A casa dos fantasmas: Edição para o ELTeC Episódio do tempo dos franceses Silva, Luís Augusto Rebelo da (1822-1871) Criação do HTML original Ricardo F. Diogo Rita Farinha Online Distributed Proofreading Team Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 93020 175 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org Project Gutenberg EBook A casa dos fantasmas A casa dos fantasmas: Episodio do tempo dos francezes Luiz Augusto Rebello da Silva Lisboa 1865 A casa dos fantasmas: Episodio do tempo dos francezes, 2.a edição Luiz Augusto Rebello da Silva Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso Lisboa 1908

português de Portugal Checked by checkup scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker script Adicionado à coleção ELTeC

OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA

REVISTAS E METHODICAMENTE COORDENADAS

XI

ROMANCES E NOVELLAS--V

A CASA DOS FANTASMAS

EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES

2.a EDIÇÃO

VOLUME I

LISBOA

Empreza da Historia de Portugal

Sociedade editora

LIVRARIA MODERNA | TYPOGRAPHIA

R. Augusta, 95 | 45, R. Ivens, 47

1908

I

Uma noite desabrida

Era de tarde. Tinham dado cinco horas, e o dia declinava rapidamente. O mez de maio do anno 1808, anno assignalado de successos estrondosos na peninsula, acabava, como tinha corrido quasi todo, entre diluvios de chuva e ventanias. A noite, cujos primeiros veus já começavam a cobrir as terras baixas, em quanto os derradeiros raios do sol esmoreciam na corôa dos outeiros, avisinhava-se, toldada de castellos de nuvens, que surgiam do sul, listrando o horizonte de barras cinzentas, rasgadas de espaço em espaço pelos clarões dos relampagos.

O ar estava tepido, ou antes quente, e todos os ruidos se iam calando uns após outros. A immobilidade das aguas, que não arrugava o mais leve sopro; a das arvores, cujas copas pareciam petrificadas; e as sombras, que avultavam mais pesadas de instante para instante, revestiam a paizagem de um aspecto gelido. Uma lufada de vento, halito abrazado da tormenta, passava solta por cima dos campos, acamando as hervas altas, destoucando os arbustos, e saccudindo as ramas das oliveiras, dos alamos, e das faias, e ia morrer distante no roncar soturno e rouco dos trovões. Algumas gotas, raras e grossas, caiam então, e a luz, offuscada por mais espessos vapores, sumia-se de subito para reviver depois, mas timida e desmaiada, sem alegria e sem calor. As aves fugiam, cruzando-se e pipitando; a solidão quasi que não tinha echos; e um silencio lugubre precedia a grande voz da tempestade, que ia principiar dentro em pouco.

Apezar das ameaças da atmosphera, um viajante trocando o conchego de povoação commoda pelas inclemencias do tempo, tinha-se despedido da hospitaleira casa, aonde jantára, e mettendo o pé no estribo de pau, e apertando as dobras da manta ribatejana, sem escutar os conselhos e vaticinios amigaveis, estimulava a mula com as largas rosetas da classica espora de correia, obrigando-a a espertar o passo por entre os viçosos pampanos, hoje gloria e gala da nobre villa do Cartaxo.

Em breve deixou atraz de si as vinhas, que, a esse tempo, (cultura nascente) apenas verdejavam em uma pequena parte do terreno, que se carrega agora de seus cachos, e achando-se em plena charneca, extendeu os olhos pela bella e vasta planicie, desatada por algumas leguas de ermo, não triste, nem agreste, mas tocado de risonha suavidade, e rodeado de longes tão puros e desafogados, que a alma se consola e refrigera de extender por elle os olhos.

O aroma alpestre das plantas; aquelle pôr do sol entre nuvens; os lamentos da procella ao sul; e o vago indeciso de todo o quadro compunham um espectaculo de opposições tão firmes e tão bellas, que o viajante, quasi sem o querer, se deixou arrebatar por elle, e insensivelmente foi imbebendo a vista nas formosuras rusticas, que de todos os lados o convidavam. Suas feições, de uma gentileza viril e sympathica, não inculcavam tedio ou cansaço, mas impaciencia. A elevada estatura não se encurvava sobre os arções, e as pupillas pretas e cheias de fogo, se a miudo fitavam os trilhos enredados com estreitas fitas sobre o verde sombrio da charneca, denunciavam mais receio de chegar tarde a um ponto dado, do que temor de se ver assaltado pelo temporal no meio da jornada.

A mula, que algumas horas de repouso tinham refrescado, como se adivinhasse os desejos do amo, despejava o passo, e o caminho; mas a noite e a cerração ainda corriam mais. Á claridade baça do crepusculo seguiram-se as trevas; o céu forrou-se todo de negro; e os primeiros furacões bramiram acompanhados de um trovão proximo. A chuva principiava a fustigar de rajadas fortes o rosto do viajante, e a cegar-lhe a estrada inundada dos dias anteriores, e arrombada em diversas partes. A mula, apezar de afouta e vigorosa, atolava-se, tropeçando a miudo. Na ponte da Asseca, a varzea, que ella corta, parecia um immenso paul, cujas aguas a cheia despenhada dos altos empolava com sussurros, que, unidos aos silvos do vento e aos ribombos da trovoada, enchiam de horror e de estrepito aquella scena, tão repassada de grandeza e de magestade.

Á esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se encandeiam até Santarem, estorciam-se com o vendaval. Á direita os choupos e os freixos, na beira dos vallados, vergavam tremulos e desgrenhados como se mão gigante os dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clarões, em que os céus pareciam abrir-se, golfavam d Á esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se encandeiam até Santarem, estorciam-se com o vendaval. Á direita os choupos e os freixos, na beira dos vallados, vergavam tremulos e desgrenhados como se mão gigante os dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clarões, em que os céus pareciam abrir-se, golfavam de repente o seu fulgor sinistro sobre este painel, que o tenebroso manto da procella tornava logo depois a esconder.

Atravessando a ponte, por onde enxurrava quasi uma torrente, o viajante procurou orientar-se. Ajudou-o uma luz ao longe. Seguindo por ella, no fim de dez minutos encontrou-se junto do vulto massiço de um palacio arruinado, solitariamente erguido no meio das terras, e olhando quasi como sentinella esquecida para um angulo da estrada. Em uma das seis janellas sem caixilhos da fachada, através das fendas das portas de dentro, ou antes das tábuas de forro pregadas em logar de vidros, brilhava a luz que lhe servira de norte, e pelas gretas mal juntas das frestas do andar terreo luzia o clarão de um grande brazeiro talvez acceso na cozinha. Applicando o ouvido sentiam-se estalar no lume os troncos humidos, e escutava-se o meio alarido de algumas vozes e risadas.

-- Ah! exclamou o cavalleiro, detendo a mula, e derrubando sobre a cara por um gesto machinal as largas abas do chapéu de Braga, quebradas pela chuva. Gente na casa Negra! Quem?!...

Depois de breves momentos pareceu tomar uma resolução, e a passo, chapinhando na agua, como se passasse um ribeiro, desviou-se, atravessou para o outro lado, e cozido com o monte subiu por vereda ingreme até um alto a tres ou quatro tiros de espingarda de distancia. Pelos corregos, a uma e outra parte, estrepitavam verdadeiros riachos saltando pelas pedras, e um relampago, fuzilando e extendendo como um lençol de fogo por cima das trevas, descubriu-lhe repentinamente a casinha caiada, de dois sobrados, tecto esguio, e duas janellinhas, que buscava. Cercava-a um muro baixo de pedras soltas. O ruido monotono de uma roda, e a queda de uma especie de cascata, sobrepujando o esparralhar da chuva, e os gemidos do vento mostraram-lhe que estava na azenha de cima, ou no moinho da Raposa, como diziam os visinhos dos arredores.

Sem se apeiar, o viajante bateu com o conto ferrado do cajado de marmeleiro por duas vezes tres pancadas na porta, e esperou. Não foi necessario mais. Os latidos feros de um cão de guarda, e logo depois vagarosos passos descendo a escada, advertiram-o de que fôra ouvido.

-- Oh, de dentro! bradou.

-- Quem bate?! perguntou uma voz cheia.

-- Eu!

-- Esse eu quem é?...

-- Abre!...

-- Pois não!... Ao mesmo tempo o ouvido fino do recem-chegado percebeu o leve tinir dos fechos de uma espingarda a engatilhar-se.

-- Antonio! Pelo rei e pela patria!...

-- Ah?! Agora é outro cantar. Lá vou.

E calando o cão, que pulava, ladrando e rosnando como furioso, desencostou a tranca, tirou o ferrolho, e a chave rangeu duas voltas na fechadura. Abriu-se finalmente a porta.

-- Então quem é? repetiu a mesma voz, em quanto a cabeça se arriscava fóra no escuro, sem a mão largar a espingarda.

-- Manuel Coutinho. Conheces-me agora? redarguiu o hospede, apeiando-se, e expremendo do chapéu a agua a escorrer em bica, e saccudindo a manta, que não estava menos ensopada.-- Que diluvio! murmurava por entre dentes ao mesmo tempo. Se continúa, nadam ámanhã os saveis na tua horta, Antonio da Cruz!

-- Que se lhe ha de fazer! Como v. s.a vem!... Bemdito e louvado seja Deus!...

-- Amen! Elle seja comnosco e nos ajude, que bem o precisâmos; redarguiu o mancebo, porque o seu rosto moreno, mas fresco, e o cabello preto não inculcavam mais de vinte e quatro a vinte e cinco annos.

-- Cuidei que me recebias a tiro! disse rindo, e mostrando duas fiadas de dentes finos, alvos, e eguaes, que uma dama franceza lhe invejaria para ornar um sorriso galanteador.

-- Bem vê a noite?!... Depois a gente não sabe quem lhe quer mal, e uma bala depressa entra... Cá me entendo!... D'ahi não esperava já por v. s.a!...

-- Não me esperavas?... mas eu tinha dito!...

-- É verdade, que disse. Mas choviam raios e coriscos e sempre cuidei que se deixasse lá ficar em baixo. Dê-me a redea da mulinha. Então não sahiu como se queria? Foi um ovo por um real. Entre v. s.a e enxugue-se. Vou cá á nossa arribana, com sua licença, arranjar a Ligeira, e é um ai em quanto volto a accender-lhe o lume... Jesus! Santo Nome de Maria! Os relampagos cegam. Parece que nos cae o céu esta noite na cabeça com a bulha lá de cima!

Manuel Coutinho entrou. O interior da casa, muito seu conhecido, era de apparencia singela e rustica. Suspensa do gancho preso em uma das vigas do tecto a candeia allumiava-a escassamente, apezar de pequena. No meio da parede do fundo rasgava-se a chaminé baixa e ladrilhada. Á direita uma arca de pinho alta, sem fechadura, tinha em cima um cobertôr de papa, e sobre elle enroscado com uma fisga aberta á vigilancia em cada olho, o gato preto do moinho, tão absorvido na sua beatitude extatica, e na sua pachorrenta immobilidade, que os latidos do cão amigo e alliado domestico, e as vozes do dono, nem um movimento lhe tinham podido arrancar! Á esquerda a barra de pinho pintado tremia sobre tres pés validos. Na cabeceira um devoto registo do milagre da Senhora da Nazareth correspondia a outro do glorioso confessor Santo Antonio, pregado na parede com obreias. A manta sobre o enxergão e duas pelles de carneiro compunham a roupa d'este catre de cenobita.

Á direita, em todo o comprimento da casa, viam-se empilhados muitos sacos de trigo destinados á mó alveira da azenha. Os de milho jaziam mais adeante em pilhas. A fina flôr da farinha escapando-se pelas aberturas revoava ao menor abalo, polvilhando tudo em roda. Por cima de algumas pelles de lebre e de coelho, extendidas a seccar na parede, pendiam o polvorinho de chifre com o fundo, ou rodella de pau, e a bolsa de couro, ou chumbeiro, attestado de munição e pederneiras. Em um armario, vasado no muro, e resguardado com sua cortina de riscado azul, luziam, como prata, pelo aceio, a chaleira e a almotolia de lata, e acastellavam-se duas rumas de pratos. Dos lados, sumptuosidade rara (!), duas caçarolas de folha de Flandres e cabos de ferro acompanhavam a baixella de louça. Em uma prateleira por cima da chaminé a caixa da isca e alguns tachos e frigideiras de barro esperavam a hora de serem chamados a serviço activo.

Uma escada empinada, de degráus toscos, verdadeiro quebra-costas, subia de um dos angulos para o andar de cima, aonde um alçapão erguido e quadrado abria as fauces, como se quizesse engulir os que entrassem. Era ahi a labutação principal do moinho. As mós, rodando e zoando, ensurdeciam casadas no ruido somnolento com a queda da levada, que por uma longa calha de pau descia da preza a ferir a roda, e d'esta, saltando em cachões dos baldes, ia espadanar no canal, d'onde fugia ainda espumante a regar as hortas e as terras dos visinhos.

Dois mochos de cerejeira brava, e uma poltrona de couro, roto e cossado, rodeavam no sobrado de baixo uma velha mesa de pau, collocada no meio do aposento por baixo da candeia de dois bicos. No meio d'ella um cangirão de aza larga, bojudo e vidrado, com sua tampa de cortiça guardava a agua-pé. Um copo de canada, limpo como crystal, um prato sobre toalha alva, meia broa de milho com um garfo de cabo de pau ao lado, e uma frigideira de sardinhas fritas annunciavam que a ceia do moleiro ía começar, quando fôra chamado. A navalha de mola e de ponta, um rôlo de tabaco de picar, e algumas aparas d'elle, assim como duas capas de papel de cigarros, estavam dizendo tambem o que elle fazia pouco antes da visita inopinada lhe bater á porta.

Vejamos agora que razão de estado attrahia o mancebo a tal hora e por um tempo similhante áquella casa, e o que se passou alli n'esta noite fecunda em incidentes para os personagens, que temos de metter em scena.

II

O moinho da Raposa

O mancebo approximou-se da mesa, picou do rôlo uma porção pequena, enrolou o cigaro entre os dedos, e, depois de o accender á luz da candeia, assentou-se em um dos mochos, com os cotovellos fincados na tábua, e o rosto entre as mãos, não sem primeiro ter tirado do cinto um par de pistolas inglezas e uma faca de matto hespanhola, encubertas com as compridas abas do gabinardo, que trajava.

Antonio da Cruz appareceu instantes depois.

Era robusto, largo de hombros e de peitos, mas esbelto. Trigueiro, e queimado do sol, as suas feições lembravam o typo arabe. Os beiços grossos sorriam com franqueza, e, apezar de muito rasgada, tinha graça na bôcca, mesmo quando descubria os trinta e dois dentes alvos e agudos, como os do felpudo molosso, que saltava em volta d'elle. O cabello rente e crespo cortado quasi em bico sobre a testa era negro como azeviche. O nariz revirado na ponta dava certo chiste á physionomia; e nos olhos pardos e vivos como scentelhas brincava uma expressão de finura natural e de malicia jovial, que lhe caìa bem, e logo á primeira vista o faziam bem quisto.

De mediana estatura, mas proporcionado, era tido por um dos homens mais forçosos d'aquelles contornos. O seu nome servia de grito da guerra nas aldeias contra a brutalidade dos valentões de arraial. Nas praças de touros em Villa Franca, em Salvaterra, ou na capital nenhum forcado o egualava em apanhar os bois de cara, ou de cernelha. A cavallo era um centauro; a pé não tinha par no salto, ou na carreira; em mettendo a espingarda ao rosto aonde punha o olho punha a bala. O seu cajado manejado por mãos de mestre varria as feiras, zombando de facas e de espadas.

Sobrio como um anachoreta, presentido e vigilante como um mohicano, o seu maior defeito era ser impetuoso e assomado de mais. Em o sangue lhe subindo á cabeça, e em principiando a picar-lhe a pelle com pontas de alfinetes, segundo elle dizia, cegava-se, corria direito ao perigo, e, sem attender a nada, atirava-se a um precipicio.

Temente a Deus, tinha tanto de bom amigo como de implacavel inimigo. Portuguez e patriota extremo, amaldiçoava os francezes como jacobinos, e chorava de saudade pelo principe regente, D. João, ao qual só vira duas, ou tres vezes, em sua vida. Manuel Coutinho affeiçoou-se a este caracter firme, honrado, e decidido. O moinho e a horta pertenciam ao mancebo, e Antonio trazia-os de renda. Ligado á conspiração, por emquanto quasi inoffensiva, urdida em Lisboa contra o governo de Junot, conspiração que regia o conselho denominado Conservador, secretamente instituido no dia 5 de fevereiro d'aquelle anno para auxiliar a restauração do throno legitimo e da independencia, Manuel Coutinho confiava no humilde camponez, e communicava-lhe até recados de importancia. Executor discreto d'estas missões arriscadas, Antonio da Cruz comportava-se sempre com exemplar acerto, não só enganando o faro da policia de Lagarde, cujos espiões corriam por toda a parte, mas supportando resignado por amor de seu amo (assim lhe chamava), e da boa causa desafios e remoques, que em outra occasião seguramente custariam caros aos aggressores.

-- Se não é hoje o fim do mundo, bradou elle entrando e saccudindo a agua de cima de si, não sei quando o será! Mas o lume em um instantinho está a arder. A lenha é secca. Ora, diga, meu amo: v. s.a traz sua vontadica de comer, não? Do Cartaxo aqui é um pedacito menos mau... e a chuva e o vento cavam cá por dentro como enxada em nateiro...

-- Não. Não me faças nada. Se o appetite vier aqui temos de mais. Agora o lume sim.

-- Essa é boa. Ha de perdoar; não senhor. Graças a Deus o Manuel nunca foi torto, nem aleijado, e ainda esta manhã, antes de almoço, não perdeu a polvora e o chumbo. Andavam aquelles fidalgos a saltar nas vinhas, e trouxe-os no alforge. Como os quer?...

E apontava para os dois coelhos mortos e pendurados junto do almario.

-- Guizo-lh'os de molho de vilão n'um abrir e fechar de olhos, e depois ha de beber-lhe em cima um, ou dois copos de um vinhinho, que me deram, e que fica a gente a chorar por mais...

-- Já te disse. O vinho e os coelhos guarda-os para ámanhã. Agora melhor me sabe este cigarro, do que todos os manjares. Accende o lume. Temos que falar.

O mancebo suspirou como quem se sente opprimido de tristeza, e lucta em vão por se vencer.

O Antonio da Cruz, curvo sobre a caixa da isca, a assoprar a chamma, ouvia-o, e percebeu-o, mas calou-se. A mecha pegou, e d'ahi a um momento levantava-se da lareira um clarão vivo e alegre, tingindo de vermelho as paredes e os pobres moveis da casa.

-- Bem! disse Manuel Coutinho. Isto já parece outra cousa! Senta-te, e come!

-- Salvo o respeito, saiba v. s.a que não tem pressa.

-- Tem. Come e despacha-te. Depois falaremos. É preciso sair logo...

-- Ah! Então a cousa aperta? Para termos de saír por uma noite d'estas!...

-- Póde bem ser a ultima da vida de umas poucas de pessoas! exclamou o mancebo, pondo-se em pé agitado.

-- Melhor o ha de fazer Deus, senhor Manuel! redarguiu o moleiro com a sua tranquillidade apparente, que illudia os que o conheciam mal. Com sua licença! ajuntou sentando-se á mesa, e rompendo o assalto contra a broa e as sardinhas, regadas de copiosas libações de agua-pé. Os sacos pesam seis alqueires, e por aquella escada acima apalpam as costellas. Á saude de v. s.a! A minha pena é que não quizessse provar dos coelhos e do vinho do convento de S. Francisco. Olhe que os padres sabem escolher do fino!...

-- Que gente era aquella, que esta noite vi na Casa Negra? perguntou Manuel Coutinho, que as proezas gastronomicas de Antonio já não maravilhavam, porque fôra testemunha d'ellas muitas vezes.

-- Gente na Casa Negra? Na Casa Maldita?!... accudiu com a bôcca cheia, e estremecendo.

-- Sim! Vi luz em cima, na terceira janella, e ouvi risadas e vozes no andar terreo. Não sabes o que será?!

-- O meu padre Santo Antonio nos accuda! Cousas do demonio, que desde que me entendo é o unico morador d'aquelle casarão! Mas v. s.a está bem certo!?... Gente a estas horas alli! Não póde ser!

-- Tanto póde, que havia fogo na cosinha, e gente a rir, a falar, e a aquecer-se a elle!

Antonio da Cruz enguliu á pressa o ultimo boccado, poz á bôcca cheio a trasbordar o copo de agua-pé, e pousando-o vasio com um suspiro, tirou o barrete e benzeu-se.

-- Olhe, senhor, creia v. s.a o que lhe digo! tornou meio atalhado. Gente d'este mundo não era de certo. Por estes arredores não havia quem se atrevesse!... Ah, Jesus, Santo Nome de Maria! accrescentou mais pallido. Deram ainda agora, á noitinha, um tiro no Antonio Simões. Dizem que o mataram; mas o corpo não appareceu! Querem ver que foi parar a alma...

-- Antonio! accudiu o amo um pouco severo. Alma que vae não volta! Isso são medos de criança. Os hospedes da Casa Negra estão vivos, como eu, e tu. Agora o que preciso saber, e já, é o que são e o que fazem alli!...

-- Será o sargento Cabrinha, aquelle jacobino! Andou esta manhã pelo sitio com as milicias. Só se fôr elle! O maldito ri-se de Deus e do diabo. Ha de chegar-lhe a sua vez.

-- Prendeu alguem?!...

-- Dizem que sim, ahi para os sitios do Casal do Ouro.

-- Ah! exclamou o mancebo. Capaz seria elle? Se fosse quem receio!... Ouviste dizer?...

-- Um velho e sua filha. Os nomes não m'os souberam dar.

-- Nem é preciso! interrompeu Manuel Coutinho em voz soffocada, e com os olhos inflammados. O infame Lagarde cumpriu a promessa. Verá se a de um portuguez lhe fica atraz! Os nomes sei-os eu; dizia-m'os o coração antes de aqui entrar. Mas!...

Conteve-se, e caíu em reflexão profunda. Antonio da Cruz, tambem de pé, e animado, desde que sabia que não era com os demonios, ou com as almas do outro mundo a contenda, esperava, olhando para a espingarda, que uma palavra do amo lhe pedisse o apoio do seu braço.

-- Depois de curta pausa, o mancebo, renovadas as escorvas das pistolas, e cingida a faca de matto, virou-se para o seu confidente e disse-lhe:

-- Queres saber como se chama o velho, que o sargento arrasta preso a Santarem para o entregar á vingança dos francezes? É Paulo de Azevedo Carvalho. E sua filha...

-- A senhora D. Leonor?! A noiva de v. s.a!... Jesus... Pobre menina!

-- Buscam-o para o processar como rebelde desde o caso de Mafra. Tinham-se escondido na Aramanha, e esse villão do sargento Cabrinha, por trinta moedas prometteu entregal-o. Não o achando já alli, correu os arredores, e de certo o foi encontrar no Casal do Ouro pela denuncia...

-- Do Sapo! Foi o Sapo, aposto! Por isso o patife andava desde hontem de orelha fita e focinho aguçado! Só ao moinho, aqui, veiu duas vezes! Ah! Se eu soubera! Partia-lhe outra perna. Não importa. O que não se acaba dia de S. Braz n'outro dia se faz. Não as perde.

-- Antonio! Paulo de Azevedo não ha de entrar na cadeia da villa, nem na de Lisboa. Esta noite a «Casa Negra» terá outra historia talvez mais feia que juntar á sua. Aprompta-te! Á meia noite saímos. Pódes resar por alma do sargento, se o encontro!

III

Duas paginas da historia d'este seculo

Antes de proseguirmos, para maior clareza d'esta mui veridica narração, cujo fio poderia enredar-se com as explicações de todos os momentos, pedimos venia ao leitor para resumir em breve noticia os acontecimentos, que formam o fundo da pintura, ou antes do esboço, que nos propozemos traçar.

A revolução franceza, representante das forças e interesses da humanidade, herdeira não só das aspirações e esperanças, mas tambem das dores e resentimentos de muitos seculos, saudada em 1789 com transportes de jubilo, em 1793 já tinha convertido a innocencia do primeiro enthusiasmo nos accessos febris de um patriotismo sombrio, dando o espectaculo, novo e incrivel, dos maiores crimes a par dos rasgos mais heroicos, e das virtudes mais sublimes.

Só e contra todos arremessou audaciosamente a luva aos adversarios de fóra e ás facções internas. Decapitou no cadafalso a realeza; repelliu os exercitos da Europa colligada; atravessou após elles as fronteiras inimigas; suffocou nas provincias insurgidas as saudades e as iras do regimen decaído; e vigorosa, mesmo ao saír do berço, sobreviveu aos delirios e excessos da anarchia. Nada a detinha, nada a assombrava! Admirada de uns, execrada do maior numero, mas invencivel, precipitou-se, demolindo tudo no seu impeto, até, esvaída do sangue vertido nos patibulos e nos campos de batalha, caír por fim, quasi sem alentos, nos braços do mais illustre de seus capitães, d'aquelle de quem Siéyés disséra com persuasão prophetica: «que seria o senhor, porque sabia, queria, e podia tudo!»

A ordem restituida por elle, a victoria inseparavel de suas armas, o esplendor de tantas acções applaudidas, os milagres de uma vontade, a que ainda obedeciam os obstaculos e o destino, compozeram essa rara epopêa, de que Napoleão I, grande como Cesar, ou maior talvez, foi ao mesmo tempo o heroe e o assumpto.

Guiada pela providencia, a sua mão, ao passo que ia lavrando nas primeiras paginas da historia d'este seculo as datas memoraveis, com que se abriu sua agitada existencia, unia, pesada como a de Attila, gloriosa como a de Carlos Magno, á queda do passado a transformação do presente.

A fortuna muitos annos constante seguiu-o de triumpho em triumpho, desde as planicies da Italia, immortalizadas pela sua mocidade, até aos gelos do norte para os quaes a sorte parecia attrahil-o, e aonde o clarão de Moscow incendiada havia de illuminar depois os funeraes do imperio.

Marengo, Eylau, Essling, Wagram, e cem estações assignaladas pelos prodigios do seu genio, viram a terra gemer abalada pelo galope dos esquadrões; viram os thronos vacillar, ou alluirem-se; viram os principios nóvos germinarem grávidos do futuro nos sulcos rotos pela inundação, quando a onda vencida recolheu ao antigo leito! Abrazada em odio, ou cortada de espanto, a Europa contemplava aquella epocha de terremotos e de transfigurações, sobresaltando-se com os decretos da voz soberana, que falava pela bôcca de bronze dos canhões, e inclinando-se serva, mas fremente, na presença das aguias, que passavam e revolviam profundamente o mundo das idéas e o mundo dos factos, desde as bases e os limites das monarchias, desde o solo e a familia, até ao estado physico e social, até á organização politica e economica.

N'esta lucta de gigantes, a França e a Inglaterra, travadas como dois athletas, combatiam sem escolher as armas. Feriam-se sempre e em toda a parte! Percebiam que o duello era mortal, e que só podia terminar pela ruina de uma d'ellas. Aboukir e Trafalgar tinham assegurado a supremacia dos mares ao leopardo britannico. A Austria impaciente, mas resignada, a Prussia rendida em Jena, a Russia desenganada em Austerlitz e Friedland proclamavam a vaidade da liga continental.

Mas Bonaparte, na maior elevação a que fôra dado subir, tocado o apogeu, não foi superior á fragilidade humana. Os deslumbramentos da grandeza trouxeram a vertigem. O abysmo chamou pelo abysmo. Esquecido de que só Deus é omnipotente quiz e ousou tudo! Gerações inteiras immoladas semearam de cadaveres o rasto de seus passos. Os povos amaldiçoavam-lhe a ambição como flagello. As coroas, voando da cabeça dos reis legitimos, arrancadas pelos furacões da guerra vinham cingir a fronte plebea dos eleitos da gloria. Retalhando o corpo exanime das nacionalidades desmembradas pela espada, edificou na areia, s na areia, suppondo fundir em bronze esses reinos e dynastias ephemeras, que um aceno tirou do nada, que os seus revezes sepultaram para sempre.

Repartindo pelos irmãos e os generaes os diademas e os estados, queria ter n'elles satrapas, e não soberanos. Murat em Napoles, Joseph em Hespanha, Luiz na Hollanda, e Jeronymo na Westphalia representaram as peripecias d'esta ultima e arriscada phase de uma grandeza, que na usurpação dos sceptros e na provocação das antipathias populares encontrou o precipicio, a queda, e a lição!

Portugal, no extremo occidente, abrigado pela distancia das revoluções, que desmoronavam tudo ao meio dia e ao norte da Europa, não se eximiu afinal de participar tambem, e com largo quinhão, das infelicidades, que a nenhum paiz poupou a sorte. A iniciativa do marquez de Pombal, interrompida pela morte do soberano, que vinte e sete annos o sustentára, apezar das conspirações da nobreza, e da adversão da familia real, acabou com o monarcha tão notavel pela firmeza. O poder do ministro eclipsou-se com o ultimo suspiro do principe, e com elle expiraram as tradições viris, e os commettimentos reformadores. Um gabinete quasi todo composto de aulicos, sujeito ao veto do confessor valido, substituiu o mando odiado do marquez; e este poude vêr ainda do seu desterro a mão dos emulos alçada contra a arvore, que plantára, arvore que apenas principiava a cobrir-se de flôres, e á qual a inveja não deixou amadurecer os fructos.

A branda e devota indole da rainha atalhou em parte os bons desejos dos homens, que se prezavam de ainda respeitarem as maximas do grande reinado. José de Seabra, Martinho de Mello, e após elles D. Rodrigo de Souza Coutinho queriam continuar no caminho encetado por Sebastião José de Carvalho; porém divididos em partidos (o francez e o inglez), offuscados pelas intrigas dos hypocritas, e detidos pelos escrupulos, que assustavam a consciencia da filha de D. José I, luctavam muitas vezes em vão com a corrente, e os seus esforços a miudo naufragaram contra os artificios dos cortezãos, e contra as declamações dos beatos, senhores de todas as avenidas do paço.

As providencias uteis, que honraram o governo de D. Maria I, derivaram-se do predominio conquistado sobre o animo da rainha, sua penitente, pelo arcebispo de Thessalonica, prelado isento de preconceitos e ornado de virtudes. Mal elle desceu ao tumulo, a visão terrivel dos patibulos, erguidos por seu pae, tornou-se uma allucinação perenne, e as trevas da demencia apagaram para sempre a razão vacillante da princeza.

D. João, seu filho, empunhou as redeas do Estado, primeiro sem titulo expresso, depois com o de regente. Amigo da tranquillidade, avêsso a complicações e lances arrojados, humano e bondoso, era todavia mais sagaz e penetrante, do que supporia quem o conhecesse mal. Em suas mãos a auctoridade soberana podia enfraquecer-se e rebaixar-se, como aconteceu, mas ferir os subditos, ou irritar os alliados, não!

Comprada a preço de grandes sacrificios, a neutralidade foi a politica preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o arbitrio prudente aconselhado pelas circumstancias. Comprada a preço de grandes sacrificios, a neutralidade foi a politica preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o arbitrio prudente aconselhado pelas circumstancias. A republica tinha legado ao directorio esta amizade inerte, mas facil de conservar; e Napoleão, mais altivo, ou mais exigente, olhando quasi Portugal como colonia de Grã-Bretanha, não encobria já no consulado as suas repugnancias pela dynastia de Bragança.

Dictando-lhe a paz em 1801, e obrigando-a a submetter-se a condições injustas, nutriu acaso a esperança de que, não podendo executal-as, ella lhe proporcionasse um pretexto? Não hesitando em animar a cobiça e a rivalidade do gabinete de Madrid, queria costumal-o a invadir-nos as fronteiras, offerecidas como pasto áquella ambição estimulada?

Seja o que fôr, a Hespanha tendo-se valido de nossas armas no Roussillon, pagou-nos com ingratidões o soccorro, separando a sua causa da nossa, unindo-se a Bonaparte para nos humilhar, e aproveitando a sombra dos estandartes francezes para se apoderar de Olivença, que nunca mais restituiu!

Na mente de Napoleão I, a idéa de precipitar do throno os Bourbons de Hespanha, como os expulsára de Napoles e da Etruria, era idéa, que lançára raizes firmes. No seu tribunal tambem a casa de Bragança era condemnada por outras culpas. Accusava-a de seguir, como satellite, o astro da Grã-Bretanha, e queixava-se de que usasse e abusasse da neutralidade em beneficio dos interesses commerciaes dos inglezes, os quaes, por meio da oppressiva utopia do bloqueio continental, cuidava expellir dos mercados da Europa, fechando-lhes todos os portos desde Lisboa até Cronstadt!

Inspirado occultamente por mr. Canning, o governo portuguez promettia excluir o pavilhão britannico de suas praias, e não duvidava affiançar uma declaração de guerra simulada; mas prender as pessoas e sequestrar as fazendas dos subditos do rei Jorge, como exigia em nome da França o seu ministro, mr. de Rayneval, era violencia, que as relações anteriores e a ruina de grossos capitaes nacionaes e estrangeiros lhe prohibiam. Recusou-a sem ostentação, mas com vigor.

Napoleão queria tudo, ou nada! Para elle Lisboa e o Porto eram como puras feitorias britannicas, e, se não lh'as entregassem, estava resolvido a mandar os seus soldados conquistal-as. Contava com a repulsa, e no meio dos mil cuidados, que o salteavam então, acabava de pôr o ultimo remate ao seu plano. O tractado secreto de Fontainebleau assignado em 27 de outubro de 1807, affiançava-lhe pela cumplicidade da Hespanha a estrada militar, de que precisava para realizar a invasão.

Junot, acampado em Salamanca á testa de vinte cinco mil homens promptos á primeira voz, apenas aguardava as ultimas ordens. Duas divisões castelhanas, uma de dez, outra de seis mil soldados, deviam coadjuvar as operações do exercito francez, apoderando-se a primeira do Porto, do Minho, e de Entre Douro e Minho, assenhoreando-se a segunda da provincia do Alemtejo e do reino dos Algarves. O pacto ajustado entre Bonaparte e Carlos IV, desmembrava o reino em proveito de ambos. O Principe da Paz lucrava um estado independente de quatrocentas mil almas, composto das provincias do sul, e denominado o principado do Algarve. A rainha viuva do duque de Parma, filha querida do monarcha hespanhol, em compensação da Etruria cedida ao gabinete de Saint-Cloud, recebia um reino de oitocentos mil habitantes, formado de duas das provincias do norte, com a cidade do Porto por capital, denominado o reino da Lusitania Septentrional!

A marcha dos francezes correu tão rapida e atropellada, quanto era viva e ardente a impaciencia do imperador!

Bonaparte ordenára, que entrassem a tempo de salvar das mãos dos inglezes a nossa esquadra e os thesouros, que ella podia transportar para a America. A familia real não o preoccupava tanto. Eram alguns prisioneiros de menos a guardar! Nunca a obediencia foi tão fiel. Junot voou! Passando a raia em Alcantara, precipitou-se, como torrente, por meio do paiz, que o ciume da independencia e o amor aos principes naturaes podia tornar-lhe todo hostil. A cada passo mil perigos o advertiam da temeridade. Aqui eram serras alpestres, aonde um punhado de homens resolutos facilmente o sepultaria com seus companheiros de armas! Além eram solidões, aonde a falta de todos os recursos exaggerava as miserias com que luctava desde que saíra de Salamanca!

Os rigores do inverno tempestuoso, as estradas arrombadas e cobertas de agua, os campos inundados, a falta de viveres, e o odio dos moradores, dizimavam suas fileiras rareadas pela fadiga, pela fome, e pelas enfermidades. Tudo se conspirava para o punir e demorar a invasão; o clima, os habitantes, e o territorio que se via obrigado a atravessar!

A firmeza do general triumphou. No dia 27 de novembro suas avançadas batiam quasi ás portas de Arroios, e nas praias de Belem o principe regente dava o ultimo beijamão aos vassallos consternados!

No caes e na praça não se via senão lagrimas e confusão. Os parentes despediam-se, abraçados, como se não esperassem tornar a vêr-se. Os escalares e bergantins carregavam para bordo as mobilias dos fidalgos e as alfaias mais preciosas do paço e da patriarchal. Nas ruas apinhava-se o povo attonito. Cercada do cortejo doloroso do infortunio, a familia real era o alvo, em que se empregavam os olhos de todos.

No meio das damas, açafatas, camaristas, e criados, pallidos e suffocados, o principe D. João, sua esposa a princeza D. Carlota, seus filhos, e sua mãe a rainha D. Maria I, cujos gritos de demencia cortavam o coração, diziam o ultimo adeus á terra do seu berço!

A multidão soluçava e estendia os braços em vão, como se quizesse retel-os. Um decreto datado da vespera tinha declarado que os conselhos pusillanimes prevaleciam. Em vez de chamar o reino ás armas, imitando o valor de seus antepassados, D. João ia refugiar-se além do Atlantico, no Rio de Janeiro, deixando nomeada uma regencia á qual deferia a triste missão de abrir as portas da capital ás tropas inimigas.

Demorada no Tejo pelos temporaes, a esquadra portugueza só largou as velas no dia 29. Nessa mesma noite arrastavam-se desfallecidos pelos arrabaldes de Lisboa os invasores, cuja sombra sossobrára o peito de um descendente de D. João I! Quasi nús, descalços, esmorecidos, recrutas imberbes com as espingardas cobertas de ferrugem, inuteis, ou partidas, os soldados do corpo de occupação infundiam mais dó e piedade, do que temor e respeito no animo dos que os viam desfilar. Escudava-os, porém, o nome de Napoleão com o seu prestigio. A hora dos desenganos ainda não tinha batido.

Junot entrou no dia 30, hospedou-se no palacio do barão de Quintella, e poz algumas auctoridades suas. No dia 13 de dezembro, depois de uma parada no Rocio, a bandeira tricolor foi arvorada nas ameias do castello. Começava o primeiro acto do attribulado drama, cujo desenlace encerrou a capitulação de Paris, e a abdicação de Fontainebleau! As tropas hespanholas acompanhavam os movimentos dos alliados. O general Taranco apoderou-se do Porto; o marquez del Soccorro, senhor do Alemtejo, adeantou-se até Setubal. As forças dos invasores cercaram-nos por todas as partes.

Ás saudades cada vez mais vivas da dynastia desterrada, aos resentimentos provocados pelo jugo estranho, que, arrogando-se fóros de conquista em plena paz, cada dia era mais detestado, uniam-se os aggravos e violencias inseparaveis de uma occupação, que só podia sustentar-se pelo rigor.

Amanheceu finalmente o dia 13 de fevereiro de 1808, o qual, rasgando o véu de todo, revelou sem disfarce os designios de Bonaparte. Rodeado de soldados e canhões, ao som das salvas das fortalezas de mar e terra, Junot proclamou sem hesitar a usurpação insolente de todos os direitos da soberania. A casa de Bragança, disse elle no seu edital, acabou de reinar. O imperador dos francezes será de ora em deante o protector e o arbitro dos destinos da monarchia! Para consolar os portuguezes da perda da independencia, o duque de Abrantes prometteu-lhes mil beneficios, e assegurou-lhes que um dia até o Algarve e a Beira Alta haviam de ter o seu Camões!

Os habitantes preferiam a epopea viva á epopea escrita, e poucos mezes depois com a espada em punho recordavam as proezas de seus avós, repellindo os estrangeiros.

As armas nacionaes picadas e substituidas pela aguia corsa, a contribuição forçada, decretada em 7 de dezembro de 1807, e repartida pelos moradores abastados de Lisboa, que nem o pretexto da resistencia tinham offerecido á cubiça, irritando os animos excitaram tumultos na capital e rixas em varias terras.

Correu sangue de parte a parte. Nas provincias os roubos impunes, os desacatos da soldadesca nas egrejas, e as tropelias de tropas licenciosas e pouco disciplinadas, ainda cansavam mais a paciencia publica.

A sorte da capital e do Porto não era menos infeliz. Lagarde, detestado pela sua tyrannia na Italia, e Perrot assaz inventivo em oppressões, cobriam de uma rede de delatores os pontos, onde suppunham que podiam abrigar-se os seus adversarios, faziam leilão publico da clemencia, e abriam, ou cerravam as portas das prisões com chaves de ouro. Tinham pressa de enriquecer!

Adivinhariam que o seu governo não havia de durar muito? Os factos provaram mais esta vez ainda os perigos de tão errado systema. Filho da violencia, apenas o desamparou a força que era o seu unico apoio, despenhou-se nos abysmos, que elle proprio afundára.

IV

O bem soa, o mal voa

De ordinario voltam-se contra os poderes odiados os proprios meios empregados para algemar os povos. As visitas domiciliarias, as buscas, as denuncias, as multas, os encarceramentos, todos os instrumentos de tortura moral, em fim, excogitados pelo genio assolador de Lagarde, produziam effeitos contrarios aos que elle esperava colher, ulcerando o orgulho nacional, enfurecendo as populações, e predispondo-as para vingarem no primeiro ensejo todas as offensas de uma vez.

Em Mafra, aonde um conflicto casual custára a vida, ou o sangue a alguns soldados de Junot, a crueldade da repressão, confiada ao general Loison, acabou de exasperar os animos. O desditoso Jacintho Correia expiou com o supplicio a culpa, quasi geral, da aversão aos invasores.

Estes rigores, longe de as firmarem, tornaram mais frageis as bases da dominação estrangeira, que a todos os instante via desabar o edificio vacillante do seu poder. As devassas e monterias ordenadas contra as pessoas implicadas n'esta guerra surda, mas implacavel, ameaçando alguns innocentes, apenas réos do horroroso delicto de aborrecerem a usurpação, recrutou em favor da reacção patriotica numerosas e decididas adhesões.

Paulo de Azevedo Carvalho, que no «Moinho da Raposa» ouvimos citar como uma das victimas da intendencia geral da policia, salvo quasi por milagre, graças á rapidez da fuga, das garras dos emissarios de Lagarde, vagueára de asylo em asylo, acossado de perto, mas sempre protegido, desde Torres Novas até Santarem pela generosa cumplicidade, que lhe patenteava todas as portas, do palacio até á choupana, apagando logo depois com discreto silencio o menor vestigio de seus passos.

Uma imprudencia ajudou os que o perseguiam. Sua filha partiu de Torres Vedras para ir encontrar-se com elle, e os olhos de argos da policia seguiram-a na jornada até ao humilde casal, escondido nas mattas da Aramanha, onde a esperava Paulo de Azevedo, e onde lhe abria os braços a hospitalidade rude, mas sincera, do honrado fazendeiro Antonio Simões.

Disfarçados em mendigos ou em jornaleiros, os agentes de Lagarde depressa descobriram o foragido no seio da casa rustica, em que se abrigava. Assaltaram-a de noite com um cordão de milicias ás ordens de Estevan Cabrinha sargento no regimento de Rio Maior, e capaz de vender o sangue de mãe e irmãos, uma vez que o preço correspondesse. Falharam, porém, todas as precauções. Cabrinha errou o salto. Avisados a tempo o pae e a filha evadiram-se na vespera, e o sargento só colheu da ruidosa diligencia as maldições de Antonio Simões, maldições e despresos, que estava costumado a engulir, como ossos do officio, mas que registrava cuidadosamente para as descontar aos devedores na hora opportuna.

D'esta vez a divida não esperou muito. Uma busca de contrabando sobre denuncia falsa proporcionou-lhe o desejado pretexto. Antonio Simões da Aramanha deu-lhe o gosto de entrar dias depois sob seus auspicios na cadeia de Santarem, quasi arrependido da soltura de lingua, com que tinha lançado em rosto ao perseguidor as lagrimas e a ruina das familias, e os crimes contra a patria. O fazendeiro, todavia, não gemeu nos ferros de el-rei, como se dizia então, sem jurar pelas costellas ao malsim. Deante de testemunhas protestou moel-o com o cajado de zambujeiro, especie de clava, que achatava um homem como uma bolacha, e vozes chocalheiras avisaram o sargento da promessa caridosa. Cabrinha enfiou. O intendente geral da policia Lagarde servia-se do mastim e açulava-o contra o Ribatejo, não regateando ao mercenario venal as recompensas; mas era duvidoso que podesse eximir-lhe o corpo do premio, affiançado pela gratidão de muitas victimas.

Em quanto Paulo de Azevedo respirasse livre, o amor proprio e a bolsa de Cabrinha padeciam, e não era elle homem que dormisse, quando o interesse o chamava com voz activa. Suppondo o cavalleiro de Mafra ainda proximo, deixou-o socegar por dias, e valendo-se da ardileza de um subalterno sagaz, digno assessor de suas virtuosas emprezas, o coxo Gaspar Preto, conhecido pela expressiva alcunha do Sapo, mandou-o bater os arredores, na idéa de que a vista de lince do agente, com mais facilidade desencantaria, ainda quente, o ninho aonde se refugiava a presa.

Não se enganou. O Sapo, cujos brios avivára a esperança de rasoaveis lucros, entrou sem demora em campanha, e tres dias depois trouxe-lhe a agradavel nova de que o cavalheiro e sua filha se cobriam com o tecto modesto de uma casa, pouco mais do que choupana, solitaria, e situada nas abas da risonha povoação do Casal do Ouro no meio das vinhas e olivedos, que o vestem de verdura.

O sargento não perdeu tempo. Apenou seis milicianos fieis ao copo e ao cangirão, e, acompanhado por elles, prendeu de tarde e á traição a Paulo de Azevedo e a Leonor. Temendo, porém, que o povo se alvoroçasse, apezar das ameaças da trovoada metteu-se a caminho, não sem olhar a miudo para traz, receioso, sobre tudo na charneca, de que a bala perdida de uma espingarda lhe testemunhasse o reconhecimento grangeado por seus longos e valiosos serviços!

O homem põe, e Deus dispõe! A fortuna que o protegêra, detendo Manuel Coutinho no Cartaxo, sem o que teria encontrado o seu amigo e a sua noiva presos, (lance de certo fatal ao sargento), mostrou-se logo contraria a Cabrinha, não demorando uma hora, ou duas mais, tambem, o temporal, o qual, perto da Ponte da Asseca rebentou com violencia tal, que o constrangeu, á falta de melhor, e não sem grandes arrepios de medo seus, e dos soldados, a descançar aquella noite no palacio arruinado, temido na visinhança pelo significativo nome de Casa Negra, ou de Casa Maldita.

O Sapo, entretanto, não ficára ocioso.

Sabendo que Antonio Simões da Aramanha fôra solto da cadeia de Santarem por ordem do juiz de fóra, e que n'essa mesma tarde vinha dormir ao Casal do Ouro, doeram-lhe de repente todos os ossos, como se o cajado monumental lh'os triturasse, similhante a mangual na eira, e assentou livrar-se a si e ao sargento da promettida sova, interceptando na estrada o robusto fazendeiro com uma bala.

Esperou-o, pois, atraz de um vallado, em azinhaga escura e estreita, ao anoitecer. Escutando o ruido de passadas cheias renovou a escorva, engatilhou a espingarda, metteu-a á cara, e com a tranquillidade, com que poderia desfechar sobre uma lebre, disparou por entre as ramas sobre um vulto, que vinha dobrando a quina do caminho, e que soltando um grito agudo baqueou por terra.

-- Deus seja com a sua alma! exclamou o assassino, saltando o vallado, e contemplando prostrado, e com o rosto banhado em sangue o corpo da victima, que todavia conheceu pela estatura e pelo trajo ser Antonio Simões da Aramanha.

-- Está com Christo! ajuntou depois de olhar para elle instantes. Este já não morde. Falta o Antonio da Cruz!... Tambem lhe ha de chegar a sua vez!

Feito este responso, torcendo a perna, e apressando os saltos, em que despejava mais caminho do que os sãos, o coxo passou por entre as silvas, e atravessando pelas vinhas e hortas, veiu saír muito distante do logar do crime, ao alto do valle.

Soou a noticia do tiro dado em Antonio Simões. As mulheres, que se recolhiam do trabalho do campo, encontraram o corpo ensanguentado na azinhaga, e correndo e clamando, tocaram a rebate com a historia do homicidio por todas as portas. Juntou-se gente, accudiram alguns amigos, que o morto contava na terra, e em procissão encaminharam-se ao sitio aonde o desgraçado fazendeiro devia jazer, que era aonde a azinhaga cortava entre a Ponte de Asseca e a Casa Negra.

Caso inaudito, e que fez erriçar de espanto as grenhas hirsutas dos aldeões, por baixo dos barretes de lã e dos chapéus desabados! Nem rasto da victima! Sómente duas poças de sangue, e a cama feita pelo cadaver na terra molhada denunciavam a verdade das camponezas e a existencia do delicto!

Quem roubára aquelle corpo á sepultura christã? Quem fôra o assassino? A estas duas perguntas respondia a superstição, que só poderia ter sido o inimigo do genero humano, porque a azinhaga não se via trilhada senão dos pés curtos e deseguaes de um homem, que, fugindo, deixára assignalada no vallado a feição dos joelhos. Aonde acabavam as passadas fortes e largas dos sapatos de Antonio Simões não havia indicio de mais nenhumas.

A chuva caíndo em torrentes, os relampagos allumiando as trevas de clarões repentinos, e os trovões estalando uns após outros, depressa dispersaram os curiosos, que a luz de dois archotes, saccudidos e apagados pelo vento, não confortava muito contra os terrores do inferno, sobre tudo em tão medonha noite.

Benzendo-se, e acotovellando-se uns aos outros, recolhiam-se transidos, ensopados, e cheios de apprehensões, quando alguns mais audazes, que tinham ousado arriscar a vista na direcção do palacio arruinado notaram, que duas das janellas, sempre cerradas, deixavam transparecer por entre as taboas mal juntas uma claridade livida, brilhante na escuridão como os olhos de um demonio!

Esta ultima prova do poder sobrenatural do tentador foi tão decisiva que, trocando o passo ligeiro pela mais despedida carreira, os bons dos aldeãos, persuadidos de que Satanaz reunia na Casa Negra a sua côrte plenaria, não pararam senão á porta da egreja parochial, chamando pelo prior em altas vozes.

D'onde vinha ao palacio arruinado a má reputação, que afugentava de sua visinhança os moradores dos logares proximos? Que trasgo, ou que duende vexava com suas maleficas travessuras a casa ennegrecida pelo tempo, e rodeada de eterna solidão?

Construida nos principios do seculo XVII, o gosto depravado do architecto traduzia-se nos dois pavilhões lateraes, que acompanhavam o corpo do edificio, esmagados pelos tectos, e massiços como duas cidadellas, carregadas de tristeza. Revestidos de pesadas cantarias, com as janellas estreitas e de volta baixa, e as portas abafadas de lavores e ornamentos desgraciosos, o ar e a luz só a medo podiam circular pelas immensas salas e pelos extensos e escuros corredores, em que se repartia.

Solar desamparado, por mais de um seculo via-se as ervas crescerem nos pateos e eirados, as eras enrolarem-se pelos muros gretados, e os telhados verdejarem cobertos de plantas parasitas. Os anciãos mais antigos na terra, não se lembravam de nunca terem visto o dono d'aquella casa condemnada, e todos os annos os invernos, succedendo-se, e penetrando pelas brechas não reparadas, accumulavam ruinas sobre ruinas, estragos sobre estragos.

As lendas populares explicavam o destino singular d'aquelle palacio, o qual de certo vira dias mais ditosos, quando as malvas e ortigas não afogavam os canteiros de seus jardins, quando os entulhos não cegavam os canos á fresca lympha, que jorrava em tórnos de agua crystallina para os largos tanques de marmore, quando, finalmente, as colgaduras de couro e os pannos de raz não pendiam em farrapos das paredes fendidas e esverdeadas, e as manchas de humidade não desfiguravam os relevos e molduras dos tectos.

Que horroroso crime expiava o palacio deserto, cujos vigamentos pôdres estalavam com o peso de telhados arrombados, cujos moveis roidos de caruncho se desfaziam no pó da velhice e do abandono?

Contava a tradição que dois irmãos rivaes haviam disputado a mão de uma formosa dama, causa innocente do seu infortunio, e que o menos ditoso na porfia, como Iago, convertêra em desespero a felicidade do competidor, envenenando-lhe de suspeitas os amores. Não valeram prantos e supplicas contra as allucinações do ciume! O sangue da esposa e o sangue do filho innocente, doce fructo do seu enlace, vertido em um momento de delirio, vingou os zelos do marido, que suppunha lavar com elle a nodoa do nome e do brazão. Horas depois, mas sem remedio, descobriu-se a perfidia, e o desgraçado caiu em si do delirio, e viu-se tornado o verdugo de si mesmo e dos que mais estremecêra no mundo. O que passou n'aquella noite entre os dois irmãos é segredo, que dorme com ambos na eternidade. Sómente ao romper da aurora mais um cadaver descia ao jazigo da capella, e o infeliz, sobrevivendo á morte de todos os affectos, e algoz de todos elles, na edade de vinte e cinco annos, quando partiu para não voltar, mettia horror á vista. Os cabellos e o rosto eram já os de um velho. Bastaram poucas horas de remorso e de agonia para lhe consumirem a vida e a mocidade.

O lucto do senhor cubriu a casa, theatro de tantos crimes. Deshabitada, fugiam d'ella donos e creados como de um logar maldito. Sempre êrma, e sempre muda, só os echos accordavam n'ella com o anniversario do terrivel drama. O velho guarda, ao qual primeiro foram confiadas as chaves, despertando sobresaltado por horas mortas, subiu ao andar nobre, e caiu sem sentidos, paralyzado pela visão terrivel, que se lhe representou alli.

Viu uma fórma branca e suave, com os cabellos esparzidos sobre o collo, atravessar, chorando, as salas. Apertava ao peito uma creança adormecida, e seguia-a outro espectro ameaçador com o punhal erguido. Atraz, uma figura contemplava aquella scena rindo com satanica alegria. Os lustres accesos por si mesmos entornavam torrentes de luz livida sobre os aposentos. Os gemidos e soluços das victimas, o tinir dos ferros, as risadas e as imprecações retratavam ao vivo o tremendo espectaculo, em que o parricidio e o fratricidio tinham desempenhado os principaes papeis. O velho enlouqueceu de terror.

Desde então ninguem mais quiz tomar conta do palacio. Os morgados deixaram-o caír em ruinas a pouco e pouco, e quando os francezes sequestraram por ausente os bens do fidalgo, aquellas paredes infamadas não acharam comprador. O fisco não quiz para si senão a posse das terras, e arrendou-as. Parece, todavia, que a invasão dos estrangeiros excitára a cólera das potencias sobrenaturaes, porque nunca se tinham mostrado tão malfazejas e ruidosas. Um allemão excentrico, apostando hospedar-se alli uma noite inteira, foi achado ao amanhecer sem fala, nem movimento, e seis mezes depois ainda tremia quando lhe lembravam a aventura da Casa Negra.

Era, pois, desculpavel o susto dos aldeões. Vendo a luz coar-se através d'aquellas janellas sempre escuras, e não achando o corpo de Antonio Simões no sitio aonde fôra assassinado, tudo attribuiram aos maleficios, e escudando-se com o amparo da egreja, invocaram a protecção do parocho, persuadidos de que as iras divinas, provocadas pelas abominações dos jacobinos, haviam quebrado a lousa das sepulturas, soltando os espiritos das trevas para flagello e confusão dos inimigos de Deus e de el-rei.

Entretanto, cousa notavel (!) n'esta assembléa dos homens bons do logar, como diria um foral de nossos avoengos, faltava o João da Ventosa, o orador popular por excellencia, o Hortencio, o Eschino laureado d'aquellas visinhanças! O que o detinha? Pouco timorato por indole, e até para a epocha e para a educação assaz limpo de abusões, trazia de renda as terras da Casa Negra, pegadas com uma horta sua; mas se alguem lhe tocava na ruim visinhança do palacio, prendia-se-lhe de repente a voz, e uma visagem avinagrada torcia-lhe o semblante. Era mais orthodoxo n'este ponto, do que o cura. Os contos de visões e de almas penadas, que repetia, não concorriam pouco para entreter o pavor dos companheiros de copo e de touradas, os quaes se espantavam, de que elle tivesse animo para metter o arado e a enchada em terras, que mais deviam reputar-se vinculadas ao demonio, do que administradas pelo bondoso morgado, que as disfructára.

Mas como as terras eram excellentes e criavam bem, e como, não sendo affrontado por competidores, elle as trazia quasi pelo que queria dar por ellas, o João da Ventosa continuava a amanhal-as, e a servir-se das officinas do palacio, e até de algumas casas do andar terreo. Peccado de avareza que as almas pias e tementes a Deus prognosticavam, que lhe seria funesto um dia, arriscando-se a que o demonio, enfadado com o atrevimento, levasse pelos ares n'um furacão os bois, as charruas, o lavrador, os carros, e os telhados!

Nunca lhe viam o trigo e o milho na eira, que não rosnassem por entre dentes: «Queira Deus que o meu compadre uma vez se não arrependa. De parceria com o demo nunca ninguem medrou!» O João, como bom christão, ouvia-os, suspirando, queixava-se da carestia dos tempos, que obrigava o pobre a fazer pão até das pedras, e ia attestando de saccos o celleiro, dizendo sempre que muitas noites não podia pregar olho com o alarido infernal, que ía lá por cima.

Dadas estas informações essenciaes, que o leitor benevolo desculpará, tornemos á nossa historia, e acompanhemos as diversas pessoas, que estão em scena, esperando por nós, tanto no Moinho da Raposa, como na Casa Maldita.

Quanto aos honrados aldeões, apinhados defronte da porta do reverendo prior, não nos dê cuidado a sua inquietação. O parocho, consolando-os com duas maximas em mau latim de orelha, prometteu-lhes exorcismar, mesmo de longe o espirito maligno, e recommendou-lhes que se recolhessem e abafassem depressa, porque a noite estava medonha, e o anno corria infamado de pleurizes e catharraes. Dito isto lançou-lhes a benção da janella, e foi sentar-se á mesa para não deixar esfriar a ceia. As ovelhas imitaram o pastor, e meia hora depois, acalmado o alvoroço, reinava na aldeia o mais profundo socego, apenas interrompido pelos latidos de algum cão impertinente, e pelas rajadas da chuva e do vento, com que a tempestade açoutava as copas das arvores, e fustigava os telhados das casas.

V

Não ha atalho sem trabalho

Transportemo-nos sem demora ao andar baixo da Casa Negra.

As duas portas da fachada estão fechadas, mas um estreito postigo, que abre para o pateo, apenas se acha cerrado. Entremos por elle, e, seguindo o som das vozes, continuemos, apalpando no escuro as paredes, que se esfarelam de humidade pelo comprido corredor.

É uma especie de dormitorio ladrilhado com portas á direita e á esquerda, provavelmente accommodações dos creados do palacio, quando fôra habitado. As taboas do tecto, podres e despregadas, ameaçam cahir sobre a cabeça, e aqui e acolá montes de caliça dos muros esboroados promettem um desabamento proximo. No topo uma porta derreia-se pendente a meio cutelo do ultimo leme enferrujado.

Atravessemos depressa! Estamos em uma casa de abobada, fria e surda, com duas frestas engradadas. Subamos aquelles tres degraus, e guiemo-nos pela claridade baça, e pelo alarido que da extremidade de outro corredor nos estão avisando de que na estancia immediata conversam, ou disputam muitos homens.

No fim do corredor apercebem-se os vãos de duas escadas interiores, cujas vigas e degraus carcomidos tremem de velhice. Uma fenda larga racha ao meio a grossa parede, que as divide. Duas portas com travessas cerram a entrada das escadas, lançadas dos lados em ramos divergentes para o andar de cima.

Empurremos agora as taboas mal juntas de outra porta, que nos veda a vista, e adeantemo-nos. O espectaculo que vamos presenciar vale a fadiga a que nos sujeitámos.

É a cozinha, terrea e toda de abobada, com fornalhas ao fundo e chaminés enormes. Uma immensa pia de pedra á direita, e uma mesa tambem de pedra á esquerda, compunham a mobilia primitiva. Na lareira ardem e estalam grossos troncos de arvores, cortadas em verdes, e á roda da chamma afogueada e crepitante, sentam-se os novos hospedes do palacio. Pelas tres janellas lateraes sem vidraças sopra o temporal ás rajadas, e a chuva salpica dentro fustigada pelo vento; dos canos das chaminés, meio alluidas, escorre a agua, e geme o vendaval, afogando os silvos em sussurros prolongados. O clarão dos relampagos, golfando quasi sem interrupção, allumia de phantasticos e subitos clarões as paredes e o chão lageado da enfumnada, sombria, e vasta quadra.

No recanto, formado pelo angulo da chaminé, e pelo angulo de um grande armario embocetado, esconde-se, quasi suspensa, uma escada de caracol, toda de pedra, ainda menos mal conservada. Defronte da porta da sahida dois arcos de volta mui baixa, parecidos a bôccas de furna, communicam para a cave e para a arrecadação, ambas subterraneas e extensas.

Uma especie de lampião, em que são mais as folhas de papel azeitado, do que os vidros, balouça-se pendente de cadeia de ferro presa no tecto.

Uma tosca mesa de quatro pés, coberta de toalha, cuja alvura desappareceu debaixo da ramagem caprichosa das nodoas de vinho e de gordura, levanta-se no meio da casa. Pratos e garfos, um tacho colossal de migas com a classica colher de pau enterrada na appetitosa assorda; dois cangirões de vinho, e canecos monstruosos, uma cesta de laranjas ao pé de uma frigideira de queijos brancos, ladeiam a peça capital do brodio campesino, um cabrito acerejado, rodeado de batatas, e credor de tentar a gula do mais austero cenobita.

Finalmente, sobre a mesa de pedra, coberto com um capote de cabeções, do talho pouco airoso dos chamados Josésinhos, com um tronco por travesseiro, e um panno ensanguentado sobre a cara, jaz um vulto, que a immobilidade rigida dos membros, e duas vellas uma aos pés, outra á cabeceira, dizem claramente ser um cadaver.

De vez em quando os olhos dos que velam bem contra vontade o seu ultimo somno, voltam-se para elle, e afastam-se rapidamente, como se temessem, que a trombeta final, soando mais cêdo, o despertasse. O sargento Cabrinha e o seu honrado confidente Gaspar Preto, o Sapo, as pessoas conspicuas da assembléa nocturna, em que a nossa indiscreção introduz o leitor, são as que olham mais a miudo, e de cada vez que fitam vista n'aquelle corpo inerte, um calafrio arrepia-lhes a espinha dorsal, e um suor de mau agouro, apezar da temperatura, borbulha na testa de ambas. Dariam tudo por se verem a cem leguas da companhia d'aquelle morto, cujo sangue o seu remorso, como que está avivando mais em manchas vermelhas sobre o sudario, que lhes esconde o rosto.

Os principaes auctores concordam com o logar e com os accessorios.

Comecêmos pelo chefe, como é razão.

A physionomia de Estevam Cabrinha não desmente a reputação. Conta pelo menos sessenta annos, mas póde melhor com elles, do que outros, menos robustos, poderiam com quarenta. A testa esguia e deprimída lembra a fronte felina, e a mobilidade de duas profundas rugas, cavadas logo por cima dos sobrolhos, ainda torna mais sensivel a similhança. Faces encovadas, beiços sorvidos, barba revirada, e por cima da pelle uma côr assanhada de amora mansa, não lhe permittem suppor-se por certo nenhum Cupido, nem seccar-se, como Narciso, de paixão pela belleza propria.

O nariz, adunco, em fórma de bico de papagaio, caía como apagador, ornado de botões vinosos, sobre a bôcca. Os olhos, cujo raio visual se torcia com sinistra expressão, tinham aquelle tom baço e frio de pupillas, que revela quasi sempre as almas traiçoeiras. Curto de pescoço, largo de hombros, e prendado com uma corcova assás volumosa, imita nos movimentos lentos o pesado garbo do urso dos Alpes.

O ventre proeminente, e as pernas delgadas provam, que pouco tinha que agradecer á providencia as graças do busto. Os cabellos hirsutos, empastados na testa, alargam-se como duas orelhas derrubadas sobre as fontes, e terminam por um rabicho esplendido de meio covado de comprido, dançando enfeitado de seu laço de fita preta sobre a farda, polvilhando-a de pós, e ensebando-a de banha.

Um bigode, quasi todo branco, espetado nas guias, como as sedas de um chicote, e o resto da cara rapado e escanhoado cuidadosamente, afinam perfeitamente o typo singular e repugnante d'este personagem funesto, que as desgraças civis fizeram sobrenadar com as escumas sociaes, mas que as galés cêdo, ou tarde, hão de recolher, como filho prodigo, se as iras populares se lhes não anteciparem.

Trajava a farda de milicias, de panno azul ferrete, botões e vivos brancos, abas de tesoura, e gola de espeque. Os calções de uniforme e as polainas atraiçoavam-lhe a magreza das pernas. A espada de bainha preta e copos de roca descançava fóra do boldrié a seu lado, e a alabarda, insignia do posto, via-se encostada da outra parte.

O Sapo merecia a alcunha. Teria trinta annos. Era todo branco-papel, cara e cabellos, como se um moleiro o tivesse amortalhado em um sacco de farinha, mas d'aquelle branco livido e sepulcral, que nos enoja e repugna, quando contemplâmos qualquer reptil asqueroso. Uma queda em pequeno tinha-lhe deixado em memoria a deslocação da perna esquerda, que, torcida quasi em rosca de parafuso, o obrigava a andar aos saltos como a rã, ou a agachar-se, como o animal immundo, cujo nome o baptismo dos visinhos substituira ao seu.

Quasi sem nariz e beiços, vesgo, e da altura de um rapaz de nove annos, não mostrava no rosto ponta de barba, e quando se ria escarnava as gengivas e os dentes, de modo, que as mulheres lhe chamavam por escarneo o bôcca de tubarão. Agil e matreiro, como a raposa, a sua actividade era incansavel, a sua consciencia larga como o peccado, o seu coração duro como um penhasco. Caçador dos mais destros, andarilho infatigavel apezar das pernas, curioso e falador como um cento de comadres, ouvia, sabia, e aproveitava tudo.

Accusavam-o de não perdoar aos outros a fealdade propria, e de se felicitar com os alheios males. Auctor de alguns furtos industriosos, espião e delator por officio, assassino por vocação, Gaspar Preto, como o imperador romano, desejaria ao genero humano uma só cabeça para lh'a decepar de golpe. Vestia calções curtos atacados sobre as meias de lã, botas de couro branco e salto de prateleira, collete e vestia de belbutina com botões ôccos de metal amarello, e cinta escarlate muito apertada ao corpo.

A espingarda, sua fiel companheira, estava sempre á mão, e a tiracolo encruzavam-se-lhe sobre o peito as correias do polvorinho e do chumbeiro. A navalha de ponta e de cabo de osso, que trazia na cintura, era afamada em toda a comarca pela habilidade, com que a jogava, ou com que sabia atiral-a de arremesso aonde punha o alvo.

Os cinco homens da milicia e da ordenança, que acompanharam o sargento na diligencia ao Casal do Ouro, não merecem menção especial. Aldeãos corpulentos cabeceavam de somno ao calor do lume, e bocejavam de fome ao tinir dos pratos, que um creado do João da Ventosa principiava a pôr em cima da mesa. O João, sim, esse é que destaca de todo o grupo pela figura, pelos gestos, e pelo aspecto na realidade digno de exame. Será homem de quarenta e cinco annos, mas não inculca mais de trinta e oito. Bem posto e proporcionado de membros, mais esbelto, do que robusto, á primeira vista, mais engraçado, do que forçoso na apparencia. A cara redonda e os beiços grossos e sensuaes, o olhar fino e malicioso, e a bôcca cheia de riso, na sua mocidade tinham feito d'elle o enlevo e o adonis das bellas e namoradas raparigas d'aquelles contornos; porém debaixo d'estas fórmas quasi delicadas escondia elle vigor pouco vulgar, assim como o sorriso meio travesso, que lhe bailava nos labios, disfarçava uma firmeza e penetração mui pouco usuaes.

Sabia ler, escrever, e contar como um mestre-- eschola. Se tivesse nascido trinta annos depois, n'estes felizes tempos, era de certo juiz eleito, regedor, vereador, e quem sabe (!) talvez mesmo deputado! Outros muito peiores deu já á luz a urna rural. São os que, cerzindo umas abas de paletó á jaqueta hereditaria, mascarram de interpellações boçaes e de apoiados taurinos e beocios o extracto das sessões, acotovellando-se nos aditos da tribuna.

O nosso amigo contentava-se, porém, com os seus trinta a quarenta moios de colheita, com as vinte pipas de azeite, que expremia nos seus lagares, com os toneis attestados de vinho puro e genuino, honra e orgulho da sua adega, e com a vara de juiz de vintena, magistratura exercida a contento de clero, nobreza e povo.

O João da Ventosa, ou João Bonito, como lhe chamavam as mulheres da sua edade, gosava álém d'isso da fama de rico, pastava bons rebanhos na charneca, fazia dinheiro de tudo, e abotoava-se com um bom par de louras. Solteiro e jovial vivia só em companhia de um sobrinho de quatorze annos, e de dois creados.

Ao pôr da tarde, vendo a trovoada armada, tinha ido de passeio rondar as hortas e o olival, tinha deitado depois até ás abegoarias, e na volta de uma das arribanas, por encurtar caminho, viera descair á azinhaga, aonde a espingarda do Sapo acabára de deitar por terra Antonio Simões da Aramanha.

O estrondo do tiro, a hora e o grito do ferido obrigaram-n'o a apertar o passo. Assim mesmo chegou tarde. O assassino já tinha saltado o vallado, e o corpo do fazendeiro jazia prostrado. Era quasi noite, choviscava rijo, e o ribombo dos trovões amiudava. Inclinou-se para o morto, conheceu n'elle um amigo de vinte annos, exhalou um suspiro, rosnou uma praga contra o homicida, e, depois de alguns momentos de hesitação, levantou-o nos braços, como se o peso não o devesse ajoujar, e deitando-lhe a cabeça sobre o hombro, sem vergar, encaminhou-se com elle para casa. Á porta chamou o maioral e o abegão, e todos tres transportaram o cadaver para a cozinha.

Duas horas depois batia á porta o sargento Cabrinha com os seus milicianos, e da parte da justiça pedia agasalho por aquella noite para elles e para os presos. O João da Ventosa, ao que parece, estava occupado, porque os deixou repetir o recado terceira e quarta vez.

Por fim veiu abrir em pessoa, e desculpando-se com o mau tempo, metteu o sargento na cozinha com os acolytos, e guiou Paulo de Azevedo ao andar nobre, a um aposento mais bem reparado, aonde um leito antigo de balaustres enroscados e baldaquino de seda carmezim, cama quasi regia, parecia esperar por elle. O quarto de D. Leonor era ao lado, e communicava por uma entrada baixa com o de seu pae. Cabrinha assistiu ao aquartelamento dos presos, visitou o corredor e a escada, que era a que dava para a cozinha, sondou a parede de duas portas entaipadas de fresco, que abriam d'antes para o corpo do palacio, e não socegou senão depois de ter fechado o cavalheiro de Mafra e sua filha a duas voltas de chave nas duas camaras, que um official amigo do rendeiro havia separado do resto da casa, enchendo de pedra e cal o vão das portas.

-- A menos de não lhes nascerem azas de repente, murmurava o sargento, para voarem, ou de passarem como espiritos através dos muros, os dois estão seguros. A evasão pelas janellas, vista a altura, equivale a um suicidio; e pela porta, mesmo que a arrombem, como não ha senão uma escada e uma saida, e ambas vão dar á cozinha, aonde conto acampar, qualquer tentativa serviria só de os tornar a metter nas goelas do lobo!

Tomadas todas as cautellas, que a prudencia aconselha, Estevam Cabrinha desceu com o seu hospede, e principiou a apalpal-o, ácerca da generosidade, que lhe suppunha de não consentir que elle e os seus jejuassem só com o leve almoço, esmoido no largo passeio do Casal do Ouro á Ponte da Asseca. João da Ventosa respondeu ás gargalhadas, que de sua casa nunca saiam barrigas famintas, e gritando pelos creados, mandou trazer luz e accender o lume.

N'este momento entrou o Sapo.

Rondando as visinhanças o virtuoso assessor do sargento achou a porta meio cerrada, ouviu de fóra a voz aspera e roufenha do amo, e sem mais ceremonia inseriu-se no texto, enfiou o corredor, e veiu farejar a ceia e a pousada.

A manta, em que se enrolava, escorria como se fôra tirada de um tanque, e as botas atascadas de barro denunciavam a larga excursão de que se recolhia. Approximando-se de Cabrinha, tocou-lhe no hombro, e disse-lhe ao ouvido duas palavras. O digno mandarim recuou sobresaltado, e não poude conter uma exclamação em alta voz, exclamação de susto e de alegria ao mesmo tempo, que não escapou á curiosa attenção, com que o João da Ventosa espreitava e escutava com todos os sentidos vigilantes o dialogo confidencial dos dois personagens, cujas proezas conhecia de longa data.

As suspeitas, que desde o principio o tinham assaltado ácerca dos verdadeiros auctores do homicidio da azinhaga, confirmaram-se.

Estevam Cabrinha era muito capaz de encommendar a morte do fazendeiro, e Gaspar Preto muito obediente servo, em se tractando de um crime, para elle os não accusar secretamente do delicto, e não vêr as mãos de ambos tintas no sangue do seu amigo. Sabia a historia da prisão de Antonio Simões, não ignorava a promessa indiscreta que elle fizera, de varejar as costellas do sargento e do Sapo, e o mau conceito que formava d'elles, auctorizava-o a crer que o tiro e a espera haviam partido de um plano concertado com a deliberação e perversidade, que tanto caracterizavam o coxo, e o seu Mecenas.

Mas se o sargento era jubilado em velhacaria, e se o seu fiel Achates tinha estanhadas a alma e as faces, João da Ventosa lisongeava-se de os codilhar a ambos em esperteza, e armára uma rede, em que haviam de cair por força. Calou-se, pois, e esperou.

D'ahi a pouco o moço dos bois appareceu com o velho e cansado lampião, cuja luz mortiça só começou a avivar-se depois de pendurado. Logo atraz outro creado atirava ao chão com um grande feixe de matto secco, e arrastando para a lareira dois cepos de oliveira, petiscava lume com o fuzil, e incendiando tudo ateava uma labareda, cujos clarões, lambendo as paredes da vasta chaminé, derramaram por toda a casa viva e repentina claridade. De subito o sargento, que se achava com o Sapo junto da mesa de pedra, olhou, viu o corpo, e por um gesto machinal e irresistivel extendeu a mão, e levantou o panno que lhe cobria o rosto. A vista encandeou-se-lhe, os cabellos erriçaram-se-lhe, e um grito de espanto truncou-se-lhe suffocado na garganta. As côres rubicundas amorteceram-se, e, se não se ampara com a hombreira, resvalava redondo no chão, tão fracos lhe fugiam os joelhos.

Gaspar Preto ainda revelou mais horror. Recuando até á parede com as mãos abertas como para afugentar de si a visão terrivel, parecia metter-se pelo muro dentro, com os cabellos em pé, as pupillas envidraçadas, e tal convulsão em todo o corpo, que o frio de uma sezão mortal não podéra ser maior.

Os milicianos boquiabertos contemplavam o cadaver, e a figura singular de Estevam Cabrinha e do coxo, que não eram santos da devoção de nenhum d'elles.

João da Ventosa sorria-se para dentro. Dir-se-hia que fulminava os dois cumplices com o sombrio fulgor dos olhos. Um instante depois pousou a vista, sereno e temperado, sabendo conter-se e dissimular para não se prender no mesmo laço, que tecia aos outros.

Seguiram-se as explicações. O rendeiro com a voz macia, cujo timbre era quasi feminil, e aquelle ar de rir bondoso, que encobria tanta cousa, desculpou-se da triste companhia, que era obrigado a dar aos hospedes.

Tinha encontrado, disse elle, Antonio Simões morto, apenas o conhecia de vista, mas não tivera animo de deixar o corpo de uma creatura de Deus exposto no caminho toda a noite. Não havia outra casa decente, aonde esperasse a sepultura christã, e o tempo e a hora não permittiam chamar o padre, e deposital-o na egreja. Ao passo que explicava isto, o compassivo João accendia de vagar duas vellas de cêra, amarelladas dos ocios da gavêta, e cravando-as nos castiçaes de estanho amolgados, punha uma aos pés e outra á cabeceira do morto, completando com todo o socego, e de proposito, a exposição funebre, que arripiava os circumstantes, e especialmente o sargento e seu confidente, constrangidos a associar toda a noite o banquete e o somno dos vivos ao espectaculo do cadaver ensanguentado da sua victima. Se ambos podessem ler na alma do homem, que lhes estava falando, ainda haviam de tremer mais!

Na mente d'elle tudo isto apenas era prologo!

VI

Ressurreição de Lazaro

Decorreram minutos sem que as mandibulas de Estevam Cabrinha, deslocadas pelo terror, podessem volver ao estado natural. Nem articulava, nem balbuciava. Só a pouco e pouco é que se foi restaurando do susto, e maldizendo o Sapo, o rendeiro, e aquella funesta casa, regougou meio desvairado uma evasiva para desculpar o pavôr, que o accommettêra, e que não era senhor de disfarçar.

Os seus nervos estavam tão delicados, que a vista do sangue e do cadaver, tirava-o de si, e tornava-o mais fraco, do que uma mulher! Entretanto fazia o possivel por ser homem; mas pedia por tudo o que havia de santo no céu e na terra, que o não obrigassem a velar a noite ao pé do morto, se em vez de um, não queriam enterrar dois cadaveres.

João da Ventosa affectou clemencia. Capitulando com os terrores do sargento prometteu dar-lhe um quarto retirado no fundo do corredor, depois da ceia. Pediu-lhe depois licença para ir cuidar dos hospedes presos, que desejava receber como pessoas nobres, e que a má reputação da casa por certo assustaria, sobre tudo na escuridão, e com o temporal que parecia arrancar as arvores e os telhados. Cabrinha suspirou, e com um aceno respondeu que sim. Sentia-se gelado, e o coração batia-lhe com tal força, que parecia querer saltar fóra do peito.

O lavrador accendeu dois candieiros de latão amarello de tres bicos, pesados e disformes, pendurou pela argola um em cada mão, e começou a subir a escada, escoltado por Cabrinha, que apezar de meio tonto, e de tartamudo de mêdo, sempre desejou certificar-se outra vez de que a gaiola, como dissera antes, era solida, e não deixaria escapar os passaros.

Um creado poz a toalha, trouxe queijos e pão, e reanimou o alento dos milicianos, collocando triumphalmente em cima da mesa um bojudo cangirão e dois canecos de estatura descommunal, destinados ás libações. Os soldados chegaram-se a principio timidos, partiram e saborearam o queijo, acharam-o excellente, provaram o vinho, que estava ainda coberto da espuma da pipa espichada de proposito, e romperam o assalto, esquecendo gradualmente o morto, o sargento, e o Sapo, o qual, agachado como fera medrosa a um canto da chaminé, só dava signal de vida nos estremecimentos, que lhe saccudiam os membros.

A demora de Cabrinha em cima foi grande. Quiz assistir a todos os arranjos, que a velha servente do rendeiro determinou, e que ia executando com a mão vagarosa por entre as orações resmungadas entre dentes a Santa Barbara e a S. Simeão Stelita, advogados contra os trovões.

Viu, pois, lançar nas camas os lençoes de linho fino e defumados, recheio das arcas do lavrador; viu enfiar as fronhas e os travesseiros de folhos com fitas azues; viu deitar as colchas de seda da India matizadas, e pregar as cortinas dos leitos. Immovel e calado os seus olhos vigiavam tudo, mas o seu espirito ausente estava ao pé do morto. Finalmente os moços trouxeram a ceia em bandejas largas, e a creada velha despediu o amo e o sargento, declarando que ficava e dormia perto dos presos para os servir.

Cabrinha saiu atraz do seu amphytrião, fechou a porta, e metteu a chave no bolso. Por este lado estava tranquillo. Restava a ceia com o cadaver defronte. Essa é que se lhe representava um supplicio insupportavel; e se não fosse o receio, com que o remorso ata a lingua dos criminosos, teria pedido um pedaço de pão secco, um ou dois goles de vinho, e iria para o meio da estrada esperar que nascesse o dia, mesmo em risco de uma pancada de agua o ensopar, ou de um raio o fulminar. Não se atreveu, porém. De cabeça baixa e passos incertos, sem ousar olhar, e não podendo, todavia, apartar a vista da mesa de pedra, veiu sentar-se ao brazeiro, do outro lado, defronte do Sapo. Ao mesmo tempo o João da Ventosa consultava o immenso relogio de prata, e, vendo apontadas no mostrador as dez horas, gritava pelos creados, que apressassem a ceia, se não queriam que elle e seus honrados amigos morressem alli todos de fraqueza.

-- Vamos! exclamou. Andar! Esse cabrito não acaba de sair do lume, mandriões? Para temperar umas migas será preciso chamar o cozinheiro do patriarcha? Oh Pedro? As batatas cozam-n'as no borralho!... Ficam mais gostosas. Dêem-me d'aquellas laranjas de casca fina do pomar de cima, que eu apanhei hontem. Tirem o vinho da pipa nova! Bem basta a inferneira que logo ahi vae em sendo meia noite! E então com esta visita em casa! E apontava para o morto. É preciso que o demonio e as almas do outro mundo, quando vierem, nos achem confortados e quentes de estomago, limpos de coração, e lavados de consciencia... Que tal é esse vinhinho, camarada? Ajuntou pedindo o caneco a um dos milicianos, ao qual o seu discurso petrificára os movimentos, conservando a taça rustica a meia distancia da mesa e da bôcca sem animo de a depor, ou de a sorver. Os outros, pallidos e sobresaltados, olhavam espavoridos para as portas, para as paredes, e para a mesa de pedra, e benziam-se, suppondo ver já um espectro em cada canto.

-- Vamos! ajuntou. Á nossa saude! E que Deus nos livre por muitos e bons annos de um amigo, como encontrou aquelle que alli jaz! E emboccando o caneco deixou cair do bico o vinho em fio dentro da bôcca á moda hespanhola, engorgitando-o lentamente com delicias.

O brinde funebre produzira o seu effeito. O sargento poz-se em pé e desabotoou tres botões da farda. Sentia-se a arder. O Sapo agachou-se mais, e ouviam-se-lhe distinctamente bater os dentes.

-- A ceia! A ceia! Rapazes! clamava o lavrador acompanhando o rebate das vozes com fortes punhadas em cima da mesa.

Os creados acossados por estas impaciencias, verdadeiras, ou fingidas, saccudiram a preguiça, e a correr acabaram de pôr a mesa, a correr trouxeram as migas e o cabrito, e a correr tambem vieram com as batatas e as laranjas. O cangirão refrescado por segunda visita á adega estava cheio até á borda.

-- Vamos a ella? gritou o dono da casa. Senhor sargento, chegue-se para os bons, e será um d'elles! sente-se do meu lado. Tu, meu Sapo, com essa cara de alvaiade vae para alli. És curioso, e quero que me espreites o defunto a ver se bole com a alegria dos vivos! Os camaradas accommodem-se aonde poderem! Desculpem as colheres de pau e os garfos de ferro. A pratita, que tinhamos, está em Lisboa; nos tempos, em que vivemos, digam lá o que disserem, sempre é o mais seguro... Nada de tristezas! Longe vá quem mal nos quer! Senhor sargento á nossa! É bom copo, tenho ouvido, mas o João tambem não arreia. Encha-me esse caneco até cima, e despeje-m'o de um trago, senão digo que o vinho é mau, ou que debaixo de boa capa ruim bebedor!

Por um esforço heroico Estevam Cabrinha conseguiu obedecer. Não tinha sêde, nem fome, tinha medo. A ceia era para elle um martyrio, sobre tudo com as costas viradas para o cadaver, cuja sombra se lhe figurava a cada momento alevantada por cima dos hombros. O Sapo não padecia menor tormento. Com o morto e a vista do sudario ensanguentado defronte enlouquecia de terror e de afflicção. Suas pupillas dilatadas não podiam despregar-se d'aquelle testemunho irrecusavel, que lhe avivava o crime pela bôcca das feridas, por onde fugira a alma. Deixou de ver o que o rodeava para vêr só a victima silenciosa, e ameaçadora. Poz-se-lhe um nó na garganta, e um véu nos olhos. A primeira colhér, que levou á bôcca, tornou-se-lhe de fel; o primeiro trago de vinho, que sorveu, soube-lhe a sangue. Sentia tentações de se atirar pela porta fóra, desatando em uma corrida louca; mas os pés estavam grudados ao c não padecia menor tormento. Com o morto e a vista do sudario ensanguentado defronte enlouquecia de terror e de afflicção. Suas pupillas dilatadas não podiam despregar-se d'aquelle testemunho irrecusavel, que lhe avivava o crime pela bôcca das feridas, por onde fugira a alma. Deixou de ver o que o rodeava para vêr só a victima silenciosa, e ameaçadora. Poz-se-lhe um nó na garganta, e um véu nos olhos. A primeira colhér, que levou á bôcca, tornou-se-lhe de fel; o primeiro trago de vinho, que sorveu, soube-lhe a sangue. Sentia tentações de se atirar pela porta fóra, desatando em uma corrida louca; mas os pés estavam grudados ao chão e as pernas mal o sustinham. A cada instante entrava-lhe pelos ouvidos o som dos passos de Antonio Simões, e ouvia o grito que elle arrancára caindo ferido. O suor escorria-lhe em bagas da testa, e os beiços tremulos denunciavam a intensidade da agonia.

O lavrador observava, e dissimulava. O seu ar de riso e a sua jovialidade cresciam á proporção, que iam aggravando-se as dores moraes de ambos.

-- Que é isso, Sapo? accudiu elle apertando os tratos ao mais culpado. Que é feito d'aquella galhofa do outro dia, meu velho? Estás com cara de enterro. Terás tu morte de homem ás costas, diabo?!!...

A esta interpellação directa, que o rendeiro disfarçou em uma risada larga e sonora, o remorso fez saltar involuntariamente dos bancos o sargento, e o seu cumplice, como se a voz do sangue chamasse por elles no tribunal de Deus. Á pergunta: Cain que fizeste de Abel, ao brado que a consciencia repetia aos dois, ambos tremeram, mas não poderam responder: não fui eu! Sentiam-se tomados de espanto até ás mais fundas cavernas do coração.

João da Ventosa, entendendo que não devia ir mais longe para não se descobrir, e vendo os dois de pé, mudos, e pasmados, tractou de os tranquillizar a seu modo, isto é, vertendo-lhes o terror nas veias por outro modo.

-- Sente-se, meu sargento! disse elle mettendo o hospede no coração com o tom assucarado. Que vespa o mordeu? Os ares da casa não são bons, sei muito bem; mas o que quer? A gente toma amor ao ninho, e depois não ha quem o despegue d'elle. Não tenho mulher, nem filhos; nasceu-me aqui o dente do siso, e... É melhor não tocar em cousas más. Mas sempre lhe digo que ha noites! Ainda antes de hontem foi um reboliço lá por cima de cadêas arrastadas, de soluços e gemidos, que vinham os sobrados abaixo...

-- E nunca viu nada, senhor João? atalhou um dos milicianos meio engasgado com um pedaço de cabrito, que o susto causado pelas reflexões caridosas do rendeiro lhe atravessára na garganta.

Estevam Cabrinha desabotoára todos os botões da farda, e pelas frestas da camisa aberta mostrava o peito vellôso como o de um cerdo. Tinha os cotovellos na mesa, a cabeça entre as mãos, e os olhos espantados.

Gaspar Preto recaira, sem poder reprimir-se, no tremor das primeiras horas.

Aquelles dois entes, tão fortes contra a consciencia, tão esquecidos de Deus e da justiça humana, desmaiavam como creanças deante da sombra do seu crime e dos pavores do invisivel.

-- Se não vi nada?... Oh! redarguiu o dono da casa, tornando-se serio de repente, e fazendo suppor com a reticencia, que não tinha animo para dizer tudo.

-- Conte-nos isso! accudiu um dos comensaes, que não era dos menos timidos, mas que era de certo dos mais curiosos.

-- Para que? Para não dormirem umas poucas de noites?!... respondeu João da Ventosa. É melhor falarmos de cousas alegres.

-- Não. Não! Diga!

-- Depois não se queixem! Faz hoje um anno, e justamente chovia e trovejava como agora, que parecia que se acabava o mundo. Tinha uma cadella de perdizes, que era um brinco, a Pomba. Faltou-me todo o dia, e cuidei logo que ficaria fechada lá em cima. A esse tempo ainda eu não tinha mandado tapar as duas portas dos quartos, que viu o sargento, e aonde estão os presos. Peguei n'uma lanterna e subi. Atravessei tres salas. Apitei, chamei a Pomba, não me respondeu, ella, coitadinha, que em me ouvindo era toda saltos e alegria. Olhei por acaso para um canto mais escuro, e vi... a pobre da bruta morta com a cabeça torcida!... Não sei o que me passou pela vista, mas tive medo, medo deveras, juro-lhes. Peguei no corpo da Pomba, e arrastando-me, e tropeçando, vim até á porta, que hoje está entaipada. De repente um sopro forte apaga-me a luz, um clarão bate-me nos olhos, e uma figura branca apparece-me tão alta e transparente, que se via através das roupas e do corpo (se era corpo!) como através de um vidro fino. Não posso dizer-lhes o que senti, mas quiz gritar e faltou-me a voz, quiz benzer-me e caiu-me a mão, quiz fugir e fiquei parado.

«O Fantasma fitou-me dois instantes com um olhar frio, que gelava e disse-me: Desgraçado de ti se tivesses sangue nas mãos! Nenhum matador sae vivo d'esta casa! Perdi os sentidos. Quando tornei a mim era dia, e estava deitado na minha cama. Suppuz ter sido tudo sonho; mas a cadella morta jazia aos pés do leito. Enterrei-a, fiz uma parede das duas portas, e andei um mez como doudo, malucando no caso, que podia ser peior... Fóra com historias negras! exclamou mudando de tom. Estamos hoje aqui muitos, e graças a Deus nenhum de nós tem de lavar as mãos de sangue, que vertesse. Vae dar meia noite! ajuntou tirando um relogio de prata. É a hora da senzala principiar lá por cima. Não se assustem! O vinho é bom, festejemol-o, e o que for soará. Nossa Senhora, minha madrinha, não ha de desamparar-nos.»

A consolação acabou de petrificar o auditorio, que a narração já não tinha estultificado pouco. O sargento e o seu assessor, ainda mais enfiados, trocaram um olhar desvairado, e gemeram um suspiro. Era a sua sentença que o espectro annunciára pela bôcca do lavrador? Os canecos ficaram cheios sobre a mesa; o cabrito, meio escarnado, viu suspensas as hostilidades, que ameaçavam deixal-o na ossada; e só o dono da casa levou aos beiços, e exgotou a libação, que propozera. O volumoso relogio de caixas de prata posto a seu lado, attrahia a vista anciosa de todos. Era tão profundo o silencio, que se sentia a leve pancada da machina trabalhando. Finalmente o ponteiro pousou-se nas doze horas, e o lavrador, como se obedecesse a um impulso espontaneo e invencivel, poz-se de pé, e exclamou:

-- Meia noite! Deus seja comnosco!

N'este momento, como se a natureza quizesse associar os seu terrores á scena alli representada, um furacão espantoso saccudiu e abalou todo o palacio com rugidos prolongados, um trovão rebentou perpendicular com o estrondo de cem canhões no meio de medonhos estalos, fazendo tremer a terra, a casa encheu-se de luz electrica por um instante, e a chuva, açoutando com o seu granizo rijo e batido os telhados e os muros, enxurrou dos tectos pelas chaminés arrombadas, e veiu quasi extinguir o lume, que esmoreceu em chispas lividas por entre ondas de fumo. Ao mesmo tempo as duas portas pregadas com travessas á entrada das escadas, que desciam para a cozinha, vieram a terra com fragor, o cadaver deitado sobre a mesa ergueu meio corpo sobre o cotovello, e arrancou o panno cruento, soltando um gemido lugubre, e uma figura de altura descommunal, envolta em sudario branco e fluctuante, assomou ao limiar. Tudo isto occorreu em menos de um segundo, acompanhado do ruido de ferros arrastados, do tropel de passos e de quedas tumultuosas, e de um verdadeiro clamor de vozes e gemidos no andar de cima.

Os milicianos apavorados hesitaram um instante immoveis. Depois correndo, como loucos, investiram pelo corredor, e como rebanho tresmalhado e perseguido por alcateas de lobos, sentiram de repente azas nos pés, e voaram pela estrada inundada por entre os relampagos e por baixo das aguas da tempestade, gritando misericordia!

O sargento ao som das portas, que desabavam, e deante da apparição inopinada, sem saber já de si, e sem ver o morto alçar-se, trepou em dois pulos a escada de pedra, metteu a chave na porta, e acoutou-se nos aposentos dos presos, tão cego e attonito que atropellou na carreira a velha servente na sua cama, e foi cair de bruços ao pé da mesa, aonde se apagava em vascas a véla consumida de um castiçal.

O Sapo, que observámos paralyzado momentos antes, vendo surgir o fantasma, sentiu todos os instinctos ferozes irritados, e pegando da espingarda, e apontando-a n'um abrir e fechar de olhos, só volveu em si, quando o cão bateu na pederneira, e esta faiscou, sem queimar a escorva, deixando-lhe nas mãos uma arma inutil. Então, como o tigre que rompe a jaula, arremetteu pelo corredor do dormitorio, e de lá, galgando o muro baixo do pateo, sem se deter a buscar a porta nas trevas, achou-se no campo, e precipitando-se por sebes e vallados, veiu parar sem folego, sem voz, e sem consciencia de si ao pé do moinho da Raposa.

Finalmente o proprio espectro, primeira causa de todo o alvoroço, não escapou ao contagio geral, e deu tambem parte de fraco. Vendo o morto levantar-se e saccudir os véus funebres, assaltou-o tal convulsão de mêdo, que, tapando os olhos com um grande grito, desabou no chão do alto das andas, em que estribava. Teve razão ainda d'esta vez o adagio. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro!

Mas as peripecias d'esta dramatica noite não estavam terminadas. No momento, em que, afogado em riso, o João da Ventosa accudia a levantar o fantasma demolido pelo susto, o sargento Cabrinha despenhava-se pela escada, bradando possesso de espanto. Não era sem causa!

Seguimol-o quando subia os degraus a dois e dois para se refugiar na camara dos presos; vimol-o enrolar-se e tropeçar no corpo tolhido de rheumatismos da tia Margarida, a qual, pobre mulher (!), acordada em sobresalto pelos trovões, tiritava de joelhos em anagua de estopa, benzendo-se, e invocando todos os santos da côrte do céu, quando aquelle furacão humano se ennovellou com ella, e lhe fez das costas escabello. Os gritos da servente, a motinada do palacio, que alli soava mais proxima, desembriagaram um pouco do medo do andar de baixo o virtuoso agente de Lagarde, mas exaltando-lhe os terrores excitados pelo andar de cima. Percebeu que o asylo, que buscára, era peior do que o perigo, e tractou de apressar a retirada.

Mas apezar dos accessos de valor, que lhe notámos, era malsim na alma e nos ossos, e a curiosidade prevaleceu. Antes de fugir quiz verificar de novo se os outros podiam fugir. A tremer pegou em uma véla e abriu as cortinas da cama de Paulo de Azevedo. Recuou pasmado. Estava vasia! Correu ao quarto immediato de Leonor; achou-o deserto! O unico preso, que não se bolira, fôra a inoffensiva e tropega Margarida! O sargento sentiu estalar uma cousa dentro do peito. Se tivesse coração diria que era o coração! Não o tendo acabou de se lhe varrer o sizo, e ficou por minutos estatico a contemplar aquella solidão, obra visivel do demonio.

Por fim este ultimo golpe e uns suspiros em tremulos, exhalados do outro lado da parede, venceram esses restos de vigor, que ainda conservára. Consumou o seu destino, e despejou o campo como os seus milicianos, porém com menos felicidade. Quiz descer a escada, os pés atraiçoaram-o, e mediu-a com as costellas de cima até baixo. Quando tornou a si com a dor, e por ella conheceu que vivia ainda, os seus olhos horrorizados perderam a luz de assombro e de pavor.

No meio da casa o Manuel Simões da Aramanha, de pé, encarava-o sombrio e terrivel. Ao pé da mesa o fantasma branco, entrouxado nos lençoes, extendia o braço direito em ar de ameaça. Atraz d'elles João da Ventosa, mudo e inerte, e como gelado, apontava-lhe para o corredor, sem falar, como se o convidasse a fugir. Não poude mais. Atou as mãos na cabeça e caíu sem sentidos.

VII

Segredos em toda a parte

Os aposentos aonde Paulo de Azevedo Carvalho e sua filha foram encerrados, em um dos torreões do palacio, eram dos mais bem conservados. Os tectos não estavam arrombados; os filetes, que guarneciam as molduras das paredes, forradas de pannos de Arraz, ainda não tinham perdido de todo o ouro; e a humidade não acabára tambem de desvanecer inteiramente as tintas dos quadros de caçadas, batalhas e scenas campestres, representados na tela. Apezar de velhos e de ennegrecidos, os moveis ainda resistíam em parte aos seculos e ao caruncho.

O venerando leito de cabeceira de talha alta e columnas enroscadas occupava o centro da primeira casa, e podia quasi dizer-se um edificio, um monumento, pelo descommunal das proporções. Um pesado baldaquino de seda desbotada cobria o céu da cama, e largas cortinas do mesmo estofo desciam dos lados a arrastar pelo chão.

Defronte um tremó, que na sua mocidade brilhára pelo esplendor dos dourados, mas que na velhice, ou antes na decrepidez, apenas se recommendava por bellos relevos de folhas e flores, com um espelho de Veneza em cima, comido e manchado no aço, sustentava duas jarras do Japão da mais preciosa porcellana, infelizmente rachadas. Cadeiras de braços, mutiladas, um velador alto desgrudado, um bofete de almofadas com sua escrevaninha de prata mareada, olhando para o espelho, completavam a mobilia.

Na segunda camara havia um leito mais singelo sem cortinas, e um espelho embutido na parede, que enchia de alto a baixo um vão inteiro. O bofete liso com tinteiro de bronze antigo, e as quatro cadeiras que constituiam todo o seu adorno, não accusavam pouco os annos pelo estado de ruina; e as colgaduras de couro, rotas ou tão coçadas, que não tinham já côr possivel, deixavam em parte nus os muros, provando que o tempo as respeitara menos, do que aos pannos de Arraz do quarto principal.

O cavalheiro de Mafra mal correu a vista em redor de si. Sentou-se deante do bofete da sala grande, molhou a penna na tinta grossa da escrevaninha, e começou machinalmente a traçar linhas e dezenhos informes em um papel. Desde o Casal do Ouro até alli não descerrára os labios, nem para falar á companheira do seu infortunio; e só o ardor sombrio das pupillas denunciava a ira, preferindo consumir calado as tristezas a desafogal-as em vozes, ou em queixas. Leonor contemplou-o silenciosa por alguns momentos, e, avisinhando-se depois nas pontas dos pés, pousou-lhe na fronte annuviada um beijo, que a ternura humedeceu de lagrimas.

Paulo, como se acordasse repentinamente, vendo no espelho o lindo rosto debruçado sobre o seu estremeceu. Um sorriso melancholico adoçou-lhe a expressão severa. Cedendo ao carinho de tão suaves caricias, e tornando os olhos meigos, fitou-os cheio de enlevo na formosura da filha. Cingindo-lhe depois o collo com os braços, cobria-lhe de osculos os cabellos e a fronte, e procurou tranquillizar-lhe a inquietação.

Leonor era todo o seu amor e toda a sua familia. Se desejava sobreviver ás desgraças da patria é porque não queria deixal-a orphã e desamparada n'uma edade, em que as illusões armam tantos laços á candura e á innocencia.

Mas as palavras do velho cavalheiro não o enganavam a elle, nem á donzella. Quando para a consolar affirmára, que um vago presentimento lhe augurava, que não chegaria a entrar na prisão da villa, via-a aberta para o receber, e o conselho de guerra convocado para o sentenciar! Quando lhe lembrava, que seus amigos não dormiam, e que Manuel Coutinho, e dois d'elles, andavam perto, sorria-se por dentro da invenção, porque ignorava se a sorte d'elles não seria egual, ou peior n'este momento!

Leonor ouvia-o com a incredulidade do affecto. O fino instincto das almas, que são todas sentimento, é adivinharem os verdadeiros motivos dos sacrificios generosos. Palpava a verdade, e tremia que o futuro fosse ainda mais funesto. Mas dotada de caracter varonil vencia-se para não atormentar seu pae, devorando os prantos, e comprimindo os soluços.

Á ceia a visita do lavrador, e a presença odiosa do sargento de sentinella, como vimos, á hospitalidade do rendeiro, interromperam a conversação cortada, com que os dois se distraíam, e apenas as portas tornaram a fechar-se, e Margarida poz a mesa, o pae e a filha, tomada uma refeição mais do que sobria, e já cansados de dissimular, despediram-se e cada um se recolheu á sua camara.

A creada no mesmo instante fez a cama para si em um recanto, e fatigada adormeceu mal a cabeça tocou no travesseiro.

Leonor aproximou-se então do espelho, lançou sobre as espaduas núas um penteador de cassa, e principiou a desatar as tranças, que, desfeitas, se encresparam em madeixas negras, envolvendo-a no mais luxuoso véu. Duas lagrimas, duas perolas, avelludavam-lhe o olhar tocado de branda ternura, e as pupillas, pretas e languidas, ás quaes aquella nuvem leve de melancholia toldava um pouco o brilho, levantavam-se armadas d'aquelle requebro meio tristeza, meio reflexão, que fala com tanta eloquencia; e prende com tão irresistivel poder até os mais isentos. A bôcca, pequena e graciosa, abria aos cantos duas covinhas assetinadas, berços de lyrios aonde se embuscava a malicia espirituosa, tornando o sorriso fascinador. Os dentes, ora appareciam finos e eguaes, como fios de aljofres entre rubis, ora se escondiam, quando a phisionomia tomava a expressão contemplativa e serena, que era o seu maior triumpho. O collo esbelto, disputando alvura ás açucenas, pousava-se com graça; as faces e a fronte douravam-se d'aquella transparente e mimosa côr, em que as rosas nascem e desmaiam á mais leve commoção, radiosa carnação, que tanto realça a belleza meridional, mesmo quando não cede ás mulheres do norte a palma dos niveos encantos. O seio virginal palpitava sobresaltado. A mão estreita e leve deslaçava impaciente os nós de fita do justilho; e a estatura elegante e flexivel prestava-se em ondulações airosas a todos os movimentos.

Um suspiro e um gesto, que exprimiam a tribulação do animo combatido de apprehensões, e uma pausa, em que a vista se perdeu pelos idilios do primeiro amor, revelavam as duas correntes encontradas, com que luctava áquella hora. O que lhe dizia a ternura filial repetiam-n'o as lagrimas lentas e silenciosas, vertidas quasi sem as sentir. O que anciava e assustava a timidez da paixão entre hesitações e receios, mais fortes que a vontade, retratava-o a repentina chamma da vista, e o extasis em que o rosto se transfigurava subitamente, illuminado pelo duplo clarão da esperança e do pudor. Quem podesse colher n'este instante o segredo da sua alma só encontraria n'ella duas imagens-- a do pae extremosamente querido, e outra mais viva, mais occulta, e mais funda ainda, a de Manuel Coutinho, que o pejo quasi encobria de si mesma, mas que uma ternura invencivel avivava a cada palpitação do peito!

Leonor sentou-se ao bofete no desalinho da meia nudez, dobrou uma folha de papel, e contemplou-a por momentos com a cabeça entre as mãos e a vista vaga e esquecida. Depois, meneando a fronte, como se quizesse sacudir o peso dos cuidados, inclinou-se para a mesa, soltou a penna sobre o papel, e começou a retratar as tristezas do captiveiro e os sonhos do coração.

Usando do privilegio concedido aos auctores de historias, tão veridicas como esta, introduzir-nos-hemos n'este ninho virginal, e por cima do hombro da linda escriptora ao qual o véu diafano das rendas mais faz sobresaír o marfim polido e a fórma admiravel, iremos lendo á medida que ella as escrever, as confidencias, que julga depositar unicamente no seio da mais discreta e mimosa de suas amigas de infancia, de D. Marianna de Sousa, mais velha um anno, e tambem desterrada com toda a familia para longe do antigo solar de seus paes em Lisboa.

Escutemos a conversação travada a distancia entre ellas. É de crer que nos diga mais, do que extensos commentarios ácerca dos principaes personagens, cujas aventuras emprehendemos esboçar com a fidelidade e escrupulo proprios de narradores inaccessiveis á fabula e á lisonja.

Leonor de Azevedo a D. Marianna de Sousa

«Minha freirinha!... Deixa-me dar-te mais esta vez ainda o doce nome da nossa amisade! Escrevo-te das portas de uma prisão, e talvez, ai! tremo dizel-o! dos primeiros degraus do cadafalso de meu pae. Realizou-se o que eu tanto receiava. Lagarde descobriu o nosso asylo. Estamos em suas mãos. Offendi-lhe o orgulho; é capaz de tudo; e conto com a vingança promettida. Não me arrependo. No meu logar, Marianna, farias tu o mesmo, e esperavas resignada a tua sorte... Se não fosse meu pae, pouco ou nenhum caso faria d'elle... O despreso até mata a aversão, e de certo ninguem o despresa tanto, e com mais rasão.

«Lagarde veiu a Mafra a um baile que lhe deram. Tentaram-lhe a cubiça as terras e os vinculos, que hei de herdar, Deus queira que bem tarde (!), e por desgraça poz os olhos em mim para enriquecer um parente, que não conheço, que me não conhece tambem, mas que elle ousou dizer que me adorava pelo retrato, que lhe fizera de mim... dos bens da minha casa é mais provavel! Marianna, lês na minha alma, e bem pódes imaginar o espanto em que fiquei, ouvindo de um estrangeiro esta proposta, que me offendia na ternura filial e no amor proprio... Nem lhe respondi! Encarei-o, e, levantando-me, deixei-o acabar a ultima cortezia e o ultimo sorriso deante de uma cadeira vasia. Dizes que me pareço com meu pae, e que a natureza errou em mim o sexo. Talvez. Nunca senti tantos desejos de ser homem! Mulher, senão fosse o mundo!... Ha affrontas, porque choro amargamente a nossa fraqueza!

«Lagarde tem maneiras e grande uso da sociedade. Não sossobrou com o revés, começando a girar pelas salas como o convidado mais jovial. Notei que não tirava a vista de mim, e preparei-me para segunda instancia. Não tardou. Veiu tirar-me para dançar, louvou o meu toucado, o meu vestido, a delicadeza das mãos, a graça e a alvura das rendas; achou-me linda e seductora; extasiou-se de lhe responder algumas palavras em francez; e falou-me com enthusiasmo dos elogios que tinham feito da minha voz... Constrangi-me e escutei-o sem colera, sem impaciencia, mas com aquelle sorriso que tu dizias ás vezes, que era cortante como fio de dois gumes. Que remedio! Estavamos em scena, e elle é actor consumado. Depois, e no fim de tudo, por acanhada e esquerda não queria deshonrar a nossa educação do convento, nem dar-lhe motivos para que me tomassem pela provinciana boçal e nescia, que ao principio cuidára encontrar...

«Acabada a dança, em que te affirmo sem vaidade, que não envergonhei as lições do nosso mestre mr. de Lisieux, tão airoso com a sua cabelleira empoada, casaca direita, e rabequinha de estojo, ao apartarem-se os pares, convidou-me para darmos um passeio pelas salas. Inclinei-me, e acceitei-lhe o braço. Démos algumas voltas, e no meio de uma d'ellas, junto de um tremó carregado de flores, teve o despejo de renovar a supplica, assim lhe chamou, em ar de riso, porém o tom e a expressão diziam assaz que era uma ordem.

«Ouvi-o estremecendo. Não acreditas a jactancia, a soberba, e por baixo do verniz das phrases, o modo imperioso, com que este sultão me atirava o lenço em nome da felicidade do seu parente, e da minha, em nome da gloria e ornamento dos bailes de París e das recepções das Tulherias, que a rosa do occidente iria realçar com seus encantos!... Contive-me. Subiu-me em ondas a côr ao rosto. Empallideci depois. Aquelle escarneo era tão pungente, que me custava a supportal-o, sem lhe explicar ao menos que o entendia. Mas contive-me, protesto que me contive a ponto de me saltarem as lagrimas pelos olhos seccos! Não é possivel exprimir-te o que padeci nos minutos que durou este supplicio. Foram annos de angustia e de anciedade! Lagarde, como se adivinhasse, tocava em todas as partes melindrosas da minha alma e offendia-as. Tornou-se por tal fórma transparente a ironia, que se me figurava ouvil-o rir por dentro da eloquencia, que estava gastando em convencer a herdeira sómente cobiçada, para remir do naufragio a mocidade tempestuosa d'aquelle sobrinho, arruinado e invisivel, cuja causa advogava.

«Perguntarás, talvez, porque não fiz o que já tinha feito, porque o não deixei? Não me atrevi. Meu pae estava perto; Manuel Coutinho tambem; olhavam para nós, e ao menor signal que me escapasse, castigavam alli mesmo o insolente! Vê tu o meu enleio e o meu martyrio! Quando se afastaram, respirei. Podia mostrar a Lagarde, que a estatua vivia e tinha brios para vingar a dignidade do seu sexo. Inflammou-se-me a vista com a ira, fitando-a n'elle com um desdem tão altivo e firme que o obriguei a calar-se de repente no meio das lisonjas impertinentes. Percebi que não esperava tanto, e que se perturbava. Retirando então o meu braço, dei dois passos atraz, e medi-o da cabeça aos pés com aquelle olhar scintillante e frio ao mesmo tempo, que me achaste duas vezes, e que depois contavas, sorrindo, que era o mais fero e fulminante olhar, que nunca viras, porque gelava e queimava ao mesmo tempo. Não sei se foi esse, ou outro peior, o que sei é que recuou lentamente e quasi pasmado deante d'elle, como deante da ponta de uma espada; e quando lhe respondi, que preferia a cella do mais austero convento, a pobreza, a mendicidade até, á ignominia de me vêr em leilão na praça, á vergonha de acceitar o nome de um homem, que nem ao menos guardava as exterioridades hypocritas de um galanteio, julgando-me tão pouco que se propunha amar e pedir esposa por terceiro, vi-o fazer-se branco como a tira da camisa, esconder o sorriso nos cantos da bôcca, e olhar-me direito e serio como deve olhar-se para alguem, quando recebemos uma injuria grave. Mas polido, mesmo na sua colera foi senhor de si, e mordendo os beiços com tal furia que lhe espirrou o sangue d'elles, cortejou-me, e retirou-se. Á roda de mim tremiam todos. Eu levantára a voz, e tinha-o constrangido a curvar a fronte deante de muitos. Foi o que não me perdoou.

«Todas as nossas desgraças datam d'esta noite. Jurou humilhar-me, mas não o consegue. Livre, ou em ferros, o desprezo será egual... Antes a clausura, antes a vida errante que levo ha mezes, antes as estreitezas de uma prisão, do que a infamia de um laço apertado sem amor pela avidez! Lagarde não tornou a falar-me. Sómente poucos dias depois, sahi a cavallo, e encontrei-o com Loison, general maneta, que dizem ainda mais perverso. Pararam para me vêr passar. Sabes que sou cavalleira, e que um animal fogoso não me assusta. Montava a Estrella, a egua valida de meu pae, e apenas os descobri, larguei-lhe a redea, e atravessei como uma seta por meio d'elles. Saudaram-me, correspondi, e dentro em pouco já não os avistava. Foi na vespera dos tumultos das Caldas e da emboscada de Mafra. No dia seguinte, dia de terror e afflicção para os habitantes, estava achado o pretexto que havia de manchar de sangue o poder dos estrangeiros.

«O que nos reserva o futuro? Não ignoras quanto meu pae é altivo e decidido. Se a sua vida dependesse de uma palavra, de um passo, que reputasse de quebra para a honra, ou para os brios, preferiria morrer mil vezes... Sei o que elle ha de fazer como se o estivesse vendo. Ha de dizer a verdade, toda a verdade; ha de expor-se... Meu Deus! Parte-se-me o coração, e não tenho animo de cuidar!... Não! Não! A providencia não o póde permittir! Marianna!... As lagrimas que estou chorando, a dôr que padeço são tão crueis, que ha momentos, em que a razão me foge. E Manuel Coutinho?! Ainda me assusta mais!... Em sabendo a nossa prisão... com o seu genio impetuoso e aquella intrepidez de cavalleiro andante, porque é um verdadeiro paladino perdido n'estes dias de Junots e Lagardes, é capaz de entrar só em Santarem para nos arrancar dos ferros á luz do sol e deante de todos. Não rias?! Não creias que estou pintando de imaginação um heroe de novella!... Perguntas-me desde quando o amei, e se foi necessario o fulgor de Marte para vencer a isenção de Juno!? Entendo-te! Viras contra mim as palavras, que eu soltava na ingenuidade do orgulho, quando a inexperiente educanda te divertia com seus encarecimentos de desdem pelas fraquezas apaixonadas. Ouve! Amei-o logo, amei-o com extremo apenas o vi. Mal nos olhámos, sorrimos, e conhecemo-nos sem lucta, sem resistencia, sem juras, nem protestos. Elle sentiu que era meu; eu entreguei-lhe o coração com tanta confiança, como se nos tivessemos creado juntos desde a infancia. Marianna!... Se és a amiga, que eu creio, has de estimal-o tambem, e approvar a minha escolha. Asseguro-te que o merece. Aquelle rosto nobre e gentil, mas um pouco triste, é o espelho do seu caracter. Meu pae, e mais não é facil em affeições e elogios, admira-o, e não vê por outros olhos em muitas cousas. A palavra de Manuel Coutinho, que o não lisonjeia, que até o contraria em algum dos habitos e idéas mais arraigadas, vale um juramento para elle. Entre estes dois affectos, tão doces e acerbos, reparte-se-me a alma, rasga-se-me em duas, e não ouso dizer-te a ti, a mim propria, qual é maior, ou mais absoluto!...

«Accusas-me de dissimulada?! Não te encobri nada. Lês nos meus segredos como em livro aberto. Amo, como não se torna a amar, como não imaginava que podesse amar-se... Digo-te sem disfarce o que occultaria a outra, e tu ingrata (!) ainda tens animo de me arguir! ...Lembras-te d'aquellas nossas madrugadas nas Salesias, entre as rosas e jasmins do jardim, e os vôos dos passarinhos, que chalreando não nos deixavam um instante?!... Não tens saudades d'ellas e das brandas illusões, com que nos embalavamos no meio das flores d'esses dias tão curtos, ai (!) e tão depressa desvanecidos?! Com que dôr melancholica e agradavel, os estou recordando, sobre tudo agora!... Como a esperança nos fazia palpitar!... Que desejos pueris, que planos impossiveis, que doces contestações, e que amuos logo esquecidos entre dois beijos! O nosso mundo era tão pequeno, que alli principiava e acabava então!

«Meu pae, militar e arrebatado, a rogos meus ficou em casa. Por vezes o vi ir direito á sua espada, e suspender-se com os olhos arrazados de agua. O que o prendia era o receio de me deixar orphã, era a certeza de que se arriscaria sem proveito. Que dia aquelle, e sobre tudo que noite!... Os francezes em bandos pelas ruas alvoroçavam a terra com vozes, affrontas, e tiros. Duas vezes as balas das espingardas vararam as portas das nossas janellas. Sobre a madrugada appareceu Manuel Coutinho. Vinha pallido e desfigurado. Nenhum de nós se tinha tambem deitado. Chamou meu pae de parte, falaram em segredo, e minutos depois, ás escuras, e sem ruido, fugiamos pelas hortas, e montavamos a cavallo. Rompia o sol, quando entrámos em Torres Vedras, e só alli me disseram que a nossa casa estava cercada, e que Lagarde expedira de Lisboa ordem de prisão contra meu pae. Não lhe custou a implical-o na devassa, e contava provavelmente fazer de mim o penhor da sua clemencia...

«Desde então trocámos o socego domestico pela vida attribulada, que ha mezes nos não consente uma hora de repouso. Acossados, como feras, vagueando de homizio em homizio, e de solidão em solidão, por toda a parte a hospitalidade dos que nos accolhiam, não sem risco, nos foi leal e caridosa. Rodeados de espias, inculcados aos delatores como presa digna de subido premio, achámos na bondade rude, mas sincera, dos casaes, corações de ouro, que nos agazalharam com o maior carinho, e almas compadecidas, que nos ajudaram a supportar o peso da desgraça.

«Os mais pobres foram tão honrados como os ricos. Ninguem nos trahiu. Perseguidos como réos de grandes crimes, todos os braços se abriram para nos receber, todas as portas se fecharam cuidadosamente para nos guardar... Descansámos, por fim, mas á porta de uma prisão, e nas mãos de inimigos implacaveis! Meu pae dormia, e nem teve tempo de se defender... Estimei! Já que havia de ser, foi melhor assim! Chegámos a tempos em que é delicto até o valor! Um malvado, cego e venal instrumento de Lagarde, descobriu o nosso ultimo asylo, e prendeu-nos á traição...

«Com que socegada ignorancia te ouvia eu pintar a vida, que nos aguardava fóra das grades da nossa prisão dourada!... Com que vaidade infantil me compadecia das fragilidades das donzellas, cegas de amor, que tudo arriscam por seguir o eleito da sua alma!... Castigou-me Deus! Sou mais escrava, mais timida deante da minha fraqueza, do que nenhuma! A ternura, que sinto por elle é tão grande, que me quebra a vontade e o orgulho.

«Felizmente adoro um homem digno do meu coração. Mas se o não fosse! Marianna! Não me vejas córar, não me vejas cobrir o rosto de pejo! Se o não fosse... Perdôa! hei de ter animo de confessar a verdade, amava-o do mesmo modo, sei que o amava tanto, porque mais é impossivel!... E agora terás dó de mim?! Falarás ainda da soberba, que me fazia idolo indifferente a todos os cultos?!...

«Cheguei áquelle excesso, em que parece que o coração não vive senão do que é de outrem, do que o amor, que inspira e domina tudo, quer dar-lhe quasi por esmola! A minha luz, todas as minhas esperanças, todo o futuro, pendem de um olhar, de um sorriso, de uma palavra d'elle!... Vê como o préso, e como deixei de ser a mesma!... Ha cinco annos, quando iamos sentar-nos debaixo das madresilvas do caramanchão do convento, em quanto as nossas amigas passavam, correndo e saltando com os seus risos descuidados, porque suspiravas tu, e por mais que eu interrogasse a minha alma, porque a achava sempre muda e insensivel!?... O que foi que me acordou d'aquelle somno tranquillo, d'aquella apathia dos sentidos, que só despertam com o primeiro alvoroço, quando entre jubilos e sobresaltos o peito começa a agitar-se? Não sei se outras são assim. Vivo desde que principiei a amar. Até ahi dormia. Era uma estatua! O meu coração como que esperava por elle para se abrir e brotar essa flor tão mimosa, que um nada queima, tão rara que uma vez só na vida a sentimos pelo perfume, pela alegria, pelo esplendor... Desejava ser formosa, ser princeza, ser rainha, ser tudo, para elle subir, e eu me saber invejada. Que loucuras! Vê! Agora mesmo estou perguntando, sem querer, ao espelho baço e empanado da minha prisão, por esta noite medonha de trovões, se me acha ainda bella?!...»

Neste ponto terminavam as confidencias. Leonor nem acabára de formar as ultimas lettras. Quando, entre o meio sorriso e as rozas avivadas, de que a travessura da revelação lhe animára o semblante, ergueu de repente os olhos para o espelho, a que alludia na carta, pasmou, estremeceu de o vêr mover-se lentamente com a moldura, e entre-abrir-se como uma porta. Outra, menos varonil, teria soltado vozes de terror; ella não. Fez-se pallida, sentiu-se fria, porém não articulou palavra, nem deixou escapar um grito. De pé, tremula, com os olhos fitos e algum tanto dilatados pelo espanto, aguardou a aventura, que esta singularidade lhe promettia. Não esperou muito. O espelho girou, rangendo um pouco, e á entrada da passagem occulta, que fechava, appareceu uma figura com um castiçal na mão, avultando á medida que se adeantava e que a luz mortiça da véla lhe batia no corpo, desfazendo a escuridade. Era um homem de carne e osso, e não um fantasma. Podia ser um salteador, um assassino, ou um indiscreto, não era de certo uma alma penada. A donzella respirou. Apezar da fortaleza do seu espirito a visão tinha-lhe paralyzado os membros, e o coração, pulando descompassado, trahia o susto, que os labios a custo disfarçavam. O desconhecido trajava de preto, vinha envolto em um capote de cabeções, e as largas abas do chapéu enchiam-lhe o rosto de sombras. Quando percebeu que Leonor o contemplava, levou o dedo á bôcca e recommendou silencio. No movimento de braço o capote descobriu os canos luzentes de duas pistolas passadas em um cinto de couro, e a bainha de uma espada larga e curta.

A filha de Paulo de Azevedo deixou-o approximar de si sem denunciar terror. Só falava com a vista, e desvanecido o primeiro sobresalto, o que o semblante exprimia era a curiosidade natural, excitada pela visita, que, por tal modo e a taes deshoras se via obrigada a receber. O hospede punha entretanto os pés no sobrado, roto e carunchoso, com tanto resguardo, e pisava com tão grande subtileza, que os passos eram surdos, como se caminhasse por cima de lã. Chegando ao pé d'ella, encarou de perto a formosura intrepida, que sem receio olhava para elle firme, e um sorriso alegrou a sua physionomia carregada, certo ar de sincera admiração inculcou que não contára encontrar tanto valor.

-- Vejo que não me enganaram! murmurou ao ouvido de Leonor. Tem mais animo, do que muitos homens. É digna do que tentâmos para a salvar e a seu pae!

-- Mas quem é?... D'onde vem?... Como está aqui?!... perguntou a donzella atropelladamente, mas no mesmo tom submisso.

-- Somos tres. Os meus companheiros esperam no fim do corredor, que desembocca n'esta porta secreta. Pertencemos ao conselho conservador de Lisboa, soubemos da prisão de seu pae, e seguimos os milicianos de longe. O lavrador, que traz esta casa de renda, é nosso, e ensinou o modo de entrarmos aqui. Temos caminho facil para fugir.

-- Ah! E Manuel Coutinho veiu tambem?... accudiu Leonor córando.

-- Não! Pouco ha de tardar. Está perto, e mandou-se-lhe recado... Mas os momentos são preciosos. Não podemos demorar-nos aqui. Quer ir acordar seu pae sem bulha e dizer-lhe?...

-- Já! Vou immediatamente. São dois minutos em quanto volto com elle.

-- Pois sim. Aqui espero.

De feito, instantes depois Leonor tornava com Paulo de Azevedo, e este apertava silenciosamente a mão ao desconhecido, que lhe dizia em voz baixa:

-- Venha! Temos os cavallos promptos e tudo a postos. Simão da Costa e Nuno do Rio, seus amigos, estão alli dentro, Manuel Coutinho vem já caminho da Ponte... São mais de onze horas. Ás duas saímos, se a noite lhe mette menos medo, que a cadeia de Santarem...

-- Quando quizer. Para onde?...

-- Para Lisboa. Para o covil do Lobo. Aonde menos cuidem que póde estar, ahi será o mais seguro.

Paulo inclinou a cabeça e seguiu-o com sua filha.

O espelho fechou-se. Quando o sargento veiu não achou nem o rasto de seus presos.

VIII

Entre os bastidores

Lá sabemos como Leonor e seu pae conseguiram evadir-se sem as chaves da prisão saírem do bolso do carcereiro. Agora cumpre-nos explicar a resurreição dos mortos na casa maldita, e esboçar em duas palavras a biographia do intrepido espectro, que, mascarado em alma do outro mundo para assustar os valorosos milicianos da comarca, ás ordens do sargento, baqueou das andas abaixo, transido de pavôr, por achar o defunto, de pé tendo-o visto entrar em braços dos creados.

Nos acontecimentos d'esta infausta noite para os agentes da policia franceza, o morto-vivo e o espectro medroso representaram um papel, que os torna dignos de nos demorarmos com elles por algum tempo.

Principiemos pelo honrado fazendeiro, cuja desastrada sina choram em côro as visinhas e as comadres da aldeia. Como o encontramos de repente são e escorreito com profundo terror dos sicarios, que se julgavam livres do seu nodoso cajado de marmeleiro? Que santo obrou o milagre de levantar da sepultura este Lazaro de japona para confusão e ruina dos inimigos? Como dormiu elle no reino das sombras tantas horas, e só accordou, como ao rebate da trombeta final, com o dobre fatidico da meia noite, hora fadada a visões, a trasgos e a feitiços?

As tres perguntas são razoaveis, e a curiosidade do leitor é natural. Desejariamos de bom grado asseverar-lhe, sem faltar á verdade, que o sabido condão do palacio deserto fôra o auctor de todos os prodigios, porém somos obrigados a confessar como sinceros chronistas, que até aqui o maravilhoso e o sobrenatural só existiram na imaginação escandecida de alguns dos actores, que pozemos em scena. Tudo o que passou se explica perfeitamente sem ser preciso prevalecermo-nos da má reputação da Casa Negra.

Em primeiro logar o Manuel Simões não resurgiu á sexta hora de entre os mortos, embora padecesse sob o poder do sargento Cabrinha, porque para resuscitar era necessario estar morto, e elle nunca chegou a fallecer! A bala do Sapo roçou-lhe pela testa, ferindo-o de raspão, e lançando-o por terra sem sentidos; mas não penetrou na cabeça.

Quando vieram as mulheres, e entoaram em roda do seu corpo as nenias costumadas, principiava elle a voltar a si; e quando o João da Ventosa se approximou, suando e esbaforido, porque do alto de um cabeço ouvira o tiro, e dois minutos depois descobrira no luz-que-fusque o Sapo, correndo em saltos de gafanhoto com a espingarda na mão, já achou o corpulento fazendeiro sentado no chão, muito tonto ainda como se recolhesse de alguma feira, ou romaria, porém sem lesão grave, e apalpando escrupulosamente todos os ossos e costellas.

-- Ah! Ah! Compadre! gritou o rendeiro extendendo a mão ao amigo e contentissimo de o ter vivo. Com que então os caçadores andam pelo sitio, e fizeram-lhe alvo da cabeça? Safa demonio! ajuntou examinando-lhe a fronte mais de perto. Escapou mesmo por uma unha negra!... O maldito tinha-lhe vontade, e não queria perder a polvora. Upa!... Póde vir outra ameixa detraz do vallado, e custar-nos mais a engulir... Se foi só isso não é nada. Mas!...

-- Ainda não foi d'esta, sôr compadre, e se eu soubesse quem me fez a esmola... com seiscentos milheiros... de cobras!... Moia-lhe os ossos com este cajado mais moidos que pimenta em almofariz... Patife! Atirou-me como a um lobo! Ah, sôr João, vossa mercê acaso veria quem foi o alma ruim?!... Parece que tenho dentro da cabeça a mó do moinho a zoar, e que me anda tudo á roda! Ora esta!...

-- Olhe compadre, o melhor é mudarmos de pouso; depois falaremos. Alli em baixo, na fonte, ata um lenço molhado na cabeça, e lá em casa lhe diremos o que vimos. Agarre-se a mim, não tenha vergonha. Forte historia!

-- Antonio me não chame eu, sôr compadre, se me ficar inteiro uma semana o ladrão, que me pregou esta bala! Hei de achal-o, mas que haja de descer vestido e calçado em busca d'elle aos infernos...

-- Não será preciso, homem!... Agarra-o cá em cima sem ir tão longe. Mas ha de fazer o que eu disser.

-- Pois vá! Olhe que o dito, dito! Isto não se leva a rir.

-- Tem razão, compadre; vamos. Trago cá uma idéa!... Emfim! O que for soará...

Os dois pozeram-se a caminho, porém muito devagar, porque Manuel Simões de cinco em cinco passos cambaleava com vertigens, a que chamava nobremente vagados. Era noite fechada, quando avistaram a Ponte da Asseca, e a casa. Chovia e trovejava que mettia mêdo.

O João da Ventosa, que em todo o tempo não soltára palavra, labutando, contava elle depois, com a sua idéa, virou-se então para o fazendeiro e disse-lhe que se deitasse e se fingisse morto emquanto ía chamar os creados.

-- Que me deite e faça morto, salva tal logar?! Oh sôr compadre?! exclamou o ferido. E para quê com um milheiro de cobras?...

-- Para apanhar a raposa e as gallinhas na capoeira. Você não sabe, homem!? Não vê que se quem lhe atirou atinar que perdeu a bala muda-se com vento fresco, e nunca mais lhe pomos os olhos em cima... Estire-se-me já n'esse chão, não venha alguem. Nem trus, nem buz! Pela lingua morre o peixe.

-- Ora essa!... Sempre tem cousas, este sôr compadre! Com que então ainda em cima quer que me espoje n'este charco, e que feche a bôcca a cadeado?... Vá lá! Por esta não esperava eu. Arrenego!

-- Viu pescar á linha sem anzol, sôr casmurro? Vamos. Esse corpanzil já por terra, e caluda! Não me demoro.

Manuel Simões, resmungando, e praguejando, sempre se foi deitando no sitio mais enchuto.

Minutos depois tornou o compadre com o maioral e o abegão, em grandes lastimas por tamanha desgraça, e levaram-o por morto em braços até á cozinha da casa, aonde o vieram encontrar, como vimos, os dois assassinos.

Os creados, apezar de conhecerem por experiencia a força herculea do João da Ventosa, benziam-se de que elle tivesse carregado só com aquelle corpo, tão pesado, desde a azinhaga, como lhes disséra. Sentiam os braços derreados só de o trazerem de tão perto!

O lavrador mandou accender fogo, e pôr agua ao lume; pediu um alentado cangirão de vinho, uma tigela de assucar mascavado, e chamou de parte a tia Margarida, ministro feminino de todas as repartições domesticas da granja, para lhe confiar o occorrido, exigindo o maior segredo. A velha esconjurou-se, louvou a Deus pelo milagre visivel, e saíu, trotando e rosnando, para fazer a cama ao fazendeiro em um vão escuro, e desviar da cozinha a vista e as orelhas dos curiosos.

Seguiu-se um entre-acto bacchico, durante o qual a agua quente e o assucar serviram de pretexto ao vinho, o qual representou a parte principal. Estava já menos de meio o cangirão, quando a voz esganiçada de José Vardasca, diabrete de quinze annos, sobrinho do rendeiro, em altercação com o contralto enrouquecido da tia Margarida, obrigou os dois campeões a suspender as hostilidades. Manuel Simões amarrou o lenço manchado de sangue á roda da testa, de modo que lhe cobrisse a cara, e extendeu-se sobre a mesa de pedra. Um feixe de palha serviu-lhe de cabeceira, e uma manta cobriu-o até aos pés.

Ensaiada assim a peça, João da Ventosa abriu a porta, e com um-- Olá!-- que fez tremer as paredes, poz termo ao dueto da velha e do rapaz.

José Vardasca não vinha só. Acompanhava tres sujeitos, envoltos em capotes de baetão grosso de gola alta, cobertos com sombreiros de abas derrubadas, os quaes esperavam fóra da porta, no escuro, que elle désse ao tio o seu recado.

Ao que parece os viajantes eram conhecidos do rendeiro, porque apenas o rapaz lhe disse, quasi ao ouvido, algumas palavras, este correu sem chapéu apezar da chuva, e encaminhou-se para elles. Ninguem ouviu o que falaram, mas os creados viram desapparecer o amo e os hospedes por detraz do muro da horta, e recolher-se passado um pedaço o João da Ventosa só, em ar de quem se não tinha cansado com o passeio. As conjecturas dos servos não foram adeante. Cuidaram que elle saíra a metter os tres embuçados no atalho da azinhaga, e se acaso se admiraram foi, sendo tão largo e generoso, de lhes não ter dado agasalho em sua casa por uma noite, em que a agua era tanta, diziam os rusticos, que a podiam os cães beber de pé!

Mas o lavrador sabia melhor do que elles o que fazia. E nós, que não somos de segredos, e que não receiamos que a policia dos francezes nos tome contas em 1864, das conspirações de 1808, não duvidaremos revelar as razões do seu procedimento.

Os tres sujeitos eram nada menos do que tres delegados do conselho conservador de Lisboa, associação composta de patriotas dedicados á restauração da independencia e do throno legitimo, e decididos a todos os sacrificios para arrojarem da sua terra os soldados de Bonaparte. Tinham atado relações em todo o Ribatejo com os homens que podiam ajudal-os em seu arriscado proposito, e haviam partido dias antes da capital para se reunirem em Santarem com Manuel Coutinho e alguns cavalheiros do Sardoal, Leiria, Pernes e Rio Maior, no intento de assoprarem de mais perto a irritação popular, e de irem dispondo os animos para a sublevação geral, que meditavam, apenas as cousas lhes proporcionassem ensejo favoravel.

João da Ventosa, assim como o Manuel da Cruz, e outros visinhos, iniciados em parte do plano, executavam com cega fidelidade todas as ordens emanadas d'este governo occulto e revolucionario, que na ausencia da familia real, e em presença do jugo estrangeiro, representava para elles a unica e verdadeira auctoridade do paiz.

O rendeiro, pois, assim que os tres desconhecidos lhe repetiram as palavras, que serviam de senha aos amigos da liberdade-- pelo rei e pela patria-- largou tudo, e offereceu-se logo para o que mandassem com a maior submissão.

A reputação diabolica da Casa Negra, guardava-a por tal modo da curiosidade, que nenhum refugio mais seguro podiam encontrar os conspiradores, não só para pernoitar, mas afim de celebrarem as conferencias. Explicaram os seus desejos ao lavrador, e este, que o medo dos fantasmas não vexava, guiou-os pela horta a uma entrada secreta, disfarçada com um tapume de tábuas, e introduziu-os nas salas e aposentos do primeiro andar do palacio. Accendeu luz com o fuzil, ensinou-lhes alguns dos segredos dos quartos e corredores, e prometteu trazer-lhes vinho e refrescos.

A chegada do sargento e dos presos, espertando a imaginação do malicioso rendeiro, e a coincidencia de abrigar debaixo do mesmo tecto a victima e os assassinos, suscitou-lhe a idéa de salvar Paulo de Azevedo e sua filha das garras dos agentes de Lagarde, castigando ao mesmo tempo a perversidade de Cabrinha e do seu acolyto. Avisou os delegados do conselho de Lisboa, ajustou com elles a maneira de fazer evadir o cavalheiro de Mafra e Leonor, condemnou o fazendeiro á immobilidade, assegurando-lhe em premio da sua paciencia as delicias da vingança, e para não omittir nenhum episodio distribuiu ao travesso José Vardasca o papel conspicuo de phantasma branco, marcando a todos a meia noite, como a hora mais opportuna para o feliz exito do drama.

Sabemos qual foi o resultado. Os milicianos fugindo, o Sapo correndo até perder o folego, e o sargento estatelado sem sentidos no meio da cozinha! O que se tornou mais difficil foi calar os berros do intrepido José Vardasca, assombrado com a vista do fazendeiro, e convencel-o de que não estava com um defunto, mas com um homem vivo e inteiro. O rapaz não se rendeu á evidencia, senão depois que viu e apalpou como S. Thomé.

O sargento, cujos ossos ameaçou por umas poucas de vezes o cajado, ou antes a clava de Manuel Simões, e que o João da Ventosa não trabalhou pouco por salvar ainda d'esta vez, o sargento, desmaiado e inerte, foi levado para cima de um catre e vigiado por um dos moços com ordem de chamar o lavrador assim que abrisse os olhos. O fazendeiro da Aramanha, mal rompia a aurora, tomando o conselho do compadre, montou n'uma egua, e partiu para casa a descançar, não sem primeiro rezar um responso ás costellas do virtuoso Cabrinha e ao pescoço de Gaspar Preto, aonde quer que os encontrasse.

O sargento esteve duas horas sem accordo. Quando voltou a si não via senão fantasmas em redor da cama. Custou a socegal-o.

O que mais abalára aquella alma seraphica fôra a fuga dos seus presos! Não podia conceber como lhe tivessem escapado, e na sua dor pharisaica arrepellava as melenas, e blasphemava como um possesso, jurando contra Satanaz, contra a Casa Maldita, e contra si. Mesmo de noite quiz saír. Pediu o cavallo, outro espectro na transparencia e magreza, e cravando-lhe as esporas voou a Santarem, talvez na esperança de ainda pôr a mão em cima da presa.

Voltemos agora á Azenha de Cima, aonde deixámos Manuel Coutinho e o Antonio da Cruz, esperando pelas horas mortas da noite afim de emprehenderem a campanha planeada por ambos.

Apezar da chuva caudal e dos relampagos, o moço do moinho, garoto leve como um ginete, que via de noite como os gatos, e era capaz de entrar pela bôcca de uma manilha, tinha sido mandado pelo amo á descoberta até á Casa Negra com ordem expressa de não se deixar agarrar, e de espreitar em roda com a sua curiosidade habitual. O rapaz partiu a correr, como se a agua lhe não batesse em cima ás torrentes, e uma hora depois voltava com a noticia de que os presos estavam na Casa Maldita, de que o sargento, o Sapo, e os milicianos ceiavam regaladamente com o João da Ventosa, e de que o corpo do Manuel Simões fôra recolhido pelo lavrador, e jazia com uma véla aos pés e outra á cabeceira na mesma cozinha, aonde o beleguim emerito e seus sequazes se estavam banqueteando.

Em toda esta chronica, narrada pelo moço com incrivel volubilidade, o que mais socegou o animo de Antonio da Cruz foi a certeza, de que o cadaver do fazendeiro da Aramanha não desapparecêra, como se dizia, por artes do demonio. Estava prompto a medir-se e a arcar com uma companhia inteira de milicias, mas o inimigo do genero humano tremia só de cuidar que poderia encontrar-se com elle um só instante!

-- Ah José! disse depois de certa pausa. Então o sôr João da Ventosa é que levantou o corpo do Manuel e o levou para casa?... Estás bem certo? Viste?...

-- Com estes dois que ha de comer a terra, respondeu elle, fazendo uma cruz com os dedos, e beijando-a. Assim me Deus salve a minha alma. Ah patrão, que diluivo de agua que vae por ahi abaixo! Parece que quer alagar-se hoje o mundo. Credo!...

-- É verdade! accudiu o moleiro. Vens um pinto... Vamos! Que tal te sabia um trago, ou dois de agua pé, ein? A roupa não te pesa e estás tiritando que parece que te apanhou uma sezão...

O liquido medido com largueza pagou os trabalhos do moço, e o amo despediu-o logo depois, em quanto Manuel Coutinho passeiava de um lado para o outro inquieto e murmurando por entre dentes algumas palavras.

-- Antonio! observou o mancebo, parando de repente defronte do moleiro, e encarando-o firme. Atreves-te a ires commigo á Casa Negra, para enxotarmos de lá o sargento e a sua quadrilha? Elles são oito, ou nove, mas nós dois bem armados e decididos?!...

-- Valemos por dez ou doze. Vá feito, senhor! A espingarda é de dois canos e a choupa está amolada... V. s.a quer a outra espingarda? É um instante em quanto se carrega?

-- Não!... Sim!... Carrega! Guardarei as pistolas e a espada para o fim se for preciso.

-- Quer que vamos já?... Sinto uns formigueiros n'este braço, que não me deixam senão quando assentar em cheio duas boas lambadas nas costas do sargento e na cabeça d'aquelle alma ruim do Sapo...

-- Não as perdem, mas espera!... Que bebam até caír. Nós os faremos erguer. Podes fumar homem!

-- Com sua licença.

O dialogo acabou aqui. Manuel Coutinho sentou-se com a cabeça entre os punhos e os cotovellos na mesa, scismando, e o Antonio poz-se com todo o vagar a carregar e escorvar a espingarda. Depois foi ver as mós se tinham grão, abriu o ladrão da presa, e quando tornou, veiu encontrar ainda o patrão na mesma posição com o relogio deante de si e os olhos cravados nos ponteiros.

-- Agora! exclamou o mancebo levantando-se com impeto. É meia noite! Esperam por nós. Vamos! E cobrindo-se com a manta, que o Antonio extendera a enxugar ao lume, passou as pistolas no cinto, apertou o boldrié da espada mais alto, e pegou na espingarda.

O moleiro ainda se apromptou mais depressa. Enrolou-se na manta, cobriu com ella a coronha e os fechos da clavina, metteu-a debaixo do braço esquerdo, e empunhou com a mão direita o inseparavel varapau rematado pela choupa. No momento, em que estava dando volta á chave da porta um immenso clarão livido abriu os céus, o outeiro illuminou-se de fulgores sinistros, e a casa tremeu com a terra ao ribombo do trovão perpendicular. Apezar da sua intrepidez os dois recuaram quasi assombrados até ao meio do aposento: Santa Barbara! bradou o Antonio benzendo-se. Jesus! clamou o amo ao mesmo tempo. Ficaram immoveis ambos olhando um para o outro.

-- Deixemos passar a maior, senhor! disse d'ahi a instantes o vigoroso aldeão. Ella anda mesmo por cima da nossa cabeça...

-- Pois sim. Deixemos! redarguiu Manuel Coutinho sentando-se no banco defronte da porta.

Minutos depois outro relampago menor allumiou o campo, e á luz d'elle viram vir correndo ennovellado direito ao moinho um vulto, que mais parecia na velocidade um furacão, do que um homem.

-- Oh lá! disse em voz cheia o moleiro. Castelhanos por aqui á meia noite?! Quem temos? É bom vêr sempre!...

Não teve tempo para mais, do que para se desviar, extender o braço, e segurar pela golla o impetuoso vulto, tão cego na partida, que se elle não se arreda a tempo, colhe-o pelos peitos, despedido como uma bala de canhão, e atira-o ao chão, porque trazia força para arrombar portas e paredes.

-- Ah, sô amigo, aonde vamos com tanta pressa? exclamou o Antonio, o qual affeito a apanhar na praça os bois de cara, amarrava ao limiar com o vigoroso pulso o desconhecido, que, estafado e convulso, estacou arquejante e sem poder falar.

Manuel Coutinho, callado e quasi indifferente, havia-se approximado da porta, e contemplava a scena, como quem só desejava, que ella se não prolongasse. Antonio da Cruz adivinhou a impaciencia do mancebo, e voltando-se para elle disse-lhe:

-- É um instantinho, meu amo! Entretanto amaina mais a chuva... mas nadar por estas horas com mouros na costa, nada!... Vamos, patrão, desate-me já a lingua, como desatava as pernas pelo cabeço arriba, e diga para ahi quem é, e o que faz correndo por esta linda noite até á porta da gente de bem!... Vamos, desembuche, senão!...

-- Sou... Sou...

-- É! É... Quem? Cousa boa, não decerto. Com a breca! Entre que lhe queremos ver o focinho á candeia. Melros ás escuras podem saír morcegos!...

E ao mesmo passo arrastava para dentro da cozinha o vulto, que escorrendo em agua, e cortado de frio e medo, nem lhe resistia, nem tinha animo para articular palavra. Apenas lhe metteu a luz ao rosto, o moleiro, fitando-o, voou de um salto á porta, fechou-a, e voltando-se para Manuel Coutinho, disse-lhe com um riso amarello:

-- Aposto que v. s.a não é capaz de adivinhar quem o diabo nos trouxe por aqui? Sabe quem é este cara de fuinha?...

-- Nunca o vi. Não o conheço.

-- Pois olhe que perde!... Isto é o maior heroe cá dos sitios... Nem mais nem menos, do que o sôr Gaspar Preto, por alcunha o Sapo!...

-- O Sapo? Já te ouvi esse nome... Será?!...

-- O maior ladrão e traidor da cafila dos jacobinos... Oh, mas por aqui a esta hora, não é natural! O sargento Cabrinha não anda longe, aposto!... Este velhaco é o seu braço direito...

-- Percebo!... bradou o mancebo, deitando tambem a mão ao Sapo, e saccudindo-o de modo, que se repetisse, ameaçava desconjuntal-o. Antonio! Não o deixes escapar! Foi Deus que o trouxe...

-- Deus?!... Antes o demonio, cujo é!... Não importa. Veiu por guloso? Pagará as dividas que tem na minha conta. Se havia de ser ámanhã é hoje. Gaspar! Toma sentido! Se não me respondes direito, por alma de minha mãe te juro, e sabes que nunca jurei em vão, que deixas aqui a pelle pelos nós d'essa corda, ou os ossos na vara do meu cajado...

-- Sôr Antonio, por quem é!...

-- Por quem sou mesmo. Prometti, e costumo cumprir.

-- Nunca lhe fiz mal...

-- Hum! Nem bem!... Vamos! Cabeça alta e lingua solta. D'onde vens?

-- Da Casa Negra, aonde appareceu o demonio ao sargento, a mim, e aos milicianos.

-- Ah! Ah! accudiu Manuel Coutinho. Deixa-me perguntar. Este fio póde levar-nos longe.

Interrogado pelo mancebo, entre o pavor dos espectros e o medo das ameaças de Antonio da Cruz, Gaspar Preto fez uma confissão geral tão sincera, que até o segredo do tiro dado em Manuel Simões lhe saltou quasi todo da bôcca sem se sentir. O pavor ensandecia-o.

-- E affirmas não estar já ninguem na casa, senão os presos?

-- Ninguem, a todos os vi fugir, como lebres...

-- E o sargento?

-- Desappareceu. Foi o primeiro.

-- Bem! Agora nós! atalhou o moleiro. O que vinhas tu aqui cheirar ante-hontem? Se disseres a verdade não te toco.

-- Eu!... Eu!...

-- Tu sim!

-- Vinha ver... se havia gente de fóra por cá!... redarguiu o malsim contido pelo olhar firme de Antonio, e estorcendo-se como se lhe estivessem dando tratos.

-- Ora graças a Deus! Já confessas!... Vinhas então como espia! Está bom. Outra pergunta. Quem foi ao Casal do Ouro? Fala!...

-- Eu!... Suspirou tremulo o miseravel.

-- Quem te mandou?

-- O sargento... Que eu por mim!...

-- Bem sei. Vamos a outra historia. Esta tarde deram um tiro no Manuel Simões?... Vê bem! Quem foi? Olha lá se mentes!...

Gaspar sentiu dobrarem-se-lhe os joelhos, fugir-lhe a vista, e zumbirem-lhe os ouvidos. Esbugalhou os olhos, e por mais que quizesse não poude pronunciar uma syllaba.

-- Quem deu o tiro, quero saber! repetiu o moleiro, meneando o varapau e encarando o assassino com terrivel gesto.

-- Não sei... Não sei...

-- Sabes e viste. Essa cara de réo o está confessando. Fala. Quem foi?

-- Eu!... por descuido...

-- Descuidos teus, já sei. É o que suppunha. Agora vê lá!... O sargento não te tinha dito nada?...

Houve uma pausa longa. O Sapo chorava, supplicava, mas não redarguia á interrogação.

-- V. s.a já viu esmagar uma osga contra uma parede? bradou o Antonio fuzilando-lhe as pupillas, e convulso de cholera. Pois vae ver. Juro-lhe, se este cão se cala um minuto, que deixa os miolos n'aquelle muro.

-- Pelo amor de Deus!... Sôr Antonio não me deite a perder!...

-- O sargento sabia?... replicou o outro alçando o cajado.

-- Jesus!... Não me mate!

-- Sabia ou não?...

-- Sabia!... rosnou o malsim quasi sem sentidos de terror.

-- Quanto te prometteu... pelo tiro? Conheço-te. Tu de graça não o disparavas.

-- Agora isso não! Póde matar-me, mas não confesso.

-- Eu matar-te?... Para que? O carrasco não come pão de graça.

-- Então entrega-me?!...

-- Com anginhos nos dedos e ferros aos pés. Juro-te! Dize a verdade, homem. Do mal o menos. Quanto te prometteu? Olha que a corda, que ha de pendurar-te na forca, já está fiada e torcida...

-- Se eu disser não me descobre?

-- Não! O teu crime te descobrirá. Quanto?

-- Seis moedas...

-- Por conta, ou ao todo?

-- Por conta. As outras seis... havia dar-m'as em Lisboa... quando levassemos os presos.

-- Ah! Agora repara. Vamos ás nossas contas. Gaspar, devo-te uma sova mestra pelo natal passado e outra por este entrudo. Bem te has de lembrar por quê!... Mas perdôo-te, tudo, e até no tiro dado em Manuel Simões não hei de boquejar... se juras fazer ao sargento o que elle te mandou fazer aos outros...

-- Matal-o?!... exclamou o Sapo, cuja vista feroz se inflammou.

-- Não, maldito! A justiça que o mate, quando o sentencear!

-- Então?!...

-- Quero que vejas, que ouças, e que me digas tudo quanto elle fizer? Percebeste?

-- Sim senhor...

-- Vê lá. Se te escorrega um pé, ou a lingua, e eu o sei... guarda-te!

-- Não ha de ter razão de queixa. Sou-lhe muito obrigado.

-- Não me dês mel pelos beiços, que não sou abelha. Cuidado commigo. Depois!...

-- Já lhe disse. Fique descançado.

-- Fico, fico! Não tem duvida. Agora vens comnosco á Casa Negra.

-- Oh, sôr Antonio, por alma de sua mãe, pela sua boa sorte, tudo quanto mandar, menos isso... Sirvo-o de rastos, estou prompto a lamber o chão aonde pozer os pés, mas tornar alli... isso não!

-- Ah! Tens medo do diabo?...

-- Mate-me, entregue-me, faça de mim o que quizer, mas não volto lá.

E as feições repulsivas do malsim exprimiam por tal modo o medo e o espanto, e revelavam uma resolução tão decidida de se expor a tudo para não obedecer, que Manuel Coutinho disse algumas palavras ao ouvido de Antonio da Cruz.

-- Pois bem, esperarás por nós. Ahi te deixo agua pé e brôa. Mas sentido! Olha que te quero encontrar á volta!... Forte homem! Ter pavor assim de almas do outro mundo!...

-- Ah! sôr Antonio! Se você visse!... O fantasma branco alto como um cypreste crescer para si, e o defunto sentar-se de repente e olhar... Ai Jesus! Parece que os estou vendo ainda! Quando me lembro cuido que enlouqueço!...

-- Está bom! Está bom! Até logo! Com que viste o defunto e o fantasma?... insistia o moleiro serio e apprehensivo, olhando para o amo com certo enleio.

-- Como o estou vendo a você, sôr Antonio. Credo!...

Manuel Coutinho encolheu os hombros, conchegou o capote e saíu. O Antonio não teve mais remedio senão seguil-o, mas apezar de todo o seu valor benzeu-se, e o coração batia-lhe mais rijo no peito, do que se visse um touro partir contra elle enfurecido.

IX

Que talvez podesse servir de prologo

Deixemos descançar por um pouco os heroes d'esta mui veridica historia, em quanto corremos rapidamente os olhos pelos successos, de que a Peninsula foi theatro n'este periodo memoravel.

Sem um resumido esboço, dos factos, que servem de fundo e de moldura ao quadro, difficilmente formará o leitor exacta idéa d'elle.

Os francezes, como dissemos, tinham atravessado as provincias, e entrado na capital com o nome de amigos. Retirando-se com a esquadra para o Brazil, o principe regente entregára em suas mãos o reino sem defeza. As ultimas ordens de sua alteza, datadas de 26 de novembro de 1807, ordens pacificas e conciliadoras, abrindo-lhes as fronteiras, ajudaram mais, que as armas, os generaes de Bonaparte a superar os obstaculos da invasão.

Junot confessou-o nas primeiras proclamações! A obediencia, tão elogiada por elle, e dictada pelas circumstancias, ainda não encerrava os ressentimentos, que tornaram depois vacillante e precario o dominio estrangeiro.

O regimen absoluto, que as reformas do marquez de Pombal não conseguiram remoçar, adoecia de incuravel decrepidez. Muitos homens illustrados, que o grandioso espectaculo dos acontecimentos advertia, suspiravam por uma renovação, que não podia nunca ser inspirada, bem o sabiam elles por experiencia, nem pelas idéas, nem pela iniciativa de um governo caduco.

Esta illusão de animos generosos durou pouco. Os que amavam sinceramente a patria depressa se desenganaram da vaidade das promessas dos conquistadores.

Estes, apenas se reputaram seguros, arrancaram a mascara, e pozeram termo ás complacencias. Assim que viu reunidos e repousados os corpos dispersos por longas e precipitadas marchas; assim que os soldados lhe pareceram restaurados da fome, das inclemencias da estação, e da aspereza do transito o general em chefe cançou-se de dissimular, falando com a altivez de vencedor aos que o tinham recebido como hospede!

Foi então geral o sobresalto. Os actos despoticos e oppressivos dir-se-íam calculados para irritar o ciume e o amor proprio do paiz. As guardas de Lisboa confiadas só aos francezes; o emprestimo forçado imposto ao commercio com o praso de vinte dias; a insolencia do famoso decreto de Milão condemnando como sujeito a resgate o reino que não fôra conquistado; as armas reaes picadas do frontão dos edificios publicos; e a bandeira nacional arriada no castello e nas fortalezas, e substituida pelos estandartes tricolores, foram outros tantos erros dos dominadores, que a saudade da independencia registrou como ultrajes.

Desde o dia 13 de dezembro, em que Junot rodeado de pompas guerreiras, mandára baixar o pavilhão das quinas deante das aguias do Sena, nunca mais houve paz entre a nação offendida e os invasores. A luva ficou desd'esse dia no chão por falta de chefe, que a levantasse; porém, decorridos mezes, Portugal erguia-se para responder á provocação, envidando valor egual aos brios.

Atraz da occupação da pequena monarchia, que o orgulho do gabinete de Saint Cloud estava ainda longe de suppor, que podesse tornar-se em breve um dos inimigos implacaveis de sua ambição, pouco se dilatou a invasão de toda a Hespanha. Assignando o tractado de Fontainebleau, que repartia os membros de Portugal entre os Bourbons, os francezes, e o principe da Paz, auctorizando a entrada de quarenta mil soldados em seus dominios, Carlos IV não percebeu que firmava a propria abdicação.

Bonaparte anciava um pretexto para realizar os seus designios. Deram-lh'o os enredos aulicos, o nucleo de descontentes, de que se rodeava o principe das Asturias, depois Fernando VII, e a má vontade de todas as classes contra o ministro omnipotente, valido do monarcha e amante da rainha; deram-lh'o egualmente a miseria, a inquietação, a decadencia geral, e o presentimento de immensas catastrophes.

As dissensões da côrte, filhas da lucta do herdeiro da corôa com os soberanos e com o privado, D. Miguel de Godoy, e a indiscreta revelação dos aggravos reciprocos, levada ao tribunal do imperador, para este sentenciar como arbitro a familia real, ajoelhada a seus pés, facilitaram a occasião appetecida por Napoleão I, precipitando a queda do ministro entre violencias e tumultos, coagindo a abdicação de Carlos IV, e apressando a saída de Fernando VII para Bayona.

Vendo por terra o diadema dos Bourbons de Hespanha Bonaparte não o restituiu a Carlos IV, nem a Fernando VII, cingiu-o na fronte de seu irmão, o rei de Naples, escolhido para reinar entre bayonetas sobre a monarchia de Izabel a Catholica. Os principes despojados resignaram-se, mas a Hespanha protestou. Madrid insurgida deu o exemplo. Murat cuidou suffocar a sublevação pelo terror dos supplicios. Illudiu-se. O sangue vertido na capital em 2 de maio tornou irreconciliavel a nova conquista com o imperio. A nação respondeu aos canhões, aos fuzis, e ás execuções militares com a resolução indomita, que as adversidades confortam, e os triumphos exaltam.

A ira fez soldados os habitantes da Peninsula. O odio da servidão resuscitou os dias de Viriato e de Sertorio. Cada rochedo, cada tronco, de arvore, cada balsa escondeu um inimigo; e para repellir os oppressores até os velhos saccudiam os gelos da edade como mancebos, e as crianças pelejavam como homens. Por um, que expirava, erguiam-se mil. N'esta nova seára de Cadmo o ferro, tocando a terra, levantava legiões de heroes. O chão fugia debaixo dos pés aos veteranos da Italia e do Egypto, e a espada dos marechaes, quebrada sem gloria, ameaçava em vão as fragas de um territorio, que, alastrado de cadaveres, e abrazado pelas armas e pelos incendios, até cuspia de si os ossos do estrangeiro, negando-lhes a paz do tumulo!

Oviedo, a antiga e venerada côrte das Asturias, recordando, que suas montanhas tinham sido berço e asylo da renascença christã, alçou ousada o seu estandarte. Cadix e Sevilha acompanharam-n'a. Granada e Valencia insurgiram-se logo depois. Toledo, Santander de Biscaya, Saragoça, Tortosa, e Galliza, não ficaram atraz. Dentro em pouco os esquadrões francezes, encanecidos nas luctas d'esta epocha de prodigios, já não chamavam seu mais do que ao terreno aonde combatiam.

As juntas de salvação e defeza, á medida que as terras se iam sublevando, exprimiam o seu pensamento de porfiada resistencia. Filhas legitimas da revolução, os revezes e os sacrificios não as desanimavam. Diversas e oppostas muitas vezes no caracter e nos costumes, nenhuma trahiu o seu juramento. Preferindo para mortalha da Hespanha os muros voados e as torres arrazadas das praças de guerra e das antigas cidades, todas rejeitaram a clemencia injuriosa, que lhes promettia o perdão em troca do soberbo dominio a que a Europa quasi inteira curvava então a cerviz.

Os successos correram como a impaciencia dos contendores.

A invasão, que talára a provincia de Granada, derrotadas por Castaños as tropas imperiaes, foi obrigada a retroceder. A capitulação de Bailen quebrou o prestigio das legiões invenciveis. Os francezes, acossados de posto em posto, tiveram de evacuar Madrid, e recuando deante do impeto da nação armada, só pararam ás margens do Ebro. Os capitães mais ousados aprendiam, finalmente, a conhecer, que vale mais o esforço de um povo unanime, do que a espada feliz do mais do maior homem de armas.

A junta central de Aranjuez, composta de deputados de todas as provincias, constituiu-se como representante de Fernando VII, captivo em Valençay, e assumiu a suprema direcção, conferida pelas necessidades e o heroismo pelo paiz. A Inglaterra, senhora por tanto tempo do sceptro dos mares, disputando a Napoleão em todos os campos de batalha a primazia no continente, ouviu de repente os clamores dos descendentes de Pelaio, e contemplando o arrojo, com que elles se atreviam contra o poder que desmaiava os monarchas mais poderosos, estremeceu de jubilo, e saudou n'este commettimento audaz a aurora do dia de Waterloo.

Em Portugal, apezar de não ser menos vivo e intenso o odio, não foi tão prompta a explosão. Mas a chamma, por calar debaixo de cinzas, não rompeu por isso com menor violencia.

No dia 5 de fevereiro de 1808, na occasião, em que as auctoridades francezas se reputavam mais firmes, reuniram-se encobertamente em Lisboa seis homens, que nenhuma distincção hierarchica apontava para chefes, mas que a firmeza da vontade e o despreso dos perigos recommendam ao louvor da posteridade. Chamavam-se Matheus Augusto, José Maximo Pinto da Fonseca Rangel, José Carlos de Figueiredo, Antonio Gonçalves Pereira e André da Ponte de Quental da Camera. Juraram na presença de Deus empregar as forças, os bens, e a vida com fervor até conseguirem restituir ao principe regente, a sua corôa, e á patria o seu esplendor e liberdade.

Juntavam-se ás oito horas da noite alternadamente uns em casa dos outros, e desde logo se occuparam de minar o chão debaixo dos passos dos invasores, descobrindo no meio do seu cortejo os illudidos e os coactos para os descriminar dos vendidos e traidores, e sondando o animo dos officiaes militares, dos magistrados, e dos ecclesiasticos para indagar a sua disposição, apurando aquelles com que podia contar.

Esboçada a conspiração, e protegida por inviolavel segredo, principiaram os primeiros conjurados a attrahir outros, engrossando o numero dos cumplices. Á policia, regida por Lagarde, chegaram cedo os echos d'esta empreza, que, tomando corpo á proporção que os acontecimentos caminhavam, era já na primavera de 1808 uma verdadeira potencia, fortificada pelos votos concordes do patriotismo portuguez, e pela coadjuvação de valiosos auxiliares recrutados nas fileiras do exercito nacional, nas casas mais illustres da fidalguia, e nas classes respeitadas do clero, da toga, e do commercio.

Quando Junot embarcou em virtude da capitulação de Cintra, só os cabeças de bando, representantes, perante o Conselho Conservador, da multidão dos adherentes, excediam de cento e oitenta, e os homens, de que podiam dispor, não baixavam de tres, ou quatro mil, com sete peças de artilheria, 370 cavallos do regimento da Luz, e da guarda real da policia, 112 officiaes avulsos, e 710 bayonetas!

Saltemos agora as semanas, que nos separam dos meiados de junho de 1808, e observemos o estado das cousas já bastante alterado no curto espaço de sete mezes.

Determinára a Providencia que do excesso dos males, que flagellaram a Peninsula se gerassem as causas, de que primeiro renasceu a independencia, e depois a liberdade. As scenas de Bayona, e a repressão cruel dos tumultos de Madrid despertaram a Hespanha do somno, em que a falsa alliança dos francezes a embalava. Badajoz sublevou-se a par de outras terras importantes no dia 30 de maio, e á sua voz principiou a provincia do Alemtejo a agitar-se. Ao norte a Galliza, com os bellos portos do Ferrol e da Corunha, e a sua população briosa e accumulada, não hesitou egualmente em saccudir o jugo.

Os dez mil hespanhoes aquartelados no Porto, que depois da morte do general Taranco obedeciam ao marechal de campo D. Domingos Ballesta, receberam ordem da junta para recolherem, aprisionando o general Quesnel, governador militar da cidade, e todos os officiaes e soldados, de que podessem apoderar-se.

Ballesta executou a ordem, e chamando as auctoridades da segunda capital do reino, perguntou-lhes, antes de partir, por quem se decidiam? Pela patria, responderam alguns.

O castello de S. João da Foz, de que era major Raymundo José Pinheiro, arvorou a bandeira portugueza, e a guarnição communicou com o brigue inglez Eclipse, o qual esperava os acontecimentos, cruzando proximo da costa. O povo não se moveu. A occasião ainda não estava madura.

Os timidos conselhos do brigadeiro Luiz de Oliveira prevaleceram. O Porto tornou a submetter-se ao governo de Napoleão I.

A 9 de julho chegou a Lisboa a noticia da insurreição das tropas hespanholas e da prisão de Quesnel.

O perigo eminente estimulou o duque de Abrantes.

A divisão Caraffa, composta de seis batalhões de infanteria, de um regimento de cavallaria, e de algumas baterias de artilheria, ardia em desejos de imitar seus irmãos de armas, provocada pelos emissarios expedidos a toda a pressa de Sevilha e Badajoz. Junot antecipou-se. Vinte e quatro horas depois os soldados de Fernando VII, presos e desarmados, embarcavam para bordo dos pontões francezes, e sómente poucas companhias do regimento de Murcia e alguns hussards do Maria Luiza conseguiam escapar-se.

Por meio d'este golpe ousado o general em chefe, retaliando as hostilidades dos patriotas, soube refrear a tempo as impaciencias e a animosidade dos habitantes irritados. Loison saíu a 17 de Almeida sobre o Porto com a sua columna, afim de se oppor ás tentativas da Junta de Galliza, e a 20 passava o Douro no Pezo da Regua. Mas o dia das iras populares tinha alvorecido. Rodeado por todas as partes de inimigos invisiveis, que fuzilavam suas tropas por traz das vinhas e dos rochedos, pendurados sobre a corrente torva e arrebatada do rio, volveu já sobre a noite ao Pezo da Regua, e tornou a vadear o Douro para a outra margem, abençoando a precipitação boçal dos camponezes, que o salvára quasi por milagre de uma ruina completa.

O Minho e Traz os Montes, sublevadas em massa, acabavam de empunhar as armas, proclamando a independencia. Mais alguns passos de Loison além de Mesãofrio, mais prudencia e calculo da parte dos aggressores, e a columna franceza encontrava a sepultura n'aquelles penhascos e desfiladeiros immortalizados pela sua derrota!

Em quanto Junot quebrava por um lance audacioso a espada nas mãos dos batalhões de Caraffa, Manuel Jorge Gomes Sepulveda, tenente general, e governador militar do norte, em edade provecta, acclamava a restauração da dynastia de Bragança, e era seguido pelas terras mais notaveis das duas provincias.

No dia 18 a revolução rebentou no Porto, e no dia 19 foi nomeada a primeira junta portugueza, cujo papel havia de ser tão importante nos successos, que se precipitavam. Coimbra Pombal, e Leiria seguiram o exemplo do Porto, e a insurreição crescendo e alargando-se, batia pouco depois ás portas de Lisboa, ameaçando o dominio estrangeiro, tanto pelo lado do norte, como pelo lado do sul. Desde os Algarves até Evora e Beja levantou-se o mesmo grito de exterminio correspondido por milhares de vozes.

Antes de combater a insurreição a ferro, o duque de Abrantes chamou em seu auxilio o braço ecclesiastico, convidando-o a fulminar as populações armadas.

Uma pastoral do cabido patriarchal representou como crime e peccado inexpiavel a resistencia ao grande e invencivel Napoleão, declarando a culpa sujeita a excommunhão maior sem prejuizo das penas temporaes. Esta profanação sacrilega serviu só de aviltar aos olhos do paiz os ministros do altar, que não se envergonhavam de offerecer o incenso do templo e o beijo de Judas contra a liberdade á vontade despotica dos oppressores. Os raios mal forjados nas sacristias caíram frios e inermes deante da resolução e da perseverança dos que pelejavam pela patria, e a famosa proclamação ao Divino, despresada como merecia, não roubou ás fileiras nacionaes um só defensor.

A resposta de Bonaparte em Bayona á deputação portugueza foi mais eloquente para fazer de nós soldados, do que as excommunhões dictadas no quartel general francez. O imperador, julgando a occupação de Portugal legitima depois da partida da familia de Bragança, tractava o pequeno reino desamparado com os rigores devidos a uma colonia ingleza!

Era a sua idéa e a sua politica. Pouco lhe importavam o amor e a confiança dos novos subditos. Não os temia nem o preoccupava o que havia de dispor afinal ácerca do seu destino. Junot, que os conhecia melhor, tinha procurado attrahil-os, e chegára a linsongear-se com a esperança de os adormecer a ponto de lhes riscar da memoria as saudades da dynastia e da independencia. A obediencia imposta pela força afigurava-se-lhe esquecimento, e nos seus officios ao ministro da guerra o governador de Paris traduzia os vivas venaes da plebe ao sabor dos seus desejos, pintando a nação tranquilla, submissa, e satisfeita. A explosão das provincias e os murmurios da capital vieram depressa acordal-o d'este sonho!

Olhou. Não viu em volta de si, senão odios mal reprimidos, ou adhesões falliveis e compradas. A pobreza e a miseria, filhas do bloqueio, que paralysava o commercio, tornavam ainda mais critica a sua posição. O cambio do papel moeda subira a 31 e a 32 por cento; o pão custava 75 réis o arratel. A carestia dos generos, tornando a vida difficil e dolorosa para as classes indigentes, aggravava o descontentamento geral. A Junta dos Tres Estados, reunida para pedir um rei a Napoleão, proporcionou ao juiz do povo José de Abreu Campos, a occasião appetecida de manifestar os verdadeiros sentimentos do paiz, desenganando o duque de Abrantes, de que se achava só e detestado com o seu exercito no meio de populações hostis, que suspiravam pela hora de restaurar a liberdade e o throno de seus principes.

No mez de junho estavam dissipadas todas as illusões. Admirado do arrojo com que paizanos quasi sem defeza se arriscavam ao encontro de legiões aguerridas, Junot exclamava: «Portuguezes! Que delirio é o vosso? Em que abysmo de males vos despenhaes? Ao cabo de sete mezes de paz e harmonia, porque razão correis ás armas?» Concluindo com a lei marcial, ameaçava as villas e cidades com o saque e o incendio, e os cidadãos com a morte!

Se estivesse mais lembrado da sua juventude deveria recordar-se do modo por que a França respondêra heroicamente aos que lhe apontaram a espada ao peito dizendo o mesmo.

X

Tolda-se o tempo

Transportemo-nos um pouco antes dos successos esboçados nas paginas antecedentes aos paços da inquisição, situados no Rocio de Lisboa, aonde hoje ergue o seu frontão votado ás Musas o theatro de D. Maria II. Em algumas das salas e aposentos do antigo palacio dos Estáos, restaurado pelo marquez de Pombal, assentou Lagarde as repartições da policia geral do reino. Era justo! Ao lado do santo officio da fé o santo officio da usurpação. As duas inquisições fraternalmente hospedadas uma a par da outra não podiam offender-se do acaso que as unia! Soldados da guarda real da policia, corpo fundado e disciplinado pelo conde de Novion, emigrado francez que as victorias de Bonaparte e a invasão de 1807 lançaram outra vez nos braços dos seus compatriotas, guardavam as portas de fóra, ou de espadas em punho vigiavam os corredores e camaras, que precediam o quarto reservado aonde o proconsul se encerrava com os seus confidentes.

Deixemos passar esses vultos, que pisam os sobrados nas pontas dos pés, escorregando quasi como sombras. São rodas secundarias da machina. O olhar enviezado e inquieto, o rosto meio escondido na dobra do capote, e a humildade rasteira denunciam, sem necessidade de mais exame, os delatores obscuros, ou os agentes provocadores, destacados nas ruas e praças, ou nas tavernas para escutar e repetir os clamores de indignação das multidões. Esperemos que algum personagem de elevada gerarchia appareça, e nos introduza no gabinete discreto e só accessivel a poucos eleitos, aonde o magistrado estrangeiro conta as pulsações do coração de Portugal, e segue com a vista fria e penetrante os estremecimentos de cholera, ou de impaciencia do paiz, cançado da oppressão e envergonhado do silencio, em que a supporta ha sete mezes!

O general Junot, governador de Paris, entra pelo braço do conde da Ega, seguido de seus ajudantes de campo. O ministro Herman, encarregado dos negocios do reino e da fazenda, ex-commissario imperial, não se demora atraz d'elle. Lunyt, secretario d'estado da marinha e da guerra já os tinha precedido. A concorrencia de taes pessoas inculca acontecimento notavel, e é de crer que o conselho se não separe sem que alguma providencia venha esclarecer o segredo dos ultimos dias e dos ultimos sucessos. Quem nos abrirá caminho até ao famoso reposteiro, que deante da entrada da sala vedada representa para os profanos o papel de véu de Pythagoras? As sentinellas, immoveis como estatuas, velam fieis ás ordens recebidas. Os porteiros, em ar protector, ou mysterioso, despedem os pretendentes e os importunos. Um cordão de empregados corta á curiosidade todos os passos. Gritou-se, porém ás armas. O uniforme de um official superior reluz na extremidade de extenso corredor. Os subalternos inclinam-se profundamente, e respondem em voz submissa ás perguntas imperiosas, que lhes dirige. Acompanhemos este iniciado. É o capitão de mar e guerra Magendie, commandante da marinha. Seguindo-o, temos a certeza de não encontrar obstaculos.

Quando o recem-chegado franziu o reposteiro de panno escarlate orlado de branco, no meio do qual campêa uma aguia azul colossal, e empurrou de leve um dos batentes da porta, a discussão já se havia travado, segundo parecia, menos placida, do que promettiam os annos e auctoridade dos diversos membros do governo, sentados á roda da comprida mesa, coberta de couro, e cingida até ao chão de um rodapé de tela encarnada. A mesa occupava o centro da casa. Junot, facil de conhecer pela estatura, boa presença, e garbo do porte, achava-se em pé junto da cabeceira, com o rosto inflammado, e a mão no punho da espada. Lagarde, á sua esquerda, analyzava com o olhar prescrutador todas as physionomias, traçando com a penna sobre uma folha de papel algumas palavras soltas. Pallido, ou antes livido, retratava no rosto a astucia unida á expressão repulsiva de um cynismo cruel e glacial.

Herman, á direita do general em chefe, sereno, aprazivel, e delicado, com um lapis entre os dedos enfeitados de anneis, justificava ao primeiro volver de olhos a reputação de melindre e de primor, merecida desde que se estreára na carreira publica exercendo as funcções de consul em Portugal. Vestia em todo o apuro da moda do seu tempo. Casaca de lemiste talhada á franceza com botões de metal e golla alta, collete branco aberto, que deixava sobresaír a finissima cambraia da camisa e da tira engommadas em pregas miudissimas, calções de seda, meia a estalar na perna, sapatos e fivelas de ouro cravejadas. Um espadim curto de bainha dourada pendia-lhe da cinta, e uma caixa de rapé, mais preciosa pelo lavor, do que pela qualidade, aberta a seu lado, e consultada a miudo pelos dedos distrahidos de Junot, recommendava-se pela admiravel miniatura, cercada de aljofres, que lhe ornava a tampa.

O conde da Ega, cuja intimidade no quartel general do largo do Quintella as murmurações populares explicavam de um modo pouco airoso, e que dias depois havia de substituir o Principal Castro na pasta da justiça, escutava de pé, e com mostras de não pequeno sobresalto, talvez provocado pelo desassocego da consciencia, a leitura nasal, lenta, e accentuada, que Lunyt secretario de estado continuava sem mudar de tom, estudando de vez em quando por baixo dos oculos de ouro o effeito produzido no animo dos ouvintes.

A entrada de Magendie, accolhida por uma exclamação de alegria do duque de Abrantes, por uma cortezia de Herman entre dois sorrisos, e por um gesto de urbanidade de Lagarde, foi como o signal da explosão até ahi contida das paixões e receios mal reprimidos. Todos diriam que o Conselho aguardava a sua chegada para arrancar a mascara, que o suffocava, dando largas á expressão sincera dos verdadeiros sentimentos.

-- Bem vindo, capitão Magendie! A sua demora fazia-nos temer que faltasse. O aviso chegou-lhe tarde?...

-- Não foi o aviso, general! Mas a esquadra de sir Carlos Cotton appareceu outra vez á barra, e julguei prudente ir a bordo das fragatas Carlota e Benjamin...

-- E então?! interrompeu Lunyt, pondo de parte o papel que lia, e encarando o capitão de mar e guerra.

-- Fosquinhas por ora! respondeu este encolhendo os hombros. Entretanto...

-- Podem encobrir planos de hostilidade? atalhou Herman, sorvendo com pausa uma pitada, e dispersando depois com um piparote os grãos que tinham saltado sobre a tira alvissima da camisa.

-- É possivel. Os inglezes animados pela sublevação dos hespanhoes, meditam desembarques na peninsula, accudiu Lagarde em ar grave.

-- Veremos se em terra são felizes como no mar! observou o conde da Ega.

-- Mesmo no mar, redarguiu Magendie, espero que não hão de forçar-nos a barra sem deixarem nos escolhos um par de navios. Temos de observação entre as torres a fragata Graça Phenix e mais dois vasos de alto bordo, artilhados, mas incapazes de navegar; em Belem estão fundeadas tres charruas...

-- Bem! Bem! tornou Junot. Duvido que rocem as barbas pela bôcca de nossos canhões, Magendie! Oxalá que todas as tempestades nos viessem só do mar... O peior de tudo, senhores, é que o chão treme debaixo dos pés, e...

-- Que a traição vela á nossa cabeceira? Notou Lunyt, limpando os vidros dos oculos, e falando no mesmo tom lento e nasal, com que lia.

-- É verdade, Lagarde! Conspira-se, trama-se, e não nos dizieis nada!...

-- Para que? Quando uma nação inteira está conjurada, general, a policia passa, vê, e dissimula. Prisões e devassas, de que serviriam, senão de a irritar mais? Descobrir o que ella quer, tirar-lhe os pretextos, e escolher a occasião de ferir a muitos de uma vez pelo terror do mesmo golpe, eis o segredo dos que sabem dominar.

-- Sim! Bem sei! É a theoria de Fouchet, do duque de Otranto!...

-- E para este caso a unica aproveitavel. O que diria o sr. conde da Ega, tão nosso amigo...

-- Eu!... Pois eu!...

-- Se lhe mettessemos no castello, ou nas torres dez, ou doze parentes de toga, e de espada, que estão conspirando a esta hora mesmo contra o governo de sua magestade o imperador e rei?!... proseguiu o intendente com o seu riso agudo e estridulo, similhante ao som do córte de uma serra.

-- Ah! Os parentes do sr. conde de Ega tambem são contra nós?!... notou Junot vagarosamente.

-- E os da senhora condessa ainda mais!... observou Lagarde trespassando o general com a vista afiada e ironica.

Uma nuvem escureceu a fronte do duque de Abrantes. Aquella seta viera cravar-se-lhe direita no peito. O guerreiro destemido, coroado tantas vezes pela victoria no meio de proezas heroicas, era accusado de excessiva sensibilidade perante o bello sexo; e a formosa condessa da Ega, segundo se dizia, graças a seus enlevos e encantos, tinha conseguido tornal-o escravo do menor de seus caprichos.

O general inclinou a cabeça, correu os dedos pela fronte annuviada, como se quizesse saccudir com o gesto pensamentos importunos, e, sem responder á allusão, levantou-se, e deu alguns passos pela casa, talvez para ter tempo de se assenhorear de si, vencendo a commoção. Os olhos dos outros vogaes do conselho fitaram-se no semblante do conde da Ega por um movimento irresistivel. Sem resultado! Ayres de Saldanha, por calculo, ou por ignorancia, não denunciava na physionomia, senão a indifferença apathica, prova real da mais virtuosa confiança. Herman e Lagarde trocaram um sorriso fino, que não abonava a sua credulidade na innocencia apparente do fidalgo portuguez.

N'este momento a mão de um ajudante de ordens arredou as prégas do pesado reposteiro, e sem proferir palavra entregou a Junot dois maços cuidadosamente lacrados. O duque recebeu-os tambem calado, e veiu sentar-se na ampla cadeira de braços, d'onde se erguêra minutos antes. Emquanto rompia o sobrescripto do primeiro, e corria os olhos pelo volumoso officio, era facil notar no seu rosto, de ordinario sereno e intrepido, a apprehensão causada por noticias desagradaveis. Antes de passar á leitura do segundo maço, e de lhe rasgar a capa, os que o conheciam assustaram-se, apercebendo-se de certa hesitação momentanea, notavel em caracter tão firme, porque seguramente inculcava mais do que sobresalto, ou torvação. Ao mesmo tempo recebia Lagarde um papel fechado, que não lhe causava menor cuidado, do que os dois officios ao general. Houve um minuto, ou dois de profundo e ancioso silencio.

-- Nome de Deus! exclamou o duque de Abrantes incapaz de conter as paixões, e amarrotando irado o papel. Verifica-se o que sempre prognostiquei. Não me quizeram attender, decidiram tudo em Paris sem entender nada, e agora cá estamos nós para carregar com o peso de todas as culpas!... Quantas vezes os avisei e lhes disse a verdade! Deram finalmente aos inglezes o campo de batalha porque tanto suspiravam; não contentes fizeram suas alliadas duas nações inteiras. Veremos agora como desatam o nó!

E recostando os cotovellos na mesa, e a cabeça entre as mãos, sem fazer caso do espanto excitado pelas suas phrases, abysmou-se em sombria meditação.

-- O que é? O que succedeu?... perguntava o conde da Ega a Herman.

-- Pouco viverá quem o não souber! redarguiu o malicioso diplomata, encolhendo os hombros. Rapaziadas dos portuguezes, aposto!...

-- Mais do que rapaziadas, senhor Herman! atalhou o intendente geral da policia, que de livido se tornára verde, cujas pupillas chammejavam, cujo sorriso era uma contorsão diabolica. Estamos sobre um vulcão.

-- Apagado! replicou o ministro do reino inalteravel. Esta gente de Lisboa não é para emprezas altas. Queixa-se com saudades, fala, ameaça, mas por fim faz-se d'ella o que se quer. Em lhes não tocando nos seus lausperennes, nos seus frades, e nas suas procissões, todos andam mansos como borregos... Estes não me mettem medo a mim; oxalá!...

-- Medo! accudiu Junot, levantando-se de um pulo, com o rosto incendido, e os olhos scintillantes! Medo! Quem fala em medo!? Para enxotar como um rebanho de ovelhas toda essa plebe, toda essa espuma... basta o meu cavallo e o meu chicote!...

-- Nem tanto, senhor duque! observou Magendie. Os portuguezes são homens e soldados. Mais de uma vez o têem provado. Perguntae aos hespanhoes... e ao senhor conde da Ega, que hão de conhecel-os.

Herman sorriu-se. O conde parecia petreficado. A injuria do general em chefe feria-o no rosto como golpe de mão aberta. O coração indignado convidava-o a repellil-a, porém o servilismo tapava-lhe a bôcca. Não acertava com o que fizesse. Calado deshonrava-se; falando arriscava-se... Calou-se!

Junot caíu depressa em si. O seu animo era generoso, embora cedesse aos impetos do sangue, facil de inflammar, provocando paroxismos de cholera, que os seus intimos deploravam, porque frisavam quasi por loucura frenetica. As palavras de Magendie advertiram-n'o. Recuperando-se da embriaguez da raiva, volveu ás maneiras cultas e urbanas, que tantas affeições lhe grangeavam, mesmo entre os adversarios.

-- Senhor capitão Magendie, a plebe não é a nação. Os portuguezes são para muito; pena é que não os soubessem aproveitar, em quanto era tempo!... O erro não o commetti eu. Este povo é bom, generoso, e paciente... Podiamos, deviamos ajudal-o a regenerar-se... Preferimos tractal-o como vencido, e fazer d'elle um inimigo!... Paciencia! Colheremos os fructos que semeámos. Lagarde! Herman! Magendie! Vamos ter a guerra!... O segundo acto da tragedia começa em Portugal. A Hespanha deu-nos o primeiro... Loison escapou milagrosamente aos montanhezes sublevados no Marão, em Amarante, e em Chaves!...

-- Se escapou é o essencial! Os bandos populares sem cabeça depressa se dispersam. Observou Lagarde.

-- É verdade. Mas o chefe existe. Manuel Gomes de Sepulveda acclamou em Traz-os-Montes o principe regente...

-- Um velho de mais de oitenta annos, tropego, e quasi cego!?... accudiu Lunyt sorrindo.

-- Acrescentae, porém, velho mas habil general, valente, e adorado!... As provincias do norte estão, ou estarão todas em armas dentro de oito dias. Miranda, Villa Real, Moncorvo, e Guimarães já o seguiram, ou vão seguil-o...

-- Temos o Porto, e em quanto for nosso, facilmente daremos a mão aos nossos exercitos de Hespanha, interrompeu Herman.

-- O Porto!... Lêde!... E passando o officio ao ministro do reino, Junot, em quanto este o lia a meia voz aos collegas, passeiava agitado, medindo a sala em todo o comprimento.

-- O Porto? É tarde! já não lhe accudimos. Hoje, ou ámanhã subleva-se, e dá o exemplo. Coimbra não se demora. Contae com ella insurgida. Não nos lisongeemos com illusões...

-- O mal, comtudo, não é irremediavel! Sejamos fortes! exclamou Magendie. As nossas tropas devem ter vencido em Hespanha, e...

-- As nossas tropas não venceram, foram vencidas! Tornou o general em chefe sombrio, e mordendo os beiços. A fortuna vira-nos as costas. As divisões aguerridas recuam sobre o Ebro. O rei José saíu de Madrid. Estamos sós e sem retirada no meio de um reino irritado e adverso...

-- Ah! disse Herman empallidecendo. N'esse caso a partida é arriscada. Não a julgo, porém, perdida.

-- Nem eu! Mas contemos um pouco, se nos apraz, com os inglezes. Em Gibraltar acha-se sir Hew Dalrymple com o corpo do general Spenser. Em Cork, na Irlanda, vão embarcar nove mil soldados. A esquadra de sir Charles Cotton anda cruzando deante da foz do Douro, e das bahias do Tejo e do Mondego. De um instante para outro podemos ter de pelejar com o povo e com as tropas do rei George... N'esse caso!...

-- Ameaça-nos a capitulação de Dupont em Bailen?!... accudiu Lagarde, batendo com o punho cerrado sobre a mesa. Oh!...

-- Nunca!... Pelo menos em quanto eu viver! exclamou Junot com um gesto admiravel de firmeza. Luctaremos! A derrota não é menos gloriosa, que o triumpho, quando o campo de batalha proclama o heroismo dos vencidos... Poderemos ao menos contar com a obediencia de Lisboa? A capital em nosso poder póde ser ao mesmo tempo segura base de operações, e precioso penhor para o infortunio. Lagarde! Chegou o momento. Respondeis pela tranquillidade de Lisboa?...

Houve um momento de silencio. O intendente geral da policia, atalhado, olhava para o papel, que lhe tinham trazido, e conservava ainda aberto, e para o general, e hesitava.

-- Que nova desgraça nos ameaça!? accudiu o duque arrebatado. Hoje é o dia das fatalidades? Falae! Estou preparado para tudo. Que dizeis de Lisboa?...

-- Que respondo por ella, como por mim!... balbuciou Lagarde tremulo.

Bem! Não é preciso mais. Dás-nos a alavanca de Archimedes!...

-- Só depois de ámanhã em deante!... concluiu o intendente engasgado, e convulso.

-- Ah! E hoje porque não?! exclamou Junot, que os revezes pareciam reanimar á medida que se accumulavam. Nome de Deus! Não sois medroso. Conheço-vos! Esse papel trouxe-vos a cabeça de Medusa? Que segredo terrivel encerra? Vamos! Vencei a consternação, e dizei-nos o que ha. O peior perigo, é o perigo encoberto. Quero saber!

E o duque de Abrantes assentou-se com a fronte erguida, os olhos brilhantes, e um sorriso intrepido nos labios. Era assim que elle costumava affrontar a morte nas batalhas.

Lagarde principiou em voz baixa a leitura. Era o plano de uma revolução traçada para rebentar no dia seguinte depois da procissão do Corpo de Deus.

Os auctores d'este commettimento, todos membros do Conselho Conservador de Lisboa, tinham sido denunciados á policia em differentes occasiões, mas poupados como conspiradores theoricos e inoffensivos. A ousadia do trama excedia, porém, d'esta vez quanto podia prever-se de audaz e decidido. O rompimento havia de começar de tarde, ás seis horas, muito depois de concluida a festa religiosa. Junot devia ser preso no caminho do palacio de Anadia para o Rato, as guardas do Rocio, do Terreiro do Paço, de S. Domingos, de Santa Clara, e do quartel general, atacadas e desarmadas, e o Castello rendido por assalto, ou por algum artificio de guerra. As tropas francezas privadas do seu chefe, e surprehendidas, seriam obrigadas a depor as armas em virtude das ordens dictadas ao duque de Abrantes pelos seus carcereiros. O povo e os soldados portuguezes coadjuvariam a revolta occupando as ruas e as praças.

O assombro dos vogaes do governo durante a communicação, que acabâmos de resumir, custaria a descrever. A gravidade das physionomias tornou-se mesmo tão solemne, que ia degenerando quasi em comica. O unico ouvinte desassombrado e de sangue frio era o duque de Abrantes. A idéa de se ver colhido ao anoitecer no seu transito costumado pelos cumplices do Conselho Conservador, affigurou-se-lhe por tal modo absurda, que, recostado no espaldar da cadeira, desatou o riso em frouxos, suspendendo a leitura, e desengatilhando de sua expressão severa o rosto dos que a sua hilaridade não admirava menos, do que o plano de sublevação forjado para a capital.

-- Admiravel! Sublime!... clamava Junot estorcendo-se entre risadas. Parece-me que os estou vendo d'aqui a esses illustres conspiradores de rabicho e samarra, decidindo á pluralidade de votos o theor das ordens, que hei de escrever depois de prisioneiro!... Mas é um entremez puro o que esta boa gente imaginou: art.º 1.º O general Junot será apprehendido, e ao mesmo tempo as guardas do Terreiro do Paço e do Rocio!... art.º 2.º (porque o não puzeram tambem?) O presente decreto será registado nos livros da chancellaria da Junta Provisoria! Excellente! Deixae-me rir, Lagarde. Sois um homem unico para desterrar tristezas.

Herman, Lunyt, e o intendente olhavam uns para os outros, pasmados, e não sabiam se deviam conservar-se serios, ou imitar o general. Magendie, militar e resoluto, ria a ponto de lhe saltarem as lagrimas dos olhos. O plano peccava pela ingenuidade. Os innocentes conspiradores fundavam todo o edificio de suas esperanças na prisão de Junot, e essa prisão era justamente o que lhes esquecêra assegurar. O duque de Abrantes, cujo valor todos respeitavam, os seus ajudantes, e a escolta de cavallaria que sempre o acompanhava, não cairiam de leve em uma cilada de poucos homens, e para o esperar em grande numero, vigiadas como estavam as ruas, parecia duvidoso que meia hora depois não se achassem recolhidos na cadeia os Scevolas incumbidos d'este prologo essencial no grande drama da restauração da patria.

-- Herman! O vosso voto sobre esta farça que terrificou Lagarde!...

-- O plano é fraco, porém a intenção...

-- De intenções, boas, más, e pessimas está calçado o inferno! Tendes acaso receio de me vêr preso no meio das becas dos conspiradores, suando medo por todos os poros, e ordenando aos meus valentes soldados que entreguem as espadas e espingardas aos milicianos de Lisboa!?... Que gente admiravel a do vosso Conselho Conservador, Lagarde! Respeitae-os como se respeita a innocencia. Conjurados assim inventam-se, quando se não acham, e guardam-se debaixo de redomas de vidro... Art.º 1.º O general Junot será apprehendido! Nada mais! Que bella concisão spartana! Ah! Ah!... Quem serve de espirito santo a este cenaculo? Algum macrobio? Alguma reliquia do tempo do marquez de Pombal, aposto?... A conspiração dá ares de quinhentista. Foi desenterrada de certo de algum archivo!...

-- Informam-me que José de Seabra no principio déra alguns conselhos, mas que hoje...

-- Não quer saber d'elles para nada!?... É evidente! José de Seabra, duas vezes ministro de estado, sisudo, e espirituoso, morria de vergonha se visse o seu nome ligado a similhante satyra do senso commum... Art.º 1.º O general Junot!... Desculpem, mas é incrivel! Os desembargadores e os padres de Lisboa cuidam que um general francez é algum passaro raro, que se apanha e mette na gaiola para o ensinar a cantar o hymno nacional!?... Lagarde! Prohibo-vos de tocar nos veneraveis juizes, fidalgos, frades, abbades e negociantes, de que se compõe este bemaventurado Conselho. Dae graças a Deus pela sua existencia, e não os incommodeis. D'alli não vem de certo mal! Oxalá que Sepulveda fizesse parte d'elle, esperando pela minha prisão para se sublevar. O Porto ainda poderia salvar-se!

-- Mas, general, o dia de ámanhã parece-me critico, observou o intendente, que o riso e os motejos do duque tinham confortado pouco. Não é só gente da capital a que sae ás ruas. Os arrabaldes e o Ribatejo despovoam-se, e talvez fosse mais prudente prohibir a procissão, e prender por algumas horas os cabeças conhecidos dos arruidos populares...

-- Pela gloria do imperador! Enlouqueceis, senhor Lagarde?!... Assustam-vos tanto os planos ridiculos de uns poucos de dementes, que vos não envergonha o argumento de fraqueza, que dariamos, escondendo-nos com medo dos frades e das irmandades de Lisboa? A procissão ha de saír. Nada de prisões! Os nossos soldados trazem polvora e bala nas patronas. É quanto basta!... Meus senhores, hoje, o general Junot, depois das seis horas da tarde sae do palacio da Anadia para o Rato, e vae ser apprehendido. Ah! Ah! Está encerrado o conselho. Herman enfeitae-vos bem ámanhã. Tereis de pegar a uma das varas do palio. Magendie não deixeis apprehender os nossos navios. Lagarde, mandae saber ao hospital se ha logares vagos na casa dos orates; os vossos amigos do Conselho Conservador acabam todos lá. Lunyt, vinde commigo; tenho que vos communicar... isto é se não receiais que o general Junot seja apprehendido no caminho para o largo do Quintella. Ah! Ah!... Senhor conde da Ega acceita um logar na minha carruagem?... Note que lhe offereço um posto perigoso.

E o duque saíu precedido por Magendie e acompanhado do conde e do secretario de estado da guerra e da marinha. Herman e Lagarde, que ficaram atraz, olharam um para o outro, interrogando-se com a vista e com o gesto.

-- O que devo fazer? perguntou o intendente.

-- Nada. É o melhor!

-- Mas!...

-- Meu querido senhor Lagarde, o homem que ha de prender Junot... não está de certo no Conselho Conservador de Lisboa! Redarguiu o ministro rindo. Socegue!

Momentos depois o intendente tocava a campainha, e por ordem sua um porteiro introduzia no gabinete o sargento Cabrinha e o seu assessor Gaspar Preto, por alcunha o Sapo.

Saberemos a seu tempo o que alli vinham fazer aquellas duas boas almas.

XI

Achilles e Nestor

Em quanto no palacio do Rocio se representava a scena, a que assistiu o leitor, em uma casa, situada quasi no arrabalde, perto de Campo de Ourique, no qual trabalham ranchos de operarios sem repouso a levantar um acampamento militar para as tropas francezas, que Junot recolhe das provincias, e concentra na capital, iremos encontrar alguns dos personagens, que deixámos na Ponte de Asseca, n'aquella tempestuosa noite, que viu as proezas do sargento Cabrinha, a evasão de Paulo de Azevedo, e as artes diabolicas do astuto lavrador João da Ventosa.

Estava formoso o dia, mas quente. Nem um leve sopro de aragem meneava as cortinas de caça, que por detraz das quatro janellas da frontaria substituiam os modernos e elegantes stores. A casa, de um só andar, caiada de branco, pintada de verde claro em todas as portas, grades, hombreiras, e maineis respirava aceio e alegria. Um muro baixo rodeava o jardim, d'onde as rozas de trepar, as baunilhas, e outras plantas, subindo pelas paredes, vinham debruçar do espigão seus festões floridos e recendentes.

Um preto quasi anão, grosso, roliço, com a carapinha semeada de cans, indicio de provecta edade, e brincos de prata nas orelhas, acabava de varrer, gemendo e rosnando, os tres degraus de pedra, que desciam da porta da entrada para a viella quasi deserta.

No jardim a areia, fina e vermelha, das ruas, orladas de buxos recortados, rangia debaixo dos pés de duas pessoas, que passeavam, conversando em voz submissa. No angulo, que olhava para as terras, um mirante entrelaçado de caracoleiros e jasmins, offerecia em seus bancos de cortiça commodo assento aos que desejassem recrear a vista, espairecendo-a pelos largos horisontes, que d'alli se descobriam.

-- Não perca o animo nas vesperas da victoria, senhor Manuel Coutinho! Lembre-se de quem é, e creia mais em si, e em nós... deixe-me ter tambem um momento de vaidade!... Deus ha de ser por este reino, e não ha de permittir...

O homem que proferia estas palavras era um velho de aprazivel aspecto, trajado em habitos ecclesiasticos, inculcando na phisionomia, na voz, e nas maneiras, a prudencia que dão os annos, e a experiencia do mundo unida á confiança e ao enthusiasmo sereno, que nascem do coração, que ardem com viveza aquecidos pelo calor de uma alma generosa, e que os gelos da edade nem amortecem, nem apagam.

O sorriso meigo e tranquillo, que lhe franzia os labios, contrastava de visivel modo com as sombras de profunda tristeza, que escureciam o rosto do amante de Leonor de Azevedo, e com a expressão de desalento retratada em suas feições abatidas.

Quem attentasse, todavia, com mais cuidado no semblante palido do mancebo, e sobre tudo no fulgor dos olhos, que despediam por vezes lampejos quasi sinistros, denunciando as intimas commoções, logo percebia, que, se um assomo repentino de duvida, ou desconforto podéra abalar por instantes a energia d'aquella forte vontade, depressa a reacção a havia de despertar do lethargo, e que pouco depois, em logar de ser necessario reanimal-a, todo o poder da persuasão seria pequeno para a conter dentro de limites razoaveis.

-- Deus?!... exclamou Manuel Coutinho, respondendo á ultima phrase do ancião, e volvendo ao céu, limpido e azul, um olhar de amarga desesperação. Não se esqueceu Elle de nós? Não está com os inimigos do seu nome e da nossa liberdade?!...

-- Não diga isso. Caia em si. Não vê que accusa a divina justiça? Deixe-a caminhar...

-- Coxa e lenta como a dos homens?!... Senhor bispo! Sou moço e militar, desculpe-me, mas não posso supportar com paciencia christã o espectaculo de tantas miserias e de tantos crimes!... Fala na justiça de Deus?! Aonde estava ella, quando o Vigario de Christo, arrancado por mãos sacrilegas da sua cadeira, foi como seu divino Mestre arrastado de prisão em prisão, de opprobrio em opprobrio, por turbas de soldados á voz de Bonaparte?...

-- Estava no Calvario, como no dia em que padeceu o Redemptor! Continue!

-- Ah! E porque dorme ella, quando nações inteiras choram escravas o seu martyrio, e banhadas em sangue invocam a morte nos campos talados, nas cidades saqueadas, nos patibulos e nos carceres, a morte, unica esperança que lhes resta, depois de roubados os seus altares, de incendiadas as suas moradas, de infamadas suas esposas e filhas, e de dispersas como vil pó as cinzas de seus paes e de seus avós?!...

-- Quem lhe diz, que dorme, e não que aguarda a sua hora? Quantos seculos durou a perseguição da egreja e a tyrannia dos Cesares?... E hoje, d'esse colosso romano, que assoberbava o mundo, o que sobrevive? Ruinas, memorias, e a cruz triumphante alçada no Vaticano!... Tranquillize-se, conforme-se, espere...

-- Que espere!... Mas elles, os verdugos, os malvados, acaso esperam? Paulo de Azevedo, duas vezes salvo por nós, escapou por fim aos laços do infame Lagarde? Está no castello, bem sabe, e o conselho de guerra, que ha de julgal-o, tem sêde do seu sangue... Hoje, ámanhã, de uma hora para a outra, as balas de um pelotão!... Não tenho animo de o imaginar!... Vel-o morto, assassinado, e não poder valer-lhe!... E sua filha, a desgraçada, que já não tem lagrimas que verter, que sente a todos os instantes no coração o frio da morte, ameaçando o que mais ama e estremece n'este mundo?!... E hei de esperar?! Resignar-me! Deixal-o morrer?!...

-- Ha de esperar, sim. Que remedio!... Paulo de Azevedo está em perigo, porém ainda não morreu...

-- É verdade. Mas para o salvar?!...

-- Havemos de empregar todas as nossas forças.

-- Oh! accudiu o mancebo, cujo desespero rompeu por fim em dolorosa ironia. Hão de salval-o! Contam assaltar o castello, prender Junot, e colher Lagarde como um lobo no seu antro?!... Lagarde!... O auctor de todos os nossos infortunios!... ajuntou em voz cava e com terrivel expressão. Pelo menos esse não se rirá impune, festejando o ultimo suspiro da sua victima. Lagarde pertence-me. Sou o seu juiz, e a minha justiça não coxêa, nem dorme, como a da Providencia.

-- Não blaspheme, e escute, se póde! Os dias da usurpação estão contados. Quem sabe! Ámanhã mesmo talvez troquemos o lucto da escravidão pelas galas...

-- Sonho! Irrisão!... bradou Manuel Coutinho saccudindo com força o braço do seu interlocutor. Aonde estão os homens para isso? Bastaria o som de um tambor para os espantar, e Junot conhece-os. Cuida que dou fé ás proclamações e aos conciliabulos do Conselho Conservador? Becas, sotainas, velhos fracos, negociantes, e frades, que tremem da sua sombra, ousarão nunca medir-se com os soldados de Bonaparte em um combate?!... Senhor bispo de Malaca, se palavras e balas de papel matassem, então sim, mas!...

-- Manuel Coutinho, a dor torna-o injusto. Essas becas e esses frades são mais fortes, do que os soldados em volta de suas bandeiras. Lembre-se de que puzemos a cabeça em cima do cepo, e de que estamos resignados a padecer!... Não esperava que o escarneo caísse da sua bôcca sobre nós! Aprende-se mais depressa a morrer com ruido no meio do fogo e dos alaridos de uma batalha, do que a aguardar o algoz sobre os degraus do cadafalso?... E ninguem sabe melhor se elle póde ferir, e se todos estamos decididos a jogar a cabeça n'esta partida... em que apostámos honra, bens, e vida pela patria...

-- Sei, mas o povo cala-se e obedece. Lisboa chora e supporta. O reino...

-- O reino accordou, e não torna a adormecer. Por isso lhe disse que estavamos nas vesperas da victoria...

-- O reino accorda?! Mas eu ignoro tudo!... Senhor bispo de Malaca!... Compadeça-se da minha impaciencia. Bem vê! Estou quasi louco! Conte com o meu braço, com o meu sangue. Ha alguma esperança?...

-- Ha mais do que esperanças, ha factos. Prepare-se! dentro em pouco o seu posto será nas fileiras de seus compatriotas, no exercito da independencia. Leia! Adore os designios profundos da Providencia.

Manuel Coutinho, arrancando-lhe quasi da mão o papel, que lhe offerecia, correu-o todo em um relance de olhos, e apenas o sentido lhe penetrou a intelligencia, o sangue em ondas affluiu ás faces, as pupillas faiscaram, e uma expressão de jubilo, e de enthusiasmo subito avivou-lhe as feições.

-- O norte sublevado!... murmurava lendo, e detendo-se, como se julgasse impossivel o que lia. O Porto talvez levantado a esta hora! Traz-os-Montes e o Minho ámanhã, ou depois em armas!... Os inglezes em Cork, ou já no mar para desembarcarem!...

E o suor borbulhava-lhe na fronte, e a vista scintillante devorava cada lettra do escripto.

-- Meu Deus! Se isto é sonho, ou delirio meu, fazei que nunca desperte d'elle.

-- Então, filho, disse o bispo sorrindo-se com mansidão, ainda acha que a justiça divina coxêa, e dorme? Arrepende-se agora da sua pouca fé?! Pois bem! Já vê que as becas e as sotainas ainda valem alguma coisa. O milagre fez-se, e um bispo é quem ha de no Porto presidir, ao governo do reino restaurado. Sei-o de certeza.

-- Seguiu-se uma pausa curta, durante a qual os olhos e as mãos do mancebo se elevaram ao céu em um gesto sublime de gratidão e de crença fervorosa. Depois a cabeça inclinou-se, a vista fitou-se no chão, os braços descaíram e duas lagrimas de dor e de alegria saltaram do coração, e correram vagarosas pelas faces.

O bispo contemplava o rosto do amante de Leonor de Azevedo, e traduzia com a perspicacia dos annos e da reflexão os signaes fugitivos da lucta das paixões.

Por fim venceu a razão. Manuel Coutinho, como se quebrasse de repente a prisão, que lhe paralyzava as faculdades, serenado o semblante, acabou de exhalar em um suspiro a maior oppressão, que lhe confrangia o peito.

-- Fui temerario, senhor bispo. Falei mal de Deus e dos homens! Cegou-me o orgulho, e deixei-me arrastar pelas loucuras da tristeza. Desesperei da Providencia no momento em que ella nos accudia!...

-- Só Deus é grande, filho! O que somos, e o que podem os nossos juizos falliveis em presença da sabedoria eterna?! Arrepende-se? É o essencial. Vamos ao que importa. Já viu D. Leonor?...

-- Não! Faltou-me o valor. O que havia de dizer áquella infeliz, ferida de tantos golpes a um tempo?... A imagem do patibulo de seu pae, visão lugubre e incessante, segue-a por toda a parte. Nos seus olhos leio o desespero e a morte. Amo-a, senhor bispo, amo-a desde a infancia, como não amei minha mãe, como não estremeço meus irmãos, como não adoro... ia soltar uma blasphemia!... Enlaçadas desde a meninice pela mesma ternura nossas duas almas ha muito que não fazem senão uma. O que ella sente e chora, as suas lagrimas de sangue, caem-me todas, ardentes como fogo, aqui, dentro do peito, e escaldam-m'o. O véu branco da noiva será em breve o negro fumo da orphã, e viuva sem chegar a ser esposa, sei, adivinho, que um claustro começará a abrir-lhe a sepultura, aonde ella, aonde nós havemos de descançar ambos!... Não sem eu me vingar primeiro!

-- Manuel Coutinho, deixe a Deus o cuidado de punir! Socegue! A voz da liberdade, a voz da patria chamam por nós. Seja homem! Seja soldado! Tem uma espada, não faça d'ella um punhal, arma de traidores!... Leonor está mais tranquilla, mais resignada. Vi-a hoje, e já falámos a seu respeito...

-- E ella?!... Disse-lhe?! Espera?!...

-- Disse-me tudo e espera. Paulo de Azevedo não morreu, e havemos de salval-o. Tenha mais fé. Não atormente com os delirios da sua paixão a existencia propria, e aquella alma sensivel e melindrosa, que treme que uma imprudencia, venha abismar no mesmo naufragio os dois amores da sua vida!... Se não fosse o seu genio arrebatado confiava-lhe um segredo, que Leonor se não atreveu nunca a dizer-lhe, porque receia os impetos da sua cholera, mas que havia por outro lado de aplacar-lhe a afflicção...

-- Diga-me tudo, senhor bispo. Prometto, juro vencer o meu genio.

-- Veja lá! Dá-me a sua palavra de cavalheiro de fazer o que eu lhe aconselhar depois?...

-- Dou. O segredo?...

-- A vida de Paulo de Azevedo não corre por ora risco. É o penhor com que Lagarde tenta extorquir a D. Leonor uma promessa de casamento...

-- Oh o infame!... E eu aqui de braços cruzados!...

-- Se me não me escuta, calo-me. Lembre-se da sua promessa.

-- Sou mudo. Sou uma estatua.

-- Bom! Saiba, pois, que o intendente da policia imaginou enriquecer um sobrinho arruinado, dotando-o com os bens da filha de Paulo de Azevedo. Pediu-lhe a mão em Mafra ha mezes, foi repellido, e vingou-se perseguindo o cavalheiro e sua filha...

-- Assim a causa de todas as desgraças sou eu!?... atalhou o mancebo impetuoso. Leonor e seu pae padecem por amor de mim, e no meio de seus prantos e do lucto da sua alma aquelle anjo nem uma queixa soltou ainda contra o algoz da sua vida! Porque sou eu que a torno infeliz e inconsolavel!... Hei de mostrar-me digno do sacrificio! Hei de...

-- Comece por se mostrar digno das minhas confidencias, escutando-as. Observou o bispo com um sorriso. Lagarde ameaça Paulo de Azevedo, tem-lhe a espada suspensa de um fio sobre a cabeça para vencer a filha; mas no fim é tão interessado como nós em conservar vivo o unico fiador de suas esperanças!... O conselho de guerra não se reune, e mesmo que chegue a ser convocado, a sentença não passa do papel.

-- E Leonor?!...

-- Altiva e varonil redobra as resistencias. Mesmo ao pé do cadafalso de seu pae prefere morrer com elle, creio, a comprar-lhe o perdão por um preço vil...

-- Bem sei! O seu coração envergonha o de muitos homens!... Como se chama o sobrinho de Lagarde, esse noivo feito á força, cujo papel, tão nobre (!) entra como parte principal na tragedia de nossas desventuras?... accrescentou Manuel Coutinho em voz lenta e sombria, a que um toque de ironia cruenta avivava a expressão.

-- Porque o pergunta?

-- Para ajustar no mesmo dia todas as minhas contas.

-- Já se esqueceu da sua promessa?

-- Não! Mas!...

-- Quando for tempo de o desligar d'ella sem perigo seu e nosso... então falarei. Agora não. Sabe que ámanhã, depois da procissão do Corpo de Deus, se esperam grandes novidades?

-- Aonde?... Se soubesse a minha impaciencia?!...

-- Em Lisboa. Aonde queria que fosse?...

-- E contam commigo?... Qual é o posto que hei de occupar?... Asseguro-lhe que só por cima do meu cadaver...

-- Sei muito bem. Guarde para si a noticia, vá ver Leonor, demore-se pouco, porque ella espera uma visita, ou antes duas...

-- Visitas!... De quem?...

-- Segredo de estado. Depois saberá...

-- Porém!...

-- Não insista. Se podesse dizer-lh'o, cuida que me calava? A proposito! Se por acaso estiver lá em cima, quando elles... digo, quando as visitas chegarem, jura pela sua honra obedecer em tudo a Leonor, e voltar aqui pela escada do meu gabinete?...

-- Mas!... Tantas precauções fazem-me suppor!...

-- Supponha o que quizer. Jura?...

-- A minha confiança na sua virtude é tal, que de olhos fechados me entrego em suas mãos. Juro!

-- Não ha de arrepender-se. Sem isso não o deixava subir...

-- Mas padre, mas senhor bispo! Essas visitas são então de inimigos?...

-- Talvez! E então?! Cobre-os, quem quer que sejam, o tecto d'esta casa, recebo-as como hospedes, é quanto basta, julgo!...

-- Oh! Dava metade da minha vida por adivinhar...

-- O caso não merece o sacrificio!... Deixe instruir o processo, deixe informar os juizes, e quando lhe chegar a sua vez... nós o chamaremos.

-- Obrigado! Como instrumento cego?!...

-- Não. Como um coração generoso, como um amigo seguro, porém... perigoso. Estamos perdendo tempo! Leonor espera-o. Nem uma palavra do que se conversou aqui, e sobre tudo recorde-se do que jurou...

-- Hei de cumprir a minha palavra como homem de honra, mas depois, sr. bispo!...

-- Depois... O que Deus quizer! Dá o mundo tantas voltas em poucas horas, Manuel Coutinho, que nos deitâmos rapazes, e ás vezes accordamos velhos. Deixe andar os homens e as cousas. Creia no tempo. É grande medico. Adeus! Vou tractar de uma doença, que dá maior cuidado... Portugal está enfermo e não póde esperar.

E despedindo-o com um sorriso e um aceno de mão cheio de bondade, o velho prelado entrou para um aposento terreo, cujas portas de vidraças abriam sobre o jardim, em quanto o mancebo voltou em busca da escada de pedra, que subia para as salas do primeiro andar.

XII

Arcades ambo!

-- Está certo do que affirma? Veja lá!... A policia não gosta de representar papeis tristes, e um erro nas circumstancias actuaes póde ter consequencias... Repita! Viu os homens? Sabe o seu intento?...

-- Vi, sim senhor! Largava a falua quando eu cheguei, e por um triz me não apanham!... Sempre curti um medo! A gente não ganha para sustos...

-- Está bom! E como soube que vinham para a revolução, que os inimigos de sua magestade o imperador e rei tramaram para ámanhã durante a procissão do corpo de Deus? Olhe bem! Não se allucine...

-- Não ha engano, não senhor. Aqui trago quem ouviu tudo. Gaspar, chega-te! S. ex.ª dá licença. Dize para ahi o que saccaste do bucho ao alarve do Paulo Penedo, e o que ouviste na Ponte da Asseca.

-- Ah! Este homem ouviu?!... Bem! Então que fale.

O dialogo, que estamos escutando, tinha-se travado, como o leitor já percebeu de certo, entre o intendente Lagarde, o sargento Cabrinha, e o seu assessor Gaspar Preto.

Os honrados malsins, farejando a denuncia lucrativa, corriam de Villa Franca, aonde se haviam transportado a cavallo, e traziam nos alforges nada menos do que uma boa conspiração para attrahir sobre si a chuva de ouro, com que o ministro francez costumava recompensar os serviços relevantes dos seus agentes.

Ainda que o sargento desempenhasse o papel principal, manda a verdade que se diga, que a gloria do descobrimento pertencia de direito ás longas e afiadas orelhas do seu digno assessor. Fôra o Sapo, apezar de meio homiziado depois da prisão de Paulo de Azevedo, devida, como sabemos, á sua traiçoeira actividade, quem, espreitando os passos do Antonio da Cruz e do João da Ventosa, e as idas e voltas nocturnas dos embuçados, que frequentavam a casa arruinada da Ponte da Asseca, principiára a desconfiar de que as ruidosas cavalhadas das almas do outro mundo nas salas desertas do palacio encobriam planos politicos.

Para melhor se certificar, provou Gaspar, que não roubára a alcunha por que era conhecido.

Cozeu-se, como o Sapo, com as pedras caídas, que do lado da porta do João da Ventosa pegavam com o tapume, por onde elle introduzia as visitas, segundo vimos atraz, nos quartos do primeiro andar, penou frios e fomes, tiritou de mêdo mais de cem vezes, mas por fim conseguiu o seu fim.

Seis dias antes da festa do Corpo de Deus, ás onze horas da noite, por um luar esplendido, colheu em flagrante tres dos fantasmas, que tanto desejava avistar, e teve a rara felicidade de os conhecer a todos.

Viu-os entrar. Ficou firme no seu posto. A divindade protectora dos mexericos segredava-lhe que se os olhos tinham alcançado muito, os ouvidos ainda podiam obter mais. A sua paciencia merecia premio, e o demonio, cujo era, não lh'o negou.

Quando se ía já sentindo quasi inteiricado de jazer enroscado, como a serpente, os conspiradores saíram. Principiava a aclarar a madrugada. Um d'elles, o capitão de milicias de Rio Maior, dotado de uma voz de baixo profundo, voltando-se para os outros, disse-lhes:

-- Façam-me uma fogueira bem vistosa lá pelos sitios de Leiria, e assem-me n'ella esses hereges e jacobinos, que os de aqui ficam por minha conta! Não havemos de ser menos que os de Bragança e Villa Real! Viva o principe regente, nosso senhor!

Os poderes do orgão vocal do herculeo capitão eram tão extensos, que este desafogo innocente do seu patriotismo seria assaz perigoso, se a solidão e a noite o não cubrissem. Entretanto os amigos, menos intrepidos, recommendaram-lhe prudencia, e o gigante, docil como uma creança, submetteu-se, encolhendo os hombros, a estes conselhos timidos. O morgado de Penin e outro cavalheiro apartaram-se então um pouco. Quiz o acaso que fosse para o lado, justamente, em que o virtuoso Gaspar se occultava; e o terror do malsim subiu tal ponto, que esteve um instante para o trahir!

Vendo de repente o Antonio da Cruz, o João da Ventosa, e o Manuel da Aramanha, o resurgido, tão proximos do seu covil, que bastaria um d'elles extender o braço para o agarrar, não foi senhor de si. Vinham atraz dos personagens principaes, e tudo inculcava que não vinham por curiosos. O Sapo, frio de neve, e todo um calafrio de medo, ennovellou-se n'uma bola para occupar menos espaço, e fez a Nossa Senhora da Saude a promessa solemne de uma missa e de uma perna de cêra se permittisse, que nenhum dos cinco désse com elle alapado n'aquella toca, seguro de que, se escapasse por milagre ao alentado varapau do ex-assassinado fazendeiro, a bala da espingarda, que o moleiro trazia ao hombro, não o erraria de certo em nenhum caso.

Os conspiradores estavam longe de se supporem espiados, e traziam outros cuidados.

Voltando-se para Antonio da Cruz, o morgado disse-lhe:

-- Já sabes! No dia de Corpo de Deus has-de estar em Lisboa. És lá preciso!

-- Se meu amo mandar!

-- De certo. Mas sei que manda. O Paulo Penedo não tarda com as ordens... E você, sôr João da Ventosa, deixa-se ficar por cá, ou acompanha tambem o Antonio á côrte?

-- Eu, sôr morgado, lá por ir, ia; mas assim sem saber o que a gente lá vae fazer?!...

-- Ora! Vae dar um passeio, vêr a procissão, que se despovoam aldêas e logares para accudir a ella... e depois!... Adivinha-me este dedo, que o seu cajado talvez não fique por lá parado!... Gosta dos francezes?...

-- Como o diabo da cruz, senhor! Pelo amor que lhes eu tenho... e o bem que me fizeram!...

-- Pois vá, homem, que póde ser que não perca o seu tempo. Ás vezes d'onde menos se espreita sae coelho...

-- V. s.a que diz isso!... Está bom. Não é preciso mais. Senhor mandar, preto obedecer!... E tu, Antonio Simões, estás ahi sem atar nem desatar? Porque não vens com o Antonio e commigo á festa? Tens medo dos francezes, homem?

-- Salva tal logar, sôr compadre! Mas que quer você que eu vá fazer á côrte pregado no meio das ruas como uma estaca? Com mil cobras? Se por lá bispasse o alma ruin do sargento, ou aquelle excommungado Sapo, ainda, ainda; mas qual! sumiu-se a terra com elles!...

-- Qual sumiu! Aposto um almude dobrado contra duas canadas singelas em como as duas osgas estão pegadas em alguma parede de Lisboa...

-- Veja lá, sôr compadre! Se tem palpite n'isso é outra cousa: pernas a caminho. N'um sopro deito o albardão á égua... Não morro quieto se não racho de meio a meio aquelles dois patifes.

-- O Sapo fica por minha conta, atalhou o moleiro. Prometti-lh'o e hei de cumprir. Você, sôr João, que me diz da figueira de José Lopes, alli em cima, no alto do logar?

-- Ora essa! Que é boa arvore. Porque?...

-- Pois juro-lhe que dá figos de enforcado para o anno. Antonio me não chame eu se não pendurar do pescoço em um dos ramos o judas do Gaspar Preto antes do dia do natal!...

-- Você sempre tem cousas, sôr Antonio!

-- Vá com o que lhe digo. De mais, pouco ha de viver quem o não vir.

-- Então, rapazes? atalhou o morgado, que estivera conversando a meia voz durante o colloquio dos tres. Quem vae a Lisboa?...

-- Saberá v. s.a que nós todos tres!

-- Ora assim é que é. Gosto de os vêr de feição. Bebam por lá um copo, ou dois, de vinho á minha saude, e outro á do principe regente, nosso senhor, o qual, querendo Deus, muito cedo teremos n'estes reinos para gloria da patria e da santa religião!...

E o morgado, assim como o E o morgado, assim como os ouvintes, desbarretaram-se com toda a reverencia como bons catholicos e vassallos fieis e respeitosos.

-- Adeus, Antonio, proseguiu. Recados a teu amo! Diz-lhe que nós cá estamos, e que o que fêr soará. Sôr João! Volte depressa. A caldeira está ao lume, ha de ferver, e póde ser necessaria a casa...

-- Quando v. s.a mandar, sôr morgado.

-- Olhe! Se no meio da procissão, ou depois, houver algum barulho, não me metta as mãos nas algibeiras. Dê-lhes com alma, desanque-me os jacobinos moa-m'os como farinha, hein?...

-- Vá v. s.a descançado.

-- Vou! Vou! Vocês não deixam mal o Ribatejo. Até á volta. São horas.

Os tres de fóra foram buscar os cavallos, e d'ahi a pouco desappareciam a galope pela Ponte da Asseca. O lavrador e os seus amigos recolheram-se tambem logo. D'ahi a instantes resonavam a somno solto.

Quem não tinha vontade de dormir era o Sapo, o qual, arrastando-se do esconderijo, fulo de terror, respirava a custo, estirando os braços, mais morto do que vivo.

A ameaça do Antonio da Cruz soava-lhe nos ouvidos como um dobre funebre, e por vezes sentia já em imaginação os gorgomillos tão apertados como se lh'os estreitasse a promettida e fatal corda!

A reputação merecida do moleiro de não quebrar palavra dada fazia-o de mil côres, e a voz da consciencia, que só o susto tinha o condão de accordar de véras, advertia-lhe, que provocára, não uma, porém cem vezes, o castigo.

Não vendêra elle ao sargento o segredo do asylo em que se homiziava Paulo de Azevedo, abusando da hospitalidade de Antonio da Cruz, o qual, tendo-o poupado, o julgára grato? Não fôra causa da prisão do Cavalheiro de Mafra, da magoa de Leonor, e do desespero de Manuel Coutinho? Agora mesmo, não colhêra um segredo, que podia custar a vida e a liberdade a tantas pessoas?

Gaspar era logico. Convencido de que a sentença proferida era irrevogavel, tractou de se eximir aos seus rigores pelos meios usuaes, isto é, accumulando novas traições. Coxeando e rastejando partiu para a villa, aonde amanheceu á porta do sargento, cuja cholera exacerbada pela certeza de ter servido de alvo á irrisão na famosa noite dos fantasmas, soube artificiosamente exaltar. O Sapo acabou de o petrificar, narrando-lhe as ameaças do Antonio Simões da Aramanha, e o plano, interceptado por elle, de grandes tumultos em Lisboa durante, ou depois da procissão do Corpo de Deus.

A noticia valia o seu pezo em ouro, e Cabrinha decidiu-se a ser em pessoa o portador d'ella.

A chegada de Paulo Penedo, emissario de Manuel Coutinho para chamar o moleiro em seu nome á capital, confirmou as informações do agente. Gaspar, a troco de pão, queijo, vinho, arrancou sem difficuldade ao camponez boçal quanto elle vira e ouvira do patrão em Lisboa. Separou-se, deixando-o convencido de que o amante de Leonor de Azevedo não tinha mais leal amigo.

Depois d'esta ultima proeza, os dois malsins começaram a jornada até Villa Franca, aonde haviam de embarcar, o sargento ardendo em impaciencia de cingir na fronte os louros, e de sepultar no bolso as peças de 7$500, que Lagarde não cisava aos que o serviam zelosamente: o Sapo, cujas vigilias eram cada noite mais tormentosas, acompanhando o patrono a Lisboa, primeiro para se afastar o mais possivel da figueira do alto do Valle, depois, para ter o gosto de vêr mettidos na enxovia do Limoeiro, graças á sua honrada lingua, o Antonio da Cruz, o João da Ventosa, e o Antonio Simões.

Já os ouvimos confessar ao intendente da policia, que por um instante não caíram na bôcca do lobo em Villa Franca, e encontrando-os no gabinete do ministro, no exercicio de suas funcções, convem notarmos, que tinham sido activos no desempenho da sua missão, como homens fieis aos interesses proprios, e devotos da causa que abraçavam.

Lagarde escutára com attenção o depoimento lucido e conciso, que o Sapo, sem trepidar, lhe recitou, como licção aprendida de cór, admirando a prodigalidade, com que a natureza favorecêra este ente quasi disforme e rachitico, que, encarado á primeira vista, não promettia, senão fraqueza e estulticia.

Depois de tomar algumas notas, consultando um, ou dois papeis, e tornando-os a encerrar nas gavetas do bofete, o intendente conservou-se silencioso por momentos, scismando profundamente.

-- A conspiração existe, dizia elle comsigo. Aqui estão as provas d'ella; mas quem ha de persuadir o duque, e vencer o seu amor proprio? A leitura d'aquelle maldito plano atrazou-nos!... Não importa. Deixal-os rir! A mim compete-me velar para que riam sem perigo.

Virando-se depois para os agentes, que aguardavam calados as suas ordens, acrescentou:

-- Sargento! Estamos na pista de um trama complicado. Fique em Lisboa com este homem, e procure hoje de tarde o meu secretario Loisy. Elle lhe dirá o que ha de fazer.

Estas palavras, e o gesto do ministro avisaram os dois, de que a audiencia estava terminada. Saíram logo, mas ainda Lagarde não tinha tido tempo de percorrer com os olhos um papel, que acabavam de lhe entregar, abriu-se uma porta particular, e entrou no escriptorio um mancebo, de rosto jovial, vinte oito annos de edade, e figura esbelta, realçada pelo uniforme de official de cavallaria, trajado com garbo. Era seu sobrinho Armand de Aubry.

XIII

Dois parentes

O intendente accolheu o recem-chegado com um sorriso, e extendeu-lhe a mão com amizade. Aubry apertou-lh'a sem ceremonia, encarou-o com ar malicioso por momentos, e disparou-lhe depois na cara a mais longa e estrepitosa risada, que de certo tinham ouvido aquellas paredes, desde que a Santa Inquisição reinava dentro d'ellas.

-- Ah! Ah! exclamou fazendo esforços em vão para se reprimir. Que duas figuras unicas, que duas corujas agoureiras acabo de encontrar no corredor!... Pelo que vejo a procissão de ámanhã leva anjos, demonios, serpentes, e até estafermos do mais curioso feitio. Estes dois são magnificos. Sobre tudo um... o mais baixo. É admiravel!

-- Porque? atalhou Lagarde.

-- Porque, meu tio? A pergunta é rara! Aquella cabeça de anão, aquella cara de papel, e os saltos de rã da perna coxa promettem á festa um palhaço soberbo. Por quanto se aluga aquelle senhor? Juro-lhe que vale quanto pesa... em cobre. Dou-lhe os parabens! Foi um achado. Posso saber o que elle custa á policia de sua magestade o imperador e rei?!...

E o official dizendo isto ria como um louco, afagando o bigode louro, e saccudindo o pó das botas de montar com a ponta do junco flexivel, que trazia na mão.

-- Não custa barato, Armand! redarguiu o intendente, sorrindo-se tambem. Aquelle anão, assim mesmo contrafeito e ridiculo como te pareceu...

-- Esse pareceu é delicioso, meu tio! Continue. Sou todo ouvidos.

-- Vale mais do que muitos homens guapos e bem postos.

-- Quem tal diria! Então é um diamante bruto?...

-- Talvez. Dentro em pouco vel-o-has chefe...

-- Chefe? Muito bem. E de que tenciona invental-o chefe? Acaso a policia conta distraír os portuguezes de suas saudades, armando tablados ao ar, e escripturando polichinellos?

-- Não! redarguiu Lagarde um pouco enfadado dos motejos do sobrinho. A policia aspira a funcções mais modestas. Lisboa, esta cidade immunda como as do Oriente, começa já a ser outra cousa... As ruas...

-- Tá! Tá! Meu tio. Esse elogio dos serviços da policia, na sua bôcca é capaz de abrandar as pedras... das mesmas ruas. A proposito! Denuncio-lhe os cães vadios. Resistem ás ordens como janizaros. Hontem á meia noite estivemos em perigo de sermos devorados, eu, e o meu cavallo! Que morte para um official do exercito imperial!... Diga-me: o anão, de que tractâmos, será nomeado executor da alta justiça contra as matilhas famintas? A cara do personagem é de um verdadeiro Herodes, e não desmente o officio. Puah! O maldito sempre deixou aqui um cheiro patibular!...

-- Armand! Não te cansaste ainda?!...

-- Oh! Cuida meu tio, que os assumptos recreativos se encontram a cada canto n'esta boa terra? O que admiro mais é a sua longanimidade. Parece incrivel! Aturar fechado n'este gabinete dias, semanas, e mezes, entre cachos de malsins e grinaldas de larapios aposentados! Santo Deus! Que emanações asquerosas. É de engulhar até o estomago a um tubarão!...

-- Ainda! Armand, o que sinto mais, do que a triste sociedade, que sou obrigado a admittir...

-- Diga tristissima, meu tio, que não diz senão a verdade. Os melhores dir-se-íam desenterrados das enxovias, ou das galés...

-- Então! O que deploro, mais do que isso, é essa tua leviandade incuravel. O homem, que estás escarnecendo, prestou-nos a ambos um serviço relevante...

-- Não sabia. Pelo que observo o precioso aborto accumula as funcções de palhaço ás de nigromante? Faz magia branca nas ferias. Excellente!

-- Ah, Aubry! Quando te verei um momento serio e preoccupado dos deveres da tua posição?

-- Quando uma bala me varar o peito, ou a cabeça. Se não levasse a vida a rir e a folgar, entre dois amores, um que hoje foge para volver ámanhã, outro que arrebata e embriaga; o amor dos sentidos e o amor da gloria; cuida que valia a pena de a arrastar de desengano em desengano, de revez em revez até aos rheumatismos, e aos defluxos asthmaticos da velhice? Por alma de meu pae! Nasci e hei de acabar com esta sina. Sou assim feito. Não tem remedio! Mas apezar de rir muito, de chorar pouco, e de preferir o lado comico ao aspecto lugubre da existencia, ajuntou, tornando-se um tanto grave, creia que este coração, facil em se alvoroçar com a promessa de uns bellos olhos pretos, azues, ou verdes, a côr é indifferente uma vez que sejam formosos (!), é incapaz de trahir a honra e a amizade, ou de se aviltar por nenhum preço...

-- Bem sei. Por isso te estimo. Desejava-te só menos estouvado. Não póde ser? accrescentou sorrindo-se involuntariamente do gesto negativo do sobrinho. Paciencia! Escuta-me. Aquelle homem, que saiu d'aqui ha pouco... Não rias! ao qual ignoro porque pozeram a alcunha de Sapo...

-- Quem seria o philosopho que tão bem chrismou o reptil? Preciso abraçal-o! O Sapo?! Mas é verdadeiramente um sapo o seu homem, meu tio! Bom! Não se agaste. Já me calo. Passo a estar serio e aprumado como uma estatua... Diga!

-- Aquelle homem... foi quem descobriu o asylo de Paulo de Azevedo, e entregou á policia a sorte do cavalheiro, do qual depende...

-- Cuidei que lhe tinha escapado! interrompeu o mancebo. Pareceu-me ouvir-lhe dizer que duas vezes...

-- O tivemos nas mãos, e que nos escorregou por ellas, zombando de nossas diligencias? É verdade. Não te enganaste. Mas á terceira fomos mais felizes. Estava escondido aqui mesmo em Lisboa, e mandei-o prender... O sargento Cabrinha, um dos meus agentes mais activos, e este Sapo, que ainda promette ser melhor...

-- Ah, meu tio, fale-me de tudo menos d'esse miseravel. Deploro vêl-o convertido em Plutarco de similhante monstro...

-- Pois sim. Mas attende-me. Lavemos agora um pouco a nossa roupa suja em familia. O que te resta dos bens de tua casa?...

-- Dividas e credores, replicou Armand com um sorriso stoico sublime.

-- Nada mais?...

-- Acha pouco? Dividas desassocegadas e credores inquietos!... Tenho com que me entreter toda a minha vida.

-- Um!... Pois de todas as propriedades, que herdaste, mobilias, ouro, prata... não possues absolutamente nada?!...

-- Nada!... O ouro a que posso chamar meu... e assim mesmo só por uma audaciosa figura de rhetorica, porque o não paguei ainda... trago-o aos hombros... são as dragonas!

-- Ah! Então o naufragio foi completo!?... E com que contas para o futuro?...

-- Essa é boa! Conto com os meus vinte e oito annos, com esta figura soffrivel, com a saude á prova de todas as fadigas, que devo á minha compleição, e que tem sido o desespero dos medicos, e com o acaso de uma bala, ou de uma proeza, que me eleve em patente, ou me deixe no campo como muitas outras buxas de canhão, que valem menos do que eu.

-- És louco!...

-- Sou philosopho!

-- Talvez! Mas dize! Eras filho unico. Teus paes deixaram-te...

-- A sua benção e alguns punhados de escudos nas gavetas. Que quer, meu tio?! As Aspasias de París, as Sylphides do corpo de baile, e as Musas da opera vendem os sorrisos caros. Não imagina!... E sorriram tanto, e com tal graça para mim, que as mãos abriram-se-me sem as sentir... Quando caí na realidade... sabia de cór todas as piruetas e saltos de Vestris, todos os passeios e casas de pasto de mais fama, e podia dar licções de gosto e de ouvido a todas as platéas civilizadas... Mas nem um real no bolso para afugentar o demonio! Encolhi os hombros e fiz-me soldado.

-- Bem sei. Porém a herança de tua tia?!...

-- Santa e excellente velha!... Saltam-me as lagrimas dos olhos ainda quando me recordo d'ella! A herança da boa tia veiu nas poucas horas de melancholia, que tenho penado em minha vida.

-- Isso não explica!... Lembro-me de ter ouvido falar em terras...

-- Oh, de certo. Um bom par de geiras... Eram muito fracas. Vendi-as por economia.

-- Mattas e pinhaes!?...

-- Magnificos!... Eram muito sombrios. Troquei-os a dinheiro para me não entristecerem.

-- Uma casa de residencia vasta com jardins?...

-- A casa era humida e constipava-me. Os jardins precisavam de muito amanho, e não apparecia jardineiro. Desfiz-me da casa e dos jardins.

-- Uma mobilia antiga, mas rica?!

-- Custava-me muito caro o transporte, cedi-a.

-- Percebo!... N'esse caso estás?...

-- Como diz o livro de Job: Nú saí do ventre de minha mãe, e despido de bens da fortuna descerei á cova.

-- Admiro o teu sangue frio. Não te parece já tempo de assentar, e de mudares de vida...

-- Conforme a mudança! Saltar da agua fria para caír no fogo, não sei se é peior.

-- Armand! É necessario cazares, e que o dote de tua mulher...

-- Chegue para remendar a capa esburacada do mendigo?!

-- Mais do que isso. É preciso que dê para uma capa nova.

-- Não digo que não. Mudarei ainda de pelle. Estou prompto.

-- Estimo. Falei-te na filha de Paulo de Azevedo...

-- É moça?...

-- Dezoito annos.

-- Feia como uma herdeira, ou desastrada como as morgadas?...

-- Não. Linda, airosa, e gentil como uma parisiense.

-- Santo Deus!... E esse thesouro, essa fada, mimo de todas as perfeições, guardou até hoje o seu coração livre á espera de um perdulario, de um estouvado, que nunca viu?! Meu tio! Sabe que o unico ridiculo, de que tenho medo, é da sorriada merecida de Jorge Dandin?...

-- Repito. É uma menina séria, prendada, e espirituosa...

-- Não duvido. Antes isso! A ingenuidade de Agnés sempre me assustou muito! Essa menina... Mathilde?... Clara?...

-- Leonor! Leonor de Azevedo...

-- É verdade! Leonor!... Essa Leonor não estava justa a cazar com um cavalheiro, tambem fidalgo, official, capitão, creio eu, do segundo regimento do Porto, licenciado depois do tumulto das Caldas?... Se não erro, elle chama-se?...

-- Manuel Coutinho! accudiu o intendente. Não houve nunca promessa de cazamento, enganas-te. As duas familias davam-se muito. O que poderia existir era algum namorico, alguns requebros naturaes... innocentes...

-- Sim! Sim! Muito innocentes. Sabe que nunca me resolvi a calçar sapatos de defuncto, e que de sapatos de vivos gosto ainda menos?... Uma pergunta, meu tio?... Hei de ser sempre noivo por procuração? Conta cazar-me sem eu vêr nunca minha mulher... nem até no oratorio da policia?...

Lagarde piscou os olhos, assoou-se com ruido, e coçou depois ao de leve a ponta do nariz aquilino. Eram os gestos, que n'elle inculcavam hesitação e perplexidade.

-- Cazares sem vêr tua mulher?! exclamou rindo constrangido. Pelo amor de Deus! Quem te metteu isso na cabeça?

-- Cuidei! Como os principes cazam pelos retratos...

-- Has de vêl-a, adoral-a, e agradecer-me de mãos postas a escolha.

-- Estou certo, meu tio. Porém!... Como o meu voto me parece essencial desejo dal-o em consciencia. Quando me apresenta a D. Leonor?...

-- Um dia cêdo! Ámanhã talvez! redarguiu o intendente, agitando-se, e estorcendo-se na cadeira, como se o assento fossem brazas.

-- E porque não ha de ser hoje. Sou tão curioso!...

-- Hoje! Sem a avisar! De mais tenho que despachar... Espero...

-- O honrado sargento, ou o palhaço talvez?!... Vamos. Decida-se. Hoje, ou nunca! Alea jacta! como nós diziamos no collegio. Os bons palpites aproveitam-se. O matrimonio é um grilhão de ferro coberto de flôres... Quem sabe se ámanhã eu terei medo da felicidade conjugal, e me arrependerei? Seja docil! Deixe-me vêr hoje esse portento encoberto...

-- Pois bem! Faça-se a vontade ao teimoso, contestou Lagarde, depois de alguns instantes de reflexão, tirando o relogio do bolso, e consultando-o. São dez horas. Ao meio dia aqui te espero.

-- Viva o melhor dos tios! bradou Armand, rindo, e abraçando-o. Diz o rifão: em quanto venta molha a véla! Quero remar com a maré. É verdade que na Ponte da Asseca, em um casarão arruinado, apparecem aventesmas, e que um troço de milicianos debandou por uma noite de tempestade, fugindo de um fantasma?...

-- Porque?

-- Nunca tive a honra de conversar particularmente com nenhum espectro, e desejava certas informações sobre o paraizo e sobre o purgatorio...

-- Os fantasmas da Ponte da Asseca sabes o que são? accudiu o ministro agastado. Um bando de conspiradores, que a policia vae desmascarar e punir.

-- Jesus, que ares tragicos, meu tio! Pela sua vida não represente de tyranno. O papel cai-lhe mal. Dê-me essa missão a mim. Adoro as aventuras, e Cazote é o meu idolo... Quem sabe se irei lá encontrar algum diabo amoroso?

-- Pois bem, irás! atalhou Lagarde sorrindo. Mas já te previno. O que lá acharás são morgados lorpas, e rebeldes endurecidos. Agora adeus. Não te esqueças. Ao meio dia em ponto!

-- Ao meio dia em ponto! respondeu o sobrinho, saudando-o, e saindo.

XIV

Amor

Quando Manuel Coutinho assomou aos umbraes da porta do aposento, acabava Leonor de lêr uma carta de seu pae, escripta com a firmeza de animo, que tornava tão nobre o caracter do velho cavalheiro. Da sua prisão do castello, com a morte eminente e a vingança de poderosos inimigos suspensa sobre a cabeça, falava Paulo a sua filha com o mesmo socego, com que o faria solto e desaffrontado. Nem uma queixa! Nem um indicio de tristeza, ou desalento! Ausente em uma viagem longa, ou distraído em uma partida de caça, não tractaria com indifferença mais soberana as vigilias e amarguras do carcere.

Dizia-lhe que o seu processo, apressado a principio pelo odio, agora coxeava, retido por mão occulta. Zombava da vigilancia, com que era guardado, attribuindo-a á scena comica da sua evasão no palacio da Ponte da Asseca.

Perguntava-lhe por Manuel Coutinho, e pedia-lhe que recommendasse ao mancebo muita paciencia e conformidade, e resignação para atravessar os dias dolorosos do captiveiro. Finalmente, lembrava-lhe em estylo risonho alguns episodios de suas peregrinações pelas aldeias e casaes do Ribatejo, assegurando-a, de que o descanso do corpo e a serenidade do espirito iam obrando n'elle o prodigio de o transformarem, de seco e agil, em um ente mais obeso, mais corpulento, e mais oleoso, do que fr. Raymundo, frade notavel em Mafra pela estatura agigantada, pela estupidez, e pela voracidade.

Aonde a sua ternura extremosa se denunciava, e a alma stoica deixava perceber a ferida dos espinhos da saudade, era nos conselhos dados á donzella, e nos gracejos constrangidos, com que a motejava ácerca da alvura da tez e das rosas pallidas, tão festejadas no seu rosto, deplorando que o sol, as geadas, e a vida alpestre de uns poucos de mezes as tivessem queimado! Rogava-lhe ironicamente, que aprendesse de alguma dama franceza o segredo d'aquella frescura artificiosa, que só ellas sabiam fabricar para engano da edade, e conservação de successivas gerações de adoradores.

Apezar do tom jovial, a carta era mais triste do que se respirasse sincera melancholia. Leonor, avaliando o coração paterno pelo seu, sentiu correrem-lhe as lagrimas e empanar-se-lhe a vista á proporção que a ía lendo. Dotada, tambem, de indole varonil e soffredora adivinhava facilmente as apprehensões e os tormentos, que aquellas lettras escondiam, e quasi revia por baixo d'ellas as nodoas do pranto suffocado por uma vontade forte.

A donzella recostava-se em uma marqueza de palhinha. O braço nù do cotovello para baixo descansava em um velador entre duas jarras de porcelana cheias de rozas e madresilvas. Duas portas de vidraças abertas sobre o jardim, para onde se descia por escada de poucos degraus deixavam entrar a luz em jorros. A sala era atapetada de esteira, e estava ornada de alguns paineis de paizagem, pendentes das paredes estucadas. Nos vãos das portas duas gaiolas douradas encerravam aves africanas de vistosas plumagens. Em cima do marmore de um tremó, entre flores, jazia esquecido o livro, que tivera na mão pouco antes de rasgar anciosa o sobrescripto da carta, que viera interrompel-a. A um lado, no bastidor, sobre a tela repregada notava-se ainda a agulha picando a talagarça na petala delicada da ultima flor, cujo matiz deixára em meio. Um vidro de peixes, de cores cambiantes, enfeitava a mesa fronteira ao tremó e ao espelho.

-- A filha de Paulo de Azevedo vestia de escuro sem affectação. Um corpete, dos que então se chamavam Mimosos, de seda preta com guarnições singelas, e cintura curtissima, desenhava mal a rara elegancia d'aquelle corpo esbelto, moldado pelas graças. Uma fita larga, com laço e pontas caidas, unia-o á saia de tafetá de cauda alta, orlada com uma barra de requifes; mas a saia, segundo a moda do tempo, não era menos desairosa do que o corpete; e n'esta nossa epocha de crinolines e balões de verga de aço a magreza da roda, e a estreiteza do córte, que a cingia aos membros quasi a ponto de accusar de mais as fórmas, faria estalar de riso um conciliabulo de modistas e petimetres. Uma singela cruz de coral, encastoada em ouro, e suspensa de um fio de aljofres debruçava-se sobre o collo de neve, que um poeta sem exageração denominaria verdadeiro collo de garça. O penteado, não menos singular para os nossos dias, que o feitio do trajo, era todo de anneis irregulares, acompanhando a testa em figura quasi de diadema, e rematando no alto da cabeça por uma flor natural cravada nas tranças. Sapatos de setim de entrada muito baixa, cobriam ou antes descobriam o pé mais breve e mais lindo, que um estatuario poderia desejar para modelo das extremidades de uma Hebé. A manga do corpete desnudava todo o braço, que na pureza e correcção das linhas não desmentia a formosura do semblante, o enlevo namorado dos olhos, e a expressão nobre, quasi altiva, e apesar d'isso ingenua e suave da physionomia.

Vendo-a assim reclinada, com os atomos dourados do sol a brincar-lhe nos cabellos, com a meiga pallidez, que um carmin fugaz e transparente apenas córava por momentos, e com aquella melancholia tão feiticeira pousada na vista, perdida com o pensamento bem longe de si e de tudo o que a cercava, um pagão, se a contemplasse de repente, hesitaria entre Juno e Diana, mas de certo não equivocaria sua belleza casta com os encantos mais faceis da lasciva deusa de Paphos.

Manuel Coutinho, que a amava, que desde a infancia a vira crescer em annos e attractivos, deteve-se suspenso de admiração, não se atrevendo a despertal-a do enlevo com o ruido de seus passos. Mas o coração tem sentidos mais subtis, que os ordinarios. Sem o vêr, sem ter percebido a sua chegada, Leonor adivinhou que era elle, e a sua alma, fugindo á dor, logo voou a encontral-o. Um suspiro á flor dos labios, um sorriso em que a magoa e o jubilo se fundiam, duas lagrimas congeladas, tremendo nas pestanas, disseram ao mancebo, que o sonho se quebrára, e que a amante, baixando das illusões do devaneio, volvia ás realidades doces, mas bem tristes, da existencia, e da paixão.

Leonor olhou para elle. N'este simples volver de olhos disse tudo, calados os labios, mas cheia de luz a vista radiosa. Um rubor, que esmorecia, e breve tornava a avivar-se, denunciou ao mesmo tempo o sobresalto da alegria e as tremulas palpitações do peito. O mancebo, não menos rendido, porém mais impetuoso, soltou a alma em um suspiro de entranhavel affecto, prostrando-se-lhe aos pés e, adorando-a, quasi como se adora a Deus. O que ambos falaram mudos n'este momento só póde concebel-o quem já gosou tambem as delicias por vezes acres das expansões do primeiro amor. Á donzella ria a esperança na bôcca e nas pupillas. Ao amante, olvidados os zelos e amarguras das confidencias, que acabára de escutar, tumultuavam no seio agitado as commoções, como vão e vem as ondas inquietas espumando sobre a areia.

Por fim a mão estreita e melindrosa extendeu-se para o obrigar a erguer-se. Um beijo ardente, seguido de mil osculos, n'essa mão que não fugiu, affrontou de novas e vivas cores as faces da filha de Paulo de Azevedo.

Desviando com um gracioso gesto de infinita brandura o amante ajoelhado, e constrangendo-o a levantar-se com o imperio só dos olhos. Leonor disse-lhe:

-- Veiu tarde!... Não imagina o cuidado com que o esperava!...

-- Leonor! Leonor! exclamou Manuel Coutinho incapaz de se vencer. Jure-me que não dará nunca a outro esta mão, que tenho nas minhas, como penhor da nossa ventura...

-- Juramentos?! Já se não contenta com menos? Não crê em mim?!...

-- Como em Deus!

-- É de mais agora. Basta a fé... Teve noticias de meu pae? Será possivel ao menos demorar a sentença? que o ameaça. Quando me lembro!... Manuel! E nós aqui n'estes colloquios, quando elle.. geme desamparado, e se prepara para a morte... que será tambem a minha, porque, se o perder, sei que não posso, que não hei de sobreviver-lhe!...

-- Não diga isso. Seu pae está mais perto da liberdade, do que da morte...

-- Quem lh'o disse? Elle escreveu-me. Aqui está a carta; mas só confia em Deus! Ha alguma novidade? Veja que padeço ha tantos dias, chorando quasi orphã aquella vida, que é tudo para mim... Diga! Devo ter ainda esperança?...

-- Deve!... O bispo, e sua irmã não lhe contaram nada?...

-- Não! Mas o que ha? Ouvil-o-hei da sua bôcca... A boa nova será para mim mais risonha!

-- O Porto vae acclamar o principe regente. Sepulveda sublevou as provincias do norte! O Alemtejo e o Algarve fazem e farão o mesmo!... Os francezes acossados retiram sobre Lisboa de toda a parte!...

-- Seja para sempre glorificado o vosso nome, meu Deus! exclamou a bella enthusiasta, caindo de joelhos, e erguendo as mãos. Os ferros do captiveiro são asperos e pesados e a minha alma, ferida e cega de prantos, nem já a vista se atrevia a elevar ao ceu para vos pedir justiça!... O dia da liberdade começa a raiar. Manuel! O seu posto não é aqui, é ao lado de nossos irmãos que pelejam e morrem pela patria...

-- Bem sei. Parto em dois dias. Vinha dizer-lh'o.

-- Perdoe-me. Tenho pressa de vêr meu pae! Quero dever-lhe o seu resgate... As damas antigamente mandavam os cavalleiros correr aventuras, e não os premiavam senão coroados de louros. Quer ser meu cavalleiro?... ajuntou com um sorriso e em um tom irresistivel.

-- Não o sou já? Que votos póde fazer que eu não cumpra?

-- Vá! A empreza é gloriosa. Ajudará a restaurar a patria, a restituir o throno ao seu rei legitimo, e um pae extremoso aos braços da sua filha!... Porque não sou homem?! Nunca invejei tanto uma espada!...

-- Quem sabe, accudiu o mancebo sorrindo, se os dias das amazonas não voltarão!...

-- Porque o diz zombando?... Cuida que me faltaria o valor?... Estou louca! Desculpe! De balde quero dissimular a minha fraqueza mais do que posso. Elles são briosos; hão de combater aqui como combateram em toda a parte... Quantas victimas! Quanto sangue! Manuel! Não seja temerario! Quero tornar a vel-o!... Oh! se uma bala, se um golpe!...

-- Deus será comnosco. Havemos de vencer. Anime-se!

-- E eu?!... Ficarei só entre dois amores, que são toda a minha esperança, entre duas saudades, que prendem toda a minha alma! Só! Não sem outra companhia mais do que receios e cuidados, sem outras armas senão as minhas lagrimas e orações!... Attentando, depois, na confissão que acabava de soltar, vermelha de pejo como uma roza, cobriu o rosto, e o pranto, rebentando, principiou a deslisar-se-lhe por entre os dedos. O mancebo, exaltado, lançou-se outra vez a seus pés, e em vozes suffocadas e incoherentes repetiu-lhe mil protestos. A final, Leonor levantou a face orvalhada d'aquellas lagrimas tão suaves para ambos, e os bellos olhos sorriram humidos, como o sol de abril por entre chuveiros finos. Uma vista longa e apaixonada beijou com ineffavel delirio a vista do amante, que se sentia desfallecer de jubilo, e que sem forças para exprimir com palavras o alvorço, amiudava os osculos frementes nas mãos, que tremiam, entregando-se a seus carinhos.

-- Leonor! disse depois de alguns momentos. Agora póde vir a morte, póde redobrar o infortunio, achar-me-hão forte! Sei que sou amado! Levo commigo a confissão da sua ternura!...

-- Ingrato! accudiu ella com meigo requebro. Era preciso que um instante de dor, mais poderoso que o pejo, lhe dissesse o que devia ter adivinhado!?... Não sabia que a ninguem, a mais ninguem... depois de meu pae, tenho a affeição...

-- Porque não diz o amor!... Teme ver-me feliz?!...

-- Pois sim! O amor! redarguiu, alçando a fronte com nobre altivez, e fitando no mancebo um olhar de indizivel e terno orgulho. Porque hei de encobrir o que sinto; porque hei de negar o que não posso esconder? Amo!... Desde a nossa infancia jurei que não teria outro esposo. Não é crime escutar o coração! Amo-o, Manuel Coutinho!...

-- Leonor!...

-- Agora ouça! Antes de partir, volte aqui. Deante de Deus estamos unidos. Quero dar-lhe uma prenda, que nos recorde a alegria triste d'este dia!... A guerra vae a principiar. A sua ausencia póde ser larga... Hei de supportal-a com toda a constancia, hei de ser digna mulher de um soldado!... Volte! Lembre-se de que deixa n'esta solidão metade da sua alma em troca da minha que leva toda... Quero vêl-o victorioso, coberto de gloria, mas!... Que eu não fique viuva sem ser esposa! Tem outra amante que vae servir, a patria! Sacrifique por ella... tudo... tudo! menos a vida que me pertence! Adeus agora! Preciso de socegar o animo para uma visita, que espero, e da qual depende talvez a sorte de meu pae...

-- Lagarde!?... atalhou Manuel Coutinho irado e sombrio de repente. Porque se sujeita a ouvir esse monstro, auctor de nossas desgraças?

-- Porque o meu dever o manda. Cuida que ha sacrificio, que me custe, para salvar meu pae? Oxalá que viesse pedir-me todo o meu sangue em preço do sangue d'elle!

-- Sabe o que Lagarde quer exigir-lhe pela soltura do sr. Paulo de Azevedo? perguntou o mancebo tremulo e pallido.

-- Sei! contestou ella serenamente.

-- E conta responder-lhe?!... interrompeu o amante ancioso.

-- Não lhe disse que o amava? Duvida do meu coração, ou da minha fé!? Pela vida de meu pae estou prompta a immolar tudo, menos... a honra do seu nome, que é sagrada, e a minha alma, que é livre... O esposo, que posso ter, já o escolhi.

-- Obrigado, Leonor, pela doce promessa! Partirei tranquillo... Mas, então porque escuta Lagarde? Com que espera movel-o?...

-- É o meu segredo. Todos os sacrificios, menos um! Tudo menos vender-me, ou aviltar-me!... Não ouviu rodar uma carruagem? É a d'elle! Sáia por aquella porta... Não! Não! ajuntou, notando a agitação do amante. Não lhe devo occultar nada! Entre para aquelle gabinete!... Mas jure-me, que ouça o que ouvir, veja o que vir, mesmo que eu fosse ameaçada... o seu braço, a sua voz, a sua presença, é como se estivessem ausentes...

-- Juro! Mas se elle ousar!...

-- Não ousa! De mais, sei, e posso defender-me! Creia em mim. Agora vá! Um momento! Deixe-me colher forças para o combate!... E pousando-lhe na fronte os labios de rosa afagou-lh'a com um beijo.

-- Leonor!... exclamou elle ebrio de jubilo.

-- Recompense-me! Seja homem! Hoje a nossa arma é a paciencia. Não o sente? Sobe a escada... Vá! Nem um gesto, nem uma palavra! Responde pela vida de meu pae!

E impellindo-o com maviosa brandura obrigou-o a entrar para o gabinete, cuja porta de vidraças recatavam duas cortinas de seda despregadas quasi até ao chão.

Depois, levando a mão ao peito, como se quizesse contel-o, alçou a vista com expressão sublime e magoada, e aguardou que a porta se abrisse.

Não tardou. Lagarde d'ahi a um instante appareceu entre os umbraes.

XV

Cubiça e Nobreza

O intendente geral da policia era homem de sala. No tracto usual ninguem o excedia em delicadeza.

Apenas apontou ao limiar, inclinando-se profundamente, adeantou-se com o chapéu na mão. Com o sorriso estereotypado nos labios beijou a mão, que Leonor de pé, séria, e grave, nem lhe estendeu, nem lhe recusou.

Seguiu-se uma pausa curta durante a qual a vista do ministro se cruzou com a da donzella, frias e penetrantes ambas como duas espadas.

A um aceno cortez da filha de Paulo de Azevedo, offerecendo-lhe cadeira, Lagarde escusou-se com o gesto, ajuntando logo risonho:

-- Minha senhora... Venho como supplicante mover a piedade da belleza deshumana, e os supplicantes não se assentam em presença dos juizes.

-- Vem mover a minha piedade, ou offerecer-me a sua?! accudiu a donzella em tom ironico. Não mudemos os papeis! A supplicante devo ser eu. O vencedor não veiu aqui dictar-me as condições na idéa de me achar resignada a escutal-as e a submetter-me?!... Não o incommoda ficar de pé?...

-- Não, minha senhora. Tenho de pedir licença para lhe apresentar outra visita...

-- Outra visita?!

-- Meu sobrinho...

-- Seu sobrinho?!...

-- Era tempo, não lhe parece?...

-- Eu!...

-- Percebo! É-lhe indifferente? Consinta que junte duas palavras. Quer que lhe fale como amigo?...

-- Se póde!... Receio tanto o intendente geral da policia!...

-- Não receie. Seja menos injusta. Desejo-lhe bem. Respeito a sua firmeza, préso os seus sentimentos de filha extremosa, e sei que se quizer ha de fazer a felicidade do marido que preferir.

-- Tantos louvores, sr. Lagarde!... Ha quantos mezes me avalia assim? accudiu Leonor sorrindo, mas tornando-se logo séria. Confesse que tenho motivos fortes para suppor o contrario. Costuma tractar, como nos tractou a nós, as pessoas que lhe merecem bom conceito?!...

-- Ah, cruel!... volveu o ministro, córando um pouco, porém disfarçando a torvação momentanea com o riso. As setas são agudas, e essa mão mimosa aponta-as com uma certeza! Pois bem! Se fiz o mal, posso ao menos dar-lhe remedio... O conselho de guerra ámanhã, ou depois, reune-se para julgar seu pae... A sentença depende das provas, e as provas principaes estão nas minhas mãos. De mais, Lunyt, o secretario de estado dos negocios da guerra, é meu amigo intimo... Já vê! Se eu interceder e ajudar... o sr. Paulo de Azevedo sae absolvido e solto...

-- Bem o sei, redarguiu a donzella. Quererá o sr. Lagarde?...

-- Duvída?! Porque tem tão pouca fé?...

-- Porque não acredito facilmente em conversões repentinas. Perseguiu-nos sem tregua, não socegou em quanto não teve meu pae em ferros, e hoje... offerece-me ser o seu protector!?... Ha grande mysterio n'isto, não o negue!... Temo que exija tanto da minha gratidão em premio, que eu não deva acceitar!

-- Nada escapa á sua agudeza! Quer saber tudo? Tem razão. Joguemos liso. Posso interessar-me, e ser ouvido, falando a favor do pae da noiva de Armand, de meu sobrinho; mas percebe muito bem, por maiores que fossem os meus desejos de servir, que o empenho não teria a mesma força, se o mettesse em beneficio de estranhos... de pessoas desaffectas ao governo de sua magestade o imperador e rei. Agora permitte que meu sobrinho entre? Espera as suas ordens n'aquella saleta...

-- Pois sim. Uma palavra antes, sr. Lagarde. É a noiva, ou é o dote, o que mais o tenta n'este negocio?!...

-- Oh, minha senhora, que pergunta! Que offensa!... O dote?!... Não faz mal, de certo o dote, a riqueza nunca se despreza; porém o thesouro d'essa linda mão!...

-- Supponha que... em troca da sua... como hei de dizer?

-- Diga amisade, minha senhora, amisade sincera. Fale affoutamente!...

-- Talvez seja muito. Benevolencia parece mais natural... Supponha, pois, que em troca da sua benevolencia eu cedia o dote, e guardava a linda mão... que é já de outro, e que em nenhum caso, aconteça o que acontecer... darei a seu sobrinho?...

Leonor falava serena, e sorrindo-se, porém a voz e o tom affirmavam assás, que a proposta era positiva, e que a resolução tomada seria inabalavel. Lagarde franziu o sobrolho, raspou com o dedo a ponta do nariz, cortejou-a em silencio, e reconcentrou-se por instantes como quem reflectia.

-- O dote sem a mão?! disse por fim lentamente, e esbrugando as palavras como se as pezasse. Julga, minha senhora, que seria possivel?...

-- Depende da minha vontade, e estou prompta.

-- Não me entendeu! É uma esmola, que nos quer fazer a meu sobrinho e a mim, ou uma peita, com que espera subornar o ministro?...

A interrogação parecia aspera; porém o olhar e a voz não podiam ser mais amaveis. Leonor concebeu esperanças.

-- Nem uma, nem outra cousa! É um testemunho de reconhecimento. Protesto-lhe que dos tres a mais agradecida serei eu.

-- Esquece-lhe, que o mundo dirá, que me vendi!... Não pode ser! Uma esposa não se nota que seja generosa, porém uma estranha!... Minha senhora, não decida nada sem o conhecer. Armand está aqui. É moço, é gentil, é brioso. Merece-a. Sei que o accusam de ser um pouco estouvado e perdulario. Não o defendo. São defeitos que o matrimonio corrigirá. Veja-o!... Tome tempo!... Não me julgue tão mau como dizem os meus inimigos. Tudo ha de compor-se.

-- Deus permitta! replicou a filha de Paulo de Azevedo.

Mas a sua phisionomia espirituosa traduzia perfeitamente, sem os disfarçar, a malicia e o despreso, com que assistia ao combate da avidez e da cubiça na alma de Lagarde, impaciente de receber o que lhe promettiam, mas preso ainda, apezar do cynismo, pelos escrupulos de um resto de decoro e de respeito da sociedade. Talvez, que não o embaraçasse pouco n'este conflicto a idéa, que formava do caracter do sobrinho, e a apprehensão de que elle recusasse favores, cuja origem o cobriria de opprobrio.

-- Deus quer o nosso bem, e ha de permittir!... atalhou o magistrado, todo brandura e delicadeza. Sobre tudo se fizermos da nossa parte...

-- Da minha tudo, menos!...

-- Não diga isso!... Esse menos é que precisamos que desappareça. Meu sobrinho é um cavalheiro...

-- Affiança-m'o?... N'esse caso estou socegada. O menos virá d'elle!...

Uma sombra escureceu o rosto do intendente. Ainda não lhe occorrêra esta hypothese, e um estremecimento nervoso avisou-o, de que ella podia converter-se em obstaculo insuperavel. Que certeza tinha de que Aubry annuisse ao pacto infame, que procurava extorquir, fazendo da cabeça de Paulo de Azevedo o penhor da docilidade de sua filha?

-- Não imaginemos coisas tristes! redarguiu contrafeito. Seu pae, lembre-se, está preso, e em vesperas de ser sentenciado...

-- Meu pae, tornou a donzella altiva, saberá morrer, que lh'o ensinaram os seus antepassados; o que nunca soube, nem ha de aprender na velhice, é a vender o sangue da sua alma, a ventura e a dignidade de sua filha para salvar a vida.

-- N'esse caso!... Mas o pobre Armand!... Falámos tanto d'elle que por fim esqueceu-nos! Como ha de estar impaciente. Tinha um desejo tão ardente de vir aqui!... Ah, ri-se? Não acredita?!... Pois é verdade. Dá licença?!...

E sem aguardar mesmo o aceno secco de cabeça, com que Leonor respondeu, Lagarde, precipitando-se direito á porta, cortou com esta saída theatral a conversação no ponto, em que ameaçava tornar-se tempestuosa. Em quanto elle saia, a donzella enxugou á pressa duas lagrimas, reprimidas até então pelo orgulho, e inclinou a fronte como se lhe faltasse o vigor para supportar mais. Durou só um momento esta fraqueza. Um minuto depois erguia a face, e tornava a obrigal-a a exprimir a frieza glacial do papel forçado, que se via constrangida a representar. Um rapido volver de olhos á porta de vidraças, detraz da qual Manuel Coutinho escutava, e um suspiro ancioso foram os ultimos signaes do seu desalento.

O intendente entrava com o sobrinho.

Vendo-o, Leonor córou, e fez-se logo, pallida.

O mancebo, contemplando-a, sentiu-se vencido de repente, e conheceu que aquella bella e doce imagem se lhe gravára profundamente no coração. A tristeza resignada, que respiravam as feições da donzella, a sua vista magoada, mas serena e quasi severa, e a casta e graciosa elegancia do porte, acabaram de o render. O semblante, em que um momento antes sorria zombeteira a mofa do conquistador, seguro do triumpho, desarmou-se instantaneamente da expressão quasi insolente, e inclinando-se, perturbado, e reverente, Armand saudou a filha de Paulo de Azevedo como poderia saudar uma rainha no seu throno.

-- Aqui vem a seus pés mais este captivo, minha senhora! exclamou o intendente no estylo refinado e galanteador da côrte franceza. Compadeça-se d'elle. Não consinta que suspire em vão!

Armand empallideceu. Não era com gracejos vulgares e pueris, que elle agora desejava expressar á donzella a admiração. O official, de ordinario tão solto e audacioso, já não achava phrases que pintassem o estado da sua alma. Mas se os labios eram mudos, falavam os olhos, e o proprio enleio significou uma homenagem á amante de Manuel Coutinho.

-- Veja como a adora! proseguiu Lagarde, que, sem o querer, representava o papel comico de um tutor de entremez. Que victoria, minha senhora! Fez como Cesar, viu, e venceu!...

-- Ah! interrompeu Leonor, deixando cair de alto sobre o tio e o sobrinho uma vista ironica e aguda, que os gelou a ambos, porque o despreso e o escarneo, que exprimia, traspassava.

-- Meu tio!... murmurou Armand confuso, e recuando como ferido de uma bala.

Houve uma breve pausa. O ministro estudava um exordio, que o salvasse dos apuros do lance, em que se mettêra, amaldiçoando interiormente Aubry, cuja falsa delicadeza começava a assustal-o. A filha de Paulo de Azevedo, em pé, branca como uma estatua de alabastro, mas imperiosa, amparava o corpo gentil com a mão no espaldar da cadeira e n'esta posição, cheia de dignidade, aguardava silenciosamente, que um dos dois ousasse dizer-lhe tudo.

O mancebo, que a interjeição de Leonor fizera córar até á raiz dos cabellos, e que a vista de tantas graças e enlevos cada vez seduzia mais, esperava ancioso, que o intendente, auctor do enredo, lhe rompesse o caminho, temendo adivinhar na mudez e no ar soberano e offendido da bella portugueza um trama, que a honra o obrigasse a desmentir.

-- Armand, minha senhora, disse por fim Lagarde, que o amor proprio e a cubiça forçavam a insistir, encarrega-me de lhe pedir, que se digne receber os testemunhos de seu respeito e adoração.

-- Sempre como procurador?!... atalhou ella com um sorriso ironico.

-- Em pessoa, minha senhora, em pessoa!... Se não veiu mais cedo é que...

-- Meu pae não estava ainda quasi no oratorio, e o sr. Lagarde temia que a filha fosse menos docil?

-- Oh!... bradou Armand, encarando o ministro severamente, e adeantando-se impetuoso. Minha senhora, balbuciou depois, se aqui vim foi attrahido por uma doce esperança, que vejo ter sido chimerica... Posso saber o que meu tio quiz fazer, valendo-se do meu nome? Presinto um segredo de violencia, talvez de iniquidade, mas, juro-lhe pela minha honra, que estou innocente... que sou incapaz de acceitar a sua mão, que me faria bem ditoso, agora o sinto, se livremente m'a não désse. Peço-lhe a verdade! Ao menos não me condemne sem me ouvir!...

Lagarde não soube conter-se. Um raio, que lhe estalasse de repente sobre a cabeça, não o teria desfigurado tanto. Empregado o ardil classico do famoso quadro do sacrificio de Ephigenia, escondeu metade da cara no lenço de assoar, pedindo a Deus que um alçapão propicio se lhe abrisse debaixo dos pés para o sumir da vista irritada dos personagens, cujas explicações previu, que iam desmascaral-o inteiramente.

Leonor, escutando as nobres palavras de Aubry, recompensou-as com um olhar sympathico. O semblante perdeu a expressão severa, e a voz, meiga e commovida, vibrou harmoniosa, como um canto suave, no peito agitado do official francez.

-- Agradecida! redarguiu offerecendo-lhe pela primeira vez a mão, que elle beijou estremecendo. Não tenho que lhe perdoar... Agora vejo! O sr. Lagarde... como hei de dizer toda a verdade!? O sr. Lagarde prendeu meu pae, accusou-o, e tem suspensa sobre a sua vida a espada de um conselho de guerra... Tinha-me falado ha mezes n'este casamento... A minha recusa aggravou-o... e hoje, aqui mesmo, veiu propor-me salvar meu pae se eu consentisse...

-- Oh, meu tio! interrompeu o mancebo fulminando o intendente com os olhos, e vermelho de colera e pejo. Não diga mais, minha senhora. Adivinho a resposta. Regeitou!...

-- Regeitei! continuou a donzella. A minha mão pertence a outro; o meu amor não se vende.

-- Nem o meu nome se infama! rugiu Aubry tremulo de raiva. Sr. Lagarde agradeça ao sangue, que nos corre nas veias, a minha paciencia! Se não fosse! E suffocado em ira apertou os punhos, e levou-os á fronte. Lagrimas de indignação rebentaram de seus olhos seccos. O intendente parecia petrificado.

-- Offereci o dote sem a noiva; proseguiu Leonor. Era o meu resgate. Oh, perdoe sr. Aubry, não o conhecia ainda. Depois que o ouço... não lhe faria a affronta de suppor...

-- Vê! accudiu o official, colhendo o ministro do braço, e saccudindo-o com furia. Vê a que me expoz?!... Meu tio, tenho vergonha, queima-me os labios dar-lhe este nome! Quem lhe deu o direito e a ousadia de arrastar o meu, o nobre appellido de meus virtuosos paes pelo lodo de suas torpezas?! Sou pobre, accrescentou voltando-se convulso para a filha de Paulo de Azevedo, mas a pobreza supportada com valor, com alegria, como eu a supportei sempre, não desdoura, engrandece. Hoje não possuo outras riquezas, senão o orgulho da propria indigencia, que nunca ajoelhou, o respeito do nome sem macula que herdei, e esta espada... que póde abrir-me o caminho da gloria, ou o da sepultura!... Nunca me passou pela idéa, que houvesse no mundo um coração tão vil e corroido, que se atrevesse a cuspir no meu rosto e sobre as cinzas dos que mais amei a injuria de me aviltar ausente a especulações infames!... Socegue, minha senhora! Todos os thesouros da terra, depois d'isto, não me obrigavam a acceitar a sua mão, ainda que m'a offerecesse.

-- Louco! D. Quixote! Nescio!... rosnou Lagarde, ao qual a generosa declaração do mancebo restituiu a voz, e redobrou a ira de se ver descoberto e punido.

-- Senhor Lagarde! disse Armand, cravando n'elle um olhar sombrio. Sei que devo parecer-lhe nescio e estouvado. Glorio-me da censura. O que me faria córar eternamente seria um elogio... depois do que acabo de ouvir.

-- Senhor Aubry, observou Leonor, creia que nunca hei de esquecer a nobreza do seu caracter. Aonde quer que a fortuna o leve... conte com a minha amisade. Não sou ingrata. Se meu pae escapar...

-- Ah! exclamou o mancebo. Esquecia-me! Senhor Lagarde! ajuntou, travando rijo do braço ao ministro, que se ia desviando para se evadir desapercebido. Uma palavra antes de sair! Os vinculos do nosso parentesco estão rotos de hoje em deante. Quer que o mundo ignore os motivos? Ponho uma condição a esse sacrificio da minha parte!...

-- Condições?!... interrompeu o intendente, ameaçando o sobrinho e Leonor com os olhos e com o gesto.

-- Condições, sim! atalhou o mancebo friamente. Offereço-lhe o seu perdão, e a minha indifferença...

-- Offereces-me o teu perdão? É admiravel! Que me importa o teu perdão?...

-- Em troca de um acto de generosidade... forçada. Bem vê que lhe faço justiça, e que digo forçada, proseguiu Aubry, contendo-o, e dominando-o com a vista.

-- Oh! exclamou Lagarde, rindo convulso e constrangido. A scena era para se ver no theatro francez! Enlouqueceste Armand?!...

-- Não! redarguiu Aubry, cerrando os dentes e crescendo para elle indignado. Não enlouqueci! Mas ninguem até hoje me affrontou impunemente. Em tres dias o pae d'esta senhora ha de estar absolvido e solto...

-- Ah! É de mais! accudiu o ministro affectando intrepidez, porém assustado. E se não estiver? póde acontecer que as tuas ordens não sejam cumpridas á risca. Se não estiver pódes dizer-me o que farás? Accommettes a policia, fuzilas o conselho de guerra, ou assaltas os moinhos de vento de Monsanto?!...

-- Por Deus, senhor Lagarde, não tente a minha paciencia! bradou o official empallidecendo de colera, em quanto as pupillas scintillantes faiscavam mil ameaças. Se não estiver livre e absolvido... como lhe mando!... ouve? juro-lhe pela santa memoria de minha mãe, á qual deve só n'este momento a vida! que ámanhã o nome mais infame do imperio será o seu!...

O intendente fez-se branco e recuou, lendo na vista inflammada do sobrinho o odio e o despreso.

-- Armand! exclamou balbuciando, renegas o teu sangue por estranhos?! Unes-te aos inimigos da tua patria contra mim!?...

-- Os inimigos combatem-se com as armas na mão, não se salteam nos corredores da policia, pedindo-lhes a bolsa, ou a vida!... Fez-me córar de vergonha! A maior injuria, que podia irrogar-me, era suppor alguem que eu fosse cumplice de mercados tão vilões...

-- És uma criança! Julgas o mundo pelos romances!...

-- Basta! clamou o mancebo. Quer acaso convencer-me?! Se não obedecer ao que lhe disse, que é o desaggravo da minha honra ultrajada, não se admire do que eu fizer!...

-- Do que fizeres! Ameaças?! Crês que te receio?... Em eu te desamparando cuidas que vales alguma cousa?! rugiu o intendente exasperado.

-- Hei de valer sempre o que vale um nome honrado! Não preciso de mais. Repito. Tome bem sentido! Se o pae de D. Leonor não for solto em tres dias...

-- Não é. Que mais?! atalhou o ministro, cruzando os braços.

-- O general Junot e o conselho do governo saberão como se enriquece o intendente geral da policia! Vou revelar-lhes tudo. Então veremos.

-- Tu! Meu sobrinho! exclamou Lagarde retrocedendo fulminado.

-- Eu! Seu sobrinho por minha desgraça. Escolha agora.

Voltou-se depois para Leonor, que o dialogo tornára immovel, e acrescentou:

-- Minha senhora, adeus. Levo d'aqui a admiração da sua formosura, e a magoa de ter sido causa innocente de suas lagrimas. Sei que me perdoa, e que me fica estimando. Não peço mais. Socegue. Mesmo sem o dote, o senhor Lagarde ha de servir seu pae... Elle sabe que eu costumo cumprir a minha palavra. Vamos, ajuntou apontando a saída ao ministro com um gesto imperioso. O luto entrou comnosco n'esta casa... É tempo de deixarmos que a alegria e a tranquillidade voltem.

E quasi obrigando Lagarde a retirar-se, lançou sobre Leonor um olhar de apaixonado enlevo, inclinou-se com um suspiro, e desappareceu.

-- Manuel Coutinho, disse a donzella, erguendo a fronte de repente, depois de alguns momentos de silencio, ouviu tudo?...

-- Tudo, redarguiu elle, que não se demorou em vir lançar-se de novo a seus pés.

-- Então sabe a divida que hoje contrahi... que ambos contrahimos com Armand de Aubry. Espero que a vida d'elle lhe seja tão sagrada...

-- Como a de um irmão, respondeu Manuel. É uma grande alma.

-- Alviçaras! Alviçaras! Senhora D. Leonor! Gritou a voz do bispo do lado do jardim. Os inglezes estão a desembarcar. O nosso captiveiro pouco durará se Deus quizer.

E o prelado entrou afadigado e tremulo de jubilo no aposento, aonde os dois lhe abriam os braços não menos alvoroçados.

FIM DO PRIMEIRO VOLUME

NOTAS AO PRIMEIRO VOLUME

I

O poder do ministro eclipsou-se com o ultimo suspiro do principe e, com elle expiraram as tradições viris e os commettimentos reformadores... pag. 24.

O governo do marquez de Pombal abrangeu todo o reinado de el rei D. José I. Varios, e mais ou menos parciaes, foram os juizos dos contemporaneos ácerca da administração severa, intolerante, e absoluta, mas a muitos respeitos fecunda e reorganizadora de Sebastião José de Carvalho e Mello. A obra, que emprehendeu, o rejuvenescimento da unidade monarchica sustentado pelo apoio das classes medias devia encontrar, e de feito encontrou, a opposição dos privilegios, dos abusos, das hypocrisias, e do fanatismo. No paço a familia real, nos gremios puritanos da nobreza os fidalgos mais poderosos, nas corporações religiosas a companhia de Jesus, declararam guerra mortal e incessante ao ministro, aos seus actos, e ás suas tendencias. Para a familia real Sebastião José de Carvalho era quasi um inimigo da força e da consciencia do rei. Para a nobreza arrogante e affeita a dominar o poder despotico de um ministro, que não acurvava as vontades, ou as leis ao aceno imperioso dos eleitos de sangue azul era um peão fidalgo, insolente e soberbo, que importava derrubar e punir o mais depressa possivel. Finalmente, para os jesuitas, cuja influencia dilatada nos ultimos annos de valimento durante o reinado de D. João V, não consentia emulos, e muito menos peias, os planos atrevidos do secretario d'Estado, representando ameaças e perigos perennes para a prosperidade da sociedade, equivaliam a um cartel, que a todo o transe convinha acceitar e concluir pela derrota do orgulhoso sob pena de aplanar aos adversarios os caminhos do triumpho.

A firmeza do rei, o prestigio que a auctoridade monarchica possuia ainda, e a intrepidez do ministro venceram estas resistencias colligadas. Por que preço, porém? Que o digam os carceres e prisões povoadas de suspeitos, réos apenas muitos d'elles de alguma opinião mais livre. Que respondam os processos, as alçadas, os degredos, e os supplicios, paginas luctuosas de um governo inexoravel e vingativo. Copiando do cardeal de Richelieu até as perfidias cruentas, Pombal assignalou com um rasto patibular as principaes estações da sua administração. Por fim escorregou e caiu no sangue vertido muitas vezes sem necessidade. Os horrores, que afogaram nos tratos e crueldades da praça de Belem a famosa conspiração de 1758, a expulsão dos jesuitas; os castigos atrozes contra os tumultuarios do Porto; a execução de João Baptista-Pelle; o encarceramento prompto e perpetuo de quantos podia receiar como rivaes, ou como censores pelo nome, pela integridade, pela jerarchia, ou pela sciencia são nodoas indeleveis e accusadoras, que não apagam o merecido elogio de outros actos, nem a recta e desassombrada apreciação de suas reformas uteis e opportunas.

O marquez de Pombal tentava em parte o impossivel. Não admira, por isso, que na queda arrastasse comsigo quasi tudo o que nos monumentos do seu governo era fragil, instavel, e transitorio. A monarchia pura tinha envelhecido muito e depressa para ser exequivel salval-a por meio da transfusão de idéas e principios repugnantes á sua índole, contrarios aos preconceitos e crenças do povo e das classes elevadas, e sem base firme em que assentasse uma construcção duravel. Os tres reinados de D. Affonso VI, D. Pedro II e D. João V adeantaram a tal ponto a caducidade, que os milagres do genio, e os prodigios da vontade o mais que poderam conseguir foi suspender a dissolução espaçando até ao fim do reinado seguinte a revolução eminente. O ministro absoluto serviu-se em muitas occasiões do poder como de uma arma cega e demolidora, e a ferro e fogo imaginou transformar a sociedade decrepita e moribunda em uma sociedade nova, e vigorosa e viril, filha legitima das grandes idéas philosophicas fadadas á conquista do futuro. Suas leis e seus esforços provam a elevação do pensamento e a intensidade dos bons desejos; mas do que elle decretou ficou de pé sómente o corpo logo tornado cadaver. O espirito... não eram aquelles ainda os dias da sua victoria nem os seus meios de persuasão. Por isso com o ultimo suspiro de D. José I baqueou não só o poder, mas subverteram-se em grande parte até as idéas representadas pelo marquez de Pombal.

II

Um gabinete quasi todo composto de aulicos, sujeito ao voto do confessor valido substituiu o mando odiado do marquez... pag. 24.

A rainha D. Maria I contava, quando subiu ao throno, quarenta e tres annos de edade. Nascida e educada para reinar houve um momento, em que seu pae, segundo se affirma, concebeu a idéa de proclamar a lei salica, cingindo a corôa na fronte juvenil do principe D. José. Acclamada em 13 de maio de 1777 com D. Pedro III, esposo e tio, o primeiro acto do seu governo foi um acto de clemencia. Mandou abrir as prisões e soltar os presos d'Estado. Chamou dos longos desterros, em que jaziam, a muitos varões respeitaveis pelos annos, pelo caracter, e pela jerarchia. Menos feliz do que Richelieu e Colbert o marquez de Pombal assistiu vivo ás exequias do seu poder e á demolição da sua obra.

Demittido dos principaes empregos exercidos por largo tempo, teve o marquez por successores na presidencia do real erario o marquez de Angeja, cuja lealdade D. José I attestára espontaneamente recolhendo-se a sua casa na fatal noite de 3 de setembro de 1778; na secretaria d'Estado dos negocios do reino, o visconde de Villa Nova da Cerveira; na dos negocios estrangeiros e da guerra Ayres de Sá; e na repartição da marinha e ultramar Martinho de Mello e Castro.

Estes cavalheiros não eram homens obscuros, ou ineptos, mas qualquer d'elles estava longe da vigorosa iniciativa de Sebastião José de Carvalho, e todos juntos confundiam e atavam, mais do que desenredavam e esclareciam, as resoluções.

A consciencia timida da rainha, o genio apoucado de seu marido, as insinuações hypocritas dos beatos, que se apoderaram logo de todas as avenidas do paço e começaram a influir na direcção dos negocios, não concorreram pouco para tornar o novo reinado uma quasi restauração de tudo quanto o marquez de Pombal intentára destruir, ou modificar.

Combatida de escrupulos suggeridos por falsos devotos a rasão da rainha principiou logo a vacillar, e á prudencia e caracter limpo de allusões do seu confessor o arcebispo de Thessalonica, D. Fr. Ignacio de S. Caetano, é que ella deveu não se afogar mais cedo nas trevas da demencia.

O governo de D. Maria I não foi, comtudo, um governo absolutamente estacionario e inimigo de reformas. Se o risco das grandes cousas traçadas pelo marquez de Pombal assustava a capacidade menos elevada dos ministros, que lhe succederam, todos elles ao menos manifestaram bons desejos e rectas intenções, seguindo, ainda que muito de longe, o espirito moderno, que alvorecia em França, e cujos clarões ainda se não haviam convertido nos relampagos deslumbrantes, que precederam a revolução de 1789; ou nas tempestades medonhas, que revelaram as subversões de 1792 e 1793.

Modesto nas idéas e nos commettimentos, o gabinete da rainha creou a junta do codigo civil, cujos trabalhos nunca viram a luz da estampa; fundou a Academia Real das sciencias; estabeleceu os estudos de primeiras lettras e humanidades nos claustros das corporações regulares; instituiu a casa Pia para asylo das creanças orphãs; dotou as aulas de Fortificação e a Academia de Marinha; e decretou novas estradas e meios de as executar sob a direcção de José Diogo de Mascarenhas Netto.

A entrada de D. Rodrigo de Sousa Coutinho no ministerio em principios de 1797, por morte de Martinho de Mello, introduziu na administração um elemento activo, emprehendedor, e dedicado por indole e tendencias a arriscar planos mais vastos e mais altos muitas vezes, do que o consentiam as circumstancias e as forças debilitadas da monarchia.

III

Os tres sujeitos eram nada menos, do que tres delegados do conselho conservador de Lisboa, associação composta de patriotas dedicados á restauração da independencia, etc., pag. 88.

A existencia d'esta sociedade secreta politica não é uma invenção. Saiu á luz dos prelos da imprensa regia um opusculo de 24 paginas de 8º, com a seguinte denominação Catalogo por copia extrahido do original das sessões e actas feitas pela sociedade de portuguezes, dirigida por um conselho intitulado conselho conservador de lisboa, e installada n'esta mesma cidade em 5 de fevereiro de 1808; tendo se unido os installadores em 21 de janeiro do mesmo anno para tractar da restauração da patria.

O conselho fundou-se em 5 de fevereiro de 1808 com seis socios que eram: G... Matheus Augusto, José Maximo Pinto da Fonseca Rangel, José Carlos de Figueiredo, Antonio Gonçalves Pereira, André da Ponte do Quental da Camara; José Maximo da Fonseca foi nomeado secretario. O local das reuniões decidiu-se que fosse alternadamente a casa de cada um dos adeptos. A hora das conferencias ás 8 da noite.

A formula do juramento adoptada era esta: «Na nossa presença, oh immenso, Sempiterno, Omnipotente Deus, creador do Universo, estando em nosso accordo, sem constrangimento, ou duvida, livres e deliberados jurámos tractar de hoje em deante com todo o possivel disvelo, fervor, prudencia, e firmeza a causa nobilissima da religião da patria e do throno applicando para isso nossas forças, talentos, bens e vida até conseguirmos entregar este a seu dono o principe regente e áquelles o esplendor, a liberdade, a gloria. Este juramento seja para sempre o fundamento da nossa honra e da nossa felicidade, que chame sobre nós a benção divina e os applausos da nossa posteridade: a violação d'elle, pelo contrario, attrairá sobre nós as maldições do céu e da terra; a vileza para nós e para os nossos descendentes.»

Na setima sessão prestaram este juramento um pouco theatral o coronel de cavallaria Alvaro Xavier de Povoas e Fernando Romão da Costa Athaide Teive. D'ahi em deante cresceu todos os dias o numero dos socios e associados. Na sessão de 25.º constituiu-se o conselho conservador á pluralidade de votos e ficou composto dos seguintes deputados e adjuntos: o bispo de Malaca D. Francisco, o D. abbade de Belem fr. Manuel de Mesquita, o arcediago do Funchal Manuel Joaquim de Sousa, o beneficiado Joaquim José da Costa, o marquez de Angeja D. João, o conde de Rio Maior, o visconde da Bahia, o desembargador Sebastião José de Sampaio, o brigadeiro Antonio Marcelino da Victoria, os coroneis Lemos, Lacerda, e Raposo, o tenente coronel Costa Athaide, o major Antonio Marcelino Soares, e todos os mais socios approvados e admittidos. João Carlos de Saldanha Oliveira e Daun, hoje duque de Saldanha, entrou tambem no conselho inscripto sob numero 27. Consta da relação publicada a pag. 87 do opusculo.

O conselho desde 5 de fevereiro até ao 1.º de outubro de 1808, em que se dissolveu, celebrou quarenta e duas sessões. O numero dos socios ajuramentados subia a 183. O dos auxiliares abonados por varios d'elles elevava-se a 959, além do concurso de tropa e povo, com que contava para o caso de um rompimento.

Os planos de sublevação, as proclamações, os avisos ao almirante inglez sir Charles Cotton, e os projectos da sociedade não corriam tão secretos como elle imaginava.

A policia franceza suspeitava, pelo menos, se não conhecia plenamente a organização d'este nucleo; porém não julgou prudente proceder contra elle, temendo-se talvez mais de um processo ruidoso em circumstancias criticas, do que dos tramas pouco bellicosos e activos dos conspiradores. É o que se deprehende de um trecho da Historia da Guerra da Peninsula do general Foy.

IV

Muitos homens illustrados, que o grandioso espectaculo dos acontecimentos advertia, suspiravam por uma renovação, que nunca podia ser inspirada, bem o sabiam por experiencia, nem pelas idéas, nem pela iniciativa de um governo caduco pag. 101.

Allude-se no texto ao plano de uma constituição similhante á que Napoleão I concedêra ao grão-ducado de Varsovia, plano concebido, segundo affirma o general Foy, no liv. II da sua Histoire de la Guerre de la Peninsule, por alguns patriotas portuguezes, desejosos de colherem ao menos da intrusão estrangeira os beneficios da liberdade.

O general Foy cita como auctores principaes do plano o desembargador Francisco Duarte Coelho, o doutor Ricardo Raymundo Nogueira, reitor do Collegio dos Nobres, e o conego Simão de Cordes Brandão, lente de direito natural e das gentes na Universidade de Coimbra, e insere nas provas sob a lettra J o projecto de codigo politico, que então se queria pedir a Bonaparte. (Tomo II, edição de Paris pag. 38 e seguintes e pag. 469 e seguintes).

José Acurcio das Neves (Historia da Invasão dos Francezes em Portugal tomo II) transcreve egualmente o documento, porém não diz claramente a quem elle deve ser attribuido; mas o auctor da Historia de El-Rei D. João VI, vertida em portuguez (Lisboa typographia Patriotica 1838 a pag. 189-191), depois de nos dar tambem o projecto, accrescenta, que esta mensagem fôra dirigida pelo doutor Gregorio José de Seixas de accordo com muitas pessoas distinctas por engenho e representação. Entretanto o padre José Agostinho de Macedo, como nota o sr. Innocencio Francisco da Silva no tomo VII do seu Diccionario Biliographico pag. 276, accusou em mais de um logar de suas obras a Simão de Cordes, lançando-lhe em rosto o haver sido um dos que no fim do seculo passado maior impulso tentáram dar á maçonaria em Portugal, e principalmente em Coimbra, aonde chegára a organizar algumas lojas.

O bispo de Vizeu no Elogio Historico fórma juizo absolutamente opposto do procedimento e doutrinas de Simão de Cordes.

Sejam, porém, as que aponta o general Foy, ou outros auctores, o projecto de constituição redigiu-se e corre hoje impresso. Restava o mais difficil. Era necessario achar pessoa auctorizada, que se decidisse a apresental-o. Acceitou a missão arriscada o juiz do povo, que era então um tanoeiro chamado José de Abreu Campos, notavel pela firmeza e integridade. Mais de um lance de nobre ousadia confirma esta opinião formada com justiça ácerca do seu caracter.

Quando o conde da Ega foi incumbido por Junot de aggregar aos membros da Junta dos Tres Estados os representantes denominados dos braços da nação para lhes extorquir em simulacro de côrtes um voto de adhesão, o juiz do povo protestou contra os actos da assembléa, como illegaes e emanados de corpo incompetente. Quando as quinas foram picadas e substituidas pela aguia corsa, Abreu Campos negou-se a apagal-as da cabeça da sua vara.

O juiz do povo correspondeu ás esperanças depositadas n'elle. Intimado para assignar com o clero e a nobreza, em nome do povo, a mensagem de 24 de maio de 1808 (provas de l'Histoire de la guerre de la Peninsule, par le general Foy. Paris 1827, tom. II, pags. 467-469) o honrado tanoeiro, protestando contra o acto por nullo e abjecto, e contra os que o practicavam por incompetentes, apresentou o projecto de constituição composto em fórma de petição dirigida ao imperador, e appellou para o voto do paiz representado em côrtes.

Esta voz isenta proclamando a emancipação politica offendeu os ouvidos do duque de Abrantes. O juiz do povo, chamado ao quartel general, foi asperamente reprehendido, e varias pessoas, suspeitas de liberaes, mandadas sair de Lisboa.

Prevaleceu assim a mensagem servil dictada á simulada junta da nação. José Sebastião de Saldanha partiu encarregado de a apresentar a Napoleão I. Achando, porém, já interceptadas as communicações da Hespanha com a França, recolheu a Lisboa sem ter podido passar adeante da cidade Rodrigo.

V

Deixemos passar esses vultos, que pisam os sobrados nas pontas dos pés, escorregando quasi como sombras. São rodas secundarias da machina, pag. 111 e 112.

O general Junot, intitulando-se nos seus actos governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M. o imperador e rei, e general em chefe do exercito invasor, compôz desde principio e da maneira seguinte o pessoal do governo em Lisboa:

Por decreto datado de Lisboa no 1.º de dezembro de 1807, nomeou Francisco Antonio Herman commissario do governo francez junto do conselho do reino de Portugal, o qual lhe daria conta de todas as suas deliberações, podendo assistir a ellas, querendo, e assignar as actas. Por decreto de 3 de dezembro, do mesmo anno foi Herman incumbido tambem da administração geral da fazenda. Em 8 de dezembro foi encarregado o general Laborde do commando superior de Lisboa e o conde de Novion do commando das armas da cidade. O marquez de Alorna recebeu a nomeação de inspector geral e commandante das tropas nas provincias de Traz os-Montes, Beira e Extremadura (22 de dezembro de 1807).

J. J. Magendie já exercia as funcções de commandante em chefe da marinha em 1 de março de 1808, como consta de um aviso seu aos officiaes da arma, e aos empregados do porto de Lisboa, expedido n'essa data. P. Lagarde foi nomeado intendente geral da policia do reino em 25 de março de 1808, por decreto de Junot, referendado pelo secretario de Estado dos negocios do interior e da fazenda, Francisco Antonio Herman. Por decretos da mesma data nomeou Junot corregedor-mór da Extremadura a mr. Pepin Bellisle, auditor do conselho de Estado, da provincia do Alemtejo a mr. Lafond, e da provincia de entre Douro e Minho a Taboureau, ambos tambem auditores do conselho de Estado. Quintella foi feito corregedor-mór da Beira.

O decreto, que approvou as instrucções dictadas a estes novos magistrados, sahiu com a data de 2 de abril de 1808. Por decreto de 16 de abril do mesmo anno foi Lagarde nomeado conselheiro do governo para assistir ás sessões do conselho. A 16 de abril já o general Junot havia recebido de Napoleão o titulo de duque de Abrantes.

VOLUME II

I

Quando Deus queria... do norte chovia

A procissão do Corpo de Deus, em Lisboa, era talvez a festa religiosa mais solemne da cidade. Nossos avós, e sobre tudo nossas avós, preparavam-se para ella mezes antes, e nas vesperas do grande dia as costureiras, os alfayates, e os cabelleireiros viam-se doidos com as impertinencias, recados, e instancias. É que todas as sumptuosidades da mobilia, toda a prata mareada das baixellas, todo o recheio das arcas e armarios tinha de apparecer e luzir n'aquella bem vinda festividade, que abria as portas das casas e o seio das familias a uma verdadeira inundação de visitas, de conhecidos, e de curiosos. As janellas das ruas, por onde passava o prestito do bemaventurado S. Jorge, santo cavalleiro e general ao serviço de Portugal desde os tempos heroicos de el-rei D. João I, em odio a Castella e como pirraça ao senhor Santiago, convertiam-se em outros tantos camarotes armados de sanefas e listões de purpura nas vergas e ombreiras, forrados de colchas da India e de cobertas de seda da China.

O copo de agua, que era costume offerecer aos convidados, despejava as lojas mais sortidas dos confeiteiros e conserveiros da moda. O jantar, ao qual se assentavam os hospedes mais aceitos, só com a vista fartaria a gula mais faminta. As galas devotas espertavam a emulação, e as bolsas mais discretas e apertadas não se negavam por excepção aos maiores sacrificios para que vestidos, joias, e toucados brilhassem ao menos uma vez no anno com esplendor digno da vaidade e ufania de seus donos.

Instituida por Urbano IV, em 1264, na primeira quinta feira depois da festa da Trindade, afim de solemnizar o culto particular do Santissimo Sacramento, confirmada e ampliada por muitos Papas, a procissão do Corpo de Deus fôra sempre feita em Portugal com fausto e invenções notaveis nas terras principaes do reino. O brutesco acompanhamento, que a seguia na meia edade, e ainda no seculo XVI, tornava-a ao mesmo tempo um acto religioso e um espectaculo profano. A imaginação popular de nada se esquecia para que ella fosse unica e singular pela extravagancia das figuras e pela riqueza ostentada pelas corporações mechanicas em competencia e rivalidade umas com as outras. As naus e galés dos carpinteiros e calafates da Ribeira das naus, os anjos e gigantes dos merceeiros e boticarios, a torre e a serpe dos alfayates, o sagitario dos armeiros, uma nuvem de demonios de todos os feitios, e mil outras representações entresachadas de danças e folias, no meio das musicas mais desvairadas e dos instrumentos mais oppostos, como gaitas de folles, tambores, pandeiros, violas, córos de donzellas, flautas, e doçainas pastoris, tudo isto compunha, variava, e confundia o cortejo, o qual consumia quasi o dia todo nas ruas apinhadas de povo, e alegradas de alecrins e rosmaninhos.

O senhor D. João V, o Salomão portuguez, creando a patriarchal em 1717, não omittiu em sua liberalidade a festa mais pomposa da côrte, e com espiritos regiamente devotos modificou o plano e accessorios da famosa procissão. Este grande acto inspirou a um dos mais respeitosos admiradores do prodigioso genio de sua magestade, a um dos eruditos irmãos Barbosas, um volume em folio de 240 paginas, obra monumental, que attesta ao mesmo passo a importancia do assumpto e a profunda philosophia do auctor. N'este livro, curioso em muitos trechos pelas noticias, que encerra ácerca da capital nos principios do seculo XVIII, veem narradas com escrupulosa miudeza as circumstancias, que mais preocuparam o augusto reformador e os seus conselheiros circa sacra. El-rei com mão firme supprimiu do solemne acto as figuras, e as danças, mas empalideceu talvez com o arrojo. O golpe era temerario. O povo a tudo indifferente, em materia de recreação ao Divino era zeloso e irritavel como um tribuno da plebe dos nossos dias.

As chacotas, os andores, o baile das espadas, e a folia dos moleiros, por entre as visagens dos diabos sarapintados, e os uivos e bramidos das féras de papellão, serviam-lhe de opera comica, e foi necessaria grande firmeza de vontade, e toda a sabedoria de sua magestade, instruida pela sua larga experiencia das confrarias e irmandades, para o obrigar a contentar-se com os arcos, medalhas, columnas e louros, que ornavam o paço e as ruas do transito, e com a magra e dolorosa substituição de um anjo vestido de brocado, com suas azas de cambraia tesas de gomma e chapins altos, unico personagem, que sobreviveu de todos os vistosos e engraçados momos, que distraíam d'antes a procissão com seus esgares e jogralidades.

A ausencia da côrte e da nobreza, a tristeza impaciente causada pelo jugo estrangeiro, e o receio, que vozes vagas faziam conceber de alguma explosão popular, não diminuiam, apesar d'isso, o alvoroço, nem a concorrencia.

No palacio do governo as apprehensões eram mais vivas. Lagarde recebia de momento para momento avisos assustadores, e lia-os sobresaltado aos collegas. Herman meneava a cabeça com ar incredulo. Junot sorria-se e encolhia os hombros. A frivolidade do seu espirito e os arrebatamentos do seu genio não lhe offuscavam todavia a penetração natural. Conhecia e despresava as murmurações do vulgo, e confiava no seu valor, e no das tropas que lhe obedeciam. Sabia que as linguas e as ameaças eram mais intrepidas, do que as acções. Além d'isto o plano innocente dos honrados conspiradores de toga e rabicho tinha ferido o seu amor proprio, e por nenhum caso admittia que se julgasse, que elle queria furtar-se ás ciladas e assaltos theoricos do Conselho Conservador. «O perigo, exclamou, depois de larga discussão, vem do mar com os inglezes; está nas serras e desfiladeiros do norte com os camponezes armados! O que rosnam, ou vociferam aqui mercieiros obesos, frades apopleticos, e desembargadores tropegos, não vale uma escorva. O galope de um esquadrão seria de mais para os metter pelo chão abaixo. Lisboa não é Paris.»

Lagarde suspirava, o ministro da guerra e da marinha limpava os vidros dos oculos, e o conde da Ega affectava ar heroico para não desmentir o elevado conceito, que suppunha merecer ao duque de Abrantes. O conselho dilatou-se, e terminou já pela noite dentro, dois dias antes da ceremonia, com uma transacção digna da prudencia insidiosa do intendente geral da policia. Não podendo alcançar que a procissão não saisse, Lagarde obteve ao menos que Junot a não acompanhasse, pegando ás varas do pallio, mas que se resignasse a vel-a passar da varanda do palacio da inquisição para, dizia o astucioso magistrado, não estimular a saudade e o ciume dos portuguezes, os quaes de certo se aggravariam se elle occupasse o lugar do principe regente e os ministros francezes o dos fidalgos expatriados!

O general em chefe resistiu, porém cedeu. Receando que o accusassem de um rasgo de vaidade nescia, e que a ostentação da sua pessoa désse armas aos inimigos, não podia negar, egualmente, que, fóra do cortejo, lhe seria mais facil accudir para atalhar qualquer emoção provocada entre as multidões, que se acotovellavam, riam, e chasqueavam nas praças, e travessas da capital.

Dispostas assim as cousas, amanheceu o appetecido dia. Os regimentos francezes ás quatro horas da madrugada formaram no Passeio publico, e a alegria marcial das musicas annunciou á cidade a grande solemnidade. Os raios do sol principiavam a beijar as grimpas dos telhados e as cruzes dos campanarios. As senhoras, que mal tinham repousado, sentadas em cadeiras, para não arrepiarem a symetria laboriosa dos toucados, começavam a enfeitar-se com as ricas modas escolhidas para esta occasião. As janellas, armadas como templos, guarneciam-se de damas e cavalheiros, mais curiosos ainda de se mostrarem, e de serem vistos, do que de gozarem o espectaculo, que servia de pretexto á reunião.

Nas ruas, areadas e cobertas de espadanas e flores, enxameiava com zumbidos cada vez mais fortes a primeira irrupção de abelhas matutinas, saída do cortiço popular com os arreboes da aurora. A véstia de abas e o calção curto do saloio contrastavam tanto com a jaqueta de ramagem do campino, como o lenço e a capa das mulheres da cidade com as roupinhas a saia vermelha, e a carapuça das matreiras filhas de Friellas e Alcabideche. A pouco e pouco os enxames engrossaram, as mangas de povo cresceram, os zumbidos converteram-se em borborinho, e por entre as alas de tropas postadas desde S. Domingos até ao Terreiro do Paço, entrou a avultar, colleando similhante a serpe gigantesca e monstruosa, o immenso concurso, que esperava a procissão, e cujo sussurro perenne era cortado, ou avivado a miudo, por vaias brutescas, por estridulos pregões, e pelas corridas e contendas de algum Adão menos soffrido, que os gritos e queixas da sua Eva expunham aos apupos e sorriadas da plebe.

Os repiques festivos dos sinos nas torres das parochias e conventos despenhavam sobre a cidade um verdadeiro alarido de notas metalicas, imitando com arte mais, ou menos boçal os cantos e melodias em voga nas serenatas e nas operas. A esta matinada pouco harmoniosa, e assás impertinente, rebate estrondoso do sagrado alvoroço das freguezias e communidades, respondiam as salvas do castello, dos navios, e das fortalezas. O jubilo espiritual da população traduzia-se em pragas, exclamações, e algazarras, em que não eram poupados pelo patriotismo escandecido dos zelosos os soldados de Napoleão, firmes e silenciosos como estatuas em seus pedestaes. Rebentaram gritos de alegria, moveu-se maior tropel de povo, e ondas encontradas, impellindo-se e remoinhando no adro de S. Domingos e no Rocio, deram o signal de que o prestito transpunha, emfim, os umbraes do templo.

As bandeiras dos officios, na figura de grandes paineis suspensos de cordões de seda em compridas varas, tremulavam na testa do cortejo, representando entre ricas bordaduras a ouro e preciosas tarjas as imagens dos santos, que em sua vida haviam exercido o trabalho manual, de que eram advogados e protectores no paraizo. Atraz das bandeiras, oscillando sobre um formoso cavallo branco, vinha o vulto equestre de S. Jorge, precedido de trombeteiros montados e de tambores a pé, entre a furia sonorosa dos clarins e atabales. Um homem d'armas, robusto comparsa alugado para queimar dentro de uma pesada casca de ferro o sangue e a corpulencia, erguia o guião do cavalleiro santo sobre a lança, capitaneando, meio suffocado e tonto de vertigens, o vistoso apparato dos cavallos da casa de Bragança ricamente ajaezados, e levados á mão pelos moços das cavalhariças reaes. A imagem de S. Jorge vestia arnez, coxotes e grevas, e trazia na cabeça o gorro de velludo, que em tempos mais ditosos adornavam os diamantes do duque de Cadaval. Um pagem enfeitado de vistoso cocar de plumas, quasi tão alto como elle, acabava de figurar a ficção das emprezas militares do glorioso general, que nunca vira os campos de batalha portuguezes, por que nunca pelejou contra os inimigos da fé, ou da independencia na Peninsula.

Seguiam-se as irmandades de Lisboa e do termo, os servos das diversas confrarias, e os farricoucos, amortalhados em hollandilhas da cabeça até os pés, todos sequiosos de alardearem sua compuncção anonyma. Eram perto de cem as irmandades e confrarias, que desfilavam em passo grave com suas tochas na mão e suas opas de variadas côres, trocando em voz baixa de umas para outras censuras e chascos nada caridosos ácerca do numero, ou negligencia de seus irmãos em Jesus Christo. No couce d'estes virtuosos auxiliares do altar, com os olhos baixos, e ademanes reverentes, caminhavam as communidades, Franciscanos, Ordens Terceiras, Trinos descalços, Agostinhos, Carmelitas, Capuchos, Capuchinhos, Arrabidos e innumeros outros ramos da frondosa arvore monastica, cujo tronco brotado da piedade e munificencia dos soberanos era alimentado pela devoção, ou pelos remorsos dos fieis. Transparecia o orgulho beato da santidade no rosto de muitos d'elles. Os religiosos de S. Domingos fechavam a rectaguarda da sacra milicia.

Depois dos monges e mendicantes começava o clero regular, e apoz elle, debaixo da cruz patriarchal, todo o clero secular, os padres da congregação de S. Filippe Nery, os das Missões, e os parochos, curas, e presbyteros das freguezias de Lisboa, conegos, e as dignidades, e a curia ecclesiastica. Rematavam o longo e estendido sequito os conselhos e tribunaes da côrte, os fidalgos que residiam em Portugal, e os cavalleiros das ordens militares. As varas do pallio pegavam as pessoas mais nobres e conspicuas por sangue, empregos, e representação.

Havia tres horas, que a procissão andava fóra, e ainda nenhum tumulto, ou perturbação justificára os presentimentos sinistros da policia. O povo olhava com enlevo para tudo, ajoelhava e batia nos peitos, e limitava a maldições abafadas a sua aversão aos francezes. Junot, que assistia da varanda do palacio do Rocio ao religioso acto, e cujos olhos indagadores não cessavam de espreitar o menor indicio de agitação, vendo tudo sereno e socegado, e os maus prognosticos desmentidos, ria-se já sem disfarce dos receios do intendente Lagarde, e perguntava-lhe em ar de mofa pelo nome dos malsins assustadiços, que tinham inventado a conspiração, talvez para os promover na falta de concorrentes ao logar, ainda vago, apezar da sua proclamação, de Camões do reino do Algarve!

De repente o duque de Abrantes suspendeu-se. O riso gelou-se-lhe nos labios. Herman, que estava á sua direita, enfiou; e Lagarde, crescendo sobre os aprumados collarinhos, dilatou o pescoço fóra da gravata. Um olhar, em que se retratava ao mesmo tempo o receio e o triumpho fez comprehender em sua muda eloquencia ao general em chefe, que se rira cedo de mais da infallibilidade da policia. O que succedia, porém, n'este momento para assim mudarem de subito as scenas e as phisionomias? Estálara a revolução promettida? Tinham os conspiradores denunciados deixado cair a um signal, como no theatro do Salitre o imperador José II, as becas, as capas, os habitos, ou as sotainas, e appareciam metamorphoseados em actores de novas e segundas vesperas sicilianas? Ninguem podia dizer ainda. Da varanda de pedra, Junot e o seu cortejo viam e ouviam o tumulto, sentiam-n'o avultar, mas ignoravam as causas e os incidentes.

As bandeiras dos officios dobravam já com todo o socego da rua Augusta para a rua do Ouro, dando a volta pelo Terreiro do Paço, e o pallio e o Sacramento saíam da egreja de S. Domingos, quando uma furiosa vaga de povo, encapellando-se inopinadamente, investe com o corpo da procissão na rua Augusta, envolvendo e afogando em suas ondas loucas as confrarias e communidades, derruba tudo no impeto irresistvel, corre infrene como inundação despenhada, como furacão vertiginoso, e por cima de todos os obstaculos galga invencivel até ao Rocio, aonde, similhante a rio caudaloso que se precipita, rasga por entre milhares de vultos o seu caminho!

No meio da praça esta onda, repellida pela corrente opposta, golfada das portas de S. Domingos, vê-se entalada sem poder avançar, ou recuar, lucta com esforço desesperado, e por fim, semeando o terror e o espanto por toda a parte, vae acabar de se desfazer em redemoinhos, ou em pinhas oscillantes, que se quebram, e renovam á entrada das ruas e travessas por onde as multidões se escoam, fugindo feridas de demencia.

Os clamores, os gritos de angustia, as interjeições de pavor cortam os ares, e ensurdecem os ouvidos. Mulheres e crianças arrastadas no tropel, meio suffocadas, pallidas e quasi moribundas, alçam em vão os braços supplicantes, e desapparecem perdidas depois nos rolos, que se ennovellam e arremessam a cada passo.

A tropa, cujas alas vergam e se rompem com o embate da plebe, é cortada em todos os sentidos, e debalde tenta reunir-se. Os artilheiros desordenados cedem e desamparam as carretas.

Colhida no centro do bulcão popular, a procissão rota e dispersa em mil fragmentos, que vozeam e se revolvem, como troços semi-vivos de um reptil, alastra as ruas de cruzes, de tochas, e de insignias, calcadas por milhares de pés. Frades, padres, magistrados, cavalleiros, irmãos, e penitentes bradam, imploram, atropellam-se, e ora dobados no ar, ora estatelados em terra, lividos, moidos, e descompostos pelejam por se arrancarem a este pelago tempestuoso, em que abafam, buscando por similhante forma refugio contra o perigo.

O prelado, que trazia a custodia, e o pomposo sequito que rodeava o pallio, vê de repente a praça tornada um mar procelloso, e ouve sobre o clamor geral as vozes dos officiaes francezes mandando carregar as armas á guarda de granadeiros, e accender os morrões aos artilheiros da bateria postada junto do adro. Attonitos e paralyzados um instante, o medo presta-lhes azas depois. Luctam, repellem-se, volvem a traz, e rompendo, como cunha viva, por meio da multidão, que transborda do templo, vão cair uns sobre os outros de roldão na sacristia, deixando o pavimento juncado de thuribulos, de capas de asperges, de roquetes dilacerados, de chapéus de plumas, e de mantos das ordens militares.

A cavallaria de Junot une as fileiras. As largas espadas dos soldados reluzem por cima das cabeças com lampejos terriveis. O povo agglomerado, entre a muralha que o atira sobre os cavallos, e o terror das armas, que o ameaçam, solta horriveis clamores, peleja por abrir passagem, e augmenta o ruido, o sossobro, e a confusão do tumulto immenso.

Não ha pincel, nem tintas que possam desenhar quadro tão medonho! Os gemidos, os choros, as quedas, contrastam a cada minuto com os lances comicos e os episodios risiveis. O medo inspira os ardis mais burlescos. O desespero suggere os arbitrios mais violentos.

As ruas e travessas proximas, similhantes a canaes rotos á furia das aguas, engolem e despejam incessantemente os bandos variegados dos fugitivos, entre os quaes a egualdade do terror acotovella os commendadores e os togados com o operario, o frade e o farricouco pelo judeu transido, ou pela collareja tão veloz nos passos, como solta de lingua e prompta de gestos.

Capotes, cabelleiras, chinós, sapatos, abas de fardas e de casacas, canhões e gollas bordadas, lenços, cintos, farrapos, de todas as telas e de todos os matizes em fim, coalham este campo de batalha, aonde os mortos, felizmente, isto é os que baqueiam, resuscitam logo ao beijarem o chão, e se levantam para disputar celeridade aos mais ligeiros. No meio dos alaridos e dos estrepitos, do centro d'este cahos ruidoso de furias, bramidos, e uivos bestiaes, vozes tremulas e roucas de susto, em perguntas e replicas instantaneas, exclamam confusas e lugubres: «O terremoto! Os inglezes! As ruas minadas!»

II

De um argueiro um cavalleiro

As vozes, o espanto, o terror, e o tumulto das ruas, todas as apparencias, em fim, inculcavam a cidade sublevada e as apprehensões de Lagarde confirmadas.

O denodo e a presença de espirito de Junot não o atraiçoaram n'este lance. Descendo os degraus da escadaria á pressa, emquanto o intendente da policia se emparedava e calafetava no gabinete secreto, o duque de Abrantes atravessa intrepido por meio das ondas revoltas do povo, rompe pelo centro d'ellas até á egreja, corre á sacristia, e á força de estimulos e persuasões consegue arrancar d'aquelle asylo pouco seguro o prelado e os sacerdotes, que tremem de medo, e que julgam chegada a sua ultima hora.

Chamando depois os padres, os fidalgos, e os cavalleiros das ordens militares e animando-os com as palavras e o exemplo, diz-lhes:

-- De que se receiam? O que temem? Não estou eu aqui? Não vêem os meus soldados firmes? Continuemos a procissão.

Recompondo, do modo possivel depois, o prestito disperso manda saír o pallio, e acompanha-o a pé com o seu estado maior.

Patrulhas fortes circulam ao mesmo tempo, e dispersam os mais pequenos ajuntamentos. O regimento 86.º marcha com tanta precipitação, que leva o pão espetado nas bayonetas por carecer de vagar para comer o rancho!

Qual fôra, porém, a origem do estrondoso successo? Nascêra de planos concertados pelos amigos da independencia, como cuidaram os francezes, ou rebentára espontaneo da agitação e do odio comprimido dos habitantes de Lisboa? Nem uma, nem outra cousa. Um grão de areia fez parar a roda. Um sopro desenfreou o temporal. A verdadeira causa do arruido colossal do dia 16 de junho de 1808 foi uma imprudencia policial do honrado sargento Cabrinha, e um esquecimento de lingua do seu virtuoso assessor Gaspar Preto, por alcunha o Sapo. Estes dois personagens, que não cabiam em si de vaidade, desde que os louvores do intendente geral da policia inflammaram o seu zelo pelo serviço da sua magestade o imperador e rei, succumbiram um instante á fraqueza dos grandes homens, e estiveram a ponto de fazer nadar a capital em sangue. Eis como se passou o notavel episodio.

Já sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel Simões da Aramanha, e o João da Ventosa, obedientes como bons patriotas ás instancias do morgado de Penin, capitão de milicias de Rio Maior, tinham feito a jornada de companhia, e por um triz não apanharam em Villa Franca o sargento e o seu ajudante, que partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres em Lisboa alojaram-se em uma casa conhe Já sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel Simões da Aramanha, e o João da Ventosa, obedientes como bons patriotas ás instancias do morgado de Penin, capitão de milicias de Rio Maior, tinham feito a jornada de companhia, e por um triz não apanharam em Villa Franca o sargento e o seu ajudante, que partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres em Lisboa alojaram-se em uma casa conhecida do lavrador da ponte da Asseca, regalaram-se de bom vinho e de bons boccados, e esperaram resignados que a causa nacional lhes pedisse o auxilio do braço ou do cajado.

Na madrugada do dia da procissão, muito antes do sol fóra, já o triumvirato ribatejano palmilhava as ruas com a curiosidade mais inoffensiva, e apenas se abriu a primeira taverna uma copiosa libação desjejuára os tres vastos estomagos, montados em diamante.

Começou a concorrer gente, acabou a parada no Passeio publico, e desfilaram as tropas. Davam nove horas, e o fazendeiro da Aramanha, interpellando o João da Ventosa, perguntou alto aonde era o almoço, e se teriam tempo de o engulir antes da procissão? A resposta foi sumirem-se por uma travessa escusa, entrarem para uma especie de furna escura, immunda, e humida, e sentarem-se em mochos vacillantes á roda de uma mesa, cuja toalha bem mostrava nunca haver deixado os lençoes de vinho. Chiavam as appetitosas iscas de figado, e o cheiro exhalado das enfumadas frigideiras convidava o olfato dos freguezes.

Quando os tres se levantaram d'este banquete plebeo, a procissão andava já no Rocio, e o Deus Baccho tambem lhes fazia a elles mil travessuras na vista e no equilibrio. Metteram hombros ao apertão, foram rompendo a murro e a calcadellas, mas á esquina da travessa da Assumpção encontraram resistencia tal, que se viram obrigados a ceder.

As bandeiras dos officios fluctuavam nos ares, e uma linha cerrada de bayonetas, pouco condescendentes, não consentiu que os provincianos a atravessassem. O lavrador e seus amigos rosnaram algumas pragas, mas tiveram de as engulir em sêcco e de ficar.

Antonio da Cruz, guapo e decidido, trajava bem suas galas domingueiras, e dava-se ares de moço mui desempenado debaixo das abas do chapéu novo de Braga. Vendo-o assim alegre e pimpão, meio encostado ao cajado, uma saloia, fresca e viçosa como as rosas do campo, pediu-lhe licença de passar para deante afim de ver melhor, e o moleiro officioso fez-lhe logar immediatamente, acto de cortezia recompensado por um sorriso, que descobriu indiscretamente as trinta e duas perolas, que escondiam uns beiços mais vermelhos, do que bagos de romã. Ao mesmo tempo o João da Ventosa e o Manuel Simões, encontrando-se hombro a hombro com um marchante conhecido, homiziavam-se com elle a furto no retiro de uma tasca chamada loja de bebidas, para onde os iniciados se introduziam por um corredor estreito, disfarçado no fundo da entrada da casa, deante da qual se achavam.

Até aqui corrêra tudo admiravelmente, mas o demonio depressa as arma. O sargento, o Sapo, e uma quadrilha de beleguins da policia seguiam de longe o triumvirato innocente, desde as portas do Passeio publico. Haviam-n'o perdido de vista, quando á voz do almoço o robusto lavrador capitaneou a evolução, que levára os convivas ao sujo templo, aonde o Comus enfarruscado das iscas os detivera duas horas.

Cabrinha recebêra ordem expressa de Lagarde de se apoderar dos tres amigos, e de os hospedar na cadeia, mas fôra egualmente admoestado para obrar com finura e sem ruido. Era a razão porque não se atrevêra a empolgal-os na rua, e no meio do povo, que seus gritos podiam alvorotar. Quando lhe desappareceram, como se a terra se tivesse sumido com elles, scismando um instante, disseminou logo depois a quadrilha em duas mangas. Uma partiu para o Rocio e foi postar-se á esquina do arco do Bandeira. A outra conservou-se na rua Augusta, vigiando-a. O Sapo, trepado em um frade d, trepado em um frade de pedra, servia de vedeta.

O Antonio da Cruz estava todo embebido nos colloquios e requebros de seu galanteio com a saloia, quando sentiu de repente, que lhe batiam no hombro. Virou-se, e deu de rosto com um sujeito magro e grelado, de chapéu arrombado, calções espigados, casaca de côr cambiante, e sapatos risonhos, que lhe disse muito manso ao ouvido, travando-lhe do braço.

-- Está preso! Venha commigo. Não faça bulha!

Ao mesmo tempo outro escudeiro, baixo, roliço, olhos encarnados e chorosos, e nariz expansivo, cravejado de rubis assanhados, deitava-se-lhe ao outro braço, ao braço do cajado, pendurando-se quasi n'elle. N'um rapido relancear o moleiro descobriu a poucos passos, cozidos com as hombreiras da porta, por onde se tinham escoado os seus amigos, o sargento, o Sapo, e um terceiro quadrilheiro. Esta apparição revelou-lhe que era serio o caso.

Soltando um assobio forte e prolongado, signal aos companheiros para se juntarem e accudirem, o Antonio, sem accusar a intenção na physionomia, sem levantar voz, ou grito, por um movimento secco dos hombros saccudiu de si os dois malsins, e empunhando-os já no ar pela gola assás madura das casacas cossadas e transparentes, cuspiu-os das mãos, colhidos em flagrante, cada qual para sua direcção. Ao arremesso momentaneo, o homem esguio e grelado, por ser mais leve, subiu mais alto, e veiu caír por elevação sobre as costas de um massiço prebendado, com os olhos escudados de oculos e palla verde, o qual estava explicando a duas sobrinhas boqui-abertas a lenda aurea de S. Crispim, pintado na bandeira dos sapateiros. O agarrador, grosso e baixo, mais pesado, voou rasteiro, deixando metade da gola, as costas, e uma aba da casaca no punho do moleiro, e foi bater, como pella despedida, no vulto enorme de certa dona viuva e namoradeira, notavel pelo toucado impossivel e alteroso, a qual occupava os ocios em tiroteio amoroso com um alferes da brigada da marinha, pessoa corpulenta, forçosa, e de maus narizes, cuja carranca um par de bigodes hirsutos e alastrados tornava ainda mais temerosa.

O prebendado com a pancada afocinhou o chão, não sem trazer comsigo tambem de golpe o tambor mór de um dos regimentos, que por acaso seus braços extendidos empolgaram na ancia de se amparar. O militar francez, verdadeiro Alcides, arqueava n'aquelle instante o corpo com donaire, e dobrado para traz, firme nas pontas dos pés, aparava com a palma aberta o couto do bastão volteado com graça. A dona, impellida pelo esbirro-tortulho, soltou um grito agudo, desabando de chofre sobre o peito do seu Adonis. O volume era colossal, e o alferes desapercebido, não podendo suster de pé posto o pezo d'aquella montanha de ternura, que em cima d'elle o alluia, apalpou a calçada com as costas, mastigando uma blasphemia por entre as guias dos bigodes.

O drama complicou-se então. Advertido pelo signal, o João da Ventosa deixára em meio o monstruoso caneco de vinho de Torres, que saboreava, e saltou da tasca vermelho e inflammado. A primeira figura, com que a fortuna o obsequiou, foi a figura patibular do sargento Cabrinha, o qual primeiro se offereceu ás iras do lavrador. Um murro capaz de fulminar um touro prostrou o espião sem sentidos sobre o lagedo. Nem o sacrificador, nem a victima tiveram tempo de proferir palavra. Ao mesmo tempo o marchante, que vinha atraz, colleando os beiços com a lingua, esbarrando com o quadrilheiro entufado em defeza do seu superior, despediu-o nos bicos dos sapatos, e remetteu-o ao meio da rua, aonde se espalmou sobre os pés gotosos de um frade arrabido, mestre e prégador, cujas rezas nasaes paralyzou o baque repentino.

Finalmente, o Manuel Simões da Aramanha, que saíra em ultimo logar, como homem de consciencia, porque não quizera deixar o copo cheio, encarando com o Sapo, que se fazia pequeno como um verme a ver se escapava, calado, mas terrivel de gesto, alongou o braço com a rapidez e a força irresistivel da mola de aço, que resalta, e aferrando o aborto pela nuca, com um murro metteu-lhe os dentes e os queixos pelas guelas, e metade a rastos, metade por seu pé, seguiu com elle atordoado e alagado em sangue o rasto dos companheiros. Os tres cortaram depois intrepidos pelo meio da procissão alvoroçada, por entre as alas de tropa baralhadas, e pelo centro dos magotes de povo em remoinho, e entranhando-se por travessas e bêccos desertos esquivaram-se modestamente aos justos applausos de suas proezas.

Cabrinha tornando a si, e os beleguins moidos e estirados, soltavam gritos espantosos, bradando pelo soccorro da justiça. Respondeu-lhes a bengala magistral do tambor mór, e a bainha de ferro da espada do alferes, vingando com raiva incansavel o riso e as vaias da queda desastrada no dorso dos delinquentes. O mais agil dos dois, o homem-grelo, fulo de dor, e cego de medo, para se furtar ao chuveiro de bastonadas, que não cessava de lhe afagar as costellas, atirou-se de um pulo, ao meio do prestito, abalroou um desditoso cruciferario banhado em suor, e encontrando-o em cheio, rolou com elle. Amotinou-se o vulgo, ferveram juras, ameaças, e punhadas, e um patriota, que espreitava a occasião, lembrou-se de açular a desordem, exclamando: «Fujam! fujam! Ahi vem os inglezes!» Não foi preciso mais. O espanto e o terror obraram prodigios. A multidão precipitou-se, e o tumulto tomou as proporções, que sabemos.

Em quanto nos quarteirões da cidade baixa se representavam estas scenas, corriam os tres auctores do motim direitos ao caes hoje chamado da Areia. Chegados em poucos minutos viram uma falua do Riba-tejo de verga de alto, e o arraes, seu conhecido, metteu-os dentro sem mais perguntas. D'ahi a pouco navegavam rio acima, e o Sapo, sempre hypocrita e vil, estorcia-se aos pés dos inimigos triumphantes, chorando e supplicando, com prantos mulherís! Mas o Manuel Simões apontava-lhe para a cicatriz da bala, com que o ferira na cabeça, o João da Ventosa encolhia os hombros, e o Antonio da Cruz, grave e conciso, como um juiz do crime, mandava-o calar, jurando-lhe que a arvore e a corda estavam promptas, e não podiam esperar, e que a sua palavra, uma vez dada, havia de ser cumprida. O arraes e os marujos, um ao leme, e dois á proa, assobiavam como se não vissem, ou não ouvissem nada.

O vento soprou de feição, e ás dez horas da noite a falua atracava a Villa Franca.

III

Um conciliabulo politico

no anno de 1808

Voltemos á ponte da Asseca, de que ha tanto estamos ausentes.

Vamos saber se o palacio arruinado conserva a sua reputação diabolica, e se o João da Ventosa, depois do façanhudo murro, que esboroou quasi a cabeça ao sargento Cabrinha, se recolheu são e salvo a seus lares, ou se a vingança do espião punido o obrigou a tomar ares mais fortes no exercito nacional do general Bernardim Freire. Avisinhemo-nos com certo resguardo. É noite, e ainda com o luar claro podem tomar-nos por francezes, e pescar-nos com alguma bala patriotica.

Deram onze horas. Provavelmente o patrão e os creados dormem a somno solto esfalfados do trabalho da eira e dos carretos do celleiro. Não! Ha luz no quarto terreo. Espreitemos! Lá está o lavrador sentado com o sabido caneco ao lado, o bojudo cangirão defronte, e o eterno Manuel Simões a fazer-lhe a segunda. Estes pelo menos não emigraram para o Porto, nem mudaram de costumes.

A opinião de que os tumultos do Corpo de Deus tinham sido obra de uma conspiração mallograda salvou das perseguições da policia os tres camponezes. Uma das pessoas, que podia denuncial-os, o sargento Cabrinha, agonizava no hospital accommettido de uma congestão cerebral, e com a perna esquerda partida e amputada, tudo fructos amargosos do funesto dia, que o céu destinára para castigo de seus crimes. Mesmo que escapasse da amputação e á febre, o que os facultativos duvidavam, todos prognosticavam que acabaria demente, ou nescio.

Restava o Gaspar Preto, o Sapo, do qual nos despedimos a ultima vez, deixando-o entre as garras de dois inimigos resentidos e inexoraveis, o Antonio da Cruz e o fazendeiro da Aramanha. O que é feito d'elle?

Tres dias depois as mulheres que iam ceifar ao campo, passando pelo alto do Valle, viram de longe balouçado pelo vento nos galhos da figueira do José Lopes, a mais elevada e formosa arvore dos contornos, um vulto, que á luz incerta e na meia treva do alvorecer, tomaram por espantalho pendurado para assustar os passaros.

Palraram, discorreram, entre si as comadres e as visinhas ácerca d'aquella novidade, e acabaram por decidir, como verdadeiras pêgas curiosas, que o caso merecia exame. Subiram a encosta. Quando chegavam acima, rompia ainda pallido o primeiro raio de sol. Soltaram um grito de susto, e ataram as mãos na fronte! O espantalho era um homem enforcado!

Quizeram fugir, mas o peccado de nossa mãe Eva deteve-as. Antes das linguas paroleiras tocarem a rebate no logar e nos arredores era indispensavel conhecer o infeliz. As mais velhas e resolutas armaram-se de valor, e approximaram-se. Outra exclamação, em que o espanto se revelava mais, do que o dó, chamou em volta d'ellas as raparigas. O padecente, que em vida fôra assaz feio, apparecia-lhes medonho n'este patibulo repentino com a cabeça pendente, a lingua fóra da bôcca, e os olhos esbugalhados e saidos das orbitas. Tinha as mãos amarradas atraz das costas e um rotulo no peito, que dizia: «Justiça de Deus! Por Judas!»

As mulheres benzeram-se em silencio, e olharam umas para as outras. O medo curou-as por um instante da loquacidade. Apezar das contorsões, que desfiguravam o rosto da victima, e que a morte como que immobilizára, petrificando-as com sua rigidez, aquella cara, tantas vezes vista, não podia enganar a memoria das matronas e donzellas. Era o Sapo! o Sapo garrotado!

Satisfeito este ultimo instincto de sua indole, as mulheres dispersaram-se como um vôo de gralhas ao tiro do caçador, e esquecendo a ceifa e o jornal, correram, como loucas cada uma para sua parte, a fim de espalharem a noticia. O primeiro, que avistaram, e a quem a deram, foi ao Antonio da Cruz, que acharam assentado á porta do moinho, com o cigarro acceso na bôcca, e a espingarda ao lado. Escutou-as sem se alterar, saccudiu o lume com um piparote, e erguendo-se vagaroso e sereno, respondeu-lhes:

-- Então! São coisas! Deus escreve muitas vezes direito por linhas tortas! O velhaco não merecia uma, mas cem forcas.

Fechou depois a porta, metteu a chave no bolso da vestia, e partiu direito a Santarem pela Ponte da Asseca sem olhar para traz. A isto se reduziu da sua parte a oração funebre do desgraçado malsim!

O povo commentou, como costuma, o successo, repartiram-se os votos sobre a causa e os auctores da execução, porém nem um só dos patriarchas da aldeia se lembrou de boquejar no Antonio da Cruz. Os contrabandistas, como tinham os hombros largos, carregaram com todas as culpas, e a versão mais seguida foi que o desditoso Sapo recebêra de alguns d'elles com capital e juros o premio de suas espertezas e denuncias.

No emtanto os acontecimentos politicos adeantavam-se. A revolução do norte creára forças, e os francezes, acossados e repellidos de toda a parte pelas populações iradas, já não chamavam seu, senão ao terreno que pisavam. A derrota dos insurgidos do Alemtejo por Loison em Evora, o saque e o martyrio da cidade levada de assalto, longe de acalmarem os animos, exaltaram-n'os com a narração exagerada dos horrores perpetrados pelos francezes. O nome de Loison, já odioso, tornou-se execravel; e a sêde de vingança accendeu-se em todos os peitos, ardente e implacavel. Lisboa principiou a agitar-se. Os moradores mais abastados, fugindo ao jugo detestado dos estrangeiros, accolhiam-se ás provincias sublevadas. A cidade tornou-se um deserto. Em pleno dia as ruas eram silenciosas, como se a peste as houvesse despovoado. A falta de communicações com o norte e o sul do reino, e com o mar, elevou o custo dos generos a preços fabulosos, e a escacez do trabalho assentou a miseria e a fome no albergue do pobre e do operario. Os proprietarios não recebiam suas rendas, nem os empregados seus ordenados. Mais de vinte mil pessoas decentes, que viviam dos salarios da côrte e dos lucros do commercio, pediam agora esmola! Os habitantes ruraes, intimados para entregarem as espingardas, evadiam-se em grande numero com ellas, e iam engrossar a insurreição. Ninguem podia sair as portas de Lisboa sem passaporte. As bombas, os foguetes, e os fogos de artificio, alegria e paixão das festas e arraiaes, foram prohibidos. Emfim todas as oppressões e violencias se accumulavam para apressar as horas de dominio, que o governo francez ainda havia de contar, quasi reduzido á capital do reino e suas cercanias.

Leiria, vendo o Porto, Braga, e Coimbra levantadas, quiz imital-as com mais zelo, do que prudencia. Os vaticinios patrioticos do morgado de Penin, excellente portuguez e pessimo soldado, não se tinham cumprido, senão na parte mais facil. O resto, o peior da empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron de o concluir por ordem de Junot. O ex-coronel de cavallaria e alcaide mór Rodrigo Crespo, e o coronel do regimento de milicias Isidoro Pinto Gomes, com um punhado de soldados indisciplinados, unidos ao capitão mór das ordenanças do termo, Manuel Carranca, sonharam uma restauração temeraria, decidiram o bispo a cantar um Te Deum na egreja matriz, e passeiaram em triumpho entre acclamações estrepitosas o estandarte de Portugal.

Vimos com que leviandade o major Alvaro e o morgado de Penin discutiam os seus planos de rebellião, como se os veteranos de Bonaparte fossem soldados de chumbo, ou de papelão. As avançadas inimigas, entrando em Rio Maior, despertaram os dois velhos crianças de suas illusões. O galope de seus cavallos, reputados os melhores da Extremadura, salvou-os de ficarem prisioneiros e trouxe-os já meio desenganados a Leiria, aonde a sua presença sobre-excitou as paixões, em vez de as aplacar. Todos juraram morrer defendendo os muros derrocados e o castello da terra natal; anoiteceu porém, e os heroes, conversando com o travesseiro, sentiram esfriar repentinamente os brios. O prelado recordou-se de que, ministro de um Deus de paz, devia abominar o sangue, e, cavalgando a mula episcopal, apartou-se a bom andar do sitio da tentação. Muitos dos granadeiros da independencia, que na vespera rachavam ainda os céus com féros brados, lembrados de que á noite todos os gatos são pardos, aproveitaram o escuro, e eliminaram-se sem ruido, mais cuidadosos da saude do corpo, do que do esplendor de suas armas. Ficou o povo, gente quasi inerme, alvoroçada, e inconstante. A primeira descarga inimiga varreu, como pó, essa plebe, e abriu as portas aos francezes. Como Achilles os lidadores de Leiria sobresaíram na ligeireza dos pés!

Mas até os triumphos de Junot conspiravam a sua ruina. Cada derrota dos portuguezes levantava em favor da independencia milhares de braços. Quando um povo inteiro se torna inimigo, o seu nome é legião, e a fabula de Cadmo realiza-se. Evora e Leiria volveram logo a si, e Loison e os generaes estrangeiros recuaram. A ambição de Bonaparte cansára a fortuna, e Deus tinha designado a peninsula para theatro das primeiras licções dadas ao seu orgulho, e dos primeiros revezes experimentados pelas suas aguias. Encarando o bello sol das Hespanhas, a estrella do imperio sentiu esmorecer o brilho, e começou a declinar.

Os adversarios irreconciliaveis, aos quaes o novo Cesar imaginou cerrar para sempre nossas praias, saltaram n'ellas como libertadores, e romperan essa guerra, alternada de victorias e revezes, que só havia de findar ás portas de París. Sir Arthur Wellesley á frente dos soldados embarcados em Cork, seguidos de perto pelas tropas de Sir John Moore, transportadas do Baltico, combinando as operações com o almirante Sir Charles Cotton, e com os generaes, que dirigiam a insurreição de Portugal, havia de pisar em breve a terra, aonde o esperavam tantos tropheos, marchando direito sobre Lisboa, decidido a arriscar em um só lanço a sorte de toda a lucta.

O duque de Abrantes era uma alma bem temperada. Se as prosperidades entorpeciam a sua indole um pouco frivola, o infortunio, ou os perigos, encontravam-o sempre intrepido. As más noticias não o desalentaram. Decidido a disputar até á ultima escorva a capital do paiz, que por momentos julgára esquecido dos seus reis e da sua autonomia, não trepidou um momento, empregando todos os esforços para conservar Portugal engastado como joia inestimavel no diadema do conquistador.

Para que a heroica decisão não desmentisse tão audaciosas esperanças, era necessario reunir em Lisboa todas as forças activas. Kellerman expelliu de Alcacer do Sal os bandos de guerrilhas, que a infestavam, evacuou Setubal, e veio coroar com suas tropas as eminencias de Almada.

Todos os preparativos, ditados com vigor, correram rapidos. As prevenções compativeis com o pequeno numero de bayonetas, que lhe obedeciam, foram adoptadas a tempo. O general Graindorge defendeu a margem esquerda do Tejo. O regimento 47.º guarneceu o forte da Trafaria, a torre do Bogio, e os navios fundeados. O regimento 66.º occupou Cascaes. A legião do Meio Dia a torre de S. Julião da Barra. O regimento 26.º cubriu Belem, o Bom Successo, e a Ericeira. O 15.º Lisboa e Sacavem. O marechal Travou foi nomeado governador das armas da capital; o general Avril governador do castello de S. Jorge; e o conde de Novion, á testa da guarda da policia rareada pelas deserções, e quasi limitada ao seu estado maior, auxiliava a conservação da cidade, reputada por Junot como base essencial de todos os seus projectos.

No dia 15 de agosto, anniversario do nascimento de Napoleão, o duque logar-tenente reuniu ainda nas salas do palacio da sua residencia, a nobreza, o clero, os magistrados, e os officiaes superiores, e recebeu-os com um rosto tão alegre e prazenteiro, como se Catilina não batesse quasi ás portas de Roma, ou como se o trovão dos canhões britannicos, já bem proximo, não acordasse os echos dos campos de batalha, aonde se ia jogar esta partida, que deu o signal a tantas tempestades na Europa!

Eis o estado dos negocios, e pedimos venia ao leitor de o ter demorado tanto na Ponte da Asseca com esboço tão informe de noticias politicas e militares. Voltando atraz, e penetrando com elle discretamente no corredor, meio alluido do andar nobre do palacio maldicto, pedimos licença para o guiarmos pelo som das vozes, que parecem altercar em uma sala proxima, até o seio mesmo do congresso dos conspiradores, que alli pleiteiam competencias, e apuram alvitres afim de coadjuvarem as armas nacionaes e os progressos dos alliados.

Era noite, já o dissemos, e noite adeantada. A lua alta nos ceus espalhava o seu clarão sobre as aguas dormentes da villa, e prateava de luz branca, franjando-as, as copas das oliveiras, trepadas pela encosta fronteira. Tinham dado onze horas, e havia duas que os oradores patriotas exgotavam toda a sua eloquencia sem se entenderem. A casa vasta, arruinada, com os tectos a cair, e os sobrados a desfazer-se de podridão, estava mais de metade mettida na escuridade quasi clara, que fazia a sombra das paredes luctando com a lua e as estrellas. Todas as janellas, que abriam para as hortas, sem vidraças, nem portas, deixavam coar livremente o ar, e os ruidos de fóra, tão sensiveis na solidão e no silencio nocturno.

Na parte mais reparada, entre duas portas quasi penduradas das couceiras carcomidas pela ferrugem, via-se uma comprida mesa de pinho allumiada por enorme candieiro de latão de tres bicos, cuja chamma enfumada a aragem saccudia e ondeava. Á roda da mesa, ornada apenas de um tinteiro de pau immenso, de pennas resequidas, e de papel em branco, sentados em mochos toscos, viam-se alguns homens, tão diversos nos trajos e maneiras, como na physionomia e expressão.

Na cabeceira, com a face recostada no punho, as palpebras quasi fechadas, e certo ar de imperio indolente, estava um ancião, que a farda de panno azul escuro com abotoadura e guarnições brancas, e dragonas de cachos, denunciavam como official superior de um dos corpos de milicias. Era o coronel Isidoro Pinto Gomes, que a espada do general Margaron não podéra alcançar em Leiria, e que o zelo attrahia a todos os conciliabulos patrioticos. O major Alvaro á direita d'elle, e o morgado de Penin á esquerda, ambos de uniforme, e com os capotes, com que se encobriam apezar da estação, abertos, ou derrubados para traz, compunham o que hoje diriamos a mesa da presidencia.

Mais abaixo a farda verde comprida com vistas brancas e o chapeu armado de outro personagem accusavam com evidencia egual o seu cargo de capitão-mór de ordenanças. Manuel Carranca, tambem salvo por milagre do conflicto de Leiria, inflammava-se em um debate violento com uma pessoa, que o habito e o cordão, as bochechas redondas, a triplice rosca da barba, e o ventre empinado proclamavam logo como um dos mais apopleticos, irasciveis, e facciosos filhos de S. Francisco. Este padre, conhecido e respeitado como orador sagrado, pertencia ao convento de Santarem, e chamava-se fr. João Salgado. O segundo interlocutor, com o qual repartia os thesouros da dialectica, ainda moço, pallido, melancholico, e esbelto, sem lhe ceder uma pollegada de terreno, sorria-se dos clamores freneticos do reverendo, e parecia atiçal-os mesmo com prazer maligno, lançando no meio de suas apostrophes uma interjeição, ou uma exclamação repentina, que tinham a virtude de fazer saltar o theologo aos ares como uma mina carregada. Os outros conjurados ouviam calados, trocando apenas algum relancear de olhos, como no circo os espectadores comtemplam as vicissitudes da lucta entre dois campeões afamados, contentando-se com o espectaculo, e abstendo-se de o perturbar com os seus applausos, ou com a sua reprovação.

-- Os laços da prudencia humana não me prendem! exclamava o padre com o barretinho de seda arregaçado para a nuca, a calva purpurea, e o sobrolho franzido... Mais poderoso e forte do que todos os artificios mundanos é o Senhor dos exercitos!... Para vencermos os jacobinos basta a candura da pomba.

-- Cuidado com as garras do milhafre!... interrompeu pela terceira vez o mancebo pallido com um sorriso ironico.

-- Ao milhafre atira-se, sr. Mannel Coutinho, gritou o bellicoso servo de S. Francisco, ferindo a mesa com o punho cerrado. Bons caçadores temos, e se for preciso, Deus pela sua infinita misericordia fará um milagre em nosso favor.

-- Nada de milagres! accudiu o capitão-mór de ordenanças, Manuel Carranca, o qual, rouco de gritar, aproveitava o incidente para locupletar com duas valentes inspirações o pulmão estafado. Nada de milagres! Se v. s.a rev.ma julga, que os francezes fogem com estolas, hyssopes, e caldeirinhas de agua benta, engana-se redondamente. Vá a Leiria, e lá lhe dirão de que serviu o bello cantoxão do bispo e dos clerigos!... Safa! Tenho ainda nos ouvidos os bérros das peças de artilheria, e os alaridos d'aquelles malditos granadeiros... Pareciam gatos a marinhar e leões a arremetter...

Esta apostrophe, sem desmaiar a resolução dos ouvintes, tornou mais grave o rosto de alguns. Houve até quem applaudisse com um aceno de cabeça assaz expressivo a rustica e quasi impia declaração do capitão-mór. As momices bellicosas e varias do franciscano começavam a aborrecel-os. Veremos no capitulo seguinte a verdade do adagio: Pela fructa se conhece a arvore!

IV

Reina a confusão no campo de

Agramante

Fr. João era o mais irado, ou antes, era o unico irado. O seu labio superior, extendido como tromba cresceu, e a barba de tres andares descaíu-lhe com o beiço de baixo quasi até o peito, signal manifesto de seu despreso. O suor da colera, colera de frade, oleosa e leveda, inundou-lhe a testa. As pupillas faiscavam.

-- Santo Deus! que ouço!... atalhou pondo-se em pé, hirto e furioso, e alçando os braços como se afagasse a peroração do melhor de seus sermões. É o sr. Manuel Carranca quem profere taes blasphemias, ou é algum inimigo de Deus e da patria?!...

-- Padre mestre! accudiu não menos irritado e furibundo o arguente interpellado, já tambem de pé. Não me tente a paciencia! Eu digo a verdade e não solto blasphemias. Pão pão, queijo queijo! Nunca tive trato com mouros, judeus, ou herejes, nem consinto que ponham nota na minha religião, entende?...

-- Se não quer ser lobo não lhe vista a pelle. Sou ministro de Deus, e não adulador de poderosos. Castigo os que erram! replicou o orador com um gesto inimitavel de desdem olympico.

-- Castiga? Diz que ha de castigar-me?!... bradou o capitão-mór livido e convulso de raiva.

-- Digo-lhe que já o castiguei, e que hei de continuar!... retorquiu o frade não menos rascivel crescendo dentro dos habitos.

-- A mim! Manuel Carranca, morgado e capitão-mór de ordenanças de Leiria, pae de familia, e homem de sessenta annos de edade?!... insistiu o outro suffocado, roxo, e com os punhos cerrados.

-- Quem o ouvisse não lhe faria doze annos! Uma criança não fala mais loucamente; concluiu fr. João encolhendo os hombros, limpando o suor, e sentando-se de golpe.

-- Sabe que mais, sôr padre? gritou quasi em delirio o aggredido. Tenho pena de o ver de saias. Senão!... Juro-lhe por alma de Eufrasia, minha santa companheira, que Deus tem, que deixava metade da pelle agarrada aos nós da corda, com que o havia fustigar!...

Só o pugilato podia terminar a contenda, chegada a estes termos. Fr. João parecia possesso. Sentava-se, erguia-se, estorcia-se, clamava, e accusava, defendia-se, ameaçava, enternecia-se, e elle só fazia mais ruido, do que cem mendigos implorando voz em grita a caridade dos fieis. O seu adversario ria-se com despreso das contorsões do prégador, e repetia entre gargalhadas nervosas, quando uma pausa nos accessos do reverendo lh'o consentia:

-- Juro-lhe! Se os frades como as mulheres, não vestissem saias, o padre mestre saía esta noite d'aqui em carne viva!

O auditorio escutava calado e neutro as imprecações dos contendores, ria-se das interjeições e dos trejeitos, e murmurava, porque se perdia em puerilidades similhantes um tempo precioso.

A algazarra dos dois subiu, porém, a tal ponto, que o coronel de milicias, que dormitava talvez encostado ao punho, como insensivel ao ruido, que o cercava despertou meio sobresaltado, abriu metade das palpebras preguiçosas, e articulou em tom pausado sómente estas palavras:

-- Que vozeria é esta, senhores? Estamos á porta de algum açougue, ou em uma casa honesta, deliberando a bem da patria? Peço socego.

Não foi preciso mais. Tudo emmudeceu. Isidoro Pinto Gomes era um ancião veneravel, nobre pelo sangue, exemplar pelas virtudes, e acatado geralmente.

-- Vamos! Proseguiu. Não é já cedo, e é preciso sem demora concluir! E correu a vista serena pelos collegas, detendo-a um pouco severa sobre o frade e o capitão-mór, que, sentados um defronte do outro, ainda se ameaçavam com os olhos. O sr. fr. João Salgado propunha que montassemos a cavallo, e partissemos d'aqui a levantar Santarem, Villa Franca, Leiria...

-- Todo o reino, sr. coronel. È facil! interrompeu o padre.

-- È fácil de fazer e difficil de sustentar, redarguiu Manuel Coutinho. Os francezes ainda estão em Abrantes e Lisboa...

-- É para os lançar fóra que eu queria que todos esses povos armados...

-- E vossa reverendissima conta acompanhar-nos e combater ao nosso lado? interrogou o coronel sempre com a mesma gravidade.

-- Certamente! exclamou o prégador menos enthusiasmado já. Com as minhas orações, com as armas espirituaes...

Uma risada estrondosa de escarneo, desatada com insolencia pelo capitão-mór, estrangulou-lhe entre os dentes o resto do discurso.

-- Sr. Manuel Carranca, observou Isidoro Pinto, risadas não são razões. Queira reportar-se. Estamos em acto serio, e que póde custar a cabeça a todos nós... Continuemos! As armas espirituaes de grande auxilio nos poderão ser, porém infelizmente não bastam. Junot e os seus soldados pelejam com valentia, e não se dispersam com exorcismos. Sr. Manuel Coutinho, o seu voto? Vem de Lisboa, é militar, e tem prudencia. O que entende?

-- Que novos levantamentos nos atrazam em vez de nos adeantar. Os francezes são soldados, e bons soldados, força é confessal-o, e só por outros soldados podem ser vencidos. O povo tem desejos e vontade, mas falta-lhes disciplina...

-- Deus super omnia! exclamou o incorregivel fr. João. Não lhes queria estar na pelle se de Leiria até ás abas da capital toda a gente se levantasse contra elles. Só os nossos campinos e guardadores, que formoso esquadrão! De mais Lisboa está á primeira voz. Sei-o com certeza. O Conselho Conservador na primeira occasião atira pelos ares os inimigos de Deus e de el-rei...

-- Vossa reverendissima está enganado! respondeu o mancebo inalteravel, em quanto o frade rubro e arquejante esponjava com o lenço de algodão o suor da eloquencia, e sorvia uma apoz outra tres pitadas triumphantes de esturro.

-- Estou enganado?! bradou. -- Estou enganado?! bradou. Queira dizer em que?

-- Em tudo. Primeiro o povo não se levanta assim de repente e todo. Depois os campinos e guardadores não aturam uma carga de cavallaria ou o fogo da artilharia, a qual alcança longe, e mette medo. Por ultimo a cidade de Lisboa não se move!...

-- Ora essa! Muito mal nos iria então!...

-- Porque? Não marcham os inglezes de Montemór, ao pé de Coimbra? Confie mais n'elles, que sabem fazer a guerra. O general Bernardim Freire com as milicias e voluntarios tambem avança. O que queria de Lisboa? Uma revolução de paizanos? As baterias do castello e as bayonetas de Junot depressa a venceriam. Ninguem deseja mais a capital liberta, do que eu, como portuguez, como militar, e... Os outros motivos são só meus. Mas conheço a necessidade e resigno-me. A nossa causa ha de triumphar nos campos de batalha, e não nas ruas, e com tumultos. As victimas já não têem sido poucas.

-- Qual é então a sua opinião, sr. Manuel Coutinho? observou o coronel, calando com um volver de olhos imperioso a loquacidade do prégador, que abria a bôcca para replicar. O que devemos fazer?

-- A minha opinião é que montemos a cavallo, recrutemos o maior numero possivel de homens valentes, e que sem ruido nos vamos unir ao exercito de operações. O nosso posto é lá.

-- Muito bem! Sou do mesmo voto. O que dizem os senhores?

-- Que estamos promptos, disse o capitão-mór de ordenanças. Ardo em impaciencia de tirar uma desforra mestra da grande sova de Leiria...

-- E nós todos de tirarmos desforra da invasão! atalhou Isidoro Pinto com dignidade. Partiremos esta madrugada, e se Deus quizer seremos mais felizes d'esta vez.

-- Que gloria, senhores, para nós e para nossos descendentes! exclamou o morgado de Penin, cujo enthusiasmo facil de inflammar se exaltava n'estas occasiões. A patria libertada, Portugal triumphante!...

-- O que não rirá sua alteza real o principe regente, quando souber como nós por cá tractámos os francezes! Para mim o melhor dia da minha vida ha de ser o ditoso momento em que possa beijar os augustos pés do meu rei... Oh, se elle voltar, e ha de voltar, apezar de indigno filho de S. Francisco, irei com o povo puchar aos varaes da sua carruagem!

E espraiando o zelo monarchico n'esta jaculatoria servil, o frade corria os olhos, de que já saltavam as lagrimas de uma alegria antecipada, pela assembléa soffrivelmente fria, ou quasi hostil á demonstração.

-- Sr. fr. João, disse o coronel de milicias, levantando-se, e alçando a cabeça com ar magestoso, se o principe D. João voltar, e Deus o traga depressa, deixe ás mulas de Alter, cujo é, o peso do seu coche. Essas mãos sagradas são para os officios divinos, e não para as tarefas dos cocheiros...

-- Mas! replicou o frade interdicto e atalhado com a licção. Não estamos todos aqui ajuramentados para verter até á ultima gota de sangue pelo principe e pela familia real?... Se não fosse isto e a santa religião tanto fazia Bonaparte como qualquer outro.

-- Eu lhe digo! redarguiu Isidoro Pinto. Sou portuguez e sou catholico. Como portuguez quero morrer livre aonde nasci; como catholico detesto os que adoram o meu Deus só com os labios, roubando e profanando os templos, prendendo e espoliando em Roma o vigario de Christo. Depois de Deus e da patria-- mas só depois-- é que vem para mim a restauração do throno de nossos reis...

-- Depois?! É singular! murmurou fr. João contrariado e aggressivo.

-- Pois não devia achar singular, redarguiu o coronel serenamente. E senão diga-me: Para que são os reis?...

-- Essa é boa! Para que são?!... Deus instituiu-os...

-- Como pastores, guardas, e defensores dos povos. E o que defendeu, ou guardou o principe regente? A sua pessoa, as suas alfaias, a sua segurança. A nós mandou-nos abrir as fronteiras, e entregou-nos manietados por uma ordem sua aos inimigos, de que fugia.

-- Nunca tal ouvi! clamou o prégador attonito. O que queria o sr. coronel que sua alteza fizesse em tão grande aperto?

-- O que fez D. João I e D. João IV. Que ficasse! Era a sua obrigação. Os reis não estão acima de todos para se esconderem dos perigos atraz dos ultimos vassallos, ou para esperarem que elles combatam e vençam na sua ausencia.

-- Que importa isso? Não estamos nós?

-- Importa muito! É verdade que estamos, mas elle falta; e em quanto sua alteza, que Deus guarde, saboreia a duas mil leguas d'aqui os ananazes e bananas da sua xacara de S. Christovam, choramos nós a liberdade perdida mettidos no captiveiro, em que nos deixou...

-- Mas sua alteza não se esqueceu de nós. O seu manifesto declarando a guerra á França!...

-- Ah sim! Bem sei! Declarou-lhes a guerra! Quem a sustenta? Nós e nossos filhos com o sangue vertido no campo e nos patibulos, com as casas saqueadas e reduzidas a cinzas, com os bens e a saude arruinados. A côrte festeja de longe o nosso valor. A Gazeta do Rio chama-nos heroes; porém!... Uns comem os figos, e aos outros arrebenta-se-lhes a bôcca. Acha isto justo, nobre, e bem feito? Se acha, faz mal, se concorda, calo-me. O principe e os titulares hão de voltar, quando lhes abrirmos as portas; em quanto houver perigo, não! Se os cavalheiros de provincia, se o clero, se o povo imitassem tanta ingratidão-- tamanha vergonha-- deixe-me chamar as cousas pelo seu nome, Portugal seria de Napoleão, de Junot, do principe da Paz, da Hespanha, de todos, emfim, menos de quem o desamparou para cuidar de si. Louvado Deus, se o rei fugiu, e desertou do throno, nós lembrámo-nos da nossa historia, dos nossos brios, e do nosso juramento. Esqueceremos apenas... que estamos combatendo sós! Quando o senhor D. João e os fidalgos se recolherem, nós, pobres e mutilados, mas honrados, iremos dar-lhe os parabens, e tornaremos logo para casa a ver se ainda salvamos do naufragio o pão de nossos filhos... Peço desculpa d'estas palavras, meus senhores! ajuntou, cortejando os conspiradores, que o tinham ouvido silenciosos, porém sympathicos. Sou velho, e os velhos têem o defeito ás vezes de falarem muito. Prometto emendar-me, porque a occasião é de acções, e não de palavras. Amanhã de madrugada partimos. Boas noites! São horas de descanço.

Fr. João mettia dó. A sua filaucia oratoria, punida pelas sinceras e sisudas reflexões do coronel, tinha-se convertido em humildade, em mais do que humildade, em consternação. A verdade e a justiça das queixas, que ouvia, eram tão evidentes, que não lhe consentiam replica. Arrependido de as ter provocado, apertou com expressivo ardor a mão do velho cavalheiro, e com os olhos baixos e modos contrictos encaminhou-se ao aposento, em que o aguardava a cadeira, em que havia de repousar. Os seus amigos não tinham melhor leito.

Os outros cavalheiros iam separar-se egualmente, quando os assustou o tropear de muitos cavallos caminhando a trote largo. Manuel Coutinho por uma fresta das tabuas, que tapavam uma das janellas rasgadas sobre a estrada, espreitou com precaução, e ao clarão do luar viu reluzir os cascos, e peitos de armas dos dragões francezes. Ao mesmo tempo uma voz forte dava a ordem de alto, e por um instante tudo caiu em silencio. Os conspiradores olharam uns para os outros e instinctivamente levaram a mão ao punho da espada. O mancebo continuava entretanto o seu exame sem se sobresaltar.

-- É uma escolta de seis homens, e acompanha dois officiaes! disse elle retirando-se. Somos doze, e os nossos creados que dormem na granja muitos mais e decididos. Apaguemos já a luz, vamos para o outro lado do palacio, e demos tempo ao lavrador de nos avisar. Naturalmente os francezes pedem hospedagem, e passam aqui a noite...

-- Se assim for! E a nossa jornada?! atalhou o capitão-mór de ordenanças.

-- A nossa jornada está primeiro do que elles! accudiu sorrindo-se Manuel Coutinho. Simplesmente o que póde acontecer é apresentarmo-nos com alguns prisioneiros ao exercito.

-- Excellente! Excellente! gritou a voz de trovão do morgado de Penin. Vamos a elles. Que nenhum escape!

-- Mais baixo, senhor morgado, mais devagar! Não acorde o leão que dorme. Os soldados é facil apanhal-os aonde ficam. Os officiaes ainda mais. O João decerto os mette nos quartos, que sabemos, e pela porta de espelho... Entretanto por causa das suspeitas, e porque esta casa ainda póde ser-nos util, sou de voto, que os assustemos e afugentemos com uma representação de fantasmas... e que á saída lhes demos a voz de presos.

-- Lá está o João da Ventosa com elles à fala! observou o major, que espreitava á janella: Apeiam-se! A ceia que os espera ha de custar-lhes a digerir.

-- Deram-nos tão mau almoço em Leiria, atalhou rindo o coronel, que lhes devemos esta ceia. Vamos ensaiar os nossos papeis.

D'ahi a um momento estava deserta a vasta sala. Os conspiradores tinham desapparecido por uma porta falsa, aberta na parede com tal arte, que ninguem seria capaz de a descobrir.

V

Francezes á meia noite

Em quanto Manuel Coutinho e seus amigos traçavam á pressa o plano, que acabámos de escutar, os dois officiaes francezes batiam, chamando o lavrador com a auctoridade de quem mandava.

João da Ventosa e Manuel Simões conservavam-se ainda na mesma posição, mas os canecos tinham ido tantas vezes á fonte do cangirão, e o summo da cepa fôra tão seductor, que, apezar de suas dimensões respeitaveis, o alentado vaso estava quasi no fundo. A lingua começava a pegar-se ao céu da bôcca dos dois bebedores, e os olhos a piscarem-se. Ambos cabeceavam a compasso com aquelle sorriso beatifico e petrificado, proprio da embriaguez mansa, quando as pancadas rijas dos militares os despertaram em sobresalto.

Saltaram de um pulo para o meio da casa. O baralho sebento e coçado do uso quotidiano, com que haviam jogado a bisca voou das mãos ao fazendeiro espavorido, e as cartas espalharam-se ao acaso pelo chão. As proezas contra os agentes de policia de Lisboa, e a execução summaria de Gaspar Preto, (o Sapo), eram dois espinhos, que não lhes deixavam a consciencia tranquilla. A todas as horas tremiam de ver a justiça á porta, sem animo todavia para fugir, o que acontece varias vezes.

-- O que será? balbuciava o robusto camponez da Aramanha. A modo que sinto patas de cavallos lá fóra. Arrastam espadas. Com mil cobras! Estaremos caídos na esparrella, sôr compadre?

-- Valha-o um milheiro... de lacraus, homem! retorquiu o companheiro de copo, affectando serenidade, porém mais morto, do que vivo tambem. Sempre se lembra de cousas!... Não é nada, aposto! Não ha de ser nada...

-- Deus queira! Mas olhe: não gosto nada de francezes á meia noite!...

-- Nem eu com a breca! Caluda! Batem como quem se despede. Os excommungados, se não abro, pregam-me com a porta dentro! Vamos! Alma até Almeida!... O que fôr soará. Você ouve? Fique-se ahi para esse canto, estire-se, durma, ou finja que dorme, e nem tugir, nem mugir. Deixe-me cá a mim com elles! Muito finos hão de ser se metterem os pés pelas algibeiras ao João!... Ahi vae! Ahi vae! Isto aqui não é nenhuma estalagem!...

E rosnando, e gritando, o lavrador accudia o mais devagar, que lhe era possivel, contando os passos, tropegos das libações e do susto.

A porta desaferrolhou-se por fim, as trancas rangeram e cairam, e o pobre João da Ventosa esteve quasi perdendo os sentidos, quando viu deante de si os dois officiaes francezes apeiados, e a escolta ainda a cavallo. Um tremor invencivel apoderou-se-lhe dos membros, e um suor frio, acompanhado de arrepios suspeitos pela espinha dorsal, acabou de o paralyzar. Em um instante passaram-lhe pela mente todas as conjecturas lugubres, que o medo podia forjar. Sentiu os ossos dos dedos estalados com os anginhos e os braços cortados com as cordas. Viu-se na enxovia comido de miseria, nas garras do escrivão e do carcereiro, dois abutres insaciaveis. Ouviu e respondeu aos interrogatorios; e, convencido do seu delicto, escutou a sentença de morte, entrou para o oratorio, e com os cabellos hirtos e a lividez do terror encarou o espectro pavoroso da forca...

Olhava, e não via, movia os beiços, e não falava, procurava arrastar os pés, e elles parecia que tomavam raiz no chão! Foi um minuto de delirio e anciedade, mas um minuto de tal agonia, que a outro qualquer toda a cabeça se poria de certo branca. Entretanto era animoso, e recobrou-se. O sangue quasi gelado aqueceu, os espiritos acovardados restauraram-se.

-- Assim como assim, disse comsigo, melhor é acabar aqui de uma bala, ou de uma cutilada, do que nas mãos do carrasco. Vivo não me levam elles de casa, e muito inteiros não hão de ficar tambem. Veremos.

Tomada esta prompta resolução, socegou mais, levantando os olhos para os recem-chegados. Os officiaes tinham-se arredado um pouco, e falavam a meia voz com o sargento. Quando voltaram, um d'elles, cujo ar aberto e espirituoso, rosto juvenil, e vista maliciosa não promettiam na apparencia nenhum executor de ordens severas, tocou-lhe então no braço, e na aravia arrevesada, com que os estrangeiros arremedam e estropiam de ordinario o idioma portuguez, exclamou:

-- Ah! Ah! O sr. lavrador é que é o dono da casa dos fantasmas? Venho fazer-lhe uma visita de proposito, e pedir-lhe que me arranje um quarto, aonde possa falar á vontade com os seus inquilinos, as almas do outro mundo. Mal sabe as curiosas cousas, que desejo perguntar-lhes...

-- A quem? bradou o João ainda vexado de receios. É escusado. Não sei nada. Póde prender-me, matar-me...

-- Prendel-o! Matal-o!... Quem lhe metteu essas loucuras na cabeça?... Sou capitão, e chamo-me Armand d'Aubry. Ouvi falar d'este palacio e dos fantasmas, que dão bailes e concertos á meia noite, e jurei convidar-me com este meu amigo para assistir a um d'elles... Diga-me senhor, tem bastante valimento na casa para me alcançar dos seus espectros o favor de se não incommodarem por amor de mim, e de me tractarem como pessoa da familia?...

O lavrador não sabia se estava sonhando, se estava acordado, ou se aquelle homem era doido. Não o entendia, e fitando n'elle os olhos espantados contemplava-o boqui-aberto e quasi nescio de estupefacção.

-- A proposito! proseguiu o militar. Andámos um bom par d'estas suas leguas portuguezas, que são eternas e cançativas, e estamos caindo de fome e de somno. Póde dar-nos sem demora um pedaço de pão, um gole de vinho, e uma cama? Aonde poderei alojar os meus soldados?...

-- V. s.a está em sua casa! redarguiu por fim o lavrador, respirando mais desafogado. Queira entrar. Eu chamo já a velha e os creados, que estão dormindo. É um instante em quanto se lhes fazem as camas e se arranja alguma cousa para ceiarem. Sem ceremonia entrem camaradas! Tragam os cavallos á redea e venham commigo. Graças a Deus temos aonde aquartelar um regimento... Safa! accrescentou limpando depois o suor da testa com as costas da mão. A gente não ganha para sustos! Sempre cuidei!... Ah! E os outros lá de cima? E os creados d'elles que estão na granja da encosta? Com a breca! Se dão com a lingua nos dentes vae tudo por ares e ventos. Valha-me Deus!... Se eu nunca hei de acabar de ser tôlo! Já minha avó me dizia: João, para que te mettes tu a dobar meadas alheias?! Não ha remedio. É preciso fazer das fraquezas forças.

E juntando o exemplo ao preceito, a sua voz taurina fez saltar em um momento, e pôr de pé os moços e a governante, accender o lume, e preparar tudo para que a hospitalidade promettida aos dragões francezes correspondesse á fartura e largueza, de que se prezava.

-- Sabeis que este palacio negro e a caír faria a fortuna de um auctor de novellas tragicas? observou em francez o companheiro de Armand, o tenente Lassagne. Se os espectros o vexam, como se diz, devêmos confessar que escolheram scena propria para seus terrores.

-- Espero antes de nos separarmos, atalhou d'Aubry na mesma lingua, que d'esta vez as almas do outro mundo é que hão de ter medo e fugir. Sei de uma excellente receita para isso.

-- Ah! Ah! E o nosso sargento, curtido em trinta campanhas, o que diz do demonio e seus saquazes?

-- Roberto?!... Ri-se e encrespa os bigodes. Tanto lhe faz combater os austriacos e os prussianos, como os mamelucos, ou os subditos de sua magestade infernal Satanaz I. É capaz de disparar á queima-roupa sobre Asmodeu em pessoa.

-- Ha de ser curioso! O meu receio unico é que os phantasmas se recolham aos bastidores e addiem a representação. N'esse caso os logrados seriamos nós....

-- De certo!... Mas tenho motivos para crer que a noite de hoje entra no programma diabolico. A demora em abrir a porta, a perturbação d'este lavrador que me parece um contra-regra soffrivel de visões e espectros, certo ar de mysterio e de desconfiança, tudo me faz suppor, que apenas deitarmos a cabeça no travesseiro... teremos logo de a levantar para nos entendermos com as almas do outro mundo. Aposto que lá em cima os ensaiadores andam já a tombos com o averno, ou com o purgatorio?!

-- Talvez! Então este casarão é o quartel general?...

-- De todos os conspiradores, desertores, e foragidos, que nos fazem a honra de detestar o nome francez como estrangeiro, como jacobino, e como herege! Podeis estar seguro! Se dessemos busca ás salas e corredores arruinados do andar nobre, punhamos a mão, juro-vos, sobre o ninho ainda quente d'esses escandecidos patriotas, que se tornam invisiveis, sempre que podem, para nos darem detraz dos muros e vallados os bons dias e as boas noites com as balas das espingardas. Meu tio, o intendente Lagarde, não hesitava, e a esta hora já tinha uma nuvem de beleguins e soldados a cercar tudo, e a farejar e aforoar os cantos e desvãos... Eu... creio mais nas minhas pistolas e na minha espada, do que nos laços e ardis da policia, e ha tres noites que sonho a fio com delicias na probabilidade de um duello, ou de um combate com uma legião de fantasmas...

Entrou n'este instante o João da Ventosa, e os creados, multiplicando-se, pozeram a mesa, interrompendo o dialogo dos dois officiaes. A ceia não tardou, e o lavrador, por calculo, ou por generosidade, viu-se claramente, que desejava estimular por todos os modos a sêde dos hospedes, convidando-os a libações repetidas, que a natural sobriedade de Lassagne, e a prudencia de Armand tiveram o cuidado de conter dentro de limites rasoaveis. Apezar dos louvores encarecidos, com que o rustico Amphitryão encarecia os productos da colheita ribatejana, e a despeito da qualidade fina e capitosa do licor, os dois militares honraram o Baccho portuguez com summa circumspecção. O amigo de Manuel Simões, pouco satisfeito, ao que parecia, e forçado nos ultimos entrincheiramentos, ergueu-se para ir pessoalmente escolher na adega duas garrafas, uma de Madeira, e outra do Porto, capazes, affiançava elle, de vencer o jejum de um cenobita, a immobilidade de um morto, e a frieza de um velho.

-- Sentido! murmurou d'Aubry quasi ao ouvido do tenente. Os espectros, segundo noto, são eruditos. Leram Virgilio, Horacio, e Vegecio. Este aldeão medita uma nova edição do cavallo de Troia em formato reduzido. O que elle vae buscar não é vinho, é somno para nos ter á sua disposição...

-- Nos meus dias de taful e de rapaz talvez se arrependesse, porque me atreveria a beber o mar! disse Lassagne sorrindo, e retorcendo entre os dedos as guias do bigode louro.

-- Ah! Leão! Meu querido Leão! Muito verdadeiro é o adagio que diz: viaja para aprenderes. Quem havia de suppor, que, sem sermos Samsão, vinhamos encontrar em umas ruinas da Ponte da Asseca esta parodia dos artificios biblicos de Dalilla?

-- Oh! accudiu o tenente rindo. Dalilla de vestea, calções, e varapau?!

-- Porque não? O habito não faz o monge. Álerta! Ahi vem o nosso homem, e suspeito que a adega, como a famosa caverna de não sei que santo, ha de ter uma bôcca aberta para o inferno. Deus me perdoe, se o calumnio, porém creio firmemente, que elle foi saber a senha dos fantasmas para o espectaculo d'esta noite.

As duas garrafas continham na realidade o licor precioso das colheitas rivaes das vinhas do Douro e dos cachos insulanos, e tinham sido escolhidas por um entendedor emerito. Os officiaes festejaram-as com o alvoroço, que mereciam suas qualidades e seus annos, simulando mesmo certa turbulencia, que a um observador mais habil, do que o João da Ventosa, pareceria mais do que suspeita, se attentasse para a expressão maliciosa dos olhos de Aubry, e para o sorriso ironico engatilhado nos labios de Lassagne. Tudo tem comtudo um termo, e davam tres quartos para a meia noite, quando os dois francezes, entre bocejos, e dando mostras de excessivo peso na cabeça, pediram treguas, e manifestaram o desejo de descançar das fadigas da jornada e dos effeitos narcoticos da campanha bacchica. O lavrador accendeu dois castiçaes de casquinha, e mais vacillante, do que elles, porque não se poupára durante o combate para os estimular, guiou-os pela escada interior aos dois quartos, aonde, como sabemos, já tinha aquartellado Leonor e seu pae na famosa noite, immortalizada pelas proezas do sargento Cabrinha e de seus milicianos.

-- Viva Deus! exclamou Aubry, rindo, depois de corresponder ás boas noites e offerecimentos encarecidos do patrão, de fechar logo a porta a duas voltas de chave, e de ouvir o ruido dos passos do rendeiro a descer a escada. Viva Deus! Estamos nas covas de Salamanca, e aposto que separados apenas por uma parede da sala regia aonde os fantasmas dão as suas audiencias. Lassagne! Ha mezes passaveis por ser a primeira pistola e a mais fina espada do regimento. Não deixeis ficar mal a destreza n'estas ruinas, porque vos affirmo, que, vivos ou mortos, os que entrarem n'este quarto, pela janella, pelo sobrado, pelo tecto, ou pelos muros, não saem d'aqui sem dizer d'onde vem, e para onde vão.

-- Virão elles? replicou o outro official, encolhendo os hombros com o usal sorriso. Receio que algum diabrete os avise...

Não receieis. Não faltam. Diz-m'o o coração. A fortuna tem sido madrasta commigo, e deve-me tanto, que de certo não me nega o gosto de ver e apalpar um espectro, e de lhe perguntar noticias dos... inglezes, do general Bernardim Freire, ou de algum guerrilha emboscado perto d'aqui! Se vos parecer deixaremos para depois o itinerario do purgatorio e os fogachos do inferno....

-- Impio! respondeu o seu interlocutor em tom jovial. E não quereis que nos chame esta gente jacobinos e herejes?! Em que acreditaes?

-- Em Deus, que nos ouve; em Jesus, que nos remiu; na immortalidade, que ha de unir-nos em espirito aos que amámos e chorâmos n'este desterro chamado vida! retorquiu o mancebo de repente serio e quasi melancholico. Mas!... São horas de apreciarmos os colchões das camas, e de dormirmos um instante com os olhos abertos. Lassagne tendes o somno pesado?...

-- Leve como um açor! Um nada me desperta.

-- Bello! Eu tambem. Por esse lado não ha que temer. Agora as pistolas. Optimo! As escorvas estão seccas e ardem bem. Tende sempre as armas á mão. Boas noites! Deus permitta que os fantasmas se não arrependam. Estou ancioso de os conhecer.

E o estouvado, rindo e espreguiçando-se, apertou a mão do amigo, pousou as pistolas á cabeceira sobre um velador, e deitando-se vestido em cima do leito, cerrou os olhos. Lassagne imitou-o. D'ahi a um momento resonavam ambos.

Teria passado uma hora, e jazia tudo em profundo socego, quando Aubry, que na realidade tinha o somno esperto de uma ave, accordou ao ruido lento dos gonzos enferrujados da porta falsa, que abria sobre o seu quarto, disfarçada com o velho espelho porta pela qual vimos verificada a evasão de Paulo de Azevedo mezes antes. O mancebo tinha conservado a véla accesa, e ao primeiro som esfregando os olhos, e reassumindo os espiritos perturbados, sentou-se na cama, correndo a vista por todo o aposento afim de perceber d'onde partia o assalto.

Um instante bastou para formar exacta idéa d'elle. A porta resistia de velhice, mas, gemendo, cedia sempre, e o espelho recuava.

O sobrinho de Lagarde saltou de manso á casa, engatilhou as pistolas, e com ellas nas mãos, e a espada núa debaixo do braço, pé ante pé, encaminhou-se á entrada do quarto, em que repousava Lassagne.

Achou-o erguido tambem, e armado. Com o dedo sobre os labios recommendou-lhe silencio. Os dois apenas trocaram um gesto. Não era preciso mais. Estavam entendidos.

Aubry encobriu-se com o cortinado do leito; Lassagne atraz do vão da porta, e ambos aguardaram que os espectros acabassem de vencer os obstaculos. Queriam desenganar-se finalmente por seus olhos da verdadeira significação das mysteriosas apparições, que vinham visital-os. Não esperaram muito!

VI

Uma visão pouco sobrenatural

O espelho continuava a desviar-se, girando de vagar, descobrindo a porta secreta. De repente dois vultos embuçados apontaram á entrada, e com passos subtís adeantaram-se cautelosos. Atraz d'elles, como sentinella no seu posto, ficou uma terceira figura com meio corpo na escuridão e meio corpo frouxamente allumiado pelo escasso clarão da lanterna, que trazia, a qual aclarava os tres personagens enroupados de mais para a estação e assás pesados e volumosos para passarem por espiritos.

-- Dormem! Estão apanhados! disse o primeiro em voz submissa.

-- A luz?! respondeu o segundo. Aonde está o outro francez?...

-- Ahi! Segure-o sem bulha. Este fica por minha conta!

-- Bem!

Deram algumas passadas surdas, abriu o primeiro as cortinas da cama de Aubry, correu o segundo com a vista o leito deserto de Lassagne.

Recuaram. Os officiaes, não só não dormiam, como tinham desapparecido!

-- Fugiram! exclamou o vulto mais alto, levantando a voz.

-- Manuel Coutinho! Sr. Manuel Coutinho! gritou o mais baixo. Fomos sentidos. Os jacobinos pozeram-se ao fresco!

-- Por onde? Não póde ser! Procurem bem! accudiu o amante de Leonor, que era quem guardava a porta falsa.

-- È verdade! Os nossos vélam! Fóra tudo está quieto!...

-- De certo, sr. morgado! atalhou o capitão-mór. A esta hora os dragões estão apanhados como coelhos na rede. Mas aonde se sumiram então os homens?!...

N'este momento ouviu-se um silvo forte e prolongado da banda da estrada, e dispararam-se dois, ou tres tiros quasi debaixo das janellas.

-- Que é isto? bradou Manuel Coutinho. Estaremos vendidos?

-- Não, meus senhores, não estão! accudiu Aubry, soltando-se de repente das cortinas, que o escondiam, e cortejando com extrema urbanidade os conspiradores.

Ao mesmo tempo Lassagne apparecia aos umbraes da entrada do quarto grave e silencioso. As armas, que os officiaes traziam nas mãos, provavam, que vinham apercebidos e dispostos para um encontro.

Houve um momento de pausa, durante o qual os cinco personagens reunidos por modo tão singular se mediram e encararam sem proferir palavra.

-- Conversemos, senhores! disse por fim o sobrinho de Lagarde. Não imaginam a impaciencia, que tinha em os encontrar aqui. Andei doze leguas a cavallo, sem resfolegar, e que leguas, santo Deus! para ter o gosto de conversarmos cinco minutos!...

-- Talvez se arrependa! bradou o morgado, carregando o sobrolho, e fazendo o gesto de buscar no cinto as pistolas.

-- Nada de imprudencias, por quem é!... atalhou Aubry, de repente serio, e apontando as suas, acção que Lassagne imitou serenamente. Não comecemos a narração pelo epilogo, erro crasso de rhetorica, segundo affirmava o padre Laly, sabio professor do meu collegio. Tambem trazemos com que responder, e menos mal. Deixemos, porém, as explicações de polvora e bala para o fim se não nos entendermos. É melhor!...

-- Pois bem, seja! redarguiu Manuel Coutinho. Caímos em uma emboscada, e...

-- E não sabe se o feitiço se virou contra o feiticeiro? interrompeu, rindo, o official. Parece-me que sim. Queiram sentar-se, meus senhores...

-- Estamos bem! O que temos a dizer em duas palavras se acaba!... exclamou o capitão-mór, que as maneiras polidas, mas zombeteiras d'Aubry irritavam excessivamente.

-- Quem sabe?! tornou o mancebo, fitando-o com ironia, e torcendo entre os dedos e com graça as guias do bigode. A mobilia não é opulenta, mas as cadeiras chegam. De mais soldados com pouco se contentam. Queiram sentar-se. Muito bem! proseguiu depois de os ver sentados. Posso saber o motivo a que devo a felicidade d'esta visita? O meu nome é Armand d'Aubry, capitão do 1.º de dragões da guarda...

-- Ah! exclamou Manuel Coutinho com certo sobresalto, Armand d'Aubry?!...

-- Exactamente. O meu companheiro chama-se o sr. Leão Lassagne, tenente do mesmo corpo, conhecido dos austriacos, prussianos e hespanhoes pela firmeza dos golpes e certeza do tiro...

Aqui o morgado e o capitão-mór enfadados da prolixidade dos cumprimentos olharam um para o outro encolhendo os hombros. Manuel Coutinho, frio e reportado, ouvia, sem desafinar a expressão intrepida do rosto, este prologo cerimonioso de Aubry, não se dignando mesmo patentear o menor indicio de impaciencia.

O official francez percebia maravilhosamente tudo o que passava pela mente dos interlocutores, porém, simulando ingenuidade maliciosa, divertia-se em ter suspensa aquella anciosa curiosidade.

-- Ser-me-ha licito, agora, que dei conta de mim e do meu amigo, perguntar o nome dos cavalheiros, que nos honram com a sua presença?...

-- De certo! redarguiu Manuel Coutinho, inclinando-se levemente. Se nos cobrimos com as trevas da noite é porque somos opprimidos, e ainda não soou a hora de combatermos á luz do dia. Este senhor é o morgado de Penin, administrador de uma das casas mais nobres e ricas da provincia. Aquelle é o senhor capitão-mór de ordenanças de Leiria, Manuel Carranca, pessoa distincta e estimada pelo nome e qualidades... Eu chamo-me Manuel Coutinho, appellido não de todo obscuro, e fui desligado do regimento, aonde servia como capitão... Bem vê, sr. d'Aubry, que está em excellente companhia, e que, apezar da hora, não entrou em nenhuma caverna de salteadores...

-- Oh! Pelo amor de Deus! Quem se lembrou nunca de tal?!... Seria importuno se insistisse em perguntar ainda a razão, porque tres cavalheiros tão amaveis nos fizeram o favor de perturbar o nosso somno, roubando aos espectros d'este palacio o segredo das visões theatraes?

-- Nada mais justo! retorquiu o amante de Leonor. Precisavamos da casa para nós, e não queriamos ser vistos, nem seguidos...

-- E então, como o sr. Aubry muito bem disse, occorreu-nos roubar aos espectros o segredo d'esta porta. Vinhamos...

-- Prender os dois officiaes que julgavam adormecidos, na boa fé da hospitalidade portugueza?!...

-- Hospitalidade forçada! É verdade, vinhamos, deplorando que a guerra nos coagisse a incommodar duas pessoas, que tanto careciam de repouso. Felizmente d'esse remorso estamos absolvidos. Não interrompemos o somno de viajantes cansados; encontrámos a vigilancia de militares affeitos a todos os rebates dos campos...

-- Mil vezes obrigado por tanta benevolencia! replicou Aubry, pagando ironia com ironia n'este duello cortez, que espantava o morgado e o capitão-mór, mais propensos aos argumentos de ferro e pau, do que aos tiros dos epigrammas.

-- E agora? interrogou Aubry, cuja alegria se apagou, convertida subitamente a expressão risonha em aspecto quasi severo.

-- Agora?! redarguiu Manuel Coutinho, levantando-se com os seus amigos, e cortejando-o em ar resoluto. Agora, como não podemos espaçar mais a partida, e decidimos vencer todos os obstaculos, offerecemos ao sr. d'Aubry e ao sr. Lassagne as nossas desculpas pelo incommado, que lhes causámos, pedimos-lhes que não nos disputem a passagem, e como seria mais do que imprudencia deixar na rectaguarda inimigos tão valentes á testa de uma força, vemo-nos constrangidos a rogar-lhes, que nos entreguem as suas espadas...

-- Ah! atalhou o official com um sorriso amargo. Não pede pouco. Pelo que vejo chegámos...

-- Áquellas explicações mais vivas, accudiu o mancebo, de que nos falou no principio da nossa conversação... Creia que sinceramente o sinto...

-- Oh! Não se afflija, por quem é! Estamos mais longe d'isso, do que cuida. Pois, na realidade suppoz, que dois officiaes armados e apercebidos haviam de ceder deante de tres homens?...

-- Somos dez e quasí todos militares. Não ha deshonra. Veja!

De feito os outros conspiradores attrahidos pela demora acabavam de apparecer á porta secreta, e, entrando, rodearam em um instante os dois francezes, socegados e pacificos, como se tudo fosse pura ficção theatral.

-- Agora nós!... Ouça! observou d'Aubry. Lassagne não são os passos do sargento Roberto? Abri a porta!

D'ahi a um momento assomava á entrada o vulto colossal e herculeo do novo protogonista, o qual parou aprumado e hirto, com a mão na palla da barretina, e o rosto invadido quasi todo por bigodes e suissas enormes, aguardando de pé, respeitosamente, que o interrogassem. Os conspiradores eram todos olhos e ouvidos.

-- Quantos prezos Roberto? perguntou o official.

-- Doze! Meu capitão!

-- Armados?

-- Até aos dentes.

-- O meio esquadrão?

-- Parte cérca o palacio, parte está na ponte e á bôcca da estrada do Cartaxo.

-- Houve resistencia?

-- Dois tiros, mas não feriram ninguem.

-- Aonde está o lavrador d'esta casa?

-- Fugiu pelas vinhas com outro paizano.

-- Que ordens déstes aos dragões?

-- As vossas. Fogo sobre quem tentasse fugir pelas janellas, ou pelas portas. Quartel a quem se rendesse.

-- Bem! Desembainhae a espada. Vigilancia! Prompto á primeira voz! Meus senhores ouviram? accrescentou, virando-se para os cavalheiros portuguezes, e cruzando os braços.

-- Tudo! respondeu o coronel de milicias Isidoro Pinto Gomes, adeantando-se, e fitando no mancebo os olhos placidos e firmes.

-- E o que fazem?

-- O mesmo que o senhor official de certo contava fazer... Passâmos! retorquiu o coronel sem elevar a voz, e tão manso de gesto e de physionomia, como se estivesse tractando de cousas indifferentes.

-- Por entre as balas e as espadas dos meus dragões?!...

-- Tanto vale aqui, como mais adeante! replicou intrepidamente Manuel Coutinho. Principiâmos vinte e quatro horas mais cedo.

-- Muito bem! Mas de que serve verterem tantas pessoas illustres o sangue debalde? A honra fica salva, e o sacrificio...

-- É inutil, ia dizer? Perdôe-me a interrupção, sr. d'Aubry! A honra do soldado talvez ficasse salva perante o numero, porém a de portuguezes, que juraram pelejar pela patria, de certo não! Viemos aqui para morrer por ella!... Se tivessemos por nós a força usavamos d'ella sem escrupulo... Faça o mesmo. A fortuna traiu-nos aos primeiros passos. Que importa? Estas armas empunhadas para sermos livres não hão de ser-nos arrancadas senão com a vida...

-- É a sua ultima resolução?

-- E a de todos nós! ajuntou o coronel, apertando a mão do mancebo, animado assim como o morgado, o capitão-mór, e os outros portuguezes pela eminencia do perigo.

-- Muito a meu pezar sou obrigado a oppôr-me. Lassagne! Roberto! Firmes! nem um passo, senhores! exclamou. Queiram atirar primeiro! Damos-lhe o partido que nossos avós deram aos inglezes em Fontenoy!...

-- Talvez houvesse meio de evitar!... murmurou ao ouvido do coronel a voz tremula de fr. João, cujo rosto apopletico convertêra de repente em pallidez suspeita as assanhadas côres.

-- Nenhuma! respondeu sêcco e irado Isidoro Pinto. Se tem medo retire-se, entregue-se, faça o que quizer, mas deixe-nos! Vamos! Abram-nos caminho, senhores francezes! Esta é a nossa terra, e havemos de passar, ou acabar n'ella!

E o velho official, venerando pelos cabellos brancos e pelo ardor nobre, que lhe restituia os brios juvenis, com a espada na direita, e uma pistola engatilhada na esquerda, seguido dos companheiros, avançou contra Lassagne e Roberto, em quanto Manuel Coutinho por calculo, ou por acaso, se achava deante do capitão d'Aubry. O conflicto parecia inevitavel.

-- Logar! bradou o mancebo portuguez com um gesto de ameaça.

As pupillas do official francez despediram dois relampagos; o seu rosto tomou terrivel aspecto. Foi só por um instante. Inclinando a espada, e reprimindo a colera, disse ao adversario pasmado da mudança:

-- Agradeça a Deus! A lembrança de um anjo suspende-me o braço! Alto! accrescentou em voz sonora e cheia. Um momento! Senhor Manuel Coutinho sabe quem eu sou?

-- É o sobrinho do intendente Lagarde, do homem que...

-- Não diga mais. Sei que está offendido e que tem razão de o estar. Mas!... A roupa suja lava-se em familia. É o noivo de D. Leonor? Aquelle a quem ella prometteu e jurou amar?...

-- Sou, porque?...

-- Porque fui sem o saber causa innocente de suas lagrimas. Sinto encontral-o aqui. Podia, se fosse vil, prevalecer-me do acaso. Quero que me fique conhecendo. Quero mostrar-lhe que sou digno do honrado nome de meu pae. Se o deixar saír para onde vai?

-- Para o exercito de sir Arthur Wellesley. É lá o meu posto. Replicou Manuel sem hesitar.

-- Adivinhava a resposta. Pode ir! Lá nos encontraremos como inimigos, mas como inimigos que se estimam.

-- E os meus companheiros? perguntou o mancebo pasmado de tanta generosidade.

-- Os seus companheiros?! Bem! É justo! Que se recolham com os espectros, e que esperem. Deixem-me partir a mim e aos meus dragões. Lassagne e Roberto são discretos e fieis. Se for preciso dirão que não viram nada.

-- A sua mão sr. d'Aubry!? insistiu Manuel Coutinho commovido e com os olhos humidos. Quero apertal-a cheio de admiração pela grande alma, que se nos acaba de revelar. Em todas as occasiões, succeda o que succeder, lembre-se de que tem um amigo, um irmão em mim!

-- Menos no campo de batalha? accudiu o official sorrindo.

-- Lá mesmo! Se as armas lhe forem contrarias....

-- Obrigado, mas!... E quem sabe?! A fortuna póde cansar-se um dia. Uma pergunta. Paulo de Azevedo!?...

-- Continua preso e vae ser julgado.

-- Meu tio enganou-me então? É o mesmo! Ainda estamos a tempo. Hei de cumprir a minha promessa. Sr. Manuel Coutinho, se não tornarmos a ver-nos, diga aos seus amigos, diga a D. Leonor... que fiz o meu dever. Agora adeus. Os seus amigos que se retirem já! A scena dos espectros, ajuntou volvendo ao gracejo proprio da indole jovial, ia-se tornando tragica. D'aqui a duas horas parto. Siga depois a sua sorte, e não se ria muito de mim, quando se recordar dos lances d'esta noite. A proposito, aquelle reverendo que vejo tremulo entre os seus, é o capellão da guerrilha? Parece-me pouco bellicoso!

E voltando-se para Lassagne e para o sargento, immoveis assim como os conspiradores, em quanto durára a conversação com Manuel Coutinho, d'Aubry disse-lhes com o seu ar de riso habitual:

-- Meus amigos, estes senhores, que por muito enroupados no verão tomavamos por homens friorentos, são na realidade espectros, e vão desapparecer. Já lhes agradeci o favor da visita, e depois da explicação, que acabo de ter, creio que se convenceram de que era perigoso passeiar fóra de horas por este mundo. Lassagne! Logo vos explicarei o enigma. Roberto! Mandai soltar os presos da granja. Partimos dentro de duas horas. Senhores fantasmas! A sua visita causou-me o maior prazer, mas espero que seja a ultima. Muito boas noites! Queiram dar recados da minha parte ás almas de meus parentes, que encontrarem no purgatorio!

Um momento depois Lassagne e d'Aubry achavam-se outra vez inteiramente sós nos quartos, o tenente abraçava o seu companheiro d'armas pelo nobre rasgo, que ennobrecia mais o seu caracter, do que uma victoria. A magnanimidade é a mais alta e a mais sublime das virtudes do guerreiro.

VII

Primeiros clarões de um grande dia

A Gran-Bretanha entrou por fim em campo. Sir Arthur Wellesley, cujo nome, conhecido então apenas pelas campanhas da India, em breve os revezes de Napoleão haviam de tornar famoso, avançava das praias do Figueira, pela estrada de Coimbra e de Pombal, com treze mil infantes, duzentos cavallos, e dezoito canhões. As forças nacionaes, organizadas, ás ordens do general Bernardim Freire, não excediam de seis mil bayonetas e de seiscentos homens de cavallaria. Nos dias 10 e 11 de agosto os alliados occuparam Leiria, e no dia 12 descansavam em Pombal as tropas portuguezas.

Mas se os nossos e os inglezes eram ainda poucos, atraz d'elles vinha a nação inteira.

Os casaes e aldeias despovoavam-se; os povos accudiam á beira das estradas, saudando com suas acclamações os libertadores. A capital, ainda sujeita ao jugo, tremia de raiva entre as armas que lhe tolhiam resgatar-se. As proclamações de Wellesley e de Cotton, apezar da severidade vigilante de Lagarde, zombavam da policia, penetravam em todas as casas, e lidas com avidez e enthusiasmo inflammavam o patriotismo. Os olhos voltavam-se sofregos para o Tejo, esperando de um momento para outro ver ondear o estandarte britannico nos topes dos mastros. Os ouvidos credulos transformavam a cada instante o mais leve rumor longiquo nas sonhadas descargas, que haviam de annunciar a catastrophe á usurpação. A victoria do marechal Bessiéres em Rio Sêcco pouco avivára o prestigio offuscado pela derrota e capitulação de Dupont em Andujar. O rei Joseph, como já dissémos, apenas entrado com a sua côrte em Madrid logo se vira constrangido a retroceder até as margens do Ebro.

A posição de Junot não podia ser mais precaria nem arriscada. Os seus vinte mil soldados, repartidos pelos presidios e hospitaes, entre o paiz irado, que não lhes concedia quartel, e que os assaltava de todas as partes, entre os treze mil inglezes, que seguidos de perto por outros vinte mil de sir John Moore e de sir Hew Dalrymple, entre o bloqueio das esquadras britannicas, no mar, e a aggressão violenta, em terra, do odio armado de tres milhões de habitantes, achavam-se limitados á capital e ao territorio, que pizavam, sentindo fugir tudo debaixo dos pés, sem esperança de auxilio, sem caminho aberto á retirada.

O duque de Abrantes mostrou-se digno dos feitos heroicos, que ennobreceram a sua carreira.

Adoptando as providencias, que o aperto aconselhava, e tomando Lisboa por base de operações, cuidou logo em concentrar o numero necessario para arremessar as tropas britannicas vencidas e escarmentadas outra vez ás aguas.

Não lhe sobrava outro recurso!

Havia de atravessar duzentas leguas por terrenos montanhosos, com alguns rios caudaes a vadear, e populações insurgidas a disputar-lhe o passo, renovando a temeridade de Xenophonte e dos dez mil, ou tinha de sair ao encontro dos inimigos, feril-os de espanto pela rapidez dos golpes, e anniquilal-os, tornando-lhes funestas pela grandeza do desastre, as praias que buscavam! Junot optou pelo ultimo arbitrio. A execução, porém, não correspondeu ao que exigiam imperiosamente as circumstancias.

Mandou sair o general Laborde para observar os inglezes, e atalhar o progresso de sua marcha. Chamou de Almeida Loison, e determinou-lhe o itinerario. Finalmente reuniu e organizou na capital todas as reservas, disposto a confiar a sorte da invasão ao atrevido lance de uma batalha. Accusam-n'o entretanto de não ter sabido attrahir a victoria.

Laborde partiu a 6 de agosto á frente do regimento 70.º, de dois esquadrões do 27.º de caçadores a cavallo, e de cinco peças. Thomiéres, que defendia Obidos e Peniche com o 2.º ligeiro, e um batalhão do 4.º de suissos, havia de unir-se-lhe em Alcobaça no dia 11. N'esse mesmo dia chegava Loison a Thomar, contando-se que a 14 ou a 15, o mais tardar, se acharia em Alcoentre para coadjuvar seus companheiros de armas.

Laborde era official distincto pela intrepidez e aptidão. Avisado de que as tropas britannicas e portuguezas estavam em Leiria, a poucas horas sómente das suas, retirou a 14 sobre a Roliça, legua e meia atraz, reforçando a guarnição de Peniche com o 4.º batalhão de suissos, postando em um moinho sobre a esquerda do Arnoia outro batalhão, e estendendo até ao Cadaval e Bombarral tres companhias do 62.º para darem as mãos a Loison, o qual não devia demorar-se.

Sabendo os francezes do outro lado da Serra de Minde, conservou-se o exercito do general Bernardim Freire em Leiria apezar das instancias de sir Arthur. Este, não recebendo dos nossos mais do que o auxilio de mil e quatrocentas bayonetas e duzentos e sessenta cavallos, proseguiu apezar d'isso o movimento offensivo. No dia 14 aquartelou-se em Alcobaça, e no dia 15 dormiu nas Caldas. Um combate entre as suas avançadas e o batalhão francez postado junto do moinho sobre o Arnoia, advertiu-o da proximidade dos soldados de Napoleão. Fiel ao seu caracter circumspecto, deteve-se até ao dia 16, talvez indeciso por falta de informações.

Da Roliça ás Caldas medem-se tres leguas de distancia. As duas povoações campeiam nos extremos, norte e sul da vasta bacia, rasgada ao oeste, no meio da qual se ergue a villa de Obidos, notavel pelo aqueducto e pelo castello mourisco. A estrada de Lisboa cortava uma planicie arenosa até á Roliça, aonde um ramal de collinas se destaca da serra principal, correndo limitado por um ribeiro até á Columbeira. Ao primeiro volver de olhos dir-se-hia que findavam alli todas as communicações. A estrada perdida em um desfiladeiro sinuoso e estreito quasi que desapparecia da vista, não principiando a alargar-se, senão passada a Azambujeira dos Carros. Laborde occupava a planicie desde a Roliça até poucos metros adeante da Columbeira.

No dia 17 de agosto, ás nove horas da manhã, um tiroteio nos postos da direita deu o primeiro rebate da visinhança dos inglezes. Eram elles, de feito, marchando em numero de perto de onze mil, com a disciplina e serenidade que lhes grangeou os louros depois festejados em toda a guerra da Peninsula.

As tropas de Laborde, na maior parte recrutas quasi imberbes, nunca tinham entrado em fogo. A vista marcial d'aquelle exercito, que avançava silencioso, detendo-se a espaços para reformar as filas rotas pelos obstaculos do terreno, e continuando depois, firme e ordenado, como se houvesse de figurar em uma parada, por força havia de commover e sobresaltar soldados bisonhos, que apenas contavam dois mil e quinhentos homens, comprehendidas as tres companhias destacadas sobre a direita.

Laborde não esmoreceu. A planicie, attendida a desegualdade de forças, não podia defender-se. Cedendo á necessidade mandou então guarnecer as fortes posições situadas nas costas da Columbeira pelo regimento 70.º, em quanto á testa do 2.º ligeiro da artilheria, e da cavallaria, cobria a entrada do desfiladeiro, transportando assim o theatro da lucta com mais favoraveis condições.

Executou-se a evolução com celeridade e na melhor ordem. As novas posições dos francezes, quasi inaccessiveis, offereciam aos inimigos cinco barrancos em rampas asperas, afogadas em murtas, sargaços e arbustos alpestres. Wellesley, da sua parte, tambem não hesitou, mandando atacal-a formando em cinco columnas. O combate feriu-se e durou quatro horas. O valor das duas nações, travadas afinal corpo a corpo no continente, ostentou n'elle todos os brios. Trepando as encostas debaixo de uma chuva de balas deixando em cada passo vestigios do sangue vertido, e semeando de cadaveres o terreno conquistado, os inglezes chegaram a coroar uma vez de seus estandartes a crista das alturas; mas a furia guerreira dos legionarios de Bonaparte, avivada pelo exemplo dos chefes, depressa transformou para os soldados de Wellington o meio triumpho em desastroso revez. Precipitados nas pontas das bayonetas pelo impeto irresistivel dos contrarios, atropellados uns sobre os outros na descida, ou antes na queda, os alliados despenharam-se, como torrente que maior torrente impelle, até á planicie, espiando os jubilos momentaneos e o ardor temerario.

Assim mesmo o leopardo britannico, recuando, levou nas garras provas palpaveis das perdas irreparaveis dos adversarios. Mais de quinhentos francezes, prostrados no campo, mortos ou feridos, attestavam qual fôra de parte a parte a braveza do encontro. Ao mesmo tempo a vista penetrante de Laborde, seguindo a marcha das duas columnas, que sir Arthur tinha enviado desde o começo da acção para lhe tornear as posições divisou a do major-general Fergusson já proxima da Azambujeira. Fôra loucura insistir mais. A retirada principiou.

Á testa dos melhores soldados, Laborde repellia os inglezes, detendo-os por meio de descargas á queima roupa, soltando sobre elles o galope fogoso dos caçadores a cavallo, ou arrancando nos gumes dos ferros de seus recrutas, tornados veteranos, os atiradores britannicos, a cada instante dispersos, e quasi acossados até debaixo do fogo das grandes massas, que os protegiam. O terrivel estampido e os pelouros dos dezoito canhões de Wellesley não calaram senão tarde o fogo das cinco peças do general francez. Nem um instante o passo firme e seguro de seus batalhões se accelerou deante do perigo a cada instante mais terrivel. Fazendo alto para reunir as tres companhias destacadas sobre a direita só entrou em Runa depois de as unir a si, conservando até ao fim a mais inabalavel firmeza.

Foi um nobre e formoso espectaculo este prologo curto, mas heroico, da guerreira epopeia, cujas paginas a gloria havia de inscrever nos muros voados e nos campos assolados de Portugal e da Hespanha. Armand d'Aubry, sempre ao lado de Laborde, de Brenier, ou de Arnaux, assimilhava-se áquelles semi-deuses de Homero, que petrificavam legiões inteiras pelo terror do seu braço. Voando na frente dos mais ousados por entre os clarões das bôccas de bronze a vomitarem ondas de metralha, envolto em fumo, e cuspindo de si invulneravel os pelouros dos fuzis, como o leão africano cospe as frechas encrespando a juba, o mancebo, multiplicando-se, apparecia em toda a parte, e em toda a parte a sua presença, similhante ao furacão das batalhas, rasgava largas brechas nas fileiras contrarias.

Mil vezes a morte, desafiada em poucas horas, não se atreveu a tocal-o; e contemplando o sorriso, que lhe brincava nos labios, quando a um grito d'elle o esquadrão levantava comsigo tempestades de ferro e de fogo, dir-se-hia, que, para este homem, verdadeiro centauro, as rapidas e pungentes commoções, e a brava alegria das pelejas eram um prazer, uma sensação deliciosa, um enlevo!

Manuel Coutinho, que as ordens de Wellesley prendiam junto do estado-maior, admirando de longe a valentia radiosa do moço official, invejou-lhe em mais de um rasgo a galhardia, tremendo ter de lhe chorar a queda.

Quando a noite, descendo, envolveu em seus veus a agitada scena, em que gemiam tantas dores, e em que tantas victimas agonizavam, o amante de Leonor ainda por entre as sombras avistou na ultima carga o sobrinho de Lagarde, rodeado do relampaguear de cem fuzis, arremessando contra elles o peito do cavallo. Como se a fadiga de um dia inteiro fosse repouso para elle, invencivel nos arções, d'Aubry assignalava o cruento caminho da retirada com o afuzilar tremulo da espada por entre clamores dos que o fogoso corsel calcava aos pés!

As aguias feridas principiaram alli a encolher as azas e os vôos. O sol ardente da Peninsula, cegando-as, precipitou-as palpitantes dos ninhos sobre as rochas vivas da terra, que suppunham escravizar para sempre!

Em quanto a guerra erguia na Roliça o primeiro padrão de uma lucta, que havia de ensanguentar por annos as Hespanhas, Junot procurava realçar com as pompas officiaes os derradeiros dias do seu dominio.

O anniversario de Napoleão foi solemnizado pomposamente, e os cortezãos da fortuna, um pouco desmaiados com as noticias do desembarque dos inglezes e da sublevação das provincias, ainda ouviram da bôcca do general em chefe promessas e illusões de conforto, que, se não os tranquillizaram, lhes minoraram ao menos as apprehensões. Herman engulia o sorriso, parecendo despedir-se com os olhos da bella capital, pela qual já ia quasi esquecendo a patria. Luyt, preoccupado, expedia ordens, meneando a cabeça com tristeza. Finalmente, Lagarde, sombrio e taciturno, recolhia-se como Pythagoras atraz da cortina mysteriosa do seu antro, e, prevendo a catastrophe, arrependia-se de não deixar aos portuguezes ainda mais pesadas memorias da sua administração. Assim mesmo o paço de Queluz lembra-se bastante d'elle!

O duque de Abrantes partiu para o exercito, depois de concertar com o general Thiébault, seu chefe de estado maior, as ultimas disposições da breve campanha, que iam encetar. O rosto de Junot disfarçava mal o receio de que a sua ausencia apressasse a explosão dos sentimentos mal comprimidos da capital. Desguarnecida a cidade, podiam as naus britannicas forçar a barra, e os habitantes vingar em uma hora a aversão e offensas de muitos mezes. Aos cuidados do governo juntavam-se no animo do general em chefe outras magoas, talvez mais pungentes. Os formosos olhos, que lhe sorriam no meio do esplendor, ser-lhe-iam fieis na adversidade, ou bastaria um revez para lhe roubar com os prestigios do poder corações, que tinham jurado amal-o sempre até á morte?!...

Mas a voz do dever chamava-o; foi obrigado a obedecer. A 15 de agosto, á noite, marchou á testa do regimento de granadeiros, de um batalhão do 82.º, do 3.º provisorio de dragões, e de uma bateria de dez peças. Parou em Villa Franca, e a 17 seguiu vagaroso na direcção do Cercal, quatro leguas distante da Roliça, aonde o despertou o echo amortecido do canhão disparado no primeiro campo da batalha d'esta guerra.

Deixemol-o rodear-se de exploradores, e estimular com suas ordens cheias de instancias a marcha de Loison e de Thiébault, para não arriscar a lucta senão com todas as forças reunidas contra sir Arthur Wellesley. Transportemo-nos no emtanto e sem demora do Cercal e Torres Vedras ao palacio do Rocio, e entremos na sala do conselho, aonde deliberam os membros do governo. O que então se passava alli não era menos curioso e importante, do que o que occorria debaixo da barraca do quartel general nas vesperas da acção decisiva, que se planeava.

Em ambos os theatros o dedo da Providencia escrevia em lettras de fogo a sublime palavra de Deus, suprema consolação dos que padecem, terror infinito dos oppressores!

VIII

Ralham as comadres descobrem-se as

verdades

Voltemos á mesma sala, onde assistimos ha dias nos paços da Inquisição ao conselho de governo, presidido pelo duque de Abrantes. As figuras, que vamos encontrar, são ainda as mesmas. Só falta o general em chefe já a caminho para se collocar á testa do exercito.

Á direita da sua cadeira vazia, senta-se o conde da Ega, nomeado conselheiro do governo, e encarregado da pasta da justiça por decreto de 1 de julho, em virtude da demissão do Principal Castro. Á esquerda, mas de pé, e com indicios evidentes de summa agitação, está Lagarde, não só pallido, mas verde de bilis concentrada, todo convulso, e amarrotando com grande ira um papel entre as mãos. Francisco Antonio Herman, sempre apurado no trajo e primoroso nas joias e galas pessoaes, corre pela vista, quasi sem a ler, uma folha coberta de algarismos, resumo pouco agradavel do ultimo balanço do erario. Luyt, com a barba quasi em cima da mesa, e os oculos assestados, faz voar a penna em linhas miudas, enchendo varios diplomas e interrompendo-se com frequencia para menear a cabeça em ar de hesitação, ou para espreitar por baixo dos oculos a posição e os modos das pessoas, que o rodeiam.

Dois personagens mais completam o quadro. O primeiro é o capitão Magendie, de grande uniforme, passeando silencioso, e medindo o aposento em largas passadas de um a outro extremo. O segundo, que apresentâmos ao leitor pela primeira vez, chama-se mr. Juffré, merece a reputação de estelionario, que o flagella, passa com razão pela harpia mais ávida de todo o bando de abutres, que espicaçam o corpo quasi moribundo de Portugal, e honra-se e faz vida essencialmente de ser cunhado de um general.

No momento, em que entrámos, a discussão, acalorada, tinha-se interrompido de salto com a chegada de Lagarde, o qual rebentára do antro da policia grávido de cuidados, de apprehensões, e de pessimas noticias. Apenas acabou de balbuciar o prologo da elegia dos infortunios consummados e das desgraças imminentes, alguns dos ministros, como petrificados, sumiram-se nas cadeiras, pozeram a vista no chão, ou cairam n'aquellas sombrias meditações ácerca da fatalidade, de que o vulto dramatico de Hamlet é a personificação sublime.

O menos sensivel na apparencia aos revezes e receios era Herman. O sorriso, é verdade, tornou-se-lhe contrafeito, as faces desmaiaram um pouco, e o brilho das pupillas esmoreceu visivelmente; porém nenhum outro symptoma accusou n'elle enleio, ou perplexidade. Magendie, official intrepido, mas pouco affeito a dissimulações diplomaticas, tinha exhalado a primeira explosão de colera, descarregando uma punhada furiosa sobre o bofete, e ornando o gesto violento de uma rajada de pragas maritimas de sabor alcatroado excessivamente forte para o paladar e delicadeza nervosa do auditorio. Partiu depois direito á parede de fundo da casa, encetando o passeio peripatetico, annotado de murmurios surdos, em que viemos colhel-o.

O ministro da guerra e da marinha, o incomparavel Luyt, vivia em um resfriamento perenne, e era quasi impossivel concluir cousa alguma da expressão apathica e insignificante, por calculo, do seu rosto immovel e descorado. Escrevia, olhava, tornava a escrever, sacudia o arieiro, e sobretudo não perdia palavra, nem movimento dos collegas. Dir-se-hia um automato funccionando em quanto lhe durava a corda. Quem não queria, nem sabia enganar o observador menos perspicaz era de certo o conde da Ega. O honrado fidalgo retratava no semblante, sem o menor disfarce, a tragedia do partido, que tinha abraçado. Ignorâmos se começára já para elle o arrependimento, e se lamentava a docilidade, que o fizera mais francez, do que alguns ministros de Napoleão; mas ousâmos asseverar que as faces jaspeadas de malhas lividas, o luto das feições contraídas, e o profundo desalento, que respirava a sua mudez glacial, exprimiam uma grande agonia moral, e equivaliam a um bilhete de pesames aos protectores, e a uma certidão de obito passada á causa imperial na Peninsula!

Finalmente mr. Juffré, especie de peão fidalgo da côrte do duque de Abrantes, verdadeira, mas rachitica estatua de Nabuco invertida, com bases de prata, e cabeça de barro, ora sobre um pé, ora sobre o outro, recuava, pulava, e adeantava-se em saltinhos de pulga industriosa, com o chapeu na mão direita, a bengala na esquerda, e dois lenços ricamente bordados e almiscarados a rebentarem pelos bolsos da casaca côr de pinhão.

Um risinho amarello, meio enfiado, tremia-lhe nos cantos dos labios, delgados e sumidos, revelando indiscretamente, que aquella bôcca voraz, era rasgada, como a do tubarão de orelha a orelha. O nariz expansivo e recurvo, como bico de ave da rapina, quasi que arremettia com os beiços, invadindo-os; e os dentes finos, juntos, e agudos, assimilhavam-se a duas serras parallelas.

Anão de estatura, enfeitado como uma imagem, recendente a aromas como um pivete, dir-se-hia a alma do Judeu de Veneza no estojo dourado de um pintalegrete de quarenta annos! As luvas estalavam-lhe nas mãos, os calções modelavam o algodão que chumaçava as coxas, e a meia de seda exgotava os poderes da elasticidade para não trahir, abrindo-se, o segredo da perna artificial d'este Nemorino em edição correcta.

A testa immensa e esguia, como que escorregava para a nuca, acabando aonde principiava o chinó, que, forcejando por ser louro, sahira, comtudo, quasi alaranjado, arqueando as sanefas graciosas do mais vistoso topete. Os olhos azues, da tinta das más porcelanas japonezas, volviam-se cheios de vivacidade, armando ciladas quasi constantes á formosura, ou á riqueza, duas conquistas em que seu dono os empregava com summo gosto. N'este momento, um véu de inquieta tristeza assombrava a sympathica physionomia de mr. Juffré. A vista penetrante e obliqua do homunculo estava de sentinella á leitura, de que o ministro Herman se distraía a miudo, e inculcava ao mesmo tempo a desconfiança, e a cubiça luctando com o medo e a avareza.

-- Emfim! exclamou por fim Herman, sorvendo com pausa uma pitada. Até que temos os inglezes á porta!...

-- Diga dentro de casa, e quasi senhores d'ella, que diz a verdade! redarguiu Lagarde meio suffocado. Ouçam o resto. Ainda não li tudo. Vejam como Wellesley e Cotton rematam a proclamação: «O nobre esforço contra a tyrannia e usurpação da França será sustentado pelas forças unidas de Portugal, Hespanha e Inglaterra; e para o exito feliz de causa tão justa e gloriosa os designios de sua magestade britannica são eguaes aos que nos animam»... Ah! proseguiu animando-se, os traidores sabem que nos achâmos sobre um barril de polvora, e lançam fogo ao rastilho, calculando pelo relogio a hora de nos fazerem voar!...

-- Mas a policia apanhou de certo os agentes, e arrancou as proclamações? accudiu Luyt sem levantar a cabeça, nem a penna do papel, e com a accentuação fria e nasal, que lhe era propria.

-- A policia, senhor Luyt, atalhou o intendente colerico, fulminando o ministro com a vista accesa em chammas, a policia não possue o dom de ubiquidade, nem os cem braços de Briareu... Esta madrugada todas as esquinas amanheceram forradas de pasquins e de impressos incendiarios. Arrancaram-se muitos. Pois bem! Á tarde já lá estavam outros!...

-- Se não serve ao menos para isso, de que vale então a policia? repetiu o fleugmatico ministro da marinha, continuando a escrever.

-- De que serve?!... Serviu, bradou Lagarde enfurecido, para não cairmos umas poucas de vezes nos laços dos conspiradores! Inaudita pergunta! De que serve a policia! De accordar os que dormem, de velar pela ordem, de conter e reprimir os maus sentimentos de uma população que nos detesta. Achais pequeno milagre conservarmos ainda Lisboa, quando o reino todo se levanta e os inglezes marcham contra nós?!... De que serve a policia?! É boa! Serve para isto!...

Ao mesmo passo mr. Juffré, vendo Herman pousa a folha coberta de algarismos, interpellava-o em tom meio submisso, meio agastado.

-- Então?! O que diz?...

-- É exacto. Estão escripturados e dados em entrada por emprestimo, a trinta dias, vencendo juro de 15 por cento os seus cento e trinta contos...

-- Bem! Agora a ordem para os receber do erario?...

-- É inutil.

-- Inutil! Porque?! interrogou o argentario sobresalto.

-- Porque no erario não ha real. Todo o dinheiro, que existia, levou-o o duque na caixa militar...

-- Ah! Malditos inglezes! Mas! E o penhor? A prata da egreja de S. Roque, que está na Moeda, e que s. ex.a o general meu cunhado me affiançou?...

-- Por ordem do duque restituiu-se outra vez á egreja. Póde ir lá buscal-a... se lh'a derem.

-- Mas n'esse caso estou roubado, despido, e nú! Caí nas garras de uma quadrilha de salteadores! berrou o uzurario, ao qual as palavras mansas do ministro quasi arrancavam a alam aos pedaços com tenazes em braza.

-- Modere-se sr. Juffré. Veja aonde está e a quem fala...

-- Falo ao salteador que me espoliou! O sr. Herman rouba-me e escarnece-me.

-- Engana-se. Está fazendo a satyra do duque de Abrantes. São d'elle as ordens de que se queixa. Eu obedeci.

-- Pois então clamo e juro, que s. ex.a o duque é tão bom, ou peior do que o sr. Herman.

-- Olhe, atalhou o ministro, muito sereno, monte a cavallo e vá dizer-lh'o a elle. Fica além d'isso mais perto dos seus cento e trinta contos de réis. O que não lhe prometto, se o duque lhe ouvir metade das palavras, com que me está regalando a mim, é que não lhe pague capital e juros com um chicote na cara ás vergalhadas...

-- Que insolencia! Ousa dizer-me?! exclamou Juffré fulo e convulso.

-- Um conselho! Não torne a falar aqui em ladrões. Não acorde o cão que dorme. Observou Herman, olhando de revez para Lagarde, e apunhalando o uzurario com o sorriso.

-- Porque? É capaz de insinuar? atalhou o outro já em voz baixa.

Sou capaz de me lembrar, sim senhor, e muita gente commigo. Fazem-lhe hoje trezentos contos, e quando veiu para aqui não trazia treze francos. Quem o ignora? Cuida que todos são esquecidos? O sr. Juffré e outros similhantes foram a vergonha e o opprobrio do nosso governo. Deus queira que não sejam tambem os instrumentos da sua ruina. Adeus! O conselho tem cousas sérias de que tractar, e a mesa dos publicanos é lá fóra. Vá!

-- Miseravel! Salteador! gritou o homunculo roxo de ira, cerrando os punhos, e crescendo contra o ministro, cuja frieza motejadora o exasperava.

Mas a raiva converteu-se-lhe logo em susto, quando sentiu a larga e pesada mão de Magendie a ferral-o pela gola e pelo fundo dos calções, leval-o pelos ares até á porta, abril-a com o pé, e despedil-o como um fardo, accrescentando no fim de todo este drama e Mas a raiva converteu-se-lhe logo em susto, quando sentiu a larga e pesada mão de Magendie a ferral-o pela gola e pelo fundo dos calções, leval-o pelos ares até á porta, abril-a com o pé, e despedil-o como um fardo, accrescentando no fim de todo este drama em acção:

-- Desprezivel sanguesuga! Se aqui voltas protesto cortar-te e salgar-te as orelhas, a unica cousa que não é postiça em ti!

O argentario calado e tremulo ergueu-se moido, reparou á pressa os ultrajes das roupas amarrotadas, e desceu as escadas rabiando como buscapé acceso em arraial.

Depois d'esta proeza, pouco heroica pela qualidade da victima, o capitão Magendie approximouse da meza, e fitando Lagarde, disse-lhe com a concisão militar, que lhe era usual:

-- Quem espalhou as proclamações?...

-- Não se sabe. Ha indicios... replicou Lagarde assumindo o seu ar mysterioso.

-- Quem as trouxe de bordo da nau ingleza? insistiu o official, continuando o interrogatorio.

-- Ignora-se ainda, mas suppõe-se! respondeu o intendente um pouco turvado.

-- Quaes são os agentes dos sublevados do norte em Lisboa?...

-- Tracta-se de os descobrir, porèm!...

-- Não sabeis nada então?

-- È verdade. Nada certo.

-- Muito bem! Se não sabeis nada certo, se para vós tudo são trevas e ignorancia, tinha razão mr. Luyt. De que serve a policia? De engulir dinheiro e denuncias, e de fazer render os serviços que não faz. Não nos quebreis, pois, mais os ouvidos com os vossos malsins surdos, cegos, immundos, e famintos, e fazei-nos o obsequio de nos deixar discutir em paz.

-- Oh! exclamou Lagarde livido e convulso de ira. Tractas-me como se fosse um verme. Sois acaso Napoleão o grande!? Cuidais que hei de supportal-o? Sou magistrado independente, e não recebo ordens, nem censuras senão dos superiores...

-- De mais tendes recebido dos inferiores, mas peitas e dinheiro. Até nas enxovias e prostibulos se diz que bateis moeda! Olhai bem para mim! Toda a minha riqueza consiste n'estas dragonas, em cem francos que trago no bolso, e nos copos de prata da minha espada. Não levarei de Portugal senão mais alguma cicatriz, e um nome honrado. Se vos atreveis a asseverar o mesmo, aqui está a minha mão, apertai-a, estou prompto a pedir-vos mil desculpas. Se não ousais!... Sumi nas trevas com os vossos morcegos toda a historia da policia de Lisboa, e não faleis de collo alto aos que vos conhecem e se envergonham de vos ter pôr compatriota.

Lagarde espumava. Immovel de colera e espanto cada phrase do capitão feria-o no rosto e na consciencia como um açoute. A sua posição era tão falsa e dolorosa, que Herman compadecido quiz pôr-lhe termo.

-- Vamos, senhores, exclamou, deliberemos e não questionemos. Hoje os minutos valem horas. Lagarde! Receiais algum tumulto na capital?

-- Não. Apezar de contar com pouca força respondo sobre minha cabeça pela tranquillidade de Lisboa, se os inglezes não entrarem.

-- E eu respondo sobre a fé e honra de meus canhões, que os inglezes não passam as torres! acudiu Magendie. As minhas proclamações de polvora e bala agradam-lhes menos ainda, do que as suas de papel nos lisongeam a nós.

-- Excellente! tornou o ministro do reino. Então por esse lado podemos estar descançados. Mas os inimigos, é provavel, que não queiram perder de todo o lanço, e hão de trabalhar. Dão-me cuidado os inglezes tão proximos, e os odios vivos de toda esta gente.

O general partiu com o melhor das tropas. Novion avisa-me de que a guarda da policia já desertou quasi toda. Só hontem fugiram sessenta soldados. Se acaso se levanta um tumulto repentino, e é facil, com que havemos de contar?!...

Lagarde encolheu os hombros e calou-se. O conde da Ega estremeceu e fez-se mais pallido. Luyt, com a penna suspensa, e os olhos parados atraz dos vidros dos oculos, respondeu a meia voz:

-- Com umas segundas vesperas sicilianas!...

-- Em que todos seremos assassinados?! interrogou Herman affectando serenidade, porém um pouco tremulo. Meus senhores, parece-me que o caso merece ser examinado. Estou prompto a verter o sangue no campo, pelejando como soldado, mas a idéa de uma affrontosa morte, dos ultrages e supplicios, de que nos ameaça a vingança de uma plebe de canibaes, aterra-me, não o encubro. Confesso mais. Falta-me o valor para a encarar com intrepidez! Lagarde, vamos! Reanimai-vos. Os homens são para as occasiões. Que imaginastes para conter e enfrear o populacho, que murmura, e que o canhão de Wellesley, ou de Cotton póde dispertar e enfurecer?...

-- O terror! O reinado do terror! Só o medo póde salvar-nos! redarguiu o intendente sombrio e fitando os collegas.

-- O terror?! Renovar as scenas de 1793 em Lisboa? Levantar o patibulo em permanencia?!...

-- Sim! O estado de sitio em todo o seu rigor! Não foi já decretado? O verdugo e o cadafalso são a razão extrema da autoridade contra o povo.

-- Mas as horrorosas execuções de partidos inteiros, de classes adversas quasi em massa, que nos propondes o que salvaram em Paris? Já vos esqueceu o famoso dia de thermidor?...

-- Não! Salvaram a França das armas dos alliados, cobriram as fronteiras de recrutas, que luctaram como veteranos, assegurando o triumpho e unidade da republica. Achais pouco? Reparais nas manchas de sangue?!...

-- Dizei nas torrentes, é mais exacto...

-- Sim! Mas esse sangue, embora jorrasse innocente muito, confirmou a liberdade, e tornou a França grande, invencivel e temida. Robespierre, Saint Just, e Carrier, os chefes e os proconsules succumbiram afinal, e foram arrastados no rolo furioso da tempestade, desenfreada por elles? A expiação do systema foi o mesmo patibulo aonde o tinham architectado? Que importam tres, ou quatro cabeças mais no cesto da guilhotina, quando tantos resultados abonam a logica inexoravel, que o dictou? Estamos quasi sós no meio de uma nação insurgida e irritada, que a saudade da independencia e de seus principes subleva, que a dor e a ira das offensas exaspera!... Os inglezes bloqueiam-nos por mar, e accommettem-nos por terra! A nossa sorte é vencermos, acabar aqui, ou passarmos por cima de montões de ruinas e de cadaveres. Não temos quartel a dar, nem a receber! Na falta de forças seja o terror a nossa espada! Na falta de todo o apoio seja o cadafalso a nossa força!...

-- Para que o sangue das victimas nos afogue? Para que o luto de um povo assassinado macule de eterno opprobrio o lustre de nossas armas?!... exclamou Hermam erguendo-se com impeto, severo, e indignado. Não! mil vezes não! Esse crime inutil, porque apressaria só a nossa queda, fôra a sentença de morte da honra franceza. A civilização, que representâmos, esconderia o rosto de vergonha. O imperio teria de córar deante d'esse anachronismo sanguinario. O anno de 1808 não é o anno de 1793. Podem tental-o; mas eu não lançarei essa grande nodoa sobre mim e sobre a patria. Os vencedores de Austerlitz por meu voto nunca hão de vestir a opa vermelha do carrasco...

-- Veremos como os guerrilhas e os sicarios do principe regente vos agradecem! Quando virdes o punhal sobre o coração, ou o trabuco apontado ao peito...

-- Poderá tremer no homem o que é fragil, por ser barro e limos, redarguiu o ministro com um gesto de suprema elevação moral, mas a consciencia, ao menos, não ha de accusar-me n'essa hora suprema! Alguns mezes menos de vida não valem o sangue de milhares de innocentes, a infamia do meu nome, o opprobrio da minha memoria.

-- N'esse caso, accudiu Lagarde, lavo as mãos de tudo, e não respondo...

-- Respondo eu! interrompeu Magendie, que escutava o dialogo havia minutos, e que de pé e silencioso, mas cheio de impaciencia, a custo reprimia a colera. Respondo eu! As taboas de proscripção não hão de aviltar-nos. Somos soldados e temos armas. Se Lisboa se insurgir, os canhões dos meus navios e os machados dos meus marinheiros chegam ainda para varrer, como pó levantado, as espumas da plebe enfurecida e indisciplinada, sr. Lagarde! O reinado do terror, o arremedo das carnificinas de 1793, não se ha de fazer em Lisboa, em quanto uma bala me não varar o coração. Nunca o sangue dos patibulos, que eu saiba, que eu consinta, salpicará as aguias, que beijámos como symbolo da honra... Sei porque lhe occorreu exhumar do arsenal infamado dos dias mais funestos da revolução o cadafalso de Robespierre! Tem mais sede de ouro, do que de sangue, a sua idéa é mais de vingança, de cubiça, do que de medo! Se fossemos agora ao castello de Lisboa, talvez achassemos a explicação do plano, que nos propõe!...

-- Sr. Magendie! É a terceira vez que hoje me affronta n'esta casa! bradou o intendente enraivecido, mas pallido de susto deante dos relampagos, que despediam os olhos do capitão.

-- Acha? Uma já devia ser de mais! Quer a reparação? Está a minha espada ás suas ordens...

-- A sua espada?! Desafia-me?! A occasião podia ser mais opportuna.

-- Creia que nunca lhe fiz a injuria de suppor, que podia encontrar um homem no sr. Lagarde. Estava zombando quando falei na minha espada; é arma que não conhece. Se fosse uma mordaça, e fossem algemas?!...

-- Senhores! Senhores! Por quem são! accudiu o conde da Ega interpondo-se.

-- A minha paciencia, atalhou o intendente, limpando dos labios a escuma, e empregando vãos esforços para vencer a convulsão nervosa, a minha longanimidade não se altera com estas provocações grosseiras proprias de uma educação de tarimba...

-- Agradecido pela clemencia, meu fidalgo! redarguiu Magendie, inclinando-se ironicamente. Mas o plebeu, que se levantou da tarimba, e poz estas dragonas présa os brios como um ducado. Quereis saber porque este homem de bem queria fazer de todos nós assassinos, e dos soldados da França verdugos? Eu vol-o digo em duas palavras! Machinou casar a filha de um cavalheiro rico de Mafra com Armand d'Aubry seu sobrinho. A donzella resistiu, e o sr. Lagarde vingou-se accusando falsamente o pae, sepultando-o em um carcere, e dando a escolher á filha a morte d'elle, ou um resgate infame a troco da sua mão e dos seus bens! Encontrou duas almas nobres; Aubry rejeitou o pacto; a filha não se quiz vender para salvar a velhice de um militar, deshonrando-lhe os cabellos brancos... O sr. Lagarde não se deu por vencido, e trabalhou para si. A esta hora achar-se-ha um agente seu na prisão do cavalheiro, que se chama Paulo de Azevedo, e ha de já ter-lhe intimado a decisão final de pagar trinta contos de réis até ámanhã, ou de ouvir a sentença de um conselho de guerra, e de aparar no peito as balas de um pelotão na praça do castello! Eis o verdadeiro motivo do santo zelo que o inflamma. O reinado do terror sería para elle uma chuva de ouro, ou de sangue, segundo a docilidade das victimas!...

-- Calumnia! Infame calumnia! exclamou Lagarde branco e tremulo de colera.

-- A accusação é grave, sr. Magendie! observou Herman, que se poz em pé assim como os collegas, e que leu no rosto demudado do intendente, apezar de todo o cynismo d'elle, vehementes indicios da culpa. Veja o que acaba de asseverar! Allude a um magistrado, a um homem que mereceu a confiança do imperador. Provará o que affirmou?

-- Se houver alguem que ouse repetil-o deante de mim, interrompeu Lagarde suffocado, consinto que me condemnem!

-- Acceito! disse Magendie. Ouvirá a confirmação da verdade, e de uma bôcca insuspeita. Aubry!...

A porta abriu-se, e Armand appareceu aos umbraes, pallido e resoluto.

-- Meu tio, disse depois de saudar o conselho com uma cortezia, jurei-lhe que seria punido se não remediasse o mal, e aqui estou para cumprir a promessa. Na presença de Deus e dos homens, por alma de meus paes, assevero e juro que o capitão Magendie disse a verdade e só a verdade! Agora, que deante de vós, e de todos os que me escutam prestei testemunho á consciencia, curvae a cabeça, e arrependei-vos, porque, por vossa propria bôcca estais condemnado!

O tom, em que Aubry falou, inculcava maior tristeza, do que ira. Lagarde petrificado deixou pender a fronte e murmurou:

-- Tambem tu, Armand!...

-- Fiz o meu dever. Sois irmão de minha mãe, mas da herança de meu pae, o que acima de tudo préso é a honra do nome, e essa, já vol-o tinha dito, hei de sepultal-a commigo pura no campo da batalha, aonde posso caír e morrer hoje, ou ámanhã! Meus senhores, adeus. Pedí a Deus que exalte as nossas armas!

Ditas estas palavras saíu sereno e grave, deixando todos pasmados e silenciosos.

IX

O pae e a filha

-- Trinta contos! É um sacrificio grande, bem sei, mas a vida e a liberdade valem mais. As provas estão em nossas mãos. Se as abrirmos, o conselho de guerra ámanhã...

-- Condemna-me á morte?!...

-- Sem duvida nenhuma. O capitão de mar e guerra Magendie, nomeado para o presidir, passa por severo e intractavel. Os outros officiaes, sobre tudo mr. Etienne, estão resentidos, e entendem que um exemplo é indispensavel...

-- Bem! E o capitão Magendie e os outros officiaes sabem o que me propõe?

-- Deus nos accuda! Pois isto são segredos de chocalheiros?! O que lhe estou dizendo ficará entre tres pessoas. O senhor Lagarde, o senhor Paulo de Azevedo, e eu. Vamos! Decida-se. O tempo vôa. O conselho reune-se ámanhã ás nove horas do dia, e esta noite hão de ser-lhe presentes, ou negados os documentos.

-- Uma palavra ainda! Leonor sabe?...

-- Para que a haviamos de affligir? A sr.a D. Leonor, como boa filha, ha de achar tudo justo e rasoavel; mas se for preciso...

-- Pois senhor... Quer dizer-me o seu nome?

-- Simão... Simão basta.

-- Pois, sr. Simão, a minha resposta é simples. Não acceito. Estamos em Portugal, e não nas roças do Brazil. Sou innocente, nunca tive medo da morte, e não compro por nenhum preço esses curtos e attribulados dias, que ainda posso viver. Diga isto a quem o mandou.

-- Veja! Medite! Olhe que depois não tem remedio.

-- Vejo a infamia, e não me admira. Tractam-nos como captivos, e pedem-nos o resgate? O meu, ao menos, não hão de leval-o d'aqui. Antes as balas dos inimigos da minha patria no peito, do que atirar um real ás mãos immundas dos falsos magistrados, que vendem o sangue.

-- Ha de arrepender-se.

-- É commigo. Não se incommode a convencer-me.

-- Mas a sr.a D. Leonor?!...

-- É filha de soldado. Poupe-lhe a sua piedade. Não gaste mais em vão um tempo precioso; talvez ache em outra parte alguem mais docil. Lance a derrama, colha na rêde o que apanhar, mas, por Deus! livre-me da sua presença e das suas propostas. Está-me fugindo a paciencia por instantes!...

-- A sr.a D. Leonor vem ahi...

-- Minha filha?!...

-- Sim. Vem vêl-o, e despedir-se talvez. Sabe o que o ameaça. Foi avisada. Dou-lhe uma hora para a abraçar e falarem. Póde revelar-lhe a minha proposta. Aqui volto logo...

-- É escusado. Tenho uma palavra só.

-- Não importa. Deixe! A firmeza inspira-me interesse. Gosto dos homens da sua rijeza. Seria pena se!...

-- Se eu me não quizesse comprar por trinta contos?...

-- É verdade. O que são trinta contos para um cavalheiro rico?

-- Nada! São sómente uma infamia e uma covardia. O senhor Simão acha natural, e não era de esperar outra coisa; eu unicamente sinto ter as mãos atadas, e não poder estampar a resposta nas faces do villão que me suppoz capaz de tal deshonra. Queira sair!

-- Não tenha esse genio! Não lhe levo a mal o desafogo. A gente quando se entala doe-lhe e grita, mas depois vem a reflexão...

-- Saia! Não vê que me faz horror e asco?

-- Jesus! Que palavras! Eu saio, eu saio! Não se escandeça. Socegue! O que lhe estou dizendo é para seu bem. Até logo! Abrace sua filha, lembre-se de que tudo tem remedio, menos a morte, e caia em si. Acha cara por trinta contos a protecção que lhe offerecemos?! É a vida, é a liberdade!...

Estas palavras foram já ditas de fóra da porta chapeada da prisão. Um impeto de Paulo de Azevedo apressou a retirada do mellifluo procurador das veniagas da policia. O agente, cujos modos e indole de certo denunciou logo ao leitor o dialogo, que acabàmos de escutar, seria homem de cincoenta annos. Baixo, livido, e anafado, com uma cabelleira cravada até á testa, uma pala verde deante dos olhos, e um tom aflautado e mavioso, pertencia áquella especie de algozes, que abraçam a victima com o riso nos labios, e que a dilaceram, consolando-a com phrases dulcissimas.

Mas a physionomia abjecta e repugnante não podia enganar ninguem. A providencia traduzira fielmente em suas feições ignobeis a perfidia e a traição. Aguazil promovido por mil torpezas á jerarchia de espião em chefe e de confidente de Lagarde, vociferava contra sua maldade até a plebe dos malsins, seus humildes subditos. As lagrimas e os tractos eram para elle um prazer suave; e armado de dentes até o umbigo, a sua avidez insaciavel, mas inventiva, achára artes de devorar até a pobreza e a miseria, tornando suas tributarias as enxovias, as galés, e a prostituição.

Nunca Paulo d'Azevedo alcançára sobre si maior victoria, do que reprimindo os accessos de colera, em que por vezes o sangue lhe subiu ao rosto, e abstendo-se de corrigir, alli mesmo, e por sua mão, o emissario descarado da venalidade do intendente geral da policia. A lucta custou-lhe, porém, esforços, que depois lhe quebraram o animo. Leonor, entrando, assustou-se de o ver sentado, ou antes prostrado, com o rosto entre as mãos, e a alma e o coração tão trespassados, que de desfallecimento quasi havia perdido todo o accordo. Para o despertar do lethargo doloroso foi necessario, que a mão delicada e a voz affectuosa da filha despertassem a ternura em seu peito quasi insensivel á força de oppressão.

-- Meu pae! Meu querido pae! exclamou a donzella, cingindo-lhe os braços ao collo, e beijando-o extremosa e arrebatada.

-- És tu Leonor! Minha Leonor! Ai filha! Que saudades e que tristezas desde que nos separámos!

-- Então! São trabalhos com que Deus quer provar a nossa resignação. Louvemos a sua bondade e confiemos na sua justiça.

-- Nunca duvidei d'ellas. Submisso e conforme com a vontade do Altissimo espero que Elle disponha de mim. Já sabia que vinhas, que te davam licença...

-- Disse-lh'o aquelle homem de preto, que saiu, quando entrei?...

-- Disse. E nunca os ferros me pesaram tanto como ha pouco. Não imaginas o que elle me propoz?!...

-- Da parte de Lagarde? Adivinho! Um casamento para mim?!...

-- Um casamento para ti?! bradou Paulo erguendo-se convulso. Pois o infame atreveu-se a pedir a tua mão?...

-- Tranquillize-se, meu pae, não era para elle. N'esse ponto ao menos fez-me justiça, accudiu a donzella sorrindo.

-- Então para quem?

-- Para um sobrinho seu, Armand d'Aubry, militar, moço, e digno de estima pelas qualidades.

-- E tu? interrogou o pae, fitando-a.

-- Respondi que não! redarguiu Leonor serenamente. Como a minha mão era o pretexto de um resgate, e o que Lagarde cubiçava eram os meus bens, offereci-lhe os que herdei de minha mãe em troca da vossa liberdade.

-- Fizeste mal! disse o cavalheiro severo, mas commovido. E o sobrinho, esse Aubry, tão vil como o tio, extendeu logo a mão, e acceitou o preço? Vens pedir o meu consentimento?!

-- O sobrinho, meu pae, alma grande e nobre, tudo, rejeitou a minha mão e os meus bens, redarguiu a donzella.

-- Ah! Tanta generosidade em um francez!... Espanta-me! Acaba!

-- Tenho concluido. Aubry pediu-me perdão da vileza do tio, e jurou proteger-nos...

-- De graça? Duvido! Verás que não! insistiu Paulo, meneando a cabeça com ar incredulo. Representou um lance de theatro, talvez ensaiado em casa para figurar de homem de brios, e a esta hora estará rindo-se com Lagarde da tua simplicidade em o acreditar.

-- Não julgo, meu pae, que se ria de mim com Lagarde, porque rompeu com elle.

-- Apparencias!

-- Verdades! E a prova é que se Manuel Coutinho, o coronel de milicias de Leiria, e muitos outros não gemem hoje em uma prisão, á generosidade de Aubry o devem.

-- Ah! Conta-me essa historia. Quero sabel-a.

Leonor expoz-lhe então os successos, que o leitor já conhece, e terminou manifestando a sua confiança nas promessas do official francez.

-- É um procedimento nobre! Quasi que tenho pena que a acção fosse de um francez. Não gosto de dever a inimigos. Não importa. De hoje em deante esse mancebo é sagrado para nós como um parente. Agora, Leonor, chega-te mais para mim. Quero ver-te mais de perto. Estás pallida, muito pallida, mas fica-te bem. Cada vez mais linda! E havia de um estrangeiro levar-me a joia da minha alma por uns mezes mais, ou menos de velhice cansada?! És o retrato de tua sancta mãe-- não nos olhos!-- os teus são mais pretos e formosos e os cabellos tambem! Senta-te aqui nos meus joelhos. Agora um beijo, muitos beijos!... Ha tanto tempo que te não via, filha! Não imaginas como a tua falta me fazia velho! Dize-me, ajuntou com um sorriso humido das lagrimas, que estavam a saltar, e os amores, como vão os nossos amores? Manuel Coutinho adora-te como tu mereces, não? É sempre escravo dos caprichos da sua noiva? Quero saber tudo!...

-- Meu pae! accudiu ella córando cheia de rubor, e escondendo a face no hombro do ancião.

Por isso mesmo, porque sou teu pae, é que pergunto. Bem! Bem! Se Deus quizer hão de ser muito felizes ambos! Mas disseram-me que vinhas despedir-te...

-- Despedir-me?! exclamou a donzella sobresaltada. Despedir-me porque?! A condessa da Ega alcançou-me licença para entrar aqui, e vim logo. Sabe as noticias, as grandes noticias que ha, e que já são certezas?

-- Não sei nada, filha. Não falo senão com os guardas, que são francezes, e bem vês...

-- Que hão de encobrir tudo. Pois ouça. Tenho muito que lhe contar. Alegre-se, e diga se não tenho razão de lhe pedir alviçaras.

A narração feita pela donzella com as mãos entre as do pae, com os lindos olhos accesos em enthusiasmo, e fitos nos d'elle, e com o rosto inflammado nas risonhas côres da esperança, a pouco e pouco foi communicando a Paulo de Azevedo o ardor e o jubilo, que exaltavam aquelle animo juvenil. Suspenso dos labios queridos da filha, quando ella lhe pintou a insurreição de Traz-os-Montes, o cavalheiro não poude conter-se, que não exclamasse:

-- Ah! Sepulveda! Que invejas hão de ter muitos mancebos aos teus oitenta annos!...

Quando lhe descreveu o Algarve, Coimbra, Leiria, e o Alemtejo sublevados, e desafiando com as armas na mão a pericia dos francezes, o antigo official, levantando-se, e córando de prazer, bradou:

-- Portugal! Julgavam-te morto, e até queriam rasgar e repartir entre si a tua mortalha?! Bom é que lhes mostres que vives, como viveram nossos antepasados. Aljubarrota, Valverde, o Canal, e Montes Claros foram a licção dos invasores de hontem, assignala o teu valor em novos campos de batalha para terror e castigo dos invasores de hoje! Continúa, Leonor!

A amante de Manuel Coutinho, proseguindo, contou-lhe a chegada e o desembarque de sir Arthur Wellesley, a marcha do exercito nacional ás ordens de Bernardim Freire, o combate da Roliça, e a saída de Junot ao encontro das tropas britannicas.

-- Louvado sejaes, Senhor, pela grandeza insondavel de vossa justiça! exclamou o ancião, inclinando reverente a fronte, e erguendo as mãos. Do grão de areia formaste a montanha, que se levanta contra os soberbos, dos fracos e desamparados compões a força, que ha de subjugal-os. Leonor! Junot será vencido! Diz-m'o o coração, diz-m'o a vontade do céu manifestada em tantos prodigios. Ditosos olhos os que virem romper a aurora do grande dia da nossa liberdade, que já sinto proximo!

-- Então, meu pae, não lhe dizia eu, que o nosso captiveiro estava a findar por pouco?!

-- O teu, filha, o da patria, e ainda bem! O meu!...

-- O vosso tambem. Porque não?! accudiu ella, abraçando-o.

-- Talvez acabe mais cedo mesmo! Quem sabe! Não importa. No fim de tudo?! murmurou comsigo. Possa o meu sangue, como expiação, lavar as ultimas nodoas da culpa, por que este reino foi castigado!

-- Senhor Paulo! Passou a hora! O que me diz? Está mais socegado. Volveu á serenidade que tão bem lhe fica?

Era a voz aflautada do agente de Lagarde, cuja cabeça de reptil se arriscava, toda olhos e ouvidos, por entre a porta aberta sem ruido. O cavalheiro estrem Era a voz aflautada do agente de Lagarde, cuja cabeça de reptil se arriscava, toda olhos e ouvidos, por entre a porta aberta sem ruido. O cavalheiro estremeceu e descórou. Cresceu-lhe a ira, e investindo contra elle obrigou-o a desapparecer. Um clarão sombrio, que faiscou ao mesmo tempo de suas pupillas, exprimiu toda a sua raiva.

-- Ah! bradou elle. Ainda este homem aqui!...

-- Quer que entre? perguntou o delator sempre escudado com a porta.

-- Entre! Leonor, és filha de militar. Tens animo e constancia, bem sei. Ouças o que ouvires, não te assustes, não digas uma palavra.

Voltando-se para o confidente da policia, cujo sorriso oleoso parecia grávido de mysterios e de insinuações, accrescentou depois:

-- Veiu propor-me ainda agora, que eu comprasse a minha vida por trinta contos. Já lhe respondi, e repito deante de minha filha: se estivesse solto, seu amo pagaria a affronta, a que teve a covardia de se atrever contra um preso! Captivo, e em poder de inimigos, tenho só livre a alma para protestar, e para dizer que prefiro mil vezes a morte á infamia de pesar o meu sangue a ouro nas balanças iniquas de um salteador e de um espião. Póde sair!

-- Sr.a D. Leonor, gritou Simão, não deixe seu pae assassinar-se por uma teima! E o agente, simulando compuncção hypocrita, quasi se lançára de joelhos aos pés da donzella, que se desviou enojada. O sr. Paulo não lhe disse nada, agora vejo! O conselho de guerra julga-o ámanhã ás dez horas; e a sua sentença... é de morte! Offereci-lhe salval-o por uma quantia. Quer á força sacrificar-se! Commetter um crime, um suicidio! Diga-lhe!...

-- Que o meu coração se despedaça de o perder, mas que a minha alma se arrebata de admiração com a sua nobre recusa? É isto o que quer que eu diga? Para quê?! Ha muito que meu pae e eu nos conhecemos!...

-- Oh! minha senhora! Cuidei que amava mais seu pae, do que trinta contos de réis! observou o espia ferindo todos os alvos.

-- Meu pae fez o seu dever. Rejeitou o pacto infame. Eu cumpro o meu, dizendo-lhe que nunca tive tanto orgulho em me chamar sua filha.

-- Mas! A sentença é infallivel e executa-se logo. Ámanhã á tarde terá de orar sobre um cadaver! Veja que está matando seu pae!

-- Silencio! clamou o cavalheiro indignado e terrivel de aspecto. Assassino és tu, mas da honra dos homens, e até da fraqueza de uma senhora. Vai-te! Perdes aqui o tempo, não achas compradores, e podes encontrar... Por Deus! Não me tentes mais!

-- Tenha dó de si! insistiu o agente, recuando deante do ancião, mas orando sempre em nome dos trinta contos. Não se fie em vans esperanças. Ninguem o salva senão nós, minha senhora! O capitão Magendie, conhecido pela severidade, é o presidente do conselho de guerra, e a vida de seu pae...

O honrado Simão aqui estacou com o resto da phrase estrangulado na garganta. Uma larga mão, desabando-lhe sobre o hombro com o peso de um rochedo, acachapou-o debaixo do seu vigoroso impulso. Ao mesmo passo uma voz aspera e imperiosa dizia-lhe com ironica intenção:

-- Chamavas pelo capitão Magendie, creio eu. Aqui está o capitão Magendie! Repete deante d'elle o que dizias nas suas costas! Quero saber se ousavas fazer-me cumplice do infame pacto de sangue, que vieste propor! Fala!

Paulo de Azevedo e sua filha contemplaram attonitos e cheios de assombro a subita intervenção d'aquelle homem, que um erro de officio do espia, deixando a porta da prisão aberta atraz de si, introduzira no momento mais interessante do drama, de que eram auctores e personagens.

-- Fala que mando eu! repetiu o capitão, saccudindo o delator livido, tremulo, e mudo de terror.

O cavalheiro e Leonor começavam já a compadecer-se do infeliz Simão, muito parecido n'este instante a um chacal colhido nas garras do leão.

-- Fala, ou morres aqui mesmo! bradou pela terceira vez o capitão de mar e guerra. Quero ouvir e saber tudo!

N'este momento as faces de Leonor afoguearam-se do mais vivo carmim. Uma figura nova acabava de entrar em scena. Era Armand d'Aubry. O mancebo approximou-se d'ella com um sorriso, cortejou Paulo de Azevedo, disse-lhe o seu nome, e beijando a mão á donzella com respeito, disse-lhe:

-- Não é verdade, minha senhora, que já me accusava de vanglorioso, ou de esquecido?...

-- Eu, senhor d'Aubry! Que direito tinha para isso?

-- A minha palavra dada.

-- Sei que é escravo d'ella; mas ás vezes ha razões...

-- Nenhuma póde desculpar um descuido, que eu confesso, e que podia ter sido fatal. Fiei-me na palavra... de um homem que a trahiu, e descancei de mais. Felizmente chego ainda a tempo!

Um grito agudo de dor arrancado ao virtuoso Simão pelos dedos de ferro de Magendie interromperam n'este ponto a conversação.

D'Aubry, adeantando-se, interpoz-se entre a victima e o militar irritado.

-- Magendie! disse meio serio, meio a sorrir-se, quereis esmagar esse verme debaixo dos tacões das botas?!...

-- Não! Fôra vergonha e opprobrio! Mas o miseravel invocava o meu nome, quando entrei! Quero saber o que ousou inventar!

-- Deixe-o! accudiu Leonor, dando alguns passos para o capitão. O que elle propunha não deshonra o sr. Magendie.

-- Espero que não se atrevesse a implicar-me nas torpezas, que vinha aqui negociar. Se o fez... juro pela minha espada que lhe arranco a lingua mentirosa...

-- Não! Não! atalhou a donzella. Falou só da severidade do sr. Magendie, e da sentença de morte que ha de proferir ámanhã contra meu pae.

-- Eu! Ah! Pois tiveste a insolencia de fazer de mim carrasco? Serás punido! E arremettendo contra o espia, inerte e transido, serviu-lhe as costellas de tres, ou quatro pranchadas, que retiniram, seguindo-se umas ás outras com a velocidade do raio.

-- Magendie! Basta! Deixa esse desgraçado! clamou Armand, sustendo-lhe o braço já alçado para repetir a correcção.

-- Sáe! ajuntou arrastando o delator quasi pela gola da casaca, e lançando-o fóra. Se te demoras... não levas um osso inteiro.

Simão desappareceu, lastimado do corpo, e dorido da alma, pelo exito pessimo da sua missão.

-- Minha senhora, disse d'Aubry com nobreza. Os instantes são preciosos. O general Junot, que não é tão mau, como o odio dos portuguezes o crê, informado de tudo-- porque não lhe occultei nada-- assignou a ordem de soltura de seu pae sob palavra sómente, de que o sr. Paulo de Azevedo não ha de pegar em armas contra as tropas de sua magestade o imperador e rei n'esta ocasião. Fui talvez temerario, mas obriguei-me em nome do preso. Se me excedi, como só eu respondo...

-- Meu pae! Meu querido pae! Livre! Solto!... exclamou Leonor apertando o ancião nos braços. Obrigada sr. Armand! Obrigada!

-- Sr. d'Aubry! redarguiu o cavalheiro, vencendo a custo a commoção, e não soltando do coração a filha amorosamente cingida ao peito, a palavra, que deu, é como se fosse minha. Não abusarei da sua generosidade. Verei de longe os successos, mas não estranhe, não me leve a mal, que suspire pela victoria dos meus compatriotas...

-- É tão natural! O que hei de estranhar? Sr.a D. Leonor! Se lhe disserem que Armand d'Aubry ficou no campo, lembre-se d'elle, lembre-se do homem, que, não podendo merecel-a, quiz ao menos eximir-se ao seu despreso.

-- Despreso!? Porque nos fez Deus nascer tão separados, sr. d'Aubry!

-- Paciencia, accudiu o mancebo com um sorriso contrafeito. Seja minha irmã! E se em suas orações não póde pedir a Deus que faça triumphar a minha causa, rogue-lhe ao menos que me dê a morte gloriosa do soldado. Adeus! Lembre-se alguma vez de mim sem odio. Magendie são horas! Se quereis ser dos primeiros na batalha... a cavallo, e a galope!

X

Antes de se levantar o panno

Junot sobresaía no valor heroico. Era a imagem viva dos paladinos cantados pelo Ariosto. O peso das responsabilidades acurvava-lhe, porém, o animo, e as complicações do governo afrouxavam-lhe a vontade. Soldado sem emulo na intrepidez facilmente se offuscava no gabinete, ou no conselho, aonde a sua estrella esmorecia com frequencia. Grande, quando não era o primeiro, sentia vacillar nas mãos o leme do Estado no exercicio da suprema auctoridade.

Accrescentemos, para sermos justos, que a culpa das infelicidades foi menos sua, do que filha das ordens que o subjugaram de longe, e das circumstancias que o opprimiram de perto. A invasão de Portugal e a usurpação da Hespanha, dois attentados agravados por meios ardilosos, assignalaram os primeiros passos de Napoleão I para o precipicio, d'onde se despenhou poucos annos depois.

A casa de Bragança e a dynastia dos Bourbons, duas realezas desamparadas, dois cadaveres (na opinião do conquistador), uma fugida na America, outra expiando em Vincennes as scenas de Bayonna, apenas lhe mereceram que lançasse sobre ambas o seu manto de abelhas para as sepultar! Riscadas do livro de ouro dos soberanos pela espada, suppoz erradamente o moderno Cesar, que tambem acabariam de se extinguir no amor dos subditos, como tinham desapparecido a um aceno seu do theatro agitado da epocha. Cegueira! Captivos os principes ou ausentes, a saudade e os brios das nações armaram contra elle adversarios mais terriveis. Pela primeira vez se encontrou com os povos, e a sua fortuna começou a empallidecer desde então. Com estes novos adversarios a tactica e a disciplina quasi que eram vans; as victorias consumiam os vencedores; e cada gotta de sangue, que tingia a terra, levantava uma legião de inimigos.

A alliança das revoluções populares com a causa dos monarchas proscriptos mudou todas as condições da lucta. As derrotas não provaram nada em favor dos invasores; pelo contrario os revezes anniquilavam exercitos completos. O exemplo de Bailén viera demonstral-o. O duque de Abrantes via tremer em Portugal pelos alicerces o edificio da dominação franceza, e apprehensões rasoaveis diziam-lhe que, desabando elle de repente, podia colhel-o debaixo das ruinas, e aos seus companheiros de armas. D'este receio se originaram os maiores erros, que lhe censuram n'esta campanha.

Se não contrahiu a tempo as forças repartidas pelos presidios do reino, é porque temeu, aos primeiros rebates do canhão inglez, que Lisboa lhe escapasse, e que as praças, chaves, de provincias populosas, lhe cerrassem as portas, obrigando-o a escolher entre a morte do soldado e a capitulação affrontosa de Dupont. De dois males inevitaveis optou pelo menor. A furia guerreira de seus granadeiros podia talvez supprir a inferioridade do numero; mas, sublevada a capital, e perdidas as fortalezas, todas as esperanças de retirada se desvaneciam. Foi o que o decidiu.

Sir John Moore abicára com o seu corpo de tropas ás praias da Figueira. Sir Harry Burrard, Clinton, e Murray com suas brigadas já avistavam as costas de Portugal. Demorar-se em repellir Wellesley equivalia a deixar engrossar pela juncção a vaga ameaçadora dos contrarios. Junot lembrou-se, de que não era costume seu recuar, e arremessando a luva aos inmigos com tantas probabilidades contra si, confiou talvez, em que um dos ultimos raios do sol de Austerlitz viria illuminar mais um dia de triumpho para as armas francezas.

Calculadas pelos mappas, as tropas francesas no dia 15 de julho ascendiam a vinte e seis mil homens; porém, um mez depois, quando se contaram as praças presentes para as metter em linha, apenas appareceram dez mil soldados effectivos! As marchas forçadas de julho pela Extremadura e Alemtejo, as fadigas e ardores do clima tinham devorado quasi tres mil prostrados nos leitos dos hospitaes. Cinco mil e seiscentos occupavam Almeida, Elvas, Palmella, Peniche e Santarem. Dois mil e quatrocentos guardavam Lisboa; mil continham a bordo dos navios os prisioneiros hespanhoes: e os tres mil restantes vigiavam os fortes, as baterias, e as torres levantadas nas duas margens do Tejo.

O duque, partindo para abrir a campanha, já tarde conheceu, que em vez de conservar sobre os inglezes a superioridade indispensavel para os ferir e arrancar no momento dado, sacrificára ao proposito secundario de assegurar a defeza do rio e das fortificações do reino a sorte das aguias imperiaes, avistando-se com Wellington na proporção de um contra dois, ou peior ainda, depois do desembarque das quatro mil e duzentas bayonetas dos brigadeiros Anstruther e Ackland, desembarque operado durante o dia e parte da noite de 20 de agosto. Apezar d'isso, resolveu Junot, não só pelejar, mas sahir ao encontro de sir Arthur, e combatel-o aonde o encontrasse. O astro do imperio resplandecia ainda sobre a Europa, e as victorias, companheiras fieis dos capitães de Buonaparte, apenas em Hespanha lhe negavam um, ou outro sorriso. Mas a fortuna principiava já a cansar-se, e o genio de Napoleão, unico digno de a dominar, faltava n'este instante critico aos batalhões desterrados no extremo occidente pela sua ambição.

Foi em Torres Vedras, que o duque de Abrantes concentrou todo o exercito, e que, passando-lhe revista, encontrou só onze mil e quinhentos soldados, mesmo arrolando os não combatentes. Duas divisões de infanteria commandadas por Delaborde e Loison, uma reserva de granadeiros, e uma divisão de cavallaria ás ordens de Margaron, em força de mil e duzentos homens, caçadores a cavallo, e dragões, em quatro regimentos de dois esquadrões cada um, com vinte e seis bôccas de fogo, regidas pelo general Taviel, compunham todo o poder militar, de que dispunha o logar-tenente de Napoleão I na vespera da batalha, em que se iam travar braço a braço as duas nações ha tantos annos emulas, e cada dia mais implacaveis no designio de se supplantarem, como se uma devesse necessariamente offuscar a outra, ou como se a Europa não offerecesse espaço sufficiente a ambas para existirem e prosperarem.

Sir Arthur Wellesley, nos exordios da sua carreira na Peninsula, logo revelou as qualidades que o habilitavam a competir com os mais illustres capitães sem desafiar um d'aquelles immensos desastres, que immortalizam nas paginas da epopeia napoleonica o infortunio de tantos generaes. Concedendo pouco, ou nada, ao acaso, e não estribando as combinações nos rasgos duvidosos de temerarias emprezas, concebêra o seu plano com a prudencia fria, que sempre em tudo caracterizou seus calculos. Prevendo que, senhores de Lisboa, os francezes podiam atravessar o Tejo sem obstaculo, assoberbar as provincias do sul, e communicarem, por via d'ellas, com a fronteira hespanhola, e não querendo arriscar-se a um revez possivel no ataque de Torres Vedras, determinára tornear o exercito do duque de Abrantes por um movimento audaz, cortando a marchas forçadas pela estrada de Mafra, e chegando adeante d'elle ás portas da capital. A sir John Moore cumpria ao mesmo passo descer de Coimbra e occupar Santarem, vedando tambem por este lado a retirada dos contrarios.

Estavam expedidas as ordens n'este sentido, e marcados o dia e a hora, em que haviam de principiar a executar-se. Mas sir Harry Burrard, tenente general mais antigo, e segundo commandante das tropas britannicas, afferrou no dia 20 de agosto a enseiada de Maceira, e Wellesley foi immediatamente a bordo conferenciar com elle, e expor-lhe o verdadeiro estado das operações. Sir Harry não formava exacto juizo das forças de Junot, nem sabia apreciar as difficuldades, que podiam oppor-lhe. Ignorava tudo. A tenacidade da resistencia de Laborde na Roliça infundia-lhe receios, e antes de se medir com os francezes quiz ter proximos os onze mil auxiliares de sir John Moore, ordenando a sir Arthur, que se sustentasse no terreno, aonde acampára, e expedindo avisos sobre avisos aos navios fundeados no porto da Figueira para que o desembarque de suas tropas se realizasse nas proximidades da Lourinhã.

As posições occupadas por Wellesley eram seguras e pouco accessiveis. O Vimeiro assenta-se no regaço de um valle banhado pelas aguas do Maceira. Ao norte altea-se em seios sinuosos um ramal de collinas, cortado da parte de leste por uma quebrada rota em largo barranco. A estrada da Lourinhã atravessa por cima dos cabeços d'esta cordilheira passando pelos casaes de Fontanel e da Ventosa. Nas costas do Vimeiro, ligadas quasi as primeiras casas da povoação com suas faldas, ergue-se uma montanha, meio vestida de arvores e matas, meio nua e escalvada. De seu topo annuviado descobriam-se os caminhos e sendas, torcidas em diversas direcções para Torres Vedras. Sobranceira a esta elevação, enlaçando-se os montes, e empinando-se uns por cima dos outros, corre a serrania, a qual em ondulações, mais ou menos asperas, se prolonga quasi a beijar o mar, abraçando do lado de oeste todo o espaço comprehendido entre a margem esquerda do Maceira e a orla da costa.

Seis brigadas ás ordens de Hill, Crawford, Ackland, Nightingale e Fergusson, com as avançadas sobre a estrada de Mafra, guarneciam as alturas com oito peças de artilheria, em quanto as brigadas Anstruther e Fane, com meia bateria de 9 e meia bateria de 6 defendiam a montanha. A cavallaria guardava as bôccas do valle, e um piquete de portuguezes e de riflemen observava a estrada da Lourinhã.

Eis a disposição do acampamento inglez antes das vedetas dispararem os primeiros tiros.

O duque de Abrantes não mandára reconhecer o exercito inimigo, e sabia apenas pela noticia dos destacamentos de cavallaria, que tinham batido o terreno como exploradores, que elle estava reunido no Vimeiro, e que de noite se tinham visto arder tres linhas de fogueiras. A impaciencia natural e a necessidade não lhe consentiram maior informação. Instava com elle tudo para que precipitasse o encontro decisivo. Lisboa, agitada e descontente, podia libertar-se de um momento para outro, sopeando a pequena guarnição que a refreava. Os inglezes tinham tudo a lucrar, e elle tudo a perder com a demora. Em circumstancias assim apuradas, o melhor conselho era combater logo, sem escolher o campo, sem contar o numero.

Suas instrucções foram promptas e audazes. A cavallaria com o grosso da infanteria marchou no dia 20 á noite pelo desfiladeiro, que de Torres Vedras desemboccava no ponto, aonde se bifurcavam as estradas do Vimeiro e da Lourinhã. Aos primeiros clarões do dia 21 Armand d'Aubry, e o capitão Magendie, os quaes em poucas horas de trote rasgado tinham vencido as sete leguas, que os separavam do campo francez, encontraram já os corpos em descanso a legua e meia dos postos avançados de sir Arthur, o qual não inculcava haver-se apercebido ainda de sua visinhança.

Do sitio, aonde as tropas respiravam da rapidez de marcha, ás eminencias por cima da povoação do Vimeiro, encoberta com relevo do terreno, alargava-se uma charneca, toda areia e rochas, que em ingremes pendores baixava por uma parte até ao barranco no fundo do qual se apinhavam os tectos da aldeia de Toledo, e pela outra vinha quasi tocar as bordas do Maceira, cuja corrente preguiçosa scintillava no seu leito, illuminada dos raios nascentes do sol, que já em todo o seu esplendor dourava os cumes dos montes, recortados no celeste azul e transparente, inundando de jorros cada vez mais vivos de luz os terraços e as encostas das montanhas, os valles e os desfiladeiros, aonde as sombras mais tempo luctam com a claridade matutina.

Junot avançou direito ás alturas, com a cavallaria na vanguarda, com a infanteria formada em columnas de duas brigadas, e com a artilheria nos intervallos. D'Aubry recebeu ordem ao mesmo tempo de avisar o coronel do 3.º provisorio de dragões para que, atravessando a quebrada perto da aldeia de Toledo, se elevasse até ao moinho de vento de Fontanel, e ahi extendesse as filas brilhantes de seus cavalleiros pela corôa dos serros, cortando a estrada do Vimeiro á Lourinhã.

A vista do bello regimento, campeando descoberto no posto, que lhe fôra designado, deu o primeiro signal da batalha.

A manhã rompia serena e clara. Sir Arthur Wellesley, que n'este dia principiou a saír da meia obscuridade para as paginas luminosas da historia, rodeado de um luzido estado maior, mettia o pé no estribo, quando chegaram as primeiras noticias do inimigo. A physionomia do general, placida e firme, não denunciava em nenhuma nuvem os cuidados do commando. D'ahi a pouco a cavallo, silencioso, e attento, todos o viram consultar com o oculo os horizontes nas direcções d'onde deviam surgir os contrarios, enviando de curtos em curtos espaços a todo o galope um ajudante encarregado de suas ordens. O socego profundo da natureza, o riso das plantas ainda frescas dos orvalhos nocturnos, os vôos rasteiros das aves, e os murmurios brandos da corrente, contrastavam com os ruidos do campo, nuncios e precursores da procella, de que a ira dos homens inflammaria em breve aquelles pacificos contornos.

Entre o primeiro sobresalto da presença dos inimigos, e os primeiros rebates interpoz-se longa pausa. De parte a parte os exercitos, como dois luctadores antes de entrarem no circo espreitaram os movimentos um do outro, calculando todas as vantagens.

Antevendo o ataque pela frente e a esquerda de suas posições, sir Arthur destacou para as alturas da estrada da Lourinhã a brigada Fergusson, e logo atraz as de Nightingale, de Ackland, e de Bowes. Em breve a montanha do Vimeiro, em que ha pouco se accumulavam reunidas as forças de seis brigadas, appareceu quasi desguarnecida, não conservando mais que os tres regimentos de infanteria de reserva, confiados á pericia do general Hill.

As tropas portuguezas, ás quaes se tinham aggregado recentemente sessenta soldados de cavallaria da policia, capitaneados por Manuel Coutinho, duzentos artilheiros de Valença, fugidos da praça de Peniche, o coronel de milicias de Leiria, o morgado de Penim, e outros voluntarios, postados a principio no valle, foram logo mandados subir tambem a encosta, para formarem na planura do monte com a brigada Crawford.

O duque de Abrantes acompanhou estes movimentos da esquerda dos inglezes, ordenando as manobras correspondentes.

A brigada Brenier, por ser a mais proxima, adeantou-se em auxilio do 3.º de dragões, e a brigada Solignac, que seguia em columna a de Brenier, carregou egualmente sobre a direita com seis peças de artilheria. Assim, antes de ferida a peleja, metade das forças britannicas operava na estrada da Lourinhã, opposta a um terço pouco mais, ou menos, do exercito francez; mas a differença era notavel. O movimento de Junot, inopinado e fortuito, deixára grande distancia entre a direita reforçada e o principal corpo do exercito, em quanto os inglezes, pelo contrario, se ligavam concentricamente, não aproveitando menos os cinco regimentos de Bowes e Ackland ao general Fergusson, do que á defeza do Vimeiro, cujo aspecto infundia respeito até aos veteranos pela sua apparencia marcial.

O espectaculo dos dois exercitos, avisinhando-se um do outro, era bello e grandioso. A infanteria ingleza com os seus uniformes escarlates, dragonas brancas de lã, e barretinas largas de couro ornadas de pennachos de varias côres, desfilava a marche-marche cerrando filas, e mettendo em fórma. Duas linhas, cujas oscillações, cessando de repente se converteram na immobilidade da firmeza, postadas nos contrafortes e terraços da montanha, dominavam em amphitheatro as ladeiras aprumadas por onde os soldados de Junot haviam de avançar. Por cima d'ellas, mais atraz, e na rectaguarda das posições, ainda os serros se coroavam de bayonetas. Era a terceira linha extendida pela brigada do general Hill! Os canos luzentes das espingardas, e os ferros de lança dos estandartes scintillavam; as chapas douradas dos capacetes da cavallaria, os peitos de aço e as espadas nuas dos soldados, faiscavam, deslumbrando. De intervallo a intervallo, no cume de um pico mais alto, na cabeça de uma collina mais elevada, reluziam as peças de bronze assestadas, e ainda silenciosas.

O galope dos esquadrões, ennovellando-se a distancia entre rolos de pó, a brava alegria dos clarins, o desafio das trombetas, o rufar dos tambores juntos ás harmonias guerreiras das musicas, ao ondear das bandeiras soltas ao vento, e ao galope dos corseis dos ajudantes e generaes, cruzando a paizagem em todos os sentidos, compunham um quadro animado e vívido, que levava apoz si os olhos e a vontade, incendiando de enthusiasmo os animos mais timidos e indifferentes.

Ia romper-se a batalha. Armand d'Aubry, rodeando com a vista todo o campo, como o falcão paira dos espaços sobre a presa, disse para Lassagne, cujo sorriso parecia convidar os perigos:

-- Julio! Dias como este nunca mais esquecem! Olha como os inglezes nos aguardam! Faz gosto vel-os assim de marmore em suas linhas, e saber que a nossa espada fará calar em breve os rugidos d'aquellas bôccas de bronze em que Wellesley confia para nos deter!... Logo verá de que lhe valem!

-- Se as calarmos! redarguiu o tenente. Os soldados que alli temos, não se afugentam como guerrilhas.

-- Melhor! Quanto mais cara, mais gloriosa será a victoria! Quando mandará o duque romper o baile?! Sinto uma impaciencia!...

-- Escutai! Eil-o que principia! atalhou Lassagne. Se a fortuna proteger as armas da França, este dia póde ser um grande dia!

E largando as redeas, os dois partiram a bom correr para o posto, que haviam de occupar, e aonde Magendie e outros officiaes esperavam já por elles.

XI

A batalha

Deram oito horas da manhã. Um silencio profundo afogou de repente todos os estrepitos e todas as vozes nos dois campos. Similhante á pausa abafada, que precede os gemidos da procella, em breve iam rebentar d'este silencio momentaneo, todas as tempestades, que o odio e as paixões encerram.

A fortaleza das posições do Vimeiro, e a valentia dos defensores promettiam aos soldados de Junot disputada lucta. Apezar d'isso as massas accumuladas nas eminencias, nem suspenderam, nem paralysaram, o seu esforço. A divisão Laborde começou o ataque. N'esse momento, como se á ira dos homens se antepozessem as consolações do ceu, ouviu-se o repique longiquo, mas claro, de uma sineta, na capella da aldeia, convidando os fieis á oração. Logo apoz reboou, immensa e prolongada, acclamação festiva dos batalhões francezes. Era a brigada Thomières, que a passo ordinario, e com os estandar A fortaleza das posições do Vimeiro, e a valentia dos defensores promettiam aos soldados de Junot disputada lucta. Apezar d'isso as massas accumuladas nas eminencias, nem suspenderam, nem paralysaram, o seu esforço. A divisão Laborde começou o ataque. N'esse momento, como se á ira dos homens se antepozessem as consolações do ceu, ouviu-se o repique longiquo, mas claro, de uma sineta, na capella da aldeia, convidando os fieis á oração. Logo apoz reboou, immensa e prolongada, acclamação festiva dos batalhões francezes. Era a brigada Thomières, que a passo ordinario, e com os estandartes desenrolados, partia intrepida a escalar as escarpas da montanha, d'onde tres linhas inabalaveis juravam repellil-a.

Cobria-lhe a frente uma nuvem de atiradores. Os reparos dos canhões, rodando nos flancos, abalavam o chão, confundindo com o tropear da marcha o seu rolar soturno. O espaço, que separava os contendores, depressa se encurtou; o vulto da columna depressa se estreitou tambem, e diminuiu na distancia. Uma orla de fumo alvacento, franjada de relampagos, elevou-se lentamente da testa da linha no meio de detonações repetidas. Ao mesmo tempo os tambores, as trombetas, as gaitas escocezas, as cornetas, e os cheios sonoros dos instrumentos bellicos romperam em harmonia guerreira do centro das brigadas inglezas. Encostando as coronhas ao hombro, com os murrões accesos junto ao ouvido das peças, os soldados de Wellesley acceitavam resolutos o desafio das aguias francezas.

D'ahi a um momento ao trovão da artilheria juntava-se o estampido de milhares de fuzis. A montanha, silenciosa e fria até então, vestiu-se de clarões lividos, e uma densa nuvem de fumo, baixa e quasi immovel, véu sinistro, escondeu os combatentes da vista anciosa dos espectadores. De instante em instante novas explosões atroavam o campo, e por entre os rolos de pó e as fumaradas dos tiros faiscaram como fitas tortuosas de lume as descargas dos batalhões. Os pelouros, bastos como granizo, silvaram, varejando as fileiras. As balas de artilheria, cortando o ar, e zumbindo, vinham enterrar-se, escarvando o solo aos pés das companhias, ou, rasgando-lhes e esmigalhando-lhes as filas, abriam por meio d'ellas cruentas e largas brechas, assignalando no chão juncado de cadaveres e moribundos o seu rasto destruidor.

Pendurados das ingremes ladeiras, ouvindo por cima das cabeças estourar a voz de bronze dos canhões, sentindo debaixo dos pés retremer e escorregar a terra, no meio de uma atmosphera ardente, ora atropellados pelos que a morte despenha adeante das pontas dos alcantis, ora impellidos pelo tropel impaciente dos que atraz d'elles bramem e se apinhoam na subida, os soldados do regimento 26.º, respondendo com a audacia do silencio á tempestade vomitada das cristas das alturas, alcançam por fim a aresta da montanha, conquistam a beira da planura, e arremessam-se como leões raivosos, em linhas crespas, contra a muralha de aço, que lhes oppõem o 5.º regimento inglez. Foi como o encontro de duas nuvens carregadas de electricidade. A meia distancia uns dos outros, os canos das espingardas inclinam-se, dois relampagos immensos lambem a face das columnas, e o ruido de duas descargas quasi unisonas ribomba de cerro em cerro até aos valles.

As vozes dos chefes por cima dos mil rumores da peleja, e o tinir do ferro nos pelotões calando bayonetas soam distinctamente durante a curta pausa, que se segue. Depois, violentos estremeções sacodem os membros convulsos dos dois corpos gigantes, e n'um abrir e fechar de olhos ambos se precipitam um contra o outro, esperando suffocar-se n'este abraço, em que toda a sua colera ruge frenetica.

A cortina de fumo, que os encobre, adelgaçando, rarea-se um pouco, e o duello temeroso dos dois regimentos, arcando peito a peito, com os ferros apontados ao coração, brilha por momentos em toda a sua magestade!

Loison e Charland, com os batalhões 32.º e 82.º já a esse tempo estavam travados com tres dos regimentos de sir Arthur, o 97.º o 43.º e o 52.º. As linhas britannicas, abaladas pelo furioso embate, vacillam, encurvando-se. O impetuoso encontro das companhias francezas, sulcando-as, e mutilando-as em partes, cuida um momento tel-as arrancado, desordenadas e vencidas, do solo a que a disciplina parece arraigal-as. Mas a confusão dura apenas minutos! As filas confundidas reconstruem-se, e os assaltos vertiginosos dos guerreiros de Thomières e Loison quebram-se em vão contra a firmeza admiravel d'aquelle rochedo humano!

O sangue ensopa o chão, amortecendo o ruido dos carros e reparos, e o estrupido medonho dos pés dos combatentes. A chamma das bôccas dos canhões e fuzis cresta o rosto dos mais avançados. Fileiras sobre fileiras, minadas pelo bater incessante dos pelouros, escorregam no solo humido de carnificina, e prostram-se depois para não se levantarem, conservando apenas, aqui, e acolá, de pé, um ou outro soldado, sentinella perdida, que sobrevive ao estrago commum.

De lado a lado mordem o pó os mais valentes. O coronel Pillet e o general Charland, feridos, multiplicam as ordens e o esforço. O tenente coronel Peytavy adormece do somno dos fortes. Os inglezes pelejam com pouco enthusiasmo, mas com tenacidade indomita. Sem retirada, a derrota equivale para elles a um desastre sem nome. Nas suas costas aprumam-se despenhadeiros a pique; a seus pés ronca o mar enfurecido! Wellesley sabe-o, mas conta com os obstaculos naturaes, e com o valor e o numero de suas tropas. As columnas de Junot não são assás profundas para varrerem na ponta das bayonetas as tres linhas, que têem defronte.

Kellermann desdobra os batalhões da reserva a dois tiros de peça do Vimeiro. O duque d'Abrantes, perto d'elle, contempla o progresso dos ataques de Delaborde e Loison. Uma ordem sua manda marchar em auxilio dos dois generaes o 2.º de granadeiros, commandado pelo coronel Sainte-Claire. Avançando em columna, e em pelotões, o regimento costêa a quebrada, que baixa á direita para o barranco, aonde passa a estrada do Vimeiro a Toledo. Os inglezes, desopprimidos das forças de Delaborde, constrangidas a recuar, respiram por instantes, recuperando-se á pressa dos golpes precedentes.

Avistando os inimigos, que se adeantam, são suas disposições promptas e decisivas.

Os artilheiros assestam contra elles as bôccas de dezoito canhões e obuzes, e dando-lhes fogo a um tempo cobrem o terreno de projectis. As balas ôccas dos obuzes, enfiando filas inteiras, vem rebentar como bombas e granadas no centro dos segundos pelotões. Cuidam que o espanto e o terror dissiparam o ataque, e que os francezes cedem sem entestar com suas linhas! Illusão! Mal protegido pelos frouxos tiros das baterias da primeira divisão e da reserva, investindo por baixo de uma chuva de balas, que o consome, o regimento, como se entrasse em parada, prosegue inalteravel, semeando de mortos e feridos todo o caminho, e pagando com torrentes de sangue cada passo adeantado. Os que se aprestam a rechaçal-o, sentindo-o acercar, sem o ver, pelo som cada vez mais forte da marcha, vencem a custo o sobresalto inspirado por aquelle silencio ameaçador, grávido da vingança de tantas perdas.

Finalmente as pontas das bayonetas relampejam sobranceiras ás cristas da montanha, e as companhias, desfilando a cincoenta toezas da planura, principiam a formar-se em batalha. De repente, espectaculo doloroso, porém cheio de grandeza(!), um mar de fogo irrompe de todos os lados, e envolta em chammas a pequena columna oscilla, arqueja, relucta ainda, mas em vão e alue-se por fim, crivada pelas descargas convergentes da mosquetaria de seis regimentos! As explosões das peças acompanham o trovão rolante das descargas, os clamores do combate, e as ameaças dos tambores e cornetas. Os cavallos de trem da artilheria franceza extendem-se uns após outros, deixando os reparos desmontados. Os coroneis Foy e Prost pugnam debalde, e salpicam de sangue os canhões emmudecidos. Os primeiros pelotões de infanteria varridos pelo tufão de metralha desapparecem fulminados, e quando o fumo, que cega o campo, se desvanece, do bello e soberbo regimento, cujos brios os contrarios mesmo haviam applaudido, apenas restam reliquias, que em troços dilacerados se derivam fugitivas pela encosta, golfando de todos os membros o sangue de mil feridas!

Kellerman, que seguíra o 2.º de granadeiros com o 1.º regimento, ás ordens do coronel Morancin, atravessado o barranco, fôra encontrar-se de rosto com a brigada de Ackland. Sir Arthur, notando cuidadoso este movimento contra o centro, e receando pela povoação do Vimeiro, tractára de anniquilar sem demora o novo ataque. As tropas britannicas baixaram em forças duplas sobre a columna de Kellermann, e flanquearam-n'a. Não contente ainda com a fuzilaria cerrada, que dizima as fileiras contrarias, o general inglez arroja sobre ellas o impetuoso choque de quatrocentos cavallos do 20.º de dragões ligeiros, da guarda de policia portugueza, e dos voluntarios da Beira Alta e Extremadura.

Os granadeiros, colhidos no meio de um verdadeiro furacão de ferro, antes de poderem formar quadrado, vêem reluzir sobre as cabeças os sabres dos dragões e as espadas da cavallaria portugueza, á qual a voz e o exemplo de Manuel Coutinho, do coronel de milicias de Leiria, do morgado de Penin, e dos outros cavalheiros, que dias antes encontrámos no palacio da Asseca, infundem animo superior a maiores emprezas. As aguias rojam no pó pela primeira vez, e o amante de Leonor, alcançando a preço de ferimento leve a gloria de tomar um dos estandartes fadados até então pela victoria é saudado com vivas e felicitações pelos soldados, ebrios de enthusiasmo.

Os granadeiros acutilados dispersam-se deante dos cavalleiros, que os perseguem, alastrando o terreno de victimas, destroços, e captivando quasi a cada passo os que fogem, arremessando as armas.

-- Safa com a calma! brada um dos officiaes portuguezes, que a farda, a estatura herculea, e a voz atroadora denunciam de longe ser o bellicoso patriota, o major Alvaro. Trago os miolos assados dentro d'esta barretina, d'esta maldita panella. Forte asneira! Pôrem á cabeça da gente um cantaro que peza arrobas! Trago a camisa pegada ao corpo de suor!

-- Que dia, meu amigo, que grande dia! disse o capitão-mór de ordenanças de Leiria, Manuel Carranca, limpando junto d'elle a testa com a aba verde da farda, e restabelecendo o equilibrio ameaçado pela carreira do cavallo, um pouco fogoso de mais talvez para a sua pericia equestre. Não sinto já o braço de jogar cutiladas a estes cães, sr. Alvaro! Respiremos um instante!

-- Pouco os acúa! Não me estejam a fazer de um agreiro um cavalleiro! accudiu o alcaide-mór Rodrigo Crespo com a serenidade de um veterano callejado. Isto de que os senhores se admiram não é nada em comparação do que foi pelo Roussillon! Se caíssem sobre um quadrado a espirrar fogo por todos os lados, e crespo de bayonetas como um ouriço, então veriam. Mas estes granadeiros, que se derretem como alcôrce mal os cavallos lhes fungam ás barbas?! Historia!... Olhe, sr. Isidoro Pinto! ajuntou, voltando-se para o coronel de milicias, que acabava de sofrear o ginete, e que o escutava. Olhe como Manuel Coutinho, vae guapo na frente. Corre que desapparece! Ah, rapazes, rapazes!

-- Bom sangue não mente! redarguiu o velho cavalheiro, resguardando a vista do sol com a mão curva, e contemplando o espectaculo terrivel e variado, que se descortinava no campo por todas as partes.

-- Ah, meu coronel! exclamou o major Alvaro escarlate de fadiga e de regozijo. Tenho engulido mais de dois alqueires de terra, ando todo n'um lago, mas juro-lhe por todos os sanctos da côrte do ceu, que não trocava por um condado a alegria d'esta hora... Como elles fogem! Parecem gamos! Ah senhores francezes, cheira-lhes a esturro a nossa polvora? Bravo! Lá apanharam os inglezes um pelotão quasi inteiro! Fortes covardes!...

-- Não diga isso, senhor Alvaro! atalhou o coronel Isidoro Pinto. Agradeça a Deus o que estamos presenciando, e antes de tempo não cante victoria! Os francezes são valentes soldados, e aqui mesmo o estão mostrando. Fogem estes, e quem sabe, talvez d'aqui a nada tenhamos de fugir tambem. Agora por elles, e logo por nós. São sortes da guerra.

-- Qual fugir, nem meio fugir! gritou Rodrigo Crespo, rindo desentoadamente. Mas espera! Que é aquillo lá em baixo!

E alçando-se nos estribos apontava para a linha de arvores de um pequeno bosque, copado sobre a esquerda, d'onde principiavam a enrolar-se certas ondas suspeitas de poeira, avultando, como nuvem que desponta e se desdobra, em corpo numeroso.

-- Aquillo?! O que é aquillo? berrou o major Alvaro depois de fitar por um pouco a vista de lince no ponto designado. Aquillo são francezes. É uma emboscada de cavallaria jacobina. Estamos lambidos, com mil diabos!...

-- Fale mais devagar, observou o experimentado alcaide-mór. Noticias d'estas não se gritam por cima dos telhados. É verdade, são francezes, e com peças montadas e atiradores na frente! Formam em columna e em pelotões á saída do bosque! Temos festa!... Rapazes! Alto! accrescentou virando-se para o meio esquadrão de voluntarios que o seguia. Apparece um grosso de cavallaria inimiga pelo flanco! Sentido! Toca a reunir ao tenente coronel Taylor.

E o alcaide-mór, collocando-se á testa do meio esquadrão, ajuntava friamente voltado para o major e para o capitão-mór:

-- O sr. Isidoro Pinto tinha razão. Vamos receber uma carga a fundo, e receio que a nossa gente a não supporte. A confusão desordenada, em que a cavallaria ingleza corre no alcance dos granadeiros, póde ser-nos fatal. Em todo caso... somos portuguezes. Aqui havemos de vencer ou morrer!

-- Viva o principe regente! Viva a santa religião! bradou o major floreteando a pesada espada, e atirando a barretina ao ar.

-- Viva Portugal, e sejamos homens! exclamou o coronel sereno e intrepido, mettendo o cavallo ao lado do do alcaide-mór.

-- Eil-os comnosco! gritou Manuel Carranca. Deus me perdôe! Como vem feros! Se não fosse vergonha dizia, que mettem medo... de longe!

-- Póde dizer, que não lhe fica mal. Mais d'estes lances tenho eu visto na minha vida, e confesso-lhe que estimaria achar-me agora em outra parte... São ossos do officio, não ha remedio senão roel-os. Paciencia!

A conjectura do velho official era exacta. Vendo disperso pelo fogo das brigadas e pelo ferro dos dragões inglezes e da guarda da policia o bello regimento de Morancin, o general Margaron, emboscado desde o romper da manhã com toda a divisão de cavallaria franceza, deu por fim o signal do ataque, signal, que Armand de Aubry, Lassage, e muitos outros officiaes, não menos impacientes do que elles, aguardavam cheios de ira, e mordendo os beiços.

O formoso quadro, que offereciam á vista os pelotões, desfilando a trote de entre as arvores, cobertos por uma linha de atiradores, e trazendo nos flancos as bôccas de fogo chamadas da reserva, ao passo que enlevava os olhos, confrangia o coração. De momento para momento apertava o perigo dos alliados soltos em carreira desenfreada após os vencidos.

Avançando em duas columnas, uma composta da guarda do general em chefe e do regimento 26.º de caçadores a cavallo, ás ordens do principe de Salm-Salm, a outra formada dos regimentos 4.º e 5.º de dragões, na frente dos quaes galopavam Margaron, os majores Leclerc, Theron, e todo o estado maior, os esquadrões francezes, desenvolvendo-se, arremettem com os estandartes altos, e as espadas núas, no meio da brava alegria dos clarins, direitos a uma eminencia, que precisam vencer para dominar o campo.

Similhantes a duas serpes monstruosas, suas columnas enroscam-se, colleando pelas veredas da encosta, e subindo, ora entumecem, ora estiram os anneis luzentes pelas voltas sinuosas, precedidas dos relampagos, que fuzilam as bôccas das peças, do trovão, com que a artilheria annuncia a sua presença, e da cortina de fumo, que ondeia e paira sulcada de coriscos, sobre a ladeira opposta pela qual já se precipitam os atiradores, investindo-a.

Vendo-os accommetter assim vistosos e intrepidos, o tenente coronel Taylor olhou em redor de si, e apontando para elles exclamou: splendid! Soldado applaudia a bizarra apparencia de outros soldados dignos do seu valor! Firme deante da ameaça d'aquelle golpe sua voz resoa em brados viris superior a todos os ruidos. Indifferente aos perigos, vôa, ora a um, ora a outro lado, ordenando e confortando os seus.

Os clarins britannicos e portuguezes respondem altivos ao desafio guerreiro do inimigo. As nossas bandeiras tremulam com orgulho deante das bandeiras oppostas. Retrocedendo em ondas loucas do alcance, que os attraíra, os portuguezes e os dragões britannicos entram nas fileiras uns após outros, e a ordem de batalha reconstrue-se sobre o terreno já cavado pelas balas dos francezes. Manuel Coutinho e os officiaes unem os esforços aos do valente capitão inglez e acodem á confusão inevitavel d'este momento de sobresalto.

-- Eil-os partem! exclama o amante de Leonor, vendo a cavallaria contraria arremessar-se a todo o galope.

-- Ávante! A elles, dragões! Bradou Taylor, largando as redeas, e soltando o fogoso ginete, cujas crinas ondeantes açoutam o ar.

Foi como o encontro de dois vulcões rolando ennovelados por cima da terra, que parecia gemer e vergar opprimida com a tempestade de homens e cavallos, cujo estrondo abafado recresce á medida, que as duas muralhas de ferro se approximam.

O chão embebe-se rapido debaixo dos pés dos corseis. Já não é senão uma estreita orla entre dois rolos de pó.

O sol bate de chapa sobre a planicie. As armas scintillam despedindo clarões sinistros. A distancia desapparece! As primeiras filas topam em cheio. Um grito, uma explosão, um estrondo horrendo, assonancia de mil clamores e de mil estrepitos, acompanha o medonho choque!

As fileiras baralham-se, e a peleja individualiza-se. Os pelotões atiram-se uns contra os outros como vagas furiosas e encapelladas, estourando no meio d'aquelle mar agitado. Com as redeas nos dentes, os cavallos empinados, e a pistola, ou o sabre em punho, n'este duello immenso composto de mil combates parciaes, cada qual busca um contendor e logo o esquece, derrubado e nas ancias da morte, ou distraído no ardor da nova provocação. Ao fuzilar das espadas juntam-se as detonações, a chamma fugaz dos tiros disparados á queima roupa, e os jorros de fogo que illuminam a frente das baterias.

A atmosphera suffoca. Ao alento fumegante dos cavallos, nitrindo de colera, une-se a respiração abrazada dos homens, cujos olhos relampejam, cujo odio encanecido em momentos devora o adversario alçado deante d'elles. O sangue gotteja das armas e dos uniformes. Gemidos e brados acompanham a agonia e a vingança. Por meio d'esta scena de furia e delirio feroz atravessam ginetes sem dono com as crinas soltas, e cruzam esvaindo-se pelas feridas corseis arrastando presos dos estribos os cavalleiros moribundos. A lucta é toda de força e destreza. Deslumbra a vista o faiscar incessante dos golpes. As fileiras raream-se. As vozes dos chefes retumbam por cima do concerto horrendo dos combatentes travados como feras no circo.

D'Aubry, fiel á sua palavra, mais parecia buscar a morte, do que a gloria. O seu braço fere infatigavel; o seu peito offerece-se descoberto ás balas e ao ferro. Por onde passa, os mais fortes e audazes, recuam, ou caem. Manuel Coutinho, ao lado de Taylor, viu-o atirar o cavallo ao encontro do coronel, saír intacto e invulneravel do arremesso de cem contrarios, e avisinhar-se com a espada alta sobre o commandante inglez.

Sentindo fugir-lhe o campo, e divisando rotas, ou desordenadas suas fileiras, Taylor accommette quasi só os inimigos com aquelle supremo desdem do perigo, feição heroica do seu caracter. Poucos dragões e alguns portuguezes ainda o rodeam, porém já desfallecidos. Os esquadrões britannicos recuam e fazem já meia volta, retirando-se surdos ás ordens e á desesperação dos capitães.

Lassagne e o coronel inglez encontram-se um defronte do outro por um d'esses acasos, que a guerra tantas vezes arrasta. D'Aubry luctava perto por abrir caminho, mas se podia ver o combate, não podia soccorrer o companheiro de armas. De subito a espada do tenente francez faiscou baixando a cravar-se no hombro esquerdo de Taylor, que a dor faz vacillar nos arções, mas ao qual a ira, restituindo o alento, presta novas forças. Um golpe terrivel depressa o vinga, e Lassagne, varado de uma estocada pelos peitos, baquêa do cavallo em terra.

-- Adeante! clama a voz do coronel, apertando os joelhos ao cavallo, e floreteando o sabre.

Não poude dizer mais. Uma bala suspende-o na carreira. A mão inerte solta as redeas, a espada núa escapa-lhe dos dedos, e o corpo seguro na sella por segundos oscilla e prostra-se afinal sem vida. A bala tinha-lhe atravessado o coração!

Manuel Coutinho olhou e empallideceu. Na mão de Armand d'Aubry fumegava ainda a pistola, que disparára o tiro. A queda de Taylor acabou de abalar os soldados já vacillantes. Alguns d'elles comtudo, cercam d'Aubry, accesos em raiva e esquecem tudo para saciar o odio, que os abraza. Triste com a perda do amigo, insensivel á propria morte, o mancebo quasi que mal lhes disputa a existencia. Já o sangue lhe corre de largas feridas, já a espada lhe treme na guarda, já um véu principia a turvar-lhe a vista, quando de repente vê a larga folha de um sabre ameaçar-lhe a fronte, outro ferro antepor-se e aparar a golpe, e uma voz conhecida bradar-lhe:

-- Rende-te!

Entregou a espada já sem ver a quem, e fechou os olhos.

Quando tornou a abril-os, achou-se debaixo do tecto de uma barraca de lona ingleza, com o cirurgião-mór de um corpo britannico ao lado, e Manuel Coutinho á cabeceira.

A batalha tinha terminado. A brigada Solignac na estrada da Lourinhã, e a brigada Crenier na assomada da Ventosa haviam tentado tambem de balde a ventura das armas. A fortuna de Wellesley foi mais poderosa. As posições do Vimeiro, immortalizadas pela firmeza dos alliados, repelliram todos os ataques. No fim de duas horas e meia de fogo, os francezes contaram fóra de combate mil e oitocentos homens entre mortos e feridos, bastantes prisioneiros, entre elles o general Brenier, e treze peças de campanha perdidas, com vinte e tres carros de munições. O duque de Abrantes, salva a honra, inclinou-se deante da adversidade, e ordenou a retirada.

Restava-lhe morrer, capitular, ou abrir pelo meio dos inimigos a retirada. A sorte compadecida não quiz que elle encontrasse um tumulo em Portugal, aonde quasi possuira um throno. Por mão dos proprios adversarios lhe franqueou as portas da patria.

XII

Sol entre nuvens

Voltemos áquella casa tão risonha do campo do Ourique, aonde ouvimos as imprecações de Manuel Coutinho, as palavras prudentes do bispo de Malaca, e a resposta de Leonor ás propostas de Lagarde. Apenas decorreram algumas semanas, mas os successos precipitaram-se, e tudo mudou de aspecto.

Entremos sem ruido pela alcova, cujas portas de vidraça, recatadas pelo reposteiro de seda, abrem sobre a sala, aonde vimos a filha de Paulo de Azevedo jurar ao seu amante eterno amor. Os moveis e o adorno do aposento são ainda os mesmos. Os raios do sol afagam de luz dourada as avezinhas, que saltam nas gaiolas, e beijam as corollas das flores, cujos variados matizes sobresaem, marchetando os bellos ramos, que enfeitam as antigas jarras japonezas em cima do marmore dos tremós.

O gato valido dormita enrolado sobre o seu coxim de lã. A agulha continúa esquecida, picando a tela na folha começada mezes antes no bastidor. Lá está aberta a «Imitação de Christo» na pagina, que Leonor lia, quando a entrada de Manuel Coutinho a veiu interromper. Além se descobrem, junto do espelho de talha alta, os outros livros, fieis companheiros da donzella, nas suas horas de tristeza e solidão! Tudo parece o mesmo, e, todavia não sei que invisivel e indiscreto delator logo revela aos olhos, que o infortunio e as magoas já não humedecem de suas lagrimas aquellas paredes, aonde já se respira conforto e alegria.

Soam passos e vozes na rua mais proxima do jardim. A areia range debaixo dos pés de tres pessoas, que se encaminham lentamente para a meia laranja rasgada deante da escada de pedra.

Todas tres são nossas conhecidas. No meio, mais grave e preoccupado, do que o vimos nos dias de oppressão e de risco, vem o veneravel bispo de Malaca. Conserva ainda o bondoso sorriso e a serena expressão do semblante, mas um véu de melancholia lança-lhe algumas sombras sobre o rosto. Á sua direita Manuel Coutinho com o braço esquerdo ao peito parece escutar com impaciencia as phrases, que Paulo de Azevedo solta com vehemencia, todo inflammado em ira.

-- Não, Manuel, não me convence! exclamava o velho cavalheiro colerico. A capitulação de Cintra é um opprobrio para nós, e uma infamia para quem a assignou! Se foi para nos tractarem como conquista sua, para nos venderem a honra e a fazenda a retalho, excusavam os inglezes de vir a Portugal. Estrangeiros por estrangeiros cá tinhamos o Junot. Ladrões por ladrões cá estavam Lagarde e Juffré. Não era necessario encommendarem-se os Trant, os Dalrymple, e os Ackland!...

-- Não vá tão longe, sr. Paulo de Azevedo, não seja injusto! accudiu o bispo, interpondo-se mansamente. Louve a Deus pelas maravilhas da nossa restauração, e não se afflija tanto com o mais. Tudo tem remedio.

-- De mais, observou Manuel Coutinho, estou certo de que os alliados já conhecem o seu erro, e hão de cedo emendar o mal. Sir Arthur Wellesley disse...

-- Tão bom é elle, como os outros! interrompeu Paulo, levantando a voz. Manuel Coutinho é muito moço. Conto mais annos e mais experiencia. Lembre-se de que tambem os francezes entraram aqui com pés de lã, e depois...

-- Pois cuida?! É impossivel!...

-- Cuido, sim, senhor. Não sei o que acham os estrangeiros n'esta tira de terra, mas a verdade é que todos a cubiçam, hespanhoes, francezes e inglezes! Mas se estes de agora imaginam representar ao vivo a fabula da ostra e dos litigantes talvez se arrependam. Não hão de comer a polpa e dar as cascas a Bonaparte e ao principe regente! Em Portugal ainda ha fouces roçadouras e espingardas caçadeiras por essas choupanas para exterminar hereges e traidores!...

-- Socegue! Pois julga que o governo inglez havia de cair na loucura de querer apoderar-se do reino!? atalhou o bispo sorrindo-se. Os generaes alliados não nos tractaram bem, concedo. Faltaram ao respeito devido á rainha, nossa senhora, dispondo sem audiencia nossa, do que pertence á sua corôa; mas suppor que o fizessem com o ruim sentido de substituir a sua usurpação á de França, não posso crel-o!

-- Creia o que quizer, senhor bispo; mas saiba que o illude a sua bondade natural. Senão diga-me: Estamos hoje a dez de setembro. Ha oito dias, que o Tejo se vê coalhado de navios de transporte e de vazos de guerra inglezes. Que bandeira tremula em S. Julião, nos fortes, em Paço d'Arcos, e em Belem? Uma commissão de estrangeiros, em que só figura por esmola um portuguez, abriu balcão no largo do Loreto n.º 8, para tomar conta das mobilias dos paços reaes, das repartições publicas, e dos objectos furtados dos arsenaes, como de cousas inteiramente suas! Os francezes acampam nas praças com as peças carregadas! Os inglezes estão quasi ao lado d'elles! Pode dar-me noticia de Bernardim Freire e do exercito portuguez? Sabe aonde pára? Não o pozeram fóra, a elle, que era de casa, para se metterem a si de dentro?!...

-- É verdade! respondeu Manuel Coutinho um pouco enleiado, porque a amisade e respeito ao velho cavalheiro o prendiam por um lado, em quanto pelo outro se lhe figuravam exageradas suas queixas e apprehensões. Mas a capitulação foi negociada e assignada entre Junot e os alliados! Talvez seja essa a causa da falta do nosso general n'este momento.

-- E essa falta, attestada pelo protesto, que elle de certo ha de fazer como bom portuguez e bom soldado, é a maior accusação, que existe, contra a insolencia, com que somos tractados! bradou Paulo de Azevedo com os olhos scintillantes. Pois dispõe-se assim da soberania, da independencia, da honra, dos interesses, e da segurança de um reino amigo sem chamar ás conferencias o general, que o representa, e que empunha as armas para os sustentar?! Aonde estariam a esta hora Wellesley, Dalrymple, Beresford, e Moore, se as nossas villas e cidades se não sublevassem, e se o nosso exercito lhes não cobrisse a marcha sempre? A bordo dos navios, ou vencidos e afogados no mar! São muito esquecidos estes senhores inglezes!

-- E aonde estariamos nós, tambem, accudiu Manuel Coutinho, por fim irritado, se esses inglezes, que o sr. Paulo de Azevedo quasi amaldiçôa, como inimigos, não combatessem pela nossa liberdade na Roliça e no Vimeiro? Julga que as milicias de Bernardim Freire, e os Terços tumultuosos eram capazes de desalojar De Laborde, ou de vencer Junot? Quer que sejamos injustos? Todos viram o que succedeu. Foi ainda hontem! O sangue vertido pelos estrangeiros em nossa defeza está vivo e fresco. Não lhe parece cedo para começarmos a ser ingratos?!...

-- Ingratos?! Ah! Manuel Coutinho não esperava similhantes palavras da sua bôcca! Pois já se namorou tanto dos estrangeiros n'estes poucos dias, que lhe esqueçam as offensas da patria escarnecida, vilipendiada?...

-- Ajudei a vingal-as no campo, sr. Paulo de Azevedo! redarguiu o mancebo com alguma altivez. O que digo vi-o por meus olhos. O meu sangue correu tambem alli! Se defendo os inglezes é porque os admirei como soldados, e juro que não receio d'elles, que se nos convertam em inimigos. Acredite! Agora podemos confessar a verdade. As sublevações das provincias não expulsavam os francezes de Portugal!

-- É tambem o meu voto! disse o bispo, pondo a mão no hombro do velho cavalheiro, e persuadindo-o mais pela amenidade do sorriso e dos modos, do que com as palavras. Nós sós contra tropas firmes e disciplinadas podiamos ennobrecer de victimas o martyriologio nacional; mas vencer parece-me que não. Vamos, meu amigo. Melhor o fará Deus! Estamos em suas mãos, e Elle por sua infinita misericordia não ha de levantar de cima d'este reino a protecção visivel, com que nos está soccorrendo. Não vae tudo tão bem como devia ir? Fomos offendidos e aggravados? Paciencia! Do mal o menos.

-- Paciencia! exclamou o pae de Leonor já mais brando. Paciencia?! Sinto arder o sangue nas veias, e o pejo nas faces, quando leio as proclamações e editaes d'esses libertadores, que mandam como se não tivessemos patria, rei, e independencia! Os francezes riem-se de nós como de crianças enganadas. Lagarde entrouxa e enfarda as riquezas de Queluz. Junot tracta do Castello de S. Jorge, e embarca caixotes e caixotes cheios de preciosidades. Os traidores, que nos venderam, vão saír com elle ricos e impunes, e não nos levam amarrados com gargalheiras de ferro ao pescoço para nos venderem, como negros, talvez porque não têem navios para tanta gente!...

N'este momento os tres chegavam defronte da escada. No alto, entre os humbraes da porta, despontava, pallida e graciosa, a figura delicada de Leonor, envolta em um penteador de rendas, com um meigo sorriso nos labios.

-- Alli está a nossa irmã da caridade, a nossa fada! Leio nos seus olhos melhores noticias dos enfermos! accudiu o bispo, acenando risonho á donzella, que esperasse, e começando a subir os degraus com a pausa da edade.

Manuel Coutinho córou de alvoroço, e a sua vista, em um relance, disse tantos segredos amorosos ao coração palpitante, que voava para elle, que as faces de Leonor se avivaram de instantaneo rubor.

Paulo de Azevedo, no peito do qual principiavam a applacar-se as iras murmurando ainda, apenas fitou a filha, sentiu de repente o animo de todo sereno, e as mais grossas nuvens dissipadas. A alegria intima espraiou-se-lhe pelo rosto, e com a bôcca cheia de riso, exclamou ainda do meio dos canteiros de flores:

-- Ah! Ah! Pelo que vejo levantámo-nos com a aurora e saímos fresca e viçosa com ella?! Manuel, que fizeste á tua noiva, que não te fala? Temos amuos, ou estaes hoje deveras mal, filhos?

Os dois amantes, sorrindo-se, trocaram um volver de olhos tão suave e enlevado, que os anjos custodios de ambos, se não fossem tão puros espiritos, teriam inveja ás felicidades da terra.

Paulo percebeu e sorriu-se tambem, offerecendo o braço a Manuel ainda ferido no braço esquerdo, e contuso em uma perna, para o ajudar a subir. Ao mesmo passo ameaçava com o dedo a Leonor, accrescentando:

-- Bem! Muito bem! Entendo! Estão apostados para enganar o pobre velho, que já não sabe de si, nem dos outros? Pois sim! Quer saber, sr. bispo? Estes dois innocentes, que não pestanejam deante de nós, que não dizem uma palavra com medo de que o ar os toque, vou jurar, que já se viram e se falaram hoje da janella?! Adivinhei? Sim, ou não, Manuel Coutinho?

-- Adivinhou metade. Já nos vimos, é verdade. Agora falarmos não. Para que?

-- De certo! atalhou o cavalheiro rindo com malicia. Se não me esqueci do meu tempo de rapaz, para que deu Deus olhos aos amantes, senão para dizerem tudo callados? Vamos! São mais do que horas de almoço. O passeio e a disputa abriram-me o appetite! E d'Aubry? Passou melhor a noite? O accesso não voltou?

-- Não, meu pae. Graças a Deus, está salvo. Disse-o o medico ainda ha pouco.

-- Ah! o doutor Thomaz esteve por aqui? Não me chamaram?! Com que então temos homem? Estimo immenso. D'Aubry, apezar de jacobino, é uma perola, e sou seu amigo verdadeiro. Aquelle coração...

-- É um nobre e grande coração, sr. Paulo, um coração de ouro! atalhou Manuel Coutinho. Devemos-lhe muito, e ainda bem que o acaso me trouxe pela mão ao sitio em elle de proposito se estava deixando matar!...

-- E o outro francez, o tenente Lassagne? observou o bispo depois de beijar Leonor na testa com paternal carinho. Tenho por elle tanta sympathia!...

-- Está livre de perigo tambem, disse-o o doutor, redarguiu Leonor.

-- Podem pezar-se ambos a cêra, que no estado, em que os vi entrar aqui nas macas, não cuidei nunca que escapassem. É verdade, que reis não eram tractados com mais desvelo. Leonor! Nasceste mesmo para mulher de um capitão. Foste uma enfermeira exemplar.

-- Devia-o ser, meu pae. Não foi d'Aubry quem abriu as portas da sua prisão e enxugou as nossas lagrimas? Manuel lembrou-se, e, salvando-o, verteu por elle o seu sangue. Eu! Havia de fazer menos e ser ingrata? Quando voltar a França, não ha de dizer, que a nossa memoria foi mais curta, do que o beneficio. Achou em Manuel um irmão...

-- E em ti uma irmã! Muito bem! Elle merece-o. Sabes a minha pena? É aquelle maldito Lagarde! Porque ha de Aubry ser sobrinho de similhante velhaco?! Se não fosse isso! Antes do senhor intendente nos dizer adeus, havia de ajustar com elle as minhas contas! Entremos. Com aguas passadas não moem moinhos.

Os tres entraram, e em quanto elles almoçam e conversam, informaremos nós o leitor em duas palavras dos acontecimentos a que alludiram no jardim, quando os encontrámos.

A batalha do Vimeiro provou ao duque de Abrantes, que lhe escasseavam as forças para arrancar os inglezes de Portugal. Kellermann, acompanhado de dois esquadrões de cavallaria, apresentou-se no quartel general inglez, e aproveitando habilmente a timidez e a falta de tacto de sir Hew Dalrymple, negociou com elles a famosa capitulação de 30 de agosto, que tomou o nome de villa Cintra, aonde foi assignada, e que feriu ao mesmo tempo o orgulho britannico e o amor proprio nacional, murchando metade dos louros da victoria, e esmorecendo o enthusiasmo, com que Portugal abria os braços aos alliados, e os acclamava restauradores da sua independencia!

Os francezes por ella obrigaram-se a evacuar o reino com armas e bagagens, não como prisioneiros, mas como tropas em armas, que os navios britannicos haviam de desembarcar em Rochefort, podendo servir na guerra apenas entrados na sua patria. As praças de guerra deviam ser entregues aos soldados inglezes! Ao exercito era livre transportar comsigo, além da artilheria e do trem, a caixa militar, e tudo o que pertencesse aos corpos e aos chefes! Os feridos e doentes ficaram entregues ao cuidado do governo inglez. Junot prometteu concentrar as suas divisões a duas leguas de Lisboa, e o general em chefe sir Hew a tres leguas. A convenção affiançou de mais a segurança e a impunidade das pessoas addictas ao dominio dos invasores, e a troca de todos os prisioneiros desde o começo das hostilidades. Dos portuguezes, do seu rei, dos seus direitos, nem uma palavra! Foi como se não existissem! Nem os ouviram, nem os attenderam!

O general Bernardim Freire de Andrade, aggravado do completo esquecimento ou antes do desprezo, com que viu omittida a sua patria n'estas memoraveis estipulações, protestou contra ellas em 14 de setembro, e suas justas queixas, inseridas nas folhas de Londres, exacerbaram ainda mais a indignação do povo inglez. A capitulação, condemnada como um acto vergonhoso, mereceu o stygma, de que a flagellou a soberba imprecação de Byron em um dos cantos de Child Harold.

O duque de Abrantes affrontou a adversidade com valor, e houve-se com destreza antes, e depois do revés. Escarneceram-o por mandar illuminar Torres Vedras na vespera da batalha, festejando antecipadamente o triumpho! As luminarias eram para illudir e conter as iras da capital. Recolhido de novo á côrte, á testa de suas tropas, a impaciencia dos habitantes, por mais que o desejasse, não poude ler o annuncio do desastre no seu rosto impenetravel. Sereno e intrepido conservou seguras até ao ultimo instante as chaves!

A anciedade attribulou muitos dias o animo dos moradores. Lagarde e a Policia, caso raro (!) alcançaram entreter as incertezas, encobrindo a noticia da convenção. Os primeiros signaes da liberdade proxima deu-lh'os sómente em 2 de setembro a entrada dos navios britannicos no Tejo. O exercito francez principiou a embarcar por divisões, e com elle se abrigaram egualmente debaixo dos estandartes estrangeiros os portuguezes compromettidos, que o odio publico apodava de jacobinos. A bandeira dos alliados hasteava-se em S. Julião e nos fortes das margens do rio, em Paço de Arcos, e em Belem! Os inglezes acampavam em Arroyos e no Campo de Santa Anna, tomando posse dos quarteis, á medida, que os regimentos de Junot os despejavam.

Todos estes movimentos, e a vigilancia militar e hostil, com que os francezes se guardavam nas praças com as peças carregadas á bôcca das ruas e os murrões accesos, despertavam as esperanças dos nossos, inflammando o seu zelo, reprimido do maior impeto pelos avisos de sir Carlos Cotton, enviados de bordo da nau Hybernia, e pelos conselhos prudentes de alguns patriotas respeitados.

Ao povo tudo isto se representava um sonho. Aos homens sisudos doiam no orgulho nacional as condições da capitulação, mas temperava-se a magoa d'ellas com a idéa de estar por um fio a queda da usurpação.

D'Aubry e Lassagne, perigosamente feridos no Vimeiro, salvos por Manuel Coutinho, e transportados para a casa hospitaleira do bispo de Malaca, graças aos disvelos do mancebo, tornando a si do agudo padecimento, souberam que veriam de novo a França em breve. Seria sem saudade da terra que iam deixar?

XIII

Conclusão

-- Então ainda duvida? Somos livres. Não lhe dizia eu que estavamos nas mãos de Deus?!..

-- Ainda bem que acabou assim, sr. bispo, ainda bem! Mas sou teimoso. Os inglezes portaram-se mal. Não os defenda. Dão ao céu o que o demonio não quiz...

-- Valham-me os Santos Martyres de Marrocos, sr. Paulo de Azevedo! Nada o contenta. Nem este dia de gloria e de jubilo, em que todos parecemos loucos!?...

-- Olhe! Quem vai de certo contente é o Junot. Leva ao seu imperador um exercito que devia ficar prisioneiro...

-- Se o derrotassemos!...

-- Derrotavamos de certo. Não tinha retirada. E o traficante de Lagarde, que sae a barra cheio, como um ovo, de tudo o que roubou com as garras da policia. A proposito, viu d'Aubry? Como supportou elle a noticia?...

-- Da capitulação? Como um homem de brios e de grandes espiritos.

-- E conta partir, e deixar-nos? Que remedio! Sabe que ha de fazer-me falta. Estava costumado aos seus ditos joviaes, e agora!...

-- Sente a separação? Tambem eu e elle a não sentimos pouco. Lassagne foi com Manuel Coutinho ao quartel general inglez apresentar-se, e tirar guia para o enbarque. Está muito pallido, mas fica-lhe bem. Excellente rapaz!

-- Vamos nós dar tambem uma volta pela cidade. Apezar de tudo... accrescentou sorrindo, a alegria do povo, mais ou menos, sobe sempre á cabeça dos que não se illudem com as apparencias. O dia 15 de setembro será por muito tempo um dia memoravel nas recordações da patria.

-- Ora ainda bem que o ouço falar assim. Vamos.

E os dois saíram pela porta do jardim.

D'Aubry ao mesmo tempo achava-se no vão de uma janella da sala, onde víra Leonor pela primeira vez. Mais desmaiado e mais consumido de physionomia, do que antes dos ferimentos, os olhos conservavam, todavia, o antigo brilho, offuscado n'este momento por um véu de contemplativa melancholia.

Tinha na mão um volume aberto, estava de pé, e julgando-se só fugia-lhe a vista com o pensamento das paginas mortas do livro para as paginas vivas das ultimas semanas da existencia. Duas lagrimas furtivas, e a magoada expressão do rosto, revelavam, que, se o corpo convalescia da molestia, a alma traspassada de occultos espinhos ainda continuava enferma.

De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe no hombro ao de leve, fizeram-o estremecer. Sem ver adivinhou que era Leonor. A côr afogueou-lhe as faces subi De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe no hombro ao de leve, fizeram-o estremecer. Sem ver adivinhou que era Leonor. A côr afogueou-lhe as faces subitamente, e um sorriso contrafeito passou-lhe pelos labios, mais triste, do que a propria dor immobil.

-- Que é isto?! accudiu a donzella, fitando-o compassiva e carinhosa. O meu doente aqui, e só, com os olhos no céu, e, Deus me perdoe (!) ainda humidos de pranto!? O que teve Armand? Que mal lhe fizemos para estar assim magoado? Offendi-o sem saber, offendeu-o alguem d'esta casa innocentemente?!...

-- Offender-me, sr.a D. Leonor! Os anjos deixam saudades e não aggravos! Estava-me lembrando dos ditosos dias que passei aqui...

-- Ditosos?! Entre dôres, e moribundo?!

-- Ditosos sim. Que eram as dôres para mim, quando a tinha a meu lado, imagem suave da consolação e do affecto? O corpo parecia morto, estava quasi morto, mas se soubesse o que o espirito vivia e sonhava então!... Delirios de enfermo! Illusões que a realidade cura... cruelmente, é verdade, ou que só o tumulo acaba muitas vezes!...

-- Não diga isso. O que chama illusões são realidades, todos aqui dariamos a vida, que lhe devemos, para o vermos salvo e satisfeito. Creio que apesar de se ver entre estranhos...

-- Estranhos?! Não me faça ingrato, que não lh'o mereço. Nunca houve mais extremosos amigos! Deus, compadecido da minha solidão, quiz dar-me antes de morrer, porque me diz o coração que o primeiro campo de batalha será a minha sepultura, a alegria de possuir no seu affecto o que a morte de meus paes me roubou na infancia desamparada. Leonor! Consinta que repita assim o seu doce nome. Disse-me um dia que era minha irmã!...

-- Acha que o não fui, que o não sou já?! atalhou ella com um sorriso meigo.

-- Não! Porque me salvou da morte, quando a eu buscava e ella vinha? Minha irmã! Que distancias, que inimigos, e que esquecimento dentro em dias a vão apartar para sempre do triste ferido! É noiva, ámanhã será esposa! Póde caber no seu peito com o amor... de outro, a memoria do estrangeiro, que lhe passou deante apenas como sombra, que lhe deu occasião de provar os thesouros admiraveis da mais piedosa compaixão?!...

E, proferindo estas vozes apaixonadas, o mancebo, pallido, e quasi desvairado, suffocava-se em cada phrase, porque a dôr lhe cortava o peito. Leonor entristecia-se de o ouvir. Aquelles gemidos eram mais do que amisade, eram gritos de uma ternura delirante, que a vontade em vão luctava por conter. Em cada suspiro, em cada palavra gottejava o sangue da alma.

A donzella commovida fez-se de repente pallida, como elle; e afogando em um sorriso superficial os sentimentos, que principiavam a combatel-a, respondeu, affectando a serena innocencia da ignorancia:

-- Somos irmãos, não o disse já? Devo-lhe tanto, que nas orações, nas supplicas, que elevo ao céu, não posso, não sei, separar do nome de meu pae, do nome e do extremo... do que ha de ser meu marido, o nome estimado de Armand d'Aubry! A minha alma é maior do que suppõe. Cabem n'ella amor de mulher, affecto de filha, e amisade de irmã!...

-- Leonor! Se eu ousasse!... Se quizesse adivinhar? atalhou o sobrinho de Lagarde, em cujas pupillas faiscou momentaneamente um clarão de esperança. É um segredo, que o meu coração calla e recolhe em si, mas que o devora como alguns venenos corroem o vaso que os encerra...

-- E envergonha-se de o confessar? accudiu ella tremula do estado, em que o via, e receiosa da palavra imprudente, proxima a saltar dos labios do mancebo. Cuida que não adivinho o motivo da sua tristeza, a razão das lagrimas, que esconde, e que são o orgulho da nossa amisade?!...

-- Ah! Calle-se, Leonor. Calle-se! Não vê que se me espedaça o coração de ouvil-a falar assim!...

-- Das saudades, que leva d'aqui, e que nos deixa?! proseguiu a filha de Paulo de Azevedo no mesmo tom, mas fria e tremula por dentro da dôr e anciedade comprimida de Aubry. Não se envergonhe d'ellas! Tambem eu as sinto como irmã...

-- É tão pouco! mumurou Armand quasi desfallecido e a meia voz.

Depois, cobrindo o rosto com as mãos, e suspirando, conservou-se por algum tempo mudo. Quando ergueu por fim a fronte, a vista era já mais firme e socegada, e o sorriso doloroso menos cortante.

-- Perdoe-me, Leonor, affligi-a, bem sei. Somos irmãos, só irmãos, nada mais! Não podemos ser senão irmãos!... O que disse-- o que pensei um momento-- foram sonhos, foram delirios. Esqueçamol-os. Não conheci minha mãe. Apenas se inclinou sobre o meu berço para se despedir de mim com um beijo e voar ao seio dos anjos. Nunca amei do coração senão agora! É falso! Nem agora! A minha paixão, a minha esposa, foi sempre a gloria, não quero, não devo ter outra, e ha de ser. O tumulo é o leito nupcial que ella abre aos que a adoram. Se lhe disserem breve, que este amor, o da gloria, me custou a vida, dê-me uma lagrima e uma memoria! Manuel Coutinho não o póde estranhar. Os mortos não causam ciume aos vivos!...

-- Jesus! Aubry! Que tristes idéas! Magoam-n'o os festejos populares? Se quer vamos para outra casa, aonde se ouçam menos!

-- Não! Não! A maior dor passou. Veja! Quero outra vez ser o estouvado, que a obrigava a rir-se de suas eternas distracções! Sae? Mal conto por minutos as horas que tenho de a ver ainda! Não vê que roubar-m'os é quasi um delicto? Recaí nos galanteios francezes, pasto usual de suas ironias. D'esta doença é que me não curo!...

Leonor meneou a cabeça. A voz e o gesto desmentiam as palavras. Armand amava-a, e fiel á lealdade jurada e á amisade de Manuel Coutinho, arguia-se do sentimento invencivel como de um crime.

A entrada de Lassague, do seu amante, e do cavalheiro de Mafra trouxe diversão salutar á violenta coacção dos dois.

Nem um, nem outro podiam já dissimular.

-- Bravo! gritou da porta Paulo de Azevedo. Não sabes Leonor? A bandeira branca, a bandeira sem mancha, já tremula no castello e nas fortalezas! Os vivas nas ruas da baixa atrôam tudo. Os foguetes em girandolas sobem e estalam nos ares. Os repiques dos sinos, as salvas de artilheria no rio, coalhado de navios e botes, e nas torres, ensurdecem. Os montes da cidade estão negros de gente. É um delirio, uma loucura! Deram-me mais de cem abraços, e não sei ainda a quem os devo! Somos livres. Temos rei e patria!... Manuel Coutinho dentro de tres dias quero que seja meu filho. Temos a dispensa concedida e o padre de casa, o nosso santo bispo. D'Aubry! Deixe rir e cantar os rapazes! Não faça caso. Quando vier a paz geral... venha comer comnosco a Lisboa as broas do natal!...

Armand, ouvindo anunciar para tão breve o casamento de Leonor, tinha-se tornado livido como um cadaver, e vacillára. A vista cobriu-se-lhe de nuvens, e se Lassagne o não amparasse, não se sustinha de pé. A donzella, á qual Manuel Coutinho apertava a mão com namorado enlevo, leu a desesperação nos olhos do official francez, e sentiu quasi remorsos do amor que o matava a elle. Silenciosa e pallida inclinou a fronte, e sepultou no peito o suspiro, que ia jà a soltar indiscretamente. D'Aubry venceu-se de pressa.

Tornando-se a si, adivinhou o que encerrava de affectuoso e nobre o silencio da noiva, e resolveu corresponder-lhe com generosidade egual. Pegando na mão de Manuel e de Leonor, e unindo-as, disse ao velho cavalheiro com um sorriso:

-- Sr. Paulo de Azevedo! Este dia de jubilo para Portugal não me entristece. Nós o vingaremos, como soldados, em outros campos. Consinta que na hora de partir, e de lhe dizer adeus para sempre, eu beije a mão de minha irmã, e que estreite nos braços o irmão que me salvou!...

E depois de abraçar Manuel, os seus labios tocaram por instantes a bella mão de Leonor. A donzella, sentindo caír sobre ella uma lagrima ardente, que lhe escaldou a alma, refugiou-se confusa e anciosa contra o peito do esposo promettido.

-- Aubry! Não acceito desculpas. Ha de ser dos nossos, assista ao casamento de minha filha!

-- É impossivel! redarguiu Armand com tristeza, logo dissipada pelo impeto affectado do seu genio jovial. As nupcias de Manuel fizeram-me lembrar, de que tambem tenho uma noiva, a gloria, noiva que espera por mim para consumar o meu destino. Leonor, adeus. É melhor despedirmo-nos já d'aqui... até á eternidade! ajuntou em voz sumida.

-- Armand! respondeu ella no mesmo tom. Fique! Não vê que a morte, que deseja, é um suicidio?!

-- Não. É um dever. Adeus. Lassagne! Quando em França nos recordarmos de Portugal... a doce imagem do anjo, que nos salvou, sempre gravada no peito, será a companheira e a consoladora de nossas saudades. Manuel Coutinho! A sua felicidade com a esposa, que vae ter, é para ser invejada até do céu. Não importa, merece-a. Nunca encontrei maior alma, nem coração mais puro. Sr. Paulo de Azevedo! Ficam-lhe dois filhos para amparo da sua velhice. Quer lançar uma benção sobre o terceiro, que não tornará a ver talvez, mas que jura amal-o sempre?

O cavalheiro commovido apertou-o nos braços, beijou-o como filho, e arrancando-se a custo ao doloroso enlace, exclamou:

-- D'Aubry! Se Deus me tivesse dado um filho assim?! Adeus. Não se demore. Faltar-me-ia o animo. Não quero... vel-o partir.

Um momento depois Lassagne e Armand volviam para aquella casa um derradeiro e sentido olhar. O primeiro levava só vivas as saudades; o segundo deixava n'ella para sempre metade da sua alma e a alegria de toda a vida.

Silenciosa e triste, Leonor seguiu-os com a vista até desapparecerem. Depois enxugou as lagrimas a furto, e suffocou os suspiros.

Teria receio de amar de mais o irmão que fugia d'ella para não entristecer a sua felicidade!?

Quem se atreverá a decifrar os mysterios do coração feminino?

A guerra da independencia prolongou-se. Armand e Manuel Coutinho, pelejando debaixo de bandeiras oppostas, não se encontraram. Paulo de Azevedo e sua filha falavam a miudo do official francez, que o seu coração não sepultára com a ausencia, e o avô, fazendo saltar nos braços o primeiro neto, fructo mimoso do afortunado enlace, muitas vezes repetia com os olhos humidos: Deus te faça um homem, como teu pae, ou como Armand d'Aubry!

Quando a batalha de Waterloo encerrou a ultima pagina da epopeia maravilhosa do primeiro imperio, Manuel, que subíra por suas proezas a um posto elevado no exercito, e que teve a gloria de não assistir obscuro áquelle derradeiro feito de armas, levantou do campo o coronel d'Aubry, moribundo e varado de balas nos quadrados da velha guarda. A morte d'esta vez quizera accudir, mas vagarosa e incerta, ao chamamento do mancebo. Tres mezes depois Armand pelo braço do esposo de Leonor batia de novo á porta da casa, de que se despedira sem esperanças de a tornar a ver.

A sua presença, festejada por Paulo de Azevedo e pela filha, como verdadeira ventura domestica, avisou a serena alegria, em que se escoavam os ditosos dias dos seus amigos. D'Aubry mostrava ter esquecido na lucta de gigantes da épocha o louco amor, que lhe apressára annos antes a saída de Portugal. Nem um gesto, nem uma palavra revelaram da sua parte a menor fraqueza! Sómente, ao apartar-se, já na vespera de embarcar para Londres, é que o segredo foi revelado por um gemido mais alto do coração. Leonor, sempre discreta, simulou não o entender, mas percebeu que o francez partia para não voltar! A antiga ferida continuava aberta, seria sem remedio d'esta vez?

FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME DA

«CASA DOS FANTASMAS»

NOTAS AO SEGUNDO VOLUME

I

As chacotas os andores, o baile das espadas etc. pag. 7

A festa do Corpo de Deus, instituida em 1264 pelo Papa Urbano IV, para dar a Jesus Christo culto particular, era solemnizada nas villas e cidades principaes do reino com exquisitas invenções de figuras, danças, e folias. A procissão saía na primeira quinta-feira, depois da festa da Santissima Trindade, attraindo os olhos, e enlevando a imaginação do povo pelo esplendor e pompa, de que se rodeava.

As noticias impressas mais antigas, que sobrevivem ácerca d'ella, encontram-se nas Dissertações Chronologicas de João Pedro Ribeiro, e no Novo Regimento para o governo da mesa da bandeira de S. Jorge, fundada nas cartas, alvarás e lembranças do antigo regimento, que se queimou pelo terremoto de 1755, publicado pelos habeis archivistas da camara municipal de Lisboa, em cujo cartorio se guarda.

No seu romance intitulado o Monge de Cister, com tanta rasão admirado como primoroso modelo da novella historica, descreve o sr. A. Herculano (tomo II e pag. XVII) a procissão de corpus referida ao anno de 1384; reinado de D. João I; e o quadro do poeta, desenhado do natural, é tão perfeito e verdadeiro, que vemos resuscitadas e vivas n'elle as feições do grande espectaculo religioso da meia edade n'este dia.

João Pedro Ribeiro, no tomo III das Dissertações Chronologicas, doc. LII pag. 153, insere um alvará datado de 16 de agosto de 1630, pelo qual o rei ordena, que os tribunaes do Porto acompanhem de futuro a procissão do Corpo de Deus da mesma fórma, que a tinham acompanhado n'este anno. No tomo IV das Dissertações (doc. XIII a XVI.) publica duas cartas da rainha regente D. Catharina, uma datada de 30 de maio de 1560, e a outra de 13 de maio de 1561, nas quaes dicta alguns preceitos ácerca do modo e fórma de reger a procissão na cidade do Porto, e de cohibir as representações deshonestas e escandalosas, introduzidas n'ella.

Outras duas cartas, uma de el rei D. Filippe III, escripta em Aranjuez em 15 de maio de 1607, outra dirigida ao juiz, vereadores e procurador da camara da cidade do Porto, pelo marquez de Castello Rodrigo em 18 de maio de 1608, (doc. XV e XVI), tractando do mesmo assumpto, respondem ás queixas do bispo D. Fr. Gonçalo de Moraes, e providenceiam ácerca d'ellas. Finalmente o Regimento feito pelos officiaes da camara da cidade do Porto para a procissão de corpus com o parecer do Dr. Antonio de Cabral, chanceller da Relação, regimento approvado pelo alvará de 15 de julho de 1621, encerra o plano de distribuição das figuras, córos, danças, folias, monstros, chacotas, imagens, anjos, demonios, andores, charolas, communidades, clero, e tribunaes, que haviam de acompanhar o prestito, determinando o logar, que lhes cabia n'elle, e a ordem em que tinham de caminhar.

No Regimento Novo de Lisboa, que já citámos, diz-se que a primeira vez, que o sr. S. Jorge saiu com o seu estado na procissão foi no anno de 1387 por ordem expressa de D. João I. No reinado de D. João III, em 1538, o prestito era tão vistoso e variado pela singularidade e invenções das figuras, e pela opulencia e riqueza que ostentavam as corporações mechanicas, que não admirava que se despovoassem os arrabaldes e até as provincias para assistir a tão sumptuosa festa. Em tempos mais proximos havia toirada no dia da procissão.

D. João V, instituindo a Patriarcal em 1717, decretou nova fórma á procissão de corpus, tornada menos profana e mais devota. A grande pompa e o immenso cortejo, que a ennobreceu no anno de 1719, proporcionou fecundo thema á eloquencia do incansavel irmão Barbosa Machado, auctor da obra a que se refere o texto.

II

O resto, o peior da empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron de o concluir por ordem de Junot, etc., pag. 29.

Coimbra sublevou-se contra os francezes no dia 22 de junho, formando logo para sua defeza a legião academica, composta dos estudantes ás ordens do vice-reitor. O Porto tinha-se levantado no dia 18, dando o exemplo a toda a provincia do Minho. O Algarve insurgiu-se a 16. A provincia da Beira não se demorou tambem. Dentro de poucos dias o incendio tinha-se extendido a todo o reino, tornando-se geral.

Os francezes conservavam guardas avançadas em Pombal e Leiria. Quinze estudantes e um cabo conceberam o projecto de desalojar, e sairam com esse intento de Coimbra no dia 28 de junho. Perto de Leiria foram accommettidos por vinte e dois dragões de Junot; travou-se a peleja; a cavallaria inimiga cedeu, e communicou o panico ao resto da força postada á entrada da ponte. Esta, recuando, dispersou-se, ferida de terror.

O governo francez, offendido do atrevimento, decidiu dar um exemplo severo, castigando Leiria. O general Margaron partiu de Lisboa á frente de dois batalhões, de quatro companhias escolhidas, e de seis peças de artilheria, incumbido da execução marcial decretada contra a cidade.

A columna provou logo em Alcoentre o seu ardor de vingança. Tomando o innocente cirio da Ameixieira por um tropel de guerrilhas, Margaron manda armar uma embuscada por traz de um pinhal, e o chefe de esquadrão Salm-Salm investe, intrepido e implacavel, os aldeãos devotos, como se fossem leões embravecidos. Aos primeiros tiros caem por terra banhados em sangue o gaiteiro e o prégador. Depois são assassinados indistinctamente homens, mulheres, e crianças. A fuga salva o maior numero da furia dos vencedores, cujos despojos n'esta batalha incrivel são duas bandeiras de Nossa Senhora, expostas como tropheus no quartel general. O boletim de 7 de julho teve a ingenuidade de commemorar como derrota de um exercito de rebeldes esta carnificina do povo inerme!

No dia 5 uniu-se o general Thomiéres com 800 homens a Margaron, e marcharam ambos contra Leiria A cidade passou, como é de crer, dos fogosos arrebatamentos de jubilo patriotico a uma sombria apprehensão dos males, que a ameaçavam. Não contava para se defender, senão com os brios já desalentados de algumas companhias de ordenanças, que haviam principiado a organizar-se sob o commando do coronel de cavallaria Rodrigo Barba Allardo, alcaide mór. O capitão mór, Manuel Trigueiros, auxiliava-o com mais zelo, que pericia, e o coronel de milicias Isidoro dos Santos Ferreira procurava reanimar o esforço de todos com seus discursos. Era pouco para arrostar em fortificações, nem meios solidos de resistencia o valor disciplinado dos soldados do exercito da Gironda.

A noite, e a noticia do que occorrêra em Alcoentre, acabaram de arrefecer o enthusiasmo amortecido dos moradores. Rodrigo Barba, os magistrados, e o bispo, não julgando prudente, desarmados, como se viam, affrontar as iras dos inimigos, evadiram-se sem ruido durante a calada das trevas. Quando rompeu o dia, apenas oitocentos homens da plebe, e duzentas ordenanças de espingardas e chuços se atreveram com temeridade louca a disputar sem chefes a entrada da cidade aos francezes. Margaron deu-lhes as honras de guerreiros consumados, tomando as disposições, que poderia exigir uma força regular e numerosa. Avançou contra Leiria com as tropas divididas em duas álas e a artilheria no centro. Disparados os primeiros canhões, e dadas as primeiras descargas de mosqueteria, o povo fugiu em confusão, e os francezes apoderaram-se da cidade com perda de um homem morto e de dois feridos!

Os vencedores despregaram então toda a crueldade contra velhos, mulheres, e crianças, que imploraram debalde a sua misericordia, e metteram toda a povoação a ferro e saque. O principe de Salm-Salm sobresaiu com ferocidade n'esta campanha contra prisioneiros inermes. O palacio episcopal, a Sé, e os templos foram roubados; as egrejas desacatadas; as casas particulares invadidas e despojadas. O resultado foi incenderem-se mais os odios, e recrudescer a resistencia nacional. (Vid. general Foy tomo II liv. VIII).

III

O duque de Abrantes mostrou-se digno dos feitos heroicos, que ennobreceram a sua carreira etc. pag. 68.

A vida de Junot comporia quasi um romance.

Nascido em 23 de outubro de 1771 contava trinta e sete annos em 1808. Estudante do collegio de Châtillon, quando rebentou a revolução, alistou se como voluntario em uma companhia de granadeiros, e combateu com denodo em defeza da patria. O valor temerario e arrebatado grangeou-lhe no quartel a alcunha do Tempestade; mas a sua elevação começa em Toulon. Bonaparte conheceu-o e apreciou-o alli, e nunca mais deixou de o proteger.

As proezas com que sobresaiu nas campanhas de Italia e do Egypto, e a dedicação pessoal, que sempre votou a Napoleão I, apressaram a sua carreira. Nomeado governador de Paris depois do dia IX thermidor, e casado com Mademoiselle Permon, cuja casa frequentára com Bonaparte em dias menos felizes, subiu rapidamente os postos. Em 1804 achava-se coronel general dos hussards. Embaixador em Lisboa e condecorado por D. João, principe regente com a gran-cruz de Christo, saiu da côrte portugueza em outubro de 1805 sem licença, e veiu apresentar-se a Bonaparte nas vesperas da batalha de Austerlitz, aonde realçou a antiga valentia em mais de um rasgo brilhante.

Em julho de 1806 foi nomeado governador de Paris e commandante da primeira divisão militar. Prodigo e singular nos appetites, não havia ouro que o saciasse. Os excessos repentinos e fulminantes da sua ira assustavam até os amigos mais intimos. Napoleão escolheu-o para capitanear o exercito, que invadiu Portugal em 1807, e a principio não teve rasão de se arrepender. A sua marcha rapida sobre Lisboa pelas montanhas da Beira mereceu os louvores dos militares, e justificou o titulo de duque de Abrantes, com que o imperador o recompensou.

A convenção de Cintra não interrompeu a carreira de Junot. Na Hespanha, na Allemanha, e outra vez em Portugal, mas ás ordens de Massena, a sua espada não ficou ociosa. Ferido gravemente no rosto durante a guerra da Peninsula recolheu-se a Paris. Depois da campanha de 1812, em que o imperador o censurou de irresoluto em um dos seus boletins, a rasão do duque de Abrantes principiou a vacillar, e em Veneza acabou de se abysmar nas sombras da demencia. Transportado para casa de seu pae, em Montbard, falleceu a 22 de julho de 1813 de um accesso violento de febre depois de uma dolorosa amputação.

Junot não era soldado rude e grosseiro. Gentil e urbano, sabia attrahir pelas maneiras, e era susceptivel de sentimentos elevados e de acções nobres. Intrepido e intelligente, se os perigos e a morte o não faziam recuar, o pezo das responsabilidades acurvando-lhe com frequencia o animo, tornava-o inferior a si proprio nas posições eminentes. Nascêra para ser o segundo e nunca para ser o primeiro nas arriscadas funcções do governo. Os erros, que lhe estranham mais, derivaram-se todos d'esta incapacidade natural. Cultor das boas artes, e dotado de gosto e critica judiciosa, a sua bibliotheca encerrava os mais bellos exemplares das edições de Bodoni e Didot impressas em velino. Em Lisboa, entre as cousas raras, que tomou para si, figuravam a famosa Biblia ornada das miniaturas de Julio Clovio e alguns quadros preciosos.

Junot morreu aos quarenta e dois annos, tendo vivido por seus vicios e fadigas quasi tres edades de homem. Os costumes dissolutos, que, longe de encobrir, parecia alardear, a avidez pouco escrupulosa, com que se maculou em diversos lances, o fausto e as prodigalidades, de que se rodeava, e as furias momentaneas de um genio assomado, raiando quasi em demencia empanaram e diminuiram a gloria conquistada pelo seu valor de paladino em campos de batalha memoraveis.

Sua mulher, a duqueza de Abrantes, não foi menos celebre como escritora e como dama espirituosa.

DOCUMENTOS

N.º 1

Tratado secreto concluido em Fontainebleau

entre o imperador dos francezes e

el-rei de Hespanha

Napoleão por graça de Deus, etc., etc., etc., havendo lido e examinado o tractado concluido e assignado em Fontainebleau em 27 de outubro pelo general de divisão, Miguel Duroc, nosso mordomo mór, etc., etc., em virtude dos plenos poderes que para esse fim lhe démos, com D. Eugenio Izquierdo de Ribera y Lesaun, conselheiro d'estado honorario de sua magestade el-rei de Hespanha, egualmente munido de plenos poderes de seu soberano, cujo tractado está concebido na fórma seguinte:

Sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, etc., etc., e sua magestade catholica el-rei de Hespanha, desejando de sua livre vontade regular os interesses dos dois estados, e determinar a sorte futura de Portugal de uma maneira congruente com a politica de ambas as nações, nomearam para seus ministros plenipotenciarios, a saber: Sua magestade o imperador dos francezes ao general de divisão Miguel Duroc, mordomo mór de sua imperial casa, etc., e sua magestade catholica el-rei de Hespanha a D. Eugenio Izquierdo de Ribera y Lesaun, seu conselheiro d'estado honorario, etc., os quaes, depois de haverem trocado seus plenos poderes, convieram em o seguinte:

Artigo 1.º As provincias d'entre Douro e Minho com a cidade do Porto serão dadas com toda a sua propriedade e soberania a sua magestade el-rei de Etruria, com o titulo de rei da Lusitania septentrional.

Art. 2.º A provincia do Alemtejo e reino do Algarve serão dados com toda a sua propriedade e soberania ao principe da Paz, para os possuir com o titulo de principe dos Algarves.

Art. 3.º As provincias da Beira, Traz-os-Montes e Extremadura portugueza permanecerão em deposito até á paz geral, em que d'ellas então se disporá, conforme as circumstancia, e pela maneira que for determinada pelas altas partes contratantes.

Art. 4.º O reino da Lusitania septentrional será possuido pelos descendentes, herdeiros de sua magestade el-rei de Etruria, conforme as leis de successão observadas pela familia reinante de sua magestade catholica.

Art. 5.º O principado dos Algarves será hereditario na descendencia do principe da Paz, segundo as leis de successão, vigentes em a familia reinante de sua magestade el-rei de Hespanha.

Art. 6.º Por falta de descendente, ou legitimo herdeiro de el-rei da Lusitania septentrional, ou do principe dos Algarves será a investidura d'estes dois paizes garantida a sua magestade catholica, com a condição porém de que nunca ficarão reunidos em a mesma pessoa, nem á corôa de Hespanha.

Art. 7.º O reino da Lusitania septentrional e o principado dos Algarves reconhecem tambem como protector a sua magestade; e os soberanos d'estes paizes nunca poderão fazer a guerra, ou a paz sem o seu consentimento.

Art. 8.º No caso que as provincias da Beira, Traz-os-Montes, e Extremadura portugueza, conservadas como em sequestro, forem pela paz geral restituidas á casa de Bragança por troca de Gibraltar, Trindade, e outras colonias, que os inglezes hão conquistado aos hespanhoes e a seus alliados, o novo soberano d'estas provincias contrahirá para com sua magestade el-rei de Hespanha as mesmas obrigações, que ligam á sua augusta pessoa el-rei da Lusitania septentrional e o principe dos Algarves.

Art. 9.º Sua magestade el-rei de Etruria cede com toda a sua propriedade e soberania o reino de Etruria a sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia.

Art. 10.º Logo que se leve a effeito a occupação definitiva das provincias de Portugal, os principes respectivos, que d'ellas tomarem posse, nomearão entre si commissarios para demarcar os convenientes limites.

Art. 11.º Sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia, garante a sua magestade catholica el-rei de Hespanha a possessão de seus estados na Europa ao sul dos Pyrenéos.

Art. 12.º Sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia, annue a reconhecer sua magestade catholica, el-rei de Hespanha, como imperador das duas Americas, quando sua magestade catholica se resolver a tomar este titulo, o que terá logar pela paz geral, ou dentro de tres annos o mais tardar.

Art. 13.º Fica entendido entre as altas partes contratantes, que ellas repartirão egualmente entre si as ilhas, colonias, e mais possessões maritimas de Portugal.

Art. 14.º O presente tractado ficará secreto: será ratificado e as ratificações se trocarão em Madrid vinte dias o mais tardar depois da data em que foi assignado.

Feito em Fontainebleau.

Duroc.-- E. Izquierdo.

(E logo por baixo). Approvámos e approvâmos, pelas presentes ratificações o antecedente tractado, e todos, e cada um dos artigos que n'elle se contém. Declarâmos que fica acceito, ratificado e confirmado, e promettemos que será inviolavelmente observado. Em fé do que assignâmos com o nosso proprio punho as presentes ratificações, depois de lhe havermos feito pôr o nosso sêllo imperial.

Fontainebleau aos 29 de outubro de 1807.

NAPOLEÃO.

O ministro dos negocios estrangeiros.

Champagny.

O ministro secretario d'estado.

H. B. Marat.

N.º 2

EDITAL.

O principe regente nosso senhor foi servido mandar remetter á mesa do desembargo do paço o decreto do teor seguinte.

Tendo sido sempre o meu maior desvelo conservar em meus estados, durante a presente guerra, a mais perfeita neutralidade pelos reconhecidos bens que d'ella resultavam aos vassallos d'esta corôa; com tudo não sendo possivel conserval-a por mais tempo, e considerando, outrosim, o quanto convem á humanidade a pacificação geral: Houve por bem acceder á causa do continente, unindo-me a sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, e a sua magestade catholica, com o fim de contribuir, quanto em mim fôr, para a acceleração da paz maritima. Por tanto, sou servido ordenar, que os portos d'este reino sejam logo fechados á entrada dos navios, assim de guerra, como mercantes, da Grã-Bretanha. A mesa do desembargo do paço o tenha assim entendido e faça executar, mandando affixar este por edital, e remetter a todos os logares, aonde convier, para que chegue á noticia de todos. Palacio de Mafra em vinte de outubro de mil oitocentos e sete.-- Com a rubrica do principe regente nosso senhor.-- Para que chegue á noticia de todos, se mandou affixar este edital.-- Lisboa 22 de outubro de 1807.-- José Federico Ludovici.

N.º 3

O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de sua magestade o imperador, e rei, general em chefe, grão-cruz da ordem de Christo de Portugal.

Habitantes do reino de Portugal.-- Um exercito francez vae entrar no vosso territorio. Elle vem para vos tirar do dominio inglez, e faz marchas forçadas para livrar a vossa bella cidade de Lisboa da sorte de Copenhague. Mas será d'esta vez illudida a esperança do vosso perfido governo inglez. Napoleão, que fitou seus olhos na sorte do continente, viu a preza que os tyrannos dos mares antecipadamente devoravam em seu coração, e não soffrerá que ella cáia em seu poder. O vosso principe declarou a guerra á Inglaterra. Nós pois fazemos causa commum.

Habitantes pacificos dos campos, nada receieis. O meu exercito é tão bem disciplinado, como valoroso. Eu respondo, sobre a minha honra, pelo seu bom comportamento. Ache elle por toda a parte o agazalho, que lhe é devido, como a soldados de Napoleão o grande. Ache elle, como tem direito a esperar, os viveres de que tiver precisão; mas sobre tudo o habitante dos campos fique socegado em sua casa.

Eis o que eu vos prometto. Guardar-vos-hei minha palavra.

Todo o soldado do exercito francez, que fôr achado roubando, será punido com o mais rigoroso castigo.

Todo o individuo de qualquer ordem que seja, que tiver percebido alguma contribuição injustamente, será conduzido perante um conselho de guerra, para ser julgado segundo todo o rigor das leis.

Todo o individuo do reino de Portugal, não sendo soldado da tropa de linha, que se apanhar fazendo parte de qualquer ajuntamento armado, será arcabuzado.

Todo o individuo convencido de ser chefe de ajuntamento, ou de conspiração, tendente a armar os cidadãos contra o exercito francez, será arcabuzado.

Toda a cidade, villa, ou aldêa, em que se derem tiros de espingarda contra a tropa franceza, será queimada.

Toda a cidade, villa ou aldêa, em cujo territorio fôr assassinado um individuo pertencente ao exercito francez, pagará uma contribuição, que não poderá ser menor que tres vezes o seu rendimento annual.

Os quatro habitantes principaes servirão de refens para o pagamento da somma; e para que a justiça seja exemplar, a primeira cidade, villa, ou aldêa, onde fôr um francez assassinado, será queimada, e arrasada inteiramente.

Mas eu quero persuadir-me que os portuguezes hão de conhecer os seus verdadeiros interesses; que auxiliando as vistas pacificas do seu principe, nos receberão como amigos; e que particularmente a bella cidade de Lisboa me verá com prazer entrar em seus muros á frente de um exercito, que só a póde preservar de ser preza dos eternos inimigos do continente. Dada no meu quartel general d'Alcantara aos 17 de novembro de 1807.-- Junot.

N.º 4

DECRETO

Tendo procurado por todos os meios possiveis conservar a neutralidade, de que até agora tem gozado os meus fieis e amados vassallos, e apezar de ter exhaurido o meu real erario, e de todos os mais sacrificios a que me tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar os portos dos meus reinos aos vassallos do meu antigo e leal alliado o rei da Grã-Bretanha, expondo o commercio dos meus vassallos á total ruina, e a soffrer por este motivo grave prejuizo nos rendimentos da minha corôa: vejo que pelo interior do meu reino marcham tropas do imperador dos francezes e rei de Italia, a quem eu me havia unido no continente na persuasão de não ser mais inquietado, e que as mesmas se dirigem a esta capital: E querendo eu evitar as funestas consequencias, que se pódem seguir de uma defeza, que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuizo da humanidade, e capaz de accender mais a dissensão de umas tropas que tem transitado por este reino com o annuncio e promessa de não commetterem a menor hostilidade; conhecendo egualmente que ellas se dirigem muito particularmente contra a minha real pessoa, e que os meus leaes vassallos serão menos inquietados, ausentando-me eu d'este reino: Tendo resolvido, em beneficio dos mesmos meus vassallos, passar com a rainha minha senhora e mãe, e com toda a real familia para os Estados da America, e estabelecer-me na cidade do Rio de Janeiro até a paz geral. E considerando mais quanto convem deixar o governo d'estes reinos n'aquella ordem, que cumpre ao bem d'elles e de meus povos, como cousa a que tão essencialmente estou obrigado, tendo n'isto todas as considerações que em tal caso me são presentes: Sou servido nomear para na minha ausencia governarem e regerem estes meus reinos o marquez de Abrantes, meu muito amado e prezado primo, Francisco da Cunha de Menezes, tenente general dos meus exercitos; o principal Castro do meu conselho e regedor das justiças; Pedro de Mello Breiner do meu conselho que servirá de presidente do meu real erario, na falta e impedimento de Luiz de Vasconcellos e Sousa, que se acha, impossibilitado com as suas molestias; D. Francisco de Noronha, tenente general dos meus exercitos e presidente da mesa da consciencia e ordens; e na falta de qualquer d'elles o conde monteiro mór, que tenho nomeado presidente do senado da camara, com a assistencia dos dois secretarios, o conde de Sampaio, e em seu logar D. Miguel Pereira Forjaz, e do desembargador do paço e meu procurador da corôa, João Antonio Salter de Mendonça, pela grande confiança que de todos elles tenho e larga experiencia que elles têem tido das cousas do mesmo governo; tendo por certo que os meus reinos e povos serão governados e regidos por maneira que a minha consciencia seja desencarregada, e elles governadores cumpram inteiramente a sua obrigação em quanto Deus permittir que eu esteja ausente d'esta capital, administrando a justiça com imparcialidade, distribuindo os premios e castigos conforme os merecimentos de cada um. Os mesmos governadores o tenham assim entendido, e cumpram na fórma sobredita, e na conformidade das instrucções que serão com este decreto por mim assignadas, e farão as participações necessárias ás repartições competentes. Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de Novembro de mil oitocentos e sete.

Com a rubrica do principe regente nosso senhor.

N.º 5

Instrucções a que se refere o meu real decreto

de 26 de novembro de 1807

Os governadores, que houve por bem nomear pelo meu real decreto da data d'estas, para na minha ausencia governarem estes reinos, deverão prestar o juramento do estylo nas mãos do cardeal patriarcha, e cuidarão com todo o desvelo, vigilancia e actividade na administração da justiça, distribuindo-a imparcialmente, e conservando em rigorosa observancia as leis d'este reino.

Guardarão aos nacionaes todos os privilegios, que por mim, e pelos senhores reis meus antecessores se acham concedidos.

Decidirão á pluralidade de votos as consultas, que pelos respectivos tribunaes lhes forem apresentadas, regulando-se sempre pelas leis e costumes do reino.

Proverão os logares de letras, e os officios de justiça e fazenda, na fórma até agora por mim practicada.

Cuidarão em defender as pessoas e bens dos meus leaes vassallos, escolhendo para os empregos militares as que d'elles se conhecerem serem benemeritas.

Procurarão, quanto possivel fôr, conservar em paz este reino, e que as tropas do imperador dos francezes e rei de Italia sejam bem aquarteladas, e assistidas de tudo que lhes fôr preciso, em quanto se detiverem n'este reino, evitando todo e qualquer insulto, que se possa perpetrar, e castigando-o rigorosamente, quando aconteça; conservando sempre a boa harmonia, que se deve practicar com os exercitos das nações, com as quaes nos achâmos unidos no continente.

Quando succeda, por qualquer modo, faltar algum dos ditos governadores elegerão á pluralidade de votos quem lhe succeda. Confio muito da sua honra e virtude, que os meus povos não soffrerão incommodo na minha ausencia, e que, permittindo Deus que volte a estes meus reinos com brevidade, encontre todos contentes, e satisfeitos, reinando sempre entre elles a boa ordem e tranquillidade, que deve haver entre vassallos, que tão dignos se tem feito do meu paternal cuidado.

Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de novembro de mil oitocentos e sete.-- Principe.

N.º 6

Decreto do Bonaparte impondo uma contribuição

de guerra a Portugal

Napoleão, etc., etc., temos ordenado e ordenâmos o seguinte:

Artigo 1.º Uma contribuição extraordinaria de guerra de cem milhões de francos será lançada sobre o reino de Portugal pelo resgate das propriedades particulares, qualquer que seja a denominação d'ellas.

Art. 2.º Esta contribuição será repartida por provincias e concelhos, segundo os respectivos meios, o que ficará a cargo do general em chefe do nosso exercito, que dará todas as providencias para ser promptamente cobrada.

Art. 3.º Sequestrar-se-hão todos os bens pertencentes á rainha, ao principe regente, e aos demais principes que disfructarem qualquer apanagio.

Art. 4.º Serão egualmente sequestrados todos os bens dos que acompanharam o principe regente no acto de abandonar o paiz, se não regressarem ao reino até 15 de fevereiro de 1808.

Dado no palacio real de Milão em 23 de dezembro de 1807.

NAPOLEÃO

N.º 7

A deputação portuguesa enviada junto a sua

magestade o imperador dos franceses e rei

da Italia, protector da confederação do

Rheno, aos compatriotas

A confiança que depositastes no grande principe, junto ao qual temos a honra de ser interpretes dos vossos sentimentos, e dos vossos votos, foi inspirada, menos pelo conhecimento dos interesses da patria, do que pelo desejo de confiar a decisão da nossa sorte ao poderoso genio, que, tendo restaurado o seu paiz, deu uma nova constituição á Europa.

O tempo que nos demorámos na fronteira do imperio francez, e que precedeu a chegada de sua magestade imperial e real, cabalmente nos mostrou o imperio, que o grande monarcha exerce nos corações de todos.

As acclamações cada vez mais vivas de seus subditos nos annunciaram o momento, em que devia completar-se a felicidade d'elles e começar a nossa.

Sua magestade imperial e real concedeu o primeiro dia da sua chegada a Bayona aos seus subditos (este é o tributo ordinario do seu desvelo para com elles), e dignou-se conceder-nos o segundo. Sua magestade imperial e real conhecia, ainda mesmo antes de lh'as expormos, a vossa posição, as vossas necessidades e tudo quanto vos interessa. Se alguma cousa póde egualar o seu genio, é a elevação da sua alma e a generosidade dos seus principios.

Ao passo, que sua magestade imperial e real se dignava falar-nos das nossas circumstancias politicas com affabilidade verdadeiramente paternal, fazia as reflexões mais interessantes ácerca da nossa felicidade, e manifestava os principios mais elevados a respeito do uso dos direitos que as circumstancias lhe deram. Não foi como conquistador que sua magestade imperial e real entrou no nosso territorio, nem como tal quer que o seu exercito ahi permaneça. O imperador sabe que nunca tivemos guerra com sua magestade imperial e real. Pela grande distancia, que separa a nossa patria do seu imperio, não póde sua magestade imperial e real vigiar sobre ella com a mesma attenção, com que vigia os outros Estados seus, e com que, satisfazendo a todas as necessidades d'elles satisfaz tambem o amor que sua magestade imperial e real consagra aos que têem a fortuna de ser seus subditos: seguem-se muitos inconvenientes da delegação de uma grande auctoridade em paizes mui distantes. Sua magestade imperial e real não nutre desejo algum de vingança, nem mostra rancor ao principe, que, nos governava, nem á sua real familia. Sua magestade imperial e real occupa-se de objectos mais nobres, e não tracta senão de nos ligar com as outras partes da Europa ao grande systema continental, do qual devemos fechar o ultimo annel: tracta de nos livrar da influencia estrangeira que nos dominou tantos annos: o imperador não póde consentir uma colonia ingleza no continente: o imperador não póde nem quer deixar aportar a Portugal o principe, que o deixou, confiando-se na protecção de navios inglezes.

Sua magestade imperial e real, considerando a vossa situação, houve por bem declarar-nos que a nossa sorte dependia de nós; isto é, do espirito publico que mostrassemos, com o qual nos unissemos ao systema geral do continente, e concorressemos para os acontecimentos já preparados, assim como da nossa vigilancia e da firmeza, com que repellissemos as sugestões e intrigas que são de esperar, e que, sem proveito real para os que forem auctores, ou objectos d'ellas só pódem causar a nossa desgraça. Estes são os signaes por onde sua magestade imperial e real quer julgar se somos ainda dignos de formar uma nação capaz de sustentar no throno o principe, que nos governar, e de occupar entre as nações o logar que nos compete, ou se, devemos ser confundidos com aquella, cuja posição mais se approxima de nós mas de quem tão grandes motivos nos afastam. Vereis com reconhecimento e admiração nestas sabias disposições os profundos conhecimentos de sua magestade imperial e real, que não quer decidir a sorte de um Estado, senão conforme os seus desejos manifestados por factos. Cumpre aos magistrados e ás pessoas mais auctorizadas que existem entre vós, cumpre a vós todos dar a maior publicidade ás beneficas intenções de sua magestade imperial e real. Esperâmos pois que confirmareis os protestos que lhe fizemos em vosso nome.

Quando um grito unanime, arrancado no fundo dos nossos corações, mostrou o desejo que tinhamos de ser uma nação, então mais do que nunca nos julgámos dignos interpretes dos vossos sentimentos. O imperador, que depois de tantas tempestades soube fazer da sua patria o primeiro paiz do mundo, deverá conhecer que a nossa não merece ser o ultimo.

Sua magestade imperial e real conhece as privações que a interrupção momentanea do commercio vos faz supportar: vosso estado a este respeito é o mesmo que o do resto da Europa e que o da America; é consequencia de uma lucta, cujo futuro resultado vos póde compensar os trabalhos do tempo actual; tambem não esqueceu a sua magestade imperial e real a coacção, em que vos poz a entrada de um exercito estrangeiro. O imperador deseja ardentemente prevenir que esta desgraça se renove.

Affigiu assáz seu coração o pezo da contribuição que opprime Portugal: a sua bondade lhe dictou a promessa de a reduzir conforme fosse compativel com os nossos haveres. Os portuguezes, que estavam prisioneiros em França, graças á clemencia do imperador, gozam já da liberdade.

Sua magestade imperial e real nos auctoriza para que vos participemos as suas intenções, certos que ellas excitarão em vós a maior gratidão e o mais sincero desejo de lhe corresponderdes.

Continuaremos a preencher junto a sua magestade imperial e real, e conforme suas ordens, uma missão que não tem difficuldades, pois que a bondade do imperador se une á sua sabedoria para simplificar os nossos maiores interesses.

Bayona, 27 da Abril de 1808-- (assignados) marquez de Penalva-- marquez de Marialva-- D. Nuno Caetano Alvares Pereira de Mello-- marquez de Valença-- marquez de Abrantes-- marquez de Abrantes, D. José-- conde do Sabugal-- Francisco, bispo de Coimbra-- conde de Arganil-- José, bispo, inquisidor geral-- visconde de Barbacena-- D. Lourenço de Lima-- D. José, prior mór da ordem militar de S. Bento de Aviz-- Joaquim Alberto Jorge-- Antonio Thomaz da Silva Leitão.

N.º 8

Representação feita em Lisboa na junta dos

tres Estados pelos pseu-deputados de

todas as classes

Ordenando o general Junot que na junta dos tres Estados se ajuntassem os deputados de todas as ordens civis para expressarem o voto geral da nação, em consequencia do que a deputação portugueza havia communicado na sua carta escrita do Bayonna em 27 de abril de 1808, foram nomeados por esta conferencia secreta os seguintes:

Pelo clero. O principal Miranda, decano. O principal Noronha, seu immediato.

Pela nobreza. O conde de Peniche, que presidia no conselho de fazenda. D. Francisco Xavier de Noronha, presidente da meza da consciencia e ordens.

Pela municipalidade e povo. O desembargador João José de Faria da Costa Abreu Guião, que presidia no senado da camara. O desembargador Luiz Coelho Ferreira Faria, seu immediato. O juiz do povo. O escrivão do povo.

Pela ordem da magistratura. O desembargador Nicolau Esteves Negrão, chanceller mór do reino. O desembargador Lucas de Seabra da Silva, chanceller da caza da supplicação.

Estes dez deputados, juntando-se aos da junta dos tres Estados, que então eram o conde da Ega, que presidia por ser titulo mais antigo, o conde de Almada, e o conde de Castro Marim filho, todos elles assim reunidos, formularam de commum accordo a seguinte representação:

Senhor:-- Os representantes da nação portugueza, conhecida nos annaes do mundo, e celebre, atrevemo-nos a dizêl-o, pelas suas conquistas e pela sua fidelidade, teem a honra de apresentar-se ao throno augusto de vossa magestade imperial e real.

Os acontecimentos extraordinarios, senhor, que agitaram a Europa toda comprehenderam Portugal: uma politica mal entendida fez a esta nação victima innocente dos males que tem experimentado. A consideração dos interesses e relações que formam o presente systema federativo da Europa, e as disposições beneficas de vossa magestade para com Portugal, nos fazem conceber as mais lisongeiras esperanças de futura felicidade, accolhendo-nos debaixo da magnifica protecção do heroe do mundo, do arbitro dos reis e dos povos, que só póde cicatrizar as feridas da patria, defendel-a do perigo da escravidão, e dar-lhe, entre as potencias da Europa, aquelle logar distincto, que as profundas vistas politicas de vossa magestade lhe tem desde já, como esperâmos, designado. As circumstancias do tempo presente e a probabilidade do que ha de vir nos faz conceber a causa dos males que temos soffrido e o unico remedio a que devemos recorrer.

Interpretes e depositarios dos votos da nação, em nome de toda ella rogâmos e aspirâmos a formar um dia parte da grande familia, de que vossa magestade é pae benefico e soberano poderoso, e nos lisongeâmos, senhor, que ella merece tal graça. Ninguem melhor do que o representante de vossa magestade, o general em chefe do exercito de Portugal, e com elle todo o seu exercito, póde dar maiores testemunhos do espirito publico, que anima uma nação, que apezar dos maiores sacrificios e privações, que as actuaes circumstancias lhe têem feito experimentar, nada foi capaz de a fazer afrouxar em os sentimentos de admiração, de respeito e de gratidão que todos nós professâmos a vossa magestade, antes pelo contrario a intriga, as insinuações d'aquelles que se oppõem ao nosso socego, e o pessimo exemplo dos nossos visinhos não fizeram mais do que augmentar estes mesmos sentimentos, desenvolvendo aquelle antigo germen de affeição, que sempre subsistiu entre estas duas nações, lembrando-se os portuguezes de que o seu primeiro soberano fôra o conde D. Henrique, principe francez.

Achâmo-nos, pois, plenamente convencidos de que Portugal não póde conservar a sua independencia, animar a sua energia e o caracter de sua propria dignidade, sem recorrer ás benevolas disposições de vossa magestade. Ditosos seremos se vossa magestade nos considerar dignos de ser contados no numero de seus fieis vassallos; e quando pela nossa situação geographica, ou por outra qualquer razão, que a alta consideração de vossa magestade tenha concebido não possamos lograr esta felicidade, seja vossa magestade quem nos dê um principe da sua escolha, ao qual entregaremos, com inteira e respeitosa confiança, a defeza das nossas leis, dos nossos direitos, da nossa religião e de todos os mais sagrados interesses da patria.

Debaixo dos auspicios da Providencia, debaixo da gloriosa protecção de vossa magestade e do governo tutelar, que respeitosa e unanimemente supplicâmos, nos lisongeâmos esperar, senhor, que Portugal assegurado para sempre da affeição do maior dos monarchas, e unido por uma mesma constituição politica aos destinos da França, verá renascer os ditosos dias da sua antiga grandeza; a sua prosperidade será solida como a vossa gloria, eterna como o vosso nome.

Lisboa, 24 de maio de 1808.

Copiada do Correio Braziliense -- Vol. 13.º fl. 738.

N. B. Foi esta mensagem assignada pelo conde da Ega, como presidente d'aquella commissão secreta, e bem assim por todos os titulares e mais fidalgos que se achavam em Lisboa, á excepção do marquez das Minas, o unico que a isso se recusou. Os signatarios de modo algum representavam a nação, com cujos interesses pouco se importavam; tinham apenas em mira obter de Napoleão a conservação das regalias e privilegios que Filippe II e D. João IV haviam confirmado a seus antepassados. A Junta dos Tres Estados, de que era presidente o conde da Ega, só tinha attribuições administrativas, não se parecendo em cousa alguma com as antigas côrtes do reino. O juiz do povo foi obrigado a assignar esta representação contra a qual havia a principio protestado.

N.º 9

Projecto para a constituição de Portugal

Lembrando-se os portuguezes, de que são de raça franceza, como descendentes dos que conquistaram este bello paiz aos mouros em 1147, e que devem á França, sua mãe patria, o beneficio da independencia que recobraram como nação em 1640, solicitos recorrem cheios de respeito e gratidão á paternal protecção que o maior dos monarchas ha por bem outorgar-lhes. Dignando se o immortal Napoleão patentear-nos a sua vontade por orgão de nossos deputados, quer que sejamos livres, e que nos liguemos com indissoluveis laços ao systema continental da familia europea, quer as nações, que compõem esta grande familia vivam unidas, e que prestes possam gosar das delicias de uma prolongada paz, á sombra dos sabios governos fundados nas grandes bazes da legislação e da liberdade maritima e commercial. É portanto do nosso peculiar interesse, assim como dos outros povos confederados, que a nossa deputação continue a ser junto a sua magestade imperial e real a interprete de nossos unanimes votos e que lhe diga:

Senhor! desejamos ser ainda mais do que eramos quando abrimos o Oceano a todo o universo;

Pedimos uma constituição e um rei constitucional, que seja principe de sangue de vossa imperial familia;

Dar-nos-hemos por felizes se tivermos uma constituição em tudo similhante á que vossa magestade imperial e real houve por bem outorgar ao grão-ducado de Varsovia, com a unica differença de que os representantes da nação, sejam eleitos pelas camaras municipaes, a fim de nos conformarmos com nossos antigos usos;

Queremos uma constituição, na qual, á similhança de Varsovia, a religião catholica, apostolica, romana seja a religião do Estado; em que sejam admittidos os principios da ultima concordata entre o imperio francez e a santa sede; pela qual sejam livres todos os cultos e gozem da tolerancia civil e de exercicio publico; em que todos os cidadãos sejam eguaes perante a lei; em que o nosso territorio europeu seja dividido em oito provincias, assim a respeito da jurisdicção ecclesiastica, como da civil, de maneira que só fique havendo um arcebispo e sete bispos; em que as nossas colonias, fundadas por nossos avós, e com o seu sangue banhadas, sejam consideradas como provincias, ou districtos, fazendo parte intregante do reino, para que seus representantes, desde já designados, achem em a nossa organização social os logares que lhes pertencem, logo que venham, ou possam vir occupal-os; em que haja um ministerio especial para dirigir e inspeccionar a instrucção publica; em que seja livre a imprensa, por quanto a ignorancia e o erro tem originado a nossa decadencia; em que o poder executivo seja assistido nas luzes de um conselho d'Estado, e não possa obrar senão por meio de ministros responsaveis; em que o poder legislativo seja exercido por duas camaras com a concorrencia da auctoridade executiva; em que o poder judicial seja independente, o codigo de Napoleão posto em vigor, e as sentenças proferidas com justiça, publicidade e promptidão; em que os empregos publicos sejam exclusivamente exercidos por nacionaes que melhor os merecerem, conforme o que se acha determinado no artigo 2.º da constituição polaca; em que os bens de mão morta sejam postos em circulação; em que os impostos sejam repartidos segundo as posses e fortuna de cada um sem excepção alguma de pessoa ou classe e da maneira que mais facil e menos oppressiva fôr para os contribuintes; em que toda a divida publica se consolide e garanta completamente visto, haver recursos para lhe fazer face.

Queremos egualmente que a organização pessoal da administração civil, fiscal e judicial, seja conforme o systema francez, e por conseguinte se reduza o numero immenso de nossos funccionarios; mas desejâmos e pedimos que todos os empregados que ficarem fóra dos quadros recebam sempre os ordenados, ou pelo menos uma proporcionada pensão, e que nas vacaturas tenham preferencia a outros quaesquer.

Era sem duvida inutil lembrar esta medida de equidade ao grande Napoleão; mas como sua magestade imperial e real quer conhecer a nossa opinião em tudo o que nos convem, evidentemente nos prova que é mais pae do que soberano nosso, dignando-se consultar seus filhos, e prestar-lhes os meios de serem felizes. Viva o imperador!

N.º 10

O general em chefe do exercito francez em Portugal, em nome de sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, e em observancia das suas ordens, decreta:

Artigo 1.º O reino de Portugal será d'aqui por diante administrado todo inteiro, e governado em nome de sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, pelo general em chefe do exercito francez em Portugal.

Art. 2.º O conselho de regencia, creado por sua alteza real o principe do Brazil, no momento em que este principe abandonou o reino de Portugal, fica supprimido.

Art. 3.º Haverá um conselho de governo, presidido pelo general em chefe, composto de um secretario de Estado encarregado da administração do interior, e das finanças, com dois conselheiros de governo, um encarregado da repartição do interior, e outro encarregado da repartição das finanças.

De um secretario de Estado encarregado da repartição da guerra, e da marinha, com um conselheiro de governo encarregado da repartição da guerra, e da marinha.

De um conselheiro de governo encarregado da justiça, e dos cultos, com o titulo de regedor.

Haverá um secretario geral do conselho encarregado dos archivos.

Art. 4.º Os senhores corregedores das comarcas, juizes de fóra, juizes do crime e juizes ordinarios; os desembargadores dos differentes tribunaes, o senado da camara de Lisboa, a junta do commercio, as diversas camaras, o presidente do terreiro público, em uma palavra, todos os encarregados da administracção publica são conservados, á excepção das reducções que o interesse publico mostrar que é necessario fazerem-se pelo tempo adeante, e das mudanças nos objectos relativos a seus cargos, que a nova organização do governo julgar indispensaveis.

Art. 5.º Mr. Herman é nomeado secretario do Estado, encarregado da repartição do interior e das finanças.

D. Pedro de Mello é nomeado conselheiro de governo, da repartição do interior.

O senhor d'Azevedo da repartição das finanças.

Mr. Lhuitte é nomeado secretario de Estado, encarregado da guerra e da marinha.

O sr. conde de São Paio é nomeado conselheiro de governo, da repartição da guerra, e da repartição da marinha.

O senhor principal Castro é nomeado conselheiro de governo encarregado da justiça e dos cultos, com o titulo de regedor.

Mr. Viennez-Vaublanc é nomeado secretario geral.

Art. 6.º Haverá em cada provincia um administrador geral com o titulo de corregedor mór, encarregado de dirigir todos os ramos da administração, de vigiar sobre os interesses da provincia, de indicar ao governo os melhoramentos que devem fazer-se, tanto a respeito da agricultura, como da industria; devendo corresponder-se sobre qualquer d'estes objectos com o secretario de Estado da competente repartição, e com o regedor, pelo que pertencer á justiça, e ao culto.

Haverá egualmente em cada provincia um official general encarregado de manter a ordem, e a tranquillidade: as suas funcções são puramente militares; mas nas ceremonias publicas, terá seu logar á direita do corregedor mór.

Haverá um corregedor mór na provincia da Estremadura, que residirá em Coimbra, e um corregedor mór na cidade de Lisboa, e seu termo, o qual será demarcado de uma maneira exacta.

Art. 7.º O presente decreto será impresso, e affixado em todo o reino, para ter força de lei.

O secretario de Estado do interior, e das finanças, o secretario de Estado da guerra, e da marinha, e o regedor são encarregados de sua execução, cada um pela parte que lhe toca.

Dado no palacio do quartel general no primeiro de fevereiro de 1808.==Junot.

N.º 11

O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M. o imperador e rei, general em chefe decreta:

Da data d'este em deante todos os actos publicos, leis, sentenças, etc., etc., de qualquer natureza que sejam, que até agora se faziam e processavam em nome de S. A. R. o principe regente de Portugal, principiarão pela fórmula seguinte: Em nome de S. M. o imperador dos francezes, rei de Italia, protector da confederação do Rheno.

Todos os actos administrativos, e na execução, relativos a qualquer decreto, ou ordem, emanados do actual governo, terão, além da fórmula acima, a seguinte: E em consequencia do decreto, ou das ordens de sua excellencia o governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M., e general em chefe do exercito francez em Portugal.

A formula empregada pelo governo, será: Em nome de S. M. o imperador dos francezes, rei de Italia, protector da confederação do Rheno, ouvido o conselho do governo: (quando o conselho tiver sido consultado.)

O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M., general em chefe do exercito francez em Portugal, decreta.

E quando não tiver havido deliberação no concelho, a fórmula será: Em nome de S. M. o imperador dos franceses, etc., etc..

O governador de Paris, etc., etc., decreta ou ordena:

O sello do governo será o mesmo do imperio francez, com esta leganda: Governo de Portugal.

O secretario de Estado do interior, e das finanças, o secretario de Estado da guerra, e da marinha, e o regedor, são encarregados da execução do presente decreto, cada um pela parte que lhe toca.

Dado no palacio no quartel general no primeiro de fevereiro de 1808.

Vidé General Foy, Histoire de la Guerre de la Peninsule livro IX. Dêpeches et ordres du jour du Feld Marechal duc de Wellington, (Recueil choisi) N.º 228-261. Successos de Portugal, ou Prodigiosa Restauração da Lusitania Feliz. Por um Portuguez. Lisboa 1809 pag. 17 e seguintes.

Em consequencia da deputação enviada a Bonaparte foi esta contribuição reduzida a 50 milhões de francos.