O Exilado: Edição para o ELTeC Figueiredo, Maurícia C. de (1866-1923) Criação do HTML original Adeliana Silva Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 42234 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Mauricia C. de Figueiredo O Exilado O exilado Mauricia C. de Figueiredo Parceria Antonio Maria Pereira Lisboa 1900

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COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA

O

EXILADO

(ROMANCE HISTORICO)

POR

Mauricia C. de Figueiredo

LISBOA

PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

(LIVRARIA-EDITORA)

50, 52, Rua Augusta, 50, 52

1900

PRIMEIRA PARTE

Seu pae semeiára os ventos, elle colheu as tempestades. O reinado de Sancho II é o desenvolvimento logico do ultimo periodo do reinado de Affonso II. O clero, ganha a sua primeira victoria sobre a realeza, aspirou a dominal-a ; mais do que a dominal a, a ter um rei de sua mão, e Sancho não se prestou a ser vassallo de Roma e servo de seus subditos. D’aqui a sua desgraça, mas tambem a sua Gloria

Historia de Portugal, por A. Ennes. L.° v, pag. 235...

PRIMEIRA PARTE

O GUERREIRO DESCONHECIDO

INFANCIA DE D. SANCHO II

No anno de 1208 D. Affonso II, terceiro rei de Portugal, contrahiu matrimonio com D. Urraca, filha de Affonso IX de Castella.

D’esse consorcio com aquella senhora, da qual se contam singulares virtudes, e que morreu com fama de santa, houve quatro filhos:

Sancho, o primogenito, nasceu em 1209; -- a esse estava destinada a coroa. O segundo filho foi Affonso, o terceiro Fernando, o quarto e ultimo uma filha a quem pozeram o nome de Leonor.

Foi das mais attribuladas a infancia de D. Sancho. Este principe, que mais tarde seria uma victima da familia e do clero, que se veria abandonado pela nobreza, e que seria deposto, estava predestinado pela fatalidade a soffrer desde o berço.

Logo ao alvorecer da vida teve o principe uma doença tão grave, que a rainha, vendo a vida do filho estremecido ameaçada, -- fez uma promessa, que consistia em vestir ao principe um habito monastico da ordem de S. Francisco, -- e que elle ficaria usando até certa edade. D’aqui ficou chamarem a D. Sancho o Capello.

A virtuosa senhora, entregando o doente á protecção do céo, esperava de Deus o que não obtivera dos medicos, -- isto é, a saude do filho querido, em que depositava todas as suas melhores esperanças.

Quantas vezes, o proprio sceptico, vendo um ente querido condemnado pela sciencia, não faz o mesmo que aquella mãe!... Oh! quantas vezes o descrente de tudo, perdidas as esperanças, não volve um olhar de supplica para a Divindade, esperando um lenitivo ás suas máguasl...

Ouviu Deus as preces da mãe afflicta, e a creança, ainda que um tanto debil, melhorou, e sempre rodeado de amor e carinhos, o joven principe ia resistindo, e assim chegou sem maior novidade aos 10 annos.

N'esta edade, porém, a sorte que lhe era adversa feriu o ainda mais cruelmente.

D. Urraca não tinha de vêr o que o destino reservava, no futuro, a seu filho.

Em 3 de novembro de 1220, esta rainha, que fora um modelo de virtudes, de piedade e amor maternal, -- muito joven e de rara formosura, fallecia prematuramente.

Pouco antes, a desditosa senhora havia ido com seu esposo esperar os restos dos Martyres de Marrocos, que alli tinham ido como missionarios e a Sevilha, sendo mortos pelos mouros no meio das maiores torturas.

D. Pedro, irmão de Affonso II, que estava em Marrocos, -- a esse tempo ao serviço do émir,-- mas que, apesar de viver cem os mouros, conservava as suas crenças religiosas, reuniu os ossos das victimas tão horrivelmente trucidadas pela estupida crueldade dos mouros, e com alguns fieis amigos os acompanhou até Astorga, «e d’ahi enviou-os para o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, por Affonso Pires de Arganil, rico homem e pessoa de grande credito».

Se o infante não acompanhou as santas reliquias até Coimbra, foi porque andava em desintelligencia com seu irmão Affonso, desde a morte de seu pae D. Sancho I, tendo-se expatriado por tal motivo.

Pouco depois d’esse encontro com os Martyres, e logo que a estas santas reliquias foi dada sepultura, é que a rainha D. Urraca falleceu, deixando seu esposo e filhos inconsolaveis.

Diz a lenda que, quando a rainha morreu, os Martyres de Marrocos e um côro de bemaventurados santos rodearam o seu esquife, celebrando ahi exequias. E volvidos seculos, depois do seu fallecimento, um frade de Alcobaça querendo confirmar essa opinião, diz o seguinte:

«Estando eu presente a tudo isto -- diz elle -- vi esta rainha, a qual jaz só em um grande monumento: jaz inteira como n'aquella hora em que a sepultaram; jaz mirrada como tambem estão outros reis e seus filhos. E tem esta rainha cara, que mostra ser em seu tempo mui formosa. Está enfeitada ao modo antigo, seus cabellos enastrados, compridos, ainda agora parecem fios de ouro, e para testemunha d’isto, eu lhe cortei uma formosa guedelha d’elles de juncto d’uma orelha, a qual tenho em muita estima. Tem debaixo de si uma colcha pintada com cousa de negros, e sobre a colcha um lençol de linho, e tudo isto está como á hora em que ali a sepultaram, ao menos o lençol que é muito para ver. E o que mais me espantou e a alguns que com sua alteza estavam, foi que ella jaz calçada com umas botinas vermelhas apantufadas; e tem no peito do pé, em partes, as armas antigas 1

1 Chronica de Affonso Henriques, por Duarte Galvão.

de Portugal douradas, que parecem ouropel, e as botinas ou sapatos estão tão frescas como se fossem agora calçadas, das quaes trabalhei de tomar uma por memoria, e não me foi concedido.» 1

Eis o que disse o frade de Alcobaça, no tempo de D. Sebastião, quando este monarcha fez abrir aquelle tumulo, e que transcrevemos fielmente da historia.

Ora parece nos que d'uma rainha, que por suas virtudes foi santa, deviam os padres, em respeito pela sua memoria, venerar tambem a familia d’ella. Mas, não succedeu assim... O alto e poderoso clero perseguiu, e affrontosamente humilhou D. Sancho, o filho querido de D. Urraca.

E’ notavel o odio da theocracia contra o Estado.

Por morte de sua mãe, o principe D Sancho ficou, póde-se dizer, entregue apenas aos aios e vaidos, que não trataram de o educar como convinha fortificando-lhe o animo e preparando o para que de futuro podesse governar, em vez de ser governado.

Affonso II andava n'essa occasião muito occupado com as celebres inquirições que elle e o seu chanceller, Gonçalo Mendes, haviam emprehendido, para desapossar muitos nobres e corporações religiosas de bens adquiridos do patrimonio publico, e que datavam já do reinado dos seus antecessores. O rei tratou de eliminar essas usurpações, e para isso lançou os tributos, espalhando assim o descontentamento em todo o paiz.

Esta lucta com o clero e a nobreza datava de longe, mas agora ia chegando ao seu auge e tomava lodo o tempo ao soberano, não lhe permittindo que podesse dedicar-se á educação do principe.

Além d’isso, como era muito doente, podia-se 1

1 Historia de Portugal, vol. 1, pag. 171.

talvez attribuir essa falta ao excessivo cuidado, que tinham com a sua saude.

Todavia isso não obstou a que D. Sancho viesse a ser um rei muito illustrado, e quanto a coragem, tambem lhe não faltava, pois o principe, tendo uma indole guerreira, devia dar provas de valor nas gloriosas batalhas que sustentou contra os mouros.

D. Affonso ia, pois, proseguindo n’essas contendas, motivadas pelas inquirições, que eram resultantes das confirmações geraes, e que lhe valeram ser ameaçado pelo papa Honorio III com excommunhão e deposição do throno!

Indifferente a tudo isto, o rei continuou resistindo sempre a todas as suggestões, ameaças e excommunhões; e, não obstante ver se humilhado, luctou até final.

Os prelados queixavam-se a todo o momento de aggravos que tinham do rei e o odio que lhe votaram era o prenuncio de uma guerra sem treguas.

A essas represalias é que seu filho deveu depois todas as suas desventuras. E se D. Affonso não foi deposto do throno, foi porque a morte o prostrou n’esta occasião. De contrario soffreria a sorte, que estava reservada a seu filho.

O monarcha succumbiu rodeado pela nobreza descontente e pelo clero enraivecido, que lhe manifestava todo o seu rancor.

Quiz ainda firmar pazes com Roma; o rei fraquejava nos ultimos momentos !...

Talvez porque a morte lhe deixava antever, que seu filho seria a victima expiatoria?

E’ possivel.

A 25 de março de 1223 D. Affonso II fallecia com annos de edade, tendo reinado 12.

A hora era solemne, Affonso soltava o derradeiro suspiro, vendo em volta do seu leito de agonia os innocentes filhinhos, todos de tenra edade, cujos soluços se misturavam com as orações de um velho e bom padre, que lhe assistia ao fim.

Como devia de ser dolorosa a ultima hora do pobre rei, vendo que deixava essa querida prole de infantes entregues sem defesa aos seus terriveis inimigos!...

Se houvesse sido um bom irmão, teria visto a seu lado suas irmãs e irmãos; mas Affonso insurgira-se contra as ultimas vontades de D. Sancho I, seu pae, e desapossou suas irmãs das doações que este lhes deixou para prover ao seu futuro.

Os irmãos tambem se expatriaram, receiando o seu caracter um tanto despota e vingativo.

Aquelle que não respeitara nem cumprira as supplicas do pae moribundo, não podia terminar a vida muito tranquilla.

Affonso, nos ultimos momentos, conheceu os seus erros; e, não os podendo já remediar, levou para o tumulo a triste e amarga certeza de que o seu primogenito expiaria as suas faltas.

Effectivamente assim aconteceu: -- e ainda d’esta vez se não desmentiu a sentença moral, de que «os crimes de nossos paes e avós, fizeram-n’os elles e pagamol-os nós.»

Isto é um absurdo! Pois que culpa teem os innocentes filhos dos crimes paternos? Nenhuma! ..

Mas infelizmente as mais das vezes assim succede; as faltas dos paes recahirem nos filhos.

D. Sancho estava n’este caso; devia pagar os erros de seu pae!

Morto Affonso, ainda uma vez o respeitável clero deu provas da sua incomparavel generosidade de perdão e tolerancia, não consentindo que o rei fosse sepultado em sagrado.

Mesquinha vingança, na verdade: -- e só propria d’um rancor digno d’essas almas negras.

Negavam uma sepultura sagrada a Affonso II!... E’ impossivel conceber odio egual!...

II

ACCLAMAÇÃO DE D. SANCHO II

D. Sancho succedeu a seu pae. Em abril de 1223 era acclamado rei de Portugal, e subia ao thorono cingindo a juvenil fronte com a coroa, que de espinhos se lhe devia tornar.

Tendo apenas 13 annos, foram os ministros que durante a sua menoridade sustentaram as redeas do governo. E foi sob a tutella d’esses ministros a quem Affonso II confiou a sua infancia, -- que o moço principe empunhou o sceptro, tendo antes assignado todas as condições de paz, -- que os inimigos de seu pae lhe imposeram.

Póde-se fazer ideia de como o Paiz seria governado por esses ambiciosos; nobreza e prelados, que disputavam entre si a pósse de governar o principe a seu bello praser. Pois já no tempo de Affonso se queriam impôr, como senhores absolutos, e submetter o rei ao seu arbitrio, o que todavia não conseguiram devido ao caracter resoluto d’aquelle monarcha.

Agora, porém, que viam sobre o throno «já tão abalado», um rei menino, os dois partidos (clero e nobreza) iam tratar de recuperar o perdido.

Aconselharam, portanto, o rei a que indemnisasse a egreja (este era o ponto mais importante) e fizesse concessões aos seus ministros, conferindo lhes assim o privilegio para fazerem o que quizessem.

Ao mesmo tempo promettiam esquecer quaesquer aggravos passados, e accrescentavam com hypócrita uncção: que dariam sepultura sagrada a Affonso II.

Com estas piedosas allusões, que occultavam uma ameaça, é claro que os inimigos triumphavam e conseguiam tudo de D. Sancho.

Qual seria o filho, que vendo seu pae excommungado e privado de sepultura sagrada, não fizesse tudo, mesmo reparações humilhantes, para que lhe fosse levantada a excommunhão e dessem uma sepultura digna?!

O joven principe, pois, annuiu a tudo o que d’elle exigiram, e o clero ficou satisfeito por então!...

Alem d’isso, o principe indemnisou tambem suas tias, que haviam sido despojadas do dóte paterno por Affonso.

Até aqui, muito bem; -- foi justo que assim procedesse e de todas as reparações, que d’elle exigiram e obtiveram, é esta a unica que não póde ser considerada humilhante nem merece censura.

Todavia a criança, debil agora, devia mais tarde dar provas de coragem, e revoltar-se contra a auctoridade um tanto oppressora da seita negra.

D. Sancho possuia uma indole muito diversa da de seu pae; mas esta differença era toda a seu favor.

Não só era um caracter mais generoso, e desinteressado, de pensamentos altruistas e nobres, mas era tambem mais animoso com respeito a combates em que se revelou sempre um brilhante guerreiro.

D. Affonso, onde mostrou verdadeira energia, foi nas luctas, que sustentou contra o clero e nobreza. Apenas se distinguiu como guerreiro na tomada de Alcacer do Sal em 1217.

D. Sancho, ao contrario, nunca soube haver-se com os negocios politicos.

No emtanto, logo que completou 16 annos, começou a impôr um pouco a sua auctoridade, e combinou com alguns fidalgos uma expedição militar, que devia partir para Eivas, e na qual elle tomaria parte.

Felizmente, D. Sancho não estava unicamente

rodeado de inimigos e indifferentes; alguns fidalgos havia (não muitos), que se lhe conservaram sempre leaes e dedicados servidores, e o amavam sinceramente.

Estes mereciam-lhe toda a confiança, e ficarão eternamente lembrados, atravez os seculos, como symbolos de bondade e justiça.

Foi, pois, a esses fidalgos, nos quaes o principe depositava uma fé absoluta -- que primeiro deu a saber a sua resolução.

Vendo elles que essa ideia, a realisar-se, seria o melhor meio de dar algum prestigio á realeza, que tanto ia decahindo pela incuria da maior parte dos governantes--, approvaram-n’a e aconselharam o rei a que devia partir o mais breve possivel contra os mouros, que a esse tempo invadiam o Alemtejo.

O intento dos fidalgos era irem assim preparando o principe para governar.

O principe com o enthusiasmo tão proprio da mocidade, e tambem porque lhe pesava a especie de submissão, a que na côrte estava sujeito, ficou transportado do maior jubilo e fez propagar a nova em Coimbra, que era então Séde da sua côrte e Capital do reino.

Em seguida organisaram um pequeno exercito, no qual figurariam muitos nobres, e assentaram em que esse projecto seria posto em pratica no anno seguinte, quando D. Sancho completasse 17 annos.

III

A EXPEDIÇÃO AO ALEMTEJO

Estamos em abril de 1226.

Na occasião, em que apresentamos D. Sancho aos nossos leitores, está elle na sua camara, conversando com Estevão Soares, arcebispo de Braga, representante do clero, e um dos principaes conselheiros.

O arcebispo era um dos que muito haviam guerreado Affonso II.

Mas, tivera artes para agora se introduzir na côrte, vivendo sempre ao lado do principe, gosando do favor real e preponderando em tudo.

Homem intelligente, espirito fino e perspicaz, comprehendia perfeitamente bem o lado vulneravel do rei; e, conhecendo-lhe o animo aguerrido, foi elle quem primeiro o aconselhou a que devia ir combater os mouros.

E’, pois, sobre este plano que a conversação versava.

D. Sancho já não é a criança fraca e doente, que foi na sua infancia. Livre da primeira enfermidade, desfructa presentemente saude --O seu rosto é formoso; a fronte elevada denota intelligencia e energia; mas, o seu olhar muito suave e os longos cabellos louros soltos em madeixas sobre os hombros á moda d’aquelle tempo, dão-lhe uma dôce semelhança com sua mãe.

Sentado numa cadeira de couro com espaldar lavrado e incrustações douradas, o cotovello apoiado sobre a mesa de escrever, onde se veem diversos pergaminhos, entre elles uma bulia do papa Honorio III e uma carta de Affonso de Leão, D. Sancho presta a maxima attenção ao prelado.

-- Senhor! dizia o arcebispo: isto vai mal, muito mal; os mouros tomaram Badajoz, Elvas e Jerumenha; -- em pouco tempo terão invadido todo o Alemtejo, e outros pontos do paiz; -- ouso, por tanto, lembrar a vós, meu Senhor, que é urgente que a expedição parta no mais breve espaço de tempo, afim de os expulsar. O exercito é pequeno, mas são valentes e denodados cavalleiros, os que fazem parte d’elle. Dizei, Senhor de vossa justiça.

-- Repetir-vos-hei, senhor arcebispo, o que ainda ha poucos dias vos disse, -- respondeu o principe: -- «Que pela minha parte não será a duvida, nem a demora; e, assim que as tropas estejam reunidas, partiremos.»--Sabeis dizer me quem commanda a expedição?

-- Tenho a honra de participar a vossa magestade, que é o alferes Martim Annes.

-- Felicito-vos, senhor arcebispo, pela escolha que fizestes, -- pois não podia ser mais acertada.

-- E o serenissimo infante senhor D. Fernando, vosso augusto irmão, tambem quer tomar parte n'essa batalha, e espera as ordens de vossa magestade.

-- Meu irmão, disse el rei, sorrindo com bondade, e um paladino de primeira força Mandai-o chamar.

-- Eu proprio vou, meu Senhor.

Estevão Soares sahiu a cumprir a ordem do principe.

Ficando só, D. Sancho murmurou:

-- Meu irmão Fernando é um pouco arrebatado, mas possue um excellente coração: -- emquanto que Affonso... já assim não é; tem um caracter reservado, e conheço que me não estima.

O principe foi interrompido, em suas amargas reflexões, pela entrada do arcebispo e do infante.

O gentil Fernando entrou com desembaraço no quarto real, e muito risonho inclinou-se deante de D. Sancho a quem beijou a mão, dizendo:

-- Senhor meu! aqui venho ao vosso mandado; poderei ser-vos util em alguma coisa?

-- Levantai-vos, meu querido irmão, e ouvi,-- respondeu o monarcha.

-- Tenho resolvido, --porque sei ser esse o vosso desejo, -- que me acompanheis na cruzada contra os mouros.

O infante, ouvindo estas simples palavras, não poude calar a alegria, que sentiu, e o seu bello rosto illuminou-se de um meigo sorriso.

-- Graças vos dou por tão grande mercê, respondeu elle, enthusiasticamente; -- e accrescentou: -- Será licito perguntar-vos quando partiremos?

-- Amanhã sem falta, volveu D. Sancho.

Acabáva el-rei de responder ao infante, quando um pagem veiu dizer que o alferes Martim Armes aguardava o momento de ser recebido pela magestade,

-- Dizei-lhe que estou prompto para o ouvir, -- respondeu o rei.

O pagem sahiu, e d'ahi a pouco apparecia o alferes.

-- Olá Martim Annes! o que ha de novo? perguntou D. Sancho, dirigindo-se familiarmente ao alferes.

-- Venho participar a Vossa Magestade que o exercito póde partir ao primeiro signal de vosso real mando.

-- Já resolvi que a partida será amanhã, -- respondeu o monarcha.

-- Contai pois de certeza com isso, que d’esta vez não será retardada.

O alferes inclinou-se, e tornou:

-- Senhor! cumpre-me tambem dizer a Vossa Magestade, -- que nas salas do paço aguardam as vossas ordens fidalgos que compõem a expedição. Esses nobres sollicitam uma audiencia.

-- Está bem! vamos já!

IV

D. AFFONSO

Volvido pouco tempo, D. Sancho sahia da sua camara, acompanhado pelo arcebispo, por Martim Annes, e o infante.

Em um dos corredores do palacio, encontrou-se com seu irmão Affonso, o qual fingindo não o ter visto, se afastou propositadamente para lhe não falar.

D. Sancho percebeu o que se passava no intimo do infante. -- pois não era a primeira vez que isto succedia, -- e uma cólera surda se apoderou d'elle. Mas, contendo se, aproximou se do irmão e disse-lhe dissimulando o seu desgosto:

-- Desejo saber, principe, se quereis tomar parte nas nossas hostes?

Affonso, ouvindo esta pergunta, deteve se; olhou sombriamente para o rei, mas não respondeu.

Este continuou affectuosamente:

-- Conheço a vossa coragem, meu irmão, e estou certo que estimareis ter esta occasião para nos dares provas do vosso valor, na guerra contra os infieis....

Estas palavras, dietas com bondade, não influiram de modo algum no espirito do principe.

-- Senhor! respondeu elle emfim, com esforço,-- se me dispensasseis... muito grato vos ficaria.

-- Recusaes, pois, perguntou el rei:--e o seu rosto energico avincou-se: e o olhar, de ordinario suave, despedia agora chammas.

-- Talvez! -- respondeu Affonso altivamente e com o rosto não menos contrahido.

D. Sancho era brando e violento ao mesmo tempo, mas estas qualidades contradictorias tornavam-no ainda mais sympathico e attrahente, pois não lhe alteravam nunca a dignidade de caracter.

N’esta occasião, porém, elle, que era meigo e brando para todos, ia exaltar se, pois via que seu irmão acintosamente lhe desobedecia, e quasi o provocava.

As constantes hostilidades de Affanso deviam acabar por offender Sancho.

Os fidalgos no emtanto, calculando o que poderia resultar d'uma discussão entre os principes (ainda ha pouco sob a sua tutella) que seria um escandalo

desagradavel, e que só contribuiria para mais desprestigiar a corôa, -- trataram de aplacar os animos.

Pois bem bastava as repetidas contendas, que havia entre os nobres e o clero, que andavam sempre envolvidos em desordens.

Estevão Soares, o arcebispo, era o que melhor sabia convencer os principes, com a sua palavra auctorisada. Interveiu, pois.

-- Senhor! peço licença a vossa magestade, para lhe ponderar que o senhor infante D. Affonso tem passado os ultimos dias um tanto indisposto, por motivo de saude,--... e será... esta a razão, porque pediu a vossa alteza para ficar...

D. Sancho, ouvindo a desculpa exposta pelo arcebispo, socegou como por encanto. E, voltando se para seu irmão, disse-lhe com uma brandura, que contrastava singularmente com a pergunta violenta, que antes lhe fizera, -- mas n’esta brandura havia agora, o que quer que fosse, de fina ironia: --

--Meu irmão: quando agora vos falei em tomardes parte nas nossas fileiras,... ignorava que estivesseis doente, mesmo.. por que o vosso parecer saudavel o não indicava...--Mas, em vista do que disse sua reverendissima, o senhor arcebispo, de cujas palavras não posso duvidar, cumpre-me não insistir mais comvôsco. Ficai em paz, Affonso, e desejo que Deus vos melhore depressa. Eis os meus ardentes votos.

E el-rei, tendo assim falado, afastou-se com os que o acompanhavam.

Affonso ficou como que pregado ao pavimento e, mordendo os labios de raiva intensa, pensava:

-- Meu irmão não acreditou a desculpa, que lhe dei; e, se não fosse a intervenção do arcebispo, ter-me-hia obrigado a ir. Ao prelado devo, pois, não supportar tal affronta.

-- E hei de eu--murmurou ainda o principe -- estar toda a minha vida sujeito ao dominio de meu irmão! e porque? simplesmente por que, por um absurdo privilegio do nascimento, é o meu rei e tem direito a exigir de mim obediencia?!

E, assim como eu, estão os povos sujeitos ao dominio de um só homem, as mais das vezes um imbecil e inépto? Oh! é demais!

E Affonso, vendo-se impotente para luctar, chorou de raiva.

O principe, para se desculpar perante a sua consciencia. já invocava o povo, não por que a sorte d'aquelle lhe inspirasse qualquer interesse, mas para assim justificar os seus actos de rebeldia contra o monarcha.

Este joven, tendo apenas 15 annos. já estava contaminado da peior peste, que pode haver. A inveja e a ambição dominavam o principe, cuja indole não era das melhores.

D. Sancho dava audiencia aos seus ministros, e a alguns fidalgos, que se haviam alistado para a proxima expedição.

Em volta do throno do moço rei estão: -- o arcebispo de Braga Estevão Soares, Gonçalo Mendes de Sousa chanceller mór, filho do conde de Mendo de Souza, Abril Peres, Martim Gil valido, e outros muitos, que se disputavam a cada passo o governo.

O alferes Martim Annes, Martim Gil e alguns outros nobres, de que a tempo falaremos, eram os unicos que apenas cuidavam em dar provas de valor militar, mas sem que se envolvessem nunca em politica, nem em intrigas palacianas, pois não tinham outras ambições que não fosse combater galhardamente.

Ficou definitivamente resolvido que pattiriam todos no dia seguinte.

Estevão Soares ficaria na côrte governando e

dirigindo os negocios politicos e internos, ao que o seu talento lhe dava direito.

D. Sancho ia, emfim, trocar os seus trajos monásticos pela brilhante armadura do guerreiro Pela tarde, o rei dirigiu-se ao castello e passou em revista as suas tropas, mostrando-se satisfeito.

V

OS GUERREIROS DA CRUZ

O tempo estava magnifico, os campos verdes e as arvores cobertas de flores como é proprio dos bellos dias de abril; as aves cantavam, voando no espaço.

O exercito, commandado por Martim Annes, approximava-se da fronteira de Elvas.

A’ frente via-se D. Sancho, que levava o estandarte com a cruz vermelha, symbolo da redempçao.

Seguiam-no os fidalgos, dos quaes já citámos alguns nomes, e que eram os chefes do batalhão.

Estes eram os mesmos que, depois de haverem pleiteado o dominio supremo para governar na côrte do rei menor, se armavam agora e reuniam em boa camaradagem para irem combater os sarracenos.

Estes fidalgos, d’uma ambição que não conhecia limites, estavam presentemente dispostos a dar largas ao seu valor contra os mouros.

Ao lado de D. Sancho ia seu irmão, o infante D. Fernando, muito contente por tomar parte n’esta empreza.

Affonso é que não se via alli... Mas alguem o substituia que suppria admiravelmente o seu logar, e que reunia em si todas as boas qualidades, dignas

de serem imitadas pelo melhor dos principes, e que infelizmente áquelle faltavam.

Dos fidalgos, que acompanhavam o rei, destacava-se um, que, se era certo poder assimilhar-se aos outros em garbo, gentileza e denodada valentia, não se parecia no emtanto em ambições e egoismo.

Era um homem de elevada estatura, rosto bondoso, de fronte espaçosa e nobre porte, e a quem o armamento que usava dava ainda mais prestigio e distincção.

Este nobre guerreiro, um dos mais dedicados e fieis amigos do adolescente Sancho, chamava-se Fernando de Aragão, e havia pouco tempo que se enfileirára nas suas hostes.

No exercito tratavam-no pelo guerreiro desconhecido. Ninguem o conhecia senão pelo nome que havia dado; a sua origem todos a ignoravam.

Muitos julgavam-no natural de Hespanha, mas tanto podia ser hespanhol, como portuguez, ou mesmo arabe; -- pois é certo que falava admiravelmente qualquer d’estes idiomas.

Apenas o que se sabia era, que volvidos dois annos depois da morte de Affonso II, este individuo apparecera na côrte, acompanhado por um padre, que, depois de o apresentar ao rei, seguira para Hespanha, não tornando a ser visto em Coimbra.

Em toda a parte viam este fidalgo ao lado de D. Sancho, que muito se lhe affeiçoára e com elle desabafava os seus pesares, porque D. Sancho, a despeito dos seus verdes annos, já tinha numerosos desgostos.

Aquelle que está destinado ao infortunio, começa cedo a ser flagellado pela fatalidade.

Mas, voltemos ao desconhecido.

O mysterio, que o envolvia, ainda mais lhe attraía as sympathias.

Longe de ser repellido, por não dar francamente a conhecer o seu passado,--via-se rodeado de amigos.

Todavia apresentára se bem simplesmente; não trouxera ao rei nem a qualquer outra potencia, cartas de recommendação.

Effectivamente crêmos que o melhor empenho de que qualquer pessoa se deve fazer acompanhar é de simplicidade e actos que a façam valer por si só, e não pelos outros.

O guerreiro, pois, assim o entendeu: apresentou-se só, sem empenhos, e singelamente se offereceu para alistar-se no exercito.

Pediu a el-rei para conservar o incognito, affiirmando ter feito uma promessa, que lhe não permittia que por emquanto se désse a conhecer.

Toda a sua pessoa indicava tanta dignidade e distincção, as suas palavras eram repassadas de tanta tristeza e sinceridade, que todos o acreditaram, e ninguem pensou em aconselhar o rei a banil-o da côrte.

Mas, ainda que de tal se houvessem lembrado, não o conseguiriam, pois é certo que D. Sancho foi attrahido pelo guerreiro desde que o viu, e nada faria com que d’elle se separasse.

Muito novo ainda,-- talvez não tivesse vinte e um annos, -- no emtanto, apesar de tão juvenil, o seu rosto era grave e triste, e as suas palavras sempre circumspectas, mas sem affectação.

Este homem devia ser um ente superior; pois que, numa côrte, em que só predominava o odio, a intriga e a inveja, não havia uma só pessoa, fosse qual fosse o seu partido ou jerarchia, que lhe fizesse guerra. Todos sem excepção o amavam.

O instincto advertia os nobres da sua superioridade.

Todos comprehendiam que o guerreiro desconhecido era digno da maior estima e respeito.

Tal era o homem, que acompanhava el-rei, a quem se havia dedicado para sempre.

Este fidalgo leal, de singular bondade e dedicação, estava destinado a seguir sempre D. Sancho, por quem sentia uma affeição fraternal.

VI

OS PRIMEIROS LOUROS DA VICTORIA

Entretanto o exercito aproximava-se de Elvas, e poz-lhe cêrco.

Os mouros, advertidos da aproximação do inimigo,-- mas não tanto a tempo, que podessem fugir,-- resolveram defender-se valentemente.

A investida contra os infieis foi terrivel, e estes que no principio julgaram sahir vencedores, em breve se convenceram do contrario.

Causava lhes extranhesa e ao mesmo tempo desdem verem á frente de tão diminuto exercito aquelle adolescente, formoso e debil, que era o rei, e perguntavam entre si, -- se era com crianças que tinham de se bater, -- ou se os christãos teriam endoidecido.

Mas, ao verem a coragem e sangue frio de que esse adolescente deu provas, e a facilidade com que empunhava a lança, que quando menos o esperavam cahia sobre o inimigo, -- pasmavam de assombro, e duvidaram de triumphar.

O infante D. Fernando, seguindo este exemplo, dava tambem largas ao seu genio aventureiro e fogoso.

O seu braço juvenil brandia a espada com desembaraço quasi egual ao de el-rei.

Emfim: os portuguezes deram boa conta de si n'esta batalha, a primeira e a mais brilhante do reinado de D. Sancho II.

Não nos deteremos pormenorisando minuciosamente todos os detalhes d’esta lucta que os leitores, por certo, avaliam o que seria.

Todavia devemos dizer: que entre todos os fidalgos, quem mais se distinguiu foi o guerreiro desconhecido.

Este sim; era bem digno de combater ao lado do rei! e o valor, de que deu provas, só com o d'aquelle podia ser comparado.

Dando o mais frisante exemplo de coragem e agilidade,-- tão depressa estava em um lado como se voltava para outro, correndo sobre o inimigo, que procurava algumas vezes atraiçoal-o com falsas investidas.

Dir-se ia ser o Archanjo S. Miguel expulsando Satanaz.

Mil vezes arriscou a vida para salvar a do soberano; e, tal era o seu valor e indifferença pelo perigo que corria, que todas julgaram querer elle desafiar a morte.

Os mouros estavam quasi vencidos, e pouca resistencia oppunham já.

A maior parte havia fugido.

N’esta altura, os valentes portuguezes estavam dispostos a descançar um pouco.

D. Sancho felicitou os pelos seus feitos d’armas, e elogiou sinceramente o guerreiro.

Os fidalgos imitaram n’o.

Mas o guerreiro desconhecido, não se desvaneceu com isso, pois o seu caracter era indifferente a adulações e elogios.

Tudo o que fazia era espontaneamente; e os seus actos de heroismo julgava-os a coisa mais simples do mundo.

Todavia, as felicitações de D. Sancho commoviam n’o ao mais intimo d’alma, não por serem dirigidas pelo rei, mas porque eram sinceras e destituidas de lisonja.

-- Cavalleiro! -- exclamou o infante D. Fernando, -- dirigindo-se n'este momento ao guerreiro desconhecido, num transporte de enthusiasmo,--que lhe era tão natural... Estou encantado com os resultados d’esta guerra, e com a paisagem d’esta bella cidade... Se todo o Alemtejo assim é, prometto vos que hei de ainda voltar cá!

-- Hei de escolher uma das mais bonitas villas, e n’ella irei residir, pois quero estar perto dos mouros, que apesar de crueis e fanaticos, me interessam pela sua coragem e valor.

-- Se é essa a vossa inclinação, fazeis bem,-- volveu gravemente D. Fernando de Aragão. -- Mas, -- accrescentou elle -- abandonaes assim a corte... e o vosso rei e irmão ?...

-- Oh! não, -- respondeu o infante.--Não abandono meu irmão nem a côrte; de vez em quando irei lá; porém, a maior parte do tempo hei de passalo aqui. De cá, melhor ainda, vigiarei o inimigo, e estarei prompto sempre para combater pelo meu rei e a favor da minha patria e religião.

D. Sancho ouviu estas ultimas palavras e disse:

-- Estou certo que seguireis sempre as leis da honra e do dever, e que vos não afastareis dos bons principios de coragem a par da humanidade. -- Todavia... olhai, meu irmão, não vos arrependais de trocar o luxo e commodidades da côrte, a que estaes habituado, pela simples armadura de soldado...

-- Ficae certo que jámais me arrependerei...

Acabava o infante de dizer estas ultimas palavras, quando succedeu um acontecimento inesperado e de interesse.

Um arabe, sem que se soubesse d’onde vinha -- (pois não fôra visto no combate) -- ricamente vestido,-- moço bello e de elegante porte, -- montando um cavallo vistosamente ajaezado, se precipitou sobre o rei e arremetteu violentamente para elle com o seu alfange, prompto a ferir sem piedade.

Todos soltaram um grito de terror, vendo o perigo que D Sancho corria.

Felizmente, porém, o movimento que o arabe fizera para attingir o rei, havia sido ião arrebatado, que perdeu o equilibrio e cahiu.

A lucta, que então se travou, foi tão renhida que o desgraçado ficou sob o seu cavallo.

Primeiro o espanto havia sido geral, e deixara os christãos immoveis e gelados de susto.

Apenas D. Fernando de Aragão, o guerreiro desconhecido, que nunca perdia o sangue frio, correu direito ao musulmano, para o impedir de commetter o attentado contra o monarcha.

Mas, passado esse momento de surpreza bem natural, pelo inesperado do ataque, dispozeram-se para fazer justiça.

O infante, desesperado e esbaforido, correu tambem, e, levantando a espada, ia castigar a ousadia do arabe.

Os soldados imitaram n’o e todos á uma cahiram sobre o adversario.

O guerreiro desconhecido, a quem repugnava ferir um homem que se não podia defender, fazia esforços inauditos para affastar aquella turba, sem o poder conseguir.

Se não fosse o rei, que até então assistira a tudo distrahidamente e quasi sem comprehender que estivera em risco de ser victima, pois que, n’essa occasião estava conversando com o infante, -- se não fosse o rei, repetimos, o arabe estava irremediavelmente perdido.

D. Sancho, sempre bom e generoso contra o inimigo, tratou de intervir com a sua auctoridade.

-- Que ninguem se atreva a tocar n’esse homem! -- exclamou elle com voz imperiosa.--Esse homem deve ser sagrado para nós, pois seria da mais revoltante cobardia atacar o inimigo indefezo!...

E dizendo isto, el rei desenrolou o estandarte e cobriu com elle o arabe em signal de paz.

Os guerreiros suspenderam-se! A ordem era formal e não admittia replica.

Comprehenderam n’essa occasião que, se aquelle joven na côrte era governado, não o era alli, no campo da batalha, pois desempenhava bem o seu logar.

Com esta impressão, affastaram se todos respeitosamente.

O guerreiro desconhecido volveu um olhar de agradecimento a el-rei. Era evidente que ficara satisfeito por aquella nobre acção.

-- Senhor!--disse elle: -- permitta me vossa majestade que eu lhe manifeste quanto foi grande e nobre o vosso procedimento em ter perdoado.

-- Nem outra coisa era de esperar da vossa bondade.

-- Estou recompensado, -- respondeu D. Sancho -- pois que mereço a approvação d’um homem justo como vós.

Dizendo isto, el-rei sorriu affavelmente para o guerreiro.

Comprehendiam-se; porque pensavam do mesmo modo. Ambos eram justos e dignos.

VII

AS PROPHECIAS DO ARABE

Devido á generosidade de D. Sancho, o arabe, que jazia vencido e cahido por terra, conseguiu levantar-se auxiliado pelo guerreiro.

Então, dirigindo-se ao monarcha, falou-lhe assim:

-- Oh! joven rei dos christãos! a coragem e generosidade, de que acabas de dar provas, encontrará echo no meu coração.--Sabe, pois, que eu não sou um ingrato e estou prompto a provar-t’o. -- O meu alfange não mais se levantará contra ti ou teus amigos. Conheço quanto mal avisado andei em tentar contra a tua vida.

-- Era um desforço que eu queria tirar, ao vêr

mouros e musulmanos dizimados por ti e pelos teus.

-- Mas, agora comprehendo que a razão está do vosso lado; luctaes para defender a vossa religião, assim como nós defendemos a nossa; a uns e outros assiste egual direito.

-- Isso, porém, não obsta a que eu te manifeste a minha admiração e amizade futura.

-- Ouve, pois, a expressão da verdade.

E o arabe continuou com aquella voz oriental, tão cheia de encantos:

-- Se alguma vez o destino te fôr adverso, e se a fatalidade, que eu adivinho e presinto te acompanha-- (porque a tua nobre fronte tem o signal indelevel das desgraças que te hão de ferir) -- te conduzirem ao exilio... lembra te de que ha alguem que te ama e sente os teus infortunios. -- Se assim te falo, é para te prevenir contra inimigos desconhecidos. O teu olhar triste e suave, a tua fronte, que ás vezes se contráe quando algum pensamento triste te invade o cerebro, são o indicio, para mim infallivel, de que estas destinado desde o nascimento para soffrer.

-- Acautela te, -- continuou o arabe, -- acautela-te!... Lembra-te das minhas palavras que são um aviso! «Ainda fica muito por dizer com respeito á funesta estrella que te persegue»

-- E agora dir-te hei: se alguma vez precisares de mim, não tens mais do que enviar um mensageiro a Abdá, e eu estarei a teu lado. Alli todos saberão dizer quem é o arabe Abd-Allah. 1

-- Sois então o actual amir de Marrocos, de que tanto se fala exaltando o seu valor? -- perguntou D. Sancho.

-- Sou eu, -- disse simplesmente o arabe. -- E

1 Significa entre os orientaes: Servo de Deus.

(N. da A.)

sabe que não só me salvaste a mim, mas tambem a esposa e uma filha bem amadas, as quaes, se cu lhes faltasse, succumbiam de dôr. Já vedes que vos sou devedor de mais do que da minha vida: -- devo vos tambem a felicidade d’aquellas que adoro.

O guerreiro desconhecido, que havia algum tempo não deixava de fitar o amir com singular attenção, ouvindo o referir-se á esposa e á filha, estremeceu, e volveu-lhe um olhar que parecia uma confidencia.

Abd-AIlah, que distrahidamente se havia voltado para o lado de Fernando de Aragão, viu-o; e os seus olhares intelligentes cruzaram-se fixamente.

N’esse olhar, o guerreiro leu uma resposta.

Queria dizer:

-- Conheci-te logo de principio, mas descança, que eu não o direi; porque sei que só o bem te inspira.

Ha olhares mais expressivos e eloquentes do que os mais brilhantes discursos.

Fernando e o amir comprehenderam-se.

Antes de se despedir, o arabe voltou-se tambem para o infante D. Fernando e disse lhe, fitando o com persistencia:

-- E vós, infante, sêde menos arrebatado; lembrae-vos que a colera é má conselheira, e os arrebatamentos conduzem-nos muitas vezes a um mau caminho e arrastam tambem ao perigo e á ruina os nossos amigos. Com o vosso genio violento e leveza de pulso sois temivel. Mas, tende sempre presente o que vos digo; pois tenho o exemplo em mim.

-- «Com os vossos arrebatamentos não fazeis mais do que abreviar a queda de vosso irmão, conduzindo o á vergonha, ao mesmo tempo que sereis vilmente humilhado. Depois... não vale de nada o arrependimento.»

O infante ouviu esta tirada sem soltar uma phrase, e teve o bom senso de se conservar serio e attento emquanto o islamita falou.

Comprehendia, apesar da sua pouca edade e indole desenvolta, que o arabe tinha razão.

Por este motivo, o infame ficou um tanto apprehensivo.

O arabe, tendo assim falado ao rei e ao infante, despediu-se em seguida.

-- E agora... até outra vez, que tarde será! Que o vosso Deus vos proteja, como eu desejo ser protegido pelo grande e incomparavel Mahomet!...

E o amir, dizendo isto, inclinou-se ao uso oriental.

D. Sancho, que se havia apeado do seu cavallo desde o começo d’aquella scena, estendeu lhe a mão, que elle tomou com transporte nas suas, volvendo:

-- O nosso uso é beijar a fronte d’aquelle a quem juramos dedicação. Este beijo significa alliança perpetua e fidelidade eterna.

Os dois reis trocaram o osculo sagrado, segundo o uso oriental. E o arabe, inclinando-se de novo, montou no seu cavallo, trocou ainda um olhar expressivo com o guerreiro e desappareceu.

As palavras propheticas do mahometano pareciam inspiradas pelo céu.

Todos ficaram tristemente impressionados, e o proprio infante, que raras vezes se commovia, não poude conter duas lagrimas.

-- Serei eu culpado das desgraças que elle diz que hão de ferir meu irmão? -- murmurou o principe.-- O arabe, emquanto falava, parecia fitar-me com desconfiança!... Oh! antes morrer, meu Deus, do que causar damno a meu irmão!...

D. Sancho tambem ficára um pouco commovido:, mas, pondo de parte quaesquer apprehensões, não soltou uma palavra que a tal alludisse.

Pela sua parte o guerreiro desconhecido, se ficou preoccupado por alguma idéa, que lhe acudisse ao espirito, guardou-a para si, seguindo o exemplo de el-rei.

O combate, que havia sido interrompido quando se deu aquella breve scena, continuou.

Em pouco tempo os valentes portuguezes, apesar de serem em muito menor numero do que o inimigo, ficaram vencedores.

Os mouros sobreviventes tiveram de fugir da cidade de Elvas.

Muitos cadaveres juncavam o campo da batalha, mouros e christãos; uns mortos, outros feridos e moribundos jaziam por terra n'um mar de sangue. Era horrivel!...

Tendo emfim terminado o combate, os guerreiro; da cruz voltaram á capital, levando comsigo os feridos.

Outro tanto haviam feito os infieis.

O primeiro passo para reinar estava dado. D. Sancho estreiou-se n’esta batalha como guerreiro. Começava a emancipar-se da oppressão dos tutores.

Eram os primeiros louros da victoria.

Tomou gosto pelas guerras, onde se sabia mais rei, do que na côrte; e tambem porque preferiu antes luctar com os mouros, do que com a ambição da nobreza, e dos ministros mitrados.

VIII

O MYSTERIO

Alguns dias depois da batalha aos sarracenos, o guerreiro desconhecido, sosinho no seu quarto, que era na morada regia (D. Sancho assim o quizera), passava pela mente os acontecimentos da guerra e a scena em que o arabe fôra o protagonista.

-- O amir conheceu-me, -- murmurou elle: mas, como prometteu guardar segredo, nada tenho a receiar.

Antes de continuar devemos explicar aos nossos leitores alguns pontos mais escuros d’este romance, e que se referem ao guerreiro.

Digamos de passagem quem era este individuo, e como viera para a côrte, onde gosava de muitas sympathias e era geralmente estimado.

Para isso temos de retroceder um anno, o que faremos procurando não massar muito o leitor.

Um mez depois de se propagar no paiz que el-rei iria com uma expedição ao Alemtejo, seguiam caminho da Beira Alta, em direcção a Coimbra, dois cavalleiros.

O primeiro era um mancebo de vinte annos, vestindo a armadura de guerreiro, -- o segundo era um ecclesiastico.

Este volvia a miudo um olhar de paternal amor ao seu companheiro, o qual, curvado sobre o seu cavallo, e com a vizeira do elmo cahida, não deixava antever as feições.

Estes homens pareciam extrangeiros.

De subito o mancebo abandonou aquella attitude de desalento, levantou a cabeça e perguntou:

-- Meu amigo: sabeis dizer-me se ainda falta muito para chegarmos ao termo da nossa jornada?

-- Espero, -- respondeu o padre, -- que pela noite teremos chegado a Coimbra.

-- Estaes cançado meu filho? -- perguntou o ancião, com solicitude:

-- Pareceis-me abatido!...

-- Oh! não! -- nunca sinto fadiga por viajar,-- pensava em minha mãe... é este o motivo do meu desanimo.

Dizendo isto, o guerreiro suspirou e, se não fora o elmo, talvez se visse uma lagrima de infinda saudade em seu rosto.

-- Meu filho, -- lhe tornou o padre, -- tende coragem!... pois não é esta a primeira vez que vos separaes, -- e lembrae-vos que foi vossa mãe, que exigiu que viesseis.

-- Sim, tendes razão. -- respondeu o mancebo: -- e eu de bom grado accedi, pois o motivo que a inspirou a mandar-me a Portugal é dos mais justos.

-- Sois um filho bom e obediente; Deus vos recompensará.

-- Mas, -- proseguiu o guerreiro: -- serei eu recebido na corte? el rei consentirá ao seu lado um extrangeiro ? -- um homem desconhecido; por que eu não posso de forma alguma dar a saber o meu nascimento!!...

-- Quanto a isso, não vos afilijaes a pensar mais, Affirmo vos que sereis bem recebido; -- principalmente n’esta occasião... Diz-se que o rei, -- que é muito animoso,-- tomará parte na expedição, que brevemente irá ao Alemtejo a fim de expulsar os mouros.

-- Nada mais simples, portanto, do que offerecerdes os teus serviços ao monarcha, como guerreiro christão, e D. Sancho acceital-os ha; e, em vista da vossa coragem e desinteresse, e por que elle é um rei magnanimo, ha de querer-vós sempre na côrte.

-- Alem d isso, devo dizer-vos que não é preciso, para combater, conhecer o nascimento de cada um. O que se aprecia é o valor e boas qualidades. Podeis crer que ninguem vos perguntará pelo passado.

-- E' que vós meu filho tendes uma alma, excessivamente delicada, e repugna-vos o mysterio.

Este curto dialogo foi trocado em bom portuguez

Os dois cavalleiros, assim conversando, chegaram perto d'uma fonte cercada por espesso arvoredo.

Eram cinco horas da tarde; e o sol ardentissimo do mez de maio não lhes permittia que podessem continuar a sua jornada sem descançar um pouco.

Apearam-se os viajantes, e dirigiram-se para a fonte, afim de beberem e darem de beber aos seus cavallos.

Tendo mitigado a sede, que os devorava, os dois amigos deixaram os animaes afastar-se, e disposeram-se a descançar alguns momentos á sombra do frondoso arvoredo.

IX

NOVOS PERSONAGENS

Não estiveram, porém, assim muito tempo.

Pois, na mesma occasião, em que se deitavam sobre a fresca relva, que atapetava o solo, avistaram ao longe uma numerosa cavalgada.

A’ frente via-se uma amazona joven e formosissima, vestindo com elegante simplicidade; e a seu lado um arabe, que segurava em seus braços uma menina de cinco annos sublimemente linda e encantadora.

A creança fazia ouvir as suas alegres risadas, que muito deleitavam aquelle; e, pelas caricias que lhe prodigalisava, era facil de conjecturar que era sua filha.

Os restantes cavalleiros -- mais de tresentos,-- fazendo ála cm volta d’elles, eram mouros e musulmanos d’ambos os sexos, ricamente vestidos, usando pannos de vistosas côres e turbantes guarnecidos de pedrarias.

Eram servos do arabe, que para toda a parte o seguiam, e o amavam muito, assim como a sua esposa e filha.

Os cavalleiros chegaram perto dos dois extrangeiros, -- em quem não repararam, -- e fizeram alto.

O arabe ajudou a dama a descer do cavallo, e encaminharam-se para a fonte, levando a creança pela mão.

Então o guerreiro ficou deslumbrado: -- não só pela formosura e natural distincção da desconhecida;-- pela graça e encanto da menina; -- mas tambem pelo porte imponente e digno do arabe.

Este representava ter trinta e tres annos. Era alto e elegante com o seu trajo á oriental. Usava um manto de seda de Damasco recamado de pedras preciosas das mais finas e raras. E cingindo lhe o manto um cinto d'ouro e rubis, onde escondia o alfange.

Na cabeça, que se erguia altiva, ostentava um lindo turbante constellado, assim como o cinto.

Era bello e magestoso.

Formava, porem, um extranho contraste com a sua linda companheira, vestida á europêa. O que os assimilava era o ar de distineção e belleza que possuiam.

A dama devia ter vinte e cinco annos.

-- E’ realmente um grupo encantador, -- pensava o moço guerreiro, que apesar de pouco expansivo não foi indifferente a esta apparição.

Mas, o que sobretudo o attrahia, era a pequenina, com o seu rostosinho meigo e risonho, no meio dos dois, que quasi a não deixavam pôr os pésitos no chão.

A creança, assim levada e com o seu vestidinho azul pallido, parecia uma visão celestial.

E o guerreiro voltando-se para o seu companheiro cuja attenção egualmente fôra distrahida á vista d’aquelles, disse-lhe:

-- Já vistes, meu padre, uma creança tão gentil?

-- Sim, volveu o ancião com voz tremula: -- e, dizendo isto, uma lagrima lhe rolou pela face rugosa.

-- Já vi, continuou elle no mesmo tom, -- uma creancinha tão linda e meiga como essa, que estaes admirando.

A commoção do padre era visivel ao proferir estas simples palavras.

O guerreiro comprehendeu que despertara ao seu amigo tristes recordações d’um passado talvez remoto, -- e mudou de assumpto.

-- Como está bello o tempo, e quanto eu gosto d’estes sitios! que lindos que são os arrabaldes de Coimbra!

-- Se minha mãe aqui estivesse, -- accrescentou elle melancholicamente:--a felicidade seria completa!...

-- Pobre Dulce -- volveu o padre -- o muito que soffreu fez lhe perder de todo o gosto pela vida.. Morreu para o mundo!...

-- Cumpra se a vontade de Deus, murmurou o mancebo resignadamente.

Durante algum tempo conservaram-se em silencio os dois homens, -- pensando na pobre mulher, a quem um dava simplesmente o nome de Dulce, -- e o outro o dôze nome de mãe!...

X

BEATRIZ DE MENEZES

Entretanto, o arabe, sua esposa e filha, tendo descançado ao pé da fonte, resolveram pôr-se de

novo a caminho, seguidos pelos servos, que se approximavam.

Tendo reparado nos dois extrangeiros, que discretamente se haviam affastado á sua chegada, cumprimentaram n’os com affabilidade.

N’esta occasião o moço guerreiro levantou a viseira do seu elmo, para corresponder a tão amavel saudação.

Então se poude vêr o seu rosto de uma belleza varonil e pouco vulgar.

A fronte elevada, o olhar triste e suave como uma caricia, a tez pallida e os cabellos negros, compridos e soltos, fluctuando ao vento.

O rosto d’este homem conservava um ar de natural e rara distincção; e a despeito da tristeza que n’elle se divisava, -- pois seus labios jamais sorriram,-- transparecia a bondade e a nobreza de sentimentos. Logo á primeira vista o seu todo inspirava confiança.

Os nossos leitores já de certo comprehenderam que este individuo era D. Fernando de Aragão, o guerreiro desconhecido.

O arabe soltou uma exclamação de surpreza. Conhecia o joven guerreiro; este, porém, não o conhecia a elle.

-- Vós por aqui? -- exclamou o amir, trocados os cumprimentos --Suppunha-vos em Aragão!...

Fernando, admirado, interrogou:

-- Que quereis dizer?

-- Que já não é a primeira vez que vos vejo, principe. Vós é que talvez nunca reparasseis em mim! O que não admira, dada a abundancia de musulmanos que andam espalhados em terra christã.

-- De certo me confundis com outro, -- volveu Fernando, disfarçando a commoção que sentia.

-- E' impossivel a confusão, -- tornou o arabe -- sois o mesmo que eu vi em Badajoz combater ao lado de Affonso IX, e outras vezes ao lado de Fernando III de Castella, que muito vos estimava. Sim, sois vós! Apenas vos noto uma differença: pareceis-me mais triste.

O padre havia-se chegado para junto dos dois mancebos, pensando no meio de convencer o arabe de que elaborava n’um erro, motivado por qualquer similhança, mas depressa se convenceu da inutilidade de intervir, pois que o outro continuou:

-- Oh! quem não vos conhece!... Vós, o principe aragonez, o «Heroe dos Combates», como vos chamavam em toda a Hespanha! Quem não conhece e admira o vosso valor para fazer recuar o inimigo, e a vossa generosidade para com os vencidos?!

-- Sim! sois o principe!...

-- Por Deus!... senhor, calai-vos; -- interrompeu o guerreiro -- não desejo mais ser tratado por esse titulo! D'ora avante sou Fernando de Aragão. Esse titulo de principe, que vos ouvi em tão pouco tempo repetir tres vezes, e que em Hespanha me davam, não tenho direito a elle.

-- Estaes-me parecendo um tanto mysterioso, o que é admiravel n’um moço como vós.

-- Talvez, -- respondeu Fernando -- mas vou expor-vos o motivo em poucas palavras. Antes, porém, promettei-me que guardareis sigillo.

-- Por Mahomet o juro! -- respondeu solemnemente o arabe, estendendo o braço.

-- Acceito o vosso juramento. Sabei que eu sou portuguez, e emquanto ignorei qualquer particularidade do meu nascimento, combati ao lado dos nobres hespanhoes, não me importando nunca com o tal titulo que teimavam em me dar; mas agora tudo se desvendou ante os meus olhos, e desejo apenas, como simples soldado, combater pela minha patria... Mais não digo, porque me não atrevo...

-- Segundo o que deprehendo das vossas eni-

gmaticas palavras, quereis viver ignorado e obscuro no futuro?

-- Sim.

-- Algum desgosto tendes, que vos amargura!...

-- E vós o que dizeis a isto, meu bom padre?-- perguntou o arabe, voltando-se para aquelle.

-- Senhor! sabei que Fernando tem uma missão sagrada a cumprir, mas por emquanto não a póde divulgar. E’ um sigillo!

-- Basta! -- disse o arabe -- comprehendo que nem tudo se deve dizer, e eu respeito o vosso segredo.

-- Desculpae me se fui inconveniente nas minhas perguntas mas peço-vos que acrediteis que foram feitas na melhor intenção, e apenas fundadas no interesse que me mereceis.

E, mudando de conversa, o arabe disse, apresentando sua familia:

-- Minha mulher D. Beatriz de Menezes, e minha filha Amarinda.

O guerreiro e o padre inclinaram-se cumprimentando novamente, e este ultimo disse:

-- Eu tive a honra de conhecer n’outro tempo um fidalgo d’esse nome; tinha elle uma filha, que se bem me recordo, deve ter hoje a nossa edade! Sereis vós, senhora minha, a filha do conde de Menezes?

-- Sim! sou eu disse a joven!

-- Muito estimo ter tido esta occasião de vos vêr.

-- E eu egualmente, disse a dama.

-- Ides para a côrte ? -- perguntou ella em seguida com a sua vós suavissima, -- ao guerreiro.

-- Sim, senhora minha.

-- Tambem nós lá temos estado.

-- Agora, vamos residir por algum tempo em Hespanha.

Emquanto conversavam, Fernando não deixava

de contemplar a creança; e, acercando se d’ella, pegou-lhe ao collo e depol-a nos braços da mãe, que a esse tempo subia para sobre o seu cavallo.

-- Permittis, senhora minha, que eu beije a vossa encantadora filha? -- disse elle:

-- Pois não, senhor!...

-- Amarinda, disse o arabe,--então o que se faz?

A menina sorriu para o pae e respondeu com

muita meiguice:

-- Devo agradecer!...

E voltando se graciosamente para Fernando que estava enlevado, volveu:

-- Obrigada, cavalleiro; gostava muito que nos acompanhaseis; mas, como ides para a côrte, é impossivel.

-- Em todo o caso póde ser que nos tornemos a encontrar alguma vez; e eu muito estimarei ver-vos.

-- Minha filha (interveiu o amir) manifestou em poucas palavras o nosso sentir; sim! -- Minha esposa e eu faremos votos para tornarmos a encontrar-vos.

-- Adivinho em vós um nobre caracter.

-- Estimarei que a vossa missão se cumpra e possaes ainda reconquistar o logar a que tendes direito pelas vossas excellentes qualidades.

O mancebo inclinou-se em silencio. Era-lhe impossivel responder qualquer coisa pela fórte commoção, que d’elle se havia apoderado.

Em seguida disposeram se a partir.

-- Boa viagem, cavalleiros, disse a dama despedindo se: e estendeu a mão a Fernando, o qual depoz n’ella um beijo respeitoso.

Em seguida despediram se tambem do padre muito affectuosamente; e este beijou paternalmente Amarinda

A brilhante cavalgada pouco depois desapparecia ao fim da ladeira, circumdada por espesso arvoredo.

XI

HEITOR DE CARVALHO

O mancebo seguiu-os com a vista até desapparecerem de todo, e disse tristemente para o seu amigo:

-- Eis um encontro, que nunca mais se me apagará da memoria!

-- Por toda a parte verei sempre na minha imaginação este árabe, sua esposa e filha...

O padre respondeu, muito commovido:

-- Tambem eu fiquei impressionado, meu filho!

-- Esta familia fez-me recordar outra, que eu conheci ha muitos annos...

-- Meu bom amigo!... interrompeu Fernando, -- permittis que vos faça uma pergunta?!

-- Dizei!...

-- Vós dissestes que havieis conhecido um fidalgo christão de nome Menezes?

-- Sim, era o pae de Beatriz!...

-- Sabeis se ainda vive?

-- Morreu, ha muitos annos, e a esposa tambem, ficando sua filha orphã muito creança ainda.

-- Eram de Coimbra?

-- Sim!

O guerreiro ficou por algum tempo pensativo, e por fim disse:

-- Em todo o caso não comprehendo bem, como essa menina casou com o musulmano ! Não haveria na côrte um homem digno tambem, a quem ella unisse o seu destino?

-- E’ possivel que houvesse, Fernando; -- mas meu filho... devemos attender que o amor não distingue nacionalidades, nem religião, -- quando inspirado por dois corações novos e amantes.

-- Além d'isso, não é a primeira vez que se vê um árabe casado com uma christâ, n’uma epocha.

em que mouros, musulmanos e christãos andam quasi confundidos por todo o Portugal e Hespanha!...

-- Parece-me que tendes razão!

-- Olha, meu filho, talvez te pareça estranha esta linguagem num pobre frade como eu... mas é que nem sempre fui o homem simples d’agora. Nunca fui de preconceitos ridiculos; e, agora mesmo, ainda estou convencido do que te disse a esse respeito.

-- Vou me convencendo das vossas palavras, e sou da vossa opinião. Volveu o guerreiro.

-- Agora outra pergunta, e peço-vos me desculpeis. Dissestes que esta familia vos fez lembrar de outra que conhecestes?...

-- Sim; e contar-vos-hei esse triste caso... Serei breve!... Ouvi-me, pois!

Fernando prestou a maior attenção.

-- «Apesar de já ir muito longe esse tempo -- começou o padre -- comtudo recordo-me bem...

-- «Uma mulher joven e formosa, uma creancinha sua filha, e um homem, que as adorava.

-- Já vês, que é quasi a copia fiel do quadro, que, ha pouco, tanto nos impressionou.

-- «Eram felizes; mas, como a felicidade completa é impossivel, este bem não durou sempre!...

-- «N’um dia! Ah! como é triste recordal-o! A fatal morte, que a ninguem poupa, e que traiçoeiramente se approxima quando menos se espera, tudo separou!...

-- «A mãe e a innocente filhinha são subitamente arrebatadas aos carinhos do esposo e pae! E este, inconsolavel, triste, mas resignado, veste o habito de religioso, e deixa o mundo, para viver só de saudades!

-- A quem se refere essa triste historia, meu padre?-- perguntou Fernando muito commovido.

-- «A mim!...

-- A vós?!

-- «Sim! eu me explico.

-- «Sabei, que eu n’essa epocha me chamava Heitor de Carvalho; vivia na côrte de... Affonso II, em Coimbra; era rico e considerado; e o monarcha fazia-me a honra de me dispensar estima.

-- «Algumas vezes me abriu o seu coração, fazendo-me as suas confidencias...

-- «Pois bem! n'esse tempo, eu tive uma esposa que amava ternamente e uma filha a quem adorava como aos anjos.

E o respeitavel e infeliz ancião balbuciou por entre lagrimas:

-- «E como as não havia eu de amar assim! se eram tão boas e meigas!...

-- «Hoje, possuo a vossa amisade, meu filho,-- continuou elle, para Fernando, -- e a ella devo a resignação pelas desgraças soffridas.

-- Quando perdi «Candida e Gabriella» (assim se chamavam esses dois entes queridos), abandonei os cargos que exercia no paço, apesar de el-rei quasi me prohibir que o fizesse; e retirei-me a um convento. Tinha eu então trinta annos, e isto passou-se ha vinte e tres.

-- Pobre amigo, murmurou Fernando, com sincero pesar; bastante tendes soffrido!...

-- «Depois d’isso, proseguiu o frade: -- passei a usar na ordem o nome de frei Thomaz.

-- «Todavia, devo dizer-vos que, apesar de me afastar da sociedade, el-rei continnuou a ser meu amigo, e algumas vezes me foi visitar ao convento... Outras ia eu ao palacio.

-- «Um dia, volvidos cinco annos, o acaso conduziu ao meu retiro uma mulher, que dizia querer confessar se.

-- « Era nobre, joven de rara formosura, e de origem hespanhola. Era aragoneza. Tambem como eu despresou riquezas, e do mesmo modo era infeliz:

-- «Apenas havia uma differença; eu pranteava os entes amados, que a morte me roubou; e ella, ainda mais desditosa, chorava o seu amor perdido e o abandono a que a votara e ao filhinho (pois era mãe!) o homem a quem se havia dedicado!

-- «Esse amor fatal, digno de melhor sorte, e retribuido com ingratidão ou esquecimento, por pouco a não conduziu ao desespero.

-- «E, se não fosse tão temente a Deus, teria procurado na morte o esquecimento para os seus pesares.

-- Mas, a pobre Dulce, era muito religiosa, e foi isso o que a salvou.

-- Minha santa mãe! -- murmurou Fernando. Durante tanto tempo escondeu de mim as suas lagrimas, deixando-me ignorar esse passado!...

-- «Dulce julgava que vós deixarieis de a amar por esse motivo, e bastante me custou a persuadil-a do contrario.

-- «Ainda assim, nada vos quiz dar a saber antes de completardes os vinte annos.

-- E vós tambem, meu amigo, sempre me occultastes a verdade!...

-- «Eu cumpria as suas ordens, meu filho; além d’isso era um segredo de confissão, que eu não devia divulgar.

-- «Sim! eu fui o seu confidente, e guardo a lembrança de todas as suas desventuras.

-- «Não sei que sympathia é esta, que todos os infelizes sentem uns pelos outros; é uma attracção por tal modo irresistivel, que os approxima e une reciprocamente n’uma affeição simples e fraternal.

-- «Vós ereis então muito pequenino, tinheis tres annos; -- ha portanto dezesete que isso foi, -- e eu amei-vos como a um filho, e a vossa mãe como a uma irmã muito querida.

-- «O resto já vós o sabeis, tão bem como eu.

-- «A pobre Dulce nunca poude esquecer; sahiu de Coimbra e foi para a sua patria, o reino de Aragão. D’ahi derivou chamarem-vos o príncipe aragonez. Eu, a quem coisa nenhuma aqui prendia, a não ser as tristes recordações do passado, acompanhei-a á sua terra.

-- «Em seguida recolhi-me a uma ermida.

-- «Agora, vossa mãe, a quem o soffrimento fez tomar tedio pelo mundo, foi encerrar-se em triste clausura.

-- «Antes d'isso, porém, pediu-me para vos acompanhar até junto do rei.

Estamos prestes a chegar ao termo da nossa viagem; cumprida a minha missão, voltarei para o meu isolamento.

-- Espero, meu filho, que lá irás algumas vezes.

-- Oh! sim, meu bom amigo; nunca eu esquecerei o que vos devo, vós tendes sido para mim o melhor dos paes!...

E Fernando, enternecido, continuou:

-- Hei de ir algumas vezes, quantos possa, para abraçar minha mãe no seu convento, e a vós na vossa ermida.

Este padre era um homem de aspecto venerando; tendo apenas cincoenta e tres annos, parecia ter setenta, de tal maneira o soffrimento envelhece as creaturas!

Era de mediana estatura e o seu rosto exprimia bondade. Espirito illustrado, admittia a religião espontanea: e, sem hypocrisias, a tolerancia era uma das suas inumeraveis virtudes. Desculpava as fraquezas do proximo, e costumava elle dizer: «Perfeito só Deus!...

Vestira o habito de religioso, não para fazer penitencia, pois que não tinha de que penitenciar se, mas por que, desgostoso pela perda dos que amava tão ternameme, se dedicava ao isolamento, consolando muitas vezes os que soffriam.

Vivia emfim longe da sociedade; porque a sociedade madrasta sempre foi indifferente, egoista e má para os males alheios.

Era noute, quando os nossos amigos chegaram a Coimbra.

Recolheram-se em uma hospedaria, e no dia seguinte apresentavam-se a el-rei.

Isto passava-se um anno antes da batalha d’Elvas.

Já sabemos que foram bem recebidos por D. Sancho, a quem o aspecto veneravel do padre inspirava confiança.

O guerreiro ficou na côrte; e frei Thomaz, depois de o abraçar terna e paternalmente, e tendo-se despedido do monarcha, regressou a Hespanha.

Agora já os nossos leitores sabem o necessario, para poderem avaliar do caracter de Fernando, o guerreiro desconhecido. Voltemos ao ponto onde ficámos, quando elle, sósinho no seu quarto, passava pela mente os acontecimentos da guerra e a scena com o arabe.

XII

HISTORIA D'UM RAPTO

D. Fernando de Aragão estava assentado perto d’uma janella.

Com a cabeça inclinada sobre a mão direita, em attitude de meditação, recordava o seu novo encontro com o amir; pois era o mesmo, que, um anno antes, encontrara no caminho de Coimbra, e agora por ultimo viu em Elvas.

Pensando n’isto o mancebo murmurou:

-- «O arabe conheceu-me, mas como prometteu guardar sigillo nada tenho a receiar.» E Fernando

accrescentou em ar de supplica: Oh! meu Deus! permitti que tal se não saiba nunca!

Era evidente que elle não queria por ILEGIVEL alguma, que o seu nascimento fosse divulgado ILEGIVEL côrte, e era n'isto que se resumiam os seus ILEGIVEL e apprehensões, no presente momento.

Este mysterio a seu tempo se desvendará.

O guerreiro estava, pois, como dissémos, ILEGIVEL vido em penosas recordações, quando entrou no seu quarto o infante D. Fernando, com a sua habitual e interessante desenvoltura.

O infante era muitissimo amigo do guerreiro este tambem amava sinceramente o infante, e o caracter, apesar de tão differente do seu, lhe parecia bom.

-- Meu bom amigo, -- disse aquelle com ILEGIVEL, -- ainda não deixei de pensar no nosso extraordinario encontro com o arabe.

O guerreiro, ouvindo estas palavras, estremceu e levantou a cabeça. Alli estava um, a quem tambem não era indifferente esse acontecimento.

Que coincidencia!...

Mas, quantas vezes succede, ao pensarmos coisa que nos inspira cuidado, chegar outra ILEGIVEL e dizer que os mesmos pensamentos ILEGIVEL sem saber, é claro, dos ILEGIVEL

Foi o que se deu com o aragonez!..

Todavia, não dizendo o que sentia, perguntou:

-- Por que motivo não deixaste ainda de ILEGIVEL brar do amir?

-- Eu vos explico, respondeu o infante:

-- Aquelle sujeito ILEGIVEL se uma historia muito interessante, passada ha alguns annos na côrte, e elle que figurou um sobrinho do ILEGIVEL

Mendes de Sousa.

E o infante murmurou, como se ILEGIVEL mesmo:

-- Sim, tenho a certeza ILEGIVEL da formosa Beatriz.

-- O que dizeis, principe? -- perguntou Fernando surprehendido.

-- Nunca ouviste falar em um rapto audaciosamente commettido por um poderoso arabe, aqui haverá seis annos?...

-- Nunca! o que não admira, por que não estava então cá.

-- Tendes rasão; todavia correu por toda a parte. A noticia espalhou-se depressa, porque se tratava de personagens de alta importancia.

-- Repito, que não soube de tal.

-- Pois vou contar-vos como se deu o caso, o qual realmente teve graça.

-- Prestae-me attenção: sim?

-- Estou ouvindo, meu amigo, respondeu o guerreiro, prestando a attenção que lhe'era implorada.

O joven infante, tendo tomado logar n’uma cadeira em frente do mancebo, começou a sua narrativa com aquelle modo ironico e engraçado que lhe era tão peculiar e um dos seus maiores attractivos.

-- «Reinava n’esse tempo meu pae, o senhor D. Affonso II, que Deus guarde.

-- Havia na côrte dois fidalgos, que vós conheceis muito bem... são os sobrinhos de Gonçalo Mendes de Sousa. Sabeis quanto esses homens são insolentes e presumidos?

-- Não tenho reparado n’isso, -- volveu o guerreiro ; -- mas continuae a vossa narração.

-- Já me ia esquecendo de que achaes todos bons, porque julgaes os outros por vós; mas deixemos isso e vamos á historia.

-- Estes dois fidalgos eram irmãos. Chamavam-se: o mais velho Gregorio, e o mais novo Theodosio. Dois bonitos nomes, como vedes.

-- Eram moços distinctos, muito bem parecidos, e julgavam-se queridos de todas as damas.

-- Aqui é que elles elaboravam n’um erro, pois que tanto n’aquelle tempo, como agora, ainda não

houve mulher que se inclinasse para qualquer dos dois.

-- O motivo era este:

-- Esses fidalgos, então como hoje não tinham tempo senão para provocar contendas, começando por se envolverem em todas as desordens, promovendo escandalos; e, quando não tinham com quem se bater, porque todos fugiam do seu convivio, os dois irmãos bulhavam um com o outro... Quantas vezes tiveram de os separar, para evitar que se matassem?

-- Outras vezes implicavam com os padres, a quem faziam encolerisar com os seus ditos atrevidos.

-- E outras ainda, isto é, n'algum boccado de tempo que lhes sobrava de arreliar e insultar o proximo, applicavam no a fazer a côrte ás damas.

-- Entre as damas cortejadas pelos dois irmãos, havia uma principalmente que elles perseguiam com os seus galanteios grosseiros.

-- E para notar que estes fidalgos não eram muito polidos.

-- Habituados a insultar constantemente os seus adversarios em politica, seguiam quasi egual systema com as senhoras. Ora não é este o melhor processo de lhes agradar.

-- D. Beatriz, a fidalga em questão, era descendente de nobre estirpe, e seus paes os condes de Menezes eram muito estimados na côrte. Infelizmente morreram prematuramente, e Beatriz ficou, póde-se dizer, só no mundo.

-- Além d’isso, não possuia bens de fortuna, por que o conde, seu pae, fôra sempre amigo de viver á grande, e destruiu a sua fortuna em prodigalidades.

-- Em compensação, porém, da sua pobreza, esta menina era de peregrina formosura e muito bem educada.

-- Os dois irmãos Souzas (era o seu appellido

passavam, pois, algumas horas em frente das janellas da joven castellã.

-- O mais novo, o Theodosio, era o que mais insistia n’esta muda contemplação. E, temendo que o irmão podésse vir a ser o preferido, prohibiu lhe que o acompanhasse mais até alli.

-- O Gregorio, que não estava disposto a ter questões por tão pouco, deixou lhe o campo livre.

-- Esse homem mostrava ser um cobarde, -- interrompeu o guerreiro.

-- Esperai amigo, -- respondeu o infante: -- ides ver que o outro lhe não ficava atraz em poltroneria.

-- No emtanto, a Beatriz eram completamente indifferentes os manejos do fidalgote que lhe parecia por demais ridiculo com os seus áres de conquistador indinheirado.

-- Não sentia por qualquer d’elles senão enfado, e despresava-os.

-- Vendo, pois, Theodosio que Beatriz lhe não correspondia, resolveu, para se vingar do seu despreso, raptal-a.

-- Em bello dia reuniu muitos amigos de sentimentos eguaes aos seus, e altas horas da noute dirigiram-se para a residencia da formosa castellã.

-- Mas, oh! decepção!...

A praça estava tomada!...

-- O castello de Beatriz havia sido assaltado por uma leva d'homens, á frente dos quaes se via um arabe, joven e bello, vestido de seda brilhante de pedrarias, -- que entrando no palacio, -- sobraçara a formosa dama e fugira com o sou precioso fardo.

-- Chegados ao parque, onde os seus homens,-- mouros muito bem armados os aguardavam, reuniu-se-lhes, e estes soltaram gritos de alegria, exclamando: O amir! O amir ! e a sua princeza!...

-- E, inclinando-se todos ao uso oriental, fizeram

grandes mesuras á dama e ao árabe, e seguiram nos.

-- Imagine-se como ficaria Theodosio!

-- A sua cara, se n’este momento a podesseis ver, -- apesar da vossa bondade e reserva nas palavras,-- applicar-lhe ieis o epitheto de asno.

-- Talvez... disse distrahidamente o guerreiro:

-- Mas o que mais desesperou o fidalgo, -- continuou o infante, -- foi quando viu que a joven, em vez de soltar gritos afflictivos contra os seus raptores,... ao contrario os acompanhava da melhor vontade... trocando ao mesmo tempo sorrisos e phrases muito ternas com o bello arabe...

-- Beatriz e o amir haviam saltado rapidamente sobre os seus cavallos, ricamente ajaezadas; e seguidos dos restantes mouros e arabes, em breve desappareceram.

-- Pareceu ao pobre Theodosio, que tudo isto era um sonho, ou obra de duendes, que se queriam divertir a sua custa.

-- Nunca viu um caso similhante.

-- E os seus companheiros, julgando assistir a um caso sobrenatural. -- por que áquella hora os mouros extranhamente vestidos davam a essa scena uma nota fatidica, -- poseram-se em fuga.

-- Tudo isto acabou por mais o desesperar; e, se bem que não tinha por Beatriz um amor sincero, -- pois apenas a cortejava por capricho, -- jurou vingar se.

-- Mas, sempre poltrão, o Theodosio, que é incapaz de luctar frente a frente com o inimigo, reservava-se para o atacar pelas costas traiçoeiramente. E' este o forte dos covardes.

Assim pensando, voltou para sua casa, fazendo protestos e planeando o meio de tirar a desforra pela affronta recebida.

-- Se elle conhecesse o raptador de Beatriz, mudaria de ideias, pois o arabe não era homem com quem Theodosio podesse luctar.

-- Porem, não foi preciso muito tempo, para elle se convencer d’isto mesmo, e desistir do seu intento, pondo de parte todos os projectos mal elaborados para a sua segurança.

-- Volvidos poucos mezes sobre o rapto, corria na Capital de Coimbra a grata nova de que a formosa Beatriz de Menezes partira para o Oriente com um rei arabe, e que este, apaixonado pela castellã, havia casado com ella.

-- E assim era verdade.

-- Eis aqui, meu amigo, a historia d’um rapto, que me foi recordada pelo singular encontro que tivemos com o arabe, o qual, a meu ver, é um homem digno de toda a sympathia.

-- E’ bem interessante a vossa historia, disse o guerreiro: e razão tivestes em affirmar que era engraçada.

-- Já vedes,... que vos não enganei.

-- Mas, como sabeis essas coisas, sendo ainda tão joven? N’esse tempo tereis quando muito dez annos.

-- Sim, e verdade; não tinha mais, e el-rei meu irmão teria treze; isto passou-se no ultimo anno do reinado de meu pae; mas durante muito tempo não se falou em outra coisa, e eu como creança nunca pude esquecer o que ouvi; e, -- apesar do arabe no outro dia estar só, logo me lembrei que devia ser o mesmo pelos signaes que o Theodosio me deu d’elle, -- porque devo dizer-vos, meu amigo, que o pobre moço fixou bem na memoria o retrato do seu rival.

-- Mas vós dissestes no principio que esse caso se passou altas horas da noute,--tornou o guerreiro!... Como poude então o fidalgo ver as feições do amir?

O infante soltou uma gargalhada e respondeu:

-- D'accordo, mas os mouros levavam archotes que alumiavam bem aquella scena, e o parque e o palacio também estavam muito bem illuminados. Isto é o que disse o Theodosio; -- e elle deve saber melhor do que eu.

Fernando de Aragão ouvia attentamente esta narração, não só por compraser com o infante, mas porque tudo o que se relacionava com o amir o interessava sobremaneira.

Ainda conversaram mais algum tempo, e depois os dois mancebos dirigiram-se para a galeria do paço esperando que fossem horas de assistir a uma audiencia, que el-rei marcara para as 3 horas d'a-quelle dia.

O guerreiro desconhecido conseguira affastar da imaginação as ideias que se referiam ao passado e o intristeciam.

XIII

APPREHENSÕES

Eram 5 horas da tarde.

D. Sancho depois de attender aos seus ministros, retirou-se á sua camara aonde o acompanharam o guerreiro e o infante.

O monarcha considerava como os seus melhores momentos o tempo que passava junto d’aquelle homem simples e bom. Era tão differente dos cortezãos aduladores que o cercavam, com servil fingimento!...

Tendo-se el-rei assentado junto da mesa de escrever chamou o guerreiro e lhe disse:

-- D. Fernando: eu muito desejaria fazer-vos mercê do titulo de conde, que mereceis em vista

los rasgos de heroismo de que destes provas na batalha d'Elvas.

Senhor -- respondeu o guerreiro -- não tenho uma ambição que não seja servir-vos lealmente e embater sempre pelos portuguezes.

-- Assim, proseguiu elle, espero dever-vos o favor ele eu continuar ao vosso lado, sem outra recompensa que não seja a bondade de vossa mercê para commigo.

Então recusaes o titulo de conde que vos offereço? exclamou o monarcha.

Peço vos meu senhor a graça de não insistirdes. Não desejo outro titulo que não seja o de guerreiro.

Em verdade, meu amigo, volveu o rei,--sois um homem excepcionalmente extraordinario; cada vez vos admiro mais; e, como comprehendo o vosso desinteresse por todas as honras e fausto, não insistirei mais para não melindrar a vossa delicadeza.

-- Permitti, senhor, que vos agradeça reconhecido.

El-rei voltou-se em seguida para o infante a quem disse:

-- Quanto a vós, principe, tambem devo felicitar-vos. Estou muito satisfeito, pois mostrastes ILEGIVEL e tendes o pulso bastante forte e a mão bem livre para brandir a espada.

O infante sorriu de prazer. Era o melhor elogio que lhe podiam dirigir pelo seu valor; e, aproximmando se do monarcha, curvou o joelho e beijou-me solomnemente a mão.

D. Sancho sorriu com bondade e acariciou o ILEGIVEL do rosto do joven principe.

El rei tinha poucos amigos dedicados e sinceros. Como e sabido, Affonso, o seu segundo irmão, não se dava com elle; e sua irmã, a princeza Leonor, estava entregue aos cuidados das aias, que ILEGIVEL da sua educação.

Restava-lhe, porem, o infante D. Fernando, que, apesar de contar apenas quatorze annos, tinha uma intelligencia muito superior para a sua pouca edade, e comprehendia bem as atribulações de Sancho a quem amava ternamente.

Assim era com o irmão e com o guerreiro que el-rei passava algumas horas em agradavel colloquio, e lhes fazia as suas confidencias.

Mas, que podiam Fernando de Aragão e o infante D. Fernando fazer a favor do rei... n’uma côrte composta de ambiciosos e egoistas?!...

D. Sancho conversava com os seus amigos e expunha-lhes as suas apprehensões pelo futuro

O rei andava descontente por vêr o odio que se ia manifestando na côrte, e que lavrava entre nobreza e clero.

Soffria cruelmente por não poder pôr termo a este estado de coisas.

Via-se coacto.

E como não havia de ser assim?

Como poderia um rei. de 17 annos, haver-se com os intrigantes politicos, que eram os mesmos, sob cuja tutela esteve até esta edade e que em tudo preponderavam?

Bem queria D. Sancho impôr a sua auctoridade; mas era impossivel. A sua voz debil perdia-se no meio da vozearia dos ministros. Era um verdadeiro caos.

XIV

A REACÇÃO

São passados tres annos depois da conquista de Elvas, em que D. Sancho se iniciou como guerreiro e como rei.

Estamos em 1229.

Em 1228 falleceu Estevão Soares, arcebispo de Braga.

Livre da tutela do arcebispo (que lhe assombrava a auctoridade) D. Sancho, agora verdadeiro rei, tratou de organisar a côrte e os negocios publicos, conseguindo ter mão durante algum tempo nos desmandos da nobreza.

A realeza voltava a ter algum prestigio.

O clero, porém, é que que nunca estava contente; e, se os nobres ainda respeitavam o rei, a quem admiravam o caracter nobre e animo forte a par de um espirito bastante illustrado, os prelados ao contrario cada vez se insurgiam mais, tornando-se ao mesmo tempo insuportaveis com pedidos e exigencias

A reacção ia-se fazendo sentir d’um modo assustador.

Quando morreu o arcebispo Estevão, o novo prelado bracharense foi Silvestre Godinho. Se podia comparar-se ao primeiro em ambições, ficava comtudo a perder muito, sob o ponto de vista do talento.

Além d'isso, Estevão Soares, apesar da preponderancia que exercia na côrte, era affeiçoado a D. Sancho; -- emquanto que este novo prelado, Silvestre Godinho, começou logo por mostrar-se hostil ao monarcha, -- queixando-se constantemente ao papa.

Já em 1227 o bispo do Porto e o seu cabido faziam outro tanto.

O papa Honorio III reprehendia o soberano, mas não poupava tambem os bispos, a quem comprehendia as artimanhas.

Era o prenuncio da guerra.

Entretanto, tendo morrido Honorio III, succedeu-lhe Gregorio IX, homem de espirito moderno ao sabor da epocha, e prudente.

O que mais desesperava o alto clero, era que

D. Sancho pozéra em vigor a lei de Affonso II, que prohibia á Egreja a acquisição, por compra, de bens de raiz; prohibindo tambem o acceitarem doações de mosteiros e egrejas, entre vivos ou por testamento de bens immoveis.

Eram estes, pois, os aggravos de que se queixáva o clero, e accrescentava «que não só os padres eram offendidos e acintosamente affrontados pelo soberano, mas tambem a sociedade civil tinha diariamente aggravos.»

O paiz estava infestado de salteadores, que impunemente commettiam os mais graves delictos contra as pessoas e propriedades ecclesiasticas, sem que el-rei desse providencias contra taes abusos.

Finalmente, era um sudario, que aquelles santos padres desdobravam de vez em quando deante do papa para condemnar e abater o infeliz monarcha.

Todavia D. Sancho, honra lhe seja feita, seguindo n'este ponto o nobre exemplo de seu pae Affonso II, ia luctando corajosamente e sem temor algum com a theocracia.

Como sabemos, o monarcha, se algumas vezes era brando, não era por cobardia, mas por ser excessivamente bom e lhe repugnarem os meios violentos.

Mas em ultimo caso sabia-se impôr.

Durante este tempo não houve noticias do arabe.

Todavia não fôra esquecido.

D. Sancho, o guerreiro e até o infante, a miudo pensavam no amir.

Algumas vezes o monarcha, ao lembrar as prophecias do arabe, estremecia e perguntava a si mesmo, se ellas se realisariam algum dia.

O infante tambem não esquecia aquellas palavras, que pareciam uma sentença.

«-- Com os vossos arrebatamentos não fazeis mais do que abreviar a quéda de nosso irmão. Depois não vale de nada o arrependimento.»

As recordações do guerreiro cm respeito ao arabe eram comtudo bem differentes.

O mancebo recordava o seu primeiro encontro com o amir, quando seguindo a caminho de Coimbra com frei Thomaz o avistara com sua esposa e filha cm companhia dos mouros.

D. Fernando de Aragão nunca poude esquecer a gentil senhora e a creancinha tão linda, que se chamava Amarinda.

E todas as vezes que passava por aquelle caminho, julgava que os veria de novo.

Puro engano!...

Desappareceram, murmurava elle tristemente; não mais os tornarei a ver!...

O mancebo, conforme promettera ao seu amigo, durante estes tres annos foi algumas vezes a Hespanha, a fim de abraçar sua mãe e frei Thomaz.

Mas estas visitas eram de pouca demora. Dulce era a primeira que o aconselhava a que não abandonasse o soberano.

-- Cada vez elle precisa mais de ti, meu filho, dizia ella.

-- Emquanto que eu estou aqui bem; no convento todos me estimam. Vae! não o abandones.

Fernando ouvia isto; abraçava sua mãe com a maior ternura: e regressava á côrte, cheio de cuidados pelo futuro de D. Sancho.

XV

O INFANTE DE SERPA

N’este mesmo anno de 1229, o infante D. Fernando, a quem pesava o viver no paço, cujas intrigas e desordens entre a nobreza e o clero augmentavam de dia para dia, sem que os contivesse o respeito, que deviam ao rei, resolveu abandonar a côrte, porque o seu caracter independente não podia sujeitar-se a viver em tal centro.

D. Fernando propôz a seu irmão ceder os bens, que herdara do pae, em troca de uma pensão annual, que el-rei lhe ficaria dando; -- indo elle em seguida residir em Serpa.

D. Sancho condescendeu com o pedido do infante.

Estava n’um dos seus momentos de fraqueza. O monarcha, se tinha muitos momentos, cm que impunha a sua actoridade, tinha tambem outros, em que se mostrava tão brando nos negocios particulares, quanto era forte na guerra.

D. Sancho estava mais talhado para guerreiro do que para governar o Estado.

No campo da batalha ninguem o viu jámais recuar; o perigo não o intimidava, antes lhe desafiava a indole bellicosa, dando sempre provas de valor nas luctas frente a frente com o inimigo.

No governo, porém, algumas vezes fraquejou.

Agora principalmente que se tratava do infante, não teve coragem de resistir. Amava-o muito, para que o contrariasse.

O monarcha não se oppôz, portanto, ao designio de seu irmão mais novo, que apenas contava 17 annos.

E Fernando trocou as grandezas e o bem estar da côrte, indo viver longe de todo o fausto como um simples soldado.

Despediu-se de seus irmãos e de alguns amigos, entre os quaes contava como o mais verdadeiro o guerreiro desconhecido.

-- Senhor infante! lhe disse o nobre fidalgo:

-- Não esqueçaes nunca o vosso rei e senhor! e combatei sempre os seus inimigos.

-- Defendei com valor a vossa patria e a religião... e não olvideis os deveres de lealdade e generosidade que é imposta a todo o bom portuguez.

-- Ide senhor! e que Deus seja sempre comvosco!...

-- Seguirei os vossos conselhos e exemplos, senhor cavalleiro, respondeu o infante. Farei por imitar-vos.

-- E se assim o fizerdes, meu irmão, interveiu D. Sancho, sabei que imitaes o homem mais justo e leal que eu tenho conhecido.

E el rei, abraçando o infante, que estava muito commovido, proseguiu:

-- Vae meu irmão, sê feliz... entretanto espero que nos tornaremos a vêr em breve... talvez... na proxima batalha contra os mouros.

-- Oh! sim! exclamou o infante; contae commigo, que eu lá estarei.

De novo os dois irmãos, que tanto se amavam, se abraçaram; e, feitas as ultimas despedidas, o joven principe partiu, acompanhado d’alguns creados para a villa de Serpa, que elle havia escolhido para sua residencia.

Serpa ficou sendo a sua terra; e d’ahi tomou o nome de infante de Serpa, que tão conhecido e celebre se devia tornar.

Assim convinha ao seu caracter.

Vivia longe da côrte, desenvolvendo as suas paixões de bravura, que o deviam conduzir fatalmente aos ultimos extremos, como a seu tempo se verá.

No emtanto acompanhou sempre os exercitos reaes e deu provas de intrepidez admiravel.

Em Serpa estava perto dos mouros, o que elle muito apreciava, porque lhe permittia dar largas ao seu genio aventureiro, andando pelos arredores da villa, ora em caçadas, ora luctando com os infieis, que o temiam e lhe admiravam o pulso tão desenvolvido apesar de tão juvenil.

Na occasião em que o infante partiu para Serpa, tambem o principe D. Affonso partiu para França, e ao mesmo tempo em que sua irmã a infanta D. Leonor casava com o principe de Dinamarca.

Estava escripto que, n'este anno, todos os irmãos do rei se apartariam.

A partida de Affonso para o extrangeiro foi motivada por constantes desintelligencias com o monarcha.

Como é sabido, o principe não sentia sympathia alguma por D. Sancho, que afinal nunca lhe deu motivo de queixa.

Mas o principe, de indole invejosa e genio sombrio, não lhe perdoava o privilegio de ser o herdeiro do throno.

D. Affonso foi muito bem recebido em França, e ahi veiu a casar cm 1238 com D. Mathilde, condessa de Bolonha.

O casamento deu-lhe elevada posição e era muito estimado, porque diversas vezes combateu contra os infieis, ao lado dos francezes, não desmentindo, no ponto de valentia, os feitos dos portuguezes.

XVI

A NOBREZA E O CLERO

Ia-se approximando a epocha cm que D. Sancho se veria desamparado de quasi toda a primeira nobreza.

Uns porque haviam fallecido, e outros retiravam-se da côrte onde a intriga e os delictos se succediam.

Isto é: no momento do seu reinado, as desordens de nobres e prelados haviam chegado ao seu auge.

Os fidalgos insolentes não eram só os dois sobrinhos de Gonçalo Mendes de Souza (Gregorio e Theodosio); pois é certo que havia outros ainda muito peores do que aquelles, e que, não só offendiam os padres, mas commettiam toda a sorte de desatinos, e até crimes contra a virtude e moralidade. Um nome do rei praticavam as maiores infamias.

Os assaltos á mão armada contra a propriedade alheia succediam-se todos os dias, acompanhados de assassinios e de raptos de filhas de familias dignissimas.

A desmoralisação era completa.

Outros fidalgos então, isto é: os mais innocentes, como Theodosio e Gregorio, passavam o tempo a provocar os padres, e até chegavam, para mais os arreliar, a lêr-lhe trechos das Inquirições. Isto quando D. Sancho acabava de pôr em vigor parte d’essa lei.

Sabiam que o monarcha era impotente para os conter, não só pela sua demasiada brandura nalgumas coisas, mas ainda porque ignorava a maior parte d’esses actos indecorosos.

D’ahi, o seu abuso pela bondade e boa fé do soberano.

Estes abusos succediam-se.

Os mais dignos mesmo, d'entre clero e nobreza, andavam descontentes.

Emquanto poderam governar e pleiteavam entre si a posse do mando, tudo ia bem; tudo supporta-vam!...

Mas, desde que o rei occupára o seu logar, o odio recescia e as queixas não tinham fim.

E os verdadeiros culpados de tudo eram os, padres, pelo seu intolerante fanatismo e ambição gananciosa.

Pois apesar de se queixarem a toda a hora de aggravos que tinham do monarcha, iam-se tornando importunos a este, com as suas constantes exigencias e pedidos de concessões, para fundarem egrejas e conventos, e o mais de que se lembravam.

Accusavam e calumniavam o rei, que não era culpado das desordens que á sua sombra faziam, e ao mesmo tempo pediam-lhe favores!...

Tal era a ignorancia e o egoismo do respeitavel clero.

D. Sancho attendia esses pedidos.

Havia feito doações e concessões aos conventos de Chellas, Alemquer e Coimbra, os quaes tomou sob a sua protecção; fez construir no Porto casas para frades Franciscanos; fundou conventos em Santarem e Lisboa, etc., sem que todavia o alto clero se mostrasse satisfeito. Eram insaciaveis.

Era este o estado interno do paiz.

Um clero absorvente, ignorante e reaccionario e uma nobreza insolente e corrupta!...

XVII

OS MOUROS FOGEM

Estavam as coisas n'este ponto, quando el-rei soube que os mouros, que havia batido em 1226, voltaram a invadir Eivas, Badajoz, Jerumenha, Mertola e Serpa.

Sabendo isto, D. Sancho combinou um novo assalto; mas, agora, com outro dirigido por Affonso IX, rei de Leão, a quem muitas vezes tambem auxiliára em diversos combates, assim como a Fernando III de Castella, quando luctavam com os infieis.

O monarcha portuguez, vestindo a sua brilhante armadura, pôz-se á frente de suas tropas, que presentemente formavam um numeroso e luzido exercito.

Estamos em 1230, alguns mezes depois da partida dos irmãos do rei.

D. Sancho é já maior; tem 22 annos. E’ de elevada estatura, e cousa alguma n’elle indica que houvesse sido doente em creança.

O seu rosto formoso, de fronte espaçosa, em que fulguravam intelligencia e bondade, é emmoldurado por longos cabellos castanhos dispersos sobre os hombros,

O olhar, ora é muito suave, ora despede chammas, com que faz recuar o inimigo.

O seu porte elegante, nobre e imponente é digno de ser comparado ao de D. Sancho I, seu avô.

O monarcha d’agora não desmerecia dos athletas seus antepassados.

Era o verdadeiro guerreiro prompto para luctar, vencer ou morrer.

Sabemos que D. Sancho adorava o campo da batalha.

Aqui, estava no seu elemento, sabia-se rei; -- era temido pelo inimigo e amado e respeitado pelos seus soldados. Era rei; mas, ao ar livre e sem que viessem intrigas e miserias palacianas offuscar-lhe o brilho e prestigio da realeza.

D. Sancho vae novamente combater contra os mouros; e, coadjuvado pelo exercito de Leão, que se approximava, corre sobre as praças de Elvas.

Ao lado do rei vê-se o guerreiro desconhecido.

O infante de Serpa, conforme havia promettido a seu irmão, abrilhantava as hostes reaes com a sua gentil presença e genio alegre e galhofeiro.

D’esta vez o moço fidalgo, Theodosio. tambem quiz acompanhar o exercito, o que fez rir muito o infante.

D. Fernando sabia que Theodosio nunca tomara parte em guerras, nem desembainhara jamais a espada. Só era valente em perseguir mulheres indefezas, e insultar os padres á sombra do rei, a quem compromettia,-- involuntariamente é verdade,-- pois que não o faria de caso pensado mas por ser immensamente leviano.

O infante, diziamos, quando o viu vestindo a armadura, que não sabia usar e o tornava um tanto grotesco, riu a bom rir.

Theodosio, porem, não percebeu os motejos, talvez exaggerados, de que era alvo.

O rei mouro Aba-hi-Hibir, havia-se installado definitivamente em Elvas; e ahi mandou edificar suas Mesquitas e castellos.

Os mouros, rodeados de formosas mulheres, de rostos bronzeados e cabello d’ebano, assenhorearam-se da bella cidade.

Certo dia apresentou se ao rei Abahi-Hibir um homem de nome Lopo (que havia renegado a religião catholica e se vendera aos infieis), avisando-o de que um numeroso exercito se approximava da fronteira.

«Este homem já doutra vez havia prevenido os mouros, mas não tanto a tempo que elles tivessem podido evitar a guerra.»

O rei mouro, surprehendido e um tanto assustado com esta nova, perguntou ao renegado se haveria tempo de se evadirem, pois que não estava muito disposto -- accrescentou elle--a sustentar novo combate.

-- Podeis fugir, sim; -- respondeu Lopo; -- mas

não vos demoreis... Parti já, quando não tereis de resistir, e asseguro-vos que sereis derrotados como da outra vez.

Então o rei fez espalhar os mouros pelas muralhas e torres do castello, afim de se certificar se era verdade o que dizia o renegado.

Tendo subido ao mais alto das fortalezas, estes poderam observar a approximaçao do inimigo, e certificar-se da veracidade do que dizia o espião.

Sabendo, por expenencia propria, que os portuguezes eram valentes, não quizeram pensar em se defender, mas em fugir; e isso fizeram sem demora.

O exercito approximava-se cada vez mais; e os mouros e musulmanos se os haviam de repellir, ficaram doidos de pavor e tão precepitadamente fugiram, que não tiveram tempo de fechar as portas dos castellos.

De mais, os mouros acabavam de ver que do lado de Badajoz marchava outro exercito em auxilio do primeiro. Era o exercito Leonez.

Fugiram, pois, espavoridos da cidade, sem terem tempo nem desejo de olhar para traz.

XVIII

PAZ E NÃO GUERRA

-- Ora aqui estamos nós, para combater contra os muros e as torres dos castellos, -- disse D. Sancho,-- quando viu a cidade quasi deserta.

-- Muito bem empregado tempo!... accrescentou sorrindo.

O guerreiro desconhecido volveu:

-- Senhor; os mouros d’esta vez não esperaram

o ataque das armas portuguezas, porque ainda se recordam da derrota soffrida ha quatro annos.

Eis uma guerra em que não precisamos de desembainhar a espada, -- exclamou o infante de Serpa. verdadeiramente contrariado, por não poder dar largas ao seu genio aventureiro.

-- Ora francamente; isto é para desesperar.

-- Ao menos não foi preciso derramar sangue,-- volveu ainda D. Fernando de Aragão, -- e foi melhor assim, pois e sempre penoso ter de matar o nosso semelhante, ainda mesmo que sejam infieis.

-- Sois justo, e cu penso como vós, -- respondeu o rei.

Ao infante não soara bem esta resposta nem agradou a intervenção do guerreiro, porque n’este ponto era differente a sua opinião.

A sua indole irrequieta precisava d’estas distracções. Guerra e mais guerra era a sua paixão.

No emtanto não se atreveu a replicar ao fidalgo.

D. Sancho e os fidalgos entraram nos castellos, que estavam abandonados.

Elvas rendera-se, seguindo-se-lhe Jerumenha d'onde os mouros egualmente fugiram.

O infante desabafou o seu mau humor com o mancebo Theodosio, dizendo-lhe:

-- Com a vossa lembrança de vos metterdes nas nossas tropas, parece que nos enguiçastes.

-- Mas. tambem, que mania foi essa de vir aqui? Não me direis? Pois se não sabeis pegar n’uma espada?!...

E accrescentou em ar de mófa:

-- Sempre tendes phantasias, senhor fidalgo!...

-- Parece-me que estava no meu pleno direito, respondeu o outro pouco respeitosamente.

-- E, desde que el-rey me não prohibiu que viesse... que tendes vós, senhor... infante, a dizer-me?

-- Fernando levou rapidamente a mão aos copos

da espada; ia corrigir o fidalgo pela sua ousada resposta; mas, vendo apparecer seu irmão e o guerreiro, conteve-o o respeito que lhes devia.

D’esta vez, não podendo dar largas ao seu genio arrebatado, ficou descontente.

Todavia teve um pequeno ensejo, que aproveitou para desabafar a bilis, que o invadia.

Ao despedir-se de D. Sancho e do guerreiro para regressar a Serpa, voltou-se tambem para Theodosio. e disse-lhe com aquella desenvoltura e ironia, que lhe era peculiar, e que em dado momento se tornava tão aggressiva:

-- Continuae meu amigo: tomae parte nas guerras, onde tanto vos distingue o valor... e será esse o melhor meio de esquecerdes certa dama.

-- O que quereis dizer senhor?...

-- Que o arabe foi mais esperto do que vós?!... Adeus, que o tempo urge!...

O infante dizendo isto, desappareceu.

Sempre é bem certo o dictado, de que não ha ninguem perfeito, salvo alguma rarissima excepção.

Ó infante, se não fosse o seu genio violento, seria uma excellente pessoa.

Infelizmente, assim parecia peior do que realmente era.

Era isto mesmo, que o mancebo pensava, seguindo o seu caminho e já arrependido do que dissera

-- Andei mal, murmurava o infante, -- meneando a cabeça, --o que n’elle era signal evidente de commoção!

-- Não devia ter assim falado ao Theodosio, pois elle nunca me ofdendeu nem se metteu commigo.

-- Oh! este maldito genio! que nunca hei-de fazer uma coisa, que não tenha de me arrepender em seguida!...

É o mancebo, fazendo seguir o seu cavallo a passo, terminou:

Quem disse bem foi o arabe.

-- Aquelle homem era um sabio e conhece bem a humanidade.

Pelo seu lado, Theodosio de Sousa tambem ficou pensativo por algum tempo. As palavras do infante despertaram lhe certas recordações, que elle havia muito afastara da mente, porque o humilhavam.

Devemos dizer que o fidalgo soffreu com isso. A crueldade de Fernando, lembrando as suas loucuras passadas, magoavam-n’o.

Thedosio tinha muitos defeitos, mas não era verdadeiramente um mau caracter. Era homem do seu tempo; todavia tinha mais de leviano do que de perverso.

Doeu-lhe, pois, a affronta infligida pelo irmão do rei, e attribuiu-a a falta de generosidade.

Depois d’esta conquista, D. Sancho e as suas tropas voltaram á côrte.

O exercito leonez tambem retirou sem ter chegado a penetrar em Elvas.

Affonso IX passou n’esta occasião para o sul do Guadiana, onde venceu Ibn-Hamud. irmão de Abahi-Hibir.

Attribuindo essa victoria a um milagre, dirigiu-se a Compostella para agradecer a «Deus e a S. Thiago o soccorro, que haviam prestado ao seu pendão ovante.» 1

Affonso IX teve, porem, a infelicidade de fallecer no caminho, n’essa occasião em que ia cumprir esse dever de bom christão.

1Historia de Portugal, pag. ILEGIVEL.

XIX

REI E SOLDADO

Não ficaram só aqui os feitos das armas portuguezas.

O reinado de D. Sancho foi uma série constante de cruzadas contra os mouros.

Volvidos dois annos, o rei sahiu novamente de Coimbra, e tendo n'essa occasião desenrolado o estandarte, fez reunir em volta d’elle nobreza e povo, ordenando aos seus subditos, que jurassem ser sempre fieis á patria e á religião catholica e romana.

D. Sancho não era fanatico mas tambem não era impio, apesar do alto clero tanto se queixar d’isso!...

Em seguida foi para o Alemtejo; e, passando o Guadiana, ganhou em pouco tempo aos infieis Mertola, Moura e Serpa.

A estas victorias succederam outras.

Foram numerosissimos os combates contra os mouros, não deixando nunca o soberano de ir á frente das suas tropas, commandando-as e animando os soldados com o seu exemplo de valor e animo destemido. E, dando sempre provas da mais digna generosidade para com os vencidos, era estimado por todos os que amavam a justiça e a liberdade.

Havia sete annos, que o amir arabe Abd-Allah, depois do seu primeiro e ultimo encontro com o monarcha portuguez, desapparecera. sem que houvesse mais noticias d’elle nem de sua familia.

No emtanto D. Sancho, que algumas vezes se lembrava do amir, veiu a saber n’essa epocha que o arabe agora combatia a favor dos christãos, e que estes lhe deviam valiosos serviços.

Mais soube ainda D. Sancho que o amir, n’um d’esses recontros, havia sido ferido gravemente, chegando a estar preso em poder do inimigo, em Bagdad, cidade da Turquia; mas que, por fim, teve ensejo de fugir, e residia ultimamente em Abdá, província de Marrocos e sua patria.

D. Sancho desejaria muito tornar a ver aquelle homem, de quem conservava inextinguivel recordação, mas o acaso, que em tudo impera, não lhe proporcionara mais o ensejo de se encontrarem.

Agora, pedimos aos nossos leitores para nos acompanharem a Lisboa, onde graves acontecimentos se vão dar.

XX

O SACRILEGIO

«Maldito!... mil vezes maldito!...

«Maldito o que prophanou a egreja e derramou os santos Oleos e pisou a hostia sagrada!

«Maldito o que levantou mão sacrilega contra os ministros do Senhor!...

«Que a terra lhe falte de sob os pés, -- que de suas entranhas saia um fogo, que o devore, -- que suas cinzas sejam lançadas ao mar, e que o seu nome seja maldito até á quinta geração!...»

Estas pragas e maldições eram proferidas pela multidão, que á porta do templo da Sé em Lisboa acabava de assistir, aterrada, ao tremendo desacato commettido pelo infante de Serpa.

Em 1237 tendo fallecido o prelado Paio, que presidia ao cabido, este dividiu-se para escolher novo conego.

N’esta altura romperam enormes desordens na diocese motivadas pelos pretendentes á eleição.

Os que mais se salientaram, porém, foram Sancho Gomes e mestre João, deão da Sé.

O primeiro era protegido pelo soberano e o segundo pelo clero.

A posse do bispado motivou tal confusão, que ambos os contendores se fizeram eleger irregularmente.

A côrte interveiu, como era natural, a favor de Sancho Gomes, chegando D. Sancho a ir a Lisboa para esse fim.

Pelo seu lado os padres, que se manisfestavam pelo segundo, começaram a barafustar que devia ser valida a eleição do seu protegido, mestre João.

D’aqui resultou tremenda balburdia.

O echo d’estas contendas chegou a Serpa.

E o infame D. Fernando, que sempre se conservou alheio e indifferente a luctas civis e negocios politicos; que não era a favor nem contra o clero; -- e que sahira da côrte para viver independente e livre de intrigas palacianas; ao saber do que se passava em Lisboa não se poude conter de indignação e prometteu a si mesmo que faria entrar tudo na ordem!...

Sendo muito amigo de Sancho Gomes, assim como sinceramente devotado ao rei seu irmão, resolveu partir immediatamente para Lisboa, e intervir para pôr ponto n'essas desordens, que punham a coroa em perigo.

O infante de Serpa, que, como os nossos leitores sabem, depressa punha em pratica qualquer plano que imaginasse, por mais arrojado que fosse, pegou na sua espada, e á frente d’um bando de mouros armados até aos dentes sahiu de Serpa e apresentou-se em Lisboa.

E eil-o agora a fazer justiça por suas mãos sem olhar a consequencias.

Logo d sua chegada espalhou o terror por toda a cidade.

Primeiro fez destruir a casa do eleito mestre João e queimou-lhe moveis e alfaias. Em seguida sequestrou-lhe os bens e aos seus parentes, obrigando os a sahir de Lisboa, sob pena de lhe experimentarem o pulso.

Na lucta com diversos prelados seguiu-se uma horrorosa carnificina, em que o infante, fazendo explodir o seu furor, matou alguns padres de Santarem, que tinham tomado o partido contra Sancho Gomes.

Foi medonho!...

Para coroar estes feitos de assassinatos, e perseguição ao deão e sua familia, faltava o tremendo desacato, epilogo de taes atrocidades.

O infante, que n'esta occasião parecia estar possesso, quiz assistir á destruição da casa do eleito, viu alguns fieis e dedicados servos d’este fugirem com joias preciosas (que poderam salvar do incêndio) e esconderem-se n’um templo, para escaparem ao furor de tal inimigo.

Fernando, porém, que já não recuava ante coisa nenhuma, ordena que os persigam.

Os infelizes fecham sobre si as portas da egreja 1.

O infante ri da precaução piedosa d’esses homens, que tão ingenuos julgam a casa de Deus inviolavel. E, vendo que não é possivel entrar pelas portas, manda aos homens d’armas, que, caso as não possam arrombar, entrem pelo telhado!...

«Esses homens recuam ante tal attentado, e recusam terminantemente obedecer»

Mas ao infante... nem Deus o faria recuar!

Não sendo obedecido por aquelles, exclama com voz terrivel:

-- Venham os mouros!... Vá... sarracenos! ávante! Sus! nada de vãos receios!...

A estes gritos de sublevação, uma multidão de mouros, que habitavam a cidade (além dos que o 1

1 Historia de Portugal, vol. 1.º, cap. v, pag. 201.

acompanhavam), accorreram, e, incitados ao crime que apavorava os christãos, prestaram-se a tudo!

Fernando foi obedecido.

Os mouros, no meio de grande algazarra, sobem ao tecto da egreja, arrombam-no e saltam para o interior, tendo descido pelo altar-mór.

Pisam a cruz aos pés, derramam o oleo sagrado pelo pavimento e soltam gargalhadas estridentes!!

E, emquanto elles assim tripudiavam no templo, o infante solta horriveis blasphemias e quasi se torna mais selvagem do que os proprios pagãos!...

Aqui renova-se a carnificina na lucta contra os servos do deão.

A tragedia foi medonha, e denotava da parte do seu auctor uma fereza de animo surprehendente.

Cá fóra, á porta do templo a multidão, que assistia cheia de pavor ao desacato, soltava gritos de terror e maldição contra o infante.

Alguns padres, que haviam accorrido pensando poder auxiliar o povo afflicto, ao verem apparecer o infante, fugiram espavoridos e gelados de susto, de olhares esgazeados, os mantos arregaçados, n’uma correria doida, mas desculpavel pelo espanto que d’elles se havia apoderado.

Finalmente, o sacrilegio foi horrendo e falta-nos coragem para continuar.

O sanctuario foi theatro das scenas mais revoltantes e a penna recusa-se a descrever todo esse horror!...

XXI

EXCOMMUNHÃO

Os sacrilegios deviam sahir caros a D. Fernando infante de Serpa; e o que era peor ainda, a D. Sancho, o qual não tivera culpa alguma n’este attentado.

Todavia, foi accusado pelo alto clero, junto do papa Gregorio IX, de ter ordenado este desacato, o que era falso!...

Mas os prelados, que não perdiam occasião de o calumniar, aproveitaram mais esta.

A audacia do infante tivera comtudo uma intenção boa; -- era ver se conseguia segurar no throno a seu irmão, que via proximo a cahir e sabia ser uma victima da theocracia. Quiz dar um exemplo; e foi tremendo.

Quem quer os fins quer os meios, e quando estes não dão resultado, tem de recorrer aos ultimos extremos, foi o que succedeu.

Infelizmente apenas o que conseguiu foi abalar mais o throno de D. Sancho.

Gregorio IX, -- que até ahi dera provas de tolerancia, e que desprezando as intrigas contra o monarcha, o tratára sempre com indulgencia por que o admirava pelas provas de coragem com que luctava contra os infieis: -- tremeu de indignação quando tal soube. A punição não se fez esperar.

Roma, sempre prompta em lançar excommunhões á mais pequena falta, não perdoaria agora.

D. Sancho II, seria humilhado, e o alto e respeitavel clero, triumpharia mais uma vez.

D. Sancho ficou dolorosamente surprehendido e atterrado, ao saber que taes desatinos haviam sido perpetrados pelo infante de Serpa.

Temeu a ira do pontifice.

Gregorio IX, que em 1232 havia enviado bullas aos arcebispos de Portugal, prohibindo lhes que se vexasse o rei com censuras religiosas emquanto elle combatesse os inimigos da fé, fulminava-o agora com a terrivel excommunhão.

Em seguida o papa escreveu aos prelados, ordenando-lhes que prohibissem todos os ecclesiasticos de communicarem com o excommungado.

N’essa occasião escreveu tambem duas cartas a D. Sancho, em que o intimava a reparar o damno leito á egreja, a dar satisfação completa ao prelado lisbonense e a conhecer valida a sua eleição.

N'estas tristes condições, D. Sancho II teve um momento de fraqueza elle -- que até ahi reagira tão digna e altivamente contra o exigente clero,-- perdia agora a energia e humilhava-se.

Escreveu ao arcebispo de Braga, Silvestre Godinho, seu inimigo figadal a seguinte carta:

«Dom Sancho, por graça de Deus, rei de Portugal, a vós D. Silvestre, pela mesma graça arcebispo de Braga, saude. Sabei que eu prometto firmemente por esta minha carta patente, que quero «que seja testemunho da verdade, fazer guardar e «pôr em execução os artigos da liberdade ecclesiastica contidos no rescripto apostolico que começa «assim: 1

«Gregorio, bispo, servo dos servos de Deus, ao «illustrisssimo rei de Portugal, espirito de mais são «conselho.

«Se pecardes com madura consideração quanto é «horrivel incorrer na maldição divina e cahir nas «mãos de Deus vivo, de certo vos abstereis de offender sua esposa, a sagrada egreja, adquirida com «o seu precioso sangue, e tratareis seus ministros «com mais recato.» -- Dada em Guimarães, sete «dias antes das kalendas de dezembro da era de mil «duzentos e setenta e seis, que cae em 23 de novembro de 1238»2

Esta carta, que transcrevemos da historia, assim

1Refere-se a uma carta, que recebeu do pontifice e transcreve parte d’ella.

2 Historia de Portugal, vol. I, tomo V, pag. 205.

como outros factos dignos de interesse, porque se referem a este monarcha tão desditoso, -- devia encher de jubilo o arcebispo Silvestre Godinho, que assim triumphava com a humilhação do monarcha. Foi o que succedeu.

Depois de enviar esta carta, D. Sancho fez largas doações de terras e senhorios, revogando d’esta fórma a ordem, que prohibia aos padres adquirirem por qualquer titulo bens de raiz.

Tambem certas questões que havia com o bispo do Porto, foram resolvidas com eguaes dadivas.

D. Sancho tinha no Porto muitos adeptos ao seu partido, que eram uns burguezes que se haviam revoltado contra o bispo, sendo a favor do rei, por quem estavam dispostos a sustentar nova lucta.

N’esta occasião, porém, o monarcha pediu aos seus partidarios, -- por intervenção d’alguns frades seus amigos, -- para que se contivessem, não promovendo qualquer desordem que complicasse mais a situação, já de si tão aggravada.

Estes homens cederam aos rogos dos frades, mas juraram militar sempre pelo rei liberal contra o clero; e, zombando de penitencias e excommunhões, os dignos portuenses isso faziam.

XXII

O INFANTE VAE A ROMA

São passados alguns mezes.

O infante de Serpa, que levara a effeito como vimos aquelle arrojado projecto, e que nunca recuara ante o perigo nem fôra jámais invadido pelo temor ou espanto, e que fôra sempre um guerreiro destemido, acabava agora de soffrer uma mudança completa.

Já não parece o mesmo, que os nossos leitores tiveram occasião de apreciar no decurso d’este romance.

Este moço, de vinte e cinco annos apenas,--que havia sido bello e forte está presentemente alquebrado e apprehensivo.

E’ quasi sempre assim:

Um caracter violento assimila-se a um tufão devastador.

E, assim como o vento em seguida ao arrancar d'arvores e derribar monumentos abranda, tambem aquelle que se deixa possuir da ira, por mais valente que seja, fica prostrado, e as mais das vezes arrependido.

D. Fernando estava n’este caso.

Vêmol-o agora tão fraco quanto antes fora arrojado.

E passou da mais surprehendente audacia á não menos surprehendente cobardia.

O infante de Serpa um cobarde?!

Quasi nos recusamos a acredital-o!

Pois desgraçadamente assim é.

O infante, vendo que seu irmão o proprio rei se humilhava, sem que tivesse cooperado para aquelles delictos, começou tambem a ter receio -- ou antes remorsos -- do mal que praticara.

Elle, que dera sempre em tudo as mais edificantes provas do maior desassombro, enche-se agora de temor pelo sacrilegio commettido.

D’esde essa fatal hora não voltou mais a ter um momento de repouso.

Vê que todos fogem d’elle como d’um maldicto, a sua consciencia estremece e falta-lhe o animo.

Receia o castigo Divino!

Os seus somnos são povoados dos mais tétricos pesadelos!... por toda a parte vê sangue! e por todos os lados vê padres!...

Uma voz occulta diz lhe que o seu crime foi grande.

O sangue dos padres clama por vingança.

Os seus espectros rodeiam-lhe o leito, e estendem os descarnados braços para o enlançar.

O infante quer fugir... gritar por soccorro!... Então, um d'elles o mais velho... avança dois passos... estende a mão diaphana sobre a cabeça de Fernando, range os dentes duma maneira horripilante e diz com voz sepulcral, voz de estertor misturada de lagrimas!...

Maldito!... maldito!... maldito!... Caminha... vae... errante... não mais voltarás á tua patria; -- irás terminar teus dias em terra estrangeira 1.

O infante volta-se, quer falar, quer erguer-se, saltar para fóra do quarto; mas fica pregado ao leito como se alguem o segurasse.

Então, os padres dão as mãos, soltam gargalhadas cávas e desapparecem.

O mancebo accorda com a fronte banhada em suor de agonia. E’ manhã !...

Então levanta-se. O seu rosto está sulcado pelo soffrimento e lagrimas de infindo pesar lhe correm do olhar triste e outr'ora tão radiante de felicidade.

O infeliz principe, que commettia certos actos condemnaveis -- mais por leviandade e arrebatamento, do que por má indole, -- passou d’um extremo a outro; e fez-se tão timido, pelo receio do castigo Divino, quanto antes havia sido um espirito irreligioso e descrente d’esses preceitos.

Tendo-se apoderado d’elle esta fraqueza, resolveu ir a Roma e implorar do pontifice o perdão para o seu crime. Isso fez.

Um dia, sem dar a saber a pessoa alguma o seu disignio (pois se tornara intratavel,) partiu em peregrinação para Roma, aonde chegou ao cabo de 1

1 Suppõe-se, que o infante falleceu em Dacia.

muitos dias, quasi descalço e consummido pelas privações passadas no caminho.

Lança-se aos pés do papa e dirige-lhe suas supplicas por entre lagrimas e soluços.

Triste humilhação!...

Gregorio IX responde que perdoa e absolve, mas antes hade o infante cumprir dura penitencia.

Fernando resigna-se a tudo com a maior humildade.

«O papa ordena ao infante, que volte a Portugal, que restitua o que tirou á egreja, e indemnise o bispo de Lisboa do mal que lhe fez e a sua familia.

«Ordena-lhe, que na primeira quaresma e durante toda ella assistisse aos officios divinos, á porta do templo, com a barba intensa e os cabellos cobertos de pó. Durante os quarenta dias de quaresma não devia vestir trajos de seda e de escarlate ou bordaduras d’ouro, e admittiria á sua mesa cinco mendigos. Ás sextas feiras comeria no chão uma só iguaria: por cada iguaria que comesse, devia sentar á mesa mais um mendigo. Na sexta feira santa um ecclesiastico iria buscal-o á porta do templo com as cerimonias do ritual para o introduzir no gremio dos fieis e nesse dia o penitente teria que vestir dez pobres e devia lavar-lhes os pés!...

Em seguida a este acto seria obrigado a percorrer descalço todas as egrejas da povoação em que habitasse, e só no sabbado d’Alleluia, é que se podia lavar e barbear-se?! ficando todavia compromettido a jejuar e a abster-se de carne, nos sabbados durante sete annos.» 1

Finalmente... até lhe prohibiam que se lavasse!...

Então tambem é peccado andar limpo? Ora pois!... 1

1 Historia de Portugal, vol. 1°, L. V, pag. 206.

O infante não só cumpriu esta penitencia, mas ainda outra maior e a que os nossos leitores irão assistir.

Esta segunda penitencia foi-lhe imposta, por causa do homicidio dos padres de Santarem, e teve legar n’aquella villa.

XXIII

A PENITENCIA

Havia grande agitação á porta da egreja de Santa Maria de Alcaçova.

O povo agglomerava-se em redor do templo como se se tratasse de assistir a algum caso excepcionalmente anormal.

Ouviam-se gritos e exclamações de todos os lados.

Um pouco affastados do agrupamento, no adro, viam-se dois homens de elevada estatura e digno porte, cujos rostos estavam completamente occultos pelas dobras de seus mantos.

Estes desconhecidos trocavam a meia voz o seguinte dialogo:

-- Então: vistel-o? podéste falar-lhe? perguntou o mais graduado agitadamente.

-- Eu o vi, senhor: -- respondeu com voz triste o companheiro!

-- Falei-lhe em vossa mercê: disse-lhe que muito vos pesáva vel-o cumprir tal penitencia, pois que, não só era uma dura humilhação para vós e para elle, mas tambem um triumpho para os seus inimigos.

-- E o que te respondeu?!

-- Que havia de cumprir as ordens de sua santidade... e que muito mal avisados andavamos, em o querer induzir a desobedecer a quem tudo póde e manda ao rei dos reis.

-- Oh! meu Deus! murmurou D. Sancho.

-- Mas continuae, D. Fernando de Aragão,-- e dizei-me tudo francamente, -- pois desejo saber até onde o levaram os meus inimigos.

-- Infelizmente, meu senhor, -- volveu o guerreiro desconhecido,-- o senhor infante mudou muito, já não pensa a vosso respeito como d’antes.

-- Completamente suggestionado pelos prelados, accusa-vos de serdes o causador das suas desgraças.

-- Visto isso, já não sente por mim senão odio intenso, volveu o rei.

-- Não digo tanto, meu senhor; mas o infante está por tal forma horrorisado pelo que fez, que não só cumprirá a penitencia, -- como para merecer o favor e absolvição do papa e alto clero... pôr-se-ha do lado dos vossos inimigos.

-- Não me admira; pois estou habituado a vêr que todos me abandonam!...

Mas na verdade... não esperava isto de meu irmão, quem o havia de pensar?! File que tantas provas de dedicação e affecto me deu sempre.

-- E agora... recusa-se até a ver-me e falar-me; não quer ouvir-me ao menos!...

-- Meu pobre irmão; que dôr infinda eu sinto pelo teu infortunio, apesar de me fazeres tragar o calix da amargura!...

-- Porque eu sei que a culpa não é tua, mas sim d'elles!

E el-rei accrescentou com magua e com um principio de revolta:

-- Eis em que se tornou o homem de animo féro, que tantas provas deu de coragem, e que tanto pugnou por mim!

-- Eis finalmente, em que o tornaram os padres, com a sua revoltante hypocrisia e fanatismo.

-- E não basta a humilhação, senão que fizeram d’elle meu inimigo.

-- Senhor! tende coragem; não desanimeis, pois ainda vos restam amigos!

-- Amigos?! -- repetiu D. Sancho,-- com um sorriso de amargura:--Oh! não tentes illudir-me, Fernando!...

-- Pois eu sei os amigos que tenho! Apenas me restas tu, que generosamente me acompanhas, e me occultas muitas verdades crueis, para não me affligires.

-- Se houvesse muitos como vos, eu triumpharia dos meus inimigos, mas assim, em breve me verei sem ninguem.

-- Senhor: ter-me-heis sempre ao vosso lado, emquanto eu viver!...

N’este ponto foram interrompidos pelos gritos, que a multidão soltava.

-- Lá vem o penitente! lá vem o maldicto!

-- Oh! que figura!--exclamou uma velha,-- que até alli estivera acocorada á porta do templo, misturando pragas com orações Oh! parece um condemnado á morte!

-- Mas, ó tia Eufrasia: -- perguntou um rapaz dos seus vinte annos, dirigindo se á velha beata.

-- Que foi que elle fez para assim lhe dárem tal penitencia?

-- Pois tu não sabes, moço, do sacrilegio, que commetteu aquelle mal intencionado?

E, a velha começou contando o caso.

-- Em vista do que vocemecê me conta, tia Eufrasia, respondeu o rapaz depois de a ouvir: -- não posso crer que o homem estivesse em seu juizo, n’essa occasião do desacato.

-- Nada!... Isso... por mais que me digam o contrario, não saio ca da minha.

-- O homem tinha alguma pinguita a mais na áza e foi por isso que fez tantos disturbios.

-- Isso lá mão sei eu!

-- Pois é o que lhe digo.

-- Mas, mesmo assim, é pena ver um homem tão perfeito n'aquelle estado.

-- Pois tu atreves-te a lastimal-o?... berrou a velha com voz fanhosa.

-- E por que não?!

-- Oh! maldicto dêmo!...

A velha ainda ia para dizer qualquer coisa desagradavel, mas o rapaz volveu-lhe um olhar... que ella houve por bem calar-se.

-- Olha! disse d’alli um garoto:--o que elle vem é muito bem vestido.

-- E não rompe as botas! ora repara: interpôz outro: -- aquelle gasta do meu sapateiro, calça á minha moda. Ah! Ah! Ah!...

E as chufas e insultos e os motejos grosseiros do povo ignorante não tinham fim

El-rei, sombrio, encostou-se a uma columna e d’ahi observou a triste scena.

O seu coração experimentou n’este momento as dôres mais dilacerantes, e como se houvesse sido atravessado por duras e agudas settas, estremeceu violentamente. Sentia-se invadir pela revolta e indignado.

-- Não poder eu pôr termo a tão cruel e horrivel supplicio?! pensou elle:

-- Não é só meu irmão o humilhado; o mais humilhado sou eu!...

-- E é assim, d’esta ingominiosa maneira, que os ministros da religião se querem fazer respeitar e amar?! Assim, -- continuou D. Sancho turvamente, -- não farão mais do que attrahir o odio e o despreso pelas suas doutrinas. E é essa gente que tanto prega a moral e religião? Oh! hypocritas, afastai-vos com a vossa palavra que só encerra a mentira!...

-- Senhor! murmurou o guerreiro, não vos amargureis assim!...

Entretanto approximava-se o penitente.

Aquelle que havia sido um homem de animo forte e irrequieto, que tinha uma indole bravia e ao mesmo tempo ironica e galhofeira... apparecia agora, curvado ao peso do opprobio, da vergonha e do remorso,... e tão humilde, quanto fôra altivo e arrogante.

Que mudança Santo Deus! E que deshumanida-de a do clero! E é assim, em vosso nome, que elles comméttem os mais nefandos crimes, não perdoando comtudo as faltas dos outros, a quem opprimem e cobrem de vilipendio expondo-os ante o pelourinho da infamia.

Assim condemnam as suas victimas a soffrerem os insultos da plebe ignára, que tão prompta está a exaltar como a abater e humilhar.

E para que?

Para que essa mesma plebe se aterrorise ante o seu poderio e se curve reverente.

O infante, com o rosto desfigurado pelo atroz soffrimento moral, o olhar sem brilho, quasi imbecil, caminha vagarosamente.

Haviam-n’o ido buscar ao convento dos pregadores oito dias depois de dar entrada em Santarem.

Vem descalço; vestindo só tunica e manto; a barba hirsuta, os cabellos cobertos de pó e loros atados ao pescoço.

E’ assim sujo e immundo, que aquelle que havia sido tão gentil, se vê ao presente.

E’ assim, n’este indigno estado, que elle sahiu em procissão do convento, onde um ecclesiastico o foi previamente buscar as portas do templo em que lhe tinha sido prohibido entrar.

E’ assim finalmente que passaram pelo mosteiro

dos hospitaleiros, e tomaram em seguida a direcção da egreja de Santa Maria de Alcaçova.

Chegado ahi... no atrio... approximou-se do infante um sacerdote... e muito piedoso e digno puxou d’umas disciplinas, e o açoitou violentamente!!...

Oh! piedade de amor e perdão... que esses, que dizem seguir a lei de Christo, o Martyr do Golgotha, o bom e meigo Jesus, não seguem, nem sabem o que é!!... Oh! padres!... E’ assim que vós manifestaes a vossa caridade e ensinaes o amor peio proximo?!

Emquanto o infante era açoitado no atrio da egreja, entoavam lá dentro no templo o psalmo de Misereri mei, Deus.

E o sangue do principe espirrava a jorros, salpicando o rosto e as mãos do padre transformado em carrasco!!!...

Horrivel!!!...

D. Sancho havia levado uma das mãos ao coração e com a outra tapara os olhos.

-- Os açoites em meu irmão! murmurou elle: São outras tantas chicotadas com que me fustigam o rosto!...

Entretanto, o infante a todos aquelles supplicios se sujeitou com uma resignação e paciencia evangelica! Cumprira a penitencia que lhe fôra imposta.

Gregorio IX devia idear satisfeito!! Cobrira de opprobrio não só o infante (que isso era o menos para a sua vaidade de unico Senhor do mundo), mas o proprio rei!... Roma estava vingada!....

Mas, se o papa se julgava quite d’aquella divida... o alto clero é que ainda não estava contente nem se julgava desaggravado. Eram mais exigentes do que o summo pontifice.

A lúcta devia continuar.

Como não tremeria o povo diante do papa e do clero em geral, que tinham poder para excommungar reis e açoitar principes?!

O respeito por essa auctoridade suprema crescia entre os ignorantes; e o temor pelos castigos divinos gelava-os de susto.

Pois se elles viam o irmão do rei açoitado, descalço, vilipendiado e escarnecido por todos d'aquella turba!...

O povo, contricto, jurava, beijando o pó e batendo no peito, ser sempre dedicado pela causa da Santa Egreja Catholica Apostolica e Romana!

D. Sancho, vendo que era impotente para pôr termo a estas affrontas, affastou-se com o guerreiro desconhecido.

E o pobre infante, coberto de sangue, gemia de dor, e o pejo subia-lhe ás faces, talvez ao recordar os seus feitos d’armas e o tempo em que despresando preconceitos, levára de arremettida não só a egreja mas até os proprios padres.

Como ia longe esse tempo!...

Bem dissera o arabe:

«Com os vossos arrebatamentos não fareis mais do que abreviar a queda de vosso irmão, conduzindo-o á vergonha, ao mesmo tempo, que sereis vilmente humilhado.»

Alguem houve, sem ser o rei e o guerreiro, que chorou de pesar, quando soube da penitencia do infante.

Esse alguem foi Theodosio de Sousa, que como sabemos detestava os padres.

Theodosio era muito dedicado ao monarcha; e.

quando viu tal vilipendio imposto e infligido ao infante e ao soberano, chorou!...

Alem d’isso, Theodosio não era rancoroso; depressa perdoava e esquecia as offensas que lhe faziam.

Não exaggeramos, pois, dizendo que elle sinceramente lastimou o principe.

Cumprida aquella penitencia, o infante entregou corpo e alma á egreja, e era agora ainda mais zelador pelos seus interesses, do que o havia sido pela monarchia.

Elle, que, antes dos seus desatinos, fôra um fiel alliado de seu irmão, tornou-se por suggestões religiosas tão hostil ao soberano, quanto havia sido antes seu adepto.

Mas assim era preciso, para salvar a alma das chammas do Purgatorio!

O cléro dominou o espirito do infante, escravisando-o á sua feição por tal modo, que elle se submettia a todos os dogmas e auctoridade emanada da egreja.

D. Sancho e o guerreiro partiram para Coimbra.

O rei, para esquecer as humilhações soffridas, lançou-se de novo nos combates e foi emprehender a conquista do Algarve.

Muitas vezes combateu ao lado de Fernando III de Castella, seu primo, com quem firmou pazes no Sabugal, em 1231.

Os dois reis auxiliavam-se mutuamente nas guerras contra os mouros.

Passado tempo Fernando, o infante de Serpa,

partiu para Castella. Antes, porém, exigiu que D. Sancho lhe restituisse o dote que elle infante, lhe dera em troca de uma pensão annual quando foi residir em Serpa; contracto, feito de sua livre vontade, como é sabido. Mas agora alludia, a que sendo menor n’esse tempo, o não podia levar a effeito.

Comprehendem-se ainda aqui os manejos do clero.

Precisavam mais essas migalhas para a egreja. E, pensavam tambem em provocar de todo o rompimento das boas relações de amor fraternal, que até ahi unira os dois irmãos.

O principe vendeu tambem o senhorio de Serpa, com auctorisação, não do rei (como devia ser de direito) mas do papa.

D. Sancho não fez qualquer objecção a tal abuso; e não só foi indifferente á venda que seu irmão realisou illicitamente do dito senhorio, mas ainda lhe deu o dote que o infante exigira.

O monarcha, sempre bom e generoso, não fazia questão por essas ninharias.

O infante, passando a Castella, lá veiu a casar com uma filha do conde de Lára.

Durante tres annos combateu os inimigos da fé (esta penitencia tambem lhe foi imposta pelos prelados, para completar a penitencia.)

Em seguida, como vassallo de Fernando III, nunca deixou de luctar contra os infieis e voltou a ser o guerreiro destemido d’outro tempo; -- mas sempre adepto dos padres...

Depois d’isto as coisas voltaram á antiga.

Gregorio IX perdoou egualmente a D. Sancho, e enviou uma bulla, ordenando que o não importunassem com vexames religiosos emquanto elle militasse contra os mouros.

O papa, apesar de tudo, estimava o rei, pelo seu valor nas guerras.

E tanto assim e, que ordenava aos habitantes de Portugal, que ajudassem o soberano nas novas emprezas, que se seguiram.

Concedia tambem indulgencia plenaria a todos os que combatessem pela mesma causa.

XXIV

CASAMENTO

DE D. SANCHO II COM D. MECIA.

(COMPLICAÇÕES)

Volvidos quatro annos sobre os ultimos acontecimentos, D. Sancho foi pouco a pouco esquecendo as promessas feitas ao clero,--o que não deve admirar, vista a acintosa guerra que este lhe movia,-- não lhe deixando um momento de socego.

As coisas voltaram a retomar o seu antigo caracter, a reacção manifestava-se e a lucta ameaçava ser eterna.

Corria o annno de 1241; D. Sancho havia casado n’esse anno com D. Mécía Lopes de Haro, filha do senhor de Biscava, Lopo Dias de Haro.

O monarcha tendo ido visitar sua tia materna, a rainha D. Berengaria (mãe de Fernando III), que governava os reinos de Leão e Castella, teve occasião de ver a nobre fidalga, que era viuva de Alvaro Peres de Castro fallecido em 1240.

D. Mecia, depois que enviuvara, vivia na côrte da dita rainha, e era a mais bella dama do seu tempo.

D. Sancho, a quem os embates da guerra e os desgostos não haviam, ainda assim, cerrado o coração ao amor, que n’elle apenas estivera adormecido pela vida accidental que levava; e sendo dotado de paixões ardentes, -- e muito moço para lhe resistir,

-- vendo a joven viuva, despertou por completo e ficou enamorado da sua peregrina formosura.

D. Mecia tambem sympathisou com o mancebo, e correspondeu ao seu amor de todo o coração.

E, captivada pelas suas bellas qualidades de valoroso guerreiro e dotes physicos e moraes, e de crêr que o amasse.

O casamento realisou-se muito a contento dos dois amantes, mas não da nobreza nem do clero. Este ultimo aproveitou-se do facto do rei e a rainha serem primos em quarto grau para ver se conseguia fazer annular aquelle enlace.

N’esse anno falleceu o papa Gregorio IX.

D. Mecia, que via o rei cada vez mais apaixonado, começou (dizem!) a dominal o a seu bello prazer.

O clero tirou d’isto partido para injuriar a rainha, chamando-lhe bruxa e que havia enfeitiçado o monarcha!?...

Já não faltava mais nada!

De tudo se lembravam os pios inimigos de D Sancho para o depreciar; até bruxa chamavam á rainha. E eram estes os protectores e amigos da monarchia?!

Assim a lucta proseguia sem treguas.

Muitos são de opinião que as relações do rei com aquella senhora eram illicitas.

Seja, porém, como fôr, nós não nos julgamos com o direito de discutir opiniões de mais são criterio do que a nossa, e passaremos adeante sem contradictar juizos nem pessoas.

Todavia tratamos D. Mecia como esposa de D. Sancho.

O rei amava-a e por sua esposa a tratava, e tanto basta para que, em attenção á sua memoria a respeitemos.

Foi D. Mecia de fatal influencia na existencia do monarcha?

Não parece!

Na nossa humillissima opinião, a fatal influencia apenas se deverá attribuir á theocracia. Essa sim, é que lhe foi nefasta.

Dirão algumas pessoas: «Mas depois d’esse casamento, mal visto de todos, é que o rei foi deposto!»

Assim é; mas tambem é certo que, ainda que o rei não tivesse unido o seu destino ao da rainha, seria desthronado do mesmo modo; porque D. Sancho não era o filho obediente e fanatico, que Roma desejava.

A prova é a perseguição que sempre lhe moveram, quando elle nem sequer pensava em tal casamento.

Mas só o odio da theocracia pela realeza é que poderá explicar cathegoricamente este phenomeno.

D. Sancho e D. Mecia viveram na sua corte em Coimbra (patria de tantos amores infelizes), n’uma paz inalteravel,--apenas interrompida pela calumnia, -- até 1246.

O monarcha, no doce enlevo do seu terno amor, havia esquecido as guerras contra os sarracenos. Durante estes cinco annos não tomou parte em cruzadas.

D’isto se aproveitaram tambem os padres, para o accusarem injustamente perante o novo papa Innocencio IV.

Chamavam ao rei fraco e pusillanime!!...

N’este anno devia dar-se o final da lucta, entre a realeza e Roma, pela deposição de D. Sancho II.

XXV

O USURPADOR

D. Affonso, o irmão do monarcha, que havia partido para França em 1229, onde casou com a con-

dessa de Bolonha (a quem mais tarde devia repudiar) 1 nunca deixou de estar ao facto do que se passava em Portugal.

E, logo que soube do casamento de D. Sancho, foi elle o primeiro a intrigar seu irmão perante o papa. affirmando que o rei casara illegitimamente com D. Mecia, insinuando que esse casamento era um crime por serem ainda parentes.

Não fatigaremos os leitores, pormenorisando os expedientes e violencias sem fim, de que o sinistro personagem usou para com D. Sancho, a quem feriu, torturou e matou physica e moralmente.

Pois este novo Caiu é tão antipathico, que ligeiramente nos referiremos a esses acontecimentos historicos, por demais conhecidos de muitos. Ainda assim, diremos o bastante para que, as poucas pessoas que ignoram esses factos, possam bem avaliar Affonso (o bolonhez) como lhe chamavam.

«Usurpador lhe chamaremos nós!...

Foi em 1246, que este irmão do monarcha portuguez desembarcou em Lisboa.

Foi bem recebido em attenção ás inimisades, que se moviam contra D. Sancho, e que estavam espalhadas por todo o paiz, devido ao odio do clero, que tudo podia porque dominava o Povo.

Affonso vinha disputar a seu irmão a corôa, que o papa lnnocencio IV lhe offerecia.

Innocencio IV era o successor de Gregorio IX.

Até n’isto o rei foi infeliz!

1 Affonso III depois de subir ao throno repudiou sua esposa D. Mathilde, com o simples pretexto de esterilidade. Por aqui se podia avaliar do seu caracter, pois repudiava a esposa, que lhe dera elevada posição social no tempo em que elle, não esperava por certo, vir a reinar em Portugal. Affonso passou a segundas nupcias com D. Beatriz filha bastarda de Affonso X, rei de Castella. O alto clero podia ver por este motivo, como Affonso recompensava, os que o protegiam e elevavam.

1N. da A.

Gregorio IX, apesar das queixas que lhe faziam do monarcha, ia comtudo perdoando, por que attendia e admirava o valor de D. Sancho.

E tanto assim era, que, já depois do desacato á egreja commettido pelo infante de Serpa, enviou bulia ordenando «que não vexassem o rei com mais censuras religiosas, emquanto elle militasse contra os inimigos da fé.» N’essa occasião chegou mesmo a reprehender os bispos por quererem expulsar da egreja o rei.

Se o papa assim procedia, é por que entendia que aquelle delicto estava bem expiado pela penitencia, que se lhe seguiu e que o infante cumprira.

Portanto, emquanto Gregorio foi vivo, não se pensou na deposição do rei. Com algumas excommunhões e penitencias o iam castigando!

Agora, por sua morte, as coisas tomavam uma nova face.

Innocencio era o seu legitimo herdeiro e nunca fora favoravel a D. Sancho.

Ao contrario do seu antecessor e prevenido ardilosamente pelo clero contra o rei, começou vendo-o com maus olhos, e d'ahi a guerra que se lhe seguiu.

Mal aconselhado e movido por essas intrigas, ou antes calumnias, resolveu substituir D. Sancho por outro rei mais docil, e por conseguinte mais amoldado aos dogmas da egreja.

Effectivamente Affonso, o usurpador, prometteu e jurou tudo o que elles quizeram com respeito a ser um filho submisso e fiel respeitador de Roma e defensor dos direitos e liberdades ecclesiasticas 1. Promessas a que faltou, é verdade; mas o clero isso merecia. Nunca estavam contentes; deviam encontrar, pois, quem os ensinasse.

1Affonso, assim que subiu ao throno, como unico herdeiro por morte de D. Sancho II, -- não só faltou a todas as promessas, feitas por elle ao alto clero; -- mas fez mais, não o poupou a toda a sorte de vexames.

O clero accusava el-rei D. Sancho II de impio e de não ter cumprido as promessas feitas em 1238 ao arcebispo de Braga.

Era tambem accusado de ter culpa das graves desordens, que lavravam no reino, e que não sabia ou não queria reprimir.

O alto clero jurara promover a queda do monarcha, e não haveria nada que a isso obstasse.

Agora não queriam saber de favores nem de concessões. O seu odio já se não aplacava com o dinheiro do inimigo, a quem declararam guerra sem treguas.

Para mais aviltarem o rei, chegaram a dizer que elle não combatia já os mouros, porque se tornára excessivamente pusillanime; que poucas vezes vencera os infieis e que nunca dera provas de coragem.

Os infames... até o valor lhe negavam, apresentando-o a Innocencio IV como um cobarde e inepto!

Assim conseguiram os representantes da egreja votar em concilio a deposição de D. Sancho II.

Alguns prelados dignos (pois alguns havia) e amigos do rei intercederam a seu favor; mas foi baldado o seu intento.

Todavia Innocencio IV, talvez por comprehender (ou por leves insinuações d’estes bispos) que o alto clero mentia vil e indignamente, e, com o unico fim de desprestigiar Sancho, o davam por cobarde. -- respondeu a tão odiosas calumnias, -- prohibindo que se lhe faça mal.

Ordena que se desobedeça a D. Sancho, mas não quer que ponham em perigo a sua vida ou a de filho seu, se o tiver; advertindo que, se lhe tira a corôa e a dá a Affonso, é provisoriamente e com o unico fim de salvar o reino, que vê ao presente perdido pela impiedade de Sancho II.

A verdade, porém, é esta:

Roma não vendo em D. Sancho o filho humilde, submisso e fanatico, que deseja, para preponderar á vontade em Portugal, promove-lhe a queda!...

E, se lhe poupam a vida é simplesmente para conter em respeito o usurpador, de cujo caracter talvez já desconfiam e receiam.

D. Sancho, assim como Affonso II seu pae, luctava com a theocracia; mas a lucta seria de morte.

Iam-se realisar as prophecias do arabe Abd-Allab.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

Foi uma victima da theocracia. Cahiu vencido na lucta, que ainda dura, da egreja com o estado: descubram se deante do seu tumulo os que amam a sua liberdade e os que respeitam a desgraça.

Historia de Portugal, por Antonio Ennes, L.° V, pag. 236.

SEGUNDA PARTE

O MARTYR DE TOLEDO

I

DOIS VULTOS MEMORAVEIS

Coimbra bella flor do Mondego! Oh! tu sublime cidade, que tiveste a insigne honra e gloria de ter sido leal ao rei deposto, ao qual mesmo depois de exilado não deixaste de o considerar o unico rei legitimo!... Tu que abrigas em teus muros o honrado e valoroso fidalgo, Martim de Freitas... esse digno ancião, que não quiz prestar vassalagem ao odioso conde de Bolonha, e que corajosamente resistiu ao apertado cerco a que o sujeitou esse fratrecida!... Martim de Freitas que tão bem guardou o castello emquanto D. Sancho II viveu apesar de expatriado!... Oh! tu, patria de tantos vultos, nobres e illustres, dignos e leaes e côrte de antigos reis... veste-te de luto. Que os teus monumentos e torres se inclinem reverentes... que as aves, deixem de cantar... os campos de florescer e as arvores de produzir... e curva te triste em presença do infortunio! O teu amado rei vae partir e não mais voltará á patria! Elle vae procurar cm terra estrangeira o breve termo de seus atribulados dias. Ei-lo, que se aparta da formosa cidade com o coração dilacerado pelos soffrimentos que lhe infligiram a ingratidão e perversidade dos seus inimigos. A sua nobre fronte inclina-se com desalento sobre o peito, que a armadura de guerreiro não fizera jamais curvar.

O olhar, outr’ora altivo e suave, agora está amortecido pelas lagrimas.

E o seu vulto, elegante e cheio de garbo, está alquebrado!

Chora bella cidade!... e sê bemdita!

A propria natureza tambem chora, e veste de luto para celebrar o triste acontecimento. Sim: a natureza chora ao assistir á derradeira despedida do verdadeiro rei.

Coimbra... não mais o tornarás a ver!...

E tu, Martim de Freitas, fica!... não pódes acompanhar o teu rei... tens que defender a cidade contra o usurpador.

Fica, sim; é esse o teu dever de vassallo fiel e amigo dedicado!

Embora soffras com isso, fica!

Infelizmente a tua dedicação e heroismo não teem de ser coroados de feliz exito. Não mais voltarás a ver o teu augusto soberano com vida!

Vêl o-has sim, mas já morto!

Reconhecerás o seu cadaver, e o teu generoso e compassivo coração será ferido cruelmente pela dôr e saudade, ao comprehender que o martyr já não existe!...

Terás emfim de entregar as chaves, symbolo de lealdade, ao usurpador.

Martim de Freitas desventurado ancião, como é grande o teu soffrimento!...

Ah! immensamente grande, pois que amavas o teu rei acima de tudo.

Abençoado sejas! e abençoado seja egualmente Fernão Rodrigues Pacheco, o nobre fidalgo, governador do castello de Celorico; que, assim como tu, não conheceu o usurpador emquanto o rei legitimo foi vivo.

Abençoada seja a vossa memoria, pelas provas

de valor e sincera amisade com que defendestes e amastes o vosso rei!

E que os vossos bemditos nomes, Martim e Pacheco, nunca sejam olvidados, e atravez os seculos futuros possam ser lembrados, amados e respeitados, como symbolos de bondade, justiça, amor e gratidão.

II

RAPTO DE D. MECIA

Travara-se a guerra civil entre D. Sancho II e seu irmão Affonso o conde de Bolonha.

A ambição desmedida, e o odio inveterado doeste principe, faz-lhe esquecer os mais sagrados deveres do amor fraternal, e, protegido pelo papa Innocencio IV e clero, promove a guerra atroz, que devia desthronar o infeliz rei.

D. Sancho ainda luctou desesperadamente com o usurpador.

Mas este, vendo a resistencia que se lhe oppunha, planeou um projecto tenebroso, que devia aniquilar por completo o corajoso e invicto monarcha.

Este projecto, só digno d uma alma torva e vingativa como a de Affonso, foi o rapto da rainha.

O bolonhez temia, alem de tudo, que d’esse enlace podesse haver filhos, o que o impediria de reinar em Portugal. E para que tal não succedesse, subornou alguns fidalgos de probidade pouco escrupulosa para o audacioso rapto.

D. Sancho estava em Coimbra, que era a sua côrte, e uma das poucas terras, que lhe guardaram sempre fidelidade.

Foi ahi, na bella cidade do Mondego, que lhe ar-

rebataram a esposa, da propria camara real (dizem alguns.)

Os raptores haviam-se previamente disfarçado com os trajes dos soldados de Martim Gil, digno fidalgo e valido de D. Sancho.

Graças a esse disfarce, introduziram se no palacio, sem despertar desconfiança nos servos, e levaram a effeito o plano habilmente combinado.

Já sabemos que esta infamia, premeditada, planeada e posta em pratica por Affonso, tinha um duplo fim: -- impedir que houvesse successão á corôa, que ambicionava, e ao mesmo tempo ferir o rei, (que via disposto para a lucta), no que elle tinha de mais caro, -- a esposa. Pois só assim conseguiria abater-lhe a energia denodada em defender os seus direitos.

Effectivamente assim aconteceu.

O conde de Bolonha obteve o que desejava; isto é: ficar senhor do throno que disputava ao irmão, o qual perseguido e vilipendiado teria de refugiar-se no estrangeiro.

O usurpador e o clero acertaram, pois bem no alvo ferindo o monarcha no coração. Bem sabiam elles que era o unico meio de abater esse caracter digno e altivo, até ahi invencivel.

D. Sancho, que pelejára sempre com valor em numerosos combates; que ganhara batalhas e conquistara terras aos infieis; curvava agora a nobre fronte, sem coragem para resistir ao peso do infortunio e affrontas, motivadas pela fatalidade do destino e pela perfidia.

Nada ha que fira mais o homem, do que a traição da mulher amada.

Pois tiveram ainda a cobardia de insinuar ao desditoso rei, que a esposa lhe era infiel e que consentira. da melhor vontade, em o abandonar!!...

Ou fosse verdade ou não, -- e D. Sancho acreditasse a aleivosia,-- o que é certo, é que nunca deixou de pensar na rainha com amor e saudade.

O monarcha jamais poude esquecer aquella, que amara tão ternamante, e ainda nos seus ultimos momentos era a dòce visão d’essa formosa mulher, o que a sua imaginação apenas via.

Porque D. Sancho amava!... e quando o amor é verdadeiro, ardente e apaixonado, o objecto d’essa affeição torna-se por tal forma grande e ideal aos olhos do que ama, que, por muitas offensas e ingratidões que haja recebido, tudo esquece para só pensar no ente adorado e perdoar todas as suas faltas.

Aquelle, que ama verdadeira e sinceramente, ainda que se saiba atraiçoado, nunca pensa em se vingar, pois o rancôr não póde ter cabimento em seu coração, e antes está sempre prompto para a indulgencia.

Eram estes os sentimentos de D. Sancho.

Apenas anhelava a nova pósse de sua esposa.

Ao monarcha, presentemente, não importava perder riquezas e poderio; de bom grado daria tudo isso ao usurpador, para que lhe restituisse a mulher que tanto estremecia.

Mas Affonso, alheio a qualquer sentimento bom, era implacavel. III

III

LUCTA FRATRICIDA

Vendo D. Sancho que seria impossivel luctar por mais tempo contra o usurpador, que se fazia acompanhar de um exercito numeroso, emquanto que os seus estavam completamente dizimados, -- uns por que perderam a vida n’essa guerra tremenda contra o bolonhez, e outros porque haviam desertado, -- resolveu pedir auxilio ao extrangeiro.

N’este triste situação, dirigiu-se a Castella e pediu a seu primo Fernando III, para interceder a seu favor junto do papa, solicitando d’este ordem para que Affonso suspendesse as hostilidades, e lhe entregasse a esposa.

Fernando III, que estimava D. Sancho, com quem sempre manteve as melhores relações d’amisade,-- e tendo alem d'isso firmado pazes no Sabugal em 1231, pazes que duraram emquanto D. Sancho viveu,-- annuiu da melhor vontade a este pedido.

Foi junto do pontifice advogar a causa do seu protegido e alliado, com interesse e boa vontade, digna de melhor exito.

Mas infelizmente nada conseguiu, e todas as suas supplicas, para esse fim, foram inuteis.

O papa foi inflexivel, e não quiz fazer coisa alguma a favor do rei portuguez, que havia cahido no desagrado de Roma e do clero e estava de mais a mais excommungado !... (pela sua impiedade) dizia o pontifice.

Fernando de Castella, porém, que queria a todo custo valer a seu primo, revoltou-se contra a resposta do padre santo, e jurou auxiliar o rei perseguido contra os seus figadaes inimigos.

Tomada esta resolução, o digno Castelhano, não podendo ir n’essa occasião, enviou seu filho Affonso, infante de Medina, commandando um exercito, -- no qual tambem tomava parte Diogo Lopes de Haro, irmão de D. Mecia, -- para intervir na guerra entre os dois irmãos.

Desgraçadamente nada conseguiram; o exercito de Castella era diminuto em extremo, porque as tropas andavam dispersas combatendo os mouros.

Ao contrario, o conde de Bolonha, que havia entrado no reino com a protecção de Roma, dispunha, alem d’isso, de numerosas forças, duplicadas

ainda com o auxilio d’um exercito francez, que vinha luctar pelo usurpador.

Tornava-se, portanto, impossivel salvar o throno e recuperar a rainha.

Alem de que. o rapto de D. Mecia havia sido pelo usurpador tão bem combinado, que o rei nunca poderia tornar a rehaver a sua posse.

O soccorro de Castella era, pois, insuffciente para alcançar a victoria desejada.

Todavia o usurpador, contra tudo o que esperava, tomou a coroa sem lucta.

D. Sancho defendeu-se heroicamente; e, ainda depois da retirada do exercito de Castella, foi com uma pequena força militar, commandada por Martim Gil, Martim Annes e o guerreiro desconhecido, cercar o castello de Ourem para onde Raymundo Viegas Portocarrero, um dos principaes raptores, a havia conduzido.

A este pequeno exercito se reuniram alguns seus partidarios do Porto, os mesmos que, cm 1238, juraram combater sempre pelo rei liberal.

- Mas, como sempre acontece em taes casos, quando a lucta é entre o forte e o fraco, ainda que a rasão e a justiça estejam do lado do ultimo, a victoria foi do primeiro.

Pois é certo que nem sempre vence a justiça.

Não valeu ao rei mais esta tentativa, de pôr cerco ao castello, pois este estava bem defendido por suas fortalezas, e guardas, que oppunham grande resistencia, e era tão notavel o seu numero, -- que D. Sancho. desgostoso, perdeu de todo as esperanças de poder vencer;--jámais quando viu o morticinio dos seus fieis soldados.

N’essa guerra cruenta perdeu muitos dos seus amigos.

Tambem encontrou ahi a morte D. Theodozio de

Sousa, o fidalgo que nunca havia combatido, e que agora, devido á sua dedicação pelo monarcha, quizera tomar parte na lucta contra o usurpador

Theodozio n’esta occasião, cheio de nobre enthusiasmo para salvar o rei que amava, deu provas de singular coragem e abnegação no combate que sustentou contra os seus inimigos.

Infelizmente o mancebo, que era pouco habil nos manejos da guerra, pela falta de habito, -- pois valor tinha-o, --a breve trecho foi mortalmente ferido pelo adversario.

Então, ao cahir do cavallo que montava, soltou as seguintes palavras:

-- Morro satisfeito, pois combati pelo meu rei e pela minha patria.

E levando as mãos ao coração, d’onde o sangue corria em abundancia, murmurou num verdadeiro extase, volvendo o olhar para o ceu:

-- Meu Deus! eu não temo a morte!... mas levo infinda saudade do meu amado rei.

-- Pobre amigo! -- disse D. Sancho muito commovido: -- e, inclinando-se sobre o corpo do mancebo, continuou amargamente:

-- Eis os resultados da ambição e egoismo, que tantos e irreparaveis males causam!

-- Vede como n’esta guerra maldita, eu tenho perdido os meus mais fieis e dedicados amigos!...

Dizendo isto, o monarcha levantou o ferido a fim de o soccorrer, mas Theodosio estava morto.

El-rei volveu um olhar triste para aquelle rosto, empallidecido pela morte, e que, conservando os olhos abertos e um sorriso nos labios, parecia abençoar os que ficavam e pedir ao mesmo tempo, que o não abandonassem alli.

D. Sancho assim o comprehendeu, e ordenou que o corpo de Theodosio fosse levado para Coimbra onde teve sepultura digna junto da sua familia.

Grande foi o desgosto de Gonçalo Mendes de Sousa, quando viu chegar á côrte o cadaver de seu sobrinho mais moço, que tanto amava.

Verdadeira antithese!...

Emquanto o desventurado Theodosio fazia o sacrificio da sua vida pelo monarcha, mostrando assim, apezar dos seus defeitos, que os principios de honra e fidalguia não estavam mortos na sua alma; --seu irmão mais velho, Gregorio, passava para o lado do inimigo e combatia contra o rei de quem sempre havia recebido favores e provas d’estima!

D. Sancho, desanimado por tão repetidos desgostos, segunda vez pediu auxilio a Fernando de Castella, que generosamente interveiu de novo n’essa lucta.

Mas o destino de D. Sancho havia de se cumprir e, apesar da protecção dos castelhanos, o desditoso monarcha foi desthronado.

Então D. Sancho, perdidas de todo as ultimas esperanças, pobre e desgostoso da vida, resolveu partir para Hespanha, a procurar um refugio aos seus pesares e um logar onde podesse terminar seus dias longe de seus inimigos.

Tendo passado a fronteira, dirigiu-se á côrte de seu primo, e dias depois reunia-se a D. Fernando de Aragão, (ou o guerreiro desconhecido) e a frei Thomaz, com destino ao exilio.

Aqui, devemos uma explicação aos nossos leitores, e vamos dal-a immediatamente.

IV

DERRADEIRA PARTIDA

Quando D. Maria foi raptada do paço real, não estava em Coimbra o guerreiro desconhecido.

Como sabemos, o mancebo costumava ir algumas vezes visitar sua mãe a Aragão.

Imagine-se, pois, qual seria o desgosto e desespero do fidalgo, quando, ao regressar da sua viagem á côrte, soube o que se havia passado.

O mancebo arrependeu-se amargamente de ter deixado o rei n'aquella occasião; e cuidou enloquecer de dôr quando o monarcha se lhe dirigiu na ancia do desespero, dizendo:

-- Fernando! Fernando! se tu estivesses ao meu lado, a minha adorada Mecia não me seria roubada!

D. Fernando de Aragão não encontrou uma phrase para amenisar o grande soffrimento do rei.

Estava como que fulminado pela surpreza e pela dôr.

D. Sancho proseguiu: Fernando! Fernando! muito tarde chegaste!... se tu estivesses em Coimbra, não teria succedido esta desgraça, pois todos te temiam e respeitavam.

-- Quem se atreveria a penetrar no palacio, que tu tão bem vigiavas, porque sabias conter um thesouro de inexcedivel estima... a minha amada!...

-- Oh! repito, se tu estivesses, de certo não ousariam levar a effeito essa infamia!

-- Senhor! murmurou o guerreiro muito commovido:

-- Tanto vos amo, e não soube estar para evitar o perigo, não tive ao menos o presentimento da desgraça que vos ia ferir?!....

-- Oh! como sou culpado nas vossas desventuras! eu que desejaria só o vosso bem!...

-- Senhor! continuou o guerreiro, deixando correr as lagrimas de uma intensa magua Senhor! perdoae-me esta falta involuntaria!

-- Não tens de que pedir perdão meu amigo: -- volveu o rei confrangido pela dôr do mancebo.

-- Isto tinha de ser e não ha que fugir ao destino.

-- Vão-se realisando as prophecias do arabe.

Fernando, que se conservava de cabeça inclinada

e pensativo, estremeceu, ouvindo estas palavras e respondeu:

-- E’ certo que o destino póde muito, e quando persegue uma creatura é sem piedade. Mas não devemos desanimar por emquanto e sim luctar.

-- Havemos de empregar todos os meios ao nosso alcance para encontrar a rainha.

-- Vamos tentar: volveu o monarcha.

Foi então que Martim Gil, á ordem de el-rei, reuniu o exercito que devia partir para Ourem.

Este fidalgo tambem se sentia muito humilhado pela affronta que lhe foi feita pelos infames raptores que haviam ousado disfarçar-se com trajos eguaes aos dos seus soldados, para melhor se sahirem da sua empreza.

A fatalidade, porém, não permittiu que triumphasse a justiça e o direito.

Foi n’essa lucta que, entre muitos amigos de D. Sancho II, morreu tambem o infeliz Theodosio, por cujo motivo renunciou el-rei a continuar a guerra.

N’esta tão triste collisão, o guerreiro desconhecido resolveu ir saber o que era feito d’aquelle amir, o arabe Abd-Allah, que em tempo promettera a el-rei vir em seu auxilio, caso o avisassem.

Tomada esta decisão, Fernando participou a D. Sancho a sua idéa, pedindo-lhe parecer.

O monarcha approvou-a. Era a sua derradeira esperança.

Mas, quando Fernando se propunha a partir para Marrocos afim de indagar a respeito do arabe, foi procurado por um mensageiro que lhe disse:

-- Senhor! vossa mãe está moribunda e pede para vos vêr, pois vos quer abençoar antes de partir do mundo.

-- Eis aqui o seu annel, que ella vos envia para que me acrediteis!

E o mensageiro, dizendo isto, apresentou ao mancebo um pequeno annel com as iniciaes A D., que significavam-- Affonso e Dulce,--e era a unica prenda que a mãe de Fernando conservára como recordação do seu terno amor.

D. Fernando de Aragão, ferido assim no mais fundo d’alma elle, que já tão experimentado fôra por successivos desgostos, não soltou uma palavra de dor!...

Ha occasiões, em que a dôr se não póde expandir em exclamações nem em lagrimas.

Foi o que lhe succedeu.

O mancebo consternado recebeu das mãos do mensageiro o precioso annel, que beijou terna e piedosamente.

Em seguida voltou-se para el-rei que assistia a esse acto, tão triste como elle... e pediu-lhe -- mais com o olhar do que com a voz -- a mercê de partir!...

-- Vae meu amigo! vae!... não te detenhas! -- respondeu D. Sancho com verdadeiro pesar.

Fernando, com o coração despedaçado, despediu-se d’el-rei.

Antes de partir, porem, ficou combinado, que no seu regresso, se reuniria a D. Sancho, não em Portugal, mas em Castella, para onde o rei ia partir em breve.

D. Sancho II dizia o seu derradeiro adeus a Coimbra, -- ou por outra a Portugal, -- onde não devia voltar mais!...

V

A CAMINHO DA AMARGURA

Volvidos poucos dias, depois que Fernando partira, para assistir aos ultimos momentos de sua mãe, D. Sancho sahia de Coimbra e passada a fronteira dirigiu-se á côrte de seu primo Fernando III de Castella.

Chegado ahi, apresentou-se ao castelhano e deu-lhe parte da resolução, que fôra constrangido a tomar, de procurar um refugio, pedindo-lhe ao mesmo tempo que lhe indicasse uma terra onde fosse residir.

-- O que dizeis primo?--exclamou D. Fernando.

-- Pois renunciaes assim aos vossos direitos, abandonando a côrte n'esta occasião?

-- Assim é: volveu D. Sancho:

-- E vós se estivesseis no meu logar farieis outro tanto.

-- Já não póde haver resistencia possivel.

E D. Sancho explicou a seu primo os ultimos successos da guerra.

Este, comprehendendo que effectivamente o monarcha estava perdido sem remedio, disse:

-- Estaes então resolvido a expatriar-vos?

-- Sim! murmurou o rei amargamente.

-- E desejaes refugiar-vos em Hespanha, não é verdade?

-- Sim, repetiu D. Sancho; -- porque de Hespanha tenho recebido sempre provas de dedicação e estima.

-- N’esse caso, meu primo, aconselho-vos Toledo.

-- Agradeço-vos e seguirei o vosso parecer.

Fernando III, estava sinceramente commovido com as infelicidades d’esse rei, tão bom e generoso, e que via agora condemnado a soffrer no futuro as privações e martyrios do exilio.

O nobre castelhano soffria tambem, por não lhe ter podido valer contra o usurpador, porque o temor que lhe inspirava o papa Innocencio IV, que tudo podia e mandava, a isso obstava.

N’este caso, pois, não podia fazer mais do que receber o infeliz rei com o respeito e bondade que merecia; e que elle sempre lhe manifestara.

D. Fernando convidou o monarcha a descançar na sua côrte, e disignou-lhe Toledo, para residir, porque sabia ser a melhor terra para refugio, e onde D. Sancho poderia viver em socego, sem que os echos da victoria do usurpador lhe amargurassem mais os dias.

Em 15 de maio de 1247 é que D. Sancho, esse infeliz principe, victima da familia, do clero e da nobreza, sahira de Portugal para ir refugiar-se em Toledo.

Ao mesmo tempo seu irmão Affonso punha cerco ao castello de Coimbra, para obrigar Martim de Freitas a entregar-lhe a posse da cidade e prestar-lhe vassalagem.

Não o conseguiu, porém.

Martim de breitas, apesar de vêr o rei vencido,

humilhado, desthronado e errante, entendeu e muito bem, que amonarcha não tinha perdido todavia a legitimidade dos seus direitos, e assim o declarou ao usurpador, patenteando-lhe muito categoricamente que não cederia a quaesquer violencias ou ameaças.

O honrado fidalgo assim o cumpriu e sujeitou-se ao apertado cerco imposto pelo despota.

Tendo descançado alguns dias em casa de Fernando de Castella, D. Sancho II ia, emfim, continuar a sua jornada, seguindo o caminho de amargura que o devia conduzir ao exilio, o qual em breve seria o seu calvario.

Quando el-rei se despedia do rei castelhano, alguem lhe veiu dizer que um velho frade e um guerreiro pediam para o ver.

-- Onde estão? perguntou o rei, esses que me desejam falar!...

-- A' porta do palacio, respondeu o pagem.

Oh!... mandae-os entrar já! interveiu Fernando.

-- Pois não é bem que façam esperar qualquer pessoa á porta.

-- Que se não possa dizer nunca, que os hespanhoes tratam com menos cortezia os estrangeiros.

O pagem sahiu a cumprir a ordem e Fernando III, voltando-se para o rei portuguez disse-lhe com um sorriso de bondade:

-- Segui-me, meu primo, vou conduzir-vos á sala para que faleis aos visitantes que vos aguardam e que talvez... sejam amigos!...

D. Sancho agradeceu commovido e apressou-se a ir ao encontro dos que o esperavam, pois teve o presentimento de quem seriam.

Fernando affastou-se delicadamente em seguida a ter acompanhado seu primo.

D. Sancho não se havia enganado. Sim! os dois estrangeiros eram o guerreiro desconhecido e frei Thomaz.

Então aquelles tres homens, a quem a bondade e o infortunio tornavam eguaes, abraçaram-se commovidos.

D. Fernando de Aragão vem mais triste do que nunca e traja de rigoroso luto.

Sua mãe morrera e incumbira-o d’uma missão sagrada.

«Devia acompanhar el-rei ao exilio e não o abannar um só instante.»

E, n’esse sentido, o acompanha frei Thomaz, que vem fazer certas revelações ao monarcha.

VI

O MYSTERIO DESVENDADO

O bom frade dirigiu-se a D. Sancho n’estes termos:

-- Meu senhor: vou falar-vos sem rodeios e expôr-vos simplesmente a verdade! Pois eu não sei explicar-me d’outra fórma.

-- Sabei que o guerreiro desconhecido, até agora, é vosso irmão!

-- Consolae-vos, pois, meu filho, que não estaes tão só como julgaveis!

-- Fernando é meu irmão? exclamou o rei surprehendido, e preso de indescriptivel e terna commoção.

-- Oh! explicae-vos!...

-- Senhor: começou o padre.

-- Vosso pae, que Deus guarde, Affonso II, antes do seu casamento, teve relações amorosas com uma fidalga aragoneza que conheceu em uma das suas viagens a Hespanha.

-- E, captivado pela sua formosura, amou-a e trouxe-a para Portugal.

-- D'essas relações nasceu Fernando.

-- Algum tempo depois D Affonso contrahiu matrimonio com D. Urraca, vossa virtuosa e santa mãe.

-- A joven aragoneza, vendo-se abandonada do seu real amante, partiu com o filhinho, que então contava dois annos, para Aragão, sua patria.

-- Antes d’isso, confiou-me um cofre repleto de preciosas joias, que representavam uma consideravel fortuna (e que fôra dadiva d’el-rei quando se propoz a abandonal-a)1, para eu entregar a D. Affonso.

-- «Dulce apenas quiz conservar um pequeno annel de pouco valor pecuniario, mas de subido valor estimativo.

-- Esse annel recordava-lhe o seu amor, morto para sempre; e fôra-lhe dado quando ainda era amada.»

-- O rei, lamentando que ella não guardasse essas joias, admirou no emtanto a sua attitude digna e desinteressada... e pediu-me que instasse com

1 Affonso II usava muito d’esse systema: ao mesmo tempo que esbofeteava com uma mão, com a outra dava esmolas.

a joven para que as conservasse, accrescentando, «que uma mãe não tinha o direito de condemnar seu filho á miseria.»

-- Mas Dulce sempre digna respondeu:

-- «Dizei a el-rei, que o meu filho viverá, como eu, com o que meus paes me deixaram!

-- E’ pouco; mas espero, que ha de chegar, e ao menos não terá que córar de vergonha, recebendo uma esmola do pae, que o abandonou.

-- Quando for homem approvará o meu procdimento d’hoje, e eu não terei que temer o seu despreso.

-- Eu cumpri as suas ordens; -- continuou frei Thomaz, -- e el-rei recebeu o cofre com verdadeiro pesar.

-- Em seguida Dulce partiu para a sua terra, e dedicou-se exclusivamente ao seu amado filho.

-- Fernando foi educado nas bellas praticas do dever e da honra, e até aos vinte annos ignorou o mysterio do seu nascimento.

-- Todavia, o que era um mysterio para o bom moço, não o era para os extranhos, pois muitos dos habitantes de Aragão sabiam, que elle era filho de Affonso II, de Portugal, e por essa rasão insistiam em tratal-o por principe... -- As relações de Dulce com o monarcha não eram ignoradas, porque sendo ella filha dos nobres condes de Aragão, o seu passado era conhecido.

Nunca, porem, deixou de merecer a estima e sympathia de quantos a conheciam.

-- E era bem digna d’essa estima, -- disse D. Sancho, que ouvira esta narração com o maximo interesse.

-- Ides vêr senhor, -- volveu o padre: como ella era virtuosa!

-- Volvidos dois annos depois da morte de vosso

pae, o qual ella não voltara a ver,--mas a quem apesar de tudo ella amava em segredo, -- a pobre Dulce retirou-se a um convento.

-- E n’essa occasião resolveu fazer um sacrificio á memoria do rei, que lhe parecia ter sido ferido bem cruelmente pela adversidade, que, tão moço ainda, o arrebatara e a sua esposa, aos innocentes filhinhos.

-- A sua alma pura doia-se de saber que vós estaveis tão só.

-- Lembrou-se, que devia... (perdoar?! já ella tinha perdoado havia muito.) mas consagrar o seu filho ao filho do rei infeliz, esperando, como recompensa, que Deus levantaria o anathema, que lhe parecia pesava sobre a vossa familia.

-- E, na dôce simplicidade da sua alma crente, julgava ver Affonso, que lhe sorria, ao mesmo tempo que a abençoáva pela sua dedicação. -- Tendo feito estas revelações a Fernando, que n’essa epocha já era um mancebo de nobre porte, e de muitas virtudes como hoje, pediu lhe, que fosse para Portugal, que se affeiçoasse ao seu rei e que lhe fosse sempre amigo dedicado.

-- Escusado será dizer, que o mancebo, assim que soube que era vosso irmão, ficou transportado de jubilo, e apesar de lhe custar separar-se de sua mãe, Fernando começou cumprindo a sua missão da melher vontade; e, captivado por vossa bondade e lhaneza, ama-vos acima de tudo... Se resistiu ao desejo de se dar a conhecer até agora, foi ainda para obedecer a sua mãe.

-- Dulce recommendou lhe, que não desse a saber a sua origem para que na côrte não podessem julgar que elle era guiado por algum vil interesse.

-- Pobre Dulce! murmurou D. Sancho: era digna de ser venerada como uma santa.

-- E como tal morreu, meu filho.

-- Sim! Dulce morreu santamente!...

-- Fui eu que lhe assisti aos ultimos momentos.

Ella me disse:

-- «Meu padre: ide ter com el-rei D. Sancho e dizei-lhe, que eu lhe deixo o meu filho, para ser o seu companheiro no infortunio.

-- Nunca se daria a conhecer se el-rei fosse feliz,-- pois n’esse caso não lhe faltariam amigos,-- mas agora, que foi deposto e se vê quasí só:, agora, que tanto soffre;-- é bem que saiba que tem um amigo.

E, se os irmão legitimos tanto o offenderam,... que ao menos lhe sirva de lenitivo á sua dôr, o saber... que o pobre bastardo o ama.»

-- Foi isto, continuou o padre, -- o que a boa creatura me disse; isto é: o mesmo, que pouco antes dissera ao seu amado filho, quando o abençoava.

-- Agora, meu filho, disse o ancião, estendendo as mãos sobre a cabeça do rei:

-- Recebei a benção da moribunda...

-- Oh! meu padre! exclamou D. Sancho: -- como era boa e generosa a pobre Dulce, e que alma tão pura a sua!!

-- E vós, meu filho! -- disse o padre: -- sois digno de todos os sacrificios e dedicações. Se soffreis tanto... sem o merecer... vós que sempre fosteis um rei bom e magnanimo!

-- Quanto vos sou reconhecido pelas vossas boas palavras, meu padre!...

-- Fui amigo de vosso pae que sempre me honrou com a sua estima,--e desejo ser para vós o mesmo que fui para D. Affonso II.

-- Sabeis tudo senhor! agora permittis que eu vos siga tambem ao exilio?

-- O que? pois quereis?! perguntou D. Sancho, commovido até ás lagrimas.

-- Acompanhar-vos sempre! -- respondeu simplesmente o humilde e bom padre. -- que em outro tempo se chamou Heitor de Carvalho, e foi um nobre da corte de Affonso II.

El-rei, a quem a commoçao embargava a voz, considerou em silencio a sublime bondade d’aquelle velho, e d’aquella infeliz mulher, que lhe offerecia o filho;--e tanta dedicação tocava-o no mais fundo d’alma.

Então aquelle nobre fidalgo, que tantas provas lhe dera sempre de affecto, era seu irmão?!

-- E só agora, na desgraça e pobreza d’elle monarcha, é que se lhe dava a conhecer?! Oh! como era bom e desinteressado! Não estava portanto tão só, como ao principio supposera.

-- Estava, pois, explicada a mutua sympathia, que desde o principio os unira, n’um sincero e puro amor fraternal.

Fazendo estas reflexões, D. Sancho viu Fernando, que se lhe approximava e lhe estendia carinhosamente os braços.

Então os dois irmãos abraçaram se ternamente, misturando suas sentidas lagrimas.

-- Fernando! meu querido irmão!

-- Senhor! meu amado irmão! eu vos amo e venero!

Nada mais poderam dizer n'este momento.

Foram estes os mais dedicados companheiros do rei no exilio.

Os seus pezares tiveram ainda uma compensação.

Tambem Jesus, o outro Martyr das escripturas, fora acompanhado ao calvario pela santa virgem sua mãe, -- pelas santas mulheres -- (ou as tres Marias) e por João Evangelista!...

Assim, tambem, alguem havia no exilio, que não era um extranho para o desventurado monarcha, «este outro martyr» de Toledo.

Deus, na sua infinita bondade, posera ao seu lado um homem de singulares virtudes, -- que era seu irmão, -- para lhe suavisar o isolamento.

Fernando III appareceu n’este momento, e D. Sancho apresentou-lhe seu irmão e frei Thomaz.

-- Bem dizia eu que eram amigos!--disse o castelhano, -- cumprimentando.

-- Mais do que amigos, volveu D. Sancho, -- eis meu irmão! e indicou Fernando de Aragão.

O monarcha castelhano acabava de reconhecer o guerreiro com quem muitas vezes combatera, e ao qual, n’esse tempo, em Hespanha, chamavam successivamente o principe Aragonez, ou o heroe dos combates.

Mas, não fez allusão a coisa alguma. E para que? se havia comprehendido!...

O mysterio estava desvendado!

D. Sancho despediu-se em fim de seu primo Fernando III, e este de novo lhe reiterou alguns offerecimentos, que já lhe fizera antes, mas que o monarcha portuguez digna e delicadamente continuou recusando.

Sahindo do palacio, D. Sancho e os seus amigos, iam continuar a sua fatigante jornada.

Com respeito ao amir Abd-Allah, nada se soube!

Fernando havia indagado tudo para saber do paradeiro do arabe, mas sem conseguir o menor resultado.

VII

EM TOLEDO

HORAS DE AMARGURA

Com o coração atribulado por amargos desenganos, D. Sancho chegou a Toledo, aonde o acompanharam seu irmão, frei Thomaz, e alguns raros fidalgos, que se lhe conserváram fieis na adversidade, e se lhe reuniram no caminho.

Bem poucos eram na verdade!

Mas é certo, que a infelicidade afasta os amigos.

Aquelle que é perseguido pela fatalidade encontra se quasi sempre só! O infortunio aborrece aos menos egoistas!

A sociedade, madrasta cruel dos desgraçados, é indifferente ao sofrimento alheio e passa altiva sem sequer volver um olhar compassivo para o que soffre.

Ahi, na formosa cidade de Toledo, banhada pelo Tejo e contornada de serras e muralhas, na eminencia d’um monte, com seus variados jardins e monumentos, similhando uma pequena Jerusalem, passava o pobre rei horas de verdadeira margura, ora passeando pelas galerias lageadas do palacio que lhe servia de residencia e prisão, ora subindo á torre pyramidal, aonde ia, para contemplar saudosamente o Tejo, ou ainda sentado á sombra das frondosas arvores do jardim do palacio.

Quantas vezes os seus amigos e companheiros de

desventura iam encontrar o rei, assentado n’um banco de pedra, com a fronte inclinada sobre a mão esquerda em attitude de dolorosa meditação, tendo um livro sobre os joelhos, mas que elle não lê, porque as lagrimas que caírem de seus olhos e que sulcam o seu nobre rosto, lhe não deixam ver as lettras?!...

Quantas vezes viam os fidalgos o desditoso rei n’esta attitude de dôr e desanimo?!...

Então, quando assim o viam, afastavam-se devagarinho, muito suavemente, deixando-o immerso e absorvido nas suas penosas rellexões.

D’estes fidalgos, apenas um se atrevia algumas vezes a approximar-se do exilado, e muitas vezes tambem conseguia distrahil-o das suas tristes recordações.

Este fidalgo era seu irmão!

Na occasião em que apresentámos D. Sancho aos nossos leitores (dois mezes depois da sua chegada a Toledo), está elle, como dissemos, assentado no banco de pedra sob o frondoso arvoredo.

Perto vê-se uma fonte de bello marmore, engrinaldada por formosas trepadeiras que formam um lindo caramanchão, e mais ao lado uma capella com zimborio em estylo gothico, onde el-rei e seus amigos iam todos os dias ouvir missa dita pelos frades pobres de Toledo.

Chamava-se esta capella da Senhora da Piedade.

Ia decahindo a tarde, estava-se no principio de agosto.

As avesinhas faziam ouvir o seu mavioso cantar e os campos matisados de flores, que espalhavam pelo ambiente um suave perfume de jasmim, baunilha e açucena.

El-rei... está só e na posição que já descrevemos.

Conserva-se tristemente inclinado; de vez em quando levanta a cabeça que na maior parte do tempo tem decahida sobre a mão esquerda.

Volve para o ceu um olhar de tocante supplica e murmura:

-- Meu Deus! que horrivel soffrimento o meu!

-- Fui culpado, é certo!

-- Não soube governar, como devia, o meu reino, commetti bastantes erros, reconheço o. Mas como eu os tenho expiado tão cruelmente!...

-- E’ então certo, que o excommungado não póde jamais ser feliz ou ter ao menos um momento de repouso?!...

-- Por ventura não tenho eu soffrido já bastante?

-- Não me basta ter perdido a esposa, ser deposto e exilado!... serei sempre um reprobo por causa d'essa maldição e ficarei eternamente excluido do resto da humanidade, n’este derradeiro refugio dos infelizes?!... Emquanto que o outro, o usurpador... o maldito... triumpha?!...

-- Meu Deus! perdão se blasphemei... perdão tambem para ella!... que eu seja só a soffrer tudo, pois já estou habituado a ser perseguido pela adversidade... Mas que ella, a minha adorada Mecia possa ainda ser ditosa!....

-- Oh! este nome! como eu soffro cruelmente ao recordal o!...

-- Meu Deus!... será certo que a não tornarei a ver?!

E muito baixinho el-rei murmurou, como se falasse com a imagem que a toda a hora invocava:

-- Mecia, querida esposa... não voltarei a ver-te... esqueceste-te de mim... se tu quizesses, já terias vindo ter com o pobre exilado!.. Os meus inimigos não t’o impediriam, pois nada receiam de mim agora !..

-- E tu não vens!... comprehendo! é porque não queres soffrer as privações, nem os horrores

do exilio; mas tu bem sabes como eu te amei!...

-- Ai! como vae longe esse tempo em que tu juravas não te separares de mim, senão na morte!

-- Faltaste aos teus juramentos, Mecia!... trahiste-me!...

-- Ah! mas, apesar de tudo, minha amada, e do teu prejurio, eu amo-te e perdôo-te!... que Deus te possa perdoar tambem!

Dizendo isto, D. Sancho soltou um suspiro de indefinivel amargura, e de novo inclinou a fronte sobre o peito, ficando em silencio por largo espaço de tempo.

Esse homem, a quem os inimigos engrandeceram «e a quem a desgraça sanctificou» e que se teve alguns leves defeitos, tambem teve muitas virtudes, é digno de todo o respeito e admiração.

Admiramos e veneramos, não o rei, mas o homem bom e justo, que foi uma victima dos padres; e que, se pela força das circumstancias commetteu qualquer erro, áquelles aproveitou, e a elles só, póde ser attribuida a sua responsabilidade.

O soffrimento elevou-o aos olhos de todos.

Quem ha ahi, que não sympathizasse com o exilado, esse martyr de Toledo?

Quem haverá, que ao lêr a historia d’esse desventurado rei, não tenha votado sinceras lagrimas de piedade, pela sua existencia tão atribulada?!

D. Sancho, como sabemos, era de elevada estatura; o seu nobre rosto inspirava bondade e generosos sentimentos, e era emmoldurado por longa barba. Usa os cabellos d’antes, isto é, compridos, ao uso da epocha.

E’ ainda bello, comtudo já não parece o mesmo, que havia sido dois antes;--tanto o soffrimento abate as pessoas, ainda as de natureza mais forte e energica.

O seu corpo está um tanto curvado, e o olhar

tão suave perdeu o antigo fulgor pelas constantes noites de insomnia e pelas lagrimas.

Muito joven ainda, pois, apenas tem 38 annos, já não ha para elle alegria na terra; apenas possue o exilio atribulado pela pobreza e humilhação.

Eis o estado a que o reduziu o supremo poder e odio da terrivel e vingativa «milicia negra.»

Alguns frades sombrios de Toledo iam a miudo visitar o exilado, mas isso apenas servia para mais o atormentar.

Nunca conseguiam senão atribular mais o rei com as suas praticas religiosas e conselhos de paciencia, misturados de receios pelo descanço eterno.

Era uma tortura moral, que devia abreviar a triste existencia do rei, anniquilal-o por completo.

D. Sancho devia succumbir em pouco tempo, rodeado de taes santos, que lhe pregavam taes doutrinas.

Bem desejariam os fidalgos afastar os frades da presença do rei, -- pois comprehendiam quanto lhe devia ser penoso supportar a sua assiduidade; -- mas era impossivel.

E’ sabido que as ordens religiosas, sejam ellas quaes forem, teem sempre preponderado em tudo e em todo o tempo, e vão aonde querem sob o irrisorio pretexto de querer salvar as almas e acarretal-as para o ceu.

Portanto, apesar de todos os esforços empregados pelos amigos de D. Sancho, os padres iam vel o todos os dias.

Não lhe bastava ter sido uma victima da cúria; ainda agora o não deixavam, com as suas exhortações, protestando sempre querer salvar-lhe a alma, com as suas palavras cheias de falsa e hypocrita uncção.

Todavia alguns frades havia d’outra congregação religiosa, que lhe eram sympathicos.

Estes pertenciam á confraria dos frades pobres, da ordem de S. Francisco da cathedral de Toledo.

Eram bons e simples; aconselhavam a religião, mas sem exaggeros nem hypocrisia fanatica, pois eram tolerantes e respeitavam as opiniões dos outros.

Estes, sim, que sabiam cumprir com os verdadeiros preceitos da religião, como ella deve ser ensinada e comprehendida.

Faziam-se amar e respeitar pela sympathia, que inspiravam, e não pelo temor, como tantos outros.

A estes estimava D. Sancho e apreciava a sua companhia.

N’esta occasião, porém, el-rei estava só; os padres deixavam-lhe algumas horas de descanço, que o rei aproveitava, umas vezes lendo ou meditando, outras conversando com os seus amigos.

VIII

AMARINDA

Alguem deslisou por entre o arvoredo, se approximou do rei n’este momento, e sem que elle desse por isso, -- tão absorvido estava em suas tristes reflexões,-- se ajoelhou a seus pés.

Era uma mulher que devia ter 26 annos, mas parecia não ter mais de desoito.

O seu formoso rosto era coroado por bellos cabellos negros e assetinados, dispersos sobre os hombros; o olhar muito meigo, a tez pallida e um tanto morena; o nariz e a bocca de extrema correcção, e o corpo fransino. mas de formas esculpturaes.

Todo o seu conjuncto, emfim, inspirava graça e candura, e era d’uma attracção irresistivel.

A sua belleza era incomparavel e o seu olhar suavissimo traduzia uma alma pura, amante e dedicada até ao sacrificio.

O seu vestido de seda era branco como as azas dos anjos, e cingia-lhe a cintura breve e delicada uma larga fita de seda azul bordada a ouro, recamada de rubis e esmeraldas, deixando cahir as compridas pontas do lado esquerdo.

Os pequeninos pés, que mal tocavam no solo, ostentavam uns sapatinhos de setim branco, com fivelas de pedras como as do cinto.

Completava este trajo, verdadeiramente oriental, um lindo manto de seda de damasco, levemente preso nos hombros, cahindo naturalmente ao longo do corpo.

A joven parecia uma visão aeria, que havia descido do empyreo, para pousar ao lado do triste exilado afim de suavisar os seus soffrimentos.

A joven ajoelhou, como dissemos, ao lado de D. Sancho. Volveu-lhe um olhar de amor e piedade, e vendo que não fora presentida; -- elevou as pequeninas mãos em attitude de acatamento; -- e inclinando-se, beijou-lhe a régia mão.

O rei estremeceu a este contacto,-- pois tão absorto estava, que não déra ainda pela presença d’essa devina creatura! -- levantou a cabeça e fitou um demorado e triste olhar na donzella.

Então o seu rosto, energico outr’ora e maguado no presente, illuminou-se por um momento.

O seu olhar envolveu a joven n’um dôce effluvio de indefinivel ternura; e disse-lhe com bondade e reconhecida gratidão!

-- Ah! E’s tu Amarinda?... -- Só tu me não abandonaste! -- Só tu tens sincera piedade e amor para o pobre exilado! Só tu! e elle. o meu querido guerreiro, é que comprehendem bem os meus pesares, e quanto eu soffro!

-- Os outros sentem as minhas dores, mas não as sabem traduzir.

-- Mas tu querida filha, que és dotada d’uma alma pura de mulher dedicada, não podias deixar de comprehender-me!

-- Oh! Amarinda, como es boa e generosa! Tu que vieste ter commigo ao exilio; tu que não me conhecias e que tudo deixaste, para viveres a meu lado!

-- Como eu te amo e admiro!

Oh! sim; amo-te com um affecto só comparavel ao que se pôde sentir por uma filha estremecida. E eu, -- que não tive a dita de conhecer as alegrias de ser pae -- comprehendo no emtanto como é grande, terno e bom, esse sentimento, que se chama amor paterno.

As palavras de D. Sancho exprimiam tanta tristeza e eram repassadas de tal amargura, que a pobre menina rompeu em sentido pranto e deixou cahir a gentil cabeça sobre os joelhos do exilado.

El-rei continuou mais amargamente:

-- Mas, que recompensa poderei eu dar á vossa affeição tão leal e desinteressada?

-- Sim; eu, o pobre, o reprobo e o maldicto, como vos recompensarei?! Quem sabé mesmo se eu não attrahirei sobre vós a fatalidade que me persegue desde o berço?

Os soffrimentos tornam-n’os descrentes e inconstantes. E estas exclamações do rei mostravam bem evidentemente, que estava proximo a descrer de tudo e de todos.

Amarinda levantou a cabeça e fitou um tão doce e triste olhar em D. Sancho, que este disse-lhe com ternura, e aquella bondade tão meiga, que succedia sempre ás suas crises de desespero:

-- Perdoa me, minha filha!

-- A desgraça fez-me cruel.

-- Eu não duvido da sinceridade da tua dedicação, nem da de Fernando...

-- Eu sei quanto vos desejarieis ver-me tranquillo e feliz; e muito vos amo!...

-- Mas é por essa mesma razão, que eu tremo ao pensar que vós sereis infelizes por minha causa. Sim... infelizes! repetiu o rei:--Pois a sorte quando adversa é contagiosa!...

-- Eis a recompensa, que eu vos dou pela vossa dedicação e amisade!...

E el-rei, tendo novamente soltado estas palavras, num arranco de dôr e de revolta contra o seu tempestuoso destino, chorou!!...

As lagrimas impõem sempre compaixão; -- seja uma creança que chóre, um velho ou uma mulher.

Mas quando essas lagrimas sulcam o rosto varonil de um homem ainda moço,--que foi grande, forte, corajoso e altivo, e que presentemente está tão humilde e debil!... --Oh! então! essas lagrimas transformam-se em fogo, e inspiram mais do que piedade, arrancam nos um brado de dôr e fazem-nos curvar reverentes em frente do que assim é desditoso! Foi o que succedeu com Amarinda.

-- Oh! meu senhor! exclamou a joven : -- não faleis assim, socegai e não vos affligeis.

-- Pois que melhor recompensa posso eu desejar, do que a vossa bondade em permittirdes, que eu aqui venha todos os dias ver-vos e falar-vos ?! Pois não vêdes senhor, como eu sou feliz, quando estou ao vosso lado?

-- Não foi da melhor vontade, muito espontaneamente, que eu vim ter comvosco ao exilio?

-- Eu não anhelava senão por conhecer-vos... e compartilhar vossa dôr!

-- Dizei senhor, que magua ora vos afflige, que dôr immensa é essa, que vos faz chorar assim?

-- Pobre creança! murmurou o rei compadecido; um dia saberás o verdadeiro motivo dos meus pesares.

-- No emtanto devo dizer: são bem raras as creaturas como tu!

E dizendo isto uma ideia dolorosa atravessou-lhe a mente. Recordara Mecia...

Que differença entre esta e Amarinda?

E todavia, o rei amava Mecia e nunca a esqueceria.

Amarinda seria sempre a meiga creança a quem seria muito grato, e amava, (elle o dissera) como se fosse sua filha.

-- Mas levanta-te, Amarinda, disse D. Sancho, reparando em que ella continuava de joelhos.

-- Não é essa a posição que convem a um anjo de caridade como tu; levanta-te e senta-te ao meu lado: -- e al-rei indicou-lhe um logar no banco de pedra, dizendo em seguida:

-- Agora conversemos:

Amarinda obedeceu e tomou logar ao lado do rei.

Asim, conversaram os dois por algum tempo; -- quando appareceu no fundo do jardim um dos fidalgos e se dirigiu para onde estavam.

IX

A PROMESSA DE ABD-ALLAH

Vendo esse fidalgo que se approximava, a fronte do rei acabou por se desannuviar do todo, e foi com um amavel sorriso (porque D. Sancho ainda tinha coragem para sorrir), que o recebeu ao mesmo tempo que lhe dizia:

-- Sede bemvindo meu irmão! Já me tardava a vossa boa companhia. Então como passa o meu guerreiro desconhecido!

Fernando, pois era elle, approximou-se mais, e saudando el-rei com a respeitosa e costumada fraternidade e amor, inclinou-se e beijou-lhe a mão

como o fazia antigamente na côrte, não por servilismo palaciano, mas por muito e puro affecto.

-- Como vos sentis agora meu senhor e irmão? estaes melhor de vossos padecimentos?--perguntou elle, com voz suave, mas em que se divisava todo o cuidado, que lhe ia no intimo d’alma, pelo futuro de seu estremecido irmão.

Havia alguns dias que D. Sancho andava muito abatido, o que inspirava serios cuidados aos seus heis amigos.

-- Agora sinto-me um pouco melhor, -- respondeu el rei, -- mas vós Fernando, tambem me pareceis indisposto, vejo vos tão abatido... e agitado, estaes doente?!...

Effectivamente o rosto de Fernando, mau grado seu, exprimia um mal estar visivel.

-- Oh! eu estou bom senhor! o unico mal que me atormenta e compunge é não poder eu remediar os vossos desgostos. O vosso martyrio muito me pesa; queria ver-vos feliz!...

Dizendo isto. o fidalgo voltou-se para Amarinda e cumprimentou-a gentil e cortezmente, mas com um certo enleio.

-- Senhora minha!--disse elle; --muito me apraz ver-vos aqui.

Amarinda inclinou-se e correspondeu graciosamente ao cumprimento de Fernando, respondendo:

-- Eu por mim nunca me afastaria d’estes logares; e tão agradavel estarmos ao pé d’aquclles a quem devemos gratidão e estima!...

-- Dizeis bem senhora; volveu o mancebo.

-- Amarinda é o vosso bom anjo; -- murmurou o rei

-- Deus pôl-a ao vosso lado, para com a sua graça e candura amenisar os tristes dias do nosso exilio.

-- A sua alma terna e sensivel não pode ser indifferente ao infortunio alheio. Que Deus lhe de o premio, que merece por sua bondade!...

-- Eu não mereço elogios, senhor!

-- O que faço é apenas cumprir um dever sagrado, e que antes me havia sido imposto por meu pae. Pois nunca esquecerei as suas ultimas palavras.

E a joven repetiu a recommendação, que o amir lhe fez nos seus ultimos momentos.

-- «Amarinda! me disse meu pae:

-- Eu fiz uma promessa sagrada, e não a posso cumprir!... Prometti ao principe D. Sancho II, quando elle em um .. combate me salvou a vida... que seria sempre seu amigo e alliado, e jurei-lhe, que se elle algum dia fosse perseguido eu estaria ao seu lado prompto a auxilial-o contra os seus inimigos.

-- Ora tu, minha filha, sabes quanto um musulmano é fiel cumpridor dos seus juramentos ou promessas, e o amor que dedicamos áquelle com quem trocamos o beijo sagrado e que fica sendo de futuro considerado vosso irmão?!

-- Sei, meu pae, respondi eu:

-- «Pois bem; chegou a occasião de eu cumprir a promessa:

-- «El-rei foi perseguido, desthronado e partiu para o exilio, e eu infelizmente nada posso, não só porque tambem eu estou privado de toda a valia, pois que fui derrotado pelos meus inimigos; mas ainda, porque em breve terei soltado o ultimo suspiro, para me reunir a tua mãe.

-- Se eu vivesse, apesar de pobre e sem valimento algum, eu mesmo iria ter com o soberano! Mas a morte approxima-se. Assim; só tu, minha filha pódes salvar a minha memoria do infame labéo de traidor e perjuro.

-- Vai tu, minha filha: -- proseguio elle: -- vai ter com o monarcha aonde elle estiver, -- ignoro o nome da terra, mas podes pedir indicações em Coimbra, -- e quando chegares até elle, diz-lhe:

-- Que o amir Abd Allah não cumpriu o promettido porque morreu!...

-- E se o rei t'o permittir fica onde elle estiver, pois que já não tens pae nem mãe nem pessoa de familia que por ti se interesse. Fala lhe algumas vezes em mim, e diz-lhe que o arabe teu pae não era um ingrato.

A filha do arabe e de Beatriz, lembrando estas palavras do moribundo, accrescentou por entre soluços:

-- Já vedes, senhor, que eu apenas cumpro as ultimas vontades de meu pae.

-- Honrado e digno homem, disse el-rei; -- com a voz embargada pela commoção, -- deveria ser imitado por muitos christãos!

D. Fernando tambem se enterneceu com as simples palavras da joven, e uma lagrima rolou por sobre o seu rosto nobre e energico.

-- Sim; disse elle, -- como repetindo, o que dissera D. Sancho-- honrado homem, que não esqueceu o que devia ao rei! e digna filha sois vós, senhora, de tão bom pae!...

-- Vós, que tanta coragem mostrastes e tanto soffrestes para chegar a Toledo!

-- Pobre creança, suspirou o rei, -- a sua dedicação tornou-a tão valorosa como ao mais forte guerreiro.

-- Quando me lembro de que ella atravessou pelo meio das tropas de Affonso, que cercavam o castello de Coimbra!... quando penso no perigo que ella correu passando sob as suas lanças que de todos os lados a ameaçavam, para ir falar a Martim de Freitas!...

-- E consegui-o, respondeu a filha do arabe.

Foi elle que me disse onde vós estaveis --meu senhor!...

-- Admiro-vos! Amarinda, -- continuou o monarcha,-- e não sei como manifestar por simples palavras o espanto que me causou esse acto de coragem e heroismo, praticado por uma mulher tão debil como vós!

-- Amarinda, interveiu Fernando, -- corre-lhe nas veias o nobre sangue portuguez por parte de sua mãe, e o arabe por seu pae; e isto é o bastante para que a paz duma alma generosa e boa reuna um caracter valoroso e leal.

N’este ponto, mais uma vez se recordou D. Sandio das prophecias do arabe. Como esse homem havia adivinhado o seu futuro?!...

Amarinda e Fernando calaram-se, respeitando o silencio do rei.

Pouco depois chegou a sua velha aia para a acompanhar a sua casa, que era muito perto da morada do exilado.

A joven despediu-se do rei e de Fernando, e foi com a sua fiel AIda, -- uma velha musulmana, que a havia creado e a amava como filha.

Alda expatriara-se para ir viver sempre com a sua princezinha, como lhe chamava.

D. Sancho e seu irmão levantaram-se, e em seguida reuniram-se aos outros fidalgos e entravam no palacio. Era noite.

X

CUMPRINDO A MISSÃO PATERNA

Quando D. Sancho partiu de Coimbra, para se dirigir ao exilio, Affonso o usurpador, como os leitores sabem, pôz cêrco ao castello.

Havia poucos dias que esta lucta durava, quando

appareceu em Coimbra uma mulher nova e de incomparavel belleza, trajando extranhamente.

Esta mulher dirigiu-se ao acampamento, protestando aos soldados querer falar a Martim de Freitas.

-- E’ impossivel, lhe respondeu um official; não vêdes o castello cercado?

-- Emquanto o governador se não render, obedecendo assim ao novo rei.... não póde falar com pessoa alguma.

-- Ide-vos, pois, senhora ;-e não insistais, que d'esse modo incerreis no desagrado do bolonhez, e não conseguireis senão provocar-lhe a colera por irdes contra a sua prohibição. Olhai, que vos digo isto para vosso governo. Affonso não perdoa a ninguem.

-- Mas se eu vos digo que preciso falar ao governador.

-- Estaes bem livre d'isso, senhora.

-- Vamos, não abuseis da nossa paciencia, bradou com voz de trovão um sargento exasperado com a persistencia da desconhecida, a qual se dispunha a avançar.

-- Não avanceis mais um passo para o castello, já vos disse! -- berrou-lhe; -- Aliás!... não respondo pelo resultado.

Detende-vos, senhora! clamou ainda o official, que primeiro falara, e que parecia compadecer-se pela sorte d’aquella mulher.

-- Não deis mais um passo, eu vol-o supplico, pois mais depressa vos matarão, do que falareis ao governador.

-- Vós o vereis. respondeu a joven, agradecendo-lhe com um meigo sorriso, -- nada deveis temer, pois eu por mim não tenho receio algum!...

E, sem esperar mais resposta, atravessou pelo meio das tropas, com uma destreza tal, que elles cheios de assombro e pasmo não lh'o poderam impedir a principio.

Mas, passado o primeiro momento de tão justificada surpreza, mais de mil braços armados de lanças se precipitaram em perseguição da corajosa mulher, porquanto julgavam que ella ia levar alguma mensagem a Martim de Freitas.

Porém baldado foi o intento; a joven, que parecia ser protegida na sua missão pelo proprio Deus, conseguiu transpor todos os obstaculos e chegar incolume ao castello.

Então chamou em alta voz pelo governador, e este apparecendo a uma janella, poude ver a joven e responder ás suas perguntas feitas rapidamente:

-- Sois vós o governador Martim de Freitas? perguntou:

-- «Sou eu, o que desejaes?

-- Dizei-me depressa, se o sabeis, onde está el-rei o senhor D. Sancho II.

-- «Quem sois vós?!

-- Sou a filha do amir, o arabe Abd-Allah, morto ha pouco em Damasco, e que me incumbiu de transmittir as suas ultimas vontades a D. Sancho.

-- «Senhora! respondeu Martim:

-- «Conheci vosso pae, que ultimamente pelejava a favor dos christãos, os quaes muito lhe devem. Vou pois dizer-vos o que sei:

-- «El-rei está em Toledo; e, visto que ides ter com sua real pessoa;... dizei-lhe -- eu vol-o supplico o seguinte:

-- «Que Martim de Freitas cumpre os seus deveres de vassallo leal, -- e que tem resistido e continuará a resistir ao apertado cerco, apesar do desanimo de alguns companheiros.

-- «Dizei-lhe isto, senhora, e que Deus vos proteja e leve sem perigo ao vosso destino.»

-- Ficai descançado, honrado fidalgo; cumprirei fielmente as vossas ordens. Ficai-vos com Deus; e oxalá que a vossa coragem e dedicação possam ainda ser coroadas de feliz exito!

Dizendo isto, a joven despediu-se do governador,

que lhe deu todos os esclarecimentos precisos para ir falar com o rei; -- e, como fizera antes, passou de novo, abrindo caminho por meio dos soldados.

Este rasgo de coragem causou admiração a todos que o presenciaram

O capitão, que commandava o exercito, tocado por tanto valor e desassombro, ordenou que a deixassem passar prohibindo que lhe fizessem mal.

Era inutil essa ordem, pois agora ninguem pensava em a deter, e alem d'isso a desconhecida, que parecia voar, já ia longe. Em breve desappareceu.

Esta mulher, que os nossos leitores já de certo reconheceram, era Amarinda.

Alguem lhe deu um salvo conducto, e a joven poude chegar ao seu destino, poucos dias volvidos, sem que se desse qualquer facto digno de commentar.

Quando chegou a Toledo, procurou D. Sancho, para lhe dar conta da sua missão.

Em seguida, como havia promettido a Alda e ella lhe pedira, escreveu-lhe mandando-lhe dizer onde estava, e a boa mulher em breve tempo se lhe reuniu.

XI

AGRADAVEL SURPREZA

Quando Amarinda chegou a Toledo e se dirigiu ao palacio do exilado, pediu para lhe falar com a maior urgencia.

-- Mulheres aqui? exclamou o rei surprehendido, quando lhe deram a nova.

E, presa de grande agitação, ordenou que a fizessem entrar para a sala onde estava.

Mentalmente, o exilado perguntava:

-- Será alguma enviada da rainha?

-- Sim, é possivel: pois minha esposa decerto me não olvidou!

Em breve se desvaneceu essa esperança, tão persistente e tocante do pobre rei.

Amarinda acabava de apparecer á porta da sala, seguida por Martim Gil e outros fidalgos, que acompanhavam o rei no exilio.

Conduzida á presença de D. Sancho, onde tambem estava o guerreiro, inclinou-se cumprimentando com a mais natural disuncção e graça.

Fernando ia corresponder ao cumprimento da joven, quando se tornou subitamente muito pallido e, estremecendo, murmurou:

Oh! meu Deus, que admiravel similhança! muito se parece com D. Beatriz!...

Imagine-se, pois, do seu espanto, quando ella ao dar conta da sua missão e da mensagem de Martim de Freitas, disse que era filha do amir.

Grande foi a alegria do antigo guerreiro desconhecido, tornando a ver aquella menina, que encontrara uma só vez, quando ella ainda era uma creancinha; e de quem se recordava tantas vezes, pensando que não mais a veria.

Fernando, ao ver Amarinda tão gentil como a linda senhora, que em tempo conhecera... --Fernando, dizemos, julgou chegado o seu ultimo momento, pela tão grata commoção que sentiu.

D. Sancho tambem ficou agradavelmente impressionado, pela belleza e candidez da filha do arabe; e a sua voz maviosissima parecia-lhe d’um encanto extremo.

O rei sabia do casamento do amir com a nobre fidalga, o que de resto não era mysterio para ninguem em Coimbra.

Mas, o que el-rei nunca supposéra, é que ella fosse tão linda, assim como sua filha,

A filha de Abd-Allah era o verdadeiro retrato de Beatriz, realçado pelo dourado da cutis, aquella côr meio oriental meio européa, que tanto lhe suavisava o seu bello e meigo rosto.

Mas a semelhança era realmente notavel;--quem tivesse visto uma só vez Beatriz, e agora visse Amarinda, julgaria estar vendo a primeira, -- com a simples differença de ser mais morena; -- porque a joven era oriental.

Foi isto o que o guerreiro pensou contemplando a extasiado. E póde se dizer, que este foi o mais feliz momento da sua vida

Amarinda egualmente o reconheceu e disse-lhe:

-- Parece-me que já vos vi algures, senhor!... Sim recordo-me, a caminho de Coimbra...

-- Pois ainda vos lembraes do nosso encontro, senhora minha? -- perguntou Fernando enternecido:

-- Tenho boa memoria, volveu ella sorrindo,-- com o seu sorriso meigo e triste, -- e a proposito lembro-me doutro facto...

-- Devo dizer-vos, que um anno depois d’esse acontecimento, -- tinha eu então 6 annos, -- meu pae foi salvo por el-rei de ser morto n'um combate, -- e querendo que minha mãe e eu conhecessemos o seu salvador, foi-nos buscar a um castello, onde nós o esperavamos; e quando o exercito real se aproxima de suas muralhas disse-me, indicando-me o rei:

-- Amarinda: fixa bem na tua memoria as feições d'esse rei, não te esqueças jámais do seu rosto, e sabe que a elle deves o eu estar agora aqui vivo.

-- Sim, meu pae! respondi eu.

-- Desde então senhor! continuou Amarinda, dirigindo-se a D. Sancho, o vosso nome era recordado por meus paes e por mim, sempre com gratidão e saudade.

-- Nunca tambem podemos olvidar o nobre guerreiro que vos acompanhava.

-- Meu pae depois partiu para o Oriente, andou por diversas partes, onde sempre o acompanhámos, minha mãe e eu.

Combateu pelos christãos de quem se tornou um sincero amigo e defensor, em attenção a vós.

-- Vosso pae não voltou mais a Portugal? perguntou D. Sancho.

-- Não, meu senhor, se bem que ardentemente o desejava; chegou mesmo a resolver fazer-vos uma visita; queria, dizia elle, que nós vos agradecessemos pessoalmente.

-- Infelizmente foi impossivel realisar este simples desejo e essa magua o acompanhou sempre.

-- Meu bom pae tinha numerosos inimigos, proseguiu a joven, e com elles teve de sustentar uma guerra difficil, por desegual, pois meu pae viu-se quasi sem ninguem, porque todos o abandonaram ao ver que elle seguia outra causa.

-- Foi uma guerra atroz e desleal, impossivel de sustentar por muito tempo, e apesar de nunca perder o animo, os seus inimigos triumpharam.

-- Sendo emfim derrotado e faltando-lhe os meios de defeza, resolveu ir terminar os seus dias em Damasco.

-- Até n’isso a sorte nos comparou, murmurou D. Sancho: ambos tinhamos de ser exilados; a differença é que elle nunca deixou de ser amado, teve ao seu lado esposa e filha... ao passo que eu... não tive filhos, -- e a esposa roubaram-m’a!

Estas ultimas palavras de grande amargura ninguem as ouviu.

Sim, meu senhor! meu pae foi bem desditoso. Depois de ter sido poderoso, e ter pelejado gloriosamente, como já disse, a favor dos christãos, veiu a ser vencido, e tão perseguido se viu depois, que teve de refugiar-se no triste desterro.

-- Ahi o acompanhamos, a Damasco, -- onde minha santa mãe morreu de pesar com saudades

da sua patria, -- que não tornara a vêr,-- e pelos soffrimentos do esposo adorado.

-- Meu infeliz pae não lhe pode sobreviver, e apesar do seu muito amor por mim, em breve foi reunir-se á sua querida esposa.

-- Na sua ultima hora, pediu me que viesse ter comvosco ao exilio.

-- Eis pois, meu senhor, a triste e simples missão, que me foi imposta, e que eu desejo cumprir...

Amarinda emquanto falava não deixou de fitar o seu meigo olhar em D. Sancho.

Os nossos tres personagens assim estiveram conversando por muito tempo, relembrando o passado; e a miude se referiam ao arabe, exaltando as suas qualidades.

Isto passava-se um mez depois de D. Sancho estar em Toledo.

A joven cumpriu bem a missão de que seu pae a havia incumbido. Todos os dias ia vêr o rei, pois supplicara d’elle essa mercê.

Está pois explicada a sua assistencia junto do exilado.

Todos adoravam Amarinda, apesar de conviverem havia tão pouco tempo. Mas é certo que, ao exilado, o tempo parece mais longo.

O exilado conta as horas por dias, os dias por mezes, e estes por annos.

Assim, havia um mez, se póde dizer, que conheciam aquella joven, e parecia-lhes que era ha muito tempo.

Para que não parecesse extranho aos padres a permanencia da joven em Toledo, divulgou-se a innocente mentira, de que ella era sobrinhi de um dos fidalgos, que acompanhavam o rei.

XII

AMAR É SOFFRER

D. Fernando de Aragão não poude vêr Amarinda, sem que se sentisse attrahido pelos seus encantos.

Amava-a sim! mas com um amor santo e desinteressado, digno de um homem tão brioso e leal como elle.

O filho de Dulce era ainda relativamente moço, tinha quarenta annos, isto é, mais velho dois annos do que D. Sancho.

Os dois irmãos apresentavam uma notavel similhança, mas que os indifferentes não notariam.

Eram da mesma estatura e seus rostos tinham aquelle todo de familia, que faz com que os irmãos, ainda que typos differentes, se pareçam.

N’estes, a unica differença que havia era que D. Sancho tinha um caracter expansivo, ao passso que D. Fernando fora sempre triste e circumspecto.

Era bem parecido com sua mãe, tanto no physico como no moral.

A mesma alma simples e soffredôra de Dulce. A mesma alma pura sem mancha.

Amarinda devia-o amar como a um irmão!...

Ao principio ainda pensou que podesse chegar a ser correspondido pela joven. Mas depressa se convenceu de que isso seria impossivel, pois havia comprehendido que ella amava o rei.

Bem sabia D. Fernando, que o exilado nunca compartilharia esse amor; mas, que importava isso a Amarinda, -- se nem por essa rasão deixaria de o amar?!

Nunca foram, pois, tão bem applicadas aquellas palavras, por demais conhecidas do povo «amar e soffrer».

Assim viviam estes tres entes, sem saberem o que ia no intmo de cada um.

Apenas sabiam, que o rei amava a imagem da esposa ausente, e que nunca a poderia esquecer.

Todos teem o seu ideal.

Amarinda amava o rei. sem que elle o suspeitasse,-- e Fernando amava Amarinda, -- e esta tambem o ignorava.

Todavia isso não obstava a que a paz reinasse em suas almas.

Talvez pareça extranho, e comtudo assim era:-- não exaggeramos affirmando o.

E’ certo que serão raros estes casos de amor tão puro e platonico;--mas algumas vezes, ainda assim, apparecem.

XIII

MAL SEM REMEDIO

O exilado vive triste! não sabe o que é sorrir! e se alguma vez o sorriso lhe contrahe os labios; esse sorriso é mais penoso do que as proprias lagrimas.

Como pode ter alegria o que se vê longe da sua Patria?

As arvores, que sombream os bosques e os jardins, não são as que o viram nascer; as casas afiguram-se n'outro estylo; o sol não o aquece como o da sua terra; o vento sibila com mais fragôr e a chuva que cahe é mais tôrva e sombria ; tudo emfim lhe parece differente.

Nas suas horas de constante e infinda amargura, recorda todo o glorioso passado, concentrando a dôr e o desespero, que lhe causa o egoismo e ambição dos que o condemnaram ao isolamento do desterro.

E’ então, que o odio e a descrença se devem apoderar da sua alma!...

E, se perdeu a esperança de triumphar dos seus inimigos, só uma ideia o póde ainda acalentar, «a vingança!».

Mas se tambem esta derradeira esperança lhe falta, então!... o que lhe resta? A morte... A morte!... e a maldição para os que o perderam, e que ficam rindo talvez da sua victoria!

Não sabemos, mas cremos, que seria isto o que se passava no intimo do desditoso monarcha. Pois, o que a historia nos não diz d’este rei, o coração o adivinha... E Deus?!... e a Providencia?... onde estavam?...

Assim decorriam os dias e os mezes, n’uma constante monotonia para o exilado e os seus amigos.

D. Sancho não sentia alivio nem aos seus pesares, nem á doença, que o ia minando lentamente.

Este soffrimento physico e moral devia terminar em breve.

De Portugal não recebia noticias, ignorava o que se passava na côrte.

Era sobre esse assumpto, que uma manhã falavam el-rei e seu irmão.

D. Fernando de Aragão, adivinhando os mais occultos pensamentos do monarcha, e comprehendendo bem quanto elle soffria, lembrou-se de que talvez lhe fosse grato saber o que ia em Portugal, -- e offereceu-se para ir pessoalmente indagar dos ultimos acontecimentos.

-- Para que? respondeu D. Sancho desanimado, -- quando seu irmão lhe expôz essa ideia.

-- Não vale a pena, -- continuou: -- os negocios de Portugal devem ir bem!...

-- Lá teem rei, que os saberá governar e dirigir melhor do que eu; e seus vassallos devem estar satisfeitos com a preferencia que lhe deram!...

Já não espero voltar á minha patria vivo, o que tem de ser seja!

-- Quem sabe, meu irmão e senhor? volveu Fernando gravemente; -- tende fé pois, que a Deus nada é impossivel.

-- Não! não voltarei lá!...

Tenho a certeza; e mesmo morto quem sabe se me recusarão lá uma sepultura?!

«D. Sancho anhelava por ser sepultado em Alcobaça, ao lado de seus paes. -- Mas nem isso os seus desapiedados inimigos, o bolonhez e o clero, lhe fariam.»

E o rei continuou amargamente:

-- Ao presente só desejava uma coisa, -- saber se minha esposa está na villa de Ourem.

Sempre a mesma ideia predominante no espirito atribulado do desventurado rei !...

-- Senhor! tornou Fernando commovido até ás lagrimas;-- eu vou saber onde está a senhora D. Mecia!

-- Pois bem; respondeu D. Sancho com um vislumbre de esperança, mas que em breve se desvaneceu.

-- Pois bem; repetiu: vai meu amigo, meu irmão, e se poderes falar-lhe dize-lhe que eu não passo um momento sem pensar n’ella!...

-- Dize-lhe qual tem sido o meu martyrio, e que a amo sempre...

-- Ficai descançado meu irmão! eu vou...

-- E se ella quizesse acompanhar-te até aqui... como eu seria ditoso ainda!...

-- D. Sancho, porém, depressa poz de parte esta momentanea illusão, e abanando tristemente a cabeça tornou:

-- Olhae, meu amigo, não vás; preciso de vós; -- alem d’isso seria inutil qualquer tentativa; presinto o que resultaria -- minha esposa não vem; tenho a certeza.

Esta inconstancia do pobre rei não surprehendeu Fernando. Já estava habituado a estes reviramentos de ideia do infeliz exilado.

A infelicidade fizera-o assim; os infortunios mudaram lhe e caracter fogoso e expansivo de outr’ora, por esta apathia presente e por um mal estar constante, de profunda melancholia.

D. Sancho tão depressa dava uma ordem como a retirava.

Este estado de tristeza profunda era motivado pelas saudades da patria!

A doença do rei inspirava muitos receios aos fidalgos. pois todos o amavam sinceramente e lhe eram dedicados em extremo.

D. Fernando cada vez andava mais triste, pois conto muito bem havia dito o rei a Amarinda: «a desgraça é contagiosa.»

O nobre fidalgo não padecia só por si. Padecia tambem pelo rei, a quem a nostalgia matara lentamente e por Amarinda. Ambos lhe occupavam a toda a hora o pensamento... se apenas vivia para elles...

Oh! como elle desejaria vel-os felizes! como elle se sacrificaria de bom grado para desannuviar a fronte de seu irmão?! E quando tal conseguia como se sentia bem!...

E Amarinda! como seria feliz se ella o fosse egualmente!...

Mas ainda que o bem d'elles dependesse da sua desgraça, não se lamentaria, antes ao contrario... sempre havia de os bemdizer.

Fernando viera ao mundo so para cumprir a missão do bem, dedicar-se aos outros, amar e soffrer, e passar pelo cruel tormento de ver todos os que amava partirem para o desconhecido.

XIV

AMOR IDEAL

Amarinda ignorava a paixão do rei por D. Mecia.

Não admira, portanto, que se deixasse possuir de um amor tão puro e ingenuo pelo exilado.

A joven sentia-se attrahida para elle, talvez por saber que era desditoso.

As almas simples como a sua teem d’estes devaneios.

A tortura horrivel do rei, as suas lagrimas ardentes, mixto de desanimo e desespero, com intervallos de descrença, impunham-lhe respeito e inspiravam-lhe compaixão e amor.

Estimava muito Fernando, é verdade, mas o soffrimento deste era tão resignado que o comparava ao d’ella. D’ahi o amor fraternal que sentia por elle, pois comprehendia que as suas almas eram irmãs.

Todos haviam adivinhado os sentimentos da joven com respeito ao seu amor.

Apenas D. Sancho o ignorava.

Um dos fidalgos, cremos que Martim Gil, commovido com a candidez d’aquelle affecto, atreveu-se um dia a dizer-lhe:

-- Senhora! affastae da vossa mente esse amor tão só de chimeras ! Sabei que el-rei D. Sancho não é homem que ame mais d’uma vez na vida.

-- A sua alma amargurada está cheia com a imagem doutra mulher; e jamais deixará de pensar n'ella.

-- E sabeis porque, senhora? porque a ama ainda; como vos o amaes a elle.

Isto disse o fidalgo.

E estas palavras tão simples de Martim Gil, lançaram a luz no espirito da pobre menina, o qual até então estivera submerso em densas trevas.

-- Senhor! volveu ella com triste resignação, tambem não é meu intento fazer-me amar de el-rei; a tanto não chega o meu atrevimento; tenho a sua estima e isso me basta.

-- Devo dizer-vos que se o amo, é simples e desinteressadamente. Amo o, sim! mas como se ama a Deus no céu ou a um pae na terra. Já vedes, pois, senhor, quão mal interpretaes o meu pensamento!

-- Perdoae, senhora minha, se vos maguaram minhas palavras, talvez impensadas, mas supplico-vos que acrediteis na pureza e sinceridade das minhas intenções.

-- E eu agradeço-vos, e podeis crer que não conservarei o menor resentimento, pois bem avalio que se assim me falastes, foi por grande bondade e porque vos interessaes por mim.

-- Então, que Deus vos recompense como vós o mereceis, volveu o fidalgo, admirando tanta virtude e dedicação.

E cumprimentando a muito respeitosa e affavelmente, Martim Gil affastou-se para ir ter com el-rei, que estava no mirante do palacio conversando com os outros fidalgos e alguns frades.

Este curto dialogo tivera logar á porta da capella da Senhora da Piedade.

XV

FERNANDO E AMARINDA

Ficando só, Amarinda entrou na pequena egreja e foi, como costumava sempre, fazer a sua oração, rogando a Deus e á Virgem pelos infelizes.

A oração é o unico lenitivo para a alma crente do que soffre.

Pouco depois a joven sahia da capella com o seu pobre coração mais alliviado e dirigia-se para o caramanchão que havia no jardim, para aguardar a feliz hora de ver el rei.

Eram 4 horas da tarde do mez de setembro.

Amarinda encontrou ahi Fernando, o qual sentado junto da fonte meditava.

Duas pessoas lhe occupavam o pensamento.

Pensava em seu irmão, que de dia para dia via mais acabrunhado e doente, e pensava em Amarinda.

Vendo-a approximar, levantou-se e dirigiu-se-lhe ao encontro para a cumprimentar.

-- Boa tarde senhor !... disse ella com a sua voz maviosissima, correspondendo, pareceis-me triste! accrescentou ao ver o parecer abatido do fidalgo...

-- Tal estou eu como vós senhora; respondeu Fernando, -- aqui não ha alegria!...

-- El rei? perguntou a joven com inquietação.

-- Continua desgraçadamente no mesmo estado, senhora minha...

-- Oh! meu Deus exclamou Amarinda: -- Mas dizei-me senhor! qual é o motivo das amarguras d’el-rei?... pois me parece adivinhar n’elle desgosto maior, do que o da posição!

(A joven agora pensava assim, em virtude da conversa que tivera com Martim Gil).

-- Assim e infelizmente volveu o fidalgo, respondendo aquella observação.

-- E vós sabeis o motivo?

-- Sim, infelizmente! Sentai-vos senhora e conversemos, proseguiu elle indicando-lhe um banco de pedra, que ficava em frente.

A joven tomou ahi logar: e D. Fernando de Aragão começou a sua narrativa nos seguintes termos:

-- Quereis saber senhora, o que alquebrou o animo d’el-rei? ouvi me pois!

-- El-rei foi um guerreiro destemido, e deu sempre as mais edificantes provas de valor e generosidade.

-- Nunca conheci outro, que se lhe podesse comparar em bondade e coragem.

-- Sim: esse, que agora, vós vêdes, triste e curvado ao soffrimento, eu o vi outrora altivo e digno, cheio de energia e garbo, luctando corajosamente contra os mouros.

-- N’esse tempo, era o mais gentil guerreiro, que apparecia no campo da batalha.

-- Elle via a morte proxima, sem que mostrasse ou sentisse temor.

-- O seu olhar nunca se desviou com espanto, em frente do perigo.

-- Nunca conheceu pavôr nem soube o que era recuar.

-- Eu vio-o em lucta com o clero e a nobreza, que o perseguiam, mostrando sempre a maior firmeza d’animo.

-- O clero não o poupava a toda a sorte de humilhações, a guerra que lhe promovia era atroz e traiçoeira; comtudo el-rei ia resistindo.

-- Elle viu, em Santarem, seu irmão o infante de Serpa cumprir dura penitencia, que por alguns desatinos lhe havia sido imposta por Gregorio IX.

-- Elle o viu descalço!... Viu seu irmão, com baraco ao pescoço, coberto de vilipendio, e açoitado á porta d’um templo por um frade!...

-- O rei assistiu a todo este horror, sem lhe poder pôr cobro, pois que o pobre infante, fanatisado pelos padres, se quiz prestar a cumprir essa penitencia.

-- D. Sancho viu todas estas miserias e muito soffreu.

-- Pois bem! proseguiu Fernando:

-- Apesar de tudo não desanimou de triumphar um dia dos seus inimigos.

-- Elle resistiu depois contra o usurpador, sem que nunca pensasse em se humilhar. O odioso conde de Bolonha, se quiz a corôa, teve de sustentar uma lucta cruenta com seu irmão. Affonso foi terrivel e deshumano.

-- Todavia, el-rei não perdeu a coragem, e continuou dignamente defendendo os seus direitos.

-- Mas, ai! não foi por muito tempo!... Os infames bem sabiam como subjugar e abater o corajoso monarcha

-- Affonso, não contente de se levantar em armas contra seu irmão, planeou, de combinação com o clero, um projecto tenebroso, que foi o rapto da rainha.

-- Oh meu Deus! tanta perversidade para ferir um homem bom e justo! murmurou Amarinda, com o rosto sulcado por abundantes lagrimas.

Fernando continuou:

-- Os seus inimigos sabiam que só assim poderiam triumphar e ferir o rei mortalmente; -- e como vedes senhora, não se enganaram.

-- E nunca se soube da rainha?

-- Julga-se que os seus raptores a levaram para Ourem, onde a conservaram em um castello sob prisão, durante algum tempo...

-- Agora, porém, suppõe se que a rainha D. Mecia esta em liberdade; pois, visto que el-rei veiu para o exilio, já não teem interesse algum em que ella continue em sequestro.

-- Admira-me que essa senhora, vendo se em liberdade, não viesse ter com seu esposo ao exilio! Certo, por que não lh’o consentiram?!...

Fernando não respondeu; repugnava-lhe fazer qualquer revelação, n’esse sentido, áquella joven tão simples.

Teria de lhe dizer, que o mundo é cheio de enganos e egoismo! teria de lhe dizer, que a sociedade d uma chaga hedionda, medonha de corrupção e vileza!

Fernando não era homem para dizer tal e lançar assim a semente da desconfiança nos espiritos; e jamais n'aquella joven tão crente que não acreditava que o mal podesse existir. Preferiu pois calar-se.

Mas, interrogado de novo, respondeu:

-- Se a rainha não veiu ter com o exilado, foi porque decerto não pode; qualquer motivo independente da sua vontade não lhe permittiu que o fizesse! talvez esteja com a sua familia em Castella, na corte de Fernando III.

N’este ponto Fernando terminou a triste narração.

Acabava de avistar D. Sancho que muito vagarosamente se dirigia para a fonte.

Acompanhavam n’o dois frades.

Amarinda enxugou as lagrimas e fez deligencia para sorrir, quando viu o rei proximo.

XVI

NOBRE SACRIFICIO

-- Já aqui estaes ha muito? perguntou D. Sancho.

-- E’ verdade real senhor, esperava-vos.

-- Tenho estado a conversar com frei Thomaz e frei Jacob. Eis o motivo porque hoje chego mais tarde.

Frei Jacob era um dos que a miudo visitavam D. Sancho, mas não se parecia com os da communidade a que pertencia.

Dos taes frades, que apenas sabiam falar em céu e inferno e na salvação ou condemnação das almas.

Jacob era um frade simples e bom, e tinha intelligencia bastante para conhecer as fraquezas ou velleidades do proximo; era, como frei Thomaz, tolerante e justo.

Tinha por norma respeitar as ideias dos outros, para que respeitassem as d'elle.

Este ao menos não apoquentava o exilado com doutrinas hypocritas e enfadonhas.

Ainda havia alguns como elle, mas eram mais raros do que a propria felicidade.

Amarinda e Fernando haviam-se levantado para irem ao encontro de D. Sancho.

Então o rei dirigindo-se aos dois disse gravemente:

-- Meus bons amigos, falavamos a vosso respeito... isto e sobre o vosso futuro!

-- Eis o que diziamos.

-- Julgo ter comprehendido querida Amarinda, que meu irmão vos ama e que vós compartilhaes

d'esse affecto, e assim desejava que vos unisseis pelos laços do matrimonio.

Fernando ouvindo estas palavras impallideceu. Amarinda pelo contrario prestou toda a sua attenção, sem deixar transparecer em seu mimoso rosto as diversas impressões que se lhe debatiam na alma.

El-rei continuou:

-- Sim, meus amigos: tenho a persuasão de que vos amaes; e eu que pouco tempo já poderei viver desejava saber que ao menos vos deixarei felizes!...

-- Agora dizei me sinceramente: ter-me-hei eu enganado?

E el rei fazendo esta pergunta sorriu com bondade.

Fernando, muito commovido e surpreso, ia para responder francamente a D. Sancho, que esse enlace seria impossivel.

Amarinda, porém, adivinhando o que se passava na alma do pobre moço e contra tudo o que elle esperava, apressou-se a responder primeiro.

-- Senhor! disse ella, não vos enganaste; effectivamente os nossos sentimentos são o que acabaes de manifestar.

-- Então, amaes Fernando e estimareis ser sua esposa?

-- Eu amo-o, respondeu a joven simplesmente, mas com voz clara e em que não se divisava a menor commocão.

-- E vós Fernando? perguntou el-rei.

-- Senhor: os meus sentimentos por Amarinda são os mais puros; amo-a como a uma irmã muito querida, eu amaria se a tivesse.

Fernando havia comprehendido o nobre sacrificio da joven.

-- Sim, pensava elle.

-- Amarinda não quer affligir Sancho, vê o proximo a partir, sabe que elle soffre pensando que a deixa so no mundo sem amparo, e para não lhe amargurar os ultimos momentos, consente n’um casamento que se não lhe é odioso, tambem não é a realisação dos seus sonhos por tanto tempo idealisados.

-- Devo eu, pois, consentir n’este sacrificio? perguntou elle a si mesmo: Oh! não... nunca!...

E Fernando volveu um olhar de supplica para a filha do arabe.

Esta sorriu meigamente e disse com a sua voz suave e acariciadera:

-- Então! que respondeis Fernando? -- fazendo esta pergunta a joven parecia dizer tudo o que se passava em seu coração.

O seu olhar queria dizer: uma recusa da nossa parte será a sentença que ferirá o nosso amado rei, cavando lhe mais depressa a sepultura.

Fernando leu estas palavras no doce e expressivo olhar d’aquella mulher. Então não vacillou mais e respondeu:

-- Serei o esposo de Amarinda, meu irmão!

Os dois frades sorriram bondosamente, ouvindo esta resposta tão prompta.

Assim como el-rei, estimavam este enlace, porque julgavam ter feito a felicidade d’aquelles dois entes.

Então D. Sancho fez um signal a frei Thomaz, que subiu.

D'ahi a pouco tornava a apparecer com os restantes fidalgos, os quaes el-rei mandara chamar para serem testemunhas do casamento.

XVII

DUAS ALMAS

QUE SE COMPREHENDEM

EI rei deu o braço a Amarinda, e seguidos de Fernando e dos fidalgos entraram na capella, a que já nos temos referido.

D. Sancho ia ser o padrinho. Fernando e Amarinda ajoelharam em frente do altar da Senhora da Piedade; em seguida frei Thomaz uniu as mãos dos noivos, e feitas as sacramentaes perguntas do estylo, abençoou-os.

Volvido pouco tempo sahiam da capella.

Amarinda era esposa de D. Fernando, á face do mundo e da egreja.

D. Sancho agora mostrava se mais tranquillo e tinha um certo ar de satisfação, o que n’elle ha muito tempo era raro.

Mas explica-se: O bom rei, imaginava ter encontrado o meio de fazer a felicidade de seu irmão e da filha do amir.

E pensava: Que eu seja desgraçado embora! mas que os meus bons e queridos amigos sejam ditosos!

Algum tempo depois, Fernando encontrava-se com sua esposa e dizia-lhe:

-- Minha querida Amarinda, seremos sempre dois irmãos, como até aqui; o nosso viver futuro em nada será alterado.

-- Oh! meu irmão! Oh! meu amado ! -- exclamou ella cahindo lhe nos braços.

-- Eu amo-te sim!...

-- Bem sei minha querida e minha adorada, bem sei!... comprehendo o teu amor e o teu sacrificio, ambos esses sentimentos dignos d'um anjo como

vos!... E eu... amar-vos-hei da mesma fórma.

-- Obrigada Fernando, meu irmão.

E aquellas almas boas e meigas, e por egual ingenuas e leaes, abraçaram-se terna e fraternalmente e trocaram um innocente beijo.

Estes dignos entes haviam consentido n'aquelle casamento, simplesmente para condescender com o rei a quem amavam acima de tudo, e sabiam que desgosto immenso seria o seu se viesse a saber que se tinha enganado em suas conjecturas.

D. Sancho ficou sempre convencido de que elles se amavam.

E tinha razão: porque elles estimavam-se mutuamente. e essa affeição que tinham um pelo outro era das mais sinceras.

Não podemos affirmar, que a alegria reinasse em seus corações, não! Mas gosavam de uma paz d’alma e um socego de espirito só dignos das consciencias puras como as suas.

Ha pessoas, que são destinadas ao infortunio e soffrem resignadamente todas as dores.

Fernando e Amarinda eram d’esse numero, não soltavam uma queixa.

Por esse motivo, todos os julgavam felizes.

Tambem Alda, a velha aia, ficou muito contente, com o casamento da sua princesinha

XVIII

O RAMO DE FLORES

Certo dia Fernando e sua joven esposa estavam no jardim, apanhando flôres para fazerem um ramo que destinavam ao rei.

D. Sancho amava as flores, e todos os dias os seus dedicados amigos o mimoseavam com as mais lindas e raras que havia.

Fernando ia colhendo as que estavam mais altas, como eram as camelias, o jasmim, a magnolia e a madresilva.

Amarinda ia reunindo as que ficavam mais perto, rosas, verbena, baunilha, malva e hortensia.

As flôres iam rareando, estava-se em fins de dezembro, e o inverno ia rigoroso.

-- As flôres vão desapparecendo!--disse Fernando:

-- E sabes minha querida Amarinda, o que me faz pena?

-- E’ porque com o desapparecimento d’ellas, tambem vae peorando o rei. Sim o nosso amado irmão vae-se finando lentamente, de dia para dia.

-- Assim é meu Fernando, tens razão; infelizmente el-rei peóra.

Dizendo isto, a pobre joven voltou-se um pouco para esconder as lagrimas.

-- Oh! Amarinda, muito triste é este mundo para os que soffrem como nós!...

-- Tu tambem soffres! meu adorado Fernando! eu bem sei. -- disse Amarinda muito triste: -- e approximando-se d’elle tomou-lhe as mãos com o maior carinho.

-- Oh! sim volveu o desgraçado: e depois d'uma breve pausa continuou:

-- Olha minha amada, eu nunca fui feliz. Não conheci meu pae, e desde muito novo tive de separar me de minha santa mãe. E' talvez devido a isso, que eu possuo um genio concentrado. Comtudo eu desejava amar e dedicar-me a alguem; amei o rei que era meu irmão, como a Deus, e amo-te a ti como se adora a Virgem...

-- Ah! mas em breve, muito em breve talvez, aquelle que eu tanto amo e venero terá partido.

-- Meu pobre Fernando, tão bom e generoso e tanto tens soffrido. Não te afflijas mais, não?... supplicou Amarinda meigamente, e fitando os seus bellos olhos onde ia toda a sua ternura, no rosto doloroso do mancebo.

-- Se eu vejo, -- tornou Fernando cada vez mais amargurado,-- que todos vão e me deixam!

Era a primeira vez na sua vida que D. Fernando de Aragão tinha um momento de fraqueza e desabafava.

Grande, muito grande devia ser o seu martyrio.

-- E sabes Amarinda? -- continuou elle:

-- Sabes o que eu desejava?... era que Deus, compadecendo-se de nós, nos levasse ao mesmo tempo. Isto nao é egoismo da minha parte pódes crer, -- é por que assim nunca nos separariamos. E eu temo tanto isso!...

-- Talvez Deus te ouça meu irmão,-- disse a joven com fé.

-- Deus, tão bom e misericordioso, decerto não hade separar creaturas, que tanto se amam.

-- Oxalá! Deus o permitta, -- murmurou Fernando.

Dizendo isto, o fidalgo elevou um supplicante olhar para o ceu.

Então pareceu-lhe ver as imagens de Christo o meigo Jesus e da Virgem Maria, sorrindo-lhe docemente e dando-lhe esperanças de abreviar o seu soffrimento. Completava este divino quadro o meigo e angelico rosto de Dulce. A alma de sua mãe, a alma da boa Dulce, pairava ao seu lado.

Fernando ergueu as mãos!... ia faltar! A doce e linda visão desappareceu, enviando-lhe antes um sorriso de amor e esperança.

Está prompto o ramo; vamos leval-o a el-rei.

E Fernando e Amarinda dirigiram-se para o palacio.

D. Sancho, agora, sahia poucas vezes; occupava-se em escrever o rascunho para o seu testamento.

XIX

O TESTAMENTO

El-rei está assentado em frente duma mesa, sobre a qual se veem diversos pergaminhos e livros.

O rei escreve.

Sentindo vozes perto, voltou-se, e vendo afastar um reposteiro, sorriu com o seu triste sorriso de martyr para os visitantes, que acabavam de apparecer á porta.

-- Ah! sois vós, meus queridos irmãos!... entrae...

-- Senhor! nós não queriamos importunar-vos; estaes escrevendo... e então voltaremos a outra hora.

-- Não me estorvaes!... descançae; o que eu quero é ter-vos ao meu lado sempre.--E continuou muito agitado, -- isto está para breve, mas ainda assim espero que poderei concluir o meu testamento.

-- O que quereis dizer, senhor meu? que isto está para breve?! -- perguntaram involuntariamente, sem saberem o que diziam, movidos pela dôr, Fernando e Amarinda!

-- Nada de cuidado, não penseis mais, no que eu disse.

E mudando de tom, o rei exclamou:

-- Ah! trazeis-me flores?

-- Isso é que eu estimo: a vós... e a ellas.

-- Assentae-vos, querida Amarinda; e vós, Fernando? então!...

Os dignos amigos de D. Sancho tomaram logar junto d’elle, e por muito tempo estiveram conversando.

Fernando e Amarinda, apesar dos seus tristes presentimentos, conseguiam mostrar-se tranquillos em frente do monarcha; e procuravam distrahil-o.

Frei Thomaz chegou d’ahi a pouco e tomou parte na conversação, que versava sobre acontecimentos diversos, e todos tendentes a afastar da imaginação do rei pensamentos penosos.

Infelizmente não o conseguiam.

D. Sancho continuava persistindo sempre n'uma idéa fixa.

Era a lembrança da mulher, que o ferira no mais intimo da alma com o seu triste abandono e ingratidão,-- pagando lhe assim o amor com que elle a havia distinguido entre todas as mulheres.

D. Sancho, no seu testamento, nunca escreveu o nome de sua esposa Porque?!

Talvez porque esse nome, escripto pelo seu punho no testamento, seria a ultima e a maior das humilhações? Talvez!

Sim, devia ser isso; o rei escondeu no mais recondito do seu terno coração as saudades do seu amor malfadado pela formosa Mecia; e levou-as para o tumulo, sem nunca ter confiado ao papel os sentimentos que lhe invadiam a alma nos seus ultimos momentos.

Eram estas as idéas que lhe occupavam agora a mente, sem que a amisade dos seus companheiros dedicados lograsse fazel-o distrahir.

XX

ULTIMOS MOMENTOS DE D. SANCHO II

D. Sancho II o exilado, a victima da curia romana e do intrigante clero; esse rei que tanto soffreu, o martyr de Toledo, emfim, vae em breve descançar a pesada cruz da sua existencia tão attribulada.

O martyr tem esgotado até ás fezes o calix da amargura.

O seu soffrimento, porém, vae ter um breve termo.

D. Sancho, o glorioso Martyr, para quem o exilio foram apenas alguns mezes de pavorosa agonia, a quem não valiam consolações de amizade, porque lhe faltava o terno amor da esposa, está proximo a exhalar o ultimo suspiro.

D. Sancho está deitado de costas sobre o leito; tem vestida uma especie de tunica cinzenta, e sobre si uma colcha de seda, que elle n’um movimento mais agitado havia conseguido afastar um pouco, porque o affrontava pelo accesso de febre que o consumia.

O seu nobre rosto, fatigado por tão prolongado soffrimento, está contrahido; e o olhar, outr’ora suave, mas agora immovel, cravado no vacuo. Os braços estendidos ao longo do corpo emmagrecido, as mãos diaphanas, tão finas e brancas como o marfim, arrepanhando um tanto a roupa.

Está n’uma prostração completa de meia somnolencia, pronuncio da morte proxima.

No quarto estão reunidos em piedoso recolhimento todos os nobres, que o teem acompanhado no exilio, e alguns padres.

Ao lado do seu leito está um ancião murmurando orações e assistindo-lhe ao fim.

Reinava um silencio sepulchral.

El-rei desperta d’este somno, agora muito agitado, e chama seu irmão e a esposa d’este.

Fernando e Amarinda, approximam-se do moribundo, tentando, mas... baldado intento! -- conter as lagrimas.

Ajoelharam.

El-rei ergueu-se um pouco sobre o lado esquerdo, e pondo-lhes as mãos sobre a cabeça, disse-lhes com a maior ternura e amor:

-- Sede abençoados e amae-vos, meus filhos... E se Deus me receber em seu seio, pedirei... para que vós... sejaes venturosos...

-- Eu vos abençôo... por todo o bem que me tendes feito com a vossa amorosa companhia...

-- Meu irmão muito amado! balbuciou Fernando tristemente e na mais viva anciedade da sua grande dôr: -- Pedi tambem a Deus, que nos chame depressa para junto de vós! pois este mundo causa-n’os tedio.

-- Sim! disse Amarinda, -- pedi a Deus por nós, meu rei e senhor! que queremos partir já comvosco.

O rei comprehendeu por estas simples palavras, tão dilacerantes no sentido e modo como haviam sido pronunciadas, -- tudo o que os seus queridos irmãos tambem soffriam.

-- Cumpra-se a vontade de Deus, murmurou D. Sancho dolorosamente, -- pois já vejo que não podeis ser felizes... Bem dizia eu que chamaria a desgraça sobre vós! Não o quizesteis crer!...

-- Não!... Não!... exclamou Fernando:--nos somos felizes, mas o que não podemos é viver sem vós!... Oh não! o que desejamos é acompanhar-vos ao desconhecido.

-- Muito me tendes amado, murmurou D. Sancho: e... inclinando-se para Fernando e Amarinda,

-- que haviam encostado os rostos sobre o seu leito, com desalento, -- osculou os paternalmente, repetindo:-- Meu irmão! minha filha! Oh! Deus protegei-os!...

Todos choravam, incluindo o bom padre que estava á cabeceira d'el-rei!...

-- Meu senhor, disse frei Thomaz, descançae:, tranquillisae-vos, pois o bom Deus não desampara os que creem n’elle com tanta fé!... deixae senhor,

-- que os vossos bons amigos serão ditosos ainda!

-- Assim seja! -- disseram todos sinceramente commovidos, -- Deus vos oiça, e que elles sejam felizes, que bem o merecem!

Fernando e Amarinda tomaram as mãos de D. Sancho e depuzeram n’ellas beijos ardentes.

Pouco depois el-rei disse, que se queria confessar.

Sahiram todos do quarto, ficando só o moribundo com o padre.

A confissão não foi demorada.

O padre lançou-lhe a absolvição e, pegando na cruz com a imagem do divino Jesus, chegou lh’a aos labios

D. Sancho beijou o «Martyr do Golgotha», o -- Salvador da humanidade inteira, -- com o maior respeito e fervor.

Volvidos alguns momentos, os amigos do exilado voltaram a occupar os seus logares.

Era geral a consternação.

Não se ouvia senão algumas palavras sem nexo, soltadas pelo moribundo

E’ impossivel descrever a dor que todos sentiam n'este momento amargurado.

Póde se apenas fazer ideia, pelo horror que a

morte inspira, arrebatando-nos um ente querido e muito amado.

A desolação, misturada de pavor, pesava sobre os assistentes de tão triste scena.

-- «Deixae-me só! pediu el-rei: -- Ide descançar; a hora ainda não chegou;... e se me sentir peior chamo-vos.

A ordem de el-rei, todos se levantaram affastando-se do quarto; mas conservaram-se perto, para acudirem ao primeiro signal do rei.

Pouco depois começava o delirio era meia noute!...

XXI

O DELIRIO

-- Oh! meu Deus! como é triste o exilio longe da mulher amada!...

-- Mecia... Senhora minha... ente que eu adorei e amo ainda e sempre... porque me abandonaste?...

-- Não ver o meu martyrio e as minhas lagrimas?!...

-- Não ouves os meus gemidos?!...

-- O Mecia! minha esposa,... minha amada... tem piedade de mim, e não me deixes morrer no abandono!...

-- Que ao menos em meus ultimou momentos, eu vos veja ao meu lado, sorrindo me:

-- Que as minhas tremulas mãos sintam a doce pressão das tuas, e que a minha já tão apagada vista possa ainda contemplar pela ultima vez o teu formoso rosto e suave olhar!...

-- Lembra-te, que eu te amei como jamais mulher alguma foi amada!...

-- Por ti meu amor, eu sacrificaria tudo... Mas... Ai!... bem mal me retribuiste.

-- Mecia... Mecia... Mecia...

E D. Sancho allucinado, e já nos ultimos paroxysmos da agonia, cahiu prostrado sobre as almofadas do leito ao soltar estas sentidas queixas.

Ah! se Mecia pudesse ver seu esposo n’este triste estado: -- e, se como dizem,-- foi certo -- Mecia ter abandonado el-rei de sua livre vontade, -- como ella se arrependeria agora de o ter abandonado? E como ella teria remorsos?!

Mas não! Mecia ignorava as torturas do pobre rei,-- e se ignorava, é porque já o não amava; pois o egoismo não é proprio da indole do que ama.

Alguem entrou n'este momento no quarto de el-rei e se approximou, com infinitas precauções, do seu leito.

Era D. Fernando de Aragão.

-- Meu senhor! disse elle dirigindo-se a D. Sancho.-- Meu irmão! repetiu: -- Que magua ora vos afflige tão cruelmente?.. ainda pensaes n'ella? ainda em vosso grande e nobre coração ha amor para a rainha?!

-- Oh! como deveis soffrer meu santo martyr!..

-- Ah! sois vós D. Fernando? -- perguntou el-rei com a voz quasi extincta; e logo em seguida accrescentou com o olhar desvairado:

-- Trazeis-me noticias de Mecia?

-- Ella ainda me ama? Responde meu irmão!... Vistel-a ? ella dirige-se para aqui? vem acompanhar-me no exilio?...

-- Fallai meu amigo dizei o que sabeis!...

-- Meu irmão! respondeu Fernando no auge da maior afflicção, pela anciedade do infeliz rei.

E tentando illudir a sua impaciencia por um piedoso engano disse:

-- A senhora D. Mecia hade estar a chegar, ainda

a não vi mas julgo que vem a caminho de Toledo.

-- Sim! sim! -- volveu D. Sancho, -- é isso mesmo, tens razão, olha... parece-me, que já... ouço a sua voz!

-- Ora escuta meu amigo! é ella... não é? Ouves a sua voz?!...

E o rei dizendo isto, levantou-se um pouco sobre o cotovello, e voltou-se para a poria, com a mão direita collocada sobre o ouvido, em attitude de quem applicava o sentido para ouvir qualquer som de vozes ao longe.

Fernando estremeceu; um arrepio percorreu-lhe o corpo todo, ao vêr o delirio de seu irmão.

E, levando as mãos ao peito como para comprimir as palpitações de seu caração, murmurou numa supplica:

-- Meu Deus! compadecei-vos do desventurado rei D. Sancho!... Que ao menos a sua agonia não seja longa, pois, que muito tem já padecido n'este mundo

E Fernando continuou movido por lancinante dôr:

-- Não bastará meu Deus! que, para expiar alguns erros remotos de seus antepassádos, se veja abandonado de todos aquelles a quem amava, e longe da sua patria onde foi tão perseguido? -- vêr-se condemnado a viver só e pobre, aqui n'este triste exilio?... emquanto o outro, o usurpador, o ambicioso Affonso, entra triumphalmente nos seus dominios e vae pompeando no throno que roubou?

-- Dura expiação na verdade: continuou Fernando:-- Poucos reis terão sido assim desapiedadamente feridos pela adversidade, e tratados tão cruelmente pelo Estado e pela propria familia.

-- O Estado! dizes tu? -- perguntou D. Sancho, que ouvira e comprehendera estas ultimas palavras.

-- Mas, que me importa a mim o estado? e que meu irmão Affonso seja um usurpador dos meus

direitos ligitimos?! Ora adeus! que me importa isso!...

-- Falla-me tu d’ella, da minha querida Mecia, d’ella é que eu quero ouvir fallar!...

-- Mas tu não dizes nada? -- volveu D. Sancho com impaciencia mal contida.

O pobre Fernando queria responder, mas não podia; parecia-lhe que mão invisivel lhe comprimia a garganta, estrangulando-o.

Fez ainda um esforço sobrehumano para fallar,. mas foi-lhe impossivel; não lhe occorreu coisa alguma que dizer, estava como que paralysado em frente d’aquelle agonisante

-- Meu senhor! não vos amargureis assim; disse da porta uma voz suavissima.

-- Quem me chama? perguntou el-rei.

Uma fórma branca deslisou n’este momento em volta do leito do moribundo, inclinou-se e depoz-lhe um beijo d’amor filial na fronte ardente

-- Ah! és tu Amarinda ? approxima-te mais minha filha, que eu adivinho te mas já te não vejo.

-- Meu pae! meu pae! disse a joven n'um soluço.

As palavras de Amarinda foram um linitivo ás dôres do rei.

O delirio abrandou.

A boa menina assentou-se ao pé do leito e encostou a cabeça sobre as almofadas ao lado de D. Sancho Fernando estava em egual posição.

Entretanto o desventurado rei havia socegado um pouco.

Lá para a madrugada, D. Sancho, conhecendo que era chegada a sua ultima hora, despediu-se dos seus amigos, exhortando-os a que se resignassem; e, abençoando os pela ultima vez, deixou descahir a fronte maguada sobre o peito de Fernando; e soltou o ultimo suspiro serenamente e sem agonia.

Aquelle que havia dado numerosas provas de valor nas batalhas contra os mouros, ficando sempre vencedor, -- esse que foi um rei magnanimo, justo e bom, e um amigo leal e sincero, esse rei cujo reinado durou 24 annos, e que por ultimo cahia vencido na lucta movida pelo clero, e que elle galhardamente havia sustentado por muito tempo, -- deixára de existir!... Roma vingava-se assim das affrontas recebidas no reinado de Affonso II.

Estava consummada a grande infamia, a grande obra de iniquidade.

Roma e o clero em geral, podiam cantar victoria: a vingança não podia ser mais completa.

D. Sancho II, o rei liberal, que digna e altivamente resistira, sem jamais se prestar a ser vassallo da «seita negra,» -- era morto, emfim.

Morreu o Martyr de Toledo! haja regosijo na egreja.

Fernando estreitou ao seu coração o corpo gelado do grande Martyr, beijou-lhe o rosto e as mãos fervorosamente, e depondo a cabeça d’el-rei sobre as almofadas com infinitas precauções, deixou-se cahir de joelhos, soltando estas palavras, onde ia toda a sua immensa dôr:

-- Morreu o rei! morreu meu irmão!...

Os fidalgos approximaram-se, clamando n'uma só voz:

-- El-rei é morto!!...

XXII

O ULTIMO GOLPE

Ouviu-se um grito de indefinivel e dilacerante dôr, e ao mesmo tempo o baque de um corpo que cahia no pavimento.

Os fidalgos, que haviam accorrido, estremeceram todos soltando exclamações de espanto e compaixão.

Aquelle grito fôra soltado por Amarinda, ao vêr que el-rei era morto. E tão profundamente foi ferido o seu terno coração, que a pobre menina cahira mortalmente ferida pela cruciante dôr.

Fernando aterrado, afflicto ao ultimo extremo, levantou-se e correu em seu soccorro.

A joven abriu os olhos, teve ainda um sorriso de doce enlevo para o seu amado, -- quiz erguer-se, mas não pôde.

Então Fernando inclinou-se e amparou-a carinhosamente, para a ajudar a levantar-se.

Amarinda depôz-lhe um beijo na fronte, que estava banhada pelo suor de uma agonia lenta. E elle, o infeliz, implorava: -- pensando reanimar a sua amada:

-- Amarinda... minha irmã... peço-te que vivas: e a voz embargava se-Ihe pelas lagrimas.

-- Mas, tu morres, minha amada!... Oh! não... não vãs sem mim!... Não me deixes... peço-te.

-- Bem o quizera eu, meu querido Fernando, respondeu ella, -- para te acompanhar e amar; mas olha... vês tu! -- Deus está a chamar-me!...

-- Mas descança, meu irmão... que em breve estarás commigo... na eternidade.

Dizendo isto, a joven conseguiu erguer-se um pouco, e agarrando nas mãos de Fernando, levou-as

aos labios quasi gelados pela morte. Depois inclinou o formoso rosto sobre o hombro do mancebo, e ficou immovel, resvalando levemente até junto do leito mortuario.

A sua alma, meiga e pura, havia voado para as regiões celestes.

Foi o ultimo golpe vibrado sobre Fernando.

XXIII

RESIGNAÇÃO DE MARTYR

D. Fernando de Aragão, assim ferido no mais fundo d’alma, não soltou um grito ou uma queixa sequer.

Outro qualquer no seu logar, teria blasphemado ao vêr-se tão cruelmente perseguido pela fatalidade.

N'um momento acabara de perder os entes que amava tão ternamente, o irmão estremecido, e a mulher amada.

Mas aquelle, a quem no decurso da primeira parte d’este romance, tratámos pelo guerreiro desconhecido, não soltou uma palavra. Apenas levantou um olhar ao céu; porém, esse olhar não era o de um descrente, renegando a bondade Divina, e sim, o olhar bom e triste do que soffre resignadamente.

Inclinou-se para Amarinda, que jazia hirta e inanimada aos pés do leito do rei.

Ajoelhou ao seu lado e deixou correr livremente as lagrimas que foram cahir uma a uma sobre o pallido rosto da morta.

Esta dôr muda, sem gritos nem espantos, enternecia mais, que quantas dôres exaltadas possa haver.

As testemunhas d’essa tão triste scena respeitaram o seu soffrimento, não lhe dispensando consolações que seriam inuteis n’esta occasião.

Todavia, comprehendiam e sentiam aquella dôr, e conservando se em silencio misturavam as suas lagrimas com as d’elle.

Emfim, Fernando ergueu-se, -- levantou o corpo da sua amada, e tomando o nos braços, dirigiu-se com o seu precioso fardo para o convento de S. Francisco dos frades pobres da cathedral de Toledo.

Bateu ao portão, e aberto este entrou nos claustros e pediu ao superior que lhe désse uma sepultura digna para o cadaver de Amarinda.

O superior bondosamente a attendeu; e D. Fernando de Aragão, depois de imprimir um saudoso osculo n’aquella fronte tão pura, sahiu do convento, e dirigiu-se para o quarto mortuario de el-rei.

Quando o corpo de D. Sancho era encerrado na cathedral de Toledo, o de Amarinda era sepultado na egreja do convento dos frades pobres de S. Francisco.

Isto passava-se nos primeiros dias do mez de janeiro de 1248.

A natureza parecia vestir-se de luto para celebrar o triste acontecimento.

As arvores despiam-se de suas folhas, as flores tão amadas pelo bom rei, e pela meiga Amarinda, murchavam agora e pendiam as folhas de suas hastes.

A pobre velhinha musulmana, Alda, a aia de Amarinda, como já coisa alguma a prendia em Toledo, pois que a sua adorada princesinha era morta, voltou de novo para Damasco, sua patria, conservando sempre a mais viva e terna saudade do amir Abd-Allah e de Beatriz.

XXIV

DIGNO DE SER IMITADO

Em janeiro de 1248, chegou a Coimbra a triste nova da morte de D. Sancho II.

Triste nova para os amigos, mas alegre para o conde de Bolonha, que passava agora a ser: -- Affonso III rei de Portugal e dos Algarves.

Assim que recebeu esta noticia, o conde, exultante de jubilo, participou-a a D. Martim de Freitas dizendo:

-- «Já não ha motivo plausivel para que me recuseis vassallagem, nem para vos recusardes a entregar-me a posse do castello.

-- Até aqui, tendes cumprido um dever de cavalheirismo e lealdade, que muito vos honra.

-- Mas agora essa obstinada recusa, «passa a ser considerada rebellião» contra as minhas ordens.

-- E eu que até aqui, apesar das hostilidades de parte a parte, vos tenho feito justiça, prestando homenagem e louvor á vossa dedicação, ver-me-hei muito a meu pesar obrigado a considerar-vos inimigo da coroa. E disse!...

O valoroso fidalgo comprehendeu que tinha de ceder; mas, como desconfiava que o bolonhez o quizesse enganar com um ardil commum em taes

casos (e em que o conde era tão fértil), não acreditou que D. Sancho fosse morto.

Pensando assim, o digno governador pediu a Affonso «que suspendesse as hostilidades e lhe dessem um salvo-conducto», porque queria ir a Toledo certificar-se da verdade;--e affirmou que só assim o reconheceria por soberano e legitimo herdeiro.

Oh! que tocante exemplo de coragem e lealdade!...

O conde de Bolonha ou o usurpador (como quizerem!) acceitou a proposta; e o governador, depois de entregar o castello a pessoa de sua «confiança», partiu para Castella «levando comsigo as chaves symbolo da sua lealdade».

XXV

REI SEMPRE REI

«Guardai-vos de Roma, combatei sem treguas a sua negra milicia!»

Historia de Portugal, por Antonio Ennes, L.° v, pag. 236.

Martim de Freitas, tendo chegado a Toledo,-- soube que effectivamente era verdade D. Sancho ter morrido.

Então o digno fidalgo dirigiu-se á cathedral de Toledo, acompanhado por diversas pessoas nobres e padres e ordenou que se abrisse a sepultura de D. Sancho, por que queria reconhecer o cadaver para que não lhe podesse restar duvida alguma.

A ordem foi cumprida, e Martim reconheceu o cadaver do seu amado rei.

Então ajoelhou á sua beira, 1 pôz-lhe nas mãos as chaves da cidade e lhe falou assim:

«Emquanto entendi, rei e senhor meu, que vós «ereis vivo, soffri por vóssa causa os ultimos trabalhos; e ora dissimulando ora confortando a franqueza, que sentia em meus companheiros, os fiz ir «continuando honradamente: tudo o que se podia «esperar de um amigo leal e constante, obrigado «com juramento de fidelidade, me parece que tenho «á risca cumprido. Agora, pois, sois morto e não «posso já entregar-vos a cidade, ao menos vos «quero fazer entrega da chaves d’ella, para que, «desobrigando-me em vossas mãos, as possa entregar a vosso irmão, o conde, como renunciação «vossa e não como triumpho das suas armas».

«Depois de assim falar ao cadaver do rei, mandou lavrar instrumento publico da mórte de D Sancho II, e da homenagem que lhe fizera da cidade «de Coimbra, tomou outra vez as chaves das mãos «do cadaver, e voltando a Coimbra entregou-as a «Affonso».

Então o novo rei disse-lhe:

-- Não posso deixar de louvar, D. Martim de Freitas, -- a vossa inquebrantavel coragem e lealdade! -- E muito desejaria podêr merecer para mim provas identicas da dedicação e amizade, que tivestes para com meu irmão!

Desejo, pois, que continueis a governar Coimbra.

Martim, porem, que continuava a respeitar o rei morto e a guardar-lhe tanta lealdade como antes;-- e não podendo alem d’isso deixar de protestar contra o procedimento do antipathico usurpador, que se atrevera a levantar-se em armas contra o rei legitimo recusou!...

1 Historia de Portugal, Livro v, pag. 223. -- D’onde temos tirado diversas notas -- a mesma que já citamos.

E ás instancias do rei novo respondeu com altiva dignidade:

-- «Senhor» não ha nada que possa demover-me da rejeição.

-- Sabei que Martim de Freitas tem só uma cara, isto é, não se retracta nem se vende.

-- Sabeis mais! que não só eu não acceito o cargo, que me offereceis, mas declaro-vos ainda, perante todos, que amaldiçoarei aquelle dos meus descendentes, que acceitem de vós algum cargo ou mercê»

Tendo assim falado affastou-se. Este honrado homem, digno e leal até ao fim, resistiu abertamente á auctoridade despotica do usurpador.

Assim lhe arremessou á face com a luva, em que ia todo o seu despreso.

Como é digno de ser imitado!...

Affonso não insistiu; respeitou a dor do ancião, que se lhe impunha pela sua nobre e altiva attitude, e pelas suas singulares virtudes.

Mas, tambem comprehendeu n’esta occasião, que seu irmão, apesar de humilhado, excommungado e exilado, não havia deixado de ser rei; o verdadeira rei!...

Quanto mais glorioso não foi o exilio de D Sancho, do que a victoria e triumphos de Affonso, devidos só á violencia, ambição e egoismo do seu caracter intriguista, invejoso e mau?!...

D. Sancho soube ser rei até ao fim; soube fazer-se amar e venerar, não pela hypocrisia nem pelo terror, que inspiram os intrigantes, mas sim pela bondade desinteressada, -- e mais do que tudo pelas desgraças que o feriram e lhe formaram como que uma aureola de martyrio, que o devia engrandecer e santificar aos olhos de todos os portuguezes.

D. Sancho foi o rei Martyr, mas martyr digno.

Affonso é o negro symbolo de Caim.

Affonso começou a reinar, não só como humilde escravo de Roma e dos padres em geral, mas tambem tendo na fronte o stygma infamante de usurpador, stygma, que lhe offuscava todo o fulgor da coroa. E’ certo, que o bolonhez triumphou; mas o seu triumpho deveu-o mais ao poder da theocracia, do que ao valor das suas armas.

O tumulo de D. Sancho II ficou sendo sempre na cathedral de Toledo.

Apezar do infeliz rei ter disposto no seu testamento, que queria ser sepultado em Alcobaça, ao lado de seus paes, não foi attendido.

«Os frades pobres do convento de Alcobaça, que não se esqueciam das generosidades, que el-rei tivera para com elles no seu testamento 1, pois lhes fez largas doações, supplicaram a Affonso e ao alto clero, para que lhes entregassem os restos do seu bom protector.

Mas não foram ouvidos.

O proprio papa Innocencio IV, ordenou que se cumprissem as derradeiras vontades de D. Sancho II.» Tudo foi inutil.

Os inimigos do martyr foram inflexiveis.

Affonso receiava que o athaude de seu irmão se abrisse e o cadaver, erguendo-se hirto, o amaldiçoasse.

1 D. Sancho II, viveu e morreu pobre no exilio. Todavia, tinha bens em Portugal, e apesar da guerra que o clero lhe moveu, o bom rei, fez largas doações aos padres e ás egrejas. Mais uma prova de quanto era magnanimo I...

Sim: aquelle cadaver devia causar-lhe remorsos e pavor. Se viesse para Portugal, havia de estar sempre vendo-o». E altas horas da noite, quando em palacio, todos repousassem, o phantasma do infeliz rei, rodeando-lhe o leito, clamaria com voz triste:

Usurpador... Usurpador... Sê maldito!...

O clero portuguez tambem o receiava.

A lucta da theocracia com a realeza devia continuar... mas com os reis vivos, por que o morto, que amaldiçoava a milicia negra, causava-lhe pavor!..

E não houve um rei, verdadeiramente pio e bom, que, despresando vãos preconceitos, fizesse respeitar e cumprir as ultimas vontades do desventurado monarcha, fazendo trasladar os seus venerandos despojos para Alcobaça, conforme o desejo por elle manifestado?!...

Triste egoismo!... Nem ao menos essa simples homenagem á memoria de um martyr que tanto soffreu, quando é certo, que se tem feito a muitas pessoas, que o não merecem talvez tanto!..

Os fidalgos, que haviam acompanhado D. Sancho II no exilio, dispersaram-se.

D. Martim Gil (não confundir com Martim de Freitas) seu valido, passou para a côrte de Fernando III de Castella, que o tomou ao seu serviço, testemunhando-lhe sempre a estima, que elle em verdade bem merecia, pelas provas de dedicação, que havia sempre dado a D. Sancho.

Martim Gil é tambem digno de louvor por quanto preferiu servir o extrangeiro, a servir o vil usurpador.

E o que fôra feita da rainha D. Mecia Lopes de Haro?

E’ simples a resposta!

A formosa rainha, que tão amada havia sido pelo bom e generoso D. Sancho, vivia logo depois do rapto (ou fuga ?) «entre os seus antigos inimigos e parentes, em paz na côrte de Affonso III, rodeiada de todo o luxo e conforto, gosando da maior liberdade e tendo palacio e estado principesco em Ourem, onde estivera primeiro preza!!...»

E’ triste! mas é a verdade!...

Os nossos leitores, que meditem no caso e o julguem e apreciem

O contraste, entre Sancho e Mecia é bem frisante.

Todavia o procedimento de D. Mecia, era motivada por influencias ecclesiasticas.

Aquelles que tinham poder para excommungar reis, e açoitar principes depois de os fanatisar, não teriam tambem poder para suggestionar uma pobre e debil mulher?!

Sim, bastava para isso as ameaças das penas eternas. Pois não dizia o clero que ella e o rei viviam em peccado mortal?

Pois, se ainda hoje, elles conseguem atemorizar os simples e ingenuos, com as penas do purgatorio, que faria n’aquella epocha!...

Mecia foi culpada! Mas quem deu origem a isso é facil de adivinhar !

Não devemos condemnal-a, mas sim lastimal a.

XXVI

O FIM D'UM JUSTO

Um dia, seriam umas dez horas da noite do mez de fevereiro, noute de inverno e de tristeza, alguem batia á porta dos frades pobres de S. Francisco da cathedral de Toledo.

Era passado um mez depois da morte do rei exilado.

O irmão porteiro foi saber quem era.

Viu um homem de elevada estatura e digno porte mas cujo rosto estava completamente occulto sob as dobras do negro manto que o envolvia.

-- Quem sois, irmão, e o que desejáes? interrogou o frade.

-- Um pobre peccador que péde para falar ao superior do convento; -- respondeu o desconhecido, -- com voz tremula pela commoção de que se acháva possuido.

-- Está bem; -- esperai um pouco, que eu o vou chamar: --volveu o frade.

Pouco depois tornava a apparecer com o superior.

Era este um frade respeitavel pela sua edade e virtudes. Fez entrar o desconhecido para dentro do convento e disse-lhe com bondade:

-- Meu filho, -- estamos completamente sós; dizei pois, ao que vindes, -- desejaes confessar-vos?!

Então o desconhecido, prostrando-se de joelhos aos pés do religioso, deixou cair um pouco do manto ou capús que lhe occultava o rosto de feições energicas, mas que agóra estava inundado de ardentes lagrimas e disse por entre soluços:

-- Meu padre: recebei me no vosso convento,... aqui desejo terminar os meus dias, como o mais humilde sérvo d’esta casa de Deus!...

-- Meu filho:--lhe volveu o padre, -- sentis vocação para esta vida de penitencia? Olhai não seja esse vósso desejo apenas momentaneo e que depois vos arrependaes!...

-- Não meu padre! nunca me arrependerei; confiae em mim...-- Deixei o mundo sem saudade,... e aqui acabarei meus dias em penitencia se vós m’o permittirdes!

-- Quereis, pois, professar?

-- Sim, padre: são esses os meus mais ardentes vótos.

-- Então vem commigo, meu filho, e que Deus se amerceie de vós, porque me pareceis muito afflicto e infeliz

Estas palavras de compaixão, soltadas pelo bom superior, fizéram explodir a dôr do penitente, em soluços e lagrimas de uma grande mágua.

O padre ajudou o a levantar; e, dirigindo-lhe palavras de consolação e amor, apresentou-o á communidade.

Pouco depois tomáva o habito e passou a chamar-se frei Roberto da Soledade!...

Este homem, que os nossos leitores vêem curvado ao pezo da dôr e da saudade, procurar um refugio, tão perto dos restos mortuarios de D Sancho e de Amarinda; este homem a quem o soffrimento conduzira alli... era D. Fernando de Aragão, o nobre fidalgo de singulares virtudes, que recebeu o ultimo suspiro de D. Sancho II, de quem havia sido amigo, irmão dedicado e affectuôso, e a quem o rei rettribuira sempre com egual amizade.

E assim acabou aquelle nobre guerreiro, de coragem sem egual, que se havia distinguido nas guerras, combatendo ao lado do seu rei de saudosa

memoria e cuja bravura e generosidade nunca se poderam desmentir.

Volvidos alguns mezes, D. Fernando de Aragão (agora frei Roberto da Soledade) entregava a sua alma a Deus!...

Frei Thomaz, o bondoso ancião, seu amigo, -- e que tambem acompanhara D. Sancho no exilio;-- foi quem recebeu em seus braços o corpo desfallecido do penitente.

Na hora extrema, teve ainda uma excelsa visão!...

Figurou-se-lhe ver Amarinda que lhe sorria, ao mesmo tempo que dizia com a sua voz suavíssima:

-- Fernando, meu amado irmão; aqui estou para te levar... vem commigo, -- vamos para junto do nosso bom e amado rei que nos ama e espera por ti!...

Fernando estendeu os braços para esta doce visão e murmurou com um sorriso de ineffavel ventura:

-- Amarinda! minha Amarinda!... -- D. Sancho! meu amigo! meu irmão!...

E com estes gratissimos nomes nos labios e imagem em sua alma, soltou o derradeiro suspiro!...

Era o fim do justo! despedia se do mundo com um sorriso.

Os frades entoaram os psalmos sagrados.

O superior e frei Thomaz choravam!...

Todos comprehendiam que aquelle que acabava de morrer, não era um ente vulgar.

Alguma coisa de prodigiosamente grande alli estava, que causava temôr e impunha respeito.

E os frades, apesar de muito habituados a presencear a morte, nunca tinham visto um morto assim, que lhes deixasse tal impressão.

Ajoelharam todos e oraram, -- não como se reza pelos mortos, -- mas como se adora a Deus no ceu!...