O selo da roda: Edição para o ELTeC Ivo, Pedro [ Carlos Lopes ] (1842-1906) Criação do HTML original Madalena Rato Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 60966

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O sello da roda Pedro Ivo O sello da roda Pedro Ivo Typ. do Commercio do Porto Porto 1876

português de Portugal Adicionado à coleção ELTeC

O SELLO DA RODA

POR

PEDRO IVO

PORTO

TYP DO COMMERCIO DO PORTO

Rua da Ferraria, 102 a 112

1876

I

Estamos em fins de setembro. A brisa dos montes leva de quebrada em quebrada os éccos de mil cantares. Corre a vindima com o cortejo de alegrias, esperanças e projectos, que a acompanham.

Espalhadas pelas encostas, movendo-se nas profundezas dos valles, centos de raparigas, de navavalha em punho, lidam na corta das uvas, roubando um bago a cada cacho e provando ao sol, por mil fórmas, que mais ardente do que elle lhes gira o sangue nas veias.

Descendo em linha recta a montanha, saltando de socalco em socalco, uma linha interminavel de gallegos transporta aos hombros para os lagares os enormes cestos vindimos, fazendo lembrar de longe um exercito de formigas forrageando as provisões d'inverno.

Do centro de cada povoação eleva-se um borborinho confuso, formado pela algazarra, que sahe de todas as casas.

Se entrardes em qualquer d'estas, ireis, guiados pelas vozes, ter ao lagar e vereis, dentro d'elle, longa fileira de homens, com os braços enlaçados, avançando ou recuando juntos, lenta e methodicamente.

É a pisa.

A vista d'esses homens, erguendo e baixando as pernas rubras de vinho, o som da banza chuleira e da barrica transformada em tambor, as pragas e cantigas em portuguez e gallego, tudo isso reunido traz á idéa uma festa de selvagens.

Ao leitor, que tiver de ir ao Douro, em épocha de vindima, darei um conselho: não acceite cama em casa, onde ainda não tenham acabado de pisar!

Á noite, todo aquelle infernal barulho redobra, porque é esse o unico meio de resistir ao somno, cuja necessidade as exhalações alcoolicas tornam mais imperiosa.

Quem ainda não ouviu a algazarra, que fazem duas duzias de gallegos, empregados em semelhante trabalho, desconhece um dos mais horriveis martyrios, que podem impedir um homem de dormir! Antes uma dôr de dentes!

Que não saibam, porém, os filhos de além-Minho o que deixo dito!

Sem o auxilio de seus robustos braços, sem a estoica resignação, com que acceitam tam pezados trabalhos, mal iria ao paiz do vinho, cujos filhos não bastariam para o serviço.

Pobre gente!... Faz dó vêl-os chegar aos bandos, tam unidos e irmãos, que logo se comprehende vir alli a pobreza d'uma freguezia inteira!... Ás vezes... só falta o parocho!

E elles ahi veem, com a mira no magro salario, de povo em povo, descançando á beira dos caminhos, banhando os pés doridos nas agoas dos regatos, almoçando e jantando uma cebola crúa com um pouco de pão negro, batendo a todas as portas, offerecendo o corpo a todos os serviços, a alma a todas as humilhações!

O que, porém, mais contrista, é o aspecto das mulheres e das crianças!

Queimadas pelo sol, fazendo esforços sobre humanos, para não ficarem muito atraz dos companheiros, as pobresitas, muitas vezes, precisam de contemplar os filhos mais velhos, que se lhes agarram ás saias, maltrapidos, com as faces e a fronte cobertas por uma espécie de pêllo caracteristico, indicador do longos dias de fome; precisam, sobretudo, de pensar nos mais novos, que lhes aguardam a volta, para se não deixarem cahir desanimadas á beira do caminho, esperando que Deos as dispense do martyrio de ver raiar o sol da manhã seguinte!

Nao são estes, porém, os unicos romeiros da vindima. O nosso laborioso Minho tambem envia aos verdes montes do Douro as suas caravanas de jornaleiros d'ambos os sexos e de todas as idades.

Na pista d'estas abelhas não tardam a apparecer os zangões: atraz dos pobres chegam os dilectos da fortuna.

Alvo de todas as vistas, esperanças de todos os lavradores, centro de todas as attenções destacam, entre os rostos duros, nervosos e morenos da nossa raça, as physionomias apathicas dos inglezes alvos e rosados, cujos olhos de louça azul sustentam, impenetraveis e impassiveis, as anciosas interrogações dos negros olhos transmontanos.

Pode ser que me engane, mas... estou convencido que a superioridade, o instincto mercantil do inglez provém, especialmente, da cor do cabello!... provém de sêrem loiros como as libras esterlinas — e frios, como o metal de que são feitas.

Formando, igualmente, centro de grupo; mas credor de muito menos consideração da parte dos lavradores, encontra-se a cada passo um negociante filho do Porto.

Movendo-se, intrigando, gesticulando, jurando falso, pretendendo convencer e fingindo acreditar, formigam os fabricantes de agoardente e uma alluvião de corretores improvisados, que concorrem de todos os pontos áquella especie de feira franca.

Reina por toda a parte o movimento e a vida.

Ao longe, nos caminhos, ouve-se o chiar tedioso dos carros, e o forasteiro, vendo-os de repente apparecer no alto de um despenhadeiro, receia a cada passo vel-os precipitar-se.

Que estradas, Santo Deos! Como passa um carro, onde, momentos antes, receiamos não poder passar a cavallo!?

Ha sitios, onde o conductor, entalando-se entre as molhelhas, especie de almofada, que cobre a cerviz dos bois, e agarrando-se ás armas d'estes, precisa de firmar os pés contra os troncos e as pedras, que orlam o caminho, para conter os pobres animaes, impellidos pelo pezo do carro, que... não roda!... vai saltando de fraga em fraga!

E dizem os velhos: «Isto hoje é mel!»

Imagine-se, pois, o que seriam taes caminhos em 184..., épocha em que principia a nossa narração!

N'esse anno, além da animação, devida aos trabalhos da vindima, outro motivo obrigava a andar pelas estradas gente de todas as condições: deviam ter logar no domingo seguinte as eleições para deputados; fallava-se de freguezias, que deviam espingardear-se por amor a Fulano ou Beltrano, e não havia em todo o paiz um unico homem indifferente á lucta, por dias a decidir-se.

Em parte alguma, porém, promettia a contenda ser tam renhida, como em — inventemos um nome! — Avellaneda, cabeça de comarca.

Os parochos visitavam a um por um os seus freguezes; os empregados de fazenda vinham por sua vez, com o sorriso nos labios, mas com os olhos cheios de augmentos de contribuições para quem não fosse por elles, ao passo que os figurões da terra, lembrando-se, por milagre, de que todos os homens são irmãos e iguaes, se dignavam apertar nas suas as mãos dos agricultores, calejadas pelo manejo do podão e da enxada.

E os pobres innocentes partilhavam aquelles odios e caprichos, porque está na indole do povo arriscar a pelle por quem lhe rouba a lã!

Entremos agora em Avellaneda, onde, por assim dizer, está estabelecido o centro das operações eleitoraes.

Agrupados á porta de uma botica, conversam animadamente seis homens, cinco dos quaes pertencem, inquestionavelmente, á aristocracia do Douro.

A civilisação, graças á liberdade de que o paiz gosa, ha cerca de quarenta annos, e á relativa facilidade de communicação com os grandes centros, tem pouco e pouco modificado as idéas, maneiras e aspecto d'essa classe, que, sob a designação de fidalgos, mantinha, em toda a sua pureza, o ridiculo e a hediondez das tradições do feudalismo.

Ainda hoje se encontra um ou outro specimen d'essa raça de capitães-móres, para regosijo do povo, que foi deixando de os temer, á medida que se foi convencendo de que a lei é igual para todos e que, nivelados pelo crime, vão o nobre e o plebeu desbravar o solo de Africa, acorrentados pela mesma cadeia.

Na épocha, porém, a que nos referimos, a especie era, por assim dizer, perfeita.

Trajados a capricho, mas aproximando-se visivelmente do contrabandista hespanhol, os dedos queimados e os bigodes amarellados pelo fumo do cigarro, o tedio e o cançasso estampados no rosto, o olhar entre insolente e cynico, o gesto tôrpe, a linguagem immunda, a idéa abjecta — estes os signaes, que caracterisavam outr'ora o typo do fidalgo de provincia, hoje polido pela civilisaçao e nobilitado pelo trabalho.

Dos cinco, que annunciamos, como pertencendo á aristocracia da terra, quatro tinham incontestavel direito aos distinctivos de nobreza, que acima expuzemos, e pareciam ter por missão, n'aquelle instante, fazer sobresahir a extrema distincção de maneiras, a formosura viril e intelligente do seu companheiro, que mostrava não lhes notar a presença e interrogava com attento interesse o boticario.

De estatura elevada, robusto mas esvelto, fronte espaçosa coroada por um espesso cabello negro de anneis revoltos e indomaveis, olhos negros e alegres, labios grossos e vermelhos, assombrados por farto bigode, a tez morena, mas d'este moreno corado por um sangue rico de força e de vida, dentes alvissimos, — eis o que, á primeira vista, impressionava agradavelmente quem o contemplava.

Analysado, porém, com attenção, ia-se gradualmente augmentando a sympathia provocada por um primeiro e fugitivo olhar.

Era tam extraordinaria a mobilidade de suas feições, e tam fieis os seus olhos na traducção do que sentia e pensava, havia no minimo dos seus gestos tanta dignidade e singeleza, que o menos perspicaz dos observadores poderia, sem hesitar, classifical-o como alma nobilissima, caracter incapaz de conceber o que quer que fôsse menos digno de respeito.

Filho d'um homem morto no serviço da causa liberal, Fernando de Albuquerque cerrara os ouvidos ás seducções dos seus iguaes, e, tremendo só de conceber a possibilidade de vir a fazer parte da innumera cohorte dos morgados ignorantes e inuteis, furtara-se ás caricias maternas e seguira em Coimbra o curso de direito.

Possuidor d'uma fortuna, que lhe garantia a independencia, Fernando tornara-se o advogado dos pobres e adquirira rapidamente a popularidade, que galardôa o talento unido á virtude, e não a que se obtém pela hypocrisia ou pela corrupção.

Não se pense, porém, que a bondade de Fernando fosse devida a falta de energia, á especie de indolencia, que faz parecer bom quem é apenas impotente para o mal!...

Não!... Mais d'uma vez, quando provocado, déra provas do imperio, que podia exercer sobre elle a violencia das paixões, e daremos um unico exemplo da generosidade da sua alma, bem como da sua temeraria coragem.

Uma das propriedades de Fernando confinava com a d'um velho, conhecido em toda a provincia pelo seu caracter rancoroso e vingativo.

Um embargo, injustamente feito pelo visinho a uma obra, começada por Fernando, degenerara em demanda. Confiando na justiça da sua causa, o mancebo não seguira com o devido zêlo o andamento do pleito e perdera-o.

No dia, em que o velho soube o favoravel resultado da questão, teve até á noite meza franca e pipa ao torno, em sua casa, para quem quiz comer e beber e, não contente com isto, esperou que se apagasse a ultima luz em casa de Fernando, para lhe mandar botar á porta duas duzias de foguetes.

Dois dias depois, encontrando em sitio ermo o visinho, que empallideceu mal o viu, Fernando dirigiu-se a elle e disse-lhe singelamente:

— Não trema, homem!... Agradeça a Deos esses cabellos brancos, que me prendem as mãos e o tornam sagrado para mim!... Siga... siga o seu caminho!... Não me agradeça... vá-se!... Se tivesse menos trinta annos... não sei, se você tornaria a botar foguetes!...

Os illustres primos e amigos de Fernando nunca pudéram comprehender este acto de generosidade, que muitos alcunharam de cobardia.

Mezes depois tocava o sino da freguezia a rebate: ardia a casa do rancoroso velho.

O fogo ateara-se no andar térreo e as chammas, fazendo estalar os vidros, irrompiam pelas janellas.

Em frente apinhava-se a multidão passiva, por conhecer a inutilidade do soccorro, quando, de repente, abriu-se uma das janellas do terceiro andar e assomou a ella o proprietario dementado pelo terror e quasi asphyxiado pelo fumo.

Ao vêl-o, torcendo as mãos e medindo com olhar vago e idiota a altura, que o separava da rua, ergueu-se um brado de horror do peito de todos os espectadores d'aquella scena.

— Espere!... — gritou de repente alguem.

Um homem, sahindo do meio da turba, correu para a porta, quasi carbonisada, e, encostando-lhe os hombros, abriu-a e penetrou na casa atravez das chammas e dos rolos de fumo, que se precipitavam por aquella sahida, que lhes offereciam.

Um grito mais pavoroso do que o primeiro condemnou o louco arrojo do temerario, que assim se expunha a uma morte horrorosa, e é impossivel descrever o enthusiasmo, com que foi saudada a apparição do valente, que, com os cabellos queimados, o rosto negro de fumo, e as roupas em chammas, veio cahir sem accordo fóra da porta, agarrado ao corpo, quasi sem vida, do velho, que tam heroicamente salvara.

Esse louco, esse valente!... era Fernando, que, obedecendo aos impulsos do coração, arriscara a vida, sem por um momento se lembrar que o homem, por quem se sacrificava, era o villão, que o offendêra!

É escusado dizer ao leitor, que os illustres primos do nosso heroe deixaram de o considerar cobarde; mas, desistindo de comprehender, e applaudindo-se por não serem capazes de fazer o mesmo, quando alguem lhes pedia informações de Fernando, encolhiam os hombros e diziam:

— Bom moço!... valente como as armas... bom companheiro!... mas...

O sentido da phrase completavam-no elles com um gesto: batiam duas vezes, com a ponta do dedo indicador, no meio da testa.

— Que fizeste tu hontem, ó Noronha?... — perguntou um dos morgados, humedecendo com saliva os dedos queimados pelo cigarro e raspando-os na umbreira da porta da botica, unica receita, que conhecia para os limpar.

— Fui ás... perdizes... — respondeu o interpellado, cortando a phrase, para acabar de arrancar um bocado da unica unha, em que havia ainda que roer.

— E d'ahi?... — volveu o outro.

— Com o diabo do leste, não ha meio de lhes chegar!... — implicou o Noronha, examinando as unhas uma por uma, na esperança de achar em que se entreter.

Reconhecendo que teria de passar alguns dias privado d'aquelle seu favorito divertimento, tirou um cigarro do bolso, apertou-o e accrescentou:

— Dei quatro tiros; mas não fiz nada... O Aguiar ainda chamuscou uma, mas viu-a ir.

- Ah!... O Aguiar foi comtigo?... — disse um terceiro.

— Foi... Aquelle diabo parece que, quanto mais vai indo para velho, mais rijo se torna!... Muita perna tem aquelle ladrão!...

— Muita perna... Tem tanta como eu, se tivér — acodiu um, que estivera calado, e que bom foi que fallasse, pois, tendo só duas pernas, destruiu para o leitor, que ignora a linguagem dos filhos de Santo Huberto, a possibilidade de ser o tal Aguiar um phenomeno de feira, munido de tres ou quatro pernas.

— Vai para lá!... — respondeu o Noronha escandalisado.

— Isso aposta-se... — redarguiu o que desdenhara.

— Pois é já!... — acodiu o provocado, mettendo a mão no bolso.

— É escusado dinheiro... Aposto o meu Fusco contra a tua Diana, em como o Aguiar não aguenta mais do que eu a andar!...

— A aposta não é igual, pois tu bem sabes que não faltam por ahi cães como o teu Fusco, em quanto que a Diana é... o que alli está... Ainda não ha muito que me offereceram doze moedas por ella!... Mas é o mesmo... acceito... Se eu tenho a certeza de ganhar!... Despede-te do Fusco, Vasconcellos!...

Este, offendido no amor proprio do seu cão, protestou e, como as opiniões se dividissem, força foi appellar para o voto de Fernando.

— Vocês que querem!?... — perguntou este enfadado, por lhe cortarem o dialogo, que travara com o boticario.

— É aqui o asno do Vasconcellos...

— E este parvo do Noronha...

Vendo, que os dois se dispunham a fallar ao mesmo tempo, Fernando encolheu os hombros e, voltando-se para um terceiro, disse com impaciencia:

— Conta tu, Geraldo.

Accedendo ao convite, Geraldo expoz a questão em poucas palavras.

— Ora o que vocês quizerem!... Tam bom é o Fusco como a Diana!... — observou Fernando, voltando-se de novo para o boticario, sem mais se importar com os outros, que não acceitavam a sentença.

O boticario, o unico que ainda não apresentamos ao leitor, é um d'estes sêres indefiniveis, uma d'estas physionomias sphynges, que Deos, nos seus momentos de bom humor, se compraz em crear para martyrio dos discipulos de Lavater.

Magro, enrugado, cabello e suissas d'um louro desbotado, olhos de um azul a destingir para branco, tanto pode ter quarenta como cincoenta annos. Primeiro problema a resolver.

Se do physico passarmos ao moral, acharemos novos problemas.

É bom ou mau?... Ninguem o saberia dizer.

Os olhos, d'uma mobilidade prodigiosa, jámais se fixam nos do interlocutor, e nos labios raia-lhe constantemente um sorriso, mas tam fraco, que lhe não illumina o resto das feições.

Conta-se-lhe uma acção boa ou má d'esta ou d'aquella pessoa, louva-se ou censura-se alguem?... Tem uma unica resposta, acompanhada pelo eterno sorriso: «Sim, senhor... sim senhor...»

Pede-se-lhe uma libra emprestada?... Ou abre pressuroso a gaveta e offerece mais do que se lhe pede, ou abre a gaveta e prova não ter cinco réis em caixa!

Pergunta-se: é uma e mesma gaveta, mysteriosa como o dono, de conteúdo incerto como o dono, ou terá este duas gavetas, uma para os bons, outra para os maus pagadores?!...

Tudo problemas!

Fernando tentava n'aquella occasião sondar-lhe o interior do cerebro e começava a convencer-se da inutilidade dos seus esforços.

Affectada bonhomia, confidencias d'uma apparente ingenuidade quasi infantil, perguntas insidiosas e bruscas, argumentos contradictorios — baldado empenho!

Todos esses estratagemas falhavam, vencidos pelo sempiterno sorriso e pelo sacramental: «Sim, senhor... sim, senhor!...»

— Então, que lhe parece, snr. Braz... Terei ou não terei a eleição segura?.. — perguntou Fernando.

— Eh! eh!... Sim, senhor... sim, senhor... V. s.ª bem sabe... sim, senhor... sim, senhor...

— Mas sei o que?... Perco ou ganho?... — insistiu o mancebo.

— Se perde ou se ganha?... Sim, senhor... Eu sei!... V. s.ª lá sabe... Acolá vem o snr. João da Cunha... — replicou o pharmaceutico, fugindo habilmente ao ataque.

As palavras do snr. Braz puzéram termo ao debate dos quatro caçadores, chamando-lhes a attenção para a pessoa por elle annunciada.

Fernando, ouvindo aquelle nome, mudou de côr e volveu os olhos para o lado da praça, por onde João da Cunha apparecia n'aquelle instante.

— Bravo!... — exclamou Geraldo — aquillo é que é saber montar... o mais são historias!...

Era, effectivamente, cavalleiro consumado o homem, assim saudado por Geraldo, e que cumprimentava tranquillamente os conhecidos, que encontrava, parecendo não notar os esforços do fogoso e valente animal, que em vão tentava fazer-lhe perder os estribos.

A cerca de vinte passos do grupo, que descrevemos, fez parar o cavallo, chamou com a mão um homem do povo, apeiou-se, entregou-lhe as redeas, fez-lhe algumas recommendações, afagou o animal e dirigiu-se vagarosamente para os nossos conhecidos.

— Meus senhores... — disse elle, saudando-os com o gesto e sem estender a mão a nenhum d'elles, que, á excepção de Fernando, corresponderam pressurosos ao cumprimento.

— Que dizes áquelle bicho, tu, que és entendedor, ó Fernando!?... — perguntou Geraldo, indicando o cavallo.

— É um formoso animal!... — respondeu o mancebo.

— Pois olha, que não é para as pernas de qualquer o montal-o!... — observou o Noronha.

— Isso acredito eu... — replicou Fernando — mas, quem o fizer, pode gabar-se de ter montado um dos cavallos mais perfeitos, que eu tenho visto.

— Aposto que não se te dava de experimentar?... — perguntou, rindo, Geraldo.

— Não caihas n'essa, se não queres perder os teus creditos de picador, além de quebrares a cabeça!... — observou o Vasconcellos.

Fernando córou e volveu com enfado.

— Não digas tolices!... Eu não sou picador, nem quero passar por tal... É possivel que quebrasse a cabeça, se o montasse; mas, se eu tivesse absoluta necessidade d'um cavallo, para ir a qualquer parte e só me déssem aquelle, não hesitaria em o montar.

João da Cunha, que assistira calado a esta troca de palavras, cortejou urbanamente o mancebo e disse-lhe, sorrindo com ligeira ironia:

— Se V. exc.ª, algum dia, se vir em semelhantes apuros, tem aquelle cavallo ás suas ordens; é, porém, do meu dever prevenil-o, que «Souto Redondo» é exclusivo nas suas affeições e só obedece a seu amo.

— Ah!... — volveu Fernando com olhar scintillante — chama-se «Souto Redondo» o cavallo?...

O que V. exc.ª me diz d'elle, dá-me desejos de lhe experimentar a fidelidade!...

— Se não receia... — repondeu João da Cunha, cada vez mais ironico.

— Receio!... Eu!?.. — atalhou Fernando, erguendo orgulhosamente a fronte. — Consente v. ex.ª que eu tente?...

— Já tive a honra de lhe dizer, que aquelle cavallo está ás suas ordens... — retorquiu João da Cunha.

— Quem me empresta umas esporas?... — exclamou Fernando.

— Eu... — respondeu Geraldo.

— Snr. Albuquerque... devo prevenil-o de que «Souto Redondo» não admitte o argumento da espora... — observou João da Cunha, rindo sarcasticamente.

— E do que eu espero, que elle me convença... — replicou seccamente o mancebo.

Um vislumbre de tino raiou por um momento no cerebro dos loucos espectadores d'aquella scena, que tentaram primeiro dissuadir o amigo e impedir em seguida, que Geraldo lhe désse as esporas.

Estes esforços eram contraproducentes, porque o perigo exercia sobre Fernando uma verdadeira fascinação.

Contrariado pelas observações dos companheiros, o mancebo exclamou:

— Vem d'ahi, Geraldo!... dá-me as esporas.

Geraldo entrou com elle na botica, tirou as esporas e entregou-as a Fernando, que mal as poz, caminhou para o cavallo.

Este, apenas sentiu mão desconhecida a acertar as rwdeas, lançou em roda um olhar entre desconfiado e raivoso, estremeceu e, quando o mancebo aproximava o pé do estribo, furtou-lhe o corpo, dando um rapido salto para o lado.

João da Cunha sorriu desdenhosamente. Notando-lhe o sorriso, Fernando, que não largara as redeas, córou, mordeu os labios; mas, contendo-se, afagou o cavallo, enrolou alguns fios da crina nos dêdos e, dando um salto, cahiu assentado na sella.

João da Cunha empallideceu e franziu o sobr'olho, em quanto que os outros espectadores victoriavam o cavalleiro.

O mais difficil, porém, era sustentar a posição, e não alcançal-a.

Seguiu-se um duello terrivel entre o homem e o cavallo.

Este, erguendo-se, rodava com uma rapidez assustadora, e, mal poisava as mãos, arrojava-se para os lados, estendia-se, levantava-se a prumo, a meia altura deixava-se de novo cahir sobre as mãos, para despedir violentos couces e o dorso ora parecia prestes a quebrar-se pelo meio, ora se erguia arqueado como o d'um tigre no acto de precipitar-se sobre a presa.

João da Cunha, pallido, com os labios cerrados, amarrotava o peito da camisa, com mão convulsa; os outros contemplavam estupefactos e aterrados a prolongada lucta.

Eram tão rapidos os movimentos do cavallo, que Fernando não pudera metter os pés nos estribos e só á sua pericia e extraordinaria força devia o não ter sido cuspido da sella.

Com os olhos brilhantes de audacia e as faces animadas pela lucta, era formosissimo o aspecto do mancebo!

Coberto de espuma, arquejando de cançasso, tremendo de raiva e de medo, «Souto Redondo», depois de mais tres ou quatro tentativas inuteis, curvou a cabeça e parou agitado por um ligeiro tremor nervoso.

Fernando, vendo-o disposto á obediencia, estribou-se, afagou-o, afrouxou um pouco a pressão dos joelhos, e cumprimentou os espectadores.

Colhendo em seguida as redeas, chegou levemente as esporas ao cavallo, que se encolheu e pareceu disposto a recomeçar o combate.

Sem o minimo respeito pelas antipathias de «Souto Redondo», Fernando deu-lhe duas fortes esporadas e o cavallo partiu como uma flecha.

Estava vencido.

Depois de o ter obrigado a andar a passo e a galope em volta da praça, Fernando encaminhou-se para o grupo, apeiou-se, entregou de novo as redeas ao homem, a quem antes fôra confiada a guarda do cavallo, recommendou-lhe que o não deixasse estar parado para não arrefecer, e, voltando-se para João da Cunha, disse-lhe singelamente:

— Não ha em toda a provincia um cavallo, que possa pôr-se a par d'aquelle!...

— Nem cavalleiro, que possa hater-se com v. exc.ª... — respondeu João da Cunha, cortejando com perfeita, mas glacial polidez.

— Oh! Senhor!.. — atalhou Fernando. — Quando não haja outros — que ha — temos, pelo menos, o que poude domal-o, quando ninguem se atrevia a fazel-o, e a mim dizem-me que foi v. exc.ª quem ensinou aquelle nobre animal.

João da Cunha agradeceu, com um gesto, tam espontanea e delicada declaração.

É tempo de fazermos o retrato de João da Cunha.

Quem houvesse de pintar um cavalleiro da idade media, não poderia encontrar mais puro e correcto modelo.

Era o digno representante das raças dominadoras, e o seu aspecto bastava para inspirar respeito d'envolta com uma especie de terror.

Ao vêl-o passar orgulhoso e sombrio, tam firme na sella, que cavalleiro e cavallo traziam á mente a imagem do Centauro de mythologica memoria, occorria naturalmente a idéa de dever aquelle homem ter nascido alguns seculos antes, para poder revestir a armadura, em vez do ridiculo e prosaico frack dos nossos dias.

Hoje, que os vermes da campa devem ter, ha muito, concluido n'elle a sua tarefa, se lhe encontrarem a ossada dispersa, classifical-a-hão como fazendo parte do esqueleto d'um gigante.

De elevadissima estatura, e magro, revelava na largura do tronco optima construcção e grande força physica.

Os olhos negros e cavos, fulgindo por sob espessas sobrancelhas, o nariz aquilino, os labios encobertos por farto bigode grisalho, a fronte polida como marfim e deprimida, a côr biliosa — compunham um todo, em que havia muito da ave de rapina.

Era uma physionomia dura e altiva, que fascinava e repellia a um tempo. Se lhe era impossivel inspirar sympathia, tinha a faculdade de impedir a manifestação de sentimentos contrarios.

De mais, para provar o quanto lhe era indifferente a opinião alheia, sulcavam-lhe as faces, ao canto dos labios, duas fundas rugas, cavadas por um sorriso de inexcedivel orgulho e frio desprezo.

Trajava sempre de preto; mas, fosse qual fosse o vestuario, havia em todo elle um não sei quê, que se assemelhava ao uniforme e trahia o incognito do militar.

Filho segundo d'uma casa antiquissima e opulenta, abraçara a carreira das armas, até a sorte, adversa á bandeira que seguia por educação e convencimento, o obrigar a embainhar a espada.

Senhor de enorme fortuna, por fallecimento do irmão, João da Cunha emigrara, terminada a guerra civil, para Inglaterra, com uma filha, unica que lhe ficara d'um casamento pouco feliz, e voltara, havia pouco, trazendo comsigo, além da filha, a segunda esposa, que poucas pessoas se gabavam de ter visto.

Mal olhado na provincia pela ferocidade de que déra provas, como partidario da causa vencida, mas temido pela sua extraordinaria bravura, João da Cunha vivia isolado e sombrio como um cão de fila no meio d'uma matilha de perdigueiros, abstendo-se de a atacar em razão do numero, mas mostrando os dentes á menor manifestação hostil.

Deixemos, porém, ao tempo o cuidado de mostrar o verdadeiro caracter d'este homem.

II

A victoria de Fernando ferira dolorosamente o orgulho do antigo capitão de lanceiros.

Entre estes dois homens havia uma antipathia invencivel, mas natural, a antipathia que deve existir entre a luz e as trevas.

Um vira cortada a sua carreira, calcadas as crenças, mortas as esperanças pela victoria da causa liberal; o outro fôra educado por sua mãe na glorificação d'essa causa, e não podia esquecer que seu pai morrêra em defeza d'ella.

Tinham ambos a consciencia de ser reciproca essa antipathia, a que o acaso não permittira, até então, dar largas.

Haviam-se encontrado muitas vezes; mas sem se saudarem, sem nunca terem dirigido a palavra um ao outro.

Quando João da Cunha cumprimentara, sem fazer distincção, os que formavam o grupo, Fernando levara apenas a mão ao chapéo, para corresponder.

O que, porém, passou desapercebido para os morgados, incapazes de perceber coisa alguma; mas que não deixaria de ser notado por quem conhecesse bem o caracter de Fernando, foi a moderação com que este soffreu as ironias de João da Cunha.

O mancebo parecia querer evitar um desaguisado e, fosse qual fosse o motivo, não era evidentemente por falta de coragem, pois bem provada deixamos a sua intrepidez, e é natural que aquelle incidente se não houvesse dado, se uma causa futil, mas significativa para os dois inimigos, o não houvesse provocado.

Essa causa foi — o nome do cavallo.

João da Cunha chamara-lhe «Souto Redondo»: esse nome recordava-lhe uma das paginas mais brilhantes da sua historia militar, e Fernando devia a sua orphandade á acção de Souto Redondo.

Ao mancebo parecêra acinte o que, com certeza, era simples acaso, e d'ahi o desejo de castigar o orgulho do velho realista.

O grupo tornara a formar-se á porta do boticario.

— Quem vem acolá?... — perguntou este.

— É o Miguel, marchante... — respondeu o Noronha, depois de breve exame.

— Anda-te a cavar na vinha, Fernando?... — accrescentou elle.

— Anda — replicou o mancebo.

O passo travado d'um bonito garrano russo pouco tardou a trazer á presença dos nossos conhecidos um homem robusto, de feições energicas, pescoço de touro, respirando saúde e força por todos os poros.

Apeiando com uma facilidade, pouco de esperar da sua corpulencia, o marchante tirou respeitosamente o chapéo e, dirigindo-se a Fernando, disse-lhe:

— Se esses senhores déssem licença, e v. excª fizesse favor...

Fernando affastou-se do grupo e travou com o recem-chegado um dialogo em voz discreta.

Cinco minutos depois, dava o mancebo uma palmada no hombro do marchante, dizendo-lhe: «Arranje lá isso como entender», ao que o outro respondia já com o pé no estribo: «Esteja v. exc.ª descançado!...»

Saudando de novo, Miguel partiu por onde viera, n'aquelle passo travado do garrano, a que elle chamava rapido «como uma bala» e em que se compromettia a «levar na mão um copo cheio de agua, sem entornar uma gota».

— Então?... Que tal vão as coisas?... — perguntou Geraldo a Fernando.

— Dizem-rae que estão bem figuradas; mas... a uma o dirá... — replicou o interrogado, encolhendo os hombros.

— Olha lá, ó Fernando!... — exclamou o Vasconcellos — sabes tu, quem te segurava a eleição, se quizesse?...

— Dize!... — acodiu Fernando com vivacidade.

— Quem é... está-nos a ouvir! Em Fonte-longa bastava que elle lá mandasse um creado, para te não faltar nem um voto!... Que diz, snr. João da Cunha?...

— Responderei, quando o snr. Vasconcellos me explicar o sentido das suas palavras... — replicou aquelle com pronunciada frieza.

— Quero dizer... — observou Vasconcellos — quero dizer que, se v. exc.ª der as suas ordens, não haverá em Fonte-longa quem se atreva a deixar de votar em Fernando.

— V. exc.ª exagera a minha influencia — respondeu João da Cunha com ironica polidez — mas, quando fôsse qual se digna suppôl-a, permitta-me v. exc.ª dizer-lhe, que não seria eu quem desse um passo, o qual poderia ser tomado como adhesão a um principio, que tem por fim dar a um povo um sem-numero de reis á sombra d'outro, que fica realmente na sombra.

Fernando, que corara, percebendo a allusão de Vasconcellos, empallideceu, ouvindo a replica de João da Cunha, e atalhou com mal encoberta sobranceria:

— Creia v. exª que lamento sinceramente o que eu peço licença ao Vasconcellos, para denominar indiscrição. A minha eleição pezar-me-ia como um remorso, se eu tivesse a certeza de que um unico voto pouco consciencioso m'a garantia!... Quanto ao... sem-numero de reis — accrescentou, com um sorriso, cuja bonhomia mal disfarçava a ironica expressão — parece-me poder affirmar a v. exc.ª, que só existem na sua imaginação; em todo o caso, julgo menos perigosa a tyrannia de muitos, contidos uns pelos outros, do que a d'um só, guiado apenas pela sua consciencia, que tanto póde ser docil como surda á voz da justiça.

Os olhos de João da Cunha fulgiam como os d'um tigre, e não sabemos que violenta réplica lhe fugiria dos labios, pallidos de colera, se um ligeiro incidente o não desviasse do intento.

Um rapazito maltrapido, ora coçando a cabeça, ora agitando o corpo dentro dos farrapos, como um cão que esteve dormindo n'um palheiro, aproximara-se do grupo e, já por tres ou quatro vezes, descerrara os labios, sem se atrever a fallar.

Aproveitando o fim da resposta de Fernando e a hesitação de João da Cunha, a quem a raiva tolhia a voz, o rapazito, segurando, n'uma das mãos, uns restos de chapéo de palha, e na outra uma carta, perguntou:

— Está aqui o snr. João da Cunha?...

— É alli aquelle senhor... — disse Geraldo.

— Tu que queres?... — perguntou João da Cunha com voz abafada.

— Mandaram-me entregar esta carta...

— Dá cá!... disse, arrancando, por assim dizer, a carta da mão do rapaz, que partiu, correndo como um gamo.

— Dêem-me licença... — balbuciou João da Cunha, abrindo a missiva.

É impossivel descrever a expressão da sua physionomia, ao passo que proseguia na leitura.

Houve um momento, em que o colosso pareceu prestes a cahir sem accôrdo. Dissipada essa fraqueza, o rosto contrahiu-se-lhe com infernal expressão, os olhos luziram-lhe como carbunculos e as faces assumiram uma lividez baça.

De repente, assim como, no auge da procella, um gesto de Deus faz esbarrar em meio da carreira os ventos enfurecidos, e os obriga a recuar vencidos e exhaustos para os seus ignotos recessos, alisando na passagem o dorso dos oceanos, que, momentos antes, haviam encapellado, assim tambem a energica vontade de João da Cunha domou, por um esforço sobrehumano, a tonnenta de paixões, que lhe entumeciam o peito.

Dobrando lenta e cuidadosamente a carta, metteu-a no bolso, lançou um olhar interrogador aos circumstantes e, conscio de lhe haverem notado a perturbação, disse:

— Acabo de receber noticias pouco agradaveis, que me obrigam a privar-me de tão boa companhia.

Voltando-se em seguida para Fernando, accrescentou:

— Os meus principios nao me permittem servil-o no seu empenho, snr. Albuquerque; mas pode V. excª ter a certeza de que não me opporei a que os meus caseiros de Fonte-longa tomem parte na eleição.

Fernando, que parecia contrariado, por não ter podido conter-se, abaixou a cabeça em fórma de agradecimento, e João da Cunha, despedindo-se de todos, montou a cavallo e affastou-se.

Apenas o viu desapparecer, Noronha, dirigindo-se a Fernando, disse-lhe:

— Anda que o João da Cunha ainda não faz pouco em te não guerrear!... Disse-o elle... é quanto basta!

— Sim, senhor... sim, senhor!... — confirmou o boticario; mas com tal inflexão, que Fernando cravou-lhe no rosto olhos interrogadores.

O pharmaceutico, porém, se acaso estivéra prestes a deixal-a cahir, afivelara de novo ao rosto a mascara immutavel. A sphynge permanecia muda.

Cinco minutos depois, não havia ninguem á porta da botica.

III

O estado de conservação do caminho, a nutrida sebe de piteiras, que prohibem a escalada das vinhas lateraes, a boa qualidade e abundancia das estacas, a que se encostam as cêpas vergadas ao pezo de enormes e formosos cachos de uvas de casta, as oliveiras, que d'um e d'outro lado orlam o caminho, o basto canavial, que murmura além, occultando o modesto riacho, os vimeiros, cujas hastes se estendem, parecendo adivinhar que não tardarão a ser precisas, um extenso pinhal, quasi exclusivamente formado de varas de dois a cinco annos, os sobreiros subindo monte acima e irregularmente, — tudo annuncia, que vamos atravessando uma extensa propriedade, pertencente a alguem, que conhece a necessidade de restituir á terra parte do que ella rende.

Sigamos aquelle rancho de raparigas, que saltam rindo e cantando para a estrada, do sitio, onde é menor a altura; sigamol-as e talvez possamos, dentro em pouco, dizer quem é o feliz possuidor d'estes uberrimos outeiros.

Não pode estar longe o povoado. Chega-nos, repetido pelos éccos, o som cavernoso e metalico, o queixume dos cascos feridos pelo maço, que lhes aperta brutalmente os arcos.

Não será para admirar, se, dobralído além, a cem passos, o cotovêlo da estrada, avistarmos alguma casa.

Não nos enganamos. O caminho vem morrer n'um espaçoso largo, ao fundo do qual se ergue magestoso um d'estes palacios, vulgarissimos na provincia, muitos dos quaes devem os alicerces aos ultimos galiões da India.

Não era com certeza mesquinha a alma de quem traçou aquella fabrica. Não ha alli primores de architectura; mas, em compensação, o edificio parece bradar por um sem-numero de portas e janellas: «Vinde e achareis espaço, trabalho e pão para todos!»

O tempo, esse terrivel inimigo das grandes casas e das grandes fortunas, obrigou de certo, no decorrer das gerações, os derradeiros possuidores a limitar o paternal convite.

Dos tres corpos do edificio só o do centro offerece refugio. O oriental, accusando as violencias do incendio, conserva apenas de pé as paredes, cobertas por heras vigorosas, que vão reunir-se nas varandas de pedra do andar nobre, subindo enfeixadas d'alli para as janellas do segundo andar, d'algumas das quaes pende ainda, preso por gonzos ferrugentos, um resto de porta, que em noites de vento range lugubremente. O corpo occidental, fendido de alto a baixo em varios pontos, escorado por todos os lados, assemelha-se, com o tecto alquebrado no centro, a um gigante, que, tendo sustentado por largo tempo um pezo enorme, encolhe a cabeça entre os hombros, e vai pouco e pouco curvando os joelhos, esperando ser esmagado de um momento a outro.

Na fachada do corpo central, que é de per si um palacio, destacam as armas da familia, cobertas por um crepe esburacado pelo vento e arrussado pela acção do tempo, e nas varandas de pedra do andar nobre poisam, atravessados, enormes taboleiros de pau, contendo pires com marmellada e fructos a granel.

Em frente da porta da casa dos lagares, independente do edificio, brilha uma fogueira, a pouca distancia da qual um tanoeiro rebate um casco, lançando, de vez em quando, ao sol, prestes a sumir-se, um olhar em que parece accusal-o de se demorar demasiado.

Com o rancho de gallegos, que entram carregados, cruzam-se outros, que sahem e veem cá fóra arrumar os cestos vasios, por já não haver tempo para fazer mais um caminho.

Alguns rapazes atravessam o largo, correndo e segurando com a mão os cachos, roubados ao lagar e escondidos por dentro da camisa.

Uma velha, fustiga um porco com uma vara, gritando-lhe: «Fóra, réco!...»

Duas mulheres estendem a um canto a grainha, que deve fazer mais tarde, quando sêcca, a delicia dos cevados.

Encostado á porta da casa nobre, o feitor designa os homens, que hão-de á noite entrar ao lagar e corta as discussões dos trabalhadores sobre o numero de pousas — noites de trabalho de pisa — que cada qual tem dado.

Os jornaleiros velhos avaliam e discutem o rendimento da novidade. Este quer que o bastardo tivesse sido colhido quinze dias antes, pois acha-o tam passado, que quasi só tem casca e grainha; aquelle combate esta opinião, por se ganhar na qualidade o que se perde em quantidade; um terceiro affirma lembrar-se que, quatro annos antes, muito menor porção de cestos deu igual medida de vinho, o que um quarto nega, por ter a certeza de ser elle quem, n'esse anno, mediu o vinho em molle ou á bica.

O sol; porém; foi pouco a pouco fazendo a vontade ao tanoeiro; que já poisou o maço e rolou a pipa para um canto; os carrejoes arrumaram os cestos e conversam assentados nas soleiras das portas do quarteirão destruido pelo incendio; as mulheres, conforme as idades, lastimam as difficuldades da vida, ou trocam, rindo, confidencias de amores.

N'isto abre-se uma janella e uma voz fresca de mulher grita:

— Ó sê Manoel!... Ó sê feitor!

— Diga!... — brada este.

— Quantos?...

— Oitenta e cinco!... — replicou o feitor.

É o numero de rações, que é preciso distribuir, e, por este facto, pode avaliar o leitor, qual será a azafama e a lida da vindima, em casa d'um proprietario abastado.

Deixemos, porém, descansar estes pobres escravos do trabalho e entremos.

Ao fundo de espaçoso atrio, duas largas e magestosas escadas de pedra conduzem a um vasto patamar, allumiado por duas grandes portas envidraçadas, do centro do qual parte outro lanço de degraus, que vai morrer no pavimento do andar nobre.

Se n'aquellas severas e elevadas abobadas retumbasse a voz do genio tutelar da casa, contando ás gerações modernas a longa série de tôrpes e nobilissimas acções, que se succedem no perpassar dos seculos, e que na mão do historiador são outros tantos fios, com que se vai urdindo a téla do passado; se essa voz se erguesse... que dramas veriamos desenrolar, que contos de fadas, que noites de festa viriam poetisar a austeridade do edificio!?...

Estas idéas brotam espontaneas no espirito do visitante, e inspira-as sobre tudo a vista das necessidades do presente, como que enxertadas nas superfluidades do passado; nota-se isso, sobre tudo, percorrendo as salas.

Nas columnas de pedra, a que outr'ora se apoiavam as panoplias, já n'esse tempo meros objectos de luxo, encostam-se hoje as enxadas e os ancinhos; dos tectos, d'onde desciam os lustres, pendem formosos cachos de moscatel e de ferral hespanhol; nas balaustradas das varandas, em cujos vãos se escondiam os namorados, dormem as chilas esverdeadas e as geromuns apoplecticas. Os contadores marchetados de marfim cederam o campo ás amplas tulhas de milho; no canto, onde formoso jarrão da India esperava uma montanha de flôres, vê-se bojuda talha de barro, em que se curte a azeitona. O que era salão de baile é hoje sequeiro de fructos, e chama-se agora despensa ao que em tempo se chamou camarim.

Deixemos, porém , dormir no tumulo o passado, esse morto de tantos seculos, que é tambem o morto de hontem, o morto de ha um instante, encurtemos a redea á imaginação, que, de entre as paredes do craneo, se lança a voar liberrima nas vastidões do infinito, e limitemo-nos ao presente, que sem cessar nos foge, como a corrente contínua do ribeiro.

Sigamos por este corredor, evitemos o cheiro pouco agradavel, que exalam as montanhas de bacalhau cosido, que se estão arraçoando na cosinha, deixemos para traz mais quatro portas, abramos a seguinte e entremos.

Estamos n'uma sala, evidentemente reformada e mobilada ha poucos annos. Do que foi dá-nos uma idéa o tecto, em fórma de maceira, de castanho brunido e ennegrecido pelo tempo.

Assentados em frente um do outro, e separados por uma pequena meza de pau preto, conversam um mancebo e uma senhora, que poderá ter quarenta e cinco annos; mas que á primeira vista, os não accusa.

O mancebo é o nosso Fernando ; a senhora, no sorrir e no olhar, diz-nos, que só para um filho pode uma mulher sorrir e olhar com tanto amor.

É, effectivamente, a mãe de Fernando, que vamos apresentar aos leitores.

Um ou outro fio de prata a luzir entre madeixas d'um loiro doirado, e a nutrição, que lhe prejudicou a pureza das fo«órmas, são os unicos indicios da idade, que não parece ter.

N'este momento, fulge-lhe nos olhos tanto amor, brinca-lhe nos labios um sorriso de tanta beatitude, que não pode conceber-se, que um pensamento doloroso ou sentimento de rancôr a tenham jamais agitado, e não sabe o observador a que attribuir as duas rugas, que mais parecem dois riscos traçados pela unha d'uma creança, entre as sobrancelhas.

Os olhos d'um azul puro, sereno, e allumiado pela alma, como o firmamento em alvoradas de junho, em que o sol aquece sem queimar, como que afagam e beijam o rosto do filho.

Quanto mais a vista se compraz em analysar as feições da mãe de Fernando, mais se vai affirmando a convicção de ser a alma d'ella o refugio da paz e do perdão.

Mas aquellas duas rugas!?

Essas são o maquinismo, por meio do qual se opera a mutação das scenas.

Pronunciae diante de D. Maria de Albuquerque o nome d'um partidario da causa de D. Miguel, e ficareis maravilhados com a transformação.

As rugas cavam-se-lhe em sulcos profundos, entre as sobrancelhas quasi unidas por violenta contracção; os olhos luzem com um fulgôr sombrio, provando que não ha céo sem nuvens e sem raios; os labios, entreabertos antes por angelico sorriso, cerram-se como um dique ás maldições que o coração lhes dita, e o seio arfa como um oceano agitado por vendaval furioso.

Arrancae-lhe esse odio e formareis um anjo; dae-lhe meio de o cevar e o desejo de vingança fará d'ella um demonio!

Ah! sim, é odio; mas odio implacavel!... Foi uma bala só, que lhe roubou o marido; foi um homem só, que lh'o matou; mas... ella não conhece esse homem, que pode ter morrido, mas que pode viver e, por isso, envolve n'esse odio a todo o partido, para poder alcançar o unico culpado.

Se fôrdes a Avellaneda, e qualquer pessoa, seja quem fôr, vos dissér que é serviçal, protegido, caseiro de D. Maria de Albuquerque, ou que lhe é devedor do mais insignificante obsequio, não lhe pergunteis a opinião politica: essa pessoa ou se bateu pela causa liberal, ou soffreu por ella.

O espinho do odio, porém, não lhe punge o coração no momento, em que a vemos. Não está diante de nós a partidaria intolerante e sem piedade; está a mãe, que se revê no filho e que lhe haure, por assim dizer, as palavras, lhe lê nos olhos e decifra nos gestos o que sente, pensa, espera e deseja.

Escutemos-lhes o dialogo, e tomaremos assim mais amplo conhecimento com ambos.

— Mais tres dias, minha mãe!.. tres dias mais!.. Nunca!... nunca senti uma impaciencia igual!... Muito de vagar passa o tempo, minha mãe!... não lhe parece!?...

— Valha-te Deos, criança!... — respondeu, sorrindo, a interrogada. — Não me faças a mim semelhante pergunta... Para os velhos o tempo não passa... foge!...

— Já vê que fiz bem em lhe dirigir a pergunta... — replicou o mancebo. — Minha mãe ainda tem muito que esperar, para ser velha!... Ora, olhe!... Veja!... Quem dirá que é minha mãe!?... Não parecemos mesmo dois irmãos?... — continuou Fernando, que, erguendo-se, lançara os braços em volta do pescoço da mãe, forçando-a a contemplar no espelho as duas imagens.

— Ora, tu, que has-de ser sempre turbulento!... — atalhou, rindo e desembaraçando-se dos braços do filho. — Has-de ser sempre o mesmo!... Não... sempre te digo que dás um deputado... de mão cheia!...

— Ria, minha mãe... ria!... Nós veremos, domingo, quem ri com mais vontade... — exclamou Fernando.

— Has-de ser tu, filho... has-de ser tu!... — observou D. Maria de Albuquerque com voz commovida. — Bem sabes, que me não posso rir... O teu triumpho é... a minha solidão... a minha saudade, Fernando!

— Não diga isso, minha mãe!... — acodiu este. — Não diga isso, ou... desisto da eleição!

— Um homem, que sujeita o seu nome a uma lucta, não desiste!... — replicou a digna senhora com severidade. — Déste o primeiro passo... has-de ir até ao fim.

— Perdão, minha mãe, perdão!... — atalhou o mancebo. — Não recuarei, não!... mas verá!... Hei-de cá vir todos os mezes, se puder...

— Não, senhor... não quero!.. — replicou a mãe.

— Não quero que me ande por esses caminhos a arruinar a saude e em risco de vida... O que sinto é que te lembrasses de ser deputado... É tarde para recuar?... não fallemos mais n'isso!... Mas... ouve, Fernando... dize-me... Como te veio semelhante desejo!?... Como, se, tantas vezes, te ouvi fallar com desprezo da politica, como servindo só para quem fôsse intriguista, corrupto ou ambicioso!?...

— E quem lhe diz, que não sou ambicioso?... — perguntou o mancebo com meiga malicia.

— Tu!?... Não!... por ambição não foi!... Escuta, Fernando... Eu não tenho querido dizer-t'o, porque... emfim... és um homem e... não devo ingerir-me nas tuas acções, — mesmo porque tenho a certeza de que tu, se te vires afflicto, não irás procurar outro confidente — mas... tens mudado muito n'estes ultimos mezes... Andavas sempre alegre e... ultimamente... nem sempre!... Encontrei-te duas vezes, ao fim da tarde, assentado alli... áquella janella, e de ambas ellas... da primeira não juro; mas... da segunda... estavas a chorar!... Porque era, Fernando!?...

— O que a mãe quizér!... — replicou o joven córando. — Nem da primeira, nem da segunda... Foi illusão sua!...

— Não foi... — respondeu a mãe com firmeza. — Da segunda vez, pelo menos, estavas a chorar.

— Estaria... — replicou Fernando, sorrindo e encolhendo os hombros. — O que lhe sei dizer é que me não lembra!

— Ainda estás muito verde para deputado... — observou D. Maria com amigavel ironia. — Quem quer negar a verdade, tem de perder o mau costume de córar!... Ahi tens!... Ahi estás tu ainda mais córado!.. Mais depressa se apanha um mentiroso do que um côxo!... Não tens vergonha, meu trapaceiro!?... — concluiu a bondosa senhora, rindo jovialmente.

— Safa!... — exclamou o mancebo, erguendo-se — com a mãe não se tira partido!...

— Pois sim... sim... mas... anda cá, assenta-te, não fujas... Porque choravas tu, Fernando?

— Eu chorava, porque...

— Porque... — instou a mãe.

Fernando fitou-a um momento; fazendo em seguida um esforço, tomou entre as suas as mãos da mãe e disse-lhe com solemne e commovida voz:

— Ouça, minha mãe... Eu tinha de revelar-lhe este segredo.. Se ha-de ser mais tarde.. seja hoje!.. Vou dizer-lhe porque chorava e porque me lembrei de ser deputado... Eu... commetti um crime...

— Um crime!... tu!... Não pode ser!... — atalhou a extremosa mãe com sincera duvida, mas dolorosamente impressionada pela solemnidade da voz de Fernando.

— Um crime, sim, minha mãe!... Escute e... perdoe-me! — affirmou o mancebo, curvando a fronte.

D. Maria de Albuquerque fitava o filho com magoado assombro.

Passados instantes, Fernando principiou, com voz ligeiramente tremula:

— Haverá anno e meio, voltava eu um dia da caça, seriam seis horas da tarde. Como me acontece a maior parte das vezes, entregara-me a reflexões de toda a casta em logar de procurar as perdizes. Tinha carregado a espingarda, antes de sahir de casa, e carregada ficara desde então. Apesar de pouco adiantada a primavera, tinha feito muito calor durante o dia, e eu vinha realmente cançado de andar. Ao chegar a uma encruzilhada, ouvi gritos de soccorro. Aperrei instinctivamente a espingarda e parei. Guiado pelos gritos, segui pelo atalho á esquerda e não tardei a ver quem os soltava. Assentada no alto d'um muro, com o terror estampado no rosto, uma menina gritava, seguindo com olhos espantados a furiosa carreira d'um enorme cão de gado, que se dirigia para ella por cima do muro.

Eu conhecia o animal, temido pela sua ferocidade em toda a visinhança, comprehendi o perigo real, que corria a pobre menina, metti a arma á cara, apontei e, quando o cão ia lançar-se sobre ella, desfechei.

Ferido na cabeça, o animal cahiu para o outro lado da parede, ao passo que a joven, vencida por tam horriveis emoções, perdia os sentidos e vinha rolar sobre a relva, do lado de cá.

Assentei-a no chão, encostando-a ao muro, compuz-lhe a roupa e tentei fazel-a voltar a si.

Vendo baldados os esforços, esperei que a natureza fizesse de per si o que eu não conseguia, e entrei a contemplal-a.

Ó minha mãe!... É impossivel haver outra mais formosa do que ella!...

Era tam linda... tam linda assim... desmaiada, com os olhos cerrados, que eu não me fartava de a ver e quasi que desejava, que aquelle lethargo se prolongasse!

Por fim, moveu-se, abriu os olhos, fitou-me espantada, cobriu o rosto com as mãos, até que, recordando-se de repente, deixou cahir os braços, olhou em volta de si com certo receio e perguntou:

— E... o cão!?...

— Já não torna a querer morder... — respondi, sorrindo e saudando-a.

— Matou-o?... — perguntou.

— Matei... — repliquei, mostrando-lhe a espingarda, que jazia a dois passos.

Ouvindo a minha resposta, respirou com força e, passando de repente do desalento á mais viva alegria, soltou uma gargalhada fresca, vibrante e franca.

— É bem feito !... — exclamou com infantil expressão.

Mudando repentinamente, accrescentou condoída:

— Bem feito... não... O pobre bicho era mau mas... não sabia o que fazia.

Eram tam moveis e expressivos os seus formosos olhos azues — são azues, como os seus, minha mãe! — havia em todos os seus gestos e palavras tanta innocencia e ingenua franqueza, que eu permanecia em extasis diante d'ella.

Notando a minha admiração, disse-me:

— Perdôe-me!... Ainda não lhe agradeci!... Não me julgue ingrata... faça como minha mãe... chame-me... cabeça de vento!...

Não sei o que lhe respondi; lembra-me apenas que me offereci para a acompanhar a casa, o que ella acceitou sem hesitar.

— Mas antes — accrescentou rindo, como uma louca — deixe-me ver o cadaver do meu inimigo.

E, trepando ao muro, debruçou-se.

— Era tam feio!... — exclamou, saltando para baixo.

Uma verdadeira criança!...

Fallando com adoravel franqueza, ao cabo de dez minutos, tinha-me contado a sua curta historia.

Aqui, minha mãe — observou Fernando, — começam as difficuldades.

O nome da familia de Sophia é-nos antipathico e obrigou-me a pretextar um negocio, que me não permittia acompanhal-a até casa.

— Ora, que pena!... Eu queria que a mamá o conhecesse!...

— Não pode ser, minha senhora... peço desculpa... — balbuciei.

— Não me chame senhora!.. Senhora! não sei que me parece!... — exclamou, rindo como louca. — A mim ninguem me chama senhora! O papá e a mamá chamam-me Sophia, e os criados menina... Senhora!... E a primeira pessoa, que me trata assim!...

— Mas v. exc.ª... — disse eu — apesar de muito nova, já não é uma criança, a quem um desconhecido possa tratar d'outra fórma...

— Eu tenho quinze annos — replicou Sophia com vivacidade.

Retrahindo-se de repente, córou e baixou os olhos.

A criança acabara n'aquella resposta; com o rubor começara a mulher.

Apesar de mil protestos, e da antipathia, que me inspira o seu nome de familia, não sei que força, superior á minha vontade, me levava a procurar Sophia.

Encontramos-nos, desde então, quasi todos os dias, e a attracção tornou-se amor de parte a parte.

É minha mãe a unica pessôa, que sabe d'estes amores. Para a familia de Sophia continúa esta a ser uma criança sem imputação, e d'ahi vem a liberdade, que lhe concedem.

O mancebo calou-se. Ao cabo d'alguns minutos, D. Maria de Albuquerque perguntou-lhe a medo:

— E... o crime?...

— A consciencia e a honra ordenam-me, que case com Sophia... — respondeu Fernando, sem erguer os olhos.

— E porque não has-de tu casar com ella?... Que ligação tem tudo isto com o teu desejo de ser deputado!?... — replicou a mãe, estupefacta.

— Não sei, se m'a dariam, minha mãe... - balbuciou o mancebo.

— A ti!?... Que juizo fazes tu do teu nome!?... — observou com orgulhosa severidade e espanto D. Maria de Albuquerque.

— O meu nome, minha mãe, é dos mais odiosos para o pae de Sophia!... Se eu lh'a fosse pedir... repellia-me; se lhe fizesse comprehender a necessidade de m'a dar... não sei do que elle seria capaz no primeiro impeto de colera!... era capaz de matar a filha!

— Então.. é.. miguelista!? — redarguiu a mãe.

Fernando contentou-se com inclinar a cabeça.

É impossivel descrever a dolorosa expressão do rosto da digna senhora! Os olhos, rasos de agua, fitavam-se cheios de censuras no filho.

Enxugando as lagrimas, perguntou com voz sumida:

— Que tencionas fazer?...

— Eu, minha mãe, — respondeu Fernando com hesitação — contava com a eleição, como um meio de me affastar d'aqui, levando commigo Sophia, sem que desconfiassem de mim. Chegando a Lisboa casava. Minha mãe tenho eu a certeza de que me não levaria a mal o cumprimento d'um dever... Quanto ao pai d'ella... se a repellisse... a nossa casa é sufficiente para nos abrigar a todos... Perdôa-me, minha mãe?...

- Criança!... — volveu aquella. — O dever é o dever — ha-de cumprir-se.

— Obrigado, minha mãe!... É uma santa!... Obrigado — exclamou Fernando, cobrindo-lhe as mãos com beijos e lagrimas.

— O teu plano não me serve, Fernando. Preciso de pensar primeiro. Não quero, não quero que meu filho se torne culpado d'um rapto; seria juntar um crime a outro!

— Mas... minha mãe... — objectou o mancebo.

— Nem mais uma palavra — atalhou D. Maria com dignidade. — O pai d'essa menina quem é?... como se chama?...

Fernando hesitou; n'esse meio tempo, exclamou alguem já dentro da sala.

— Dão licença!?... Venho interrompel-os...

— Não, senhor... Queira entrar, snr. Menezes... Fallaremos mais tarde, Fernando.

O mancebo, depois de ter cumprimentado o visinho, que acabava de entrar, despediu-se e sahiu.

IV

— Deixe, Manoel Bernardo... deixe... não é preciso... — dizia Fernando, um quarto de hora depois, no acto de montar a cavallo, dirigindo-se ao feitor, que lhe segurava o estribo.

— Então como vai isto por cá, Manoel Bernardo?... — continuou o mancebo, acertando as redeas. — Ha gente bastante?

— Vai tudo bem, snr. Fernandinho... Temos ahi quarenta homens, e diz-me o rogador, que ainda nos trará mais uns dez.

— Quem é o rogador?... — perguntou o mancebo.

— É o Campos... V. exc.ª bem sabe que, para estas coisas, não o ha melhor... — replicou o feitor.

— Bem... bem... — retorquiu Fernando — Veja lá como é tratada essa gente... Minha mãe não quer que d'esta casa saiha alguem a queixar-se.

— Não ha-de haver novidade, snr. Fernandinho...

— Até logo, Manoel Bernardo... Eu, na volta, ainda vou ao lagar — disse o mancebo, chegando as esporas ao cavallo.

— V. exc.ª vai só!?... — gritou-lhe o feitor.

— E olhe que não tenho medo... — respondeu Fernando, voltando a cabeça e rindo.

O velho feitor seguiu-o com os olhos, até o ver desapparecer, e murmurou, abanando a cabeça:

— Não gosto... não gosto de que elle ande por ahi, de noite, sem um criado... sobretudo agora, que anda mettido nas eleições... E bem verdade que só, quem não tiver alma, lhe poderá querer mal; mas... podem tomal-o por outro... E o pai em tudo!... por dentro e por fóra!... Só um bocadito mais alegre...

Deixemos o feitor entregue ás suas cogitações, e sigamos o assumpto d'ellas.

Ao cabo de cinco minutos, Fernando metteu o cavallo a passo, afagou-o e começou a assobiar uma arieta favorita.

A lua brilhava serena no espaço; a brisa dos montes começava a refrescar a atmosphera, ainda morna do calor do sol; os sapos e as rãs imitavam, ao longe e de concerto, o ruido d'uma activa tanoaria; os morcegos cortavam o ar em todas as direcções, e as corujas riam de escarneo, ouvindo as lamentações do mocho.

Fernando, porém, n'aquella occasião, não tinha olhos para as bellezas do infinito, nem ouvidos para os rumores do mundo.

Certo da fidelidade do cavallo, seguia, alheio ao caminho, que ia percorrendo, vendo com os olhos d'alma a imagem de Sophia, e escutando apenas o cantico de esperanças, que lhe eccoava no peito.

Havia muito, que o mancebo se não sentia tam feliz. O dialogo, que tivera com a mãe, tirara-lhe metade do peso, que o opprimia.

A confidencia d'um segredo, seja qual fôr a natureza d'este, como que põem mais á larga o coração, que o encerra. O mysterio enche-o completamente, ao passo que, feita a revelação, respira-se mais á vontade, parece que se verteu em outro coração metade do conteúdo do nosso.

Um passo, dado em falso pelo cavallo, obrigou Fernando a arrancar-se ás suas risonhas idéas.

— Que sitio!... — murmurou elle.— Parece mesmo talhado para theatro d'um crime!...

Era, effectivamente, um sitio medonho o Carrascal!

Aberto no declive d'um monte, o caminho torcia-se debruçado sobre um ribeiro, que se arrastava, gemendo, por entre fragas.

Rochedos enormes, de fórmas phantasticas, parados no meio da descida, por impenetraveis segredos de equilibrio, pareciam suspensos e prestes a despenhar-se no abysmo, esmagando na carreira o viandante.

Áquem e além erguiam-se raros pinheiros, cujas ramas destacavam como nodoas no céo, ao passo que as sombras, alargando-se, iam quebrar-se na beira do caminho, desenhando-lhe no leito uns traços negros.

Não se avistava uma choça; não se ouvia o esbravejar das rodas d'um moinho: nada revelava a visinhança do homem.

Era, realmente, um d'estes sitios, em que a victima, sentindo sobre o peito o joelho do inimigo, não solta um brado, inutil, de soccorro ao mundo; ergue os olhos aos céos e implora um milagre em seu favor.

Reconhecendo o local, Fernando viu que tinha andado apenas meia legua, e esporeou o cavallo.

Meia hora depois, batia á porta d'uma casa de misera apparencia.

Dentro tinham, de certo, ouvido os passos do cavallo, porque a porta abriu-se, mal o mancebo bateu, e assomou a ella um homem alto e encorpado:

— Boa noite, Francisco — disse o cavalleiro.

— Muito boa noite, snr. Fernando... V. exc.ª hoje demorou-se mais... já o não esperava...

— Demorei-me mais um bocado, demorei... — redarguiu Fernando, no acto de apeiar.

Entregando as redeas a Francisco, o mancebo accrescentou:

— Vê, se tens por ahi uma manta velha e deita-lh'a, porque o pobre bicho andou agora uma boa legoa a galope e está suado... Até logo, Francisco!

— Vá com nossa Senhora, snr. Fernando... — respondeu o outro, que, iria aquelle já a dez passos, accrescentou:

— Não quer um pau, snr. Fernando?...

— Um pau para que?... — perguntou o mancebo, parando... — Mas... vá lá!... venha o pau!

Francisco entrou em casa, e sahiu pouco depois, trazendo e entregando o pau a Fernando.

— Até logo!... — repetiu este, que, saltando por cima d'uma sebe, seguiu ura carreiro traçado pelo meio d'uma vinha.

V

Ao fundo de longa avenida, orlada por arvores seculares, destaca immensa casa de apparencia nobre e estylo severo. Enorme pedra d'armas, cujos lavores a escuridão da noite nos não deixa analysar, domina em relevo o espaçoso portão, protegido por vasto alpendre. Atravez das grades das janellas, aos lados do portão, descobre-se, graças á luz d'uma alampada, um amplo pateo e, ao fundo d'elle, mal allumiados, os primeiros degraus de larguissima escadaria.

Separada da casa, e formando angulo com ella, vê-se a cavallariça, que defronta com um armazem, casa de criados ou o que quer que seja.

Por traz da cavallariça estende-se o pomar, em terreno plano; a cavalleiro do armazem, no cimo d'um outeiro, erguem-se os primeiros troncos de espessa mata, que vai de volta servir de fundo á casa nobre.

Serão dez horas. Brilha apenas uma luz em todo o edificio — a da alampada; corta apenas o silencio, de espaço a espaço, a voz rouca do curador ébrio de somno, despertado pelo protesto de algum cavallo, que vê o visinho disposto a sizar-lhe a ração.

Subamos a escadaria.

Que sala enorme e triste! Apesar do calor, proprio da quadra, sente-se uma vaga impressão de frio.

A luz d'um grande candieiro derrama-se sobre limitado espaço, dando phantastica apparencia aos moveis collocados ao fundo, na sombra, e espelha-se frouxamente nos prégos amarellos das cadeiras de espaldar de couro, produzindo assim uns pontos luminosos, como outros tantos olhos de féras a luzir nas trevas.

Das paredes pendem enormes quadros com retratos a oleo, dos quaes apenas se distingue o que fica mais proximo da luz.

Não dissemos bem; distingue-se-lhe apenas o rosto: ao corpo, envolto em negras vestes, não se lhe percebem as fórmas, de sorte que a cabeça, destacando-se isolada no meio da tela, representa o que realmente é — a imagem d'uma sombra.

Quem, depois de analysar a pintura, volver os olhos para o rosto do homem, que passeia vagarosamente na sala, não precisa de ser muito perspicaz, para lhes notar a semelhança.

O retrato representa um dos antepassados de João da Cunha, em cuja residencia nos achamos.

O dono da casa, como dissemos, passeia vagarosamente, com as mãos atraz das costas, e a fronte pendida sobre o peito.

É tam extenso o aposento que, ao fundo, mal se enxerga o vulto de João da Cunha. Na volta emerge, pouco e pouco, das trevas, como uma apparição, e a sombra da sua gigantesca estatura quebra-se pelo meio, e desenha-se truncada no tecto, parecendo pairar, como um espectro, sobre as duas senhoras, que lêem á luz do candieiro.

No olhar, que João da Cunha, ao aproximar-se, lança á que parece menos joven, espelham-se sentimentos variadissimos. Ha n'esse olhar o que quer que seja do juiz contrastado pelo réo, da aguia pela pomba, do tyranno pelo escravo. No meio dos fogos, que n'elle se alternam, e ás vezes se combinam, apaga-se-lhe de repente o brilho, e os seus olhos assumem a expressão vaga d'uma consciencia, onde se extinguiu a luz e que hesita incerta, caminhando ás apalpadellas, como o cego.

Analysemos agora as duas senhoras.

Formosas ambas, contrastam completamente em tudo, excepto na cor dos olhos, que são igualmente azues e meigos.

A mais velha, que mal terá trinta annos, de estatura elevada e fórmas de sylphide, é o typo correcto e, por assim dizer, ideal das filhas da Irlanda, o unico paiz do mundo, onde a alliança dos olhos azues e do cabello negro não é uma invenção de poeta.

Ha no seu rosto um ar de tristeza e abatimento, que impressiona e faz dó. Vê-se que o seu espirito não está alli; se lhe perguntardes o que lê, não vol-o saberá dizer.

De tempos a tempos accommette-a uma tosse sêcca, e, então, a sua companheira ergue os olhos e fita-a com sentida e assustada expressão.

Aproveitemos uma d'essas occasioes, para esboçarmos o retrato da mais nova.

De estatura abaixo de mediana, mas d'uma admiravel proporção de fórmas, tem tam ingenuo o olhar, tam infantil o sorriso, que, á primeira vista, hesitareis em lhe conceder quinze annos, até vos convencerdes, por mais demorada analyse, de que já deve contar dezesete.

Se o espirito da sua companheira vôa por ignotos céos, o d'ella demora com certeza na terra; mas não entre os muros d'aquella sala.

Pode ser que esteja lendo; mas ha, com certeza, meia hora, que lê constantemente a mesma pagina do livro.

Contemos agora, a traços largos, a historia de ambas ellas, que é, apenas, um capitulo da historia de João da Cunha.

Este, como dissemos quando o apresentamos ao leitor, emigrara para Inglaterra, ao cabo da guerra civil, levando comsigo uma filha.

Alvo de violentos odios no seu paiz, e especialmente na provincia de que era filho; anniquilado pela derrota da causa, que lhe parecia santa e justa entre todas, como acontece a quem quer que defende por convicção uma bandeira; forçado a abandonar a carreira das armas, que escolhera por vocação, e se quadrava com o seu temperamento, João da Cunha, chegando a Londres, viuse completamente isolado; aquelles centos de milhares de almas, que amavam, soffriam, esperavam e succumbiam em volta d'elle, sem que uma só communicasse com a sua, pareciam-lhe os grãos d'arêa d'um deserto sem limites.

Pezava-lhe, como um remorso, a inacção a elle, que sahira dias antes da vida activa e cheia de emoções do campo de batalha.

Receioso de perder a razão n'aquelle repouso forçado, dirigiu-se ao collegio, onde estava a filha, que contava apenas cinco annos, beijou-a friamente na fronte e, n'esse mesmo dia, sahiu de Londres, esperando enganar com as fadigas e emoções do viajante as saudades do seu passado de militar.

Foi n'uma d'essas excursões, n'uma visita á Irlanda, que João da Cunha viu e amou Fanny.

Sahira de Dublin a cavallo, para visitar os arredores da cidade. Atravessando uma pequena povoação, notou extraordinaria concorrencia de gente, que parecia levar toda o mesmo destino: seguiu-a. Vendiam-se em hasta publica os bens de um velho lord irlandez, cuja familia fôra, durante seculos, a protecção dos pobres.

Os velhos narravam o que tinham ouvido, na infancia, a seus avós, e lastimavam o ultimo representante d'aquella velha raça; os jovens lançavam olhares pouco benevolos aos officiaes de justiça; uns e outros, porém, pareciam apiedar-se especialmente da menina da casa, que, sem lar e sem amparo, tinha de ir bater á porta de parentes remotos e pedir-lhes uma protecção duvidosa para si e para o misero ancião, que, tendo visto cahir uns após outros os filhos do seu amor, se apoiava agora ao braço de sua neta.

João da Cunha ouvia e via tudo aquillo com indifferença, porque a desventura torna o homem egoista.

De repente, produziu-se um tal ou qual momento nos grupos mais proximos da porta do velho solar; elevou-se um ruido confuso e a multidão, dividindo-se, deu passagem a um ancião, curvado e tremulo, guiado por uma formosissima joven.

O ar livre e o movimento actuaram com certeza no velho, que por longos annos vivera recluso: as pernas vergaram sob o pezo do corpo, a fronte pendeu-lhe sobre o peito, e o triste cahiu sem accordo por terra.

A um grito angustiado da joven, uns poucos de braços ergueram o velho e foram assental-o á sombra d'uma arvore, onde os beijos e as lagrimas de Fanny o chamaram de novo á vida.

João da Cunha, fascinado, devorava com os olhos aquelle anjo, a quem as lagrimas pareciam augmentar a esplendida formosura.

Arrancando-se de repente a esse extasis, esporeou o cavallo e dirigiu-se para a porta do velho solar, sem prestar attenção ás ameaças dos circumstantes, que se affastavam precipitadamente, para o deixarem passar.

Minutos depois, um velho criado, pallido de commoção, e quasi louco de alegria, aproximava-se, correndo, da joveii, dizendo-lhe que a penhora não ia por diante, porque um cavalheiro estrangeiro acabava de prestar caução á divida.

É escusado dizer ao leitor o nome do estrangeiro.

Assim começaram as relações de Fanny com João da Cunha.

A gratidão, o sombrio futuro, que se lhe antolhava, e a absoluta ausencia de aspirações, que o exacto conhecimento da sua posição não deixara germinar no espirito de Fanny, levaram a joven a conceder a sua mão, se não com prazer, pelo menos sem repugnancia, ao homem, que lhe poupava a amargura de ir procurar o pão da esmola.

Não fôram felizes.

A fria mão da desgraça pezara desde a infancia sobre a pobre menina, envolvendo-lhe o espirito nas sombras da melancholia; a necessidade de expansão, de amor, de prazer, de esperança, jamais se lhe fizera sentir; a neve que alvejava sobre a fronte do ancião, confiado ao seu carinho, gelara-lhe para sempre nos labios o sorriso. N'aquelle seio havia apenas espaço para a dedicação, e foi essa a que offereceu ao marido.

Era pouco.

Homem de paixões violentas, vulcão, apparentemente extincto, mas minado por perenne combustão, o sombrio e fogoso peninsular queria mais, queria o pagamento exacto do que dava, queria amor, mas amor ardente e exclusivo como o d'elle, como o do homem de quarenta annos, que não tem illusões, que se vê n'um espelho tal qual é, que se confronta com o objecto do seu amor e se não vê digno d'elle.

Sophia foi o anjo de Fanny nas horas de desespero, quando a cratera, agitada por violento trabalho, irrompia, parecendo querer devoral-a.

Acostumada a ser util a alguem, a proteger e a guiar, Fanny deu áquella loira criança a inextinguivel dedicação, com que adoçara os ultimos dias do avô, e que o marido rejeitava, e Sophia crescêra na adoração da que chamava mãe, e para a qual, pouco e pouco, se ia tornando irmã.

N'este meio tempo declararam-se em Fanny os primeiros symptomas da phtysica e, como os medicos prescrevessem a mudança da enferma para mais benignos climas, João da Cunha voltara para Portugal com a esposa e a filha.

Fanny pouco lucrara com a mudança.

O horizonte, limitado pelas montanhas, arrancava-lhe lagrimas de saudade, e o coração voava-lhe para os prados sempre viçosos da patria, a verde Erin dos poetas.

Vendo-a triste, ou tentando a custo sorrir, o marido tomava-se de dia para dia mais taciturno; acerava-se-lhe o punhal do ciume; confirmava-se na suspeita d'um amor, anterior ao casamento, e o seu espirito tomava a côr local, como que se amoldava áquelle scenario selvagem e sombrio de montanhas e abysmos.

Sophia tinha crescido, embalada por aquelle anjo da guarda e desapercebida do pai, continuando um e outro a ver n'ella uma criança loira, que rolava outr'ora sobre a relva das campinas da Irlanda e escalava agora as montanhas do Douro.

— Mentira!... mentira tudo!... — pensava João da Cunha lançando um olhar feroz á mulher. — Aquella testa sem uma ruga, aquelle olhar transparente e puro, o sorriso de santa... tudo... tudo mente!... E... está phtysica!... A morrer e... a trahir!... É de endoidecer, meu Deos!...

O silencio parecia pesar dolorosamente a Fanny. Respirando com força, lançou um olhar furtivo ao marido, e, vendo-o aproximar-se, cerrou o livro e perguntou com voz mal segura:

— É verdade... ainda me não disse o que fez hontem em casa do Trancoso... Jogou?...

— Joguei... — respondeu João da Cunha.

— E... perdeu, já se vê; é o seu costume... — replicou ella.

— Engana-se!... Ganhei... hontem ganhei!... Foi uma noite d'uma felicidade rara!... — retorquiu João da Cunha com voz, olhar e sorriso de demonio.

— Dou-lhe os parabens, ainda que não seja senão pela raridade... — volveu Fanny, sorrindo.

— Acceito — replicou o marido com tam singular inflexão, que a joven sentiu uma especie de calafrio.

O desgraçado contemplava-a com estranha expressão, e ella, procurando furtar-se áquelle olhar, que a vergava, volveu:

— Diga-me... ouvi dizer, que mataram um homem, a noite passada, ahi para baixo, no Carrascal... É verdade?...

— Mataram... — silvou João da Cunha por entre os labios cerrados.

— Dizem que era pessoa de importancia...

— Era... — replicou, separando, por assim dizer, as syllabas, e fazendo esforços para conter a ira, que o dementava — era... chamava-se Fernando d' Albuquerque!... — concluiu com voz de trovão, e crescendo para a mulher.

Um grito horrivel éccoou em seguida áquelle nome.

João da Cunha volveu espantado os olhos para a filha, que se erguêra, e viu-a cahir desamparada no chão.

Perdido, louco, vacillante contemplou desvairado a esposa, tomada de subito pasmo, mirou o corpo inerte da filha, levou primeiro as mãos á fronte, como se quizesse conter a razão, prestes a fugir-lhe, e, estendendo-as em seguida para Fanny, bradou com indefinivel expressão de prazer e remorso:

— Não eras tu!?... Era ella!?... Oh! meu Deos!...

E o miseravel dirigia-se pressuroso para Sophia, quando Fanny, para quem aquellas palavras tinham sido um raio de luz, exclamou, collocando-se entre elle e a joven:

— Saiha, assassino!... Não lhe toque!...

Uma golfada de sangue seguiu de perto esta phrase.

João da Cunha, vendo esse sangue, poz as mãos e disse supplicante: — Fanny!...

Esta, porém, arfando, e contendo o coração com uma das mãos, estendeu a outra para a porta, dizendo-lhe com voz quasi imperceptivel: — Saiha!...

O miseravel hesitou; mas havia tal auctoridade no olhar da esposa que, curvando a fronte, sahiu vagarosamente da sala.

VI

A lua, sorrindo ingenua no firmamento azul, espelha-se nas vidraças da casa de Fernando de Albuquerque.

É profundissimo o silencio, cortado apenas, de espaço a espaço, pelo lugubre uivar dos cães.

Cascos e ferramentas, espalhados no terreiro, fazem lembrar a fuga rapida de gente, que, ouvindo o annuncio da proximidade do inimigo, abandona tudo, para salvar a vida.

No interior da casa não se distingue rumor.

Entremos.

O som cavo dos passos ergue-se e rebôa, como um lamento, pelas abobadas, e a luz mortiça de uma alampada, em vez de allumiar, parece tornar o recinto mais sombrio.

Não se encontra um servo, um jornaleiro nos corredores onde, pouco antes, duzias de pessoas embargavam o passo umas ás outras.

Um traço de luz, coada pela fresta d'uma porta mal cerrada, risca, lá muito ao fundo, o pavimento.

Aproximemo-nos, empurremos cautelosamente a porta e entremos.

Roupas de homem dispersas pelo chão, cadeiras fora do seu logar, um homem deitado sobre um leito e, assentada na beira d'este, uma mulher, a quem não vemos o rosto — eis o quadro visto á luz d'um candieiro, collocado sobre uma meza, á cabeceira da cama.

Cheguemo-nos para perto.

É cadaver o que jaz sobre o leito. A camisa, rasgada por mãos convulsas e impacientes, porque desabotoal-a levaria mais tempo, deixa ver o peito, varado na altura do coração pela bala, que o obrigou a parar.

Um traço negro, que parte da ferida e vai perder-se nas dobras da camisa — é o que resta das ultimas gôtas, vertidas, ha muitas horas, pela victima.

O rosto do cadaver tem um singularissimo aspecto.

Os olhos horrivelmente dilatados, e os labios, entreabertos n'um sorriso, provam que a morte encheu de terror a alma no acto de voar, mas foi tam rapida e fulminante, que esse terror não teve tempo, para apagar o sorriso apenas esboçado.

Eu não sei, porém, qual seja mais horrivel, se o olhar vidrado do cadaver, se as vistas ardentes e fixas da mulher, que o vela.

Nos olhos d'esta ha o sublime desespero do santo amor de mãe, que ora espera do céo um milagre, que lhe prove a omnipotencia e bondade de Deos, ora fulge selvagem e desvairado, como o da leôa, a quem o instincto diz, que o unico modo de chorar um filho é... vingal-o!

Ha momentos, em que a triste duvida da verdade; em que lhe parece, que o sorriso do filho desabrochou mais franco, e os olhos se animaram; e, então, falla-lhe, chama-o, pede-lhe que responda, toma-lhe a cabeça entre as mãos, cobre-lhe a fronte de beijos avidos, freneticos, até que, recuando para o ver, encontra a ferida, cujos labios sangrentos lhe dizem: «Não tens filho!»

— Fernando!... filho!... falla!... uma palavra só!... um beijo... um só!... um unico adeos e deixa-me, se queres!... Falla, Fernando... falla!... — brada a desventurada, abraçando com desespero o cadaver — falla!... dize-me ao menos quem ella era!... quero amal-a como a filha!...

De repente, presa d'uma idéa, exclama:

— Um filho... um neto!... oh! dize, Fernando... falla!... Tu não me disseste tudo, filho... Contaste-me o teu erro; mas... não me disseste o alcance d'elle... Essa menina... esse pai, capaz de a matar... Ah! tu deixas um filho Fernando!... Falla!... dize-me quem ella é... quero protegel-a... quero salvar o teu filho... falla!

E a pobre mãe contempla anciosa o cadaver, esperando ainda uma resposta, até que, cedendo á fatal verdade, esconde o rosto entre as mãos, exclamando:

— Nada, meu Deos!.. nada!.. Acabou-se tudo!..

A lua continuava a percorrer o espaço, envolvendo no seu sorriso ingenuo a mãe, que banhava de pranto o rosto do filho, e o sicario, que lavava as mãos tintas no sangue da victima!

Que esta não seria vingada, claramente se percebia das considerações dos jornaes, lamentando, mais ou menos banalmente, que semelhantes factos viessem macular a belleza do systema parlamentar.

A morte de Fernando fôra... historia de eleições.

II

A ENJEITADA

I

Ainda tremo, só com lembrar-me d'aquelle rigoroso inverno de 186...!

A chuva cahia pulverisada e gélida, ensopando pouco e pouco as roupas e inteiriçando os membros.

Os ricos, os que podiam ficar em casa, contemplavam melancholicamente, atravez dos vidros das janellas, o ar lôbrego e plumbeo e bocejavam, minados pelo tedio.

Os transeuntes, passando, como sombras, rente ás casas, ou procurando, com vistas expressivas de repugnancia e despeito, uma passagem, um váo, para atravessarem as ruas transformadas em atoleiros, amaldiçoavam a sorte, que os forçava a sahir.

Rapariguinhas maltrapidas, com os braços cruzados sobre o peito, e as mãos abrigadas debaixo dos sovacos, arrastavam com difficuldade os pés doridos, sentindo vergar as pernas açoutadas pela orla humida e enlameada das saias, e revelavam no rosto roxeado pelo frio o desalento e cançasso.

O inverno!... Que palavra, que estação tam cheia de contradicções!

Para ti, leitor, se és rico, o inverno é um amigo, rabujento uma vez por outra, mas compensando esse defeito por mil qualidades apreciaveis.

Se és joven, abre-te as portas dos theatros, franquea-te os salões de baile, envolve-te n'um redomoinho incessante de prazeres.

Se és velho, aguçando-te o appetite, alarga-te os limites d'um dos raros gosos, que te são ainda permittidos - o prazer da meza; renova-te o magico encanto dos serões, durante os quaes dormitas com os pés poisados na grade do fogão, onde a chamma crepita com reflexos avermelhados, ou esqueces a velhice e ris, ouvindo palra os netos, que promettem estar calados, se lhes contares uma historia.

Se és apenas remediado, já o inverno te causa medo: és forçado a considerar superfluo o que é, as mais das vezes, necessario, para não ter saudades do estio.

Se és pobre... Não és; o pobre, como eu o imagino, não lê.

Rico ou remediado, não podes imaginar o que é o inverno para o pobre.

Queres que t'o diga?...

É trazer collada ao corpo a camisa alagada pela chuva: é dormir sobre a palha pôdre e humida, sentindo penetrar, atravez dos rasgões e da trama d'uma manta rapada, o vento, que entra pelas telhas, pelas fendas das portas desconjuntadas, pelos vidros quebrados dos postigos!

É mais que isso!... É o desespêro do pai, que não tem pão para os filhos, qne lh'o pedem, chorando; é o lento agonisar d'uma alma energica, condemnada á inacção, porque o inverno é a morte da trabalho!

A falta de trabalho!... Que série de calamidades, explicadas por essa phrase!...

É preciso viver e... não ha pão. Os ultimos vintens da derradeira féria terminaram ha muito. O credito é nullo. O que havia em casa... primeiro empenhou-se pela quarta parte; dias depois... vendeu-se por metade do valor. A esposa tem respostas irritantes; olhares de censura, de desprezo para quem é incapaz de grangear o pão dos filhos. Estes choram. A alma, outr'ora bem temperada, começa por vergar, até que estala e abandona, ulcerada, a miseravel prisão onde soffreu, ou — o que é peior — torna-se elastica e cede.

O lar domestico transforma-se em inferno. Foge-se para a taberna, onde ha sempre um amigo, incapaz de emprestar um vintem para pão, mas prompto para pagar o vinho.

Bebeu-se, esqueceu-se por algumas horas o frio, a fome, a miseria da mulher e dos filhos... volta-se no dia seguinte.

E o esposo modelo, o pai amantissimo, o trabalhador infatigavel e honesto toma-se pouco e pouco um miseravel, um ser embrutecido, um tyranno em casa, uma vergonha fóra d'ella!...

E tudo isto porque... é inverno, porque chove, porque os dias são pequenos, porque não ha trabalho!

Perdôe-me o leitor estas divagações, inspiradas pelo sombrio aspecto d'um dia chuvoso, frio e triste de dezembro.

Comecemos.

O sino da torre dos Clerigos tinha dito, momentos antes, á cidade, que já eram dez horas.

Era uma d'estas noites negras, que só os amantes e os ratoneiros acham formosas.

No vão d'uma porta, dois dignos municipaes, envoltos nas capas de oleado, que lhes dão, ao longe, o aspecto de almotolias colossaes, conversam, cabeceando com somno e amaldiçoando a postura da camara, que acabou com os alpendres, debaixo dos quaes se poderiam muito mais commodamente abrigar da chuva.

O leitor, que nunca fez serviço de patrulha, e que passa indifferente, talvez se não tenha dado ao trabalho de estudar os costumes do dedicado militar, que lhe guarda a casa, sem que lh'o agradeçam, fazendo todas as noites ampla provisão de rheumatismos e catharros para a velhice...

Pois pena é que tenha descurado esse estudo.

O nosso serviço de policia nocturna não tem que invejar ao das nações mais adiantadas.

O municipal é, quasi sempre, chefe de familia: primeira condição para zelar a moral publica.

Fóra das horas de serviço, é tendeiro, taberneiro, sapateiro, jardineiro ou outra coisa qualquer — excellente predicado, para quem tem de manter a ordem e fazer respeitar a propriedade.

Já não é rapaz: tanto basta para dever ser prudente.

É veterano, isto é — aguerrido. Eu voto contra toda e qualquer reforma da guarda municipal; voto até por humanidade!... Voto, porque não posso admittir, que o salteador, o faccinora, ainda o mais endurecido, vendo-se embargado na fuga por uma patrulha, não prefira ser preso a ter de desgostar aquelles dois homens, cujo aspecto lhe diz claramente: «Respeita-me as cans; lembra-te que tenho mulher e filhos, que pago decima de industria e tenho aqui um joanete, que me não deixa correr, se te lembrares de fugir!...

Além do mais, porém, a guarda municipal é um grande exemplo de união e de fraternidade.

Se passardes umas poucas de noites seguidas pelas mesmas ruas, notareis que a patrulha está, quasi sempre, n'um certo e determinado sitio.

É porque o primeiro, que fez a descoberta, passou palavra a todos, e o sitio foi notado pelo regimento na planta topographica da cidade, como o melhor da rua, para se passar menos incommodamente uma noite de chuva e de frio.

Um ou outro leitor, mais malicioso, ha-de, talvez, suppôr ironia o que deixo dito, e faz-me grave injustiça.

Eu respeito e estimo o guarda municipal, por ser um cidadão prestante e digno, moral e moralisador, laborioso e pacato.

N'essa noite, pois, abrigava-se a patrulha no vão da porta d'uma das casas do Campo Pequeno.

— Tu já viste uma noite peior, ó 33?... — perguntou um dos soldados.

— Está escuro como um prego!... e frio!... — respondeu o 33, batendo com os pés.

— Eu nao sinto as mãos!... — observou o camarada, encostando a arma á umbreira da porta.

— Escuta!... — volveu o outro, applicando o ouvido.

— Não é nada... É aquelle diabo, que vem acolá, em vez de estar em valle de lençoes...

— Esse vejo eu... Pareceu-me que tinha ouvido gemer...

— Qual o quê!...

Palavras não eram ditas, ouviu-se distinctamente um queixume.

— Bem me tinha a mim parecido...

— Agora tambem eu ouvi...

— Quem é que geme?... — exclamou, erguendo a voz, o que primeiro ouvira.

Não recebendo resposta, adiantaram-se os dois vagarosamente para o lado d'onde lhes parecêra vir o som.

Um novo gemido guiou-os para perto do chafariz.

— Olé!... ó mulher!... ó pequena ou que diacho é!... levante-se d'ahi... Você não ouve?... — disse o 33, empurrando levemente com o pé o corpo, que jazia nos degraos do tanque.

— Vá!... levante-se!... ponha-se a pé... já lhe disse!... — continuou o municipal com impaciencia.

— Talvez esteja doente... — disse alguem por de traz dos soldados.

— Qual historia!... — volveu um d'estes — é, mas é vinho!...

— Não será, camarada... Por uma noite d'estas ninguem se livra d'uma dôr. Ora, com licença, deixem-me ver se posso accender um lume.

E, acto continuo, o sujeito, que se approximara do grupo e acabava de fallar, accendeu um phosphoro, que luziu apenas um instante, mas o preciso para deixar ver uma rapariguinha desmaiada, com o rosto coberto de sangue.

— Já veem que não é vinho... Pobre criança!...

— Tem razão, meu official... — replicou um dos soldados, que, á luz do phosphoro, conhecêra o uniforme de marinha.

— E... agora?...

— Agora... vai para o hospital... — respondeu o interrogado.

— Sim... deve ir... — balbuciou o guarda-marinha — mas o melhor... Oiçam camaradas... Eu moro perto, e meu irmão é facultativo... Se querem... ajudem-me a leval-a, e eu ámanhã, se não pudér ser hoje, dou parte aos parentes da pequena...

— Como V. s.ª quizér, meu official...

— Pois venham d'ahi... — atalhou este, curvando-se para pegar na rapariga.

— Não, senhor... Com licença, meu official... Ó 33... péga-me tu na arma... — disse o soldado, que, entregando a espingarda ao camarada, levantou a criança, accrescentando:

— Ella não peza nada!...

O official seguiu, acompanhado pelos tres, e, chegando á porta d 'uma casa da rua do Principe, abriu-a com a gazúa, que tirou do bolso, accendeu um lume e bradou:

— Ó ama!...

— Menino!... — respondeu de cima alguem.

— Allumía d'ahi...

— Já vai...

Ouviram-se passos e, pouco depois, derramava-se a luz do alto da escada.

— Subam, camaradas...

— Fica tu ahi, ó 33... Não vá vir a ronda...

O official de marinha subiu, seguido pelo soldado, que levava a criança nos braços.

Chegados ao alto da escada, bradou a pessoa, que os esperava:

— Jesus Senhor!... Que aconteceu, menino?... Teve alguma desordem?...

— Socega, ama... socega!... O camarada traz uma criança, que encontramos sem sentidos e ferida...

— Valha-me Nossa Senhora!... E então o menino que quer fazer!?... Ella onde ha-de ficar?... O melhor é leval-a para o hospital!...

— Cala-te, ama... cala-te!... Não te faças peior do que és!... Chama o Luiz... anda!... Ó camarada... entre, faça favor... — disse o mancebo, recebendo o castiçal da mão da velha, e encaminhando-se com o militar para uma sala.

Acabavam de collocar a pequena sobre uma cama, quando entrou açodado um joven, que perguntou inquieto:

— Que é isto, Jorge!?...

— Trago-te uma doente, Luiz... Anda... vê lá o que ella tem...

— O camarada toma alguma coisa?... Deixe-se d'isso, camarada!... eu sei o que são estas noitadas d'inverno... Ó ama... dá aqui uma pinga d'agoa-ardente... Ande, camarada... Beba e mande cá acima o seu companheiro...

— Eu não quero fazer desfeita, meu official... — balbuciou o soldado, que se sentiu mais quente só com a esperança de beber.

Devo fazer notar mais uma das boas qualidades do municipal: é incapaz de desfeitiar, recusando, quem quer que lhe offereça uma pinga.

Minutos depois; fechava-se a porta da casa nas costas dos soldados, que concordavam em ter o vento, a chuva e o frio diminuido consideravelmente, o que, quanto a elles, promettia mudança de tempo.

Deixemol-os continuar o seu arduo serviço, e penetremos de novo na casa.

— Despe essa criança, Joanna — diz o joven, a quem o official chamara Luiz, e que sabemos ser irmão d'elle.

A velha começou a executar immediatamente aquella ordem; mas, como fôsse de seu natural falladeira, ia dizendo o que pensava e sentia, trahindo assim o seu verdadeiro caracter.

— Este menino ha-de ser sempre assim!... Ora de que elle havia de se lembrar!... Trazer para casa a pequena, como se cá não houvesse que fazer!... Porque não havia de a mandar para o hospital!?... Então!... então!... não é nada, meu amor... não gemas!... é a manga, que te está apertada e não se pode tirar, sem mecher comtigo... está bom!... prompto!... não te torno a bulir!... Jesus!... que está mesmo friinha como a neve!... Faço-lhe um caldo, snr. Luizinho?... — perguntou a velha, entrando a aquecer com as mãos e com o halito os pés gelados da criança.

— Espera, Joanna... Deixa-me primeiro ver d'onde vem este sangue... Traz d'alli o castiçal, ó Jorge... — respondeu Luiz.

O official de marinha fez o que se lhe pedia, e veio allumiar, em quanto o irmão, assentado na cama, examinava a ferida da pequena, a quem a velha continuava a aquecer os pés.

— Não presta para nada; é um golpe pouco fundo... o frio foi que a poz n'este estado.

— Se lhe parece!... — acodiu a velha — deitadinha na rua... com um frio d'estes e a chuva a cahir-lhe em cima! Não, pequena!... muito forte és tu... se não não resistias... Anda, que bem podes agradecer a Nossa Senhora e... ao snr. Jorge!

Voltando-se, em seguida, para este, accrescentou:

— Fez bem em trazer a criança... Era preciso não ter coração, para a mandar para o hospital!

O mancebo, soltando uma gargalhada, exclamou:

— Eu não t'o dizia, minha rabujenta?... O teu gosto é parecer ruim!...

— Cale-se... cale-se, seu candongueiro!... Eu sou como as mais... nem melhor nem peior... Eu queria dizer na minha... Sabe que mais?... Mais nada... — concluiu Joanna.

N'este meio tempo, Luiz cortara com uma tesoura os cabellos, proximos aos labios da ferida, e fizera-lhe o curativo, depois de a haver banhado com agoa fria.

O allivio, que estes cuidados lhe davam e o calor, que pouco e pouco lhe fôra restabelecendo a circulação do sangue, tinham feito voltar a si a criança, que contemplava espantada aquelles tres rostos desconhecidos.

Deixemol-a recuperar o sangue frio, e analysemos os actores.

Os dois mancebos em vão procurariam negar o laço, que os ligava.

Eram os mesmos olhos negros, com a única differença de serem os de Jorge mais vivos. Tinham igualmente preto e basto o cabello. Sendo da mesma estatura, Luiz parecia menos alto, pelo costume de se vergar um todonada. A tez morena de ambos era mais animada em Jorge; dava-lhe um aspecto de melhor saúde.

Eram, n'uma palavra, dois gemeos, cuja semelhança fora levemente modificada pelos diversos modos de viver.

Jorge, terminados os estudos, retemperara o corpo e o espirito na liberrima athmosphera dos mares; Luiz perdêra de sua robustez encerrado entre as quatro paredes do seu quarto de trabalho.

No que, porém, a natureza os fizera realmente gemeos, fôra no santo amor, que os ligava; na perfeita homogeneidade de sentimentos, crenças e idéas.

Dotando-os a ambos de invejavel talento, Deos tornara-os completamente iguaes.

Orphãos de pai aos quinze annos, Jorge e Luiz pranteavam ainda a morte de sua mãe, que Deos lhes levara havia um anno, e cuja falta augmentara a amisade dos dois irmãos um pelo outro, se é que essa amisade ainda era susceptivel de augmento.

Jorge regressara, havia cerca d'um mez, de longa viagem, e aguardava de dia para dia as dragonas de tenente, passando o tempo da licença, que obtivera, na companhia do irmão e da excellente mulher, que os creara e lhes queria como a filhos.

Façamos agora o retrato da boa Joanna, da santa criatura, a quem Deos déra o segredo de rir e chorar a um tempo, e o privilegio de dizer coisas desagradaveis n'um tom de voz tam meigo, que o seu ralhar fazia o effeito d'uma caricia!

Alta e robusta, lê-se-lhe no rosto energico, e de feições pronunciadas, uma d'estas almas fortes da sua pureza, alegres porque as illumina a fé, compassivas porque palparam o infortunio, gratas porque houve mão, que as ergueu do lôdo, impedindo que o erro se tornasse infamia.

Trahida na juventude, levara-lhe Deos o fructo da sua desventura, e a pobre entrara, com o coração ulcerado, para aquella casa, d'onde o destino decretara, que não tornaria a sahir.

O carinho, com que a mãe dos dois gemeos sondara a profunda ferida, e pouco a pouco lh'a fôra curando e as caricias dos dois innocentes, restituiram-lhe o socego do espirito e a saúde da alma, de forma que, esquecido o passado, ha muito que no coração da boa criatura viçam apenas dois sentimentos — amor de mãe aos filhos adoptivos, saudosa veneração pela memoria da santa, que lh'os recommendou, momentos antes de os abençoar pela derradeira vez.

— Que bonita criança!... Já reparaste, Jorge?... — exclamou Luiz, dirigindo-se ao irmão.

Era, effectivamente, formosa a doente; mas, como entrasse nos principios de Joanna não consentir semelhantes elogios na presença da interessada, por poderem dar origem a nocivas vaidades, atalhou bruscamente:

— Está bom, está bom!... E sãsinha... é sãsinha, que é a melhor boniteza... Não é assim, amor?... — concluiu, dirigindo-se á pequena.

Mudando de tom, continuou:

— Que é isso, filha!?... Tu estás a chorar!?... Então, que é isso... que é!?... Dóe-te mais a cabeça?... Queres alguma coisa ?...Valha-me Deos!... que cabeça a minha!... A pobre pequena ha-de estar a morrer com fome!... Queres comer, pois não queres?...

— Não, senhora... Quero-me ir embora... quero ir para o meu pai... que está doente... e sosinho... — soluçou a criança com harmoniosa voz.

— Tens razão, menina... tens razão!... — disse Jorge — mas... olha... Dize-me onde elle mora, que eu vou lá socegal-o; tu assim não podes sahir... Hoje dormes aqui... E verdade... como te chamas, menina?...

— Fernanda, uma criada do senhor... — respondeu.

— Porque estavas tu fóra de casa... tam tarde!?..

— Tinha ido buscar uma infusa d'agoa... o degrau estava molhado, escorreguei e depois... não me lembra... — balbuciou a criança.

— Então, tu onde moras?...

— Na rua do Principe... n'uma ilha...

— Então estás perto de casa; nós estamos na rua do Principe!... — observou Joanna.

— Se estou... deixe-me ir... — murmurou a pequena com gesto supplicante — meu pai está muito mal...

— Quem o trata?... — perguntou Luiz.

— Trato-o eu...

— Não me entendeste, Fernanda... Pergunto, se lá vai algum medico...

— Não, senhor... nós não temos dinheiro...

— Socega, menina... socega... Dize-nos como havemos de dar com a porta, e nós vamos agora mesmo ver teu pai...

— É na ilha... ao fim da rua... na segunda porta, á esquerda...

— Está bem... dorme... vê se podes dormir...

— Não, senhor... Primeiro ha-de comer alguma coisa... só se o menino vê que lhe pode fazer mal... — disse Joanna, dirigindo-se a Luiz.

— Não faz, não... Dá-lhe... da-lhe alguma coisa... quente... Queres vir, Jorge?...

— Prompto!... — respondeu este, pegando no bonnet e seguindo o irmão.

Meia hora depois, voltavam, encontrando Fernanda ainda accordada, pois recusara socegar, em quanto não soubesse noticias do pai.

Tranquillisada a este respeito, pelos dois mancebos, a criança assentou-se na cama e acabou de ganhar a estima da boa Joanna, pondo as mãos e benzendo-se apoz curta oração.

— Boa noite... — balbuciou a criança com voz meiga, deitando a cabeça no travesseiro.

— Boa noite, filha... — retorquiu a velha, que accrescentou de repente, quando lhe estava a aconchegar a roupa:

— Tu que trazes aqui!?...

Os dois irmãos aproximaram-se e, vendo o objecto, que os dêdos de Joanna tinham encontrado, e que déra causa á pergunta, trocaram um doloroso olhar de compaixão.

O objecto, preso por um cordão, era — o sello da roda.

II

O sello da Roda!...

O sello!?... Não sei porquê, repugna-me esta palavra. Traz-me á idéa um signal, estigma, letreiro, marca impressa, d 'uma fórma indelevel, em coisa, de que a todo o tempo se quer revindicar a posse.

E porque não ha-de a Roda ter um sello, a sua marca especial!?

Não a tem o fabricante, o artista, que transforma em artefacto a materia prima?

A Roda usa de igual direito. Cedem-lhe um producto incompleto: acceita-o, adopta-o, continúa-o, poem-lhe a marca da casa e fal-o correr mundo, apenas lhe parece perfeito.

A Roda!... Que mimdo de idéas, associadas a esta torpeza, poetisada por uma caridade respeitavel; mas que me parece pouco intelligente!

Quando deixará de existir essa cumplice d'um immenso crime, que se decompoem em myriades de crimes!?... Quanda veremos por terra esse padrão de immoralidade ainda hoje erguido no centro d'algumas das nossas povoações!?...

Ah! Calae-vos, poetas!... Eu sei, eu adivinho o que ides dizer-me; mas, por piedade... calae-vos!

Que me importa a deshonra da mãe, se a mãe seria a meus olhos sublime e augusta, apresentando-se martyr do seu erro, sagrada pelo seu amor, grande pela sua coragem, apertando aos seios, murchos pelos labios do innocente, o fructo da sua fraqueza, a redempção da sua falta, o applauso da sua consciencia, o seu escudo contra os desprezos do mundo!?

Ah! não me falleis em considerações de familia!... Em vão tentaes convencer-me da utilidade d'uma instituição, que, depois de encobrir um primeiro crime, permitte a perpetração d'um segundo, para o qual não ha perdão possivel: o ludibrio d'um homem honesto, que, ignorando o passado, erige altares e rende culto a um idolo, por lhe suppôr primitiva a alvura das vestes, quando é devida á lavagem da Roda!

Não me falleis na traição, no abandono!... E isso mesmo, que a extincção das Rodas evitaria efficazmente.

Tirae ao villão os meios de encobrir a infamia e vereis que ou se abstém, ou a repara para não ser apontado ao dedo. Supprimi a Roda, e vereis como a mulher encontrará mais forças para luctar, e como a necessidade da lucta a tornará invencivel.

Annullae a cumplice, deixae pairar sobre as familias o terror do escandalo, o espectro da infamia e vereis como os pais e os irmãos saberão encontrar em si a energia precisa, para exigir reparação aos seductores.

Appareça, d'estes, um bastante cynico e audaz para recusar, que, se fôr punido, será um exemplo, servirá de freio a outros miseraveis como elle.

Não advogueis a causa da mulher abandonada, se essa mulher lançou o filho á Roda!

Esta infamia excede, quanto a mim, a do vil, que a trahiu; quasi que m'o faz desculpar a elle: quem não sabe ser mãe, não deve ser esposa.

Por quem ha-de sacrificar-se uma mulher, se se não sacrifica por seu filho!?...

Escurece-me a razão o ter de admittir, que a mulher abandona voluntariamente a prole, quando a fera morre para guardar a sua!

Não elogieis as Rodas; dizei o que ellas realmente são. Não attenueis o remorso das mães, dando-lhes a entender, que o enjeitado de nada carece; pintae-lhes com côres bem negras — as cores verdadeiras — essa providencia da infamia.

Abri-lhes as portas d'essa immensa... leitaria — não encontro outro termo, nem sei se é portuguez — fazei-lhes ouvir o côro de vagidos de cem innocentes, entregues a almas mercenarias, infamissimas, tam vis que, pela maior parte, enjeitam os proprios filhos e vêem vender a estranhos, á razão de cento e quinze réis por dia, o leite, a vida, que a providencia lhes déra para aquelles.

Fazei-lhes ver os inconvenientes d'essa amamentação por grosso. Desvendae-lhes os segredos inventados, para fazer com que as crianças não chorem.

Fazei vibrar as cordas todas; não esqueçaes nenhuma!

Mostrae-lhes a cifra da mortalidade lá dentro, comparada com a, já de si enorme n'aquellas idades, cá fóra. Apresentae-lhes uma enfermaria, onde duzias de anjos, carbonisados pelas bexigas, ou asphyxiados pelo garrotilho, por esse pezadello das verdadeiras mães, por esse monstro horrivel, cujos pulmões funccionam, aspirando o halito puro das crianças, resvalam para dentro das campas, deixando o berço vago a outros, que pouco tardarão a seguil-os.

Ah! não, não!... Não lhes mostreis esses... os que morrem, que esses são os mais felizes!

Pegae no enjeitado, quando o toque apressado da campainha chama a rodeira, annunciando mais um negro crime, mais uma grande desventura, e acompanhae o infeliz na trabalhosa carreira da vida, até que a morte, velando-o com as negras azas, o transporta á mansão, onde ninguem é enjeitado, porque ha apenas um pai para todos.

Mão, agitada pelo terror e consciencia do crime, abre a portinhola, poisa a criança, faz girar a roda sobre o eixo, toca uma campainha, e busca na fuga a impunidade.

Minutos depois, a pobre abandonada é despida, vista, apalpada e, quando os que a examinam se convencem de que não traz signal, que atraiçôe os pais, ou dê pasto a hypotheses romanescas, passa a ser apenas uma unidade, addicionada á somma dos desgraçados como ella.

No dia seguinte, se não ha certeza de ter sido baptisada, baptisam-na, depois do que, é... escripturada e... sellada.

Desde aquelle momento, tornou-se propriedade da Roda, especie de mercadoria em ser, constante d'um livro de entradas. É uma fazenda registrada, numerada e marcada.

Passados dias, apparece uma aldeã; recebe a criancinha; deita-a n'uma canastra, entre um molho de couves e duas galinhas presas pelas pernas, e leva-a para a sua aldêa, vendo, apenas, na innocente um rendimento mensal de dois mil réis.

Será necessário dizer como é tratado o misero, que vai disputar uma parte do sustento a quem tem direito ao todo?

A infancia do enjeitado pode ser supportavel ou triste, conforme a indole da ama e da familia d'ella.

Pode ser, relativamente, feliz, se vai substituir um filho unico, e se a ama não torna a gozar as alegrias de mãe, porque, n'esse caso, a necessidade de amar faz, muitas vezes, com que se dê ao filho de adopção o amor que se daria aos proprios, se Deos os houvesse concedido.

Imaginae, porém, o innocentinho, intruso n'um lar, onde numerosa prole reclama as attenções e carinhos da mae, e dizei-me se esta, por mais nobre, grande e generosa que seja a sua alma, pode deixar de fazer differença entre os filhos e o enjeitado!?

Não!... A pobre criança representa apenas n'aquella casa um expediente de que a mãe se serve, para dar mais um pedaço de pão aos filhos.

O enjeitado cresce; a alma annuncia-se; a intelligencia desabrocha; a força desenvolve-se... vejamos para que lhe serve tudo isso.

Cresceu. Vai longe o tempo, em que lhe não invejavam umas sobras de leite; é-lhe preciso pão.

Começam aqui as recriminações.

— Fôram os meus peccados, que me metteram este castigo em casa!... Come como um lobo!... Se lh'a dérem, é capaz de comer uma brôa inteira!... Não ha pão!... não t'o dou!... Bem basta a trabalheira, que me tens dado!... Não o tiro aos meus, para t'o dar a ti!... Calas-te ou não te calas, mafarrico?...

E a mãe, que sente em si a bofetada, que dá n'um filho, fustiga sem piedade o enjeitado.

E a criança chora; mas, como só o gemer dos filhos lhe parece legitimo, o pranto do misero é attribuido a um sentimento mau, a teimosia, a ruindade, e os maus tratos redobram, e vêem então os insultos pungentes, em que a mãe, que o abandonou, é sempre envolvida por uma fórma affrontosa e atroz.

A este martyrio juntae a crueldade dos seus companheiros de infancia, que abusam da força.

Maltratado, repellido, o triste torna-se o bode expiatorio, o arre-burrinho da casa.

Apparece uma infusa quebrada?... foi alguem aos figos?... desappareceu uma moeda de vintem, um botão, um alfinete?... quebraram um vidro das janellas do visinho?... mancaram um porco?... aleijaram um frango?...

Não foi, não podia ser mais ninguem: — foi o enjeitado!...

Fallae com a dona da casa, e vereis como todos os defeitos dos filhos, multiplicados uns pelos outros, se acham reunidos no miseravel. Ouvi o que d'elle diz:

— É mesmo... mesmo ruim como as cobras!... Elle é mentiroso, elle é lambareiro, elle é bodalhão, elle é bulhento... Eu nunca vi coisa assim!... O seu gosto é fazer mal!... Vê-o agora alli quieto?... Se a não pregou, está para a pregar!... Vai-te!... Parece mesmo um castigo!... Pois eu criei uns poucos de filhos... que... emfim... mal parece dizel-o, por serem meus, mas não quero que os haja melhores... — tam bons sim, melhores não! — e só d'aquelle mafarrico é que não hei-de fazer coisa boa!... Pois olhe!... Não é por falta de ensino... Eu dou-lhe d'aquellas que os cães enjeitam!... vai-te!... Maldita a hora em que me lembrei de te ir buscar á Roda!

É raro o dia, em que se não fazem estas ausencias ao desgraçado, e, á força de se repetirem, vão-se accumulando e alargando os odios contra o ingrato, que faz o martyrio da santa criatura, que o criou e fez gente!

O tempo vai passando. As forças permittem-lhe ser util; começam novas e mais rudes provações.

Ha trabalho pezado, repugnante, abjecto?... O enjeitado que o faça; para isso come e bebe á custa de quem não tem obrigação de o sustentar.

O peior, porém, é que o espirito acompanha o desenvolvimento physico do enjeitado.

Peior ainda!... apura-se na desventura, no isolamento, na necessidade de fingir, de enganar, de ouvir e calar, de lêr nos outros para se guiar a si.

Innocente — vê em tudo injustiça; victima — considera o mundo povoado por verdugos; repellido e maltratado — torna-se egoista e ingrato; desprezado por todos — não ama ninguem!

Aquella mulher criou-o?... Não lh'o agradece; foi por interesse proprio ; fez-lhe um mau serviço; deixasse-o morrer, que não é vida o seu viver.

E, á noite, quando o desventurado se assenta na beira da enxerga, e recorda as injustiças do dia, ergue-se no seu espirito este brado de horrivel desespero:

— Para que nasci eu!?...

E a esta succedem-se mil perguntas.

— Quem será meu pai?... E minha mãe... minha mãe quem será!?... Quantas vezes terei eu passado por ella!?... Quando Deus quer, é rica e feliz, em quanto que eu estou aqui a viver por esmola?... Quem será?... Quem sabe!?... Pode ser que seja aquella senhora, tam bonita, tam bem vestida, que por aqui passou o outro dia de carro?... Quem será minha mãe!?...

N'este instante brada de baixo a ama:

— Apagas a candêa, ou queres que vá lá acima apagar-t'a?...

E o desgraçado faz o que lhe ordenam: despe-se ás escuras, deita-se ás apalpadellas; mas não consegue dormir, porque o coração ulcerado e o espirito enfermo continuam a debater-se em aspirações impossiveis.

Chega a adolescencia; a medida enche-se e trasborda... Volta costas ao lar, que de má vontade o aqueceu, onde não deixa saudade, d'onde não traz uma unica recordação risonha; contempla os braços, os unicos de que espera auxilio; crava os olhos no céo, o unico que jamais teve voz, que o censurasse e lança-se no turbilhão do mundo, tendo unicamente a animal-o a voz harmoniosa da esperança.

Bate á primeira porta, que vê: interrogam-no e recusam-lhe os serviços.

Bate a segunda, a terceira, a quantos encontra, e soffre outras tantas vezes a mesma decepção.

Aqui pedem-lhe um certificado de bom comportamento; alli censuram-no por ter abandonado quem o criou, exactamente quando os seus serviços poderiam pagar a divida de gratidão; mais além dizem-lhe brutalmente que não querem em casa um enjeitado, e dão prova de bondade os que não acompanham a recusa com observações injuriosas.

E assim segue, até que alguem, notando-lhe a robustez devida ao ar livre dos campos e ao trabalho, e lendo-lhe no rosto a humildade adquirida n'uma vida inteira de humilhações, tragadas em silencio, consente em o tomar ao seu serviço, explorando-o por todas as fórmas.

Onde quer, porém, que a sorte o conduza, vai com elle o segredo do nascimento. Os sêres, que o rodeiam, parecem obedecer todos á mesma inspiração; recusam ligar-se a quem não está ligado a ninguem. Enjeitado ao nascer, continúa sempre, e por todos, a ser enjeitado.

Como o desgraçado soffre!... A pergunta que a necessidade de amar lhe inspirara: «Quem será minha mãe!?» continúa a atormental-o a todo o instante; mas ha, então, na voz, em que lh'a faz o espirito, uma inflexão de odio contra a mulher, que o largou de si, e, assim como ella deve córar a sós comsigo, lembrando-se d'elle, que lhe recorda uma falta, tambem elle, pensando no desamor da mãe, sente-se corrido de vergonha, por dever a vida a um ser vil e desprezivel.

Enjeitado!

Tudo lh'o chama, tudo lh'o recorda!

Chama-lh'o a arvore, que se ufana da flôr e se revê no fructo; diz-lh'o a ave, que atravessa o espaço, segurando no bico o sustento dos filhos; recorda-lh'o a ovelha, que bala de receio, porque o cordeiro se transviou e a chama do fundo d'um precipicio; lançam-Ih'o, sobre tudo, em rosto as mães, quando, ao despegar do trabalho, véem assentar-se á porta da casa, dando o peito ao filho mais novo e seguindo, com o sorriso dos bemaventurados nos labios, o folguêdo dos mais velhos, que rolam abraçados sobre a relva.

Occorre-lhe de repente uma idéa: é preciso fugir... para longe... muito longe!... para onde não chegue o segredo do seu nascimento!

Para onde?... com que meios?... Felicidade rara!... ha quem se encarregue de o mandar para o Brazil de graça... mediante certas condições.

São boas!... são faceis!... acceitam-se todas e quantas mais se imponham!...

Chega a vespera da partida; entregam-lhe o passa-porte; se sabe lêr, lê; se não sabe, diz-lhe alguem que está lá escripto o seguinte:

— F... exposto...

Está rôto o segredo!... Vai adiante d'elle a noticia; sabem tudo alguns centos de pessoas, que vão com elle; leva no bolso, escripto para todos lerem, o que elle esperava, que ficaria exclusivamente gravado no seu coração á ponta de punhal!

Que tremenda verdade encerra aquella palavra tam simples!... aquella atroz e pungente ironia do destino!

Exposto!

Imaginaes, talvez, que quer dizer enjeitado?...

Engano!... Não se trata de synonimia; são os factos a dizerem a verdade crúa e núa, como ella deve ser.

Exposto, sim; disseram bem. Exposto a tudo!... ao desprezo, ás humilhações, ao isolamento, á vergonha, a quanto, finalmente, o martyrisou na infancia, e ha-de continuar a martyrisal-o até que a alma vá refugiar-se no seio do Eterno, e a terra lhe cubra os ossos!

Parte. Os companheiros de exilio contemplam, com olhos turvos de pranto, os lenços brancos, que ondulam na praia e os consolam como um testemunho de saudade, um desejo de ventura, um côro de preces erguidas a Deos em favor do exilado.

E o triste, se o seu anjo da guarda lhe não inspira a idéa de cravar os olhos no céo, fita-os enxutos e duros na terra, a que se não vê preso por laço algum.

Chega, trabalha e encontra a morte, ou fornece-lhe o trabalho meios de ir procurar n'aquelle paiz, que é um mundo, sitio, onde ninguem o conheça, onde todos ignorem o seu passado.

A mentira proporciona-lhe um socego apparente.

Que enleio, porém, que constrangimento, quando lhe perguntam, se ainda vive sua mãe, quando lhe exprobam não escrever aos seus!...

Que de mentiras é preciso inventar, para encobrir a primeira!

Estes incidentes, comtudo, são nuvens, que pairam por um momento e se afastam por fim, até se perderem no horizonte.

Lá vem, porém, um dia, em que os seus olhos se cruzam com outros olhos; em que no intimo d 'alma se agita esse que quer que seja, de que nasce o amor.

Ousa fallar e... escutam-no. Deos dos céos!... Não o repelliram!... escutaram-no!... disseram-lhe que o amam!... a elle!?...

Oh! não... não é possivel!... Ninguem o ama; ninguem o pode amar!... é uma illusão, um sonho, um gracejo!... não ousa crer... não crê!

Repetem-lh'o com o rubor nas faces, os olhos baixos, a voz trémula de pejo.

Que deslumbramento!... Os espaços alargam-se; o mundo afigura-se-lhe paraiso; os homens irmãos; os astros sorriem-lhe; as aves saúdam-no; os céos e a terra, tudo!... tudo freme de amor, e, no entanto, todo esse amor é mesquinho a par do que lhe entumece o peito!

Não que o seu coração acaba, n'aquelle mesmo instante, de nascer!... Jazia morto, jamais déra indicio de vida, e agora, agora que a sua robusta e clara razão comprehende o alcance da faculdade de amar e avalia as trévas em que tem vivido até então, é agora, exactamente agora, que aprende a conhecer o amor e logra a certeza de ser amado!... É de endoidecer, meu Deos!

Como elle a ama!... que innundação de ventura, ouvindo dos labios de ella a permissão de a pedir para esposa!

Com que angustia espera que os labios do pai, descerrando-se, lhe fixem o futuro, que o aguarda!

E esses labios balbuciam com bondade:

— Isso não é commigo; é com minha filha. Pela minha parte... sei que está em boa posição... só tenho ouvido fazer-lhe elogios e... estou certo que pelo lado de familia, nada haverá que dizer.

Que Deos, vibrando um raio, fizesse pedaços a palmeira, erguida a dois passos do sitio, onde lhe diziam aquellas palavras por despedida, e o desgraçado teria sentido menos terror, do que ouvindo aquella allusão a uma familia, que jamais conheceu.

Hesita, vacilla, parece-lhe que repentinamente anoiteceu, até que, cobrando animo, encara o perigo, resolve-se a conhecer immediatamente o destino e balbucia:

— Eu sou... enjeitado!

Os olhos, que o fitavam, desviam-se; o sorriso, que o animava, apaga-se; a voz, onde soava a benevolencia, torna-se polida e sêcca, quando promette consultar a interessada e dar uma resposta, e o desventurado foge com a consciencia de não ser acceite.

— Mas ella ama-te!... — brada-lhe a esperança.

E amava; mas... os rogos do pai, as lagrimas da mãe, os motejos das amigas, tudo isso reunido... acaba por vencer o amor.

Chorou uma semana, andou triste alguns mezes, encontrou outros olhos, que lhe pareceram mais meigos do que os d'elle, e terminou por não perdoar a si propria o ter amado um... enjeitado!

Ah! ah! miseravel!... Imaginavas, que bastava amar e ser amado?... Louco!

E... o sello da roda!?... Como pudéste esquecel-o, desgraçado!?... Julgaste, que, cortando o fio, que o prendia, te libertavas d'elle!?...

Que loucura!... O sello da roda está preso a ti pelo fio da vida; pede a Deos que t'o córte!... E o grilhão do forçado!... é a marca de fogo, que se imprimia outr'ora no hombro do condemnado.

Que brutal chamamento á realidade!

Acabo de pintar a traços largos, e com mal segura mão, a historia da maior parte dos enjeitados!

Queria contar-vos a das enjeitadas; mas, debruçando-me sobre esse abysmo de miseria, vejo-o tam negro, tam profundo, que recúo espavorido!

Prefiro deixar á imaginação do leitor o trabalho de architectar o futuro d'essas infelizes, que, tendo herdado a deshonra, vivem, pela maior parte, da herança, legando-a, pelo exemplo, aos filhos, se a natureza lh'os dá.

E as almas caridosas, passando risonhas por entre os berços, que pejam as salas da Roda, exultam na esperança de que Deos abençôa do céo a instituição!

E a sociedade dorme com a conscincia de haver cumprido um dever!

Engano, engano puro!

Batei ás portas d'essa casa, que ahi está, mettitida a um canto, como que envergonhada do antigo mestér, entrae, folheae os registros e vereis quanto a moral lucrou desde que a Roda se tornou Hospicio!

Consultae as estatisticas criminaes e vereis, que não augmentaram, que são, como sempre para honra nossa fôram, rarissimos os infanticídios!

Indagae das auctoridades e sabereis, que não ha mais casos de abandono, do que no tempo em que a Roda trabalhava noite e dia!

Pensae, medi, pezae e acabareis, como eu, por pedir á lei que puna com a maxima severidade o seductor; que exponha no pelourinho a mãe, que expuzér o filho nas ruas e, sobre tudo, que dê, com prodiga mão, auxilio ás mães, a quem a necessidade de amamentar e velar os filhos não permitte pedir o pão ao trabalho!

Extingui as Rodas; seriam os enjeitados os primeiros a pedir-vol-o, se não fôsse preciso para isso dizer-vos que o são.

Não acoimeis de ingratos a esses desgraçados!..

Não o são; obedecem aos preconceitos. Se ha por ahi tanto miseravel, que córa de haver nascido em berço honrado, mas humilde, deveremos admirar-nos de que o enjeitado esconda a sua procedencia!?...

Citam-se todos os dias mil nobres acções, legados valiosos em beneficio dos estabelecimentos pios... Quando e onde ouvistes dizer, que um homem, á beira do sepulcro, se lembrasse de dotar as Rodas!?... Quantos exemplos me apontaes?...

Bem poucos serão, se algum existe!... Seria a confissão do nascimento d'esse homem: ouve-lh'a apenas o sacerdote, ou recebe-lh'a a campa sob o sigillo da morte!

O enjeitado, desherdado d'um nome de familia, não foi, por esse facto, desherdado de virtude, de valor, de talento, de quanto, em fim, pode dar a um homem a grandeza na terra; e é tam avultado o numero d'esses infelizes, que devem, entre elles, haver alguns, se não muitos, que tenham adquirido a celebridade... Podereis citar-me muitos nomes?... Não podeis; mas sabeis porquê?... Porque, se ha muito quem se ufane de ter tornado illustre um nome obscuro, ha pouco quem se orgulhe de illuminar com o fulgôr da sua gloria a infamia de quem lhe deu o sêr!

O raciocinio, a compaixão, o zêlo pela dignidade humana levaram-me mais longe do que eu queria... Perdão!... A minha alma tinha necessidade d'este desabafo, como agora a tem de vos dizer, que freme de jubiloso orgulho, por ser d'aqui, do nosso velho Porto, que partiu o exemplo, o grito da mais santa caridade em prol da infancia abandonada!

Difficil de propagar, como todas as grandes idéas, a extincção das Rodas teve os seus apostolos n'esta terra, e eu comprehendo e invejo a santa alegria, que deve ter experimentado o que, mais que todos corajoso e tenaz, conseguiu ver coroados os seus esforços, ver decretado Hospicio, com todas as suas vantagens, o que era Roda, origem e confidente de horrores.

Não vos direi o seu nome; perguntae-o ao enjeitado, quando, passados annos e chegada a idade da razão, pudér avaliar quanto deve a esse homem, ao medico distincto d'esse mesmo Hospicio, que lhe deve o sêr, e ao qual vota verdadeiro amor de pai.

Quanto vos disse, atravessou, como um espinho, o coração dos dois gemeos, ao vêrem na mão de Joanna o sello da roda, pendente do pescoço de Fernanda, e d'ahi o olhar de dolorosa compaixão, que trocaram.

Aquelle symbolo de miseria e desventura trouxera-lhes á memoria os carinhos, o sacrosanto amor de mãe, que velara sobre elles desde o seu primeiro vagido, e que soubéra segurar-lhes, á hora da morte, o desvelado affecto d'outro coração de mulher, igualmente nobre, igualmente bom, igualmente capaz de dar a vida, para lhes poupar uma lagrima.

III

O cançasso, a boa qualidade da cama e, sobre tudo, a feliz incuria da infancia não consentiram que o somno se demorasse muito; depois de tres ou quatro suspiros Fernanda adormeceu.

— Então?... Vão-se deitar, meninos — disse Joanna.

— E tu?... — perguntou Jorge.

— Eu fico aqui...

— Não consinto — atalhou Luiz.

— Qual não consente... Veja agora se me quer prohibir a mim... d'esta idade... de fazer o que eu quizér!... Fico, sim, senhor... Boto alli um enxergão e durmo, como os meninos não são capazes de dormir. Deixe-se de contos — continuou a velha, atalhando um gesto de Jorge — hei-de ficar aqui. Não faltava mais nada, senão acordar a pobre criança para ahi, de noite, e tolher-se de medo, por se ver sósinha e não se lembrar onde está... Andem... vão... vão-se deitar!

Vencidos pelas razões de Joanna, retiraram-se os dois.

Um quarto de hora mais tarde, deitados nas camas, separadas por uma meza sobre a qual se achava o candieiro, conversavam os gemeos, fumando um ultimo cigarro.

— É, realmente, uma bonita criança!...

— Formosissima!... E não lhe notaste a distincção de feições, Jorge?...

— E o que mais impressiona... De quem será filha?... Com estes enjeitados todas as hypotheses são permittidas!...

— Está claro!... Olha... do velho é que ella não é filha!...

— Isso tambem eu juro... Não porque seja velho, que o não é... Aquelle homem ainda não tem cincoenta annos.

— Lá isso terá...

— Olha, que não tem, Jorge...

— Que terá elle a dizer-nos em segredo!?...

— Não sei... Tambem me causou estranhesa o pedido de lá irmos ambos ámanhã, e de lhe não levarmos a pequena, antes de nos ter fallado...

— Que será?.. E com certesa relativo á criança..

— Naturalmente... Em todo o caso, se tem que dizer, que se não guarde para tarde, ou vai-se embora com o segredo!...

— Pareceu-te assim mal, Luiz!?...

— Não tem vida para mais d'uma semana; tem uma lesão de coração muitissimo adiantada...

— E... Fernanda!?...

— Fernanda... Não sei... Veremos o que o homem diz ámanhã...

— Olha, Luiz... Tenho estado a pensar, mesmo no meio da conversa e... lembrou-me uma coisa...

— Dize...

— A minha licença está aqui, está a acabar... Tenho que partir e... que não tivesse... em casa havia logar de sobra para mais uma cama... Se a pequena ha-de ficar abandonada... pode vir para ahi... Eu... tenho o meu soldo, que me chega... No meu rendimento não toco, e, se não ha-de servir para nada... fazia eu a despeza e...

— Alto!... Vejamos primeiro o que o homem diz ámanhã; depois... se houver despeza a fazer... bem sabes que, entre nós, não ha teu nem meu — é tudo nosso. O peior ha-de ser a Joanna...

— Ora o que tu quizéres!... Tu não a conheces, Luiz!?... A Joanna, só pelo prazer de amar e proteger a criança, fica contentissima, ainda que diga o contrario!...

— Tens razão, Jorge!... A santa da velha é o inverso de todas as outras!... Quanto mais vai avançando na idade, parece que mais dedicada e carinhosa se torna!... Que ella, a final, não é velha... Nós estamos n'este costume de lh'o chamar; mas ella pouco mais tem de cincoenta... Olha lá, ó Jorge... Ainda queria ver a afflicção da Joanna, se se visse obrigada a escolher entre nós!...

— Não escolhia, estou que tirava á sorte... — respondeu Jorge, rindo.

— Só assim... Oh! com S. Pedro!... Olha, que é perto d'uma hora!... — exclamou Luiz, consultando o relogio. — Toca a dormir!... Boa noite, Jorge!...

— Boa noite, Luiz... — respondeu aquelle, desandando o registro do candieiro, que estava mais perto d'elle do que do irmão.

Quando pela manhã se ergueram e dispunham para sahir, veio a ama, andando em bicos de pés, dizer-lhes:

— Levou a noite toda d'um somno e dorme como uma pedra!... Pobre pequena!...

Pouco depois, entravam Jorge e Luiz na ilha, onde morava o pai de Fernanda.

Quem se lembraria de chamar ilha a essa enfiada de aposentos terreos, de porta e janella, com frente para um maior ou menor espaço de terreno de logradouro comraum, especie de rua privativa dos que alli moram, como o indica o portão!?

Quererá o nome indicar o isolamento dos moradores, no meio do oceano tumultuoso da cidade?...

Estes nomes, adoptados pelo vulgo, téem quasi sempre razão de ser; no entretanto parece-me mais prorio o termo cortiço, dado no Brazil a essa especie de habitações.

Cortiço é que aquillo realmente é, ou, pelo menos, faz lembrar.

Alli, effectivamente, folgam de reunir-se essas laboriosas obelhas, chamadas operarios, que incessantemente fabricam para outros um mel, de que apenas lhes deixam uns favos, quasi completamente despojados.

Menos felizes do que as abelhas, porém, os moradores da ilha não téem a ventura de conservar em seu poder, embora temporariamente, os fructos do seu labôr. Aquellas, se pudéssem prever a espoliação, talvez recusassem armazenar riquezas; estes, pelo contrario, trabalham com a certeza de jamais virem a gosar o que fabricam.

No que as duas especies de cortiços se parecem, é no odio aos zangões e no mesmo amor do mysterio.

Se trajaes de fórma a merecer a classificação de casaca, entrae n'uma ilha e verificareis o que vos digo.

As velhas fingem não vos ouvir as perguntas, para vos não responderem; os homens olham-vos com expressão desconfiada e pouco benevola; as crianças, contemplam-vos assustadas e curiosas, como se fosseis uma raridade; mulheres, homens e crianças téem todas no espirito a mesma idéa: «Que virá cá fazer este casaca!?»

Mostraes-vos arrogante!?... Não vos dou dez réis pela pelle!...

Experimentaes receio e não sabeis encobri-lo!?... Começa contra vós um tiroteio certeiro de epigrammas, que, pouco e pouco, se transforma em assuada formal, a ponto de verdes a vossa dignidade compromettida por alguma cebola pôdre ou talo de couve, que vos córta a palavra.

E tudo isso porque dizem, ao ver-vos, sois: «um casaca, que não vai lá para interesse d'elles.»

Que lastima não terem ido por diante as emprezas, que, propondo-se edificar habitações para classes pobres, teriam por feliz resultado acabar com esses antros asquerosos, cujo numero augmenta todos os dias, destacando como outras tantas nodoas no meio da cidade!

Só assim se conseguiria pôr um dique á avidez d'esses especuladores, que exploram a pobreza, offerecendo-lhes essas possilgas sem ar, sem luz, sem o espaço necessario, edificadas de fórma que o aluguel, por mais modico que seja, representa sempre um rendimento fabuloso do capital n'ellas empregado!

Nas noites abafadas do estio, quem ousar aproximar-se do cortiço ha-de notar o borborinho, que lá vai, e, se olhar para dentro, verá os moradores sentados ás portas, resistindo ao cançasso e ao somno, porque os horrorisa a idéa de terem de dormir debaixo d'aquellas telhas calcinadas pelo sol, entre aquellas paredes, onde falta o ar como dentro d'um forno aquecido.

Que dramas ignorados se passam alli dentro!...

Que paixões, odios, invejas, esperanças, decepções e angustias fervem n'aquelles cadinhos, em que se apura a miseria!

Não vos acerqueis, porém, demasiado, se quizerdes estudar aquelle viver.

Se passardes e ouvirdes o ruido d'uma lucta, gritos de soccorro, ameaças e preces, domae o impulso do vosso coração, não presteis auxilio, imitae a impassibilidade dos visinhos.

— Olé!... Hoje ha dansa em casa do Bernardo... O diabo da mulher, em quanto elle lhe não cortar a lingua, ha-de apanhar todos os dias!

— Tambem o Bernardo tem a mão sempre no ar...

— Não sei cá d'isso. Cada qual é senhor em sua casa.

A isto se limita a importancia, que os visinhos ligam áquelle incidente, que é muitas vezes a morte d'uma mulher.

Mais nervoso, porém, do que os visinhos, bateis á porta, até que vol-a abram.

— Que é que temos?... — pergunta-vos o dono da casa, com voz ainda tremula de colera.

Balbuciaes uns conselhos, umas observações, fallaes na infamia de bater n'uma pobre mulher...

— E você que tem com isso, seu pedaço d'asno!?... — grita de dentro uma voz esganiçada.

Atordoado pela pergunta, quereis fugir; mas uma especie de furia desgrenhada, com as vestes rôtas e o rosto ensanguentado, obriga-vos a ficar, bradando:

— Que tem, seu asno!?... que tem você com isso!?... Ora o barbas d'alho!... Que lhe importa a você?... É o meu homem!... Pode-me bater quantas vezes quizér, ouviu!?... Metta-se com a sua vida, seu atrevido... Que tem que metter o nariz na vida dos outros!?... Fóra, asno!

Ferido por epithetos, que nao são para se escreverem, indignais-vos, reagis; mas o homem, que tem gosado em silencio aquella especie de confirmação dos seus direitos de marido e senhor, feita pela mulher, intervém, dizendo:

— Olé... ó amigo... safe-se-me depressa, se não quer apanhar um estalo... Rua!... Olhe, que me não ensaio para lhe quebrar essa cara, seu patife!... Rua!... já lhe disse!...

— Dá, Bernardo, dá quatro bofetadas n'esse casaca!... — grita a furia.

A visinhança ri e applaude, disposta a ajudar o Bernardo, se vos lembrardes de reagir, e vós sahis vexado e attonito.

Attonito... porquê!?... Porque a mulher defendeu o marido, de cujas mãos tentaveis livral-a!?...

E quem vos diz que ella não gosta de apanhar!?... Quem vos diz que ella não considera aquillo uma prova de amor!?... Quem sabe se as reconciliações, que succedem áquellas tormentas, não são os unicos momentos de ventura para ella, e por isso as provoca!?...

De mais, porém, temos obrigado os dois irmãos a esperar-nos á entrada da ilha. Sigamol-os.

Mal apparecêram á porta, sahiu-lhes ao encontro uma mulher de cêrca de trinta e cinco annos, com o cabello em desalinho, o corpo a dansar dentro d'um vestido de chita outr'ora azul, cuja saia arregaçada por diante servia para agasalhar os pés e as pernas d'um pequerrucho de mezes, que trazia ao collo e que, á falta de dentes, ensaiava as gengivas n'uma chave, lambuzando n'esta operação o queixo e as mãositas de baba.

— Muito bons dias, snr. doutor... Viva, meu senhor... — disse ella, saudando os dois.

— Bons dias, snr.ª Rita... Como está elle?... — volveu Luiz.

— Até quasi ao ser dia, esteve muito afflicto... a gemer... a gemer... sem se podêr deitar para baixo... Depois... alli por volta das oito horas... socegou e tem dormido aos bocados...

- Vamos lá ver isso... se não está a dormir... — retorquiu o joven facultativo.

— Li a dormir... estará; mas... é um somno leve... Mal se entra no quarto, abre logo os olhos... E que olhos!... tam assustados... tam... assim... a modo... Eu não sei bem como hei-de dizer... Olha assim para a gente... assim... a modo de quem não está socegado!... Nosso Senhor me perdôe, mas... o homem tem peccado lá dentro, que o não deixa parar.

Jorge sorriu, ouvindo a suspeita da snr.ª Rita, e perguntou:

— Elle mora aqui ha muito tempo?...

- Ha quanto não sei dizer; mas olhe, meu senhor... Eu vai em tres annos... — fal-os para o S. Miguel... — é isso... vai em tres annos, que moro aqui e elle já cá morava.

— E como trata elle a enjeitadinha?... — continuou Jorge. — Trata-a bem?...

— Crédo!... Isso, então... Quer que lhe diga?... Era até uma coisa, que nem eu sei se elle fazia bem em a tratar assim!... Aquillo chegava a ser de mais!... Bôca que pedes, coração que desejas!... Era mesmo... mesmo... meu Sant'Antoninho, onde te porei!?... Eu, ás vezes, dizia-lhe: «Ó sê João... vocemecê estraga aquella pequena!... A rapariga para que precisa de saber ler?... (Porque elle mandou-a ensinar a ler... e a escrever!...) D'aqui por dois dias... vocemecê pode ir d'esta para melhor e... depois?... Fica para ahi a pequena, sem servir para nada, porque vocemecê não quer que ella vá lavar; vocemecê não lhe ensina a fazer um caldo; vocemecê não deixa que ella faça umas meias para ninguem... Isto assim não tem geito nenhum, sê João!...» Mas, olhe o senhor — continuou a boa mulher — que isto nem sempre se lhe podia dizer!... Lá quando estava de maré, e eu lhe dizia estas coisas, ficava muito triste... muito triste... com os olhos pregados no chão e... ás vezes... até desatava a chorar!... Mas isto era quando estava de maré... que... não estando?... Crédo!... Punha-se como uma bicha!... Zangava-se todo e dizia-me, que me mettesse eu com a minha vida... E então... tudo era: menina para aqui... Fernandinha para acolá... Olhe, meu senhor... Talvez o senhor não acredite, mas... as mais das vezes... nem a tratava por tu!... E eu affligia-me e zangava-me... e não era só eu; era toda a visinhança! Zangava-me porque elle, assim, estraga a rapariga e é uma pena... porque a rapariga é mesmo boa, boa como... as que o são!... É muito socegadinha... muito amoravel para todos... não tem uma má palavra para ninguem e... outra fosse ella, que... ás azas que o velho lhe dava... Mas, não senhor... Não tem mesmo aquella nenhuma!... Eu tenho muita amizade áquella pequena; só me custa que ella vá assim criada a não fazer nada, porque... depois... mais lhe ha-de custar a sujeitar-se... Mas... lá n'isso... a culpa não é d'ella.

— Tem razão, snr.ª Rita... tem razão... — disse Luiz, pondo um estorvo á loquacidade da visinha — vamos lá ver o homem.

— Quando o snr. doutor quizér... É verdade, ó snr. doutor... Eu queria pedir-lhe um favor... Queria que v. s.ª me visse um braço alli a uma pequenita... Com licença... Maria!... Ó Maria!... Venha aqui já, sua brejeira!... Não ouve chamar?... Ora vê, V. s.ª?... — continuou, arregaçando com a mão, que lhe restava livre, a manga do vestido da pequena. — Não sei o que isto é!... Fica assim esta vermelhidão e vai depois... come-lhe... ella não tem paciencia e deita-lhe as unhas... Anda sempre n'esta desgraça!... Algumas pessoas dizem que é bicho; mas não é. Não é, que a minha comadre já lh'o talhou tres vezes e tanto fez talhar como não talhar! Que me diz o snr. doutor que lhe faça?...

Luiz indicou-lhe o que devia fazer, e dirigiuse com o irmão para a porta do casebre, em que morava o protector de Fernanda.

Já perto da entrada, pararam, porque de novo os chamava a visinha, que, acercando-se, disse com voz submissa:

— E... e se lhe fallassem em confissão?...

— Esteja descansada, snr.ª Rita — respondeu Jorge. — Ha-de-se-lhe fallar n'isso...

— Eu... ainda tinha outra coisa a dizer... — balbuciou a mulher timidamente.

— Diga...

— Os senhores bem sabem, que eu... tenho a minha vida... e...

— Está bem... está bem... — atalhou Jorge. — Quando hontem lhe pedimos para olhar pelo doente, logo lhe dissemos que não perderia com isso...

— Faça favor de desculpar, meu senhor... — volveu ella. — V. s.ª bem sabe que... quem é pobre...

— Tem razão... não diga mais — retorquiz Luiz, abrindo a porta e entrando, seguido pelo irmão. A visinha não exagerara. Mal sentiu ruido, o doente fitou nos visitantes olhos de susto e angustia; reconhecendo-os, porém, serenou, e um sorriso de prazer veio illuminar-lhe o rosto cadaverico.

Era uma d'estas physionomias, que, vistas uma vez, se gravam para sempre na memoria, e surgem de repente, quando evocamos o passado, nitidas e fieis como photographias.

Apesar do sorriso, que lhe mitigava a dureza das feições; apesar da expressão de reconhecimento e humildade que esse sorriso lhes dava; apesar da resignação, que se lhe percebia, o aspecto d'aquelle homem era repugnante.

Na fronte deprimida, nos olhos amarellados, nos queixos fortes, largos, quasi quadrados na base, havia um não sei quê de tigre domesticado, ou reduzido á impotencia pela velhice.

Quando os gemeos se aproximaram, tentou assentar-se; mas não lh'o permittiram as forças e deixou-se cahir desanimado, em quanto que uma lagrima, desprendendo -se, rolava e ia perder-se nas longas barbas, ruivas como o cabello emaranhado que se lhe colava ás fontes por um suór viscoso.

— Deixe-se estar... deixe-se estar!... — exclamou Luiz. — Então, como está isso hoje?...

— Mal, snr. doutor... mal... — respondeu o doente, abanando a cabeça.

— Mal!?... Não é isso o que me diz o pulso...

— Não dirá, snr. doutor; mas... quer não... isto está a acabar; está aqui... está a acabar!... — replicou o enfermo.

— Deixe-se d'isso... — observou Jorge.

— Tem razão, senhor... Deixemo-nos d'isto... Como está a menina?...

— Fernanda?...

— Pois quem!?... — balbuciou o paciente, sorrindo.

— Está boa; aquillo não foi nada — respondeu Jorge. — Já aqui estaria, se nos não dissesse hontem, que a não trouxessemos, sem ter primeiro fallado comnosco...

— Tem razão, senhor... Como é a sua graça?...

— Jorge...

— Tem razão, snr. Jorge... Eu tenho que dizer, mas... primeiro... preciso, que alli o senhor seu mano me diga a verdade... Que tempo posso eu ainda viver, snr. doutor?

— Isso... — replicou Luiz, hesitando — isso... pertence a Deos... Vocemecê bem sabe que... para morrer basta estar vivo...

— Deixe-se d'isso, snr. doutor... Diga-me a verdade!... O que eu tenho a dizer... é d'estas coisas, que só se dizem á hora da morte... quando só Deos pode tomar contas d'ellas... Lembre-se que no que eu tenho a dizer está, se os senhores quizerem ser por ella, a sorte da criança, que o snr. Jorge levou para sua casa... Ora vamos, snr. doutor... Um dia?... dois?...

Fazendo um esforço, Luiz, quasi tam pallido como o moribundo, respondeu com solemnidade:

— Fallei-lhe ha pouco de Deos... Só elle pode prolongar-lhe a vida por mais de dois dias...

Depois de breve silencio, balbuciou o enfermo:

— Obrigado, snr. doutor... obrigado!... V. s.ª bem entende... Apesar de se estar prevenido... sempre... sempre custa a ouvir uma coisa d'essas... sempre é perder a esperança!... Mas... obrigado!... Como V. s.ª diz... Deos pode alargar-me a vida... mas tambem pode levar-me de hoje para ámanhã. É preciso fallar!... Façam favor de se assentar, que o que eu tenho a dizer ainda leva seu tempo... Se fizessem favor de me ajudar a assentar-me...

Satisfizeram-lhe os dois o pedido, depois do que prestaram attento ouvido á narração do enfermo.

Meia hora depois, quando elle terminou, pallidos e atterrados, não ousavam os mancebos erguer os olhos, com receio de revelar o horror, que os apavorava.

— Peza-lhes o bem que me téem feito, não é verdade!?... — perguntou o doente com voz tremula. — Não ha perdão para um crime, como o meu, pois não!?... Mas... tenham dó da pobre menina!... Remedeiem o mal que eu lhe fiz!... Não me neguem esta consolação!... Se entendem que... mesmo n'este estado... é preciso entregarem-me á justiça... façam-no... mas... dêem-lhe o que eu lhe tirei... façam a felicidade da pobre criança!

— Erguendo-se, Jorge respondeu grave e solemnemente:

— Nós não somos... não queremos ser seus juizes. É horrivel o crime, que commetteu... De então para cá, tem praticado acções, que Deos ha-de contar-lhe como filhas do arrependimento e do desejo de expiar a falta. Sobre isto, porém, só pode esclarecel-o o confessor ; porque vocemecê ha-de confessar-se...

— Eu faço tudo o que v. s.ª mandar... — replicou o doente, sem erguer os olhos — mas... ella!?...

— Ella... encontrou dois irmãos, que empenham a sua palavra de empregar todos os meios, para lhe restituir o que o seu crime lhe fez perder.

Voltando-se para o irmão, Jorge perguntou:

— Este homem viverá até amanhã?...

Luiz tateou o pulso do enfermo e volveu:

— Julgo poder asseverar que sim...

— Meu irmão vai fallar com o snr. abbade, e vocemecê confessa-se hoje á tarde — continuou Jorge, com accento de suprema auctoridade. — N'este meio tempo, eu... escrevo a revelação, que nos fez, e, quando houver terminado a confissão, leio-lhe o que tivér escripto. Vocemecê assigna... Sabe escrever?...

— Sim, senhor...

— Bem... Assigna, em seguida assignamos nós dois e o abbade, fazendo reconhecer todas as firmas por um tabellião, que eu hei-de trazer commigo e escusa de saber o conteúdo do documento; mas que ha-de declarar a verdade, isto é: ha-de dizer, que todos nós assignamos á vista d'elle... Approva isto?...

— Sim, senhor... — balbuciou o criminoso.

— Que dizes, Luiz?...

— Foi Deos que te inspirou, Jorge!... — respondeu o interrogado, abraçando o irmão.

— Bem... É verdade... Não tem uma prova qualquer... alguma carta?...

— Não senhor... isto é... tenho... tenho, sim senhor!... — bradou o enfermo, animando-se. — Tenho alli... a espingarda... — concluiu, tornando-se medonhamente livido, e apontando para uma porta ao canto do aposento.

Dirigindo-se para o sitio, Jorge abriu a porta e tirou a arma.

Era uma esplendida espingarda ingleza, tauxiada de prata.

Examinando-a com olhos de entendedor, Jorge soltou de repente um brado de triumpho:

— Lê, Luiz!...

— É o nome?... — perguntou o enfermo.

— É o nome!... — responderam os dois a um tempo.

— E ainda ha quem negue a Providencia!... — observou Jorge.

Luiz sorriu e disse-lhe:

— Não ha tempo a perder. — Eu vou fallar com o abbade e, de caminho... em quanto vais escrever... posso prevenir tambem o tabellião...

— N'isso me fazias tu grande favor... — respondeu Jorge.

— Então... vamos!...

Sahiram os dois. Fóra da porta esperava-os a visinha.

— Snr.ª Rita... — disse-lhe Luiz. — O homem confessa-se á tarde... Tenha vocemecê isto em estado de receber...

— Crédo!... Nem fallar n'isso é bom!... Para receber Nosso Pai!?... Vá v. s.ª descansado! Vou já alli defronte pedir á visinha uma toalha, e os castiçaes, e um Christo, que ella tem no sanctuario... Imagem mais linda!...

— Bem... bem!... — atalhou Jorge, mettendo-lhe dinheiro na mao. — Tome lá para cêra e para o que fôr preciso... Chega?...

— Se chega!?... Chega e cresce!

Á porta da ilha, despediram-se os irmãos, seguindo em direcção opposta.

IV

O sol está prestes a esconder-se, e os habitantes da ilha conversam em grupos.

Não se ouve, porém, a algazarra costumada; são discretas as vozes e, quando o rapazio se esquece e ameaça animar a scena com os seus risos e folgares, um prolongado psiu vem restabelecer o socego.

A porta da habitação do enfermo está fechada pela parte de dentro: espera, para se abrir, a visita do Senhor, e isto nos explica tambem a desusada tranquillidade, que reina na visinhança.

Para nós, porém, não ha portas fechadas, nem d'ellas precisamos, para penetrar no interior da casa:

Assentado na cama, o doente poisa a cabeça na mão direita, firmando o cotovello sobre o travesseiro. Com a mão esquerda afaga os folhos de renda do lençol, cuja alvura destaca sobre o cobertor de damasco encarnado, que faz as vezes de colcha. Os olhos humidos de enternecimento contemplam com expressão intelligente e satisfeita o joven official de marinha, que lê com voz sonora e grave á luz dos cirios, que allumiam a agonia do Crucificado.

Por de traz do enfermo , o abbade, cabisbaixo, escuta o leitor, revelando no rosto grande perturbação de espirito.

Aos pés da cama, e encostado a uma das columnas do leito, Luiz estuda na physionomia do doente as impressões da leitura.

Jorge, terminando de lêr, põe o manuscripto sobre a meza, ao lado do copo d'agoa, poisado sobre uma pequena moeda de prata, recolhe-se um instante e pergunta:

— Está conforme me contou?...

— Sim, senhor... só mais bem dito... nem admira... — replicou o doente.

— E o snr. abbade tem duvida em firmar este documento?... Nota n'elle alguma omissão da verdade?... — continuou Jorge.

— Nenhuma... estou prompto a assignar... — respondeu o sacerdote com voz commovida.

— N'esse caso... esperemos pelo tabellião e assignaremos todos — disse o mancebo.

— Eu posso lá ir... — observou Luiz.

— Se queres... — disse Jorge.

— Então vou — replicou o irmão, que pegou no chapéo, abriu a porta e sahiu.

Cêrca de meia hora depois, voltava acompanhado pelo tabellião, que dos circumstantes só não conhecia o doente.

— Aquelle senhor — começou Jorge — achando-se gravemente enfermo, e tendo revelações de importancia a fazer, encarregou-me de as escrever, o que elle proprio faria se lh'o permittisse o seu estado de saúde. Acabo de lhe lêr, diante do snr. abbade e de meu irmão, o que escrevi, e estamos todos quatro promptos a assignar aquelle documento. V. s.ª tem duvida em reconhecer as nossas assignaturas, sem ter conhecimento do conteúdo do manuscripto?... Creia que não ha n'isto falta de confiança; ha apenas o desejo de não obrigar a córar mais uma vez um moribundo...

— Eu não tenho duvida em reconhecer as assignaturas, declarando que ignoro absolutamente o conteúdo do documento e o fim a que o destinam... — volveu o tabellião, inclinando-se urbanamente.

— É exactamente o que desejamos — replicou Jorge, agradecendo com um gesto.

— Poderá assignar?... — perguntou o mancebo ao doente.

— Hei-de poder...

Luiz foi buscar a um canto uma pequena meza, de que o enfermo ordinariamente se servia, desde que comia na cama, e coUocou-a em frente d'elle.

Vendo-o amparado por Jorge e pelo abbade, poz sobre a meza o manuscripto e o tinteiro, e entregou uma penna ao doente, que assignou com extraordinaria firmeza.

Por assim o desejar o tabellião, assignaram em seguida os dois irmãos.

— Como eu não conheço- o snr. João Pereira — disse o tabellião, lendo no documento o nome do enfermo — é conveniente que o snr. abbade declare conhecel-o, como seu parochiano, e assigne.

Depois de lavrada a declaração do padre, reconheceu o tabellião as quatro assign aturas e despediu-se.

— Ah... — suspirou o moribundo, resfolegando com prazer. — Parece que me tiraram um pezo de cima do peito!...

— Assim deve ser, filho... — observou mansamente o padre. — O que tinha a fazer... está feito. Agora... é virar-se todo para Deos... O meu cura não deve tardar por ahi, e com elle vem o que tem poder de perdoar... Parece-me que ouço já a campainha...

— Ahi vem o Senhor... — vozearam lá fóra as crianças, confirmando as palavras do abbade.

Luiz abriu mansamente a porta, e ouviu-se então, distinctamente, o som da campainha e o côro do «Bemdito», entoado pelas pessoas que formavam o sequito a «Nosso Pai», singela e poetica denominação dada ao Sacramento pelo povo, que larga a ferramenta ou torce caminho, para o acompanhar, cantando-lhe louvores.

Já me disseram, que ha por ahi quem julgue estes usos indignos d'uma cidade civilisada... É possivel; eu, porém, peço a Deos que á hora da minha morte o mantenha ainda em vigor, e que esse côro dos crentes e dos humildes me chegue aos ouvidos no solemne momento, em que o meu coração estivér bradando contricto: «Senhor!... eu creio em ti!...»

Pouco depois, ouviu-se lá fóra um sussurro; a campainha vibrou mais perto; o cura entrou acompanhado pelos irmãos da confraria, e uma alluvião de mulheres do povo invadiu o aposento, com um ruido especial de tamancos, que escapam dos pés, quando os joelhos sôam surdamente ao tocar no chão, de suspiros compungidos e ciciar de preces.

O moribundo acceitou, resignado e humilde, a solemne provação.

Passados minutos, ouvia-se de novo o côro do «Bemdito», que se afastava, engrossado pelas vozes de quasi todos os moradores da ilha.

Quando o prestito dobrou a esquina, duas velhas ergueram-se do meio da rua, onde estavam ajoelhadas, e uma d'ellas disse:

— Voltou pelo mesmo caminho...

— Mau signal... — concluiu a outra, abanando a cabeça.

Dentro do quarto tinham apenas ficado, ao pé do enfermo, os dois irmãos e o abbade.

Este rezava, ajoelhado, diante do Crucifixo. O doente contemplava triste e attentamente as mãos inchadas. Jorge, horrivelmente pallido, continha a custo as lagrimas, ao passo que Luiz, familiarisado com a morte, fitava com affectuosa compaixão o irmão, pezando-lhe vêl-o assim commovido.

Por fim, o abbade persignou-se e ergueu-se.

— Então?... Não está mais alliviado?... não se sente agora melhor?... — perguntou elle ao enfermo.

— Sim, senhor... — volveu este, fazendo um esforço para sorrir-se. — Agora... queria ver...

— Diga... quem queria ver?... — instou o padre.

— Quer ver Fernanda?... — perguntou Jorge com voz tremula.

Voltando-se para o mancebo, os olhos do moribundo agradeceram-lhe.

— Eu vou buscal-a... — disse Jorge.

Um quarto de hora depois, se tanto, entrava a criança, que desatou a chorar, escondendo o rosto na roupa da cama.

— Fernanda... menina... ouça... Então!?... Escute!... Vou deixal-a... para sempre!.., Então?... Se chora... não posso continuar!... — balbuciou o moribundo com voz entrecortada. — Deixo-a, mas... o Senhor foi bom!... Fez-lhe encontrar quem a ha-de guiar melhor do que eu... Diga-me adeos... menina...

Os soluços da criança redobraram, e o enfermo voltando-se para os dois irmãos, accrescentou:

— É verdade o que lhes disse... Nunca me atrevi a dar-lhe um beijo... porque seria um peccado!... E quero-lhe como a filha!...

Dirigindo-se em seguida ao padre, balbuciou:

— E... se eu lhe pedisse perdão... a ella!?... Talvez que o pai...

O abbade, pallido e perplexo, hesitou; mas tomando uma resolução, ergueu a criança nos braços e disse-lhe:

— Menina... Dá um beijo na testa d'este homem e diz-lhe: «Perdôo-te, porque para mim só. tiveste amor de pai.»

Jorge fez um movimento para impedir aquelle beijo; mas, contendo-se, abraçou-se no irmão, dizendo : «É horrível!»

Mal os labios da criança lhe roçaram a fronte, o rosto do moribundo illuminou-se, e elle expirou, dizendo: «Perdão, meu Deos!»

V

São onze horas da manhã. A viuva do conselheiro Andrade escuta, sorrindo, os ditos mais ou menos espirituosos de quatro senhoras, que vieram saber se ainda lhe dura a enxaqueca da vespera.

A um canto do luxuoso salão, a filhinha da dona da casa e outra criança, pouco mais ou menos da mesma idade, brincam ás senhoras, fazendo mover um exercito de bonecas.

No vão d'uma janella, um cavalheiro de elevadissima estatura, magro, com os cabellos e o bigode completamente brancos, lê com visivel interesse uma gazeta.

Quasi deitada no sofá, a dona da casa revela no rosto pallido e magro uma saúde vacillante. Se eu fosse pintor, e quizésse representar na téla a imagem da saudade, iria pedir a verdade da expressão áquelles angelicos olhos azues, tam meigos, tam scismadores, que o vêl-os faz instinctivamente dizer: «Pobre mulher!»

E o sorriso!?... Quem chama sorriso áquella lagrima, que, subindo do coração, não teve força para chegar aos olhos e veio morrer nos labios, mudando de fórma, sem perder a expressão!?...

Numerosas brancas luzem por entre os opulentos cabellos loiros, provando que por aquelle coração passaram angustias, que dariam para uma vida de seculos.

De estatura menos de mediana, franzina, lançae-lhe um véo sobre o rosto, e parecer-vos-ha uma menina de quinze annos, quando deve ter perto do dobro.

O rigoroso lucto das vestes como que faz sobresahir a alvura da pelle. As mãos, sobre tudo, languidamente postas sobre os joelhos, são tam formosas, tam ideaes, que quem as vê duvida, não sabe se sim ou não lhe corre obrigação de as beijar, em testemunho de respeito.

Que lhe importa a ella o palrar das outras!?... Fallem á vontade!... Se não conseguem distrahil-a, não podem importunal-a; aquelle espirito está com certeza longe, muito longe da terra; está tam alto, que as vozes do mundo devem chegar-lhe confusas e incertas como um zumbir de insectos.

Fallemos das outras... Para quê?... Deixemol-as antes fallar; talvez se nos mostrem taes quaes são.

— Não estiveste hontem em S. João, Marianninha!?... Quem era aquella gente, que estava no teu camarote?...

— Não me falles n'isso, por amor de Deos!... Não ha como meu marido, para fazer d'aquellas descobertas. Imagina tu, que se lhe metteu em cabeça, fazer-me passar a noite no meio d'aquelles bichos!... E o caso é que, se, por felicidade, os não vejo de dia, cahia á noite no laço!... Sempre era d'um ridiculo!...

— Mas quem são?...

— Eu sei lá, menina!... E uma gente do Marco ou... não sei... são de fóra... Meu marido diz que lhes deve grandes favores... Parece-me que meu sogro esteve escondido em casa d'elles no tempo do cêrco... ou uma coisa assim... Seja o que fôr; eu é que não tenho obrigação de pagar as dividas de meu sogro!...

— Pois está claro!... — observaram duas das outras.

— Tenho pena que não fôsses!

— Cantaram bem?...

— Eu gostei... Que lindissimo vestido o da contralto!... E o colar?... Se é verdade o que dizem e as pedras são finas...

— Quem estava, tambem, muito bem vestida, era a Luiza Alvares...

— Ó menina!... Tu chamas áquillo bem vestida!?... Eu achei-a horrorosa!... Faze idéa, ó filha... moire amarello!... Parecia embrulhada n'um cobertor de damasco!

— Tu é que não podes ver a Luiza...

— E confesso-o... Embirro com aquella sonsinha, que pensa que engana o mundo. Como se ainda houvesse alguem, que nao tenha visto porque é que o Mello vai sempre para a mesma cadeira!

— Então!... Não sejas má lingua!... Bem basta que ella dê o escandalo; é escusado dizel-o tu... Faze como a nossa doente: cala-te!... Queres tu vir comnosco, Sophia?... Talvez te faça bem... — disse uma d'ellas, dirigindo-se á dona da casa.

— Não, Julia; não vou,

— A tua Bertha anda agora muito boa... muito bonita... — disse a que sabemos chamar-se Marianna, apontando para a criança.

— Anda... louvado seja Deos!... anda agora muito boa... — respondeu a mãe, que pela primeira vez pareceu interessar-se pelo que lhe diziam, em quanto que os seus olhos radiantes de amor iam procurar o rosto da filha.

— E a tua Emma?... — perguntou ella, dirigindo-se a uma das senhoras.

— Ha quinze dias que a não vejo; mas deve estar boa, porque a directora do collegio não me mandou recado...

— Então a pobre criança não vem a casa ha quinze dias!?... — exclamou a doente, com pronunciado assombro e censura.

— Não... Que queres?... No domingo tinha lá gente a jantar... á noite, tinha o baile do Club... Tambem, ainda ámanhã é que faz quinze dias, e ámanhã vem ella a casa.

— Sendo assim... — balbuciou Sophia com dolorosa ironia. — Mas... podias ter ido vêl-a...

— Olha... Não fui, porque tenho tido muito que fazer... Hoje fazia tenção de lá ir; mas... por um dia... não valia a pena... Depois... eu não gosto de lá ir... Quando me despeço, tudo são pedidos para a trazer commigo e eu... quero que ella aprenda.

— Tens razão... — balbuciou, sorrindo melancholicamente, a enferma.

— É verdade!... — exclamou D. Julia. — Vocês receberam carta a pedir prendas para o leilão do Asylo?...

— Recebemos...

— E... vamos a saber... Vocês que tencionam fazer?...

— Eu...

A resposta foi atalhada pela apparição d'um criado, que, dirigindo-se á dona da casa, disse:

— Está lá em baixo o snr. Jorge do Amaral, que deseja fallar com v. exc.ª...

— Jorge do Amaral?... Não conheço...

— Pois a mim não me é extranho esse nome... — disse D. Marianna.

— Conhece, meu pai?... — perguntou a dona da casa.

— Dizias?... — exclamou o ancião, que estava lendo e que não prestara até então o minimo interesse ao que se dizia.

— Está lá em baixo um sujeito, que diz chamar-se Jorge do Amaral... Conhece?...

— Jorge do Amaral!?... Não conheço... Que casta de sujeito é?... — perguntou o velho ao criado.

— É um official de marinha... — respondeu.

— Ai! já sei, já sei... Que cabeça a minha!... Podes mandar subir, menina... É um rapaz interessantissimo!... Walsa na perfeição!... — exclamou D. Marianna.

— Pode pedir a esse senhor que suba... — disse Sophia ao criado, e, mal este desappareceu, accrescentou, sorrindo-se para D. Marianna:

— Como walsa bem... não precisa d'outra recommendação... não é verdade?...

Passados instantes, assomou á porta da sala o joven official de marinha.

Dando dois passos, e cortejando respeitosamente as senhoras, perguntou ao ancião, que se aproximara para o receber:

— A snr.ª D. Sophia da Cunha e Andrade?...

— É minha filha — respondeu o outro, indicando a dona da casa.

Jorge inclinou-se novamente, saúdando-a, depois de lançar um rapido, mas profundo, olhar ao seu interlocutor.

— Então?... tem a bondade de assentar-se?... — volveu este, ofFerecendo uma cadeira ao mancebo.

Jorge, agradecendo com um gesto, assentou-se e disse, dirigindo-se a D. Sophia da Cunha:

— Eu peço perdão, minha senhora, por me apresentar a v. exc.ª desacompanhado d'uma recommendação qualquer... Sobre tudo n'este momento, deve V. exc.ª taxar-me de importuno, pois venho, provavelmente, interromper...

— Não, senhor... Estas senhoras tiveram a bondade de vir fazer-me companhia e estavamos conversando de coisas indifferentes...

— Agradeço a v. exc.ª tanta bondade e, embora eu seja aqui completamente desconhecido... — redarguiu Jorge.

— Assim deveria ser, se todos se esquecessem com tanta facilidade como o snr. Amaral — atalhou D. Marianna com vivacidade.

— Eu peço perdão, minha senhora; mas... realmente... não sei... não me recordo de ter... Perdão!... Effectivamente... lembra-me... não posso dizer quando, mas já tive a honra de... — balbuciou o mancebo, buscando em vão recordar-se onde e quando encontrara a espirituosa senhora.

— Ora vejam!... — exclamou esta, rindo, voltando-se para as suas amigas. — Ainda não ha oito dias, que este cavalheiro me asseverou não ter nunca encontrado quem walsasse melhor do que eu!

— Oh! minha senhora!... — intercedeu o joven, fingindo-se mais enleiado do que realmente estava. — V. exc.ª castiga-me sem piedade e eu... curvo-me, porque, na realidade, não mereço perdão... Creia, porém, v. exc.ª...

— Não se canse... — replicou D. Marianna... — Todas nós sabemos o que são recordações de baile... Eu só quiz dizer-lhe, que não era tam desconhecido, como suppunha.

— Beijo-lhe as mãos por tanta bondade, minha senhora — redarguiu Jorge, que, dirigindo-se, em seguida, á dona da casa, continuou:

— Á falta d'uma apresentação regular, devo a V. exc.ª a explicação da minha ousadia. Tratase d'uma obra de caridade, e, na lista das pessoas a quem devia dirigir-me, escreveu minha prima Ernestina d'Ornellas...

— Mas eu sou muito amiga de sua prima, snr. Amaral! — exclamou Sophia, com expressão de sinceridade.

— Como está a Ernestina?... — perguntaram as outras senhoras em côro.

— Ainda não ha uma hora, que a deixei de perfeita saúde, minhas senhoras...

— Ora, ora, ora!... E dizia o senhor que não vinha recommendado!... — exclamou D. Marianna.

— Mas é que todas nós... todas!... somos amicissimas de sua prima...

— Mil vezes obrigado, minhas senhoras... Eu direi a Ernestina quanto deve a vv. exc.as — redarguiu Jorge.

— Mas agora — atalhou D. Marianna — se se trata d'uma obra de caridade, em que a Ernestina tem empenho, o caso muda de figura... Não deve contar só com Sophia... — continuou, indicando a dona da casa — deve contar comnosco... Todas nós estamos promptas a contribuir...

— Com certeza!... — exclamaram as outras á porfia.

— Vv. exc.as acabam de me provar o que de ha muito sei... É infinita a bondade d'um coração de mulher... Ninguem, como vv. exc.as, comprehende a caridade!... — disse Jorge. — Eu tenho a certeza de encontrar os nomes de vv. exc.as na lista, que minha prima teve a bondade de organisar a pedido meu, e, se comecei por bater a esta porta, foi por ser o nome da snr.ª D. Sophia o primeiro inscripto...

— Não imagina quanto me lisonjeia essa preferencia, da parte de sua prima!... — observou aquella.

— Pois a mim ha-de explicar-me essa preferencia... — observou D. Marianna, mostrando-se despeitada.

— Ella por alguem havia de começar!... — disse o pai de Sophia, sorrindo. — Snr. Amaral... aproveite V. exc.ª as boas disposições d'estas senhoras e explique-lhes sem demora o que pertende. Se dá logar a interrupções, arrisca-se a sahir, sem dizer o que quer!...

— Se vv. exc.as permittissem... — disse o joven, dirigindo-se ás senhoras.

— Diga, snr. Amaral, diga... — exclamaram todas.

— Haverá oito dias... — começou Jorge — fal-os ámanhã — recolhia eu a casa, seriam dez horas da noite. Chovia e fazia um frio... Era uma noite... como a de hontem. Ao chegar ao Campo Pequeno ouvi a patrulha interpellar rudemente alguem, que estava deitado no chão e não respondia. Aproximei-me, accendi um phosphoro e vi uma rapariguinha desmaiada, com o rosto manchado de sangue. Estremecendo só com lembrar-me do quanto devia soffrer a pobre criança, assim deitada na lama, por uma noite d'aquellas, pedi á patrulha que me ajudasse a leval-a para minha casa, onde meu irmão, que é facultativo, podia prestar-lhe os primeiros soccorros. A criança estava ferida na cabeça... Em quanto a curavam, uma santa mulher que nos criou a ambos, pois meu irmão e eu somos gemeos, achou-lhe ao pescoço, apesar de ter já doze annos, o sello da roda...

— Ah! é enjeitada.. — disseram as senhoras com pronunciada indifferença.

— É enjeitada, sim, minhas senhoras!... — confirmou o mancebo, fitando especialmente, e com singular expressão, a dona da casa. — É enjeitada; porém... tenho boas esperanças de vir a descobrir-lhe a origem.

— Ah!... — volveram as senhoras com curiosidade.

— Grandes esperanças!... — continuou Jorge. — O nome do pai já eu sei; falta-me descobrir a mãe...

— E quem é o pai!?... — perguntou D. Marianna, a mais curiosa de todas.

— O pai... morreu. Ainda que lhes dissesse o nome, não o conheceriam. Apesar de ter feito algum ruido como litterato e, sobre tudo, pelo seu tragico fim, ninguem de certo se lembra já d'elle... pelo menos aqui... Lá em Traz-os-Montes não digo... Foi em Traz-os-Montes que elle morreu, ou antes que o mataram — disse o mancebo, accentuando as palavras, e olhando fixamente para a dona da casa, cujo rosto começava a trahir um vago interesse pela narração.

— Ah!... Então, talvez tu o conhecesses, Sophia!... ou pelo menos o snr. João da Cunha... — exclamou D. Marianna.

— É possivel... — disse o ancião, com voz affectadamente serena.

Jorge voltou-se com toda a naturalidade para elle, que amarfanhava o jornal com mão convulsa, e disse-lhe solemne e como que separando as syllabas:

— O pai da enjeitada, victima, segundo se disse, de vinganças politicas, chamava-se Fernando de Albuquerque.

— Não pode ser!

Era Sophia quem avançava o desmentido. Jorge voltou-se para ella, e viu-a de pé, pallida como um cadaver, com os labios tremulos e os olhos cheios de fogo.

— Não pode ser! — repetiu ella. — Fernando de Albuquerque não deixou filhos.

— Então!... que é isso, Sophia?... — perguntou o pai. — Queira desculpar, snr. Amaral... Nós conhecemos muito a pessoa de quem se falla... Minha filha tem razão em dizer, que elle não deixou filhos, porque... se isso fôsse verdade... V. exc.ª bem sabe que, em terras pequenas, nada se occulta... Por isso, repito, minha filha tem razão... Indignou-se, como eu, por vêr que alguem tenta abusar da boa fé dos parentes do finado, como de certo abusaram da de v. exc.ª... e por isso... se excedeu... Queira desculpar...

Havia singularissima contradicção entre as palavras, apparentemente serenas, do velho, e os olhares entre supplicantes e ameaçadores, que lançava á filha.

Se esta, porém, estava pallida, o pai tornara-se medonhamente livido, e, erguendo-se bruscamente, dirigiu-se para o vão da janella, ouvindo a resposta de Jorge:

— Comprehendo as suspeitas de vv. exc.as; respeito a sua indignação; mas posso asseverar que não ha quem se lembre de abusar da boa fé de ninguem... A snr.ª D. Sophia não podia saber da existencia da criança, porque esta nasceu depois da morte do pai, e no Porto; não nasceu em Traz-os-Montes.

— Tem provas do que diz?... — perguntou Sophia, que conseguira serenar; mas revelava, ainda assim, estar sob a acção de violenta lucta.

— Tenho a declaração feita, á hora da morte, pela pessoa que foi levar á Roda a criança, e que revelou o nome de quem lh'a entregou, não podendo, porém, dizer o da mãe, por ignorar quem fôsse — replicou friamente o mancebo.

— Mas... a final... V. exc.ª que deseja?... — perguntou João da Cunha, aproximando-se novamente do grupo.

Esta pergunta, desviando as attenções, fez com que passasse desapercebida a agitação e curiosidade crescentes, que se espelhavam no rosto de Sophia.

— Eu desejo que a filha de v. exc.ª, em quem vejo encarnada a virtude, me ajude a encontrar a mãe desnaturada, que condemnou a filha á miseria!... Quero que a filha de v. exc.ª e, com ella, todas as almas generosas, me ajudem a fazer d'essa criança um conjuncto de graças e virtudes, para um dia podermos dizer á mãe: «Foi bom que a enjeitasses... Educada por ti... viria, naturalmente, a ser como tu!»

— Ó mamá!... O que é enjeitada?... — perguntou de repente harmoniosa voz infantil.

Era a filhinha da dona da casa, que, aborrecida do folguedo, se aproximara, com a sua companheira, sem que lhes notassem a presença.

Esta pergunta encheu de enleio as que poderiam responder-lhe; D. Marianna, porém, sempre senhora de si, voltou-se para as duas pequenas e disse-lhes:

— Saltem!... vão para o jardim!... Quero vêr qual das duas me traz um ramo mais bonito!...

As crianças preparavam-se já para voar, quando Jorge, travando do braço de Bertha, chamou-a para si, assentou-a sobre o joelho, e disse-lhe:

— Quer saber o que é uma enjeitada, minha linda!?... Vou dizer-lh'o, para que a minha flôr seja ainda mais amiga da sua mamá do que é!... Ora ouça!... Ha mães, que se não parecem com a sua... Parece impossivel, mas ha... Em vez de passarem a vida, como a sua mamá, a beijar as filhas, a ver que lhes não falte nada, a perder as noites ao pé d'ellas, quando as vêem doentes, em vez de tudo isso... pegam n'ellas e mandam-nas embora; mettem-nas n'uma casa, onde nunca mais vão saber d'ellas...Vê porque se chama a essas meninas enjeitadas?... Porque as mães as enjeitam!

Desembaraçando-se dos braços de Jorge, Bertha correu para a mãe, subiu-lhe ao regaço, pendurou-se-lhe do pescoço e, cobrindo-lhe o rosto de beijos, exclamou com adoravel expansão:

— Ó mamá!... A mamá não era capaz de me enjeitar!...

— Não, minha filha!... — replicou a mãe, retribuindo as caricias da criança, e fitando o mancebo.

Era tam franca e firme a voz, tam luminoso e transparente o olhar de Sophia, que as outras senhoras, levadas por instinctivo impulso, ergueram-se e cobriram mãe e filha de beijos, ao passo que Jorge, esquecendo o logar, balbuciava, como se não pudésse ser ouvido:

— Não comprehendo!...

Serenada a agitação, produzida por este incidente, perguntou D. Marianna, dirigindo-se ao mancebo:

— Vamos a saber, snr. Amaral... Em que podemos auxilial-o?... Disponha de nós!...

— Permittam-me vv. exc.as, agora que estou certo do seu auxilio, formar um plano de operações, que terei mais tarde a honra de sujeitar á sua approvação...

— Quando quizér... mas não se descuide!... — replicou D. Marianna.

— Não quero abusar por mais tempo... Minhas senhoras... — disse Jorge, curvando-se diante d'ellas.

João da Cunha acompanhou o mancebo. Chegados ao fundo da escada, disse o primeiro com voz abafada:

— Julgo não dever duvidar de que ha na visita de v. exc.ª uma intenção occulta?...

Jorge fez um gesto affirmativo.

— Onde e a que horas o posso encontrar?...

— Quando e onde queira, excepto em minha casa. O tecto, que abriga a filha de Fernando de Albuquerque, não pode acolher a v. exc.ª...

Reprimindo um gesto de colera, o velho balbuciou:

— Ás cinco horas... nas Fontainhas?...

— Seja... — replicou o mancebo.

Quem encontrasse o joven official de marinha, depois de sahir d'aquella casa, duvidaria da sanidade do seu juizo.

Extremamente impressionavel, Jorge entregava-se sem reserva á corrente de pensamentos, que lhe tumultuavam no cerebro.

O rosto revelava alternadamente indignação vehemente, enternecimento profundo, evidente duvida, curiosidade ardente. Parava, gesticulando como em resposta a uma pergunta; ás vezes vinham-lhe aos labios phrases sem nexo:

— Não pode ser!... Seria cynismo de mais!... Mas... a mãe é ella!... é ella com certeza! Porém... aquelle olhar!?... Não pode ser!...

E, encolhendo os hombros, concluia com despeito e desanimo:

— Não comprehendo!

Acompanhemol-o até casa, onde talvez possamos descobrir claramente o sentido d'aquellas palavras.

Apenas o mancebo, subindo a escada, assomou á porta da sala, sahiu-lhe ao encontro o irmão, que perguntou, sem encobrir a curiosidade, com que estivera esperando:

— E então!?...

Jorge, atirando o bonnet para cima do sofá, encolheu os hombros e respondeu:

— Não sei o que te hei-de dizer!...

— Como não sabes!?...

— Não sei!... não percebo! — redarguiu Jorge. — Imagina o ser mais angelico, mais puro, mais digno de respeito! e... ahi tens a mulher a quem eu fui dizer: «És infame!»

— Agora sou eu que te digo: não percebo!... — replicou Luiz.

— Não percebes, não!... — exclamou o irmão com vehemencia. — Vou jurar que é ella a mãe... Disseram-m'o os seus olhos, os seus gestos, a sua pallidez, a anciedade com que me escutava... tudo, tudo m'o prova!... Agora, por outro lado — e é isso que eu não percebo! — se visses o espanto, a curiosidade com que me ouvia... Parecia que lhe estava fallando de coisas completamente novas para ella!... Não percebo... dou-te a minha palavra de honra que não comprehendo!

— Comedia!... — observou Luiz, sorrindo ironicamente.

— Não, Luiz; não era comedia. Aquella mulher era sincera!... Acredita que era!... Córou, empallideceu, confessou tacitamente ser a mãe ; mas, quando lhe esbofeteei as faces com a infamia de ter abandonado a filha, ergueu-se serena, pura, digna como a innocencia, e o seu olhar limpido e transparente fitou-se nos meus olhos e disse-me: «Calumnias-me!..» Não comprehendo, Luiz!.. Não comprehendo; mas em tudo isto... ha um mysterio, que, no dia em que o devassarmos, nos ha-de obrigar a ter respeito ou, pelo menos, dó d'aquella mulher!... Se a ouvisses... Mas espera; deixa-me contar-te a scena... Tem uma filhinha, linda como um anjo... Estavamos a fallar de enjeitadas, quando, de repente, pergunta a pequena: «Ó mamá... enjeitada o que é!?...» Aproveito a occasião, para punir a mãe, e explico á criança o que desejava saber. Escuta-me com olhos brilhantes de intelligencia e, apenas me calo, lança-se nos braços da mãe e diz-lhe: «A mamá não era capaz de me enjeitar!...» Se tu visses a espontaneidade, a firmeza, deixa-me assim dizer, a consciencia, com que a mãe respondeu: «Não, minha filha!...» acontecia-te como a mim. Não comprehendias; mas juravas que aquella mãe dissera a verdade, e era incapaz de abandonar uma filha!

— E... em conclusão?... — perguntou Luiz.

— Em conclusão... a mãe é ella. Quanto ao mais... vamos a vêr o que dá de si a entrevista, que o avô de Fernanda me pediu para hoje, ás cinco horas... nas Fontainhas... Ahi tens!... esse, sim!... esse não engana!... é uma d'estas physionomias duras e antipathicas, que permittem imaginar o que ha de peior!... Esse não foi calumniado. A agitação, que debalde queria encobrir; a raiva, que mal podia conter; os olhares com que recommendava á filha, que fôsse prudente... O homem é má rez; mas... ahi tens tu outro enigma!... Os olhos d'elle fallavam, por assim dizer, aos da filha, e os d'esta pareciam não entender e estavam cheios de interrogações!... Declaro-te que... não sei o que hei-de pensar de tudo isto!

Luiz encolheu os hombros, e Jorge continuou:

— É isso, é!... A encolher os hombros ando eu, desde que de lá sahi, por não poder matar esta charada. Vamos a vêr... vamos a ver o que sahe da conversa com o velho!

— Eu vou comtigo... — disse Luiz.

— Para quê?... Para que has-de tu ir commigo?... o homem, vendo-te, é capaz de se não abrir... — respondeu Jorge.

— Será assim; mas o patife...

— Ora o que tu quizéres!... — exclamou Jorge, soltando uma gargalhada. — Nós estamos no Porto, ou estamos nos desfiladeiros de Traz-os-Montes!?... Olha lá não vá o homem comer-me de duas dentadas!... Tu és tolo, Luiz!...

— Pois sim, sim... Em todo o caso não vás de mãos espanadas... — redarguiu o irmão.

— Tu estás doido, filho!... Tu como queres que eu vá fallar a um velho de setenta annos!?... Ao minimo gesto d'elle, em lhe eu lançando as mãos, não se tornava a mecher sem minha licença... Ora vamos!... não sejas criança!... É verdade... Do correio... nada?...

— Nada! — respondeu Luiz.

— É celebre!... já cá devia estar a resposta!... Ou a avó da pequena está entrevada e idiota ou... pouco amor tinha ao filho... — observou Jorge com visivel impaciencia.

— Quem sabe?... — replicou Luiz. — Quem sabe o que terá feito demorar a resposta...

— Ha seis dias, homem!?... É tempo, e mais que tempo, de cá estar!

— Em todo o caso não te amofines — atalhou o irmão. — Olha que, por te zangares, não vem mais depressa...

— Tu estavas bom para o meu modo de vida. Que o navio andasse ou apodrecesse em calmaria... ser-te-hia indifferente!... — observou Jorge, rindo.

— Pois para o meu é que. tu não servias!... — replicou Luiz, rindo tambem. — Quando um doente se não levantasse aos três dias, eras capaz de o pôr fóra da cama á força.

N'isto ouviu-se em cima a voz de Joanna, perguntando:

— Ó meninos!... Ainda se não pode pôr a sôpa na meza!?... Olhem que a pequena está a cahir com fome!

— Deixem fallar!... — gritou Fernanda.

— Prompto, Joanna!... Vamos a isso, Fernanda!... — bradaram os dois.

VI

Se Jorge tivesse assistido ao dialogo de João da Cunha com a filha, depois que as visitas se ausentaram, teria o mancebo visto um pouco mais claro no que se lhe afigurava incomprehensivel.

Apenas ficou só com o pai, Sophia, como se aquelle só devêsse e pudésse, como ella, ter o espirito torturado por uma idéa fixa, e essa idéa não pudésse deixar de ser a mesma, bradou anciosa e tremula, estendendo-lhe as mãos supplicantes:

— Falle, meu pai!...

Apesar de parecer á espera d 'uma interpellação, João da Cunha empallideceu, notando a vehemencia e angustia d'aquella phrase.

— O que é, Sophia!?... Que queres tu que eu diga?... — perguntou com enleio, buscando ganhar tempo.

— Falle, falle, meu pai!... Deixe-se de subterfugios!... Diga-me... Quem é aquella criança?... É minha filha?...

É impossivel descrever a energia, com que a pobre mãe revelou a convicção, que se lhe enraizara no espirito! Era a sua filha!... Dizia-lh'o o coração; mentia quem lhe affirmasse o contrario.

— Pois crês?... — balbuciou o velho. — Endoideceste, Sophia!

— Não!... Não endoideci; mas querem-me fazer endoidecer... Para que me enganou, meu pai!?... Para que me disse que a minha filha nascera morta!?...

— Sophia!... — replicou João da Cunha com severidade. — Tu esqueces-te de que estás a fallar com teu pai!...

— Oh! perdão!... perdão!... mas... — soluçou a infeliz.

— Sophia... — continuou o pai com pronunciado enleio. — Custa-me, no fim de doze annos, ter de recordar um facto, que nos faz córar as faces com vergonha. Eu... disse-te a verdade... Tua filha... nasceu morta.

— Minha filha!?... — bradou Sophia, estorcendo-se nas agonias da duvida — minha filha!?... mas... meu pai disse-me, em tempo, que fôra um filho e não filha!...

— E foi... sim... foi um filho — replicou o velho, mordendo os labios. — Enganei-me... Estavamos a fallar d'uma filha e... por isso me enganei; mas... era... era effectivamente um filho... Mas que cabecinha essa!... — proseguiu risonho. — Has-de ser sempre uma criança!... Louca!... Deixares-te impressionar a este ponto!... Não te lembrares sequér de que te estavam a vêr e a ouvir!... Imagina que as outras notavam a tua commoção!?... Valha-te Deos!... Olha, que o que eu disse exprimia o que penso: em toda esta historia da criança entra o espirito d'uma especulação infame!... Acredita!...

— Pode ser... — balbuciou Sophia, sem pensar o que dizia; mas, aguilhoada de novo pela suspeita, proseguiu:

— Porque se dirigiu aquelle rapaz a mim!?...

— Valha-te Deos!... elle bem te disse porquê!...

— Não!... não foi por isso!... — bradou com energica convicção a pobre senhora. — Não foi! Veio cá, porque... aquella é a minha filha!

Sophia ergueu-se, altiva e forte, ao proferir aquellas palavras. A filha obediente e submissa desapparecêra diante da mãe ludibriada.

— É minha!... é a minha filha!... — repetiu ella com força, cravando os olhos brilhantes de audacia e censura no rosto livido do pai.

— Outra vez!?... — tartamudeou este, encolhendo os hombros e desviando os olhos.

— Outra vez e sempre!... — exclamou Sophia.

- É minha!... eu quero... eu vou buscar a minha filha!

— Sophia!... — rugiu o velho, embargando-lhe o passo. — Onde vaes?... que queres fazer?... Que certeza tens tu do que... é falso?... não sahe, senhora!... Não sahe d'aqui!... não quero!... Quer ir assoalhar a sua vergonha!?... Que vai a senhora dizer áquelle rapaz!?... Que errou... que é roubada a consideração de que gosa?... Para quê?... Para chegar ao fim e... desfeito o mysterio... reconhecer que se enganou... que aquella criança não é, não pode ser sua — porque a sua morreu!?... E depois?... Depois... que importa!?... Fica-se sabendo o que ninguem sabia, não é assim?... Não sahe!... não consinto!... não quero que saiha!

Atordoada, ao principio, pela vehemencia, com que o pai se exprimia, Sophia fôra pouco e pouco serenando, até que, por fim, com o seio agitado e os labios resolutamente cerrados, media-o com olhos brilhantes de indignação e de coragem.

João da Cunha não poude affrontar-lhe o olhar, e a consciencia disse-lhe, que a filha herdara d'elle uma força de vontade, de que até então não fôra necessario dar provas.

Passado um instante, e depois de violento esforço, Sophia disse com affectada serenidade:

— Custa-me ter de dizer a meu pai que sou viuva, estou em minha casa, posso entrar e sahir, quando quizér... Perdão!...— continuou, impedindo uma interrupção. — É possivel; quero crer que tudo isto não passe, como o pai diz, d'uma especulação infame... É possivel; mas... o que é certo é que aquelle rapaz está convencido de que sou eu a mãe da criança... Perdão — atalhou novamente — está convencido d'isso. Notei-o no desprezo, na ironia das suas palavras, no olhar com que seguia o effeito, que ellas me causavam... em tudo!... Tenha paciencia!... deixe-me acabar — continuou Sophia. — É possivel que n'isto mesmo me engane; mas... é isso fácil de verificar, sem me comprometter. Elle veio pedir o meu auxilio... Nada mais natural do que interessar-me eu pelo empenho d'elle. Em todo o caso, uma vez que a criança não é minha filha, eu é que não quero que esse rapaz esteja convencido do contrario, e isso consigo eu facilmente. Elle não disse que tinha a declaração, feita, á hora da morte, pela pessoa encarregada de lançar a criança á Roda?... Não disse, tambem, que sabia quem incumbira essa pessoa de o fazer?... Já vê que, indo eu lá, e sabendo quem foi o mandatario...

— Não quero!... não vai!

É impossivel dar a minima idéa da voz, com que fôram proferidas estas palavras!... Só um doido furioso, exasperado pelo terror, seria capaz de as pronunciar d'aquella. maneira. E de doido era, na realidade, o aspecto de João da Cunha ao proferil-as! Livido como um cadaver, com os olhos injectados de sangue e animados por um fulgôr sombrio, contemplava, torcendo as mãos, o rosto da filha.

Esta, com o olhar entre irado e jubiloso, levou as mãos ao peito, para conter o coração, e exclamou com voz entrecortada:

— Ah!... então... sempre ella é minha filha!?... É!?...

Cravando os dêdos convulsos no craneo, como se quizésse impedil-o de estalar, e fitando-a desesperado, volveu por entre os dentes cerrados:

— É... não... é... É, sim, é, mas... não tens tu outra filha!?...

— Bertha!... — bradou Sophia, que accrescentou: «Oh! meu Deos!» e cahiu desmaiada no chão.

A pobre mãe pensava, pela primeira vez, na filha, de que lhe era licito ufanar-se, e succumbia, lembrando-se de repente, que a confissão da sua falta só serviria para repartir a deshonra em partes iguaes pelas duas filhas.

Vendo-a cahir, João da Cunha correu a agitar uma campainha e fugiu, como louco, da sala, sem se atrever a erguer a filha do chão.

Foi n'este estado que as criadas, acudindo ao toque da campainha, vieram encontrar a pobre senhora; e tam violento fôra o golpe, que a prostrara, que, só passadas horas, conseguiram os beijos e lagrimas da pequenina Bertha chamal-a de novo á vida.

VII

É uma d'estas sombrias tardes de inverno, em que, sentindo o peito oppresso por immenso peso, erguemos os olhos e, vendo enormes massas de nuvens, semelhantes a algodão enlameado, occorre-nos a idéa de que a abobada celeste desce lentamente, para nos esmagar.

As arvores despidas erguem as varas negras, como braços, que se alçassem, implorando a volta da primavera.

São cinco horas da tarde; mas não estão longe as trevas da noite. Na alameda das Fontainhas vê-se apenas um homem, encostado ao paredão, com os olhos fitos na corrente do rio.

O Douro, consideravelmente engrossado, escôa-se, rugindo e tropeçando a cada passo em invisiveis obstaculos, fazendo lembrar alguem que, sob o dominio da colera, gagueja e a todo o instante se embaraça, por lhe não poder a palavra dar vasante á torrente de idéas, que lhe occorrem, e se lhe atropellam no cerebro.

Alheio a tudo o mais, aquelle homem parece apenas vêr a agua, cujo aspecto o fascina. A fronte, espelho de intimas tormentas, o olhar sombrio, as rigidas feições, tudo n 'aquelle homem diz, que o combate das aguas do Douro se casa e sympathisa com tremenda lucta, que lhe lavra na alma.

Entregue aos seus pensamentos, só, quando o som de passos lhe feriu o ouvido, ergueu a fronte e viu a pequena distancia outro homem, que se dirigia para elle.

É impossivel descrever o olhar que os dois trocaram. Devem luzir assim duas espadas, quando se cruzam, para decidir uma questão de morte.

Seria superfluo dizer o nome d'esses dois homens.

João da Cunha, que chegara primeiro, fazia lembrar um tigre açamado; Jorge, solemne e sereno, media-o com olhos de domador.

Passado um instante, João da Cunha desviou o olhar e murmurou:

— Estou ás suas ordens...

- Perdão — replicou o joven. — Não invertamos os papeis... Estou prompto a ouvil-o.

— V. exc.ª — redarguiu o velho — não negou que um fim occulto o levou hoje a minha casa e...

— Peço novamente perdão... — atalhou Jorge. — Eu fui a casa da snr.ª D. Sophia da Cunha. Com V. exc.ª nada tinha a tratar, e só vim aqui, porque v. exc.ª se lembrou de me marcar uma entrevista n'este sitio e a esta hora.

— Basta de ironias, senhor!... — bradou João da Cunha arrebatadamente; vendo, porém, o olhar altivo e interrogador do mancebo, conteve-se e proseguiu:

— Queira desculpar... O meu temperamento não se presta a dissimulações e... confesso... sou bastante irascivel... e...

— Basta, senhor... Acceito as suas desculpas; mas assevero-lhe, que não tenho que dissimular. No meu passado — replicou Jorge, accentuando as palavras — não ha um unico facto, que me obrigue hoje a apresentar-me mascarado. Em todo o caso, lamento que os annos não tenham podido domar a irascibilidade, de que v. exc.ª é o primeiro a accusar-se, e que, mesmo na minha idade, difficilmente poderia desculpar-se.

João da Cunha inclinou-se silenciosamente. A impassibilidade e fria polidez do joven official de marinha formavam-lhe uma couraça, contra a qual vinha quebrar-se o orgulho do velho militar.

Atravessou-lhe, por um instante, a idéa de lançar as mãos e arremessar por sobre o parapeito a quem assim ousava affrontal-o; conteve-o, porém, o aspecto varonil e robusto do mancebo e, sobre tudo; a convicção de que ia longe o tempo, em que isso seria para elle empreza facil.

Vencendo, a final, o enleio, que o turbava, disse:

— Fallarei... como deseja. V. exc.ª não negou, que encobriu o verdadeiro fim da sua visita a minha filha...

— É exacto isso — replicou Jorge.

— V. exc.ª suppõe ser ella... a mãe da criança, que protege?...

— Suppunha-o, quando me dirigi á snr.ª D. Sophia da Cunha; quasi que me convenci de que acertara, depois que fallei com ella; agora... as palavras de v. exc.ª dão-me a certeza de me não terem enganado, quando me affirmaram que era ella a mãe da enjeitada — respondeu Jorge com firmeza.

— Mas é uma calumnia, senhor!... Abusam d'uns amores de infancia... sem consequencia... — exclamou o velho.

— V. exc.ª esquece que a pessoa que o affirmou, fez essa declaração á hora da morte, n'um momento em que ninguem tem a coragem de mentir!... — observou o mancebo.

— Mentira!... calumnia!... Essa pessoa quiz segurar o futuro d 'uma filha, ou...

- Perdão!... Quer v. exc.ª saber o nome d'essa pessoa?... Talvez que esse nome seja d'algum peso para v. exc.ª!... — atalhou Jorge com mal disfarçada ironia.

— Diga... queira dizer... Provavelmente não conheço... mas... queira dizer... — balbuciou João da Cunha com voz, que mal se ouvia.

— Essa pessoa... esse homem chamava-se... João Pereira!

— Não conheço... não me recordo... — murmurou o velho.

— É possivel, porque era mais conhecido por outro nome... Chamavam-lhe em Traz-os-Montes — João Russo... — exclamou Jorge, cravando os olhos no rosto do velho.

— Não conheço... — balbuciou este com difficuldade.

— Mentira!... digo eu agora... — trovejou a mancebo, com o olhar scintillante de desprezo e colera.

Ouvindo aquelle desmentido, os olhos do insultado turbaram-se; inundou-se-lhe a fronte com um suor gelado; agarrou-se tremulo ao parapeito para não cahir.

Pouco, porém, durou essa perturbação. O inferno, que lhe ardia na alma, abrazou-se nos fogos da raiva; o orgulho ingenito, a indomavel bravura, a franqueza rude, mas natural, sublevaram-se-lhe no peito; a fronte aprumou-se-lhe altiva, os olhos animaram-se-lhe, e por entre os dentes cerrados, disse:

— Cartas na meza!... Ha um quarto de hora que me ralo, representando um papel indigno de mim!... Ha um quarto de hora, que trago as suas insolencias!... O que me tem dito, se fôsse aqui ha quinze annos, tinha-o feito ir parar acolá, em baixo, á beira do rio; entende, seu criançola!?... É, verdade, sim; é verdade!... É ella a mãe da criança!... Sinto prazer em lh'o dizer aqui, na cara, sem que mais ninguem o saiba!... Negava-o, porque queria evitar, que o meu nome fôsse discutido... percebe?... Mas... que me importa isso?... Quem se atreverá a duvidar da virtude de minha filha?... Quem, miseravel!?... Que provas tem do que diz?... A declaração do homem?... «Impostura!...» direi e hão-de acreditar-me. Que mais?... Que mais provas tens?... As tuas palavras?... Por essas te hei-de eu castigar, canalha — continuou, alterando o tratamento. — Ah! ah!... Confiaste na minha idade?... Enganaste-te!... Ainda ha coragem aqui... n'este peito!... Ainda não és tu quem ha-de fazer vergar este braço!... Ah! ah!... De ti tenho eu certeza de me vingar, insolente!... És militar?... Ou te bates, ou arranco-te esses galões e esbofeteio-te as faces com elles em publico!... Percebes?

Jorge tornara-se horrivelmente pallido. Os seus olhos chegaram a medir o abysmo e perguntou a si proprio, se sim ou não devia fazer áquelle homem o que elle fallava de lhe fazer a elle. Serenando, porém, de repente, cruzou os braços e respondeu friamente:

— Ninguem se bate com um assassino; quando um homem honrado o encontra no seu caminho entrega-o á justiça, que o castiga.

João da Cunha recuou assombrado, e os seus labios, desunindo-se, balbuciaram:

— Sabe tudo!...

— Sei tudo, sei, assassino!... O teu cumplice deixou escripto o preciso, para te fazer acabar a deshonrada velhice nos presidios de Africa — exclamou Jorge, cedendo á indignação que o dominava.

João da Cunha não era uma alma vulgar. Reconhecendo a inutilidade de negar, encarou corajosamente o perigo e respondeu com serenidade:

— Engana-se, snr. Amaral!... Homens, como eu, não acabam em Africa!

E com um movimento rapido ia despenhar-se, arremessando-se por cima do parapeito, quando a mão de ferro de Jorge lhe reteve o corpo debruçado sobre o abysmo.

— Deixe-me!... — bradou o velho.

— Era mais uma acção digna de quem, desejando vingar-se d'um inimigo, o mandou matar por outro — replicou o mancebo, obrigando-o a recuar.

João da Cunha deixou-se cahir sobre um banco de pedra, e escondeu a fronte entre as mãos.

Passados instantes, ergueu-se vagarosamente. O olhar, o gesto, a attitude, tinham perdido a usual expressão. Do antigo e implacável partidario, de aquella feroz encarnação do orgulho, da alma temperada de aço — restava um velho vencido pela fatalidade; e o coração de Jorge, como que se sentiu abalar pela compaixão, ouvindo-o dizer:

— Snr. Amaral!... As suas ultimas palavras rasgaram a mais viva das feridas da minha alma!... Chamou-me cobarde!... Se soubesse o sem numero de vezes, que a consciencia me atira todos os dias á face esse insulto!... Talvez me não acredite!... Commetti o crime de que me accusa... Commetti-o victima d'um horrivel engano; mas... quando tal engano se não houvesse dado, é possivel que... no primeiro momento... descobrindo a deshonra de minha filha... é possivel que eu matasse da mesma maneira aquelle homem, que eu odiava instinctivamente... E quer saber?... Ou por muito familiarisado com a vista do sangue, e por ter passado a minha mocidade no meio dos horrores da guerra, ou porque a minha alma seja alheia ao sentimento do medo, não sei o que seja remorso!... Apparece-me em sonhos a victima; mas não me chama assassino!... Chama-me... cobarde!... e é n'esse ponto injusta!... Aquelle homem, que o acaso tornou meu cumplice, appareceu-me, collocou-se entre mim e a victima, quando ia vingar-me; e impoz-se-me como vingador, n'um momento em que eu estava, por assim dizer, idiota de raiva e desespero! Cobarde!... Cobarde eu!?... Não, snr. Amaral... Eu não sou cobarde, e, embora lhe pareça um monstro, juro-lhe que acceitaria de boa vontade os maiores tormentos n'este mundo, a maxima condemnação no outro, para que elle, tivesse acabado ás minhas mãos, como eu queria, quando resolvi vingar-me. Cobarde!... eu!?... Ah! não! Ha ahi homens do meu tempo... amigos e inimigos... Esses que lhe digam... se havia alguem, que jogasse com mais denodo a vida do que eu!... Oh! não!... Cobarde, não!... não sou!...

O velho calou-se, e o mancebo ficou mudo diante d'aquella aberração do orgulho!

O subito desalento de João da Cunha abrandara a colera do mancebo, que não ousava reatar o dialogo.

Titubeando, e quasi desfallecido; o criminoso perguntou a final:

— Que deseja de mim?... que tenciona fazer?...

Recolhendo-se um instante, Jorge respondeu:

— V. exc.ª fallou ha pouco d'um engano... Falle!... A mim repugna-me tanto a só idéa do crime, que... se v. exc.ª me pudesse apresentar uma circumstancia, que, de qualquer fórma, attenuasse o horror da acção, que praticou, eu teria immenso prazer em o julgar menos severamente... Falle!...

João da Cunha curvou a fronte e, passados instantes, começou:

— V. exc.ª não conhece o martyrio do ciume... Se conhecesse... mas não; não conhece... Eu, da sua idade, tambem o não conhecia!... Perdão!... Devo começar d'outra maneira... Ouça-me!... Eu... odiava aquelle rapaz... Filho d'um inimigo politico, herdara do pai as mesmas crenças, e fôra educado pela mãe no odio dos que o tinham tornado orphão. Quando nos encontrávamos nas estradas, a fronte aprumava-se-lhe insolente e provocadora; os labios distendiam-se-lhe desdenhosos; mas havia sobre tudo nos olhos d'aquella criança — porque era uma criança n'esse tempo... mal lhe apontava a barba! — havia, como disse, nos olhos d'elle uma tal expressão de desafio, que eu estive um cento de vezes para voltar atraz e arrancar-lhe as orelhas. Com os annos, essa petulancia transformou-se n'uma ironia incisiva e fria, que me fazia ferver o sangue. De repente as suas maneiras para commigo mudaram. Desviava os olhos, quando nos encontrávamos e, se, por acaso, formava parte d'um grupo, que eu saudasse, levava a mão ao chapéo, o que jamais fizera até então. Essa mudança, porém, não modificou os meus sentimentos. Detestava-o profundamente, e irritavam-me os elogios, que lhe faziam!

— Fallamos um com o outro — continuou — apenas uma vez... no dia... fatal! N'esse mesmo dia... e na presença d'elle!... entregaram-me uma carta anonyma, em que me chasqueavam por não ver o que se passava em minha casa, e me convidavam a espreitar quem d'ella sahia de noite todas as quintas-feiras, dias em que costumava, invariavelmente, visitar uns amigos da visinhança.

— Eu ainda hoje — proseguiu, com voz cava, o ancião — eu ainda hoje não sei, como me contive e não matei alli mesmo... immediatamente... aquelle homem, cujo nome a carta mais adiante me revelava! Deos o livre de saber o que é o ciume, snr. Amaral!... Eu... tinha ligado á minha a sorte d'um anjo!... Foi essa a minha desgraça!... Ao vêl-a tam formosa, tam meiga, tam intelligente, tam digna do amor de todos, não podia convencer-me de que aquella mulher!... — a minha mulher!... — pudésse olhar sem repugnancia para mim, minado pelos desgostos, cansado pelas fadigas da guerra, velho antes de tempo, sombrio e austero, privado de tudo quanto é preciso para ser amado!... Aquella carta explicava-me a mudança de maneiras da parte d'elle, e queria eu, na minha cegueira, que me explicasse tambem as lagrimas della! A pobre criança morria de saudades do seu paiz, e eu queria ver n'esse pranto o remorso do crime!... De minha filha... nem me lembrei!... O meu ciume, até então infundado, ganhou corpo com a revelação e... ahi tem o que fez de mim um assassino!... Assassino... não!... — protestou o miseravel com vehemencia. — Eu não era um assassino; era um homem, que se vingava!... Queria encontral-o de frente e esmigalhar-lhe o craneo!... A fatalidade não o quiz assim!...

Terminando, João da Cunha deu dois passos para diante, e Jorge, imitando-o, moveu-se, sahindo os dois juntos e em silencio da alameda.

Não proferiram palavra, até chegarem ao largo da Batalha.

O velho tivera provavelmente tempo de encarar a situação, e de certo se arrependêra de se ter deixado dominar, porque, parando de repente, perguntou com pronunciado azedume:

— Que decide v. ex.ª?...

Jorge, adivinhando o sentimento que ditara a pergunta, respondeu friamente:

— É o que estava para lhe perguntar...

— A mim!?... Que tenho eu a decidir!?...

— V. exc.ª tem a decidir do futuro d'aquella criança, que é sua neta... — replicou o mancebo, accentuando as ultimas palavras.

— Mas como!?... Que quer v. exc.ª que eu faça!?... — volveu João da Cunha com impaciencia.

— Permitta que lhe responda com igual pergunta: que quer que eu faça!?... Á hora da morte, um desgraçado que precisa de levar essa certeza, para morrer tranquillo, faz-me jurar, que empregarei todos os meios, para assegurar um nome e um futuro feliz a uma criança, que tem direito a uma e outra coisa... Faz-m'o jurar, e eu... juro!... Que quer v. exc.ª que eu faça!?...

— Mas isso... é uma ameaça!... é o escandalo!... é a deshonra para minha filha!...

— É a justiça, senhor!... justiça para sua filha; mas, sobre tudo! — justiça para sua neta!

— Eu tenho só uma neta, senhor!... Só uma!... viu-a hoje!... A outra... não a conheço... não existe... ninguem me pode provar a existencia d'ella!...

— V. exc.ª está a collocar as coisas no seu primitivo pé... — observou Jorge com enfado. — Já lhe disse, que tenho a declaração escripta de quanto se passou...

— E que prova isso?... Que prova a declaração d'um homem, que pode ter querido vingar-se de mim!?...

— Oh! snr. João da Cunha!... Á hora da morte!... Onde estão os jurados, que concebam tam entranhado odio!?...

— Hão-de achar-se!... — vociferou o desgraçado. — Hão-de achar-se!... Que prova... que outra prova tem!?...

— Quer mais provas?... Pois bem!... Tenho em meu poder a arma, com que foi commettido o crime... Magnifica espingarda ingleza!... — continuou Jorge, rindo sarcasticamente — verdadeira obra de arte, em que ha, sobre tudo, a admirar a perfeição, com que o nome do possuidor foi embutido em letras de prata na cronha?... Quer conhecer o nome, snr. João, da Cunha?...

Este, depois de breve silencio, observou:

— O achar-se essa arma em poder d'elle, não prova que fôsse eu...

— É justo!... — volveu o mancebo com ironia. — V. exc.ª é um terrivel argumentador; mas...

N'este momento, atravessou uma idéa o espirito do mancebo, que concluiu a phrase:

— Mas... ha uma prova, com que v. exc.ª não contava!... Ha a correspondencia de sua filha, encontrada pela mãe da victima entre os papeis do filho!... A pobre mãe não sabe de quem sejam essas cartas; mas... havendo quem lh'o diga...

— A mãe... a mãe de Fernando!... Está tudo perdido!... Mas não; é falso!... Quer intimidar-me!... Oh! isto é infernal!... Diga, senhor!... Diga por uma vez o que quer de mim!

— É o que dentro de poucos dias, e depois de pensar, terei a honra de lhe dizer — replicou Jorge, saudando-o.

João da Cunha ficou immovel, seguindo com a vista aquelle homem, senhor de ora em diante da sua honra e da sua vida, e ao vêl-o desapparecer nas trevas, murmurou:

— Se eu pudésse... Oh! não, não! crimes... basta um!... E... para quê!?... Não adiantava nada com isso!...

VIII

Sériamente preoccupado pela conversa, que acabava de ter com o avô de Fernanda, Jorge perguntou a si proprio o que lhe cumpria fazer.

Quando sahira de casa, em direcção ao sitio aprazado para a entrevista, o mancebo traçara no espirito uma especie de programma, que o correr do dialogo inutilisara completamente. Propuzera-se decifrar o enigma e não o conseguira de todo; faltava-lhe saber o grau de culpabilidade de Sophia da Cunha, e o coração hesitava-lhe no peito, dilatando-se em impetos de perdoar, para logo se contrahir em duvidas e suspeitas.

Ao avistar a casa, onde morava, causou-lhe estranheza o vêr illuminadas as janellas do primeiro andar, geralmente fechadas áquella hora.

Batendo á porta, reconheceu pelo rumor dos passos, que era o irmão quem vinha abrir. Era, effectivamente, Luiz, que, sem aguardar perguntas, lhe segredou ao ouvido:

— Chegou a avó da pequena!...

Surpreso pela noticia, Jorge subiu lentamente a escada, e ficou devéras enleiado, quando, ao assomar á porta da sala, viu dirigir-se para elle uma senhora idosa, que, sem lhe dar tempo a defender-se, lhe agarrou as mãos, cobrindo-lh'as de lagrimas e beijos.

— Oh! minha senhora!... por quem é!... então!?... — balbuciava o mancebo commovido, e tentando desprender-se.

— Deixe, senhor... deixe... — soluçava a pobre mulher. — É pouco!... é nada!... Eu queria que Deos me desse meios de lhe pagar a felicidade, que lhe devo!...

— Então!... Por uma coisa tam simples!... vamos... não exagere... sente-se... então!?... socegue, minha senhora!

— Não exagero, não!... — retorquiu a avó de Fernanda. — Sem a bondade do seu coração, o que seria hoje de minha neta!?... Que seria d'ella, se o senhor fosse... como todos os homens, e a deixasse ir para o hospital, em vez de a trazer para sua casa!?... Não, snr. Jorge... O que o senhor fez... dá-lhe no meu coração logar de filho!...

E a velha senhora, lançando os braços em volta do pescoço de Jorge, beijou-lhe a fronte.

— Bravo!... Gosto d'uma mulher assim!... A senhora é cá das minhas!... — bradou de repente uma voz energica.

Era a nossa amiga, a boa, a santa, a affectuosa Joanna, a qual, desde que o mancebo entrara, não cessara de enxugar com o avental duas lagrimas, que pareciam ser sempre as mesmas, — tam rapidamente se reproduziam!

Luiz, não querendo mostrar quanto o affectava aquella scena, occultara-se no vão d'uma das janellas, em cujos vidros executava desesperadamente, com os dêdos, uma composição infernal de auctor desconhecido; e só Fernanda, contemplando-os a todos, com os seus grandes olhos negros, parecia espantada, se não receiosa, de que tantos corações se lhe abrissem, a ella, que até então jamais ousara offerecer o seu a ninguem, com medo de lh'o rejeitarem.

Vencida a emoção, D. Maria de Albuquerque assentara-se, puchando para si a neta, a quem se não fartava de abraçar.

— É elle!... é elle por uma penna!... é o meu Fernando!... E chama-se Fernanda!... Só por te pôrem esse nome, quasi que lhes perdôo!... Vê, snr. Jorge?... O pai era isto mesmo!... Os mesmos olhos... os mesmos cabellos negros, encaracollados... os mesmos labios... só não tinha a pelle tam fina... Também n'um homem... não admira... Não era tam bonito, isto é... era; era tam bonito como ella; mas... tinha certas coisas, que só ficam bem n'um homem... Tambem tinha não sei quê, que eu não acho n'esta... Não sei o que era; mas... Ah! já sei!... era o sorriso!... Ri, Fernanda!... Ah! não, não!... não era assim... Não rias, assim, minha filha!... Isso não é rir; é chorar!

Dando um beijo em Fernanda, a avó voltou-se de repente para os dois irmãos e perguntou:

— Ella... porque não sabe rir!?...

Luiz, curvando-sé um pouco para o irmão, segredou-lhe:

— Porque traz o sello da roda!

Jorge estremeceu e, desejando dissipar os receios da velha senhora, ácerca da saúde de Fernanda, perguntou-lhe como se atrevêra a emprehender tam ardua jornada.

— Eu sou forte — volveu ella, sorrindo — mas.... que não fôsse! Quem poderia reter-me, sabendo eu que tinha aqui a minha neta!?... Viria a pé... e descalça, se preciso fôsse!...

— Eu nunca vi genio mais parecido cá com o meu!... — observou Joanna, dirigindo-se a Luiz. — Gosto d'uma senhora assim, snr. Luizinho!... Pão-pão, queijo-queijo!... Quem quer, vai; quem não quer, manda... A gente á espera de carta, e ella pega em si e vem-nos bater á porta!... Sim, senhor... gosto!

Jorge, desejando recolher-se, para combinar com o irmão o melhor expediente a adoptar, a fim de conjurar as complicações que antevia, lembrou, que seria bom deixar descansar a feliz avó, que devia forçosamente sentir-se fatigada, e perguntou a Joanna, se já tomara as providencias necessarias, para que nada lhe faltasse; D. Maria de Albuquerque, porém, interrompeu-o, dizendo:

— Tenha paciencia, snr. Jorge. Ha muitos annos, que choro n'uma solidão, a que eu propria me condemnei!... Deixe-me ser hoje completamente feliz!... deixe-me esta ventura de me saber rodeiada de corações bons!... Sabe?... Estou com receio de adormecer!... Tenho medo que, ao despertar, nada d'isto exista!... Não receie por mim; sinto-me bem... E demais... nós temos muito que conversar!... Eu quero dizer-lhe o que senti ao lêr a sua carta... se é que se pode descrever uma alegria assim!... Não me venham dizer, que se enlouquece de prazer!... Não é verdade; eu não enlouqueci. E o senhor tambem... ah! tenha paciencia... seja indulgente! O senhor tem muito que me contar!... hei-de confessal-o bem, deixe estar!... O senhor nunca abriu as janellas d'uma casa fechada ha muito tempo?... Ahi tem o meu coração!... Abriu-m'o com uma boa nova, e o pobre todo se alegra, ao vêr-se invadido por toda a parte pelos raios de sol, de que já mal se lembrava!... Prepare-se, que tem de me aturar!... Eu já quiz vêr, se lhe tirava parte do trabalho; mas seu irmão, ou por modestia, ou porque realmente não está bem ao facto dos acontecimentos, respondeu-me que só o snr. Jorge me podia contar bem estas coisas... E eu quero saber tudo... tudo!...

Jorge, sorrindo, observou, que havia alli alguem, diante de quem se não podia dizer tudo, ao que ella retorquiu:

— Tem razão!... comprehendo... mas diga-me... a mãe?... quem é a mãe?...

N'esse mesmo instante batiam á porta, e Joanna correu a abrir.

— Quem é a mãe?... — insistiu D. Maria de Albuquerque, percebendo a hesitação do mancebo. — Quem é?... Não sabe, ou é um d'estes nomes, que se não proferem?...

— Oh! minha senhora!... — atalhou o joven, protestando.

Não concluiu, porém, porque Joanna, apparecendo de repente, disse:

— Está lá em baixo uma senhora, que vem de cadeirinha, e deseja fallar com o snr. Jorge...

— Uma senhora!... — balbuciou este.

— Diz que é a pessoa, em casa de quem o menino esteve hoje pela manhã... — accrescentou Joanna.

— É ella!?... — perguntou D. Maria de Albuquerque, notando a perturbação do mancebo.

Jorge, inclinando-se, volveu:

— É ella!...

— Mas essa senhora que quer!?... — perguntou anciosamente a avó de Fernanda. — Vem talvez buscal-a!?... agora!?... no fim de tantos annos!?...

— E... se assim fôr!?... — perguntou o joven, sorrindo melancholicamente.

É impossivel descrever a eloquencia da expressão, repassada de desafio e odio, que animou o rosto energico da velha, ao tomar nos braços a neta, como se a quizésse defender d'um perigo visinho!...

— Que venha!... — sibillou com esforço por entre os dentes cerrados.

— Perdão, minha senhora!... — observou Jorge. — V. exc.ª bem sabe, que eu não posso fazer esperar mais tempo uma senhora, e deve comprehender que não pode assistir a esta entrevista...

— Pois bem!... eu retiro-me; mas... Fernanda ha-de vir commigo!... — exclamou arrebatadamente.

— Pois que vá... — balbuciou o mancebo, que pegando n'um castiçal, para allumiar a escada, disse a Joanna: «Manda subir!»

— Dê-me a luz... depressa!... — respondeu a ama, correndo para a escada, d'onde chegava já o som dos passos lentos e indecisos de quem sobe, sem conhecer os obstaculos, que poderá encontrar no caminho.

IX

A tempera varonil do joven official de marinha jamais passara por tam rude prova! As vagas encapelladas do seu oceano querido afiguravam-se-lhe innocentes e ridiculas, se as comparava áquelle redomoínho de paixões, em que se via colhido e em risco de soçobrar.

Que responderia elle a essa mãe, que vinha, contricta e humilde, depôr-lhe entre as mãos o seu nome, o socego do seu lar!? Repellil-a-hia!?... Ah! não, que entre essa mãe, que se apresentava como ré, e elle, que o acaso transformara em juiz, interpunha-se a imagem luminosa e pura d'outra mãe, da mãe, que elle ainda hoje chorava!

«Mas essa mãe, a tua!...» — segredava-lhe a duvida — «era um anjo, ao passo que esta...»

— Esta... — respondia a caridade — ouvil-a-has, e a outra te inspirará do céo!

Chegando perto de Jorge, que descêra ao encontro d'ella, Sophia ergueu o véo, que lhe cobria o rosto.

Era tam digno o aspecto da joven senhora; brilhava tam franca, atravez do resignado olhar, a esperança de vêr realisado o desejo, que a levava áquella casa, que o mancebo curvou respeitosamente a fronte, ao passo que no intimo d'alma exclamava:

— Esta mulher é por força um anjo!

Chegando á sala, a pobre mãe agarrou com mão frenetica o braço de Jorge é, deixando saltar duas lagrimas, balbuciou:

— Eu quero vêr minha filha!...

Que voz, santo Deos!... Era uma ordem temperada por uma prece; uma exigencia, em que se percebia a consciencia de não ter direito para a fazer; a anciã do desgraçado, que, morrendo á sêde, debruçado sobre a orla d'um poço, vê subir lentamente o vaso que lhe traz a vida, e receia a cada instante vêr partir a corda!

Jorge, abalado por aquelle grito, esteve quasi a cahir de joelhos e a bradar-lhe: «Perdão, perdão, ó santa!... perdão, ó martyr, de quem eu duvidei!... Guarda o teu segredo, que eu já não quero conhecel-o, porque os segredos dos anjos só se revelam a Deos!»

Um leve ruido, porém, veio convencêl-o de que o escutavam perto corações menos crédulos e mais inflexiveis do que o d'elle; e, domando a commoção, volveu com affectada serenidade:

— Perdão, minha senhora, mas... não comprehendo!... Dar-se-ha acaso a infelicidade de ter v. exc.ª perdido a gentil criança, que eu vi hoje em sua casa!?... Mas... porque vem procural-a aqui!?

Reprimindo a custo a impaciencia, volveu a interrogada:

— Deixe-se de ironias, snr. Amaral!... Martyrise-me, faça o que entender; mas... depois de me deixar vêr minha filha!

Jorge era mais propenso a ceder ás lagrimas, do que a obedecer a intimações. Pareceu-lhe descobrir tal ou qual altivez na resposta, e tanto bastou para sentir a necessidade de punir.

— Tem razão, minha senhora!... — redarguiu elle seccamente. — E indigno de mim todo e qualquer disfarce. Eu fui hoje fallar ao seu coração, offerecer-lhe sua filha, e o seu coração ficou mudo; os seus labios não se descerraram. De que procede tam rapida mudança!?... Como se accendeu assim... de repente... na sua alma, o santo amor de mãe!?... Ah!.. — continuou o mancebo com voz de acerba ironia — ah! minha senhora!... comprehendo!... De manhã o coração calou-se, porque a sua voz seria ouvida!... calou-se, porque o santo affecto, que accende uma auréola em volta da fronte de todas as mães, só serviria para desmoronar o fragil pedestal d'uma virtude falsa!... De manhã calou-se... E agora?... Agora vem v. exc.ª representar um segundo papel, que lhe agrada, embora só me tenha a mim por unico espectador!... Não, minha senhora!... N'esta casa quem entra, tem primeiro de arrancar a mascara lá fóra!... Ou v. exc.ª tem a coragem de cumprir o seu dever, reclamando, reconhecendo, apresentando ao mundo sua filha, ou serei eu o arbitro do destino d'ella!... Antes eu do que a Roda, a quem v. exc.ª a entregou!

Mal Jorge proferiu as ultimas palavras, a porta lateral, por onde, pouco antes, se retirara a avó de Fernanda, abriu-se com violencia; e uma voz, trémula de indignação, bradou:

— A Roda!?... a minha neta na Roda!... E foi esta mulher!?... ella!?... a mãe!?

A accusada não pudéra deixar de sobresaltar-se; insurgindo-se, porém, quasi instantaneamente, contra a accusação, ergueu- se e, fitando serenamente os dois, replicou singelamente:

— Calumniam-me!...

E tal era o cunho de verdade, que aquella resposta trazia, que nenhum dos dois ousou protestar.

Reinou, por breves segundos, o profundo e afflictivo silencio, que precede as grandes luctas. Presa de desencontrados sentimentos, foi a avó de Fernanda quem primeiro se resolveu a rompêl-o.

— Calumniam-me, diz v. exc.ª... Perdão!... — proseguiu, atalhando a resposta da accusada — a paciencia nunca foi uma das minhas virtudes; v. exc.ª fallará depois... Eu nao posso admittir a sua asserção!... Eu, a quem traiçoeiramente assassinaram um filho, assevero-lhe que m'o não teriam roubado, se eu lhe conhecesse um unico inimigo!... Quem m'o quizésse matar... havia primeiro de arrancar-me a vida! E era um filho!... um homem!... alguem, que se não pode ter fechado á chave; alguem que tem uma vontade e usa d'ella, sem dar satisfações, nem conhecimento dos seus actos a ninguem!... nem mesmo a uma mãe!... Comprehende, minha senhora ?...V. exc.ª, porém, não tem nada, que possa tornar verosimil o que affirma... Quem, sem consentimento da mãe, pode roubarIhe a filha, que dorme a seu lado!?... quem?... Como explica v. exc.ª isto!?... Dormia?... Impossivel!... Não ha rumor, por mais leve que seja, que não perturbe o somno da mãe, quando tem debaixo da sua guarda o seu primeiro filho, a primeira benção do seu amor!... Empregaram a violencia?... Que mãe é então v. exc.ª, que não morreu em defeza de sua filha?... «Mas tu vives, e mataram-te um filho!» dirá v. exc.ª... Vivo, sim, minha senhora!... vivo!... — repetiu, com extraordinaria exaltação — vivo; mas... sabe o que tem impedido a minha alma de deixar a terra?... E o odio!... é a sêde de vingança!... Poderá dizer o mesmo, minha senhora!?... Não, que eu ouvi tudo!... Não, que eu ouvi d'alli, detraz d'aquella porta, dizer que v. exc.ª tem outra filha!... Será tambem de Fernando, essa filha, minha senhora?... — perguntou D. Maria de Albuquerque, com intimo desprezo. — Não, minha senhora, eu não creio nas suas palavras!... A mulher, que, depois de amar Fernando, poude amar outro homem, é para mim uma mulher... uma mulher... Acabe v. exc.ª a phrase; eu... não sei!

— Oh! cale-se, minha senhora!... cale-se!... deixe-me fallar!... — bradou a accusada, com indizivel angustia.

— Não, que eu ainda não acabei!... Ouça!... Ha doze annos que eu vivo da esperança de descobrir a mão, que me roubou Fernando!... Ha doze annos, que eu procuro debalde o fructo dos amores de meu filho, porque uma confidencia incompleta do infeliz, me permittia suppôr a existencia d'essa criança!... Ha doze annos, em fim, que a procuro a si, minha senhora, porque a julgava digna; porque lhe queria abrir os braços; porque lhe queria chamar filha, a si, que meu filho amou mais do que a mim! E que fez v. exc.ª durante estes doze annos?... Que fez?... Abandonou a filha... escondeu-a na Roda a todas as minhas pesquizas; e, em quanto o desejo de vingar meu filho me dava alento contra o desespêro, v. exc.ª buscava olvidar nos braços d'outro homem a memoria de Fernando!... Não negue, minha senhora! Essa outra filha, que o não é de Fernando, auctorisa-me a fallar assim; auctorisa-me a dizer-lhe que tudo isto é tôrpe!... que tudo isto é infame!...

D. Maria de Albuquerque cahiu exhausta sobre uma cadeira, ao pronunciar as ultimas palavras.

Jorge, que, ao principio, estudara com vivo interesse o rosto da accusada, terminou por temer sériamente, que esta enlouquecesse; mas não ousou, com tudo, acalmar a exaltação da mãe de Fernando.

Felizmente os olhos desvairados de Sophia enchêram-se de lagrimas e, arquejando, com o rosto contrahido pela dôr, a desgraçada balbuciou com voz cortada por soluços:

— Ouça-me!... por piedade!... ouça-me!

Condescendendo cora um gesto supplicante de Jorge, D. Maria de Albuquerque cerrou os labios, que já se abriam, para verberar de novo quem se lhe afigurava criminosa; conhecia-se-lhe, porém, no rosto, de envolta com a indignação, o receio de se deixar convencer, e o firme proposito de se não deixar vencer.

— Ouça-me!... — repetiu a accusada. — Juro-lhe, que só desde esta manhã sei da existencia de minha filha!...

— Impostura!... — bradou a outra, não podendo conter-se.

— Deixe-a fallar, minha senhora!... — supplicou o mancebo.

— Pois o senhor acredita!?... admitte que aquillo seja possivel!? — exclamou arrebatadamente a avó de Fernanda.

Ouçamol-a, minha senhora... — volveu Jorge, apontando para a desventurada, que torcia com desespêro as mãos.

— Se téem coração... escutem-me!... julguem-me depois de me ouvirem!... — bradou Sophia.

Vendo que a não interrompiam, proseguiu por entre lagrimas:

— V. exc.ª é cruel, minha senhora!... Tem-me torturado sem piedade, sem me deixar justificar!... Vai arrepender-se, minha senhora!... vai arrepender-se, porque a mãe de Fernando não pode ser má. Ouça!... V. exc.ª disse, ha pouco, que não sabe como não morreu, quando lhe roubaram seu filho... Sabe v. exc.ª porque não morri... eu?... Porque, ao darem-me essa funesta nova, aprouve a Deos roubar-me a razão!... Quando m'a restituiu, olhei em volta de mim e não reconheci as pessoas, que me cercavam, nem o sitio em que me achava... Perplexa, assustada, concentrei-me no fundo da minha alma, e procurei orientar-me. Pouco e pouco as trevas, que me envolviam a memoria, allumiaram-se, e a verdade esmagou-me! Certa de que seria vão chamar por Fernando, balbuciei outro nome, o nome d'um anjo, que, á força de amor e de carinhos, me fizéra esquecer a falta de minha mãe... Não me respondêram. Insisti. Depois de breve hesitação disseram-me em inglez que me não comprehendiam. Era-me familiar aquella lingua; repeti as minhas perguntas e soube, então, que me achava em Londres, havia cêrca de dois annos, n'um hospital de alienados, e que o meu anjo, a minha boa Fanny, morrêra seis mezes antes. Ah! minha senhora!... V. exc.ª julga, com razão, ter soffrido muito... Pois, juro-lhe, que todos os seus soffrimentos não podem comparar-se ao que eu senti, quando, pezando a resposta, uma idéa horrivel me atravessou o espirito!... Se eu estava alli, havia dois annos... o que era feito de meu filho!?... Pedi-o em altos gritos, e chorando... Aquella gente, receiando novo accesso de loucura, entrou de me consolar, tentando convencer-me de que eu jamais tivera um filho... Ah! minha senhora!... Eu, ainda hoje, não sei como a razão me não abandonou de novo!... Que gente era aquella?... porque me enganava?... Debatia-se o meu espirito n'um mar de duvidas, quando a porta se abriu, e meu pai entrou, revelando no rosto a alegria, que lhe causava a nova do meu restabelecimento. Corri para elle, bradando: — O meu filho!?... — O rosto de meu pai empallideceu, e os braços, que abrira, para me estreitar a si, cahiram-lhe com desanimo. — O meu filho!?... — repeti — onde está o meu filho!? — Hesitando, pedindo-me carinhosamente que socegasse, acabou por me dizer, que me preparasse para o peior. — «Morreu?» — perguntei com o coração rasgado. — Nasceu morto! — volveu. Meu pai... jamais mentira. Deos lhe perdôe!...

— O nome... o nome d'esse homem!?... — bradou D. Maria de Albuquerque, accêsa em ira.

— João da Cunha... — balbuciou Jorge.

— João da Cunha!... — repetiu ella, erguendose, e afastando-se com manifesta repulsão da filha d'esse homem, cujo nome, lhe escaldava os labios. — João da Cunha!... o miguelista!... o tigre de Traz-os-Montes!... Pobre Fernando!... — proseguiu, mudando de tom — comprehendo agora, porque te não confiaste mais cedo de mim!... Em que antra de tigres cahiste!...

— Lembre-se de sua neta... — observou Jorge com severidade.

— Essa... fica por minha conta, senhor!... — volveu a velha com altivez. — O sangue do pai e o meu amor hão-de debelar a herança materna.

— A minha filha!... Querem roubar-me de novo a minha filha!?... — bradou a pobre mãe, erguendo-se de salto.

— A sua filha... é a outra — volveu a avó, com voz fria e cortante como aço.

— Eu quero a minha filha!... é do senhor que a reclamo!... — exclamou a mãe com selvagem energia, dirigindo-se ao mancebo.

— Nunca!... — atalhou a outra por entre os dentes cerrados — nunca!... a filha de Fernando de Albuquerque não pode viver no covil de João da Cunha! Foi este mesmo, quem a separou de si; o ramo cortado não volta a unir-se ao tronco! Tem lá um enxerto, preferido por elle e... por si! — concluiu com soberano desprezo.

A desventurada mãe, medindo todo o horror da sua posição, mudou de tactica.

— Um momento, minha senhora!... — exclamou, contendo os sentimentos, que a agitavam. — Mais tarde veremos quem ousa calcar aos pés os direitos d'uma mãe!... Antes d'isso, é preciso que eu acabe de me justificar. V. exc.ª compara-nos a uma raça de tigres; mas nem tigres, minha senhora, rasgariam as carnes da prêsa com o prazer, que V. exc.ª sente em me dilacerar o coração!... É de mais!... é horrivel o proposito, com que v. exc.ª me apresenta, como um crime, essa outra innocente, que eu estremeço, como estremeço Fernanda, pois é minha filha tambem!... Que mal lhe fez a innocente?... Como ousa v. exc.ª apontar-m'a como um labéo?... Erros... commetti um!... e d'esse... é mais culpado seu filho, do que eu, criança então sem experiencia!... E, com tudo, minha senhora!... no meu coração ha apenas bençãos para esse erro, porque eu não posso, como V. exc.ª, abrigar o meu amor por Fernando a par de odios e maldições. Ouça, minha senhora!... Escute e saberá a origem d'essa outra filha, que espero da bondade de Deos venha a ser tam virtuosa e boa, quanto confio que o será tambem a minha pobre Fernanda!... Ouça! Regressei com meu pai a Portugal, depois de ajoelhar sobre a pedra, que cobria os restos da que me fôra mais do que mãe. Havia aqui, — dissera-m'o meu pai — uma outra campa, que eu desejava cobrir de lagrimas: a campa de meu filho!... Chegamos. Meu pai acompanhou-me ao cemiterio e, mostrando-me uma lousa, disse-me: «É alli!» Cahi de joelhos e chorei, como depois d'essa tenho ajoelhado e chorado mil vezes, defronte d'aquella campa, suppondo que encerrava os restos de meu filho. Eu não quero desculpar uma acção de meu pai, da qual não sou a unica a soffrer... — observou, notando um gesto da velha senhora. — Não a desculpo; mas explico-a, e ouso dizer, que v. exc.ª, melhor do que eu, a deve admittir; pois é, como elle, victima do orgulho de raça, a que eu sou completamente estranha.

Passados instantes, proseguiu:

— Chorando, em silencio e segredo, a perda de Fernando e de meu filho, tudo me era indifferente, excepto a melancholia de meu pai, que pranteava a esposa. Tratara-me elle, depois do meu erro, com tanto carinho, que a sua indulgencia me turbava mais do que uma censura. Um dia, assentou-se ao pé de mim, estreitou-me as mãos entre as d'elle, e disse-me: «Sophia!... Queres dar-me uma grande prova de amizade e uma grande alegria!?...»

— Pois duvida!?... — respondi.

— Ora, ouve... — disse-me elle. — Ha um homem, um cavalheiro honrado e estimavel — já não é criança — que me pediu a tua mão... — Meu pai bem sabe que isso não pode ser!... — respondi, assustada. — Meu pai ergueu-se e balbuciou com resignação: — Basta!.. — Vendo-o retirar-se cabisbaixo, corri para elle e disse-lhe: — Meu pai não pode querer que eu engane esse homem!?... — Não me respondeu e sahiu. Só depois de assim prevenida, é que notei as attenções d'um dos poucos homens, que frequentavam a nossa casa. Era, effectivamente, um homem honrado e leal. Meu pai tornou-se de dia para dia mais triste, e adoeceu. Accusoume a consciencia de ser eu a causa d'aquelle pesar; pedi perdão á memoria de Fernando, esperando que elle m'o concederia, pois era para salvar meu pai!...

— Que sacrilegio!... — balbuciou Jorge, de fórma a não ser ouvido pelas duas, senhoras.

— Tomando uma resolução — proseguiu Sophia — dirigi-me ao homem, que me offerecia o seu nome, e confiei o segredo do meu passado á guarda da sua honra. Em vez de desistir, como eu esperava, respondeu-me: — Eu amo-a!... Os mortos não inspiram ciume... Quer ser minha esposa?... — Aqui tem v. exc.ª a historia do meu casamento. Ao homem que me deu o seu nome, só dei em troca estima e veneração; no meu coração o amor morreu com Fernando. Resta-me o amor de mãe... querem roubar-m'o!?... Pareço-lhes ainda muito digna dos seus desprezos?...»

Jorge, obedecendo a violento impulso da alma, cahiu de joelhos, e, levando aos labios as mãos de Sophia, exclamou commovido:

— Perdôe-me, minha senhora?... É uma santa!... é uma martyr!...

Erguendo-se, em seguida, e voltando-se para a avó de Fernanda, disse-lhe com voz insinuante e meiga:

- Minha senhora!... seu filho... amava-a tanto!... Amal-a... é quasi amal-o a elle... Então!...

D. Maria de Albuquerque, fazendo um esforço, estendeu a mão á pobre senhora, e disse-lhe, sem a mirar:

— Perdôe-me!...

— O minha mãe!... — exclamou a outra, cobrindo-lhe a mão de lagrimas e beijos.

A velha senhora, ouvindo ao cabo de tantos annos a dôce palavra «mãe», que a morte afogara na garganta do unico sêr, que a proferia com igual calôr, sentiu tentações de estreitar nos braços quem assim lhe fazia lembrar o passado; reagindo, porém, contra a emoção, que sentia, balbuciou:

— O que eu não posso... é ceder-lhe Fernanda...

O som de mal reprimidos soluços veio desviar a attenção dos tres interlocutores.

Voltando-se a um tempo, viram immovel, no meio da sala, a boa Joanna, que imitara o exemplo da avó de Fernanda, escutando o que se passava, e entrando quando o sentimento, que a agitava, lhe não permittiu conservar-se mais tempo occulta.

Alma aberta a todas as nobres e dôces emoções, Joanna sentira necessidade de manifestar com lagrimas o prazer, que lhe causava a reconciliação d'aquelles dois corações de mãe.

X

Longe de o enfadar a indiscreta intervenção da boa Joanna, pareceu providencial ao mancebo a apparição da dedicada criatura. Conhecia-a elle de sobra, e tinha absoluta confiança nos sublimes instinctos d'aquella alma singela, á qual superior bom senso servia de seguro guia.

— Que é isso, minha boa Joanna?... — perguntou jovialmente o mancebo, tentando assim apagar no espirito das duas senhoras o effeito da violenta discussão. — Isto que quer dizer!?... Querem vêr que se torna curiosa a minha ama, agora, depois de velha!?

— Deixe-me pelas almas, menino!... Chameme o que quizér!... outras, melhores do que eu, fazem o mesmo... — volveu Joanna, dirigindo-se francamente á avó de Fernanda, que sorriu e córou, percebendo a allusão. — Ó minha senhora — proseguiu a bondosa mulher — cem annos que eu viva, não é capaz de me esquecer o que ouvi!... Safa!... Eu, quando me tocam, tenho figados; mas a senhora!... Olhe, minha senhora, queira-me perdoar; mas, se, quando alli o menino ajoelhou aos pés d'aquella santa, a senhora se não deixa abalar, eu... Eu sei lá! Eu vinha cá fóra, e dizia-lhe que era preciso não ter coração, para não ter dó d'uma pobre mãe, que só pede o que é seu, a sua rica filha!

Voltando-se, em seguida, para Sophia, que a contemplava com ineffavel gratidão, exclamou:

— Quer que lh'a vá buscar?... Eu vou-lh'a buscar... Pois então!?... Se ella é sua!... O snr. Luizinho está lá em cima a pintar-lhe uns macacos para a entreter... Espere, que eu trago-lh'a!...

E Joanna dirigia-se já para a porta, quando Jorge a obrigou a parar, dizendo-lhe:

— Socega, ama!... Não vês, que é preciso combinarmos, como lhe havemos de apresentar esta senhora!...

— Como sua mãe!... — exclamou Sophia, anciosa por vêr a filha.

— Essa agora!... — accrescentou Joanna, um pouco contrariada. — Pois, então, como ha-de ser!?

Jorge, sorrindo melancholicamente, volveu:

— O seu amor, minha senhora... céga-a!...V. exc.ª deve lembrar-se, que isso não pode ser...

— Não pode ser!?... — perguntou a infeliz com assombro.

— Peior está a séca!... — rosnou Joanna, que não proseguiu, notando um gesto de impaciencia, que o mancebo não poude reprimir.

— Não, minha senhora, não pode ser!... O que o seu dever de mãe lhe aconselha, véda-lh'o esse mesmo dever!... Fernanda, reconhecida ou não por V. exc.ª, será sempre a filha... — perdôe-me a brutalidade!... — será sempre a filha... do erro!... Se a reconhecer, porém, o effeito d 'esse erro estender-se-ha igualmente a essa outra innocente, que partilha com Fernanda o amor de mãe, que v. exc.ª lhes deve!... Quer v. exc.ª que a sua Bertha lhe peça contas um dia, quando um sorriso, um gesto, uma palavra, a façam duvidar do respeito, a que tem direito!?... Pode v. exc.ª corresponder assim á confiança do homem, que lhe disse: «Os mortos não inspiram ciume...» e que lhe deu o seu nome!?... Bem vê, minha senhora... que não pode ser!

A pobre mãe, ás primeiras palavras do joven, escondêra a fronte entre as mãos; ao passo que a avó de Fernanda exultava, julgando inutil qualquer tentativa para lhe tirarem a neta. Joanna, cabisbaixa, torcia o avental, e, obedecendo ao natural bom senso, balbuciava:

— Mas é que é assim!... Valha-nos Deos!... Valha-nos Maria Santissima!...

Erguendo, a final, a fronte, Sophia, desfeita em lagrimas, disse:

— É muito, meu Deos!... é muito!... Fazeis luctar no meu coração as minhas pobres filhas, quando ha n'elle tanto logar e amor para ambas!... é muito!...

Dirigindo-se, com desesperada expressão, ao mancebo, proseguiu:

— Aconselhe-me, snr. Jorge!... Que hei-de eu fazer!?... Oh!... não me diga, que me aparte de Fernanda!... Agora seria infame! seria abandonal-a! Eu sujeito-me a tudo o mais... Reconheço, que ufanar-me de Fernanda, seria a deshonra de ella e a de Bertha... não fallo na minha!... Guie-me, snr. Jorge!...

Apoz breve meditação, balbuciou o mancebo, hesitando e olhando timidamente para a avó, que o devorava com os olhos!

— A mim lembrava-me que... mettendo-se a criança n'um collegio... poderia v. exc.ª...

— Isso seria separar-me de minha neta... — exclamou D. Maria de Albuquerque arrebatadamente.

— Oh! minha senhora!... — observou o mancebo. — É preciso sacrificar alguma coisa ao bem de todos... V. exc.ª poderá vêl-a, igualmente, quando quizér... Pode cá vir todos os annos...

— Não!... não me separo de minha neta!... — replicou com firmeza a ciumenta senhora. — O que a mãe não pode, não deve fazer — porque o não deve fazer! — nada m'o impede a mim!... Fernanda será para mim e para todos a filha de Fernando; terá ao menos um nome... Não me fallem em collegios!... A minha neta, quero-a a meu lado, debaixo das minhas vistas; preciso d'ella!... Esta senhora, quando as saudades lh'o exigirem... tem a minha casa ás suas ordens... pode ir lá vêl-a. É moça; custa-lhe menos a ir lá do que a mim a vir ao Porto. Já que não pode estar com sua mãe, Fernanda não tem senão a minha casa.

Mal proferira as ultimas palavras, Joanna, que, mais d'uma vez, déra evidentes mostras de impaciencia, exclamou:

— Ah! elle é isso!... Pois enganou-se!... Fernanda só tem uma casa... é esta!... Então pelos modos, cada qual trata de si!?... Um Deos, para mim, um diabo para os mais!... Pois vamos a isso!... Quem é que está para ahi a dizer, que a pequena tem uma mãe e uma avó!?... Quem?... Quem é que o disse!?... Tudo isso é pêta! Fernanda é uma enjeitadinha, de quem nós tomamos conta... Ahi está o que ella é!... Se os meninos cá de casa a não quizérem... aqui estou eu, que a conheço ha mais tempo do que as senhoras... Ainda que eu tenha de pedir esmola para a manter!

Alliviada por este desabafo, voltou-se Joanna para D. Maria de Albuquerque, e disse-lhe com auctoridade:

— Desculpe, minha senhora, mas... elle é assim!... É preciso mais um bocadinho de caridade!. Os outros tambem tem coração!... A senhora pode querer e quer muito á sua neta ; mas olhe que aquella, minha senhora, aquella... sempre é mãe!... Olhe que... por muito que a senhora lhe queira, não lhe quer mais do que ella!... Não dê á cabeça, minha senhora!... Digo-lh'o eu!... digo-lh'o eu, que quero muito a estes meninos de cá, porque os criei; mas, ainda hoje, choro pelo que Deos me levou, porque esse, por fim de contas... sempre era o meu!... Nada!... a gente não deve ser assim!... a gente não deve olhar só para si!... é preciso lembrar-se dos outros!... Pois aquella pobresinha de Christo já se sujeita a não chamar filha a quem deve, — o que eu não sei se seria capaz de fazer! — e a senhora, pela sua parte, não ha-de torcer um bocadinho!?... Nada!... Isso não tem geito nenhum!... isso não pode ser!

Mal Joanna terminou, Jorge, lançando-lhe os braços em volta do pescoço, exclamou com olhos rasos d'agoa:

— Abraça-me, Joanna!... Beija-me, minha boa, minha santa, minha querida ama!... Tu vales mais na tua humildade do que muitas, que só ao nascimento devem o respeito, que se lhes presta!...

Voltando-se, em seguida, para as duas senhoras, disse-lhes com dignidade:

— Minhas senhoras!... Joanna, que nos chama filhos, a meu irmão e a mim, tem desde hoje mais uma filha... Quando vv. exc.ª quizérem ver minha irmã, a porta d'esta casa estará sempre aberta.

— Bravo!... — exclamou Joanna, batendo as palmas.

Reconhecendo a justiça da censura, D. Maria de Albuquerque disse, com visivel constrangimento:

— Conheço que... fui egoista!... Perdôem-me!... Lembrem-se de que ha doze annos, que o meu coração não sabia o que era amar alguem!... Era um cemiterio!... Appareceu-me agora esta criança... Que querem?... Confesso-o... Por minha vontade... levava-a, e ia esconder-me com ella onde ninguem nos pudésse vêr! Fui egoista e... má, que é a mesma coisa!... Perdôem-me!... Snr. Jorge!... O que a mãe de Fernanda lhe pedia ha pouco, peço-lh'o eu agora... Guie-me!... ou antes... guie-nos!... Diga o que se ha-de fazer; mas... não me falle em collegio!... não me separe da minha neta!...

Era um brado sincero aquelle!...

D. Maria de Albuquerque, desde que o acaso lhe fizera encontrar a neta, de cuja existencia a tinham já quasi feito duvidar as suas incessantes e baldadas pesquizas, recomeçara, por assim dizer, a viver. «O meu coração era um cemiterio...» disse ella... Era; mas cemiterio descurado. Por entre as campas, que encerrava, não germinavam flôres; enxameavam as hervas ruins da vingança elevada á monomania, da saudade tornada desespêro, todas essas sementes, que, crescendo privadas de sol, degeneram e produzem, apenas, os venenosos fructos do egoismo e da mysanthropia.

Fernanda, flôr, que o sôpro da Providencia levara, e fizéra desabrochar entre aquellas parasitas, como que vestia de gala o cemiterio.

As lagrimas ardentes, que, até então, mais tinham abrazado do que regado aquelle terreno árido, começavam a perder a amargura, para se tornarem orvalho, que saciasse a mimosa flôr.

E queriam que o pobre coração, deslumbrado pelos raios de sol, que começavam a innundal-o, desde que n'elle floria planta digna de seus beijos, queriam que elle consentisse sem lucta, que mão estranha lhe viesse roubar o seu adorno, o seu enlevo, exigir-lhe metade dos seus perfumes, partilhar os cuidados, que só elle tinha direito a dar-lhe?

Não podia ser!

Os direitos da mãe negava-se a avó, ou antes o seu egoismo, a reconhecêl-os, para só fazer valer os seus. Para ella Fernanda não tinha mãe; era simplesmente á filha, a continuação de seu filho; era elle debaixo d'uma nova fórma; era o seu coração de mãe, que despertava agora mais cheio de vida e d'amor, depois d'um somno de doze annos, somno attribulado por um sonhar de horrores, cuja recordação o sorriso da criança afugentava.

Separar-se da neta, embora temporariamente!?... Mas isso era entregal-a ao mundo; era consentir que o coração de Fernanda se repartisse por todos, e ella queria-a só para si! queria-a toda! queria que o sorriso, a lagrima, a idéa, o pulsar do coração, a alma de Fernanda só pudessem, de ora em diante, por ella ser traduzidos.

Reconhecendo a impossibilidade de realisar esse sonho, D. Maria de Albuquerque cedia, combatendo, disputando o campo palmo a palmo; mas, sentindo-se vencida, procurava obter uma capitulação, mediante a qual lhe fôsse concedida a companhia de Fernanda, e, por isso, repetiu:

— Não me separe da minha neta!

— Mas é que eu... realmente... não vejo... — balbuciou o mancebo.

Interrompeu-o Joanna, dizendo:

— Ora vamos lá!... Vamos a vêr, vamos a vêr, se a velha Joanna ainda serve para alguma coisa; mas, primeiro, dêem-me licença de me assentar, que farta de estar de pé ando eu...

Todos os olhos se cravaram no rosto da santa criatura, que, depois de pensar um pouco, disse, dirigindo-se a D. Maria de Albuquerque:

— Ora espere... Antes de mais nada, diga-me... A senhora é rica?...

— Sou... — respondeu a interrogada.

— Isso, então, é meio caminho andado!... Está tudo remediado! Se é rica... tanto lhe faz viver na sua terra como aqui, pois não é assim!?... Porque não ha-de vir viver no Porto!?...

D. Maria de Albuquerque hesitou. Passaram-lhe por diante dos olhos os sitios, onde gosara e soffrêra; era lá que repousava o seu Fernando, e ia já a pronunciar-se contra o alvitre, quando, voltando-se, viu a pobre mãe que a mirava de mãos postas, com os olhos cheios de anciedade e supplica. Não resistiu.

— Virei!... — respondeu, commovida, suffocando um suspiro.

— Obrigada, minha senhora!... obrigada!... irei a sua casa... quando m'o consentir... Uma vez por semana... É muito?... — disse a triste.

— Todos os dias, filha!... — redarguiu a velha senhora, cedendo completamente á emoção, e abrindo os braços, em que a mãe de Fernanda se precipitou, louca de jubilo.

— Louvado seja o Senhor!... Custou!... — murmurou Joanna, abraçando Jorge, para satisfazer a necessidade de abraçar alguem.

— E ha-de deixal-a ir, uma vez por outra, a minha casa, sim?...

— Isso... isso... — balbuciou D. Maria de Albuquerque.

Jorge, adivinhando a verdadeira causa da hesitação, disse com voz firme:

— Ha-de deixal-a ir, minha senhora. É preciso: é um dever cimentar a amizade entre as duas irmansinhas... Basta, minha senhora... Eu comprehendo... eu sei... Fernanda não ha-de lá encontrar-se com quem v. exc.ª receia; descanse. Eu sei, porque elle m'o disse, que se ausenta do Porto.

— Só assim!... - redarguiu a vingativa transmontana.

— Ora ahi está tudo remediado! — exclamou Joanna... — A senhora fica no Porto... Olhem... O melhor será morarem na mesma rua, para não andarem sempre no caminho... Pois se pudéssem arranjar duas casas pegadas, heim!?...

— A casa, contigua á minha, pertence-me... — observou timidamente Sophia.

— Ora ahi tem!... Isso é que é mesmo ouro sobre azul!... Não têem que pedir licença ao senhorio, para abrirem uma porta, por onde possam entrar a toda a hora em casa uma da outra!... É mesmo, mesmo o que se chama cahir a sôpa no mel! — concluiu Joanna.

— Dá cá outro abraço, ama!... — exclamou Jorge, percebendo a piedosa intenção da boa mulher.

— Tire-se... tire-se para lá!... deixe-me ir buscar a pequena... — respondeu a ama dos gemeos, sahindo ás carreiras.

Pouco depois, entrava de novo na sala, trazendo nos braços o alvo de tanto amor, a causa de tantas angustias.

Ao vêl-a, a mãe correu para ella e, estreitando-a contra o seio, levou-a para um canto da sala, cobrindo-a de beijos e de lagrimas.

Nenhum dos espectadores d'aquella scena muda tinha os olhos enxutos!

A pobre mãe cerrava os labios para não deixar escapar a dôce palavra «filha», a unica que o coração lhe dictava, a unica, que podia bem exprimir quanto sentia.

O amor de mãe suggeriu-lhe, a final, um estratagema pueril. Lembrou-se que poderia satisfazer aquella necessidade, servindo-se do idioma, que mais fallara na infancia, e saciou-se de lhe chamar filha, abençoando a memoria de Fanny a quem devia aquelle prazer.

Pouco durou. Notando o olhar espantado de Fernanda, exclamou com indizivel angustia:

— De que vale... se me não comprehende!?...

Jorge, receiando que ella se trahisse, tratou de a serenar. Meia hora depois, amaldiçoava a pobre mãe, a velocidade do tempo, e despedia-se da filha, como se não tivesse esperança de a tornar a vêr.

Fernanda, silenciosa e commovida, contemplava todos aquelles rostos amigos.

Quando Jorge voltou de acompanhar a cadeirinha até casa de Sophia, Joanna, mettendo-lhe na mão um embrulho, disse-lhe:

— Guarde isso...

Era o sello da roda!...

A affectuosa criatura, comprehendendo quanto a desventurada mão deveria soffrer, se o visse pendente do pescoço da filha, cortara o cordão, que o prendia, antes de a trazer para a sala.

Jorge adivinhou a intenção de Joanna e percebeu tambem porque Fernanda, em quanto estivera na sala, levava tantas vezes a mão ao pescoço.

A enjeitada identificara-se, por tal fórma, com o symbolo da sua desventura, que, vendo-se sem elle, chegava a julgar-se mutilada; parecia-lhe que acabava de soffrer uma amputação!

O forçado sentia a falta do grilhão a que se acostumara!

XI

Quando um incidente qualquer vem perturbar o socego do nosso espirito, ou alterar a regularidade do nosso modo de viver, esse facto torna-se, segundo o nosso temperamento, um obstaculo insuperavel, um pêso, que nos esmaga, ou um aguilhão que nos incita e nos faz encontrar em nós proprios forças e recursos, de que nem sequér suspeitavamos a existencia.

Jorge era dos que Deos tempéra por suas proprias mãos para o combate. Possuía a coragem, o enthusiasmo dos grandes sentimentos e das grandes idéas, a vontade tenaz, sem a qual coragem e enthusiasmo são fogos de palha, que ardem um momento e se apagam de per si; déra-lhe Deos tudo isso, e completara a sua obra, sujeitando esses robustos agentes ao imperio da razão.

Recolhido ao quarto, negara-se a conversar com o irmão, pretextando cançasso, e deitara-se, voltando o rosto para a parede.

Eu não sei se cora os leitores se dá o mesmo; para mim, confesso, não ha melhor conselheiro do que o travesseiro.

Uma resposta grave a dar no dia seguinte; a apreciação d'uma proposta; a escolha do melhor caminho a seguir, para evitar uma semsaboria qualquer; tudo isso, se o caso não urge, é tarefa da hora, que medeia entre o sôpro, com que apago a luz, e os primeiros bafejos, com que o somno vem apagar em mim a consciencia de que sou.

Querem que lhes diga mais? O trabalho do dia seguinte, este fraco trabalho, que lhes apresento, deve o sêr a essa hora de recolhimento.

Leiamos no espirito de Jorge; sigamos o monologo d'aquella alma impressionada pelas scenas, que a tinham agitado durante o dia.

— Que devo fazer!?... — pensava. — O prazer de abraçarem a criança, que lhes appareceu assim, de repente, como um dom do céo, e o receio de a perderem de novo não lhes deixava espaço para outras idéas... mas ámanhã!?... Que lhes vou eu responder ámanhã, quando me perguntarem como cheguei ao conhecimento do que sei; quando quizérem investigar o passado de Fernanda!?... Deverei fazer uso das ultimas declarações do moribundo!?... Não pode ser!... O odio subjugado, mas não extincto, da velha, criaria novas forças... Dizer-lhe o nome do assassino, a ella, que ha doze annos vive na esperança de o descobrir para vingar o filho!... Oh! não!... isso não... seria horrivel!... É um assassino... um miseravel; mas... desmascarar-lhe a alma, e expôr-lh'a em toda a sua hediondez aos olhos da filha!... seria horrivel!

E a alma do mancebo, elevando-se convicta, concluiu:

— Não, minha mãe!... tu não m'o perdoarias, se o fizésse!

N'este momento, Luiz apagou a luz e, ao cabo d'uma hora de meditação, Jorge cerrava os olhos, sorrindo, pouco depois, em sonhos á ultima idéa, que o afagara antes de adormecer, e lhe fôra, com certeza, inspirada pelo anjo, a cuja censura submettia todas as suas acções.

— Que diria minha mãe?... — Da resposta, que a consciencia lhes dava, procediam quasi sempre os actos dos dois gemeos.

Quando estes, no dia seguinte, descêram, do quarto, fôram encontrar Fernanda e a avó, que os esperavam na sala de jantar.

D. Maria de Albuquerque, absorta na contemplação da criança, a nada mais ligava attenção. Os minimos gestos de Fernanda, as phrases mais triviaes, o mais insignificante olhar tinham o privilegio de provocar os applausos d'aquella alma, que, como héra privada de apoio, se agarrava cheia de novo vigor á tenra vergontea, na esperança de a acompanhar no desenvolvimento, e vir um dia a aproveitar-lhe a sombra.

Fernanda, pelo contrario, sentia-se constrangida; pezava-lhe aquella especie de extasis; intimidavam-n'a os violentos impetos d'amor, com que a avó a estreitava nos braços; desorientavam-n'a as repentinas explosões de pranto, que era como que o trasbordar do jubilo, que enchia o coração da velha senhora.

— Tu não és minha amiga, Fernanda!... — dizia a cada instante a avó.

— Sou, sim, minha senhora!... — volvia timidamente a criança.

— Minha senhora!... Olhem que ruim!... Não é assim, que se diz!... Sou, minha avó!... Percebes?...

— Sou, minha avó... — repetia Fernanda.

— Isso!... Assim é que se diz!... — confirmava D. Maria de Albuquerque, beijando a neta.

Chegou, finalmente, o momento das explicações, que Jorge receiava; o mancebo, porém, tinha amadurecido o seu plano e, contentando-se com, occultar, apenas parte da verdade, confiou á avó, como mais tarde á mãe de Fernanda, que João da Cunha, desejando encobrir a deshonra da filha, encaregara João Russo de lançar a criança á Roda. Continuando a evitar o mais possivel a mentira, contou-lhe que o mercenario cumprira a missão de que fôra encarregado; mas que, pungido pelo remorso, não descansara em quanto não conseguira raptar a criança, de cuja identidade não podia duvidar, graças ao nome de Fernanda e a dois golpes, que lhe déra, no braço esquerdo, com a ponta d'uma navalha.

Effectivamente, estes pormenores constavam das declarações de João Russo. O miseravel, em parte por compaixão, e em parte pelo desejo de possuir uma arma contra João da Cunha, resolvera apoderar-se da criança.

Forçado a lançal-a á Roda, porque João da Cunha o acompanhara de longe, o Russo, que previra esse obstaculo, escrevêra um bilhete em que pedia, para que fôsse posto o nome de Fernanda á enjeitada, e escondêra-o entre as roupas, que a envolviam. No caminho assustou-o o receio de que o nome agradasse, e na Roda o puzéssem a outras crianças, e foi, então, que se lembrou de fazer com a navalha uma cruz no braço da innocente.

Quando o mancebo concluiu, D. Maria de Albuquerque, respirando com força, exclamou:

— Ainda bem!... Tinha-se-me mettido na cabeça, que o malvado não era estranho á morte do meu pobre Fernando!... Antes assim!...

Jorge sentiu um horrivel calafrio, e pensou:

— Ó instincto de mãe! Foi o malvado, foi!... Não te enganaste, pobre mãe!...

O malvado, cujo nome ambos recusavam proferir, era João da Cunha.

Jorge, lembrando-se por este incidente, de que ainda não estava completamente cumprida a missão, que a Providencia lhe impuzéra, despediu-se de D. Maria de Albuquerque, e sahiu com o irmão, que assistira ao dialogo.

Chegando á esquina da rua, Luiz parou e, voltando-se para o irmão, disse-lhe:

— Eu vou por aqui, e tu?...

— Eu... vou atacar a féra dentro do covil!... Vou vêr, se ponho aquelle demonio fóra do Porto!...

Luiz, cedendo a irresistivel impulso, lançou os braços em volta do pescoço do irmão, e disse-lhe commovido:

— Vai, Jorge... vai!... Eu... até ha pouco... amava-te; hoje... respeito-te!...

— Valha-te Deos!... — atalhou o mancebo.

— Bem... não fallemos n'isso; mas... louvado Deos, que assim te fez intelligente e energico! — volveu Luiz, affastando-se rapidamente.

Um quarto de hora depois, Jorge mandava-se annunciar a João da Cunha. Entrando na sala, onde este o aguardava, sentiu-se o mancebo profundamente impressionado pelo demudado aspecto do velho.

Quem não conhece uma d'essas horriveis noites, em que o cerebro executa o trabalho de longos annos!?... Feliz, mil vezes feliz, de entre os leitores, o que tem atravessado a vida, sem conhecer esse martyrio!

Perguntae ao orador o que sentiu n'essa noite, que precedeu a sua estreia; perguntai-o ao cobarde, a quem a necessidade obriga a sahir de casa no dia immediato, e que tem a certeza de encontrar o inimigo na rua; ouvi do negociante honrado, mas infeliz, o que soffreu nas horas anteriores ao amanhecer do dia, em que teve de apresentar-se ao tribunal; sabei-o, finalmente, da mãe, que desespera de vêr raiar o sorriso nos labios do filho enfermo, ao despontar dos sorrisos da aurora!

Observando-o com attenção, Jorge lembrou-se de D. Maria de Albuquerque. Ambos tinham soffrido; as rugas, que sulcavam o rosto dos dois velhos, devia a desventura ter-lh'as cavado primeiro no coração; accusavam ambos medonho padecer; mas, todavia... que differença entre elles!

No rosto da avó de Fernanda luzia um sorriso, que illuminava todas as rugas; no de João da Cunha esses sulcos, accentuando-se, tornavam-lhe ainda mais tenebrosa a expressão.

E era só uma, e era a mesma a causa d'essa differença de aspecto: fôra Fernanda quem a operara.

A pobre enjeitada fôra, para a avó, o raio de sol, que penetra pelas fendas da janella, e vai allumiar os mais escuros recantos do aposento; para o avô, pelo contrario, aquella criança, que a Providencia viera collocar entre elle e a filha, era a nuvem, que lhe encobria o sol. Para a avó, Fernanda era — a esperança do futuro; para o avô — a condemnação do passado!

João da Cunha, vendo entrar o joven official de marinha, ergueu-se, indicou-lhe uma cadeira e assentou-se defronte d'elle, estudando-lhe anciosamente a physionomia.

Jorge, desejando definir por uma vez a situação dos differentes personagens do drama, rompeu o silencio, dizendo com voz triste e solemne:

— V. exc.ª perguntou-me hontem, antes de nos separarmos, o que eu desejava de si... Venho responder a essa pergunta.

— Queira dizer... — volveu João da Cunha, firmando os cotovêlos sobre os joelhos, e escondendo o rosto entre as mãos.

— V. exc.ª deixa de viver em companhia de sua filha.

O velho, erguendo a fronte, lançou a Jorge um olhar tam repassado de dôr e de censura, que este sentiu penetrar-lhe no seio profunda compaixão. Lembrando-se, porém, de que era esse o unico meio de conciliar os interesses de todos, proseguiu:

— É preciso, snr. João da Cunha. É preciso que duas almas, feridas por v. exc.ª no que ha de mais puro e sagrado — o amor de mãe! — possam emfim saber o que é a felicidade! É preciso que uma pobre criancinha, condemnada por v. exc.ª á miseria, á orphandade, renasça para a vida de amor e de carinhos, que só os braços de sua mãe lhe podem dar...

— Mas...

— Perdão... — proseguiu o mancebo. — Deos fez-me juiz n'este pleito, em que ha só uma sentença a lavrar: v. exc.ª, repito, deixa de viver com a sua familia. Entre a mãe e a filha não me permitte a consciencia, que eu deixe permanecer quem, por meio d'um crime, as tornou para sempre estranhas uma á outra!...

— Estranhas!?... — balbuciou o criminoso. — Não me disse que as ia reunir!?...

— Disse; mas... pode a mãe revelar á filha o segredo do seu nascimento?... Não seria isso a deshonra da outra innocente, que tem iguaes direitos ao amor de sua mãe?... Bem vê que entre ambas jamais poderão trocar-se essas duas magicas palavras «mãe e filha», que exprimem o mais desinteressado dos affectos, retribuido pela mais sincera e espontanea gratidão!... Que terriveis consequencias as do seu crime, senhor!... V. exc.ª, que julga soffrer, já pensou no padecer da pobre mãe, condemnada a vêr crescer debaixo do seu abrigo dois anjos, duas filhas, e a não poder impôr silencio a uma d'ellas, quando essa amaldiçoar a mãe, que a abandonou!?... Se essa filha é fructo d'um erro, que terrivel expiação!.. E quer v. exc.ª que eu, eu que sei tudo! eu que sei o que o respeito que voto á auctoridade d'um pai me obriga a calar, consinta que o auctor de tamanha desventura não expie tambem o que praticou!?... Não pode ser!.. não, senhor; não pode!... Seria horrivel, que a filha de Fernando de Albuquerque vivesse com V. exc.ª debaixo d'um mesmo tecto; seria sacrilego que, mais hoje mais amanhã, a filha da victima n'um momento de alegria, n'um d'estes impetos de ternura, tam espontaneos nas crianças, beijasse a face do algoz de seu pai!... Não pode... V. exc.ª bem vê que não pode... não deve ser!...

João da Cunha, ferido nos seus mais vivos affectos, ergueu-se e balbuciou com desespêro:

— Não seja cruel!... Se o oífendi... perdôe-me!... Estou velho!... Que quer o senhor que eu faça... sósinho... longe da minha filha... privado das caricias da minha neta... da minha Bertha!?... Veja!... choro... e não escondo as lagrimas!... Veja como estou mudado!... Seja o anjo bom, e não o anjo vingador!... Quer-me a seus pés?... Aqui me tem de joelhos...

— Levante-se, senhor!... — exclamou Jorge com voz trémula, e obrigando-o a erguer-se. — Eu não vim aqui para o humilhar!... Não sou eu que o condemno — é a fatalidade!... Exige-o a felicidade d'esses mesmos entes, que invocou!...

— Pois bem!... — bradou o velho com vehemencia. — Faça o que entender!... Não me separo de minha filha.

O joven, depois de o fitar algum tempo com visivel enternecimento, disse-lhe:

— V. exc.ª ainda não pesou o sentido das minhas palavras, nem comprehende o alcance das suas!... Diz V. exc.ª que se não separa de sua filha... Não se separa!?... Pois não vê, que está irremediavelmente separado d'ella!?... Que laço poderá, de hoje em diante, existir entre a mãe, que pranteou doze annos uma filha, e o homem, que lh'a roubou!?... Que pode haver de commum entre v. exc.ª e essa infeliz, que, dando credito á veneranda palavra d'um pai, foi durante doze annos ajoelhar diante d'uma campa, e segredar-lhe saudades, que ella não podia comprehender!?... Que sentimentos quer, que essa mãe lhe consagre, lembrando-se do dote de miseria e, talvez, de deshonra, que v. exc.ª legava á innocentinha!?... Vamos, senhor!... Caiha em si!... Esmague o coração, já que tam cruamente esmagou o dos outros... É justiça!...

— Não saiho... não me separo... — volveu o ancião.— Assim... vejo-as... ouço-as... a ella e á filha... não as deixo.

— Ha-de deixar... — replicou Jorge com impaciencia.

— O senhor abusa!...

— Ouça-me!... — atalhou Jorge com firmeza. — Até aqui procurei tirar ás minhas palavras o mais leve sentido de ameaça; vejo, porém, que é preciso dizer-lhe tudo. Escute-me, senhor!... Essa criança, de quem v. exc.ª fez uma enjeitada, foi hontem a origem do mais violento embate de paixões, que eu tenho presenciado até hoje!... Foi um duello sublime, snr. João da Cunha! Disputavam-n'a, como propriedade sua, dois corações apaixonados!... Um d'elles dizia: «Ninguem me pode roubar a minha filha!...» Escuso de dizer-lhe qual era esse coração?... O outro, galvanisado pela ventura de ainda poder amar, respondia: «É minha!... E a filha do meu filho!... Para que a lançaste á Roda!?...»

— Quem assim fallava — proseguiu Jorge — era a mãe de Fernando de Albuquerque! Atrozmente accusada, a filha de v. exc.ª teve de revelar o nome do verdadeiro auctor do crime, e esse nome foi recebido com maldições. Não é a mim, snr. João da Cunha; não é a mim, mas á mãe da sua victima, que v. exc.ª tem de submetter a justiça da sua causa!... E note v. exc.ª, que ella apenas conhece um dos seus crimes!... Quer compellir-me a arrastal-o á presença d'essa mulher, para lhe dizer: «Trago-te o assassino de teu filho!... Entende elle que os lobos podem viver com as ovelhas no mesmo aprisco... Resolve tu!...» Ha pouco disse a V. exc.ª que o respeito, que me merece a auctoridade de pai me obrigava a calar... Quer que falle!?... quer que o desmascare aos olhos de sua filha?... quer que lhe diga: «Este homem matou Fernando!... O sello da roda, que infama para sempre tua filha, foi fundido com a bala, que lhe roubou o pai!...» Quer...

— Cale-se!... cale-se, por piedade!... — exclamou o miseravel, com a demencia a transluzir-lhe nos olhos. — Cale-se!... Eu parto... eu saiho... eu vou morrer para longe!...

Effectivamente, duas horas depois, João da Cunha descia a escada, sem ousar despedir-se da filha. Chegado ao patamar, o velho, voltando-se impetuosamente para a porta do quarto, onde suppunha estarem os seus dois anjos, levou as mãos aos labios, enviou-lhes um beijo ardente de amor e de saudades, e prepara va-se para fugir precipitadamente, quando uma voz infantil bradou:

— O avô onde vai!?...

Ouvindo-a, o velho retrocedeu; subiu apressadamente; pegou na criança; desceu a escada e, chegando abaixo, assentou-se no ultimo degrau, sem largar a neta.

— O avô que tem!?... — perguntou Bertha, sentindo as faces molhadas pelas lagrimas.

— Nada, minha Bertha... nada!... Ouve!... — proseguiu com a voz cortada pelos soluços. — Eu vou fazer uma viagem... Posso voltar breve... e posso demorar-me muito tempo... Seja qual fôr a minha ausencia... promettes resar por mim todos os dias?...

— Prometto... mas... não vá, avô!... — volveu a criança, desatando em lagrimas.

— Não pode ser, filha!... minha neta!... minha Bertha!... — balbuciou o velho.

Tomando, emfim, uma resolução, ergueu-se, cobriu de beijos sôfregos o rosto da innocente e fugiu, bradando-lhe: Adeos!

Esta palavra tam dolorosa, tam difficil de proferir, era o começar da punição do criminoso, e o primeiro raiar do sol no até alli tam sombrio firmamento da enjeitada.

XII

Vai grande azafama em casa dos dois gemeos. Malas abertas, roupas cuidadosamente dobradas em cima das cadeiras, embrulhos, tudo, n'uma palavra, annuncía preparativos de viagem.

É o nosso Jorge quem se ausenta.

— Não bulas n'isso, Joanna — brada o mancebo, vendo-a estender a mão para um chronometro. — Deixa, que eu me encarrego de o arrumar.

— Então eu não sirvo para nada?... — pergunta a velha, a quem pesa a inacção.

— Para muito... para tudo!... — volve Jorge, sorrindo. — Sem ti, minha boa Joanna, nem eu sei como havia de me haver; mas, n'este caso, não. Não confio a ninguem o trabalho de arrumar a minha bagagem. Não o fazendo por minhas mãos, não sei onde tenho as coisas e depois, lá no mar, tudo são duvidas, e é preciso revolver a roupa toda, para achar o que quero.

— Está bem... ande lá... — redarguiu a velha. O que eu lhe digo é que escolheu um modo de vida aceiado!...Tam depressa chega, eil-o ahi está outra vez pela porta fóra!

— Então?... Cada qual tem o seu destino, minha Joanna!... Mau!... Ella ahi está a chorar!... Vá!... deixa isso para ámanhã, ama! — exclamou o mancebo, commovido, e abraçando a velha.

— Não que sempre uma coisa assim!... — soluçou a affectuosa mulher. — Um... lá por esses mares de Christo fóra, sempre em risco de vida; o outro... cá em casa... triste, como alma penada... sem dar palavra á gente; só abre a bôca, em se lhe fallando do irmão!...

— Meu pobre Luiz!... — balbuciou Jorge, deixando cahir uma lagrima sobre o peito d'uma camisa, que estava a metter na mala.

— É isso!... Meu pobre Luiz... meu pobre Luiz... mas toca pela barra fóra!... Se o não conhecesse... havia de dizer que não tem coração!

— Valha-te Deos, ama!... Tu não vês que sou soldado?... Mandam-me partir... parto. Que queres tu que faça!?... Que abandone o serviço?... Tu bem sabes que não pode ser... Seria uma bôca a maior em casa e... vocês já não vivem muito á farta... Além d'isso... eu não quero ser vadio...

— Vadio!?... — atalhou a velha indignada.

— Vadio, sim, minha boa Joanna... Pois para que sirvo eu agora, não me dirás? Queres que me vá pôr a estudar aos vinte e tres annos?... ou queres que aprenda um officio?... Alto!... ahi vem o Luiz!... Se queres chorar, vai lá para cima... vai!... — replicou o mancebo.

Joanna sahiu da sala e, pouco depois, assomava Luiz á porta.

Vendo os preparativos da partida, o mancebo desviou o rosto, para esconder as lagrimas, que lhe bailavam nos olhos, e tossiu para desaffrontar a garganta.

Jorge, debruçado sobre a mala aberta, perguntou com mal segura voz, e sem erguer a fronte:

— Já de volta!?...

— Já... — volveu Luiz, que proseguiu:

— Então... sempre é para ámanhã?...

— É hoje...

— Hoje!?..

— Perdôa-me, meu Luiz!... — balbuciou Jorge, abraçando-o. — Perdôa-me!... Eu quiz evitar outra noite como a de hontem... Passastel-a a chorar... Perdôa-me!...

Luiz não respondeu. Desprendendo-se dos braços de Jorge, assentou-se, encostando os cotovelos a uma meza, e escondeu o rosto nas mãos, deixando filtrar as lagrimas por entre os dêdos.

Soaram passos na escada, e entrou Joanna.

Vendo a attitude de Luiz, dirigiu-se a elle e, levando o avental aos olhos, murmurou:

— Elle já lhe disse?... Diz que parte hoje!...

O mancebo encolheu os hombros, e não respondeu.

Joanna, notando os gestos supplicantes de Jorge, chamou em seu auxilio a inexplicavel e prodigiosa coragem, dom privativo da mulher, que nas grandes agonias a torna tam superior ao homem; enxugou o pranto, reprimido por um inconcebivel esforço de vontade, e disse com tom quasi alegre:

— Tambem... a ter de ser... melhor é que seja hoje... A gente, assim como assim, ha oito dias que anda a morrer aos bocados... Pois acabe-se por uma vez!... Querem os meninos jantar?... Que é lá isso!?... — exclamou, vendo um gesto negativo de Luiz. — Era o que me faltava vêr!... Não, d'essa o livrará a filha de meu pai!... Veja lá, se quer que elle vá para fóra com o estomago vasio!... Vamos... vamos, snr. Jorge... acabe d'ahi com isso, e venham ambos para a meza, que eu vou já tirar a sôpa.

— Isto está prompto, Joanna!... — volveu Jorge, tentando imitar a apparente serenidade da boa mulher.

Que triste jantar aquelle! Ó derradeiro jantar em familia!... Tu és a mais horrível de todas as agonias; pois punge-nos a dolorosa idéa de que é aquella; quiçá, a ultima vez, que o misero se assenta comnosco á meza, e, ao pensal-o, empananos a vista um véo de lagrimas, atravez do qual distinguimos a custo as feições do ser estremecido, que vai deixar-nos e desvia de nós os olhos.

Apesar das exhortações de Joanna, nem um nem outro conseguiram vencer a emoção, que os não deixava provar a comida.

— Está bem, está... — observou a velha. — Isto vai bonito!... Sabem que mais?... Os meninos não téem mesmo juizo nenhum!...

Mal acabou de proferir ,estas palavras, sahiu precipitadamente da sala. A affectuosa criatura conheceu, que lhe fraqueava a coragem e fugiu, para se não trahir completamente.

Seriam trez horas da tarde, sahiam de casa, n'uma carroagem, os dois gemeos e Joanna, que resistira a todos os rogos de Jorge, para que ficasse em casa.

— Não, senhor!... hei-de ir até á Bandeira... Não o largo, em quanto a mala-posta não partir... — redarguia a santa a quantas observações lhe faziam.

Chegado á estação da Bandeira, encontraram alguem, que os esperava, para se despedir de Jorge: era Fernanda, a quem nem as consolações da mãe e da avó, nem as caricias de Bertha conseguiam enxugar o pranto.

Commovido por tam evidentes mostras de gratidão, Jorge curvou-se, e beijou affectuosamente a criança.

— És muito minha amiga, Fernanda?... — perguntou o mancebo.

— Oh! se sou!... — volveu a interrogada, cada vez mais enternecida.

— Não chores, Fernanda... Ouve... Tu queres fazer-me um grande favor, minha filha?...

— Eu quero tudo o que o snr. Jorge quizér... — respondeu a criança.

— Dêem-me licença, minhas senhoras... Deixem-me dizer um segredo á nossa Fernanda.

E Jorge, affastando-se do grupo, conduziu a enjeitada para um banco de pedra, em que a fez assentar-se a seu lado.

— Se queres fazer-me um grande favor, Fernanda — disse-lhe o mancebo, apertando-lhe as mãos entre as d'elle — has-de prometter-me, que farás quanto seja possivel, para mereceres a amizade da snr.ª D. Sophia... Promettes?...

— Eu já sou muito amiga d'ella... — redarguiu Fernanda. — Ella é tam boa!... Parece tam minha amiga como a avó!...

— Escuta... Eu nem sei como t'o hei-de dizer; mas... vês tu?... é que o meu desejo vai mais longe!... Eu queria, que tu fosses mais amiga d'ella do que... mesmo de tua avó!... Quando tiveres uma afflicção... um segredo... quando praticares uma acção, que te não pareça bem, eu queria... queria que fôsses ter com ella e lhe contasses tudo!... Verás como has-de achar-te bem, se o fizéres.. Eu conheço-a!.. Aquella senhora é um anjo!.. Quando te dér um conselho, segue-o immediatamente!... Isto não é porque tua avó não seja capaz de te aconselhar, e não seja tambem muito tua amiga!... mas é que... está velha... é da aldeia... não sabe tam bem como a outra o que convém fazer n'uma terra grande... Emfim... eu queria que tu olhasses para a snr.ª D. Sophia... como se ella fôsse tua mãe... percebes?...

— Percebo... — balbuciou a criança.

— E has-de ser tambem muito amiga de Bertha, sim?... Olha... Imagina que tens n'ella uma irmansinha a quem tens de proteger, sim?...

— Sim, senhor... — soluçou Fernanda.

— Obrigado, filha!... Então... posso partir socegado?... Has-de ter mais amizade á snr.ª D. Sophia do que a qualquer outra pessoa...

— Isso não!... — atalhou ella com vivacidade.

— Não!?... — perguntou Jorge com assombro.

— Mais do que ao snr. Jorge... não!... — respondeu Fernanda com energia.

— Não deve ser, Fernanda... — murmurou o mancebo, enxugando uma lagrima — não deve ser; mas... não posso levar-te a mal o que dizes. Obrigado; filha!...

E o mancebo, erguendo-se, deu a mão á criança e, dirigindo-se ás duas senhoras, disse-lhes:

— Eu estou muito contente com Fernanda; mas quero vêr, se ella é capaz de guardar o segredo, que lhe confiei. Não se diz nada!... — accrescentou Jorge, dirigindo-se á menina, que lhe não largava a mão.

— A ninguem!... — respondeu ella com firmeza.

O joven convenceu-se, por esta resposta, que assegurara á sua protegida o unico confidente e conselheiro, que convém a uma menina. A enjeitada possuia, assim, o que muitas outras, por falta de tacto da parte das mães, deixam de encontrar.

— Vamos a isto, senhores!... — bradou o conductor.

Jorge, ao estreitar a mão de Sophia, sentiu cahir nas suas uma lagrima ardente, que a venturosa mãe não poude reprimir. A avó de Fernanda abraçou-o, chorando, e balbuciou:

— Feliz o homem, que abandona a sua casa, acompanhado pelas bençãos de tantos corações!...

— Adeos!... adeos!... — bradou Jorge, soltando-se dos braços do irmão, que o disputava a todos, para se lançar nos de Joanna.

— Adeos! Adeos... tudo o que amo no mundo!... — exclamou, beijando as faces das duas meninas, e entrando para o carro.

Joanna, correndo, deu-lhe pela portinhola um embrulho, e soluçou:

— Toma, filho!... No mar tudo é preciso!

A mala-posta partiu.

Emquanto os poude vêr, Jorge não cessou de agitar o lenço.

Um cotovêlo da estrada poz fim a esse prazer, e o mancebo, que não tinha companheiros de jornada, balbuciou, juntando as mãos:

— Até quando, meu Deos!?...

Serenando, passado tempo, viu o embrulho, que Joanna lhe entregara, e, abrindo-o, achou... seis pares de meias de lã!

— Minha santa ama!... — exclamou o mancebo, reconhecendo o fructo dos serões da velha.

E um sorriso involuntario veio illuminar as lagrimas, que lhe bailavam nos olhos, ao lembrar-se de que a ama receiara para elle o rigor dos invernos... na costa d'Africa.

III

EM FAMILIA

I

O sol poente luz, como um brazeiro immenso, prestes a apagar-se no oceano. As aves chilream, como velhas, quando, antes de adormecerem, contam umas ás outras os escandalos da visinhança, as novidades colhidas pela manhã na feira, e os namoros das filhas das comadres.

Se ha coisa, que a mim me encante e faça scismar, é, deixem-me assim dizer, aquelle animado fallatorio das aves, quando a noite se avisinha.

Ouvindo-as, sinto um tal despeito, por não poder comprehendel-as, que não sei o que daria, para o conseguir; e ponho-me, então, a miral-as na esperança de adivinhar, pelos movimentos, o assumpto da conversa.

Ás vezes, gorgeiam quatro ou cinco, em grupo, poisadas sobre flexivel ramo; se apparece alguma, que, ás bicadas, as obriga a debandar, mette-se-me logo na cabeça, que é mestra rabujenta, avêssa a conversas de amores.

Outras vezes, attrahe-me as vistas uma avesinha isolada. A triste dá mostras de absoluta fadiga. De tempos a tempos, abre a aza, como que desejosa de esconder a cabeça, para dormir; mas, reagindo, fita melancholicamente o sol, que lhe nega a permissão de repousar, e sacode as pennas, como nós, os homens, estiramos os braços, quando queremos combater o somno. De repente, ouve-se, de entre as folhas dos ramos mais elevados da arvore, uma nota agudissima, que domina o innumero côro de cantores... A pobresita estremece e ergue a cabeça. A nota repete-se; mas incisiva, aspera, irritada. Responde-lhe debaixo a triste humildemente; abre duas vezes as azas para dar vigor ao vôo; eleva-se e desapparece entre a folhagem. Pouco depois distingue-se um ruido de azas, que se agitam violentamente, seguido por um pio, doloroso como um lamento.

Não se cansem, que me não convencem do contrario: aquella avesita é a misera consorte, que trabalha desde pela manhã até á noite; come... quando ha tempo para comer; soffre, amando quem a faz soffrer; morre, abençoando quem a mata.

A outra, a que a chamou, é elle: elle, o egoista, elle, o tyranno, que passa os dias a fazer namoro ás visinhas, e que, á noite, quando recolhe... ao ramo, maltrata a esposa por não ter podido disputar aos visinhos o local mais abrigado e commodo.

Ha occasiões...

Basta!... As aves tratavam de se accommodar.

É chegada essa hora de recolhimento universal, que, sobre tudo na aldêa, como que faz entrar nas almas, mesmo nas mais vulgares, não sei que vago sentimento de melancholico bem estar, que se revela por suspiros involuntarios e aspirações indecisas. O ouvido apura-se á espera d'um som conhecido, e, quando éccôa no campanario da igreja a triste «Ave-Maria», a dextra, que se ergue, para tirar o chapéo, e vem em seguida unir-se á esquerda; o corpo, que se apruma; os labios, que se movem, murmurando a oração, executam, apenas, movimentos machinaes, pois a vontade, a alma, essa paira, como o som do bronze, no infinito.

Assentadas á porta d'uma casa de opulento aspecto, edificada no meio de jardins, com vastos campos de milho por limites, aguardam seis pessoas, que o dobrar do sino da freguezia as convide a agradecer a Deos mais um dia de paz e de ventura.

A melancholica e religiosa poesia d'essa hora impera de certo n'aquellas almas.

A conversa, que, naturalmente, corrêra viva e alegre, em quanto o sol allumiara os sorrisos, morrêra desde que as sombras, embora ainda tenues, vieram interromper o dialogo dos olhares.

No meio d'aquelle silencio, em que só se escutava...

Perdôem-me; mas... não posso; preciso de lhes communicar uma idéa, que mil vezes me tem preoccupado.

Ainda não repararam, que, não se contentando o dia e a noite com ter cada qual a sua feição particular, quizéram tambem possuir o exclusivo de certos sons!?...

Porque ha-de o rouxinol amar e dizel-o só de noite!?...

O mocho, a coruja, o sapo e outros mil, mudos durante o dia, para que hão-de quebrar tam brutalmente o silencio nocturno?

O vento, o ribeiro, o doidejar das folhas na floresta não produzem de noite sons especiaes?...

Pelo amor de Deos, não riam! não me digam, que nunca sentiram medo, ouvindo, a horas mortas, o uivar d'um cão; não acredito!...

Convido-os a fazer uma experiencia e a confessar-me depois o resultado: á noite, quando o silencio fôr completo, e não pudérem conciliar o somno, descerrem os labios e profiram uma palavra qualquer. Aposto dobrado contra singelo, se aquella, a sua voz, erguendo-se, assim, no silencio e nas trevas, lhes parecer a sua!... Ha mais!... Parece-lhes facil quebrar o silencio?... Experimentem e verão que o é menos do que suppõem.

Decididamente, a noite tem o exclusivo de certos sons, e perverte a expressão de quasi todos os outros.

No meio d'aquelle silencio, insolentemente violado pelo monotono e incessante zunido dos ralos, que irrompem ao anoitecer de todas as fendas, abertas na terra pelo sol, ergueu-se trémula, e como que involuntaria, uma voz:

— Que formosa noite!...

Estas trez palavras desfizeram o encanto.

— Deos t'o pague, Fernanda!... — exclamou outra voz tam jovial quanto a primeira soava triste. — Se dura o silencio mais cinco minutos, desatava a chorar!... Que pezadêllo, meu Deos!... Era um grupo de mudos... Se nem a Joanna fallava!...

— É isso... Eu é que sou a tagarella cá de casa... — retorquiu a provocada, com simulado despeito.

— Não faças caso Joanna... Bertha estava quasi a chorar, com receio de ter perdido a voz, por ter dado á lingua um descanso de cinco minutos... E era caso para isso... E a primeira vez, que tal lhe acontece.

— Bravo!... Fallou o sabio!... Já a mim me admirava não se ter o snr. Luiz... o menino, como lhe chama a Joanna, embaraçado commigo ha mais tempo...

— Bertha... — atalhou uma voz meiga e harmoniosa, com amoravel inflexão de censura.

— Ó mamá!... não o defenda! Parece que é mesmo de proposito!... Aquelle Luiz parece ter um gostinho especial em me contradizer!... Se eu digo: «branco», diz elle logo: «preto»; quero ir passeiar para a beira do rio?... ahi nos leva elle para o monte; affirmo que está bom tempo?... diz immediatamente, que está a chover!... Tambem é de mais!... Eu embirro com este Luiz...

— Bertha... — repetiu a mãe.

— Embirro, sim, embirro; não o posso vêr!... — insistiu a joven, com tam comica exaltação, que desataram todos a rir.

— E ri-se!... Olhe... O senhor não tem mesmo vergonha nenhuma!... — exclamou Bertha.

— Como queres tu que eu fique sério, ouvindo-te!?... — replicou Luiz. — Se ninguem te acredita!... se todo o mundo sabe, que morres d'amores por mim!...

— Ó meu Deos!... perdoae-me; mas... dae-me melhor sorte, se não quereis que eu seja toda a vida infeliz!... — retorquiu Bertha, fitando o céo.

— Ah! tu provocas-me?... — volveu o mancebo, animado pelo riso das testemunhas d'aquella scena — Dize lá... Para quem é a prenda, que tu andas a bordar ás escondidas?...

Bertha, depois de breve hesitação, balbuciou:

— Fôste tu, que lh'o disseste, Fernanda?... Pois não sou tua amiga...

— Eu, filha!... — protestou a accusada.

— Se não fôste tu, foi a Joanna...

— Eu!?... — disse esta.

— Tu, sim; não negues!... Deixa, que as pagas já!... Não espias hoje a roca, linguareira!...

E, com um movimento rapido, Bertha tirou a roca das mãos de Joanna.

— Vá!... Eu não gosto d'essas graças... Já disse que não fui eu... Dê-me a roca, menina... — instava Joanna.

— Vem buscal-a, se queres!... — replicou a travessa, correndo para o meio do jardim.

— Bertha!... — gritou, rindo, a mãe. — Dá-lhe a roca... anda!...

— Não dou, mamá!.. N'esta não torna ella a fiar.

— Sério, menina!... Dê-me a roca... Então?... Não seja ruim!... Palavra que não fui eu!... — affirmou Joanna.

— Palavra?... — perguntou Bertha com desconfiança.

— Sério!... elle que diga... — replicou a velha.

— Ninguem m'o disse, minha toutinegra!... — asseverou o mancebo, que proseguiu com impassivel fatuidade:

— Ninguem m'o disse; eu é que tinha a certeza, de que o dia dos meus annos me trazia por força prenda tua.

— Pois não!... volveu Bertha com ironia. — O senhor tinha a certeza!... Gosto d'isto!

— Como de tudo o que digo — accrescentou Luiz no mesmo tom.

— Que modestia!... — volveu a joven — Faz dó!...

— O que faz dó é vêr tanta dissimulação aos dezeseis annos — observou o mancebo, com affectada convicção.

— Luiz... — exclamou Bertha, irritada, por não poder levar a melhor n'aquelle duello de remoques; contendo-se, porém, accrescentou:

— Sendo gemeos, como sahiu este assim, e Jorge...

Não concluiu, porque uma voz commovida, a de Joanna, balbuciou:

— Meu querido filho!... Pensava n'elle, ha pouco, quando estavamos calados...

— E eu!... e eu!... — repetiram, quasi simultaneamente, os outros.

A lembrança do ausente poz cobro ao dialogo.

Fernanda, que estava assentada ao pé de D. Sophia da Cunha, tinha apoiado a fronte no hombro d'ella.

— Tu choras, Fernanda!?... Que tens?... — segredou-lhe de repente ao ouvido aquella, que ao beijar as faces da joven, as sentira humidas de pranto.

— Não tenho nada, minha senhora... Deixe-me ir lá dentro vêr a avó, que tem estado sósinha...

— É verdade!... Espera, e vamos todos...

Pela idade que Luiz attribuiu a Bertha, já o leitor deve ter percebido que, se as chegaram a usar, ha muito que os pés de Jorge devem ter gasto as meias de lã, que a affectuosa Joanna deu ao mancebo, no acto de despedir-se d'elle, no alto da Bandeira.

São, effectivamente, passados sete annos.

Parece-lhes duro o exilio do joven official de marinha?... Busquem a explicação na resposta d'elle, quando a ama lhe censurava o ter escolhido aquelle modo de vida.

Era soldado, disséra, e as complicações tinham-se-lhe apresentado por tal fórma, que Jorge, escravo do seu dever, não ousara pedir uma licença, que nem o seu estado de saúde, nem outro qualquer motivo, justificavam.

Deixem-me agora explicar-lhes a familiaridade, que devem ter estranhado, entre os differentes personagens d'este nosso singelo e despretencioso drama. Vão ver como seriam felizes, se a ausencia de Jorge não fôsse um espinho para todos aquelles corações.

O plano indicado por Joanna, e do qual os leitores, devem ainda lembrar-se, déra aquelle excellente resultado.

As duas senhoras tinham-se ao principio limitado a viver em casas contiguas; a amizade, porém, das duas crianças, que se haviam unido com a facilidade propria da sua idade, foi pouco e pouco destruindo as barreiras, que as separavam.

Nos primeiros tempos, quando uma das meninas ia visitar a outra, ia um criado acompanhal-a ceremoniosamente até a vêr entrar. Este processo era cruel para as duas senhoras: em quanto uma das casas se enchia de vida, transformava-se a outra n'um deserto.

Confiadas aos mesmos professores, ora vinha Fernanda dar lição a casa de Bertha, ora tinha esta de ir a casa da sua companheira. Para o estudo em commum, aconselhado pelos mestres, dava-se o mesmo contratempo.

Um dia, em que as duas crianças brincavam no jardim, separadas pelo muro divisorio, Fernanda exclamou: — Que bonita borboleta!...

Bertha, que, até então, se contentara com ouvir, sem vêr, a sua joven amiga, aproximou-se do muro, maldizendo-o por lhe negar o prazer de ajudar Fernanda a capturar a borboleta.

Á força de o medir de alto a baixo, acabou por pensar, que o muro não era um obstaculo por ahi além.

— Se eu puzésse um pé... aqui... n'este buraco...; deitasse a mão a esta ripa, que segura a trepadeira...; mettêsse o outro pé no buraco de cima... e me agarrasse, com a mão esquerda ao alto do muro...

Bertha, que fôra pondo em practica o que lhe passava pelo espirito, terminou o raciocinio, dizendo:

— Estava em cima e... saltava.

E saltou.

As alegres exclamações das crianças, ao vêrem-se reunidas , attrahiram as duas senhoras á varanda, que corria ao longo de ambas as casas, dividida por meio d'uma taboa.

Mãe e avó, separadas apenas por uma polegada de madeira, demoraram-se a conversar, encantadas com a alegria e amizade d'aquelles dois anjos.

Cem vezes, depois d'essa, foi o muro escalado por ambas as crianças, até que ura dia Bertha, calculando mal o salto, torceu um pé. Condemnado o processo, Fernanda, a quem custava ter de pedir á avó, que a deixasse ir vêr a amiga, porque a velha senhora a accusava, com as lagrimas nos olhos, de lhe preferir as visinhas, lembrou, que seria facil remover a taboa, e poderiam, então, reunir-se na varanda, debaixo das vistas das duas senhoras. Assim se fez; mas, como crianças nunca estão socegadas, ora tinha a avó de Fernanda, primeiro a medo, mais tarde francamente, de ir procural-a ao interior da casa contigua, ora vinha Sophia buscar a sua Bertha ao proprio quarto de D. Maria de Albuquerque.

Com o andar dos terapos, as portas de communicação, que ligavara as duas casas, fôram abertas de commum accôrdo, e, finalmente, chegado o verão, quando as duas familias voltaram da quinta, onde a avó de Fernanda tinha acceitado por um mez a hospedagem da sua visinha, a ambas parecia tam triste a hora de jantar, a que faltava o riso das crianças, que de convites reciprocos passaram a ter uma unica cosinha.

Estava realisada a juncção, dando-se, porém, um facto curioso n'aquelle viver em familia: presente feito a Fernanda pela mãe, era immediatamente retribuido pela avó, por outro feito a Bertha; de maneira que, pouco e pouco, as despezas feitas com a ultima estavam exclusivamente a cargo de D. Maria de Albuquerque, ao passo que as de Fernanda eram pagas pela que tanto desejava chamar-lhe filha.

Luiz tornara-se, por assim dizer, o conselheiro e factotum das duas senhoras. Dia, em que o mancebo lá não fosse, era um dia de tristeza para aquella casa; as duas meninas, sobre tudo, abusando da infinita bondade do santo rapaz, lamentavam-se, quando elle faltava.

Bertha, especialmente, ligara-se ao mancebo, sem reserva. Desprezando a differença de idade em quem se tornava criança para a divertir, acostumara-se a tratal-o por tu, e exigira de Fernanda, que a imitasse.

Resta-nos agora explicar a presença de Luiz e de Joanna na quinta de D. Sophia da Cunha, em Pedras-rubras.

O mancebo costumava passar quinze dias de setembro em companhia d'ella, na quinta. Tres annos depois da partida de Jorge, tinha Luiz, segundo o costume, acceitado o convite, e fallava em se retirar d'ahi por trez dias, quando, á noite, achando-se reunidos e estranhando-lhe Bertha o silencio, respondeu o mancebo:

— Doe-me a cabeça... não me sinto bem.

No dia seguinte, como o joven se demorasse, mandaram-lhe dizer, que estava o almoço na meza.

Voltou o criado com a noticia de que, não obtendo resposta, quando batêra á porta, a abrira, e encontrara o mancebo preza de violento delirio.

N'esse mesmo dia, além das duas senhoras, velava á cabeceira do enfermo, com amor de mãe, a affectuosa Joanna, que corrêra, mal lhe mandaram aviso.

Salvo do furor d'um typho, foi prolongada a convalescença de Luiz, a ponto de não poder ser removido de prompto para a cidade, e o inverno veio surprendêl-os na quinta, onde as duas senhoras resolvêram passal-o.

Ha quatro annos, que isto teve logar; ha quatro annos que Luiz voltando-se para Joanna, lhe diz todos os dias:

— Isto não tem geito nenhum, Joanna... Parece mal!... Para a semana vamos para nossa casa.

Não vão.

Que iriam elles fazer para casa, especialmente, não tendo Jorge, para os consolar?

Joanna, vivendo cercada de carinhos; gozando um socego de que a sua idade ha tanto carecia, poderia sem saudades deixar tudo isso, para se entregar de novo á vida activa de outros tempos?...

E aquellas duas senhoras!?...

Uma fallava-lhe de coisas do seu tempo, a outra obrigava-a a contar-lhe a infancia de Jorge, a quem ambas queriam como a filho... Havia de deixal-as?...

E Fernanda?... e Bertha?... aquella com os seus grandes olhos negros, tristes e scismadores como lh'os vira n'essa noite, em que, ao recebel-a nos braços, ferida e gelada, lhe encontrara ao pescoço o sello da roda; esta, Bertha, que, no meio das suas travessuras, sabia com o olhar transparente e azul dos anjos, loiros como ella, apagar a minima suspeita de maldade... havia de deixal-as!?...

Não podia ser.

E seria Luiz mais forte do que ella?...

Não lhe seria penoso renunciar a ser a Providencia dos pobres, o que lhe era facil alli, onde nada lhe despertava a ambição?... Poderia trocar o socego do seu quarto de estudo pela vida activa do clinico n'uma grande cidade?... E seria elle o homem talhado para as luctas d'essa vida, elle o moço modesto e honrado, incapaz d'uma vileza, destituido d'essa sciencia do mundo, a que chamam charlatanismo; mas que é a final a arte de chegar depressa?... E não era elle preciso áquella gente?... Não era um protector para aquelles sêres, que lhe queriam, como se a elle os ligassem laços de sangue?... E Fernanda?... Quem havia de dissipar as nuvens, que começavam a entenebrecer aquelle espirito, que elle estudara com o amor de irmão e a curiosidade do sabio, e em que lia como em livro aberto?... E a outra... Bertha?...

A respeito d'esta, havia não sei que véo na intelligencia de Luiz.

Sempre em opposiçao, aquelles dois corações estremeciam-se, sem saberem definir o que sentiam um pelo outro. Ouvimos, ha pouco, a affouteza com que Luiz se pretendia amado pela joven, e a vivacidade com que esta protestou.

Nenhuma importancia tinham as palavras de ambos: Luiz suppunha dizer um gracejo, Bertha uma verdade; se, porém, houvesse, n'esse instante, quem lhes dissesse: — Lêde bem no fundo do coração o que sentis um pelo outro... — talvez que ambos reconhecessem, em botão cerrado, a fragrante rosa d'amor, que o sol d'um sorriso, ou o orvalho d'uma lagrima, fazem desabrochar instantaneamente.

Preciso agora de apresentar ao leitor as duas jovens.

O retrato de Bertha está, por assim dizer, esboçado pelo que fica dito. Nascida em berço de rosas, a vida tem-lhe sido uma primavera contínua. Velada por olhos de mãe, educada a beijos, ignorando, quasi, o que é desejar em vão, Bertha é, n'aquella casa, o raio de sol, que tudo anima e aquece; o canario, que canta para tornar impossivel o silencio. Se alguma coisa ha, que possa toldar-lhe a alegria, não fallando no infortunio alheio, pois para esse tem ella um coração compassivo como poucos, é a tristeza, que, ás vezes, muitas vezes, vem ensombrar o rosto de Fernanda.

Vejamos, agora, que mudanças tem produzido n'esta um intervallo de sete annos. Para isso, basta-nos transcrever parte d'uma carta, escripta ha cerca de quatro por Luiz ao irmão.

Dizia elle:

«Perguntas-me por Fernanda, e folgo com o interesse, que manifestas, pois, auctorisado pelo teu silencio a seu respeito, já te accusava de haveres esquecido a nossa protegida, que symbolisa, talvez, a melhor acção da tua vida. Perdôa-me a injustiça, que te fazia!

Fernanda é uma criança... singular!...

Intelligentissima e d'uma instrucção pouco vulgar na sua idade, é timida como uma provinciana ignorante, que se acha pela primeira vez em contacto com gente, cuja superioridade reconhece. Coração ardente e apaixonado, parece fazer um estudo especial, para encobrir, sob apparencias de gêlo, o fogo, que a consome. Bondosa como os anjos, ha momentos, em que uma idéa menos generosa lhe faz fulgir os olhos por sob as negras sobrancelhas, que, contrahindo-se, véem unir-se n'uma ruga profundissima, cavada, provavelmente, por essa mesma idéa má. No meio da mais franca alegria, as mais das vezes filha das travessuras de Bertha, apparece a ruga, ou antes — a idéa negra.

Se visses o olhar da mãe n'esses momentos!... Olha... Imagina quanto amor e compaixão haverá n'elle, para ter o poder de apagar a ruga, que altera a limpidez da fronte de Fernanda!...

Eu tenho estudado com paixão o caracter da nossa protegida, e vou dizer-te, sem receio de errar, o que faz o martyrio da pobre criança.

Aquella ruga, Jorge, é... o sello da roda!... Acredita que é.

Comprehendes agora o poder do olhar de D. Sophia da Cunha!?...

É o olhar de mãe, Jorge!... é o santo, o meigo, o dôce olhar, com que nossa mãe nos consolava e inspirava alento, quando as asperezas do estudo, ou as contrariedades da infancia nos faziam enrugar a fronte!...

Ao vêr a irmã sempre alegre, Fernanda lembra-se dos seus primeiros annos tam sombrios, tam privados de carinhos, e pergunta, naturalmente, com azedume: «Quem será minha mãe!?»

É n'esses momentos que a ruga apparece, para só se desvanecer ante o olhar, que lhe responde: «Tua mãe sou eu, minha filha!»

Se eu não fôsse, como me chamavas ás vezes, um visionario, aquella ruga e aquelle olhar bastariam, para eu acreditar no magnetismo!

Fernanda, ao vêr o olhar da mãe, pensa: «Que importa!?... Não é esta mais do que mãe para mim!?...» e basta isto, para a consolar momentaneamente.

Vê tu, agora, a minha loucura, Jorge!... Estou intimamente convencido, que, se aquelle não fôsse realmente o olhar de mãe, não teria sobre Fernanda a mesma influencia.

Para que não possas duvidar da justiça das minhas observações, vou contar-te um facto, que as confirma.

Haverá tres mezes, estavamos todos no jardim, quando Bertha — o diabinho de doze annos mais loiro, gentil, travêsso e bom, que podes imaginar! — voltando-se para Fernanda, exclamou, entre indignada e condoída:

— Sabes o que a Josefa, do hortelão, me disse hontem, Fernanda?... Que por termos bulido no ninho, que está lá ao fundo... na rozeira... os pais o abandonaram!... Vê tu, se aquillo era coisa, que os pais fizessem!

Enleiado pela presença da mãe, para quem a indirecta e innocente censura da filha não podia passar desapercebida, baixei os olhos, que logo ergui, ouvindo de novo a voz de Bertha perguntar:

— Tu que tens, Fernanda!?...

Pallida e arquejante, com olhos cheios de lagrimas, a interrogada, em vez de responder, fugiu veloz como um gamo.

Sobresaltado pela impressão, que lhe haviam causado as palavras da irmã, corri atraz d'ella.

Não sei, se Deos lhe emprestara azas n'aquella occasião; o que sei é que, quando a alcancei, fui encontral-a já ao pé da roseira, fitando attentamente o ninho, a que Bertha se referira, e que segurava entre as mãos.

Havia um mundo de idéas no olhar da pobre menina, Jorge!...

— Que tens tu, Fernanda?... — perguntei, sem saber bem o que dizia.

— Vês?... — bradou, voltando-se para mim. — Mortos!... todos mortos!... a minha sorte, se teu irmão me não encontrasse!... Cheguei tarde!... não lhes pude fazer o que elle me fez a mim!...

E, beijando os pobres passaritos, accrescentou, exugando as lagrimas:

— E... quem sabe!?... Talvez fôsse melhor assim!... Pobres enjeitados!...

Acredita, Jorge!... tive medo, ouvindo as ultimas palavras, tal era o fel e a dôr, de que vinham repassadas!

Estive quasi... quasi a dizer-lhe: «Teus pais não te enjeitaram!...» estive; mas... lembrei-me, que seria despertar a curiosidade tam natural e, deixa-me assim dizer, tam justa e profundamente chumbada no coração do enjeitado... calei-me.

Deixa-me acabar o retrato moral da nossa irmã adoptiva.

Fernanda não pode comparar-se a nenhuma outra rapariga da sua idade. No seu rosto leal e puro incendeiam-se, repentinamente, rubores, cuja origem só eu conheço bem.

Tu sabes como são educadas as crianças do povo?... As questões mais escabrosas, as desavenças domesticas, os bons e maus pensamentos, o rasgo de virtude e a acção infame — tudo isso se trata e se discute diante das crianças.

As boas, as que Deos talha para santas, podem atravessar tudo isso impollutas e innocentes; mas retéem indecisas na memoria idéas imperfeitas, que, mais tarde, a razão e a consciencia condemnam, quando a sciencia da vida derrama a luz no que lhes era obscuro.

Quantas vezes não tens, como eu, estremecido, ouvindo o dito cynico, que a memoria inconsciente fornece, sem os macular, aos labios rosados e frescos d'um cherubim de seis annos!?

Essas scenas, esses éccos da sua infancia, são os que accendem o rubor do pejo nas faces de Fernanda.

Tudo, porém, tem n'este mundo o seu lado bom!

Fernanda tem, devido á mesma origem, um senso pratico superior á sua idade. A filha do povo possue, aos doze annos, mais conhecimentos positivos acerca das pessoas e das coisas, do que a joven de vinte, servida por dez criados. A criança do povo cresce, tornando-se util, tomando uma parte, que augmenta de dia para dia, na lucta travada pelos seus contra a miseria; quando as vagas do mundo chegam a envolvêl-a, não soçobra — já sabe nadar sem auxilio alheio.

O enleio da joven opulenta, casada de ha dois dias, quando lhe pedem ordens para o jantar, faria sorrir de compaixão a criança do povo, que aprendeu no mercado, na tenda, com a vareira, que passa apregoando a sardinha, tudo quanto precisa saber: o preço, a qualidade, o peso ou medida dos generos e — o que lhe é indispensavel — o modo de os utilisar.

Apesar de saber quanto prézas as minhas cartas, receio que me vás achando fastidioso, e, por isso, concluirei, dizendo-te:

Fernanda — é um anjo!... Tem a vontade inquebrantavel da avó e o angelico coração da mãe. Feliz o homem, que um dia obtivér o seu amor!... Ha-de encontrar n'ella um confidente seguro, um conselheiro circumspecto e, sobre tudo, a dedicação cega e sem reserva d'um coração ardente!»

Assim dizia Luiz, escrevendo o que pensava de Fernanda.

O retrato physico... Ahi vai o de ambas, tirado n'uma posição, em que, difficilmente, as tornarei a surprender. Bertha, fitando os olhos azues nos negros olhos de Fernanda, ergueu-se nas pontas dos pés, para unir os seus labios aos da irmã. Esta, cuja elevada estatura contrasta com as franzinas e quasi sylphidicas fórmas de Bertha, aprumou-se maliciosamente, para lhe difficultar a empreza; mas teve que curvar-se, porque a travêssa lhe lançou os braços em volta do pescoço, fazendo, n'esse acto, cahir as revoltas ondas dos negros cabellos de Fernanda sobre o mar de vagas loiras, que lhe alagava as costas.

E, ao vêl-as, assim, tam formosas, cada qual a seu modo, agradeci a Deos, que fez as morenas, para nos não perdermos só pelas loiras, pois melhor é que nos percamos... por todas.

II

— Joanna!... Fernanda!... Bertha!... todas!... alviçaras!... alviçaras!... — gritava Luiz, cêrca de um mez depois, entrando, como louco, na sala, onde toda a familia o aguardava.

— Que ha!?... — perguntaram todas.

— Sahiu-lhe a sorte grande, e endoideceu, coitado!... — observou Bertha.

— Chegou Jorge... o snr. Jorge!... — balbuciou Fernanda, pallida e trémula.

— Tiraste-m'o da bôcca, filha!... — exclamou Joanna, enxugando uma lagrima.

— Adivinhaste, Fernanda!... Chegou, Joanna!... chegou o nosso Jorge!... Onde vais, Fernanda!?... Escuta!... — bradou Luiz, dirigindo-se á joven, que fugia, para occultar a commoção.

— E quando chegou?... — perguntou a avó de Fernanda.

— Hontem, minha senhora!... Chegou hontem a Lisboa... Temol-o ahi amanhã... ou depois... — replicou Luiz.

— Ou hoje, mentiroso!... — exclamou Bertha, correndo para a porta da sala, e abrindo-a violentamente.

Imagine-se o espanto de todos, vendo o joven official de marinha, que, contendo com a mão o coração agitado, deixava correr as lagrimas por sobre as faces, tostadas pelas brisas do mar.

— Eil-o mamá!... Cá está o seu Deos, avó!... Toma lá o outro menino, Joanna!... — bradou a travêssa Bertha, travando do braço do mancebo, e conduzindo-o para quantos o esperavam de braços abertos e olhos humidos de prazer.

Indefeso contra as caricias de todos, Jorge chorava, balbuciando a custo:

— E não se morre!... não se morre de prazer!

De repente, como se só então notasse falta de alguem, lançou os olhos em volta, e perguntou:

— E... a criança?... Fernanda?... Onde está a pequena, que a não vejo!?...

— Aqui está a criança!... — retorquiu a zombeteira voz de Bertha, que corrêra em procura da irmã e entrava, trazendo-a pela mão.

Ouvindo aquella voz, Jorge, que estava de costas para a porta, ergueu-se de salto, bradando:

— Abraça-me, Fernanda!...

Parando, porém, enleiado, a meio caminho, deixou cahir os braços e murmurou:

— Minha senhora...

Singular aspecto o dos dois, assim frente a frente!...

Fernanda, pallida como um cadaver, com os olhos baixos, o seio arquejante, agarrava-se convulsa ao braço de Bertha; ao passo que Jorge, contemplando-a, como que fascinado, revelava na varonil physionomia a mais ardente admiração, e não encontrava phrases, com que puzésse termo áquella scena a um tempo dolorosa e ridicula.

Valeu-lhes Bertha, perguntando com sincero espanto:

— Então, que é isto!?... Que modos são estes!?... Parece, que nunca se viram!...

— Oh! minha senhora!... — balbuciou Jorge, dirigindo-se a Fernanda — perdôe-me; mas... eu realmente... esperava... não esperava!...

— Esperava... não esperava... o quê!?... — exclamou Bertha — Isto que quer dizer, ó Joanna? Este teu menino parece-me que ainda é peior do que o outro!...

— Bertha!... — atalhou a mãe, que proseguiu:

— Não faça caso do que diz aquella louquinha, snr. Jorge!... O senhor contava encontrar outra Fernanda, não é verdade?... Parece-lhe impossivel, que esta seja a criancinha, que abraçou, ha sete annos, no alto da Bandeira?... Ora diga!

— Effectivamente, minha senhora!... eu esperava...

— Eu não esperava... — atalhou rindo, Bertha, a quem a scena começava a impacientar.

Conseguindo a final serenar, o mancebo disse, dirigindo-se a Fernanda:

— Perdôe-me, minha senhora... Não sei o que v. exc.ª terá pensado de mim; mas, a snr.ª D. Sophia adivinhou o verdadeiro motivo da minha perturbação! É incrivel; mas... eu, que contava os dias, e os via correr para mim, nunca me lembrei de que deviam passar igualmente para v. exc.ª... Mas... que tem, minha senhora!?... chora!?...

— Não é nada, snr. Jorge... O prazer de o vêr, depois de tantos annos... — balbuciou Fernanda, escondendo o rosto no seio de Bertha.

— Não é por isso, não, senhor!... — exclamou esta, com comica indignação — Quer saber o que ella tem?... Pois eu lh'o digo, snr. tenente, ou o que quer que indicam esses galões d'oiro... Faça favor de ouvir e... de não reagir!...

— Se o tempo corre igualmente para todos — disse o mancebo, dirigindo-se a Sophia — esta senhora deve ser a gentil criança...

— Exactamente!... — atalhou Bertha — Esta senhora é, sem tirar nem pôr, a tal gentil criança... Bertha, uma sua criada. Faça porém, favor de me ouvir com attenção, porque toda ella é pouca para o que tenho a dizer!... Faça favor de ouvir!...

— Bertha!... — interveio a mãe.

— Tenha paciencia, mama!... É preciso!... é uma necessidade! — replicou a joven, que proseguiu dirigindo-se a Jorge:

— Desde que, pela maior das felicidades, vivemos todos debaixo do mesmo tecto, não passou um unico dia — nem um só, snr. Jorge!... — sem que o seu nome fôsse proferido n'esta casa. Á noite, nas rezas em commum, era elle incluido nas orações de todos... (De todos não, porque alli o snr. doutor, quando se trata de resar, tem sempre que estudar!) Nas noites de inverno, quando o vento nos trazia os sussurros do mar... isso então... Olhe!... até parece mal dizel-o, mas... não se resava por mais ninguem!... «Quando virá?...» «Onde estará agora?...» eram as perguntas mais vulgares n'esta casa. Chegou hoje... É verdade... deixe-me dizer-lhe, que se nos queria fazer uma surpreza, escolheu mau confidente; aquelle Luiz para isso (como para tudo) é mesmo uma desgraça!... Tanto olhava para a porta, quando nos annunciava a sua vinda para amanhã, que eu logo percebi, que nos estava a escutar!... Chegou e... Não... Ainda lhe não disse tudo; é preciso dizer-lhe como se vive n'esta casa. Aquella, a avó de Fernanda, é minha avó, e é a avó de Luiz; assim como a minha mamá considera Luiz e Fernanda como seus filhos!... Quer que lhe diga!?... Ha occasiões, em que, se eu fôsse ciumenta, devia ter zêlos de Fernanda! Quer ver agora, como se trata a gente moça n'esta casa?... — Não rôas as unhas, Luiz!... — Já vê! ... por tu!... fraternalmente por tu!... Comprehende agora o effeito, que devem ter produzido as excellencias com que vossa senhoria nos tem mimoseado a Fernanda e a mim!?... A Fernanda deu-lhe para chorar; a mim... nem eu sei para que me dará!... O que lhe affirmo é que me não serve o seu systema. O Luiz, se espera ouvir de mim uma senhoria, tem que esperar!...

Serenada a alegria, provocada pela sua allocução, Bertha concluiu, dirigindo-se de novo ao mancebo:

— Vossa senhoria quer ficar como um estranho entre nós, ou tu queres ser o Jorge, o bom e leal companheiro, que todos esperávamos com anciedade!?

— Eu quero ser o que v. exc.ª... — bradou Jorge profundamente commovido.

— Ah!... — atalhou Bertha, ameaçando-o com o dêdo.

— Perdão!... Foi a ultima vez. Eu quero ser o que tu e todos consentirem que eu seja! — bradou o mancebo.

— Bravo! — exclamou Bertha. — Então, agora... acaba o que deixaste em meio, anda!... Dá alli um abraço em Fernanda... Já... Então!... Ora vê lá agora se é preciso fazer-te também um sermão!... ora vê lá, Fernanda!... Bem!... Agora... consinto, que me dês tambem um abraço!

— E eu, Bertha!?... Olha que hoje tambem consinto que me abraces, pois mereces recompensa!... — exclamou Luiz, que seguira commovido, e com singular attenção, toda aquella scena.

— Abraça a Joanna!... — retorquiu Bertha, sahindo ás carreiras da sala.

— É adoravel!... — balbuciou Jorge.

É natural que o mancebo se referisse a Bertha; os seus olhos, porém, não se desviavam do rosto de Fernanda, que não erguia os d'ella.

III

A volta de Jorge parece que devia ter tornado completa a felicidade de todos aquelles sêres, para quem a ausencia do mancebo era o unico motivo de pesar... Pois não aconteceu assim!

Depois que elle voltara, Fernanda tornara-se ainda mais timida; a ruga traçava-se-lhe mais frequentemente na fronte, mas tam obstinada, que o sorriso da mãe nem sempre lhe era efficaz antidoto. Luiz, out'rora sempre despreoccupado, parecia absorto em não sei que phenomeno psycologico, o que lhe dava ao olhar a expressão de incessante investigação; Sophia tinha alternadamente nos olhos o fulgôr da mais robusta esperança e a escuridão das almas, que succumbem; a avó de Fernanda, com o egoismo proprio da idade, queixava-se dos prolongados silencios, que, ultimamente, como que arrefeciam o lar domestico, e durante os quaes a pobre senhora, a sós com a propria alma, via surgir as imagens ensanguentadas do esposo e do filho; Bertha, incapaz de dissimular, confessava francamente, que não estava á vontade; emfim, perfeitamente feliz, n'aquella casa, havia apenas a boa Joanna, porque só pedia a Deos a graça de a deixar morrer entre os seus dois filhos, e tinha a ventura de os vêr reunidos.

Apesar dos rogos e das ameaças de Bertha, Jorge não conseguira banir, especialmente para com Fernanda, o ar ceremonioso, com que ao principio se apresentara. Não digo bem... Na ausencia de Fernanda, o mancebo excedia, muitas vezes, a alegria e franqueza do irmão, e, n'esses momentos, nunca Bertha se vira obrigada a corrigir-lhe a deslocada polidez. Se, porém, n'esses instantes de expansão, Fernanda apparecia de repente, Jorge titubeava, e acabava por emmudecer.

— É por tua causa!... tu és a culpada de tudo isto!... — dizia Bertha a Fernanda, quando ficavam sós. — Tratal-o como a um estranho... nunca tens uma graça para lhe dizer... parece que queres vender as palavras!... Em vez de o pôres á vontade, cada vez o constranges mais!... Porque embirras tu com elle, Fernanda!?...

— Eu!?... — protestava a interrogada, com singular intonação.

— Se não é antipathia, o que é então!?... É medo?... Tens medo d'elle!?... Porquê!?... — insistia Bertha.

— Estás louca!... — volvia Fernanda. — É uma especie de... respeito... Não sei que é!

— Respeito!... Ora essa!... respeito!... porquê?... Onde lhe descobriste as brancas!?... porque não respeitas tu o Luiz!?... Realmente, Fernanda... eu não te comprehendo! — retorquia Bertha impaciente.

— Não comprehendes, filha!... não!... — affirmava a outra.

— E ella ahi está a chorar!... — exclamava Bertha de repente. — Tu que tens, Fernanda!?... VaIha-me Deos!... Que rapariga esta!... Mas tu porque choras!?... Nada!... tu andas doente ... eu vou dizer ao Luiz, que olhe para ti com mais attenção...

— Não digas nada... a ninguem!... — atalhava a irmã, enxugando os olhos. — Não tenho nada... ando boa... é nervoso... Não digas nada... não queiras affligir todo o mundo...

— Mas...

— Mas... mais nada!... — concluia Fernanda, cerrando-lhe os labios com um beijo, e fugindo da sala.

Bertha seguia-a com os olhos e, vendo-a desapparecer, abanava a cabeça, murmurando:

— Não entendo; mas... o tal snr. Jorge é um verdadeiro desmancha-prazeres!... Nunca elle cá viesse!

Já vê o leitor, que era geral o mal estar. Durante os serões, quando Jorge, provocado por todos, se esquecia de que o escutavam, e contava, com o enthusiasmo de quem sente devéras, as aventuras da sua vida de marinheiro, as emoções do temporal, as angustias da hora do perigo, as pulsações do coração, quando se avista terra, o dulcissimo prazer de receber carta de casa, as ancias de revêr a familia, os desalentos e furôres da nostalgia; n'esses instantes, em que o mancebo se mostrava verdadeiramente qual era, os seus labios fallavam a todos, mas os seus olhos só para Fernanda se volviam, e — coisa notavel! — quando o fuso cahia da mão de Joanna, que a queria livre, para se benzer de pasmo do que ouvia, ou por gratidão a Deos, que lhe salvara o filho adoptivo; quando as duas senhoras, curvadas para diante, emmudeciam, suspensas, por assim dizer, dos labios do narrador; quando Bertha ora se lamentava por não ter podido acudir a uma desventura, ora se indignava, ouvindo uma injustiça, um abuso de poder, uma humilhação não repellida, — Fernanda, a unica, cujo applauso Jorge parecia ambicionar, permanecia immovel, com os olhos obstinadamente fixos no trabalho, que os seus dêdos executavam com febril actividade!

Ao cabo de certo tempo, o enthusiasmo do mancebo afrouxava; a voz vibrante esmorecia pouco e pouco; e, quando completamente se extinguia, apoderava-se de todos a sensação de medo e desconsolo, que nos colhe, se, assentados em frente d'um fogão, que por descuido deixamos apagar, sentimos os primeiros arrepios de frio.

N'esses momentos, em que o silencio pezava como a lousa d'uma campa sobre o coração de todos, a mãe de Bertha, reagindo contra a especie de enleio, que a turbava, erguia os olhos, estudava anciosamente os rostos taciturnos, que a cercavam, até que, encontrando o olhar intelligente e compassivo de Luiz, sorria e murmurava:

— São quasi dez horas... E melhor recolher-mo-nos...

Mal soavam essas palavras, de todos aquelles peitos sahia um suspiro de allivio ; seguia-se o arrastar das cadeiras; a troca das boas noites e, meia hora depois, se a falta de luz e ruido indica perfeito socego, deviam os habitantes d'aquella casa dormir a somno solto.

Dormir!... repousar!... esquecer!

Valha-me Deos!... Quantas vezes mentem os labios, dizendo: Vou dormir!?... Quantas vezes declaramos, que vamos repousar, quando sabemos que o verdadeiro trabalho vai começar para nós!?... Quantas vezes, descansando a fronte em busca do esquecimento, invocamos um mundo de recordações!?...

E, pensando nos sêres, que vivem comnosco ao abrigo do mesmo tecto, uma especie de inveja leva-nos a dizer: «Todos dormem!», quando immensas vezes, todos velam e, o que é mais, velam por nossa causa!

Ó insomnia!... tu pódes ser o mais horrivel dos martyrios, ou o mais sublime dos prazeres! Conheço-te sob todas as fórmas! Tenho-te sentido a escaldar-me o cerebro, a esmagar-me o coração com ferrea mão, a gelar-me de receios; mas devo-te, igualmente, um idear de mil venturas, um desabrochar de esperanças infinitas, a concepção de phantasticos projectos, a construcção de mil castellos, que, por feitos no ar, te obrigam, ó insomnia a dar-me azas, com que me eleve até elles!

A insomnia causada por um primeiro amor!... Que ha ahi que a valha!?... Nascida d'esta pergunta: «Ama-me ?...» prolonga-se a escutar o pulsar do coração, que, como a pendula d'um relogio, responde sem cessar: «sim» — «não», «sim» — «não».

E o peito, dilata-se a cada «sim», para se contrahir a cada «não»; e a mente recorda complacente os olhares, os gestos, as palavras da mulher amada; e de todo esse recordar vem uma especie de certeza de lhe não merecermos o amor; e d'esse receio o desejo de nos distinguirmos, de subirmos tanto, tanto que acabemos por tocar com a fronte o pedestal, em que ella firma os pés!

Qual o coração de vinte annos, que, ao primeiro amanhecer do amor, desconhece a insomnia, em que se fórma o plano de immortalisar um nome, para lh'o offerecer a Ella!?... Qual o que a não imaginou rodeada de chammas, ou debatendo-se entre as vagas revoltas do oceano, para a ir salvar!?... Qual o que se não vê ferido mortalmente em defeza d'Ella, vivendo unicamente o tempo precizo, para exhalar o ultimo suspiro sob a pressão ardente dos seus labios!?...

Meus formosos vinte annos!... Que fugisseis... concedo; mas que me roubásseis essas loucuras, essas chymeras, esses absurdos, de que eu hoje rio, com os olhos razos d'agoa... é cruel!

Que saudades eu tenho d'esse tempo, em que se lê cem vezes a carta, que á primeira se decorou!

Os dois, talvez unicos, dizeres, que eu ainda hoje retenho exactos na memoria, são os da primeira oração, que minha mãe me ensinou na infancia, e os da primeira carta da mulher, que illuminou a minha adolescencia!

Perdoem este viçar de saudades, que assim rebentaram de repente em terreno, onde, de ha muito, se dão bem!

Eu queria dizer-lhes a origem das insomnias de Jorge, e o coração, semelhante a estes veteranos, que se aprumam e torcem marcialmente o bigode, ouvindo contar batalhas que lhes recordam as proprias, accelerou-se-me no peito, fazendo estalar o seu involucro de gêlo.

A intima convivencia é o mais horrivel dos martyrios, quando lhe falta inteira franqueza e perfeita intelligencia.

Se difficilmente a supportam os timidos e reservados, imagine-se quanto ella deveria pezar ao caracter rasgado e expansivo de Jorge.

Uma noite, em que o serão se arrastara quasi lugubre, o joven official de marinha, mal se achou só com o irmão no quarto, que habitavam em commum, arremessou para cima da meza um livro, que trazia na mão, e exclamou entre desabrido e magoado:

— Não pode!... isto não pode continuar assim! Luiz, que se occupava n'esse instante a ageitar os travesseiros, voltou-se e perguntou estupefacto:

— Que demonio tens tu!?... O que é que não póde continuar assim!?...

— Tem paciencia, Luiz — replicou o irmão, sem olhar para elle — tem paciencia!... Custa-me ter de te causar este desgosto; mas... é preciso!... endoideço se não ponho termo a este martyrio!... É preciso que eu parta.

— Tu dizes?... — exclamou Luiz, travando-lhe do braço.

— Digo... que é preciso que eu parta!... — replicou o outro com affectada resolução — Bem sei!... bem sei o que me vais dizer... É uma criancice... uma ingratidão deixar-te agora, que obtive uma commissão, que me permitte viver comtigo... Já não tem para mim a vida do mar os encantos, que tinha quando a abracei... E verdade tudo isso... tens razão; mas... que queres!?... Eu não posso viver aqui, quando tenho a certeza de que a minha presença n'esta casa é uma sombra, um pezo, um embaraço para todos... não posso!..

— Calla-te!... — atalhou Luiz, com desusada auctoridade — Ingrato só o os, quando recusas vêr a amizade, que todos te consagram!... Em que se fundam as tuas injustas suspeitas!?... Vamos!... falla!... Em que se fundam!?... Tu és um homem de coração e de senso... falla!...

— Pois não tens notado!?... Estarás por ventura cego!?...

— De certo — replicou Luiz — de certo estou cego, se ha, realmente, da parte dos outros para comtigo, motivo a arguições!... A sinceridade das minhas palavras prova-se pela minha presença n'esta casa; se eu tivesse notado a minima falta de attenção, não digo para comtigo!... para com a nossa boa Joanna, seria eu o primeiro a dizer-te: «Jorge!... vamo-nos, que somos aqui de mais!»

— Creio-te — retorquiu o irmão com azedume — mas... andas effectivamente cego. Onde está a alegria das vossas palestras ; a franqueza dos vossos folguêdos; a troca de idéas e impressões; tudo quanto me descrevias nas tuas cartas e que me fazia entrevêr um Eden!?... Não tens, como eu, notado a anciedade com que esperam a hora de recolher, para poderem respirar á vontade e arrancar a mascara, que a polidez lhes afivela ao rosto!?... Hoje, por exemplo, hoje!... Ah! Luiz!... tu não imaginas os esforços, que eu hoje fiz, para as pôr á vontade, para agradar, para remover as sombras, que, ordinariamente, entenebrecem os nossos serões!... E... em vão!... E como hoje... sempre!... Escutam-me por polidez e, mal me calo, vem o silencio d'ellas provar-me que lhes peza o ouvir-me!... E isto um dia, e outro, e todos, e sempre!... E tu dizes que não vês!?... É preciso estar cego ou... não querer vêr!

— O mal não está em eu não vêr, Jorge!... está em veres mal! Sabes o que eu tenho notado?... É o enlêvo com que te escutam; o enthusiasmo, que as tuas palavras despertam; o pranto que as tuas descripções lhes arrancam!... Ó cego, porque o cego és tu!... Ainda não reparaste no olhar, no verdadeiro olhar de mãe, com que as duas senhoras te acariciam, quando fallas!?... Onde perdeste o teu são juizo, Jorge?... Como podes tu imaginar-te um pezo, uma sombra, um embaraço, para quem te deve uma filha, que se julgava perdida para sempre... morta!?... Nunca olhaste para Bertha, quando fallas?... Pois repara, que é um estudo curioso... Impressionavel e nervosa, tanto se deixa dominar pelo interesse das tuas narrações, que repete fielmente os teus gestos!... Tu não sabes o que dizes, Jorge!

— E o silencio?... como o explicas?... — atalhou o irmão com ironia.

— Queres saber como o explico?... — retorquiu Luiz — como prova de deferencia!... de deferencia, sim, repito. Exactamente quando estás dando mais vida e realce ás tuas narrações, não sei que nuvem negra envolve de repente o teu espirito, porque hesitas, balbucias, gélas e terminas sempre com uma inflexão plangente e magoada, que fica a soar desconsoladora e melancholica nas almas, que te escutam!... Sabes o que lembra n'esses instantes?... que és victima d'uma dôr, cuja causa só conheces. Calam-se, porque imaginam que soffres!... Ahi tens como eu explico o silencio, que tanto te magôa!

— É engenhosa a tua amizade, Luiz!... — disse Jorge com accentuada ironia. — Serias um habil advogado, se a lealdade do teu caracter te não viesse prejudicar a defeza, filho!... Quando, ha pouco, buscavas convencer-me da amizade de todos, esqueceste alguem ou... não tiveste a coragem de proferir o seu nome. Ora, dize-me — continuou com azedume. — Tambem tens notado em Fernanda as mesmas manifestações de estima?...

Jorge proferira estas palavras, sem olhar para Luiz.

Este, sorrindo compassivo, ergueu-se da cama, onde estava assentado, dirigiu-se ao irmão e, passando-lhe os braços em volta do pescoço, perguntou-lhe com amoravel malicia:

— Porque não começaste por ahi, Jorge?...

— Porque... porque queria vêr... queria vêr até onde ia a tua premeditada cegueira... — replicou o mancebo com visivel enleio.

— És injusto, Jorge!... Antipathisaste com Fernanda á primeira vista, e nunca mais pudéste desfazer essa má impressão!...

— Antipathiso, é verdade!... — exclamou Jorge arrebatadamente — antipathiso; mas... não sou injusto!... se alguem aqui me deve affeição... é ella!

— Já que chegamos a este ponto — respondeu Luiz, sorrindo — vou provar-te que não sou cego, como ha pouco me chamavas: eu sei talvez melhor do que tu, de onde vem essa... antipathia!

— Tu!... — balbuciou o irmão.

— Eu, sim. Queres que t'o diga?... Vem... do amor, que lhe tens!

— Eu!... — protestou Jorge.

— Tu, sim, desgraçado!... Amal-a doidamente!... — affirmou Luiz, estreitando-o nos braços.

As palavras do irmão illuminaram de repente o coração de Jorge, que só então conheceu o que realmente sentia.

Desprendeudo-se dos braços de Luiz, o mancebo fitou-o assombrado:

— Amor!?... eu!... Oh! meu Deos! é amor!... é!... — exclamou, deixando-se cahir sobre uma cadeira, e escondendo o rosto nas mãos.

Ao cabo de alguns minutos, ergueu-se, como que impellido por occulta mola, e balbuciou:

— Adivinhaste, Luiz!... viste antes de mim o que se passava na minha alma; mas... agora, meu Luiz... agora é que é preciso que eu parta.

— Estás louco, Jorge!?...

— Não estou, Luiz!... não!... É preciso combater este amor sem esperança... este amor impossivel!... — Como podes fallar assim?... — retorquiu Luiz — Como podes chamar sem esperança e impossivel a um amor, que, ainda ha um instante, não conhecias?...

— Sem esperança... diz-me a frieza d'ella que o é; impossivel... torna-m'o a propria dignidade!... — redarguiu Jorge.

— Essa segunda razão, admittindo a primeira, confesso que a não comprehendo... — observou o irmão.

— Comprehendes, Luiz, comprehendes, se pensares um pouco... Admittindo que Fernanda me pagasse este amor, que lhe consagro, deveria eu confessar-lh'o?... Ah! não, Luiz!... Eram capazes de me suppôr infame, de vêr apenas ambição n'esse sentimento, que tem de morrer commigo!... diriam que abusei da gratidão d'aquella criança, para realisar uma especulação tôrpe!... diriam que me paguei por minhas mãos, Luiz!... E preciso que eu parta, filho!... é preciso!

— Não desatines, Jorge!... — atalhou Luiz, tentando acalmar a exaltação nervosa do irmão. — Ora tu, que has-de ter sempre vinte annos, Jorge!... Sempre criança!... Accorda por uma vez, sonhador impenitente!... Quem?... quem queres que te julgue capaz d'uma infamia?... A mãe?... a avó?... ella?... Louco!... Ah! Jorge!... tu não sabes o que vales... especialmente para esta gente! Tu, para estas almas, symbolisas a perfeição humana!... digo-t'o, juro-t'o eu, que conheço a veneração, a quasi idolatria, com que olham para ti!...

— E o mundo?... — perguntou Jorge.

— E a tua consciencia!?... — replicou Luiz orgulhosamente. — Mas, quando essa te não baste, que póde o mundo dizer?... que sabe o mundo da historia de Fernanda!?... És uma criança, Jorge!...

— Mas ella?... ella, que me não ama!?... — bradou o mancebo, cobrindo de novo o rosto com as mãos.

Luiz sorriu, descerrou os labios para fallar; mas, contendo-se um instante, volveu emfim:

— Ella... ella... valha-me Deos, Jorge!... Isso... é comtigo... Quem quer ser amado... emprega-lhe os meios... Tem paciencia, filho! Começas tarde o officio de namorado; mas... mais vale tarde do que nunca!

Luiz, fallando assim, buscava tomar menos sombrios os pensamentos do irmão; este, porém, encolhendo os hombros, murmurou com desalento:

— É preciso partir... Não pode... não pode amar-me!

— Escuta, Jorge... — rogou Luiz. — Has-de fazer-me um favor!...

— Dize...

— Não has-de partir, sem lhe dizeres que a amas...

— Condemnas-me a uma ausencia eterna, meu Luiz!... Se lhe dissér que a amo, e ella me repellir... não volto a Portugal.

— Farás depois o que entenderes; mas antes de partires, has-de confessar-lhe o teu amor... promettes? — insistiu Luiz.

— Prometto...

D'ahi a pouco, pensava Luiz, ageitando-se para dormir:

— Que duas crianças!... A elevação de sentimentos é, a maior parte das vezes, o unico obstaculo entre o homem e a felicidade!

No dia seguinte, durante a ausencia do irmão, que precisara de ir á cidade, Luiz teve uma demorada conferencia com a mãe de Bertha. Quando reapparecêram na sala commum, o mancebo parecia profundamente pensativo, e Sophia denunciava, no afogueado dos olhos, que o dialogo não corrêra sem lagrimas.

IV

Algumas semanas deslisaram, sem que se désse a minima alteração na maneira de viver de todos aquelles entes, a quem só faltava saber bem o que queriam.

Ou porque desejasse encobrir o que sentia, ou por empenho de agradar, Jorge fazia esforços inauditos, para parecer alegre; mas, como só a verdadeira alegria é communicativa, as suas palavras tinham, como certas febres intermittentes, a particularidade de gelar e abrazar alternadamente, sem jamais conseguirem aquecer.

Ainda assim, o mancebo tinha, ultimamente, um lenitivo ao que soffria; podia, graças á explicação, que haviam tido, desabafar com o irmão.

Luiz via-se obrigado a acalmar-lhe a exaltação, e as apaixonadas expansões de Jorge terminavam, todas as noites, por estas palavras: «Amanhã... fallo-lhe e... fujo!...»

— Pois falla, homem!... É melhor — respondia Luiz.

Ao cabo d'uma semana de chuva, raiara um dia de esplendida formosura. A tarde, tépida e amêma, ordenara a um raio de sol, que, antes de desapparecer, fôsse bater nas vidraças, convidando Bertha a ir visitar as flôres, que por ella se finavam de saudades.

Não tinha Bertha coração, que resistisse a tal convite. Tanto pediu e argumentou a travêssa, já affirmando que deviam estar enxutos os caminhos, já soccorrendo-se da auctoridade de Luiz, para convencer os outros da necessidade d'um passeio, que conseguiu leval-os a todos comsigo.

Haveria meia hora, que se haviam assentado sobre umas pedras toscas, para dar tempo a que Bertha formasse um ramo das flôres, que fôra colhendo na passagem, quando ella, lançando os olhos em roda, exclamou:

— Ah!... Onde está a Fernanda!?... e o Jorge!?...

Como repetisse a pergunta, Luiz, depois de breve hesitação, respondeu:

— Naturalmente... cansaram antes de nós, e... assentaram-se.

— Vamos ter com elles... — propoz Bertha, erguendo-se.

Pouco depois, retrocedendo por onde tinham vindo, Bertha, que se adiantara dos mais, bradava com indizivel angustia:

— Corre, Luiz!... acode!...

Conhecendo, pelo som d'aquella voz, que era grave o motivo, voaram todos ao chamamento da joven.

Bertha, ajoelhada no meio do caminho, cobria de lagrimas e beijos o rosto de Fernanda, que jazia sem accordo.

Vejamos o que se tinha passado.

Fernanda, parando para colher umas flôres sylvestres, distanciara-se do grupo, e Jorge, depois de trocar um olhar com o irmão, retrocedera para se dirigir a ella.

Vendo-o aproximar-se, Fernanda quiz apressar o passo, para evitar um dialogo sem testemunhas com o mancebo; este, porém, que resolvêra pôr termo ao martyrio, em que vivia, disse-lhe com voz repassada de amargura:

— Tem medo de mim, Fernanda!?... Foge!?...

— Eu!... — replicou a joven, trémula e rubra de pejo. — Que loucura!...

— Será loucura... será!... Perdôe-me, Fernanda!... Apoderou-se de mim a desconfiança de que me evita... de que me vê com repugnancia... — balbuciou o mancebo.

— Oh! snr. Jorge!... Nao seja injusto!... — protestou a joven com vivacidade. — Que fiz eu, para me julgar ingrata!?

— Ah! sim... a gratidão!... não me lembrava d'isso... da gratidão...

— Que tem, snr. Jorge!?... — perguntou Fernanda, com as lagrimas nos olhos. — Eu que disse... que fiz... para duvidar da minha gratidão, pois o senhor duvida... conheço-o!?...

— Perdôe-me, Fernanda... — volveu o mancebo, movendo melancholicamente a cabeça. — Perdôe-me!... Não fez... não disse nada... Não duvido... creia! Olhe... assente-se aqui... n'esta pedra... Conversemos como amigos velhos... Sabe que ainda não conversamos dois minutos a sós, desde que cheguei!?...

— Mas... — balbuciou Fernanda.

— Assente-se... peço-lhe!... Prove-me assim a injustiça das minhas suspeitas... Conversemos um instante!...

— Conversemos... — replicou a joven, tentando sorrir, e assentando-se.

Passados instantes, Jorge reatou o dialogo, perguntando:

— É feliz, Fernanda?...

— Se sou feliz!?... Como poderia deixar de o ser!?... Amam-me tanto a mim e... eu amo-os a todos tanto!...

— E basta-lhe essa... felicidade?... Nunca sonhou outra mais... completa?...

— Nunca... — murmurou Fernanda, sem erguer os olhos.

— Vivendo assim... no meio de corações, que a estremecem, nunca desejou ser amada... d'outra forma... de preferencia a tudo e a todos... por alguem, que o seu coração igualmente preferisse a todos os que ama?... — perguntou o mancebo com visivel anciedade.

— Nunca, snr. Jorge...

— Então... não ama ninguem, Fernanda!?...

— Oh! snr. Jorge!... Essa pergunta... a mim!... Se não amo ninguem!?... E então... Bertha!?... e minha avó!?... e o anjo, que me serve de mãe!?... e... todos!?... — replicou Fernanda com volubilidade.

— Não me comprehende, ou... finge não me comprehender!... — atalhou Jorge com expressão de censura. — O que lhe pergunto, Fernanda, é se no seu coração existe a imagem d'um homem, por quem... se fôr preciso... abandone todos os que ama?...

— Não, snr. Jorge... não existe — replicou a interrogada com firmeza.

O mancebo calou-se alguns minutos, entretendo-se a decapitar umas pobres flôres, naturalmente para as punir, pelo crime de ouvirem o que elle dizia.

Tomando, finalmente, uma resolução, Jorge disse com voz grave e dolorosa:

— Escute-me, Fernanda!... Em vesperas de partir...

— Partir!... o senhor!?... — exclamou Fernanda, erguendo-se pallida e trémula.

— Eu, sim, Fernanda... — affirmou Jorge. — Peza-lhe que me ausente?...

— Se me peza!?...

Havia tal energia, tam accentuada magoa na voz da joven, que o mancebo sentiu penetrar-lhe na alma o dôce calor da esperança, que logo se apagou, quando Fernanda proseguiu:

— Como não ha-de pezar-me!?... e a seu irmão!?... e á pobre da Joanna!?... e a todos?... Não se lembrou de ninguem!?...

— Não, Fernanda!... - exclamou Jorge com inexcedivel vehemencia — não me lembrei dos outros!... lembrei-me só de ti!... Eu amo-te, Fernanda!... amo-te!... ouves!?... Repara!... trato-te por tu!... está rôto o meu segredo... quebrou-se o gêlo, que me cerrava os labios!... Ah! sim, eu amo-te, Fernanda!... Tu, que não sabes o que é amar, não podes imaginar o que eu soffro, Fernanda!... Também eu não sabia o que isto era!... Sei-o, desde que cheguei e te vi... tam formosa... tam boa para todos... menos para mim, que te amo mais do que elles todos!... mais, Fernanda!... muito mais!... Ah! Fernanda!... tu não imaginas... não podes... não podes avaliar o que é isto de chegar aos trinta annos, sem ter sabido o que é amor, e... e sentil-o de repente penetrar no peito... enroscar-se no coração... implantar-se no cerebro... correr no sangue... tornar-se a alma, que nos anima despertos e nos prova em sonhos, que vivemos!... Eu amo-te, Fernanda!... amo-te!... deixa-me dizer-t'o!... deixa-me provar-t'o antes de partir... porque eu parto, Fernanda... É preciso!... Tu percebes, Fernanda... tu comprehendes de certo, que eu... não devo... não posso ficar aqui comtigo sob o mesmo tecto... eu doido d'amor, tu... fria de gêlo!... Já vês que não é possivel!... Seria morrer lentamente!... Agora, que sabes o que eu soffro, não é possível... não hei-de estar a arremessar-te este coração aos pés, para que m'o calques a sangue-frio! Eu parto, Fernanda... parto; mas, antes, quiz que soubesses bem o que se passa na minha alma!... Quiz dizer-te, que te amo, e digo-t'o, e juro-t'o, e sinto um amargo prazer em t'o repetir!... Eu amo-te, Fernanda!... amo-te!...

Jorge calou-se, arquejando.

Fernanda, pallida, com os olhos cerrados, o seio a arfar, os labios entreabertos por um sorriso de inexcedivel ventura, escutava-o, contendo com as mãos o coração, e, apenas Jorge proferiu as ultimas palavras, bradou:

— Jorge!...

— Tu amas-me, Fernanda!?... — exclamou o mancebo, illudido pelo som d'aquella voz, que parecia partir d'um coração cheio de amor.

A joven recuou, baixou os olhos, e balbuciou com voz quasi inintelligivel:

— Não, snr. Jorge... eu não o amo!

Jorge fez um gesto de horrivel desespêro, hesitou e, em seguida, fugiu, bradando com indizivel angustia:

— Adeos, Fernanda!... Adeos para sempre!... Apenas o viu desapparecer, Fernanda, que ficara immovel, oscilou e cahiu sem accôrdo.

Eis o que se tinha passado.

V

Deve poder imaginar-se a azafama, que iria n'aquella casa!

Agora, que os animos vão socegando, entremos no quarto da avó de Fernanda.

Esta, que recuperou, ha um instante, os sentidos, chora silenciosamente, sem attentar em Bertha, que, ajoelhada diante d'ella, lhe beija carinhosamente as mãos.

Luiz, meio escondido pelas cortinas d'uma janella, agita machinalmente um pequeno frasco, e contempla curiosamente as duas irmãs.

Sophia da Cunha, collocada por traz de Fernanda, curva-se de vez em quando, para lhe dar um beijo e perguntar: «Estás melhor?...»

A avó, com as mãos convulsivamente enlaçadas, reza em silencio.

Joanna, a mulher energica, lida d'um para outro lado, já desdobrando a roupa da cama, já examinando se haverá agoa no jarro; tam depressa affirmando á avó de Fernanda: «Isto não ó nada...» como dirigindo-se a Luiz, para perguntar: «Isto que será!?»

— Mas que foi isto, Fernanda!?... perguntou timidamente Bertha. — Tu não tinhas ficado com o Jorge?...

Ouvindo este nome, um movimento nervoso fez tremer os labios da joven, cujo pranto redobrou, acompanhado agora por soluços.

— Que tens tu, Fernanda?... Falla... peço-t'o eu... a Bertha!... a tua Bertha!... Responde-me, Fernanda!... — instava a carinhosa menina, beijando-lhe as mãos.

Adivinhando as torturas, por que estava passando o coração de Fernanda, Luiz aproximou-se, obrigou brandamente Bertha a erguer-se do chão e, voltando-se para as outras pessoas, disse:

— Fernanda precisa de ficar só... Retirem-se, que eu as chamarei quando fôr necessario... Ora vão... vão... Eu fico aqui com a Joanna...

— A Joanna pode ir tambem; fico eu aqui — disse Sophia com uma inflexão, em que quantos alli estavam reconheceram, pela primeira vez, o desejo de quem quer ser obedecido.

Luiz acompanhou-as até á porta, que fechou cuidadosamente á chave. Quando voltou, os seus olhos encontraram-se com os de Sophia, e taes perguntas encerravam os d'esta, que se sentiu profundamente abalado.

Passados instantes, o mancebo dirigiu-se a Fernanda, e perguntou-lhe com voz insinuante:

— Que sentes ainda, Fernanda!?...

Não logrando resposta, Luiz proseguiu com expressão de censura:

— É preciso responder, Fernanda... Lembra-te que, a esta hora, está perto d'aqui alguem, que endoidece... morre de anciedade, por não saber, se estás melhor!...

— Perto d'aqui!... quem!?... — perguntou Fernanda, aprumando-se.

— Quem!?... Ora quem ha-de ser!?... Tu bem sabes que não pode ser senão o Jorge... — replicou Luiz, a quem occorrêra esse estratagema.

— É falso!... — exclamou Fernanda com exaltação — Jorge partiu... disse-m'o elle!... Disse-m'o, Luiz!... disse-m'o e... eu deixei-o partir, quando bastava uma palavra minha para o reter!... Ai! como eu soffro, meu Deos!...

— E porque não proferiste essa palavra, Fernanda!?... — perguntou Luiz, entre severo e condoido.

— Porque?... — exclamou arrebatadamente a joven, que, notando, só então, a presença de Sophia, proseguiu — ah! estava ahi, minha senhora!?.. Pode ouvir... Não me recommendou elle, ha sete annos, no momento de partir, que não tivesse segredos para comsigo; que olhasse para si, como olharia para minha mãe?... Queres saber, porque não proferi essa palavra, Luiz!?... Quer saber, minha senhora!?... Ouçam!... ouçam, que este segredo mata-me!... Não a proferi, porque... o amo! Amo-o, sim!... amo-o desde o dia, em que elle me encontrou prostrada sobre as pedras da calçada, e me arrancou á miseria!...

— Porque lhe não disseste isso a elle, louquinha!?... — perguntou amoravelmente Sophia, estreitando-a nos braços.

— Porque, minha senhora!?... — bradou com desespêro a joven — porque o amo!... Ah! descanse, minha senhora!... não estou louca, Luiz!... Calei-me porque o amo!...

Voltando-se, em seguida, para os dois, perguntou com inexcedivel vehemencia:

— Quem era minha mãe, Luiz?... Quem era, minha senhora?... Ah!... eu esperava isso mesmo!... Empallidecem... desviam os olhos... calam se!... Ah!... já comprehendem porque lhe não disse que o amava!?... porque lhe não pedi de joelhos que ficasse!?... Queriam, que aquella mão leal se ligasse á minha?... queriam, que o filho da santa, que deixou no coração dos seus o amor e saudade, que se tributa aos anjos, ligasse a sua sorte ,á da... enjeitada; á filha da mulher , cujo nome nem ao menos ousam proferir, com medo de manchar os labios!?... Ah! não!... não me calo, Luiz!... eu preciso de fallar!... Não sabe, minha senhora?... Não sabe, não, que n'esse coração não tem entrada sentimentos d'estes!... Não sabe o que eu sentia nos primeiros tempos, quando a via afagar a sua Bertha?... Sentia inveja!... sentia quasi odio á pobre criança!... E pensa que soffria menos, se, largando-a a ella, me abraçava a mim!?... Soffria mais!... tinha remorsos!... pareciam-me os seus beijos um roubo feito a Bertha!... e tinha vergonha!... vergonha de minha mãe, que assim cedia a outra os seus direitos e deveres!... Ah! deixem-me! deixem-me fallar!... Que me perdôe Deos a blasphemia, se o é, mas eu não devo nada a essa mulher!... Ah! não me calo, Luiz!... Dize-me, tu... tu que és irmão d'elle... honrado e digno como elle!... Como querias tu, que eu lhe dissesse que o amava!?... Querias vêl-o morrer de vergonha, se, um dia, vendo-nos juntos, ouvisse alguem dizer com desprezo: «Lá vai o que casou com a enjeitada...» E se... um dia... essa mulher viesse dizer-lhe: «Esta é minha filha?...» Deixa-me terminar, Luiz... N'esse dia... se ella viesse reclamar-me... não morria elle, Luiz!... morria eu, minha senhora!... morria, Luiz!... morria de vergonha, se a visse a ella... a essa mulher, em quem ninguem ousa fallar, e cuja infamia recahe sobre mim!

— Cala-te, desgraçada!... — bradou Luiz, cingindo-a com um braço, e tapando-lhe a bôcca com a mão — cala-te, louca!... Repara, que matas tua mãe!

O mancebo, soltando a joven, correu para Sophia, que, quasi deitada n'um sofá, continha o coração com as mãos, e parecia prestes a exhalar o derradeiro alento.

— Perdão, minha senhora!... — bradou o mancebo, ajoelhando, e estreitando-lhe as mãos — perdão para ella, que não sabe o que diz!... Oh! eu comprehendo o que deve soffrer, minha senhora!... Foi mais do que expiação... foi a palma do martyrio!...

Ouvindo estas palavras, Fernanda, a quem a interrupção do mancebo chamara aos olhos o desvairamento da demencia, fez um gesto indescriptivel e, soltando um grito, mixto de esperança e duvida, ventura e remorso, exclamou, como se pensasse, fallando:

— Minha mãe!... ella!?... mas... ella é um anjo!... uma santa!... mas... eu... então não sou enjeitada!?... E Jorge... sabe-o!?... Mas então... então... Oh! meu Deos!... meu Deos!...

E Fernanda, correndo para a mãe, cahiu-lhe aos pés, exclamando, desfeita em lagrimas:

— Ó minha santa mãe!...

Sophia, pallida, com o sorrir dos martyres a esvoaçar-lhe nos labios, o peito a arfar da intima emoção, tateava, com mãos trémulas, a formosa cabeça da joven, e balbuciava com voluptuosidade:

— Filha!... filha!... minha filha!

Fernanda com a fronte poisada sobre os joelhos da mãe, soluçava. Luiz, cobrindo os olhos com um lenço, chorava silencioso.

De repente a joven ergueu-se, dirigiu-se para Luiz, travou-lhe do braço, e conduziu-o, quasi á força, para a porta, dizendo:

— Sahe, Luiz!... Deixa-nos... deixa-nos sós!... deixa-me com minha mãe!...

E a pobre criança accentuava as palavras «minha mãe», como quem só agora lhes conhecia o valor.

Apenas o mancebo sahiu, Fernanda fechou apressadamente a porta, e voou para junto de Sophia.

É impossivel descrever aquella scena.

Fernanda tam depressa se erguia para oscular com avidez os labios da mãe, como lhe cahia aos pés, para lhe beijar as mãos.

— Oh! minha mãe!... — dizia, rindo e chorando a um tempo — como é formosa! e como eu a amo!... e como é bom poder dizer: «minha mãe!» Se soubesse... Ah! deixe-me abraçal-a outra vez!... Sabe, minha mãe?... Parece-me que só agora a conheço!... Outro... dê-me outro beijo, minha mãe!... Ah! obrigada... obrigada, minha querida, minha boa, minha santa mãe!... Olhe!... não se ria, não?.. Parece-me que nasci hoje... Mas... diga-me... Porque me não disse ha mais tempo, que eu era sua filha!?... porque?... Ah! perdão... perdão!... Não diga!... não quero que diga!... que ninguem o saiba!... Que me importa isso, se eu... já não sou enjeitada?... se nunca o fui?... Porque eu não sou enjeitada, pois não?... Quem enjeita os filhos, não os tem comsigo... não os educa... não os ama, pois não?... E minha mãe fez por mim o que poucas fazem!... Ha um segredo na sua vida?... Pois guarde o seu segredo... que ninguem saiba, que sou sua filha; mas olhe, minha mãe... Todos os dias... em segredo tambem... como agora... havemos de passar juntas... assim sós as duas... assim fechadas á chave... uma hora... É muito?... Meia hora... cinco minutos... o tempo que pudér ser!... mas esse tempo havemos de passal-o assim... sim?... eu a chamar-lhe minha mãe, e a mãe a chamar-me filha!... E olhe... Podemos tambem fallar d'elle... de meu pai!... Ahi está!... fil-a chorar... perdôe-me!

- Falla, filha!... falla!... falla mais!... falla sempre! — balbuciava a pobre mãe, beijando-lhe freneticamente a fronte — Tu não imaginas a ventura, que me dás, Fernanda!... Falla, minha filha!...

— Ah! como eu fui ruim ha pouco!... como deve ter soffrido!... Mas vê, minha mãe... eu mereço perdão!... Imaginar, adivinhar estas alegrias e não as poder gosar!... Era cruel, não era!?... E depois... por não ter o amor de minha mãe... — balbuciou a joven.

— Acaba....

— Cerrar o coração a outro amor... — murmurou Fernanda, baixando os olhos.

— Então... amal-o muito, filha?... — perguntou a mãe.

— Se o amo! ah! minha mãe!... Ouça... Eu amo-o tanto... tanto... que...

N'este momento, ouviu-se grande rumor na sala proxima, sobresahindo a voz de Jorge, que bradava:

— Enganam-me!... está em perigo!... deixem-me vêl-a!... eu quero... eu hei-de vêl-a!

— É elle, minha mãe!... — exclamou Fernanda, correndo para a porta e abrindo-a, para se deixar cahir nos braços de Jorge.

Era um quadro commovente aquelle!... Indifferentes aos olhos marejados de pranto, que os observavam, pois com o mancebo tinham entrado todos os que aguardavam o fim do dialogo da mãe com a filha, os dois formavam um quadro, de inexcedivel formosura!

Jorge, oppresso pela inesperada ventura, sentia-se desfallecer e empallidecia, ao passo que Fernanda, animada ainda pela exaltação anterior, o contemplava com olhos cheios de vida.

— Perdôa-me, Jorge!... — bradava, enlaçando as mãos por traz do pescoço do mancebo. — Perdôa-me!... Menti-te!... eu amo-te!... amo-te desde criança... desde quando não sabia ainda o que era isto, que me fazia pensar em ti a todo o instante!... As tuas cartas, Jorge... tenho-as eu!... todas!... Não eram para mim?... Que me importava isso?... Eram tuas!... Pede ao Luiz, que te mostre uma... uma unica!... E ralava-se elle, por não saber quem lh'as tirava!... Tenho-as eu... todas!... Queres que t'as repita?... sei-as de cór! Menti-te, Jorge!... eu amo-te!... Fugia-te?... procurava não ficar só comtigo?... Tinha medo que adivinhasses o que eu sentia... parecia-me impossivel que tu, tam nobre, tam grande, tam superior a todos os outros homens, pudésses amar-me!... Quando m'o disseste, Jorge... oh! meu Deos!... eu não sei como não morri de prazer!... Parecia-me um sonho o que ouvia!... pedia a Deos, que me matasse antes de despertar!... E despertei, Jorge... e tive a coragem de repellir o teu amor!... e deixava-te partir!... Mas... sabes porquê!?... Ah! não, não!... não me perguntes porquê!... Depois, sim, minha... senhora?... Elle sabe tudo... não sabe?... Eu digo-t'o depois, Jorge... quando não houverem segredos entre nós!... Se tu partisses, Jorge... eu morria!... morria de certo... Ah! como eu sou feliz!... É como se só hoje os visse a todos pela primeira vez!... Como eu sou tua amiga, minha... Bertha!... Deixa-me chamar-te hoje... minha irmã!... deixa, Bertha!... o meu coração precisa hoje de imaginar, que possue tudo o que... lhe falta!... Olha... vês?... Tambem chamo irmão a Luiz... Dá-me a tua mão, Luiz!... Chora, minha avó?... Eu comprehendo as suas lagrimas... eu sei, eu hoje sei o que ellas dizem... Abraça-me, Joanna!... abraça-me tu, que o amas a elle como filho!...

Para que prolongar a descripção de scenas, que a penna mal póde reproduzir!?...

Passado tempo, quando serenou a agitação d'aquellas almas, Bertha, que se conservara pensativa, exclamou com simulado despeito:

— Ora esta!... a senhora Fernanda ter segredos para mim!... e segredos d'estes!...

— Talvez lhe desses o exemplo... — balbuciou Luiz ao ouvido de Bertha.

Soava tam differente do usual a voz do mancebo, e era tam submissa, que a joven corou; reagindo, porém, contra o enleio, Bertha respondeu com uma ironia, a que faltava a costumada expressão:

— Decididamente, o snr. doutor... treslê!

Luiz calou-se um instante; mas, fazendo em seguida um gesto, que poderia traduzir-se por esta phrase: «Aconteça o que acontecer», tossiu, assoou-se, e disse com comica seriedade:

— O dia de hoje foi assignalado por tantas emoções, que... hesito, não sei se devo dar-lhes uma noticia, que estão longe de esperar...

— Ahi está elle com os seus mysterios!... Vá!... dize depressa o que é!... — exclamou Bertha.

— Tem paciencia, minha querida Bertha; é mais difficil de dizer do que pensas!... Mas socega, Bertha, socega!... — accrescentou Luiz, notando a impaciencia da joven. — Faltaria a todos os deveres da gratidão, se me calasse por mais tempo... eu digo.

— Que solemnidade!... — observou a joven com um espanto, que por todos foi partilhado.

Passado um instante, Luiz continuou com voz mal segura:

— Contra o amor... não se lucta! Jorge dizia, ainda não ha muitas horas, um eterno adeos a Fernanda, e, pouco depois de receber um bilhete meu, que o criado da quinta lhe entregou no caminho, estava junto da que jurava não tornar a vêr!... Fernanda, pela sua parte, affirmava a Jorge que o não amava e, mal o viu, cahiu-lhe nos braços, jurando o contrario! Eu não sou mais forte do que elles... Perdôem-me, se ha mais tempo lhes não confiei este segredo; mas... eu caso!

— Tu, Luiz!?... tu casas!?... Ah! Luiz!... eu não esperava isso de ti!... Esconderes-me o que se passava na tua alma, quando eu te franqueava a minha!... — exclamou Jorge, profundamente magoado pela reserva do irmão.

— Perdôa-me, Jorge!... — balbuciou aquelle, curvando a fronte.

— Mas... mas isso não póde ser!... — exclamou uma voz abafada e trémula.

Era sincero o pasmo dos que acabavam de receber aquella confidencia; em quem, todavia, parecia ter produzido mais fundo abalo, era em Bertha, e em Sophia.

A primeira apresentava no rosto a expressão de susto, pasmo e como que idiotismo dos que viram cahir um raio a poucos passos de distancia; a segunda tinha no olhar, cheio de dôr, a pergunta dos que duvidam: «Será verdade!?»

O mancebo, que estudava disfarçadamente todas aquellas leaes physionomias, voltou-se para Bertha, e disse-lhe:

— Não pode ser!... disseste... Porque!?...

— Porque... porque... — volveu a joven, sem saber o que dizia — tu és tam moço!...

— Essa é melhor! — exclamou Luiz com seriedade — Tu não sabes que Jorge e eu somos gemeos!?... Eu tenho trinta annos feitos, Bertha...

— Pois sim... mas... não pareces... — balbuciou aquella com difficuldade.

— Muito obrigado, Bertha!... É a primeira vez que me lisongêas!... — respondeu Luiz.

— Então isso é ponto resolvido?... — perguntou Jorge, despeitado.

— O que ha de mais resolvido, se a familia me não negar o seu consentimento — replicou o interrogado.

— É moça, Luiz?... — perguntou Sophia.

— Bonita?... — disse Fernanda.

— É ella bondosa?... — accrescentou Joanna.

— É bastante mais moça do que eu; dizem os outros que é feia e... não hade ser das mais brandas... — respondeu Luiz.

— Mas isso não é retrato, que se faça d'uma noiva!... — exclamou Jorge — Tu não amas essa mulher, Luiz!...

— Amo!... — replicou este com energia.

— Mas quem é, a final!?... — bradou o irmão com impaciencia.

— Que é isso, Bertha!?... Tu que tens!?... — perguntou Fernanda, retendo a irmã, que se debatia, para fugir da sala.

— Não tenho nada!... deixa-me!... — respondeu Bertha, desviando o rosto, para esconder as lagrimas, que a voz trahia de sobra.

— Ouve-lhe o nome, Bertha! — exclamou Luiz. — A minha noiva chama-se Bertha da Cunha e Andrade!...

É impossivel descrever o alvoroço, causado por esta resposta!...

— Não me tinha enganado!... agradeço-te, meu Deos!... — murmurou, erguendo ao céo olhos cheios de gratidão, a mãe de Bertha.

Esta, vencida a primeira emoção, e enxutas as lagrimas pelos beijos da mãe e da irmãa, ergueu a fronte de sobre o hombro de Fernanda, e exclamou n'um d'aquelles impetos, que a tornavam adoravel:

— Pois estás muito enganado!... Não te quero, não!... És presumpçoso e... mau!.., não te quero!

Acalmado o riso, provocado por estas palavras, disse Fernanda maliciosamente:

— Ora esta!... A snr.ª Bertha ter segredos para mim! e segredos d'estes!...

— Não, senhora!... não tem de que se queixar — atalhou a joven, que se lembrava de ter proferido aquellas mesmas palavras. — Eu não sabia, que gostava d'elle!...

Novos risos acolheram esta ingenua confissão de Bertha.

Luiz, mais commovido do que parecia, assentou-se junto d'ella, e, pegando-lhe nas mãos, disse-lhe:

— Escuta, Bertha... Tu disseste ha pouco a verdade; tu não sabias que gostavas de mim. O mesmo se dava commigo, Bertha!... E queres saber como descobri o que se passava no meu coração?... Ora vais vêr, como um homem descobre de repente que gosta d'uma... criança... (criança, sim!... olha que eu trouxe-te muita vez ao collo) d'uma criança, feia e ruim, como eu disse ha pouco.

— Has-de pagar tudo isso!... — disse Bertha, ameaçando-o com o dêdo.

— Escuta... Hontem pela manhã conversei muito com tua... com nossa mãe... — emendou Luiz. — Tratava-se d'estes amores de Fernanda e de Jorge, que não conseguiam entender-se. Tua mãe poz fim ao nosso dialogo com estas palavras: «Eu só peço a Deos, que a minha Bertha escolha um homem tam digno e leal, como aquelle a quem Fernanda entregou o seu coração!»

— Tenha paciencia, mamá!... Deos d'aquella vez não a quiz ouvir... — observou a travêssa.

— Não sejas ruim, Bertha!... — atalhou Luiz. — escuta... Aquellas palavras de tua mãe deram-me que scismar!... Não me podia convencer, que se referissem a ti; parecia-me impossivel que pudesses casar!... Então... que queres?... Era uma tolice, mas parecia-me que tu e eu devíamos indeffinidamente continuar a viver aqui, disputando a cada momento, representando sem cessar a harmonia do cão com o gato!...

— Olhem que comparação!... — protestou Bertha. — Ha-de ser sempre assim!... Isto é castigo do céo, por mais que me digam!

— Á força de pensar nas palavras de tua mãe — continuou Luiz, com pronunciada emoção — conheci que... te amava, Bertha!... Que momento aquelle, meu Deos!... Pensas que senti jubilo?... Enganas-te!... senti medo!... medo, sim!... Entrei a fazer hypotheses desanimadoras; parecia-me impossivel, que pudesses amar-me; achava-me velho, feio, sem graça... Ai! que vinte e quatro horas eu tenho passado, Bertha!...

— Ao menos... conhece-se... — balbuciou a travêssa, sem attentar em que as duas lagrimas de emoção, que lhe corriam ao longo das faces, lhe desmentiam as palavras.

— Eu, porém, Bertha — continuou Luiz — sou dos que gostam de desafiar o destino. Quando ha pouco affirmei, que casava, os meus olhos estudavam anciosamente o teu rosto e o de tua mãe... Foi um lance cruel, Bertha!... Se não descobrisse na tua commocão, que o mesmo sentimento, ainda hontem desconhecido para mim, jazia adormecido na tua alma... se não lêsse nos olhos de tua mãe, que as minhas palavras (perdôe-me a vaidade, minha senhora!) — accrescentou Luiz, dirigindo-se á mãe de Bertha — lhe destruiam uma illusão... se em vez da felicidade eu só colhêsse um desengano... então, Bertha... diria, que era apenas um gracejo; buscaria e havia de conseguir esconder no fundo d'alma o que sentia; ficaria aqui só para te vêr... e... se um dia casasses... teria a coragem de pedir a Deos, que te fizésse feliz... seria o guia, o mestre de teus filhos... ficaria sendo n'esta casa...

— O anjo bom da familia, o anjo da guarda e de paz!... — interrompeu a mãe de Bertha, lançando os braços em volta do pescoço de Luiz, e beijando-o maternalmente na fronte.

A voz grave e sentida do mancebo chamara lagrimas de verdadeiro enternecimento aos olhos de todos, e Sophia, nas suas singelas palavras, traduzira o pensar e o sentir de quantos tinham escutado a ingenua confissão do leal e bondoso rapaz.

— Mas como se fazem agora estas coisas, assim, em segredo!?... Eu não tinha dado por nada d'isto!... — exclamou Joanna, enxugando os olhos.

— Essa falta de perspicacia, minha boa Joanna — retorquiu a mãe de Bertha — é o unico facto, que prova não sêres mãe d'elles!... Se fôsses a verdadeira mãe... tinhal-o descoberto immediatamente.

Tres mezes depois, effectuavam-se no mesmo dia, e á mesma hora, dois casamentos.

Regressando da igreja, Jorge pediu que o dispensassem por dez minutos, e correu a encerrar-se no quarto. Quando voltou, trazia na mão duas cartas, que entregou a um criado, com ordem de as ir levar sem demora ao correio.

— Onde vai, Francisco?... — perguntou Sophia ao criado, encontrando-o no corredor.

— Vou, de mando do snr. Jorge, levar estas duas cartas ao correio — replicou o interrogado.

Sophia, lançando machinalmente os olhos para as cartas, leu em ambas:

Exc.mo Snr.

João da Cunha

AVELLANEDA.

— Que será isto!?... — perguntou ella mentalmente:

O que a mãe de Fernanda se não atreve a indagar de Jorge, vamos nós dizel-o ao leitor.

Uma das cartas dizia:

Exc.mo Snr.

Envio a V. Ex. o espolio da enjeitada Fernanda, que hoje deixou de existir.

Jorge do Amaral.

O espolio era — a declaração, feita á hora da morta pelo homem; que vigiara a infancia da joven, e — o sello da roda, que a mesma usara durante doze annos!

Na outra carta lia-se:

Jorge do Amaral dá parte a V. Ex.ª do seu casamento com a Ex.ma Snr.ª D. Fernanda de Albuquerque.

EPILOGO

Haveria trez mezes, que a ventura parecia ter estabelecido domicilio na quinta de Pedras-rubras, quando Jorge recebeu o seguinte telegramma.

«Snr, Jorge do Amaral.

João da Cunha deseja vêl-o antes de morrer, É preciso que se não demore, se quizer chegar a tempo.

Outeiro.»

Duas horas depois, tendo, á força de supplicas e caricias, conseguido, que Sopliia os não acompanhasse, Jorge e Luiz partiam para Avellaneda.

Jorge oppuzera ao amor filial o amor materno, e vencêra, dizendo-lhe:

— Se vai, Fernanda não desistirá de a acompanhar, e a mãe deve prevêr o effeito, que a presença d'ella pode produzir no animo do moribundo.

Era quasi noite, quando os dois gemeos chegaram, no dia seguinte, a Avellaneda.

Que impressão lhes teria causado o aspecto da casa, em que nascêra, e estava áquella hora a finar-se, João da Cunha, se a tivessem visto na épocha, em que começou esta narrativa!

Que de mudanças em vinte annos!

As ruas, cheias de hervas ruins e os muros desmoronados pareciam annunciar a proximidade de casa ha muito sem moradores, e deshabitada parecia a que se apresentava, ao fundo, com as paredes ennegrecidas, e as grades das varandas carcomidas pela ferrugem.

Os dois jovens sentiram um secreto terror, quando, batendo á porta, ouviram a resposta cavernosa e lugubre, que os éccos do collossal edificio davam ao seu chamamento.

Passados minutos, um som de passos trôpegos, e o tossir tremulo e frouxo de peito cavado pelos annos, vieram provar-lhes, que tinham sido ouvidos.

Pouco depois, um ferrolho enorme rangeu, cedendo a demorado esforço, e abriu-se a porta.

— É o snr. Jorge do Amaral — perguntou, quasi immediatamente, alguem, que a escuridão do atrio não deixava distinguir.

— Um seu criado — replicou o mancebo. — Esperava-me?...

— Era meu o telegramma... Queira subir...

— Entra, Luiz... — disse Jorge ao irmão.

— Vem acompanhado?... — perguntou o introductor.

— É meu irmão.

— Ah!... tenham a bondade de subir.

Á luz do candieiro de metal, que ardia sobre uma meza, no meio d'uma sala enorme, pudéram os dois mancebos analysar o homem, que os recebêra.

Era uma sympathica figura de velho, em quem os annos e os achaques não tinham podido apagar o cunho caracteristico do soldado.

O rapido olhar, por elle lançado aos visitantes, de certo o satisfez, porque uma expressão de sincera benevolencia veio animar-lhe a physionomia.

— Agradeço-lhe a sua vinda, snr. Amaral — disse elle. — Não sabe quanto lh'a agradeço!... Depois que expedi o telegramma, tenho contado os minutos!... Se se demora até amanhã, não sei se o encontraria vivo!...

A voz do ancião tremia, sobre tudo quando accrescentou:

— Pobre João da Cunha!... Ao menos... não morres... sem satisfazer esta ultima vontade!

— Mas que foi isto, snr. Outeiro?... Elle estava doente?... — perguntou Jorge.

— Não, senhor!.. — replicou o velho. — Foi uma queda!... Era o seu unico prazer... o montar a cavallo!... Eu bem lhe dizia, que já não estava em idade de se expôr; mas... aquelle genio!... aquelle genio!... Olhe que, ainda agora, snr. Amaral... fazia gosto vêl-o cavalgar!... Parecia atarrachado á sella!... para elle não havia nem fossos, nem paredes! o cavallo tinha obrigação de vencer tudo aquillo, como se só tivesse em frente o leito batido d'uma estrada!... A final... ahi está o resultado! Na segunda... é isso... na segunda-feira... ao passar, lá em baixo, n'um sitio perto d'aqui, chamado o Carrascal, o cavallo teve medo, estacou de repente no meio da carreira, e o meu pobre camarada, cuspido da sella... foi bater com o peito n'uma cruz de pedra, que ergueram ha annos, por causa d'uma morte que alli fizeram!

— Como se chamava o sitio!?... — perguntou Luiz, trocando com o irmão um olhar cheio de expressão.

— Carrascal... — replicou o velho.

Os dois irmãos tornaram a mirar-se, pallidos e surpresos.

— Se me dão licença, vou prevenir João da Cunha, de que está aqui quem tanto desejava ver... — disse o ancião.

— Quando entender... — balbuciou Jorge.

Minutos depois, eram os dois introduzidos no quarto do moribundo.

Recostado sobre travesseiras, esperava-os João da Cunha, que parecêra um cadaver, se os olhos lhe não brilhassem com extraordinario fulgôr.

A fronte completamente calva, o rosto cortado em todas as direcções por fundas rugas, a barba crescida e alva de neve, espalhada sobre o peito, um dos braços nú e magrissimo, mas mostrando ainda a robusta construcção d'aquelle corpo de ferro, tudo isso reunido dava-lhe o aspecto d'um gigante, vencido pelos annos e pelas vigilias.

— Obrigado, meus senhores!... — disse elle commovido. — Eu tinha a certeza de o não chamar em vão; só tinha medo de que chegasse tarde, snr. Jorge.

Uma exclamação de espanto, que Luiz não poude conter, chamou a attenção do enfermo e de Jorge.

— Comprehendo!... — disse João da Cunha, com voz de inexcedivel doçura. — É a sua Bertha... a minha neta!...

Effectivamente, Luiz, erguendo os olhos, vira o retrato da esposa, collocado em frente da cama do moribundo.

— E a sua Bertha... é!... E... olhe! alli tem a mãe!... e aquella... não a conhecêram!... era a minha Fanny!... Que querem, meus senhores!?... O suicidio é um crime, e eu... que morria mais depressa, se não tivesse aquellas imagens, para me minorarem as saudades... cerquei-me de tudo o que pudésse ser sombra de felicidade, pois a verdadeira... essa... perdi-a por minha culpa... Não digo bem... Foi a fatalidade!...

— Snr. João da Cunha.. — balbuciou Luiz, commovido — creia que comprehendemos...

— Não!... não comprehendem!... — exclamou o moribundo, movendo melancholicamente a cabeça.

— Outeiro... — proseguiu elle, dirigindo-se ao amigo, que entrara com os dois jovens — perdôa-me pedir-te, que te retires... São negocios de familia, meu velho amigo... Ha coisas, que nem a um bom e leal camarada, como tu, se podem dizer...

— Essa é boa, João!... — retorquiu o outro, tentando parecer sereno. — Chama-me quando quizéres...

— Snr. Jorge... — prirtcipiou o enfermo, apenas ficou só com os jovens. — Mandei-lhe pedir que viesse, porque... espero... por sua intervenção... obter de sua esposa perdão para... para quem a fez orphã...

— Snr. João da Cunha — replicou o mancebo com voz solemne. — Juro-lhe que Fernanda ignora o nome do... assassino de seu pai; é o unico segredo, que existe entre mim e ella!...V. exc.ª tem diante de si as duas únicas pessoas, que sabem esse nome!...

— Obrigado, snr. Jorge... Cumpriu as suas promessas...

— Não, senhor!... replicou o joven. — Obedeci apenas aos dictames da minha consciencia, que me não permittia tornar um pai menos respeitavel aos olhos de seus filhos.

— Obrigado, senhor!... obrigado!... — balbuciou o moribundo, de cujos olhos se desprendeu uma grossa lagrima.

Apoz breve silencio, disse com voz fraca, depois de ter tirado, com difficuldade, uma chave, que trazia ao pescoço, presa por uma fita:

— Queira abrir aquelle cofre e trazer-me uma caixinha, que lá está...

Jorge cumpriu o desejo do enfermo, que lhe disse, apenas o joven collocou a caixa sobre a cama:

— Queira abrir...

O mancebo obedeceu, e não ponde reprimir um movimento de repugnancia, vendo o conteúdo: era o documento, que lhe tinha enviado tres mezes antes, e o sello da roda.

— Queira lêr... — disse João da Cunha.

— Eu!?... — exclamou Jorge aterrado — mas... para quê?... a leitura d'este documento não pode deixar de magoal-o... Quando lh'o mandei... creia-me. snr. João da Cunha... o meu fim era, agora que Fernanda tem o meu amor para a proteger, entregar-lhe a unica arma, que podia prejudical-o... Eu nunca imaginei, que v. exc.ª tivesse conservado...

— Conservei, snr. Jorge... conservei, porque queria esclarecer factos, que para mim se passaram como em sonho, e em que eu nunca vi com perfeita lucidez. Todos os dias, promettia a mim mesmo lêl-o; mas... chegada a occasião... faltava-me o animo!... Leia, snr. Jorge!... será uma expiação... é uma especie de confissão... leia!...

Jorge, rasgando o papel, que envolvia o documento, leu com voz solemne e commovida:

«Tendo Deos permittido, que eu conservasse toda a lucidez do meu espirito até á hora extrema, que presinto proxima, e não me consentindo o meu estado fazel-o por rainha mão, pedi a Jorge do Amaral, que por mim escrevesse esta confissão, a qual juro perante Deos, que breve tem de julgar-me, ser apenas a expressão da verdade.

No dia... de setembro de 184... foi assassinado em Traz-os-Montes, a duas legoas de Avellaneda, no sitio do Carrascal, Fernando de Albuquerque.

O assassino fui eu; tive um unico cumplice — João da Cunha, proprietario, ex-capitão de cavalleria no exercito de D. Miguel.

Como, porém, este crime deu origem a outro não menos grave, e esta minha confissão tem por fim salvaguardar interesses de terceiro, narrarei os factos, como elles realmente se passaram.

Fernando de Albuquerque foi advogado, contra mim, n'uma causa em que eu fui injustamente condemnado por crime de roubo.

Declaro, que Fernando de Albuquerque me julgava, em sua consciencia, réo, para o que contribuiram as provas, que, por uma horrivel fatalidade, eram todas contra mim.

O estigma de ladrão, tornando impossivel o casamento, que eu tratara com uma rapariga, a quem amava desde a infancia, e fechando-me as portas a que eu costumava ir pedir trabalho, para sustento de minha mãe e meu, despertou na minha alma uma sêde implacavel de vingança.

Pensando noite e dia no modo de a saciar, mas não ousando fazel-o, porque o facto da minha condemnação era recente, e faria com que todos me accusassem, comecei a seguir como sombra a minha victima, na esperança de que um incidente qualquer me proporcionasse favoravel ensejo.

Á força de o seguir, acabei por descobrir, que Fernando de Albuquerque amava a filha de João da Cunha, em casa de quem se introduzia secretamente em dias determinados, coincidindo isso com a ausencia do dono da casa n'esses mesmos dias.

A vingança suggeriu-me imi plano infernal. João da Cunha era conhecido pela sua intrepidez e implacavel orgulho. Rico e aparentado com as principaes familias da provincia, era o protector, que me faltava.

Andava eu amadurencendo o meu plano, quando, estando proximas as eleições para deputados, Fernando de Albuquerque se propoz candidato.

Esperando, que a sua morte fôsse attribuida a odios politicos, resolvi aproveitar o ensejo; mas para adquirir um protector, no caso de ser descoberto, escrevi e mandei entregar a João da Cunha o seguinte aviso:

«Pede-se ao snr. João da Cunha, que abra os olhos e veja o que se passa em sua casa. Se, hoje á noite, quizér ter o trabalho de se pôr á espreita, verá entrar ou sahir Fernando de Albuquerque. Lembre-se o snr. João da Cunha, que, pela idade, podia ser pai de sua mulher.»

Referindo-me á esposa, e não á filha, eu tinha a certeza de despertar no coração d'aquelle homem um odio tam implacavel como o meu.

Apenas anoiteceu, introduzi-me na matta, que domina a casa de João da Cunha, e, trepando, escondi-me entre os ramos d'uma arvore. Meia hora depois, entrava o meu cumplice na matta, trazendo na mão uma espingarda.

Do sitio, onde estava, ouvia-lhe as imprecações de raiva.

Seriam dez horas da noite, abriu-se uma janella lateral, e ouvi a voz abafada de João da Cunha dizer:

— Maldição!... sahe pelo lado de lá!

Vendo-o correr n'aquella direcção, saltei da arvore, corri atraz d'elle, e cheguei a tempo de o agarrar, quando já mettia a arma á cara, para desfechar sobre o outro, cujo vulto destacava no cimo d'uma pequena elevação de terreno.

Arrancando-lhe das mãos a espingarda, disse-lhe, quando elle se voltou, para vêr quem o segurava:

— Que faz, snr. João da Cunha?... Aqui!?... Quer que todos ponham logo a bôcca em si!?...

Como elle, de raiva e espanto, não pudésse responder, continuei:

— Prometta-me olhar por minha mãe, e eu livro-o d'elle ainda hoje!

— Prometto ... — volveu.

Não esperei mais resposta, corri atravez das vinhas e, quando Fernando de Albuquerque chegou ao Carrascal, já eu o esperava, havia dez minutos, escondido atraz d'uma arvore.

Elle trazia o cavallo a passo e eu podia, por conseguinte, fazer pontaria á vontade. Desfechei: Fernando cahiu, e o cavallo, assustado, fugiu a toda a brida.

Nos dias seguintes, não se fallava n'outra coisa, attribuindo todos o facto, como eu previra, a vingança politica.

Ao cabo de oito dias, procurou-me João da Cunha, para me dizer, que o viesse esperar no Porto.

Vim, e alojei-me perto da rua, onde me disse, que vinha residir.

Eu não sei o que se tem passado no coração de João da Cunha; no meu mora o remorso, desde que o crime lhe deu origem!...

D'ahi a tempo, confiou-me João da Cunha, que eu me havia enganado; que as visitas de Fernando eram para sua filha; que esta se achava em vesperas de ser mãe e que eu, seu cumplice, me havia de encarregar de lançar a criança á Roda.

Insurgi-me contra este novo crime, — eu, que originara o primeiro! — João da Cunha, porém, lançou-me um olhar tam sinistro, tam cheio de ameaças, que principiei a imaginal-o capaz de se desfazer de mim apenas pudésse.

Annui.

Uma tarde, veio elle dizer-me:

— Aquillo é amanhã... Não tenhas medo, que eu acompanho-te.

Na noite seguinte, recebia eu nos braços, e embrulhava n'um capote, que elle para esse fim me emprestou, a filha de Fernando.

O remorso, o desejo de reparar o mal que fizera, suggeriram-me a idéa de escrever, e metter entre as roupas da criança, um bilhete dizendo: «Pede-se o favor de pôr a esta menina o nome de Fernando, ou Fernanda, conforme o sexo a que pertencer.»

Assim o fiz, esperando que, por ser pouco vulgar, me fôsse mais facil descobrir, um dia, onde parava a criança.

No caminho, porém, lembrei-me, que poderiam na Roda pôr o mesmo nome a outras, e, tirando do bolso uma navalha, dei-lhe ás apalpadellas, dois golpes n'um braço.

A criança gemeu, João da Cunha soltou uma blasphemia; eu, porém, cingi ao peito a innocentinha e apressei o passo.

D'ahi por dez minutos... estava mais um crime consumado.

Quando, quinze dias mais tarde, procurei João da Cunha, para lhe pedir dinheiro, achei a casa fechada e soube, que tinha partido com a mulher e a filha para Inglaterra.

Principiei a luctar contra a miseria. Depois de tentar differentes officios, entrei a trabalhar como ferreiro.

No meio do trabalho, na cama, desperto ou em sonhos, perseguia-me a imagem de Fernando, e ouvia o grito, que a criança soltara, quando a feri com a navalha.

Á força de serviços e lisonjas, consegui captar a amizade d'um empregado da roda, e saber que a criança, segundo constava do registro, fôra confiada a uma mulher dos Carvalhos.

Fui vêl-a. Era a imagem viva do pai!

Concebi então, e executei, ao fim de dois annos, o plano de raptar a criança.

Fernanda, a filha do homem por mim assassinado, é essa pobre menina, que vive na minha companhia.

Tem sido o meu castigo e o meu amparo!

Se por um lado me aviva os remorsos, por outro faz-me esperar que Deos me levará em conta o amor, com que a tenho tratado, e a firme tenção, que formei, de lhe restituir um dia a posição a que tem direito.

Possam as pessoas a quem a entrego, e a quem rogo a realisação das minhas esperanças, levar a cabo a sua tarefa.»

— Seguem-se as assignaturas... — disse Jorge. João da Cunha conservou-se silencioso algum tempo, até que, passando a mão pela fronte, balbuciou:

— Isso só prova que fui instrumento d'elle e não elle meu; o crime, os crimes digo, são os mesmos. Se elle se não mettesse de permeio, tinha-o eu assassinado.

Passados instantes, proseguiu:

— Diz elle, que não sabe o que se tem passado no meu coração!... Nem eu!... Não sei de que tenho soffrido mais... se de remorso... se de saudades!... Se soubessem!... Ha dois annos... impellido por força irresistivel... fui ao Porto. Queria vêr minha filha!... queria vêr sobre tudo a minha Bertha... a minha neta!... o anjo, que me pedia, chorando, que não partisse!... Embrulhei-me nos andrajos d'um mendigo, e fui assentar-me diante da porta d'esse paraizo, em que me era vedado entrar!... Ao cabo de tres dias de espera, vi-a... a minha Bertha!... Como é formosa!... como a deve amar, snr. Luiz do Amaral!... Não sei que alvoroço de ventura me abalou... ergui-me... aproximei-me... e ia com certeza estreital-a nos braços, quando... appareceu á porta... a outra.. a filha d'elle!.. Que semelhança, meu Deos!.. Pareceu-me, que Fernando de Albuquerque se erguia do tumulo e... fugi, louco de medo e de dôr!... Não me toraei a lembrar de ver as que amava... Para quê? Não estava ella lá... entre mim e as outras!?...

— Pobre velho!... — murmurou Luiz, enxugando uma lagrima.

— Deos lhe pague essas duas palavras!... — balbuciou João da Cunha — O senhor é bom... ha-de fazer a felicidade da minha Bertha... Falle-lhe de mim!... diga-lhe que é a mais pungente das minhas saudades!... A minha filha... não lhe digam nada!... O pobre anjo escrevia-me todas as semanas e eu... não lhe respondia, porque esperava, que ella... esquecendo-se de mim... esquecesse tambem o mal que lhe fiz!... Snr. Jorge... creia! eu respeito-o... como se respeita a honra e a virtude!... Diga-me que me perdôa!... perdôe-me em nome d'ella e... Deos... ha-de confirmar o seu perdão!...

— Em nome de Fernanda, minha mulher — exclamou Jorge firme e solemne — perdôo á victima das suas proprias paixões!... perdôo ao louco por ciumes!... perdôo ao escravo dos preconceitos sociaes!...

— Obrigado!... snr. Jorge!... obrigado!... Agora... façam favor!... mandem-me o Outeiro... — murmurou o moribundo.

Ao amanhecer do dia seguinte , João da Cunha percorria, com os olhos, todos os cantos do aposento, sorria com um raio de intelligencia ás imagens, que lhe representavam os seus amores, fitava a vista n'um busto de marmore do homem, por quem jogara cem vezes a vida nos campos de batalha e expirava, dizendo:

— É agora!...

Leitor... Ha dois annos, que a victima das suas proprias paixões, como lhe chamou Jorge, ouviu da voz de Deos a sentença final.

Queres vir commigo a Pedras-Rubras?... E um passeio!... vem d'ahi!...

Lá estão todos, vêl-os?... Até ha gente de mais; ha lá uma pequena Fanny, a quem Fernanda pede, que lhe torne a chamar «mamá», visto não saber dizer outra coisa, e ha um Fernando, que Bertha, sempre travêssa, espera, em altas vozes, de Deos, que saiha bem differente do pai,, quando mentalmente lhe implora o contrario.

É uma ventura perfeita, um céo sem nuvens, dirás... Valha-me Deos!... nem sei como t'o hei-de dizer!... Ha por lá, de tempos a tempos, umas nuvensítas passageiras...

Quando a chuva e o frio, no inverno, não permittem outra distracção, Fernanda vai ás vezes mirar a rua atravez dos vidros, e, quando retira, fica quasi sempre pensativa!...

Sabes porquê!?...

E porque, a primeira mulher que passa, vergando ao pezo de fardo superior ás suas forças; a criancinha, que atravéssa, molhada, e transida de frio, a rua enlameada obrigam-na a pensar:

— Eu seria assim, se Jorge me não encontrasse!...

Outras vezes, ao passar em certas ruas, pelo braço do marido, deixa machinalmente cahir o véo sobre o rosto...

Porquê?...

Porque n'essas ruas soffreu, luctou, palpou de perto a miseria e receia ser reconhecida, não por si, que se orgulha da mãe, que a Providencia lhe deu; mas, por causa do marido, para quem seria doloroso ouvir chamar-lhe «enjeitada».

Luiz, que, talvez, n'esse ponto, a conheça melhor do que o proprio marido, quando percebe alguma d'essas nuvens, que de repente toldam o rosto de Fernanda, costuma levar a mão ao pescoço e perguntar:

— É o maldito?...

O maldito é:

O Sello da Roda,

FIM