Os tripeiros: Edição para o ELTeC Crónica do século XIV Lousada, António José Coelho (1828-1859) Criação do HTML original Luso-Livros Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 38682 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Os tripeiros: Crónica do século XIV (Luso-livros) Luso-livros Os tripeiros: Crónica do século XIV António José Coelho Lousada 1857

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Os tripeiros

Crónica do século XIV

António José Coelho Lousada

CAPÍTULO I

A MENSAGEM DO MESTRE

Era uma estranha romaria aquela, para quem não tivesse notícia dos alvoroços a que a morte de Fernando I e o casamento de Beatriz em Castela tinham dado causa, a que a meados de Maio de mil trezentos e oitenta e quatro, saía pelas portas da cidade do Porto que davam sobre o rio, e pela chamada Porta Nova. Se fosse fácil conduzir o leitor a ver do alto das torres que a defendiam aquela gente, acreditaria que ele tinha invadido algum arsenal a procurar disfarce entre o guerreiro e o burlesco. Um soldado cobria a cabeça com um elmo adamascado, e, mostrando os joelhos através do grosso estofo das calças, com pés descalços pisava a areia onde o montante que arrastava deixava um sulco; um outro, parecendo ter em menos conta a cabeça do que o peito, abrigava o peito numa couraça mais que farta, e deixava a cabeça ao sol e ao vento; este, vestindo apenas umas calças, se assim se podia chamar um cerzido de trapos, trazia suspenso de funda um escudo de couro, onde em tempos estivera pintada ou divisa ou brasão, pois não era já fácil adivinhar o que fora; de um cinto leonado pendia de um lado um estoque, do outro um punhal, e, como se não bastassem estas armas de ofensivas, empunhava um chuço enorme; aquele levava um bacinete amassado e um gorjal ferrugento, e tinha por cinto de grosseira jorneia uma funda, o provimento da qual, como se não fora uma arma fácil de encontrar a cada passo, pesava num saco lançado aos ombros:

De tempos a tempos o bom povo, como lhe chamava o mestre de Avis, abria aqui lugar a um cavaleiro acobertado de ferro desde os pés à cabeça, seguido dos seus pajens, ou escudeiros, além a outros mais esquisitamente vestidos pelo antiquado das armas, ou pelo incompleto. Havia capacete que, se Cervantes o visse, não o deixaria ser original descrevendo o que deu ao seu herói no princípio das peregrinações; peitos de aço polido, espelhando o sol, que disparatavam com umas grevas desconjuntadas, enegrecidas, remendo visível; feixes de armas que desdiziam umas das outras pelo valor, casando-se a facha grosseira com um estoque cuja bainha acobertavam ornatos de prata, montantes de Toledo e adagas grosseiras. Os cavalos iam uns cobertos de ferro, outros apenas com os arreios necessários para se poder cavalgar, e não poucos dos cavaleiros, e aos pares até, montavam em mulas. Os cidadãos que assim sobrecarregavam os pobres animais, costume vulgar por esses tempos e por muitos outros, vestiam em geral a garnacha negra, distintivo dos doutores e físicos. Com este mesmo traje, porém arregaçado pela ponteira da espada, deixando ver a calça de duas cores e o borzeguim pontiagudo via-se três ou quatro aspirantes àquela distinta classe de médicos e letrados, e com eles alguns monges, que também se mostravam afeitos ás armas pelo modo como seguravam o punho da espada e cobriam a tonsura com o bacinete. Um dos cavaleiros mais bizarros da romaria era também um eclesiástico; pelo menos assim o demonstrava um roquete, que sobre armas soberbas vestia em vez de brial:

De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas, as torres, os eirados e soteias nada havia nesta procissão; de marcial havia muito, tudo, a avaliar pelo entusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas que se juntavam ás saudações:

Tinha decorrido uma boa hora desde que correra na cidade que umas galés demandavam a barra, e, posto que tivesse quem afirmasse logo que eram portuguesas, como dos de casa havia tanto a recear como dos estranhos, todos se tinham prevenido para as receber. Um pajem levara já a Aires Gonçalves e ao bispo D. João a nova de que eram expedidas pelo mestre de Avis; porém estes senhores eram então autoridades quase nominais, e deixavam por tanto, para não perderem o tempo, fazer a sua demonstração aos bons cidadãos e aos cavaleiros que não eram das suas casas, criação, ou serviço:

Ideia de que no século décimo quarto era uma guerra civil, acompanhada de uma invasão estrangeira, nem todos os que passam os olhos por este capítulo farão. Hoje hasteiam-se duas ou três bandeiras, ou mais, se quiserem, mas, o primeiro ímpeto passado, a máquina civil lá vai funcionando pior ou melhor por conta dos governos provisórios; naqueles tempos, porém, ninguém se entendia por vezes. Cada fidalgo levantava o seu troço de gente e vendia e revendia a espada; hoje era ao serviço de um, amanhã ao de outro; os alcaides dos castelos, a maior parte dominando as povoações principais, juravam preito e perjuravam todos os dias, e as municipalidades lançavam, bom ou mau grado, pela manhã um bando em favor de um monarca e à tarde aclamavam outro. No meio desta bela ordem havia caudilho que dava em ambos os partidos beligerantes, e sobretudo nos pacíficos, aventureiros que se batiam por si e para seu proveito. Na menoridade do pai do regedor, como modesta e arteiramente se apelidara o irmão bastardo de D. Fernando, e em quase todos os reinados antecedentes, a província de Entre Douro e Minho tinha tido a sua amostra destas amabilidades; mas o que a gente da ordem chama revolução e revolução politica não estalara em tempo algum como agora. Até aí o povo contentara-se, salvo um ou outro caso, com evitar a ponta da lança dos nobres senhores e o virote dos seus homens de armas, e ainda mais de lhe franquear as arcas e de correr os cordões da bolsa, o que raras vezes conseguia. Os burgueses do Porto, o mais desinquieto povo de toda a província e do reino, tinham já dado mostras da sua força aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco Martins, porém, nestas revoltas se entrava política era acobertada: eles não davam por tal. Desta vez o exemplo da capital fora-lhes contagioso, e mesmo sem tão bons motores como Alvares pais, desempenharam a sua tarefa por tal arte, que se pode dizer, que a lei porque se governavam era a sua. Aires Gonçalves de Figueiredo, o governador de Gaia admirara da outra margem a valentia dos pulmões dos partidários do novo governo, e, posto que não estivesse bem seguro das suas ideias quanto à legalidade da regedoria, e preferência de direitos do mestre de Avis sobre os do infante, dos deste sobre a irmã, ou vice-versa, para não lhes avaliar as iras também, contemporizara, soltando as mesmas aclamações. Na cidade havia um caos. Os vereadores governavam; governavam os juízes do povo e o juiz real; governavam os chefes das corporações; governava, porém menos, o bispo e os seus meirinhos; governavam até, ou mandavam, os prisioneiros, ou tidos por tais, como era o conde D. Pedro de Trastâmara, que no campo de Coimbra tivera as suas aspirações à coroa de Portugal, e a ser o terceiro marido legitimado de Leonor Teles; finalmente, mandavam todos, se a mais ninguém fosse, cada um a si:

Do pequeno povoado que ficava extramuros, composto de uma mescla de arménios, que nove anos antes tinham deixado cair o trono de Livónio, o seu último rei, aos golpes de espada do sultão do Egito; de gregos da Asia, escapados à fúria dos soldados de Amurat; de flamengos e genoveses aventureiros, de mouros, os cultivadores da encosta em que o bairro se abrigava; da pequena povoação, do bairro Arménio, aumentado ainda depois da tomada de Constantinopla com os piedosos guardas de S. Pantaleão, juntava-se à procissão saída da Porta Nova uma multidão de curiosos, que pela variedade de vestuários, lhe vinha dar realce. Como em tais casos sucede, toda esta gente se embaraçava na marcha, peões a cavaleiros, cavaleiros a peões; todos falavam, todos tomavam e davam concelho, e perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro encontrado uma versão correta e aumentada com reflexões de lavra própria e estranha. O espaço que se estendia desde os muros até onde a Arrábida deixava apenas um caminho de cabras, aberto na rocha para quem se quisesse dirigir à Foz do Douro, não foi pois transposto em menos de uma hora, pela vanguarda: uma grande parte do exército nem lá chegou. Os primeiros que encontraram uma das galés subindo o rio, gritaram para os tripulantes que lhes dissessem por quem vinham, e como estes respondessem que pelo Mestre, sem mais atenderem, voltaram atrás, dando vivas, como se fosse aquilo reforço inesperado, que os viesse tirar de apuros:

Nas galés não vinha reforço algum para os do Porto, única terra de importância ao norte do reino, que não aceitara como rei o marido de Beatriz, e tinha a braços setecentas lanças e dois mil infantes do arcebispo de Santiago e de outros senhores castelhanos e portugueses, sem contar os aventureiros de Fernando Afonso, que não eram nem uma coisa nem outra:

D. João de Castela, feita em Santarém a cessão dos direitos à coroa por D:

Leonor, a troco de vinganças prometidas no povo de Lisboa, que a respeito dela e em rosto esgotara um vocabulário imenso de nomes, de que Fernão Lopes dá uma amostra, e a mimoseara com pedradas; D. João, resolveu-se, senão a cumprir o ajuste, pois se malquistara com a ambiciosa sogra por causa de dois judeus, a destruir a rebelião, como ele lhe chamava, no foco, e avançara até o Bombarral, ao passo que aprestava uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse também as comunicações por mar:

Os arredores de Lisboa talados, as povoações saqueadas não podiam abastecer de víveres os sitiados; entre eles e Coimbra estavam os exércitos inimigos, portanto recorria-se ao Porto, pedindo também um reforço de navios para impedir que o Tejo fosse bloqueado. D. Lourenço, arcebispo de Braga, azafamara-se para armar as galés que deviam levar estes socorros, e o mestre de Avis encarregara Rui Pereira de uma missiva, em que aos bons burgueses se prometia mil regalias; pois D. João aceitara o conselho de dar tudo o que lhe fosse possível dar, e prometer até o impossível:

Os vivas e o apêndice a todo o entusiasmo político de morras, naquela quadra aos castelhanos, aos traidores e aos loucos, prolongaram-se até que as galés em que vinham Rui Pereira e Gonçalo Rodrigues vararam perto dos muros da cidade e começou o desembarque destes e outros ilustres personagens, e ainda maior foi a algazarra quando o estandarte real apareceu:

O conde de Trastâmara, como primo do rei de Castela, não era dos coristas mais fracos deste grande coro desafinado, e fora dos primeiros cavaleiros que se apearam para receber os reais mensageiros, com toda a cortesania. O povo sem fé naquela conversão e pouco acatador nesse momento das esporas de ouro, das cotas bordadas e cimeiras historiadas; o povo, deixando escapar desses epigramas de que ele possui o molde particular, em vez de lhe abrir caminho, cerrava-se na sua passagem, fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisonjeiro que tencionava pregar a Rui Pereira. Rui era uma notabilidade, como hoje se diz; porque então ainda se não tinha inventado as notabilidades, nem muitas outras coisas. Desde que explicara ao mestre de Avis a opinião do povo a respeito da rainha Leonor, notando que quando andava para casar com a sua mulher, falavam todos em que se queria casar com Violante Lopes, e depois de casado ninguém mais de tal falara; depois, sobretudo, que dera o golpe de mercê ao conde valido, abaixo do seu sobrinho, dos homens de espada com valimento na corte, era o primeiro, e para quem estava nas circunstâncias de D. Pedro, portanto, pessoa que era prudente lisonjear:

Já então, como se verá no decurso desta narração, se atendia a conveniências:

Em quanto os mesteirais e burgueses embaraçavam o conde, Martim Gil, abade de Paço de Sousa, substituía-o dignamente com duas rajadas de latim, a substancia do todo, que o mensageiro perdeu por não entender a língua de Cícero, e uma enfiada de períodos em português garrafal, que entenderia perfeitamente, se a algazarra tivesse cessado. Rui Pereira satisfez-se com ver abrir e fechar a boca ao reverendo, e respondeu a toda esta eloquência, fazendo-lhe um ponto no meio do recado, perguntando onde havia de pousar:

Martim Gil indicou-lhe todas as boas casas da cidade desde os paços da Sé e o convento de S. Domingos, até algumas das vivendas particulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S. Domingos, mostrando mais pressa de descansar dos incómodos do mar, que de dar conta da sua missão. O abade tentou então dar à entrada na cidade dos passageiros e tripulantes da galé de Gonçalo Rodrigues, e das outras que iam aproando ao longo da praia, um todo processional, porém lutava em vão; que era até dificultoso fazer desembaraçar os sítios de desembarque, onde o povo se apinhava, se acotovelava sem dar descanso ao pulmão. O Douro não tinha ainda, nas suas soberbas, arrojando as terras roubadas nas campinas de encontro à praia; tornado esta tão larga como hoje; nem os homens tinham com parapeitos avançado sobre o leito daquele. O espaço existente logo além de portas, onde havia povoado, era tão limitado, que, a distância, parecia que as edificações tinham para a água serventia, como os da cidade das lagunas, a rainha do Adriático; o estado de exaltação, e ânimo revoltoso ou independente dos burgueses e vilões, porém, até em lugares mais espaçosos tornava difícil a empresa do abade:

Rui Pereira, apesar de ter presenciado em Lisboa a revolta popular, fazendo parte dela ele mesmo, não o era tanto que levasse a bem aquela sem-cerimónia dos portuenses, e lançando sobre os mais próximos um olhar pouco amável, reprimindo a custo a vontade que tinha de mandar abrir caminho a prancha de espada e conto de lança, lamentava in mente os bons velhos tempos ― que já então havia bons velhos tempos ― em que a coisa «peão» descortinando a vontade no gesto de um rico homem, logo obedecia sem mais tugir ou mugir:

Graças à intervenção dos juízes do povo e real, que, avisados da chegada dos navios e de quem eram as pessoas que eles conduziam, vinham para as acomodar em pousada decente e fazer todas as honrarias, que em tal caso competia, o embaraço terminou. As três autoridades, duas municipais, uma real, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foram felizes, deve-se confessar, naquela ocasião, por não haver conflito de poderes, nem recalcitração dos governados, o que era raro, e deveram esta felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burgueses, e não ser preciso empregar barqueiro ou pescador algum na amarração dos navios. A procissão começou pois a mover-se pelas estreitas ruas da cidade, e, em vez de parar em S. Domingos, seguiu até à casa da camara no meio sempre de grandes aclamações ao mestre de Avis, defensor e regedor do reino, e morras aos castelhanos hereges, loucos e traidores, o que fazia tragar sem réplica a Rui Pereira o cerimonial amofinador a que o submetiam os edis portuenses, e a pressa que tinham de saber em que podiam servir a sua senhoria, o futuro rei:

CAPÍTULO II UM RAPAZ TRAVESSO

Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente levado pela porta, que tempos depois deu a um poeta com o nome um trocadilho para um requerimento em verso, no marulhar de curiosos e patriotas que se empuxavam, forcejando por abrir caminho para aquele gargalo, um burguês que tornava respeitável o sisudo do traje, uma barriga proeminente, onde batia uma gorda bolsa de couro e um esguio punhal, cabelo branco, patrioticamente cortado, lutava para não ser levado na corrente, dando mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguém. A força da corrente era grande, porém, e arrastou-o pouco a pouco até junto de uma das torres de defesa, onde a ressaca o fazia tomar todas as direções e posições possíveis no meio dos gritos das mulheres abafadas, das crianças trilhadas, do estalar das armaduras, que, permita-se a imagem, eram os crustáceos que as ondas daquele mar lançavam de encontro ás rochas. Mestre Gonçalo Domingues suava por todos os poros e formava com os cotovelos um amparo ao abdómen e quebra-mar à maré, receando ser litografado no muro, resmungando ao passo uma ladainha contra o causador daquele desastre, segundo se lhe afigurava, um sobrinho que o acompanhara momentos antes, e que perdera de vista. Resolvido já a deixa-lo pela sua conta, pois não estava já em idade de se perder, e a escapar-se daquele aperto, começava a recuar, servindo-se dos cotovelos como de uma alavanca, quando sentiu umas mãos calosas pousarem-lhe no ombro, sustendo-o na marcha. Sentindo aquela resistência, sem ver quem a opunha, pois lhe era impossível voltar o rosto, e receando de novo ser levado para o muro, empregou contra o individuo que assim lhe cortava a retirada um cotovelão, que estava na razão direta da força que o impelia: tudo isto acompanhado por uma praga: -- Más terçãs te colham, cabeça de bugalho!

A praga a meio, e uma das mãos a erguer-se a descer fechada em murro, estourando no costado de mestre Gonçalo Domingues, que soltou um regougo, cambaleou e perderia decerto o equilíbrio, se um mesteiral, que estava na frente, o não amparasse na queda. O burguês, incomodando com o peso o seu primeiro ponto de apoio, este o sacudiu para um dos vizinhos, que o recambiou sobre o homem do murro, apresentando-lho de cara:

-- Se te apanhara aqui, maldito! disse a exclamar mestre Gonçalo, soltando outro gemido: punha-te as orelhas a fumegar. Tu mas pagarás!

Esta exclamação a meia voz, dirigida ao ausente sobrinho, foi intercetada a meio pelo homem de murro, um marinheiro, que, vendo o rosto aflito do bojudo cidadão, se contentou com dar-lhe um grande encontrão, resmungando, como gozo que vê em perigo o osso que esburga: -- Pois junte lá mais isso à conta, meu baleote:

Mestre Gonçalo estava afeito a ser mais bem tratado intramuros: doeu-se da chufa dirigida ao seu físico pelo marítimo, e fez-se mais vermelho do que estava; fez-se roxo, se pode dizer, desde a raiz do cabelo até aos queixos, mas não reagiu. A sua índole era pacífica, apesar do punhal que o acompanhava; e para além disso, não via perto de si senão caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do mar, que podiam ser de vassalos da coroa, e estes, posto nessa ocasião estivessem em harmonia com os vassalos da mitra, e já um pouco apagadas as divisões antigas, era de crer que por ele não tomassem partido. Contudo, não se ficou, sem responder: -- Se não está bom, deite-se, ou vá travar razões com petintais, espadeleiros ou outra gente da sua igualha; não se meta com quem não se mete consigo:

-- Olhem o outro! resmungou o marinheiro; abalroou-me com os cotovelos pelos peitos, e diz que se não mete com a gente; traz aquela cara que parece mesmo um odre a rever, e grita que um homem cá está toldado!

Gonçalo Domingues, doendo-se da nova zombaria, tornou mais apropriada a imagem do marinheiro, e cerrando os punhos exclamou: -- Veja como fala!

-- Graças a S. Pedro; meu advogado, redarguiu o homem do mar, levando a mão ao barrete ― não é fácil de dizer se em atenção ao santo-apostolo, se em cortesia zombeteira, pelo esgar que fez, ao senhor Gonçalo ― graças a S:

Pedro, falo sem trave. E não me faça biocos nem arremessos, acrescentou com ar mais carregado: que, se me sobe a maré aos cascos?!..:

-- Que é lá isso, mestre Gonçalo? perguntou quase ao mesmo tempo um cidadão de pouco menos idade que o interrogado:

-- É este excomungado, que se meteu onde não era chamado, e me pôs a paciência em maior apuro do que já a trazia:

-- Excomungado é ele! resmungou o marinheiro, recambiando o apodo que lhe fora dirigido, e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor:

-- Olhe, mestre Gil, disse o burguês rubicundo, dirigindo-se ao recém- chegado; ia eu amofinado por causa daquela cabeça de vento do meu sobrinho..:

-- E que tenho lá eu com o seu sobrinho? disse o marinheiro:

-- Isso mesmo queria eu que me dissesse! acudiu o senhor Gonçalo:

E, voltando-se para o seu colega, continuou: -- Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o maldito do rapaz se me escapou ― ora sei eu lá para onde! ― e não sei que digo de mim para mim, quando essa criaturinha, como se não tivesse da sua igualha mais com quem desenferrujar a língua, travou-se de razões..:

-- Isso nada vale, mestre Gonçalo! atalhou o homem a quem vimos dar o nome de Gil, dirigindo-se para o galeote, que lhe voltou as costas, fazendo uma careta muito expressiva para um companheiro, que, com uma mão pousada no ombro dele, parecia, na posição que tomava, querer dizer que ali estava para ir ao seu auxilio, se preciso fosse, que não era:

O gordo burguês, vendo o antagonista voltar-lhe as costas, desafogou contra ele, com o seu amigo, a cólera, que o ameaçava com uma apoplexia; e em seguida desafogou também a respeito do causador, o estouvado sobrinho, que desaparecera. Apesar de ter escoado a multidão pela porta da cidade, de estar já desembaraçado o transito, à volta dos altercadores havia uma reunião de curiosos, como de costume, cujo núcleo era uma boa dúzia de garotos pertencentes, pelo que dos trapos vestidos se divisava, a três religiões; pelo tipo, a três raças, e ao qual se juntavam por um segundo, que mais não fosse, os arrastados daquela procissão e todos os que por ali o acaso conduzia. Uma velha que regressava aos lares com os aviamentos para a ceia, comprados na tenda de ao pé da porta, soalheiro do bairro, não escapou, apesar de carregada, à força atraente das lamentações de mestre Gonçalo; e, sabida a causa destas, se apressou em dar-lhe remedio:

-- Quer saber do seu sobrinho que esteve no convento, mestre Gonçalo?

Bem se vê que o rapaz não tinha queda para os latins e o hábito; aquilo é um levantado! Tome sentido com ele, mestre! Agora o vi eu a correr pela betesga que vai por pé da casa de João Ramalho. A modos que ele..:

A reflexão da velha, se na frase ficou incompleta, não o ficou no gesto. A tradução deste era que o rapaz começava a inclinar-se ás saias. (Como demos a tradução, juntaremos, em nota intercalada no texto, que a boa santinha parecia, no ar malicioso que tomou, recordando-se dos seus tempos, ter deles saudade.) Gonçalo Domingues, sem mais atender à mulher da alcofa, tomou a direção do sítio indicado como o seguido pelo sobrinho, resolvido a descarregar nele o mau humor excitado pelo seu desaparecimento, pelos apertões que levara, o cortejo que perdera, e, sobretudo, os ápodos e murros do galeote. enquanto para lá se dirige, ruminando aquelas passadas atribulações, saibamos o que fazia o travesso rapaz:

Como já viu o leitor, no antecedente capitulo, no tempo em que estas coisas sucediam, as habitações, em Miragaia, estavam mais perto do rio, ou melhor, o rio corria mais perto das habitações. Entre S. Pedro e os muros, havia, no espaço que abre a montanha, algumas betesgas, de que ainda se conserva uma amostra, povoadas umas, outras correndo entre cercados e muros; em outros sítios, um fraguedo deixava apenas o lugar preciso para algum carreiro não muito viável. A povoação cerrava-se, apinhava-se mais para o pé da velha igreja de S. Pedro, e rareava progressivamente para o oriente e poente. Perto dos muros, havia tão somente uma fieira de casas à beira de água; depois o declive rude do monte onde se edificou o convento dos Agostinhos, coberto de silvados e mato, que vinha angustiar mais o passo para a cidade. Onde se tornava mais suave a encosta, subia um carreiro, que, depois de serpear por detrás de algumas das moradas do bairro do rei, se bifurcava, levando um braço a uma daquelas ruas, lançando outro pelo monte, serventia a casais que se comunicavam igualmente com a cidade pelo lado do Olival. Por este carreiro é que tomara Fernando, ou Fernão Vasques, o sobrinho do senhor Gonçalo Domingues, mal viu absorvida a atenção deste nas galés reais e os seus passageiros. O rapaz correu por algum tempo sem tropeçar, para o que preciso era estar bem afeito a trilhar semelhante caminho, e só afrouxou o passo quando se aproximava de uma casa de boa aparência, cuja frente dava para a praia, habitação de uma das notabilidades do bairro, e que o foi depois, na história, do piloto e mercador João Ramalho:

A casa para o lado do rio nada apresentava de notável na fachada: era um edifício de madeira como muitos dessa época; para o lado do monte, porém, era bastante pitoresca. A parte inferior escondia-se num a moita de arbustos de um pequeno cercado, onde também se levantavam algumas árvores de fruto, uma das quais, rompendo, com um braço lançado à flor da terra o muro de pedra insossa, sacudia sobre o caminho a folha, a flor e mesmo o fruto, se a gula dos garotos esperava pelos efeitos do tempo. Acima do verde dos arbustos descortinava-se uma varanda de pau, onde, no parapeito, davam passagem ao ar e à luz aberturas simétricas, figurando folhas de trevo, e na parte superior, zelosias em xadrez, tudo pintado de encarnado vivo e verde esmeralda, com que realçava o branco que tingia o tabique. De ambos os lados da varanda descia uma escada, cujos mainéis se perdiam entre os arbustos, depois de se ligarem num patamar, ao centro, para de novo se separarem, formando da sorte um corpo saliente na fachada. Por cima da varanda abriam-se duas janelas, todas lavradas, ornadas de zelosias também, e tendo por baixo, sobre traves salientes, em cada uma das quais artista rude esculpira um animal sonhado, dois caixões com terra. num , apar do qual duas longas canas formavam um estendal, onde se via roupa a secar, a providência doméstica semeara salsa e a precaução contra feitiços dispusera um pé de arruda; no outro, havia um pé de amores perfeitos e outro de madressilva marinhando por cordões passados para o guarda-chuva de madeira que os abrigava:

Quando Fernando Vasques se aproximou da casa, depois de alguns assobios, entre a trepadeira e por cima dos amores, apareceu, aberta a zelosia, uma cabeça bem própria para encaixilhar entre aquelas flores. Imaginai um rosto oval, de uma carnação que se não podia dizer branca, mas a que se não podia chamar trigueira, porque o não era; uma palidez, sem ser dessas que denunciam uma natureza enfezada, doentia; uma palidez que lhe dava um todo de brandura, de carinho, que fazia por vezes realçar um carmim vivíssimo e traía um olhar travesso, de travessura infantil, inocente; imaginai uma boca de um lindo desenho, formando em cada extremo uma covinha engraçada; uma boca que parecia sorrir sempre, mesmo quando a cara pensava ou lágrimas desciam pelas faces; imaginai que o nariz fora modelado pelo de uma estatua antiga, e imaginai, sobretudo, uns olhos castanhos rasgados, assombrados por uma franja de cileias tão cerrada, que pareciam negros como a baga do loureiro; uns olhos, enfim, expressivos, verdadeiros espelhos de alma, como lhes chamam os poetas, e tereis uma ideia das feições de Irene:

Esta encantadora cabeça enfeitava-se com o mais soberbo cabelo que se pode ter aos quinze anos; negro, longo, sérico, ligeiramente ondeado. Para maior realce da cor, parecia feita à moda que vogava. As tranças, que vinham pousar no colo, alvo como marfim, eram intermediadas por fitas de lã de um vermelho vivo, que se cruzavam depois na cabeça e vinham cair soltas, dos lados, terminando em pingentes de metal dourado:

As leis que faziam distinguir, pela cabeça, as solteiras das casadas e estas das viúvas caíam em desuso:

A filha de João Ramalho, apesar da curta idade, era uma beleza. O sangue da sua mãe, uma dessas belas jovens da Asia, em que se confundiam dois tipos, o grego e o arménio, predominando, desenvolvera aquele corpo garboso; dera-lhe na adolescência o acabado, a morbidez que só mais tarde, em geral, em outra idade se alcança. Com o corpo desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada educação materna, que distava bem da vulgar entre a nossa burguesia naqueles tempos, e os carinhos da boa mulher, que o senhor João não compreendia bem, entretido sempre nas suas viagens e rude, voltados todos para aquela filha única, em que se embelezava cultivando-lhe o coração, aformosearam-lhe a alma. Uma bela alma faz um rosto, senão formoso, amável; a inteligência reproduz-se nas feições como aureola que lhes dá realce; a natureza, já o dissemos, fora madrinha e não madrasta para com Irene: a bela menina, reunindo, pois, todas as formosuras, despertava a admiração e o amor ao mesmo tempo. A impressão produzida no sobrinho de Gonçalo Domingues fora esta, e que o amor naquele peito tinha boas raízes, dizia-o a confusão em que ele ficou, mal à janela apareceu a gentil cabeça:

Fernando, um rapaz jovial e resoluto, como o diziam uns olhos castanhos cheios de fogo, um nariz ligeiramente curvo, os lábios delgados, acentuados na extremidade por um ligeiro buço; Fernando baixou os olhos, fez-se vermelho, sentiu que os joelhos se dobravam, enfraquecidos, e, sem se atrever a fitar de novo aquela aparição, bom tempo gastou em puxar o barrete de um para o outro lado da cabeça e amarrota-lo nas mãos, nem criança bisonha que se dispõe a abrir brecha na bolsa paterna, ou tem de responder por avaria feita, acabando por desafivelar o cinto da jorneia, como se carecesse de tomar largo folego para levar a cabo a sua empresa:

Não era esta a vez primeira em que ali se encontrava em tais embaraços, porém nunca tão graves tinham sido as circunstâncias. A gravidade não provinha da escápula feita ao seu tio, que já nem de tal se lembrava, mas da resolução que tomara de realizar as suas ambições e sonhos, as combinações de tantas horas; de passar além de alguns gestos e sorrisos e umas saudações feitas do cimo da encosta, não falando num a enfiada de sons, que palavras se não podiam dizer, pois nem ele lhes soubera o sentido, soltados à porta de S:

Pedro entre uns como arrepios, que atribuiu ao modo porque o encarou a cultivadora da arruda, a criada a quem o senhor João Ramalho, por morte da sua esposa, confiara o governo da casa e a guarda da filha:

Quase igual à força da resolução fora o abalo, como nestas coisas é de costume, mas Fernando não estava resolvido a deixar perder mais uma ocasião: puxando o barrete sobre a nuca, subiu a um comoro, ao lado da quelha, ergueu os olhos e abriu a boca, porém a palavra engasgou-se-lhe a um gesto de Irene. O pobre não prevera que pregar a sua confidencia daquele sitio fora, querendo que ela a ouvisse, mete-la também nos ouvidos dos vizinhos, ou pelo menos das pessoas de casa, e a jovem, levando um dedo aos lábios e indicando-lhe com um gesto que descia à varanda para encurtar a distancia, se no enleio, no rubor se mostrava mal afeita àquelas artimanhas, professadas pelo amor, ou quem suas vezes faz, como do sexo a que pertencia, se mostrava mais prudente. Irene desceu, mas vencido a meio o inconveniente da distância, furtava-se, encoberta pelo cercado da horta, ás vistas de Fernando. Este eclipse, como diria um poeta, foi que deu ao namorado um ânimo de que ele próprio se espantou por muitos dias depois: atreveu-se a subir ao muro e marinhar pela árvore que se debruçava sobre a estrada, a esconder-se entre a ramagem:

Os discursos naquele dia tinham má sorte: como o que fora destinado a Rui Pereira, o pensado e repensado do sobrinho de Gonçalo Domingues não vingou. A erudição do abade de Paço de Sousa achatara-se de encontro à paciência do fidalgo; as flores escolhidas para ornar a declaração feita a Irene (tão rico delas é o coração em que rebenta o amor!) as flores de estilo queimou-as um olhar lançado ao jovem, traduzindo tanta coisa, que só um desses olhares podia dar bons três capítulos como este em que se conta e comenta tanto sucesso. O olhar de uma donzela, como a filha do piloto, nestas confidências de um primeiro amor ― deixem dizer que o amor, o verdadeiro amor só vem muito mais tarde, deixem; que eles treleiem, e julgam que o egoísmo aquilata a paixão ― ; o olhar de uma donzela assim, encerra um misto de afeto carinhoso, de volúpia indefinível, de pudor e inocência, de receio e ousadia, que, para dele dar uma ideia, a poesia mesmo é uma linguagem descolorida:

Fernando, mal se viu frente a frente com a jovem namorada, sentiu um formigueiro nos pés, turbara-se-lhe a vista, e teve de se agarrar aos ramos da árvore, para não cair; quis procurar o cabeçalho da sua declaração, porém nem uma só ideia lhe vinha à mente; por mais de uma vez abriu a boca, e teve da fechar sem formular um único monossílabo. Irene, na varanda, com a aproximação também se acanhara, e ocultava o seu embaraço, ou, antes descobria-o, passando a mão pela cara, levantando uma trança para logo a abaixar, enrolando e desenrolando uma das fitas, afogando e desafogando o pescoço com o singelo coleirinho do corpete. Os minutos que assim passaram não foram poucos. Recuar depois de ter chegado até ali era desairoso e difícil:

O sobrinho de Gonçalo Domingues fez o supremo esforço para não perder tudo:

-- Irene, Irenesinha! disse ele, amarrotando o barrete com a mão que tinha desembaraçada:

A jovem fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos foram desperdiçados, se desperdiçado se pode dizer aquele tempo passado em enleio, rápido na passagem, mas que depois enche com a recordação tantas horas de vida:

-- Irenesinha! disse Fernando, continuando a procurar a musa no barrete:

A jovem continuou a fitar o embaraçado rapaz, aguardando que alguma palavra mais seguisse à invocação. O barrete não absorvera, ao que parecia, os galanteios estudados, amimados por tanto tempo, pelo que, depois de larga pausa, Fernando desceu das regiões do amor a coisas mais terrestres, na linguagem; procurou, se, o que é mais provável, se não agarrou à primeira ideia visada, um ponto de partida nos sucessos do dia, e titubeou: -- Não sabe que chegaram aí umas galés de Lisboa?

-- Sei; respondeu a jovem, baixinho, depois de olhar para todos os lados a ver se alguém poderia ouvir aquela conversa amorosa. O meu pai para lá foi:

-- Foi? interrogou maquinalmente o jovem:

-- Foi, repetiu Irene, debruçando-se pela varanda e fazendo com uma das mãos junto do ouvido uma concha para não perder uma só palavra:

-- Pois veem nelas muitos fidalgos de Lisboa. Não os viu desembarcar?

-- Vi:

-- Disseram-me que iam em procissão à cidade, e que traziam um recado do senhor D. João!

-- E não foi ver?..:

-- Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais baixa e entrecortada, por muito que tenham que ver, eu antes quero estar aqui. A menina é que não sei como não vai para o lado da praia:

-- Para que? Tão longe fica o lugar onde vararam as galés, e está um gentio..:

-- Então, se pudesse ver, não estava aí:

-- Porque não? disse Irene, corando:

-- Porque... porque, titubeou Fernando, baixando os olhos; porque aqueles fidalgos com as jorneias bordadas, aquelas armas a espelhar são mais para se verem..:

-- Da janela, disse a jovem, encolhendo os ombros; da janela não se podem admirar esses alindes:

Fernando baixou a cabeça, desconcertado o seu intento. A jovem não vinha para o campo para que ele a queria trazer: não o entendia, pensava ele, e se o não entendia é porque o não amava. Se soubesse avaliar a entonação de certas palavras não pensaria daquela sorte; porém todos os namorados assim são: não reparam nas rosas e colhem os espinhos:

-- Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem fazer uma leva para a guerra contra os loucos de Castela? disse o jovem, procurando levar a conversa ao fim desejado:

-- Para que pensar nessas coisas!

-- E se me levassem? insistiu ele:

-- Mas eles não veem para isso; não, senhor Fernando? disse a donzela com uma inflexão de voz, que pintava o receio de que uma afirmativa fosse a resposta:

O sobrinho de Gonçalo Domingues não notou esta expressão e prosseguiu: -- Não se lhe dava que eu fosse?

-- Eu?

-- Sim; parece que não teria pena alguma:

-- Não diga essas coisas!

-- Pois deveras magoava-a a minha partida?

-- Deveras; disse Irene, passando a mão pelo rosto, para ocultar as tintas do pejo, que a ele assomavam com esta confissão:

-- Não diz o que pensa, acudiu o jovem, imprimindo, cheio de alegria, um tal abalo à árvore, que esta, oscilando o roçando de encontro ao muro, fez desprender algumas pedras:

-- Jesus! vai cair! exclamou a donzela, tornando-se pálida:

-- Ai! Irenezinha, só para ver se o que diz é certo, de boa vontade quebrava a cabeça:

A jovem, em vez de responder, com um gesto impôs silencio ao seu conversado. Do lado de baixo ouvia-se os passos de quem para ali se dirigia, e pouco depois apareceu Gonçalo Domingues:

-- É meu tio, disse Fernando, com voz tão sumida, que para si tão só parecia falar, e no momento em que o rotundo burguês passava distraído junto do muro, querendo esconder as pernas que deixava pender de um e outro lado do galho em que cavalgava, de novo oscilou a árvore violentamente, mais arruinando o muro a que se encostava:

-- Oh velhaco, que fazes aí empoleirado?

-- Eu, senhor tio? acudiu o pobre rapaz, coçando na cabeça com toda a fúria:

-- Sim, tu, Belzebut! Salta cá para baixo, que te ensino a andar a roubar fruta pelos cerrados:

-- Oh meu tio, a árvore não tem fruto; olhe bem:

-- Então que fazes aí?

-- Eu estava a ver..:

-- O que, rapaz de má morte, cabeça oca?

-- A ver se o via por algures, prosseguiu o desconcertado jovem:

-- Levadigas te colham! Procuraste atalaia bem longe do caminho. Ora, desce, que eu te vou ensinar chanças melhores:

-- Cuidei que ia pela Aljama:

-- Algemia é isso que tu estás a pregar. Desce, velhaco!

-- Lá vou, tio; disse Fernando, descavalgando, porém deixando-se suspenso pelas mãos do seu poleiro. Mas..:

-- Mas o que? pela tua causa em boas me vi, e tu mas pagarás juntas. Eu farei de modo que não tenhas mais vontade de ir devassar hortas e cercados:

Se vais por esse caminho, acabas nas mãos da justiça! exclamou o senhor Gonçalo Domingues, com sobrecenho provocado pela recordação de desaguisado da praia:

Fernando deitou à donzela, que toda trémula se conservava encostada à varanda, um olhar a furto, não se atrevendo, por envergonhado de ser assim, ali na presença dela, tratado como uma criança, a uma despedida; com outro relance de olhos avaliou se as ameaças do tio não teriam, na execução, algum desconto, e lentamente, soltando um suspiro, desceu da árvore em que, ao modo das aves, tinha soltado as primeiras confidências do amor. Tão depressa sentiu nos pés o contato do pedregulho da betesga, como sentiu nas orelhas o da mão de mestre Gonçalo, que acompanhava cada puxão com um epiteto pouco amável, terminando pelo de «ladrão»:

-- Ladrão não! exclamou o rapaz dando um salto, ferido pela insistência do tio naquele mau conceito:

-- Então que fazias ali, rapaz dos meus pecados?

Alguém, não o interrogado, se encarregou de responder. à janela onde vicejava a arruda assomou um rosto encarquilhado, meio oculto num a enorme touca de linho a feição das que usam as freiras, e gritou com uma voz de cana rachada, debruçando-se: -- Menina Irene! menina Irene!

Gonçalo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu o lábio inferior com um gesto que queria dizer muita coisa, e, entre outras, que atinava com o motivo de ter o sobrinho trocado a procissão dos fidalgos por uma ascensão ás árvores do senhor João Ramalho. Lembraram-lhe as palavras e os momos da velha da praia:

-- Já agora vamos pela Aljama, e de passo falarei com o meu compadre; disse em seguida, dando um encontrão ao jovem e indicando o carreiro que subia a montanha:

Metendo-se a caminho, voltou a cabeça, como a voltara Fernando, para a casa do mercador, e viu na janela do andar superior, por entre a zelosia meia aberta, o rosto da gentil menina:

-- Á fé, disse ele por entre dentes, que o rapaz não tem mau gosto; e ela..:

A palavra foi terminada por um sorriso, olhando para Fernando, como desvanecido do seu sangue. Gonçalo Domingues era um excelente homem, apesar de toda a sua aspereza aparente:

CAPÍTULO III OS VELHACOS

Uma cidade da península, no século XIV, não era um agregado de indivíduos vivendo, como hoje, debaixo da mesma lei -- segundo reza a lei, entenda-se. Afora as distinções de classes e senhorios diversos, havia a distinção de crenças, e a separação era visível nas grossas cadeias que tornavam ao cair das Ave-Marias incomunicáveis certos bairros. O Porto tinha de tudo: súbditos da coroa e súbditos da mitra, e no tempo em que sucedia o que narramos, moradores que nem reconheciam uma, nem outra; havia cristãos, mouros e judeus. Sobre um monte alteavam-se as torres da Sé, e os paços fortificados do bispo; sobre o outro mais humilde levantava-se a esnoga, ou sinagoga, e na encosta, entre um e outro, a pequena aljama apresentava-se, como o símbolo da religião do profeta de Iatreb, querendo aproximar-se do Evangelho e da Bíblia, e lançando depois pela encosta um ou outro casebre, como transição para alguma morada de heresiarca que se ocultasse entre os foragidos do Oriente. A aljama era a mais pobre: a esnoga era a mais rica; a cruz, mais alta, dominando as duas, era a mais forte:

Aljama, município, catedral, esnoga, tudo fora cintado pela mesma muralha, como para viver em boa fraternidade; mas esta aguara entre os dois filhos de Adão, quanto mais entre tanta gente. O judeu desprezava o mouro; o mouro desprezava o judeu; o cristão desprezava a ambos, e, como fizera a lei, talhara para si mais regalias e para os outros mais tributos, reservando, para os que nada tivessem do seu, o direito de se lamentarem em particular de algum pescoção de burguês arrufado, gilvaz de cavaleiro, pedrada de garoto e praga de rascoa enraivecida, ou velha rabugenta. Era uma sorte bem agradável, feliz, contudo, aquela, em comparação à que lhes prepararam, aos judeus especialmente, uns beatos metidos em política, de que se serviam para ganhar o céu, supunham eles, e um bando de togas, garnachas e roupetas que se serviam do céu para apanhar dinheiro. Aquela animosidade era a regra geral, mas toda a regra tem exceção, e na mouraria era ás vezes recebido com os braços abertos o mesteiral; na judearia havia mão que se estendia ao burguês em prova de amizade sincera, e um ou outro filho de Israel achava agasalho não chorado na casa do cristão, mesmo quando aquele não tinha a arca cheia de boas dobras; que em tal caso todas as portas se abriam, desde a do paço régio ou episcopal e a do solar do nobre, até à da cela do reverendo abade, e a do leigo, e sobre eles choviam honras e mercês; como eram prova viva D:

Judas e D. David, duas criaturas, que, fazendo grande arruído na corte, jogaram com os destinos do país, como bons ministros de finanças -- o nome, o titulo ainda não estava criado, mas a coisa já existia -- não se esquecendo de tirar dele todo o suco possível. Gonçalo Domingues vivia em boa harmonia com o arabi, ou arrabi menor, harmonia que o devia lisonjear, pois era até certo ponto uma notabilidade, como chefe dos judeus da cidade e como homem de teres, e por isso se resolvera a subir a encosta, pelo lado do Olival, para falar em certos negócios em que desejava servir um seu compadre, e tratar da compra de porção de gado. O velho Gonçalo, forçureiro, nos seus princípios, reunira o cabedal bastante para alargar a área do seu comércio: estendera-o ás carnes-verdes e ensacadas e a pelames de todo o género; tornara-se enfim um negociante de consideração, como um seu colega de Coimbra, que salvou a pátria, emprestando a sua senhoria, o Mestre de Avis, alguns punhados de dobras, serviço que lhe rendeu a doação de alguns bens nacionais e a glória de ser o tronco de uma nobre família:

A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos do século XIX, lançando- lhe em rosto o não ser com a espada que lavrassem os seus escudos; mas é porque não têm paciência ou vagar de revolver os arquivos da família, senão deixaria de atirar pedra ao telhado dos vizinhos, vendo os seus de vidro: se por tal de vidro os podem considerar. Deixemos reflexões, porém, e retrogrademos ao bom tempo, que assim se chama sempre ao tempo passado, a apanhar o rico burguês e o sobrinho à porta do Olival:

No campo, que, extramuros, por aqueles lados se estendia, ainda se viam alguns indivíduos, que, com os olhos postos no rio, pareciam analisar as galés chegadas; mas era visível que, de todos os portuenses, estes, que assim ainda pasmavam, eram os menos curiosos, os mais indiferentes à luta travada. A boa parte, farrapos, que em bom tempo tinham formado uma aljuba, denunciavam como descendentes de Tarik; a outros distinguia-os um círculo de lã amarela pregado nos grosseiros tabardos; o resto não se distinguia por coisa alguma da roupa, porque naquele cerzido de trapos nada se podia distinguir. Os curiosos, os verdadeiros curiosos tinham, como vimos, descido à baixa da cidade, e mais crescera o número depois que se soubera que nada havia que recear das galés, e que Rui Pereira e os outros capitães desembarcaram e seguiram processionalmente para os paços municipais. Gonçalo Domingues, intercalando as combinações do seu negócio com reflexões sobre a descoberta feita dos amores do seu sobrinho, reflexões que faziam com que a este mostrasse gesto carregado, e interiormente se sorrisse, avivando na memória os seus verdes anos: medindo de tempos a tempos a altura do sol, que não eram depois de Ave-Marias seguras certas paragens, passeava de um para o outro lado do campo: Fernando acompanhava-o, voltando a todo o instante a cabeça para Miragaia; procurando aproximar-se de sítio de onde pudesse ao menos ver a casa do mercador; repreendendo-se por não ter aproveitado melhor o tempo que passara junto de Irene, dizendo uma fineza daquelas do livro de cavaleiras, que frei Gumeado lhe deixara ler; descoroçoado por aquele final, que decerto o rebaixaria no conceito da linda jovem. O sobrinho andava tão embebido, que nem sentia os pés tocar no chão, e o campo não era jardim areado; o tio cansava-se já de aguardar seu compadre, que não encontrara em casa, quando a aparição de um personagem veio pôr em movimento os frequentadores do campo: uns deslisaram-se, o mais sorrateiramente que lhes foi possível, pela encosta e por entre o arvoredo, outros perfilaram-se, e levaram as mãos aos barretes, os que os tinham, mostrando, contudo, pelo gesto, que não era a estima, mas o temor que os levava a esta delicadeza:

O recém-chegado, personagem lhe chamamos, e mostrava-o ser de conta entre aquela gente, era uma figura notável. Um barrete de tela vermelha de forma esquisita rematava, sentado sobre um capirote, uma cara um pouco crescida e saliente, complemento de um rosto ossudo, moreno, em que dois olhos desesperados com a proeminência de um nariz, que se metia em tudo de permeio, tinham acabado por enviar as pupilas, cada uma para o seu lado, a tomar conhecimento com as orelhas; o lábio superior era adornado por um bigode esfarrapado, de cor duvidosa, ou de todas as cores possíveis -- preto, branco, castanho, louro e ruivo -- e de igual mescla eram os pelos que deixava crescer no queixo. Da cabeça não desdiziam o resto do corpo e o vestuário: trajava um gibão bipartido preto e vermelho, e uma das longas pernas enfiava- se num a calça e borzeguim vermelho, a outra em calça e borzeguim preto; do pescoço pendia-lhe uma medalha de metal amarelo, com as armas da cidade, da cinta um grande punhal e uma enorme bolsa de couro, e na mão sustinha um bastão, terminado por uma cabeça de metal cinzelada, ao que parecia, por artista que tomara a dele por modelo. Medalha e bastão apregoavam que Telo Rabaldo era o pai dos velhacos, cargo que não tem hoje correspondente, por não tolerarem as luzes do século absurdo. Telo superintendia, governava tão somente cidadãos que em noites serenas têm o dossel do leito recamado de estrelas, jejuam sem devoção, deixam crestar o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelo frio de Janeiro, e chamar-lhes velhacos era alterar a significação das palavras, se não era malicia de legislador, que assim arrebanhava e batizava alguns centos de criaturas, para que se persuadissem as de boa fé que na terra não havia mais, como os hospitais de doidos lisonjeiam muita gente que não é forçada a não ter lá moradia. Os velhacos, os verdadeiros, então, como hoje, não se deixavam governar, sempre governavam também, e havia-os anafados, vestindo custosas telas e abrigados em paços soberbos:

-- Eh! boa gente! exclamou Telo, dirigindo-se aos indivíduos que tratavam de lhe evitar a presença; então assim querem fugir ao seu pai! Vamos, venham receber a bênção, como bons filhos, e com a bênção uma boa nova. Olá, Pedro Choca! acrescentou, depois de honrar com um sorriso a facecia que servira de exordio, dirigindo-se a um dos que se desbarretava; que nenhum dos teus falte depois de amanhã na Ribeira. Onde está o João Bispo?

-- João Bispo, redarguiu o interrogado, há dias que desapareceu:

-- O velhaco voltaria para o convento farto de estar deitado de barriga ao sol, ou se meteu outra vez com a filha do velho Humeia, e está a fazer penitência por ter pecado com moura?

-- Ou se foi lançar com os loucos..:

-- Para que? Toma conta em ti! Chegou-me aos ouvidos que te travaste com ele de razões por umas nonadas, e se me deste cabo do rapaz, em boa te meteste! Se não me trouxeres em breve notícias dele, a tua pele mas dará. A polé do aljube está nova, e poderá bem contigo:

Choca resmungou por entre dentes algumas palavras, e o pai dos velhacos prosseguiu: -- Avisa aos compadres para que ou vão contigo e mais a sua gente, ou a levem para as tercenas. Que não falte ninguém! Quero duzentos homens, bons pulsos..:

-- Duzentos homens, bem sabe sua mercê que não podemos reunir. A melhoria da gente levou-a o senhor conde Gonçalo; o senhor alcaide tem boa porção, e se crianças, mulheres e aleijados não servem..:

-- E esses cães de cabeça amarrada! exclamou Telo, designando um mouro que a curiosidade trouxera para junto de Pedro Choca, capataz de uma turma de vadios. Quanto aos aleijados, sei de uma mesinha que os põe sãos como um pero, juntou, mostrando o seu bastão; o manco da porta da Sé que o diga. Vamos: sua senhoria (uma barretada) apelidou os bons homens da sua boa cidade (outra barretada) para que o ajudassem a dar cabo dos cães de Castela, e os alvazires dão-vos honra metendo-vos na conta dos bons homens... fazendo-vos trabalhar. Que ninguém falte, e viva sua senhoria!

-- Viva sua senhoria! repetiram os vadios e com eles Gonçalo Domingues, que se aproximara da roda formada ao pai dos velhacos, roda desfeita a um sinal por este dado com a vara, deixando a importante, incansável e incorruptível autoridade, como lhe chamariam hoje, que todos os encargos têm um ou mais adjetivos anexos, face a face com o burguês, que abria a boca para indagar quais os serviços que o filho de Teresa Lourenço reclamava dos portuenses:

A interrogação não foi formulada. Telo Rabaldo, cheio da sua importância, fez uma leve saudação, carregou o barrete sobre um dos olhos em rebeldia, e girou sobre os calcanhares ao mesmo tempo que um outro individuo assentava nos ombros do forçureiro uma grande palmada. Gonçalo Domingues voltou-se a ver quem segundava a amabilidade do marinheiro, e se não reconheceu logo o seu compadre, foi porque um abraço de meter costelas dentro o sufocou. O bom homem vinha lisonjeado com a carta de que Rui Pereira fora portador, lisonjeado em extremo no seu patriotismo de localidade, e expandia o seu contentamento daquela sorte e em exclamações, que fizeram suspeitar ao tio de Fernando, que não estava em bom arranjo aquela cabeça. D. João chamava aos portuenses o seu bom povo, mimoseara- o além disso com outros epítetos tais como -- leal, esforçado, etc., e o portador, resolvido, apesar do seu enfado, a ser amável e popular, pintara a amizade e reconhecimento do Mestre, pela espontaneidade da sua aclamação na cidade da Virgem, com tais cores, descera da sua dignidade prodigalizando sorrisos ao corpo municipal, batendo no ombro de Luiz Giraldes de um modo, que o nosso homem esteve por um triz a deixar cair uma de comoção:

Era uma alma cândida e entusiástica, apesar do involucro grosseiro, o compadre do senhor Gonçalo Domingos; tão cândida que acreditava no desinteresse do Mestre de Avis, supondo que defendia a coroa para a entregar ao filho de Ignez de Castro; tão entusiástica e patriótica que, quando, à força de lhe perguntar o marchante se encontrara o arrabi, secas as goelas e já sem alento para descrever a reunião nos paços municipais e mais episódios da embaixada, se recordou do seu negócio, era tarde. O sol ia quase a mergulhar no oceano, e era provável não só que, na judearia estivessem fechadas as ruas, mas até que se lá fossem, encontrassem as portas da cidade cerradas no regresso. Os dois burgueses separaram-se, pois: o patriota, compadre de Gonçalo Domingues, seguiu pelos campos em direção ao povoado de Cedofeita; este outro, despertando o sobrinho de pensamentos em que não entravam nem compras, nem vendas, nem os direitos que os filhos de Henrique II de Castela e D. Pedro I de Portugal, podiam ter à terra que pisava, tomou com ele o caminho de casa:

As nuvens, que o norte espalhara no ar, como flocos de algodão, ornadas pelas tintas que formam a gradação entre o rubro e o amarelo vivo, davam ao céu a aparência de um mármore, um todo que em pintura seria inverosímil; os edifícios de Vila Nova e de Gaia cortavam com o perfil o horizonte, vestindo pouco a pouco uma cor uniforme, o cinzento-escuro. De um destes edifícios, o que mais se avantajava, do castelo de Gaia, as janelas esguias voltadas para o poente pareciam dar saída aos fogos de um incendio. De que não era, porém, este chamejar mais que um reflexo do sol no ocaso, se poderia desenganar quem, mesmo nunca tendo presenciado este fenómeno, se nos antecipasse na residência do tenente do conde D. Gonçalo, onde uma hora depois lhe provaríamos que a reflexão, ao apresentar Telo Rabaldo, não fora de leve feita: velhacos não eram só os que não tinham nem leira nem beira:

Numa das salas que no castelo serviam de aposento ao alcaide, revestida de apainelados de carvalho, em que a luz do dia, coada pelos miúdos vidros de cor, formando losangos, embaçava, e embaçava igualmente a que davam as tochas sustentadas por braços de ferro, passeava de um para outro lado um homem de alguma idade já, magro e de estatura mediana. No peito de uma espécie de camisola de pano de curtas fraldas, cujas mangas, farpadas nas orlas, pendiam até ao joelho, viam-se bordadas a verde com nervuras de ouro três folhas de figueira; o mesmo distintivo se reproduzia num a bolsa de couro, que, do lado contrário ao estoque, acompanhava um punhal, nos fartos reposteiros das duas portas, que para a sala davam serventia, e na manga da jorneia de um pajem, criança de dez anos, que cabeceava com sono a um canto. O barrete adornava-se com duas penas de aguia, presas em fecho de ouro, e os borzeguins apresentavam uns longos bicos, moda que um episódio da guerra travada deixou assinalada na história. Encostados, no vão de uma janela, conversavam, em voz baixa, uma dama e um individuo que se tornava notável por usar crescido o cabelo, raro e de cor avermelhada, e por uma longa espada, de que afagava o punho. Do lado oposto havia seis indivíduos, um dos quais vestia hábito monástico, e outro se acobertava com uma velha armadura de malha:

O homem que passeava era Aires Gonçalves de Figueiredo; a dama era a esposa deste, D. Catarina; o individuo, que lhe fazia companhia, o irlandês Guilherme Down-Patrick; os restantes eram quatro cavaleiros, homens de solar de Entre-Douro-e-Minho, o capitão de besteiros, Pero Beduido, e frei Garcia:

As passadas do alcaide soavam mais alto do que as poucas palavras que toda aquela gente trocava entre si, e visivelmente preocupava-o negócio, que não era para os outros estranho, a não enganar o modo porque de tempos a tempos se fitavam e a meditação que se seguia. Duas pessoas se subtraíam à influência geral, a castelã e o irlandês: se se calavam era, ela para amimar uma galga branca, que se enroscava sobre um banco, ele para com a vista percorrer a laçaria e penduróis do teto:

Segredos e silêncio, aqueles olhares e gestos tinham um todo misterioso, que houve por bem quebrar Aires Gonçalves:

-- Que me dizeis, senhores? exclamou, estacando no meio do passeio, como a procurar alvitre que viesse pôr termo à sua irresolução, parecer que se conformasse com o que tinha na mente:

Ninguém respondeu, porém, e o castelão, lançando à volta de si um olhar de quem queria ler nas fisionomias dos hóspedes as suas intenções, prosseguiu: -- Sua senhoria quer em volta de si todas as lanças do reino, e não se lembra, ou não se quer lembrar de que fica desguarnecida uma terra tão importante como esta, e cercada por tantos senhores que levantaram voz pela rainha D. Beatriz. Deixa a cidade aos peões, aos peões, que trata como a gente de prol?!

-- Em boa confusão vai pondo as coisas! Um dia, veremos, senão lhes puser cobro ás ousadias, vir o povo tomar-nos os solares; atalhou, abanando a cabeça com ar sentencioso, um velho fidalgo de Riba-Tua. Bem altaneiros andam já burgueses e mesteirais!

-- Deixai, acudiu Afonso Darga, as encamisadas dos peões, que terão o seu cabo. O Mestre precisa de sustentar a guerra, e lisonjeia por isso quanto o mercador tem a arca bem provida de boas dobras, torneses, gentis, florins e pilartes. Aos do Porto pede ele agora uma armada, mantimentos e dinheiro:

-- Armada que nos levará a ver o rosto ás hostes de Castela; disse Aires Gonçalves:

-- Se se fizer:

-- O povo do Messias de Lisboa a arranjará. Não viram como os alvazires propuseram logo uma derrama, e juraram a Rui Pereira que teriam antes de um mês a nado algumas naus e outras se armariam dos melhores navios do comércio com Flandres?! Estão inchados com o valimento que lhes dão:

-- Por aí se conhecem os vilões..:

-- É que dão eles ao Mestre? Grande coisa! Em campo se verá de que servem, e no campo é que a contenda tem de se decidir. Irão com bestas, virotes e azevéns fazer frente ás lanças de Castela? Língua têm eles; mas honra é que nem toda a algaravia desses mestres em leis e clérigos, que o regedor tomou para seus conselhos, esses faladores de Pisa e Bolonha, poderá meter nessa gente:

-- Mas nela se estriba D. João, disse, abanando a cabeça, um dos cavaleiros:

-- Para eles apela com boas palavras; a nós manda-nos, não recado, mas ordem! exclamou o alcaide. É dessas garnachas saídas do nada que vem a desconsideração em que nos tem:

-- Tempos do rei D. Fernando! suspirou Down-Patrick, recordando-se talvez de quando as hostes do duque de Lencastre faziam, entre os aliados portugueses e os inimigos de Castela, de tudo roupa de francês:

-- Era um bom rei o que Deus tem! juntou frei Garcia, fazendo uma momice de piedade:

-- Rei, e criado como rei, bem sabia ele onde estava a força e grandeza do reino e sua:

-- E melhor agasalho não nos fazem sempre no campo do marido da rainha D. Beatriz. Aos da sua casa aconselhou D. Leonor que fossem para o Mestre, que ao menos não era sôfrego:

-- Com isso perdeu D. João: perdeu-o a altivez:

-- E ao Mestre não aproveitarão as mercês rastejadas:

-- Ele não precisa de nós, disse o velho, o mais desapontado dos hóspedes do alcaide, ao que perecia; faz cavaleiros ao seu capricho do primeiro peão que se lhe antolha:

-- Bons cavaleiros! observou, rindo, o mais jovem da reunião. Por lá andam montados em mulas fazendo rir com os seus ares de importância. Não será preciso, para os derribar, erguer clava ou montante: andam tão mal a jeito com arnês e grevas, tão abafados pelos elmos, os que os têm, que ao primeiro arranco das azes vão ao chão:

-- Em se tratando de lançadas é connosco que se haverão, bem o vedes, disse Aires de Sá:

-- E ireis, senhor alcaide? interrogou Afonso Darga:

-- Eu, senhores, respondeu Aires depois de alguma hesitação, levantei voz pelo Mestre, mas recebi o castelo do conde D. Gonçalo: obedecerei a sua senhoria em tudo, mas só abandonarei o castelo..:

A frase do alcaide não terminou. D. Catarina, aproximando-se do seu marido, e impondo-lhe com um relance de olhos a conveniência de não prosseguir, atalhou: -- Largos dias tendes para tomar conselho, cavaleiros; alegrai o sarau com outros contos. coisas de tanta importância não se devem tratar de salto: o tempo que se leva a pensar em casos tais não é perdido. Tomai exemplo de D:

Gonçalo Teles, juntou mais baixo, dirigindo-se ao esposo:

D. Catarina de Figueiredo era, até certo ponto, uma dona prudente, como chama um historiador, por igual conselho fabiano, a Beatriz Gonçalves de Moura, aia depois da excelente rainha D. Filipa. O exemplo do conde era um grande exemplo, pois era de homem que sabia, ou parecia ter de memória o Sic vos non vobis de Virgílio, e dar-lhe o valor devido nas coisas do mundo:

D. Gonçalo fechara-se em Coimbra, jogara com a sua irmã um jogo pouco leal e parecia aguardar que a sorte decidisse qual dos pretendentes à coroa tinha razão e direito, ou força e jeito para a segurar na cabeça. O alcaide aproveitou o conselho e abandonou o tema em que o lançara o mau humor causado pela mensagem de Rui Pereira:

Palestra sobre outro assunto era naquela ocasião difícil de sustentar. Os cavalheiros pouco a pouco deixaram a sala, e quando só restavam o aventureiro, Henrique Fafes, o mais jovem dos da reunião, e frei Garcia, indicou este último com o olhar o pajem quase adormecido, tirando ao mesmo tempo da manga uma tira de pergaminho dobrada. Aires de Figueiredo, sacudindo com violência a criança de quem o reverendo parecia recear a indiscrição, a pôs, estremunhada, fora da porta, ordenando-lhe que se recolhesse, e em seguida percorreu com os olhos o manuscrito, que lhe apresentaram:

-- O alcaide de Monsaraz veio? disse ele terminando a leitura e dirigindo- se ao frade:

-- Senhor, sim, veio:

-- E não desconfiaram de nada?

-- Penso que de nada. As galés castelhanas não apareceram:

-- E de boa fonte houvestes esta proposta?

-- Do irmão do arrabi-mor, esse judeu a quem sua real senhoria acaba de fazer mercê:

-- Mister Guilherme, senhor Henrique, disse o alcaide depois de fitar os dois por um momento, se pouco caso se faz de nós em Lisboa, no campo dos que a sitiam têm-nos em apreço. D. João não é tão sôfrego como o pintavam, e a prova é este pergaminho:

Down-Patrick fez uma visagem e soltou um «oh» gutural, que expressava a pouca admiração que lhe causava o apreço em que o poderiam ter, como certo dos seus muitos merecimentos:

-- Gonçalo Rodrigues vos falará depois de amanhã em S. Domingos, disse frei Garcia, atraindo o alcaide para junto de uma das portas, a oposta àquela por onde saíra o pajem. E depois, acrescentando algumas palavras em voz baixa, saiu pelo outro lado:

Aires de Sá, chamando Henrique Fafes e o irlandês, seguiu-o:

Quando a sala ficou deserta, o reposteiro, junto do qual frei Garcia falara com o alcaide de Gaia, oscilou e apareceu entre ele e a ombreira da porta um rosto, onde a curiosidade e a malicia se pintavam:

-- A mulher tem razão, disse, referindo-se ás palavras de D. Catarina, o curioso, depois de ter o ouvido à escuta por alguns segundos; o tempo que se gasta em certas coisas não se perde, e eu não perdi o meu. Ah! Garifa, minha pobre Garifa! exclamou em seguida, mudando de expressão e juntando à exclamação um suspiro, de ti é que não apanho notícias:

CAPÍTULO IV DOUS NAMORADOS

Fernando, chegando a casa, o melhor prédio da rua dos Pelames, ao toque de Ângelus, viu seu tio devorar com todo o apetite uma grande posta de carneiro e um tassalho de toucinho, capaz do pôr em debandada um exército maometano, regado tudo com o sumo da uva. Gonçalo Domingues, se dava descanso aos dentes, não o dava à língua, pois encetou, ao benedicite, um sermão, que, ao gratias, ainda não estava concluído. O velho falou na criação do seu tempo, na obediência da gente jovem à mais idosa em geral, e em especial àquela de quem se recebe o pão do corpo e o pão do espirito; discorreu sobre as passadas travessuras do sobrinho, e foi cair na última, terminando pela ameaça de um severo castigo, em caso de reincidência:

Fernando, ao inverso do tio, não tocava sequer num a mealha do pão alvo, que a criada com um prato de figos passos servira por mimo, e, com os olhos fixos na toalha, não soltava uma palavra de desculpa. O bom velho, notando aquele extraordinário fastio e sisudez, tomou tudo por efeito da sua eloquência, conversão e compunção do rapaz, e por um triz esteve, no final, a adicionar ao sermão um paliativo, tirando o exemplo de casa, pois que o podia fazer; mas a necessidade da disciplina, de conservar sempre perante o sobrinho um todo de soberania, um sobrecenho, que julgava indispensável, embora não quadrasse com a afeição que lhe tinha, o detiveram. Fernando era, segundo ele, um estouvado, um leviano como seu pai, do que dera já provas exuberantes, abandonando, depois dos estudos, o convento de S. Francisco, então extramuros, para onde um outro parente o chamara, a fim de o meter na estrada do céu e do mundo pela clausura. O que nisto amofinava mais o forçureiro era a boa disposição que mostrava o jovem para as letras, a inteligência desenvolvida, que nos primeiros tempos fizera dizer a frei Gumeado, grande sabedor para aquelas épocas, que bem podia vir a aspirar a grandes dignidades da igreja e do seculo, a ser geral, bispo, ou chanceler. Todo o rigor, pois, que empregasse era pouco, e despediu-se do jovem com toda a solenidade, para dizer à cuvilheira que, como pelo seu voto e lembrança, lhe levasse ao quarto alguma coisa para comer:

Se Gonçalo Domingues soubera qual a atenção que lhe dava o sobrinho, decerto não fizera semelhante recomendação. É bem certo que os anos trazem, ás vezes, experiencia e algum saber; mas não é menos certo que à proporção que vão passando se esquece muita coisa igualmente: aos sessenta perde-se a memória dos vinte, senão das ações praticadas, dos pensamentos havidos; um jovem pode muito bem avaliar o que não apreciará, não conseguirá distinguir um homem a quem o inverno da vida tenha gelado o coração. A prédica entrava tanto na absorção de Fernando, como entrava a mensagem do Defensor: as palavras do tio ecoavam-lhe aos ouvidos como sons vagos, que se não reproduziam no maquinismo regulador chamado inteligência e outros nomes, segundo a face por onde é visto, porque sons diversos o impressionavam. As falas de Irene, as inflexões, os mais leves gestos preocupavam-no: de uns e outros tirava esperanças agora, logo motivos de amofinação; traduzia agora uma frase, das poucas obtidas de Irene, por um modo que o coração trasbordava de alegria, e logo parecia-lhe que o timbre de voz, um nada sonhado lhe dava bem diverso valor; assinalava aquele dia como o mais feliz da vida, e recordando-se do desfecho do coloquio, em seguida; entristecia-se e amaldiçoava o tio, que o fizera descer do galho da árvore e dos braços da felicidade. O puxão de orelhas, sobretudo, doía-lhe, quando o recordava, mais do que lhe doera em Miragaia, julgando-se aos olhos da sua namorada desonrado... mais que desonrado, ridículo. Este combate entre o desejo e o receio, durou, trazendo a insónia, até altas horas da noite; mas, a final, venceu o desejo, e a alegria espelhou-se-lhe no rosto. Fernando, nas azas da imaginação; voava do passado ao futuro, e deste aquele, amontoando as pedras do seu castelo de felicidade. Deitando-se e apagando a luz sorria a todos os sonhos criados; sentia como nova vida a inflar-se no peito, e parecia querer afogar-se em ar, tanto era o que respirava de momentos a momentos:

Junto com a imagem da linda filha de João Ramalho toda a natureza era risonha naquela miragem: as árvores reproduziam-se mais verdes, mais cheias de perfumes e mais belas as flores; as aves nos cantos diziam todas -- alegria; o céu transparente deixava adivinhar além do manto azul uma segunda vida toda amor. O jovem vira, bem o podem acreditar, bastantes vezes o céu, as árvores e as flores, mas nunca se lhe tinham afigurado assim: como à estátua de Pigmalião, faltava-lhe o fogo no peito. A lavareda ateara-se naquele dia, posto que incubasse havia muito:

Fernando Vasques amava Irene desde que a vira, e vira-a nessa idade em que se sente um vácuo no coração; a si mesmo confessara já esse amor; mas definido, claro, só então rebentara: o vácuo enchera-se, e a trasbordar, e para o encher talvez o amaldiçoado puxão de orelhas, a primeira grande contrariedade, entrasse por muito: «talvez» dizemos, e podíamos dizer «certamente.» O amor vive de contrariedades, de lutas, diz um fisiologista; e como um malicioso acrescentou que por isso só ele nas mulheres se criava, saibam, acreditem as leitoras que todo o homem tem no coração o seu tanto ou quanto de mulher, na juventude sobretudo, e por isso não perde. As mulheres lucram menos com o que recebem do homem em geral: não as compensamos. Como dizíamos, porém, deixando reflexões, a correção de Gonçalo Domingues, e ainda, se quiserem, as poucas palavras trocadas entre os dois namorados, tinham ateado a lavareda no peito do jovem, e um dos efeitos dela fora, de fazer acordar homem quase quem se deitara criança:

Fernando, no dia seguinte, não era o mesmo rapaz; o tio notou aquela diferença e atribuiu-a ao jejum da véspera, com a mesma perspicácia com que atribuíra a causa dele à sua prédica; e para contentar o rapaz, levou-o de manhã, depois de tratar dos seus negócios e da política do dia, a visitar frei Gumeado, que o costumava regalar, apesar da sua deserção, com gulodices, em que não tocou dessa vez, e de tarde, a passeio até aos Carvalhos do monte, que assim se chamava o local onde o cabeçudo parodiador do marquês de Pombal no Porto, o corregedor Almada, edificou um teatro. O efeito destas amabilidades é fácil de adivinhar. O namorado de Irene, que, voltando com a luz da madrugada à luta de esperanças e receios, ansiava por ocasião de ir buscar um desengano nos olhos da donzela, preso assim todo o dia, revoltou- se interiormente contra a tutela do tio e desapontou-o com desabrimentos. O velho pasmou, benzeu-se, e da compaixão, do arrependimento da aspereza da véspera caiu com um mau humor verdadeiro, tomando aquele procedimento por ingratidão, protestou que a severidade, que até aí lhe ficava nos lábios, ia ser posta em ação, e como assim se revoltara pelo leve castigo de uma travessura, ele trataria em primeiro lugar das impedir, não lhe deixando uma hora para folias, nem arredar pé da loja de pelames; em segundo, se se furtasse à sua vigilância, de passar além do puxão de orelhas, dando causa verdadeira a amuos:

No outro dia, um domingo, não se esqueceu do seu protesto o velho forçureiro, e o desespero do sobrinho aumentou, tanto quanto aumentava o receio de perder o amor da linda jovem; que, se até ao dia em que conseguira trocar algumas palavras com Irene, muitos se passaram em que não descera a Miragaia, sem que tanto se amofinasse, aquela meia declaração e o desfecho mudara as circunstâncias: daquelas em que se encontrava bem podem fazer ideia as leitoras e os leitores, aos quais a memória ainda conserva vivas as páginas da juventude:

Depois de jantar, porém -- refeição que se tomava nessas épocas, mesmo entre aristocratas, desde as onze ao meio dia, exatamente à hora em que hoje almoça muita gente -- quando Gonçalo Domingues executava, dormindo a sesta, uma música que se assemelhava a tempestade em chaminé na combinação de assobios e notas de contrabasso, apareceu Luiz Geraldes, o mais respeitável individuo da burguesia, a procura-lo para irem a S:

Domingos, onde se devia tratar do meio de corresponder à confiança que o mestre de Avis depositara nos bons cidadãos da terra, assunto em que o conselho do forçureiro era valioso, por se poder traduzir na linguagem sonora das boas dobras de el-rei D. Pedro; apareceu Luiz Geraldes e com ele a ocasião que desde madrugada esperava e provocara à sombra de todos os pretextos. Mestre Gonçalo, pois, a sair, e Fernando a procurar na arca o seu melhor gibão e o barrete, a alindar-se, e a bater com a porta da rua na cara da velha criada, que lhe recordava as ordens dadas pelo tio, avivadas segundos antes, e a trovoada que sobre ele e sobre ela descarregaria se ou o encontrasse na rua, ou o não achasse em casa, regressando:

O namorado jovem deitou a correr; mas, como em certo apólogo, a pressa foi causa de vagares. Tal era o estado daquela cabeça que tomou o caminho seguido pelo seu tio e o grande amigo do Mestre, e ao cabo da rua da Bainharia esbarrava com eles se um encontrão de um homem de armas o não obrigasse a uma pausa, e na pausa a um espadeiro, que se sentava num desses balcões ou mostradores que fechavam uma das portas das estreitas e escuras lojas, conservando nas ruas mais estreitas e não menos escuras os fregueses, não ouvisse dizer para um vizinho que deitava a cabeça por uma adufa: -- Lá vai em cata de mestre Gonçalo, que dobrou agora mesmo para o terreiro, o sobrinho... O filho de Vasco, que Deus haja:

Fernando, quis retroceder; porém, como o bom do espadeiro lhe gritasse que perto ia Gonçalo Domingues, se o procurava, não teve remedio senão responder que ia a recado para as Aldas, e enfiar pelo arco de Sant'Ana, tomar caminho pelo lado da judearia e descer aos Banhos, onde lhe tolheu o passo o personagem que no capítulo antecedente vimos no castelo de Gaia, surdir por entre o reposteiro:

-- Vindes de S. Domingos? interrogou ele, pondo-se diante do jovem:

-- Oh! és tu João Bispo! exclamou Fernando, depois de examinar o rosto do individuo, assombrado por um farto capuz. há muitos dias que te não vejo:

-- É verdade, redarguiu o recém-chegado, dando pelo nome, que ouvimos já da boca do pai dos velhacos. É verdade, repetiu; e à palavra juntou um profundo suspiro:

-- Que tens, tu? Estás tão triste como quando nos tinham no convento:

-- De onde nunca devera ter saído! disse João, soltando outro suspiro:

-- Bem mudado estás, meu folião, ou é isso momice nova?

-- Antes fora, Fernando! antes fora! mas finaram-se as alegrias:

-- Mas, ao que parece, a vida não te vai pior. Gibão novo de barregana..:

boa adaga! disse o jovem, medindo-o de alto a baixo:

-- Vesti isto; mas em almáfega respirava melhor: o saio e as calças riam-se por todas as costuras, mas eu também ria, e agora bem vedes...:

-- Vejo que estás sisudo como eremitão, ou mestre em leis, é verdade..:

Mas onde assim te puseram? de onde vens?

-- Do castelo:

-- Do castelo? Tomaste lá moradia e serviço?

-- Ou coisa parecida... que não se pode assim dizer de praça..:

-- Segredo! Ora vejam João Bispo feito escrivão da puridade do alcaide!

exclamou o jovem, sorrindo e dando alguns passos para seguir seu caminho:

João segurou-o por um dos braços, e encolhendo os ombros respondeu à zombaria: -- Mofai, que a vez a todos chega. Algum dia haveis de querer bem a alguém...:

-- E por isso te amofinas, quando não tens quem te empeça da ver a todo o momento! redarguiu Fernando, que se não recordou naquele instante de outro contratempo em amores, senão do que com ele se dava:

-- Vê-la!... vê-la! exclamou, tornando a suspirar o vadio. Oh! minha pobre Garifa!

-- Garifa, repetiu Fernando; Garifa... Ora espera... Garifa não era aquela rapariga moura que vinha ao terreiro vender fruta?

João Bispo fez com a cabeça um aceno afirmativo:

-- Uma rapariga sempre alegre, que na procissão de Corpus tangia pandeiro e dançava com tanta desenvoltura, trazendo o vestido cheio de cascavéis?

-- Sim:

-- Que tão bem cantava umas cantigas castelhanas?

-- Sim:

-- Pois bonita era... pena que fosse moura! E tu, João..:

-- Eu quero-lhe, quero-lhe como se em noite de S. João me fizessem feitiço..:

-- E feitiço foi decerto; porque uma moura..:

-- Não sei se é grande pecado o querer-lhe bem; mas cá para mim tenho que não. Ela é moura, é; mas..:

-- É por isso que tão magoado te vejo? Queria-la cristã, e casavas:

-- Não é, não; é porque ma roubaram!

-- Roubaram-ta?

-- Roubaram. há uma semana, no sábado, estava eu na encosta do Olival, ao pé do regato, à espera dela, e eis que vejo o pai, o velho Humeia, vir direito a mim. O pobre homem chorava como uma criança; lágrimas eram como punhos pela cara abaixo e os soluços pareciam afogá-lo; cortava o coração!

disse João Bispo, limpando com a manga do gibão os olhos, sensibilizado ou pela recordação da cena, que narrava, ou pela desaparição de Garifa. O velho prosseguiu, quando pôde começar a falar, a pedir-me a filha, dizendo que lha entregasse; que bem tinha visto andar-lhe no seguimento, e na véspera a encontrara ainda ali mesmo a falar comigo. Olha, Fernando, fiquei como quando me vieram dizer que o meu Pai -- Deus o tenha -- era finado, e jurei aquele pobre homem que não fora eu que lhe tirara a filha... e comigo pela hóstia consagrada jurei também descobrir-lhe a rapariga. O velho acreditou- me, e disse-me coisas, que não poderei repetir; que não sei bem o que foram; mas que pelo modo das dizer me deram um nó na garganta: parecia que tinha engolido uma maçã inteira. Procurei Garifa. dois homens foram vistos a passar o rio nessa noite com uma mulher, me disse um petintal, e corri tudo em Gaia; alistei-me no troço de Pero Beduido, para ter ocasião de esquadrinhar todos os cantos do castelo; mas vê-la... vê-la... ainda a não vi!

Desconfio, porém, que lá esteja, e se lá estiver, ai do rausador! Olhai, eles deram-me esta adaga, e eu trago-a bem afiada, os ouvidos atentos e os olhos abertos!

João Bispo, ao soltar estas últimas palavras, baixou a voz e um véu sinistro lhe assombrou a cara; por alguns instantes permaneceu calado, e prosseguiu depois, vendo que o sobrinho de Gonçalo Domingues parecia aterrado com semelhante confidência: -- A alegria não pode durar sempre. Desde que, morto meu pai, que por força me queria ver tonsurado, fiz uma reverência ao guardião, dei um cascudo no porteiro e me fiz velhaco, visto que no convento não aprendi ofício e de sujeição estava farto, bem vestido, mal vestido, mais trapo, menos trapo, barriga mais cheia ou menos, tinha quase todo o santo dia os dentes à amostra; agora veio um revês..:

-- Não és só tu, João, que os tens; eu..:

-- Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que eu dou uma ensinadela, e..:

-- É negócio em que nada podes. Não sabes, João, disse o jovem, pondo a mão no ombro do seu antigo companheiro, e chegando-lhe a boca perto do ouvido, como em segredo; não sabes... eu também quero a uma rapariga como ás meninas dos meus olhos. Oh! é mais bonita que a tua!

-- É, disse João Bispo, com um meio sorriso:

-- Muito mais; porém, meu tio, tenho eu para mim..:

-- Não quer?

-- Parece-me que não:

-- É pobre?

-- Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo os ombros:

-- Mestre Gonçalo Domingues é rico, e..:

O namorado de Irene, ouvindo o nome do tio, lançou em torno de si os olhos, como se receasse que ali aparecesse; lembrou-se que passava o tempo e ele podia, de volta a casa, não o encontrar, se fosse grande a demora; recordou a causa do seu passeio, e fazendo um gesto de despedida, deu alguns passos em direção à porta da cidade:

-- Se for necessário o antigo companheiro das folias, não o poupeis. Os meus trapos nunca vos fizeram voltar o rosto, quando nos encontramos, e hei de mostrar que não tendes feito mal, Fernando, disse o ex-noviço, estendendo ao jovem um pulso que não era fraco. Ah! exclamou em seguida; não vindes do lado de S. Domingos?

-- Não:

-- Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaia?

-- Não:

-- E que tens a ver com o senhor alcaide, meu velhaco? disse uma voz, que logo João Bispo reconheceu por ser de Telo Rabaldo:

-- Ah! sois vós! murmurou o interpelado, visivelmente contrariado por aquela aparição, enquanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo:

-- Vosso servo, disse o pai dos velhacos, tirando com ar zombeteiro o seu barrete e segurando pelo capuz a João Bispo. O fidalgo decerto que só com fidalgos tem trato e por eles procura; porém como está em beetria, para não haver desaguisado, pondo-o fora, dou-lhe companhia mais chã; mas que lhe fará bom agasalho. Vamos! exclamou mudando de tom; para as tercenas já!

-- Senhor Telo, porém..:

-- Vais secar a goela sem proveito:

-- Senhor Telo, quisera falar a Rui Pereira:

-- Agora é com Rui Pereira! Grandes são os negócios! Bravo! continuou o pai dos velhacos, medindo João Bispo de cima abaixo, como minutos antes fizera o sobrinho de Gonçalo Domingues, e como ele admirando a mudança que na roupa havia; bravo! Parece que vamos ter contas graves a ajustar!

Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta a mercador ou algibebe para vires assim garrido?

-- Sou besteiro do rei:

-- Besteiro do rei desde quando, velhaco? desde que fugiste com a filha do velho Humeia?

-- Está excomungado! credo! gritou uma velha do pequeno juntamento que se fizera à volta dos dois interlocutores. Ter contratos com aquela condenada moura, aquela...!

A mulher disse nome que lhe valeu de João Bispo um murro, que levava a força proporcional à raiva que lhe causara a abelhuda comadre, insultando Garifa:

-- Olhem o maldito! gritaram duas companheiras da agredida. Onde está a justiça? Que faz o senhor bispo que o não manda açoutar bem açoutado? E atreve-se em rosto do senhor Telo..:

-- Calem a boca, serpentes! berrou o pai dos velhacos, fazendo um gesto e abanando o seu bastão:

-- Serpentes? grunhiu a velha, segurando com a mão os dentes que o soco pusera em vésperas de despedida:

-- Serpentes? pipilou uma das novas, esganiçando-se:

-- Serpentes? resmungou a outra, ferrando os pulsos nas ancas:

-- Serpentes! gritaram, grunhiram e pipitaram entre gargalhadas e em todos os tons os garotos que já embaraçavam o trânsito:

Telo Rabaldo viu a sua dignidade comprometida, o que não poucas vezes acontecia, e tratou da salvar pelos meios usados ainda hoje em embaraços -- pela força; e como à mão não tivesse se não a sua, foi dessa que se serviu:

Segurando sempre o namorado da moura pela extremidade do capirote, fez rodízio com o seu bastão; tomando-o pela parte superior, e uma escala salteada de «ais» e «uis» saiu dentre a roda de curiosos e curiosas, que aumentava:

-- O senhor alcaide! aí vem Aires Gonçalves! gritaram duas vozes quase ao mesmo tempo:

-- Tolhido sejas tu, maldito! resmungou João Bispo, lançado em apuros com semelhante aparição:

-- Senhor Pero! senhor Pero Beduido! berrou o pai dos velhacos, para o capitão de besteiros, que, seguindo o alcaide de Gaia, se dispunha a embarcar para o castelo, e desaparecia por um dos postigos:

-- Já nada faço, disse consigo o ex-noviço deitando o olho a ver se o capitão acudia ao chamamento. A pele corre-me agora grande risco, se desconfiam de mim. Com a boca no pixel não os apanho já!

-- Olé, senhor Pero! sua mercê não me diz se este velhaco tomou serviço?

prosseguiu Telo, querendo arrastar consigo João Bispo, mais talvez para à sombra do capitão dos besteiros se fazer acatar, do que pela curiosidade de saber se o namorado de Garifa lhe mentira, ao que estava bastante afeito, para regular a sua justiça pelo humor em que o apanhavam e não por depoimentos e confissões. Em matéria de confissões dava fé ás feitas em potro, ou de borzeguins, quando estava de boa feição, e felizmente não era isto raro:

-- Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra ao seu prisioneiro; ainda há pouco não tinhas que dizer a todos os fidalgos? Mais depressa se pilha um mentiroso do que um coxo:

Pero Beduido, ouvindo a voz do pai dos velhacos, parara junto do postigo, que dava sobre a margem do rio, e retorcendo o bigode piscava os olhos para concentrar os raios visuais afim de melhor reconhecer quem o chamava. Aires de Figueiredo parara igualmente:

Quem não deve não teme. João Bispo sentia os seus arrepios pelos lombos, porque um pensamento, que o leitor experto, e que decerto se recorda do diálogo apanhado atrás do reposteiro, adivinhará, o punha, na consciência, em hostilidade com o nobre alcaide, e se na presença dele Telo Rabaldo de novo se referisse à entrevista que pretendia ter com o tio de Nuno Alvares, a vida corria-lhe grave risco. João não tinha, porém, cursado em vão os estudos em S. Francisco e a escola prática de velhacarias dos terreiros, praças e betesgas da cidade da Virgem, para não achar um expediente bom ou mau com que se saísse de apuros, momentaneamente que fosse. Telo segurava-o, tendo-o quase esganado pela extremidade do capirote, e o cabeção deste fechava no peito e garganta por meio de quatro grossos botões. Desabotoado estava livre:

-- Senhor Telo, senhor D. Telo?! murmurou o rapaz, levando as mãos já aos botões, e esgotando no submisso, no plangente da voz, e naquele «dom», o último recurso oratório:

-- Ah! cão, velhaco! Eu te..:

O pai dos velhacos não concluiu a frase: um cascudo que preparava como paga da nobilitação dada ao seu nome, deu-o no ar, e com o costado no mesmo momento apalpou o chão, depois de abalroar com as canelas de alguns curiosos:

Um coro formado de um uníssono de gargalhadas e de gritos ensurdeceu os vizinhos que enchiam as janelas e atulhavam as portas. As gargalhadas provocara-as o desastre de Telo; os gritos soltaram-nos os que abriam caminho a João Bispo. O amante de Garifa deixando o capirote na mão do pai dos velhacos, que perdera o equilíbrio, metera mãos à adaga e corria na direção da Ferraria:

Ao passar em frente do postigo um acontiado da beetria tomou um virote para lhe embargar o passo:

Aires Gonçalves, ao mesmo tempo que Pero Beduido, reconhecendo no fugitivo um dos seus homens, lhe sustava o arremesso, gritou em voz bem alta para chegar aos ouvidos de João: -- Cão, vilão, se tocas num dos meus homens!..:

E a mão do fidalgo pousou como complemento de frase no punho do estoque:

O acontiado fez uma careta de despeito, baixou o virote, e quando o fidalgo voltou costas, deu com ele com uma força tal de encontro à parede, que o fez voar em hastilhas, resmungando: -- Cães e vilões... cães e vilões! A nossa vez há de chegar, traidores, loucos!

CAPÍTULO V IRENE

E a linda Irene, a filha de João Ramalho?

Irene, das primeiras falas trocadas com Fernando, colheu um resultado quase igual ao que este obtivera. A impressão primeira foi a da alegria:

Deslembrada da aparição de mestre Gonçalo, quando foi ao encontro da cuvilheira, que a chamara, a fisionomia iluminara-se, reproduzindo toda a felicidade que lá ia por dentro naquele coração. à pergunta que lhe fizeram, mas não ouviu, respondeu com um abraço na velha, que, mal afeita, pela sua rabuje, a tais carinhos, abriu grandes olhos, e o espanto desta subiu ainda, levando-a a benzer-se, quando viu que, sem lhe prestar atenção, a jovem começou a entoar uma copla de amores, desses cavalheirescos amores da época. Aquela alma de virgem saudava o enfloramento da nobre paixão que no seio lhe germinara, e a velha, como Gonçalo Domingues a respeito de Fernando, nem se quer pensou que nessa exaltação entrasse por alguma coisa o jovem, de quem já havia notado os passeios em frente da casa -- o que a levara a fazer-lhe carrancas de sobrecenho capazes de afugentar qualquer outro que não fosse um namorado:

-- A menina Irene namorar! a menina que depois da morte da nossa ama tenho criado com todos os cuidados?! pensava ela com os seus botões, quando lhe vinham desconfianças, ou as vizinhas, pela sesta, no cavaco quotidiano que tinha depois de arranjados pratéis, agomias, sartã, púcaros e mais aprestes de cozinha, notavam o volver de olhos de um ou outro alindado da terra:

A tia Genoveva tinha de si para si que o coração de Irene se abriria só quando ela, ou o senhor João Ramalho muito bem quisessem:

As tias Genovevas ainda hoje não são raras:

A linda jovem, quando a deixou a cuvilheira, insensivelmente começou a refletir nas palavras de Fernando, e pouco a pouco no rosto e no coração começou a tristeza a vencer. A pobre não sabia que o amor se não traduz bem em palavras, e esmorecera pensando que podia não ser amada, ao passo que bem sentia definir-se-lhe no seio a paixão; e quando, noite cabida, a velha trouxe para o quarto de trabalho um velador do qual pendia um graúdo candil, não respondeu ás «boas noites» dadas, possuída de sentimento bem diverso do que horas antes a distraíra. Ainda mais: a tia Genoveva, ao espiar a roca e terminar a última ave-maria da coroa que todas as noites rezava à Senhora da Silva, para a ter pela sua intercessora; a tia Genoveva notou uma a balouçar-se nas cileias da linda jovem, como aljofre matutino nos estames de uma flor:

-- Porque chora, menina? perguntou a velha criada tomando-lhe o rosto entre as mãos, para melhor se certificar de que não era ilusão sua aquele choro:

-- Chorar... eu? murmurou Irene, limpando os olhos:

-- Sim, a menina. Então não veem o espanto que faz?

-- É que eu não choro... Porque havia de chorar?

-- Porque? Ora sei eu o porque?

-- Nem eu..:

-- Credo! Anjo bento da minha guarda! Feitiço por certo lhe fizeram! De tarde a rir e a cantar como uma louquinha, e a fazer-me momices carendeiras; agora a choramingar sem que nem para que! É quebranto, menina... é feitiçaria; e bem fará em pôr esta noite debaixo da almadraquexa um ramo de arruda:

A velha atinava: que maior feitiçaria que a do amor não pode haver. Só ele tem o privilégio de dar a uma palavra eco que, por vezes, dura até com ele se casar já bem fraco o das últimas preces: de perpetuar uma imagem perante os olhos até que os cerre o frio osculo da morte:

Pranto e risos, sucedendo-se rapidamente sem explicação para quem os vê, sem explicação mesmo para quem os sente humedecer as faces, ou descerrar os lábios, são em geral o resultado vulgar do toque da vara do grande feiticeiro: enquanto o feitiço conserva toda a força, o choro é como os chuveiros de Maio, que veem como para fazer ressaltar o sol que lhes sucede, ou como os orvalhos de Junho, que refrigeram as flores; quando o feiticeiro se ausenta, o riso é como o luar em noites de Fevereiro, quando tudo é silêncio: contrista como ele,· traz melancolia. lágrimas da linda filha de João Ramalho eram chuveiros de Maio. Correndo à vontade sobre o travesseiro, em que não pusera a arruda, não lhe imprimiam nas faces a aridez; regavam, permita-se mais esta imagem entre tantas, o amor que, como no sobrinho de Gonçalo Domingues, repetimos, se definira naquela tarde:

O amor na juventude, no sexo que chamamos frágil, porque nós, que nos dobramos a todo o momento aos seus pés, lhe esmigalhamos o coração num círculo de ferro chamado positivismo, realidade e conveniência, quase sempre nasce entres as lágrimas das que chorava Irene quando repetia baixinho, consigo, o nome de Fernando; as lágrimas que rebentam espaçadas, demoram- se nas pálpebras, e descem lentas pelo rosto:

No outro dia muitas vezes correu a jovem namorada à janela da praia, muitas à que dava para o lado do monte, e impacientou-se e entristeceu-se quando viu cair a tarde sem aparecer o sobrinho do forçureiro; no domingo, durante a missa do dia, na velha igreja de S. Pedro, fez cochichar umas poucas de comadres, que lhe ficavam na retaguarda, tantas foram as vezes que voltou, durante o ofício, a cabeça para o lado da porta, e ainda mais se impacientou e entristeceu quando, feitas perante todas as imagens as estações que eram da devoção da senhora Genoveva, regressou a casa sem ver uma sombra rastejando ao lado dela (que olhar face a face, de perto, para Fernando, nunca a gentil menina olhara) sem ouvir certas passadas, que distinguia de todas as outras e lhe causavam uma impressão nervosa agradável:

Neste descontentamento, sentada na varanda, que tentamos já descrever, prestava atenção a todos os ruídos, quando a velha criada com quem João Ramalho havia conferenciado depois de jantar, arrastando um tamborete de pau e umas contas com que se entretinha todas as vezes que não trabalhava ou dava à língua, lhe veio fazer companhia. Genoveva engorolou um pater e tossiu; engorolou outro pater e tossiu outra vez; terceiro pater a meio e mais prolongada foi a tosse, e, ao findar, a esta juntou um arrastar de tamborete e um suspiro. Era evidente que rebentava por falar; porém a sua jovem ama estava bastante distraída para notar todos aqueles preparativos oratórios. A velha ainda se resignou a fazer passar mais algumas contas, a mudar o tamborete da direita para a esquerda e a passar na tosse do piano ao forte, do moderato ao vivace e até à fúria; mas vendo que era trabalho perdido, pousou o rosário, puxou a touca, cruzou os braços sobre a barriga e exclamou: -- A menina que tem?

-- Nada, respondeu Irene, olhando pela abertura da zelosia para o céu, que mostrava um azul soberbo:

-- Nada! Então eu estou cega; há dias que não sei o que tem... anda triste!..:

-- Triste? atalhou Irene, com um desses sorrisos, que se denunciam como contrafeitos. Ainda esta manhã me disse que andava com a cabeça no ar, e achou que ria como louca... não sei quando..:

-- Sim, sim: veja se me engana com esses risinhos secos, menina. Por mais que faça não me faz acreditar que não está magoada. Eu desconfio que..:

-- De que? interrogou Irene, fazendo-se vermelha, julgando ser do sentimento dominante no seu coração que lhe iam falar:

-- Nada, nada. O senhor seu pai não lhe falou... não lhe deu a entender..:

-- Meu pai, disse a jovem sobressaltada, não me disse coisa alguma..:

-- É que... pensei..:

-- O que, Genoveva? Que tinha meu pai a dizer-me?

-- Nada, nada; respondeu a velha, recomeçando de novo o rosário:

-- Não, alguma coisa era! Diga, diga, Genoveva; meu pai está de mal comigo?

-- De mal! ele que não vê outra coisa, que a traz nas palminhas das mãos, apesar daquele modo assim de poucas palavras?! Se se amofina é..:

-- Acabe! suplicou a jovem:

-- Triste já está a menina; para que a entristecer mais? disse a criada mastigando. -- Não me quer entristecer mais? Pois que há? exclamou a filha de João Ramalho, erguendo-se com a ansiedade pintada no rosto:

-- É... nada, nada, redarguiu a velha. E baixo acrescentou, tornando a carregar a roca: -- Cala-te, boca. Ora, não ia eu já dizer tudo?

O aparte da cuvilheira, por uma mania que tinha de sempre dar à língua para que a ouvissem, pareceu-se com todos os apartes do teatro, e mais ansiosa ficou Irene:

-- Jesus, Genoveva! Sucedeu alguma coisa?

-- Nada: é que..:

-- Acabe por uma vez:

-- Como tem de ser... porém, olhe, triste já a menina está, e quanto mais tarde..:

-- Está a fazer-me mal, minha boa Genoveva! exclamou Irene, juntando e erguendo as mãos em ação de súplica:

-- Ora vejam! mal é que eu lhe não queria fazer; mas visto que teima..:

sempre lhe digo: o seu pai embarca por estes dias:

-- Embarca... disse a jovem tornando a sentar-se. Julguei que fosse outra coisa. Não estou já afeita a ver partir meu pai, todos os anos, uma, duas e três vezes para essas terras de cristo? Se pudesse fazer com que não andasse sobre águas do mar, exposto; porém..:

-- Ao mar, atalhou Genoveva, já o senhor João Ramalho está afeito:

Parece que tem todos os santos e santas por ele... e merece-o, que não há tempestade que mal lhe faça; e mais dizem que são bem más as da Inglaterra e Flandres! Mas não é agora só o mar..:

-- Então que mais é, Genoveva?

-- É... que... que volta a Lisboa... e..:

-- Jesus! agora... que anda a guerra por lá!..:

-- Deus há de querer que nenhum mal lhe venha, e eu hei de recomenda- lo muito à Senhora da Silva e à Senhora do Amparo, as duas santas de mais valimento que há no céu... de maiores milagres pelo menos... ao Senhor S:

Pedro, advogado da gente do mar, e ás almas milagrosas! redarguiu a senhora Genoveva, fazendo uma espécie de mesura a cada nome dos beatos patronos que proferia:

-- Bem me dizia o coração que destas naus e galés chegadas me viria mal, disse Irene recordando-se naquele instante das palavras de Fernando:

-- Mal... mal? Tenha fé em Deus, que é grande pecado descoroçoar assim:

O senhor João Ramalho, seu pai, se anda cuidadoso é por si, menina Irene: como está já uma jovem... eu cá me entendo... quer deixá-la bem amparada, em lugar seguro; que nestes tempos revoltos, e nos que o não são, todo o cuidado é pouco. Como não vai lobo a redil nem raposa a galinheiro senão quando acha a porta mal cerrada e não há mastins para açular, queria deixa-la em abrigo seguro, e lembrou-se de um convento. Já dei recado para uma prima, que tenho, sergente em Entre-Rios, a ver como poderei ir fazer companhia à menina..:

-- Então, Genoveva, vamos para tão longe! exclamou a linda jovem com voz magoada:

-- Ainda não é decerto. É precisa licença do senhor D. João Afonso, e não sei que outras requestas... e como não é para já o caso... por estes dias..:

-- Genoveva! Genoveva! gritou do andar térreo o senhor João Ramalho, fazendo estacar a faladora cuvilheira, que encetando um Padre-nosso num tom de voz que, sem ofensa da boa da beata, se podia comparar ao rosnar de um cão, desceu as escadas:

-- Virgem santa, valei-me! murmurou a jovem fechando uma na outra as mãos, brancas e delicadas, e deixando sobre o seio pender o rosto, que não desfeavam os assomos de tristeza:

Irene assim permaneceu longo tempo, e quando ergueu os olhos orlava-lhe as pálpebras uma cor mais rosada que de costume, e lágrimas borbulhavam mais intensas do que as trazidas pela desconfiança de que Fernando Vasques não correspondesse ao afeto por ela consagrado. Eram mais intensas, porque junto com as arrancadas pelo amor filial -- pois bem-queria a jovem ao seu pai, com um extremo inexplicável, atenta a rudeza aparente do piloto, se é que uma força oculta a não fazia corresponder ao sentimento por ele votado ao único ente que na terra lhe restava, à imagem de uma esposa adorada com o fogo que empregam essas almas reconcentradas, os homens que jogam a vida sobre o mais terrível dos elementos, e passam dias e noites seguidas a soletrar no livro da natureza a página do infinito, em circulo fechado por céu e mar; -- junto com as saudades e receios pelo seu pai, se ligavam penas avultadas pela sua imaginação, supondo-se já separada, longe de Fernando, clausurada para a vida talvez; que no amor tudo é coado por um prisma que engrandece e multiplica os objetos:

Ás lágrimas do travesso jovem sucedera a resolução: Fernando fizera-se homem; ás lágrimas de Irene sucedia o aniquilamento: pode-se dizer também que se fizera mulher a pobre menina porque: a coroa do seu sexo é formada por essas perolas nascidas no coração, perolas que resgatam a própria culpa e a alheia. Para o resgate da humanidade Deus, tornado homem, deu o seu sangue; para completar essa regeneração, para abrir ás mulheres as portas da vida, inflar-lhe no seio uma alma, verteu uma virgem:

Irene chorava pela segunda vez, depois que se apoderara do seu coração a imagem de Fernando, quando lhe veio ferir os ouvidos um som distante e confuso; confuso porque era grande o arruído que petintais, espadeleiros e galeotes faziam na praia, santificando o dia do descanso com libações frequentes de verde e maduro, cidra e outras bebidas. Era o som de um toque de caça, assobiado por um valente folego. A jovem estremeceu, quando se lhe afigurou reconhece-lo; estremeceu e a alegria repeliu naquela cara as nuvens de tristeza com tanta ou mais rapidez de que nos leva a dar uma ideia dessa mudança. Ergueu-se e correu ao extremo da varanda, encostou à adufa o ouvido atento a linda namorada; mas calara-se a marcha, e os berros da multidão iam num rinforzando prodigioso. Alguns minutos de ansiedade assim passou, com o seio a arfar, os lábios meio-abertos, deixando ver uma enfiada de dentes alvos como o fruto das camarinhas, com os olhos brilhantes, fixos, até que com novo sibilo rompeu um grito da jovem, um grito de alegria, e deixando a varanda subiu a assomar a cabeça por aquela história da janela das flores, onde com ela travamos conhecimento:

A cabeça apareceu e desapareceu logo:

Irene soltou outro grito, porque os seus olhos encontraram os do seu pai, irados, em vez de outros que decerto procurava carinhosos:

Junto com o sibilo, com os gritos, com o bater das adufas da varanda e portadas da janela -- junto, se pode dizer, tal foi a rapidez da sucessão -- ouviu-se um grande fragor:

A árvore do cercado oscilara e o muro da quelha fora a terra:

A filha de João Ramalho deixou-se cair no estrado em que costumava costurar; o piloto soltou uma praga, e a cabeça da tia Genoveva, que da cozinha presenciara parte desta cena, apareceu de boca aberta no quarto da donzela, persignando-se e abanando a cabeça como um manequim, pintando em toda esta gesticulação o seu pasmo, e terminando por entre dentes com esta frase, que havia de ser, como já fora, repetida milhares de vezes: -- Ora fiem-se lá nas inocências deste tempo! O mundo vai perdido!

CAPÍTULO VI CAUSA PÚBLICA E COISAS PARTICULARES

Em quanto Irene soluçava, Telo Rabaldo vociferava, sacudindo a poeira do gibão, e João Bispo evitava na rede de becos e escadas do bairro a sanha do besteiro e de alguns mesteirais, que o supunham réu de crime grave, ou queriam nele desacatar o alcaide, que viam, como a grande parte dos nobres, com maus olhos, no terreiro de S. Domingos havia grande juntamento de povo, e na portaria do convento e claustro da igreja se reuniam os homens bons da cidade, burgueses e cavaleiros; que a ordenação de D. Diniz era desatendida durante aqueles transtornos, como o tinha sido por vezes, e depois havia de ser:

Rui Pereira e a edilidade portuense combinavam os meios, já o sabemos por via de Luiz Giraldes, de corresponder ao apelo do Mestre, e corriam as coisas ás mil maravilhas. Afonso Eanes Pateiro e Álvaro da Veiga, bastante comprometidos com a aclamação do novo governo, juntamente com o rico mercador que fora despertar Gonçalo Domingues sopravam em pequenos conciliábulos o entusiasmo de amigos e conhecidos, e não perdiam o tempo:

Os períodos mais ou menos bombásticos, mais ou menos curtos, tinham, depois de um ou outro comento, como ponto, a deslocação de dois ou três indivíduos, que se dirigiam a uma mesa cercada de tamboretes e cadeiras, onde dois homens vestidos de negro, um redondo, de nariz globuloso e vermelho, outro cor de pergaminho e de feições angulares, se viam ao par de alguns vereadores, afagando este com a rama da pena os lábios ressequidos, abanando-se aquele com um caderno de papel. Um dos patriotas segredava três palavras ou quatro ao ouvido de um dos alvazires; os burgueses diziam outras tantas; os homens negros traçavam algumas letras e algarismos, que liam em voz alta, e de tudo isto saía, pode-se dizer, a Milheira, a Estrela e a Sangrenta, o levantamento do cerco e bloqueio de Lisboa, a dinastia de Avis e -- quem sabe? -- a salvação e civilização da Europa. Se julgam paradoxal a última parte, provem como sem os donativos daqueles bons homens se acudiria ao Mestre; se este não se veria obrigado a tornar real o fingido embarque para Inglaterra; se, simples João Pires, casaria com a exemplar filha de João de Ghaunt; se haveria quem formasse um viveiro de navegantes tão destemidos, arrojados, para devassar a costa de Africa e penetrar na Ásia pelo Oceano, como o infante D. Henrique; como sem o corte dado naquelas paragens ao poder otomano, se lhe sustaria a carreira vitoriosa dos seus estandartes, que chegaram a tremular junto dos muros de Viena, na costa da Itália, na Hungria e na Bohemia, que pendiam bafejados pelas tépidas aragens de Aldjesireh, da Arabia, e açoutavam os ares impelidos pelos ventos gelados na Polonia, se espalhavam nas águas do Mediterrâneo, no mar-Negro, no golfo Pérsico e no Oceano, e acobertavam os recebedores de páreas até ao Dekan:

Se algumas circunstâncias concorreram também para este gigante resultado foram as narradas nos antecedentes capítulos, desde as dos namoros de Irene com Fernando e de Garifa com João Bispo, até à daquele virote quebrado:

Não pensem que um escritor consciencioso escreva uma linha só com o fim de encher papel; que invente um episódio pelo seu alto recreio: tudo aqui vem a pelo desde o mais somenos fato ao de mais vulto, e os leitores filósofos, que esquadrinham os fins morais, procuram o suco de todo o livro e folheto, farejam uma ideia em cada letra impressa, acharão neste romance demonstrações de que grandes sucessos, que pasmam do mundo, são como os nevões: um floco de neve, que rola do cimo dos Alpes, ao chegar ás fraldas destrói casas e plantios; uns bigodes cortados em 1152, ainda no século em que viviam estes nossos heróis, destruía cidades, assim como as bagatelas acima apontadas salvavam este canto da terra de ser hoje em dia... um pachalik ou coisa pior:

E João Bispo, Fernando Vasques, e até para muita gente João Ramalho, Afonso Eanes, Álvaro da Veiga, Domingos Pires das Eiras, Luiz Giraldes e outros com quem o leitor tomará ainda conhecimento, estavam no olvido?!

Lamentemos esta má sina de ingratidão pelos grandes homens... que em vida não tiverem condados de Ourem, nem terras do Alfeite; lamentemos, e vamos de novo para S. Domingos:

Ao passo que os burgueses davam que fazer a Gonçalo Pires, escrivão de chancelaria e ao seu companheiro, na casa do capítulo, bocejavam os poucos cavaleiros que tinham aderido, como hoje se diz, ao pronunciamento do Porto, por vontade, ou circunstâncias. Dissemos que bocejavam; pois movimento, ação em poucos se notava, a não ser um alguns dos recém- chegados de Lisboa, dos quais o mestre soubera catar a benevolência com aquela largueza de mãos, que o deixaria rei das estradas de Portugal, se não fossem depois as garnachas, de que já se queixavam então, e em alguns pobres infanções e simples cavaleiros. Rui Pereira reunia em volta de si, os dois sobrinhos do rei de Castela, D. Pedro e Afonso Henriques de Trastâmara, Manoel Pessanha, João Rodrigues Guadai, Aires Pires de Camões, Afonso Furtado e os irmãos de Alvalade, e num a das extremidades da quadra segredavam, ou antes falavam quase por sinais o alcaide de Monsaraz, Afonso Darga, o irlandês Down-Patrick e o velho fidalgo de Riba-Tua. Do resto, faziam uns retinir pelo sobrado os acicates dos seus sapatos de ferro, que vinham em traje de guerra não poucos, outros descansavam nas grandes cadeiras de espaldar, que os reverendos para ali tinham feito conduzir. De tempos a tempos um pajem ou um leigo entravam com recado para o tio do condestável, ou este falava a alguns dos seus homens, que estanciavam à porta, e eles partiam ás carreiras para diversos pontos:

Rui Pereira tratava de aproveitar o tempo o melhor possível, como bom cabo de guerra e bom politico, depois de ter conferenciado com os influentes da cidade, conferencia que dera em resultado decidir-se que se chamasse ao partido do defensor o conde Gonçalo, combinação que não era mais do que uma lisonja aos bons burgueses: pois, soprada pelo mensageiro da sua senhoria a Domingos Pires, e por este apresentada, fora já decidida nos paços de S. Martinho. D. João resolvera comprar o conde com os bens pertencentes à irmã destronada, bens que já tinham servido de engodo a outros. O escolhido para o ajuste do balsão do nobre senhor, de quem tinham sido já indagadas as ambições -- que se iam encontrar com as de Nuno Alvares, felizmente bastante patriota para ceder ás circunstâncias; -- o escolhido fora o alcaide de Monsaraz, Gonçalo Rodrigues de Sousa, e devia seguir logo com alguns navios para a Figueira, enquanto outros iriam correr a costa da Galiza, inquietar em casa o inimigo, e nos seus barcos, pescarias e alfandegas procurar um reforço para as arcas exaustas do tesouro:

O movimento dos pajens, dos sergentes do convento, dos besteiros e homens de armas tinha produzido o juntamento da pequena praça ou terreiro, que ficava em frente do convento, e das tortuosas ruas vizinhas. Na praça, vistas do alto, as cabeças dos curiosos formavam uma massa, que ondeava como as espigas de trigo sazonado, impelidas pelo vento, e no meio de borborinho constante, espécie de gemer de tempestade em praia cheia de recifes, surgiam ora estrepitosas gargalhadas, ora gritos, ápodos e vivas. As gargalhadas eram provocadas pelo bobo da cidade. O Porto não era uma terra de pouca monta para não ter um bobo seu, como qualquer príncipe, mesmo no meio daquelas calamidades e sustos, e tinha-o até que não ficava nada a dever aos que se importavam de França, por aquelas épocas, com o mesmo cuidado com que se tinham de importar cabeleireiros -- o que, entre parêntesis, não quer dizer que para escolha dos primeiros se expedissem tão gordas personagens como para o dos segundos. Voltando ao nosso caso, ao bobo da cidade: os leitores que connosco fazem esta viagem ao século XIV e ao terreiro de S. Domingos, devem confessar que a verba votada no orçamento municipal, verba insignificantíssima, não devia ser chorada. D:

Golias era uma raridade; uma criatura de seis palmos de alto, se tanto, compreendendo esta medida uma desmarcada cabeça, cortada de lado a lado no terço inferior por uma boca, coisa única que correspondia naquele todo ao nome com que o tinham batizado. D. Golias àquela boca, mais do que ao enfezado da estatura e uma mobilidade de feições extraordinária, devia o seu emprego e a sua popularidade. Os mesteirais e burgueses que o encontraram, vindo do acampamento, onde exercia as suas funções, tinham-lhe feito um acolhimento brilhante, uma ovação, e ele, escarranchado sobre um vadio espadaúdo e meio idiota, com o seu vestido variegado e o seu capirote, notável por duas imensas orelhas asininas, correspondia a tanto extremo disparando, entre esgares e trejeitos, epigramas para a direita e esquerda, na portaria do convento:

Uns bons dois terços destes gracejos, dos mais pesados, eram dirigidos a nobres senhores ou a alguns ricos burgueses, o que os fazia ser acolhidos com prazer pela gente da praça:

-- Olé, mossem Metusael, D. Metusael, tio Metusael! guinchou ele sacudindo os cascavéis do vestido e da palheta, dirigindo-se ao arrabi-menor, que por entre a multidão abria caminho; o vinho que à socapa comprastes a mestre Manoel do Arco, subiu-vos à cabeça, ou foi esconjuro que vos trouxe aqui?! Mossem Metusael, as vossas dobras vão tinir como a minha jorneia, e o vinho vai desfazer-se em lágrimas! Não é verdade, manos, que vai haver juderega dobrada e tresdobrada. Mossem Metusael antes quer que eles roubem a pequena Lea do que um punhado das boas barbudas da arca!

O arrabi resmungou algumas pragas, que se perderam entre as risadas do povo, e apressou o passo, seguindo um cavaleiro, na direção da portaria, a fim de em tal companhia ter mais fácil acesso:

-- Guarda! berrou o bobo, atravessando a palheta; guarda! Se queres entrar pede a frei Roque que te lave em água-benta!

-- Tira a tua vara, truão, gritou o cavaleiro, ao pousar o pé no limiar da porta:

-- Arreda, Portugal! disse Golias; arreda, que aí vem Castela em peso!

Passe lá, dom cavaleiro; eu levanto o meu cetro e arredo-me, porque não quero tocar em loucos. Don cavaleiro, disse, quando o fidalgo subia já a escadaria, tendes notícias do mano Garcia Manrique? Quando lhe ides dar a mão?!

E voltando-se para o leigo porteiro, que, depois de fazer uma grande reverência ao nobre recém-chegado, o fitava, espantado da ousadia, prosseguiu: -- Eh! beguino de má morte, se pensas que te estás a ver a espelho de Veneza, enganas-te: estas orelhas são do capirote. As tuas são mais compridas e mais felpudas!

Estes e outros gracejos, que não é lícito escrever, pois não curava o truão da polidez da linguagem, nem eram por esses tempos malsoantes palavras que o são hoje; estes e outros gracejos eram a pedra de toque da popularidade dos indivíduos a quem os dirigiam: a gargalhada e os assobios, as palmas, os grasnidos e murmúrios que provocavam, diziam a conta em que eram tidos:

Quando a vaia partia, e o povo se calava, não insistia o bobo, certo de que era a personagem agredida estimada por aquela boa gente, e não teria, por isso, defensor, se algum silogismo contundente fosse servir de censura ás suas burlescas reflexões. Regulando por este termómetro, o piloto e mercador João Ramalho e Gonçalo Domingues eram benquistos na cidade da Virgem. O forçureiro, saindo açodado pela porta do convento, esbarrara em cheio com o piloto que entrava, e do choque resultou a oscilação dos dois corpos, que procuravam o equilíbrio, e um regougo abafado do burguês. A risada foi inevitável, pois as pequenas desgraças têm sempre o riso por caudatário; mas um olhar do pai de Irene engasgou nas fauces de Golias o motejo:

João Ramalho não vinha para graças:

Ao olhar severo dirigido ao bobo seguiu-se outro lançado a mestre Gonçalo, que lhe estendia a mão com a costumada lhaneza, e o piloto começou, quase sem tomar folego, uma lengalenga de recriminações, que fizeram abrir os olhos do burguês desmarcadamente. Porque se espantava um, adivinha-o o leitor, porque desabafava o outro a sua cólera, se o não sabe, aventa-o: Fernando saíra contra ordem expressa da rua dos Pelames e fora colhido em flagrante delito de namoro, acompanhado das agravantes circunstâncias de escalada e destruição de um muro. O piloto deduzira de tanto ruido pecado mais gordo do que sonhara o jovem, e, como este se lhe tinha salvado da fúria, valendo-se da sua agilidade na carreira, avinha-se com o tio. Mestre Gonçalo Domingues, se naquele instante apanhasse a jeito o travesso rapaz, decerto o punha em maus lençóis, tal era a indignação e raiva, traduzidas nas faces num a cor arroxada, que lhe incitava a narração deste sucesso, feita pelo rude marinheiro. O sangue subia-lhe à cabeça e ameaçava-o com uma apoplexia. Sem o querer, aplicou-lhe o pai de Irene o remedio; porém, continuou a agressão tão viva contra o travesso rapaz; chegou a tais ameaças, que o forçureiro julgou dever fazer algumas observações a esse respeito, e as observações fizeram desviar o raio de uma cabeça para outra. A culpa daquele atentado, tão grave para o cego piloto, era de Gonçalo Domingues, que não soubera morigerar o seu pupilo; que lhe dera largas ilimitadas; que lhe deixara danar alma e corpo com ruins paixões. Quem ouvisse aquela recapitulação de queixas e acusações tomaria o namorado de Irene por um D. Juan, se Tirso de Molina já tivesse modelado no Burlador o tipo famoso, que, com um arrebique para aqui, uma limadela para acolá, um nariz de cartão, uma cabeleira empoada, ou os tesos e cortantes colarinhos de um milorde tem servido a tanta e tão boa gente. O bom do tio, posto que chofrado, e duvidando de tanto agravo, julgou o caso de consciência, contudo, e mentalmente resolveu a questão por um dos lados; por onde a lei, se fossem verídicas as suposições do forçureiro, a resolveria, mesmo naquele tempo, visto que não havia desigualdade de castas. O rico burguês não metia em linha de conta a vaidade do piloto, não se recordava também de que o comércio e indústria com que se locupletara eram marcados com desprezo tradicional, desprezo eclipsado para as maiorias pelo brilho das dobras, é verdade; porém não de todo para os mais pechosos. João Ramalho, à primeira frase em que o forçureiro dava a entender a sua resolução, feriu-o vivamente no fraco, e encambulhando-se as palavras em diálogo alternado, a voz do tio de Fernando chegava ao diapasão da do pai da linda namorada deste, quando arruído maior lhes abafou as vozes, e uma onda de povo os separou, lançando um para um lado, outro para outro:

Para explicar esse alvoroço voltemos outra vez ás assoadas de D. Golias, o bobo da cidade:

Como em baile de etiqueta anunciava o maninelo quanto individuo do seu conhecimento se aproximava do mirante semovente, em que se empoleirara, quando um claro se fez do lado do arco, que dava serventia para as Cangostas, rua que não desmente ainda hoje o nome posto, para a Bainharia e almuinhas, e apareceu açodado o nosso conhecido João Bispo. Se a pressa, que mostrava trazer, e o conservar na mão a adaga não fizessem notada a pessoa do ex- subordinado de Telo, chamariam sobre ele a atenção os gritos de Golias:

-- Upa! acima sineiros da maldição, berrava ele. Os sinos não tangem?

Beguino, frei velhaco! campas e sino grande, tudo a chocalhar! Venha toda a monjaria de cruz alçada, que chega o senhor bispo, o bispo João! Sua mercê traz pressa; mas nem por isso deve ser recebido sem as honrarias de usança:

Vá: deitem-lhe água benta aos olhos, para que não veja por aí moura perdida pelas celas!

E terminando a exclamação imitava com a boca o repique de sinos, baloiçando-se sobre os ombros do espadaúdo vadio, enquanto este, que não tinha a insensibilidade de campanário, grunhia incomodado pelo revólver dos pés do bobo perante os olhos, e arrepelões dados na hirsuta cabeleira:

A cidade ficava decerto sem o importante Golias; pois que o vadio estava já disposto a sacudi-lo no lajedo, como o besouro, que lhe fizesse cócegas no cachaço, e decerto o estatelava, senão se ouvissem gritos no meio da praça, e o novo besteiro de Gaia se não viesse embaraçar, tentando penetrar na portaria, nas pernas da vítima do bobo, ao mesmo tempo quase que o acontiado do município:

-- Castelhano! gritou este, deitando as mãos ao namorado de Garifa, castelhano, aqui não te valem os fidalgos traidores!

O homem do virote, que sentira subir-lhe o sangue à cabeça com a ameaça de Aires Gonçalves, correra, mal este embarcara, a procurar desafogo em João Bispo, e mais desesperado pela velocidade da carreira deste e pelo emaranhado dos becos por onde seguira, quando o encontrou, ao dobrar o arco, sentiu o despeito renascer; o nosso besteiro, porém, deitou-o no chão com um cambapé e seguiu caminho. A vontade de tirar desforço do novo desapontamento trouxe aos lábios do homem do virote aquela palavra «castelhano». João Bispo correra menos risco quando lhe chamaram ladrão, entre os bons burgueses, na baixa, do que batizado com semelhante nome:

-- Castelhano?! exclamaram alguns mesteirais correndo para junto dos dois soldados, enquanto João se desembaraçava do seu agressor:

E um sussurro indicador de que a tempestade, as iras populares estavam eminentes se levantava no terreiro, ao passo que a portaria era invadida:

-- Mata, mata! gritaram em seguida alguns garotos do outro extremo da praça; mata o castelhano!

João Bispo sentiu um suor frio correr-lhe pelo corpo todo, e murmurou dando um salto, encostando-se a uma das ombreiras da porta, e cobrindo o peito com a adaga: -- Castelhano... castelhano? Quem fala aqui em castelhano? Afastar, prosseguiu em voz mais forte, afastar! Em castelhanos vou eu pôr o dedo:

-- Mata, mata! berraram com os garotos alguns dos homens mais esfarrapados da multidão; e uma pedra veio ferir fogo nos umbrais do convento:

O amante de Garifa, meteu a mão no seio e tirou uma pequena tira de pergaminho, ao passo que o bobo, aterrado com o arremesso de projeteis em semelhante direção, julgava dever intervir: -- Boa gente; quem chama castelhano a João Bispo? Frei João não foi sagrado pelo papa dos loucos... foi pelo papa dos velhacos:

-- Oh! é João Bispo? perguntaram duas ou três vozes de entre a multidão:

-- João Bispo, ou o bispo João, disse o bobo, fazendo mesuras ao público, ao qual soubera modificar as iras com o seu gracejo:

O homem do virote via de novo escapar-se-lhe a vítima:

-- Vede, vede, gritou ele apontando para o pergaminho, que o besteiro segurava na mão, e tentando apoderar-se dele: vede como quer esconder aquilo:

João Bispo levantou o braço para furtar o manuscrito, que trazia a Rui Pereira, à mão do besteiro do município, ao mesmo tempo que Golias estendia o braço e o apanhava:

-- Ui que esgaravunhos! pipitou ele desenrolando a tira. Isto é esconjuro de bruxa, ou pato de venda de alma de judeu?

-- Ou mensagem para os do arcebispo! resmungou um dos mesteirais:

-- Mensagem para os do arcebispo... disseste a verdade, mal pensando!

acudiu o besteiro de Gaia, soltando ao mesmo tempo uma praga, e com a raiva pintada no rosto dando um salto para reaver o pergaminho:

O manuscrito voou das mãos do truão assustado para junto de João Ramalho, que, levantando-o, passou pelos olhos as primeiras linhas: -- Traidor, Gonçalo de Sousa?! exclamou ele:

-- Traidor, sim, disse João Bispo; e ainda há pouco aqui tramou não sei que outras vilanias! Estes cães que trouxe ás pernas não me deixaram..:

João não prosseguiu. O alcaide de Monsaraz desembocava no pátio, acompanhado de Afonso Darga, vindo do lado da casa do capítulo. Entre os mesteirais entrados na portaria reinava profundo silencio. O jovem cavaleiro falava com o comandante da flotilha enviada pelo Mestre de Avis ás águas do Douro: -- Senhor Gonçalo de Sousa..:

Como João Bispo não acabara a frase não a acabou também Afonso Darga:

João Ramalho dirigira-se para o alcaide, e batendo-lhe com uma das mãos no ombro, apresentou-lhe o manuscrito. Aquele pergaminho apanhara-o o ex- noviço ao capelão de Aires Gonçalves, pensando nas palavras ouvidas atrás do reposteiro, quando, ao regressar de uma visita à ucharia, se perdera nos lanços de escada e corredores dos paços de Gaia, pensou que no aposento do frade lhe acharia a explicação. A prova de que não pensou mal era o ter encontrado alguma coisa, e essa coisa -- o pergaminho -- fizera perder a cor ao alcaide de Monsaraz:

Á palidez, seguiu-se o rubor, e depois de novo a palidez. Gonçalo de Sousa sacudiu a mão do mercador, como se fosse um reptil, que lhe tivesse pousado nos ombros; quis falar e a voz prendeu-se-lhe na garganta; a espuma produzida por um acesso de bílis apareceu-lhe aos cantos da boca. O nobre senhor, nesse instante, temia menos as iras das turbas, sentia menos a desonra, se desonra via na sua traição, do que a ousadia do homem do povo, que assim se arvorava no seu juiz:

-- Arreda, vilão! gritou, mal a voz se desembaraçou:

-- Vilão! repetiu João Ramalho, refece é quem assim atraiçoa a terra que o viu nascer; não é, senhor alcaide?

A voz do piloto tremia; mas não de susto. Gonçalo Rodrigues de Sousa arrancou-lhe das mãos o pergaminho, e rasgando-o, lançou-lhe os pedaços ao rosto:

-- Quereis resposta? disse ele com um sorriso nervoso, sintoma de um excesso de raiva; quereis uma resposta? Ei-la... Outra só a darei quando o meu acusador não for da tua ralé:

O punhal de João Ramalho lampejou no ar. O alcaide de Monsaraz contara aquela hora como a última da vida, se uns poucos de mesteirais e besteiros do município não fizessem o mesmo, lançando-se sobre ele, embaraçando-se uns aos outros:

A onda popular, levantada pelas primeiras palavras do homem do virote, pela acusação feita ao namorado de Garifa, crescera furiosa, estuara no meio dos gritos de «morra o traidor, o castelhano». A portaria do convento fora invadida, esmagado quase o porteiro, apeado e pisado o pobre D. Golias, e azevéns, ascumas e agomias luziam ameaçadoras por cima daquelas cabeças inquietas, como na crista das vagas os flocos de espuma feridos pelos raios do sol. Quatro braços possantes seguraram o alcaide, mais já lembrado de que era homem do que fidalgo: Afonso Darga e uns dois monges, que o quiseram cobrir com o corpo, foram repelidos num abrir e fechar de olhos:

-- Ao pelourinho, ao pelourinho! gritou um dos mesteirais arvorados em justiceiros. Açoutado e enforcado!..:

-- Jesus! gritou o domínico, tentando salvar Gonçalo Rodrigues; Jesus! o que ides fazer é um homizio, e o sangue..:

-- Vamos fazer justiça. A traidor como a traidor! Peões, não temos cepo nem cutelo; mas temos boas cordas de cânave:

-- Ao pelourinho, ao pelourinho!

-- Morram os traidores!

-- Besteiros, a mim besteiros! gritou o alcaide de Monsaraz, vendo aparecer do lado do claustro dois acontiados da esquadra:

-- Quem é aqui por traidores?! exclamou um dos que empunhara o alcaide:

Os besteiros não se moveram. A celeuma na praça crescia:

-- Por cristo crucificado! disse o domínico pacificador, erguendo a cima da cabeça a imagem do Redentor. Quem com ferro matar, morrerá pelo ferro..:

-- Ide-vos, homem de Deus; ide-vos, senão quereis que vos tomem por traidor:

A voz de Rui Pereira, avisado do risco em que estava Gonçalo de Sousa, trovejou por cima daquela celeuma: -- Quem fala aqui em traições? Traidores, se os há, deixai-os à justiça do regedor. D. João vo-la fará boa e pronta, bons homens! Senhor meirinho, senhor meirinho!

-- O povo do Porto sabe faze-la tão bem e tão boa como o de Lisboa:

-- Senhor meirinho, senhor meirinho, gritava o tio de Nuno Alvares, barafustando para se aproximar do comandante das galés do Mestre, e procurando com o vista o meirinho da cidade, que abafava entre os mesteirais:

-- Ao pelourinho! vozeavam estes:

Um besteiro neste momento atravessava o terreiro, sofreando o cavalo em que montava, para não pisar o povo, nessa ocasião soberano em verdade:

Conhecido de alguns dos amotinados, abaixara-se a falar-lhes, e pouco e pouco, à proporção que se aproximava da portaria do convento, ao berreiro de «morras» sucedia um borborinho destas palavras trocadas em voz baixa: -- Os galegos! os galegos!

-- Os galegos! exclamou o mesteiral que segurava o alcaide e parecia ter grande influência nos seus companheiros; os galegos veem? Boa ideia: mandar-lhe-emos este bom cavaleiro para a armada. As máquinas que estão do lado das Hortas podem com pesos maiores. É uma boa lança que enviamos aos do arcebispo. Não é para eles que se queria partir?

Uma gargalhada saudou a lembrança, apesar de não ser original:

Gonçalo Rodrigues de Sousa estava salvo com aquele adiamento das vinganças do povo:

CAPÍTULO VII RECONTRO DE LEÇA

-- Bofé, por aqui?!

-- É verdade, João:

-- Mas como? Se o não vira com estes olhos que a terra há de comer..:

-- Pois eu sou:

-- Como S. Tomé, parece-me que será preciso tocar-vos para crer. E como vindes armado! Nem jovem escudeiro vos leva as lampas! Mas ainda o não posso acreditar. E mestre Gonçalo?

-- Meu tio..:

-- Sim! O bom do velho veio também na arrancada. É o que faltava ver..:

ele que não é para estas coisas, apesar de bom português. Mas, em fim, está aí o Porto em peso; velhos e novos... até mouros. Por pouco vinham as mulheres! Ala fé, mestre Gonçalo Domingues..:

-- O meu tio não veio..:

-- Então..:

-- Ai, João, se souberas?!

-- O que?

-- Estou como tu; sem leira nem beira:

-- S. Jorge e todos os santos batalhadores sejam comigo! Que foi o que vos sucedeu, Fernando? Morreu mestre Gonçalo?

-- Não morreu, não... nem Deus queira tal:

-- Então, que foi?

-- Ai, João, ontem foi um dia bem de mau sestro!

-- Para mim também: por um argueiro duas vezes escapei à morte!... Pois não vi, ao sair de Gaia, nem gato preto, nem chapim de sola para o ar, nem velha varrendo lixo: nem ouvi piar a coruja, nem uivar os cães! Valeu-me o anjo da Guarda..:

-- A mim não me quiseram matar; mas... parece-me que me foi pior..:

-- Pior?!

-- Sim, João: lembras-te de me encontrares nos Banhos, e de te falar em certos amores? ..... Fui vê-la:

-- Ah! fostes ver a tal menina, e estava arrufada..:

-- Não, João; Irene..:

-- Irene? chama-se Irene? é um nome que não é feio:

-- E ela é mais linda; mas, como te ia contando, fui vê-la. Ia a subir a um muro do lado do quintal para lhe falar -- queria tirar um peso que tinha no coração; dizer-lhe que, apesar do meu tio ralhar, lhe havia de querer muito e..:

nem eu sei o que mais; mas queria-lhe falar, vê-la -- ia a subir ao muro, e o muro... zás... no meio do chão, e cara a cara dou com o pai..:

-- Ora! E por tal é essa amofinação?

-- Olhe, João, que não é o caso para festejar! Como não ralharia ele à minha pobre Irene, ele, que não tem ar de palavras de mel, e ficou com um senho... que descarregou nela... decerto..:

-- Isso de nada vale, Fernando:

-- Ainda não ficou aí o mal. Deitei a correr... eu sei lá para onde! Quando me lembrei de voltar para casa era tarde; pouco faltava para o sol posto:

Apressei o passo, lembrado de que se o meu tio me não encontrasse nos Pelames, ele, que me guardava má tenção por me haver encontrado já na maldita árvore, faria de sorte que eu não tornaria a pôr pés na rua. Ao chegar quase a S. Domingos, havia uns alaridos, um grande vozear, e parara ao pé do arco, quando mestre Duarte, o nosso vizinho, veio aonde eu estava, e contou que vira o pai de Irene falar com o meu tio, e que ambos esbravejavam, por palavras que lhes ouvira, contra mim. Voltei a Miragaia..:

-- Para que?

-- Nem o sei dizer. Receava do meu tio... e não receava. Quando de novo me dirigi à porta da cidade estava fechada. Do lado da Esnoga via-se um grande clarão, e continuava o alarido..:

-- Era a chamusca da casa de mossem Moisés, o irmão de D. David Algaduxe; era o escote dos judeus:

-- Assim me disseram de manhã:

-- Passastes a noite ao relento?!

-- Passei, João, e se visse sequer uma luz à janela, parece-me que ficava consolado. Ao alvorecer, como depois daquela noite assim corrida maiores razões tivesse para não voltar aos Pelames, subi a encosta em cata de mestre Pedro, e, como o não encontrei, fui pelas Hortas. No campo, a multidão das galés, os acontiados da cidade, e a gente de armas dos ricos homens vindos de fora, estava tudo em movimento; chegava povo a todos os momentos e saía no meio de vivas; ao pé da torre, junto à porta, do lado de dentro, distribuíam armas. Um anadel deu-me um encontrão, e disse-me que fosse buscar também alguma coisa, e fui; puseram-me a caminho para aqui, e pus-me a caminho também..:

-- Amores! amores! E agora que ides fazer?

-- Boa pergunta, disse, erguendo e cabeça com certo entusiasmo, o namorado de Irene, Fernando Vasques, decerto já reconhecido, bem como João Bispo desde as primeiras linhas deste diálogo; agora é batalhar, e ou ficar para aí, ou fazer ação de fama; e depois..:

-- E depois ides pôr a espada aos pés da vossa dama, como naquele conto da Távola-Redonda ou naquele outro que tinha frei Gumado... Ama... Ama..:

-- Amadis, queres dizer?

-- Isso é: um em que havia combates de gigantes e uma princesa muito formosa: deixai ver se me lembra o nome... Oriana!..:

-- A dama de Amadis:

-- Bonitos contos, Fernando, esses de cavaleiras e amores; pena é que hoje nada suceda assim de jeito:

-- Pena que não haja quem tenha a vontade de boas ações e famosas! O senhor Nuno Alvares, tem-se, ainda assim, havido como alguns dos mais pintados, e ouvi contar ao meu tio, que o viu simples pajem, acompanhando a rainha Leonor, pela qual depois foi armado:

-- Tomou o leão para o fazer lebréu de estrado; mas ele, mal chegou a idade, mostrou-lhe os dentes todos, e foi para o monte a monteá-la. Desde nado trouxe boa sina Nuno Alvares. Mestre Tomás, grande astrólogo, que andava em casa do seu pai, leu nas estrelas, e viu que empresa em que se metesse seria boa, e ele sairia vencedor, se fosse para bem sua tenção:

-- Por isso deixou ele a rainha Leonor; pois em serviço dela não andava bem, e podia-se quebrar o encanto com que foi fadado:

-- A mim também me leram a sina; porém a maldita da moura que o fez disse uma tal embrulhada, de que só percebi que havia de entrar em grandes batalhas, e salvaria um rei..:

-- Não ouvis? atalhou Fernando, sobressaltado:

-- Ouço:

-- Além do rio..:

-- Um como tropear de gente, e quebrar de ramos. Estas fogueiras não deixam ver bem. As vigias dormirão?

-- Não... Olha, não vês ali ao pé daquele fraguedo, onde bate o luar, aquela que se move? está bem desperta. Ainda há pouco se recolheu uma rolda, a que acompanhou frei Patinho:

-- Escutai, disse João Bispo, deitando-se no chão para melhor distinguir a direção do rumor, depois de retesada a corda da sua besta:

A noite descera havia muito; os galos de algumas choças vizinhas tinham já anunciado que ia alta, a meio do seu curso, e a lua erguia-se redonda, avermelhada, semelhando um escudo candente, por entre as ramas dos pinheiros, que fechavam ao nascente o horizonte, fazendo destacar a uns por contornos negros, cobrindo de uma luz fantástica os corutos de outros, e projetando sombras imensas pelas clareiras. à proporção que ela minguava no céu, tornavam-se mais vivos os reflexos azulados com que tingia alguns objetos, fazendo contraste com os fogos dos dois acampamentos aquém e além de Leça -- fogos que em pontos ainda se mostravam vivos, fazendo ressaltar vultos negros, tocados, sobretudo nos arneses, braçais e grevas dos homens de armas, de linhas ardentes, vermelhas quase; em outros quase extintos, mostrando, através de uma luz vaga, formas indecisas, movendo-se, trejeitando. Aqui o ferro de uma azevã, volteando, espelhava um raio da lua, e imitava os fogos fátuos; acolá o bacinete polido de um besteiro de polé lampejava, ao cruzar rápido por pé dos fogos das vigias. De vez em quando o relincho dos cavalos se reproduzia nos ecos; as vozes das roldas se alteava; erguia-se aqui uma risada, ali um clamor, e depois recaía tudo num silêncio, que só interrompia, alguma conversa a meia voz, como a que cortaram os nossos dois namorados:

Pela boca de um deles já todos sabem que os combatentes de que podia dispor a cidade da Virgem, homens e rapazes se tinham nessa dia de madrugada posto a caminho de Leça, e se estão lembrados da notícia dada pelo besteiro em S. Domingos, notícia que tirou Gonçalo Rodrigues das mãos do povo e o entregou à justiça, que lhe fez grande favor no reter preso em Gaia; se se lembram de que D. João Manrique, arcebispo de Santiago, saíra de Braga com setecentas lanças e dois mil infantes, portugueses, partidários de D:

Beatriz, e galegos, e quando chegara a mensagem do Mestre acampava perto da cidade, atinarão qual o intento que aí os levava. Alguns corredores do bando inimigo tinham, ao tempo que pecuniariamente se salvava a pátria, chegado a Paranhos, alarmando os poucos camponeses não recolhidos à cidade, e os bons burgueses, que já os tinham esperado duas vezes sem verem aparecer uma só lança, tinham resolvido afugentar estes hóspedes importunos:

Seis a sete mil homens, pois, acampavam aquém do Leça, ocupando uma extensa linha:

Esta tropa, superior à do arcebispo em número, era, encarada por outro lado, talvez inferior. Dos nobres que com os seus homens de armas tinham seguido as hostes populares, em alguns não eram firmes as crenças de partido, como vimos; nos outros, em geral, havia certa má vontade por verem ao seu lado cavalaria burguesa, para a qual olhavam pouco mais ou menos com os mesmos olhos com que ainda hoje, no século XIX, olha o militar para o miliciano que marcha ao seu lado. Os besteiros da beetria, trezentos ao todo, era gente de ânimo resoluto, porém fracos atiradores, e os quinhentos, tirados da esquadra e de Gaia, tinham os outros quase na mesma conta que ás lanças que rodeavam a bandeira onde entre torres a Virgem aparecia mostrando Jesus ainda menino, aqueles que seguiam balsões historiados, e mesmo ainda ao mais historiado lábaro, museu de imagens santas ideado pelo futuro condestável:

Cinco mil homens, excetuando a multidão da armada, pertenciam a essa gente que parecia entregue a uma mascarada, quando levamos o leitor aos adarves que tinham vista para Miragaia. Eram porém estes, era o povo e os acontiados do município que tinham de fazer retirar os muito esforçados cavaleiros Lopo de Lira, Fernão Gomes da Silva, Martim Gonçalves de Ataíde, Gonçalo Pires Coelho e outros nobres, que seguiam com eles o arcebispo de Santiago. As ascumas e os mangões afaziam-se, a passar aquelas entre o gorjal e a barbuda, a malhar estes em cimeiras; amestravam-se para a grande tarefa de Aljubarrota:

Como dissemos, os defensores do Mestre estendiam-se na margem do Leça por bom espaço. João Bispo e Fernando Vasques encontravam-se num a das extremidades da linha, ou acampamento, quando estranho ruido vindo de uma mata vizinha os fez interromper o diálogo que aí fica exarado. O amante de Garifa, depois de se conservar por alguns segundos deitado, com o ouvido atento, ergueu-se, fez um sinal ao seu companheiro, e, empregando o maior cuidado possível para não fazer rumor, dirigiram-se ambos para o lado do poente, onde de novo se puseram a escutar:

-- São os nossos, disse o besteiro novel a Fernando; são os nossos, que estão abrindo caminho no bosque:

Palavras não eram ditas, um grito saía da selva, e um besteiro levantava quase debaixo da cara do sobrinho de Gonçalo Domingues a sua besta armada, mirando-o:

-- Eh! Gil! abaixa lá isso, gritou João Bispo: guarda os teus virotes para os galegos! Que desbravar de mato é esse?

-- Eramá! estás aí, João? tomei-vos por esculcas desses condenados!

Abrimos caminho na mata, e vamos passar o rio. João Ramalho está lá em baixo com trezentos dos da cidade:

-- Começa a festa?

-- Boa festa! Vamos fazer dançar os do arcebispo ao som de assobiar de virotes, e ranger de polés e garruchas. Os malditos deste lado dormem, ao que parece, e não é mau desperta-los:

O amante de Garifa deu alguns passos para se internar na mata. Fernando reteve-o:

-- Espera, João, eu sei um sitio onde se pode passar melhor do que aí:

-- Sabes?

-- Além, abaixo daquela casa que está a alvejar, pelo açude:

-- Bom discorrimento teve o rapaz! exclamou o besteiro, com um sorriso de escárnio. Vão lá passar pelo açude! É o mesmo que fazer caminho para o outro mundo. dois homens na outra margem tragam-vos uma hoste, como a uma tigela de migas:

-- E se de lá não houver ninguém?

O besteiro, como única resposta, voltou as costas, encolhendo os ombros; João Bispo, depois de curta reflexão, tomando a mão do seu companheiro, exclamou: -- Vamos ao açude!

O desbaste do arvoredo continuou com afinco, e uma hora passada, havia uma sofrível clareira aberta, onde tinham já penetrado alguns homens de armas. No campo inimigo, em frente, não se ouvia senão o ciciar da aragem:

Um troço de besteiros e soldados comuns, armados estes com toda a sorte de armas, desde o montante farpeado e o machado, a maça de puas, até ao chuço e mangual, começaram a passar o pequeno rio pouco abaixo do mosteiro dos Hospitaleiros. Cem homens teriam tomado pé na outra margem, quando um sibilo se ouviu, e um virote se veio cravar num velho roble, ao pé do qual João Ramalho dava ordens aos acontiados da cidade. Em seguida, a outro sibilo juntou-se um grito, o som da queda de um corpo na água, e logo um alarido imenso. Besteiros de pé e a cavalo, burgueses e mesteirais, que se tinham lançado ao Leça, recuaram:

Do campo do arcebispo tinham notado o movimento da gente do Mestre, e o silêncio guardado fora aliciente para os chamar além. Cem homens estavam na outra margem prisioneiros, se o grosso da força não avançasse:

-- Santiago! Santiago! gritaram os castelhanos; e a margem apareceu como por encanto coberta de frecheiros, e de Aí a momentos o relinchar dos ginetes e o som das trombetas ecoava pelos vales:

-- S. Jorge e Portugal! gritou João Ramalho, arrebatando a bandeira da cidade das mãos de um cavaleiro do município, e lançando-se ao rio. Avante, filhos, avante!

Um troço de mesteirais lançou-se em seguida do caudilho popular; porém recuou de novo:

As folhas das árvores caíam, como varejadas, e os troncos lascavam aqui e ali, que os besteiros de Garcia Manrique faziam a sua obrigação:

-- Assim deixais os vossos nas mãos daqueles cães?! exclamou Nicolau Domingues, apontando para a outra margem onde havia um concerto de pragas, vivas e morras. Besteiros! besteiros, pela Virgem de Vandoma, avante!

-- Avante! responderam alguns mesteirais e acontiados, seguindo o exemplo de João Ramalho:

A luta travada além do Leça era uma temeridade. O luar alto já, iluminava o necessário para o inimigo ver o inimigo que tinha junto de si, para uma luta quase corpo a corpo; e os homens de armas do arcebispo, avançando sobre o ponto invadido, iam dar cabo dos atrevidos portuenses; para além disso, os fundibulários e besteiros de aquém temiam ferir os seus, ao passo que os galegos, prolongando-se de lado oposto pela margem, enviando tiros mesmo ao acaso, dificultavam a passagem. Martim Correia, o escrivão da chancelaria, Gonçalo Pires, e o filho do Mestre de Santiago, D. Pedro de Trastâmara, com alguns escudeiros e um troço de cavalaria da cidade, forcejavam em vão por enfiar mais além a estreita ponte, ainda hoje existente naquelas paragens. O grosso dos homens de armas e cavaleiros embaraçavam-se uns e outros, nos valos, fraguedos e silvados, pelos sítios onde tinham acampado, alarmados pelo rebate extemporâneo:

No rio, se se ouvia o chapejar, era o de um ou outro burguês fugitivo; no bosque o estalar dos ramos, o rumorejar dos fetos não era só produzido pela queda de virotes; era também pela queda de homens. Nicolau Domingues gritava a bom gritar; mas a multidão da esquadra, vinda de reforço, não se resolvia a ir juntar-se aos acontiados do Porto, quando um sucesso inesperado deu um fim brilhante ao que até então não se podia dizer mais que uma imprudência do pai de Irene, e da sua gente:

O mosteiro dos Hospitaleiros apareceu iluminado por uma luz avermelhada: nas ameias da igreja e das torres veria quem delas se aproximasse vultos negros correndo de um para outro lado açodados, e um alarido imenso se casava ao fragor do combate da margem:

Fernando Vasques e João Bispo tinham passado o açude e aproximado, fazendo um rodeio, do acastelado mosteiro, pelo lado do norte, lado desguarnecido, e bastante custara ao namorado da filha do velho Humeia a suster o seu companheiro, que na efervescência do seu amor, cheio de entusiasmo, imbuído de mais na leitura dos livros de cavaleiras, para conquistar renome se dispunha a cometer temeridades, que serviriam apenas para alarmar os castelhanos e arriscar a vida. João persuadiu-o a voltar à outra margem, a procurar reforço para uma ideada surpresa, e não tinham do lado de aquém dado muitos passos quando lhes chegou aos ouvidos um vozear confuso, e toparam com uma mulher, que, soluçando, com os olhos arrasados de lágrimas, conduzia pela mão uma criança, chorosa também. Guiados por essa mulher, a quem Fernando, condoído, perguntara a causa daquele choro, foram ter a uma casa. As portas todas da casa estavam arrombadas: por uma saía um grande clarão. Uma velha arca e outros trastes ardiam ao canto de uma adega, e à volta das pipas tripudiava um troço de besteiros. O vinho derramado num a grande celha de pau, e que, trasbordando, se esbanjava pelo chão, mostrava em que estado tinham as cabeças, e mais ainda o modo porque recebiam as admoestações de Mister Guilherme: dançavam, trejeitavam, grunhiam e berravam em várias línguas e dialetos, chegando alguns dos que se mostravam menos firmes nas pernas ao nariz do nobre aventureiro uma escudela a trasbordar. Para bem da verdade deve-se dizer que o irlandês, pretendendo conter os seus patrícios, os ingleses, escoceses, gascões e normandos, que, recrutados pelo chanceler em Londres, tinham vindo nas galés, deitava à escudela um olhar tão terno, que não era para dele esperar grande sanha contra os indisciplinados, nem grande vontade de se meter à água:

João Bispo via no meio de gargalhadas e motejos desfazer-se o plano combinado com o sobrinho de Gonçalo Domingues, quando este se lembrou de notar aos nossos fiéis aliados por palavras e gestos que o vinho dos cavaleiros de S. João devia de ser coisa muito superior ao de pobre lavrador:

Um hurrah saudou Fernando, e, cambaleando, a turma tomou o caminho do açude, apesar dos protestos de Down-Patrick:

Vinte homens, se tanto, seguiam aos dois namorados: uma dúzia de archeiros de Giles de Montferrand e alguns subordinados de Telo Rabaldo, encontrados também na adega da casa: os restantes, embriagados, tinham ficado pelo caminho, e uns dois ou três afogados no Leça. Besteiros e vadios penetraram na cerca com o maior silêncio enquanto João e Fernando rodeavam um pátio junto da igreja, onde os do arcebispo tinham amontoada bagagem, carros e grande porção de escadas, com que ameaçavam um assalto à cidade. A sentinela, posta desse lado, dormia, cabeceando, encostada à lança, quando Fernando deitou mão de uma das escadas para a encostar ao muro. O pobre archeiro, estremunhado, abriu os olhos, esgazeados logo pelo terror, e a boca para dar o sinal de alarme; porém aqueles embaciaram, e desta saiu apenas uma golfada de sangue; deu umas outras duas passadas, cambaleando, estendendo as mãos como a procurar apoio, e caiu no chão soltando um som rouco e um assobio, como de homem que desperta de pesadelo. O castelhano, não despertava; adormecia para sempre: aquele estertor saía pela garganta e feridas abertas no peito por João Bispo:

-- S. Jorge e Portugal! exclamou o namorado de Irene, abraçando-se ás ameias do eirado, e arrancando a bandeira dos partidários de D. Beatriz, que tremulava ao pé da vermelha dos cavaleiros. S. Jorge e Portugal!

-- Estamos perdidos! resmungou João, ouvindo o grito do jovem; e estropeando o nome do aventureiro irlandês, gritou: D. Patrício! D. Patrício, por aqui! por aqui! A mim, besteiros!

Nas torres ergueu-se um alarido imenso: alguns penedos caíram do eirado no pátio, e uma nuvem de virotes sibilava nos ares. Ao chamamento de João apenas tinham acudido Pedro Choca e três vadios. O sobrinho de Gonçalo Domingues, com a haste da bandeira defendia-se dos castelhanos, que, alarmados, mais tratavam de lançar a escada a terra do que de se desfazerem do temerário inimigo:

-- Abaixo, Fernando, abaixo! gritou João; e no alto das torres apareceram algumas luzes:

-- Viva o Mestre de Avis! gritou o jovem quase ao mesmo tempo que lhe fugia a escada debaixo dos pés, deixando-o suspenso das ameias e estribado num a enorme salamandra de granito, que servia de goteira ao eirado:

-- Aí vem ginetes, disse Pedro Choca, fazendo um esgar. Recomendemos a alma a Deus!

-- Se ele ta quiser! redarguiu um dos vadios soprando a uns tições ali deixados em rescaldo, que embrulhara num a pouca de palha:

-- Fernando! exclamou João Bispo, encostando outra escada ao muro, apesar dos arremessos; aferra-te, Fernando, que eu sou contigo:

-- S. Jorge! S. Jorge! se ouviu do outro lado do mosteiro em altas vozes:

-- A mim, besteiros, a mim! disse João Bispo, enquanto o seu amigo se defendia na goteira, procurando saltar no eirado:

-- Hurrah! S. Jorge!

-- Malditos! aqueles odres onde estarão! D. Patrício!

-- Arriba, João, arriba! acudiram os vadios, marinhando pela escada, que de novo tinham erguido. Aquele endemoninhado rapaz vai morrer!

Uma grande lavareda, de repente, iluminou a luta travada entre Fernando Vasques, os seus companheiros e alguns homens de armas do eirado. Pedro Choca tinha lançado fogo a uns carros de palha, e este ateava-se aos enormes paveses de vime, próprios para assalto, amontoados entre as escadas e bagagens. Era uma fogueira soberba que dentro em pouco faria estalar o travejamento dos aposentos de D. Mafalda, ao mesmo tempo que os castelhanos abandonavam o eirado da igreja:

-- Os do Mestre! os do Mestre! se ouvia por todos os lados; e nas torres, besteiros e fundibulários perdiam os seus tiros:

-- Hurrah! continuavam, já roucos, a berrar, do outro lado da cerca, os ingleses:

-- S. Jorge e Portugal! gritaram algumas vozes, com boa clara, pronúncia portuguesa, do lado do rio, aparecendo por entre os castanheiros, retirando os homens de armas de Garcia Manrique:

-- Ter! gritou um dos seus caudilhos, ameaçando com o estoque os mais medrosos; ter, rapazes! Não se diga que retiramos diante de meia dúzia de vilões!

-- Ter, ter! exclamou o guerreiro arcebispo, aparecendo no meio dos fugitivos:

-- Os do Mestre estão no bailiado! disse uma voz de entre a multidão:

Vede, o mosteiro está a arder, e foi derribada a bandeira!

-- Por santiago! disse o arcebispo para os seus companheiros, espantado da audácia dos portuenses, embrulhados já com os galegos, e supondo-se cortado por forças imensas; estes excomungados estão decididos a morrer, e trazem consigo o poder do mundo. A caminho de Braga, senhores! Temos tempo que sobra para a desforra:

-- Covarde! resmungou João Rodrigues Porto carreiro, esporeando o seu ginete para se lançar sobre os do Mestre. Covarde! repetiu; e o fogoso animal, ferido nos peitos por um virotão, ergueu-se com as mãos no ar, e caiu, arrojando com ruido o português rebelde a alguns passos de distância, abolando-lhe a armadura e o capacete e fraturando-lhe o crânio:

-- Covarde! repetiu também o arcebispo com um sorriso de mofa, voltando-se para um dos seus capitães, e designando o fidalgo português: temeridades não aproveitam:

A ponte tinha sido forçada ao mesmo tempo quase, e a cavalaria de D:

Pedro de Trastâmara cortava já pelo meio dos galegos, aterrados:

-- A caminho de Braga! disse a gritar o arcebispo D. João, que, lançando- se na estrada partiu, a galope, seguido de grande porção de cavaleiros, e pouco depois de todo o exército, deixando os aprestes de assalto, viveres e bagagens nas mãos dos burgueses do Porto:

-- Senhor conde, senhor conde, aqui está a bandeira de Castela, exclamava momentos depois, atravessando no meio de vivas por entre as hostes do Mestre, o sobrinho de Gonçalo Domingues, com as mãos cheias de sangue, de feridas do corpo e da cabeça, mas tão contente, que nada lhe doía naquele instante, e, em vez do perigo corrido, se recordava tão somente de Irene, alegrava-se por saber que o seu nome lhe havia de chegar aos ouvidos na história daquele recontro:

Era um herói feito pelo amor ............................................................:

O mosteiro dos Hospitalários tinha sido abandonado, mal o incendio mostrou aos seus guardas as hostes portuenses além já do Leça, abatida a bandeira e em fuga Garcia Manrique. No entanto, ainda do lado da cerca, sol já nascido, as mesmas vozes roucas gritavam: -- Hurrah! S. Jorge!

-- Onde demónio estarão estes bargantes? perguntou o namorado de Garifa, procurando o sítio donde saía aquele vozear:

Uma gargalhada estrondosa se seguia, pouco depois, à pergunta. Os besteiros encontrados na casa, não se esqueceram, chegados ao mosteiro dos cavaleiros de S. João, que vinham para humedecer a garganta com bom vinho, e foi a adega a primeira coisa que procuraram. Era de lá que tinham, com os seus hurrahs, ajudado a alarmar os galegos:

Desta vez Mister Guilherme Down-Patrick não resistira à tentação:

CAPÍTULO VIII TORNEIO

Por uma tarde de mês de Junho, pouco mais de uma hora seria, caminhavam em direção ás Hortas, no meio de extraordinário concurso, mestre Gonçalo Domingues e Fernando Vasques. O feito de Leça, tornando um herói, entre os patriotas da terra, o jovem namorado, os gabos por ele publicamente recebidos de Martim Correa e do conde D. Pedro, a ovação feita pelos soldados, que em charola, o conduziram, quando perdidas as forças, pelo sangue derramado, caíra ao voltar do recontro; tudo fizera passar por alto ao bom tio a fuga da loja. O velho abraçou-o entusiasmado também, com o riso nos lábios e ao mesmo tempo umas duas lágrimas nos olhos e só se lembrou de fazer algumas reflexões sobre as imprudências da juventude, quando em casa notou a necessidade de chamar um médico, ou físico, como então se dizia:

Gonçalo Domingues tinha, como muita gente, na cabeça uma boa dose de ideias em oposição com as inspirações e sentimentos do coração, sobretudo a respeito do seu sobrinho. Se disséssemos que queria ao jovem tanto como ás suas dobras, diríamos que lhe tinha afeição de Pai; porém, ia mais longe o velho: queria-lhe mais; pois bom dinheiro sem dó com ele tinha dispêndio. E contudo dava-se de vez em quando a cães por causa de certas travessuras e inclinações do filho do seu irmão, sobre as quais fazia observações muito sisudas, cheias de um positivismo tal, que obrigava a dizer aos que o ouviam que ele era um homem de grande tino e prudência. Reflexões e ralhos, terminavam quase sempre por aquele sorriso que lhe viram os leitores quando ele voltava de Miragaia:

Fernando vinha ainda alguma coisa pálido, debilitado, ao que no corpo mostrava; porém nos olhos havia um fogo extraordinário, uma alegria pintada em todo o rosto, e nos movimentos uma força, uma rapidez, que não parecia de quem entrara pouco havia em convalescença. O tio bem lhe dizia que moderasse o passo, pois lhe fazia mal aquela violência, e ele mesmo a custo o poderia seguir sem correr; mas o jovem, se o afrouxava, era por instantes:

O sol, ainda quase a prumo, podendo, dardejar os raios por entre as esguias e altas edificações das estreitas ruas, que percorriam, rarefazia o ar, apresentando nos terreiros à vista a ilusão de um como doudejar de átomos no ambiente, um tremor que fere os olhos; porém Fernando nada sentia. Ia ver Irene, Irene que não vira desde o esboroamento fatal do muro; Irene, que João Ramalho, em vésperas de se fazer de vela para a Figueira, de onde seguiria para Lisboa, recolhera ao castelo de Gaia, recomendando-a a D:

Catarina. A nobre senhora era bastante astuciosa para não afagar enquanto fosse conveniente um homem popular como o piloto mercador, e falando ele em meter a jovem num convento, enquanto ia servir o Mestre, para a guardar dos riscos a que a idade a expunha, se oferecera para a tomar como donzela sua «e tê-la como filha» palavras dela. D. Catarina devia ir ao campo das Hortas nessa tarde, e por João Bispo soubera o jovem que à sua namorada fora concedida a honra de formar parte do seu cortejo. Em lugar do sol que fazia, podia queimar o dos trópicos, que o jovem o sentiria tanto como a aragem fagueira por sesta do outono, ou a gelos de inverno:

O recontro de Leça deixara desassombrada a cidade, e os bons burgueses entregaram-se todos aos cuidados de aprestar as embarcações e mais socorros pedidos pelo Mestre de Avis, posto em apuros pelo aperto do sítio e bloqueio:

enquanto o abade de Paço de Sousa se dirigia a Coimbra, transtornada, como vimos, a embaixada do alcaide de Monsaraz, as galés vindas de Lisboa e outras do Porto, já prestes, para não perderem tempo tinham-se feito de vela pela costa da Galiza, capitaneadas pelo conde D. Pedro, lançando contribuições aos povos que não queriam experimentar o nosso ferro. Destruído completamente o Ferrol e queimadas algumas naus, pelos fins de Junho de novo a frota apareceu nas águas do Douro, rebocando umas sete presas, e carregada de despojos:

Os sinos de todas as torres da cidade balouçaram-se, atroando os ares; berrou-se em todas as escalas os vivas do costume, e os edis, no fogo do entusiasmo, decretaram uma festa esplendida, como apensa à de S. João, santo sempre popular e mais nessa quadra, por ser o do nome do Mestre, que o povo tinha por um Messias, como diziam os partidários de D. Beatriz. A véspera da comemoração do nascimento do batista, morto por ter desdenhado da dança, devia ser celebrada com danças, guinolas, touras, momos e por um vistoso torneio, que tinha de ser o assombro da terra, pouco afeita a tão grandes festas:

Desde o amanhecer do dia 23 o campo das Hortas estava cheio de gente embasbacada para o tablado levantado na véspera, que alguns operários cobriam com tapeçarias, enquanto outros davam a última demão ao circo, ou estacada, adornando-a com bandeiras, panóplias e festões de ramagem:

Aos gritos e cantigas dos trabalhadores, aos comentos dos curiosos, ás risadas pouco e pouco se juntavam os pregões das vendilhonas de fruta, dos taberneiros, fritadeiras e padeiras, que sentavam as suas mesas, as suas tendas, ou os carros enramados por todos os lados, que o circo deixava devolutos, e pouco antes do meio-dia era já difícil mover-se no campo, apinhando-se além disso um gentio imenso nos adarves e torres da cidade, por aquele lado, e na encosta dos dois montes do Olival e Batalha. Se até aí os bons burgueses tinham aberto a boca para as tapeçarias onde a agulha ou a lançadeira traçara os episódios dos contos de cavaleiras, mostrando o rei Artur, Amadis, Lisuarte, Galaor, a duquesa Iguerna, Mabilia, Oriana, Urganda, Brisena e outras muitas personagens, que para maior elucidação dos seus feitos e ditos tinham a sair pela boca o texto da «ilustração»; se ficavam embelezados nos grandes panos de ouro, trazidos da catedral para enfeitar o esperavel do estrado das damas, nos estandartes, onde havia divisas de toda a sorte, bordadas ou pintadas, mais pasmaram quando começaram a aparecer os mantenedores das justas, os improvisados arautos, mestres e juízes de campo, passavantes, sergentes, menestréis e trovadores, que para a festa tinham sido igualmente apenadas as musas:

O Porto, beetria havia muito, entregue todo ao comércio, quando não se divertia a jogar as cristas com os seus bispos e a pugnar pelas suas liberdades, o Porto tinha visto passar os cortejos de alguns reis e príncipes; mas de fugida, meios envergonhados, como o de D. Fernando, ou em som de guerra, e em devota romagem e peregrinação: cortejo assim, festa igual nunca se dera, pois nunca, como então, se reuniram de muros a dentro tantos e tais elementos: tinha uma corte do seu. Os mesteirais e os burgueses nesse dia, tão enlevados estavam nas louçanias que se desenrolavam, que abriam caminho com a melhor vontade aos cavaleiros, e alguns mesmo suspiravam porque fosse levantado o interdito a quem com tanto garbo sofreava um ginete, vestia tão airosamente, e fazia tão acabadas mesuras:

Tinham as corporações aparecido com as suas bandeiras, precedidas pelas figuras que davam para abrilhantar o ato, como na procissão de Corpus: tinham-se reunido, amontoado os trajes mais variados, desde as vestes negras, compridas dos juízes, alvazires e meirinhos, as jorneias partidas, de pano brístol, de seda e veludo, os briais blasonados, as marlotas dos mouros dançarinos, as olhandilhas, as opas dos foliões e jograis, os arneses polidos, espelhando o sol, adamascados ou tingidos de vivas cores, os vestidos de brocado, de pano de ouro e prata, os arminhos e zibelinas das damas e donzelas, a almáfega e o burel desertos momos; casavam-se os prelúdios de todos os instrumentos; o arrabil e o tiorba, a charamela e o clarim, o tambor e o pandeiro, estrugiam, chiavam, rangiam; mas tudo aquilo dava vida e animação, afinava, no meio da sua desafinação, permita-se dizer, com o ressalte das cores, que como em brasão pareciam postas, com os alaridos, as risadas e os vivas, quando Fernando penetrou no palanque, onde seu tio, como notabilidade da terra, conseguira bom lugar:

O jovem, mal entrou, estendeu a cabeça, a procurar com a vista não os arautos improvisados, que se pavoneavam de ambos os lados da liça, vistosamente trajados de branco e azul, com as armas da cidade bordadas no peito, nem os mestres de campo, montados já em bem ajaezados corcéis, e correndo de um para o outro lado: foi para o estrado ou cadafalso das damas:

Estava porém cerrada a cortina, e, que não estivesse, no palanque era tal o reboliço, tanta gente estava de pé, que não seria fácil descobrir lá alguém, a não estar em lugar eminente. Mestre Gonçalo Domingues, parte por natural curiosidade, parte por desejo de ostentar perante os vizinhos, como os pais costumam, quando se embelezam nas prendas dos filhos, inquiria a significação de todas aquelas tapeçarias, e amofinava-se por ver que o sobrinho mal lhe prestava atenção, respondendo de tal sorte, que fácil era ver que nem sequer olhava para o sítio indicado:

De repente notou-se um marulhar de cabeças, e à algazarra sucedeu o silêncio. Os alvazires apareceram no estrado para eles preparado, e em outro, contiguo ao das damas, os juízes do campo -- Rui Pereira e Aires Gonçalves de Figueiredo:

As trombetas soaram; alvazires e juízes tomaram assento, e depois de feitas as costumadas cerimónias, um dos trovadores ergueu-se, desenrolou um pergaminho cheio de iluminuras, e começou em voz alta a recitar o seu poema, que era nada menos que um elogio aos guerreiros da expedição marítima. A poesia nessa época era tida em grande conta, e as atenções, por tanto, da assembleia voltaram-se todas para o bardo. Uma cabeça, uma só se volvia atenta para outro lado, e esta cabeça era a de Fernando:

A cortina de cadafalso das damas fora corrida por dois pajens, e D:

Catarina e mais umas oito damas da nobreza das vizinhanças da cidade tinham aparecido rodeadas pelas suas donzelas:

Os trovadores podiam dizer bocados de ouro sobre façanhas militares, que as palavras ecoavam como sons vagos aos ouvidos do namorado jovem; os versos de amores, esses, como se afinados pelo sentimento que o dominava, ligados por uma corrente magnética, faziam-no sorrir e corar, sem contudo desviar os olhos do estrado:

Depois que as palmas de todos os lados, e as trombetas soaram, quando o vencedor proclamado, apresentando o seu manuscrito a Gonçalo Pires, escrivão da chancelaria, com uma coroa de louros, recebeu em soberba bandeja um bonito saco de argempel, rico pelo bordado, e mais ainda pelas boas dobras que o pejavam, premio votado pela municipalidade, segundo antigas usanças, apareceu no meio da liça o mantenedor das justas:

D. Pedro de Trastâmara vinha, sobre garrido, aprimorado, formoso:

Bem fraca figura fazem hoje nas nossas festas e festejos, com a esguia casaca preta e a gravata branca de rigor, os alindados do século XIX à vista da que faziam os nossos avós. Para o namorado de hoje em dia no baile não há meio de se distinguir, de lisonjear o amor da sua dama, como então nos torneios, nos jogos de canas e argolas, nos bafúrdios e cavalgadas; não aparecem hoje os vistosos trajes de seda, ouro e prata, as mangas bordadas, de honra, as charpas ou bandas, nas quais em cores preferidas pela donzela querida se via a tenção ou divisa, que recordava a ambos um protesto, uma confidência, ou descobria um pensamento. O amor tinha, sobretudo no cavalheiresco século a que transportamos o leitor, um culto, que hoje não tem, hoje em que arrancaram a aljava a Eros, o facho ao Himénio, e a ambos deram por distintivo um saquitel de lona, como a imagem globulosa de benfeitor de confraria. (Entre parêntesis, faço aqui exceção dos meus leitores: os que são casados, o são por amor, e os solteiros e as solteiras ainda não deram um sorriso, um olhar a dote algum de boa soma, simplesmente pelo dote e nada mais. São a nata das criaturas.) O conde D. Pedro vestia sobre ricas armas de Toledo cheias de relevos, esmaltes e embutidos, um brial cor de cereja, onde, em vez do brasão próprio, havia bordadas chamas de ouro, e no escudo, esmaltado da mesma cor rubra, e tacheado de ouro, lia-se a palavra «Cuidado» entre duas palmas, que enramavam um sol feito de espadas. Um malicioso notou que o desenho do escudo podia figurar a roda de navalhas de Santa Catarina, e que a esposa de Aires Gonçalves trajava um corpete de tela, da cor favorita do mantenedor do torneio, adornado com um peitilho e fraldilhas de arminho; todos poderiam notar igualmente que, quando, ao fazer caracolar o seu ginete, o conde deu uma volta à roda do circo, antes de tomar das mãos do escudeiro que o seguia o elmo, a lança e o escudo, entre ele e a nobre castelã se cruzara um olhar expressivo; porém, o governador de Gaia mostrava-lhe um sorriso de agrado, e eram tão sabidos os recentes amores, que o tinham feito abandonar a corte do seu tio, que a maledicência achava-se um pouco embaraçada nos voos:

O mantenedor do campo foi saudado com tanto entusiasmo ou mais que o trovador, e da mesma sorte foram acolhidos, em seguida, os contendedores, que se apresentaram: Vasco Martins de Melo, Gil Esteves, Afonso Darga, Henrique Fafes, um dos irmãos Alvalade, Mister Manoel Pessanha, Afonso Henriques de Trastâmara, e outros jovens, todos tão adornados e vistosos, que à multidão iam-se-lhe os olhos neles, não sabendo a qual dar primazia:

Depois das cerimónias do costume e de um bafúrdio, jogo em que cada um mostrava a destreza no arremesso das lanças, diversão tomada dos árabes, começou o combate. Vasco Martins, Henrique Fafes e Alvalade perderam a sela, não suportando o embate das lanças; Mister Manoel, como mais afeito ao mar que à terra, ao dar a volta num dos extremos da liça, para arremeter contra o seu antagonista, o fez de sorte, que, roçando pela barreira com o cavalo, o arremessou este para o outro lado, deixando-o menos maltratado que a uns dois burgueses, que lhe amaciaram a queda com o corpo:

As damas debruçavam-se curiosas na balaustrada do cadafalso, e mais curiosas do que as damas as donzelas de honra e as burguesas, para quem tudo aquilo era inteiramente novo e de fortes impressões, como hoje se diria:

D. Catarina de Figueiredo, entre as do seu sexo, era a exceção, como Fernando entre os homens. Alguma coisa lhe prendia a atenção, e essa coisa ficava perto da bancada onde estava o jovem. Seguindo a direção dos olhares frequentes da bela dama, encontrar-se-iam as vistas do sobrinho do forçureiro, e ao primeiro relance dir-se-ia que se provocavam e compreendiam. D. Catarina notara Fernando; notara nos olhos os reflexos do incendio ateado no coração, e iludira-se, como se poderia iludir muita gente:

Estranhar a audácia a principio, podia-a estranhar; porém, mulher, havia de achar-lhe indulgencia, por virtuosa que fosse. Não o era. De sangue ardente, fogosa por temperamento pertencera, ainda, à corte de Leonor Teles; era uma das damas com que a astuta rainha jogara, para formar partido, cativar a benevolência dos cavaleiros a principio um pouco do parecer do povo que apedrejara os paços de apar S. Martinho, e não desdissera depois da escola em que se criara. Nos seus galanteios não encontrara nunca um olhar de adoração como o que intercetava; Fernando Vasques fizera-lhe mesmo uma impressão mais que extraordinária: fizera-lhe não só, ali, esquecer o conde; mas, depois, ainda mais, a distancia em que estava ela, dama de alta linhagem, de um simples burguês, um peão:

A ilustre dama não contava com Irene, que se ocultava, corando, atrás da poltrona em que se sentava: o filho do mestre de Santiago não contava também com o sobrinho de Gonçalo Domingues; mas via claramente que as cores e divisas que tomara podiam ser taxadas de vaidade, presunção e nada mais:

Quando um novo contendor entrou na liça, estava tão preocupado o nobre mantenedor, a procurar quem lhe podia roubar completamente as atenções, que não reparou que era esse o mais destro de todos, afeito aos jogos dos árabes de Granada, a medir-se com os cavaleiros da Africa ao serviço dos Alhamarides; que era seu próprio irmão, Afonso Henriques. O jovem castelhano, passando junto do conde guiou tão destramente o cavalo, que lhe roçou pelas joelheiras, e dando um jeito à lança, na carreira, desviou completamente a do seu antagonista e tocou com a sua no escudo de tal sorte, que o braço que o segurava, estendeu-se; a mão abriu-se e aquela arma defensiva foi ao chão. D. Pedro, ao ouvir os aplausos levantados ao seu irmão, e com a cabeça perdida pela distração da sua dama, ergueu-se furioso nos estribos e arremeteu contra ele. A sua lança desfez-se desta vez em hastilhas no arnês do jovem; porém este não saltou da sela, e em poucos instantes estava outra vez em frente do conde. A luta tornou-se então um verdadeiro duelo, e as regras do cartel apresentado no princípio, consentindo tudo que fosse destreza, e mandando parar ao primeiro ferimento ou queda, pois que não era justo que grande mágoa enlutasse tão grande festejo, foram desprezadas. O conde tinha sido desapontado nos seus galanteios como homem, e na sua honra como cavaleiro. Ás lanças sucedeu a espada; e as espadas como a lança quebraram, amolgando os elmos, disjuntando e torcendo peças dos braçais. Tomaram um a maça, outro o machado, e furiosos correram um para outro:

O tio de Nuno Alvares Pereira e Aires Gonçalves de Figueiredo, estavam tomados de assombro para intervirem na lata; os mestres de campo, que a princípio tinham tentado manter com os arautos as condições do cartel, tinham-se, embaraçados, por noviços, retirado para junto das bancadas, e olhavam uns para os outros e para os juízes, procurando conselho, que não viam nos olhos de ninguém. Os espetadores, homens e mulheres, esses aplaudiam os episódios da luta:

A massa ressoou na armadura de Afonso Henriques, e a um rugido, um regougo seguiu-se um fio de sangue a correr por entre as fendas do gorjal sobre o arnês. Os contendores tinham-se esquecido de que eram irmãos. D:

Pedro, sobretudo, estava cego. O brial do conde fez-se em farrapos, enrodilhado pela machadinha; o ginete em que montava D. Afonso, ferido na cabeça, apesar de acobertado de ferro, caiu na arena levando o cavaleiro. Os gritos da multidão, como nos circos romanos, ecoaram pelos montes vizinhos:

-- A pé, a pé! gritaram alguns cavaleiros entusiasmados, exigindo a igualdade de combate:

Não foi preciso repetir a exigência: ou melhor fora ela escusada: o conde de Trastâmara lançara-se abaixo do cavalo, e corria direito para o irmão, que, já erguido, com o machado no ar o esperava:

-- Cavaleiros, cavaleiros! exclamou Rui Pereira ao mesmo tempo que Aires Gonçalves, querendo sustar o combate:

Os passavantes e o mestre de campo correram para a arena, porém quando chegaram junto dos irmãos, um deles, D. Pedro, soltava um grito doloroso, e caía com todo o peso do corpo, fazendo ranger e estalar todas as peças da armadura:

O guante de ferro que lhe guarnecia a mão direita estava despedaçado, e despedaçado o pulso. O sangue tingiu a areia da liça:

-- Jesus! se ouviu do lado das damas e depois uma borborinha correu pela assembleia; pois a queda do sobrinho do rei de Castela, tomada como o baquear extremo, produzira no povo uma impressão desagradável:

Aquele rumor e assombro fizeram cair em si Afonso Henriques:

Os momos que se seguiram ao torneio foram sem interesse para os espetadores entretidos a comentar o combate extraordinário dos dois nobres castelhanos. Se recrearam alguém foi a Fernando Vasques e a Irene, e pela duração; não por outra coisa:

D. Catarina não havia também despregado os olhos do jovem. Ao cavaleiro que a invocara no torneio, se concedera um olhar, fora de curiosidade:

Quando este tornara a si do desmaio em que a dor e o sangue perdido o tinham feito cair, passando junto dele, ao entrar para as andas em que viera de Gaia, teve algumas palavras; mas ainda, se não dirigidas, alusivas ao sobrinho de Gonçalo Domingues, que tratara de seguir Irene, apesar das exclamações do velho forçureiro, pouco amigo de se meter em apertos, lembrado do desembarque de Rui Pereira:

-- Belo pajem se fizera daquele jovem... se fora de linhagem! Não é certo, Mister Guilherme? disse ela:

-- Belo pajem! disse o irlandês, que decerto devia ter achado a festa menos divertida que o recontro de Leça, e sem mesmo olhar para o jovem que D:

Catarina designava com a vista:

Fernando, perto da linda filha de João Ramalho, mais formosa agora e esbelta com as galas que lhe consentira a castelã, embelecido o rosto pelo amor; Fernando não ousara erguer os olhos, e sustentara assim a ilusão para a antiga donzela de Leonor Teles, que repetiu: -- Belo pajem!

CAPÍTULO IX GARIFA

-- Para longe o agouro! Ora esta! dizia, horas depois do torneio, em Gaia, junto da fonte do rei Ramiro, a mulher de um galeote:

-- Pois que é, tia Dordia? interrogava outra:

-- Que há de ser? Vindo ás vozes do lado do monte, ouvi falar em afogado, e bem sabe que o meu Manoel anda por esses mares!

-- Para longe o agouro, repetiu a outra mulher. Isto de agouros nem sempre são certos. Fé em Deus, que ele fará as coisas pelo melhor:

-- Fé em Deus tenho eu; mas bem mau é que em noite de S. João se ouçam coisas destas! A velha Mafalda, o ano passado, ouviu, ao passar ao arco de S. Domingos, falar num justiçado, e bem sabe o que aconteceu ao filho:

-- São sinais que cada um traz ao nascer. Mas ainda não é meia-noite, prosseguiu a mulher, querendo consolar a senhora Dordia da crença ainda hoje existente junto da foz do Douro, de que, quando, véspera de S. João, ao cair da meia-noite, se procura um prognóstico, ou notícias da sorte de pessoa ausente, as dão as primeiras palavras de qualquer conversa:

-- Deus a ouça, vizinha... Deus a ouça; mas parece-me que já será: o sete- estrelo vai alto!

-- Não é, não. Olá, João Canhoto, meia-noite será?

-- Não é, tia Luiza. Quer ir saltar as fogueiras?

-- Eu não: forças para tal Deus as dera. O meu tempo já passou. Quando rapariga!..:

-- Então deitou ovo em escudela?

-- Para que?

-- A ver se lhe sai arco de igreja, respondeu o homem, que dava pelo nome de João Canhoto, rindo:

-- A mim agora só se me sair tumba. Isso é bom para cachopas:

-- Vamos, vamos, tia Luiza; ainda está fera, rija como um virote, e um noivo agora era mel pelos beiços:

-- Seu bargante! exclamou a velha, mostrando no rosto que a mofa do galeote não era inteiramente recebida como tal:

-- Então, ainda não é meia-noite? disse a perguntar a senhora Dordia, bastante impressionada pelo agouro tomado, para dele tirar o sentido, não obstante os gracejos dirigidos pelo galeote à sua amiga:

-- Qual meia-noite! Ao cantar do galo toda a multidão, que anda por aí, há de vir em descante. É uma festa de estrondo cá da gente. Verá se lá os da cidade nos levam as lampas! Só violas é uma meia dúzia, e os rapazes que as tangem são mestres acabados. É de se abrir a boca. E o Safio? Se há por aí quem saiba deitar uma cantiga como ele, que eu beba água toda a minha vida!

O Safio vem no rancho:

-- Então, temos grande descante? interrogou uma outra mulher:

-- É esperar para ver:

-- O sítio não é lá dos melhores:

-- Dizem que por aqui..:

-- O que?

-- Que em noite de S. João aparece na fonte uma moura encantada... Ora uma moura de não sei que rei..:

-- Boa, boa! exclamou o galeote. As mouras não se vem meter assim com um homem do mar, por mais tresloucadas que andem. Se ela quisesse bailar na festa..:

-- Credo! Não diga isso, que o pode ela ouvir! exclamaram duas ou três mulheres ao mesmo tempo:

-- Ai, senhor João, bem se vê que não é da terra, e não sabe que é certo o aparecer ás vezes aí a maldita. A minha avó, que Deus haja, quando era rapariga, viu-a, disse a tia Luiza:

-- E vi-a eu, vai em três anos, com estes que a terra há de comer, acudiu a tia Dordia:

-- E eu, disse outra:

-- E eu, exclamaram em seguida mais cinco ou seis:

-- Então, como é a moura?

-- Ora como há de ser a moura? É uma figura branca, toda branca, muito branca, com os cabelos, nem fios de ouro, soltos pelas costas; e aparece a bailar na água de um para o outro lado..:

-- Hoje quebra-se-lhe o encanto, atalhou o galeote, que era para o seu tempo um grande incrédulo ouvindo um desafinar de instrumentos do lado da povoação:

-- Ali vem a festa! Lenha para aí! exclamou em seguida, dirigindo-se a um rancho de crianças de ambos os sexos, que saltavam por cima do brasido deixado pela fogueira:

A festa anunciada não tardou com efeito a aparecer. Uma grande porção de galeotes, petintais e espadeleiros de Gaia e Vila Nova arranhavam em violas, tocavam tamboril, ou cantavam, fazendo coro, a canção entoada por um rapaz alto e de ar jovial, que era nem mais nem menos o Safio apregoado por João Canhoto. Para se dizer toda a verdade, deve-se acrescentar que a desafinação dos instrumentos não destoava das vozes, um pouco roucas, como as de todos os embarcadiços, e ainda ressentindo-se de bródio feito em tasca:

Uma voz cantava: Em noite de S. João Até no mar traiçoeiro Acendem anjos ou fadas Em cada vaga um luzeiro:

E, velas de seda ao vento, Passa a galé encantada; Remos de ouro batem na água Ao som de branda toada:

No céu bailam as estrelas Bailam as mouras nas fontes..:

-- Jesus! exclamou uma mulher, pálida, com os olhos espantados, lançando-se a tremer no meio da festa:

As violas calaram-se, o cantor, que desta vez dizia versos, que não eram da sua lavra; os coros, que repetiam no fim de cada estrofe um estribilho marítimo, calaram-se também; os rostos tornaram-se de finados, como se tornara o da mulher. Esta, com o braço estendido, designava a fonte de D:

Ramiro:

Se vós, leitora, que talvez por mais de uma vez apregoastes que não credes em muita coisa natural, quanto mais nas que o não são, vísseis o que Safio e os festeiros de Gaia estavam vendo, a cor do rosto vos fugira, como a eles lhes fugiu, e talvez, como a vossa organização não é a de qualquer petintal, um desmaio vos tirasse de sustos:

A lua no extremo da sua carreira, redonda, mergulhava no mar, marcando nas águas uma esteira tremula, de um brilho duvidoso. O disco, meio embaciado pelos vapores do oceano, podia servir para uma imagem fúnebre: dir-se-ia que era o espetro do sol. Na outra margem, para o lado da cidade, por entre fogos vermelhos, apareciam e desapareciam figuras negras, como possuídas de uma vertigem, de frenesi, e a aragem trazia nas azas húmidas pelo orvalho, um concerto de rizadas em todas as notas possíveis da escala, e uma discordância de instrumentos, como em ronda de feiticeiras. O rosto tornava-o negro uma imensa fogueira feita na praia. Os reflexos da luz davam ao rosto dos marinheiros de Gaia, tomados de assombro, um todo fantástico, assustador. Toda esta cena momentos antes era alegre. Uma só coisa bastara para a transtornar. Entre o fundo escuro em que se mergulhava a margem oposta, em consequência da fogueira que fizera avivar João Canhoto, e o lanço do rio tocado pelos derradeiros raios da lua, junto da fonte, à beira da água, via-se uma figura branca, indefinida em tudo que não era o contorno, móvel, conforme as oscilações e intensidade dos fogos, acesos que parecia, mais do que a pousar na terra, suspensa do ar, baloiçada por fio invisível:

Aquela aparição, como transtornara o aspeto da cena, como dera aos cantos e aos risos um tom sobrenatural, tornara imoveis quase os colegas de Safio. Se não fosse o movimento que faziam para se aconchegar uns aos outros, dir-se- ia que ela os havia petrificado. O suor inundara-lhes a cara, e o frio corria-lhes pela espinha dorsal:

A campa do convento de Corpus-Christi dobrou compassada marcando a meia-noite, e ao mesmo tempo quase uma nota plangente vibrou no ar:

Marinheiros, que tinham afrontado a tempestade com o coração sereno, que nas galés reais ouviram sibilar os pelouros, sentiram perto do crânio o embate do machado no machado tremeram como as folhas dos alamos. Das mulheres nem falamos. Todas as orações, todas as formas de esconjuros se lhes embaralhavam na memória, e os lábios negavam-se a pronuncia-las:

-- Meia-noite, tartamudeou João Canhoto, momentos antes emprazador de fantasmas, e fazendo ao soar a última badalada o sinal da cruz ás avessas:

-- Valham-me os santos e santas do céu!

-- Jesus! bento nome de Jesus!

O silêncio que estas exclamações interrompiam era tal que se ouvia o respirar não muito desembaraçado daquela boa gente, e o terror também era tamanho, que as passadas e mesmo a aparição de um homem junto do rancho dos festeiros não foi por eles notada. Daquele pasmo pasmou o recém- chegado, mas não por muito tempo:

-- Ui, Canhoto, exclamou ele; que mau olhado vos deu, e em toda essa gente, que tendes cara de quem viu o trepo em encruzilhada?!

-- Jesus! bento nome de Jesus! repetiram as mulheres, deitando a correr para o lado da povoação, como se a presença daquele homem quebrara o encanto de terror em que estavam:

-- Ui! disse ele, que demónio se lhes meteu no corpo?! Nem bando de cotovias que farejaram besta armada. Eh! Canhoto, que feio esgar que estás a fazer! Estás mudo, homem? Aqueles pergaminhos velhos de saias que fugiram a grasnar eram bruxas? Em noite de S. João..:

João Bispo, pois era o nosso conhecido o recém-chegado calou-se, e recuou espantado, fitando um gesto dos galeotes de Gaia a aparição fantástica que os atemorizara, e quase ao mesmo tempo dois gritos se confundiram com o baque de um corpo no rio. O fantasma branco, a moura encantada durante a enfiada de perguntas de João Bispo, aproximara-se da margem do Douro, erguera os braços ao céu, como em súplica, e precipitara-se na corrente:

Durante este movimento o besteiro reconhecera naquele vulto um ente querido, e ao grito, soltado como em adeus extremo ao mundo, juntara-se outro de angústia também. O pasmo produzido pelo reconhecimento feito em tais circunstâncias não foi longo, porém; ao baque na água do corpo da moura seguiu-se outro, o do besteiro:

-- João! João! exclamaram alguns galeotes perplexos; sem saber como traduzir na sua inteligência o passo do condiscípulo de Fernando:

João não ouviu sequer aqueles gritos:

-- A moura saltou ao rio! disse um espadeleiro, que se atrevera a procurar com a vista a causa do terror geral:

-- Foi para casa de Brazabu! redarguiram dois ou três, tomando de um folego o ar necessário para cem homens, e limpando com as costas da mão o suor frio que lhe banhava o rosto:

-- João! João! tornaram os que mais perto estavam da praia:

-- Arrastou-o a maldita. Não viram os olhos que ela deitava. Eram dois luzeiros:

-- Guai dele! Aquilo não era moura; era o tinhoso, resmungou o espadeleiro, fazendo o sinal da cruz, o vigésimo talvez nessa noite:

-- A modo que sim, tio Vasco. Cheira aqui a não sei que:

-- Olhem! olhem! disse com voz abafada outro marinheiro, que se atrevera a aproximar-se da margem, e de novo recuara aterrado. Olhem!

olhem! Não veem na água aquele marulhar? A moura filou o besteiro:

-- A Virgem santa seja com ele! murmuraram três ou quatro a um tempo, dando o nosso homem como perdido de corpo e alma:

No rio, mesmo na esteira que prateava a lua, com efeito aparecia e desaparecia, para de novo surgir à flor de água, um vulto, a bracejar. De uma das vezes não veio só. O vestido da moura alvejou, tocado por um raio de luz, e a crença, dos marinheiros, de que João Bispo era arrastado por um espirito ou pelo demónio, mais se confirmou, levando-os a novos esconjuros. O besteiro sobraçando o corpo e segurando com os dentes as vestes da infeliz, embaraçado nos movimentos, lutava com a corrente afim de alcançar a margem:

-- A mim! a mim! gritou ele de uma das vezes em que veio ao lume de água; porém os marinheiros olhando espantados uns para os outros não se moveram no seu auxílio:

-- S. Pedro seja com a sua alma, murmurou o velho Vasco, recuando ao passo que o besteiro se aproximava da margem, um pouco escarpada naquele sítio e então mais do que hoje. Que se apegue com a Virgem, não com a gente, que nada pode com encantos:

-- Oh de terra! socorro, por Deus, que se me fina esta desgraçada! disse João Bispo com uma inflexão de voz, que denotava o desespero que ia naquele coração:

Safio e Canhoto, por um impulso sobre o qual nem tempo tiveram de reflexionar, correram à praia. Safio aproximou-se da rocha junto da qual o besteiro se debatia, segurando sempre a mulher de branco:

-- Uma mão a esta pobre, que já mal respira:

-- É uma rapariga! exclamaram os dois marinheiros, estendendo os braços a segurar aquela que, momentos antes, tomavam todos por um ente sobrenatural:

Os petintais, galeotes e mais festeiros pouco a pouco se tinham aproximado, ouvida esta exclamação, e vendo que se não tratava de mais do que de arrancar à morte uma criatura, o exemplo de Safio e Canhoto foi seguido, e, instantes depois, João Bispo a depositava em terra a sua preciosa carga:

De novo reinou o silêncio. Os marinheiros atordoados com as sensações diversas experimentadas em tão curto espaço de tempo, formaram roda ao corpo da mulher, que inane, desmaiada tinham conduzido para junto de uma fogueira, e deitado sobre um monte de trevo, alfombra improvisada das raparigas da terra, dispersas pouco havia. João Bispo com o olhar fixo, espantado, as mãos pendentes, os lábios entreabertos contemplava o rosto da moura, pois moura era a desfalecida. Parecia ter-se-lhe apagado completamente da memória o que acabava de se passar: o corpo ali prostrado era uma surpresa. De repente deu um grito; lançou-se de joelhos junto da moura, tomou-lhe a cabeça no regaço, e palpou-lhe as faces e o seio, a ver se encontrava o calor da vida, e, curvando-se, entre carinhos, como se com eles a quisesse acordar daquele letargo, exclamou: -- Garifa! Garifa!

Garifa não respondeu. Os lábios contraídos, lívidos, perdido o fogo que animava aquele rosto moreno, quando, pelas grandes festas, nas danças e folias, com que as da sua raça contribuíam, fazia girar sobre a cabeça o adufe, ou agitava os cascavéis que lhe adornavam o curto saio; os olhos cerrados; as longas cileias cheias de gotas de água, como se a morte a surpreendesse entre choros, nem um suspiro desprendia; nem um movimento, por leve que fosse, se lhe notava:

-- Morta! disse a meia-voz, aterrado, o besteiro, tirando do cinto o punhal, e chegando-lhe a folha aos lábios depois da ter limpado:

Um raio de luz, um raio de alegria passou pelos olhos do magoado amante, quando o fraco alento da jovem formou uma mancha na folha luzidia:

-- Garifa! Garifa! disse ele a exclamar:

-- É vira-la de cabeça para baixo! resmungou o velho Vasco; é a mesinha dos afogados:

-- Garifa... A minha pobre Garifa! murmurava o besteiro:

-- Safio, chega-lhe vinho; um trago não lhe fará mal, gritou João Canhoto; e em seguida, tomando o pichel que o seu companheiro trazia à cinta, derramou algumas gotas sobre os lábios da desfalecida jovem, ao passo que este resmungava, vendo correr o licor a que não parecia desafeiçoado: -- Boa cera com ruins defuntos!

João Bispo lançou-lhe um olhar terrível, e fez um movimento, como se tentasse desafogar em cólera contra o imprudente marinheiro todo o peso do coração, e estalar, quando Garifa moveu os lábios fazendo um gesto de repugnância:

-- Basta, Canhoto, basta! acudiu Safio, que não reparara no besteiro; vais fazer perder a alma à rapariga. No céu dos mouros... que é o inferno, acrescentou por entre dentes... não entra quem prova do sumo da uva, ouvi dizer:

O besteiro arredara Canhoto, e, com um braço debruçando-se sobre o corpo da sua namorada, tomava-lhe as mãos entre as suas, quando ela abriu os olhos, murmurou algumas palavras ininteligíveis, e tornou a fechá-los, soltando um suspiro:

-- Garifa! Garifa! disse a exclamar o amigo de Fernando:

-- Quem me chama? perguntou a moura, como se acordara de um sono, com voz fraca, descerrando de novo as pálpebras, e fazendo um esforço para se erguer:

-- Eu, eu, Garifa! acudiu João Bispo cheio da alegria:

-- Porque me não deixaram morrer? murmurou a filha de Humeia cobrindo o rosto com as mãos:

-- Morrer, Garifa?! E que querias depois que eu fizesse no mundo!

exclamou o jovem afastando-lhe com brandura as mãos do rosto. Que faria eu? prosseguiu... Morrer... morrer também!

A moura meneou a cabeça; fixou a vista, como admirada no besteiro; estremeceu toda, e dos olhos rebentou-lhe o choro ao mesmo tempo que os soluços do peito. João Bispo, que, em alguns minutos apenas experimentara os mais contrariados afetos, a extrema dor e a alegria, redobrou os seus carinhos, as palavras afetuosas; mas lágrimas continuavam a correr em fio dos olhos de Garifa:

-- Garifa, minha Garifa, porque choras? Deixa esse choro com que me amofinas. Eu estou aqui, Garifa, e ninguém nos há de agora separar. Tu cumpres a tua promessa... e o teu pai, que não espera já ver-te..:

-- Oh, meu pai, exclamou a jovem interrompendo-o, e de novo cobrindo as faces; com que rosto lhe poderei eu aparecer?!..:

-- Ele perdoará tudo, Garifa; esquecerá tudo... e que não perdoe, eu..:

-- Nem ele, nem tu; João... Oh! porque me não deixaram morrer!

-- Eu? Garifa? Eu não te entendo... Que mal me fizestes? porque te hei de malquerer?..:

João Bispo estacou, e de um salto ficou de pé. O que se passara causara-lhe um violento abalo, para dar lugar a reflexões, e esquecera-se de que a mulher, que assim tentava pôr termo à vida, tinha, duas semanas havia, desaparecido; esquecera-se do que lhe dissera o petintal e das suspeitas que o levaram ao castelo de Gaia. Tudo, porém, resumido num a ideia única acabara de lhe passar pela mente:

-- Rausada?! exclamou, abaixando-se a arredar-lhe de novo as mãos das faces, procurando ver se dos olhos mais depressa do que dos lábios obtinha uma resposta:

A jovem só redarguiu: -- Porque me trouxeram à vida... porque?

-- Rausada! disse João, passando uma das mãos pela cara, enquanto com a outra apertava o cabo do punhal. O nome desse homem, e pela hóstia consagrada juro que dentro em dias o repetirão em reza de finados. Fala, Garifa: o nome desse homem? Vilão ou cavaleiro que seja, eu me pagarei em sangue de quanto ele me roubou. Garifa, Garifa!

Soluços e lágrimas foi a resposta que obteve da filha de Humeia:

-- Garifa, não respondes? Dize... diz que não te puseram mão, dize, prosseguiu o jovem fora de si; livra-me desta ideia que me faz perder a cabeça; livra-me dela ou aponta-me um homem em quem desafogue todo o desespero que sinto. Tu não me atraiçoaste, não; não era possível... Empregaram a força; empregarei a força, e hei de esmagar quem quer que seja o rausador. Garifa, não respondes? Uma palavra!

-- Que queres que te diga, João? Esmagaram o nosso amor, tornando-me indigna de ti: a filha de Humeia não pode mais aparecer com a face descoberta!

-- E o refece, o maldito?! gritou o besteiro apertando com violência os pulsos da moura:

-- A aguia voa tão alto que não a alcança a garrocha, murmurou abanando a cabeça, depois de alguns instantes de silêncio, a namorada de João Bispo:

-- Quem foi, Garifa, quem foi?

-- Deixa-me, João:

-- O nome desse homem!... O nome desse homem!

-- Não, não posso:

-- Não podes?..:

-- Não, não posso: dizer-te o nome era fazer-te açoutar amanhã no pelourinho... era matar-te..:

-- Aires Gonçalves... Henrique Fafes!... gritou João Bispo:

-- Não... não mo perguntes..:

-- Qual deles, Garifa; qual deles? Afonso Darga?

-- Ninguém!

-- Ninguém?! O nome desse homem, ou tu és tão vil como ele!

-- Serei, João... sou. A moura do Olival, que te queria tanto como à luz dos olhos, morreu no dia em que lhe puseram uma mordaça na boca e ataram os pulsos: atiraram depois o corpo ao monturo... como de moura que era:

Garifa morreu, João: o que aqui está é uma desgraçada corrida por palafreneiros... Aquém a lançaram..:

-- Calai-vos, calai-vos! exclamou o jovem besteiro, pondo a mão na boca da sua namorada. Não pode ser... é impossível!

-- Antes fora!... murmurou Garifa:

-- Em má hora vim ao mundo!

João Bispo calou-se e deixou pender a cabeça sobre o peito. Quando de novo a ergueu, as pálpebras estavam vermelhas, mas secas; os olhos vagavam- lhe incertos; o rosto estava pálido, e uma contração nervosa dos músculos parecia emagrecer-lhe, avelhentar as feições. O amigo de Fernando Vasques, ocultava sob as vestes grosseiras um grande coração, cheio de fogo, de energia, e toda essa energia empregara-a no amor da filha de Humeia. A moura do Olival era também a única mulher que topara no seu trilho capaz de não esfriar essa paixão. Não prendia, não cativava somente com a beleza do corpo; cativava com os dotes do coração, da inteligência. Garifa tivera na infância faixas bem superiores ás telas grosseiras dos vestidos que trajava no Porto. Para corresponder à exaltação, que a vida ociosa e ao mesmo tempo cheia de sobressaltos e de incertezas produzia na mente do escolar de S:

Domingos, era necessária a exaltação do sangue árabe, fervente nas veias de Garifa. É fácil de avaliar qual o abalo que o jovem recebeu no cais de Gaia:

Aquela desventura, receara-a, temera-a; mas não se afizera à idem de que se realizasse; achara sempre a providencia a estender a mão à sua namorada, a protege-la. Na maré mais negra seguindo-a com o pensamento, depois que ela desaparecera do Olival vira-a morta; mas se encontrasse no Douro o seu cadáver, a mágoa não fora tamanha como a que sentia:

Mesteirais e marinheiros fitavam comovidos os dois amantes, que se conservavam mudos afastando as vistas um do outro: João de pé, sombrio, pensativo; Garifa de joelhos, lacrimosa, tremula, branca como a roupa que vestia por baixo do roto gabão, que um marinheiro lhe lançara aos ombros:

-- Rausada! murmurou passados momentos o jovem, sacudindo a cabeça, como se assim pudesse repelir aquela ideia:

Depois, estendendo a mão à pobre moura, juntou: -- Vem, Garifa; já não sou também o mesmo que era. Vem comigo:

A jovem, levada pela solenidade da voz e do gesto do jovem, e ajudada por ele, levantou-se maquinalmente, e com passos mal seguros, seguiu-o, perdendo-se os dois na escuridão da estreita rua que guiava ao povoado:

Os marinheiros ficaram olhando uns para os outros:

-- Pobre rapaz! murmurou um deles:

-- A rapariga era a que chegou a noite passada, quase nua e toda magoada à taberna do tio Pero, e que ele abrigou por caridade, e livrou de dois mal encarados que a seguiam:

-- Deu-me os seus ares dela:

-- Era a mesma, sem tirar nem pôr:

-- Mal a puseram em terra, conheci-a: era a moura do Olival:

-- Coitado do Bispo, resmungou o velho Vasco. Bem enfeitiçado o traz a tal moura. Estas condenadas têm tais artes, que, se vos lançam olhado, fica-se perdido de todo. têm feitiços para tudo. Um rapaz conheci eu no meu tempo, que se mirrou de todo, e morreu por causa de uma destas malditas. Em casa da rapariga, uma moura, e linda até ali, encontraram uma figura de cera feita a imagem dele com os olhos pregados, e um alfinete enterrado no sítio do coração:

-- Qual feitiço, nem meio feitiço! resmungou João Canhoto:

-- Não acreditas! acudiu outro mesteiral. As mouras todas sabem de feitiçaria, e quando querem que um homem lhes queira, a elas ou a quem isso lhe pede, apanham um sapo, e cozem-lhe os olhos:

-- Não digo que se não façam desses malefícios; mas a rapariga do Bispo..:

-- Homem, é moura e basta:

-- Moura ou cristã, se enfeitiçava, era com os olhos. Não precisava de outra coisa, acudiu João Canhoto. A boa gente vi ficar de boca aberta para ela, este ano ainda na procissão de Corpus, e depois não tem sido nem a um, nem a dois senhores de alta linhagem que tenho visto segui-la, todos requebrados:

A um dos que está no castelo ainda há semanas encontrei no seu alcance pela aljama, era já noite caída. Não disse nada ao Bispo, porque ele faria alguma!

-- Feitiços, feitiços, para nos perder a alma, resmungou o velho:

-- Ora, mestre Vasco! também enfeitiçou ela a quem o pôs naquele estado? A pobre, que se queria finar por se ver assim, é porque não foi pela sua vontade que a tiraram de casa. cristãs conheço eu, como as palmas das mãos, que não a valem. Se mestre Vasco estivesse mais novo, e ela lhe dissesse palavras de bem querer..:

-- Credo! era um pecado!

-- Deus me perdoe; mas eu não o tenho por pecado; se o é, muita gente peca:

João Canhoto não deixava de dizer a verdade: as mouras por aqueles tempos roubavam ás cristãs bastantes corações, tanto de nobres, como de peões, o que as obrigava a crer em poderes ocultos, para não se confessarem derrotadas nos encantos. Nos paços dos cavalheiros e ricos-homens, muita descendente de Agar, forjava dos ferros que lhes lançara a escravidão cadeias para os seus senhores: nas cidades as mais jovens e formosas eram como Garifa forçadas quase a mostrarem as suas graças em público nas grandes solenidades: eram as bailarinas da época, e as bailarinas têm feito dançar muita cabeça desde Herodíade até aos nossos dias. Os escrúpulos do velho Vasco não eram partilhados senão pelos que se viam no seu estado. Os legisladores, entretendo-se a impedir relações ou ligações entre as duas raças com penas mais ou menos severas, não quiseram, ao que parece, mais do que deixar prova de que elas eram um pouco frequentes, e que já então se faziam leis para ficarem letra morta, salva uma ou outra exceção feita com algum pobre de cristo. Nos princípios do século XVI ainda aparecem trovadores, que, apregoando o seu afeto por descendentes de Azharat e de Shobeia, não nos deixam ficar por mentiroso:

Para crédito das nossas avós cristãs, atribuamos a maior recato delas, as conquistas das jovens do Islão. O leitor, contudo, não fique pensando que estas não tinham sobre a virtude, sobre o pudor e sobre o amor ideias idênticas ás professadas por aquelas. Garifa não era uma exceção única feita para João Bispo: as ideias com que hoje são criadas as mulheres no Oriente, não eram as das mulheres árabes de Espanha. Com pequenas exceções, o amor no século XIV tinha em Granada as mesmas leis que na corte da condessa de Champagne:

O leitor poderá agora dizer-nos o mesmo que Safio a Vasco e João Canhoto: -- Deixemo-nos dessas coisas:

O marinheiro acrescentou: -- Vamos: a noite de S. João é para descantes e folias! Venham as jovens para o terreiro. Eia! mãos à obra: avivar as fogueiras e tanger as violas, que as cachopas acudirão! Ehuh! Mafalda! Joana!

Pouco depois ninguém diria que na praia da velha Cale se tinha passado uma cena de lágrimas; que uma pobre rapariga tentara pôr termo aos seus dias; que um coração se despedaçara. Um bando de raparigas, de marinheiros e mesteirais, dando as mãos uns aos outros, dançavam, ou melhor, giravam, formando circulo, em volta de uma grande fogueira, e entoavam todos esta cantiga, que os músicos da festa faziam por acompanhar: «Todas as ervas são bentas Em noite de S. João Só o trevo, coitadinho!

Anda a rasto pelo chão.» E o sol, nascendo, ainda os encontrava no mesmo local:

CAPÍTULO X UMA IDEIA

Os burgueses do Porto tinham desempenhado a sua palavra: os navios prometidos estavam a nado nos águas do Douro, prontos para dar à vela. Os cavaleiros e ricos-homens nem todos procediam do mesmo modo; o fogo do amor da pátria era em alguns, tíbio, em outros nulo. Aires Gonçalves de Figueiredo era deste número. Aproveitara os conselhos da sua mulher, e fazia todo o possível por aguardar que a situação se definisse para entrar com segurança na contenda. Martim Gil, mandado pelos portuenses, ao conde D:

Gonçalo, dele recebera uma resposta favorável, depois de feita, entende-se, a concessão das terras da rainha D. Leonor a sua mercê, e a das de Lordelo e Bouças seu filho D. Martinho, fora outras miudezas, tais como dinheiro e peças de pano; porém o conde adiava, sob pretexto de aprestes, a sua partida, quanto lhe era possível. O Mestre lembrava continuamente os apuros em que estava a sua boa cidade de Lisboa; mas os nossos homens não se queriam meter também neles, sem a certeza de bom resultado. Aires Gonçalves tinha os olhos no conde de Neiva; Afonso Darga e outros cavaleiros aguardavam a resolução do alcaide de Gaia. Rui Pereira, no entanto, enfastiara-se de tanta delonga, e tendo Álvaro da Veiga, Luiz Giraldes e Domingos Pires lembrado que se enviasse a armada receber o conde à Figueira, o alvitre fora aceite, com grande amofinação dos fábios políticos, que trataram logo de procurar embaraços à sua realização:

Uma circunstância os favoreceu:

Quando, pouco depois do S. João, a municipalidade tratava não só de abastecer as galés, mas até de enviar alguns víveres para os sitiados, como fora requerido, alguns companheiros de Fernando Afonso de Zamora, deslembrados da lição dada em Santo Tirso, ou outros aventureiros semelhantes apareceram nas vizinhanças da cidade. Mal a noticia se espalhara, frei Garcia fora ter com Pedro Choca, e causara nas tercenas um alvoroço extraordinário, pintando as coisas o mais feias possível. Este alvoroço, graças a outros indivíduos, se tornou contagioso; o temor calou nos ânimos fracos, e na tarde desse mesmo dia nas ruas, terreiros e praças lamentações não faltavam:

-- Eis de novo esses malditos galegos! más terçãs os colham! dizia um mercador. Não nos deixam tomar folego os hereges, e em bem mau estado vão já os negócios. O tempo vai bom para espadeiros; que os outros não veem pogea. Tudo são guerras, agora, e desordens. Dantes não era assim. No tempo do rei D. Pedro!... suspirou o bom homem, e concluiu abanando a cabeça, e fitando os olhos no teto da loja:

Este gesto queria dizer que no tempo do pai do Defensor a paz florescia na terra, e era, talvez, copiado de outro idêntico, feito pelo senhor seu progenitor quando o amante de Ignez de Castro talava o Douro e o Minho, e mesmo de algum feito pelo seu avô, afetado pelas desavenças de D. Diniz com o pai do rei D. Pedro:

-- Não foram bem sangrados, e veem por mais esses castelhanos ou acastelhanados, redarguia um vizinho; pois terão o seu escote, como o teve o de Zamora e o arcebispo:

-- Mal haja quem mal faz!

-- Rui Pereira, Aires Gonçalves, ou qualquer os receberão como merecem:

-- Assim creio; e por isso, como me dizia há pouco mestre Lourenço, é que não acho muito acertado mandarem para Lisboa quanta boa lança há por aí. É dever acudir ao próximo; mas em primeiro lugar estão os da casa:

Quase todos os diálogos, travados em diversos pontos apresentavam, espremidos, o mesmo suco que o do bom mercador quando pelo lado das Hortas entrava uma grande manada de bois, e rebanhos de ovelhas e cabras, destinados ao abastecimento das galés. Alguns ociosos, encontrando-se com a manada fizera-lhe cortejo; alguns mesteirais, vendo os ociosos, pousaram a ferramenta e engrossaram-no; os garotos, que possuem o faro dos grandes juntamentos, conhecendo que se formava um, surdiram de todos os becos, para o completar. Ao chegar o gado a S. Domingos, caminho das tercenas, onde deviam os carniceiros preparar as carnes, a procissão era solene pelo número. A ideia que presidia a todas as lamentações ia ser formulada de outra sorte: frei Garcia e alguns outros apaniguados do alcaide, achavam-se entre as turbas; Pedro Choca, desembocara do lado da Esnoga, saído de uma taberna, onde, junto com indivíduos que deviam estar debaixo da jurisdição de Telo Rabaldo, tinha enxugado algumas medidas de vinho, e não era pelo menos destituído da manha necessária para certas empresas:

Se o concurso era grande, também era ruidoso. Os condutores da manada gritavam, vendo que uma ovelha tresmalhava, picada por algum rapaz travesso, ou um boi estacava, atemorizado por negaças; os homens de armas da escolta praguejavam no meio de tantos embaraços; aqui uma mulher queixava-se de que a pisavam; além alguns homens altercavam com os besteiros, que os repeliam do trânsito; mais longe chorava uma criança. Os garotos e os vadios praguejavam, gritavam, riam-se, assobiavam, cantavam e imitavam o balido de ovelhas e cabras, e o mugido dos bois, como se os animais se recusassem a tomar parte naquele concerto:

Entrando no terreiro a multidão, crescera a algazarra. Uma multidão de homens cobertos de andrajos, bem semelhante à que estacionava no Olival, no dia da chegada da mensagem, correra para as bocas das ruas que iam dar ao rio, obstruindo-as completamente. Quando os guardas dos rebanhos quiseram abrir caminho para as tercenas, os vadios demonstraram a sua má vontade com ápodos a que responderam os acontiados da beetria com os contos das azevéns, ou as bestas, manejadas em ar de clava. Nesta distribuição de pancadas foram, como sucede muita vez em casos tais, contemplados bastantes inocentes. Um besteiro, querendo chegar a um velhaco, feriu no rosto uma mulher, levada para o centro do motim pelas ondas de povo. O sangue, correndo pelas faces da pobre criatura, indignou alguns circunstantes, que só a curiosidade ali trouxera:

-- Fazei praça, exclamou de entre eles um burguês, fazei praça, mas com tento. Guardai os virotes para castelhanos loucos. Em recontro ou batalha talvez o braço não ande tão destro:

O acontiado fez um gesto como de quem ia empregar silogismo contundente; mas a prudência o aconselhou melhor, e contentou-se com redarguir: -- Cuidai no vosso mester, bom homem, e deixai-me. Onde puseram a mira estes velhacos sei eu. Não lhes passa há meses pelas goelas bocado de cabrito, e querem fazer bôdo com algum que apanhem:

-- Olha o outro! gritou um petintal. Se não comemos cabrito todos os dias, comemos pão; mas amassamo-lo com o nosso suor: não o vamos roubar pelas padeiras. Os tagantes do aljube ainda têm a pele de dois dos vossos! Nós não nos servimos das adagas para cortar escarcelas de mercadores encontrados fora de horas:

-- Muito nos custa a viver! acudiu uma gorda cidadã, e mais custará agora que levam todo isso para Lisboa:

-- E não parará aí, disse um dos companheiros de Pedro Choca do meio da turba: vai quanto mantimento se encontra pela redondeza e há na cidade:

-- Se os de Lisboa estão cercados pelos de Castela, que façam como fizemos em Leça: se por lá estão minguados de mantimentos, também não nos sobram:

-- E os do arcebispo ainda não foram desta tão malferidos, que não possam voltar, disse uma voz. Alguns corredores têm saído de Braga:

-- É verdade, é verdade! berraram ao mesmo tempo dez ou doze mesteirais. Os de Lisboa que se avenham como poderem:

-- Têm braços como nós:

-- E não havemos de finar-nos à míngua. Os mercadores mandam boas dobras:

-- E a prata da Sé vai também!

-- Já os alvazires carregaram uma galé de armas, e de Coimbra e Montemor vieram outras:

-- Que se contentem com isso, e com o biscouto e farinha que embarcaram!

-- Deixai que não faltará, louvado Deus, mantimento na cidade, embora levem tudo isso ao Mestre:

-- Falais assim redarguiu um dos queixosos, voltando para o ordeiro, que proferira estas últimas palavras, porque se um pão de praça vos custar dois reais brancos, tende-los na arca! Nem mealha deixaremos embarcar:

-- Nem mais tanto como uma unha negra!

Este diálogo, ou esta cena, que se passava ao pé do arco, como nas tragedias antigas tinha o seu coro numa gritaria descompassada de que seria difícil dar uma ideia. O que sobressaía no meio de tudo, eram os vivas e os morras. Se se perguntasse a cada um dos coristas em separado porque davam essas vozes, nenhum talvez vos diria, a não ser que confessassem que sentiam a necessidade de gritar, e que na falta de melhor coisa, aquelas palavras serviam perfeitamente para tudo: entusiasmavam, animavam o tumulto, e de mais apregoavam que eram muitos bons patriotas. Os vivas eram ao Mestre; os morras aos loucos: levar a mal aquela berraria, ninguém podia levar:

Do lado oposto a algazarra era a mesma, com pequenas variantes:

Os condutores de gado e os guardas embrulhados pela multidão não tratavam já senão de se deslindarem dela, e de acudir aos rebanhos:

Alguns amotinados tinham, para desembaraçar o terreiro, conduzido a maior parte do gado graúdo para as azenhas: ovelhas e cabras, essas corriam em todas as direções. Para cúmulo da confusão, quando Pedro Choca e os seus companheiros persuadiam o povo a que se dirigissem ao paço episcopal ou à casa do município, dois touros, enfurecidos ou assustados pelo ruido e negaças de alguns garotos, tinham aberto caminho para o lado da Esnoga, derribando e maltratando algumas crianças e mulheres. A culpa do desastre era dos amotinados; mas todos eles à uma tinham procurado origem mais remota, e lançaram aos vereadores e bons homens que tinham ordenado a remessa dos mantimentos. Um velhaco lembrara-se de juntar aos «morras» da ordem um aos «alvazires, que queriam matar o povo à fome» e entre multidão, mesteirais, que horas antes teriam dado a sua última pogea, se para sua senhoria lha pedissem, repetiram aquele grito:

Uma voz ampliou-o: -- Morram os traidores, que querem dar cabo do povo para entregar a cidade aos de Castela!

-- Morram os traidores! uivou a multidão:

E aparecia já o alvitre de se ir em procura de alguns alvazires, e até mesmo de os tratarem como ao arrabi-menor, quando dois daqueles apareceram no terraço do arco de S. Domingos. Rui Pereira, que vira rebentar o alvoroço, mandara-os chamar e a alguns bons homens para que sossegassem os ânimos como pudessem. O tio de Nuno Alvares, a princípio tivera, ao ouvir o arruído, vontade de baixar ao terreiro e cortar naquela vilanagem, que de cabeça tão levantada, insolente e turbulenta trazia o Defensor; mas, apenas mandara selar o seu cavalo, a reflexão lembrou-lhe a inconveniência de um tal passo, e a reminiscência pôs-lhe diante dos olhos os tumultos de Lisboa e Évora e tantas outras terras do reino. O mensageiro do mestre, contentou-se, pois, em desabafar em pragas, em dar duas grandes punhadas sobre a mesa, e desapareceu pelo lado da cerca do convento onde pousava, para não se ver obrigado a aturar o bom povo, deixando as autoridades municipais em apuros:

Não eram fortes em retórica os bons homens, e a pouca que lhes concedera a natureza fugira assustada:

Os velhacos, dando por eles saudaram-nos com uma ladainha de ápodos que faria pasmar ao leitor pela quantidade e pelo desusado:

A armada do terreiro tinha grande vantagem sobre os burgueses do arco: para o ataque bastavam palavras soltas, ou mesmo gritos inarticulados; para a defesa, para satisfazer as exigências de Rui Pereira, era necessário um discurso, pequeno ou grande, mas um discurso:

Os alvazires e mais cidadãos que os acompanhavam, depois de se empuxarem e acotovelarem uns aos outros, por bom espaço de tempo, tinham resolvido, ou antes forçado o mais bojudo e o mais endinheirado de entre eles a tomar a palavra, e o nosso homem depois de um gesto bastante solene feito ao bom povo; depois de tossir e escarrar, como o faria, ao encetar um sermão, o frade mais sabedor do convento, balbuciara uma ou duas dúzias de palavras. É de crer que fossem bocados de ouro; mas asseverá-lo ninguém, a não serem os colegas, o poderia fazer, pois, quase nada perceberam no terreiro os que lhe quiseram prestar atenção. Uma grande parte não lha dava, e continuava a formular as suas queixas ou acusações:

-- Querem dar cabo do povo, e entregar a cidade aos de Castela!

-- Morram os traidores!

-- Morram os loucos:

-- Amigos, disse o alvazir levantando a voz, logo que a tempestade popular serenou mais; o Mestre nosso regedor e defensor se encomendou ás vossas boas lealdades, e vos mandou dizer que, como este reino andava todo revolto com desvairadas tenções..:

-- E bem desvairadas são as que tendes! exclamou cortando a palavra ao orador, um amotinado, pouco reverente para com o plágio da mensagem de Rui Pereira, de que em apuros aquele se valera:

O pobre homem, olhou em torno de si espantado; limpou o suor, que lhe corria em bagas pela cara; tossiu de novo; pôs a mão no peito para tomar um ar mais solene, e começou novo aranzel: -- Todos vós sabeis que esta cidade levantou voz pelo Mestre..:

-- Viva o Mestre! Alcácere pela sua senhoria! gritou a multidão..:

-- Todos vós sabeis, repetiu o alvazir, que esta cidade deu voz pelo Mestre, que jurou defender-nos e amparar-nos, e também sabeis que el-rei de Castela veio sobre Lisboa com toda a sua gente..:

-- Morram os castelhanos! gritaram do terreiro:

O ilustre orador, como hoje lhe chamariam, se ele vivesse, as gazetas, órgãos ou respiradouros do partido em que se tivesse lançado; o ilustre orador, vendo que não havia com tal gente meio de atar duas frases sem uma interrupção, tratou, já desesperado, de resumir o seu discurso: -- O regedor mandou pedir a esta boa cidade que lhe enviassem todas as galés e barcos que fosse possível armar e equipar, e bem assim mantimentos e dinheiros, os quais -- acrescentou o bom do alvazir, como se entre os amotinados tivesse alguém que com tal se importasse -- como filho de el-rei que é, por toda a sua verdade jurou pagar muito bem..:

-- E ressuscita os que tiverem morrido à fome? perguntou um velhaco, que subira acima de um poial, arrimado ao arco, e de braços cruzados, com gesto zombeteiro encarava o orador:

-- Morram os traidores!

-- O regedor não quer que matem o povo!

-- Viva o Mestre!

-- Fora os alvazires, gritou Pedro Choca:

-- Fora, fora! vozearam de entre a multidão:

O orador tornou a limpar o suor, que se tornava copioso e frio cada vez mais, e ainda tentou prosseguir; mas a sua má estrela quis que ao examinar o seu auditório desse de novo com os olhos no velhaco do poial. O maldito riu- se, e fez-lhe um esgar; e risada e esgar secaram-lhe completamente a prosa na garganta. O bojudo cidadão bateu com a língua nos dentes, soltou dois ou três sons, estendeu os braços, e meneou-os, como se pertencesse à seita dos mestres pedreiros que, pouco havia, tinham concluído os muros da cidade, ou quisesse nadar em seco; mas nem uma palavra mais conseguiu formular, nem com todos aqueles trejeitos exprimir uma ideia:

A atrapalhação do orador deu incremento ao alvoroço, e os bons-homens que tentaram substituir aquele na tribuna, não conseguiram um momento de atenção. Era este o estado das coisas, quando Gonçalo Domingues e Fernando, apareceram no terreiro, vindos do lado do Palmeirim. Mestre Gonçalo e o compadre, que já encontramos no campo do Olival, tinham sido os encarregados de arranjar o gado, e portanto a sua aparição trouxe àquelas cabeças desorientadas a ideia de que uma boa parte da culpa dos males que receavam, deles provinham. O acolhimento foi pois o menos amável possível:

As relações de mestre Gonçalo com o judeu Moisés, em quem o povo já fizera justiça ao seu modo, foi a primeira pecha que lembrou a alguns dos amotinados, e mal lhes lembrou, logo foi lançada em rosto. A multidão fez coro, como fazia a todas as lembranças, e o bom burguês ficou perplexo: fez- se vermelho e fez-se amarelo quase ao mesmo tempo, e o caso não era para menos. Quem não respeitava nem bispos, nem abadessas, não era muito que desacatasse um forçureiro, por mais endinheirado que fosse. Não era mesmo naquelas circunstâncias o dinheiro carta de seguro; bem pelo contrário: era mais uma razão para temores:

Gonçalo Domingues, empalidecendo, agarrou-se ao braço do sobrinho e quis retroceder; mas a retaguarda estava-lhe já cortada, e entre ameaças foi levado pela multidão até junto do paiol, onde se empoleirara o vadio que secara a eloquência ao orador do arco. Fernando tomado de assombro seguiu o tio. O sangue do jovem, porém, não era o do velho, e a vozearia, os insultos bem depressa o fizeram ferver. O primeiro impulso do namorado de Irene, recuperada a exaltação que o dominava desde o recontro de Leça, e levado por assomos de cólera foi o de se lançar contra os amotinados:

Desembaraçando-se das mãos do seu tio, atirou-se a um mesteiral, que junto do rosto daquele erguera o punho cerrado, e ia ser vítima talvez da sua honra, quando dois braços musculosos seguraram o seu antagonista, e uma voz, que devia ser conhecida de alguns dos que se mostravam mais enfurecidos contra mestre Gonçalo, exclamou: -- Ter mão rapazes!

Pedro Choca vira Fernando Vasques ameaçado e correra no seu auxílio. O velhaco, apesar de tudo, não deixava de ser um bom patriota, de ter o seu entusiasmo pelos defensores do povo. Conhecia Fernando do assalto ao bailiado, e o denodo do jovem fizera com que ele o tivesse na conta de um herói, contra o qual não levantara mão, nem consentira que se levantasse por todo o dinheiro que lhe dessem:

As sugestões e os torneses do capelão de Aires Gonçalves, e mesmo o prazer de fazer arruído não eram as únicas causas que o tinham feito estafar os pulmões; frei Garcia gastara tempo e algumas malgas de vinho para o convencer de que entre os alvazires havia partidários de Castela, que tinham tido o negregado pensamento de se vingarem do povo, por meio da fome, fingindo que serviam ao mestre. Que Fernando pactuasse com traidores não acreditava porém, o velhaco, e por isso repetiu com ar ameaçador, vendo que alguns ânimos ainda se mostravam hostis ao jovem: -- Que ninguém lhe toque num cabelo da cabeça, senão comigo tem de se haver!

-- A traidor, como a traidores! gritou o mesteiral, querendo desembaraçar- se da prisão em que estava:

-- Traidor, quem tomou uma bandeira aos galegos, quem eu vi atirar-se a esses cães como se os virotes fossem palheiras?!

-- Se não é traidor, é por eles, que vale o mesmo. Que tem ele com esse forçureiro de má morte!

-- Que enriqueceu furtando ao peso:

-- E mais sabe Deus se era cabrito ou cão o que dantes vendia!

-- E agora comprou o gado todo, para nos deixar morrer à fome!

-- Mentis! exclamou Fernando, respondendo a estes capítulos de acusação; mentis!

-- Aí o tendes! ponde a mão no fogo por ele! resmungou um dos vadios, dirigindo-se a Pedro Choca:

-- Se tão bom é um como o outro! juntou uma mulher. O rapazelho é filho, ou coisa que o valha do forçureiro:

Pedro Choca coçou a cabeça, e olhou para Fernando com ar indeciso, mas logo formulou este raciocínio: -- O jovem era incapaz de pactuar com os inimigos do Defensor, e protegia Gonçalo Domingues logo a não quadrava também o apelido de traidor:

-- Se é pai do meu homenzinho é outro caso, exclamou em seguida, voltando-se para a multidão. Deve ser dos nossos:

Gonçalo Domingues, vendo que alguém mais de que o sobrinho vinham no seu auxílio, tartamudeou:

-- Domingues Pires ou Afonso Eanes, se aqui estivessem vos diriam!

-- Que resmunga ele?

-- Acoberta-se com o trato que tem com Domingues Pires?

-- Sim, sim; mas também era dos amigos do cão Moisés! Ouviu-se dentre a multidão:

A “arraia miúda”, como se batizara o povo naquela quadra, tresvariada, estreitara o círculo formado à volta do burguês e as suas intenções pareciam ser bem pouco pacíficas, quando Fernando, saltou acima do poial, abandonado pelo companheiro de Pedro Choca. A vis oratória, moléstia que se dá em quadras revoltas como sezões em terrenos alagadiços, acometera também o namorado de Irene. O rapaz empreendia tarefa espinhosa, como os respeitáveis edis o podiam atestar, cometia, pode-se avançar uma loucura; mas é sabido que neste mundo por vezes as loucuras aproveitam mais do que as coisas pensadas. Fernando tivera uma ideia, que vos fará rir talvez leitor, e que podia ter entre os amotinados o mesmo, ou pior acolhimento; porém que foi água em fervura, como diz o povo. Fora uma ideia feliz, uma ideia luminosa a do jovem:

-- Meteram-vos na cabeça que vos queriam matar à fome... porque se embarca a carne na esquadra! exclamou ele; mas não se lembrou ninguém de que todas as tripas cá ficam!

-- É verdade?! acudiu com outros Pedro Choca, que desfazia agora, por causa do seu herói, a obra para que concorrera; é verdade!

-- E depois? interrogou um mesteiral, embasbacado:

-- E depois com tanta tripa, com tantos miúdos de todo esse gado não se morre à fome:

-- E a carne não é coisa que engasgue o povo muita vez ao ano! observou o vadio:

-- Para além disso, prosseguiu o jovem, aos corredores galegos nós os ensinaremos, e haverá aí mantimentos de sobra. Para dez loucos basta um português. A gente que foi a Leça e Santo Tirso está aí, e antes da chegada das galés os do Porto esperaram quietos os do arcebispo, sem que eles se atrevessem a vir ás mãos connosco. Deixai ir as galés..:

-- Quem desiste delas? exclamou um mesteiral, a quem aquelas palavras tinham inflamado o orgulho pátrio. Se os de Lisboa carecem de nós, nós não carecemos deles. Não nos atraiçoem os de casa..:

-- De casa... aqui neste boa cidade não há traidores, atalhou o namorado de Irene; aqui, ninguém põe o seu braço em almoeda: as lanças e ascumas dos soldados não têm preço!

-- Como certas espadas:

O jovem apesar das interrupções, de aprovação agora, não se calou:

Surpreendendo, como vimos, os amotinados com a primeira lembrança que tivera, lançando por instinto mão dos argumentos melhores em tais circunstâncias, prosseguiu apelando para a honra do povo, apelando com a convicção de ser atendido, e o rumor levantado pouco a pouco em torno de si provar-lhe-ia, se a isso desse atenção, se ele mesmo não se entusiasmasse com as suas palavras, que senão havia enganado. Quando terminou o descontentamento do povo, estava convertido em abnegação cívica, em entusiasmo patriótico. O povo tem, como o oceano, destas mudanças repentinas. Pedro Choca, cuja bossa decididamente era a de vivório, encarregou-se de dar expansão aos sentimentos que o agitavam:

-- Viva Fernando Vaz! que... gritou ele; mas não pôde prosseguir, porque o distraiu e engasgou uma pancada num ombro e uma voz zombeteira, que lhe dizia ao ouvido:

-- Assim é que a sua mercê trabalha nas tercenas?

O impulso estava porém dado, e Choca, desaparecendo, pois bem reconhecera pela amabilidade da pancada e da voz a presença do pai dos velhacos, deixava de novo o rico forçureiro em suores nos apertos da ovação do sobrinho. O nome de Fernando Vasques era bastante popular desde o recontro de Leça... pelo que demonstravam os sucessos, mais do que a pessoa:

Quando Pedro se eclipsava com os seus companheiros, os acontiados do município, há pouco apupados, arrebanhavam sem a menor oposição o gado que se espalhara pelos campos das azenhas. Os planos de Aires Gonçalves goravam completamente, graças sobretudo ao namorado de Irene. O rapaz, tivera, repetimos, uma ideia feliz, e soubera tocar no fraco dos amotinados melhor do que os alvazires, que no convento ainda discutiam, embaraçados, a maneira de darem conta da sua missão. Falho o expediente do alcaide de Gaia, as indecisões dos seus nobres companheiros tinham de ser cortadas pela emulação dos caudilhos:

Os portuenses davam o primeiro passo para obterem em crisma uma alcunha que tinha de durar seculos; mas a honra da cidade estava salva. O pai dos velhacos capitaneava os vadios, que, juntos com os besteiros, levavam o gado ás tercenas, e os mesteirais, que momentos antes tão descontentes se mostravam acompanhavam-nos, berrando:

-- Viva o Mestre de Avis! Viva o povo do Porto!

FIM

Forçureiro, era o nome dado ao homem cuja profissão era lidar com as peles dos animais. O seu trabalho consistia em “limpar” os animais mortos, retirando-lhes as tripas e os restantes órgãos (que iam para o lixo), separar a pele da carne (que era vendida ao talhante) e tratar do couro e dos pêlos para depois serem vendidos aos confecionadores de roupas.

miúdos: designação dos órgãos internos dos animais.