Dramas da Corte: Edição para o ELTeC Castro, Alberto Osório de (1868-1946) Criação do HTML original Inês Lucas Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 33605

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Dramas da Côrte Alberto de Castro Dramas da Côrte Alberto de Castro Parceria Antonio Maria Pereira - Livraria Editora Lisboa 1905

português de Portugal Adicionado à coleção ELTeC

COLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA

DRAMAS DA CÔRTE

POR

ALBERTO DE CASTRO

LISBOA

PARECERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

LIVRARIA EDITORA

Rua Augusta, 50, 52 e 54

1905

PREFACIO

A nação portugueza, tão poderosa no reinado de D. João II, tão admirada e respeitada no reinado de D. Manuel, começou a enfraquecer no reinado de D. João III, o fanatico jesuita e inquisidor, que a historia, por adulação, cognominou de Piedoso, Foi no fim d'esse nefasto e torvo reinado, tristemente assignalado pelo reflexo das fogueiras da Inquisição, que os horisontes da patria se cobriram das primeiras nuvens da tempestade, que havia de leval-a á sua ultima ruina.

O fanatismo cobria já, de sinistras sombras, o throno levantado pelas mãos victoriosas do Mestre de Aviz. Era a approximação do occaso em que iam sumir-se todos os esplendores dos descobrimentos e conquistas, toda a gloria de tantos e assignalados feitos, que tinham offuscado os olhos do mundo.

Apoz das aguias vinham os abutres; o heroismo cedia o logar á corrupção e á torpeza, á influencia jesuitica, que, estimulando as tendencias guerreiras e asceticas do moço D. Sebastião, produziu esse vulto quixotesco, que havia de sepultar a independencia nacional, nos areaes africanos.

Foi essa catastrophe terrivel, mas prevista, que entregou, em meia hora, que tanto durou a batalha de Alcacer, a monarchia de D. Manuel, a heroica nação, que vencera Castella em Aljubarrota e que devassara o segredo dos mares até á Asia, nas mãos do herdeiro de Carlos V.

A nação vencida, humilhada, orphan, não podia resistir á politica dissimulada e habil de Filippe II, e do seu valído, o duque d'Alba.

Alguns annos antes, ainda um ministro portuguez dizia ao embaixador de Castella: -- Que no reino não havia nem pão, nem dinheiro, nem saude, mas que existia alguma honra. Perdida ella, ficavamos sem nada.

Essa alguma honra tambem se perdeu. Os descendentes dos heroes de Aljubarrota não souberam pelejar nos campos de Alcacer, como soldados, nem morrer como portuguezes.

No horisonte já não scintillava a estrella dos guerreiros de Ceuta, de Arzilla e de Tanger.

Um negrume espesso offuscava-lhe o brilho, envolvendo-a nos rolos de fumo, que se elevavam das fetidas e sinistras fogueiras, com que a Inquisição ladeava o altar do Crucificado, do adoravel Jesus de Nazareth.

Não é nas trevas que se tempera o animo de um povo.

A preoccupação unica dos moços fidalgos era attrahir a vista do seu soberano; arruinavam as suas casas para, cobertos de brocados, telas de oiro e de prata, tecidos de seda e pedrarias preciosas, acompanharem aquelle louco fanatico, que os arrastava a uma lucta desigual e fatal, como se fossem para um torneio, ou para uma montaria de javalis na coutada de Pancas.

Felizes os que cabiram, feridos de morte, logo ao primeiro golpe, esses, ao menos, não tiveram de chorar no desterro as suas illusões perdidas, não viram a patria captiva, não tiveram de dobrar vergonhosamente o joelho perante o orgulhoso e astuto castelhano, que soube calar todas as resistencias mais pelo toque do oiro do que pela violencia.

A corrupção acabou por dominar as forças e a vida do paiz, já enfraquecido pelas imprudencias de D. Sebastião, que tudo sacrificou ao seu louco devaneio. A gangrena lavrava profundamente; a Companhia de Jesus, que predominava sobre o espirito de el-rei, e que lhe preparou a queda, avassalava todas as consciencias e precipitava os acontecimentos, que não se fizeram esperar.

A desvairada velleidade de D. Sebastião de fundar um grande imperio, á custa do territorio marroquino, levou-o á tristemente celebre derrota de Alcacer-Kibir.

O resultado do conflicto só podia ser duvidoso para aquelle rei moço e inexperiente, mas cavalheirosamente valoroso, de que uma sociedade religiosa, que ambicionava o imperio do mundo, fizera apenas um monge guerreiro e ascetico.

No coração e no cerebro d'aquelle desditoso mancebo, dirigido pelos jesuitas, que tudo governavam em Portugal, só havia de humano o fanatismo, o orgulho e a sede de conquistas. Foi isto que o perdeu.

Houve quem asseverasse que Filippe II exclamara, ao ver o sobrinho inabalavel em realizar a jornada d'Africa: -- Vaya en ora buena, que si venciere buen yenro tendremos, y si fuere vencido buen reyno nos vendrá.

Foi vencido e morto!

As galas tinham-se transformado em luto, no reino a consternação era geral. O cardeal D. Henrique, unico filho que restava do segundo matrimonio d'el-rei D. Manuel, fraco, irresoluto, inclinado á politica de Castella e jesuita de corpo e alma, não podia acudir ás desgraças da patria. O seu curto reinado só serviu para entregar á dynastia filippina o sceptro, que as suas mãos debeis e tremulas mal podiam segurar.

Com a morte do decrepito cardeal perdiam-se todas as esperanças. No dobre funebre dos sinos, annunciando a sua morte, sentia-se uma coisa mais sinistra do que o passamento de um homem, de um rei; aquelle lugubre tanger, que se repercutia de cidade em cidade, de villa em villa, de aldeia em aldeia, era o prenuncio da perda da independencia de um reino. Nos sons do bronze, que as brizas lavavam ao longe, havia o soluçar, os gemidos, os gritos de agonia de um povo livre, que se sentia esmagar pelos pesados e ignominiosos grilhões da escravidão. Era o echo medonho do estertor de uma nacionalidade.

D. Antonio, prior do Crato, neto de D. Manuel, por ser filho illegitimo do infante D. Luiz e de Violante Gomes, que tambem aspirava á successão do throno portuguez, não era o homem talhado para oppôr uma seria sesistencia ao poderio da ambiciosa Castella. Iam já longe os tempos do mestre de Aviz e do condestavel D. Nuno Alvares Pereira.

A sua derrota em Alcantara, aos 25 de agosto de 1580, apagou os ultimos lampejos de esperança da salvação de um reino, que era a patria de tantos varões assignalados, a patria do grande cantor das nossas glorias, Luiz de Camões, que morria pobre e esquecido, aos 10 de junho d'esse mesmo anno, murmurando n'um supremo arranco de amargo desconsolo:

Ao menos morro com a patira!

Os acontecimentos e os homens estavam do lado do rei catholico, tudo o favorecia. O pendão das quinas era arrastado aos pés dos leões de Castella. Por toda a parte as populações humilhadas erguiam as mãos supplicantes, para que lhes poupassem os terrores do combate, e Filippe II, atravessando Portugal, onde todas as portas se lhe abriam, entrou triumphante em Lisboa depois de um curto arremedo de resistencia.

Os destinos de Portugal consummaram-se. A Providencia fizera sentir rijamente o peso da sua mão; as faltas tinham sido grandes, mas o castigo foi tremendo.

Sessenta annos durou o captiveiro.

Os povos teem as suas estações como a terra, os seus periodos de seiva e de esterilidade. Foi preciso vir uma geração nova para fazer despertar Portugal do somno da servidão, para desenganar a soberba do rei catholico, castigar tantos aggravos, tantas violencias, tantas extorções, a má fé e as ciladas do condeduque de Olivares, ministro omnipotente de Filippe IV de Castella (III de Portugal).

A rapida e bem succedida revolução de 1640 deu o throno portuguez ao duque de Bragança, D. João.

Raiava novamente o sol da liberdade, Portugal ergueu-se, como um só homem, á voz de um punhado de intrepidos patriotas, quarenta eram elles, que, em algumas horas arrancavam, n'um esforço sublime, das mãos de Filipppe IV, o sceptro de um reino, mostrando ao soberbo castelhano que uma nação, que illuminou o mundo com o reflexo das suas glorias, não podia deixar-se flagellar como escrava, abdicar da sua dignidade, da sua individualidade.

A lição era severa, e por isso difficil de acceitar.

Vinte e sete annos durou a grerra da Restauração, em que os portuguezes ganharam as quatro grandes victorias, Montijo, Linhas d'Elvas, Ameixial e Montes Claros.

D. João IV, o fundador da dynastia brigantina, sem ter as qualidades de um grande rei, soube presidir aos destinos do paiz e corresponder aos encargos difficeis que lhe impunham as circumstancias politicas d'aquella epocha.

Por desgraça ia, por sua morte, cahir a corôa na cabeça do principe D. Affonso, um pobre louco, nervoso e epileptico, inapto para governar um reino. Seu irmão, o infante D. Pedro, que breve lhe havia de tirar o throno e a impudica esposa, era mais intelligente, mas não lhe ficava atraz em malvadez.

A dynastia brigantina não estava predestinada a produzir homens que tivessem as qualidades de D. Diniz, D. João I, D. Duarte e D. João II.

Encerramos aqui este esboço historico, que nos serve de introducção.

No decorrer das scenas do drama intimo, de que nos vamos occupar, trataremos desenvolvidamente das escandalosas e complicadas peripecias, que tiveram por tragico desfecho a deposição, e o divorcio de D. Affonso VI, que duramente expiou as suas loucuras. Era de facto um desequilibrado, mas as agonias com que o laceraram resgatam perante a posterioridade todos os seus erros e fraquezas.

CAPITULO I

Tio e sobrinho

Ao cahir de uma tarde quente de junho, apeava se á porta do convento de S. Romão um mancebo que teria uns vinte e tres annos, e que pelo trajo se via ser militar. Era alto e delgado, porém musculoso; a sua cabeça gentil, emmoldurada por annellados e negros cabellos, que lhe cabiam sobre os hombros, a sua physionomia grave, mas franca, formavam um conjuncto attrahente que o tornava sympathico, logo á primeira vista.

Apeou-se ligeiramente do cavallo em que vinha montado, e, depois de entregar as redeas a um velho soldado, que o acompanhava, dirigiu-se para a portaria, onde fez soar a sineta, cujo timbre sonoro echoou pelas abobadas dos sombrios e silenciosos claustros.

Correu apressado o porteiro, que, ao deparar com o moço militar, soltou um oh! profundo e expressivo, acompanhado de um sorriso revelador da satisfação que sentia, e fechando de novo e com todo o cuidado a porta por onde o mancebo entrára, subiu as escadas com a destreza, que os seus annos e as suas pernas tropegas, lhe permittiam, para avisar o seu superior da inesperada visita.

A cella, que frei Venancio da Purificação occupava, era ampla, mas triste e fria, apesar de ser allumiada por uma janella que dominava toda a cerca. As paredes nuas, pintadas de uma côr escura, e um grande crucifixo, collocado ao fundo, tornavam aquella Camara quasi sinistra e funebre. A um canto via-se um pequeno leito de pau santo, onde o bom do frade descançava o alquebrado corpo, depois de longas e laboriosas vigilias. Em frente da janella havia uma mesa com pés torneados, sobre a qual estavam alguns in-folios e um amplo tinteiro de metal branco: duas cadeiras de espaldar completavam toda a mobilia.

Frei Venancio era um velho magro, alquebrada pelos annos. O seu rosto comprido, mas proporcionado, tinha alguma coisa de elevado e de grandioso, que á primeira vista inspirava respeito e estima. A sua cabeça, illuminada por um resplendor de cans alvissimas, era magestosa, mas os seus olhos negros, ainda vivos e scintillantes, contrastavam com o sorriso melancholico, quasi amargo, que se lhe deslisava nos beiços frios e pallidos.

Seria um santo, a sua vida teria sido sempre irreprehensivel, quem o sabe dizer? A egreja não o canonizou, nem o vulgo crendeiro conta os seus milagres, mas com certeza que Deus o chamou a si, á hora da morte, pelo muito que soffreu n'este mundo, e pelo bem que derramou.

Quando o porteiro bateu á porta da cella, estava frei Venancio sentado em frente da janella, com os cotovellos apoiados na mesa e a cabeça encostada á palma da mão direita.

Um tenue raio de sol, já quasi no occaso, allumiava-lhe o venerando rosto.

Lia ou meditava?... Seria difficil dizel-o.

-- Não se incommode, tio, sou eu, seu sobrinho Carlos da Silveira, -- e o moço militar, abrindo com estrepito a porta, precipitou-se na cella.

O frade, erguendo se de chofre, ficou-se a contemplar o sobrinho, que respeitosamente parou a alguns passos de distancia, nos seus olhos brilharam duas lagrimas, que suavemente deslizaram pelo emmagrecido rosto, depois, sem dizer uma palavra, abriu paternalmente os braços ao moço militar.

Foi longo e sentido o amplexo, que a ambos trazia saudosas recordações.

-- Tua mãe? -- perguntou o velho.

-- Fina-se a chorar depois da morte do pae.

-- Coitada, tambem lhe tem sido pesada a cruz. Mas senta-te e descança, que deves estar fatigado, pois longa foi a jornada. Vieste só?

-- Acompanha-me um velho soldado, que esteve por muitos annos ao serviço de meu pae, o Thomaz, que o tio deve conhecer.

-- Depressa, -- tornou frei Venancio, voltando-se para o porteiro, que submisso aguardava as ordens do seu superior, -- recolham e tenham cuidado nos cavallos, e deem de comer a esse homem. Mas tu tambem deves ter vontade, na tua edade e depois de andar um bom par de leguas! Vá, vá depressa, frei Thomé, faça o que eu lhe recommendei, e diga de caminho ao cosinheiro que traga alguma coisa succulenta, para meu sobrinho. Não se demore, que um estomago de vinte e tres annos não admitte delongas.

-- Não me esperava, tio?

-- Sabia que partias para a côrte, mas não te esperava ainda hoje.

-- O infante espera-me --respondeu o mancebo.

-- Sim, sei que vaes entrar para o serviço de sua alteza, o infante D. Pedro. A côrte tem seducções, mas tambem tem perigos serios para um rapaz da tua edade; falta-te a experiencia da vida, e gira-te um sangue quente nas veias. Eu sei o desgosto que déste á tua pobre mãe, por causa dos amores com uma rapariga, que bailava pelas ruas, uma cigana que foi tua amante.

-- Isso foi um capricho, uma loucura dos verdes annos; um amor dos sentidos, que se desvaneceu com a posse do objecto desejado, uma aventura sem consequencias, que teve a vida das rosas. Effectivamente a rapariga era formosissima, e tinha os mais lindos olhos negros, que hei visto na minha vida.

-- Sim, sim disse o frade. -- Mas essa gente é má e vingativa, e eu sei que a cigana tinha por ti uma paixão ardente. Felizmente foi um amor passageiro, e, como dizes, sem consequencias, e praza a Deus, que não as tenha ainda.

-- Vae já decorrido um anno, e a pobre deve ter-se resignado -- respondeu o mancebo sorrindo.

-- Quem sabe!... Quem pode prever o futuro? -- tornou o frade, que se quedou n'um meditar profundo.

O que se passaria n'aquella alma? Só elle e Deus saberiam dizer.

Contava-se, vagamente, que o frade tivera, na sua mocidade, uma d'essas paixões que destroem para sempre a vida d'um homem, e mais nada; o habito tornara impenetravel o segredo d'aquelle coração.

Passado alguns minutos, ergueu a fronte, cravou os olhos velados pelas lagrimas no mancebo, e exclamou com voz sumida mas convulsa:

-- Sim, no amor d'alma é que está todo o perigo, é esse que enlouquece e que mata...

-- Socegue, meu bom tio, hei de saber resistir ás seducções das damas da côrte.

-- E's moço, tens um coração ardente, e ninguem póde assegurar que um dia não sejas victima d'uma d'essas paixões fataes, que esterelisam, que matam as faculdades do homem... Estás na força da vida, e a mulher tem seducções a que a juventude não sabe, nem pode resistir. Oh! tenho medo!... tenho medo!...

-- Lembrar-me-hei dos seus conselhos, meu tio, e estarei precavido. Eu já sei que as damas da côrte são inconstantes, e não acreditarei nas suas palavras.

-- Scepticismos dos vinte annos, que descambam quasi sempre nas mais cegas crendices. Olha, meu rapaz, quando a mulher quer, o homem, apesar de toda a sua vaidade, é sempre pequeno ao pé d'ella.

Uma pancada discreta soou á porta da cella.

-- Entre quem é -- disse o frade levantando-se.

Um leigo entrou na cella trazendo um taboleiro com diversas iguarias, que collocou sobre a mesa, depois de fazer uma respeitosa reverencia: -- Pax Christi.

Carlos da Silveira fez honra á merenda, de que o seu estomago estava bem precisado. Durante um quarto de hora, apenas se ouviu na cella o som metalico do garfo e da faca, manejados com denodo, por um pulso firme e experimentado, e a bulha das maxilas triturando as appetitosas iguarias cosinhadas pelas mãos babeis e prestigiosas de frei Thomé das Chagas, que assim se chamava o cosinheiro, que ha mais de trinta annos fazia as delicias do convento.

O velho conservou-se immovel e silencioso, com os olhos fixados no sobrinho.

Foi Carlos da Silveira que rompeu aquelle silencio.

-- Que noticias tem da côrte, meu tio? Consta que o infante D. Pedro se reconciliou com el-rei, seu irmão, que finalmente lhe permittiu o eleger outros gentis homens para substituir os que, por intrigas do valído, lhe tinham sido tirados. Diz-se mais, que tudo se encaminha para a conclusão do casamento de sua alteza.

-- Sim, consta que para se conservar a corôa na dynastia de Bragança -- disse o padre, -- o valído, a instancias do marquez de Niza e do marquez de Sande, falou sobre o caso a el-rei, que mandou dizer ao infante, que declarasse a princeza da Europa a que era mais affeiçoado. Certificou-lhe sua alteza, que se submetteria á sua vontade, pedindo-lhe, porém, que houvesse por bem mandar consultar os soberanos de Inglaterra, e deixar tudo o mais a cargo do seu secretario João da Rocha de Azevedo.

-- Parece tambem haver-se estabelecido a harmonia entre o infante e o valído d'el-rei, o conde de Castello-Melhor.

-- Os partidos fatigados fizeram treguas -- respondeu o frade, -- mas essa quietação é apenas apparente. A tempestade, que se accumula no horisonte, não tardará a rebentar tremenda e sinistra. Entre el-rei e o infante existe um odio mal soffrido, que a menor circumstancia fará explodir: são inimigos impossiveis de conciliar. As ambições gladiam-se rijamente, e a paz tambem não pode existir por muito tempo, entre os parciaes do valído e os servidores do infante. A intriga, a calumnia e a aleivosia minam a côrte e hão de arrastar no abysmo D. Affonso VI, e o seu valído, que, apesar de intelligente, não tem pulso para sustentar o seu poder nem o sceptro, que já oscilla nas mãos frouxas de um principe imbecil, que pelos seus descommedimentos, pelos seus escandalos e pelas suas furias de louco, tem arruinado as sympathias do povo, augmentando assim o credito do infante, que, para satisfazer a sua ambição, não perde o menor ensejo de o tornar malquisto. A trama habilmente urdida pelo incançavel conselheiro do infante, D. Rodrigo de Menezes, e pelos padres da companhia de Jesus, ha de fatalmente envolver o conde ministro e o proprio rei. O peor é que tudo isto nos póde arrastar a uma guerra civil, que tão favoravel seria para os castelhanos, que não se podem conformar com a perda de Portugal.

-- Mas hão de perder a esperança de o recuperar -- disse com enthusiasmo Carlos,-- pois seja qual fôr o resultado do incidente, esta pequena, mas briosa nação, encontrará sempre nos seus filhos a energia e a força para defender, contra o estrangeiro, o solo sagrado da patria.

-- Encaras desassombradamente o futuro, mas o teu espirito, ainda pouco reflexivel, não pode medir a extensão dos perigos. A ambição humana não tem limites; o homem tudo lhe sacrifica: a honra, a familia e até a patria. Traidores tem havido, e, para vergonha nossa, não tem sido poucos, nem de baixa estofa.

-- Ainda ha homens de bem e de espirito superior -- tornou o mancebo, -- que pela sua palavra, pelas suas acções, saberão conjurar os perigos que nos ameaçam.

-- Sim, creio que Deus não nos abandonou de todo: temos ainda diplomatas como o conde de Soure e o marquez de Sande.

-- E generaes como D. Sancho Manuel, e o conde de Cantanhede,-- replicou o mancebo.

-- O proprio conde de Castello-Melhor -- proseguiu o frade, -- apesar da sua ambição e dos poucos escrupulos nos seus manejos politicos, tem revelado aptidões d'estadista no exercicio do seu cargo de escrivão da puridade, que lhe dá as prerogativas de primeiro ministro.

-- E o poder absoluto, tio, que elle exerce sem limites, em nome de um rei fraco e ignorante dos negocios publicos.

-- O conde governa tudo, é verdade, -- volveu o frade -- mas o mais difficil para elle é dirigir o animo irresoluto de el-rei, que o torna tão pequeno nas affeições como na má vontade. O moço conde, que conseguiu tornar-se omnipotente pelo golpe de Estado, que tirou a regencia á rainha mãe D. Luiza, tem de luctar com uma coisa mais forte do que o partido do infante: a inconsciencia d'el-rei, que os ha de arrastar a ambos. Mas tudo isto aos olhos de Deus não é mais do que uma lucta de pygmeus com velleidades de titans! -- E o velho erguendo-se, approximou-se da janella, e ficou por alguns instantes contemplando a immensidade do céo.

Depois, voltando-se novamente para o sobrinho, continuou: -- O que será d'este pobre reino se a Providencia lhe não acudir! As suas forças estão exgottadas, não pode com mais sacrificios. Os juros e as tenças não se pagam, as rendas e as commendas estão empenhadas, e para maior desgraça as terras das fronteiras, taladas pelo inimigo e pelos proprios defensores, estão por cultivar.

-- E as conquistas, tio?

-- O crepusculo fatal da nossa gloria tambem lá chegou -- respondeu o frade, -- e o que nos resta d'aquelle immenso imperio é apenas uma tenue sombra d'um passado glorioso, como nação alguma ainda teve, mas que se extinguiu. Lá se foi ultimamente Bombaim, na India, e Tanger, na Africa, levou-as a infanta D.Catharina na sua bagagem, como joias de subido valor que eram, quando casou com Carlos II de Inglaterra. Por toda a parte a decadencia, a ruina e a miseria. Os povos gemem sob o peso de tantas calamidades, e em pouco tempo não poderão pagar impostos, satisfazer as despesas da guerra, nem sequer sustentar as vidas.

-- Portugal não pode acceitar uma paz deshonrosa. O sacrificio da fazenda e da propria vida é um dever que se impõe. A guerra é uma coisa necessaria e divina -- replicou o mancebo.

-- Como homem de guerra falas.

-- E como christão, tio.

-- Quando o homem, constituido em nação, tem de defender a vida, a familia, a patria, -- proseguiu o frade, -- então sim, a guerra é uma obrigação virtuosa, uma necessidade, um dever que se impõe, mas não é uma lei divina; a destruição violenta dos seres viventes não pode ser ordenada por Deus.

-- Por que lhe chamam então o Deus dos exercitos?

-- Esse é o Deus do Sinai -- respondeu o padre. -- O Deus do christianismo chama-se Redemptor. Não veiu ensinar ao homem a lei do sangue, a morte do homem pelo homem, veiu ensinar-lhe a amar ao proximo como a nós mesmos.

-- E como justifica o homem essas hecatombes praticadas pela propria Egreja, em nome de um Deus de paz e de misericordia? -- replicou o mancebo.

-- Blasphemando da religião, falsificando as palavras do Homem-Deus. Esses supplicios, essas carnificinas, sejam ordenadas pela mão dos reis, dos povos ou dos pontifices, são sempre nocivas á religião. O fanatismo, que é o excesso da fé, produz a intolerancia e a ferocidade; mas a violencia não converte, escandaliza; não é revoltando o espirito que se subjuga o coração. O inquisidor e o jesuita dominam esta pobre terra, são dois systemas em que Deus é sempre ludibriado. O povo, mais supersticioso e fatalista, do que religioso, crê, mas não sabe discutir as suas crenças, e facilmente se deixa arrastar pelo terror. -- Dizia um velho donato a um frade que estava estudando o discurso que havia de proferir na festa do orago: Irmão, metta-lhe muito latim, muito enxofre e muito pez a ferver nas caldeiras de Pero Botelho. O homenzinho conhecia bem a sua gente.

Instantes depois tio e sobrinho desciam á portaria, onde, avisado por frei Thomé, o velho soldado os esperava, segurando os cavallos pelas redeas.

Frei Venancio, encostando-se ao braço do sobrinho, acompanhou-o até um pequeno bosque, que já ficava distante do convento. Alli, o mancebo, depois de abraçar mais uma vez o tio, montou a cavallo e seguiu o seu destino.

O frade subiu a um pequeno alto e ficou a contemplar o gentil militar, até que os seus cançados olhos, embaciados pelas lagrimas, o perderam de vista. Um fatal presentimento lhe invadia a alma. Quem pode explicar estas previsões secretas e instinctivas de funestos acontecimentos?

Quando regressava ao convento tocava o sino ás Ave-Marias, e ao longe ouvia-se a voz das ceifeiras, que recolhiam do campo, cantando em côro a poetica oração da tarde.

O velho ergueu as mãos e ajoelhou n'aquelle grande templo, que tinha por altar a montanha, e por lampadarios as estrellas que começavam a brilhar no azul do céo.

A sua oração, n'aquella tarde, foi longa; quando se ergueu já era noite fechada. O silencio era profundo, mas ao longe, no horisonte, via-se um extranho clarão, e espessos rolos de fumo se elevavam em espiraes, que se perdiam no espaço. Era talvez o incendio de alguma aldeia da raia a que os exercitos invasores tivessem deitado fogo.

Então o velho encaminhou-se a passos lentos para a portaria, onde já o esperava frei Thomé, impaciente e receoso de tamanha demora.

CAPITULO II

Presagios funestos

A noite estava calmosa, mas escura, e os cavalleiros iam a passo por causa das desegualdades do terreno e dos barrancos cavados pelas torrentes do ultimo inverno, que tinha sido rigoroso.

-- Que excommungado caminho! -- disse o velho soldado.

-- Com um milhão de diabos! -- bradou Carlos. -- Isto não é estrada, é o caminho do inferno! Os cavallos não podem ir mais depressa, e tarde chegaremos ao nosso destino.

-- O meu já se foi a baixo por duas vezes! -- disse o velho.

-- Isto faz-me lembrar aquella malfadada noite em que acompanhei a casa o senhor tenente general Luiz da Silveira, seu pae, que, depois de obrar prodigios de valor, cahiu ferido por dois zagalotes, no ataque dos negregados hespanhoes contra Alter-do-Chão. Que noite, que noite aquella, Santo Deus! estava negra como um prego, e o maldito do caminho parecia que não tinha fim. A minha unica consolação era lembrar-me da coça que tinhamos dado áquelles perros de castelhanos; os que não ficáram no campo, fugiram como estorninhos; aquillo é que foi debandada!

-- Foi n'esse ataque que salvaste a vida a meu pae.

-- Cumpri com o meu dever, senhor capitão, e a coisa não foi para ahi de monta... O cavallo do senhor tenente general tinha cabido morto, e elle, por estar gravemente ferido, não podia defender-se d'aquelles cachorros que o atacavam.

-- Foi então que correste em seu soccorro.

-- Não fui eu só, meu capitão, alguns bravos rapazes me acompanharam. Eu quando vi cahir o meu general bradei-lhes: A'vante, rapazes, salvemos o nosso general! Foi então que arrancámos com gana contra o inimigo. Foi rija a lucta, lá isso foi; mas com um milhão de diabos! em menos de dois credos limpámos o terreno, e podémos transportar o nosso general, que, por ter perdido muito sangue, já não dava accordo de si. Chegamos a julgal-o morto! e eu a lembrar-me da dôr que aquella santa, sua mãe, havia de sentir quando lhe dessem a noticia da morte do marido. Foi então que chorei, não tenho vergonha de o dizer, chorei lagrimas como punhos. Eu é que tinha sido um bruto, um desastrado, em não ter acudido a tempo de salvar o meu general...

-- E amigo. -- Atalhou o mancebo com voz carinhosa.

-- E amigo, sim, meu capitão. Nada valho, bem sei; mas posso affirmar-lhe que toda a sua familia nunca teve um amigo mais dedicado. Meus pães já serviam a sua casa, e foi n'ella que eu nasci, e que me creei; foi de seu pae que eu recebi as primeiras lições d'estas coisas de guerra -- e o velho, enxugando uma lagrima com as costas da mão, continuou: -- isto nunca pode esquecer a um homem...

-- Que tenha um coração leal como o teu.

-- Eu creio que sim -- respondeu o velho, -- que todas estas coisas vem do coração. Dizem que é a cabeça que pensa, mas, mal d'ella, quando o coração não a aconselha.

Os dois viajantes proseguiram o caminho calados. O velho pensando no passado, o moço no futuro, n'esse mundo novo que para elle se ia abrir, nas suas esperanças, nas suas ambições, nos deslumbramentos da côrte, onde lhe diziam haver tantas fascinações, tantas mulheres formosas, que só viviam para amar e ser amadas. Para um, o futuro era a vida que desabrochava com todos os seus esplendores; para o outro, era o occaso, o fim fatal, a cova, para a qual o seu cançado corpo já se inclinava.

De repente o velho estacou.

-- O que é? -- perguntou o mancebo.

-- Pareceu-me ouvir o galope de um cavallo, alli, -- disse o soldado, apontando para a frente.

Carlos poz-se tambem a escutar.

-- Foi engano teu, não oiço nada.

-- Saiba vossa mercê, que não me enganei, eu ainda tenho bom ouvido -- disse o velho, e ambos se puseram novamente a caminho.

N'uma volta que dava a estrada, o velho exclamou:

-- Lá está elle, o nocturno cavalleiro! -- e apontava para um monticulo onde se via um vulto negro, a que a distancia e a luz vacilante dos restos de uma fogueira, que algum almocreve para alli accendera, dava uma fórma gigantesca e quasi phantastica.

Carlos levou a mão á espada, e o velho preparou a escopeta que trazia atravessada no arção dianteiro da sella, e ambos se dirigiram para o vulto que se conservava immovel.

-- Por vida minha, que se me vai tornando suspeito o tal avejão! -- disse o soldado.

-- Se é um espião, pagará cara a sua curiosidade. -- Volveu o moço militar, picando de esporas o cavallo, que partiu a todo o galope.

Quando se approximava do monticulo, um clarão mais vivo da fogueira, produzido por uma aragem fresca que começou a levantar-se, allumiou o rosto do desconhecido. Então duas exclamações, que estavam longe de serem aggressivas, se fizeram ouvir quasi simultaneamente.

-- Francisco de Oliveira! -- exclamou Carlos.

-- Carlos da Silveira! -- exclamou o outro mancebo, que pela voz conhecera o seu amigo.

-- Que feliz acaso! -- disse Carlos estendendo a mão, que o outro apertou com sincera amizade. Os dois mancebos conheciam-se por se terem encontrado no exercito.

-- De ha muito que eu ouvia o tropear dos cavallos, e como de noite todos os gatos são pardos, quiz certificar me se eram amigos, ou inimigos, que eu tinha pela retaguarda.

-- Vais para Lisboa? -- perguntou Carlos.

-- Vou.

-- E eu tambem: tenho de lá estar ámanhã para entrar ao serviço de sua alteza.

-- Folgo deveras -- disse Francisco de Oliveira. -- Eu tambem pertenço á casa do infante, e muito folgo de ter um companheiro tão amavel e tão valente.

Cavalgando a par, seguiram o caminho conversando em coisas da guerra, nas ambições e escandalos da côrte, e até nos seus amores, pois Francisco de Oliveira tinha fama de ser bem visto pelas damas, e de incorrigivel seductor.

O nosso novo personagem era um bello mancebo e um valente militar, que começou muito cêdo a ser iniciado nas intrigas da côrte, e nas carnificinas dos campos de batalha. Era orgulhoso no rosto e nos gestos, porém, franco e affavel no tracto intimo. Em conclusão: tinha todas as qualidades, e todos os defeitos d'um cortezão. Quando Carlos o encontrou, vestia um gibão esguio e de côr escura, na cabeça um chapeo de abas largas, e como os caminhos não eram seguros, além da espada, presa de um talim bordado, trazia um bacamarte a tiracollo, e um par de pistolas nos coldres. Voltava d'Elvas, onde fôra mandado, secretamente pelo infante, com uma carta da rainha para o marechal Schomberg, que tambem estava iniciado nos segredos da conspiração que se tramava contra o valído, e contra o proprio rei.

O caminho que os dois amigos agora seguiam, a meia encosta de uma collina coberta de arvoredo, atravessava uma região selvagem e deserta. A' esquerda ficava a iminencia d'onde rompia um pinhal basto e emmaranhado de urzes e de estevas, que cresciam entre as sarças e o tojo. Pelo topo das arvores corria de tempos a tempos uma aragem, que produzia um ruido, que umas vezes similava o embate das vagas na costa do oceano, outras vezes, o murmurio brando das aguas do regato correndo sobre os seixos. O estridor dos rallos, e o zumbido de outros insectos, juntando-se ás innumeras vozes, que animam as solidões, produziam essa doce e melancholica harmonia, que caracterisa as nossas formosas noites de verão, e que era apenas interrompida, a espaços, por umas notas soltas e discordantes, como o piar triste dos mochos, e os gritos sinistros das curujas.

De tempos a tempos, tambem se viam uns pontos luminosos, vagueando por entre a escuridão. Eram os lobos, cujos uivos prolongados e lugubres causavam pavor.

Então o cavallo do soldado, que era o mais medroso, empinava-se, o que fazia soltar pragas medonhas ao supersticioso cavalleiro, que, diga-se a verdade, não estava muito senhor de si, desde que um morcego, n'um dos seus desordenados vôos, lhe tinha fustigado o rosto.

Os dois mancebos, absorvidos n'aquelle maravilhoso espectaculo da natureza, tinham cortado o dialogo, e caminhavam silenciosos, quando um incidente extranho lhes chamou a attenção.

Aos seus ouvidos chegou uma voz, ao principio confusa, mas que a pouco e pouco se tornou distincta.

Era a voz de uma mulher, uma voz sonora, mas fresca, que indicava mocidade, e que n'uma cadencia triste como um gemido de rola, e funebre como um dobre de finados, cantava:

Tu eras a minha vida,

De tua vida eu vivia;

Eras a alma, eu o corpo,

A ti a vida eu daria!

Eras a voz, eu o écho,

Só comtigo eu existia.

O dois moços, movidos pela curiosidade, metteram-se á matta, para vêr se descobriam a extranha cantora.

A voz calara-se, mas passados alguns instantes fez-se ouvir novamente, affastando-se sempre á medida que os dois cavalleiros avançavam:

Pobre flor dos meus amores,

Entre goivos te perdeste,

Na solidão do sepulchro

Para sempre emmurcheceste;

Pobre flor dos meus amores,

Que tão cedo emmurcheceste!

-- Quem será a fada d’estes bosques? -- disse Carlos.

-- Talvez seja alguma moira encantada -- replicou sorrindo Francisco de Oliveira.

-- Ou alguma alma penada! -- disse o velho persignando-se.

Falando assim, chegaram a uma clareira, onde depararam com um espectaculo extranho.

Era um acampamento de ciganos. Uma grande fogueira illuminava, com a sua luz vermelha e sinistra, toda aquella scena, que inspirava um extraordinario sentimento de horror.

Homens, mulheres e creanças, cobertos de sordidos e extravagantes trajos, verdadeiros farrapos, de variegadas côres, já desbotados, e mosqueados de lentejoilas, formavam grupos ao redor da fogueira, e soltavam de instante a instante, n'uma toada funebre, lamentos, imprecações e ais, que, acompanhados de altos e sentidos prantos, formavam um côro impossivel de descrever, um accorde monstruoso de horrores, em que havia gritos estridentes de animaes de rapina, pios melancholicos de aves nocturnas, arrancos de condemnados, a quem quebraram os ossos no potro.

Os dois jovens tinham parado á entrada da clareira, paralysados pelo pavor que lhes causava tão extranha scena.

No meio d'aquelles grupos, estrebuchava uma mulher velha, descomposta e desconjuntada, que mais parecia um esqueleto, soltando, entre palavras inintelligiveis, gritos agudos e prolongados, que similavam uivos de feras.

Quando a velha viu os dois militares, ergueu-se como impellida por occulla mola, e com um gesto violento fez afastar os grupos. Foi então que elles viram, que sobre um improvisado estrado estava um caixão feito de toscas taboas de pinho, pintadas de negro.

No caixão via-se o vulto de uma mulher joven, quasi adolescente e d'uma extraordinaria belleza, que mais parecia adormecida do que morta, tal era a suavidade do seu rosto, ainda illuminado por um sorriso de anjo, que lhe ficára impresso nos formosos labios.

Carlos impellido por um poder occulto, uma vontade extranha, que o esmagava, approximou-se da morta.

A velha, com passos vacillantes de ebria, tambem se approximou, e deixou cahir a sua mão descarnada e adunca no hombro do mancebo, que estremeceu ao sentir aquelle impuro contacto.

Era pavorosa aquella mulher! No seu rosto negro, magro e enrugado, só havia de humano os olhos, que, á luz da fogueira, lançavam chispas e brilhavam como dois carbunculos.

A velha, inclinando-se para a morta, exclamou com voz rouca e tremula:

-- Foram os esconjuros que o trouxeram aqui. Eu bem sabia que elle havia de vir; era a morte que o chamava! Havia de vir, ou o filho das trevas não seria o rei dos infernos! -- e voltando-se para o mancebo, continuou com a sua voz cava de vidente: -- Vieste, agora olha bem para ella! é a minha filha Aixa, a bella cigana, a virgem dos olhos de fogo, que morreu de amor! Vê, vê bem... o fogo já se apagou dos seus olhos, os seus labios emmudeceram para sempre, e nunca mais ouvirei d'elles as suas canções, nem o nome de mãe! e tudo isto foi obra tua, foste tu que roubaste o meu thesoiro, a minha vida! Maldicto, maldicto!

E todo o bando repetiu como um echo funebre:

-- Maldicto! Maldicto!

-- Eu bem sabia que tudo havia de acabar assim -- continuou a velha. -- Uma noite ouvi cantar o sapo! é signal de tremenda desgraça! A coruja tambem riu, e a coruja é a mensageira da morte! -- Então, arrancando da fogueira um tronco incendiado, agitou-o acima da cabeça, fazendo espalhar um sem numero de faiscas, que envolveram n'um circulo de fogo aquella sinistra figura.

Depois começou a cantar com voz lenta e funebre:

De tanta terra enfeitada,

A terra que menos brilha

E' a porção que hoje cobre

Os restos de minha filha!

Os homens tangendo as violas, e as mulheres os adufes, continuaram na sua toada plangente:

Erguei-vos, flores da noite,

Tristes rosas da manhã;

Velem umas sobre as outras

O tumulo de nossa irmã.

Carlos contemplava a morta, não podia despregar a vista d'aquelle corpo gentil, que tantas vezes sentira agitar-se em fremitos de amor; d'aquelles olhos, agora extinctos, que lhe recordavam promessas infinitas, caricias de fogo; d'aquella bocca formosa, que sempre encontrara sequiosa de desejos, insaciavel de beijos.

Depois, como accordando d'aquelle sonho, pegou n'um ramo de alfazema, que estava n'um pucaro de barro com agua benta, espargiu o cadaver da pobre creança, e impellido talvez por um tardio remorso, ajoelhou e orou. Quando se ergueu, viu outra vez a velha, que ameaçadora e com o braço estendido, lhe apontava para a sahida da clareira, bradando:

-- Vai-te pelas chammas do inferno! Vai-te pelos chifres do anjo das trevas, e que a minha maldição te persiga para sempre!...

Carlos atirou com uma bolsa aos pés da velha, e fugiu passado de terror.

Os seus dois companheiros não estavam menos horrorisados e compungidos.

Ninguem, por mais endurecido e cynico, poderia deixar de se affligir e dobrar, ao vêr aquelles miseraveis vagabundos, d'uma raça que se perde na antiguidade remota dos tempos, sempre perseguidos e odiados, sem lar, sem patria, quasi sem Deus, celebrando, no meio de uma floresta secular, o funeral de uma creança.

Foi tal a impressão que esta scena produziu no espirito dos tres viajantes, que por muitas horas vaguearam pela floresta, sem ter noção do caminho nem do tempo.

Quando sahiram da matta já era dia claro, um esplendido dia de verão.

A região, em que então se encontravam, deixava já de ser selvagem e deserta, e os dois mancebos pararam para melhor centemplar aquelle novo e maravilhoso espectaculo da natureza. As suas almas, como os seus olhos, dilatavam-se pela extensão dos campos, já cortados por algumas povoações isoladas, que, como sentinelas perdidas, animavam aquelle quadro admiravel, ao fundo do qual, lá ao longe, muito longe, se avistatava, por entre leves brumas, Lisboa. Essa minuscula Lisboa do seculo XVII, já famosa e bella, que orgulhosa se mirava nas aguas crystallinas do seu formoso Tejo.

O velho soldado, que ficára um pouco atraz, chamou a attenção dos dois jovens para uma grande nuvem de poeira, doirada pelos raios do sol, que se levantara ao fundo da estrada e parecia avançar com vertiginosa rapidez. Não tardou que se avistasse uma brilhante cavalgada.

Era a côrte que voltava de Salvaterra, onde tinha havido caçada aos javalis, jogos de cannas e de alcanzias.

El-rei, acompanhado pelo conde de Castello-Melhor, levava o seu cavallo em carreira desfechada e era seguido pelos moços fidalgos. Todo aquelle luzido cortejo passou, como um turbilhão, pela frente dos dois militares.

O aspecto d'el-rei era rude e quasi feroz, tinha-se repetido n'aquella manhã uma d'essas scenas violentas, tão frequentes entre os dois irmãos, e o monarcha passou pelos dois mancebos sem sequer dar por elles.

A distancia vinha a liteira da rainha, que era seguida pelos seus gentis-homens e damas da côrte, e pelos creados do infante D. Pedro, que, montando um bello alazão, garbosamente cavalgava ao lado da liteira.

D. Pedro reparou nos dois militares, e reconhecendo Francisco de Oliveira, afastou-se um pouco, e fez-lhe signal para que se approximasse.

Depois de trocarem algumas palavras em voz baixa, o infante perguntou-lhe quem era o seu companheiro.

-- Saiba vossa alteza, que é o capitão Carlos da Silveira, que D. Rodrigo de Menezes esperava.

-- E que vem entrar ao meu serviço. Bem vindo seja, que bem preciso de servidores valentes e leaes -- disse o infante, -- e, dando de esporas ao cavallo, foi collocar-se ao lado da rainha, que o recebeu com um sorriso, que teria provocado algum commentario malicioso das travessas damas da côrte, se o tivessem visto.

Os dois amigos ajuntaram-se aos creados do infante, e assim entraram em Lisboa.

A côrte dirigiu-se para o paço, e D. Pedro, com os seus creados, para o Corte-Real, que ficava proximo ao Corpo-Santo.

CAPITULO III

Como o diabo as tece

Lisboa já então era coquette, tinha aspirações de elegante, e orgulhos de rainha.

Já de ha muito ultrapassara o dominio das suas muralhas, que a asphixiavam, que lhe tolhiam as suas expansões, os seus justificados vôos de ambição. O seu commercio, a sua população, que augmentavam a olhos vistos, davam-lhe vida, uma alma nova.

Lá dizia Garcia de Rezende:

Lisboa vimos crescer

Em provas e em grandeza,

e muito se nobrecer

em edificios, riqueza

em armas, e em poder.

Já não era a pacata cidade de outr'ora, tornara-se buliçosa, tinha agitações nervosas, caprichos de cortezan, e até rumores desusados que a estonteavam, e como diz ainda o poeta quinhentista, Antonio Ferreira:

Pelas ruas mil cambos, mil recambos

cargas vem, cargas vão, mil mós, mil traves,

um arranca, outro foge, e encontro entre ambos.

E' nas suas ruas animadas pelos pregões, pelo bulicio do seu trato commercial, pelo tropiar dos ginetes, que vamos conduzir o leitor.

O movimento n'aquelle dia era desusado.

Commemorava-se a gloriosa revolução de 1640, e havia Te-Deum na Sé, a que assistiu toda a côrte.

Apesar do dia ter amanhecido frio e brumoso, desde muito cedo se via um numeroso concurso de povo pelas ruas, principalmente desde o Terreiro do Paço até á Sé. As janellas apinhavam-se de damas gentis e garridas, que trocavam olhares gaiatos e incendiarios com os peraltas, que garbosamente faziam cavalgar os seus ginetes. Lisboa foi sempre namoradiça! Em fim, não houve adufa que ficasse cerrada, e até nos telhados se via gente.

O rumor da multidão, o repique dos sinos, o estalar dos fogos d'artificio, e o estrondo das salvas do castello de S. Jorge e dos navios surtos do Tejo manifestavam o regosijo que animava a população.

No largo da Sé, cruzavam-se os coches e as liteiras, qual o mais elegante e mais rico em ornatos doirados, dos titulares e fidalgos, que vinham assistir á festa.

Um borborinho, mais accentuado, se prolongou por toda aquella mó de povo, que n'um movimento desordenado se empurrava, acotovelava e pisava para vêr o luzido cortejo, que começava a sahir dos paços da Ribeira.

Doze trombeteiros, montados em magnificos cavallosos, ricamente ajaezados, annunciavam suas magestades. Seguia-se-lhes os seis porteiros da camara vestidos de preto com maças de prata doirada ao hombro, e os doze reis d'armas, arautos e passavantes, trazendo ricas cotas d'armas e cadeias d'oiro, e logo os coches de gentis-homens e damas da côrte que precediam o coche real, o mesmo que tinha servido nas bôdas d'el-rei, que se destinguia pela sua riqueza de ornatos e preciosidade dos brocados, e que era puxado por oito cavallos brancos, adornados com ricos jaezes e plumas brancas e carmezins. Os cocheiros e lacaios vestiam libré vermelha com passamanes azues.

Dentro do coche vinha el-rei, sentado á esquerda da rainha que vestia de brocado verde. O brilho dos preciosos diamantes fazia realçar a belleza do seu collo e davam tons de oiro aos seus bellos cabellos, que em graciosas tranças lhe cabiam sobre os modelados hombros.

O povo, ao vel-a, soltava gritos de admiração e brados de enthusiasmo, acompanhados de surdos reparos, pouco lisongeiros para o seu real esposo.

Um frade anafado e de pescoço apopletico resmungou ao vel-a passar:

-- Dá Deus nozes a quem não tem dentes.

O dito fez sorrir maliciosamente duas comadres, que se achavam perto.

Atraz dos coches vinham muitos cavalleiros, e a guarda alleman e portugueza.

Quando o coche real chegou á cathedral, desceu o senado e todo o cabido, com o pallio a receber as magestades.

A egreja estava sumptuosamente armada de cortinas de veludo e brocado, e de ricos lós, que, em graciosas pregas e festoes, ornamentavam as paredes e as capellas revestidas de preciosa talha doirada.

A riqueza dos vestuarios da corte, a profusão das flores, os milhares de lumes que ardiam nos altares, os rolos de fumo dos incensos que se queimavam nos thuribulos, davam um aspecto imponente ao vasto templo.

Não tardou que começasse a cerimonia: então a harmonia grandiosa dos instrumentos e dos cantos religiosos, irrompendo por aquellas vetustas abobadas, veiu completar a maravilha do templo, e encher de uncção todos os corações.

Estava a cerimonia quasi no fim, quando se ouviu um grande borborinho no largo, e o tropear de cavallos.

Era o infante D. Pedro, que acabava de chegar de Queluz, para onde se tinha retirado, por causa das desavenças com seu irmão, e que vinha assistir ao Te-Deum.

O infante curvou-se diante d’el-rei, e foi mui respeitosamente beijar a mão da rainha, em cujos olhos se reflectiu todo o fogo que lhe ardia no coração.

O rosto do monarcha annuviou-se, e todos repararam que elle acolhia com má sombra o infante.

Carlos da Silveira não tinha acompanhado o infante, mas assistiu á cerimonia religiosa.

Encostado a uma columna parecia estranho áquelle maravilhoso espectaculo. Os seus olhos não se podiam desprender d'uma gentil dama, que estava ajoelhada n'uma capella lateral.

Tudo para elle era indifferente, tudo lhe parecia sombrio, depois d'aquella apparição de luz, d'aquella visão celeste! Effectivamente aquella mulher era infinitamante bella, tinha alguma coisa de sobrehumana! As suas feições eram regulares e perfeitas, os seus olhos exprimiam a suave melancholia e o casto pudor das almas virgens, e o seu rosto puro de anjo, emmoldurado por cabellos de oiro, e colorido por um sangue vivo e quente, que lhe corria nas veias, tinha a côr do marmore trespassada por um raio de sol. Todo aquelle conjuncto de perfeições formavam um mysterio que não se podia decifrar.

O moço militar não se fartava de admirar os encantos d'aquella divindade, tudo para elle desapparecia deante da luz suave e attrahente d'aquelles olhos azues, tão bellos como ainda não vira em mulher alguma.

O moço provinciano não podia fugir á attracção ou poder fascinador d'aquella mulher, sentia-se captivo, sentia que já não podia viver senão para a adorar.

Por acaso, ou por uma d'essas attracções, que não se podem explicar, os seus olhos encontraram-se, e as suas almas fundiram-se n'aquelle olhar!

Não fôra sómente Carlos, que notara a belleza d'aquella mulher desconhecida. El-rei tambem reparara n'ella, e trocara algumas palavras em voz baixa com Henrique Henriques, um dos seus valídos.

Este contemplou por alguns instantes a desconhecida, e seguindo-lhe o olhar, descobriu o mancebo. Então os olhos dos dois homens cruzaram-se como duas espadas. Carlos estremeceu, e no rosto cynico do alcaide d'el-rei transpareceu um sorriso mau.

Como o tio frade teria tambem estremecido, se visse aquelle olhar!

N'esta occasião outra scena, não menos interessante, se passava no templo.

A rainha que tinha todo o empenho em reconciliar os dois irmãos, aproveitou o ensejo da presença do infante para dizer a el-rei, com voz suave e graciosa da mulher que pede e quer ser attendida: -- Era agora uma boa occasião de vossa magestade pedir ao infante para voltar á côrte... -- Para estar mais perto de si -- atalhou el-rei com voz rude e terrivel, que fez empallidecer a rainha.

O conde de Castello-Melhor e mais fidalgos, tambem tremeram, apesar de não terem ouvido as palavras d'el-rei; mas o seu aspecto duro e colerico indi-cava que alguma coisa séria se tinha passado entre os dois esposos, e todos sabiam que os accessos de colera do monarcha eram terriveis.

Acabada a cerimonia, a côrte tornou a entrar nos seus coches, e alguns populares clamaram:

-- Viva el-rei!

-- Viva a rainha!

A rainha sorriu, mas el-rei, sempre taciturno, nem sequer olhou para a multidão que rodeava o coche.

Quando o infante appareceu á porta do templo, uma voz nazal, mas forte e aguda, clamou:

-- Viva o senhor infante!

Era a voz do juiz do povo, que foi secundada por um alentado frade, que berrou a ponto de ficar côr de betarraba:

-- Viva sua alteza!

O enthusiasmo do povo chegou então ao delirio e todos bradaram:

-- Viva o senhor infante!

-- Viva sua alteza!

O infante depois de montar o seu bello alazão, sorriu, dirigindo ao mesmo tempo um gesto amigavel ao juiz do povo, que ficou muito ancho da sua pessoa, como todo o villão que se julga adulado pelos nobres.

O balofo e vaidoso corrieiro julgava-se já um homem d'Estado, e para maior desgraça tinha velleidades a orador.

A raça tem-se perpetuado!

A dama desconhecida, com a sua mantilha em bioco, e acompanhada por uma velha, que parecia serva, tambem sahiu do templo, e quando descia as escadas olhou para o mancebo, e n'um sorriso casto e melancholico, deixou ver o esmalte dos seus dentes, que mais pareciam peérolas em alveolos de rosas.

Carlos, que não podia despregar os olhos d'aquelle corpo gentil, fez, o que eu e tu leitor farias, se ainda te corre nas veias um sangue vivo e quente... seguiu a bella desconhecida.

O povo foi dispersando pouco a pouco. Encheram-se as tabernas d 'Alfama, e houve algumas rixas promovidas pelos valentes da patrulha baixa, que já ebrios andavam provocando desordens.

A' noite a cidade illuminou brilhantemente; o seu aspecto phantastico contrastava com as suas noites tristes, escuras e cheias de terriveis mysterios.

A multidão, que pasmada percorria as ruas, convergia principalmente para o Terreiro do Paço, para ver as illuminações do paço, os fogos de artificio no Tejo, e as danças e charolas, entre as quaes se salientava uma cohorte de ricos moiros, que, de tochas accezas, dançavam ao som de instrumentos alegres, o que fazia rir muito o povo e as damas da côrte.

Pouco a pouco as luzes foram-se apagando e estalecendo-se o habitual socego.

Quando o relogio na Sé bateu dez horas, apenas se ouvia, a espaços, os gritos das sentinellas, os pios das aves nocturnas, que se abrigavam nas velhas muralhas moiriscas, e o uivar dos cães, que em bandos divagavam pelas ruas da cidade.

Só no Côrte-Real havia uma janella aberta, a do quarto de Carlos da Silveira, que, encostado ao peitoril, estava absorvido nos sens pensamentos, nos seus sonhos de amor. Sentia-se subjugado pela força irresistivel de uma paixão nascente! Era a fascinação, o sortilegio da belleza.

Quando se deitou já o crepusculo da manhã começava a alvejar o horisonte.

Quem sabe se a formosa desconhecida tambem passou sem dormir n'aquella noite!

CAPITULO IV

Bisbilhotices

Antes de proseguir, não podemos deixar de fazer um rapido esboço de alguns personagens, que apparecem no capitulo antecedente.

El-rei D. Affonso VI era um imbecil mau. Tinha o rosto pallido, o beiço inferior grosso e descahido; os olhos azues desbotados e sem expressão, que só a colera conseguia animar por instantes; então tornavam-se medonhos, e infundiam o pavor que produz a presença d'um louco. Os cabellos, que em desalinho lhe caniam sobre os hombros, eram loiros, mas d'um loiro insipido.

Era excessivamente gordo e barrigudo, tinha os hombros desiguaes em altura, e arrastava ligeiramente a perna direita, defeito que lhe ficara d'uma paralysia que tivera aos tres annos.

Finalme«nte, era analphabeto, glutão, bebado, e escandalosamente devasso, mas muito devoto, dizem, de S. Bernardo, cujo dia santificou, fazendo-o feriado nos tribunaes.

O santo não o protegeu!

O infante D. Pedro, irmão d'el-rei, era de grande estatura e robustez; os olhos e os cabellos eram negros, e o seu rosto tinha uma expressão de soberba, que por vezes se tornava feroz.

Era mais intelligente que o irmão, mas hypocrita, dissimulado, e perfido.

A rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya, princeza de Aumale, parenta de Luiz XIV, e neta em quarto grau da celebre Lucrecia Borgia, não obstante considerar-se uma das mais formosas princezas da Europa, não era uma verdadeira belleza. A cabeça muito grande, não estava em proporção com o seu corpo pequeno e franzino. Era comtudo graciosa e tinha essa extraordinaria elegancia e vivacidade de espirito, que dá uma superioridade dominante á mulher franceza sobre o seu sexo.

São estes os tres personagens predominantes do mais repugnante drama, que ainda se agitou nos passos dos nossos reis:

Um rei fraco, quasi paralytico e louco;

Um irmão ambicioso e perfido;

Uma rainha impudica.

Diziam uns, que os seus amores com o infante começaram logo no primeiro dia em que se viram, outros, que foi em Salvaterra, onde el-rei folgava muito de ir á caça.

A caça é um prazer dilecto dos nossos reis, e nos Braganças é quasi paixão.

Já o duque D. João II, depois D. João IV, caçava despreoccupadamente na sua famosa tapada de Villa Viçosa, em quanto um punhado de heroicos portuguezes trabalhavam com sacrificio das proprias vidas, para lhe darem um reino.

Adeante...

Pouco importa saber como começaram aquelles amores incestuosos, entre os dois cunhados. O facto era inevitavel, já conhecido de todos, e nem elles se preoccupavam em occultal-o.

A inclinação por parte da rainha, sejamos indulgentes, era quasi natural. A impudicicia e o cynismo é que a tornam criminosa.

Princeza orgulhosa e coquette, ainda impregnada de todas as voluptuosidades, que se exhalavam do throno de Luiz XIV, le roi soleil, e dos mysteriosos bosques de Fontainebleau, confidentes dos amores de La Valière, e de tantas outras formosissimas damas; acostumada aos galanteios dos cortezãos, como o conde de Guiche, e o duque de Lauzun, pelo qual se tinha apaixonado, não podia a rainha deixar de desprezar um marido repugnante e brutal, que os defeitos physicos e intellectuaes tornavam incapaz para o amor. Foi decerto pensando, no seu thalamo solitario, que os seus olhos se encontraram com os do infante.

O contraste era flagrante. A natureza não tinha favorecido muito o infante, mas estava no vigor da vida, em pleno vigor da mocidade, e era bem conhecido pelo garbo com que maneiava as redeas de seu alazão, e o denodo com que enterrava a faca de matto por entre as cerdas de um porco espinho.

Se ainda existissem os tribunaes de amor dos tempos cavalheirescos e galantes dos paladinos, qual seria a dama que ousaria condemnar a rainha por esse devaneio?

O peor é que o devaneio transformou-se em infamia.

O Papa absolveu e abençoou o incesto.

Roma é indulgente, mas avalia sempre os seus favores pelo toque do oiro.

Vamos apresentar ao leitor dois novos personagens, que apesar de serem secundarios, teem um papel interessante n'este veridico drama.

Perto do palacio ducal da Cordoaria velha, que, desde a acclamação de D. João IV, servia de thesoiro, archivo, e guarda-joias da familia de Bragança, existia a rua do Sacco.

Quasi ao fim d'esta rua, que era estreita e pouco extensa, via-se uma casa modesta, mas de boa apparencia, tendo á esquerda um jardim cercado de altos muros, cuja porta, grossa, era reforçada de enormes pregos.

Esta casa estava caiada com esmero, e as suas janellas, cuidadosamente fechadas por gelosias, dominavam o nosso formoso Tejo desde a barra até Alcochete.

Quasi em frente, n'um estreito casebre de um só pavimento, ficava a loja do mestre barbeiro, Aniceto Braz, que se annunciava pela sua bacia chata e pelas cortinas de baeta verde, já desbotadas.

O mestre, como todos os do seu officio, era o alviçareiro do bairro, e gosava larga fama, não só de manejar com pericia a navalha e a thesoira, mas de ser bom sangrador, e muito habil em deitar bixas, artigo em que elle tambem negociava, e que era indicado por um bocal pendurado á porta, em que se viam alguns dos mais bellos specimens.

E diga-se a verdade, mestre Aniceto não era homem que deixasse por mãos alheias os seus meritos cirurgicos.

Nem sempre a modestia é apanagio dos grandes artistas.

O barbeiro era já velho, mas espadaudo e pimpão, e ainda atiradiço.

Por esse mesmo tempo, na Cordoaria nova, uma rua estreitissima que corria ao longo da muralha e que ia dar ás portas de Santa Catharina, morava n'uma modesta casa a senhora Angelica da Purificação, antiga doceira e ainda servente do mosteiro de Santa Clara, que desde a morte da mulher do mestre Aniceto arranjava a casa e preparava as refeições. Diziam as más linguas que entre os dois havia ligações mais intimas, o que era custoso de acreditar, não só pelo aspecto severo e seraphico da senhora Angelica, mas tambem pelo seu corpo espalmado e rosto angular da côr do pergaminho velho.

Eram uns amores um pouco serodios, mas, em quanto ha pelle e osso...

Dava-se mais a circumstancia do velho soldado, que já conhecemos, ser amigo e ainda primo do barbeiro, e como levava então uma vida quasi sedentaria, visitava amiudadas vezes a loja de mestre Aniceto, onde passava horas esquecidas em alegres cavaqueiras e bisbilhotices, nas quaes a senhora Angelica muitas vezes tomava parte, principalmente quando os confeiteiros da rua do Sacco a deixavam livre.

Como dissemos, a senhora Angelica fôra doceira de convento, onde se fabricam mil gulodices assucaradas, e por isso de grande auxilio para os confeiteiros da rua do Sacco, que faziam as delicias de Lisboa gulosa.

Agora vamos surprehender os nossos tres personagens em flagrante delicto de bisbilhotice.

-- Pois, como eu ia contando -- dizia o barbeiro, -- vai talvez para seis annos que eu vi, com estes olhos, que a terra ha de comer, uma caçada publica no Terreiro do Paço, em que os mulatos d'el-rei lançavam contra cachorros ferozes lebreus que tinham vindo de Inglaterra.

El-rei estava com o Conti e ambos riam muito quando viam os cachorros rasgados pelos dentes d'aquellas feras.

-- Isso ainda é o menos, -- disse o soldado, -- o peor é quando lhe dá para andar de noite pela cidade, a espancar os cidadãos pacíficos, e as rondas, com a sua patrulha alta composta de má gente.

-- Lá isso tanto vale a alta como a baixa -- continuou o barbeiro, -- ambas se compõem de homens recrutados entre os facinorosos. Já mais de uma vez esses escandalos lhe iam custando a vida, mas não tem emenda. Uma tarde em que el-rei voltava de Palhavã, desviou-se dos que o acompanhavam, e foi atacar dois homens que avistou. Um d'elles tel-o-hia morto, se não ouvisse o Monteiro Mór gritar: Senhor, não é razão que vossa magestade mate os seus proprios vassallos. Foi a ouvir a palavra magestade que os homens cheios de medo se metteram atraz de um muro, livrando-se assim da colera d'el-rei. Pois logo dias depois, ao passar pelo Noviciado dos jesuitas, encontrou tres homens e deu sobre elles com a espada em punho, mas como ia de botas, embaraçou-se de maneira, que, aos primeiros golpes que lhe deram, cahiu por terra e ficou ferido n'uma verilha. Por um triz que não dão cabo d'elle.

-- E o escandalo em S. Roque, na procissão dos Passos -- atalhou o soldado, -- em que elle atacou um homem que ia com duas mulheres, e investiu depois o pateo da casa do marquez de Niza.

-- Pois sim, mas isso foi antes de ser casado -- ponderou a senhora Angelica.

-- Ora! bem se importa el rei com a brichota , o seu gosto é andar com os seus valentes -- exclamou mestre Aniceto.

-- Mas a rainha é muito formosa -- disse ainda a senhora Angelica.

-- El-rei não é homem! -- tornou o barbeiro.

-- Não é homem! -- disse a doceira abrindo muito os olhos.

-- Sim, elle é homem... é, e não é... teve umas doenças em menino, que o deixaram com defeito... você bem me entende... disse o barbeiro, um pouco atrapalhado com a explicação.

-- Eu d'essas cousas não percebo -- atalhou a senhora Angelica, baixando d'esta vez pudicamente os olhos. -- O que eu sei, é que, não ha ainda muito tempo, levaram para S. Vicente de Fóra um caixãosinho em que ia um infante, filho bastardo de el-rei.

-- Patranhas, patranhas! Coisas para illudir o povo! -- exclamou o mestre, sorvendo, com todo o preceito, uma pitada de rapé, que tirou de uma tosca caixa de pau do ar.

-- Arrebentado seja o demo! Que nossa Senhora do Amparo nos acuda! -- disse a senhora Angelica, fazendo o signal da cruz. -- A gente sempre ouve coisas, que é de uma pessoa ficar banzada! Abrenuncio, uma coisa assim! Olhe, mestre, isto já não se endireita senão com a vinda do desejado. As prophecias bem claro fallam...

A senhora Angelica era sebastianista convicta, mas, por felicidade do auditorio, já se não lembrava muito bem das prophecias, que uma freira velha, do mosteiro de Santa Clara, lhe havia ensinado.

-- O infante D. Pedro é d'outra estofa -- disse o soldado, atando o fio á conversa.

-- Esse é uma joia, tem um excellente coração... acudiu a doceira.

-- Disse a caldeira á sertan chega-te para lá não me enfarrusques -- disse ainda o incredulo barbeiro.

Aqui a conversação foi interrompida com a entrada d'um freguez, partidario do infante, que o mestre todo sorridente e cerimonioso se apressou em servir.

-- Que novidades há, mestre? -- perguntou o freguez, quando já não havia perigo d'algum gilvaz.

-- Quê, pois vossa mercê ainda não sabe a grande novidade do dia? Pois saiba que quizeram matar o conde da Ericeira D. Luiz.

-- Que diz, mestre?

-- Hontem ao anoitecer, quando o conde, em companhia de seu irmão e da condessa sua mulher, passava perto da arcada de S. Domingos, sahiram d'ella uns homens, que atiraram tres tiros ao coche, felizmente nenhum lhe acertou. O senhor infante, que attribue, com muita razão, o attentado ao conde de Castello Melhor, o valído de el-rei, já hoje foi ao paço pedir justiça e affirma-se que d'esta vez se retira de todo para Almada. Esta veiu agora mesmo fresquinha do Côrte Real, disse-m'a um freguez, que é da casa do senhor infante. -- E como tivesse acabado a obra, o doble mestre, todo mesureiro, acompanhou o freguez até á porta, onde ficou a farejar os outros. -- Hum... hum... parece que temos trovoada, e lá vai o pobre Lourenço, o jardineiro da D. Francisca, naturalmente com algum recado da ama; coitado, já está velho, e a mulher tambem.

-- O trabalho não os mata -- disse a doceira, -- uma casa só de duas pessoas, a D. Francisca e a sobrinha, que veiu ha quinze dias da Figueira.

-- E que é uma guapa moça -- accrescentou o barbeiro.

-- Ora, não é lá essas coisas por ahi além! -- disse a senhora Angelica.

-- Onde é a sua hucharia, mulher? Um palminho de cara assim nem a rainha tem.

-- O que para ahi vai!... o que para ahi vai! Santo Deus! -- exclamou a doceira já com voz avinagrada. -- E* um anjinho de alcorce!...

-- Não seja má lingua, senhora Angelica. A rapariga é recolhida e séria, não dá que fallar, e ninguem tem nada que lhe dizer. Por ahi andou um alfenin, todo perfumado em aguas rosadas... -- Bem sei... bem sei!... esse melro conheço eu -- disse a velha, -- e já tem desgraçado mais d'uma. Um bandalho, quebra esquinas das ruas d'Alfama, que não tem onde cair morto; dizem tambem que é poeta de oiteiros e tocador de bandurra em salões colgados de guadamecins. Que prenda, que prenda aquella!... E a pequena?...

-- Essa nem bus nem truz, nunca lhe apparecia.

-- Não é o mel para a bocca do asno, e guardado está o bocado para quem o ha de comer... -- concluiu a velha.

-- Agora anda para ahi outro -- continuou o barbeiro, -- um capitão, e gentil moço que elle é, dizem que pertence á casa do infante, mas a moça nada, creio até que nem deu ainda por isso...

-- Hum... -- rosnou a velha.

-- Um capitão, e da casa do senhor infante!... -- exclamou o soldado, approximando-se da porta.

-- Mas, falai no mau... ahi vem elle -- disse o mestre.

N'aquelle instante acabava de apparecer, á bocca da rua, um cavalleiro.

-- Caspité! como vem secio e guapo!

O velho soldado enfiou ao ver o cavalleiro, e discretamente abandonou a porta.

-- Você conhece-o? -- perguntou mestre Aniceto.

-- Se conheço? -- respondeu o soldado. -- E' meu amo, o senhor capitão Carlos da Silveira.

Justamente n'aquelle dia, quando o mancebo já vinha perto do muro, abriu-se, talvez por acaso, uma das gelosias, deixando ver uma linda cabeça de mulher, que já conhecemos da egreja da Sé.

Então a senhora Angelica, com um sorriso triumphante e malicioso, exclamou:

-- Bem affirma o rifão, que nem as donas em sobrado, nem as rãs em charco, nem as agulhas em sacco pódem estar sem deitar a cabecinha de fóra!

A senhora Adgelica tinha ás vezes espirito, um espirito seraphico e arranhadiço, que lhe tinha ficado do contacto com as madres.

-- Pois agora é que eu digo que boas artes teve o mafarrico para assim fazer capitulara praça -- ponderou o barbeiro.

-- Sim senhor, bom gosto teve meu amo! que guapa e escorreita é a moça! -- accrescentou o soldado.

-- Mas pobre, e sem ter d'onde lhe venha, que da tia pouco ou nada pode herdar -- disse ainda a senhora Angelica.

-- Meu amo não precisa que a mulher lhe leve dote -- respondeu o soldado com voz azeda. -- Seja ella amoravel e boa dona de casa, que a abastança não lhe faltará.

Era escusado dizer que os passeios do moço militar continuaram pela rua do Sacco, e que a donzella tambem continuou a deitar a cabecinha de fóra. Um dia, talvez ainda por acaso, que no amor ha muitos d’estes acasos, a moça deixou cahir uma flôr que lhe ornava os cabellos, e que o mancebo, depois de a levar aos labios, guardou sobre o coração.

Um d'esses nadas que dão instantes de felicidade, talvez os unicos da vida.

Isto durou assim por alguns dias, até que a donzella, por intervenção da senhora Angelica, que o soldado soube domesticar, recebeu um bilhetinho perfumado.

Ainda assim, para vencer os escrupulos da velha, foi preciso que lhe escorregassem na mão dois cruzados novos, e que o mancebo lhe jurasse que era para bem.

CAPITULO V

A queda d'um anjo

Era effectivamente a bella desconhecida da egreja da Sé, que habitava a casa da rua do Sacco, que já descrevemos no capitulo antecedente.

Era filha d'um fidalgo que, depois de arruinar-se na côrte, se tinha retirado para a provincia. A mãe tinha morrido, quando ella era ainda muito nova.

Do pae, homem rude e brutal, devasso e jogador, poucas ou nenhumas caricias tinha recebido.

Valia á pobre menina uma tia velha e professa, senhora de merecimento e illustração, que era muito amiga da sobrinha e que a educou.

Infelizmente a pobre senhora tambem morreu, quando a donzella tinha dezeseis annos.

Esta nova desventura veiu amargurar-lhe mais a alma; achava-se, por assim dizer, só no mundo, e uma profunda melancolia lhe devorava a existencia. A pobresinha só encontrava alivio na oração, e era ajoelhada diante da imagem da Santa Virgem, a amorosa consoladora dos afflictos, que a pobre donzella passava horas esquecidas, pedindo-lhe remedio para os seus males, e que lhe desse ao menos o amor de seu pae, que ella, apesar de tudo, estimava muito.

Um dia o pae cahiu gravemente doente, foi então que, tardiamente, se arrependeu e se lembrou d'uma irmã que tinha em Lisboa, e que elle tambem havia quasi arruinado; escreveu-lhe pedindo-lhe que protegesse a filha.

Poucos dias depois morreu, apesar dos esforços dos medicos para o salvar, e dos cuidados e carinhos da filha.

O fidalgo não tinha muita idade, mas as devassidões haviam-lhe arruinado o organismo, e não poude resistir á doença que o atacou.

Quando o pae expirou, a donzella, suffocada pelas lagrimas, cahiu de joelhos e orou por muito tempo junto do leito.

Pedia á Virgem que fosse misericordiosa para com seu pae, e para com ella, que ficava orphan e sem apoio.

Enterrado o fidalgo, os credores apoderaram-se do pouco que já havia, e a desditosa menina partiu para Lisboa, apenas com algumas roupas de seu uso.

A tia era uma excellente senhora, já idosa e quasi paralytica, que passava os seus dias sentada ao pé de uma janella do seu quarto, lendo um livro de orações.

Recebeu a sobrinha de braços abertos, e não tardou a affeiçoar-se-lhe devéras. Se a donzella era tão adoravel, tão solicita em fazer todas as vontades á doente, em amimal-a, em suavisar-lhe as agruras da vida!

Quem podia deixar de morrer de amores por aquelle anjinho do céo? como dizia a senhora Barbara e o velho jardineiro, que eram os unicos servos da casa.

Mas, era triste, diziam elles. Era; a desgraça tinha-lhe dado esse ar melancholico de candura, de religiosa resignação, que illuminava o seu bello rosto com uma luz divina de bondade e perfeição moral.

A donzella pouco sahia, entretinha-se, nas horas que a tia a deixava, em tratar das suas flores, ou em ajudar a velha creada.

A' noite, ao serão, em quanto a velha Barbara escabeceava recitando as suas interminaveis orações, trabalhava ella em mimosos lavores, proprios do seu sexo, que para isso tinha mãos de fada.

A casa de D. Francisca, com os seus moveis antigos e tapeçarias desbotadas, era triste e quasi severa; mas tudo aquillo, ao cabo de alguns dias, tinha tomado um aspecto novo e risonho, via-se que tinha por alli andado a mão de uma mulher nova e bella. Tudo estava impregnado do seu perfume, da sua alma innocente e namorada.

As flores, que se viam por toda a parte, enchiam o ar de suaves emanações, e o canto das avesinhas, fechadas nas suas gaiolas doiradas, completava o encando d'aquelle santuario, que assim se podia chamar a casa da rua do Sacco.

Santuario da belleza, da innocencia e da virtude.

Chamava-se Maria a donzella; até o nome era bonito... Maria chama-se a Mãe de Deus!

Quando n'um domingo ao sahir da missa a velha lhe entregou a carta de Carlos, o sangue subiu-lhe em ondas ao rosto e o seio arfou-lhe de um modo extranho. Ao chegar a casa dirigiu-se logo para o seu quarto, mas não abriu a carta; tinha-a na mão, sabia que era d'elle, do seu adorado, mas não se estrevia a abril-a. Aquelle papel, que ella segurava com os seus finos dedos, tinha effluvios magneticos, que a faziam estremecer.

Esteve assim por alguns segundos, suspensa, transportada em arrebatamentos que até áquelle dia ella desconhecia, commoções divinas, que faziam vibrar-lhe o coração em harmonias celestes. Então ajoelhou, e foi aos pés da imagem da Virgem que leu a sua primeira carta de amor.

No dia seguinte quando appareceu á janella, estava mais branca do que o costume e as suas palpebras inferiores tinham a côr suave e triste da violeta, mas nem por isso estava menos bella... pelo contrario, o seu rosto parecia banhado por uma nova luz. Era a luz da bemaventurança, a luz da alvorada do primeiro amor, e os seus olhos disseram n'aquella tarde ao mancebo que a sua imagem querida estava para sempre gravavada no seu coração.

Eram tão felizes aquellas duas almas!... e com tudo Carlos sentia ás vezes um vago receio pelo futuro. Era a propria felicidade que o fazia tremer... tinha medo de a perder.

Uma vez foi mais tarde, já era noite e as janellas estavam fechadas. O mancebo, por acaso, esse deus protector dos namorados, ou por que houvesse sido avisado pela doceira, encontrou a porta do jardim apenas encostada.

Era uma imprudencia, mas a donzella tinha tanta confiança em si e na honra do mancebo...

Quando Carlos entrou no jardim, viu ao fundo um vulto branco, sentado n'um banco de pedra, entre massiços de verdura.

Era ella, era Maria, que lhe estendeu meigamente a mão, que elle apertou com extremosissimo affecto, mas que não se atreveu a levar aos labios.

Os homens teem ás vezes esses accessos de timidez, em que não se deve confiar muito. A timidez tambem é traiçoeira, e a mulher quanto mais pura e simples, menos sabe resistir aos impetos do coração, quando a paixão a domina.

O que disseram elles n'aquella noite?... Quem póde traduzir a linguagem dos amantes, reproduzir esses doces colloquios em que a palavra é substituida por suspiros, caricias, sorrisos e lagrimas de ternura...

Uma vez que se conservavam silenciosos, uma lagrima, ou antes uma perola, desprendendo-se dos olhos da donzella, cahiu sobre a mao do mancebo; elle estremeceu e exclamou:

-- Como te amo, Maria!

-- Tambem eu te amo muito, e muito!

Outra vez o corpo flexivel da donzella inclinou-se tanto para o mancebo, que elle ao sentir o arfar d'aquelle seio virgem, o halito perfumado que se exhalava dos seus labios semi-abertos, cahiu de joelhos aos seus pés murmurando n'um impeto de voluptuosos desejos:

-- Como eu sou feliz, Maria!...

Ella apertando-lhe suavemente as mãos, disse-lhe:

-- Jura que me has de amar eternamente.

-- Sim, juro que te amo, e que sem ti não saberia viver.

-- Não me enganas?

-- Duvidas de mim?

-- Não, não duvido, o teu amor é tambem a minha vida!...

Eram sinceros aquelles juramentos. Aquellas almas tinham-se fundido ao primeiro olhar, e nem a morte as podia separar, porque a morte não tem poder sobre as almas.

Uma noite o mancebo cingiu com o braço direito o corpo gentil da donzella, e os seus labios encontraram-se...

Ella estremeceu, e fugiu tremula, como uma avesinha que é perseguida, pretextando que alguem a chamava... talvez que a tia tivesse acordado... que se sentisse peor... e o que diriam se a não encontrassem...

Esta scena repetiu-se mais vezes; a donzella ia perdendo a confiança que tinha em si...

Uma noite, Carlos foi mais tarde, a donzella estava nervosa, sobresaltada. Quando viu entrar o mancebo soltou um grito em que ia toda a sua alma e estendeu-lhe as mãos.

Carlos cahiu ajoelhado aos seus pés; então os bellos olhos da donzella, cobriram-se de lagrimas, que se desprenderam em fios.

-- Carlos! Carlos! como eu te amo! -- murmurou quasi inintelligivelmente a donzella.

-- Tens um coração de anjo, Maria.

-- Tenho um coração que te ama, e sinto-me tão feliz!...

Carlos puxou-a brandamente para si, e um beijo de amor cortou a phrase nos labios da donzella.

Ella quiz fugir, mas a terra foltou-lhe debaixo dos

pés, e desfallecida, inerte e quasi sem sentidos, cahiu nos braços do mancebo. Depois... seguiram-se falas incoherentes, phrases soltas cortadas por novos beijos, suspiros, caricias, vibrações convulsivas e requebros de que se compõe a linguagem dos amantes...

A queda d'aquelle anjo era inevitavel: a propria timidez, a propria ingenuidade, a propria innocencia a arrastavam ao abysmo.

Até a natureza parecia conspirar contra a pobre menina n'aquella noite. O céo estava purissimo e crivado de estrellas, o luar tinha scintillaçoes mais crystallinas, a aragem era mais tepida, o ramalhar das arvores similhava o adejar de anjos, a agua cahindo no tanque tinha murmurios mais suaves e as flôres perfumes mais penetrantes, e até para completar o encanto, um rouxinol, no tronco de uma arvore, trinava os seus amores.

Quando Carlos sahiu do jardim era tarde, já a estrella d'alva brilhava no horisonte.

O mancebo, com a alma cheia de inextinguivel amor e de fagueiras esperanças, não reparou n'uma mulher que estava sentada no vão de uma porta, nem n'um vulto negro de homem, que occultando-se na sombra dos muros, o seguiu até ao Corte-Real.

O velho soldado, que vigiava o mancebo, sem este o saber, reparou no homem e reconheceu-o... era o Manco, um malvado da patrulha baixa d'el-rei. Não disse nada ao mancebo, para não descobrir a sua louvavel espionagem, mas jurou a si proprio, redobrar a sua vigilancia.

CAPITULO VI

O rapto

Carlos teve de ir no dia seguinte a Almada, onde estava o infante, e eram onze horas da noite quando se dirigiu para a rua do Sacco.

O ceo estava carregado de nuvens espessas e negras, que os clarões dos relampagos rasgavam a espaços.

O mancebo caminhava preoccupado, um presentimento lhe invadia a alma; talvez influencia da atmosphera, a noite estava tão triste e tão cheia de fluidos magneticos...

Quando entrou na rua do Sacco já cahiam algumas gottas d'agua.

Carlos reparou então n'um objecto negro que estava perto da porta do jardim.

O objecto negro era uma liteira, e, ao clarão d'um relampago, o mancebo viu uns homens que transportavam nos braços uma mulher morta ou desmaiada.

Correu para elles, mas antes de chegar ao muro encontrou na frente dois homens, que, com a espada em punho, lhe impediam o caminho.

O mancebo arrancou da espada, e, um combate terrivel se travou entre os tres adversarios.

Carlos que era valente e experimentado no manejo das armas, atacou com furia os dois assaltantes, que, mais costumados a brandir a faca e o punhal, começavam a fraquejar e a perder terreno. Então appareceu outro homem embuçado, era Henrique, em cuja mão brilhou, ao lampejo d'um raio que fendia as nuvens, o ferro d’uma espada que foi cravar-se no peito do mancebo.

Um grito terrivel, de dôr e de agonia, se confundiu com o estalar do trovão, que medonhamente retumbou de montanha em montanha.

Ouviu-se ainda o rumor dos passos dos assassinos que fugiam, e depois tudo ficou silencioso. A liteira tambem tinha desapparecido.

Um vulto, que surgiu á bocca da rua, avançou cautelosamente, mas quando chegou ao pé do muro tropeçou com um corpo. Era o soldado. O velho tinha ouvido aquelle grito de dôr e de angustia, que conheceu sahir dos labios de seu pobre amo. Abaixou-se a tremer, e á luz d'um relampago viu-lhe o rosto livido, é a medonha ferida no peito por onde o sangue sahia em jorros. Então afflicto foi bater á porta do barbeiro.

-- Bata com a cabeça -- respondeu este com voz somnorenta.

-- Abra, abra por amor de Deus, primo; abra, que aconteceu uma grande desgraça...

Mestre Braz poucos instantes depois abriu a porta todo assarapantado.

-- Então o que ha, primo, morreu alguem?!...

-- Morreu meu amo... mataram-no... mataram-no... aquelles malvados... aquelles assassinos da patrulha -- e o velho n'um accesso de desespero arrancava os cabellos.

-- O que me diz você, homem?...

-- Está alli, está alli... o meu pobre amo -- e o velho, louco de dôr, apontava para o lado do muro.

A tempestade ia cada vez crescendo mais, chovia a cantaros, e os relampagos succediam-se quasi sem intervallos.

Os dois homens approximaram-se do mancebo, o barbeiro examinou a ferida e poz-lhe a mão sobre o coração.

-- A ferida é medonha, mas o coração ainda bate -- disse elle.

-- O que hei de fazer, Santo Deus! -- exclamou o soldado.

-- Primeiro que tudo, tiral-o d'aqui e transportal-o para onde possa ser tratado.

-- Mas para onde?... para o Corte Real não pode ser, meu amo tem inimigos terriveis, e não estaria ali em segurança. E' preciso que todos ignorem o seu paradeiro.

-- Na minha baiuca não pode elle ficar -- murmurou de si para si o barbeiro; depois batendo uma palmada na testa, como quem tem uma idéa salvadora, disse para o soldado: -- Pegue-lhe você pelos braços, que eu pego-lhe pelas pernas, -- e ambos em silencio caminharam vagorosamente, e com todas as cautelas, para a rua da Cordoaria Nova, onde, n'uma casa quasi isolada, morava a senhora Angelica.

A velha accordando sobresaltada, e julgando serem ladrões, que lhe arrombavam a porta, gritou: -- Aqui d'el-rei! -- e só a muito custo o barbeiro conseguiu socegal-a, e fazer com que ella abrisse a porta; mas ao ver o corpo inanimado e ensanguentado do mancebo, recuou horrorisada exclamando: -- Quê, pois vocês trazem-me um morto?

-- Longe vá o seu agoiro, mulher -- disse o soldado.

Os dois homens entraram, despiram o mancebo, e deitaram-no na cama da velha, que, tranzida de susto e agachada a um canto, resava a todos os santos e santas da côrte do céo, e principalmente a Nossa Senhora do Amparo, de que era muito devota, para que a livrassem de trabalhos e maus encontros. De tempos a tempos interrompia as suas devoções, com ais e sentidas exclamações, por ver a sua casa assim invadida. Aquella casa, onde nunca entrara sombra de calção, segundo ella dizia.

O soldado tambem estava desorientado; o pobre velho, que assistira a tantos combates, que vira succumbir no campo tantos companheiros d'armas, não podia ouvir, sem se lhe arripiarem os cabellos, os gemidos entre-cortados de Carlos da Silveira, do seu menino, a quem elle queria tanto como se fosse seu filho, e as lagrimas corriam-lhe em fios pelas faces bronzeadas dos raios do sol.

Só o barbeiro conservava o seu sangue frio; solicito e carinhoso, lavou a ferida do mancebo, e fez-lhe os primeiros curativos, que, diga-se a verdade, não foram desacertados, attendendo aos minguados conhecimentos cirurgicos de mestre Braz.

Mas d'esta vez o barbeiro, ou por que se interessasse deveras pelo mancebo, ou por que reconhecesse que toda a sua sciencia não estava á altura da gravidade do caso, logo no dia seguinte, ao amanhecer, foi chamar um medico judeu, homem honrado e discreto, e sobretudo habil na cura de feridas.

Veiu o medico, examinou o mancebo, renovou o apparelho com toda a pericia, e depois de recommendar o tratamento que se devia fazer, sahiu, dizendo que voltava na tarde do mesmo dia.

Quando ia a transpor a porta do quarto, o soldado perguntou-lhe se o seu amo se salvaria.

-- Talvez -- respondeu simplesmente o medico, que não era charlatão como quasi todos os seus collegas, d'aquelle tempo.

A senhora Angelica, que já se ia harmonizando, graças ás generosidades do soldado, desenvolvia tambem todos os seus meritos de boa enfermeira. Com o que ella não se podia ainda conformar, era com o medico judeu, e todas as vezes que elle sabia, ia logo defumar a casa com alfazema e benzer com agua benta todos os objectos em que elle tinha tocado. Anjo bento! o que diriam as santas madres, se soubessem que na sua santa casa entrava um judeu, um excommungado, um descendente dos phariseus que tinham martyrisado o filho de Deus!

Em fim, a senhora Angelica tinha bom fundo, como vulgarmente se diz, e os impulsos do seu coração, e alguns cruzados novos, acabaram de vencer os escrupulos.

São duas coisas que teem muito poder n'este mundo.

O soldado e a velha velavam constantemente á cabeceira do enfermo, que, abrasado pela febre, e na força do delirio, soltava palavras incoherentes e gemidos de agonia, e com as mãos convulsas e hirtas procurava arrancar da ferida as ataduras que o opprimiam.

O mancebo tinha delirios terriveis, então era o nome d'ella, sempre o nome d'ella -- Maria -- que elle pronunciava no meio dos arrancos do coração, das convulsões medonhas que lhe agitavam o corpo. Via-a perseguida por innumeras figuras disformes, phantasmas hediondos e terriveis que soltavam urros pavorosos, que iam abafar os soluços e os gritos de dôr da pobre menina. Depois todos aquelles monstros desappareciam n'um turbilhão informe e medonho, e os sons funebres dos sinos, dobrando por finados, chegavam aos seus ouvidos, e via-a morta, morta, a adorada do seu coração!... Então estendia os braços hirtos e convulsos para o vacuo, e pallido, com os olhos a sahir-lhe das orbitas, procurava erguer-se sobre a cama.

Acudia-lhe o soldado, em quanto a senhora Angelica fugia espavorida, resmungando as suas orações, para o fundo do quarto.

O barbeiro vinha visitar frequentemente o enfermo, e muitas noites revezar os dois enfermeiros.

A desapparição do mancebo causou extranheza no Côrte-Real, onde todos estavam persuadidos que tivesse sido assassinado, e mais por politica, que por convicção, attribuia-se a sua morte aos partidarios do valído.

Outra versão corria com insistencia, á qual não eram extranhos os malvados das duas patrulhas d'el-rei, e talvez fossem elles que a espalharam. Dizia-se que o mancebo fugira com uma linda menina, que elle raptara.

Na casa da rua do Sacco, onde tudo eram lagrimas e desconsolo, tambem se pensava o mesmo.

O velho soldado, para saber noticias, e desnortear os animos, ia algumas vezes ao Côrte-Real perguntar pelo amo e mostrava-se muito pesaroso com o seu desapparecimento; não precisava fingir, bem afflicto andava elle com o estado do amo.

Uma das vezes falou com Francisco de Oliveira, que elle sabia ser amigo dedicado do amo, e disse-lhe a verdade.

O moço capitão foi algumas vezes visitar o amigo, e empregou todos os esforços para descobrir o paradeiro de Maria, mas nada poude conseguir: parecia que a terra se tinha aberto com ella.

Passados muitos dias de desanimo, de anciedades, e de sobresaltos, o medico judeu declarou que o mancebo estava livre de perigo. Mais do que a sciencia, tinham vencido a morte os poderosos esforsos da sua robusta e juvenil organisação.

A senhora Angelica foi descalça á Graça pagar uma promessa que fizera ao Senhor dos Passos, para que o mancebo se salvasse.

O soldado não estava tão tranquillo; sabia que o amo nunca poderia esquecer aquella linda menina, que tanto amava, e por sua vez poz-se em campo para saber o que fôra feito d'ella, mas tambem não foi feliz.

Só um homem sabia onde ella estava, e esse, guardava bem o seu segredo.

CAPITULO VII

A Calcanhares

N'um d'esses bordeis que el-rei frequentava, para satisfazer os seus caprichos licenciosos, e onde se entregava ás mais vergonhosas devassidões, distinguiu elle uma mulher que veiu a ter grande influencia sobre o seu espirito fraco.

Essa mulher, era uma engeitada, conhecida pela alcunha de Calcanhares, por causa d'uns agudos saltos de pau que usava.

A Calcanhares era ainda muito nova, e sem ser alta, tinha uma estatura esbelta. O seu corpo, delgado, flexivel e languido, e principalmente elegante, apesar de ser uma mulher ordinaria. A sua fronte d'um primoroso modelado era arrogante, e ao mesmo tempo attrahente.

Tinha os cabellos negros retintos; os olhos tambem eram negros, mas cercados por um circulo azulado, que revelava o cançaço das orgias.

No olhar, que desferiam as suas pupillas por entre longas e assedadas pestanas, havia thesoiros de caricias, e por vezes uma expressão má.

Os seus labios vermelhos, um pouco grossos, que deixavam ver, quando se abriam, dentes alvissimos, promettiam voluptuosidades infindas, quando os não contrahiam um sorriso desdenhoso e ironico, que n'ella era vulgar.

Finalmente, havia n'aquella mulher, um mixto de candura e de ferocidade, de anjo e de demonio. Era o vulto de uma fada.

A Calcanhares habitava uma casa, que ficava fóra das portas da Ribeira, que pelo seu mysterio, e pela riqueza das armações e dos moveis, fazia lembrar um palacio de fadas ou um serralho do oriente.

E' n'essa casa, n'uma magnifica e elegante camara, onde a fragrancia das flores se misturava com o perfume do ambar, que a vamos encontrar.

Estava sentada n'um estrado ornado de brocado e velludo branco com bordaduras de oiro; a sua cabeça, um pouco inclinada para a frente, parecia vergar com o peso dos seus abundantes cabellos, que soltos, e em desalinho, iam cahir em ondas, sobre o estrado, exhalando perfumes inebriantes.

As finissimas roupas amarrotadas e tambem em descomposto desalinho, produziam uma semi-nudez, que deixava ver a brancura do seu formosissimo collo, e os seios deslumbrantes, que pareciam dois hemispherios de alabastro marcados por petalas de rosas. Um dos seus pequenissimos pés, nú e apenas mettido n'uma chinela de velludo rosa, bordada a matiz e perolas, poisava sobre uma pilha de ricas almofadas. A sua mão esquerda segurava o braço d'uma viola, cheia de ornatos de prata e embutidos de madre perola, que ella suavemente fazia tanger.

Em frente da Calcanhares, quasi aos seus pés, estava sentado sobre o tapete, um espadaudo e horrendo mulato da patrulha d'el-rei, que a contemplava com um olhar bestial e lubrico, que ainda tornava mais hediondo o seu rosto patibular.

A Calcanhares cantava ao som da viola, com voz harmoniosa e languida, mas em que já havia vestigios d'essa rouquidão, que os excessos de prazer e a embriaguez produzem na mulher; e tão absorvida estava no seu canto, que parecia não ver o mulato.

Eis o que ella cantava:

Tudo quanto o fado inspira

E' o que só me entretem;

Pois quem do fado se tira

Não sabe o que é viver bem.

Eu hei de morrer no fado,

Seguir os destinos seus;

O chinfrin será meu brado,

A banza será meu deus.

Ainda depois d'enterrada

Debaixo do frio chão,

Eu hei de cantar o fado

Mesmo dentro do caixão.

Chorai, fadistas, chorai,

Chorai sobre o corpo meu,

Que jamais o mudo teve

Fadistinha como eu.

Sobre a minha sepultura

Quando a vida se acabar,

Uma voz se ha de ouvir

O triste fado cantar.

Chorai, fadistas, chorai.

Sobre a minha sepultura,

Fazei ouvir vossa banza

Que só o fado dá ventura.

Ficou ainda alguns instantes a scismar, e depois, fitando o mulato com um olhar de desprezo e asco, perguntou-lhe:

-- O que fazes ainda ahi, monstro?

-- Estava a ouvir-te...

-- Pois gira, que não estou para te aturar mais, -- e como o mulato hesitasse, continuou: -- Precisas de dinheiro para te embebedares?... toma -- e atirou-lhe com uma bolsa de prata. -- Agora safa-te, que já te não posso ver, mostrengo... fugido das galés...

-- Prostituta!...

-- El-rei ainda te ha de mandar enforcar, malvado.

-- E a ti tirar-te a pelle n'uma praça publica, que não eras a primeira desavergonhada que elle mandava açoitar.

-- Sus, sus, sus -- tornou a Calcanhares incitando uma cadellinha que el-rei lhe tinha dado.

A cadella avançou, rosnando, para o mulato, que, dando-lhe um alentado pontapé, sahiu, soltando uma gargalhada alvar e uma praga medonha e obscena.

-- Bruto! -- exclamou a Calcanhares; e depois de afagar a cadellinha que gemia a um canto, foi mirar-se n’um rico espelho de Veneza; espreguiçou-se, e ficou a contemplar-se, como sitisfeita de si, e quasi namorada das suas proprias carnes.

Esteve assim alguns instantes, atirou com as pontas dos seus finissimos dedos um beijo ao espelho, onde se reflectia a sua adoravel figura, e foi enrroscar-se como uma gata sobre o estrado.

Todas as mulheres teem alguma coisa de felino.

Pouco depois entrou na camara a aia, uma ladina e bonita morena, que era a confidente dos seus amores.

-- O que é? -- perguntou a Calcanhares.

-- Senhora -- respondeu a aia, -- está na sala o senhor Henrique Henriques.

-- E o que me quer esse malvado?

-- Eu sei, senhora! talvez venha com algum recado d'el-rei...

-- Manda entrar esse estafermo.

A aia sahiu e logo entrou na camara o alcaioto d'el-rei.

Henrique Henriques lançou á Calcanhares um d'esses olhares lubricos que desnudam o corpo de uma mulher, e sorrindo foi sentar-se n'uma cadeira de espaldar, que estava perto do estrado.

-- O que queres? -- perguntou a peccadora.

-- Venho conversar comtigo -- respondeu o valído.

-- A respeito d'el-rei?

-- Sim, mas não venho por mandado seu.

-- El-rei é um idiota! -- exclamou a Calcanhares.

-- Sabes que devo muito a el-rei -- disse o valído.

-- Sei, foi elle que te fez mercê dos dois officios de tenente-general e provedor dos armazens, mas tu tambem lhe tens prestado bons serviços -- respondeu a peccadora com um sorriso zombeteiro. -- Agora dize o que queres, e despacha-te, que eu hoje não estou para conversas.

-- Tu sabes que el-rei continua a negar os creados que lhe pediu o infante? -- disse o valído.

-- E o que me importa a mim que esse javardo tenha ou deixe de ter creados -- interrompeu a Calcanhares.

-- E' preciso fazer com que el-rei consinta que sua alteza fique com os creados que lhe aprouver nomear, depende d'isso o socego do reino, e os interesses d 'el-rei.

-- E os do Castello-Melhor -- interrompeu ainda a Calcanhares rindo.

-- Sim, os interesses do conde tambem... -- afirmou o valído.

-- Sempre a politica, sempre a maldita politica!... -- exclamou a peccadora.

-- Mas não é só d'isso que se trata... -- continuou Henrique Henriques.

-- Então o que ha mais?

-- Trata-se de uma coisa mais séria, e por isso o conde conta comtigo...

-- Pois faz mal, que eu estou farta até aos olhos de politica...

-- O conde paga bem, sabes?... replicou o valído.

-- Sim, paga para eu ser instrumento das suas ambições... mas, dize, o que quer mais de mim o conde?

-- Quer que salves a vida de um illustre fidalgo.

-- Eu?!...

-- Tu sim, que pelos teus encantos tens poder para isso.

-- E quem é esse fidalgo?

-- D. Luiz de Menezes -- respondeu o valído, -- que el-rei insistiu em mandar assassinar, por elle o ter deixado para seguir o partido de sua alteza. Bem vês que um attentado contra a vida d'este fidalgo, seria a deshonra d'el-rei e a perdição do conde de Castello-Melhor; portanto é preciso despersuadil-o d'esta louca e criminosa resolução, e só tu podes obter isto com os teus mimos e afagos: el-rei não sabe resistir aos teus encantos.

-- E por que não o despersuade a rainha?... a franceza mostra-se tão interessada por tudo que diz respeito ao infante -- replicou a Calcanhares.

-- Por isso mesmo não convem; n'este caso, a intervenção da rainha só serviria para augmentar a raiva de el-rei.

-- El-rei tem dôr de cotovello. Pobre brichota! -- exclamou a Calcanhares rindo.

-- Bem vês que só tu podes evitar que el-rei commetta mais este crime, de que os partidarios do infante tornariam responsavel o conde de Castello-Melhor. Era mais uma calumnia, uma infamia; mas tu bem sabes que os inimigos do conde tudo empregam para o perder.

-- Dizem que a rainha vai tomando ascendente sobre el-rei -- tornou a Calcanhares.

-- Mais uma razão; essa influencia é prejudicial ao conde de Castello-Melhor. A franceza fez constar na côrte que estava de esperanças, que ia dar um herdeiro á corôa.

-- Um herdeiro á corôa! e el-rei o que diz a isso? -- perguntou a Calcanhares soltando uma estrepitosa gargalhada.

-- El-rei mostra-se satisfeito -- respondeu o valído.

-- Mais eu creio que tudo isto ó uma astucia da rainha para levar el-rei a assignar a liga com a França. Essa maldita liga que é a perdição do reino, e por isso o conde a tem sempre combatido.

-- Pois bem -- disse a Calcanhares -- dize ao conde que eu amanhan falarei com el-rei, e agora adeus que eu quero dormir.

Logo que Henrique Henriques sahiu da Camara, a Calcanhares estendeu a mão para uma bolsa cheia de moedas de oiro, que o valído tinha deixado sobre o velador, e tomando-lhe o peso, exclamou: -- Imbecis! -- e tornando-se a deitar adormeceu.

Passadas algumas horas accordou aos latidos da cadella, e viu diante de si o vulto de uma mulher, que mais parecia um espectro.

A suave penumbra que enchia a Camara dava áquella mulher um aspecto magico e sobrenatural.

-- Quem és tu, o que queres? -- perguntou a Calcanhares erguendo um pouco o corpo. -- E's uma mulher ou uma illusão do diabo?...

-- Sou a cigana Albayda.

-- A bruxa!... sim... conheço-te. Mas como entraste aqui?

-- Foram os esconjuros que me trouxeram.

-- Sim, que para tudo teem artes as bruxas. O diabo sabe bem as traças de que se ha de servir para nos enganar.

-- E para nos servir -- ponderou a cigana.

-- Estavas ha muito ahi? -- perguntou a Calcanhares.

-- Estava, mas não te quiz acordar... fiquei contemplando-te, e a lembrar-me de minha filha...

-- Tens uma filha?

-- Tive, mas o diabo levou-m'a e não a quer restituir á sua desditosa mãe!

-- Morreu?

-- Morreu... morreu de amor...

-- Pois ainda se morre d' isso! -- exclamou a Calcanhares, sentando se no estrado.

-- Sim, -- disse a velha -- mas o maldito que m’a roubou ainda ha de ter o pago.

-- E como se chamava a tua filha?

-- Aïxa, a virgem dos olhos de fogo.

-- E era bella?

-- Bella como uma huri, como uma fada.

-- Finalmente, o que vens fazer aqui: queres ler-me a buena-dicha, revelar-me o futuro?... aqui tens a minha mão...

-- Não preciso da tua mão para conhecer o futuro: o diabo tudo me revelou.

-- E o que te disse o diabo?

-- Que és rica e feliz, que és a favorita de um rei, e que tudo podes; tens mais dominio sobre o teu real amante do que a propria rainha...

-- Isso é o presente; mas ainda assim o diabo enganou-se d'esta vez. Sou rica, sou poderosa, mas não sou feliz...

-- Não ha felicidade perfeita no mundo! O teu real amante pode dar-te oiro, joias preciosas, mas não póde fazer vibrar o teu coração inflammavel, saciar os desejos ardentes que te consomem as carnes. É na orgia que vais procurar as sensações que te faltam, mas a orgia não desaltera, illude e mata.

-- Vens então annunciar-me a morte?

-- Não, -- respondeu a bruxa -- venho annunciar-te a queda: o teu poder não tardará a ser supplantado.

-- Pela rainha, pela maldita fraoceza?... -- perguntou a Calcanhares levantando-se.

-- Não, a rainha só ama o infante D. Pedro -- respondeu a velha.

-- Então quem me rouba o poder?

-- Uma mulher.

-- Bella?

-- Sim, mais bella do que tu, tão bella como um raio do sol!

-- E quem é essa mulher?

-- Brevemente a conhecerás.

-- E el rei ama-a?...

-- Como um louco que é.

-- E essa mulher quer supplantar-me?...

-- Ha de supplantar-te, sim, ha de roubar-te todo o poder sobre o espirito fraco d'el-rei, e depois virá para ti o esquecimento, a ruina, a miseria. Tu bem sabes que quem anda para traz faz o caminho ao diabo.

-- Oh! nunca! -- exclamou a Calcanhares, batendo com o pé no chão, n’um accesso de desespero.

-- Sim, virá para ti a miseria com todas as agruras, com todas as molestias, com todos os horrores que acarreta o vicio.

-- Cala-te, bruxa do inferno! -- exclamou a Calcanhares, cujos olhos despediam chammas de colera.

-- Os ambiciosos valídos d'el-rei, -- continuou a velha -- que sentem fugir-lhes o chão debaixo dos pés, que sentem fugir-lhes o poder, farão d'essa mulher, que não tem rival na belleza, um instrumento terrivel para a sua politica.

-- E quem é essa mulher?... dize, ou mando-te arrancar a pelle, bruxa maldita!

-- Para que te servia a minha pelle dura e resequida! -- disse a velha n'um frouxo de riso, que mais parecia o estertor d'um moribundo. -- E eu ainda preciso viver, preciso que o anjo das trevas me conceda ainda um sopro de vida para me vingar.

-- D'essa mulher?

-- Sobre essa mulher que odeio. Ferindo-a, firo mortalmente o coração d'aquelle que me roubou Aïxa, a minha filha...

-- E contas commigo para a tua vingança? -- perguntou a Calcanhares.

-- Conto, e para isso vim, para isso os esconjuros aqui me trouxeram -- respondeu a velha.

-- O que queres então?

-- Vingar-me, e livrar-te d’uma rival que faria a tua ruina, se a deixasses viver...

-- E queres?... -- interrompeu a Calcanhares, estremecendo.

-- N'este frasco está a tua salvação -- continuou a bruxa mostrando-lhe um pequeno frasco de metal. -- Contém um segredo precioso, só conhecido pelos velhos da minha tribu; é um veneno subtil que mata rapidamente, e sem deixar vestigios... hesitas?...

-- Não -- respondeu a Calcanhares, arrancando o frasco da mão da velha. -- Onde posso encontrar essa mulher?

-- Ámanhan o saberás -- respondeu a velha. -- E para ámanhan que estão marcados os esponsaes malditos... o filho das trevas muito terá que rir!...

-- E ámanhan não será já tarde? -- perguntou ainda a Calcanhares?

-- Não, eu virei buscar-te á hora precisa.

-- Bem, está combinado. Agora dize-me como se chama o homem de que te queres vingar?

-- Que te importa isso?...

-- Quero sabel-o... não nos vai ligar a cumplicidade de um crime? -- disse a peccadora.

-- É um moço fidalgo da casa do infante... é capitão...

-- O seu nome?...

-- Carlos da Silveira, que o diabo ha de levar acorrentado para as profundas do inferno.

-- O capitão Carlos da Silveira! -- exclamou a Calcanhares. -- Aquelle que ainda ha pouco tempo raptou uma donzella!

-- Não foi elle que a raptou -- disse a velha.

-- Não foi elle?

-- Não, quem roubou essa donzella foi Henrique Henriques, por ordem de el-rei...

-- Então é essa mulher?...

-- Sim, é ella.

-- Mas o capitão tambem desappareceu?

-- Foi ferido gravemente na lucta que teve com os raptores.

-- E morreu?

-- Não, salvou-o o filho das trevas para que a minha vingança fosse mais completa. Agora, adeus, até ámanhan.

-- Até ámanhan.

A Calcanhares ficou de pé, com a cabeça pendida, contemplando o frasco, que convulsivamente apertava entre os seus finos dedos. Depois, sacudindo arrogantemente a formosa juba, exclamou com um olhar mau:

-- Seja!...

CAPITULO VIII

Martyrio

Quando Maria voltou a si, achou-se n'uma camara magnificamente guarnecida, e suavemente illuminada pela luz rosada de uma lampada de alabastro.

Diante d'ella estava uma mulher, ainda nova, de rosto attrahente, que a contemplava com um olhar de respeitosa compaixão.

Se a pobre menina parecia tão triste, os seus olhos tinham uma luz tão meiga de ternura e de bondade, que parecia uma santa!

Julgava-se ver a sua alma, que, fugindo da terra, se ia perder nas regiões bemaventuradas dos que estão com Deus.

De repente todo o seu corpo estremeceu, levantou-se e olhou ao redor de si... os seus olhos scintillaram com uma luz resplandecente e vivissima... era o susto, o amor, a paixão, a loucura, que n’ella se personificavam, e n'um suspiro comprimido, que lhe fez arfar o casto seio, perguntou:

-- Onde estou eu?...

-- Socegue, menina, que aqui ninguem lhe faz mal -- respondeu-lhe a aia com voz meiga.

-- Mas, para que me trouxeram para aqui?... onde está elle?... porque não está tambem aqui?... o meu unico amor, a minha vida, a minha ventura... Não, não foi elle, que praticou esta violencia... elle tão nobre... tão honrado!... e para que servia esta loucura, se eu toda lhe pertenço... se elle tem todo o meu amor... o amor que uniu para sempre os nossos corações, e que elle jurou santificar perante o altar... Carlos... Carlos... vem, vem, que eu tenho medo... -- e a pobre menina recuou até ao fundo da camara.

A aia que, verdadeiramente compadecida, não achava palavras que podessem mitigar tamanha dor, envolvia a donzella n'um suave olhar de commiseração.

De repente, a pobre menina ergueu os braços n'uma convulsão violenta, e soltou um grito abafado, como se lhe comprimissem a garganta, os olhos injectaram-se de sangue, e com o corpo meio dobrado foi redondamente ao chão.

A aia, assustada, pegou-lhe ao collo, e foi deital-a na cama.

A pobre creança tinha cahido com uma congestão cerebral.

Maria, logo depois do rapto, tinha sido conduzida para uma quinta que el-rei tinha perto de Alcantara, onde Henrique Henriques a deixara entregue á vigilancia de uma mulher, viuva de um soldado que morrera na guerra, e que vivia de uma pensão que lhe dava el-rei.

O valído, logo que foi avisado pela viuva do estado da donzella, correu a Alcantara, e como queria guardar bem o seu segredo, não levou comsigo o medico do paço, mas fez-se acompanhar por um outro medico, homem cúpido, sem Deus nem consciencia, que era da sua confiança.

A donzella, abrazada pela febre, respirava a custo e soltava gemidos e palavras quasi inarticuladas.

O medico reconheceu a gravidade da doença, e tratou logo de sangrar a pobre menina, cujo sangue correu em abundancia.

Os dias foram-se passando, e começou o delirio em que a donzella tinha terrores medonhos, luctas terriveis com phantasmas hediondos; e de longe a longe, completamente prostrada, fallava vagamente do seu jardim, das suas flores, e com voz baixa e supplicante pronunciava o nome d'elle... do seu querido amante.

Acudia-lhe então a aia, com os olhos inundados de pranto, ao ver a grandeza d'aquella desventura, que lhe despedaçava o coração.

A pobre mulher affeiçoara-se á donzella, e procurava todos os meios de lhe suavisar os soffrimentos.

Um dia, a doente abriu os olhos, e fitou-os, incertos e inconscientes, na sua enfermeira.

A luz da manhã começava a allumiar a camara.

O rosto da doente tinha a expressão pasmada de quem accorda; o seu olhar percorreu toda a camara, e depois tornou a fechar os olhos, como não podendo supportar a intensidade da luz do dia.

A enfermeira correu a cerrar as cortinas; voltou para ao pé do leito e carinhosamonte compoz-lhe a cabeça no travesseiro.

Agumas palavras inintelligiveis sahiram dos labios da donzella, mas a enfermeira, a quem o medico recommendara que não a deixasse falar, debruçou-se sobre o leito e disse-lhe:

-- Socegue, durma...

Um leve sorriso, o primeiro, transpareceu nos labios da donzella, e tornou a fechar os olhos.

A convalescença veio morosa e lenta.

A affeição das duas mulheres crescia de dia para dia, e a pobre menina, que precisava abrir o coração, falava nos seus amores, no seu querido Carlos... por que não vinha elle?... é por que não sabia onde ella estava encerrada... mas por que era que a tinham sequestrado?... Então voltavam os receios, e a pobresinha chorava lagrimas de amargura.

Um dia, quando estava orando, pedindo á Virgem que a tirasse d’aquella horrivel situação, sentiu que alguem entrava na camara; levantou-se, assustada, e viu então a figura austera de um padre.

Era um velho magro, encurvado pelos annos, cujo rosto agudo e anguloso revelava mais hypocrisia do que uncção.

-- As bênçãos do céo desçam sobre ti, minha filha, -- disse o padre, -- a confiança em Deus é o mais seguro allivio para as dores physicas e moraes.

-- Estava orando, padre...

-- Orae, orae a Deus de misericordia. A oração te dará a quietação do espirito, purificando a ahna e tranquilisando a consciencia. Como te sentes hoje, filha?

-- Fraca, ainda muito fraca, padre; ainda mais do espirito que do corpo -- respondeu a donzella.

-- Confia em Deus, filha, e vencerás.

-- Padre, compadecei-vos de mim...

-- Para isso vim, para te animar, par te guiar no caminho da bemaventarança. Ergue os teus olhos até Deus, que elle illuminará o teu espirito.

-- Padre, para que me trouxeram para aqui?... porque me separaram d'elle, do meu amor, da minha vida, do esposo querido da minha alma?... Padre, perdoae-me o fallar-lhe d’estas coisas, mas eu não tenho a quem confiar os segredos do meu coração, e já me faltam as forças para este martyrio...

-- A tua cruz é pesada, mas Deus que é justo, receberá as tuas agonias.

-- Mas para que me encerraram aqui?... porque não me dão a liberdade?...

-- Porque foste destinada pela Providencia para uma grande missão...

-- O que posso eu fazer em serviço de Deus, eu, uma pobre mulher?...

-- Não se discutem os mandatos de Deus, filha. Obedecer-lhe, é nosso dever.

-- Mas o que quer Deus de mim?

-- Tens uma missão santa a cumprir. Estás destinada a ser o anjo custodio d'este reino.

-- Eu?...

-- De anjo é a missão da mulher na terra

-- Deus tenha compaixão de mim, padre.

-- Deus pela sua infinita misericordia ha de compadecer-se de ti, e dar-te o premio que merecem os teus sacrificios.

-- Mas o que fiz eu para soffrer este martyrio?...

-- Todos teem o seu destino, filha, o teu é nobre e santo, e Deus te dará a felicidade, que julgas perdida para sempre. E's uma predestinada!...

-- Felicidade para mim só a póde haver no meu amor. Eu amo, padre, e só quero o homem que adoro... se me faltasse o seu amor, eu sinto que não poderia viver.

-- Não blasphemes, filha.

-- Eu pertenço lhe de corpo e alma...

-- Pertences a Deus, que fez o milagre de salvar-te a vida para bem d'este reino... E' como amigo, como pae, que te falo. Tu, candida e innocente menina, foste destinada para padecer, mas a Providencia tambem te escolhe para seres o anjo protector de muitos infelizes... El-rei ama-te...

-- Que diz, padre? -- exclamou a donzella aterrada.

-- Sim, foi vontade de Deus que este amor lhe nascesse no coração, e só tu podes pela tua belleza angelical, pela tua bondade, pela tua innocencia e candura, guiar-lhe o espirito fraco, encaminal-o para o bem, arrancal-o aos maus conselheiros, que para desgraça d'este reino lhe hão de fazer perder a corôa, se o archanjo escolhido por Deus não fôr em seu auxilio.

-- E a rainha, padre?.....

-- A rainha está cora os seus inimigos.

-- Mas eu não posso... não posso, padre... Deus não pode ordenar o peccado... seria offendel-o...

-- Só ha offensa quando a intenção é criminosa.

-- Não... não... seria manchar-me... perder a alma...

-- Que importam as manchas do corpo, se a alvura das tuas azas de anjo não se macular -- continuou o padre. -- Tens razão, filha, Deus não ordena, nem podia ordenar o peccado: o que elle exige de ti é apenas um sacrificio para a salvação d'este reino. Foste a victima por elle escolhida para o holocausto, pede-lhe para que o calice te seja menos amargo, e lembra-te do sacrificio de Jesus: tambem elle soffreu o martyrio para nos remir a todos com o seu sangue.

-- Padre, padre, tenha compaixão de mim -- exclamou a donzella rojando se-lhe aos pés.

-- E' a Deus que a deves pedir para que elle te illumine...

-- Virgem Nossa Senhora, salvae-me! -- exclamou a pobre menina cahindo de joelhos aos pés da imagem da Virgem, n'uma dôr extrema, que lhe fazia estalar o coração.

-- Orae, orae, filha; eu tambem vou pedir a Deus para que illumine o teu espirito com a sua divina graça.

O padre não teve coragem de ajoelhar junto da donzella. Demais tinha elle já mentido a Deus.

Quando sahiu encontrou-se na ante-camara com Henrique Henriques, que lhe dirigiu um olhar interrogativo.

O padre desviou os olhos, porque sentiu o pejo subir-lhe ás faces, e respondeu:

-- O sacrificio é grande, mas com a ajuda de Deus havemos de triumphar.

-- Sabe, padre -- disse Henrique Henriques, -- que o tratado com a França já está assignado, e agora o Papa não tardará a vir a melhores termos comnosco.

-- O que é uma felicidade para este reino -- tornou o padre, -- e para moralidade do clero, que bem desgarrado anda.

-- El-rei -- continuou o valído -- espera alcançar pelo menos um barrete cardinalicio...

-- E se o papa o conceder?

-- Vossa senhoria é um dos prelados de mais lettras d’este reino, e el-rei sabe apreciar a virtude, e pagar o zelo com que o servem.

Um rapido sorriso assomou aos labios do padre, e os dois homens separaram-se satisfeitos um do outro.

CAPITULO IX

A rival

Effectivaraente a liga com a França tinha sido assignada. Era esse o empenho de Luiz XIV, e para isso tinha enviado a Lisboa o abbade de S. Romão.

Tinha vencido o partido da rainha, comtudo o conde de Castello-Melhor mostrou, n'esta negociação, a habilidade d'um consummado diplomata.

Devido á sua incontestavel intelligencia tinha sabido, como triumphador, da sua propria derrota.

Logo que foi assignada a liga, deu-se uma circumstancia digna de reparo: desvanecera-se a esperança da rainha dar um herdeiro á corôa.

E' maravilhosa, e quasi inexplicavel, aquella illusão que durou tantos mezes. Nem a propria rainha sabia explicar o estupendo caso, e contentou-se em dizer ao seu real esposo:

Que se não fôra d’aquella vez, seria d' outra.

Em tudo mostrava a sua impudicicia aquella mulher

O conde de Castello-Melhor não se illudia, via que a tempestade escurecia cada vez mais o horisonte. A trama politica, habilmente urdida pelo incansavel e sagaz conselheiro do infante D. Pedro, D. Rodrigo de Menezes, ia crescendo de dia para dia, e envolvendo o poder do valído, que tinha de luctar não só com o infante, mas tambem com a rainha, cujos partidos se tinham unido estreitamente.

A maioria da nobreza, o clero e o povo estavam pelo lado de sua alteza.

Mas não era só isso: por detraz d'aquellas forças havia uma outra mais poderosa, que operava na sombra, e por isso mais terrivel, a Companhia de Jesus. O padre Manuel Fernandes dominava o animo de D. Pedro, e a rainha era governada pelo seu confessor, o padre Villas.

Os valídos d'el-rei viam bem o perigo que os ameaçava, e procuravam, sem escrupulos, todos os meios de o afastar, e como a mulher é sempre uma força poderosa na politica, valiam-se da Calcanhares, que tinha grande ascendente sobre o animo fraco e irresoluto d'el-rei.

Mas a Calcanhares ia tambem perdendo de dia para dia a sua influencia; el-rei já se não lembrava tanto d'ella, principalmente desde que vira na egreja da Sé aquella linda donzella, cuja lembrança o tornava ainda mais louco, e Henrique Henriques já não sabia como havia de conter as suas impaciencias, e as suas desordenadas furias.

O valído sabia que era preciso substituir a Calcanhares, cujo poder se ia extinguindo, e habilmente procurava tirar todo o partido d'aquelles novos amores.

Tratava-se de uma menina candida e innocente, que facilmente se deixaria guiar.

A doença da donzella tinha-lhe transtornado um pouco os planos, comtudo não desistia da empresa.

A pobre donzella era a victima da sua ambição.

A politica foi sempre pouco conscienciosa.

O padre voltou; um barrete cardinalicio não se podia largar facilmente, embora custasse a vida d'um innocente.

Mas o que valia a vida de uma creança, a prostituição d'uma innocente donzella?

Um cardeal vale com certeza muito mais.

O barrete ainda se podia transformar em tiara, e então o valor era muito maior.

Ser vigario de Christo na terra, pavonear-se em coches de gala, habitar palacios, gosar todas as sensualidades da vida, em nome de Jesus Christo, que andava descalço!... era o cumulo das glorias.

Quantos crimes, ainda mais atrozes, se teem commettido para se conseguir tudo isso!

E um homem não pode passar a vida a chorar sobre todos os martyres, sobre todos os innocentes, sobre todas as creanças que se perdem por esse mundo.

O padre sabia como se atemorisa um espirito fraco, tudo quanto ha de inexoravel para conseguir o embrutecimento, a estupida transformação da natureza humana.

Os pavores da donzella augmentavam de dia para dia. Nem na religião, nem no seu amor, encontrava já linitivo e esperança. As palavras severas do padre, embora lhe falassem em Deus, causavam-lhe horror, uma impressão dolorosa que lhe entorpecia o cerebro, que lhe abafava a razão. O seu espirito achava se envolvido no vacuo das coisas, e havia momentos em que não sabia ao certo o que experimentava. Não tinha sequer a consciencia do que em si mesmo se passava, das coisas que a agitavam. Sentia apenas que se passava n'ella uma coisa desconhecida, monstruosa, implacavel, cujo peso a esmagava, e lhe produzia uma especie de idiotismo, que lhe tirava o animo para a lucta.

O Deus do padre era tão differente d'aquelle, que, na meninice, sua mãe lhe ensinava a adorar!

Até a suave imagem da Virgem lhe mettia medo, achava-lhe o olhar severo, parecia-lhe que ella tambem a condemnava pela sua resistencia...

E a pobresinha sem já poder orar, sem já poder chorar, passava horas esquecidas, immovel, com os olhos dilatados pelo terror e pela angustia, e com as mãos cruzadas sobre o seio, n'essa dolorosa posição com que se representa nos altares a Virgem das Dores.

Fazia dó vel-a!

De todos tinha medo... tudo a assustava.

Ainda assim, estava linda!

Um dia uns homens vieram buscal-a n'uma liteira. Perguntou para onde a levavam, mas ninguem lhe respondeu.

O trajecto foi longo, mas como a liteira era fechada, a donzella não podia ver o caminho: lembrou-se de gritar, mas teve medo e deixou-se conduzir.

O calor e a commoção fizeram-lhe perder os sentidos; quando voltou a si, achou-se n'uma casa mobilada ainda com maior riqueza do que aquella que acabava de deixar.

Correu a uma das janellas, mas esta estava gradeada e a donzella só poude ver a cópa das arvores d'um vasto jardim rodeado de altos muros.

Era uma verdadeira prisão.

Até a sua aia, ou antes a sua amiga, lhe tinham tirado; esta fora substituida por uma rapariga de olhar malicioso, e sorriso traiçoeiro, que logo á primeira vista lhe desagradára.

Os seus terrores continuavam, agora aggravados por aquella mudança, que era de mau agoiro para a pobre menina.

Um dia, em que a donzella ainda estava deitada, a aia entrou no quarto e annunciou-lhe que uma dama lhe desejava falar.

Maria ia a sentar-se na cama para começar a vestir-se, quando á porta do quarto appareceu uma mulher vestida de preto, e com o rosto coberto pelas largas rendas que ornavam, como se fosse um véo, a mantilha que lhe envolvia a cabeça.

Apesar da presença d'aquella mulher não ter nada que podesse inspirar desagrado, a pobre menina sentiu uma dôr vaga sobre o coração e um arrepio de gelo por todo o corpo.

-- Peço que não se incommode, menina -- disse a desconhecida. -- Podemos conversar assim perfeitamente sobre a missão santa que aqui me traz.

A aia retirou-se discretamente do quarto, e a Calcanhares, que era ella a dama desconhecida, levantou o véo e sentou-se junto do leito da donzella, lançando um olhar investigador ao redor de si; os seus olhos fixaram-se por um instante n'uma taça de loiça da China, que estava sobre o velador com uma beberagem qualquer.

-- O que desejaes, senhora -- perguntou a donzella.

A Calcanhares, que, mau grado seu, estava deslumbrada pela belleza da joven, estremeceu ao ouvir-lhe a voz suave e harmoniosa.

-- Faço parte, por penitencia -- disse ella, -- d'uma confraria do Senhor dos Afflictos, e venho pedir uma esmola para os enfermos e encarcerados.

-- Que posso eu dar, senhora, se nada tenho de meu?

-- Nada d'isto que vejo vos pertence? -- perguntou a Calcanhares.

-- Não.

-- A quem pertence então?

-- Tambem não sei dizer...

-- Não sabeis dizer?!

-- Não, sei apenas que vindes pedir esmola para os encarcerados a uma encarcerada...

-- Não posso comprehender!...

-- Nem eu -- continuou a donzella, -- tudo isto é um mysterio, que não posso comprehender, um mysterio horrivel, que me tortura, que me tira a razão!... Mas, perdão, nhora, o que vos importa as minhas maguas!... Disse-vos ha pouco que não tinha nada de meu... enganei-me... não me lembrava d'este cordãosinho de oiro -- e a donzella tirou do pescoço um pequeno cordão. -- A medalha não, que é uma recordação de minha santa mãe!... -- e desprendendo a medalha, offereceu o cordão á Calcanhares, dizendo: -- E' pouco, mas não tenho mais nada.

-- Guarda a tua esmola, que não foi para isso que eu aqui vim -- disse a Calcanhares levantando-se.

-- Não foi para isso? -- perguntou a donzella assustada. -- Então o que vindes aqui fazer?

-- Em primeiro logar, quiz ver-te, admirar a belleza da mulher que soube enfeitiçar el-rei.

-- Por Deus calai- vos, senhora! -- exclamou a donzella cobrindo o rosto com as mãos.

-- Dizes que nada d'isto te pertence, que não sabes onde estás, pois vou eu dizel-o: todas estas alfaias, todas estas joias te pertencem, tudo isto é teu, tudo isto é da barregan d'el-rei...

A donzella soltou um grito de dôr e de vergonha, e desfallecida, deixou cahir a cabeça no travesseiro.

A Calcanhares contemplava-a com um sorriso mau. A bruxa tinha razão, aquella mulher era uma rival terrivel, era-lhe muito superior em belleza, e o seu olhar tornou a fixar-se na taça que estava sobre o velador; depois, procurando suavisar a voz, disse:

-- A tua alma ainda está innocente e pura, ainda não foi envenenada pelo halito pestilento dos homens.

-- Quem sois, senhora, para virdes assim insultar-me, que mal vos fiz eu para virdes dilacerar mais o meu coração, augmentar a minha dor, o meu martyrio?...

-- Não sou tua inimiga -- respondeu a Calcanhares, -- se te fiz soffrer foi por que quiz experimentar o teu coração, conhecer o estado do teu espirito. Agora escuta-me...

-- Sois bem cruel, senhora -- disse a donzella suspirando.

-- Cruel é o destino!... crueis são os homens, que fazem ludibrio da honra das mulheres. Sei que amas...

-- Sim, amo, amo com toda a minha alma... amo um nobre e leal mancebo a quem dei o meu coração...

-- Sei, chama-se Carlos da Silveira...

-- Como sabeis? -- perguntou a donzella.

-- Conheço a historia dos teus infelizes amores. Esse mancebo não pode vir em teu soccorro, não pode livrar-te d'este captiveiro...

-- Mataram-no?!... -- exclamou a donzella n'um grito de pungente angustia, e como a Calcanhares não respondesse, continuou: -- Sim, está morto! está morto, a não ser isso já teria vindo salvar-me, mas por Deus, diga-me, diga-me... mataram-n'o, não é verdade?... -- e a pobre menina, suffocada pelo peso da dôr, desabafou em prantos e gemidos, torcendo os braços com desesperação.

-- Não morreu -- disse por fim a Calcanhares, -- mas foi ferido gravemente quando procurava arrancar-te das mãos dos teus verdugos.

-- Ah! os infames, é então implacavel a crueldade d'esses homens?...

-- E' -- respondeu a Calcanhares.

-- Ferido... está ferido... e por minha causa... mas eu quero vel-o... quero vel-o... quero sahir d'esta casa maldita!... -- exclamou a donzella, querendo levantar-se.

-- Onde vai? -- disse a Calcanhares buscando acalmar-lhe a desesperação. -- Bem sabe que não a deixarão sahir d'esta casa...

-- Mas eu quero vel-o, quero velo!... exclamou ainda a donzella, deixando-se cahir sobre as almofadas debulhada em lagrimas.

-- Socegue, não chore -- tornou a Calcanhares procurando dar á voz uma expressão de brandura. -- Foi ferido, mas salva-se...

-- Ha então ainda esperança?...

-- Sim -- respondeu a Calcanhares, -- ha de salvar-se, e ainda podem sêr felizes.

-- Felizes!... e quem poderá dar-nos a felicidade?...

-- Eu.

-- A senhora?!... -- exclamou a donzella fitando a Calcanhares com uma expressão de anciedade e de duvida.

-- Sim, eu.

-- E posso eu acreditar?...

-- Confie em mim... mas por Deus!... socegue... está a arder em febre... precisa tomar alguma coisa... -- disse a Calcanhares olhando ao redor de si.

-- Sim... sinto os labios abrasados pela sede... deve ser da febre... -- disse a donzella com voz desfallecida. -- Deve ahi estar um calmante...

Um relampago sinistro brilhou nos olhos da Calcanhares, foi direita ao velador, despejou o conteudo d'um frasquinho, que trazia occulto na mão, na taça, e foi leval-a á donzella, amparando-lhe carinhosamente a cabeça em quanto ella bebia.

-- Beba, beba, que isto ha de fazer-lhe bem, -- e, a mão tremia-lhe, apesar dos esforços que fazia para se mostrar tranquilla.

A donzella, sequiosa, sorveu o liquido até á ultima gotta, mas, quando tornou a deitar a cabeça na almofada, sentiu um calafrio por todo o corpo, e os seus olhos fixaram-se com uma expressão extranha na Calcanhares, que recebeu inpassivel aquelle olhar.

-- Então, sente-se melhor? -- perguntou a Calcanhares com voz surda e convulsa,

A donzella não lhe respondeu; sahiu-lhe do peito um gemido de agonia, e os seus labios pronunciaram como um sopro o nome de Carlos; o corpo contrahiu-se n'um tremor nervoso, e depois quedou-se como se tivesse adormecido.

A Calcanhares abaixou o véo, e ficou por alguns instantes a contemplar a donzella.

N'esta occasião a aia entrou no quarto. A Calcanhares, por um gesto, recommendou-lhe silencio, e disse baixinho: -- Dorme... deixemol-a dormir, que lhe faz bem -- e sahiu com a arrogancia d'uma rainha.

Estava orgulhosa e satisfeita. Ninguem tinha visto o seu crime!

A Calcanhares enganava-se, o crime tem sempre uma testemunha implacavel:

Deus!

CAPITULO X

Epilogo d'um crime

-- Pois é verdade -- dizia o mestre Aniceto Braz a um freguez, -- aquillo lá pela côrte parece estar baralhado... contou-me pessoa bem informada, que hontem, quando el-rei voltou do campo onde tinha ido esperar os toiros...

-- Que são rezes bravas e corpulentas, segundo diz pessoa que os viu entrar na praça -- ponderou o freguez.

-- Sim, senhor!... tambem eu ouvi dizer o mesmo ao meu compadre Cardoso, que é da casa dos vinte e quatro: feros e de boa estampa. Mas como eu ia dizendo, logo que el-rei chegou ao paço, a rainha foi ter com elle para se queixar dos aggravos que diz ter recebido do secretario de estado, o senhor Antonio de Sousa de Macedo, e pedir-lhe que o castigasse severamente!... Pelos modos a disputa começou por causa do processo de um tal almocreve, que matou no Alem tejo um francez, que era creado da rainha, e que ella quer por força que seja enforcado. Desculpou-se o secretario dizendo que não havia testemunhas oculares e mais coisas et cetera e tal; mas a franceza, que tem cabellinhos na venta, até lhe chamou vilão, e deu-lhe, salvo seja, com a luva na cara.

-- Oh! -- exclamou o freguez.

-- O caso -- continuou o barbeiro, -- é que já hoje não ha toiros no Terreiro do Paço, e que são suspensas todas as festas, que o senado costuma fazer para celebrar os annos d'el rei, e festejar o milagroso Santo Antonio, como é costume n'esta antiga e leal cidade de Lisboa.

-- Olhe, mestre, estas conspirações ainda hão de dar de si; pouco viverá quem não vir grandes mudanças!

-- A quem vossa mercê o diz!... -- respondeu o barbeiro limpando o pingo do rapé que lhe escorria das vibrissas.

-- Pois tenho pena que não haja toiros -- voltou o freguez, -- picava hoje o visconde de Athouguia, que é um bom calção!...

-- Eu cá para mim prefiro o conde da Ericeira, D. Luiz de Menezes, el caballero de la bella imagen -- ponderou o barbeiro. -- Ninguem como elle faz com mais gentileza recuar o cavallo nas cortezias, nem mette com mais garbo o rojão no pescoço do animal!

-- O Luiz Manco, com as garrochas, tambem se pode ver -- disse ainda o freguez.

-- Eu cá para mim prefiro o Gaspar Torto -- tornou o barbeiro, -- ninguem cita o boi com a capa como elle!

A conversação foi interrompida com a entrada da senhora Angelica.

-- Deus seja n'esta casa -- disse a beata.

-- Amen -- replicou o freguez.

-- Então, já correu a via sacra -- perguntou o barbeiro.

-- Ai, filho, hoje não tive tempo senão de ouvir tres missas... agora vou dar uma saltada a casa, que ainda quero assistir á festa em S. Roque. A essa não falto eu, dizem que prega o santinho do padre Manuel Fernandes, confessor de sua alteza. Aquillo é mesmo uma lingua de prata, a gente, só de ouvil-o, parece que entra no céo! -- e a senhora Angelica sahiu apressada, mas logo se encontrou com a sua comadre, a senhora Maria do Céo, e outra vizinha, que a detiveram.

-- Boas tardes, vizinha -- disse a senhora Maria do Céo, -- então temos novidade no sitio...

-- Novidades, filha!... eu não sei nada!...

-- A D. Francisca toma hoje Nosso Pae...

-- O que me diz, comadre?!...

-- Pois ainda não viu a porta com areia encarnada e espadanas?...

-- E' verdade!... pois ainda não tinha reparado -- respondeu a senhora Angelica.

-- Coitadinha, quiz alentar-se com os sacramentos para a grande viagem, mataram-n'a as saudades pela sobrinha.

-- Se era o unico arrimo que tinha cá n'este mundo.

-- Credo! Anjo bento! Santo nome de Deus bemdito!... uma coisa assim!... exclamou a outra vizinha.

-- O que vai por este mundo, Jesus da minha alma!... e para isto estão as mães creando suas filhas... exclamou por sua vez a senhora Maria do Céo.

-- Ah! homens, homens!... grunhiu a doceira.

-- O que o tal tunante precisava era uma grilheta ao pé nas galés, atrever-se a roubar uma menina recatada e honesta para a entregar aos baldões do mundo! Aquelle com certeza que vai para as areias gordas -- disse a senhora Maria do Céo.

-- Esquartejado, é que o maldito precisava ser, que Deus me perdoe!... disse a outra vizinha.

-- Tudo isto é falta de religião -- acudiu a senhora Angelica.

-- Eu já ouvi dizer que foram para Braga.

-- Pois a mim disseram-me, que tinham ido para a estranja, lá para essas Hollandas, disse a outra vizinha.

-- T'arrenégo!... uma terra de hereges!... exclamou a senhora Maria do Céo, fazendo o signal da cruz.

-- E não se pendura n'uma forca um patife d’aquelles! -- replicou ainda a outra vizinha.

-- O senhor corregedor do crime mandou tirar devassa, mas nada se conseguiu saber... Abriu-se a terra com elles! -- exclamou hypocritamente a senhora Angelica.

-- Tarde ou cedo Deus vibrará a sua colera -- accrescentou sentenciosamente a senhora Maria do Céo.

N'isto ouviu-se o som lento e triste d'uma campainha, que annunciava o Viatico.

A procissão entrou solemnemente na rua.

Um velho, alquebrado, trazia a toalha; caminhava a custo e as lagrimas cahiam-lhe em fios pelas faces magras e enrugadas, era o velho Lourenço, o jardineiro de D. Francisca.

Atraz do pallio, vinha um magote de mendigos cantando o bemdito, n'uma rouca, desordenada, e funebre toada.

A' passagem do Viatico todos ajoelhavam e oravam com verdadeira uncção.

A senhora Angelica cahiu das nuvens quando, ao regressar a casa, viu sahir o seu hospede, ainda convalescente, acompanhado pelo seu amigo Francisco de Oliveira e pelo velho soldado.

Tão apressados e preoccupados iam os tres homens, que nem sequer repararam na velha, que de pasmada ficou como pregada ao chão.

Retrocedamos.

Na manhan d’esse mesmo dia, quando Francisco de Oliveira sahia do Corte-Real, foi abordado por uma velha de aspecto repugnante, que lhe disse:

-- O diabo separou dois amantes, mas Deus ha de tornal-os a unir.

-- Que dizes tu, bruxa do inferno? -- perguntou Francisco de Oliveira.

-- Avisa o teu amigo Carlos da Silveira -- disse a velha, -- para que esteja hoje ás sete horas nas portas da Ribeira, se quer ter noticias da sua adorada -- e a velha afastou-se com pasmosa rapidez, deixando o mancebo estupefacto.

Foi este o motivo por que a senhora Angelica viu sahir os tres homens de casa, quando regressava da egreja de S. Roque.

Os dois mancebos e o velho caminhavam anciosos e apressados, e chegaram ás portas da Ribeira quando os sinos das torres da cidade batiam sete horas.

A anciedade de Carlos da Silveira não se descreve; manifestava-se no rosto emmagrecido, a inquietação que o agitava, tinha febre, e o sangue escaldava-lhe nas veias.

Ao sahir das portas, viram logo a velha mendiga que os esperava. Esta, sem proferir uma palavra, começou a andar. No fim de alguns minutos parou, indicando com um gesto uma porta, que se via n'um muro que deitava para um largo pequeno e solitario.

A porta estava apenas encostada, e os tres homens encontraram-se n'um vasto pateo arborizado, ao fundo do qual se via uma casa, com todas as janellas gradeadas, o que lhe dava um aspecto sombrio.

A porta d'essa casa tambem estava aberta, e o silencio era absoluto.

Carlos da Silveira foi o primeiro a subir a escada, e achou-se n'uma sala guarnecida de ricos moveis, que, por causa da escuridão que os envolvia, já mal se distinguiam.

No extremo d'esta sala, havia outra porta, que deitava para uma camara frouxamente illuminada por uma lampada de alabastro.

Era o quarto de Maria.

Carlos avançou para o leito pronunciando, n'um grito d'alma, o nome da donzella. Era ella que alli estava, tornava a vêl-a, tornava a encontral-a, e agora nada os podia separar.

De repente as suas feições transtornaram-se; pegou convulsamente nas mãos da donzella, e ao ver aquella immobilidade, ao sentir o frio da morte, soltou um grito dilacerante, e cahiu de joelhos, sem alento junto do leito, suffocado, por uma convulsão de choro. Todas as fibras do coração lhe tinham estalado.

Francisco de Oliveira e o soldado não estavam menos aterrados.

Era um cadaver que alli estava sobre o leito.

O soldado, que tinha ficado perto de uma janella, sentiu rumor no jardim, e voltando-se viu por entre as grades os vultos de alguns homens, que á luz de uma lanterna se dirigiam para a casa, e pelo arrastar da perna direita de um d'elles, julgou reconhecer el-rei.

Assustado, avizou Francisco de Oliveira, e os dois homens apenas tiveram tempo de arrastar Carlos, que não dava quasi accordo de si, para uma especie de oratorio, que havia ao fundo da camara.

Mal tinham fechado a porta, quando entrou no quarto el-rei acompanhado por Henrique Henriques.

A expressão brutal e lasciva, que se denunciava no rosto d'el-rei, tornava-o ainda mais repugnante.

O monarcha dirigiu-se para o leito, mas logo recuou um passo; aquella immobilidade da donzella causou-lhe pavor.

Henrique Henriques, já inquieto, tambem se approximou da donzella, e curvando-se sobre o leito, examinou-lhe o rosto, apalpou-lhe as mãos e o coração, e soltou uma praga de colera, que mais parecia um rugido de besta fera, e disse para el-rei:

-- Está morta...

-- Morta! mas como foi isto, assim é que velaste por ella? -- disse o monarcha com o rosto carregado.

-- Eu sei... real senhor... foi ella que de certo se matou -- e o valído torcia as mãos n'um accesso de desespero.

El-rei approximou-se outra vez do leito, e com brutal cynismo, puxou pela roupa, pondo a descoberto o gentil corpo da donzella, apenas envolto n'uma camisa de finissima cambraia; contemplou-a por alguns instantes com um olhar lubrico, e exclamou:

-- E' pena, effectivamente era mais linda do que a Calcanhares!

-- Mas está morta, e a Calcanhares está viva -- disse a voz de uma mulher, que appareceu entre portas.

El-rei voltou-se, e vendo a Calcanhares, lançou-lhe um olhar turvo, e perguntou-lhe:

-- Que queres, que vens fazer aqui?

-- Venho convidar o rei de Portugal para cear esta noite nos meus paços -- respondeu a Calcanhares fazendo uma graciosa mesura.

El-rei achou-lhe graça, e sahiu da camara dando a mão á peccadora.

Quando descia a escada, voltou-se para Henrique Henriques, e disse-lhe:

-- Manda dizer cem missas por alma da defunta... cem talvez seja pouco... manda dizer duzentas, que eu quero que ella vá para o céo.

Depois todos se metteram nas suas liteiras, e lá foram para casa da Calcanhares.

CAPITULO XI

El-rei diverte-se

A casa da Calcanhares, como já dissemos, ficava fóra das portas da Ribeira, e pela magnificencia dos seus adornos parecia um palacio de fadas.

Dois negros cobertos de sedas de varias e vivas côres, com arrecadas de prata nas orelhas, e com tochas accesas nas mãos, esperavam el-rei no patamar da escada.

A sala para onde el-rei entrou era espaçosa e riquissima; as ondas de luz, projectadas pelos lustres e candelabros, que se reflectiam nos espelhos, davam-lhe um aspecto phantastico, e faziam realçar os magnificos moveis, e as preciosas armações de veludos e damascos, franjadas de oiro, e rendas de prata, que por toda a parte se viam em profusão.

El-rei ficou contemplando um magnifico retrato da Calcanhares, que estava pendurado n'uma das paredes da sala, no qual, sob a figura de uma bacchante, um pintor pagão como Carrache, ou oriental como Titien, tinha reproduzido as formas perfeitas, elegantes e flexiveis da peccadora, dando-lhe uma expressão de embriaguez provocante, selvagem e quasi sinistra.

Em que pensaria el-rei, lembrar-se-hia da expressão casta da donzella, que por algum tempo lhe preoccupara o acanhado espirito? Poderia elle avaliar a differença, que existia entre aquellas duas mulheres?

Não, aquelle homem desconhecia o mundo ideal; só havia n'elle o appetite dos gosos materiaes, o instincto da besta.

A mulher, para elle, era uma creatura inferior na força e dignidade ao homem,, um objecto de luxo e de prazer, uma bonita decoração da natureza, um saboroso apperitivo para a perpetuação da especie humana, uma escrava, que reina sobre o seu senhor pelos seus encantos, e não pelos seus direitos.

A Calcanhares não tardou em apparecer na sala; ella conhecia as impaciencias d'el-rei, e quanto era perigoso fazel-o esperar.

Vinha deslumbrante; queria agradar ao seu real amante, que a tinha levado ao apogeu; não era ella quasi uma rainha? Se a belleza é a tentação do homem, a gloria é tambem a seducção da mulher.

Trazia o corpo semi-envolto n'uma especie de chambre de veludo verde escuro, que fazia realçar a alvura do seu seio e dos braços nus, e que, cahindo em pregas fluctuantes, deixava adivinhar o resto das perfeições, que por baixo d'elle se escondiam.

O seu bello rosto, cercado por ondulados cabellos, que perfumados lhe cabiam profusamente sobre os hombros, tinha uma expressão acariciadora e provocante, que ateava o fogo que já ardia no coração do seu amante.

A peccadora nas luctas da vida, do amor e da intriga, tinha estudado profundamente a arte de commover os homens, de os captivar nos laços d’um amor delirante.

-- Já tinha saudades tuas, sabes?... -- disse el-rei sentando-se.

-- A culpa é de vossa magestade, que já não se lembra de mim -- disse a Calcanhares com voz harmoniosa, e cingindo a cabeça d'el-rei com as suas mãosinhas calçadas n’umas luvas perfumadas de ambar, deu-lhe um beijo na testa.

-- Não, não te esqueço, nem nunca poderei esquecer-te... o diabo d'aquelle conde de Castello-Melhor é que tem a culpa, nunca me deixa com a sua politica... olha que é bem maçadora a tal politica... Felizmente estou agora livre d'ella, e estou comtigo -- e el-rei puchou-a para si, e assentando-a sobre os joelhos, enlaçou nos braços o corpo gentil da peccadora, e depoz um beijo de fogo nos seus finos labios, que se contrahiram, talvez de nojo.

El-rei, entregando-se á cubiça mal desperta, tacteava o seio nu, ardente e anhelante da Calcanhares, que, dobrando o corpo flexivel e ondulante em graciosa curva, parecia entregar-se a um extasi de paixão, revelar desejos ardentes e provas fascinantes de amor.

A sala, onde foi servida a ceia, estava ornada de plantas raras e jarrões de loiça da China.

A mesa coberta por uma finissima toalha de linho, guarnecida de renda de Flandres, estava illuminada por muitas velas de cera, que ardiam em candelabros de prata de preciosos lavores, e vergava com o peso dos fructeiros de prata rendados e doirados, e das loiças e jarros da China em que se viam as iguarias e formosos ramos de flores. Algumas garrafas de vidro com finissimos vinhos completavam a ornamentação.

Preciosos perfumes do oriente ardiam em caçoilas de oiro.

As iguarias e as fructas eram variadas, e os doces figuravam em profusão.

Serviam á mesa duas negras, jovens e de formas esculpturaes, que traziam por unicos ornatos, arrecadas de prata doirada nas orelhas, anilhos, tambem de prata, nos pulsos e nos artelhos, cintos do mesmo metal, dos quaes cabiam laços de fitas de seda de vivas côres, que não chegavam a cobrir-lhes as ancas.

El-rei, que tinha sempre um appetite voraz, comeu n’essa noite como um alarve, e bebeu como um arrieiro.

A Calcanhares apenas comeu algumas fructas e algumas colheres de doce.

Quando el-rei se sentiu mais saciado, voltou-se para a amante, e com voz enternecida pelas frequentes libações, perguntou:

-- Não comes?

-- Não tenho appetite -- respondeu a Calcanhares.

-- Estás triste?

-- Ao contrario, real senhor, sinto-me completamente feliz, por que hoje tenho a certeza que vossa magestade ainda me ama -- respondeu á peccadora envolvendo el-rei n'um olhar de fogo.

El-rei deu-lhe um beijo, acompanhado d'um arroto, e disse-lhe:

-- Sim, quero que sejas feliz, já que eu não posso sel-o.

-- Vossa magestade não é feliz?

-- Não sou, não. Tu bem sabes que tenho inimigos, que meu irmão me quer tirar a corôa.

-- Isso são apprehensões de vossa magestade.

-- Não são, não; meu irmão sempre me teve inveja.

-- São testemunhos falsos dos calumniadores. A corôa de vossa magestade ninguem lh'a pode tirar.

-- Tu és mulher, e não entendes nada d'estas coisas... Mas eu hei de ensinar todos os traidores, hei de aterrar os meus inimigos, começando pelo conde da Ericeira D. Luiz, que deixou o meu serviço pelo do infante... mas, não me fales mais n'esses traidores, fala-me de ti, do teu amor...

-- Permitta-me vossa magestade uma coisa... que eu lhe peça pela vida d'esse desgraçado fidalgo.

-- Não, não me peças o impossivel, nunca lhe perdoarei a offensa.

-- Vossa magestade já me não ama -- disse a Calcanhares suspirando.

-- Amo-te sim, amo-te cada vez mais, eu até queria viver para ti só -- disse el-rei enlaçando-a nos braços.

-- Se vossa magestade ainda me tivesse amor, como diz, seria mais generoso -- replicou a Calcanhares, encostando meigamente a cabeça no hombro d'el-rei.

-- Não, lá isso não te faço eu... quero acabar com todas estas traições.

-- Um rei deve vingar-se perdoando -- replicou ainda a Calcanhares, fixando no real amante os seus ardentes alhos, onde brilhavam duas lagrimas, que em fios crystallinos, deslizaram pelas deliciosas faces.

-- Agora choras?!...

-- Se vossa magestade não tem dó de mim, está mortificando-me...

-- Mas que diabo de interesse tens tu?...

-- Sou mulher, e o sangue derramado causa-me horror...

-- Creança! -- exclamou el-rei.

-- Bem digo eu, que vossa magestade já me não tem amor -- disse a Calcanhares levando aos olhos um finissimo lenço de rendas.

-- Então, não chores, não quero que fiques mal comigo...

-- Perdoa?...

-- Pois sim, concedo perdão por esta vez, já que assim o queres... mas, á primeira traição...

-- Todos hão de louvar a grandeza d'alma de vosaa magestade, a sua real clemencia será o remorso e a vergonha d'aquelles que se atreveram a atraiçoal-o. Oh! como vossa magestade é bom, e como eu o amo! -- exclamou a Calcanhares, enlaçando com os braços o pescoço d'el-rei, e dando-lhe um beijo.

A Calcanhares tinha vencido, tinha afastado a tempestade, domado a colera que fervia no peito d'el-rei... O dinheiro do conde de Castello-Melhor estava bem ganho.

N'esta occasião, entraram na sala umas negras envoltas em véos brancos, salpicados por estrellas de prata, que, ao som de uma musica extravagante, se entregaram a uma dança grotesca e lasciva, que fazia soltar a el-rei gargalhadas estridentes, e obscenidades capazes de fazer corar um arrieiro.

De quando em quando, as negras vinham ajoelhar aos pés de el-rei, e offerecer-lhe preciosos licores em taças de oiro, o que o divertia muito e lhe augmentava a embriaguez.

Uma das vezes, quiz pôr-se em pé para agarrar uma das negras, mas as pernas vacillaram-lhe, e soltando um grunhido rouco, rolou como um odre pelo chão.

Acudiram-lhe Henrique Henriques, e os dois negros, que o metteram na liteira, e lá o levaram para o paço.

Quando os homens sahiram, a Calcanhares levantou-se, e lançando para a porta um olhar de desprezo e asco, exclamou:

-- Porco!

Depois, dirigiu-se para a sua camara, e foi abrir uma porta, occulta nas tapeçarias, por onde entrou o mulato.

CAPITULO XII

Amores d'um infante

O infante D. Pedro, ao contrario de seu irmão, reproduzia-se com afan: além dos filhos legitimos de que resa a historia, deixou muitos outros naturaes, que foram vigorosos rebentos de muitas familias nobres de Portugal.

Como principe, arrogava-se o direito divino e o direito do escandalo.

Não nascêra o infante para amores platonicos; só conhecia o desejo sensual de possuir e de gosar; por isso o amor ardente, que lhe inspirava a rainha, não o cohibia das suas habituaes distracções, que muitas vezes descambavam em verdadeiras saturnaes.

O infante tinha então amores com a viuva d'um fidalgo sexagenario, que morrêra d'um triste mal, que só póde comparar-se ao supplicio de Tantalo, proprio d’um homem da sua edade que casa com uma mulher nova.

O fidalgo morrêra ético e quasi arruinado pela esposa, mulher orgulhosa, sensual e leviana.

A viuvinha, que era mais provocante do que bella, tinha sabido inspirar ao infante um verdadeiro e desusado capricho.

Não diremos que D. Pedro, para quem o amor era apenas uma tendencia animal, estivesse apaixonado, mas é certo, que a imagem da viuva tinha se-lhe gravado no coração.

Na noite em que se passaram os factos, que vamos narrar, o infante tinha vindo á côrte saber novas da sua real cunhada e amante, que fôra atacada de uma ligeira indisposição. Foi depois d'essa visita, que elle se lembrou de ir vêr a viuvinha.

Estas visitas, de surpreza, são sempre imprudentes e perigosas, mas o infante, que só era recebido ás occultas, e com mil precauções, não podia deixar de acreditar no recato irreprehensivel em que vivia a sua amante. A dama sabia fazer, apparentemente, respeitar a dignidade do seu nome e o proprio infante tivera de luctar por muito tempo para vencer aquella virtude, que depois da morte do marido, parecia ser inexpugnavel.

Emfim, a carne é fraca e a dama cedeu, mas diga-se a verdade, ambos procuravam salvar as apparencias, e por isso ninguem podia beliscar na reputação da viuvinha, que até se tinha tornado beata, segundo diziam as visinhas, que hão de ser eternamente bisbilhoteiras.

A fama de beata viera-lhe, por a dama receber frequentes vezes um dominicano, que tambem passava por austero, apezar das carnes roliças e luzidias não indicarem mortificação dos jejuns ou dos cilicios.

Seria confessada ou manceba do frade? Talvez fosse ambas as coisas, o que era vulgar n'aquelles tempos de fé mais viva, segundo dizem.

N'essa noite, o infante fizera-se acompanhar por um fidalgo da sua casa, homem devasso, sem consciencia, espadachim e frequentador assiduo das tavolagens d'Alfama, onde se tinha arruinado.

Era uma esplendida noite de luar, que confirmava o proverbio: Luar de janeiro, não tem parceiro, mas lá vem o de agosto que lhe dá pelo rosto.

A claridade da lua, dando em cheio nos edificios e orlando de listões de luz as velhas e negras torres, dava á cidade um aspecto melancholico e phantastico.

Ao longe via-se uma longa faixa luminosa, produzida pelos raios da lua scintillando nas crystallinas aguas do formoso Tejo.

Perdoem-nos a velharia e a louvaminhice da imagem, mas o nosso rio é realmente tão bello, que não podemos deixar de consagrar-lhe algumas amabilidades, e estas, por mais que os namorados e os poetas façam, hão de ser sempre velhas e immutaveis.

Se todas ellas datam do Eden, desde que Deus deu ao homem uma companheira, formada, segundo dizem, de uma costella do proprio contemplado!

Sem querer contradizer as escripturas, suppomos que a mulher, pelos seus encantos, foi formada d'um raio de luar, e é talvez por isso que ella tem tanta influencia nos destinos do homem.

Adeante.

Quando o infante e o seu satellite sahiram do paço, pela portaria das damas, viram uns homens que atravessavam a praça, transportando uma liteira.

Occultos na sombra das arcadas, viram entrar a liteira por uma porta particular, e reconheceram el-rei, que, ainda debaixo da influencia da bebedeira, não dava accordo de si.

Era effectivamente el-rei, que vinha de casa da Calcanhares.

O infante riu-se ao ver o estado de seu augusto irmão.

Dizem que o riso é a ultima faculdade do homem, e que ha sempre n'elle uma ponta de malicia.

Satan deve rir-se quando deita os gatazios a algum mortal.

Dos dois irmãos devia elle ter rido muito.

A casa da viuva ficava entre muros, proxima do postigo de Sant’Anna e da capella do Senhor Jesus da Salvação e Paz e Senhora das Dôres.

A aia, quando viu o infante, soltou um grito abafado, e de enfiada ficou como pregada ao chão.

O infante afastou a brutalmente, e influenciado pela belleza da noite, ou pelos olhares languidos e apaixonados da sua real amante, correu logo á camara da viuva.

Esta estava de pé, perto da janella aberta de par em par, branca de susto e quasi sem alento; os seus olhos pasmados, exprimiam a angustia e a dôr que lhe iam n'alma.

Ao vel-a, dir-se-hia que era a estatua do terror.

O infante ainda viu o vulto de um homem que saltava pela janella.

Sahiu-lhe da gorja um rugido de colera, e arrancando da espada, correu para o jardim; mas, quando atravessava uma alameda de accacias, viu que o desconhecido saltava o muro.

Retrocedeu cego de furor, e ao entrar em casa tropeçou no corpo da viuva, que tinha perdido os sentidos; afastou-a com a ponta do pé, e, proferindo um epitheto affrontoso, sahiu precipitadamente.

O companheiro do infante, ou o seu guarda-costas, que ficára de atalaya, viu o desconhecido saltar o muro e, adivinhando o que se passava, correu sobre elle de espada em punho, mas o fugitivo montando de um salto um cavallo, que um negro segurava pelas redeas, partiu em desenfreada carreira pelo monturo do Collegio, e descendo pelo Jogo da Pélla, desappareceu pela porta de Santo Antão, que dava para o campo.

Affonso Martins, que assim se chamava o moço fidalgo, não poude perseguir o fugitivo, mas reconheceu-o e teve um sorriso mau.

O infante appareceu e perguntou-lhe com voz irada:

-- O homem?

-- Saiba vossa alteza que o homem fugiu a unhas de cavallo e não poude alcançal-o.

-- Desastrado!... e agora onde havemos de encontral-o? -- tornou o infante.

-- Facilmente se encontrará -- disse Aífonso Martins.

-- Conheceste-o?

-- Conheci.

-- Quem é o villão que ousou affrontar-me?...

-- E um christão novo -- respondeu o moço fidalgo.

Os dois homens guardaram silencio por alguns instantes, e um sorriso sinistro transpareceu-lhes nos labios.

O nome de christão novo, n'aquelle tempo, era uma palavra perigosa e lembrava ao infante um meio facil de vingar-se sem dar escandalo, por isso elle sorrira, e n'aquelle sorriso havia mais do que uma ameaça, havia uma sentença de morte.

Embora o amor de D. Pedro pela viuva não tivesse profundas raizes no coração, a vaidade do homem é sempre cruelmente offendida, quando uma mulher o atraiçoa.

E as vinganças do infante eram terriveis.

O moço fidalgo, que era homem de imaginação, tambem estava satisfeito de si; dava-se a circumstancia de dever duzentos cruzados ao fugitivo, e deparava-se-lhe uma bella occasião de matar dois coelhos d'uma cajadada: servir o amo e saldar o seu debito.

N'aquelle tempo pagavam-se assim muitas dividas.

O amante da viuva era effectivamente christão novo, chamava-se Antonio Bernardes da Silva, e a inquisição de ha muito o farejava cubiçosa das suas riquezas.

O desgraçado era victima do interesse, da imaginação e do coração, que dizem ser os poros da alma humana.

CAPITULO XIII

O regente

Lisboa encontrava-se ha dias agitada, toda a sua vida, tanto publica como particular, parecia suspensa, dir-se-hia que se preparava para uma commoção violenta. Os commerciantes, ás portas das tendas e lojas, conferenciavam em voz baixa e entre-olhavam-se de uma maneira mysteriosa. Havia uma coisa extranha no seu aspecto e nos seus olhos, que ora se fitavam desconfiados nos transeuntes, ora nas emboccaduras das ruas, como se d'alli aguardassem alguma coisa.

No Terreiro do Paço já se não viam os moços fidalgos ostentando galas, e que, montados em magnificos ginetes, costumavam alli fazer terreiro ás garridas damas, que das janellas do paço os aguardavam com olhares ternos e sorrisos estonteadores. Agora só se viam grupos, isolados, formados por desconhecidos, que se interrogavam com ares mysteriosos, e que discutiam acalorada e confusamente os acontecimentos do dia, calando-se e dispersando, quando d'elles se approximava algum individuo de aspecto suspeito, como os valentes da patrulha d'el-rei, e os esbirros da inquisição, que por alli andavam farejando as presas.

Viam-se tambem algumas d'essas creaturas anonymas, de rostos patibulares, que só apparecem á luz do dia, quando algum acontecimento grave agita as multidões.

No paço tambem se passava alguma coisa extranha; a todos os instantes entravam e sabiam cavalleiros, que atravessavam por entre a multidão em desenfreada carreira.

Então levantava-se um grande borborinho, os grupos uniam-se formando uma massa compacta, e algumas palavras, pronunciadas em voz baixa por aquelles que estavam mais perto do paço, passavam de bocca em bocca, até ao extremo da praça.

Eram palavras insignificantes, sem valor, sem importancia, mas que eram ouvidas com manifesta curiosidade e transmittidas com a mesma anciedade.

-- E' um correio de sua alteza -- diziam uns.

-- E' um creado da rainha que leva uma mensagem para o infante -- diziam outros.

Emfim, havia palpitações, estremecimentos em toda aquella mó de gente, uma tensão electrica, uma coisa ainda desconhecida, mas que devia ser tragica, que a chocava, que, punha em ebullição, e lhe fazia soltar, de quando em quando, rugidos surdos, ainda timidos, mas que deixavam avaliar a quantidade de raios, que desde o seu principio se accumulavam nas nuvens negras, que cobriam o reinado de Affonso VI.

Nas tabernas, que foram sempre os clubs politicos e revolucionarios do povo, tambem a concorrencia era extraordinaria, e as discussões, aquecidas pelas repetidas libações, degeneravam quasi sempre em rixas sangrentas.

As guardas tinham sido dobradas dentro e fóra do paço, por ordem do valído, o conde de Castello-Melhor, que tambem mandara armar os creados d'el-rei e collocar no Terreiro do Paço dois terços de infantaria.

A cavallaria da côrte, de que era general seu irmão Simão de Sousa de Vasconcellos, tambem tinha recebido ordem de estar prestes a sahir á primeira voz.

Apesar de todo este apparato, de todo este alvoroço, a multidão conservava um aspecto quasi tranquillo, não estava ainda revoltada, não arremettia, não insultava, discutia e observava com anciedade; n'aquella agitação havia mais curiosidade de que paixão.

Por entre aquelles vagos rumores que as multidões produzem, ouviam-se distinctamente os pregoes picarescos das negras, que vendiam diversas bugiarias, e a voz arrastada e rouquenha dos cegos, que chamavam a attenção, do povo, recitando trechos das formosas obras que vendiam, taes como: a Historia dos doze pares de França, La linda Magalona, o livro de D. Pedro de Portugal, o qual andou as sete partes do mundo, e a Oração do Justo Juiz de el-rei D. Duarte:

Justo Juys Ihem Xpisto,

Rey dos reys e boo Senhor,

Que com Padre reynas sempre,

Hu he dambos hun amor,

Prazate de my ouvyr,

Pois me sento pecador.

Por entre o povo tambem andava um penitente, envolto n'uma serapilheira suja e esfarrapada, presa á cintura por uma corda de esparto; descalço, com os cabellos e barbas em desalinho, que eram repositorio de myriades de insectos immundos; trazia os olhos em alvo, n'um extasis beatifico e prophetico, e de quando em quando tangia, solemne e compassadamente, uma campainha, chamando assim a attenção dos fieis para um pequeno nicho de madeira, em que se via uma tosca imagem da Virgem do Amparo. As beatas beijavam respeitosamente a imagem, deixando cahir o seu obolo na saccola de coiro, que o penitente trazia presa a umas camandulas, que lhe pendiam do pescoço.

Seria um especulador, um devoto, ou um espião?

Eram vulgares estes typos n'aquelles tempos, em que a immundicie era symbolo de santidade.

Todo este movimento tinha justificação.

Dizia-se que o conde de Castello Melhor queria dar peçonha a sua alteza.

Dizia-se tambem que o conde mandava dobrar as guardas do paço e armar os creados d’el-rei no intento de mandar tirar a vida ao conde de Villa-Flor e Luiz de Mendonça, por terem aconselhado o infante de o mandar assassinar, mesmo dentro do paço, na grande sala onde elle dava as audiencias.

Effectivamente tinha-se delineado no Côrte-Real assassinar o conde, e ao mesmo tempo prender el-rei na sua propria camara, até que os negocios publicos tomassem outra direcção. Tendo falhado este plano, que se devia executar na sexta-feira, 2 de setembro, por causa dos conspiradores terem encontrado o conde vigilante e preparado para a defeza, escreveu o infante a el-rei accusando o valído de querer attentar contra a sua vida, e declarando que, ou el-rei havia de desterrar da côrte o conde, ou elle infante se veria na necessidade de sahir do reino para pôr a sua vida em seguro.

O conde de Castello-Melhor, medindo a grandeza do perigo, pediu a el-rei, que mandasse dizer ao infante pelo marquez de Marialva, que elle tivera razões, que não lhe diziam respeito, para dobrar as guardas do paço, e de lhe pedir licença para elle, conde, ir lançar-se a seus pés, e beijar-lhe a mão.

Não deu o infante resposta a esta commissão do marquez de Marialva, e mandou dizer a el-rei, que nunca se daria por contente, emquanto o conde de Castello-Melhor não fosse desterrado, e que não iria mais ao paço fazer côrte a el-rei, como seu irmão e vassallo, emquanto elle alli estivesse.

Tudo isto augmentava, de dia para dia, a desordem e a consternação em Lisboa, pois todos temiam que as coisas passassem ao ultimo extremo; e eram fundados estes receios, porque a quantidade de gente armada, que se via no Terreiro do Paço, indicava que tudo se preparava para uma guerra civil.

Para acabar com esta situação, tentou o valído persuadir el-rei, que mandasse prender o infante e todos os seus gentis homens, e tirar-lhes a vida n'um cadafalso como rebeldes.

Esta resolução, a unica que podia salval-o, era demasiadamente ousada para o animo fraco d'el-rei, que se limitou a escrever uma segunda carta ao infante, que mandou entregar pelo marquez de Marialva, marquez de Sande e Moura Torres, em que lhe pedia que designasse a pessoa que accusava o conde de intentar contra a vida de sua alteza para o mandar castigar, se tão monstruoso crime se provasse.

Respondeu o infante, que não podia fazer essa declaração em quanto o conde não fosse privado dos seus empregos, e desterrado da côrte com toda a sua familia.

Em virtude d'esta resposta, mandou el-rei reunir uma junta composta dos conselheiros de estado, chanceller-mór, desembargadores da relação, juizes da corôa e dois ministros de cada um dos outros tribunaes, para lhe ser proposta a queixa de D. Pedro, e deliberar se o conde devia ou não ser desterrado.

O voto d'esta junta foi desfavoravel á causa do infante, resolvendo, comtudo, que elle fosse admittido no governo, para que se convencesse que não se fazia coisa alguma contraria aos seus interesses.

Tomada esta resolução, despachou el-rei correios para todas as provincias, dando parte aos governadores das praças, que o conde se tinha justificado da accusação intentada contra elle pelo infante. Ordenou á armada real que se recolhesse ao porto de Lisboa, e escreveu ao cpnde de S. João e a todos os seguidores do infante, para que não sahissem das provincias em que se achavam.

Dizem alguns historiadores, que durante os debates da junta, em que se tratava de um assumpto tão ponderoso, el-rei tocava de quando em quando uma flautinha, e convidava um sujeito grave a fazer o mesmo.

E ha ainda quem diga que não era doido!

O irmão tocava corneta.

Tinham bonitas prendas estes dois javardos!

Em vista da gravidade dos factos, e da agitação que reinava em Lisboa, onde os negocios estavam paralysados, o senado e o conselho d'estado pediram a el-rei que convocasse os tres estados do reino, ao que elle sempre se oppoz, injuriando grosseiramente todas as pessoas que a isso o aconselhavam.

Era isto, que se passava em Lisboa, e que fazia com que o povo, sempre impellido pelo ruido e pela curiosidade, enchesse quasi todos os dias a rua Nova e o Terreiro do Paço.

No dia 23 de novembro de 1667, a concorrencia era maior, e o povo parecia mais exaltado; havia n'elle aspirações interiores, agitações occultas, umas correntes invisiveis, que o arrastava, que o impellia, e que ao mesmo tempo o atemorisava. Começavam a sentir-se uns ruidos extraordinarios, que semelhavam as rajadas de vento que presagiam as tempestades.

N'um muro estava escripto a carvão:

Affonso é um c...

A brichota uma...

Viva el-rei D. Pedro!

N’esse dia pavoneava-se por entre a multidão, saracoteando a sua importancia, o correeiro juiz do povo.

Realmente o mestre estava imponente, bem posto e bem escanhoado.

Girava por entre a turba, dirigindo segredinhos a uns, sorrisos mysteriosos e gestos protectores a outros, meias palavras, que indicavam grandes cousas!... grandes acontecimentos, que estavam para vir!... mas eram segredos d'Estado...

O homemzinho julgava-se notavel, descommunal, quasi heroico, o caudilho d'aquelle movimento popular, e tudo isto era de sobra para inebriar aquelle cerebro rombo e vaidoso.

Quando o relogio da Sé batia as doze badaladas do meio dia, ouviu-se, para os lados da Ribeira, o tropear de cavallos, e algumas regateiras gritaram:

-- Ahi vêem os ginetes!... ahi vêem os ginetes!...

Então toda aquella turbamulta fugiu em carreira desordenada, gritando, praguejando, atropellando-se, para d'ahi a nada vir novamente espreitar ás boccas das ruas e invadir, surrateiramente, a praça, para logo tornar a fugir.

Era effectivamente a cavallaria, que entrava a galope na praça, para ir formar-se em linha em frente do paço.

-- Era o dia de juizo!... Era o fim do mundo!... -- dizia uma velha toda assustada.

Houve com effeito atropellos, contusões, ferimentos, e uma creança ficou com o craneo esmagado debaixo das patas dos ginetes, mas isto são bagatelas, que acontecem sempre n'estas occasiões.

Então começaram a chegar aa paço as liteiras e os coches dos grandes senhores, fidalgos do reino e conselheiros d'Estado, que o povo, sempre inconsciente, victoriava sem distincção de parcialidades Eram estes: os marquezes de Marialva, de Sande e de Gouveia; duque de Cadaval; condes de Sabugal, de Miranda e da Torre; dr. Pedro Vieira da Silva, que fôra secretario d'Estado no reinado de D. João IV, e da rainha-mãe; Pedro Fernandes Monteiro, desembargador do paço; Martim Affonso de Mello, deputado da meza da consciencia; José Pinheiro, do conselho da fazenda; João Lampreia de Vargas, um dos quatro corregedores; Pedro Fernandes Monteiro, desembargador da relação; o arcebispo de Lisboa e muitos outros doutores, prelados e pessoas gradas da cidade.

O povo tambem victoriou muito o conde de Shamberg, parcial da rainha, que se achava então em Lisboa, e que vinha a cavallo, acompanhado pelo seu estado-maior e por numerosas ordenanças.

A's duas horas houve um movimento mais pronunciado, e o infante D. Pedro entrou na praça, acompanhado pelos fidalgos seus parciaes. Ao seu lado cavalgava o infatigavel D. Rodrigo de Menezes, seu gentil-homem e conselheiro.

A entrada de sua alteza na praça foi triumphante; penetrou no palacio de seu irmão, não como vassallo, mas como senhor.

O povo soltava clamores e dava vivas calorosos, que iam encher de terror os partidarios d'el-rei, que estavam dentro do palacio, pois viam que já não era possivel conjurar o perigo, evitar a usurpação do throno.

-- Viva o senhor infante D. Pedro!

-- Viva o nosso principe!

-- Queremos côrtes, queremos côrtes!...

E todos estes gritos, repetidos e multiplicados por milhares de vozes, iam repercutir-se nas ruas proximas, onde já se ouviam as pancadas seccas das trancas das portas dos estabelecimentos, que os lojistas assustados tratavam de fechar.

No paço, já o conselho estava reunido e discutia as pretenções do infante.

Passado algum tempo, dois homens atravessaram o Terreiro do Paço, correndo e gritando:

-- Mataram o senhor infante!... Mataram o senhor infante!...

Então rebentou um clamor terrivel, aquelles gritos levantaram uma tempestade medonha, e toda aquella multidão gesticulando, berrando, ameaçando, precipitou-se sobre o palacio real.

-- Queremos vêr o senhor infante!

-- Matemos os traidores!

-- Deite-se fogo ao palacio!

-- Arrombem-se as portas!

A onda popular tinha rompido os diques, e apesar dos esforços dos soldados, alguns homens mais decididos tinham mettido hombros ás portas, que já começavam a gemer e a estalar, quando o infante appareceu a uma janella do paço.

Então redobraram os vivas com indescriptivel enthusiasmo, e entre os clamores, acompanhados dos insultos dos partidarios d'el-rei, ouviam-se milhares de vozes que gritavam:

-- Queremos côrtes, queremos côrtes!...

Depois o povo, mais socegado por ter visto o infante, esperou, n'uma attitude quasi tranquilla, pelas decisões do conselho. Estas não se fizeram esperar; o infante foi proclamado regente do reino.

A nova espalhou-se logo pela multidão, que esturgiu os ares com gritos freneticos e prodigiosos:

-- Viva o regente!

-- Viva o senhor D. Pedro!

-- Viva o salvador do reino!

Um frade roliço, que já conhecemos de uma occasião identica, gritou com voz de trovão:

-- Viva el-rei D. Pedro II!

Vencera o infante; o seu triumpho tinha sido completo, estava consummada a torpeza: el-rei tinha sido deposto e encarcerado por ordem do seu perfido e ambicioso irmão.

A's duas horas da noite d'esse mesmo dia, o conde de Castello-Melhor, o valído, o ministro omnipotente de Affonso VI, partia para o seu longo desterro, acompanhado por vinte soldados da cavallaria da côrte.

N'esse mesmo dia, o velho Thomaz foi despedir-se do primo barbeiro; estava mais alquebrado, tinha os olhos encovados das vigilias e a cabeça mais branca; no rosto viam-se-lhe umas rugas profundas, que só a doença ou os desgostos sabem cavar. Deu um abraço no primo, mas não lhe disse para onde ia, talvez que elle mesmo não o soubesse... No amo tambem não falou.

Quando se retirava, viu sahir um enterro da casa fronteira.

Não precisava perguntar quem era o defunto, de sobra o sabia elle... era mais um cadaver, que a mesma mão criminosa atirava para a sepultura, e não era de certo o ultimo.

Um velho todo curvado, e que mal podia arrastar os pés, acompanhava o corpo; era o jardineiro, o antigo e fiel servo de D. Francisca, que chorando acompanhava a ama á sua derradeira morada.

O velho soldado descobriu-se e tambem seguiu o prestito funebre até á egreja de S. Roque, em cujo adro o corpo ficou sepultado.

Quando a lagea cahiu sobre a sepultura, o velho servo ajoelhou e orou por muito tempo; ao erguer-se viu o soldado, que, mortificado e com os olhos rasos d'agua, o contemplava.

-- Ah! é você?... veiu assistir ao complemento da obra indigna? Alli fica a pobresinha... finou-se de dia a dia... com o desgosto que a sobrinha lhe deu... Os remorsos hão de atormentar os culpados...

-- A pobre menina não foi culpada -- disse o soldado.

-- Sim, foi talvez victima d'uma violencia...

-- Foi victima de um crime...

-- Um crime?! -- disse o velho tremendo.

-- Sim, d'um crime -- continuou o soldado -- Foi roubada por ordem d'el-rei.

-- El-rei!... Então onde está ella?...

-- No céo, com os anjos, que um anjo era ella já na terra.

-- Morreu tambem?!...

-- Morreu -- disse o soldado. -- Matou-a o medo e a saudade... a saudade que definha o meu pobre amo, e que tambem ha de matal-o.

-- Deus castigará os infames que causaram tantas desgraças -- disse o jardineiro, e os dois velhos separaram-se chorando.

Quando o soldado descia a travessa das escadinhas do Carmo, ouviu uns rumores longinquos, que lhe pareceram provir d'um tumulto popular. Perguntou o que era, e disseram-lhe que el-rei estava preso, e que o infante tinha sido acclamado regente do reino.

Seria o castigo que começava?

Por fim de contas, tudo isto não era mais do que uma scena minúscula d'esse grande drama, cujos personagens são immutaveis: Deus, o homem e o destino.

CAPITULO XIV

O auto de fé

E' a uma d'essas scenas de agonia, de martyrio, de morte, a uma d’essas hediondas hecatombes offerecidas pelos homens a Jesus de Nazareth, que vamos assistir.

Monstruosos holocaustos, que fazem arripiar as carnes, arrancar gritos de maldição sobre esse negro passado, que abrange dois longos seculos da nossa historia.

Diz A. Herculano:

Isto é grave porque é atroz.

Canalha infame e hypocrita, que sob a capa de religiosidade, de misericordia, de amor de Deus, cobria a nudez dos seus vicios, a sua corrupção, a sua cobiça de riquezas.

E tudo isto se passava em plena luz, em face d'um horisonte sem limites, d'um firmamento limpido, d'esse crystal infinito, que envolve o throno em que o Creador assiste a essa lucta incessante dos homens, myriades de insectos ephemeros, nascidos da dôr e das trevas.

E era para gloria de Deus, para seu triumpho, para a defensa da verdade, para a salvação das almas, que se praticavam essas monstruosidades, a que hipocritamente se dava o nome de Autos de fé.

E’ a um d'esses grandiosos e horriveis espectaculos que vamos assistir. Era um domingo, domingo do advento, dia de triumpho para a christandade e de jubilo para o céo; a procissão dos condemnados devia sahir ao meio-dia da santa casa (palacio dos Estaus) para o templo de S. Domingos.

Dobravam já os sinos annunciando a festa, mas o seu tanger era lugubre e sinistro.

O vasto templo, com as suas riquissimas armações, tinha um aspecto sumptuoso, e os seus altares resplandeciam sob os lumes de milhares de cirios que ardiam em candelabros e tocheiros de prata, mas por entre todas aquellas pompas negrejavam os crepes, porque era a festa da morte.

Na capella-mór, entre diversos estrados, havia um mais alto, coberto de docel e ornado de brocados franjados de oiro, que se destinava para o regente.

Por toda a parte se viam galas e louçanias; o leão tinha-se enfeitado, era com as garras engrinaldadas que esperava o seu repasto de victimas.

As naves do templo estavam apinhadas de espectadores, que disputavam os logares, para melhor gosarem tão edificante espectaculo.

O Rocio regorgitava de povo que ria, insultava e praguejava; que se atropelava e esmagava, para vêr as damas e os fidalgos que se apeavam das liteiras e dos côches, nos quaes se viam, entre ornatos doirados, os brazões das primeiras casas de Portugal.

As janellas tambem estavam apinhadas de damas ostentando deslumbrantes vestuarios de brocados e sedas, ornados de diamantes, de perolas e passamanes de oiro e de prata, que eram a maravilha dos casquilhos, que assistiam áquelle espectaculo.

Faltavam dez minutos para o meio-dia quando se ouviram soar as trombetas e charamelas, e um piquete de cavallaria entrou na praça com as bandeiras desfraldadas.

Era o regente D. Pedro que chegava.

O povo recebeu-o com enthusiasticas manifestações.

O regente era aguardado no adro por toda a nobreza e pelo clero, que se achava no templo, á frente do qual se via o arcebispo de Lisboa.

D. Pedro deu entrada no templo debaixo do pallio, e depois de orar por alguns instantes em frente da capella do Santissimo, foi tomar assento no throno, que estava armado na capella-mór, onde recebeu os cumprimentos dos prelados que se achavam presentes.

Ao meio-dia abriu-se a larga, pesada e sinistra porta do palacio dos Estaus, e a procissão dos condemnados começou a sahir.

A penna cai dos dedos a descrever taes horrores, e só póde dar um vago reflexo de tão hedionda scena.

Abria o prestito o estandarte de S. Domingos de Gusmão, Estandarte de justiça e de misericordia diziam que era; justiça que arrastava á voragem, ao desterro, ás galés, á prisão perpetua, milhares de desgraçados, sem mais causa que as calumnias dos seus inimigos, por meras suspeitas e pretextos ridiculos. Justiça que, para salvar a alma, separava os paes dos filhos, a esposa do esposo querido, que não respeitava a virtude nem o pudor da mulher. Misericordia que não escutava os gemidos da velhice, que ficava sem amparo, os vagidos das creancinhas, que ficavam orphans.

N'aquelle dia, a leva das desgraçadas victimas compunha-se de trinta condemnados a abjurarem com penitencia, á prisão perpetua e ás galés, que vestiam sambenito e caminhavam descalços, com a cabeça descoberta e levando nas mãos tochas accesas de cera amarella. Seguiam-se as estatuas de dois hebreus ausentes, tres caixotes com ossos d'outros que tinham succumbido nas torturas, e quatro infelizes de sambenito e carocha, em que se viam umas grosseiras pinturas representando diabos e chammas invertidas. Estes eram os convictos, negativos e relapsos, condemnados ao garrote, e depois reduzidos a pó, na fogueira, para que nunca do seu corpo e sepultura podesse haver memoria.

Resava tambem a sentença, escripta na orla da samarra, o perdimento dos seus bens para o fisco e camara real, na fórma de direito e ordenação, e declarava os seus descendentes por incapazes, inhabeis e infames.

Infame era tudo isto, era aquelle tribunal iniquo, atroz, sem consciencia, que afugentava de Portugal, com as suas terriveis perseguições contra os judeus e christãos novos, o commercio, a industria, a riqueza, toda a vida que devia tornar poderosas as nações modernas.

O fanatismo bruial do povo dava força á hypocrisia, alimentada pela perversão moral em que achava o reino. Todos os pretextos serviam ao torpe tribunal.

O que importavam áquelles scelerados a vida eterna, a salvação da alma? para elles Deus era apenas capa de todos os sentimentos ruins, da vingança, da calumnia, da luxuria e do roubo.

As ordens de prisão dos desventurados, a que o monstro estendia as suas terriveis garras, eram executadas pelos primeiros fidalgos de Portugal, que se honravam de trazer no hombro a insignia de quadrilheiros da inquisição.

Entre os ultimos desgraçados da leva, via-se uma mulher condemnada por fazer feitiços e por ter pacto com o diabo. Era a cigana Albayda, que enlouquecera no carcere, e que mal podendo sustentar-se nas pernas, dilaceradas pela tortura, soltava uivos, e fazia esgares, que muito divertiam o povo, que lhe dirigia chufas e grosserias obscenas.

Era a ralé canalha de todos os tempos e de todos os costumes.

A' velha feiticeira seguiu-se um desgraçado de que seria difficil dizer-se a edade, e individuar-se-lhe as feições antigas, taes eram os estragos causados pelo terror, pela tortura do potro, pelo ambiente de morte das frias e medonhas cavernas do Santo officio.

Reconheceu-o comtudo uma mulher que estava n'uma janella, e que soltando um grito dilacerante de dôr, cahiu desmaiada.

O desgraçado, ao ouvir aquelle grito de angustia, levantou os olhos amortecidos e pasmados, mas logo tornou a deixar pender a cabeça, e continuou a caminhar indifferente a tudo que se passava.

Aquella alma, já não era d'este mundo, a força do soffrimento tinha apagado n'aquelle desventurado toda a sensibilidade moral.

D. Pedro estava bem vingado, e a inquisição tinha feito bôa presa.

Houve tambem um homem que reconheceu o desgraçado, era um negro, talvez o mesmo que segurava as redeas do cavallo, na noite em que Antonio Bernardes da Silva, que era elle o infeliz, fugiu de casa da viuva.

O negro, quando viu o mancebo, teve um estremecimento de terror; seguiu-o com um olhar pasmado, que revelava surpreza e dó; depois soltou um rugido surdo, e o seu rosto tomou uma expressão feroz e medonha.

Logo que a longa procissão entrou no templo, ao som dos instrumentos e das vozes sonoras, que no vasto côro entoavam psalmos penitenciaes e canticos de morte, o inquisidor-geral, D. Verissimo de Lencastre, foi tomar assento n'uma tribuna em frente do regente, e subiu ao pulpito fr. Luiz de Santa Maria, geral da congregação dos Evangelistas, que fôra encarregado do discurso da festa.

Deixemos o trade trovejar blasphemias, insultar, ultrajar, calumniar a religião do Crucificado, e voltemos tambem essas paginas da historia, que escorrem todo o sangue, e que Deus assignalou, imprimindo-lhes em lettras de fogo a palavra

ANATHEMA

Na noite que seguiu a esse dia memoravel, foi visto um negro rondar as ruas e beccos d' Alfama.

Ao amanhecer, uns calafates que iam para a Ribeira das naus, encontraram, no enxurro d'uma viella, um homem morto com uma facada no coração, e o rosto mutilado a ponto de se lhe não conhecerem as feições.

Reconheceu-o, pelo fato, uma mulher, que alli appareceu por acaso.

O homem era um moço fidalgo, chamava-se Affonso Martins, e tinha sido assassinado quando sahia d’uma tavolagem.

A mulher, uma creatura magra, de rosto sulcado e de côr pallida, uma pallidez doentia, mas que deixava ainda vêr vestigios de uma rara belleza, era a Calcanhares, que depois da prisão d'el-rei e do desterro do conde de Castello-Melhor, fôra roubada pelo mulato, e arrastava uma vida miseravel de bordel em bordel.

O negro não tornou a ser visto.

CAPITULO XV

Duello de morte

N'uma d'essas noutes frias, mas desannuviadas, em que a lua, inundando a terra com a sua suavissima e melancolica claridade, faz empallidecer as estrellas, apeavam-se dois viajantes á porta de uma poisada, que se encontrava á sahida do pinhal, e a curta distancia da villa de Monte-Mór.

Os dois viajantes entraram para uma casa terrea, apenas alumiada pelos frouxos clarões de lume da chamine, que, de quando em quando, lançava uma luz avermelhada e oscillante, que mal deixava distinguir a mobilia, que consistia em duas mesas toscas e compridas, alguns bancos de pinho, e uma arca de madeira negra.

Uma mulher nova, filha do hospedeiro que ha dois annos estava entrevado, morena, de olhar vivo e ladino, tornou a fechar cuidadosamente a porta, e depois de accender uma lanterna de ferro, que pendia do tecto por uma corda, foi despertar o lume e tirar de uma prateleira dois pratos de barro, talheres de ferro, uma borracha com vinho, um naco de presunto e um pão de rolão, collocando tudo sobre uma das mezas.

Quando os viajantes se sentavam á meza, ouviu-se a voz de uma mulher, ou de uma creança, cantando:

Tu eras a minha vida,

De tua vida eu vivia;

Eras a alma, eu o corpo,

A ti a vida eu daria.

Eras a voz, eu o echo,

Só comtigo eu existia.

O mais novo dos viajantes, levantando-se de um salto, perguntou:

-- Que é isto?

-- E' a pequena Zaida, a toutinegra da floresta, como para ahi lhe chamam -- respondeu a rapariga.

-- Mas quem é ella?... -- perguntou ainda o mancebo com anciedade.

-- Uma pobre creança, que os ciganos para ahi deixaram abandonada quando fugiram.

-- Os ciganos?!...

-- Uma malta que para ahi esteve acoitada na floresta; os malditos não se occupavam senão em roubar tanto no povoado como no campo, e de enganar os simples com a sua giria e feitiços. Credo! ainda bem que se foram embora; eu tinha tanto medo d’elles, que nem dormia quando para ahi topava com algum d'elles. T'arrenego, se os malditos tinham cara de excommungados!... pareciam lobos do matto!...

O mancebo, suspendeu-lhe a loquacidade, perguntando:

-- E porque fugiram elles?

-- Por causa de uma velha, que tambem pertencia á sucia, e que roubou uma creança na villa. Maldita bruxa!... Eu já ouvi dizer que morrera queimada em Lisboa, no ultimo auto de fé. Foi bem feito, pois não foi?...

-- Foi, sim -- respondeu o mancebo, que, comprimindo a testa com as mãos, ficou absorvido nos seus pensamentos

O leitor já deve ter adivinhado, que os dois viajantes eram Carlos da Silveira e o velho soldado Thomaz.

Carlos da Silveira já não era aquelle mancebo gentil, jovial e descuidoso, cheio de crenças, de esperanças, que vimos, alguns mezes antes, na cella de fr. Venancio. As suas faces estavam magras e pallidas, as feições do rosto, contrahidas e immoveis, tinham a expressão de uma tristeza immensa, e a não ser o brilho febril do seu olhar, dir-se-hia que tudo n'elle era impossivel. A paixão, as angustias, as amarguras da saudade, tinham destruido para sempre toda aquella existencia; agora só havia o desengano, o desanimo, a desavença, que é a fatal certeza da perversidade dos homens.

A' porta do fundo appareceu uma creança, de treze ou quatorze annos, envolvida n'uns farrapos e os pés nús. No seu rosto bronzeado havia uma expressão quasi selvagem, mas os seus olhos negros, e um pouco espantados, eram vivos e animados, e ao mesmo tempo meigos e attrahentes.

A rapariga fitou um olhar no mancebo, que mostrava receio e curiosidade; depois approximou-se da chaminé para aquecer ao lume os seus compridos e delgados dedos, que estavam frios.

O mancebo, correu a mão pela testa, como para afugentar uma idéa, que o atormentava, e com voz meiga, mas tremula, perguntou-lhe:

-- Como te chamas?

-- Zaida, meu senhor -- respondeu a creança.

-- Foste abandonada?

-- Não sei; meus pães fugiram dos soldados d'el-rei quando eu estava na villa, e não sei para onde foram.

-- E tens pena d'elles? -- e como a creança não respondesse continuou: -- O que fazia teu pae?

-- Embebedava-se.

-- E tua mãe?

-- Dava-me pancadas.

-- Conheceste uma cigana chamada Aixa? -- perguntou o mancebo com a respiração anhelante.

-- A bella Aixa... a virgem dos olhos de fogo?... conheci, e ás vezes parece-me que ainda a oiço cantar... triste... muito triste...

Tu és a estrella d'alva,

Eu a nuvem da tormenta,

65Tu o lyrio, eu a saudade,

Que de prantos se alimenta.

Tu és o sol que illuminas

A tudo na natureza;

Tu és a vida, eu a morte,

Tu a gloria, eu... a tristeza.

Ficou calada por alguns instantes, e depois disse:

-- A pobresinha amava um grande senhor... e como elle a abandonasse... foi emmagrecendo... emmagrecendo... e depois... morreu... morreu... pronunciando o nome do ingrato... se ella amava-o tanto... tanto... Carlos era o nome d'elle...

-- Sim, chamava-se Carlos, um nome que tem maldição! Os beijos d'esse homem são fataes, tem bafejos de morte! -- e o mancebo, apertando cenvulsivamente a cabeça entre as mãos, deixou se cahir soluçando sobre um banco.

Do outro lado da casa, ouviu-se tambem um som plangente, era o velho soldado, que não poude abafar um gemido, acompanhado d'um soluço, que lhe comprimia a garganta.

A creança recuou assustada, e foi abraçar-se á hospedeira.

N'isto ouviu-se parar um cavallo e bater duas pancadas á porta.

-- Viajantes a esta hora! -- disse a hospedeira.

O soldado levantou se e foi tirar dos coldres duas pistolas, que poz sobre a mesa.

Tornaram a bater com mais força.

-- Quem está ahi? -- perguntou a hospedeira.

-- Abra, que é gente de paz; abra depressa que faz aqui um frio de todos os diabos -- respondeu uma voz de homem.

-- Abra a porta, e deixe entrar -- disse o mancebo. -- Estão aqui dois homens que não teem medo.

Mal a rapariga abriu a porta, entrou um homem embuçado, que, soltando um risada, disse:

-- Parece que estavam com medo! -- e vendo os dois viajantes parou, e fitou-os com um olhar sobranceiro; depois, voltando- se para a hospedeira, disse:

-- O que ha que se coma? Venho de longe e tenho uma fome devoradora.

-- Ha pão e presunto, e pode fazer-se uma fritada d'ovos -- respondeu a rapariga.

-- Fraca ceia para um gentil-homem -- disse o novo hospede, lançando um olhar de despreso para os dois viajantes.

Carlos, que lhe conheceu a voz, ergueu-se livido, hirto, e com os olhos dilatados pela colera, fitou o viajante com olhar severo e ameaçador. A presença d'aquelle homem levantava diante d'elle todos os horrores da sua existencia, todos os tormentos do ciume, toda a longa agonia do seu coração; e completamente allucinado, agarrou uma das pistolas que estavam sobre a mesa.

-- O que ides fazer, meu capitão?!... -- exclamou o soldado.

O mancebo deixou cahir a pistola, e disse para o viajante com mal contida colera:

-- Qualificaste-vos ainda ha pouco de gentil-homem...

-- Duvidas?...

-- Duvido -- tornou o mancebo no mesmo tom.

-- Sabes o meu nome? -- perguntou o viajante.

-- Sei, chamas-te Henrique Henriques de Miranda...

-- E tu Carlos da Silveira, lembro me agora; já uma vez nos encontrámos.

-- Sim, já nos encontrámos -- volveu o mancebo.

-- Visto que me conheces, deves tambem saber que sou tenente-general...

-- Sei que és um servo abjecto, um villão ruim de sangue e de sentimentos. E's o alcaiote d'el-rei, roubador e assassino de mulheres...

Henrique Henriques, com as faces afogueadas e os olhos faiscantes, soltou um rugido de colera, e travando d'um punhal, que trazia no cinto, precipitou-se sobre Carlos da Silveira.

A creança, vendo o perigo que o mancebo corria, lançou-se deante de Henrique Henriques, mas logo soltou um grito de dor; tinha sido ferida n'um braço.

-- Canalha! -- bradou Carlos.

-- Esta affronta só com o sangue se póde lavar -- vociferou Henrique Henriques, espumando de raiva.

-- N'um duello, e não n'um assassinio -- disse o mancebo.

-- Seja, e para já...

-- Aqui?!... perguntou a hospedeira assustada.

-- Não, está lá fóra luar, e podemos matar-nos á vontade -- respondeu Henrique Henriques; e os dois homens sahiram da poisada acompanhados pelo soldado.

O duello travou-se a pequena distancia da estalagem, n'um sitio onde o luar dava em chapa, de modo que os combatentes podiam seguir com os olhos os movimentos das espadas.

As duas laminas cruzaram-se.

Os dois adversarios eram egualmente ageis e vigorosos, e por isso o combate foi terrivel e encarniçado, dir-se-hia uma Incta de selvagens, tal era o furor com que se atacavam, sem comtudo deixar de attender ás regras de esgrima.

Por fim uma estocada, que o alcaiote d'el-rei não varreu a tempo, decidiu a contenda.

Henrique Henriques, varado pela espada do seu adversario, soltou um grito rouco e horrivel de dôr, de raiva e de agonia, e cahiu redondamente no chão, apertando o punho da espada entre os dedos contrahidos.

-- Está morto -- disse o soldado pondo a mão sobre a ferida de Henrique Henriques.

Quando os dois homens voltaram á poisada, viram as duas mulheres, que, tranzidas de susto, esperavam na soleira da porta o resultado do combate.

A creança, apezar de estar ferida, lançou o braço são á roda do pescoço de Carlos, e deu-lhe um beijo.

Na manhan d'um dia triste e brumoso, fr. Venancio pediu a um leigo que lhe era muito dedicado, que o acompanhasse á egreja, onde queria orar.

O frade, arrimado ao braço do leigo, caminhava curvado, com passos incertos e lentos, e ainda assim era obrigado a descançar muitas vezes, tal era o seu estado de fraqueza.

A saude do velho estava muito alterada, a sua pallidez tinha augmentado, e o rosto, profundamente sulcado, indicava que alguma coisa de terrivel se passava no intimo e lhe penetrava a alma; comtudo procurava mostrar-se resignado, e havia instantes em que a fronte se lhe illuminava d'esperança... esperança do céo, que da terra já nada mais tinha a esperar.

O seu estado de saude a todos dava cuidado, por que todos o estimavam pela sua ternura e pelas suas virtudes. Dizia-se que o frade havia recebido um grande abalo; que um dia fôra procurado por um velho, que parecia creado de casa nobre, para assistir á morte de uma mulher; ninguem sabia quem era, mas todos tinham notado, que o frade quando sahiu tinha as feições alteradas, e que lhe tremiam as pernas.

Dois dias esteve ausente do convento; quando vol- tou, vinha ainda mais impressionado, mais triste, e mais alquebrado, e desde esse dia era raro sair da sua cella.

Davam nove horas quando dois homens se apearam á porta do convento.

O porteiro reconheceu-os, mas d'esta vez não foi alegria que lhe transpareceu no rosto: foi tristeza e pasmo. A mudança, que se havia operado no mancebo, não lhe passou desapercebida.

-- Meu tio? -- perguntou o mancebo.

-- Foi agora mesmo para a egreja, é lá que o deve encontrar... e ainda bem que veiu, senhor Carlos... para se despedir de seu santo tio... d'aquella vida que está por um fio -- disse o frade, e as lagrimas rolaram-lhe pelas faces.

Carlos correu á egreja e lançou-se nos braços do velho.

-- És tu?... ainda bem que vieste... julgava não tornar a vêr-te... Mas, o que tens tu?... estás mudado... não pareces o mesmo... que desgraça te feriu, filho?...

-- Padre! -- exclamou o mancebo cahindo lhe aos pés. -- Ouça-me de confissão.

-- Filho, tu bem sabes que é dever meu escutar a confissão de todos os peccadores.

-- Padre, eu já não posso com este martyrio... e é aqui que eu venho buscar a solidão, a paz, o alivio para esta dôr que me estala o coração.

Foi longa a confissão; quando se levantaram, ambos soluçavam.

O velho morreu poucos dias depois do sobrinho ter professado.

A pequena Zaida foi dotada por Carlos da Silveira, e entrou como pensionista no recolhimento do Bom Successo, fundado pelo padre irlandez Daniel O'Daly, cujo nome professo era de fr. Domingos do Rosario.

O soldado não quiz deixar o amo, e ficou no convento, exercendo o logar de jardineiro que estava vago, mas pouco tempo mais viveu: os desgostos tinham acabado de arruinar aquella velha carcassa.

Epilogo

A historia tambem tem escabrosidades.

E o reinado de D. Affonso VI é uma d'ellas.

Em 22 de outubro de 1668 foi proclamada a paz entre o rei de Portugal e Carlos II, rei de Hespanha.

Este tratado foi assignado em Lisboa, no convento de Santo Eloy, aos 13 de fevereiro de 1668, por D. Gaspar de Haro Gusmão, conde de Sandwich, duque de Cadaval, marquez de Niza, que era almirante das Indias, marquez de Marialva, conde de Miranda e D. Pedro Vieira da Silva.

Foi portador do tratado, depois de assignado e ratificado pelas potencias contrahentes, o embaixador de Inglaterra, lord Sandwich, que atravessou a cidade de Lisboa mostrando ao povo uma caixa que trazia na mão, e dizendo em voz alta:

Aqui está o remedio de vossos males, e a vossa consolação.

A nossa antiga e fiel alliada sempre foi solicita em alliviar-nos os males, e dar-nos consolação, o peor é que tambem nos ia alliviando das nossas colonias; os seus remedios e consolações custaram sempre caros a Portugal.

Effectivamente a paz era bem necessaria e desejada. Portugal estava cançado e exhausto com uma guerra de vinte e sete annos, em que muitas vezes tivemos os exercitos hespanhoes no coração do reino.

E' innegavel que tinhamos sabido resistir-lhes e vencer, que o valído, o conde de Castello-Melhor, seguindo as peugadas de D. João IV, e da rainha mãe, tinha conseguido, com a sua intelligente administração e habilissima politica, affrontar briosamente os ataques constantes das forças hespanholas. Portugal, n'esse longo periodo de guerra, glorificou-se aos olhos do universo em muitas victorias, entre as quaes merecem especial menção, a celebre batalha das linhas d'Elvas, ganha pelo conde de Catanhede, em 14 de janeiro de 1659; a batalha do Ameixial, ganha pelo conde de Villa-Flor, contra o poderoso exercito de D. João d'Austria, em 8 de junho de 1663; a de Castello-Rodrigo, ganha por Jacome de Magalhães, em 6 de julho de 1664; e a de Montes Claros, ganha pelo conde de Marialva, em 17 de junho de 1665.

Foram aquellas glorias, adquiridas pelas nossas armas, para as quaes nem o cerebro nem a espada de D. Affonso VI concorreram, que lhe deram o cognome de Victorioso. Outros reis houve mais infelizes, para os quaes a historia apenas encontrou os cognomes de Gordo, Capello, Formoso, Piedoso, Casto, que mostram á evidencia a nullidade dos contemplados.

Os loiros de tão assignaladas victorias eram immorredouros, mas tinham exhaurido o reino. A guerra não se pode sustentar sem dinheiro e sem exercito, e Portugal estava sem ambas as coisas; as suas forças cada vez se iam attenuando e consummindo mais, por isso, o portador do tratado de paz era recebido com acclamaçães sinceras pelo povo, que gritava ao vel-o passar:

Viva a paz e quem a traz!

Começam aqui as escabrosidades, e tu, leitor, se ainda és pudico, salta por cima d'estes periodos que são históricos, mas que só inspiram aversão e nojo.

Dias antes de el rei ser deposto pelo seu proprio irmão, ou antes pela rainha, que foi a alma damnada de toda aquella intriga, esta mulher sem pudor, protestando maus tratos do esposo, retirou-se para o convento das religiosas da Esperança, da ordem de S. Francisco, e d'alli escreveu ao marido o seguinte:

«Deixei o meu paiz, a minha casa, os meus parentes; vendi tudo quanto tinha, só para vir ser a companheira de Vossa Magestade, na esperança de ter a ventura de agradar-lhe. Vejo com violento pesar, e magua, que debalde tenho forcejado por conseguil-o. Pelo que estou resolvida, para tranquilidade publica, e socego da minha consciencia, a voltar para França com as nossas naus de guerra, que estão n’este porto (o sublinhado é nosso). Peço a Vossa Magestade licença para pôr por obra este meu designio, e que se sirva de mandar juntamente que se me dê o meu dote, pois Vossa Magestade sabe muito bem, que eu não sou sua mulher, etc.

El-rei, logo que recebeu esta carta, correu arrebatado pela colera ao convento da Esperança, no intento de forçal-o, e arrancar d'elle a rainha, e com effeito já tinha mandado vir machados para arrombar as portas, quando acudiu o infante, que o obrigou a retirar-se; o que el-rei fez, mas protestando e jurando em termos grosseiros ser mais homem do que se cuidava.

Imagine-se o susto que as pobres religiosas apanharam, e a côr que lhes tingiu as faces, a ouvirem as palavras cruas de protesto d'aquelle arrieiro coroado.

Cremos, que nem ao vermelhão se póde comparar.

A franceza, que já não córava, escreveu tambem aos conegos do cabido de Lisboa, dizendo-lhes:

«Que ella se ausentara da companhia d'El-rei, porque o matrimonio, que com elle contrahiu, não fôra consumado. Que sua consciencia (o sublinhado ainda é nosso) não lhe permittia encobrir mais tempo verdade tão importante, em virtude da qual lhes pedia que lhe fizessem justiça, etc.»

Os conegos do cabido, que tambem não eram susceptiveis d'enrubescer, ficáram d'esta vez da côr das abbatinas dos meninos do côro. Enguliram em secco, e responderam pedindo a sua magestade, que lhe désse tempo para examinar com maduro accordo um negocio tão dedicado.

E bicudo, que elle era.

Em vista d 'estas declarações, como se explicam aquellas esperanças, que duraram mezes, de dar um herdeiro ao throno, e a phrase picaresca: Que se não fôra d'aquella vez seria d'outra?

Seria um pretexto politico, uma astucia da rainha para levar el-rei a assignar a liga com a França?

Mas não é licito suppor, por mais idiota que fosse el-rei, que elle pudesse acreditar em tão grosseiro embuste, e dizendo-se que el-rei tinha um lado doente e o outro lado são, é impossivel que este não lhe segredasse alguma vez, que não podia haver fumo sem fogo.

Mas teria effectivamente a rainha concebido um filho?

E' ella propria que o diz aos seus amigos particulares.

Mademoiselle de Montpensier nas suas Memorias diz o seguinte:

«Sua mulher (referindo-se á de D. Affonso VI) escreveu a todos os amigos particulares participando-lhes, que tinha grandes motivos para estar contente, pois havia casado com o mais honrado dos homens de todo o mundo, e nenhuma coisa faltaria á sua felicidade, quando possuisse um filho, o qual esperava ter dentro em pouco.»

N'este caso quem era o pae, o rei ou o infante?

Em ambas as hypotheses o resultado era o mesmo para D. Pedro; um filho n 'aquellas condições representava a exclusão immediata da sua subida ao throno.

Era o desmoronamento fatal de todas as suas velleidades, de todas as suas ambições.

Mas como se desvaneceram aquellas esperanças da rainha?

Teria havido aborto, e seria este casual ou forçado?...

Faltam provas para o podermos asseverar ou negar.

Pelo lado d'el-rei vê-se que elle tinha velleidades, todos dizem que elle era femieiro, e o proprio embaixador inglez Robert Soutwell assevera, que D. Affonso VI sustentava uma especie de serralho, e que em casa do conde de Castello-Melhor estava sendo educada uma menina de quatro annos de edade, que passava por filha do rei.

Dizem que elle escrevera e assignara uma declaração em que dava razão á rainha, e confessava a sua incapacidade physica.

Mas então já el-rei estava preso, e quem sabe como lhe foi arrancada essa declaração; além d'isso ainda ha duvidas se el rei sabia escrever; o proprio conde da Ericeira no seu Portugal restaurado diz que elle era analphabeto.

Talvez que todo este escandalo esteja explicado, e em poucas palavras, por um grande escriptor francez.

Diz Voltaire:

«... e ella, a amante adultera do trigueiro cunhado, que entra nos tribunaes empunhando attestados e depoimentos de meretrizes, pelos quaes se demonstrava que Affonso VI era menos viril, que o necessario a uma dama que sahira da côrte de Luiz XIV.»

Effectivamente duas conclusões se tiram d'aquelle monstruoso proceeso:

Que el rei, apesar da historia o cognominar de Victorioso, não era para cavallarias altas.

Que a mulher rivalizava, em impudor, com as mais infimas bordeleiras, que deposeram no processo de annullação do seu consorcio.

O casamento, como era de esperar, foi declarado nullo, por sentença de 24 de março de 1668, e logo a rainha mandou intimal-a aos tres estados pedindo a restituição do seu dote.

Pediram-lhe então os tres estados, e o senado da camara, que houvesse por bem ficar do reino e casar com D. Pedro, e como a rainha annuisse a esse pedido, foram logo nomeados os procuradores do principe, o marquez de Niza e D. Rodrigo de Menezes, e da princeza, o duque de Cadaval, e o marquez de Marialva, que fizeram os artigos do contracto de casamento.

Para tirar todas as duvidas e escrupulos, e salvar a honestidade publica, veiu de França Mr. de Vergus com o breve do Legado, em que se dava por legitimo e valido este casamento.

Representada toda esta ignobil comedia, D. Maria Francisca de Saboya, e o princepe regente D. Pedro desposaram-se perante o bispo de Targa, no oratorio do paço, e no dia seguinte, 2 de abril, receberam a benção nupcial do mesmo bispo, na quinta de Alcantara e na presença de toda a nobreza da côrte.

D. Affonso VI foi mandado para o castello de Angra, na ilha da Terceira, mas passado tempo, por desconfianças de que os seus amigos o queriam salvar d'aquella prisão, mandaram-n'o vir para o reino, e foi encerrado n'uma camara do palacio de Cintra, onde falleceu subitamente no dia 14 de setembro de 1683.

D. Maria Francisca de Saboya, que se fizera beata, talvez por remorsos tardios, falleceu aos 27 de dezembro do mesmo anno, no historico palacio de Palhavã, abraçada a uma imagem da Virgem do Pilar, que a seu pedido, fôra trazida da egreja de S. Vicente de Fóra.

Alcançaria aquella grande peccadora a graça divina?

Quem sabe...

Em Deus tudo é infinito, até o seu perdão.

FIM

O fausto desusado, com que a nobreza e o principe se ornavam para uma guerra, que mesmo feliz os havia de expôr a grandes fadigas, talvez nascesse da falsa idéa, que el-rei tinha do caracter dos arabes, e das sonhadas facilidades da empresa. Illudido e credulo, D. Sebastião levou o orgulho, ou antes o delirio, a ponto de ter na sua galé uma corôa de ouro cerrada para o dia em que entrasse em Alcacer ser coroado imperador de Marrocos, assim como vestidos e alabardas para dar aos da sua guarda durante a ceremonia, com as armas reaes e a corôa fechada por timbre. Para nada esquecer, até Fernão da da Silva trazia estudado de antemão o discurso, que havia de proferir, annunciando a victoria do alto do pulpito. (Quadro elementar, tom. XVII, p. CCIII)

O bispo de Silves, D. Jeronymo Osorio, dirigindo-se a Luiz Gonçalves da Camara, mestre do rei, mostra-nos a influencia exercida pelos jesuitas sobre o animo do neto de D. João III: -- Qual será o credito da Companhia de Jesus nos outros reinos, e que devoção terão por ella os principes, diz o prelado, quando virem o que sabe de Portugal, aonde tudo se governa por voto seu? (Cartas Ineditas de D. Hieronimo Osorio, p. 40 e 41)

Nome que o povo dava aos estrangeiros.