O Monge de Cister: Edição para o ELTeC ou: A época de D. João I Herculano, Alexandre (1810-1877) Criação do HTML original Vanda Morgado Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 131300 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 O Monge de Cister, ou: A época de D. João I, 2 volumes Alexandre Herculano O monge de Cister, ou: A época de D. João I Alexandre Herculano Imprensa Nacional 1848 Lisboa O monge de Cister, ou: A época de D. João I, 13.a edição Alexandre Herculano Livrarias Aillaud e Bertrand & Livraria Francisco Alves Paris Lisboa Rio de Janeiro São Paulo 1918

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O MONGE DE CISTÉR

OU

A ÉPOCA DE D. JOÃO I

(SEGUNDA EDIÇÃO)

TOMO I.

LISBOA

NA IMPRENSA NACIONAL.

1859

De varios livros, pergaminhos, e papeis ajuntei algumas cousas an tigas, que estavam já postas de par te, conjecturando, que ordenadas, e vestidas de novas cores podiam tor nar á praça, e não parecer mal, como arvores de outono com seu renovo.

G. Estaço, Var. Ant. Prol.

Como debaixo dos pés de cada geração que passa na terra dormem as cinzas de muitas gerações que a precederam, assim debaixo dos fundamentos de cada cidade grande e populosa das velhas nações da Europa jazem alastrados os ossos das cidades que foram antes della. Como de paes a filhos as diversas gerações se continuam e entretecem sem divisão, semelhantes á tunica inconsutil do Christo, assim a cidade antiga se transmuda imperceptivelmente na nova cidade; e como o octogenario na visinhança do tumulo não vê á roda de si, nem pae, nem irmãos, nem amigos da infancia, mas filhos, mas netos, mas existencias todas virentes, todas cheias de vida, e sente com amargura que o seu seculo já repousa em paz, e espera por elle que tarda; assim o ultimo edificio da cidade que passou, quando pendido ameaça desabar, olhando á roda de si não vê nenhum daquelles que, ahi perto campeavam senhoris e formosos no tempo em que ele tambem o era. Então, quando a noite de inverno ruge tempestuosa, e a chuva sussurra nas arvores, e estrepita nas torrentes, ouve-se um ruido subito, semelhante ao bater no chão de homem de guerra que morre. É o edificio que solta o seu ultimo arranco, e vae ajuntar mais uma ossada a milhares dellas, que jazem sob os pés da povoação recente. A obra do homem é como o homem; com a differença, porém, de que o periodo da renovação do genero-humano conta-se por annos, o da cidade por seculos: mas os annos e os seculos confundem-se e egualam-se diante da vida perpetua do Universo, vigoroso e bello, hoje, ámanhan, daqui, talvez, a milhares de eras, como no dia da creação.

Entre todas essas cidades herdeiras do nome das suas antepassadas é a nossa Lisboa uma daquellas cujo tronco é mais antigo, e cujas renovações tem sido mais frequentes. Além das mudanças que nella devia produzir a successão dos tempos, terremotos, incendios, guerras a visitaram tantas vezes, que apenas lhe restam raros e quasi apagados vestigios dessas existencias de larga vida, desses edificios monumentaes, que nas outras cidades da Europa contam o passado ao presente. Se quereis saber as convulsões violentas, as agonias de trances mortaes em que se tem debatido a filha dos Phenicios, embrenhae-vos no velhissimo bairro da Alfama; afirontae-vos com os seus becos tortuosos, sombrios, lodacentos; perdei-vos no seu labyrintho de terreirinhos, escadas, pateos, arcos, passagens, indelineaveis e enredados como meada, a que se perdeu o fio. O aspecto daquelle grande vulto de casas, que parecem atiradas para ahi cegamente em lucta de gigantes, far-vos-ha crer que lá, nas visceras dessa especie de povoação estranha, embebida no amago de Lisboa, ha uma vida antiga, um monumento de cada epocha, de cada era, de cada decada. Enganar-vos-heis, todavia. Apenas sobre um portal lereis alguma inscripção mutilada em caracteres monachaes, e em portuguez do seculo XIV; apenas vereis uma lapida partida, onde a custo descortinareis algumas letras inclusas e disformes dos seculos XII e XIII, e difficultoso será que as bellas fórmas dos caracteres assentados dos la tinos vos venham lembrar que o solo que pizaes é o de um municipio romano. Se, ao cabo de muita lida, a boa-ventura vos deparar um arco ponteagudo do puro gothico, uma verga florida do renascimento, uma volta de ferradura arabe, acha-la-heis mettida e approveitada, ou desapproveitada, em edificio de hontem, ou vê-la-heis prestes a desabar em pardieiro velho. Tudo o que haveis de encontrar são folhas rasgadas de um livro precioso e unico. Depois, ajudando-vos a imaginação de artista e o faro de antiquario, muito fareis, se, como os commentadores da litteratura classica, ajuntardes com essas palavras soltas um capitulo do livro perdido. Comprazer-vos-heis então na vossa obra; mas porventura cuidando que reconstruis um pedaço de historia da arte ou dos homens, não fareis senão compor um fragmento de novella.

Mas seja historia ou novella o fructo dos trabalhos daquele que conversa o passado, que se apresse! -- Com a rapidez da cholera ou da peste corre por todos os angulos de Portugal, e encasa-se em todos os povoados uma cousa hedionda e torpe, que, inimiga do passado e do futuro, se chama illustração, que tendo por logica o escarneo, por syllogismo o camartello, se chama philosophia. Deus a mandou ao mundo como mandou Attila ou a Inquisição, como um verbo de morte. Seu mister é apagar todos os sanctos afectos da alma, e incarnar no coração, em logar delles, um cancro para o qual nossos avós não tinham nome, e que estranhos designaram pela palavra egoismo. Que se apresse aquelle que quizer guardar alguns fragmentos do passado para as saudades do futuro; porque a illustração do vapor e do atheismo social ahi vae livelando o que foi pelo que é, a gloria pela infamia, a fraternidade do amor da patria pela fraternidade dos bandos civis, as memorias da historia gigante do velho Portugal pelo areal plano e pallido da nossa historia presente, a obra artistica pelos algarismos do orçamento, o templo do Christo pela espelunca do rebatedor. Que se apresse; porque esses rastos de antepassados que o tempo e os incendios, e os terremotos nos deixaram, não no-los deixará o descrer brutal deste seculo, que a historia distinguirá pelo epitheto de bota-abaixo, e cujo legado monumental para os seculos que virão apoz elle será um cemiterio immenso; mas cemiterio sobre o qual não se elevará sequer a humilde distincção de uma cruz.

É por isso; é porque vejo o marco assentado no fim do caminho por onde esta geração se escoa, que muitas vezes passo horas largas diante de um portal de capelinha carcomida como velha enrugada; diante de uma hombreira partida, onde apenas se divisam causados e gastos lavores da arte da idade media.

Se eu fosse rico, iria comprar a capelinha, iria comprar o pardieiro onde houvesse a hombreira gothica: os homens do progresso vender-me-hiam isso tudo, porque os havia d'enganar; porque havia de prometter-lhes que converteria aquella em lupanar; este em casa de cambio. Depois, eu, que já não tenho pae para afagar nos tedios e dores da decrepidez, tomaria a meu cargo essas pobres ruinas, ampará-las-hia como um filho, livrá-las-hia dos olhos dos que hoje tudo podem e tudo ousam, e como os christãos primitivos só a seus irmãos revelavam a existencia do altar das catacumbas, assim neste quinto imperio de mentecaptos dissertadores e mechediços, só aos poetas, aos que ainda crêem na arte e em Deus revelaria a existencia do meu thesouro escondido.

Mas eu que não sou abastado, que posso fazer? Ajuntar uma assignatura desconhecida ao protesto lavrado pelos homens de entendimento e virtude contra a barbaria do seculo, para que os meus restos esquecidos não sejam in quietados pelas maldicções dos vindouros.

Foi uma dessas meditações artisticas que gerou o pensamento deste livro, o transmittir aos vindouros alguns fragmentos do passado.

Um dia em que atravessava da Lisboa arabe para a Lisboa romana, da Alfama para o Castello,não sei como passei pelo sitio onde existiu o convento dos Bons Homens de Villar, ou Conegos do Evangelista, e parei a examiná-lo.

o meu exame foi demorado e consciencioso, como se costuma dizer nos dous logares onde raro entra a consciencia -- nas camaras legislativas e na imprensa politica. Todas as indagações que fiz para descubrir algum vestigio do edificio primitivo, cuja origem o leitor verá no primeiro capitulo desta historia, foram, porém, baldadas: os conegos tinham transfor mado o antigo collegio do bispo D. Domingos Jardo em sumptuoso convento, de cuja gran deza se pode formar cabal idéa lançando os olhos para a estampa de Lisboa publicada na Viagem a Portugal de Philippe II, escripta pelo chronista Lavanha. Veio depois o terremoto e converteu tudo em ruinas. Nestas se aninhou, passado meio seculo, a Guarda Real da Policia, e, por morte desta, a sua successora e herdeira a Guarda Municipal.

Triste por ter perdido assim inutilmente o tempo e o trabalho, ia a seguir meu caminho, quando me lembrei de um velho manuscripto que lêra, e que fallava miudamente de certo successo que Fernão Lopes transmittiu á posteridade na chronica de D. João I. Este successo terrivel, cujo desfecho apenas narra o chronista, e que vinha explicado naquella escriptura inedita com todas as suas causas e circumstancias, está ligado com a historia desse collegio do bispo de Lisboa. Passou-me então pela mente fazer uma desfeita aos conegos e ao terremoto, e dar de novo vida áquilo que hoje é só um nome. Procurei colligir as minhas recordações, e quando voltei a casa tinha pouco mais ou menos delineado e disposto os materiaes que constituem o amago e substancia da narração seguinte.

É o que resta a quem é pobre. -- Não póde tirar os monumentos das garras dos politicos; mas tem liberdade plena de reconstruir e po voar aquelles que já não existem.

Dos politicos e de nós se condoa o Senhor; porque tanto nós como eles disso havemos mister.

I

O COLLEGIO DE S. PAULO.

Ora vede que door seria pera o triste do pay.

Dr. João de Barros -- Espelho de Casados.

«Vamos, Fr. Vasco, em que scismas? Ha mais de meia hora que levas os olhos pregados na corrente do rio. Ergue-os para o céu.

Olha como é formoso! Imagem do empyreo, onde mora aquelle que só te póde dar, que só te ha dado consolação e esperança. Vamos, filho; é necessario que por uma vez acabem essas tristezas, que denotam estar ainda muito enraizada na tua alma uma paixão mundana.» «Oh meu segundo pae, oh meu mestre, oh vós, que mil vezes me tendes salvado de mim mesmo, perdoae-me. Uma idéa sinistra e má me passava agora pela cabeça. Affigurava-se-me neste momento que D. Leonor estava junto de mim: via-a, aqui mesmo ao meu lado; via-lhe o sorrir suave; ouvia-lhe o respirar sereno; sentia o brando cheiro dos perfumes dos seus cabellos dourados. Ai! e sabeis qual era a minha idéa? Era apertá-la ainda entre estes braços de que fugiu como uma van sombra, e então... atirar-me com ella a esse rio, que vae rapido como o envelhecer desta alma, fundo, como a amargura do meu coração! Depois,» -- proseguiu ele com voz atada -- « depois... que viesse o inferno.» « Jesus, Vasco! Estás doudo? Blasphe mas ? Assassinares uma fraca mulher, assas sinar-te a ti proprio, e renegares da vida eterna?» « Uma fraca mulher, dizeis vós, reverendo nonno ? Uma fraca mulher?!... Fraqueza de vibora, que vos toma atraiçoadamente quando dormis, e vos morde, e vos envenena sem re medio a essencia da vida. Essa fraca mulher teve força para me calcar aos pés este pobre coração, que era bom, que nascêra para amar tudo o que o rodeava! Homem de Deus, vós não sabeis o que é ver cerrar diante de nós o mundo no primeiro quartel da vida, quando a imaginação povôa esse mundo de gosos, de gloria, de felicidade! Vós não sabeis que mysterio infernal se passa cá dentro, quando a uma risada de mulher, que suppúnhamos um anjo, e que era um demonio, a vemos tomar nas mãos o nosso futuro e esmigalhá-lo em terra! Assassinar uma fraca mulher?! E ella não me assassi nou a mim ? Que sou eu debaixo deste habito de estamenha? Um morto, que falla, e anda, e chora, mas já não vive; porque o viver nada disso é.... Padre, padre, Deus me livre de mim mesmo!... Mas vós choraes? Oh não, não!... O pobre Vasco está louco. Dissestes bem.... Esquecei-vos de seus desvarios.

Prometto á Virgem jejuar tres dias a pão e agua, cuberto de cilicios, logo que cheguemos ao nosso mosteiro, para que Deus me perdôe as blasphemias que tenho dicto. Vós tambem me perdoareis. Não é assim, bom Fr. Lourenço? » «Sim, sim, meu irmão, perdôo-te o escan dalo que me déste. Tambem eu cubrirei a minha cabeça de vaso; cingirei os meus rins de cilicio, e ajudar-te-hei a implorar a misericordia do Senhor, para que te allumie, e affaste do teu espirito as tentações de Satanaz. » «Oh, como sois bom, meu nonno! -- disse entre soluços o outro interlocutor, lançando-se a seus pés, e beijando-lhe a fimbria do grosseiro habito.

Depois ergueu-se, e assentou-se-lhe ao lado, apertàndo-lhe uma das mãos entre as suas, e derramando sobre elas lagrymas como punhos, que caíam a espaços, quentes qual lume; porque do intimo vinham elas.

Mas quem eram estes dous homens? -- Onde estavam? -- D'onde vinham ? -- Para onde íam ? -- Em que tempo era isto? -- Na tural é que o leitor faça taes perguntas, ás quaes temos obrigação de responder.

As duas personagens, entre as quaes se travára o dialogo com que começámos esta mui veridica historia, eram dous monges de Cister, ou de S. Bernardo. O mais moço, de cuja boca saíam as expressões de desesperação que acima ficam transcriptas, era mancebo de vinte e dous a vinte e cinco annos, bem proporcionado e robusto, tez morena, e cabello negro, basto e crespo, feições talvez não formosas, mas, sem dúvida, attractivas. Os seus olhos eram portuguezes; isto é, reflexo perenne dos intimos pensamentos; tempestuosos com as procellas do coração, serenos com a calma delle. No rosto do mancebo estava escripto o nome da sua terra natal: era um filho das Hespanhas: a cor, o gesto, o olhar, tudo dizia que ahi dentro havia o espirito de um godo, e ao mesmo tempo que nessas veias corria o sangue de um arabe.

O outro monge era homem de idade robusta. Tinha os cabelos espessos e grisalhos; testa espaçosa, nariz aquilino, os olhos fundos, vivos, e pequenos. Jejuns e meditações lhe haviam emmarelecido e encovado as faces. O todo do seu aspecto era severo e triste, mas quem lh'o observasse attento lá enxergaria, por baixo dessa superficial tristeza, a alegria que gera uma boa consciencia. Quando o velho erguia os olhos ao céu crer-se-hia, que, atravez da abobada azul, divisava a patria do repouso, que ele ía conquistando com vigilias e sofrimento sob o peso da cruz. Tumulto ou quietação, angustias ou gosos da vida eram para elle o mesmo que para o peregrino o fumosinho da aldêa do valle, onde apenas dormiu uma noite, visto da cumiada da serra que lh'o vae esconder para sempre: eram uma lembrança, uma saudade duvidosa de juventude; porque o mundo ía lá muito longe delle, meneando-se orgulhoso e senhoril em suas miserias ou grandezas. Das paixões, que este ou alimenta ou gera, só uma restava a Fr. Lourenço; era a paixão que ensina o evangelho: o amor do genero humano.

Fr. Lourenço, chamado o Bacharel, por ter estudado degredos ou canones na universidade de Lisboa, entrára na ordem de Cister já homem feito, e ahi fôra recebido com os braços abertos, não só pela reputação de sabedor e letrado de que gosava, mas tambem por ser pessoa de virtude, e bondoso. O abbade de Alcobaça, D. João d'Ornellas, o nomeára procurador daquelle célebre mosteiro, que já gosava de certa supremacia sobre os outros da mesma ordem, apesar de na sua origem todos serem independentes uns dos outros. Os negocios fradescos obrigavam, por tanto, Fr. Lourenço a residir na côrte; e como então os cisterciences occupassem o collegio ou estudaria de S. Paulo e S. Eloi (depois convento dos bons homens de Villar), que fôra fundado pelo bispo D. Domingos Jardo em tempo de D. Diniz, e por isso fossem obrigados a ter ahi lentes ou ledores de diversas materias, Fr. Lourenço, quando se via desappressado de negocios, ora ensinava ali as doutrinas das decretaes, sciencia tão séria, tão util, tão profunda, e tão cultivada nesses tempos como a econo mia politica, o magnetismo ou a craneologia nestes nossos, ora lia aos escholares, que muitos lá andavam, a sancta theologia, no que tambem o bom do bernardo era poço sem fundo.

Chamámos bom a Fr. Lourenço, e com razão lhe démos tal nome. Apesar das emburilhadas e demandas em que frequentes vezes o mettia o despotico, violento, cubiçoso, e ao mesmo tempo perdulario D. João d'Ornellas; apesar dos trabalhos escholasticos, que não pouco lhe quebravam a cabeça, Fr. Lourenço Bacharel ainda sabia achar tempo para gastar em obras de caridade. Onde havia um desgraçado que soccorrer ou consolar, lá estava o nosso cisterciense: rico de sua casa, e abastado de sollayros, ou ordenados, que recebia como ledor da estudaria (e não eram máus os que deixára D. Domingos Jardo para sustentaçom dos proves escolasticos), todos os seus haveres gastava com os necessitados, e nenhum se af fastava delle com as mãos vasias, «juxta illud», (dizia Fr. Lourenço) que lemos na escriptura, demerge ta orelha ou prove, sem nem uma acidia, e da-lhe sa divida. O povo o tinha em conta de sancto; a côrte o respeitava, e até, quando o seu cargo de procurador o obrigava a fulminar perante os juizes os inimigos da sua ordem, sabia-o fazer com tal modestia, que o tom das suas palavras ainda lhe dava maior realce á eloquencia, do que a fôrça da sua dialectica vigorosa. Emfim era, como todos diziam então delle, na linguagem garrafal daquelle tempo, barom triguosamente endereçante sa carreira per mui vertuosas vertudes a perduravil einacalçamento em vida eternal.

No momento em que esta historia começa dava elle uma prova mais do seu ardente amor do proximo. Nesse dia pela manhan recebêra um recado, em que se lhe pedia fosse ouvir de confissão uma pobre mulher quasi moribunda, que vivia na aldea de Restello, uma legoa de Lisboa para a banda do mar, á beira do Téjo.

Como era dia de S. Philippe e S. Thiago, e não havia eschola, Fr. Lourenço não hesitou um momento: disse missa, chamou o escholar seu predilecto Fr. Vasco, partiu com ele do collegio, veio pela Rua-nova abaixo, e passada a fonte de D. Sancho II, saíu pela porta da Oura, chegou á praia, afretou uma barca, e ei-lo correndo ao longo da margem, caminho da aldea de Restello.

Fôra dentro dessa barca, que se travára o mysterioso dialogo, que acima fica transcripto, sem mudar uma palavra, pospor ou antepor uma virgula.

Agora cumpre voltar um pouco atraz para sabermos quem era o companheiro do mestre de theologia.

Haveria seis mezes, depois que Fr. Lourenço residia na estudaria de S. Paulo, quando certo dia um cavalleiro moço e gentil-homem chegou sósinho á porta da crasta, e perguntou por Fr. Lourenço. Levado, por ordem do reverendo, á sua estreita cella, demorou-se a sós com elle por horas largas: o que ahi se passou ninguem soube; mas notou o porteiro que, quando o mancebo saíu, o velho veiu acompanhá-lo, e que tanto o desconhecido como Fr.

Lourenço tinham as faces banhadas em lagrymas. Abraçaram-se á despedida, e apenas o frade disse ao cavaleiro quando partia: «Filho, constancia em teu sancto proposito!» -- Depois ninguem mais tornou a ver o mancebo; mas todos pensaram que era algum desgraçado peccador, que, não podendo sofrer o peso de suas culpas, viera depositar no seio do virtuoso monge a confissão de passados erros, e aquietar remordimentos da consciencia pedindo perdão ao céu.

Passou mais um anno: certo dia, pela volta da tarde, o converso Fr. Julião, que desem penhava havia bem um quarto de seculo as funcções de porteiro da estudaria, veiu correndo á cella do mestre de theologia, e disse da parte de fóra:

Benedicite, pater doctor.»

«Entrae, Fr. Julião.

O converso, ou barbato, como então chamavam aos leigos, ergueu a aldrava; e com as mãos cruzadas sobre o peito, esperou que o padre mestre o mandasse falar.

«Que me quereis, irmão?»

«Uma carta do Domno de Alcobaça.» -- Dizendo estas palavras o converso punha nas mãos do monge um papel fechado, e selado com o sello do abbade de Alcobaça, a quem por seu cargo competia, segundo a regra de S. Bento, seguida pelos cistercienses, o titulo de dominus, ou no romance daquelle tempo domno.

«Quem traz esta carta ?

«Um monge do habito do nosso padre S.

Bernardo. E voto a Christo, que me parece o mesmo mancebo que vos aqui procurou ha um 311110. . . . »

«Basta! Não jureis em vão o sancto nome de Deus. Ide, e guiae para esta cella o recemchegado.»

Quando este entrou no aposento de Fr. Lourenço logo ele viu que o converso se não enganára. O bom do monge correu a abraçá-lo:

«Parabens, parabens!»-- exclamou Fr. Lourenço cheio de jubilo. -- «Este sancto habito que trazeis, senhor cavalleiro... não digo bem... irmão Fr. Vasco, me diz que Deus vos fez triumphar dos tres grandes inimigos da huma nal geração, mundo, diabo, e carne. Soccorrestes-vos ao Senhor no dia da vossa afilicção, e o Senhor vos abriu o porto bonançoso onde podeis rir-vos das procellas da vida. Sois monge de Cister, e agora....»

«Sou monge de Cister!» -- repetiu o moço frade, escondendo a cabeça no seio de Fr. Lourenço, que breve sentiu as suas lagrymas ardentes e abundantes traspassarem-lhe a grosseira estamenha do escapulario e da tunica, e humedecerem-lhe o peito. O accento com que o mancebo proferiu aquellas palavras fazia que elas significassem exactamente o contrario do que soavam. De monge havia nelle, é verdade, o habito e a cogula; mas o coração?!

No coração de Fr. Vasco estavam ainda todas as paixões do seculo, tumultuosas, fervidas, incisivas, como quando, em vez dessa tela grosseira, cubria os membros robustos com o arnez de cavalleiro. Se ahi havia alguma diferença, era que essas paixões violentissimas, comprimidas por um anno de noviciado, por um anno de abjecção, de silencio, de contradicções, de sugeição, emfim, a todos os actos exteriores de humildade, de doçura, e de resignação, se tinham tornado mais asperas, e azedado mais aquella alma lacerada por dores fundas e talvez eternas. Fr. Lourenço, a quem elle buscára havia um anno, em dia no qual a desesperação passára a meta do sofrimento, lhe aconselhára o claustro, como remedio unico ao mal que o roía. O pobre frade, pouco entendido nas tempestades do mundo, cria que havia outro ádito cerrado ao tumultuar das paixões, que não fosse a lousa da sepultura; cria que esse ádito milagroso era a portaria de um convento! Se quereis saber se elle errava ou acertava, perguntae-o a qualquer desses que ahi viveram, se ainda algum ha a quem a fome deixe contar historias dos tempos que já lá vão.

«Mas, filho, » -- dizia Fr. Lourenço, levantando brandamente a cabeça de Fr. Vasco, e encostando-a outra vez sobre o hombro, de modo que o halito ardente do mancebo quasi que lhe crestava a face -- «cria eu que a misericordia divina e a virtude do nosso sancto habito vos houvesse arredado do espirito essas negras imaginações. Mas, emfim, com o tempo; com o tempo! Fiae-vos de mim: de mim em quem achareis um irmão: mais que um irmão, um amigo!»

«Oh sim! foi por isso: foi para vos ouvir, para dar alguns instantes de frescor a este espirito requeimado, que, apenas fiz meus votos, pedi ao domno de Alcobaça-me mandasse para Lisboa estudar. Estudar!... Que posso eu aprender? ou que me importa? É falar com o homem que me comprehende, que eu quero: é pedir-vos palavras de consolação e de esperança; que me apagueis esta chamma que me consome a alma; que me deis triaga contra a peçonha que me lavra no coração. Homem de Deus, o mundo vos chama um sancto! Paz e esquecimento! paz e esquecimento!...»

Mais se confirmou Fr. Lourenço, por este desalinhado discurso, que a virtude mirifica do sancto habito nada aproveitára em Fr. Vasco: mas, por um movimento de orgulho involuntario, lembrou-se de que com desesperados como este a força da sua eloquencia tinha supprido a pouca eficacia da graça divina.

Fez então assentar o moço, e obrigou-o a to mar alguma refeição em quanto descançava; depois do que, lhe disse, pondo-lhe a mão no hombro:

«Vamos, irmão Vasco, contae-me outra vez a vossa historia. Choraremos ambos ! As lagrimas da piedade consolam, quando é um amigo que as derrama. Se bem me lembra, dissestes-me ha um anno...»

O frade pensou avisadamente que, fallando repetidas vezes a Fr. Vasco nos dolorosos successos da sua vida, lhe chegaria a embotar na memoria o sentimento delles. E, em verdade, assim é feito o coração humano. Nunca vereis viuva que falle muitas vezes no marido defuncto, e muito chore a sua falta, que não case cedo. É porque a dor, como a materia bruta, gasta-se com o uso. São mysterios methaphysico-physiologico-moraes desta especie de animal chamado homem, a que eu e tu, leitor, temos a honra de pertencer.

«Disse-vos,-- proseguiu o mancebo, tomando a mão immediatamente; -- disse-vos que, filho de um cavalleiro nobre e honrado, segui as armas mui moço. Ha tres annos, não longe da morada de meu velho pae, em Aljubarrota, pelejava eu na ala dos namorados, por livrá-lo a elle e a terra da patria do estranho dominio: pelejava na ala de Mem Rodrigues, porque amava a nobre donzella Leonor; e vós sabeis que Mem Rodrigues só dava entrada naquella ala aos que tinham uma dama dos seus pensamentos. Vencemos essa memoravel peleja. Segui, depois, o pendão do Condestavel. Passados alguns mezes de recontros e pelejas, voltei á terra onde nasci. Pulava-me o coração ao ver ao longe o campanario da nossa abbadia. Ia ainda ver o meu pobre pae, rezar um pater juncto á lousa de minha mãe, abraçar Beatriz minha irman, tão linda! tão meiga ! e que eu amava quasi como Leonor. Oh! e tambem ía vê-la a ella, que por certo nem um só dia deixára de se lembrar de mim; ía contar-lhe, não os feitos d'armas, mas as saudades do seu cavaleiro! Ribeiros, fazia-os galgar de um pulo ao meu ginete; veigas, fazia-lhas desapparecer debaixo dos pés; outeiros, obrigava-o a transpô-los como se fossem plainos. O ultimo tinha-o descido, quando o sol envolto na sua vermelhidão da tarde entestava com a terra lá no horisonte. Sente-se, mas não se diz o que eu então sen tia. Cheguei. A entrada da povoação era a abbadia : a igreja estava fechada, e o sacristão á porta com as chaves na mão. Já não era o do meu tempo: fez-me isso tristeza. Perguntei sem saber porque: -- «O abbade vela, ou jaz?» -- «Em trintario cerrado hi dentro é com outros clerigos.» -- «Por quem é o trintario?» -- prosegui eu inquieto. -- « Por um bom fidalgo da visinhança que morreu, segundo dizem, de pena, porque uma filha que tinha, e muito amava, fugiu com um cavaleiro, a quem passando por aqui ele dera gasalhado por algum tempo. Nunca mais comeu nem bebeu, e como era velho finou-se. -- «Fazendo assim, fôra moço e se finára: » -- disse eu sorrindo descuidado, em quanto procurava na memoria quem seria o fidalgo. Nenhum que eu soubesse nos arredores tinha filha donzella, senão meu pae e o de Leonor; mas que fosse algum delles claro estava que era impossivel. Ia a apertar ainda uma vez os acicates ao ginete, para chegar antes da noite á ponte levadiça dos meus paços acastellados, mas por demais perguntei ao sacristão o nome do morto que jazia em trintario..... Era o de meu pae!... Uma faisca de lume me centelhou diante dos olhos: de um pulo eu estava pegado com a porta da igreja: as escamas das minhas manoplas bateram nella como um vaivem, e, com um som que se prolongou pelas naves, eu a vi aberta, e lá no meio uma tumba cercada de brandões accesos, e ao redor padres que resavam latim.

Logo me achei ao pé delles: abri a tumba: era meu velho pae..... era elle..... com os olhos fechados, não me viu..... com os labios cerrados, não me sorriu..... com as mãos cruzadas sobre o peito, não me abençoou! Arrojei-me sobre elle: beijei-o; era como uma pedra gelada! Um dos que ahi estavam disse não sei o que, chegou-se a mim, e quiz arrancar-me dalli. Estendi com furia o braço: a minha manopla tornou a encontrar o que quer que foi. Ouvi um grito rouco, e como um corpo de homem que caía desamparado sobre as lageas do pavimento. Não percebi mais nada; porque nesse momento perdi os sentidos.»

Aqui Fr. Vasco fez uma larga pausa, correndo a mão pela testa, como quem afastava uma idea dolorosa. Tinha os labios brancos, e nos olhos bailavam-lhe duas lagrymas. Pelas faces de Fr. Lourenço já outras duas tinham escorregado.

II

TUDO DESVENTURA!

Tristesa, dor e cuydado, leixae-me: -- que mais quereys? porventura nam sabeys, que sou já desesperado?

Cancion. De Resende. -- Trov, de L. Henriques.

« Quando tornei a mim -- proseguiu o moço cisterciense--estava em cima da cama, em um aposento dos meus paços. A primeira cousa que me lembrou foi chamar por meu pae e por minha irman. Depois recordei-me de que já nem pae nem irman tinha: calei-me. Ao lado do meu leito estava um padre: era o velho abbade, que me baptisára e me ensinára a ler. Elle percebeu que tornára a mim: pozse em pé: eu estendi para elle as mãos: deu-me uma das suas; apertei-a entre as minhas, e levei-a á boca, e beijei-a: era descarnada e enrugada como devia ser a de meu pobre pae. Nem elle me dizia nada; nem eu a elle. Eu por mim, não tinha nada que dizer: porque o que me estava na alma não era cousa que com palavras se dissesse, nem a que com palavras se respondesse. Depois de largo tempo, ouviram os meus ouvidos a minha boca perguntar: -- «Que horas são?»

-- « Quarto de prima: » -- respondeu o abbade.

Com efeito, o sol começava a tingir-me a cama de todas as cores das vidraças de uma fresta que me ficava fronteira. E eu olhava para a fresta com os olhos fitos: parecia tranquillo; porém cá dentro ía um tumulto medonho. A imagem de meu pae defunto, de minha irman deshonrada queimava-me o cerebro. Vingança! Esta palavra sentia-a soar, palpava-a, via-a escripta, afigurava-se-me convertida em efeito. Um cavalleiro estava por terra, o seu peito arquejava debaixo da minha joelheira de ferro, e um punhal me reluzia na mão erguido sobre a garganta do roubador de minha irman. Era um prazer horroroso!... Desde então para cá sempre cri que podia haver um momento de deleite no meio dos tractos do inferno.

Até ahi nem o nome, nem a imagem de Leonor me tinha passado pelo espirito. Foi depois disso que este nome e esta imagem me appareceram como um pensamento do céu.

Rebentaram-me então dos olhos as lagrymas: as minhas mãos apertaram com ancia as mãos do abbade, e o pulso bateu-me com vigor febril. Senti que estava em um leito, em um aposento, ante a luz de Deus, entre os homens, na vida.

Disse algumas palavras ao abbade. Este sancto homem me contou então que eu passára a noite inteira em espantoso delirio e que ele se encarregára de me vigiar desde a meia noite. Ponderou-me que era necessario tomar algum alimento: recusei: instou. Pedi-lhe então que me chamasse Brites. Primeiro que tudo queria falar com ella.

Brites era uma velha dona, que fôra minha ama, e que ficára depois servindo de cuvilheira de minha mãe. Quando esta faleceu era eu mui moço e Beatriz uma criança. Meu pae a encarregou do governo domestico: nós nos habituáramos a tê-la em conta de uma segunda mãe: tambem ella nos amava como filhos.

Apesar de perturbado, notei com dissabor não a ver ao pé de mim.

«Mas Brites »...... disse o abbade titubeando: e calou-se.

«Mas Brites, » -- repliquei -- « devia estar junto ao pobre Vasco, que, segundo dizia, tanto amava. Tambem ella foge de mim ?»

«Não, senhor. Eu fui que não consenti que ela aqui estivesse. De que podia servirvos a pobre dona, senão de accrescentar-vos agastamentos no coração?»

«Bem pelo contrario!» -- atalhei eu. -- « É a unica pessoa que está aqui da minha.....fa a dizer familia... lembrei-me ainda outra vez de que não a tinha. Em fim -- prosegui em tom de quem quer ser obedecido -- que Brites venha cá. »

O abbade cravou em mim os olhos: parecia irresoluto e aflicto: um gesto de impaciencia que me viu no rosto o resolveu. Saíu vagarosamente.

Dahi a pouco pareceu-me ouvir no aposento immediato a voz de Brites, que cantava:

Boa festa, sancta festa, Em que se canta latim:

De festa vestida, ás bôdas, As bôdas cantando vim.

« Arripiaram-se-me os cabellos. Um cio ! prolongado cortou a cantiga.

Brites entrou: o abbade a trazia agarrada pelo braço. Custou-me a conhecer-lhe as feições: estava inteiramente demudada: tinha os olhos esgazeados, as faces pallidas e encova das, e por cima de tudo isto um como veu de riso convulso. O abbade olhava para ella com aspecto severo.

«Meu criado, » -- gritou Brites apenas me viu, -- «mandae embora, este máu homem. Tem cara de castelhano. Hoje que é o dia do vosso casamento todos devem ter cara de riso. O Senhor Vasqueannes, » -- continuou a desgraçada, chegando-se ao pé do leito, e fallando em voz baixa, como quem me dizia um segredo, -- « está lá fóra deitado em uma cama preta. E sabeis o mais gracioso? Muitos padres estão ao redor da cama a falar-lhe em latim; mas bem faz elle que finge dormir, e não lhes responde nada. Creio que espera por vós para ir á igreja.....

O abbade interrompeu-a: -- « Está varrida, » -- disse, voltando-se para mim. -- « Depois que a senhora Beatriz fugiu de casa, começou a enlouquecer. Com a morte de vosso pae perdeu de todo o siso. Quizestes que ela viesse: pensei que se conteria diante de vós; mas vejo que os meus receios eram fundados. Ide-vos embora, Brites!»

« Não! » -- acudi eu, que sem pestanejar olhava para o aquelle doloroso espectaculo. -- « Não! Vem cá, Brites: abraça-me: fala-me de meu pae... de meu pae só... e dize o que quizeres.» -- Não sei o que em mim se passava. A dor, começava a causar-me uma especie de prazer.

Brites deitou-me os braços ao redor do pescoço, e deu-me um beijo na testa. -- «Vamos, meu criado, » -- disse depois; -- « olhae que é tarde, e D. Leonor estará esperando.

Vós já não sois Vasco da Silva, sois Lopo Mendes. Já não sois mancebo florido; mas homem grave e mui rico. Não é assim? E: oh que é! Parvos! Suppunham que D. Leonor era donzella que, casasse com outro; os pobresinhos não sabem que mudastes de pessoa! Vamos, erguei-vos dahi.» -- Acabando de dizer isto deu uma gargalhada.

Eu tinha coado cada uma das suas palavras pelo coração. Ergui-me de um pulo: em pé no meio do aposento, o meu aspecto devia ser infernal. -- «Velha maldicta, » -- gritei furioso, -- « que infamias estás ahi dizendo ? Que casamento de Leonor ? Que Lopo ? Falla ou te faço calar para sempre.» Procurava o meu punhal na cincta; mas já não estava armado.

«Não o sabieis?! Oh que não o sabieis!... Meu Deus! Meu Deus! » -- Isto dizia o abbade, que em um relance se me havia arrojado aos pés, e soluçando me abraçava pelos joelhos.

Brites se arredára, cruzára os braços, e olhando para mim com ar de compaixão, repetia muitas vezes: -- «Coitadinho! enlouqueceu!»

Talvez fallava verdade, Todavia, apesar da especie de phrenesi, em que me lançaram as palavras de Brites, a postura e os soluços do veneravel sacerdote me chegaram ao vivo. Procurei vencer a minha desesperação: ergui-o, e disse-lhe com apparente tranquillidade:

« Não! não o sabia. Contae me tudo. » :

O velho sacerdote alevantou os olhos para os meus, e viu nelles cousa que o fez hesitar.

«Contae-me tudo »; -- repeti eu.

Da primeira vez o som da minha voz era o da voz de um homem: da segunda, a meus proprios ouvidos pareceu que assim devia ser a de um demonio.

Ao abbade pareceu, por certo, o mesmo.

Não hesitou mais. Eis-aqui o que ele me disse. Ficou-me bem estampado na memoria.

«Mezes havia já que Mem Viégas deixára de frequentar a casa do vosso pae. Aquela inteira amisade, que por tantos annos os uníra, começou a esfriar grandemente. Todos os dias, segundo o antigo costume, vinha eu passar o serão com o senhor Vasqueannes, que com Deus é; todos os dias parafusavamos ambos sobre o motivo desta novidade, e não podiamos atinar com elle. Salvo se era a necessidade de fazer companhia a um cavalleiro de Lisboa, homem já de idade grave, mas de aprasivel presença, que viera ser seu hospede. Este motivo, porém, não era suficiente para desculpar o pae de D. Leonor. O casamento de sua filha comvosco, ajustado entre ele e vosso pae, devia ainda tornar mais robusta a amisade inalteravel de tantos annos. Quando ao anoitecer, assentados ao redor do leito do senhor Vasqueannes, que, por sua avançada idade, se recolhia ao pôr do sol, eu, vossa.... digo a senhora D. Beatriz, e o infame D. Vivaldo o conversavamos ácerca deste successo, buscavamos a causa de tal mudança; mas depois de muito scismar e adivinhar, concluiamos sempre que era impossivel achar o motivo de semelhante proceder.

Um domingo pela manhan, tinha eu acabado de dizer missa, e estava na sacristia desrevestindo-me, quando o sacristão veiu avisar-me de que um pagem de Mem Viégas estava ahi, e me buscava. Mandei-o entrar. Disse-me que seu senhor precisava de falar-me, e que trazia uma hacanea para eu cavalgar até o paço, Respondi-lhe que estava prestes. Partimos. Chegando á ponte levadiça notei que pagens e escudeiros estavam vestidos ricamente das cores de Lopo Mendes, o hospede de Mem Viégas. Fez-me isso estranheza; porque era signal de noivado. Entrei. O fidalgo me veiu receber á sala d'armas, fez-me assentar, e disse-me:

« Mandei-vos chamar, reverendo abbade, para que lanceis a benção nupcial na capella destes paços a dous noivos que lá estão. Hoje passareis o dia comnosco.»

«Poderei já saber, meu illustre senhor, quem são os noivos? »

«Porque não?!--tornou Mem Viégas, sorrindo. -- «O noivo sabereis já quem é pelas cores de que os meus estão vestidos: a noiva, ninguem aqui o póde ser de tão nobre, rico, e esforçado cavalleiro, senão a minha Leonor.»

Estremeci, Havia poucos dias que tinha fallado com o senhor Vasqueannes do vosso casamento com D. Leonor. Levantei-me, e, em tom severo disse ao velho cavalleiro:

« Quereis por ventura gracejar comigo, senhor Mem Viégas? Vossa filha deve casar com Vasco da Silva, logo que ele volte da hoste de Nunalvares. A palavra de vossa mercê...

«Deve?!» -- interrompeu Mem Viégas, dando uma risada, -- «Creio que sou nobre e livre, e que minha filha é minha filha. A palavra de Mem Viégas, dizeis vós? Se a minha palavra estivesse dada, não a quebrára eu, nem que fôra ao proprio Satanaz. Mas não a dei a ninguem. Verdade é que Vasqueannes me falou nisso, e que não achei estranha a proposta: mas Leonor prefere Lopo Mendes; mudou de amores: tambem eu na mocidade mudei mais de uma vez. Além disso o meu futuro genro é mais rico, mais nobre ; e o que eu prefiro a tudo é a felicidade de Leonor.»

« Embora, senhor cavalleiro, embora ! » -- tornei eu. -- « Dae-me licença para duvidar de que vossa filha troque de bom grado pelo segundo o seu primeiro noivo. Sei que se amavam muito; porque vi nascer e crescer o seu amor. Não; não é possivel semelhante mudança. »

«Vê-lo-heis já: » -- interrompeu Mem Viégas. -- «Ella está na capella: examinae bem seu gesto e suas palavras, e julgareis por vossos proprios olhos se ahi ha outro constrangimento, que não seja o de pudor de donzella, que vae trocar a sua corôa virginal pelo grave titulo de dona. »

«Se assim é, » -- repliquei, -- « não posso exercitar meu ministerio nestes paços. Em vez de abençoar, eu amaldiçoaria: amaldiçoá-la-hia a ella; porque assassina sem piedade um valente mancebo, o meu desgraçado pupillo, o filho do honrado e bom cavalleiro Vasqueannes.»

Dizendo estas palavras, encaminhei-me para a porta da sala. Não queria demorar-me alli mais.

« Alto lá, dom abbade; o – gritou Mem Viégas, aferrando-me por um braço. -- «Lembrae-vos de que estaes ante um nobre cavalleiro da Estremadura! Ouvi, sem irritar-me, reprehensões, em que ultrapassastes a liberdade que vos dá o vosso ministerio; mas á fé, que não vos ouvirei mais nenhuma. Não quereis abençoar minha filha? Paciencia ! O meu capellão o fará. Tambem era honra que vós, filho e neto de mesteiraes e vilãos, não merecieis. Todavia não saíreis d'aqui para irdes contar o que vistes e ouvistes a Vasqueannes; porque não quero que esse velho tonto faça alguma loucura. Amanhan pela manhan partiremos para a côrte, e vós podereis relatar ao vosso amigo o que se passou. Servireis ao menos de testemunha: » -- proseguiu com um sorriso de escarneo. -- «Não é assim ? Pagens, o nosso abbade padece de gota: talvez lhe custe ca minhar até a capella. Se ele não podér ir só, ajudae-o!»

Ergueu-se, fez-me uma cortezia, e partiu. Conheci que se empregaria a força se resistisse. Dirigi-me por tanto á capella. Dirvos-hei o que ahi se passou? Não. Vós o adivinhaes. Mem Viégas dissera a verdade. Leonor entregava de bom grado alma e corpo a Lopo Mendes! Elle era mais rico e mais illustre que vós!» Neste ponto da sua narrativa o abbade parou. Eu olhava para elle immovel. O velho sacerdote proseguiu:

« Andei todo o dia livremente pelos paços; mas notei que os bésteiros e homens d'armas de Mem Viégas me vigiavam os passos. Ao caír das trevas guiaram-me para o aposento, onde devia passar a noite: era o alto de uma das torres que olham para o poente. Deixaram-me só, e senti dahi a pouco correr os grossos ferrolhos da porta que dava para as quadras do palacio. Rezei: deitei-me; mas não pude dormir. Vinha a manhan rompendo, quando percebi ruido de cavallos no pateo interior do paço. Passado um breve instante abriram a porta da minha prisão. Entrou um pagem, e disse-me que podia saír quando bem me approuvesse.

Desci á sala d'armas: estava deserta. Saí então: atravessei a ponte levadiça, onde não vi mais que dous bésteiros, alguns servos mouros, e o mordomo que passeava pela borda da carcova. Ao longe, pela estrada, enxerguei uma formosa cavalgada de cavaleiros e damas em ginetes e palafrens. Entendi o que era. Sem dizer palavra, sem olhar para trás, endireitei para a abbadia.

Joanne, o antigo sacristão, que ainda a esse tempo era vivo, correu a mim de subito apenas me avistou. Tinha ido bater á porta da residencia, e vendo que eu não abria, estava inquieto; porém quando me conheceu ao longe ficou espantado. Contei-lhe tudo: não me queria acreditar. Incumbi-lhe varias cousas relativas á igreja, e parti immediatamente para os paços do senhor vosso pae, que em gloria está.

Achei as portas abertas. Peões e bésteiros de cavallo corriam para um e outro lado.

Tudo mostrava que ahi havia já notícia do que succedêra. -- «E eu que compunha medidas palavras para minorar a impressão dolorosa que tão extraordinario acontecimento deve produzir em Vasqueannes! --» Eis o que eu dizia falando comigo mesmo.

Entrei: ninguem reparou em mim: todos andavam como pasmados. Sem falar com pessoa alguma cheguei á camara de vosso pae.

Parece-me que o estou vendo! Assentado em um escabello, com as faces entre os punhos, os olhos fitos no ladrilho do aposento, e o respirar alto e rapido. Aquella grande alma vergava debaixo do peso da afilicção. Cheguei-me a elle sem que me sentisse: bati-lhe de manso no hombro: olhou para mim, e sorriu-se. Este sorriso traspassou-me o coração. Depois o seu gesto recobrou as rugas de uma dor funda..

Elle não me dizia nada. Fui eu o primeiro que falei.

«Senhor Vasqueannes, o homem põe, e Deus dispõe. Seja feita a sua vontade.»

«E a sua vontade será que se commettam crimes infames, e que um pobre velho seja deshonrado, quando tem já os pés mettidos dentro do ataúde?»

« A sua vontade é que o bom pague com amarguras do mundo as culpas de que ninguem é exempto; e que o máu folgue e ria cá emcima; porque a sua conta tem de ser saldada no inferno.» «Oh ! mas a deshonra!...»

«A deshonra é para quem commette feitos vis. O que delles padece esse não é deshonrado. »

«Isso dizeis vós outros, » -- atalhou com energia vosso pae, -- « os que não herdastes um nome antigo, que se fiou de vós como deposito, para o traspassardes sem nodoa aos vossos herdeiros. Vós não tendes herdeiros! Meu Vasco; meu Vasco! onde estás, cavalleiro, filho e neto de cavalleiros, onde estás tu?! Olha que o meu montante enferrujado já não póde saír da bainha: olha que as pernas tropegas de um velho já não podem apertar as ilhargas de um ginete! Vem! Olha que cuspiram no brasão de teus avós. Lava esta nodoa com sangue.»

Quando o abbade repetiu estas palavras de meu pae, a sua voz se me converteu na delle; e eu rugi por entre os dentes cerrados: -- «Meu pae, serás satisfeito!» -- Um mar de sangue parecia correr diante de mim.

« Sempre eu pensára, » -- proseguiu o abbade -- « que a traição de Mem Viégas faria vivo abalo no animo de vosso pae; mas tanto, custava-me a crê-lo. O meu ministerio era consolá-lo, e para a consolação recorri á fonte de todas elas: lembrei-lhe o justo, o filho de Deus cuberto de afrontas, perdoando na cruz aos seus perseguidores: lembrei-lhe que mais de uma vez, por obra e palavra, o Crucificado ensinára o perdão das injurias.

«Mas elle era Deus! Mas ele não tinha uma filha que muito amasse; que fosse como uma flor de innocencia, um anjo de amor, e se convertesse... n'uma barregan refece e torpe. Um Judas houve entre os seus, como o que entrou nesta casa; mas esse onde está? No inferno. E este? Folga e ri de mim velho. Ah que este velho tem um filho! Vingança, Vasco! Vingança!

« Eu olhava para vosso pae: não sabia se ele delirava, se nestas palavras havia algum mysterio ininteligivel para mim. Um pagem, que entrou nesse instante, me fez ver que vosso pae não delirava.

«O pagem estava no meio da casa, como um criminoso: os olhos pregados no chão, e os braços pendentes.

«Então?» -- disse o senhor Vasqueannes com voz de mortal angustia. -- «Todos os besteiros e homens d'armas, » -- respondeu o pagem, -- « acabam de chegar. Correram quatro leguas por diferentes caminhos. Não encontraram a senhora D. Beatriz, nem D. Vivaldo.

«Vasco!» -- foi o ultimo grito de vosso pae: e caiu desfalecido.

«Então percebi tudo; confesso que tambem nesse instante me passou pelo espirito um pensamento impio!

«Poucas horas antes de eu sair da prisão, em que me retivera Mem Viégas, D. Beatriz tinha fugido com o miseravel D. Vivaldo. Este homem, indigno do nome de cavalleiro, passando por aqui, falsa ou verdadeiramente enfermo, pedira e recebêra gasalhado de vosso pae. Dentro de poucos dias percebi que os olhos de D. Beatriz se encontravam frequentes vezes com os delle. Julguei que, devendo partir brevemente, se alguma afeição ía nascendo entre os dous, se desfaria com o apartamento. Entretanto D. Vivaldo, com seus modos cortezãos e de primor, captivava cada dia mais o animo de vosso pae. A noite lia-nos o Amadis do nobre Lobeira, que o senhor Vasqueannes muito gostava de ouvir, e de que tinha um traslado dado pelo proprio auctor. Quasi que vosso pae não podia estar uma hora sem D. Vivaldo. Encostado ao seu braço passeava tardes inteiras com elle, ora na mata de carvalhos, ora no horto contiguo. D. Beatriz o acompanhava, e este amor, que me parecia em começo, já estava convertido em incendio violento. Minto: esse homem não era mais que um seductor infame ! Se tivesse pedido D. Beatriz a vosso pae elle lh'a houvera dado por mulher. Certo que o amava muito! Pobre que fosse, ou de menos puro sangue, Era uma cegueira do honrado fidalgo; e aquelle miseravel devia ser o seu assassino !

«Desde este dia vosso pae não disse mais palavra, nem quiz mais comer. As vezes viam-se-lhe borbulhar nos olhos as lagrymas; mas enxugavam-se-lhe logo. Durou assim alguns dias. Uma febre violenta o sustentava.

Este fatal alimento faltou-lhe por fim, e espirou. O nome unico por que chamou, pouco antes de morrer, foi o de seu filho. »

Aqui o abbade calou-se. Estava em pé diante de mim; e eu olhava para ele fito:

Brites, que tinha escutado tudo immovel como eu, me tirou daquelle torpor, saíndo do aposento e cantando:

Boa festa, sancta festa, Em que se canta latina: De festa vestida, ás bôdas, As bôdas cantando vim.

Já, porém, este medonho contraste de uma voz de alegria no meio do ambiente de ferro que me cercava, não me fazia abalo. A dor passára o termo até onde lhe é dado ír esmagando o coração humano: o meu era ermo, nu, petrificado. Mas ahi estava gravada pela voz de meu pae uma palavra que não se podia apagar -- Vingança!

«Que me deem algum alimento. No pateo um ginete enfreado e sellado. A minha armadura e a minha espada bem limpas na salla d'armas! Um pagem para me acompanhar. »

« Senhor Deus, Jesu-Christo!» -- exclamou o abbade, com um gesto de terror, que, não sei porque, nelle tinham causado estas palavras.

«Que me deem algum alimento. No pateo um ginete enfreado e selado. A minha armadura e a minha espada bem limpas na sala d'armas. Um pagem para me acompanhar! » Os meus pensamentos eram immutaveis como de bronze: as minhas palavras como um dobre por finado, innegaveis, indestructiveis.

Creio que comi: senti renovarem-se-me as forças. Creio que vesti a armadura: ouvi o tenir do fraldão de malha sobre os coxotes, e o jogar destes e das grevas debaixo das joelheiras. Creio que cingi a espada: o coração percebeu que o instrumento da vingança estava encostado ao peito. Creio que cavalguei o meu ginete: conheci que escarvava a terra diante da planicie, que se alargava em frente dos paços, já meus, como em dia de peleja no campo da lide.

Tambem um pagem, cavalgando uma hacanea, estava ao pé de mim: trazia-me a lança, e ás costas o meu escudo mettido em uma funda. Como se outras armas houvesse ahi mais que a espada ou o punhal para quem quer vingar-se; outro escudo mais que uma vontade, um pensamento perspicaz, tranquillo, unico, incapaz de errar o alvo, semelhante a uma tenção damnada de Belzebuth !

«Sabes onde são os paços do cavalleiro que esteve aqui?» -- perguntei eu ao pagem.

«Qual, senhor? »

« D. Vivaldo, cão maldicto! »

«Não, senhor. Mas ouvi que seguia a côrte. »

« Para Lisboa! »

Partimos. Caminhavamos em quanto os ca vallos se podiam menear, e ficavamos onde nos colhia a noite. Aproximamo-nos certo dia de uma povoação: era domingo: o sino tocava á missa: o povo apinhava-se á porta da igreja. Cheguei ahi, e passei. Não me importou o dever de christão, e não senti remorsos. Percebi então como um pensamento póde fazer um reprobo. As mãos estavam ainda puras: a alma já era negra.

Entrei em Lisboa. Ao cruzar a porta da Cruz, experimentei o mesmo goso que sentira ao descer o outeiro, que jaz á entrada da minha terra natal: lá, pae, irman, amante; aqui todas as minhas victimas! Prazer de homem ahi: prazer de demonio cá. Mas que importava? A intensidade era a mesma.

A minha boa espada tinha de ir bater sobre uma cabeça criminosa, como uma maldicção paterna lançada do leito da morte; como os pelouros desses trons ruidosos com que os castelhanos rareavam nossas alas em Aljubarrota, sem haver arnez que lhes resistisse, elmo que, ao perpassar delles, não voasse em rachas com o craneo de seu dono. Qual devia ser a primeira? Hesitei. Lembrei-me da palavra que me legára meu pae: procurei o seductor de Beatriz. Debalde. Ninguem conhecia D. Vivaldo. Entre os cavalleiros d’elrei nenhum havia tal nome. A febre da desesperação começava a consumir-me. insupportavel era para mim e para os outros a minha melancholia. .

Certa manhan corria eu ao acaso as ruas e terreiros de Lisboa, sem saber aonde ir, ou a quem perguntar por esse nome vão, por essa sombra fugitiva, que o meu sonho de vingança parecia trazer-me perto dos olhos, e que a realidade me punha cada dia mais fóra do alcance. Saíndo da pousada, no extremo do bairro dos escholares, passei pelos paços dos Infantes, e cheguei ao terreiro da Sé. Ainda ahi estava o engenho, com que os populares tinham, em tempo de D. Fernando, despedaçado um traidor. Negro, meio podre, cuberto de limos tinha-o esquecido o povo! O monumento sancto, o monumento da vingança não importava a ninguem! Apertei contra o coração o punho da espada. Ela não havia de esquecer me nunca: só me tardava o dia, em que podesse pendurá-la no logar mais alto da sala d'honra dos meus paços, entre as armas ferrugentas de Vasqueannes, e depois ir ajunctarmais um cadaver no carneiro de meus avós.

Com os braços cruzados e os olhos fitos no engenho arruinado, deixava-me ir ao som dos meus desvarios, quando vozes confusas vieram despertar-me. Olhei: o povo estava apinhado juncto á torre da Sé, que deita para a banda do aguião. Encaminhei-me para lá, sem saber porque: arrastava-me uma especie de instinrto.

Quando me aproximei logo vi o que era.

Um truão mouro divertia o povo cantando arremedilhos, fazendo momos e visagens, e saltando como endemoninhado ao som de um adufe. D'ahi a poucos instantes um estrupido de cavallos soou do lado dos paços d'elrei: o povo afastou-se, e dous cavalleiros, acompanhados de seus pagens, chegaram perto da torre, pegado com a qual o bom do truão trabalhava por divertir a gentalha. Um delles era homem d'idade madura, mas d'aspecto aprazivel; o outro mancebo e gentil-homem. Embebido em seus momos o jovial folião continuou a saltar, tocando o adufe, com pantomimas lubricas, e cantigas obscenas; mas os dous cavalleiros, vendo que o actor do drama popular era um mouro, bradaram a uma voz: «Arreda-te, cão » --e picando os acicates, senhores e pagens saltaram por cima do pobre mouro, que rolou pelo chão, dando agudos gemidos.

O truão alevantou-se: olhou de roda espantado por alguns momentos, e depois cravando os olhos no céu, com um aspecto emque se misturavam signaes de colera e de angustia, exclamou!

« A maldicção do propheta caia sobre vós, infiéis! »

Ouvindo isto, o povo, em vez de se compadecer delle, começou a dizer-lhe injurias, e a atirar-lhe pedradas e lixo, dando grandes risadas.

«Perro, porque não fugiste?» -- gritavam uns.

« Arriba, e dança no monturo! » -- bradavam-lhe outros.

Um anno antes teria rido, como os mais, da desventura daquele mesquinho; mas tudo em mim estava mudado. Acreditareis, virtuoso Fr. Lourenço, que eu, cavaleiro de Christo, tive dó de um mouro, e amaldiçoei os dous nobres?

«Vis sandeus, -- disse em voz baixa --deixam passar os poderosos que opprimem, e escarnecem do aggravado, porque é um pobre mouro!» -- Por ventura esta reflexão nascia de que eu tambem era oppresso. Tambem cavalleiros me haviam calcado como ao pobre maninello.

A minha reflexão foi ouvida por um velho, que estava ao pé de mim. Mediu-me com a vista, e sorrindo-se, disse-me:

« A fé, senhor, que tenho setenta annos, e é a primeira vez que ouço um cavalleiro doerse de um vilão. Dos melhores são esses que vedes, e apesar de tudo ahi tendes o que fizeram ao triste jogral.»

«Conhecei-los?» -- perguntei eu.

«E quem não conhece, tornou o velho, o mui nobre e esforçado Lopo Mendes, e Fernando Afonso, o camareiro d'elrei? » O nome de Lopo Mendes vibrou nos meus ouvidos, como um trovão, que houvesse estourado subitamente. Fiquei calado por algum tempo: uma tempestade de paixões tumultuosas e encontradas me dilaceravam o coração.

D. Vivaldo ofendêra a honra, Lopo Mendes o amor. As minhas diligencias para encontrar D. Vivaldo tinham, porém, sido baldadas, e eu, que só vivia para sangue, coava dias apoz dias inuteis no mundo. O seductor de Beatriz ti nha o primeiro logar: era a victima de meu pae e a minha; mas o marido de Leonor passára diante de mim senhoril, orgulhoso, feliz no seu amor detestavel; interpunha-se entre o tigre e a prea. Deus tinha contado os seus dias. Devia morrer mais cedo do que eu proprio imaginara.

Estes pensamentos vieram-me como um relampago; mas a resolução que geraram foi immutavel. Voltei-me para o velho, e perguntei-lhe com apparente tranquillidade:

«E onde pousa ora Lopo Mendes?»

«Nas casas de Alvaro Pires, juncto ao muro que desce da Trindade para Valverde, perto da torre Alvaro Paes.».

Felizmente tinham-me ensinado a escrever.

Parti. Nesse dia, ao pôr do sol, Lopo Mendes recebia um papel, fechado com uma cinta preta, em que havia estas palavras:

«Um cavalleiro, que te aborrece com as véras da alma, te requesta e repta para um duello a todo o trance. Amanhan no Campo-da-lide, a hora de prima, com cota e braçaes, estoque e misericordia. Na primeira deveza, além do pinhal da esquerda o acharás. Vil e refece,mais que sua infame mulher, é Lopo Mendes, se ahi não estiver a hora de prima. Não leva firma: daqui a poucas horas me has de conhecer. »

O pagem, que levára esta carta, a recebeu outra vez aberta, e aberta m'a entregou. Trazia no alto escripto:

« Quem quer que sejas, vilão, põe ahi teu nome, para que te faça açoutar como a um mouro perro e fugidiço. -- Lopo Mendes. » Ri-me.

III

A CAÇADA.

Hora devees de saber que aquel boom alaão de Bravor, comprido dardimento e de boomdades, se gundo saa naturesa, era assi acos tumado, que ..... nem porco nem husso, nem outra animalia com que se encontrasse, nom avia de travar em ella, a menos de lho mandarem fazer.

FERNÃO LOPES -- Chr. de D. Fern., Cap. 99.

Vinte dias e outras tantas noites, -- proseguiu Fr. Vasco, -- com uma cota de malha vestida por baixo do pelote e da capa, e com o meu punhal na cincta, vagueei horas inteiras em redor da pousada de Lopo Mendes. Muitas vezes o vi saír e descer para a banda de Valverde, ao longo da muralha do norte. Seguia-o de longe, até o ver sumir-se nas ruas tortuosas e escuras do coração da cidade. Eu subia então outra vez a encosta, e vinha curtir tardanças da hora de sangue nas cercanias das casas de Alvaro Pires. Finalmente essa hora suspirada bateu.

Era pela manhan cedo de um dia de fevereiro. O tempo ía sereno, posto que frio.

Aquella noite, bem como as outras, mal passára pelo somno, e ainda este povoado de sonhos horrendos. Apenas rompeu a alva, montei a cavallo, e, seguido do meu pagem, voltei á occupação quotidiana. Atravessei a cidade, saí pela porta de Santa Catharina, e corri com o muro ao longo da barbacan. Quando cheguei defronte do postigo de Alvaro Paes vi cousa que me fez parar.

Montado em um corredor ruço-pombo, e vestido de monte, Lopo Mendes saía para o arrabalde. Acompanhava-o um pagem, e o falcoeiro, com um galgo e um alão atrellados, e um nebrí em punho. Cortejou-me ao perpassar. Com um movimento convulso apertei o conto do meu punhal, e tambem o saudei. Partiu. Segui-o de longe: por montes e ladeiras, por logares selvosos e chãos rasos, nunca o perdi de vista. Ele perseguia as aves e alimarias innocentes: eu perseguia-o a elle.

Qual de nós seria mais feliz? Nem eu o sabia, nem elle. Por bicadas de montes e por barrocaes, por entre os silvados e olivedos entremeados de vinhas, que se penduram pelas encostas até as margens do Alcantara, nunca me alonguei delle. Tinha deixado o meu cavallo ao pagem; tambem elle deixára o corredor ao seu.

Só com o falcoeiro, mettia-se por brenhas, e saía ás clareiras. Eu, como o seu anjo mau, ía muitas vezes bem perto delle, cosido com os comoros e sebes, ou sumido pelos algares das torrentes, ou pelos corregos das quebradas.

Chegou a uma ponte de madeira, e atravessou o rio para a banda do occidente. A serra fronteira, calva aqui e acolá, é pela maior parte enredada de urzes e tojos, por entre os quaes apenas se encontram estreitas trilhas de pastores. E talvez este o unico sitio dos arredores, a que se possa chamar um ermo. Deixei-o embrenhar, e transpuz o rio apoz elle.

Por alguns momentos julguei que o tinha per dido, mas divisei-o por fim sobre um penedo a meia serra. Acerquei-me o mais perto que era possivel. Escutei: batia-me o coração com força. Ouvi-o gritar: Bravor, ao fojo! Era ao galgo que fallava. Vi partir este destrellado, por entre penedias: uma lebre corria adiante; o cão a ía alcançar. De repente um e outro animal desappareceram, como se a terra os houvera engulido.

Lembrei-me então de me haverem contado, que por toda esta serra se encontram caminhos subterraneos, cuja origem se ignora.

Uns os suppõem obra da natureza, outros dos homens. Tinham-me dicto que os caçadores, usados a frequentar estes sitios, conheciam as entradas e saídas desses corredores tortuosos e escuros, e que muitas vezes se aproveitavam disto para lançarem os lebreus por um cabo, e dividirem-se para lhes tomar as saídas. Começára a desanimar; mas esta lembrança me avigorou a esperança.

Não me enganei. Ouvi Lopo Mendes fallar com o falcoeiro, e vi partir este, levando o nebrí em punho, e o alão atrellado. O cavalleiro seguiu a pista do galgo, e, como elle, desappareceu entre o fraguedo.

Ajoelhei. Dava graças ao céu, que rejeitava a minha gratidão blasphema.

Erguendo-me, parecia-me que o coração se me dilatava. Tinha as mãos, o rosto, os joelhos feridos e ensanguentados; mas já não era preciso arrastar-me por mais tempo, como a vibora, por vallados, balsas e carças. O tigre arrojava-se acima da prea com a fronte erguida, com o bramido do contentamento, e diante da luz do sol.

Este havia começado a sua declinação diaria, quando cheguei áquellas concavidades, cujo ádito escondido entre a penedia, só divisei ao dar de rosto com elle. Era virado ao occidente, e a claridade da tarde, já bastante amortecida, batendo nas paredes irregulares da primeira gruta, penetrava indecisa até meia área da caverna immediata, por um arco de pedras, amarelladas e brutescas como o resto do covão. No meio daquelle arco um vulto de homem, curvado para diante, e firmando as mãos sobre os joelhos, parecia tentar o ver alguma cousa atravez das sombras que tinha diante de si. Escusado é dizer-vos cujo era esse vulto.

Com os braços cruzados contemplei-o immovel da entrada do subterraneo: estava tão embebido em esperar o seu lebreu, que não deu tino de mim.

Entrei: o chão era barrento e humido.

Ajudado por esta circumstancia caminhei com passos lentos e subtis, por tal modo que estava junto de Lopo Mendes, e ele não me sentia.

Aferrei-o por um hombro sem dizer palavra: ele apenas pôde voltar meio corpo, dando um estremeção.

«Que me quereis? Quem sois?» -- perguntou perturbado.

«Um vilão que vem dizer-te o seu nome, para o mandares açoutar como um mouro fugidiço. ».

«Entendo, senhor cavalleiro! Mas escolhestes máu logar e hora para renovar requesta.

Em tanto aqui a acceito, se me disserdes vosso nome... . »

« O meu nome?» -- gritei eu. -- «O meu nome é Vasco da Silva! Conhéce-lo?

Requesta já t'a fiz: não a acceitaste. Querias o meu nome para atirar-me a cabeça aos pés do algoz? Tu és vil, Lopo Mendes; vil como tua mulher, que se prostituiu a ti, atraiçoando-me, porque tinhas mais dous avós, mais dous punhados de dobras. Repto!... É tarde para falar nisso. »

Dizendo estas palavras levei a mão á cincta, e arranquei meio punhal.

«Mas é um assassinio!..... »

« Adivinhaste! » Lopo Mendes pertendeu desembaraçar-se.

Pobre cortezão! Os ossos do hombro rangeram-lhe debaixo da minha mão ensanguentada pelas urzes e silvados: vergou, e caíu de joe lhos. -- «Por vosso pae, por vossa irman, Vasco da Silva, que não me assassineis! »

«Meu pae, » – tornei-lhe eu com uma tranquillidade que devia ser horrivel, -- « foi morto por um homem tão vil como tu: irman já não a tenho; converteu-se numa barregan tão infame como tua mulher. »

«Por Deus, que não queiraes lançar a minha alma no inferno ! Não me mateis sem confissão! » Não lhe respondi: sentia na boca um gosto de sangue: côr de sangue me parecia a frouxa luz que me allumiava. Ergui o punhal, e craveilho duas vezes no peito: caíu. Ajoelhei ao pé delle, curvando-me, e gritando-lhe ao ouvido :

«No inferno nos encontraremos! » Quando saí da caverna o sol ía-se pondo; quando passei o Alcantara, tocava o sino da oração. Chegando ao logar onde deixára o pagem com o ginete, cavalguei sem dizer palavra: atravessei os campos e as ruas da cidade já desertas, e tanto que entrei na pousada, sem tomar nenhum alimento, sem saber o que fazia, encerrei-me na minha camara.

Que noite, padre! que noite!.... Estes cabellos não estavam brancos no outro dia ; mas a alma tinha-me envelhecido vinte annos.

Acordado, com os olhos abertos, via Lopo Mendes, ensanguentado, entre chammas, em pé diante de mim; os seus olhos eram dous carvões accesos, que se lhe revolviam á flor do rosto. Cerrava os meus; via-o atravez das palpebras, immovel, silencioso! O suor corria-me da fronte em bagas. A oração fôra o meu unico refugio naquella afrontosa agonia; mas não havia uma só palavra de oração de que o espirito se recordasse, ou que os labios podessem repetir. O resar é para os innocentes: eu tinha escripto o meu nome com sangue no livro maldicto dos grandes criminosos.

No outro dia, com a luz, com o tumulto da vida, os meus terrores asserenaram. Recobrei o sentimento da vingança; mas já não era tão inteiro e violento, porque com ele se misturavam remorsos. O pagem que comigo trouxera, mandei-o voltar para o meu castello, tomando por pretexto algumas ordens, que tinha de communicar ao mordomo do solar. A morte de Lopo Mendes devia divulgar-se, e eu temia que as desconfianças estouvadas do pagem me atraiçoassem. Não receava o castigo; mas considerava-me como ligado á missão de sangue, que meu pae me incumbíra na hora da morte. Desempenhada esta, nada me importava morrer, e pouco mais que o logar da agonia fosse uma cama de frouxel e telas alvas, ou o cepo, duro e cuberto de lucto, do cadafalso.

Era pelo fim da tarde quando saída pou sada. Encaminhei-me para o sitio da morada de Lopo Mendes: queria saber o que se pas sára, e a ninguem podia encarregar disso sem alevantar suspeitas. Quando ahi cheguei, já o crepusculo da noite mal deixava enxergar os objectos. Pelas frestas das casas contiguas ás de Alvaro Pires bruxuleava o clarão das candeias e tochas, mas nessa habitação tudo estava fechado e escuro como um sepulchro. Pelo profundo portal do edificio entravam e saíam vultos negros, e silenciosos. Cheguei mais perto, e então percebi distinctamente os chóros e prantos das carpideiras, misturados com os psalmos religiosos, e com as orações pelos finados. Transpirando atravez das vidraças e portas cerradas, estes sons frouxos e discordes vinham bater-me nos ouvidos, e em vez de me causarem prazer, como eu imaginára nos meus sonhos de vingança, esmagavam-me o coração, e faziam-me eriçar os cabellos.

Era evidente que o cadaver de Lopo Mendes tinha sido encontrado; mas importava-me saber o como, e se havia algumas suspeitas ácerca do matador. Dirigi-me a um daquelles vultos que incessantemente entravam e saíam, e perguntei-lhe o motivo dos prantos que ouvia.

Soube então que o falcoeiro voltára em busca de seu senhor, e que encontrando-o assassinado, corrêra á cidade como louco, a dar conta daquelle successo; que a justiça, guiada por elle, fizera conduzir o cadaver para ser sepultado, o que nessa noite se verificava; que a principio algumas suspeitas tinham recaído so bre o falcoeiro; mas que estas se haviam des vanecido, attendendo a que era um antigo e leal servo, e a que, se tivesse sido o assassino, não seria elle que por si proprio se viesse offerecer ao castigo; que, todavia, tinha sido posto a ferros até se averiguar quem havia commettido aquele homicidio, o que ainda era um mysterio.

Ainda bem não tinha acabado de ouvir esta narração, quando a luz viva de muitas tochas allumiou subitamente as escadarias, e pateo da casa, e os prantos e hymnos reboaram distinctamente pelas abobadas. Era o saímento que descia. Encostei-me para o angulo do edificio, e dalli contemplei a minha obra infernal.

Os frades de S. Francisco vinham adiante com os capuzes mettidos na cabeça e tochas accesas nas mãos, resando em voz baixa e soturna: seguia-se a tumba, levada em collos de homens, e cuberta de pannos negros. O suor corria-me em fio da fronte; os dentes batiamme uns contra os outros. Porque estava eu alli? Não o sabia. Oh, veneravel Fr. Lourenço, era o meu crime que me tinha de sua mão: era ele que não me deixava tirar os olhos daquella horrivel tumba! Vergava-me o coração debaixo do peso dos remorsos, e, todavia, lembrava-me de que ainda me faltavam mais victimas! » Neste ponto da sua narrativa o monge calou-se por alguns momentos, como quem buscava atar o fio partido das ideas, e trabalhava por cobrar novas forças para proseguir. O mestre de theologia tinha os olhos fitos nelle sem pestanejar, e nas suas feições transparecia o horror em que lhe afogava o animo tão medonha e abominavel historia.

«A tumba havia passado os umbraes da casa, -- continuou o moço frade -- e ainda eu a seguia com os olhos, quando apoz tantos vultos negros um alvejar de roupas atraz do ataúde, me distraiu. Era ella: era Leonor! Pendia-lhe da cabeça um longo capuz de vaso, fluctuando sobre a tunica de almafega alvacenta, que lhe arrastava até o chão. Chorava e soluçava pelo morto! E eu alli; trahido, esquecido, miseravel, criminoso por ella! Era ainda formosa: mais, por ventura, que no tempo dos nossos amores! Não sei o que me reteve, que não me arrojasse a seus pés, e lh'os beijasse, e lhe pedisse perdão, e depois a apunhalasse. O meu arquejar devia soar bem longe: mas não disse nada. Padeci e sofri.

Donas, donzellas e cavalleiros tambem vestidos de burel branco, e com as cabeças cubertas de vaso, rodeavam Leonor. Apoz elles mais nada, senão algum povo, que começava a ajuntar-se. O portal ficou deserto, e apenas se ouvia, lá em cima nos aposentos, o choro das pranteadeiras, que provavelmente não tinham ousado acompanhar o morto, com suas lagrymas venaes.

Metti-me entre o povo, e segui o saímento, Aquele complexo de frades e cavaleiros e donas e donzellas e hymnos e resar baixo e soluçar e carpir, entre cujo mover incerto e lento, entre cujo ruido soturno e temeroso, eu via a menor acção de Leonor, ouvia o menor accento da sua magoa acerba e afogada em choro, era como um redemoinho que me arrastava e embebia em si irresistivelmente. Vago e monstruoso, como aquelle longo vulto de muitos vultos, como aquelle vozear de muitas vozes, era o que se passava em mim : se aflicção ou prazer; remorsos do crime, ou contentamentos da vingança; sede de mais sangue, ou desejo de perdão; odio immenso, ou amor desperto de novo com dobrada ancia, é o que não saberei dizer-vos. Por ventura era isso tudo, que a coração.

um tempo me assaltava, e despedaçava o Chegando á igreja de S. Francisco o saímento atravessou o portal do meio, e seguiu ao longo da nave central. No cruzeiro estava um estrado cuberto de negro: depositaram em cima o ataude; abriram-o, e os psalmos da morte, momentaneamente interrompidos, reboaram de novo por aquelas fundas arcadas.

Havia-me encostado a uma das columnas das naves, para alli ir bebendo golo a golo o meu calix de amargura. Quando abriram o ataúde, lancei para lá os olhos, sem saber o que fazia. Vi a face livida do morto: tinha os dentes cerrados, as feições contrahidas, e de cada canto da boca pendía-lhe um fio de sangue negro e gelado, como devia estar o que eu lhe deixára nas veias. Voltei os olhos num relance , mas continuei a vê-lo.... então.... depois... agora mesmo.... talvez para sempre.... talvez na hora tremenda da derradeira agonia! »

O moço frade não disse, murmurou, ou antes rugiu estas ultimas palavras: afastou-se com impeto de Fr. Lourenço, apertou a testa com as mãos ambas, e exclamou: «Ai, quem me tira isto daqui!»

Este brado, semelhante ao grito de um homem que matam a ferro, despedaçava o coração.

Um grande crucifixo estava encostado á parede na cella de Fr. Lourenço. O velho monge atirou-se de joelhos, abraçando os pés da cruz, e derramando rios de lagrymas.

«Pelas tuas divinas chagas, por teu sangue vertido sobre a cruz, Redemptor do mundo, perdoa a este misero, como perdoaste aos algozes que te crucificaram!» Estas palavras ainda as ouviu Fr. Vasco. Depois a oração de Fr. Lourenço soava apenas como um murmurio de aragem da tarde por campina de hervas rasteiras. Era a oração que os ouvidos dos homens não ouvem; aquella que Deus entende. E á proporção que o resar do velho se afervorava, as mãos confrangidas de Fr. Vasco lhe iam descendo da fronte, e csta se lhe asserenava. Ficou immovel olhando para o ancião, cujas longas melenas brancas varriam o ladrilho do aposento. Tambem dos olhos lhe rebentaram algumas lagrymas.

Fr. Lourenço ergueu-se por fim. Reluzia-lhe no rosto uma alegria celeste. Fr. Vasco arrojou-se outra vez no seio do homem justo.

Que consolação ha ahi semelhante á de alma crivada de remorsos, quando se encosta a outra cujos pensamentos moram aos pés do throno do Senhor? Comparada com ela a do nu e faminto recebido no regaço do abastado, pode se chamar desconsolo.

« Leonor, Beatriz, meu pae, D. Vivaldo, a vingança » -- proseguia Fr. Vasco-- « tudo me desappareceu da alma com aquella vista medonha. Saí como louco da igreja. Precisava de ar, porque me faltava a respiração: precisava das trevas da noite; porque a luz que ahi havia era luz de mortos. Vagueei horas inteiras pelas ruas da cidade, áquella hora ermas e tenebrosas, até que, meio desfalecido, me recolhi á pousada.

Era meia-noite. Esta, e as que se lhe seguiram, foram semelhantes á antecedente, povoadas de visões e de terrores. Lembrei-me umas poucas de vezes de atirar a minha alma ao inferno, apunhalando-me; mas avaliava já os seus tormentos, e não ousei tanto. Crede-me Fr. Lourenço, um homem que se mata a si proprio ou é um louco, ou tem coração tão damnado que desconhece os remorsos. Só quem passasse pelo que eu passei entenderá plenamente a significação destas palavras -- condemnação eterna.

Foi depois de quinze dias de insupportavel padecer, que um raio de esperança allumiou as trevas desta alma. Lembrei-me de buscar-vos. Todos vos diziam bom, e que tinheis a virtude de serenar as tempestades do espirito ... »

« Fr. Vasco, o -- interrompeu o velho monge com aspecto severo, -- « esses milagres fá-los Deus, e não o vaso de barro que é seu instrumento, e que, depois de servir, ele parte no dia em que se tornou inutil.»

« Procurei-vos. O meu intento era contar-vos tudo; mas desfaleci no proposito. Ouvistes só metade da minha negra historia: agora ahi tendes nu este coração. Por Deus, que não amaldiçoeis o pobre Vasco: por Deus, que não o amaldiçoeis, quando ele vos disser que este sancto habito, amortecendo os seus terrores, fez ressumbrar de novo o amor, a sede da vingança, a memoria do legado paterno, todos os sentimentos que o fizeram criminoso. Oh, reverendo nonno, eu perdoaria tudo, menos uma afronta ao nome de meus avós; eu esquecer-me-hia de tudo, menos de um amor puro e ardente, como era o meu, despresado, escarnecido por mulher leviana e refalsada; eu cer raria os ouvidos a todas as suggestões, mas não posso cerrá-los á voz de meu pae, que lá debaixo da terra me brada: Vingança! »

«Vasco, Vasco ! Desgraçado! Aquelle fez mais do que isso: amou e abençoou os que lhe cuspiram nas faces, e lhe tiraram a vida nos tormentos da cruz.»

E apontava para o crucifixo.

« Não posso » -- murmurou o moço frade.

Fr. Lourenço ajoelhou de novo, e curvou a fronte para o chão. Desta vez, não aos pés da imagem do Salvador, mas aos pés de Fr. Vasco, ora beijando-lhos, ora abraçando-o pelos joelhos.

«Meu irmão, filho de S. Bernardo, não queiras perder a tua alma. Este pobre velho to pede chorando! Perdoa! perdoa! Se os que te ofenderam viessem agora ajoelhar-te aos pés e implorar piedade, negar-lha-hias tu? -- Não! E se o fizesses...»

Aqui Fr. Lourenço ergueu-se rapidamente, e em pé, com o braço mirrado e pallido estendido para Fr. Vasco, e saído um pouco fóra da manga do habito, tomou a postura é o aspecto de um propheta que falla em nome de Deus; -- « se o fizesses, o Senhor lhes perdoára por ti, e reprobo fôras tu, não eles. Talvez a estas horas desejem dizer-te peccavi! Talvez chorem com lagrymas de sangue! E tu? Blasphemas. Se não se arrependerem, cres que a justiça divina dorme ? Vasco, tambem tu es réu, como elles. Perdoa, se queres perdão. O juiz de nós todos é o que mora nos céus. »

O monge não respondeu nada. Tambem nós não protrahiremos por mais tempo esta scena de lucta moral, em que o virtuoso velho trabalhava por salvar um desgraçado, que nascêra bom e honesto, e que a sociedade fizera culpado. Mentirosa, corrupta e má, a vida social, cheia de erros, preoccupações e vicios, damnada nas instituições e nas leis, nas crenças e nos costumes, educa as gerações e os individuos, legando-lhes largo cabedal de perdição; e quando os arbustos plantados em terra peçonhenta, tendo bebido uma seiva venenosa, produzem seus fructos de morte, o mundo, ao mesmo tempo malvado e hypocrita, horrorisa-se, abomina a sua obra, e ajunctando-se á roda do cadafalso dos suppliciados, que ele proprio lá conduziu, saúda uma cousa, a que pôz por nome justiça, e que não é mais que uma desculpa embusteira da ignorancia e da perversidade, não do individuo criminoso, mas desse vulto hediondo e informe, chamado sociedade, para o qual não ha, nem leis, nem punição, nem algozes. Semelhante ao nosso, semelhante aos que hão-de vir era o seculo XIV; e Fr. Vasco, lançado na carreira do crime pelo pundonor de cavaleiro e de nobre, pela exaggeração de paixões activas, era uma victima das ideas e sentimentos do seu tempo, como tantos o são das do nosso.

Desde o dia em que se passou o dialogo que deixamos escripto, Fr. Lourenço foi como o anjo da guarda do pobre Vasco. Uma sympathia inexplicavel para com elle, o unia a este mancebo, a quem o velho ganhára amor de pae. Era que entre estas duas almas havia uma harmonia: ambas elas eram nobres e generosas. Como duas arvores gemeas nascidas num valle, roto por algum fojo profundo, que misturam as raizes em abraço fraterno, e das quaes uma posta na aresta do abysmo, tem o tronco e os ramos de um verde malassombrado pendentes sobre a voragem, que ameaça tragá-la, em quanto a outra, aprumada e alegre, braceja vergonteas para o ar e para o sol, assim destas duas almas, ambas na essencia formosas, uma se balouçava triste ás bordas do inferno, em quanto a outra fugia nas azas dos sanctos pensamentos para o seio de Deus.

E como das duas arvores, a que está mais firme obsta a que a outra se despenhe, assim Fr. Lourenço tinha da sua mão o malaventurado mancebo.

As paixões deste eram daquelas que só fulminando soam. Sem vicios, sem ancia de gosar, porque o goso não era para a sua alma queimada pelo padecer; afavel, bom e humilde com todos os que o tratavam, porque o odio, guardava-o como um thesouro contra quem o tinha ofendido; compadecido dos oppressos e desventurados, porque tambem ele o era, Fr. Vasco passava no collegio de S. Paulo e S.

Eloi por um futuro successor de Fr. Lourenço em sanctidade e boas obras. Tendo-se entregue com fervor ao estado, como um meio de afugentar pensamentos crueis, criam que o amor da sciencia o obrigava a passar as noites sobre os livros, em quanto ele o fazia só porque a vigilia sobre o livro mais sem sabor é um folguedo comparado com a vigilia no leito do repouso, que tantas vezes se converte em Gethsemani de agonia.

Assim, Fr. Vasco, indigitado como futuro sancto, e futuro sabio, estava bem longe de ser uma ou outra cousa. Fr. Lourenço era quem o conhecia; quem passava horas e horas pedindo a Deus salvasse aquella alma. Todavia, se houvesse alguem que perguntasse ao porteiro Fr Julião, ou a qualquer outro leigo do collegio de S. Paulo e S. Eloi, qual era o caracter de Fr. Vasco, ouvíra uma linda novella, em que não haveria uma só palavra de verdade.

E no fim o donato, empertigando-se, concluiria com aquelas palavras, que eu e tu, leitor, temos ouvido a tantos donatos, que ainda ha no mundo:

«Conheço-o por dentro e por fóra! »

Parvos! Mas a nossa barca, ou antes a barca afretada por Fr. Lourenço, abicou a Restello. Saltemos em terra com os dous cistercienses.

IV

A FESTA DA MAIA.

As gentes juntas em desvairados bandos de jogos e danças per to dalas praças com muitos trebelhos.

FERN. Lopes, Chron. de D. João I

Na epocha em que se passaram os factos contidos nesta historia, que não cede em verdade á mais campanuda e edificativa do Flos Sanctorum de Ribadeneira ou de Fr. Diogo do Rosario; nessa epocha, dizemos, quem, subindo pelo Téjo acima, contemplasse a margem direita do rio, teria que ver um painel bem diferente do que ela actualmente apresenta aos olhos do navegante, que, afeito ás solidões do céu e do oceano, se engolfa na magnificente bahia da velha Lisboa. Esses milhares de edificios, que, semelhantes a uma larga cauda alvacenta, a cidade estira até Pedrouços, acompanhando as sinuosidades da margem, ainda não existiam. Esse alto, onde hoje campea o monstruoso fragmento de uma absurda e monstruosa concepção, o palacio egypcio-greco-romano-jesuítico da Ajuda, era uma brenha intractavel. Belem não existia, como, segundo pa rece, não existirá daqui a cincoenta annos.

Aquem do Alcantara, sobre o qual já então havia uma ponte, pouco mais ou menos como a de hoje, fazendo o devido desconto da estatua do sancto martyr advogado das pontes, que ainda então não era nem sancto, nem martyr, nem nascido; áquem do Alcantara, por entre barrocaes, verdejavam as vinhas, que desciam em amphitheatro até o fundo do valle, por onde ele se vae deslisando perguiçoso e pobre, condições que, diga-se aqui de passagem, costumam andar junctas em muitos, que, em vez de trabalharem, acham mais commodo queixar-se dos desfavores da sorte.

Estas vinhas, misturadas com algumas hortas e olivaes, espalhando-se pelas alturas de Buenos-Ayres, e estendendo-se para o lado de Sanctos, que já se chamava assim, corriam até o outeiro conhecido hoje com o nome de Bairro-alto. Era pela assomada deste monte que a cidade findava da banda do occidente. ElRei D. Fernando I lhe dissera -- "não passarás daqui" -- e cingíra-a com uma cincta de muro, torres e barbacans, que por esta parte corria desde o largo de S. Roque, quasi numa linha recta, pelo largo do chafariz do Loureto e thesouro velho até o Ferregial. Foi no anno de 1373, que, vindo elrei do Alemtéjo, « começou de cuidar (diz Fernão Lopes) no « mal e dapno, que o poboo da cidade avia reçebido por duas vezes dos castelãos e como espiçialmente ouverom gram perda os moradores de fóra da cerca em gramdes e fremosas casas, e mujtas alfayas, e outras riquezas que levar nom poderom comsigo, quando elrei de Castella veo sobre ella; e esto porque mujtas das mais rricas gentes moravom todos fora em huum gramde e spaçoso arravallde que avia arredor da cidade, des a porta do ferro ataa porta de Santa Catellina, e des a torre d'Alfama ataa porta da crus; e veendo elrei como esta soo cidade era a melhor e mais poderosa de sua terra, e que em ella principalmente estava a perda e defenssom de seu reino, dês « hi como fora dapnificada dos enimyguos per «fogo, e outros malles que avia rrecebidos, « de que el tinha gramde semtido; determinou « em saa voomtade de a cercar toda arredor, « de booa e defemssavell cerca; de guisa que « nenhum rei lhe podesse empeecer, salvo com « gramde multidom de gente, e fortes artefiçios de guerra.» Este pensamento posto em execução e levado a cabo em dous annos, salvou dahi a pouco Portugal das garras de Castella; mas quando os tributos da Africa, e as riquezas do Oriente caíram como orvalho sobre a cidade dos muitos seculos, ella, desmentindo as palavras de D. Fernando, e semelhante a um velho carvalho, começou a brotar renovos pelas fendas do seu cortex de pedra.

Dir-se-hia que as armadas portuguezas, carregadas com os despojos do mundo, e malsofridas de tanto peso, íam lançando ao longo da praia, desde a cidade até Restello, montes de ouro e especiarias, que as mãos dos senhores dos mares convertiam logo em templos e em palacios. Foi nos fins do seculo xv, e principalmente por todo o XVI, que essa cidade maravilhadora de olhos estrangeiros começou a despontar pelo alto de S. Catharina, e a descer risonha para os outeirinhos e valles do occidente. Até ahi, escondida para além dos seus muros, abrigada aos pés do seu castello mourisco, que era apenas o que se via ao longe, como que envergonhada da sua pequenhez, confrangia-se, e apoquentava-se a si propria na cincta de muralhas de que a cercára D. Fernando, cioso da sua formosura. Era então como a filha donzella e innocentinha do honrado e guerreiro Portugal, bom soldado da idade media, a quem riquezas de conquistas e embriaguez de glorias fizeram dissoluto, e a dissolução fez antes da velhice caduco. Lisboa, a sua filha, graciosa, pudica, pura na antiga pobreza, cresceu na abundancia e no luxo, partiu o cincto que lhe dera o ultimo rei da primeira raça, e trepando o monte occidental, que a encobria, surriu-se, e chamou, como mulher perdida, os estrangeiros que passavam.

Elles, mais corrompidos que ella, a saciaram de vicios e abominações. Hoje ahi está assentada ao pé de seu velho pae. Elle, veterano tonto, afasta os farrapos que o cobrem, e mostra as cicatrizes de mil batalhas, e levando a mão á fronte calva, procura os louros de novecentas victorias; mas as cicatrizes estão cubertas de vermes, e os louros desfolhados por mãos de nações, de que ha dous ou tres seculos havia já tal qual noticia no mundo. Ella, vestida com andrajos de brocado, ainda formosa, mas descorada e abjecta, quer sorrir-se lascivamente aos estranhos; porém os estranhos que passam, se honestos, seguem avante, meneando a cabeça; se corruptos, passam uma noite no seu regaço, e ao partir no outro dia cospem-lhe nas faces, dando uma gargalhada.

Cidade, donzella e pura do seculo quatorze, porque rasgaste o teu véu de innocencia ?

Porque partiste o cincto que te dera o rei que tanto te amou? Porque te aproximaste á foz do Téjo, convocaste os estrangeiros, e converteste a tua morada em um lupanar? Foi porque teu pae perdeu na idade grave as virtudes da idade viril. Foi porque ele te entregou a ti só as riquezas que conquistára por todos e para todos os seus filhos, e tu o fartaste de deleites e dissoluções, e embriagado se te deitou aos pés como um escravo. É por isso, que os que vem buscar os ultimos fios de ouro do roto brocado que te cobre, ou arroxear-te as faces sem pudor com os ultimos beijos de uma sensualidade hedionda e bruta, calcam o velho que dorme a teus pés o somno da embriaguez.

É por isso que tu ouves ao longe, na terra e nos mares, um som vago de risadas de insulto, um apupar de gentalha em linguas barbaras. Riem-se de ti, desgraçada ! riem-se do Portugal que fez muitas vezes enfiar de terror os avós dos que ora fazem de ti baldão. Este rir, este apupar é a voz do teu opprobrio.

Quando has de tu ser quem foste, oh terra de D. João primeiro?

D. João primeiro?! Ora essa! -- exclamará algum dos nossos leitores -- Deixae-nos com D. João primeiro! -- Pobre bruto, que não sabia nem conhecia nada: nem os phalansterios nem os charutos da Havana, nem a mnemotechnica nem a pyrotechnica; nem o systema eleitoral, nem as pilulas de familia; nem os coupons, nem as vellas de stearina; nem as inscripções, bonds e carapetões, nem os dentes postiços. Que temos nós, homens do progresso, da illustração, de espivitada e desenganada philosophia, com esses casmurros ignorantes, que morreram ha quatrocentos annos?

Tens razão, leitor. Fecha o livro, que não é para ti.

O peditorio para Fr. Lourenço ir visitar a pobre mulher que se morria, fôra feito na vespera á tarde ao porteiro de S. Paulo, Fr. Julião, que, conhecendo o caracter de Fr. Lourenço, e receando que nessa mesma tarde quizesse acudir á desventurada, o que o podia obrigar a elle a deitar-se a deshoras, calára o negocio comsigo. Um mouro que viera fazer com instancia aquella supplica, farto de esperar resposta, atreveu-se a perguntar ao reve rendo leigo se dera o recado; ao que Fr. Julião acudiu, com um aspecto entre risonho e de sobrecenho, perguntando se ele queria acompanhar sua reverencia.

«Assim é preciso para ensinar a pousada, » -- respondeu o mouro.

«Ora pois, » -- replicou o leigo com ar de protecção: -- « o reverendissimo diz que não pode ir hoje, mas ámanhan não faltaremos. És de Restello ?»

« Padre, sim, » -- tornou o mouro. -- « E esperarei ámanhan na praia pelo vosso sacerdote para o guiar aonde jaz a mesquinha.»

« Isso mesmo. Dize a quem te mandou que confie na nossa caridade. E tu vae-te com Allah.... (que é o diabo» -- accrescentou Fr. Julião em voz baixa, e benzendo-se --) assim Deus me perdoe... Adeus, amigo; que já tocou uma vez á segunda meza do refeitorio. »

E a porta, rodando lenta nos quicios, bateu suave e devotamente na cara do mensageiro.

Então o mouro puxou para a cabeça o capelo do albornoz, e partiu.

No outro dia, quando Fr. Lourenço saía da cella, correu a elle Fr. Julião, e disse-lhe que um mouro viera ahi pedir a sua reverencia para ir ver uma pobre mulher que se morria, e que a ele se queria meenfestar, accrescentando que o mensageiro partíra logo, dizendo que esperaria na praia de Restello para ensinar ao reverendissimo a pousada da penitente.

«Um mouro» -- pensou Fr. Lourenço, -- « mensageiro de uma christan, que pede confissão?!... Aqui ha mysterio.»

E chamou Fr. Vasco para o acompanhar.

A aldeia de Restello, situada a uma legua de Lisboa, dentro do districto chamado, desde as epochas mais remotas da monarchia, o reguengo d'Algés, o qual comprehendia todas as aldeolas e campos ao occidente e noroeste da cidade, por duas leguas ou mais de distancia, era no XIV seculo habitada, em grande parte, por mouros forros, que nos arredores grangeavam algumas hortas e pomares, de que ajudavam a abastecer a cidade, ou por pescadores, que d’ahi saíam em seus bateis a pescar no Téjo. Grande parte destes pescadores eram tambem mouros, ou livres ou escravos. Restello, como quasi todas as aldeias das cercanias de Lisboa, parecia quasi uma terra mussulmana ainda no fim do seculo XIV. Ainda então avultava, entre a raça goda e christan, a raça africana-arabe. Até esta epocha, ou antes até quasi o fim do seculo seguinte, as Hespanhas ofereciam um phenomeno unico, talvez, na historia: o de tres povos, sectarios de tres religiões inimigas, vivendo junctos, e cada qual adorando Deus a seu modo, sem que por isso viessem ás mãos, apesar de todas essas crenças serem persuasões profundas, e por consequencia exclusivas. As tres religiões eram o christianismo, o islamismo, e o judaismo: o primeiro dominante, o segundo tolerado, e o terceiro consentido. Nobres, cavalleiros, e o grosso dos burguezes pertenciam ao primeiro, os homens de trabalho, em boa parte, ao segundo, os mercadores, em grande numero, ao terceiro. E acima do Evangelho, e da Toura, e do Alcorão, havia um livro que fazia o que nunca souberam fazer os commentadores de cada um delles; um livro que os conciliava. Este livro era a lei. A lei protegia os diversos cultos nacionaes, sem que todavia fosse incredula, como as leis da tolerancia moderna. Nenhuma admiração deve, talvez, causar esta protecção relativamente ao judaismo; porque a favor desta crença fallavam as riquezas dos seus sectarios; mas o que em verdade espanta é a tolerancia, quasi diriamos o favor, que achava no animo dos legisladores o mohametismo. A maioria dos mouros era escrava e pobre, e além disso, eles tinham sido, havia apenas dous seculos, inimigos armados, adversarios duros, e senhores das terras, que ora cultivavam servos: ainda um reino mourisco subsistia em Hespanha -- Granada -- Granada mãe de valentes soldados, e donde podia partir o raio, que derribasse mais de uma cruz levantada sobre mesquita convertida em cathedral; e todavia estes homens achavam amparo nas leis dos seus vencedores. Por algumas destas leis, feitas na primeira metade do seculo XV, chegaram a ficar sujeitos a graves penas aquelles que ousavam ofender esses desgraçados na unica herança que lhes restava, a religião de seus paes.

Todavia não se creia que os legisladores ou o povo eram tibios na fé. Como religionario, o christão detestava, ou antes despresava o mouro e o judeu; como cidadão vivia e tractava com elle. Nas leis relativas a estas duas raças reprobas, não ha uma só palavra que revele hesitação ou indiferença religiosa; mas vê-se que á sua confecção presidiu a sabedoria. O fanatismo cego, bruto e feroz veiu-nos com as primeiras luzes de uma falsa civilisação, nos fins do seculo XV, e progrediu com ela por todo o XVI. D'antes a raça christan tinha a consciencia de uma grande superioridade religiosa, e fazia-a valer na legislação; mas não confundia a crueldade e a intolerancia com as distincções, que nascem da diferença entre o superior e o inferior.

Desta tolerancia politico-religiosa era prova o que succedia em Restello quando Fr. Lourenço e Fr. Vasco ahi chegaram. Dissemos que a viagem dos dous frades fôra no dia em que a igreja celebra os nomes dos apostolos Philippe e Thiago. Até os nossos dias durou o antigo costume, que nos herdaram os pagãos, de festejar nesse dia a vinda da primavera; mas, nos seculos mais proximos ao paganismo, esta especie de culto idolatra estava tão enraizado no animo do povo, que foi para elle caso de grande escandalo quando a camara de Lisboa, querendo pagar a Deus em moeda de boas obras a victoria de Aljubarrota, prohibiu as festas das maias e janeiras « esguardando (diz o assento ou lei municipal) alguns graves peccados que se em esta cidade de mui longos tempos acá faziam, e estremadamente peccados de Dollatria e costumes dapnados dos gentios, » e por isso ordenou o senado que « da hi em diante nenhuma pessoa nom usasse nem obrasse de feitiços, nem de ligamento, nem de chamar os diabos, nem descantações, nem d'obra de veadeira, nem obrasse de carantulas, nem de geitos, nem de sonhos, nem d'encantamentos, nem lançasse roda, nem sortes, nem obrasse de adivinhamentos, » prohibindo igualmente o medir cincta, e lançar agua pela joeira, e rematando por substituir as janeiras e maias com procissões mui devotas, que realmente não deviam divertir tanto o povo como os seus antigos e costumados folguedos.

Todavia nas communas dos mouros, ou mourarias, e nas povoações por elles principalmente habitadas, a lei da camara não podia por certo ter vigor; porque não estavam sugeitas ás usanças christans, nem havia ahi procissão que remisse as maias, para quem não cria em procissões. Nada nos dizem os velhos documentos a este respeito; mas pelo texto desta authentica historia verá o leitor realisadas as nossas bem fundadas conjecturas.

Seriam dez horas da manhan, quando os dous frades abicaram á praia de Restello. Parecia toda a aldeia endemoninhada, tanta e tão confusa e desentoada era a bulha, mati nada e inglezia, que ahi soava (não queremos ofender os mouros com a palavra inglezia, que não é nosso intento ofender ninguem). Era o caso que a mourisma da povoação festejava naquelle dia a maia, tanto mais desafogadamente, quanto os christãos, cohibidos pela recente postura da camara de Lisboa, não ousavam vir involver-se no tumulto, contentando-se com observar, dous aqui, tres acolá, ás bocas das viellas e becos, aquelle immenso folguedo, chorando lá no fundo de suas almas as bebedeiras que perdiam, e as bofeta das e pontapés, com que, como de ordinario acontecia nestas festas populares, se desforravam da maior abastança em que mouros e judeus viviam, por serem, regularmente falando, mais sobrios, laboriosos e economicos, que elles, bons discipulos do Evangelho.

«Olha Martha, » -- dizia para uma rapariga uma velha muito barriguda, que estava assentada á porta da sua casinha, e cujos braços arqueados sobre o ventre apenas podiam cruzarse pelas pontas dos dedos -- « vês aquele perro de Muça como saiu hoje alfanado com sua al juba nova e sua aljubeta verde, porque a negregada cadella da filha vae fazer de maia... Pois a sandia ! Não queres rir? Gastou dez almas de Ypre azul em uma almexia nova. Olha, sempre te digo, que pae e filha nunca os vi mais nescios. »

« Ai, tia Domingas, nescio é quem é. Se eu fosse como aquella descarada, que anda mettida com o Ruy Casco da almuinha, tambem teria quem me désse, nanja dez almas de Ypre, mas vinte de brocado. Nem me faltariam chapins broslados »....

« Ai, filha » -- acudiu a velha com um tregeito beato -- « Deus se amerceie de nós! Essas são outras mil e quinhentas! O excommungado a andar de mancebia com aquella perra ! Não: lá isso não! o maldicto não acaba bem. O que eles mereciam era serem quei mados. No meu tempo.... »

«No teu tempo, grandississima alcaiota, não tinham os segraes mancebas mouras, mas as mancebas haviam filhos de clerigos. Já te não lembras, minha vassoura de monturo, do conego Fernão Matella? Ai, mana! Foram dous, ou foram tres? A-la-fé que não o sei cu; mas sabe-se no hospital dos meninos engeitados. -- Já cá me tinha soado que me andavas roendo nas costas. Que te importa a minha vida, pedaço de bruxa ? -- An... an...an... anda, que é para teu ensino. »

Este «an... an... an... anda o queria dizer que a velha estava agarrada pelas orelhas, e que lhe volteava a cabeça, entre duas mãos robustas e calosas, de um para outro lado, como a bussola de um navio entre as paredes da bitacola, em dia de temporal desfeito. Infelizmente a tia Domingas, antes de começar o seu caritativo dialogo com Martha, não víra Ruy Casco, que estava encostado ao sol, do outro lado da para esquina, renegando talvez de não ser mouro para ir foliar na festa.

Martha, apenas víra descer as mãos de Ruy Casco sobre as orelhas da tia Domingas, como o endiabrado Phebo dos Homeridas semelhantes A tenebrosa noite...... fugira a bom fugir, em virtude da seguinte formula algebrica: A=B C=A C=B E substituindo:

Maledicencia da tia Domingas igual a um puxão de orelhas por mão de Ruy Casco:

Maledicencia de Martha igual a maledicencia da tia Domingas:

Logo: maledicencia de Martha igual a puxão de orelhas por mãos de Ruy Casco.

A prompta fuga era o resultado de rigorosa deducção mathematica.

A velha sentia taes baques na cabeça, e via tantos milhares de estrellas, apesar de ser alto dia e de fazer um bello sol de primavera, que mal pôde piar estas palavras, quando os gadanhos do bruto hortelão lhe abandonaram as orelhas:

«Excommungado! Rufião excommungado!» E mettendo-se para dentro da sua barraquinha, correu o ferrolho, e depois de passar a mão pela cara, a ver se tinha sangue, não o achando, tomou folego, e desatou a berrar: «Aqui delrei! aqui delrei! que me mataram. » Por mal de peccados, todos andavam mirando a festa da maia, e ninguem ouvia a velha, salvo Ruy Casco, que tornara para o soalheiro, e de quando em quando lhe atirava de lá uma apostrophe que tinha a virtude de conservar sempre no mesmo alamiré agudo o berreiro da tia Domingas.

«Anda, barregan de conego! » «

Aqui delrei ! »

«Cal-te, basculho de clerigo! »

«Aqui delrei!»

«Fóra, bareja de carne podre!»

«Aqui delrei! »

«Passa, serpente da Arca de Noé! » Esta era a mais atroz.

«Aqui delrei! aqui delrei! que me mataram. Em quanto esta scena se passava por um cabo da aldeia, saía pelo outro o prestito da maia. A filha de Muça, que fazia o principal papel, vinha cavalgando uma formosa hacanea, levada de redea por dous rapazes coroados de boninas, e rodeada de mancebos e donzellas, do mesmo modo enramados de flores, e cantando certas cantigas ao som de adufes e pandeiros, com uma toada mui de folgar. Atraz seguia-se toda a mourisma de Restello, travada em jogos d’espadas, nos quaes os pacificos descendentes dos guerreiros almoravides e almohades se divertiam em fazer a caricatura de seus illustres avós, ou enredados em choréas vívidas e variadas, que só elles sabiam tecer, e que por isso eram designadas pelo nome caracteristico de danças mouriscas. Digno do pincel de Hogarth era o quadro, que, bem como sobre uma tela pallida, se desenhava pelo extenso areal que corria entre a povoação e o Tejo. Cada qual tinha tirado á praça os mais ricos trajos que possuia. As diferentes fotas, ou toucas mouriscas, formavam como um xadrez de todas as cores, incertas, cambiantes com o agitar e tripudiar da multidão. Os mais ricos vinham vestidos com suas aljubas, vestido talar de mangas largas, sobre o qual traziam a aljubeta, especie de colete comprido. Viam-se outros com seus balandráus, vestuario que até hoje con serva o mesmo nome, e que as irmandades modernas herdaram delles, com a unica differença de que os mouriscos tinham uma especie de escapulario (e essa denominação se lhe dava) cosido pelas costas abaixo, em quanto os que vestiam albornoz usavam o escapulario cosido a este por diante. Os pobrissimos, e deste numero eram os mouros escravos, cubriam-se com tristes argáus, dos quaes se póde fazer uma idéa exacta imaginando duas mantas de lan parda, unidas por uma das extremidades, tendo apenas na costura o vão necessario para passar a cabeça. Nesta variedade immensa, que representava o prestito da maia, não faltaria ao debuxador a condição absoluta da arte, o pensamento que devia dar unidade ao quadro: era este o sentimento da alegria que ressumbrava em todos os rostos, desde o do grave alcaide, ou juiz da communa, até o do mais mesquinho, esfarrapado e sujo dos verdadeiros crentes.

E a filha de Muça? A filha de Muça ía, como uma sultana, no meio dos seus eunuchos e escravas. Não trocaria ella em tal momento a sua gloria pela sorte da esposa querida do propheta. Sorria-lhe nos olhos negros e voluptuosos o deleite; e quem nesse dia visse a pobre moura que vendêra a sua innocencia ao rude quinteiro christão, tomá-la-hia pela virgem do deserto, que, rodeada de amadores, hesita na escolha daquele a quem ha de dar o seu coração, ainda livre como a carreira da gazella nas solidões profundas dos areaes da Arabia.

Mas a filha de Muça era apenas uma planta de oasis açoutada pelo sopro do Simün. Em um dia sereno erguia a fronte, como quando pura vecejava no principio do existir. Mas a seiva da vida estava contaminada: o bafo impudico do homem é tambem como o Simün.

Flor de innocencia por onde ele passou não erguerá a fronte mais que um dia. Depois vem logo o pender e o murchar. Ha ahi então alguem, cujos olhos ella contente? Não.

Só o vento do deserto virá ainda uma e outra vez afagá-la com abraço infernal, até que lhe disperse a ultima folhinha, como o algoz es palha ao longe o ultimo punhado das cinzas de um justiçado.

A flor que ainda erguia a fronte era Zilla, a maia, de Restello; mas Ruy Casco era o Simim do deserto.

Quando na extensa volta que dava o prestito a mula em que Zilla cavalgava passou perto do soalheiro do hortelão, ele soltou um suspiro macisso de amor. Pareceu-lhe Zilla formosa como no primeiro dia em que a miseria lh'a vendêra. Pensou então.... Em que? Em que era um longo dia de maio. E suspirou de novo. A filha de Muça viu-o, abaixou os olhos, e não sorriu mais. A rainha da festa trocaria já a sua sorte pela da ultima escrava do propheta.

Pobre Zilla!

E ao redor della os cantos e os adufes e os gritos e as risadas atroavam os ares. Homens, mulheres, crianças saltavam, corriam, volteavam. Aqui alguns mancebos mais destros fingiam accommetter-se, pelejarem, vencerem, serem vencidos: era o jogo de espadas. Acolá as raparigas dançavam em roda uma dança barbara ao som dos pandeiros: era a mourisca.

Os jograes cantavam ao desafio canções improvisadas e satyricas em portuguez semi-arabico, e as crianças derramavam flores adiante de Zilla, ou sobre as cabeças dos maios pequeninos, que eram como os genios que circumdavam a deusa da festa da primavera.

O folguedo, porém, era incompleto. Faltava ahi a alma, o tudo de semelhantes festas. O truão Alle, a quem os mouros chamavam por escarneo Cide Alle, os judeus Rabbi-Alle, e os christãos Mossem ou Micer Alle, não viera com seus guizos e palheta, com suas visagens e arremedilhos, fazer estourar de riso os alegres festeiros da maia. A sua mesquinha morada, choupana colmada, que se encontrava a pouca distancia da aldeia, á beira de uma horta ou almuinha, já não era, havia perto de um mez, frequentada, como dantes, pelos foliões dos arredores, que estavam certos de encontrar ahi um jovial consocio. Alle tinha-se tornado um modelo de gravidade e compostura. Quando não trabalhava no seu campinho, ou não ía á cidade vender os productos delle, passava horas inteiras assentado na soleira da porta, cantando com voz baixa uma cantiga monotona, bem diversa das que usava cantar. Via-se que um pensamento grande e moral occupava o animo do truão. Notou-se, porém, na aldeia, que quando Alle vinha ao povoado buscar o seu provimento semanal de legumes, o fazia maior que d'antes, e o que escandalisava sobre tudo os mouros velhos e devotos era o cuidado com que sempre levava uma porção do melhor vinho que achava nas tabernas dos judeus, contra o expresso preceito do livro divino mandado do céu a Mohammed.

Começavam a alevantar-se algumas suspeitas de que Alle se havia tornado christão; mas ninguem ousava afirmá-lo com certeza; porque, habitando ele n'um sitio ermo, não havia quem o podesse observar. Correu tambem fama de que neste negocio andavam eneubertos alguns tardos amores, e a maior porção de alimentos de que usava abastecer-se o confirmava.

Mas para que o esconderia Alle? As uniões menos puras eram naquelle tempo uma especie de panem nostrum quotidianum para christãos, para mouros, e para judeus, e quando o não fossem, bastava ser Alle um truão professo, e de mais sectario do Alcorão, o qual não veda esse tracto illicito, para não lhe ser estranhado um crime, que para elle o não era, e que até para os christãos, pela muita frequencia, se tornára em acção indiferente, declarada como tal nas leis geraes do reino.

Todas estas reflexões e muitas outras faziam, os ociosos e beatas de Restello, que, semelhantes aos ociosos e beatas de todos os tempos e logares, costumavam occupar-se da vida alheia, por não terem outra cousa em que consumir a propria. Perdiam, porém, o tempo e o trabalho. Se Alle conhecia que alguem lhe fazia perguntas capciosas, com a intenção de lhe pescar o seu segredo, escapulia-se sempre com algum daquelles dictos grosseiros e mordazes, que o uso de muitos annos (ele teria cincoenta) lhe fazia achar a ponto para embatucar importunos, e aos quaes difficilmente se resistia; porque então, como hoje, ninguem tinha as costellas tão unidas, que por entre uma ou outra não achasse facil caminho a ponta azerada de uma chufa de bobo arremessada a tempo.

Assim todas as conjecturas saíam baldadas, e o facto era que Alle estava outro homem.

Por isso não apparecêra na festa.

O que ele fazia entretanto vamos nós espreitar no seguinte capitulo.

V

O TRUÃO.

Tal foliam, se attentaes, Digo isto assi de mim, Que em os dias festivaes Cuidou não havia mais Senam foliar sem fim ; E ficou-lhe o atabaque, Os sestros e o pandeiro...

A. R. CHIADO -- Letreir. Glos.

No dia em que se passaram os successos que vamos narrando, havia mais de duas horas que Alle passeava á beira da agua no desembarcadouro de Restello, sem que outros foliões seus antigos amigos e camaradas, que correram a ele apenas o viram apparecer, podessem movê-lo a tirar-se dalli, e a vir engolfar-se naquella mó de danças, cantares e folias, que redemoinhava bastante longe delle pela extensão do areal. Esperava por Fr. Lourenço. Alle era o mouro que falára com Fr. Julião, e a quem este promettêra, por sua conta, protecção, e por conta alheia, caridade Apenas o truão viu desembarcar os dous frades correu para Fr. Lourenço:

«Obrigado, obrigado, padre christão que não despresastes a petição do pobre mouro.»

«Christo chamou os judeus e os gentios. Deus não despresa ninguem. Mas nem tu, nem os teus ulemas e cacizes entendem estas cousas. Prouvera ao Senhor que as entendesseis! Vamos: foste acaso tu que me buscaste hontem á tarde ? »

« Padre, sim ! »

« Disseste que uma christan se queria confessar: onde é que ella está?»

« Vinde vós comigo. Oh como ficará contente! »

E Alle caminhou adiante dos dous monges, todo risonho, e dizendo como quem fallava comsigo só:

« Bom Jesus e bom padre! Bom Jesus e bom padre! » O caminho que os tres seguiam era ao longo da margem. A um tiro de bésta abria-se um valle entre dous montes, cujos cimos se prolongavam para o norte. Chegando áquele sitio, Alle voltou á direita, e tomou por uma trilha que acompanhava o sopé de uma das encostas. Os dous frades calados iam algum tanto afastados. Ouvia-se unicamente o som das passadas dos caminhantes, e a espaços um murmurio confuso do ruido, que se fazia em Restello, e que era trazido pelo sopro morno de leste. Depois de largo silencio Fr. Vasco disse em voz baixa para o mestre de theologia:

«Tenho estado a lembrar-me de que já vi este mouro; mas não atino em que logar, ou em que tempo. »

« Grande maravilha, » -- atalhou rindo Fr. Lourenço. -- « Milhares de mouros tereis vós visto na vossa vida, irmão Fr. Vasco; e o que vos succede com este succeder-vos-ha com infindos outros. »

«É verdade; mas não sei que tristeza me infunde o vê-lo. Diria que este homem entrou de algum modo nas desventuras que padeci, e nas mal sopitadas agonias do meu coração.»

«E o sitio, só e triste, que vos traz ao pensamento essas melancholias do passado.»

« O coração ás vezes adivinha, reverendo mestre. Quem sabe se neste negocio anda alguma traição encuberta? Chamarem-vos de tão longe para exercer o mister de confessor de uma mulher moribunda.... um mouro por mensageiro e guia!... um sitio ermo por vivenda!... Temo alguma cilada: não por mim, que pouco importa ao mundo a minha vida; mas por vós, bemfeitor dos miseraveis. Enganam-se todavia !» -- proseguiu Fr. Vasco em voz mais alta. -- « Trazeis o vosso cutello? »

« Calae-vos, irmão, calae-vos! Que cutello ? A minha defensão é Deus. Tenho inimigos; bem o sei; mas tenho-os por defender a justiça e a nossa ordem. Um ferro nas mãos de um sacerdote ? Nunca o vereis nas minhas. O braço da Providencia ampara os que nella confiam, e esse braço é mais forte que o do esforçado e guerreiro. O abuso que introduziu o demonio entre os clerigos e monges de tractarem armas para que tem servido? Para rixas e mortes entre homens que se chamam sanctos e irmãos. Perguntastes-me se eu trazia um ferro: pergunto-vos tambem eu agora: trazeis vosso cutello, monge de Cister?»

«Como todos costumam, reverendo nonno...» -- respondeu Fr. Vasco, pondo os olhos no chão...

« Dae-mo. » Fr. Vasco afastou o escapulario, tirou da cincta um punhal, e com visivel repugnancia, entregou-o ao seu companheiro.

O mestre de theologia pegou nelle, arremessou-o com força, e o ferro buido foi cravar-se n'uma grande nogueira, onde ficou por algum tempo vibrando. O mancebo olhava para a arvore com o aspecto tristonho de quem se despede de um amigo antigo. Entretanto Fr. Lourenço Bacharel dizia em voz baixa, erguendo o braço esquerdo até a altura da fronte, e movendo-o rapidamente para fóra, como quem sacode um mosquito, ou um pensamento importuno: « Vade retro, Satana! Deus fortitudo mea! » Esta conversação e o seu desfecho tinham retardado os dous frades. O mouro, não os sentindo atraz de si, parára, e voltando-se presenciára aquella scena, sem que por causa da distancia podesse perceber o que fosse. Ficou espantado; mas não disse palavra, e proseguiu seu caminho.

Parou finalmente. De um e de outro lado da senda alargava-se o valle, formando uma caldeira entre os dous montes paralelos. Da banda esquerda, obra de uma oitava parte da pequena planicie estava cercada de um vallado, por cujo espigão se enredavam bastos silvados: um portello grosseiro dava entrada para uma especie de pateo, á direita do qual ficava uma humilde casinha, e da parte opposta um cannavial basto, mas ainda curto, que separava o pateo da almuinha, e do vergel.

Ao longo do cannavial corria um regato que ía formar uma presa, ou tanque natural, cujas bordas relvosas eram como um tapete de verdura. A porta da casinha estava fechada, e uma grosseira tela de estopa servia de vidraça á janella que dava luz para o interior. Reinava sobre isto tudo um silencio profundo, que só foi interrompido pelo ranger do portello, quando o mouro o fez rodar sobre o prumo que lhe servia de quicio, e pelo clach, clach das rans que estavam assentadas gravemente na margem do pego, acabando uma harmonia natural segundo a theoria de Bernardin de Saint-Pierre, e que saltavam dentro da agua assustadas pelo subito ruido do chiador portello, que tambem ía tirando outra natural harmonia com o melodioso clach, clach das timidas fugitivas.

Em quanto o mouro corria o ferrolho da porta, os dous frades chegaram ao pé delle, e Alle, curvando-se respeitosamente, fez-lhes signal que entrassem.

Era a morada do pobre jogral, como a de todos os mouros da sua condição, terrea, humida, mal-san. Sobre a lareira ardiam alguns toros de lenha, cujo calor não era suficiente para embeber as exhalações aquosas, que manavam das paredes verde-negras, e do pavimento frio e immundo. A um canto via-se uma bilha de agua, e em uma prateleira alguns vasos de barro vermelho; ao pé, em um prego, estava pendurado um adufe roto e coberto de pó, e defronte uma arca velha, sobre a qual os dous frades se assentaram, em quanto o mouro abria a porta que dava para uma camara interior.

Esta era allumiada frouxamente a travez da grosseira empanada da janella lateral. Fr. Vasco lançou os olhos para lá; mas a luz que entrava livremente pela porta, e enchia o aposento em que estavam, mal lhe deixou divisar ahi dentro uma enxerga, e um vulto deitado em cima della, com o rosto virado para a parede.

« Menina ! pobresinha! -- Aqui está o bom padre do teu Jesus. » Isto dizia o mouro em voz baixa, curvando-se e estendendo o pescoço, como que receioso de despertar quem quer que era.

«Dorme!» -- proseguiu elle, voltando para fóra pé ante pé, semelhante á mãe que deixa ainda ondulando o berço do filhinho, o qual adormeceu a custo de muito emballar.

Fr. Vasco fez um gesto de impaciencia.

« Esperaremos: » -- disse Fr. Lourenço. -- «Mas ainda assim, explica-me tu, agareno, como esta mulher christan vive aqui só comtigo. Não sabes que te é isso defeso? »

« Padre, padre, » – tornou o mouro, como assustado pelo tom em que Fr. Lourenço fizera a pergunta. -- « Eu topei essa desgraçadinha, por uma noite fria e chuvosa, deitada no meio do caminho que vae de Resiello para Lisboa: ergui-a, e perguntei-lhe quem era: não me podia responder: tremia, e estava gelada. A minha lei, padre christão, obriga-me a soccorrer o desventurado: obedeci á lei. Como pude, debaixo da chuva, por caminhos intran sitaveis quasi, conduzi-a aqui, e aqui ao cla rão daquella lareira, vi pelos seus trajos que era uma rapariga christan. Pensei então que corria grande risco em a conservar em casa; mas tambem pensei no que resa o livro do propheta, e disse comigo: -- «Que importa no mundo a vida de um pobre truão, quando ha que escolher entre essa vida, e o obedecer a Allah?» -- O calor da fogueira que eu accendêra reanimou pouco a pouco a pobre mulher. Apenas pôde falar, pareceu-me ouvir-lhe: -- «Oh desgraçada, desgraçada!» --E, pondo as mãos, dizia-me toda a tremer: -- «Não lhe digaes nada, nada... deixae-me morrer!» Cortava o coração. A sua voz era tão suave e meiga! As lagrymas, que eu mal sustinha, embaciavam-me a vista, e mais eu bem as alimpava com a manga da aljuba. »

« Custou-me a resolvê-la a tomar algum alimento. Conservava-se queda e com os olhos no chão. Ergueu-os finalmente, e fitando-os em mim, fez um gesto de terror, murmurando em voz baixa: « Meu Deus! um mouro! » Procurei aquietá-la. Disse-lhe que naquello quarto interior podia encerrar-se com segurança; que eu lhe cedia a minha enxerga. A noite cada vez ía mais tempestuosa e medonha; e o som da chuva, o estalar dos trovões, e o fuzilar dos relampagos a convenceram de que lhe era , impossivel ir buscar outro abrigo: nem ella o tinha, como depois m’o confessou.

Acolheu-se, pois, á minha pobre alcova, correu por dentro o ferrolho, e eu encostei-me ao pé do lar, onde ainda reluzia o brazido da fogueira.

« Estava contente comigo, bom padre; estava contente comigo! Resei a quinta çalá, a nossa oração da noite, com mais fervor que nunca. Allah e o Propheta deviam ouvir-me no céu. Nós outros os mouros, » -- proseguiu Alle com um sorriso amargo, -- «tambem temos uma consciencia; tambem nós sabemos o preço de uma boa obra. Agora, padre christão, a donzella de vossa lei vos dirá o que o mouro tem feito para a salvar. Ella dirá se elle merece ser açoutado ou morto, porque recolheu na sua morada uma das que adoram Jesus. Durante muitas noites eu a ouvia soluçar sobre essa enxerga, onde jaz: muitos dias quando voltava aqui, depois de ter ganhado para mim e para ella um bocado de pão negro, achava-a debulhada em lagrymas; mas nem ella me dizia seus pezares, nem eu lhos perguntava. Afligia-me vê-la chorar e padecer tanto, e conhecia que as forças diariamente lhe minguavam. Mas que podia fazer um mouro, sem riqueza, e sem se atrever a dizer nada a ninguem ácerca da triste christan? Scismet muito tempo nisso. Por fim veiu-me uma boa idéa. Tinha ouvido falar de vós, padre: sabia que ereis bom, e que os christãos vos veneravam: um escravo do vosso, mosteiro m'o dissera muitas vezes. Ante-hontem essa mesquinha parecia mais socegada. Disse-lhe qual era o meu intento: foi a primeira vez que lhe vi luzir no rosto, um signal de alegria. Não tinha ousado pedir-me tanto, receando o risco do que ela dizia ter sido o seu salvador. Fui procurar-vos, e o resto já o sabeis, Agora protegei-a a ella, e tende dó do pobre Alle, que não tem outra culpa senão a de ter obedecido á lei do propheta. »

«Á de Christo! á de Christo!» -- exclamou vivamente Fr. Lourenço, erguendo-se, e abraçando o mouro, que estava em pé diante delle como um criminoso. -- «Filho, tu não serás condemnado no dia em que vier o juiz. Amaste Deus e o teu proximo. Foste mais christão que a maior parte dos que se gloriam de tal nome. Caridade, e só caridade é a crença de Jesus. Ele te allumiará; porque déste testemunho dele, não por palavras, mas por obra. Em quanto christãos deixavam perecer á mingua uma desgraçada, tu a salvavas. Sabe, porém, que neste momento eles renegavam da cruz, e tu te abraçavas com ella! »

Nem por isso Alle entendeu lá muito bem o que queria dizer o bom do religioso; mas entendeu perfeitamente que o abraçá-lo Fr. Lourenço era signal de que o seu proceder merecêra a approvação de um tão afamado ulema christão.

Sorriu-se, e involuntariamente pegou na mão do monge, e beijou-a. Parece-me que eu faria o mesmo a um caciz de Mafamede, se esse caciz pensasse e fosse como o mestre de theologia.

Neste momento ouviu-se um suspiro que partia da alcova.

«Vasco, » – proseguiu Fr. Lourenço, voltando-se para o seu companheiro e para Alle, -- «ide-vos ao horto. É necessario que eu ouça a confissão desta mulher.» -- Depois encaminhou-se para a porta da alcova, e disse: -- «Irman ! eu sou aquelle que vem em nome do Senhor.» O vulto não respondeu nada, e ergueu-se.

O soluçar da mesquinha era o de um chôro perdido. Atirou-se de joelhos aos pés do monge, e, depois de afastar os cabellos que lhe cubriam o rosto, só pôde dizer:

«Misericordia, meu Deus! »

Os dous tinham obedecido. Fr. Lourenço estava a sós com a desconhecida.

VI

O PUNHAL

Viestes a religiom pera serdes temptados mas nom vencidos nem sobrepujados: ... e posto que a vida nos anoje ou agrave com estes trabalhos e paixoens, saibamos que nom ha de ser coroado, senom quem trabalhar e pelejar fortemente.

FR. J. ALVAREs, Carl. II.

E essa mulher é capaz?»

«Sim, padre. A tia Domingas é uma boa velha christan de Restello. Entreguei-lhe a bolsa de dobras e meias dobras que me déstes, e ela me jurou que nada faltaria á pobre donzella. Podeis ficar descançado. »

« Bem! Agora a Restello, e afreta uma barca. Irás comigo para Lisboa.»

Esta conversação passava-se entre Fr. Lourenço e o mouro Alle, no meio da senda ou azinhaga, que, partindo da aldeia, ía dar á morada do chocarreiro, que passára da sua vida truanesca á de um homem honesto, tão facilmente, como hoje os politicos se transmudam de amigos em inimigos, ou vice-versa. Depois de duas compridas horas, que o bom do bernardo passára juncto á miseravel enxerga da desconhecida, saíra a encontrar-se com o seu companheiro e com Alle, que por elle espera vam, Fr. Vasco passeando de um para outro lado, e o mouro assentado ao sol ardente do meio dia. Fr. Lourenço trazia o olhar esgazeado, os labios descorados, e nas faces todos os signaes de um susto e inquietação, que debalde tentava encubrir. Entregou então uma bolça ao mouro, ordenando-lhe procurasse, com toda a brevidade e diligencia, alguma boa mulher que viesse residir na almuinha, para tractar da desconhecida, que elle Fr. Lourenço tomava debaixo da sua protecção. Alle partiu immediatamente, e dalli a pouco voltou acompanhado da tia Domingas, (pessoa conhecida já do leitor) cujos escrupulos tinham sido completa mente removidos com a vista da bolça recheada de excellentes dobras e meias dobras delrei D. Pedro, moeda que era a melhor ou talvez a unica boa daquelle tempo, e que num ca, de memoria de homens, mercador judeu, mouro, veneziano, genovez, flamengo, ou biscainho recusára acceitar em troco de suas mercadorias.

Depois de haver dado em segredo varias instrucções á velha, que respondia a cada palavra do frade com uma mesura, e com as formulas sabidas de «Vá vossa reverencia descançado; deixe vossa reverencia isso ao meu cuidado; percebo, percebo, reverendissimo » Fr. Lourenço partíra, seguido de Fr. Vasco e de Alle, caminho da aldeia. Conhecia-se pelo andar do bom do monge, ora demasiado lento, ora excessivamente apressado, que a sua alma ía embrenhada em graves cuidados. Áo passar pelo sitio onde tivera com Fr. Vasco a conversação que lemos no capitulo antecedente, parára de repente, e olhára para a nogueira frondosa na qual ficára cravado o punhal do moço monge. Ainda lá estava. Fr. Lourenço erguêra os olhos e as mãos ao céu, e parando, havia-se assentado n’uma grande pedra que ficava á borda da azinhaga. Depois de scismar por bom espaço, fizera subitamente ao mouro a pergunta por onde este capitulo começa, e lhe dera ao mesmo tempo a ordem para ir adiante afretar a barca, que os devia conduzir todos tres a Lisboa.

Quem tivesse reparado em Fr. Vasco, perceberia facilmente que na sua alma se passava tambem alguma cousa extraordinaria. Parecia que a inquietação de Fr. Lourenço se havia communicado ao seu companheiro, o qual, desde que saíra de casa do truão até aquele momento, não proferíra uma só palavra, mas no gesto dava visiveis signaes de que o seu coração não estava sereno. Ou fosse que o aspecto carregado do mestre de theologia, e o lançar-lhe a espaços os olhos de relance, como quem buscava descortinar-lhe alguma cousa no fundo da alma atravez dos seus gestos e meneios, ou fosse que o estado daquella nova penitente de Fr. Lourenço tivesse despertado na memoria do mancebo passadas amarguras, o certo é, que ambos os dous monges, tão amigos, tão promptos sempre em communicar um ao outro os seus menores e mais intimos pensamentos, caminhavam junctos como dous cumplices de um crime; mas em silencio, afastan do-se do logar onde o perpetraram, ou como dous homens, que se insultaram sem precauções oratorias, e que, dirigindo-se para o logar de um duello estupido, não esquecem durante o caminho um unico item das regras de boa cortezania, o que lhes não tolhe que d'ahi a pouco se assassinem honradamente e na melhor harmonia do mundo.

O mouro partira, e Fr. Lourenço, com os cotovellos fincados nos joelhos e a cabeça entre as mãos, havia tornado a embrenhar-se nas suas reflexões. Fr. Vasco, em pé diante delle, torcia e destorcia um vime que arrancára no vallado fronteiro. Este torcer e destorcer significava que o seu espirito estava mui longe dalli.

O mestre de theologia alçou a cabeça, olhou para elle fito um pedaço, e por fim, com voz solemne e triste disse-lhe, batendo com as pontas dos dedos na extremidade da pedra em que estava assentado:

«Fr. Vasco, descança aqui um pouco.»

O mancebo deu um estremeção, como se de salto o houvessem despertado de somno profundo. Não respondeu nada, e assentou-se ao pé do seu companheiro. Este olhou fito outra vez para elle, e depois de um momento de silencio, disse:

« Filho de S. Bernardo, haveria neste mundo algum sacrificio que não fizesses para esquecer as desventuras da tua vida, suffocar os remorsos do teu coração, domar o teu amor insensato, e poder alevantar-te sobre as azas da esperança até o seio amoroso da piedade de Deus? »

Fr. Vasco apertou o peito com a mão direita, e ergueu os olhos para o céu: depois correndo-os pela grosseira estamenha de que estava vestido, e com um leve sorriso respondeu: «Nenhum! »

Fr. Lourenço comprehendeu qual era o abysmo de amargura que havia neste olhar e nesta palavra.

«Entendo, mancebo, o – proseguiu o velho monge. -- «Qual sacrificio haverá ahi que não faça, por obter paz e perdão, aquele que no viço da mocidade saíu da estrada suave da gloria e do goso, para tomar pelo caminho agro e cuberto de urzes da penitencia? Que haverá ahi impossivel, ou sequer difficultoso, para quem trocou o arnez dos combates pela estamenha monastica, as esporas douradas de cavaleiro pelas pobres sandalias dos que peregrinam apoz a cruz? Tu o disseste, monge de Cister: nenhum! E todavia o que eu quero pedir-te é facil. Se o fizeres o Senhor se amerceará de ti: o teu amor criminoso extinguir-se-ha: os teus sonhos de remorsos desvanecer-se-hão: a sombra ensanguentada de Lopo Mendes, que povoa de terrores as tuas noites não dormidas, resolver-se-ha como aquelle fumosinho que se alevanta de Restello, e que o vento espalha e resolve ho ar. E sabes o que é, meu desgraçado irmão? E o que ha poucos mezes, a teus pés e de joelhos, este pobre velho, que te ama como a um filho, te pediu em nome de Deus: perdão! perdão! »

« Para quem, padre?! Para quem?!» -- atalhou Fr. Vasco pondo-se rapidamente em pé.

« Para tua irman, cuberta de miseria, saciada de agonias, moribunda sobre a enxerga rota, que lhe cedeu para morrer a caridade de um bufão. »

« Beatriz ?! Beatriz ali?! » -- bradou o moço cisterciense, rangendo os dentes, e estendendo os punhos cerrados para o valle onde alvejava a casinha do truão. -- « Ella alli, e o meu punhal aqui! Vasqueannes, teu filho ainda vive!... Não jazerás deshonrado para sempre no tumulo onde dormes. »

Proferindo estas palavras, Fr. Vasco estendeu a mão para a grande arvore, arrancou o punhal, e deu a primeira passada para voltar atraz. Os olhos faiscavam-lhe, como os do lobo cerval no meio das trevas.

Mas Fr. Lourenço estava já em pé diante delle. Não para o reter luctando braço a braço se erguêra o monge. Que podia prestar a opposição violenta de um homem de idade grave, e enfraquecido por vigilias de estudo e de penitencia, contra um mancebo robusto e cego de furor? Era para empregar contra aquelle furioso a resistencia passiva e a força moral, que lhe dava a consciencia de que cumpria o seu dever, que Fr. Lourenço, com os braços cruzados sobre o peito, vendo arrancar o punhal da arvore, se pozera como uma estatua diante do seu companheiro.

«Em nome de Deus ou do demonio, deixae-me passar, padre!» -- rugiu como um tigre Fr. Vasco.

«E embargo-vos eu que passeis?» -- respondeu com mansidão evangelica e em voz baixa o bom do religioso. -- «Que ides vós fazer? Assassinar vossa irman; livrá-la do peso da vida alguns minutos antes daquelle em que Deus talvez a houvesse de chamar para si. Que ides vós ser? Um fratricida. Pois bem. Ajuntae o crime menor ao maior: sêde tambem homicida. Para vos despenhardes no inferno, não receeis de saltar por cima do cadaver do monge que vos consolou nos dias dos remorsos e das agonias; que vos ama como pae; que amastes como filho. Ouvi-me bem, Fr Vasco!.... O caminho por onde esse punhal póde chegar ao seio da desgraçada Beatriz passa atravez deste coração. Segui-o. Aqui ninguem nos vê, senão Deus; e que vos importa Deus? Tambem ele vos verá no momento em que vossa irman se vos debater aos pés, revolvendo-se em sangue, e pedindo-vos, ainda no meio das vossas injurias e pragas, o perdão e o beijo e o abraço fraterno: elle vos verá lá reprobo e maldicto: elle ouvirá o ultimo grito da infeliz. Eu ao menos morrerei calado... Aqui me tendes!... Passae!»

Dizendo isto, Fr. Lourenço curvou a cabeça como o martyr resignado sob a segure do algoz. As suas ultimas palavras foram proferidas em tom soturno, mas firme e solemne.

O moço cisterciense sentiu correr-lhe o suor frio da fronte; porque conheceu que a resolução do mestre de theologia era inabalavel como um decreto da Providencia. Os cabellos eriçaram-se-lhe de horror. Deixou caír o punhal, e escondendo o rosto entre as mãos, exclamou:

«Oh desgraçado de mim!»

« Acertaste, Vasco, acertaste! » -- acudiu Fr. Lourenço, lançando-lhe um braço á roda do pescoço, e encostando a cabeça do mancebo sobre o hombro, -- « Malaventurado és tu, não pelos infortunios da tua vida, mas porque ainda não percebeste o que é ser christão; porque não entendeste que a lei de Je sus foi resumida na ultima expressão do Verbo sobre o Calvario -- « perdoa-lhes, pae » -- O derradeiro arranco do Justo foi um grito de amor e perdão a favor de crueis inimigos. E tu queres vingar-te! Vingar-te de teu proprio sangue, de tua irman, porque, innocente, foi enganada; porque, fraca, foi vencida; porque, amante, caíu nos braços de um homem vilmente hypocrita. Queres puni-la, porque cedeu a uma paixão, que só Deus condemna quando se converte em crime. Mas quem te punirá a ti de cederes a outra paixão absurda, vil, amaldiçoada no brotar, o no crescer, no vigorar, no satisfazer-se? Sabes quem te ha de punir? O teu passado com os mal so pitados remorsos que reverdecerão; o teu presente com os que provarás de novo; o teu futuro, que será para sempre maldicto, até que desças ao inferno o ...

«Por piedade, não digaes mais nada!» -- exclamou o mancebo, afastando-se de Fr. Lourenço com gesto de agonia intima, e erguendo as mãos.

As palavras deste vibravam atravez de sua alma como centelhas de fogo.

«De joelhos, monge de Cister! Dejoelhos, criminoso!» -- bradou o velho com aspecto severo.

Fr. Vasco ajoelhou aos pés delle.

« Jura diante desse astro do dia, que é uma pobre imagem da gloria do Senhor; debaixo desse firmamento, sumido sob os degráus do seu throno, que perdoas a Beatriz o erro que por si mesmo a puniu ! »

Fr. Vasco jurou que perdoava a sua irman.

«Agora, filho de S. Bernardo, ergue-te, e abraça o pobre frade, que, se te afligiu, foi porque te amava muito.

Isto era dicto com tanta brandura e uncção que o moço cisterciense atirou-se a chorar aos braços de Fr. Lourenço.

« Partamos para Lisboa, » -- proseguiu o mestre de theologia. -- «Não convem que neste momento vejas Beatriz. Ella está com os pés, na sepultura. O ver-te e o abraçar-te seria matá-la: melhor supportaria, talvez, a tua maldicção que os teus afagos. Pelo caminho te contarei a sua triste historia, e verás então, que ela é mais infeliz que culpada, e mais digna de compaixão que tu.»

Dizendo isto Fr. Lourenço travou do braço do seu companheiro, e seguiu com ele ao longo da estreita senda, que por entre os dous montes ía dar a Restello.

O imperio de Fr. Lourenço no animo violento do moço monge era na verdade espantoso. Parecia que Deus tinha posto no mundo o mestre de theologia como um anjo da guarda para salvar de si mesmo o mancebo.

Mas ai de nós, que se um anjo bom vigia á nossa direita, um demonio está sempre da esquerda, convocando-nos para socios do inferno !... Muitas vezes os dous espiritos, o da luz e o das trevas, vestem formas humanas: são dous inimigos mortaes que se guerream, e que ambos se chamam nossos amigos. O campo da sua peleja é o coração do homem, de que por fim toma posse um delles, o vencedor. O preço da victoria é a nossa alma; e os hymnos que celebram essa victoria reboam sempre fóra dos ambitos do mundo, ou nas alturas do céu, ou no imperio das trevas. Fr. Vasco teve o seu anjo bom; terá tambem o seu anjo máu. Qual d’elles ganhará a victoria? Esse, por ora, é o segredo de cima, que só a serie dos acontecimentos, que vamos referindo, nos ha de revelar.

VII

O ABBADE DE ALCOBAÇA.

A soberba he cousa propria dos demonios e das molheres, a luxu ria das animalias, e a avaresa dos mercadores, e destes todos se faz hûa cousa assignallada e espãtosa que he ho maae clerigo.

FR, BERN. D'Alcoa.--Vita Christi, P. 1, c. 7.

Se o leitor quizer partir de Restello comnosco, adiante dos dous cistercienses, e acompanhar-nos até a portaria do collegio de S.

Paulo, aonde precisâmos de chegar antes delles, dar-lhe-hemos conhecimento com um perso nagem, de quem já falámos, mas que ainda não apresentámos em scena. Esse personagem, que tão grande parte teve nos successos contidos nesta veridica historia, e que não menos importante papel politico representou nas guerras e revoltas por que passou Portugal nos fins do seculo XIV, é o celebre abbade de Alcobaça D. João d'Ornellas ou Dornellas, um dos caracteres mais notaveis d'aquella epocha.

Fôra Fr. João d'Ornellas, quando simples monge de Alcobaça, esmoler d'elrei D. Fernando, e, protegido por este monarcha, subíra á dignidade abbacial, por morte de D. Martinho seu predecessor. Pouco depois faleceu D. Fernando, deixando o reino pobre e dividido em facções: uns seguiam o bando d'elrei de Castella D. João I, como representante de sua mulher D. Beatriz filha de D. Fernando, que, antes de morrer, a declarára herdeira da corôa, e regente do reino a rainha D. Leonor: outros entendiam que a um dos infantes filhos de D. Pedro I e de D. Ignez de Castro, que então andavam em Castella, competia a herança do reino: outros, emfim, se inclinavam ao Mestre de Aviz, irmão bastardo do rei falecido, e principe geralmente amado por suas muitas bondades e cavallarias. A morte do conde Andeiro, perpetrada pelo Mestre dentro dos paços dos Infantes, onde D. Leonor habitava, foi o signal de uma revolta popular, que de Lisboa se derramou por todo o reino com espantosa rapidez. Os nobres e senhores com seus clientes se encostaram, pela maior parte, á parcialidade de Castella, alguns á do Mestre de Aviz, raros á dos filhos de D. Ignez, bando que, de certo modo, era uma pequena excrescencia no que seguia a voz de D. Beatriz. Grande numero de fidalgos, conservando-se neutros no meio desta célebre lucta, ou passando de um para outro bando, segundo as probabilidades do triumpho, ou segundo seus odios e amisades particulares, ajudaram a protrahir uma guerra que deixou Portugal devastado, e empobrecidos para muito tempo os reinos de Leão e Castella.

Do numero dos irresolutos foi a principio o abbade de Alcobaça, que, senhor de quinze villas e dous castellos, e fronteiro de quatro portos de mar, seria sem duvida alliciado por ambos os partidos contendores para se unir a elles. De um documento, mandado exarar em abril de 1385 pelo arcebispo de Braga D. Lourenço, se vê que o reverendo abbade favorecêra elrei de Castella, prestando-lhe abundantes vitualhas para o seu exercito, quando viera sobre Lisboa. E certo, porém, que quando se deu a batalha de Aljubarrota, ele mandou seu irmão Martim d'Ornellas, com um bom troço de gente, em soccorro do Mestre de Aviz, pelo qual se havia formalmente declarado nas côrtes de Coimbra, celebradas pouco antes, e em que o Mestre fôra proclamado rei. Desde então este poderoso vassallo da corôa, que antevira o triumpho provavel da causa da nacionalidade e da independencia portugueza, ganhou na côrte de D. João I notavel importancia e valia, maior por ventura da que tivera como simples abbade de Alcobaça, se muitos fidalgos principaes não houvessem seguido a bandeira do rei castelhano. Ou fosse que o Mestre de Aviz quizesse cumprir as promessas feitas para tornar D. João d'Ornellas seu parcial, ou fosse, como se diz, que o movesse um sentimento de gratidão, é facto que concedeu a esse homem, a um tempo frade, alcaide mór e fronteiro, privilegios extraordinarios. Servido por pagens e escudeiros nobres, D. João d'Ornellas convertêra a veneranda e tranquilla mansão dos monges de Alcobaça em alcaçar de rico-homem. Acompanhavam-no em suas viagens cavaleiros e homens d'armas, cujos foros e regalias corriam parelhas com os d'aqueles que serviam e acompanhavam o proprio D. João I. A grandeza e luxo do sacerdote-cavalleiro era objecto de geral admiração e inveja, a ponto de haver, até, quem dissesse que tal maneira de vida desdizia o que quer que era dos preceitos do evangelho, e não se casava exactamente com a regra monastica de S. Bento, patriarcha não só dos monges negros ou benedictinos, mas tambem dos brancos ou cistercienses.

Elevado a tal gráu de poderio, e dotado de caracter violento, ambicioso, altivo para com os grandes, oppressor para com os pequenos, D. João d'Ornellas chegára a obter a triste distincção de ser temido e odiado em geral por pequenos, e grandes, principalmente pelos vassallos do mosteiro, que vexava sem piedade. Quando elrei, nas continuas jornadas que o obrigava a fazer pelo reino a guerra com Castella, ía casualmente pousar a Alcobaça, quem visse o apparato com que era hospedado diria que o monarcha recebia gasalhado de um principe seu igual, tão bem soubera D. João d'Ornellas transportar para o ermo as delicias da côrte. As despesas desarrasoadas que o fastoso monge fazia, assim n’estes casos especiaes, como no seu tracto e viver ordinario, recaíam, todavia, não só sobre os rendimentos da ordem, que por sua morte ficaram grandemente dilapidados, mas tambem, e principalmente, sobre os miseraveis povoadores dos coutos, que viam desbaratar o fructo do seu trabalho nas mãos perdularias do muito reverendo abbade, com quem, por assim dizer, viviam em continua guerra.

Era pelo fim da tarde do bello dia pri meiro de maio em que Fr. Lourenço embar cára para Restello. O sol reflectia os seus raios derradeiros nos largos pannos da muralha occidental de Lisboa; e no collegio de S. Paulo tangia a campa a completas, quando chegou á portaria uma numerosa cavalgada, que, subindo das portas da Cruz, passára em frente dos paços dos Infantes, e viera parar ahi. Um frade bernardo alto, grosso e rubicundo, montado em uma possante mula branca, caminhava á frente da cavalgada, conver sando e rindo com dous cavalleiros mancebos, que o acompanhavam de um e de outro lado, e que sofreavam por tal arte as mulas em que vinham, que os tres animaes quadrupedes, de baixo dos tres bipedes, formavam uma especie de trempe ou triangulo, cujo vertice era a nedia cavalgadura de sua reverendissima. Seguiam-se mais de trinta homens d'armas, entre lanceiros e bésteiros de cavallo, o que bem provava a importancia do personagem que os capitaneava, e ao mesmo tempo o estado revoltoso do paiz, que obrigava um viajar com tal copia de soldados, e alem disso a vestir armas, como era facil de notar, vendo debaixo da tunica arregaçada de sua reverencia os coxotes, grevas, e çapatos de ferro, que bem davam a entender não faltariam tambem, debaixo da cugulla e do escapulario, boas solhas d'arnez liso, ou cota de malha á prova de lança e d’espada.

Era o frade, como o leitor já terá percebido, o mui nobre D. João d'Ornellas, abbade de S. Maria, esmoler-mór d’elrei, do seu conselho, donatario da coroa, fronteiro-mór, e senhor das terras e villas dos coutos do mosteiro com alçada no civel e crime. O motivo da sua vinda a Lisboa fôra o ajunctamento de côrtes, que elrei queria celebrar, e para as quaes começavam a apresentar-se na capital, onde se devia fazer o auto, os fidalgos e prelados do reino, entre os quaes tinha um dos primeiros logares o muito reverendo abbade. E ainda que o collegio de S. Paulo não oferecia todas as commodidades necessarias para tão illustre e respeitavel magnate, todavia ele preferíra fazer residencia em uma casa habitada por membros da sua ordem a outra qualquer pousada grandiosa, querendo, talvez, mostrar com isso que antepunha a todas as magnificencias profanas a vida monastica, aspera em si, é ver dade, mas que ele sabia converter em existencia de suavidades e deleites, sem lhe tirar o perfume da sanctidade do claustro.

Apenas descavalgou, D. João d'Ornellas deu varias ordens aos dous cavalleiros, que partiram com a gente d'armas, e seguido de todos os frades e barbatos, que tinham vindo esperá-lo á portaria, subiu com aspecto risonho e ademanes cortezãos para a cella do reitor do collegio, que, de relance e atrapalhado, ía incumbindo ao leigo encarregado da cozinha uma cêa mais lauta que de costume, e ao mesmo tempo respondia ás perguntas, que sobre o governo e estado da casa lhe fazia D. João d'Ornellas.

Apenas tinha cessado o tumulto causado pela chegada do nobre hospede, quando Fr. Lourenço, Fr. Vasco e o mouro cruzaram o limiar da portaria.

VIII

O POSPASTO.

Ca bem sabereis, senhor, que vós sois posto no mundo, por autorida de do apostolo, pera louvor dos bons e vingança dos máos.

INF. D. PEDRO, Carta a elrei seu irmão.

Á roda de um bufete, onde se viam em pratos de metal, não rico, mas pulido e brilhante, alguns restos de iguarias, estavam assentados tres frades. Uma lampada, pendente do tecto profundo da casa por uma delgada cadeia de ferro, dava um clarão bastante forte sobre o bufete, e banhava em luz as faces dos tres monges, cujas feições discordavam completamente. Um tinha o aspecto alegre, com todos os signaes de vigorosa saude, e os cabellos espessos, posto que já grisalhos: outro, cujo rosto era macilento e magro, tinha a fronte calva, os olhos encovados, porém serenos e ao mesmo tempo penetrantes, e viam-se-lhe na testa rugas que ahi havia sulcado não tanto a idade como o habito de fundo meditar: o terceiro era um destes homens, em cujo craneo Gall perderia todo o seu tempo e trabalho; em cujas feições Lavater gastaria debalde toda a sua perspicacia: craneo sem proeminencias; feições sem significado: homem que hoje seria optimo para juiz de paz ou vereador; que teria talvez lido alguns livros, mas que de certo não faria nenhum; e que, apesar de lançado na vida activa, não seria capaz nem de um crime, nem de uma verdadeira virtude; emfim, um destes caracteres safados, como as moedas demasiado antigas, aos quaes quadra ás mil maravilhas um titulo, que o mundo costuma dar a quem se accommoda com todas as suas opiniões, quer absurdas, quer judiciosas; o titulo de excellente pessoa.

O frade calvo e macilento tinha começado a fallar, e os outros dous escutavam-no em silencio.

« Já vejo, reverendo abbade, que vos lembraes ainda do noviciado de Fr. Vasco, cuja historia acabaes de ouvir: agora resta-me contar-vos a de sua desgraçada irman, para poderdes fazer-me certa mercê com que se dará por bem pago o pobre Fr. Lourenço, a quem, segundo afirmaes, a ordem de Cister deve bons e longos serviços. »

« Fallae, reverendo doutor, o -- respondeu D. João d'Ornellas, que escutava o mestre de theologia, em quanto o outro frade, o reitor de S. Paulo, cabeceava e sentia cerrarem-se-lhe os olhos quasi invencivelmente:

-- «Mas, primeiro que tudo, dizei-me como soubestes a historia da irman de Fr. Vasco, a quem, se me não engano, déstes o nome de Beatriz? »

«Uma e outra cousa vos direi em breves palavras, » -- acudiu Fr. Lourenço. -- «Chamado hoje para ouvir de confissão uma pobre mulher de Restello, fui encontrar essa malaventurada donzella, que o seu roubador deixára entregue ao proprio destino logo que d’ella se aborrecêra. Sósinha, abandonada por aquelle malvado, sem conhecer ninguem na côrte, teria morrido ao desamparo, se não fosse a caridade de um pobre mouro, truão de oficio, que lhe deu gasalhado e a alimentou largo tempo. Acompanhava-me Fr. Vasco; mas não a viu. Só depois de partirmos lhe disse que a pessoa que eu acabava de confessar era sua irman; era Beatriz. Custou-me a retê-lo, impedindo que voltasse atraz e a assassinasse. Mas salvei-a e salvei-o a elle. Agora pedir-vos-hei a mercê que espero me concedaes.

«E qual é ella?» -- interrompeu D. João d'Ornellas.

« Que falleis a elrei neste caso atroz, e que imploreis a sua justiça a favor de um monge da nossa ordem, e de sua mesquinha irman. »

« Atroz... sim atroz...» -- tornou o abbade, hesitando, e fazendo uma pausa a cada palavra que proferia -- «atrocissimo!... Mas, em verdade, reverendo Fr. Lourenço, que que reis que elrei faça? Taes crimes, em tempos trabalhosos como estes, convem disfarçá-los; porque elrei ha mister de bons cavalleiros...»

«Perdoae-me, dom abbade ! » -- atalhou Fr. Lourenço, a cujas faces subíra o rubor da indignação -- «O que mais convem a um rei em todos os tempos é ser justo. Quem tira uma filha da casa paterna sem consentimento do que a gerou; quem, para enganar uma donzella innocente, troca por nome supposto o verdadeiro nome, e que, satisfeitas as suas, paixões brutaes, entrega a malaventurada á deshonra e á miseria, é um infame. Que a acceite por esposa, ou caia sobre elle a pena da lei: seja infamado para sempre, e perca seus bens. Não faltarão a Portugal cavalleiros honestos para o salvar das mãos dos inimigos. A benção de Deus valerá bem a elrei a espada e a lança de um homem traiçoeiro, embaídor e vil.»

« Que ? Pois D. Vivaldo não se chama assim?» -- replicou machinalmente o abbade, a quem as reflexões moraes de Fr. Lourenço começavam a seccar sofrivelmente.

« Não! Tomou esse nome em quanto residiu nos paços de Vasqueannes. O verdadeiro revelou-o a Beatriz quando a arremessou no abysmo da perdição, asseverando-lhe que o escondêra porque entre a sua familia e a della subsistiam odios antigos, que só o tempo podia destruir. Com este pretexto a persuadiu á fuga; com este pretexto a obri gou a viver occulta em Lisboa. Foi tambem por esse meio que pôde rir-se impunemente da vingança de Vasco, que o teria apunhalado, se o imaginario D. Vivaldo não fosse uma sombra van, que ele não podia encontrar. Sabeis quem é o miseravel hypocrita? É um escudeiro cortezão e gentilhomem: um nobre fidalgo, valido de D. João I; é Fernando Afonso, o irmão mais moço de João Affonso de Santarem.» Ouvindo aquele nome D. João d'Ornellas recuou o tamborete em que estava assentado, e ía soltar uma exclamação; mas conteve-se.

Abaixou a cabeça, e começou a esfregar as mãos e a estorcer os dedos com grande rapidez, mechendo os beiços como quem fallava comsigo mesmo, sem proferir palavra.

Houve um largo espaço de profundo silencio.

« Se vós, padre abbade» -- disse por fim Fr. Lourenço com visivel anciedade -- « não quereis tomar sobre vossos hombros o peso deste negocio, permitti que eu, monge sem valia e desconhecido, o faça; que vá pedir justiça a D. João I. Elrei é generoso e justo: não a negará ao pobre frade, quando ele invocar, além das leis do céu, as da terra, que seu avô promulgou, e que seu virtuoso pae soube fazer respeitar por tal arte, que mereceu dos máus o nome de cru, dos bons o de justiceiro.»

« Não!, reverendo Fr. Lourenço: » -- acudiu D. João d'Ornellas. -- « Fallei de leve. Agradeço-vos essa linguagem, severa mas justa, que me revoca ao sentimento do proprio dever. Estou, pela minha situação, no caso de contribuir para a boa execução das leis. Fernando Afonso é nobre, mimoso d'elrei e protegido pelo insolente prelado de Braga; mas, á fé, que um abbade de Alcobaça mostrará que não val menos que um primaz das Hespanhas. Obrigarei elrei a fazer justiça contra esse miseravel que abusou do gasalhado que recebêra; que lançou uma nodoa indelevel sobre o nome de uma familia honrada; que se cubriu a si proprio de infamia. Fernando Afonso, Fernando Afonso, a espada da lei está erguida sobre a tua cabeça!... O braço que ha de descarregar o golpe é o de D. João d'Ornellas. Saberás se elle é duro! Juro que o saberás! »

Dizendo isto o abbade desandou uma punhada sobre o bufete, com tal violencia que o reitor meio adormecido deu um pulo, e levou as mãos á cabeça. Fr. Lourenço tomou as palavras e o murro do abbade por um movimento sublime de sancto zelo de justiça.

Sancto homem era o bom Fr. Lourenço!

«Reverendo reitor » -- proseguiu D. João d'Ornellas erguendo-se -- «preciso de recolher-me á cella que me está destinada. Avisae tambem o irmão Fr. Vasco de que, ainda esta noite, lhe quero falar: dispenso para isso qualquer disposição em contrario, que me possaes apontar da nossa sancta regra. »

« Padre abbade » -- disse Fr. Lourenço, interrompendo o reitor que ía responder; -- « a sancta regra ordena que um monge de idade grave pouse sempre juncto com um dos mancebos. Fr. Vasco é o meu companheiro desde que veiu para S. Paulo. Avisá-lo-hei de que deve comparecer ante vós, e por Jesu Christo vos rogo tranquilizeis aquella alma, onde entraram de novo todos os sentimentos de odio e vingança, desde que soube quem era o roubador de sua irman, e as artes infames de que se valêra para a fazer desgraçada.»

«Oh, por esse lado » -- tornou o abbade -- « podeis ficar descançado, virtuoso Fr. Lourenço. Eu restituirei a paz ao coração do mancebo. As minhas consolações e conselhos não resistirá elle. Fiae-vos em mim!»

« Mal o conheceis, senhor!» -- respondeu tristemente o mestre de theologia.

«Conheço os homens e o mundo. É quanto basta! » -- replicou o abbade.

Dicto isto, D. João d'Ornellas encaminhou-se para a porta do aposento, lançando os olhos de travez para Fr. Lourenço, e sorrindo com um sorriso, em que havia o que quer que era diabolico.

Dalli a pouco os passos dos tres monges soavam ao longo do dormitorio contíguo.

IX

O CONCILIABULO.

E ja nom posso chorar Cá ja chorand'ensandeçi.

CANC. DO COLLEGIO DOS NOBRES.

Havia poucos minutos que D. João d'Ornellas se recolhêra ao aposento que lhe destinára o reitor. Quem o visse passear de um para outro lado da estreita cella a passos largos, ora bracejando, ora rindo-se, ora carregando colerico o rosto, suspeitaria facilmente que o agitavam pensamentos encontrados e violentos; mas a suspeita se converteria em certeza, se podesse ouvir o soliloquio em que o mui poderoso abbade desafogava a violencia das suas paixões, as quaes fôra obrigado a es conder diante de Fr. Lourenço, cujas virtudes e respeitavel caracter tinham constrangido o prelado a dar essas mostras de moderação.

O monge alcaide-mór escutára com sobrada indulgencia a historia do rapto de Beatriz, porque estava habituado a não considerar qualquer indivíduo dos que compoem a metade feminina do genero humano, senão como um pomo delicioso, que a natureza poz diante do homem para ele saborear, e proseguir no caminho da vida, sem de tal mais se lembrar. Mas, quando soube o nome do que o colhêra, e reflectiu em que para este se podia converter num lento veneno d'infamia e perdição, a sua alma rugiu de prazer; porque havia nessa idéa uma esperança lisongeira de vingança satisfeita.

Era meditando nisto que o reverendo abbade parecia tão agitado, e fôra por esse motivo que mandára chamar Fr. Vasco com o intuito de ajunctar o seu odio ao do mancebo, e deste contacto fazer surgir um plano seguro de fulminar o commum inimigo, como do roçar de duas pedermeiras se faz rebentar a chispa, que, batendo nas folhas seccas, vae incendiar a floresta.

Este odio figadal de D. João d'Ornellas contra Fernando Afonso procedia de acontecimentos, que precederam a epocha desta historia, acontecimentos que se acham referidos pelos nossos chronistas civis e ecclesiasticos.

Foram elles as famosas dissensões entre o abbade de Alcobaça e o arcebispo de Braga D. Lourenço. O que os historiadores, todavia, não relatam é que Fernando Afonso tivesse parte nessas dissensões, nem que entre ele e o arcebispo houvesse relações algumas. Nada sobre isso dizemos que não seja extrahido do rarissimo manuscripto de que vamos tirando a substancia desta narrativa. De tudo, porém, daremos uma breve idéa, quanto baste para o leitor perceber as causas occultas que faziam tomar a D. João d'Ornellas tão vivo interesse na punição de um crime, de cujo genero por ventura mais de um lhe roía na consciencia; pois que, segundo ele affirma em seu testamento, muitas vezes a carne o perduzia a usar de peccado, consentindo em tentações do diabo.

Os antigos abbades de Alcobaça costumavam ser eleitos pelos seus monges, e confirmados pelo mosteiro de Claraval em França: na eleição de D. João d'Ornellas occorrêra, porém, uma circumstancia extraordinaria : - o papa reservára para si o provimento da abbadia, e foi ele quem confirmou a eleição. Em consequencia disto D. Lourenço, então colleitor apostolico em Portugal, entendeu que devia exigir do novo abbade a annata ou renda do primeiro anno do seu governo: mas, desgraçadamente, tambem D. João d'Ornellas entendeu que não devia pagá-la. No mez de fevereiro de 1385 o arcebispo foi buscar o refractario, e chegou a Alcobaça com grande copia de homens d'armas. Entretanto o abbade se acolhêra ao castello, e fechára as portas do mosteiro. Ainda então não existia naquelles sitios, afora o castello e o convento, senão a primeira igreja, que os monges primitivos haviam edificado em tempo de D. Afonso Henriques.

Ahi se recolheu D. Lourenço, e passou uma das mais aziagas noites da sua vida, cheio de Fome e de frio, sem que podesse obter do cercado o menor provimento ou conforto. Depois de porfiada lucta, em que nenhum dos contendores chegou a recorrer ás armas materiaes, mas em que não se pouparam citações, appel lações, excommunhões, protestos e mutuas injurias, o arcebispo se retirou desbaratado para o Porto, onde continuou a demanda, que finalmente foi decidida em Roma a favor de D. João d'Ornellas em 1390.

Considere o pio leitor a zanga, despeito, odio, raiva, furia e rancor que ficaria subsistindo entre os dous religiosos varões desde aquela memoravel epocha. Que o abbade muitas vezes acoimasse o arcebispo de injusto, violento, e até de ladrão é mais que provavel; que o arcebispo lhe retribuiu com dar-lhe o nome de desobediente, traidor, perjuro, e scismatico, é historico e certo. Além disso este rancor, em vez de diminuir, devia crescer, lavrando occultamente; pois que, ligados ambos ao mesmo bando politico, ambos cortezãos de D. João I, eram obrigados a mostrar, se não mutua amizade, ao menos mutuo respeito. E se fosse verdadeira a celebre carta do rexoxó, escripta pelo arcebispo ao abbade, deveriamos confessar que, não obstante a virtude que a historia attribue a D. Lourenço, era impossivel que D. João d'Ornellas lhe levasse a melhoria em dissimulação.

O odio reciproco dos dous ministros do Altissimo estendeu-se, como era de esperar, aos clientes de ambos. Um dos de D. Lourenço foi o primeiro que se atreveu a guerrear abertamente o capitão do bando contrario.

Eis o caso:

Os habitantes de Turquel e de Evora, povoações que ficavam dentro dos coutos de Alcobaça, cansados de sofrer as vexações de D. João d'Ornellas, tomaram a heroica resolução de recorrer a elrei, para que, como pae de seus vassallos, atalhasse a destruição que, semelhante á raposa em festa nocturna de capoeira bem povoada, neles fazia sua despotica e dissoluta reverendissima, o mui honrado padre abbade. Com este intuito redigiram uns capitulos, cuja substancia poremos aqui para edificação do leitor.

Queixavam-se os povos do couto de que o abbade, quando eles lhe não obedeciam cegamente, mandava prender os juizes, oficiaes de justiça e quaesquer outras pessoas, e os fazia descer por cordas aos subterraneos dos castellos d'Alcobaça, onde não viam sol nem lua, até que ahi cegavam; -- de que não lhes permittia, nem colher os fructos das proprias arvores, nem tirar a casca dos carvalhos para curtimentos, mister em que principalmente se occupavam naquellas povoações, nem cortar madeira nos matos e florestas para edificarem suas moradas, ou repararem as cubas de suas adegas: -- de que, em havendo nobres hospedes no mosteiro, o abbade mandava rapinhar as vaccas, porcos, galinhas e carneiros dos misera veis, e com isso banqueteava elrei e os senhores, pagando tarde, mal, ou nunca os objectos assim furtados; -- de que tirava os mesteiraes (oficiaes mechanicos) a quem os tinha assoldadados; -- de que ordenava aos homens livres lhe carreassem as madeiras cortadas nos pinhaes da Pederneira e na matta de Maiorga, como se os moradores do couto fossem servos da gleba; -- de que, na conjunctura da batalha de Aljubarrota, tendo-se recolhido ao castello de Alcobaça e mattos circumvisinhos as mulheres e filhos dos que pelejavam pela patria, e havendo estes levado ás suas familias despojos que valiam cem mil libras, o abbade lhes tomára tudo, mandando prender aquelles que para si reservavam alguma cousa; -- de que, para obri ar os povos a pagarem um imposto que por propria auctoridade lançára, fôra certo dia de madrugada pelas casas dos refractarios, e pondo fóra dellas as mulheres e crianças nuas, fechára as portas, e não deixára entrar ninguem, sem lhe pagarem quanto ele queria; -- de que, ao mesmo tempo em que lhes tomava, para a guerra contra Castella, cavalgaduras, dinheiro, e mantimentos, os obrigava a trabalharem gratuita mente nos reparos dos seus castellos, e até em serviços peculiares do mosteiro, prometten do, como grande beneficio, descontar-lhes es tes serviços nos impostos e fintas que segundo seu alvedrio lhes lançava; -- de que, finalmente, substituindo os juizes de eleição popular por outros da sua escolha, todas as queixas dos povos eram resolvidas a bel-prazer delle abbade, e não conforme os dictames da boa justiça.

Estes capitulos, escriptos com eloquente aranzel em um extenso rôlo de pergaminho, foram apresentados a elrei por mão de Fernando Afonso, que, ligado por amizade e parentesco com o arcebispo D. Lourenço, e por isso, como dissemos, inimigo capital de D. João d'Ornellas, se prestou de bom grado a ser procurador dos queixosos, e a aproveitár a entrada e privança que tinha com elrei, para com mostras de generoso descubrir o máu procedimento do abbade, e diminuir a sua influencia. Todavia, o terrivel prelado era demasiado poderoso, e o seu poder pesava demasiado na balança das questões politicas, internas e externas, que agitavam o reino, para que só em obsequio da justiça houvesse de ser refreado e punido. Posto que na epocha de D. João I o povo fosse ainda uma cousa grande e forte, porque a vida municipal, garantia unica possivel de verdadeira liberdade, não era ainda convertida em comedia pela monarchia absoluta, para esta a legar, transformada em farça de titeres, ás exarchias ministeriaes chamadas governos representativos; posto que, dizemos, o grito popular de angustia ou de colera soasse ainda tremendo nos ouvidos dos poderosos, a voz dos pequenos municipios de Turquel e de Evora era mui debil, só per si para sobrelevar ao tumulto da guerra d'independencia, e fazer pospor as considerações a que, para levar esta a bom termo, era necessario attender. Assim as queixas esquece ram-se, o clamor dos vassallos de Alcobaça soou debalde aos pés do throno, e os habitantes de Turquel e d'Evora tiveram de contentar-se com aquelle desafogo inutil.

Não perdeu, todavia, Fernando Afonso o seu trabalho. D. João d'Ornellas soubera de tudo, e jurára vingar-se. O cavaleiro devêra tê-lo percebido; porque a primeira vez que o reverendo abbade viera á corte, o tractára com desusada afabilidade e carinho.

Era por isso que, ora exultando de prazer, ora recordando-se colerico da ofensa que recebêra, o abbade de Alcobaça, agitado por pensamentos diversos, esperava ancioso a chegada de Fr. Vasco.

« Benedicite, Domine! » -- disse uma voz tremula, que soou á porta da cella.

« Entrae, irmão: » -- respondeu o abbade.

A porta rangeu nos gonzos. Fr. Vasco, em pé, com os braços cruzados, e a cabeça baixa, estava diante de D. João d'Ornellas.

«Assentae-vos! » -- disse este, apontando para um tamborete dos que se viam enfileirados ao longo das paredes.

«Senhor!....» -- replicou Fr. Vasco duvidoso.

« Assentae-vos! »

O mancebo obedeceu. D. João d'Ornellas arredou outro tamborete, e assentou-se defronte delle.

«Agora escutae-me, e respondei sinceramente ás minhas perguntas.»

Fez uma pausa, fitou no mancebo o seu olhar de milhafre, e proseguiu:

« Ha um homem nobre, rico e poderoso, que derramou sobre vosso nome a infamia, que assassinou vosso pae, que converteu vossa irman em uma barregan miseravel, e depois a abandonou. Houve um tempo em que vós, na flor da mocidade, fidalgo, valente, e cavalleiro, vos poderieis ter desafrontado chamando-o ao juizo de Deus na estacada do combate. Hoje sois um pobre monge, que trocou a armadura e as esporas douradas pela cugula e sandalias, a espada e a lança pelo bordão de peregrino, o orgulho da fidalguia pela submissão monastica, o valor de soldado pelos pensamentos e terrores da morte. Nada, pois, vos resta, senão resignar-vos na infamia, na abnegação da vingança, no esquecimento do passado. Pela sancta obediencia que me deveis, dizei-me a verdade, a verdade nua: estaes resolvido a assim o cumprir?»

« Reverendo e mui veneravel abbade, -- respondeu Fr. Vasco, cujas palavras, ora rapidas, ora lentas, bem mostravam a tempestade da sua alma -- «ha oito horas que eu tenho provado quantas dores de espirito é possivel padecer na vida: duas dessas horas passei-as sósinho a clamar ao Senhor que minorasse a minha angustia; mas o Senhor não me ouviu. Então, desesperado, invoquei o demonio; e rolei-me furioso pelo pavimento da minha cella, que humedeci com o suor da fronte, não com lagrymas, porque estes olhos já não podem chorar. Daria nesse momento a vida, -- mais que a vida, a salvação, -- por vingar-me, e vingar a minha pobre Beatriz, que, filha e irman de cavaleiros, creu que nenhum neste mundo podia ser desleal: por vingar minha ir man innocente, e que tanto tempo julguei cul pada, daria o corpo ao patibulo, a Satanaz a alma! Padre abbade, quebrae, se é possivel, os meus votos, lançae-me, como um homem perdido, fóra desta sancta morada, e dae-me uma acha d'armas, um montante, um punhal!.. Eu irei arrancar Fernando Afonso, se preciso fôr, do paço, dos degráus do throno, da camara do proprio D. João I. Um ferro!.... e arrastá-lo-hei a Restello, aos pés de Beatriz, e far-lhe-hei pedir perdão com lagrymas de sangue, e ela lhe perdoará talvez, e esse perdão será inutil!.... Mas isto é um sonho, veneravel abbade!» -- proseguiu o moço cisterciense com voz afogada. -- «Que posso eu fazer? Appellar para a justiça d'elrei, com a esperança da qual o bom Fr. Lourenço pensou que me confortava ! Quizestes que eu vos dissesse quaes eram as minhas in tenções: fiz mais; contei-vos a infernal historia do meu coração.... Agora, » -- acrescentou com um sorriso doloroso,- « esperarei resignado pela justica d'elrei.»

«E se eu vos ordenar que no caso de D. João I não castigar o criminoso, perdoeis a este todo o mal que vos causou ?»

«Padre abbade, replicou o mancebo com o accento da desesperação, -- « não vos obedecerei.»

«Mas vós sabeis que no mosteiro de Alcobaça ha um carcere, e nos fundamentos do seu castello masmorras onde não entra o sol. »

«E que importa ao coração em trevas que os olhos vejam o dia? Que importa ao espirito captivo na estreita regra do claustro que o corpo esteja comprimido entre as paredes de um calabouço? Não, padre abbade, não!.... A minha alma não se manchará com o pensamento insensato do perdão. O meu odio é o ultimo thesouro que me resta de tudo o que deixei no mundo: está muito dentro para vós haverdes de roubar-m'o. Não creio que o minorasse ver cumprida essa pena que a lei impõe aos seductores; pena mesquinha, porque não foi feita por homem, que, como eu, tivesse recebido uma grande e imperdoavel affronta. Mas as vossas palavras me provam que não devo ter nem essa miseravel esperança! Guardarei pois o meu rancor inteiro, e se quizerdes, amanham mesmo parto para o carcere d'Alcobaça. Aqui ou lá, pouco me importa onde é que tem de escoar-se o resto de meus dias. Fr. Lourenço cá fica para acudir com as suas esmolas á minha pobre Beatriz. »

D. João d'Ornellas olhava para Fr. Vasco com um sorriso qne mal lhe despontava nos labios, e quando o frade acabou de fallar, estendeu para ele a mão: « A fé, que encontrei finalmente um homem debaixo da estamenha monastica!»

O mancebo pensou por um momento que o mui reverendo abbade escarnecia delle; mas breve se desenganou.

«Um homem, sim!» -- proseguiu D. João d'Ornellas; -- « porque só merece este nome quem não sabe vergar debaixo do peso das afrontas. Mancebo, eu quiz experimentar-te: quiz conhecer se eras como qualquer desses monges vilissimos que julgam dever, ao cruzar o umbral de uma portaria, renegar da honra, e acceitar oppressões e injurias como se fossem beneficios e mercês. Tu não es como elles; a tua alma é grande e altiva como a de D. João d'Ornellas, cujo odio é indestructivel e fatal. A diferença entre ti e elle consiste em que o monge nada póde, e o abbade póde muito; póde tudo. Mas tu poderás tambem; porque eu te erguerei da terra. Alegra-te, Fr. Vasco ! O teu inimigo primeiramente o foi meu. Como tu lhe votaste odio immenso, inflexivel, perpetuo, assim lh'o votei eu. Vingar-nos-hemos ambos, e o abbade de Alcobaça, o senhor de quatorze villas, o alcaide de dous castellos, o cavalleiro cujo pendão se ergue na guerra sobre as cabeças de centenares de homens d'armas, vae consagrar á tua vingança, que é sua, quanto val e quanto póde. Irmão, amigo, ser-te-ha D. João d'Ornellas. Façamos uma liança d'odio: cavalleiro, aperta esta mão de cavaleiro. Juro ser-te fiel como a acha d'armas ao braço robusto do pelejador: jura-me tambem tu que serás meu na vida e na morte; que para ti não haverá nem hesitação, nem remorsos! »

Com um movimento convulso Fr. Vasco apertou a mão do abbade, e com vós rouca e lenta respondeu:

«Alma e corpo, padre abbade, dou-vos tudo nesta vida: que na outra... a minha alma pertence aos demonios! »

« Outra vida! outra vida! -- interrompeu o monge alcaide-mór com um sorriso. -- Quem sabe lá nada da outra vida? Viste já tu o demonio? Não. Nem eu. E impossivel que Deus queira que o homem, o rei da creação, em cujo seio gravou o sentimento da propria nobreza, o valor que contrasta os perigos, e o engenho que domina a terra, seja um ente vil e covarde. Os theologos dir-vos-hão: Deus fez o homem á sua imagem e semelhança: depois lembrar-vos-hão como ele vinga as injurias que lhe fazemos, e concluirão, por fim, recommendando-vos o perdão das que vós recebeis! Boa dialectica será essa, mas não para D. João d'Ornellas. Mais forte que o amor, que a ambição, que tudo, é a sede de justa vingança: neste sentimento, que não em outro qualquer, reconheço eu a origem divina do homem. O que sofre e se abraça com a cruz será, talvez, um ente sublime; mas o proprio S. Paulo chamou a isto loucura. »

O frade mentia e blasphemava; mas as suas blasphemias calavam no coração de Fr. Vasco como um balsamo suave; porque o ultimo trago d'infamia que bebêra o fizera chegar á meta da desesperação; e o desgraçado, vendo tardar a justiça divina, renegára inteiramente de Deus!

D. João d'Ornellas contou então ao moço cisterciense a historia das suas dissensões com o arcebispo de Braga; mencionou as antigas relações que existiam entre o primaz e Fernando Afonso, e como este, incitado, talvez, occultamente por D. Lourenço, ousara apresentar a elrei, acompanhando esse acto com suggestões malevolas, os capitulos dados contra ele pelos seus subditos rebeldes de Turquel e d'Evora; e concluiu declarando a sua firme tenção de tirar amplo desaggravo da damnada ousadia do moço escudeiro, e de tomar a seu cargo a defensão de uma causa tão justa, qual era a de Fr. Vasco; de um homem, que, como elle, vestia o habito de S. Bernardo.

Depois disto, D. João e o moço frade se approximaram mais um do outro, e falaram muito tempo em voz baixa, como se receassem que as paredes da acanhada cella podessem vir a revelar alguma parte dos seus intentos.

Com as faces encendidas, e os olhos banhados em alegria feroz, os dous monges, conversando assim junctos á luz avermelhada das tochas com que se allumiava esta scena, formavam um quadro semelhante áquelas visões phantasticas, repugnantes, e dolorosas, que passam em nossa alma, quando por noite de febre nos aperta o coração longo e aflictivo pesadello.

O mysterio d'odio implacavel que ahi se passou, ficará patente aos olhos do leitor, se tiver paciencia bastante para seguir comnosco a serie dos successos derramados nos seguintes capitulos.

X

A TAVOLAGEM DO BÉSTEIRO.

Hordenamos e estabellecemos por ley que nós nem outrem de nosso senhorio, de qualquer estado e condiçom que seja, nom tenha tavolagem em praça, nem em escondudo.

LIV. DAS LEYS E POST. ANT. Lei de D. Aff IV.

Quem hoje se encaminhar ao longo da rua vulgarmente chamada dos Capellistas, dobrar o penultimo quarteirão da Rua-nova da Princeza, e seguir pela rua dos Confeiteiros, caminho da Ribeira velha, terá passado por cima da sepultura das mais nobres ruinas da antiga Lisboa. A Rua-nova, designada assim por antonomasia, passava pouco mais ou menos pelo sitio em que hoje está lançada a Rua-nova d'Elrei: a sua origem remontava ao berço da monarchia, e já no tempo de D. Fernando era o centro da actividade commercial da cidade, então frequentada d’estrangeiros de diversas nações, que vinham buscar o nosso tracto e commercio. Depois da feitura da nova muralha (1373 --5) prolongava-se com esta, e vinha findar nas proximidades da moderna igreja de S. Julião pelo lado do occidente, em quanto pelo topo oriental terminava no Pelourinho velho. Aqui a povoação se dividia como em dous troncos; um que, subdividido em muitos ramos de ruas enredadas e escuras, subia para a Alcaçova; outro, que seguia ao longo da muralha e ía desembocar fóra das Portas do Mar, no bairro chamado Villa nova de Gibaltar. Entre estas duas divisões jazia a Alfama, a cuja frente se elevava a velha cathedral. A Alfama fôra no tempo do dominio sarraceno o arrabalde da Lisboa gothica; fôra o bairro casquilho, aristocratico, alindado, culto, quando a Medina Achbuna pousava enroscada tristemente no seu ninho de pedra; no que depois se chamou a Alcaçova, e hoje o Castello. Quando, porém, no seculo XIII a população christan, alargando-se para o occidente, veiu expulsar os judeus do seu bairro primitivo, situado na actual cidade baixa, e os encantoou para a parte do sul da cathedral, a Alfama foi perdendo gradualmente a sua importancia, e converteu-se a final num bairro de gente miuda, e, sobretudo, de pescacadores. A Rua-nova, a aorta de Lisboa, rica de seiva, chamara a redor de si toda a vida da povoação. A velha judiaria era agora o coração da cidade, e a Alfama, em parte feita plebea, e judaisando em parte, viu pender e murchar a sua guapice, transitoria e morredoura como todas as glorias do mundo.

Nesse bairro, no fim da rua chamada ha seculos das Canastras, juncto ás Portas do Mar, corria uma casa baixa, mas solidamente edificada, a qual contrastava com as que lhe estavam proximas pela sua muita antiguidade: duas janellas, cujas vergas se arqueavam á feição de uma ferradura, abertas nos dous extremos da frontaria, a igual distancia do espaçoso portal que lhe ficava no meio, desdiziam das frestas ponteagudas e estreitas que davam luz ás moradas visinhas, bem como o portal, igualmente terminado em volta de ferradura, largo e baixo, contrastava com as elegantes portadas gothicas dos outros edificios, cujos tectos esguios e bordados de ameias tambem diversificavam do tecto do edificio mourisco, que oferecia aos seus habitadores um eirado espaçoso, onde pelas madrugadas serenas, ou ao pôr do sol de um dia de estio, podiam ir respirar uma viração mais pura, que raras vezes passava pelas ruas tortuosas, estreitas e immundas da velha cidade mourisca.

Eram perto das seis horas da tarde do dia seis de maio do anno de 1389. No pequeno terreiro que formava, pela parte interior, a entrada das Portas do Mar, já mal se divisavam os objectos, porque a noite descia rapidamente do lado oriental, posto que ainda o clarão avermelhado do crepusculo tingisse os altissimos corucheus azulejados, que serviam de topo e remate ás torres da cathedral. Pelo arco escuro e profundo das Portas do Mar entrava grande multidão de povo miudo, principalmente pescadores, que se recolhiam antes que a escuridão da noite tornasse mais temerosos os encruzilhados becos e ruas torcidas, que davam para o interior d'Alfama. Com estes se misturavam os judeus, que, vestidos como os christãos, e divisando-se-lhes escaçamente os sinaes vermelhos, que traziam cosidos nas roupas sobre o estomago, corriam apressados para o seu bairro, situado mais ao oriente juncto á Porta d'Alfama, no angulo da velha cerca, para lhes não sair da bolça a inevitavel mulcta, que deviam pagar, sendo encontrados fora da Judiaria depois de terem soado as tres fataes ba daladas do sino da oração. Com igual ou mais rapido movimento se viam branquejar os albornozes alvacentos dos mouros no meio do encontrado perpassar da gente. Mais raros em numero que os judeus, e seguindo diferente rumo, estes se encaminhavam para a banda da antiga Porta do Ferro, donde, atravessando pelo sopé da Alcaçova, desciam para o vale da Mouraria, cujo nome provinha de ser ahi situado o bairro em que elles habitavam, e em que ao mesmo sinal das trindades, eram obrigados a recolher-se, sob pena de castigo igual ao que se impunha aos judeus. O dia pois acabava, e a noite ía em breve estender o seu manto de escuridão e silencio sobre a vetusta cidade, cabeça da boa e nobre terra de Portugal.

Encostado á hombreira do portal mourisco, que dava entrada para a casa contigua ás Portas do Mar, e que acima fica descripta, um homem, que mostrava ser de idade de quarenta a quarenta e cinco annos, tinha os olhos pregados naquella mó de mesteiraes, pescadores, villaõs, judeus, mouros, que passavam como uma torrente, fazendo um borborinho infernal de gritos, risadas, motejos, cantigas, e passadas a um tempo rapidas e pesadas; ruido tal que fazia semelhar o pequeno terreiro a uma especie de pandemonio. A personagem que contemplava esta scena popular era pelo seu trajo um homem d'armas, ou pelo menos um bésteiro de cavallo, e um parceiro folgasão pela sua figura e aspecto. Baixo, grosso e roliço, nariz rombo e vermelho, faces avultadas, rebarbativo e risonho, podê-lo-hia tomar por uma figura de Sileno quem para elle olhasse, se naquele tempo houvesse alguem assaz lido em mythologias pagans para se lembrar do jovial deus dos toneis. Tinha vestido um tabardo de valencina azul, umas calças de panno viado, ou de riscas, de Larantona, e por cima um capeirão de barregan: cubria-lhe a cabeça um sombreiro grande de lan: tinha calçados uns sapatos de couro branco; e para completar este trajo, um tanto aprimorado, trazia pendente da cincta de cordovão vermelho uma grande algibeira ou bolça de argempel, onde já muito a custo se descubriam alguns reflexos metallicos.

A attenção com que o estafermo, cuja figura e vestuario acabámos de examinar miudamente, olhava para o tropel de povo que se recolhia, não indicava a mera curiosidade de uma pessoa desoccupada que neste semsabor divertimento gastava o tempo por não saber como o153 occupar melhor. Conhecia-se pelo estender do pescoço de espaço a espaço, e pelo franzir dos sobrolhos que elle esperava anciosamente alguem, que começava a tardar mais do que o bom do bésteiro entendia ser justo. A sua impaciencia não foi, todavia, posta a larga prova.

Um moço de monte desceu correndo do lado da sé, e chegando de leve ao pé do bésteiro, que tinha os olhos fitos no vão da porta da cidade, já inteiramente obscurecido, bateu-lhe no hombro dando-lhe um piparote na barba.

«Olé, Lourencinho amigo! Que imaginações voz trazem assim enlevado? Esperaes dessa banda os vossos amores?

«Nem migalha, Galeote: » -- tornou o bésteiro, voltando-se rapidamente, e agarrando pelo braço o rapaz, que se estorcia para lhe fugir. -- « Dês que elrei D. Fernando me deu quantia para bésta de garrucha, aljava de cem virotes, e rocim de encavalgar; depois que o carniceiro se converteu em homem de hoste, as mancebas parece que fogem do pobre de mim. Por vós esperava eu. Que novas do senhor conde?» «Aqui estará logo que tanja o sino de correr. Vim de volta pela Porta do Ferro, porque... Mas, com a fortuna! Já eu ía badalar por onde vim, com quem falei, o que disse..... Nada, nada, meu amo! Ponto em bocca! »

« E que me importa a mim » -- acudiu o homem baixo e roliço -- « a mim, Lourenço Braz, bésteiro de cavallo, com tavolagem de fidalgos e homens d'armas, em que peze ás justiças d’elrei, se pela banda da sé, ou pela de Villa nova de Gibaltar, Galeote Estevens, o moço de monte do conde de Cea, me veiu avisar de que seu nobre amo e senhor vinha esta noite com seus parceiros perder ou ganhar á jaldeta, ao curre-curre, ou aos dados alguns centos de dobras de ouro, na honrada casa de jogo das Portas do Mar, a que certos traidores scismaticos se atrevem a chamar casa de perdição? O que eu precisava de saber era se elle vinha de feito. » «Virá, virá, e não só. E diz que tenhaes prestes a collação do costume; mas algo mais avultada.» Então é noitada de vulto? Temos algum mercador judeu, prazentim ou flamengo a esfolar? Ou é o arraes da carraca de Alexandria que chegou ha pouco, e que vem arrevesar com vomitorio de dados as marcas esterlingas de bom ouro, por que vendeu os assucares rosados nas boticas da Rua nova? Ou é... »

« Ou é, ou é, ou é » -- interrompeu o trefego rapaz imitando a voz rude do hésteiro.

-- Não é nada disso, homem!»

«Então que é?

« Eu sei lá! »

E o moço de monte desatou a rir. Depois, encolhendo uma perna, agarrou-a pelo tornozello, e poz-se a saltar sobre a outra, volteando diante do gordo bésteiro e cantando uma volta antiga:

«A que vi entre as amenas Deus! como parece bem! E mirei-la das arenas: Dês-hi penado me tem.»

« Forte doudo! » -- exclamou o bésteiro. -- «Boa occasião de cantar trovas velhas como a Sé. »

O rapaz soltou a perna esquerda, alevantou a outra, volteou ainda mais rapidamente em sentido opposto, e começou a trautear em diversa toada:

« Dama do corpo delgado, Em forte ponto eu fui nado; Que nunca perdi cuidado, Nem afan, dês que vos vi! Em forte ponto eu fui nado, Dama, por vós e por mi!»

Lourenço Braz era curioso. Quem não tem seu defeito? O moço de monte sabia alguma cousa que não queria dizer-lhe. Mas elle tinha receita experimentada para lhe desempeçar a lingua. Puxou por um braço ao dançarino cantor, e arrastou-o para ao pé de si.

« Acaba já com esse chilrear de rouxinol de maio. Se não me queres dizer quem vem com o senhor conde, não digas. Repito-te que não me importa. Mas entra oá um pouco, e ao menos dir-me-has se o vinho do bésteiro é digno de seus hospedes. Entretanto eu porei a cêa ao lume para tudo estar a ponto Tira-te d’ahi, que a noite vae humida e fria, e cerra a porta apoz ti.»

Proferindo estas palavras, Lourenço Braz entrou, e Galeote Estevens, sem lhe responder nada, seguiu-o arrastado por força maior, mas sempre cantarolando. Agora, porém, a volta era moderna: uma dessas cantigas que surgem da imaginação dos Beethovens populares em epochas revolucionarias, e que se nacionalisam com a rapidez do relampago.

« Abite, abite, abite, Mate-te a mazella: Perro castelhano Vai-te p'ra Castella. Se é vinho de mais d'anno, Venha uma escudella. Abite, abite, abite....»

« Vae cantar dessas trovas, Estevens, em casa do senhor conde: » -- disse o bésteiro, voltando-se para traz, e rindo.

«E porque não? Elle é tão bom vassallo d'elrei como João Rodrigues de Sá, ou outro qualquer dos melhores. »

«Sim, depois de Aljubarrota, quando no seu castello de Cintra já não podia ter voz muito tempo pelo scismatico de Leão e Castella. Mas, caluda, que ambos nós somos homens de Sua mercê. »

Dizendo isto, os dous tinham atravessado um longo e escuro corredor, e achavam-se n'uma vasta quadra do edificio, a qual ficava na extremidade d'elle juncto com o muro da cidade. Cinco lampadas de tres lumes pendentes do tecto allumiavam este aposento, que durante o dia apenas recebia luz da janella mourisca rasgada no angulo da banda da muralha, e que pouca lhe podia transmittir fechada como era por uma grade de ferro tão basta que melhor lhe caberia o nome de rede. Até a altura da cabeça de homem as paredes da sala estavam forradas de taboas de castanho, madeira de que igualmente era tecido o pavimento e construida uma enorme banca collocada no meio da casa: uns como sophás, de encostos mui baixos nos topos, e cubertos com mantos ou cuberturas de picote de Palencia, que caíam até o chão, se viam enfileirados ao longo das paredes e ao redor da grande mesa, cuja superficie estava cheia de picadas de punhal, o que provava que os jogadores costumavam ter prompto e á mão juiz, senão recto, ao menos inflexivel, que pozesse termo, bem que de modo um pouco violento, ás suas contestações.

O bésteiro apenas entrou encaminhou-se para uma descompassada chaminé, rasa com o chão, e embebida na parede, em que ardiam algumas achas de zambugeiro: puxou para o lume dous grossos tóros que estavam arrumados com outros no fundo da lareira: tirou de um armario contiguo uma perna de boi quasi inteira; pô-la em uma certan com duas alentadas postas de toucinho, e pendurou esta de um gancho que ficava por cima da fogueira: depois tornou ao armario, e veiu colocar sobre a mesa uma grande agomia de cobre cheia de vinho, e duas taças de estanho, fazendo ao mesmo tempo signal a Galeote Estevens para que se assentasse.

O moço de monte obedeceu, em quanto, de pé, o bésteiro enchia as duas taças, e empurrava uma para defronte dele.

«E do especial! » -- disse Galeote Estevens, depois de ter bebido, pousando a taça em cima da mesa, e chupando a um tempo ambos os beiços.

« Não o ha melhor dez leguas em volta» -- respondeu Lourenço Braz, tornando a encher-lhe a malga, que o bom do Galeote Estevens despejou de um golpe com o mesmo garbo.

O bésteiro pegou de novo na agomia e na taça para repetir a dose, depois de ter ido virar a carne que chiava na certan.

«Tá, tá » -- acudiu o moço de monte interpondo a mão de vagarinho entre os dous vasos, nos quaes se ía ainda uma vez fazer a demonstração de que os liquidos tendem a nivelar-se.

« Que diabo de homem és tu?» -- disse Lourenço Braz com aquele tom de mau humor que indica a boa vontade. -- «Impas com duas sedes de vinho? O capellão da mouraria, Zein-al-Din, que, segundo dizem, nunca lhe tomou o cheiro, não creria ter quebrado o preceito do seu maldicto alcorão se não tivesse bebido mais do que essas duas lagrymas delle, que duvido te chegassem ao gasnete por pouco furados que tenhas os dentes.»

«Agora por mouraria.... já me passava o dizer-vo-lo!...» -- exclamou o moço de monte, rindo a bom rir, e pondo as mãos nas ilhargas, como se receasse estourar.

« O que?» -- interrompeu o bésteiro, aproveitando ao mesmo tempo a retirada das mãos de Galeote para lhe encher de novo a taça até as bordas.

« O que?! A cousa mais graciosa deste mundo: o mouro Alle está sancto. »

«Quem, o jogral que foliava por essas ruas, e que desappareceu desde o dia em que o atropellaram á sé, quando tu e os outros velhacos da tua laia lhe estorroaram na cara lixo e terra, porque arrenegava de Christo e Mafamede no meio das suas lastimas doridas?»

« O mesmissimo, sem tirar nem pôr.»

« Ora essa!... Ah, ah, ah! » -- disse Lourenço Braz, fazendo a segunda á risada de Galeote, mas com uma voz de Stentor. -- «Onde anda ele? Metteu-se beguino? Quero vê-lo depois de baptisado, com a cabeça rapada, e a roupeta da sancta regra. Ha de ser cousa famosa ! Ah, ah, ah! »

« Ainda não vae n'essas alturas; mas espero que lá suba dentro em pouco!» -- atalhou o moço de monte. -- «Tenho-o visto entrar e saír do collegio de S. Paulo, e andar muito sisudo atraz de Fr. Lourenço Bacharel, e d’aquelle frade moço seu companheiro, com os olhos sempre no chão, e com taes ademanes de beato, que parece, como elles, um homem de Deus, de tal guisa, que, a-la-fé, de todos os seus momos e visagens esta ultima é a que mais me faz rir.»

«Ah! então o caso é outro: » -- replicou o bésteiro bebendo o vinho, que ainda tinha intacto diante de si. -- « Todavia, lá vae á saude do futuro servo de Deus, que será ca nonisado, nanja pelo padre sancto de Roma; mas pelo herege scismatico que está em Avinhão. Anda, Galeote, bebe; e vamos a fallar no que importa: dize-me quantos são os hospedes que hoje....»

« A saude de Sancto Alle, ex-jogral de officio, e escholar de beato na estudaria de S. Paulo: » -- gritou Galeote Estevens levando a taça á boca, e já quasi embriagado ao ponto em que o bésteiro o queria.

«Um ruido de muitas passadas reboou então pelos ecchos do aposento. Tão embebidos estavam os dous no seu dialogo, que só então deram tino de que alguem se approximava.

Estremecendo, o bésteiro voltou-se rapidamente: Galeote Estevens, pondo-se em pé, deixou caír a taça, e ficou com a boca semiaberta, e com os olhos pregados na porta.

No limiar della estava uma pinha de vultos, embrulhados em grandes capuzes de almafega parda, de modo que não lhes appareciam os rostos. Lourenço Braz olhou de travez para o moço de monte, como accusando-o de ter deixado a porta aberta, e saltando de um pulo ao canto da casa lançou mão de largo cutello, que tinha pendurado de um prego, e gritou:

«Olé, que ninguem dê passo sem dizer seu nome, senão com esta almarcova far-lhe-hei nas pernas um traço como o que fiz nas do cavallo de Fernão Sanches, na cavalgada entre Elvas e Badalhouce, em tempo do bom rei D. Fernando.

« Devagar, Lourencinho, devagar: » -- disse o conde de Cêa D. Henrique Manuel, deitando para traz o capello do capuz. -- «Não tens de que te arrecear. Sou eu! Parecia-te o meirinho da côrte e os seus algozes? Heim ?»

« Lá a dizer a verdade, não é graça: » -- respondeu o bésteiro, largando o cutello e coçando na cabeça. -- «Uma pessoa, aqui, anda a bem dizer com os tagantes nas ancas, os degráus do pelourinho debaixo dos pés, ou a corda de linho canave de tres ramaes ao redor do pescoço: açoutado, posto na gaiola, ou enforcado por dar gosto aos fidalgos. Vossa mercê bem sabe o que resam as posturas daquelle rei » velho, o avô d'elrei, sobre as tavolagens...

«Melhor que tu!» -- atalhou o conde, voltando-lhe as costas, e dirigindo-se ao moço de monte, que parecia uma estatua: -- « Galeote, patife, anda cá. Foste ao adro da sé. Que te disse o embuçado ? »

Galeote approximou-se, procurando ter-se firme no chão que lhe dançava em redor, e, olhando com aquele olhar vago que é o sobrescripto da embriaguez, respondeu com voz tarda e maviosa:

« Sem falta.... Ha-de vir.... Ao sino de correr.... Não póde tardar.... Acabou-se .... Puah ! »

E recuando, recuando, com as mãos atraz das costas, arrimou-se á quina da hombreira da porta, e ficou por alguns instantes a oscillar sobre ella, como balança no fiel, para um e para outro lado.

«Vae-te »!-- gritou o conde colerico. -- «Aquelle pichel, Lourenço Braz! A culpa é daquele pichel. Anda, põe-no fóra, que não sei se acertará com a saída. Cerra a porta apoz ti, e espera. Quando sentires cinco aldravadas abre, e deixa entrar um embuçado, com que darás de rosto. Toma tento. São cinco. A não ser isso, batam uma, batam cem, faze de conta que estás morto. Lembra-te do meirinho da côrte e do corregedor d'elrei. Vereis agora -- accrescentou voltando-se para os vultos rebuçados -- se é phantasia minha.»

Olhos no conde, olhos na certan, o bésteiro tinha neste meio tempo ordenado tudo para a refeição. O desconforme assado fumava no meio da mesa n'uma ampla palangana destanho e rodeado de diversas veações frias: os prateis, as agomias e os picheis do mesmo metal brilhavam em volta, e ao pé delles as copas, ou taças, as quaes, no rigor da moda daquelle tempo, eram de prata, como o traste de mais luxo nas mesas; nem havia já nobre ou burguez abastado a quem faltasse ao menos uma copa lavrada. Vazos de louça grosseira cheios de confeitos ou doces seccos, alfeloa e fructas ladeavam as poucas mas succulentas iguarias, que nessas eras mais singelas deviam bastar, sem outros acepipes e manjares, para satisfazer o bom e prompto appetite de rudes barões e cavalleiros. Lourenço Braz, apezar da lida em que andava, não perdêra uma das palavras do conde. Ria interiormente da reprehensão que lhe dera por causa do moço de monte. Não tinha elle visto o seu nobre protector, naquelle mesmo aposento, ainda em peior estado, por longas noites de jogo e devassidão? Calou-se, todavia, e saiu arrastando apoz si Galeote Estevens, que cambaleava e praguejava como um possesso. D'alli a pouco ouviu-se a bulha que fazia correndo o ferrolho com que se fechava a solida porta da tavolagem. Depois tudo recaiu em profundo silencio.

Os embuçados que seguiam D. Henrique tinham entretanto recuado os capellos e deixado ver os rostos, atirando depois successivamente os capuzes para cima dos assentos enfileirados ao correr das paredes. Viam-se-lhes os gibões de duas cores pelas aberturas dos peitilhos das jorneas, especie de camisolas nas quaes se bordavam as armas das familias. As suas toucas, ou bonés, onde uma pequena pluma, presa com um broche de ouro, se lhes arqueava sobre a testa, as calças, tambem de duas cores, mas trocadas com as dos gibões, e os longuissimos sapatos de bico revirado bastavam para os dar a conhecer por pessoas nobres. No meio, porém, daquella brilhante companhia divisavam-se duas figuras, cujo trajo singular contrastava de mais de um modo com as louçainhas dos cavaleiros. Eram dous monges de Alcobaça: um de boa idade, gordo, nedio, vermelho, reverendo, typo da mais pura raça cisterciense: outro mancebo, magro, trigueiro pallido, ossudo, feições proeminentes: um com meneios suaves, e ao mesmo tempo magestosos e livres, rindo-lhe a saude nas roscas taurinas do pescoço, onde o toucinho se en trincheirára contra as vans tentativas da pe nitencia; outro com gesto melancholico, se vero, morboso, como se o devorasse febre lenta ou o remorso de grandes crimes. Ao primeiro aspecto sentirieis attracção para o mais velho, e repelir-vos-hia o mais moço; mas se reparasseis attentamente nos olhos dos dous monges, os afectos se vos trocariam. Nos daquelle havia o que quer que era semelhante a um fulgurar de relampago e uma vaga incertesa que jamais lhos deixava demorar em objecto algum: nos deste, debaixo do brilho febril, havia uma expressão profundamente triste, que despertava involuntaria compaixão e sympathia; de modo que as lagrymas se vos escoariam insensiveis pelas faces se vos pozesseis a contemplar aquelle gesto; porque a vossa alma sentiria instinctivamente resfolgar debaixo desse exterior carrancudo um volcão de angustias extremas, e de antigos e insanaveis pesares.

Cremos que estes signaes bastam para sabermos que estamos com conhecidos nossos, e que os dous monges são ninguem menos que D. João d'Ornellas e Frei Vasco involtos nas suas longas e amplas cugulas negras, onde apenas se distingue juncto ao collo a orla do habito branco. Agora, porém, os outros, que vestem essas roupas variegadas, no meio das quaes se estampam as dos dous vultos monasticos, não são frades: são mui illustres fidalgos da côrte de D. João I. Leitor, se és um peão como eu, põe-te em pé como eu me ponho; desco bre-te como eu me desbarreto. Vais ouvir os nomes de varios herdeiros dos mais velhos appelidos de Portugal, dos descendentes de alguns feros barões dos seculos XII e XIII. Eram, de feito, os recem-chegados Gonçalo Vasques Coutinho, Egas Coelho, filho de um dos ma tadores d'Ignez de Castro, e os dous Pachecos filhos do outro seu assassino, João Affonso Pimentel, o marechal Alvaro Gonçalves Camello prior do Hospital, o senhor de Rezende Fernando Vasques descendente de Egas Moniz, João Rodrigues de Sá chamado o das Galés, o reposteiro-mór Pedro Lourenço de Tavora, Lopo Dias de Sousa mestre da ordem de Christo, e muitos outros membros dessa cavallaria brilhante, que tão célebre tornou por assignalados feitos d'armas a epocha de D. João I.

Se, para não tecermos um catalogo crucificador á maneira dos dous grandes poetas Ho mero e Fernão Lopes e do nada poeta Barros, sepultamos n'um vago et caetera tantos nomes famosos, sofra o leitor que mencionemos com individuação uma personagem que nesta memoravel noite se achava na tavolagem das Portas do Mar, e que está longe de lhe ser estranha, posto que ainda não a visse passar, senão como eccho ou sombra van, nas precedentes scenas do nosso drama. Esta personagem é o D. Vivaldo dos paços de Vasqueannes, o pupillo do arcebispo de Braga; é Fernando Affonso, o camareiro-menor de sua mercê o nobre rei de Portugal.

O moço Fernando era (já n'outra parte o dissemos) irmão de um dos furibundos romanistas que constituiam o conselho da coroa, os quaes, tendo por chefe o mais habil entre todos, o chanceller interino mestre João das Regras, o ajudavam a ir alargando passo a passo os limites da omnipotencia real á custa da fidalguia, em quanto não chegava a vez do povo, e que bem providos de textos de Justiniano, de glossas, distincções e corollarios, sacados dos armazens scientificos de Bolonha, de Pisa e d'outras escholas d'Italia, armazens que a facundia dos Rogerios, dos Albericos, dos Accursios e dos Bartho los tinha tornado inexgotaveis, vinham aos bandos abastecer Portugal da quinta essencia de direito romano, e as cabeças dos principes de idéas de absolutismo.

João Affonso de Santarem, nobre por sangue, preferíra nobilitar-se pela sciencia. O futuro pertencia aos juristas: soube conhecê-lo, e lançou-se na estrada que conduzia a uma influencia solida e real, abandonando a do esplendor e privilegios, ainda numerosos, mas ja em parte vãos, da classe a que pertencia.

E de feito, pela profundidade dos seus estudos, e por talentos indisputaveis, João Afonso tinha chegado a tornar-se uma especie de oraculo entre os conselheiros d’elrei.

Opposto em indole a seu irmão mais velho, entre o qual e ele pouca afeição mutua havia, Fernando seguíra inteiramente os instinctos da sua casta, casta oppressora e daninha, que ía principiar essa expiação secular, que, com breves intervallos se protrahiu até o dia fatal em que a altiva fronte do duque de Bragança pendeu sobre o cepo de D. João II. Tão ignorante como altivo, a raça burguesa era para elle uma raça vil e reproba: para elle a situação dos antigos malados ou colonos das terras senhoriaes, de que ouvira mais de uma vez falar a velhos fidalgos, que ainda haviam conhecido na infancia os terriveis barões do seculo antecedente, era a situação natural de todos aquelles cujas familias não podiam ir en troncar-se nos vinte e cinco ou trinta padrões, ou troncos, das primitivas linhagens do reino.

No seu foro intimo um vilão pouco acima estava de uma alimaria na escala da creação, e se uma vez parecêra interessar-se a favor da villanagem dos coutos de Alcobaça, isso não provava senão quanto rancor nutria na alma contra o abbade D. João d'Ornellas, ou por causa das rixas deste com o primaz, ou por algum outro motivo hoje desconhecido.

Ainda com estas preoccupações politicas, Fernando podia, como tantos outros nobres d'igual pensar, ter uma alma bella e generosa.

Mas estava longe disso. Ao homem habituado a ler no gesto dos individuos a sua historia moral e íntima, não seria difficil descortinar-lhe no aspecto uma indole má ou pervertida.

O camareiro-menor era um mancebo de vinte e cinco annos, de airosa figura, meneios engraçados, feições regulares, olhos rasgados e negros, onde se reverberavam ardentes paixões.

Todavia no seu olhar voluptuario, nas rugas, quasi imperceptiveis, mas frequentes, das faces, no descorado dos labios, e no perfil levemente suino do rosto descortinavam-se-lhe os sentimentos ignobeis e as ruinas que naquelle corpo e naquella alma tinha gerado o excesso dos deleites. Simples pagem no tempo de D. Fernando, servíra na revolução do mestre de Aviz como escudeiro de uma lança, o que o habilitava para receber, mais anno menos anno, as esporas douradas de cavalleiro, mira das ambições de todos os homens de guerra n'uma epocha em que as idéas cavalleirosas tiveram maior voga em Portugal, e em que se liam com avidez, e até se compunham com geral applauso, romances como os de Tirante o Branco e de Amadis. O gráu de cavaleiro, não raro bem cabido em valentes homens d'armas, era tambem, (salva a idéa energica e generosa que representava) a fita, a commenda, a gran-cruz, o dixe emfim, com que no seculo XIV se regalava muitas vezes a fofice de paspalhões e parvos.

D. João I, homem austero, tinha notavel predilecção por Fernando Afonso. Era um facto apparentemente contradictorio, mas cuja razão é facil de alcançar. Semelhantes sympathias entre caracteres oppostos são mais vulgares do que se cuida; porque o tocarem-se os extremos é uma das grandes verdades do mundo moral. Escolhido para camareiro-menor d’elrei, o mancebo cujas inclinações viciosas se haviam radicado e desenvolvido na vida aventureira da guerra, obrigado a reportar-se na córte severa do mestre d'Aviz, côrte beguina e ceremoniatica, onde reinavam os usos e pontualidades inglezas, afez-se a representar dous papeis, a revestir successivamente dous caracteres, o de cortesão medido pelo ge nio e pelas idéas do rei, e o de soldado licencioso, que era o seu proprio, e que, excitado pelo constrangimento, se tornava ainda mais desfaçado quando o joven escudeiro podia lançar fóra o manto da hypocrisia. Modesto e circumspecto, lhano e serviçal perante o monarcha, perante D. Philippa, a boa rainha, e ainda perante os barbas-grisalhas do conselho e privança de sua mercê elrei, vingava-se do viver monotono e constrangido do paço nas occasiões em que, com qualquer pretexto, podia obter liberdade. As tavolagens e as outras espeluncas de devassidão não tinham freguez mais frequentador, nem mais digno de as frequentar. Incapaz de afectos puros, sinceros e duradouros, a chronica dos seus amores era um tecido de anedoctas mais ou menos asquerosas, mais ou menos atrozes, só brilhantes aos olhos dos outros escudeiros e cavalleiros moços, consocios das suas orgias ou das suas aventuras. Gloriava-se de ter murchado ao sopro mirrador da deshonra mais de uma flor d'innocencia, de mais de uma vez ter profanado o sanctuario domestico, de muitos desses triumphos, emfim, que o mundo saúda com sorrisos approvadores, e que só revelam as trevas da consciencia, o atheismo brutal e estupido acerca dos mais poeticos e generosos sentimentos do homem. Ambicioso de uma triste reputação, julgava-se completamente feliz quando nas festas nocturnas d’embriaguez era, no meio do tinir das taças, acclamado com vivas phreneticos vencedor de todos os seus rivaes em devassidão.

Tal era o individuo, sobre o qual não podiamos eximir-nos de chamar especialmente a attenção do leitor; o individuo que tanta influen cia tivera nos destinos de Vasco e de Beatriz, de cuja triste historia ele era o verbo, elle, que, illudindo-a, se póde dizer assassinára pelas costas um velho para prostituir um anjo.

Apenas os cavalleiros ali reunidos deram com os olhos nos cistercienses ficaram suspensos. Sabiam agora quem eram os dous desconhecidos que tinham encontrado com D. Henrique Manuel na alpendrada do collegio de S. Paulo, juncto da qual o conde lhes dera ponto de reunião. A presença do abbade de Alcobaça naquelle logar era tanto mais inesperada, quanto era certo que muitos dos circumstantes ignoravam ainda a sua chegada a Lisboa, e todos qual partido o poderoso monge seguiria nas questões politicas que então se agitavam, e em que os prelados, cujas fileiras se recrutavam já largamente entre os doutores, se inclinavam pela maior parte a favor da coroa. Admirados, pois, daquela subita visão, immoveis e sem proferirem palavra, os fidalgos olhavam alternativamente para o conde de Cêa e para D. João d'Ornellas.

Dessa situação constrangida os tirou, todavia, em breve D. Henrique Manuel. Mettendo-se entre os dous frades, tomou pela mão o prelado cisterciense, e dirigindo-se aos que o rodeavam, disse:

« Cavalleiros, estranhaes, por certo, a presença do nobre abbade de Alcobaça neste logar e a estas horas. Com a singelesa de que vos tenho dado mil provas, dir-vos-hei a causa disso. Quando a souberdes agradecer-mo-heis.

Não ignoraes que depois da batalha de Aljubarrota entreguei ao mestre d'Aviz o castello de Cintra, que eu tinha por D. Beatriz de Castella. Leal em quanto pude sê-lo ao preito que fizera, havia anteposto o meu dever de alcaide-mór ao amor da patria, ás minhas affeições, a tudo. Cedi só quando conheci que a mão de Deus fazia pender irresistivelmente a balança a favor de D. João. A voz da consciencia não me accusava do procedimento que seguíra. O preito antes de tudo! São estas as tradições das nossas linhagens; estes os exemplos de nóssos avós..... E, todavia, » -- con tinuou o conde, depois de uma breve pausa, durante a qual cravou os olhos em João Ro drigues de Sá e no reposteiro-mór -- « ao apresentar-me na côrte não achei labios que me sorrissem, peito de amigo que se estreitasse ao meu!... Era o tempo do predominio dos burguezes; eram as orgias da villanagem, e a nobresa curvava-se a tãos vis senhores, embora no exterior mostrasse ademanes de orgu lho! ... Já lá vão quatro annos: não fallemos mais nisso.... Mas eu mentia dizendo-vos que não achei na côrte um amigo. Ei-lo aqui. Achei o nobre D. João d'Ornellas.... Agora, apenas soube que o mui reverendo abbade era chegado a Lisboa, expuz-lhe a situação dos negocios. Suppunha-o, e supponho-o ainda, interessado como nós na conservação dos privilegios que nossos avós compraram em mil batalhas contra os mouros e contra Leão; não podia, não devia esconder-lhe as nossas esperanças e designios. Quiz que ouvisse as revelações antecipadas que esperâmos. Os seus conselhos prudentes ser-nos-hão uteis para começarmos com vantagem o combate; para prevenirmos com tempo a ruina total dos nossos antigos foros e liberdades. Senhores, D. João d'Ornellas está comnosco: comnosco para a lucta; comnosco para a victoria. Peço alviviçaras da boa-nova. »

«Merecei-las, conde de Cea: » -- exclamou o prior do Hospital, estendendo a mão para o abbade, que lh'a apertou, ao que parecia cordialmente. A maior parte dos outros fidalgos abraçaram successivamente o monge, que recebia aquelas demonstrações com afabilidade tão excessiva, que, a serem mais cautelosos, teriam desconfiado delle. Quem lhe conhecesse a fundo o caracter diria que D. João d'Ornellas estava no meio de inveterados inimigos, tal era o excesso da sua benevolencia.

Fernando Afonso foi o unico que se não moveu, e o leitor que sabe qual odio subsistia entre estes dois individuos, comprehende, sem duvida, o procedimento do camareiro-menor.

Acabado o borborinho, o abbade fez signal para que o escutassem.

« Devieis ter contado comigo no vosso empenho, senhores meus! » -- disse elle. -- «Sabeis que detesto as ousadias villans dos tristes tempos que vão correndo. E, graças á Virgem bemdicta, nos coutos de Alcobaça as viboras populares não alevantarão as cabeças; que hei-de sempre calcar-lhas como a mulher forte da sagrada escriptura.

«Má comparação: » -- murmurou Fernando Afonso, virando-se para o senhor de Resende, mas em tom que o abbade o ouvisse. -- «Devia dizer: como a raposa no galinheiro, a gineta no pombal, o lobo no redil, o magarefe no matadouro... »

« Imprudente!» -- interrompeu em voz submissa o conde de Cêa, que tussia com toda a força dos seus excellentes pulmões, puxando-lhe pela falda da jornea.

« Pois não são mais verdadeiras estas? »

« Louco! »

O abbade, cujo olhar penetrante se cravára de relance no mancebo, proseguiu, apenas cessou a tosse extemporanea do conde, como se nada tivesse ouvido:

« Senhor de terras, alcaide de castellos, fronteiro de portos de mar pelo pesado cargo, que sem merecimento occupo, e com que a providencia quiz provar o meu sofrimento, na vossa demanda ventila-se tambem a causa dos abbades do sancto mosteiro de Alcobaça, contra o qual, creio-o firmemente, nunca prevalecerá o inferno.» -- E depois de uma pausa accrescentou: -- «Nem enredadores covardes!»

Ao proferir estas palavras, D. João d'Ornellas fitára a vista, sorrindo com dobrada afabilidade, em Fernando Afonso.

Entre os olhos do moço escudeiro, que se torceram obliquamente para o prelado, vincaram-se tres rugas profundas, e uma praga rouca e ininteligivel de colera lhe passou por entre os labios que mordêra. Foi a passagem do relampago.

Depois tornou a approximar a bôca ao ouvido de Fernando Vasques, e murmurou no mesmo tom anterior um novo segredo, demasiadamente audivel:

« O cachaço vermelho do frade anafado e nedio bem mostra as mortificações de sua reverencia. Hypocrita! »

Todos se voltaram como tocados por vara magica: a provocação era grosseira e directa.

Não havia já tosse no mundo capaz de a encobrir.

Todavia no rosto do terrivel monge reinava o mesmo placido sorriso.

O escudeiro lançou mão da taça que Lourenço Braz deixára cheia sobre a mesa, e disse em voz alta:

«Permitti, cavalleiros, que eu saude a aurora da salvação da nossa causa. Desde que o illustre abbade de S. Maria (abbas pretor, como lhe chama em giria de breviario o seu digno amigo, meu irmão) se declara por nós está a victoria certa. Quem ignora que ele tem, digamos assim, debaixo de chave a sorte da villanagem insolente! »

A allusão sangrenta ás violencias praticadas por D. João d'Ornellas na villa d'Evora, não pareceu fazer a mais leve impressão no animo do prelado. Esperou tranquillamente que Fernando Afonso acabasse de beber. Chegou-se então a elle com passos lentos, pegou na taça que o escudeiro espantado largou da mão sem tentar retê-la, e foi pô-la sobre a mesa. Depois, cruzando os braços, voltou-se impassivel para o mancebo, e, com o mesmo sorriso benevolo, disse-lhe:

«Mantenha-vos Deus, senhor, que tanto fiaes de um pobre frade. Sou eu, somos nós todos que nesta justa demanda devemos pôr em vós a esperança; em vós que sois poderoso e valído; que sois valente e generoso; que sois, emfim, um nobre, franco e leal cavalleiro. »

Um calafrio de susto coou pela medulla dos ossos de alguns dos circumstantes, que conheciam o abbade, ao ver a insolita humildade de um dos mais orgulhosos prelados de Portugal, e ao ouvir-lhe a cortez resposta, em que, todavia, dera á palavra leal uma expressão singular. O coração do proprio Fernando Affonso bateu mais rapido ao ouvi-la: e comtudo, buscou esconder a sua perturbação. Estendeu o braço para Fr. Vasco, e tocou-lhe levemente no habito. O monge estremeceu e recuou, como se uma serpente o houvera mordido, e os seus olhos cavos despediram estranho fulgor.

«Perdoae, nobre e illustre prelado: » -- disse o camareiro-menor dirigindo-se a D. João d'Ornellas. -- « Leio no rosto destes cavalleiros uma certa inquietação, que naturalmente desperta a presença de um desconhecido no meio de nós. Este vosso companheiro... este monge ou phantasma, hirto, mudo, mysterioso...»

«Quanto a este monge, » -- replicou D. João d'Ornellas em voz baixa e com um gesto de compaixão -- « nada temaes. Pobre moço! Idiota, absolutamente idiota. Escolhi-o por isso para me acompanhar, segundo a sancta regra da ordem. Verá, e não terá visto: ou virá, e não terá ouvido.» -- Depois sacudindo pelo braço o companheiro bradou-lhe: -- «Vasco, filho de S. Bernardo, tomaste sentido? Responde ao que te perguntaram.» Como se aquele movimento e aquelas palavras o houvessem despertado de uma especie de somnolencia, o moço cisterciense alçou a cabeça, olhou successivamente para o abbade e para os fidalgos, encolheu os hombros, e caíu de novo no seu apparente dormitar.

As attenções tinham-se naturalmente derivado para esta scena. A tempestade que ameaçava estourar parecia espalhar-se. O conde de Cêa, porém, foi um dos que não ficaram tranquillos com a moderação do abbade.

No momento em que ía a renovar-se a conversação, distrahida até certo ponto do seu objecto pela impetuosa malevolencia do camareiro-menor e do chefe dos monges brancos, cinco fortes aldravadas na porta exterior da tavolagem a vieram positivamente interromper.

Fez-se então profundo silencio, porque era o signal esperado.

« Cavalleiros, » -- disse o conde de Cêa depois de escutar um instante, e approximando-se da mesa -- « assentae-vos. Marechal, á cabeceira. Que ninguem occupe esse logar juncto a vós. É para o bom do vilão. Tudo em pé apenas elle entrar. Graves como dez garnachas negras a disputar sobre as leis imperiais.» Os fidalgos obedeceram a estas disposições, como ás de caudilho que os ordenasse em batalha. Só João Rodrigues de Sá pareceu hesitar, murmurando algumas palavras inin teligiveis, que, sem ofensa, se poderiam comparar a rosnadura de um rafeiro irritado. O abbade de Alcobaça puxou pela manga a Fr. Vasco, e dirigiu-se com elle para a mesa. No meio daquele movimento confuso e apressado os dous frades segredaram um com outro. O que disseram ninguem o ouviu: foi, todavia, um curto, mas significativo dialogo.

« Representaste excellentemente o papel que te coube no auto: » -- dizia D. João d'Ornellas em voz sumida e rapida. -- «Conheces emfim o nosso commum inimigo! Insolente e infame; roubador de tua irman, assassino de teu pae, procurador dos meus vilãos. O miseravel ainda crê que os seus insultos me ferem. Insensato! »

«Dom abbade! dom abbade!» -- murmurou Fr. Vasco, apertando o braço do seu interlocutor. -- «O coração verteu-me sangue de novo ao ouvir a sua voz. Adivinhou-o o meu odio, a sua detestavel imagem me fugirá e da nunca memoria...

Não poderam dizer mais nada. Os fidalgos tinham-se assentado, e tudo recaíra em absoluto silencio. Só o interrompia o som baço das lentas passadas de Lourenço Braz e de alguma outra pessoa que o seguia.

XI

DOCTOR MATER-GALLA.

Penson sempre nas cousas de sua vantagem, nom lhe nembrando de seus peccados, males e falecimentos.

Liv. D'ELREI D. DUARTE, Conselho I

Pouco havia que cessára o bullicio na vasta quadra da tavolagem, quando, os que ficavam defronte da porta interior, viram saír d’entre os umbraes um punho de mão callosa, que sustinha candeia afumada e de luz frouxa, depois della um braço estendido e uma cabeça de perfil, e depois o corpo achavascado do bésteiro que, caminhando lentamente, olhava para traz de si. Apoz elle, não tardou a surdir do corredor escuro um vulto que, pelo extravagante das fórmas, reteremos um instante no limiar, para que se possa reparar nele. Prima facie, dir-se-hia que era um cepo d'açougue, equilibrado por mechanismo occulto sobre duas achas de pinho, e servindo de pedestal a uma abobora moganga, para cima da qual se houvesse atirado ao desdem a cabelleira ruça e cerdosa de um desembargador da antiga Mesa da Consciencia ou da Casa da Supplicação. Esta cousa com pretensões de figura humana vinha ensacada em um gibão de engres preto, e n'umas calças de arraes da mesma cor, que, descendo justas até os pés, iam metter-se n’uns sapatos rombos de couro negro; trajo burguez, que se no talhe desdizia um és-não-és da pragmatica de Afonso IV, ao menos respeitava-a na qualidade da materia prima, ao passo que no grave da cor indicava que seu dono pertencia por algum lado a uma das duas classes, que naquele tempo se arrogavam a posse quasi exclusiva da illustração, á dos jurisconsultos, ou á da cleresia.

O personagem recem-vindo, averiguado bem o caso, era uma creatura da nossa especie, e ninguem menos que o licenciado Mem Bugalho, d'alcunha Pataburro, alcunha enxertada na familia por culpa ou por virtude de seu pae, cidadão de Celorico, que tivera tanto de casmurro quanto o filho tinha de bonacheirão e paz-d’alma. Cursára Mem Bugalho a eschola de degredos ou decretaes na universidade de Lisboa, e voltára á terra natal com a reputação de mui visto em direitos e de sabedor consummado. Devêra isso principalmente ás suas propensões eruditas, propensões que sobre nadavam nos seus discursos, lardeados por via de regra de bastos textos, dos quaes fizera em estudante arrazoado peculio. O reitor da collegiada de S. Maria de Celorico, posto que assaz duro da orelha latina, ou antes porque o era, não se cansava de elogiar o licenciado pela sua proficiencia na lingua do Mantuano.

Jurava e tresjurava que mais de uma vez lhe ouvíra citar passagens, que até ele reitor não saberia de golpe reduzir a portuguez. D'aqui se veem duas cousas: primeira, que o prelado de S. Maria era modesto: segunda, que Mem Bugalho era um sabio. Sabio? Que digo eu?

Sapientissimo. Era uma cousa conhecida de todos em Celorico, e ainda nas aldeias dos arredores, o como ele herdára a designação paterna. E caso que lhe faz honra, aliàs calar-me-hia. Quando chegou da universidade, seu pae:estava já debaixo do chão, e a alcunha de Pataburro andava, digamos assim, a esmo, e quasi apagada da memoria dos homens. Mem Bugalho queria acceitar a herança, não absolutamente ingloria, que lhe legára o seu defuncto progenitor, burguez honrado e pé-de-boi, embora se chamasse Pataburro, nome na verdade aspero e malsoante, mas que nem por isso desaccreditaria moralmente quem a si o appropriasse. Poz-se a scismar o bom do licenciado, e tanto scismou que lhe veiu uma idéa feliz. Foi a de alatinar aquella alcunha, satisfazendo assim á piedade filial e ás orelhas pechosas. Reflectia, e com agudesa, que Pataburro se compunha de dous vocabulos pata e burro; que pata, falando do animal homem, a quem muitas vezes é applicado e applicavel, vinha a ser synonymo de pé, e que pé, se não mentia o Catholicon de Joannes de Janua, especie de Magnum Lexicon da idade media, soava em latim pes; que burro era a olhos vistos o mesmo que asno, e que asno latinisado dava asinus, quer natural quer metaphoricamente.

Restava uma difficuldade: Pes-asinus, versão litteral de Pataburro, cheirava a uma, ou antes a duas heresias, uma contra a elegancia, outra contra a grammatica, ao passo que, transpondo pes e declinando asinus, estava achado um bizarro appellido, o de Asinipes, onde estampada, a piedade filial passaria aos tempos vindouros em resonante choriambo. Já daqui se conhece que se o nosso decretalista houvera vivído nos principios do seculo XVI ou nos fins do XVIII, não teria sido Pedro Nunes o inventor do nonio ou Watt o das machinas de vapor. Faculdade inventiva, até ali. E ainda não era nada. Mem Bugalho Asinipes, ou Dictus-Asinipes (para conservar a natureza caracteristica de alcunha) constituia um todo contradictorio, monstruoso, macarronico. A esta desordem acudiu elle com o mesmo tino. Um erudito de agua-doce contentar-se-hia com AMenendus Bugalius. Veiu-lhe essa idéa á cabeça, é verdade. Mas que fez? Desatou a rir. Menendus Bugalius?!.... Pelo amor de Deus! Vocabulos taes fariam arripiar debaixo da lousa as cinzas de Cicero. Digam lá o que disserem os que vão para ahi. Eram barbaros, barbarissimos. A velha palavra portugueza madre já começava a ser dulcificada, pelos pintalegretes do tempo de D. João I, em mãe; e Mem pronunciado rapidamente não fazia differença sensivel. Estabelecido este facto, é evidente que traduzindo Mem por mater, não só ficava em latim da gemma, mas tambem dava uma graciosa adivinha. Assentou nisto o licenciado, e se é licito julgar um varão tão grande, parece-me que assentou bem. Quanto a Bugalho, o negocio resolvia-se por si mesmo.

Desde que no mundo ha bugalhos e latim, nunca o leve e ouco fructo do robusto e vividouro carvalho se chamou senão galla no idioma venerando de Varrão, Columella e Virgílio.

Foi por esta serie de raciocinios, não menos agudos e severos, que os do livro da Razão Pura de Kant, que o illustre pimpolho da viçosa Celorico chegou a fixar definitivamente o seu nome, digamos assim, de guerra, nome indispensavel naquella epocha, na qual um doutor que se assignasse em vulgar commetteria um peccado tão grosso, como nestes nossos tempos um adepto, que ao entrar no templo do supremo architecto para chorar pelo mestre, não se desbaptizasse no atrio do seu nome de baptismo.

Se o leitor achar um pouco estranhas estas particularidades biographicas do licenciado Mater-Galla-Dictus-Asinipes, ou Mem Bugalho Pataburro, dir-lhe-hei que redondamente se engana. Se o apresentasse em publico sem dar explicações acerca do seu nome, apparentemente extravagante, saltavam-me todos os criticos de folego curto e letras rabudas, que ha nesta bemaventurada terra de Portugal; e eu pello-me dos sobredictos criticos; porque de mais sciencia, tacto, e agudesa não creio que se achem em todo o mundo, sem exceptuar o reino de Pegu, a Polynesia e a Cafraria.

Em compensação das miudesas a que descemos, mas que eram indispensaveis para se completar pelo lado espiritual o retrato material que fizemos do individuo ultimamente chegado á tavolagem das Portas do Mar, passaremos como gato por brasas pelo resto da sua historia. Eleito vereador, poucos annos depois de voltar a Celorico, não tardára a occu par cargo mais importante, o de juiz de foro, ou ordinario, da sua terra. Então é que bemdisse o talento e sciencia que Deus repartíra com elle, e deu por bem empregadas as vigilias que dedicára a fazer a conversão do pro prio nome. As palavras Doctor-Mater-Galla-Dictus-Asinipes, escriptas em letra grande e garrafal no fundo de um pergaminho, davam ás suas sentenças uma solemnidade, um ar de mysterio scientifico, um grandioso, que infundia sancto e salutar temor na gente de Celorico, embora no tracto ordinario, e sobretudo pelas costas, lhe chamassem o doutor Pataburro.

Depois, para diversas côrtes que successivamente foram celebradas, apoz as de Coimbra de 1384, no Porto, em Coimbra, em Braga, e agora em Lisboa, o licenciado fôra constantemente eleito procurador do municipio.

Á força de repetidas viagens á capital, no ardente contacto das paixões politicas, Mem Bugalho mudára muito. Circumstancias, que fôra tão longo como inutil narrar, tinham estabelecido entre ele e D. Henrique Manuel, conde de Cêa, uma certa intimidade, sincera da sua parte, calculada da parte deste. Nas mãos do conde o honrado procurador era um instrumento, que ele ía afeiçoando para as suas intrigas, na grande lucta, ora occulta ora patente, do povo e dos conselheiros da coroa com as classes privilegiadas, entre cujos chefes (segundo se deprehende do pulverulento e vetustissimo manuscripto de que nos aproveitámos para tecer esta veridica historia) D. Henrique Manuel tinha um dos mais distinctos logares.

Sem o sentir, Mem Bugalho estava outro homem. Chegára, emfim, a crer uma cousa que nunca sonhára, isto é, que os concelhos, nas suas invectivas contra a nobreza e contra o clero, podiam alguma vez não ter razão. Fixar os pontos em que esta circumstancia se dava eis o que excedia a sua capacidade, apesar de ser, como vimos, tão descommunal. Deste modo não era raro acha-lo successivamente no mesmo dia, na mesma hora até, de duas opiniões diversas acerca dos negocios publicos, opiniões que, seja dicto sem ofensa do caracter moral do illustre decretalista, tambem vacillavam um pouco segundo a direcção que lhes imprimiam as suas particulares miras e pretensões.

Resta-nos, por ultimo, saber quaes eram as causas porque Mem Bugalho se achava naquelle logar assim a deshoras, e em companhia de personagens taes e tão fidalgas, ele pobre vilão da Beira; porque no fim de contas o licenciado não passava de um vilão.

Exporemos essas causas nas mais breves palavras que soubermos.

Os artigos, aggravamentos, ou capitulos, que os procuradores de côrtes traziam ás assembléas politicas da nação, eram de duas especies, geraes e particulares. Estes diziam respeito ás necessidades, pretensões e queixumes de cada concelho; aquelles aos de todo o paiz.

Uns, os especiaes, eram determinados e escriptos pelos magistrados municipaes, e nesta parte o mister de procurador traduzia-se no de mensageiro: outros, os geraes, é evidente que deviam ser redigidos de commum accôrdo pelos representantes das cidades e villas, aos quaes neste ponto cumpria deixar um livre arbitrio maior ou menor. Mas era justamente essa parte da sua missão que importava mais directamente ás classes privilegiadas: era nos ar tigos geraes que se atacavam os abusos da nobreza e do clero, e que os delegados do povo combatiam com mais ardor os seus naturaes inimigos. Ahi a grande voz do homem de trabalho fazia-se, muitas vezes sem elle o saber, intreprete dos desejos da coroa, que parecia ceder ás petições populares e que na realidade só cedia ao instincto do proprio interesse. Assim, os terriveis missionarios do poder real, os juristas, deviam promover aquelas manifes tações da má vontade dos pequenos contra os grandes, e estes ultimos buscar amortecê-las ou annulla-las. O saber de antemão quaes ellas seriam facilitava os meios de as combater, ou predispondo o animo do monarcha, ou recorrendo-se a outro qualquer meio, dos muitos que costumam excogitar os temores, os odios e as ambições politicas.

As côrtes, que se iam celebrar em Lisboa na epocha em que se passaram os successos contidos na presente narrativa, começavam. Os procuradores tinham chegado, e faziam repetidas conferencias, a algumas das quaes, segundo se contava, assistíra já o proprio chanceller.

Por dictos soltos, que haviam escapado aos menos prudentes, difundiam-se noticias que inquietavam os chefes do bando aristocratico, e que indicavam não estarem os concelhos resolvidos a abandonar a situação vantajosa em que os acontecimentos dos ultimos quatro annos os haviam colocado. Preparavam-se, portanto, os nobres tambem para a lucta, e nos seus conventiculos ideavam os meios a que recorreriam para embargar o curso á torrente.

Antes de tudo importava conhecer exactamente qual era a substancia das petições populares, e num desses conventiculos o conde de Cêa havia-se gabado de que obteria anticipadamente a revelação dos artigos geraes dos concelhos. Contava com a fragilidade de Mem Bugalho, e com as seducções de que costumava valer-se para o embair. Era difficultoso o empenho, e os outros fidalgos tinham-se mostrado incredulos. Excitado pelo amor proprio, D. Henrique Manuel foi mais longe. Ofereceu-se a apostar uma somma avultada em como lhes faria ouvir da boca de um dos procuradores as revelações que tanto lhes interessavam, uma vez que quizessem executar o que elle lhes indicasse. Foi acceita a aposta e a condição; e naquella noite decidia-se quem devia perder ou ganhar.

Os cavalleiros estavam á mira: apenas o honrado Asinipes entrou, ergueram-se a um tempo. A luz das lampadas batêra de chapa no rosto cucurbitaceo do antigo magistrado de Celorico. O brrruu do riso mal comprimido sussurrou, posto que indistinctamente, por cima do estrépito que faziam ao levantarem-se:

mas o bom do procurador ficára demasiado perplexo, por se achar de subito em tão esplendida companhia, para attender a que nos gestos se revelava um sorriso dubio, que não chegára a romper em estrondosa gargalhada.

Os unicos que haviam conservado imperturbavel seriedade eram o conde de Cêa e os dous monges de Alcobaça.

«Ah, sois vós ?! » -- exclamou D. Henrique Manuel dirigindo-se ao sabio decretalista. -- «Ainda vos não esperava! Embora. São todos amigos nossos quantos vêdes, Iam partir depois de uma frugal collação; mas folgam, por certo, de os haverdes colhido em flagrante. Favoreceu-os a fortuna, porque poderão conhecer de perto um dos mais eminentes letrados de Portugal. Não é isto, meus amigos? Não folgaes assaz ? »

Todos, á excepção do das Galés, se inclinaram profundamente em signal de completo assenso.

Mem Bugalho estacára: olhava alternativamente para o conde e para as duas fileiras de vultos variegados e brilhantes, e desfazia-se em venias e rapa-pés. Quiz fallar; mas só lhe occorreu a fórmula então vulgar: -- «Mantenha-vos Deus, senhores! » -- As mãos, sobretudo, incommodavam-no. Não sabia o que fizesse das mãos. Levou-as á cabeça para se coçar: viu que não iam para alli bem. Poz-se a dar piparotes na gola do gibão; mas o gibão não tinha pó. Desceu com ellas para a barriga; mas a barriga, posto que de respeitavel prominencia, não ameaçava desabar.

Sentia que tambem ahi eram inuteis. Achou, emfim, um mister em que as empregar. Deu alguns passos para diante, e deitou-as ao braço do conde, levando-o agarrado para o angulo opposto do aposento, e dizendo-lhe em voz baixa:

«Mas respondestes-me que, para estarmos sós, era necessario vir esta noite á tavolagem das Portas do Mar, e acho-me... », D. Henrique Manuel interrompeu-o no mesmo tom:

«E verdade! E que remedio, se o diabo metteu na cabeça a estes estafermos cearem aqui? Não podia, nem tinha direito a despedi-los. São, como vêdes, as mais nobres lanças de Portugal. Mas se o negocio é urgente!...»

« Trago os artigos: » -- replicou Pataburro, abaixando ainda mais a voz.

«Os artigos? Quaes artigos? »

«Os artigos de côrtes. »

«Agora, agora! Mas que tenho eu....?»

«Pois não me pedistes com multiplicadas instancias, e com promessa d'inviolavel segredo, que apenas resolvidos vo-los mostrasse?»

«Ai meus peccados! Perdoae, doutor! Esta minha cabeça! esta minha cabeça! Não me recordava de tal. Tambem era simples curiosidade. ! »

«Curiosidade, ou interesse» -- interrompeu o procurador de Celorico, que não era absolutamente parvo -- « cumpro a minha palavra.»

« Bem!» -- replicou D. Henrique. -- «Deixaremos sair a turba, e ve-los-hemos. Todavia cuidei ser negocio vosso, objecto para mim de maior monta... »

O doutor Pataburro tomou um ar de mysteriosa gravidade.

« Este não é de pouca. Os procuradores estão bravos: muitissimo bravos... »

«Arreda Castella! » -- replicou D. Henrique Manuel com um riso, que bem se conhecia não vir da alma. -- «Nós os amansaremos. Agora tracta-se de outra cousa. Aquelles cavaleiros, vê-se que nos esperam. Vamos assentar-nos. »

«Mas eu não sou da parçaria: » -- disse o procurador, encolhido, e forcejando por soltar o braço da mão do conde, que o obrigava agora a retroceder para a mesa, donde elle o afastára.

« Uma pessoa como vós é sempre desejada e bem vinda em toda a parte em que houver espiritos grandes, e que saibam quanto valeis. »

Dizendo isto, D. Henrique tinha litteralmente arrastado Mem Bugalho até juncto da mesa. Os fidalgos, que se haviam assentado, e cochichavam rindo, calaram-se.

« O doutor Mem Bugalho annue ás rogativas que lhe fiz de ser nosso convidado. »

« Viva o doutor Bugalho! » -- exclamaram os fidalgos.

«Um logar para o doutor Bugalho.... onde hahi um logar?»

«Aqui, aqui! » -- bradou o marechal.

«Vinde, doutor, vinde: » -- insistia o conde, levando apoz si o decretalista, a quem tanta lhaneza animára, e que dizia lá comsigo:

«E teimam aquelles diabos que os fidalgos são inimigos do povo! Queria que vissem isto! Ah, senhores procuradores, senhores procuradores, sois demasiado injustos! Ainda que cuide de vender os meus torrões em Celorico, e de sacudir na portagem o pó dos meus sapatos, não assignarei os capitulos. O meu voto é livre, livre e desapaixonado. Digo que não quero. Que me importa o chanceller? Nada.»

E na força deste acto mental de fervor contra as injustas preoccupações dos seus collegas, Mem Bugalho chegou ao topo inferior da vasta mesa de castanho. O conde largoulhe a mão; mas o licenciado começava a entrar em si. Tomou resolutamente pela esquerda, dirigindo-se ao logar que lhe fôra oferecido.

Os cavalleiros enfileirados daquelle lado ergueram-se, e arredando os tamboretes, voltaram-se com toda a gravidade. No momento em que passava por diante de cada um delles o digno procurador de Celorico virava-se, desbarretava-se, curvava-se, tornava a virar-se, a endireitar-se, a cubrir-se, para de novo se revirar, desbarretar-se e curvar-se. Achára todo o seu elasterio ante aquele renque de vultos esplendidos, multicores, ridentes, que tambem o saudavam. Apenas o viu ao pé de si, o marechal, segurando-o pelo braço, fê-lo assentar com doce violencia. Como um mar que se achana depois do fremito da procella e do banzar das vagas, o alto rumor da tavolagem asserenougradualmente até caír em calma silenciosa.

Seguindo o exemplo do conde de Cêa, os cavaleiros pegaram a um tempo nas taças:

«Á saude » -- exclamou D. Henrique levantando ao alto a sua copa cheia a trasbordar --; « á saude do sabedor que não vae buscar na sciencia das leis armas para combater a nobresa de Portugal: á saude daquelle que por odios ruins e villãos não quebra os laços da boa amisade! Honremos o homem que, mandatario do povo, tem o animo desafogado de tristes rancores, e não duvída de assentar-se entre nós, como irmão, como igual nosso que é, porque a sabedoria, e o lustre que della vem á patria commum, o ennobreceram e illustraram.

E levando a taça aos beiços repetiu:

« A saude do doutor Mem Bugalho. »

« A saude do doutor Mem Bugalho: » -- ecchoou a chusma dos fidalgos.

E as amplas copas, empinadas vagarosamente, ficaram por alguns instantes assestadas Para a grande lampada pendente do fecho da abobada.

O licenciado ergueu-se. Estava commovido; e a commoção puxava-lhe as lagrymas aos olhos, ao passo que o desejo de se mostrar senhor de si lhe impellia o sorriso ás faces. Naquella contradicção d'inflexões o seu rosto espaçoso, vermelho, curvilineo, daria á risada mais douda, mais garganteada, mais inextinguivel um titulo indisputavel de legitimidade.

As ideas e affectos em maranhados, tumultuosos, não lhe inspiravam uma unica phrase.

Contentou-se com pôr a mão sobre o peito, curvando-se até onde lh'o consentia a borda da grande mesa da tavolagem.

Depois pegou na taça, e fazendo razão á saude, começou lentamente a despeja-la.

Entretanto Alvaro Gonçalves Camelo, prior de S. João, e marechal da hoste, isto é, chefe militar immediato ao condestavel, como o condestavel o era ao rei, sopesando um pesado talhadouro de cabo esmaltado, ou de obra de Limoges ía retalhando a magnifica peça de assado que fumegava, os prateis reluzentes passavam de mão em mão, e as conversações interrompidas recomeçavam já entre dous, entre quatro, entre seis: acaloravam-se, esmoreciam, limitavam-se, expandiam-se, generalisavam-se, bem como as chispas numa tela queimada, da qual o fogo tornou a apoderar-se, que correm tremulas, incertas, fugitivas, separando-se, unindo-se, serpeando, alastrando-se, até a retingirem toda na sua cor abraseada.

No meio daquelle sussurro, dous escudeiros mancebos, lançando de relance a vista ao digno procurador de Celorico, murmuraram ao mesmo tempo um para o outro:

« Não vês? Não vês?» E abaixando as cabeças riam de socapa a bom rir.

«Ih!» -- fungou um terceiro, que, ouvindo aquillo, olhára tambem.

O conde de Cêa, que estava ao pé delles, voltou-se com semblante severo para os tres estouvados.

Mas o rir mal suppresso grunhia de todas as partes.

O conde olhando então para o topo da mesa, deu de rosto com o licenciado, e custou-lhe igualmente a conter-se. Que alma chorona poderia, de feito, ficar impassivel ao contemplar o gesto do pobre Asinipes?

Estava em pé ainda, com a cabeça enterrada de todo entre os hombros; os olhos esbugalhados revolviam-se-lhe nas orbitas; com a boca escancarada, aspirava anciosamente, quasi sufocado, o ar que lhe pipitava nos bronchios; o vinho jorrava-lhe pelos narizes, e a sua tez cor de rabano requintára na de beterraba.

Perturbado, ao corresponderá saude dos fidalgos, dera-lhe o vinho no goto. Estava engasgado.

D. Henrique Manuel viu o perigo: uma gargalhada que destruisse o encanto do decretalista fazia-lhe perder uma somma avultada, ao passo que feria todas as conveniencias politicas. Era necessario conter aquela imprudente hilaridade.

«Sabeis o que corre, senhores?» -- perguntou em voz alta.

Voltaram-se todos.

«João das Regras está enfermo, muito enfermo. » Fôra a primeira mentira que lhe lembrára.

«Muito enfermo o chanceller!» -- exclamou a turba admirada.

«Perdoae, conde: » -- disse o mestre de Christus. -- «Ainda esta manhan vi o velho raposo no paço. »

« Tambem eu! »

« E eu. »

« E eu.»

« Pois ouvi-o de mais de uma boca esta tarde...» -- balbuciou o conde.

« Historia !» -- interrompeu Fernando Affonso, -- « Esta tarde o vi eu á porta de Martim Docem. Vinha da Sé e voltava ao Arco do Caranguejo. Por signal que o maldicto ía mesmo com uma cara! Cara de peccado.»

«Então enganaram-me: » -- replicou D. Henrique. -- «Trocaes-me as alegrias em tristesas. » Mentia. Estava a rir-se lá por dentro; porque tinha obtido distrahir a attenção geral do pobre Mater-Galla, que começava a desembuchar, e cujo rosto ía voltando á cor nativa de rabano.

«Não; de doença não morre elle: » -- proseguiu o camareiro-menor. -- «Só se fôr a tiro daqueles trons infernaes que os castelhanos trouxeram a Aljubarrota, ou então se lhe cair » em cima a sorte do que resam os astros.

« Os astros!? » -- perguntou D. Henrique. -- «Que quer dizer isso?»

« Não vos contei ainda de uma prophecia, que ha tempos me fez mestre Guedelha, o physico judeu?»

«Nunca vos ouvi tal! »

«Referir-vo-la-hei, pois, agora. Examinando os aspectos dos planetas, mestre Guedelha leu nelles signaes infalliveis que annunciavam a morte proxima de uma pessoa notavel. Até aqui nada ha estranho; mas o que é mons truoso e horrivel é o modo!... Não imaginaes qual... Se a sorte caisse naquelle velho mal vado!....»

«Mas o modo? o modo?!» -- interromperam varias vozes, porque a reputação de vidente do depois tão célebre astrologo d'elrei .

D. Duarte já era assaz ruidosa para excitar viva curiosidade.

«O infeliz morrerá amarrado a um poste, na praça de Valverde, queimado pela mão do algoz.»

«Sancto breve!» -- clamaram muitos com o accento ironico da incredulidade. -- «O astrologo é descaroavel!»

«Caso singular!» -- acudiu com gesto pensativo o senhor de Resende. -- «Mestre Zacuto do Porto fez-me o anno passado a mesma prophecia. O physico Guedelha não vos disse mais nada?»

«Nada. »

«Pois mestre Zacuto asseverou-me que, em conjuncção com os signaes que indicavam esse terrivel successo, se viam no céu um habito de monge, uma garnacha de doutor, e uma opa de rei, e tres vezes escripta a palavra Joanne. »

«Quereis que vos interprete o prognostico?» -- perguntou a rir Fernando Afonso.

«Venha a interpretação!» -- foi o brado geral. «Quer dizer que elrei ha-de fazer queimar a ossada podre e bolorenta do chanceller por conselho do escrivão da puridade. Tres vestiduras; de frade, de doutor, e de rei: tres Joannes; Fr. João Martins, mestre João das Regras, D. João I. Será, ou não será?»

Estrondosos applausos victoriaram a feliz inspiração do augur extemporaneo.

« Prouvera a Deus, Fernando, » -- disse Gonçalo Vasques Coutinho -- « que o teu prognostico se verificasse!... Mas por que motivo ha-de elrei atirar a uma fogueira aquelle velhaco? Tem-no servido bem. Contra nós é que ele desafoga a sua maldade; o vilão ruim!»

«Quem sabe? Os decretos da providencia são inescrutaveis! » -- interrompeu o digno prelado de Alcobaça n'um tom que fôra difficil determinar se era mystico se ironico. -- «As afeições dos reis parecem-se com as grimpas dos campanarios no inverno. Raras vezes viram só por metade. Depois da nortada o sul: depois do vendaval a nortada. O sorriso e a sentença de morte não se repellem quando se topam nos labios dos principes. Tem-se visto tantas vezes perpassar!»

Proferindo estas palavras fitou o olhar de gerifalte no camareiro-menor.

« Que Deus vos ouvisse, dom abbade!» -- exclamou o prior de S. João. -- «Nesse dia estavamos salvos. »

«Salvos?» -- acudiu Gonçalo Vasques. -- «Como assim? Não resam todos os do conselho pelo mesmo breviario?»

«E porque seria um delles o successor do bemdicto chanceller?» -- observou o conde de Cêa, o qual no geito que levava a conversação, achára um ensejo de lisongear indirectamente a sua victima. -- «Não saem do estudo, que elrei D. Fernando trouxe de Coimbra para Lisboa, doutores em leis e em decretaes? »

A tormenta, em que se debatêra o glorioso pimpolho da viçosa Celorico, tinha asserenado.

A glote do honrado procurador voltára ao seu estado normal. O licenciado fitou a orelha ao ouvir a patriotica reflexão do seu illustre amigo.

«Sim ha: » -- replicou Gonçalo Vasques.-- «Mas fallae a elrei em qualquer que não seja dos d'Italia. São os seus homens...»

«Dizei antes que são os homens de João das Regras. Tirae-o afora, e a seita cairá em pedaços. »

«Duvido !»

«Não duvideis. Só aquelle embaídor soube igualar, e, talvez, exceder o condestavel na privança do mestre de Aviz. Se morresse, credes que Nunalvares, e nós com elle, não teriamos influencia bastante para pôr ao lado, d'elrei um chanceller afeiçoado á nobresa, e para arredar pouco a pouco esse bando de harpias, que, empoleiradas nos degráus do throno, não cessam de dar bicadas em nossos privilegios e liberdades?

«Vamos lá!» -- redarguiu o prior. -- «Supponde que o vento da morte varreu o pestifero hypocrita da face da terra. Quem escolherieis para seu successor? »

«Ninguem determinadamente: » -- respondeu D. Henrique fitando os olhos no procurador. -- «Mas que não seja um desses echacorvos roazes de Bolonha, de Padua, ou de Pisa.

Seja um discipulo dos Sanches ou dos Albernazes; um homem que não desprese as leis dos nossos maiores, os bons usos da sua terra, o direito claro e simples do velho Portugal, para nos enredar não sei em que subtilezas estranhas, que só os taes doutores d'Italia entendem.

Seja qualquer, menos um dos doutores d'Italia!.... Doutores!» -- proseguiu ele com gesto de profundo despreso. -- «Perguntae-lhes o que annuncia o aspecto dos astros; interrogae-os sobre os mysterios da alchymia, com que se transformam as pedras em metaes; fallae-lhes dos preceitos mais triviaes da citrária ou da monteria, das nobres artes de justas e torneios, de soláus e rimances, de padrões e linhagens! Ignoram tudo; tudo quanto é util, difficil e bello na sciencia humana. Contentam-se com a gerigonça não sei de que leis pagans, com que pretendem governar christãos. É ou não é isto verdade?» «Tendes razão, tendes razão!» -- exclamou a turba.

«Eis ahi porque eu quero um chanceller portuguez d'alma; um chanceller allumiado, que saiba respeitar a justiça e o direito antigo, e não um dos garnachas italianos.»

«Abaixo os italianos! »

« Dôr de reira consuma o Regras, o ignorante, o hypocrita! » « Ou » levadígas de peste, de peste que o mate!

« E os outros? O que dizeis dos outros?»

« O Gomide, por exemplo; o escrivão da camara?» «E o da puridade? Aquelle beato de Fr. João. »

«Oh lá, esse tem a alma negra como o habito. Não fôra elle bento! -- Era melhor que o reverendo se mettesse em Pombeiro a governar os seus frades...»

«Deixa ver se elle faz assar o das Regras...»

«Ah, ah, ah ! »

«Então esquecem-se do chanceller-mór, do Fogaça que está em Inglaterra?»

«Nada: o Fogaça nada, que é fidalgo-cavaleiro, e dos nossos. »

« Não é, não é ! »

« Sim senhor; é ! »

«Nada, não: o Fogaça não! »

«E o corregedor da côrte, o santarrão de Gil Eannes? »

« Fallae-me nesse! A terra com elle! »

« Todos, todos os garnachas negras! A terra os garnachas! »

«E Pisa e a Bolonha? Arrasadas sejam Pisa e Bolonha!»

« Amen Jesus! » -- rosnava Lourenço Braz, que chegára por aquella parte com o pichel na mão para encher as taças, e que ouvíra o nome de Gil Eannes, a quem tinha antigo teiró.

Fallavam, gritavam, bracejavam, riam, enfureciam-se. O que se passava na tavolagem das Portas do Mar era a repetição de scenas anteriores representadas em mais numerosas reuniões de fidalgos, donde estes saíam asseverando que trabalhavam em derribar João das Regras, o terrivel valido, que tanto detestavam.

E João das Regras sabia-o, calava-se, abaixava humildemente a cabeça, e quando via occasião opportuna destruia-lhes um privilegio, promulgava uma lei que os ferisse, lançava-lhes ás pernas os molossos populares.

Era um sancto e pacato homem aquelle João das Regras!

Mas, digamos a verdade inteira. Tão bom homem como o licenciado Asinipes, lá isso não era.

De orelha fita, o doutor Bugalho tinha escutado aquella conversação, a que supprimimos as pausas e entremeios, produzidos pela masticação, deglutição e haustos convivaes.

Vinham assaz transparentes as allusões á sua respeitavel pessoa, e uma voz íntima dizia-lhe:

« Não te fazem favor nenhum! » Era o testemunho da propria consciencia. Infelizmente isto da consciencia, se fosse entidade de musculos e ossos, iria muitas vezes dar com elles nas galés ou em Africa por testemunha falsa.

As cocegas de ambição insensata e impossivel em que se espreguiçava a sua alma não tem expressão condigna na linguagem dos homens.

Tão enlevado estava nessas delicias, que se transportou mentalmente á quadra superior da torre da escrivaninha, onde algumas vezes entrára mais timido e acanhado ainda que na tavolagem do bésteiro. Repotreava-se na poltrona de João das Regras: dava ordens aos escribas, assignava mercês, aconselhava elrei, citava textos das decretaes, ralhava, governava em fim. Governar Lisboa, o reino inteiro, elle, juiz de fôro de Celorico; elle, a cujo talento e sciencia o mundo ainda não fizera justiça! Era uma idéa suavissima, bemaventurada. Mas o vulto severo do chanceller interino (e todavia mais efectivo que o chanceller-mór Lourenço Annes Fogaça) robusto, sadío, noivo nesse mesmo anno apesar dos seus sessenta bem medidos, começava de novo a coagular-se-lhe na imaginativa, d’onde momentaneamente se desvanecêra, e em breve lhe converteria os dourados sonhos em agua chilra, se antes disso a matinada diabolica do tutti final dos fidalgos, nas suas imprecações contra os barbas grisalhas do conselho d'elrei, não o houvesse revocado á realidade da situação, fazendo-o cair de alturas onde um momento revoara nas azas extaticas da esperança.

As copas ou taças giravam de novo. O pichel do bésteiro, provído e esgotado tres ou quatro vezes, alimentava o bom humor, e o restrugir das risadas sobrelevava de quando em quando por cima da algazarra, em que todos fallavam e ninguem se entendia. O grave, prior de S. João, o conde de Cêa, e o abbade de Alcobaça eram os unicos que pareciam preoccupados, e que mediam pelas suas forças digestivas o numero das libações, em quanto Fr. Vasco se abstinha de tocar na taça inutilmente cheia diante delle, como se abstivera de entrar em conversação com alguem. O prior-marechal, que parecia interessado em fazer ganhar a aposta a D. Henrique Manuel, olhava repetidas vezes para ele interrogando-o com um meneio de cabeça, e a cada aceno de D. Henrique fazia signal a Lourenço Braz para que enchesse a malga do procurador, cujo raio visual ía começando a representar-lhe n'alma dous vultos por cada circumstante. Pataburro sentia-se verdadeiramente feliz. Estava capaz de abraçar Belzebuth se alli lhe apparecesse, e até de mostrar boa cara a seu compadre João Boroa, mordomo de Celorico, com quem tivera uma demanda de cinco annos, antes de ser juiz ordinario, sobre as horas d'agua que tocavam a cada um para a réga de dous campos limitrophes.

As disputas, os motejos, o comer e sobre tudo o beber prolongaram-se por mais de uma hora. D. João d'Ornellas distinguia-se entre os mais pela sua jovialidade, e ninguem diria que esse monge flórido, vermelho, folgazão, era o terror dos desgraçados moradores dos coutos de Alcobaça. Pelo contrario o seu companheiro jámais saíra daquella especie de insensibilidade que mostrára desde o principio.

Lisboa repousava profundamente, e só do edificio mourisco das Portas do Mar transpirava um ruido duvidoso de orgia, que, sussurrando tenue a alguma distancia, se escoava pelos estreitos becos da judearia mais proximos da cathedral, e fazia durante alguns momentos pôr á escuta a rolda estremunhada dos homens d'armas do alcaide-mór, que passavam cabeceando ao longo da vizinha muralha.

XII

VILLÃOS NÓS: RUINS VÓS!

Dizem alguńs fidalguos que elles nom conhecem outro rrey em ssua terra ssenom a ssii.

CORTES DE LISBoA DE 1456. -- Cap. 9.

As ageis mãos do roliço bésteiro tinham, emfim, feito desapparecer de cima da mesa os restos da mais sobria que abstemia collação nocturna.

Depois entre o correr e tombar dos dados o ouro rolara profusamente. Approximava-se o quarto d'alva, e ainda tres vultos agrupados juncto á cabeceira da tavola disputavam o favor do acaso, que parecia teimoso em proteger um delles exclusivamente.

Eram o conde de Cêa, o prior do Hospital ou de S. João, e o licenciado Asinipes, e este o mimoso da fortuna.

Os outros jogadores haviam-se emfim alevantado pouco a pouco, e de pé e em circulo, para o lado opposto do vasto aposento, pareciam entregues a disputa desordenada e violenta.

A turbação dos animos causada senão pela embriaguez, ao menos pelo quasi delirio que a semelha e precede, não fizera esquecer aos useiros e vezeiros da tavolagem o numen a quem esse logar era especialmente consagrado, numen a cujo culto, fatal para tantos, apenas punham fragil barreira, as severas comminações das leis do reino contra um dos vicios mais radicados naquella epocha. Assim a maior parte da noite passára na lucta ardente de jogo desenfreado.

Esses montes de ouro e prata, que haviam mais de uma vez mudado de dono segundo os caprichos da sorte, e no meio das facecias e pragas, das contestações violentas, e até das injurias e ameaças, fazendo subir do coração ás faces rubras, aos olhos irritados, e aos la bios tremulos, o lodo das paixões hediondas que lá dormitavam, eram o fructo de uma alchimia mais verdadeira do que ess'outra que naquelles tempos se acreditava ser apanagio dos adeptos da sciencia hermetica. Eram os vis reaes, pogeias e mealhas do povo, condensados e transmudados nos metaes preciosos de boa e nobre moeda, que rolavam na grande mesa de castanho, agora convertida em mesa de jogo, ou tavola.

No decurso de dous para tres seculos uma grande revolução se operára no systema da fazenda publica de Portugal. Em virtude dessa revolução, em quanto o rei e os concelhos, empobrecidos pelos males da guerra, se debatiam na miseria, as classes privilegiadas achavam ainda recursos para a devassidão e para o luxo, sem empenharem inteiramente nas mãos dos judeus as rendas das suas honras e solares.

O estado, que, nos primeiros tempos da monarchia, copiára na sua organisação economica o modelo que lhe oferecia a familia; isto é, que vivêra do producto das suas propriedades, dos fructos das terras chamadas então regalengas, e das rendas e foragens, a troco das quaes cedêra os terrenos onde não só se fundavam grandes povoações, mas tambem se estabeleciam os herdamentos, as aldeias, e até as pequenas arrotéas, desbaratára gradualmente este rico patrimonio. Os reis tinham ido distribuindo essas grangearias, destinadas a alimentar a vida collectiva da sociedade, pelos seus ricos-homens, pelos seus infanções e pelos seus validos; pelos seus bispos, pelas suas cathedraes e pelos seus mosteiros. D. Fernando, cujo caracter foi um mixto singular de grande principe e de grande mentecapto, esgotára os derradeiros estillicidios que manavam das antigas fontes do rendimento publico, e a nobresa respigára até o ultimo grão que restava da recolhida seara. O estado continuava, todavia, a achar com que supprir as suas necessidades, porque ao passo que as primitivas contribuições, sem deixarem de subsistir para os contribuintes, cessavam para os cofres publicos, os celebres pedidos de côrtes iam lentamente habituando o rebanho popular a uma dupla tosquia, tractamento que, seja dicto de passagem, os alveitares politicos sempre acharam altamente hygienico e salutar.

O systema das contribuições geraes, que se fixou e caracterisou definitivamente nas sizas de D. João I, recebeu depois nos seculos que mediaram até nós o seu inteiro desenvolvimento, em quanto as rendas ou tributos locaes, convertidos em patrimonio nobiliario, apesar dos mais solemnes e repetidos protestos feitos em côrtes contra essa espoliação flagrante, continuaram a ficar enraizados no solo portuguez com uma vida admiravelmente tenaz.

Veiu, emfim, neste nosso tempo um principe, que, convertendo em charrua a sua espada de soldado, arrancou pela raiz esse esterilisador escalracho. Quando, porém, viram morto o terrivel lavrador; quando estiveram bem certos de que os seus restos eram cinza, que nenhum sôpro de vida reanimaria jámais, agarraram todos os tronquinhos dispersos da planta maldicta, espalharam-nos de novo pelos campos da patria, apiedaram-nos, regaram-nos, cofiaram-nos, e qualificando de revolucionario o grande acto de justiça nacional, a lavagem que o heroe fizera no estabulo de Augias, appelidaram no de salteador. Faltou atirarem-lhe as cinzas ao mar. Depois alevantou-se a ignorancia jurisperita, o molinismo politico, a erudição bastarda, e disseram ao povo: « O escalracho incommoda-te? Bom remedio. Arranca-o. Mas paga primeiro a faculdade de o arrancar. E uma bagatella: apenas pouco mais de tres quartos do valor dessa terra, que regas com o teu suor, e que libertaste com o teu sangue.» E o agricultor lá vae vendendo a camisa para poder livrar-se da planta daninha. Abençoado seja elle, e os que souberam conhecer-lhe a indole para a explorar!

Era, pois, o producto dos terradegos, chavadegos e maninhadegos, das osas, gayosas e luctuosas, das eiras, angueiras, perangueiras, carreiras e fossadeiras, e dos mais foros, direituras e costumagens em adegos, em osas, em eiras, e em todas as terminações possiveis de rapina legal e tradicional, que se jogava na tavolagem das Portas do Mar. Aquele attractivo divertimento fizera voar as horas. De quando em quando a voz estridente do gallo annunciava a proximidade do dia, bem como a indicava o amortecer das lampadas, que allumiavam a vasta quadra.

Segundo dissemos, o prior-marechal, o conde de Cêa e o procurador de Celorico, attentos aos pontos que marcavam os pequenos cubos de marfim, pareciam esquecidos de tudo o que os rodeava.

Não era assim. D. Henrique preparava o golpe que lhe havia dar a gloria de vencedor na aposta que fizera, e ao mesmo tempo as vantagens mais positivas de ganhar uma avultada somma e de conhecer definitivamente as odiosas pretenções populares.

De accôrdo com o prior de S. João o conde seguíra o methodo inverso dos jogadores professos. Ambos elles o eram: sabiam a tempo repellir a fortuna, ou atá-la ao seu carro triumphal. Fazendo vacillar a sorte a principio, começaram a ceder a victoria quando viram o licenciado assaz engolfado no jogo para que o seu coração se dilatasse no delicioso enlevo de illimitada felicidade. De olhos fitos nas boas dobras, que os dados pintando a flux iam passando para diante dele, o honrado burguez nem sequer ouvia o ruido de fallas que soava do lado opposto do aposento.

E, todavia, o objecto da conversação era assaz importante!

D. João d'Ornellas tinha provado naquella noite ao seu silencioso companheiro, que assentado a um canto parecia entregue a uma habitual somnolencia, quão util aliado era para obterem os fins que ambos se propu nham. Como o déstro capinha, que sem accommetter de frente o bravo novilho, falsean do-lhe as arremettidas o fere de soslaio, e obrigando-o a inuteis esforços o cansa, irrita e desespera, até o fazer cair exhausto e vencido pelo proprio furor, assim o diabolico frade, excitando os animos, ora com a contradicção indirecta, ora com ironias pungentes, ora com capciosos conselhos involtos em reflexões austeras, levára os cavalleiros menos prudentes, e sobre tudo o homem que ele jurára perder, o joven valido do rei, a manifestarem intentos e esperanças, que, habilmente interpretados, se poderiam tachar não só de violencia, mas até de deslealdade. Fernando Afonso não se contentára de invectivar contra os ministros de D. João I: approvára os queixumes dos fidalgos contra o proprio monarcha, e a resolução que muitos manifestavam sem rebuço de serecusarem a servir na guerra, se os resultados das proximas côrtes fossem novas quebras de seus privilegios. Mais de um exemplo anterior auctorisava a crer que n'esta amea çada recusa se continha a idéa de irem pôr as suas lanças ao serviço de D. Beatriz de Castella.

Foi então que, a um aceno do conde de Cêa, o prior de S. João, observando que era alta noite, e que ninguem mais se via ao redor da tavola, propoz que terminassem o jogo, e, com magoa do tão feliz procurador, se levantou para ir reunir-se ao grupo que altercava na opposta extremidade da quadra.

A sós com o licenciado, D. Henrique começou a falar em voz baixa. Depois de entreter a sua victima com varios objectos insignificantes, conduziu a conversação de modo que veiu a tocar na circumstancia que fizera com que o muito honrado doutor Mem Bugalho se achasse de um modo inopinado naquelle logar, áquellas horas e em tão estranha companhia. Lamentava-se de que as cousas tivessem corrido de modo que lhe não fosse licito aproveitar-se das provas de confiança que ele lhe dera, querendo communicar-lhe os capitulos populares, acerca dos quaes tantos boatos contradictorios se espalhavam: accusava-se de não ter reflectido em que podia encontrar na tavolagem aquelles estafermos, nem na possibilidade de eles se demorarem alli quasi até a madrugada: sentia ter ajustado com o marechal partirem ao romper da manhan para uma caçada nas terras da Flor-da-Rosa onde se deviam demorar uma ou duas semanas:

deplorava a impossibilidade em que se via de ouvir aquella leitura, a qual, a confessar a verdade inteira, posto que o fizesse com o sacrificio de nobre e legitimo orgulho, não lhe era indiferente; mas que não ousaria exigir delle que cumprisse diante de tantos cavaleiros, a muitos dos quaes tractava pela primeira vez, a promessa que lhe fizera, posto que elle conde de Cêa podesse responder como pela sua propria, pela lealdade e circumspecção de todos e de cada um em particular: protestava, finalmente, que guardaria em perpetua lembrança o novo testemunho que recebêra da mais pura e generosa amizade.

As palavras do conde haviam sido tão insinuantes e lisongeiras, o ouro que o illustre Mater-Galla tinha ante si mollificára tanto o seu coração naturalmente bondoso, e, semelhante ao espinho do remorso na consciencia do criminoso, a idéa de poder algum dia ser elevado ao cargo de chanceller por influencia da nobresa era tão viva e perenne na sua alma, que, depois de scismar alguns momentos, exclamou como arrastado por inspiração irresistivel:

«E porque não os ouvireis agora? Quizera que dependessem de mim cousas de maior preço para vós, e em geral para a fidalguia....»

Ah, Mater-Galla, Mater-Galla! O demonio da ambição tinha-te catrafilado! Despenhavas-te no abysmo!

«Perdestes a vossa aposta: » -- disse o prior, que entrára na roda dos que altercavam, e que, ouvido n’uma parte, ouvido noutra, percebêra a exclamação do burguez.

Estas palavras dirigiam-se ao mestre de Christus, ao senhor de Rezende, e a Gonçalo Vasques, que eram os da aposta com o conde de Cêa.

«Como assim?» -- replicou D. Lopo Dias.

-- «É quasi madrugada: vamos partir; e o vilão ainda não disse uma palavra. Foi o conde quem perdeu.» «Mas escutae: » -- atalhou o marechal.

Todos fizeram silencio.

« Eu sei!? »-- dizia o conde ao seu interlocutor. -- «Seria talvez imprudencia....»

«Quando vós afirmaes que respondeis pela lealdade de todos estes cavalleiros, posso depositar nelles ilimitada confiança. »

«Na verdade passarieis a meta das minhas esperanças...»

«Basta! Eis aqui os artigos! »

E desabotoando a abertura do gibão, tirou resolutamente um rolo atado com um cordão tecido de cores, e começou a desdar o nó.

O grupo dos fidalgos tinha-se insensivelmente approximado.

«Amigos:» -- disse D. Henrique dirigindo-se á turba, antes que o burguez se arrependesse -- «quereis escutar um momento? Ouvireis alguma cousa que ha-de interessar-vos.»

«O que? o que?» -- perguntaram varias vozes.»

«Os artigos de côrtes por parte do povo.»

«Ah! » A interjeição que fugíra ao mesmo tempo de todos os labios, era inqualificavel; mixto confuso d'escarneo, d'admiração, de malevolencia e de curiosidade.

Mem Bugalho não gostou daquelle ah.

« Senhores, » -- balbuciou elle -- « era uma promessa feita ha muito... Só hoje posso cumprir a minha palavra. Nada arrisco em desempenha-la na vossa presença. Sois nobres, sois honrados: não podeis trahir-me...»

«Oh, oh ! » Esta nova interjeição ainda azoinou mais o procurador de Celorico, porque lhe pareceu mais inclassificavel que a primeira.

Era, porém, tarde para recuar.

Os cavalleiros tinham-se acercado ao redor da mesa. Pataburro desenrolou o pergaminho.

Era uma tira longa e estreita, escripta em cursivo miudo e esguio. A luz das lampadas, já mortiça, allumiava frouxamente o rosto vermelho e amplo do burguez, que, de pé, com a esquerda firmada na borda da mesa, e elevando o pergaminho a certa distancia, inclinou para traz a cabeça. A leitura ía começar.

O que é verdade é que, apesar dos ahs e dos ohs, ouvia-se o cicio do respirar mal comprimido, porque a attenção geral pendia inquieta dos labios do doutor Asinipes.

A trovoada dos artigos era formidavel!

Não esfalfaremos o leitor transcrevendo na integra os interminaveis kiries de uma ladainha municipal dos fins do seculo xiv. Esses monumentos de grandes oppressões e de longas e tenazes resistencias; esses brados energicos da colera dos oppressos, que, semelhantes a Sansão, derrocaram emfim a tyrannia do privilegio, sepultando nas mesmas ruinas as liberdades populares; esses monumentos lá os achará aquelle que desejar contempla-los na sua rudeza nativa, sumidos, talvez, no fundo da arca mais carunchosa do seu proprio municipio.

Os aggravos, acerca dos quaes os concelhos exigiam providencias, eram varios e complexos, e a exposição delles redigida no estylo sorna e estafado que então parecia sublime de singela eloquencia. A primeira pretensão dos homens-bons, no que respeitava á nobresa, consistia na extincção das coutadas, negocio grave numa epocha em que o exercicio da caça, tanto de monteria como de altaneria era considerado uma das mais dignas occupações de qualquer fidalgo; em que o proprio Mestre d'Aviz consagrava parte das horas, que lhe deixavam os cuidados da guerra e da politica, a escrever um tractado de cetrária, ou da arte de caçar com açores, falcões e gerifaltes; em que, finalmente, os monumentos nos representam os barões e damas de alta linhagem trazendo como distinctivo uma ave de rapina empoleirada sobre o punho, distinctivo, de feito, assaz significativo e epigrammatico. A villanagem, porém, que não comprehendia a idealidade que havia em ver os seus campos e bouças arrasados pelas lebres, veados e javalis, com sem-ceremonia blasphema pedia tambem para si o direito de enviar alguns tiros de bésta a hospedes tão incommodos como frequentes. Não satisfeitos com isto, queixavam-se amargamente dos alcaides-mores dos castellos, que, recebendo soldos da coroa para pagarem a homens d'armas que guardas sem as boas fortalezas d’elrei, entendiam, e entendiam bem, que era melhor comê-los ou jogá-los, e constranger os moradores dos concelhos a supportarem gratuitamente esse encargo. Vinha tambem aquelle impertinente gentio lançar em rosto a familias tão illustres e antigas como Noé ou Mathusalem, se não mais, outra miseria, tal, que estivemos por um és hão és a omitti-la. Queixavam-se dos senho res, que, rodeados dos seus vassallos e clientes, costumavam residir nas terras a elles sujeitas, e para evitarem os tedios da triste vida provinciana consumiam em lautos banquetes, ás vezes num mez, as subsistencias de um anno, esquecendo-se de pagá-las; queixa absurda, visto que elles por serem nobres não eram exemptos das debilidades da retentiva humana; e se por ahi, violavam donzellas e viuvas, segundo os artigos resavam, menos por fartar paixões más o faziam que por benevolencia para com essa raça achavascada, meio-mourisca meio-servil, de labregos desagradecidos.

Abusando das largas que lhe dera a revolução de 1384, a arraia-miuda engrimponava-se a ponto de lançar em rosto ao seu querido rei bastardo o haver mais de uma vez, em hostes e cavalgadas contra os scismaticos de Castella, confiado as bandeiras dos concelhos a escudeiros fidalgos, em quebra do antigo foro e uso de as levarem aos combates alguns dos proprios burguezes. Não paravam aqui as sandices populares. Representantes do supremo poder nos districtos cujos senhorios eram, os fidalgos exerciam pelos seus corregedores e ouvidores a alta magistratura judicial. Em consequencia as demandas eram intentadas, pelos que nisso interessavam, na instancia superior, e os juizes ordinarios ou de foro ficavam ás moscas, em quanto os litigantes eram arrastados de terra em terra ao tribunal ambulante do senhor, e reduzidos á mendicidade pelos gastos da demanda e das forçadas viagens. Assim pediam que, em tudo o que fosse possivel, gyrassem os litigios dentro da órbita municipal; desconchavo de marca maior, porque ninguem os obrigava a ser demandistas. Por ultimo repetiam em especial contra os mestres das ordens, contra o prior do Hospital, e contra Nuno Alvares Pereira, denominado por antonomasia, ou por abbreviatura, o conde, e em geral contra todos os fidalgos, a accusação de serem um bando de salteadores, que, vagueando pelo paiz, tiravam aos cidadãos e mais arraia-miuda tudo aquillo de que precisavam, sem curar de saber quanto custava.

Taes eram os artigos resolvidos entre os mandatarios dos concelhos acerca da nobresa e ainda da cleresia; mas a malevolencia communal não se resumia em tão pouco. A caldeira popular fervia e trasbordava. Propunham-se muitos outros, qual deles mais acre, e que vieram a formular-se nas subsequentes assembleas politicas, mas em que o accôrdo não era ainda completo, se não quanto á essencia, ao menos quanto aos accidentes. A intervenção dos nobres nas eleições municipaes, o aquartelarem-se em certos bairros das villas transformados por elles em ninhos de abutres, em vez de residirem nas alcaçovas que tinham por dever guardar; o impedirem nos coutos e honras o pagamento de fintas para as obras publicas, como fontes, estradas e pontes; o deixarem cair em ruinas os predios urbanos que possuiam nas povoações, como uma inutilidade, visto servirem-se dos alheios; as assuadas e violencias com que embargavam nos paços dos concelhos o livre exercicio da justiça nos seus actos mais solemnes; o exigirem o abatimento de um terço do preço nas cousas que se dignavam de pagar, abuso antigo e contrario ás leis do reino; e emfim, outros pontos diversos, em que o povo via uma quebra dos seus foros ou um attentado contra a sua propriedade, constituiam a serie dos artigos pendentes, que se ventilavam, refundiam, renovavam, para ainda serem reconsiderados em relação ao tempo e modo de se apresentarem ao rei, posto que os delegados municipaes concordassem uniformemente na sua justiça e necessidade.

A leitura acabára. Nem um movimento, nem uma palavra tinham interrompido a attenção geral. A voz do procurador levemente tremula deixára de vibrar, e um silencio de tumulo lhe succedêra. Era o atordoamento que no primeiro impeto produzem o assombro e a indignação. Como o oceano, que, ao innovelar-se a procella, parece dormente, subjugado pela mão da terrivel mensageira do Senhor, mas que, soltando um mugido ao encrespar-lhe o dorso a primeira lufada, eriça os vélos de escuma, e collea em serranias de vagas, estourando sobre os continentes com alto fragor, assim a colera accumulada rebentou emfim impetuosa.

A primeira lufada da tempestade saíu dos labios do mestre de Christus.

Uma punhada sobre a tavola, tão violenta que fez dar um pulo ao pobre Pataburro, annunciou esse primeiro furacão.

«Pelo sancto templo de Christo!» -- exclamou o orgulhoso chefe dos novos templa rios. -- «Tractar-me, a mim e aos cavalleiros da minha illustre ordem como um bando de salteadores e devassos, de glotões e tyrannos! Muito é, villanagem; muito é! D. João! Filho de D. Pedro!» -- proseguiu ele, depois de uma pausa, e estendendo a mão para o lado dos paços de S. Martinho, como se o seu gesto e a sua voz podessem romper os obstaculos intermedios. -- «Eis ahi o fructo das largas, que teu pae deu, e que tu dás aos populares! Ousarão insultar os teus cavalleiros em S. Domingos, e tu, em vez de os condemnares á forca, ainda lhes prometterás desaggravo. Vae, vae afagando esses ursos, que forcejam por abater a fileira de nobres e valentes lanças que te rodeam o throno, para depois pôrem as patas felpudas nos degráus delle, e irem com os colmilhos immundos partir-te nas mãos, ou nas mãos dos teus herdeiros, o sceptro do poder real. Roubo ao que é um direito! Quem deu a essa raça de viboras os campos que cultivam, as aldeias onde moram, os matos e bosques donde tiram desde os madeiros dos seus alvergues até as aivecas dos seus arados e ao cepo do seu lar? Foram nossos avós, que conquistaram esta terra á mourisma; que a regaram com sangue proprio e alheio; que edificaram os povoados, as igrejas e os mosteiros; que ao deporem a acha d'armas pegavam no venabulo e desinçavam as brenhas dos animaes ferozes ou daninhos...»

« Cujos restos » -- interrompeu Fernando Afonso -- « os vilãos querem tambem montear. Chegou-lhes o seu S. Martinho. »

« Não me parece fóra de razão isso: » -- acudiu o abbade de Alcobaça, a quem a passada leitura não alterára os meneios repousados, nem o olhar vago e tranquillo, nem o bondoso sorrir.

E deu uma destas risadas alvarmente velhacas, ou velhacamente alváres, que tanto po dem significar o escarneo do queixoso como a approvação do queixume.

«Sim!» -- continuou com vehemencia o mestre de Christus. -- «A nobresa, que arrancou a Leão a mais bella das suas provincias para instituir um reino; que, gerações apoz gerações, tem comprado com milhares de vidas os privilegios inherentes aos seus senhorios, ás alcaidarias desses castellos, cujas pedras estão unidas por cimento amassado com o mais puro sangue; cujas carcovas estão calçadas com os troços das armaduras e com as ossadas de dezenas de ricos-homens, e de cen tenares de infanções; a essa nobresa nem ao menos se permittirá usar dos direitos que lhe deram o valor e a morte, a victoria e o sacrificio? Negar-se-lhe-hão até poucos pal mos de chão maninho e algumas alimarias bravias para seu desafogo innocente? Pela sancta casa de Jerusalem! São senhoris e anchos os vilãos. Apertemo-nos nós... Façam praça a suas mercês que passam... E vivam os doutores que os protegem, e que tão bem regulam pelas leis romanas o direito e a justiça! » As sobrancelhas carregadas, os olhos chammejantes, os frocos d'escuma, que nos cantos da bôca se lhe penduravam do negro e arqueado bigode, davam ao filho de D. Maria Telles um aspecto feroz. Nos gestos dos outros fidalgos, as rugas profundas das testas, que a moda anti-castelhana dos cabellos excessivamente curtos tornava mais espaçosas, os dentes cerrados que um sorriso ameaçador fazia alvejar, e nuns a pallidez subita, n'outros o afogueado das faces, pintavam com terrivel eloquencia o tumulto que ía naquellas almas.

O proprio conde de Cêa, que a principio exultára na sua victoria, estava colerico. Só o abbade de Alcobaça conservava, ao menos na apparencia, inalteravel placidez d'espirito.

O senhor de Rezende tomára a mão depois de Lopo Dias.

«Que sobretudo » -- vociferava elle -- « não ponham mão fidalgos-escudeiros nos pendões dos concelhos, embora elrei haja dado cavallaria a burguezes, e estes homens de linhagem sem linhagem se estreem nas batalhas ao lado dos cavalleiros de boa e generosa avoenga; embora a bandeira do solar tremole muitas vezes entre os ridiculos farrapos mettidos em haste de lança no fundo de alguma tenda da Rua-nova, ou... »

«E por que não?» -- interrompeu um dos Pachecos: -- «levem tambem caldeira para sustentarem em hoste gente de guerra, e monta dos em mulas de corpo tragam atraz de si pagens com os cavallos de batalha.»

A voz gasta e aflautada do reposteiro-mór chilreava entretanto:

«Isso, isso! Deroguem até a postura do grande rei D. Afonso sobre os vestidos: que tragam pelotes e calças de côr, e que façam choutear os seus jumentos e azemalas, não com acicates de ferro bruto, mas com esporas douradas. Trajem, vivam, andem como iguaes nossos... Não digo bem... Troquemos antes os trajos! São eles os senhores; nós os antigos malados... Cochinos! »

«Vede vós: negarem-nos os bairros coutados! »

«E quererem vender-nos nossas mantenças como lhes approuver!»

«Ou não no-las venderem... »

«Matar-nos á fome quando passarmos pelas villas! »

« Salteadores!»

«E que lhes reina o sangue de mouros em veias de judeus! »

« Pifia relé ! »

« Cachorros! »

Estas e outras exclamações e brados irritantes, acres, afrontosos, choviam de todos os lados, não, como nós os escrevemos, successiva e pausadamente, mas cruzando-se, atropelando-se, confundindo-se. A fronte de Pataburro annuviava-se. Soltára panno de mais ao vento, que, saltando de opposto rumo, o colhia desprevenido. Embasbacado, attonito, não comprehendia como se usasse de tal linguagem diante delle, burguez, antigo juiz de foro, licenciado, e procurador de uma villa como Celorico. Debalde o conde de Cêa, apesar do proprio despeito, buscava restituir o socego: a indignação, semelhante a incendio mal comprimido, lavrava de instante para instante com mais força depois da explosão.

No meio da confusa algazarra uma voz tremula e estridente sobrelevou por cima das outras. Era a de João Rodrigues de Sá. O camareiro-mór estivera calado toda a noite, mostrando associar-se de máu grado áquella mystificação, e mais de uma vez no seu gesto e meneios se manifestára a impaciencia. Homem tão violento de genio, como duro de braço e esforçado d'animo, a petulancia do povo tinha-o irritado a ponto, que, finda a leitura, sentia prenderem-se-lhe na garganta as palavras innoveladas, digamos assim, num turbilhão. A final a torrente trasbordou, e o fio das idéas tempestuosas do cavalleiro foi prender-se aos motejos insultuosos de Lourenço Pires de Tavora.

«Meu senhor, meu igual um villão! Por S. Jorge! Quem o disser do fundo da alma, dir-lhe-hei eu que mente. Que me importa que os burguezes tentem elevar-se até mim? Eu é que não desço até eles. Tenho-vos mais de uma vez ouvido falar não sei em que enredos escuros, em recorrer á influencia da rainha, em enganar procuradores com promessas que jámais se hão de cumprir...»

«Tal nunca se disse: » -- murmurou a medo D. Henrique, prevendo que estas palavras bastariam para desvendar os olhos do licenciado acerca do seu procedimento anterior para com elle.

«Tal nunca se disse?!» -- E para que trouxestes aqui esse tonto e iludido vilão? Conde, fazei mercê de dizer-mo; que a vossa aposta, essa já a ganhastes. Oh, ao que vejo reduzida a nobresa de Portugal! Momices, rodeios, miserias!... Vergonha, vergonha!... Era eu bem pequeno e ainda pagem quando foi a do Salado: vi ahi os corredores infiéis combaterem volteando ao redor do inimigo para o ferirem a descuido: entre cavalleiros d'Hespanha é que nunca tal vi! Por esses caminhos tortuosos não sei eu andar. Como o condestavel, como todos os animos generosos, não gasto nem tempo nem cuidados com as insolencias de vilãos. Se me espoliarem do que me pertence, pedirei justiça a elrei: se não m'a fizer, fa-la-hei eu. Somos surdamente ameaçados de violencias e revoltas populares. Que importa? Os arnezes dos nossos homens d'armas são bem temperados, e as nossas espadas não estão ainda tão bôtas como isso! Nas minhas terras o rei sou eu. Acceito dos concelhos a paz; mas não recuso a guerra.

Hei-de repellir as injurias e usurpações, quando com elas me quizerem pagar as feridas, á custa das quaes -- das minhas e das de tantos outros -- mais de uma vez ficaram grunhindo e chafurdando tranquillos nas suas pocilgas esses javardos immundos. Mantenha-vos Deus, amigos; que, segundo creio, o arremedilho é findo. Podeis despedir o jogral.» Debalde o das Galés tentára dar ás suas palavras um tom de placidez e friesa, que contrastava com a violencia e desordem dellas, e que o metal e o tremulo da voz desmentiam.

Lançando um olhar de profundo despreso a Mem Bugalho, embrulhou-se no capuz, saíu pelo corredor escuro, e d’alli a pouco a porta exterior soou rijamente nos batentes, fechada de golpe.

Ás palavras « tonto e iludido vilão, o o pobre decretalista arregalou os olhos. Estava petrificado. As palavras de João Rodrigues de Sá tinham passado como clarão infernal. Sem transição tombára de um mundo ideal de esperanças num pelago de afrontoso ridiculo.

A sua deshonra fôra consummada perante testemunhas de sobra para ser divulgada. O ruior e a pallidez succediam-se-lhe no rosto como os éstos do oceano. Quiz falar, e a lingua secca e tolhida não podia menea-la: desejára fugir, mas sentia-se como grudado ao pavimento. A sua situação seria capaz de commover o animo mais duro, se a irritação não houvera subido ao ultimo auge.

Longe de inspirar piedade, o gesto transtornado do procurador suscitou unicamente a irrisão.

O primeiro tiro partiu dos labios de Fernando Afonso; do homem, para quem os trances da agonia alheia eram um recreio como outro qualquer, ainda quando o furor ou o odio não excitavam a sua indole perversa.

«E que pensas tu, vilão, de tanta insolencia ?» -- disse elle voltando-se para o estupefacto Mater-Galla, cujo olhar espantado errava por aquelles gestos incendidos. -- «Que pensas; que pensas?!... Oh!... Pensas o que pensam os outros. Não é isto?... Falla, homem; que me pareces um odre assoprado, posto no canto de uma taberna judenga. »

Tal um papo de perú cheio de vento, que, pelo entrudo, serve de joguete ao rapaz travesso, e sem estourar retumba uma e muitas vezes nas costas de gallego boçal, mas que encontrando o bico do mais subtil alfinete se lhe extravasasse o ar comprimido, engelhando de subito, assim o licenciado, que despertára dos seus dourados sonhos em realidade cruel, para caír n’uma especie de paralysia interior, aguentára o rugir da procella sem proferir palavra; mas, brutalmente interpellado, saíu daquelle torpor com energia. A injuria do moço escudeiro fôra a pieada do alfinete subtil. A exaltação moral, impeto doloroso de um coração barbaramente esmagado, illumina de terrivel luz ainda os entendimentos mais broncos, e alevanta-os ás vezes até as inspirações do sublime. O olhar, até ahi vago, do procurador fitou-se ardente no mancebo. A pallidez de uma cara opada triumphára emfim da vermelhidão nativa do seu rosto rechonchudo e rutilante. Golfavam-lhe da bôca as palavras lentas, baixas, mas firmes, e a indignação e a tristeza davam-lhe subitamente aos ademanes até então acanhados, e ao gesto pouco expressivo a dignidade das grandes agonias.

« O que parece ao vilão?» -- murmurou elle, rangendo os dentes, e alimpando com a manga do gibão os olhos arrasados d'agua. -- « Parece-lhe que vos sobra razão para vituperar o fraco e desleal, que atirou o angustiado gemido dos pequenos e oppressos como um desporto ás jogralidades e ludibrios d'illustres truães! Filho do povo, trahi-o. Tinha promettido guardar um segredo; guardá-lo religiosamente, até o dia em que a voz dos concelhos de Portugal, trovejando pelas abobadas de S. Domingos, bradasse a elrei com um accento ainda não ouvido por elle: «Justiça!» Deixei-me embair por lisonjas, por fingidas demonstrações de amisade. Sou um insensato!... Ride e folgae, valentes cavalleiros, que abusastes da fraquesa, além d’imprudente, criminosa, de um homem chão. Mas se eu fui louco e fraco, pergunto: que serão aquelles que sem respeitarem o bom nome de sua linhagem, o seu gráu de cavallaria, os titulos, emfim, de que se vangloriam, e o que mais é, despresando todos os preceitos do céu e da terra, abusam da simplicidade e afeição de quem delles se fiou? Que serão aquelles que, semelhantes a salteadores e assassinos, trazem enganada a sua victima, de noite e a logares escusos, para lhe matarem, não o corpo, mas a alma; para o amarrarem, não á arvore de caminho solitario, mas ao poste da deshonra? O que estes são e o que valem, dir-vo-lo-ha a consciencia, quando o prazer de uma acção infame houver passado. Ride e folgae, meus nobres senhores! No meio das trevas apunhalastes pelas costas um homem desprevenido, que nunca vos fez mal, que vos amava, que sacrificou o unico thesouro de burguez humilde mas honrado, a reputação de leal á sua palavra. Ride, ride!...»

«Mas, doutor, deixae-me explicar-vos: »... ía a interromper o conde de Cêa, algum tanto commovido com ver rolar duas lagrymas pelas faces do licenciado.

Foi peior.

«Cal-te, satanaz enganador e bulrão, que crêste comprar-me com as tuas promessas e com o teu ouro. Guarda-as, e guarda-o!» -- Dizendo isto, Mem Bugalho deu um revés com a mão por cima da mesa, e espalhou no pavimento as dobras que ganhára. -- «Ouvi tudo calado: agora toca-me tambem falar... Ide; assoalhae por toda a parte que o procurador de Celorico vos vendeu o segredo dos seus companheiros. O preço da venda, isso deixae-mo a mim, que eu contarei qual foi ! Lançastes, lodo de mais, meus cavalleiros, sobre o peão escarnido; mas o peão ha-de fazer-vos espadanar algum para o rosto.... D'antes, o nobre homem d'armas a quem se dissesse « és um vil embaidor» lavaria em sangue o doesto; porque, segundo resam os vossos livros de cavallaria, o engano e a dobrez eram impossiveis em animos e em bôcas de nobres senhores; e eu agora posso dizer-vos que sois embaidores e vis, meus illustres fidalgos. Doemvos os artigos? Conformae-vos!... Vêde vós: é que o povo, esse póde ser injusto, volunta rioso, o insolente, cruel; póde arrastar pelas ruas bispos traidores, donas prostituidas, alcaides vendidos ao rei estranhol; mas tem uma virtude: é franco e sincero; franco e sincero no seu amor e no seu odio. Usa verdade, e di-la sem curar se doe ou não doe. Fazia-vos mal o meu silencio? Pois bem! Dir-vos-hei que sóbra justiça aos concelhos, e que vós, meus ricos senhores, sois uns ladrões e uns devassos....»

« Eu te respondo, vilão!» -- gritou Fernando Afonso, encaminhando-se para a cabeceira da mesa, com a mão no cabo do punhal que tinha na cincta.

«Que é isto? Sangue aqui!» -- exclamou o abbade de Alcobaça com voz de trovão, e avançando tambem alguns passos. -- «Se...»

Não pôde continuar. Fôra interrompido por uma risada monstro, que partíra dos pulmões bovinos de D. Henrique.

Fernando Afonso parára. O prelado parou tambem.

O despeito, quando facilmente podêmos esmagar quem o causa, tende a manifestar-se antes pelo insulto que pela violencia. Esta reflexão inspirára ao conde o meio de evitar um assassinio. A sua intimidade leonina com o procurador acabára: era um mal sem remedio. Abaixou-se, pegou n'uma das dobras espalhadas no chão, e chegando-se a elle, fingiu que o obrigava a acceitá-la.

«Bem cantado, jogral maltrapilha! Cantanos agora a oração do justo juiz.»

Uma gargalhada geral, retumbando dos quatro angulos da mesa, correspondeu a estas palavras.

A situação moral do desgraçado Asinipes, qualquer a póde avaliar. Tinham-no arrojado como uma pedra de catapulta para as idéas burguezas, ou antes despertado nele todas as paixões odientas, que naquella épocha ferviam nos animos populares. Acudiam-lhe tumultuariamente aos labios as phrases mais violentas das muitas philippicas que ouvíra uma e outra vez nas conferencias secretas dos procuradores, e sem disso dar fé, ía ajunctar aos capitulos que lêra os desordenados commentarios que, até certo ponto, os explicavam.

«Ah, sim, continuarei: » -- acudiu elle, e a voz guttural tremia-lhe de raiva, ao passo que nos seus olhos, agora enxutos, brilhava a indignação. -- «Muitas mercês vos devo, senhor conde, que me obrigam a obedecer-vos!.. Mas porque não consentistes vós outros que esse esforçado escudeiro me assassinasse? Depois da deslealdade a covardia.... Um só no meio de tantos!.. um só e desarmado!... Bem vos ficava, que sois cavaleiros de Portugal... de Portugal ou de Castella, segundo o vento fizer esvoaçar as bandeiras das torres e besantes, ou as dos leões e castellos..... Repito-o, meus fidalgos: os concelhos tem razão. O povo é roubado pelos vossos juizes, pelos vossos ovençáes, pelos vossos acostados, e por vós mesmos. Aves de rapina, porque viestes de novo cevar-vos e anafar-vos em terras de Portugal? Porque não ficastes pairando ao redor do scismatico de Castella? Antes da de Aljubarrota não rompieis lanças por D. Beatriz? Os traidores eram dos mais nobres: porque não os imitou o resto? Ora sus, e cavalgar para Burgos, que lá tendes o coração. Com os aquantiados e bésteiros dos concelhos, e com os lanceiros de pé, nós os do povo defenderemos o rei e o reino. Saem-nos muito caros os arnezados de mula de corpo, cavallo de batalha, estoque de misericordia, elmo e solhas dourados. Afirmaes que vos devemos tudo quanto possuimos, campos, moradas, igrejas, liberdade, independencia ! Que mais? A luz, o espaço, o ar, a agua? Talvez. Pretendemos cercear-vos os privilegios, dizeis vós; mas d’onde vos vem elles? Da mercê dos reis antigos. O rei moderno, o eleito do povo, póde tirar-vo-los. Qual é o vosso direito de despojar os que não resistem? A força. Quando o povo, que opprimis, for o mais forte, porque não vos esmagará? Somos ingratos? Livrae-vos de que os concelhos ajustem contas!.. Eu poderia dar-vo-las....»

«Venham ellas, birbante!» -- interrompeu Fernando Afonso, que respondêra a cada phrase de Mem Bugalho com uma gargalhada, julgando fazer assim penitencia, por haver querido sujar o punhal no sangue de um vilão. -- «Sabes de algarismos? É que teu pae e teu avô não passaram de judeus sacadores, ou rendeiros de direitos reaes.»

«De que nunca viram nem uma pogeia:» -- acudiu Pataburro -- « porque vosso pae e vosso avô não passaram de homens d'armas dos alcaides, que chamam suas as ovenças da coroa, e que o sancto rei D. Pedro usava esquartejar.»

A furia ía quasi fazendo agudo o triste Mater-Galla. Nem com isso, porém, alcançou pôr termo ao tom de mofa dos cavalleiros.

A resposta á injuria do burguez foi como até ahi uma risada geral:

«Seja assim!» -- continuou o camareiro. -- «Mas aponta, phariseu, as nossas dividas, e ajuncta no fim o preço de uma boa corda, que desde já me obrigo a pagar no dia em que te enforcarem n'um carvalho bem alto. Quanto somma?»

«Quereis as contas, gentil escudeiro? Assignadas e seladas dos selos de cem concelhos as vereis em S. Domingos dentro de poucos dias. Antes disso não falleis tão arrogantes em tantas cousas que chamaes vossas. Vossos os castellos, vossas as terras da coroa, vossos os direitos reaes, porque os comprastes com sangue? Por Deus, que sois esquecidos! Com os tributos do povo, que combate de graça, melhor que vós, e nunca nas azes do senhor estrangeiro, vos pagaram sempre avultados soldos para vos enxotarem dos vossos ninhos d'abutres, e virdes enristar as lanças nos campos de batalha, ou fazer reluzir os montantes nas quadrellas das muralhas. Quite está comvosco o rei que vo-los dá; quites estamos nós que para isso repartimos com ele o fructo do nosso suor. E invocando a todo o momento esse uso antigo que vós, meus generosos senhores, não quereis servir hoje nesta lucta de morte com Castella, a troco das rendas das terras, que sem encargo algum tendes até agora desbaratado. Alevantaes-vos com a esmola, e é a nós outros que chamaes vilãos-ruins ?! Parti a contenda ao meio. Villãos nós; ruins vós. Pensaes, acaso, que o povo ignora quantas vezes tendes ameaçado D. João I, se vos não pagar as quantias, de vos retirardes para os vossos solares? Para os de Portugal, ou para os de Castella, meus leaes cavalleiros?

« É mentira! é mentira! » -- exclamaram impetuosamente quasi todos os circumstantes, porque o licenciado acabava de lhes lançar em rosto uma durissima verdade.

«Se é mentira ou não, sabei-lo vós e sei-o eu: » -- retrucou Mem Bugalho, que sentia desapertar-se-lhe algum tanto o coração, vendo que, emfim, achava uma junctura por onde falsar as armas dos seus contrarios. -- «Conheço as causas do vosso odio contra o povo. Quereis dínheiro, mais dinheiro, muito dinheiro, e Portugal não o tem; porque o pae da vossa D. Beatriz o desbaratou com a fidalguia portugueza e castelhana. Ha vinte e dous annos que morreu o sancto rei D. Pedro, e ha outros tantos que somos roubados. É por isso que os concelhos vos dizem: « basta ! -- Basta, homens que consummis em saraus, em torneios e em justas toda a substancia publica: basta, demonios de orgulho, de luxuria, d'embriaguez, de cubiça! Levastes-nos já a pelle, a carne e o sangue: não nos levareis os ossos! »

O heroico Mater-Galla estava em pé, fronte alta, perna retesada, braços estendidos, punhos cerrados, grandioso, sublime, terrivel, e, força é dizê-lo, esfalfado. O sangue tinha-lhe retrocedido gradualmente do coração ao rosto: não podia piar. E não era pela extensão do discurso: era pela vehemencia das idéas, da voz, do gesto. Os fidalgos, irritados pelos tiros que lhes despedíra o furioso procurador, balbuciavam entre o escarneo e a vingança brutal.

Houve um momento de silenciosa hesitação.

A insolencia da altivez triumphou emfim, e as ultimas injurias de Mem Bugalho tiveram em resposta ainda outra vez um coro de repetidas gargalhadas.

Mas era um rir triste, frio, forçado, como os applausos dos cortesãos que se espicaçam para achar espertesa e sal em semsaborona tolice que saíu da bôca do monarcha.

O procurador não pôde resistir mais a esta atmosphera d'inexoravel despreso. Com passos vacillantes, rapidos, desiguaes, fugiu da mesa.

Precisava de ar, de espaço, de frescor. Queria sair: foi esbarrar n’uma parede. Recuou: foi encontrar-se com outra. Começou a correr em volta do aposento. Não atinava com a saída.

Então é que o rir se tornou espontaneo e estrugidor. Naquelles sons discordes havia imitações de todas as vozes possíveis de alimarias: o nitrido, o regougo, o pio, o zurro, o rugido, o trinado, o sibillo, o mugido, o urro.

Dir-se-hia que a tavolagem era a arca da alliança, ao abrir-se no cimo do Ararat. Lourenço Braz, que adormecêra estirado no lar, accordou ao ruido, e esfregando os olhos, poz-se a mirar, no meio de um tremendo bocejo, o atarantado burguez. -- «Ui!» -- disse o bésteiro lá comsigo. -- «Jogam á cabra cega? Bonito!.., Nada; não: já vejo. Tem os olhos destapados. Que diabo será isto?! »

« Lourenço Braz, Lourenço Braz!» -- gritava Fernando Afonso. -- «Ajuda a sair aquelle Varrão com dous couces nas pousadeiras! »

O bésteiro não era homem que fizesse repetir duas vezes a mesma ordem, ou que se pozesse a philosophar sobre ella. Ergueu-se e dirigiu-se para o licenciado. Felizmente este atinára, emfim, com a saida, e Lourenço Braz teve de segurar-se com ambas as mãos a uma das hombreiras, porque ao despedir um pontapé para o corredor escuro, onde desapparecêra o designado padecente, feriu em vão no ar, e faltando-lhe a resistencia das nadegas municipaes ao impulso da perna, sem aquella precaução ficaria infallivelmente estatelado.

Entretanto os cavalleiros cubriam-se com os amplos capuzes deitados por cima dos bancos que circulavam o aposento, rindo e fallando todos a um tempo. Os dous frades esses tinham-se apressado a sair.

A sós por alguns instantes com o seu com panheiro, na passagem estreita, o abbade disse de manso para Fr Vasco:

«Vae, corre!... Busca detê-lo á Porta do Ferro, em quanto eu me livro destes diabos. Quero falar com elle: quero persuadi-lo a ir ámanhan ter comigo ao collegio de S. Paulo. Assegura-lhe que é o meio de obter pleno desaggravo. Jura-lho até in verbo sacerdotis. Anda depressa: não te demores!»

Nada mais pôde dizer. O moço frade saíu correndo, e sumiu-se pelos becos que iam dar ao terreirinho da sé. O abbade tomou ao longo da muralha para o lado das Fangas-velhas, e os fidalgos seguiram-no machinalmente.

Como ele soube esquivar-se á turba que o rodeava é o que não diz a chronica. Só refere que d’ahi a alguns minutos, juncto ao arco da muralha de D. Diniz, que, perto da Torre da Escrivaninha dava passagem do atrio da cathedral para a Rua-nova, e que se chamava a Porta do Ferro, as sombras de tres vultos se estiravam movediças no terreiro, escaçamente allumiado pela lampada que ardia na capella da Senhora da Consolação, sobranceira ao arco.

Depois de falarem algum tempo com vehemencia, os tres vultos separaram-se a final.

A conversação, que parecia interessar-lhes vivamente, de ninguem foi ouvida, porque o sitio estava deserto. D'ahi a pouco D. João d'Ornellas, seguido do seu companheiro, puxava fortemente pela sineta da portaria do collegio, onde, morto de somno, ora passeando, ora assentando-se, o esperava ainda, não por caridade, mas por ordem do prior, o converso Fr. Julião, cansado já tanto de resar e encommendar-se a Deus, como de encommendar a todos os diabos sua mui poderosa e illustre reverendissima o abbade D. João, fronteiro e alcaide-mór de Alcobaça.

O converso abriu a porta rosnando, e os dous frades entraram. Não tardou muito que no sino do coro batessem as badaladas que annunciavam a hora de prima. Era que o céu ia-se afogueando já com os primeiros fulgores de uma bella madrugada.

XIII

QUASE SUICIDA.

Dos mates em que ha cura Todo benefycio Mas o mal que é immortal Quem lhe remedio procura Perde todo o cabedal.

CANCION. DE RES. Trov. de Alv. de Noronha.

...« Eis aqui, meu irmão, com que artes detestaveis aquelle homem cruel alcançou arrastar-me ao abysmo. Agora examina tu por teus olhos como eu tive de medir lentamente, esmagada debaixo da mão de ferro d'inuteis remorsos, a profundidade desse abysmo de perdição e de miseria. » Assim fallava a pobre Beatriz, referindo a Fr. Vasco a dolorosa historia das suas desventuras. O monge quizera ouvir-lhe da propria bôca: aquella terrivel narrativa, a qual tinha sido mais de uma vez interrompida pelos soluços e lagrymas da desditosa, que exhauríra emfim toda a energia que lhe restava em volver as negras paginas dessa historia fatal.

O logar da scena era um aposento modesto, mas decentemente adereçado, na rua de D. Mafalda, rua velha como a sé, e da qual a rasoura do terremoto não deixou vestigios na moderna topographia de Lisboa. Proxima do collégio de S. Paulo, prolongava-se por entre a pinha de casarias que, retalhada num cem numero de viellas de seis ou sete palmos de largo, cubria o terreno ladeirento limitado ao oriente pela rua que ía da sé até as portas d'Alfofa, e ao sul pela de S. Justa, a qual passava por fóra do muro de D. Diniz, desde o adro da igreja dessa invocação até o da Magdalena.

O mestre de theologia, que vimos em Restello providenciando tudo, não só para salvar Beatriz, mas tambem para tornar menos amarga a sua situação, concluíra a obra ahi encetada destinando-lhe naquella rua pouco frequentada uma habitação humilde, mas onde nada faltava dos commodos necessarios á vida.

Sem Fr. Lourenço, Fr. Vasco mal poderia ter suavisado a sorte de sua desgraçada irman.

Vestindo o habito cisterciense, o moço cavalleiro reservára apenas uma limitada porção da herança paterna para não abandonar á miseria a velha idiota Brites, cuja tutella encarregára ao seu veneravel pastor, doando o resto á ordem de S. Bernardo, que lhe dera abrigo e lhe promettêra snbsistencia até o dia em que podesse ir repousar debaixo de uma lagea do claustro, envolto nessa mortalha destamenha que ella tambem lhe dera, e que vestíra uma vez para não mais a despir:

É preciso, todavia, confessar que este foi um dos negocios que tirariam o somno a Fr. Lourenço, se um feliz acaso não tivesse vindo em seu auxilio, porque o padre mestre não era homem que deixasse aquecer-lhe na algibeira o dinheiro. Era um mãos-rotas; e a sua ilimitada caridade extorquia-lhe rapida e insensivelmente até a derradeira mealha. Se pôde em Restello occorrer aos gastos das incumbencias dadas ao chocarreiro e á velha, foi que nas vesperas recebêra umas cincoenta dobras de D. Pedro, e algumas dezenas de barbudas dos salarios que se lhe deviam como leitor de theologia no collegio de S. Paulo, em conformidade do que deixára estabelecido o bispo-chanceller D. Domingos Jardo. Com essa pouco avultada somma o cisterciense fizera milagres. Demos, porém, o seu a seu dono. Naquelles arranjos Fr. Lourenço tivera uma habil executora das suas idéas. A tia Domingas era uma joia; e Alle podia gabar-se de ter posto o dedo na pessoa mais adequada aos designios do caciz christão. Com admira vel prestesa e economia a sancta velha corrêra as tendas da rua de S. Justa e da encyclopedica Rua-nova, gyrára, espiolhára, mirára e remirára tamboretes, bancas, arcas, bufetes, cocedras, almucelas, mantens, roupas, prateis, agomias, caldeiras e mais adereços domesticos: tinha apreçado, promettido, desdenhado, barateado, e pago em pogeias de cobre (pelas quaes trocára com lucro as dobras validias de Fr. Lourenço nos cambos ou lojas de rebatedores judeus e prazentins) pelos preços mais somenos e ratinhados que era possivel. Foi, voltou, andou para traz e para diante, de coromem traçado, touca á banda, e guedelhas caídas em desalinho; falou, gritou, bracejou, barafustou, suou e esfalfou-se, de modo que á noite não podia ter-se já nas pernas. Mas, bem empregada lida! Quando no outro dia o mestre de theologia veiu examinar como as ordens que dera tinham sido cumpridas, não pôde deixar de exprimir o seu contentamento e espanto. O arranjo e o aceio de tudo quanto se via no simples e severo aposento eram admiraveis. Beatriz, assentada no estrado raso, que então servia, ainda ás mais nobres damas do gothico Portugal, de marquesa, sophá, ottomana, ou não sei que outros assentos exdruxulos, em nome e feitio, que as modas estrangeiras tem hoje introduzido, empregava-se em bordar uma téla mais delicada pelo lavor que ahi se fa alevantando, que pela finura do tecido, em quanto a tia Domingas, depois de ter dado contas ao monge com um sem numero de notas, observações e commentarios, que o seccaram sofrivelmente, ía assentar-se num banquinho mais alto que o estrado, e, mettendo no classico ourelo da cinctura a roca tradicional, acompanhava com o submisso rangido do derriçar nas barbas do linho, e com o leve zumbido do fuso os discursos cheios de suave uncção com que, por largo espaço, o virtuoso sacerdote tentou consolar a alma attribulada da desditosa Beatriz, por cujas faces as lagrymas deslisavam a quatro e quatro sobre a tela que tinha ante si.

Apesar da actividade de que a bojuda tia Domingas dera tão irrefragaveis documentos; apesar dessa especie de tonel das Danaides, de continuo despejado e repleto, chamado a roca e o fuso (e aqui aprenderá o leitor como um fuso se póde comparar a um tonel) as suas occupações, passada aquella primeira balburdia, não eram bastantes para nos deixar mentirosos se dissermos que a veneranda censora dos costumes depravados de Ruy Casco achára em fim aquillo por que tantos lidam, e que tão poucos alcançam, o otium cum dignitate de uma existencia farta, pacifica, e até, não diremos deliciosa, mas assaz espairecida.

Bem agasalhada no seu pelote e saia nova de valencina, e no seu coromem de arrás, com melhores bocados e habitação mais confortativa, conchegada e tranquilla do que na pobre aldeia de Restello, devia dar-se por completamente feliz, ao menos quanto se póde ser no desterro deste mundo. Todavia, certa propensão, que mais de uma vez lhe fôra fatal, (e disso vimos uma prova deploravel á porta da sua barraquinha em Restello) a acompanhára, como um verme roedor, para lhe tol dar a limpida corrente da vida. Era o prurido chronico e sarnento do mexericar, e bisbilhotar, e moralisar ácerca das vidas alheias. Era esta a cruz da senhora Domingas do Sacratissimo Lado, nome integral da beata. Cuidou d’estourar de silencio nos dous primeiros dias que passou na rua de D. Mafalda; e se não fosse o conhecimento que em breve travou com uma cuvilheira da visinhança, corrêra risco de algum accidente grave de mexericos recolhidos; porque no meio daquella lida nem sequer podera dar uma saltada a S. Francisco, aonde tinha a devoção de ir todas as semanas depositar nos ouvidos do padre Fr. Isidoro, franciscano de fórmas athleticas e letras gordas, as faltas do proximo d'envolta com as proprias topadas e torcicolos na carreira da perfeição espiritual. Tirado este mas, e a tia Domingas cogitava seriamente em removê-lo, podêmos dizer, sem receio de erro grosso, que a sua vida se escoava suavemente na rua de D. Mafalda; porque, dotada de conformidade e resignação heroica, não a afligiam demasiado as tristesas de Beatriz, nem as dolorosas vigilias das suas noites solitarias, em que a infeliz, a sós com as memorias do passado, invocava a morte, em quanto ela dormia a somno solto com o mystico repouso e o devoto egoismo de uma pia e resignada deVota.

Isto que vamos dizendo refere-se ao que succedia poucos dias depois dos acontecimentes, que o leitor presenciou, por ter tido a condescendencia para comnosco e para com Fr. Lourenço de nos acompanhar a Restello. Agora que já lhe expozemos qual era a situação da tia Domingas, é necessario que lhe digamos o que foi feito do mouro truão, a quem não é possivel que deixasse de ficar, como nós, affeiçoado. O mestre de theologia tomára Alle debaixo da sua especial protecção, e não lhe fôra difficil fazê-lo acceitar por sergente, ou moço de porta-a-fóra, na estudaria. Verdade é que o converso Fr. Julião, inimigo declarado de tudo quanto cheirava a judaismo ou mohametismo, o recebêra a principio com a affabilidade com que um grave rafeiro recebe um goso experto e brincalhão, que o pastor lhe deu por companheiro na guarda do rebanho; isto é, rosnando e mostrando-lhe as presas. Não obstante, porém, o teiró do donato, como todos no collegio de S. Paulo amavam e respeitavam Fr. Lourenço Bacharel, o mui reverendo porteiro não teve remedio senão ir-se habituando aos gracejos de Alle, que dentro daquella sancta casa voltava frequentes vezes ao antigo humor jovial e mordaz, como se a consciencia de ter practicado um acto nobre e generoso, abnegando de si proprio por causa de uma desgraçada mulher, houvesse apenas sido um palliativo temporario contra a loucura, meio natural meio voluntaria, em que por tantos annos vivêra, e que de novo lhe reagia na alma, tendo-lhe faltado o estimulo moral, que durante algum tempo lhe emprestára a mascara de cordura, com que se compõe os loucos só por dentro chamados bomens de juizo. O pensamento de Fr. Lourenço, trazendo comsigo o mouro, fôra conduzi-lo gradualmente a abraçar o christianismo. Conhecêra que no seio do chocarreiro batia um bom coração, como é vulgar encontrar-se nas ultimas camadas sociaes, onde o continuo roçar das privações e dores predispõe os animos para a compaixão, e o bom do monge sabia que os olhos purificados pelas lagrymas da piedade facilmente se hão-de abrir sempre á branda luz do evangelho. Mas D. João d'Ornellas, semelhante a cometa perdido no espaço, que approximando-se dos orbes os dissolve e incorpora no seu vulto ardente, ou os atira para novas solidões, onde fluctuam mortos como um cadaver sobre as vagas incertas do mar; D.

João d'Ornellas, que logo percebêra não lhe ser possivel amoldar inteiramente aos seus designios o malaventurado Fr. Vasco, emquanto não o separasse do robusto cedro que o amparava, enviára o mestre de theologia por visitador aos mosteiros de Carquere e Bouro, sob pretexto de que a vida monastica ahi corria soltamente fóra dos preceitos austeros da regra de S. Bernardo. O monge obedecêra; e assim, ao passo que Alle parava na carreira de cathecumeno, Fr. Vasco precipitava-se para um tenebroso futuro, insondavel ainda para elle, mas em cujo mysterio a consciencia lhe afigurava o que quer que era monstruoso e horrivel.

Aproveitámos o silencio de Beatriz para instruirmos o leitor da situação de algumas das personagens que têm intervindo nos successos que nos propozemos narrar, personagens que, témpo há, perdemos de vista. Agora pedimos-lhe cortezmente que volte de novo a attenção para o que se passava na rua de D. Mafalda ao começarmos o presente capitulo; isto é, oito dias depois do grande conciliabulo na tavolagem das Portas do Mar.

No estrado, pouco mais alto que o pavimento da camara, ao qual já alludimos, estava assentada Beatriz. Á luz de uma lampada de dous lumes, colocada sobre uma tripode de ferro, via-se passar pelo chão branco da parede fronteira uma sombra que se movia lentamente. Era o vulto curvado e tenue de Vasco, o bom cavalleiro da ala de Mem Rodrigues nos campos de Aljubarrota, agora Fr. Vasco, vergando já para velhice prematura debaixo da mão ferrea dos pesares. Sem cons ciencia do que fazia, o mancebo passeava de um para outro lado do aposento trazendo na mão um maço de pequenos pedaços do que então se chamava pergaminho de papel, e cuja raridade e fragil contextura faziam com que somente fosse usado quando havia a escrever cousas destinadas a terem curta duração. Eram muitas folhas de varias dimensões, dobradas cuidadosamente, e cingidas, cada qual sobre si, com um nastro de seda de cores. O frade não despregava os olhos do maço; e por mais de uma vez, em quanto durava a narrativa de sua irman, tinha parado como impaciente por desdar os nós que lhe impediam conhecer de antemão o ultimo acto do drama doloroso, cuja protagonista ella era, e cujo desfecho essas cartas deviam explicar-lhe. Conteve-se, porém, e logo que Beatriz, tendo recobrado alento, fez signal de que ía continuar o que restava da sua historia, o frade parou, e cruzando os braços, poz-se a escutar de novo com a mais viva attenção.

«Assim » -- proseguia ella -- « eu esperava, dia apoz dia, o momento em que podesse dizer perante o mundo quanto amava esse homem, a quem sacrificára familia, orgulho, virtude, liberdade, tudo; diante do mundo, como mil vezes lh'o dissera a ele perante o céu; esse momento em que podesse lavar com as lagrymas suaves de uma felicidade pura e legitima o ferrete d'infamia que estampára no nome da nossa linhagem, e em que obtivesse de nosso pobre pae o esquecimento e o perdão; de nosso pae, que eu e ele assassinámos, e cuja morte cuidadosamento me escondêra. Trazia-me cega um amor credulo, infinitamente credulo, porque era infinitamente sincero: por isso cria quanto Fernando Afonso imaginava para alimentar minha esperança; e posto que ás vezes, nos momentos em que so litaria conversava com a propria consciencia, uma voz de remorso e de terror me passasse cá dentro, quando ele voltava, as suas palavras afectuosas, os seus juramentos varriam-me do espirito essas idéas tristes, como o norte varre as nuvens que toldam momentaneamente o esplendor do sol.» « Pouco a pouco, porém, começaram a perturbar-me o espirito inquietações, mais vivas.

Sentia que o seu amor esfriava. As suas palavras eram visivelmente estudadas, as expressões da sua ternura tinham o que quer que era triste, e a impaciencia que ele comprimia na alma, revelava-se-lhe no gesto e modos, sem que o percebesse. Oh, a quem ama com paixão ardente e profunda não é possivel escon der o desamor, e eu amava-o com todo o enlevo de um coração que se lhe rendêra ainda virgem! Meu irmão, tu que no meio das desventuras da nossa familia, buscaste abrigo á sombra pacifica do claustro; tu que, puro diante de Deus, mal sabes o que são taes affectos, não imaginas que infernal tormento seja o ter confundido a propria existencia com outra existencia, o ter edificado todo o nosso futuro sobre esse enlace intimo, e ver desvanecer-se o mais formoso e sancto dos sentimentos, ver decair, agonisar e morrer o pensamento de todos os dias, de todas as horas, de todos os instantes, e achar ao pé de nós, amarrado ao nosso amor cheio de viço e de vida, um amor contrafeito e gelado! Conhecia que esta era a minha situação, e ainda buscava illudir-me recuando ante a fatal realidade; porque a minha desgraçada afeição parecia redobrar, como se houvesse recolhido em si essoutra, que se extinguia. » O monge, que tinha os olhos fitos em sua irman, com um sorriso de indisivel amargura murmurou: «Eu sei de mais fundas agonias!....»

« Póde ser, Vasco: » -- proseguiu Beatriz: -- « mas eu experimentei-as. Contar-t'as?... Como t'as contaria? Que palavras podem pinta las? Lê essas cartas. Saberás depois quanto a punição excedeu um erro, que nunca poderei esquecer, senão quando a terra cubrir eternamente o meu opprobrio. Deus e nossa senhora tragam em breve tal dia!...»

E cubrindo o rosto com as maõs, desatou a chorar.

Os olhos de Fr. Vasco arrasaram-se tambem de lagrymas: eram de sangue que se lhe espremia do coração. Correndo por elles a manga do habito, enchugou-os, e com um movimento convulso foi assentar-se juncto da lampada. Depois, quebrando os fechos das cartas em vez de os desatar, desdobrou-as, e começou a lê-las pela ordem das datas.

Seria demasiado longo transcrevê-las aqui.

Escriptas, a principio, com breves intervallos, tinham sobretudo por objecto explicar frequentes ausencias de quem as escrevia. A imaginação de Fernando Afonso mostrava-se fertil em idear embaraços que lhe impediam, segundo afirmava, o ir testemunhar a Beatriz, mil e mil vezes, que o seu amor era tão vivo e ar dente como no primeiro dia em que a amára.

Posto que a linguagem do moço escudeiro revelasse por vezes a pouca delicadesa dos seus sentimentos, via-se, comtudo, que tinha bastante dissimulação e astucia para illudir a apaixonada credulidade de uma pobre mulher.

Nas mais recentes, porém, que pareciam excriptas em resposta a outras, e cujas datas eram cada vez mais distantes entre si, escapavam de vez em quando, como clarões infernaes, phrases colericas de impaciencia contra queixas e terrores, que o hypocrita seductor fingia considerar como absolutamente infundados. Algumas presuppunham a existencia de scenas violentas passadas entre ambos, e conhecia-se que era sempre Beatriz quem implorara piedade, quem se humilhára ante o seu tyranno, em cujas respostas transluzia o despeito, porque a doçura e resignação da victima lhe roubavam todos os pretextos para um rompimento decisivo. Devia ser bem profundo o abysmo onde se despenhára a desgraçada, para acceitar este combate repugnante, e para esgotar assim gole a gole o calix da abjecção e do infortunio. As cartas cairam então das mãos tremulas do monge, cujos olhos chammejantes, cujas faces encendidas, cujo feroz silencio annunciavam uma crise terrivel.

Fr. Vasco ergueu-se. Mediu o aposento a passos largos, de angulo a angulo. Parou de novo cruzando os braços, e poz-se a contemplar sua irman, que assentada no estrado, com a cabeça entre as mãos, sobre as quaes lhe caíam desalinhadas as louras madeixas, semelhava a estatua da amargura, reclinada, como symbolo da saudade, nos degráus de um tumulo.

A vida revelava-se-lhe sómente no seio, que arfava com os mal comprimidos soluços." . Por fim alçou os olhos para o monge, que sem pestanejar tinha os seus cravados nella, e com um accento inexplicavel de dor murmurou:

« A ultima ! a ultima!»

De feito o frade conservava ainda nas mãos uma carta. Começou então a examiná-la exteriormente com uma especie de hesitação.

Dir-se-hia recear que ao abri-la surgisse ante elle o que quer que fosse phantastico e diabolico. Enfiado, desdeu lentamente o nó, e não menos lentamente desdobrou o papel fatal.

Correu-o com a vista. Então comprehendeu quantas agonias se resumiam no olhar e na exclamação de Beatriz.

Crer-se-hia que esse papel, que tremia nas mãos convulsas de Fr. Vasco, fôra escripto com uma penna arrancada das asas negras do demonio da desesperação e da ironia.

Friamente, longamente, sem colera e sem Piedade, Fernando Afonso punha diante dos olhos de Beatriz o quadro medonho da situação da desventurada com toda a nudez de horrivel realidade. Revelava-lhe que seu velho pae deixára de existir; que seu irmão, conforme o que todos diziam, apparecêra e desapparecêra nos paços paternos como um meteoro, e que tambem ou morrêra ou abandonára a patria. Ponderava que para ella a existencia actual, fechava-se a curta distancia n'um horisonte de ferro, e pendia unicamente da vontade do homem a quem se abandonára. Confessava depois que por muito tempo buscára occultar-lhe o afecto ardente e irresistivel que nutria por outra mulher; mas que, emfim, o protra hir a lucta com o proprio coração se lhe tornára impossivel, e que ela appressára esta revelação cruel com o excesso de um vago ciume. Jurava-lhe que se, desiludido do seu amor não podia vencer a paixão que o devorava, nunca se esqueceria dos deveres de cavaleiro para com aquella a quem devêra um amor immenso, e muitos dos mais deliciosos instantes da vida. Como condições, porém, da protecção que lhe oferecia, ordenava-lhe duas cousas: que não buscasse torná-lo a ver, nem tentasse descubrir a sua rival. Quanto á primeira, ele saberia impedi-lo; quanto á segunda, asseverava-lhe que todos os seus esforços seriam baldados para o obter; porque os laços em que se havia enleado eram um segredo sabido só dele, da sua amante e de Deus. « Para ti, Beatriz » -- concluia a carta fatal -- « vae sorrir uma aurora de obscura e tranquilla felicidade. Mas se acaso, cega de uma indignação inutil, quizeres lançar-te como obstaculo entre mim e o céu de ventura a que aspiro, sabe, pobre e fragil verme, que a minha mão de bronze iria esmagar-te sem remorsos, sem piedade, e sem que o mundo sequer suspeitasse o teu inutil sacrificio.» Tal era em substancia a ultima carta do moço escudeiro. Mal imaginava ele que verdade ahi escrevêra! Desses amores occultos, cuja revelação dirigia como um punhal ao seio de Beatriz, sabia Deus. Ao tenebroso mysterio a inexoravel testemunha devia dar no dia da sua colera uma publicidade terrivel...

Não anticipemos, porém, os successos, e sigamos, como até aqui, a ordem em que os achámos colocados no velho manuscripto.

«Oh, sancta mãe de Deus! » -- prorompeu redobrando os soluços e lagrymas a filha de Vasqueannes, quando seu irmão acabou a leitura. -- «Não caí morta ao ver esse papel horrivel: não! Mas era forçoso morrer..... Como ponto unico no horisonte do meu futuro, onde reverberava alguma luz no meio de trevas sem fim, apparecia-me a sepultura. O martyrio do continuo sobresalto, das vagas incertesas avivava-mo, em vez de o suavisar, a duvidosa esperança que ainda alimentava.

Ella espirara emfim, e por alguns instantes quasi que achei refrigerio no desfalecimento da desesperação. Nessa especie de medonha bonança medi toda a extensão da minha desdita. Uma escrava que me servia, o tecto que me abrigava, os trajos que trajava, o pão que me nutria, era Fernando quem m'os dera.

Em quanto o preço das minhas poucas joias bastou para me supprir, tinha-me esquivado a acceitar as suas ofertas; mas, quando todos os recursos desappareceram, fôra constrangida a consentir na sua vil generosidade, que ainda cria nobre e honesta. Abandonada por elle, o viver um dia mais que fosse naquella odiosa morada seria gravar mais fundo o sello da propria infamia. Era preciso sair d'alli; porque essas paredes, esses adereços, essas alfaias, tudo parecia insultar-me. Mas em Lisboa não conhecia ninguem: não saberia sequer como atravessar essa multidão de ruas e praças, que, vivendo quasi occulta, nunca ou raramente cruzára.

« E que importa?» -- exclamei eu no auge do meu delirio. -- « Não conduzem todos os caminhos á morte? Ou necessito eu de testemunhas para esconder no seio della a minha desventura e opprobrio?»

«Era ao lusco-fusco da tarde. D'uma janella do aposento descortinava-se a bahia do Téjo na sua amplidão até onde a encubria um grande edificio enegrecido pelos annos, e situado a pequena distancia da cidade para o occidente. Tinha-me dicto que eram os paços reaes de Sanctos. Sabes que antes desse dia fatal, em que abandonei sem remorsos nosso velho pae, nunca víra o mar. Quando pela primeira vez, daquela mesma janella, contemplei essa immensa copia d'aguas, apesar do insensato prazer que sentia de me achar então ao lado de Fernando, experimentei uma violenta impressão de terror, e, não sei porque, veiu-me ao espirito a idéa de me ver mergulhada no immenso pego que brilhava tremulo, debatendo-me nas ondas, e afundando-me, afundandando-me sem que ninguem me soccorresse.

Foi tão energica esta impressão, que recuei horrorisada, dando um grito agudo. Assustado a principio vendo-me tremula e demudada, Fernando não pôde conter o riso, apenas lhe expliquei a causa do meu subito terror. Posto que, depois desse dia, fosse gradualmente desapparecendo aquelle susto infundado, nunca chegava á janella d'onde a primeira vez víra o mar sem sentir o receio invencivel, que gera em nós o approximarmo-nos da beira de um precipicio.»

« Havia já bastante tempo que não lançára os olhos para o rio. No tumulto, porém, de paixões que essa carta cruel me accendêra no seio, sentia uma oppressão intoleravel: abri machinalmente a janella para respirar. Tinha ante mim o vulto das aguas, que mal se enxergava á claridade tenue do crepusculo fugitivo. A impressão que tal vista me produziu no espirito foi inteiramente nova. Representava-se-me a imagem de morte irremediavel na solidão das ondas, como da primeira vez que as contemplára: o terror, porém, desapparecêra. Attrahia-me, ao contrario, para ahi | um sentimento de aprazivel saudade. Até este momento nem uma só lagryma me assomára aos olhos: pousavam-me todas condensadas, espessas, sobre o coração. Correram então com abundancia, e pude emfim respirar.»

« A noite vinha tempestuosa. Um negrume cerrado alevantava-se d'alem dos montes d'Almada, e corria ao longo delles impellido por vento rijo e tepido, que murmurava pelas ameias dos eirados e pelos corucheus dos palacios, e fazia gemer o rolo do Téjo, batendo mais violento e encapellado lá em baixo na praia da judearia. Não se descortinava no céu uma estrella, e a chuva miuda e frequente começava a fustigar-me as faces. Puz-me a scismar, e scismei muito tempo. Uma voz parecia dizer-me: «Ao mar! ao mar!» -- Era o demonio que me tentava ? Assim o cri a principio. Ajoelhei e resei a nossa senhora e ao meu anjo da guarda. A mão de ferro da angustia bastaria para me matar: porque havia, pois, tentar contra os meus dias? Foi a idéa que me veiu depois de muito resar. Ergui-me, e tornei á janella. Olhei: era noite escura: já não via senão o alvejar ao longe das carneiradas que corriam pela superficie do rio. -- « Ao mar! ao mar ! » -- repetiu-me a mesma voz íntima que ouvíra. Intima!? Não digo bem: juraria que me soava distinctamente nos ouvidos. A terribilissima recordação de que tudo quanto me rodeava pertencia ao homem que me abandonára; de que só á miseria e á deshonra podia naquelle momento chamar minhas; de que, sem acceitar um nome infame, não me era lícito demorar-me naquela morada, nem sequer para estalar de dor; tudo isto, juncto com a voz imperiosa que ouvia, excitava em mim tal delirio, um phrenesi tão insensato, que não hesitei mais em obedecer a esse preceito infernal. As difficuldades que poderiam obstar a semelhante resolução, nem sequer me passaram pelo espirito. Imaginei que, além dos paços de Sanctos, por entre essas vinhas que os rodeavam estendendo-se para o occidente, algum outeiro escarpado, algum promontorio bojando sobre as aguas, me facilitaria um ponto sobranceiro ás vagas donde podesse precipitar-me. A margem de cá do Téjo devia ser como me parecia a de lá, aspera e debruçada sobre as ondas. Achava-me só: a escrava saíra. Cubri-me com um capuz, escondi a cabeça e o rosto com o capello, e obedeci ao impulso que me arrastava. Parti.»

« A chuva começava a cair grossa e pesada.

A minha bôca, durante esse dia, não tocára em nenhum alimento; e comtudo sentia-me robusta. Só as veias das fontes, batendo-me com força, e uma viva dor de cabeça me perturbavam. Segui o caminho que me pareceu dirigir-se para o poente da cidade. As rajadas do vento, que soprava rijo daquelle lado, serviam-me de guia atravez das ruas tenebrosas e confusas que succediam rapidamente umas ás outras. Os raros vultos que encontrava sentia-os parar um momento; mas os meus passos eram tão ligeiros, e a escuridade tão profunda, que logo cessava o reparo e seguiam o ávante. Brevemente me achei n'uma rua ladeada de arcarias: grandes edificios como que passavam para traz fugindo: devia ser a Rua-nova em que tanto ouvíra falar. Atravessei um terreiro, encaminhei-me ao longo de uma corredoura ou passagem estreita e solitaria, e cheguei a uma das portas occidentaes da cidade. Estava aberta ainda. Apesar da cerração divisava-se um largo panno da muralha pardacenta, sobre a qual duas torres da mesma côr se me representavam como dous espectros gigantes de pé em cima d'extensa lousa. Estremeci de terror. Lembrou-me que essa porta era a da vida para a morte, e que, talvez, pouco depois de a haver transposto, ela se fecharia eternamente apoz mim.

A imagem do nosso pae, a tua, meu irmão, e até a da nossa pobre Brites pintaram-se-me na alma com tanta vivesa, tão repassadas de saudade, que parei, e assentando-me n'um marco junto ao vão da porta, desatei a chorar.» « Foi, porém, um momento. Depois dessas imagens tão queridas, outra com um sorriso descarneo as substituiu. Adivinhas qual fosse....

A repugnancia succedeu ao terror. Senti que já não amava; que antes de me soltar da vida este coração morrêra! Ao mesmo tempo a voz, que mais de uma vez ouvíra, pareceu-me que repetia as palavras fataes: -- «Ao mar! ao mar!» -- Diria que os labios desse vulto, que a imaginação febricitante me afigurava, se haviam agitado para as proferir. Ergui-me então. Tinha os olhos enxutos, e com passos firmes atravessei o profundo portal.»

«Além delle era uma estrada chan. Por entre algumas choupanas, que demoravam da esquerda, via-se um reluzir vago, e ouvia-se estourar e murmurar espraiando-se o rolo das ondas. O vento abrandára, as nuvens rareavam e a lua passava a correr por cima dellas adiante de mim. A direita erguia-se um monte empinado. Era necessariamente o de S. Catharina, cujos cimos cubertos de verdura e coroados de algumas casarias, eu d'antes avistava ao longe por cima dos adarves da muralha occidental. Depois de observar rapidamente o que me ficava dos lados, olhei ante mim, para me afirmar no caminho. Lá estavam a curta distancia os paços de Sanctos, cujo vulto negro o luar nublado me deixava reconhecer, posto que mal distincto.» «Desde então em nada mais reparei senão nesse edificio tristonho que tomára por baliza. Em breve o transpuz descendo para estreito valle. Com desvairada alegria vi que a estrada subia de novo prolongando-se com o rio. Era como o prevíra. Pendurava-se acima da agua em ribas despenhadas e fragosas. Alli ia achar, emfim, a noite verdadeira e eterna em que repousasse das angustias desse infernal dia. » «Mas a especie de ebriedade phrenetica, o feroz contentamento que agitava a minha alma, durou bem pouco. A estrada, que seguia quasi á borda do precipicio, estava amparada por um muro, que a ía acompanhando até se curvar para outro valle. Prosegui sem desanimar ainda, esperando achar alguma passagem para a ribanceira. Debalde: nenhuma havia.

Pensei então em retroceder... Para onde, e para que? «Eia!» -- disse comigo. -- «Aqui, ou mais adiante, que importa? Continuei. »

«Ou que o cansaço me houvesse quebrado as forças, ou que a humidade, que me traspassava os membros, me houvesse acalmado um pouco a febre em que ardia, eu caminhava menos rapidamente. Não tardei a passar uma ponte. Além della, a um lado ficavam brenhas e arvoredos que murmuravam com o vento; ao outro, a lua descuberta um momento por entre as nuvens rotas, prateava o mar. Alonguei os olhos: diante de mim dilatava-se a margem pantanosa e solitaria, que, estreitada pelos montes, e semelhante a uma faixa mosqueada, se estendia a perder de vista. Parei outra vez. Começava a desanimar: o frio coava-me até a medúlla dos ossos. Corri á praia para metter-me ás vagas, deixando que ellas me arrastassem; mas aos primeiros passos que dei, penetrando na agua, recuei horrorisada.

Pelo rio revolto do temporal vinha a approximar-se, a approximar-se um rolo enorme, que ao tocar em terra se-espraiou em lençóes d'escuma. Era medonho ver vir assim a pouco e pouco a morte para me dar a mão, e pouco a pouco, retirando-se, arrastar-me ao abysmo.» « Tua irman, meu Vasco, que já deshonrára uma vez o sangue generoso de nossos avós cedendo a uma paixão insensata, deshonrou-o outra vez com a covardia. Não tive o valor de morrer!... » Um como rubor hectico passou pelas faces pallidas de Beatriz, que as cubriu com ambas as mãos, ficando assim por alguns instantes.

Depois, afastando as madeixas que lhe haviam pendido sobre o rosto, proseguiu:

« Tornei a metter-me ao caminho; mas já não tinha inteira consciencia do que fazia, e nem, até, me recordava bem do motivo por que me achava alli. A dor violenta que sentia na cabeça desapparecêra: deslumbravam-me, porém, umas fitas de fogo que frequentes vezes via passar ante os olhos. Estontcava-me um zumbido estridente, que impedia chegarme aos ouvidos outro qualquer som, e a estrada afigurava-se-me uma cobra monstruosa colleando-me debaixo dos pés, que fugiam para traz sobre o dorso escorregadio do reptil. Estendi as mãos para me segurar. Dei um estremeção violento, e nada mais senti. »

« O resto sabe-lo tu, meu irmão.» Beatriz calou-se: e apoz largo silencio, o frade na mesma postura, de braços cruzados e com a cabeça pendida sobre o peito, parecia escutar ainda.

Depois, alçou subitamente a fronte, estendendo para o ar os punhos cerrados, blasphemia muda dicta pela sua alma ao céu. Reverberava-lhe outra vez o fulgor nos olhos, a côr da vida no gesto, e sem proferir palavra recomeçou o seu anterior ir e voltar de um para o outro lado do aposento. Havia naquele movimento o que quer que era de tigre encerrado em gaiola de ferro.

Deixemo-lo scismar e passear; e em quanto scisma e passeia, aproveitemos o tempo para irmos espairecer os olhos n'nma scena bem diversa.

XIV

DESIGNIOS.

Contas na mão, e o démo no coração. Aonde o ouro fala, tudo cala.

ADAGIOS ANTIGOS.

As phrases abruptas, por onde concluimos o precedente capitulo, fizeram, talvez, com que o leitor se capacitasse de que, semelhantes ao côxo Asmodeu, o arrebatavamos da modesta habitação da rua de D. Mafalda, para o transferirmos em bolandas a algum logar, ou escuso ou remoto, na cidade ou extramuros, para assistir a estranhas scenas, só atadas ás que já presenceámos pela progressão dos successos, que temos a gloria de ir desenterrando do pó do esquecimento. Quanto são errados os juizos humanos! Enganar-se-hia o conversavel e pacifico leitor que assim o pensasse. Posto que a litteratura destes nossos tempos -- o drama e a novella -- tenham levado tanta vantagem em rapidez de locomoção ás viasferreas, quanta levam as faculdades da imaginativa ás fôrças mais energicas do mundo material, a nossa mutação, apezar disso, respeitará as sans doutrinas da unidade de logar e de tempo.

Abramos a porta da ante-camara onde estão, fechados por dentro, o monge e sua irman, e desçamos por esta estreita escada, que fica á nossa direita. Bem. Estamos n'uma casa terrea. O lar com um resto de brasido, alli o vemos daquelle lado; uma banca de pinho no meio da quadra; defronte a cantareira com o vermelho e encerado pote, por cima do qual pende ao desdem grosso mas limpo bragal, reluzindo em volta, na prateleira mais alta, um renque de caldeiras, agomias, prateis, salsinhas e outros trastes analogos, sobre o chão alvo da parede irreprehensivelmente caiada. É uma cozinha o aposento onde nos achámos: não ha que duvidar.

Mas para que descemos, para que revistá mos, para que viemos aqui?

Esperae, que ainda não vimos tudo.

Olhe o leitor para aquele recanto escuro, aonde mal chega a claridade quasi crepuscular da chammasinha, que de vez em quando espirra no candeio de ferro, pendurado dentro da chaminé fuliginosa. Não divisa lá o que quer que seja? uma janella aberta; umas adufas alevantadas; um raio de luz de estrella, que escapa por entre a rotula? Não enxerga um vulto roliço, curvado sobre o peitoril, posto nos bicos dos pés, e com a cabeça torcida, meio para o lado, meio para o ar, como se espreitasse algum planeta, ou esmasse, pelo curso de nuvem passageira, d’onde viria o vento ? Não conheceu ainda pelas linhas do perfil, pelas roscas espiraes do pescoço, pela touca farfalheira, pela rotundidade das ancas, pelo lombudo das costas, a nossa tia Domingas? Pois é ela. Cheguemo-nos pé ante pé; tenhamos a respiração; appliquemos o ouvido, e convencer-nos-hemos de que não foi inutil para a intelligencia deste importante livro, o devassarmos o interior da morada de Beatriz, nem o descermos aos dominios culinarios da cuvilheira, em quanto Fr. Vasco anda philosophando, lá em cima no sobrado, á maneira dos peripateticos.

A respeitavel matrona de Restello fôra excluida da larga conferencia do moço cisterciense com sua irman. Mandarem-na sair do aposento buliu-lhe com a subjectividade. Fr. Lourenço nunca mostrára semelhante falta de consideração. Desceu resmoneando para a cozinha, e começou a arrumá-la, trauteando a devota lôa do justo juiz, indicio supremo das horas aziagas de máu humor e perrice da tia Domingas. Andava tudo numa poeira: as tripeças iam-lhe adiante dos joelhos; a banca de pinho levou mais de dous empurrões: esteve quasi meia hora a raspar n’uma caldeira com um talhadouro velho e cheio de móssas: fez cair no chão uma barda de pratos d’estanho, querendo matar com uma vassourada uma barata que ía a correr pela parede; e por fim de contas quebrou um lindo pucaro d'Estremoz, ao enchê-lo d'agua para apagar o brasido. Depois de todas estas façanhas e cavallarias, abriu a janella, alçou a adufa, escarrou, tomou ruidosamente a respiração por tres vezes, e concluiu esta serie de actos expressivos com dous ai ! ai! seguidos da exclamação sacramental: -- «Coitado de quem atura filhos alheios! »

«Que tem, vizinha ?» -- murmurou de uma janella lateral voz adocicada que parecia de mulher moça. -- «Que tem, que está agoniada? Passou bem? Já não ha quem a mereça. »

« Que hei de ter? A minha vida; a minha vida! Parece que me não benzi, ou que tenho peccado molento. Se esta semana me não confessei! Fui hoje a S. Francisco. Qual Fr. Isidoro, nem meio Fr. Isidoro! Tinha ido prégar a Restello. Meu rico padre espiritual, que foste deitar as tuas perolas a porcos: sempre lhe digo, vizinha, que gente assim..... Elas: cal-te bôca: e eles... Ai, virgem bemdicta ! Mancebias, mancebias, que é um tremer. E não hade haver peste, fome e guerra?! Não; que não hade. Peccados e mais peccados: onzenas, mortes, roubos, murmurações; e querem que Deus tenha paciencia? Demais a tem elle tido. Mas, como lhe ía dizendo: tudo me sae esta semana torto! Sabbado de nossa senhora é hoje! Ainda bem que está acabada. Jesus, sancto nome de Jesus! E a vizinha como vae ? »

«Bem, tia Domingas: obrigada. Diga-me cá: não tenho visto o frade bernardo já idoso, que ahi vinha todos os dias... frei... frei...»

«Fr. Lourenço, não é que diz?»

« Fallou; que cant'ao moço, ao irmão de sua domna, esse vi-o eu entrar ainda agora... »

« Mandaram-no lá para um convento de cima. Cousas da governança, conforme ouvi rugir. Era frade de lei! Cá nos deixou a chaga do companheiro. Forte casmurro é o tal Fr. Vasco. T'arrenego! Lá está em cima a azaranzar a coitada da irman. Uhm, uhm, uhm. Sempre a rosnar o maldicto! E focinho com que não engraço. Ainda não lhe vi os cunhos ao dinheiro, nem lhe ouvi boa palavra. Escute... Ahi anda elle com a veneta: da-lhe que da-lhe a passear. Gasta naquillo horas esquecidas. A irman chora que se mata. O que lhe ele canta, isso não sei eu. Olhe; sabe o que lhe digo? E que ha gente que nasceu para castigo dos outros. »

«Então, visto isso, não tem podido entrujir...»

«Nada: por ora nada. Elle a entrar, e a acenar-me com a mão que sáia. Parece um fidalgo! E pan, porta nas costas, e zás, volta á chave. Já estive uma noite a escutar na escada; mas o excommungado, Deus me perdoe, que falo do bento cercilho abaixo e com a devida reverencia ao habito do nosso padre S. Bernardo, parece que me presentiu, porque disse para a irman (aqui a tia Domingas fez uma voz de papo): Toma tento, Beatriz: se esta cuvilheira fôr curiosa, é preciso despedila. Depois escarrou e tossiu. Fiquei sem pinga de sangue: e o suor era em bagas. Desci pé ante pé. Abrenuncio! Não; lá isso não! Ainda que se matem não sáio da cosinha.» « Ora, ora! E exquisito o irmão de sua domna! Irmão: creio que não tem dúvida que é irmão: » -- disse a outra com uma certa inflexão de voz maliciosa.

«Essa é boa! Pois eu parava aqui um instante, vizinha? Menos isso! Com Domingas do Sacratissimo Lado não faziam farinha. Coma-se de rala; mas cara descuberta. Irmão carnal de pae e mãe. Disse-o Fr. Lourenço, está dicto: para mim é um evangelho. Bem sei que haverá praguentos e murmuradores, que deitem peçonha; mas nesse ponto ponho as mãos no fogo. E demais: ninguem póde tapar as bôcas do mundo. Melhor era que certa gente olhasse para si. As cousas a mim não me caem no chão. Já cá ouvi uns zums, zums, e por isso canto por esta solfa. A proposito: » -- accrescentou a tia Domingas em voz ainda mais submissa -- « como vão os namoricos da vizinha do segundo andar, da filha do tabellião? Tens visto passar o cujo?»

«Isso pergunta-se? Ainda hoje: eram trindades. Cavalgava um cavallo raudão: trazia saio de setim azul, empennado á volta de martas, e calças roxas brosladas, chapeu chapado á franceza, borzeguins de gamo, todo airoso e bemposto. É um mocetão: lá isso é! Chegou alli defronte, e poz-se a sofrear o cavallo, que principiou a saltar e a recuar e a fazer um estrupido na calçada que até veiu á porta o vizinho armeiro, e mais estava azafamado a acabar umas grevas. Alçou-se então a adufa, ahi mesmo por cima da camara da sua donna, e appareceu aquelle rostinho de alfenim, com um riso e olhar que matava. O gentil escudeiro que não despregava os olhos da janella, depois de fazer suas gaifonas, partiu a galope. Creio que o pae não estava em casa...»

«Nada; não: » -- interrompeu a velha Domingas. -- « Hoje a horas de terça vinha eu pelas Fangas acima, da banda dos cubertos do Pelourinho, de fazer as minhas mercancias. Com quem havia de dar de rosto, mesmo á porta do paço dos tabeliães? Com mestre Bertolameu. -- «Olé, vizinho! Hoje não se dormiu a sésta?» -- perguntei-lhe eu a rir. Vae elle, e diz-me: -- «Pois que quer, senhora Domingas? Nestas vesperas de côrtes não ha mãos a medir. Os procuradores não se tiram do paço a pedir traslados authenticos, certidões, autos, e quanto lhes vem ao bestunto. Temos que dar á unha até o serão. Guarde-a Deus, vizinha.» -- «Vá na graça do senhor: » -- respondi-lhe eu, e vim arrastando a ossada até o alto da Madanela. Cheguei estafada a easa. Eu a entrar, e a moura de mestre Bertolameu a sair. Ia tão estonteada, que me pisou o melhor calo que tinha. -- «Terçanste comam, demonio!» -- disse-lhe eu. -- «Seja pelas chagas de Christo!» Pois, que pensa que ella fez? Desatou a rir, e foi-se esgueirando. Se a apanhasse esbofetea va-a. Rir-se de mim aquillo! Eu, que a conheço de Restello, e mais o perro do pae. As tres o diabo os fez. Deram em pantana com um tractante d'um almuinheiro, com quem ella esteve de casa e pucarinho. Agora metteu-se a soldadeira, até ter outro commodo... Mas cal-te bôca ! Certas cousas é melhor não fallar nellas, para não cair em peccado de murmuração. Só lhe digo que a tal Zilla ha-de ser uma alcaiota de truz. »

«Lá isso é verdade. Tem-no escripto na cara: » -- replicou a outra cuvilheira. -- «Mas diga: ainda não perguntou quem era o bargante? Tenho idéa daquella veronica. O especieiro prazentim alli de baixo creio que o conhece. »

« Conhece, conhece! Fui lá hontem comprar um pouco de assucar rosado de Alexandria, e uma dinheirada de pimenta. Era micer Richarte em pessoa que estava ao halcão. Boa laia d'homem que é aquelle micer Richarte ! Fala como um breviario; e até lhe dá graça a sua meia-lingua. Derriçámos o nosso bocado; veiu o negocio á balha, e poz-me tudo em pratos limpos. »

«Então quem é? quem é?» -- interrompeu a interlocutora que rebentava de curiosidade.

« E um tal Fernandaffonso, camareiro delrei, ou o que é. Fernandafonso, parece-me que disse micer Richarte... É isso, é. »

«Que.... tu.... nan.... tão !» -- exclamou a collega da tia Domingas, carregando naquellas quatro syllabas, que proferidas, assim lentamente, por uma bôca de mulher, significam: -- «muita pena tenho de que não seja o caso comigo.»

«Sim?!» -- replicou a velha. -- «É o que se vê neste tempo. Oh tem para amoras ! como diz aquele sanctinho de Fr. Isidoro por seu latim, quando discorre sobre o que é este mundo. A mocidade vae perdida; perdidinha! Está fresca D. Alda! Pobre mestre Bertolameu!»

« Delle tambem eu tenho dó. Mas della?! Sua alma, sua palma. Não importa, que é para lhe abater as suberbas, áquelle focinho torto A boa porta vae bater! Aquillo, que era capaz de enrodilhar as onze mil virgens. Olhe que as punha á cincta...»

« Ai, mana, não diga heresias, que se me arrepiam os cabellos.»

« É modo de fallar. Se ouvisse as historias daquelle estavanado que andam em praça, isso é que é de fazer arrepiar. Não acabava se começasse a enfial-as. Quer saber uma fresquinha, que me contou hontem a minha fregueza de pescado, que mora na rua das Esteiras, na esquina do terreiro de S. Julião por baixo da ermida da Oliveira, de fronte de um tosador? »

«Bem sei; bem sei: de mestre Inofre, que tem uma filha já espigada...»

« Foi com essa mesma o caso... »

«Domingas, Domingas! » -- soou de repente do alto da escada. Era a voz estridente de Fr. Vasco. A velha nem deu as boas noites á palreira visinha. Deixou cair a adufa, e gritou: » -- «Ahi vae, ahi vae. Estou acabando de encerar o pucaro d'Estremoz.»

A pressa com que a chamavam era uma excelente desculpa recriminatoria para quando apparecesse quebrado.

Em quanto ela tarda em subir, para provar com muda eloquencia a lida e azáfama em que andava, vejamos o que, durante o dialogo, que transcrevemos para edificação do leitor, se passára no aposento de cima.

O moço frade tinha passeado muito.

Parou finalmente com o rosto voltado para a parede, e com as mãos cruzadas atraz das costas, como se estivesse lendo attentamente o Mane, Thecel e Phares da sala do banquete de Balthasar.

E, comtudo, nada via de quanto o rodeava.

Tão íntima era a sua meditação.

Depois de se conservar largo espaço naquella postura, virou-se como impelido, apoz violenta lucta comsigo mesmo, por uma resolução suprema; dirigiu-se para Beatriz, poz-lhe a mão sobre a cabeça, e disse com solemne tranquillidade.

«Minha irman, ainda resta uma esperança.» Beatriz alevantou o rosto com um sorriso fugitivo d'incredulidade, e logo deixou pender a cabeça entre as mãos, meneando-a lentamente.

« Resta sim!» -- proseguiu Fr. Vasco. -- «Era sangue o que devia remir a seducção; mas o sangue, que lava a beta negra traçada na fronte, espirra para o coração do assassino, e assignala-lh'o com outra beta mais cruel e mais negra, que pouco a pouco se vae irradiando e o devora. Poupemos o sangue, e tentemos ainda!... Fernando salvará a tua homra, a honra de nosso pae, e a minha propria, se é cousa essa em que deva pensar quem traja em vida a mortalha. Ha um anno teria corrido a saciar-me de vingança inutil: hoje a seiva do meu viver está gasta; muito gasta, Beatriz. Na eschola da adversidade aprende-se a prudencia. Vamos lá; vamos tentar se nas trevas da sua alma póde pene trar um raio de piedade e justiça: vejamos se a reparação póde absolver-me do desaggravo que perante a imagem sacrosancta de nosso pobre pae jurei tomar. Senão.... Deus se amerceie delle, e tambem de nós!» Estas palavras foram dictas num tom que fez tremer Beatriz.

« «Não, não!» -- exclamou ella. -- «Nunca!» O monge continuou, como se não a tivera ouvido:

«Que te diga diante do mundo -- « tu es minha mulher » -- e que depois te abandone, te deteste. Que te importa, ou que me im porta? Eu te amarei por elle; eu concentrarei em ti as minhas afeições todas. Reclinarás a tua alma neste coração devastado e deserto, e repovoa-lo-has de ternura. Viveremos um para o outro: esqueceremos no amor fraterno passadas desventuras; porque ambos nós temos muito que esquecer.... É necessario que esse, homem torne a ver-te; que mais uma vez te humilhes ante o teu seductor, e que seja elle, não eu, que lavre a propria sentença. »

Como se no regaço lhe houvessem lançado uma vibora, Beatriz deu um grito de horror, e poz-se em pé.

«Mata-me, Vasco: » -- exclamou ella com o impeto da indignação -- «Podes; devias, talvez, tê-lo feito... Que a terra cubra a nossa deshonra. Mas eu humilhar-me ainda uma vez ante esse homem que me envileceu, sa crificando-me aos pés de outra mulher; que fez de um amor ardente, illimitado, submisso, objecto d'infame ludibrio; que me impelliu de crime em crime, e por cuja causa nosso pae legou a sua filha a justa maldicção do moribundo?! Oh, isso não! Bem sei em que abysmo caí. Mas antes perecer do que acceitar, para delle sair, a mão atraiçoada que me precipitou.» «Como te approuver, Beatriz: » -- replicou o cisterciense, cujos olhos scintillavam, mas em cuja voz firme e serena apenas vibrava ironia amarga. -- «Vejo agora que era um insensato quando imaginava que valia a pena de sacrificares alguma cousa ao teu e ao meu futuro; que valia a pena de não poupares um derradeiro esforço para consolar debaixo da lousa as cinzas de Vasqueanes. Foi um erro. Não importa!.... Fa-lo-hei eu, o sacrificio; eu só, tremendo, e ruidoso. Dous clarões havia no horisonte: um apága-lo tu; resta, o outro, sanguineo e sinistro, para me esclarecer a estrada.... O primeiro podia ser a aurora, não da felicidade, porque para nós ella é já impossivel, mas da consolação: o segundo vem do poente; é o ultimo clarão que rompe o negrume, accumulado ao anoitecer, da tempestade nocturna; é a tocha infernal que allumia a vingança, mas vingança que completará a deshonra da nossa familia. Olha, Beatriz, ha muito que me anda aqui na cabeça uma idéa fixa. Não tarda o dia da procissão de Corpus: e nesse dia á noite a tua velha cuvilheira virá contar-te uma horrenda historia, de que Lisboa inteira ha-de falar. Dir-te-ha, alli, assentada áquelle canto, e persignando-se tres vezes: -- Na longa fileira das communidades viam-se alguns frades do collegio de S. Paulo.

A uma das varas do pallio ía elrei: seguiam-no todos os cavalleiros e escudeiros da côrte, a pé, como elle, e desarmados. Então d'entre esses poucos frades de Cister saíu um ainda moço, e encaminhou-se para o logar onde ía elrei. Ninguem pensou em embargar-lhe os passos. Que importa um frade que vae ou que vem? Buscava alguma pessoa, na turma dos cortesãos, e de feito chegou-se a um delles.

Fallou-lhe ao ouvido: o que lhe disse ninguem o percebeu; mas viu-se reluzir ao sol um ferro, e o cortesão caíu. Era um moço gentil! O frade poz-lhe um pé sobre o peito que arquejava, e assim ficou a olhar de roda e a rir....»

A donzella atirou-se aos pés do monge, abraçando-o pelos joelhos, e exclamando: -- «Vasco, Vasco, por alma de nossa mãe, tem dó de mim!»

«Dias depois » -- proseguiu elle, sem volver sequer os olhos para sua irman -- «contar-te-hão o resto e dir-te-hão: «O frade, prenderam-no: não quiz revelar a ninguem o segredo da sua vingança; e elrei mostrou-se, com razão, inexoravel. Arrancaram-no do fundo do calabouço: tiraram-lhe solemnemente as ordens: despiram-lhe as vestiduras monas ticas; e entre apupos da gentalha conduziram ao patibulo o ultimo descendente de nobre linhagem; que de nobre linhagem vinha o frade. Era o que restava della: um assassino ! Minto. Ainda ficava no mundo uma vergontea da arvore derribada: era uma mulher prostituida.»

«Pois sim! pois sim. Que venha! Arrojar-me-hei a seus pés... Tudo quanto tu quizeres... tudo!» -- interrompia a desgraçada com voz quasi imperceptivel.

E Vasco sentiu nos joelhos o afrouxar do estreito abraço. Abaixou os olhos: a cabeça de Beatriz pendia-lhe para o lado; um gemido afogado veiu ferir-lhe os ouvidos, e no mesmo momento viu-a cair como morta. O ranger dos dentes era nella o unico signal de vida.

Fôra neste lance, que a tia Domingas ouvíra a voz do frade chamá-la duas vezes.

Quando a velha entrou, Fr. Vasco estava encostado á hombreira da porta, com a cara escondida entre as mãos; e a donzella jazia desmaiada e de bruços no mesmo logar onde caíra.

O monge, que parecia inteiriçado por um espasmo nervoso, recobrou, emfim, o movimento.

Fez signal a Domingas para o ajudar, e ambos conduziram Beatriz para a sua camara. A agitação a reanimára. A cuvilheira ficou sósinha ao lado de sua ama, que parecia respirar mais soltamente, como quem dormitava.

Passado um largo espaço, durante o qual o cisterciense se occupára em ajuntar as cartas de Fernando. Afonso, que cuidadosamente guardara, e no seu ir e voltar de uma para outra parte, a tia Domingas ouviu-o chamá-la de novo mansamente.

« Nosso padre S. Bernardo me perdoe; » -- pensou ella -- « mas o frade é o diabo. Que me quererá o maldicto agora?»

Quando a viu assomar, Fr. Vasco parou, e olhando na direcção da camara, inclinou para traz a cabeça e estendeu a mandibula inferior, como interrogando a cuvilheira ácerca de Beatriz.

« Dorme: » -- respondeu a velha. Bem sabia ella se dormia. O monge sorriu. Dormir!

A um seu aceno, Domingas approximou-se.

Então, tirando debaixo do escapulario uma bolçasinha, o cisterciense po-la sobre a especie de tripode em que estava a lampada. Involuntariamente a beata foi-se chegando mais.

Dera-lhe o coração um pulo. Sem saber porque, o teiró que tinha a Fr. Vasco sentia-o diminuir d'intensidade com uma especie de prazer semelhante ao que experimentamos quando, depois de dia abafado da canicula vem pela tarde a briza do mar refrigerar-nos o sangue, e restituir-nos ás fibras languidas o anterior elasterio.

«Mulher, » -- disse o moço frade apontando para a tripode -- « aquella bolça é tua ; mas has-de executar á risca o que te vou ordenar.»

Estas palavras abruptas eram as primeiras que nessa noite ele dirigia á senhora Domingas do Sacratissimo Lado, que não gostou do tu grosseiro, nem da brutal designação de mulher, posto que a oferta fosse assaz melliflua, e, por assim dizermos, um afago apoz uma bofetada. Abrindo muito os olhos, e volvendo-os alternativamente para a bolça e para o cisterciense, a matrona respondeu sem titubear.

« Lá quanto a isso, é alma que caíu no inferno, salvo seja. Em comparação: é como se o dissesse áquella parede, com perdão de vosso. »

«Bem está » -- proseguiu Fr. Vasco.-- «És aldean. Talvez nunca visses a procissão de Corpus em Lisboa... »

«Nunca vi a procissão de Corpus?!... Que diz vossa reverencia ? Nunca deixei de a ver. Meu rico senhor S. Corpus Christi! Lembra-me sendo eu tamanina, em tempo d'elrei D. Afonso -- Deus lhe falle na alma, que era um sancto rei: daquella laia de reis já não ha; e mais este é bom, diz o povo. -- Como eu ia contando, naquelle tempo um tio meu, que era carniceiro, um rapagão como uma torre, fazia o papel do imperador que levam os do oficio. Outro tio meu quasi sempre era um dos diabos dos esparteiros, e até no anno da grande peste, parece-me que foi hontem, fiz eu d'anjo dos especieiros, e uma prima... »

« Basta, basta ! » -- interrompeu Fr. Vasco. -- «Quem te pergunta por isso? Sabes, portanto, que elrei vae a pé com os principaes senhores que se acham em Lisboa, ás varas do pallio; que o rodeam os oficiaes, cavalleiros e escudeiros da sua côrte; e que nesse dia o povo se mistura com os fidalgos, e póde qualquer approximar-se d’elrei...»

« Lá isso é verdade!» -- murmurou a velha com visiveis signaes d'inquietação. -- «Mas se vossa reverencia tem alguma petição ou recado para elle!...»

« Deixas-me falar, mulher?! » -- atalhou o frade já impaciente. -- «Não; não é para elle. Toma sentido. Conheces um certo escudeiro, mancebo e gentil-homem, chamado Fernando Afonso, que é camareiro-menor d'elrei ? »

« Tenho idéa; tenho idéa do sobredicto... Não ponha vossa reverencia mais na carta: » -- respondeu a tia Domingas, deslisando um risinho d'intelligencia, e arregaçando a mandidula superior ao longo de um grande dente solitario que lhe restava na bôca. -- « Que estavanado ! Sei-lhe da vida... »

«Que sabes tu dele, que sabes?!» -- acudiu impetuosamente o cisterciense, cuja perturbação se lhe pintava no gesto.

«Ora, que hei-de eu saber? Diabruras; rapaziadas. E fructa do tempo. Ai, Virgem sanctissima! Fazer o que fez á filha de mestre Inofre, o tosador da rua das Esteiras! Se aquillo era uma tolaça! Olhe, eu não sei se elle é amigo de vossa reverencia, por isso me calo; mas sempre digo, que andar assim á roça da filha de mestre Bertolameu, um homem tão capaz, não é bonito. Fugete partes aversas! Vae tudo n’uma poeira com elle: dizem. Destas sei eu.»

O monge que não conhecia o tosador, nem sabia quem era mestre Bartholomeu, recobrou as apparencias de serenidade de que se revestíra a principio. As palavras da beata tinham-no feito recear que a deploravel historia de sua irman fosse já demasiadamente sabida.

«É esse mesmo» -- proseguiu elle. -- «o camareiro-menor... Qualquer a quem perguntasseste diria: -- «E aquelle!» -- Agora resta explicar-te o que exijo de ti. No dia da procissão, em que elle forçosamente ha-de ir na comitiva d'elrei, não o percas de vista. Quando vires momento opportuno, no meio da confusão e tumulto, approxima-te d'elle, e dize-lhe que uma dama, cujo nome te foi prohibido revelar pretende falar-lhe nessa mesma noite. Indica-lhe um logar onde haja de encontrar-te, e conduze-o aqui.»

Domingas olhava espantada para o frade, que lhe dava tão estranha incumbeneia com tal ingenuidade, que não sabia a boa da velha o que pensasse do caso. Com sobeja experiencia do mundo, fôra justamente o modo natural e singelo, que Fr. Vasco afectava, que a fizera desconfiar daquella singular missão.

Costumada a avaliar as cousas, antes de tudo, nas relações que podiam ter com o proprio benè esse, suspeitou que as palavras do monge fossem um laço armado á sua imprudencia. O cortejo de Fernando Afonso á filha de mestre Bartholomeu tinha sido, acaso, observado por elle, que o poderia suppor dirigido a sua irman. Que entre os dous se havia passado uma Scena violenta, era o que o estado, em que, subindo, achára Beatriz, tornava indubitavel.

Fino devia ser o frade para a pilhar com a bôca na botija, se houvesse alguma emburilhada, quanto mais estando segura de sua consciencia. Estas reflexões passaram rapidas pelo espirito da cuvilheira, que buscou logo terreno solido, onde podesse combater com vantagem o seu adversario. Por isso, apertando as mãos na cabeça, exclamou:

«Sancto breve da marca! Um religioso, como vossa reverencia, falar em tal a uma dona recatada, como Domingas do Sacratissimo Lado! Vossa reverencia está de certo gracejando. Eu! eu levar semelhante mensagem a um desbragado daquelles, em dia de S. Corpus, e na procissão, e diante do senhor sacramentado, e nas barbas d’elrei, que costuma ir alli com sua real opa, tão magestoso e grave que faz tremer! Oh minha Virgem sancta da Escada, da igreja de S. Domingos, que é o meu padrinho e o sancto do meu nome! E que diria Fr. Isidoro, o meu confessor, em sabendo que eu tinha trazido comigo, de noite, ás escuras, um mocetão daquelles para o introduzir sorrateiramente nesta casa, que até hoje, Deus louvado, tem sido um convento! Vossa reverencia quer-me deitar a perder e a sua irman....» de cistra.

«Cal-te, falladora tonta e impertinente: » -- bradou colerico Fr. Vasco, batendo o pé na casa, e num tom, que não admittia réplica. -- «Ordenei-te, acaso, que fallasses de amores a Fernando Afonso ? Não podem existir outras relações entre uma nobre dama e um gentil escudeiro ?»

«Mas vossa reverencia não vê que somos duas donzellas recolhidas e vergonhosas....?»

«Silencio!» -- atalhou de novo o monge no mesmo tom. -- «E quem te disse que eu não estaria, aqui? Crês-te, porventura, mais interessada na reputação de Beatriz que seu proprio irmão? Acabemos com isto, mulher. Ou receber aquella bolça, ou abandonar esta casa. Escolhe. Dou-te tempo para pensares; mas não ha meio termo. Percebes?»

Proferindo estas palavras, Fr. Vasco metteu as mãos na correia que o cingia, e começou a passear novamente, parando d'espaço a espaço, e escutando á porta que, ao longo de um corredor estreito, conduzia á camara de Beatriz. O profundo silencio só era interrompido pelo quasi imperceptivel ranger das alpargatas do frade.

Domingas seguia-o com a vista, mechendo a cabeça como um mandarim de porcelana da China.

« E se elle... Valha-me nossa senhora!... Se ele teimar á mão de Deus padre que lhe diga o nome da bella dama?» -- reflectiu, como a medo, e passados alguns minutos, a tia Domingas.

«Prohibi-te que o revelasses: » -- replicou friamente o incansavel passeador.

«E se por isso recusar acompanhar-me?»

O frade encolheu os hombros, continuando a passear, e respondeu com o mesmo feroz lacónismo:

« Despedida. »

Não duvidára um momento de que o aventureiro mancebo acceitasse um semelhante convite, por esse mesmo mysterio em que se envolvia.

O gesto de Fr. Vasco, os seus movimentos de impaciencia, as suas ameaças, o tom de cretorio em que faltára haviam, emfim, desen ganado a cuvilheira de que o dilemma que lhe fazia era, posto que inexplicavel, sincero, e as ultimas perguntas da tia Domingas o que provavam era que estava resolvida a obedecer.

As difficuldades que ponderava tinham sido apenas uma giria de Sancho-Pansa para não cair de salto em condescendencia contradictoria com os escarcéus que a principio alevantára. Imitava, sem o saber, os gladiadores moribundos nos circos romáfios: queria cair bem: e caíu.

« Emfim, como vejo que aperta, será vossa reverencia servido. E sabe porque? Eu lh'o explico. Quando o padre mestre se foi disse-me: -- «Senhora Domingas, » -- que por senhora me tractou sempre -- «obedeça a Fr. Vasco» -- assim se diz na ausencia -- «como outro eu. Ele é o verdadeiro protector de Beatriz.» -- Portanto, reverendissimo, visto que vossa reverencia não quer ouvir nem das más nem das boas, lavo d’ahi minhas mãos. E mais juro-lhe que não é pelo interesse: é porque sou muitissimo obrigada áquelle sancto de Fr. Lourenço, e como vossa reverencia faz as vezes dele.... Ora com licença, diga-me vossa reverencia cá. Então sempre quer que seja nesse dia de e S. que fale ao gentil escudeiro na procissão Corpus?» Fr. Vasco reflectiu um momento, o «Poderia ser noutro, talvez..... Porém, não! Obedeçamos á primeira inspiração...

Quanto ao modo d'executares o que te ordeno, tens plena liberdade d'excogitar os meios.

O ensejo que te indiquei é o mais seguro: antes ou depois ser-te-hia talvez impossivel.

Entretanto o que me importa é que o camareiro-menor se ache aqui nessa noite, e que o véu do mysterio lhe esconda o nome de quem te inviou e o nome de Beatriz. O resto pertence-te a ti.»

Dicto isto, o moço cisterciense encaminhou se para a camara de sua irman, chegou-se ao leito, e escutou attentamente o respirar da desgraçada. Domingas tinha-o seguido. O monge tirou debaixo do escapulario uma ambulasinha cheia de um excellente cordial, e entregou-a á cuvilheira, explicando-lhe o modo de o ministrar logo que Beatriz saisse daquelle lethargo. Cruzou depois os braços, e cravando os olhos no gesto transtornado de sua irman, ficou por alguns instantes absorto.

Posto que, unido com o abbade de Alcobaça n’um pensamento profundo de rancor, houvessem ambos jurado vingança implacavel contra o camareiro-menor; posto que, diga mos assim, tivesse vendido alma e corpo a D. João d'Ornellas, o desejo de salvar Beatriz e de remir a deshonra da sua familia-lhe fizera conceber a esperança de que para Fernando Afonso ainda houvesse um clarão de arrependimento. O mancebo, cujos generosos instinctos a desventura não podera envilecer, quasi accreditava que a situação e as lagrymas da tão meiga e tão desgraçada victima seriam capazes de despertar, ao menos pela piedade, alguma centelha da afeição antiga naquelle coração gasto e gelido, que ele tão mal conhecia. Os remorsos, a que o arrebatamento de paixão insensata outrora o condemnára; os phantasmas de terror que o duro leito da penitencia, e a estamenha monastica não haviam podido ainda afugentar dos seus sonhos, eram a expiação de um assassinio.

Qual seria a de outro? Quando, longe do abbade, se punha a cavar nesta idéa, horrorisava-se. E se o terrivel legado, que seu pae moribundo lhe herdara, e o proprio orgulho não lhe consentiam esquecer uma grande afronta, o longo padecer tinha, sem que o percebesse, afrouxado muito a tensão indomavel do seu caracter. Era para ele uma especie de alívio o tentar um derradeiro esforço para se abster de mais sangue, embora pezasse depois sobre a sua cabeça o odio implacavel de D. João d'Ornellas.

Fr. Vasco despertou, emfim, da especie de meditação extatica em que se embrenhara, voltou ao aposento do lavor, cubriu-se com a cogulla e saíu, não sem se voltar para traz, ao transpor o limiar, para fazer novas e ameaçadoras recommendações á tia Domingas ácerca do segredo absoluto no negocio de que a incumbíra.

Apenas o monge saíu, as velha pegou na bolça, virou-a mansamente sobre uma arca, e viu que os seus contentos eram dez magnificas dobras validias. Tornou-as a metter dentro, coando-as e remirando-as uma a úma entre os dedos, e escondeu a bolça no seio, em quanto mentalmente fazia o soliloquio seguinte:

«Agora, agora! E nem de tal me lembrava! Em lhe dando os signaes da casa, pensa logo que é a filha de mestre Bertolameu... Espera lá, que já vae! O diabo é não o tirar eu bem por feições.... Não importa; que quem tem bôca vae a Roma. Ao recolher da procissão, no barulho... Ou ao sair? Algures será. Mas que emburilhada é esta? O frade tem demonio. Queira Deus; queira Deus! E que tenho eu com isso? Bem fiz em não alugar o meu buraquinho de Restello, e em dar a chave a Isabel Annes para m'o arejar. Aqui anda historia!... Uhm! Não me cheira... Minha donna é uma sancta: mas este monge, este monge! Dizem que é o compa nheiro do abbade de Alcobaça. Do abbade de Alcobaça! Virgem bemdicta ! E má casta de frade... Contam cousas.... Minha mãe sanctissima, livrae-nos de más linguas e de juizos temerarios. Se voltaria hoje Fr. Isidoro? Havia de voltar. Amanhan irei a S. Francisco.

Deus permitta por sua infinita misericordia que não me esqueça á volta comprar um pucaro d'Estremoz. Se a vizinha estará ainda á janella? Estou morrendo por saber o resto do caso da filha de mestre Inofre. Talvez me venha a servir...» Um debil gemido de Beatriz, veiu interromper o curso magestoso das idéas da tia Domingas; idéas profundas, concatenadas, harmonicas e uteis cómo as reformas governativas feitas em Portugal nos ultimos quinze annos. A velha correu então apressada a ministrar a sua ama, o reanimador elixir.

XV

UM MINISTRO

Bem sabedes, senhor, que os prelados de vosso regno e esso medes os poboos e os letrados e os privados todos som contra elles.

Cortes de Coimbra, de 1398 -- Aggravam. dos Fidalgos.

Na mesma conjunctura em que se passavam na rua de D. Mafalda os successos que anteriormente relatámos, bem perto d'alli occorriam outros não menos importantes para o desenvolvimento do drama cuja teia o leitor vai vendo desdobrar ante si.

Num quarto baixo dos paços dictos d'apar S. Martinho, da Moeda ou dos Infantes, que por todos estes nomes foram successivamente conhecidos, coava através das vidraças de uma janella, historiadas de muitas cores, um clarão como de duas ou tres tochas. Era noite velha, noite velha daquelles tempos, nove horas quando muito, as mesmas em que nestes nossos, tão trocados em tudo, os tafues de primor e as formosuras estofadas, espartilhadas e perfumadas apenas começam a encher as salas esplendidas dos bailes ou a povoar as cadeiras e os camarotes do theatro, com o louvável intuito de não assistirem ao espectaculo inteiro, o que seria demasiadamente plebeu. Essa janella baixa, cujas hombreiras de pedra cannelada e volta ogival ainda se vêem no muro que segue para o nascente da cadeia do Limoeiro , pertencia a uma quadra da habitação que entre as residências reaes de Lisboa D. João I escolhera para viver, emquanto não acabava as grandiosas obras com que então se ennobreciam os paços da Alcaçova ou castello. Aquelle aposento demorava, como desterrado para um canto do vasto edificio na extremidade de um labyrintho d'escadas, alcovas, passagens, camarás e retretes, habitado por pagens, ovençaes do resposte, moços do monte, charamelleiros, falcoeiros, domnas , donzellas, cuvilheiras e mais pessoas dependentes da família real. Aqui, affastado do tumulto da corte, quando as tréguas com Castella ir o consentiam, vinha ás vezes passar o antigo mestre de Aviz largas horas de trabalho mental, ou escrevendo o seu livro de caça de altanaria, ou debatendo com os seus conselheiros e privados, pela maior parte dou lores de Bolonha, de Pisa ou das outras escholas italianas, as modificações necessárias nas leis do império romano, que se derramavam então a esmo sobre Portugal, como hoje os nossos legisladores de agua morna nos affogara em leis francesas. Uma entrada particular, sempre patente aos juristas validos, que iam ajudando o habil monarcha a lançar as bases do poder illimitado da coroa, facilitava a estes em qualquer momento o accesso áquella especie de sanctuario, que participava ao mesmo tempo da natureza de secretaria, de bibliotheca e de gabinete d'estudo.

É nesta sala retirada e escusa que vamos agora introduzir o leitor.

Do numeroso tropel de letrados e sabedores, conforme a denominação que naquella epocha se dava aos que possuiam a sciencia do direito, podia dizer-se que um principalmente se encasara no mysterioso aposento como o rato no seu queijo. De dia, de noite, de manhan ou de tarde, quem quer que desejasse ver esse personagem (que disputava, senão renome e esplendor, por certo influencia e poderio, ao heroe do século, o famoso Gondestavei) tinha, nove vezes contra uma, a probabilidade de alli o encontrar, se alli o buscasse. Para não perder nenhum dos meios de ganhar predominio no animo de um príncipe ainda mais guerreiro que legislador, esse homem habituado ás occupaçoes pacificas do estudo até havia despido a sotaina preta, deposto a borla, vestido o loudel e cuberto a cabeça com a capellina, para pelejar bravamente em mais de um recontro, sabe Deus com que apertos de coração, contra os castelhanos, sem que por isso cessasse, no meio do tumulto dos campos ou nas rápidas marchas e cavalgadas, de figurar como primeiro movei nos negócios do governo, que naquella epocha turbulenta não eram menos graves que os da guerra. Na conjunctura, porém, em que se passavam os successos contidos nesta narrativa, as tréguas assentadas entre Portugal e Gastella tinham dado ensejo ao privado intimo de D. João I para se dedicar exclusivamente ás intrigas politicas e ás outras occupaçoes análogas, que são o recreio o commodo, o alimento, a respiração e a vida do estadista e do cortezâo. Excepto nas horas do somno, quasi que em nenhuma outra parte, durante esta calma da guerra, se podia ver o chanceller João das Regras, a quem já, sem duvida, o leitor percebeu que alludimos, senão ou no gabinete particular dos paços de S. Martinho, de que tinha as chaves, ou atravessando rápido e cabisbaixo alguma das tenebrosas ruas que retalhavam o terreno entre as igrejas de S. Martinho e de Sancta Marinha, perto da qual era, segundo parece, a residência do celebre jurisconsulto.

O clarão que, transudando das vidraças multicores, reflectia brandamente na rua que mediava entre o palácio e o presbyterio de S. Martinho e por cima da qual corria um passadiço que ligava os dous edifícios, tornando durante o dia essa rua ainda mais escura e melancholica, provinha effectivamente de uma grande lâmpada pendente do tecto do aposento e de duas tochas accesas postas em braços de ferro que saíam das paredes. Estas viam-se colgadas de couro lavrado e tauxiado em volta dos alizares com pregos, cujas cabeças desmesuradas formavam como um aro reluzente aos apainelados. Uma esteira grossa cubria o pavimento enxadrezado de adobes.

Cortinas de tela finíssima, semelhante á moderna gaze, que iam prender-se nos arcos ponteagudos da janella e de um largo balcão que lhe ficava fronteiro, moderavam a claridade do sol durante o dia e, de noite, ajudavam os vidros corados a empanar a vista dos curiosos que, ou de S. Martinho, ou do pateo interior, para onde abria o balcão, pretendessem espreitar o que se passava lá dentro. A um pendurol que, semelhante a caprichosa stalactite, se curvava para baixo no meio do tecto de castanho almofadado, rendilhado e enegrecido pelo tempo, prendia-se uma cadeia de ferro que sustinha a lâmpada, cujo fulgor, dando de alto nos objectos inferiores, lhes destruia a projecção das sombras nos pontos não allumiados pela chamma avermelhada e fumosa das tochas. Algumas cadeiras de braços, que hoje pareceriam so^bradamente incommodas pelo anguloso e aprumado das suas linhas, uma grande mesa ou bufete no centro da quadra, cinco ou seis arcas, postas em fileira aos lados, e finalmente um relógio de parede, invenção que começava apenas a generalisar-se e que fora um presente do duque de Lencastre ao rei de Portugal, completavam o adorno do aposento. A tampa de uma das arcas estava erguida : dentro, a um lado, via-se uma pilha de grandes folhas de pergaminho em branco, e ao outro mna rima de livros de diversas dimensões. Sobre a mesa avultavam abertos dous fólios desconformes, e ao pé delles muitas folhas, maiores, menores e mínimas, escriptas no todo ou em parte e rodeiando um alentado tinteiro comparável a uma amphora e coroado de quatro ou cinco pennas. Alguns individuos animavam esta scena. Um, assentado em frente do vasto bufete, diante dos dous bacamartões, cuja escriptura minutíssima e cheia de abbreviaturas e siglas lhes augmentava, digamos assim, a carranca rebarbativa e ouriçada, era homem de bons sessenta annos, de aspecto menineiro e sadio, o que em parte devia a ter a cara cuidadosamente rapada. Sulcavam-lhe a fronte, ampla e convexa, duas rugas longitudinaes.

Eram as únicas que poderiam trahir-lhe os affectos ou os pensamentos; porque no resto das suas feições havia a gélida immobilidade que indica o sangue frio e a resolução enérgica. Tinha os beiços um pouco delgados e os cantos da boca profundamente vincados.

Cubria-lhe a grenha revolta, cortada mui curta, segundo a moda d'então, moda que dera aos portugueses a alcunha nacional de chamorros, um barrete semelhante ao solideo clerical, e todo o seu trajo e adornos se reduziam a uma espécie de loba negra, que lhe descia até os pés, abotoada na pequena abertura do peitilho com tres botões e apertada na cinctura por uma larga facha da mesma cor. Era o chanceller interino. Defronte, encostado a uma das arcas, com a perna direita cruzada sobre a esquerda, estava outro vulto, que representava um homem de mais de trinta annos de idade, magro, estatura mediana, testa pequena, maxillas elevadas, barba comprida, olhos pequenos, mas vivos e scintillantes. O seu trajo de corte, rico e talhado á moda de Inglaterra, contrastava na viveza das cores com a singela garnacha de João das Regras. Era elrei. Com os pollegares passados por baixo da borda do bufete e o resto das mãos espalmadas pelo lado de cima, um homem velho e de longos cabellos, nos quaes o branco se misturava com o ruivo, formava no topo da banca o vertice de um triangulo cuja base seria a recta do chanceller ao rei. Como os de D. João I, os seus olhos azues estavam fitos e sem pestanejar em João das Regras. Atraz da cadeira deste, uma espécie de escriba, trajando também a sua garnacha, o qual pela magreza e pallidez parecia um cadáver e pelo empertilo uma estaca, tinha na mão um caderno de pergaminho de papel e na outra um lápis, invenção não muito antiga e principalmente usada para pautar os códices de luxo, em logar do ponteiro de ferro, d'antes empregado nesse mister. Por baixo das pálpebras quasi cerradas, aquelle estafermo, que era ninguém menos que o escrivão da camará real, Gonçalo Lourenço de Gomide, olhava também attentamente para o chanceller, astro de brilhante intelligencia, á roda do qual gyravam em espirito estes satellites de tão diversa magnitude.

Emfim, juncto ao reposteiro da porta que communicava para o interior dos paços, dous pagens em pé, cada um com sua tocha apagada na mão, parecia terem acompanhado até alli D. João I e esperarem que elle quizesse retirar-se, para as accenderem de novo eprecederem-no, conforme a etiqueta daquelles tempos.

O chanceller é que parecia não reparar em ninguém, correndo successivamente pela vista vários pedaços de pulgaminho de coyro que tinha espalhados ante si e nos quaes havia breves linhas escríptas, segundo o estylo das escholas dltalia, em siglas, espécie de tachygraphia destinada a encerrar num limitado espaço as extensas explanações dos doutores aos livros de jurisprudência romana. Á medida que os passava pelos olhos, o chanceller ía-os amontoando á sua esquerda. Havia bastante tempo que esta scena durava, quando subitamente João das Regras exclamou:

«Ei-la aqui, emfim, a maldicta ementa. Olhae, micer Percival: vede se está certa.»

O homem da grenha ruiva arregalou ainda mais os olhos, arredondados como os de um mocho.

«Item: duas mil setecentas e vinte cinco livras a mestres Alberte, João Pires e Giraldo, armeiros, por quinze arnezes completos, solhas, loudel, capellina, camalho, et csetera.»

«Item: por tres maças dambalas mãos, um estoque á antiga com sua misericórdia no punho e uma cincta nova de ferro no trom grande de fogo, dos tomados em Aljubarrota ao scismatico que se diz rei de Gastella, seiscentas e quatorze livras, seis soldos e tres dinheiros.»

«Justo!» -- murmurou micer Percival de Cornualhes, mercador inglês, que servira de thesoureiro ao mestre de Aviz no principio da revolução e que era uma espécie de Laffite ou Rotschild daquelle tempo.

«Item: de um traslado das leis do Código com as intenções das glossas de Accursio e as conclusões de Bartholo, com illuminuras e letras floreteadas de cores, em dous volumes, tirado em Bolonha dos originaes dos dictos grandes e excellentes sabedores, trezentas e seis livras.»

«Trezentas e cincoenta e seis mandei eu pagar em Genua a micer Allighieri, stationarius de Bolonha» -- interrompeu o banqueiro.

«A ementa deu-m'a o veador da fazenda, micer Percival. Eu leio trezentas e seis.»

«E cincoenta e seis» -- tornou o Rotschild ruivo, com uma fleuma essencialmente britannica.

«Seja assim: mas apurae vós lá a computação nos contos com o thesoureiro-mór, que para isso não tenho tempo. Quereis fazer a mercê, senhor escrivão da camará, de encommendar a Lourenço Martins que apure essa ementa com micer Percival e de advertir-lhe que taes negócios devem chegar averiguados á presença de meu senhor elrei?» Proferindo o nome d'elrei, o chanceller alevantou-se e fez uma profunda reverencia, ao mesmo tempo que por cima do hombro passava o pergaminho a Gonçalo Lourenço de Gomide, sem olhar para traz.

O escrivão esgaratujou rapidamente duas ou tres siglas no quaderno que tinha na mão, guardou a ementa solta e recahiu na espetada iramobilidade anterior.

João das Regras, ou das Leis, por longa e intima privança, pela superioridade da sua intelligencia, por serviços, talvez, de mais valia que os do Gondestavel, embora menos ruidosos, tinha adquirido absoluto predominio no animo do príncipe, que o sancto homem de mestre João das Leis dirigia a seu bel-prazer nas matérias de governo, bem differentemente do que succedia nas dè guerra, em que o mestre d^Aviz não reconhecia, e com razão, capacidade superior á sua. No gabinete particular dos paços de S. Martinho o verdadeiro rei era o doutor de Pisa, e o heroe de Aljubarrota tinha-se habituado por tal modo á sem-ceremonia do chanceller, que muitas vezes passava horas inteiras de pé, na postura em que então se achava, em quanto o celebre jurista, repotreiado na grande poltrona, annotava o condigo de Justiniano, que depois da sua morte veio a ser promulgado como lei geral do paiz, ou resolvia os negócios do estado, que, por uma destas ficções politicas tão da moda nos modernos governos mixtos, se presuppunham previamente discutidos e determinados pelo próprio monarcha.

«Agora, micer Percival,-- proseguiu o chanceller -- como vamos acerca das duzentas mil livras, que sua real senhoria (mestre João das Leis ergueu-se de novo e repetiu a reverencia) deseja haver adiantadas sobre os pedidos que se hão-de lançar nas próximas cortes?»

«A vinte por cento estão promptas, visto serem para o pagamento das quantias aos cavalleiros e homens d'armas, e não haver real na casa dos contos. Acabo de estar com D. Qbrão de Frandes e com micer Daniel de Preamúa. Altercámos por duas horas: juraram-me que não podiam fazer este serviço a sua mercê por menos uma pogeia; e ainda assim, entram de parceria D. Issachar, o que mora adiante da Esnoga ao cabo de Villanova de Gibraltar, e o seu vizinho Samuel Ben-Tibbon, o mercador de arnezes.»

«Sancta Maria vai!-- exclamou o chanceller.

-- Vinte por cento?. . . Mas os pedidos estarão pagos em menos de anno... Quatro soldos por livra de vinte?! Micer Percival, isso é desbaratar as rendas da coroa!... Deus nos livre de que tal ouvisse elrei meu senhor!»

Estas ultimas palavras, proferidas com accento severo, foram acompanhadas do usual salamalec.

D. João I sorriu com um gesto de acquiescencia á observação do seu privado, e disse para o agiota:

«Nada, não, meu excellente amigo, micer Percivall Mais de tres soldos por livra é usura intolerável ...»

«Vede, honrado Percival-- interrompeu João das Regras. -- Sua mercê (novo salamalec) pensa exactamente como eu. Quer dizer-vos que mais de dous soldos por livra é intolerável.»

E fitou o seu olhar d'aguia no rei. O homem ruivo olhava também para elle: D. João I acudiu logo ao reclamo do chanceller:

«É isso: dous por vinte. Pois, que disse eu?»

O inglês encolheu os hombros e replicou:

«O dinheiro está demasiado caro. É absolutamente impossivel.»

«Paciência! Acharemos outro arbítrio.

Adeus, micer Percival. Contae em tudo com o bom animo d'elrei para comvosco e, se precisardes em alguma cousa da minha pouquidade, contae igualmente comigo.» Ao falar em elrei, o discípulo de Bartholo tinha-se erguido, segundo o costume; mas desta vez não tornou a assentar-se. Curvado e firmando-se nos braços da poltrona, foi-se voltando para o homem ruivo, como quem o fazia participante da inclinação de cabeça dirigida á pessoa do monarcha. Era fácil de perceber que esse gesto equivalia a uma ordem de sair d'alli. Micer Percival encaminhou-se então para elrei, beijou-lhe a mão sem dizer palavra e começou a recuar pouco a pouco para a porta que communicava com a rua. Entretanto o chanceller tinha pegado rapidamente num pergaminho, dos muitos que estavam espalhados pelo bufete e dizia, dirigindo-se a D. João I :

«Eis aqui a petição do concelho de Lisboa que já mostrei a vossa alta senhoria. Pedem que se ponham em vigor as posturas d'elrei D. Affonso para que as mercadorias trazidas pelos tractantes estrangeiros não possam ser vendidas fora da cidade, nem a retalho, senão pelos mercadores portugueses. Representam que só assim poderão reparar as minguas e lazeiras do cerco dos castelhanos e do que têem despendido para o supportamento da guerra com os scismaticos ... Esqueceu-vos alguma cousa, micer Percival?»

Era que micer Percival, estacado no meio do aposento, abria desmesuradamente os grandes olhos azues e parecia escutar com toda a attençâo a synopse que o chanceller fazia daquelle requerimento.

«Occorre-me neste instante -- respondeu o inglês ruivo, com a hesitação de quem procura esconder um pensamento reservado que teme lhe adivinhem no gesto e nas expressões, e que por isso mesmo o tráhe mais depressa naquelle e nestas -- occorre-me agora que, se podessemos embolsar dentro de dous mezes D. Gibrão e micer Daniel, não seria pretensão desesperada a das duzentas mil a dous soldos...» «Dous mezes? -- acudiu o chanceller. -- É isso arremedilho, desporto e folgança que fazeis comnosco, micer Percival? D'aqui a tres, duvido que se tenham cortado pelos concelhos os pedidos, e quem sabe, até, se os procuradores virão ratinhar-nos essa miséria?» «Não digo menos disso, -- replicou o compatriota dos nevoeiros - mas aqui está Percival de Cornualhes, que poderia, talvez, saldar a conta quando expirasse o prazo, e que receberia por qualquer tardança de reembolso aquelle decente lucro que aprouvesse a sua alta senhoria.» «Ah, então tendes vós as duzentas mil ? --- insistiu o chanceller. -- Gracejáveis, pois, quando me jurastes que em vossos cofres bem basculhados não se acharia a decima parte de semelhante somma. Enganei-me! Já vejo que é inútil o tractar com usurários taes como D. Gibrão e micer Daniel. Falaremos d'espaço, micer Percival; falaremos d'espaço... Agora, -- accrescentou, voltando-se para elrei, o qual íbiheiava um volume que tirara da arca aberta e parecia alheio áquelle dialogo, de que, aliás, não lhe escapara uma syllaba, porque logo comprehendera a mente do seu chanceller -- agora urge, senhor, que deis despacho aos vossos bons cidadãos de Lisboa.» «Se achaes sua petição justa ...» «Vossa senhoria pesou-a já na balança da sua infallivel justiça e, se não me engano, achou -a fundada. Posso eu pensar diversamente? Resta o remédio. Vitia priorum censuum, editís novis professionibus, eoanescunt:

diz o Digesto. Applico a sentença. Este honrado povo de Lisboa está exhausto por longos e custosos sacrifícios. E' necessário introduzir-lhe sangue novo nas veias, e não vejo eu em tal remédio, senão em apertar algum tanto o collo ás sanguesugas que de fora vem sugar neste pobre Portugal. Depois, ha os privilégios e as leis antigas que as necessidades dos tempos escaços fizeram suspender, mas que fora máu paramento da republica deixar nenhumas, vans e como abolidas.» Durante esta breve dissertação juridico-economica, micer Percival dera todos os signaes d'impaciencia por falar que o respeito ao rei e a fria synovia das suas articulações britannicas lhe consentiam. A pausa que o chanceller fez de propósito neste momento salvou o inglês de rebentar. Voltou-se para D. João I e exclamou, perdida a tramontana:

«Senhor, senhor, que essa petição é inspirada por um sentimento d'odio contra mim!

É obra dos vossos mercadores para me arruinarem! ... Quando vos disse que pagaria as duzentas mil livras era por me fiar em oito naus que espero da Arrochela. Vem ahi empregado o melhor do meu cabedal, e elles conjuraram-se para me obrigarem a venderIhes tudo ao desbarato. Estou perdido, senhor; estou perdido, se despachaes essa petição!

Bem sei d'onde parte o golpe com que querem traspassar-me.» Não sabia tal. O leitor é que não precisa de roer as unhas até o sabugo para o adivinhar.

«Que dizeis, micer Percival ? -- interompeu o chanceller, com gesto de admiração e com uma verdadeira cara de caso. -- Isso é grave; muitíssimo grave. Que?! Seria esta petição apenas um laço armado a sua real senhoria?

Duro de crer me parece; mas por outro lado tracta-se da fortuna de ura honrado mercador, embora estranho, que serviu a causa de Portugal longa e lealmente contra os perros scismaticos, quando muitos naturaes ou a abandonavam ou a trahiam. Havemos de informar-nos: oh lá que havemos! Estae certo, micer Percival, de que a vontade d'elrei é apagar ódios e não satisfazê-los. Se a justiça estiver da vossa parte ...» «Mas vede -- acudiu o inglês -- que para pagar as duzentas mil livras ...» «Conforme... Ha-de ver-se... Deixae estar...» Estas phrases vagas foram proferidas de tal geito, que o mercador perguntou anciosamente:

«Posso dizer, pois, a D. Cibrão e a micer Daniel que entreguem ao thesoureiro-mór...» «Se quizerem ou poderem. Nada de constrangimento. Tenho uma scisma, micer Percival: é talvez uma superstição. Mas que quereis ? Não posso vencê-la. Dinheiro extorquido á força não luz a quem assim o obtém. Por isso, não aperteis demasiado com elles, nem lhes mettaes medo com elrei. Deixo o negocio á vossa prudência. Adeus, honrado micer Percival.» Elrei continuava a folheiar o livro. O chanceller pegou noutro pergaminho e começou a lê-lo, emquanto o homem ruivo se ia escoando e desapparecia atraz do reposteiro.

D. João I fechou o livro, escutou por alguns instantes e desatou a rir.

«Na verdade, mestre João das Leis, que os ares de Bolonha e de Pisa e a agudeza de Bartholo são maravilhosos para apurar engenhos.

Ninguém acha argumento mais a ponto para persuadir um avaro velhaco a abrir a bolsa.

D. Cibrão e micer Daniel ? ! Por S. Jorge ! Uns tacanhos, meros instrumentos das usuras de micer Percival. Vivaes mil annos, meu nobre chanceller I Estes cavalleiros portugueses apoquentavam-me com os soldos que não cessam de pedir. Teremos com que os contentar. Que os meus bons burgueses de Lisboa esperem' mais algum tempo. Mas hão-de irritar-se, e nós devemos amansá-los. Parafusae lá, doutor: vede se achaes ahi pergaminho que valha.

Ha-de custar. Não vos parece, Gomide, meu taciturno escrivão da camara real?» Para ir conforme com o epitheto por que elrei o designava, Gonçalo Lourenço abaixou duas ou tres vezes a cabeça em signal de acquiescencia e encolheu os hombros, como quem ignorava que pilula se podia ministrar aos mercadores da Rua-nova, da Magdalena e de Sancta Justa, para lhes acalmar o sangue acerca da liberdade commercial. Era evidente que, apesar das fundadas pretensões dos burgueses, esta liberdade havia de continuar por mais algum tempo, se apparecessem as duzentas mil livras para o pagamento das quantias dos cavalleiros e homens d'armas, e se chegassem a porto e salvamento as oito naus da Arrochela, objectos que, parecendo absolutamente estranhos, se achavam neste caso ligados de um modo singular ao despacho favorável ou desfavorável da petição municipal.

João das Regras mofava, porém, interiorjnente da difficuldade que se antolhava ao monarcha e da perplexidade do escrivão da camará. Não era a um homem como elle que faltaria nesta conjunctura um osso para atirar ao lebréu popular.

Quando elrei volveu os olhos para o chanceller, viu-lhe erguida em alto a mão esquerda, entre cujos indice e pollegar pendia o pergaminho que começara a ler apenas despedira micer Percival. O monarcha não podia attingir ao que significava aquelle gesto.

«Eis aqui -- disse emfim o valido -- com que distrahir e consolar a Rua-nova, a de Sancta Justa e a da Magdalena ... Que digo eu ?!

Toda a cidade. Tem para falar um mez, e d'aqui a um mez estarão os pedidos votados.

Que vossa real senhoria responda a esta carta como deve, e é quanto basta.» Dicto isto, abaixou a mão e- começou a ler o pergaminho. Era uma espécie de consulta que os alvazis de Lisboa dirigiam a elrei sobre o modo de punir um delicto singular, delicto daquelles a que hoje chamamos crimes poUticos. Um mercador da Catalunha, não podendo obter dos alvazis ou juizes municipaes de Lisboa o desaggravo que entendia ser-lhe devido por offensas recebidas de um compatrício seu, fora ao mercado e na presença de numeroso concurso pegara em vários vasos de barro e, despedaçando-os, guardara cuidadosamente as tampas ou testos e, mostrando-os ao povo apinhado, exclamara: -- «Eis as testemunhas que levo para o meu paiz da justiça que se faz em Portugal ! » Lançado nas masmorras do castello pelo alcaide pequeno, os alvazis perguntavam a elrei qual seria a pena condigna daquelle attentado.

Nos nossos costumes modernos, o acto do catalão teria sido pouco menos que indiíferente. Não era assim naquelles tempos. Faltava então a imprensa, esse respiradouro das grandes cóleras e das grandes affrontas. Suppriase, -- suppria-a pelo menos o povo -- por actos symbolicos, expressivos por si mesmos ou por uma espécie de consenso commum. Ainda hoje restam entre o vulgo destes libellos em acção. A regateira de Lisboa bate violentamente as palmas, a do Porto descalça o sócco e põe-no ante si com a sóla virada para o ar.

E a summa injuria: é a declaração de guerra: o combate de arrepellões e punhadas vai começar. Estes symbolos eram a columna de jornal, o pamphlet, a caricatura da idade-media. Nos fins do século xiv, o quebrar as panellas na praça, ou pro rosúrts, e o guardarIhes os restos parece ter sido a mais atroz invectiva, o mais pungente epigramma atirado ás venerandas barbas dos magistrados municipaes, e os antigos monumentos conservaramnos a memoria de mais de um severo castigo imposto pelo próprio D. João I aos individues implicados naquelles panellicidios insolentes e revolucionários. Era um caso destes que os alvazis e concelho da mui nobre e mui leal cidade de Lisboa submettiam á consideração de sua mercê elrei.

As mudanças no aspecto do monarcha seguiam as phases da leitura. Na sua fronte serena e ridente, como o lago adormecido do valle, encapellavam-se pouco a pouco as rugas, como as vagas no oceano ao passar do temporal. Subia-lhe gradualmente o rubor ás foces, e os olhos pequenos e vivos encandeiavam-se de estranho fulgor. Quando o chanceller acabou de ler, D. João I murmurou com a voz tremula de ira:

«Cincoenta açoutes no villão, dados em meio da praça, e que se vá depois para roim á sua terra dar querella do torto que lhe fizeram aqui. Far-lhe-hão direito lá.» O chanceller revirou a cabeça para sua immobilidade, o escrivão da camará, e repetiu as palavras d'elrei sem alterar uma virgula.

Gonçalo Lourenço ia escrevendo com ò lápis.

«Na ementa --- disse o taciturno ministro quando acabou.

«Aos honrados alvazis, vereadores e homens bons do concelho desta leal cidade» -- accrescentou o chanceller.

O escrivão esgaratujou aquellas palavras.

Neste momento o relógio deu dez pancadas.

João das Regras pôs-se em pé, arredou a poltrona e proseguiu, abaixando a cabeça, como se o escrivão se houvera despedido delle.

«Dez ! São as horas de sua mercê...» Gonçalo Lourenço entendeu-o. Beijou a mão a elrei e saiu.

«Pagens ! -- proseguiu o omnipotente valido -- Dormitaes?! São dez horas: as horas de sua mercê se retirar.» Evidentemente o chanceller queria ficar só com o rei. Pelo menos os dous mancebos assim o interpretaram. Accenderam as tochas e saíram vagarosamente, parando a tal distancia, que não podessem chegar-lhes aos ouvidos as palavras dos dous personagens que ficavam.

O doutor de Pisa dingiu-se á porta interior, franziu o reposteiro, e observou os pagens.

D, João I, ainda colérico pela aífronta feita aos magistrados da sua boa cidade, tinha-se encostado de novo á arca, falando por entre os dentes. O chanceller aproximou-se e, parando diante delle, disse:

«Respondestes como nobre rei, e a vossa sentença ha- de fazer exultar toda a Lisboa, burgueses e arraia miúda. Foi qual eu a esperava. São assim feitos. Folgarão mais com isto do que se despachásseis a petição dos mercadores. Cincoenta açoutes num estrangeiro, ao meio-dia, na praça I -- proseguiu o chanceller esfregando as mãos, depois de breve pausa. -- Adiíiiravel ! Gomo este bom povo rirá e gritará: -- «alcacere por elrei D. João !» A velha raposa animava o leão. Amargo devia ser o alimento que lhe queria fazer tragar.

«E o povo terá razão -- respondeu o monarcha, lisongeiado pelos elogios do seu i>rivado. -- Quem affronta os alvazis affronta os que os elegeram; quem, não tendo appellado para mim dos meus juizes de foro, vai ladrar nos açougues- que nesta terra não ha justiça, mente e calumnía o rei de Portugal. Hei-de fazer respeitar os meus concelhos e a magestade da coroa, que me deram Deus, o meu povo e a minha espada.» «E eu» -- reflectiu mentalmente o doutor, emquanto proferia em voz alta:

«Eis o que é conforme a interpretação de Bartholo á lei do Código Siquis imperaiori maledídõevlt. Digam embora outra cousa os que seguem diverso rumo. É ao príncipe que toca punir os que o menoscabam, doestam e maldizem; porque o príncipe é o vigário e logartenente de Deus na terra e deve sempre crerse justo. Por isso lá diz o Digesto: Quodprindpi placuit legis habet vigorem, texto, que, na minha opinião, é a pedra angular da republica.» «Sei isso; -- interrompeu elrei -- porém não vades tão alto, mestre João das Leis; não vades tão alto ! Como homem, o príncipe é sujeito ás humanas fraquezas. O texto do Digesto pôde falhar. A vossa grande sciencia dos direitos m'o tem muitas vezes provado. Mas deixemos esse ponto. Agora não se tractava só do throno; tractava-se também do povo; do povo de Lisboa offendido nos seus alvazis, e se a grei é pelo rei, o rei deve ser pela grei.

Nunca em Portugal houve principe, nem meu pobre pae -- Deus se amerceie de sua alma -- que tanto devesse como eu aos seus honrados burgueses. Têem-me dado tudo, sangue e ouro, vidas e fazendas. Portugal, mestre João, -- accrescentou o monarcha sorrindo -- é uma grande behetria, que me escolheu por senhor, e vós bem sabeis que o villão de behetria costuma dizer ao que escolheu para governar: -- «se bem me fizeres contigo me irei.» -- Os portugueses hão-de ir comigo sempre; porque espero administrar-lhes sempre justiça e desaggravo prompto e bom, como neste caso.» «Vossa real senhoria fala como amoravel e gracioso senhor -- acudiu o discipulo de Bartholo. -- Mas ... mas ...» «Mas que mas é esse, meu excellente chanceller ?» -- replicou D. João I.

«É que taes cousas, consinta-me vossa senhoria dizê-lo, vinham a ponto nas cortes de Coimbra, quando estava o reino vago. Lá disse eu algumas que as valiam; mas vós fostes eleito, e sois agora rei, e isso de tirar e pôr príncipes pelo povo, como em behetria, são opiniões mal soantes e perigosas para a republica, havendo ahi senhor legitimo e juradoSe vos dissessem hoje: -- deponde a coroa...» «Oh, oh! -- tornou rindo elrei.-- Não tenhaes medo, doutor! Nunca os meus portugueses, que são como filhos queridos, e de quem sou pae, me dirão: -- «Mestre de Aviz, desce do throno a que te elevámos ...» «Por essa fico eu. Não me arreceio do povo, que sempre em Portugal teve alliança com os seus príncipes. É um velho pacto; de um lado contra a turbulenta insolência dos ricos-homens e infanções; do outro contra a sua tyrannia. Gifra-se nisto toda a nossa historia.

Pôde o povo gritar e tumultuar, mas quando o rei diz: ~ «alto lá, meus bons burgueses» -- acabou-se tudo. Dura ... dura é a cerviz da nobreza, que, estribada nos seus privilégios, sô por dinheiro quer defender a liberdade commum e que vos brada: -- «sede embora rei dos concelhos; dentro dos nossos coutos e honras nôs é que somos os reis.» -- Virá, talvez, tempo, em que o gemido dos que lidam e pagam e obedecem e morrem se converta em rugido de ameaça; mas bem parvos ou bem maus devem ser os privados e ministros que não saibam contentá-los. Dous affagos e um pouco alliviada a canga, está tudo feito.

O perigo serio anda mais alto. É aquella historia das espigas e dos Tarquininos de Roma que vossa senhoria sabe! ...» «Parece que não, -- interrompeu elrei -- porque não se passa mez... que digo eu?... não se passa semana, nem talvez dia, em que não queiraes contar-m'a. É a vossa seita, mestre João das Leis: é a vossa seita! Haveis em todos os negócios de cahir por fim em invectivas contra os fidalgos. Estes fidalgos matam- vos!» «Matam, e também a republica. Que precisão havia de arrancarmos essas duzentas mil livras a micer Percival, para termos de as pagar com usura depois, no meio dos gastos da guerra, que não tarda a renovar-se ? Para que havíamos de suspender o despacho da petição dos mercadores, quando era tão fácil contentá-los ? Quem quer mugir a vacca sem lhe dar feno tira sangue e perde a vacca.» «E os cavalleiros, e a gente d'armas e as minhas boas lanças, homem ? Não posso também perdê-las? Direis, como costumaes: -- «da massa dos burgueses se fazem.» -- Assim é; mas que taes ? Ahi bate o ponto. Bem sei que, se não fosse por modéstia, poderíeis citar as vossas proprias façanhas em Aljubarrota» e mais éreis cavalleiro novel tirado daquella massa, e depois vir com o costumado soláu dos quinhentos archeiros ingleses, que valeram ahi mais que mil lanças. Mas eu cá me entenda Vós, chanceller, sabeis de direitos e de regimentos e da governança e de tudo o que tange á paz e assocego do reino, porque sois um grande letrado. Porém de gente de guerra e de hostes e de arrancadas e de cavallarias e de besteiros e de frecheiros e de azes e de trons e engenhos, disso sei eu mais a dormir do que vós acordado, mestre João das Regras. Bem vejo que se abusa da situação do reino; que é uma villania, uma cubica torpe pedirem-se-me soldos avultados; pedirem^nos homens a quem tenho dado terras, padroados, alcaidarias, cargos, as melhores joias, digamos assim, da coroa. Mas tractemos do presente, e para o futuro... Oh, no futuro, meu chanceller, então ajustaremos contas! ...

Pensaes vós que me esquece aquelle grande alvitre vosso, da lei que ha-de cortar as unhas e encolher os braços á fidalguia e que dizeis se não deve escrever, mas conservar na minha memoria e vontade» e que por isso se ha-de chamar mental, alvitre na verdade violento,., mas efficaz ? ... » «Violento ? Brando o acho eu e mais que conforme a direito -- interrompeu o jurisconsulto, que n5o tolerava a menor duvida sobre a bondade absoluta da famosa Lei-mental que enlâo forjava. -- Sois senhor: podeis dar ou tirar o que é da republica; porque, sendo delia, é de vossa real senhoria, que sois o seu regedor e mantedor, formaliter et essentialiter.

Não ha injuria onde não ha direito. E depois, lá está para a explicar a quasi divina regra dos sabedores romanos: Quod principi placuit íegls hahet vigorem. Que importa que as difficuldades dos tempos não consintam reduzir a escripto este pensamento, se para ser lei e boa lei lhe basta estar na vossa mente e vontade, placuit ! Parece, porém, senhor, quererdes accusar-me de pôr peias aos vossos desenhos pelo que tange á milicia. Sois injusto comigo.

Não vistes que tractei seriamente de alcançar as duzentas mil livras adiantadas ? Que prova maior de que nas matérias de guerra, como em tudo, reconheço a alta e superior sciencia de vossa real senhoria? Deploro só a oppressão dos pequenos e o desbarato das rendas publicas, para se haver de saciar a cubica dos grandes; deploro que o rei de Portugal pareça receiar a. cólera, dos seus nobres vassallos e que não obtenha com tanta generosidade senão tornó-los cada vez mais insolentes, conspiradores e ingratos.» «Ingratos, isso é natural, -- exclamou D.

João I, carregando as sobrancelhas -- mas insolentes e conspiradores?! Chanceller, taes accusações são graves.» «Mas verdadeiras -- replicou o valido. -- Animados pela orgulhosa altivez de um homem que no illimitado favor do seu príncipe devera ter um incentivo da mais submissa obediência e que faz sair bem caro ao rei e ao reino os seus largos serviços na guerra e uma gloria que ninguém lhe disputa; excitados pela linguagem violenta do Gondestavel...» «Doutor João das Regras, -- atalhou elrei com um movimento de despeito mal comprimido-- prohibi a Nunalvares que na minha presença invectivasse contra vós; a vós que aventásseis suspeitas contra o mais nobre, o mais leal, o mais valente cavalleiro que Portugal tem gerado. Não pude fazer-vos amigos:

quizera ao menos que vos respeitásseis. Não sei agora o que cuide de um e de outro. Elle, soldado rude, tem-me obedecido; vós, letrado subtil, conselheiro austero, defensor da auctoridade suprema, haveis quebrado mais de uma vez o preceito. Não seria bom, meu honrado chanceller, lembrar-vos a este proposito do texto acerca da vontade dos príncipes, que tantas vezes invocaesf Ou é que o Digesto não vale para os que o estudaram?» A estas perguntas irónicas nào era facil dar resposta. Além disso, no aspecto do monarcha havia tal expressão de severidade, que o velho ministro, apesar da sua immensa preponderância e extrema familiaridade com o rei, pregou os olhos no chão e ficou em silencio.

D. João I conheceu que o tinha mortificado de mais. Chegou-se a elle e bateu-lhe brandamente no hombro.

«Vamos, homem! esqueçamo-nos disto. Assim podesseis esquecer a vossa má vontade, vós e Nunalvares; vós, as duas columnas do meu throno; vós que eu amo, não como vassalios, mas como irmãos! Não quereis: paciência! Chanceller, alludistes vagamente a insolências, a conspirações, e não sei a que mais.

Sois assas prudente para proferir em vão taes palavras ...» João das Regras ergueu lentamente a cabeça, mas virando o rosto um pouco para o lado e fitando no rei um olhar obliquo. Fez uma pausa, e respondeu:

«É que esteve aqui ao anoitecer o abbade de Alcobaça.» «O abbade de Alcobaça?! -- interrompeu elrei com visível anciedade. -- Rompeu, emfim, a nuvem mysteriosa em que se envolvia?» A anciedade do príncipe pareceu restituir a presença d'espirito ao abatido chanceller.

«Rompeu e fez mais: trouxe uma testemunha, que revalidou e completou as suas declarações; um dos procuradores do povo. Vossa senhoria deve fazer mercê ao digno prelado...» «Um dos procuradores do povo?! -- acudiu elrei. -- Gomo é isso ?» «Um procurador, que, illudido pelo conde de Seia, trahiu os deveres do seu cargo, revelando-lhe os artigos populares para as próximas cortes, e que arrependido veio, por conselho de D. João d'Ornellas, lançar-se-me aos pés, como se fosse eu, e não os que o escolheram por mandatário, quem houvesse de perdoar-lhe.» «E que se passou ahi ?» -- perguntou o monarcha, fitando o olhar ardente no privado.

João das Regras narrou então miudamente os successos occorridos na tavolagem de Lourenço Braz e quanto alli se dissera; quantos alvitres se haviam aventado para destruir ou embaraçar os effeitos políticos da assembléa que se ia reunir. Sem alterar substancialmente os factos, o ódio contra os nobres, cujo chefe era o seu rival no valimento, Nunalvares, a humilliação que, por causa delle, pouco havia elrei lhe fizera tragar, e a sua natural astúcia inspiraram-no de modo, que soube pintar com as mais negras cores um acto que a situação da nobreza e o natural instincto da própria conservação até certo ponto desculpavam. Tinha alludido vagamente por muitas vezes a revelações importantes que esperava obter por intervenção do abbade de Alcobaça; mas reservara para as vésperas do dia em que se deviam redigir as respostas aos capitules de cortes o desenhar ante os olhos d'elrei um quadro capaz de produzir viva e duradoura impressão na sua alma. Sem que podesse em tempo algum ser taxado de ultrapassar os limites da verdade, o destro chanceller chegou a despertar violenta irritação no animo do principe. As expressões insolentes de alguns fidalgos contra a quebra dos seus foros, os alvitres excogitados para constranger o soberano a rejeitar as supplicas dos povos, as disfarçadas ameaças, tudo foi traduzido, interpretado, envenenado e revestido de dimensões extraordinárias. Quando o privado acabou de falar, a indignação profunda, que se revelava no brilho desacostumado dos olhos e no affogueiado das faces do monarcha e que no primeiro impeto lhe tolhera a voz, ameaçava estourar. O velho ministro ria interiormente, porque lera no gesto de D. João I o que se passava na sua alma.

Postoque, semelhante á de todos os individuos de vontade enérgica, a cólera do mestre d'Aviz fosse terrivel, elle sabia soccorrer-se a essa mesma energia de vontade para a disfarçar. O escondê-la, porém, a um homem tão astuto como João das Regras, e que tanto lhe estudara a Índole, não era fácil. Quanto mais o príncipe procurava encubri-la, mais o chanceller forcejava por irritá-la. Sabia que o tiro feriria o alvo tanto mais fortemente quanto mais se retesasse o arco.

«Doutor João das Regras -- disse elrei com uma vibração tremula de voz que o atraiçoava -- acreditei a principio que era mais grave o negocio. A fúria dos fidalgos ha-de passar!...

ha-de passar!...» E atirou violentamente com o livro que tinha na mão para dentro da arca.

«É possível -- replicou o chanceller, encolhendo os hombros. -- Mudarão provavelmente de conselho. Deus ha-de allumiá-los.» Também a voz do privado vibrava tremula.

Era que as palavras, mansas e lentas, saíamIhe dos lábios repassadas d'ironia.

«Desaffogam em ameaças vans... -- proseguiu elrei com gesto d'indifferença. -- Não julgo que queiram recorrer a meios extremos.» «Creio-o, -- acudiu João das Regras no mesmo tom -- visto que apraz a vossa alta senhoria pensá-lo assim ...» «Chanceller! -- bradou o monarcha, em cujos olhos faiscou um como relâmpago. ~ Lembraevos de que falaes com o rei de Portugal ...» «E esqueci-me eu disso ? -- replicou o privado, abaixando a cabeça com ar de profunda humildade. -- Esqueci-me eu disso uma só vez desde o dia em que nas cortes de Coimbra a nobreza, o clero e o povo deste reino reconheceram, emfim, que devieis succeder a elrei vosso irmão?» «Entendo! Completae a phrase. Porque vós lh'o provastes. Devo a coroa aos vossos esforços. Não é assim? Tenho-o presente. Mas falo-vos serio, e vós gracejaes? Mereço- vos isso ?» -- Fez uma pausa e proseguiu em tom amargo: -- «Não sois já o meu velho amigo, doutor João das Regras: não sois meu amigo!» O privado lançou-se-lhe aos pés, agarrouIhe na mão e beijou-lh'a. Depois ergueu para elle os olhos, dos quaes desejaria nesse momento espremer duas lagrymas, que o coração frio e árido lhe recusava.

«Se eu deixasse de amar-vos, senhor, -- exclamou elle -- a vós que me tirastes do meu nada, seria o homem mais ingrato do mundo.

Não gracejei comvosco. Ninguém melhor do que eu sabe qual veneração se deve á magestade dos príncipes; ninguém mais sinceramente crê que o monarcha é a imagem de Deus na terra. Se tal ousasse, não mereceria só a cruel accusação que me fazeis: mereceria a de sacrílego. Mas que queríeis, senhor ?

Quando lia no gesto de vossa mercê os esforços que fazíeis para conter o justo despeito contra a insolência da nobreza, devia eu irritá-lo, contradizendo a vossa magnanimidade?

Apontaria o ministro para a espada da justiça, quando o príncipe chamava do coração aos lábios os impulsos da misericórdia ? Se nisto pequei, perdoae-me, e se não mereço perdão, puní-me. Não me digaes, porém, que o velho João das Regras não vos guarda a lealdade de bom vassallo ou pôde esquecer-se um instante do mais honrado dos seus títulos, do nome de vosso amigo!» O chanceller passara da comedia para o melodrama. Tinha a mão d'elreí segura entre as suas, e encostava a fronte sobre ella, emquanto D. João I forcejava com a esquerda para o alevantar, «Que é isso, homem ? -- dizia o monarcha, visivelmente commovido. --- Deixae essa postura, que nem é digna de vós, nem de mim.

Conhecemo-nos ha muito para que hajamos de gastar mutuos disfarces. A fidalguia, a fidalguia! Oh, esta fidalguia martyrisa-vos...

Também a mim. Eis ahi para que me quizeram rei; os que quizeram; porque o resto...

o resto tinha corpos e almas em Castella. Os corpos vieram; mas as almas... Eu sei?...

Ficaram-Ihes lá. Ao menos parece-o. Não consentem que Portugal respire, este pobre Portugal! É que ainda se lembram da era de vinte e dous, quando os populares lhes cercavam e tomavam as alcaçovas para m'as darem a mim, ao mestre. Bom tempo era esse em que me chamavam o mestre! Conspiram...

injuriam-nos, ferem-nos pelas costas, chanceller, porque lhes não deixamos tirar a camisa ao povo. Pois eu não lhes dou tudo quanto a coroa lhes pôde dar?» «E o que não póde» -- interrompeu o valido.

«Confesso que tinheis razão -- proseguiu elrei. -- Ê necessária a severidade. E mais, doe-me; que sou affeiçoado a alguns; e muito!

Poupemos, todavia, o Condcstavel : bem vedes que é estranho a estes meneios, Cuidemos em derribar-lhes os engenhos. Nesta guerra sois vós melhor capitão do que eu. Andae, homem.

Parafusae lá; e dizei o que se ha-de fazer.» «Se esses eram os pensamentos de vossa real senhoria, para que intentastes dissimulálos I Agora sim, que falaes como um grande rei que sois. Ninguém ama a brandura mais do que eu; mas também considero que é mister acudir aos mesquinhos, que, roubados e opprimidos, erguem as mãos para o seu principe. É negocio para maduramente se pesar:

porque os adversários são duros. É tarde hoje.

Pensarei d espaço e com frieza. Imparcialidade sobre tudo! Nem amor, nem ódio. É a minha regra. Amanhan, ámanhan. Tudo repousa já. São horas de vos recolherdes, e eu vou retirar-me.» O relógio tinha dado onze pancadas.

«É verdade! -- disse elrei, olhando para a pêndula e encaminhando-se para a porta interior. -- Grande invento foi este dos horologios.

Adeus, honrado chanceller, -- accrescentou, batendo familiarmente no hombro do legista. -- Não vos saia da memoria que Nunal vares é o braço da espada e vós a fronte da intelligencia. São duas cousas que devem andar accordes, se não podem andar unanimes. As respostas aos capitulos do povo, visto que já os conheceis, consultae-as com os do conselho, que eu concordo desde já no que resolverdes; mas com uma limitação: respeitae o Condestavel!» Evitando ulteriores explicações, o privado abaixou a cabeça para de novo beijar a mão a elrei. Mas no momento em que este ia a sair, exclamou:

«Ai, que me esquecia ... É um negocio de riso em que me falou D. João d'Ornellas.

Como soube da morte de Annequim, oíferece a vossa real senhoria um gracioso jogral. Se quizerdes tomá-lo por vosso...» «Quero, quero! Sabeis que me faz falta o bom do Annequim com suas jogralidades ?

Como se chama o herdeiro das suas roupas de guizos, da sua palheta e do adufe a cujo som bailava?» «Chama-se... chama-se... Alle... Alle, sim. É o nome em que falou o abbade...» «Mouro ?» «Mouro.» «Não importa. Quando virdes D. João d'Ornellas, dizei-lhe que Alie é meu homem com vinte livras de assentamento e dous vestidos por anno; aljuba, aljubeta, balandráu e escapulário e um albornós ou capuz, á sua vontade.» Dizendo isto, saíu. Os pagens da tocha, que, esperando a respeitosa distancia, cambaleiavam de somno, marcharam allumiando adiante.

O chanceller deu então volta á chave: dirigiu-se á porta exterior, franziu o reposteiro e murmurou:

«Entrae.»

XVI

O MEU ILLUSTRE AMIGO

Ouve entre elles palavras fyngidas de tanto amor e cortesya, que parecia que huum nom estymava nem desejava, mais bem que a vista do outro, Ruy DE Pina -- Chron. d'Affonso V.

Apenas o doutor João das Regras proferiu aquella simples palavra, com que rematou a serie dos seus movimentos depois da saída d'elrei, e com que nós também concluimos o precedente capitulo, surdiu d'entre os umbraes de porta mysteriosa um vulto alto e grosso, embrulhado num ferragoulo pardo.

«Esperastes ?» -- perguntou o chanceller á corpulenta personagem que entrara.

«Pouco. Cheguei agora. Abrindo devagarinho a porta, ainda ouvi as ultimas palavras d'elrei. Creio que falava acerca de Alle.» «Justamente. Podeis mandá-lo apresentar ao alcaide dos donzeis.» «Beijo- vos as mãos, senhor chanceller... É verdade: ia-me esquecendo de vos restituir a chave que me destes para haver de aqui entrar.» O chanceller pegou na chave, puxou uma gaveta do bufete e metteu-a dentro com varias outras que fechavam mais de uma passagem secreta ou mais de uma arca importante e, voltando-se para o abbade de Alcobaça, que por certo o leitor já reconheceu no vulto alto e grosso que entrara, perguntou vivamente:

«Percebestes o que elrei dizia ? Sua mercê achou singular e estranho que fosseis vós quem lhe indicasse um successor para o defuncto Annequim.» Ao alludir ao empenho, na verdade extravagante, do monge, o valido cravou nelle os olhos» como se tentasse ler na sua alma.

O singelo abbade era, porém, parceiro digno de jogar com o bonacheirão do doutor de Pisa. Deslisando um sorriso insignificante, respondeu:

«A um bom vassallo» a um amigo leal da monarchia e do monarcha poderia ser acaso indifíèrente o prazer ou o desgosto do seu príncipe? Sua real senhoria lamenta va-se tanto o outro dia da morte de Annequim, que não descansei sem lhe achar um jogral, e creio que em boas manhas e agudeza este ha-de levar a palma...» «Bem, bem! não falemos mais nisso -- interrompeu João das Regras. --Vamos ao essencial. Estão, emfim, accordes os procuradores ?» «Como um homem só: um só pensamento e uma só vontade.» «Excellente!»-- murmurou o privado, esfregando as mãos.

«E o camareiro-menor?»-- perguntou o abbade.

«Oh meu bom amigo! -- respondeu com gesto contricto o chanceller.-- Porque não vos acreditei logo e não segui o vosso dictame ?

Por esta minha simpieza. Sou eu o primeiro a confessá-la. O hypocrita, quando perco elrei de vista, não cessa de advogar os interesses da sua parcialidade, affectando depois diante da corte uma indiíierença estudada. Difficil lucta é esta; porque, em summa, sou um homem chão ...» «Isso é verdade! -- acudiu D. João d'Omellas.-- Mas como é possível que elrei se deixe embair por elle, sabendo qual foi a linguagem traidora daquelle homem ingrato na celebre noite ...» «É... -- interrompeu João das Regras com ar de innocencia bondosa e raspando attentamente com a unha do index uns pingos de cera que tinha na manga da garnacha; -- é que eu... pelo que toca... sim, pelo que toca ao moço escudeiro ... occultei a sua real senhoria o que elle fez e disse na tavolagem...» «Como assim ? - interrompeu o monge, lançando um olhar suspeitoso ao privado. -- Pois vós occultastes o que disse o camareiromenor? Esquecestes que me tinheis promettido desaggravo, e que essa foi a condição das revelações que vos fiz, não somente sobre o que se passou nas Portas-do-mar, mas também sobre as antecedencias dessa importante trama? Quereis acaso salvar o meu inimigo mortal?» «Ai, ai, dom abbade! -- replicou o chanceller, rindo e tossindo a um tempo e continuando a fazer saltar com a unha a cera da manga.

-- Não nego que teria feito melhor em logo o accusar a elle, carregando a mão na culpa e impedindo-o de fazer mal. Mas o erro está commettido, e o que resta é guardar de segundo ...» «De segundo! -- atalhou de novo o monge, escondendo mal a irritação que lhe brilhava nos olhos. -- Confesso que não vos entendo, senhor chanceller.» «Não!? Parece impossível, meu excellente amigo, que não alcanceis de golpe o que quero dizer; vós, que sois tão subtil. Olhae!

Gontar-vos-hei uma historia. Estando eu na tenda d'elrei, naqúella noite depois da de Aljubarrota, falava com micer Talhaferro do grande pavor que os trons de fogo, nunca vistos em Portugal, produziram nas nossas azes dianteiras: «Se os castelhanos-- disse-me então micer Talhaferro -- tivessem sabido servir-se desses engenhos, não seriamos nós que estaríamos senhores do campo, folgando aqui de seu mal e vergonha. Assestando-os todos sobre a bandeira d'elrei e disparando-os a um tempo, acabavam com a festa.» -- Sabeis vós, dom abbade, que parafusei toda a noite naquellas palavras, e que depois me tem sido grandemente útil, cá nestas cousas da governança, a lição de micer Talhaferro?» «Mas, emfim!...» «Mas, emfim, dom abbade, -- proseguiu o chanceller, acabando de raspar a garnacha, e batendo com dous dedos no hombro do veneravel prelado - não vedes que a furia de elrei espalhada por tantos ha-de ser como os tiros dos trons castelhanos, de grande ruído, mas de pequenos effeitos. Deixae-me; deixae-me de parte o camareiro-menor. Ajunctemos a artilharia que podermos: carreguemo-la toda: assestemo-la contra esse ponto único: disparemos então; e a torre virá a terra. Era o que eu devia ter feito logo. Não o fiz. Agora emendo a mão... Percebeis?» O aspecto de D. João d'Ornellas, até ahi carregado, desanuviou-se. O monge sorriu.

«Não sois somente um homem chão e honrado, senhor chanceller -- exclamou elle. -- Sois também um grande ministro, mandado por Deus para salvação e gloria desta nossa terra de Portugal. Que o Senhor vos guarde e mantenha, para temor dos maus e defensão dos bons: é o que peço todos os dias nas minhas pobres orações a nosso padre S. Bernardo.» «Gratias ago, domine reoerendissime» -- respondeu modestamente o velho jurisconsulto, apertando com a mão pequenina, torneiada e sempre fria, a mão ampla e ossuda de sua reverencia.

O abbade olhou para o horologio. O ponteiro indicava que depois das onze decorrera já um arrazoado espaço.

«São horas de partir -- disse elle, abaixando os olhos para o chanceller.-- Os procuradores esperam-nos na pousada de Mem Bugalho, que cego de raiva ...» «Coitado ! -- interrompeu o valido -- amansá-lo-hemos. Preciso de um escriba que me transcreva, sem errar demasiado o latim, algumas conclusões de Bartholo. Terá um bufete na Torre da Escrevaninha, mantença e salário d'eirei.»D. João d'Ornellas sentiu uma tentação diabólica de rir, á vista do singular encargo que o chanceller destinava a um homem a quem na tavolagem do besteiro se fizera crer na possibilidade de lhe succeder a elle.

«Voltae quanto antes, meu illustre amigo, -- proseguiu João das Regras -- e asseguraeIhes que me parece termos obtido um triumpho decisivo. Ide, emqiíanto eu me dirijo a casa dos irmãos Docem e de Pedreannes Lobato, que hão-de acompanhar-me.» Ouvindo isto, o digno prelado apertou de novo a mão do chanceller e partiu apressadamente.

João das Regras pôs-se á escuta. Apenas sentiu cerrar a porta da rua, soltou uma destas gargalhadas, agudas, chirriantes, contristadoras, attribuidas pelo povo aos medos e cousas más que apparecem á meianoite.

Depois, foi assentar-se na grande poltrona e, encostando o cotovello ao bufete e a cabeça ao punho cerrado, parecia envolto em fundo meditar agitando incessantemente os lábios, dos quaes lhe escapavam por vezes phrases truncadas:

«Supprimidos os mais ... a estes as respostas ... Eu e o conselho ... Dictá-las ? ... O conselho sou eu! Dez mil livras ao mestre de Sanctiago ... Lopo Dias para Tralosmontes ... Cinco mil livras é muito ... Cercaremos Tuy ... Paio Soródea escreve-me ... também cá temos desses villãos! ... O marechal ... Livremo-nos dos mais violentos ... O mestre de Christus ... Sete mil livras ... Posso, emfim, respirar! Ah!»

Soltando estas palavras incoherentes e interrompidas por silenciosos intervallos, o privado conservou-se por algum tempo naquella postura. Por fim, ergueu-se e começou a mecher na gaveta que deixara aberta. As chaves que alli tinha tiniram umas nas outras. Pegou em duas e, tornando a metter a mão, tirou um punhal comprido e agudo, desses a que chamavam misericordias, companheiro necessário para quem devia atravessar assim a deshoras as ruas tenebrosas e solitárias de Lisboa. Emquanto o segurava bem na banda negra que lhe cingia a garnacha, o discipulo de Bartholo resmoneiava:

«Este abbade, sancto homem, vai-se intromettendo de mais nos negócios da republica... Emfim, elrei cede, e portanto tenho nas mãos a victoria! O temporal rugirá por alguns dias em S. Domingos; mas ha-de abonançar. Depois, tenha paciência o digno prelado, que a sua nédia mula trotará em breve pela estrada de Alcobaça. Assim podesse eu aposentar em Pombeiro o velhaco do escrivão da puridade!» Feita esta oração mental, o bom do chanceller apagou as duas tochas. A lâmpada extinguia-se por si, dando d'espaço a espaço um grande clarão que logo esmorecia. A esta luz duvidosa, o privado desappareceu atraz do mesmo reposteiro que franzira para D. João d'Omellas entrar: abriu e fechou após si a porta contigua: desceu dous ou tres degraus tacteiando com os pés: atravessou uma espécie de átrio: abriu a porta exterior, que também fechou cuidadosamente após si: metteu as chaves na bolsa que trazia ao lado, e dirigiu-se para o terreiro dos paços do concelho, perto dos quaes habitava Pedreannes Lobato.

Pouco mais de trezentos passos adiante delle caminhava vagarosamente para o lado da Rua-nova um dos seus maiores amigos, o abbade D. João d'Ornellas, que, embuçado no pardo ferragoulo, trauteiava a meia voz um pedaço do Exurge, domine, ao mesmo tempo que pela cabeça lhe galgava o seguinte soliloquio:

«Mestre dos engenhos, meu doutor de Pisa, é D. João d'Ornellas! Tu que és, velho manhoso, senão um dos trons que assesto? Guarda as tuas lições de micer Talhaferro: guarda-as para ti, ridículo velhaco !... Parvos! Cuidam que eu... eu! ... sou instrumento de seus ódios, ambições e desígnios! ... elles é que o são da minha vingança! Rei e chanceller; nobreza e procuradores; Fr. Vasco e o truão... Ah, ah, ah!»

E ria ainda de melhor vontade do que rira o doutor Joannes a Regulis, o grande doutor, como lhe chama o tão poético e ao mesmo tempo tão singelo chronista de D. João I.

XVII

A PROCISSÃO DE CORPUS

Em esta maneyra se mostra por costume antigo que hamde ir os officios da cidade na festa do corpo de Deus.

Livro dos Pregos -- no Archivo Municipal de Lisboa.

O dia tinha amanhecido sereno e puro. Uma brisa suave do norte, varrendo as cimas dos pomares entresachados de hortas ou almuinhas, que se dilatavam por Valverde e pelo valle de Andaluz, espalhava ao longe os effluvios dos rosaes e da madresilva. Era um bello dia de estio aquelle. Os campos como que sorriam, e até o interior da cidade, em cujas visceras obscuras e lodacentas penetrava a viva claridade do sol esplendido, e d'onde a aragem affugentava o cheiro repugnante de crassa atmosphera, parecia revivescer, remoçar, desempoeirar-se, e o seu borborinho, habitualmente roufenho, cavo, triste sem melancholia, tornava-se harmonioso e accorde com o sussurro da brisa.

O dia que amanhecera fora o dezesete de junho, e o dezesete de junho era um dia-sancto, o da procissão de Corpus.

Um dia-sancto ; um dia-sancto ! ... Assim junctas, estas duas palavras são as mais sonoras, as mais pinturescas, as mais saudosas da nossa lingua; para mim, ao menos. De todas essas memorias passadas, cujas ruinas o descrer da idade de homem me tem alastrado pelo coração, uma sei eu que vive ainda nelle fresca e viçosa e que me parece morrerá só quando eu morrer. É a lembrança dos diassanctos dos meus tenros annos. Um domingo de então ainda me sorri suavemente, quando deito olhos longos para o caminho tortuoso e agro por onde já derramei, sem saber como, um terço de século da vida. Na orla desse horisonte crepuscular do passado avultam-me a capellinha da habitação da infância ao diasancto e o altar com os seus castiçaes de talha dourada e as jarras de flores, que lá se punham no sabbado á noite, e o alevantar cedo para todos, e tudo estar lavado, espanejado, escovado e ordenado para a missa. Sabe Deus com quanta fé e devoção a minha alma tenra se balouçava na toada monótona que murmurava o velho frade arrabido, calvo e macilento, cujo burel desapparecera debaixo das vestes variegadas do sacerdócio ! Através de alta gelosia, o sol vinha, semelhante a uma columna de vidro amassado com pó de ouro tombada de seu pedestal, bater de soslaio nos degraus do altar. As luzes tremulas das velas, cuja claridade se annullava no esplendor do dia, pareciam-me espíritos que se inclinavam esperando a presença real de Deus para o adorarem. Depois o frade, que viera de longe, do convento de Ribamar ou da Boa-viagem, almoçava e jantava. E todos estavam contentes; porque era um sane to mas jovial frade o bom do arrabido e contava historias que era um pasmar. Naquelles dias abençoados, juraria eu que a folhagem das arvores era de um verdor mais vivo, os fructos mais saborosos, o ar- mais diaphano, a agua mais transparente» o céu mais azul e, até, as alfaias da casa mais novas e o caio dos muros mais alvo. Á tarde corria pela relva com os outros moços da minha idade e travava luctas e gritava e ria e suava e tripudiava nos jogos e brinquedos que são próprios daquella idade; mas, quando O sol descia para o horisonte, ia assentar-me á sombra de uma grande nogueira, sósinho, a ouvir cahir num tanque uma pequena bica d'agua, e alli ficava muito tempo a scismar.

Em que ? Eu sei lá ! Em nada provavelmente.

Mas scismava e sentia levantar-se-me no coração um fumosinho de tranquilla melancholia, fumosinho que se condensava brevemente nos olhos em lagrymas, que não chegavam a rolar, mas que nelles bailavam. E alli se achava a noite, e buscavam-me e desfaziam-me o encanto; mas ficava-me cá a saudade... Domingos dos doze annos, em que o meu espirito infante se harmonisava com o hymno eterno da natureza, salve I A gloria litteraria, o amor da independência, talvez, até, o orgulho de proceder honesto, todos os meus sonhos de ambição da-los-hia a troco de me sentir viver comvosco; comvosco, oh dias-sanctos; porque os outros, esses se não eram pallidos, como os de hoje, eram acres, dolorosos, inquietos. As paixões fervidas e insensatas da mocidade vinham chegando, e como que já sentia rugir a pouca distancia as tempestades que iam agitar e devorar-me os annos mais bellos da vida ...

Não tenho saudades dess'outros dias. Não tenho. Deixá-los ir. É pelos meus ricos diassanctos d'então que eu sempre hei-de chorar.

Ainda hoje ha um individuo que exerce singular predominio sobre mim, e ignora-o. É o sineiro da minha meio-rural, meio-urbana parochia. Na escala das reputações de sinos os da minha freguezia occupam logar modesto, e todavia, quando repicam antes da missa do dia, sinto passar em volta de mim uma como aura fugitiva dos dias-sanctos da meninice, e o sol illumina-se da luz daquelle tempo. O repique, por estes sitios, é ainda patriótico e tenaz: ainda não o perverteu a peste da civilisação. Nem as cantigas populares, nem as harmonias do theatro se atreveram a pôr pé sacrílego nos degraus do campanário. Abençoado sineiro, que me parece has-de morrer abraçado com as tradições do teu antecessor.

Oxalá que, se eu te sobreviver, tenlias um herdeiro digno de ti ! Mal sabes tu, quando, no teu ardor de artista, te penduras por essas cordas e as fazes vibrar, saltando de um a outro lado, banhando-te numa catadupa de sons estrugidores, que se despenham sobre ti, jorram pelas sineiras e vão ennovelados esmorecer por esses ares, mal sabes tu que, a certa distancia, no alto da montanha, alguém larga o livro, a penna, as idéas e fica abstracto e immovel a aspirar as harmonias que lhe mandas frouxas, sacrosanctas, ricas de saudades da infância ! Mal sabes tu quantas cogitações profundas, quantas dores do espirito tens suspendido, com essas divinas toadas. Oh, que se me podesses restituir a capella e o velho arrabido e a sua missa e as suas historias e o murmúrio que tinham outr'óra as pequenas bicas a correr nos pequenos tanques e a sombra que davam as nogueiras e a melancholia do solposto de ha vinte annos; se tal podesses ! ... Eu sei ! ? Cahindo, adorar-te-hia, fosses Deus ou Satanaz.

Ai, não podes; não pódes ! Isso tudo sumiu-se. Hoje sou cidadão, jurado, eleitor, homem de letras: podia ser commendador, conselheiro, governador civil, deputado, ministro, se navegassem por esse rumo as minhas ambições, e Deus me houvesse concedido o ser um nadinha mais parvo.

Vida positiva, realidade do mundo, se tu fosses uma realidade tangível, uma realidade que sentisse, uma realidade real, quizera ver-te jazer ante mim, para te pôr um pé sobre os peitos e calcar-te e cuspir-te nas faces! Só isto me consolava das saudades dos dias-sanctos infantis e deste viver miseravelmente desbotado.

Leitor, que tens tu com isso, comigo, com o meu spleen ? Prometti contar-te uma velha historia. Boa ou má, queres ouvi-la, e não uma auto-biographia intima. Vou obedecer-te. Escusas de gritar mais: -- «Avante, narrador!» Era, pois, o dia da procissão de Corpus.

As ruas por onde esta havia de passar estavam desde a véspera varridas e cubertas de junco e espadanas. Saindo da cathedral e transpondo a Por ta-do- ferro, aberta no muro antigo, do tempo de Affonso III, descia-se ao longo desse muro para o lado da praia pelas Fangas e, dobrando á direita, entrava-se na magnifica Rua-nova, tão celebre pelo seu commercio e pelo grandioso dos seus edifícios.

Na extremidade delia, voltando em angulo recto á direita, prolongava-se outra rua, que, costeiando o monte de S. Francisco, vinha desembocar noutras, que se prolongavam com ella até um terreiro d'onde rompiam para o noroeste e norte os dous valles de Valverde e da Mouraria, cortados quasi de nascente a poente pela nova muralha d'elrei D. Fernando.

O terreiro, que se poderia comparar ao eixo de um compasso aberto cujas pernas fossem os dous vales, chamava-se ainda Valverde, abrangendo o terreno da praça que depois se denominou o Rocio, quando esta palavra deixou de ser em Lisboa a designação absolutamente genérica de quaesquer terrenos communs ou logradouros dos concelhos. As ruas que ligavam este recinto com a extremidade occidental da Rua-nova, costeiando as alturas do Carmo e de S. Francisco, vieram a ser origem da celebre rua do Ouro. Na immediata á Rua-nova, dous annos depois da conjunctura em que sobrevieram os successos contidos nesta narrativa, começaram a ajunctar-se os artifices de metaes preciosos; porque foi então que o concelho ordenou o arruamento dos mesteíraes, cujos grémios constituiam os mesteres. Para o nascente da Rua-nova d'Elrei, nome com que esta parece foi designada, ao menos no século seguinte, e das outras que seguiam na mesma linha até Valverde, ficava uma inextricável meada de ruas, travessas, viellas e becos, semelhantes ás que ainda hoje constituem o bairro da Alfama, e cuja planta fora difficil traçar depois que por cima desse labyrintho passou o suão mirrador do terremoto e o espirito perpendicular, amplo e rectangular do marquez de Pombal. Ao oriente deste macisso, que occupava o fundo do valle estendido entre a primitiva cidade mourisca e o monte dos Martyres, dilatava-se das raizes da Alcáçova até a Magdalena a rua de Sancta Justa, encostada mais ou menos ao exterior do lanço da muralha de Affonso III que corria da Porta- do-ferro para o norte. Era ao redor desse macisso que a procissão de Corpus, a grande solemnidade popular de Lisboa e de todas as cidades e villas notáveis do reino, se movia lentamente, colleiando semelhante a desconforme serpente que tentasse esmagar o arrabalde; porque, no desenvolvimento da sua complicada estructura, ainda tinha a cauda embebida na Rua-nova, quando já as formas singulares da fronte se adiantavam, como um sonho de pesadello ou uma scena de phantasmagoria, ao redor de Valverde, caminho da cathedral.

Para assistir a este maravilhoso espectáculo, a este drama liturgico, amontoavam-se desde o romper dalva, não só os moradores de todos os bairros da cidade, mas também os das aldeias e villas que demoravam por algumas léguas em volta. Excepção da regra geral eram unicamente os judeus e mouros, cujos trajos especiaes os faziam distinguir da outra gente e lhes poderiam acarretar neste dia insultos, violências e, até, risco de vida no meio da gentalha feroz, se ousassem aproximar-se daquelle extenso theatro, na conjunctura em que a devoção do povo subia naturalmente até o grau de fanatismo pela ebriedade do enthusiasmo.

Nenhum sitio em todo o transito da procissão era tão adaptado para conter avultado concurso de espectadores como Valverde e a Ruanova. O primeiro, muito mais vasto que o actual Rocio, postoque irregular, só era limitado do sueste pela freguezia de Sancta Justa, da banda do norte pelo convento dos dominicanos, edificado no angulo do delta que resultava da conjuncção da Mouraria e Valverde, e da banda do occidente pelo bairro da Pedreira. No cimo do cerro que campeiava sobre o valle via-se, já meio demolido, para se edificar o convento do Carmo, o palácio da nobre família dos almirantes Peçanhas, cujo ultimo representante fora victima da cólera popular na revolução de 1384. O bairro da Pedreira ou do Almirante, coutado por pertencer aos chefes daquella celebre linhagem, era um objecto de terror e de ódio para o concelho de Lisboa, por ser um covil de malfeitores, onde as justiças municipaes não podiam penetrar. Na verdade, D. Fernando descontara esse bairro; mas D. João I, indulgente sempre com os crimes politicos, ainda daquellas familias que menos affeiçoadas lhe ficaram sendo, restituíra á dos Peçanhas os antigos privilégios. Além da vastidão da praça de Valverde, patente a todos, a encosta íngreme da Pedreira offerecia aos seus moradores uma espécie de amphitheatro para gosarem mais ou menos distinctamente as scenas transitórias da procissão sem saírem de casa.

Se as dimensões da Rua-nova não eram, absolutamente falando, tão amplas como as da praça, podia-se dizer que essa rua era um theatro mais apropriado á mobilidade do espectáculo. Com outra nenhuma soffria comparação na largura, porque tinha mais de trinta palmos, largura fabulosa numa cidade onde se diriam nobres e anchas as que tivessem mais de oito ou dez. Assim, a multidão podia dilatar-se alli em duas alas singelas, mas sempre vizinhas das variadas representações, que não tardariam a passar enfileiradas umas após outras. A'quelle arrazoado espaço se ajunctava a serie de soportaes ou átrios, onde o povo, trepando ás bases dos pilares que formavam as arcarias lateraes, abraçando-se com elles, descendo e tornando a subir, se assemelhava a uma nuvem de formigas, ora acima, ora abaixo, nos troncos de um pessegueiro, e fervendo nos seus renovos. Por estas vantagens que a Rua-nova oferecia, era nella que se apinhava a força do concurso da procissão.

Em todos os gnomons de Lisboa a sombra angular da agulha de ferro passava já o ponto do meio-dia, e ainda o movel drama não rompia da profunda portada da cathedral. Alguns vereadores e os mesteres e officiaes da camará a qiiem não tocara acompanhar o préstito, encostados aos balcões do paço municipal, situado á direita do terreiro da sé, no ar ou, como hoje diríamos, no andar superior da igreja de Sancto António, sancto famoso, que, segundo a tradição, nascera no pavimento térreo da casa do concelho, pareciam disputar vivamente com dous personagens, cidadãos pelo trajo, um roliço, baixo, rosado, jovial, outro alto, cadavérico, rachitico, grave e melancholico. Eram os procuradores de Lisboa nas ultimas cortes, onde os tempestuosos debates entre a nobreza e os populares tinham cessado, havia apenas tres ou quatro dias, com as respostas definitivas d'elrei aos capitulos geraes e especiaes dos concelhos e aos que por sua parte a fidalguia apresentara.

Se os magistrados, mesteres e officiaes do concelho disputavam com os seus procuradores, não era por quaesquer bagatellas, mas por causa de matérias solidas e macissas como o figurão baixo e roliço, graves e melancholicas como o esguio e cadavérico, os quaes, um ao pé do outro, podiam ter inspirado a invenção do ponto e virgula. Tractava-se do resultado das ultimas cortes.

«Mestre Antão, -- dizia colérico o ponto a um esparteiro, rolho e pequeno como elle, eleito alraotacé nesse anno -- falaes d'outiva. Isso é falar de povo. Peitas de fidalgos! Pois não se descoutaram os termos de todos os concelhos? Não ficam os alcaides obrigados ás guardas, roídas e sobreroldas dos castellos, e...»

«E quem o nega, Perafonso Sardinha? -- interrompeu mestre Antão. -- Os capítulos geraes provaram-se bem contra os fidalgos, e bem os despachou elrei; mas os que deviam apresentar-se ? E os especiaes? Os de Lisboa, por exemplo ? Nem palavra sobre estas compras e vendas miúdas dos mercantes forasteiros, sobre que se havia requerido já a sua mercê.»

«Então -- acudiu a virgula com voz cavernosa e cansada -- accusaes-nos a nós próprios de ... »

«De nada, Lourenço Martins, de nada. O povo é que fala e se queixa...»

«Deixá-lo falar e queixar -- proseguiu Lourenço Martins. -- Tinham-nos promettido fazer arruído e assuada em S. Domingos, e quando viram alevantarem-se os cavalleiros e injuriarem e ameaçarem os procuradores dos concelhos de Portugal, não houve uma voz popular que bradasse lá do corpo da igreja e cubrisse o vozeirão do prior do Hospital ou que nos animasse contra a sanha bruta do das Galés, que escumava e parecia um diabo incarnado, e o povo, moita! Estavam lá enfiados de medo, e agora alevantam-se contra nós, porque deixamos algumas cousas para mais tarde, conforme o conselho do chanceller ... »

«Ahi é que me aperta o sapato -- disse do lado, em tom de oráculo, mestre Esteveannes, sapateiro o mais rico de Lisboa, e portanto membro da aristocracia burguesa, homem de ordem, circumspecto, e que não se deixava arrastar pelas paixões populares. -- Para que havemos de andar d'aqui para acolá? Quem governa governa. Deixae vós lá o chanceller, que elle bem sabe o que faz e é um grande homem e amigo do povo e ha-de dar cabo destas tyrannias e oppressões dos fidalgos.

Tendes razão, senhor Lourenço Martins: tendes razão! Deixem gritar a arraya miúda.

Quem lhe deu direito de andar a grunhir por essas praças e bodegas que as cousas vão mal; que se não fez isto, que se não resolveu aquillo? Se nós os cidadãos estamos contentes, que têem com a governança e regimento da republica esses ganhapães que mantemos em nossas officinas e que só devem cuidar em merecer o salário que lhe damos? Não fazem favor de me explicar ahi aos regatões do Pelourinho, aos atafoneiros das Fangas ou aos carniceiros do Matadouro, porque se tiram ou põem os regimentos, as leias e as posturas ? Não sei o que diga, mestre Antão, quando vos ouço falar como a relê mais pifia. Não sei o que diga, nem o que pense de vós.»

O auctorisado voto do sapateiro ricaço terminou a questão. Mestre Esteveannes era uma parcella rudimental dessa classe media que se ia organisando no meio das transformações sociaes da idade-media, classe cujos caracteres appareciam já no modo de pensar do honrado mester -- a má vontade para tudo quanto o berço ou a fortuna pôs acima delia e um orgulho tyrannico para com as camadas inferiores do povo, d'entre as quaes foi surgindo; -- classe egoista e oppressora como a que substituiu em influencia e riqueza, e peior do que ella na hypocrisia, tendo na boca a liberdade, a moral, a justiça, e no coração o desprezo do pobre e humilde, a cubica insaciável, a vaidade e a corrupção; classe, emfim, acerca da qual a historia terá no porvir de lavrar uma sentença ainda mais severa do que essoutra que já pesa sobre a memoria dos ferozes e dissolutos barões e cavalleiros dos séculos de barbaria.

Se, porém, quanto ás doutrinas, a linguagem do mester não era excessivamente orthodoxa, era, quanto aos factos, de extrema exacção.

No meio das paixões que agitavam os espíritos nos melados de 1380 estava, como a aranha no centro da sua teia, o sancto-homem de João das Regras, que empregava a lucta de interesses oppostos em realisar os seus planos. Para converter em proveito da coroa aquella espécie de febre excitada pelas assembléas politicas da nação, era preciso que os concelhos nunca obtivessem uma victoria absoluta e que do complexo dos actos que iam ferir as classes privilegiadas resultasse o conservar-se viva e ardente a mutua malevolencia de burgueses e nobres, mas apparecendo sempre como arbitro e moderador entre uns e outros o poder do sceptro. Durante os dias que medeiaram desde as scenas descriptas no capitulo antecedente até a reunião solemne do parlamento em S. Domingos, o velho doutor de Pisa desenvolvera todos os recursos da sua destreza e actividade. Conhecedor das mais secretas intrigas dos fidalgos pela delação do abbade de Alcobaça, João das Regras semeiara habilmente rivalidades entre uns, suspeitas entre outros, lisongeiara o orgulho dos audazes, aterrara os tímidos, nno poupara mercês para os mais ambiciosos, e ao mesmo tempo aproveitara o menor dicto, o menor gesto, que podia ter uma interpretação odiosa para irritar o animo d'elrei, que repugnava a ceder ás violentas pretensões do povo contra a nobreza, pretensões que iam ferir muitos dos seus antigos companheiros de gloria. Por outra parte, refreiando as idéas immoderadas dos procuradores, persuadiaIhes que só avançando lentamente os concelhos alcançariam, emfim, libertar-se das oppressões dos poderosos. O Gondestavel, que era o adversário mais de receiar, e alguns barões demasiado turbulentos foram retidos nas provincias com diversos pretextos, que a próxima renovação da guerra proporcionava. Finalmente, as duzentas mil livras de micer Percival, applicadas ao pagamento de soldos e quantias, acalmaram até certo ponto a indignação do commum dos cavalleiros. Os esforços do velho ministro foram coroados de feliz resultado, e a tempestade que se preparava limitou-se a um vão ruido na assembléa de S. Domingos, ás inúteis declamações e invectivas do prior do Hospital, de João Rodrigues de Sá, do conde de Seia, e de alguns outros, cuja violência de caracter não fora possivel dobrar ou cuja previsão do futuro não era fácil illudir, e que ainda tentavam salvar, postoque sem muita esperança, o edifício já vacillante da aristocracia.

A linguagem de João das Regras para com o seu illustre amigo o prelado de Alcobaça não fora sincera quanto a Fernando Affonso.

Postoque cordialmente detestasse este por se haver unido ao bando dos fidalgos, e ainda mais pelo ciúme vidrento de valido, ciúme inexorável ou, antes, malevolencia corrosiva e immorredoura, o parentesco de um dos mais importantes conselheiros da coroa e a protecção do arcebispo de Braga eram considerações que militavam a favor do moço escudeiro. Via, por outra parte, o perigo de faltar ás promessas feitas, talvez imprudentemente, ao chefe dos monges brancos. Actuado por sentimentos oppostos, reflectira que, ganhando tempo, poderia aproveitar quaesquer occorrencias para facilitar a vingança de D. João d'Ornellas sem compromettimento próprio, e evitara a difficuldade inculcando a sua hesitação como um calculo de prudência, Mas, se nisto o chanceller fizera uma reserva mental, não dissimulara a verdade na importante nova que por intervenção do abbade enviara aos impacientes procuradores. De feito, a final annuencia d'elrei a que elle redigisse as respostas aos capitulos e removesse as resistências da nobreza como lhe aprouvesse era uma verdadeira victoria.

O triumpho, todavia, do omnipotente valido não fora só resultado da sua astúcia. A lucta da nobreza para defender a própria existência como corpo politico, lucta de que tivemos de apresentar algumas scenas aos olhos do leitor, para lhe pintar a vida intima de uma epocha só geralmente conhecida no seu aspecto guerreiro e na sua vida exterior, oíferece, durante um longo decurso de annos, o espectáculo de contínuos desbaratos dessa casta, que, pelas riquezas, pelo numero, pelo valor e pelas memorias do passado, parecia dever assombrar perpetuamente o throno e conservar as classes inferiores na servidão. Este phenomeno, que terminou pela ruina completa da fidalguia no reinado de D. João II, singular ao primeiro aspecto, tem explicação fácil. Era uma necessidade para o progresso da civilisação; resultava do modo de ser da sociedade. João das Regras não fazia mais do que ordenar melhor o combate, defini-lo mais claramente e apressar o seu desfecho. Noutra qual mer epocha, o discípulo de Bartholo não se distinguiria, talvez, na serie dos ministros e privados que, pelo menos desde o reinado de D. Diniz, combateram a quasi independência dos orgulhosos barões do reino e que por isso favoreceram a emancipação do povo. Eram, em grande parte, as circumstancias que punham agora em relevo o génio indubitavelmente superior do chanceller e que lhe deram na historia um alto logar entre os estadistas emmentes. Bem que pareça escusado dilatarmo-nos sobre tal assumpto, não cremos que o leitor desapprove o darmos-lhe em breves palavras uma idéa dessas circumstancias, que, aliás, têem relação com o remate e, ainda mais estreitamente, com o titulo deste livro.

Postoque aos nobres não faltassem chefes hábeis, nem ousadia para sustentar os seus privilégios, nem, finalmente, esse instincto de vida que se dá nos corpos coUectivos do mesmo modo que nos individues, existiam dous factos que lhes invalidavam os meios de resistência contra os seus terríveis adversários, os concelhos e os juristas. Esses dous factos eram, por um lado a falta de uma opinião precisa e uniforme entre elles acerca da questão de dynastia e de independência nacional, e por outro a persuasão coramum, estribada em mil exemplos, de que a paz, a justiça e a liberdade só poderiam preponderar pelo triumpho completo do poder do rei contra as classes privilegiadas. Esta persuasão geral dera, digamos assim, uma força irresistivel á monarchia, que era, emfim, chamada a exercer uma influencia quasi exclusiva no desenvolvimento da civilisação do paiz. O papel de uma grande parte das mais nobres familias na grave questão d'independencia que a morte de D. Fernando suscitara não fora por certo, como o leitor sabe, nem o do patriotismo, nem o da lealdade; e os cálculos interesseiros, as ligações de linhagem tinham tomado o passo, entre essas familias, a todas as outras considerações. Muitos fidalgos seguiram a parcialidade de Gastella, porque a fortuna perecia dever-se inclinar para aquelle lado; muitos esperaram o desfecho da contenda, conservando-se numa situação dúbia; muitos, emfim, ainda depois das victorias do mestre d'Aviz, ao primeiro capricho não satisfeito, á primeira pretensão desprezada, não hesitavam em desertar dos estandartes sacrosanctos da pátria para virem combater contra ella á sombra dos pendões estrangeiros, e em voltarem depois, por desgostos com o príncipe castelhano, ao serviço do rei natural, que haviam abandonado. Ao lado destes homens sem pudor e sem fé apparecem na historia os ânimos nobres e grandiosos, que, pela devoção e lealdade ao chefe da nova dynastia e á liberdade nacional, contrastam profundamente com ess'outros caracteres repugnantes é torpes. A consequência deste proceder contradictorio, desta fluctuação de opiniões era o enfraquecimento da força moral e, ainda, material da casta privilegiada.

Por outra parte, a revolução que collocara no throno o filho bastardo de Pedro I fora essencialmente popular, e os homens dos concelhos, que, sitiando os orgulhosos alcaides dos castellos, acommettendo os solares senhoriaes, oppondo a partazana e o machado peão á lança e á espada do ca vali eiró, tinham reduzido castellos, enlameiado com os pés ludrosos aposentos de paços, varrido as lanças e montantes cora as chuças e almarcovas, haviam ganhado a força que resulta sempre da unidade de pensamento, do enthusiasmo ardente e da confiança gerada pelo habito do triumpho. A alliança do rei com os concelhos era antiga:

começara no berço da monarchia. O povo interessava em que o poder desta vigorasse dilatando-se, porque era esse o meio de se libertar das tyrannias locaes: o rei interessava em que os concelhos fossem poderosos e livres, porque eram a alavanca mais bem temperada para aluir a independência da aristocracia e fazê-la cahir despedaçada em volta do seu throno. A revolução de 1384 tornava mais intima esta alliança, ao passo que dividia os adversários e, além disso, os enfraquecia escrevendo na frente de muitos o ferrete de desleaes.

Para acabar de destruir a preponderância e até o equilibrio dos elementos políticos a penna do jurista, mais pesada que o montante do soldado, porque representava a intelligencia, achava-se na balança do lado do sceptro. Educados na admiração da sociedade romana na epocha do império, deslumbrados pela indubitável superioridade das suas instituições civis sobre as rudes e incompletas usanças tradicionaes da idade-media, os letrados acolhiam com o mesmo culto supersticioso as máximas da politica despótica dos césares. A sciencia do direito romano, á qual a sociedade civil moderna deve muito, deve talvez tudo, foi quem, para desconto, trouxe o absolutismo ás nações cuja indole politica era de origem germânica e liberal. No regaço da ordem, da equidade, da harmonia nas relações da vida commum,passou aninhada a tyrannia simples e culta, a tyrannia de um só substituta da de muitos, a tyrannia respeitadora do meu e do teu, vingadora dos crimes, grandiosa, illustrada, mas implacável contra aquelle que dissesse «o pensamento e a língua do homem são livres», e que se atrevesse a suspeitar que a realeza fosse uma delegação humana e não um symbolo da omnipotência de Deus.

Deste modo, a alliança tríplice da unidade monarchica, da sciencia e do principio de associação, cuja forma mais bella, mais enérgica, mais vivaz tem sido e será sempre o municipio, era uma coalisão que se tornava em toda a Europa cada vez mais ameaçadora para a casta privilegiada, mas que em Portugal actuava com dobrada violência na epocha de D. João I pelas circumstancias a que já alludimos. É por isso que, apesar de tantos caracteres elevados e de tantos homens valentes e cheios de amor da pátria que então surgiram das fileiras aristocráticas; apesar da indole cavalleirosa do príncipe, das riquezas da fidalguia e das instituições e costumes, que, recordando a todo o momento o poder dos antigos ricos-homens e infanções, deviam dar immensa força moral e material aos seus descendentes, a decadência da nobreza como elemento politico era rapida e decisiva, e será perceptivel para qualquer que leia a historia dos fins da idade-media. A idéa contraria a ella era a idéa progressiva. O cyclo da monarchia absoluta mandava já do oriente os seus primeiros clarões. A Providencia assim o ordenara, e o combater e o estrebuxar do privilegio, que queria viver de vida própria, eram vãos, porque não podiam chegar a uma causa final e faltava-lhes apenas um século para se tornarem impossiveis.

João das Regras era o nó da triplice alliança; era o homem da idéa juvenil. Nunal vares, chefe da nobreza, o homem da idéa gasta e decadente. O legista, alma rasteira, prosaica, astuta, positiva e talvez negra, levava de vencida o mais illustre homem d'armas de Portugal, alma grande, generosa, leal e poética.

Transportada a questão do complexo social para o individuo, a verdade é que o máu triumphava do bom, a velhacaria da franqueza.

Quantos tolos contemporâneos perguntariam na sinceridade da sua parvoice:

«Onde está a justiça e a providencia de Deus ?» Deixava brigar dous animalculos, o condestavel e o chanceller de Portugal, e dirigia o desenvolvimento da civilisagão humana, por leis eternas e não pelas reflexões semsaboronas de meia dúzia de mentecaptos, a que tomo a liberdade de dar este nome, porque já morreram ha quatrocentos annos.

Hoje creio que se chamam philosophos os que se mettem a perscrutar os segredos de cima no governo do mundo e têem lastima de Deus, porque não os consulta sobre os designios da sua eterna sabedoria, ou riem-se do povo, que espera e confia... Pois sejam philosophos!

Nunca na minha vida disputei sobre synonymos.

Mas a procissão começa, emfim, a transpor o escuro portal da sé; os mesteres e magistrados municipaes calaram-se repotreiando-se nos balcões dos paços do concelho forrados de excellentes tecidos de Arras. O povo, apinhado desde a cathedral, pelas Fangas da Padaria abaixo e ao longo da Rua-nova, agita-se, remoinha e vai-se enfileirando aos lados entre as paredes e as duas linhas de postes de madeira precursores dos frades de pedra que ainda em nosso tempo bordavam os passeios dos arruamentos. É que os trezentos besteiros de conto da cidade romperam em batedores para franqueiarem o passo ás pompas variadas, ao mesmo tempo religiosas e lúdicras, que constituem a festividade, nacional por excellencia, do corpo de Deus.

A primeira scena do espectáculo que enlevava as attenções de tantos milhares de olhos representavam-na os almuinheiros ou hortelões de Valverde, de Alvalade (hoje Campo grande), e de outros sitios ao redor de Lisboa.

Doze delles conduziam sobre os hombros uma arrazoada machina de paus e bragaes pintados, que representava uma almuinha com os seus alfobres, canteiros, nora, cana viaes e hortaliça. Após elles, com insignias figurativas dos diversos misteres que exercitavam, os vendilhões de pregão, os ganhapães e albardeiros e depois os almocreves e atafoneiros occupavam um comprido tracto da procissão. Seguiam- se os carniceiros em numero de vinte e dous, rodeiando dous graves mascaras, que representavam um imperador e um rei, cujos ademanes de gravidade e altiveza ridicula e acanhada revelavam bem qtie eram rei e imperador de um dia. Igual numero de tecelões se mettiam de permeio entre aquelles simulachros de realeza e os pelliteiros, cuja insígnia era um gato montez, chamado o gato paul. Em seguida dous diabos faziam momices e tregeitos no meio de vinte oleiros, fabricantes de telha e vidreiros, cujo logar no prestito aquelle era. Os merceeiros, vendedores de especiarias e boticários conduziam, logo atraz dos vidreiros, um descommunal gigante, que contrastava com um pequeno anjo, que parecia dirigi-lo.

Aquella espécie de Goliath excedia em altura quatro torres de madeira, duas das quaes pertenciam aos correeiros, e duas aos cortadores.

A immediata representação, ordenada pelos sapateiros, mostrava mais arte e despertava» talvez mais que todas as outras, a attenção dos espectadores. Vinha a ser o dragão infernal, sarapintado de vivas cores, que vigiava dous diabos, os quaes procuravam induzir dous frades noviços a voltarem aos deleites do mundo, ao que elles mostravam resistir heroicamente, postoque, como de reserva aos dous infernaes pregadores, os tosadores acompanhassem dous diabretes espertos, promptos a soccorrer os seus discretos collegas. Se, porém, como auctores dramáticos os sapateiros levavam immensa vantagem aos mesteiraes dos officios immediatos no préstito, nem por isso vinte e quatro alfaiates deixavam de pavoneiar-se após elles ao redor da serpe tentadora da nossa mãe Eva, a que fazia sombra uma torre, solidissima na apparencia. Mas se, pela excellente pintura da sua charola, os alfaiates tinham justos motivos de orgulho mais justa era a vaidade com que os carpinteiros da Ribeira e os calafates, em numero de trinta e oito, arrastavam uma náu e uma galé, armadas e empavesadas de muitas cores, cujos mastros quasi que se elevavam á altura dos edifícios, e cujas vergas quasi topavam com os balcões e frestas da Padaria e passavam a custo pela Porta-do-ferro. Os pulverulentos pergaminhos conservaram-nos a memoria da representação da dama em que figuravam tambem dous diabos, e que estava a cargo dos esparteiros. Em que consistia esta representação ignoramo-lo hoje; mas, se a avaliarmos pelo que sabemos da antiga procissão de Corpus em diversas partes do reino, podemos conjecturar que não seria demasiado edificativa. De todos os outros mesteres, cujos membros, em maior ou menor numero, ajudavam a tecer aquella enfiada de scenas ridículas ou brutescas, distinguiam-se, pela singularidade das invenções que ostentavam, primeiramente os pedreiros e carpinteiros pelo seu engenho ou machina de guerra, servida por dous feios demonios, e os armeiros pelo seu sagittario, symbolo do soldado peão, e no meio destas duas corporações os tanoeiros por uma torre grandemente historiada e semelhante á dos correeiros e cortadores. Os moedeiros, corretores, tabelliães e mercadores, como mesteres mais nobres, fechavam aquelle extenso séquito. Danças d'espadas, danças mouriscas, danças de péllas ou mulheres sustentadas sobre os hombros de outras, bailando e volleiando conjunctamente; tudo, emfim, quanto se possa imaginar de caricatura, de burlesco, de doudejante servia de moldura a este quadro singular, em cujo topo figuravam alguns magistrados municipaes, e sobre o qual fluctuavam dezenas de pendões, bandeiras e guiões variegados. Gomo contraste a estas visualidades heteróclitas, a esta espécie de sonho de pesadello, seguiam-se as communidades monásticas, mancha escura no dorso daquella immensa cobra que se estirava pelas ruas de Lisboa:

frades negros, frades brancos e pretos, frades crises, frades pardos, frades de todas as cores tristes; agostinhos, bentos, bernardos, dominicos, franciscanos, beguinos. Depois, um sem numero de cavai leiros de Christo, do Hospital, d'Aviz, de Sanctiago, precedidos dos respectivos mestres e commendadores e seguidos dos freires leigos e serventes d'armas. Depois, os magistrados da corte, os oíficiaes da coroa e o próprio monarcha rodeiavam a hóstia triumphante nas mãos do bispo de Lisboa e sustentavam as varas de riquissimo pallio. O esplendido dos trajos cortezâos, as telas custosas das vestes sacerdotaes, as renques de tochas accesas que faziam scintillar as Ihamas e brocados, os arrazes, que, forrando as paredes das ruas, serviam de decoração á scena, os tangeres e folias, que se enlresachavam com os diversos grupos, o sussurro do povo, semelhante ao rugido longinquo do mar, o perfume do incenso, que se espalhava em rolos de fumo transparente, a fragancia das murtas e rosmaninhos, de que o chão estava juncado, produziam um composto de sensações capazes ainda hoje de excitar o enthusiasmo phrenetico das multidões, quanto mais numa epocha em que as crenças, tão ardentes como grosseiras e sinceras, sanctificavam as scenas mais burlescas e, até, mais indecentes, ássociando-as ao culto e fazendo delias, como diria Sterne, parte instrumental da religião.

No momento em que os quinze ou vinte aprendizes de sovéla e tira-pé, encapellados atô os quadris dentro do bojo do drago, espécie classificável entre os sonhos zoológicos de Aldrovando e cujas trinta ou quarenta pernas eram as da rapaziada embebida naquelle cavallo de Tróia dos sapateiros; no momento, dizemos, em que esses comparsas imberbes forcejavam por fazer dobrar a desconforme aventesma da Padaria para Rua-nova, uma grande falada, que soava da banda do terreiro da sé, começou a distrahir a attençâo dos espectadores mais próximos daquelle sitio. Era contenda ou arruído popular que se travara?

Que o leitor cortez nos acompanhe, e averiguaremos a causa e substancia desse tumulto no seguinte capitulo.

XVIII

A TABOLETA DO SAPO AMARELLO

... bevem ante hora e depois hora, em tal maneyra que lhes faz mal ás almas e aos corpos.

Fr. Bern. d' Alcobaça -- Explicações.

«Olé, Ruy!» «Ouves? Olé!» «Psio ! Ruy Casco, diabo ! » «Estás mouco, maldicto?» «Fuso!» «Oh! excommungado ! » Eram os dous armeiros d'elrei, João Pires e o flamengo mestre Alberte, que, encarapitados no alpendre do soportal de uma nobre casa no topo da Rua-nova e fazendo com as pernas uma espécie de pendulas, cantavam este dueto, acenando para o grupo dos almuinheiros, que alli acabavam de chegar e que haviam parado com a sua viçosa almuinha de pasta,porque detraz lhe bradavam: «alto! alto!» Um mastro da galé symbolíca dos calafates tinha estalado e pendido logo ao sair da sé, e a procissão não podia proseguir sem se remedeiar aquelle fracasso. Fora isto que produzira a matinada e revolta que soava do lado da cathedral.

Ruy Casco, o nosso antigo conhecido, ia casmurro e triste no meio da festa. Perdera Zilla, a qual havia desapparecido de Restello, porque a bolsa de Ruy entisicara, e a festa da Maia e as dez alnas de ypre tinham sido para ella o romper dos abcessos, o golpe mortal.

Ruy andava impando, e por isso fizera orelhas de mercador; mas a palavra «excommungado» proferida, aliás, com a maior innocencia do mundo, fê-lo espirrar. Sabia bem que lh'o chamavam pelas costas, segundo o que se rugira acerca delle e da moura Zilla, e não tinha graça nenhuma affrontarem-no com balda certa em auto de tanta devoção. Alevantou a cabeça, volveu para os dous joviaes companheiros um olhar zangado, e por única resposta voltou-lhes as costas, curvando-se, como quem queria concertar algum desarranjo na almuinha.

Mestre Alberte e João Pires não eram homens que arreiassem.

«Anda cá, bruto. A cortezia é de quem a dá e não de quem a recebe. Escondes o focinho f Olha o salvage !

«Fora, bêbados!»-- gritou Ruy Casco, sem olhar para elles.

«Uh, uh, uh ! » -- uivaram os dous e soltaram uma grande risada.

O hortelão revirou meio corpo, lançou-lhes um olhar de revés e estendeu para elles a mão em signal de ameaça.

«Ai, que o sandeu desconfia ! -- disse mestre Alberte, fincando as mãos na beira do alpendre, alçando o corpo com um solavanco sobre os braços hirtos, largando-se a prumo e fazendo no chão, pan-- -Vem d'ahi, João.» João Pires imitou a evolução do seu camarada. Num relance achou-se ao pé delle, e ambos junctos aproximaram-se do hortelão.

«Para os sótãos da Alcáçova ! Ha-de ir á picota, posto na gaiola á vergonha, como carniceiro que furta no peso» -- disseram os dous armeiros, rindo e agarrando Ruy cada qual por seu braço.

O almuinheiro deu um empuxão e soltou-se das mãos dos agarrantes.

«Querem vocês ir para o meio do inferno?

Raios me partam, se não quebro a cara a um! » Esta pergunta e esta jura eram feitas já num tom duvidoso entre a colera e o receio de que palavras tirassem palavras. A estructura athletica dos dous armeiros não tornava muito provável a realisação da ameaça de Ruy Casco.

«Fazes-te parvo, homem? -- disse João Pires.

- Brinquem lá com um diabo destes ...» «Pois elle ! -- retrucou o almuinheiro. -- Muito riso pouco siso. Vejam que graça ! Vai um homem num auto serio, e, guar-te debaixo, entram a descompô-lo disto e daquillo, e hade ... » « Ai, O mangericão !-- interrompeu mestre Alberte. -- Forte pátéta ! Chamavamos-te, porque vimos que a procissão parava, e ouvimos bradar, lá da banda dos Açougues velhos, que a náu ou galé se desmastreiou.» «E que tenho eu com isso? Concertem-na, se podem.» «Forte novidade ! Mas o caso é que nem numa hora estará a cousa a caminho. Vimoste um ar tão devoto, que nos tentou o demo a convidar-te para fazermos neste entrementes certas resas a S. Martinho na ermida de Nathanael Sapo ...» «Eu sei lá ! -- atalhou o hortelão com a cara meio riso, meio cólera. -- Podem temperar-se mais depressa as gaitas, e eu não quero que me achem menos. A multa é pesada, e a minha algibeira anda fria, que a tronchuda não deu nada este anno. Depois, vinho judengo em dia de S. Corpus não será peccado ?

«Qual multa, nem qual carapuça I -- exclamou mestre Alberte, agarrando de novo o braço de Ruy Casco e arrastando-o após si com doce violência. -- Anda d'ahi. Olha que é daquelle tincto que tu sabes.» Ruy Casco sentiu a estas palavras abandoná-lo toda a força de resistência. Era um entorpecimento delicioso, que relaxando-lhe os músculos, o punha á mercê dos dous joviaes armeiros.

«Deixem-me, deixem-me ! » -- murmurava o pudibundo hortelão, e era elle que, com o corpo mollemente curvado, o braço estendido, e o punho apertado entre as ossudas mãos de mestre Alberte, se deixava arrastar, emquanto João Pires o empurrava de outro lado, rindo com aquelle rir da plebe, escancarado e alvar.

Assim, vacilla aqui, corre acolá, empurra alli, os tres devotos foram rompendo por entre o povo, enfiaram pela tenebrosa rua de Gileanes e deram comsigo na bodega de Nathanael Sapo.

Era a bodega mais triste, mais escura, mais lodacenta de Lisboa; mas em compensação, Nathanael vendia o vinho que os frades de S. Vicente colhiam nas suas famosas vinhas do Lumiar, Carnide, Palma, Charneca e Leceia (aquelle que não era destinado a amparar suas reverencias na áspera estrada da mortificação); vinho espirituoso, intellectual, e cuja origem religiosa lhe dava um certo perfume de sanctidade. O judeu da rua de Gileanes arrematava-o por juncto, fazia monopólio da venda delle, e tinha assim obtido uma reputação colossal para a sua taboleta, onde, apesar do gasto das cores, ainda se divisavam, desenhadas com tincta preta e amarelia, as formas bojudas e repugnantes de um magnifico sapo.

«Mossem Nathanael, -- gritou da porta João Pires -- tres concas e um pichei de canada, bem sabeis de qual; do de tres soldos. Num pulo, que trazemos sede e pouco vagar.

«Prompto!» --respondeu o personagem a quem o armeiro se dirigia.

Era uma figura exótica. Cinco palmos de altura, grossura quasi impalpavel. O queixo inferior, ornado de uma barba ponteaguda, e o nariz adunco, vistos de perfil, assemelhavam- se a dous pontaes de enseada, em cujo recôncavo a boca desdentada e reintrante mostrava apenas a beta vermelha, quasi imperceptível, dos sumidos lábios. Dois olhos pretos encantoados debaixo das sobrancelhas espessas e cerdosas, ura hombro mais derreiado que outro e o dorso curvado pelo habito da humilhação completavam aquelle typo da raça abastardada dlsrael, typo ao qual só por antiphrase poderia caber a enchouriçada alcunha de Sapo. Não obstante, porém, essa apparencia débil e ténue, Nathimael, sósinho na sua bodega como a aranha na sua teia, servia os numerosos freguezes do Sapo-amarello com pasmosa actividade.

Apesar de ser o dia de Corpus, quando os tres mesteiraes entraram, a ermida da rua de Gileanes estava longe de se achar erma. Ás tabernas de vinho judengo eram naquella epocha o que foi depois a HoUanda, e o que é hoje Roma, a pátria commum das diversas religiões. Alli não havia christãos nem judeus:

havia adoradores de Baccho ou do seu successor S. Martinho. Não se disputavam matérias theologicas; viravam-se concas e malgas, esgotavam-se picheis e cangirões, enxugavamse pipas e toneis; alli todos eram irmãos; porque, como os viandantes na tenda do árabe erradio, todos tinham bebido nas mesmas taças. Fora sobretudo na bodega de Nathanael que a singeleza, a tolerância e a alegria, para desmentirem as bucólicas descripções dos poetas, haviam estabelecido o seu throno sobre aquellas renques de cubas, no meio daquelle ambiente grosso e turvo, debaixo daquelie tecto aífumado. Emfim, uma sede de ganho verdadeiramente judaica, na falta de vocação espontânea, fizera de Nathanael o mais fervente sacerdote das tres divindades. Para elle o infiel nazareno era -tão bem vindo como o escolhido mais escolhido do sangue real de Judá. O beber bem e o pagar melhor eram as condições únicas para admissão no sanctuario.

No dia, porém, de Corpus de 1389 succedia o mesmo que sempre succedera neste dia, desde que a reputação do Sapo-amarello se diffundira pelo orbe. A crença de Moysés fazia o principal papel na rua de Gileanes, e os raros christãos que abandonavam o espectáculo da procissão para virem sacrificar naquellas aras davam uma prova estrondosa da sua fé robusta na religião da cuba. Quando, portanto, mossem Nathanael viu entrar os dous farçolas mesteiraes e o almuinheiro, custou-lhe a suster uma lagryma de terna compuncção, e num arrebatamento de enthusiasmo espichou uma pipa ainda atestada, encheu um cangirão de canada e meia e pô-lo, rodeiado de tres malgas novas de barro vermelho, diante dos freguezes recemvindos, assentados já a este tempo num poial de pedra que corria ao redor do aposento.

Era preciso um enthusiasrao monstruoso para Nathanael assim se enganar contra si em meia canada e na qualidade do vinho, que no tampo da pipa espichada de novo, estava cotado a quatro soldos, com a lenda gloriosa -- Charneca -- Tincto.

«O perro do judeu -- disse mestre Alberte, enchendo as malgas -- parece que se confessou ao rabbi. É uma restituição que nos quer fazer pela maldicta zurrapa com que mais de uma vez nos tem envenenado.

«Veremos depois as contas» -- interrompeu João Pires.

«Veremos».

E em respeitoso silencio começaram a deglutir aos sorvos o balsâmico néctar das vinhas canonico-regulares da abençoada Charneca.

Passara um momento desde que os tres se haviam assentado, quando, por cima do ruído das falas gutturaes e do estrupido que faziam os descendentes de Abrahão, entrando e saindo da bodega do Sapo-amarello, vibraram duas vozes que não pareceram estranhas a Ruy Casco; uma tremula mas argentina, outra grossa mas baixa. A voz tremula dizia:

«Se eu não posso dar passo! Entra, entra, não sejas tolo. O caciz Zein-el-Din não te vê agora ...» «Vê-me o propheta» -- interrompeu a voz grossa.

«Bom proveito lhe faça: mas é muito ver!

E que tem isso? Tracta-se agora de comes e bebes? Não... Vinho é cousa que me não entra cá. O que quero é descansar um poucochinho e acabar de te dizer o meu caso. Vens ou não vens?» E a tia Domingas (porque os dous interlocutores eram a tia Domingas e o mouro Alie) entrou sem ceremonia e foi assentar-se, debaixo de uma candeia que dava luz frouxa, no angulo opposto áquelle em que estavam os dous armeiros e Ruy, o qual ella não podia reconhecer á du\âdosa claridade da bodega.

Depois de um instante de hesitação, Alie seguiu resolutamente a sua antiga conhecida, arrastado pelo desejo de saber o resto dos successos occorridos desde que entregara Beatriz a melhor protector, successos que na maior parte a boa da velha lhe viera relatando desde a Corredoura, onde casualmente se haviam encontrado, até a rua de Gileanes, onde a tia Domingas se não esquecera do Sapoamarello, nem de buscar um pretexto para respirar alguns instantes a fragrância das cubas, que tinham tornado celebre a quasi apagada taboleta.

«Vós por aqui, tia Domingas, e hoje!» -- exclamou o judeu admirado.

«Pftihh! -- assoprou a beata de Restello, deitando para traz o coromen e repetindo o assopro:-- Pfhhh!» «Coitada! Muita calma? Heim?» «É de frigir ovos! T'arrenego! Pfhhh!» «Descanse, tia Domingas, descanse -- acudiu o taberneiro -- emquanto eu lhe vou buscar...» «Buscar o que ?» -- interrompeu ella, volvendo de relance os olhos para Alie.

«Com que a desencalmar; um pouco do d'embarrado; do que se cria pelos castanheiros de Collares.» «Do verde ? -- acudiu a velha. -- Mossem Nathanael, tentaes-me! Não; vinho, e vinho dos frades, que é uma porta, não bebia eu, nem que me matassem! Perdoae-me, meu rico S. Vicente e os vossos bentos corvos.

Mas verde... vá. Só para mim; porque Alie...

bem sabeis ... -- E, abaixando a cabeça até o ouvido do taberneiro, accrescentou : -- Dos taes de Mafamede, que não o bebem pelo nariz ... » «Sei, sei; que velhos conhecidos somos -- atalhou o judeu, torcendo a lingua e fazendo bochecha, gesto que não escapou ao bufão. -- Todavia nunca se dirá que chegou ao Sapoamarello um honrado mouro cheio de sede e calor e que não achou ahi com que refrescarse. Temos remédio, e vou dar-lh'o.» Depois de encher uma conca de páu do escumante e delgado verde de que falara, o activo publicano abriu um armário, tirou de um púcaro uma avultada porção de pó avermelhado, do qual manava suave cheiro de rosas, sacudiu-o numa arrazoada malga, em que lançou agua e o sumo de duas ou tres laranjas azedas, e apresentou aquella beberagem ao jogral, ao mesmo tempo que punha a conca diante da tia Domingas. Tudo isto fora obra de um momento.

Alie pôs-se a examinar a malga escrupulosamente. Nathanael parou a observá-lo.

«Que miras, homem ? --- disse por fim, algum tanto estimulado. -- É um oximel como nunca provaste. Em vez de vinagre, laranja do pomar d'elrei em Enxobregas; em vez de mel, assucar rosado de Alexandria. Sois pechoso, mano ? Pois, olhae, que dera agora o miramolim de Marrocos um aduar de mouros para o beber tão aromático.» Alie virou lentamente a cabeça e respondeu com uma seriedade imperturbável, olhando de través para o bodegueiro:

«Como vos vi saracoteiar tanto, mossem Barrabás ... quero dizer mossem Nathanael, ando também a ver se dentro da escudella vos cahiram alguns pellos da cauda.

«Patife! -- rosnou o judeu, dando-lhe as costas apressado e gritando como quem acudia a um freguez que entrara: -- Prompto, rabbi Nephtali... Pensei que este diabo de bufão tinha morrido.. . Patife! Mas não tem duvida: o oximel has-de pagá-lo.» Entretanto Alie e a tia Domingas atavam de novo o fio á conversação encetada na Corredoura. Não escapou á boa da beata a mínima circumstancia da sua vida desde o dia em que, por inculca do jogral, obtivera tão excellente commodo como o que Fr. Lourenço lhe proporcionara, lamentando-se, todavia, do fel e sangue de bugio que ás vezes lhe mettia no corpo aquella peste de Fr. Vasco.

Veio, erafim, a terreiro a delicada missão de que este ultimamente a encarregara. Só o que lhe passou por alto foi a historia da bolsinha com que o cisterciense lhe removera os escrúpulos de uma consciência demasiado timorata.

«Ora já vês -- concluia a digna cuvilheira -- que não havia resistir ao teimoso do frade.

Prometti. A difficuldade está em cumprir. Tu podias ajudar-me.» «Eu ?» -- acudiu o mouro admirado.

«Tu: sim!» E a velha começou a falar baixinho. Era que tinha havido uma interrupção na ruidosa azáfama em que até ahi andara o judeu. O fluxo e refluxo dos freguezes do Sapo-amarello parara um pouco, e apenas ao canto da bodega se viam imperfeitamente os vultos dos dous armeiros e de Ruy, que bebiam e conversavam. Entre muitos dotes singulares que a tia Domingas possuia, e de que o leitor já tem sobejas provas para não attribuir os nossos gabos a cega parcialidade, tinha também um defeito. Crer-se-ha, talvez, que era. o de falar muito? Não: era o de falar alto.

No calor do discurso, brevemente se esqueceu de que não queria ser ouvida, e pintando ao vivo o que quer que era, em que o truão devia representar seu papel, foi alteiando a voz ao ensinar-lhe o dialogo:

«Toma sentido. Has-de dizer-me: Senhora Domingas do Sacratissimo Lado, avise Zilla de que seu pae a espera hoje em Restello ao anoitecer. Eu hei-de responder-te: Vai descansado que D. Alda já lhe deu licença e eu íico para a acompanhar.» Proferidas estas palavras, um chiton! rápido soou do outro canto da taberna, e a conversação dos tres vultos, que mal se divisavam, cessou. A tia Domingas cahiu então em si e conheceu que commettera uma imprudência. Olhou para lá e distinguiu um dos vultos que se posera em pé e ao mesmo tempo a voz chirriante e humilde do publicano que lhe perguntava:

«Quem paga?» «Eu. Pago eu tudo. Quanto ?» -- acudiu ella entonada.

«Duas pogeias do verde e dez soldos do oximel» -- respondeu o neto de Abrahão, curvando a cabeça e deitando os olhos de revés para o jogral.

«Dez soldos ? Mossem Nathanael, isso é esfolar!

Alto lá! - acudiu Alie, fingindo querer tapar a boca á tia Domingas. -- Pagae e não calumnieis mossem Barrabás. Os que adoram o bezerro d'ouro não esfolam: crucificam. É, pelo menos, o que ouvi dizer no collegio de S. Paulo.» O bodegueiro deu de novo meia volta, correndo para um grupo de judeus africanos que entravam e gritando; «Ahi vou, lussef Abentarik; ahi vou num pulo!»-- E estendia para traz a mão aberta em acto de receber o escote da sua digna fregueza, que, com a magnanimidade de quem ainda conservava assas repleta a bolsa, pagou sem mais disputar.

No momento em que se ia erguer. Alie reteve-a como tomado por idéa súbita.

«E não me farão mal? Um mouro entre o povo... juncto da procissão! Receio...» «Tonto! Receias o que? Não trajas as cores d'elrei ? Não levas as suas armas cozidas na manga? Quem ha-de atrever-se a maltractar-te?» Dizendo e fazendo, a boa da velha rodeiou a banca, dirigindo-se á porta. O vulto, porém, que, ao soar o nome de Zilla, se posera em pé e se conservara silencioso e quedo moveu-se rapidamente e num abrir e fechar d'olhos achou-se ao lado da beata, que não o reconhecera e que, virando a cabeça, só pôde divisar mão negra e sapuda, a qual se lhe curvava sobre o hombro, ao mesmo tempo que uma voz grossa lhe fazia retumbar nos ouvidos estas formidáveis palavras:

«Com um milhão de diabos, tia Domingas!

Que é feito da sua pessoa ? Ouvi-lhe ahi o nome de Zilla. Diga-me onde posso encontrá-la,» Era Ruy Casco. Embebido em graves questões acerca da procissão com os dous armeiros de cujos brutaes gracejos o pichei, primeira e segunda vez cheio, o fizera esquecer, não reparara na chegada de Alie e da sua collega, o que aliás era fácil acontecer no meio da duvidosa claridade da bodega e da confusão que a entrada e saída de mais de duas dúzias de judeus occasionava. Aquella voz, porém, e o nome de Zilla foram ferir-lhe os ouvidos, e o coração dera-lhe um pulo.

Olhara, e o rosto vermelho da beata, banhado na luz da candeia, tinha-lhe avivado dolorosamente passadas recordações. A tentação era irresistivel. Impôs silencio a mestre Alberte, deixando-o engasgado com uma jura que o calor da conversação lhe trouxera á garganta, pôs-se á escuta e, quando viu a tia Domingas em acto de partir, precipitou-se como um raio para o angulo da taberna d'onde ella lhe surgia como visão esperançosa e inesperada.

Por um impulso de terror, a cuvilheira de Beatriz agachara a cabeça entre os hombros, estendendo os braços e exclamando, sem saber o que dizia:

«E eu fiz-lhe a você algum mal?» Lembrava-se dos puxões d'orelhas no dia da festa da Maia, «Nem eu lh'o faço a você, tia Domingas -- replicou o almuinheiro, dando á voz a inflexão menos rude que sabia e encolhendo a mão. -- Oh homem! Perguntar não oftende ninguém.

Ouvi-lhe rosnar não sei o que da Zilla de Restello e de D. Alda, cuja sergente é, pelo que você dizia. Quem diabo é D. Alda? Vive com ella Zilla ? Onde mora ? Vamos, diga lá, e façamos as pazes.» Alie, sobresaltado pelo subitaneo apparecimento do seu antigo vizinho, ficara pasmado para elle.

Alguns judeus tinham-se aproximado, e detraz delles os dous armeiros, postos nos bicos dos pés, procuravam descortinar por cima dos hombros dos circumstantes a causa daquella repentina veneta de Ruy Casco. Animada com a presença de tantas testemunhas, a beata cobrou animo e, voltando-se de todo para o almuinheiro com a mão sobre o quadril, abanando a cabeça e fazendo o compasso com o pé, exclamou:

«Arrede! Não pôde pregar sem bater no púlpito? Que lhe importa o que eu disse! Ora feçam mercê de dizer aqui ao senhor onde mora D. Alda ...» «Tia Domingas! Tia Domingas !-- interrompeu Ruy, mudando de tom e de cor, -Falo serio: quero saber onde está Zilla; e já.» «E eu pego-lhe? Gorra por ahi fora e, se a encontrar, não a deixe fugir.» «Falas ou brincas comigo, bruxa do inferno ?» - gritou o hortelão raivoso, sacudindo violentamente a velha por um braço.

«Vedes ! ? vedes I ? -- clamou a matrona, olhando inquieta para Alie e depois para os judeus apinhados. -- Nesta terra ainda ha justiça...» «Leva rumor!» --bradou o truão com gravidade cómica.

Ruy voltou-se para elle com a pia intenção de lhe experimentar com uma punhada a força de cohesão dos dentes ás queixadas; mas o escudo das vinte cinco arruelas, bordado na manga da aljuba, e a serpe verde, tecida aqui e acolá no fundo branco do balandráu mourisco, retiveram o Ímpeto do enraivado almuinheiro.

«É mal feito! muito mal feito!» -- rosnavam já alguns dos judeus circumstantes.

«E sobretudo em minha casa, numa venda pacifica de vinho judengo» -- acudiu Nathanael, que se aproximara.

O almuinheiro largou o braço da velha beata.

Começava seriamente a receiar.

«Olé, Ruy! -- disse uma voz grossa, atraz do circulo dos filhos de Israel. -- Queres que te emprestemos algumas punhadas a estes perros ?» «Ou que os sirvamos de couces e lhes depenemos as barbas até chiarem pelo arrabi?» Eram mestre Alberte e João Pires, que faziam estas amigáveis oíTertas de intervenção.

O grupo judaico deu meia volta, como se todos se houvessem combinado num movimento só. O aspecto athletico dos dous alliados indicava que a offerta não lhes custaria a realisar. As forças equilibravam-se.

Mas um pensamento fecundo, magnifico, de génio quasi, veio neste momento como um raio de luz, ao espirito perspicaz da tia Domingas. Emquanto Ruy Casco se voltava também, ao ouvir as generosas offertas dos armeiros, chegou-se a Alie e segredou-lhe rapidamente ao ouvido:

«O dicto por não dicto. Acompanha-me sem tugir nem mugir, e esgueira-te apenas eu te der signal.» Depois aproximou-se de Ruy Casco e bateu-lhe no hombro. O hortelão virou-se.

«Que doudice é a vossa? Não ouvis tropeiar na rua os cavalleiros da rolda ? Isto era graça.

Vinde comigo, e dir-vos-hei onde está Zilla logo que Alie nos deixe, senão irá metter tudo no bico de Muça. Olhae que são mui compadres. Crê com crê; lê com lê. Andae.» Isto foi dicto a Ruy com o mesmo segredo e presteza com que dissera est'outro ao maninello. Depois, com um ademan de rainha, estendeu a mào para o bodegueiro:

«Adeus, mossem Nathanael. -- E rompendo por entre o grupo, proseguiu: -- Com licença:

deixem passar.» Ruy Casco ficou immovel por alguns instantes; mas subitamente, e sem se despedir dos armeiros, desembestou atraz da tia Domingas e do truâo, que a seguira, pela rua de Gileanes abaixo.

A rua de Gileanes desembocava no Pelourinho, pouco mais ou menos na intersecção da actual rua dos Capellistas e da rua da Prata.

Quando ai li chegaram os tres personagens, conheceram que o Sapo-amarello os fascinara demasiado. A avaria da galé fora reparada mais promptamente do que se cuidava, e nos Açougues não se viam já senão as vagas do povo, que, semelhantes ás do Mar Vermelho após a passagem dos israelitas, se haviam unido atraz da procissão e, ou se accumulavam ao longo da Rua-nova, ou se escoavam, como rios caudaes, pela de Mata-porcos, pela do Poço da Foteya e pelas outras que cruzavam para o lado do Rocio o solo da moderna cidade baixa.

A beata de Restello estacou subitamente e pôs-se a scismar:

«Já nós lá vamos! Viva! -- rosnava ella. -- Bem digo eu: onde entra o beber sáe o saber.

Venho a bonitas horas! Não importa. Espreitá-lo-hei ao recolher a procissão. Quer queira, quer não queira, o asno ha-de ir á feira. Depressa se toma o rato que só sabe um buraco.

Não pôde escapar-me á Porta-do-ferro, e para lá é que é o caminho.» Feitas estas philosophicas reflexões, a tia Domingas partiu pela Padaria acima, caminho da cathedral. Os dous acompanhavam-na: Alie hombro com hombro, e Ruy, a quem a esperança de descubrir a sua moura encantada varrera da memoria a procissão, a almuinha e a muleta municipal, segui a-a a breve distancia, jurando pela pelle ao truão, se lhe servisse de obstáculo ao cumprimento das promessas com que a boa da cuviiheira o havia embalado.

XIX

FRACASSO

e descavalgou do cavailo, e disse-lhe: cavalgae, ca tempo he que nos vaamos.

Fern. Lopes-- Chron deirei D. Fern.

Quando a respeitável tia Domingas, seguida do truâo e do almuinheiro, chegou toda encalmada e suada e estafada ao adro da cathedral, não se via alma viva no recincto do terreirinho; mas os sons estridentes das duas trombetas que vinham tocando á frente dos besteiros do concelho e os gritos descompostos do jogral da bestaria, palhaço indispensável em cada corpo de tropas municipaes bem ordenadas equivalendo, até certo ponto, aos modernos tambores-móres, já se ouvia a espaços, posto» que muito ao longe, sobrelevar a zoada de um oceano de povo. O nordeste, que se alevantara com a tarde, trazia aquelle estrépito embuzinado pela rua de Sancta Justa abaixo, e a argentina agudeza das trombetas indicava que o préstito não tardaria muito tempo a desembocar no agora solitário terreiro.

O leitor está, por certo, desejoso de saber qual era o plano da cuvilheira para desempenhar a commissão de Fr. Vasco. A difficuldade não é daquellas em que o poeta, ou seu como irmão o romancista, precisa de trazer do Olympo, para espatifar o insolúvel nó, alguma divindade. Era o plano mais simples do universo, e a conversação travada baixinho com o chocarreiro resumia-se em substancia nas palavras que, proferidas em tom audivel, escaparam á boa da velha e occasionaram a irrupção vandalica do almuinheiro. Consistia em fazer soar nos ouvidos de Fernando Affonso, sem todavia se dirigir ao moço escudeiro, o nome de Alda, nome que devia, cuidava ella, exercer na sua alma influxo magico.

Attrahindo-lhe assim a attenção, um volver d'olhos, o minimo ademan bastariam para lhe dar a entender que tinha alguma cousa que lhe communicar. Depois, elle próprio buscaria aproximar-se. Transmittir-lhe-ia então o recado nos termos vagos que lhe indicara o frade. O resto era facil. «Não será culpa minha -- pensava a tia Domingas -- se, por ouvir falar em D. Alda, tomar alhos por bugalhos. Amanse a sua sanha quem por si se engana. Não ha palavra mal dieta, se não é mal entendida. Fiz o que me mandaram: não sei de mais nada.» Assim se compunha a devota matrona com a sua consciência, ao passo que alliciava o chocarreiro para a ajudar naquella magnifica pelotica de restricção mental. O ataque inopinado do almuinheiro fizera-lhe modificar, por uma hábil mudança estratégica, o plano inicial. Substituindo Ruy Casco ao maninello, saíra de uma situação penosa. Restava só o conduzir até o fim o negocio com o mesmo tino que naquelle repente mostrara.

Chegando defronte dos paços do concelho, a tia Domingas parou e, lançando os olhos em roda, pôs-se a examinar qual sitio seria mais accommodado aos seus desígnios. O vão da Porta-do-ferro era o ponto que accumulava mais vantagens. Esse vão constituia uma espécie de quadra, rota de dous lados, postoque não em toda a largura, por duas portadas ogivaes, menos esguias e elegantes que as introduzidas pouco havia pelos architectos ingleses, mostrando bem por isso, serem contemporâneas da edificação da muralha, isto é, do ultimo quartel do século xm. Assim, o vão do arco offerecia quatro ângulos reintrantes assas escuros, apesar de um dia esplendido, porque os grossos portões chapeiados de ferro, abrindo sobre elles, obstavam ainda mais aos raios dessa escaca luz que as duas portadas, opprimidas entre os cubellos e vizinhas de altas casarias, deixavam penetrar a custo naquella espécie de quadra.

Numa das paredes que corriam lateralmente, em relação ás portadas, via-se um pequeno arco também ogival e cujo vivo não excederia a decima parte da área dos dous arcos maiores. Era a communicação para uma escada, que, dividindo-se em dous lanços, subia para o andaimo do muro e para a capella da Senhora da Consolação. Como a antiga muralha já não podia servir para a defesa da povoação, que trasbordara por cima e para além do seu antigo recincto, e a capella raras vezes se punha patente, uma grossa porta de castanho impedia a communicação entre a quadrella e o arco e deixava apenas no topo inferior da escada uma espécie de nicho escuro, no qual a custo caberiam duas pessoas. Foi neste logar, d'onde podia ver sem ser vista, que a tia Domingas se resolveu a esperar a volta da procissão.

Vendo-a parar, os dous que a seguiam de perto pararam também á entrada do portal.

Passados apenas alguns instantes, Alie, sentindo um estrupido, olhou para a esquerda pela Padaria abaixo e depois para a rua da direita, d'onde soava igual estrupido. Ficou pasmado.

Dous cavalleiros se aproximavam, ura do lado dos Açougues, outro do de Sancta Justa.

O da esquerda, cujo cavallo parecia manquejar, vinha a passo, emquanto o da direita, montado numa nédia mula, galgava a trote do lado de Sancta Justa. Num dia em que o próprio monarcha atravessava a pé as ruas da capital, o apparecimento de dous cavalleiros era, na verdade, facto singular.

Quando o mouro olhou, o da mula estava a maior distancia, mas a differença de andadura fez com que chegassem ambos ao mesmo tempo, tão perto que elle os reconheceu.

«Ei-lo ahi! ei-lo ahi!» -- murmurou o jogral, correndo para a tia Domingas.

«Ei-lo ahi, quem?» -- perguntou esta com um pé no chão e com o outro em cima do degrau, no acto de subir ao nicho.

«O camareiro d'elrei.» «Fernand affonso? » «Em corpo e alma.» «E quem mais?» «O seu pagem.» Era, de feito, o camareiro-menor o que cavalgava no cavallo manco. Ao atravessar o pequeno terreiro dos Açougues, o nobre animal, que corria á rédea solta, topara num desses postes que obstruiam o terreirinho, bem como a Rua-nova, e eram occasião de frequentes quedas e desvairos quando ahi se faziam justas ou torneios. Mas como acontecia que, a essas horas, Fernando, que devia achar-se no séquito do rei, na procissão e a pé, vinha assim montado, e pelo caminho opposto, para o lado da cathedral? Eis o que baralhava as idéas da tia Domingas e talvez baralhará as do leitor.

Tiremo-nos nós de duvidas. Desçamos para Valverde, e lá averiguaremos o caso.

A almuinha, o rei, o imperador, o gato montez, o gigante, o drago, a serpe, a dama, os diabos, as péllas e todos os mais personagens que constituiam a parte truanesca da procissão haviam desembocado na praça com devotas risadas e sancta pasmaceira da arraya miúda, que todos os annos achava a mesma graça e novidade naquelle espectáculo monstruoso e phantastico. A fradaria passara também, e os padres paramentados, e os mongescavalleiros das ordens, e tudo o mais que se interpunha entre as farças populares da frente e a hóstia triumphante. As varas do pallio, inclinadas para diante, e a tela preciosa das sanefas e sobrecéu, bamboleiando com o vento abafadiço que se alevantara e que ramalhava nas arvores da praça, despontavam já d'entre as casarias, ao penetrar no immenso terreiro, onde remoinhavam ondeiando uma infinidade de gestos ridentes, alvares, corados, pallidos, viçosos, encarquilhados, barbudos, imberbes e boquiabertos. Subitamente, porém, o brado de «alto! alto!», brado ominoso, núncio d'encalhe ou fracasso, soa do couce da procissão. A palavra fatal passa de boca em boca, bem como uma hora antes passara na Rua-nova, com grande detrimento da compostura e devoção de Ruy Casco: os contos dos guiões e bandeiras fincam-se no chão: ascharolas oscillam e assentam sobre a calçada: as representações e os representadorespetrificam-se: as cabeças, emfim, da multidão voltam- se para um ponto unico e alteiam-se um bom palmo, em parte pela distensão dos pescoços, em parte pelo alçamento dos calcanhares, que buscam a perpendicular sobre os bicos dos pés. Os olhos dos espectadores assestam milhares de raios visuaes sobre esse grupo esplendente que precede, ladeia e segue o pallio; mas lá não se distingue senão uma certa perturbação, o abrir de bocas que falam, o estender de braços que se meneiam, o desapparecer e reapparecer de alguns vultos que se curvam. Depois, a agitação acalma, as filas ordenam-se, e o grito de «avante! avante!» põe de novo em marcha regular o macisso processional.

«Que foi? que foi?» -- inquiriam os que estavam mais longe.

Ninguém sabia responder.

Era um dos fidalgos da corte, que, tomado de repentino mal, perdera os sentidos. Tinham-no tirado em braços do meio do tropel.

Attribuiu-se o successo ao ardor do sol; porque mais de uma vez, em semelhantes autos, se haviam verificado factos análogos. Muitas pessoas se recordavam disso. Elrei, perto do qual elle se achava no momento em que vacillara e cahira, ordenara que o conduzissem para fora do apertão, recommendando que lhe ministrassem todos os soccorros possíveis. Fora este o motivo da agitação que interrompera por alguns instantes o grande drama popular.

A personagem que dera azo a essa interrupção era o camareiro-menor.

Ao passo que a turbamulta se affastava para deixar franca passagem aos que o conduziam, Fernando Affonso parecia ir recobrando o alento. Como por encanto, Vivaldo, o seu pagem valido, appareceu então juncto delle. Ao vê-lo, o nobre escudeiro, que por duas ou tres vezes volvera olhos inquietos ao redor de si, declarou positivamente que não consentiria em que abandonassem o préstito os que se haviam apressado a cumprir as determinações d'elrei, e, encostado ao hombro do pagem, desappareceu entre os edifícios que formavam a orla do celebre bairro da Pedreira.

Nas faldas do monte chamado o Cerro do Almirante, ao sopé do mosteiro cujos fundamentos o Condestavel ahi começava a lançar, corria uma rua escura e triste, como quasi todas as de Lisboa: era a rua de Mestre Gonçalo. Ao entrarem nella, o escudeiro e o pagem pararam a examiná-la. Estava deserta.

Vivaldo largou então o braço de seu senhor, que recobrara, como por milagre, a saúde, metteu os dedos na boca e tirou um sibillo agudo. Immediatamente se abriu uma porta á esquerda, e os dous precipitaram-se numa espécie de vasto sótão, cuja communicação para a rua era a porta que se abrira.

Se a entrada fora rápida, não o foi menos a saída; mas agora, tanto o escudeiro como o pagem estavam montados. Vinha o primeiro cuberto com um ferragoulo comprido e com o rostp meio occulto debaixo das largas abas de um chapéu de feltro. Depois de observarem tudo de novo por alguns instantes, partiram a galope ambos para o mesmo lado, subindo uma rampa ingi^eme, em cujo cimo se estendia uma chapada raro-semeiada de algumas oliveiras e cuberta de searas maduras. Ao poente, o plano era limitado pelo alto lanço de muralha que corria desde a porta de Sancta Catharina até o postigo chamado da Torre de Álvaro Paes e, successivamente, do Gondestavel e de S. Roque. Juncto deste postigo, pelo lado interior, campeiava sobre o muro o mosteiro dos Trinitarios. Ao oriente, e na borda do despenhadeiro que se pendurava sobre Valverde e sobre o antigo arrabalde da Lisboa mourisca, principiavam a alteiar-se os alicerces do mosteiro de Sancta Maria do Vencimento, edifício histórico, que completava uma equação, em que D. João I era para o mosteiro de Sancta Maria da Victoria ou da Batalha, como o Condestavel para este seu monumento. Ao lado delle viam-se os paços do Almirante, já meio demolidos, e no pendor meridional do descampado descortinavam-se até meia altura os dous templos dos Martyres e de S. Francisco, quasi solitários e parecendo, a certa distancia, encostados um ao outro. No meio deste campo, entre as searas pallidas, os dous pararam, e, depois de trocarem breves palavras, o escudeiro dirigiu-se com a mesma pressa que trazia para a porta de Sancta Catharina, emquanto o pagem saía pelo postigo de Álvaro Paes. O primeiro desceu ao longo da carcova para o bairro de pescadores chamado Gataquefarás e, dobrando o angulo da muralha, seguiu ao longo do Tejo até a Judearia grande, ou Villa-nova de Gibraltar, entrou pelo arco dos Barretes e atravessou o terreiro dos Açougues velhos, desde onde o accidente do cavallo o obrigou a caminhar mais a passo do que desejara. O pagem, que tinha que fazer um circuito menor, desceu pela estrada que corria ao longo da muralha do norte pela parte exterior até aquelle tracto de Valverde que ficava fora da povoação, enfiou pela porta da Mouraria, rodeiou o bairro dos verdadeiros crentes e, partindo pela Gorredoura, passou adiante da procissão, cujo centro apenas se prolongava então com a igreja de Sancta Justa, e veio encontrar seu senhor, conforme este lhe ordenara, juncto á Porta-do-ferro.

O apparecimento inesperado do camareiromenor facilitava apparentemente a conclusão do plano da tia Domingas. Podia chegar-se a elle, falar-lhe, dizer-lhe o que quizesse livre do borborinho e, a bem dizer, de testemunhas.

Mas as apparencias são enganosas, e os cálculos da prudência humana foram neste caso desmentidos pela força d'inescrutavel destino.

Apenas deu de rosto com o pagem, o cavalleiro bradou-lhe:

«Apeia-te, Vivaldo; apeia-te!» E, saltando ligeiro do cavallo abaixo, atirou o ferragoulo para cima da sella e aproximouse do arco.

Postoque algum tanto perturbada pela súbita presença do homem que buscava, a velha cuvilheira fez um signal a Alie. O jogral foi atravessando o terreiro da sé e desappareceu na rua que conduzia ao paço.

Vendo-o subir, o hortelão, como ella antevira, aproximou-se mais e, em tom que não admittia tergiversações, perguntou:

«Tia Domingas, onde é que está Zilla?» «A estas horas talvez em Restello ou talvez tenha voltado ...» «Mas onde vive e com quem ? Preciso ...

quero sabê-lo ...» A velha começou a alteiar a voz.

«Em casa de mestre Bertholameu ...

«Mas quem diabo é mestre Bertholameu?» «Ai, um sancto-homem, o tabellião da rua de D. Mafalda...» O diapasão da tia Domingas subira um tom mais alto.

«É soldadeira delle?» «De sua filha D. Alda -- aqui a voz da cuviIheira remontou aonde podia remontar. -- Oh, que anjo ! que formosura ! Aquillo é uma pomba, sem fel ! Lirios inter espinhos, como dizia o anno passado Fr. Isidoro no sermão da milagrosa imagem de Sancta Maria da Escada, sanctissima irman de Nossa Senhora. Para a rua de D. Mafalda vou eu d'aqui, Ruy. Seguime e reparae na porta onde me virdes entrar...» «Fale mais baixo, tia Domingas; fale mais baixo -- interrompeu o almuinheiro. -- Não vê alli aquelles vultos?... Poderei falar com Zilla?» Foi o mesmo que se lhe dissesse que gritasse mais.

«Hoje? ! É impossivel. Não me demoro, que tenho de estar á boca da noite nos cubertos dos Açougues. Amanhan ou depois, ás dez horas, passe por lá.» «Então, venha, tia Domingas; venha ensinar-me o sitio.» Mas com um pé sobre o nicho e o outro no solo, o corpo da cuvilheira estava como enraizado naquelle logar, emquanto a energia e o movimento se lhe concentravam na lingua e nos oihos inquietos, que se volviam com viveza incrível dos dous vultos parados juncto do arco para Ruy Casco e de Ruy Casco para os dous vultos.

Ao reboar na abobada do portal o nome de Alda, Fernando voltara, na verdade, a cabeça, mas tornara rapidamente a continuar o dialogo que em voz submissa corria entre elle e o seu pagem.

O objecto desse dialogo era o remedeiar o inconveniente que retardara o nobre escudeiro.

Fernando precisava de chegar quanto antes aos paços dos Infantes. Para não ser conhecido, ordenara ao pagem viesse por differente caminho encontrá-lo no terreiro da cathedral, que devia estar deserto, para ir tomarIhe o cavallo no adro de S. Martinho e desapparecer com elle ou para as Portas-da-Cruz ou para a Alcáçova, emquanto seu senhor penetrava, sem ser visto, no paço, a essas horas solitário. O accidente do fogoso corredor constrangia-o, porém, a montar na mula do pagem e abandoná-la no adro de S. Martinho.

Vivaldo, cavalgando no cavallo manco, seguilo-hia de perto o mais que podesse e buscaria chegar a tempo de impedir que ella fugisse.

E os dous montaram ligeiramente. As ferraduras da mula deram na calçada um som fugitivo quasi metallico. O cavalleiro ferira com ambos os acicates o possante animal. Ao mesmo tempo, o pagem incitava com açoutes e esporadas a sua trôpega cavalgadura.

Os nomes de D. Alda e do honrado mestre Bartholomeu, as indicações locaes e as olhaduras eloquentes da cuvilheira tinham sido como os remedios chamados heróicos e infalliveis em doença mortal. A fragil machina ideiada longamente e aperfeiçoada por um clarão de genio na bodega de Nathanael Sapo dera em terra, como quasi quatro séculos depois o terremoto deu em pantana com os gothicos edifícios e terreiros e ruas e arcos e muralhas que presenciaram as diversas scenas desta gravíssima historia.

A tia Domingas mediu num relance a profundidade da voragem que se lhe abrira debaixo dos pés, a cólera de Fr. Vasco, o ser expulsa e, talvez, obrigada a restituir a bolsa que recebera. Fernando Affonso ia a escaparIhe ! Na sua perturbação não viu o risco que corria e, saltando do nicho, precipitou-se para o cavalleiro no momento em que ia a abalar.

«Venho da rua de D. Mafalda - exclamava ella correndo: -- venho da rua de D. Mafalda.

Escutae-me.»«Não conheço ninguém nessa rua -- redarguiu o mancebo. -- Retira-te e deixa-me passar!» Com esta resposta» a tia Domingas perdeu a tramontana.

«É um momento. Escutae, escutae!» E dizendo isto, sem saber o que fazia, lançou as mãos ás rédeas da mula.

O animal espantou-se e deu um salto recuando. A amplidão do ventre da cuvilheira e a frouxidão dos seus velhos músculos fizeramIhe perder o equilibrio ao abalo violento da robusta cavalgadura. Cahiu agarrada ás rédeas.

Fernando Affonso perturbado com aquella aggressão repentina, hesitara; mas a sua hesitação passou como o relâmpago. As trombetas dos besteiras do conto começavam a soar mui perto, e o pagem, rompendo para diante, feria sem piedade o pobre ginete. Dous credos que se demorasse no terreiro da sé, o nobre escudeiro via-se descuberto. Que lhe importava esse vulto, essa mulher ou esse demónio que se interpunha entre elle e o alvo aonde se dirigia? Soltando uma blasphemia, cravou os acicates nos ilhaes da mula. Um grito agudo, estridente, de suprema agonia restrugiu debaixo das patas do bruto irritado, e ao cavalleiro, por entre o zumbido do ar que rompia na carreira desenfreiada, nos rapidos intervallos do estalar das ferraduras chispando nas pedras, pareceu que ouvia ainda uma ou duas vezes gemidos de moribundo. Depois, transposto o terreiro, correndo ao longo dos bataréus septemtrionaes da cathedral, não sentiu mais nada senão o tropeiar do cavallo manco do pagem, que forcejava por segui-lo de perto, e como uma voz do coração, timida, cansada e ridicula, que tinha a pretensão de lhe bradar:

-- «assassino ! » E era-o. Podia-se orar por alma da tia Domingas. Esmagada debaixo dos pés da mula arquejava apenas, e o sangue rebentava-lhe em fio da boca, dos olhos e dos ouvidos.

E Ruy, que, gritando ao cavalleiro, pretendera salvá-la e não poderá, recuou aterrado.

O eccho das trombetas dos besteiros já começava a reboar na abobada do arco. Podiam encontrá-lo alli, juncto desse quasi cadáver; podiam, deviam até, julgá-lo culpado. Deitou a fugir para o bairro onde mais facil lhe era pôr-se a salvo; para a Judearia.

E os besteiros chegaram, e o som das trombetas gelou de súbito, e o jogral, que volteiava e bradava, fez silencio, e tudo parou. O espectáculo que tinham ante si era tão triste como inesperado.

Em tropel, os besteiros aproximaram~se daquelle vulto enfaixado e esfarrapado. Um dos circumstantes reconheceu-a:

«É a tia Domingas de Restello !» «Quem ? -- acudiu d alli outra voz. - Aquella que media cincta e via por joeira?» «É, é» -- clamou outro guerreiro municipal.

«A bruxa?» --perguntou um quarto.

«Qual bruxa, homem, se era confessada de meu primo Fr. Isidoro ! » -- interrompeu o que primeiro a reconhecera.

«Então, se era confessada de teu primo ! ...

-- replicou o que elevara a pobre velha á categoria de feiticeira. -- Pátéta ! ... O que se segue d'ahi? Tal confessada, tal confessor.

A fortuna delia foi que o diabo a affogasse, agora que morreu Gomes Lourenço, e o concelho ainda não elegeu novo juiz das feiticeiras... » «Affogou-a o diabo, dizes tu? -- acudiu o quarto besteiro que falara. -- Uhm ! como sabes que foi o diabo ?» O precedente orador abaixou-se, pôs o dedo sobre a garganta da victima e disse:

«Vê lá!» Duas linhas negras, curvas, concêntricas, orlando uma serie de pontos também negros, indicavam cora evidencia que sobre o órgão da respiração daquelle corpo se estampara violentamente o pé ferrado de um animal.

Dez ou doze capellinas de ferro brunido, abaixando-se a um tempo ao redor do vulto ennovelado no chão, soaram umas nas outras, atroando os ouvidos das doze cabeças que guarneciam, e ao mesmo tempo tiniram doze bestas de aço, assentando no basalto que calçava o pavimento do arco.

«É uma ferradura!» -- exclamaram todos a um tempo.

«Mas o diabo, -- observou timidamente o primo de Fr. Isidoro, que já sentia arripiaremse-lhe os cabellos com um vago terror -- tem a figura de bode.» «Cal-te, pedaço d asno! -- insistiu o bésteiro doutrinário, que achara a explicação do.

caso na theoria indubitável do poder de Satanaz. -- O diabo não tem figura: apparece naquella que lhe apraz. Esganou-a com uma patada de besta. Logo vê-se que vinha na tua.» Não obstante o salutar terror que ia tomando os ânimos, houve uma risada geral.

«Acabem com isso -- bradou o anadel, que achara impróprio da sua dignidade militar o raetter-se entre a chusma. -- Arredem o corpo; que ahi chega a procissão. Logo se dará parte ao corregedor da corte.» «Ao bispo, ao bispo ! O caso é bispal ! » -- gritou o orador que demonstrara triumphantemente as circumstancias diabólicas do suecesso.

Signaes estrondosos de approvação mostraram que a semente das sans doutrinas tinha cabido em terreno abençoado.

« Pois seja ao bispo -- respondeu o anadel» encolhendo os hombros. -- Mas vamos; franqueiem o passo.» Com os seus balegões de couro crú, os bésteiros foram empurrando para o pé do nicho lateral o cadáver, em que nenhum delles se atreveria a pôr mão, porque nenhum quizera ficar polluido e excommungado.

Nessa tarde e nessa noite, por todas as bodegas de Lisboa, por todas as cellas de abbades, reitores, priores e guardiões de mosteiros e conventos, por todos os altos onde os velhos iam aparar no regaço os últimos raios do sol mirando a bahia do Tejo, por todos os adros d'igrejas onde se ajunctava o beaterio a resar trindades, por todos os logares, emfim, onde tomava corpo o mais sublime, o mais respeitável, o supremo embuste deste mundo, a opinião publica, referia-se, com as variações, commentarios e aperfeiçoamentos indispensáveis, o famoso milagre acontecido á Porta-do-ferro, onde o cão tinhoso esganara uma feiticeira, porque se atrevera a cruzar as ruas por onde naquelle sagrado dia passava a procissão de S. Corpus.

Próximo deste sitio, o povo apupara havia dous annos um pobre truão atropelado e ferido pelo ginete de Fernando Afíbnso. Agora cuspia affrontas e calumnias sobre o cadáver de uma pobre velha, victima da própria imprudência e da feroz brutalidade do moço escudeiro. Ou este era demasiado feliz, ou a Providencia lhe reservava ainda na terra algum tremendo castigo pelas negruras da sua vida, vida fatal para todos os que passavam na ecliptica desse astro destruidor.

XX

EXPLICAÇÕES

Mexiricaram-me com ella que tinha outros amores.

Jorge Ferreira -- Aulegrafia.

Não só para se comprehenderem as scenas descriptas no antecedente capitulo, mas também para intelligencia dos successos subsequentes é necessário que, remontando a factos anteriores, demos algumas explicações ao leitor.

Fr. Vasco tinha um segredo que não communicara a D. João d'Ornellas: D. João d'Ornellas tinha um segredo que não communicara a Fr. Vasco.

O do moço cisterciense sabemo-lo nós. Collocado entre a terrivel missão que lhe legara seu pae e os remorsos do primeiro crime, a sua imaginação enferma aventara o estranho designio de que só pretendera fazer instrumento a cuvilheira e de que a fizera victiraa.

Semelhante ao naufrago, que, luctando com os mares, estende as mãos á frágil alga que fíuctua, á lasca do navio despedaçado e, até, ao rolo de escuma que, ao estourar das vagas, se lhe espr.iia sobre a cabeça, o monge acariciava esse pensamento de salvação e escondia-o com ciúme a D. João d'Ornellas, cuja vingança, calculada e fria, não presuppunha modificações nem tréguas. Mas, se neste ponto Fr. Vasco atraiçoava o pacto infernal que fizera com o implacável prelado, também o abbade trahia as suas promessas quanto á plena confiança e commum concerto com que ambos deviam proceder contra Fernando Affonso. Em que consistia esta espécie de deslealdade de D. João d'Ornellas é o que nós vamos expôr.

Gomo a aranha venenosa que, prendendo em diversos logares os fios da teia, a vai urdindo de modo que, coilocada no centro, possa arrojar-se de salto ao insecto sem receio de errar o tiro, assim o abbade de Alcobaça ia colligindo as armas que lhe ministravam as intrigas politicas, as imprudencias do próprio inimigo, a velhacaria de João das Regras, a situação de Beatriz e o ódio concentrado de Fr. Vasco, até que chegasse um dia em que, rodeiado de todos esses auxiliares, podesse vencer as difficuldades que ao complemento do plano que traçara oppunha a viva affeiçâo d'elrei á sua designada victiraa. Esse plano ia longe; mas os desejos iam além delle; iam até um pensamento de sangue. Folgaria de fazer rolar a cabeça do camareiro-menor aos pés do algoz. Não ousava, porém, esperar tanto; e consolava-se com a quasi certeza de o ver expulso do paço, reduzido á obscuridade, deshonrado, miserável. Até ahi alcançava a sua esperança. E o sancto-homem do abbade, como lhe chamava o seu melhor amigo, o chanceller, encostado á cabeceira do catre no collegio de S. Paulo, sentia escoarem-se ligeiras as accidentaes horas de vigilia nocturna, vendo volteiar ante si as imagens risonhas do opprobrio e desventura que preparava ao seu inimigo.

Os motivos, todavia, em que estribava essas esperanças não eram só os que apontámos. O favor do monarcha podia contrastar isso tudo. Havia um mais forte, e era este o que o astuto monge occultava ao seu alliado, e occultava-o porque queria primeiramente estar bem seguro da existência delle.

D. João d'Ornelias estivera uma vez com o moço cisterciense na rua de D. Mafalda e ouvira da boca de Beatriz a historia do modo como fora abandonada.

Desde este dia o abbade scismara muito. -- «Quem é essa mulher á qual elle a sacrificou?

Que amores são estes que elle occulta com tanto ciúme ?» -- Era uma idéa que não lhe saía do espirito. Havia nisso um mysterio e no seu coração um presentimento de que perscrutá-lo lhe não seria inútil.

Um dos axiomas de proceder do prudente prelado consistia em não desprezar nenhum ensejo de adquirir informações acerca da historia passada de todos os individues com quem estava em contacto. Era regra de que se não affastava. Tinha- a achado sempre útil.

Alie, recebido no collegio de S. Paulo, não escapara, apesar da sua humilde condição, ás pesquisas do reverendíssimo. A única differença era que estas pesquisas não haviam sido nem largas nem difficeis.

Uma vez mais D. João d'Ornellas teve de abençoar o axioma que adoptara. Este homem fora maltractado por Fernando Affonso. Em qual occasião e com que circumstancias, é cousa de que, provavelmente, o leitor se lembra ainda.

Era um odiosinho obscuro, impotente. Não importava. O abbade abaixou-se, animou-o, ergueu-o até si. Podia servir-lhe.

Depois da partida de Fr. Lourenço, o mouro Alle, em vez de peiorar, melhorou materialmente. Com grande escândalo de Fr. Julião foi escolhido por sua mui poderosa reverencia para serpente seu particular emquanto residisse em Lisboa. Alie gaiih.tra em duas cousas: na mais opípara ração e em licar livre dos eloquentes sermões do Bacharel acerca dos embustes grossos do alcorão e das verdades do christianismo.

Certo dia D. João d'Ornellas chamou-o e disse-lhe com a maior singeleza e bondade deste mundo que se preparasse para ir exercer nos paços d'elrei o cargo que deixara vago o fallecido bobo e jogral de D. Fernando e de D. João I, o celebre Annequim.

O abbade só impôs uma condição em paga do beneficio. Alie devia seguir os passos do camareiro-menor, vigiá-lo, escutar-lhe as palavras, estudar-lhe o menor gesto e dar conta de tudo ao reverendíssimo. Isto foi recommendado na presença do reitor e de alguns ledores da estudaria, sem escarcéus, sem mystério, chanmente, singelamente.

Aos misteres de gracejador, goliardo e tro vista satyrico Alie ajunctarii por gratidão o de espia.

«Fernando -- ponderava o prelado nesse dia ao reitor de S. Paulo, diante do futuro truào régio e sorrindo bondosamente -- é um rapaz trefego, um farçola: foi assim desde pequeno, Aííora o meu velho amigo, o arcebispo de Braga, recommenda-me que o informe do seu proceder na corte. Pois nào tem ahi o próprio irmão daquelie tresloucado?...

Tudo ha-de carregar sobre estes fracos hombros. Ai, padre reitor, padre reitor, a obediencia é o mais duro dever da nossa regra!

D. Lourenço abusa da amizade e da veneração que consagro ao primaz das Hespanhas, para me torcer como um vime. Paciencia!

Mas custa-me; porque já ouvi rugir não sei o que acerca de varias travessuras um pouco estranhas do camareiro-menor...» «Travessuras?!» -- interrompeu o reitor. -- Dizem todos que é um perverso, um homem sem temor a Deus, um ...» «Exaggerações, padre reitor... exaggerações -- acudiu D. João d'Ornellas -- A mocidade é ardente, e nós os velhos fáceis em condemná-la, sobretudo quando a estamenha monástica nos gastou antes de tempo o vigor das paixões, Vamos, Alie, -- accrescentou, voltando-se para o mouro -- antes de escrever ao arcebispo, quero informações tuas.

Curve-se, ao menos nisto, perante a loucura voluntaria o orgulho da sabedoria presumpçosa; porque, como diz S. Paulo, «sapíentía hujus mundi stultitia est apud Deum.»«Que humildade!» -- rosnou num áparte o reitor.

«Vai, meu Alie, vai -- proseguiu o abbade.

-- Sê feliz, e possa o Senhor das misericórdias abrir-te os olhos da alma no teu ultimo dia.» E, batendo- lhe com uma das mãos no hombro, alimpou com a outra uma lagryma furtiva.

«Que caridade!» -- pensou de novo o reitor de S. Paulo, com um ronquido de compuncção.

Já ficava sabendo ou, para melhor dizer, ignorando, porque viria frequentes vezes ao collegio falar com o poderoso prelado o novo truão d'elrei. E se alguma vez elle fosse indiscreto, o bom do reitor achava-se habilitado para explicar as rectas intenções com que procedia o virtuoso chefe dos monges brancos.

Dous odios accordes são como o amor mutuo. Gomprehendem-se; adivinham-se.

Os olhos de D. João d'Omellas e os do mouro encontraram-se no momento da derradeira despedida. Tudo o que havia a dizer de parte a parte ficou dicto.

Mas para que queria o diabólico frade ter dentro dos paços de S. Martinho um espia malévolo e vigilante, que seguisse como sombra o camareiro-menor ?

Isso é historia mais comprida.

A virtude severa de D. Philippa, chamada pelo povo a boa rainha, influirá em grande parte no contraste que ofterecia a corte do mestre d'Aviz com a de seu irmão e predecessor, onde aos terrores do veneno ou do ferro assassino, que pesavam carregados e sombrios em todas as frontes, se associavam deleites abjectos; onde a prostituição e a morte tripudiavam junctas em choréas infernaes. Postoque D. João I não fosse exempto das fraquezas humanas e que D. Philippa tivesse mais de uma vez razão de queixar-se das infidelidades de seu real esposo, é necessário confessarmos que elle soube fazer respeitar a sanctidade do tecto domestico, e que os paços onde habitava essa angélica mulher, a cujos cuidados maternos deveu, talvez, Portugal os tres mais bellos caracteres da sua historia, os tres irmãos Duarte, Pedro e Fernando, foram para o chefe da dynastia de Aviz como um templo, cujos umbraes a nenhum pensamento impuro era permittido cruzar.

As antigas leis de Portugal contra o que abusava da confiança domestica e introduzia a prostituição na morada do senhor com quem vivia, de quem era homem, para usarmos da linguagem daquelles tempos, haviam sido escriptas com sangue. Não era preciso que o adultério manchasse o leito conjugal para ellas pesarem inexoráveis sobre a deslealdade familiar. O cliente que travava relações menos puras com a filha, com a irman e, ainda, com a servidora do seu patrono, votava-o á execração a lei, e a culpa aggravava-se quando occorria a circumstancia de ser donzella ou viuva a cúmplice do crime, que commettido na mansão do rei, augmentava de intensidade e podia classificar-se como um attentado contra a magestade do throno. O estado dos costumes, mais ou menos corrompidos, tinha dado em diversas epochas maior ou menor força ás posturas de D. Diniz e de D. Affonso IV acerca desta matéria. Mas o mestre de Aviz, mais irmão que chefe dos seus homens de armas; esse príncipe, ao mesmo tempo violento e folgasâo, como seu pae, especie de Arthur dos romances do Sancto-Grial no meio dos seus cavulleiros da Tavolaredonda, mostrava em todas as occasiôes demasiado pundonor na própria dignidade para se dever reputar pouco prudente aquelle que quizesse correr o risco de experimentar se elle considerava ou não como modificada pelos costumes a dura sancçâo penal contida nessas leis antigas.

E todavia, houvera alguém que se arriscara á experiência. Para sabermos quem seria, baste dizer que nisso consistia o segredo em que ruminava ás horas mortas de vigilia o pachorrento do abbade.

Apesar do valimento d'elrei, Fernando Affonso arcara peito a peito com um empenho que podia esmagá-lo. Bastava que os seus inimigos o soubessem; e tinha dous que valiam a pena de se pensar nelles: o chanceller, em cujo edifício politico tentara aluir algumas pedras, e o prelado dos cistercienses, que desde a noitada da tavolagem o tractava, quando se viam na corte, com dobradas attenções e com affabilidade excessiva.

Desde o dia em que estivera na rua de D. Mafalda, o digno monge alcaide-mór mostrara verdadeiro génio inventivo em achar pretextos para assistir, cora tal qual quebra da regra reformada de S. Bento, aos saraus do paço, a essas festas esplendidas nas quaes a bella e pura Philippa de Lencastre apparecia rodeiada da sua corte de domnas e donzellas, em cujo numero se contavam as formosuras mais celebradas nas canções dos trovadores, as filhas e mulheres dos mais poderosos vassallos da coroa, dos cavalleiros que maior reputação haviam grangeiado na longa e tenaz lucta da independência. Entre ellas algumas havia que, brilhando ainda com todos os encantos da mocidade, se adornavam já com as galas melancholicas de mais ou menos recente viuvez; porque a fouce da morte ceifara muitas vidas durante cinco annos de encarniçados combates com os guerreiros de Castella. Outras havia a quem sorte igual, talvez, coubesse em breve e em cujas frontes anuviadas se liam muitas inquietações secretas. Mas este fundo tristonho do quadro dava realce maior ao bando das jovens donzellas que, ignorantes de maguas, folgavam nesses festejos e se balouçavam á flor da vida, como a avesinha revoando, num bello dia de primavera, pela superfície da albufeira que esconde sob a face dormente os vagalhões da tempestade.

D. João d'Ornellas, semi-occulto nos grupos de cortezãos, por essas tardes e serões de tangeres e momos e folgares, parecia pensativo. Eram os cuidados da governança da sua opulenta ordem? Assim se imaginava. Não eram tal. Observava o seu inimigo.

O que destas observações tirou nâo o disse elle a ninguém. Apenas, alguns dias depois da inculca do truão, o chanceller notou lá com a sua garnacha que o seu excellente amigo se ia fazendo cada vez menos visivel na corte.

Scismou algum tempo no caso; mas, como não atinava a deduzir d'ahi uma illação rasoavel, nâo pensou mais nisso.

Todavia, o que é certo é que, apesar da apparente singeleza e quasi indifferença com que o abbade de Alcobaça baldeiara Alie da severa e triste estudaria de S. Paulo nas salas magnificas de S. Martinho, antes de se despedir delle na presença do reitor, conversara a sós mais de uma hora com o futuro maninello de sua real senhoria.

Pois deixá-lo embrulhar-se e ennovellar-se no seu manto de mysterio. Que precisão temos nós de saber o que viu, como viu e até onde viu ? Cá está uma nota de algum Scaligero ou Casaubono de cogulla e cercilho, escripta em cursivo encambulhado á margem da nossa chronica vetusta e amarellenta, que nos porá correntes com o que na verdade havia.

Fernando amava. Esta affeição tinha começado um anno antes: podia dizer-se a mais duradoura da sua vida, a mais ardente, quasi um amor verdadeiro.

No período da vida em que o coração da mulher se abre ás paixões ha duas epochas distinctas. A primeira é aqueila em que, tímida e inexperiente, ella se embriaga nesse pélago de vagas aspirações de um amor sem objecto; em que no homem que lhe sorri crê encontrar o ente predestinado, que Deus enviou á terra para servir de arrimo aos seus passos débeis e incertos, semelhante ao freixo robusto que, firme no solo, deixa enredar-se nos ramos viçosos da hera e balouça alegre as possantes vergonteas, presas nos laços voluptuosos da frágil planta, que vive da sua seiva sem a exhaurir. É essa quadra perigosa em que a lua que passa suscita inexplicável saudade no animo feminil, e os olhos da virgem que se vão após o astro socegado descem de lá para a terra húmidos de não sentidas lagrymas; em que a donzella se mira na agua limpida do arroio, tingindo-se-lhe de rubor as faces, se percebe que a observam, e vai, correndo e rindo, colher por disfarce a bonina da margem para a atirar á veia do regato e segui-la com a vista, que de espaço a espaço vem cruzar de relance com o olhar fito daquelle que em adoração a contempla; em adoração, porque, durante esta idade, no gesto, nos meneios, na voz, no volver d'olhos da virgem, no ambiente que a cerca, ha o que quer que seja de anjo; ha o que quer que seja do céu.

Nesses annos, é tão fácil como bárbaro o triumphar do pudor quasi infantil, única defensa que a natureza deixou a um espirito ignorante e cândido, se não é que para alhadas do pudor pôs na alma do homem a generosidade e a poesia.

Depois dos annos da innocencia virginal, ha no existir da mulher uma phase em que a sua alma desce das regiões ideaes da pureza para a grosseira realidade do mundo. Já então se não mira no crystal do arroio, e a lua vem e desapparece sem que ella uma vez levante os olhos ao céu. Quando o seio lhe arfa ao encontrar o que ama, não precisa de correr a apanhar a iDonina para esconder o rubor: o sangue precipita-se todo no coração que se dilata, e ás faces só vem a pallidez. Nesta quadra é a intelligencia que resiste á seducção: o pudor não é poesia, não é uma inspiração espontanea, inexplicável; é calculo, é raciocinio. Nessa idude, o amor que cede é ardente, impetuoso, tyrannico, porque a mulher mediu toda a extensão do sacrifício; porque não cedeu sem uma lucta terrível, e essa lucta lhe fez conhecer a immensidade da paixão que a venceu, e a consciência lhe diz que só um amor sem limites pode corresponder ao seu.

A diversidade, porém, das Índoles humanas determina as diversas manifestações do amor feminil nos annos que succedem aos da primeira juventude. Muitas vezes a mulher, postoque despenhada, na realidade é ainda o anjo, anjo não radiante de gloria, não cercado de uma aureola de formosura celeste, mas passando docemente melancholico no meio do desterro da vida, semelhante ao pôr do sol de uma tarde de outono, vivendo só para o homem cuja alma uniu á sua, exemplo de abnegação sobrehumana, esquecendo as dores próprias para consolar as alheias, soffrendo a infidelidade, a ingratidão, a impaciência brutal sem um queixume e escondendo, até, a reprehensão eloquente das lagrymas. Feliz o que encontrou tal mulher, se Deus lhe concedeu entendimento para a comprehender, coração para aspirar e conter em si um amor quasi infinito! Noutras, quando chega essa idade, as paixões intensas, concentradas, violentas assemelham-se á cratera do Vesúvio, cujas terríveis erupções são transitórias, mas onde constantemente arde o fogo, e tolda os ares o fumo, e as escorias se agitam sob os turbilhões da chamma inextinguível. Noutras, finalmente, os ardores íntimos são semelhantes aos fogos do Hecla; escondem-se debaixo de uma superfície de gelo. Mas a força da explosão não é por isso menos violenta.

Aquelle que chega a aífastar esse manto de frieza lá vê ferver os algares, lá ouve o rugir do abysmo, lá sente o calor do incêndio.

A mulher que Fernando Affonso cria amar era semelhante ao Hecla.

Acolhendo todas as demonstrações de ternura, acceitando os cultos do moço escudeiro, accendendo-lhe a imaginação com as artes subtis que a natureza parece inspirar ao sexo fragil para captivar o forte, ella soubera exaltar os instinctos grosseiros daquelle coração pervertido. Era para Fernando Affonso um sentimento novo, mas profundo e que elle próprio acreditava sincero. Formosa, postoque já houvesse passado além da primavera da vida, a amante do camareiro-menor empregara para o subjugar o meio mais poderoso de que uma mulher seductora póde lançar mão para converter o amor nascente em paixão delirante. Fazia-o esperar tudo sem conceder cousa alguma. Quando, cego de desejos, sedento de prazer, o mancebo ousava recordarse da sua antiga audácia, um olhar severo, um gesto imperioso, uma palavra altiva vinham subitamente adverti-lo de que, emtim, achara uma mulher incapaz de ceder aos devaneios de um momento. Despeitoso, irritado, jurava então quebrar os laços que o prendiam; porém, máu grado seu, o amor ganhava mais força com os rigores, e novas seducções geravam novas esperanças, que não tardam a ser repellidas pelo calculo que simulava virtude, para se renovarem e morrerem cem vezes.

Apesar da circumspecção com que essa mulher evitava abando nar-se á paixão impetuosa do escudeiro, ella amava-o realmente; amava-o, até, com ardor; mas tinha-lhe estudado a Índole, sabia uma parte da sua historia e tremia diante da idéa de trocar um escravo submisso em senhor desdenhoso.

Ligada por interesses de familia, muito moça ainda, a illustre cavalleiro, um successo inesperado e fatal, a morte daquelle a quem se unira por cálculos de ambição, viera extinguir as suas esperanças sem ao menos ter experimentado as doçuras de ura amor mutuo, e sem lhe restarem essas lagrymas de saudade, esse conversar na solidão com uma imagem querida, que são para o desgraçado um thesouro de consolações.

A situação, porém, da formosa viuva não tardara em . mudar. Nobre por nascimento e ainda mais pelo nome que enlaçara com o seu, obtivera satisfazer o ardor pelo luxo e pelos triumphos da vaidade, que eram os vicios predominantes do seu caracter, entrando no brilhante circulo das damas da rainha. Fora então, fora nos saraus tão frequentes na corte de D. João I, onde o enthusiasmo guerreiro, os enredos da politica, as aspirações da devoção e o estrépito dos deleites succediam uns aos outros sem se excluírem, que os seus olhos tinham encontrado os de Fernando e uns e outros se haviam entendido. Depois, viera a palavra submissa, proferida ao perpassar, o encontro ardente das mãos no redemoinhar das danças, as cores favoritas do trajo elegante da bella copiadas no escudo do cavalleiro, nos torneios e justas da Rua-nova, a rosa caliida a descuido do seu seio ou do seu toucado e apanhada rapidamente e rapidamente beijada e escondida no peitilho da jornea do mancebo; todas essas estrophes, emfim, escriptas mais em hieroglyphicos do que em palavras, de que se compõe a epopeia do amor, sempre a mesma e sempre nova, e que a tantos devora os annos e a energia da mocidade no meio de deliciosa embriaguez.

Não repetiremos os vários cantos daquella Odyssea, cujos protagonistas eram o camareiro-menor e a sua formosa amante. Baste recordarmos ao leitor que Beatriz fora oííerecida em holocausto nas aras da sua altiva rival. Assim devia acontecer; porque Beatriz se entregara sem reserva, e ella acceitara as adorações sem admittir a idéa de recompensa.

No amor a ingratidão é a filha primogénita da abnegação e da fraqueza, ao mesmo tempo que não é fácil dizer se as difficuldades repellem com mais força o que tenta superá-las, do que o chamam e subjugam por mysterioso attractivo.

Na conjunctura, porém, a que se refere a nossa narrativa, o combate de Fernando Affonso para triumphar do pudor calculado da sua nova amante aproximava-se de uma crise.

A victoria que ia coroá-lo devia-a a ter empregado em momento opportuno uma arma terrível.

Habil era penetrar os mais occultos segredos do coração feminil, o moço escudeiro avaliara toda a extensão dos dous sentimentos que dominavam a alma daquella que amava; uma affeiçâo ardente, inquieta e ciosa e um orgulho excessivo. Conheceu que tinha nelles dous poderosos auxiliares para o ajudarem a despedaçar o manto regelado que escondia o vulcão, e os seus requebros á linda filha de mestre Bartholomeu eram o resultado do plano que concebera. Alda, que se ufanava de ser requestada por tão gentil mancebo, mal imaginava quão distante da rua de D. Mafalda elle punha a mira dos seus íntimos desejos.

O ciúme tem cem olhos. Sagaz deve ser aquelle que souber esconder por muito tempo a sua infidelidade á mulher que deveras o amar. Fernando não desejava occultá-la, e a formosa dama de D. Philippa não tardou a obter a certeza de que era trahida. Foi então que o incêndio, como o moço escudeiro o previra, rebentou impetuoso: a lucta do orgulho ferido com o amor avivado pela oífensa só serviu para revelar á consciência aterrada da amante de Fernando que a sua paixão era invencível. Collocada á borda de um abysmo, persuadida de que o abandono seguiria de perto a traição, viu que era necessário ceder.

Fernando tinha vencido.

Nós pouparemos também ao leitor a scena das amargas accusações da oífendida e da frouxa defesa do offensor. Taes scenas tô-lasha lido ou visto representar mil vezes. Feliz delle, se já em alguma foi mais do que mero espectador: feliz, porque a explosão dos zelos é como a trovoada do estio: depois do fuzilar dos relâmpagos, do cahir da saraiva que fustiga os arvoredos, os ares são mais diaphanos, o firmamento de um azul mais limpido. Ás lagrymas de bella mulher, quando cahem sobre a fronte que se curva arrependida, succede um momento que resume eternidades, e no olhar e no sorriso que dizem -- esqueço e perdoo, -- ha um extasi ineffavel. Não podem excedê-lo os do céu.

Tal fora o que passara a um dos balcões dos paços de S. Martinho, naquella noite do anno em que por toda a Lisboa, desde o palácio até a choupana, quasi ninguém dormia; na noite que precedera o dia de Corpus Christi.

Ahi Fernando jurara não tomar a ver a linda Alda. No meio dos seus transportes, os cabellos se lhe fariam brancos de terror, se podesse adivinhar como esse juramento tinha de ser cumprido.

Ahi, em voz quasi imperceptível, uns lábios trémulos haviam proferido um delicioso sim.

A farça do delíquio representada em Valverde pelo joven camareiro e a sua corrida desde o bairro da Pedreira até a Porta-doferro ligavam-se intimamente com o que se passara no balcão dos paços de S. Martinho.

Eis aqui, pois, porque goraram os planos da pobre Domingas, e porque as palavras em cujo eífeito magico ella confiava só produziram um brutal assassinio.

Oh previdência, oh agudeza, oh força da concepção humana, tão semelhantes as mais das vezes á finura e capacidade da defuncta cuvilheira. Vós sois, sem questão, a cousa mais profunda e admiravelmente piegas e asnatica deste mundo!

Na minha admiração, ou antes adoração, do vosso quid divinum, eu vos saúdo. Salve!

XXI

O ESPIA

Aventureyme : vim aqui Por vos ver e vos fallar.

Canc. do Colleq. dos Nobr.

Todos aquelles dos nossos leitores que conhecem a topographia actual de Lisboa sabem quão breve distancia medeia entre a sé e o Limoeiro, antigo palácio dos reis da primeira raça, convertido em sentina de crimes e em viveiro e eschola de criminosos pela monarchia absoluta, parenta próxima do liberalismo moderno no desprezo estúpido e brutal dos mais venerandos monumentos dessas epochas de liberdade incompleta mas sincera, em que o monarcha era o alliado dos povos, o braço que estes estendiam para annullar a tyrannia da casjta privilegiada, se ella ousava quebrarIhes os seus foros, avexá-los ou opprimi-los.

Alie, affastando-se da tia Domingas, transposera a correr essa breve distancia que separava a cathedral dos paços dos infantes, a sede do supremo sacerdócio da sede do supremo poder, e ia a cruzar o átrio, onde apenas se via em completa immobilidade um besteiro da guarda firmado na sua alta bésta de polé, cujo arco de aço elástico e pulido refulgia ao sol ponente, quando sentiu ura tropeiar rápido. Parou, voltou-se e viu o caraareiro-menor chegar ao adro de S. Martinho, olhar de roda de si, apeiar-se, atirar a rédea para cima do pescoço da mula e encaminhar-se para o portal d'onde o truão o observava. Não esperou este que elle o visse.

Tomando por uma porta á esquerda do átrio, Alie parou de novo e pôs-se a espreitar. Percebendo que o escudeiro se dirigia para alli, sumiu-se ao longo de um corredor que, fazendo ângulos e voltas, subindo e descendo, ia terminar noutro que o leitor já conhece e que dava communicação para o aposento onde se passaram as scenas entre micer Percival, o rei, o chanceller e D. João d'Ornellas que anteriormente tentámos descrever.

Dir-se-hia que Fernando Affonso lobrigara o truão e que diligenceiava alcançá-lo. Entrou pela mesma porta, seguiu ao longo do mesmo corredor, deu as mesmas voltas, subiu os degraus que elle subira, desceu os que elle descera, e cada vez o truão sentia mais perto de si as passadas do moço escudeiro, que não podia ouvir igualmente as de Alie, calçado de servilhas mouriscas e caminhando nas pontas dos pés. Todavia, no meio daquelles escuros e tortuosos meandros, o camareiro hesitou, retendo a respiração e pondo-se a escutar attentamente.

Parecera-Ihe ouvir ura rastejar sumido, como de cobra que fosse fugindo adiante delle.

O jogral parou também. Chegara naquelle momento a um passadiço que conduzia da camará real ao aposento cuja chave exterior o chanceller guardava.

Esse corredor recebia alguma luz, bem que frouxa, de um frestão rasgado na parede de uma espécie de claustro interior. Num relance. Alie galgou até a extremidade e, cozendo-se com a porta, ficou inteiramente cuberto com o reposteiro. Um instante que houvera hesitado, o camareiro vê-lo-hia. Quando, porém, este chegou alli, apenas uma ondulação quasi imperceptível agitava as pregas do reposteiro, ondulação que a luz baça do corredor não permittia enxergar do topo fronteiro, por onde o mancebo assomara.

Quasi ao fim do corredor, na parede lateral, abria-se um arco. Era o patamar de uma escada em espiral que ia morrer no pavimento superior.

Fernando Affonso escutou novamente. Reinava profundo silencio; porque tudo estava deserto. A festa de Corpus transvasara, por assim dizermos, o paço na cathedral.

O escudeiro começou a subir cautelosamente. Alie, apenas o vira desapparecer no arco, saíra detraz do reposteiro. Num pulo, achou-se no primeiro degrau da escada. Caminhando de pés e mãos, como um gato, seguia de pert© o camareiro-menor, que, pela forma da escada, pela tenuissima luz que o corredor soturno lhe ministrava, pelo nenhum ruído com que o chocarreiro avançava, não podia imaginar que o seguiam.

Saindo a uma espécie de dormitorio, mal allumiado pelos raios do sol através de um espelho de vidraças brancas aberto no topo Occidental da galeria, Fernando Affonso chegara, emfim, ao termo da sua mysteriosa viagem. De um e d'outro lado havia uma serie de portas fechadas. Sobre ellas cabiam reposteiros verdes e brancos, bordados com as armas de Portugal coroadas pelo dragão verde. Estes reposteiros, que rojavanj no pavimento, encubriam-nas inteiramente. Um delles, porém, estava corrido para o lado. Alli, como no pavimento inferior, reinava silencio sepulchral.

Esse dormitorio e essas cellas eram um logar vedado aos homens, como harém d amir mussulmano, ou como claustro de virgens consagradas ao céu, postoque nâo habitassem ahi, nem escravas do oriente vendidas á sensualidade de um senhor licencioso, nem victimas de idéas exaltadas e supersticiosas ou da tyrannia domestica.

Fernando achava-se no lanço do palacio destinado para a habitação das domnas e donzellas de D. Philippa.

Inclinando successivamente a cabeça a um e a outro lado, o mancebo parou no adito do extenso dormitório. Applicava o ouvido, ora para a direita, onde os raios do sol, já mergulhando para o occidente, se estiravam pelo acanhado espelho de vidraças brancas e convertiam em subtis piscas d'ouro o pó da atmosphera, ora para o topo opposto, aonde a luz viva, mas pouco volumosa, do óculo voltado ao poente chegava apenas como crepúsculo duvidoso. Este inclinar-se, este escutar era que hesitava entre o desejo e o perigo. As artérias, batiam-lhe com violência, e pela medulla dos ossos corria-lhe a espaços um calafrio.

Finalmente avançou alguns passos. Uma taboa do pavimento, rangendo sob o seu peso, causou-lhe um estremecimento de terror. Escutou de novo: a quietação era completa.

Só uma voz intima parecia dizer-lhe: -- «retrocede, que ainda é tempo.» Porventura era a mesma que á Porta-do-ferro tentara chamar-lhe assassino; a voz, não inteiramente muda, da consciência.

Como alli, desattendeu-a. Indignado da própria fraqueza, galgou ao longo dessa renque de portas, que ia contando mentalmente. Parou perto da duodécima, a do reposteiro corrido. Estava meia-aberta. De dentro, uma claridade débil, que parecia atravessar dous ou tres aposentos, prolongava- se pelo chão do corredor. Era aquelle o logar aonde o moço escudeiro devia dirigir-se. A um leve bater de palmas responderam-lhe uns sons maviosos de alaúde. Respirou: o signal fora correspondido. O coração, que o receio até ahi lhe estorcera, agitava-lh'o agora a alegria.

E, comtudo, se neste momento tivesse volvido o rosto, correndo com a vista até a aresta do arco por onde acabava de passar, talvez essa alegria se lhe convertesse em trance cruel de angustia; talvez o seu raio visual fosse cortado por uma face ridente de ironia, por um olho vivo e negro, que o vigiava, por metade de uma fronte, que, roçando píela quina de mármore, ora apparecia, ora desapparecia.

Mal pensava elle que, afora os broncos bésteiros da guarda, alguém o tinha visto entrar nos paços de S. Martinho e que tenebrosa missão estava a cargo desse alguém que o, vira e que o seguia.

Os sons do alaúde haviam cessado, e um ranger de quicios e uma pancada quasi imperceptível de porta em batente lhes tinham succedido. O olho ironico, a face risonha e a meia fronte de Alie surdiram juncto á aresta do alisar de marmore. A luz que da porta meia-aberta se estirava pelo pavimento tinha-se eclipsado, e o mancebo desapparecera. O corpo inteiro do mouro desenhou-se então na viva claridade do espelho occidental. Aquelle vulto adiantou-se pé ante pé para o topo escuro da galeria e chegou ao reposteiro franzido. Ahi parou. Parecia meditar.

O sitio em que se achava não lhe era absolutamente desconhecido. Já uma vez, com a sua liberdade de bufão, tinha ousado penetrar naquelle recincto, com grande escândalo e gritaria de D, Cypriana, a rodeira das damas, cujo throno, agora vazio, se ostentava no topo escuro do dormitório. D'ahi a severa rodeira regulava a ordem e a policia entre as cuviIheiras e sergentes das altas e nobres domnas e donzellas de sua mercê a rainha; entre esse bando de aves palreiras, que, saindo e entrando dos aposentos de suas domnas, se cruzavam, paravam, agrupavam-se, dispersavam-se, falando, altercando, rindo, e correndo vivas e trefegas pela extensa galeria. Ouvindo as exclamações de horror da rodeira e observando o espanto pintado no gesto de toda aquella turba de raparigas, que tinham ficado como estatuas ao ver no redil um lobo, postoque lobo velho e desdentado. Alie galgara de um pulo peia escada abaixo e fora esbarrar com elrei, que passava nesse momento para o gabinete particular. O chocarreiro agarrou-se-lhe então á falda da jornea, bradando:

«Compadre João, compadre João! Que diabo de gallinheiro tens tu lá em cima? E que peste de gallinha choca é aquella que cacareja e cuida cantar como o gallo? Ía-me tirando os olhos. Apage!» E deitara a fugir, emquanto elrei em vez de se irritar, desatava a rir. Que importava que Alie tivesse quebrado aquella espécie de clausura ? Um bobo não era um homem. Todavia, gritou-lhe de longe:

«Guar-te, compadre, da gallinha choca, não vá cacarejar ás orelhas do alcaide dos donzeis.

Bem sabes que as pontas dos tagantes que elle traz á cincta são flexiveis e delgadas!» Desde aquelle dia Alie passara sempre de largo pelas fronteiras dos dominios de D. Gypriana. Mas a vinda inopinada de Fernando Affonso, as recommendaçôes terminantes de D. João d'Ornellas e o próprio impulso de uma curiosidade malévola haviam-lhe dado agora animo para aífrontar o perigo. A verdade era que este não existia. A rodeira e as cuvilheiras e as sergentes, tudo abalara para assistir ao grande drama de Corpus. Só a cadeira magistral de D. Gypriana rutilava, apesar da frouxa claridade, com a sua pregaria dourada, e ostentava os seus braços de macissa nogueira lavrados de flores e fructos, o seu espaldar rendilhado e erguido em coruchéu, á maneira de portada de cathedral, e a sua solida base terminada em duas gárgulas, uma imitando o corpo de um leão rapante com face humana, outra o de um homem estirado sobre o ventre com a carranca leonina, e finalmente o seu rodapé de gorgorão verde, que, pendurado em volta do assento de couro bastido, servia de sanefa ás carantonhas das gárgulas.

O truão deu mais alguns passos, chegou-se ao throno da rodeira, metteu-se atraz do espaldar e esperou o desfecho da estranha aventura que o acaso lhe deparara. Ennovelado naquelle recanto, podia ver sem ser visto. Alli a escuridão era quasi completa, e até, quem se chegasse ao pê delle difficilmente distinguiria nesse vulto, que semelhava uma trouxa, as formas e proporções humanas.

Apenas, porém, o mouro se aninhara, a porta mysteriosa abriu-se com violência. Lá, no limiar, estava uma formosa mulher, cujos trajos desordenados, cuja extrema pallidez, cuja voz presa e tremula indicavam o susto.

Alle reconheceu-a: era uma das damas da rainha. Um homem procurava retô-la, segurando-lhe o braço: era Fernando Aífonso.

«Enganastes-vos, senhora -- dizia o mancebo. -- Juro que vos enganastes! Não póde ser:

não podem voltar ainda.» «Meu Deus, meu Deus ! -- murmurou ella, erguendo as mãos com gesto de progressivo terror. -- Parti ... por amor de vós ... por amor de mim!» «Um momento só, um momento...» «Não, Fernando. Ide-vos... fugi!» «Oh -- interrompeu o moço escudeiro, estorcendo as mãos com olhar phrenetico -- deixae-me ao menos ouvir ainda outra vez desses lábios que sois minha, minha só, minha para sempre: deixae-me aspirar a felicidade depois de tanto padecer; deixae-me ...» «Escutae ... escutae de novo ... Não foi illusâol... O perigo está sobranceiro. Agora as trombetas bem distinctamente soam. É a rainha que volta ... Que será de nós, se vos encontram aqui!» Effectivamente Alie, que, emfim, percebera a aventura e retinha a custo um frouxo de riso, distinguiu os toques estridulos das charamelas que guinchavam, segundo parecia, da banda do adro de S. Martinho. A sua situação era também pouco vantajosa, e ao lembrar-se de D. Gypriana perdeu a vontade de rir.

Fernando escutava.

«Tendes razão ! -- disse elle por fim. -- Ámanhan, pois ... aqui ... durante o sarau ...

quando o sino da sé tiver tocado a completas.» «Sim, Fernando. A galeria estará deserta como agora. A rainha dispensou-me de a acompanhar tres dias. D. Philippa é indulgente quando se tracta de actos de devoção.

Foi esse o pretexto com que me encubri.» «E o meu será entretanto o mal que hoje inventei. Elrei julga-me gravemente enfermo.

Amanhan a ventura não me fugii*á como hoje... ámanhan, senhora... Oh, quanto serei feliz!» «Insensato!... Deixae-me, deixae-me, e fugi!» Era que o mancebo a estreitara repentinamente entre os braços e que naquella formosa fronte se imprimira um beijo longo e ardente.

Depois, Alie ouviu sussurrar um adeus submisso. Os dous vultos desappareceram, e, ao mesmo tempo que pelo dormitório se alongavam passos de homem leves e rápidos, o reposteiro correu-se e a porta cerrou-se. Durante alguns credos fez-se alto silencio. O chocarreiro ergueu-se então, deitou a cabeça, depois o tronco, e depois saiu de todo detraz do espaldar: mirou para um lado e para outro e, com a mesma cautela com que se aproximara daquelle sitio, dirigiu-se nos bicos dos pés ao topo da escada em espiral.

E, descendo lentamente, scismava:

«Ámanhan: ao sino... Sino de que?...

Ah sim, de completas ... não me esqueço, nobre escudeiro, que atropelas os que te não fizeram mal; não sou esquecido. . , Oh, como O abbade rirál Bem me dizia elle: «Observa, vigia, Alle.» Atinava! Eu é que sou um parvo... Partamos para o collegio de S. Paulo.» E através dos corredores e passadiços, subindo e descendo, ria como um perdido a pensar no caso.

No momento em que chegou ao átrio do paço, a rainha desmontava de um palafrem branco, em que viera do cadafalso ou tablado erguido no topo Occidental da Rua-nova, d'onde desfructara as scenas devotas e brutescas da solemnidade. As charamellas tiravam ainda os seus ultimos sons, e os timbaleiros davam os extremos rufos, prolongando-se com a igreja de S. Martinho. A esse ruído associava-se o do pateiar de mulas de pagens e de hacaneas de domnas e donzellas e o de muitas vozes que se cruzavam.

Dez minutos depois D. Cypriana, assentada na sua poltrona, desencalmava-se com uma taça de hydromel e dizia á sergente Briolanja que Ih'a trouxera:

«E a tua domna?» «Parece que ainda está resando. Já fui escutar á porta e não ouvi nada.» «Não ir á procissão para resar todo o sancto dia?! É cousa singular! Tenho reparado que, desde que deixou de se confessar a Fr. João Xira e tomou por director Fr. Isidoro, anda quasi sempre triste e a scismar. Dizem que Fr. Isidoro é, depois de Fr. João Xira, o melhor mestre de casos de S. Francisco. Será; mas eu não o quereria para meu padre espiritual, se faz andar assim a gente com o coração agastado.» Briolanja passou então para o lado da rodeira, metteu a cara entre as mãos, encostou-se aos cotovellos no braço da cadeira e aproximou a boca do ouvido de D. Cypriana.

A rodeira inclinou a cabeça para o lado, seguindo entretanto com os olhos o bando das raparigas, que entravam e saíam sussurrando ao longo da galeria, pouco antes tão silenciosa.

«Não é isso, senhora D. Cypriana ... não é isso -- disse a sergente que parecia hesitar. -- O que é nem eu tenho animo de lh'o referir !

Jesus venha à minha alma!» «Oh! então que é?» -- acudiu a rodeira, voltando-se e arqueiando em ogiva as sobrancelhas grisalhas.

«Pois sempre quer que lh'o conte ? ... Eu sei! ... Ainda não estou em mim...» «Mas vamos: que foi? Fala, mulher, fala.» «Olhe que, se vai logo dizê-lo! ...» «Não digo, não. Podes ficar tranquilla.» A sergente persignou-se, fazendo um gesto de horror.

«Ai, nome da benta hora! A noite passada... Oh, valei-me, sancta Senhorinha de Basto, sancta da minha terra, que não tenho animo para tal contar! ...» «Mulher, que me impacientas! -- insistiu a rodeira colérica, fazendo um rufo no pavimento com os tacões das botinas. -- Nâo sabes que eu devo saber tudo que se passa aqui, para acudir com remédio a qualquer caso extraordinário?» «Remédio! não é caso disso... Ora pois, eu lh'o conto ... É por lhe obedecer.» D. Cypriana refastelou-se mais a seu commodo na poltrona, emquanto Briolanja tornava a persignar-se.

«A noite passada -- começou a sergente -- dormia eu na almadraquexa aos pés do leito de minha domna. Acordo estremunhada com o coração aos pulos: corria-me da testa o suor em bagas. Na sé tocava o sino depois de completas: não eram ainda nove horas. O sino calou- se, e, apenas se calou, pareceu-me ouvir um som mais perto. Era uma voz de homem á cabeceira do leito; mas voz triste, muito triste. Também me pareceu que minha domna gemia, tentando articular algumas palavras ...» «Misericórdia! -- interrompeu a rodeira, levando as mãos á cabeça. -- Um homem, aqui, e depois de noite!? Que dizes. Briolanja? Pois isso será verdade ? Jesus; Sancto nome de Jesus!...» «Qual homem! ... -- replicou a sergente. -- Um medo, uma cousa mó, uma alma em pena! ... Branco, branco! ... Trazia vestida uma alva até os pés. E depois, os buracos dos olhos e a testa amarei la e luzidia e duas fieiras de dentes a branquejarem; que beiços não os tinha! ... Estava assentado á cabeceira do leito, e com a mão de ossos descarnados, como os da caveira, posta sobre o peito da minha domna, e ella a querer falar e sem poder. O medo dizia: -- Ainda mais dez annos de purgatório. Senhor meu Deus! Ainda mais dez annos! Assim esquecem aos vivos, nos deleites do mundo, os suffi-agios pelos pcbres finados! -- E punha-se depois a gotejar lagrymas daquelles olhos que não eram olhos, e a soluçar com aquella garganta mirrada. E a minha domna tremia, e o leito tremia, e tremia eu, que mirava tudo, mas com a cabeça cuberta, por uma fisga da roupa; e a lâmpada espirrava, e na janella sentia-se O vento que assobiava, e lá no telhado da igreja de S. Martinho os mochos que piavam.

E isto durou, durou, durou ... Eu sei lá o que durou ! A cousa má carpia-se de que a assavam, de que a frigiam em azeite, de que a atenazavam, e postoque eu não visse nem lume, nem grelhas, nem certan, nem tenazes, creio que devia ser assim, pelo muito que a pobre da alma grunhia e suspirava.» «Ail cal-te, mulher, cal- te! -- exclamou, emfim, D. Cypriana, a quem o excesso do espanto e terror paralysara por algum tempo os movimentos e a fala. -- Oh sacratíssima Virgem I E eu que durmo alli no reposte; mesmo paredes meias! Nâo: esta noite já não fico lá.

Vou mandar pôr um almadraque naquelle aposento devoluto, acolá no topo do dormitorio... » A sergente interrrompeu-a.

mK escusado. O medo não passa pelas paredes, creio eu; porque, quando os gallos começaram a cantar, alevantou-se, marchou vagarosamente até alli á porta, que se abriu e fechou atraz delle. Senti-o parar aqui um pouco e depois encaminhar-se ao longo do corredor.

Jurara, até, que lhe ouvi os passos descendo a escada.» «Peior, peior! -- acudiu a rodeira, -- Ámanhan já esta poltrona aqui não fica. Acolá do outro topo ainda observo melhor o que se passa no dormitório e estou mais á mão de quem vem trazer qualquer recado. Faço uma cruz a este maldicto recanto. E tua domna, que resolução tomou ?» A sergente custou-lhe a conter a alegria, ao ver o effeito que a sua historia produzira no animo de D. Cypriana, e respondeu:

«Mandou-me a S. Francisco esta manhan contar tudo a Fr. Isidoro, que ordenou certas resas para resar hoje todo o dia e nas tres noites immediatas, começando antes da hora em que appareceu o phantasma, emquanto elle não vem benzer o aposento e fazer os exorcismos. Recommendou-me, porém, segredo, porque as almas assanham-se, diz elle, contra quem põe em praça as suas misérias e necessidades.» «Por mim -- replicou a rodeira, cujo propósito de contar tudo no dia seguinte á camareira-mór D. Brites Gonçalves lhe passara no mesmo momento-- pôde a pobresinha da alma ficar descansada. Que entre, que esteja ou que saia, é cousa de que não quero saber, e Deus vê o meu coração. O que hei-de, lá isso heide, é resar uma coroa esta noite para que Deus se amerçeie delia ... Estou pátéta com o çaso! » Assim terminou o dialogo. E de feito, nessa mesma noite a cama de D. Cypriana passou do reposte ou vestiaria das damas para a camará devoluta, e ficou tudo prevenido para a veneranda poltrona ser transferida no dia seguinte para o topo opposto do dormitório e collocada debaixo do espelho ou janella redonda que o allumiava.

Também nessa noite, Briolanja e sua ama, a sós e fechadas por dentro, conversaram em voz baixinha mais de uma hora, interrompendo ôs vezes a conversação com um rir mal refreiado.

As historias de duendes e espectros e almas penadas e possessos e diabretes constituiam na idade-media um systema de doutrinas, cuja solidez se estribava em factos repetidos, irrefragaveis, testemunhados por milhares de pessoas, e em principios demonstrados a priori e a posteriori, incontroversos, axiomáticos. Duvidar da realidade do systema seria um scepticismo escandaloso ou uma loucura rematada. D. Cypriana era, porém, pessoa sisuda e que sabia como havia de pensar: por isso a mudança do almadraque e da poltrona foi, em nosso entender, de uma finura admirável.

Se D. Cypriana vivesse hoje, havia de ser muito lida em economia politica, e se tivesse alguns bens de fortuna mettia-os nas unhas dos agiotas, que lhe dariam vinte ou trinta por cento de lucro e em pantana com o capital.

É que em cada século ha uma verdade graúda que predomina e que vai ajudando os espertos a consolarem-se dos dissabores da vida á custa do animal, alvar por excellencia, chamado cidadão ou homem civilisado, para cujo consolo vieram á terra as bruxas, a therapeutica, os fundos públicos, a ontologia, os duendes, as infusões, a esthetica, as petas e o palavreado.

E a verdade verdadeira, acocorada ha seis mil annos no fundo do seu poço, a rir, a rir, a rir, que já não póde ter as ilhargas.

Coitada da pobre verdade !

XXII

JURAMENTO CONTRA JURAMENTO

Como foy triste acabar

Com tanla tristeza e dor!

G. DE Resende ~ Miscell

Tanto o elixir de Fr. Vasco, como a bolsa com que tentara a pobre Domingas eram dadivas de D. João d'Ornellas. Mas, se a tentação em que a bolsa fizera cahir a cuvilheira fora fatal a esta, a virtude do elixir, que o abbade exaltara como especifico singular contra a languidez de Beatriz, tinha sido para a pobre enferma absolutamente inefficaz.

Nas horas mortas da terrível noite em que Fr. Vasco exigira de sua irman o doloroso sacrificio de implorar a piedade de um homem vil e cruel, sacrificio que ella reputava não só superior ás suas forças, mas tambem inutil, Beatriz apenas saíra do lethargo em que ficara á partida do monge para se debater em convulsões repetidas e cahir depois numa espécie de insensibilidade estúpida, que a tia Domingas na sua alta sabedoria traduzira em decisivas melhoras, produzidas por duas ou tres colheres do mirífico elixir, concluindo d'ahi que lhe era licito resar as suas orações e deilar-se immediatamente a dormir, antes que entre as resas e o somno se lhe introduzisse atraiçoadamente no espirito alguma tentação de Satanaz.

Desde aquella memoranda noite, as forças de Beatriz, gastas já pelos padecimentos do corpo e do espirito, começaram a desapparecer rapidamente. As suas faces emaciadas tingiam-se de um circulo de rubor, que parecia tanto mais vivo, quanto a fronte se lhe tornava mais pallida. Era que a febre, a lenta mas incansável gastadora da morte, lhe minava debaixo dos pés o caminho precipitado do tumulo.

Tambem durante os dias que decorreram até o da procissão de Corpus, uma tremenda lucta se passara na alma do moço cisterciense.

O juramento que, a bem dizer, fizera sobre o cadáver de seu pae, a repugnancia a commetter um novo crime, embora até certo ponto justificado pela honra, a commiseração para com sua desgraçada irman e, finalmente, as vans esperanças que alimentava repelliam-se, travavam-se, recuavam, compenetravam-se em combate sem desfecho, sulcando-lhe cruelmente o campo dessa accesa batalha, o coração. Mais de uma vez o amor fraterno, o único affecto em que a sua alma requeimada achava refrigério, estivera a ponto de dar a victoria á commiseraçâo; mas o orgulho offendido, a mais implacável das paixões humanas, não tardava a vir equilibrar o combate.

Entretanto o dia fatal estava de continuo ante os olhos de Beatriz como um espectro, não immovel no horisonte do futuro, mas caminhando para ella a passos lentos, crescendo em dimensões e abrindo as garras para a despedaçar. Era uma scena de phantasmagoria, de que não podia aífastar a vista até o momento em que essa espécie de pesadello se convertesse em tremenda realidade.

Uma existência menos débil que a sua houvera cedido a esta situação intolerável.

No dia da procissão de Corpus, Fr. Vasco obtivera, pela omnipotente intervenção do abbade, dispensa do reitor de S. Paulo para não acompanhar a communidade. Tinha assim tempo bastante para confortar Beatriz antes da hora solemne em que, segundo elle acreditava, se devia decidir o seu destino; dessa hora que esperava entre as angustias que resultam da esperanca e do temor combinados.

Para obter a permissão de estar ausente até realisar o seu plano, recorrera a um pretexto plausível; a inquietação que lhe causavam as tristes novas recebidas nessa manhan acerca do estado, cada vez mais ameaçador, em que se achava Beatriz.

Havia dous dias que o moço cisterciense, retido pelos deveres monásticos e por diversos misteres de que o incumbira o reitor, não viera á rua de D. Mafalda.

Nestes dous dias o espectro tinha-se chegado mais para a hallucinada donzella. Escondida atraz desse vulto medonho, a morte se aproximara também e se assentara ao pé do leito de agonia. Alli mirava a sua presa, que lhe sorria melancholica. A idéa da morte era quem a consolava.

A febre latente, que pouco a pouco lhe ia devorando a existência, creava estas imagens e punha-lh'as diante do espirito. Embora ninguém mais as podesse ver: existiam para ella.

Eram, portanto, reaes.

Quando Fr. Vasco chegou. Domingas esperava-o inquieta. Tinha de dar algumas voltas antes de ir cumprir a missão que lhe incumbira. Eram para a desempenhar melhor, dizia ella.

Emquanto escutava impacientemente as observações da cuvilheira, o frade, não vendo apparecer Beatriz, renovara por duas ou tres vezes a pergunta muda a que Domingas estava habituada. Alevantou a cabeça, olhando para o lado da camará e estendendo a mandibula inferior.

«Dorme».

Era a resposta impreterivel da velha.

O cisterciense encaminhou-se para o corredor, emquanto Domingas se dirigia para a escada, recommendando-lhe que fechasse a porta á chave. Fr. Vasco respondeu que sim. Ouvira o som das palavras sem lhes ligar sentido algum. Ha na vida instantes destes, em que o espirito se divide em machina e em consciência. A machina dirige os órgãos, e a consciência absorve-se numa idéa.

«Dormir em tal dia, a taes horas, quando a crise se aproxima I » Assim scismava o frade; e esta cogitação fazia-lhe correr um calafrio pela meduUa dos ossos. O porque, não saberia dizê-Io.

Ao entrar na camará de sua irman, o monge viu que Domingas o enganara.

Beatriz estava encostada á cabeceira do catre; os seus cabellos soltos varriam os péé de um crucifixo de metal pendurado na parede superior. Despedindo-se ao partir para Carquere e Bouro, Fr. Lourenço lhe deixara esta memoria de si. Era, de tudo quanto possuía, o que o bom do frade mais estimava.

Os olhos da donzella, onde fulgia desusado brilho, pareciam fitos na pequena elevação que os seus pés faziam, para o lado inferior do catre, na almucella que até a cinctura a cubria.

D'ahi para cima um gibão de mulher, ou vasquinha, preto e aífogado na garganta, escondia debaixo das multiplicadas pregas as formas emmagrecidas daquelle corpo outr'õratão esbelto e gracioso. Era no vulto da morte, visão intima, que o imaginar febril lhe convertia em entidade sensível, que ella tinha os olhos fitos.

As passadas do monge, que chegara á borda do catre, não a tiraram daquella contemplação extática. Vacillava-lhe nos lábios sem cor um quasi imperceptível sorriso.

O monge curvou-se um pouco e deu-lhe um beijo na face. Queimava.

Beatriz não se moveu.

«Vamos, preguiçosa -- disse elle, apertandolhe a mão fria, que tinha pendente ao longo do corpo. -- Recolhida ainda, quando vai já em meio um dia tão lindo ?» O beijo dá-lo-hiam quaesquer lábios: de uns somente, porém, podia essa voz partir. No fundo daquella alma absorta na tribulação a corda da sympathia fraterna vibrou unisona e estridente. O encanto quebrou-se: os olhos de Beatriz volveram-se para o irmão; e o leve sorriso com que saudava o phantasma da morte veio saudar mais fagueiro a imagem querida que tanto tardara. Apertou também com a sua a mão de Fr. Vasco. O mancebo percebeu então que esta estava, não fria, mas gelada.

«O dia é bem lindo ! -- murmurou Beatriz.

-- A noite é que é horrenda ! ... Mas entre o dia e a noite está a galilé da igreja, onde dormem os mortos e onde se vai ás avemarias resar por elles. As avemarias não é noite nem dia.» Quanta lógica intima havia nestas phrases incoherentes e absurdas ! Vasco mal as comprehendia. Creu que sua irman devaneiava.

Experimentava terror inexplicável. Buscou encubri-lo, e proseguiu em tom de gracejo:

«Um dia de junho é lindo! Mas não tanto como tu. Se não fosses minha irman, e se não me houvessem unido indissoluvelmente a esta áspera estamenha, havia eu de amar-te como louco: havias de ser minha mulher, porque és boa e meiga; porque és bella, Beatriz!» Dizendo isto, o frade ria anediando-lhe as madeixas. Era dentro e a occultas que a dor lhe confrangia o coração.

«Também elle -- murmurou de novo Beatriz--jurava que eu era boa e meiga; que eu era bella; que seria sua esposa!» E torcendo o corpo, atirou os braços por cima dos hombros de Fr. Vasco, uniu ao rosto delle a fronte, que escaldava, e inundou-lhe de lagrymas o escapulário.

«Animo, Beatriz, animo ! ... Pois que é isto?

Olha; eu tenho esperança; muita esperança...

Quem poderia ver-te assim e não se doer de ti? O que é não sei eu; mas diz-me uma cousa cá dentro que hoje... Deixa estar: verás!» A donzella ergueu a cabeça, fez affastar um pouco Fr. Vasco e pôs-se a contemplá-lo calada. Os seus olhos, semelhantes ao sol fulgindo, no amanhecer, através do chuveiro impellido do noroeste, brilhavam por entre as lagrymas que lhe tremiam nas pálpebras.

Depois de assim o olhar fito alguns instantes, tornou a aproximar a fronte de Fr. Vasco da sua e replicou:

«Também o coração me fala hoje não sei que palavras de repouso e de paz.» E sorria de novo ao proferir isto em voz submissa e tarda.

«E porque não descerá outra vez sobre ti, pobre desgraçada, um raio de luz do céu? - proseguiu fervorosamente o monge, depois de alguns instantes de silencio. -- De sobejo tens pago o erro de um coração inexperto, embora a expiação do criminoso costume ser neste mundo bem longa e severa ! ... E depois, que vamos nós pedir a esse homem? Apenas a reparação de uma affronta, apenas que apague a inscripção vergonhosa que á falsa fé gravou no tumulo de um velho honrado. Não é pedir muito ... Oh, eu que fui nobre, que fui cavalleiro; eu, que jamais commetti feito vil, que nunca nos combates voltei as costas, nem alcancei jamais como houvesse quem ajoelhasse aos pés do inimigo a pedir misericórdia, ajoelharei hoje comtigo aos pés delle e implorarei, não justiça, mas compaixão. Que a tenha uma vez só, e não a invocaremos mais ! Sem remorsos poderá então engolfar-se nas delicias da vida; correr soltamente á mercê das suas paixões. Não o perturbaremos. Quebrarei os laços do claustro, e iremos viver ambos, esquecidos do mundo e esquecendo-o, no decadente solar de nossos avós. Os ténues haveres que reservei para a nossa Brites e estes braços, que podem bem trabalhar, supprir-nos-hão a todos tres. Os musgos e a hera, que revestem esses velhos muros, arrancá-los-hemos com as próprias mãos, e do chouso que os cerca os rosaes e a madresilva expulsarão os abrolhos que a solidão e o vento do céu lá têem plantado. Bem sei, Beatriz, por qual preço havemos hoje de pagar essa tranquilla existência. A humilhação é uma cousa cruel quando a innocencia se curva perante o crime: para isso é necessário mais esforço que para affrontar a morte. Mas tu o terás. Inspirar-t'o-hão o meu exemplo e a sancta memoria de nosso pae...» «Quero tê-lo, Vasco -- interrompeu Beatriz, que escutava seu irmão, olhando para elle com aquelle triste e interminável sorriso que se lhe encarnara no rosto: -- quero tê-lo; porque tu o desejas. Espero, até... Mal sabes tu o que eu espero ! Emquanto respirar, não posso ter outra vontade que não seja a tua. Tu és o meu anjo da guarda na terra; tu, indulgente e bom para a irman criminosa, como o havias sido quando era innocente e pura; tu, cujos labios serão os únicos que pedirão a Deus repouso e misericórdia para a mulher perdida, e cujos olhos serão os únicos que chorarão por ella, quando deixar de existir. Não é assim, Vasco?

Não has de chorar e resar muito por mim em eu morrendo?» Isto era dicto com um accento de melancholia tão profundo; vinha tão deveras da alma, que o cisterciense fez um gesto de terror.

«Morreres, tu, Beatriz ! ? Deixares-me só na terra ? ... Então que fico eu cá fazendo ? ...

Isso não póde ser. Deus não póde querer tal.

Has-de viver.» -- E depois de breve pausa, proseguiu: -- «Oh, não digas que és mulher perdida! Não ! Até a ultima gota de sangue que ha nestas veias, vertê-lo-hia para te erguer, para te purificar, anjo despenhado ! Se esse miseravel ...» Na fronte do monge ondeiaram algumas rugas, e nos olhos cavos reluziu-Ihe um desses relâmpagos que faziam estremecer sua irman.

«Não me entendeste, Vasco -- interrompeu ella, tentando, mas debalde, compor um gesto tranquillo. Eu hei de viver, talvez, muito; muito. Mas tu disseste-me, ha tempo, que tinhas uma idéa fixa: eu também tenho a minha. Isto das idéas fixas, dizia nosso pae, lembras-te ? que é uma espécie de doudice. Depois, sabes lá ? A morte, manda-a ás vezes Deus sem ser esperada. Suppõe que ainda hoje eu morria... Estou louca: não é assim? Mas suppõe-no. Consola-me o ouvir-te dizer que has-de resar muito por mim. Promette-m'o. Que te custa isto ?» «Pois sim; pois sim! -- acudiu o monge.-- Que mais queres que te diga? Resarei e chorarei muito, já que folgas nessas idéas tristes.

Nem as lagrymas me são estranhas, nem o longo e afflicto orar. Mas, olha: eu sou interesseiro. Dizem que nós os frades somos todos assim; e é verdade. O sol começa a declinar.

É preciso que te alevantes d'ahi; que me adornes esses cabellos com aquellas rosas que alli pús sobre o bufete; que esses olhos tão lindos se enxuguem e sorriam, que vistas aquelles trajos modestos, mas elegantes, que te enviei ha dias. Ficarão bem ao teu rosto pallido, ás tuas formas aéreas, minha feiticeira! ... Sei que dizes lá comtigo : meu irmão o monge, meu irmão o penitente ainda não esqueceu as vaidades do mundo, as bagatellas que tanto lhe importavam quando era nobre senhor e namorado cavalleiro. Enganas-te. Os hábitos perdi-os ; mas ficou-me a memoria ; ficou-me a experiência. Os encantos da mulher que implora são o som do psalterio harmonisando com as vibrações melodiosas da voz humana.

Os sentidos enleiados guiam ao centro do mais duro coração o gemido da desventura e abrem caminho ás lagrymas que tentam amollecê-lo Oh! Quero que sejas hoje bella; que affugentes essa melancholia; que sorrias de outro modo .. . Quero-o ; quero-o I » Dizendo isto, ria com um rir nervoso, que gerava tristeza. Ao dar, porém, a primeira passada para sair da camara, Beatriz travou-lhe com ancia do escapulário.

«Ainda não, Vasco; ainda não! É outra cousa só que tenho a pedir-te. Nunca mais esta boca se abrirá para te importunar: nunca mais ... Épela salvação de nossa mãe que t'o peço.» O cisterciense creu descubrir no gesto e na linguagem de sua irman os signaes de um espirito alienado. A impaciecia ou a contradicção, irritando-a, podiam apressar uma crise que destruísse o fructo de um plano que suppunha não só exequível, mas excellen tem ente calculado. Assim, apertando-lhe entre as suas as mãos regeladas, que erguera supplicante para elle, respondeu :

«Que podes tu pedir-me em nome de nossa mãe, que eu te não faça, Beatriz ?» «Eu sei!... Queres tu jurar-m'o?» A esta pergunta, o frade cravou nella os olhos. Hesitava.

Houve um momento de silencio.

«Jura-m'o, jura-m'o»Esta exclamação, flente e frouxa, dir-se-hia a de um espirito que ao abandonar as prisões do corpo, envia ao mundo o adeus suspiroso da despedida.

«Pois jurarei, minha irman. Mas emfim...» Beatriz soltou as mãos d'entre as de Fr. Vasco e, pondo o dedo na boca, desprendeu da cabeceira o crucifixo de Fr. Lonrenço. Depois, como reanimada por súbita energia, apertou a dextra de seu irmão e, puxando-a para si, fez-lh'a pôr sobre a imagem.

«Estás satisfeita?» -- disse o monge, que cedera sem resistência.

«Juras?» -- perguntou de novo Beatriz.

«Juro. Mas o que juro eu?» «Oh, Vasco, Vasco!-- dizia ella, cubrindo de beijos e de lagrymas a mão que o cisterciense tinha sobre a cruz. -- Mal sabes que bem me fizeste !» «Não te entendo... Que juramento foi este que exigiste de mim?» «O esquecimento de uma grande injuria ...

O perdão desse que tanto amei... É o que te pedi em nome de nossa mãe; de nossa mãe que me chama do céu.» «Não me digas isso que me enlouqueces! - bradou o frade, esquecendo no impeto do horror e da colera o estado da infeliz, e affastando a mão de cima da imagem. -- Se a morte viesse, que não ha-de vir, cortar em flor a minha derradeira esperança, nunca eu perdoaria a esse homem, que fora o teu assassino. Não me peças tal Beatriz; porque não sabes o que pedes!» «Sei-- replicou a donzella, com uma serenidade e firmeza que contrastavam com o anterior abatimento. -- Debalde retiras a mão de cima da imagem sacrosancta do Salvador. Elle recebeu o juramento que fizeste; elle que nos ensinou o perdão...» «E o legado de meu pae? E a minha esperança querida, alimentada com a substancia mais intima desta alma, enredada nas fibras deste coração, sonhada nas dolorosas vigilias de noites e noites; o pensamento que devorou todos os outros, que me abrangeu a existencia para a nutrir do seu fel? Sacrifico-o á honra; sacrifico-o ao teu futuro repouso; mas só por esse preço o vendo. Aliás... oh, bem vês que é preciso sangue; mais que isso, até! ... Sei o que são os remorsos do assassino; sei-o, Beatriz; mas acceitá-los-hei sem recuar...» «E os do perjuro tambem, Vasco? Fez-te o ódio esquecer de que linhagem vens? Absolveu-te esse habito da lealdade de cavalleiro, do sancto temor de christão? Sobre a cruz juraste a uma pobre mulher executar a sua pretensão derradeira. Fora impio e vil enganá-la...» O frade comprimiu a fronte com uma das mãos, como buscando conter o tumulto das paixões que o agitavam e estendeu a outra para sua irman com gesto solemne:

«Basta! Não serei impio nem vil... Mas tu viverás, e ai delie se a sua alma ignora o que é o arrependimento ...» «Meu Deus, meu Deus ! -- murmurou Beatriz.

-- A tua misericórdia é infinita. Salvei-o.. . salvei meu irmão... Agora posso morrer!» E tentava beijar o crucifixo; mas naquelle extremo esforço exhauria todo o alento que lhe ministrava uma exaltação generosa. A cabeça pendeu-Ihe mortal, as pálpebras cerraram-se-lhe lentamente, e cahiu num dos longos espasmos em que só o bater das arterias indicava a presença da vida.

Doloroso espectáculo era o dessa mulher desfallecida e desse erecto e alto vulto monástico, cujo rosto, firmado entre o poUegar e o indico da mão esquerda, se inclinava para a terra; cujos olhos cavos e scintillantes se cravaram naquellas faces pallidas; cujos dedos, emfim, inquiriam, com mentida placidez, nas pulsações do coração da desgraçada os vestigios da vida.

Em delíquios iguaes a este havia Fr. Vasco visto mais de uma vez Beatriz submersa, e depois reanimar-se, como se no meio de taes crises a natureza cobrasse novas forças para resistir. Apesar de a ter achado excessivamente abatida pela febre que a roía, o monge confiava no vigor juvenil de sua irman. Inquretava-o, porém, vivamente uma idéa. Esta situação podia prolongar-se, e chegar o momento fatal em que punha as derradeiras esperanças, antes de Beatriz tornar a si. Nesse presupposto, como sair da situação difficultosa que elle proprio creara?Assim ficou embrenhado nas suas cogitações.

Os instantes, os minutos, as horas passavam.

Não o sabia.

E a tarde era longa; mas o dia escoava-se como o fio d'agua que goteja, goteja, goteja na fenda da rocha, e perdia-se na immensidade do que foi, o nada a que chamam passado.

O sol começava, emfim, a mergulhar-se na orla dourada no horisonte. O monge, cujo corpo, cujo olhar, cujo gesto pareciam de estatua, creu sentir bater com mais força o coração de Beatriz, e que o sangue, refluindo ás faces, lh'as tingia de rubor.

Tingia-lh'as um raio derradeiro do sol, que vinha pelos vidros rubros da janella brincar ridente no rosto da moribunda.

Mas o frade não se enganara inteiramente nas suas suspeitas. Beatriz, entreabrindo os olhos, parecia voltar a si. Um raio de alegria, semelhante ao do sol que brincava tremulo, passou também subitamente na alma de Vasco.

Mas o raio do sol não tardou a alongar-se fugitivo daquellas faces pallidas. Bem como elle, o da alegria vacillou, esmoreceu e apagou-se na alma tenebrosa e cansada do cisterciense.

Em logar delles, ficou só a luz de uma lampadasinha, que ardia diante da imagem de Nossa Senhora, sobre o bufete onde o monge posera as rosas destinadas a Beatriz.

Na claridade duvidosa do crepusculo essa lâmpada produzia o effeito que produziria pendente na abobada de um carneiro, onde por algumas fisgas do pavimento penetrasse frouxo o tenue dia que em si consente uma igreja gothica.

«Vasco!-- murmurou de novo Beatriz.-- Porque apagaste a lampada de Nossa Penhora? Para onde foste? Porque fugiste da tua pobre irman?» «A lampada?! Não vês como arde?! Eu?!

Eu não estou aqui?» «Oh, fazes bem; não te vás... Mas está tão escuro tudo! Não te vejo, nem o reluzir da lâmpada, nem o clarão da janella...» «Da janella! Como has de ver a claridade, se é quasi noite fechada? Vamos; estás melhor. Não é assim? Isto passou ...» Mas os olhos de Beatriz desmesuradamente abertos revolviam-se-lhe nas orbitas.

Não o deixou acabar. Um desses gemidos em que se concentram todas as angustias; um desses gemidos d'alma que dá o primeiro arranco para abandonar o corpo; um desses gemidos que vem cahir-nos sobre o coração e esmagà-lo rompera do seio de sua irman.

«Ah! A noite; a noite! Não tarda; elle não tarda ahi!» Estas phrases incompletas explicavam esse gemido.

Os designios insensatos do monge haviam acabado de devorar a existência de Beatriz.

Sentia-se fenecer. Um esforço sublime de amor fraterno a fizera viver, falar, sorrir no meio dos trances mortaes, até obter delle o juramento do perdão. Exhausta já, o gemido que arrancara fora a expressão da idéa fatal que as palavras do cisterciense lhe avivavam barbaramente no espirito. Gomo as da bestaféra no circo romano, as garras dessa idéatigre afíbgavam, emfim, os últimos alentos no coração da martyr.

O moço frade fitou os olhos espavoridos naquelies olhos que já não o viam. O turvo delles revelava-lhe finalmente em toda a nudez a horrível verdade. Quiz falar e não pôde.

Tambem Beatriz já não podia. Tinha os lábios cerrados, e pelos cantos da boca borbulhava-lhe escuma sanguinolenta.

Em que lingua haveria phrases para descrever os ceilios de dor, de remorsos, de blasphemia, de terror, de desesperação que nesse instante remoinhou, como num sorvedouro, na alma attribulada do monge? O furacão que devasta, o raio que fulmina, não ha pincéis nem cores que possam estampá-los na tela.

O primeiro impeto de Vasco fora voar a pedir soccorro. Mas como abandonar sua irman expirante? E de que serviriam soccorros humanos? Tinha visto muitas vezes nos campos de batalha o aspecto da morte, para bem a conhecer. Aquélle gesto transtornado bastava a dar em terra com a mais robusta esperança.

Alçou então os olhos, como buscando o céu. Só um milagre poderia, de feito, salvá-la.

Este instincto piedoso trouxe á alma do monge o único refrigerio que resta a uma affiicção mais profunda que a energia do soffrimento humano. Apesar dos seus desvarios, Vasco nunca deixara inteiramente de crer na misericórdia de Deus.

Das mãos de Beatriz tombara o crucifixo; esse memento do único amigo que elle tivera no mundo; dp seu segundo pae, cujo vulto sereno e sancto lhe surgia agora no espirito cercado de saudades.

As trevas tinham-se de todo cerrado; mas a lâmpada da Virgem illuminava o aposento.

Da imagem intima de Fr. Lourenço o moço cisterciense volveu a attenção para o crucifixo e para a effigie da Mãe de Deus. No cimo do Golgotha houvera uma dor mais profunda que a sua. É maior o amor de mãe que o de irmão, e o patíbulo é um leito bem duro para morrer!

O pobre frade cahiu de joelhos com a fronte encostada á mão pendente e insensível de sua irman -- e desatou a chorar.

E a procella que se lhe erguera no coração ia pouco a pouco declinando, e como que adormecia num pélago de tristeza.

Então pôde esquecer tudo, para só se lembrar de que alli havia um sacerdote ao pé de uma mulher na agonia.

Curvado sobre o leito e proferindo em meia voz as palavras solemnes de consolo e de esperança que a igreja consagrou para suavisar a hora tremenda do passamento, Fr. Vasco encostara aos lábios brancos da moribunda o symbolo da salvação.

«Oh minha irman, minha irman! -- bradou elle, aproximando mais o rosto da face já Hvida da agonisante, apenas acabou os ritos do seu ministério. -- O Salvador abre-te os braços: lança-te confiada nelles!» Semelhante á luz que, no momento de apagar-se, despede um clarão e se extingue, Beatriz, que pareceu ouvi-lo, abriu os olhos, fitou-os successivamente em Fr. Vasco e no crucifixo e, fazendo um derradeiro e inútil esforço para solevantar a fronte, murmurou com voz truncada:

«O perdão... o juramento!» E os braços, que alçara naquelle impulso final, cahiram-lhe mortaes sobre a cruz. Os lábios agitaram-se-lhe por alguns momentos sem que podessem articular som algum. Depois ficou tranquilla. Havia expirado.

As palavras que Beatriz proferira no ultimo arranco zumbiram por largo espaço nos ouvidos do monge, que, immovel, tinha pregados no cadáver os olhos, d'onde manavam as lagrymas em fio. Mas, no tumulto de sentimentos que se lhe revolviam lá dentro, a intelligencia fez de súbito ao coraçiio uma terrivel pergunta. Era o facho que se atirava ás trevas de uma caverna.

«Quem a matou?» «Elle e eu!» As lagrymas seccaram-se-lhe. Á amargura de affectuosa saudade succedera o fel acre e corrosivo do ódio e do remorso.

O monge atirou-se ao chão como doudo e rolou-se pelo pavimento, rugindo e arrancando punhados de cabellos.

Depois calou-se: pôs-se em pé taciturno e começou a andar ao redor do aposento. Havia naquella figura monástica, naquelle gesto, naquelle movimento circular o. que quer que era monstruoso, phantastico, impossivel.

Quando passava pelo cadáver e pelo crucifixo, que tombara outra .vez para o lado disso que fora Beatriz, ou pela imagem da Virgem, o frade cerrava as pálpebras involuntariamente.

Eram tres refutações incontrastaveis dos pensamentos sinistros que lhe golfavam na alma. Não queria; não podia escutá-las.

A claridade da lampada batia, porém, de soslaio na porta do aposento, e no corredor immediato reinava escuridão completa. Ouviam-se as passadas ligeiras e incertas do monge no meio do profundo silencio.

De repente Fr. Vasco parou e pôs-se a olhar espantado, cerrando os punhos, curvando os braços e encolhendo a cabeça entre os hombros, como o adibe no sarçal d'Africa ao descubrir inesperada presa. Era que no limiar da porta estava um vulto embrulhado num ferragoulo escuro.

«Vem, assassino! -- gritou o cisterciense, cuja imaginação enferma não via a impossibilidade de Fernando Affbnso chegar assim desacompanhado da cuvilheira. -- Vem sem susto ! Prende-me o braço aquella cruz e aquelle cadáver. Enganou-me a esperança de uma reparação; a ti a de deleites infames...

Ambos enganados! Vê-la alli? Era ella! Está morta... morta... morta!» E, lançando-se ao vulto, buscava-lhe a mao debaixo das pregas do manto. Apenas pôde travar delia, arrastou-o para o pé do catre com força sobrehumana.

Mas o vulto, que o seguira sem resistencia, desembuçou-se, e Vasco, affirmando-se-lhe no rosto, largou essa mão que apertava e recuou attonilo.

Era D. João d'Ornellas.

XXIII

O ANJO MÁU

D'outro cabo,

Vemos que faz o diabo

Suas cousas muyto bem.

A. R. Chiado -- Cart.

O abbade de Alcobaça não pareceu dar ás palavras de Vasco a interpretação natural.

Dir-se-hia que o prelado tomara o irapeto do monge apenas como indicio de uma situação dolorosa e extraordinária. Parado por alguns instantes á entrada do aposento, antes de apparecer ao seu confrade, experimentara um arrepio passageiro, percebendo num relanceiar d'olhos qual era o inesperado e triste espectaculo que viera presenceiar. Tinha-se depois deixado conduzir sem opposiçãó até ao pé do cadáver de Beatriz, não só porque no estado de demência em que suppunha e, até certo ponto, estava Fr. Vasco, a resistencia somente serviria de lhe excitar as furias, mas tambem porque o bom do prelado trazia o espirito tão arrobado de doçura e placidez que, se o porteiro Fr. Julião ou outro subdito seu, ainda mais somenos, quizesse alevantar-lhe a grimpa, elle o teria tolerado com inteira equanimidade philosophica, ou antes com perfeita abnegação evangélica. O motivo deste desaffogo d'animo do sancto homem de Deus póde o leitor suspeitar qual seria, e se não o suspeita em breve discurso lh'o exporemos aqui.

Apenas a procissão de Corpus se recolhera á sé, D. João d'Ornellas, a quem o exercicio e o suor, que largamente desprendera através da atoucinhada pelle, tinham despertado com extrema energia a habitual appetencia, marchara para a estudaria a passo accelerado á frente dos seus frades, com grande incommodo do reitor, cujo não menos sancto aífecto á solida pitança era combatido pelas dores agudíssimas de inveterada podagra. Além das apertadas exigências do próprio estomago, o reverendo capitão-mór de Alcobaça lembrava-se de que havia convidado a jantar o prior dos dominicos e o guardião dos franciscanos e de que a hora aprasada não tardaria a bater, Por isso deixara o pobre do reitor a morder os beiços e bufar a cada topada que dava nos seixos das malgradadas ruas, e só moderara o impeto locomotivo quando vira abrir de par em par a porta do collegio de S, Paulo, juncto da qual e perfilado com ella, o porteiro Fr. Julião ia fazendo gradualmente eclipsar na penumbra da grenha revolta o seu rosto rechonchudo e arrebolado, na descensão da fronte pela ecliptica de uma profunda reverencia.

Depois da volta á estudaria passara apenas meia hora, que o chefe dos monges brancos aproveitara em commentar com os reverendos prior dominico e guardião franciscano o caso da tia Domingas, caso que fizera grande ruído e em que por toda a parte se falava, quando fora advertido de que a mesa abbacial estava servida e de que o reitor o esperava e aos seus respeitaveis hospedes para fazer as honras da casa, depois de haver devorado á pressa com os ledores, estudantes e mais fradaria do collegio a simples mas reforçada pitança monachal no refeitório commum. A fragrância do verdadeiro jardim monástico, de um bufete vergando sob o peso de substanciosas e picantes iguarias, que acirrava ainda mais o espicaçado appetite de sua reverendíssima e que o arrebatara numa especie de extasi interior, não lhe impedira o valer- se daquelle ensejo para inculcar as suas doutrinas de severa austeridade. O estomachal cozido, o succulento assado, as irritantes conservas, os pastelões indigestos, tudo lhe ministrava Ihemas de profundas reflexões acerca da vaidade e do transitório das delicias mundanas, transitório cuja demonstração practica eram o mastigar e deglutir vertiginoso dos tres reverendos, Ao abrir uma empada, que, puxando-a sofregamente para si, comparara ao sepulchro dealbado do evangelho, tinha-se espraiado em recordações saudosas dos bons tempos nos quaes, companheiro do reitor no noviciado, podia livremente ceder ás suas propensões para a sobriedade. Cada copa de vinho que virara fora seguida de uma ou outra allusão aos antigos padres do ermo, que, alimentando-se de hervas e raizes e saciando-se no arroio do valle, tinham chegado, não só ao ápice da sanctidade, mas também a velhice robusta e dilatada. Os doces, ou confeitos, como então lhes chamavam, servidos ao pospasto, haviam dado materia ás zelosas invectivas do apostólico varão contra a desenfreiada cubica de venezianos e genoveses, que abarrotavam a Europa de assucar, transportado de Suez a Alexandria e d'alli, nos navios daquellas opulentas republicas, aos mercados do occidente, sem temor das censuras canónicas contra o commercio com os infiéis.

Nesta parte do assucar o abbade fora um monstro de eloquência, e houvera um momento em que pelo tortuoso e estreito espiraculo que as trouxas d'ovos deixavam nas fauces dos seus dous commensaes (perfeitamente accordes com elle em opiniões austeras), os applausos tinham prorompido impetuosos. O lauto jantar terminara, emfim, por uma peroração apologetica, em que D. João d'Ornellas demonstrara, a bem dizer mathematicamente, que, se o vão esplendor, os apparatos mundanaes, as papazanas e comezainas alastravam d'espinhos a carreira da sua vida mystica, era ao cumprimento de um dever, ao desempenho das rigorosas obrigações que lho impunha o seu caracter de alcaidemór, fronteiro, e rico-homem de Portugal, que elle sacrificava as inclinações á humildade, á singeleza e á abstinencia que constituíam o âmago da sua indole. O venerável prelado concluirá com uma espécie de parenese aos circumstantes sobre os perigos que corriam as pessoas religiosas em acceitarem cargos ecclesiasticos ou civis das mãos dos principes, como lhe succedera a elle, antigo esmoler d'elrei D. Fernando, o que mais tarde ou mais cedo nâo podia deixar de acarretar graves tropeços ao progresso da perfeição espiritual.

Assim, o abbade, ao passo que constrangera ao silencio as clamorosas exigências do próprio estomago, edificara os seus hospedes e sobretudo o reitor, o qual escutava com as lagrymas nos olhos as piedosas reminiscências da juventude que evocara o reverendo prelado.

Satanaz, que também tem uma providencia a seu modo, não tardara a remunerar D. João d'Ornellas da longa ironia em que aspergira com a agua lustral da mortificação as delicias da sensualidade.

Pede o rigor da historia que digamos aqui uma grande verdade. Os commensaes do chefe cisterciense abundavam absolutamente nas suas doutrinas, e por isso haviam mostrado resignação heroica, ajudando-o a aguentar a cruz de martyrio que sobre elle pesava.

Repletos como a giboia que devorou o novilho dos pampas americanos, tinham depois seguido á risca o exemplo do seu amphytrião, refastelando-se nas respectivas poltronas, quando os esophagos, ameaçados de bestial invasão, lhes começavam já a clamar -- basta ! - e as linguas lhes tartamudeiavam, e as pálpebras lhes vendavam e desvendavam successivamente o iris, e os estômagos prominentes lhes arfavam com um movimento peristaltico demasiado sensivel. Esse repouso mystico durara, porém, breves instantes. O abbade fora subitamente despertado da deliciosa somnolencia do chylo pela chegada de Fr. Julião, annunciando a presença na estudaria do antigo sergente delia, o truão d'elrei, que pretendia logo falar com sua reverendíssima. A esta nova o bom do monge dera involuntariamente um pulo e, com vénia dos hospedes, correra para o sumptuoso aposento a que modestamente chamava a sua cella, e ahi se fechara com Alie por largo espaço. Depois o mouro, sem se demorar, sem attender Fr. Julião, que, rebentando de curiosidade, procuravii retê-lo, saíra pela portaria fora e, em vez de descer para S. Martinho, se dirigira para o lado de Sanctiago e d'alli, pela rua de S. Thomé, á igreja de Sancta Marinha, parando só perto delia, juncto a uma casa de decente apparencia, para examinar, antes de bater á porta, se lhe teria saltado da manga uma carta que o abbade escrevera á pressa e lhe dera com a recommendação de a entregar sem demora, Voltando ao refeitorio abbacial, onde o reitor, não sabemos como, travara com o prior dos dominicos uma assanhada questão acerca do nominalismo e do realismo de S. Thomás e de Scoto, em que os atquis e os evgos se cruzavam, topavam, refrangiam e encambuIhavam nos ares, como tiros espessos de acceso combate, D. João d'Orne]las parecia meditabundo e, despedindo-se dos hospedes, com pretexto de ter de occupar-se naquella mesma noite de graves negócios da sua ordem, safra ao anoitecer, sósinho e embrulhado no ferragoulo escuro, em busca de Fr. Vasco. Tinha a certeza de o encontrar na rua de D, Mafalda. Chegado alli, dirigira-se á escada de mestre Barlholomeu e, subindo dous ou tres lanços, fora achar aberta a porta da morada de Beatriz. Ficara admirado; mas, entrando pé ante pé, enxergara quasi imperceptível claridade através do corredor que dizia para a camara e, enfiando por elle, dera com o melancholico espectáculo que essa camará offerecia. Depois de observar e reflectir por algum tempo, resolvera-se, emfim, a apparecer ao moço cisterciense. Os motivos que alli o traziam eram assas graves para não retroceder ante uma scena de morte.

Vasco recuara attonito ao descubrir quem era a personagem que viera testemunhar a sua agonia. Á exaltação momentanea succedera o espanto, e ao espanto a reacção do desalento. Por alguns instantes os dous monges ficaram calados, olhando fito um para o outro. Sentimentos contrários assaltavam ao mesmo tempo o coração do moço cisterciense. A saudade, o remorso, a promessa que sua irman lhe arrancara, o receio de que Fernando Afíbnso chegasse, o que o constrangeria a patenteiar o segredo dos seus malfadados desígnios, o impensado apparecimento de D. João d'Ornellas; tudo lhe formava no seio dilacerado pela dor um cahos medonho.

O abbade, esse pensava só em como lançaria no meio daquella scena triste e solemne a idéa . ferozmente risonha de que estava possuido. Assim, ambos, com a hesitação pintada no H-osto, se conservaram mudos. Foi Fr. Vasco o primeiro que quebrou o silencio.

«Dom abbade -- disse o monge, procurando assumir apparenc.ias de tranquillidade : -- desculpae a violência de um insensato ! ... Como poderia eu esperar-vos neste momento? O que vedes vos diz que o ultimo clarão de esperança se apagou nesta alma.

Deus amaldicçoou-me, porque lhe voltei as costas correndo atraz da vingança.

O raio que esperavamos fazer cahir sobre. um pérfido fulminoume só a mira. Elle ficará illeso... Paciência!

Resta-me pedir-vos um ultimo favor... os meios de dar este cadáver á terra.» A voz affogada do cisterciense apenas murmurara as derradeiras palavras. D. João d'Ornellas pegou-lhe na mão afíectuosamente.

«Vasco, o espectáculo que tenho ante mim é inesperado e tremendo, e a magua que elle me causa sincera e profunda. Gomprehendo essa dor pausada e tranquilla das almas fortes. Não irei amargurar-te mais o coração repetindo as consolações impertinentes que a estupidez applica ás desgraças irreparáveis, como o physico as prescripções da sua van sciencia ao enfermo que bem sabe não pôde viver. Não ! Nem a resignação nem o consolo são possiveis para ti neste momento. Padece!

E se o gemer e o chorar te refrigeram, chora e geme sem receio diante de uma testemunha indulgente ... Mas a desesperação, Vasco ? !

Isto é que não é de homem. Não digas que o raio cahiu só sobre ti. Deve cahir também sobre elle, irresistivel, destruidor. Temos a vingar agora, além das nossas injurias, a morte da desgraçada.» «Oh! -- exclamou o mancebo -- não me faleis nisso diante destes restos queridos ! ...

De hoje avante a vingança é para mim impossivel.» «Inevitavel, queres dizer -- interrompeu D.

João d'Ornellas, deslisando imperceptivel sorriso.-- É justamente esse cadáver que te brada por ella... Bem sei que a tua alma tem vacillado e descrido, e o teu ódio esfriado. Ha muito que tão leio nas expressões e no gesto.

Porque, Vasco? Tardei? Antes a tardança, que o vibrar em vão o golpe. Mas agora asseguro-te que não descerá debalde. Amanhan ...» «Enganaes-vos, reverendo domno! Nem vacillei, nem descri. O meu odio é ainda acerbo e vivaz. Desejos e esperanças é que me deixaram. Sacrifiquei-os á piedade fraterna, em juramento solemne...» «Que dizes, monge?! -- bradou o prelado, enrugando a testa. -- Quem poderia constranger-te a esse absurdo juramento?» «Minha irman ... minha pobre irman . . Dei-o sobre aquelle crucifixo. Não soube, talvez, o que fiz; mas o que está feito está feito.

Não posso dizer-vos mais nada ... Não me entenderieis!» Vasco tremia de que o segredo fatal lhe escapasse. No meio da sua amargura, repugnava-lhe a humilhante idéa de se confessar desleal ao pacto celebrado entre ambos^ Mas ou o abbade sabia mais do que o mancebo suppunha, ou, attento só a combater aquella estranha resolução, que empecia os seus desígnios, não curava de lhe indagar os verdadeiros motivos. Fosse o que fosse, D. João d'Ornellas proseguiu:

«E as nossas mutuas promessas? Queres illudir as tuas no momento em que as minhas vão ser cumpridas? Sabe que para t'o dizer vim aqui: sabe que esse homem que te roubou pae e irman está na borda de um abysmo; sabe que para esmagarmos a vibora basta-nos erguer a planta ! ... Triumphámos ! E é neste momento que recuas, porque, ainda na ultima hora, uma desgraçada não pôde esquecer vergonhosos amores ...» Apontando para o leito, Fr. Vasco interrompeu-o. Pintavam-se-lhe no olhar desvairado a indignação, e ao mesmo tempo uma espécie de terror.

«Domno de Alcobaça ! ... Ao menos respeitae um cadaver!» «Sim, respeitemos os mortos! Tens razão.

Passei alem da meta... Não indagarei porque tão facilmente admittiste essa idóa insensata.

Quero tambem acreditar que ura sentimento generoso a puro a impelliu a exigir tal juramento. Mas deves tu cumpri-lo? O protesto de punir o que lançou teu pae no tumulo e de apagar a mancha do teu nome não foi mais solemne? Não são mais antigas as promessas que me fizeste a mim? A noite em que me dizias -- alma e corpo, dou-vos tudo -- foi, se bem me recordo, um pouco anterior a esta...

Renega-se assim do passado, Vasco? Ou é que a retribuição do que tenho practicado por amor de ti deve ser a ingratidão e a covardia?

«Não sou ingrato nem covarde -- interrompeu de novo o mancebo: -- mas as ultimas palavras de minha irman estamparam-se aqui, no coração! Lá no céu, aonde ella subiu, e onde nosso pae acolheu no seio a sua infeliz filha, não existem odios... Que importam aos bemaventurados as vinganças da terra?».

«Importam-me a mim -- bradou o violento sacerdote, em cujo animo, irritado pela teimosa resistência do mancebo, rebentara, emfim, impetuosa a cólera: -- importam-te a ti, que, sem vingança, ficarás deshonrado no mundo; deshonrado, se eu disser... e porque não o direi? -- «este homem, que podia desaggravar-se de uma dessas affrontas que só com sangue se lavam, preferiu negociar não sei o que, ao pé do cadaver de sua irman, com o que a infamara ...» «Que dizeis, domno de Alcobaça ? !» -- interrompeu Fr. Vasco, enfiado e tremulo.

«Desleal! Sei tudo -- replicou o prelado.-- Trahias-me; mas Deus ou o demónio torceu-te os designios. Ha mais um cadáver a dar á terra, o da tua mensageira.» «Oh meu Deus -- exclamou o moço cisterciense, cujo terror chegara ao ultimo auge. -- Domingas ...» «É morta; morta violentamente á Porta-doferro. Por quem? Dizem que era feiticeira, e que a affogou Satanaz ... Ignorantes! As pisaduras indicavam os pés de um cavallo ... Atropelou-a o malvado. Adivinha-o o meu ódio! ...

Era que elle corria; corria á rédea solta, não para vir receber o teu ridiculo perdão, mas para ir fazer dos paços do seu rei e senhor um torpe prostibulo ...» O frade, cujos olhos chammejavam com ardor furibundo, foi interrompido pelo mancebo, que, aterrado, lhe cahira aos pés. A situação de Fr.

Vasco era daquellas que não se descrevem.

Esmagava- o. Gomo o corpo, a sua alma dera em terra, e os seus labios só poderam murmurar:

«Piedade!» A postura e o gesto do malaventurado tiveram a virtude de acalmar a furia do prelado.

Era dó? Não. Tinhara-lhe simplesmente avivado na imaginativa o quadro de um villão dos seus coutos que, mezes antes, mandara enforcar, e que assim de joelhos lhe pedia a vida. Aquelle aspecto flente e transtornado nunca lhe vinha á lembrança, que não lhe provocasse um sentimento que mata a cólera -- a vontade de sorrir ...

Reprimiu, todavia, esta, curvando-se para erguer o moço cisterciense e dizendo-lhe com apparente doçura:

« Vamos, Vasco ! Posso esquecer um momento de fraqueza: a injuria é o que nunca esqueço.

Não te perguntei com que intuito buscavas attrahir aqui o nosso commum inimigo. Mas é forçoso que te fale uma linguagem severa. Se invoquei o pacto que nos liga, não foi como um direito próprio ; invoquei-o em nome do teu dever contra o teu coração. Semelhante ao perdulário, queres desbaratar em generosidade equivoca o cabedal que pertence a antigos credores? Isso não é honesto. Queres ser máu filho, máu amigo, deixares uma nódoa d'infamia na tua linhagem, só porque em um momento de dor e delirio proferiste, dizes tu, não sei que juramento insensato, que phrase sem significação, como as palavras incoherentes do somnambulo ou do febricitante? Isso não é virtude. Lembra-te, monge, de que foste cavalleiro e de que a irman do cavalieiro foi prostituida e abandonada, como a filha do peSo mais vil.

Lembra-te de Vasqueanes, vagando pelo solar solitário, onde a desolação se assentara, e bradando pouco antes de expirar -- «vinga-me, Vasco; vinga-me!» -- Lembra-te da noite em que só te foi dado beijar a face livida de teu pae encerrado entre as quatro taboas de uma tumba. O quadro que me fizeste dessa noite bem presente o tenho. Esquecê-lo-hias? ...

Vasco, tu não podes perdoar.» O moço cisterciense, que, em pé, com a cabeça inclinada sobre o escapulário, os braços pendentes e as mãos cruzadas uma por cima da outra, parecia vergar sobre o peso da aftiicção, ergueu neste momento a fronte. Os seus olhos despediram um brilho furtivo e tornaram a abaixar-se. O abbade riu então interiormente; porque nesse clarão passageiro vira, emfim, surgir a idéa vingativa e negra, que travava lucta com a idéa generosa e pia.

E a victoria da paixão má era certa. O prelado, que não ignorava uma única circumstancia da existência passada do monge, ia ser mais sincero do que elle e revelar-lhe também o segredo que guardara; revelação terrível, que devia avivar-lhe a sede de sangue, torná-lo implacável e anniquilar de golpe as intenções generosas que pareciam dominá-lo. Como hábil general, D. João d'Ornellas, constrangido a inesperado combate, reservara para o momento opportmio o ataque decisivo.

Fitando a vista no mancebo e semelhante ao animal felino, que, ao recuar e agachar-se para colher a presa de salto, parece comprazer-se de antemão com o prospecto de lhe palpitarem em breve as carnes semivivas nas garras e nas presas, o abbade ficou por alguns instantes quedo e mudo. As rugas da testa ora se lhe dilatavam, ora se lhe contrahiam, e nos lábios adejava-lhe vago sorriso. Finalmente pôs a larga mão sobre o braço do monge e disse, apertando-lh'o com força:

«Escuta, Vasco! Se eu, só por mim, podesse fazer cahir sobre a cabeça do máu o peso da sua iniquidade, não seria tão bárbaro que quizesse accrescentar affiicção ao afflicto; que, nesta hora de dor e saudade, viesse incitar paixões acalmadas...» D. João d'Ornellas fez uma pausa e, pondo a esquerda sobre a fronte, proseguiu:

«Mas seria impossivel dizer-te agora tudo o que está aqui dentro ... Paixões? ! Menti, monge de Cister: menti I E' ao sentimento do dever, da justiça, da piedade filial que o teu prelado, o teu amigo te revoca. Oh Vasco! ... Receias acaso que te accuse a consciencia quando a tua voz, funebre como o dobrar por finado, for inesperada recordar ao impio as negruras da sua vida e annunciar-lhe a punição? -- quando, dos braços de mulher sem pudor, o teu brado o arrastar indefeso, cuberto de opprobrio e de antemão condemnado, aos pés do seu bemfeitor, do seu rei, cujos paços prostituiu? Repara bem! Aquelle cadáver que alli jaz, o que é?

É o que resta de uma existência que elle esmagou. E para que? Para ir gravar noutra fronte a deshonra. O infame converteu em suppedaneo do vicio o corpo de tua pobre irman, e por cima delle passou sem misericórdia, como para a arrastar á abjecção, passou por cima do corpo de teu pae, affastando-o com o pé para o tumulo. E terás tu misericórdia, tu mancebo, tu a quem sorriam mil esperanças, a quem eram licitas as grandes ambições e que vieste por causa delle sepultar-te numa clausura?...» «Não, abbade d' Alcobaça -- interrompeu o cisterciense, a quem a derradeira phrase do tentador, phrase cujo effeito este calculara, tinha ido fazer vibrar uma corda que até então estivera mudada naquelle concerto de agonias. -- Foi uma vingança implacável, como essa a que me arrastaes: foi o remorso que me vestiu a estamenha: foi o crime de um amor desesperado, e que oxalá Deus apagasse nesta alma, onde sobra o padecer... Oh, o remorso, o remorso! Não sabeis o que isso é!» Por um inveterado habito de hypocrisia, D.

João d'Ornellas volveu os olhos para o tecto, ergueu as mãos postas e murmurou:

«Nem nosso padre S. Bernardo tal permitta ! »> «É -- proseguiu o moco frade com exaltação dolorosa e sem reparar na visagem do abbade: -- é o ferro que nos rasga as entranhas sem tirar logo a vida; 6 o olhar de Jesus ao receber o osculo de Judas; é a voz no Josaphat que ha-de dizer: --ide, precitos.» «Deve ser horroroso -- acudiu o prelado no mesmo tom beato. -- Tens razão: confundia agora os factos que outr'ora me referiste. A idade vai-me fazendo esquecido. Mas não vês, Vasco, a infinita differença do que foi ao que é? Se a justiça divina te condemnou á dura expiação do remorso, é porque commetteste um crime não provocado. Assassinaste Lopo Mendes por te ser preferido e porque não quiz acceitar um duello a todo o trance com um desconhecido. Não era, porém, livre a que amavas, ou fora illudida, deshonrada, trahida, como tua pobre irman? Não estava a união de Lopo Mendes sanctificada perante os altares? Licitamente conduzira elle Leonor, esse formoso anjo que tu adoravas, do seu leito modesto de virgem ao leito voluptuoso do noivado. Sem quebra das leis da terra ou do céu, podia devorar com os olhos aquellas formas nuas, tão suaves e puras, cubri-las de beijos ardentes...» D. João d'Ornellas, que observava o effeito das suas palavras, coadas uma a uma pelos lábios, parou subitamente. A frouxa luz da lâmpada viam-se oscilar rápidas as veias frontaes do desgraçado mancebo: os braços, que pouco a pouco fora estendendo para o abbade, tinha-os hirtos, e os punhos cerrados: as idéas, ruindo a formular-se era vozes, não cabiam nestas. Apenas, por entre o ranger dos dentes, lhe foi dado proferir:

«Oh! ... Podesse eu assassiná-lo outra vez!» Era quasi um falar de ventríloquo.

O prelado recuou alguns passos e, cruzando de chofre os braços sobre o peito, inclinou para traz a cabeça. Dir-se-hia que esse alto vulto se havia solevantado do pavimento.

Pintava-se-lhe no rosto toda a energia da sua alma. Com voz profunda e agitada, bradou:

«Insensato! Perdoavas ao que te offendeu mortalmente, ao destruidor da tua familia, e és implacavel contra o teu rival, o rival de um frade, um pouco de pó ... É a mortalha a odiar a morte!... E porque? Porque esse pó, que tu atiraste para o tumulo, te havia roubado uma aíTeição de mulher! ... Oh consciência timorata, que não ousa quebrar o juramento vão e que me diz -- respeitae os mortos!... -- Pois bem, Vasco: se um absurdo ciúme é quanto te resta dos sentimen* tos de homem, incite-te elle ao des.aggravo, já que os sanctos affectos de familia e o pun^donor de cavalleiro tão alto silencio guardam no teu espirito. Esse resentimento inútil contra um punhado de cinza tem melhor emprego na terra ... A filha de Mem Viegas trahe o morto, como trahiu o vivo.» -- E, abaixando a voz, semelhante á da feiticeira que evoca os espirites do abysmo, accrescentou:

-- «Leonor é hoje a amante de Fernando Affonso; e o seu amor criminoso é que ha de vingar-nos!» A dama de D. Philippa com quem se passara a scena observada por Alie era de feito Leonor. Com atroz pontualidade, D. João d'Ornellas narrou então quanto a este respeito sabia: o que ele próprio por tanto tempo suspeitara e de que, poucas horas antes, fora certificado pela narrativa do truão. As circumstancias obscuras desta intriga amorosa investigou-as e iliustrou-as com o admirável talento de que o ódio o dotava. Era terrivel a exegese do implacável commentador.

Quando acabou, o mancebo, que o escutara sem pestanejar, ficou apparen temente impassivel. Era que a lucta cessara. Estendendo o braço -para o prelado, apertou-lhe a mão e, com um sorrir tal, que D. João d'Ornellas sentiu arrepiarem-se-lhes as carnes, apenas lhe, disse:

«É singular! E agora que ordenaes que eu faça?» Velando a face com as asas radiosas, o anjo da guarda do moço cisterciense fugia espavorido. Uma longa exhalação pareceu desatar-se do céu. Era uma lagryma que o seraphim derramara.

Sem despregar a vista do gesto de Fr. Vasco, onde haviam deixado de repercutir as dolorosas phases da eternidade infernal que para elle passara dentro de poucas horas, D. João d'Ornellas respondeu:

«Agora o que te ordeno é o repouso. Careces delie: e muito. O dia de ámanhan será o mais memorável da tua vida. É um dia de batalha ... Entretanto tomarei a meu cargo os deveres que a natureza e a religião te impõem para com aquella que alli jaz. Beatriz será conduzida ao carneiro de S. Paulo, com todas as pompas fúnebres. Vou enviar quem vele esta noite juncto do corpo de tua desgraçada irman. Volta então ao collegio, e busca, se é possivel, tranquillisar-te. Apenas raiar a aurora, eu serei comtigo: temos muito que falar. Saberás como D. João d'Ornellas quer pagar a sua divida a íi e a elle... Confia em mim, Vasco. Para sarar as chagas cancerosas do leu coração ainda ha na terra bálsamo!» Dizendo isto, apertou ao peito o mancebo, que, estacado no meio do aposento, continuou a olhar fito para elle, sem lhe responder palavra ou fazer o menor gesto, emquanto o prelado se adiantava para o corredor escuro e desapparecia nas trevas.

Passados alguns, instantes, Vasco Ibi-se voltr.ndo vagarosamente, como se despertasse de somno profundo. A claridade da lampada batou-lhe de chapa na fronte, onde scintillaram alguns reflexos de luz. Era o suor frio que lhe corria em bagas.

Quando, naquelle voltar lento, deu com a vista no cadáver de sua irman, encaminhou-se para lá e, curvando- se, como quem dizia um segredo, murmurou:

«A taça encheu-se ... O fel golfa por terra...

É fel e sangue! ... Não póde ser, Beatriz; não póde; não póde! ...» Fosse acaso ou mysterio, neste momento o braço direito da finada descahiu de cima do corpo e assentou sobre o crucifixo, tombado ainda na mesma posição sobre a cama.

Fr. Vasco estendeu devagarinho a mão, pegou no pé da cruz e, gyrando com ella em volta, como o fundibulario com a funda de que vai despedir a pedra, arremessou-a para longe. Os fragmentos da lâmpada voaram em rachas com multiplicado tinir, a imagem da Virgem rolou em pedaços do seu pedestal, e o crucifixo bateu na parede com um som embaçado.

O frade creu ouvir estalar no aposento uma risada descomposta. O luar fugira do céu, e a escuridão era profunda.

Semelhante ao cedro do despenhadeiro, que, estalado pelo furacão, vacilla e pende, até se encostar ao penasco sobranceiro, o corpo hirto do cisterciense foi bater na parede juncto da cabeceira do catre.

Pela visão interna passavam-lhe imagens incoherentes, monstruosas, fugitivas. O cérebro tinha-se-lhe convertido num kaleidoscopo infernal. A alma embotada via, não cogitava. O craneo, parecia-lhe que ora se lhe comprimia, ora se lhe dilatava.

Nesta especie de extasi horrivel passou algum tempo. Uma viva claridade que despontou do corredor escuro, e varias vozes, que também d'aili soavam, vieram de súbito revocá-lo á vida exterior. Deu-lhe um pulo o coração. Postoque exhausto, arredou-se instinctivamente do leito e foi encostar-se ao bufete, onde algumas rosas murchas, a lampada esmigalhada e as imagens feitas pedaços harmonisavam tristemente com essas duas ruinas humanas que jaziam próximas -- um corpo morto e um espirito extincto para a esperança e para o céu.

O vulto arredondado e rubicundo de Fr.

Abril, o sacristão-mór do collegio de S. Paulo, foi o primeiro a surdir do corredor, que quatro ceroferarios illuminavam com a luz de outras tantas tochas. Seguia-se Fr. Julião, suando atracado com uma trouxa descommunal de Ihamas e panos negros, a qual tendia debalde a sustentar contra o reverendo porteiro a lei da gravidade. Alguns sergentes da estudaria, conduzindo as taboas de uma eça, e duas ou tres beguinas, que vinham trajar Beatriz para o noivado do sepulchro, com a sua presença annunciavam ao monge que era tempo de dizer áquelles restos o derradeiro adeus. Com passos vagarosos, mas firmes, o frade passou então por meio da turba, chegou-se a sua irman, e com os beiços tão lividos como os delia deu-ihe um beijo na face. Sem uma lagryma, sem um suspiro, atravessou de novo o aposento, chegou-se ao bufete, pegou nas rosas murchas, metteu-as debaixo do escapulário e saiu. Fr. Abril, Fr. Julião, beguinas e sergentes, todos olhavam para elle com estranha sensação de terror. Havia naquelle vulto, naquelle andar uma inflexibilidade de machina ou de phantasma.

As passadas lentas do cisterciense já não se ouviam, e ainda durava essa espécie de fascinação magnética. Fr. Julião foi quem quebrou o encanto com as seguintes palavras, dietas em meia voz a um sergenle que lhe ficava ao lado:

«Que tal está a minha vista!... Pois não juraria agora que Fr. Vasco tinha a cabeça cheia de brancas! ... Elle que tem o cabello tão preto como esta abovilla de quinze soldos a alna!» Fr. Julião calumniava-se a si próprio. Depois do paladar, o sentido que tinha mais apurado era a vista.

Ha situações em que o espirito, envelhecendo uns poucos d'annos, dentro de alguns momentos exhaure a seiva do viver material e converte em velhice prematura a mocidade.

E O perspicacissimo leitor acreditará seguramente na nossa sinceridade, se lhe dissermos que D. João d'Ornellas, ao chegar á estudaria, não se posera a referir pachorrentamente a Fr. Julião o que se acabava de passar na rua de D. Mafalda. Dera as suas ordens, tanto a Fr. Abril como a elle, e fora encerrar-se na sua cella, onde por mais de uma hora o sentiram passeiar.

D'aqui o assombro do reverendo leigo.

Ainda a observação do porteiro vibrava no espaço, e já a voz aguda de Fr. Abril chirriava:

«Então? Ficam pasmados? Vamos a isto, rapazes.»

XXIV

LATET ANGUIS

Bem sabeis o trelado que nós tomámos por que os feitos de nossos regrnos fossem desembargados por huum termo soo, o qual foi outorizado pela força das leis do Codigo decraradas e outorizadas pt las enteençôes flnaes das grossas de sua final enteençom d'arccursio... e esto quissemos que as conclussões de bartallo que de sobrellas leix do Código ffez que estas sejam autenticadas.

D. João I -- Carta ao Concelho de Lisboa.

Dir-se-hia que a noite em que occorreram na rua de D. Mafalda as scenas descriptas nos dous capítulos antecedentes se composera a exemplo desses trágicos successos. O sol, despenhando-se para o oceano, parecia descer reclinado em coxim immenso de nuvens negras, que se dilatavam no horisonte orladas de fimbria d'ouro arroxeiado. A lua, erguendose entretanto para as alturas do céu, ia velando o fulgor de milhares d'estrellas com o paliido cendal de luz frouxa e melancholica. A rainha da noite subia ao seu throno para d'alli assoberbar a terra; mas a procella, semelhante ao povo indocil, rugia cá em baixo nos mares.

Trepando torvas umas por cima das outras e seguidas de novos grupos que surgiam das ondas, as nuvens assenhoreiavam-se pouco a pouco do espaço, e a sua vanguarda, rareiada pelo luar, tornava logo a cerrar-se. Entretanto, alguns frocos brancos, elevando-se tenues do oriente, tomavam gradualmente vulto e espessura e vinham topar pelo norte e pelo melodia com os bulcões occidentaes. Na sua ascenção continua, os dous exércitos embebiam debaixo de si o chão allumiado do firmamento.

A atmosphera estava tepida e pesada, e os relampagos começavam a fuzilar nos horisontes e substituiam, passageiros mas frequentes, por subitos clarões os raios debeis que o astro, luctando debalde com a escuridão, mandava furtivamente á terra. Os trovões, a principio longinquos, duvidosos como um ruído subterrandeo, começavam a ecchoar nos montes, a reboar uo rio e» emíim, a estalar em volta da cidade, de cujas alturas se descortinava para os lados oppostos do quadrante o serpeiar dos coriscos. Era uma daquellas trovoadas do estio que arrebatam com a sua solemne terribilidade quem as contempla. Fr. Vasco, porém, atravessara por baixo dessa abobada negra, respirando esse ambiente crasso e suffocador, á luz deslumbrante das descargas electricas, sem reparar em nada. Depois, por simples habito ou instincto, tinha-se atirado para cima da enxerga monástica, e ahi, nos braços de um torpor que simulava o somno, jazera insensivel, até que vieram revocá-lo ás dores pungentes da existencia os arreboes da madrugada.

Esta surgira formosa. Um grosso chuveiro dissipara a trovoada, e o ar escaçamente movido impregnava-se de vagos e tenues perfumes. As plantas revivesciam com viço novo, aspirando por todos os poros a humidade da atmosphera e balouçando com movimento apenas perceptível as folhas, em cujos vertices tremiam, semelhantes a perolas soltas, as derradeiras gotinhas de chuva. Era um immenso concerto de sorrisos que soltava a natureza; era uma estrophe magnifica do hymno interminavel entoado pela terra ao Creador, que a povoou de harmonias. Quem observasse as montanhas azuladas ao longe, os campos virentes ao perto e, no meio, o rio adormecido não poderia deixar de sentir essa incerta saudade que parece não ter objecto e que não é mais do que a saudade de Deus.

Ha muitos malaventurados incapazes de comprehenderem a sancta poesia que derrama em nossa alma o espectáculo da natureza, quando ella se ostenta em todo o primor das suas galas: ha outros a quem os interesses e as paixões do mundo paralysam pouco e pouco o senso intimo, destinado a aspirar as voluptuosas emanações que nos vem delia. Estes são mil vezes mais desgraçados; porque se recordam de que para elles houve já esplendores e harmonias e podem medir o vácuo tedioso e desconsolado das trevas e do silencio em que vivem.

Aos primeiros pertencia D. João d'Ornellas, aos segundos Fr. Vasco. Ambos, despertos por cuidados acerbos, tinham-se erguido com o dia; mas o refulgir do sol haviam-no visto só nas faixas de luz que se iam estirando pelo pavimento das suas cellas. Os olhos, esses seguiam-lhes as almas, que não pensavam, de certo, em elevar-se ao céu, acurvadas sob o peso dos mais ruins affectos.

O abbade, medindo o aposento a passos largos, falando, meneiando os braços, cerrar, do os punhos e agitando-os, como o luctador que se amestra para o pugilato da arena, parava de quando em quando e desatava a rir, esfregando as mãos com grande rapidez, antigo habito, que indicava nelle feroz contentamento. Depois, apenas ouviu o sino que chamava ao coro os monges, ledores e collegiaes de S. Paulo, saiu, esperou o reitor na passagem, pediu-lhe ou, para melhor dizer, ordenou-lhe que dispensasse naquelle dia Fr. Vasco das obrigações monásticas e dirigiu-se á cella deste.

O monge estava assentado num dos poiaes de pedra que ladeiavam o vão de uma janella, d'onde, por cima da casaria inferior da cidade e do arrabalde, se descortinava o magnificente panorama do Tejo, por cuja superílcie espelhada deslisavam as velas triangulares dos barcos, e em cuja margem opposta se alevantava o fumo das povoações ainda indistinctas na penumbra dos montes. Com o cotovello encostado ao peitoril e a face firmada na mão aberta, parecia embebido no respirar delicioso da fresquidão matutina e em contemplar o quadro tranquillo e grandioso que tinha ante si. O mesteiral, que, passando pela vizinhança, distinguisse o infeliz mancebo naquella postura repousada, emquanto elle ia começar mais um dos seus dias uniformes de trabalho e privações, exclamaria, por certo, com amargura : -- «Oh, estes frades ! estes frades ! ... Para elles o céu na vida e na morte: para nós o inferno na terra e talvez debaixo della!» É ao menos, assim que o homem costuma julgar a Providencia.

Apenas viu o abbade, Fr. Vasco ergueu-se.

Reparou então o prelado, como Fr. Julião reparara na véspera, que os cabellos do monge se haviam tornado grisalhos. Parecia, comtudo, perfeitamente tranquillo.

Fr. Vasco fez a genuflexão do estylo e, sem dizer palavra, ficou de pé e com a cabeça baixa perante D. João d'Ornellas.

Silencioso como elle, este apertou-lhe o braço e obrigou-o a assentar-se de novo, emquanto também se assentava defronte, no outro poial.

Assim ficaram por algum tempo. Dir-se-hia que, á vista da scena solemne e socegada que d'alli se descubria, ambos elles se tinham engolfado numa espécie de extasi mystico. Mas quem os observasse largo espaço depois, ver-lhes-hia as frontes quasi junctas, as faces incendidas, o niover rápido dos beiços, o diabolico sorrir. Era um quadro simples, mas terrivel, como o da primeira noite em que tinham conversado sósinhos. A luz do quadro é que era diversa : lá a das tochas ; cá a do sol. As trevas dos seus corações eram, porém, identicas.

A manhan ia passando. Quando a sineta da estudaria tocou a refeitorio, ainda os dous frades se conservavam na mesma postura. Eram onze horas. Tinham passado cinco ou seis sem que dessem tino disso.

O abbade pôs-se a escutar e falou por mais alguns instantes com o seu interlocutor. Depois, alevantaram-se ambos, saíram da cella, apertaram a mão um do outro e disseram quasi a uma voz:

«Até lá!» «Até lá!» E cada qual tomou por seu dormitorio.

Na casa de De profundes o moço cisterciense enfileirou-se no préstito da communidade e, entrando com ella no refeitório, foi assentar-se no seu logar. Todos fitaram nelle os olhos. As cans que lhe salpicavam em grande numero o cercilho geravam aquella pasmaceira da fradaria. Sabía-se já que Fr. Vasco perdera sua irman, e á vista de uma dor que taes mudanças causava, endoudecê-lo-hiam com impertinentes consolações, se não fosse o silencio respeitoso que os sanctos preceitos da ordem impunham durante as horas da comida á plebe monástica.

O reitor estava abysmado. Tinha lido vários casos em que a intensidade do terror produzira semelhantes efíeitos; mas que a amargura e a saudade podessera tanto, eis o que nunca nem lera nem pensara.

A compaixão por Fr. Vasco era sincera e geral.

O triste do frade não provou bocado. Para o reitor e para os padres graves isto ainda foi mais monstruoso. Deixar de comer por causa de paixões humanas, embora legitimas, era uma cousa que solinhava pelos fundamentos as austeras tradições de Cister. E a resignação na vontade de Deus? E o desapego das affeições terrenas? Evidentemente Fr. Vasco fazia vacillar o sancto instituto na sua base. Naquellas venerandas cabeças começaram então a dispôr-se os logares communs de uma practica sobre o texto de S. Matheus :

«Quem ama pae e mãe mais do que a mim não é digno de mim.» Haviam de falar-lhe severamente no primeiro ensejo opportuno.

Com a magua misturava-se-lhes no espirito uma pia indignação, vendo sair do refeitorio acogulada e intacta a pitança de Fr.

Vasco.

Entretanto o prelado de Alcobaça descera á igreja, onde se acabava de celebrar missa solemne pela alma de Beatriz. O templo estava adornado com a pompa que elle ordenara. O cadáver, encerrado em custoso ataúde, só á noite devia descer á terra. Depois de ter deixado varias inslrucções para Fr. Abril, D. João d'Ornellas saíra, apenas acompanhado por um irmão leigo. Não tardou este a voltar. Subindo sem detença á cella do reitor, entregou-lhe um bilhete de sua reveren«iissima. TinhaIh'o dado juncto de Sancta Marinha, ao entrar para casa do chanceller e valido d'elrei, o doutor João das Regras. Nesse bilhete annunciava o venerando abbade que não voltaria ao collegio antes da noite, porque o reteriam no paço graves negócios da ordem.

Nesse mesmo dia, pela volta da tarde, passava-se, pouco longe dalli, alguma cousa não absolutamente ; estranha aos successos desta narrativa.

Era no gabinete particular d'elrei, onde já certa noite introduzimos o leitor. Á luz escaca do sol ponente, que, reflexa em angulo obtuso na caiada parede de S. Martinho, coava decomposta pelos vidros corados da janella,via-se assentado ao bufete do meio do aposento um figurão exótico. O dorso, que a prominencia do ventre lhe não permittia dobrar, era largo e espadaúdo, e a cabeça cuberta de grenha hirsuta e alourada, suscitava a ideia de uma pyramide cónica truncada, tal era a altura das camadas de formação terciária que se lhe haviam agglomerado nas faces e ao longo do queixo inferior. Um dos robustos folios que tinham provocado o debate entre micer Percival e João das Regras estava aberto diante do nedio personagem, que ora corria com os olhos o livro aberto, ora escrevia, riscava, tornava a escrever, para apagar de novo e de novo reescrever o que quer que era, num papel já quasi inteiramente cuberto de minutissimo cursivo. Tão engolfado parecia naquelle mister, que só deu tino de si quando, sentindo pesar uma cousa sobre o hombro, volveu a cabeça e viu os dedos de mão pequenina e enrugada, que se lhe arqueiava sobre elle, e ouviu uma voz aflautada que lhe dizia com interrupções de tosse cachetica:

«Usque ad occasum... tux, tux, tux... solis laborabat... eh, eh, eh... ut erueret eum.»«Invenit gratiam servus tuus coram te» -- regogou o vulto barrigudo, forcejando por erguer-se, ao que o outro obstava, carregando-lhe fortemente no hombro.

«Deixae-vos estar, Mem Bugalho: deixaevos estar e continuae.» Era o chanceller, que abrira devagarinho a porta exterior e entrara sem ser presentido.

O outro já o leitor sabe quem é; um nosso conhecido velho.

João das Regras desempenhara a promessa feita ao seu melhor amigo, o abbade, acerca do procurador de Celorico.

A patria, para nos exprimirmos constitucionalmente, reclamara os valiosos serviços de Mem Bugalho. Em rigor, bem sabemos que a patria não sonha jamais nesses negócios.

Mas reclamara. Nós que o dizemos, é que temos razões para isso.

O licenciado Mater Galla não tinha occultado, no dia da sua colera, o minimo item do que lhe havia sido revelado acerca das esperanças e designios da fidalguia. Quando mais não fosse, esse facto bastaria para fundamentar 0$ reclamos da pátria.

Tinha feito um serviço immenso ao seu paiz.

Nos bons governos, o recompensar é um principio tão vital como o punir. João das Regras era inflexivel em ir punindo mansamente, occultamente, os seus adversários e em recompensar francamente os seus amigos.

Subentende-se que os amigos de um grande ministro ipso facto o são da republica. Ora, todo o ministro emquanto não cahe é grande.

Ao menos, estamos persuadidos disso.

Era, portanto, axiomatica a justiça com que o valido dera um tamborete na Torre da Escrivaninha ao honrado Asinipes, com boa quantia e assentamento na casa d'elrei.

Pela sua parte, o procurador mostrara abnegação heroica, sacrificando-se ao bem commum. Acceitara um cargo laborioso, abandonando os seus mais caros interesses em Celorico: uns torrões cubertos de centeio chocho no verão e de caramello magnifico durante o inverno; a terra da sua infância, o lar domestico, o campanario da sua freguezia.

O chanceller, que o empregara a principio na transcripção de varias passagens das Pandectas para seu uso particular, viu-se em breve constrangido a reconhecer que fizera a acquisiçâo de um horroroso latino.

Então associou-o á grande empreza da versão do código de Justiniano. Dentro em pouco, Mem Bugalho pulou em valimento; pulou até chegar a assentar-se juncto ao celebre bufete dos paços de S. Martinho.

Conhecia-se-lhe apenas um sestro: era distrahido, abstracto, esquecido.

Assim, quando trasladava do latim em linguagem alguma lei intrincada do código imperial, de modo tão corrente e limpido que os barbas-grisalhas do conselho d'elrei se nâo cansavam de louvar o primor da versão, jurava e tresjurava que não fora elle, mas João das Regras quem fizera aquella obra excellente. Era escusado demonstrar-lhe o contrario: teimava para diante: teimava com o próprio chanceller. O bom do velho doutor de Pisa ria a perder com estas hallucinações do decretalista.

Havia, porém, um jogo notavel do acaso.

Por tres ou quatro vezes, depois de grandes teimas destas, sua mercê elrei houvera por bem augmentar algumas dezenas de livras na quantia do licenciado Asinipes.

Apesar das suas distracções, Mem Bugalho era homem impagável. Afora não vulgar talento, possuia grandes dotes políticos. Sabia a propósito humilhar-se, arrastar-se. Tomara por divisa o sagrado texto: Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles. Não era nenhum soberbão: por força havia de subir.

Tinha-se curado de certas fogagens de altiveza de animo e d'independencia desde a severa lição que recebera na tavolagem das Portas-do-mar. Agora limitava os seus affectos e ambições a que o deixassem comer. E deixavam; e elle comia» comia, comia.

João das Regras estimava-o muito e desprezava-o profundamente. Implica em termos?

Pois deixem implicar. Arranjem isso como poderem. Esta é a verdade; verdade eterna em relação aos Regras e aos Bugalhos de qualquer epocha e de qualquer paiz.

Todo o Regras tem um Bugalho: alguns têem dous; outros têem trinta.

É conforme.

Nessa manhan recebera uma chave do gabinete particular com ordem precisa de se encerrar alli, para verter o titulo decimo tercio do livro noveno do código do mui excellente e de muitas virtudes imperador Justiniano. O chanceller advertia-o de que pela volta da tarde viria ajudá-lo a concluir aquella ardua tarefa, terminando todavia a carta pelo pleonasmo -- no caso de não estar já concluida, «É celebre ! -- pensava o decretalista, sem mecher sequer os beiços. -- Para que saltar do seteno ao noveno ? Me mellem, se entendo o doutor !» Entendia-se elle a si.

A ardua tarefa tocara, porém» o seu termo quando o chanceller entrou. Ao ouvir-lhe dizer» que continuasse, Mem Bugalho respeitosamente o informou do jubilo inexplicável, do nobre orgulho que sentia, em poder assegurar-lhe que as suas ordens haviam sido religiosamente cumpridas e que a lei Raptores estava trasladada até a ultima linha.

João das Regras pegou no papel e pôs-se a corrê-lo devagar pelos olhos, que de quando em quando volvia para a porta do reposteiro.

A espaços aproximava o nariz do folio aberto, um dos dous magníficos volumes comprados a micer Allighieri, stationarius ou livreiro, como hoje diríamos, de Bolonha. Por duas ou ires vezes o omnipotente legista cravou a unha na margem do papel esgaratujado e rabiscado, e de todas ellas Mem Bugalho sentiu o ar, impellido com força pelas fossas nasaes do chanceller, sibillar-lhe nos ouvidos: uhm, hm !» O erudito Asinipes, a quem não podiam passar por alto esses movimentos oratorios de desapprovação, conscio da propria força em materia de latinidades, embora fossem crespas como as do divino imperador, preparou-se logo para em tudo e por tudo ... ser da opinião do doutor de Pisa.

Este ia a começar as suas observações, e já o licenciado, de pé e com as mãos cruzadas sobre o ventre, dobrava as vértebras do pescoço, inclinando a fronte para escutar o^ oráculo, quando o reposteiro da entrada particular do rei oscillou, e as pregas arrebanhadas ao lado deixaram ver um novo personagem, que vinha interromper, no brotar, o arroio da sa bedoria.

Era D. João I.

«Segundo vejo, -- disse este, entrando com ar festivo -- tractaes graves negocios. Nem tanto lidar, meu doutor; nem tanto lidar !

Agora, justamente, vinha eu lembrar-vos a promessa que me fizestes de assistirdes com D. Leonor da Cunha, a vossa joven esposa, ao sarau desta noite. Não querereis, por certo, que entre as formosuras da corte falte uma das mais bellas...» «Oh senhor, que lisonjeiro que estaes ! -- interrompeu João das Regras, curvando-se profundamente. -- Permitti, porém, que rectifique as vossas reaes palavras. Eu declarei apenas que para mim eram leis immutaveis os menores desejos do meu principe.» «Sabeis vós, chanceller ? -- continuou elrei, seguindo o curso das idéas que naquelle momento o senhoreiavam. -- Ordenei momos, danças, tangeres e folias, cousa acabada e mirífica. Vós mesmo haveis de alisar essa fronte sempre enrugada e sombria. Não quero dizervos nada. Vereis ! » «Para afugentar cuidados, -- replicou o valido, beijando-lhe a mão -- as indulgentes e araoraveis palavras de vossa real senhoria valem mil festins, nos quaes sabeis que nunca me comprazi. Estou velho ...» «Obrigado, doutor, obrigado ! - acudiu o monarcha. -- Mas não tendes razão ! A vida, e sobretudo a vida daquelles em cujos hombros repousa o regimento da republica, é tão inquieta e triste ! Porque, pois, não aproveitaremos alguns curtos instantes de paz e remanso em innocentes passatempos ? Também eu vou sendo velho, dado que os annos não sejam muitos. Debaixo da coroa ainda estes cabellos negrejam; mas a alma sinto-a encanecer. E, todavia, é o meu enlevo ver a mocidade que folga e ri e tripudia em volta de mim, esquecendo-se de que estão diante do seu rei. E fazem bem; que até eu me esqueço disso, e parece-me que torno aos bons dias em que era o mestre d'Aviz, ou aos, ainda melhores em que os cavalleiros pousados do meu avô D. Affonso me chamavam o pequeno D. João Pires, quando cifrava todas as minhas ambições em vir a pôr sobre os hombros uma capa, a cingir uma espada, e a dizerem de mim as damas: -- que gentil escudeiro ! » «Mas, -- replicou o valido, assumindo ar grave --- é na atmosphera ardente dos saráus, no meio da ebriedade dos sentidos e concorrência familiar da mocidade que nascem e vigoram paixões criminosas, que vão perturbar a paz domestica e produzir muitos- desses horrendos attentados contra os quaes os imperadores fulminaram terríveis penas, comminadas na lei Raptores do Código, lei que, por acaso, temos neste momento entre mãos. Não o digo pelas vossas reaes festas. Quem imaginou jamais que nellas ousasse penetrar um pensamento impuro? Mas lembrae-vos, senhor, dos festins nocturnos nestes paços em tempo de vosso irmão, quando D. Leonor Telles era quem os dirigia! Minha mulher é moça ...» «Ai, meu chanceller, valha-vos Deus por cioso ! Não o negueis; que bem o entendo.

Mas, ao menos, fazeis-me justiça. A falar a verdade -- accrescentou com gesto pensativo -- é que ainda me não passou pela cabeça a idéa de taes perigos ! ... Oh, que se os imperadores romanos foram severos acerca das mulheres, os reis meus avós não o foram menos, e eu sei fazer respeitar as suas ordenações !

Mas, a proposito : que dizem as leis imperiaes sobre isso?» «É demasiado extenso -- respondeu o discipulo de Bartholo, atirando com desdém para cima do bufete o papel esgaratujado por Mem Bugalho. -- Dóe-me a consciência de estar agora importunando com estas matérias abstrusas a vossa real senhoria.» «Lede lá, lede» -- acudiu elrei, excitado pela contradicção, como o chanceller interiormente previra.

Com um leve ademan de tédio e má vontade, João das Regras tornou a pegar no papel e começou a ler, bocejando e esbarrando d'espaço a espaço, como quem ás vezes não percebia bem o sentido.

«Nunca o vi tão bronco -- pensava o licenciado, que, encolhido respeitosamente atraz do valido, sentia indignações de lhe ir á mão pelo modo desengraçado e confuso com que lia uma das cousas que, sem amor proprio, elle melhor traduzira em toda a sua vida.

Aquelles a quem não são estranhas as instituições civis do imperio romano sabem que, na epocha da decadência, os legisladores procuravam obstar á devassidão dos costumes, sempre crescente, com penas severas, severas até a ferocidade. As leis de Constantino, Constancio e Joviano sobre este grave assumpto foram refundidas no código de Justiniano, ficando abolidas nessa parte a lei Júlia e todas as correlativas, incomparavelmente mais brandas. O confisco e a morte ameaçavam os raptores de virgens ou viuvas, os adúlteros e os seductores. O perdão das victimas ou o de seus paes e tutores era inutil para os réus de semelhantes delictos. A mesma reparação pelo consorcio era interdicta, e o criminoso colhido em flagrante podia ser assassinado pelos parentes da mulher violada ou ainda da illudida, porque a cumplicidade desta não diminuia a imputação. Finalmente, o individuo de condição servil que se achava incurso em crime dessa especie, quer como actor principal, quer como secundario, era irremissivelmente condemnado ao supplicio do fogo.

A isto se reduzia em substancia o longo artigo do código, que, trasladado do latim em vulgar, o chanceller deletreiava a sua real senhoria.

Mem Bugalho, que com paternal affecto seguia a leitura da sua versão, quando o chanceller ia chegando ás ultimas linhas observou que elle substituia as palavras pessoas de condição servil pela violenta paraphrase de homens que seroem a qualquer senhor. Ao ouvir isto, não pôde ter-se que não murmurasse :

«Servilis conditionisl servílis condit...!» Estacou. Um joelho se dobrara imperceptivelmente debaixo da garnacha de João das Regras e um calcanhar viera ao de leve applicar-se á tibia escanifrada do grande homem de Celorico.

«Que dizeis, Mem?» -- perguntou elrei.

«Que a trasladação está demasiadamente servil ou ad litteram -- respondeu o chanceller, deitando de revés os olhos para o pobre escriba, que balbuciava, fazendo-se de mil cores. -- Pois de que outro modo havia de ser, homem ? -- accrescentou, virando-se para traz.

-- Depois exporei a sua mercê o que resam a glosa de Accursio e as intenções de Bartholo. Então elle resolverá o que se deve declarar, explanar, supprimir...» «Nada, nada ! -- acudiu D. João I. -- É excellente; é perfeita. Não a valem as posturas antigas. Será também lei do reino ... Mas, por S. Jorge ! -- exclamou, alevantando os olhos para o mostrador do relógio. -- Deixemos por hoje estas aborridas matérias. D'aqui a duas horas os momos e danças estarão no paço. Até logo, chanceller. Não falteis.

Adeus.» João das Regras fez uma humillissima genuflexão.

Elrei saiu, assobiando um estribilho de caça.

O doutor de Pisa seguiu-o com os olhos e, sentindo-o alongar, murmurou, encolhendo os hombros de modo que lhe topava nas orelhas a gola da garnacha:

«Creança!» Depois voltou-se para Mem Bugalho, tossindo muito. Quando acabou de tossir, disse-lhe, entre duas daquellas risadinhas chirriantes que faziam arripiar quem as ouvia:

«Eh, eh! Tem-me esquecido contar-vos que, antes de ser discípulo de Bartholo, eu tinha estudado o Trivio e o Quatrivio, e que no Trivio se aprende muito bem latim. Eh, eh!» O decretalista não replicou palavra. Estava enfiado, e parecia-lhe a casa andar á roda. Era uma illusão exquisita!

XXV

O SARÁU

... em monte e caça, de que era mui querençoso, e em danças e festas, segundo aquel tempo, em que tomava grande sabor.

Fern. Lopes -- Chron, d'elr. D. P.

Se ha cousa neste mundo sublunar para que sirva o perpetuo distinguo dos theologos, é para traçar a historia da civilisação comparada, da cultura social de nossos avós e do nosso tempo. Grande e esplendida esta ultima, vista a certa luz, triumphará facilmente da primeira; mas, visto a outra luz, o passado vencerá sem duvida o presente. Estas graves e profundissimas reflexões, como o são quasi todas as deste livro (o leitor fará a devida justiça á nossa modestia), foram-nos inspiradas pelo espectáculo do sarau para que vimos D. João I convidar com tanto affinco aquelle bom velho do doutor de Pisa. A nossa pobre imaginação, que se atrevera a transpor os régios umbraes dos paços d'apar S. Martinho, teve de retroceder e de vir abrigar-se por algum tempo á mortiça claridade de moderna sala de baile. Os olhos d'alma, offuscados pela magnificência e brilho do illuminado palácio dos Infantes, vieram repousar um pouco em aposentos menos esplendidos, onde as colgaduras de cor indecisa, os trajos negros ou desbotados modifiquem a pouca luz que, passando por vidros embaciados, ainda se amortece na pallidez dos adereços e trajos de hoje, como no areial infertil da Africa se embebem as aguas de trovoada passageira, que não podem saciá-lo. Até nisto, até na dubia claridade, os saráus modernos são tacanhos e tristes! Depois, as pragmáticas, as minúcias de cortezania escholastica, as vaidades inquietas de todas as supremacias e eminências politicas, litterarias, agiotas, artísticas, da impertinente aristocracia burguesa, que no meio delles perpassam, vigiando-se, mirando-se, escamecendo-se, detestando-se, affiguram-se-nos um quid comparavel a ouriço cacheiro, que se róla ao longo dos aposentos, tomba, ora para um, ora para outro lado, e incommóda e espicaça as pobres obscuridades e nullidades -- o máximo numero -- que, na simpleza do seu coração, correram ao baile pomposamente annunciado, crendo que essa grande benção de Deus na terra, a franca e intima alegria, podia penetrar no recincto consagrado ao egoismo das pequeninas vanglorias, ás pontualidades parvoas e á semsaboria de convencional contentamento.

Não assim o sarau da idade-media. Elevemo-nos até elle. Volvamos lá; volvamos ás salas antigas. Ahi, a luctuosa negrura dos trajos do homem ou as cores cansadas das roupas feminis não dão o aspecto de festas de sombras ao folgar dos vivos: ahi não se vêem danças dormentes como o acalentar do infante, ou desgrenhadas, vertiginosas como o furor das bacchantes, contraste absurdo ligado pelo laço commum da insipidez; ahi uma delicadeza assucarada e hirta, como a deste século de myope hypocrisia, não exige admirações e applausos tanto para o chirriar discorde, como para a voz que desprende melodiosas harmonias; ahi o cavalleiro não vai, como o gasto peralvilho, curvar a fronte inquieta sobre um panno verde para pôr nas mãos do acaso talvez o seu futuro, ou o futuro de sua esposa e de seus filhos. Eram jogos de força e de destreza; eram jogos de homem -- os tavolados, as justas, os torneios -- que se associavam ás festas de outros tempos. Então, as horas consagradas ao culto da mulher ou ao goso de espectáculos grandiosos não se iam entristecer com luctas mesquinhas; porque o jogo ou era, como o xadrez, o recreio da solidão dos homens graves ou um vicio abjecto, como o dos dados, que imperava só no meio da devassidão dos arraiaes ou se escondia nas tavolagens e prostibulos das grandes povoações. A altiva nobreza de nossos avós perdemo-la até nos passatempos.

O saráu que naquella noite se dava nos paços de S. Martinho fora ordenado por elrei semanas antes para servir como de complemento á procissão de Corpus. Era uma galantaria feita á rainha, á bella filha de João de Ghaunt, habituada aos festejos que em Londres costumavam seguir-se áquella celebre soiemnidade. O mestre d'Aviz, se não adoptara o systema faceto de seu pae, o grande rei, grande algoz e grande jogral, D. Pedro I, que usava folgar com os villãos, correndo as ruas de Lisboa no meio das guinolas e folias com que era costume receber os reis, quando, depois de mais dilatada ausência, voltavam á sua boa cidade, herdara, todavia, delle bastante humor jovial para não perder um ensejo de lisonjeiar sua mulher e de esquecer no meio das festas -- conforme dizia ao chanceller - o pesado encargo da coroa, adoçando ao mesmo tempo, pela espécie de mutua benevolencia que inspira a communidade de sensações, quer de prazer, quer de dor, os ódios que ardiam solapados na corte pelos resentimentos nascidos das contendas politicas que nalguns dos anteriores capitulos tentámos descrever.

Ao cahir do dia, as janellas do paço estavam illuminadas interior e exteriormente. Centenares de tochas, que, prolongando-se ao correr das paredes, se prendiam nellas por braços de metal pulido, e grandes lampadários, que desciam por cadeias de ferro dourado das abobadas artezoadas, convertiam em dia claro as trevas da noite pelos atrios, escadas, galerias e aposentos, cubertos de alto a baixo de arrazes, onde se viam trasladados pela agulha e pela lançadeira os mais celebres personagens da antiguidade, cuja existência e aventuras a pobre erudição dos artífices extravagantemente baralhara. Priamo, Alexandre, Aristóteles, Moysés, Arão e muitos outros, amarrados a essas extensas telas, se nos letreiros que lhes faziam sair das bocas proferiam os maiores absurdos historicos, protestavam tambem mudamente contra a anachronica violencia com que os passeiavam através dos séculos» e contra os aleives que lhes assacavam.

Não era difficultoso, ao subir uma escada, ou ao transpor uma galeria, encontrar o grão magico Aristoteles, armado de cervilheira, cota e braçaes, com sua besta nas mãos, prestes a disparar o virote ao peito de algum centauro; o guerreiro macedónio, de cruz vermelha nos peitos e hombros e cavalgando em cavallo acubertado, no acto de brandir o montante contra um aduar de mourisma ás portas de Jerusalém; Priamo atarefado com seus filhos Ajax e Achilles em construir as muralhas de Constantinopola; ou finalmente Arão, paramentado e de mitra e bago, á porta de cathedral gothica. Tudo isto e muito mais representavam aquellas variadas colgaduras, sem falar dos monstros e arabescos, que a fertil e enferma imaginação dos artífices daquellas eras estampava por toda a parte, desde a portada do templo até as pinturas das telas e dos códices, ou até os bestiães e lavores das taças e agomias de prata.

Se, porém, os disparates d'invenção e as incorrecções de desenho dos historiados arrazes arrancariam hoje apenas um soçriso de lastima insultuosa ao artista mais humilde, a palheta moderna teria talvez d'envergonhar-se das suas mais vivas cores, comparadas ás desses quadros immensos, que se dilatavam por todas as paredes e que harmonisavam com as abobadas artezoadas, cubertas de ouro nos pendoroes e bocetes sobre o chão pallido ou escuro do mármore ou do lenho, e com as laçarias das almofadas, epopeias de esculptura escriptas a cinzel e a buril nas lageas e nos madeiros rendilhados dos tectos esguios. De lá, os gryphos, os dragões, as alimarias com face humana, os reptis mais extravagantes, os rostos mais doudos, transfigurados e impossíveis, pareciam mirar o que se passava cá em baixo. Era um mundo estranho, mysterioso, brilhante que se pendurava para enxergar o homem, para se rir delle, para o apupar, para lhe fazer visagens e negaças, como essas figuras gravadas nas impostas do portal da sé de Lisboa que tem podido escapar ao dente voraz dos séculos, ao boião canonical e aos acanthos, repolhos e caramujos da arte grécopátéta.

E debaixo destes tectos, e no meio destes pannos, por entre as catadupas de luz directa e reflexa, que em ondas se entornava de centenares de tochas e lampadarios ou se refrangia nas vividas colgaduras e nos relevos dourados, passavam bandos de cavalleiros, acotovelavam-se os momos, ruíam as danças mouriscas e judaicas, e as choréas de nymphas, porque até a existencia das nymphas chegava a erudição vulgar desses tempos. Aqui, dous gordos anões delrei trajando roupas phantasticas, rolavam-se por entre as pernas de um cavalleiro velho, que parara em passagem estreita para explicar a alguns escudeiros menos letrados um D. Absalâo, pendurado de arvore ramosa pelos cabellos e traspassado por tres ascumas despedidas pelo marechal do sancto rei David, D. Joab, cavalleiro de bom corpo, que na tela escripturistica representava ter duas alturas da arvore fatal. Acolá, vários pagens travessos riam ás gargalhadas, impedindo o passo a tres fadas que forcejavam por entrar no principal aposento, onde tinham de representar um papel importante nos momos que iam começar. No meio do tumulto ouvia-se o tinir argentino dos cascaveis de tres ou quatro maninellos, que rompiam apressados por entre a turba e que eram um reforço procurado, com permissão d'elrei, por Alie, cuja voz em falsete restrugia lá dentro por cima dos sons dos instrumentos que buscavam affinar-se. Ás vezes a voz do truão sumia-se no estrondo das risadas.

A sala principal, ou da corte, era um vasto parallelogrammo, que duas series de pilares polystylos dividiam em tres naves. Sobre os listetos das cornijas dos pedestaes, amplamente resaltados ou, antes, dos stylobates communs dos columnellos enfeixados que constituiam os pilares, pousavam armaduras completas, que simulavam dezenas de homens d'armas observando o tropel ondeiante que lhes remoinhava em volta. Nos topos das columnas e das misulas que nas paredes lateraes lhes correspondiam, col locadas em cima dos ábacos e presas aos saimeis das voltas ponteagudas, viam-se, nuns cabeças mirradas de cervos com galhos descon formes ou trombas de javalis, cujos colmilhos pulidos e alvejando fciziam singular eífeito, noutros múmias de gerifaltes e de nebris, com as pernas mettidas nos piozes e tão naturaes que pareciam vivos, bem como figuras de galgos e lebréus no acto de remetter. Em baixo, as imagens da guerra, e em cima as da caça symbolisavam a bem dizer a existencia inteira de um principe, barão ou rico-homem daquelle e dos antecedentes séculos, sobretudo a do mestre de Aviz, de cuja indole militar e de cuja paixão pela montaria e altanaria nos restam não equívocos documentos. Os lampadarios e tochas, ainda mais profusamente espalhados pela immensa quadra do que pelos aposentos contiguos e pelas escadas e galerias que para alli conduziam, tornavam perfeitamente distinctas as bellas linhas perpendiculares dos feixes de columnellos, as estrias dos ribetes, as subtis laçarias e bestiães do tecto de castanho almofadado, as tinctas mais vivas aqui, se era possivel, e os desenhos mais correctos das tapeçarias, que, descendo d'entre as misulas, forravam as quatro faces daquella magnifica sala.

Mas o que, mais que tudo, deslumbraria olhos só affeitos á monótona e mesquinha singeleza dos trajos modernos seriam as roupas variegadas dos cavalleiros que nessa noite circulavam pelos paços d'apar S. Martinho. Era mais que todos os matizes do prado na primavera; era um iris immenso, retalhado em pequenos fragmentos que remoinhasse sobre chão d'estrellas. As capas de desvairadas cores, orladas de lhama d'ouro ou de prata; as jorneas decotadas, deixando entrever as gollas e peitilhos bordados dos gibanetes, divididas em duas cores, que o rigor da moda exigia contrastassem as das capas; as calças ou meias justas, que, repetindo as cores da jornea, mas trocadas, desenhavam, como estas, que se apertavam com cinctos de ouropel ou de argempel, as formas athleticas e elegantes dos moços escudeiros e cavai leiros, formavam um todo cambiante e phantastico, de que difficultosamente alcançam dar uma semelhança incompleta e pallida as faculdades inventivas» ás. vezes bem pouco historicas, dos adereçadores do theatro ou as mascaras mais delicadas do carnaval, unica especie não absolutamente semsaborona e triste das nossas festas actuaes.

O sarau antigo reunia em si essas duas formas de espectáculo. Então, o segundo era mais variado e grandioso, postoque o primeiro fosse desengenhoso e bárbaro. Os momos, todavia, continham o embrião do moderno drama: eram quasi o carro de Thespis. De ordinário, consistiam em allegorias, que, próxima ou remotamente, se ligavam com successos recentes e notaveis. As visualidades constituíam a parte essencial dessas scenas informes, onde apenas algum monologo extemporâneo se misturava com os tregeitos e visageus de uma pantomima extravagante e exaggerada, a qual fizera attribuir aos actores de semelhantes representações o epitheto de tregeitadores. As bufonerias dos chocarreiros que ahi figuravam eram as delicias dos principes e senhores, e os dicterios e allusôes, muitas vezes gr-osseiros, offensivos e indecentes, parece que não se estranhavam, nem sequer na presença das da-' mas, e corriam como boa moeda. Assim, o truão, bobo ou bufão era uma casta de animal indispensável nos alcáceres régios e senhoriaes; um contraveneno do tédio, prompto sempre para encher o vácuo das horas d'enfadamento; e é por isso que nos documentos, nas leis e nas chronicas dos diversos reinos das Hespanhas, se encontram não raras memorias desses domesticos representadores dos momos, arremedilhos e escartieos.

Acima do bobo ou maninello, mas confundido ás vezes com elle, estava o jogral. O jogral era conjunctamente instrumentista, bailarino, cantor e, até, improvisador. Em velhos manuscriptos de trovas e cantigas, muitas das quaes eram composições de illustres cavalleiros, de ricos-homens e, até, de monarchas, encontram-se ainda signaes que indicavam o tonilho que devia acompanhar os rithmos dos trovadores repetidos pelo jogral. Dos instrumentos de que usavam esses cantores professos, ora sérios ora jocosos, restam-nos ainda desenhadas as formas, mais ou menos confusamente, nas illuminuras contemporaneas. Alli se vêem os adufes, pouco differentes dos modernos, e as castanhetas, cuja fórma de pequenos parallelogrammos as distingue das hoje usadas. O som destes instrumentos semi-barbaros, segundo o que se póde colligir daquellas illuminuras, marcava o compasso ás danças dos jograes e das péllas ou jogralezas, de que também ha memoria. Outros, como o laúde, a guitarra, a harpa, a ayabeba, a rebeca, o anafil, as charamelas, o orgam compunham as orchestras, aproximando-se, mais ou menos, no feitio aos que ainda subsistem e contribuindo com as suas vozes melodiosas ou estrugidoras para os desenfados e folgares dos festins e saraus.

Com estes elementos, a imaginação do leitor reduzirá facilmente a um quadro que não se affastará demasiado da verdade a agitação e o estrépito que iria nos paços de S. Martinho depois do anoitecer. Havia, porém, uma circumstancia que precedera isso tudo e que elle não pôde adivinhar, porque nascera de certa usança hoje esquecida. O comerem em publico os principes era uma espécie, ora de prologo, ora d'entremeio nas festas reaes, e a D. João I occorrera naturalmente a idéa de tomar na sala do sarau a leve collação chamada merenda, costumeira gastronómica essencialmente portuguesa e que remonta sem duvida áquella epocha e com probabilidade ás anteriores. Dous estrados, distinctos pela diversa elevação, occupavam um dos topos do espaçoso aposento. A mesa d'elrei e de sua mulher estava no plano mais alto, e no inferior a dos offlciaes da coroa, dos barões e alcaides-móres que accidentalmente se achavam na corte e que, collocados de um lado pela ordem das categorias, ticavam fronteiros ás damas de D. Philippa, as quaes na mesma ordem occupavam o outro lado. A hora para começar a merenda publica, intróito ao sarau, fora designada para antes do solposto, e por isso D. João I partira tanto ex-abrupto do gabinete particular.

Era noite fechada. A collação acabara justamente no instante em que o sino de completas principiava a despedir da torre da cathedral as suas badaladas lentas e uniformes. A um signal do mestre-sala, Luiz Alvares Pires, que em pé atraz da cadeira d'elrei recebia as ordehs do moíiarcha, os cavalleiros e damas ergueram-se. Alevantando-se após elles, D.

João I deu a mão á rainha e dirigiu-se para uma tribuna rasa, d'onde melhor se podia gosar o espectáculo dos momos, para os quaes fora reservada a nave central, onde os menestréis, charameleiros e jograes instrumentistas preludiavam já- com vários tonilhos e retornellos de guerra e de caça.

No topo fronteiro ao dos estrados era o adito principal do aposento, que se abrira de par em par. Em frente dilatava-se galeria magnifica, terminada numa espécie de portico ou atrio circular, d'onde partiam varios corredores que ligavam os diversos lanços do palácio. Alguns cavalleiros que ainda conversavam em grupos nesta galeria e neste pórtico, logo que elrei se ergueu e se fez signal de que os momos iam começar, entraram precipitadamente na sala.

Mas D. João I parara de subito. Lançando por acaso os olhos para o átrio, vira atravessá-lo um vulto que, apesar da rapidez com que passara, elle crera reconhecer. Vendo-o immovel e attento para aquelle lado, todos os olhos para lá se volveram. Debalde. O vulto desapparecera como relampago, e tanto a galeria como o pórtico estavam absolutamente desertos.

A única pessoa que parecera não reparar em nada fora D. João d'Ornellas, o qual, como esmoler d' elrei e alcaide-mór de Alcobaça, assistira á collação. Era que tinha descortinado o chanceller, que rompia por entre a turba, aproximando-se para aquelle lado.

Como se houvera recebido uma punhada invisivel na fronte, o abbade inclinou de golpe a cabeça para traz : como se recebesse outra na nuca, o doutor de Pisa inclinou-a para diante, ainda com maior rapidez. Era uma pergunta feita, e uma resposta dada.

Com a mesma presteza, o chanceller fez um angulo obtuso, mudando de direcção, e o prelado voltou-lhe as costas, mettendo-se no grupo dos fidalgos que conversavam em voz submissa.

Entretanto as attenções tinham-se dirigido exclusivamente para a nave central, onde as folias, as danças de judeus e mouros, as nymphas, as péllas, os jograes, os menestréis, os chocarreiros tomavam já os seus postos, á espera de que fosse mercê de sua real senhoria dar ordem ao mestre-sala para começarem os mui de folgar e mui espantáveis momos com que rompia o sarau.

A expectação e as esperanças communs foram, porém, illudidas por estranho e inesperado successo.

XXVI

JUSTIÇA DE SUA SENHORIA

A milhor das vertudes porque o mundo se sosteni, rege-se hy aquello por que cada huu á o seu, e porque a cada huu he aguardada sa onra, he mantehudo no seu estado, e esta vertude he a Justiça.

Lrv. DAS Leis e PosT. -- Lei de D. Affonso IV

Os momos, dissemos, eram o embrião do drama ; mas do drama de Eschylo, do drama de Calderon e de Shakespeare ; do drama imaginoso e livre, variado como a natureza e a sociedade seu typo, vibrando as cordas de todas as paixões e affectos, successivamente lachrymoso e risonho, solemne e ridiculo, como as vicissitudes da vida : eram o embrião do drama inspirado e não do drama rachitico, mutilado, convencional, medido pelas bitolas dos criticos mestres-d'obras, numerado, catalogado, fundido em gitos e moldes de barro com pretensões de bronze e desfeitos em pó ao sopro do primeiro porque? Elles reuniam em si, como também advertimos, a mascarada carnavalesca e as pompas da scena, vindo assim a ser tanto mais variados quanto mais escaceiava nelles o que hoje constitue a essência do espectáculo theatral, o dialogo scenico.

Os inventores e delineadores dos momos e folias punham, por isso, toda a diligencia em supprir com as mais estranhas visualidades, com as mimicas mais singulares ou desvairadas, a falta do drama falado. Quando se lê a descripção das festas que em occasiões solemnes se fizeram em Lisboa durante o reinado de Affonso V, vê-se que estas festas brilhantes tinham chegado a um grau de perfeição relativa, difficil de ultrapassar e que nellas consistia principalmente a magnificência da corte portuguesa, magnificencia que assombrava os embaixadores do imperador da Allemanha, e que fazia com que o cavalleiro andante Jorge von Ehingen, depois de haver visitado as mais celebres capitães da Europa, viesse encontrar um ideal do esplendor e do luxo nos jogos guerreiros da Rua-nova e nos folgares e saraus dos paços dos nossos reia Entre as diversas figuras, trajadas mais ou menos phantastica e extravagantemente, que, durante o crepúsculo do dia 18 de junho de 1389, vinham chegando aos paços de S. Martinho, haviam notado os porteiros-menores um vulto embrulhado numa especie de farricoco ou ollandilha que de todo lhe occultava o rosto. Era, provavelmente, um dos tregeitadores chamados para o espectaculo. Mas, não só a tristeza daquella vestidura, tão diversa dos trajos garridos dos outros jograes, gerara estranheza, como também o socego mysterioso do recém- vindo despertara suspeitas.

Tinham, por isso, os delegados ou ovençaes do porteiro-mór mostrado repugnância em facultarem a entrada. Alie, porém, aproximando-se immediatamente delles, lhes declarara ser aquelle um personagem indispensavel do mui gracioso arremedilho que ideiara para mostrar a sua capacidade truanesca, arremedilho em que também tinham parte tres maninellos que de perto seguiam o desconhecido. A vista das declarações do bufão régio, todas as duvidas haviam desap parecido, e o aforrado entrara sem mais embaraço.

D'ahi a pouco, entre o bando de jograes e tregeitadores, ou para melhor dizer, á frente delles, no fim da nave do meio e perto da teia que cingia o espaço reservado para elrei, estava o truão e ao lado delle os tres maninellos e o ollandilha.

Antes disso, emquanto a collação durara, Alie nem um instante estivera tranquilio: entrara, saíra, voltara, fizera rir uns, irritara outros com dictos e allusões insolentes e, em summa, parecera mais que nunca azougado por aquella espécie de loucura convencional que era inherente ao ministério que exercia.

Notaram alguns que o ollandilha jamais se affastava delle e que, nos momentos em que o mouro se ausentava, também o incógnito desapparecia.

Emfim, ouviu-se a voz do mestre-sala, que bradava:

«Sus, menestreis, jograes, tregeitadores, bufões ! Começae vossos momos, que assim o ordena sua alta e mui graciosa senhoria.» Todas as vistas se dirigiram para a nave do meio. O remoinhar dos diversos grupos cessou, e o borborinho que sussurrava pela ampla quadra, semelhante ao murmúrio das ondas quando escaceia o vento, começou a descahir, até se transformar em profundo silencio.

Tão profundo, que se ouvia o sino da sé chamando os cónegos a completas.

Os olhos, porém, que se haviam pregado no grupo dos tregeitadores abnram-se desmesuradamente, os braços estenderam-se, os Índices apontaram para a vanguarda daquelle tropel festivo, como tocados de vara magica.

Era que o incognito, deixando cahir a espécie de mortalha em que vinha envolto, subira ousadamente ao estrado contiguo. Com assombro, os espectadores divisaram nelle o habito de Cister e, ainda com mais espanto, que se dirigia para a teia que cercava o logar reservado para elrei e para D. Philippa.

Era um frade verdadeiro ou um farcista?

Esta pergunta, que cada qual fazia a si mesmo, conservava os circumstantes em muda hesitação.

Desenganaram-se em breve. O frade cahira de joelhos diante d'elrei, exclamando:

«Justiça!» O tom em que esta ultima palavra fora proferida affastava a menor sombra de duvida.

Esse tom não se fingia.

«É o frade sandeu! -- murmuraram diversas vozes, saídas do grupo dos senhores e officiaes da coroa-- É o vosso monge, D.João d'Ornellas.» Diziam-no alguns dos que tinham estado na tavolagem de Lourenço Braz e que haviam reconhecido Fr. Vasco, o que, por certo, já aconteceu também ao leitor.

«Justiça, rei de Portugal!» Este clamor intenso e solemne que o cisterciense tornara a soltar desfizera o encanto da obstupefacçâo, e um borborinho indistincto rumorejava de novo pelas naves do aposento.

«Que homem é este? Que pretende? Que significa isto?» -- gritou elrei, pondo-se em pé.

Todos olharam para D. João d'Ornellas. O frade era um membro da sua ordem. Só elle podia, talvez, responder a essas perguntas.

De feito, o prelado, abrindo caminho por entre o grupo de fidalgos, com gesto incendido em cólera, travou do braço de Fr. Vasco e, sacudindo-o violentamente, bradou-lhe, ao passo que o obrigava a erguer-se:

«Insensato! Como ousaste desobedecer-me?

Como saíste de S. Paulo? Como entraste aqui?» -- «Senhor : -- accrescentou, voltando-se para elrei -- ordenae que dous ovençaes, dous homens d'armas, quem quer que seja, conduzam este malaventurado ao collegio de S. Paulo, onde talvez a solidão e os jejuns num cárcere lhe ensinem a obediência.»-- «Veremos, rebelde -- proseguiu, dirigindo-se de novo ao frade com aspecto cada vez mais severo -- se tornas a achar ensejo para vir perturbar os passatempos de sua real senhoria ...» «Não, não!-- interrompeu elrei, movido por generoso impulso. -- Ao homem que pede justiça nunca, emquanto eu viver, se responderá constrangendo-o a amaldicçoar-me em silencio. Quem é este monge? Devo e hei-de ouvi-lo.» «É inutil, senhor -- atalhou D. João d'Ornellas, visivelmente perturbado. -- Ha largo tempo que enlouqueceu. Muitos destes cavalleiros o sabem .,. . » «É verdade, é verdadel» -- murmuravam d'entre o grupo dos cortezãos.

A voz, porém, de Fr. Vasco, firme e estridente, fez resoar ainda outra vez pelas abobadas do aposento:

«Justiça!» «Tende paciencia, meu reverendo esmoler -- continuou D. João I, a quem não escapara a perturbação do abbade. -- O vosso monge não parece resolvido a sair: nem eu o expulsarei. Se o seu espirito está offuscado, vós talvez possaes dizer-me o que elle pretende.

Por certo, não é contra vós que elle invoca a minha justiça.» No gesto e nos modos do principe lia-se claramente que suspeitava o contrario.

Dir-se-hia, com effeito, que o prelado receiava as revelações do seu monge. Volvera olhos supplicantes para um personagem que pouco e pouco se acercara.

Era o chanceller.

«Se vossa mercê m'o consente -- disse o doutor de Pisa, com uma reverencia capaz de disputar primazias ás de Fr. Julião -- atreverme-hei a observar que não é neste aposento e a taes deshoras que loucos ou sisudos devem demandar justiça, mas sim perante os juizes de vossa corte e em vosso desembargo.» Emquanto o doutor Joannes a Regulis fazia estas observações num tom que contrastava com a humildade do seu porte, no próximo grupo dos fidalgos dous cavalleiros conversavam um com outro á puridade. Eram João Rodrigues de Sá e o velho prior do Hospital.

«Não querem que elrei o attenda -- dizia o prior. -- Anda aqui velhacada... » «Pois erram o tiro -- replicou o das Galés, -- Irritam-no e não fazem nada.» De feito, D. João I, carregando as sobrancelhas, interrompera o privado:

«E se o meu sábio chanceller m'o consente, eu rei de Portugal atrever-me-hei a perguntar de novo a este frade louco ou sisudo:-- «Que pretendes?... » Por S. Jorge! Para que sou eu rei, senão para acudir sem tardança aos meus súbditos quando bradam por mim?» Abrindo então a teia com violência, chegouse a Fr. Vasco e bateu-Ihe brandamente no hombro:

«Vamos, monge de Alcobaça! Fala sem receio. Se com razão pedes justiça, sabe que a obterás.» «Sabía-o, senhor rei -- replicou Fr. Vasco, tornando a ajoelhar aos pés do monarcha e pegando-lhe na mão para a beijar. -- Se perdi o siso, como pretendem, não perdi a memoria de que sempre fostes justo e generoso, justo e generoso até no furor das batalhas, onde vos vi pelejar e vencer, punir e recompensar ...» «Que?!-- atalhou elrei. -- Foste, acaso, homem d'armas?» «Fui um dos cavalleiros da ala de Mem Rodrigues.» «Cavalleiro da ala dos namorados? ... Conheci- os todos. Não havia um que não fosse valente lançai ... O teu nome? o teu nome?!...

Não és tu?...

«Vasco da Silva: hoje o irmão Fr. Vasco»-- respondeu o monge, curvando a cabeça e cruzando as mãos sobre o escapulario.«Ah! Recordo-me agora... É isso! Contaram-me que te metteras frade... Abandonaste a gloria; desprezaste as recompensas para te enterrares num claustro. Foi mais uma façanha, meu cavai leiro, em que ninguém te imitou... Mas que é isto, Vasco da Silva?! Tu de joelhos? Dous soldados de Aljubarrota não devem conversar assim. Dize-me outra cousa:

enganam-se os que affirmam que estás sem teu siso. Não é verdade? Fala, pois, tu. Que pretendes de mim?» E alevantando-o pelo braço, contemplava-o com a affectuosa complacência de amigo ao encontrar o amigo que volta depois de separação dilatada.

«Como te havia eu de reconhecer, Vasco da Silva? Estás velho! Essa estamenha, já vejo que devora mais do que o sol dos combates.

-- E virando-se para D. João d'Ornellas, accrescentou com certo tremor de voz que nelle era de máu agouro: -- Deus me livre de que a justiça implorada por este humilde frade seja contra o seu mui venerável prelado!» «Não temaes por mim, senhor! -- respondeu com altivez o abbade. -- Se tenho por muito tempo obstado a que Fr. Vasco viesse affligirvos com os seus queixumes, -- e é tudo o que pôde contra mim dizer -- era que sabia quanto estes deviam ferir antigas e radicadas aífeições de vossa real senhoria ...» «Quando se tracta do officio de rei,-- atalhou D. João I, em cujo rosto transluzia mal refreiada colera -- não tenho affeições ... E a vós, dom abbade, quem vos deu direito para impedir que um antigo cavalleiro de Aljubarrota viesse falar comigo?

«Nunca para isso empreguei senão a persuasão. Nunca invoquei senão o jus que me dá uma instituição de Cister, o preceito da plena obediencia. E para que o fiz eu? Para cohibir a paixão insensata e anti-christan da vingança. Padecer e calar é o que nos manda o evangelho e a sancta regra. Esse cavalleiro que dizeis é hoje sacerdote e monge; é uma das ovelhas confiadas á minha vigilância. Espero que não queiraes attentar contra as liberdades ecclesiasticas ...» «Mas posso defender um antigo companheiro de perigos e gloria. Creio que devo livrar de occultas tyrannias aquelles que me ajudaram a salvar das garras de Castella esta nobre terra de Portugal. O sancto padre de Roma, cuja causa defendo contra os scismaticos, tem chaves que abrem clausuras ...» «Não é isso; não é isso, meu rei! -- acudiu Fr. Vasco, agitado.-- A estamenha monastica não a despirei mais, nem na vida, nem na morte. Na terra nào ha uma única flor de esperança que estas raàos possam colher. Que iria, pois, ahi buscar? Perdi tudo; e é contra quem mo roubou que venho demandar justiça... Senhor, senhor! -- proseguiu o monge com exaltação dolorosa.-- Tinha pae, amava-o muito e mataram-m'o: tinha irman, era um anjo de candura, e deshonraram-m'a. Sabeis quando me fizeram isto ? Quando na hoste do Condestavel pelejava em defensão da vossa coroa, do vosso reino, do lar domestico, da vida de meu pae, do pudor de minha irman.

A meu pae não o tornei a ver. Minto ! Vi-lhe o cadaver. Minha irman, essa sim. Encontrei-a.

Como? Prostituida, abandonada, miseravel. Ao menos ella morreu-me nos braços ! ... Tambem, que importava? --- accrescentou com rir medonho que terminou num grito terrivel.

-- Era um gracejo feito por nobre escudeiro, por um dos vossos acostados a um frade bernardo. Realmente era uma bagatella... Ah!...

Senhor rei, senhor rei ! Se não podeis restituir-me a ultima bençam de meu pae e a honra de minha irman, podeis ao menos vingar-me !

Vingae-me!» «Hei-de vingar-tel. ..-- bradou o principe, com olhos scintillantes.-- Cuberto d'opprobrio por um dos meus acostados um dos cavalleiros de Mem Rodrigues?! ... -- Fez uma pausa e, olhando em roda, proseguiu: -- Gil Eannes, corregedor de minha corte! Gil Eannes, vinde cá! ... A face do rei de Portugal recebeu uma bofetada...» E buscava descubrir o corregedor, que não viera ao sarau. Emquanto dous ou tres pagens saíam a procurar o doutor Gil Eannes. apenas se ouvia pelo espaçoso aposento o respirar oppresso dos circumstantes, esperando assombrados o desfecho daquelle estranho drama, que, em vez do arremedilho de Alie, servia d'introito aos momos e folgares.

Quando se desenganou de que o corregedor nâo estava ali, eirei voltou se para o frade:

«Mas o nome?! O nome delle?!» «Foi o vosso camareiro predilecto: foi Fernando Affonso» -- respondeu Fr. Vasco. Prendia-se-lhe a voz na garganta ao preferir este nome abominável.

Mudando de cor, D. João I deu alguns passos para traz, como se aos pés se lhe abrisse uma voragem, e exclamou:

«Fernando?!» Nâo pôde dizer mais nada. Lia-se-lhe no gesto o effeito que haviam produzido aquellas palavras.

«Eis ahi, senhor, --- disse o abbade esmolermór, encaminhando-se para o monarcha -- porque obstei tanto tempo a que Fr. Vasco viesse fazer-vos esta revelação odiosa. E o que não teria acontecido, se eu tivesse podido adivinhar que elle acharia ensejo e meios para chegar aqui ...» «Monge, -- interrompeu elrei, dirigindo -se ao moço cisterciense com aspecto sombrio, e sem fazer caso das palavras do abbade -- fosse irmão, fosse filho meu, que tão cruelmente te houvesse offendido, obterias pleno desaggravo. Mas -- accrescentou, abraçando-se com a única esperança que lhe restava de salvar Fernando Afíbnso -- é necessário que proves teu dicto. As leis de meus avós são neste caso assás severas para eu não proceder de leve em applicá-las.» «Caiam sobre mim as penas que as leis lhe impõem, -- respondeu com fiirneza Fr. Vasco -- se elle ousar desmentir a accusação que lhe faço.» «Camareiro-mór, -- bradou elrei, dirigindose a João Rodrigues de Sá -- Fernando que venha aqui immediatamente. Quero falar-lhe.» «Eu próprio irei procurá-lo» -- respondeu o das Galés, encaminhando-se para uma portinha lateral. O seu intuito era avisar o mancebo para que evitasse, fugindo, a indignação d'elrei. Depois se excogitariam os meios de espalhar a tempestade.

D. João d'Ornellas, que lançara de relance os olhos para o camareiro-mór, adivinhou-lhe o pensamento, Deu-lhe vontade de rir.

Apenas o das Galés saiu, elrei pôs-se a passeiar agitado.

«Enganaram-me os olhos, por certo ! -- pensava elle. -- Não podia ser Fernando o que ha pouco vi atravessar o átrio . . , Não são horas de partir... Depois da meia-noite, disse-ihe eu... Estava ainda tão tremulo e pallido ! ...

Se Vasco da Silva fosse de feito louco ! Póde ser verdade ... A accusação é tremenda ...

Triste mister de rei ! Mas posso eu recusar a justiça ?» Todos tinham os olhos fitos no principe, que, neste inaudivel soliloquio, media o estrado a passos largos.

Emquanto João Rodrigues de Sá não volta, e elrei guarda carrancudo silencio, aproveitemos o tempo que voa em informar o leitor de factos que lhe explicarão as mysteriosas cogitações do monarcha.

Affeito aos hábitos de soldado, D. João I naquele dia, como sempre, tinha-se erguido com o sol. Depois de trabalhar algum tempo no seu livro sobre a caça de altanaria, livro em que satisfazia a sua vaidade de auctor, como João das Regras o seu orgulho de letrado na trasladação e commentarios do codigo romano, o rei de Portugal, inquieto pelo estado em que vira na véspera o seu camareiro valido, saíra do celebre gabinete particular e, atravessando vários corredores, ainda quasi desertos, entrara inopinadamente na camará de Fernando Affonso.

Agitado por deliciosas imagens, o mancebo mal cerrara os olhos durante a noite. Havia-lhe parecido eterna. Apenas amanhecera, tinha-se erguido e, abrindo uma janella, ahi se encostara a contemplar o Tejo. Nunca respirara em tão fragrante atmosphera; nunca vira alvorada tão linda. Carregada e feia que estivesse, achar-lhe-hia a mesma formosura. A sua imaginação revestia de ridente aspecto quanto se lhe antolhava.

Fora á mesma hora que Fr. Vasco se assentara no poial de pedra da sua cella. Esse via tudo por bem diverso prisma !

Ao voltar-se e ao dar com os olhos em elrei, Fernando empallideceu e balbuciou algumas palavras. O seu plano, estribado na supposta enfermidade, considerou-o como perdido.

Enganava-se. A pallidez de que o susto lhe tingira as faces e o tremulo da voz dariam plausibilidade á continuação da farça que representara na véspera.

Mas tinha bastante dissimulação para recobrar proraptamente a presença d'espirito. Occorrera-lhe de súbito um expediente sagaz para sair daquella situação difficil. Essa idéa, numa epocha profundamente crédula, produzira viva impressão no animo do monarcha.

Havia alguns annos, asseverava o mancebo, que, opprimido de perigosa doença, fizera voto de ir em romagem ao celebre templo da Virgem de Guadalupe. Crera, porém, nessa noite ver em sonhos a Mãe de Deus, que asperamente o reprehendia por não aproveitar o ensejo das tréguas com Gastella para cumprir o seu voto. O que lhe succedera em Valverde e o subsequente sonho eram, quanto a elle, avisos do céu irritado. Sentia-se, talvez por novo milagre, restituído ao antigo vigor, e portanto estava resolvido a desempenhar o piedoso dever que contrahira, se para isso obtivesse de sua mercê a permissão que instantemente pedia.

Religioso por educação e por indole, D. João I não ousaria oppôr-se a um acto de devoção, ordenado com tão evidentes signaes do céu.

Limitou-se a recommendar ao moço valido ainda demudado no gesto, que só caminhasse de noite e com jornadas curtas, não começando a viagem antes da meia-noite seguinte.

«Passarei alguns dias occulto nos aposentos de Leonor» -- pensava o camareiro-menor ; e ria interiormente do alvitre com que tão facilmente obtivera illudir o seu bemfeitor, o seu rei, o seu amigo.

Brincava com o leão. Era um jogo terrível.

Fazia mal em não reflectir nisso.

Á noite, quando os cavalleiros se precipitavam para a sala, e os momos iam começar, D. João I crera divisar Fernando Affonso no vulto que se esquivava através do atrio, centro commum dos corredores e galerias que conduziam aos diversos lanços do edificio.

Podia ter-se enganado: era até o mais provável; mas aquella suspeita ficou-lhe involuntariamente no espirito, até que a scena inesperada que viera interromper o sarau o distrahiu de cogitar nessa visão duvidosa. Depois, todavia, da extraordinaria accusação do frade, ella lhe voltava naturalmente á memoria, associada com a lembrança do que passara com o mancebo nesse mesmo dia.

Eis os factos que tornarão comprehensivel para o leitor o solilóquio do mestre d'Aviz.

Emfim o camareiro-mór voltou. Todas as diligencias feitas para encontrar o moço Fernando tinham sido inuteis. Nem sequer se achara o seu pagem. Ninguem sabia dizer quando, de que modo ou para onde tinham um e outro partido.

«Marechal, -- disse elrei ao prior Álvaro Gonçalves quando recebeu tal nova -- enviae ordem á alcáçova para que as roídas do muro e os vigias das torres sobre as portas conduzam aqui seja quem for que queira sair da cidade esta noite, ainda com permissão minha. --E dirigindo-se a Fr. Vasco: --Monge!

Palavra de rei não torna atraz. Se foste aggravado, hoje mesmo obterás justiça.» Falou então em voz baixa com o das Galés. Emquanto este desapparecia novamente pela portinha lateral, elrei tornava a assentarse, depois de haver dicto o que quer que fosse ao mestre-sala, o qual, chegando-se á borda do estrado, repetiu:

«Sus, menestreis, jograes, tregeitadores, bufões! Gomeçae vossos momos, que assim o ordena sua alta e mui graciosa senhoria.» Fr. Vasco descera entretanto lentamente para uma das naves e fora collocar-se no meio da turba.

XXVII

A PROPHECIA DE MESTRE GUEDELHA

As costulações do ceo se mudam mui toste segundo o corimento do ceo das pranetas, e as booas ventuiras e as maas destas costulações nacem pelo poderio que lhes deus ordinhou.

Antigo Nobiliario.

Soberania de poderoso monarcha, soberania de altivo oligarcha, soberania de povo que sabe ler são tres grandes soberanias, postoque sejam tres cousas muito pequeninas diante da omnipotência de Deus.

Ora o monarcha, o oligarcha e o povo que sabe ler (e muito melhor o que não sabe) podem fazer chorar quem está alegre; mas todas as soberanias do mundo seriam impotentes para fazer rir quem está triste.

É que o choro pertence a este mundo e ao inferno, e verdadeiramente só ao céu a alegria.

A procella impensada que viera estourar na grande sala dos paços de S. Martinho, ao principiarem os regosijos do sarau, trouxe uma situação que demonstra a posteriori o substancial e sólido destas nossas philosophias.

Dir-se-hia que uma especie de modorra invadira geralmente os animos ou que os musculos de todas as faces estavam atrophiados, tal era a fria immobilidade que substituira o vivo ardor com que tudo até ali se agitara. A repetição da ordem d'elrei para começarem os momos produzira effeito mui diverso daquelle que tinha produzido da primeira vez. Na verdade, os espectadores fizeram silencio; mas era um silencio triste e preoccupado.

Bem pouca vontade de rir tinha o próprio D. João I.

Juncto ao pilar a que se encostara, com os braços cruzados debaixo do escapulario e a cabeça pendida sobre o peito, o monge de Cister nenhuma attenção parecia dar ao que se passava em volta delle e só esperar a justiça que lhe fora assegurada por sua real senhoria.

E sua real senhoria estava pensativo. João Rodrigues de Sá por duas vezes saíra depois de falar com elrei; também por duas vezes o prior marechal recebera aviso de que ás portas da cidade não tinha apparecido alma viva.

Os escarneos dos truões, os momos dos jograes haviam passado sem desenrugar os semblantes. As risadas que escapavam com largos intervallos a alguns cavalleiros e escudeiros, ou mais folgasões ou menos prudentes, tinham ficado sem eccho e esmorecido e gelado naquelle ambiente em que parecia revoar o demónio da turbação e da melancholia.

Cora os arremedilhos e farças, as danças judaicas e mouriscas, os cantos das jogralezas, as choréas das nymphas agitaram-se, remoinharam e passaram também no meio de gestos carregados e constrangidos. Depois, na nave central gradualmente abandonada pelos tregeitadores ao passo que concluíam seus tregeitos e folias, ouvia-se apenas a musica dos menestreis languida e esmorecida.

Durante mais de uma hora em que tantas visualidades haviam succedido umas ás outras, os olhos dos espectadores não tinham cessado de volver-se d'instante a instante, ora para o rosto sombrio de D. João I, ora para o vulto do frade, que naquella postura era como o foco d'onde tristeza invencivel repercutia no semblante do rei e deste se irradiava para os de todos os circumstantes.

A monotonia desta scena foi, comtudo, interrompida por um facto ainda mais extraordinário que o do ollandilha.

Quando acabaram os momos e antes de romperem as danças, Alie desapparecera. No momento, porém, em que da nave central quasi deserta, e d'entre o grupo dos menestréis apenas as violas e os psalterios murmuravam ténues e frouxas melodias, ouviu-se da banda do atrio, e depois ao longo da galeria, o tinir dos guizos ou cascaveis que adornavam a palheta do bufão, o sceptro da voluntária loucura. O vulto de Alie, com as suas roupas variegadas e adornos farfalheiros, assomou então no limiar da porta. Contra o seu costume, o maninello atravessou cabisbaixo a sala e, subindo ao estrado, dirigiu-se para elrei a quem principiou a falar com grande intimativa, posto que em tom submisso. O mestre d'Aviz parecia distrahido a principio ; mas, pouco a pouco, a attenção, logo a curiosidade, depois o interesse, o espanto, a agitação pintaram-se-lhe successivamente no gesto. Por fim, ergueu-se exclamando:

«Estás doudo ! Isso é impossivel ! ... » «A doudice é o meu officio, compadre João!

-- respondeu o chocarreiro, alevantando também a voz. -- Mas tu -- accrescentou rindo -- a quem digo «vem e vê» e que gritas que é impossivel, levas -me agora a palma. És digno de que te ceda o sceptro. Faço-te meu bufão.» E ajoelhando, estendia para elle a palheta, como resignando-lhe nas mãos o symbolo da loucura.

«Senhores meus -- proseguiu elrei, voltando-se para os cortezàos, sem fazer caso da truanice demasiado insolente do bobo. -- O meu chocarreiro denuncia-me que um desconhecido acaba de introduzir-se no lanço destes paços onde residem as damas de minha mulher e que elle, seguindo-o cautelosamente, o viu sumir-se numa porta que se abriu. É o aviso de um louco, e o successo extraordinario e incrivel. Não seria, com tudo, o primeiro que esta noite occorresse... Examinaremos a verdade. Segui-me.» Postoque affectasse extrema placidez, a sua inquietação era visível. A causa delia não saberia plenamente explicá-la; mas èentia-a.

Disse o que quer que foi a D. Phílippa, que também se erguera e que tornou immediatamente a assenrar-se. Depois, desceu para a nave do meio, e saiu.

Um sussurro confuso ondeiara pela sala. Os pagens tinham lançado mão de algumas tochas. Precedido por elles e acompanhado dos principaes fidalgos, o monarcha atravessou a galeria. Ouvia-se o borborinho dos cavalleiros que se precipitavam após elle. Os sons dos instrumentos haviam cessado.

Apenas D. João I proferiu as primeiras pavras, debil ai de terror sussurrara detraz das rejas de uma tribuna de adufas que dava sobre a grande saia e d'onde, sem serem vistas, as sergentes e cuvilheiras presenceiavam o espectáculo. Saíra dos lábios de Briolanja, que durante os momos se não affastara do lado de D. Cypriana e que, ao ouvir o singular dialogo do rei e do chocarreiro, partira como corça ferida, emquanto a rodeira lhe bradava debalde:

«Espera, estavanada; espera! Dá-me cá a mão para me erguer. Jesus, sancto nome de Jesus! É certamente a alma penada!» Mas a sei-gente não podia ouvi-la. Talvez neste momento galgava já, arrebatada pelo terror, a escada do dormitorio vedado.

Entretanto elrei, transposta a galeria, parara no atrio que servia como de aorta ás complicadas arterias dos paços de S. Martinho, e ahi mandara postar em todas as avenidas homens d armas e besteiros, a que recommendara a maior vigilância para que ninguém podesse evadir-se. Então, atravessando vários aposentos, brevemente se achou no corredor que conduzia ao celebre gabinete particular, D'alli, pela escada espiral, subiu ao tranquillo dormitório onde já uma vez o leitor assistiu comnosco a mysteriosa scena. Ao vivo clarão das tochas, que substituirá a luz frouxa e voluptuosa de duas lâmpadas pendentes do tecto, alvejaram de súbito as renques de reposteiros brancos, onde sobre as armas de Portugal campeiava o dragão verde. Elrei parou, olhando successivamente para um e para outro lado. Guardava silencio, e entre o tropel que o seguia ouvia-se apenas o som monótono das passadas.

Alie, que marchava adiante, tambem parara.

Parecia mirar o quer que era na extremidade menos illuminada do dormitório. Depois, voltando a cabeça para D. João I, estendeu o braço e apontou para uma das portas, onde o reposteiro corrido de pouco ainda se meneiava.

«Alli?» -- perguntou eirei a meia voz.

Não teve tempo de ouvir a resposta do bufão. A tela agitou-se violentamente, e detraz delia surdiu um homem, que se precipitava em fuga desesperada. Era tarde! Rei, cortezãos, pagens, homens d'armas atulhavam a passagem, e ainda o sequito se estendia como extensa cauda pela escada espiral.

O vulto tentou retroceder. Um daquelles gritos que o mestre d'Aviz arrancava no revolver das batalhas, restrugindo pelo dormitório como rugido de leão, fez recuar todos, ao mesmo tempo que, por assim nos exprimirmos, chumbava no pavimento os pés do fugitivo. Fazia horror ver este. Com os vestidos em desalinho, os cabellos hirtos, as faces lividas, o olhar errante, os braços curvos e erguidos até a altura da fronte quasi enteirada entre os hombros, arfava-lhe violentamente o peito, ao passo que a voz lhe expirara nos lábios.

A um tempo, elrei, os cavalleiros, os pagens reconheceram-no.

D. João I empallideceu como elle. Num momento percebera tudo. O vulto que vira escoar-se através do átrio veio-lhe á memoria como sinistro clarão. Uma das damas da rainha faltara ao sarau, e a sua camará era aquella d'onde esse homem saíra...

«Oh, sois vós, dom camareiro! -- disse o truão num tom singular, em que a ironia se misturava com azedume. -- O reposte de sua mercê é lá em baixo. Ide; mas passae com tento ... Vede não me atropelleis!» E cozia-se com uma das paredes, arremedando a postura de Fernando Affonso.

O que havia de odio nesta burla atroz só plenamente o comprehendia um individuo dos que alli estavam. Era o abbade de Alcobaça, o qual, collocado atraz do grupo dos cortezãos» depois de dizer o quer que foi ao ouvido do chanceller, punha os olhos no tecto, erguia as mãos, persignava-se, deixava pender resignadamente a cabeça e suspirava possuido de entranhavel magua, murmurando:

«Desgraçado mancebo!» A elrei sentiam-se-Ihe ranger os dentes convulsamente, nos cantos da boca alvejava-lhe a escuma, e nos olhos pequenos e vivos lampeja vam-lhe aquellas chispas brilhantes, que, a dizer a verdade inteira, faziam estremecer o próprio João das Regras.

Pôde, emíim, falar. O metal da voz era ainda mais temeroso nelle que o transfigurado do gesto.

«Gil Eannes!» O corregedor da corte aproximou-se. Chegara ao paço no momento em que o séquito atravessava o átrio. Tinha-se dirigido ao chanceller para saber o que elrei queria. O doutor Joannes a Regulis encolheu os hombros, pôs o dedo na boca e fez-lhe signal para que o seguisse.

«Mandae levar este homem aos sótãos da alcaçova. Depois, um poste sobre uma pilha de lenha no rocio de Valverde prompto ao romper d'alva. Perecerá pelo fogo o servo infame que afírontou seu senhor ...» Ao soarem estas horríveis palavras, um gemido de intraduzivel agonia rompeu da camará d'onde Fernando saíra. Depois, sentiu-se como um corpo que batia no pavimento.

O moço escudeiro nem pestanejava. Era um cadáver hirto.

«Senhor, vede o que ides fazer!» -- gritou o chanceller, rompendo por entre os cortezãos.

«Ser uma vez rei em punir, como o tenho sido mil em recompensar. As leis de meus avós são escriptas com sangue; as dos imperadores com fogo. Prefiro estas. Os paços de S. Martinho creio que não foram feitos para servir de bairro de mancebia.» «O vosso feito, rei de Portugal, será um daquelles a que os gregos na sua fala chamaram tyrannis. Fernando é de sangue de cavalleiros, e na vossa corte ha juizes.» «Calae- vos, chanceller; que o primeiro delles está aqui! É lei a vontade do principe».Se não fosse a necessidade de levar ao fim o seu papel, o doutor de Pisa, num accesso de ternura, teria cabido aos pés do monarcha. Havia mais de uma vez desesperado da educação politica do mestre d'Aviz. Era injustiça.

Uma voz grossa soou então do outro lado:

«Em nome da religião de Jesus-Christo, que nos ensina o esquecimento e o perdão das injurias; em virtude do meu ministerio sagrado, protesto, senhor, contra um acto inaudito ...» Era o veneravel chefe dos monges brancos, que também atirava o seu facho ao incêndio.

«Calluda, frade!» -- rugiu elrei, cuja colera tocava as raias da demência. Depois, apontando para Fernando Affonso:

«Tirae-m'o de diante! Arrastae-o d'aqui!» -- proseguiu, batendo o pé como insensato.

A um aceno de Gil Eannes, dous homens d'armas ladeiaram o camareiro-menor, que não resistia e nem sequer supplicava.

O espanto acabrunhara todos os espiritos.

Era preciso que fosse bem robusto o animo desses dous homens, que, em tal conjunctura, não tinham hesitado em combater a violenta resolução do seu principe, em nome da equidade um, em nome da mansidão evangélica o outro.

O que é certo é que o mundo, mais tarde ou mais cedo, faz á virtude a devida justiça.

Ao menos, assim se diz.

Seguido da sua aterrada comitiva, elrei desceu ao atrio, d'onde despediu os besteiros e homens d'armas, que ahi coUocara e, encaminhando-se ao longo da galeria, parou no limiar da porta da grande sala gothica, exclamando:

«Vasco da Silva! ... Cavalleiro da ala dos namorados! Palavra de rei não torna atraz.

Seja qual for a extensão do teu aggravo, amanhan confessarás que ainda alcança mais longe a minha justiça!» Juncto, porém, da columna a que Vasco se encostara não estava ninguém. O monge desapparecera. D. João d'Ornellas olhou ao redor de si e viu que o chocarreiro também se havia sumido. Então disse lá comsigo:

«Bom.» Crer-se-hia que o olhar de D. João I, semelhante ao da serpente, tinha fascinado o moço escudeiro. Apenas o principe voltara costas, Fernando, como desperto de afflictivo pesadello, dera um grito e quizera arrojar-se após elle. Os homens d'armas tolheram-lhe, porém, os passos. O furor da desesperação e as supplicas e promessas foram igualmente inúteis.

A ultima divindade que abandona o homem, a esperança, lhe aconselhou, finalmente, a resignação. Dizia-lhe a consciência que o seu proceder traiçoeiro e ingrato era infame, immensa e justa a cólera do monarcha. Mas também era impossivel que tão longa e indulgente amizade houvesse num momento expirado. E por outra parte, abandoná-lo-hia seu irmão? Abandoná-lo-hiam os cavalleiros de Portugal? Estas cogitações, postoque vagas, tumultuosas, indistinctas, restituiram-lhe, senão a paz interior, ao menos bastante energia para reassumir tranquillidade apparente, seguindo em silencio e sem renovar vans tentativas os dous homens d'armas que o conduziam.

Esquecera-se de uma cousa: de que semeiara ódios na terra e de que o fructo ainda não o havia colhido.

O camareiro-menor e os seus guardadores tinham descido ao portal do paço. Estava tudo atulhado. Com admirável rapidez se espalhara a noticia do que se passava.

Movidos de barbara curiosidade, cavalleiros, escudeiros, pagens, ovençaes, sergentes haviam-se apinhado nas escadarias, no pórtico e até na rua. Lamentavam-no uns: condemnavam-no outros. Falavam, disputavam, remoinhavam; ninguém se entendia naquelle immenso sussurro. Com difficuldade os dous homens d'armas abriam caminho por meio da turba.

Ao transpôr o portal, onde o apertão era maior, por entre as trevas que pousavam na estreita rua de S. Martinho, Fernando Aífonso viu reluzir as bestas e as capellinas de um troço de besteiros e ouviu o anadel que pedia deixassem passar o preso. Ao mesmo tempo sentiu atraz de si uma voz apenas perceptivel, que lhe murmurava aos ouvidos:

«Lembrae-vos da prophecia de mestre Guedelha ! ... A porta da igreja de S. Paulo está aberta... A igreja é inviolavel asylo.» Dando um estremeção, voltou involuntariamente a cabeça. Os dous homens d'armas, que por entre o borborinho tinham imaginado ouvir algumas palavras indistinctas proferidas demasiado perto, voltaram-se também. A' escaca luz que dos lampadários das escadas se estirava até o portal, o escudeiro ainda creu divisar uma especie de farricoco forcejando por sumir-se no meio da turba. Os homens d'armas esses nada descubriram.

Ao recordarem-lhe a prophecia de mestre Guedelha, Fernando viu passar diante dos olhos uma fita de lume, os joelhos curvaramse-lhe, batendo um contra o outro : da fronte rompia-lhe em bagas o suor frio.

Uma hora depois, a vasta mole dos paços de S. Martinho poderia comparar-se a um cenotaphio desconforme rodeiado de escuridão e silencio. Apenas a débil claridade de alguma lâmpada que esquecera accesa transudava pelos vidros córados do gabinete particular de sua real senhoria.

XXVIII

A BORDA DO SEPULCHRO

Tal está morta a pallida donzella

Camões -- Lusíadas.

Emquanto os extraordinarios successos referidos no capitulo antecedente occorriam nos paços de S. Martinho, na igreja de S. Paulo e S. Eioi, dependência do coUegio fundado pelo bispo Jardo, representava- se uma scena das mais triviaes no mundo e, todavia, das mais tristes. No cruzeiro do acanhado templo via-se um caixão descuberto ou esquife, assentado sobre a alcatifa negra, em cujas orlas seis tocheiros, tres de cada lado, sustentavam outros tantos brandões accesos. Dentro do esquife jazia um vulto de mulher vestida de roupas brancas e com as mãos unidas sobre o peito em acto de orar. Descansava-lhe a cabeça sobre uma almofada tão alva como as roupas, e uma grinalda de rosas murchas cingia-lhe os cabellos, que depois vinham, como dourada moldura, acompanhando o rosto e o collo, esparzir-se-lhe sobre os hombros e sobre o seio.

A sua pallidez, e os olhos, que tinha cerrados, mal serviriam para indicar se naquelle semblante pousava o somno da vida ou o da morte. O logar, a hora e os objectos e personagens circumstantes diziam, porém, que era o ultimo.

O cadaver de Beatriz ia descer á terrè, terra que nunca humedeceria uma lagryma. As que Fr. Vasco lhe promettera, havia-as a desesperação para sempre estancado.

Duas fileiras de monges bernardos ladeiavam o féretro, psalmeiando as preces e os canticos consagrados aos mortos. Para o fundo da igreja estava levantado um alçapão, deixando ver os primeiros degraus de uma escada de pedra. Esta escada ia dar ao carneiro ou crypta de S. Paulo. Revestido d'estola e pluvial pretos, Fr. Amaro, o enfermeiro-mór da estudaria, collocado aos pés da tumba, com o rosto virado para ella e as costas para o altar, parecia inquieto, fazendo signaes interrogativos a Fr. Julião, que, postado á cabeceira, servia de cruciferario. Fr. Julião tambem não estava tranquillo. Ora deitava de relance os olhos para a porta exterior apenas cerrada, ora para a da sacristia, emquanto o cantor-mór, Fr. Sueiro, entoava, e os coros garganteiavam detidamente as antiphonas e os psalmos próprios daquella solemnidade, acerca da qual o reitor, para satisfazer ao imperativo petitório de D. João d'Ornellas recommendara com grandes encarecimentos a Fr. Abril se não faltasse ao minimo item do ritual cisterciense.

Mas havia outra recommendação directa do abbade que era a que amofinava Fr. Amaro e fazia torcer os olhos ao reverendo porteiro, ora para o portal, ora para a sacristia. O cadáver não devia ser conduzido á sepultura antes de Fr. Vasco descer á igreja. Desde esse momento, seguir-se-hia em tudo o que elle ordenasse. Taes eram, pelo menos, os desejos de sua reverendissima.

O aftlicto monge, porém, apenas acabara o refeitório, fora dispensado pelo reitor das ulteriores obrigações monásticas daquelle dia e, tendo-se recolhido á sua cella, ninguem mais o vira. Na verdade, o leigo que substituira Fr. Julião (atarefado nessa tarde com as exequias de Beatriz) no mister de porteiro e que, assentado num banco da portaria, cabeceiava padre-nossos, crera enxergar um vulto que passava por elle e que pelo trajo informe se lhe figurou uma especie de farricoco ou beguino. A ultima pessoa de quem o somnolento leigo se poderia nessa conjunctura lembrar era o moço cisterciense. E todavia nós, que assistimos ás diversas scenas representadas pouco depois nos paços de S. Martinho, sabemos perfeitamente o que havemos de pensar acerca do supposto ollandilha ou beguino.

O que não tinha duvida era que o officio celebrado na igreja de S. Paulo se aproximava do seu termo e que o moço frade não apparecia.

D'aqui se originara a inquietação de suas reverencias. Fr. Amaro perguntava a si mesmo como sairia da difficuldade ; como poderia chegar a tempo á segunda mesa do refeitorio, d'onde a imagem da ceia vinha fazer-lhe negaças como saudade longinqua.

Das vagas e tristes cogitações em que se abysmara o tirou, porém, o vozeirão retumbante de Fr. Sueiro, entoando a antiphona :

«Ego sum resurvectio et vita.» Neste momento as portas da igreja meio cerradas abriram-se de golpe, e um homem, em cujo semblante se pintava profundo terror, entrou precipitadamente. Fr. Sueiro parou, e, no meio silencioso que se fez, ouviu-se ainda um ruído indistincto de vozes e o tinir de ferros que se cruzavam. Após o que primeiro entrara e que se dirigira ao altar-mór, viram-se apparecer um anadel e alguns besteiros da guarda real.

Tudo isto fora obra de um instante. Ao mesmo tempo da porta da sacristia saía um monge com passos serenos e solemnes. Fr. Sueiro, Fr. Amaro, frades do coro, Fr. Julião, todos, emfim, reconheceram immediatamente Fr. Vasco.

Com a mesma serenidade apparente, com o mesmo porte solemne, o cisterciense encaminhou-se para o corpo da igreja e, dirigindo-se aos besteiros, apontou-lhes para o portal :

«Retirae-vos -- bradou com firmeza. -- Este logar é sancto ; este logar é um asylo. Asylo para os vivos; repouso e paz para os mortos!» O tom em que estas palavras foram dietas, o espectáculo da pompa funebre, aquella hora nocturna, em que o templo se havia revestido de todos os seus mysterios e terrores, o carneiro aberto, como as fauces de um abysmo, e, sobretudo, a doutrina geralmente recebida, de que ainda o maior criminoso era inviolável se podia acolher-se á immunidade dos altares, fizeram recuar o anadel e os seus sequazes.

Murmurando, como o rafeiro constrangido a largar a presa, os rudes besteiros titubeiaram, deram volta e saíram. O cruzar de vozes e o tinir dos ferros já a este tempo haviam acabado.

No adro, porém, e livre do religioso temor com que a sanctidade do logar, os modos imperiosos do monge e a vista de um cadaver o haviam subjugado, o anadel começou a protestar, entresachando as suas manifestações officiaes com um chuveiro de pragas e ameaças, que debalde tentariam fazer evadir o preso; que ao romper da manhan elrei seria informado do procedimento attentatorio que se acabava de ter para com um anadel de sua real senhoria no desempenho das suas funcções e que, finalmente, os aforrados que assim d'improviso haviam posto mãos violentas em homens da guarda real teriam de arrepender-se da sua insolencia. De feito, logo que exhalou toda a bilis em inúteis imprecações, que de novo repercutiam dentro da igreja, ouviramse-lhe as ordens que dava, a uns para se conservarem naquelle posto com as garruchas mettidas nas bestas, promptos a disparar contra quem quer que tentasse d'alli sair, a outros para se dividirem em roldas e vigiarem o edifício, de modo que ninguém podesse escapar.

Depois, sentiram-se tinir algumas bestas assentando nas lageas do adro, ouviram-se passos lentos que se iam alongando para um e para outro lado, e, pouco a pouco, tudo recahiu no silencio e na immobilidade.

Se este livro fosse uma dessas invenções destinadas unicamente para abbreviar o mais cruel martyrio do ocioso, a maldicção da sua existência, pediria a arte que deixássemos o leitor parafusar á solta acerca do passageiro arruído que se travara no adro. Não o consente, porém, a ordem da narrativa que nos serve de texto. O auctor da encarquilhada e venerável chronica monastica ou ignorava ou desprezava as destrezas que dão vida e relevo ás vans ficções de novelleiros e que a verdade, por si mesmo bella, rejeita com abominação.

Contou as cousas como ellas foram, direitamente, singelamente, sem refolhos, sem armadilhas. Seguindo-o passo a passo, a nossa narrativa é como a delle inartifíciosa e simples.

Escusado seria dizer o nome do preso que os besteiros reaes conduziam. O leitor já o adivinhou. Apenas Fernando fora entregue aos guardas que deviam aferrolhá-lo nos sótãos da alcaçova, D. João d'Ornellas pôs-se a observar os diversos grupos que no átrio falavam sobre os extraordinarios acontecimentos daquella noite. Depois d'escutar, mirar e remirar por uma e outra parte, chegou-se a um desses grupos, introduzindo-se na conversação. Era o de alguns mancebos que sabia serem consocios e afíeiçoados do camareiro-menor. Começou por lisonjeia- los. Quanto a elle, os sentimentos de magua e despeito que não curavam de encubrir eram indicio de ânimos generosos e leaes á amizade*. Achava, como elles, absurdo o rigor d'elrei, rigor que seria uma nódoa no seu glorioso nome e que elle como bom vassallo não cessaria de deplorar. O illustre prelado estava, porém, profundamente convencido de que, se o nobre escudeiro, com quem, apesar de antigos desgostos, vivamente sympathisava, podesse escapar aos seus guardadores e acolher-se a qualquer templo (sobre cujas immunidades tez, neste ponto do discurso, uma larga dissertação canónica), daria tempo a seu irmão, pessoa que singularmente reverenciava, ao chanceller, e a elle próprio, indigno ministro do Deus das Misericórdias, para amansarem a sanha do monarcha, salvando o pobre moço de uma pena atroz, desproporcionada ao delicto e imposta no primeiro Ímpeto de cólera irreflexiva. Sentia, finalmente, não ter podido preveni-lo de que a porta da igreja de S. Paulo e Santo Eloi, por juncto da qual tinha de ser levado no seu transito para a alcáçova, estava casualmente aberta, e de que, ao perpassar, lhe seria, talvez, possível fugir e acolher-se a sagrado. ~ «Dêem-me deus dias; dous dias só - concluia o veneravel chefe dos monges brancos, bailando-lhe as lagrymas nos olhos -- e dar-vo-lo-hei salvo .. . Não ha uma desgraça como esta ...

não ha!...» Depois, apenas viu principiar a. romper a idéa do attentado que indirectamente aconselhava, foi-se retrahindo pouco a pouco e desappareceu. A magnanimidade daquella nobre alma tinha enchido de assombro os que não ignoravam os motivos de ódio que havia entre elle e esse homem cujo destino lhe arrancava mal reprimido pranto.

Alguns minutos depois, dez ou doze embuçados salteiavam a escolta dos besteiros no momento em que transpunham o adro da estudaria. No meio da revolta e tumulto de tão repentino ataque, Fernando, para quem a recordação mysteriosa da prophecia de mestre Guedelha fora um tremendo clarão, se precipitara na igreja, e os embuçados haviam desapparecido cada qual para seu lado.

O sobresalto produzira uma interrupção inevitável na solemnidade fúnebre. O desaccordo pintado no gesto e meneios do fugitivo, a soldadesca irritada que o seguia, a linguagem de Fr. Vasco explicavam até certo ponto o suçcesso. Não faltavam exemplos de criminosos virem buscar o asylo ecclesiastico. Era um caso desses. Mas porque chegara o cisterciense naquelle momento, e porque tanto ardor em salvar o réu? Eis o que nem Fr.

Amaro, nem Fr. Sueiro, nem o meditativo Fr. Julião comprehendiam.

O refugiado passara como relâmpago pela tumba, em que parecera não reparar, O moço cisterciense, apenas vira sair os besteiros, tinha-se dirigido para esse vulto, que se abraçara com o altar.

Qunando chegou ao pé delle, parou e pôs-se a contemplá-lo de braços cruzados, sorrindo de modo singular.

Esteve assim muito tempo. A um seu aceno os coros haviam renovado a fúnebre psalmodia, e o cantochão de Fr. Sueiro corria á desfilada. O refeitório era a barreira do estádio que o reverendo cantor-mór mentalmente enxergara no horisonte das antiphonas, kiries, orações e psalmos.

Os olhos do escudeiro, onde se reflectia todo o horror da sua situação, cravaram-se insensivelmente nos de Fr. Vasco. Reconhecera o frade idiota da tavolagem. Essa figura taciturna tinha o que quer que era ominoso para elle e gerava na sua alma aterrada uma duplicação de terror. Avivava-lhe, não sabia como, a lembranca da prophecia de mestre Guedelha e os seus impios commentarios.

E, apesar disso, não podia affastar os olhos do monge. Os raios visuaes dos dous mancebos tinham-se fundido um no outro. Sobre o cahos tremendo de sentimentos e de idéas que se revolviam no coração do asylado pousava, como espectro de pesadello, a imagem desse frade macilento, com o seu olhar fito, com o seu amargo sorrir, semelhante á hera verdenegra que se estira por cima do tronco derribado e carcomido, ou ao crepe que no patibulo se lança sobre os restos do justiçado, Seria porque a aversão possue talvez magnetismo occulto tão irresistível como o do amor?

A alma de Fr. Vasco estreitava a de Fernando Affonso, que estonteiada remoinhava num vórtice de susto e de affiicção; estreitava-a com a ferocidade da hyena, balouçando-se voluptuosamente nos seus trances de agonia, refrigerando-se na sua amargura; cingia-a, palpava-a, sentia-a torcer-se, latejar, ennovelar-se. Dizia-o aquelle riso que lhe banhava as faces.

Quando se fartou desse prazer ineffavel, chegou-se ao mancebo, lançou-lhe a mão ao braço, fê-lo descer do suppedaneo do altar e conduziu-o ao cruzeiro, onde se cantavam os ultimos kiries.

Fernando, subjugado por aquella especie de fascinação, seguia-o sem resistir. Também a opposição houvera sido inutil. A mão ardente do frade apertava-lhe o pulso como anel de ferro. A energia dos affectos que o senhoreiavam dava-lhe forças sobrehumanas.

Fr. Vasco fez signal aos monges para que se arredassem. Eram mui positivas as recommendações de D. João d'Ornellas para não hesitarem em obedecer-lhe.

Então, chegando com o escudeiro ao pé da tumba, apontou-lhe para o cadáver. Um grito indizivel d'espanto e de pavor partiu dos labios de Fernando Affonso. Naquelle rosto, retincto na paliidez da morte, reconhecera Beatriz.

O mais efficaz, o mais eloquente missionario do arrrependimento é o estado de cansaço moral, de desesperança, em que o espirito do perverso, ao bater para elle a hora da desdita, verga desfallecido sob o peso do passado. O remorso espreita esse instante para se embeber no seio do máu, d'onde, nos dias de ventura, fora duramente repellido, e a dor que elle plantou na terra, inclinando-se-lhe sobre o coração, ahi esparge as sementes da amargura, que, germinando rápidas, lh'o intumecem e dilaceram. A situação do camareiro-menor era justamente essa. A especie de torpor em que a desordem dos fe idéas o havia lançado desapparecera á luz da conscieneia, que lhe punha diante uma accusação terrível.

«Morta ! -- murmurava elle, forcejando por soltar-se da mão do monge. -- Oh Beatriz, Beatriz !

«Morta, sim -- replicou o frade com accento soturno, mas tranquillo. -- Era o que lhe restava depois de prostituída, depois de abandonada, depois de largos dias de solidão, face a face com o espectro da própria infâmia, depois d'expiar na terra o erro de uma alma cândida dilacerada nas garras do demónio da devassidão ...» Proferindo estas palavras, o monge que ia atraz dos seus tétricos pensamentos, affrouxara a contracção tenaz com que retinha o braço do escudeiro. Por subito e ultimo esforço este pôde desembaraçar-se. Cahiu então de joelhos encostado ao esquife e exclamou, erguendo as mãos :

«Perdão ! Perdão, Beatriz ! » «Perdão ? ! -- acudiu o monge, que tornara a cruzar os braços, como a principio. -- Foi mais generosa ! Exigiu de mim o juramento de também te perdoar... E eu dei-o; eu insensato ! ... » «Mas quem sois vós ? -- bradou Fernando Affonso, pondo-se de pé e recuando ao ouvir a estranha linguagem do frade idiota da tavalagem, que assim faiava de siso. -- Quem sois vós, para haverdes de perdoar-me...?» «Meu pae chamava-se Vasqueannes : minha irman chamava-se Beatriz.» Cubrindo o rosto com as mãos tremulas, o camareiro-menor encostou-se a uma columna da nave e, com voz affogada, murmurou :

«Seu irmão ! seu irmão ! ... Oh, que, se o sois, estou perdido !» «Perdido?! -- redarguiu o frade, sem alterar a voz, ao passo que de novo se lhe espraiava no gesto fugitivo sorriso. -- Não é este logar um asylo inviolável ? Não dei eu um juramento ? Não viste, até, como comecei a cumpri-lo ? Onde estão os guardas que te perseguiam ?» «Oh, bem sei, Vasco! Tendes razão de verter sobre esta cabeça criminosa e condemnada o fel da ironia ! Tendes razão de me odiar mortalmente. Ella podia perdoar-me ; porém vós ? ... É impossível ! ... » «E todavia, por mais monstruoso que isso pareça, fi-lo. Com a mão sobre a cruz de Ghristo, juncto do leito de Beatriz expirante, protestei solemn emente esquecer a lenta agonia de um velho, a seducção de uma innocente, a ruina e a deshonra da minha familia. Tomo o céu por testemunha de que falo vei-dade ! Foi um sacrifício immenso ... Não creias, porém, que fosse gratuito. Resalvei uma dura condição. Se queres que lance ura véu sohre o passado, é necessário que te submettas a ella.» Exprimindo-se assim, Fr. Vasco assumira um ar de severa singeleza que imprimia na sua linguagem o caracter da veracidade e da candura. Um raio d'esperança scintillou na alma do moço escudeiro. O frade leu-lh'o no semblante e proseguiu :

«O logar onde estamos é inviolável : repito-o. A'quem daquelle portal não passa a justiça dos homens, porque esta é a morada do Deus das Misericórdias. As grandes cóleras dos príncipes expiram também alli, porque debaixo destas abobadas reina a paz do Senhor. Que podes, poisi temer de mim ou de outrem? Se quizesse hoje vingar-me, a minha voz não teria feito recuar os que te guardavam ou este braço, que te arrastou até aqui, ter-te-hia arrojado, como os publicanos do evangelho, do recincto do templo. Não! Á sombra do sanctuario podes contrastar a tempestade que ameaçou submergir-te. Alguns dias que passem, e o furor d'elrei cederá ás supplicas dos teus poderosos protectores e ás recordações de uma affeição antiga. Teu irmão e o primaz das Hespanhas não te deixarão perecer de morte aífrontosa e cruel. Depois, a minha voz não surgirá do silencio do claustro para te accusar, se a condição que te imponho for acceita e cumprida...» «A mais aspera que imaginásseis -- interrompeu vivamente Fernando, cujo coração começava a dilatar-se reanimado pelo hálito da esperança. -- Tudo, tudo, homem generoso, que me obrigas a crer, emfim, na virtude humana ; que me fazes experimentar quanto o remorso tem de pungente e acerbo, mas também quanto o arrependimento tem de consolações ; que rasgas o véu medonho do meu futuro e me ensinas a descubrir em nebuloso horisonte a luz da salvação. Que devo eu fazer para te contentar, para remir o meu crime...?» «Confessá-lo : confessar as negras insidias com que precipitaste aquelle anjo que alli dorme o longo somno da morte no teu charco de luxuria ; a ingratidão covarde com que pagaste a hospitalidade de um ancião venerando e o puro amor de uma virgem ; a vilania com que ennodoaste o nome de um soldado como tu, de um soldado de D. João I, de um soldado desta terra, que a ambos nos vira nascer e que, hoje ou ámanhan, num ou noutro recontro, podia unir-nos indissoluvelmente na mesma valia, sob a mesma cruz dos mortos ; de um soldado que a vergonha e a desespe-' ração sepultou na clausura ! A deshonra nâo pertence áquelle cadaver, nem ao tumulo de meu pae, nem a esta estamenha ! Pertence-te a ti... Ahi a tens: acceita-a; e que esses monges, que esperam o momento em que eu lhes diga -- «escondei este cadáver na terra» -- possam testificar que não abençoaram os restos de vil prostituta e que o habito de S.

Bernardo, lançado sobre estes hombros, serviu para velar aos olhos do mundo, não um ferrete d'infamia, mas somente honesto rubor.» «Monges de Cister ! -- bradou o escudeiro, com uma espécie de exaltação produzida pelas palavras de Fr. Vasco.-- Ignoro o destino que Deus e os homens me reservam ; mas seja qual for, cumpre que. perante vós, faça uma grande reparação. Devo-a a esse cadáver que ides sepultar e a este vosso irmão. Escutae-me e tremei ! Vede em mim um monstro de peversidade.» Os frades, que, havendo-se arredado bastante, apenas tinham percebido algumas frases soltas do vivo dialogo que passava entre os dous, aproximaram- se do féretro, não ao chamamento de Fernando, mas a um novo aceno de Fr. Vasco.

Cercado de todas aquellas graves figuras monásticas, o camareiro-menor referiu a historia dos seus amores com Beatriz, o rapto e abandono da desgraçada. Inspirava-o o ardor febril que nelle excitara a fascinação diabólica do frade. Foi verdadeiro e, por isso, pintoresco e terrivel. Pelas faces abeatadas e estúpidas da fradaria mais de uma lagryma deslisou não sentida. Apenas concluiu, o escudeiro arrojou-se aos pés de Fr. Vasco, immovel, impassivel, silencioso, abraçando-o pelos joelhos e murmurando :

«Perdão, perdão !» O monge, forcejando por erguê-lo, lançouIhe um olhar obliquo, ao passo que pelo rosto lhe serpeiava ainda outra vez indefinido sorriso. Depois, perguntou-lhe com brandura :

«Acabaste ?» Era uma pergunta bem simples, e todavia fez estremecer aquelle a quem se dirigia.

Referindo de que modo havia abandonado Beatriz, Fernando não tivera animo para confessar que a paixão por Leonor acabara o que a saciedade tinha começado. Sobre esta, sobre a propria ilançara todo o odioso do seu proceder. Esse amor fatal que o perdera estava no auge do ardor, e Fernando tremia de se ver constrangido a misturá-lo com as negruras de uma historia infame. E comtudo, no terrivel successo que o conduzira áquella singular situação, o escândalo fora publico.

Mais evidente que a de Beatriz, a fraqueza de Leonor não podia ser já um segredo confiado ao silencio da sepultura. Elrei talvez se apiedasse delle : seu irmão, seus amigos, o próprio arcebispo, D. Lourenço, logo que soubessem da sorte que o ameaçava, buscariam mitigar a furiosa indignação do monarcha, emquanto elle se conservasse asylado á sombra protectora do altar. Fr. Vasco tinha razão.

Mas apagar a ignominia da fronte de Leonor era o que se tornara impossivel.

E apesar disso, se a sua salvação dependesse de fazer soar o nome da viuva de Lopo Mendes perante aquella turba que ouvira a vergonhosa narrativa da seducção de Beatriz, elle teria preferido o caminhar para o cadafalso a essa espécie de profanação do amor.

É assim feito o coração humano. Nós é que nem sempre sabemos explicá-lo.

Vendo que não respondia, o cisterciense perguntou outra vez :

«Acabaste?» Havia na sua voz um tremor quasi imperceptivel Que pretendia ouvir ainda? Acaso os seus pensamentos sinistros precisavam de alimentar-se de mais fel?

O escudeiro abaixou os olhos e fez um leve movimento affirmativo.

Os circumstantes contemplavam commovidos aquella scena. O próprio Fr. Sueiro tinha esquecido as sanctas reminiscências do refeitorio.

O monge, Cubrindo a fronte com uma das mãos, chegou-se ao féretro e disse para o cadáver, como se este podesse ouvi-lo :

«Não viveste assas para te ser restituida a honra. Depois de morta, eu só te podia reivindicar a innocencia ... Anjo que alimentavas o meu ultimo affecto, adeus!... É um adeus bem longo... longo como a eternidade; porque entre o céu e o inferno está a immensidade... e tu subiste ao céu...» Estas palavras, lentas e submissas, ainda se perceberam. Depois, ouviram-se-lhe uns sons gutturaes: depois, viu-se-lhe apenas o remecher dos beiços. Os dedos encurvavam-se-lhe á raiz do cabello, como se fizesse violento esforço para esconder a testa. Dir-se-hia receiar que os restos inanimados de sua irman podessem ver alguma cousa que ahi estava ou gravada ou escripta.

Era que desde o momento em que arrojara de si com mão sacrílega o crucifixo de Fr.

Lourenço e despedaçara, impiamente desesperado, a estatua da Virgem, Vasco tivera mais de um accesso de delirio, durante o qual lhe parecia sentir mão invisivel escrevendo-lhe na fronte, com letras de fogo, a palavra -- PRECITO.

Curvado naquella Gethsemani d agonia, o frade conservou-se assim alguns instantes, instantes para os outros, annos para elle.

O novo Saul saiu, emfim, do seu paroxismo. A energia de vontade robusta não lhe bastara para subjugar o Ímpeto da dor naquelle trance da ultima despedida.

Lançando ainda uma vez longo e tristíssimo olhar para a tumba e fazendo um signal imperioso ao escudeiro para que saísse d'alli, murmurou ao passar por entre Fr. Amaro e o cantor-mór:

«Que a paz de Deus desça sobre o cadaver de minha irman ! Levae-o á eterna jazida...» Depois foi encostar-se a uma columna cubrindo a cabeça com o escapulário. Parado ao pé delle, Fernando olhava como absorto para esse vulto que parecia representar alli a imagem da amargura.

O officio fora interrompido no momento em que ia a findar. Em virtude dos preceitos de D. João d'Ornellas, Fr. Amaro, apenas ouviu as derradeiras palavras do cisterciense, tomou o hyssope das mãos do acolytho, rodeiou o féretro, aspergiu-o, pegou depois no thuribulo, incensou o cadáver e disse:

«Et ne nos inducas in ientationem.»Sobrelevando o acompanhamento do coro, o vozeirão de Fr. Sueiro redarg-uiu apressado e retumbante:

«Sed libera nos a malo.» Cruzaram-se mais algumas phrases biblicas, e Fr. Amaro alevantou o ultimo oremus. Goncluido este, o cruciferario Fr. Julião alçou a cruz e os ceroferarios os cereaes. Quatro sergentes haviam pegado no esquife, e a communidade encaminhou-se em duas alas para os degraus do carneiro, fechando o préstito Fr. Amaro. Cantavam, em coros alternos, a antiphona:

«In paradisum deducant te angeli.» O monge soluçava. Os seis brandões do cruzeiro reflectiam a sua luz sanguínea nas lageas do pavimento, listrado pelas sombras que os pilares das naves estiravam por cima delle. O cantar do coro ía-se alongando e sussurrava na crypta, como os sons sentidos de harpa eolia, ou antes, como o carpir de gnomos aferrolhados debaixo da terra.

Dentro de poucos minutos, a communidade surgiu do carneiro e atravessou a igreja, psalmeiando até desapparecer na sacristia. A grande pedra que fechava o adito do subterrâneo cahiu no seu leito, os tocheiros apagaram-se, e os sergentes desappareceram após o sacristão-mór Fr. Abril. A área do templo ficou apenas allumiada pelas lâmpadas que ardiam ante os altares e submergida na solidão. Dir-se-hia que essas paredes e abobadas, por onde pareciam mover-se de vez em quando figuras phantasticas, suavam terror por todos os poros.

Quando o ruído indistincto das passadas que se alongavam pelo claustro cessou, Fr.

Vasco pareceu sair daquelle torpor em que ficara embrenhado. Deixando descahir o escapulário, pôs-se á escuta, como receioso de que algum murmúrio exterior interrompesse a quietação do recincto do templo. O silencio, porém, era absoluto, mortal. Então, deu dous passos e, do mesmo modo que fizera juncto do altar, cruzou os braços e ficou erecto e immovel contemplando o escudeiro. Á claridade duvidosa da igreja, os olhos fulgiam-lhe debaixo das cavas sobrancelhas com estranho brilho. Nas faces macilentas, que a frouxa luz das lâmpadas ainda lhe tornava mais pallidas, esparzia-se-lhe de novo triste sorrir. Era, porém, o mais singular que, naquelle ambiente húmido e frio, lhe rebentavam da fronte de quando em quando grossas bagas de suor.

Levando rapidamente á testa a mão ardente, enxuga va-as com ella e voltava logo á anterior postura contemplativa e extatica.

A concepção humana recuaria aterrada, se podesse observar nesse momento a alma tenebrosa do monge, revendo-se com acre e phrenetico deleite nas sensações de um ódio encanecido, emfim satisfeito, satisfeito além de tudo o que esperava. As imagens de seu velho pae chamando por elle como louco; de sua irman envilecida, erradia sob as azas de tempestade nocturna, involta em farrapos sobre a enxerga do truão e debatendo-se nas vascas da morte; de Leonor, enleiada nos braços desse homem, pagando com ardor os seus beijos voluptuosos; tudo isso, confundido inextricavelmente, cahos horrendo de angustia que nenhuma lingua poderia exprimir, era um chão negro, semelhante á profundeza insondavel do céu estrellado, onde a vingança se lhe desenhava mais radiosa, mais bella, mais arrobada de infernal prazer. Por isso, nas faces, no sorrir, no olhar, nos meneios de Fr.

Vasco havia o que quer que fosse incomprehensivel, sobrehumano; alguma cousa que faria lembrar um desses archanjos maldictos, expulsos do céu quando ainda não existiam nem o espaço nem o tempo.

Fernando não o adivinhava. O curso das idéas do mancebo tinha-se dirigido por bem diverso rumo. Vivamente commovido pelos successos dos paços de S. Martinho e, talvez, ainda mais pela recordação inesperada da prophecia do astrólogo judeu, que tão bem quadrava á sua situação, vacillara por mais de uma hora, como alheio a si mesmo, entre os terrores da morte e os instinctos da salvação.

No meio de um grande perigo, á vista do cadáver da sua victima, diante de uma dor tão profunda e legitima qual a do monge, Fernando esquecera a altiveza e o esforço brutal de que mais de uma vez dera não equivocas provas. Semelhante ao lobo colhido no fojo, que parece despojado da ferocidade nativa, havia tremido, havia-se humilhado. Animando-o com esperanças lisonjeiras, para depois lhe tornar mais amargo o desengano, o cisterciense contribuirá, todavia, para lhe asserenar até certo ponto o espirito. Sem se illudir sobre risco da sua situação; sem poder subjugar de todo o pavor supersticioso que lhe infundia o logar onde se asylara, Fernando entrara em si, e a própria confissão feita juncto ao cadáver de Beatriz a que o terrivel frade o constrangera lhe adoçara o fel do remorso. Mais tranquillo, avaliava melhor a possibilidade de evitar a sorte que o ameaçava e gradualmente ia recobrando a habitual audácia, que só naquella tremenda noite não fora igual ao perigo.

Tal era a situação intima de cada um dos dous mancebos, que, sósinhos e calados, olhavam um para o outro.

O monge foi o primeiro que quebrou o silencio. Com serenidade, com o singular sorriso que se lhe espalhara no gesto, estranho contraste do brilho que despediam as suas cavas pupillas, disse :

«Fernando Affonso, ouve-me ! Esqueceste uma circumstancia importante nessa narrativa que fizeste. Não foi só a tua indole mudavel e a corrupção da tua alma que te levaram a uma grande infamia. Houve tambem outra causa ; causa mais poderosa que todas e que está revelada neste papel escripto por ti.» E, tirando do seio a derradeira carta do mancebo para Beatriz, estendeu-a aberta para elle e proseguiu:

«É o teu ultimo adeus á mulher que tanto te amara, e sobre cujo cadáver pousou ha pouco a pedra da sepultura. Gomo se chama ess'outra a quem sacrificaste minha irman ?» «Monge, monge! --- exclamou, ao reconhecer a carta, o escudeiro balbuciante. -- Que importa.. .?)) «Importa que também eu tenho revelações que te fazer, e o nome dessa mulher suspeito que não é inteiramente alheio aos successos que vais ouvir. Como se chama ella?» Fernando pôs os olhos no chão e ficou silencioso.

«Não te lembra?! --continuou em tom pausado o cisterciense, cada vez mais risonho. -- Não admira. Passam por nós momentos de idiotismo em que a nossa alma parece dormitar. Ha pouco mais de um mez que eu padecia disso. Via como se nâo visse ; ouvia como se não ouvisse... Absolutamente idiota! Era então o companheiro do abbade de Alcobaça, que gostava do frade desmemoriado e nescio.

Não achas que era uma predilecção exquisita?!» E desatou a rir.

O moço escudeiro recuou, Fr. Vasco proseguiu.

«Fui nescio ; fui idiota ... Já o não sou.

Agora lembra-me tudo. . tudo... o passado, como se fosse presente ! ... Lembra-me, até, esse nome que tu numa hora esqueceste... o nome daquella cujo amor acaba de te despenhar do valimento de um rei na beira de um patibulo ... » Ao rir descomposto succedera no aspecto do monge sombria gravidade. Como tentando embargar-lhe o discurso, o escudeiro estendia para elle as mãos, exclamando :

«Calae-vos! calae-vos!» «Vê se podes impor silencio aos que foram testemunhas da injuria que fizeste ao teu rei e da deshonra dessa mulher ; não a mim, que preciso, que hei-de repetir-te o seu nome, para entenderes a historia com que devo entreter-te estas lentas horas da noite...» «Oh, não profaneis a desventura ! Que mal vos fez ella?...» «Ella quem? -- redarguiu o fero cisterciense, encandeiando-se-lhe cada vez mais os olhos.

-- A bella filha de Mem Viegas? A bella viuva de Lopo Mendes ? A bella dama de D. Philippa? A tua Leonor?! Nenhum! Oh, nenhum!...» A voz do frade tremia, mas era sonora como o zoar do sino, depois de cada badalada, em dobrar por morto.

Depois tornou ao seu rir d'insensato.

«Monge -- replicou o mancebo, a quem o despeito começava a agitar o animo. -- Deviavos uma reparação. Dei-a, completa, sem reserva, sem hypocrisia. Humilhei-me ante vós:

curvei-me arrependido aos pés de um cadáver. Deus sabe se fui sincero. Não posso fazer mais : véda-o a sepultura. A morte de Beatriz libertou-me de uma divida que eu pagaria sem hesitar, se ella existisse. Agora não vos pertence penetrar no intimo dos meus affectos.» Ao ouvir estas palavras, Fr. Vasco dir-se-hia que tentava reter o coração, apertando anciosamente o peito com uma das mãos, emquanto estendia a outra para o adito do carneiro sem proferir palavra.

«Bem sei; bem sei que esse coração verte sangue! -- proseguiu o camareiro, como respondendo á muda linguagem daquelle gesto. -- Mas se entre o criminoso e o crime se interpôs o perdão, porque ser implacavel contra ella, que ignorava o meu erro; contra ella innocente?

«Perdão !? Innocencia?!-- rugiu o cisterciense, dando emfim largas ao turbilhão de ódio fundo que por tanto tempo de si próprio tirara forças para se reprimir. -- Quem ousa falar aqui de innocencia? Quem ousa falar de perdão? Perdoar-te eu, malvado!? Porque?

Porque dei um juramento? Que importa isso?

Quantos tens tu dado e trahido? Foste uma vez enganado, embaidor professo! Quiz que a ti próprio te condemnasses diante de testemunhas irrecusáveis. Immolei a besta- fera á sombra ensanguentada dasua victima: nada mais...

Ah, não sabias que eu, maldicto de Deus, que eu, condemnado, vivia só para te deshonrar, para te perder, para na tua ultima agonia me interpor entre ti e a contricção e para te enviar ao inferno como precursor do frade desesperado e sacrílego?! Não sabias, não .. .

Ah, ah! ... É que apesar da minha memoria tenaz, tinha-me esquecido dizer-t'o. És ridiculo, muito ridiculo! Nessa alma calejada, nessa consciência, dormente como charco de aguas corruptas, ha ainda uma cousa pura: é a credulidade infantil. Oh, deixa-me fartar de rir!» E ria, ria, convulsamente. Essa hilaridade diabólica cessou, porém, de repente. O cisterciense correu a mão pela testa, como affastando os cabellos, e proseguiu:

«Olha bem para mim; para esta fronte. Não vês nada nella? O dedo do Senhor escreveu aqui uma palavra fatal ... Sinto-a queimar-me.

É de fogo; deve brilhar. Soletra-a, e dize-me depois se o precito pôde ter commiseração de quem o despenhou no abysmo ? Foste o meu destino máu; foste maldicção perpetua enredada teia da minha vida. Preciso de te erribar, de esmagar-te, para ao menos ter ma hora de paz antes de topar com o sepulchro... E pensavas que eu pretendia salvar?! Oh, como és insensato!» «Se quereis que vos entenda,-- interrompeu Fernando Aífonso, vacillante entre o horror e a cólera -- deixae esses mysterios; essas amealhas... Em que mais vos fiz eu mal, ou que m com isso uma desgraçada mulher ?» «É o que eu te ia explicar -- redargiu Fr.

Vasco. -- A mulher que tu amas, amei-a eu primeiro; amei-a eu como perdido. Trahiu-me por cubica; trahiu-me por vaidade. Vingueime: oh, vinguei-me bem! Mas a sua imagem estava demasiado funda nesta alma: não podia apagar-se tão facilmente. Pedi a Deus que m'a desvanecesse delia; macerei o corpo, embruteci o espirito: tudo debalde. Continuei a amá-la amaldicçoando-a, amaldicçoando a própria fraqueza. Tenho ainda ciúme, ciúme de ti, destruidor da minha ventura domestica, eu, um frade! É monstruoso; é absurdo. Não é assim ? Podia encubrir-t'o. Sobejava-me, sem isso, com que justificar o meu ódio. Não quero; não vale a pena de ser, como tu, hypocrita. Detesto-te pelas tuas infâmias: parece-me que ainda mais pelo teu amor. Não o sei ao certo ... Mas deixa me continuar a divertir-te com a minha historia... Vendida a Lopo Mendes ao menos era uma união, embora sacrílega, contrahida perante o altar. Acaso por tal motivo, ainda depois se me affigurava pura, innocente, sancta, como quando de sob as pálpebras virginaes deixava cahir sobre mim olhar inenarrável; como quando, vendo-a passar ao pôr do sol na orla da devesa que rodeiava os paços de Mem Viegas ou, á noite, encostada no balcão a contemplar a lua reflectida no lago, me vinham á mente suspeitas de que ella fosse um anjo transviado do céu, e, ajoelhando sem ser visto atraz da balsa fechada ou da arvore corpulenta, a adorava de longe em delicioso extasi. Lopo Mendes era um demonio que polluia o meu anjo: devia expulsá-lo da terra. Expulsei-o ... Foste seu amigo, e ainda hoje ignoravas, como todos, o mysterio que encubria a ultima pagina da sua vida. Agora não te parece claro?» Fez uma breve pausa. O escudeiro, attonito e horrorisado, nem pestanejava. Fr. Vasco proseguiu com feroz ironia:

«Dizem que aos que vão morrer illumina de súbito comprehensão sobrehumana ... Se assim é, has-de comprehender o que te digo ! .. . Depois curti remorsos. Mas, ao menos, sabia que o viuvo leito de Leonor, como o do anjo de outr'ora, era solitário. Consola-me com esse engano... Sim, engano; porque era illusão e mentira ! ... Virgem, havia quebrado sua fé, mercadejando com a formosura:

domna, prostituia-se a ti, a outros, eu sei lá a quantos ? ! ... Prostituia-se como as concubinas de Babylonia ao primeiro que passava ...» Aqui, um grito que partira dos labios de Fernando o interrompeu. A injuria pungente vibrada contra Leonor varrera num momento da memoria do mancebo todas as difficuldades da sua situação. Aquelle ciume odiento, encanecido nas trevas, que se lhe punha diante, nú, irónico, inexorável, accendia nelle outro não menos impetuoso. Ferida num sentimento vivo e profundo, o amor, a sua alma erguia-se irritada pelos impulsos da indignação e acceitava o combate.

«Mentes, frade ! -- bradou o escudeiro. E balbuciava, como buscando affronta mais brutal com que trocasse golpe por golpe. -- Mentes I .. . Alguém se entregou sem pejo ao que passava; mas não foi Leonor ! ... Uma concubina tive eu já; mas era de raça tão vil, que os lupanares exigiram de mim a herança que lhes pertencia. Larguei-lh'a. Que te parece?

Fiz mal?» Era impio este coar do insulto através do sudario que envolvia um cadaver. Os dentes de Fr. Vasco bateram uns nos outros, como se frio intenso o houvesse traspassado. Por outra parte, quem naquelle momento observasse Fernando Affonso distinguiria facilmente, apesar da frouxa luz que mal allumiava a igreja, o tremor que lhe agitava os membros e a extrema pallidez que lhe tingia o gesto transtornado. Immoveis, mediram-se com a vista por largo espaço. Seria impossivel dizer quanto rancor havia nesse olhar. Depois, inflexíveis como duas estatuas arrastadas sobre os seus pedestaes, aproximaram-se, levando machinalmente a mão á cincta. Estavam desarmados. Ao som de rugido unisono, que repercutiu pelas naves, atiraram-se aos braços um do outro. Por alguns minutos, não se ouviu mais nada senão o seu respirar afadigado e, de quando em quando, um pé que escorregava nas lageas do pavimento. Naquelle logar, áquella hora, sobre as cinzas tranquillas dos mortos, era repugnante e sacrilega essa lucta de selvagens. Um baque soturno soou finalmente. Fernando cahira. Opprimia-lhe o peito um joelho do monge; cujas mãos encurvadas e hirtas lhe cingiam a garganta como aro de ferro. Os olhos do vencido, saíndo-lhe das orbitas, injectavam-se de sangue e o sangue começava também a tingir os frocos d'escuma que lhe bufavam nos cantos da boca semiaberta. Dir-se-hia o tigre estendido sob as garras do leão após combate desesperado.

Como a lava golfando da cratera fervente, phrases abruptas e vertiginosas romperam então do seio de Fr. Vasco. Parecia ter esquecido de repente o desgraçado objecto do seu odio quasi infinito e dirigir-se a alguem que elle só via. Era uma larva, filha da sua imaginação enferma? Era realidade? Fosse o que fosse, o cisterciense murmurava:

«A que vens aqui ? ... Os remorsos ? E que importam os remorsos?... Matei-te; é verdade ! Matei-te como um cão, sem sacramentos, sem um instante para implorares a misericórdia de Deus ... E que tem isso ? ... Porque a devoravas com beijos? Porque a apertavas entre os braços ?... Vai-te! Vai-te! Se essa foi a tua sorte, qual será a delle quando eu poder vingar-me?» «A mesma, assassino ! ... A mesma, infame frade ! ... » Estas vozes roucas, proferidas a custo por Fernando Affonso, despertaram o monge daquella espécie de pesadello. Com a volubilidade de idéas de um louco, replicou, afrouxando gradualmente as mãos em volta do pescoço do escudeiro:

«A mesma?! ... Que sabor tinha isso? Matar-te ? Affogar-te, assim singelamente ? Não I.. .

Hei-de lançar-te deste asylo, como uma cousa torpe e immunda. Hei-de entregar-te aos que te espreitam, semelhantes aos monteiros que aguardam o javali na clareira das brenhas.

Hei-de acompanhar-te ao cadafalso, offerecendo-te em voz alta as consolações da religião e insultando-te em voz baixa. Com a mordaça na boca, amarrado ao poste, quando o fogo se te enredar nas roupas, quando as carnes se te despegarem dos ossos, e os ossos te estalarem como um toro incendido, ouvir-me-has amaldicçoar-te ... Moribundo, desesperado, ao estorceres-te na derradeira agonia, soltando a suprema blasphemia, ajudar-te-hei com as minhas malicções a dar a alma aos demonios Não te parece isto mais grandioso do que o assassinio de Lopo Mendes? Não sou mais liberal comtigo?» Queria rir ainda uma vez, e apenas soltou um gemido semelhante a pio melancholico de noitibó. Fernando queria tambem, porventura, vibrar-lhe alguma injuria nova; mas só pôde arrancar do peito sons inarticulados. A igreja dançava-lhe em roda, como estonteiada: o silencio zumbia-lhe úos ouvidos, como enxame que volteia inquieto ao redor do cortiço. Por fim perdeu os sentidos.

O frade largou-o então, ergueu- se e pôs-lhe o pé sobre a fronte. Depois, recuou um pouco, e cuspiu-lhe nas faces.

O miserável escudeiro não dava tino de nada, Fr. Vasco pôs-se a passeiar. Parava de quando em quando, ora a escutar os passos lentos da sentinella que guardava a porta da igreja, ora a mirar o céu pelos esguios freslões, através dos quaes apenas coava indeciso o raio tenue de alguma estrella, perdido na escuridão do espaço.

Que esperava o cisterciense ? Esperava pelo dia, pelo sol, gloriosa imagem de Deus que nos ensinou o perdão, para arrastar o asylado até o pórtico do templo e entregá-lo aos besteiros da guarda.

Com o chanceller, a quem pertencia ordenar tudo o que tocava ao triste espectaculo dos supplicios, tinha ajustado D. João d'Ornellas fazerem com que um monge de S. Paulo acompanhasse Fernando Affonso a Valverde, no caso de sua senhoria não revogar a sentença que fulminara. Por mil razões theologicas, o bom do abbade lhe demonstrara que não haveria quebra do sigillum confessionis, se por tal meio se podesfeem obter do criminoso alguns esclarecimentos, úteis á paz e socego da republica, sobre as machinaçôes politicas dos fidalgos.

Era uma consideração a que não havia resistir. Nas revelações do condemnado podia apparecer alguma circumstancia que, até, compromeltesse Nunalvares. O ministro de D. João I folgava todns as vezes que, sem quebra da sua melindrosa consciência, se lhe offerecia ensejo de concordar com um intimo amigo, servindo ao mesmo tempo a patria.

O digno prelado tambem exposera ao doutor de Pisa a sua idéa de proporcionar ao escudeiro os meios de fuga, para assim acirrar a sanha real, e a todas as objecções de João das Regras respondera com uma unica phrase. Compromettia-se a fazer, sem bulha, sem escândalo, que a immunidade da igreja de nada aproveitasse ao asylado.

Contava cora o cisterciense. Por isso este esperava o dia com feroz tranquillidade.

Quando o escudeiro, exhausto da lucta, recobrou os sentidos, a energia moral que o amor e o ciume lhe emprestaram tinha-se desvanecido. Fora a derradeira mordedura do reptil que se esmaga. Dominavam-no de novo O terror e a angustia. Instinctivamente, porque a faculdade de reflectir estava nelle paralysada, foi-se arredando pouco e pouco, até que se assentou desfallecido no suppedaneo do altarmór. Como se não o visse nem sentisse, o monge continuava a passeiar.

XXXIX

CONCLUSÃO

E levarom-no atá o rocio, hu estava hum esteyo posto, e muita lenha pêra o queimar. . e deromlhe o fogo: e assi morreo.

Fern. Lopes. - Chron. de D. João I.

O chanceller de Portugal e o abbade de Alcobaça eram, cada qual por seu feitio, dous homens d'estado, dous homens admiráveis.

Na serie dos complicados successos que deram assumpto á presente narrativa, no meio de tantas paixões más agitadas, de tanto minar subterraneo, o chefe dos monges brancos mostrara não somente mais energia e actividade, mas também mais invenção e agudeza.

Todavia, bem como de dous lenhadores igualmente robustos e destros, muitas vezes o golpe vibrado pelo mais remisso é o que faz tombar a arvore já vacillante, do mesmo modo ao bonacheirão do doutor de Pisa foi quem coube a honra de fazer escorregar o commum inimigo da aresta do abysmo onde se balouçava.

Sem ser arrastado por um rancor tão profundo como o do venerável prelado, o discipulo de Bartholo não podia relevar a Fernando Affonso o haver-se lançado como tropeço nos seus caminhos, ligando-se tão estreitamente com a parcialidade da fidalguia, alcateia de brutos ignorantes (quasi asini illiterati era a expressão do erudito ministro quando alludia aos seus adversários), só comparável a furacão que de continuo açoutasse a arvore mimosa do absolutismo, educada por elle com paternal carinho. Depois, parecia-lhe cousa intolerável que uma creança, um nonada politico, tivesse a petulância infantil de quinhoar a privança do principe, privança de que Nun'alvares lhe usurpava já tão avultada parcella. Entendia que todo e qualquer ascendente no espirito de D. João I que não fosse subordinado ao seu era cousa absurda e, além de absurda, altamente damnosa ao bem commum, unico alvo das fadigas e cuidados do velho ministro; porque, bem como todos os ministros velhos e novos (sabemo-lo por experiencia quotidiana), o doutor João das Regras ardia em sancto amor da pátria.

Á vista de tão macissos fundamentos, ainda a mais candida alma poderá ajuizar quão boa vontade o austero jurisconsulto teria ao camareiro -menor. Fernando estava, porém, ligado por laços de sangue com um homem resoluto fautor do mesmo schema social que elle se proposera, e cujas opiniões eram profundamente acatadas no conclave dos barbas grisalhas. Escudava-o, além disso, a benevolência do primeiro prelado de Portugal, o arcebispo D. Lourenço, cujo báculo mais de uma vez se transformara em hastea de lança, e o pluvial em couraça; personagem querido igualmente do rei e do povo, e com quem seria imprudente combater face a face. Como anteriormente vimos, essas considerações tinham-no feito acceder aos designios de D. João d'Ornellas com mais circumspecção do que o digno prelado desejara. Quando, porém, este, seguro de que não vibraria em vão o golpe, lhe revelou por quão escorregadia ladeira o próprio Fernando Affonso se precipitara, João das Regras associou-se á execução dos planos do monge com toda a lealdade que a indole lhe consentia, predispondo, todavia, as cousas de modo que nem João Affonso nem o arcebispo viessem nunca a suspeitar que elle e o illustre chefe dos monges brancos tinham estado agachados no fundo do precipício e collocado ahi a pedra em que o mancebo devia esmagar a fronte quando se despenhasse.

Assim, de commum accordo se ordenara entre os dous o drama que viera enxerir-se no sarau dos paços de S. Martinho, e cujo ultimo acto tinha de representar-se nas taboas do cadafalso. O leitor assistiu á maior parte das scenas da terrível farça. Das restantes apenas podemos dar-lhe a rápida e, talvez, incompleta descripção que nos ministra o nosso manuscripto, resumido mais do justo nesta parte. Convenientemente vestidas, as fugitivas memorias do antigo chronista encheriam muitas paginas; mas, demasiado meticulosos e proluxos em não perder a reputação de veracidade, seria para nós impossível o não conservar puro e intacto o venerável monumento de melhores eras. Por isso, abstendo-nos de invenções embusteiras, limitamo-nos a trasladar na depravada linguagem de hoje o texto immaculadamente garrafal e classicamente inintelligivel do velho codice monastico.

Eis os factos:

A luz que nos paços silenciosos de S. Martinho fulgia única, depois dos acontecimentos ahi Decorridos, e que suspeitavamos procedesse de lampada esquecida por somnolento moço de reposte, continuou a ver-se até alta noite. Vinha de vários brandões que ahi se haviam coUocado; porque, depois da prisão do joven valido, elrei, em vez de se recolher á sua camará, tinha ido encerrar-se no gabinete particular, onde os pagens da tocha, que esperavam no corredor contiguo, o sentiam passeiar agitado.

Entretanto o chanceller, que lhe observara os passos, havendo falado poucas palavras com o abbade, que immediatamente voltara á estudaria, abalara para a pousada de João Affonso de Santarém. Descrevendo ao attonito magistrado a arriscada situação em que por criminosa imprudência o camareiro-menor acabava de collocar-se, o velho ministro mostrava-se vivamente irritado do modo como as suas sollicitações e conselhos haviam sido repellidos. Entendia que ao seu honrado amigo não era licito demorar-se um instante em empregar todo o peso que davam ás suas supplicas a sciencia, a virtude e os largos serviços para salvar um irmão, cujo proceder para com aquelle que tanto devera amar e respeitar não tinha, na verdade, sido jamais ajustado pelas regras da honestidade. Na sua humilde opinião, não era este o momento de taes cousas se recordarem. Não lhe faltavam a elle proprio razões de queixa contra Fernando -- o seu digno collega não o ignorava -- e todavia fora o primeiro em esquecê-las, quando se tractava de uma questão de vida ou de morte. Entendia, em summa, que devia acompanhá-lo a S. Martinho, onde ambos junctos mitigariam o animo d'elrei até o ponto de obter, senão o pleno perdão do culpado, ao menos o minorar-lhe uma pena cruel e desproporcionada ao delicto.

O chanceller falava com tal vehemencia; pareciam virUanto da alma aquellas palnvras, que João Affonso, concordando em segui-lo, acreditou inteiramente na sua sinceridade.

Também era isso o que elle queria.

Foi, porém, na presença d elrei que o talento dramático do grande ministro se revelou em toda a sua sublimidade. Na apparencia, apenas se diria um eccho das supplicas do afflicto jurisconsulto. Só quem alcançasse penetrar no abysmo daquella alma tenebrosa comprehenderia até onde pôde chegar a dissimulação humana. Por entre as expressões mais humildes e conciliadoras escapava-lhe ora uma palavra, ora um gesto, ora uma phrase, a qual, no momento em que o monarcha vacillava entre a severidade e a misericórdia, ia vibrar-lhe uma corda aspera; ia pungi-lo num sentimento que, durante cinco annos, as doutrinas dos seus letrados, e em especial a do chanceller, lhe haviam encasado profundamente no espirito. Este sentimento era o do seu poder illimitado. Embora affectasse não esquecer jamais que a eleição popular o elevara ao throno, a idéa, demasiado romana, que concebera da omnipotência real tornavaIhe o coração, naturalmente humano e generoso, duro e até cruel quando alguém ousava oppôr á sua auctoridade suprema os foros, direitos ou liberdades nacionaes. Habilmente aproveitada, esta contradicção entre os instinctos de consciência do rei popular e as tradições do despotismo imperial fora um meio poderoso que o chanceller achara para o convertei, em conjuncturas taes como esta, num instrumento dos seus desígnios, ao passo que cria obedecer aos impulsos da propria vontade.

Assim, emquanto parecia sustentar as supplicas do seu collega com um zelo que só peccava por excessivo, João das Regras dava tempo a que se verificasse um lance que devia pôr cimo e remate ao plano que elle ajudara a aperfeiçoar, mas que nascera na mente do illustre prelado de Alcobaça -- do seu melhor amigo.

Furioso pela violencia com que se facilitara a fuga do camareiro-menor, o anadel dos besteiros, depois de distribuir a sua gente de modo que a ninguém fosse possivel evadir-se, dirigira-se pressuroso aos paços de S. Martinho. Era o seu intuito esperar o dia e, logo que podesse falar a eirei, dar-lhe conta do extraordinário successo que occorrera. Não tardou, porém, a saber que D. João I estava no gabinete particular. Alguem affirmava, até, que, passando pelo corredor contiguo, ahi vira os pagens da tocha e ouvira lá dentro a voz chirriante do chanceller, a d'elrei e a de uma terceira pessoa, que pareciam vivamente disputar.

Então o irritado anadel positivamente declarou que era impossível deixar de nessa mesma noite falar a sua senhoria. Não houve, portanto, remédio senão ir interromper os mysterios do sanctuario, porque, como sabemos, o celebre gabinete de S. Martinho era um sanctuario de difficil accesso para o vulgo profano. O coração do chanceller dilatou-se.

Era por este incidente que esperava.

Apenas, de feito, elrei soubera o que o capitão dos seus reaes besteiros pretendia, ordenara que immediatamente entrasse.

O leitor, que, por certo, não esqueceu qual fosse o caracter do bastardo de D. Pedro I, caracter herdado deste príncipe impetuoso, conceberá facilmente o eífeito da narrativa do anadel no seu espirito, onde com arte diabólica o privado nâo deixara esmorecer o sentimento da indignação. O olhar que fitou nos dous sabedores equivalia a um preceito de absoluto silencio. Elle também o guardava, terrível como a calma que presagia o estourar da procella. Pegando arrebatadamente na chave da communícação exterior, que o chanceller deixara em cima da grande mesa, sobre a qual ainda se viam os dous fólios comprados a micer Allighieri, D. João I abriu com violencia a porta, fez signal ao anadel para que o seguisse e sumiu-se no escuro patamar que dava para a rua de S. Martinho.

Que ia fazer assim a deshoras o rei de Portugal?

Cego de furor, dirigia-se á igreja de S. Paulo.

Fora um impulso irresistivel de cólera a que cedera. Galgava a passos largos a Íngreme calçada que, passando pelo adro da estudaria, terminava á porta da Al fofa, aberta na cerca romana ou visigothica da primitiva Lisboa. Tão embrenhado ia nos seus negros pensamentos que não deu tino de um vulto, o qual passou por elle correndo na mesma direcção. O anadel tinha-o visto, mas deixou-o correr, porque o reconhecera logo. Era uma pessoa indifferente; era Alie, o maninello de sua real senhoria.

Como os bésteiros haviam recebido ordem para impedir, não a entrada, mas a saída do collegio, o mouro penetrou ahi sem obstaculo, do mesmo modo que, obra de duas horas antes penetrara D. Joào d'Omellas, isto é, pela portaria, debaixo de cuja alpendrada, roncando e assobiando, esperava ainda, por ordem do abbade, o barbato que naquelle dia substituirá Fr. Julião.

Postoque com bem poucas esperanças de mitigar a ira d'elrei, o grave conselheiro da coroa, tão ingenuamente mystiticado pelo seu digno collega, quizera partir após o monarcha.

Dissuadiu-o, porém, dessa idéa o chanceller, ponderando-lhe quanto os primeiros Ímpetos d'elrei eram arrebatados, e que por isso qualquer tentativa para o abrandar seria por então inútil; que o mais prudente era mandar sem detença um mensageiro a Nun'alvares e outro ao arcebispo D. Lourenço, e fazer com que toda a fidalguia que se achava na corte viesse pela manhan ao paço implorar a misericórdia do principe otTendido; que, ainda quando este ousasse quebrar o asylo ecclesiastiço, -- do que duvidava -- nem por isso deixaria de haver tempo de se tentarem todos os meios d'impedir o caso lastimoso que se temia, com mais probabilidade de bom resultado.

Apenas João Affonso, a quem não passava pelo espirito a menor duvida acerca da sinceridade do valido, saiu para pôr por obra aquelles arbitrios, o chanceller deixou-se cahir na grande poltrona e desandou uma das suas chirriantes gargalhadas. Depois de ter dado largas á hilaridade que o acommettera e que terminou por um daquelles frouxos de tosse a que se habituara, para fazer acreditar aos seus emulos que poucos annos -- talvez apenas mezes -- lhe restavam de vida, João das Regras ergueu-se, abriu a porta interior do aposento, disse o que quer que foi aos pagens da tocha, tornou a fechar-se por dentro, refastelou-se na poltrona e de novo desatou a rir e a tossir cacheticamente. O bom do velho era de si folgasão.

Em menos de um credo, por todo o paço constava que sua real senhoria se abalara para as bandas da alcaçova, a pé, e sem que os pagens da tocha podessem segui-lo. Não acabavam naquella noite os casos extraordinarios, e este não era um dos menos singulares. Cingindo apenas as espadas, ou inteiramente desarmados, os cavalleiros e escudeiros de serviço topavam uns nos outros, correndo confusamente para o átrio, por onde já alguns monteiros com suas ascumas, os pagens com tochas, e os sergentes com fogaréus e fachos se precipitavam para a rua. Adiante, porém, de todos o maninello tinha transposto o portal e correra a tomar a dianteira d'elrei, em virtude de certas recommendações do abbade.

As occorrencias que temos referido coincidiam com as scenas da igreja de S. Paulo, que no antecedente capitulo tentámos descrever. A ordem da narrativa da nossa chronica obriga-nos agora a pedir ao cortez leitor que de novo nos acompanhe ao collegio do bispo Jardo.

Passara algum tempo desde que o aterrado escudeiro fora cahir exhausto juncto do altar-mór, quando a porta da sacristia se abriu de súbito, e o vulto de corpulento frade appareceu no limiar. No seu ir e vir d'insensato, ou antes de tigre enjaulado, Fr. Vasco foi topar com esse vulto que se dirigia para elle. Era o abbade que parecia inquieto. Pararam ao mesmo tempo. Em tom submisso, unidas quasi as frontes, os dous monges falaram alguns instantes. No gesto de Fr. Vasco pintava-se a hesitação ; no do abbade a impaciencia. -- «Não te escapará, não ! ... -- dizia este alleiando a voz.-- Teu até o cadafalso! ... Prometti: hei-de cumprir. Mas agora importa que saias d'aqui... Ei-lo que vem, elreil Seguem-no...

Ouves ?» -- Calou-se e escutou. De feito, um sussurro confuso, que ao longe quebrava o silencio da noite, e alguns vagos clarões, que de vez em quando vinham repintar desbotadas as cores das vidraças pelos fustes dos pilares e pelos langos das paredes, pareciam mover-se, vacillar, crescer do lado de S. Martinho. Depois de breve intervallo, ao brado de um dos besteiros respondeu a voz do seu chefe, e logo após ella os dous frades perceberam distinctamente a delrei. Sentiu-se então o estrupido das sentinellas, que corriam em tropel para o átrio da igreja, e os contos das bestas bateram a um tempo nas lageas do adro. Entretanto o clarão tremulo dos fachos reverberava cada vez mais forte através dos frestões ogivaes, e pelas abobadas do templo reboava, já bem distincto, o fragor do tumulto que se acercava do lado de S. Martinho. Lançando a mâo ao braço de Fr. Vasco, ainda indeciso em abandonar a sua presa, D. João d'Ornellas arrastou-o após si e desappareceu com elle na passagem escura da sacristia.

Ainda os passos dos dous, monges soavam nas trevas, quando as portas da igreja gemeram oscillando. Os hombros dos mais alentados besteiros se haviam encostado a ellas, como outros tantos vaivéns. Baldados os primeiros esforços, tres vezes se repetiram. Emfim, os anéis do ferrolho, que Fr. Abril correra ao retirar-se, estalaram, e elrei, seguido da sua guarda pean, precipitou-se para o cruzeiro. Quasi ao mesmo tempo, a turbamulta de cavalleiros e escudeiros, de pagens e sergentes, vinda do lado de S. Martinho, invadia o portico. O fulgor vermelho das tochas e fogaréus, o tinir dos ferros, o ruído dos pés e o agitar de tantos vultos enchiam de momento e de vida o melancholico recincto, onde havia um instante reinava quietação sepulchral.

Abysmado num pelago de terrores e incertezas, de desesperação e de raiva impotente, o desgraçado escudeiro, para cuja ruina tudo parecia conspirar, não dera tino nem da vinda de D. João d'Ornellas, nem da partida dos dous frades. O estourar, porém, das portas, o estrondo dos passos, a luz viva que tudo illuminara de súbito, o scintillar de muitas espadas que se haviam desembainhado, o murmurio dos que seguiam o rei sem saberem ao certo que tenções eram as suas, despertaram no mancebo, com a idéa vaga de imminente perigo, os instinctos da salvação. Trepando machinalmente ao altar, foi abraçar-se a uma imagem da Virgem ahi collocada. Com um accento de indizível agonia, bradava : -- «Asylo !

asylo!» -- Debalde. A figura d'elrei, daquelle que tanto o amara, pallido, transfigurado, com as roupas em desalinho, via-a ante si, em pé sobre o suppedaneo, e fitando nelle esse olhar irresistivel que esmagava a audácia dos mais esforçados. Era uma visão diabólica de pesadello? Era realidade? Fechou os olhos: mas apenas os cerrara, sentiu mãos que lhe apertavam o pulso como aro de ferro ; sentiu o halito ardente do rei, que lhe batia nas faces banhadas em suor frio. Precipitado por cima do altar, veio bater de bruços na borda do suppedaneo, e a imagem da Mãe de Deus baqueiau d'envolta com elle. A um signal de D.

João I, os besteiros conduziram ou antes arrastaram para fora da igreja o malaventurado, que, reduzido a uma espécie de paralysia moral, perdera, até, a consciência do seu tremendo destino.

As ameaças de Fr. Vasco realisavam-se em grande parte mais cedo do que elle dissera, e Fernando era arrastado ao supplicio por braço mais robusto que o seu.

No restante, porém, só o monge as podia cumprir, e havia um homem que lhe promettera esse prazer infernal.

A attenção d'elrei foi neste momento distratíida por estranho espectaculo. Ao lado do reitor, e á frente da communidade rojando as amplas cogullas cistercienses, D. João d'Ornelas saía da sacristia revestido com as insignias abbaciaes. Vinha protestar solemnemente contra a quebra das immunidades da igreja, contra a profanação do sanctuario e, ainda mais uma vez, contra a execução da cruel sentença que condemnava um infeliz ao ultimo supplicio, sem as consolações da religião, sem estar preparado para apparecer ante o supremo juiz.

D. João I escutou silencioso a longa arenga do venerável prelado. Quando este acabou respondeu-lhe seccamente que, pela quebra das immunidades da igreja, daria conta de si ao sancto padre, e pelo rigor da sua justiça a Deus; que não era a sua intenção impedir o arrependimento do criminoso, punindo além da morte ; que, finalmente, ao digno e religioso prelado deixava liberdade inteira de tornar menos amargas as derradeiras horas desse desventurado com os consolos da fé.

Emquanto o abbade falara, o monarcha tivera tempo de reflexionar que era, emfim, tempo de reprimir o impeto da paixão e de retomar o porte e a dignidade de rei. O tremor da sua voz e o seu olhar irritado revelaram, porém, quão pouco o espirito estava accorde com aquella linguagem placida e moderada.

Tendo assim repellido a ousadia do seu esmoler-mór, o príncipe virou-lhe as costas, atravessou pela nave central abaixo e, seguido dos seus cavalleiros e escudeiros e precedido dos pagens da tocha, desappareceu no átrio.

O abbade acompanhou-o com a vista até o portal. Depois ergueu os olhos ao céu, cruzou as mãos sobre o peito, curvou a cabeça e murmurou :

«Fiat voluntas tua, domine!» As lagrymas escorregavam-lhe pelas faces a quatro e quatro. Era uma cousa em que levava as lampas ao seu melhor amigo, o doutor de Pisa. Sabia chorar.

Feita aquella pia visagem, voltou-se para a communidade, mirando as duas alas da fradaria, e chamou :

«Irmão Fr. Vasco !» O monge aproximou-se.

«Este homem que vai morrer oífendeu-vos outr'ora profundamente, meu irmão. Por meio delie vos visitou o senhor com todo o fel de amargura que o coração humano pôde soffrer sem estalar. A historia de vossa irman deixou de ser um mystf rio para esta sancta communidade. Pois bem. Dae-lhe um grande exemplo. Sede vós quem abra os thesouros da misericórdia divina ao que vos fez desgraçado, desgraçado digo, por me servir da van linguagem do mundo. Sede vós quem lhe aponte a estrada que conduz ao céu. -- Quem me quizer seguir abnegue de si e tome a sua cruz -- disse Christo; e tambem -- amae os inimigos e bemfazei aos que vos odiaram.-- Filho de S. Bernardo, animo! Tomae vossa cruz e, cumprindo o preceito divino, ganhae uma alma para Deus.» Fr. Vasco abaixou resignadamente a cabeça. Obedecia sem murmurar.

Os circumstantes estavam commovidos e edificados.

Dentro de meia hora ninguem diria que na igreja de S. Paulo e no seu adro se haviam passado pouco antes as scenas de terror, de ódio, de violência e de hypocrisia descriptas nas precedentes paginas. A aurora que vinha Tompendo encontrava ahi tudo calado e deserto. Apenas a bafagem da madrugada, engolfando-se nas sineiras da torre, sussurrava um hymno de paz.

Quando pela manhan os ricos-homens de Portugal, os officiaes da coroa e os mais illustres prelados que se achavam na corte, entre os quaes avultava moral e materialmente o abbade de Alcobaça, vieram lançar- se aos pés de sua real mercê a implorar o perdão de D.

Fernando Affonso, sua real mercê dormia profundamente. Debalde o afflicto João Affonso de Santarém rogou, ponderou, ameaçou para que o accordassem. As ordens em contrario eram explicitas e positivas. Depois de voltar de S.

Paulo, D. João I ainda fora muito tempo relido pelo chanceller, que não abandonara o seu posto no gabinete particular. O doutor de Pisa tinha-lhe provado com um chuveiro de textos e de argumentos que a fatal sentença não podia ser executada. O monarcha ouviu-o com a mesma constrangida placidez com que ouvira o sermão do abbade. No fim refutou-o com tres palavras:

«Era sua vontade.» Só, portanto, restava -- para o camareiro o morrer, e para sua senhoria o ir deitar-se.

Foi o que succedeu.

Havendo esperado boa parte do dia, os prelados e cavalleiros foram saindo do paço tristonhos e cabisbaixos. De boca em boca passara uma terrível nova : ~~ Tudo estava consummado!

Na taberna israelitica da rua de Gileanes, abancados em frente de ura pichei, conversavam ao anoitecer o armeiro João Pires e o almuinheiro Ruy Casco. O objecto da conversação era o mesmo que a essa hora dava assumpto em toda a cidade a mil ponderações, disputas, averiguações e commentarios.

João Pires tinha assistido ao supplicio do seductor de Beatriz. Na alma rude do armeiro o atroz espectáculo deixara a impressão indelevel de horror, postoque nem elle nem ninguém, d'entre as turbas de povo que uma curiosidade brutal attrahira a Valverde, suspeitasse quaes agonias a vingança enfeixara em volta da agonia da morte; que tractos invisiveis, inappreciaveis, quasi infinitos, o ódio encanecido dos dous cistercienses tinha aiunctado á punição mais cruel das epochas de barbaridade.

A predicção de mestre Guedelha, ou mais exactamente a de mestre Zacuto, havia-se cumprido á risca. A opa de rei, a garnacha de doutor e o habito de frade estavam no horisonte do cadafalso; lá estava também tres vezes escripto o nome de João. Mas a prophecia dos astrólogos fora, apesar disso, incompleta.

Havia mais uma estamenha de monge, que, semelhante á camisa de Nesso, se acingira á victima do fatal horoscopo -- e era justamente essa a que não tinham descortinado no céu.

O espectáculo dado em Valverde pelo mestre d'Aviz aos seus bons burgueses enchera Lisboa de assombro, tanto pelo imprevisto, como pelas circumstancias que o acompanhavam. Aproximando-o dos açoutes do catalão revolucionário, era como o inverso do moderno espectáculo theatral A farça precedera a tragedia. Os boatos que corriam acerca dos motivos de tão extraordinario successo eram desvairados e contradictorios. O mais exacto que o armeiro tinha podido apurar, aquillo em que todas as pessoas sisudas acreditavam, desprezando fabulas e encarecimentos, era que o escudeiro, havendo brutalmente violado tres filhas de um cavalleiro pousado d'elrei D. Fernando, coroara a sua obra infame assassinando o pobre velho. Lançado no caminho da perdição, por artes de certa bruxa chamada Domingas, celebrara um pacto com o diabo, e por conselho e favor do espirito das trevas entrara muitas noites através das paredes (outros diziam pelas fechaduras; a opinião publica discordava neste ponto, e ambas as versões eram igualmente plausiveis) nos aposentos das damas do paço, abusando da innocencia de varias donzellas por meio de feitiços.

Avisado de todas estas gentilezas, na véspera á noite, por um franciscano chamado Fr. Isidoro, a quem a bruxa arrependida as tinha manifestado á hora da morte, elrei ordenara que o criminoso escudeiro fosse conduzido ao rocio de Valverde e. ahi sem detença queimado.

Ruy Casco teve tentações de lhe dizer que a opinião publica mentia desaforadamente pelo que tocava á bruxa Domingas; mas conte vese, porque podia tractar-se de outra Domingas. Depois, o almuinheiro era assas prudente para não ir de encontro á tradição e crença communs, que, como todos sabem, são as mais seguras fiadoras da verdade e as mais solidas bases da historia. Além disso, que necessidade havia de mexericar o desastre que presenceiara á Porta-do-ferro? Pela lingua morre o peixe, e elle não tinha vocação para martyr. Gontentou-se, portanto, com mostrar certa incredulidade acerca do pacto celebrado entre o escudeiro e o diabo.

«És um parvo, homem ! -- redarguiu estimulado o armeiro. -- Não falarias assim, se visses o que eu vi em Valverde. Um frade bernardo acompanhava o padecente -- frade de lei me pareceu --- fazendo prantos e pregação em voz alta, e arrazoando com elle em voz baixa. Devoto e sancto devia ser seu ra^ zoar; porque o demónio, que entrara no corpo do miserável, assanhava-se com ouvi-lo, e o escudeiro que ia... como iria elle? ... tornava a si de seu desmaio e escumava e praguejava e doestava o pobre padre, segundo se rogia entre o povo. O que eu sei é que vi cá de longe pôrem-lhe os meirinhos e algozes mordaça, para que o diabo não podesse arrevesar mais sandices. Os uivos que depois dava ouviam-se em toda a praça. Fazia arripiar! E o frade, sempre animoso, teimava em querer reduzi-lo. Subiu com elle ao cadafalso, viu-o amarrar ao poste, e quando a fumarada negra já rompia por entre as taboas do estrado, foi preciso tirá-lo á força d'ao pé do padecente.

E no fim? No fim de contas não fez nada:

que o escudeiro, voltando a cara ao crucifixo, morreu impenitente e derramado. Quando o monge chegou a descer, já o povo clamava, voz em grita -- deixe-o, padre, deixe-o ! -- Dize agora que não andava ahi o diabo. Nada, não !... Jesus, sancto nome de Jesus ! Parece-me que ainda o tenho diante dos olhos. Nunca eu fora ver tal!» João Pires persignou-se devotamente. Ruy Casco não tinha que responder. A conclusão do armeiro era rigorosa, e as premissas delia factos indubitáveis, presenceiados por centenares de pessoas. Quando as cousas chegam a tal evidencia é fácil atinar com a verdade.

«Rua ! -- gritou mossera Nathanael apenas João Pires acabou de benzer-se. Não ouvem o sino de colhença f Rua ! que o almotacé trazme de olho, e a muleta é soffrivelmente pesada.» Se era medo do almotacé, se era zanga por ver o armeiro fazer o signal da cruz, é o que não parece tão fácil de demonstrar como a possessão diabólica de Fernando Afíbnso e a caridade do monge que o acompanhara ao patibulo.

Os dous saíram resmungando, e o judeu fechou a porta. Fazia escuro. João Pires tomou para a rua de D. Mafalda, onde morava mestre Alberte, e o almuinheiro desceu para os Açougues-velhos e seguiu pelos cubertos da Rua-nova para a banda da porta da Oura, caminho de Restello.

XXX

ADDENDA

Numa folha deixada em branco no fim do codice pergaminaceo que nos conservou esta historia havia varios paragraphos de letra mais moderna, contendo noticias de algumas das personagens que figuraram nos acontecimentos até aqui, relatados, personagens cujo ulterior destino o chronista antigo deixara de pòr em escríptura. A letra parecia dos ultimos annos do século xvi, quando os adeptos da eschola de Brito e Lousada tomavam por seu desaffogo o povoar de patranhas as solidões do passado. O moderno dos caracteres e a epocha embusteira em que essas addições haviam sido accrescentadas tornavam assas duvidosa a sua authenticidade. Entre o desejo de alimentar a curiosidade do leitor e o receio de faltar á exacção histórica, hesitavamos perplexos, como o asno de Buridan entre as duas taleigas de cevada. Emfim, resoivemo-nos a publicar em substancia o conteúdo dos suspeitos paragraphos, com o protesto de que não respondemos pela sua veracidade.

Eis, em summa, o que nelles encontrámos:

No dia immediato ao do supplicio do escudeiro, elrei mandou chamar ao paço o antigo cavalleiro da ala dos namorados. Desejava saber se estava satisfeito com a sua real justiça.

Mas o antigo cavalleiro não appareceu. Fr. Julião não o vira entrar essa noite. O reitor ignorava o seu paradouro : ignorava-o o próprio D. João d'Ornellas. Fizeram-se mil diligencias. Foi tudo perdido trabalho.

Tinha-se acaso suicidado? O abbade, que, melhor que ninguem, sabia qual era o abysmo de desesperação cavado naquella alma, desconfiava disso. Convinha-lhe, todavia calar-se.

A sorte de Fr. Vasco tornou-se, portanto, um mysterio que ninguém podia descortinar.

Leonor, logo que soube ter-se cumprido a horrivel sentença, que ella própria ouvira proferir contra o seu amante, mandou perguntar a elrei se devia também dispôr-se para morrer. O monarcha respondeu que não; que delia, tão illustre por sangue e estado, era vingança sobeja o haver sido barregan de um obscuro escudeiro. Expulsa do paço, a formosa viuva retirou-se para Castella, levando escripto na fronte um nome envilecido e deshonrado.

O reitor da estudaria adormeceu na paz eterna do tumulo com uma indigestão de toucinho-do-céu, mimo de certa beguina sua confessada. A devota matrona era um ente fatal para a ordem de nosso padre S. Bernardo.

Poucos mezes depois, Fr. Julião, tendo estado, numa tarde de ventaneira, a bisbilhotar na portaria com a serva de Deus, encatarrhou-se.

E catarrheira foi ella, que, apesar de todos os esforços da medicina, o reverendo leigo teve de ir fazer companhia ao reitor no carneiro de S. Paulo. Os apontamentos que temos ante nós occultaram, como a nuvem occulta o astro esplendente, o nome do physico que o curou; lacuna deplorável na historia da medicina portuguesa.

A ordem das jerarchias pedia que falássemos primeiro do illustre chefe dos monges brancos. Antes, porém, tarde que nunca. Sua reverendíssima, que immediatamente partira para Alcobaça, viveu muitos annos de perfeita saúde, comendo muito e bem, governando os seus frades, desbaratando as rendas da ordem e opprimindo os povos dos coutos. De vez em quando, punha a mão numa intriga politica, mas simplesmente por diversão-- como dilettante. Morreu descansado na sua cama, de uma apoplexia, a mais pacifica morte deste mundo : -- documento tremendo da profunda philosophia com que foi engenhada uma incontestável máxima de certos moralistas, máxima que, transformando o inferno num caldeirão inutil, nos ensina que o próprio crime acarreta na terra a punição do criminoso.

Por isso é para nós artigo de fé a certeza e a sublimidade da philosophia.

E o doutor Johannes a Regulis ? O doutor Johannes a Regulis, apesar da sua tosse cachetica, viveu ainda, como o abbade, por bastantes annos, modesta e resignadamente abraçado com a cruz do supremo poder, deixando por seu monumento assentados até a flor da terra os alicerces do absolutismo, edifício magestoso a que, um século depois, D. João II punha os telhados. Os destinos fizeram uma das suas, mettendo brutalmente cem annos de distancia entre essas duas almas cândidas, que tinham nascido para se comprehenderem e amarem.

Agora, da seguinte narrativa o leitor pio e discreto deduzirá as conjecturas que mais plausiveis lhe parecerem acerca da sorte ulterior de Fr. Vasco.

Era pelo fim da tarde de um dos primeiros dias de julho de 1389. Os derradeiros raios do sol, resvalando por cima dos tectos colmados da aldeia de ^ ^ ^, iam dourar as paredes musgosas e já bastantemente arruinadas de uns paços antigos que assoberbavam a povoação numa encosta para o nascente. Havia mais de meia hora que, á porta da igreja do rústico presbyterio, o mòzínho ou sacristão da aldeia olhava attento para aquellas quasi minas, evidentemente deshabitadas. Observava uma especie de romeiro, que, depois de haver rodeiado algumas vezes o edifício, parando de espaço a espaço a contemplá-lo, viera assentar-se em um poial juncto ao pórtico, e depois de se conservar alli alguns minutos com os coto vellos fincados sobre os joelhos e a cabeça entre os punhos, se erguera como sobresaltado e, descendo a encosta, se dirigia para o presbyterio com passos vagarosos e incertos, como de homem embriagado. Ao aproximar-se» porém, do sacristão, este pôde conhecer facilmente que não era a embriaguez quem lhe tornava tardo e vacillante o andar. O romeiro não parecia excessivamente idoso ; comtudo, havia nelle mais de um indicio de decrepidez.

Tremulo, curvado sobre o bordão nodoso, parecia arrastar a custo os membros, excessivamente magros. Nas suas faces cavadas duas nodoas de vivo carmim sobresaíam em chão de pallidez mortal. Apenas o fogo da vida se lhe revelava no brilho febril dos olhos orlados de olheiras lividas. Quando chegou ao adro, volveu a cabeça para os paços solitarios: depois tornou a voltá-la, e cravou a vista no presbyterio sem proferir uma palavra.

O mózinho não tinha o mesmo génio taciturno. Saudando-o, perguntou-lhe se buscava alguém naquelles paços ou na aldeia, porque elle poderia ministrar-lhe as informações de que necessitasse.

A resposta a esta pergunta foi outra pergunta, que o sacristão entendeu com difficuldade, tão débil e cansada era a voz do romeiro.

Desejava saber se ainda vivia uma velha cuvilheira chamada Brites, a quem aquelles paços haviam sido legados pelo ultimo representante da antiga linhagem que outr'ora os habitara.

O mózinho disse-lhe então -- que, depois de ter vivido algum tempo num estado de alienação mental, inquieta e loquaz, a boa da velha cahira por fim em estúpido idiotismo, ao que apenas sobrevivera poucos mezes. Havia tres a quatro semanas que fallecera numa albergaria próxima, onde o abbade da parochia, curador da pobre sandia, a recolhera para ser cuidadosamente tractada. Lisonjeiado pela religiosa attenção que lhe dera o peregrino, o falador mózinho ia continuar, referindo-lhe como Brites herdara aquelles paços e as terras delles dependentes, cujas rendas agora desfructava a albergaria que lhe servira de ultimo asylo. O romeiro, porém, interrompeu o.-- Essa historia não lhe era absolutamente estranha. Depois encostou a fronte sobre as mãos cruzadas no topo do bordão em que se firmava e murmurou duas vezes :

«Ninguém ! ... Ninguém !» Fazia dó. O sacristão sentiu apertarem-seIhe as entranhas ao ouvir aquelle desconsolado murmúrio. Era claro que o peregrino não contava com encontrar assim erma a velha mansão da encosta e que nella esperava obter gasalhado. Com expressões aífectuosas, offereceu-lhe então o seu modesto alvergue para passar a noite, e ainda por mais tempo, se não podesse no dia seguinte proseguir a sua jornada, Assegurava-lhe também que o caridoso parocho lhe proporcionaria os demais soccorros a que não chegava a sua pouquidade. O pastor daquella aldeia era um sancto homem: não havia como elle quatro.

Sem acceitar nem recusar positivamente, o peregrino agradeceu a offerta. Entretanto, pediu que o deixasse orar na igreja. No repouso da oração faria por um pouco tréguas aos membros fatigados.

De boamente o sacristão accedeu á devota rogativa. Abriu a porta do templosinho rural e, indicando ao romeiro a própria morada» quasi contigua, advertiu-lhe que em querendo sair o chamasse.

Pouco tardou a noite a subir do oriente, forrando com o seu manto crivado d'estrellas a abobada celeste. O romeiro continuava a orar.

Depois de prover na ceia frugal, o mózinho encostou-se a uma das hombreiras do seu casebre. Parecia-lhe já que o peregrino resava de mais.

Tinha razão. Passou uma hora ; passaram duas, e elle começava a impacientar-se. Resolveu-se, emfim, a chamá-lo. Foi-se aproximando passo a passo. Ao transpor o portal, immediatamente percebeu a causa da estranha demora. Recuou assustado. Tinha ante si um lúgubre espectáculo.

O desconhecido estava deitado de bruços no pavimento juncto de uma campa. O bordão tinha lhe cabido para um lado, e para o outro a escarcela aberta, que parecia haver desatado da cincta. A lampada do sacramento, cuja luz batia de chapa sobre a lagea branca e poída da sepultura, aclarava dous objectos pouco volumosos depostos ou cabidos sobre a lousa, um á cabeceira, outro aos pés delia. Tomando animo, o sacristão acercou-se do romeiro, que arquejava fadigosamente, e tentou erguê-lo.

Debalde. Não dava accordo de si. Abaixou-se então para ver que objectos eram aquelles collocados sobre a campa. O que estava á cabeceira parecia um ramo de rosas mirradas ; o dos pés era um craneo humano, cujas bordas negras dir-se-hia haverem sido queimadas.

Dividia-os uma inscripção esculpida na pedra, cujos caracteres, profundamente impressos, o perpassar dos fiéis ainda não tinha obliterado.

Era uma inscripção simples e modesta.

Continha apenas as seguintes palavras : «Aqui jaz Vasqueanes, cavalleiro. Padre nosso, Ave Maria.» Horrorisado, o agreste ostiario saiu correndo para a residencia do abbade, a quem referiu a estranha aventura. O velho sacerdote dirigiu-se á igreja apressadamente. A sua chegada, já o romeiro buscava erguer-se, firmando-se nos joelhos e numa das mãos e tacteiando com a outra o pavimento. O abbade correu a elle exclamando : «Que é isto, meu filho? Que é isto!» O desconhecido alevantou a cabeça, forcejou por fitar no sacerdote a vista incerta, e com esforço violento proferiu algumas phrases entrecortadas pelas garras suffocadoras da morte.

«Que este homem se vá d'aqui... Tenho que dizer-vos... Depressa: oh, depressa! Sinto-a.. . Não tarda!» O parocho fez signal ao sacristão para que saísse.

Teria passado uma hora quando tornou a chamá-lo. O peregrino cessara de existir. Os objectos depostos sobre a lousa já ahi se não viam, e a escarcella fora de novo mettida na corda de esparto que cingia o romeiro. O sacerdote ordenou então ao mózinho que o ajudasse a transferir para fora do templo aquelle cadáver. Feito isto, voltou para dentro, abriu o sacrário, e com uma hostia nas mãos exigiu do attonito testemunha o juramento de jamais revelar o que vira e o que ainda ia presenceiar.

Proferida por elle a solemne promessa que o abbade exigia, este lhe declarou que os restos do peregrino não podiam repousar em terra sagrada, e que era forçoso irem elles próprios sepultá-lo escusamente num sitio solitário. O pateo interior dos paços arruinados, cujas chaves se guardavam no presbyterio, era um logar vedado aos olhos dos habitantes da aldeia, e elle resolvera conduzir para lá o corpo do defuncto romeiro.

E de feito, ajudando-se mutuamente, porque, postoque idosos, eram ambos robustos, collocaram o cadáver num esquife e transposeram, não sem fadiga, a curta distancia da povoação ás ruinas. Chegados ao cimo da encosta, a porta exterior rodou nos seus gonzos ferrugentos, e a tumba entrou. Era uma scena melancholica, esta posse eterna tomada por um morto da habitação quasi desmoronada de uma familia extincta; mas ainda era mais triste a ausência de todos os ritos da igreja neste acto solemne. O sacerdote ajudou a abrir a cova, a descer o corpo e a recalcar-lhe a terra, sem que jamais lhe surgisse dos labios uma oração, uma palavra sequer.

Os dous voltaram em silencio ao presbyterio. Ao abbade pendia-lhe a cabeça sobre o peito, e o seu companheiro parecia uma cousa estonteiada. Ao despedi-lo, o, sacerdote disselhe que apenas rompesse a manlian lhe procurasse um mandadeiro, o qual, por seu salário, devia levar a Lisboa uma carta que nessa mesma noite ficaria escripta e sellada. Quando na antemanban o mózinho saiu para ir ao campanário tocar as avemarias, ainda a luz do candeio nocturno se irradiava pelas fisgas da janelia do parocho.

E o caminheiro partiu, de feito, nesse dia.

Os ociosos da aldeia perguntavam ao sacristão que casta de carta era aquella que o abbade escrevera para a corte. Encolhendo os hombros, elle respondia que apenas vira o sobrescripto, o qual resava de um certo mestre de theologia chamado Fr. Lourenço Bacharel.

Na sua opinião -- accrescentava o mózinho -- aquillo não passava de consulta sobre caso de consciência intrincado que o reverendo abbade não sabia desatar.

Uma voz que pouco depois começou a correr pela aldeia chamou a attenção para outro objecto. Dizia-se que em dous sabbados consecutivos, por volta da meia-noite, se tinham visto desfechar do céu em cima dos paços solitários da encosta duas estrellas cadentes, após o que, dous gritos fugitivos, mas terrivelmente agudos, soavam da banda do pateo, e sentia-se em seguida o tropeiar de passos frequentes, como em dança doudejante ou em lucta desesperada. Suspeitava-se de que era a alma da velha Brites que andava por alli penada.

Porventura não era mais do que uma invenção do parocho ou do mózinho para arredar dos camponezes as tentações de entrarem, pelo portão quasi podre e meio arrombado, naquelles pardieiros, que occultavam o mysterio da morte do peregrino.

Dous mezes depois, Fr. Lourenço voltara da sua correição nos mosteiros cistercienses do norte, onde posera cobro em mais de imia tropelia fradesca. Deram-lhe então uma carta vinda da aldeia de ... havia algum tempo. A letra do sobrescripto era desconhecida.

Foi á noite depois de ceia que o monge recebeu a carta. Quando se retirou para a sua cella, abriu-a e leu-a. O que continha nunca elle o disse a ninguém. Sentiram-no acordado toda a noite, e quando pela manhan appareceu á communidade estava excessivamente pallido. As suas pálpebras vermelhas e entumecidas indicavam que por ahi passara a lava ardente das lagrimas.

Uma cousa notável foi que Fr. Lourenço não tornou a rir em dias de sua vida. Quando, ao chegar á estudaria, tinha recebido a noticia do singular desapparecimento de Fr. Vasco, o mestre de theologia protestara que elle saberia descubrir se o moço frade era morto ou onde parava. Vãos protestos! Nunca mais em tal falou; nunca mais, até, proferiu o nome do pobre monge; e se alludiam a elle, mudava de conversação, ou retirava-se. Fosse effeito da idade, fosse por estar gasto de longos trabalhos mentaes, o espirito do Bacharel decahiu rapidamente. Consummia horas e dias a passeiar sósinho na crasta, e a sua mania era repetir muitas vezes a sentença do evangelho : «Se não perdoardes, também Deus vos não perdoará.»

NOTA

A bagatella litteraría que hoje offerecemos ao publico, escripta ha oito ou nove annos, tinha ficado incompleta e esquecida quando, em 1840, circumstancias que não importa narrar aqui baldeiaram o auctor no charco da vida publica.

A Providencia, que provavelmente não o achou assas corrompido para fazer delle um homem d'estado, deu-lhe uma hora de contricção, em que podesse desempégar-se, escorrido o lodo dos vestidos, lavar o rosto e voltar ao gremio do mundo moral.

Entre parenthese: o auctor dispensa os jesuítas e os seus contrários de disputarem, a este propósito, se o deveu á graça efficaz ou ao livre arbítrio.

Não se incommodem por amor delle, que tem tanta lastima e quasi nojo dos netos de Loyola, enfezada prole de raça gigante, como horror a esse liberalismo absurdo e covarde que os persegue e martyrisa; iberalisrao, que crê em tudo, menos nos 1 1848.

foros da consciencia, na magna charla do pensamento; em tudo, menos na liberdade da intelligencia humana.

Apesar de não ter sido culpa da vontade, mas o entendimento, o extravio politico do auctor deste livro, a divina justiça condemnou-o a remir o bestial peccado que commettera, pondo-lhe ás costas una cruz, e mandando-o caminhar por agro e escabroso sarçal. A cruz que o Senhor lhe impôs foi a monomania de escrever a historia desta terra com lealdade e consciência. Para isso, entendeu elle que era necessário estudar e meditar muito, e durante mais de tres annos, entregue á realisação desse pensamento, guardou um silencio litterario raras vezes interrompido. Quando suppôs que era tempo de provocar o julgamento dos esforços que fizera, disse ao seu paiz : -- «Eis aqui um modesto specimen do methodo que eu creio dever seguir-se ao escrever a tua historia.» Foi, porém, então que os seus hombros tireram de vergar sob o peso da cruz que tomara. Voz em grita, a sciencia infusa começou a bradar -- escândalo ! -- blasphemia ! -- attentado ! -- Chiava, grasnava, piava, vociferava. O pobre cruciferario pirou, e pôs-se a escutar aquella matinada e revolta, accusavam-no, calumniavam-no sanctamente, chamavam-lhe manicheu, iconoclasta, lutherano; proclamavam-no traidor á pátria. Os mais zelosos (e, cumpre confessá-lo, os mais cortezes e honestos) pegaram na penna e provaram-lhe até a evidencia que a arte histórica não consistia no que elle pensava; consistia em cirzir algumas lendas de velhas com as narrativas semsaboronas de meia dúzia de in-folios, rabiscados por quatro frades milagreiros, tolos ou velhacos. Fizeram-lhe ver, claro como a luz do meio-dia, que o primeiro mister do verdadeiro historiador português era demonstrar por um sem numero de cruas batalhas (as quaes, na hypothese de não passarem de brigas de saloios, se podiam magnificar, melhor que nunca, depois da bella invenção dos telescópios de Herschell), que a expressão do valor nacional se resumia com admirável exacção na seguinte formula de patriotismo:

Português 1 igual a Gallegos 4

Dito 1 = Castelhanos 3

Dito 1 = Franceses ou ingleses 2

Dito 1 = Flamengos 2,91

Dito 1 = Allemães e mais cainçalha do norte 2 1/2

Dito 1 = Mouros 527

Dito 1 = Turcos, abexins, parsios e rumes 73

Dito 1 = Chins e lilliputianos 1:293

Dito 1 = Patagões 1 3/4

que isto é que era dizer a verdade, ter amor de pátria e escrever historia; e que o mais era historia.

Arrasaram-no, anniquilaram-no.

O diabo, que impava vendo o auctor das precedentes paginas safar-se-lhe da reda da politica, imaginou aproveitar esse ensejo para o arpoar de outro modo. No meio, pois, daquella algazarra assoprava-lhe ao ouvido que desse um geito aos hombros e deixasse tombar o pesado madeiro da cruz sobre as protuberâncias callosas dos reverendos eruditos, que piamente açulavam contra elle as paixões da ignorancia e do fanatismo. Dizia-lhe, rindo, que veria o que era saltar, e bufar, e carateiar. O espirito maligno dourava, além disso, a tentação com o exemplo do Christo expulsando os publicanos do templo de Jerusalém.

Mas o auctor do Monge de Cister não era tão hospede na erudição dos seus reverendos arrasadores, que ignorasse as devotas tretas do pae da mentira para ferir a descuido, quando não pôde acommetter de frente; não ignorava quantas vezes o buirão infernal tem sido pilhado com as unhas encolhidinhas dentro da manga do burel, e a escamosa cauda occulta sob a estamenha e atada á correia do cilicio. Occorreu-lhe logo um facto bem sabido (certo e provado como a assembléa de Almacave ou a divina apparição de Ourique), e que vinha a pello para fazer ao diabo um dos mais comprobativos e agudos argumentos, o argumento ad odium, contra a applicação sacrilega que dera ao exemplo de Christo.

O facto era o seguinte:

Observando o anjo das trevas, num dos seus passeios terráqueos, que em certa parochia rural ninguém perdia missa depois que se quebrara o sino, porque, na incerteza da hora, todos se antecipavam, o velhaquete pôs-se a andar, mirando por todas as lojas de fundidores, até que descubriu um sino muito novo, muito amarellinho.

Tinha ficado com olhos longos nos de mais de vinte campanarios por onde passara. Mas eram sinos bentos, e, se quizesse furtá-los, queimar-lhe-hiam as unhas e não faria nada. Lembrava-se ainda de um logro analogo que lhe pregara o mavioso Domingos de Gusmão.

O diabo era um diabo honrado. Comprou o sino, carregou com elle e foi offerecô-lo por esmola ao cura da aldeia, orphan de badaladas e repiques e dobres.

Não punha senão uma condição. Todos os domingos se havia de tocar tres vezes á missa.

O cura era um desses homens tementes a Deus, capazes de farejarem Satanaz a vinte léguas. Deitou-lhe de socapa o rabo do olho e logo enxergou a pata caprina.

«Bonito!» -- disse o cura lá comsigo.

E num relance atirou-lhe a estola ao pescoço, como o gaúcho dos Pampas atira o laço certeiro ao pescoço do touro bravio.

Satanaz agachou-se e ficou a tremer. O cura era bonacheirão e não queria fazer-lhe mal. Só exigiu delle que lhe dissesse d'onde lhe viera aquella estrambótica idéa do sino.

O espirito immundo estava-lhe debaixo do anno do nascimento, e o cura podia assentar-lhe a mão e a boa vontade. O diabo ainda tentou fazer de beato; mas, por fim, teve de descubrir o jogo. Tinha a certeza de que, em restituindo ao campanário a sua voz de bronze para chamar os fiéis á missa, metade dos habitantes da aldeia haviam de chegar tarde e ficar sem ella. Cuberto com o manto da religião, o anjo das trevas queria empalmar aos freguezes do padre cura o seu inicial introibo.

Illuminado por estes e outros memoráveis exemplos, o auctor do presente livro cerrou as orelhas ás suggestôes diabólicas estribadas nas reminiscências biblicas, ajoelhou com a sua cruz e exclamou: -- conjiteor!

Depois ergueu-se e proseguiu ávante resignado.

Todavia, ao longo da agra senda que conduz ao seu calvário (porque o calvário já era ha dezoito séculos a recompensa dos que falam verdade), ia ruminando como remiria o escândalo que dera ao próximo. Tanto ruminou, que lhe veio uma idéa bemdicta.

«O Monge -- scismeiva. elle -- está alli, áquelle canto, cuberto de poeira, mal acepilhado e incompleto ; verdadeiro frade sapudo, crasso, informe, sem desbaste, sem elegância; mas, no fim de contas, nesse rude esboço de uma obra litteraria ha o substractum de historia guapa; de historia tirada de um manuscripto que só eu vi, o que lhe dá certo perfume de sancto myslerio; de historia de casos singulares e de maravilhosos incidentes. E demais, o protagonista é um frade de fígados, um português de gemma. Da massa do Monge de Cister é que se fazem historias como suas reverencias dizem que devem ser. Upa ! vamos ! que eu posso com algum tempo de pachorrento trabalho accommodar esta gritaria, e até -- quem sabe ? -- não só chegar a obter de suas reverencias o absolvo-te, mas também a igualar em legitima gloria o padre mestre Fr. Bernardo de Brito.» Falou ; e a estas ponderações, que lhe arrancavam das entranhas o arrependimento e uma ambiciosa piedade, accrescia outra de diversa ordem, que as roborava. O Monge fora sacrificado ao que o pobre homem imaginava ser um grave e severo estudo, um serviço á terra natal, daquelles que se não pagam com titules e condecorações, preço abjecto de infâmias e da corrupção politica. No prologo do Eurico -- do deletério e anti-social Eurico -- elle contrahira com o seu publico -- um publico pervertido, sem temor de Deus, sem portuguesismo, sem nada -- a obrigação de poer em lettera de ffôrma o monge de Cistér. E todavia, o Monge fora deixado de parte e esquecido, como traste velho e inútil. Reflectia, portanto, que tirando aqui, pondo acolá, aplainando-o, lixando-o, e imprimindo-o, desempenharia a palavra que dera aos seus leitores, offerecendo-lhes modestamente uma novella, onde, na falta de outro mérito de que a reconhece falha, se achasse, ao menos, o quadro da lucta social, que caracterisa a epocha de D. João I, e dos costumes e crenças dessa epocha, ao passo que aproveitaria este ensejo para provar a suas reverencias que, se os inescrutáveis decretos de cima o arrastam pelo caminho do Golgotha e o constrangem a não desamparar a obra fatal que encetou, tem docilidade bastante para acceitar e seguir nos seus actos espontâneos, nas composições onde pôde usar do livre alvedrio, as sans doutrinas, e para confessar ingenuamente que as tradições do vulgo, as pias fraudes, as illusões da superstição, os preconceitos nacionaes e os contos de velhas são as fontes legitimas e os fundamentos inabaláveis da historia.

E o Monge foi concluido, debastado e lixado. Os contornos ficaram incorrectos por partes -- por outras frouxos os músculos -- confusos alguns lineamentos -- rugosa a espaços a epiderme. O auctor reconhece-o. No meio, porém, de estudos tediosos e positivos, é impossível que o imaginar não descore, que o estylo não ganhe asperezas. O seu implacavel destino chama-o de continuo para as phrases barbaras dos pergaminhos amarellados e mofentos, e manda-o, novo Ashavero, caminhar, caminhar sempre! Ah, que, se acaso suas reverencias suspeitassem, ao menos, que bichos roedores da existência são um volume de inquirições, um foral, uns costumes, uma postura, uma pancada, uma bulia, um cartulario, haviam de ter dó da lazeira physica e espiritual a que tem chegado o auctor.

Nil idcircô habeo, practer super ossa pelhancras

Nec jam sum plusquam parva migalha mei.

Perder a paciência e a vista sobre os gastos e diffíceis caracteres dos documentos; devorar paginas insulsas, e não raro inúteis, de bacamartões pesados; aforoar chronicas; ter de apurar muitas vezes de centenares de sucessos contradictorios, e na apparencia indifferentes, os successos capitaes da historia (da historia impia, lutherana, antipatriótica) e a indole da sociedade nascente ; envelhecer antes de tempo pela contensão do espirito em comparar, conjecturar, deduzir;-- e tudo isto para ser uma espécie de Antichristo; para enxergar com terror no horisonte da vida e forrando-lhe o guarda vento da eternidade as gravuras a prego do Desengano de Peccadores, dessa epopeia de infernaes tormentos -- é uma situação de tal modo abominável, tão sem nome, que antes devera excitar a piedade do que a indignação de suas reverencias.

Non poterat mundo unquam maior praga venire :

Nec dare peiorem in sestrura, asneiram-ve cahirc Maiorem quit homo

A pró, comtudo, do criminoso e reincidente auctor do Monasticon ficará no mundo quem erga um brado perante o tribunal da posteridade. Falarão por elle as paginas do Monge de Cister, que, se merecer a approvação dos reverendos censores, se imprimirá em folha para ser enquadernado com a chronica bernarda do padre mestre Brito.

O auctor havia colligido um avultado numero de notas, destinadas a mostrar os fundamentos em que se estribara para altribuir taes e taes crenças e usanças á epocha em que coUocou a sua narrativa.

Nellas se deduziam e illustravam também os caracteres históricos trazidos á scena, e se verificava a exacção das descripções topographicas da antiga Lisboa. Estas notas foram supprimidas por duas razões, uma composta, outra simples; uma pia, outra económica ; uma accorde com os axiomas da critica reverenda, outra revolucionaria e materialista ; uma offerecida aos sanctos cogumellos da tradição e das lendas, outra aos profanos compradores deste livro.

Primo : -- Uma das regras capitaes da verdadeira arte histórica é que as testemunhas irrecusáveis de qualquer successo vem a ser aquellas que vivem tres ou quatro séculos post factum. Ora o auctor dista da epocha de D. João I quatrocentos annos bem medidos. Logo, na hypothese do Monge, é de per si auctoridade sufficientissima. -- Secundo: a precedente narração foi tirada, a bem dizer textualmente, de um manuscripto que estava no mosteiro de *** da comarca de ... da provincia de ... e que só o auctor teve a fortuna de ver. Para que serviriam, pois, citações, notas, emburilhadas? A cousa é de uma authenticidade irreprehensivel.

Vamos agora á razão revolucionaria e materialista.

As condemnadas notas fundiam quasi um volume.

Se fossem impressas, o leitor, pensando que comprava uma novella em tres tomos para espairecer alguns momentos d'ocio, no meio dos trabalhos da vida, achar-se-hia defraudado em 33 1/3 por cento e em risco de apanhar uma camada de erudição, moléstia incurável e atrocíssima.

Antes umas terçans, de que Deus nosso senhor por sua infinita misericordia o livre.

Foi acabada esta glossa e declaração quasi-proheminal no reguengo d'Algés e cimaihas do Monsancto numa quarta feira xvii dias andados de maio da era de Cesar de MDCCCLXXXVI, dia de S. Paschoal Baylão, a hora de sexta, estando o céu cris.

A Deus graças.

Qui scripsié scribat; semper cum Domino vival.

Isto escrevia-se em 1843. Aquelle ultimo vestígio dos paços de S. Martinho já desappareceu (1859).