Calecut.

Quando, em fins de abril de 1498, Vasco da Gama partiu de Melinde, dirigindo-se a Calecut, as relações politicas e commerciaes com o reino de Melinde tinham sido por elle tão habilmente e tão seguramente cimentadas, captivando os personagens da côrte com attenções e presentes, e fazendo observar a maior disciplina ás tropas que desembarcavam, que as palavras do rei no momento em que as náos se faziam de véla foram:

-- Nada falta a estes homens para tudo concluírem como quizerem.

Completo contraste com o procedimento do rei de Melinde, havia de fazer a maneira por que os descobridores portuguezes foram tratados no reino de Calecut, e d'ella tirou mais tarde Vasco da Gama inteira satisfação.

Chegado a Calecut, da mesma fórma que fizera em Melinde, não quiz o capitão-mór desembarcar sem para isso receber convite do rei. Enviou pois a terra o piloto mouro, e um degredado que se encontrou com um mercador de Tunis, chamado Monçaide, o qual falava hespanhol, e tendo este vindo a bordo, depois de bem recebido e presenteado, foi incumbido de acompanhar Fernão Martins e Ruy da Cunha, encarregados de irem pedir a el-rei para receber em audiencia o capitão-mór, como embaixador de D. Manuel.

Dias depois, e tendo por indicação do rei vindo as as náos fundear no porto de Padarane, recebeu Vasco da Gama a visita do catual, especie de corregedor, que vinha buscal-o para o conduzir ao palacio do monarcha, distante algumas leguas no interior.

Mas a este tempo tinha já o mouro castelhano, Monçaide, avisado os portuguezes dos ardis e animosidades que os negociantes mouros, receiosos da concorrencia commcrcial dos europeus, haviam cimentado contra elles no espirito dos naturaes, e de como feitos com o proprio catual e o gozil, outra auctoridade que superintendia nas trocas das mercadorias estrangeiras pelos productos do paiz, cravo e pimenta, e a quem tinham subornado, planeavam matal-os e roubar os carregamentos das náos.

Não queria m pois os mais graduados da expedição que o capitão-mór se arriscasse desembarcando por convite do rei, temendo o que em terra lhe poderia succeder.

-- Preciosos são vossos dias para todos nós -- opinava Nicolau Coelho -- enviae como embaixador qualquer outro, cuja vida possa perder-se sem risco para a empreza que el-rei vos encarregou !

-- Eu irei em vosso logar, meu irmão -- objectava o nobre Paulo da Gama -- Não quizestes que o estandarte se arvorasse na minha náo por ser eu mais velho ? Por ser mais velho, não quizestes tambem que fosse o primeiro a falar ao rei de Melinde ? Assim, cumpre tambem que seja o primeiro recebido por el-rei de Calecut ...

-- E eu irei na vossa companhia, na guarda que levardes, se o capitão-mór o permitte -- accrescentou Ruy da Cunha, conhecendo a confiança que Vasco da Gama n'elle depositava, e esperando d'este modo resolvel-o a deixar ir em seu logar Paulo da Gama.

E as instancias redrobraram, na proporção da resistencia que o capitão-mór lhes oppunha. Por fim, converteram-se em uma especie de côro, em que todos lhe pediam que por cousa alguma do mundo se arriscasse em tal passo, pois cada vez o mouro castelhano lhes dava mais seguras provas das más intenções dos naturaes, e do caracter pouco leal do rei Calecut.

Vasco da Gama, commovido com taes demonstrações de affecto e dedicação que os seus companheiros lhe davam, pediu-lhes que o escutassem, e feito religioso silencio, disse :

-- Senhor irmão, e meus amigos ! deveis saber que tanto que me embarquei n'esta viagem, logo ante Deus offereci minha alma e minha vida, pelo que vos digo em verdade, que ainda que agora estivesse na barra de Lisboa, a não entraria e por minhas mãos tomaria antes a morte, do que appareceria ante el-rei não lhe dando conta do que me encarregou. E portanto, eu irei a terra sem nada temer, porque tudo está na mão de Deus. -- E isto vos digo e mando com todo o poder que tenho !

O tom energico e resoluto com que o capitão-mór proferiu estas palavras, fizeram conhecer a todos que só lhes restava obedecer ás ordens do chefe que mandava. Nem mesmo Paulo da Gama se atreveu a fazer a a menor observação. Recolhido á sua camara, fez Vasco da Gama os preparativos para desembarcar, pondo em ordem o rico presente que levava ao rei, escrevendo uma carta que lhe entregaria como do rei de Portugal, e na qual poz o sello real. Depois, chamando seu irmão, Nicolau Coelho e os principaes da expedição, lhes fez minuciosas recommendações sobre quanto lhes cumpria observar se elle viesse a faltar, obrigando-os a prometterem-lhe que antes de o procurarem libertar, quando prisioneiro fosse, partiriam para o reino a dar parte a D. Manuel da descoberta da India.

-- Assim o prometto como desejaes -- lhe respondeu, sereno e resignado, Paulo da Gama.

-- Sabei entretanto -- accrescentou o capitão-mór -- que não pretendo arriscar ao acaso a minha vida, e d'isso ahi tendes a prova ! Lêde, para que todos ouçam -- concluiu, estendendo a seu irmão a carta que acabava de escrever.

Paulo da Gama leu então esse documento, que era mais uma revelação de que no capitão-mór se reuniam todas as qualidades necessarias a um chefe, e a par da coragem e energia que arrosta os perigos, a sagacidade que procura evital-os e rodeal-os. N'aquella carta de que seria portador, Vasco da Gama apresentava-se a el-rei como simples e modesto mensageiro do chefe d'uma poderosa armada de cincoenta e duas náos, a maioria da qual ainda vinha distante, e que não podia desembarcar por lhe ter sido expressamente prohibido pelo poderoso rei que o enviava, pedindo-lhe que attendesse o mensageiro e com elle tratasse da paz e commercio a assentar, como se o proprio capitão-mór fôra. Mais tranquillos ficaram todos com o emprego d'aquelle ardil, e procurando novamente decidir Vasco da Gama a que ao menos comsigo levasse forte escolta, elle lhes observou que não harmonisaria isso com o papel modesto que ia representar, e apenas consentiu em levar comsigo doze homens.

Quando todos saíram da camara, Ruy da Cunha, voltando atraz, disse-lhe :

-- Permittis, senhor ! que vos peça para ir comvosco ?

-- Não Ruy, não ireis comigo! -- E como visse a sua surpreza, concluiu : -- Já assim o esperava do vosso valor, e por isso mesmo posto mais honroso vos destino. Ficareis a bordo Ruy da Cunha, -- continuou em tom de commando, e tomando-lhe as mãos que apertou fortemente nas suas, concluiu fixando-o -- e se eu não voltar de terra e a confusão aqui reinar, vós só tereis um cuidado : lembrar a todos as minhas ordens para que sem demora partam para o reino. Assim o jurae pela vossa honra !

-- Assim o juro, -- respondeu o joven soldado pretendendo occultar duas lagrimas que lhe correram pelas faces.

-- Bem está ! Agora abraçae-me e ide mandar que apromptem o batel.

D'ahi a dias, Ruy da Cunha, bem contra a sua vontade, e com o coração desesperado, era obrigado a cumprir o juramento que fizera ao capitão-mór. Este achava-se em terra preso e detido com os seus companheiros pelo catual e pelo gozil, cujos manejos o rei de Calecut, que recebera o enviado amigavelmente, fazia não conhecer. João de Setubal, um dos homens com quem Vasco da Gama desembarcára, chegava a bordo mandado por este para dizer a Paulo da Gama que sem demora partisse para o reino, pois estava certo que ás chicanas sobre os pezos e as trocas das fazendas, com que as duas auctoridades o estavam retendo em terra, dissimulando a sua verdadeira prisão, pois o não deixavam embarcar, se seguiria o ataque ás náos para as roubar. Que mandasse portanto as novas fazendas pedidas, e de noite levantasse ferro.

Não quiz Paulo da Gama mandar para terra a nova remessa de mercadorias exigidas pelo catual e pelo gozil, limitando-se a escre ver a seu irmão que os desen.ganasse de que, se immediatamente lhe não davam a liberdade, bombardearia a cidade e os navios que estavam no porto. E immediatamente reuniu o conselho dos chefes da expedição, a quem leu esta carta que todos approvaram, a despeito das instancias de Ruy da Cunha para que cumprissem as ordens do capitão-mór. Passou-se o resto d'aquelle dia e a noite em cruel anciedade, preparando-se tudo para o combate. Ruy da Cunha, a quem muito custava cumprir a missão que o capitão-mór lhe déra, procurou Paulo da Gama e tudo lhe revelou, concluindo :

-- Prendei-me e ponde-me a ferros, para que eu não falte ao que jurei, combatendo para libertar vosso irmão como o coração me pede -- mas como se repentimente o tocasse uma celeste inspiração : -- Senhor ! -- exclamou para Paulo da Gama --tentae ainda um meio que o coração me lembra, antes de disparar o primeiro berço. Buscae cevar a cubiça d'esses perros mouros ; enviae-lhes os refens com muitas honras e presentes, fazendo-lhes antever que mais se lhes dará logo que os nossos voltem a bordo. Tentae-o, por Deus vos peço !

Paulo da Gama assim o fez, e a cubiça do catual e do gozil de tal modo aguçadas, e por outro lado o receio da artilheria das náos, se mais demorassem os que retinham em terra havia dias, resolveram-n'os a determinar a libertação do capitão-mór e dos seus compan heiros.

Pouco depois Vasco da Gama regressava a bordo, sendo estrepitosa a alegria com que as tripulações o acolheram, e Ruy da Cunha levado em triumpho pela feliz lembrança que inspirára a Paulo da Gama.

O capitão-mór escreveu então a el-rei contando-lhe as traições de que fôra alvo por parte das suas auctoridades, depois das promessas e ajustes de paz e amisade que d'elle solemnemente recebera. Simulando achar-se muito irritado com os seus, respondeu o falso rei de Calecut, pedindo-lhe para novamente desembarcar, mas Vasco da Gama contestou-lhe que só o havia de fazer no dia em que ali voltasse para tomar vingança da sua traição, e logo mandou levantar ferro, ordem com que todos exultaram, pois no dizer dos mestres melhor era para voltar ao reino que as náos não fossem muito carregadas de fazendas, ao que o ca pitãomór observou :

-- Sim, grande mercê nos fez Deus, e assim nos leve ao reino, que dez quintaes só que levassemos de especiarias, bastariam para mostrar a el-rei D. Manuel que descobrimos a India.

Quando as náos, partindo de Calecut se achavam ainda á vista dl terra, poderam distinguir-se do seu bordo os formigueiros de tones, pequenas embarcações indigenas, com que os mouros planeavam accommettel-as, e que não se attreveram a seguir a armada no mar, em razão da borrasca que sobreveio. Menos ficou por isso pezando no animo do capitão-mór levar comsigo presos os malabares ultimamente enviados com as estultas desculpas e convites do ardiloso Samorim.

V

O regresso a Portugal

Navegando com grandes calmarias, só em novembro chegaram á vista de Cananor, cujo rei os mouros tinham pretendido indispôr contra os descobridores christãos, e que já estava tambem informado da sua vinda áquellas paragens por cartas em que o rei de Calecut, sincera ou fingid amente arrependido da maneira por que nos seus estados tinham sido tratados, lhe pedia para com elles o desculpar, e que travasse com o rei de Portugal amigaveis relações. Não deu pois o rei de Cananor ouvidos ás intrigas dos mouros, e resolvido a bem receber a armada, tinha até mandado almadias para o mar, afim de a o avisarem não passasse ávante durante a noite.

Logo que as náos estiveram á vista, fez partir a bordo d'um paráo um nayre, nobre da sua côrte, encarregado de pedir ao capitão-mór que não seguisse seu rumo sem desembarcar e se avistar com elle, e com esta grande embarcação mandou muitas outras mais pequenas carregadas com refrescos de toda a especie, agua e lenha.

Depois, succederam-se outros mensageiros a informarem-se das fazendas que desejava, e que em Calecut não tinha chegado a embarcar, as quaes logo remetteu. Reconhecidos a estas amigaveis disposições, resolveram os capitães em conselho, por consulta do capitão-mór, que seria conveniente assentar paz e amisade com aquelle monarcha indiano, e desde logo lhe fôram mandados ricos presentes em cambio das suas offertas, indo para esse fim a terra Nicolau Coelho.

Foi este muito bem recebido, e tendo dito ao rei que os capitães não podiam desembarcar em terra para obedecerem ás instrucções que tinham, mostrou-se o monarcha pesaroso, affirmando que havia de arranjar meio para os ver sem faltarem ás ordens do seu rei, mandando desde logo construir para esse fim uma ponte com um pavilhão em que se encontrassem.

Apenas concluída a improvisada construcção, fez adornar o pavilhão com ricas sedas orientaes e dispol-o como uma sala em que os recebesse.

Aprazado o dia para a recepção, foi el-rei para ali esperar os capitães, e para mais os honrar, mandou que fosse a bordo das náos buscal-os o seu primeiro magistrado, que Vasco da Gama convidou a entrar no seu batel.

Momentos depois, ao som da artilheria das náos que salvavam e das musicas que o rei trazia no seu sequito, os dois Gamas fôram recebidos com as maiores distincções pelo monarcha, que os fez assentar junto de si nos coxins que guarneciam o pavilhão, perguntando-lhes logo com interesse qual d'elles fôra preso em Calecut.

-- Foi este meu irmão -- respondeu Paulo da Gama.

-- Escreveu-me o Samorim -- disse então o rei -- pedindo-me para comvosco o desculpar, pois foi enganado a vosso respeito, do que se acha muito sentido e fará castigar quem o enganou.

-- Senhor ! -- observou-lhe Vasco da Gama quando el-rei assim fizer, então conheceremos que fala verdade. Já nada d'isso nos lembra, mas tempo virá em que o rei de Calecut se ha de arrepender !

Houve um pequeno silencio, passado o qual Paulo da Gama fez dizer pelo interprete :

-- Já sabeis senhor ! quem somos, e para que viemos a estas regiões ; temos visto que és rei leal e não fementido como o de Calecut, pelo que aqui estamos a vosso chamamento, e porque tanta bondade nos mostraes, folgaremos de comvosco assentar paz e amisade em nome de el-rei nosso senhor, que dure para sempre. E sendo assim, te serviremos como ao irmão do nosso rei, e te servirão quantos portuguezes de futuro a este remo vierem.

-- Assim me daes a maior alegria que nunca pensei ter, e maior só a terei no dia em que voltarem a este porto navios do vosso rei com a sua resposta acceitando a minha amisade .

-- Senhor -- replicou Paulo da Gama -- a certeza de voltarem as nossas náos a este porto com a resposta do nosso rei, Deus só a poderá determinar, como fôr da sua vontade, porque estamos expostos aos perigos do mar em que andamos. Mas nós ambos te promettemos, que se outras vierem a estas paragens, tocarão n'este porto e te hão de trazer cartas do nosso rei, com a firmeza da sua amisade que hoje te asseguramos em seu nome offerecendo-te como signal d'ella esta espada. E entregou-lhe uma rica espada de empunhadura de ouro. Muito grato ficou o rei de Cananor a esta dádiva, e presenteando os capitães e mandando para bordo mais fazendas a troco de artigos europeus, pouco antes de partirem lhes fez entrega d'uma carta escripta em folha d'ouro para D. Man uel, renovando os seus protestos e juramentos de guardar paz e amisade ao seu novo irmão.

Partindo do porto de Cananor, em demanda novamente do reino de Melinde, a armada, acossada por máo tempo, não querendo voltar ao porto de que saira, arribou á ilha de Angediva, assim chamada por corrupção das palavras anche, cinco, e diva, ilha, que tantas eram as d'aquelle archipelago, sendo aquella apenas habitada por uma especie de ermitão oriental, chamado jogue, a quem os capitães falaram e deram varios mantimentos, como faziam os navegantes indígenas que ali tocavam, e de cujas esmolas vivia.

Estando ahi abrigados, foram os navegadores portuguezes muito visitados por naturaes, em geral pescadores, que em suas almadias vinham da terra firme, distante uma legua da ilha, saindo na mór parte do proximo rio de Cintacerá. Por estes, foi levada a noticia de se acharem ali, á proxima cidade de Gôa, distante algumas leguas apenas, e de que ao tempo era rei um mouro por nome Sabayo. Tentado pela conducta pacifica dos estrangeiros, e ambicionando, por meio d'algum ardil, tomar-lhes as náos, Sabayo enviou um judeu que de Granada viera ter a Gôa, depois de haver percorrido a Turquia e Méca, e do qual fizera seu capitão, com uma pequena flotilha de fustas, para as atacar depois de se ter orientado das suas forças. O judeu, passando a uma almadia, veio de noite espiar a armada, e na manhã seguinte voltou, fazendo signaes da cruz, para indicar que era christão, pedindo em hespanhol licença para subir a bordo.

Mas os pescadores indianos tinham já avisado o capitão-mór do ataque á traição que o judeu lhe preparava, indicando-lhe os ilhéos em que as fustas estavam escondidas ; e Vasco da Gama, que tudo tinha disposto para se defender, dando ao espia de Sabayo licença para subir á náo, logo que elle transpoz o portaló, falou para a náo de Nicoláo Coelho, convidando-o a vir vêr o novo hospede recemchegado. Era o signal ajustado, e logo o capitão da náo veio com o seu batel cortar a retirada á embarcação do judeu, que foi posto a ferros e obrigado a confessar a traição premeditada.

-- Senhor ! senhor ! perdoae-me, que eu vos entregarei as fostas com que me mandaram para vos atacar, -- bradava elle ao ser açoitado.

O capitão-mór mandou suspender o castigo, e ao anoitecer, embarcando nos bateis da armada, levou tambem o judeu, que só queria já salvar a vida, e fez com que este, ao chegar perto dos seus companheiros, lhes gritasse :

-- Sou eu, que trago commigo meus parentes !

Os bateis, em que vinham berços cujos morrões estavam já accesos, cercaram as fustas. -- Então, Vasco da Gama, bradando : Por S. Thiago ! e S. Jorge ! deu começo ao ataque. Em breve, os orientaes, surprehendidos, lançando-se a nado, procuravam evitar a morte pelas armas brancas dos que os abordavam, e os tiros e as panellas de fogo que d'outros bateis lhes lançavam. As fustas, abandonadas pelos seus defensores, foram aprisionadas. Tremia o judeu pela vida, mas Vasco da Gama, cumprindo a palavra dada, mandou tirar-lhe os ferros, e tratando-o bem fez com que se lhe affeiçoasse, vindo de futuro a prestar grandes serviços a Portugal, por ser muito entendido nas cousas da India e do Oriente, serviços que D. Manuel recompensou largamente, dando-lhe tenças; rendas e fazendo-o cavalheiro da sua casa.

Infligida a dura licção ao traiçoeiro rei de Goa, partiu o capitão-mór novamente em demanda de Melinde, onde chegou em 8 de janeiro de 1499.

A entrada no porto foi celebrada festivamente. Vasco da Gama mandou embandeirar as náos, e ao fundeárem, as tripulações davam vivas e agradeciam a Deus o feliz regresso a caminho de Portugal, emquanto as trombetas soavam e troava a artilheria.

Bem conheciam os capitães como estes espectac ulos feriam profundamente e favoravelmente o espirito dos orientaes, e por isso nunca deixavam de os impressionar por esta forma, e tambem correspondendo com dádivas e presentes aos que os recebiam amigavelmente, e com o ferro e com o fogo aos que pretendiam offendel-os ou trahil-os.

Grande, enorme emprehendimento foi este da descoberta e conquista, lenta e successiva, da India ; faz elle, nos seus principaes incidentes, que em muitos pontos são caracteristicos, excepção á regra geral de haver bons governados e máos governantes. No nosso dominio na India, pôde dizer-se com justiça que as grandes qualidades e os grandes merecim entos residiram quasi sempre nos chefes supremos.

D'ahi para baixo, salvo honrosas excepções, reflectiam-se as paixões e vícios trazidos do estado em que o reino se achava nas suas condições de politica interna: o interesse e a ambição pessoaes prevalecendo sobre as virtudes civicas e a dedicação ao melhor resultado da colonisação da India. Mas é cedo ainda para traçarmos esse quadro nas suas linhas geraes.

Por agora, tudo são alegrias com a perspectiva do regresso á patria, e pelo extraordinario enthusiasmo com que o rei de Melinde celebrou o regresso dos seus novos alliados christãos.

-- Senhor ! Tu nos ensinastes o bom caminho com que chegámos ao nosso destino, e encontrámos a terra que buscavamos -- dizia-lhe Paulo da Gama, quando veio recebel-os á beira-mar, abraçando-os mal saltaram em terra -- e porque tu, Senhor ! nos déste este bem tamanho, nós e os que de nós descenderem para sempre te seremos na maior obrigação que nunca homens deveram a senhor.

Depois, longamente se entretiveram os capitães com o rei, que de todos os seus trabalhos e successos da viagem se informou. Por ultimo, para relatar o combate de Angediva, mandou o capitão-mór buscar o judeu. Quando elle concluiu a narrativa, el-rei voltando-se para Vasco da Gama, disse-lhe :

-- Agora conheço que na verdade vós sois tão perfeitos homens, que ditoso fôra por vos ter no meu reino para meu serviço e minha honra . Bem quizera gue alguns de vós commigo ficassem .

-- Senhor ! não nos é possível. Só degredados trouxémos com ordem para os deixarmos nos reinos que visitassemos. -- E' justo que todos, que igualmente se arriscaram no serviço d'el-rei de Portugal, voltem ao reino a receber o premio que lhes destina. Mas promettemos-vos -- continuou Vasco da Gama, que emquanto falava não podia esconder uma especie de tristeza por lhe não ser possivel acceder aos desejos do rei, que eram tambem as suas vistas particulares de politico -- que as armadas que de futuro visitarem ao vosso porto, trarão portuguezes que aqui fiquem.

-- Assim o pedirei tambem a vosso rei e meu irmão na carta que para elle vos darei.

-- Mas, Senhor ! uma mercê vos rogamos -- continuou o capitão-mór -- deixae que estes pilotos que nos déstes, ou outros, se melhor vos parecer, nos acompanhem a Portugal. Com elles aprenderemos e comnosco aprenderão os nossos diversos systemas de navegar. Elles verão o nosso rei, e depois vos contarão quanto virem no nosso paiz.

-- Assim seja -- respondeu el-rei. -- Quantos desejos o meu coração encerra vós pareceis que os adivinhaes! Porque, já tinha pensado em vos dar os melhores pilotos para vos reconduzirem á patria, e suas mulheres e seus filhos tomarei á min ha guarda na sua ausencia, e por elles lhes respondo.

-- E a tua palavra, Senhor ! -- affirmou Paulo da Gama -- será por nós sustentada até á morte.

Passaram o resto do dia os capitães e cavalleiros que os acompanhavam com el-rei, que a todos deu ricos presentes, entregando a Vasco da Gama, com a cana escripta em folha d'ouro, um rico collar de perolas e pedrarias par a D. Manuel, que em Lisboa foi avaliado em dez mil cruzados, e uma arca guarnecida de lavores de pra ta contendo peças de seda riq uíssima, bordad a a ouro, e va rias joias para a ra inha.

N'essa noite, tendo todos regressado ás rníos, pois n inguem dormia em terra, já tarde bastante, attra hido pela belleza da noite, o capitão-mór passeiava no alteroso castello da S. Gabriel em que ficava a sua camara. A náo balouçava lentamente, ao movimento do rolo do mar, que ao tocar-lhe o costado se abria em espumas prateadas e phosphorecentes.

Um luar magnifico illuminava o mar e a terra, desenhando suavemente sobre o acinzentado escuro do céo os recortados palmares que se estendiam até á beira-mar, e os contornos e rendilhados das casas e pagodes de Melinde, brancos de neve. Na atmosphera havia esse como aroma do Oriente, que se estende a muitas leguas pelo mar, parecendo que se navega em um jardim.

Vasco da Gama, no seu passeio, deteve-se alguns momentos encostado a uma das peças da bateria. Quando se voltou, deu com Ruy da Cunha que subira da coberta e se conservava parado junto á canna do leme.

-- Vós aqui, Ruy da Cunha ? Se fôra Francisco de Figueiredo, me não admirava, porque é poeta, e a noite está linda para os poetas fazerem versos ás estrellas e sonharem acordados. Mas elle dorme em seu beliche, e vós, que todo o dia andastes em terra, velaes ainda !...

-- É que tambem eu sonho, capitão mór, apesar de não ser poeta ...

-- Ah! já adivinho! Desculpae o meu esquecimento ... Não sois poeta, mas estaes namorado ; sonhaes com a vossa noiva e com Lisboa, onde por mercê de Deus em breve voltaremos ...

-- Perdão, Senhor! mas estaes em erro. Sonho, sim, mas só como vós sonhaes tambem ...

-- Eu! -- exclamou admirado Vasco da Gama.

-- Vós mesmo, capitão-mór!

-- Mas com que julgaes que eu sonho?

-- Sonhaes, agora e constantemente, com a vossa descoberta... Sonhaes com a India !

Vasco da Gama deu um passo para elle, e mais baixo, como se tivesse pejo do que ta dizer, receioso, como quem se vê descoberto nos mais intimos pensamentos, disse-lhe :

-- Acertastes, Ruy da Cunha! A India é o meu pensamento constante!

-- E agora que a descobristes, quereríeis ficar n'ella para a guardar, µara aqui estabelecer definitivamente a soberarna de Portugal ! Dizei : Não será isto tambem assim ?

-- Assim é na verdade -- sois foiticeiro ; ainda mais uma vez acertastes com os meus pensamentos ...

-- Pois bem, capitão-mór ! uma mercê tenho a pedir-vos ...

-- Dizei ...

-- Tendes confiança em mim ?

-- Que pergunta, Ruy da Cunha ; não vos tenho dado provas d'isso ?

-- Pois, senhor ! se em mim confiaes, deixae-me ficar n'este reino de Melinde, e assim grande satisfação dareis ao rei que tão affeiçoado se mostra aos portuguezes. Eu procurarei tornar mais firmes e mais estreitas as suas relações e as dos seus vassallos com a nossa patria ; eu disporei as cousas para que sejam bem recebidas por toda a India as armadas que aconselhareis a D. Manuel para do reino enviar com freguencia. Por ellas vos mandarei noticias seguras de quanto aqui se passar, para que estejaes informado do que se faz na vossa India, até que um dia volteis a vêl-a, como espero !

Não podia Vasco da Gama dissimular quanto lhe agradava a proposta do joven soldado, mas apertando-lhe a mão agradecido, respondeu como a seu pezar: -- Tal não posso consentir, meu amigo ! Como disse a el rei de Melinde, no regimento que me deu paraobservar n'esta viagem, D. Manuel só me permitte que alguns degredados deixe n'estes paizes. Deixar-vos, pois, seria faltar ás suas ordens, e ao mesmo tempo commetter uma grande injustiça.

-- Como assim ?

-- Quando todos vão regressar a Portugal e receber das mãos d'el-rei, nosso senhor, o premio dos seus serviços, vós que tanto tendes trabalhado, vós que no primeiro combate que travámos com o gentio, me salvastes de morte imminente ; vós que em Calecut, com o vosso prudente conselho, promovestes a minha libertação ; vós, que eu já teria armado cavalleiro, se não tencionasse antes pedir a D. Manuel que o faça por sua mão, serdes o unico a não ir receber o premio que tanto mereceis, representaria uma injustiça de que eu não quero ser auctor !

-- E se por minha fé vos jurar, senhor! -respondeu Ruy da Cunha, commovido com as honrosas palavras do capitão-mór -- que mais recompe nsado me julgarei se, accedendo ao meu pedido, me deixardes aqui ficar, porque, dizei, senhor ! não é verdade que vós mesmo, se podesseis, aqui ficarieis agora ?

-- Assim é na verdade ...

-- E não julgaes tambem, que haja perigo em agora deixar estes paizes, sem que alguem aqui fique para contrammar os planos traiçoeiros que contra a influencia dos portuguezes, prepararão esses mouros que nos são hostis ? e que tanto mal nos fizeram em Calecut ? N'esse caso, -- concluiu o heroico mancebo -- nem el-rei poderá levar a mal que procedaes contra o regimento que vos deu, nem é menor a honra que me fareis, a mim, simples soldado !

Houve um momento de silencio. No céo, esplendido de luz serena, em tons furta-côres, como de madre-perola, a aurora começa va a despontar, em quanto a luz e os véos da noite se sumiam no opposto horisonte. Vasco da Gama, estendendo a mão para o nascente, respondeu-lhe :

-- Eis ali a vossa imagem, Ruy, a imagem da vossa mocidade, cheia de fé e de esperança mas, sois christão mancebo ! não esqueçaes pois a terceira virtude, não esqueçaes a caridade ! Ali -- continuou, indicando o lado opposto do céo -- ali, vão a desapparecer as trevas da noite ; ali, está a imagem do fim da vida, a imagem da velhice que só pede que lhe poupem as dôres. Eis ali representado vosso velho pae, que tanto se affligiu ao separar-se de vós, e que em su coração receberia duro golpe, se fosseis o unico de quantos n'esta empreza Deus quiz conservar com vida, que não voltasse aos braços dos seus parentes.

As lagrimas correram pelas faces de Ruy da Cunha, que esteve momentos sem poder falar. Depois, em tom de inabalavel resolução, respondeu :

-- Senhor ! em meu coração está assente que ficarei em Melinde -- Deus assim m'o inspirou ! Elle dará conforto e vida aos que em Portugal me esperam, até ao dia em que lá deverei tornar. -- Se pois, capitão-mór ! não quereis permittir que o faça, prendei-me, porque de contrario, desertarei para terra !

-- Não, Ruy da Cunha ! Com tal vileza se não deshonrará Vasco da Gama, que por filho vos quizera ter ! Nobre mancebo ! eu procurarei consolar os vossos, eu saberei dizer a el-rei quanto serviço lhe fazeis desterrando-vos aqui ...

E como visse o clerigo João Figueira, que na coberta preparava o altar em que se ia celebrar a missa, que sempre na armada se resava ao partir novamente para o mar, chamou-o, e emquanto o frade subia as escadas para o castello de ré, o capitão-mór entrou no seu alojamento, saindo logo a cingir o cinturão com a espada, e en caminhando-se para o mancebo, disse-lhe :

-- Soldado sois, Ruy da Cunha ! mas cavalleiro no coração e nas acções ... Frei João Figueira, ámanhã, que é dia de S. Sebastião, levantaremos ferro, e vós pedireis a Deus na vossa missa que nos faça a mercê de nos levar a Portugal ; -- mas hoje, na missa d'alva, implorae-lhe que tenha sempre em sua santa guarda o cavalleiro de Christo que em Melinde ficára. Ajolhae, Ruy da Cunha ! com a graça de Deus, e em nome d'el-rei D. Manuel, nosso Senhor ! vos faço cavalleiro !

E Vasco da Gama, desembainhando a espada, deu as tres pranchadas com que se conferia a honra da cavallaria no hombro do joven soldado, commovido e surprezo com a inesperada distincção.

-- Amen ! -- proferiu o clerigo João Figueira.

-- Erguei-vos, cavalleiro de Christo ! -- respondeu o capitão-mór abrindo os braços em que Ruy da Cunha se lançou.

No dia seguinte, emquanto a artilheria atroava os ares, e as náos desfraldavam as vélas para partirem, na praia, o velho rei de Meli nde tendo ao seu lado o cavalleiro christão que no seu reino ficava, fazia acenos de saudosa despedida para os navios que levantavam ferro, e apertando as mãos do heroico portuguez, agradecia-lhe a grande satisfação que o capitão-mór lhe déra accedendo ao seu pedido, dizendo :

-- Eu sou pobre para tanto pagar !

VI

O heroe da India na côrte de D. Manuel

A velha torre da egreja de Santa Maria de Cintra acaba de soar uma hora da noite. O paço está ainda illuminado, recortando a luz interior na escuridão nocturna a fórma ogival das janellas gothicas. El-rei D. Manuel vae cear, e nas salas do palacio os cortezãos conversam, esperando a hora do monarcha se recolher ao seus aposentos.

Subitamente, um fidalgo da casa vem trazer a el-rei uma noticia que a todos sobresalta :

-- Senhor! um maritimo, que diz chamar-se Arthur Rodrigues, pretende ser immediatamente recebido por vossa alteza, a quem diz trazer grande nova !

-- Fazei-o entrar sem detença -- respondeu D. Manuel, com o coração alvoroçado pela idéa de que poderia ser alguma noticia a respeito de Vasco da Gama, cujo destino o trazia em cuidado desde que recentemente entrára só no Tejo a náo S. Raphael, agora do commando de Nicoláo Coelho, que pensava encontrar já em Lisboa a do capitão-mór, de quem a tormenta o apartára nas alturas de Cabo Verde, e que não tornára mais a vêr.

-- Que nova me trazeis ? -- perguntou D. Manuel sem se poder conter, emquanto o maritimo lhe beijava a mão.

-- Senhor ! beijei a mão a vossa alteza pela grande mercê que me fará, pela grande nova que lhe trago : Ha quatro dias que larguei da Terceira, onde deixei a náo de Vasco da Gama que regressa da India. E para dar tal noticia a vossa alteza, parti em meu caravellão e ha pouco desembarquei em Cascaes, d'onde corri para aqui.

-- Pela grande alegria que me daes com saber tão grande mercê que Deus Nosso Senhor me faz, cavalleiro ficaes sendo da minha casa ! se tendes filho, será moço da minha camara, e ámanhã procurae o meu comprador que vos entregará cem cruzados. E vós senhores ! -- continuou el-rei erguendo-se e dirigindo-se aos fidalgos que o cercavam -- segui-me a dar graças a Deus pela grande mercê concedida a este reino com a descoberta da India !

Toda a côrte, com el-rei na frente, foi ajoelhar-se na capella do paço dando graças ao Altissimo pelo regresso de Vasco da Gama.

Depois, el-rei, voltando á sala, emquanto ceiava, dirigiu ao maritimo ilhéo muitas perguntas sobre a chegada da náo do descobridor á ilha, a que elle não poude responder cabalmente, porque, mal tivera noticia de que era Vasco da Gama que ali vinha, partira logo para dar a boa nova em Lisboa, e só ouvira que a bordo vinha em artigos de morte o irmão do capitãomór.

-- É tarde, senhores ! -- disse D. Manuel levantando-se da meza -- ide descançar, que pouco tempo, para isso tendes, pois de madrugada partirei para Lisboa a esperar o descobridor da India.

Entretanto, foram entrando a barra do Tejo outras embarcações das ilhas, confirmando a chegada de Vasco da Gama, que na Terceira se demorára para enterrar na egreja de S. Francisco seu nobre irmão Paulo da Gama, o qual desembarcára muito doente fallecendo em seguida.

A náo do capitao-mór vinha a caminho de Lisboa, navegando muito vagarosamente, pelo seu estado de ruina e grande quantidade de agua que fazia. A viagem, effectivamente, a partir de Melinde, como já contára Nicoláo Coelho, tivera dias de bastante trabalho. Felizmente o temeroso Cabo da Boa Esperança fôra passado com bonança, o que permittiu fazer n'aquellas arriscadas paragens, com mais socego e minucia, as uteis observações dos ventos e correntes, e as sonda gens, de que tomára detalhada nota o clerigo Joáo Figueira no caderno do roteiro, que por ordem do capitão-mór ia escrevendo.

E relatavam tambem que, tendo passado com folicidade o Cabo, Vasco da Gama, para agradecer a Deus tal beneficio, estando á vista de terra, chamára os mestres e pilotos, e renovando o perdão que lhes déra, distribuira por elles, e pelo resto da tripulação, todos os presen tesrecebidos do rei de Melinde.

Finalmente, a 29 d'agosto de 1499, a náo capitaina fundeava no Tejo, e com a sua artilheria salvava a cumprimentar o rei, que da Casa da Mina, depois denominada Casa da India, admirava o espectaculo magnifico do rio coalhado de embarcações festivamen te empavezadas, que á barra tinham ido esperar o descobridor da India.

A natural satisfação que de via experimentar Vasco da Gama, dando fundo em Lisboa, depois d'uma ausencia de mais de dois annos, em que realisára tão immortal emprehendimento, era profundamente perturbada pela enorme dôr que lhe causára a morte de seu irmão, e foram precisas reiteradas instancias dos fidalgos que a bordo primeiro correram a saudal-o, para o demover do proposito de se apresentar a el-rei coberto de rigoroso luto. N'aquelle magnanimo coração, o sentimento pela morte do irmão querido sobreleva va ao regosijo natural pelo grande feito que realisára.

Mal a sua náo acabava de salvar, entrou a bordo Jorge de Vasconcellos, fidalgo dos principaes da casa do rei, que D. Manuel mandava a dar-lhe os pezames, e satisfeito esse encargo, com elle desembarcou o capitão-mór, saltando em terra defronte da Casa da Mina onde o espera va toda a côrte, tendo á frente o conde de Borba e o bispo Calcadilha, encarregados de o acompanharem á presença d'el-rei.

Ajoelhou Vasco da Gama ante D. Manuel, e beijando-lhe a mão, disse :

-- Senhor ! N'esta hora são acabados meus trabalhos, com grande satisfação minha, pois Nosso Senhor me trouxe ante vossa alteza tendo cumprido o encargo que me deu !

-- Sêde bem vindo, que ninguem tem com o vosso regresso maior satisfação do que eu -- respondeu el-rei -- e pois que Deus vos deu vida até aqui, como lhe pedistes, vol-a dará para de mim receberdes o premio que merece tão assignalado serviço como o que tendes feito. Por amor de mim vos consolae da morte de vosso irmão, pois que a Nosso Senhor aprouve conservarvos antes a vós, a quem eu tinha tudo confiado, em quem punha toda a minha esperança. Mas se elle morreu, para mim é como se vivo fôra, pois a quantos n'esta expedição deixaram a vida, para com suas memorias e descendentes serei grato, comopara os que vivos tornaram. -O capitão-mór beijou-lhe novamente a mão commovido, e D. Manuel concluiu : Vinde Vasco da Gama, a rainha nos espera, quero ter a honra de lhe apresentar o descobridor da India !

Á porta da Casa da Mina apinhava-se o povo que rompeu em vivas a el-rei e a Vasco da Gama.

Cavalgando ao lado de D. Manuel, e seguidos por luzido cortejo se dirigiram para o paço de Alcaçova. Chegados ali, immediatamente foi o capitão-mór admitido á presença da rainha D. Leonor, que o saudou com as mais hon rosas palavras, testemun hando pelo seu grande feito essa admiração que no decurso d'esta narrativa veremos accentuar.

-- Ide para Vossa casa repousar, Vasco da Gama -- lhe disse D. Manuel, encerrando a audiencia -- e voltae ámanhã para socegadamen te me contardes vossos trabalhos, e tratarmos das cousas da India. Vou mandar que em vossos navios e seus carregamentos se não toque senão como vós ordenardes.

Retirou-se o descobridor da India, e seguido por grande cortejo de amigos entrou na sua morada em Lisboa. Quando, já bastante noite, finalmente o deixaram socegado, em vez de se entregar ao repouso que el-rei lhe recommendára, e que as visitas durante todo o dia lhe tinham interdicto, Vasco da Gama trocou os trajos de festa que ainda trazia por outros de burel, que era o lucto da época, e envolto em longa capa saiu só e a pé, por um dos mais escusas postigos da sua habitação, dirigindo-se á Ribeira das Náos.

Parou ali alguns momentos, como a orientar-se, e tomando por uma estreita viella, seguiu-a até parar em frente de uma pequena casa de um andar apenas, sob cuja porta uma lanterna pendente de sua cadeia de ferro alumiava um nicho com a imagem de Nossa Senhora.

-- Deve ser aqui, segundo os signaes que Ruy me deu, - monologou Vasco da Gama, levantando e deixando cair a pezada aldrava da porta.

Momentos depois abriu-se uma janella, e um homem perguntou :

-- Quem buscaes a esta hora da noite ?

-- A vós mesmo, Martinho da Cunha !

-- E quem sois, que vos não conheço a fala ?

-- Um amigo de vosso filho Ruy da Cunha, que na Asia ficou e d'elle vos traz recado.

-- Bemdita e louvada seja a Virgem,-exclamou junto de Martinho uma voz de mulher.

-- Deus vos traga, amigo - accrescentou o velho - attendei que vou abrir-vos -- concluiu fechando a janella.

Sentiu-se o ancião descer a escada e correr os ferrolhos, abrindo a porta ; e porque as trevas eram quasi completas, Martinho procurou a mão do visitante, dizendo-lhe :

-- Sede bemvindo a esta casa a que trazeis a unica alegria que podiamas ter : receber novas de Ruy. Deixae que vos conduza, que para correr a tranqueta não pude trazer a candeia. ·

Seguiram por um estreito corredor, ao fim do qual, por uma porta entreaberta, passava fraca luz. Martinho abriu a porta e entraram em uma pequena casa, a sala, decerto, da modesta morada. Corria ao longó da parede uma bancada de madeira escura, a que servia de costas um roda-pé d'azulejos. Um pezado armario de carvalho, com largas ferragens, um buffete sobre que ardia a candeia, e duas grandes cadeiras de braços de pau santo, com meias costas de couro e grandes pregos de latão, constituíam toda a mobilia que a guarneciam.

Entrando ali, Martinho voltou-se para a pessoa que conduzia, justamente no momento em que Vasco da Gama se desembuçava e tirava o barrete. Reconhecendo-o, ficou attonito :

-- O capitão-mór ! - exclamou o velho ; e logo pretendendo impedil-o de se descobrir: -Vós n'esta pobre casa senhor ! Vinde lzabel, vinde - exclamou em alta voz-é o senhor Vasco da Gama, que nos faz grande honra

-- Sim, meu amigo, sou eu que venho cumprir o que prometti a Ruy da Cunha : dizer aos seus que por graça de Deus o deixei com saude, e pedir-vos tambem, a vós seu pae, e a vós senhora -- continuou saudando Izabel que n'esta occasião entra va-que perdoeis ao meu egoismo o ter acccitado o sacrificio do mais valente cavalleiro de quantos me acompanharam na descoberta da India !

-- Cavalleiro !? -- interrogou o velho surprezo.

-- Com esta espada que ficará sendo vossa -- volveu Vasco da Gama, tirando a espada do cinturão e pondo-a sobre o buffete-lhe conferi a honra da cavallaria, que ámanhã el-rei confirmará por meu pedido. Grande filho tendes! amigo, -- continuou o capitão-mór em tom alegre e familiar, fingindo não perceber a commoção que impedia o velho e a donzella de dizerem palavra.

-- Muito vos deve custar, bem o sei -- proseguiu, accedendo finalmente ás instancias de Martinho para que se assentasse -- que Ruy tenha ficado no Oriente ; mas descançae, que a ausencia não será longa. Agora já saberão os nossos marcantes, pelos cadernos que fiz escrever a João Figueira, como hão de ir á India, assim como vão á Africa. E na primeira armada que el-rei mandar, o nosso cavalleiro regressará. Entretanto, como prometti a Ruy, no que fôr possível o substituirei na companhia que vos hei de fazer ...

Não poude o velho ficar mais tem po silencioso a tantas provas de dedicação com que Vasco da Gama buscava indemnisal-o da ausencia do filho, e apertando-lhe as mãos agradecido, exclamou :

-- E sois vós, senhor ! que n'esta viagem perdestes vosso nobre irmão, que esqueceis as vossas dôres para só cuidar das nossas ! Grande é o vosso coração, e bem digno do seu alto destino !

-- Pobre Paulo ! -- proferiu o heroe da India, a quem as palavras do velho foram avivar a saudade adormecida no seu peito com o bulício da festiva chegada, e a preoccu pação de vir ali cumprir aquelle dever para com a família de Ruy. E, n'uma expansão intima, como desabafando, concluiu : -- grande mercê me fez Nosso Senhor deixando-me descobrir a India, mas levou-me o que eu mais amava n'este mundo ! Seja feita a sua vontade !

Houve um momento de silencio. Vasco da Gama pensava decerto em seu irmão, e Martinho não se atrevia a romper a sua concentração ; mas o capitão-mór, com o seu animo forte, para logo procurou afugentar a tristeza, dirigindo-se a Izabel em tom affavel :

-- E vós, senhora ! não me ped is noticias de vosso primo ? Tel-o-heis por acaso esquecido ? Ah ! isso sim, matal-o-hia mais depressa do que as lanças dos mouros ...

-- Já tive a ventura de vos ouvir que ficou de saude e que breve voltará ...Que mais poderei desejar, a par de tanta honra e favor que lhe concedestes ?

-- Ah ! maiores foram os serviços que me prestou e a el-rei, e maior do que todos é o que fica fazendo desterrado em Melinde. Brilhante futuro o espera, senhora! Alegrae-vos, que é boa a estrella do vosso promettido! Ou muito me engana o coração, ou vira ainda a ser dos mais illustres cavalleiros de Portugal. A India ! A India ! Martinho da Cunha! em que peze ao vosso vaticínio ao partirmos do Restello, lembrae-vos ? -- continuou sorrindo com bondade -- será a melhor joia da corôa portugueza ... Ha ali campo largo para se illustrarem no serviço da patria os seus mais valorosos servidores. Vosso filho será d'esses, estae certo !

E Vasco da Gama largamente narrou todas as provas de coragem e dedicação que Ruy lhe dera. Era alta noite quando se retirou, emprazando o ancião e a sobrinha para que o fossem ver a sua casa, dizendo ter a tratar com elles assumptos que a todos interessa vam. No dia seguinte, bastante cedo ainda, já o capitãomór se achava no paço, e el-rei a quem isto constou, mandou-o logo entrar para a sua camara em que se estava vestindo :

-- D. Vasco da Gama ! pouco repousastes ! ...

-- Beijo a mão a vossa alteza pela mercê com que acaba de me honrar -- disse o heroe ajoelhando e agradecendo o titulo de dom, que o rei lhe conferira.

-- Acompanhae-me a ouvir a missa, D. Vasco da Gama, e depois fallaremos da India.

Terminada a cerimonia religiosa, D. Manuel acompanhado pelo descobridor da India e seguido pela côrte, foi assentar-se em uma das grandes salas do paço.

-- Agora, -- disse el-rei, -- podeis mandar vir á minha presença os vossos corajosos capitães, mestres e pilotos e os orientaes que comvosco trouxestes.

Inclinou-se D. Vasco da Gama, e saindo um istante, voltou seguido pelo numeroso grupo.

-- Senhor ! -- disse apresentando a el-rei o capitão da náo S. Miguel, -- Nicoláo Coelho não foi somenos em trabalhos e serviços, e vossa alteza lhe fará as mercês que entender.

-- Não, D. Vasco da Gama, vós é que haveis de indicar o premio que a cada um darei !

-- Aqui tendes, senhor !os presentes e cartas que vos enviam os reis de Cananor e de Melinde, -- continuou o capitão-mór entregando a D. Manuel as missivas escriptas em folha de ouro, emquanto Nicolau Coelho abria a arca trazida por marinheiros, d'onde logo tirou as joias e sedas enviadas para a rainha.

Mas, de repente, el-rei e a côrte, que attentamente examinavam as preciosas dádivas, voltaram-se admirados sentindo extranho ruido : dir-se-ia que uma procissão de duendes ou almas penadas, arrastava cadeias pelas salas do paço approximando-se cada vez mais.

-- São os prisioneiros !

-- Prisioneiros !-exclamou D. Manuel admirado.

D. Vasco da Gama caminhára já para a porta da sala, a receber os mestres e pilotos algemados, e voltando com elles ante o monarcha, disse :

-- Senhor ! em um momento de fraqueza, d'essa que ás vezes quebranta o coração dos mais valentes, estes homens pensaram em arribar contra minha ordem e voltar a Portugal. Tive de assim os castigar, e fiz voto de ante vossa alteza os trazer em ferros. Mas perdoeilhes em meu coração ha muito, porque do seu proposito se arrependeram, e foram tão valentes e tantos trabalhos passaram como os demais, e por isso só os trago algemados a vossa alteza, para que seja maior a mercê que lhes faça e lhes confirme o perdão.

-- Já estão perdoados, pois que vós os perdoastes, D. Vasco da Gama ! e seu premio escolhereis, como para os seus companheiros !

Então D. Vasco da Gama por sua mão lhes foi tirando as algemas, e cada um em seguida ajoelhava beijando a mão do rei e da rainha, que chegára e se assentára junto de D. Manuel, e a quem logo o capitão-môr entregou o collar enviado pelo rei de Melinde.

-- Agora, senhor ! permitti que vos apresente os pilotos indios que a Portugal nos encaminharam, que muito desejam conhecer o nosso paiz, e alguns dos quaes espero que cedo pedirão as santas aguas do baptismo.

E depois de apresentar os orientaes que se prostraram ante os reis, e que faziam a admiração da côrte com os vistosos pannos e sedas que trajavam, o capitão-mór, tomou pela mão o judeu que planeára atacar por traição a armada :

-- Este, senhor ! em Angediva pretendeu accommetter-nos á falsa fé, por ordem de Sabayo, rei de Gôa! Mas sinceramente se arrependeu, e bons serviço nos prestou depois com seu muito saber das cousas do mar e do Oriente. Assentou já em tomar a nossa fé, e Gaspar das Indias se quer chamar, se vossa alteza o consentir.

-- Eu serei seu padrinho de baptismo -- respondeu D. Manuel.

-- Cumpre tambem, sen hor ! que apresente a vossa alteza estes que representam os mais humildes dos meus companheiros, mas que suas vidas tanto arriscaram como os demais, e talvez mais ainda soffreram, com a pezada faina da manobra e o trabalho das bombas, para que as náos se não afundassem.

E os rudes mannheiros que tin ham carregado para ali as caixas com os presentes dos reis da India, foram por seu turno beijar a mão d'el-rei.

-- E agora, senhor ! só me resta um nome a dizer a vossa alteza, pois que os me us companheiros a quem Deus approu ve conservar a vida já lhe apresentei, e dos mortos, vossa alteza me disse que se não esquecerá. Esse nome é o de Ruy da Cun ha, um dos que mais serviços prestaram, e que tanto comigo insistiu em ficar em J'.\lelinde, para melhor servir ainda vossa alteza. Assim faltei ao regimento que vossa alteza me deu, mas conveniencia grande havia em que junto d'aq uelle rei, todo affeiçoado aos porttlguezes, ficasse quem procure com o seu apoio espalhar por toda a India o con hecimento e respeito do nosso nome e do nosso paiz.

-- Bem fizestes D. Vasco da Gama ! E a recompensa d'esse joven, que me recordo dever ser o filho do ancião que mal agourava a vossa partida do Restello, cumpre que seja maior para indemnisar seu velho pae da sua ausencia.

Não poude o capitão-mór esconder a satisfação que estas palavras do rei lhe causaram, e ajoelhando beijoulhe a mão, dizendo :

-- Por elle e por sua familia, agradeço a vossa alteza.

-- E agora D. Vasco da Gama, mandae que se pague á vossa gente como vos parecer. A vossos officiaes, mestre e pilotos, entregae livremente quanto da India trouxeram, e dar-lhe-heis mais dez arrateis de especiarias, a cada um ...

-- Que suas mulheres repartirão com suas comadres e amigas -- accrescentou D. Vasco da Gama sorrindo.

O heroe, principalmente satisfeito por vêr realisados os seus desejos de elevar os parentes de Ruy da Cunha, buscava embriagar-se com o regosijo geral em que todos se achavam, e assim contrabalançar as dolorosas recordações da morte do irmão querido, Paulo da Gama.

VII

O coração de D. Vasco da Gama

Estamos no fim do anno de 1501.

D. Vasco da Gama, honrado por D. Manuel ao regressar da sua descoberta com a nomeação de almirante do mar da India, e o privilegio de poder tomar o commando das esquadras que, d'accordo com elle, o rei faz partir cada anno, ainda que já lhe esteja capitão-mór designado, é a primeira auctoridade no reino em tudo que á India se refere.

O seu palacio tornou-se, por assim dizer, o quartel general das operações no Oriente, e quando as questões são resolvidos no conselho regio, já ali tiveram antecipadamente discussão e ficaram deliberadas.

Da sua morada fez D. Vasco da Gama uma especie de India em Lisboa : n'ella vivem todos os orientaes que comsigo trouxe, e em uma dependencia do palacio fez que viessem habitar o pae de Ruy e Isabel.

Não se fala pois ali senão das cousas da Asia, não se pensa senão cm cousas do Oriente e no cavalleiro que lá ficou. Taes são os assumptos permanentes das conversações com os indígenas, a quem o almirante fez visitar a Batalha, Alcobaça e outros monumentos do paiz, e que já vão falando portuguez, tendo-se alguns convertido ao christianismo.

Ali se reune diariamente o enxame dos pretendentes de todas as graduações, que ambicionam as nomeações para o serviço na India, desde a capitania nas náos até aos cargos das feitorias, que se projecta estabelecer, nos diversos centros commerciaes d'aquelles reinos.

D. Vasco da Gama espera com anciedade o regresso da armada partida no anno anterior, sob o commando de Pedro Alvares Cabral, e as noticias que Ruy lhe mandará, pois comquanto, para contentar os seus, finja esperai-o na volta d'essas ncíos, está convencido de que o cavalleiro se deixará ainda ficar na India e assim o deseja ; e tal é a forma por que a ideia da progressiva conquista d'aquelles paizes absorve o seu espírito, assim como o do rei e da côrte, que quando pouco depois de Pedro Alvares Cabral ter partido, entrou a barra do Tejo André Gonçalves, um dos mestres que, com Vasco da Gama, tinha ido na descoberta, e que este fizera nomear capitão de um navio da poderosa armada de Cabral, a dar a noticia da descoberta do Brazil que acabava de fazer, pouca sensação produziu este successo, e tão esquecido se pode dizer que estava já quando a armada regressou do Oriente, que não serviu para com justiça serem apreciados os serviços d'este tambem grande e modesto navegador, só porque na viagem da India não fôra assignalado o seu exito.

Todos queriam ver ali realisadas grandes façanhas ; e mais ainda, que as náos voltassem abarrotadas de riquezas -Tal era a espectativa a que dispuzera os espíritos o successo obtido por D. Vasco da Gama, e o balanço dado ás contas de receita e despeza da sua expedição, em que se achára que os carregamentos trazidos cubriam setenta vezes os gastos feitos !

E Pedro Alvares Cabral, que partira com uma poderosa armada de treze navios, com excellentes capitães, como Nicolau Coelho, Sancho de Tovar, Bartholomeu Dias, Simão de Miranda Azevedo, e outros igualmente afamados, todos muito bem pagos, levando grandes artilhamentos, munições de guerra, basto carregamento de coral e fazendas de toda a especie, voltava só com quatro náos, tendo perdido no Oriente muitos dos seus companheiros e alguns dos seus navios.

D. Vasco da Gama era um grande caracter, incapaz de publicamente depreciar os serviços d'um homem como o descobridor do Brazil. Se alguem buscou darlhe valor e fazer justiça á sua expedição, foi por certo o almirante ; mas no fôro intimo da sua consciencia julgou-a um insuccesso, e mais do que tudo lhe pezou no espírito que Pedro Alvares Cabral, dispondo de tamanhos recursos e alvo de segunda offensa de Samorim aos portuguezes, só muito ligeiro desforço tomasse. A idéa de voltar á India, de tirar por suas mãos essa desforra, começou então a dominal-o constantemente. Largas horas passava o almirante encerrado em uma sala toda cheia de recordações da India e da sua descoberta : armas, livros, as grosseiras cartas geographicas do tempo a reler o extenso relatorio que Ruy da Cunha lhe enviára sobre quanto na India e em Melinde era passado desde que se tinham separado, até ao momento de Pedro Alvares Cabral partir para o reino. Havia ali detalhes que o grande descobridor, na sua lealdade de vassalo, só a D. Manuel quizera confiar.

Quiz el-rei conhecer o relataria enviado pelo cavalleiro, e como partisse para Cintra, a repousar uns dias dos negocios da governação, levou D. Vasco da Gama em sua companhia. N'aquelle pequeno compartime nto do paço, contiguo á grande sala dos Cysnes, assentado n'aquella mesma cadeira guarnecida de azulejos e cravada na parede, em que, segundo algumas versões, D. Sebastião se havia de assentar mais tarde, para ouvir a leitura dos immortaes Luziadas, feita por Camões, escutou D. Manuel essa minuciosa descripção de quanto se tinha passado no Oriente, e em especial do que succedera á expedição de Pedro Alvares Cabral.

Ruy da Cunha tivera o cuidado de fazer uma especie de resenha diaria dos acontecimentos, a começar na perda das qutro náos de Bartholomeu Dias, Simão de Pina, Vasco de Athayde e Gaspar de Lemos, logo ao dobrarem o Cabo da Boa Esperança ; depois a estação nos reinos de Melinde e de Cananor, onde tinham sido entregues as cartas de D. Manuel ; os fementidos protestos de paz e amisade do rei de Calecut, com quem o cavalleiro fôra antecipadamente ajustar a rece pção do capitão-mór, as novas traições do Samorim, que rematou por deixar os mouros ataca r a feitoria portugucza, ali estabelecida em virtude de ajustes feitos, sendo morto o feitor Ayres Corna, o bombardeamento da cidade e aprisionamento de náos carregadas, por Alvares Cabral ; depois, a perseguição da sua armada, que tinha evitado a de Calcem, por o capitão-mór condescender com o pedido das guarnições para não arriscar em um combate naval os ricos carregamentos tomados ; e finalmente, a paz e commercio tratados com o reino de Cochim, concluindo Ruy da Cunha por mostrar que cada vez se tornava mais necessaria a sua permanencia no Oriente, motivo por que não regressava com a armada, insistindo antes com D. Vasco da Gama para que voltasse á India.

-- Bem vêdes, senhor ! errado caminho é este que vão tomando os negocios da India. Se os portuguezes começam a preferir as suas riquezas á gloria de a conquistarem, de avassallarem novos reinos ; se as armadas que lá mandaes seguem este preceito de fugir ao inimigo para não arriscarem as prezas feitas, nunca na India viremos a dominar ! E mais força daremos assim ás intrigas dos commerciantes mouros que nos odeiam, e que propalam que só lá vamos com a mira nas riquezas !

D. Manuel, pensativo e concentrado, nada respondeu. A sua consciencia dizia-lhe que era justo quanto o descobridor da India acabava de expôr, e que elle proprio tinha em grande parte concorrido para essa feição, accentuadamente commercial, que se ia dando ás expedições enviadas á India, pois até já se foliava em corvidar os ricos negociantes do reino a armarem á sua custa náos que fossem sustentadas pela fazenda do rei, que então representava as finanças do estado.

-- Máos signaes diviso, senhor ! n'este camin ho que vamos seguindo : um capitão-mór a obedecer ás imposições da sua gente para não combater, e os que para combater lá vão, ambicionando apenas logares rendosos nas feitorias que se criam. Bom é crear feitorias, senhor ! mas depois de ter alevantado fortalezas, porque n'estas é que se ha de sustentar a nossa bandeira !

Com o seu grande tacto politico, esclarecido pelas minuciosas informações de Ruy da Cunha, o almirante como que adivinhava o triste espectaculo que o nosso systema de dominar no Oriente havia de apresentar no futuro: essa ambição desregrada da maioria dos christãos que indispunha os naturaes, e que levou muitos capitães de praças a pedirem aos governadores e vice-reis medidas de rigor contra a sua propria gente ; essa desordem e cubiça que veio a determinar deploraveis conflictos entre os que na India exerciam o mando, como Affonso d'Albuquerque e D. Fran cisco d'Almeida, e os incipientes governantes da côrte.

Mas D. Vasco da Gama ainda n'aquelle tempo esperava que o erro seria emendado, e para isso estava disposto a trabalhar, voltando á India.

O tempo foi correndo. No Oriente estava a armada de João da Nova, que só para o anno voltaria, e nova expedição se preparava, na qual se dizia que Pedro Alvares Cabral iria novamente por capitão-mór.

Quando a esta versão se alludia em casa do Almirante, os olhares do velho Martinho e de sua sobrinha cravavam-se n'elle, como a perguntar-lhe se ainda n'aquella armada não partiria a cumprir a sua promessa de lhes trazer ao reino o desterrado filho e noivo. E o que mais pezava no coração de D. Vasco da Gama, era conhecer a resignação d'ambos, o silencio em que devoravam as suas saudades, não proferindo nunca uma palavra, um pedido a tal respeito, como quem reconhecia que o serviço que Ruy estava prestando ao descobridor da India, era a unica recompensa condigna da muita amizade com que os tratava e dos beneficios que, por sua influencia, tinham recebido, pois Martinho da Cunha fôra contemplado com uma boa tença, e sua sobrin ha admittida como donzella da rain ha, que em breve muito se lhe affeiçoára.

Quando pois se aprestou a nova armada, que levaria por missão principal castigar o Samorim das offensas que fizera a Portugal, deixando matar o feitor Ayres Corrêa, que, segundo os tratados de paz e amizade com elle celebrados, se estabelecera em Calecut, a voz geral pedia que o commando fosse dado ao almirante do mar da India, em cuja boa estrella todos confiavam. Mas D. Vasco da Gama, apezar dos seus desejos secretos, conservava-se na maior reserva para não melindrar Pedro Alvares Cabral.

Um dia, no paço, a rainha D. Leonor, viuva de D. João li, disse ao descobridor da India : -- Se eu governasse, serieis vós o capitão da nova armada que vae partir, porque no mar vos fez Deus tanta mercê. O almirante agradeceu beijando-lhe a mão, e bem comprehendeu que taes palavras traduziam tambem um pedido feito por amor de D. Isabel, que se não attrevia a directamente lh'o apresentar.

D. Manuel, tambem secretamente desejava que o almirante voltasse á India, mas não queria igualmente desconsiderar o descobridor do Brazil. Buscou pois um meio indirecto de o fazer desistir do commando, dividindo a armada, que era de dez náos, em duas capitanias-móres, uma das quaes seria dada a Vicente Sodré, com a missão de ficar na India e conter em respeito o Samorim. Pedro Alvares Cabral era um servidor leal, despido de vaidades, e comprehendendo o desejo do rei em satisfazer a voz publica, que pedia que fosse dado o seu Jogar ao almirante, offereceu a sua demissão.

Logo que isto se deu, e D. Vasco da Gama o não podia já melindrar, foi ter com el-rei, e lembrando-lhe o privilegio que lhe concedera de poder tomar o commando de qualquer frota que partisse para o Oriente, declarou querer assumir o d'aquella, que se aprestava sob as suas indicações, e que tinha por fim castigar o rei de Calecut.

Quando isto constou, o regosijo foi geral, e d'ali a pouco o almirante do mar da India deixava o Tejo com a poderosa armada composta não só das dez náos já mencionadas, mas augmentada com mais cinco caravellas, ficando ainda a aprestarem-se em Lisboa outras cinco náos, que, sob o commando de Estevão da Gama, primo do almirante, dentro em pouco se lhe iriam reunir.

Da possante armada com que o descobridor da India se ia fazer novamente ao mar, era, por assim dizer, o seu immediato, Vicente Sodré, seu tio, que ia na náo capitania S. Jeronymo.

Com estes grandes elementos guerreiros, e gente de sua confiança, partiu o almirante do mar da India para os seus dominios a castigar o traiçoeiro rei de Callecut. Oitocentos homens de combate guarneciam as náos e caravellas.

VIII

O almirante do mar da India derrota a esquadra do Samorim

Partiu a armada de Lisboa em dia de Nossa Senhora de Março, sendo como de costume celebrada antes a missa, vindo el-rei despedir-se com toda a côrte do almirante.

D. Vasco da Gama, dirigindo-se pela segunda vez á India, ia disposto a seguir as indicações de Ruy da Cunha, que lhe dizia ser necessario assentar definitivamente no Oriente o prestigio do nome portuguez com a submissão corfipleta do Samorim, e d'alguns outros potentados mais ou menos claramente hostis aos portuguezes.

Aportou primeiro a grande armada á Guiné, e fallecendo ali de febres Fernão d' Athouguia, capitão da náo Leitoa, deu o almirante o commando d'este grande navio a Pero de Aguiar, e para a náo que deixava nomeou Pero de Mendonça, fidalgo da sua confiança.

Como succedera a Pedro Alvares Cabral, o tempo, que ao sairem nova mente ao mar encontraram, levou-os ás costas do Brazil, e d'ali correram para o Cabo de Santo Agostinho, e d'este para o da Boa Esperança.

Batidos pela tempestade n'estas paragens, foram os navios dispersos, ficando sómente com o almirante duas náos e tres caravellas. Seguindo para Moçambique, que D. Vasco da Gama tinha dado aos seus capitães como ponto de reunião no caso de se apartarem, encontrou mais uma náo e duas navetas. Do resto da armada, nas proximidades de Sofala, naufragou a náo de Pero de Mendonça.

Reunida novamente a esquadra, partiu o almirante de Moçambique, dirigindo-se a Quiloa, onde começou a dar execução ao energico plano que levava, fazendo tributaria a Portugal o seu rei, em castigo das traições que commettera.

De Quiloa seguiu para Melinde, onde deu fundo em 18 de agosto de 1502. Já ali constava, por embarcações indigenas partidas d'aquelle reino, a vinda da grande armada portugueza trazendo por chefe o descobridor da lndia, ha vendo por isso festiva recepção preparada pelo rei de Melinde, seu grande amigo.

Batia o coração de D. Vasco da Gama ao approximar-se da sua náo o batel empavezado em que vinha o rei descançando sobre os ricos coxins e tapetes, que pendiam da embarcação e mergulhavam no mar, não vendo ao seu lado Ruy da Cunha. A morte, que facilmente victimava os europeus n'aquelles dias doentios, teria cortado ao alvorecer a carreira do corajoso cavalleiro ? Seria essa a triste nova que elle ia receber do rei, e o luto, em vez da alegria, estar lhe-ia reser vado para levar ao pae e á noiva do seu dedicado amigo ?

Mas dentro em breve o seu espirito socegou, e mais augmentou o seu reconhecimento para com o joven cavalleiro. Ruy da Cunha não vinha ali, porque não se achava n'aquelle momento em Melinde. Proseguindo na sua verdadeira tarefa de missionario do prestigio de Portugal no Oriente, partira para o reino de Coulão, o mais rico de todos os da India na producção de especiarias, a decidir a rainha a assentar paz e commercio com D. Manuel, deixando ali estabelecer feitoria.

Exultou o almirante com estas noticias, e depois de se demorar alguns dias em Melinde, assistindo aos festejos com que o rei celebrou a vinda dos seus alliados, e com elle conferenciar largamente sobre os negocios da India, partiu dirigindo-se a Dabul e Gôa, que nas suas informações Ruy da Cunha indicára como devendo ser no futuro a séde mais conveniente para o estabelecimento dos portuguezes, e cuja conquista o almirante quizera tentar, se antes não julgasse necessario bater o Samorim. No dia immediato á sua partida de Melinde, teve D. Vasco da Gama a satisfação de se encontrar com a armada do commando do seu parente, Estevão da Gama, que em Lisboa ficára a apromptar, sendo a juncção das duas armadas saudada com salvas d'artilheria e vivas soltados pelas tripulações, ao som das trombetas e atabales.

Seguiu a esquadra approximando-se de terra nas alturas de Dabul, e entrando em o rio a que os naturaes chamavam Onor, atacou Estevão da Gama, por ordem do almirante, com uma esquadrilha de bateis, o corsario indio Timoja, pirata hostil aos portuguezes, mas que a Portugal veio a servir mais tarde. Conhecida esta escaramuça em Baticalá, onde a esquadra se dispunha a fundear, pretenderam os mouros impedil-a de o fazer, recebendo-a com descargas de bombardinhas de uma bateria improvisada sobre um morro, que ao rio ficava sobranceiro. Mas Estevão da Gama, com as pequenas embarcações, forçou a entrada do rio, vindo alguns mouros ao seu encontro a pedir paz.

Levados a bordo da náo do almirante lhe reiteráram o pedido, a que accedeu, depois de lhes ter feito sentir o errado caminho que haviam seguido recebendo os portuguezes hostilmente.

A caminho novamente para Cananor, a esquadra, tendo sido obrigada a fundear na enseada de Morabia, para reparar um desastre occorrido a náo Esmeralda, de Pero Affonso d'Aguiar, cujo mastro grande caiu com o tempo, vindo as lanças que estavam na gavea matar alguns homens, encontraram ali muitas náos de commercio de Calecut, que o almirante aprisionou mandando-as destruir.

Tão valiosos eram os seus carregamentos, que muitos dos capitães portuguezes ousaram imitar para com D. Vasco da Gama o proceder dos mestres e pilotos de Pedro Alvares Cabral, vindo pedir-lhe que attendesse á supplica do rico mouro que as commandava, e que pelo seu resgate e das fazendas offerecia carregar de pimenta todos os navios da armada.

-- Senhores e amigos! - lhes respondeu o almirante - bem vejo o que dizeis, mas todo o que cubiça a fazenda do seu inimigo e não a sua morte, erra contra a sua honra e vida, porque o que o seu inimigo poupa ás mãos lhe morre. Calecut muito nos tem offendido e merece que lhe façàmos todo mal ; se, com o engodo dos resgates soltassemos estes mouros, ficaríamos infamados por todas estas partes, por ven dermos a honra por fazendas, e Calecut sem temor cada dia nos offenderia mais. Portanto, a quanto fôr de Calecut farei todo o mal que poder !

E ás náos inimigas, abarrotadas de preciosas fazenda, mandou lançar fogo, seguindo para Cananor depois de ter exercido esta represália.

Recebeu o rei de Cananor solemnemente os portuguezes, com grandes festas, fazendo-lhe o almirante entrega dos presentes e da carta de D. Manuel, firmando-se novas e mais vastas relações commerciaes entre os dois reinos. Aqui houve D. Vasco da Gama noticia da approximação da armada de Calecut, e apezar das instancias do rei, pedindo-lhe que evitasse de se encontrar com ella, reuniu logo os capitães, para assentar no plano da guerra que estava disposto a fazer no mar a todos os potentados do Oriente, com excepção de Cananor, Cochim, Melinde e Coulão, ficando na espectativa quanto a este ultimo reino até que Ruy da Cunha d'ali regressasse, e podesse saber se assentara paz e commercio com a rainha.

Mas a noticia das represálias exercidas já em Onor e Baticalá, fizera com que de Calecut fugissem todos os navios de guerra e de commercio, e mais uma vez o Samorim pretendeu, com palliativos e protestos de amizade, illudir o almirante, a quem enviou como embaixador um brahmane que, para chegar a bordo a salvo, se disfarçou em frade.

Conhecia já Vasco da Gama este systema caviloso do rei de Calecut, a quem estava disposto a inflingir severa lição, e não se deteve a dar ouvidos aos seus pretendidos arrependimentos, mandando prender o seu enviado. Não vendo regressar o supposto monge, novo mensageiro enviou o Sarnorim, com tentadoras promessas de largos resgates por todos os seus subditos aprisionados. A resposta do almirante, a quem a lembrança da morte dos portuguezes da feitoria, e em especial da do proprio feitor Ayres Correa, pareceu mais se avivar ainda com este empenho do Samorim em garantir as vidas dos seus subditos, foi ordenar que todas as náos se approximassem o mais que fosse passi vei da cidade e a bombardeassem. Destruida em grande parte a cidade, novamente saiu o almirante para o mar, por constar que se approximavam navios de Calecut, e encontrando varias náos e zambucos, aprisionou-os, e parte das tripulações, que depois de castigadas enviou ao rei com o mensageiro que lhe mandára.

Com os navios tomados seguiu para Cananor por sua ordem Vicente Sodré, a quem tinha nomeado para o substituir na capitania-mór quando regressasse a Portugal, e partiu com o resto da armada para Cochim, onde esperava encontrar finalmente Ruy da Cunha e aguardar o ensejo favoravel para atacar a esquadra do Samorim.

O rei do Cochim era dos alliados fieis de Portugal. Recebeu pois com todas as demonstrações de amisade e respeito o representante de D. Manuel, que bem reconheceu nas praticas que com elle teve, como seria decisiva para o prestigio dos portuguezes a completa derrota do rei de Calecut, cujas vinganças os demais reis da India temiam.

Se o fortalecimento do poder lusitano no Oriente muito preoccupava o almirante, no respeitante á submissão dos seus potentados, nem por isso cuidava menos do estreitamen todas relações commerciaes, por saber que d'ali vinham os resultados praticos e as vantagens economicas a que D. Manuel e todos no reino visavam, encarando os negocios da India.

D. Vasco da Gama conhecia o seu paiz e a côrte, avaliava bem o seu tempo e os homens que então influíam no reino, e não queria que as suas glorias, como as de Pedro Alvares Cabral, fossem esquecidas, ou menos consideradas, só porque d'ellas não resultava a satisfação da cubiça com que no reino se aquilatavam os successos do Oriente.

Exultou pois ao receber em Cochim a mensagem da rainha de Coulão, offerecendo assentar paz e commercio com Portugal, em virtude da habil propaganda feita junto d'ella por Ruy da Cunha, mostrando-lhe as vantagens que aos orientaes resultariam de trocarem os productos da India pelas fazendas e moedas dos portuguezes. Junta com a mensagem da rainha vinha uma cana do cavalleiro, annunciando ao almirante que o viria abraçar logo que o tratado fosse concluído, e na qual o prevenia de que, sendo ella suzerana do rei de Cochim, convinha mostrar ostensivamente difficuldade em com ella assen tar paz e commercio, sem que para isso o rei désse consentimento. Assim fez o almirante, e, como habil diplomata que era, negociou por fórma que, realisando o tratado com a rainha de Coulão, simulou fazei-o por comprazer com o soberano de Cochim de quem era parenta, quando os íntimos desejos d'este eram antes de reservar só para si o exclusivo dos tratos commerciaes com os portuguezes no seu reino e estados suzeranos.

Acabava o almirante esta negociação, quando em grande segredo foi prevenido pelo rei de Cochim de que, segundo os seus espiões o informavam, o rei de Calecut, para tirar desforra do bombardeamento da cidade, reforçára a sua armada com grande numero de náos poderosas, zambucos, fustas a remos, e muita artilheria, tendo assim reunido a maior esquadra que até então se vira n'aquelles mares, e que dividida em dois corpos, sob o commando dos seus melhores capitães, o Cogecacemo e o Cojambar, para ali se dirigia a atacar os portuguezes.

Regosijou-se o almirante com a noticia, do que ficou admirado o rei de Cochim, que esperava vel-o aterrado com a imminencia da derrota.

-- Pela vida d'el-rei D. Manuel, meu irmão- insistiu elle com o descobridor da India-vos peço que partaes, e eviteis de vos encontrar com os de Calecut. Carregados como estão vossos navios, não podereis combater com vantagem. Attentae que mais de sessenta são os navios que vos procuram, tão bem artilhados como os vossos e commandados por grandes capitães, como são o Cojecacemo, e ainda mais o Cojambar, que, segundo me informam os meus espias, veio a toda a pressa de Meca para offerecer ao rei de Calecut o seu serviço, fazendo-se forte de que vos aprisionará e vos levará em ferros ao Samorim.

-- Senhor ! -- respondeu-lhe D. Vasco da Gama -- muito vos agradeço o interesse que por nós tomaes mas esta armada estava para partir sob o commando de Pedro Alvares Cabral, a quem o Samorim offendeu, e eu não hesitei em tomar o seu Jogar para castigar essa offensa. Confio em Deus que para bater a armada de Calecut, me bastarão essas caravellas que ahi vêdes, e por sua honra mais estimará el-rei D. Manuel que eu assim cumpra, do que se lhe levasse a salvamento as náos, ainda que fossem carregadas d'ouro, quanto mais de especiarias e drogas. E eu antes morrerei cem vezes, do que faltarei em cumprir o que devo a el-rei meu senhor !

-- Eu vos dei o meu parecer, almirante ! fazei agora vós o que julgaes ser vossa obrigação.

-- Vou sair para o mar -- continuou D. Vasco da Gama erguendo-se e despedindo-se do rei-para que o vosso porto não soffra as consequencias d'uma batalha na val ; mandarei chamar a Cananor Vicente Sodré, para que venha com suas náos reunir-se á minha armada, e juntos buscaremos a de Calecut, se antes não tiver vindo a mim. E se Deus nos fizer mercê da victotoria, esta certo senhor ! que por estes tempos mais chegados, nada tereis que receiar das vinganças do Samorim. Demais, Vicente Sodré cá ficará n'estes mares com uma armada, para vos sustentar e defender.

D'ahi a pouco, a artilheria das náos troava saudando ao levantar ferro o rei de Cochim, que poude vêr da beira-mar, onde viera despedir-se do almirante, a sua figura magestosa que do alto castello de pôpa da náo Garrida, lhe fazia um ultimo adeus.

Desferraram-se os largos pannos deixando ver a cruz de Christo vermelha, e os navios obedeceram ás manobras mandadas pelos capitães, aproando ao mar. Á sua frente, galgando por sobre as ondas, coberta com quanto panno tinha, adiantava-se a mais veleira da caravellas da armada. Era o aviso do almirante que partia a chamar o seu lagar-tenente, Vicente Sodré.

No coração de D. Vasco da Gama, replecto de alegria por emfim se ir medir com a esquadra do Samorim, só havia um pezar : não ter ainda chegado Ruy da Cunha, não poder cumprir a missão que se impuzera de o fazer regressar a Portugal. Prevendo a hypothese de encontrar a morte na lucta que se ia travar, escreveu uma carta em que lhe dava quasi ordem de o fazer, e que lhe seria entregue se viesse a faltar.

Tão rapida andou a caravella portugueza, que, passados seis dias, as forças navaes de Vicente Sodré reuniam-se ás do almirante ; e este, que ficára pai rando nas alturas de Cochim, partiu então a buscar a esquadra do Samorim, depois de ter celebrado conselho com os capitães e assentado o plano do combate.

Vicente Sodré, com algumas caravellas e navios, foi encarregado de correr ao longo da costa destruindo quantas embarcações de Calecut encontrasse ; mais ao mar, navegavam o resto dos navios da armada e bastantes náos.

Assim correram alguns dias. Certa manhã, finalmente, o horisonte cobriu-se de vélas, parecendo um bando de aves que voassem rentes com o mar, tão numerosa era a esquadra de Calecut.

Duas leguas, pelo menos, separavam aind a as armadas inimigas, e emquanto as transpoz ordenou o almirante as ultimas disposições do ataque, da náo de Pedro Raphael em que se achava.

Foi-se encurta ndo cad a vez mais essa distancia, e dentro em breve começo u a ouvir-se o alarido feito pelos mouros, regosijando-se antecipadamente com a victoria, que tinham por certa, tão superior em numero era a sua armada aos poucos navios portuguezes. Em dois esquadrões navegava mas forças do rei de Calecut, e no que mais se adiantava, commandado pelo audaz Cojambar, havia mais de cem navios de diversas lotações.

N'aquelle momento solemne em que estava por instantes o embate dos inimigos, e em que todos os olhos e attenções se fixavam nos movimentos dos navios da mourama, um tiro soou no mar, pela pôpa das náos portuguezas, logo seguido por outros, e todos voltando se distinguiram com espanto, a pouca distancia já, uma embarcação indígena que, salvando, arvorava a bandeira das quinas, navegando para a náo do almirante. D'ali a pouco, D. Vasco da Gama exultava de alegria, distinguindo á prôa da embarcação a figura d' um cavalleiro coberto de reluzente armadura. Era Ruy da Cunha que, chegado a Cochim, se não contivera, querendo partilhar com os seus a sorte da lucta em que iam entrar contra a armada em Samorim.

-- Deus vos traga, Ruy da Cunha ! -- lhe disse o almirante apertando-o nos braços, sem tirar a vista dos primeiros navios inimigos que vinham chegando ao alcance das peças : -- Vou receber-vos como se fosseis el-rei D. Manuel, nosso senhor ! -- e voltando-se para o capitão da náo : -- Por S. Thiago e S. Jorge ! aos deCalecut, Pero d'Aguiar ! Mandae descarregar toda a artilheria !

O capitão deu a ordem. A Garrida estremeceu sobre as ondas, um estampido medonho echoou pelo mar, e a náo almirante envolvendo-se em fumo, enviou uma descarga geral por cada bordo ás duas linhas inimigas, que navegavam pretendendo collocar a armada portugueza entre dois fogos.

Então, como se só esperassem o signal do almirante, rompeu o fogo em todos os navios, varrendo o mar do enxame de fustas e paráos, que navegavam á frente das náos capitainas dos mouros. Nos navios portuguezes, as descargas succediam-se constantemente, pois o almirante, para mais rapidez, fizera metter as cargas inteiras das peças em saccos.

Assim que a náo do Cojambar chegou á altura da Garrida, o almirante, Pero Raphael e Ruy da Cunha, tendo todos o mesmo pensamento, correram ás peças mais proximas fazendo elles proprios as pontarias. Troaram os canhões, e logo a seguir romperam gritos de alegria a bordo, e vivas da tripulação, vendo cair o mastro da náo inimiga, arrombando-lhe a amurada.

-- Deus seja louvado! -- exclamou o almirante -- que mais lhe custará agora a manobrar !

E logo a seguir, Pero Raphael mandando nova bandada geral dos dois bordos da Garrida, apanhava a náo do Cojambar em cheio pela pôpa, arrombando-a extraordinariamente, e matando-lhe muita gente, percebendo-se grande confusão a seu bordo.

Mas o damno causado d'ali a pouco aos mouros pelos navios qne seguiam a Garrida, á medida que as linhas dos navios inimigos avançavam, era geral, e o mar via-se já coalhado de destroços a que se agarravam os naufragas das embarcações que se iam emborcando. Depois, os navios que seguiam estas, topando nos que sossobravam, detinham-se, embaraçavam-se nos seus destroços, juntando-se, confundindo-se, e offerecendo assim excellentes alvos ás balas sem cessar despejadas pelos navios christãos, que levantavam as vélas nos palancos e descarregavam toda a artilheria. O vento, refrescando, ia arrojando para o mar os navios que mal podiam navegar. Vicente Sodré, que se approximára com a sua divisão, largou as vélas da sua náo, correndo em seguimento das caravellas para as sustentar na arremettida que iam fazer contra o segundo esquadrão de Calecut, commandado pelo Cojecacemo. Destemido, embora visse como o seu companheiro fôra recebido, o capitão mouro caminhava resoluto para os navios portuguezes, pretendendo seguir nova tactica e 11balroal-os, por vêr como no combate a distancia a nossa artilheria era superior. Mas Vicente Sodré, não se desviando uma linha do rumo que levava, e seguido pelos na vios de Ruy Lourenço Ravasco e de Vasco Fernandes Tinoco, endireitou com o navio almirante mouro, e despejando-lhe a artilheria, em breve a desconcertaram completamente, não obstante os damnos que tambem soffreram, principalmente o navio de Tinoco.

As vélas dos navios portuguezes, que manobravam habilmente entre as duas linhas, confusas já, das divisões inimigas, viam-se cravados de fréchas arremessadas pelos mou ros, tão proximos d'elles passavam para lhe despejar as bandadas, cujo effeito, assim a tão curta distancia, era assombroso ! Então, á proporção que a desordem se ia declarando nas forças inimigas, o almirante ordenava ás caravellas, que mais facilmente manobravam, para se metterem por entre a esquadra de Calecut, e, disparando a artilheria de ambos os bordos, fazerem os tiros grossos ao lume d'agua, para metter os navios no fundo, emquanto com os berços e os falcões lhes varressem o convez, dizimando as tripulações.

E as caravellas, executando estas ordens, percorriam a linha dos navios inimigos, e chegando ao seu extremo, em novo bordo repetiam o ataque, muito arriscado para os soldados portuguezes, pela proximidade a que tinham de passar dos mouros, que os alcançavam com as suas fréchas.

A lucta, que começára de madrugada, continuava encarniçadamente, e o sol já ia indicando o meio dia. O vento, começando então a escassear, e difficultando as manobras dos navios portuguezes, mas impedindo tambem a deserção e fuga do combate que muitas das náos e embarcações de Calecut começavam a operar, resolveu o almirante a determinar a completa derrota do inimigo, ordenando a abordagem. Todos os navios da armada, por ordem sua, lançaram ao mar os seus bateis, guarnecidos cada um com vinte homens, e armados de falcões e berços, com ordem de se approximarem das náos inimigas, fazendo-lhes descargas incessantes, até chegarem junto d'ellas e as abordarem, protegidos n'este ataque pela artilheria grossa das náos christás, que não para va de fazer fogo sobre os navios inimigos. Logo que os bateis os abordavam, os bombardeiros, abandonando a artilheria, entravam n'elles, e depois de rechaçarem os seus defensores á arma branca, com marrões de que iam munidos arrombavam os costadas dos navios, fazendo-os afundar, e passando de novo ás suas embarcaçõ es varejavam, com a artilheria miuda e atirando-lhes panellas de fogo, os mouros que se lançavam á agua, para se não afogarem dentro dos navios que se iam submergindo.

Então, declarou-se a debandada por parte dos navios da armada vencida que ainda podiam navegar. Muitos tinham desapparecido no abysmo das ondas, muitos tambem, inteiramente arruinados, e sem tripulações, discorriam ao sabor do mar, já em completa calmaria. Estes permittiu o almirante que fossem postos a saque, e valiosos despojos foram recolhidos pelos vencedores.

Dentro em pouco, levantando novamente a viração do mar, mandou o almirante fazer o signal de reunir, içando a bandeira na quadra, disparando um tiro de berço, e seguindo as náos, navios e caravellas as suas ordens, toda a armada portugueza, dando graças a Deus pela victoria, se fez na volta de Cananor.

Da sua náo, Vicente Sodré, empunhando o portavoz, bradou ao almirante :

-- Não é bem que passemos por Calecut sem lhe mostrarmos alguma cousa das bodas que ficam feitas ; dae-me licença para voltar aos mouros, a tomar algum signal que leve a Calecut.

Concedida a licença pedida, o logar-tenente do almirante mandou largar todo o panno aos navios da sua divisão, e, perseguindo os mais atrazados da esquadra fugitiva, aprisionou algumas náos e zambucos, que trouxeram a reboque. Quando os vencedores chegaram ás alturas de Calecut, lançaram fogo aos navios aprisionados, e, largando-os a viração do mar impelliu para as praias aguelles destroços em chammas.

Da terra, a mourama , em confusão e grita espantosa, pretendia alcançar os navios portuguezes com a sua artilheria. Mandou por isso o almirante que a esquadra se approximasse correndo a costa, que cm bre ve foi varrida pelo fogo dos seus na vios. E assim rema tou D. Vasco da Gama a grande batalha naval em que destruiu completamente a maior armada que o rei de Calecut tinha até ali reunido, tirando a desforra das traições do Samorim, e cumprindo a missão que se impuzera ao tomar o logar de Pedro Alvares Cabral.

IX

O voto do Cavalleiro de Christo

A noticia da victoria alcançada pela armada christã sobre a do mais poderoso rei indiano correu logo por todo o Industão, augmentando o prestigio do nome portuguez, e firmando a auctoridade da bandeira das Quinas n'aquellas regiões.

Esta circumstancia, que assegurava por algum tempo a quietação do falso rei de Calecut, nas suas constantes intrigas e traiçoeiros attentados contra o domínio que Portugal pretendia estabelecer no Oriente, induziu o almirante a voltar quanto antes ao reino, porque não eram por então necessarios nos mares da India tantos navios, e porque, como era natural, ardia no desejo de informar D. Manuel da fórma completa porque vingára o morticínio dos portuguezes da feitoria de Calecut e as demais offensas do Samorim. Por estes mesmos princípios, contava D. Vasco da Gama, que, partindo quanto antes, lhe seria mais facil realisar o segundo intento com que viera á India, isto é, fazer regressar a Lisboa Ruy da Cunha, que a família anciosamente esperava. Mas, sempre que pensava em se explicar com elle claramente a tal respeito, tremia e hesitava o almirante, mais emocionado do que se achára ao entrar em lucta com a esquadra do Samorim, porque todas as vezes que indirectamente fazia allusão ao proposito em que mostrava achar-se de, na chegada ao reino, o apresentar a D. Manuel como o mais dedicado dos seu servidores na India, o cavalleiro mudava logo de con versação, e pela sua parte, sem o dizer claramente, procurava insinuar que não era ainda chegado o momento de regressar a Portugal, porque muito havia que fazer no Oriente. O almirante fugia então a uma explicação clara com elle, perdendo-se o seu espírito em hesitações e receios a tal respeito.

Ruy da Cunha creára-se uma situação especial entre todos os portuguezes que n'aquelles paizes serviam a patria. O seu primeiro sacrificio ficando só em Melinde, quando a volta dos seus companheiros ao reino era bastante problematica, e por isso mais problematica ainda a vinda de novas armadas, aquella dedicação que lhe podia ter occasionado um eterno desterro da patria e da familia ; o prestigio que adquirira junto do rei de Melinde e dos outros monarchas do Industão ; o valor dos serviços que por isso prestára ; o desinteresse com que, sendo o primeiro nos trabalhos e nos perigos, se conservava afastado de todas as intrigas, com que os melhores cavalleiros pretend iam obter as mais rendosas collocações, as capitanias e as feitorias ; aquella como que independencia em que por isso estava quanto á auctoridade àos superiores, e mais do que tudo ainda, a especie de paixão que contrahira pelos negocios e pelo domínio do Oriente, faziam hesitar D. Vasco da Gama quando pensava em impôr-lhe como ordem que o acompanhasse na volta a Portugal.

Chegou, porém, o momento em que foi necessaria uma explicação a tal respeito. Estava por dias a partida do almirante, e tudo se achava disposto para a armada levantar ferro de Cochim, depois das grandes festas com que o rei celebrára a victoria dos portuguezes.

D. Vasco da Gama tinha discutido largamente com Ruy da Cun ha as cousas da India, e assentado, segundo o seu parecer, em tudo que devia deixar ordenado e disposto. Era uma forma de lhe mostrar que podia acompanhal-o ao reino, sem que na India se deixasse de ir procedendo segundo o que elle pensava ser mais util para o fortalecimento da administração portugueza. Só depois d'isso o almirante convocára o conselho dos seus capitães, para com elles assentar o que tinha planeado.

Uma das disposições, indicadas pelo cavalleiro, era que, pedida auctorisação ao rei de Cochim, ali se guardasse uma parte da artilheria dos navios, não só para menos carregados voltarem ao reino, mas para ser como que o inicio de um arsenal a que facilmente se recorresse, reforçando as armadas com navios indígenas devidamente artilhados, no caso de inesperadamente ser necessario tornar a guerrear o Samorim. Obtida a licença do rei de Cochim, tudo se dispoz para o desembarque da artilheria, que se devia realisar sem que a população da cidade désse por isso, e o almirante, por indicação de Ruy da Cunha, cujo principio era que se devia mostrar a maior confiança nos orientaes, mas desconfiar sempre d'elles, determinára que as peças fossem enterradas em um campo que se tinha pedido a el-rei para fechar com um muro, formando-se ali um recinto em que pernoitariam os portuguezes, e cuja porta o rei mandaria todas as noites fechar guardando a chave.

Accedeu o monarcha, lisongeado com a idéa de que os portuguezes se confiavam á sua guarda, emquanto na realidade se obtinha o resultado de ficarem guardando a sua artilheria, o seu arsenal em embryão.

O desembarque das peças foi determinado para se fazer alta noite, e entretanto procedia-se ao arrolamento da gente que ficaria em Cochim, destinada ás diversas feitorias da India. Ao anoitecer, os escrivães vieram trazer ao almirante os roes da gente que se tinha voluntariamente arrolado. Lançou-lhes a vista, e não poude dissimular a impressão que recebeu vendo na primeira linha o nome do cavalleiro.

-- Como se arrolou Ruy da Cunha, se ainda hoje não veio a bordo, pois anda por minha ordem a correr os navios escolhendo a artilheria que ha de ficar em terra ?-perguntou o almirante vendo inutilisado o meio que empregára para desviar o seu amigo na occasião do arrolamento.

-- Senhor !-respondeu o escrivão-de ha muito tinhamos ordem sua para o pôr na cabeça do rol.

-- Mas onde pretende o cavalleiro ficar, na feitoria, ou a bordo d'algum navio ?

-- Não o disse, almirante, mas apenas que vós lhe destinareis o serviço que melhor vos parecer.

-- Bem está-respondeu D. Vasco da Gama despedindo os escrivães.

Noite velha, como estava ordenado, Ruy da Cunha, tendo ás suas ordens muitos bombardeiros e marinheiros, dirigia na praia o desembarque da artilheria. Quarenta e duas peças, perto de outros tantos falcões e ainda maior numero de berços, assim como muitos reparos e pelouros, foram carregados para o alto da povoação, e ali enterrados na grande valia aberta para esse fim. Ia adiantado o trabalho, quando, por entre a escuridão, se distinguiu um grupo de cavalleiros que chegava, e logo um adiantando-se chamou por Ruy da Cunha.

-- Eis-me aqui, almirante -- respondeu o cavalleiro reconhecendo a voz de D. Vasco da Gama.

-- Venho aqui procurar-vos, Ruy da Cunha ! não para observar o serviço que estaes fazendo, mas para vos poder falar sem testemunhas, que muito apensionado me vejo a bordo, pois que amanhã pela tarde com o favor de Deus partiremos ...

-- E que me quereis senhor ? Tendes novas ordens a dar-me ? -- perguntou o cavalleiro, dissimulando, pois demasiado suspeitava o que ali trazia o almirante.

-- Ordens não tenho a dar-vos, mas sim um pedido a fazer-vos -- e como se tivesse receio das objecções do seu amigo concluiu logo -- tenho a pedir-vos que desistaes do arrolamento, e que volteis comigo ao remo.

-- É impossivel senhor !

-- Impossível ?! Mas não sabeis Ruy da Cunha, que eu parti de Portugal promettendo a el-rei D. Manuel que venceria o Samorim, e a vosso pae que vos levaria comigo ? Quereis obrigar-me a faltar ao amigo, a mim que não faltei ao rei ?

-- Meu pae é bom portuguez, senhor ! e mais contente ficará quando souber que vos não acompanhei, para melhor cumprir o serviço d'el-rei.

-- Por Deus ! attendei cavalleiro, que multo se deve ao serviço d'el-rei, mas que alguma cousa se deve tambem á familia ! Bastante tendes vós servido D. Manuel ; é justo que descanceis um pouco junto de vossos parentes ; não vos falta vida larga, nem faltarão armadas em que volteis á India.

-- Como me não faltarão um dia para voltar a Portugal, quando o puder fazer ...

-- E o que vos impede agora ? -- perguntou D. Vasco da Gama, em cujo espírito acordou uma suspeita, que já ás vezes lhe occorrera, vendo o enthusiasmo com que Ruy falava da vida do Oriente, que parecia ter-se tornado para elle uma necessidade -- acaso alguma beldade da côrte da rainha de Coulão, d'essas que me tendes pintado com tão lindas cores, vos terá feito esquecer a fé promettida a vossa prima ?

-- Estae tranquillo senhor ! que tal peccado me não peza na consciencia. Antes por não faltar á minha fé, aqui tenho de ficar ...

-- Como assim ? -- interrogou o almirante surprezo.

-- Tereis por acaso feito algum voto, cavalleiro ?

-- Acertastes senhor ! -- respondeu Ruy da Cunha enleiado, como quem confessa uma culpa.

-- Pobre Martinho ! pobre Isabel ! como vos hei de eu consolar ! -- proferiu o almirante, fallando comsigo mesmo, como quem reconhecia ser-lhe impossível arrancar o seu amigo d'aquelles paizes.

Desde que se tratava d'um compromisso da fé, tomado pelo cavalleiro, não era elle almirante, tambem cavalleiro, que podia fazer-lhe já a menor instancia.

-- Contae-me o que fizestes, Ruy ; dizei-me como e porque vos obrigastes, meu amigo ! -- continuou D. Vasco da Gama tristemente, como quem deplora uma resolução, que não pensa já contrariar. E dando-lhe o braço, afastou-se mais com elle do sitio em que os bombardeiros e marinheiros trabalhavam.

No silencio da noite, apenas se ouvia o ruído das pás de ferro enchendo-se de terra, e a terra cahindo na cova em que ficava sepultado o arsenal christão, e ao longe, o bramir do mar, desenrolando as suas ondas pelo arcai da costa. A certa distancia o almirante parou, dizendo :

-- Falae-me agora Ruy, mas como se em vez do vosso capitão e do vosso amigo, eu fôra o vosso confessor ...

-- Assim o farei, senhor ! e vós que descobristes a India, não me ficareis por certo querendo mal ... Sentis esta bulha da terra que vae cobrindo os canhões portuguezes ? Pois bem : essa terra parece cahir-me pezadamente sobre o coração ; atormenta-me, como se fosse o cadaver d'um amigo que ali se estivesse sepultando ... E quereis saber porquê ? Porque apesar da vossa grande descoberta, apesar das vossas grandes victorias, ali está a realidade do que é ainda o domínio portuguez na India : canhões que se escondem n'uma cova, porque não ha fortalezas em que os assestemos ...

Fez-se um silencio apoz estas palavras do cavalleiro.

O almirante nada respondeu, e bem comprehendeu o seu interlocutor que elle reconhecia a verdade do que lhe dizia ; por isso proseguiu :

-- Vós sois o descobridor da India, e foi tambem uma especie de voto, que vos deu animo e perseverança para não desanimar na difficil empreza . Se, como eu, tivesseis tido occasião de estudar que grande imperio ahi se está offerecendo a quem souber conquistai-o ; se soubesseis como se me confrange o coração, ao pensar n'estas nossas mesquinhas feitorias, concedidas pelo favor dos reis indús, quando com a espada podíamos talhar largo domínio e erguer baluartes, quantos votos com o meu não tereis feito, quantas vezes não terieis jurado só voltar a Portugal, no dia em que el-rei nosso senhor tiver realmente o domínio da lndia, como dizem seus titulas, e aqui não fôr, como na verdade é -- concluiu em voz cada vez mais baixa, approximando-se do almirante e falando-lhe quasi ao ouvido -- um hospede supportado, mas não um soberano temido !

-- O que ambicionaes então, cavalleiro ?

-- Para além, almirante ! -- proseguiu Ruy, estendendo o braço na direcção do norte -- quasi a meio d'essà costa que ámanhã ides correr n avegando para Portugal, existe Gôa, em poder d'um antigo pirata, que já pretendeu atacar-nos. Ali está o reino que um dia deveremos conquistar, por que d'ali facilmente se avassalará o interior, em que ha localidades como Damão e Diu, que devem tambem cair em nosso poder ! Pela sua situação central entre os reinos de Cochim, Calecut e Cananor, e o mais distante nosso fiel alliado reino de Melinde, Gôa é o ponto escolhido decerto pelo destino para um dia ser a séde do dominio portuguez no Oriente. Se vós não tivesseis trazido o encargo de castigar o Samorim, eu ter-vos-hia pedido que fosseis conquistar o reino do mouro Sabayo, que, deveis recordar-vos, na vossa primeira viagem pensou em tomar-vos as náos. Voltae á India com esse proposito, D. Vasco da Gama ! vinde conquistar Gôa, e então poderei regressar ao reino comvosco, tendo cumprido o meu voto de só ali tornar quando esse reino fôr portuguez !

Começava a alvorecer, e o almirante e Ruy distinguiram um vulto que para ali caminhava. Era um bombardeiro que vinha participar-lhes que a cova estava tapada.

-- Voltemos a bordo, Ruy da Cunha ! Eu tenho de partir, e vós tendes que ficar ; bem o comprehendo agora. Se os meus navios não estivessem tão cançados do mar e do combate com a armada de Calecut, se não tivesse já, por ajuste com o rei de Cochim, desembarcado tanta artilheria, é possível que, indo além das ordens que el-rei nosso senhor me deu, intentasse a conquista de Gôa, só para vêr cumprido o voto que fizestes e vos levar a Portugal. Mas se eu á India não voltar para tal fim, não faltam capitães a D. Manuel para seguir vosso conselho, como lhe direi.

Na tarde do dia que então despontava, a armada fez-se de véla, e pela segunda vez D. Vasco da Gama partiu para o reino, deixando no Oriente o seu dedicado amigo.

A estrella do almirante do mar da India parecia cada vez mais fulgarante, dando-lhe sorte propicia : tão feliz foi o seu regresso a Portugal, a trazer a nova da sua victoria sobre o rei de Calecut, que, tocando apenas em Melinde, d'aquelle reino veio directamcnte a Lisboa.

X

A conquista de Gôa

São decorridos sete annos depois que o almirante regressou pela segunda vez da India, e apesar das suas promessas ainda se não realisou a conquista de Goa, ainda Ruy da Cunha não poude ver cumprido o seu voto. E tem sido um longo período de soffrimentos íntimos para o heroico cavalleiro, esse largo espaço de tempo em que no dominio portuguez se foi accentuando cada vez mais a politica de ambição e cubiça da cõrte e dos políticos de Lisboa, mais desejosos de riquezas do que de assegurarem o poder de Portugal no Oriente.

D. Vasco da Gama, embora muito honrado por elrei, mas combatido pelos aulicos da côrte na sua pretensão a ser elevado a conde, e a reconstituir o dominio de seus antepassados no senhorio da villa de Sines, sua terra natal, que el-rei lhe doara por carta de promessa, teve, não obstante, de se retrahir na influencia que desejava exercer nos negocios da India, para que fossem seguidos os planos de Ruy da Cunha, e antes de tudo se tratasse da conquista de Goa, e de ali fundar um verdadeiro reino portuguez. O caracter do almirante, incompativel com os manejos e intrigas que via predominarem na direcção d'aquelles negocios, assim lh'o impoz.

O modo de vêr de Ruy d a Cunha, partilhado por D. Vasco da Gama, não era com effeito o mesmo dos ambiciosos que predominavam na côrte, e dos cavalleiros que, deixando as guerras d'Africa, que não davam Jogar a ricos saques, preferiam ir combater na India e voltarem em breve ricos. O que, pois, lhes convinha, eram pequenos e breves conflictos constantes e sem termo, conservando aberta a mina dos despojos a explorar ; era o continuado aprisionamento dos valiosos carregamentos das náos de commercio da mourama, não a conquista definitiva d'um reino para Portugal e o estabelecimento regular do commercio entre essa colonia e a metropole.

Contar a historia do domínio portuguez durante esses sete annos, é ter de desenvolver um verdadeiro sudario do mais obnoxio proceder político, da mais desbragada ambição, difficilmente compensada pelas victorias, sempre aliáz, obtidas pelas nossas armas sobre os infieis do Oriente, e pelo contraste dos actos de honrada dedicação e valor de alguns portuguezes de boa tempera, como Duarte Pacheco, D. Francisco d'Almeida e o grande Affonso d'Albuquerque.

N'esses actos e n'essas victorias, se resume toda a compensação que Ruy da Cunha tem encontrado ao seu padecer de sete annos, vendo os portuguezes crear na grande descoberta de D. Vasco da Gama uma India tão differente da que elle sonhára ; e, forçado, pelo seu voto, a assistir a esse repellente espectaculo de voracidade e desregramento político, de intrigas, discordias e rivalidades entre os portuguezes, o cavalleiro envelheceu prematuramente, o heroc enthusiasta foi tomado por um desalento moral, que só passa no momento em que veste a armadora e cinge a espada para combater. A não ser n'essas occasiões, foge por habito dos centros em que se reunem os guerreiros portuguezes, desgostado com as praticas em que a indisciplina discute as ordens do chefes, e a rapacidade de piratas calcula o valor dos saques feitos e a realisar, e divagando solitario pelas montanhas e florestas d'aquelle phantastico paiz, encontra na magestade da natureza a pura realidade da India que elle quizera ver lusitana. Uma esperança, comtudo, tem ultimamente vindo alentai-o : Entre as armadas que todos os annos chegam do reino, succederam-se, depois da do almirante, a de Vicen te Sodré, as dos Albuquerques e a de Lopo Soares, seguindo-se então o governo do primeiro vice rei da India, D. Francisco d'Almeida.

Ruy da Cunha teve pois occasião de travar intimo conhecimento com Affonso d'Albuquerque, e de conhecer a honradez, a integridade e o heroísmo d'aquella nobre excepção de desinteresse e dedicação á patria, no meio da dissolução de costumes proverbial nos guerreiros portuguezes. Communicando-lhe as suas ideias e planos quanto á conquista de Goa, teve a satisfação de os vêr por elle partilhados ; e, embarcando na sua armada, tanto quanto lhes foi possivel, procuraram realisal-os. Mas o vice-rei D. Francisco d'Almeida, comquanto fosse tambem um honrado e valoroso capitão, como o demonstrou nas victorias repetidas que alcançou sobre o Samorim e os rumes, fazendo tributarias Quilôa, Mombaça, e outras cidades da India, chegando a fundar algumas fortalezas portuguezas, estabelecendo muitas feitorias e obtendo dos rajahs e reis do Industão a construcção de casas nos estabelecimentos que a Portugal eram concedidos, tinha, não obstante, um outro modo de encarar as cousas do Oriente : Não queria a sua conquista, mas apenas obter para Portugal o seu commercio. Era a fórma mais prompra de satisfazer as ambições do governo do reino, que aquilatava o merito dos governadores da India pelo valor das riquezas que de lá mandavam. Nem por isso deixou o primeiro vice-rei, apesar de lá perder seu heroico filho, D. Lourenço d'Almeida, morto em Chaul combatendo os rumes, de cair no desagrado de D. Manuel e da côrte, que com tantas distincções e honras o tinham despedido de Portugal.

Mais poderam do que os seus grandes serviços as intrigas movidas na côrte pelos descontentamentos dos seus capitães, a cuja voracidade punha obstaculos com actos de rigor, como foi o de fazer apalpar, na presença das tropas, um cavalleiro da casa de D. Manuel, Fernão Menezes, mandando-lhe tirar da braguilha dos calções fios de perolas que ali escondera, e que tinha apprehendido aos vencidos de Mombaça, depois de o vice-rei ter dado ordem para acabar o saque. Não deixou Ruy da Cunha de fazer conhecidas a D. Vasco da Gama as relações que travara com Affonso d'Albuquerque, pedindo-lhe para obter que elle viesse um dia á India como governador, pois decerto emprehendena a conquista de Goa. E por isso exultou ao saber em Diu, onde se achava com os navios que ali tinham levado o vice-rei, que Affonso d'Albuquerque chegára a Cochim, vindo do reino para substituir D. Francisco d'Almeida.

Brilhava, emfim, a esperança de vêr realisados os seus ardentes desejos. Mas o grato acontecimento devia ainda custar-lhe uma ultima e acerba amargura : o assistir ás controversias e discussões de dois grandes capitães, igualmente honrados, de ambos os quaes era amigo, e a quem por igual respeitava : o vice-rei D. Francisco d'Almeida, e o novo governador Affonso d'Albuquerque.

Queria este gue o vice-rei lhe entregasse o governo, recusando-se aguelle a iso, irritado como estava pela ingratidão de D. Manuel e animosidade dos seus subordinados, e terrivelmente impressionado pela morte do filho querido.

Por isso, quando o vice-rei desembarcou em Cochim, abraçando varios cavalleiros que o esperavam, fez que não via Affonso de Albuquerque. Doeu-se este da desconsideração, e approximando-se-lhe disse :

-- Vêde-me, senhor ! que aqui estou ...

-- Perdôe-me vossa mercê que o não via -- respondeu o vice-rei tirando o barrete para o cumprimentar; e seguindo para a fortaleza.

Quando ali chegaram, o capitão, com as cerimonias do estylo, entregou as chaves ao vice-rei. Então Affonso de Albuquerque, collocando-se na sua frente, novamente se lhe dirigiu :

-- Senhor ! Deus seja muito louvado, que vos trouxe com saude e tanta honra, e tanto contentamento de vosso coração pelo vencimento dos rumes, que menos se não esperava de vossa senhoria, tão experimen tado na honra das armas ; e pois, que a Nosso Senhor aprouve realisar vossos desejos, e que segundo me dissestes ao despedir-me em Cananor, que no vosso regresso me entregaríeis a governança da India, gue tenho por patente d'el-rei nosso Senhor, peço e da sua parte requeiro a vossa senhoria a queira cumprir como é obrigado.

Ao que D. Francisco d'Almeida respondeu agastado:

-- Tempo ha para isso, que eu ainda nem sacudi o pó dos sapatos !

E entrou para a fortaleza, emquanto Affonso de Albuquerque encolerisado entrega va a sua patente a Gaspar Pereira, secretario da India, para que a fosse notificar ao governador, e d'isso lhe désse documento com que se queixasse a el-rei. E logo se formaram partidos, uns pelo vice-rei, outros pelo novo governador nomeado, ateando-se mais as constantes dissenções e malquerenças entre os capitães portuguezes. A tal ponto chegou a discordia entre o vice-rei que não queria entregar a governança ao novo governador, discutindo os seus pode res, emquamo que este lhe pedia o respeito das ordens do monarcha, que n'ella acabaram por envolver o rei de Cochim, o qual fez saber ao vice-rei ter cartas de D. Manuel que lhe recommendava Affonso de Albuquerque como governador da India. Então subiu de ponto a colera do vice-rei, que acabou por enviar o novo governador preso para a fortaleza de Cananor, mandando um meirinho com artifices destruir a barraca de canoas e folhas que construira para habitar, respondendo ao rei de Cochim que só entregaria a governança quando chegassem as náos do reino com ordens directas d'el-rei a tal respeito. E assim fez, passando-se ainda mezes até que em setembro chegou a Cananor uma armada de quinze náos, commandada pelo sobrinho de Affonso d'Albuquerque, o marechal D. Fernando Coutin ho, que vinha com poderes superiores aos do vice-rei, e que dando logo a liberdade a seu tio o levou a Cochim, sendo recebido por D. Francisco de Almeida com as seguintes palavras:

-- Senhor ! Deus me fez muita mercê em vos trazer a tempo de vos entregar este meu cargo, que tantos trabalhos me tem dado, e vos a mercê da sua mão o entregará a quem quizer.

E tomando as chaves da fortaleza da mão do seu capitão as entregou ao marechal, dando-lhe tambem a patente de Affonso d'Albuquerque.

-- Esse papel deveis entregar ao seu dono-lhe responde u o marechal, -- que el-rei o não ma ndou para vós, mas só para cumprirdes o que n'elle vos ordenava.

E continuando a discutir, ficaram mal avindas, a ponto de o marechal, para contrariar os desejos de D. Francisco d'Almeida e o demorar na India sob a sua auctoridade, mandar que primeiro carregasse e partisse para o reino a náo Graça, dizendo que assim era necessario por ser navio armado por mercador, e ter de se cumprir o contracto com elle feito.

Tal era o quadro deploravel que, pelos erros e inconsequencias da política de Portugal, apresentava o domínio portuguez na India.

Mas emfim, se, duran te o dilatado governo de Affonso d'Albuquerque, as dissensões entre os portuguezes não terminaram, se a politica do reino não foi de menos ambição e mais tino, se as intrigas da côrte não abrandaram, chegando por fim a attingir o heroico governador, levando D. Manuel a usar com elle a maior injustiça e ingratidão, os feitos gloriosos d'esse grande capitão tudo resgatam, na fórma épica por que a sua espada talhou fin almente um imperio portuguez no Oriente.

Ruy da Cunha muito tinha esperado, mas teve a satisfação de vêr o seu voto cumprido além de todas as esperanças, e de ao lado de Affonso d'Albuquerque combater para a sua realisação.

Logo que o vice-rei D. Francisco d' Almeida partiu, não para Portugal, como esperava, mas para ir encontrar a morte no combate que travou com os rumes na Aguada, pretendendo vingar a morte de seu filho, livrando-o talvez a sorte d'este modo de maiores dissabores ao chegar a Lisboa, Affonso d'Albuquerque começou sem demora a desenvolver essa grande actividade guerreira de que jámais affrouxou até á hora da morte.

Convencido da vantagem de conquistar o reino de Goa, o melhor da India para se assentar o nosso domínio pelas excellentes praças fortificadas que já possuía, e pela sua riqueza e situação geographica, quizera o governador tentai-a desde logo, se não reconhecesse a obediencia que devia ás ordens de D. Manuel, que enviára a grande armada do marechal D. Fernando Coutinho expressamente para se inflingir novo castigo ao rei de Calecut. Assim fizeram pois.

Mas quando vencido, o Samorim mais uma vez pediu a paz, Affonso d'Albuquerque pensou logo em tentar a conquista de Goa.

Apezar de ferido no ataque de Calecut, em que fôra obrigado a combater rijamente no ataque ao palacio do rei, imprudentemente investido pelo marechal seu sobrinho, que ahi encontrou a morte, instigado por Ruy da Cunha, e feita a paz com o Samorim, ia tentar aquella empreza, quando teve de se dispôr a seguir para Ormuz, de cuja conquista se occupava no momento em que novas ordens do reino o mandaram seguir para a India, a tomar o seu governo, e onde deixára Duarte de Lemos, que lhe enviava agora apressadamente Vasco da Silveira em um navio a pedir reforços. Teve, pois, de novamente addiar o commettimento do reino de Goa, em cujo governo o Hidalcão succedera a seu pae o antigo corsario Sabayo, e fazendo- se de véla com toda a armada partiu para o Estreito.

Mas no livro do destino estava escripto que chegára a hora da conquista de Gôa. Com a sua grande armada composta de vinte náos, um bargantim, duas galés e varios navios, todos com capitães experimentados, como seu sobrinho D. Antonio de Noronha, D. João de Lima, Fernão Peres d'Andrade, Martim Coelho, Jorge da Silveira, Pero d'Ornellas, Francisco de Tavora e muitos mais fidalgos e cavalleiros, levando u total de mil e duzentos homens, navegava Affonso d'Albuquerque para Ormuz, quando nas alturas do rio de Onor veio ao seu encontro Timoja, o alliado dos portuguezes, que, por instrucções de Ruy da Cunha, vigiava o reino de Goa, avisando o governador de que era excellente o ensejo para facilmente o conquistar, porque o Hidalcão se achava ausente para o interior com a maior parte do seu exercito, occupado em guerrear os povos fronteiriços de Balagate. Entendeuo famoso capitão não dever perder a occasião que se lhe offerecia de poder tomar Goa sem grande dispendio de forças, o que lhe permittiria seguir depois para Ormuz, e confirman do-se a previsão de Timoja, pequena e pouco duradoura foi a resistencia que offereceram as forças Hidalcão, entrando Affonso d'Albuquerque na cidade e sendo-lhe entregues as chaves do castello pelos notaveis da mesma. E logo o governador, querendo accentuar aquella feição semi-pacifica da conquista, mandou arautos com trombetas lançar o pregão de que, sob pena de morte, ninguem tomasse coisa alguma, ou fizesse o menor damno aos mouros e gentios da cidade, porque eram já vassalos d'el-rei de Portugal.

-- Não vos illudaes, senhor ! -- lhe disse Ruy da Cunha -pensando que está conquistada Goa. O Hidalcão é valente guerreiro, e não tardará em vir atacarnos para retomar a cidade. O reino de Goa é joia rica de mais para assim facilmente deixar arrebatar pelos inimigos.

E não tardaram em cumprir-se as previsões do decano dos cavalleiros porg uezes da India.

Tão facil foi a primeira posse de Goa, tão difficil e porfiada foi a guerra que Affonso d'Albuquerque teve de sustentar para a retomar segunda vez e definitivamente, porque, tão encarniçada foi a lucta com o Hidalcão, tão poderoso foi o exercito com que correu a defender os seus estados invadidos, que os portuguezes chegaram a ter de abandonar por algum tempo a conquista feita, até que do reino chegasse nova armada com reforços.

A conquista de Goa tomou então proporções épicas, dignas do premio destinado ao venceder.

Foi uma campanha encarniçada que se prolongou por muitos mezes, alternando-se o fragor das batalhas e escaramuças com a fome, a sede e as privações dos cêrcos persistentes e dos porfiados assaltos.

Affonso d'Albuquerque e Ruy da Cunha poderam gloriar-se, porque jámais na India se tinha sustentado uma guerra d'aquellas proporções. Com mais de quarenta mil homens de pé, e oito mil de cavallo, entrára o Bidalcão por Bancstarim a assentar os seus arraiaes. Dispondo assim d'um exercito tão superior aos portuguezes, entendeu o rei de Goa que o governador facilmente acceitaria a paz e lhe devolveria o seu reino, e assim lh'o mandou propôr por João Machado, portuguez que se achava ao seu serviço, antigo degredado que D. Vasco da Gama deixára no reino de Melinde. Mas Affonso d'Albuquerque soberbamente lhe respondeu :

-- Dizei ao Hidalcão que esta cidade e d'el-rei meu senhor, e que a tomei porque n'ella deu seu pae Sabayo guarida e protecção a turcos do Soldão, fugidos de Diu, onde os tinha desbaratado o vice-rei da India D. Francisco d'Almeida, combinando-se com elles para juntos irem atacar os portuguezes. E assim tomada, a fogo e a sangue a defenderei, que nunca os portuguezes largaram o que uma vez conquistaram ; e, se quer assentar pazes, antes para isso terá de entregar todas as terras de Goa a el-rei de Portugal !

Então se encarniçou a lucta, em que Affonso d'Albuquerque se immortalisou, acabando por conquistar a admiração do seu proprio competidor, que, no mais acceso da guerra, quarido; tendo sido o grande capitão forçado a deixar a cidade e a recolher-se aos seus navios, lucrando com a fome, porfiava nos ataques quotidianos sem desamparar a preza, apezar dos protestos da sua gente para que se fosse refazer a Cochim, teve o rasgo de lhe mandar offerecer mantimentos. Mas Affonso d'Albuquerque, recambiando a embarcação carregada d'arroz, que o rei inimigo lhe mandára, disse ao gentio que a commandava :

-- Mouro ! torna-te, e dize ao Hidalcão que, pois que estamos em guerra, commigo não fará pazes até que eu torne a tomar Goa ; que os mantimentos que me offerece os não comeremos senão dentro dos seus muros, e que no mar em que estamos nos bastam o pão e vinho que ainda temos em abundancia!

E não duvidou o governador de assim se fazer forte, quando nos seus navios se luctava com a fome!

Se era difficil a situação dos portuguezes, nem por isso o Hidalcão deixava de ter sérias apprehensões quanto ao resultado final da guerra. Comprehendia que tinha na sua frente um adversario incapaz de desanimar, e nas suas longas praticas com João Machado, informando-se do grande poder de el-rei de Portugal, convencera-se de que, logo que lhe constasse aquelle estado de cousas, mandaria novas armadas ao governador da India, e calculava bem o que Affonso de Albuquerque seria capaz de fazer com taes reforços, quando com os recursos limitados de que dispunha n'aquelle momento ia sustentando atravez de todas as difficuldades, a preço de todos os sacrificios e privações, um apertado bloqueio que interdizia ao reino de Goa todo o commercio maritimo, o que importava a sua ruina.

Por isso, tendo-se passado mais algum tempo em diarios combates e refregas e sabendo que eram cada vez mais apertadas as circumstancias dos sitiantes, faltos de todos os recursos, acabando de morrer a bordo do navio de Affonso d'Albuquerque, na sua propria camara, seu sobrinho, o valoroso capitão D. Antonio de Noronha, por não haver remedias com que se tratasse da doença que o accommettera, resolveu o Hidalcão fazer novas e mais vantajosas propostas de paz, mandando um parlamentario a offerecer ao governador portuguez a cedencia do rio de Cintacora, com todas as suas terras, que rendiam mil pardáos d'ouro, e para as despezas da armada cincoenta mil outros pardáos d'ouro, querendo apenas a troco d'isso que lhe entregasse o índio Timoja, alliado dos portuguezes.

Indignado com tal proposta, respondeu Affonso d'Albuquerque ao mensageiro :

-- Quando eu fosse amigo do Hidalcão, teria poder para mais lhe dar do que elle a mim, porque sou o senhor do mar, e até se quizer lhe posso tapar a barra d'este rio em que nem a propria agua entrará. Não quero Cintacora, mas sim Goa, de cujo rendimento o indemnisarei largamente ; e quanto a entregar-lhe o meu alliado Timoja, o não farei, nem mesmo a troco do seu reino todo que me offereça, porque os portuguezes sabem guardar fé aos seus amigos e aos inimigos com quem fazem pazes ; e a prova d'isso lhe darei logo que conquistar Goa, de que nomearei gozil o mouro Cojebequi, capitão que foi do Samorim, mas com quem hoje estou em paz, e que aqui tenho a bordo! Continuaram, pois, as hostilidades.

Todo o inverno e a primavera passou a armada portugueza no rio de Goa, recebendo escassos mantimentos, e muito damnificada pelo fogo das tranqueiras, que o Hidalcão fizera construir nas margens, e que incessantemente atacavam as náos. Chegando o mez de agosto, e não apparecendo a armada que esperava do reino, Affonso d'Albuquerque reconheceu a inadiavel necessidade de ir a Angediva, o porto mais proximo, reparar os seus navios. Expediu pois Timoja adiante com as suas embarcações a buscar mantimentos que lhe viria trazer áquelle porto, e em dia de Nossa Senhora fez-se de véla, com extraordinaria satisfação dos bloqueados, que emfim se viam libertos.

Mas a sua alegria tinha de ser de pouca duração. Logo depois de deixarem Goa, a meio caminho de Angediva, avistaram os ponuguezes cinco náos, que cuidando serem os rumes, se dispunham a atacar, e mandando Antonio Raposo, capitão do navio Ferros, o mais veleiro da armada, reconhecei-as, viu o capitão que não fazia o signal de serem rumes, voltando em breve a participar-lhe que era uma armada que, sob o commando de Diogo Mendes de Vasconcellos, vinha do reino para conquistar Malaca. Juntas seguiram pois as duas armadas para Angediva, e pela tarde do dia em que fundearam chegou Timoja com a sua esquadrilha carregada de mantimentos, sendo logo entregue ao antigo corsario a carta d'el-rei D. Manuel de que o capitão-mór era portador, e na qual lhe agradecia os serviços feitos a Portugal.

De Angediva seguiram para Cananor, onde o governador esperava encontrar outras náos, que, sob o commando de Duarte de Lemos deviam vir de Sacotorá. Ali e em Cochim pensava em concertar os seus navios, contando que entretanto chegasse uma outra armada de sete náos, tendo por capitão-mór Gonçalo de Sequeira, que partira do reino ainda antes da de Mendes de Vasconcellos, o qual, se viera directamente á India, fôra obrigado pelo tempo, porque o seu regimento lhe mandava dirigir-se primeiro a Malaca.

Reuniram-se pois todas estas forças, e convócando o conselho dos capitães, deu-lhes o governador a conhecer a sua intenção de voltar a atacar Gôa. Mas os capitães-móres das duas armadas, que traziam seus regimentos para campanhas especiaes, independentes do governo da India, segundo o deploravel systema da confusão de poderes seguido pela política da metropole, tentaram oppôr-se.

-- Essas instrucções eram boas, emquanto não chegasseis onde eu estou, que sou governador da India -- replicou irado Affonso d'Albuquerque. E mandou prender no castello o capitão-mór Diogo Mendes de Vasconcellos, quando foi avisado que de noite tencionava fazer-se de véla para Malaca.

Finalmente, conseguiu Albuquerque reunir vinte e oito navios de varias lotações, guarnecidos por mil e setecentos homens, e novamente voltou a Goa, de que estava ausente o Hidalcão, chamado á guerra das fronteiras. Em Goa, deixára o logar tenente Roçalcão, com mais de dez mil combatentes. Segundo estava assentado, Timoja, desembarcando, viria por terra com quatro mil soldados, fornecidos pelo rajah de Garçopa.

Não obstante, a má vontade de muitos capitães das armadas vindas de Portugal era manifesta, porque antes preferiam ir combater nas emprezas que traziam prescriptas do reino, e sob a menos a rigorosa disciplina dos seus capitães-móres. Affonso d'Albuquerque entendeu então mostrar que, até certo ponto, ia transigir com elles, e reunindo o conselho disse que de facto eram tão superiores as forças que defendiam Goa , que, se não fôra o receio de mostrar medo aos índios, desistiria da sua conquista ; e que assim lhe parecia que o melhor era entrarem apenas no rio, queimarem as náos que ali estivessem, e batendo a ribeira tornarem a embarcar e seguirem para Cambaya.

Approvaram logo os capitães este alvitre, e descansou Affonso d'Albuquerque, sabendo bem que, uma vez começada a lucta, se esqueceriam os cavalleiros de tudo o mais, para só ambicionarem concluil-a com a conquista de Goa. Assim succedeu com effeito.

Travada a peleja, que se prolongou por muitos dias, com a tenaz resistencia do grande exercito que defendia a cidade sob as ordens do Roçalcão e do Plutacão, caiu finalmente Goa em poder de Affonso d'Albuquerque, em 25 de novembro de 1510, dia de Santa Catharina.

Estava em fim cumprido o voto de Ruy da Cunha, que combatia ao lado de Affonso d'Albuquerque, atacando o castello em que se refugiára o Roçalcão, quando um cavalleiro, Antonio Nogueira, lhe veio participar que a cidade era entrada pelos portuguezes. Logo a seguir, o Roçalcão fugia abandonando a fortaleza, e d'ahi a pouco Affonso d'Albuquerque entrava a cavallo na cidade, apeando-se para de joelhos dar graças a Deus pela victoria.

El-rei D. Manuel podia emfim com razão fazer-se preceder nas suas regias cavalgadas em Portugal, como usava, por dois batedores índios montados em elephantes, para affirmar o seu senhorio sobre a India !

XI

A embaixatriz do Hidalcão

Depois da conquista de Goa, Affonso d'Albuquerque não descançou nas suas emprezas ; antes aquelle successo pareceu animal-o a dilatar o concebido plano de avassalar o Oriente, creando ahi, como de facto creou, um verdadeiro imperio portuguez. No anno seguinte tomou Malaca, campanha que lhe ia custando a vida, porque no regresso á India naufragou, andando o valente capitão dez dias perdido em uma jangada com os seus companheiros, até que foi recolhido pela náo de D. João de Lima, que regressava tambem de Malaca, tendo sido separados pela tempestade. Em seguida, avassalou o resto da ilha de Goa, ainda occupada por mouros em Banestarim. Depois, voltando novamente ao Estreito, seguiu até á cidade de Aden, que não pôde tomar por falta de material de guerra e de navios á escala vista. E a par das conquistas, desenvolvia Affonso d'Albuquerque as suas grandes qualidades de politico e administrador, assentando o commercio e navegaçáo das novas cidades avassalada , e levantando fortalezas nos reinos com que realisava pazes, emquanto a outros ia combatendo. Não obstante esta ininterrompida série de victorías para Portugal, apesar de tão assignalados serviços, do valor de carregamentos que enviava para o reino e do seu excessivo desinteresse e honradez, na côrte, cujos influentes Albuquerque não incensava nem presenteava, começou a lavrar o descontentamento a seu respeito e a moverem-se intrigas centra o governador da India.

Como todos os homens de rija tempera e do seu valor, Affonso d'Albuquerque, que era a isempção e o desprendimento personificados, que morreu pobre, deixando por espolio alguns calções e murças esfarrapadas, emquanto repartia pelos seus capitães e enviava ao rei e á rainha as joias ricas com que o presenteavam os rajahs e soberanos do Oriente, Affonso d'Albuquerque possuia um coração que ora se expandia em movimentos de sentimento e ternura, ora dominado pela ira e pela colera, as mais das vezes justificadamente motivadas, se lançava nos excessos do rigor.

Aquelle mesmo governador que, vertendo lagrimas, acompan hava sempre á sepultura os restos mortacs dos seus capitães, e os abraçava no momento em que se obtinha a víctoria, louvando-lhe e agradecendo-lhes os actos de valor, como se a elle fosseim feitos e não ao rei e á nação, não hesitava em demittil-os dos seus commandos, enviando-os presos para o reino, e tel-os em ferros a bordo ou encarcerados nas fortalezas, quando se excediam nos actos de indisciplina. Mas, sobretudo, o que mais provocava os seus arrebatamentos, eram a voracidade para arrecadar riquezas á custa dos povos conquistádos, e mais ainda, o entretenimento de relações por parte dos cavalleiros christãos com as mouras ou mulheres hindús. Durante o cerco de Goa tinham-se passado tão graves factos d'esta natureza, que Affonso d'Albuquerque, n'um momento de cego furor, commettera o excesso de mandar enforcar um cavalleiro, Ruy Dias, e castigar rigorosa mente Francisco de Sá, Simão d'And rade e Jorge Fogaça, surprehendidos em assalto nocturno á camara do leme da náo do proprio governador, que d'ali mudára o seu alojamento, destinando-a expressamente a ter encerradas as mulheres indígenas, formosíssimas, aprisionadas segundo o uso oriental, na cidade, pelo alliado dos portuguezes, o antigo Corsario Timoja, como grande valor a ser resgatado por occasião da paz. Este acto de rigor havia de mais tarde dar motivo a grandes queixas e lamentos na côrte, junto de D. Manuel, contra o governador, e serviu desde logo na India para a maledicencia assacar aleivosas accusações á sua moralidade pessoal.

Ruy da Cunha tornára-se o mais dedicado amigo de Affonso de Albuquerque, pela conformidade de ideias que ambos tinham sobre os negocios do Oriente. Pela identidade das qualidades de valor, abnegação, desinteresse e dedicação ao serviço da patria, reciprocamente se estimavam e respeitavam. Ruy buscava sempre ser o medianeiro entre o austero e energico governador e os cavalleiros que lhe faziam opposição. Por isso mesmo, era com elle que Aflonso de Albuquerque desabafava as suas queixas e os desgostos com que lhe iam minando a vida as intrigas da côrte, a que D. Manuel prestava ouvidos.

O cavalleiro, porém, não tinha podido obstar a que fose justiçado Ruy Dias. A ordem para a sua prisão e execução fôra transmittida pelo governador ao meirinho, n'um momento de ira, de que Ruy nem tivera conhecimento. Quando a conheceu e quiz intervir era já tarde, e a attitude de muitos capitães, que pretenderan sublevar as guarnições dos navios contra o governador, não permittia transigencias. Pelo contrario, teve de pôr-se ao seu lado sustentando-o nas medidas de energia para suffocar a revolta.

Pelo muito que n'elle confiava, Affonso d'Albuquerque, caindo em si, pezaroso do justiciamento de Ruy Dias, depois de escrever para o reino a pedir a D. Manuel muitos perdões do seu acto, para que taes factos deploraveis se não repetissem, exigindo novos castigos, encarregou o cavalleiro de exercer especial vigilancia sobre o encerramento das captívas indianas. Desagradava a missão a Ruy da Cunha, mas não poude recusar-se, aconseihando comtudo ao governador que mais valia ir permittindo o casamento das mulheres indígenas com os portuguezes, uma vez que se fizessem christãs, porque assim se ia tambem desenvolvendo a colonisação portugueza.

Acceitou o governador o conselho, apesar das observações dos clerigos das armadas, que chamavam a estes casamentos feitos segundo mandamento d'Affonso d'Albuquerque, e não segundo mandamento da egreja.

Entre as captivas, distinguindo-se pela sua formosura e pelo respeito com que as demais lhe obedeciam, achava-se uma joven que as companheiras do carcere tratavam pelo simples nome de Sundorem. Com o conhecimento que tinha do viver e costumes orientaes, suspeitou logo Ruy da Cunha que era de alta estirpe aquella captiva, tornando-se-lhe por isso mais duro o captiveiro, e na melhor boa fé teve para com ella attenções particulares, por saber toda a favoravel influencia que exerciam nas negociações da paz com os orientaes os bons tratamentos dados aos prisioneiros.

Mal pensava o bondoso cavalleiro que por suas mão assim estava construindo a obra da propria desventura. O seu attencioso procedimento para com Sundorem, a insistencia com que por vezes lhe pediu que dissesse quem eram os seus parentas, para lhes fazer saber que era viva e breve voltaria aos seus braços, as praticas que com ella tinha sobre as cousas da India, en que a joven se mostrava muito instruída e intelligente, revelando-se sympathica á alliança com os conquistadores portuguezes, foram ateando no coração da indiana paixão ardente pelo cavalleiro christão.

Por mais alheio que fosse a assumptos romanescos, por mais fiel que se conservasse á fé jurada, havia já tantos annos, a D. Isabel, ao deixar Portugal, Ruy da Cunha percebeu em breve os sentimentos que a captiva por elle nutria, e buscou atalhai-os com a separação. Não estava ainda para breve a paz com o Hidalcão. O valente guerreiro, rechaçado para fóra de Goa, não desanimava nas suas esperanças de a reconquistar, vindo constantemente, ou mandando capitães seus, accommetter os portuguezes. Na impossibilidade de se assentar uma paz definitiva, Ruy da Cunha fez com que em uma occasião de tregoas Affonso d'Albuquerque propuzesse a troca de captivos. Combinada ella, na vespera o cavalleiro veiu contente prevenir a indiana :

-- Alegrae-vos, Sundorem ! A'manhã por estas horas podereis abraçar vossos parentes. Sem o estranhar, porque já lhe lia no coração, em vez de se alegrar com a boa nova, viu-a debulhar-se em pranto.

-- Que tendes, Sundorem? -- interrogou-a, fingindo-se admirado.

-- Tenho saudades do meu captiveiro, -- respondeu ella entre lagrimas.

-- Não vos comprehendo ! Vós, a quem decerto a prisão se tornava mais dura do que ás vossas companheiras, pois que por muitas razões lhes sois superior; vós, a quem ellas respeitam e obedecem como a pessoa de alta estirpe, agora que ides trocar a reclusão, as privações e o afastamento dos amigos e parentes, pela vossa antiga situação, decerto feliz e ditosa, como é na India a existencia dos grandes, que saudades podeis ter d'estes dias de soffrimento ? -E quem vos diz, cavalleiro ! que eu não tinha antes encontrado n'elles a felicidade ? Para que havemos de estar dissimulando, se nem vós podeis enganar-me nem eu pude illudir-vos ? Vós, cavalleiro christão, comprehendestes que era mais do que gratidão o sentimento que os vossos beneficios acordaram na minha alma ; eu reconheço pela minha parte que lhe não quereis corresponder e que procuraes afastar-me. Por isso estaes contente e eu triste ...

-- Tendes razão, Sundorem. Estimo ver que assim usaes de franqueza comigo . Com o vosso bom juízo em breve reconhecereis como era loucura esse vosso sonho, devido, por certo, ao isolamento em que estivestes e que vae acabar. Na vossa lei, e da vossa estirpe, decerto bem irais elevada do que a minha, encontrareis um homem da vossa raça que vos fará feliz ...

-- Só Brahma, todo poderoso, sabe que sorte me está reservada ! Vós, cavalleiro, não suspeitaes como são capazes de soffrer pelo coração as mulheres da minha casta. Ha muito que habitaes a India, e tendes por certo conhecimento d'esse preceito que manda que a viuva se sacrifique em uma fogueira á memoria do marido. Tal é o amor entre nós para a mulher : um amor só na vida, primeiro e ultimo ...

-- O que deve fazer-vos ditosa não o encontrastes vós ainda certamente, e enganaes-vos se julgaes que o poderia motivar um homem d'outra raça, estranho á vossa fé . ..

-- Sempre essa questão da fé ! Sempre essa difficuldade da raça ! Mas a fé não vos impede, a vós christãos ! de nos querer converter, porque julgaes melhor a vossa lei ; a differença da casta não vos impede de vir conquistar os nosos paizes e de a cruzardes com a nossa, preparando assim as futuras gerações ! Não busqueis pois falsos argumentos para me fazer ouvir a razão, que não é preciso ...

-- Bem o sei, Deus louvado ! Por sensata vos tenho, Sundorem, e estou certo que sereis razoavel, e de que partireis querendo deixar-me não o remorso da consciencia mas a certeza da vossa sincera amizade ...

-- Sim ! ámanhã partirei, cavalleiro ! tão impassível como se aqui não deixasse o coração, tão feliz na apparencia como as minhas companheiras que anceiam por voltar aos braços dos que lhes são caros. Veremos se o tempo, que tudo consome, consome esta minha recordação. Se o não conseguir, se a sorte que um Joque um dia me predisse, de que eu seria poderosa, mas infeliz em amor, se cumprir, eu tornarei a vós, Ruy da Cun ha, como escrava, e vós da minha sorte decidireis... E agora nem mais uma palavra é necessario que troquemos sobre tal assumpto. Vós podeis livremente estar alegre por me afastar, eu posso livremente chorar por se ter acabado este feliz captiveiro. E a indiana, dizendo um adeus ao cavalleiro, afastou-se serena e impassivel para junto das suas companheiras. Ruy da Cunha não achou uma palavra para lhe responder. Aquella força de vontade que por agora se impunha á paixão, causava-lhe medo, recordando-lhe o que um dia lhe dissera D. Vasco da Gama, suspeitando que elle estivesse preso na India pelo coração.

O cavalleiro esteve então quasi resolvido a partir para o reino. Goa estava conquistada, o seu voto cumprira-se, e dizia-lhe o coração que devia voltar á patria a escudar-se com os affectos da familia, e unindo o seu destino ao de D. Isabel, de todos os perigos que a paixão da formosa india na lhe podesse trazer. Mas a sua dedicação a Alfonso d'Albuquerque levou-o a sacrificar-se mais uma vez.

Ia-se accentuando cada dia mais a ingratidão da côrte para com o valoroso capitão, que na India dilatava e fortalecia o domínio portuguez, e Ruy bem conhecia como n'aquelle organismo de ferro, insensivel ás fadigas da guerra, os desgostos e soffrimentos moraes exerciam uma acção destruidora. Amigo leal e dedicado, que procurava sempre confortai-o de taes dissabores, e a quem o grande capitão tratava como filho, entendeu que deixal-o seria uma crueldade. Demais, ainda recentemente, em parte para o compensar da ausencia da família, Affonso d'Albuquerque escrevera a D. Manuel largamente sobre os negocios da India, insistindo com elle em especial para que permitisse que do reino podessem vir mulheres portuguezas, que se unissem com os que ali serviam a patria, desenvolvendo a colonia e dando-lhe uma população genuinamente lusitana, que compensasse o cruzamento das raças. Assim poderia D. Isabel vir á India e casar com Ruy, que n'este sentido escreveu a D. Vasco da Gama e aos seus, desculpando-se por não regressar nas armadas que tinham já partido depois que se realisára a tomada de Goa.

Foi decorrendo o tempo ; realisaram-se pazes com o Hidalcão, que no começo do anno de 1514 andava em guerra com os reis de Bisnaga e de Narsinga, os quaes mandaram embaixadores a Affonso d'Albuquerque, com ricos presentes, que este, segundo o seu costume, remetteu para D. Manuel, propondo-lhe paz e commercio mais estreitos ainda do que já tinham com os portuguezes, a troco do fornecimento de cavallos que precisavam para a guerra com aquelle rei. Affonso d'Albuquerque seguiu a sua política habitual, procurando tirar partido das rivalidades entre os potentados indios, respondendo ao rei de Bisnaga, que o Hidalcão, com quem esta va em paz, lhe fizera vantajosas offertas para não fornecer cavallos aos seus inimigos, e que só a cedencia do porto de Baticalá ou de Bracelor poderia justificar o deferimento do seu pedido.

Logo o Hidalcão, receiando que o rei de Bisnaga désse aos portuguezes alguma d'aquellas cidades, e assim fosse attendido no que desejava, fez propostas mais vantajosas a Affunso d'Albuquerque. No reino de Balagate, de que o Hidalcão tinha a corôa, havia uma constituição especial, que permittia ás mulheres o exercicio dos mais altos cargos do estado, com partilhando a mãe do Hidalcão o poder real com seu filho. Proseguindo as negociações, que Affonso d'Albuquerque ia demorando sem nada resolver, emquanto estudava para qual dos contrarias mais convinha a Portugal inclinar-se, correu em Goa que o Hidalcão, exasperado com as delongas, ia enviar uma especie de ultimatum ao governador pedindo-lhe uma resolução qualquer, mas immediata. Logo a seguir, porém, constou que a rainha mãe puzera o seu veto a tal determinação, e que, assumindo a direcção das negociações, mandaria a Goa uma embaixatriz da sua confiança.

D'ahi a pouco, seguida por grande sequito, chegava e era solemnemente recebida por Affonso de Albuquerque a enviada da mãe do Hidalcão, e n'ella reconheceu Ruy da Cunha, com sobresalto e receio, Sundorem, a sua antiga apaixonada, elevada ao fastigio do poder, personagem das mais poderosas e influentes no conselho da rainha de Balagate.

Tão captivante se mostrou a formosa embaixatriz, tão conciliadora e affecta aos portuguezes, que a sua missão teve pleno exito. No dia em que as negociações terminaram, Sundorem fez prevenir Ruy da Cunha de que desejava falar-lhe antes de partir. Tinha sido tão correcta e discreta a attitude da embaixatriz para com elle, que o cavalleiro christão accorreu ao convite inteiramente socegado, convencido de que a indiana esquecera felizmente, entre as fascinações do poder, os seus devaneios de captiva. Em breve havia de reconhecer que a sua illusão era completa.

-- Cavalleiro ! é chegado o momento de decidires do teu destino e do meu -- disse a indiana a Ruy da Cunha, surprezo de a ver novamente dominada pela paixão que suppunha extincta.

-- Podeis ainda pensar em taes devaneios, occupada como estaes com missão tão importante como a que vos trouxe a Goa, senhora?

-- Escuta-me com attenção, Ruy da Cunha. Talvez seja esta a ultima vez que nos encontramos, porque vaes decidir da minha felicidade ou da minha desventura para toda a vida ...e quem sabe, se da tua tambem. Essa alta missão que me trouxe aqui, foi apenas um meio que busquei para de ti me approximar. Cumpri o que me aconselhastes ao separar-me de ti depois do meu captiveiro: Voltei á minha antiga situação, procurei nos affectos dos meus e na ambiçáo das honras e do poder, na distracção do serviço do meu paiz, esquecer-te, e não me foi possivel. Comprehendi então que estava luctando contra o destino, que te trouxe decerto á India, cavalleiro christão : para te encontrares comigo... Se tanto aqui te tens demorado, se a paixão pelas cousas do Oriente te tem feito quasi esquecer o teu paiz e os teus, não será isto uma indicação clara que te dá a Providencia, de que o teu destino está na India e não em Portugal, que aqui, e não lá, e que has de encontrar a realisação dos teus sonhos de ambição e de gloria, junto de uma mulher que te ame?...

-- Com as vossas palavras Ralivana, interrompeu-a o cavalleiro, tratando-a agora pelo nome da sua poderosa familia, estaes-me offendendo, e áquella que não conheceis ; pois que unidos sempre pela mesma fé, embora os annos vão passando sem se realisar o nosso compromisso, mais viva é ella cada dia, porque se revigora com a ausencia e o sacrificio, feito a Deus e ao serviço do rei... Vós, orientaes, tendes uma fórma de comprehender a dedicação e o amor ; nós, christãos, temos outra...

Ergueu-se a indiana arrebatadamente dos ricos coxins em que se achava assentada, na vistosa tenda do campo em que estabelecera os seus arraiaes de embaixatriz acompanhada de numeroso sequito :

-- Pensarás tu porventura, cavalleiro ! em me ensinar o que seja o sacrificio ? Vou mostrar-te se d'elle sou ou não capaz, tão capaz, pelo menos, como aquella a quem te dizes ligado pela tua palavra. Sabes hoje quem sou ! Não t'o disse quando me conheceste infeliz e captiva, porque te quiz antes offerecer o amor da prisioneira agradecida. Recusaste-o, aconselhando-me o seu esquecimento, e obedecendo-te, busquei-o em vão. Hoje venho offerecer-te mais gloria, mais honras e mais poder, do que nunca poderias ter sonhado para ti e para o teu rei. Pelo seu serviço te tens sacrificado, para lhe aÚgmentar a fama e os domínios no Oriente... Pois bem : une-te commigo, une o teu destino ao da descendente da mais poderosa familia de rajahs que antigamen te dominaram no Industão, e começando por ser o primeiro na corte de Balagate, em breve o Hidalcão, que d'um degredado como João Machado fez seu capitão, te elevará a chefe dos seus exercitos, e cedo terás conquistado na India vastos domínios em que os antigos partídarios da minha familia te reconhecerão como senhor. Terás então para offerecer ao teu rei paizes como nunca sonhastes, domínios riquíssimos que se alongam pelo interior d'esse Industão, de que julgas conhecer muito, mas de que apenas tens visto a beira mar...

-- Ainda que fossem realisaveis taes sonhos e phantasias, ainda que lhes desse abrigo no meu coração, mais pode n'elle a fé jurada, Ralivana !... O que me propões não o acceito, porque é impossivel ... Eu sou christão ...

-- E o que vale isso ? Pois não serás tu mesmo quem aconselhou Affonso de Albuquerqueque permittisse os casamentos dos seus cavalleiros e soldados com mulheres da India ? Mas se é o serviço do teu Deus que mais présas do que o do teu rei, que maior lhe poderás prestar, do que converter á sua religião esses paizes que te offereço ? Como penhor da minha palavra, serei a primeira a fazer-me christã, porque, tu bem o sabes, cavalleiro de Christo ! só ha um Deus creador do mundo, arbitro do destino de todos as homens, um só e unico, para nós índios representado na nossa trindade Brahma, Vishnú e Siva, assim como o é na vossa trindade, que dizeis Santíssima !

Ruy da Cunha ouvia com espanto e receio o animado discorrer da poderosa e apaixonada indiana. Não sabia como rebater o seu intelligente discutir, de confundido que estava.

-- Se taes são as tuas idéas, porque não buscas algum dos meus companheiros que tantos ha mais dignos do que eu ... -- Mas não poude concluir o que ia dizer, porque a embaixatriz com a sua pequenina mão energicamente lhe tapou a bocca.

-- Cala-te ! não continues que me offendes e a ti mesmo... Não se troca um cavalleiro e um coração como tu és, por um qualquer d'esse bando de aventureiros que ahi vem do teu paiz, nem eu sou mulher que possa amar na vida mais do que o homem que a sorte lhe destinára ... Ou esse ou a morte, tal é o meu futuro. D'elle decidirás -- continuou depois de breve pausa, erguendo-se para indicar ao cavalleiro que devia partir. -- Ámanhã tornarei para Balagate, e emquanto estiveres na India aguardarei a tua resolução. No dia em que voltares a Portugal, ou n'aquelle em que aqui te ligares a outra mulher, n'esse dia, morrerei nas chammas, como a nossa lei manda que devem morrer as viuvas da minha casta.

-- Seja assim -- replicou o cavalleiro, satisfeito por ver terminada a audiencia com o annuncio d'uma resolução que, pela demora, facilmente poderia ser modificada por novos e imprevistos successos da vida da embaixatriz.

-- Mas -- continuou ella, como seguindo o fio das suas idéas -- talvez mais cedo do que pensas venhas buscar-me, por teres a certeza de que á fé que tens guardado na India, te não correspondem já guardando a fé em Portugal !

-- Longe vá o vosso agouro ! -- exclamou Ruy da Cunha, saudando-a entre pezaroso e offendido. No dia immediato partia a embaixatriz, despedida com grandes honras por Affonso d'Albuquerque, deixando o embaixador que a precedera encarregado de firmar as convenções já ajustadas.

Algum tempo depois, chegava do reino a armada do capitão-mór Christovão de Brito, e pela primeira vez, desde que estava na India, não recebeu o cavalleiro carta de D. Isabel. D. Vasco da Gama tambem pouco lhe escrevia sobre os negocios do Oriente, de que se mostrava retrahido e desgostoso pela ingratidão da côrte para com Aftonso d'Albuquerque.

Como que uma nuvem negra envolveu o coração de Ruy da Cunha, lembrando-se da triste prophecia da indiana.

XII

O nayre na côrte de D. Manuel

A poderosa embaixatriz não revelára ao cavalleiro senão uma pane dos seus planos. Guardara bem escondido no seu pensamento quanto se referia aos meios que já tinha posto em pratica afim de levar D. Isabel a desligal-o da sua palavra. D'elles vamos ter conhecimento, assistindo ao que entretanto se passava na côrte de Lisboa.

D. Manuel foi no decimo quinto seculo u ma especie de precursor do typo de monarcha faustoso que mais tarde na França se ha via de chamar o rei sol. E com bastante mais razão poderia ser compa rado áquelle astro, porque, como escreve Francisco de Santa Maria, aos seus domínios serviam de fronteiras. d´uma parte o Oriente: da outra o Occidente.

O poder de Portugal e a sua pre ponderancia na Europa eram então extraordinarios, mercê do alcance politico e economico que, para o velho mundo, tivera a descoberta da India. Na ordem economica, esse acontecimento fizera de Lisboa o centro a que se dirigia agora todo o commercio oriental, com proveito das nações christãs e europeias, acabando com o monopolio que até então d'elle tinham os turcos do Levante. Na ordem política, importava o abatimento do poder ottomano e dos sultões do Egypto, a fastando o perigo constante, em que os estados da Europa até ahi se achavam, da invasão dos infieis. A passagem, emfim, do Cabo da Boa Esperança, a abertura d'aquelle caminho directo pelas aguas do mar para o coração da Asia veio dar ás scicncias da Europa enormes avanços, com os progressos que trouve á navegação e á geographia.

A alliança de Portugal era, pois, buscada por todas as nações, e o maior poder político que então dominava o mundo christão, o papado, considerava o reino lusitano como filho dilecto, a quem distinguia com favor especial.

N'estas circumsta ncias, as riquezas que vinham do Oriente permittiam a D. Manuel sustentar na sua côrte um esplendor condigno do papel proeminente que representava na Europa de então. O fausto desenvolvido pelo monarcha afortunado ficou tradiccional e, em muitos pontos nem mesmo D. João V conseguiu seculos depois igualai-o, com as riquezas do Brazil.

A India dava para tudo, apezar de que nunca se achavam insufficien tes os valores dos carregamentos com que os governadores mandavam as armadas abarrotadas ; e d'essas riquezas fazia liberalmente o monarcha partilha, tanto ao divino como ao profano : Erguia os mosteiros sumptuosos como o dos Jeronymos, ordem da sua especial devoção, para a qual fundou outros conventos como o da Pena, o do Matto e o das Berlengas ; dotava largamente todas as ordens religiosas, e ao mesmo tempo erguia maravilhas d'arte, como a torre de S. Vicent de Belem ; mandava proseguir as obras da Batalha, acabando as capellas dos reis ; levantava as egrejas de Santo Antonio e da Conceição de Lisboa, e muitas mais por todo o reino ; construia os grandes armazens para as mercadorias da India, e os arsenaes fornecidos de armamento ; tinha sempre navios em construcção n a Ribeira das Náos ; e finalmente, edificára os sumptuosos paços da Ribeira, para onde se transferira dos antigos da Alcaçova.

Ahi se davam as brilhantes festas da côrte, porque D. Manuel repartia a sua vida entre os cuidados da governação e o gozo guoudiano dos festejos de toda a especie, desde as procissões e as cerimonias religiosas de grande apparato, até ás caçadas, os saráos, as cavalhadas e torneios, e em particular as famosas digressões pelo Tejo das esquadrilhas de bateis ricamente guarnecidos e empavezados, em que iam o rei e a côrte, bem como as musicas de que sempre se fazia acompanhar.

Vamos citar um facto que, por assim dizer, synthetisa a opulencia e liberalidade de que o rei venturoso usou n'este mundo : Dotado tambem pela natureza com soberbos dotes physicos, D. Manuel que, aliaz, a historia assevera ter sido rei de moralíssimo procedimento, tinha predilecção especial pela riqueza, variedade de belleza dos trajos. Quasi não ha via dia em que não vestisse esplendidos fatos novos, e da sua guarda roupa se vestiam á larga os fidalgos da sua casa. Quando falleceu, deixou disposto que tudo quanto n'ella existia fosse repartido pella alluvião de camaristas, fidalgos, cavalleiros, escudeiros, e a quantidade era tal, que chegou para todos que viviam no paço e fóra d'elle, e ainda sobejaram esplendidos roupões, capas e opas riquissimas, para todas as egrejas do reino fazerem paramentos! segundo escreve na sua Chronica Damião de Goes. A India dava para tudo !

Póde pois calcular-se como seriam esplendidas as festas com que D. Manuel obsequiava o principe indiano, parente do rei de Calecut, mandado por este á côrte de Lisboa em 1512, em seguida a ter negociado e assentado paz e commercio com Affonso d'Albuquerque.

Tão agradavel se tornou ao nayre o viver na côrte portugueza, que durante cinco annos se conservou em Portugal, visitando quanto no paiz havia digno de menção, estudando a sua lingua, acabando por se converter ao christianismo, escolhendo-lhe o rei o nome de D. João da Cruz e fazendo-lhe mercê do habito de Christo, com a respectiva tença.

O nayre era aparentado com a poderosa família de Ralivana, e estava prompto a seguir viagem para Portugal, precisamente na occasião em que a indiana saía do captiveiro em Goa. Então, concebeu ella um plano engenhoso, e por pedido seu, o nayre, entre os serviçaes que o acompanhavam, trouxe a Portugal um mouro da sua confiança.

Com as promessas de grande recompensa, se bem tecesse a intriga de que o encarregava, lhe deu a missão de frequentar a casa de D. Vasco da Gama, de conseguir approximar-se de D. Isabel, e falando-lhe das cousas da India e de Ruy da Cunha, terminar pela revelação de existirem de ha muito relações amorosas entre o cavalleiro e a antiga captiva, e hoje poderosa mulher de estado, sendo este o motivo que na actualidade o prendia no Oriente.

Cumpriu o mouro quanto lhe tinham encarregado, o que se lhe tornou relativamente facil, pelo accesso que em casa de Vasco da Gama tinham quantos eram da India. Como era natural, foi enorme a impressão causada por taes confidencias no animo de D. Isabel. Entendeu ella dever guardar o maior segredo sobre a infidelidade do cavalleiro, para não apressar com um tal desgosto a morte de seu velho pae, e nem mesmo a D. Vasco da Gama disse cousa algum. Unicamente, deixou de se corresponder para a India com aquelle que suppunha tel-a esquecido. Por isso, esperando a todos os momentos que a intriga que urdira occasionasse a quebra do compromisso tomado ao partir de Portugal, Ralivana predissera a Ruy da Cunha que talvez em breve conhecesse que ali se iam esquecendo d'elle.

Assim tinha esfriado a affcição que os dois reciprocamente se votavam, dando a desconfiança de parte a parte, e a excessiva concentração do pezar, causa a que o tempo fosse decorrendo sem chegarem a uma explicação em que a verdade poderia ter sido conhecida.

Um acaso veio, porém, contrariar os planos da astuciosa indiana. Chegára o anno de 1517. Na côrte, lavravam, mais ateadas do que nunca, as accusações contra Affonso d'Albuquerque, e a sua substituição no governo da India por Lopo Soares, fidalgo que já fôra ao Oriente em 1504, por capitão-mór em uma armada, foi decidida no conselho do rei, pelas instancias do barão do Alvito, e de outros seus amigos politicos, contrarios ao grande capitão, e desejosos de lhe tirarem o governo da India, antes que se accentuasse mais a especie de arrependimento da ingratidão que para com elle usava, que se ia manifestando no espirita de D. Manuel. O mouro, ambicionando voltar á India a receber o premio dos seus serviços, e descansado quanto á impunidade do castigo das suas intrigas logo que se recolhesse á patria sob a protecção da indiana, instou com o nayre para que lhe obtivesse passagem na armada do novo governador, e resolvida a sua partida, animou-se a ir além da missão que lhe tinham commettido, principiando a instar com D. Isabel para que o fizesse portador d'um formal rompimento com o cavalleiro. Invocando os seus sentimentos religiosos, lembrava-lhe o ardiloso mouro que naturalmente haveria já áquelle tempo Ruy da Cunha filhos da indiana, com a qual era justo que casasse, como tinham feito outros em identicas condições, por instancias de Affonso de Albuquerque.

Estranhou D. Isabel taes escrupulos e excessos de consciencia da parte do mouro, que fôra dos poucos orientaes que não tinham querido abraçar o christianismo, a suspeita da sua boa fé entrou-lhe no coração, e depois de incertezas e luctas travadas no seu espirito, resolveu informar-se, quanto possivel, com o proprio nayre, a respeito do proceder do cavalleiro na India. Delicado como era o assumpto a tratar, convinha esperar um ensejo favoravel, que só chegou por occasião d'uma festa da côrte a que vamos assistir. É vespera de Natal, dia dos mais celebrados por el-rei D. Manuel erguera-se de madrugada, e saira do paço a ir ouvir a missa d'alva á egreja da Conceição, e terminada ella, informou-se com o prior se alguma cousa faltava á sustentação do culto, deixando larga esmola para a fabrica da egreja. D'ali seguiu para a Casa da Supplicação a ouvir as petições dos presos, como sempre fazia á sexta-feira, e n'aquelle anno antecipava por cair o Natal n'esse dia.

Regressando ao paço da Ribeira, depois de ter almoçado, começou D. Manuel o despacho com o escrivão da puridade D. Antonio de Noronha, e os védores da fazenda, seguindo-se a audiencia publica, em que muita gente das tres classes, clero, nobreza e povo, foi indistinctamente recebida e attendida por el-rei, emquanto na sala contigua os seus cantores e musicas de cravo executavam o seu reportorio.

Encerrada a audiencia, começaram os verdadeiros festejos do dia : el-rei ia em grande apparato merendar ao paço de Santos-o-Velho, e voltaria pelo rio á noite ao paço da Ribeira a consoar com toda a côrte, como era usança na noite de Natal.

N'aquelle tempo, todo o homem era cavalleiro e toda a dama era amazona ; por isso, ia uma extraordinaria animação nos pateos e estrebarias do paço. Fidalgos, escuiros, moços do monte e pagens, não deixavam o enxame de palafreneiros, para que lhes preparassem os melhores cavallos e os mais ricos jaezes das cavallanças reaes.

Emfim, depois de larga demora, o cortejo organisou-se: Á frente, iam os batedores indios em elephantes, e a seguir, um caçador persa, enviado pelo rei de Ormuz, montando um cavallo d'aquelle paiz, e levando na anca uma onça, tamnbem offerecida pelo mesmo monarcha.

Vinha depois um grupo de trombeteiros e atabales, precedendo a guarda dos ginetes d'el-rei, composta dos mais notaveis cavalleiros da côrte, armados de lança, espada e adaga. Seguiam-se muitos moços do monte e da camara, pagens, os bobos portuguezes, e os chocarreiros castelhanos, entretendo a algaravia do seu officio, a pedirem motes aos cavalleiros e ao povo apinhado nas ruas, jogando-lhes facecias e ditos espirituosos. Depois, vinha um grupo de cantores e instrumentistas mouriscos, acompanhando os seus canticos com o som dos tambureis, pandeiros e charamelas, e logo apóz os arautos, reis de armas e passavantes, precedendo a côrte que acompanhava a D. Manuel. El-rei cavalgava só, a pequena distancia das rainhas D. Maria, sua esposa, filha dos reis catholicos Fernando e Isabel, e D. Leonor, viuva de D. João II, com as quaes ia o joven infante D. João, successor da corôa. Seguiam-se as damas das rainhas, acompanhadas pelos mais qualificados fidalgos da côrte, entre elles o almirante do mar da lndia, o príncipe indiano D. João da Cruz, o marquez de Torres Novas, D. João de Lencastre, D. Rodrigo de Mello, o conde de Tentugal, D. Francisco de Portugal, o conde dejVimioso, e muitos mais, e fechando o cortejo, os homens de lettras que frequentavam a côrte, Gil Vicente, Sá de Miranda, Garcia de Rezende, Diogo Mendes Visinho, astrologo afamado, e Thomaz de Torres, physico do paço, que conversava com frei Xinal, o professor de grammatica que ensinava no bairro dos Escolares de Lisboa, e que montava pacifica mula, insensível ao estrepito das trombetas, atabales e charamellas do ultimo grupo de musicas, depois do qual novo troço de ginetes de el-rei fechava o cortejo. De vez em quando, el-rei parava o cavallo, attendendo a pretensão que um vassallo qualquer, saido das alas do povo lhe dirigia, ajoelhando, e com a sua bondade proverbial, D. Manuel ou deferia logo o pedido, ou lhe respondia :

-- Deixae-me pensar ; vinde pela resposta á audiencia ...

Quando o cortejo chegou ao paço de Santos-o-Velho, Duarte Foreiro, cavalleiro da casa de el-rei, que em recompensa de longos serviços recebera a mercê da guarda d'aquella morada régia, adiantando-se da porta em que esperava, ajoelhou, segurando o estribo a el-rei emquanto se apeava, e logo lhe beijou a mão, erguendo-se a precedei-o na entrada do palacio.

Assim que a côrte se espalhou pelas salas e jardins, os musicos e os cantores começaram a executar alegres composições, e uma alluvião de serviçaes da casa do rei entrou a percorrer os salões, servindo em grandes bandejas de prata ricamente trabalhadas e taças do mesmo genero, fructos verdes e seccos, doces de toda a especie, e preciosos vinhos.

D. Manuel e as rainhas, seguidos pelos mais elevados personagens da côrte, tinham descido aos jardins, e d'ali estavam admirando os navios da armada que se aprestava para levar á India o novo governador, Lopo Soares. Foi então que o nayre, proximo de quem se achava D. Isabel, vendo-a triste e pensativa, lhe disse :

-- Deixae essa tristeza que ha tempo vos noto, senhora ! e que tambem já tem notado D. Vasco da Gama; alegrae-vos que, naturalmente, n'esta armada, que ahi vêdes prestes a partir, voltará emfim a Portugal o vosso fiel cavalleiro, o meu bom amigo Ruy da Cunha ... Nem eu sei como tanto se tem demorado na India, depois que a formosa Goa é portugueza ...

-- É que vós não sabeis, D. João, que a India tem para meu primo os encantos d'um paraizo ...

-- Tambem um paraizo lhe deve parecer esta sua bella patria, em que tantas honras o esperam, e maior do que todas, a de se unir a vós, senhora ! - respondeu o amavel príncipe oriental.

-- Quem sabe se vos não enganaes ? Quem vos assegura que, como nossa mãe Eva no paraizo terrestre, não terá achado o vosso amigo no seu paraizo da India alguma serpente tentadora ? ...

E D. Isabel não poude conter uma lagrima que lhe rolou pelas faces. Não escapou isso ao nayre, que andava de ha muito suspeitando, assim como o almirante, cujo palacio frequentava, que entre o cavalleiro e sua prima se déra qualquer desintelligencia.

A côrte tinha entretanto abandonado os jardins, e ouvia-se do lado opposto do palacio, atroando os ares alegremente, o concerto dos instrumentos marciaes, annu nciando que, no largo terreiro fronteiro ao paço, os cavalleiros, com o rei á frente, começavam a jogar as cannas.

E logo se ouviram enthusiasticos vivas a D. Manuel, celebrando a sua destreza n'aquella especie de torneio, em que levava a palma aos mais dextras cavalleiros.

-- Não quereis vir admirar as proezas d'el-rei nosso senhor ? -- perguntou á dama da rainha o príncipe indiano.

-- Sim, D. João da Cruz, vamos vêr jogar as cannas ; mas um favor tenho a pedir-vos ...

-- Pedir não, mandar, senhora ! em tudo que fôr do vosso serviço.

-- Obrigado pela vossa cortezia, principe. Como amigo que sois de Ruy da Cunha, e d'aquelles que D. Vasco da Gama estima como parentes, vos peço que esta noite, quando el-rei consoar com a côrte, me procureis junto da rainha, para ouvirdes o que tenho a dizer-vos.

E n'essa noite, emquanto nas salas do paço da Ribeira, el-rei dava de ceiar a todos os fidalgos presentes, mandando pelos moços da camara a consoada a casa d'aquelles que não tinham podido comparecer por qualquer motivo, D. Isabel narrou ao nayre tudo quanto lhe dissera o mouro seu serviçal haver-se passado na India entre Ruy da Cunha e a poderosa indiana sua parenta, obtendo d'elle a promessa de em breve apurar e esclarecer a verdade a tal respeito.

Logo o príncipe indiano suspeitou da existencia d'uma intriga urdida por Ralivana, cuja sagacidade e caracter apaixonado conhecia, e usando da sua auctoridade, e ameaçando com severo castigo o mouro que ella lhe recommendára, se lhe não revelasse a verdade, promettendo-lhe ao mesmo tempo immediato regresso á patria, guardando segredo das suas confidencias, obteve d'elle francas explicações. Então, cumprindo a sua palavra, guardou para si quanto averiguára, e só depois de ter partido a armada de Lopo Soares, levando a seu bordo o mouro, de tudo fez sciente D. Isabel, convencendo-a de como Ruy da Cunha era apenas victima innocente das intrigas de Ralivana. Quizera ella escrever logo ao cavalleiro, a pedir-lhe perdão da sua desconfiança, mas os navios que n'aquelle anno el-rei despachava para a India, já lá iam no mar, e tinha de aguardar a partida de nova armada no anno proximo. A sua vida tornou-se ainda mais tormentosa, do que estava sendo a que na India passava Ruy da Cunha, com o coração mortificado pela falta de noticias, pois D. Vasco da Gama quasi nada lhe dizia, evitando de lhe relatar a ingratidão cada vez maior dos influentes da côrte para com Affonso d'Albuquerque, coroada com a sua destituição do governo da India, que acabavam de arrancar a D. Manuel.

XIII

A morte de Affonso d'Albuquerque

Quando, no ultimo anno do seu governo, Affonso d'Albuquerque, apezar da doença e desgostos que o iam consumindo, desenvolvendo uma actividade extraordinaria para o seu estado e para a sua idade, pois passava já dos setenta annos, percorria os diversos reinos da India, sobre que Portugal tinha domínio, como se tivesse o desejo de responder com serviços cada vez mais assignalados á ingratidão do rei e ás desconsiderações dos seus conselheiros, estando em Ormuz, um dia que o viam mais abatido, os capitães que o rodeavam ten taram animal-o, dizendo-l he que D. Manuel acabaria por lhe fazer justiça. Nicola u Ferreira, um dos cavalleiros presentes, que assiduamente frequentára a côrte antes de vir para a India, e com quem o governador se entretinha muitas vezes informando-se do que el-rei dizia a seu respeito, accrescentou :

-- Mais de uma vez me disse el-rei, fallando de vossos serviços com satisfação e louvor, que era justo o mandar-vos regressar ao reino, e dar-vos descanso em um condado, assistindo-lhe com os vossos conselhos sobre as cousas da India ...

Um triste e amargo sorriso animou o rosto do grande capitão, que trocou um olhar de intelligencia com os seus mais dedicados amigos, Pero d'Alpoim e Ruy da Cunha. N´esse sorriso lhes significava como era seguro o seu presentimento de que em breve lhe tirariam o governo da India, embora pretendessem disfarçar a desconsideração com as outras honras, a que era insensível a sua grande modestia. Morrer na India, e n'aquelle cargo, bem sabiam na côrte que era a unica recompensa que ambicionava, e que por isso mesmo lhe recusavam. E assim, respondeu a Nicolau Ferreira :

-- Não ha honra em Portugal que seja igual á governança da India. Póde em Portugal haver descanço do trabalho physico ; mas que dias posso eu ainda viver para o gosar ? E que maior recompensa poderia haver para mim, do que acabar os meus dias, que já serão poucos, n'estes trabalhos que são o que ainda me aviventam o espirito?

E justamente no espirita era que de Portugal mais o feriam. Emquanto o grande capitão, depois de passar os dias no trabalho incessante do governo, gastava as noites sem repousar, fazendo extensos relatorios para el-rei, dando-lhe conhecimento de quanto se passava no Oriente, e levando a sua minucia até ao ponto de o informar de cada peça d'artilheria que se inutilisava, do reino correspondiam-lhe contrariando-lhe todas as suas propostas, e derogando quantas resoluções tomava.

Vieram, contra o que representára, mais navios do que até ali tripulados por maritimos da ilha de Corsega, gente indisciplinada, prompta sempre a revoltar-se e quasi permanentemente embriagada. Voltaram, providos nos logares mais importantes, os capitães que ao reino se tinham ido queixar do governador ; e finalmente, desauctorisavam-n'o para com os monarchas da India, tratando com elles directamente pazes e convenções em contrario dos planos d'Affonso d'Albuquerque, ordenando-lhe depois que executasse aquillo que julgara inconveniente.

Assim tinha o rei d'Ormuz, Safardim, enviado um embaixador directamente á côrte de D. lanuel, que o attendeu e recambiou depois a Affonso d'Albuquerque para executar o que tinham ajustado. Embora queixando-se respeitosamente de tal facto, seguiu este para Ormuz a cumprir o que lhe era ordenado, e foi achar confirmado o que expusera para Portugal sobre o estado d'aquelle reino : Safardim tinha sido morto, em seguida a uma revolução, e Affonso d'Albuquerque teve que combater os sublevados, matando o usurpador Turruxa, e de collocar no throno Raxamede, irmão do rei assassinado. Pela sua habilidade diplomatica, remedeiou ainda os erros dos que faziam concessões em Lisboa, sem conhecerem os negocios do Oriente, mandando ao novo rei que conservasse, sob sua responsabilidade, junto de si, os filhos de seu irmão, como seus successores eventuaes ao throno, se não governasse sabiamente ; e illudindo a clausula consentida pelo governo de Portugal sobre os armamentos de Ormuz, fez com que o rei só ficasse com artilheria miuda, e a grossa fosse para a fortaleza portugueza que se estava construindo. E assim correspondia, com a emenda e utíl remedio dos disparates e erros commettidos em Lisboa, ás desconsiderações que para si representavam.

Estes desacatos á auctoridade do venerando capitão, eram tanto mais deploraveis, porque concorriam para dar novas ousadias á indisciplina dos capitães, chegando ao ponto de, em Cananor, João Delgado, a quem não attendera as suas representações contra o governador da fortaleza, D. Garcia, attentar contra os dias de Affonso d'Albuquerque, fazendo que o cozinheiro mouro procurasse envenenal-o.

Ingratidões e desconsiderações do rei e da côrte, aggravos por parte dos seus capitães, a morte pela traição ameaçando os seus cançados dias, taes eram as recompensas que Affonso d'Albuquerque, septuagenario, recebia dos seus aturados e valiosos serviços á patria e ao rei, serviços em que tantas vezes arriscara a vida. A obra da negra ingratidão coroou-se por fim, justamente quando, consumido pela doença e pelos dissabores, vinha perto o termo dos seus dias.

O que Nicolau Ferreira lhe dissera em Ormuz, sobre a intenção de D. Manuel o mandar regressar ao reino, não se lhe varreu mais da memoria, cahindo profundamente doente. Então reuniu os seus capitães e lhes disse :

-- Senhores e nobres fidalgos ! eu estou n'este ponto que vêdes, e em minha consciencia julgo ter cumprido o meu dever para com Deus, e para com el-rei. E para que eu não falleça sem ter posto em ordem o que cumpre ao seu serviço, requeiro da parte d'el-rei nosso senhor a vossas mercês, que obedeçam na minha falta áquelle que eu tiver escolhido para me substituir. -- E ao dizer assim, as lagrimas corriam pelas faces d'aquelle heroe, e com lagrimas e soluços lhe prometteram os cavalleiros, muitos dos quaes se tinham até ali insurgido contra ordens suas, fazer o que lhes pedia.

Logo a seguir nomeou Nicolau Ferreira, para ficar junto do rei de Ormuz, com trinta homens, na qualidade de guarda-mór do monarcha, dando-lhe tambem as funcções de tutor dos filhos do fallecido rei Safardim, o que era uma forma disfarçada de estabelecer a fiscalisação portugueza na politica e governança do reino d'Ormuz. Nomeou o seu parente, Pero d'Albuquerque, capitão da fortaleza, deixando-lhe feitor e alcaidemór escolhidos e quatrocentos homens da guarnição, dispondo minuciosamente a forma de fazer o commercio na feitoria e de cobrar as receitas para o rei de Portugal.

N'aquellas horas solemnes em que, depois de tudo ordenado, se dispunha a partir para Goa, Affonso d'Albuquerque, despedindo-se do seus subordinados, só tinha palavras de saudade e provas d'affecto para todos indistinctamente ; e quando lhe rogavam que se não entregasse a tristes pensamentos, respondia :

-- Eu não posso reter as lagrimas n'estas depedidas, que me parecem para sempre.

Então lhe replicavam que no reino havia de recobrar a saude quando lá voltasse, e que os premias e as honras viriam alegrar a sua velhice.

-- Portugal é pequeno -- observava-lhes o valente guerreiro -- e os seus títulos e honras todos teem donos; mas vagos que todos estivessem, não valeriam metade da governança da India. Nunca vereis governador seu que em Portugal valha a terça parte do que vale na India, e vós sabeis qual será a minha recompensa : se na India já está novo governador, vereis que o vamos encontrar de posse do governo sem eu lh'o ter entregue, porque não se nomeia em Lisboa um novo governador senão para desconsiderar o antigo. E ainda que o proprio rei lhe mande ter attenções para com o seu antecessor, a passagem do Cabo da Boa Esperança faz-lhe esquecer que Portugal existe. Eu bem sei que em Portugal tenho muitos contrarias, porque em Portugal nunca fiz offeréndas a santos que não fossem el-rei, sua mulher e seus filhos ! A elles unicamente, mandei sempre as primicias da lndia, no que bem sei que fiz erro, porque el-rei mais escutará as suas accusações contra mim, do que se recordará dos serviços em que vós tanto vos sacrificastes.

Como a confirmar os presentimentos de Affonso de Albuquerque, na travessia do golfo, perto de Melinde, encontraram uma náo que vinha de Dabul, que lhes deu a noticia de estar já em Goa um novo governador chegado do reino.

Esta, nova mais aggravou o estado melindroso do grande capitão. Quando passaram á vista de Dabul, Affonso de Albuquerque, a quem os seus subordinados tantas vezes tinham desrespeitado, elle que o seu antecessor, o vice-rei D. Francisco de Almeida fizera prender, não lhe quere ndo entregar o governo da lndia para que estava nomeado, elle, o conquistador do reino de Goa, o fundador do verdadeiro imperio portuguez no Oriente, a quem o governo de Lisboa substituia por um simples cavalleiro obscuro, sem a menor attenção para com o mais illustre dos servidores de D. Manuel, deu o raro exemplo da mais completa modestia e obediencia, mandando arriar a sua bandeira, e passando sem ir a terra, para não ser saudado como governador que para aquella cidade ainda era.

Ao anoitecer, passou junto da náo uma fosta que vinha de Goa para Chaul, e chegando á fala deu mais noticias da armada que ali aportára do reino. Soube Affonso de Albuquerque que o novo governador Lopo Soares nomeára D. Goterre de Monroy novo capitão da fortaleza de Goa, e Simão da Silveira para a de Cananor, Alvaro Telles para a de Calecut e Diogo Mendes de Vasconcello para a de Cochim.

Este ultimo tinha elle mandado para o reino sob prisão !

-- Que vos parece ? -- disse Affonso de Albuquerque ao ouvir estas noticias, para Diogo Fernandes de Beja, que se achava na camara junto d'elle. -- Boas novas são estas para mim, que os homens que mandei presos para Portugal e de quem me queixei, voltam mais honrados e engrandecidos do que nunca. Certamente grandes são os meus peccados para com el-rei. Pois estou mal com elle por amor dos homens ; e mal com os homens por amor d'elle ; só me cumpre acolher-me á egreja!

E erguendo as mãos ao céo concluiu : -- Mais merecem as minhas culpas !

D'ahi a pouco, chamando Pero d Alpoim, indicoulhe certos vestidos que desejava lhe fosse buscar, e com os quaes declarou querer ser enterrado. Pero d'Alpoim, Ruy da Cunha, Diogo Fernandes de Beja e outros cavalleiros vestiram então a Affonso de Albuquerque, cujo estado de enfraquecimento era tal, que os fazia temer que não chegasse com vida a Goa, de que estavam proximos, o habito de Santiago, de que era cavalleiro, composto de saio de damasco preto, por baixo do manto com a cruz desenhada, e a beca de velludo negro e o gorro do mesmo tecido, calçando-lhe por fim as esporas de ouro.

Nas mãos, que tantas vezes tinham empunhado a espada, agora estendida ao seu lado n'aquelle leito precursor do tumulo, Affonso d'Albuquerque sustentava um Crucifixo, a que orava fervorosa mente. Assim chegou á barra de Goa, em que tantas vezes entrára saudado pelo troar das peças de artilheria e pelos sons das trombetas e atabalcs.

Junto do grande capitão, frei Domingos de Sousa, vigario geral, que elle mandára buscar em um bargantim mais veleiro do que a sua náo, acabava de o confessar e de lhe dar a absolvição.

Então, fazendo um esforço supremo, Affonso d'Albuquerque quiz erguer-se para fixar pela derradeira vez os olhos na capital d'esse reino que elle conquistára para Portugal. Apoiado nos braços braços de Pero d' Alpoim e de Ruy da Cunha, o guerreiro moribundo chegou até á porta da camara, e ali encostado, ficou por alguns momentos a orar com a vista pregada na ermida de Nossa Senhora da Serra, que designára para ser sepultado. Depois, voltando ao beliche, de novo tomou a cruz com a imagem do Redemptor na mão direita, e com a esquerda segurou a candeia dos moribundos, como quem ante via proximo o momento final.

Na camara, o soluçar dos cavalleiros ajoelhados alternava com as palavras do miserere mei Deos, rezado pelo heroe prestes a entrar na eternidade.

Pouco a pouco, a voz de Affonso d'Albuquerque ia-se sumindo, ao passo que era mais alto e convulso o choro dos guerreiros. Por fim, o credo, que elle dizia quasi imperceptivelmente, deixou de se ouvir, e a candeia fatal caiu-lhe da mão! Então aquelles homens cobertos de ferro, cingindo espadas e vertendo lagrimas, n'um mesmo movimento, precipitaram-se para o leito do grande capitão. As peças das armaduras que vestiam, chocando-se, produziram como que um ultimo som de guerra a despedir o heroe, que, na immobilidade serena da morte, parecia agora sorrir-lhes docemente. De novo, com um fragor de ferros batendo uns contra os outros, os cavalleiros christãos caíram de joelhos. Affonso d'Albuquerque acabava de expirar.

Estranho cortejo era o que no dia immediato seguia pelas ruas de Goa : os restos mortaes do seu grande conquistador, em uma especie de throno, eram levados aos hombros dos seus cavalleiros, como a percorrer pela ultima vez a sua cidade, em marcha funebre, e ao mesmo tempo triumphal, para o tumulo.

Nas ruas, fazia alas toda a guarnição, com tochas accczas, e por detraz dos soldados, os indios choravam em altos prantos aquelle a quem chamavam seu pae ! Dir-se-hia que o écho dos lamentos soltados pelo povo da India, atravessando esses mares que D. Vasco da Gama sulcára com as suas náos, chegava a Portugal, vindo acordar emfim no coração d'el-rei o sentimento da justiça para com Affonso d'Albuquerque : no momento em que o heroe era enterrado em Goa, D. Manuel escrevia-lhe que era sua intenção honrai-o ainda com o cargo de vice-rei, e deixai-o acabar os seus dias na India, como tanto desejava.

Todas estas resoluções constavam de uma carta regia e outros diplomas sellados em pergaminho, que o rei em breve lhe enviaria guardados em um cofre especial.

Mas era tarde já para uma tal reparação, e D. Manuel te ve de reconhecer os serviços do fundador do imperio portuguez no Oriente, em os seus descendentes, aos quaes fez valiosas mercês e concedeu grandes honras.

XIV

D. Vasco da Gama despede-se da India

Depois da morte de Affonso d'Albuquerque, a quem amava como pae, admirava como heroe, e que lhe queria como filho, a vida de Ruy da Cunha na India tornou-se um verdadeiro tormento, e decerto teria regressado ao remo, se o viver então em Portugal se lhe não afigurasse mais penoso ainda. Parecia que uma existencia de dissabores e pezares lhe estava reservada em toda a parte, como premio da sua vida de trabalho incessante, e dedicação sem limites. Viver agora na India, era assistir á destruição, por assim dizer systematica, de quanto Affonso d'Albuquerque deixára posto em pratica, era ver o derruir lento, mas persistente, da sua obra. Era vêr o progressivo desenvolvimento dos inconscientes planos do governo do reino, que foram arrumando o nosso poder no Oriente, lançando-nos em novas e continuadas guerras com o rei de Calecut e outros potentados, e que por fim, na occasião em que D. Manuel desceu ao tumulo, se estava accentuando no governo de avareza de D. Duarte de Menezes, em que a India caminhava para a ruina a passos largos. Não poude sustar essa marcha decadente, a resolução de D. João III nomeando seu vice-rei D. Vasco da Gama, conde da Vidigueira, porque mezes apenas viveu este depois de chegar a Goa.

Ao mesmo tempo, para Ruy da Cunha, voltar ao reino, viver em Lisboa, era ir ser testemunha do tumultuar das intrigas da côrte, que tinham apressado os dias d'Affonso d'Albuquerque ; era correr o risco de ter de recusar quaesquer recompemas, que, do rei e dos influentes, não queria hoje acceitar pelos serviços que fizera na India. Era, perspectiva ainda mais temerosa para a sua consciencia, fazer chegar a occasião de se unir a D. Isabel, quando agora o relativo descanço do serviço da patria, em que se achava, lhe tinha permittido avaliar com segurança o estado do seu coração, e n'elle achára apenas uma affeição d'amigo sincero para com ella, e não o amor ardente que correspondesse dignamente ao seu. Porque, tal era a sua situação presente : Haviam passado muitos annos desde que deixára Portugal. Ruy da Cunha partira joven ; mais joven ainda, quasi creança, ficára cm Lisboa D. lzabel. Ella podera conservar, por assim dizer, em um pensamento constante, e no coração unicamente, o culto d'esse affecto infantil. Ruy da Cunha pelo contrario, tinha como que envelhecido prematuramente nas fadigas do serviço da patria, e n'aquelle tracto difficil dos homens pervertidos, e da vida de lucta moral incessante do Oriente. A affcição que tinha a D. Isabel, conservára-se no seu espírito, mais do que no seu coroção, ao lado e a par da sua fé christã e do seu culto da patria. Era como que um novo mysterio da sua crença, em que acredita va sem o profundar, sem o discutir, que engrandecia cada dia mais aos seus olhos pela prolongação da ausencia e do sacrificio, e que nada perdia em esplendor com a ideia, que aterraria um amante apaixonado, d'um hymineu que só viesse a santifical-o no declinar da vida. Quando, pois, a indiana pretendera arrebatar-lhe o coração, achára-o fortemente salvaguardado por essa fé christã que opera prodígios ; mas por isso mesmo, quando teve conhecimento de que D. Izabel podera duvidar da sua lealdade e da sua constancia, a solidez da sua crença soffreu um golpe irreparavel : aquella segunda religião estava como que profanada para sempre.

Por isso logo que, a seguir a armada que trouxera o novo governador Lopo Soares, chegaram do reino nos annos seguintes as de João da Silveira e de Antonio de Saldanha, trazendo-lhe extensas cartas de D. Isabel a pedir-lhe perdão das suas supeitas, fazendo-lhe os mais ardentes protestos do seu amor, rogando-lhe que voltasse a Portugal, o cavalleiro, nem teve coragem para deferir a esse pedido, nem para a illudir, e a resposta foi mais a de um sincero amigo do que a de um apaixonado. Consolava-o a reparação, mas não o fazia delirar. Longe porém, de se modificar ou enfraquecer, mais se exaltou com uma tal attitude o amor da formosa dama da rainha, que attingira a edade em que se acham completamente desenvolvidos todos os dotes physicos da mulher, e em que ella começa tambem, pode dizer-se, a pensar serenamente. Examinou a seu turno D. Isabel, profundamente, o estado do seu coração, e comprehendeu que o amor de Ruy da Cunha era uma necessidade instante para a sua vida, mas conhecendo ao mesmo tempo que só agora chegava para si a hora dos verdadeiros sacrificios, e que d'ali em diante tinha que luctar para conseguir esse amor de que duvidára, como o cavalleiro luctára e se sacrificára por essa unica e verdadeira paixão sua : a gloria da patria!

Decorreram os annos, e tal foi a existencia dos dois: da parte de D. Isabel uma dedicação que nada desanimava, levando-a a insistentes pedidos a D. Vasco da Gama para que voltasse mais uma vez á India e d'ali trouxesse Ruy da Cunha ; da parte d'este, o mesmo confirmar de uma amisade de amigo, que não renegava o seu voto, mas que não podia dar-lhe mais do que um affecto de tal natureza, e a quem o mesmo annuncio da volta possível do almirante á India servia de pretexto para ali se ir demorando. Na bondade do seu coração, o cavalleiro hesitava tambem em deixar o Oriente receiando que á sua partida Ralivana cumprisse o protesto que lhe fizera, pondo termo aos seus dias. Ruy da Cunha nunca sentira amor por ella. Chegára mesmo a ter-lhe aversão, quando soubera das suas intrigas, e tendo-se encontrado com ella depois d'isso, em um visita que fizera ao Hidalcão, acahára por ter dó d'aquella desgraçada, que, victima da paixão, abandonára o poder e as honrarias da sua alta posição para viver na reclusão e no retiro, entregue unicamente á recordação dolorosa e constante do seu amor sem esperança. Assim chegou o anno de 1521 .

D. Manuel, o monarcha tão afortunado no decurso da vida, foi até por ventura afortunado em morrer um tanto prematuramente, porque desappareceu do throno ainda em tempos de apparente prosperidade, em que a decadencia do nosso fastigio no Oriente era apenas vaticinada e presentida pelos espiritos mais argutos, que profundamente estudavam no presente os arcanos do futuro. Descido D. Manuel ao tumulo, succedeu-lhe seu filho D. João III. Com este principe, de indole e caracter diametralmente oppostos á paixão pelas conquistas guerreiras e pela gloria ostentada no poderio d'além-mar, havia de inaugurar-se uma epoca inteiramente diversa nos annaes da nação, e o Portugal navegante, conquistador e bastante liberal para aquelle tempo, tornar-se-hia o Portugal concentrado no estudo das sciencias e na administração quasi exclusiva do dominio continental, substituindo á dilatação da fé no Onente a maior influencia dada ao poder da egreja na politica do reino. Em vez de fazer christãos os mouros, o novo Portugal submetteria os portuguezes já christãos á dura tutela da Companhia de Jesus. Tal era a compensação.

E os compromissos da situação passada liquidar-sehiam em Africa por meio do abandono d'algumas cidades e praças já conquistadas ; e na India, deixando correr á revelia os negocios na sua marcha para a decadencia. Mas, nos primeiros tempos do reinado de D. João III, Portugal como que seguia ainda com o movimento que lhe imprimira a orientação politica de D. D. Manuel. Na côrte corriam alto os protestos contra o governo que na India estava fazendo D. Duarte de Menezes, cuja avareza era por todos estygmatisada, e a quem se accusára de ter em proveito proprio amontoado as riquezas que deixára de enviar para o reino. Era preciso um pulso forte e honesto, que fosse pôr em ordem as cousas da India, que d'alli remettesse preso o desconceituado governador , e que levantasse o prestigio do nome portuguez.

D. João III nomeou então vice-rei da India aquelle qua descobrira, e D. Vasco da Gama, conde da Vidigueira, chegou a Goa em setembro de 1554, munido de poderes verdadeiramente reaes, e rodeado por um fausto e uma grandeza como até ali nunca tinham ostentado os representantes do rei de Portugal.

Aquelle esplendor e aquella grandeza, porém tinham de ser de curta duração, e representavam bem o seu papel de ultimos clarões do sol do nosso fasugio no Oriente sumindo-se no occaso.

Mezes apenas viveu D. Vasco da Gama depois de chegado pela terceira vez á India, porque logo adoeceu, fallecendo em 24 de dezembro d'esse anno. No pouco tempo que governou, porém, usou largamente dos seus poderes, tentando reformar os abusos e desregramentos dos negocios publicos, destituindo governadores de varias praças, enviando para o reino, sob a guarda de seu irmão D. Luiz Menezes, o antigo governador.

Vamos assistir a um dos actos da sua administração rigorosa, que mais alvoroço causou em Goa, e que se prende com o prosegu imento da nossa narrativa.

Havia poucos dias que o vice-rei desembarcára. Tinha-se aposentado na fortaleza, estabelecendo se ali desde logo o movimento do enorme pessoal que o acompanhava, e a grandeza da casa e estado que o cercavam. A fortaleza de Goa tornára-se uma miniatura do paço da Ribeira.

Era numerosa a cohorte de fidalgos e cavalleiros que do reino tinham chegado com D. Vasco da Gama, vindo entre elles seus dois filhos D. Paulo e D. Estevão. Veadores, porteiros de maça, pagens, escudeiros, moços de camara e duzentos guardas, armados de chuços dourados e vestindo a libré da casa do almirante do mar da India, compunham a população d'aquella peque na côrte.

Toda essa gente se achava em alvoroço correndo pelos baluartes, a vêr a procissão formada pelos irmãos da misericordia de Goa, que, trazendo a imagem do Crucifixo á frente, se caminhava em canticos para a fortaleza.

Na sala do conselho, o vice-rei, visivelmente irritado, passeiava agitadamente por entre os personagens mais qualificados : o bispo, cavalleiros de varias ordens, e frades. Todos ali vinham vindo interceder para que elle não mandasse açoutar, como estava ordenado, as tres mulheres que a bordo das náos tinham sido descobertas em Moçambique, infringindo as ordens expressas que a tal respeito fizera apregoar ao partir de Liboa. E os irmãos da misericordia vinham ali tambem procissionalmente implorar a sua clemencia.

Quando os viu chegar junto á porta da fortaleza, o vice-rei, não podendo conter-se, disse para Ruy da Cunha : -- Chamae um pagem !

E logo que este chegou, ordenou-lhe :

-- Ide dizer aos que ahi chegaram, que partam sem detença a collocar no altar a imagem de Deus Nosso Senhior, que só depois os ouvirei.

Assim fizeram os irmãos da misericordia, e entretanto na sala reinava completo silencio. O vice-rei continuava passeiando a largos passos. De subito, parando na frente do bispo de Goa, disse-lhe :

-- Bem quizera, veneravel prelado, acceder aos vossos rogos, e aos de todos, para que perdoe a essas mulheres, mas não é possível. Se o fizesse, como o coração me pede, se assim deixasse sem castigo quem não attendeu ao que mandei apregoar quando partimos de Belem, mais animaria os homens a desobedecerem e a praticarem novas faltas. E eu vim á India com ordem expressa d'el-rei D. João, nosso senhor, para corrigir os desmandos e os abusos.

O bispo nada respondeu. De novo reinou o silencio, continuando o vice-rei o seu agitado passeio. D'ahi a pouco voltavam os irmãos da misericordia, que fizeram a sua supplica, a que D. Vasco da Gama replicou :

-- Não posso attender-vos, quando não attendi ao bispo de Goa, nem a estes fidalgos e cavalleiros, e agastado estou convosco, por terdes vindo procurar-me trazendo a imagem de Nosso Senhor, como se eu fôra homem sem fé, a quem seja preciso lembrar a piedade. Custa-me fazer castigar essas mulheres, mas é preciso repôr em ordem os negocios da India, a começar pelo respeito da auctoridade -- concluiu o vice-rei, fazendo a todos um cumprimento, com que entenderam que a audiencia estava encerrada.

Todos sahiram. Ruy da Cunha ia tambem a retirarse, mas o almirante fez-lhe signal para ficar. Então, quando estiveram sós, em tom pezaroso, disse ao cavalheiro :

-- Ai ! Ruy da Cunha ! nem vós podeis calcular como estou arrependido por ter voltado á India, acceitando a missão que el-rei me deu. O meu coração, a minha edade, a minha quebrantada saude, não estão já para estas luctas commigo mesmo. Desordenados sabia que andavam os negocios d'este reino, mas não os suppunha no estado em que os encontro. Bem m'o dizíeis vós! Nunca pensei que tanto aqui se tivesse abusado, que tanto se tivesse explorado a fazenda do rei para os ambiciosos voltarem ricos a Portugal. É preciso estabelecer agora um rigor de ferro! Se eu começasse por perdoar a essas desgraçadas, derogando as primeiras ordens severas que dei, estava perdida a minha auctoridade... Antes eu não tivesse vindo, Ruy da Cunha ; mas vim, em grande parte, para vos levar a D. Isabel, e praza a Deus que o possa fazer, e que me engane no presentimento que tenho de morrer aqui...

-- Afugentae tristes pensamentos, senhor! Se pôde ser-vos agradavel a ideia de me levardes comvosco emfim para Portugal, estae contente porque assim o farei . .

-- Obrigado -- disse com visivel satisfação o almirante, apertando-lhe a mão ... -- E quanto ao castigo d'essas desgraçadas, que vejo vos peza no coração, se o não podeis perdoar, attenuae-o ...

-- Não é possivel, Ruy da Cunha... Bem vos comprehendo; tambem vós, com a bondade que vos é natural, quereis empregar os vossos esforços para que o faça. A nenhum pedido attenderia com mais satisfação, porque não esqueço vossos grandes serviços, e tanta amizade e dedicação que vos devo... Mas já hontem foi apregoado o castigo... D'aqui a pouco deve cumprir-se ...

E como a confirmar as palavras do vice-rei, soaram junto á fortaleza as trombetas dos arautos, e logo as seguiu a voz d'um pregoeiro bradando :

-- Justiça d'el-rei nosso senhor! manda açoutar estas mulheres, porque não tiveram temor de sua justiça, passando á India contra sua defeza !

O almirante e o cavalleiro approximaram-se da janella, e viram o cortejo dos meirinhos officiaes de justiça, que partia com as rés para serem castigadas no pelourinho de Goa.

-- Tem de ser ! Tem de ser ! -- repetiu o vice-rei dolorosamente.

N'aquelle momento, sem prévio annuncio, um cavalleiro entrou precipitadamen te na sala, caindo de joelhos logo que D. Vasco da Gama se voltou, e escondendo o rosto nas mãos começou a chorar convulsamente.

-- Quem sois e o que desejaes ? -- perguntou colerico o vice-rei -- Como entraes aqui sem vos annunciardes?

-- Piedade, senhor ! Piedade ! -- respondeu uma voz que fez estremecer D. Vasco da Gama, o qual se approximou repetindo :

-- Quem sois que vos não conheço, cavalleiro ?

-- Uma desgraçada que merece como essas miseras o vosso castigo! Perdoae-lhes, ou castigae-me tambem a mim !

E o cavalleiro, sempre de joelhos, ergueu o rosto banhado em lagrimas, e tirando o gorro que ainda conservava, soltaram-se-lhe longos e formosos cabellos de mulher.

-- Isabel! - exclamou o vice-rei, parecendo-lhe que o chão se abria a seus pés, e deixando-se cair na magestosa cadeira em que presidia ao conselho, emquanto Ruy da Cunha, livido como um cadaver, tomado de vertigem, para não cair, se apoiava ao alto espaldar d'essa cadeira. Passaram-se alguns momentos de silencio.

D. Vasco da Gama e Ruy da Cunha não podiam acreditar o que viam. Foi a voz da consciencia que emfim acordou o vice-rei, chamando-o á realidade. Erguendo-se de subito, exclamou :

-- Sim, dizeis bem, senhora ! ou castigar-vos, ou perdoar-lhes a ellas ! -- e precipitou-se para a janella. N'aquelle momento, porém, ouviu-se de novo, já distante, o som das trombetas dos arautos, e o vozear longinquo da multidão: era a pena imposta que se consummava.

-- É já tarde ! -- proferiu o almirante com tristeza; e vendo que o cavalleiro procurava separar-se de D. Isabel, que se lhe lançara nos braços, com a intenção de correr a levar o perdão do vice-rei, concluiu -- Detende-vos, Ruy da Cunha ! Detende-vos, que açoitadas já foram a estas horas. Deus me perdõe ! que na minha ultima hora não me esquecerei de as indemnisar da injustiça que agora lhes faço ...

Vagarosamente, o vice-rei caminhou para D. Isabel, a quem tomou as mãos, proseguindo :

-- Porque eu não posso castigar-vos, minha filha ! por maior que tenha sido a imprudencia que commettestes, por mais difficil que seja a situação em que todos nos vamos agora achar ! Não posso castigar-vos, porque fui eu que ha bastantes annos acceitei o primeiro sacrificio de Ruy, consentindo que ficasse em Melinde, e depois d'isso não tenho feito quanto devia para terminar a vossa separação.

-- Estamos emfim juntos, senhor ! Graças a Deus.

-- Juntos sim, -- continuou o vice-rei -- mas juntos em Goa, onde é crime virem mulheres do reino ; juntos sim, mas a troco dos perigos que passastes na viagem, disfarçada em cavalleiro, como aqui tereis de continuar até que siga para o reino a náo de Francisco de Mendonça, a primeira a sair para Lisboa, e cuja partida vou apressar ... Porque vós tendes agora de partir sem detença, Ruy da Cunha -- continuou voltando-se para o cavalleiro.

-- Cumprirei quanto ordenardes, senhor!

-- Sim. É necessario que partaes ambos ... Nem eu quero pensar nas inquietações do meu pobre Martinho, do vossa extremoso pae ! Que terá sido d'elle, Isabel ! Que pensará do vosso desapparecimento ?

-- Socegae senhor ! tudo deixei prevenido : quando a vossa armada saiu a barra, devia ser-lhe entregue uma carta minha contando-lhe que eu vinha comvosco á India ...

Ficou então assente que D. Isabel, conservando o seu incognito sob o disfarce de cavalleiro, ficaria habitando com o vice-rei, e o acompanharia a Cochim, para onde ia partir em breves dias, não deixando o seu lado até ao momento de seguir para o reino com Ruy da Cunha. Mas outro era o destino fixado pela Providencia.

D'ahi a pouco, D. Vasco da Gama adoecia perigosamente em Cochim, onde teve de desenvolver rigor e energia que o incommodaram, e mais apressaram o termo dos seus dias, desejando obter de D. Duarte de Menezes documento em forma entregando-lhe o governo da India, e a reposição de grandes sommas nos cofres da fazenda real, para depois o mandar sob prisão para o reino.

D. Isabel tornou-se então a sua assidua enfermeira. Foi necessario fazer confidentes da verdade os filhos do vice-rei e o guardião de Santo Antonio, seu confessor, que, pelo estado grave do almirante, se não separavam do seu leito. Para melhor conciliar as difficuldades d'uma tal situação, D. Vasco da Gama fez-se transferir da fortaleza para as casas de Diogo Pereira, no terreiro da egreja deixando ali todo o seu pessoal de estado. A sua nova residencia mandou chamar Lopo Vaz de Sampaio, capitão da fortaleza, e Affonso Mexia, védor da fazenda, que lhe prestaram juramento de cumprirem quanto deixasse ordenado, e ali foi reduzido a auto pelo secretario, até que, fallecido elle, lhes fosse entregue por seu filho D. Estevão da Gama um cofre em que estavam os diplomas indicando quem devia succeder-lhe no governo.

Feitas estas disposições, D. Vasco da Gama, presentindo a morte para breve, não cuidou mais do governo da India, concentrando-se na ultima consolação que lhe restava : a assistencia dos filhos, e d'aquelles que como taes estremecia. Largas horas, em que a estes pedia fossem reparar o cansaço das noites de vigília, passava com o guardião de Santo Antonio a pôr em ordem as questões da sua consciencia.

Chegou a vespera do Natal, e o vice-rei quiz celebrai-a tomando os sacramentos da egreja. Logo que a ceremonia terminou, pediu a seus filhos que escutassem as suas ultimas disposições. Ordenou-lhes que apoz a sua morte partissem para o reino na náo de Francisco de Mendonça, levando todo o pessoal da sua casa que os quizesse acompanhar, pagando aos que ficassem os vencimentos fixados pel o rei. Que e gualmente levassem para o reino todos os seus vestuarios ricos, para serem dados ás egrejas para as vestes do culto. Pediu lhes que particularmente dessem cem mil réis, o que: era quantia avultada para o tempo, a cada uma das mulheres que mandára açoutar, e se os não quizessem acceitar entregassem o dobro á Misericordia. Finalmente, dispoz que os seus restos mortaes fossem mais tarde transferidos para o reino. Era noite fechada quando, muito fatigado, concluiu a larga predica com que desenvolveu as suas finaes disposições. Então, mostrou desejo de ficar só com Ruy e D. Isabel. Retiraram-se D. Paulo, D. Estevão da Gama e o confessor. Logo que elles sairam, o vice-rei, tomando-lhes as mãos, disse-lhes :

-- Acabo de fazer quanto em mim cabia para d'este mundo partir com a consciencia tranquilla, mas de vós meus filhos, agora depende que esse socego que ambiciono como christão seja completo. Peza na minha consciencia ter por tanto tempo estorvado a vossa união ... Se quereis que eu morra tranquillo, consenti em que frei Antonio meu confessor, com quem tenho praticado a tal respeito, vos receba aqui junto do meu leito, e acceitae por vosso padrinho o almirante do mar da India moribundo, já que a sorte dispoe que o não fosse na côrte com toda a pompa, como vós mereceis Isabel, pelo carinho de filha que me tendes votado, e vós Ruy, meu fiel companheiro na descoberta da India, a quem eu me honrei de fazer cavalleiro.

Entre lagrimas responderam a dama e o cavalleiro em conformidade com a vontade do vice-rei.

N'essa noite, á hora em que as torres das egrejas de Cochim repicavam, chamando os fieis á missa do Natal, D. Isabel, vestindo pela unica vez na India os trajos femininos que o almirante secretamente mandára preparar, e Ruy da Cunha coberto com a armadura que tantas vezes o livrára da morte nas guerras do Oriente, foram casados pelo confessor do vice-rei.

D'ali a pouco, quando as trevas da noite começavam a ceder o Jogar no céo aos primeiros clarões do dia anniversario do nascimento do Redemptor, ás preces do hymeneu succcdia-se a oração da agonia : D. Vasco da Gama, conde da Vidigueira, almirante do mar da India, envolto no manto de cavalleiro de Christo, cujo rico trajo quizera que lhe vestissem para assistir á ceremonia nupcial, entrava na eternidade. Nos seus ultimos momento a sua fé ardente de christão enlaçava-se com as brilhantes recordações do seu grande feito, e o vice-rei, ora pedia a Deus o perdão dos seus peccados, ora lhe agradecia tel-o escolhido para descobridor da India.

XV

Da India ao mosteiro dos Jeronymos

O solo da India parecia agora queimar os pés d'aquelles a quem podemos ligar na designação de familia de D. Vasco da Gama.

Assim, cumpridos os ultimos deveres para com o vice-rei fallecido, e logo que os seus restos mortaes foram com toda a solemnidade depositados na capella mór da egreja de Santo Antonio, seus filhos partiram para Goa a cumprirem ali as suas finaes determinações, e pouco depois, com D. Isabel e Ruy da Cunha, embarcavam na náo do armador Duarte Tristão. Com ella seguia para o reino, em obediencia ás ordens deixadas pelo vice-rei, a náo Santa Catharina do Monte Sinay, commandada por D. Luiz de Menezes, que guardava a pessoa de seu irmão D. Duarte, e pelo prisioneiro respondia, não tendo sido possivel obstar a que o antigo governador embarcasse na náo S. Jorge, do seu commando, em virtude de anteriores alvarás d'el-rei, que apresentára.

Estranhos desígnios da sorte: o governador deposto, accusado de prevaricações, que ali vinha sob a responsabilidade de seu honrado irmão, havia de chegar ao reino, e querendo desembarcar clandestinamente em Cezimbra, dizendo-se que para esconder as riquezas que da India trazia, era depois recebido por el-rei D. João III em Almeirim, e em seguida mettido em processo e enviado preso ao castello de Torres Vedras, para mais tarde ser perdoado e readmittido na sua capitania de Tanger. É certo que, se grandes riquezas trouxe da India, nunca as ostentou. Seu irmão D. Luiz, exemplar de honradez e honestidade, que o vinha guardando, não devia tornar a ver a patria. Já perto da costa de Portugal, a sua náo, que o máu tempo afastára da de seu irmão, encontrou-se com a de um corsario francez, que a aprisionou, não tendo podido resistir por fazer muita agua. Annos depois, este corsario era preso por Diogo da Silveira, capitão-mór da costa de Portugal, e posto a tormentos confessava o desgraçado fim que dera a D. Luiz de Menezes e aos seus infelizes companheiros.

Emquanto estes successos se passavam, a náo do armador Duarte Tristão, tendo-se separado, por effeito da tempestade que os colhera ao partir de Moçambique, das náos dos Menezes, seguia a sua derrota para Portugal.

Tão ridente e cheia de esperanças tinha sido para os que ali vinham a ida para a India, quanto desolador e triste era este regresso.

Para Ruy da Cunha, principalmente, tornára-se elle um pezadelo constante em que o espectro da morte parecia vil-o acompanhando, como ave sinistra que voando a par do navio seguisse a sua derrota.

D. Vasco da Gama, com quem elle viera de Portugual, Affonso d'Albuquerque, a personificação das glorias guerreiras, o descobridor e o conquistador d'aquelles paizes phantasticos, que tanto ambicionára para a patria, lá ficavam dormindo o somno da morte ; e elle, voltando agora que o poderio luzitano ia perdendo o esplendor, parecia-lhe que a sua ambição de conquistar a India fôra uma utopia cujo arrojo a sorte assim castigava, um sonho de que esta realidade era o triste acordar. Esta idéa da morte das suas aspirações, e de quantos lhe eram queridos, não lhe abandonava o espírito, e por isso terrível foi a impressão que sentiu, quando, pouco depois de terem saído de Goa, uma fosta correndo com todo o panno veio ao encontro da náo, e o cavalleiro, reconhecendo um antigo escravo de Ralivana ouviu da sua bocca estas palavras de despedida que a idiana lhe mandava :

-- Quando fôres no mar á vista da serra de Gare, que sepára os dominios de Goa do reino de Bisnaga, olha pela ultima vez para a encosta de Balagate, e verás que, como tu, eu cumpri o meu voto !

Assim fez o cavalleiro, e poude distinguir, com o coração atormentado por mais uma dôr, a enorme fogueira que se elevava na montanha, e na qual Ralivana buscara a morte como as viuvas da sua casta, reduzindo o coração a cinzas, para que emfim tivesse descançado da sua infeliz paixão.

Pela forma por que esse ultimo adeus da indiana fôra enviado ao cavalleiro, não poude passar ignorado de D. Isabel, e um triste sorriso se lhe desenhou no rosto emquanto lhe dizia :

-- Tenho dó d'essa infeliz, Ruy ! Amou-te talvez ainda mais do que eu ! Quem sabe se não era ella a companheira que a sorte te destinava, e se eu vim como um importuno recordar-te a tua promessa fazer-te infeliz e a ella ...

-- Que estranha lembrança essa, Isabel ! Como poderia eu jámais ligar-me a uma mulher de religião differente ?

Mas D. Isabel não se illudia, percebendo bem que, se não fôra positivamente forçado pelo respeito da ultima vontade expressa por D. Vasco da Gama, que Ruy da Cunha se unira a ella, pelo menos, o facto d'essa união nada accrescentára á simples affeição de irmão, unica que havia muito francamente lhe confessára poder dar-lhe. Os desgostos, as desillusões, o derruir de todos os seus sonhos acalentados ao partir de Portugal, aquella insistencia da morte em derrubar successivamente os que lhe dedicavam affectos, iam tornando o coração do cavalleiro cada vez mais improprio para se animar com as alegrias da vida e os seus gozos, chamando-o irresistivelmente ao refugio da fé, á lembrança consoladora da vida futura.

No espirito de Ruy da Cunha, espírito da categoria, d'esses que, nos tempos presentes, chamamos, com ou sem razão, não procuraremos investigal-o, doentios ou desequilibrados, a fé christã e o amor patrio tinham sido o grande agente determinador de todas as suas acções. Todas as mais influencias eram no seu espirito secundarias. Destruida em grande parte, pelos acontecimentos, a integridade do seu sonho de heroe, com a morte; de Albuquerque, do Gama e de D. Manuel, a trindade em que para elle estava encarnada a gloria portugueza no Oriente ; escurecida esta, pela marcha decadente, e para o seu espirito subtil claramente accentuada, do nosso poderio da India, a elle, cavalleiro christão, ficava-lhe unicamente o refugio da fé. Por isso, assim como os antigos prelados guerreiros depunham o báculo para empunharem a espada, no seu espirito havia muito que, indecisa ainda, começara comtudo a desenhar-se a ideia grata de se affastar do mundo e de deixar para sempre a espada em descanço, vestindo o habito do monge.

Os ultimos acontecimentos tinham, porém, vindo afastar esses prenuncios d'um futuro que lhe sorria, tristemente sim, mas tanto quanto uma perspectiva terrestre podia ainda sorrir-lhe. Ruy da Cunha, não se arrependia de ter feito a vontade a D. Vasco da Gama moribundo, tornando-se o esposo de D. Isabel ; mas sentia que acceitára uma situação pouco em harmonia com o estado do seu espírito e do seu coração. E quanto mais se esforçava por illudir esta realidade, como era inhabil para fingir, mais a patenteava ao espirita sagaz da esposa, cujo estado de doença moral e physica mais penetrantes tornavam as suas faculdades perceptiveis.

N'esta lucta moral se iam passando os dias da longa e tormentosa viagem de regresso a Portugal, e essa lucta, e as estranhas e incommodas condições em que D. Isabel se achava, de tal modo lhe fôram contaminando a saude, que o cavalleiro começou a antevêr, agora com a dôr do irmão prestes a perder a irmã, a hypothese de novamente se poder realisar a sua mystica aspiração.

Na sua alma travavam lucta acirrada o egoísmo do crente e a dedicação do amigo ; e emquanto aquelle se consolava com a idéa de, viuvo, se abrigar á paz do claustro, esta levava-o a todos os extremos de cuidados para prolongar a existencia no mundo, d'essa esposa que bem con hecia só poder vir a amar condignamente no céo. E tudo era insistir com o capitão da náo para que, illudindo quanto podesse os artigos do compromisso com o armador seu proprietario, o navio se demorasse o menos possível nos portos, ou n'elles deixasse de tocar, na esperança de que o clima de Portugal restauraria a profundamente contaminada saude do joven e pretendido cavalleiro, que passava os dias no maior desalento, estendido sobre uma dura maca, na coberta, emquanto o physico de bordo gastava em vão toda a sua sciencia, para o reanimar da extraordinaria consumpção physica e moral. Chegaram finalmente aos Açores. A náo tinha de se demorar ali uns dias, e Ruy da Cunha, insistiu com a esposa para que buscassem passagem em um navio a partir para Lisboa. Desembarcando, dizia-lhe pretendendo convencei-a, retomaria em terra, pois ninguem os conhecia, os trajos femeninos, e acabar-se-hia aquella incommoda situação, mais incommoda ainda no seu estado de doença.

-- Não, Ruy, deixa-me morrer cavalleiro disfarçado, como me tornei por amor de ti. É a unica consolação que posso ter: expirar consummando o sacrificio imposto ao meu coração, que não soube amar-te como merecias, que chegou a duvidar do teu ...

-- Sempre esses funestos e injustos pensamentos Isabel ! Varre-os por uma vez do teu espírito... Não foste tu que não soubeste amar-me ; foi o meu coração que se embotou em mais de vinte annos de existencia apartada de todos amigos e parentes, quasi em contacto exclusivo com os semi-selvagens do Oriente ... Tornei-me como elles semi-barbaro, e tal me acceitaste por esposo, e ainda mais, envelhecido prematuramente por esses annos de continuadas fadigas... Grande foi o teu sacrificio! Enorme foi esta prova de atfecto que me déste, vindo arrancar-me á India com risco da tua vida ...

Partiram finalmente dos Açores. Alguns dias mais, e estariam em Portugal, acabando-se aquelle supplicio de Ruy, temendo a cada instante vêr a esposa exhalar o ultimo suspiro, e ter por sepultura a profundidade do mar. Não era essa a jazida final que lhe estava reservada, não obstante o que, não passára ainda para o infortunado cavalleiro o mais cruciante periodo d'aquelle funebre regressar á patria.

Apenas saidos dos Açores, desencadeou-se horrível tempestade, como se o mar quizesse deixar-lhes uma final e terrivel recordação dos ultimos dias passados a bordo. Então, tocaram o seu auge os soffrimentos da desditosa D. Isabel, e o physico da náo, sempre ao seu lado, esperava a cada instante que a doença traria áquelle infeliz cavalleiro essa morte que, aliaz, estava ameaçando todos com a imminencia do naufragio. Assim correram com o temporal desfeito por uns poucos de dias. Uma noite, emfim, a tormenta começou a abrandar ; a bonança foi-se estabelecendo, as estrellas reappareceram a brilhar no céo, e para cumulo de ventura, ao romper do dia, o gageiro gritou annunciando terra á vista. D'ahi a pouco reconheciam a costa de Portugal nas proximidades de Lisboa. Mais aquella noite de tempestade, e a náo teria vindo despedaçar-se nos rochedos da patria.

O sol ia então subindo radiante no horisonte ! A bordo tudo era alegria, todos davam graças a Deus por os ter trazido, depois de tantos perigos, a salvamento a Portugal. Exultava Ruy da Cunha, mal pensando que aquella satisfação daria a morte a D. Isabel, e para a animar e distrahir, o cavalleiro, olhando pela vigia da camara, reconhecia os logares queridos da patria, e ia-os descrevendo á esposa :

-- Ah ! se quizesses erguer-te um momento, admirarias, como eu estou fazendo, a belleza da serra de Cintra, que vae sahindo de entre ondas de nevoa, illuminada por este magnifico sol, não menos bello que o da India ...

-- Sim ! quero vel-a pela ultima vez, respondeu a enferma, fazendo um esforço inutil para se erguer.

-- Pela ultima vez !... ia dizendo Ruy em tom levemente incredulo; mas não teve animo para continuar, tão dolorosa era expressão que o rosto de D. Isabel assumira.

-- Ai ! não posso Ruy... A minha vida está a acabar... não chegarei a Lisboa ... Approxima-te querido amigo, escuta a minha ultima vontade ...

O cavalleiro, no auge da affiicção, ajoelhou junto do leito, e tomou-lhe as mãos, pretendendo ainda animal-a e illudir-se :

-- Em Lisboa estaremos d'aqui a horas apenas, e no socego e conforto da nossa morada, e nos carinhos de meu bom pae, encontrarás a saude ...

-- Não percamos tempo em vãs esperanças ... Deixa-me falar-te, Ruy, emquanto tenho forças para o fazer ... D'aqui a algumas horas, chegaremos a Lisboa, é verdade... Mas eu chegarei morta, e tu serás livre ! Vae á côrte, onde el-rei te honrará, como é devido ao mais antigo dos cavalleiros da India, e ali deverás escolher emfim, entre as mais virtuosas, a esposa que te faça feliz ...

-- Oh ! não ! Enganas-te Isabel ! A minha vida no mundo está, como a tua, terminada, embora tu deixes a terra e eu continue sujeito ás suas miscrias. Nem a Lisboa irei ... No Restello embarquei para a India, ali me despedi da terra da patria, no Restello ficarei ao desembarcar ...

-- Não te comprehendo Ruy... Pensarás acaso em voltar para o Oriente ?

-- Oh ! não, descança. Eu vou morrer para a India como para todo o resto da terra... De Portugal parti fazendo-te uma promessa, a Portugal volto fazendo-te outra : Se tu não viveres, como dizes, até chegarmos a Lisboa, eu desembarcarei no Restello irei professar nos Jeronymos ...

Um sorriso de ineffavel alegria, uma expressão de felicidade, que parecia não ser já sentimento d'esta vida, tão puro, tão sereno, tão consolador era na sua expressão, illuminou o empallidecido rosto da moribunda.

-- Ah ! Sou feliz, Ruy ... Reconheço agora que Deus não condemna o egoismo do meu amor, amor que irá além do tumulo, porque inspirou o pensamento que eu tanto buscava esconder-te : Sim ! tu professarás, e nem mesmo os meus restos monaes se afastarão de ti no mundo, até que a tua alma venha unir-se á minha no céo. Jura-me, Ruy, que me fareis enterrar nos Jeronymos, e que virás todos os dias rezar sobre a minha sepultura -- concluiu com voz já quasi imperceptivel.

-- Assim o juro -- respondeu a custo o cavalleiro.

-- Bemdito sejas, Ruy ... Graças, meu Deus, por tamanha felicidade.

E estas ultimas palavras quasi as não ouviu já o cavalleiro, tão attento se achava com o olhar fixo no rosto da esposa que uma serena morte ia já transformando.

N'aq uelle momento supremo, um estampido enorme atroou os ares, o navio estremeceu sobre as mansas aguas do Tejo que ia sulcando, saudando com a sua artilheria a terra da patria, representada na bandeira que tremulava na formosa torre de S. Vicente de Belem. A'quella subita recordação dos combates, o espirito conturbado do cavalleiro, esquecendo o presente, volveu por um instante ao passado. Ergueu-se, e n'um movimento instinctivo, tomando a espada, ia a sair da camara, como se mais uma vez a voz dos canhões o chamasse a combater os navios da mourama. Mas foi rapida, como o fuzilar do relampago, aquella visão dos antigos tempos, e caindo em si, chamado á realidade, o cavalleiro exclamou :

-- A India está conquistada, e quem sabe se talvez já perdida ... e d'esta espada que ha tantos annos me deu Vasco da Gama, só me deve agora ficar a cruz !

E o cavalleiro quebrou no joelho a folha da espada, atirando-a ás aguas do Tejo, e, conservando entre as mãos a e empunhadura, em fórma de cruz, ricamente cinzelada, caiu de joelhos junto ao leito mortuario da esposa.

No dia seguinte, pela tarde, desembarcavam no Restello os restos mortaes do cavalleiro fallecido ao chegar da India, e que, no cumprimento do seu dever, os monges da ordem de S. Jeronymo, vinham receber para sepultarem na cerca do mosteiro. Logo em seguida ao esquife, caminhavam cobertos de luto os filhos de Vasco da Gama, e entre elles um cavalleiro de reluzente armadura, que a multidão olhava com respeito e curiosidade, pois já correra que era Ruy da Cunha, o unico dos companheiros do descobridor da India que lá ficára, e que só agora, passados quasi trinta annos, voltava a Portugal.

O cortejo funebre ia deslisando lentamente, ao som das rezas entoadas pelos frades, quando de subito a multidão se afastou para deixar passar um velho, que veio abraçar-se ao cavalleiro. Era Martinho, já centenario, que emfim apertava nos seus braços o filho querido.

Parou o prestito funebre, e todos ficaram respeitosamente attentos, ante aquella expansão de amor paternal. Momentos estiveram pae e filho abraçados. Por fim o ancião, soltando-se dos seus braços, ficou alguns instantes a contemplal-o, e depois, com voz repassada de amargura exclamou :

-- Eis-te emfim de volta da India, Ruy ! mas não me enganou o coração ao partires... Funesta nos foi essa gloria que lá conquistaste ! Partiste novo e cheio de esperanças, voltas envelhecido, trazendo comtigo a morte dos que mais amavas ; voltas, para tu mesmo te ires enterrar em um claustro ...

E n'um gesto de suprema colera, o centenario, estendendo o punho cerrado para os navios da nova armada prestes a largar para a India, proferiu a sua antiga objurgatoria :

-- Oh ! gloria de mandar ! oh ! vã cubiça d'essa vaidade a que chamamos fama !...

D'ahi a pouco o prestito funebre entrava no sumptuoso templo erguido por D. Manuel, e que D. João III fazia concluir para ali repousarem os restos mortaes do fundador, provisoriamente depositados na antiga egreja.

O templo dos Jeronymos, elevava já para o céo as altas columnas, sustentando as portentosas abobadas, e Ruy da Cunha entrando n'elle sentiu a alma expandir-se ante a magestosa construcção, e caindo de joelhos, exclamou :

-- Eis emfim a realisação do meu sonho ! Eis finalmente perpetuada na pedra, para os seculos futuros, a gloria de Vasco da Gama, a grandeza que eu sonhei na descoberta da India !

Samuel Ren Zacuth, a quem por corrupção do nome chamavam Caçuto.

Faria e Souza - Azia Portuguesa v. 1.ª pag. 25.

Gaspar Corrêa -Lendas da India, v. 1., parte I, pag. 11.

Lendas da India, por Gaspar Correa, tom. 1.o pag. 16.

Chronica d'el-rei D. Manuel -- por Damião de Goes -- vol. I.o, pag. 73.

Lendas da India, por Gaspar Corrêa, vol. 1.º pag. 29.

Todas as palavras que pomos na bocca dos nossos personagens em situações historicas, são fielmente reproduzidas das descripções feitas pelos chronistas do tempo.

São diversissimas as fórmas por que os antigos chronistas contam a chegada dos descobridores da India. Não ha dois que digam a mesma cousa. Seguimos a versão que nos parece mais provavel.

-- Este e todos os demais detalhes da aprtsen tação dos companheiros de D. Vasco da Gama são fielmente reproduzidos das Lendas da India, já citadas.

Tudo quanto referimos vem descripto nas paginas das Lendas da India, onde Gaspar Corrêa conta a batalha naval em que D. Vasco da Gama derrotou a esquadra do Samorim. -- Lendas da índia, V. 1.0 pag. 330 e seguintes.