A ERMIDA
DE
CASTROMINO
ROMANCE
POR
A. A. TEIXEIRA DE VASCONCELLOS
Socio effectivo da Academia Real das Sciencias de Lisboa
2.a EDIÇÃO
Com o retrato do auctor e revista por elle
LISBOA
TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA
Rua da Paz, 7
1875
Ao insigne poeta e esmerado prosador Visconde de Castilho
Incomparável tradutor de Ovídio e Virgílio
Em testemunho da veneração e respeito devidos às suas incessantes fadigas litterarias, á inquebrantavel assiduidade com que promoveu sempre o melhoramento do ensino popular, e ao desvellado carinho e leal amizade com que distingue e favorece os homens estudiosos e honrados, offerece O seu maior devedor, amigo e criado, A. A. Teixeira de Vasconcellos.
Foi principiado este romance em Pariz, na rua de Moscow n.o 11, a 2 de julho de 1861, publicado logo na Revista Contemporânea até á pagina 242, que era a 159 da 1.a edição, e depois reproduzido na Gazeta de Portugal em que não chegou a sair completo.
Não pôde o auctor concluil-o senão a 17 de novembro de 1870 em Lisboa, na travessa da Queimada n.o 35, e n'esse anno foi posto em livro.
Esgotou-se a 1.a edição em menos de três mezes por grande favor do público, e fraternal benevolência da imprensa. E porque já não havia desde muito tempo exemplares á venda nas lojas de livros, se fez agora na typographia do Jornal da Noite esta 2.a edição no formato de outros livros do mesmo auctor, em papel excellente, e com typos inteiramente novos, formando avultado volume de mais de 450 paginas, novamente revisto e correcto.
Tu só, tu puro amor, com força crua Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa á molesta morte sua Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tyranno, Tuas aras banhar em sangue humano.
Luziadas. C. III. Est. CXIX.
Em píncaro dos mais elevados, na cordilheira que os antigos denominavam Montes Hermínios e que nós hoje intitulamos Serra da Estreita, divisava-se, haverá talvez vinte annos, uma pequena capella. O povo de Valezim que ficava próximo na raiz da montanha, chamava-lhe mui naturalmente a Ermida da Serra.
Alguns homens discretos, moradores de S. Romão e de Longa e entendidos em tradicções históricas, sustentavam que se devia dizer Ermida de Castromino. Segundo a opinião d'estes doutos archeologos, Castromino era derivação e corruptela da expressão romana Castram Herminii, e affirmavam que tal fora sempre o nome do pico alcantilado em cujo cimo surgira inesperadamente a ermida.
Consinta o leitor que para não desprazer aos sábios, nem desgostar o povo que tantas vezes sabe mais e diz melhor do que elles na candura e singeleza da expressão, eu use, ora duma, ora d'outra, d'estas duas denominações.
A posição era altíssima. A subida em extremo dificultosa. Principiava o caminho no oiteiro que se encostava ao píncaro a meia altura pelo lado do oriente, e seguia em forma de espiral á volta da immensa pyramide truncada que as revoluções physicas do globo haviam erigido ali. Parecia ter sido cortado na rocha com intento de vedar passagem aos que não fossem práticos d'aquella senda estreitíssima.
O atalho a que a profundidade medonha do abysmo accrescentava a cada passo novos perigos, ia-se apertando de modo que em alguns sítios mal se encontrava onde poisar o pé, e em outros era mister subir a pique, meio metro ou mais, para achar a continuação da estrada que levava ao cume da montanha, e que em outros tempos fora mais larga e segura.
Quem tinha ânimo de emprehender ascenção tão arriscada, e a intrepidez de a levar ao cabo, avistava para o poente horisonte vasto e formosíssimo, e no alto do pico podia sentar-se nos restos de um derrocado castro romano, que ainda resistiam á invencivel força do tempo. Depois é que das pedras, talvez affeiçoadas pela mão do povo-rei, veiu a edificar-se a capellinha.
Para descanço e conforto dos peregrinos havia, desde a base até ao cimo do píncaro, dois ou três logares nos quaes a vereda alargava, espraiando-se em terrados não mui espaçosos mas sufficientes para repoiso de três ou quatro pessoas. Ali desapparecia o resto do caminho, e só alguns pastores sabiam descobrir-lhe a continuação por entre as asperezas irregulares do granito e as urzes que brotavam das fendas.
Corriam annos e annos sem que assomasse viandante na cumiada d'aquelles escabrosos precipícios em que a Serra da Estrella se despenha para o occidente, e dos forasteiros que passavam em alguma das quatro villas de Valezim, Arouca da Serra, Loriga e S. Romão, poucos -- raríssimos -- se deliberavam a investir com subida tão agreste.
Em 1860 já a ermida era, como fora o castro romano, inteiro montão de ruínas. Houvera ali um eremita que por suas mãos construirá o pequeno templo, e abrira diante da porta três sepulturas. Sobre duas assentara desde logo campas arrancadas aos muros da fortaleza, e compostas de pedras rijamente ligadas com cimento. Na pedra mais apparente de uma das sepulturas mão esmerada lavrara o nome de ANNA. No outro tumulo lia-se o nome de SALVADOR.
A terceira cova não tinha campa. Ainda não chegara o hóspede que havia dormir n'ella o somno eterno. O ermitão conservava-a sempre limpa; despejava a agua da chuva ou da neve que a enchia ás vezes, e em tudo a cuidava como se fora guarida destinada ao derradeiro agasalho de leal amigo.
No princípio descia ao povoado a comprar provimentos e a procurar os utensis que lhe eram necessários, os quaes nem sempre se encontravam em paragem tão desviada. Ia a miúdo conferenciar com o parocho da freguezia, e era voz que ali escrevia algumas cartas. Afinal o vigário mandava-lhe sem falta, de dois em dois dias, o sustento.
O creado do vigário aproximava-se á base da montanha pelo lado que a natureza talhara perpendicularmente, e punha o mantimento no cesto que o ermitão guindava vagarosamente para o espigão do píncaro. Desde então nunca mais desceu a Valezim, nem á residência parochial. Era homem ainda moço, de estatura meã, e de tez morena e descorada. A barba e os cabellos negros para logo alvejaram como as pontas d'aquellas serranias. Nos primeiros dias da sua apparição em Valezim notou-se que trajava á feição da gente da cidade, porém na próxima semana já vestia de burel ao uso da serra, e depois nunca mudou de trajo. Em quanto viveu em Castromino não adoptou hábito ecclesiástico.
Os pastores queriam-lhe muito. Ensinava-lhes a tratarem-se em caso de enfermidade, e frequentemente lhes indicava como acudissem ao gado doente. Eram receitas de execução fácil, de custo módico, e de effeito quasi sempre excellente. O povo dizia que o homem da ermida era santo, e tinha as curas por milagrosas.
Foi-se a fama espalhando pela serra, e quando elle descia de Castromino, já o estavam esperando os seus amigos para lhe pedirem o remédio dos achaques d'elles ou do gado. Escutava-os o ermitão com carinhosa benevolência, e parecia alegrar-se de ver aquella gente rústica que sinceramente o amava. Depois deixou de vir ao povoado, os pastores cançados de olhar saudosamente para o trilho por onde o viam d'antes baixar, iam ter com o vigário. Este mandava com os provimentos um bilhete, e recebia a resposta immediatamente. Qaando o cesto descia, vinha n'lle a receita pedida pelo párocho, e os pastores bemdiziam o ermitão da serra.
Um dia chegou o criado do vigário e viu o cesto no chão, e a corda também. Perto estava um papel que o vento levara para junto do penedo mais visinho. O criado deixou os mantimentos confiados á guarda dos pastores, e correu á residência a entregar ao amo o bilhete do eremita.
No papel estavam escriptas a lápis as seguintes palavras em letra que custava a ler:
« Sinto próximo o fim da vida, meu bom amigo. Nao « sei se terei forças para chegar até amanhã. O meu « testamento está sobre o altar. Rogue a Deus pelo descanso da minha alma.
Henrique, »
O sacerdote, apesar da idade avançada e d' estação invernosa, veiu logo ao sítio, e offereceu boa recompensa a quem subisse ao elevado pico de Castromino a saber do ermitão.
-- Qual recompensa, senhor vigário, responderam os pastores. Se o santinho está enfermo, vae-se lá já. Aqui está o João que é lesto e sabe o caminho.
-- Prompto, acudiu o João rompendo por entre os companheiros. Encommende-me a Deus, senhor vigário. Com a neve que ainda ha, ninguém sabe o que póde succeder.
-- Vae, meu filho, replicou o padre. A confiança em Deus ha de levar-te e trazer-te a salvamento. Se encontrares vivo o ermitão, deita uma pedra lá de cima. Se estiver morto, deita duas.
-- Morto? Pois ha de estar morto aquelle santo homem que tão nosso amigo foi sempre! clamaram os pastores todos.
-- E porque não, meus filhos? A todos nós chega a hora derradeira. Olha, João; se por desgraça estiver morto, pega no corpo e mette-o na cova aberta, cobre-o com a terra que está ao lado, até que a sepultura fique cheia, e põe-lhe em cima a campa que has de encontrar encostada á parede da capella, e que é egual ás dos outros dois túmulos.
-- Eu tenho fé que não ha de ser necessário.
-- Oxalá! Não deixes os papéis que vires em cima do altar. Na ermida ha cordas. Larga uma para este lado, NóS lhe ataremos o cesto, e n'elle mandarás os papeis. É melhor descer com as mãos livres.
-- Sim senhor, senhor vigário, mas eu não tenho medo de descer ainda que viesse carregado. O peor é a neve, porém cá levo a minha foice para abrir caminho. O carreiro não é tão mau como isso, e ainda não aconteceu desgraça. E mais não sou eu só que lá tenho ido.
-- Enganas-te meu João. Já n'esse mesmo píncaro houve um grande desastre.
-- Isso foi ha muitos annos, senhor vigário. Encommende-me a Deus.
Estas últimas palavras do pastor já foram pronunciadas ao entrar animosamente na vereda tortuosa do pico de Castromino.
Grande foi a angústia em que ficaram os pastores e o vigário. Seguiram com os olhos a perigosa ascenção do animoso mancebo, e viram-n'o apparecer por differentes vezes e esconder-se de novo na espira da vereda até chegar ao alto da montanha. Finalmente caiu uma pedra rolando até á base do pico. A ancia dos amigos do ermitão redobrou. A segunda pedra veio após a primeira.
-- Oremos ao Senhor pelo descanso eterno d'aquelle nosso irmão, exclamou o vigário caindo de joelhos. Os pastores prostaram-se por terra a respeitosa distância do parocho, e resaram, pela alma do seu querido ermitão a segunda parte da oração dominical, em resposta à primeira que o velho padre recitara.
O vigário ainda permaneceu ajoelhado. Quem escutasse o que balbuciavam os beiços d'elle, ouviria versículos daquella sublime e sentida súpplica do psalmista, com que a Igreja pede ao Eterno que na hora extrema se compadeça de nós pela sua grande misericórdia, e que pela grandeza das suas commiserações perdoe as nossas iniquidades, e nos purifique. Os pastores repetiam em voz baixa, e trémula de sincero pranto, o Padre Nosso pela alma do fallecido.
A corda baixando de Castromino interrompeu a reza. Os pastores ataram-a nas azas do cesto, o qual depois de breve espaço baixou, trazendo dentro um maço lacrado com sobrescripto ao vigário. Duas horas depois chegou o João.
Tinha encontrado o eremita ajoelhado contra o parapeito por onde costumava receber os mantimentos, os braços sobre a pedra, a cabeça reclinada em um d'elles, e a phisionomía tão composta como se estivera dormindo. O corpo frio e hirto. O pastor quiz endireital-o, mas apesar de robusto não o conseguiu ou lhe impediu o respeito empregar maior esforço. Teve de sepultal-o assim na cova designada pelo vigário. O ermitão, depois que se affastára inteiramente do trato com os homens, fora perdendo insensivelmente as forças até chegar ao último grau de extenuação e de magreza, a que a phtysica pulmonar reduz as suas victimas. Dava ao parocho informações amiudadas e exactas acerca do estado da sua saúde, e instruído como parecia ser nas sciencias medicas, não se esquecia de indicar a probabilidade de que em breve lhe chegasse o termo das penas d'esta vida.
O João trouxe de Castromino o lenço que o ermitão apertava na mão direita, no qual havia laivos de sangue. O pastor pediu ao vigário que lh'o deixasse rasgar e repartir os pedaços entre os homens da serra.
-- É relíquia de santo, diziam elles.
-- Não, meus filhos, não é reliquia de santo. Só Deus sabe quem são os santos.
-- Pois se este não era santo, também...
-- Parece-me que era bom christão, interrompeu o vigário derramando lagrimas. Repartam o lenço, meus filhos, não para relíquia mas em lembrança do amigo, e façam por serem honrados e caritativos como elle era. Deus o tenha á sua vista.
-- Amen, responderam os pastores rasgando o lenço e beijando devotamente os pedaços!
No outro dia e ainda no seguinte celebrou o vigário missa de requiem pela alma do ermitão. No terceiro houve offício ao qual concorreram os padres todos daquella redondeza. Depois do funeral do capitão do Arnedo, que fora o mais rico proprietário da serra, ainda se nao vira tão numeroso ajuntamento. Os convites tinham sido assignados pelo vigário, e supplicavam a assistência aos ofícios fúnebres pela alma do eremita de Castromino sem declaração do nome do fallecido.
Isto deu que fallar. Os padres antes da ceremonia religiosa reuniram-se em grupos no adro da egreja á porta da sachristia. Cada qual tinha curiosidade de saber o nome do ermitâo. Diziam uns que fora egresso, e que por affeiçoado á vida monástica se refugiara naquelle ermo. Outros affirmavam que era homem perseguido de morte pelos facinorosos da Beira. Alguém suspeitava que fosse criminoso arrependido. E a todos parecia na verdade muito censurável, que o vigário, sabendo de certo o segredo, nem depois da morte do eremita o quizesse revelar, sequer aos ecclesiásticos convidados para o offício !
-- É que lhe foi dito na confissão, replicou o vigário da vara, pessoa sizuda e amigo do parocho.
-- Isso talvez, respondeu um dos padres. Mas sempre tenho por extraordinário que vivesse tantos annos no pico de Castromino sem vir a saber-se quem era !
-- Eu encontrei-o uma vez, volveu o vigário da vara. Foi logo ao principio quando andava a construir a ermida, e conversei com elle. Tinha boas fallas, aspecto sério, modos cortezes, e parecia homem de educação. Depois não o tornei a ver.
A curiosidade dos padres subiu de ponto quando viram chegar Ayres de Mendonça e Albuquerque, vulgarmente chamado o Fidalgo do Serrado, com seu filho mais velho, ambos a cavallo, e acompanhados de dois criados de farda. Todos quatro traziam fumos nos chapeos. Era Ayres de Mendonça homem muito estimado na provincia da Beira, e pessoa de grande respeito por qualidade, riqueza e procedimento.
Desde que fizera cincoenta annos, não tornou mais a enterros. Mandava sempre o filho, e nem a morte do capitão do Arnedo, que fôra official do regimento de milícias de que Ayres de Mendonça tinha sido coronel, o obrigou a sair de casa. Para vir da quinta do Serrado ali -- três boas legoas de caminho de serra e ainda na estação fria -- grande pessoa era o defuncto, diziam os padres, e de certo parente dos fidalgos ! Elles trazem fumos novos nos chapeos !
Apeou-se Ayres de Mendonça á porta da residência onde rematava o muro do adro pelo lado da sachristia, deixou os cavallos aos lacaios, e atravessando com pé firme a grade que impedia a entrada de animaes damninhos n'aquelle recinto, aproximou-se dos padres. O vigário da vara e os sacerdotes mais conspícuos deram alguns passos para sair-lhe ao encontro.
-- V. ex.a por aqui, sr. Ayres de Mendonça! Caso raro! Grande novidade!
-- Verdade é que a poucos enterros vou. Agora a nenhum. Estou velho e achacado, e já me custa bastante andar quatro ou cinco horas a cavallo. Mas este eremita era tão nomeado pelas suas virtudes, caridade e modéstia, que me resolvi a assistir-lhe ao funeral. Bastava ser convite do nosso honrado vigário e o defuncto amigo d'elle ha muitos annos.
-- Então V. ex.a não conhecia o ermitão?
-- Nunca o encontrei na serra.
Com esta resposta tiveram de callar-se os padres, e em seguida começou o ofício. No fim da solemnidade fúnebre foi Ayres de Mendonça descansar para casa do parocho em companhia de vários ecclesiasticos que acceitaram sóbria collação na residência. Quando se retiraram, disse Ayres de Mendonça para o vigário :
-- Pobre Henrique! Que vida! Que martyrio!
-- É verdade, sr. Ayres de Mendonça. Se teve culpas, por largo espaço e duramente as expiou.
-- Culpas, coitado! Quaes podiam ser as culpas do meu bom Henrique, o homem mais honrado, e de coração mais nobre e leal que eu conheci n'este mundo? Já escreveu ao sobrinho?
-- Logo no mesmo dia. Amanhã chega aqui. O testamento ha de ser aberto na sua presença.
-- Ah! Tinha feito testamento?
-- Ha muito tempo, respondeu o parocho. Poucos mezes depois de se acolher ao ermo de Castromino, foi uma vez a casa do tabellião de Valezim e veiu de lá com testamento feito.
-- Muito infeliz, exclamou Ayres de Mendonça limpando as lágrimas. Bem sabe quanto eu lhe queria. Além do parentesco próximo que ligava as nossas famílias, fomos sempre amigos desde o seminário em que nos educámos ambos, e sempre estivemos em correspondência até ao triste acontecimento que o affastou para tão longe. Conservo a carta que elle me escreveu então a contar-me tudo...! Não a posso ler sem chorar! Bem desditoso foi!
-- Agora, volveu o vigário não menos commovido, está onde acabam todos os padecimentos d'este mundo. Deus ha de ter misericórdia da sua alma.
Ayres de Mendonça despediu-se tristemente do parocho, e voltou com o filho para a quinta do Serrado. O vigário foi ajudar a dispor o aposento na sua modesta casa para o hospede que esperava.
Com effeito no dia immediato pela tarde chegou á residência um cavalheiro moço com dois criados a cavallo, vários homens a pé, e uma espécie de liteira a que chamam andas. Na manhã seguinte abriu-se o testamento, no qual o ermitão nomeava herdeiro universal a seu sobrinho, de cujo bom coração e sentimentos briosos fiava quanto dizia respeito á sua pessoa e ás que mais prezara n'este mundo, em conformidade com a carta fechada que estava no testamento. Pediu-lhe que em tudo ouvisse o vigário da freguezia, a quem legava a Bíblia do seu uso particular, encontrada sobre o altar com os papeis. Aos pastores mais desvalidos da serra deixava em legado perpétuo para cada anno um conto de réis cujo capital o herdeiro devia collocar segundo lhe parecesse melhor. A distribuição pertenceria ao parocho, então e para todo o sempre.
Nesse mesmo dia o recem-chegado e o vigário foram com os criados ao sopé do pico de Gastromino. Encontraram lá os pastores e entre elles João, o que enterrara o eremita e repartira o lenço para relíquia. Quando souberam quem era o mancebo que acompanhava o parocho, cada pastor começou a narrar os favores que recebera do tio, e os remédios e as receitas que a todos ensinara, e o amor e carinho que a lhes tinha, como se na serra fora nascido e creado.
Mal sabiam elles que se tratava de levar d'ali o corpo do santo eremita. Afinal foi necessário dizer-lhes a verdade. Pois apesar do respeito que tributavam ao vigário, não quizeram estar por isso. Homens e mulheres, velhos e creanças, gritavam que lhes queriam tirar o corpo do santo, o qual viria a ser o patrono da serra e do valle, para o levarem para a cidade onde não faltavam santos nos altares. Que se elle houvesse querido ser enterrado n'outra parte, não teria aberto por suas próprias mãos a sepultura no pico de Castromino. E que ninguém havia de subir lá acima para tirar o corpo do santo.
Estas allegações dos pastores não eram submissas, antes manifestavam firmeza de resolução e vigor inabalável para impedir a ascenção da montanha. Ao ouvir os gritos coléricos d'aquella boa gente, o parocho olhava para o mancebo como quem esperava d'elle a decisão, porém os pastores cada vez vociferavam tumultuosamente com maior audácia.
-- Ó sr. vigário, dizia o João que, por ter prestado os derradeiros offícios ao cadáver do ermitão, já adquirira certa auctoridade entre os pastores, pois vossa mercê deixa ir d'ali os ossos do seu amigo?
-- Eu queria-os antes no cemitério da nossa freguezia. Desejava, como vós outros, que ficassem na serra mas enterrados em sagrado, respondeu o vigário no intuito de enfraquecer a fúria popular.
-- Pois lá em cima também é sagrado. Lá está a capella, e é bastante. Nada. O corpo do santo não sae dali, exclamou o João.
-- Isso não sae, gritaram os pastores todos. Ó sr. vigário, pelo amor de Deusl
-- Eu não governo n'estas coisas meus filhos. Aqui está o sobrinho do ermitão. Elle é quem manda.
-- Mande quanto quizer, mas não venha tirar-nos o nosso santo. Ali ninguém bole, gritou o João acompanhado pelas vozes estridentes dos mais conspícuos ou atrevidos do bando. Nós vamos quebrar todos os degraus e todas as pedras do caminho, e depois vá lá alguém, se fôr capaz !
A manifestação popular tão pronunciada e enérgica fòra desacerto e crueza resistir. O sobrinho estava commovido de ver quanto a seu tio queriam aquelles pastores singelos. O vigário aconselhava-lhe em voz baixa que cedesse. Deixar os restos mortaes do tio, entregues á guarda affectuosa dos serranos, era boa acção, digna da venerável memória do defuncto, e dos sentimentos nobres do herdeiro. Por fim o sobrinho cedeu ás reflexões do parocho, e este disse aos pastores :
-- Ora bem, meus queridos filhos. O corpo do ermitão ahi fica para sempre, no pico de Castromino. Cada um de vós lhe encommendará a alma a Deus nas suas orações.
-- Viva o sr. vigário que não deixa levar da serra o nosso santinho! Viva! gritaram todos os pastores. O João voltando-se para o sobrinho accrescentou : Vá descançado que ninguém sobre mais á ermida até ao dia de juizo.
E logo os pastores quebraram as pedras que abriam passagem para o cimo do píncaro, e ninguém lá pode subir depois. A ermida desamparada foi caindo com o tempo, e já mal se divisam hoje as ruínas que se confundem com as do crasto romano.
Quando ha doenças no valle, acodem os enfermos á montanha, e fazem ali oração. Crêem que por intercessão do santo da ermida, como elles lhe chamam, sentirão allívio nas suas enfermidades. Também levam o gado doente a pastar a relva que nasce no oiteiro mais acercado do píncaro, e dizem que é medicinal por influição do santo.
Quem era o virtuoso eremita, e como resolvera acoutar-se n'aquella paragem agreste e alcantilada, ninguém hoje o sabe na terra. Os pastores dizem ter ouvido aos paes que era um santo. A gente mais culta que é pouca e espalhada pelas villas e logares, vive affastada da serra e esquecida ou ignorante d'estes successos.
O vigário falleceu três annos depois da morte do ermitão. Ayres de Mendonça também já não é vivo. Ambos teriam levado para a sepultura o segredo, se a carta de Henrique ao fidalgo do Serrado não tivesse apparecido entre os papéis de Ayres de Mendonça, assim como a correspondência desde o seminário, em que se criaram, até á fundação da ermida.
N'estes documentos originaes foi colhida a história que vae ler-se.
Era Manuel de Oliveira dos mais abastados negociantes de Coimbra e do reino. Consistia o seu tráfego na exportaçSo de vinhos da Beira e da Bairrada, de azeite e de laranja ; porém a importância dos capitaes reunidos na mão d'elle era tal, que não havia empreza avultada em Lisboa ou nas províncias, para a qual o não convidassem.
A casa de Oliveira e C.a começara modestamente na villa da Figueira. Com o tempo o desenvolvimento das transacções mercantis exigiu que o chefe de tão complicadas negociações escolhesse a cidade de Coimbra para residência pessoal, e que estabelecesse agências especiaes nos portos de mar, e em differentes sítios das províncias.
Da casa de Coimbra, dirigida sempre por Manuel de Oliveira, partia o impulso a que obedeciam as outras. A centralisação, de cuja utilidade tanto duvidam hoje os políticos nos assumptos de administração pública, era para o commerciante coimbrão de vantagem incontestável na direcção dos negócios mercantis. Tão certo é que por mui differentes princípios se governam os Estados e se administram os bens dos particulares, e que nem sempre sabe dirigir os negócios da republica o homem que discretamente provê os próprios!
Tinha immenso crédito a firma Oliveira e C.a. As lettras da sua casa corriam por oiro no reino inteiro, e valiam em Inglaterra, em Allemanha e na America, como as libras esterlinas, os marcos de banco, e os dollars cuja somma a penna traçara no papel. Não havia em Portugal memória de negociante que tivesse chegado, como Manuel de Oliveira, a tão inalterável reputação no velho, e novo mundo.
Chamavam-lhe o Quintella de Coimbra. Nas terras estrangeiras appelidavam-o O Rothschild Portuguez. Avultava grande riqueza na importância e numero das transacções que intentava e proseguia, e igualmente no fausto de casa e nas magníficas funcções que dava todos os annos desde que sua filha D. Anna recolhera do convento de Pereira, onde fôra receber os derradeiros elementos da educação superior.
A cidade de Coimbra nomeára-o por differentes vezes presidente da camará municipal. Em duas legislaturas mandára-o a cortes para defender os interesses da terra e a pugnar pela conversação da universidade. Dizia-se então que o governo tencionava dissolver a célebre academia portugueza, transferindo algumas faculdades para Lisboa, e outras para o Porto, boato que trazia assustados e receiosos os habitantes de batina de lila, e os que vestiam sobrecasaca ou jaqueta. O cargo de provedor da Misericórdia andava por consenso unânime na pessoa do honrado negociante desde tempos mui afestados.
Manuel de Oliveira não gostava da vida pública. A sua paixão fora sempre o commercio em que se creára. Tinha outra. Era o amor á única filha que lhe ficara por morte de sua mulher. Deixar a D. Anna a máxima riqueza possivel, e còllocal-a em situação izenta de qualquer eventualidade perigosa, era a principal ambição do velho commerciante.
Os cargos públicos desviavam-o dos seus intuitos, e tiravam-lhe o tempo. Nas cortes, onde se mostrara orador fácil, claro e dotado de grande juízo prático, tinha tratado com esmero e conhecimento de causa as questões económicas e financeiras, e o nome delle fora desde logo inscripto na lista pouco numerosa dos homens aptos para serem ministros da fazenda; porém Manuel de Oliveira não podia acostumar-se ao andamento vagaroso das discussões, nem assistir com paciência ao espectáculo das tramas astuciosas com que os partidos conseguem accelerar ou adiar a resolução das questões, segundo as próprias conveniências e muitas vezes sem attenção ás dos povos.
Cansado das lutas partidárias, de que todavia só fora testemunha, renunciou todos os cargos no reino e na cidade. Conservou, porém, a instâncias dos mesários a provedoria da Misericórdia, cujos valores, muitos annos havia, se guardavam nos cofres da casa Oliveira e C.a por deliberação especial da mesa a requerimento do thesoureiro.
A responsabilidade do depósito e guarda do cofre da Misericórdia, amedrontava os thesoureiros. Não havia quem tal encargo acceitasse. O último nomeado declarou que o não recusaria, se Manuel de Oliveira quizesse incumbir-se de conservar em seu poder os valores e de mandar fazer a escripturação. A confiança que todos tinham na casa de Oliveira e C.a, era igual á que merecem os bancos acreditados. Assim se fez. O sr. Oliveira cedeu aos rogos da mesa; o thesoureiro ficou sendo nominal; e o exercício d'este cargo veiu de facto a juntar-se com o de provedor, como o de ministro das obras públicas já andou reunido ao de ministro da fazenda com acalorado despeito da opposição, e ainda maís afogueada teima dos ministeriaes.
O Quintella de Coimbra orçava pelos sessenta annos. Era de estatura pequena que a obesidade adquirida na vida sedentária fazia parecer menos elevada. As feições, regulares e finas. Os olhos, pequenos e vivos. Os cabellos que lhe cercavam a calva, inteiramente brancos. O aspecto, bondoso e paternal. O porte, grave sem affectação nem severidade.
D. Anna ainda não completara vinte annos. Era menina de compleição débil, mas com certa firmeza no olhar e em toda a physionomia que revelava immensa força nervosa, vontade inabalável, e grande superioridade moral. Tinha branquíssima a tez, e os cabellos loiros como os de sua mãe, respeitável senhora, filha de um antigo negociante inglez, vindo para a Figueira, e que nunca mais quiz voltar á Grã Bretanha.
Também de ingleza era o que mostrava. O oval do rosto, o ar do corpo, a flexibilidade dos movimentos, a indolência natural da postura, eram portuguesas de lei. Nos olhos que o antagonismo das duas raças fizera verde-negros e rasgados, transluzia a procedência árabe a que ninguém escapa na península.
A senhora de Stonehouse, que assim se chamava do nome paterno a mulher de Manuel de Oliveira, começara a educação da filha com summo cuidado, e consagrara a tão nobre empenho a vida inteira. Recebeu D. Anna as primeiras noções do saber humano sob as vistas e direcção da mãe, que mesmo na quadra dos estudos secundários tomara a seu cargo ensinar-lhe o latim, o inglez e o allemão.
A filha de Manuel de Oliveira amava o estudo. A curiosidade do espírito juvenil augmentava com o allimento que lhe davam os professores, porém o gosto da cultura intellectual não prejudicava a applicação aos encargos domésticos, próprios do seu sexo. A senhora Stonehouse queria que a filha fosse instruída e bem educada, porém que ficasse mulher. Rapariga masculina, dizia ella, nunca pôde ser boa mãe de familia, e ha de querer ter marido de carácter feminino !
Para evitar este escolho das educações mal dirigidas, a mulher de Manoel de Oliveira esmerou-se em convencer a filha de que o cumprimento dos nossos deveres é a primeira obrigação da vida, máxima em que se basea o ensino moral em Inglaterra. N'este ponto a educação de D. Anna foi inteiramente ingleza.
A senhora Stonehouse morreu de cholera, deixando a querida filha já cerca dos dezesete annos. Partiu d'este mundo a virtuosa mulher de Manuel de Oliveira com a esperança consoladora de que D. Anna seria filha submissa, esposa desvelada, mãe de família exemplar e carinhosa, e em tudo digna do affecto e das bênçãos de seos paes. Pouco tempo depois foi a menina para o convento de Pereira, cuja fama em matéria de criação feminina era mui antiga em Portugal, e anterior ás experiências de irmãs da caridade estrangeiras ou nacionaes. Ali esteve um anno, findo o qual, veiu viver para Coimbra em companhia do pae.
Desde que D. Anna chegou do convento não cessaram as festas em casa. Foram primorosos os bailes do inverno. Os jantares patentearam a rara habilidade do cosinheiro italiano, que Manuel de Oliveira mandara vir de Milão. O velho exportador de vinhos gostava de ter cheias de gente as salas da sua casa, cuja riqueza não era desprovida de gosto, antes rivalisavam com as melhores da corte no custo dos moveis e ornatos, e no acerto da disposição.
A casa de Manuel de Oliveira concorriam as famílias principaes da cidade, os lentes de maior consideração, os estudantes mais distinctos, e já se sabe, todas as auctoridades civis, militares e ecclesiasticas. Não vinha cavalheiro a Coimbra que o não fosse procurar, ou porque já o conhecia, ou porque trazia carta de recommendação para elle. D. Anna ajudada por uma tia idosa, que ora fazia de dona de honor, ora parecia querer exercer as funcções de mãe, acolhia a todos com graça e agrado natural, e encantava quantos iam a sua casa.
As senhoras mais severas admiravam-lhe a gravidade do porte. Os professores não se cansavam á busca de assumpto para conversarem com elia, porque em todos a encontravam sufficientemente instruída sem affectação nem vaidade. Os ecclesiásticos notavam a exactidão com que se desempenhava dos deveres religiosos, e a sua affectuosa caridade em soccorrer os pobres. E todos eram testemunhas do carinho filial com que adoçava as magoas da viuvez paterna.
Na cidade, e nos arredores não se fallava em outra cousa, e já cada um andava a querer descobrir quem viria a casar com tão portentosa menina. Belleza, graça, instrucção, bom caracter, innocência e grande riqueza, raras vezes se reúnem como em D. Anna se juntavam. Os pertendentes de intenção eram numerosos. Alguns que não ousavam pôr os olhos tão alto, diziam que o pae a destinava a certo conde de Lisboa, de cujas commendas elle fora arrendatário, quando havia commendas para arrendar, e fidalgos que consumissem os dízimos de Siam nos tripúdios de Babylonia.
Em quanto o pensamento inquieto dos ociosos de Coimbra lhe andava buscando noivo de uma a outra extremidade do reino, D. Anna vivia no lar paterno, mui affastada de taes intentos em que Manuel de Oliveira ainda não pensara maduramente. Saía de manha a cavallo acompanhada por dois creados, e ás vezes por alguma das pessoas que frequentavam com maior intimidade as reuniões da família. Recolhia para almoçar. Depois tocava piano ou harpa, bordava ou lia, e á noite vinha da sala do jantar pelo braço do pae para a sala chamada das visitas, onde quasi sempre já estavam os parceiros do whist de Manuel de Oliveira, e alguns rapazes e pessoas da terra.
Eram únicos em Coimbra estes serões de conversação prazenteira e innocente. Outras famílias convidavam para casa em certos dias do anno os amigos e visitas, mas nenhuma abria as portas das suas salas quotidiamente para reunir as pessoas conhecidas em companhia amigável, e sem cerimónia. A indifferença política de Manoel de Oliveira mantinha ali campo neutro onde se encontravam sem repugnância nem rancor os indivíduos mais desavindos entre si. As qualidades de D. Anna attraíam muitos. O ar alegre d'aquellas reuniões convidava grande número. O costume determinava alguns, e obrigava os restantes a auctoridade incontestável do honrado negociante.
Ainda se recordam com saudade da casa de Manuel de Oliveira as pessoas d'esse tempo ; nem passam no sitio d'ella sem lamentarem que tão cedo se desmoronassem aquellas salas, onde o bom velho ralhava com o parceiro por não lhe vir ao naipe que elle jogara, e em que D. Anna e a própria tia, apesar dos esgares de velha e do azedume de solteirona involuntária, a todos manifestavam sincero affecto, despedindo-os contentes de si próprios e de quem os recebera.
Ver como aquella familia se queria mutuamente, e como de tão íntimo affecto se derivavam sentimentos de benevolência para com todos, era exemplo e prazer para quantos se reuniam nos serões de Manuel de Oliveira. O velho commercíante observava da mesa do whisth com júbilo orgulhoso a roda de pessoas escolhidas que se deleitavam conversando com a filha. D. Anna attribuindo aquella concorrência numerosa á geral homenagem ás virtudes do pae, reforçava o amor filial com sentimentos de respeito e de admiração. N'esta inquebrantada satisfação doméstica até a própria velha esquecia as tristezas do celibato, e folgava com a ventura da sobrinha e com o justificado orgulho do irmão.
A pessoa que frequentava com maior intimidade a casa do respeitável negociante coimbrão, era Henrique de Mello, filho único do mais antigo fidalgo de Coimbra, e parente mui próximo dos Osórios, dos Abreus, dos Coutinhos, dos Britos, e da nobreza toda da cidade.
Ninguém estranhava a assiduidade das suas visitas. Estavam no costume de o verem entrar ali como se fosse da família Oliveira.
Não proviera de união abençoada pela igreja o nascimento de Henrique. Seu pae, freire da ordem de Aviz, succedera na casa por morte de dois irmãos mais velhos. Era antigamente usual nas famílias nobres da província deixarem dois filhos para assegurar a successão, e repartirem os outros pelas ordens militares ou monachaes, onde os noviços iam encontrar tios veneráveis pela idade e pelos cargos que exerciam, e reunir-se com outros jovens fidalgos de diversas procedências, mais ou menos parentes seus.
Tinha o pae de Henrique preferido a ordem de Aviz á de Christo e á de Santiago por tradicção de família. Os Mellos de Coimbra presavam-se de descender de el-rei D. João I, e em memória do mestre de Aviz não professavam em outra ordem. Depois que succedeu nos morgados e mais bens de seus paes, esteve inclinado a cedel-os a José de Mello, seu irmão mais novo, casado com uma rica herdeira do Espinhal. Veiu porém a namorar-se de certa senhora, ainda parenta sua, e resolveu pedir ao Papa dispensa dos votos religiosos para poder casar com ella.
De amor e da esperança da dispensa nasceu Henrique. No princípio ninguém sabia da existência d'este menino, mas afinal o pae não pôde viver separado delle, e mandou-o vir para casa. Ahi começaram os rumores, e Roma sem conceder a bulla. O pae de Henrique foi a Itália, porém encontrou grandes difficuldades, até que a final, depois de ter dispendido sommas avultadas, obteve a dispensa mais facilmente por intercessão do bispo de Coimbra. Andava então Henrique nos seus desoito aunos.
O breve pontifício veiu encontrar o fidalgo de Coimbra no leito da morte, e seu irmão José de Mello a querer-se-lhe estabelecer em casa, como herdeiro e immediato successor. Apesar d'estas duas circumstancias realisou-se o casamento, dispensando o bispo nos pregões, e D. Barbara Coutinho, mãe de Henrique, assistiu aos últimos instantes de vida do amante, já esposa legítima.
José de Mello intentou demanda para annullar o matrimónio, conseguiu entrar de posse dos bens situados nas províncias, e requereu embargo judicial nos dinheiros depositados no Banco. Ficou Henrique no goso da casa onde morrera o pae, e disfructando a pensão alimentícia arbitrada pelo juiz. Os jornaes ralharam muito de José de Mello, aggrediram o juiz com inaudita violência, e clamaram justiça em favor do orphão e da viúva, mas o vento levou pelos ares as folhas, e o que estava feito, ficou feito. Assim devia ser, que não tem ingerência nos tribunaes a imprensa, nem lhe é decente prevenir e illaquear o animo dos julgadores.
Henrique tinha pensamentos nobres e grande energia. A perseguição desenvolveu ainda mais tão excellentes qualidades. Aconteceu-lhe como succedêra ao autor do Génio do Christianismo. Adormeceu rapaz e acordou homem. Aos desoito annos procedeu com a madureza dos quarenta.
Vendo quão parcos meios lhe restavam para sustentar a D. Barbara, deliberou seguir carreira que lhe desse emprego constante e útil em qualquer parte. Escolheu a profissão de médico para a qual só tinha os estudos preparatórios; porém como o curso era longo e dispendioso, foi procurar o sr. Manuel de Oliveira, e offerecer-se-lhe para secretário nas horas que as aulas lhe deixassem livres.
O negociante gostou da deliberação do rapaz e, ou porque descobrisse n'elle o gérmen de energia incansável, egual á sua, ou porque se lembrasse da amisade que tivera com o pae de Henrique, acceitou a proposta, dizendo-lhe que o reservava para as cartas mais particulares, e que só carecia do seu trabalho ás 4 horas da tarde, e até ás 6. Desde esse dia Henrique de Mello teve entrada franca no gabinete de Manuel de Oliveira, convite permanente para jantar aos domingos, e cincoenta mil réis por mez.
Não era nenhum o trabalho. O negociante acceitára o pretexto para ajudar Henrique a formar-se, sem parecer dar-lhe esmola. O ordenado pago pela mão do próprio Oliveira lançava-se nos livros como dinheiro para gastos particulares do dono da casa. Envergonhava-se o bom velho de ter por escrevente um dos primeiros fidalgos de Coimbra, e o que mais pedia a Henrique era que não revellasse o caso a pessoa alguma.
O rapaz sorria, mas principiava a sentir repugnância em receber cincoenta mil réis mensaes sem trabalhar. Por fim tao combatido se viu d'este sentimento de justa delicadeza, que se despediu do sr. Oliveira, declarando-lhe os motivos.
Da nobreza de tal proceder ficou encantado o negociante e para evitar que Henrique renunciasse o ordenado, deu-lhe cinco ou seis cartas para responder conforme a apostilla escripta, á moda de Filippe II, na parte superior da margem.
O theor das respostas maravilhou o velho exportador de vinho. Não só era ajustado ao assumpto e na linguagem concisa e clara que os negócios commerciaes requerem, mas indicava que Henrique não tinha perdido o tempo que passara no gabinete de Manuel de Oliveira a tomar conhecimento, quasi casual, dos negócios da casa. Parecia que nunca haviam corrido por outras mãos. E d'ahi por diante Manuel de Oliveira e Henrique de Mello foram como dois sócios. O ordenado subiu a cem mil réis, e o secretário particular foi respeitado pelos empregados do escriptorio sem differença do patrão. O negociante não resolvia negócio em que o não tivesse consultado. Era voz geral que o ia educando commercialmente para casal-o depois com a filha.
Entretanto passaram annos ; o mancebo formou-se e tomou o grau de doutor em medicina. Manuel de 01iveira foi padrinho do capello e correu com todos os gastos da funeção. A esse tempo a demanda com José de Mello chegara ao supremo tribunal de justiça. Ali nao foi concedida revista ; e tendo a relação confirmado a sentença da primeira instancia favorável a D. Barbara Coutinho, seguiu-se restituição inteira da herança paterna a Henrique.
Assim, quasi simultaneamente, o sobrinho de José de Mello, depois de ter provido com trabalho próprio á sustentação decente da mãe, de ter completado com distincção a carreira scientfica, e de se ter iniciado nos negócios mercantiz, achava-se possuidor pacífico da casa de seu pae, senhor de grandes capitaes accumulados no Banco, e credor do tio pelo rendimento das propriedades ruraes durante oito ou nove annos, que montava a algumas dezenas de contos de rèeis. Vinha a ser incontestavelmente o proprietário mais abastado do districto de Coimbra.
Aqui é necessário dizer para esclarecimento e ensino de leitores poucos experimentados nas misérias da vida humana, que os primos mais chegados e os mais affastados, quando o viram fazer-se médico contra o ridículo preconceito da nobreza velha, viver com Manuel de Oliveira, escrever no escriptorio como se tosse caixeiro d'elle, e correr risco de não succeder na casa, gritaram que bem se via que era bastardo, e que teria que ver se a casa dos Mellos, senhores donatários de Alpalhão, ia a um doutor sangrado. É inútil accrescentar que nunca mais lhe tiraram o chapéo; e quando fallavam delle, chamavam-lhe : O tal senhor que se intitula Henrique de Mello.
Desde que a demanda esteve em caminho de se decidir a favor de Henrique, o sangue começou a cumprir o seu dever ! Dos parentes, muitos já o saudavam na rua. Alguns paravam para lhe fallar. Primo, chamavam-lhe mesmo os que o não eram, e todos caprichavam em apregoar os dotes de Henrique nos logares mais públicos d'onde a noticia pudesse chegar ao conhecimento do mancebo. Excellentes primos !
Não se agastara com o despreso dos parentes ; também não exultou com a mudança. Áquelles que na occasião de vencimento da demanda lhe deixaram bilhetes para elle e para a mãe, foi em tempo competente deixar o seu que dizia :
Doutor na Faculdade de Medicina
título que ainda fez arrefecer a algumas tias velhas o precioso sangue wisigothico que lhes girava nas veias.
Foi por este tempo que D. Anna de Oliveira veiu para a cidade. Henrique foi-lhe apresentado pelo pae logo no primeiro dia. «Aqui tens o meu amigo mais fiel, disse o velho negociante á filha, e o meu companheiro de trabalho nos negócios da casa. Tem cabeça de commerciante e coração de príncipe.» O mancebo curvou-se com respeito diante de D. Anna, apertando com affecto a mão que Manuel de Oliveira lhe dera no acto da apresentação.
Henrique, desde que se doutorara, não quiz mais receber ordenado; e agora, com o vencimento da demanda, a administração dos bens paternos dava-lhe larga occupação durante muitos mezes de cada anno. Todavia o velho aproveitava as occasiões todas para o instruir acerca do que ia succedendo, e para consultal-o a respeito dos negócios mais importantes. «Este rapaz, «dizia elle á filha» è que pôde chamar-se verdadeiro negociante. Se não fosse o que elle sabe de «economia politica e sciencia do crédito, eu nunca havia de levar ao cabo muitas operações, nem os negócios da casa teriam subido a ponto de se poder dizer «sem mentira que a Annica de Oliveira é o melhor «casamento das províncias.»
As ausências prolongadas a que a successão paterna obrigava Henrique, foram espaçando as conferências, até então diárias, e a final Manuel de Oliveira mal ousava fállar de commercio ao senhor donatário de Alpalhão. Quando este saía da sala, no fim de cada serão que alli ia passar, sempre o velho exclamava: «Grande «homem de negócio se perde n'este mancebo ! É lástima «que seja tão fidalgo e tão rico!» E acabava em prolongado suspiro.
Henrique ouvia-o com respeito de filho; estimava-o como quem conhecia bem a alma honrada e nobre d'aquelle bom velho ; e inspirado pela gratidão devida aos benefícios recebidos de Manuel de Oliveira, aconselhava-o com prudência, dedicação e lizura. Quando a gerência dos bens próprios entrou em andamento regular e lhe permittiu demorar-se mais tempo em Coimbra, era Henrique que provocava as confidências mercantiz do seu antigo protector, delicadeza que affastava de Manuel de Oliveira os receios com que se acanhava, e lhe enchia o coração de júbilo.
A intimidade entre D. Anna e Henrique estabeleceu-se rapidamente. Ministrara a ambos intermináveis assumptos de conversação curiosa e agradável a variada instrucção do jovem doutor. A veneração filial para com o velho era commum. Idênticas as idéas acerca do cumprimento fiel dos deveres domésticos e sociaes. Demais Henrique era bom cavalleiro, e D. Anna não podia escolher melhor conpanhia para os passeios de manhã.
Circumstâncias tão apropriadas para crear quasi de repente grande confiança, teriam produzído de certo, por serem tão absolutamente uniformes, mútuo aborrecimento e cansaço -- que é a peior entre todas as situações da alma nas relações dos dois sexos -- se o génio e o temperamento de cada um não fosse inteiramente opposto.
Henrique, à força de occultar a própria tristeza e de estudar o modo mais agradável de distrair a mãe, adquirira hábitos de jovialidade discreta mas constante, e certo desapego das coisas d'este mundo, que parecia velhice antecipada e era unicamente superioridade de razão. A mathematica, a sciencia medica, e a prática dos negócios commerciaes, acostumaram-lhe o espírito a procurar e a acceitar a verdade, e as suas consequências rigorosas. A desventura não lhe azedou o ânimo, mas ensinou-lhe a conhecer os homens. Alegre no trato ordinário, circumspecto e inflexivelmente lógico nos assumptos sérios, inabalável nas resoluções, sem desprezar a occasião de se esclarecer, e em idade tão pouco adiantada largamente enriquecido com as lições da experiência, era todavia de sensibilidade extrema, e dotado de excellente coração.
A filha de Manuel de Oliveira nunca se consolara completamente da perda da sua querida mãe. Sem manifestar dôr eterna que a sociedade tem direito de limitar, conservara tendências melancóllicas em que o sentimentalismo inglez se robustecia com a paixão árabe. A sua postura habitual era lânguida e triste. Os olhos serenos e transparentes, como as águas do Mondego, miravam com doçura e carinho saudoso. A alma que d'elles reflectia, como atravez da corrente scintillam as areias doiradas no fundo do rio, era innocente, sincera e angelicamente amorável. Os cabellos loiros davam á suave pbysionomia de D. Anna o tom celestial dos cherubins de Murillo.
A conversação frívola e alegre perturbava cruelmente os extasis involuntários da filha de Manuel de Oliveira, e causava-lhe a sensação que produz qualquer instrumento desafinado por entre os sons harmónicos e concertados da melhor orchestra. Pelo contrário os assumptos sérios despertavam-a agradavelmente, e convidando-lhe o espirito a cogitações sisudas, affugentavam e substituíam a tristeza quasi natural do seu génio.
Desapparecia então a languidez. A phisionomia animava-se. Os olhos reviviam, e até os cabellos pareciam obedecer mais gratamente á delicada mão que os affastava das faces, como se quizessem deixar ver na plenitude de manifestação sincera os sentimentos que o rosto revelava sem disfarce. E a alma ardia no mais intenso fogo de dedicação filial, de pensamentos affectuosos, de desejos nobres, de benevolência permanente, e do amor da humanidade que as desditas e a experiência do mundo quasi sempre vem a transformar em egoísmo odioso.
Henrique era quem melhor sabia attrair a attenção de D. Anna. Procedia gradualmente, como se desejasse ser cúmplice da tristeza que ella manifestava, e insensivelmente lhe ia excitando na alma sensações vehementes de contentamento e de enthusiasmo. Se casualmente se affastava d'este systema para dar largas aos hábitos de jovialidade, o espirito da donzela contraía-se como a sensitiva e patenteava signaes visíveis de mortificação e desgosto.
O antagonismo de dois caracteres tão differentes estreitou mais a intimidade entre D. Anna e Henrique. Em breve foram como irmãos. A affeição que a uniformidade de certos dotes creára, e que a diversidade de génio desenvolvera, era já amor e profundo, sem que nenhum d'elles o tivesse ainda suspeitado. Sâo as índoles oppostas as que mutuamente se ligam em mais apertado laço. Obedecendo ao instincto natural do aperfeiçoamento talvez nos parece completarmo-nos, fundindo a nossa existência n'aquella em que se nos deparam as qualidades que nos faltam.
É como as revoluções o amor; como ellas, nasce de causas que os interessados quasi desconhecem, prepara-se e desenvolve-se em silêncio, e manifesta-se na hora em que a área da sua actividade por acanhada e estreita o não pode conter. Então servem-lhe de pretexto o motivo menos rasoável, a mais insignificante casualidade, e expende-se com força proporcional á compressão anterior. Assim aconteceu aos nossos dois jovens.
Uma noite em que o espírito jocoso de Henrique, ainda mais vivo e brilhante que de costume, ferira o ânimo de D. Anna, a filha de Manuel de Oliveira deixou a cadeira em que estava perto de Henrique e foi sentar-se quasi lacrimosa junto da mesa onde o pae jogava o whisth. Estes despeitos, estas pequenas grosserias, são sempre penhores de affecto. Quem as pratica, já sabe as suaves compensações a que se obriga.
Henrique abriu um grande livro com estampas que rodeado de álbuns e de pequenos volumes ricamente encadernados, sobresaía aos outros todos, e ficou a folheal-o sem saber o que fazia. Era o volume dos Quadros Históricos do nosso grande poeta e não menos insigne prosador António Feliciano de Castilho, livro que todas as casas portuguezas deviam ter no logar mais honrado d'ellas, como na casa do christão deve estar o Evangelho.
A partida do ancião já tinha acabado ; a contagem dos tentos e as pagas iam concluir, e ainda Henrique folheava. A final teve de accordar d'este agitado lethargo para se ir embora. Era tarde, e pela manhã cedo havia de ir acompanhar D. Anna no passeio pela margem direita do Mondego.
-- Então sempre passeiamos a cavallo, disse Henrique com voz pouco firme ao despedir-se da filha de Manuel de Oliveira.
-- De certo, se me quer acompanhar, respondeu D. Anna com sorriso mal aberto que parecia pedir perdão com receio de o não obter.
-- V. ex.a bem sabe que eu estou sempre ás suas ordens.
-- Pois então ás oito horas aqui sem falta.
-- Serei exacto. Até amanhã.
O aperto de mão com que D. Anna correspondeu á despedida de Henrique, foi mais affectuoso e mais cerrado do que nunca. Valera por dois annos o arrufo de um quarto de hora. D. Anna já obedecia á lei fatal das compensações amorosas. São bellas as margens do Rheno desde Mogúncia até Colónia, as do Sena, as do Garona e as do Rhodano ostentam maravilhas com que a natureza e a arte em competência as enriqueceram, porém nenhumas tão encantadoras e tão opulentamente viçosas como as do Mondego ali perto de Coimbra. Em nenhuma outra parte da terra a natureza brilha com tamanha suavidade e sorri com tanto amor.
Aprendem os portugueses nas viagens a estimar a belleza dos nossos horisontes, a qualidade ubérrima do terreno, a constante amenidade do clima, a límpida transparência de alguns dos nossos rios, a vigorosa e túmida corrente de outros, a riqueza e variedade da vegetação, e a luz que inunda de claridade a serra, o valle, a várzea e a collina. De mim digo, com verdade, que ainda não vi na Europa cidade, rio e campo, que fizessem esquecer aquelle pedaço de terra portugueza que o Mondego banha de suas aguas cristalinas, desde a quinta da Boavista, á qual fica fronteira na margem opposta a quinta das Cannas com a sua lapa dos poetas, até á Memoria onde o rio voltando-se, como para se despedir de Coimbra, muda de rumo para o occidente.
A cidade de Ataces reclinada na encosta de montanha, tendo na cabeça por diadema o velho palácio dos reis de Portugal onde os bons estudos foram abrigar-se, e estendendo os membros inferiores pela magestosa rua da Sophia, parece estar contemplando affectuosamente as águas do formoso rio, em cuja margem direita repousa. Nos montes e outeiros visinhos a côr melancholica dos olivaes alterna com a verdura e viço dos pântanos. Dos valles sobe o perfume da flor da larangeira que a brisa espalha pressurosa, escoando-se ora por entre os olivêdos da serra, ora por entre os álamos, choupos e salgueiros que bordam as duas margens da corrente. As quintas e casas em que gradualmente vae acabando a povoação, mais aformoseam o quadro e constituem a corte e séquito da esplêndida rainha do Mondego.
O rio é de inverno alteroso e revolto. Comprimidas pelas serranias que desde a origem as apertam e estreitam, aquellas águas insoffridas -- como portuguezas que são, e miticamente portuguezas -- mal avistam a cidade, alargam-se no alveo buscando ponto mais distante donde melhor a contemplem, ao que nem sempre basta o espaçoso leito que lhes preparara ali a natureza. A sua cólera insensata aggride ás vezes com fúria desmedida a cidade e o campo, e ameaça com estrépito iroso soverter para sempre a magnífica e extensa ponte que se atreve a disputar-lhe o passo.
Terríveis são as fúrias do Mondego, mas duram pouco. Mal os rebentões das árvores annunciam a primavera, e a natureza, restaurada dos aspérrimos combates do inverno, ordena ás plantas e aos animaes que amem e continuem a obra do Creador, o rio envergonha-se de tamanha cólera, despede para o mar os alliados que lhe acudiram da serra, e abraça Coimbra pelos pés para que lhe perdoe benignamente as demasias da aggressão insensata.
De verão, já esquecida e indultada a insânia com que se houvera na estação invernosa, vel-o-heis passar meigamente junto da cidade a sussurrar-lhe segredos de amor, e a offerecer a água saborosa que de mui longe viera filtrando flor entre as áreas doiradas só para lha dar em tributo e homenagem.
Contemplavam outrora, da margem opposta á cidade, tão deliciosa perspectiva os seraphicos filhos de S. Francisco de Assiz que ali possuíam um convento, e as monjas de Santa Clara que ainda hoje guardam no novo mosteiro, fundado pelo primeiro rei da dynastia bragantina, os venerandos restos da bemaventurada esposa do senhor rei D. Diniz.
Quão vehemente e pura devia ser a adoração do Creador naquelles dois cenóbios ! Um assentado contra a escarpa da montanha, e o outro surgindo quasi no ponto mais elevado d'ella, mas ambos avistando completo e grandiozo o panorama fronteiro! Magnífica e encantadora perspectiva ! Quem não ajoelharia perante a magestade divina, só de ver a cidade, o rio, a vegetação e as flores, e de respirar a fragância deliciosa d'aquelles admiráveis campos?
Em Coimbra, e nas suas cercanias esmerou-se a natureza no esplendor das galas, e tomou os melhores enfeites para disputar belleza ás mais formosas. Tudo respira amor na terra fadada por Deus, a que os homens puzeram por limites de um lado a Fonte dos Amores, e do outro o Penedo da Saudade, como se d'estes dois sentimentos -- Amor e Saudade -- tivera de permanecer captivo quem viesse a passar ali.
E todavia aquelle ar suavemente perfumado não quebranta, nem enfraquece. Agita mais o coração do que os sentidos. As asperezas das serras próximas olham para o valle com severidade e parecem recordar-lhe os deveres da virtude. O manto escuro dos olivaes na sua tristeza lobrega não deixa esquecer a morte. Atè o nome da quinta das Lágrimas é junto á Fonte dos Amores salutar advertência ! Nas margens do Mondego o amor deve ser elevado e nobre como a cidade, puro como a água da corrente, e duradoiro como a folha dos loureiros e das larangeiras que verdejam perennemente na campina.
A athmosphera affectuosà de Coimbra encantava a alma sentimental de D. Anna. Alvoroçava-se-lhe o coração á voz da natureza. O espírito deleitava-se na contemplação das riquezas naturaes d'aquelles sítios formosíssimos, e lia no livro universal da creação segredos que só entes superiores sabem decifrar n'elle.
A árvore que obedecendo ao zephyro saudava com repetidas inclinações de cabeça o arrebol da manhã, ensinava-lhe a oração ao Creador que em língua desconhecida do vulgo estavam ciciando as folhas. O girasol revelava-lhe extremos de affectuosa constância para com o astro do dia. O arroio que se desviava da corrente e que, serpeando na área em multiplicados requebros, vinha confundir-se outra vez no manancial que lhe dera origem, não tinha segredos com ella.
Aquellas vozes em que outros não attentavam, e que tão distinctas e vibrantes eram para D. Anna, quando nas frescas manhãs da primavera saía a passeiar no campo, soavam-lhe nos ouvidos com o encanto da mais deliciosa symphonia de Beethoven. Os primeiros raios do sol que as vidraças do convento de Santa Clara reflectiam vigorosamente, pareciam-lhe benção do Eterno enviada do céo ao começar do movimento mais amiudado da população, e transmittida á cidade pelas mãos innocentes e puras das filhas do Senhor.
Henrique de Mello, que acompanhava frequentes vezes a filha de Manuel de Oliveira nos passeios de manhã, não era esquivo ao influxo d'estes sentimentos. Iniciado pelo estudo nos segredos mais íntimos da natureza e dotado de grande sensibilidade, gosava delícia igual á que subjugava o coração de D. Anna; porém a concentração do espírito nas lides da vida activa e trabalhosa diminuíam-lhe a vehemência das sensações.
A final o amor transformou-o inteiramente. Já attendia ao cicio das arvores, já traduzia o murmúrio das águas, já escutava o segredo das plantas, já seguia o vôo caprichoso da borboleta, e já procurava entender o vozear confuso da campina e do monte. A innocencia infantil de D. Anna ouvia os louvores do Creador na agitação espontânea da natureza. Henrique fazia da creaçâo inteira o throno em que a assentava rainha, e em volta da qual soavam em louvor d'ella todos os cânticos da terra.
Ás vezes passeiavam duas horas quasi sem proferirem palavra, e só acordavam de cogitações tão diversas ao entrarem na cidade, quando o soar das ferraduras dos cavallos na calçada os advertia de que já eram no povoado. Então olhavam um para o outro, e como que se envergonhavam de tamanha abstracção e de similhante fraqueza sentimental ! Sorriam ambos e recolhiam a casa apressadamente.
O sorriso que parecia entendido mutuamente, em que nenhum dos dois pensou durante muito tempo, mas que variava cada dia as contracções por forma mais affectuosa e íntima, tinha de acabar em explicação recíproca. D. Anna já corava quando sorria, mas sem procurar encobrir o rubor. Henrique abaixava involuntariamente os olhos, ainda entre-aberto o sorriso.
Perguntava D. Anna a si própria a rasão d'aquelle inexplicável pejo, mas não acreditava que fosse amor. Tinha lido e ouvido dizer que o amor perturbava a alma, porém não sentia nenhuma perturbação violenta Sorria sem saber a causa, corava ignorando o motivo, mettia o cavallo a trote largo sem rasão conhecida ao aproximarem-se da cidade; e chegando a casa nem de tal se lembrava mais de modo que lhe roubasse o socego. Não era pois amor. O que seria? Não podia adivinhar.
Henrique também fazia exame de consciência. Na sua idade de vinte e oito annos não lhe acontecia como a D. Anna. A questão era resolver, se a paixão que visivelmente o agitava, era sentimento digno de si próprio e da filha do seu protector, ou se era allucinação momentânea d'aquellas com que os sentidos enganam traiçoeiramente o coração mais nobre e mais leal. A constância do affecto e a timidez respeitosa com que o occultava, persuadiam-o de que era amor. A experiência advertia-o de que podia illudir-se.
No dia seguinte ao do arrufo de D. Anna por causa das innocentes jovialidades de Henrique, saíram de casa de Manuel de Oliveira que era perto do Jardim Botânico, passaram o arco da Traição, desceram a Couraça de Lisboa até á Portagem, seguiram pela Calçada até á Sophia, e de lá em direitura á ponte de Agua de Maias, sempre a meio trote dos cavallos, e no mais teimoso silêncio. Ali D. Anna a quem Henrique deixara adiantar para lhe contemplar á vontade o garbo do busto e a nobreza dos movimentos, susteve o cavallo, e esperou pelo companheiro.
-- Quer que voltemos pelo campo? Agora já ãao deve haver água, disse D. Anna com inflexão de quem perguntava, apesar que a estação já adiantada da primavera indicava certeza de se atravessar o campo sem perigo.
-- Eu creio que já não ha água nestes sitios, respondeu Henrique, e se ainda houver alguma, de certo nos ha de franquear melhor passagem do que a dos israelitas no Mar Vermelho.
-- É singular, volveu D. Anna, o costume que tem de gracejar de tudo, e com todos.
-- Com todos não, minha senhora, replicou Henrique em tom submisso.
-- Ah! Então é só para mim? Pois olhe que não lhe agradeço a distincção. Já hontem ...
-- Se enfadou comigo? Não é verdade? Eu não tive intenção de a offender, e se pudesse...
-- Bem sei. Bem sei, interrompeu D. Anna. Não me dê desculpas. Eu é que peço que não leve a mal que me levantasse, mas realmente quando o oiço gracejar com o que eu digo, julgo que me tem por creança, e...
-- Pois não gracejarei mais. Serei sério como o governador civil.
-- Mas porque rasão não é assim jovial com as outras senhoras. Ainda no domingo passado o accusavam de estar cabisbaixo e de responder a todas as pessoas com monosyllabos.
-- Eu não gracejo senão com minha mãe e com a sr.a D. Anna. Com os outros gracejo por dentro que é peior.
-- Então comigo está sério por dentro e risonho por fora. Confesso que não entendo.
-- Nem queira entender, retrucou Henrique mettendo o cavallo a galope para o lado do rio.
-- Tanto quero que até exijo que m'o explique, ajuntou D. Anna obrigando também o cavallo a galopar.
-- São cousas que se não dizem senão a quem já as sabe. Veja como vae galhardo, continuou Henrique mudando de conversação, aquelle barco que desce o rio á vella.
-- Que me importa a mim o barco? Não tente distrair-me, nem me tenha por creança. Diga-me em que consiste a tal seriedade interna a meu respeito.
-- Consiste...
Neste tempo os dois namorados olharam um para o outro e viram o sorriso de todos os dias, mas radiante de paixão affectuosa. Henrique estendeu o braço direito para o lado de D. Anna, e encontrou a mão da esbelta amazona, que vinha ao encontro da sua. Os sorrisos não careciam de explicação mais cabal.
D. Anna sentiu affoguearem-se-lhe as faces, apertar-se-lhe o coração, perturbar-se-lhe a cabeça e fugir-lhe a vista. Se Henrique a não sustivera aproximando o cavallo, teria caído. Os criados viram de longe que succedera algum caso e metterara a galope, porém antes de chegarem junto dos dois cavalleiros, já D. Anna tinha recobrado inteiramente os sentidos.
-- Não foi nada, disse ella olhando amorosamente para Henrique. Agora já pode fallar porque sei tudo. Mas para que me queria obrigar a adivinhar.
-- Porque o dever está primeiro que as paixões, e seu pae, Annica, pode não approvar o nosso amor.
-- Não seja injusto, Henrique; meu pae estima-o muito e ha de regosijar-se de me ver casada com homem da minha escolha e que já é de casa.
-- Se me auctorisa, vou hoje mesmo rogar a minha mãe que a peça ao sr. Manuel de Oliveira. Não quero que me accusem de deslealdade.
-- Não o auctoriso porque sei que meu pae diria logo que sim, apesar de ser contra o seu voto que eu case antes dos vinte annos. Cuida que é necessário conhecer a sociedade, acostumar-me ás exigências d'ella, boas e más, deixar vir os pretendentes em núnero sufficiente, c escolher o que tiver melhores qualidades. Ora eu quero-lhe fazer a vontade. Auctoriso-o pois a dizer-me que me ama, a proval-o, a saber que é correspondido e a verifical-o, e a examinarmos se n'esta posição nova encontramos o mesmo prazer que na anterior.
-- Mas o disfarce é martyrío para mim e falta de respeito para com seu pae.
-- Pois não disfarce. Eu nunca pretendi occultar a preferencia amigável com que sempre o distingui e de que só agora sei o nome, respondeu D. Ânna corando de novo. Mas não queira obrigar meu pae ao sacrifício de se separar de mim antes de findar o tempo que me pediu lhe concedesse. Henrique, elle ama-o como se fosse seu pae. Amêmol-o nós ambos como filhos.
A placidez ingleza d'esta conversação encobria agitação extraordinária na filha de Manuel de Oliveira. O aperto de mão de Henrique causára-lhe effeitos de choque eléctrico, e a perturbação que sentira em seguida revellára á rica herdeira coimbrã o segredo do primeiro accesso febril da paixão nascente. O prazer de amar, o desvanecimento de ser amada, o goso ineffável de passar de menina a mulher, o inesperado da manifestação e a novidade do caso, produziam n'aquella alma innocente e sincera tempestade desconhecida cuja violência era augmentada por mil outras sensações que melhor se experimentam do que podem explicar-se. Henrique espreitava esta transformação do ser feminino, passagem rápida de um a outro período da vida humana, e saboreava em estasi delicioso as primícias de tão deliciosa affeição.
À entrada em casa os namorados datavam de mui longe o sentimento que só então se declarara. Cada attenção recíproca, cada communicação mais íntima, cada prova de confiança, cada testemunho de estima, que até ali haviam sido attribuidos á amisade, passaram para a conta do amor, buscando origem na mútua sympathia da primeira entrevista. A paixão è assim.
D'ali por diante Henrique e D. Anna viveram só para se amarem extremosamente. O pae sem adivinhar a verdade, mas sem parecer ignoral-a inteiramente, via com gosto a possibilidade de consórcio que satisfazia as exigências do amor paternal, os planos do negociante, os desejos e ambição do chefe de família, e que até lisonjeava a vaidade do burguez.
Dois annos foram assim correndo insensivelmente, e já faltavam poucos mezes para se completarem. Henrique não augmentára nem diminuira a frequência das visitas. D. Barbara já adiantada em annos é que vinha mais a miúdo a casa de Manuel de Oliveira, onde a futura nora a tratava como quem já lhe queria com amor de filha.
Foram estes dois annos os melhores da vida de Henrique de Mello, de D. Anna, de D. Barbara e de Manuel de Oliveira ! A própria irmã do velho negociante agradecia nas suas orações a Deus a ventura de que todos participavam e para a qual todos contribuíam !
Ficava perto do Jardim Botânico o magnífico palácio de Manuel de Oliveira ; porém os armazéns e o escriptorio do rico exportador de vinho e azeite da Beira permaneciam ainda na rua da Sophia desde o tempo em que transferira da Figueira para Coimbra a própria residência e a sede commercíal dos negócios.
Saía Manuel de Oliveira de casa todas as manhãs cerca das sete horas e meia, e dando volta pelo Penedo da Saudade vinha entrar do lado do Seminário Episcopal no esplêndido terraço superior do jardim, sumptuoso monumento em que o reitor da Universidade D. Francisco de Lemos deixou memória duradoira dos pensamentos grandiosos que então havia em Portugal, e que de todo em todo vieram a transformar-se nas misérias que por ahi vemos hoje.
Não as vejo eu agora cá de tão longe, mas ainda ha pouco as vi, e corei de vergonha de tão embrutecida decadência ! Ah ! Se el-rei D. José I do alto do monumento, onde a mão de bronze do marquez do Pombal lhe foi collocar a estátua, pudesse volver a cabeça, e avistar por sobre o hombro a ridiculíssima peanha sobre a qual intentavam expor ao escárneo das edades futuras seu real bisneto o senhor D. Pedro IV... estou que dava de esporas ao cavallo e ia lançar-se no Tejo onde nunca mais pudessem vel-o olhos portuguezes.
Deixemos em paz a primorosa estátua da Praça do Commercio de Lisboa, não passemos diante do retrato de Sebastião José de Carvalho e Mello para não abaixarmos a vista corridos de pejo, e voltemos a Coimbra a accompanhar o sr. Manuel de Oliveira no passeio matutino no Jardim Botânico até áquelle aqueducto de elrei D. Sebastião, que tão em secco deixara a fonte e os tanques dos cónegos regrantes, e a famosa crasta que D. João III lhes riscara de seus reaes dedos na manga do roupão.
Ali junto dos arcos o esperava a traquitana puchada por dois possantes machos, que todos os dias o levava ao escriptorio. Das cinco ou seis carruagens que então havia em Coimbra, era a de Manuel de Oliveira das mais aprimoradamente acabadas e cómmodas, e o ruído que faziam as rodas nas pedras das calçadas tão conhecido na cidade, que sem saírem ás portas das casas, e sem correrem á janella, já todos sabiam quem passava na rua.
Trabalhava até ás onze horas o velho negociante. Apenas soavam, saía do gabinete, e vinha para uma sala na qual tinha livre entrada, sem necessidade de mandar dizer o nome, quem precisava fallar-lhe. Chasqueavam os murmuradores de quasito das as boticas de Coimbra notando que s. ex.a dava audiência ás onze da manhã. E com effeito quasi sempre áquella hora algum amigo ou importuno vinha procural-o.
Serviam-lhe então o almoço que constava inalteravelmente de uma costeleta, dois ovos quentes e um copo de excellente vinho do Porto ao qual Manuel de Oliveira consagrava especial affeição desde que á força de provar o Bairrada e o Beirão chegara a não lhes achar gosto. Concluída a refeição, o pae de D. Anna recolhia ao gabinete por numerosa que fosse a sociedade. A quem quizesse ficar na sala, não faltavam livros e periódicos. Elle é que não ficava, porque as horas commerciaes eram tão exactamente empregadas pelo honrado negociante, como no rigor da primitiva disciplina fora devidamente guardada dos cónegos a impreterível hora do coro.
Em um dia do mez de março de 1839 assistia ao almoço de Manuel de Oliveira um cavalheiro de Coimbra, ainda moço, geralmente conhecido por curioso das vidas alheias, espreitador de todos e de tudo, gazeta permanente da rua Larga, da Calçada, do Jardim, e do Ponte, e possesso dos espíritos malignos da vaidade e da inveja, demónios a que a mão justiceira do Eterno deu maior liberdade entre o Guadiana e o Minho do que em qualquer outra região da terra. E sobre tamanhos dotes, com que se poderiam abastar largamente dois ou três tolos maus, tinha uns modos feminiz e voz tão de sovelão que nem os nervos do mais paxorrento frade bernardo lhes teriam supportado pacificamente a sensação irritante.
-- Eu não conheço pessoa mais feliz do que o sr. Manuel de Oliveira. Realmente não sei o que lhe falta! dizia o menino com certa ironia, cujo monopólio os homens de esphera superior e os parvos repartem entre si, ficando os primeiros com a ironia delicada e espirituosa, e deixando para os outros a ironia grosseira e material.
-- Ás vezes falta-me saúde, respondeu melancholicamente o velho.
-- Também só se fôr isso. Ainda hontem á mesa dizíamos nós lá em casa, a mana Christina e eu, que não havia outro homem como v. ex.a. Muita riqueza, grande respeito, filha encantadora, e a amisade de toda a gente? E então o bem que faz aos pobres? Pensa que não se sabe?
-- Olhe que não é tanto assim. Muitas esmolas que eu dou, são da Misericórdia. O público vê que se distribuem á minha porta, e cuida que me saem da algibeira, mas engana-se. Eu não acredito na utilidade das esmolas repartidas entre cegos fingidos, aleijados escorreitos e pobres remediados. Porém o compromisso da Santa Casa determina que se dêem, e dão-se.
-- Nada; nada de modéstia. Nós bem sabemos a verdade; e o proveito que a cidade colhe só da sua despeza? V. ex.a ha de gastar muito cada anno?
-- Gasto o rendimento das minhas propriedades, retrucou o Oliveira com certo constrangimento.
-- Essa bagatella! Alguns vinte e cinco ou trinta contos ! Se Coimbra tivesse três ou quatro Manueis de Oliveira, nem Lisboa nos deitava agua ás mãos !
-- Quaes vinte e cinco ou trinta contos ! acudiu o velho. Menos, menos, muito menos. Não sou tão rico como cuidam.
-- O que eu vejo é que talvez seja ainda mais modesto do que rico. Ora vamos. Quero suppòr que não gasta mais de dez contos; em dez annos são cem contos. É o haver de muitas famílias reunidas !
-- Ainda bem, volveu o negociante sempre triste, ao menos também a muitas famílias vae ter esse dinheiro.
-- Pois é o que eu digo. Andam por ahi a ralhar dos capitalistas. Eu cá sempre sustentei que são melhores para o povo do que os proprietários. Nós recebemos de nossos paes por transmissão legitima os poucos bens que disfructámos, e vivemos na idéa de que não é necessário socegar com actos de caridade excessiva os ânimos invejosos. Os capitalistas andam sempre a repartir com os pobres para que elles não murmurem, e fazem muito bem. O povo é muito ciumento !
Sorriu quasi imperceptivelmente Manuel de Oliveira a tão grosseiro insulto, sem se dar por offendido da manifestação atrevida com que n'aquellas palavras viera a lume o odiento antagonismo da propriedade contra o capital! Sentimento fratricida e insensato entre duas forças que não podem ser inimigas nem rivaes, e de cuja cooperação depende a prosperidade pública, mas paixão muito natural nos povos para os quaes os princípios económicos não prepararam a reforma, antes foi esta que se incumbiu de os introduzir e vulgarisar.
-- Pobre povo! respondeu Manuel de Oliveira continuando o almoço. Deixe dizer. O povo não é ciumento nem invejoso. É justo, e muitas vezes mais justo do que as classes superiores que veneram e respeitam muito tratante, conhecendo-lhe as más qualidades. O povoo não. Pôde proteger e seguir gaiatos, mas é em quanto os não conhece.
-- Tem V. ex.a muita rasão. É o que eu afirmo sempre. Porque não ha de haver grande accumulaçâo de capitaes sem ladroeira nem deshonra? Acaba sempre em quebra a riqueza que provém de origem illícita. A outra é trigo sem joio, e o próprio governo a deve honrar e proteger. E a propósito: dizem por ahi que V. ex.a está commendador da Conceição. Posso perguntar-lhe se é verdade e dar-lhe os meus parabéns? Olhe que todos approvam. Lá em casa, tanto eu como a mana Christina, achamos que veiu tarde, muito tarde.
-- O ministro mandou-me hontem esse presente em remuneração do último empréstimo, mas eu nem a regeito, nem a ponho na casaca. Acceitei a carta de conselho quando deixei de ser deputado para escapar a barão, e já foi de mais.
-- E então por que não ha de acceitar? Não se dá a toda a gente a commenda da Conceição! D'antes era só para os que tinham foro grande de fidalgo cavalleiro ; agora serve de pretexto para o ter. Ahi está v. ex.a de um dia para o outro tão fidalgo como eu ou como o primo Lobo Coutinho, sem que a sua família tivesse que andar pelas fortalezas da Índia ou ás lançadas aos mouros nos logares de Africa. E com moita rasão. Todos devem ter o seu S. Martinho. A nobreza e o clero já o tiveram. Agora é a vez do commércio e da industria.
-- Eu não quero ser fidalgo, e lastimo os negociantes que padecem de tal achaque. O tráfico d'elles não é fim, é meio. Não é profissão, é aprendizado de nobreza. Por isso saem tão bons nobres como foram commerciantes honrados. Porém agora dê-me licença, ajuntou Manuel de Oliveira levantando-se da mesa e saboreando o resto do doirado vinho do Porto, que lhe ficara no copo. Ahi tem os jornaes de Lisboa e alguns livros. Até outra vez.
-- Sempre ás ordens de v. ex.a. Eu sou dos amigos fiéis, concluiu o rapazito quando o velho Oliveira já entrava para o gabinete.
Era com effeito verdade que o ministro do reino mandara a commenda da Conceição ao Rothschild de Coimbra. Mil vezes a merecera por serviços prestados ao Estado em conjuncturas apertadas, porém nunca houvera secretário de Estado que se lembrasse de propor á soberana a mais pequena recompensa para o capitalista das margens do Mondego. Quando elle praticava acção útil ou digna, dava-se o prémio a quem nada fizera ! Grandes philosophos e grandes ministros ! A rainha resolveu de moto próprio dar-lhe o titulo de barão do Bussaco. Manuel de Oliveira tanto supplicou a sua magestade e aos ministros, que em transacção amigável conseguiu descer para conselheiro.
Agora o caso era differente. A graça não fora do ministro. Sollicitára-a com empenho certo homem valido do governo, d'estes sumilheres da cortina ministerial que duram o espaço de cada ministério, no fim do qual voltam a passeiar os tamancos e a commenda nas lamas da Palhaça ou nas fragosidades da serra do Gerez.
O cyreneu ministerial trazia demanda rija em Coimbra, e tratava de pôr do seu lado os homens influentes da cidade. Pareceram-lhe mais eficazes as mercês reaes do que um ou dois faqueiros, e três ou quatro salvas de prata em que se lhe iriam muitos carros de milho. Por isso com manifesto prejuízo dos ourives se deu a commenda a Manuel de Oliveira, e se mandaram com igual motivo de interesse público distincções inesperadas a outras pessoas respeitáveis da Athenas portugueza. O ministro cuidou premiar serviços! Coitados dos ministros !
Ausentou-se o menino tendo cofirmada a notícia da commenda, contra a qual meia hora depois blasfemava nas lojas da Calçada, dizendo com certo chiste aristocrático que maior acerto houvera sido darem a Manuel de Oliveira a ordem de S. Thiago porque ao menos a fita roxa não desdizia da côr dos vinhos beirões. Ali foi contando logo dos remoques que dera ao novo commendador a respeito dos ricos feitos á pressa, e de como o encontrara tristonho sem que todavia tivesse podido descobrir a causa. Corria então em Coimbra o boato de que a casa Oliveira se achava envolvida na fallencia de Bergenstein e C.a, de Hamburgo, banqueiros dos mais ricos da famosa cidade allemã e correspondentes do nosso honrado velho.
-- O homem não estava satisfeito ! terminava o jovem irmão de D. Christina, esfregando as mãos com júbilo e passeiando apressadamente de um ao outro lado da loja. Elle ... ha coisa !
Manuel de Oliveira entrou no gabinete com phisionomia descontente, e achou ali Henrique de Mello, a quem mandara pedir de manhã que passasse pelo escriptorio antes do meio dia, se lhe fosse possível. Henrique não podia aturar Álvaro de Araújo, que assim se chamava o menino da voz de sovelão. Por isso quando lhe disseram quem estava na sala, passou pelo corredor para o gabinete.
-- Aquelle pateta pôl-o de mau humor, disse Henrique vendo a cara do velho.
-- Eu já não estava contente, mas o tal biltre apurou-me a paciência. Que atrevido! E que voz!
-- Não faça caso, sr. Manuel de Oliveira. Aquelles garotos são as serpentes da Europa. Para differença das outras acolhem-se aos povoados e grandes cidades ; no resto são similhantes. Dá-se-lhes com o pé, e vae a gente proseguindo no seu aminho. Que noticias ha de Hamburgo?
-- Péssimas. A liquidação talvez não produza três por cento. Bergenstein fugiu para a America. Parece incrível ! Um homem que merecia geral conceito, e chefe da casa que passava por ser mais sólida em Allemanha! Eu estou á espera do correio para escrever a Smith e Davis de Londres. Vou sacar sobre elles por cem contos em letras inferiores a dois contos de réis cada uma. Descontar-se-hão em Lisboa, no Porto e na Figueira : aqui a administração do contrato do tabaco toma de certo algumas. Nós temos em Londres... continuou o velho buscando sobre a meza a nota dada pelo guarda livros.
-- Smith e Davis, interrompeu Henrique, têem na mão, ha um mez, exactamente cem contos que se lhes mandaram pôr no banco. V. ex.* disse-me que já recebera aviso d'esta operação.
-- É verdade. Veiu pelo paquete passado.
-- Ora além dos cem contos, de certo receberam remessas de New York, da Terra Nova e de Buenos Ayres, que forçosamente devem montar a outro tanto, se bem me recordo.
-- É incrível, meu caro Henrique, como se lembra de tudo apesar de só ter informação dos negócios alguma vez por acaso ! Realmente, Deus tinha-o talhado para negociante !
-- Bem sabe quanto interesse tomo nas coisas que pertencem á sua casa. Tudo isto me correu pela mâo tanto tempo!
-- E que bem correu! Desde que venceu a demanda com seu tio e fiquei só, tudo me sae contrário.
-- Vamos. O caso não é tão feio como parece. São duzentos contos perdidos em Hamburgo, com cento e tantos das letras que vão chegar recambiadas. Vem a ser trezentos e tantos contos. Ora estão em Inglaterra cem em deposito, e talvez outros cem apurados. O vinho e o azeite que tem nas docas pode empenhar-se por cem contos. Já dispomos de trezentos. O que falta não deve causar receios a quem possue trezentos contos de propriedades no reino, mercadorias em depósito nos portos de mar, numerosas dívidas activas, e algum dinheiro em caixa.
-- Isso é verdade. Com os trezentos contos de Londres, pagam-se as letras de Hamburgo, e ainda fica para... murmurou Manuel de Oliveira sem concluir a phrase.
N'este momento chegou o correio. As cartas particulares vindas pelo paquete inglez não diziam nada. Á saída do vapor era pouco procurado o vinho, porém subira de preço o azeite. Não era má nova porque no depósito de Londres havia maior porção de azeite que de vinho. Manuel de Oliveira e Henrique estavam combinando mandar vender o azeite, e examinavam se nova remessa chegaria a tempo de aproveitar o preço do mercado, quando o guarda livros entrou espavorido no gabinete.
-- Que ha de novo, sr. Caetano da Silva? exclamou Oliveira admirado d'aqulla entrada quasi theatral e funebre.
-- Que ha de haver, sr. Oliveira. A casa Smith e Davis, de Londres, suspendeu pagamentos por causa das quebras de Bergenstein e de duas casas de New York. O aviso diz que os nossos cem contos ainda não estavam no Banco...!
-- Mais nada, sr. Caetano? Respondeu socegadamente Henrique de Mello.
-- E que mais queria v. ex.a que acontecesse? Volveu o guarda livros espantado. Olhe que esta casa tem na mão de Smith e Davis...
-- Duzentos contos. Bem o sei. Com os duzentos que se perdem em Hamburgo, faz quatrocentos ; com cento e tantos contos das letras recambiadas temos quinhentos e...
-- E cincoenta e cinco, acudiu o sr. Caetano da Silva.
-- Pois bem, continuou Henrique. São quinhentos e cincoenta e cinco contos. À questão é pagar o que se deve, e supprir a falta do capital perdido. Não é negócio do outro mundo. Eu desejava ver o balanço do estado actual da casa. -- Em duas horas posso dal-o prompto. -- Muito bem. O sr. Oliveira está afflicto, como vê, pela amisade e parentesco que tem com o sr. Davis, sócio de Smith, porém a casa de Oliveira e C.a não cae assim. Cá estamos todos para nos revesármos ao leme. Tenha ânimo, sr. Caetano.
-- Quem o não ha de ter? respondeu o guarda livros ainda desorientado. Basta ver o sr. Henrique de Mello tão sereno como se o prejuízo fosse de dez ou de doze contos !
-- Talvez ainda venha a ser de menos.
Manuel de Oliveira quasi caíra sobre a mesa em que costumava escrever, e ali ficara com os cotovellos ambos apoiados n'ella, e o rosto descançado sobre as mãos. Caetano da Silva que durante a conversação espreitara os movimentos de Henrique e de Oliveira para descobrir se haveria naufrágio ou só tormenta, saiu do gabinete sem poder descobrir onde iria Henrique de Mello realisar de repente os meios de salvar o patrão.
-- Estou perdido, meu querido Henrique, exclamou o velho Oliveira apenas o guarda-livros fechou a porta. Estou perdido e a minha Annica ficará sem ter que comer. E eu que só cuidava em deixal-a rica e independente! Que desgraça! Que desgraça! Agora hão de accusar-me das minhas despezas ordinárias e de mil outras cousas. Que terrível catastroffe !
-- Sr. Manuel de Oliveira nada de perder a cabeça, e fique baixo. As paredes têm ouvidos, e nas horas de desventura têem quatro ouvidos, em vez de dois. Vamos, nunca se dar por vencido, sempre é tempo. Ninguém cae tendo tantos meios de resistência?
-- Eu tenho com que resistir a prejuizos de quinhentos contos? Tenho com que acudir ao pagamento das letras recambiadas? Pode ser, Henrique. O seu talento é capaz de tudo, mas eu não avisto senão quebra immediata, deshonra, e morte... E a minha filha, coitadinha, orphã e sem pão... !
-- Pois eu vejo melhor. Não contemos com o perdido. A dificuldade presente é o pagamento das letras recambiadas e das que temos nas praças de cá. Para isso dispomos do activo inteiro da casa, que é superior a quinhentos contos.
-- Talvez, se tudo pudesse ser vendido em occasião opportuna, respondeu Oliveira a quem o sangue frio do Henrique ia inspirando confiança.
-- Pois nós faremos que seja opportuna. O sr. Manuel Oliveira na sua afflicção esqueceu-se de que também sou capitalista, e que, não sendo negociante, posso hypothecar os meus bens sem perder crédito cuja falta venha a estorvar as minhas transacções. Parece-me, accrescentou Henrique com voz commovida, que não devia receiar que á sua filha viesse a faltar pão...
-- Basta, Henrique. Perdoe-me, exclamou o bom velho já nos braços do amigo nos quaes viera lançar-se debulhado em lágrimas. A sua alma é única no mundo !
-- Vejo que está agitado em demasia. E é necessário não se mostrar assim, quando o Caetano vier com os papéis. Agora cumpre sustentar o crédito.
-- Mas então que quer que eu faça?
-- Quero que não desanime, e que salvemos a casa que é o futuro de sua filha. O amor paternal deve alentar-lhe os brios.
-- E alenta sim, disse Manuel de Oliveira limpando as lágrimas e indo sentar-se na cadeira. Aqui me tem prompto para tudo, excepto para dirigir. Tenho a cabeça perdida. Caí de mui alto, meu caro amigo !
Ainda não caiu, nem ha de cair, espero em Deus. Eu dirigirei, mas escreva a Salvador Lopes. É o primeiro capitalista do Rio Janeiro e não o seria por certo sem o auxílio que v. ex.a lhe prestou tanto em Angola como no Brazil. Conte-lhe que a sua casa está em crise, mas que se pode salvar com diligência e boa direcção. Não lhe peça nada. Eu é que na minha carta lhe hei de
Poucos minutos depois da partida de Manuel de Oliveira voltou o guarda-livros com o balanço. Era ainda avultado o activo da casa, porém a realisação forçada podia diminuil-o consideravelmente, e faltava dinheiro para o giro ordinário que apesar do crédito exigia grossos capitaes.
Chegariam brevemente protestadas as letras de Hamburgo. O dinheiro de Londres parecia perdido. De que valia ter propriedades e depósitos de géneros, não se podendo liquidar e vender sem revelar grande mingua? Em caixa havia apenas vinte e cinco contos em metal, e cinco em acções que dariam perda. As letras por cobrar no reino inteiro não excediam a sessenta contos, e algumas deviam ser reformadas, se os acceitantes exigisissem, porque fora assim o ajuste.
Caetano da Silva expondo a Henrique a situação da casa julgava infallível a quebra, mas dizia que o sr. Oliveira não estava preparado para ella, e que a posição era perigosa; muito perigosa para a honra do fallido. Não sei se accusava o velho por não ter seguido os seus cônscios. É costume de quantos assistem a grandes desastres que não saberiam ter evitado, e para os quaes ás vezes contribuiram, darem o coice do asno no leão moribundo !
Objectava-lhe Henrique que, obtido o dinheiro para as letras de Hamburgo, tudo se poderia conpor e que até estas letras, tendo sido passadas a favor do Contrato do Tabaco e do Banco, talvez se pudessem reformar. Caetano da Silva abanava a cabeça, dava á physionomia apparencia severa, e repetia que Manoel de Oliveira não estava preparado para a catástrophe.
Conhecia Henrique o carácter sizudo de Caetano e o costume que tinha de não dizer as cousas senão depois de largos rodeios. Instou pois com elle para que revelasse tudo, indicando-lhe que era impossível dirigir bem a casa, em similhante crise, não sabendo a fundo o estado de todos os negocios d'ella. Caetano da Silva abaixava os olhos; callava-se; ia até á janella; suspirava ; mas não dizia palavra. A final Henrique apertou tanto com o homem que alcançou saber que em outra escripturação de que não rezava o balanço, havia irregularidades de grande monta.
-- Mas no balanço deve estar tudo, volveu Henrique, ou não é verdadeiro e leal.
-- É que, sr. Henrique de Mello, aqui ha...
N'este ponto um criado annunciou que estava ali o sr. José de Gouveia, thesoureiro da Misericórdia. Em quanto ó creado voltou a pedir ao novo visitante que se dignasse esperar alguns minutos na sala onde o introduzira, Caetano revelou a Henrique que na caixa da Misericórdia faltavam sommas consideráveis que o sr. Oliveira tencionava inteirar com os fundos de Londres, e que taes sommas não figuravam no balanço com declaração da sua procedência, porque a escripturação da Santa Casa era separada. «Ahi n'esse papel, accrescentou Caetano da Silva apontando para o balanço, estão creditadas ao sr. Oliveira porque foi dinheiro dado por elle.»
Empallideceu Henrique ao ouvir tal declaração. Até ahi só vira necessidade de energia e de trabalho. Não o assustava. Mais longe avistara a possibilidade de salvamento ou a pobresa honrada. Também o não abalára o receio de tal porvir. Agora porém já era a deshonra, o crime de depositário infiel, o desvio dos bens dos pobres, o abuso de confiança, a prisão sem fiança, o processo crime, e as penas severissimas do terrível livro V das Ordenações do Reino.
Conheceu Henrique o perigo em que estava Manuel de Oliveira, e na hora infausta lembrou-se unicamente dos benefícios que lhe devia, e do amor que tinha a D. Anna. Resolveu arriscar tudo para salval-os. Já nao duvidava do sentimento amoroso que lhe inspirara a filha do negociante. Se duvidasse, este era o melhor ensejo de medir a profundidade da paixão. Quem se não affasta da desgraça, virtuosamente procede. Quem não desampara a deshonra, imita a misericórdia divina e pratica acto de heroicidade que a religião inspira, mas que não se realisa sem que o amor dê força necessária para tão ousado commettimento.
Foi rápida a resolução de Henrique. Seguiu a primeira inspiração de alma, aquella de que o príncipe de Talleyrand mandava acautellar por ser sempre boa ! Voltando-se para Caetano da Silva, Henrique reprehendeu-o por ter consentido em similhante abuso, não lhe admittindo por desculpa a obediência ás ordens do patrão, porque n'esses casos o empregado honesto, para não ser cúmplice, despede-se. Observou-lhe que os livros dos negociantes devem estar sempre em estado de irem do escriptorio para o tribunal, como a consciencia do homem virtuoso ha de andar sempre precatada, e pronta a comparecer diante do Supremo Juiz, e terminou notando que o guarda-livros não é machina de escripturação e de conta, é também fiador moral da lisura das transacções para com o público.
Depois d'esta admoestação honesta mas sagaz, que incutindo no pobre Caetano da Siiva o terror da cumplicidade o obrigaria a trabalhar vigorosamente por interesse próprio na salvação commum, deu-lhe ordem de regressar ao escriptorio para mandar entrar o thesoureiro da Misericórdia.
O sr. José de Gouvea era proprietário na cidade, rico e avarento, mas egoísta e preguiçoso. Por força das duas últimas qualidades puzera nas mãos de Manuel de Oliveira o cofre da Misericórdia, pelo modo que fica narrado, e nunca mais viera saber do dinheiro legalmente confiado á sua guarda e vigilância. Entrou com bastante precipitação, e encontrou Henrique passeando no gabinete. Olhou para todos os lados buscando o velho negociante, e não o descobrindo estacou no meio do quarto exclamando com certa ansiedade :
-- O sr. Manuel de Oliveira? Cuidei que estava aqui.
-- O sr. Manuel de Oliveira está doente. Teve más notícias pelo paquete. N'estes ultimos dias perdeu em duas quebras 500 contos.
-- Senhor Deus, misericórdia ! E então agora?
-- Então agora, respondeu Henrique sorrindo e sentando-se em um sofá, estão perdidos. É tratar de não perder outros. Sente-se, sr. Gouvéa.
-- Muito obrigado. Estou muito bem. Mas outros quinhentos contos, volveu José de Gouvêa sentando-se e limpando o rosto onde o susto de ter de repor o cofre da Santa Casa se transformava em bagas de suor, outros quinhentos contos não se perdem assim.
-- É mister têl-os. Não é vaidade, sr. Gouvêa?
-- Justamente, meu senhor.
-- Pois o sr. Manuel de Oliveira está n'esse caso, graças a Deus.
-- Pode ser, retrucou o thesoureiro com voz duvidosa. Passava por um dos homens mais ricos de Portagal, e assim devia ser ás despezas exorbitantes que fazia; mas, sr. Henrique de Mello, aqui para nós, 500 contos é muito dinheiro. Então depois de ter perdido outros 500 ! ! Em fim isso é lá com elle. Deus queira que lhe não aconteça mal, porém eu preciso falar-lhe hoje por força.
-- Hoje é impossivel. Se está de cama...
-- Pois irei fallar-lhe á cama. É que posso ficar perdido, sr. Henrique de Mello. Sou responsável pelo cofre da Misericórdia, e o cofre está aqui. De uma hora para a outra cae a casa, e eu não quero ficar debaixo. Nunca fiz mal a ninguém, mas não tenho passado privações para a final morrer pobre como Job. Isto não è duvidar da probidade do nosso provedor; emfim como aquelle que diz...
-- Mas então, interrompeu Henrique, é escusado incommodar o sr. Manuel de Oliveira. Quanto deve estar na caixa da Santa Casa?
-- Eu nem sei. Ando agora n'este desassocego pela confiança que tinha no sr. Manuel de Oliveira. Elle punha e dispunha, e eu assignava de cruz. A meza da Misericórdia assim o quiz... !
-- Pois eu lhe digo já a somma que tem de receber.
-- E quando poderei recebera?
-- Já mesmo, se quizer.
-- Já, não senhor; mas amanhã. . .
-- Amanhã é domingo.
-- E na segunda-feira de manhã? Bem vê que andam na cidade uns rumores ...
-- Hoje ou segunda-feira, quando quizer, respondeu Henrique. O dinheiro está prompto e não faça caso aos rumores. Viva socegado. Cá estou eu dentro da nau, e não tenho medo da tormenta.
Henrique tocou a campainha. Veiu um criado e recebeu ordem de ir chamar Caetano da Silva que appareceu logo prevenido para o negócio de que sabia todos os promenores, por ser quem depois da saída de Henrique de Mello dirigia os negócios e transacções da casa.
-- Que somma deve estar no cofre da Misericórdia? perguntou Henrique.
-- Noventa e dois contos seiscentos e setenta e nove mil réis, parte em notas, parte em metal, respondeu o guarda livros.
-- E ainda se conservam em caixa particular?
-- Como sempre. Estão n'esse cofre de ferro ahi ao pé da mesa do sr. Oliveira. Elle é quem tem a chave.
-- Bem. O sr. thesoureiro quer receber o dinheiro pelo qual é responsável. Para não ter de ir buscar a chave á cidade alta, talvez possa tirar da caixa da casa a somma necessária para o pagamento.
-- Ha na minha caixa vinte e tantos contos disponíveis, porém se é necessário completar a somma, tenho onde mandar buscar o resto. O peior trabalho será contar tanto dinheiro por ser a maior parte em metal. Se o sr. thesoureiro quizesse vir ajudar-me, em poucas horas arranjávamos isso...
-- Deus me livre! acudiu o thesoureiro espantado de que apesar das quebras o sr. Oliveira tivesse dinheiro para fazer face a tudo. Isto em mim não foi desconfiança. Foi satisfação ao público. Eu disse cá para mim que se o nosso bom Manoel de Oliveira estivesse perdido, era justo tomar eu conta do dinheiro da Santa Casa, e aqui o havia de encontrar intacto. Se tudo era mentira, iria d'esta casa desenganado, e ajudaria a restaurar-lhe o crédito que ha dias anda bem abocanhado d'esses patifes da baixa. Invejas de gente ruim ! Agora que sei tudo, vou socegado.
-- Não senhor. Queremos que venha segunda feira receber. O sr. Caetano já tinha ordem para o avisar, porque o nosso Oliveira está velho e não quer complicações estranhas nas suas contas.
-- Mas, sr. Henrique, porque não ha de continuar tudo como estava? Olhe que eu não sou desconfiado; isto foi uma aquella...
-- Fosse o que fosse, sr. Gouvéa. Venha segunda feira receber.
-- Pois então virei na segunda feira de manhã. Valha-me Deus! Onde hei de ir agora pôr este dinheiro?
Mal se ausentara o thesoureiro mandou Henrique de Mello pedir pelo telegrapho ao presidente do Banco de Lisboa, seu amigo particular, que pelo mesmo telegrapho puzesse em Coimbra á disposição de Manuel de Oliveira o dinheiro que, desde o princípio da demanda e desde o ajuste de contas com José de Mello, se conservava no Banco á sua ordem. Era mais de cem contos.
Escreveu depois a Salvador Lopes de Sousa, do Rio de Janeiro, expondo-lhe francamente o estado da casa, excepto na parte que dizia respeito á Misericórdia, e accrescentando que era inevitável a ruina do velho por causa das quotas de Bergenstein e de Smith e Davis, se mão poderosa o não auxiliasse.
«Sou rico,» concluía Henrique, «mas tenho mãe. O que não fôr necessário para ella, entrará na caixa de Manuel de Oliveira, porém não basta. Eu devo a esta casa tantos favores como v. s.a de cujo brio tenho noticia por fama.»
Antes de fechar o gabinete para ir consolar o desafortunado pae de D. Anna, Henrique chamou o guarda-livros, e disse-lhe:
-- Sr. Caetano da Silva. Segunda feira começa a nossa batalha para salvar esta casa. Sente-se com ânimo para a empreza?
-- Sinto-me com ânimo de lhe obedecer em tudo, apesar de não vêr modo de evitar a fallência. Nós enganámos o thesoureiro da Misericórdia, mas é engano de 48 horas. O sr. Henrique de Mello teimou com elle. Segunda feira aqui o temos.
-- N'esta casa, sr. Caetano da Silva, em quanto eu estiver n'ella, respondeu Henrique de Mello com severidade, não se engana ninguém. O thesoureiro ha de receber o dinheiro segunda feira.
-- Noventa e dois contos seiscentos e setenta e nove mil réis?
-- Sim senhor, essa enorme quantia. Na segunda feira antes de vir para o escriptorio, passe por casa do sr. Oliveira para trazer cem contos para a caixa.
-- Pois elle tem cem contos em casa?
-- De certo não, mas lá estarei eu para lhe indicar aonde os ha de ir receber.
-- Isso é outro negócio. Eu bem digo que estou prompto a obedecer a v. ex.a, mas que não sei mandar. Este reforço não conhecia eu. Na segunda feira lá irei de manhã cedo. Quer v. ex.a mais alguma cousa?
-- É preciso saber quanto azeite ha de venda na cidade e na Figueira, e o preço a três, seis e nove mezes, como é costume. Veja também se o Rodrigues da Praça ainda tem o navio na Figueira, e se o pode fretar para Londres e por quanto.
O guarda livros retirou-se curioso de saber d'onde saíam aquelles abençoados cem contos, que não impediam a quebra de Manuel de Oliveira, mas que a podiam addiar, e em todo o caso o tiravam da maior difficuldade. A curiosidade porém não foi, nem podia ser, duradoira. Os guarda-livros e caixeiros dos negociantes são como os coveiros. Abrem a cova e enterram os mortos, mas não lhes importa a biographia d'elles.
O telegrapbo na tarde de sabbado, e no domingo, cumpriu os desejos de Henrique. As principaes casas de Coimbra, a administração do Contracto do Tabaco, e o recebedor da Fazenda, receberam ordens para porem grossas quantias á disposição de Manuel de Oliveira. Como vinham todas do presidente do Banco, e com grande recommendação, cada qual entendeu que o velho negociante fizera acudir os seus capitaes a Coimbra, e quando, como é de uso em terra pequena, contaram uns aos outros pela tarde, na Calçada e na Ponte, o theor dos despachos recebidos, decidiram todos que Manuel de Oliveira era com effeito collosso de riqueza e de crédito.
Na segunda feira passou o cofre da Santa Casa para as mãos do thesoureiro, trémulas com inquieto receio de terem de guardar tão avultada quantia. O sr. José de Gouvêa estava mais amedrontado, agora que os noventa contos lhe iam para casa, do que antes quando jaziam no cofre da Sophia sob a responsabilidade do velho commerciante. Veio mais de trinta vezes á Sophia com um sobrinho para transferir o dinheiro para o predio em que morava, e não disse palarra a ninguém. Ninguém pôde pois suspeitar que as ordens do Banco eram para cobrir o deficit da caixa da Misericórdia. Quando algum curioso lhe perguntava pelo cofre, respondia que não tinha receio e que se tivesse mil contos, os poria todos na casa do nosso bom velho.
A honra de Manuel de Oliveira estava salva e o crédito da firma momentaneamente robustecido.
Manuel de Oliveira era homem honrado. Fora devida a casualidades felizes e a incansáveis deligencias a sua immensa fortuna. Vinha-lhe também agora a desgraça de acasos desventurosos. Nenhum acto censurável lhe deslustrára a carreira commercial e os mais severos apreciadores da origem das riquezas alheias confessavam que o negociante coimbrão nem sequer possuía certa gíria mercantili muito frequente na classe, e que a polícia correccional se encarrega ás vezes de avaliar e corrigir.
O emprego do dinheiro da Misericórdia em caso inesperado foi devido á certeza de ter com que substituir immediatamente essa quantia, quando fosse necessário. Não sendo obrigado a apresentar as mesmas espécies que recebera, mas unicamente a somma dada em deposito, julgava elle -- e julgava bem -- que não poderia ser accusado de abuso de confiança, com tanto que restituísse a quantia depositada logo que pela Misericórdia lhe fosse pedida.
Pelo caminho do escriptorio para casa foi procurando socegar a consciência com estas razões ás quaes accrescentava que, tendo mandado pôr no banco de Londres porção avultada de dinheiro, n'ella podia ter incluído para maior segurança os noventa e dois contos que a Santa Casa apurara e mandara reservar para a reconstrucção e melhoramento do hospital. Se os srs. Smith e Davis se aproveitaram do dinheiro em vez de o porem no banco, que culpa tinha elle da deslealdade dos seus mandatários?
Assim foram aquietando-se os escrúpulos do velho sem que lhe occorresse que taes razões por boas que fossem, haviam de ser dadas do banco dos réos e não de dentro da traquitana que os machos levavam mui de passo, como pedia a inclinação do terreno, pela Couraça de Lisboa acima.
A chegada a casa antes da hora costumada sobresaltou D. Anna, porém a explicação de que era causa de tal novidade uma forte enxaqueca, affastou inteiramente a suspeita de caso mais grave. Era Manuel de Oliveira attreito a esta enfermidade, a qual lhe passava deitando-se e permanecendo em repouso e silêncio completo durante vinte e quatro horas. O velho abraçou e beijou a filha com amor de pae, apurado agora no chrisol do infortúnio, e recolheu ao quarto, menos inquieto de espírito mas realmente atacado da moléstia com que imaginára occultar a angústia.
Henrique veiu saber noticias do velho e disse que jantava com D. Anna e com a tia para que não ficassem sosinhas. Desejava descobrir se D. Anna sabia alguma cousa, e se teria valor para soffrer a desventura e para acceitar com placidez as penosas consequências d'ella. Parecia-lhe que sim. Sempre lhe ouvira que não havia felicidade sem socego de consciência, nem tranquillidade de ânimo que não tivesse por base o cumprimento exacto dos nossos deveres ; porém a vida innocente de D. Anna deslisára até então arredada de occasiões de praticar princípios tão severos com sacrifício próprio.
Urgia a necessidade de preparar a descuidosa donzella para a triste nova dos prejuízos commerciaes. Dependiam d'ella certas reformas, e devia partir de espontânea deliberação o corte por gastos próprios de família opulenta, mas escandalosos agora que tão outra do que d'antes era se mostrava a fortuna.
Henrique pedira a Manuel de Oliveira que occultasse á filha os desastres da casa porque cuidava poder remedial-os, porém o negócio da Misericórdia viera transtornar todas as suas combinações. Dados os cem contos que estavam no banco de Lisboa, e postos de parte os bens destinados a encargos sagrados, o que restava a Henrique não era sufficiente para cobrir o immenso deficit que as duas quebras tinham aberto no balanço da casa de Oliveira e C.a.
O leitor sabe que Henrique de Mello desfructava rendimento considerável, porém a maior parte dos bens eram de morgado. Se morresse, as terras passariam a José de Mello ou a seus filhos, e D. Barbara ficaria com algumas quintas allodiaes, cujo producto annual não excedia a dois contos de réis. Estava resolvido a dispor ainda de vinte contos hypothecando metade dos bens livres, mas reduzido então o rendimento d'elles a um conto de reis, cumpria-lhe não desviar nada dos valores que deviam assegurar a sua mãe velhice tranquilla e remediada.
N'este doloroso transe hesitava Henrique entre o sacrifício do que lhe restava, além da reserva destinada a D. Barbara, e a conservação d'esses bens para sustentar na desgraça a família que já tao sua era, e que ainda mais o viria a ser quando se realisasse o casamento. No fervor da santa affeiçao que consagrava a D. Anna, parecia-lhe que a honra e a boa fama de Manuel de Oliveira deviam salvar-se antes de attender á existência material da família. Vive-se mal com pão negro. Sem honra não se vive, nem bem nem mal.
Por outro lado, depois de paga a dívida á Santa Casa, a falta de cumprimento de outras obrigações era resultado das quebras de Hamburgo e de Londres. A fallência de Oliveira seria honrosa. Os credores não poderiam recusar-lhe moratória, durante a qual venceria talvez as difficuldades todas e resurgiria mais rico. Sacrificar capitaes que não eram da casa com o único intuito de evitar ao velho a amargura do epitheto de fallido, seria justo, se Henrique possuísse cabedal bastante para pagar as lettras recambiadas e para continuar o trafico importante de Manuel de Oliveira.
A alma nobre e generosa de Henrique procurava acertar com arbítrio que conciliasse o descanço do seu amigo e bemfeitor com os próprios deveres de filho de D. Barbara e de futuro esposo de D. Anna. Não lhe faltou em tal conjunctura, ao menos exteriormente, o admirável sangue frio que todos celebravam, mas os projectos succediam uns aos outros na mente agitadíssima, e o coração batia apressado e irregular a pedir resolução definitiva que o livrasse de receios vagos e afflictivos em tão melindrosa conjunctura.
Durante o jantar a que não assistiu Manuel de Oliveira por estar de cama, nenhum dos três convivas, D. Anna, Henrique e a tia velha, deu mostras de tristeza ou de inquietação. Muito entendido em traduzir a expressão da physionomia humana teria sido o homem que para o fim do jantar descobrisse affectação desusada na loquacidade de Henrique, e curiosidade anciosa no olhar de D. Anna. A tia, essa na verdade entregava-se unicamente á apreciação da habilidade artística do cosinheiro, assumpto no qual o seu voto reunia á auctoridade do gosto apurado a experiência de muitos annos.
Fora Henrique, poucos dias antes, visitar a quinta que possuía perto de Águeda. De passagem desviou-se da estrada para o lado direito e foi a Luzo ver o palácio que se estava concluindo ali por ordem de Manuel de Oliveira em vasta propriedade rural que comprara, haveria dois annos. Versou acerca das obras de Luzo a conversação durante o jantar.
Segundo affirmava Henrique, o palácio, os jardins e a tapada que ficava mui cerca da do Bussaco, logo que estivessem acabados, para o que bastariam uns quinze ou vinte contos, não seriam inferiores á propriedade que os Paes possuíam em Mangualde, ou á casa da Berjoeira que a família Moscoso levantou a pezo de ouro entre cerrados esquadrões de pinheiros na margem esquerda do Minho acima de Valença.
-- Fica uma propriedade de príncipe, terminou Henrique em tom de parasita lisongeiro que vae pagando em exageradas adulações a sopa de cada dia.
-- Tudo isso é muito bonito para quem gosta de ostentação, disse D. Anna descontente das manifestações vaidosas em que pela primeira vez peccava o seu namorado. Mas no fim de tudo para que serve tanto dinheiro que se está enterrando n'aquella quinta? Iremos lá uma vez cada anno. Algum haverá em que não iremos. Meu pae nunca teve grande affeição ao campo, e depois...
-- Ora não finja que é ingrata, minha senhora, interrompeu Henrique com o seu ar mais jovial. Se o sr. Manoel de Oliveira não tivesse uma filha, nunca lhe viria á idéa o que está fazendo.
-- Obrigado. Eu bem sei que a tal filha é a causa innocente de todos os desperdícios, mas diga-me, sr. Henrique de Mello, se não era melhor comprar uma boa casa em Lisboa para ir lá passar o inverno, quando meu pae quizesse.
-- O sr. Manuel de Oliveira pode fazer as obras do Bussaco e comprar a casa em Lisboa. Uma cousa não exclue a ontra.
D. Anna estava espantada d'estas vaidades de Henrique. Não as tendo próprias, era mui notável que se occupasse contra o seu costume em affagar as alheias. A tia escutava attentamente o que dizia Henrique, e dava com a cabeça signaes evidentes de approvação.
-- Diz muito bem, sr. Henrique de Mello, accrescentava ella. Meu irmão è muito rico. Pode fazer o que quizer. E depois com as obras dá de comer a muita gente. No fim de tudo, continuou ella voltando-se para D. Anna, talvez tu venhas a viver no campo. Pode teu marido preferir ás cidades a tranquillidade da aldeia.
-- Meu marido ! Se a tia não havia de vir com o meu marido ! replicou D. Anna em tom alegre e deitando a Henrique olhar malicioso. O meu marido ha de gostar do que me agradar a mim. Deus sabe por onde anda agora o tal meu marido !
-- Ás vezes, tornou a tia também com malícia e dando o exemplo de se levantar da mesa, anda mais perto do que se cuida...
Era esta respeitável tia, como a maior parte das tias velhas, excellente pessoa, e desprendida de quasi todas as pretenções das tias que por morte das mães de família as substituem na direcção dos negócios internos.
Supposto que D. Anna fosse de direito quem governava a casa, a velha irmã de Manoel de Oliveira assumira o caracter de primeiro ministro responsável com annuência e satisfação da sua querida sobrinha, em cujo nome se davam as ordens como se emanassem de um soberano dos que -- por ficção constitucional assaz decaída hoje -- reinam e não governam.
Quando Manuel de Oliveira não estava contente, não se dirigia á filha, ralhava com a irmã. D. Anna também recorria á tia em logar de reprehender os creados ou quando tinha que pedir ao pae qualquer cousa extraordinária. A tia estava por tudo, com tanto que seu irmão fosse o homem mais rico de Portugal. N'este ponto era inexorável e incorrigível. Parecia irmã de opulento e boçal ricaço, reexportado ha pouco de Minas Geraes ou de Matto Grosso.
Henrique e D. Anna passaram para a sala verde onde se tomava o café nas dias ordinários, e se recebiam as visitas de maior intimidade. A tia entrou para o interior da casa a promulgar as providencias domésticas que deviam regular o serviço do dia seguinte.
A sala verde chamava-se d'este modo por serem as paredes forradas de seda entrançada verde e branca, e os estofos dos móveis de fazenda egual na disposição das cores, embora differente no desenho. Os reposteiros eram de gosto similhante. As cortinas também verdes; mas de verão punham-se outras brancas com transelins e cordões verdes.
Nos dois lados em que não havia portas, estavam piano e harpa, duas obras primas de Erard, o grande restaurador do orgão das Tulherias, e uma pequena bibliotheca na qual as obras de Milton, de Pope, de Swift, e de Walter Scott em edições inglezas manifestavam a proveniência d'aquella limitada collecção que se completava com a bíblia e alguns livros espirituaes. Dois sophás dos que em França tem o nome de chaises longues, e que se tivessem sido inventados no Minho se chamariam preguiceiras e quatro poltronas -- o estylo culto exige que se intitulem cadeiras á Voltaire -- outras cadeiras de braços emparelhando com os sophás, duas estantesinhas com objectos artísticos, medalhas, moedas antigas, anneis romanos colhidos nas ruinas de Condeixa a Velha, e caricaturas de porcelana da fábrica da Vista Alegre; e no centro mesa de vastas dimensões, de forma oval, e de lavor delicado, mobilavam esta sala. Todos os móveis eram de pau preto.
Sobre a jardineira, pois que é de uso geral dar-lhe este nome, fulgurava o candieiro de bronze á feição de gomil em cuja superfície absolutamente lisa se enroscava uma serpente desde a base até perto da luz. Cercavam o candieiro vários periódicos nacionaes e estrangeiros e os álbuns e livros com estampas que a moda exige em taes logares. Em torno da mesa havia seis cadeiras pequenas, de demasco encarnado, douradas, com encosto aberto e assento acolchoado e de seda. Era a casa de maior conforto em todo o palácio.
Para esta sala vinha ás vezes bordar a filha de Manuel de Oliveira e aqui também repousava do trabalho, sentando-se ao piano ou lendo algum livro mais favorecido seu, o qual durante o valimento permanecia por especial distincção sobre pequena mesa de ríquissímo charão, que viera de Macau de presente ao velho negociante, e que elle offerecera logo a D. Anna. Gosava então d'esta prerogativa o Camões de Garrett, que n'aquelle anno se publicara no tomo l.o das obras do grande poeta.
A tia de vez em quando aproximava-se da mesa para ver se o valido era sempre o mesmo, ou se já tinha sido substituído, e nunca lhe esquecia dizer : Estas meninas de agora não ha livro que as satisfaça. Um acabado, outro. Eu leio ha tantos annos A Mocidade Enganada e Desenganada e sempre ali acho cousas novas.» Com effeito este enorme cartapacio era livro estimado da tia de D. Anna, ao qual só uma vez, uma única vez, fòra infiel para ler ás escondidas e a pedido da cunhada a traducção das Viagens de Gulliver que lhe pareceu obra mentirosa e insípida em comparação da outra, e sempre lhe ficaram seus laivos de remorso por ter faltado á fé quasi conjugal que jurara ao seu livro querido.
Henrique de Mello apenas entrou na sala foi direito á jardineira e começou a ler uma apoz outra a gazetilha dos jornaes, mas de pé e com manifestos signaes de curiosidade interesseira. Queria ver se fallavam da quebra de Smith e Davis que em Lisboa e Porto devia ter causado abalo por ser casa que tinha com as duas praças commerciaes relações importantes. D. Anna dirigiu-se para o lado do piano, porém attentando no que Henrique estava fazendo e suspeitando talvez a causa do exame minucioso dos periódicos, veiu de mansinho até perto da mesa, pôz as duas mãos reunidas sobre o hombro esquerdo do futuro esposo, e procurando descobrir-lhe no perfil a verdade acerca do que ella antevia, disse com voz carinhosíssima :
-- Meu amigo, meu caro Henrique. Não se constranja. Diga-me a verdade.
-- Mas que verdade quer que eu lhe diga? Eu nunca menti.
-- Bem sei, meu Henrique. Calar não é mentir, mas eu quero que falle. A doença de meu pae pode ser natural, mas a sua alegria á mesa e a vanglória desusada com que esteve apregoando as nossas riquezas, é que o não são, e a curiosidade de ler os jornaes em logar de ir comigo para o piano, ainda menos. Diga-me tudo, Henrique. Vivo menos assustada conhecendo o mal do que suspeitando-o. Não queira soffrer só, concluiu D. Anna apertando amorosamente o hombro de Henrique entre os seus mimosos braços. A parte de afflicção que tocar a cada um de nós, será novo laço entre duas almas que já se querem tanto. A essa confiança em mim dar-me-ha força para supportar qualquer desventura.
Henrique deixou cair da mão os jornaes, cingiu com o braço esquerdo o airoso corpo de D. Anna, e apertou-a ao coração com ternura e commoção que lhe embargavam a falla. Ella recostou a cabeça sobre o hombro de Henrique cujos lábios imprimiram na fronte da assustada donzella o primeiro beijo de amor.
-- Annica, disse Henrique ainda com voz convulsa, na prosperidade e na desventura eu hei de estar sempre comtigo. O bem ha de ser de nós ambos. O mal egualmente.
D. Anna encostada ao noivo cobria com a mão esquerda o rosto, e soluçava debulhada em pranto. Nâo era vergonha da intimidade repentina a que o soffrimento commum arrojara os dois amantes. O beijo de Henrique fòra o annel nupcial que ella acceitava gostosamente e de que não se envergonhava. D. Anna chorava a desgraça paterna que ainda não conhecia bem, mas de que a resposta de Henrique lhe confirmara as terriveis suspeitas.
Voltára-se o mancebo para ella tendo-a sempre nos braços e pedindo-lhe que se não inquietasse ; que o ouvisse porque tudo lhe contaria. D. Anna forcejou por vencer a dôr que a subjugara, passou os braços á volta do pescoço de Henrique, beijou-o castamente na face, limpou as lágrimas, sentou-se junto da jardineira e pediu-lhe que fizesse outro tanto.
-- Eu já não quero saber nada, disse D. Anna encostando-se melancholicamente á mesa. Sou tua mulher deante de Deus. Meu pae é também teu pae. Tu és nosso amigo, nosso defensor. És tudo para mim. Estou satisfeita e não me assusto.'
-- Essas palavras, Annica, são angélicas ! Carecia de as ouvir para me confortar. Mas porque tu és metade da minha alma, é mister que não ignores o que se passa dentro d'ella, respondeu Henrique tomando a mão de D. Anna. O teu parente Davis, de Londres, e o seu sócio Smith quebraram.
-- Já o sabia. Minha prima Izabel escreveu-me de Londres a annunciar-me esse triste caso, e o resto li eu na tua physionomia.
-- Ainda bem que leste. Ficava mal comigo mesmo, se o meu rosto se atrevesse a mentir-te. Porém o caso não é perigoso. A honra de teu pae está salva. O mais depende de trabalho.
-- Bem vês que não estou assustada desde que te ouvi fallar, mas não queria que meu pae padecesse sem eu saber a causa. As attribulaçoes d'elle são as minhas... as nossas, queria eu dizer.
-- É verdade que são tão minhas como tuas, mas è necessário fingir que as ignoras. A maior amargura d'elle seria imaginar que tu conheces as diffíceis circumstâncias em que a sua casa commercial vae estar talvez por muito tempo.
-- Ignorarei tudo e não poderei confortal-o! Pobre pae ! Tão honrado, tão bom para todos, e agora infeliz por culpa dos outros! E que não possa eu ajudal-o em cousa nenhuma! Ha desgraça maior? Eu sou absolutamente inútil! De que servem os dotes com que enriqueceram a minha educação, se nenhum d'elles póde prestar a quem tanto se esmerou em que eu os possuisse todos? As filhas dos negociantes deviam ser iniciadas nos segredos da profissão commercial ! Perdoa-me, Henrique, mas n'esta occasião invejo-te o saber que meu pae tanto encarece.
-- Não me invejes o ensejo de trabalhar em proveito de nós todos. É a maneira mais digna de merecer o teu amor. Possa eu levar ao cabo os meus intentos.
-- Então meu pobre pae fica inteiramente arruinado? Aquelles homens de Londres deviam-lhe muito? Não é verdade?
-- Muito. E já tinha havido outra quebra em Hamburgo que também nos prejudicara.
-- Que desventura! E as despezas extraordinárias que meu pae tem feito desde que eu vim de Pereira... Sempre me aborreceu este luxo.
-- Não foram as despezas, nem o luxo. Tudo era insignificante para a riqueza de teu pae. Foram casos imprevistos. D'elles nasce muitas vezes a prosperidade. A decadência também. O nome do sr. Manuel de Oliveira sairá dos contratempos commerciaes da sua casa sem mácula. Isto é o principal, porque ahi está a base do trabalho faturo e da renovação da riqueza.
-- Henrique, respondeu D. Anna apertando nas suas as mãos do mancebo, eu nunca podia duvidar da honra de meu pae, mas gosto de te ouvir fallar assim. Se meu pae tivesse chegado a infringir os seus deveres, morreríamos ambos ; elle de vergonha, e eu de desesperação de o não poder consolar! Agora aconteça o que acontecer. Eu confio em Deus, espero em ti, e sei que posso fazer todos os sacrifícios que forem necessários para diminuir os pezares de meu pae.
A tia e o criado que a seguia com o café, cortaram esta conversação. Outro criado annunciou que o sr. Álvaro de Araújo estava na sala das visitas. D. Anna fez um gesto de repugnância porque a visita do tagarella vinha interromper cogitações em que desejava engolfar-se. A tia propunha que o não recebessem sob pretexto da moléstia de Manuel de Oliveira, mas Henrique olhou para D. Anna de modo significativo, e ella disse ao criado que mandasse entrar o tal crianço.
-- Muito boas noites, minhas senhoras, disse Álvaro de Araújo nas mais agudas notas da sua voz de sovelão. Ouvi contar que o sr. Manuel de Oliveira estava doente, e vim logo saber se era cousa de cuidado. A mana Christina manda mil lembranças a v. ex.a, e sente muito os seus desgostos. Ella é tão amiga da sr.a D. Anna!
-- Muito agradecida, sr. Álvaro, ao seu cuidado e de sua irmã. A doença de meu pae não nos inquieta. É a sua enxaqueca do costume.
-- Antes assim, minha senhora. Adeus, sr. Henrique de Mello. Está lá para o canto. Não o vi quando entrei.
-- Eu estava a observar se não dava pela minha presença, respondeu Henrique, aproximando-se de Álvaro de Araújo com ar prasenteiro. Estes janotas, continuou voltando-se para a tia, em vendo senhoras não olham para mais ninguém.
-- É que eu confesso que vinha atrapalhado. Tinha ouvido dizer tantas cousas que realmente não sabia de mim. Agora é que vejo pelo socego em que os encontro, que tudo é mentira. Coimbra é assim. É a terra das patranhas.
-- Então que ouviu dizer, sr. Álvaro? perguntou a tia que estava cem léguas distante das intenções pérfidas do saltimbanco.
-- Uma corja de tolices, minha senhora. É que na verdade causa riso ! Pois não andam desde esta manhã a dizer que o sr. Manuel de Oliveira estava para quebrar; que ficava muita gente perdida com isso; que só á Misericórdia se lhe iam pela água abaixo mais de 150 contos que estavam para o hospital; e que por isso adoecera de paixão o sr. Oliveira. Vejam que terra esta, minhas senhoras !
-- Santo Deus! Que pouca vergonha ! exclamou a tia olhando para Henrique e para a sobrinha.
-- Não fazem v. ex.as idéa do que vae pela cidade a tal respeito ! E os mais amigos são os peiores ! Um grita : Eu bem o dizia ! Outro: Pois estava visto! Emfim são desapiedados. Eu cá disse á mana Christina que os amigos só se conheciam nas occasiões, e que na dúvida vinha immediatamente offerecer-me para quanto for serviço d'esta casa. Agora quando passava ali perto do jardim saltaram-me uns curiosos a quererem saber para onde vinha e a sustentarem que a quebra era infallível, que os grandes capitalistas acabavam sempre assim, que o luxo d'elles era o dinheiro dos pobres, e outros desaforos similhantes.
-- E então v. ex.a que lhe respondeu? replicou a tia enfurecida.
-- Eu... eu respondi-lhes que eram uns parvos e que se mettessem com a sua vida. Que se os negócios do sr. Oliveira corressem mal, já se teria começado a saber ha muito. Basta ver esta casa e a despeza que se faz n'ella, para a gente se convencer de que a riqueza do sr. Manuel de Oliveira é sólida.
-- Olhe, sr. Álvaro de Araújo, disse D. Anna que até ali não proferira palavra, eu de negócios de commercio não entendo, mas o que lhe posso asseverar é que o papá está com enxaqueca, e que não é cousa de cuidado. Também lhe posso mandar dar uma chávena de café, se o quer tomar comnosco. Quanto ao mais são negócios do escriptorio, e n'esses tanto eu como minha tia somos de tal ignorância. . .
-- Mas eu, interrompeu Henrique, é que poderia affirmar que os pagamentos do sr. Oliveira não deixarão de ser pontuaes por causa das quebras, porém não vale a pena. Sabe que conheço os negócios da casa.
-- Pois não sei! A palavra do sr. Henrique de Mello para mim é um evangelho. E para todos. É a flor da nobreza, da sciencia e até do commercio. Bem mostra que para tudo presta. Antes assim. Eu sou amigo verdadeiro ; aliás não estava agora aqui. O que eu ignoro é como se espalham tantas petas e com que fim !
-- Com o fim de prejudicar os homens sizudos e honrados, como é o sr. Manuel de Ohveira, replicou Henrique com seriedade.
-- Pois é isso. A mana Christina dizia-me que sem saber se era verdade, não tornasse mais a fallar na venda da nossa quinta do Seixadello, mas eu respondi-lhe que por isso mesmo é que a havia de lembrar. A compra desmentiria todos os boatos.
-- E diz bem, retrucou Henrique. A differença em que estava com o sr. Oliveira era de um conto de réis, porém elle não olha a dinheiro. Sempre a quer vender?
-- Se lhes faz conta... Bem sabe que a minha casa é toda para baixo de Coimbra. O Seixadello fica fora de mão lá para a Bairrada. Não duvido vender pelo seu justo valor.
-- Pois está comprada. Na segunda feira pôde receber arrhas e levar o escripto da siza. Se houver tempo de lavrar a escriptura, e de certo haverá, daremos n'esse mesmo dia o dinheiro todo.
-- A mim talvez me fizesse mais conta receber o preço em Lisboa ou no Porto, acudiu velhacamente o sr. Álvaro de Araújo.
-- Onde quizer, respondeu Henrique. A casa tem crédito aberto nas principaes praças, e onde o não ha aberto, abre-se.
-- Grande casa ! Eu sempre o disse á mana Christina e a toda a gente.
Os olhos de D. Anna recompensaram Henrique dos trabalhos e combates de que tão insolente criança viera tomar a iniciativa. A tia regosijava-se de ver desmentida a calumnia com a compra do Seixadello, e Álvaro de Araújo dizia comsigo mesmo que os boatos espalhados na cidade o tinham ajudado a vender bem a sua propriedade, e que, celebrado o contracto e passados os quarenta dias do código, podia o sr. Oliveira quebrar como quizesse, que havia ser a coisa que menos o incommodasse.
Ha gente que tem a humanidade na conta de insecto, de flor, ou de qualquer outro ente, animal ou vegetal, sujeita-a a processo chimico, n'elle lhe extrae o óleo essencial, e depois deita fora o resto por inútil. Álvaro de Araújo pertencia a esta escola. Extrahido o óleo essencial que era a compra da quinta, o resto à la grâce de Dieu, como dizem os francezes.
-- Agora, accrescentou elle levantando-se da cadeira, peço licença para me retirar. A mana Christina queria vir comigo, mas tínhamos visitas, e ha de estar lá em casa com cuidado. Quero ir socegal-a.
-- Então depois de amanhã lá o espero no escriptorio de uma para as duas horas, ajuntou Henrique correspondendo ás despedidas do rapaz.
-- Pois seriamente sempre compram o Seixadello assim de repente? Eu cuidei...
-- E porque não? interrompeu a tia despeitada. Meu irmão ainda pode comprar qualquer fazenda sem se prevenir quinze dias antes.
-- Não digo menos d'isso, minha senhora, atalhou Álvaro de Araújo com sorriso de ironia e já caminhando para a porta. Eu nunca duvidei, e agora ainda duvido menos.
Outras visitas mais sinceras e menos curiosas, assim como os parceiros do whisth de Manuel de Oliveira, cruzaram-se na escada com o jovem irmão de D. Christina, porém Álvaro de Araújo só lhes deu as boas noites com voz distraída. Tão absorto levava o pensamento nas vantagens da venda do Seixadello, e na habilidade com que por entre as ruinas da fortuna de Manuel de Oliveira soubera trazer a água ao seu moinho, segundo vulgarmente se diz!
No venerando mosteiro fundado em 1132 pelo arcediago de Coimbra, D. Tello, no sítio chamado dos Banhos Reaes residia, com escândalo de todas as beatas da cidade, a administração geral do districto de Coimbra e não sei que diversas outras repartições seculares e profanas. Da espaçosa cella, onde servido por moços fidalgos, com foro e moradia nos livros da casa real vivia exemplar e tranquillamente o D. Prior geral dos cónegos regrantes de Santa Cruz, seu prior crasteiro, bispo na igreja universal e cancellario da Universidade, governava agora a cidade e o districto de Coimbra em nome da rainha, um cavalheiro da Extremadura, prouvido interinamente no cargo de administrador geral que, alguns annos depois, veio a ter o nome de governador civil, e que já tivera por imitação franceza o titulo romano de prefeito.
Chegara um dia na successão dos tempos em que o poder real, de amigo e protector dos filhos de S. Theotonio, se transformara em adversário d'aquelles inoffensivos e regalados cenobitas, e os expulsara do santo recinto onde quatro infantes tiveram nas mãos o báculo de D. Prior, e onde se criaram D. Fulgencio e D. Theotonio de Bragança, e o senhor D. António, filho do infante D. Luiz.
Não lhes valeu a memória do vultuoso arcediago, nem a recordação de D. João Peculiar, nem o respeito devido a S. Theotonio, nem o exemplo de tantos reis e príncipes que com larga e generosa mão deram ao convento terras e herdades desde a montanhosa Cintra até á aprazível Leça nas immediações do Porto. Tudo lhes tiraram em um dia, e tudo venderam, alborcaram, ou, para melhor dizer, disperdiçaram e destruíram em breves annos.
Grandes deviam ser as culpas d'estes cónegos regrantes, pois que Deus se não amerceou d'elles n'aquella hora extrema, como tantas vezes fizera por meio dos espantosos milagres de que resam as chronicas !
O próprio rei D. Affonso Henriques que, noventa e nove annos depois da fundação do mosteiro, viera do outro mundo com a lança em riste matar o bispo D. Pedro Gavião por ter sollicitado do Papa certa bulla contraria aos privilégios dos cenobitas, d'esta vez não arrombou a campa sepulchral para acudir pelos seus antigos confrades.
Ao cabo de setecentos e dois annos saíram do esplêndido convento de Santa Cruz os cónegos regrantes de Santo Agostinho, e entrou por elle dentro a auctoridade temporal, apesar das cartas de mercê mandadas passar pelos senhores reis de Portugal, e sem embargo das bullas pontifícias com que tantos Papas os favoreceram; umas e outras cuidadosamente guardadas no riquíssimo archivo e cartório da casa.
Pareceu caso grave a muitos, e não faltou na cidade gente lida e erudita que lhe chamasse profanação sacrílega de que o vigário de Christo pediria contas estreitas ao braço secular. Depois d'aquelle successo do bispo negro no tempo de D. Affonso Henriques, diziam alguns cónegos da Sé, ainda outro se não vira igual a este de arrancar do mosteiro, reedificado por D. Manuel, os pacíficos frades cruzios.
A final o Pontífice não achou o negócio tão feio como o andavam pintando os devotos, e com uma boa bulla sanou as irregularidades do poder temporal, deixou os cónegos regrantes na rua, socegou as consciências timoratas, e levantou as censuras em que talvez incorrera, por desculpável ignorância do direito canónico, o magistrado administrativo, invasor da confortável cella do D. Prior de Santa Cruz.
N'ella vamos agora encontrar a s. ex.a em conferência particular com o sr. secretário geral.
Estavam próximas as eleições para deputados, e os trabalhos preparatórios do laboroso pacto nacional traziam angustiado o pessoal administrativo do reino. Era diária e já volumosíssima a correspondência particular com os administradores de concelho, recebedores, juizes, escrivães e tabelliães influentes, advogados célebres, médicos de fama, boticários de nome, e com todos aquelles que, na linguagem bastarda dos nossos degenerados tempos, intitulamos influências locaes á míngua de mais appropriada alcunha.
O administrador geral e o seu secretário iam abrindo as cartas e tomando nota do que era necessário para vencer a eleição em Alcabideque, nos Fornos, e em outras terras não menos importantes e conspícuas. Dependia o triumpho ministerial aqui de um sino, acolá de um muro, n'esta povoação de um hábito de Christo, em outra do promettido cemitério, mais longe de que fosse nomeado delegado do procurador régio certo e determinado bacharel !
Tal villa queria que lhe passassem ao lado todas as estradas do districto, e algum caminho de ferro, se chegasse a havel-os an Portugal; tal outra pretendia ser cabeça de comarca. Nâo sei se a aldêa da Lameira, nas faldas do Bussaco, pedia que a corte fosse residir ali dois ou três mezes de Verão ! ... O vencimento das suas demandas até ao supremo tribunal de justiça exigiam mais de quarenta proprietários independentes.
Alguns agentes eleitoraes já sollicitavam, com precoce conhecimento do futuro, certas sommas para almoço dos eleitores menos abastados, que de longe viessem deitar a sua lista conscienciosa, e para aluguer de cavalgaduras que transportassem aleijados e enfermos. Do mercado pessoal do voto poucos ou nenhuns fallavam, ainda então, nas suas cartas.
Já se sabe que o digno administrador geral e o seu não menos digno secretário tinham que prometter o sino, o muro, o hábito de Christo, o cemitério, o delegado, as estradas, a comarca, a corte, as demandas, e o dinheiro, como já haviam promettido debalde os seus illustres predecessores nas cadeiras curues do consulado administrativo de Coimbra. Accrescia mais a commenda que pretendia ha tantos annos homem muito influente da freguezia da Sé, e as honras de moço fidalgo com exercício para o filho de um cavalheiro da província, que desejava ser convidado ao paço quando ia de cinco em cinco annos a Lisboa gastar seiscentos mil réis, arrancados á despeza ordinária de sua nobre casa !
Os dois respeitáveis funccionáríos promettiam tudo quasi pezando-lhes de que tão pouco lhes pedissem. Pareceriam hoje amestrados em dirigir o suffrágio universal de qualquer annexação europea, e capazes de levar a bom caminho a unidade allemã com que tanta gente anda embaraçada e afflicta de um e de outro lado do Rheno. Prometter era o menos, cumprir as promessas é que ás vezes seria impossível ; porém o administrador geral, exercendo as funcções governativas interinamente, contava deitar a responsabilidade ás costas de quem o viesse substituir ou dos ministros, e retirar-se com fama de carácter bondoso e paternal.
Era no domingo immediato aos successos que o leitor já sabe, e nos domingos depois da missa costumavam reunir-se no palácio administrativo várias commissões de beneficiência a que presidia muitas vezes o chefe do districto.
Na sala de s. ex.a pela volta da hora e meia da tarde achavam-se várias pessoas d'entre as mais notáveis de Coimbra, alguns lentes da Universidade, e a maior parte dos mesários da Santa Casa da Misericórdia. Pertenciam todos á commissão dos asylos de mendicidade, e esperavam ali que o sr. administrador geral viesse abrir a sessão.
Acabado o trabalho eleitoral d'aquelle dia, s. ex.a perguntou ao secretario se a commissão dos asylos estava reunida.
-- Ahi estão na sala, respondeu o secretário, excepto o provedor da Misericórdia que adoeceu.
-- Manuel de Oliveira ! Então que tem? Cuido que hontem o vi passar na carruagem em Sansão... !
-- Pois é desde hontem que está doente. Dizem que foi com as notícias do paquete.
-- Mas que notícias foram essas?
-- A quebra de um parente da mulher que era banqueiro em Londres. Já asseguram por ahi que Manuel de Oliveira fica arruinado, e que vae quebrar!
-- Ora adeus ! Bem sabe comoéè esta nossa Coimbra ! Terras pequenas ! Meia cidade sempre a dizer mal da outra metade !
-- Não senhor. D'esta vez creio que é negócio de costa acima. E a Misericórdia está em maus lençoes...! O palerma do thesoureiro, tinha o cofre em casa de Manuel de Oliveira, e agora, se este chega a quebrar, não sei onde ha de ir buscar o dinheiro...!
Ficou pensativo o administrador geral. O secretário callou-se. Passados alguns intantes, s. ex.a tocou a campainha, tirou da gaveta um bilhete de visita, e disse ao contínuo que accudira ao som conhecido:
-- O meu creado que leve já este bilhete a casa do sr. conselheiro Manuel de Oliveira. Dirá que vae da minha parte saber se está melhor.»
-- Sr. secretário geral, proseguiu s. ex.a depois que se ausentou o contínuo, a notícia parece-me grave, mas eu posso affirmar-lhe que o Oliveira é homem honrado. Na classe commercial não lhe conheço superior e de poucos sei que o egualem. Qualquer que seja a verdade, se elle tem nas mãos o cofre da Misericórdia, è mister ajudal-o a sustentar o crédito para que possa pagar. Coimbra inteira perderia muito, se quebrasse uma das principaes casas de Portugal e a primeira da cidade e do districto.
-- Isso vejo eu, mas nós não podemos impedir que elle seja declarado fallido, nem pagar por elle !
-- De certo não, volveu o administrador geral com ar sizudo talvez por se lembrar de que o seu elegante secretário perdera vários mezes a fazer a corte a D. Anna, porém é nossa obrigação administrativa não o prejudicarmos espalhando taes notícias. Ainda que fôssemos inimigos d'elle, aqui não somos homens, somos empregados; representamos os poderes públicos que são amigos e protectores dos cidadãos. Homem que tanto bem fez á cidade e ao districto, e que o governo nomeou commendador ultimamente, deve achar protecção na auctoridade, quanto o permittem os limites legaes da nossa influência.
-- Mas dizem que elle dispoz dos dinheiros da Misericórdia, e n'esse caso. . .
-- N'esse caso devemos apurar a verdade, mas não auctorisar taes rumores com palavras indiscretas. Nem tantos são os homens ricos e honrados em Portugal! Não desacreditemos este sem pleno conhecimento dos factos. Bem sabe que, em se começando a dizer mal de um homem, nem depois que a justiça o declara illibado, respeitam as decisões d'ella os calumniadores. Se houvesse a lei de Lynch em Portugal, estávamos todos enforcados sob palavra dos nossos inimigos!
-- Pode V. ex.a acreditar que eu nunca fui inimigo de Manuel de Oliveira, e só por lealdade para com o meu chefe...
-- Sem dúvida, sr. secretário geral. Isto é estabelecer o princípio que ha de regular o meu procedimento, o seu, e o de todos os empregados. Eu sou administrador interino, e já tenho successor nomeado, porém hei de cumprir o meu dever em quanto estiver aqui.
-- Esteja V. ex.a certo de que a minha bocca se nao abrirá mais a tal respeito.
-- O silêncio em certas conjuncturas também não é bom. Falle com prudência administrativa, replicou o administrador sorrindo. Agora tenha a bondade de dizer a esses senhores que eu vou já abrir a sessão.
O secretário levou a correspondência eleitoral, entrou no seu gabinete, fechou-a na gaveta da mesa, passou defronte do espelho para ajustar o nó da gravata, e atravessou para a sala onde estavam esperando os membros da commissão. Ahi depois de recíprocos apertos de mão e das phrases cortezes, e não mui concisas, com que os portuguezes se cumprimentam e saúdam, voltou-se a tratar de Manuel de Oliveira acerca de cuja riqueza e situação actual disputavam com opiniões encontradas aquelles philantrópicos cidadãos conimbricenses. O secretário geral apenas ouviu pronunciar com desfavor o nome de Manuel de Oliveira, deu ao rosto compostura séria, carregou o sobrolho, e olhou com severidade para o atrevido preopinante que tomara a palavra.
Era um proprietário de Santo António dos Olivaes, que apesar de rico e de timbrar de independente trazia na administração geral cerca de vinte pretenções a respeito da estrada, do caminho, da egreja, da remissão de foros, e de tudo quanto mais de perto lhe tocava.
Ao ver o aspecto supercilioso do secretário ficou tranzido da imprudência em que mui innocentemente caira, por cuidar que a suprema auctoridade constitucional estava sempre disposta a abrir masmorras para o crime e a erigir templos á virtude, segundo lhe ensinara o cónego Ladislau quando em um subterrâneo de Subripas o recebera pedreiro livre em 1824. Dois mesários da Santa Casa que estavam mais afastados conversando no vão de uma janella, voltaram costas para rirem da atrapalhação do homem, e disseram um para o outro por entre os dentes que bom era ser rico porque sempre na desgraça encontram protecção as mãos que já tiveram muito dinheiro...!
-- Amigo, dizia um d'elles. Rapoza não come rapoza; come as gallinhas que são pequenas. . . !
Nisto entrou s. ex.a o sr. administrador geral interino, tomou o logar da presidência e começou os trabalhos dando parte de que o vice-presidente Manuel de Oliveira não comparecia por doente. O proprietário que ainda não tornara em si do susto de ter desagradado ao sr. secretário geral, disse com voz tremida :
-- Coitado ! Elle soffre de enxaquecas. Grande homem e grande commerciante é Manuel de Oliveira ! Trabalhador infatigável ! E honrado até ali.
-- Todos o temos n'essa conta, respondeu o administrador geral sem olhar para o atterrado proprietário e mudando de conversação.
Cuidou o pobre homem que o magistrado administrativo não gostara do elogio a Manuel de Oliveira, e ficou sem entender a severidade das physionomías administrativas que tão carrancudas se volviam ao vitupério como ao louvor. Pelo sim e pelo não recordando-se dos negócios que o traziam sempre nos corredores da administração, protestou interiormente nunca mais fallar em Manuel de Oliveira, nem para bem, nem para mal.
Nao quero obrigar o leitor a assistir á sessão da commissão, na qual nobres e burguezes, professores e simples cidadãos, escutaram com attenção, fallaram com abundância e gravidade acerca dos asylos, e deixaram conscienciosamente adiada a questão principal ! Costume antigo de todas as nossas assembléas ! No fim o administrador geral aproximou-se do thesoureíro da Misericórdia, e perguntou-lhe naturalmente se a Santa Casa contava principiar brevemente o hospital novo.
-- Saiba v. ex.*, respondeu o thesoureiro, que ainda não temos os 120 contos em que está orçada a obra, e a mesa não quer começar o edifício antes de ter o dinheiro em caixa.
-- N'isso fazem bem para não terem em Coimbra obras de Santa Engrácia. Mas se a memória me não engana, agora já lhes nâo falta muito.
-- Temos noventa e tantos contos.
-- Arrecadados?
-- Sim senhor. Estão sob a minha responsabilidade em casa do nosso vice-presidente.
-- Ah! Muito bem.
-- Eu com estes boatos que andam na cidade desde hontem, confesso que não pude ter mão em mim e fui a casa delle, porque emfim v. ex.a bem conhece que o dinheiro é sangue ! E então aquelle que é sangue de pobres...!
-- E que lhe disse o Oliveira?
-- Elle não estava lá. Tinha ido para casa doente. Quem me fallou, foi o Henrique de Mello que é tudo ali na casa. Queriam-me dar logo parte do dinheiro e ir buscar o resto. Eu não quiz, nem quero tal somma em minha casa. De casa d'elle só para aqui, se v. ex.a der licença.
-- Não me parece necessário, respondeu o administrador geral; entretanto fallaremos d'este negócio mais descansadamente hoje á noite em casa de Manuel de Oliveira. Agora peço-lhes licença, porque tenho de ir ao sr. reitor que está á minha espera, concluiu s. ex.a olhando para o relógio.
A assembléa dissolveu-se. Os dois mesários ao despedirem-se na rua sorriram, e um disse ao outro :
-- Meu amigo, é dictado velho : Quem tem padrinho, não morre moiro. A mim me aconteça o mal que ha de vir a Manuel de Oliveira. Tu vaes lá á noite?
-- Essa é boa! Sem falta, e tu também?
-- Pois então! Tu não ouviste. Manda quem pôde. Até á noite.
-- Vae cedo para vermos quem apparece.
Poucos minutos depois entrava na carruagem o administrador geral dando ordem ao boleeiro que o levasse á Universidade.
Ao despedir-se do secretário que o acompanhara até á porta, s. ex.a offereceu-lhe leval-o na sua companhia á Couraça de Lisboa onde morava.
-- Agradeço muito a v. ex.a e acceito, mas terei a honra de o acompanhar á cidade alta, porque preciso de ir para os lados do Jardim Botânico.
A carruagem seguiu levando os dois funccionários administrativos dos quaes um ficou em casa do reitor, e o outro foi deixar o seu bilhete de visita no palácio de Manuel de Oliveira.
N'essa noite houve nas salas do negociante coimbrão tamanha concorrência como nos seus bailes de inverno. O administrador geral e o seu secretário, o commandante militar, o reitor da universidade, o vigário capitular, vários cónegos, e grande número de cathedraticos, os mesários da Santa Casa, muitos commerciantes da cidade, as famílias da nobreza, e finalmente as pessoas de maior valia em Coimbra, parecia terem ajustado comparecer sem convite em casa de Manuel de Oliveira. Foi preciso mandar accender os lustres em outras salas além d'aquella em que ordinariamente se passavam os serões domingueiros.
O dono da casa a quem o repoiso e a confiança no talento e na amisade de Henrique de Mello haviam gradualmente melhorado, recebia commovido os cumprimentos dos seus compatriotas.
D. Anna cuidava que esta manifestação consoladora era devida aos esforços de Henrique e ao respeito que lhe tinham na cidade. D'ahi tirava legítimo desvanecimento da escolha que fizera, e de ser amada por homem tão superior.
A tia velha andava correndo as salas, e dando ordem para que se abrissem as que ainda estavam fechadas. De vez em quando passava pela copa a inspeccionar os preparativos do chá e dos refrescos, recommendando que fossem condignos de tão numerosa e brilhante companhia e proporcionados à riqueza de Manuel de Oliveira que ella julgava colossal. Quando por acaso ia sentar-se perto de alguém, era para lhe contar que seu irmão comprara o Seixadello a Álvaro de Araújo, pagando-o a peso de oiro.
Henrique, sem acreditar na sinceridade d'aquella espontânea reunião, saboreava com prazer o triumpho moral do seu velho amigo e protector, e sacrificando ás suas idéas positivas e praáicas o exame da lealdade e bons sentimentos das pessoas que atulhavam as salas, meditava tirar d'esta circumstancia fortuita elementos de crédito e de salvação para a casa de Oliveira e C.a. D. Barbara seguia com affectuosos olhos a futura nora e o filho, alegrava-se da alegria d'elles, sorria quando sorriam, e ficava séria e grave, se lhes via o rosto n'esta compostura.
Dera-lhe o amor maternal a faculdade imitativa própria das creanças. Tão suave e rico de innocência infantil é o amor das mães!
Procedia de mui differentes causas este inopinado concurso de pessoas. O administrador geral viera pelos motivos que confiara ao secretário. As outras auctoridades sabendo-o a tempo, não quizeram que se lhes notasse a falta. Os negociantes que durante o dia receberam despachos telegraphicos para entregarem quantias avultadas a Manuel de Oliveira, espantados de que o governo tivesse emprestado o telegrapho para serviço de um particular, acudiram a captar a benevolência do homem tão poderoso, a quem talvez teriam de pedir no dia seguinte que lhes espaçasse o pagamento por três ou quatro dias.
Os verdadeiros amigos da casa e os de Henrique de Mello não só compareceram, senão que andaram pela cidade a dizer quanta gente se esperava á noute, excitando assim a curiosidade dos indifferentes, e determinando-os a apresentarem-se. Álvaro de Araújo e a manaChristina foram dos primeiros á chegar e dos últimos a partir. Ninguém tomou o pulso com tanto cuidado á popularidade e crédito do velho exportador de vinhos. O público, sempre justo nas suas apreciações, ficou entendendo que depois de Henrique de Mello, o menino Álvaro era o mais fiel amigo da família Oliveira!
Esteve o administrador geral durante muito tempo a conversar com o velho negociante antes de se organisar a mesa em que ambos deviam jogar o whist com o reitor e o commandante militar, e d'ali passando a girar pelas salas para fallar com diversas pessoas, encontrou o secretário e perguntou-lhe, se já sabia mais alguma cousa.
-- Sei que vieram de Lisboa pelo telegrapho a favor de Manuel de Oliveira ordens de pagamento de importância de cerca de cem contos. Dizem que empenhara no banco o depósito de vinhos e azeite que tem em Lisboa.
-- Não é verdade. As ordens são do banco, mas foram pedidas d'aqui sobre dinheiro líquido que está lá. Eu fui, póde imaginal-o, quem mandou a parte.
-- É verdade. Ninguém o sabe melhor de que v. ex.a.
-- Ora diga-me que effeito causou na cidade?
-- Muito grande na classe do commércio. É o que V. ex.a vê. Até o Rodrigues da Praça ahi anda. Pela segunda vez o vejo de casaca. A primeira foi em casa de V. ex.a.
-- Mas não acha que muita d'esta gente veio por saber que nós vínhamos?
-- De certo, respondeu o secretário curvando a cabeça administrativamente.
-- Isto não é vaidade minha. Ainda esta manhã lhe disse que não sou homem, sou administrador geral. É curiosidade de governo. Diga-me a sua opinião com franqueza.
-- Eu fallo sempre com lealdade aos meus chefes. Alguns negociantes vieram por causas commerciaes, mas o resto foi obra de v. ex.a.
-- Ora não tira d'este facto bom agoiro para as eleições da cidade, e de algumas terras do districto que dependem das pessoas que estão aqui?
-- Agora é que eu vejo, respondeu o secretário com admiração também administrativa, qual foi a idéa de V. ex.a. Esta é de mestre ! Confesso e abaixo a cabeça. A eleição da cidade póde suppor-se ganha.
-- Muito bem. Continue a ajudar-me em favor de Manuel de Oliveira, e creia que nunca lhe hei de recommendar acção que por algum modo não convenha ao serviço público.
O administrador depois d'este desfecho digno de marquez de Pombal provinciano, foi continuando o giro até à meza do whist por entre o tiroteio de cumprimentos que festeja sempre a passagem dos homens de quem muitos outros dependem. Introduziu-se o secretário pelos grupos a dizer maravilhas da solidez da casa de Oliveira, e n'estas voltas foi dar com Álvaro de Araújo que em conversação com dois negociantes da Calçada estava inspirando com phrases ambíguas receios acerca do effeito das quebras de Hamburgo e de Londres nos haveres do pae de D. Anna.
-- Eu cá estou na minha, dizia elle. Vale mais possuir terras do que ter capitaes. Olhem o que se dizia de Manuel de Oliveira. Hoje de manhã ninguém sabia se elle era pobre ou se era rico ! Agora -- e mais Deus sabe a verdade -- é o que estão vendo! Ao menos as terras não se occultam. A quem as quer observar, basta olhar para ellas. O dinheiro está na burra. Ninguém o vê. Vae um dia a gente procural-o, e encontra o sitio onde o guardava! Nada, nada. Eu cá sou pelos torrões. Rendem menos, mas não giram. Eu não gosto dos bens que giram...!
-- De modo que, interrompeu o secretário ainda aparentado com a familia de Álvaro, não gostas dos valores circulantes. Pois nem o dinheiro te agrada?
-- Valha-me Deus ! Se tu não havias de vir cortar-me a palavra ! Nunca vi homem assim ! Vae fazer a corte à D. Anna ou ao teu administrador geral.
-- Tu é que tens a culpa, meu Álvaro. Quando só proferes tolices, não faço caso; porém quando dizes maldades, gosto de te ir à mão. O que tu queres è mexericar contra Manuel de Oliveira.
-- Não quero tal, gritou com voz esganiçada Álvaro de Araújo. Eu sou amigo d'esta casa por sympathia e não por interesses políticos ou por esperanças de outra natureza, como algumas pessoas que eu conheço ...
-- Não grites, Álvaro. Já sabia que eras tolo, mas sò agora me convenci de que és tolo e mau, retrucou o secretario geral voltando-lhe as costas.
No rosto de Álvaro de Áraujo assumou o rubor dos fracos. Nenhum outro dá côr mais purpúrea á face; nenhum aquece com maior calor a cabeça, mas o sangue que produz tão intensamente estes dois effeitos deixa o coração vasio e como que paralisado. Explica facilmente a sciencia estes phenomenos. A nós, simples observadores da natureza, basta-nos ver que nos homens valorosos o sangue parece concentrar-se no coração para fortifical-o, e que nos outros foge espavorido para as extremidades como se procurasse desamparar o corpo dos covardes.
-- Já viram animal assim! exclamou Álvaro voltando-se para os que estavam á roda aguardando com sorriso de malícia a maneira pela qual o menino Araújo se tiraria d'aquella apertada vergonha. Nós somos primos, mas elle é muito bruto !
-- Também v. ex.a vae-lhe fallar no namoro e nos interesses políticos, respondeu um dos circumstantes. . . É muito mau atacar com balda certa.
-- Eu cá sou assim. Não hei de vir do outro mundo dizer as verdades ! É pão, pão, queijo, queijo. Se elles protegem Manuel de Oliveira é porque têem rasões políticas para isso. A mim não me enganam, por muito desinteresse que alardéem...!
-- Mas que mal lhe fez este pobre velho? Cuidei que eram amigos, disse um negociante.
-- E somos. Isto é conversar entre patrícios. Olhem que a primeira pessoa que veio aqui hontem, fui eu, mas a amisade não impede que eu diga o que sinto. Sou amigo do Oliveira, meu pae deveu-lhe favores, porém a verdade primeiro que tudo. Amigos, amigos, negócios á parte.
Nisto chegou D. Christina e pediu ao irmão que lhe desse o braço para ir comprimentar algumas senhoras que estavam na sala próxima. A esbelta irmã de Álvaro de Araújo vira de longe a afogueada agitação do mano, e acudira ali para evitar qualquer imprudência. Apenas se afastaram do grupo, Christina disse quasi ao ouvido do irmão :
-- Parece-me que te excedeste, e assim estragas tudo para ti e para mim.
-- Para mim? Se é verdade o que se diz, eu não a quero. Casar pela orelha com a filha do taberneiro e azeiteiro mór da Beira! Que honra para a nossa família! Tens ás vezes ideas...!
-- Deixa dizer. Esta gente não vinha aqui toda, se o Oliveira estivesse arruinado. Peço-te que não digas mal d'elle. Cala-te por meu respeito. Tu não queres casar com D. Anna. Bem. Deixa-me ir no meu caminho.
-- Pois realmente tu ainda sonhas com Henrique de Mello? Não vês? Olha para elle, acolá assentado entre D. Anna e D. Barbara ! É como se estivesse no paraízo ! Tira d'alli a idéa.
-- Já vi apagar maiores incêndios. Não me contraries sem utilidade para ti.
Em quanto Álvaro e a irmã trocavam mui de mansinho estas phrases, os dois mesários da santa casa, membros da commissão dos asylos, discorriam acerca da theoria da amisade, explicada por Álvaro de Áraujo, e apreciavam com malícia burgueza os bons sentimentos do incorrigível franchinote conimbricense.
-- E que tal está a amisade? dizia o mais idoso ao companheiro. Olha que se o Oliveira tivesse meia dúzia de amigos como este, estava arranjado !
-- Os fidalgos são todos assim, replicou o mais moço. Se elles até mordem uns nos outros, quanto mais nos negociantes que os assombram com a riqueza ! Por isso eu gosto de viver com a gente da minha classe. Não quero amigos tão poderosos !
-- E fazes bem. Estes são dos taes que se chamam amigos de Peniche.
No mesmo dia em que Manuel de Oliveira recebera em Coimbra a funesta notícia da suspensão de pagamentos de Smith e Davis, estavam em Hamburgo no quarto principal do Hotel da Europa dois homens sentados em volta da larga mesa examinando papeis e colhendo de cada um d'elles notas que diziam respeito aos interesses do velho pae de D. Anna.
Mostrava o mais idoso ter já dobrado o temeroso cabo dos sessenta annos. Attestavam-o as cãs que lhe cercavam a espaçosa calva, e as rugas que lhe franziam o rosto, mas umas e outras adornavam a expressiva phisionomia do velho em vez de a desfigurarem, como tantas vezes acontece na velhice prematura dos homens de vida desordenada.
Trajava de preto com aceio e gosto appropriado á idade, porém era fácil observar que estas qualidades provinham do costume contrahido na mocidade e da necessidade de apparecer em público todos os dias, e não de pertinaz affectação, sempre reprehensível no homem sério, e ridiculíssima nos que se aproximam ao occaso da existência.
Chamavam-lhe geralmente doktor Bieder que em portuguez significaria doutor probo, porém o seu verdadeiro nome era Herman Krath. Adquirira tão lisongeira alcunha á custa de trinta annos de honradez e lealdade, decorridos no exercício da profissão de advogado na cidade de Hamburgo.
O outro sugeito indicava ter quarenta annos. Era alto, magro, de phisionomia bondosa, e extremamente cortez. Pareceria á maior parte das pessoas vítima de teimosos revezes, e atribulado de repetidos desgostos. Um médico não careceria de longo inquérito para descobrir as lesões internas que lhe iam minando a existência. Era homem condemnado pela sciencia, e por assim dizer já morto, porém cuja apparencia robusta e ágil manifestava grande vigor, e não enfermidade.
Sobre a mesa diante do advogado estavam massos de papeis, que elle ia gradualmente apresentando ao que figurava de seu cliente. Este passava-os pelos olhos, escrevia a lápis notas em folha á parte, e restituindo os documentos já examinados, recebia outros. O silêncio d'esta scena era unicamente interrompido pelo cicio das folhas de papel, e pela bronchite chrónica do respeitável doutor hamburguez.
Estava para bater uma hora depois do meio dia. O sol doirando as águas do Binnen-Alster, que dão caracter amphíbio ao lindo e elegante paralellogramo do Alsterdamm, reflectia nas vidraças de dois lados da praça, e augmentava o esplendor d'este bairro da antiga cidade de Carlos Magno, que o braço poderoso do commércio hamburguez fizera resurgir mais bello e senhoril do pavoroso incêndio de 1842.
O velho ouvindo dar uma hora, levantou-se, e disse para o seu interlocutor :
-- Não posso demorar-me. São horas da Bolsa.
-- Pois também lá tem negócios, senhor doutor?
-- Certamente. Na Bolsa é que eu vou conferenciar todos os dias com os meus clientes. Na arcada interior cada negociante tem logar certo onde está a horas determinadas, e lá se tratam os principaes negócios de Hamburgo. Tenho clientes a cujo escriptorio e casa particular nunca fui.
-- É singularidade hamburgueza...!
-- Diga antes que é economia de tempo, e muito natural em terra tão dada ao tráfego commercial. Lastimo ter de ausentar-me.
-- Não tem dúvida, respondeu o mais moço, levantando-se também e indo até á janella onde por civilidade e com attitude de despedida o doutor foi ter com elle. Não tem dúvida. Eu cá irei examinando os papéis restantes, e se o senhor doutor quizer vir á noite conferenciar comigo, resolveremos de commum accordo todas as difficuldades. Vejo em alguns d'esses papeis que as minhas ordens de Londres foram executadas.
-- Com a maior pontualidade. As letras saccadas pela casa de Oliveira e Ca. de Coimbra, e não acceitas ou não pagas por Bergenstein, foram logo acceitas ou pagas por meu irmão na qualidade de mandatário de Manuel de Oliveira.
-- Muito bem. E para Coimbra não mandaram dizer nada? Creio que Manuel de Oliveira está para Lisboa, e os caixeiros ficariam sabendo o que não têm nenhuma necessidade de saber.
-- Meu irmão, como correspondente da casa, escreve para lá regularmente acerca do andamento da liquidação, mas não trata das letras. Em Coimbra, supponho que esperam o retorno sem temor. O primeiro caixeiro não escreve palavra a tal respeito. Muito rico deve ser Manuel de Oliveira !
-- Oh! É riquíssimo. Em quanto as letras se pagam aqui com o dinheiro que elle tinha no banco de Londres, cuida lá o guarda livros que se hao de pagar com as sommas que estão em caixa, ou com o dinheiro depositado á ordem de Manuel de Oliveira no Banco de Lisboa !
-- É verdade. Grande casa! E agora dê-me licença que são horas. Até á noite.
-- Até á noite, meu caro doutor.
O doutor Bieder partiu apressadamente para a Bolsa, e o seu cliente ficou ainda algum tempo á janella saboreando a pureza do ar, e admirando o esplendor do sol que não cuidava fosse tão formoso nas terras do norte. As galas de primavera que começava a ostentar a natureza, embora mesquinhas em comparação de outras que observara em mui affastadas latitudes, despertavam-lhe no espirito a sensação melancólica que sempre causam em quem sabe que lhe restam poucos annos de vida.
Há nesses maior apego ás cousas da terra. Olham com antecipada saudade para tudo quanto os cerca, e sentem que esteja próximo o dia de renunciarem tão formoso património. A idéa da morte está sempre com elles. Na tristeza que lhes inspiram os sorrisos da natureza começa a agonia lenta a que os condemnou a caprichosa moléstia.
Serviu o resto d'aquelle dia para completar o exame dos papéis. Á noite, quando chegou o doutor Herman, estavam já lidos, e concluída a serie de apontamentos começada antes das horas da Bolsa.
-- Senhor doutor Krath, examinei todos os papéis e as notas que escreveu em cada um d'elles. A liquidação será insignificante. Não vale a pena gastar tempo com ella. As letras estão integralmente pagas. Era o principal. O mais fica a seu cargo, se mais há que fazer n'este negócio.
-- Eu creio que pouco haverá, respondeu o doutor. Bergenstein fugiu. Não apparecem os principaes livros da casa. O activo existente e palpável é quasi nullo. Tenho por melhor deixar correr a fallência, e receber o que receberem os outros credores.
-- É também o meu parecer, e por isso conto partir amanhã para Portugal.
-- Vai por Inglaterra?
-- Não. Bem me bastou o tempo que lá andei por entre nevoeiros de humidade e de pó de carvão.
-- Mas a casa de Oliveira também perdeu grande quantia em Londres com a quebra de Smith e Davis, segundo ouvi dizer a meu irmão.
-- Perdeu muito, sem dúvida. Uns duzentos contos, porém não havia letras como aqui. Eu vou para Portugal por terra. Não posso com o enjoo. Por isso fujo sempre de embarcar, e além de tudo confesso-lhe que já me tarda voltar á pátria.
-- Também há tantos annos que está ausente !
-- É verdade, meu doutor, replicou o cliente com entranhado suspiro. Ha vinte annos ! É tempo de ir respirar o ar natal. Nós somos como as galinhas que ao chegar da noite vão entrando para casa e tomando logar na capoeira. No declínio da vida também carecemos de voltar ao ninho paterno, e de nos abrigarmos á sombra das árvores que nos viram nascer, e que hão de orvalhar amorosamente o nosso túmulo.
Passou o resto do serão em differentes conversações ácerca dos melhoramentos de Hamburgo, do grande número de estabelecimentos de caridade que ali se encontram, e da riqueza e importância commercial com que a cidade adquiriu a denominação de Pariz de Allemanha. Até da Aalsuppe fallaram, espécie de sopa de enguia em que entram fructas e tudo quanto há na creação, deixando muitas vezes de figurarem n'ella as enguias por não as haver no mercado do peixe! E todavia o nome d'esta horrorosa comida, tão estimada em Hamburgo, quer dizer em vulgar sopa de enguia!
-- Não sei se aqui no hotel lh'a deram boa, dizia o doutor vendo que o seu cliente desdenhava da Aalsuppe, mas se a comesse em minha casa, havia de gostar.
-- Talvez, meu caro doutor, mas olhe que a iguaria que me serviram hoje com tal nome, tinha o gosto mais endiabrado que o meu paladar tem experimentado desde que se incumbiu de saborear comida.
-- Contudo não há hamburguez que não aprecie a tal sopa, e os estrangeiros com o tempo acostumam-se, e gostam d'ella como nós todos.
-- Bem sei. Bem sei. Até se publica diariamente nos jornaes o nome da casa de pasto que offerece n'esse dia a Aalsuppe aos seus freguezes. Eu não duvido de que os estrangeiros se acostumem a ella. Também eu vim a gostar de mangas em Angola, e mais no princípio cuidava, ao sentir aquelle sabor de resina, que estava mordendo em casca de pinheiro !
-- Pois antes de partir, replicou o doutor, desça a um dos nossos restaurants, que apesar de serem nos subterrâneos das casas, são tão bons como os que resplandecem em salas doiradas, e verá que lhe há de acontecer como lhe succedeu com as mangas.
O cliente do doutor Krath não pôde seguir o conselho dado com patriótica insistência pelo advogado, porque no dia seguinte partiu para o Hanover d'onde sem demorar-se passou a Colónia. Ahi depois de ver a cathedral, de entrar na casa onde nasceu Rubens e onde foi morrer a infeliz Maria de Medicis, e de examinar as demais curiosidades da pátria de Agrippina e de S. Bruno, -- não se esquecendo de averiguar qual era o verdadeiro Farina e quaes os falsos que em vez de agua de Colónia exportam agua do Rheno -- embarcou no vapor que todos os dias leva, rio acima até Moguncia, numerosos esquadrões de parisienses enfastiados, e de esguias e desengonçadas inglezas.
Aprende-se a conhecer o Rheno no sabido livro de Victor Hugo, mas quem chega a visitar as margens do famoso rio, confessa a verdade do provérbio que notou a constante differença entre o vivo e o pintado. Todavia rio abaixo e rio acima o principal recreio são os viajantes, a curiosidade com que perguntam, as inauditas histórias que lhes ccontam, e a admirável boa fé com que as acreditam. N'aquellas paragens o francez viaja para dizer que viajou, e estranha não encontrar em toda a parte o conforto de Pariz onde ás vezes vive mais acanhadamente do que nas hospedarias allemãs. O inglez corre o mundo para matar o spleen e para saber tudo. Não sonha com as maravilhas de Londres, paga a peso de ouro qualquer commodidade, porém nao se espanta de que as ruas de Colónia sejam inferiores a Regent Street e de que as hospedarias não excedam Clarendon Hotel ou qualquer outra de Albemarie Street.
Nós também damos nossos passeios pelo Rheno, mas somos sempre em número tão limitado que não chegamos a crear typo especial, nem sequer a deixar lembrança de termos levado á gloria a banca de Hombourg ou de Wiesbaden como acontece aos polacos, hespanhoes e italianos. Salvador Lopes passou no Rheno quasi sem o ver. Tinha o pensamento em Coimbra.
Não o acompanhemos n'esta encantadora viagem. Deixemos ir o ronceiro rival dos vapores do Tejo, cortando vagarosamente as aguas até Bonn, onde ninguém se esquece de perguntar, se a casa de Bethoven na rua que chamam do Rheno ainda conserva o numero 934. Em quanto os passageiros escutam ao avistar Nonnenwerth a narração dos amores do famoso Roldão, sobrinho do imperador Carlos Magno, contada por velho vencedor de Leipsig em francez germanisado, e em quanto ouvem as lendas de Bornhofen e de Conrado de Boppard, e a história de Genoveva de Brabante, de seu marido Sigefredo, e do desleal amigo Golo de Drachenfels, digamos quem era o cliente do doktor Bieder, e porque motivo os negócios de Manuel de Oliveira o haviam trazido á cidade de Hamburgo, muito de caso pensado, segundo parecia.
O cliente do respeitável doutor de Hamburgo era o sr. Salvador Lopes de Souza que na idade de vinte annos partira para Angola d'onde se transportara ao Rio de Janeiro já com abundantes capitaes. Nas terras de Santa Cruz se lhe mostrou tão amiga a fortuna que em poucos annos veiu a ser dos primeiros capitalistas do Império, e homem dos mais notáveis da colónia portugueza na esplêndida capital do Brazil.
Salvador Lopes era filho de um proprietário e bacharel em direito, morador em Cantanhede, o qual dera ao filho boa educação até ao tempo em que devia entrar para a universidade. N'essa época começou a haver desavença doméstica entre os paes de Salvador por causa de relações illegítimas do marido com a mais linda estanqueira da villa. D'ahí resultou separarem-se os dois cônjuges e ficar em grande penúria a mãe do jovem estudante.
Nas demandas entre os paes gastou-se o dinheiro que devia empregar-se na formatura do rapaz, e o pae de Salvador, vendo que o filho estava sempre em casa da mãe, e que na seriedade prematura do aspecto parecia trazer estampada a reprovação silenciosa do procedinento paterno, principiou a tratal-o com desabrimento e a dizer-lhe que devia ir procurando algum modo de vida, porque elle estava inteiramente arruinado e não podia dar-lhe nada.
Foi então que Salvador Lopes se resolveu a ir para a Figueira na esperança de entrar em algum escriptorio de commércio, e quiz o acaso que, um domingo ao sair da missa, encontrasse Manuel de Oliveira, ainda ali residente. O negociante conhecia a mãe do rapaz, sabia quão virtuosa era e de que mágoas vivia attribulada. Também tinha ouvido fallar das qualidades e boa índole do mancebo, e talvez com intenção de ajudar quiz saber o que estava fazendo na Figueira.
Salvador sem narrar as fraquezas do pae, nem as amarguras da mãe, respondeu que não podendo formar-se por causa das demandas que andavam entre seus paes, viera tratar de obter o logar de caixeiro em qualquer casa de negócio. No dia seguinte sob recommendação de Manuel de Oliveira entrou no escriptório de um inglez.
Ali se conservou durante dois annos, cumprindo com grande zelo e intelligência as suas obrigações, e entregando pontualmente os ordenados á mãe que convidara desde logo a viver com elle na Figueira. Era rapaz mui sizudo, modesto e agradecido. N'estes dois annos não passou domingo em que não fosse visitar Manuel de Oliveira, não só por ser dia em que lhe restavam horas livres, mas pela recordação de que em outro simIhante lhe apparecêra inesperadamente a fortuna de alcançar emprego.
Em uma d'estas visitas Manuel de Oliveira perguntou-lhe se tinha receio de fazer viagem á costa de Africa para colher vantagens que melhorassem a situação da sua família. Salvador respondeu que estava prompto, se o seu patrão pudesse encontrar quem o substituísse, e certificado de que o Oliveira já tinha prevenido o caso, annuiu á proposta e partiu em um brigue carregado de vinhos da Bairrada, os quaes devia vender em Loanda, Benguella e Mossamedes.
Se falhasse a tentativa com que Manuel de Olveira queria abrir novos mercados aos vinhos da Beira Alta, passaria ao Brazil a concluir ali a venda do carregamento, de cujos lucros lhe caberia metade. Acompanhava estas instrucções uma espécie de carta de prego para ser aberta em S. Paulo de Loanda deante do sr. Félix da Silva, honrado negociante de Angola, a quem até esse tempo Manuel de Oliveira consignara o azeite que mandava para a costa de África. Entretanto ficava por conta do negociante da Figueira a sustentação decente da mãe de Salvador.
A pobre senhora despediu-se do filho forcejando por conter as lágrimas para lhe não diminuir a coragem necessária em tão cruel separação, porém tanto se magoou com a ausência do seu querido Salvador que, apesar dos disvellos de Oliveira e da sua família, em cuja casa passava o dia inteiro, foi enfraquecendo gradualmente até que se finou de saudades, legando ao filho o último pensamento de ternura maternal e á familia Oliveira o derradeiro testemunho de agradecimento, depois do qual se lhe esfriou para sempre o coração.
Fora próspera a viagem de Salvador. Respeitaram-o os aguaceiros no mar de Serra Leoa, e dobrado o cabo de Palmas, foram de curta duração as calmarias tão frequentes no golpho de Guiné. Ao cabo de 58 dias avistou o morro das Lagostas e na manhã seguinte, passando defronte da fortaleza do Penede, foi deitar ferro junto da ilha fronteira á cidade de Loanda, n'aquella magnifica bahia que enganou os portuguezes á força de belleza, e cuja navegação vão progressivamente impedindo as areas em estreita alliança com a nossa descuidosa e habitual preguiça.
Félix da Silva veio a bordo com a visita da alfândega, e ali immediatamente na câmara do navio se abriu a carta de que ambos deviam inteirar-se. N'ella aconselhava Manuel de Oliveira a Salvador Lopes que se estabelecesse em Loanda, onde em poucos annos podia adquirir riqueza sufficiente para dar tranquillidade á velhice de sua mãe, o que não era tão fácil na velha e explorada Europa.
Recommendava-lhe que continuasse a ser sóbrio como até então sempre fora, e affirmava-lhe com rasão que esta qualidade, applicada a todos os actos da vida, o livraria das enfermidades climáticas ou lhe conservaria as forças para lhes resistir. «Em qualquer caso, se não fôr feliz», accrescentava Manuel de Oliveira, «eu cá estou para o receber em minha casa, para lhe empregar a actividade, e para amparar sua mãe.»
N'este ponto da carta saltaram dos olhos de Salvador lágrimas sinceras de gratidão e de saudade filial, e Félix da Silva encareceu com enthusiasmo sincero a honradez dos nobres sentimentos do negociante da Figueira. N'aquellas terras africanas onde a cobiça, e outros vícios ainda peiores, tão soltos e desenfreados têem andado desde que entramos n'ellas, também se encontram exemplos de generosidade e de desinteresse que sao mui raros na Europa, e por isso não falta quem os estime e aprecie.
«Se acceitar esta proposta, que lhe não fiz aqui para não affligir sua mãe com a idéa de mais dilatada ausência», dizia Manuel de Oliveira no resto da carta, «dou-lhe a crédito o carregamento do navio, e os fundos que o sr. Félix da Silva tiver apurado ou apurar do azeite anteriormente remettido. Pagar-me-ha quando a fortuna o favorecer, mas além d'esse pequeno capital, a caza que vae estabelecer em Loanda, e que é unicamente sua, fica tendo crédito illimitado na minha e no meu correspondente, Cosme Soares, do Rio de Janeiro, a quem aviso. O seu antigo patrão também está disposto a ajudal-o, se for necessário.»
Félix da Silva tinha reunido somma considerável e deviam-lhe por conta de Manuel de Oliveira dez ou doze contos. Estes capitaes eram sufficientes para o novo estabelecimento, porém Salvador Lopes não resolveu logo acceitar a proposta do seu generoso protector. Tratou de vender parte do carregamento na cidade, e foi com o resto a Novo Redondo e aos outros portos do sul da província.
Na volta da viagem pela costa que durou três mezes, veio encontrar em Loanda cartas da Figueira e n'ellas a triste notícia da morte da mãe. Desprendido então da Europa, decidiu acceitar o magnânimo offerecimento de Manuel de Oliveira, e fundar em Angola casa commercial cujo fundo, robustecido pelos créditos abertos em Portugal e no Brazil, a collocava em posição vantajosíssima e muito superior á das outras casas de Loanda. Em poucos annos adquiriu avultados capitaes e grande crédito.
Foi-lhe mais propícia a fortuna do que o clima. Apesar de vencer algumas febres climáticas que o atacaram, começou a padecer do fígado, e os facultativos aconselharam-lhe unanimemente que deixasse quanto antes a costa d'África. Embarcou então para o Rio de Janeiro tendo já pago a dívida a Manuel de Oliveira, e estabelecido mezada conveniente a seu pae cujos bens haviam sido sacrificados ás exigências e phantasias da estanqueira que afinal o desamparou na pobreza, como os pares de Inglaterra fizeram por egual motivo ao duque de Bedford no reinado de Eduardo IV ! Tão triste cousa é ser pobre que nem damas, nem fidalgos, querem para amigo quem padeça de tal lepra! Até dizem que os próprios cães agouram o desgraçado e lhe mordem sem que os açulem !
Salvador nunca escrevera ao pae. A casa de Oliveira dava-lhe por ordem do filho a mezada que foi augmentando á proporção da riqueza de quem a mandava. Ultimamente era de 300 mil réis mensaes.
No Brazil Salvador Lopes veio a ser millionário. Orçavam-lhe em quatro mil contos os cabedaes. Porém a enfermidade que trouxera das praias africanas, aggravou-se e renovaram-se-lhe symptomas de lesão no coração que já antes de partir da Europa se tinham manifestado. Os médicos instavam para que voltasse ao nosso continente.
O doente não lhes dava ouvidos. Mortificava-o a necessidade de mudar de clima, e de andar a fugir da morte que a final sempre havia de alcançal-o, por mais qae se affastasse d'ella. E no fim de tudo não se julgava tão achacado perigosamente como os facultativos pareciam indicar.
Era ágil e vigoroso. Habituado a exercício moderado mas constante, ora a pé, ora a cavallo, só nas occasiões em que a moléstia o apertava com maior violência, é que renunciava a estas distracções hygiénicas, e como seguia sempre os hábitos de sobriedade a que se acostumara na Europa, oppunha á enfermidade o obstáculo constante do bom regimen com o qual as pessoas menos sadias conseguem prolongar a existência, zombando dos vaticínios dos doutores.
Todavia repetiam com maior frequência e intensidade os ataques do fígado, e tão forte fôra o último que os médicos ordenaram ainda na convalescença que partisse logo para a Europa. Saiu com effeito para Londres sem annunciar a vinda. Ali soube da quebra de Bergenstein e deu providências para que todas as letras fossem pagas. Calculando que a fallência de Smith e Davis augmentaria as difficuldades da casa Oliveira e C.a, embarcou para Hamburgo no intuito de examinar, se as suas ordens tinham sido executadas.
Era necessário n'esta conjunctura que os pagamentos fossem feitos em nome da casa de Coimbra, porque tal circumstância, comparada com a enormidade das perdas, elevaria muito o crédito do seu amigo e protector, e poria á disposição de Oliveira a praça de Hamburgo, e a de Londres. E assim aconteceu.
Descançe o leitor d'estas longínquas viagens, por climas tão ignorados e por entre tão estranhas gentes, como dizia o nosso Garrett, que ainda temos de subir pelo Rheno e de percorrer boa parte do continente europeu até voltarmos ás margens do nosso risonho e abençoado Mondego. XV
Agora que o vapor do Rheno passou Coblentz, saudou Stolzenfels, mostrou Bornhofen, roçou na base das collinas de Johannisberg, e deixando á esquerda os banhos de Wiesbaden e o palácio de Biebrich, aportou na margem opposta a Moguncia, desembarquemos placidamente com Salvador Lopes no caes fronteiro á pátria de Guttemberg.
Desejaria talvez o leitor, curioso de viagens, que eu parasse no sítio em que o Mosela entra no Rheno para lhe contar a história de Coblentz, pelo menos desde o celebre itinerário de Antonino: gostaria por ventura de ouvir narrar as desastrosas alternativas que trouxeram da mão dos arcebispos-eleitores de Treves ao poder do actual rei da Prússia o elegante castello feudal de Stolzenfels; ser-lbe-ia por certo agradável saber a historia dos irmãos rivaes que não esquece aos ciceroni, quando avistam Bornhofen; folgaria sem dúvida com a notícia exacta do que produzem as vinhas de Johannisberg ao jovem príncipe de Metternich, e não desdenharia de algumas páginas em que minuciosamente se tratasse dos banhos de Wiesbaden, e da residência da Biebrich, onde a família ducal de Nassau costuma passar o verão.
Tenha paciência que nem de Moguncia lhe falo. Virá um dia, e não tardará muito em que lhe pedirei que me acompanhe desde Lisboa até S. Paulo de Loanda, e que de lá regressando comigo á Europa, me siga pelas terras britannicas, por França, por Hespanha, por Allemanha, pela Suissa e talvez até pela Itália. Então nos deteremos defronte de cada monumento, mencionando-os, descrevendo-os, e estudando as lendas que lhes respeitam. Não o devo fazer agora porque teria de me desviar d'esta verídica narração, contra o meu propósito, e sem vantagem para o leitor que em qualquer guia do viajante encontrará extensamente o que eu lhe poderia offerecer hoje em quadro muito acanhado.
Há romances nos quaes principalmente se esmera o escriptor em descrever certa região, as riquezas naturaes d'ella, as obras devidas á mão do homem, os costumes e as tradíções, e tudo quanto pode instruir os curiosos ou servir de grata recordação aos eruditos. São livros de incontestável utilidade e de grande glória litterária, mas já não foi delineada para tão ambicioso empenho a singela história que descuidadamente vou contando.
Salvador Lopes partiu logo para Francfort d'onde immediatamente seguiu para Strasburgo. Demorou-se um dia no caminho para visitar as ruínas do celebre palácio de Heidelberg, cuja fundação data do século quatorze. Ali tiveram corte quasi real os eleitores palatinos do Rheno até o anno de 1720 no qual foram residir em Manheim, e ali talvez nasceu a rainha de Portugal D. Maria Sophia Izabel de Neubourg, segunda esposa del-rei D. Pedro II.
Resistira o castello feudal de Rodolpho I á guerra dos trinta annos, e ao furor insano com que as tropas de Luiz XIV assolaram o palatinado desde 1689 até 1697, mas teve de ceder á cólera celeste em 1764. No dia de S. João á hora em que se ia mobilar de novo a habitação sumptuosa dos condes palatinos, um raio desmoronou a melhor parte do edifício, que mesmo destroçado ainda olha com sobranceria para o pacifico Neckar que lhe corre aos pés.
Não destruíra o tráfico commercial em Salvador Lopes as recordações dos estudos que cultivara nos primeiros annos, antes lhe viera a dar os meios necessários para avival-as, e para se entregar mais livremente ás leituras históricas e artísticas a que era naturalmente inclinado. Salvador possuía o que os francezes chamam sentimento do bello.
Creado nos famosos campos de Coimbra, berço mimoso de lindíssimas flores, e acostumado a contemplar as opulentas manifestações em que a natureza se expande nas regiões dos trópicos, tencionara estudar com grande esmero durante a viagem os quadros naturaes da Europa, talvez para confirmar a opinião injustamente parcial com que os preferia aos de África e da América. Obstaram á execução d'este desígnio artístico os negócios de Manuel de Oliveira, a que especialmente se consagrara desde o desembarque em Inglaterra.
Urgia a necessidade de ir sustentar em Portugal o crédito do velho negociante, e já Salvador Lopes lhe sacrificara muitas tentações anteriores, porém não pôde resistir á que o assaltou em Heidelberg. Se o leitor soubesse como aquellas ruínas encantadoras enamoram o viajante, daria por mui justificada a demora de vinte e quatro horas que Salvador Lopes passou ali, hóspede do insigne conservador Carlos de Graimberg para quem obtivera em Francfort carta de recommendação.
Não ficou recanto do castello que não examinasse, desde a torre demolida pelo fogo celeste até á adega onde se mostra o famoso tonel do conde palatino Carlos Theodoro, vasilha que aloja o líquido de duzentas e trinta e seis mil garrafas. Apezar das advertências amigáveis do sr. de Graimberg, Salvador Lopes entrou na parte mais arruinada do palácio eleitoral, e deixou atrevida pegada onde não ousara desde longo tempo aventurar-se nenhum viajante, sem exceptuar os práticos d'aquellas celebradas minas.
No dia seguinte continuou viagem, e de Strasburgo a Manz nem as recordações da paz de 1801, nem as da morte de Carlos o Temerário, nem a fama do vinho de Champagne e das suas enormes adegas, nem finalmente o grande nome de Bossuet, o obrigaram a parar em Luneville, Nancy, Epernay ou em Meaux. Também não ficou muitos dias em Pariz. Requer larga detença o estado da capital franceza. Só a estima quem a conhece, e para conhecel-a é mister trato íntimo e duradoiro.
Muita gente vem a Pariz, frequenta os theatros, vae passear ao bosque de Bolonha, dá quatro voltas nos Campos Elysios, entra no Circo, apparece em Mabille e no Chateau des Fleurs, e regressa ao paiz natal gabando-se do saber de cór os segredos e mysterios da Babylonia franceia. Coitados !
É certo que nem estes, nem os que mais profundamente estudaram a sociedade de França nas suas varíadissimas e curiosas transformações, dizem a Pariz o último adeus senão dos umbraes da Eternidade. Todos saem com intenção firme de voltar. Assim aconteceu a Salvador Lopes. Passou rapidamente, mas protestou regressar em breve e para demora de muitos mezes.
Em Madrid gastou dois dias, demorou-se em Elvas cinco por ter adoecido com o cansaço da jornada em carruagem de Bayona a Badajoz, e tendo repoisado quarenta e oito horas em Lisboa, poz-se a caminho para Coimbra, onde pelos periódicos do Rio de Janeiro, e por aviso d'elle proprio, era já sabido que partira do Brazil, e esperava-se a sua próxima chegada.
Certificára-se em Lisboa de que a casa Oliveira & Ca. sustentava o antigo creéito, e que a pontualidade dos pagamentos e a continuação das transacções haviam desmentido plenamente os boatos espalhados pelos adversários do bom velho na occasião das fallências de Hamburgo e de Londres.
Dos deputados de Coimbra alcançou notícias de seu pae. Gosava saúde vigorosa apesar de contar perto de setenta annos. Já não tinha amores em Cantanhede, nem pensava em similhantes demasias. Com a idade avançada viera a frequentar devotamente os exercícios religiosos e a ser grande amigo do clero e da Egreja, em cujo proveito cedia parte da mezada de trezentos mil réis que por ordem de Salvador Lopes lhe era paga todos os mezes, reservando para si de que viver com austera sobriedade e modéstia de peccador sinceramente arrependido.
Tinha em casa um padre que lhe servia de capellão e director espiritual, e reunia todas as semanas o clero d'aquellas immediações em conferências religiosas, auctorisadas pelo prelado diocesano. Corria então no campo de Coimbra que o velho Lopes de Cantanhede ia tomar ordens, e que diria missa nova no dia em que completasse o décimo quarto lustro.
Em boa hora regressava á pátria o antigo protegido de Manuel de Oliveira, pois que viviam felizes e contentes todas as pessoas com quem tinha rasões de sangue ou de obrigação e amisade. XVI
As despezas e rendimento de Manuel de Oliveira eram o que o leitor já sabe. Estava paga a dívida á Misericórdia. Em quanto não voltassem recambiadas as letras de Hamburgo, não havia perigo que ameaçasse o crédito da casa, mas para acudir ao pagamento d'ellas já não restava o dinheiro confiado a Smith e Davis. A venda nos differentes depósitos de vinho e azeite só produziria as sommas necessárias para honrar a firma Oliveira & Ca nas suas transacções ordinárias.
Henrique de Mello dispondo de tudo quanto possuía, além do que elle chamava a reserva de minha mãe, não reunia cabedaes bastantes para o pagamento integral das letras, e quando os chegasse a alcançar, usando e abusando do crédito pessoal para salvar o de Manuel de Oliveira, faltaria ainda com que acudir ás despezas ordinárias, e augmentar o movimento commercial da casa. E era inquestionável que se aquellas diminuíssem, e este se restringisse, a causa da mudança ficaria desde logo patente aos invejosos da prosperidade do velho negociante.
Repoisava no ânimo grato de Salvador Lopes a única esperança de salvação, porém a somma indispensável era tão avultada, e a gratidão anda tão magra e desfallecida n'estes nossos tempos de descaroavel egoismo, que Henrique de Mello assustava-se com a idéa de que o futuro do seu antigo protector dependesse da caprichosa vontade de um homem, embora de condição benigna e honrada. A mínima hesitação de Salvador transtornaria todos os planos.
Era felicidade a demora das letras de Hamburgo, porque dava tempo a meditar nos meios de salvamento e a pol-os por obra, mas o susto de as ver chegar a cada momento não atormentava menos do que a própria apresentação d'aquelles papéis de credito. Henrique de Mello sabia que acerca de algumas letras era possível obter transacção por meio de novos contractos, ou por encontro de dívidas, e n'esse sentido começara a querer fazer negócios que cobrissem parte dos valores a cujo pagamento a casa era obrigada.
Mas ou porque fosse a quadra aziaga para operações commerciaes, ou porque a praça ainda não tivesse inteiramente perdido a desconfiança que, durante vinte e quatro horas, se levantara contra o crédito de Manuel de Oliveira, não foi possível concluir transacção de vulto. Entretanto o correspondente de Hamburgo, o sr. Samuel Kraft, dava notícias mui especificadas da liquidação de Bergenstein, porém acerca das letras sem acceite não escrevia palavra.
O velho negociante animado pelos testemunhos de estima que as auctoridades e pessoas respeitáveis da cidade vieram dar-lhe a casa, sabia ser egoísta como os homens da sua idade. Entregara o escriptorio a Henrique de Mello, e ora sob pretexto de doença, ora com a desculpa da sua pouca habilidade para grandes negócios, passava a maior parte dos dias com D. Anna, que já em leituras curiosas, já com música appropriada, o sabia distrahir das penosas cogitações em que ás vezes se abysmava durante muitas horas.
Desde que o guarda-livros lhe disse que a dívida á Misericórdia fora paga íntegralmente, logo que o thesoureiro a reclamou, não voltou mais ao escriptorio nem dirigiu a tal respeito a mínima pergunta ao guarda livros, nem a Henrique de Mello. Manuel de Oliveira não ignorava que este pagamento era superior ás forças do cofre, e envergonhava-se de pensar que alguém sabia como elle empregara nos seus negócios o dinheiro da Santa Casa.
Este sentimento, o receio de maior catástrophe, e a mágoa de ver arriscado o futuro de D. Anna, abateram-lhe o ânimo, e reduziram-o ao estado de atonia, que é próximo da imbecilidade ou da meninice. Raras vezes acordava d'esta espécie de lethargo, porém quando voltava a si, mostrava que o discernimento se lhe conservara em lucidez completa.
Eram tímidas as suas relações com Henrique de Mello por mais que este procurasse inspirar-lhe força moral. O velho, sempre que o seu futuro genro voltava do escriptorio, cuidava que lhe vinha annunciar a impreterível necessidade da fallência, e o receio cortava-lhe duramente o coração.
D. Anna vivia affastada de todas as notícias commerciaes, e empenhada unicamente em consolar o pae. O zelo de Henrique, o affectuoso respeito com que tratava Manuel de Oliveira, e a dedicação com que parecia esquecel-a a ella para cuidar unicamente dos interesses de casa, tinham elevado ainda mais aos olhos de D. Anna a nobreza de carácter do seu noivo. Ao amor antigo accrescéra respeito e veneração, sem os quaes não ha -- não pode haver -- verdadeiro affecto.
Os passeios a cavallo já eram raros. Henrique lembrava ás vezes quanto cumpria não alterar os costumes da vida ordinária para não suscitar suspeitas nos desconfiados ânimos coimbrãos. Então mandavam apparelhar os cavallos, e saiam D. Anna e Henrique a correr as ruas da cidade e as margens do Mondego.
Já não era desenfado de horas livres. Não era divertimento, mas ceremónia de apparato ! D. Anna meditava na tristeza inconsolável do pae ; Henrique nos negócios da casa. Ás vezes os olhos dos dois encontravam-se e diziam amor como antigamente, porém amor attribulado ! Á noite Manuel de Oliveira recolhia cedo ao quarto, e os dois namorados ficavam na sala com visitas, ou sós, até á meia noite. Ali apesar da presença da tia diziam um ao outro os mil segredos que só a paixão inventa e que a sangue frio ninguém é capaz de adivinhar, nem de exprimir.
Ambos se amavam extremosamente, mas em qualquer dos dois o dever de acudir pela honra de Manuel de Oliveira predominava sobre todos os sentimentos sem affectação nem esforço. A educação moral produzira em D. Anna effeitos iguaes aos que a severidade da consciência causava no ânimo de Henrique. Almas delicadamente nobres, como o nosso século utilitário tem possuído poucas, e que se vão tomando cada vez mais raras !
Causou alegria geral em casa de Manuel de Oliveira a notícia de que Salvador Lopes ia chegar. O velho sentiu renascer a confiança inteira. Conhecia o carácter de Salvador, e sabia quão avultada era a fortuna que adquirira, e da qual o sr. Oliveira fora única origem, e vigoroso esteio. D'elle esperava pois com segurança os meios de vencer a crise actual. A filha exultava só com ver o pae contente e formando planos de vida socegada na sua quinta de Luzo, e Henrique folgava de ver o contentamento adejar, como borboleta mensageira de boas novas, ém torno dos seus melhores amigos.
Tinha Henrique grande esperança no auxílio de Salvador Lopes, até porque sabendo que elle passara em Londres, Hamburgo, Pariz e Lisboa, e que só d'esta última cidade annunciára a sua vinda, calculava com razão, que não lhe deviam ser desconhecidas as difficuldades da casa de Oliveira. A carta que Lopes escrevera ao seu antigo patrão acabava com estas palavras : «Ainda bem que Deus nos conservou a vida a ambos para nos abraçarmos depois de vinte annos de ausência, se não leva a mal que o abrace o seu antigo caixeiro, e que lhe mostre assim e por qualquer outra maneira quão lembrado estou de que a minha fortuna é obra sua, e de que também lhe devo o socego dos últimos dias da minha santa mãe... !»
Estas palavras explicavam bem os sentimentos de Salvador Lopes de Souza. Nem careciam commentário. Henrique começava a presumir quem tinha obstado ao retorno das letras de Hamburgo. Na cidade o prophético instincto popular que raras vezes erra, adivinhara que vinha do Brazil o Salvador de Cantanhede, como lhe chamavam, e que trazia grandes sommas para a casa de Manuel de Oliveira. Já Álvaro de Araújo fizera a tal respeito duas visitas de affectuosa e alambicada curiosidade em seu nome e da mana Christina.
Salvador chegou com effeito no dia annunciado, e foi alojar-se na estalagem do Paço do Conde sob pretexto de que a numerosa comitiva de criados brancos e pretos, e o viveiro de papagaios, araras, macacos e saguis, que esperava de Lisboa, o excluiam necessariamente de casa onde houvesse senhoras, e onde a tranquiliidade fosse tida em conta de elemento indispensável da felicidade doméstica. Fora Manuel de Oliveira esperal-o e recebel-o em carruagem ao Alto das Calçadas, acompanhado de Henrique de Mello, porém teve de ceder a estas rasões, e de renunciar o prazer de hospedar o seu feliz protegido.
Pae e filho que de vinte annos se não tivessem visto, não se abraçariam com maior effusão de affecto. Ambos choravam e riam ao mesmo tempo, limpando as lágrimas. Salvador vinha encontrar velho e alquebrado o negociante que deixara rico de energia e vigor e á frente de grande commércio, Manuel de Oliveira mal podia acreditar que fosse aquelle homem pállido, magro e calvo o mancebo refeito, corado e de cabellos louros, que elle despachara para Angola com um carregamento de vinhos da Bairrada, e que lhe voltava agora millionário, mas enfermiço.
Passado o primeiro instante do encontro, o sr. Oliveira apresentou Henrique de Mello ao recém-chegado, e disse-lhe em breves palavras que homem era na cidade, e o muito que lhe devia. Salvador Lopes deu a mão a Henrique, como se fosse a amigo antigo, e todos três subiram ao caleche do sr. Oliveira para voltarem a Coimbra, que daquelle sítio parece aos viajantes estar-lhes sorrindo e convidando-os a entrar dentro das suas antigas e quasi derrocadas muralhas.
Foi passado o dia seguinte em casa de Manuel de Oliveira, onde D. Anna, a tia, o velho e Henrique de Mello, se esmeraram em acolher e festejar tão excellente amigo. Antes de jantar a que por convite do dono da casa assistiram alguns mais íntimos, Salvador contou varias anedoctas interessantes de África e do Brazil, dando mostras de que a profissão commercial não destroe a educação litterária, antes a desenvolve e apura por conhecimento prático das cousas e dos homens.
O velho teve de presente um riquíssimo chapéu de Panamá, dos que raramente chegam á Europa, e uma bengala de ponta de abada com castão de oiro, mandado fazer em Pariz. Manuel de Oliveira poz o chapéu mil vezes, como teria feito qualquer menino de treze ou quatorze annos. A bengala andou-lhe quasi todo o dia na mão. D. Anna recebeu um penteador de cambraia de linho, bordado a retalho, obra primorosa da industria bahiana, e a tia outro de menor valor, mas todavia de grande preço.
As caixas de goiabada e de outros doces americanos, as esteiras feitas pelos negros, os pannos de missanga tecidos pelos indígenas, e as barricas da mais fina mandioca que se prepara no Brazil, vieram em grande quantidade para casa de Manuel de Oliveira. Os papagaios e mais alimárias e aves americanas ficaram desde logo á disposição das senhoras. Henrique, para quem não podia haver presente preparado, não escapou todavia á generosidade do brazileiro, como em Portugal se chama aos portuguezes que voltam da América. Salvador Lopes destinou-lhe algumas caixas de charutos da Bahia, preciosos na qualidade do tabaco fino e fraco, e no esmero da fabricação.
Foi o jantar alegre como o dia. As perguntas de Manuel de Oliveira acerca da vida do seu protegido, agora transformado em protector pelas alternativas dos destinos humanos, cruzavam-se com as de Salvador Lopes a respeito da mudança da casa para Coimbra, do sítio onde D. Anna fora educada, e de muitas outras cousas que a curiosidade do amigo ausente ia apontando em seguida.
Fazia D. Anna as honras da casa com a gravidade affectuosa, condão especial da senhora ingleza, que a filha de Manuel de Oliveira recebera da mãe no sangue e na educação dos primeiros annos. A phisionomia simpathica de Salvador Lopes, a affeição que parecia ter ao sr. Oliveira, e o gosto com que o bom velho se comprazia de ver o recem-chegado, agradaram a D. Anna. Ao cabo do jantar havia entre ella e o brazileiro toda a intimidade discreta que em poucas horas se pode crear e desenvolver sob o influxo de sentimentos nobres e entre gente honrada.
Á noite veiu grande número de visitas, e já se sabe, não faltou o sr. Álvaro de Araújo, sempre em seu nome e da mana Christina. D'esta vez bem informado de que Salvador Lopes possuia a assombrosa bagatella de quatro mil contos, só lhe restava saber com que título parte d'esse dinheiro viria a entrar no cofre de Manuel de Oliveira, no qual lhe parecia necessário apesar da compra do Seixadello que se verificára logo segundo as formulas determinadas nas leis.
A curiosidade do menino coimbrão era difícil de satisfazer. Não que lhe faltasse astúcia para preparar as perguntas e fazel-as em tempo competente. Graças a Deus, que para martyrio humano creou estes mosquitos teimosos, sobejava-lhe. Mas Salvador conversava com Manuel de Oliveira ou com D. Anna. Frequentes vezes com ambos. Henrique assistia a conversação na qual de vez em quando, tomava parte, e a tia demasiadamente nervosa e irritável não se accommodava ao carácter agro-doce de Álvaro de Araújo.
O chá, feito na sala segundo o uso inglez, separou o grupo que rodeava Salvador Lopes, e em quanto D. Anna ajudada por Henrique exercia este importante cargo doméstico, o brazileiro a quem o calor começava a apressar a circulação do ssngue, foi para a janella tomar o fresco e sorver ar puro.
Álvaro de Araújo que já procurara aproximar-se de Salvador Lopes frequentemente durante o serão, e de cuja adocicada malevolência o recém-chegado fora prevenido quando lhe apresentaram o mano de D. Christina, aproveitou o ensejo e foi ter com elle á janella, onde o brazileiro com a palma da mão sobre o peito consultava o bater apressado do coração. A conjunctura era mal escolhida para curiosidades, mas Álvaro de Araújo não podia adivinhar.
-- Ora ainda bem, começou o menino, que o vemos restituído á nossa pátria! A mana Christina diz que sempre ouviu dizer a meu pae quando se fallava do sr. Salvador: «Aquelle mancebo ha de por força ser rico, e...»
-- Felizmente não se enganou, interrompeu com secura o brazileiro.
-- E diz muito bem, felizmente, porque não só é bom para a nossa terra, mas para o reino. Isto não fallando nos amigos que podem precisar da sua protecção, e aos quaes de certo a não ha de recusar. E olhe que talvez lhes seja bem necessária... !
-- Até onde eu puder, volveu Salvador Lopes impaciente por não lhe ser permittido deitar o rapaz pela janella fora.
-- Até onde puder? Essa é boa! Com quatro mil contos em Portugal tudo é possível.
-- Mas não vê que metade pertence ao meu sócio, retrucou o brazileiro com intenção maliciosa.
-- Ah! Tem um sócio? Assim mesmo são dois mil contos. Cá em Portugal quem os tem? O seu sócio ficou no Rio?
-- Não senhor. Está aqui.
-- Em Coimbra?!... exclamou o rapaz espantado.
-- Sim senhor. É o sr. Manuel de Oliveira, concluiu Salvador Lopes saindo da janella e approximando-se da mesa do chá.
Álvaro de Araújo ficou attónito, e correu logo a dar parte á mana Christina do estado da situação. «Os dois mil contos de Salvador Lopes», dizia elle já em casa á sua ambiciosa irmã, «são solteiros. Esta circumstância é importante.»
No fim do serão, Salvador despediu-se de todos por oito dias. Contava na manhã seguinte partir para a Figueira a visitar a que elle cuidava sepultura rasa de sua mãe, e que a discreta generosidade de Manuel de Oliveira cubrira, sem lh'o participar, com túmulo elegante e simples. Depois havia de passar em Cantanhede a receber as ordens e a benção de seu pae, e d'ahi para Coimbra outra vez, e com larga demora.
Henrique de Mello saiu com elle, e foi acompanhal-o até á hospedaria. Pelo caminho Salvador Lopes disse-lhe que no seu regresso tratariam ambos dos negócios da casa, pois que Manuel de Oliveira lhe parecia pouco disposto a entreter-se com isso: que estava informado das difficuldades actuaes, e que por isso pagara as letras em Hamburgo.
-- Eu já o suspeitava, interrompeu Henrique.
-- Se soubesse o que eu devo áquelle honrado velho ... ! Mas emfim esses pagamentos estão feitos. Agora, se em quanto estou ausente houver qualquer caso imprevisto, pode sacar sobre o banco de Lisboa, ou sobre Cunha e irmãos, do Porto, porque em ambas as partes será honrada a firma de Oliveira e Ca., qualquer que seja a somma. N'este sentido dei ordem em Lisboa, e escrevi para o Porto.
-- Nós havemos de salvar o meu antigo patrão, concluiu Salvador apertando a mão de Henrique e despedindo-se d'elle á porta da estalagem, por maiores que venham a ser os sacrifícios.
-- Essa foi sempre a minha intenção. Também devo grandes obrigações ao sr. Oliveira. Sem elle a minha casa seria hoje de meu tio José de Mello.
-- Bem sei, e por isso conto com o seu auxílio. Eu disse áquelle bregeirote do Araújo que Manuel de Oliveira era meu sócio. Convém não me desmentir. Até á volta, sr. Henrique de Mello.
-- Até á volta, sr. Salvador.
Partiu com effeito Salvador Lopes a cumprir o piedoso intento de visitar no cemitério da Figueira a sepultura da sua adorada mãe. Meditava levantar-lhe monumento que não desdissesse da condição mediana em que sempre vivera aquella exemplar senhora, nem faltasse ao que a saudade filial deve á honrada memória dos paes.
Chegado ali, observou quasi com pezar que outra mão, embora amiga mas estranha, se incumbira de tão grato dever. Sentiu ver-se privado da suave consolação de prestar a derradeira homenagem aos ossos de sua boa mãe, porém não quiz mal a Manuel de Oliveira que ordenára a obra, muito antes que a riqueza de Salvador Lopes lhe permittisse imaginal-a, como lh'o requeria o affecto.
Soube então que frequentemente vinha de Cantanhede á Figueira seu pae, acompanhado de um ou dois ecclesiasticos, e que sempre fazia a devota romagem do túmulo da desamparada consorte. Dizia o guarda que o velho ajoelhava junto da grade, e ficava assim por muitas horas em oração, sendo ás vezes necessário que os padres o avizassem de que ia fechar-se o cemitério. No anniversário do fallecimento acudia também a mandar dizer missas em todas as igrejas da villa, distribuindo aos pobres grande cópia de esmolas. Todos diziam que era santo aquelle velhinho e que por isso Deus o conservava tão robusto. Os que melhor o conheciam, calavam-se e não perturbavam o peccador nos extases do arrependimento, nem entibiavam a fé alheia duvidando d'elle.
Consistia o túmulo em tosco paralellogrammo de pedra, levantado a um metro do solo, tendo no centro a insígnia da redempção. Sobre três columnas, formando triângulo em derredor do monumento, avultavam as estatuas da Fé, da Esperança e da Caridade. Era todo de granito das pedreiras do Porto, onde se fizera por ordem de Manuel de Oliveira. Faltava-lhe inscripção. Não esqueceriam á piedade filial o nome e a data. Aos indifferentes importava pouco.
Em torno, e a dois metros de distância, corria a grade de ferro que cercava o resto do terreno comprado pelo pae de D. Anna, e graças aos cuidados do guarda, especialmente remunerado para este fim, crescia formosa relva no espaço livre. Ali quizera o velho Lopes de Cantanhede preparar sítio onde viesse a descançar junto da maltratada esposa, e escrevera a Manuel de Oliveira pedindo-lhe permissão para edificar o seu jazigo. O negociante, já então em Coimbra, leu a carta do pae de Salvador, rasgou-a lembrando-se dos soffrimentos da triste senhora, e não lhe respondeu. Resignou-se o velho a mais esta expiação, mas não perdoou o silencioso desprezo do nosso Oliveira.
Nos últimos annos quando a fortuna se resolvera a favorecer desmedidamente o commércio de Salvador Lopes, o seu antigo patrão indo á Figueira ordenou que em frente do túmulo se abrissem duas campas cobertas com pedras e sem ornato. Uma era para Salvador Lopes, a outra para o velho de Cantanhede, se o filho quizesse conceder-lhe na volta ao reino a sollicitada mercê de jazer aos pés da victima dos seus desvarios. Nos livros mandou lançar á conta de Salvador todas as despezas do jazigo e das duas novas sepulturas, porém nao lhe communicou a tal respeito coisa nenhuma. Adivinhara Manuel de Oliveira quaes seriam os sentimentos filiaes em face do túmulo materno, erguido e cuidado por pessoa estranha, e quiz dar na conta geral que lhe havia de entregar agora, testemunho de lhe ter acertado com a vontade.
Demorou-se pouco tempo na Figueira o rico brazileiro. Cumpridos os deveres para com a memória da mãe, veiu a Cantanhede visitar o pae e passar com elle alguns dias. Aggravaram-se com a viagem e com as sensações de saudade e de tristeza os padecimentos de Salvador, e chegou á casa paterna tão enfermo que não quiz demorar-se. Resolveu partir no dia seguinte para Coimbra. Agitavam-lhe o ânimo a gravidade da moléstia que conhecia bem, e a incerteza e risco em que ficariam os negócios de Manuel de Oliveira, se a morte viesse impedil-o de realisar a efficaz protecção com que desejava mostrar-se agradecido.
Não o queria deixar partir em tal estado o pae, e com mil razões lhe pedia que permanecesse ali até passar aquelle ataque, que não era padecimento novo e havia de ceder como das outras vezes, podendo aliás aggravar-se com a jornada. Desculpou-se com attenciosa insistência o doente. Vendo que a anciedade por não partir logo lhe augmentava o mal, teve de ceder o velho, ordenando que transportassem o filho até ao rio por onde em barco commodamente preparado subiria a Coimbra. Receava Salvador que na viagem lhe chegasse a última hora, e impacientava-se com a demora indispensável para vencer a distância. De Cantanhede antes de peorar escrevera a Henrique de Mello pedindo-lhe que, se em poucos dias o não visse chegar a Coimbra, viesse a Cantanhede procural-o.
Recebeu Henrique e toda a família Oliveira com verdadeira mágoa a notícia do perigoso estado de Salvador Lopes, e quando este chegou a Coimbra, estavam no caes D. Anna, a tia, Henrique de Mello, a mãe, e o menino Álvaro que, encontrando os outros no caminho para o rio e sabendo a que iam, não quiz perder o ensejo de se mostrar importunamente obsequioso.
Salvador, a quem o pae quizera acompanhar, não consentiu n'esta fineza, nem quiz que um dos padres, commensaes do velho, viesse com elle até Coimbra. Chegou mui gravemente enfermo em cama que lhe haviam disposto á ré do barco, resguardada com toldo. Instruído de quão variadas são no desenlace as moléstias do coração, agourava próximo o fim da vida.
Tinha estudado todos os symptomas, e parecia-lhe que á uma se apressavam a avisal-o de estar chegada a hora. Não desfallecia perante a morte. Dormir é máximo refrigério de quem padece dores, dormir para sempre é consolação e repouso perpétuo ! Não temia a morte. Receiava por Manuel de Oliveira.
Deixar no mundo em situação tormentosa o seu melhor amigo, o protector da juventude, o homem que fora voluntária origem da grande riqueza que possuía hoje, e que adoçara com amigável estremecimento os últimos dias de sua mãe, era afflição mais profunda do que podia ser a agonia do passamento. Considerava que Manuel de Oliveira só tinha por inimigo o velho de Cantanhede, contra quem defendera a mãe de Salvador e a quem recusara uma campa junto dos ossos d'ella. E talvez viesse a depender do rancor indomável ou da generosidade duvidosa d'aquelle ancião o futuro da família Oliveira...!
Sabia que a religião manda perdoar, e que a doutrina da Egreja ordena que se recebam as humilhações em justa expiação das faltas conunettidas, mas Salvador sem duvidar da boa fé com que o pae buscara alcançar devotamente junto dos altares o perdão dos erros, não ignorava que até sob as vestes sacerdotaes vão ás vezes encubrir-se violentas cóleras que, por serem ecclesiásticas, não são menos tenazes, nem menos implacáveis do que as paixões mundanas. Também ás vezes o espírito cansado vae-se por tal modo gastando em actos de compunção exterior, que o coração fica inteiramente vasio de affectos moraes e de sentimentos generosos. Inesplicáveis variantes de caracter humano !
Combatido de receios tão pungentes viera na lenta viagem rio acima em profunda tristeza até que avistou ao longe a formosa Coimbra. Ahi se lhe abriu então a alma á esperança de chegar com vida á cidade e de remediar tudo, se Deus lhe concedesse ainda algumas horas. Quando se viu no caes, e conduzido á própria casa de Manuel de Oliveira quasi nos braços d'aquella santa família, teve-o por especial mercê de Deus. Agradeceu então ao Senhor na silenciosa e arrobada elevação de alma que só conhece quem já uma vez na vida levantou ao céo os olhos supplicantes, e cuidou vêr n'elle a mão do Eterno a acenar-lhe com a protecção divina.
Não esqueceu de certo o leitor que Henrique de Mello era médico. Coube-lhe por tanto a primeira auscultação e exame do enfermo. Estavam sós. As senhoras tinham acompanhado o préstito quasi fúnebre até á porta do quarto que se preparara para Salvador Lopes, e Manuel de Oliveira, accommettido pela costumada enxaqueca, fora descansar uns minutos ao seu aposento. Álvaro partira a contar caso á mana Christina.
-- Então? Exclamou o doente.
-- O seu estado parece-me grave, respondeu Henrique de Mello depois de o ter examinado bem, mas não é para desesperar.
-- Quantas horas?
-- Qaantas horas para que?
-- Para viver e salvar esta família, volveu anciado o enfermo.
-- Pelo amor de Deus, sr. Salvador Lopes. Não se atterre. N'estas enfermidades qualquer sensação forte pode ser mortal.
-- É verdade, mas a certeza de morrer, deixando providenciado quanto pode respeitar á velhice de Manuel de Oliveira, talvez me restabeleça rapidamente.
-- Eu não o julgo tão perigoso, mas não me fio em mim só. Já se mandou recado a facultativos mais experimentados, e que não deixaram a sciência pelos negócios, como eu fui obrigado a fazer.
-- De que serve isso? Eu dou mais pela voz do seu coração do que pelos discursos de uma junta. Façam o que quizerem, concluiu Salvador extenuado, mas não me deixem morrer assim.
Chegaram para logo os doutores, examinaram o doente e reuniram-se na sala mais affastada do quarto em que elle jazia. Não disputaram. Foram todos concordes em que a moléstia estava muito adiantada, e que era inevitável a catástrophe. Os mais animosos concediam-lhe dois dias de vida. A Henrique de Mello, que sustentara a possibilidade de restabelecimento próximo, responderam desejando que Deus fizesse milagres, mas sorrindo da inexperiência do mancebo.
Não soube Salvador Lopes o que se resolvera na junta, porém com o raro instincto dos moribundos conheceu que não era favorável a opinião dos doutores, e pediu que chamassem a família Oliveira junto do seu leito, porque os queria ver todos antes de morrer.
Henrique de Mello annuiu logo a este desejo, e o próprio Manuel de Oliveira venceu a pertinaz enxaqueca para acudir ao quarto do infeliz amigo. Ali iremos encontrar toda a família no capítulo seguinte.
Ao conhecido provérbio francez -- O homem propõe e Deus dispõe, podemos accrescentar a variante que a experiência nos está ensinando todos os dias : O homem propõe e os importunos dispõem. E vem a ponto para este capítulo do romance em que a família Oliveira ia reunir-se em torno do leito de Salvador Lopes, quando a senhora D. Christina, avisada pelo menino Álvaro do que se passava, accudiu a casa do velho negociante na hora em que elle e a irmã, convocados por Henrique de Mello, atravessavam a sala próxima á escada e iam dar entrada no quarto do enfermo.
-- Nós não queremos incommodar, gritou Álvaro adiantando-se a cumprimentar a tia de D. Anna e a apertar a mão do velho, mas a mana Christina apenas soube...
-- É verdade, interrompeu a preconisada mana dirigindo-se a Manuel de Oliveira. Bem sabem quão amiga sou d'esta casa. Meu irmão disse-me que o sr. Salvador viera da Figueira em estado perigoso de saúde, e eu não tive tempo senão de pôr o chapéu e o mantelete para vir acompanhal-os n'esta afflicção.
-- É grande, minha senhora, muito grande para toda esta família, replicou Manuel de Oliveira; Salvador Lopes é como se fosse meu irmão.
-- E com razão, interrompeu Álvaro, em commércio os sócios são como irmãos. Eu digo isto porque o sr. Lopes me contou que era sócio do sr. Oliveira, coisa que muito me alegrou porque, segundo por ahi rosnam, elle é riquíssimo.
-- Valha-o Deus, mano, ajuntou Christina reprimindo o maldoso carácter do irmão, que lhe não convinha n'aquella circumstancia. Valha-o Deus! Quem pensa agora em sociedades de commercio. Vamos ao que importa. Como está o doente?
-- Segundo os médicos está muito perigoso, respondeu Manuel de Oliveira aproveitando gostosamente o ensejo de evitar conversações commerciaes que no fim de tudo podiam acabar no negócio da Misericórdia. Henrique é o único que ainda não desespera de o ver restabelecido.
-- Pois então não desanimem. O sr. Henrique de Mello é homem de muito talento e de grande dedicação a esta casa e aos amigos d'ella. Não há dois homens como elle em Coimbra...!
-- De certo, sr.a D. Christina, acudiu o velho, voltando com a irmã e as duas importunas visitas para a sala immediata d'onde viera. Henrique de Mello é tão meu filho como a Annica. Estou convencido que lhes quero a ambos com affecto egual. Já me acostumei a tratal-os por filhos !
-- Também assim deve ser, disse Álvaro para não faltar aos bons costumes de pesquisar tudo. Como dizem que elles casam um com o outro, ambos virão a ser seus filhos...!
-- Nós ainda não démos parte a ninguém...! volveu a tia que não perdoara ainda ao fedelho as dúvidas acerca da riqueza do irmão e da venda da quinta.
-- Não demos parte, é verdade, corrigiu Manuel de Oliveira, mas Henrique deve saber que eu nunca lhe negaria cousa que me pedisse. Dava-lhe gostosamente a mão de minha filha.
-- Qual seria o pae que repudiasse o sr. Henrique de Mello, querendo elle ser seu genro? accrescentou Christina.
-- Pois é o que eu digo! Bom rapaz, instruído, rico e fidalgo. Elle e a sr. D. Anna são a sorte grande de Coimbra. Iguaes em tudo.
-- Sim, retrucou o velho percebendo a malícia dos elogios de Álvaro, minha filha é boa rapariga, bem educada, talvez; fidalga rica, não é. N'este ponto o casamento seria desigual.
-- Ora adeus, sr. Manuel de Oliveira, quem falla hoje n'essas cousas? Agora o dinheiro é tudo, tornou Álvaro esganiçando a voz. Pois não acha? Que falta lhe faz aos senhores não terem tios em Malta, e um avô desembargador do Paço? Nenhuma. E a mim também me não adianta nada. Era nosso primo o conde da Barca, primeiro ministro! E depois? Ficamos na mesma!
Deixemos continuar este martyrio, com que a má índole de Álvaro estava affligindo o velho, apesar dos olhares severos de D. Christina, e vamos para junto de Salvador Lopes, em cujo quarto D. Anna entrara com Henrique antes que as duas secantíssimas visitas assomassem á porta da sala.
Henrique deu volta pelos pés da cama e foi collocar-se entre a parede e o leito. D. Anna tomou a posição fronteira, ficando entre ambos o doente encostado aos travesseiros que o sustinham, meio assentado por causa da dificuldade no respirar.
-- E o sr. Manuel de Oliveira não vem? Perguntou tristemente o enfermo.
-- Está com visitas na sala; estão lá os Araújos; o Álvaro e a irmã; mas ha de vir logo...
-- Quem sabe se logo será tarde? interrompeu Salvador Lopes. Os meus dias estão contados.
-- Talvez, disse com gravidade Henrique, mas a conta só Deus a sabe.
-- Tem rasão, murmurou o doente. Elle é que sabe, mas aos que não conhecem o dia e hora, cumpre estar preparados. Para isso os chamei aqui. Sinto-me abatido ! Posso morrer de um minuto para o outro, e não queria finar-me sem os salvar.
-- A nós? disse D. Anna.
-- Sim, menina. É precizo dizer tudo. Falla Deus pela boca dos que vão morrer. Ouçam-me ambos. O meu amigo e protector Manuel de Oliveira deve-me grandes sommas.
-- É verdade, accrescentou Henrique.
-- Pois essas grandes sommas não valem nada, se eu viver; mas se eu morrer, pertencerão a meu pae, e esse não é amigo do sr. Oliveira. Eu fui causa innocente d'esta inimisade. Sou quem a deve reprimir ! Será o meu último acto de gratidão para com a memória da minha boa mãe.
N'este ponto faltou-lhe a respiração, e entrou o enfermo em grande anciedade. Henrique applicou-lhe algumas gotas de um líquido que os médicos tinham receitado em junta, e pediu-lhe que socegasse. D. Anna estava pálida, como a estátua da morte; angustiada com o padecimento de Salvador, e com as suas temerosas revelações.
Foi breve o accesso de suffocação. O doente descancou durante alguns minutos, sentiu-se melhor gradualmente, e continuou :
-- Fallar não me faz mal. É o remédio da alma. O do corpo já me não importa. Isto acabou. Vamos ao caso. Eu posso deixar a minha terça ao sr. Manuel de Oliveira, mas não é bastante, porque os meus haveres não estão todos líquidos. Há só um meio, se a menina e o sr. Henrique me querem ajudar.
-- Queremos de certo, responderam ambos.
-- Pois então escutem-me. Eu caso com a sr.a D. Anna sem escripturas. Metade da minha fortuna é sua, e da outra metade deixo eu a terça a seu pae no testamento que vou fazer logo. Bem sei que estavam destinados um para o outro, vejo que se amam, e que se devem amar, mas eu nem já sombra sou. Deus sabe, se haverá tempo suficiente para arranjar as licenças e celebrar-se hoje mesmo o matrimónio. Não se afflija, sr.a D. Anna, em casar com um defunto. Ao sr. Henrique não digo nada. Sabe melhor do que eu para onde este corpo irá em breve.
D. Anna pôz a mão esquerda na cabeceira do leito para não cair. Henrique de Mello dominou o doloroso espanto que lhe causara a proposição de Salvador, e olhou com firmeza para D. Anna, como se quizera communicar-lhe magneticamente a força necessária para não faltar aos deveres de tão afflictiva situação.
-- Não nos illudamos, continuou Salvador. Eu estou morto.
-- A sciência ainda o não disse, replicou Henrique muito commovido.
-- Pois não diria. É possível que até dissesse o contrário, e que não mentisse. Posso amanhã estar levantado, sair, e fingir que vivo ; mas a sciência que me resuscitar a sombra, não me restaura o coração deteriorado. Há muitos annos que sou cadáver galvanisado pelos médicos e pela hygiene. Não se afflijam com este casamento. O meu fim é santo a todos os respeitos. Se á sr.a D. Anna não repugna ajuntar Lopes ao seu nome, é este o pequeno sacrifício que lhe custa a tranquillidade da velhice de seu pae.
-- Sr. Salvador, respondeu D. Anna enxugando as lágrimas que silenciosamente lhe brotavam dos olhos, se os seus bens pertencem por lei a seu pae, como quer que eu me preste a prival-o d'esse benefício? Associar ao meu nome o de um homem honrado, nao é sacrifício; salvar meu pae é dever; mas respeitar os direitos alheios também é obrigação.
-- Illude-se, minha senhora. Os meus bens, dizia-me um advogado honradíssimo do Rio de Janeiro, podem ser considerados de um modo que elle chamava pecúlio quqsi castrense : n'esse caso é-me licito deixal-os em testamento a quem eu quizer, porém d'ahi nasceriam mil demandas para atormentar os últimos dias do sr. Oliveira. Tenho bastante que deixar a meu pae, e todos sabem que a minha riqueza não proveiu d'elle, mas da generosa protecção do sr. Manuel de Oliveira que me enviou a Angola, e me deu o crédito indispensável para negociar. Sr.a D. Anna, sr. Henrique de Mello, consintam para que eu morra socegado.
-- Tal resolução não depende só de mim, respondeu D. Anna suffocáda em pranto, e olhando para Henrique com a maior ternura. Meu pae...
-- Seu pae! Seu pae não quereria comprar o descanço da velhice á custa da felicidade da filha. Sr. Henrique de Mello, falle por quem é. Eu comprehendo a sua dôr. Também me parece que entende bem a puresa das minhas intenções. Peço-lhe que falle.
Henrique tomou a mão que Salvador lhe estendera, olhou serenamente para D. Anna cuja angústia era extrema, e respondeu com voz quasi tranquilla :
-- Essa idéa foi inspiração de alma nobilíssima. A sr.a D. Anna ha de acceitar a sua proposta. É realmente o único modo de salvar esta casa, dentro da qual não ha ninguém que não sacrifique a vida, sendo necessário, para prolongar por uma hora a do sr. Oliveira. Não ê assim, sr.a D. Anna?
-- Deus, meu pae, e o sr. Henrique, foram desde muito quem me guiou na direcção dos meus pensameotos e das minhas acções. Não me hei de revoltar agora contra nenhum dos três, e o sr. Salvador pode contar com a minha estima, com os meus disvelos, e com o meu respeito.
Salvador tinha dado a mão direita a D. Anna. Ao ouvir esta resignada decisão levou aos beiços as mãos dos dois infelizes amantes, e beijou-as quasi com um único beijo. Parecia unir ali, em consórcio espiritual e eterno, aquelles que as leis ecclesiásticas e civis iam separar cruelmente.
Entravam então no quarto Manuel de Oliveira e a irmã que vinham de despedir D. Christina e Álvaro. Henrique foi ao encontro do velho e disse-lhe que o sr. Salvador Lopes lhe pedia a mão de sua filha, e que só faltava o consentimento paterno porque D. Anna já dera o seu.
Estas palavras foram ditas em voz baixa perto da janella para onde Henrique chamara o velho, em quanto a tia de D. Anna se aproximava do leito e se informava do estado do enfermo, desculpando-se de não terem vindo mais cedo.
Não sabia que responder o pobre velho. Conhecia que D. Anna e Henrique se amavam muito. Puzera n'este amor a esperança da sua velhice e a segurança da felicidade da filha. E agora eram elles próprios quem lhe propunha outra combinação que nunca lhe viera á idéa, e de que mal podia adivinhar a conveniência.
Henrique percebeu a indecisão do velho e a anciedade com que o enfermo seguia do leito com olhos curiosos a conversação dos dois. Resolvido a sacrificar o coração ao dever, e fortificado n'esta resolução heróica pela innata elevação de seu nobre carácter, atalhou quaesquer observações com as seguintes palavras :
-- Este casamento é indispensável para o pagamento integral dos credores da casa, e para que o seu nome passe honrado á sr.a D. Anna. O sr. Oliveira nem pode sacrificar os seus credores, nem o futuro de sua filha. Além d'isto o honrado homem, que jaz acolá n'aquelle leito, morreria de dôr, se visse que a casa do seu bemfeitor ficava em perigo. Sempre teve confiança em mim o sr. Oliveira. Agora também a há de ter.
-- Eu estou por tudo o que minha filha e o sr. Henrique deliberarem. Ambos são meus filhos. Mas eu sempre cuidei...
Henrique abraçou o velho, não o deixou continuar, e aproximando-se do leito junto do qual D. Anna se conservava ainda immóvel e como que insensível ao que se estava passando, disse para o enfermo, que o sr. Manuel de Oliveira consentia de boa vontade em dar a mão de sua filha ao sr. Salvador Lopes, e que elle ia já ordenar tudo para que, se fosse possível, se realisasse a ceremónia immediatamente.
O doente estendeu os braços para Manuel de Oliveira que viera collocar-se ao lado de D. Anna, e caiu extenuado sobre os travesseiros. A tia recuou dois passos ao ouvir a espantosa novidade, olhou para todos para adivinhar a causa d'este successo extraordinário, e pela primeira vez da sua vida callou-se, em vez de fazer perguntas. Também lhe chegou a hora de sacrificar alguma cousa á solemnidade da conjunctura !
N'esse mesmo dia por consentimento do prelado que dispensara os proclamas, receberam-se por palavras de presente Salvador Lopes e D. Anna de Oliveira no próprio quarto do enfermo. Foram testemunhas Henrique de Mello, e o guarda livros da casa. Veiu em seguida o tabellião approvar o testamento de Salvador Lopes. Deixava a terça a Manuel de Oliveira e confirmava a meação pertencente a D. Anna por terem casado segundo o costume do reino. Testamenteiro era Henrique de Mello.
Meia hora antes Henrique e D. Anna encontraram-se na saleta onde depois do jantar costumava tomar café a família Oliveira. Henrique junto da jardineira mechia machinalmente nos jornaes. Ao sentir passos voltou-se e caminhou para D. Anna que lhe caiu nos braços. O anjo do amor celeste cobriu com as suas azas a silenciosa despedida em que pela ultima vez se confundiram as castas lágrimas dos dois amantes, no mesmo sítio em que mezes antes haviam trocado em penhor de eterno affecto o primeiro beijo innocente.
Espalhou-se logo em Coimbra a extraordinária novidade do casamento da fllha de Manuel de Oliveira com o brazileiro de Cantanhede, e cada qual ajuizou do successo, segundo a amisade ou desaffeição que tinha ao velho negociante.
Parecia aos amigos mui a propósito esta fortuna para segurar o crédito da casa, e salval-a de qualquer contratempo. Haviam por nobre a acção de Salvador Lopes que só no ânimo agradecido podia ter fundamento, e approvavam o consentimento do velho. Agora se vê, accrescentavam estes, que Henrique de Mello nunca fez tenção de casar com D. Anna ! Se foi elle próprio quem a poder de diligência fez com que em menos de vinte e quatro horas se expedissem os papéis...!
Era mui diverso o caso no entender dos inimigos. Manuel de Oliveira sacrificara a filha ao socego da velhice. Henrique de Mello segurara a restituição das sommas que abonara á casa, e vendera por ellas a mão de D. Anna. Todos tinham illudido Salvador Lopes, e abusado de seu completo enfraquecimento, reservando-se de certo os dois jovens namorados outras valiosas compensações d'aquelle extravagante casamento de uma rapariga com um defuncto. Ahi está o que é o mundo, concluíam os maldizentes. Faz-se tudo para ser rico ! Fortes canalhas !
Advinhavam algumas pessoas a história d'estes acontecimentos, e preparavam-se para irem abraçar Henrique e dar-lhe os parabéns de ter sabido sujeitar o coração a tão estranho sacrifício. Eram poucos estes. É sempre diminuto o numero dos que julgam com justiça, e só depois de conhecerem a fundo o pleito que sentenceiam ! Quasi sempre o mundo condemna ou absolve sem examinar o processo, nem ouvir os accusados ! Por isso não passa em julgado a maior parte das suas sentenças.
Álvaro de Araújo soube do caso na Calçada, e correu a annuncial-o á mana Christina. Chegou á sala, onde a ambiciosa fidalguinha estava bordando, tão esbaforido e alterado que mal podia fallar, e causou á donzella momentânea inquietação.
-- Que é isso, mano Álvaro? Que aconteceu?
-- Que havia de acontecer? respondeu o mancebo apenas lhe foi possível sentar-se e cobrar alento. Não é capaz de advinhar a notícia que lhe trago !
-- Alguma brincadeira das suas...!
-- A brincadeira não está má ! Pois saberá que a família Oliveira deu-a em cheio. Lograram o Salvador de Cantanhede, que está ás portas da morte, e casaram-no com... com D. Anna.
-- Com a filha de Manuel de Oliveira? volveu Christina deixando escapar dos joelhos para o sobrado a tela em que bordava. O menino está brincando ! E Henrique de Mello...?
-- Henrique de Mello foi quem andou arranjando as dispensas dos proclamas. Olhe agora se tem pena do pobre Henrique ! Recebe o que lhe devem, e não ha de perder o resto. Se lhe parece, escreva-lhe a mana a dar-lhe os pezames. Aquillo é pássaro bisnau com todos os seus ares de seriedade, honradez e desinteresse !
Christina levantou-se da cadeira baixinha em que estava sentada, caminhou para o irmão, e perguntou-lhe de novo e com visível agitação, se com effeito era verdadeira aquella notícia, e como tão apressadamente se fizera similhante negócio.
-- É verdade, sim, é verdade. Eu ouvi-o contar ao padre que por ordem de prelado os foi receber. Elle devia sabel-o. E fez-se depressa, porque o pedia o caso. Não se realisam senão assim logros como este ... !
-- Não é logro, mano Álvaro. Não julgue mal de tudo. Manuel de Oliveira é bruto ; a irmã é tonta ; Anna é romântica, exaltada e pretenciosa ; mas Henrique tem nobre alma, e não procede sem pensar.
-- Se a mana não havia de defender a sua paixão platónica ! Agora alli o tem livre, engeitado legalmente por D. Anna, e talvez com tenções de se desforrar. Mas se casar com elle, tome o conselho de um parvo -- como ás vezes a menina me chama -- leve-o para longe de Coimbra. A companhia de Salvador Lopes póde ter seus perigos.
-- Não tenha má lingua, que prejudica-se a si e aos outros. Henrique é excellente rapaz, e quem casar com elle há de ser muito feliz. Mas então diga-me toda a história. Casaram; muito bem; mas o primeiro noivo fica na intimidade antiga, retira-se, ou que faz?
-- Pois ahi é que está o fino da obra. O enfermo não quer senão Henrique ao pé de si. Manuel de Oliveira finge-se pezaroso d'esta alliança, e também se entende unicamente com Henrique; e D. Anna calla-se porque os outros fallam por ella. Disse-me o padre Bernardo que Henrique assistira á ceremonia como testemunha, e que elle e D. Anna não despregavam os olhos um do outro.
-- Isso não pode ser. Por crédito de D. Anna, é necessário que se affaste da mulher que o próprio Oliveira nos disse destinar-lhe para noiva. D. Anna com os seus desembaraços inglezes era muito capaz de viver entre os dois toda a vida...
-- Para isso não seria preciso ser de raça ingleza, interrompeu Álvaro. Mesmo entre nós... !
-- Não me interrompa, mano, com as suas maldades. Henrique não é homem que acceite posições falsas.
-- Então a mana chama a isto posição falsa? Eu nunca a vi tão verdadeira! Aqui só anda em falso o parvo de Salvador Lopes. Se nós lá fôssemos, assim como quem se faz de novas?
-- Ainda o mano os quer ir atormentar mais? Toda a cidade sabe do successo a esta hora, e não há que fingir ignorância. E depois a boda e baptizado não vás sem ser convidado. É provérbio.
-- Pois é pena. Não gosto do provérbio. Eu queria ver a cara de toda aquella gente depois d'esta lança que metteram em Africa.
-- Olhe, mano, sabe o que ha de fazer? É callar-se, e não ir lá, se elles cá não mandarem. -- Pois nem saber do enfermo? -- Nem isso. Deixe o negócio ao meu cuidado, replicou D. Christina voltando ao esquecido bordado. No fim de tudo que nos importa a nós a vida alheia ? Case cada qual com quem melhor lhe parecer.
-- Ah! Temos jogo encoberto. A mana agora deu em diplomática.
D. Christina já não ouviu estas últimas palavras do querido irmão. Desde que pegara no bordado, caíra em profunda meditação, mal encoberta com o movimento da agulha, na verdade nervosamente rápido. Tão inesperado casamento libertava Henrique de Mello, cujo coração a irmã de Álvaro de Araújo pretendera disputar a D. Anna, até no caso em que se realisasse o consórcio projectado. Agora poderia obter com o affecto d'elle a mão a que os acontecimentos extraordinários d'esse dia haviam dado liberdade inteira.
N'isto meditava o pensamento ambicioso e sagaz de D. Christina. Mais recatada do que Álvaro, mas egualmente maliciosa, conciliadora e quasi tímida nas expressões, porém resolvidamente audaz nos pensamentos, era tão desprovida de escrúpulos moraes como acautelada em manifestar ao próprio irmão esta feição do seu carácter. D. Christina resolvera desde logo empenhar todo o seu talento -- que não era medíocre -- em aproveitar as eventualidades provenientes do successo referido pelo irmão.
Deixemol-a entregue ás combinações interesseiras e vaidosas do seu espírito, e voltemos para junto de outras pessoas que de certo merecem ao leitor maior consideração.
Conservou Salvador Lopes, durante a ceremónia matrimonial e emquanto não esteve approvado e cerrado o testamento, grande lucidez de faculdades, inabalável serenidade de espirito, e vigor physico muito superior ao que o seu estado de saúde lhe poderia consentir, porém apenas foram saindo do quarto as pessoas que o dever religioso ou o serviço público ali chamara, caiu em prolongada syncope que exigiu duas longas conferências dos principaes professores da faculdade de medicina.
Em ambas se decidiu, como na primeira, depois de repetidas auscultações que os symptomas cardiopathológicos eram terríveis, e a morte inevitável e próxima, porém na última junta, e sob vários indícios designados por Henrique de Mello, inclinaram-se alguns doutores á possibilidade de restabelecimento que, alongando o dia da catástrophe, não poderia comtudo impedir que viesse dentro de poucos mezes.
Illudiram-se os doutores da sciência. Seguiu-se á temerosa syncope somno duradouro e tranquillo ; depois já o enfermo respirava com maior facilidade ; desappareceu a inchação das pernas, das mãos e dos braços ; e ao cabo de três mezes de padecimento, Salvador Lopes convalesceu tão desassombradamente que a muitos parecia escorreito e são, e elle próprio se dava por muito melhor do que d'antes.
Attribuía o milagroso restabelecimento a um remédio que por suas mãos lhe preparara Henrique de Mello, e aos cuidados extremosíssimos da jovem esposa. Ambos lhe tinham assistido com estremado carinho. D. Anna como Penélope houvera cuidado Ulysses. Elle como Pylades teria sido com o desventuroso Orestes. Regosijava-se Salvador Lopes de o repetir a cada hora durante a convalescença, quando em derredor da sua cadeira de braços se reunia a família inteira a fazer-lhe companhia de tarde e nos serões. Muitas vezes lhes tomou as mãos para beijal-as, a ambos, como na hora em que lhes pedira o sacrifício do coração á tranquillidade do velho. «Devo-lhes tudo meus filhos,» ajuntava elle com os olhos humedecidos; «deram-me alguns dias mais de vida para lhes querer muito e para os abençoar.»
Não conseguiu nunca D. Christina, nem o irmão, entrarem no quarto do enfermo e assistirem aos affectuosos serões de família com que mais depressa ia progredindo o restabelecimento. Receava Salvador alguma impertinência de Álvaro ; Henrique teria motivos para não desejar aproximar-se de Christina ; e D. Anna, quaesquer que fossem os seus sentimentos, não desamparava o honroso logar de esposa ao lado de Salvador Lopes.
Cabia ao velho Oliveira e à irmã receberem aquellas importunas visitas, e illudirem ou satisfazerem a curiosidade quasi sempre affrontosa de Álvaro de Araújo e de sua esbelta irmã. Oppunha Manuel de Oliveira paciência e bondade ás disfarçadas insolências do rapaz. Era menos soffrida a tia de D. Anna, e muitas vezes respondeu com ajustados desforços ás gracinhas do mano Christino, como já lhe chamavam por alcunha na cidade. D. Christina fazia sempre de anjo de paz, reprimindo as demasias do irmão e dando rasão aos velhos.
Vingava-se Álvaro, á saída d'estas visitas, exprobando á irmã a inutilidade dos seus planos, e insinuando aos seus conhecidos por meias palavras mil interpretações desfavoráveis acerca da reclusão permanente dos três esposos, como elle lhes chamava. Tratava-o de parvo a astuta irmã, e o público sempre attencioso para com as damas, não ousava desdizer de opinião tão competente, porém as vozes de Álvaro iam produzindo effeito, e muitas pessoas sizudas principiavam a murmurar d'aquelle trio conjugal. Também murmuram as pessoas sizudas, e n'ellas influi frequentemente o parecer dos parvos, como se fosse opinião auctorisada !
Sabia-o Henrique de Mello, e já meditara nos meios de impor silêncio ao mundo. Previra-o muito antecipadamente e com determinada indifferença o próprio Salvador Lopes, resolvido a cumprir os seus deveres de gratidão com a escrupulosa consciência de moribundo. Só D. Anna ignorava estas desaforadas maledicências, porque a innata pureza de sua alma não podia advinhar a mínima suspeita. Obedecia submissa ao dever de filha e , de esposa. Cuidava que todos fariam outro tanto, e nem suspeitava d'elles, nem se lembrava de que alguém avaliasse injustamente a sua mais nobre acção. Amava Henrique com a innocente candura com que o amara sempre. Era-lhe agora consolação das tristezas de cada dia. Transformára-se de noivo em irmão, em amigo, em director moral. A grandeza do sacrifício a que elle se resignara por amor, elevára-o no seu conceito á sublimidade dos heroes.
D. Anna não occultava estes sentimentos. Unia-se ao marido para admirarem ambos o nobre carácter de Henrique, e não imaginava que houvesse mulher tão desabridamente egoísta que nas suas circumstâncias pretendesse anniquillar, cedendo a paixões grosseiras, a poesia de tão delicado proceder.
Muitas vezes lhe lembrava a desventura da sorte que a condemnava a ser esposa sem marido e donzella sem alvedrio, mas a própria sensibilidade da sua nobre alma sabia affastal-a de cogitações ingratas, e recordar-lhe quão digna de si e dos outros lhe cumpria ser para corresponder á dedicação de Salvador e de Henrique. Era outra affectuosa consolação ter conquistado para sempre a tranquillidade dos últimos dias de seu pae, e ver que n'esse caso desventuroso Henrique e Salvador, sem serem filhos, a egualavam na piedade filial.
Acudiam-lhe estes pensamentos, mas passavam com rapidez. Eram-lhe distracções forçadas a moléstia de Salvador, e os cuidados a que obrigava o penoso padecer d'elle. Continuara junto do enfermo a convivência com Henrique, e não viera ainda a ausência revelar áquelle innocente coração a amargura inteira da sua desconsolada existência, e desenvolver-lhe tempestuosamente o affecto com a desapparição do homem que tanto amava.
É singular condição do amor não só alimentar-se com a presença do objecto amado, mas também pagar-se e satisfazer-se mútuamente de o ver e admirar. Com a ausência como que se torna faminto, inquieto e desvairado, e não há rasão que o tranquillise, nem reflexão que o modere... Aquelles que pela ausência se deram por curados de amor, coitados! nunca tinham amado.
Vivia Henrique embevecido em sentimentos eguaes, desprecatado contra os perigos da convivência continuada e da identidade absoluta de pensamentos, vendo com antecipado receio aproximar-se a hora da separação que lhe estavam diariamente aconselhando as vozes da consciência.
Conhecia Salvador Lopes a gravidade da moléstia que padecia, e quasi se accusava de viver para tormento d'aquelles a quem mais devia e que mais amava. Queria que nunca o deixassem, que não interrompessem as innocentes relações que elle viera quebrar apparentemente para benefício de todos, que as conservassem na primitiva pureza como pedia a dignidade própria e alheia, e que D. Anna o não podesse accusar de desleal por qualquer pretenção que não fosse a de juntar ao de Oliveira o appellido de Lopes.
N'isto meditava com affinco, apurando na mente extremosa de delicadeza para levar ao cabo tão generosos intentos, e venerando n'aquelles dois jovens a santidade das intenções e a suave resignação dos martyres.
Não vivia muito contente, nem muito triste, o bom velho Manuel de Oliveira. Nos primeiros dias accusava-se de não ter tido valor de ser pobre, e de ter consentido no sacrifício da filha. Depois chegava a acreditar pelas apparências que todos eram felizes, e como ninguém lhe fallava em letras a pagar, em possibilidade de fallência ou no dinheiro da Misericórdia, nem perdera qualquer das commodidades que o cercavam anteriormente, dava-se por satisfeito, e passava os dias a pagar em carícias a todos o bem que de todos tinha recebido. Também a idade, e as angústias que lhe causara a situação da casa, tinham-lhe quebrantado o ânimo, e diminuído muito a intensidade das sensações.
Á irmã de Manuel de Oliveira não lembrava nenhuma destas coisas. Continuava a apreciar a perícia dos cosinheiros; regosijava-se de saber que seu irmão podia comprar mais quintas a Álvaro de Araújo, se elle as quizesse vender; proseguia na repetida leitura da Mocidade enganada e desenganada que citava a cada instante, e quando Manuel de Oliveira lamentava a sós com ella não ter vingado o seu projecto primitivo de casar D. Anna com Henrique, respondia que tanto lhe teria importado chamar sobrinho ao outro, como a Salvador Lopes.
Por este tempo, e quando o marido de D. Anna principiava a poder sair, recebeu Henrique de Mello uma carta do procurador de Águeda, requerendo a sua presença na quinta da Lagem por estar D. Barbara Coutinho em perigo de vida. A mãe de Henrique fora passar ali algum tempo por conselho dos médicos, e em vez de melhorar, peorára tão gravemente que não pudera escrever-lhe.
N'esse mesmo dia partiu Henrique para a sua propriedade de Águeda, promettendo voltar logo que D. Barbara estivesse melhor.
Não melhorou D. Barbara Coutinho. Sobre ser de idade já adiantada, e ter passado os melhores annos da vida em angústiaseè receios por causa da legitimidade do seu estado e por amor da sorte de Henrique, apertára-lhe cruelmente o coração a notícia do casamento de D. Anna de Oliveira com Salvador Lopes. De que valia a qualidade de herdeiro primogénito da família dos Mellos de Coimbra, reconhecida pelos tribunaes no filho de D. Barbara, e de que servia a riqueza que d'ahi lhe provinha, se a ventura de Henrique, e a sua própria, estavam unicamente no ajustado consórcio com a filha de Manuel de Oliveira?
Isenta da embriaguez de affectos generosos em que Salvador Lopes, D. Anna e Henrique de Mello se esqueciam de todas as amarguras da sua situação recíproca, e resumindo todo o amor no filho único, e em D. Anna porque já lhe parecia metade do seu querido Henrique, D. Barbara horrorisára-se das penas em que viveria o mancebo que assim era firmemente sujeito â escravidão voluntária da honra e do pundunor, como de compleição mui apaixonada e de coração mimosamente sensível.
Desde que recebeu de Coimbra em carta do filho a fatal notícia, não teve tranquillidade. Muitas vezes dizia a sós comsigo :
-- Pobre rapaz! Salvou o seu velho protector, e a si próprio se matou, e a mim também ! Pagou cara a dívida, mas fez bem, coitado ! Era dever.
De noite em sonhos figurava-se-lhe que lhe haviam morto o seu querido Henrique, e via-o já no ataúde, e logo depois sob a lousa que lhe parecia transparente como cristal. Era estreito o cemitério, e tão affastado que mal divisava outras campas, e as breves inscripções que julgava descobrir n'ellas. E acordava suffocada, afflicta, acabrunhada por tamanha desgraça ; queria chamar, e não ousava ter confidentes para dôr tão íntima ! Lembrava-lhe accender o candieiro, mas não se atrevia a fazel-o. Temia que a claridade lhe mostrasse realisado o que a imaginação lhe fingira era sonhos. A final chorava, chorava, a triste, até ao romper d'alva, e vivia em cada noite annos e annos de vida. Desventurada senhora! A felicidade do filho era a sua única felicidade!
Ao cabo de tanto padecer, sem ao menos desafogar com o filho para não accrescentar ás dores da existência de Henrique a notícia da sua estranha anciedade, amanheceu um dia com febre tão violenta que para logo declarou o médico de Águeda não responder pela doente, e que seria bom chamar outros facultativos. Assim o fez o procurador da casa, escrevendo para Aveiro e para Coimbra no mesmo dia. Quando Henrique de Mello se apeava no espaçoso pateo da Lagem, chegavam também da cidade, que espreita de longe o manso desaguar do Vouga, dois médicos dos que ali eram mais affamados.
Conservara a enferma todas as suas faculdades, apezar da intensidade da febre já reconhecidamente typhoide, mas não quiz receber no quarto senão o filho.
-- Agora posso morrer...! disse D. Barbara com voz enfraquecida. Já te vi, meu Henrique...!
-- Não há de morrer, minha boa mãe, respondeu o filho com affectada firmeza, mas notando a situação perigosa da enferma. Não há de morrer. Ali estão dois médicos de Aveiro. São muito entendidos, e ambos meus amigos. Encontrei-os perto d'esta casa, e pedi-lhes que a viessem ver.
-- Não, não, isso não. Agradeço o teu cuidado filial, mas eu só te quero ver a ti ! Tu também és médico, e para o meu coração és o único. Senta-te ahi, dá-me a tua mão, falla-me, dize-me que ainda vives. Olha ; sonhei que estavas morto. Era delírio da minha imaginação. Ainda bem, meu Deus!
-- Socegue, minha mãe, replicou Henrique ajoelhando perto do leito. Para a sua moléstia é o socego o melhor remédio. Eu aqui estou vivo e contente, se conseguir que se restabeleça.
-- Contente ! Pobre alma ! Tu contente ? E dizes bem ! Contente de me salvares a vida, de acudires aos outros, de espalhares a felicidade para todos os lados, e sem curares da própria ventura... ! Muito bom és, meu Henrique ! Deus te abençoe, como eu faço agora, e como tu mereceste sempre !
-- Mal d'aquelle cuja felicidade em grande parte se não compõe da ventura alheia ! Mas agora minha mãe, socegue o espirito, e dê licença que os médicos venham vêl-a. Peço-lhe...
-- Pois sim, Henrique, sim. Eu faço o que tu quizeres. Logo entrarão. Agora levanta-te, senta-te ahi mais um instante. Quem sabe os dias que eu ainda poderei ter de vida?
Sentou-se Henrique junto do leito em que jazia D. Barbara, e nem lhe excitou, nem lhe promoveu, as confidências acerca das suas angústias e visões, asseverando-lhe còm tudo sempre que era feliz porque julgava ter cumprido os seus deveres.
N'essa mesma noite, e na occasião em que chegavam os médicos a examinar o estado da enferma, uma congestão cerebral acabou com todos os padecimentos de D. Barbara Coutinho, e ajuntou uma dôr profundíssima ás que já opprimiam o malfadado coração de Henrique de Mello.
Contava com as consolações maternas o desditoso mancebo, e iam faltar-lhe agora quando mais as estava requerendo o cruel martyrio a que se condemnára ! Esperava refugiar-se junto de D. Barbara, não para se esquecer de D. Anna de Oliveira, mas para fallar d'ella com quem lhe conhecia os dotes superiores, e até esta consolação em tamanho infortúnio lhe fugira para sempre ! Desditoso Henrique !
Ás solemnes exéquias de D. Barbara acudiram a nobresa e clerezia d'aquelles arredores, hospedando-se os parentes da família na própria quinta da Lagem, como é costume na província, e assistindo quasi todos ao banquete do mortuorio, uso cruel a que mal serviam de desculpa as distâncias que tinham de percorrer os convidados, e o desconforto das raras pousadas que então se encontravam nas províncias.
Passados os dias consagrados ao terrível supplício de ouvir manifestações sentidas a pessoas que a cortezia, e não o pezar, reúne em torno dos doridos, escreveu Henrique de Mello para Coimbra a dar parte do acontecimento aos seus amigos de casa de Manuel de Oliveira. Depois encerrou-se no quarto mais affastado que dava sobre o jardim, e em que D. Barbara tinha reunido uma pequena galeria de família.
Ali costumava acolher-se a mãe de Henrique nas horas mais tristes da sua voluntária solidão, como se em verdade encontrasse n'aquelle recinto para a distraírem das suas magoas o marido, o filho, e D. Anna com Manuel de Oliveira, cujos retratos Henrique lhe mandara de Coimbra. Ali foi também refugiar-se o desventurado mancebo, e consultar o próprio coração, porque assim o digamos, em face dos quatro entes que mais amara sobre a terra, a ver se ainda lhe restava força moral para resistir a tantas e tão repetidas calamidades.
Interrompeu esta profunda concentração o procurador da casa para lhe entregar três cartas vindas de Coimbra, uma de D. Anna e as outras de letra não inteiramente desconhecida, mas que de repente lhe não occorreu de quem podia ser. Henrique de Mello recebeu as cartas, porém não lhe lembrava abril-as. Mantinham-lhe o espírito em profundo lethargo os acontecimentos dolorosos de que o leitor já tem larga notícia. Não meditava. Media com os olhos da alma a profundidade do abysmo em que se encontrava, e ainda lhe pareciam fabulosas tantas desditas !
Tomou por fim a carta de D. Anna, levou-a aos lábios e beijou-a com amor. Depois, como se aquelle beijo houvera sido um crime, arrojou-a de si, sem que os olhos inundados de lágrimas vissem ao certo onde caíra. Abriu machinalmente uma das outras. Era de Álvaro de Araújo e em termos concertados e amáveis que mal pareciam d'elle. Tão discretamente conciso e suave se manifestava em poucas linhas o sentimento banal d'aquelle género de escríptura que poderia attribuir-se á intervenção da irmã tamanha cordura.
A segunda carta era de D. Christina, e dizia assim:
«Comprehendo a profundidade das suas grandes mágoas e sinto-as como se minhas fossem. Quero-lhe como bom amigo, venero-o agora martyr, e observo d'aqui toda a intensidade dos seus padecimentos.
«Desejaria offerecer-lhe alguma consolação. Não posso. Era necessário ter alma igual á sua, e confesso que a não tenho. São tão raras... !
«Acceite os meus bons desejos de o confortar, e se a amisade sincera de uma boa rapariga que sempre consagrou grande admiração ao seu caracter sublime, lhe póde conceder algum lenitivo, lembre-se ás vezes da minha estima e affectuosa consideração, como eu não esqueço nunca as suas excellentes qualidades.
Christina.»
Nos mais duros transes descobria sempre o espírito inquieto da ardilosa irmã de Álvaro de Araújo algum ensejo favorável aos seus desígnios, e buscava tenazmente por entre as desgraças alheias o risonho futuro que desde muito sonhara. Apenas lhe constara a morte de D. Barbara, dictou uma carta sisuda ao irmão, obrigou-o a não accrescentar nenhuma das suas malícias, e escreveu a Henrique de Mello de modo que não excedesse a sensibilidade que o caso pedia, nem lhe occultasse a sympathia que discretamente desejava agora revelar-lhe.
Era porém outro o prindpal intuito da carta.
Imaginava D. Christina que Henrique de MeHo, saudoso de D. Barbara, procuraria affastar-se dos sítios que a toda a hora lh'a recordavam, e que o coração o arrancaria de sobre a sepultura materna para o arrastar a Coimbra, onde o seu nobre carácter tinha também sepultado outro amor vehementíssimo. Queria poder então conversar com elle acerca dos pezares que o mortiflcavam, e ganhar á força de ternura amigável o que pelo amor não podia conseguir. A carta estabelecia a base de conversações futuras. Fora meditada com esse fim. A sagacidade feminina faria o resto.
Illudia-se porém com o estado de Henrique de Mello. O espírito d'elle concentrara toda a força nos últimos successos da sua vida, e nem sabia entender outros. N'este mundo restava-lhe só a memória da mãe, e a lembrança do amor perdido.
A esses dois sentimentos vivia tão estreitamente ligado que nem deu pelas astúcias do estylo de D. Christina, nem se recordou dos antigos e ambiciosos planos que nunca renunciara a irmã de Álvaro de Araújo.
Largou a carta aberta sobre a mesa, e procurou a de D. Anna, rompeu o lacre preto em que vinha fechada, e leu quasi sem as ver as seguintes linhas:
«Presado amigo
«É junto de nós o seu logar. Venha, e rogaremos a Deus pelo descanço eterno de sua virtuosa mãe. Anna e Salvador»
-- Anna e Salvador! murmurou Henrique levantando-se e passeiando agitadamente no quarto. Anna e Salvador! Não ha tormento igual ao meu! Esses dois nomes reunidos são ...
Dizendo isto, ergueu os olhos e viu defronte de si os retratos de D. Barbara e D. Anna. O olhar carinhoso de ambas que o pintor soubera traduzir com grande acerto artístico, atalhou a conclusão da phrase, e ajudou-o a vencer aquelle primeiro accesso de fraqueza humana.
-- Esses dois nomes reunidos, repetiu Henrique sem desviar dos retratos os olhos humedecidos, são a minha obra, a felicidade da única família que me resta, e a honra de nós todos! Ó minha santa mãe, rogae a Deus por mim...!
E foi sentar-se outra vez junto da mesa, escondeu o rosto nas mãos, e por largo espaço lhe trasbordou em lágrimas a dor que a alma já não podia conter. De repente levantou-se, abriu uma janella para respirar mais á vontade, voltou a passeiar acceleradamente no quarto, e a final mandou chamar o procurador.
-- Elles têem razão, exclamou já mais tranquillo como quem tomara resolução decisiva. O meu logar é ali. Sou lá necessário. A minha ausência pode ser-lhes fatal. Vamos ; eu também não posso viver sem os ouvir, sem os ver, sem procurar o antídoto das minhas paixões. Do próprio amor que tenho a D. Anna, e no affecto filial que devo ao meu bom velho Oliveira. Ânimo, se o valor indispensável para consumar o sacrifício exceder a força humana, implorarei a protecção divina e Deus me protegerá.
Na incomparável nobreza dos seus delicados sentimentos, a alma de Henrique, triumphante das paixões terrenas, amorosamente se elevava ao céo d'onde já o estava contemplando o meigo e carinhoso espírito de D. Barbara.
Algumas horas depois partia Henrique de Mello para Coimbra a reunir-se com Salvador Lopes e com D. Anna de Oliveira para nunca mais se separar d'elles.
Foi grande novidade em Coimbra a chegada de Henrique de Mello, porque todos suppunham que, depois do restabelecimento de Salvador Lopes, buscaria o desditoso noivo de D. Anna affastar-se de uma casa onde não podia ter o que vulgarmente se chama posição official, e onde qualquer outra não parecia condizer com os nobres sentimentos do filho de D. Barbara.
Contribuirá para arreigar mais esta opinião a conhecida loquacidade do mano Christino, que na Calçada, na Ponte, no Jardim e nas salas das principaes casas da cidade, não estancava nos louvores à delicadeza que obrigara mui sensatamente Henrique de Mello a partir para a Bairrada, único meio de provar que o sacrifício da mão de D. Anna fora em verdade acto de abnegação virtuosa.
-- Eu conheço bem Henrique de Mello, exclamava o sr. Álvaro de Araújo. Verão o que elle faz. Aposto que não volta a Coimbra senão depois de casado, e ainda assim estou seguro que não há de ir com frequência a casa de Manuel de Oliveira. Henrique é fidalgo em toda a extensão da palavra.
-- Então acha que elle casa? replicava ás vezes algum interlocutor malicioso que lobrigava de longe o alvo a que atirava o mano Christino.
-- Pois que há de elle fazer? Em primeiro logar por satisfação dada a Salvador Lopes que já não é esposo moribundo e testador complacente. Agora que está restabelecido, e por assim dizer curado, o caso é muito differente. Em segundo logar aquelles amoricos de homem como Henrique de Mello com a filha de um negociante rico, são coisa muito conhecida. Duram o que podem durar, mas não imprimem caracter. Não lhe faltaram adoradores a D. Anna. A final escolheu o brasileiro rico e agonisante. Fez muito bem. Elle melhorou. Paciência. Mas são, ou doente, é seu marido, e os adoradores que vão adorar outros santos a outras egrejas. Não se hão de matar por se ter casado a filha do sr. Oliveira de Coimbra com o sr. Lopes do Brasil, de Castanhede, ou d'onde elle é.
Com estas e outras malícias se foram dispondo todos os ânimos a acreditar qne Henrique de Mello não voltaria tão cedo a Coimbra, e que por ventura se casaria breve na Bairrada, ou em qualquer outra parte, pois que não faltariam noivas a homem de sua pessoa tão ricamente prendado, e senhor de boa casa.
Grande foi pois o espanto de todos os ociosos de Coimbra, quando um dia pela tarde viram sair pela rua da Sophia Manuel de Oliveira e a irmã em carruagem, e Salvador e D. Anna a cavallo, e voltarem logo em companhia de Henrique de Mello, também a cavalo, á esquerda da que fòra sua noiva, como nos tempos em que todos os dias, ora de manhã ora de tarde, saíam a correr desafogadamente pelos arredores da cidade, n'aquelles innocentes passeios em que primeiro se manifestou o amor de Henrique e o de D. Anna.
Espalhou-se logo a nova, e não houve senhor temente a Deus, nem homem de moral severa que não murmurasse á larga n'essa noite e nos dias seguintes, principalmente quando Álvaro de Araújo correu todos os cantos de cidade a referir que Henrique de Mello não só viera, deixando por assim dizer ainda quentes as cinzas da mãe, mas até se fora hospedar para casa de Manuel de Oliveira, o que a todos parecia incrível por mais que o mano Christino asseverasse que muita gente os vira passar na Calçada, continuar até á Portagem, subir pela Couraça de Lisboa, e pelo Arco da Traição caminharem para o Jardim Botânico, apeiando-se á porta do palácio de Manuel de Oliveira.
Uns diziam, rindo sardonicamente, que Salvador Lopes era bom homem, e Manuel de Oliveira excellente pae de familia. Outros notavam a sem-ceremonia de Henrique de Mello que aos olhos da cidade inteira parecia querer ser ainda noivo de D. Anna. Algumas senhoras achavam que a filha de Manuel de Oliveira exagerava a liberdade dos costumes inglezes que tomara da mãe, e não lhes parecia que fosse bom exemplo de donzellas ou de meninas recém-casadas. Da tia realmente satisfeita de ver, reunida em torno de si a gente a que era mais affeiçoada, e de saber que já não havia casos tristes a receiar, chacoteavam homens e mulheres, e perguntavam se na leitura da Mocidade enganada e desenganada teria ella encontrado histórias como esta !
Escusado é dizer que a ninguém occorria o pensamento nobre e elevado de Salvador e de D. Anna, e muito menos o sacrifício de Henrique á felicidade de todos.
Encontra o público facilmente motivos ignóbeis a todas as acções. Se lhe indicarem outros, ri-se. E como não há de rir-se, coitado! o pobre público, se não está acostumado a assistir com frequência a actos de virtude? Affeito a encontrar no interesse os motivos de todas as acções, ahi os busca sempre quando a curiosidade o incita a indagar as causas do que observa. Nâo accusemos ninguém. É melhor dar bons exemplos, de sorte que venha a ser trivial e crível o que pela raridade parece fabuloso aos espíritos medíocres ou prevertidos.
Acceitou Henrique sem resistência a hospedagem offerecida por Salvador Lopes e pela sua nova família. Esquivar-se era desconfiar de si próprio, e imaginar que alguém pudesse suspeitar de D. Anna. Estava certo de que não os havia de poupar a maledicência, mas D. Anna e Salvador não eram inclinados a dar conta das suas acções ao público, e elle ainda menos. Sabia que a sua presença daria valor a D. Anna, mitigaria os delicados remorsos de Salvador, e completaria a paz e o descanço da velhice de Manuel de Oliveira. Por isso viera e resolvera ficar ali entre os dois que elle próprio unira para eterno tormento do seu nobre coração.
D. Anna apenas o avistara ao entrar na ponte de Agua de Maias, obrigou o cavallo a galopar, adíantou-se até chegar a Henrique, e estendeu-lhe a mão affectuosamente. Aos olhos de ambos assomaram lágrimas de que a morte de D. Barbara era causa apparente, mas que por ventura n'aquella occasião brotavam também com a lembrança do attribulado e singular destino que lhes talhara a Providência. Porém tão sincera e profunda era aquella dôr, e tão arreigada a intenção de a dominar e vencer, que não chegaram a verter-se as lagrimas, e como que em pleito de generosa reserva seccaram para nunca mais darem amostra de si. Quando se reuniu a comitiva toda, os olhos de D. Anna, e de Henrique estavam enxutos. Se havia signaes de grande commovimento íntimo era em Salvador Lopes e em Manuel de Oliveira. N'este de puro gosto de ver Henrique ; n'aquelle de afflicção de ser a origem innocente de tamanha desventura, e de sacrifícios para os quaes se poderia julgar acanhado todo o valor humano.
Nos primeiros dias depois da chegada de Henrique, a família de Manuel de Oliveira não o deixava um instante. D. Anna fallava-lhe da mãe, e consolava-o com sincero tributo de saudade paga á memória de D. Barbara. Salvador planeava excursões ao campo e subidas a todas as montanhas por entre as quaes o Mondego desce desde a Serra da Estrella até Coimbra, e não alludia nem levemente á situação em que se collocára na esperança de morrer. Dispunha tudo de maneira que Henrique de Mello nunca mais se separasse d'elle. Exaltava de contentamento o velho Oliveira, e dizia a cada passo a toda a gente que lhe «casara a filha, mas que lhe ficara um filho que o não deixaria agora mais» com o que Álvaro de Araújo tripudiava na Calçada, dando por tonto o velho que se julgava feliz de ter dois genros para uma só filha. O mano Christino era assim... ! Já o conhece bem o leitor.
Tinha o sestro da maledicência o pérfido irmão de D. Christina, e se alguma vez dizia bem dos outros, era com a grata esperança de que o louvor lhes causasse maior damno. Incitava n'este caso as suas propensões maléficas não lhe caber papel importante no drama íntimo a que estava assistindo. D. Christina pretendia casar com Henrique de Mello; este amava D. Anna e era amado por ella ; Salvador acudira a Manuel de Oliveira; o velho negociante de Coimbra salvára-se milagrosamente da catástrophe; todos figuravam na primeira plana excepto elle. Afligia-o a própria nullidade e protestava contra similhante abatimento, dizendo mal de tudo e empenhando-se em prejudicar a todos !
Das angústias de Henrique e de D. Anna mal poderíamos nós dar conta se não restasse precioso documento que as refere. Dores há que a arte não sabe traduzir por mais que se esmere no estudo das circumstancias que as produziram. Sentiu-as o martyr. Não as pode contar o narrador. Será pois do próprio Henrique que o leitor saberá a historia íntima da familia Oliveira depois da morte de D. Barbara. Trasladaremos aqui uma das cartas do desventurado mancebo ao seu parente e condiscípulo Ayres de Mendonça e Albuquerque, aquelle respeitável fidalgo do Serrado que de tão longe veiu ás exéquias do Ermita de Casfromino.
Coimbra, 18 de abril de 184...
Meu querido Ayres. Tens razão. Eu devo escrever-te com maior frequência e mais extensamente. Não basta dizer-te que vivo. É necessário contar-te como e para que estou vivendo d'esta vida que nem tu podes entender bem, que é um martírio incrível, e que eu não trocava por nenhuma outra... !
Eu amo-a como sempre. Não me crimines. Amo-a, como quando tu abençoavas este amor, e te convidavas a ti próprio para seres padrinho do nosso casamento. Quero-lhe como lhe queria então, e como hei de amal-a até morrer. Amo-a como o homem deve amar a Deus. É demais? Pois é assim.
E ella, a triste, a desconfortada victima de nós todos, ella ama como no primeiro dia em que, na sala verde, confessando com a singela candura dos anjos todo o seu amor, ouviu a minha promessa de a não desamparar nunca. Mas não é a esposa de Salvador, que essa unicamente vive para seu marido. É a filha do meu velho Oliveira, é a minha noiva, é a minha Anna, que já não existe senão para mim, que é espírito milagrosamente separado do corpo para me acompanhar sempre, para me segredar amores na solidão da noite, no ideal dos sonhos, nas minhas horas de meditação, e para esperar annos e annos com inquebrantável fidelidade até ao dia cm que junto ao throno do Eterno a benção de Deus nos una em perennal consórcio.
Deliro ! Sim deliro, meu querido Ayres ! E como não hei de eu delirar, se tudo quanto me cerca é mais lúgubre, mais afflictivo, mais cruciante do que os tormentos que o Dante imaginou para o seu inferno, e que te angustiavam em sonhos, quando no seminário andavas decifrando os versos do poeta italiano? Deliro sim, quando vejo que amo, que não posso, nem quero destruir o seu amor, e que ambos nós amamos Salvador Lopes como elle nos ama, o infeliz, ralado de remorsos de viver, sem poder queixar-se, nem recordar o passado, nem dirigir o presente, nem alludir ao futuro. Que homem ! Que alma ! Que sublime delicadeza !
Tu admiras o meu valor, a minha resignação, e a grandeza dos meus sacrifícios. Admira essas qualidades em Salvador Lopes. Em mim pouco valem. Eu amo, e quem ama tem força para tudo. Mas elle não tira do amor os estímulos das suas virtudes. Saem-lhe naturaes da innata bondade do coração, e dos sentimentos agradecidos por onde se afferem os quilates das almas superiores. A energia com que se dedicou á felicidade d'esta família, é qualidade própria sua. A minha nasce do amor que tenho a D. Anna, e por ventura é reflexo do vigor de Salvador Lopes. Quem não seria honrado com tal exemplo?!
Está completa uma parte da nossa missão. Manuel de Oliveira falleceu há três semanas. Morreu cercado de quantos o amavam, e de todos os que mais presava, seguro de que as desventuras commerciaes resultantes das quebras de Hamburgo e de Londres, não diminuíram o crédito da sua firma, e convencido de que a família era a mais feliz do mundo.
Tudo lhe pareceu natural para salvar o crédito da casa e firmar o que elle chamava: «o futuro da sua querida Annica». Nasceu, viveu e morreu negociante. Abençoados pesares os nossos, que lhe deram na velhice e na hora derradeira a tranquillidade que tanto merecia aquelle honrado ancião, e meu segundo pae !
Poucos minutos antes de morrer quiz ficar só comigo. Saíram todos do quarto, e eu aproximei-me da cabeceira do leito, junto do qual tomara a posição mais affastada que me cabia como estranho pelo sangue.
-- Venha cá, Henrique. Ha de prometter-me uma coisa que lhe quero pedir.
-- Prometto de certo, meu bom amigo.
-- E sou, disse elle tomando a minha mão, e muito, muito amigo, como se fosse pae. Por isso lhe peço que vele sempre na felicidade da Annica. Ella é feliz com Salvador, mas elle pode faltar... uma desgraça que sobrevenha... uma fallência... e não há sempre amigos. Não os desampare nunca, Henrique. Sem o seu auxílio não se tinha salvado esta casa. Prometta-me... quero acabar tranquillo...
-- Prometto, sr. Oliveira.
Não pôde pronunciar nenhuma palavra mais. Apertou-me com força a mão que tinha na sua, e empallideceu rapidamente. Eu saí do quarto banhado em lágrimas, e fui sentar-me no sophá da sala verde para chorar em plena liberdade. Aquellas palavras foram as últimas do velho Oliveira.
Pouco depois entrou D. Anna ; não me viu, e sentou-se á mesa com a cabeça entre as mãos, e também chorando. Como eu ficava mais perto da porta, quiz retirar-me para não perturbar a sua dôr, e para evitar, como temos evitado sempre, a occasião de nos encontrarmos sós. Esta desconfiança de nós mesmos era o único pensamento de amor que podíamos revelar sem pesar nosso. Quando me retirava porém, caiu um livro que estava sobre o sophá ; D. Anna voltou a cabeça, e viu-me já perto da porta.
-- Não saia d'aqui, Henrique, disse ella em voz lacrimosa. Hoje podemos chorar ambos, por que ambos éramos filhos.
Aproximei-me da mesa sem receio. Parecia-me que n'aquella occasião o amor filial apagara, sequer momentaneamente, qualquer outro sentimento. Confiei na minha dôr e na sua. Levantou para mim os olhos, inundados de lágrimas ; ia a estender a mão para apertar a minha, mas deixou-a cair sobre a mesa ; accudiu-lhe ás faces rubor extraordinário e dando um ai sentidíssimo occultou o rosto no lenço. Recuei de mansinho até á porta e fui para o meu quarto. Nâo sei como não morri então. Angústia maior não a há ! Não a pode haver !
E ahi tens a minha vida toda n'esta scena tão curta e quasi muda. Saudades e penas. Saudades dos que se vão finando ; penas por causa dos que vivem. Amor intensíssimo sem a mínima esperança, e o que é mais, sem desejo de a poder ter !
E querias que saísse de Coimbra, e que fosse robustecer a alma na tua quinta do Serrado? Eu bem sei que tu e os teus se empenhariam em me soccorrer com todos os calmantes que a amisade sabe preparar, e a que muitas vezes dá maior força a solidão campestre. Mas não posso. Prometti a Salvador Lopes, a D. Anna, a Manuel de Oliveira e a mim próprio, que não me separaria mais d'esta família, e hei de cumprir a promessa.
Vê tu, meu querido Ayres, como a gente se engana a si e aos outros. Allego a promessa para não aceitar o teu convite mas a minha palavra não me ligou quando a dei, porque, ligado estava eu para sempre a D. Anna no consórcio espiritual que nenhuma lei humana póde quebrar, e que a nossa resignação tem santificado.
Tu disses que me suicido, aspirando cada dia o veneno que me vae consumindo. Que importa? Morto já eu estou, e antes morto aqui do que vivo em outra parte. Queres que a desampare ? Definhar-se-ia em breve. E que tormento para Salvador Lopes ! Não sabes que o meu maior empenho é occultar-lhe tão duras maguas, e que D. Anna não se esforça menos para se mostrar resignada ? Se aquela alma exaltada e nobre soubesse o que nós padecemos... Não o ha de saber nunca inteiramente.
E poderás tu acreditar que no meio d'este viver doloroso anda tua prima Christina a ver se no despeito que ella me attribue ás vezes, ou no amor saciado que a maldade do irmão apregoa, encontra ensejo de casar comigo? É uma rapariga intelligente e de coração melhor do que geralmente se diz, mas a vaidade e a ambição cegam-lhe o entendimento. Casar comigo ! Que bom marido que havia de ser agora !
Faltava este intento ridículo e persistente para que por todos os modos fosse crudelíssima a triste amargura que me opprime! Não quiz occultar-t'a ! Desejo que saibas tudo, e sinto certo allívio em desafivelar a máscara, e mostrar-te o estado a que me reduziram estes incríveis successos.
Adeus, meu querido Ayres, tenho por única ventura hoje possuir um amigo como tu, e poder depositar no teu bondoso coração todos os segredos da minha attribulada alma. Adeus.
Teu primo e amigo do c. -- Henrique.
Quem poderia narrar melhor o padecer de Henrique e de D. Anna, os generosos sentimentos de Salvador Lopes, e as indiscretas pretençôes de D. Christina ? O drama íntimo do amor, da honestidade, e da tríplice abnegação, interrompido a cada passo por malícias e ardis na comédia da ambição e do egoísmo !
Espreitara a sagaz irmã de Álvaro de Araújo todos os ensejos de encontrar-se com Henrique de Mello, mas não conseguira avistal-o nunca nas salas de Coimbra ou nos passeios dos arredores da cidade, desacompanhado de Salvador Lopes e de D. Anna. Escusado é accrescentar que era sempre com elles a velha irmã de Manuel de Oliveira, na qual a idade augmentára a desconfiança a respeito de Christina e o rancor ao menino Álvaro, de modo que para todas as observações de ambos parecia já trazer estudada a resposta, sempre desabrida quanto lh'o consentiam os preceitos da boa educação. Não descorçoava porém com os obstáculos a maliciosa donzella. Sorria quando a velha replicava com severidade ás mal disfarçadas insolências de Álvaro de Araújo que muitas vezes ella própria reprimia, evitava cuidadosamente qualquer occasião de desgostal-a, e nenhuma perdia em que pudesse manifestar affecto a D. Anna, consideração ao marido, e attenções mui naturaes e ingénuas a Henrique de Mello. Com a tenaz sagacidade da raça felina aguardava a hora em que pudesse empolgar a presa, e para que não lhe escapasse, quando o tempo e as circunstancias o permittissem, empenhava-se em manter relações amigáveis com a família no meio da qual vivia o homem que D. Christina desejava para marido.
Passaram porém dias, semanas e mezes sem que a ambiciosa donzella pudesse fallar a sós com Henrique de Mello. Quando o filho de D. Barbara foi agradecer-lhe a carta de pêsames que D. Christina lhe escrevera, encontrou lá duas famílias de Coimbra, e despediu-se antes que ellas saíssem. Nas outras casas Henrique entrava sempre com Salvador Lopes e D. Anna cujo hóspede era, e saía quando elles se retiravam. Impacientava-se D. Christina de ver frustrados todos os seus planos, mas de tal arte sabia encobril-o que até reprehendia severamente o menino Álvaro por andar a clamar contra o escândalo da mulher dos dois maridos, e contra a audácia de o não occultarem.
-- Não seja assim, Álvaro, dizia sempre D. Christina, é talvez imprudente a filha de Manuel de Oliveira, mas tem excellentes qualidades, e não há em Coimbra cavalheiro mais digno do que Henrique. Para que há de dizer mal de pessoas com quem nós convivemos, e sobretudo dar por certo o que talvez existe unicamente na sua imaginação?
-- Pois sim. Pois sim. O que a mana quizer. Deu-lhe agora para diplomata. Faz muito bem, mas eu não tenho as mesmas rasões para disfarçar. E no fim de tudo quem não quer ser lobo, não lhe vista a pelle.
E assim iam continuando em direcção opposta ; Álvaro de Araújo a murmurar em toda a parte contra o procedimento de D. Anna e de Henrique de Mello; e D. Christina tomando calorosamente a defesa de ambos; com o que sem accordo mútuo tendiam por caminho diverso ao mesmo fim que era separar, pela força da opinião geral, o filho de D. Barbara da mulher de Salvador Lopes, e abrir ensejo para se realisar a ardente ambição de D. Christina.
Costumava Henrique de Mello passear ás horas de calor na quinta dos Cruzios, que por quantia pouco valiosa comprara um negociante de Coimbra, amigo de Manuel de Oliveira e da família de D. Barbara. Assentava-se á sombra das vetustas árvores, plantadas pelos poderosos filhos de Santo Agostinho ; passava no elegante e faustoso jogo da bola, talhado no centro d'aquella vasta propriedade; seguia até ao lago cercado por alteroso muro de verdura e reflectindo nas águas mui serenas a viçosa larangeira da pequena ilha do centro; e visitava melancolliicamente a sepultura do official inglez, que longe da pátria e da família dorme o somno eterno á sombra do arvoredo secular dos cónegos regrantes. Ali se engolphava em profundas meditações acerca das vicissitudes da sorte humana, e dos pesares que lhe opprimiam o coração, e comparava tristemente o vigor com que todas as plantas renasciam em rebentões viçosos, com o sombrio outono em que a uma e uma lhe iam caindo, seccas e mirradas, as folhas da árvore da vida, e em que murchavam sem dar fructo as mimosas flores do mais puro e entranhado amor. Ao cahir do sol deixava a quinta dos Cruzios e recolhia a casa de D. Anna, que de longe estivera contemplando em affectuoso êxtase.
Succedeu um dia levar o volume das Tristes de Ovídio, e sentar-se junto do lago a reler as sentidas queixas do desterrado do Ponto. E tão no fundo de alma lhe iam entrando os lamentos do mimosíssimo poeta latino, que não deu pela chegada de D. Christina, vinda ali ou por singular acaso, ou por indagação pertinaz dos passos de Henrique de Mello. Sentou-se perto d'elle a irmã de Álvaro de Araújo, esperando para lhe fallar que interrompesse a leitura.
-- Infeliz Ovídio ! exclamou Henrique cessando de ler. Causa dó a sua desditosa sorte, mas já não é o brilhante poeta da corte de Augusto. Abateu-lhe o espírito e o coração a dôr que devia acrysolar-lhe a alma. Não salvou do naufrágio nem a dignidade de homem, nem o esplendor do engenho. Faltava-lhe o antigo vigor romano. Tristes effeitos da decadência das nações !
E ao olhar em redor de si, ainda meditando na desventura do poeta, no servil abatimento em que o puzera o desterro, e no visível enfraquecimento dos dotes litterários que Roma celebrara tanto nas Metamorphoses, avistou D. Christina e levantou-se para ir cumprimental-a.
-- Não quiz que por minha causa cortasse o fio da leitura ou das cogitações provenientes d'ella, disse a irmã de Álvaro de Araújo dando dois passos ao encontro de Henrique. Vim por acaso a este lindo sítio, e bem longe estava de o encontrar aqui, mas quando o vi, pareceu-me que não devia retirar-me sem lhe fallar. Por isso esperei que fechasse o livro.
-- É extrema a sua bondade para commigo, minha senhora. Estas leituras não são estudo, mas simples distracção. Não têem princípio, nem fim. Abro ao acaso qualquer livro e leio o que se me depara.
-- E que livro é esse? replicou D. Christina. Talvez algum volume de Virgílio? Tenho idéa de ter lido há annos no Panorama, ou em outro jornal, que fora moda abrir o Virgílio á ventura e procurar nos primeiros versos de uma das páginas o segredo do futuro. Conta-se de Carlos I de Inglaterra. Estará o sr. Henrique de Mello sob o influxo de taes superstições, e viria aqui junto do lago consultar o oráculo?
-- Nada disso, minha senhora. Sou pouco supersticioso. Peguei n'este livro, mas poderia ter trazido qualquer outro. Só quando o abri, soube que era o tomo de Ovídio que contém as Tristes e as Cartas do Ponto, as obras menos valiosas do poeta.
-- Sempre tristezas ! Amarguras sempre ! Não haverá bálsamo que suavise tamanhas dores, nem consolação para tão successivos pesares ! exclamou a astuta donzella tomando o braço de Henrique e olhando para elle com affectuosa solicitude.
-- Não exagere, sr.a D. Christina, os meus padecimentos. Para grandes alegrias não tenho motivo desde a morte da minha boa mãe, porém as minhas tristezas são mais de temperamento que provindas de circunstâncias especiaes.
-- Para que servem esses disfarces commigo, sr. Henrique de Mello? Pois já se não lembra de que foi sempre jovial e que as suas tristesas são moderníssimas? Conhecemo-nos há tantos annos, aqui temos vivido sempre na mesma cidade, e quase todos os dias nos avistamos. Eu quero-lhe como se fosse meu irmão, e tributo grande consideração ás suas elevadas qualidades. Por estes dois sentimentos tenho direito de fallar-lhe com franquesa. Aflige-me a vida da martyrio em que o vejo a lutar com forças de gigante. Sei que não abrandará: os rigores do destino, e assusta-me o seu futuro.
-- O meu futuro? interrompeu Henrique de Mello sorrindo. Eu não tenho futuro, nem procuro mudar as condições da minha existência. Não sou ambicioso. Viver ignorado em Coimbra, querendo bem a todos e não merecendo a aversão de ninguém, e esperar a última hora em que sem remorsos se me vá acabando a vida, é a sorte que me aguarda. Nem desejo outra.
-- Não diga tal! exclamou D. Christina quasi apertando com o seu o braço de Henrique. Pois um fidalgo, moço, rico, instruído, a quem todas as carreiras se abrem pela sciencia, pelas letras, pelos dotes do coração, pela riqueza e pela posição social, ha de affastar-se de tudo e de todos para viver ocioso e triste, acabrunhado por sentimentos de certo mui nobres, porém interpretados com malevolência pelas pessoas que o não conhecem bem ? Nem attenta em que vive sem esperança que não seja lastimosa para todos.
-- Mas, senhora D. Christina...
-- Não me interrompa agora. Talvez não tenha outra occasião de lhe dizer quanto penso e sinto a seu respeito. Permitte-me que o trate com sinceridade fraternal? perguntou D. Christina caminhando em volta do lago e obrigando Henrique a ir com ella.
-- Não carece da minha permissSo, sr.a D. Christina, para me honrar com tamanha sollicitude e tão amigável franqueza.
-- Pois bem. Então escute-me. V. ex.a é homem de grande juízo e de elevados dotes, mas a paixão obscurece os entendimentos mais perspicazes. Coimbra inteira foi testemunha do seu amor á filha de Manuel de Oliveira, e ninguém o censurou. Tudo merecia D. Anna em quem a bellesa rivalisa com as qualidades moraes, e nenhum outro homem era capaz de apreciar bem aquella encantadora donzella. Transformaram-se porém as circumstâncias, e não foi obra da sociedade a inopinada mudança ; procedeu de resoluções tomadas entre os interessados. O mundo que applaudia os seus amores, chegou a entender e a festejar egualmente o sacrificio. Para mim nunca v. ex.a valeu mais, nem D. Anna, nem o marido ; mas agora que se há de dizer de D. Anna, de Salvador Lopes e do sr. Henrique de Mello? Não sabe que o accusam de absorver o affecto de D. Anna em prejuízo de outrem? Ignora que todos admiram a descuidosa ingenuidade com que ella vive entre o antigo noivo e o marido? E não vê que Salvador Lopes está sendo assumpto de escárneo na cidade toda? Eu sei que a filha de Manuel de Oliveira é virtuosa, que V. ex.a é capaz de todas as generosidades e de todos os sacrifícios, e que a Salvador Lopes sobram razões para confiar na lealdade de ambos, porém a sociedade não julga assim, e a sua residência e intimidade n'aquella casa dão origem a incessantes murmurações contra D. Anna e contra o marido.
Estas palavras foram pronunciadas com naturalidade tão desaffectada, e com taes mostras de sympathia que de certo abalariam qualquer outro homem que não fosse Henrique de Mello. Aquella conversação íntima, em sítio ermo e resguardado dos olhos dos profanos por espesso muro de verdura, a suave pressão do braço de D. Christina, e a animação da sua chistosa fisionomia, produziriam no filho de D. Barbara o effeito da electricidade, se a irmã de Álvaro de Araújo pudesse isolal-o das recordações de D. Anna que era o enlevo de alma, a vida inteira do amargurado mancebo.
-- Que valem murmurações de vadios e de gente maldosa, se o espírito atilado de v. ex.a e de outras pessoas de igual tino e seriedade, nos avaliam com justiça ? replicou Henrique de Mello dirigindo o passeio para o lado da alameda formosíssima de loureiros a que então chamavam rua de Santo Agostinho, e que era o mais delicioso sítio da quinta de Santa Cruz.
-- A opinião do mundo vale tudo, respondeu D. Chrístina. A minha é que nada vale, e no mesmo caso está a d'um ou outro indivíduo que se empenhe em justificar tão estranha reunião de pessoas na mesma família. Eu digo-lhe isto por amisade ao sr. Henrique e á família de Manuel de Oliveira. Poucos lhe fallarão com tamanha franqueza, e entretanto vae a calúmnia, sem que a presintam, lavrando na cidade, logo na província, e depois no reino inteiro.
-- Mas se essas supposições indignas são falsas ? Quer que as confirmemos com disfarces, e que mostremos desconfiança da nossa honradez e do propósito firme de cumprirmos as nossas obrigações? Ninguém pode contar com a approvação universal. São justas as pessoas honradas e discretas. É quanto basta. De perversos e calumniadores não há que fazer caso.
-- Que cegueira, sr. Henrique de Mello! Olhe que a opinião dos bons é tímida e fraca, e a dos maus procede sempre com vigor e audácia. Muitas vezes o clamor da maldade confunde e abafa completamente as vozes da justiça.
-- Paciência. Eu contento-me de conservar no espírito de V. ex.a os créditos de homem honrado. O parecer geral há de vir a conformar-se com o seu.
-- Não sabia em verdade que o meu fraco entender valia tanto para v. ex.a ! Pois bem, accrescentou D. Christina já próxima da porta por onde ambos iam sair da antiga e formosa quinta de Santa Cruz, eu hei de sempre defendel-o em toda a parte, e não só a v. ex.a, mas a D. Anna e ao marido. Não venha porém entristecer-se junto aos cedros do lago ou ver despenharem-se as águas na cascata do jogo da bola. Vá de vez em quando conversar commigo. Bem sabe quão desinteressadamente lhe sou affeiçoada, e quanto desejo evitar a v. ex.a e a D. Anna o minimo dissabor.
-- Eu agradeço-lhe, minha senhora, tanta bondade, e acceito gostosamente o seu convite. Não se inquiete porém com as calúmnias que por ahi se levantem contra mim. Coimbra é como todas as terras. Murmura, murmura, murmura, e afinal calla-se.
-- Sabe que mais, sr. Henrique de Mello ? Se eu fosse invejosa, cobiçava agora a firmesa do seu caracter e dos seus affectos...
-- Não inveje, não, sr.a D. Christina. Isto não é virtude. É costume de cumprir o meu dever, despresando a opinião, quasi sempre insensata, da sociedade.
-- Insensata de certo n'este ponto, mas o crédito de D. Anna e os brios de Salvador Lopes? Não sente v. ex.a que também é dever seu preserval-os cuidadosamente da maledicência?
-- Talvez, minha senhora. Agora só me fica na idéa o prazer que tive de encontrar a v. ex.a e a honra de lhe renovar os meus respeitos, concluiu Henrique de Mello já fora da porta despedindo-se de D. Christina, e tomando para o lado do Jardim Botânico.
Seguiu-o com os olhos a irmã de Álvaro de Araújo até que desappareceu na volta do muro, e ao principiar a descer pela calçada que vem dar á Sophia, disse em pesaroso solilóquio :
-- Onde cortaste a conversação, ahí está o ponto fraco do teu amor. É a única brecha. Entrarei por ella. Não há paixão que sempre dure, nem enthusiasmo que resista á convivência quotidiana. D. Anna é o melhor antídoto contra o amor que ainda lhe tem Henrique de Mello, mas se não chegar a enfastial-o, Henrique virá a fugir d'ella para lhe salvar a reputação e o decoro do marido.
Eram judiciosas estas reflexões da sagaz irmã de Álvaro de Araújo. Enfraquece na convivência o amor, porém as regras, a que vivem subordinadas as paixões humanas, perdem a força e transformam-se em esplêndidas excepções quando o infortúnio e o martyrio elevaram as almas á sublime condição dos espíritos celestes, separando-as da nociva e lastimosa influência das fraquezas humanas.
Henrique de Mello e D. Anna andavam ainda na terra, mas o amor já os reunira espiritualmente na immensidade do mundo melhor a que o homem aspira sempre desde os mysterios da creação !
D. Anna vira da janella a astuciosa Christina, passeando na quinta dos Cruzios com Henrique de Mello, e sentira violento desejo de escutar a conversação íntima de ambos. Occorreu-lhe talvez que não teria sido aquelle o primeiro encontro ; que por ventura não fora casual ; que o filho de D. Barbara não passeava sempre nos sítios que se avistavam d'ali ; e que D. Christina e Henrique eram livres e podiam affeiçoar-se um ao outro, sem que ninguém tivesse direito de os accusar. Sentiu circular mais apressado o sangue e subir-lhe à cabeça desusada perturbação. Parecia-lhe que o amor de Henrique lhe pertenceria sempre, e todavia a lembrança da situação melindrosa de ambos interrompia qualquer outra cogitação. A final cobriu o rosto com ambas as mãos ; deixou-se cair na cadeira mais próxima ; e chorou em continuados soluços. Era o ciúme que pela primeira vez lhe rasgava o coração, e com tal vehemência que logo avivou n'ella o sentimento do dever, recordando-lhe que á mulher de Salvador Lopes não competia nenhuma ingerência nas acções de qualquer outro homem.
Foi instantânea a agitação da filha de Manuel de Oliveira, porém quando, enchutas as lagrimas, assomou de novo á janella, não viu já Henrique, e suppondo que viria para casa, foi esperal-o na sala onde costumava reunir-se a família antes do jantar. D. Anna ainda estava só quando entrou o seu antigo noivo.
-- Encontrei agora D. Christina na quinta de Santa Cruz, disse Henrique depois dos cumprimentos do costume.
-- Bem vi, respondeu D. Anna esquecendo que denunciava a affectuosa curiosidade com que o observara da janella.
-- Singular mania tem aquella rapariga ! Parece que só a nossa existência e a de Salvador Lopes lhe dão cuidado.
-- É natural, respondeu D. Anna sorrindo, e estudando o modo de cortar uma conversação, para sustentar a qual receiava fallecer-lhe a firmeza. D. Christina e seu irmão já no tempo de meu pae cuidavam mais de nós que de si próprios ! Há muita gente assim. Paciência. Deixal-os. É verdade ; já me esquecia dizer-lhe que meu marido deseja fallar-lhe. Pediu que o avisassem, logo que viesse o sr. Henrique de Mello.
-- É inútil avisal-o. Eu vou ter com elle. Está no gabinete? Não é assim?
-- É. Está escrevendo, replicou D. Anna naturalmente como se já tivera esquecido a scena da quinta dos frades cruzios.
Henrique saiu para o corredor e foi ter com Salvador Lopes. D. Anna sentou-se ao piano e principiou a tocar uma sonata de Mosart, que muitas vezes executara a pedido do filho de D. Barbara. Accendia-se de novo com extraordinária força o amor de D. Anna ao homem que o seu coração escolhera, e cercava-a por todos os lados a imagem de Henrique como nos tempos anteriores ás desventuras de Manuel de Oliveira e ao casamento com Salvador Lopes. Advertiu porém na música quando ia em meio a sonata ; parou e levantou-se do piano com ímpeto, affastando para traz os longos cabellos que lhe pendiam para as faces.
Na lucta do dever com a paixão, a educação, os princípios religiosos, e a innocência virginal predominavam sobre todos os instinctos e sobre os mais vivos sentimentos. Sentia que amava ainda Henrique de Mello, nem imaginava que pudesse extinguir-se tão entranhado e virtuoso affecto, mas a honra de Salvador Lopes era também a sua honra, o brazão da família, o brio do nome de ambos e o decoro da sua casa. Accordavam então os estímulos da educação ingleza que recebera, e resurgiam com força superior á dos impulsos da paixão. Tão grande é o poder da virtude inoculada ao entrar na vida pela sollicitude das mães e dos educadores! É vaccina que preserva da varíola moral a que tantas infelizes succumbem.
Engolphada nas considerações que mais fortaleciam a natural delicadeza dos seus sentimentos, a veiu achar Salvador Lopes quando em companhia de Henrique de Mello entrou na sala, dando-lhe parte de que no dia segumte partiriam todos para Lisboa onde passariam o inverno, se D. Anna concordasse n'esta resolução.
-- Se é necessário... respondeu submissa a mulher de Salvador Lopes olhando para Henrique a ler-lhe na physionomia a causa d'esta novidade.
-- Necessário é ir alguém, acudiu Salvador. Há negócios da casa que exigem a minha presença. Eu careço do auxílio do sr. Henrique, e por isso é melhor irmos todos, e não voltar a Coimbra senão para a primavera. A companhia italiana de S. Carlos, segundo temos lido nos jornaes, há de ser magnífica, e as relações que temos na capital contribuirão para que o tempo deslise rapidamente.
-- Eu é que realmente podia ficar, indo o sr. Salvador Lopes, murmurou timidamente Henrique.
D. Anna lançou-lbe um olhar de que ella própria se envergonharia, se o visse no espelho, e que felizmente não se encontrou com os olhos d'elle. Foi relâmpago de amor e de ciúme, fuzilando em horisonte carregado de electricidade. Imaginou talvez que á recusa de partir não eram estranhas as conversações com D. Christína, mas não proferiu palavra.
-- Ora ahi está o nosso bom amigo a querer desfazer o ajuste ! Bem sabe que a sua presença é indispensável. O negócio que vamos tratar, é-lhe muito mais conhecido do que a mim. E que faz aqui o sr. Henrique de Mello sósinho ? Nada. Tenha paciência. Há de ir divertir-se a Lisboa, quer queira, quer não queira, concluiu Salvador Lopes sorrindo.
Teria D. Anna observado que era injusto obrigar Henrique de Mello a ir a Lisboa quando talvez negócios da sua casa exigissem que ficasse em Coimbra, mas a presença do criado que vinha annunciar a hora do jantar, atalhou qualquer phrase de despeito, que revelando as angústias do seu coração requeresse entre ella e o filho de D. Barbara explicações sempre diffíceis e agora de todo o ponto perigosas.
Era extremamente delicada a situação d'estas três pessoas, ligadas entre si por tão differentes affectos, honradíssimas todas, e todas cercadas de perigos e difficuldades na espinhosa carreira que cada qual traçara para socego e lenitivo dos outros dois.
Salvador Lopes meditava constantemente na singularidade do seu destino que o arrastara á borda da sepultura , que o levara a casar com D. Anna para salvar da vergonha e da pobreza o desditoso Manuel de Oliveira, e que lhe restituíra inesperadamente vida e saúde para eterno tormento das duas pessoas que elle mais profundamente amava. Infundia-lhe grande respeito a seriedade e pureza de D. Anna, e a casta resignação com que sacrificara ao amor filial a ventura da vida inteira.
No trato continuado com Henrique de Mello conhecera bem o primoroso caracter e a immaculada honradez de tão distincto mancebo. Mas Salvador Lopes não se illudia acerca das apreciações dos maldizentes e, sem que lhe chegassem aos ouvidos, causavam-lhe receios principalmente por causa de D. Anna, alvo das insídias de D. Christina e do menino Álvaro. O mínimo vislumbre de tristeza d'aquelles dois infelizes, recordava-lhe o martyrio em que viviam por sua causa. Pesava-lhe de ter resistido á enfermidade. Tinha saudades da agonia e da morte que tão próxima se lhe andara acercando do leito.
Mais que da urgência dos negócios proveio d'esse continuo scismar a resolução de irem passar o inverno a Lisboa, longe das murmurações de Coimbra e confundidos no variado tumultuar da capital. Talvez ali esquecessem melhor a invencível dureza da sorte. E quem sabe? Podiam até não voltar a Coimbra, e ficarem residindo nas margens do Tejo. A seu pesar vivia Salvador Lopes, mas a vida que se lhe restaurara vigorosamente a despeito das conjecturas da sciência, era toda consagrada a attenuar a má sorte dos desditosos noivos que separara para sempre.
Não era menos agitado o viver de D. Anna de Oliveira. Amava Henrique de Mello, porém á força de lhe querer muito, quasi tinha remorsos de consentir que passasse junto d'ella os dias, os mezes e os annos sem esperança, e resignado a assistir ao martyrio alheio qua era egualmente o seu próprio martyrio. Muitas vezes quiz chamar Henrique, observar-lhe quão diffícil se tornava cada vez mais a situação de ambos, e mostrar que era indispensável separarem-se para sempre, mas outras tantas vezes sentia fallecerem-lhe as forças para tamanho sacrifício. Sabia que a não poupavam os maldisentes excitados pelo inquieto Álvaro de Araújo, porém que podia valer a maldade alheia contra a absoluta pureza da consciência? Pezava-lhe sim das calumnias que prejudicavam o crédito de Salvador Lopes, e de que attribuíssem a Henrique de Mello procedimento desleal e condemnado pelas leis da sociedade. Anna de Oliveira respeitava Salvador Lopes ; não esquecia nunca o benefício feito por elle a Manuel de Oliveira na conjunctura desgraçada a que o arrastaram as eventualidades commerciaes; e estava prompta a quantos sacrifícios pudessem ser necessários para manter a honra e assegurar o socego do marido.
Salvador Lopes, o amigo de Manuel de Oliveira, era para D. Anna segundo pae, e a poder de attenções delicadas conquistara no coração d'ella o maior affecto que a formosa filha do Mondego podia consagrar a outrem que não fosse Henrique de Mello. Comprehendia bem os cuidados generosos de Salvador Lopes ; observava todos os dias a tristeza em que vivia Henrique de Mello, e tamanho pesar lhe causavam as amarguras dos dois homens entre os quaes se repartiam todos os seus pensamentos, que mal attentava no próprio infortúnio. Já não padecia senão do padecer alheio.
Henrique de Mello adorava D. Anna; admirava as elevadas qualidades de Salvador Lopes, e ora planeava fugir para sempre e conformar-se com a Providência que restituíra a vida ao moribundo, ora lhe parecia que, nem D. Anna, nem o próprio Salvador Lopes, viveriam satisfeitos, se elle desapparecesse para nunca mais ali voltar.
Administrava cuidadosamente a sua casa; auxiliava Salvador Lopes na direcção dos negócios, e no resto do tempo vivia para D. Anna sem lhe manifestar a constância do seu amor, mas sem occultar a firmeza dos antigos sentimentos. Não tinha nenhuma esperança nem as queria ter. Salvador Lopes era o seu melhor amigo, o protector da família que tanto amava, e á qual devia mais assignalados favores. D. Anna era a metade de sua alma, o enlevo de todos os pensamentos, o ídolo do coração e, por dizel-o assim, a vida da sua vida, mas a palavra sagrada que perante os altares unira a filha de Manuel de Oliveira a Salvador Lopes impuzera a Henrique de Mello deveres que a lisura do seu ânimo honradíssimo lhe indicara desde logo.
Amava a filha do seu saudosíssimo protector, mas respeitava na mulher de Salvador Lopes o decoro de si próprio e d'aquella família inteira que era também a sua depois da morte inesperada de D. Barbara. Fugiria, se a consciência lhe revelasse o mínimo symptoma de fraqueza, mas parecia-lhe ter firmeza de ânimo para supportar quaesquer attribulações.
Diversamente avaliado pelo mundo era o procedimento d'estes virtuosos caracteres, e em quanto, sob o tecto do palácio de Manuel de Oliveira, se agitavam paixões mui violentas, mas refreadas com pasmoso vigor pela máxima probidade e delicadeza, ou surgiam em competência pensamentos de elevada generosidade, mofavam os vadios e maldosos da mulher dos dois maridos, da paciência de Salvador Lopes e da sem-ceremónia de Henrique de Mello. É leviano o mundo. Não indaga. Julga pelos rumores e condemna sem averiguar. Apregoa virtudes falsas, e desconhece ás vezes o mais nobre proceder.
Abria a sala de jantar das casas de Manuel de Oliveira para um formoso terraço d'onde se avistava o Jardim Botânico por entre os arcos do aqueducto que, de ordem de El-Rei D. Sebastião e a despeito dos cónegos regrantes, levantara o engenheiro italiano Filippe Tersio; o mosteiro de Sant'Anna que na Eyra das Patas mandara edificar, seguindo a idéa dos seus antecessores, o bispo de Coimbra D. Affonso de Castello Branco ; o collégio de Thomar pertencente aos freires de Christo e que nesse tempo ainda era propriedade nacional; o collégio de S. Bento cuja egreja sagrara o celebre escriptor Fr. Leão de S. Thomaz; e os alicerces do Observatório em que o marquez de Pombal quizera transformar o velho castello de Martim de Freitas, formoso monumento do antigo brio portuguez. N'aquelle aprasível terraço costumava reunir-se de verão a família de Salvador Lopes, para tomar café depois do jantar, e ficavam ali conversando até ás horas do chá com as visitas que desde o fim da tarde iam chegando.
N'esse dia porém estavam sós D. Anna, o marido, a tia e Henrique de Mello, mas a fallarem da jornada e da sensação que experimenta sempre quem vê Lisboa pela primeira vez, nem tinham dado pela falta das visitas. D. Anna, de accordo com Salvador Lopes, não occultava quanto lhe era agradável a viagem á capital, e saboreava de antemão o prazer de observar o bulício de uma grande cidade. Henrique de Mello indicava as coisas notáveis que era necessário ver, e assegurava ás senhoras que muito havia que admirar na corte. Só a velha tia, habituada a venerar unicamente a riqueza de Manuel de Oliveira, discordava do parecer geral, e dizia que para ver Lisboa não valia a pena supportar os incómmodos da viagem.
-- Lisboa será muito grande, exclamava ella. Pois deixal-a ser. Eu faço idéa. São muitas ruas e muitas praças. Ora vejam a maravilha! E depois quando lá chegarmos, há de nos faltar o conforto d'esta casa, e as pessoas da nossa amisade. Havemos de viver mal amimados nos quartos de uma hospedaria como a do Paço do Conde, e andar pelas ruas da capital sem encontrarmos uma pessoa que nos tire o chapéo. Olhem que há de ser bonito !
Replicava Henrique de Mello promettendo-lhe variados divertimentos na corte, quando um creado annunciou o sr. Álvaro de Araújo, e entrou aos saltinhos no terraço o petulante mano de D. Gbristina.
Causou em todos desagradável surpreza a chegada do menino Álvaro. Comtudo Salvador Lopes lévantou-se a recebel-o, em quanto a tia voltava as costas e entrava para o interior da casa, murmurando contra o atrevido mancebo a quem nunca perdoara a maldade de suppôr que as circumstâncias de Manuel de Oliveira lhe não permittiriam comprar a quinta do Seixadello. Henrique e D. Anna reprimiram os gestos de impaciência e desagrado para responderem cortezmente aos cumprimentos de Álvaro de Araújo.
-- Ah! Estão sós! Eu peço desculpa de os ter vindo incommodar, disse o mano de D. Christina depois de apertar a mão a Salvador Lopes. Nas reuniões de família os estranhos entram quasi sempre fora de propósito. Mas eu retiro-me já...
-- O sr. Álvaro de Araújo, respondeu D. Anna, é sempre benvindo n'esta caza. Como está a minha amiga ? Porque não veiu a sr.a D. Christina passar meia hora comnosco ?
-- Minha irmã não pôde vir commigo agora. Está-se preparando para a viagem de amanhã, porém encarregou-me de mil cumprimentos para v. ex.as todos. Bem sabem quanto os estima.
-- Então saem amanhã de Coimbra? perguntou Salvador Lopes. Vão talvez para alguma quinta?
-- Nada, nada. Vamos a Lisboa. Temos lá em appellação a demanda com os primos Albuquerques, de Trancoso, por causa do morgado da Penéda. São processos quesilentos. É necessário remecher cartórios e desenterrar as gerações passadas dos sepulchros onde repoisam. São encargos da nobreza estes pleitos, e ás vezes gastam mais do que valem. Nem faz idéa o sr. Salvador Lopes. Os seus negócios commerciaes resolvemse com facilidade. Os nossos são intrincados. A nobreza antiga é boa, mas tem pesadas obrigações.
-- Isso é verdade, respondeu Henrique de Mello, e uma das maiores é manter o lustre e continuar as virtudes de antepassados briosos e honrados, porque a nobreza adquire-se procedendo bem, e macula-se e extingue-se pelas más acções. Há nobres que desbaratam em poucos annos o cabedal de honradez e gloria, accumulado durante muitos séculos pelos seus digníssimos predecessores.
-- Muito sentencioso, sr. Henrique de Mello. Realmente com V. ex.a sempre a gente aprende, e como é da nobreza pelo sangue, da sciência pelos estudos, e do commércio por devoção e prática dos negócios, de tudo falla com conhecimento de causa. Mas eu estou aqui a parolar e ainda não disse ao que vinha. É que o prazer de conversar com v. ex.as obriga-me a esquecer as outras coisas, de certo muito menos valiosas.
-- Pelo que vejo devemos o gosto da sua visita a algum negócio importante, replicou D. Anna com certa ironia.
-- Não estará segura a venda da quinta do Seixadello que lhe comprou meu irmão que Deus haja? interrompeu a tia voltando ao terraço depois de ter ouvido a última parte da conversação.
-- Não, minha senhora, v. ex.a engana-se; o contracto a respeito do Seixadello está completo e feito segundo ordenam as leis. Eu vendi aquella propriedade para comprar outra perto de Coimbra, mas não admirava que me visse obrigado a vender mais alguma. A nobreza vae perdendo a terra, e vae-se apossando d'ella a gente rica. A roda do mundo não pára.
-- Tem rasão, replicou Salvador Lopes já insoffrido com as disfarçadas insolências do mancebo. O capital é laborioso e tende a multiplicar-se. Os proprietários gastam mais do que d'antes, e trabalham menos ou nao trabalham nada. D'ahi provém a transformação social que V. ex.a nota.
-- Pois está visto. Nem eu censuro. O que está acontecendo a muitas casas da nobreza antiga, há de succeder aos filhos e netos dos ricaços de hoje. Também lhes ha de aborrecer o trabalho, e serão tão viciosos como os fidalgos velhos. D'isto pode fallar-se n'esta casa onde a nobreza das qualidades suppre qualquer outra, e á riqueza honradamente ganha anda unido o trabalho nunca interrompido. V. Ex.as são excepção da regra geral, e por isso todos os respeitam e estimam. De mim escuso de lhes dizer, porque já o sabem, que sempre fui verdadeiro amigo d'esta família e na minha presença nenhum maldizente. . .
-- Então ainda há quem diga mal? interrompeu a tia em tom desabrido. Tornam a fallar em quebra como d'aquella vez?
-- De nenhum modo. Quem há de pensar em tal conhecendo a grande riqueza do sr. Salvador Lopes...
-- E os numerosos bens, pode accrescentar, que deixou o sr. Manuel de Oliveira, disse com sobrecenho austero Salvador Lopes.
-- É verdade. É verdade. É o que eu digo sempre. Porém todos lamentam que ainda não tenham, o sr. Salvador e a sr.a D. Anna, herdeiro de tamanha fortuna. Também não é tarde, e ás vezes a mudança de ares faz o milagre, concluiu o menino Álvaro.
-- Mas o negócio? Não disse que vinha a um negócio? perguntou Henrique de Mello desviando a conversação do melindroso assumpto em que entrara o irmão de D. Christina.
-- Não há homem como o sr. Henrique de Mello, retrucou o menino Álvaro. Não esquece os negócios nunca. Já nasceu com essa queda para o commércio! Ainda o hei de ver millionário. O mundo dá muitas voltas, e de ser rico a riquíssimo a distância não é grande.
Impacientava-se Henrique de Mello, e não supportava com maior resignação Salvador Lopes as pérfidas allusões do fidalguinho coimbrão. A tia fugira outra vez do terraço, e D. Anna sentia humedecerem-se os olhos e apertar-se-lhe o coração, como quem era causa das angústias de todos.
-- Eu vinha, continuou Álvaro de Araújo, perguntar a V. ex.as a não ser segredo, em que dia partiam para Lisboa.
-- Pois já sabe? exclamou Salvador Lopes. Eu cuidava não ter fallado a ninguém...
-- Peço perdão ; v. ex.a preveniu o Santa Clara de que precisaria n'esta semana de duas caleças para ir a Lisboa com a família, e provavelmente com o sr. Henrique de Mello. Calculei eu, sendo assim, duas pessoas na sua berlinda, é quatro nas caleças, indo o sr. Henrique e os creados a cavallo. Dava a conta certa. Ora eu quando lá fui, não pude obter resposta por não saber o homem em que dia v. ex.a quereria partir. Vinha pois informar-me para dispor a minha viagem. Aproveito a occasião de ir mostrar a capital á mana Christína que já está enfastiada de Coimbra no inverno, e da Figueira ou Buarcos de verão, mas dependemos inteiramente do que V. ex.a dispuzer.
-- Pois, sr. Álvaro de Araújo, nós não temos pressa. Fixe V. ex.a o seu dia, entenda-se com o Santa Clara, e nós iremos depois. Será longa a nossa viagem. Temos de parar no caminho para irmos ver as minas de Condeixa a Velha; depois ficaremos um dia ou dois em Leiria para visitar a Batalha; d'ahi seguiremos para Alcobaça ou para Thomar, e a final chegaremos a Lisboa quando succeder.
-- Então é viagem de recreio. Já vejo. Não vão a negócios, observou com a costumada curiosidade o petulante fidalgote.
-- Farto de negócios estou eu. Vamos fazer uma digressão de puro recreio. Mas de nenhum modo queremos retardar a sua viagem e da sr.a D. Christina.
-- Muita obrigado a v. ex.a. Eu direi isso mesmo ao Santa Clara, e aununciarei a minha irmã a nova delicadeza com que v. ex.as nos distinguem. Que linda viagem vão ter! Muito faz quem pode. Aproveitem que eu, se pudesse, não lhes ficava atraz. Assim irei direito a Lisboa. E o sr. Henrique também se ausenta de Coimbra?
-- Também, sim senhor, se não mandar o contrário, respondeu Henrique socegadamente.
-- Eu não mando nada. Recebo as ordens de v. ex.as, e desejo-lhes todos os prazeres e felicidades que merecem. A mana Christina de certo ha de vir despedir-se da sr.a D. Anna, e agradecer tantos favores. Não há em Coimbra quem mais prese a familia do sr. Salvador Lopes, e o sr. Henrique de Mello. Sempre falla de v. ex.as todos com affecto de irmã. Aos pés de v. ex.as minhas senhoras. Adeus, sr. Salvador Lopes e sr. Henrique de Mello.
E desappareceu aos saltinhos, como entrara, deixando mortificada e triste aquella boa família, fito das malícias e dos planos arteiros de Álvaro de Araújo e da sua ambiciosa irmã. Ficaram todos em silêncio por largo espaço, cada qual pesando interiormente o alcance daquellas palavras envenenadas, e lastimando a força do destino que os sujeitava a tamanho padecer. A tia, pobre velha, não entendera a maior parte das allusões, mas como não perdoara nunca ao menino Álvaro as dúvidas acerca da riqueza de seu irmão, affligia-se unicamente de lhe ouvir a voz, e durar-lhe-ia por muitos dias a sensação desagradável, se a leitura, embora já muito repetida, da Mocidade Enganada e Desenganada lhe não servisse de prodigioso calmante.
-- E ao cabo de tudo ainda temos de nos encontrar em Lisboa com a família Araújo ! exclamou afinal Salvador Lopes.
-- É verdade, respondeu D. Anna, mas o remédio parece-me fácil. Demoremos a viagem, ou fiquemos em Coimbra, e d'aqui a algum tempo iremos até ao Porto. Entretanto o sr. Henrique de Mello e o Salvador podem ir a Lisboa tratar do tal negócio, e na volta resolveremos a respeito da nossa projectada digressão. Assim evitamos essa família importuna.
-- Também pode ser, disse Henrique de Mello, e approvou a tia.
-- Assim é. Pode ser, e já me tinha lembrado. Mas eu disse ao tal bilhostre que ia a Lisboa. Não quero que attribua a receio da sua presença a mudança da viagem. Quem os atura em Coimbra, pode supportal-os em Lisboa que é terra maior. Talvez que nem os encontremos n'aquella Babylonia.
-- Lá isso encontramos, replicou Henrique de Mello. Conhecem meio mundo, têem alguns parentes na corte, e são capazes de se introduzirem nas casas pelas fechaduras das portas. Em Coimbra, onde todos os detestam, ainda ninguém pôde livrar-se de Álvaro de Araújo, nem da irmã.
-- Paciência. O que se resolveu, está resolvido. Deixal-os partir. D'ahi a dois ou três dias iremos nós, concluiu Salvador Lopes occultando o desgosto que lhe causava a maldade d'aquella gente.
Tinham para lenitivo d'estas offensas D. Anna e Henrique de Mello o sancto e reservado affecto com que se amavam, puro de todos os instinctos maus e sepultado para sempre no fundo do coração. Passavam a maior parte do tempo estranhos ás relações do mundo exterior, concentrados na meditação e no silêncio, e espiritualmente reunidos no pensamento recíproco do amor que não se extinguira, e da saudade d'aquelles annos em que na casa de Manuel de Oliveira aguardavam todos com gostosa anciedade o dia do casamento de D. Anna com o filho de D. Barbara. As astúcias de D. Christina, as insolências e perfídias do menino Álvaro, e as murmurações dos ociosos de Coimbra não chegavam a ferir aqueles dois corações. Defendia-os a consciência da própria honradez. Servia-lhes de escudo contra os tiros da maldade a grandeza do amor que augmentára de intensidade á proporção que deixara de manifestar-se. Eram similhantes ao philósopho grego que absorvido no estudo da sciência não dera pelo soldado de Marcello que lhe tirou a vida.
Não acontecia outrotanto a Salvador Lopes. Encarava placidamente a situação delicada em que se via, e tragava gole a gole o fel do cálix de amargura que por suas próprias mãos preparara. Tinha plena confiança na virtude e nos brios de D. Anna ; acreditava na honra de Henrique de Mello; e ensoberbecia-se da generosa resolução com que resgatara o descanço do seu velho amigo Manuel de Oliveira, mas não lhe era occulto que a sociedade avalia pelas apparencias, crê pouco na fortaleza da mulher e no império do homem sobre as suas paixões, e a final julga sem examinar e quasi sempre com severidade. Temendo pela reputação da mulher, receando que a mínima prevenção lhe amargurasse a existência, e sentindo a desventura de Henrique de Mello tão vivamente como o filho de D. Barbara, voltava a accusar a Providência de lhe ter conservado a vida que houvera perdido sem pavor nem saudade.
Apreciava com clareza as difficuldades que o cercavam e á sua família, mas nem queria ceder ás exigências sociaes, consentindo em que Henrique de Mello se affastasse da caza de Manuel de Oliveira que tanto lhe devia, nem desejava alimentar a curiosidade pública e a maledicência da cidade toda. N'isto meditava continuamente, e ao cabo de muitas horas de cogitação concluía sempre por considerar que todos os sacrifícios em favor de D. Anna eram inferiores aos obséquios carinhosos que recebera do velho negociante, e á protecção com que velara até á derradeira hora pelo socego de sua infeliz mãe.
No dia seguinte á visita de Álvaro de Araújo, veio a mana Christina despedir-se de D. Anna com a costumada affabilidade, sem a mínina allusão offensiva, e com sollicitude e affectos fraternaes. Unicamente se queixou de que o irmão insistisse em leval-a a Lisboa porque não gostava de viagens, e preferia viver em Coimbra muito socegadamente sem ir representar na corte o mesquinho papel de provinciana. D. Anna assegurou-lhe que não podia recear contrastes quem de seu natural era tão discreta e elegante, e não foi menos amável e affectuosa que D. Christina. Despediram-se abraçando-se e beijando-se, cada uma satisfeita de não ter deixado suspeitar os sentimentos e paixões que a atormentavam. Na escada quando descia, encontrou Henrique de Mello que chegava n'aquelle instante. Apertou-lhe a mão e, recordando-lhe que também ia para Lisboa, accrescentou :
-- Lá nos veremos. Espero que não se esquecerá dos seus amigos de Coimbra. Terá de certo uma hora para me ir visitar, não havendo inconveniene, concluiu pronunciando com malícia estas últimas palavras, e continuando a descer a escada com rapidez.
-- De certo minha senhora, respondeu Henrique de Mello despedindo-se e murmurando por entre os dentes ao subir os degraus : Que família de víboras !
Era falsa a repugnância manifestada por D. Christina á viagem a Lisboa. Soubera por um criado que Salvador Lopes prevenira o Santa Clara acerca da ida á capital com toda a faília, e calculando que Henrique de Mello iria egualmente, resolvera seguil-o na luta que encetara.
-- Mas a mana bem sabe, objectou-lhe Álvaro de Araújo, que esse capricho traz dispêndios consideráveis, e que a nossa casa só é grande por vivermos ambos reunidos e não termos feito partilhas.
-- Não quero saber se a casa é grande ou pequena, retrucou D. Christina com desusada firmeza. A minha parte chega para a viagem e para estar em Lisboa alguns annos. Não gaste o mano do seu. Se não fizemos partilhas,éè muito fácil supprír essa falta.
-- Basta, mana. Nunca a vi tão deliberada. Estou ás suas ordens. Buscarei qualquer pretexto e iremos a Lisboa. Já lhe não digo nada. Mas parece-me que perde o tempo correndo atraz de um capricho insensato.
-- Eu não lhe peço conselhos, mano. Se lhe pedisse alguma coisa, seria que refreasse a língua e não escandalisasse Salvador Lopes, nem Henrique de Mello. Aquella conversação que me contou, é incrível. Só o mano Álvaro se deleita a atormentar quem lhe não faz mal nenhum...!
-- A mana Christina não me pede conselhos, e faz bem. Fora erro pedir o que dá com tamanha generosidade. Faça o que bem lhe parecer, mas não me queira obrigar a venerar a filha de um traficante de má morte, uma delambida que apanhou marido rico, salvou a casa do pae, e conservou o noivo antigo, deitadinho aos pés em ar de cão fraldiqueiro.
-- Mas que tem o mano com isso tudo?
-- Tenho a minha opinião que é livre. Elles vivem entre labaredas de amor promíscuo, e eu de vez quando deito-lhes água na fervura para lhes variar as sensações. E então o tal sr. Henrique de Mello, um fidalgo! Custa a crer. Bem se vê que nasceu bastardo.
-- Seja que o mano quizer, mas não se intrometa nos meus negócios. Eu amanhã hei de ir visitar D. Anna de Oliveira, e terei de attenuar a poder de affectos as desabridas allusões com que o menino esteve mortificando aquella pobre gente! Agora veja se o Santa Clara arranja a caleça. Quero partir amanhã, se fôr possivel.
-- Pois sim. Eu vou fallar ao Santa Clara. Tomara já ver o final d'esta comedia... !
-- Há de ver, se Deus quizer, replicou D. Christina com aspereza, entrando no seu quarto e fechando a porta com vigor.
Dois dias depois saíam de Coimbra pela estrada nova de Lisboa Álvaro de Araújo, D. Christina, e uma creada. Partiam á conquista do velocino de oiro, que tanto valiam para a travessa fidalguinha a casa e a mão de Henrique de Mello ! XXVIII
Não eram então as viagens tao rápidas como hoje. Em Inglaterra já havia communicação por caminho de ferro entre Liverpool e Manchester, e as máchinas de grande velocidade inventadas por esse tempo em França convidavam á imitação do novo e utilíssimo invento, mas Portugal nem estradas possuía ainda! Uma carruagem só diffícil e pausadamente rodava nas cincoenta léguas do Porto á capital do reino, nas quaes ás difficuldades do terreno accrescia o risco de encontrar em certos sítios, infamados por successivos crimes, as quadrilhas de salteadores que os infestavam.
Salvador Lopes saiu de Coimbra oito dias depois da partida de D. Christina. Era de ver a espécie de caravana em que ia passando a ponte, e subindo as calçadas da estrada de Lisboa, a família do abastado capitalista. Abriam o préstito dois soldados de cavallaria e dois criados a cavallo; seguia-se movida por quatro mulas a berlinda em que viajavam Salvador Lopes e a mulher ; na caleça immediata tomara lugar a irmã de Manuel de Oliveira com a sua aia ; em outra iam o criado do quarto de Salvador, e a criada de D. Anna; dois soldados de cavallaria, dois criados de libré, e o lacaio de Henrique de Mello fechavam a comitiva. Salvador Lopes convidara Henrique a acompanhal-o na berlinda, mas o filho de D. Barbara preferiu viajar a cavallo para observar melhor a natureza, e para velar pela boa direcção e segurança do comboio.
Era de madrugada. Vinham chegando os aldeões que abastecem de hortaliças, leite e fructas, o mercado de Coimbra. Ao avistarem o numeroso séquito de Salvador Lopes, paravam curiosos ; depois encostavam-se aos muros e parapeitos para dar passagem, e quando voltavam a reunir-se, ponderavam, mais invejosos que assombrados, a prodigalidade dos ricos e a miséria de tantos pobres para quem fora suprema felicidade a terça parte de similhante despeza.
-- Bem se lembram dos pobres estes ricaços ! dizia uma velhota sustentando com a mão direita a canastra de batatas que levava á cabeça. O que elles querem é divertir-se e gastar á larga. Também custa-lhes pouco a adquirir. Se andassem carregados de trabalho, como nós andamos...
-- Ó sr.a Quitéria, replicava o criado de um proprietário que o mandara com fructa ao mercado. Deixe lá os ricos. Se elles gastam, a alguém aproveita. Estou vendo que, se não houvesse ricos, talvez vocemecê vendesse mais batatas ou se me deparassem a mim muitos mais compradores de fructa ! Olhe que Deus sabe o que faz. Praga são os ricos avarentos, mas a estes que vão gastando o que têm, não posso eu querer mal. É d'elles o dinheiro que nós levamos para casa. Não lhes devemos querer mal.
-- Pois sim, mas quando tu estiveres doente ou tua mãe ou teu pae, vae lá pedir-lhes para galinha ou pão a botica. Dão-te na cara com um -- não pode ser agora -- e compram n'esse dia mais um cavallo ou uma carruagem !
-- Não diga isso, tia Quitéria, interrompeu uma raparíga carregada com uma bilha de leite. Eu sirvo a casa da sr.a D. Anna de liveira desde que me conheço. Não há gente mais esmoler e caridosa do que são as pessoas d'aquella familia. Já o pae era assim, o sr. Manuel de Oliveira, Deus lhe falle na alma. Nem todos os ricos são maus...
-- Cá para mim, retorquiu a teimosa Quitéria, estes não são melhores do que os outros. Fui lá uma vez para pedir ao velho Manuel de Oliveira os sobejos da agua da quinta que elle tem por cima do meu campo. Estavam os fructos a perder-se por falta de humidade, que partia mesmo o coração vel-os, e a água da quinta a correr para o rio por não carecerem d'ella!
-- E então não lhe deram a ágoa?
-- Qual deram nem meio deram. Os brejeiros dos criados responderam-me que o sr. Oliveira estava de cama com enxaqueca. A menina, essa fôra passear a cavallo com o fidalguinho Mello ! Uma santa vida aquella ! Estavam para casar a filha do Oliveira com o tal sr. Henrique, e vae de repente casa com um brasileiro, e ficam todos juntos na mesma casa, como se já não houvesse ceo, nem inferno. . .
-- Ó mulher, você, por mais que me digam, é meia maluca! A culpa de não obter a água foi dos criados qae são pobres como nós, e você de quem se queixa é dos amos que nem de tal souberam ! Valha-a Deus! E logo bordoada a matar. Isso até é falta de consciência, estar a julgar mal da pobre menina !
-- Eu cá não hei de vir do outro mundo dizer as verdades, e quem não qoizer onvir que tape os oovidos. Fallemos de outra cousa que é o melhor.
Entretanto, deixando apóz de si aquelle rasto de invejosa maledicência, iam os viajantes subindo as calçadas, aproveitando as voltas do caminho para se recrearem com a famosa perspectiva de Coimbra, e tomando a direcção de Condeixa. Ali tencionavam demorar-se para visitarem as ruinas da antiga Colimbria cujas muralhas romanas tem resistido á acção dos séculos, auxiliada pela geral indifferença no tocante á conservação dos monumentos históricos e das mais raras preciosidades artísticas.
Em diversas occasiões tinham estado em Condeixa Salvador Lopes, D. Anna e Henrique de Mello. Não havia palácio queimado pelos francezes de que não soubessem a história, quinta em que não tivessem entrado, manancial de água que não conhecessem, e laranjal ou pomar de que não houvessem saboreado os fructos. Por isso observadas as minas de Condeixa a velha, recolhidas varias medalhas romanas que a gente pobre d'aquelle sítio costuma offerecer aos viajantes, e feitas as despedidas ás pessoas principaes que vieram offerecer a generosa hospitalidade provinciana á familia de Salvador Lopes, seguiram para Pombal com muita satisfação da tia de D. Anna, a quem a vegetação, as águas, oS pomares, e principalmente as vetustas muralhas romanas, não inspiravam o mínimo sentimento de admiração. Por sua vontade teria ficado na estalagem a folhear o grosso volume da Mocidade Enganada e Desenganada, que trouxera comsigo na caleça, em vez de ir ver árvores, água e paredes velhas que, dizia ella, se encontram a cada passo em Portugal sem necessidade de se desviar a gente do seu caminho.
Descansaram um dia em Pombal para subirem ao castello dos templários que ainda domina com as suas Uyvres um tanto derrocadas a villa e as terras circumvisinhas ; para visitarem o celebre forno onde, depois de bem aquecido, entrava um homem e por milagre, no singelo crer d'aquelle povo, saía escorreito e são, e finalmente para observarem o descuidoso desamparo em que jaziam, havia mais de meio século, as cinzas de Sebastião José de Carvalho e Mello, o famoso ministro de D. José I.
Tinham sido guardados em caixão de madeira, coberto com um panno bordado, os ossos do marquez de Pombal depois que na triste época da invasão os francezes, arrombado o féretro, os dispersaram pela egreja. Ali jaziam a um canto do templo esquecidos dos poderes públicos, como se a opinião geral e a história na severa imparcialidade do seu juízo não tivessem já condemnado os diplomas infamantes que a vingança arrancara á fraqueza da rainha D. Maria I, e incitado o duque de Bragança D. Pedro a mandar restituir ao pedestal da estátua de seu bisavô, na Praça do Commercio, o busto do grande ministro.
-- Parece incrível! disse para Henrique de Mello Salvador Lopes ao aproximar-se do caixão. Parece incrível que Portugal deixe ao desamparo n'esta acanhada egreja os despojos mortaes de tão abalisado político!
-- Ás sciencias e ás letras, respondeu Henrique de Mello cabia remir a culpa dos governos e de nós todos. Por subscripção entre lentes e estudantes deviam transferir-se para Coimbra os ossos do reformador dos estudos superiores em Portugal, e erigir-se-lhes condigno mausoleo na capella da Universidade. Se fosse vivo D. Francisco de Lemos que, despresando as iras da corte, veiu aqui celebrar as exéquias do seu amigo e protector, e encommendou a Fr. Joaquim de Santa Clara o celebre sermão que deu brado em Roma, não teríamos deante de nós similhante vergonha!
-- Mas o marquez de Pombal deixou descendentes, observou D. Anna. É singular que a família se não lembre de tão illustre progenitor...!
-- A família, observou Salvador Lopes, foi para o Brazil com a côrte no tempo da invasão; depois sobrevieram os acontecimentos de 1820, e os distúrbios civis em que andou o reino todo até 1834. Não me espanta que se esquecesse.
-- E é natural que venha a tributar á memória do marquez de Pombal as honras que lhe são devidas, accrescentou o mancebo, mas a obrigação incumbia principalmente ao governo. Os heroes pela sua própria grandeza pertencem mais ao paiz do que aos seus descendentes. Tem por família a nação inteira.
Realisou-se vinte annos depois a prophecia de Henrique de Mello a deligencias dos parentes do célebre ministro, e com a solemnidade indispensável para dar a tão justa, embora tardia, reparação o carácter de desaggravo e homenagem nacional.
-- Falleceu a 5 de maio de 1782 desterrado n'esta pequena villa, observou Henrique de Mello ao sair da egreja. Morreu no mesmo dia em que trinta e oito annos depois se extinguiu no exilio de Santa Helena o maior génio dos tempos modernos, Napoleão I.
-- É singular essa coincidência, reflectiu D. Anna de Oliveira, e não menos de sentir que a morte do grande reformador não inspirasse aos poetas nacionaes canções sublimes como a ode de Manzoni.
-- Somos assim os portuguezes, observou Salvador Lopes. Admiramos os estranhos, e desdenhamos de quanto è nosso ! Custa-nos a perdoar ao marqnez de Pombal a superioridade do génio, e a inabalável firmeza de vontade com que protegeu a classe média, reprimiu os fidalgos, combateu as intrigas e conspirações do clero, e reformou a legislação civil.
-- E o meu sobrinho a gabal-o por ter perseguido os ministros da religião, exclamou a velha irmã de Manuel de Oliveira. Aquelle monstro que teve tantos annos no forte da Junqueira o bispo de Coimbra, um santinho, segundo ouvi dizer sempre. Por isso Deus arrancou o poder supremo ao marquez de Pombal e permittiu que jazessem esquecidos n'essa velha egreja os ossos de quem tanto offendéra a nossa santa religião. Podem accender ao seu grande ministro quantas velas quizerem; cá para mim é peor que os hereges! E já deve ter pago no outro mundo as obras que fez por cá.
D. Anna, o marido e Henrique de Mello, olharam uns para os outros e sorriram encolhendo os hombros. Salvador, para não desgostar a tia, cortou a conversação dizendo que n'essa noite partiriam para Leiria onde tencionavam demorar-se três dias pára verem o castello, e passeiarem nos arredores da cidade e nas marçens do pacifico Liz, visitar a fábrica da Marinha Grande, e ir ao mosteiro da Batalha admirar o famoso padrão do valor do Mestre de Aviz e dos seus esforçados companheiros de armas, monumento da arcuitectura nacional e europea, e testemunho da fervorosa devoção do décimo quarto século. Nenhum dos viajantes, nem o próprio Henrique de Mello, tinha visto ainda o precioso monumento mandado edificar por D. João I no logar onde derrotara o exército do rei de Castella no fim da encarniçada peleja de Aljubarrota.
Na subida ao castello de Leiria Salvador Lopes deu o braço á tia, e Henrique de Mello a D. Anna, parando a cada passo para contemplarem os formosos campos que o rodeiam. Já estavam dentro das minas recordando talvez D. Anna as affectuosas canções que a natureza inspirara ali ao nosso poeta Francisco Rodrigues Lobo, quando interrompeu tão delicioso imaginar a voz esganiçada da irmã de Manuel de Oliveira a recommendar a Salvador Lopes que não subisse mais acima. O capitalista coimbrão não resistira ao desejo de trepar pelos velhos muros da antiga fortaleza, e como fizera nas minas de Heidelberg, e no castello de Pombal, subira ao ponto mais elevado d'aquellas provectas muralhas. D. Anna e Henrique, voltando-se, já o viram de pé no cume das minas, encantado da pureza do ar e da linda perspectiva de tão aprazível horisonte.
Afectuosaménte lhe ponderaram o perigo d'estas ascensões, mas Salvador Lopes sorria e assegurava-lhes sempre que estava muito acostumado a subir aos píncaros mais elevados, e que não havia risco nenhum em trepar a umas pedras cuja solidez era visível. D. Auna já tinha conflança no vigor do marido á força de assistir a ousadias mais perigosas que esta. Henrique de Mello comprehendia o prazer de Salvador Lopes, e tel-o ia acompanhado, se não lhe houvesse cabido levar pelo braço a filha de Manuel de Oliveira. Só a tia tapava os olhos com as mãos para não ver o que se lhe figurava perigo enormíssimo, e gritava ao marido da sobrinha que não accrescentasse aos incómmodos de tão longa viagem alguma desgraça proveniente de similhantes atrevimentos. Salvador desceu, afiiançando de novo à pobre velha que não era caso de receio, e convidando-a até para ir d'aquella altura contemplar o manso curso do rio Liz !
-- Abrenuntio! Venha cá para baixo. Ande. Não queira tentar a Deus. Com esse mau costume de querer subir onde ninguém se aventura, ainda lhe há de acontecer algum desastre grande.
-- Não tenha medo, minha senhora, respondeu Salvador Lopes saltando ligeiramente em terra. Tenho subido a maiores alturas e visto deante de mim os mais fundos precipícios da América e da Europa.
-- Pois é O mesmo. N'mna hora cae a casa, diz o provérbio.
-- Mas esta muralha é tão segura como o chão em que estamos agora.
-- Os muros, antes de caírem, todos estão em pé a enganar a gente com apparências de solidez. Nunca ouviu dizer que o diabo carregou uma tranca ?
-- É verdade, mas o conto não diz que chegasse a descarregal-a.
Riram todos com a resposta e desceram á cidade, não sem que a tia resmungasse durante o caminho mil temores de alguma triste eventualidade. No dia seguinte partiram para a Batalha.
Ao entrarem no venerando templo do mestre de Aviz ficaram todos absortos na severa singeleza da architectura, que desprende das cogitações mundanas o pensamento do homem, abrindo-lhe novos horisontes. As naves despidas de ornatos, as linhas que se alteam para se reunirem na ogiva, á feição do espírito remontando ao creador, a luz que alumia a egreja brandamente como se o fulgor do throno divino offuscasse o brilho da própria claridade, e a memória dos feitos generosos que deram origem a tão celebrada maravilha architectónica, inspiram sentimentos de religião e de piedade. Sente-se que Deus está ali. É grandiosa a capella do fundador. São ricas de lavor artístico as capellas imperfeitas. Representam a magestade hunana com os attributos da grandeza que lhe compete e com a magnificência externa que lhe é indispensável. Ali está o homem, o lidador, o chefe, o rei. Na simplicidade austera e grave do templo só Deus nos apparece. Elle só com o esplendor da sua glória subjuga o pensamento, domina o espirito e captiva o coração. Na egreja da Batalha a arte cedeu o passo á omnipotência divina. O architecto ajoelhou perante o throno do Eterno, e adorou a Deus na piedosa sinceridade da sua crença. Nas capellas imperfeitas a arte acudiu a supprir com a pompa externa a fraquesa da instituição humana, e a fortalecer a ficção salutar da realeza. Aqui a matéria com os primores que lhe encobrem a imperfeição, e que se empenham em disfarçar-lhe a natureza finita e frágil. Acolá o espírito de Deus cuja immensidade enche o universo, e cuja onmipotência dirige o mundo.
Dominados pelo sentimento religioso ajoelharam os viajantes logo nas primeiras lages da egreja, e depois de breve oração espalharam-se a examinar aquella admirável fábrica. Salvador Lopes seguiu para o altar mor. A tia ajoelhou de novo onde uma alâmpada accesa indicava a presença do Santíssimo Sacramento, e D. Anna acompanhada por Henrique de Mello entrou na capella do fundador, que fica á mão direita ao penetrar no templo.
Pararam ambos á porta a contemplar o quadro grandioso d'aquelle jazigo real. No centro os dois formosos túmulos de D. João I e da virtuosa rainha D. Filippa de Lencastre, e em derredor os mausoleos onde repoisam as cinzas dos esclarecidos príncipes seus filhos, D. Pedro duque de Coimbra, o regente do reino ; D. Henrique duque de Vizeu, o descobridor de novas terras ; D. João, o mestre de S. Thiago, de quem foi neto el-rei D. Manuel; e D. Fernando, o mestre de Aviz, mais conhecido pelo cognome de Infante Santo.
Adiantou-se D. Anna até ao tumulo de D. João I, e examinou-o por todos os lados. Depois repoisou uma das mãos no friso da campa, e cubrindo com a outra ambos os olhos, ficou por largo espaço immovel como se a tivera assaltado de repente algum pensamento doloroso. Permanecera Henrique de Mello à porta da capella, mas observando os movimentos de D. Anna, e temendo que a compleição débil da mulher de Salvador Lopes não pudesse vencer qualquer abalo nervoso, caminhou para ella e perguntou-lhe carinhosamente se algum padecimento inesperado a incommodara. D. Anna tirou a mão dos olhos onde borbulhavam lágrimas, e apontando para a divisa real inscripta na parte superior do tumulo de D. João I, repetiu pausadamente com os olhos fitos no apaixonado mancebo:
--
-- Perdão, murmurou Henrique pondo-se em pé e largando a mão de D. Anna; mas bem sabe que não pode haver pensamento mau junto do sepulchro de D. Filippa de Lencastre.
-- Bem sei ; bem sei. Já vai longe o tempo em que o sr. Henrique de Mello para distrair meu honrado pae lhe lia e explicava o Leal Conselheiro de el-rei D. Duarte, e nos fazia notar a todos que, segundo rezava o livro, não havia na corte de D. Filippa uma única dama a quem ousasse macular a calumnia.
-- Ditosos serões esses ! interrompeu mui commovido Henrique de Mello.
-- Não lastimemos que passassem, replicou D. Anna, nem nos queixemos do destino que nós mesmos preparamos. Arrepender-se das boas acções é sacrificar a consciência ao egoísmo da paixão.
-- Eu não estou arrependido, respondeu Henrique admirando a inabalável força de carácter da sua malograda noiva, mas se a minha razão não pudesse resistir ao sentimento, vejo que bastaria o seu exemplo para me inspirar valor.
-- Creio na sua honra como acredito na minha, mas a nossa obrigação é preservar-nos mutuamente de todos os perigos. Na casa de Deus e na derradeira morada da mulher de D. João I, não é virtude ser forte. Aqui posso repetir-lhe quão vehemente e santo é o affecto que lhe tenho, e não me peja dizel-o a quem sabe quão sincero é também o meu propósito de cumprir lealmente o que devo a mim própria, ao nome de meu marido, á inquebrantável delicadeza do seu proceder e á confiança com que nos honra a ambos. A consciência é a base da nossa vida e o laço que o prende, Henrique, á família do seu velho amigo que nos está contemplando do céo.
-- Minha senhora, interrompeu Henrique em voz de supplica, pela primeira vez me recorda o que não posso, nem devo, nem quero esquecer. Eu devia ter-lhe agradecido com palavras cortezes e affectuosas a lembrança de pensar em mim ao ler a divisa de D. João I. Não soube ou não pude. Cedi ao impulso do coração, mas creia que proveio da pureza da minha alma a ousadia que lhe desagradou tanto.
-- Não foi ousado, nem me offendeu, Henrique. Eu já nem sei o que lhe disse...
Esta conversação em que a sensibilidade de D. Anna e o amor que a dominava, forcejavam por encobrir-se com a firmeza que lhe emprestavam as tradições cavalleirosas da heróica raça de Aviz, e em que a fraqueza da mulher procurava acolher-se ao abrigo da memória honestíssima da rainha D. Filippa, foi interrompida pela chegada de Salvador Lopes e da velha tia em quem podia mais a vontade de jantar que as maravilhas do mosteiro e as suas gloriosas recordações históricas. Salvador viu com admiração o aspecto geral da capella, saudou com respeito o túmulo do fundador e aproximou-se dos jazigos onde repoisam os infantes.
-- Entristece-me pensar na sorte d'esse infeliz príncipe ! disse a Henrique de Mello olhando para a campa onde dormem o somno eterno os desventurados restos do duque de Coimbra, D. Pedro. Valente cavalleiro, esclarecido político, bemquisto de estranhos, grato aos naturaes, bom filho, bom irmão, bom tio, e entre os portuguezes, mais que todos, excelente cidadão ! E morreu ás mãos dos homens de armas de seu sobrinho, do príncipe que educara, e a quem dera por mulher sua própria filha ! O regente do reino que recusara a estátua consagrada pelo amor do povo agradecido, ficou desamparado entre os outros cadáveres até que mão desconhecida o lançou na sepultura d'onde o transferiram para aqui ! Saiamos. É triste similhante recordação !
Seguiram todos a Salvador Lopes, e depois de verem as capellas imperfeitas, projectado mausoleo de el-rei D. Manuel, voltaram a Leiria e no dia seguinte partiram por Alcoentre e Rio Maior para Villa Nova da Rainha onde então os vapores do Ribatejo recebiam os viandantes e placidamente os levavam a Lisboa.
Em attenção á tia de D. Anna, ficou para outra vez a viagem a Thomar e a Alcobaça. A pobre velha, indifferente a todas as preciosidades archeologicas, já não podia ver mais castellos arruinados, nem egrejas antigas. Não havia gala da natureza que lhe excitasse o espírito, e que a consolasse das amarguras da viagem. Ralavam-na as saudades do seu espaçoso quarto ; e do conforto do palácio de Salvador Lopes fallava constantemente. Santa mulher, para estar muito socegada em Coimbra onde só lhe atormentavam o espírito as insolentes malícias de Álvaro de Araújo e os carinhos fingidos de D. Christina, mas de todo o ponto incapaz de supportar com resignação os incommodos das jornadas longas.
Teria adoecido, se a bondade de Salvador Lopes não abreviasse a viagem, assegurando-lhe que nunca mais se affaistaríam da estrada para visitar monumentos ou descobrir horisontes dilatados. Confiada em tão agradável promessa, não se queixou mais até Vila Nova da Rainha, e quando Henrique de Mello, aproximando da caleça o cavallo, lhe perguntava se ia melhor, respondia sempre com agrado na doce esperança de avistar o Tejo que lhe daria por findos aquelles martyrios.
Causara profundo abalo em Henrique de Mello a conversação que tivera com D. Anna, e a infeliz senhora não ficara menos commovida. Recostada no canto da berlinda ao lado de Salvador Lopes, só lhe vinha á idéa a divisa de D. João I :
Meditava Henrique de Mello no que passara com D. Anna, e só previa martyrio incessante e muito prolongado. Não receava deixar-se vencer pela paixão a ponto de faltar aos seus deveres. Permanecia intacta a honrada firmeza do seu caracter, e apurava-se nas occasiões de perigo, mas a severidade de D. Anna de Oliveira figurava-se-lhe mais cinza de amor extincto que sacrifício heróico do sentimento á voz da consciência e aos extremos da pureza virginal. E na mente desvairada pelo amor accusava-a de ingratidão, de leviandade, e até de nimia admiração pelas virtudes de Salvador Lopes ! Depois a si próprio se reprehendia de tão indignas cogitações, e ficava envergonhado, roído de salutares remorsos.
Tristes consequências da situação anómala em que as círcumstancias os tinham collocado a todos !
Era grande o movimento no caes de Villa Nova da Rainha. Na ponte á qual atracara o vapor, crusavam-se homens carregados de fardos e bagagens. Um passageiro gritava ao criado que ainda faltavam dois bahus; outro assoviava por um podengo que, despresando a ordem do dono, divagava no campo a cheirar as moitas, cuidando descobrir caça. Os campinos encostados aos varapaus, a manta lançada no hombro, assistiam curiosos á agitação da partida, sem preverem que em poucos annos a velocidade dos vapores do Ribatejo seria excedida pela rapidez das locomotivas, e muito mais accelerado o movimento de passageiros e mercadorias nas estações. Tinham rasão os campinos. Aquelles barcos velhos, ronceiros e sujeitos a mil avarias, eram todavia então grande progresso, e como tal festejados de toda a gente.
Soara pela primeira vez a sineta do vapor quando Salvador Lopes e a numerosa comitiva se apearam no cães de Villa Nova. Foi rápido o transporte das bagagens, e em poucos minutos embarcaram os viajantes, largando da ponte o vapor e seguindo viagem para Lisboa.
Amanhecera ennevoado o céo, mas apenas o sol principiou a doirar as cristas das montanhas, o vento norte afugentou as nuvens, e abriu campo aos ardentes fulgores do astro do dia. Á hora do embarque brilhavam montes e vales com a immensa claridade, e a água do Tejo repercutia os raios do sol em numerosos e deslumbrantes reflexos. Parecia que a natureza, inclinada a magestade com que nas margens do famoso rio a dotara a mão do creador, amorosamente saudava o homem, e acolhia benigna todas as invenções do seu espírito inquieto e infatigável na investigação do aperfeiçoamento e do progresso. No horisonte para o lado do mar accumulavam-se em prolongados serros as nuvens que o vento acossara e vencera, negras e sombrias como o pesar do domínio perdido, e manifestando em successivos porém tímidos relâmpagos o gesto inutilmente ameaçador do vencido. Outras menos densas e brancas, como velos de arminho, pairavam em differentes pontos do oeste. Eram atalaias da tormenta que parecia rugir ao longe.
-- É similhante á nossa vida a serenidade d'este dia, sempre ameaçada de borrasca por aquella negrura no occidente, disse D. Anna a Henrique ao largar o vapor e quando Salvador Lopes e a velha tia contavam os volumes da bagagem, recommendando aos criados que os não perdessem de vista.
-- E porque não ha de parecer-se antes, respondeu Henrique de Mello reanimado pela magnificência do Tejo e das suas formosas margens, com este rio alteroso que nenhum obstáculo impede de caminhar para o oceano e de cumprir a lei eterna da creação ? Zomba de toda a força humana, porque não contraria a Providencia, antes respeita e segue os seus preceitos.
-- Mas o rio corre á perdição. Acaba, extingue-se para sempre no mar.
-- Não se perde, não, volveu Henrique. Descansa na eterna mansão das aguas, depois de preenchidos os fins do creador. Assim nos succede a nós. Seguimos o curso da vida pelo caminho que nos vae abrindo a consciência, e a final repoisaremos docemente na Eternidade. Ordenou Deus aos rios que pelos leitos traçados de sua mão corressem para o mar, e aos corações mandou que amassem na liberdade limitada que lhes concedeu. Por isso os rios correm e os corações amam. O caso está em que se não desvie do seu curso a agua e que extravasando-se pela terra não seja absorvida por ella; nem os sentimentos se pervertam a ponto de não obedecerem á consciência.
-- Parece missionário o nosso Henrique de Mello, a julgar por estas últimas palavras. Nem eu ouvi outras. Para tudo presta o meu digno patrício, louvado seja Deus.
-- Ah! exclamou Henrique voltando-se e vendo ao pé de si Álvaro de Araújo risonho, malicioso, e a cumprimental-o assim como a D. Anna com respeitosa cortezia. Estava escutando? Ora vejam! E nós a suppol-o já em Lisboa.
-- Para lá iremos todos agora, respondeu o menino Álvaro limpando o rosto com o lenço para encobrir a vergonha de ser tido por espião.
-- E sua mana? perguntou D. Anna recobrada um pouco da sensação que lhe causara a presença imprevista do curioso e atrevido mancebo.
-- A mana Christina já lá está em baixo na camara. Nem ella imagina a satisfação que vae ter! É muito delicada de saúde. Mal entrou no vapor, teve medo do sol, e fugiu da tolda. Nem todas as senhoras são, como V. ex.a, acostumadas desde meninas a passearam a cavallo e a pé, a subirem montanhas, e a não se lhes dar da chuva nem do sol.
-- Isso depende muito do costume, mas principalmente do vigor das pessoas, repliicou D. Anna.
-- Sem duvida, minha senhora. Porém Christina nem é forte, nem está habituada a jornadas e a soalheiras. É sensitiva no physico e no moral.
-- Mas a que circumstância devemos o prazer de viajarmos hoje reunidos? Haverá oito dias que saíram de Coimbra, notou D. Anna.
-- É verdade, é verdade. A nossa intençUo era não pararmos nunca, mas a tia Madre de Deus veiu esperar-nos a Rio Maior, e não houve remédio senão ir pernoitar á quinta onde ella vive. A Christina vinha muito fatigada. A tia não a tinha visto desde pequena. Emfim tivemos de passar lá dois dias, e por isso conseguimos a fortuna de os encontrar aqui.
-- Tanto mais de estimar para nós quanto menos a esperávamos, respondeu D. Anna. É na verdade incommoda qualquer viagem seguida.
-- Principalmento para senhoras, accrescentou Henrique admirado da benevolência do menino Álvaro que ainda tão principiara a dar as picadas de alfinete a que era attreito.
-- Tem rasão. A viagem seguida é cansativa, mas passar dois dias na quinta da tia Madre de Deus não è melhor. Podem acredital-o. Examinar as obras que se fizeram ha vinte annos a este parte; notar a belleza dos pavões, dos perus e até das galinhas, acariciar o gato querido da senhora, e andar a prometter pernas de cera aos santos para sair com as nossas a salvo das dentadas dos cãesinhos...! Santo Deus! Ainda bem que durou pouco :
--Pelo que vejo, disse D. Anna sorrindo, não lhe ficaram saudades, e na volta de certo não manda avisar a tia para o vir esperar.
-- Eu não lhe mandei aviso nenhum. Foi o procurador que ella tem em Coimbra. São encargos da nobreza ter parentes em toda a parte e atural-os. Ás vezes tenho inveja aos capitalistas. Ao menos gozam o seu dinheiro á onitade.
-- Mas os capitalistas por serem ricos não deixam de ter parentes, acudiu Henrique de Mello notando que a phrase do menino Álvaro offendera D. Anna.
-- Esses parentes não incommodam. Ninguém sabe d'elles, e a não ser quando precisam de algum vintém, não cansam com obséquios, mas as tias e as primas dos fidalgos -- o sr. Henríque sabe-o melhor que eu -- são uma praga com attenções e convites. É mania minha antiga que ser fidalgo serve só para enfado e mortificação, principalmente n'estes nossos bons tempos de egualdade. ..
-- Eu vou ver sua mana, interrompeu D. Anna receiosa de que fossem augmentando as insolências do irmão de D. Christina.
Ficaram sós, e em silêncio, á popa do vapor Henrique de Mdello e Álvaro. Aquelle, impaciente e cansado de tão pérfidas ousadias ; o fidalgote de Coimbra, a revolver na idéa travessuras e maldades com que puzesse á prova a paciência, até então illimitada, do benévolo filho de D. Barbara.
-- Eu não sei se os vim interromper fora de propósito, murmurou Álvaro de Araújo em tom de confidência para dar maior importância á suspeita de que lhes cortara algmna conversação intima.
-- Sabe que mais, sr. Álvaro? retrucou Henrique olhando á volta de si para ter a certeza de que não era ouvido por outrem. Estou aborrecido de o aturar, e á mínima affronta, directa ou indirecta, que fizer á família de Salvador Lopes, na minha presença ou fora d'ella, dou-lhe a mais exemplar e vigorosa correcção.
-- Mas, sr. Henrique de Mello, exclamou Álvaro indeciso entre o temor e o desejo de fazer arruido e de prejudicar D. Anna.
-- Cale-se, interrompeu Henrique de gesto carregado, ou vae pda borda fóra mergulhar no Tejo. Já me conhece e sabe que sou de palavra.
-- Mas, senhor...
-- Já lhe disse que se calasse, replicou severamente Henrique. Oiça e regule a sua vida pelo que lhe vou dizer. Há muito tempo, ainda na vida de Manuel de Oliveira, que você estudou todos os meios de mortificar esta famíia e de me involver a mim nas suas malícias. Por desprezo tenho até agora fingido que o não entendo, mas bem desprezíveis são os insectos, e pisam-se e matam-se quando atorntam em demasia. Fique na certeza de que lhe não supporto nenhum atrevimento. Tem percebido?
-- Tenho, sim senhor, mas realmente...
-- Basta. Já sabe a lei em que ha de viver. Agora desça comigo à camara. Dar-lhe-hei a honra de pedir em seu nome á sr.a D. Anna de Oliveira que lhe desculpe a grosseira imprudência das suas phrases, mas veja bem o que faz. Á minima palavra ou gesto que me desagrade, receberá ali mesmo diante da sua irmã, da família de Salvador Lopes, e de todos os passageiros, a lição que merece. Vamos. Ande lá, garoto.
-- V. ex.a perdeu a cabeça, sr. Henrique de Mello, ousou dizer o aterrado Álvaro. Isso é demais...! Chamar-me garoto...!
-- Ora não se faça grave. Garotos são os que procedem como você, e eu gosto de chamar as coisas pelo seu nome. Diante de mim... e tenha juízo!
-- Mas, sr. Henrique, póde acreditar-me; replicou Álvaro em quem lutava a ousadia da maldade com o terror do animo covarde, eu não sou capaz de andar escutando o que os outros dizem, e da sua conversa com a sr.a D. Anna unicamente ouvi as ultimas palavras.
-- Podia tel-as ouvido todas, miserável! Calle-se por uma vez e desça já essas escadas, concluiu Henrique apontando para a entrada da camara e esforçando-se em reprimir a cólera.
Na camara do vapor estavam Salvador Lopes, D. Anna e a tia, conversando amigavelmente com D. Christina, porém ao avistarem Henrique e Álvaro interromperam a conversação; Christina para estender a mão a Henrique de Mello, e os outros para corresponderem á tímida saudação do menino Álvaro cuja extraordinária pallidez foi logo notada por todos.
-- Não esperava encontrar-me aqui. Não é verdade? perguntou D. Christina tão naturalmente como se não houvera notado o abatimento do mano, e a grande animação que se revellava no rosto do frustrado noivo de D. Anna.
-- Decerto que não esperava este prazer, respondeu Henrique. São mais apreciadas as venturas imprevistas.
-- Palavras ninguém as tem melhores e mais cortêzes de que o sr. Henrique de Mello, observou D. Christina dirigindo-se a D. Anna que lhe ficava proxima.
-- E então as obras são más? acudiu Henrique mui prazenteiramente.
-- Não queria dizer tanto. Mas sem pretender accusal-o, é-me licito notar que estas senhoras e o sr. Salvador vieram logo ver-me, e o sr. Henrique só agora se lembrou de mim. Não lhe causou grande abalo a tal ventura imprevista.
-- Muito me honra v. exa, dignando-se de notar a minha falta, porém d'esta vez a culpa foi do seu querido irmão, o sr. Álvaro de Araújo. Elle de certo me não desmentirá.
-- Assim foi. É verdade, balbuciou o aggressivo offensor de D. Anna que ficara á porta da camara com os olhos esgasiados, o rosto lívido, e os membros hirtos como se já fosse cadáver.
-- Não imaginava que a conversação do mano Álvaro tivesse tamanho encanto, mas emfim tal seria o assumpto... disse D. Chrístina já com grande suspeita de successo extraordinário e com desejo não menos vehemente de saber tudo.
-- V. ex.a com o seu esclarecido entendimento adivinhou logo, replicou Henrique. O assumpto era importante para o sr. Álvaro de Araújo, e cono tenho de o revelar para cumprir as ordens d'elle, posso desde já afiançar que seu mano me esteve dando provas da sua boa índole, natural delicadeza, e excellente coração.
Foi geral o espanto ao ouvir taes phrases a respeito do mano Christino cujas más qualidades nem a própria irmã ignorava. Cresceu em todos a curiosidade, e D. Christina sentiu acudir-lhe o rubor ás faces. Tão certa via no rosto angustiado do irmão a vergonha pela qual teria de passar, e nas palavras serenas e affáveis de Henrique a fria determinação de o castigar!
-- Vou contar-lbes o caso, accrescentou Henrique depois de breve pausa e acenando a Álvaro para que entrasse na camara e se assentasse. Seu mano vive ha muitos annos perplexo acerca das vantagens dos proprietários, comparadas ás que disfructam os capitalistas. Ora cuida que os capitaes desapparecem e as terras ficam; ora pensa que as quintas e os prédios exigem demasiado trabalho em quanto o dinheiro rende pelo simples facto da sua collocação. E como é mancebo de engenho mui vivo, e apaixonado de questões sociaes, medita egualmente na transformação pela qual vae passando o mundo inteiro, preponderando o trabalho e o capital que o fecunda e mantém, sobre os feitos de armas e a glória de que se originou a nobreza, senhora da terra e dominadora dos homens. Se o sr. Álvaro de Araújo fosse dado a escrever, estou que o seu primeiro livro se intitularia: O fidalgo e o capitalista. Não lhe sae isto do pensamento. Elle próprio teve a bondade de m'o dizer. Não è assim?
-- É assim; é, confirmou o assustado mancebo com assombro de se ver inscripto na lista dos curiosos de estudos sociaes.
-- D'ahi resulta, continuou Henrique, que sendo de caracter franco e temperamento fogoso o sr. Álvaro de Araújo, a cada passo lhe acodem recordações d'esses pronlemas, e saem-lhe na conversação muitas vezes deante de pessoas que poderiam ter por aggressivas aquellas opiniões, puramente scientificas e theoricas. Não adverte logo n'isso, e como não ha quem lhe attribua maus intentos, todos o tratam com benevolência, ninguém se dá claramente por offendido, e elle só depois vem a suspeitar com grande magua que foi descortez involuntariamente.
-- Involuntariamente de certo, affirmou Álvaro já mais socegado pela narraçã de Henrique embora tão salgada de pungentes ironias. V. ex.as bem sabem qne eu sou incapaz de actos grosseiros...
-- Frequentemente se deixou arrastar assim pelo seu assumpto mais querido, proseguiu Henrique sem attender ao que affirmára Álvaro de Araújo, na minha presença em casa do sr. Salvador Lopes, mas a amizade que todos lhe temos e a certeza da sua boa fé tiravam áquellas phrases qualquer caracter de aggravo. O sr. Álvaro de Araújo nem sonhava no alcance das suas palavras. Aconteceu porém hoje que a sr.a D. Anna ao escutar-lhe uma das taes opinões a respeito dos capitalistas, se lembrasse de vir cumprimentar a sr.a D. Christina, e nos deixasse sós a contemplar a magestade do Tejo. Caiu em si o sr. Álvaro e expondo-me quanto acabo de dizer, pediu-me que em seu nome o desculpasse perante esta família inteira. Notei-lhe que me parecia desnecessária a satisfação a quem se não mostrara queixoso, mas este excellente rapaz insistiu por tal forma e tanto me ponderou a magua em que ficava de o tomarem por insolente e descortez para com a família do sr. Salvador Lopes, que eu acceitei a missão de lhes manifestar os delicados escrúpulos do sr. Álvaro de Araújo. N'esse assumpto em que sobresaem muito os brios de seu mano, estivemos nós conversando, e por isso não vim logo apresentar os meus respeitos á sr.a D. Christina.
-- Está desculpado, sr. Henrique de Mello, respondeu a irmã de Álvaro de Araújo com gesto de affectuoso agradecimento descobrindo logo na história d'este caso as costumadas imprudências de Álvaro de Araújo e a generosidade de Henrique. O ponto está em que estas senhoras e o sr. Salvador Lopes tenham com meu irmão a indulgência que elle slliccita.
-- Ora essa! exclamaram a um tempo D. Anna e o marido. Eu nunca reparei nas taes phrases do sr. Álvaro, accrescentou Salvador, nem duvidei das boas intenções d'elle; e nós todos lhe agradecemos a delicadeza, em verdade quasi exagerada.
-- O sr. Álvaro, concluiu Henrique, receava tel-os desgostado e queria dar provas de que a sua principal nobreza è, como deve ser, a do coração.
-- Sem dúvida, interrompeu Álvaro, e agradeço muito ao sr. Henrique ter-se encarregado de me justificar.
-- Ninguém o recusava, sr. Álvaro, disse D. Anna satisfeita da generosa lição dada pdo seu antigo noivo ao irmão de D. Christina.
Henrique levantou-se e subiu para a tolda do vapor seguido por Álvaro de Araújo; D. Christina ficou impaciente por saber a verdade inteira e envergonhada da humilhação que as astúcias e perfídias do irmão tinham provocado. Salvador observou que o sol ia declinando e que já podiam observar as différentes povoações, espalhadas pela margem direita do Tejo como sentioeUas perdidas da grande capital.
Na tolda Álvaro agradeceu a Henrique a bondade com que o tratara e prometteu emendar-se. Henrique não lhe respondeu e foi ao alto da escada ajudar as senhoras a subirem. Vogava então o vapor defronte de Villa Franca de Xira a que por duas vezes os políticos trocaram o nome e que outras tantas reconquístoa a antiga denomínação. Felizes tempos em que se mudava o nome a uma villa, e ficava a pátria salva !
O sol descendo para o ocaso ainda illuminava com vigor as casas de Villa Franca»,edificios pouco elevados, e tão brancas as paredes que recordavam as aldeias das costas da Grécia, de Levante e de todo o oriente. Verdejavam ao longe os pomares das quintas de Povos, e na margem esquerda espraiavam-se as largas e fecundas campinas das lezírias. Seguia com desusada rapidez o vapor já auxiliado pela vasante da maré, e mal permittia observar detidamente a Alhandra, a Povoa, e Sacavém com o seu rio e com a draga que o andava então limpando. De Sacavém a povoação quasi não è interrompida até ao Beato António, á Madre de Deus, a Santa Apolónia e ao Caes dos Soldados onde annos depois, trocadas pelo alvião as armas da guerra, tinha de erguer-se a estação principal do caminho de ferro de norte e leste.
Era de bom agouro a transformação do quartel em templo da nova idéa. Assim no mundo pudesse realisar-se o que ella promettia, e desarmassem os exércitos por inúteis cedendo o campo ao movimento accelerado da civilisação e do progresso. Então a lucta seria unicamente de emulação no trabalho em proveito do commercio, da industria e das artes, que são agentes poderosíssimos do aperfeiçoamento moral do homem e da sociedade.
Santa Apolónia e o Caes dos Soldados, ao sopé das montanhas orientaes de Lisboa, já são ruas da capital cujo movimento se divisava do vapor. Esquecidos os trabalhos de viagem e as maldades do menino Álvaro, tinham-se reunido os viajantes a admirarem o magestoso panorama que lhes apparecia deante dos olhos. Á direita a cidade trepando corajosa pelas alturas ou estirando-se preguiçosamente ao longo do rio; na margem fronteira, mal distinctas pela immensa amplidão das aguas, povoações succcessivas desde a Atalaia até ao Seixal; á proa a pittoresca villa de Almada recostada no parapeito do seu castello a mirar-se no Tejo e a sorrir carinhosamente para a cidade fronteira ; e Cacilhas com o seu caes e pontal, tão ensanguentados nas lutas civis que terminaram ha muitos annos.
Não se interrompia o enleio das senboras, vindas pela primeira vez a Lisboa. Estavam maravilhadas da magnificência com que a Natureza delineara aquelle vasto e formoso quadro, e não sabiam como dividir a attenção entre tantas e tão continuadas bellezas. Mal notavam de um lado o soberbo mosteiro da S. Vicente, e o castello de S. Jorge, ou do outro o palácio do Alfeite, brilhando no seu engaste verde-negro de prolongados pinheiraes, já lhes apparecia ao longe a torre do Bogio marcando a entrada do Tejo, e no amphitheatro risonho da cidade o palácio da Ajuda com os seus torreões, a egreja da Estrella com o celebrado zimborio, e todas as collinas e valles de que Lisboa se foi assenhoreando na successão dos tempos.
No mais subido ponto de tão natural enthusiasmo aproou o vapor ao caes e abriu aos olhos dos viajantes a formosa perspectiva da Praça do Commercio, terreiro do antigo paço dos nossos reis, agora centro da actividade do governo, e da labutação quotidiana dos negociantes. Ao avistarem as arcadas das secretarias, a estátua d'el-rei D. José, e as ruas que do Terreiro do Paço dão passagem para o interior da cidade, até a própria tia de D. Anna se esqueceu da sua Coimbra tão querida, e manifestou com sinceras exclamações o pasmo que lhe causavam tantos primores.
Conversava Salvador Lopes com Henrique de Mello e lastimava que, por por incúria dos governos e principalmente por falta de inidativa individual, não estivesse aproveitado o Tejo e melhorada a cidade que a natureza destinara para caes occidental da Europa, e onde devia naturalmente acudir a maior parte da navegação e do commercio do continente americano. Attribuía o nosso desleixo ás tradicções gloriosas em cuja preguiçosa embriaguez vivíamos sem trabalhar, e concluía asseverando que o milagre de Ourique e a batatalha de Aljurrabota, e as descobertas e conquistas da Africa, da Ásia e da América nos tinham causado maiores damnos que os terremotos, as pestes e a invasão dos francezes.
Sentada em um dos bancos do vapor, a cabeça reclinada sobre a mão esquerda, observava D. Anna gostosamente a admiração da tia, e volvendo os formosos olhos para a cidade como que forcejava por esquecer o passado e acreditar que lhe correria ali mais serena a existência. Sentia-se quebrantada pelas agitações da viagem e pelo inesperado esplendor da capital. Presenceava D. Christina o espanto geral, e nem o accusavade excessivo, nem manifestava grande enthusiasmo. Olhava para Lisboa placidamente como se já lhe fora conhecida, e prestava maior attenção aos movimentos e ás palavras de Henrique de Mello que ao possante curso do Tejo e á pomposa apparência da capital.
Corria Álvaro de Araújo do grupo das senhoras ao sítio onde conversavam Salvador Lopes e Henrique, e em uma e outra parte concordava com todas as opiniões, applaudia o encarecimento, exagerava a admiração, e buscava á força de lisonja reconquistar o terreno perdido e a benevolência geral. Não esquecera, nem perdoara a humilhação que lhe impuzera Henrique, mas para se vingar carecia de alcançar de novo a confiança de todos ou de lhes persuadir que se corrigira. Redobrara de attenções para com a irmã, mas nem ella nem a família de Salvador Lopes ouviram as palavras com que o menino Álvaro lhes interrompia as conversações. Anciosa por saber a fundo as imprudências que tinham dado origem á scena passada na camara do vapor, esperava D. Christina com impaciência a hora do desembarque para interrogar e reprehender o irmão. Esse era o maior receio do malévolo fidalguinho.
Atracou finalmente ao caes o pacífico vapor de Villa Nova e desembarcaram os viajantes, separando-se mui affavelmente e dirigindo-se cada qual ás pousadas que mandára preparar. Salvador Lopes foi hospedar-se na rua Nova do Carmo ; Álvaro de Araújo e a irmã na rua da Horta Secca que n'esse tempo seguia pelo sul das minas do palácio pertencente aos antigos condes de Cantanhede, depois elevados a marquezes de Marialva, ruínas mais conhecidas pela denominação de Cazebres do Loreto.
Annunciaram os jornaes -- que já então era uso-- a chegada do abastado capitalista Salvador Lopes e da sua elegante mulher, filha do rico negociante conhecido outrora pelo Rothschild de Coimbra, e accrescentaram que vinha a Lisboa passar o inverno. Não lhes faltaram visitas desde os primeiros dias. Vieram logo á rua Nova do Carmo os banqueiros e negociantes com quem tratava Salvador Lopes, e que já tinham relações com o velho Manuel de Oliveira; depois vários cavalheiros que viajando na província haviam recebido hospitalidade do pae e do marido de D. Anna, e entre estes alguns levaram comsigo irmãos ou parentes que apresentaram aos recem-chegados ; g conde e a condessa de Mertola cujas grandes propriedades na Beira e no campo de Coimbra estavam confiadas á administração e vigilância da caza Oliveira, e finalmente o ministro do Brazil que no Rio de Janeiro se ligara em particular amizade com Salvador Lopes. Poucos dias depois o diplomata brazileiro convidou-os para um jantar em que reuniu com acertada escolha algumas famílias da corte e os seus collegas representantes das outras nações.
Já não se fallava, na restricta e desoccupada sociedade de Lisboa, senão de D. Anna de Oliveira, do marido e das riquezas fabulosas de ambos, e quando a esbelta mulher de Salvador Lopes appareceu pela primeira vez em S. Carlos no camarote da condessa de Mertola, sentiu-se rumor entre os espectadores, e assestaram-se na direcção d'ella todos os óculos.
Em breve Salvador Lopes saira da hospedaria, e fora residir em um palacete alugado na rua do Alecrim, que mandara prover de mobília primorosa e escolhida com apurado gosto. Tomara depois o camarote immediato ao da condessa e recebera convites para os bailes que iam principiar. Abriam-se todas as portas á filha de Manuel de Oliveira e a Salvador Lopes; accrescentavam-se-lhes cada dia as relações, e as senhoras mais distinctas, e austeras no ajuizar das virtudes alheias, exaltavam a elegância e maneiras de D. Anna, a formoosura dos seus grandes olhos verde-negros, a conversacão discreta e séria em que primava, e o espírito esclarecido que lhe transluzia em todos os assmnptos. Esmolas avultadas às associações de caridade, mui gratamente feitas a rogos das suas novas amigas, a assiduidade nos actos religiosos a que nao faltára desde criança, e a gravidade e compostura ingleza dentro dos templos, completaram a boa reputação de D. Anna de Oliveira.
Era moda fallar d'ella ; narrar os actos de caridade que praticava ; referir os superiores dotes que se lhe descobriam diariamente; gabar-lhe a simplicidade encantadora do vestir; exaltar a flexibilidade indolente com que se recostava no camarote; louvar a inalterável delicadeza com que a todos escutava e respondia ; e finalmente designal-a para modelo de graça e de distincção. Os parasitas que na capital apuram cuidadosamente a estatística da riqueza alheia, do valimento e superioridade de todos os magnates e do mérito intrínseco dos cosinheiros que assoldadam, já de Santa Apolónia ao Dá Fundo, e do Lumiar ao Largo dos Caldas e ao Terreiro do Paço lançavam pregão unisono, e apontavam no horisonte os repetidos e esmerados jantares com que Salvador Lopes lhes havia de remunerar a sollicitude, e as mezas de whíst e boston em que teria de os collocar.
Não faltou quem reparasse também na gentileza fidalga de Henrique de Mello, e quem procurasse descobrir a que viera da província ao lado dos dois cônjuges aquelle distincto mancebo, seu companheiro inseparável e residente com elles na rua do Alecrim. Quando chegou a saber-se quem era, e como representava a antiga e rica família dos Mellos de Coimbra, notável entre as mais insignes do reino por nobreza e serviços, bem como apparentada na corte, principiava já a maledicência a exercer o seu odioso mister, disfarçada em palavras equívocas e em sorrisos maliciosos.
Indulgente para com os seus favorecidos, a sociedade não fallou mais no caso e deu-se por satisfeita, cuidando talvez ser benevolamente discreta onde tudo era para se confessar e dizer. Pôde até imaginar-se que as suspeitas relativas a Henrique de Mello lhe dessem no conceito das pessoas mais frívolas a aureola dos triomphadores e o fácil indulto que se concede aos desvarios do amor. Chamavam feliz á culpa de que o suppunham réo. Não lhe perdoariam o arrojo, se o tivessem por innocente. É assim o mundo. Gosta de amnistiar, e tolera a custo as superioridades immaculadas que o deslumbram e humilham.
Adoecera D. Christina no dia da chegada a Lisboa. Perdeu o equilíbrio ao subir a escada na rua da Horta Secca, e da queda ergueu-se maltratada no pé e no braço esquerdo. Sobreveio-lhe febre e tamanha prostração que não pôde levantar-se da cama durante quinze dias. Concluído o primeiro curativo, mandou sair do quarto a criada e, ficando só com o irmão, obrigou-o a dizer-lhe a verdade inteira acerca do que se passara no vapor entre elle e Henrique de Mello. Confessou tudo Álvaro de Araújo desculpando-se com o temperamento colérico de Henrique e com o orgulho de D. Anna.
D. Christina pediu-lhe que não fosse mais sem ella a caza de Salvador Lopes, e nos dias de concentração doméstica a que se viu forçada pela doença, não passou hora accommodada ao seu intento em que não trabalhasse por abrandar o carácter maldoso e vingativo do irmão, lembrando-lhe os deveres de cortezia que os fidalgos devem cumprir sempre, e aconselhando-lhe moderação e prudência. Prometteu Álvaro de Araújo como das outras vezes, mas a palavra n'este caso não exprimia, disfarçava, os sentimentos do coração. Podia mais n'elle a maldade que a reflexão, e só esperava ensejo favorável de vingar-se das humilhações passadas. O mano Christino tinha vaidades de mercieiro e sustos de peão fidalgo.
Recebera D. Christina convites para quasí todos os bailes a que tinha de ir D. Anna de Oliveira. Prima da condessa de Mertola, e por sua mãe parenta próxima de muitas famílias da corte, não precisava de quem lhe abrisse as portas da sociedade a que pertencia pelo sangue, mas o desastre do primeiro dia impediu-a de assistir a algumas festas. Appareceu finalmente no grande baile que, por occasião do cazamento de seu filho primogénito, dava a opulenta e velha marqueza de Ílhavo, e causou extraordinária curiosidade ao atravessar as salas até ao logar onde estava a dona da casa. Attraiu a geral attenção a estatura alta e nobre de D. Christina, o garbo e desassombro com que ia abrindo passagem por entre a immensa multidão dos convidados que não conhecia, e a graciosa elegância do vestido e toucado que não poderiam ser louvados por modestos, nem taxados de exageração provinciana. Eram esplêndido engaste de formosa pérola. Não lhe offuscavam o brilho. Davam-lhe realce.
E como grande número de pessoas a fosse seguindo com os olhos, e muitas passassem de uma a outra casa para observal-a melhor, notaram todas os admiráveis reflexos dos fartos cabellos negros, a forma airosa do toucado, o fulgor dos olhos azues, pequenos e alegremente inquietos, a engraçada curva com que o nariz parecia querer afastar-se da boca para que brilhassem no máximo esplendor os primorosos dentes de D. Christina, a tez alvíssima com assomos cor de rosa, o rosto bem talhado, as linhas do pescoço correctíssimas, e as mãos como as designara o sceptíco voluntário de Missolonghi para typo da raça nobre. Até a boca mais rasgada que breve, e os beiços um tanto grossos, á feição da caza de Áustria, tiveram sinceros admiradores.
-- Ora ainda bem que pudeste vir, minha querida sobrinha, disse a marqueza de Ílhavo ao receber os cumprimentou da gentil donzella. Chegar a Lisboa e adoecer na estação dos bailes é a maior de todas as semsaborias. E agora me recordo que tens estado encerrada em caza e de certo não conheces nem os teus próprios parentes. José, accrescentou para o filho mais novo que passava n'aquelle instante, dá o braço á prima Christina, leva-a a tua cunhada e á condessa de Mertola, e apresenta-lhe os teus amigos para que dancem com ella. Hoje não posso acompanhar-te, mas vaes entregue a um dos nossos mais frenéticos walsadores. Eu tenho de fazer as honras da casa.
E continuou a receber os convidados que affluiam por todas as portas da sala.
D. José de Castro inclinou-se respeitosamente, deu o braço a D. Christina, convidou-a para a segunda walsa. e depois de apresental-a á noiva do irmão, pôde alcançar-lhe logar junto da condessa com quem D. Anna de Oliveira estava fallando. Eram assumpto de todas as conversações as duas esplêndidas filhas de Coimbra, e sobre qual vencia a outra em belleza e graça disputavam muitos, sustentando a maior parte que não podia haver comparação entre géneros tão differentes.
Acolheu a crondessa de Mertola com grande affabilidade a encantadora Christina, e D. Anna levantou-se para abraçal-a com affecto, accusando-a de não lhe ter mandado dizer onde morava, e de se ter esquecido d'ella.
-- Coisas do mano Álvaro ! respondeu D. Christina encolhendo os hombros. Eu estive muito doente, e è hoje a primeira vez que saio.
-- Só agora o sei, replicou D. Anna. Felizmente que não foi incommodo grave.
Cortaram esta conversação muitos mancebos dos mais distinctos que vieram sollicitar a honra de dançar com ambas, e cercaram depois sempre o cantinho da sala onde se acolhera do tumultuar do baile a condessa de Mertola. Não faltou Henrique de Mello a cumprimentar a condessa e D. Christina de Araújo, porém como não dançava, á força de abrir passagem aos rapazes foi-se affastando para o centro da caza e d'ahi para as outras salas; nem deixou de acudir a saudar D. Anna o menino Álvaro que, depois de breves palavras sem malícia, tomou egualmente outra direcção embrenhando-se no borburinho do baile.
Divagando na faustosa habitação da marqueza de Ílhavo, Henrique de Mello pôde observar a magnificência que sobresaia em toda a parte, e as acertadas disposições d'aquella admirável festa. Sem escutar chegavam-lhe aos ouvidos, quando ia passando, as vozes dos differentes grupos, n'alguns dos quaes a presença de amigos ou parentes o obrigou a demorar-se.
Uns gabavam o esplendor de tão rara funcção, calculavam-lhe facilmente a despeza, e duvidavam de que a marqueza, apesar de muito rica, pudesse continuar a viver de tal modo. Lamentavam que para divertir o próximo fosse diminuindo a riqueza dos filhos.
Eram os amigos da marqueza !
Outros sustentavam a primasia dos bailes da condessa de Mertola pela disposição da caza, pela escolha dos convidados e pelo esmero do serviço, com quanto o cosinheiro da marqueza fosse muito superior ao da condessa. Confessavam todavia que a marqueza era muito mais rica e que seria loucura querer lutar com a casa de Ílhavo, das maiores do reino, a casa de Mertola cujos gastos, embora fiscalisados com grande severidade, excediam o rendimento que geralmente lhe attribuiam.
Eram os amigos da condessa !
Dois parasitas, vendo perto de si o filho primogénito da marqueza, fingiam admirar um quadro, e em quanto um d'elles affirmava ser dos melhores de Rubens, ponderava o outro que era o único Salvator Rosa genuíno que havia em Portugal.
-- Esse quadro é de Téniers, interrompeu o jovem marquez. Foi dádiva do insigne mestre a meu sexto avô que, sendo pagem de el-rei de Hespanha, fora discípulo do celebre pintor em companhia de D. João de Áustria.
-- De Téniers justamente dizia eu, exclamaram os dous ao mesmo tempo, inclinando-se. É magnifico! Soberbo! D'estes só v. ex.a possue...!
Coitados! Entendiam mais de jantares e ceias que de pintura, mas não faltavam á obrigação de louvar tudo deante dos donos da caza. Já eram convidados para isso, como para chorar nos enterros se mandavam chamar antigamente as carpideiras !
Eram os chronistas mores da riqueza !
Alguns, ao verem passar certas pessoas, perguntavam a rasão que teria a marqueza para convidar aquella gente, e avistando altos personagens da corte, homens de Estado célebres, preconisavam o recto juízo com que ella sabia attrair a sua caza todas as superioridades sociaes. Ahi vinham mil aoecdotas para desconceituar os primeiros, e outras tantas supposições a respeito do intento com que não faltaram os segundos !
Eram boas línguas !
Acerca dos vestidos, dos enfeites, dos diamantes, discursara o maior número com escassa benevolencia, e nem o titulo modernamente conferido escapara incólume, nem a commenda ou grã cruz que se estreara n'aquella noite, resplendia sem offuscar alguém.
Era a turma dos independentes !
Algumas senhoras apontavam para outras, e muito ao ouvido iam-lhes minando a reputação em quanto, com egual reserva e sob o mais rigoroso segredo, se publicavam bem tecidas anedoctas a respeito d'aquellas austeras matronas.
Era a cohorte da caridade reciproca!
Murmuravam as tias velhas da transformação a que estavam assistindo; mostravam umas ás outras o neto do cocheiro de seus paes, disfarçado nas honras de um título moderno, dançando com a descendente de três visereis da Índia; e benziam-se de ver a filha do seu mercieiro entrar pelo braço do marido, commendador e deputado, humilhando a antiga clientela com o fulgor dos custosos brilhantes em que se convertera a manteiga da tenda.
Era o passado a não comprehender o presente !
Uma fidalga cujos gloriosos ascendentes accrescentaram os domínios da coroa portugueza e deixaram largo rasto do próprio sangue nos bastiões da Africa e da Ásia, acolhia com esmerada cortesia e benevolência as pessoas que as tias velhas menoscabavam, e como lh'o notassem com admiração, respondia que as famílias mais nobres também tinham principiado, Deus sabia como, e que se os fidalgos de então lhes houvessem voltado as costas, não teriam chegado á grandeza a que se elevaram. Quem deseja ser nosso, concluhi ella, è porque nos ama. Não lhe podemos querer mal.
Era a nobresa reagindo pela superioridade da rasão e pelo desprezo dos preconceitos contra a aniquilação da sua classe !
Não se queixavam tanto á puridade as tias que as não ouvissem dois ou três mancebos, formados ha pouco na universidade, cujos avós nem tinham estado na conquista de Lisboa por D. Affonso Henriques, nem sequer haviam acompanhado ás amorosas jornadas de Odivelas o piedoso rei D. João V.
-- Teem graça estas fidalgas, exclamava um. Nem que fosse por culpa nossa que os seus filhos e sobrinhos valem pouco ! Elles nao estudam, não se habilitam para o exercito, nem para a marinha, nem para a política, nem para as letras, e depois queixam-se de que a burguesia e o povo sulcam aos primeiros cargos do Estado! Era o que faltava se o paiz tinha de esperar que a nobreza aprendesse a ler!
-- Fallas como um livro ! observava outro. Não somos o que os francezes chamam parvenus, e até nem se pode dizer que sejamos arrivés, como dizia de Thiers o príncipe de Talleyrand. Não assaltamos os logares. Somos chamados á falta de homens !
-- Bravo, clamaram todos.
-- É isso ; é. Quando os fidalgos da corte, accrescentou o terceiro mancebo, eram talhados pela medida do conde da Ericeira, subiam a força de valor aos mais elevados postos da milicia, e se depunham a espada para lançar mão da penna, escreviam discretamente a história da pátria. Os cavalheiros das províncias, a serem como António de Souza de Macedo, obtinham as mais honrosas e difíceis enviaturas. E o filho do mercieiro ficava na tenda porque valia menos que o fidalgo.
-- Perfeitamente, disse o primeiro. João das Regras não era fidalgo e chegou a ministro do rei. Também foi dos chamados ! O duque da Terceira ganhou do campo da batalha o posto de marechal, e nenhum plebeu lhe invejou o bastão. Nós não affastamos ninguém. Podem dispensar-nos? Pois não chamem por nós.
Eram os representantes da geração nova !
Impacientavam-se muitos por tardar a cea, finda a qual se retirariam logo, e forcejando por esquecer a demora de que o estômago lhes estava repetindo os avisos, fallavam de política, narravam o robber de wisth que perderam por erro do parceiro, e sustentavam o conhecido aforismo que jogar pela balda é de pexote.
Não eram dos peores estes!
Os rapazes conversavam e dançavam com as senhoras ; exaltavam-lhes a formosura, o espírito, a graça, a elegância e o gosto apurado; deixavam-lhes perceber sem disfarce o dominio a que tão subidos dotes os sujeitavam, e docemente inebriados pelo suave perfume do baile, pela agitação da dança, pelos encantos da belleza, e pelo extraordinário esplendor da festa, esqueciam o passado e, ao findar o cotillon, dariam o futuro inteiro por mais uma hora de prazer.
Eram os melhores !
Affastando-se d'um grupo e aproximando-se d'outro, recordava Henrique de Mello com profunda saudade os tempos antigos em que, ao lado de D. Barbara ou no centro da família Oliveira, lhe iam correndo os dias no sincero e leal viver da província. As perfídias do menino Álvaro pareciam-lhe desprezível excepção que maior apreço dava ao bem querer de toda a gente. E tão combatido andava d'este amargo pensamento que saindo para as salas já despejadas da multidão, se deixou cair em uma cadeira e ali permaneceu muito tempo em concentrado scismar.
Não ficara ocioso Álvaro de Araújo. Fervia-lhe no ânimo traiçoeiro o mesquinho desejo de vingança, porém as recommendações e preceitos da irmã, o interesse de a não desgostar, e o receio de provocar de novo a cólera de Henrique, traziam-n'o de sobreaviso e precavido contra quaesquer imprudências. Aos que lhe perguntavam por D. Anna, respondia que Salvador Lopes era dos mais abastados capitalistas da província. Aos parentes que o interrogavam acerca de Henrique de Mello, dizia que por nobreza, qualidades e bens da fortuna lhe cabia entre os cavalheiros de Coimbra o primeiro lugar. Onde se desdenhava da origem burguesa dos Oliveiras, ou se murmurava da intimidade de Henrique de Mello com aquella família, fingia estar distraído, mas não perdia phrase ou palavra pela qual pudesse avaliar a propensão mais certa dos espíritos. Investigava com esmero por onde facilmente poderia abrir brecha a maldade para dar assalto á reputação de D. Anna, e render a inflexível vontade de Henrique de Mello. Nunca se mostrara tão reservado e discreto, nem reprimira assim o natural desassocego do seu caracter.
Do lethargo em que ficara Henrique de Mello, veio accordal-o a presença de D. Christina que lhe pediu o braço para entrar na casa da ceia. D. Ânna vinha em seguida acompanhada pelo conde de Mertola, e completava o grupo a condessa com Salvador Lopes.
-- Este nosso patrício, disse Christina a D. Anna e á condessa, tem queda para eremita. Foge do baile, e vem sentar-se na única sala deserta !
-- É verdade. Tem razão, minha senhora, respondeu Henrique dando-lhe o braço, mas o calor era tamanho e tão incessante o movimento dos que apressadamente corriam ás danças, cruzando-se com as famílias dispostas a retirarem-se da festa que, á força de recuar para os outros passarem, me encontrei aqui sem saber como ! Por fim appareceu-me a corpulenta baroneza de Lorvão com o rico vestido de cauda que tomava a sala toda. Tive de me acolher n'essa cadeira para lhe dar logar. Depois fiquei a considerar no progresso das caudas e na influencia d'ellas nas funcções da capital. Coisas minhas, sr.a D. Christina !
-- Sempre jovial! Ainda bem que o descobrimos no seu esconderijo! exclamou a irmã de Álvaro de Araújo entrando na brilhante sala onde estava servida a ceia, e arrastando Henrique para um logar vago, longe do sitio onde a mulher de Salvador poderia collocar-se.
Dirigiu-se o conde para o lado opposto do bufete em companhia de D. Anna que, durante o breve collóquio entre D. Christina e o filho de D. Barbara, olhara anciosamente para Henrique, agitada pelo temor de nova insídia que a perversidade do menino Álvaro pudesse ter planeado. Adivinhou porém o mancebo, de acostumado a decifrar-lhe na physionomia os segredos do coração, a angústia de D. Anna, e conseguiu na placidez do gesto, na serenidade do olhar, e nas brandas inflexões da voz dissipar-lhe as suspeitas e robustecer-lhe a confiança. Logo o número dos convidados interrompeu esta silenciosa correspondência.
Comeu pouco D. Chrístina, e cedendo o lugar ás muitas pessoas que estavam esperando ensejo de se aproximarem da meza, tomou de novo o braço de Henrique e saiu com elle acceleradamente da sala, desculpando a pressa com o demasiado ar que ali corria, perigoso sempre, porém de maior risco para quem pela primeira vez vinha ao baile, ainda mal convalescida.
-- E a propósito, continuou D. Christina, tenho muitas razões de queixa contra o sr. Henrique de Mello. Estive quinze dias de cama e nem foi, nem mandou, saber de mim ! Isto não è de patrício, nem de amigo.
-- Minha senhora, eu nao sabia onde v. ex/ morava. Desde que nos separámos no Terreiro do Paço, nunca mais nos deu novas suas. V. ex.a sabia para onde nós amos, e lá em casa não acontecia outrotanto.
-- Descuidos do Álvaro ! Encommendei-lh'o, mas bem sabe como elle é, respondeu D. Christina olhando para Henrique de Mello a observar qualquer gesto que revelasse as disposições do mancebo depois da scena que se passara no vapor.
-- Bem sei, replicou Henrique. Seu mano é sujeito a grandes distracções. Bem sabe que já o conheço ha muitos annos...
-- E não o pode supportar. Accrescente; diga; não lhe quero mal por isso. Eu conheço meu irmão e não lhe poupo advertências nem conselhos.
-- Acredito, sr.a D. Christina.
-- Póde acreditar. Nem faz idéa do que eu lhe disse quando o obriguei a narrar-me toda a história do vapor. Aquelle rapaz é incrível, e eu folgo de ter aprontado esta occasião de protestar contra as imprudencias d'elle. Espero que se emendará.
-- Eu também quero nutrir essa esperança e em todo caso agradeço muito a v. ex.a...
-- Não me agradeça nada. Ea sou sua verdadeira amiga, e se na minha mão estivesse dar-lhe a felicidade que merece, não andaria o sr. Henrique de Mello, nas salas da marqueza de Ílhavo e por entre as delícias de tão apparatosa funcção, triste e sombrio como se na quinta de Santa Cruz estivesse folheando as poesias de Ovídio sentado á margem do formoso lago.
-- Ainda se recorda, minha senhora !
-- Não me esqueço nunca dos amigos, e peza-me de o ver penar sem remédio.
-- Dependem do temperamento as penas de cada um. Ás vezes o que a muitos se affigura magua e padecimento, é paz da consciência, desapego do mundo e gozo do coração. V. ex.a sempre exagerou as minhas tristezas.
-- Olhe, sr. Henrique de Mello, observou D. Christina parando a olhar para elle attentamente, ou não tem coração ou padece os tormentos do inferno entre a virtuosa D. Anna e o generoso Salvador Lopes.
-- É que não tenho coração, contestou Henrique alegremente. Também se vive sem elle. Há muita gente assim.
-- É verdade, ha ; mas esses simulam viver. Já morreram, e andam no mundo a penar até descobrirem quem lhes dê sepultura. Vivem mortos...!
-- Tem immenso espírito v. ex.a...! -- E coração melhor que o espírito. Pode crel-o. Anda agora o meu coração no difícil empenho de salvar o sr. Henrique de Mello dos perigos em que o vejo incauto e desavisado, como se lhe fossem desconhecidos os azares da sorte e os laços que a malícia alheia nos anda sempre armando.
-- O seu coração é excellente, minha senhora, mas illude-a acerca dos riscos de que me suppõe ameaçado. São obra da sua brilhante imaginação. Tenho mui tranquilla a consciência.
-- Não se engane, nem busque enganar-me. Pois não vê que as insídias do Álvaro assentam principalmente na falsa posição em que se collocaram todos? Não sabe que a maledicência é contagiosa? A sociedade tem as suas leis. São caprichosas ás vezes, mas são leis ; e se em muitos casos, como todas as outras, abrandam o rigor, tornam-se inflexíveis e redobram a severidade quando humilham homens superiores.
-- Nem sou homem superior, nem me assusto facilmente, respondeu Henrique titubeando como quem sentia a verdade das palavras de D. Christina.
-- Que não receie por si, comprehendo; mas que sacrifique os outros ao egoísmo de um sentimento condemnado por Deus e pelo mundo, e naturahnente sujeito ao enfraquecimento de todas as coisas humanas, confesso que não entendo da parte do cavalheiro mais brioso que eu conheço. E mais se ha alguém inclinado a interpretar benevolamente as suas acções todas e a buscar para cada uma d'ellas a razão mais plausível e mais digna, sou eu pela grande conta em que o tenho pela sincera amizade que lhe consagro, e pela convicçao que me inspira o seu caracter.
-- V. ex.a na verdade penhora-me em demazia. Nem eu sei imaginar como cheguei a merecer tamanha honra e tão dedicado interesse...! respondeu Henrique de Mello já perturbado e caindo no laço armado por D. Christina quando havia julgado escapar-lhe pela mudança de assumpto.
-- Não sabe a razão do interesse que me inspirou? Pois vê pouco quem a não descobre ! exclamou D. Christina olhando em torno e certificando-se de que na sala por onde passavam, não estava quem ouvisse o que ella ia dizer.
-- E no fim de tudo nem careço de saber. Basta-me ficar-lhe em perpétuo reconhecimento.
-- Mas quero eu que saiba, continuou a gentil donzella unindo-se ao braço de Henrique para lhe fallar mais baixo. Dispuz-me a salval-o porque o amo, porque lhe quero mais que á minha própria vida, e porque estou resolvida a conquistar o seu amor a poder de mostrar-me digna d'elle.
-- Minha senhora.. .
-- Escute-me, Henrique, acudiu Christina radiante de belleza e de audácia e com voz affectuosa e submissa. Agora sabe tudo. O meu amor é puro como a própria virtude ; honesto como o caracter do homem a quem estimo, e vigoroso como a minha vontade. Não amei nunca, e teria força para sepultar esta paixão, por tanto tempo occulta na minha alma, se D. Anna fosse solteira e pudesse tornal-o feliz...
N'este ponto em que as luzes reflectidas nos espelhos illuminavam a expressiva phisionomia de Christina e pareciam cercal-a de uma aureola de inspiração amorosa e sublime, ouviu-se a voz de D. Anna chamando da porta da sala e annunciando que já se tinha retirado a maior parte dos convidados.
-- Já vamos, respondeu Christina estremecendo levemente como quem accorda de súbito, mas jubilosa por ter revelado a Henrique o seu amor. Lá vamos. Nós andávamos perdidos por estas salas. Desculpem. O que vale, accrescentou sorrindo porém olhando com altiva firmeza para D. Anna, é que somos ambos solteiros. Ninguém nos póde ralhar...; nem ha prejuízo de terceiro...
-- De certo, confirmou D. Anna em ar de gracejo, mas sentindo subir-lhe o rubor ás faces, recordando-se do passeio na quinta de Santa Cruz, experimentando a agonia que a assaltara então, e voltando as costas para ir receber dos criados o resguardo que lhes entregara ao entrar no baile.
Estava declarada a guerra. Christina era rival de D. Anna, e chegara á conjunctura em que tinha por inútil occultal-o.
Mudara a situação de todos. Henrique não poderia esquivar-se a responder a D. Christina e a ferir-lhe o amor próprio com o mais cruel entre todos os desenganos. D. Anna teria de lutar contra o ciúme com força egual á que empenhava diariamente para não faltar a nenhum dever, a nenhuma delicadeza. Acabara a dissimulação affável de Christina, e prmcipiára entre as duas mimosas filhas de Coimbra o combate em que a perversidade audaciosa do menino Álvaro não seria talvez reprimida pela irmã. Preparavam-se novos tormentos para Salvador Lopes que não descortinava ainda no horisonte as nuvens negras que tão procellosa tempestade pareciam annunciar.
Assim é duvidosa e incerta a fortuna humana !
No dia seguinte ao almoço, fallou Salvador Lopes mui largamente do baile da marqueza de Ílhavo, notando a magnificência da festa e louvando aquelle modo de repartir pelos pobres a riqueza das famílias abastadas, pois que o luxo de tão esplendida caza e a despeza de cada convidado haviam sido occasião de fortuna para muitos dos que vão ganhando com o suor do rosto o pão quotidiano.
Correram quasi em prolongado solilóquio as judiciosas palavras de Salvador Lopes. Respondiam uma ou outra vez com monosyllabos D. Anna e Henrique de Mello para approvarem as opiniões do capitalista coimbrão, e ficavam em seguida absortos e profundamente dominados de outras cogitações. Aproveitou a tia o ensejo para dar largas ás amarguras que lhe andavam attribulando a existência desde que saira das margens do Mondego e principalmente depois de chegar a Lisboa. Cuidara na singeleza do seu ânimo a pobre mulher que não havia terra egual a Coimbra, nem habitação tão ricamente posta como a de seu fallecido irmão.
N'esta crença vivera largos annos, contente e desvanecida da superioridade da riqueza que a cercava. Pungia-lhe agora o desengano de ver quão somenos e mesquinho era o serviço da sua caza em comparação com o das famílias da primeira plana da corte, e como a grandeza de Lisboa e a magestade do Tejo deixavam a perder de vista os delicados primores de Coimbra e a corrente, ora amena, ora inquieta, do seu formoso rio. O desdém com que tratava Lisboa, não provinha de aversão á corte ; era amor á encantadora rainha do Mondego. E em Coimbra fallava-lhe affavelmente o cónego mais auctorisado da Sé ; sentavam-se junto d'ella a conversar os lentes de prima e de véspera; não passava sem cumprimental-a o governador civil e o secretário geral ; prodigalisavam-lhe attenções cortêzes as fidalgas de mais alta cathegoria ; e os velhos negociantes, respeitando n'ella a irmã do maior capitalista da cidade, davam-lhe sinceros testemunhos de consideração. Em Lisboa não conhecia ninguém, e andara no baile da marqueza de Ílhavo tão só e desamparada como se não fosse irmã e tia dos Rothschilds de Coimbra.
-- Tudo isso é muito bom, oppunha a velha ás reflexões de Salvador Lopes, mas eu prefiro a nossa Coimbra a esta Babylonia. Os lisboetas não cuidam senão de deslumbrar os outros. Muita despeza, muito apparato, muito luxo, e mais nada. Sentimentos de amizade, quem os procurar na corte vae perdido.
-- Também a gente, contestava Salvador Lopes, vem aqui divertir-se e não anda a buscar amigos. Lisboa é como todas as grandes cidades. Parece mais egoísta que a província porque tem frequentes occasiões de distracção, mas póde acreditar que a minha admiração é natural. Nos paizes estrangeiros não se dão bailes melhores que o da marqueza.
-- Pois sim. Eu não quero contradizel-o, porém desde que cheguei a Lisboa, ainda não deixou de me lembrar o provérbio : Por fora cordas de viola; por dentro pão bolorento.
-- Minha tia, disse D. Anna levantando os olhos da meza onde os fixara desde o principio do almoço, póde ter razão ; repare entretanto que em toda a parte ha pão bolorento. E não é do melhor o de Coimbra!
-- Sem dúvida, confirmou Henrique. As grandes cidades têm virtudes e têm defeitos como o resto do mundo, e d'estes o maior è o enfraquecimento do caracter dos indivíduos pelo viver ocioso e frívolo. Nas terras pequenas o mal è outro, mas não deixa de ser mal.
-- Lá como quizer, insistiu a tia. Eu não disputo com o sr. Henrique, mas fico na minha. Não gosto de Lisboa. Não me chama para aqui o coração, nem terei alegria em quanto não vir, ao chegar de manhã ás janellas do meu quarto, a quinta de Santa Cruz.
Cessou a conversação por terem de sair Henrique de Mello o Salvador Lopes a tratarem dos negócios da caza, porém a boa velha ainda ficou á meza a curtir saudades de Coimbra e a vingar-se da indifferença com que na capital a tinham visto passar no baile da marqueza de Ílhavo. Nem lhe gabaram sequer os diamantes com que Manuel de Oliveira e depois Salvador Lopes annualmente a haviam enriquecido nos dias festivos da familia ! D. Anna porém desde que a deixaram só com a tia, alongara o corpo na cadeira, e cubrindo as faces com ambas as mãos ficara pensando na conversação de D. Christina com Henrique de Mello, e na audácia com que ao sair do baile lhe replicara a irmã de Álvaro de Araújo.
Não se enfadou a bondosa velha com o silencio lethargico de D. Anna, mas observando que não lhe respondia, saiu mui tranquilla para o seu quarto. O ruído da cadeira e o abrir e fechar da porta despertaram a mulher de Salvador Lopes. Levantou-se da mesa e foi á sala principal da casa buscar um livro. Entrava pela porta interior quando na que lhe ficava defronte assomou D. Christina de Araújo. Pararam as duas formosas rivaes, obedecendo á suspensão do inesperado encontro, e como se fora chegada a hora de combate, mediram-se com olhos chammejantes de ciúme. Foi momentânea e quasi imperceptível esta scena, e cada qual a soube explicar logo com a destreza innata em que primam as mulheres nos mais repentinos lances.
-- Isto é que se chama fortuna ! exclamou D. Christina sorrindo. Encontrei-te quando procurava criado que te levasse o recado.
-- É verdade, respondeu D. Anna abraçando-a e beijando-a. Ninguém me disse nada, e por isso fiquei admirada de te ver entrar de repente.
-- Eu cheguei agora mesmo. Vinha conversar comtigo, mas vê lá ; se tens de sair, não mudes de resolução por minha causa. Em Lisboa não se passam dias dentro de casa.
-- Passo eu o de hoje. Fiquei bastante cançada do baile e resolvi não sair senão á noite para ouvir o Fiori e a Gresti no Macbeth. Meu homem e Henrique de Mello foram tratar de negócios; minha tia recolheu-se ao quarto na forma de costume ; e eu vinha procurar um livro para me distrair.
-- Pois então farei eu de livro, respondeu D. Christina sentando-se e vendo com prazer que acertara com o momento mais opportuno para o seu intento. Nós também lemos uns nos outros. Então em mim todos sabem ler. Não sou disfarçada. Conhecem-me logo na cara o que está no coração.
-- Generosa qualidade é essa, volveu D. Anna. Felizes os que em tão mimoso rosto puderem ler sentimentos de estremado affecto !
-- Felizes é de mais, minha boa Annica. Não tenho coração para tanta gente. Se eu puder preparar e manter a felicidade de um só homem, já não farei pouco.
-- Eu disse felizes porque não alludia senão aos sentimentos de amizade íntimaa. Amor ha um na vida; e muitas vezes não chega para elle a existência inteira. Tu ainda o não experimentaste, mas ha de chegar a tua hora, e então verás.
-- E quem te diz que não chegou já? replicou D. Christina com tão risonho aspecto de ventura que obrigou D. Anna a empallidecer. Pois não lês no meu semblante a agitação que me commove?
-- Pareces-me animada e contente, observou D. Anna com certo receio, mas eu attribuia a mudança ao prazer de estares em Lisboa, cercada de parentes e acolhida por todos com a distincção que tu mereces.
-- Pois enganaste-te. Lisboa nâo me conquista; as attenções d'esta gente valem pouco.AÂs minhas tias e primas têm mil parentas como eu; recebem a todas com grande benevolência, e não passam d'ahi. O meu coração não se paga de trivialidades. Quer mais...
-- E de tudo é digno, interrompeu D. Anna.
-- Olha, Annica. Deixemo-nos de cumprimentos. Eu vim cá para te provar até que ponto sou franca e leal. Quero-te dizer a verdade inteira, e peço-te franqueza egual á minha.
-- Falla, Christina. Somos amigas ha muitos annos, e bem sabes que não ha coração mais sincero que o meu.
-- Bem sei e por isso vim ter comtigo. Escuta-me com attenção. Eu amo profundamente um homem que por todas as qualidades pessoaes é digno de ser amado, e cujas circunstancias são análogas á posição social da minha família. Este amor é antigo e violento, porém a força da minha vontade e a consciência dos meus deveres são muito mais vigorosos, e por isso lhe neutralisaram os ímpetos e o encerraram por longo tempo no mais sumido recanto do meu coração. Não o sabia elle. Não o suspeitavas tu. Não o suppunha ninguém. Esse homem estava destinado a uma senhora, tão digna, tão prendada pela natureza e pela educação, e tão estimada por mim, que nunca me resolveria a disputar-lh'o. Variaram porém as círcunstâncias. A noiva casou com outro homem, e quebrou os laços amorosos que a prendiam antes. Não se separaram ; ficaram amigos; vivem na maior intimidade; e nem um nem outro são capazes de acção que os possa envergonhar. Talvez se amem ainda, ou cuidem que se amam -- o que é bem mais provável -- mas acima d'esses affectos, imaginários ou reaes, estão as leis divinas e humanas, os preceitos da moral e a opinião da sociedade, que todos condemnam similhante amor. Cessaram pois os motivos do meu silêncio e da longa resignação em que tenho vivido. Agora somos ambos livres.
-- São ambos solteiros, interrompeu D. Anna sem grande commoção visível; ninguém lhes póde ralhar, nem ha prejuízo de terceiro, como tu dizias hontem á saída do baile.
-- Advinhaste! exclamou Christina entre alegre e assustada. É verdade. Amo Henrique de Mello. Acabava de lhe revelar o meu segredo quando tu nos chamaste para sairmos. Foi quasi malévola a resposta que me recordas agora. Não m'o leves a mal. N'aquela occasião offendeu-me que viesses interromper o mais solemne momento da minha vida. Arrependi-me depois, e sollicito hoje a tua indulgência.
-- Não tenho que te desculpar, Christina, respondeu a amargurada mulher de Salvador Lopes, occultando a estranha perturbação que a salteara. Tu disseste a verdade. Não posso, nem devo, nem quero, negal-a. Sois ambos livres. Eu è que o não sou.
-- Mas, Annica, tu não vês que Henrique de Mello ao teu lado é obstáculo á ventura de todos? Persistindo em ligal-o á tua vida conjugal, impedes a minha felicidade e a d'elle...
-- A felicidade d'elle?! acudiu D. Anna com espanto.
-- Sim ; a felicidade d'elle. Tu nãoo podes ser mulher de Henrique de Mello, e todavia, sem faltar aos teus deveres de casada e defendida pela conhecida austeridade da tua virtude, vives como quando eras sua noiva; vaes apurando n'aquelle excellente e brioso coração os quilates do amor mais ardente e mais desgraçado ; e cada dia aspiras, sem cuidar, o próprio veneno que lhe estás propinando. Teu marido não póde ser feliz. Tu de certo não o és. Henrique também não. E agora que lhe não é occulto o meu amor, porque não has de espontaneamente libertar do captiveiro o homem que já te não póde pertencer? Não me resignei eu, quando Henrique de Mello era teu noivo ? Chegou hoje a tua vez.
-- Não tenho que resignar-me, Christina, replicou melancholica e gravemente D. Anna. Todos os meus sacrifícios estão feitos. Sou mulher de Salvador Lopes á face dos altares, na sociedade, e na minha consciência. Henrique de Mello não vive captivo. É, como foi sempre, amigo d'esta casa e quasi pessoa de família. Tu bem o sabes. Que o ames profundamente é natural. Ninguém mais digno de ser amado, porém não te illudas; eu nunca fui obstáculo á realisação dos teus desejos, e mais, nem eu, nem Henrique de Mello, ignorávamos o segredo que tu lhe revelaste hontem...
-- Elle sabe-o e despreza-me. Não é assim? interrompeu Christina levantando-se com o ímpeto do melindre offendido.
-- Não te disse que Henrique de Mello te desprezava, continuou D. Anna com affavel serenidade, nem supponho que te possa desprezar nenhum homem. Só te disse que lhe não era occulto o teu amor.
-- Perdoa-me. Eu nem sei o que digo, mas pela vehemencia do meu sentimento podes medir a intensidade d'elle. Depende de ti a minha sorte. Em quanto viver ao teu lado, Henrique nunca será de outra mulher, e succumbirá á cruel amargura da sua situação. Teu marido ha de ser victima de affrontosas calumnias. Da minha desventura não fallo, porque a tua ainda redobrará quando pelo imperio das circunstancias estiver consumada a desgraça de nós todos.
-- E que lhe hei de fazer? Henrique vive comnosco por convite de meu marido e a rogos de meu pobre pae nos últimos momentos da vida. Ligam-nos estes laços que a saudosa memória de D. Barbara fortaleceu e estreitou. Os outros romperam-se pela força do dever, e não podem renovar-se. Henrique é livre como tu, mas eu não disponho dos seus affectos, nem procuro influir n'elles.
-- Porém não o affastas de ti...!
-- E como posso eu affastal-o? Queres que o convide a sair de nossa casa? Com que pretexto? Se a minha presença prepondera por tal forma nos seus sentimentos, não devo recear que a mínima explicação a tal respeito aggrave o mal em vez de o remediar? E com que direito irá entremetter-se a mulher de Salvador Lopes nos amores de Henrique de Mello?
-- Com o direito de amizade tão intima, e pelo interesse de harmonisar com as leis da sociedade a existência d'elle, a tua e a de teu marido.
-- Mas eu não posso fallar de amores a Henrique, insistiu D. Anna com verdadeira candura. É paralello o nosso viver, e por isso mesmo não ha ponto em que se reúna.
-- Bem, concluiu D. Chrístina dispondo-se para sair. Tu preferes a luta apezar da sociedade que já te condemna. Pois lutaremos. Eu quiz invocar em meu favor a nobreza de sentimentos que sempre te conheci, a sensibilidade da tua alma, o decoro de casada, e até a amizade que tens a Henrique. Entendi que a lealdade me obrigava a abrir-te o meu coração e a não te occultar o que se está passando n'elle. Respondeste-me com a frieza da indifferença, e com a resolução inabalável de não te separares de Henrique. O meu dever está cumprido. Veremos se o mundo julga que a mulher de Salvador Lopes não falta ao que deve a seu marido, malbaratando a reputação para manter eternamente captivo o frustrado noivo.
-- Cega-te a paixão, Christina. Ameaças quem não póde defender-se, e declaras guerra a quem não sairá a pelejar comtigo ! Tens sido testemunha da minha vida inteira. Sabes quão pura é. Pois será sempre assim. Da tranquillidade da consciência tirarei vigor para resistir ás maldades alheias.
Ouviu D. Christina estas palavras quando sem despedir-se de D. Anna se aproximava da porta por onde entrara. Ao abril-a, porém, voltou-se para a filha de Manuel de Oliveira, e como lhe notasse a pallidez do rosto, o espanto do olhar, e a contracção das feições, caminhou de novo para ella, e travando-lhe do braço exclamou impetuosamente :
-- Alvoroçaram-te as minhas palavras? Não é verdade? Tinhas planeado viver socegada e feliz entre o baldado noivo e o excellente homem que vos salvou a todos da miséria? Estranhas de certo agora que venha a minha paixão por Henrique perturbar-te os cálculos e affrontar o teu desabrido egoísmo...!
-- O meu desabrido egoismo?! repetiu profundamente maguada a mulher de Salvador Lopes.
-- O teu egoismo, sim; bradou Christina sem lhe largar o braço. Nem ha no teu coração outro sentimento. Por egoismo cazaste com Salvador Lopes. Viste a pobreza e não tiveste ânimo de a encarar de face. Por egoismo conservaste na tua própria caza Henrique de Mello, condemnando-o a penar sem esperança. Solteira, sacrificaste o amor à riqueza; cazada, nao quizeste immolar ao dever as carinhosas adorações da véspera...
-- Christina! Christina ! murmurou D. Anna atribulada por tamanha audácia e dorida de tão injustas aceitações.
-- Escuta-me. Padeci muitos annos em silencio. Quero agora dizer-te a verdade inteira. Por egoísmo permitiste que a maledicência andasse mofando da confiança de teu marido. Não te envergonhaste da sua ridícula situação. Por egoismo tens guardado a fidelidade conjugal. É falsa a tua virtude. São fingidos os teus affectos. Tens no sangue a indifferença descuidosa de teu pae, e a frieza britannica de tua mãe. Nem amas Henrique de Mello, nem mereces o seu amor. Cuidei que no teu ânimo preponderasse a consciência do dever, e o remorso de prejudicar uma rapariga que nunca te desgostou e que reprimiu em teu obséquio os mais violentos impulsos do coração. Enganei-me. Pois bem. Aos teus disfarces arteiros opporei a singela franqueza dos meus sentimentos, e ao teu viver mysterioso e suspeito a candura do amor e a leal innocencia da pureza. Julgará de nós, primeiro o mundo conforme as suas leis, e depois em última e suprema instância Henrique de Mello que tu arrastas por toda a parte amarrado ao carro triumpbal da tua vaidade, e que eu adoro para lhe consagrar a minha vida toda, e quebrando-lhe o encanto em que o trazes enfeitiçado, ser escrava d'elle para sempre. Adeus, concluiu Christina largando o braço de D. Anna e repellindo-a de si. A donzella tímida e honesta não cederá nunca mais o passo á esposa já conhecida na sociedade pela mulher de dois maridos.
Abrasada em cólera e amor, D. Christína de Araújo saiu da sala precipitadamente. D. Anna trémula de excitação nervosa, humilhada e quasi ensandecida por tão acerbas injúrias, ficou largo espaço de tempo a olhar para a porta por onde desapparecéra a irmã do menino Álvaro. Figurava-se-lhe horroroso pezadello quanto acabara de ouvir, e não se recobrava do assombro em que a lançara o inesperado arrojo de D. Christina. Faltou-lhe Deus com o suave lenitivo das lágrimas, e quando succumbindo a tamanha dôr, caiu desfallecida no sophá que lhe ficava perto, já lhe annunciavam grave enfermidade os calafrios precursores da febre. Não era para similhantes abalos a compleição débil de D. Anna de Oliveira.
Entrou por acaso na sala a tia que divagava pela caza toda, sempre saudosa do quarto que deixara em Coimbra, e vendo a sobrinha com manifestos signaes de padecimento, aproximou-se d'ella e perguntou-lhe carinhosamente o que tinha.
-- Não tenho nada, minha boa tia, respondeu D. Anna recuperando o conhecimento da sua situação e resolvendo occultal-a por todos os modos.
-- Não tens nada, replicou a tia tomando-lhe as mãos, e estás a arder em febre? -- É verdade... Não estou boa, não... Doe-me a cabeça muito, e sinto extraordinário calor... Não sei o que foi... Isto não è nada.
-- Ah! Lisboa, Lisboa! Alguma nos ha de acontecer por cá ! resmungou a tia. Ahi estás tu agora doente ! E longe da tua terra, da nossa boa caza, e dos bons médicos de Coimbra ! Vamos ; vamos para o teu quarto. Esta sala é muito fria. Apanhaste algum ar.
-- Nem foi outra coisa, minha tia. Não se afflija. Eu raras vezes tenho estado doente.
-- Peor; muito peor. Adoecem com maior gravidade sempre as pessoas saudáveis. Jesus! Que febrão! Dá cá o braço, minha filha. Anda para o teu quarto.
-- Pois sim; vamos lá, disse D. Anna submissamente forcejando por se levantar e cedendo de novo á prostração em que ficara.
-- Como tu estás, minha pobre menina! acudiu a tia ajudando-a a erguer-se, amparando-a para poder caminhar, e amaldiçoando sempre a capital.
Chamado a toda a pressa o doutor Silva, afamado clínico de Lisboa, disse á doente que lhe passaria com brevidade aquelle incommodo, e na saida concordou com a tia em que todos os symptomas prognosticavam gravidade. Regressavam então a caza Salvador Lopes e Henrique, e do próprio medico receberam as primeiras novas da moléstia. Salvador correu logo ao quarto de de D. Anna, informou-se do padecimento d'ella, e voltou á sala a buscar o filho de D. Barbara.
--A sr.a D. Anna, disse mui socegadamente Henrique de Mello depois de tomar o pulso á enferma e de lhe ler no rosto a afflicção que a consumia, tem muita febre, mas qualquer diagnostico seria agora pouco acertado. Veremos. Pode estar boa amanhã.
-- Mas não lhe manda dar nada? perguntou a tia para quem o saber dos médicos valia pela quantidade dos medicamentos. Aquelle doutor Silva não quiz receitar. Estes médicos de Lisboa...
-- São excellentes, respondeu Henrique; estudam muito e progridem com a sciencia. Não tenha receio, minha senhora.
-- Se o sr. Henrique de Mello a quizesse tratar... acudiu Salvador Lopes.
-- Eu já não sou medico, e o doutor Silva deve inspirar-lhes confiança. Serei porém enfermeiro, acerescentou Hemrique para dissipar a inquietação que se manifestava na physionomia de D. Anna, e fiscalisarei a execução do tratamento ordenado pelo assistente. Agora, minha senhora, tem de me obedecer em quanto estiver enferma.
-- Farei o que me indicar, respondeu D. Anna em voz sumida e fraca.
-- Tenha paciencia, sr. Henrique de Mello, ajuntou Salvador Lopes. O doutor Silva é dos melhores médicos de Portugal, mas só na sua dedicação confio. Que venha todos os dias, mas sem o consentimento do sr. Henrique não se administra nenhum remédio a minha mulher.
-- É verdade, acudiu a tia, e olhe que se me não tivesse assustado tanto, nem mandaria chamar o Silva. Não me occorreu que tínhamos de caza o medico.
Apesar dos cuidados simultâneos do doutor Silva e de Henrique de Mello, da pontualidade com que a tia cumprira as indicações dos facultativos, das attenções com que Salvador Lopes se empenhara em manifestar a D. Anna a profunda e casta affeição que lhe consagrava, e do salutar effeito de todas estas consoladoras circunstâncias, a febre resistiu por mais de quinze dias aos medicamentos empregados para debellal-a, e ao principiar da convalescença a filha de Manuel de Oliveira estava quasi sem forças. Felizmente era n'aquella quadra final do inverno em que Lisboa se enfeita gostosa com os dourados raios do sol e, mitigado o rigor do frio pela proximidade da primavera, goza os mais formosos dias e as noites mais serenas da Europa.
O doutor Silva aconselhou ao cabo de duas semanas uma jornada ao campo, e com approvação de Henrique de Mello partiu a família toda para Cintra, depois de mandarem bilhetes de agradecimento e despedida a quantas pessoas diariamente iam procurar novas de D. Anna, e inscrever-se no caderno em que o guarda portão registava a sollicitude de cada um. Em Cintra permaneceram dois mezes, durante os quaes D. Anna foi readquirindo as forças e completando o progressivo restabelecimento apesar da inexplicável tristeza em que ficara, e que nenhuma distracção afugentava. Congregavam-se todos ás horas da comida e do passeio, mas n'estas reuniões D. Anna ou não fallava ou respondia por monosyllabos ; depois a desconsolada senhora encerrava-se no quarto e não apparecia mais. Attribuira Salvador Lopes á doença a mudança do caracter affavel e social da mulher. Henrique sabia que a moléstia procedera de violentos abalos nervosos, mas não atinava com a causa que os provocara, e como a enferma tivesse porfiado na convalescença em evitar conversações particulares com qualquer dos membros da família, não tivera occasiãò de indagar a verdade. Perguntara aos criados, se D. Anna sairá de caza ou se viera alguém visital-a, e responderam-lhe negativamente porque nenhum d'elles vira entrar a irmã de Álvaro de Araújo. A tia, essa affirmava que fora mau olhado que a sobrinha apanhara no baile, obra de alguma d'aquellas fidalgas vehas que logo lhe tinham parecido bruxas, e sustentava que só os ares de Coimbra restituiriam a D. Anna a antiga alegria, e a ella, já se sabe, o magnífico aposento de cuja falta não podia consolar-se.
Escrevera logo D. Christina longa e artificiosa carta a Henrique de Mello, narrando-lhe, com as variantes indispensáveis para o seu fim, quanto passara com a mulher de Salvador Lopes, e concluindo a amorosa declaração que principiara no baile. A carta porém entregue a um criado na ocasião em que a repentina enfermidade assustara a todos, ficou na meza do quarto de Henrique e confumdiu-se logo com outros papeis que n'esse mesmo dia a occultaram, e nos quaes ninguém poz mão antes da partida para Cintra.
Atormentava-se Christina com a falta de resposta de Henrique; nem sabia interpretar o silencio descortez de tão primoroso cavalheiro. Occorria-lhe que talvez não recebesse a carta. Pensava depois que demorar a resposta não era desengano e ate podia ser esperança de bom resultado. E regeitando uma conjectura para formar outra ainda menos provável, não acertava com a verdade, nem attentava em plano determinado e seguro. Não podia voltar a casa de D. Anna depois do que se passara entre ambas. Não fiava do menino Álvaro nenhuma indagação sizuda, e não queria ainda relaxar ao braço secular do irmão a família de Salvador Lopes. Assim decorreram vinte dias sem que D. Chrístina quizesse sair de caza ou receber qualquer visita. A final mandou perguntar por um gallego, se a fAmilia Oliveira recebia á noite, e recommendou que fallasse unicamente ao guarda-portão e não lhe dissesse da parte de quem ia. O gailego voltou com a resposta de que tinham partido todos para Cintra.
Ahi recresceu o despeito da apaixonada donzella. Ignorando que D. Anna tivesse adoecido, tomou por fuga planeada por ella a ida para Cintra com o marido e com Henrique de Mello. Era o meio mais rápido de cortar á nascença as relações amorosas de Christina, e de captivar o filho de D. Barbara affastando-o do bulício da corte e dos prazeres da capital, e sujeitando-o á acção directa e quotidiana dos seus encantos n'aquelle ameno sítio em que as aguas murmuram amores, e as árvores offerecem ás conversações affectuosas a suavidade da sombra e o abrigo contra ouvidos e olhos curiosos e indiscretos. No desvairar da paixão parecia-lhe vêr D. Anna languidamente encostada ao braço de Hanrique sumir-se com elle na espessura dos bosques, recordar-lhe na meiguice dos olhos verde negros e formosamente rasgados as castas delícias do antigo viver, estimular-lhe a sensibilidade a poder de silenciosos carinhos, e caminharem assim ambos sempre, sempre, atè não poder avistal-os mais, inebriados de paixão e aspirando voluptuosamente os agrestes perfumes do arvoredo na muda concentração do espírito que tão eloquentemente falla a certos corações. E atormentada pela visão cruel, a irmã de Álvaro ardia em desatinada cólera que a corrosiva peçonha do ciúme ia aggravando rapidamente.
Christina em contínuo desassocego sentára-se mil vezes; levantára-se outras tantas; abrira a janella do quarto que dava para a rua da Horta Secca, e tornara logo a cerral-a ; tentara escrever de novo a Henrique porém a mão convulsa não chegara a terminar a primeira linha. E a visão da felicidade de D. Anna a perseguil-a incessantemente, a despertar-lhe na idéa os mais torpes instinctos de vingança, e a tolher-lhe ao mesmo tempo a lucidez que traça o plano, e a constância que o executa com firmeza. Estava no ancioso penar da alma que a paixão allucinou a força de intensidade, e que a dôr atribulou e embruteceu. Ouviu então passos no corredor, e abrindo a porta com júbilo de poder fugir de si própria, deu com o menino Álvaro que recolhia a caza depois de ter visitado quatro ou cinco tias, já costumadas á incessante e irónica maledicência do rapaz, e duas ou três primas que nem lhe apreciavam os epigrammas nem prestavam grande attenção aos gracejos viperinos com que apimentava as conversações.
-- Ainda bem que vieste, Álvaro ! exclamou D. Christina apenas avistou o irmão. Não podias chegar em melhor occasião ! Tinha necessidade de fallar comtigo. Já não podia mais !
-- Então que houve por cá, minha boa irmã? Tens as faces afogueadas, os cabellos em desordem... Grande novidade por certo... !
-- Pois enganas-te. É que não gosto de estar só, encerrada n'este quarto. Já me aborrece a estreiteza das cazas de Lisboa. Aqui, ou salas de palácio ou cellas de freira! Não ha meio termo. Tomára-me eu outra vez em Coimbra.
-- Já, minha querida mana? respondeu alegremente o menino Álvaro entrando no quarto, e sentando-se. Com que então já não gostas de Lisboa? Depressa te enfastiaste ! Ora anda ; dize ; falla com franqueza. O mal não veio de estares fechada em caza. Se não tens saido ha vinte dias, foi muito por tua vontade. O negócio é outro. Vão-se-te frustrando os planos. Eu bem t'o disse!
-- Ahi vens tu agora pregar-me um sermão! Tu és sempre assim! Quando preciso de ti, em vez de me auxiliares dás-me conselhos!
-- Ah! Tu precisas de mim? Isso é caso de força maior. Queres que te vá buscar o melro que fugiu? Eu sei tudo. Fui agora a caza de Salvador Lopes, e disseram-me que tinham ido todos com Henrique de Mello para Cintra, e que se demoravam porque viera ordem para ir amanhã o piano. Aposto que também vamos para Cintra...?
-- Pois se apostasses, perdias.
-- É que tu não tens mesmo juizinho nenhum. Andas a correr atraz do homem que te não ama, e desprezas outros que depois não te vão querer. Nem consideras que afinal virás a ser quem represente a nossa família e possua todos os bens. Eu já nao cazo. Basta-me o exemplo de Salvador Lopes, que não è muito para animar. E tu podes cazar optimamente na corte ou na província, mas nota que o peor casamento será, agora e sempre, com Henrique de Mello.
-- Não sei porque, replicou D. Christina. É rico, nobre, honrado, intelligente e instruído...
-- E doido de amores por outra, e implicado em todos os negócios da caza Oliveira que pode amanhã quebrar, deixando-o pobre ! Olha que eu digo isto, acerescentou maliciosamente Álvaro de Araújo, por tu me fallares do assumpto. Tinha jurado de nunca mais conversar comtigo a respeito do teu precioso Henrique, e da tua boa amiga D. Anna. Estou cansado de ouvir continuadas e severas reprehensões.
-- Agora que elles estão longe, escolheste-me para victima das tuas malícias ! Yalha-te Deus, Álvaro ! Quando me convinha viver em boa paz com os Oliveiras e com Henrique, não havia amargura que não inventasses contra elles. Agora que eu os desprezo a todos, e que estou resolvida a arrancar-lhes as máscaras perante a sociedade de Lisboa, vejo-te quasi nos arraiaes contrários e submisso a todos os preceitos de cortezia e delicadeza ! Não ha outro homem assim !
-- Por esta não esperava eu! Só dizia a respeito d'aquella gente o mesmo que tu já vaes dando a entender, e era imprudente e malévolo. Agora que me fiz bonacheirão e amável, também te desagrado. Ninguém sabe o que tu queres !
-- Sei eu, respondeu Christina com firmeza.
-- E eu também sei, acudiu Álvaro manifestando em sonora gargalhada o contentamento de si próprio. Queres o meu auxílio para te vingares d'algum dissabor que te causaram, e precisas que vá por essa Lisboa revelar o que tanto me pedias que occultasse. Estou prompto, mas amanhã perdoas as injúrias, collocas-te do lado d'elles contra mim, e accusas-me de maldizente e calumniador.
-- Não brinques, Álvaro. Nem a agitação em que me vês, te causa impressão?
-- Como ignoro a origem do estado em que te encontrei, não posso calcular a gravidade do caso...
-- Não sabias mais quando attribulavas por mil modos a família Oliveira. Pois agora não gastes o tempo em allusões offensivas. É necessário narrar a historia dos amores de Henrique e de D. Anna, o cazamento de Salvador Lopes, e a vida íntima de todos três. Só te recommendo moderação. A maledicência exagerada denota paixão e induz em suspeita. Pela minha parte não fallarei contra Henrique de Mello, porém iremos esta noite a caza da baroneza de Lorvão, e ali tenciono começar a minha campanha contra D. Anna de Oliveira.
-- Pois eu -- Vê tu! Parece que adivinhava ! -- principiei, quasi sem querer, em caza da prima Lucia de Noronha. Tantas perguntas me fez que, evitando referir promenores, fui deixando perceber tudo.
-- E ella?
-- Ella disse-me que já tinha ouvido certas murmurações ; que em verdade não era isenta de reparos a convivência íntima dos três ; mas que lhe custava sempre muito acreditar sem provas boatos relativos a senhoras casadas ou solteiras.
-- Bem. Custa-lhe acreditar boatos sem provas a respeito de senhoras? Pois nós a convenceremos.
-- De certo que não será necessário grande trabalho. Porém no fim de tudo estou sem saber a causa de tão extraordinária mudança. Deixei-te amiga carinhosa de D. Anna ; apaixonada por Henrique ; devota do caracter de Salvador Lopes; benévola com as sandices da tia ; e acauteladíssima de acção ou palavra que pudesse offendel-os. Venho encontrar-te agora fremente de indignação e de cólera contra aquella família toda ! Graves foram sem dúvida as causas de tão rápida transformação ! E tu comprehendes que, não as sabendo eu, não posso auxiliar-te como desejas.
Narrou Christina ao irmão em breves palavras que no baile da marqueza de Ílhavo, andando a passear pelo braço de Henrique nas salas mais despovoadas, vira apparecer de repente a uma das portas Anna de Oliveira, a qual lhe fallára com aspereza própria de ciúme ; que depois esquecendo a offensa e recordando-se unicamente de que se desafrontára com altivez, fora a caza d'ella apagar com explicações sinceras qualquer resentimento e fortalecer mais as relações de amizade em que sempre tinham vivido, e que desejava manter. Referiu então como fora recebida e tratada com azedume e dureza insupportáveis, vendo-se obrigada a responder severa e energicamente e a quebrar todo o trato com similhante mulher.
-- E sabes o que succedeu em seguida? concluiu Christina depois de tão cavilosa narrativa. D. Anna receou que Henrique de Mello preferisse áquelle amor sacrílego, inútil e angustioso, o affecto legítimo e tranquillo de uma rapariga sem mácula e livre de obrigações para com outrem. Fugiu com elle para Cintra de accordo com Salvador Lopes cuja indifferença, a respeito da reputação da mulher e do próprio credito, já me parece inexplicável.
-- Ora ainda bem! A final caiste na rasão! A mim é que nenhuma das pessoas d'aquella caza me illudia nunca. E tu a ralhares, a recommendares-me prudência, e eu a conhecel-os por dentro e por fora ! São azeiteiros e basta. E Henrique de Mello á força de viver com os Oliveiras vae perdendo a fidalguia, e virá a ser homem de tenda como elles, se já o não é ! ...
-- Henrique de Mello anda allucinado, mas ha de desenganar-se. Eu quiz sempre que estivesse da nossa parte a razão, e por isso te supplicava que os não molestasses. Agora, porém, as insolências de D. Anna libertaram-me de ter attenções para com ella, e de guardar silêncio acerca do pacto immoral e indecoroso da filha de Manuel de Oliveira e dos dois homens entre os quaes vive com escândalo da sociedade, dando exemplo funesto a todas as famílias.
-- Admiravelmente, minha querida Christina ! Abriste por fim os olhos, e vaes pelo bom caminho. Conta comigo, exclamou o menino Álvaro esfregando as mãos de contentamento. Isto de ser fidalgo e de ter muitos parentes na corte não é coisa tão indifferente como por ahi julgam os tendeiros ennobrecidos a vapor. Vão experimental-o agora os taes capitalistas.
Continuou por largo espaço de tempo a inexgotavel facúndia de Álvaro de Araújo a vilipendiar a plebe doirada, como elle chamava a quantos se enriqueciam pela indústria e pelo commercio, atè que a irmã conseguiu captivar-lhe a attenção para assumpto mais prático. Ali ficaram então ajustados os projectos de vingança, cujo resultado infallível a alma perversa do mano Christino saboreava já com vivíssimo prazer.
Tinha-se fallado tanto da immensa riqueza de Salvador Lopes e das qualidades elevadas de D. Anna ; a sociedade mais distincta da capital por tal forma se empenhara em obsequiar os Rothschilds de Coimbra; e o caracter affável da filha de Manuel de Oliveira adquirira tão numerosas sympathias, que toda a gente notou a ausência d'estes estimados provincianos e de Henrique de Mello nas festas que se seguiram ao famoso baile da marqueza de Ílhavo. Soube-se então que D. Anna adoecera, e correu Lisboa inteira á rua do Alecrim a informar-se da saúde d'ella, porém não conseguiram vêl-a nem as senhoras da mais elevada cathegoria, nem aquellas -- e eram muitas -- que mais se haviam esmerado em lhe manifestar sentimentos de leal affecto.
Causou espanto reclusão tão impenetrável e absoluta. Curiosa de promenores, a sociedade queixava-se de os ignorar, e cada pessoa a quem se perguntava pela moléstia de D. Anna, encolhia os hombros, abria os braços e ficava muda. Ahi principiaram as conjecturas desfavoráveis mas ninguém se atreveu a revelal-as. Também houve quem desse pela falta de D. Christina, porém o menino Álvaro, apparecendo em toda a parte, annunciou desde logo ás tias e ás primas que a formosa donzella estava padecendo violentas enxaquecas a que era sujeita, mas que em breve a tornariam a ver no theatro e nas festas da capital.
Quando se receberam os bilhetes de despedida de Salvador Lopes e D. Anna, e veio a saber-se que tinham partido para Cintra com Henrique de Mello, foi geral a admiração de que saissem de Lisboa tão precipitadamente e sem verem nenhuma das famílias de quem haviam recebido primorosas finezas. Queixou-se a marqueza de Ílhavo censurando-se a si própria por estar sempre disposta a acolher estas aves de arribação ; e a condessa de Mertola, com quanto lhe parecesse estranho o procedimento de D. Anna, teve de acudir pelos seus amigos de Coimbra, defendendo-os da má vontade que ia manifestando-se contra elles. Era naturalmente benévola a condessa e pouco attreita a maledicências, comtudo nem sempre sabia resistir ás opiniões que lhe andava zumbindo aos ouvidos o enxame de parasitas e vadios, corte indispensável dos poderosos que os desprezam á força de os conhecer, mas que não lhes podem dispensar a companhia. D'esta vez, porém, interveio com tamanha auctoridade que se calaram muitos, e alguns mudaram logo de parecer exaltando as virtudes de D. Ânna e louvando ao mesmo tempo a lealdade da condessa para com as pessoas da sua amizade.
Deu occasião a novas perguntas a presença de D. Christina em caza da baroneza de Lorvão. Senhoras e homens, depois de encarecerem os padecimentos resultantes da enxaqueca, e de festejarem a reapparição da gentil donzella, pediram-lhe novas da família Oliveira indagando a causa da partida repentina para fora da capital. Christina respondeu que tendo estado sempre em caza, nada soubera senão quando Álvaro lhe deu a noticia de que D. Anna se retirara para Cintra, porém ao ouvido das tias e das primas foi dizendo que não era fácil entender aquella família onde de vez em quando se notavam successos extraordinários, principalmente desde que D. Anna estando noiva de Henrique de Mello cazára com Salvador Lopes moribundo e ficara sempre vivendo com o marido e com o namorado. Accrescentava que não tinha a mínima suspeita da virtude de D. Anna, nem Henrique de Mello era capaz de vilanias, porém a opinião geral em Coimbra condemnára a tal ponto similhante viver que já muita gente evitava ter intimidade com elles. Concluiu asseverando que todos attribuiam ao desejo de mudar de terra a viagem de Salvador Lopes e da mulher a Lisboa, pois que em Coimbra chamavam publicamente a D. Anna a mulher dos dois maridos.
Espantavam-se as tias velhas da crença de Christina na virtude de D. Anna, e quando a irmã do menino Álvaro insistia em affirmar a pureza da filha de Manuel de Oliveira, riam-se declarando que muito bem lhe ficava tão prudente e benévola reserva a respeito de pessoa da mesma terra e das relações da sua família. Contavam as primas umas ás outras o caso da mulher dos dois maridos, e discorriam com sagaz malícia a respeito da honradez de Henrique de Mello, da austeridade de D. Anna, e da paciência de Salvador Lopes. Instruídos arteiramente por Álvaro de Araújo, empenharam-se os homens em que lhes revelassem o assumpto d'aquellas confidências tão salgadas de riso, e facilmente conseguiram generalisar a conversação á custa dos Rothschilds de Coimbra e do seu elegante companheiro de viagem. Abre facilmente praça a maledicência.
-- A sr.a marqueza de Ílhavo é que tem razão, exclamava uma senhora casada de cujas amáveis fraquezas ella própria viera a perder a conta. Não se pode abrir a porta a quantas pessoas chegam a Lisboa só por serem ricas e poderosas na sua terra. Eu cá não os visito mais. Quem não respeita as leis do decoro viva a seu gosto, mas não pretenda introduzir-se na sociedade.
-- É que o mundo agora anda descarado de todo, acudia uma viúva de quem a fama referia inauditas travessuras. Vejam com que atrevimento se apresenta na melhor sociedade da corte essa mulher ! Fazes muito bem em não lhe pores os pés em caza !
-- Parece-me excessiva tamanha severidade, dizia a condessa de Mertola. Ainda hontem era das nossas melhores amigas, e já hoje a despediremos de caza como se fora empestada ! Quem sabe se as apparências enganam? Não diz a Christina que D. Anna é virtuosa?
-- Se V. ex.a não havia de apparecer logo com a bandeira da misericórdia, inteiTompeu affavelmente um parasita. É mesmo a bondade em pessoa !
-- Eu sempre desconfiei da tal ricaça de Coimbra, observava uma senhora cujo namorado fora dos mais enthusiásticos admiradores de D. Anna. Quando a encontrei pela primeira vez em caza da sr.a marqueza, não me enganou tamanha seriedade. E ver como ia á missa todos os domingos, e a devoção com que estava na egreja ! Já é hypocrisia !
-- Eu peço perdão a v. ex.a, dizia o menino Álvaro, mas realmente ella pode ser peccadora e devota ao mesmo tempo. Pois não se conta da condessa du Barry uma história similhante? Estava resando com grande recolhimento de espírito na capella de Versailles quando acertou de passar um cortezão, e como lhe manifestasse espanto de a ver tão devota, respondeu a condessa que por fazer alguns peccados não era força que os fizesse todos !
-- Meu irmão segue os princípios da maior parte dos homens, interveiu Christina depois de socegada a hilaridade que produzira a anedocta narrada por Álvaro ; em se dizendo uma coisa contra qualquer senhora, é logo verdade. Eu sustento que D. Anna nunca faltou aos seus deveres, com quanto a posição d'ella na sociedade seja com effeito extremamente equívoca.
-- Eu já te disse, replicou uma das tias de Christina, que te fica bem defenderes D. Anna, mas olha que não te ficava peor affastares-te d'ella. São muito más companhias, essas, para raparigas solteiras.
Fingiu-se envergonhada da reprehensão a astuta Christina e não replicou. Entretanto foram progredindo as censuras ao viver irregular dos Oliveiras, e manifestando-se benévola tolerância para com Henrique de Mello por ser homem e inteiramente livre das obrigações conjugaes que a mulher de Salvador parecia não respeitar. N'esta murmuração de sala que D. Christina excitava acudindo pela rival ausente, e que o menino Álvaro renovava a cada minuto com mil infamantes aleives, foi severamente austera a devassidão, e brandíssima a virtude nos impulsos benévolos da caridade. É sempre assim!
Por D. Anna quebraram lanças alguns homens de boa educação e recto juízo, a condessa de Mertola mui avessa a maledicências, e certas senhoras acostumadas a protestar contra as opiniões levianas e indiscretas da sociedade. Gente escolhida, mas pouco numerosa ! Arrolaram-se porém no bando contáario as cúmplices de faltas iguaes ás que se condemnavam ali; as elegantes de quem D. Anna viera, embora temporariamente, offuscar o brilho; todas as beatas que passaram a vida na sordidez dos amores profanos antes de offerecerem a Deus, no desfolhado outomno da existência, o arrependimento e pureza a que o mundo as condemnára ; os satélites dedicados d'esses astros sociaes; e a turba ignara que pelo pensar dos grandes e poderosos affere o seu parecer acerca de todos e a respeito de tudo.
-- Pois, minhas senhoras, disse um cavalheiro já idoso e mui respeitado que estivera jogando o boston, têm V. ex.as fallado talvez com minguada caridade, mas de certo com grande philosopbia. Eu também sou contra os escândalos e corrupções, mas tenho para mim que o criminoso é instrumento da sociedade. A sociedade prepara os crimes ; o criminoso executa-os, despenhando-se com lamentável cegueira no precipicio que nós lhe cavamos aos pés. Lastimo o infeliz, mas não me atrevo a amaldiçoal-o, porque também é nossa a culpa d'elle. Com melhores exemplos teria procedido mui diversamente. E todavia não dou por averiguado o que se diz contra D. Anna de Oliveira. Se a gente acreditasse todas as calumnias... ! Se desse ouvidos a todos os maldizentes...! Nem v. ex.as imaginam o que se diz por esse pelo mundo... !
Calou nos ânimos de tão implacável areópago a verberante allusão doestas palavras, e os austeros juizes de D. Anna buscaram assumpto menos perigoso para passarem as restantes horas do serão. Ao sair porém da casa da baroneza cada convidado recordou as informações obtidas a respeito da família Oliveira, e no dia seguinte propagou desapiedadamente em successivas confidencias o descrédito de D. Anna e de Salvador Lopes, até que divulgando-se, já muito exagerada, a história dos amores da filha do Rothschild de Coimbra com Henrique de Mello e a ignominiosa condescendência do marido, veio a ser quasi geral a indignação contra elles. Vendo as chammas da calumnia abrasar Lisboa inteira e estender-se em línguas de fogo até á formosa Cintra, sentiram D. Christina e o menino Álvaro o prazer de Nero ao contemplar o incêndio de Roma. Deram ambos por bem principiada a obra da iniquidade, e resolveram tomar agora mais calorosamente a defesa das suas próprias victimas. Era o melhor meio de manter o effeito produzido na sociedade pela interpretação aleivosa das acções de D. Anna e do marido.
Viviam entretanto mui descuidosamente em Cintra Salvador Lopes e os seus companheiros de viagem, visitando ora uma ora outra quinta d'aquelle bemfadado sítio, e aproveitando a suave temperatura de tantos dias formosíssimos para subirem á Pena, devassarem os mais affastados recantos da serra, passear até Collares, e irem admirar em Mafra a sombria magnificência do Escorial portuguez, e o discernimento com que o senhor rei D. João V deixava o reino sem estradas, e dispendia os thesouros da America e da Ásia em edificar palácios para monges e em obter a peso de oiro uma espécie de sacro collegio de principaes e monsenhores que servissem de auctorisada corte ao novo patriarcha de Lisboa.
Desvelavam-se Henrique de Mello e Salvador Lopes em combater a continuada tristeza de D. Anna, e a tia andava mais satisfeita por lhe parecer quanto avistava muito inferior ás bellezas da sua adorada Coimbra. D. Anna accedia a todos os projectos de passeio e divertimento, mas era evidente que se o corpo accompanhava a família nas digressões quotidianas, o espírito divagava por outras regiões, e nem apreciava a formosura d'aquelles paragens, nem attentava no trabalho com que a mão do homem se esmerara em matizar artisticamente a obra da natureza. Estava completa a convalescença physica. Subsistia porém a enfermidade moral. Nem podiam cural-a as diligências da família, porque o silêncio e concentração, pertinazmente seguidos por D. Anna, obstavam a todas as tentativas para descobrir as causas de similhante padecimento.
Nenhum dos viajantes recebera noticias de Lisboa. Escreviam a Salvador Lopes os banqueiros capitalistas acerca dos negócios d'elle, mas não tratavam de outros assumptos. A Henrique de Mello iam cartas de um condiscípulo, professor de mathematica e affastado da sociedade elegante, o qual não tinha notícia dos mexericos de D. Christina, das machinações de Álvaro de Araojo e da mudança dos sentimentos relativos á família Oliveira na alta sociedade da corte. Nos primeiros dias de residência em Cintra trouxeram á mulher de Salvador uma carta da condessa de Mertola, na qual a amável fidalga se queixava da inesperada ausência d'ella e lhe pedia novas da sua saúde. Respondeu-lhe D. Anna quando foi recobrando o vigor, e não teve depois nenhuma communicaçSo com a sociedade da capital. Agradava a todos muito a plácida solidão de Cintra, e ninguém lastimava a falta de notícias de Lisboa.
Occorreu a Henrique de Mello que os passeios a cavallo poderiam distrair D. Anna. Principiou a sair só todas as manhas, e como ao regressar encontrasse muitas vezes já reunida no pateo da hospedaria do Victor a família inteira, aproveitou o ensejo para propor este aprasível recreio. D. Anna olhou para Henrique com extraordinária viveza, sorriu-se prasenteira, caminhou dois passos como quem acolhia com júbilo a lembrança do passeio, mas de repente deixou cair os braços, abaixou os olhos e murmurou com voz enfraquecida a desculpa de lhe faltar ainda o vigor necessário para montar a cavallo. Fulgira radiante no seu espírito a recordação do passado, a lembrança dos passeios no campo de Coimbra ao lado de Henrique de Mello, e a suave reminiscência dos seus dias de noivado. Mas a promettida esposa do filho de D. Barbara era mulher de Salvador Lopes. Tinham passado para não voltarem mais aquelles deliciosos tempos. Agora occultava-se nas densas trevas do dever o invencível amor de D. Anna, e quando atravez das fendas do coração parecia querer brilhar de novo, erguia-se austera a consciência a manter em perpétuo eclipse a fagueira luz do affecto que a filha de Manuel de Oliveira offerecéra em dedicado holocausto ao amor paterno, e de que a religião e a sociedade haviam registado solemnemente a completa e leal renúncia.
Tornou-se de repente chuvoso e desabrido o tempo. Não era conveniente prolongar a residência em Cintra onde teriam de passar semanas e semanas encerrados na hospedaria, sem nenhuma das distracções a que estavam acostumados, e com risco de se aggravar a melancholia de D. Anna. Determinaram pois regressar a Lisboa contra o parecer da tia, sempre adversa á gente da capital e propheticamente receosa dos seus embustes e maldades, observações de que entre si mofavam Salvador Lopes e Henrique, mais incrédulos que os troianos á voz, em verdade pouco respeitável, de tão inepta Cassandra.
Constou logo em Lisboa que tinha chegado de Cintra D. Anna Oliveira, e vieram visital-a algumas senhoras que não acreditavam nas calumnias espalhadas contra ella, e outras que tendo propagado os aleives inventados por Christina e pelo menino Álvaro, resolveram depois não quebrar relações que lhes podiam vir a ser úteis em qualquer circumstância. Nos protestos exageradamente amigáveis destas boas creaturas, na incessante segurança de que sempre as encontraria dedicadas e fieis, e na affectação de sentimentos que por muito manifestados já não careciam de porfiosa renovação, poderia D. Anna ter descoberto symptomas das intrigas urdidas em seu desabono, mas a innocência e natural lizura não lhe suggeriram que tão affectuosas palavras fossem retractação covarde dos malefícios de que haviam sido verdadeiramente cúmplices as próprias que as proferiam.
Foi das mais carinhosas a gorda baroneza de Lorvão em cuja caza tinham principiado a lavrar as suspeitas fomentadas por D. Christina, assoalhando-se depois na cidade inteira quanto ali se tramara contra a reputação da mulher de Salvador Lopes.
-- No fim de tudo, dizia a baroneza a uma das suas amigas com quem ia descendo a escada depois de ter, ao despedir-se, abraçado e beijado D. Anna muitas vezes, que tenho eu com o procedimento d'esta gente? Não se demoram em Lisboa, são muito ricos, e hospedam grandiosamente em Coimbra os seus amigos. Sempre é bom estar bem com elles. Eu nunca me incumbi de emendar o mundo. Cada qual viva como entender. Sua alma, sua palma.
Não faltou a marqueza de Ílhavo aos deveres de cortezia para com a família Oliveira, mas apesar de estarem três carruagens á porta de D. Anna, deixou bilhetes e não quiz entrar. Era uma das carruagens a da condessa de Mertola que nem se esquecera das relações mui antigas da sua casa com a de Manuel de Oliveira, nem deixara de precaver-se contra a situação especial em que a maledicência collocára Salvador Lopes e a mulher. Reunia a condessa ás segundas feiras a flôr da sociedade, e aos banquetes d'esse dia não consentira que faltasse D. Anna desde que chegara a Lisboa. Agora porém não lhe renovou o convite, nem alludiu a similhante reunião. Convidou-a todavia a jantar no domingo próximo no qual tencionava dar-lhe por convivas diversos homens políticos estranhos aos mexericos das fidalgas, dois ou três capitalistas, e varias parentas velhas, úteis descartes do seu baralho social. Não era inimiga de D. Anna a condessa de Mertola, mas tinha por costume respeitar a opinião, e sobretudo não reunir em sua casa pessoas desaffectas entre si. Obedecendo a esta regra mui sensata da boa convivência, fortalecia sem o cuidar os enredos de Christina, e abria exemplo de esquivança ardilosa contra as victimas da injusta malquerença.
Houve por esses dias vários bailes era caza de pessoas conhecidas de Salvador Lopes, porém D. Anna attribuiu a falta de convite a não se ter divulgado bastante a notícia do seu regresso a Lisboa. Pouco disposta a supportar o borburinho das festas, folgou do esquecimento que tinha por involuntário, e pensou em outras coisas. Não escapara comtudo a Henrique dê Mello nenhum d'estes indícios, mas nem ousava revelar as suspeitas que lhe surgiam na alma, nem se atrevia a inquirir a tal respeito. Encerrava-se no quarto a meditar na repentina frieza das relações que a família Oliveira contraíra nas primeiras semanas de residência na corte, e com quanto lhe viesse á lembrança a paixão de Christina e a perversidade do irmão, não os julgava determinados a abrir guerra declarada contra a mulher de Salvador Lopes. Também lhe parecia impossível, nem acreditava, que a influência dos Araújos na sociedade da capital bastasse para tão súbita mudança.
Indeciso acerca das causas e receando que se patenteasse o mal a ponto de não poder occultal-o a D. Anna e ao marido, examinava no seu espírito atilado e affectuoso os meios de defender a felicidade e a honra de todos. Era trabalho baldado. Henrique perdia-se no labyrintho de mil conjecturas; não descobria a origem do inesperado successo ; nem sequer atinava com os motivos da commoção nervosa de que procedera a enfermidade de D. Anna ; porém como tantas coisas advinham os engenhos superioros, e nenhuma se esquiva á força do talento estimulado pelas paixões nobres, presentia que na sua convivência com a família de Manuel de Oliveira deviam basear-se as accusações contra a filha do velho capitalista, seu chorado amigo e protector. Então deliberava embarcar-se escondidamente no primeiro paquete para ir viver dois ou três annos fora de Portugal, e no vigor de tão honrada resolução arrumava elle próprio os bahus e assentava-se á meza a pôr em ordem os papeis, separando os seus dos que pertenciam á caza de Salvador Lopes.
Aconteceu, no mais violento d'estes accessos febris, arredar vários cadernos e livros que estavam sobre a meza, e descobrir debaixo d'elles a carta de D. Christina, que jazia ali ignorada desde o primeiro dia da moléstia de D. Anna. Leu-a rapidamente Henrique, e a cada palavra, a cada phrase, a cada período, foi-se desvanecendo a névoa que encobria a verdade, e apparecendo na sua asquerosa nudez a obra da sagaz irmã de Álvaro de Araújo. Ao cabo da leitura Henrique, deixando cair a carta sobre a meza, experimentou a sensação agradável que produz sempre a solução de qualquer problema depois de longo e profundo meditar. Agora sabia tudo e podia calcular a grandeza do perigo. Depois sentiu no coração profunda lástima da vileza a que paixões mesquinhas tinham arrastado Christina cujo carácter lhe parecera sempre nobre e sinceramente avesso ás tropelias de Álvaro. E por ultimo, decorridos os breves instantes de taes cogitações, ponderou unicamente os riscos a que D. Anna vivia exposta, os desgostos que podiam atormentar Salvador Lopes, e a sua obrigação de velar por ambos e de os salvar á custa dos maiores sacrifícios. Era urgente opôr a tamanha maldade grande energia e vigorosa firmeza ; evitar que a calunmia fosse medrando incólume; e incutir no ânimo dos calumniadores o receio do castigo.
Resolveu primeiro illudir a vigilância com que D. Anua evitava estar só com elle e procurar sem demora o ensejo de lhe fallar. Para resistir ás insídias do mano Christino, e inutilisar as traças da maliciosa donzella, era indispensável precaver a mulher de Salvador Lopes contra qualquer demonstração offensiva a que não devia expôr-se. Depois cumprindo as obrigações de cavalheiro escreveu a D. Christina a seguinte carta :
«Minha senhora
«Aos pés de v. ex.a quero hoje lavar-me da nódoa de vilão e descortez. Só esta manhã encontrei a carta com que v. ex.a me honrou no dia da minha partida para Cintra, e á qual teria respondido immediatamente, se o criado que a recebeu não fosse, para acudir a outro serviço, collocal-a sobre a minha meza onde logo se confundiu com vários papeis. V. ex.a que me conhece ha tantos annos, de certo se dignará de acolher benignamente as desculpas de tão involuntária demora em responder-lhe.
«Também ignorei até hoje que entre v. ex. e a mulher do sr. Salvador Lopes tivesse havido momentos de desgosto e de mortificação, aos quaes agora posso attribuir a grave moléstia da sr.a D. Anna, e também a demorada convalescença que se lhe seguiu. Nem eu podia advinhar o que ninguém me referia, nem a suspeital-o, me julgaria auctorisado para intervir em negócios a que por todos os motivos devo e quero ser estranho. V. ex.a sabe quaes são os princípios de boa educação e de probidade pelas quaes se regula a gente honrada, e sem duvida acredita que me não affasto d'elles. Permitta-me pois que a tal respeito nada mais diga, e que lastime unicamente quaesquer dissabores occorridos entre pessoas da minha maior consideração e respeito.
«Já é longa esta carta, e ainda não respondi áquelles períodos d'ella que pessoalmente me pertencem. Até me está parecendo que não poderia fazel-o, se v. ex.a na elevada penetração do seu espirito não tivesse advinhado o que eu vou dizer agora.
«Não se enganava, minha senhora, quando no baile da marqueza de Ílhavo alludia ás pessoas que vivem mortas. Eu sou uma d'ellas. Morri para sempre. Nem posso resuscitar senão momentaneamente para defender os meus amigos quando os aggredirem com injustiça e crueza. Então viverei para elles, porém só para elles, e só então.
«Se alguma força humana pudesse restituir-me á vida, estaria realisado o milagre desde que a vi no baile e depois de ter lido a carta de v. ex.a, mas os defunctos são defunctos. Não voltam mais. Consinta pois que eu tome as suas delicadas phrases como formosa coroa de perpetuas saudosamente collocada por mão amiga sobre o meu desamparado e modesto jazigo, e que nem sollicite a honra de beijar-lhe as mãos respeitoso e agradecido para lh'as não gelar ao contacto dos lábios frios do meu cadáver.
«Começa a vida de v. ex.a depois de ter acabado a minha. Abrem-se-lhe vastos horisontes de mocidade e de ventura, onde se me foram cerrando a mim as densas trevas da morte. A sua felicidade dependerá unicamente de V. ex.a. Não tolere pois que lh'a perturbem os maus sentimentos, e empenhe todo o poder do seu vigoroso caracter em triumphar de si própria. É a maior gloria dos espíritos superiores, v. ex.a bem sabe que a tenho n'esta conta.
«Releve, minha senhora, estes conselhos d'além da campa. São tão verdadeiros quanto é sincero o sentimento de respeitosa dedicação com que tenho a honra de ser
«De V. ex.a «amigo e criado obrigadissimo,
« Henrique de Mello.»
Enviada esta carta na qual o brioso mancebo quizera principalmente declarar a D. Christina, sem lhe offender o melindre, o firme intento de pugnar a todo o transe pela honra e socego da família Oliveira, saiu Henrique de Mello do seu quarto e caminhou para a sala onde D. Anna costumava passar sósinha quasi todas as horas do dia, e cuja porta interior abria para o gabinete do marido. A proximidade do perigo incitava a ousadia de Henrique e despertava-lhe o antigo vigor com que livrara das tormentas commerciaes o velho sogro de Salvador Lopes.
Já não respeitava o isolamento deliberado da sua antiga noiva e as precauções com que D. Anna evitava fallar-lhe sem estar presente alguma pessoa da família. Na alma nobre do filho de D. Barbara predominava o sentimento do dever, a obrigação de acudir pelo decoro de Salvador Lopes e da mulher. Não pretendia annunciar ao honrado capitalista os receios que o angustiavam, e a certeza da guerra desleal emprehendida pelos Araújos, mas não se occultaria de Salvador para conversar com D. Anna. Repugnavam ao seu caracter leal o disfarce e a mentira. Nobilia nobiliter -- acções nobres praticadas nobremente -- era a divisa dos Mellos de Coimbra.
Avisada por um criado de que Henrique lhe desejava fallar, admirou-se a filha de Manuel de Oliveira de tão extraordinário pedido; suppôz caso mais grave e inesperado que os successos anteriores, e respondeu que o esperava n'aquella sala.
-- Perdoe-me, sr.a D. Anna, disse Henrique entrando e dirigindo-se á mulher de Salvador Lopes, que o observava inquieta e perturbada. Não é por minha vontade que interrompo a solidão que tanto lhe apraz agora.
-- Não abrange o sr. Henrique, nem as outras pessoas de família, replicou D. Anna mui naturalmente, o meu desejo de estar só. Ficou-me certa tristeza da moléstia que padeci, e de que me salvou o seu muito saber e incessante solicitude. Foi resto da doença que resistiu á cura. Paciência. Talvez Deus venha a conceder-me o que nem a sciencia, nem os cuidados da família, puderam atè agora conseguir.
-- Deus pode tudo, retrucou Henrique, mas também ás vezes permitte que a sciencia, raio da luz divina, faça prodígios e curas maravilhosas a poder de observação e de estudo. O princípal está em descobrir as causas dos phenomenos que se nos vão patenteando, e era o que nos faltava na sua doença. Víamos que padecia; ignoramos porém a origem do padecimento. Se a tivéssemos sabido, o doutor Silva e eu, se a sr.a D. Anna houvesse querido revelal-a, seriam simultâneas com as do corpo as melhoras da alma onde primeiro se manifestara o mal.
-- Então o sr. Henrique descobriu a causa moral da minha enfermidade? perguntou risonha a incrédula D. Anna.
-- Descobri, sim, minha senhora. Soube tudo agora mesmo por uma carta de Christina escripta no dia em que fomos para Cintra, e esquecida entre os meus papeis por descuido do criado. Bem vê que me não é occulta a origem da sua moléstia, e por isso lhe mandei pedir que me desse a honra de escutar-me.
-- Vem trazer-me o remédio? acudiu D. Anna com ironia, recordando o que passara com D. Christina, e perplexa acerca da significação qqe poderiam ter as palavras de Henrique.
-- Não trago o remédio, não. Essa é a minha maior magua. Venho talvez accrescentar-lhe os cuidados, mas quando a maldade conspira em seu prejuízo e do homem que nós ambos tanto respeitamos, o meu dever è preserval-os de todas as iniquidades, quanto caiba nas minhas forças...
-- Sempre nosso amigo, sempre desvelado, sempre cuidadoso de quanto nos respeite ! interrompeu D. Anna estendendo a mão a Henrique.
-- E agora mais do que nunca, porque vejo os perigos que os ameaçam. Sei tudo, como se tivera assistido á sua conversação com a tresloucada irmã de Álvaro de Araújo ; presinto bem as insídias e maledicências que lavraram em Lisboa durante a nossa residência em Cintra; tenho notado successivamente a differença com que os trata a gente frívola e egoista que chamamos sociedade ; e vejo que é tempo de evitar desgostos preparados hábil e traiçoeiramente de antemão. Cumpre anniquillar pela base os enredos daquella rapariga e as perversidades do irmão.
-- Não são de agora esses embustes. Já nos perseguiram em Coimbra, mas nunca lhes demos valor, nem eu, nem meu marido, nem o sr. Henrique de Mello, observou D. Anna receando mais largas explicações para as quaes sentia vacillar-lhe a coragem.
-- Nunca lhes dei valor. Assim é. Porém são mui diversas as circumstâncias de hoje. Em Coimbra a opinião geral desprezava as sandices atrevidas e grosseiras de Álvaro de Araújo. Era notória a todos a pureza da nossa vida. Não succede outrotanto em Lisboa. Aqui tem D. Cbristina immensos parentes na alta sociedade á qual pertencia a mãe d'ella. Facilmente lhe darão credito porque não nos conhecem a nós. Propalada pela irmã de Álvaro, a calumnia correrá a cidade inteira, e a sr.a D. Anna chegará em breve a não ter senhoras que a visitem, nem caza para onde a convidem. Festejaram-n'a por moda, e também por moda a cobrirão de vitupérios. Eu conheço esta gente... I
-- Nesse caso, replicou D. Anna recobrando, pela grandeza do risco a que se via exposta, a nervosa energia das mulheres, não visitarei ninguém e não irei a nenhuma festa. Desprezo a mentira e as infâmias dos maldizentes. Contra as calumnias estou armada com a paz da consciência, com a ingénua rectidão do proceder, e com o leal cumprimento das minhas obrigações. Não tenho que dar contas a D. Christina, nem ao irmão.
-- Sem dúvida, minha senhora. Nem me pode caber pedir-lh'as em nome d'elles ou por qualquer outro pretexto. Porém a sua vida pertence a mais alguém, e as dolosas intrigas com que pretendem macular-lhe o decoro, collocarão seu marido na mais equívoca e vergonhosa conjunctura.
-- Tem rasão, Henrique. Desculpe o meu orgulho insensato, exclamou D. Anna quasi caindo em angustioso desalento. Paga-se de apparências a sociedade e não crê na virtude !
-- Nem sequer investiga. Acceita o aleive como applaudiu o elogio, e condemna sem ouvir.
-- Pois bem, continuou D. Anna subjugada por tamanha mortificação, que devo eu fazer? Diga. Dirija-nos a todos. Seja, como foi sempre, o anjo da guarda d'esta família. Que sorte a minha, Henrique! Sempre desgraças e sempre por minha causa !
-- Não diga tal, sr.a D. Anna.
-- Sim, por minha causa. Meu pae, no intuito de legar-me grandes riquezas, não parou a tempo na carreira commercial e emprehendeu negócios mui complicados. Depois, amedrontado pelo receio de me deixar pobre, penou em dolorosa anciedade em quanto um amigo fiel e incansável empregava todos os meios de evitar a catastrophe. Para me salvar da miséria praticou Salvador Lopes, único homem honrado que pôde hombrear com o sr. Henrique de Mello, o mais generoso sacrifício, e depois só tem vivido de engrinaldar de castos affectos a minha triste existência. Veja como eu sou causa da infelicidade de todos !
-- Que está dizendo, minha senhora?
-- Ainda não disse tudo. Para me amparar e defender são os seus dias, Henrique, similhantes aos d'aquellas regiões affastadas onde não chegam os raios do sol. Vive na sombra das nossas desventuras quem nascera para o fulgente esplendor de mil prosperidades, e quem as merece todas. Definha nas trevas o seu generoso coração, e nem lhe é dado ver brilhar ao longe a aurora boreal da esperança! E de tão excessivos desastres, concluiu D. Anna com as faces deprimidas pela magua e os olhos húmidos de pranto, sou eu, eu só, a única e desgraçada causa. Dirija-me pois, Henrique. Ensine-me a resgatar tamanhas culpas, embora sempre involuntárias. Para salvar de injustas affrontas meu brioso marido, e para livrar de suspeitas infames o sr. Henrique de Mello, estou prompta aos maiores sacrifícios. Daria a vida para assegurar a ventura dos meus dois únicos amigos.
-- Socegue, minha senhora. Não se exalte. É indispensável grande serenidade de animo nas occasiões de perigo. Nenhum d'esses acontecimentos foi obra sua. Bem o sabe. Urge todavia impor silêncio á calumnia e honrar o nome de Salvador Lopes. Eu parto n'esta semana para Inglaterra. Viajo dois ou três annos pela Europa, e terão de emmudecer as más línguas.
-- Então escolhe para nos deixar o próprio instante do perigo? perguntou D. Anna espantada e confusa de tão inesperadas novidades. Persegue-nos a calumnia de que eu e meu marido só vemos os effeitos, que não podemos combater, e o nosso melhor amigo pretende fugir da luta? Pois nem o demove de similhante resolução, Henrique, supplicar-lhe eu em nome da minha família inteira que seja o nosso anjo da guarda?
-- Por quem é, minha senhora, pela memoria de sua santa mãe, lhe peço que me não tire a força necessária para realisar este sacrifício. Não obste ao único meio de salvação. Ninguém a accusa senão de me conservar em sua caza, tendo sido minha noiva ; as murmurações contra Salvador Lopes assentam unicamente na amisade com que elle me distingue, e na confiança com que nos honra a ambos. Sou pois a verdadeira causa do mal. A mim cumpre reparal-o, a mim que o mundo tem por livre de obrigações sagradas, que também infama com supposições deshonrosas, e ...
-- Porém... Henrique... interrompeu trémula e enfraquecida a infeliz D. Anna,... não... partir para tão longa viagem... deixar a pátria por nossa causa... não... isso é de mais. Conheço que não pode estar perpetuamente ligado ás desventuras de uma família desditosa a vida do homem cujas elevadas faculdades o mundo sollicita para mais útil emprego... mas eu não sei ter outro amigo. .. Emfim, accrescentou D. Anna dominando pela consciência do dever a tormenta de amor que se lhe ia levantando na alma, tal e a minha negregada sorte que mal posso dizer-lhe que não nos desampare. Salvador Lopes é meu marido; é tambem meu verdadeiro amigo ; e ficou no logar do meu saudoso pae. Não ha sacrificio que lhe não seja devido, e que elle não mereça. . .
-- A nós ambos, ajuntou Henrique de Mello. Padece agora pela confiança illimitada que a sociedade vae castigar com affrontoso vilipendio. São dívidas do coração as nossas para com seu marido. Pagam-se como se contraíram.
-- Mas Salvador Lopes não o deixará partir, notou Anna sem reparar em certa ondulação do reposteiro que cobria a porta interior.
-- Partirei sem lhe dizer nada, respondeu Henrique commovidíssimo. Será o único segredo que lhe não contei desde que o vi pela primeira vez. Não m'o levará a mal. São eguaes os instinctos de honra no coração dos homens de bem. Salvador ha de reconhecer que no funesto lance a que nos arrastou a frenética insânia dos Araújos, o logar da sr.a D. Anna é sob a protecção d'elle, e o meu...
-- É nos braços do seu melhor amigo, bradou Salvador Lopes affastando o reposteiro, abraçando Henrique e estendendo affectuosamente uma das mãos para D. Anna que a levou aos lábios. Estava ali dentro a escrever e ouvi tudo. Ainda bem que ouvi para me oppôr a qualquer satisfação dada ás vilanias de tal gente. Por D. Anna responde a virtude d'ella. Pelo sr. Henrique a sua probidade. Por mim a honradez do meu proceder. Se a sociedade ignora tudo isto ou se o não quer saber, bastará dizer-lhe que respondo eu por todos. É meu direito e minha obrigação. Que m'o conteste alguém ! ...
-- Mas, sr. Salvador Lopes, o mundo é leviano e mau. Julga só pelas apparências, e não ha lutar com elle. A confidencia aleivosa passa a murmuração doméstica ; depois converte-se em rumor nas salas ; d'ahi entra já boato nos clubs e cafés ; em breve transforma-se em anedocta; logo é affirmativa tenaz; em seguida assume créditos de facto averiguado ; e por fim congloba-se em opinião geral ; e nem a justiça, nem a verdade, valem contra ella.
-- Tudo isso pode ser, porém acima das opiniões injustas está o meu desprezo, declarou Salvador Lopes. Não me curvo á maldade, nem á calumnia. Para alguma coisa ha de servir a riqueza. Graças á Providencia, não dependemos de ninguém. Pois, se a sociedade dá maior credito á torpeza dos maus do que á sinceridade das famílias honradas, e acceita o vício conhecido e disfarçado, condemnando a virtude que se não precata de suspeitas malévolas, renuncio á falsa honra de lhe pertencer. Viveremos sós.
-- Entretanto a reputação d'uma senhora. . .
-- Minha mulher em negócios de honra tem confiança em mim e em si própria. Não lhe disse ella que estava armada com a paz da consciência, com a rectidão da vida, e com o cumprimento dos seus deveres? Pois accrescente-lhe a minha inteira confiança. É mais outra arma. Tu não tens medo d'essas aleivosias, Anna? perguntou Salvador Lopes tratando de tu pela primeira vez a mulher para affirmar com vigor, em presença de Henrique, o seu direito de responder por ella.
-- Não tenho, não.
-- Ouviu, meu honrado amigo? N'este assumpto não quererá ser mais escrupuloso de que as victimas da sr.a D. Christina e do seu ridículo irmão. Nenhum de nós se dá por vencido de similhantes aleives.
Neste ponto da conversação deu entrada na sala um criado trazendo uma carta do governador civil. Abriu-a Salvador Lopes e ao lêl-a manifestou no semblante signaes de surpreza desagradável, mas nem Henrique, nem D. Anna, nem a tia que n'esse momento vinha entrando na sala, ousaram perguntar a causa. Salvador concluiu a leitura, foi ao gabinete escrever algumas linhas de resposta, deixando em alvoroço a família, e voltou com a serenidade que lhe era usual.
-- Vamos amanhã para Coimbra, disse placidamente para todos três, mas não conte com o seu suspirado quarto, minha querida tia.
-- Então que lhe aconteceu? perguntou a velha. Aposto que lhe mandaram fazer obras?
-- Não, minha senhora. A nossa caza de Coimbra ardeu hontem. Veio a notícia pelo telegrapho. O governador civil communicou-m'a agora. Mandarei edificar outra, e não será inferior ao antigo o seu novo quarto.
Não era affectada a indifferença de Salvador Lopes a respeito do sinistro que destruira inteiramente o palácio de Manuel de Oliveira. Acostumado á opulência do Rio de Janeiro, e tendo notado a riqueza e conforto dos melhores edifícios de Inglaterra, de Allemanha e de França, o marido de D. Anna não admirava, como a velha tia, a architectura comesinha e burgueza com que um mestre de obras, imitando a simplicidade monótona adoptada pelo marquez de Pombal na reedificação de Lisboa, construira a caza de Manuel de Oliveira, e com frequência alludia ao intento de lhe fazer obras que transformassem aquelle immenso cazarão na morada commoda e elegante de família europea. Veio pois facilitar-lhe os desígnios o incêndio que lhe consumiu o palácio, e com quanto fosse avultada a perda. Salvador Lopes dispunha de cabedaes tao numerosos que nao podia mortifical-o muito o inesperado successo.
Pensavam mui diversamente D. Anna e Henrique de Mello. Causou-lhes immenso abalo a fatal notícia, e tomou-os o terror ignoto que em tantas occasiões da vida é funesto presagio de próxima calamidade. Era para ambos rica de saudosas recordações aquella casa. Ali repousava Manuel de Oliveira quando recolhia do escriptorio; acolá reuniam-se os amigos nos dias solemnes ; n'este gabinete tinham passado horas de innocente prazer os dois noivos que a desdita viera separar depois ; n'aquelle canto sentava-se D. Barbara entre o filho estremecido e a donzella que já tinha por nora ; na sala verde recebera D. Anna, entre sustos e lagrimas, o primeiro e último beijo de Henrique de Mello; entre aquellas paredes, agora demolidas ou calcinadas pelo fogo, sacrificara a vida inteira para assegurar ao pae a tranquilidade da velhice. E ali descançára no seio do Eterno o velho Manuel de Oliveira abençoando a família e apertando nas suas as mãos do seu amigo Henrique. Lembranças queridas do fagueiro sacrário da familia ! Memórias dos mais honrados sentimentos do coração, das mais nobres determinações da vontade !
No desmedido pavor que assombrava D. Anna e Henrique de Mello, tinham ambos por condemnaçao do ceo o incêndio que derrocara o palácio, sovertendo nas minas os móveis, as tapeçarias, os ornatos, silenciosas testemunhas do seu casto afifecto e intemerata innocencia. Era o fogo da cólera celeste que desmoronara os altares dos sacrificios ímpios, abrazando e rompendo agora desapiedadamente a ara immaculada de tao innocentes amores. Nem resistia ao influxo do malfadado agouro a alma de Henrique de Mello, impávida nas maiores adversidades e robustecida pelo vigor da intelligência e pelo saber mais apurado.
A tia, mal ouviu a desastrada nova, caiu em continuadas convulsões, não se queixou mais, e permaneceu inerte e quasi idiota, obedecendo a todos e esquecendo-se até do precioso livro que trouxera de Coimbra, e cuja leitura fôra durante a vida o maior deleite de tão acanhado espírito. Pobre velha ! Como se acostumaria agora a outra caza ? Ella que entre as distracções da corte suspirava continuadamente pelo seu quarto de Coimbra, e só de faltar-lhe andara molestada em Lisboa !
Resolveu Salvador Lopes que antes de partir se despedisse D. Anna das famílias com quem travara relações, e accompanhou a mulher a todas as visitas, esmerando-se em patentear a affeição e confiança que lhe consagrava e a firmeza com que saberia defendel-a. A energia em manifestar estes sentimentos nas cazas das senhoras mais próximas parentas dos Araújos, buscando para fazel-o ensejo naturalmente opportuno, amedrontou os calumniadores, impoz respeito aos maldizentes, e conquistou o applauso e opinião dos indecisos. A audácia domina as multidões ás quaes se pode applicar com grande verdade o conceito de que -- fazem tudo o que lhes soffrem e soffrem tudo o que lhes fazem -- com que os cismontanos apreciam o caracter dos curiaes de Roma.
Não se despediram de D. Christina. Salvador Lopes, deliberado a publicar em Coimbra as insidiosas vilezas dos Araújos em menoscabo seu e de D. Anna, quiz dar-lhes desde logo testemunhos evidentes de desprezo, e mostrar que na luta contra a mulher o encontrariam por campeão e defensor d'ella. Acrescentava-lhe o vigor a indignação contra as infâmias praticadas por Christina e pelo irmão, e o desejo de não ficar inferior em nobreza de pensamento e de proceder a D. Anna e a Henrique de Mello.
Arrependia-se entretanto da vingança que meditara a caprichosa irmã de Álvaro de Araújo. Não lhe pesava dos ultrajes á honra da mulher de Salvador. Lastimava-se de ter perdido com a estima de Henrique a esperança de cazar com elle, e de o ter ligado mais a D. Anna á força de embustes inventados para os desunir perpetuamente. Não sentia o pungir do remorso. Accusava-se unicamente de ter sido imprudente e de não haver alcançado os appetecidos effeitos do crime. Não interrompera o rancoroso Álvaro a cruzada emprehendida contra os Oliveiras, mas já lhe não prestavam attenção. Primas e tias davam-se por enfadadas de ouvirem todas as noites a sediça história da mulher dos dois maridos, e escarneciam das pieguices do mano Christino, como se de muitos annos conhecessem o perverso e ridículo fidalguinho de Coimbra. É Lisboa similhante ás outras capitaes. O assumpto de hoje perde amanhã o viço e frescura da novidade ; envelhece durante a semana ; e morre victima de outros successos antes de completar o mez.
Foi rápida e triste a viagem de Salvador Lopes e da família. Chegados a Coimbra alojaram-se na Sophia onde lhes estavam preparados modestos aposentos nas cazas do escriptorio e armazéns dos Oliveiras. Visitaram no dia seguinte as ruinas do palácio ; decidiram que não se reedificasse ; e percorreram os subúrbios da cidade para escolherem sítio no qual mandassem levantar edifício digno da riqueza e do selecto gosto de Salvador e de D. Anna.
-- Cuido que me fica metade da alma n'esses destroços do incêndio ! disse D. Anna ao separar-se dos abrazados restos do seu palácio, observando que Henrique de Mello crusára os braços e ficara estático a contemplar aquelles montões de entulho que haviam sido caza de Manuel de Oliveira.
-- E cuida bem, minha senhora, respondeu Henrique. Dos que viveram ahi, andará o espirito revoando sempre em torno de tão saudoso sítio. N'essa caza me acolheu na desgraça o seu honrado pae, e ahi me tratou como filho até que nos meus braços o veio colher a morte. Aqui nos reuniríamos todos muitas vezes a chorar os que já foram, e a lastimar os vivos...!
-- Succedem-se umas ás outras as desgraças! Faça Deus que seja esta a derradeira! murmurou D. Anna caminhando para a carruagem seguida em silêncio por Salvador e Henrique.
Ficara em casa a tia, adoentada e fraca, e não tivera ânimo de ir observar as ruinas do palácio. Poucos dias depois enfermou com gravidade, caiu de cama, e apagada successiva e rapidamente a luz da intelligência, já muito amortecida, succumbiu aos annos e á doença com sincero pezar da sobrinha de quem fora companheira affectuosa e inseparável desde a morte da mulher de Manuel de Oliveira. Mais uma sensação dolorosa para D. Anna ! Mais um elo accrescentado á cadeia de desgostos que parecia cingil-a de todos os lados !
Temia Salvador Lopes que a débil compleição de D. Anna não pudesse resistir a tão repetidas commoções, e que a morte da velha tia e o incêndio do palácio, abalando successivamente a mortificada senhora, fossem causa de se renovarem os padecimentos originados pela maldade de D. Christina de Araújo. Velar pela saúde e tranquillidade da mulher era o principal e quasi único empenho de Salvador Lopes. N'este intuito, prestadas as honras fúnebres aos despojos mortaes da irmã de Manuel de Oliveira, e decorridos dois mezes depois do fallecimento, determinou viajar pelo reino, e facilmente persuadiu a D. Anna, com auxílio de Henrique de Mello, que tendo de fazer-se varias obras na caza do escriptório para accommodal-a ás necessidades dos imprevistos moradores, e não sendo possível principiar logo a edificação do novo palácio, era melhor sair de Coimbra e visitar as regiões do norte de Portugal, afamadas pela feracidade do solo e belleza dos horisontes, e que D. Anna sempre desejara conhecer.
Concluídos os indispensáveis preparativos e dadas as providências para que em nenhuma parte lhes faltassem alojamento e meios de transporte, saíram de Coimbra para Águeda, e d'ahi descendo o rio pernoitaram na quinta da Lagem, formosa propriedade de Henrique de Mello onde se recolhera D. Barbara no fim da vida, e onde o filho recebera a sua derradeira benção. Suppriam de certo modo as recordações d'aquella caza a falta do destruído palácio de Coimbra, e no quarto mais afastado que dava sobre o jardim podia D. Anna, em face dos retratos de Manuel de Oliveira, de Henrique, do marido de D. Barbara, e d'ella própria, esquecer todas as desditas e passar deleitosamente algumas horas em família. Completara Henrique esta carinhosa galeria com o retrato de Salvador Lopes e com uma delicada miniatura em que o mais celebre pintor do Porto secretamente a rogos do pae de Henrique copiara, idealisando-as com primor artístico, as mimosas feições de D. Barbara na primeira quadra dos seus amores.
No aprasível remanso de tão querida soidão desannuviou-se inteiramente o espírito de D. Anna, e fugiram com a tristeza as lembranças de Christina, do menino Álvaro e das aleivosias praticadas em Coimbra pelo travesso mancebo, e em Lisboa por ambos. D. Anna acompanhava o marido e Henrique nos passeios quotidianos e no divertimento de pesca com que se desenfadavam, vogando nas límpidas águas do Vouga. Já ria, folgava, e parecia volver mui naturalmente ás antigas propensões do seu temperamento e caracter, com grande júbilo de Salvador Lopes cuja incansável sollicitude andava espreitando sempre as occasiões de distrail-a e contental-a.
Despediram-se com saudosa tristeza ao cabo de oito dias da quinta da Lagem, e do quarto onde o affecto de D. Barbara e do filho tinham reunido as reminiscências mais gratas á família do seu velho amigo e protector. Ao volver os olhos, de longe e pela última vez, para a caza de Henrique de Mello, sentiu D. Anna entrar-lhe no coração o espinho do mais funesto presentimento. Pareceu-lhe que uma voz occulta lhe vaticinava infortúnios desconhecidos, assegurando terem sido aquelles os derradeiros dias felizes da sua vida.
Da Lagem seguiram para Aveiro cujo aspecto risonho e pittoresco é enlevo de viajantes, e d'ahi atravessando a ria, formoso e extenso lago em que se abraçam com as do Oceano as aguas do Vouga e do Águeda, sairam na prolongada povoação de Ovar d'onde sem demora caminharam por continuados areaes e successivas florestas de pinheiros até darem vista do Porto. Ahi pela rápida ladeira de Villa Nova de Gaia entraram na cidade que foi berço do infante D. Henrique, e tão afamada desde então atè aos nossos dias pela infatigável actividade dos seus naturaes, e pela firmeza e valor com que se houveram sempre nas occasiões de perigo.
Estava então no Porto Ayres de Mendonça e Albuquerque, o fidalgo do Serrado, com quem o leitor já travou conhecimento no princípio d'este livro, e que se educara no seminário com Henrique de Mello, ficando depois sempre em correspondência e estreita amizade com elle. Ayres de Mendonça avisado pelo filho de D. Barbara veio esperar os viajantes ao Alto da Bandeira, e acompanhou-os até á hospedaria do Peixe que n'esse tempo era no palácio de Duarte Huet de Bacellar na rua do Bom Jardim, e na qual também residia. Distribuídos pelos respectivos quartos os recem-chegados, Henrique foi ter com o amigo e fechou-se por dentro para ficarem sós. Encontrando afinal depois de tão variados acontecimentos espírito esclarecido e recto, e coração sincero e amigo, para desafogo e conforto de tamanhas maguas, não tardou em completar com os ulteriores sucessos a narração da última carta que lhe escrevêra de Cintra.
-- Agora que te disse tudo, concluiu Henrique, não te pergunto o que pensas de Salvador e de D. Anna. Já m'o escreveste sobejas vezes, e melhor os conheces pelas minhas cartas que pelo trato de uma hora de jornada. Fallemos de mim, Ayres. Sujeito á frieza da tua razão o meu procedimento. Sei que me tens por homem honrado, mas as circunstâncias da minha vida são tão melindrosas, e de tal modo delicada a situação de D. Anna, que se não chego a ter remorsos, comtudo nem sempre vivo isento de apertados escrúpulos. Neste caso até pôde ser crime o pensamento, -- bem o conheço -- mas eu juro-te...
-- Não são precisos juramentos para abonar a lealdade da tua alma, nem ha logar para escrúpulos no teu recto proceder, mas acredita, meu caro Henrique, o que te escrevi a miúdo nas minhas cartas. A tua vida não pode continuar assim. D. Anna cazou com Salvador Lopes moribundo; a Providência porém salvou-lhe da morte o marido; cumpre acatar os seus decretos. É mulher d'elle. Pois que o seja. N'aquella família não ha logar para ti, e viver junto da noiva que perdeste, è desairoso para todos apezar da virtude de ambos. Tu próprio já lhe chamaste martyrio. Domina pois essa paixão que te cega e que te parece invencível, afasta-te para longe, e realisa a viagem que planeaste. Sê homem.
-- Não posso, meu bom Ayres. Prometti a Manuel de Oliveira na sua derradeira hora não desamparar nunca a filha, e agora que se ergue contra ella o rancor da tua prima Christina, não devo esquivar-me a defendel-a.
-- Allegas pretextos onde te faltam razões. Valha-te Deus, meu querido Henrique. Não vês que prejudicas a reputação de D. Anna, que lhe infamas o marido, e que as decisões generosas de Salvador Lopes e a tenacidade com que persiste em desprezar a opinião, em vez de vos aproveitarem, concorrerão mais para o vosso descrédito? E prometteste a Manuel de Oliveira ser causa de similhantes desventuras? Pode mais contra D. Anna a tua presença junto d'ella que todas as insídias de minha prima Christina e as maldades do mano Álvaro.
-- Que vale a opinião injusta? Eu ia partir para Inglaterra, e foi Salvador Lopes quem me obrigou a ficar. Cada um de nós confia em si e nos outros, e escuda-nos contra a calumnia a innocência dos nossos actos. Podemos dizer com o provérbio: Quem não deve, não teme.
-- Pois diriam mal, e peor o applicas tu no ardor da tua paixão. Quem vive na sociedade, tem de lhe respeitar as leis. Se o não fizer, deve, e quem deve, teme, segundo o provérbio que citaste. Sê homem. Torno-t'o a dizer, Henrique. Vem comigo para a quinta do Serrado. N'aquellas montanhas da Beira curarás em poucas semanas a febre das phantasías que te agitam, e da tua vida actual só conservarás lembranças aprasivelmente saudosas e o suave perfume que o amor deixa na alma onde uma vez penetrou. Virás a ser feliz, e não andarei eu inquieto sempre a recear negras catástrophes e horríveis desgraças.
-- Não posso, meu bom Ayres. Não posso. Compuz assim a minha vida, e assim irá até á hora extrema. Vivemos juntos por accordo recíproco, e a separação causaria a nossa perpétua desventura sem contentar os maldizentes. E não cuides que o egoísmo prepondera n'este caso sobre sentimentos mais nobres, ou que nos repugna o sacrifício das nossas paixões. De sacrifício em sacrifício chegamos nós a esta situação, sempre dispostos a immolar cada qual ao socego e honra dos outros a própria felicidade. Acceita pois a minha attribulada existência como ella é, e ajuda-me com as tuas exhortações a manter-me no cumprimento dos meus deveres e no desprezo das opiniões mundanas, contra as quaes protesta a minha consciência e também a tua.
-- Tu não careces de estímulos nem de conselhos para ser escrupulosamente honrado. Falta-te unicamente a força da quebrar esses laços e a valorosa firmeza do que param na borda do abysmo. És meu quasi irmão e teria remorso eterno, se não te dissesse a verdade. Não está porém o teu espírito na serenidade que lhe conviria para seguir os meus alvitres, e eu que avalio bem a agitação da tua nobre alma, lastimo-te, mas não me atrevo a criminar-te. Podias ser o mais feliz entre quantos homens conheço. Não o serás nunca.
-- Paciência, meu presado Ayres, respondeu Henrique abraçando-o estreitamente. Ha penas que nos confortam a alma. Estas valem mais que mil venturas que nos inquietem e desconsolem. São o gosto amargo de infelizes, de que fallava o poeta.
Foi longa a conversação dos dois amigos, mas sem que Henrique cedesse ás razões de Ayres de Mendonça, nem este deixasse de lhe ponderar os riscos da sua perturbada existência. Nos dias seguintes não volveram a fallar do assumpto. Henrique de Mello receava as advertências do amigo, e o fidalgo do Serrado que lhe queria muito, respeitava os sentimentos elevados do infeliz mancebo e temia exacerbar-lhe as tribulações.
Demoraram-se no Porto mais de vinte dias durante os quaes Salvador Lopes visitou a Serra do Pilar, lamentando o sangue derramado n'aquella invencível fortaleza e condemnando o sacrílego ardor das guerras civis, e subiu três vezes á torre dos Clérigos para admirar a larga e formosa perspectiva que se goza d'aquella immensa altura. Não havia prazer maior para o marido de D. Anna que trepar ás mais altas montanhas e, se fosse possível, ascender aonde não houvesse ainda vestígios de pegada humana. Já lhe não faziam observações nem a mulher nem Henrique, e porventura principiavam a deixar-se conquistar de egual desejo. É certo que o acompanharam á torre dos Clérigos, e subiram com elle a pé a ladeira pela qual vae serpeando o caminho para o antigo convento da Serra do Pilar onde, despedidos os pacíficos cónegos regrantes de Santo Agostinho, se manteve briosamente contra repelidos ataques do exército realista o barão do Pico do Celleiro, defendendo com tenacidade heróica a bandeira constitucional.
Do Porto seguiram para Villa do Conde, Vianna e Caminha. Embarcaram na foz do Minho e foram-lhe rompendo as aguas, muitas vezes revoltas, até Villa Nova da Cerveira e depois até á praça de Valença, declinando d'ahi para Ponte de Lima a admirar a belleza do rio e das suas viçosas margens, tão celebradas de prosadores e poetas desde os tempos mais remotos. Em Braga ficaram três dias e outros tantos em Guimarães: viram na passagem os banhos romanos das Caldas de Vizella; e dirigindo-se pelo estreito e fértil valle de Pombeiro a Margaride, á Lixa e á vetusta Amarante, mal restaurada dos estragos da guerra peninsular, chegaram a Penafiel. D'ali observado o esplêndido horisonte que se avista da cidade para os lados por onde mansamente vae deslisando o rio Sousa, regressaram ao Porto, embevecidos com a formosura d'aquellas regiões, maravilhados da actividade dos seus habitantes, e captivos do garbo natural da gente do norte, e da sua cortezia affectuosa mas viril.
Foi-lhes agradável surpreza encontrarem ainda na hospedaria o fidalgo do Serrado. Adoecera gravemente o filho mais novo que trouxera para o collegio, e Ayres de Mendonça permanecera na cidade até á completa convalescença do rapaz, que levou dois estirados mezes. Tencionava partir para o Serrado quando chegaram Henrique de Mello, Salvador Lopes e D. Anna, porém como nem quizesse separar-se d'elles na occasião em que de novo se avistavam, nem lhe permittissem maior demora no Porto os negócios da sua casa, intentou persuadir aos viajantes que fossem á Beira Alta, e facilmente o conseguiu. Tão contentes voltaram da digressão pela província do Minho, que se lhes avivara o desejo de percorrer outras terras do reino!
Passados poucos dias, e caminhando de noite para se esquivarem á excessiva calma do verão, amanheceu-lhes adiante de Mesão frio onde o magnífico panorama do Douro e o juvenil aspecto da Regoa deslumbram todos os olhos. Atravessaram para a margem esquerda, descançaram um dia em Lamego para visitarem a famosa egreja de Santa Maria de Almacave, e depois só pararam em Vizeu onde Ayres de Mendonça se despediu saudosamente de Henrique, abraçando-o muitas vezes, apertando-lhe ambas as mãos em affectuosa mudez e com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. Acudiam ao pensamento do amorável fidalgo do Serrado todos os perigos a que andava exposto o seu melhor amigo, e nem ousava repetir-lhe as admoestações, nem podia occultar os indícios da magua e dos receios que o opprimiam.
Mantivera sempre Manuel de Oliveira relações de antiga amisade com as principaes famílias de Vizeu, que nas jornadas a Coimbra ou por occasião dos banhos do mar na Figueira eram acolhidas com esmerado primor pelo velho capitalista. Não havia incumbência que lhe não fosse dirigida, encommenda que lhe não coubesse aviar, ou negócio importante em que não figurasse de agente ou medianeiro. Eram de Vizeu as melhores amigas de D. Anna. Henrique de Mello contava na cidade muitos parentes ricos e poderosos. Tiveram pois de se deter ali durante algumas semanas para não se esquivarem ás attenções com que desde o primeiro dia os distinguiram, e que lhes cumpria agradecer.
Convinha a demora a Salvador Lopes. Meditava subir á serra da Estrella, constante objecto da sua maior curiosidade, e concordavam todas as informações em que só no principio de agosto poderia realisar-se aprasivelmente o ardente desejo do marido de D. Anna. Era pois forçoso esperar a occasião opporttma, e gastar em visitas, banquetes e bailes o tempo a que não cabia então melhor emprego. Nunca Salvador Lopes vivera tão satisfeito. Via com verdadeiro contentamento restaurar-se progressivamente a saúde da filha de Manuel de Oliveira ; com a saúde voltar a alegria, e com a alegria desvanecerem-se as lembranças do passado. Notava que a melancholia de Henrique de Mello se transformara na discreta jovialidade que tanto lhe haviam encarecido em Coimbra, e de que elle nunca pudera observar senão raros e pállidos vislumbres. Já não tinha remorsos de viver, nem se accusava a si próprio de ser causa das angustias de D. Anna e do martyrio de Henrique de Mello. No socego e ventura de ambos puzera sempre a esperança da vida que só a elles consagrara, e vendo-os prasenteiros e esquecidos dos dissabores promovidos por D. Christina, era feliz da felicidade d'elles.
Aprasou-se afinal o dia da partida, e acompanhada de três homens práticos nas veredas da serra, caminhou sem detença a pequena caravana até chegar á quinta do Arnedo d'onde se avistava na montanha fronteira o pícaro de Castromino. Resistindo aos abalos das revoluções physicas da terra, o empinado serro ficara ali sobranceiro á cordilheira de montanhas de que a natureza o fizera rei, dando-lhe por coroa os temerosos rochedos entre os quaes talvez nas guerras com Viriato se abrigaram desconfiadas e precavidas as hostes romanas.
Faltaram a Ayres de Mendonça as notícias de Henrique de Mello. Eram já passadas três semanas depois que partira com Salvador Lopes e D. Anna para a Serra da Estrella, e ainda não realisára a promessa de lhe annunciar, se por Cea, Midoes, e Santa Comba Dão recolheriam a Coimbra ou se desceriam ás importantes regiões da Beira Baixa descançando dois ou três dias em Castello Branco. De Coimbra escreviam-lhe que Salvador Lopes e Henrique de Mello não tinham dado novas suas desde as cartas em que annunciavam a visita aos pittorescos alcantiz dos Montes Herminios. Em Vizeu ninguém sabia onde paravam os viajantes.
Attribuía Ayres de Mendonça ao enlevo de Henrique pela amorosa contemplação de D. Anna tão prolongada lacuna na correspondência nunca interrompida desde o seminário, e esperava a cada hora miúda e extensa narração da viagem inteira e da chegada ás margens do Mondego, onde provavelmente o inferno sopraria a Álvaro e a D. Christina novos planos de mais pérfidos artifícios. E n'estas supposições vinham ainda intercallar-se os temores manifestados no Porto a Henrique.
Decorreram assim dois mezes. No fim d'elles e quando o fidalgo do Serrado, já receoso e inquieto, havia dado ordem ao filho mais velho de partir com dois criados para a Serra e de não voltar sem ter encontrado Henrique de Mello, recebeu a seguinte carta :
a Arouca da Serra 3 de outubro de 184. . . »
«Meu saudoso Ayres. Roga a Deus pelo teu desgraçado amigo para quem tudo acabou n'este mundo e que te escreve hoje pela derradeira vez. Fallava pela tua bocca a sabedoria divina quando no Porto me dizias: Nunca serás feliz. Estava escripto que a mão da Providência castigaria o meu orgulho na hora em que, vencidas as astúcias da maldade e fortificada pela sinceridade recíproca a virtude de todos nós, me alegrava de poder continuar a vida que eu próprio chamava martyrio incrível, e que era a minha única felicidade.
«Salvador Lopes e D. Anna de Oliveira já não são d'este mundo. Oram ambos por mim junto do throno do Eterno onde o meu espírito não tardará a reunir-se ao d'elles. Eu ainda vivo hoje para me despedir de ti, vertendo no teu extremoso coração metade da minha dôr sem diminuil-a. Amanhã porém, e para todo o sempre, pertencerão a Deus todos os pensamentos da minha alma, e só ficará na terra inerte e fraco o meu inútil corpo até que de todo se deteriore e corrompa. Será para ti a minha última palavra amorável e saudosa; para ti unicamente a lobrega narração de tão espantosa catastrophe.
«Chegámos ao anoitecer do dia 8 de agosto a caza do doutor Luiz Falcão, filho do capitão do Arnedo e meu condiscípulo, que nos esperava. Ali encontrámos commodo alojamento e o franco e diligente agazalho em que sabe primar a nossa Beira. Convidava-nos a descançar a fadiga da jornada e o desejo de nos levantarmos cedo, e assim fizemos. Na manhã seguinte ao raiar da aurora estávamos todos três na varanda que olha para a serra, admirando de longe a prodigiosa altura do pico de Castromino que nos ficava fronteiro, e procurando enxergar os vestígios do castro romano, que as nuvens ora mostravam, ora encobriam, á nossa curiosidade. Depois veio o mancebo que nos hospedara, contar-nos a tradição relativa ao escabroso píncaro, e como affirmasse ter muita gente subido a elle, examinado as desprezadas minas, colligido várias moedas romanas e passado muitas horas a prescrutar a magestosa amplidão do horisonte cujos limites a vista mal pôde enxergar, brotou logo em Salvador Lopes o invencível appetite de trepar ao íngreme serro, e não foi menor em D. Anna e em mim o desejo de o acompanhar. Tão espontâneo era em nós ambos o empenho de comprazer com a sua vontade !
Determinou-se pois que no dia 11 iríamos a Castromino, e fizeram-se os preparativos necessários para a curiosa peregrinação, concluída a qual seguiríamos para Cea no intuito de voltar a Coimbra. Éramos todos contentes. Salvador recordava as montanhas devassadas por Humboldt e abonava-se com o exemplo do auctor do Cosmos. D. Anna compunha na activa e subtil imaginação a grandeza do espectáculo que ia observar. Eu sonhava que a minha noiva de outrora em pé sobre as rochas de Castromíno seria a formosa estátua do amor dominando a terra com o casto influxo do seu virtuoso exemplo. Deleitosas chimeras que a morte havia de desvanecer em breve! No dia designado despedimo-nos de Luiz Falcão, agradecendo-lhe cordialmente a briosa hospedagem que nos dera, e convidámol-o a ir visitar-nos a Coimbra na passagem para os banhos da Figueira. Já subíamos a cavallo pelas encostas que davam passagem para o elevado píncaro, quando o sol principiou de romper no oriente doirando o cimo das collinas, allumiando o centro dos valles, e erguendo-se cada vez mais do horisonte a clariar os recantos das várzeas, e a penetrar nas florestas de cujos ramos lhe estavam festejando o advento milhares de inquietos e canoros passarinhos. Davam singular realce a este grandioso quadro o aspecto severo das montanhas, a fragrância das flores agrestes, e a salutar frescura da manhã. E á proporção que íamos subindo, ia também mudando a perspectiva e revelando novos e extraordinários prodígios. Nunca experimentei prazer tamanho na contemplação da natureza. Era egual ao meu o arrebatamento de Salvador e de D. Anua. Chegámos finalmente ao oiteiro que pelo nascente se ergue a meia altura do pico de Castromino, e onde principia a estreita senda que abre caminho para seguir na espiral até ao cume do píncaro. Observou Salvador Lopes á mulher quão áspera lhe parecia aquella vereda, e que não era por ventura isenta de perigos a empresa de subir tão alto. Eu tinha ido chamar dois pastores que nos servissem de guias. Quando voltei com elles, pediu-me que desistisse de ir a Castromino e que fizesse companhia a D. Anna. Annuí ao convite por me parecer muito arriscada para uma senhora tão custosa ascenção, mas ella zombou dos nossos receios e adiantou-se para o atalho onde já estava indicando a entrada um dos pastores. A D. Anna seguiu-se o marido, fácil de convencer como quem mede pela sua a intrepidez alheia, e logo depois caminhei eu confiadamente adiante do segundo pegureiro. Não havia que recuzar. O drama da minha triste vida ia findar ali !
Fomos vencendo umas apoz outras todas as passagens difíceis; descançando nos terrados em que se alargava o trilho; e exprimindo em sinceras exclamações o pasmo que nos causavam tantas maravilhas. Estávamos na última clareira, já pouco distante do cimo, o primeiro pastor e D. Anna em pé onde o tortuoso carreiro se enroscava nas rochas ; eu sentado na parte mais larga do terrado a notar ao longe para o lado do poente certos pontos que ora tomavam o aspecto de grandes povoações, ora me pareciam phantasticas agglomerações de nuvens ; e Salvador na orla da vereda medindo com os olhos a medonha profundidade do abysmo.
-- Vamos que são horas, disse o pastor que nos precedia, e sumiu-se na volta do caminho dirigindo os passos de D. Anna.
Eu ia a levantar-me quando vi oscilar Salvador Lopes e despenhar-se de rocha em rocha no precipício ; apparecer de novo o formoso vulto da desditosa filha de Manuel de Oliveira e lançar-se no abysmo apoz o marido com a serena resolução dos martyres, alçando a mão direita como se na hora suprema da despedida quizesse encaminhar para o ceo as aspirações da minha alma, e afiançar-me que na celeste mansão nos reuniríamos todos no Senhor para nunca mais nos separarmos. Passou deante dos meus olhos com a rapidez do relâmpago esta immensa desgraça !
Não ha palavras com que se refira o que eu senti n'aquelle horrível instante. Ergui-me de repente ; soltei um grito agudíssimo que de certo repetiram os echos da serra d'envolta com os brados dos pegureiros, e caí desfallecido sobre as pedras interiores do terrado. Não posso continuar hoje, meu querido Ayres. A alma está curvada e submissa aos decretos da Providência, mas o cérebro confunde as idéas, os membros tremem, a vista embacia-se e foge...
3 de outubro.
Vou concluir, meu querido Ayres.
Desceram-me os pastores e conduziram a casa do vigário o meu corpo inanimado e frio. Como foi, não sei. Estive dois dias com as apparências da morte, e ao accordar de tão profundo lethargo achei-me no melhor quarto da residência parochial, na cama e tendo á cabeceira do leito aquelle digno sacerdote. Não me lembrava da horrorosa catástrophe, e perguntava a mim próprio a causa da estranha situação em que me via. Repentinamente porém acudiram as reminiscências, e vi de novo os corpos de Salvador e de D. Anna, fendendo os ares e batendo de penedo em penedo, baquearem com estrondo successivo e surdo no sopé do escarpado serro. Afastei com ímpeto a roupa e saltei da cama, desvairado e cego, clamando em dolorosos brados por D. Anna e por Salvador Lopes. Ergueu-se carinhosamente o vigário a obstar ao meu delírio. Fallou-me com suavidade evangélica na Providência divina, remédio eterno da vida, e na resignação, sublime victoria christã na luta com a desgraça ; e tão affável e caridoso se foi associando á minha dor que me rebentaram copiosas lágrimas, e senti, desprendido das paixões terrenas, entrar-me no coração, para nunca mais as desarraigar n'elle, inteira confiança na bondade e misericórdia de Deus.
Foram superiores aos esforços da sciência as consolações espirituaes do bondoso párocho. Ainda pela renascença da fé pude no dia seguinte ir pelo braço do vigário á egreja onde repousavam em dois féretros, mandados fazer por elle, os dilacerados restos de Salvador e de D. Anna, que a piedade dos pastores recolhera immediatamente e viera depositar ali. Prostrei-me de joelhos e orei por largo espaço com sincero e devoto fervor.
Serenada pela graça do céo a maior violência de tão sincera dôr, rememorei no attribulado espírito a minha vida inteira, os successos que me tinham ligado estreitamente a Manuel de Oliveira, a D. Anna e a Salvador Lopes, e os dissabores com que nos amargurara a incansável perversidade de teu primo Álvaro e da irmã, causa principal da nossa desastrada viagem. Fiz exame de consciência prostrado deante de Deus, e nem me accusei de culpas imaginárias, nem escutei o demónio da soberba a querer dar-me por innocente de todo o mal. Não podia ser juiz de mim próprio. Puz nas mãos do Senhor o meu espírito para que o julgasse na sua infinita sabedoria, incomparável justiça, e immensa misericórdia.
Na concentração dos meus tristes pensamentos occorreu-me que Salvador caíra fulminado pela suprema crise da sua terrível enfermidade, e tive por certo que D. Anna, desvairada por tão calamitoso acontecimento, quizera morrer com o marido para dar-lhe o derradeiro testemunho da sua virtude e para que nunca fosse suspeitada a pureza da minha vida. Chorei então mais ardentes lágrimas sobre os dois singelos ataúdes ; senti penetrar-me na alma o remorso da alucinação repentina de D. Anna; e offereci humilhado o resto dos meus dias para resgate do seu generoso crime, e para obter o perdão da insânia com que desprezando as vozes do mundo, nem sempre desassisadas, e resistindo aos teus sizudos conselhos, vim a ser funesta origem de tamanho infortúnio.
Estava tão enleado o meu espírito que não attentára no vigário ajoelhado perto de mim a implorar a compaixão divina em favor de nós todos. Tomei-lhe as mãos; beijei-lh'as muitas vezes humedecendo-as de pranto, e pedi-lhe que me servisse de medianeiro para com o ceo, ouvindo-me de confissão.
Saí da egreja resignado e disposto a separar-me do mundo para sempre. Voltei ao píncaro de Castromino subi e ás ruínas que lhe coroam a fronte. Ali das pedras de castro romano construí por minhas mãos a pequena ermida onde vou encerrar-me, e obtida a licença do vigário transferi para lá, auxiliado pelos pastores, os corpos dos meus queridos amigos. Á porta do modesto e acanhado templo estão duas sepulturas onde jazem Salvador Lopes e D. Anna. A terceira aguarda a minha hora derradeira.
Ali irei viver o resto de meus tristes dias em união íntima com a memória das duas pessoas que mais amei n'este mundo, depois da morte da minha santa mãe, e na doce esperança de que Deus ha de perdoar á miseranda filha de Manuel de Oliveira, e abreviar-me a inconsolável soledade de tão lúgubre desterro. Nas minhas súpplicas ao Eterno rogarei pela tua felicidade e pela ventura de teus filhos. Tu pedirás também a Deus por mim. E as nossas preces, simultâneas e egualmente fervorosas subirão á divina morada. Esta será d'ora avante a nossa correspondência, e quando me for concedida a graça do descanço eterno, o teu coração piedoso advinhará a hora do suspirado alívio. Ouvirás então a minha voz a chamar-te para o ceo.
Adeus, meu bom irmão, meu honrado e verdadeiro amigo, adeus. Não pude escrever-te logo, e mais era suave lenitivo abraçar-me comtigo e chorarmos ambos tão acerbos infortúnios. Agora que repoisam junto a mim as cinzas do homem que mais confiou na minha honra, e da mulher cuja morte foi talvez o supremo sacrifício do amor, é tempo de te offerecer o derradeiro affecto da minha alma e de te dizer profundamente commovido : Adeus para sempre.
Teu primo e saudoso amigo, Henrique.
N'esse tempo só Ayres de Mendonça e o discreto vigário sabiam que Henrique de Mello, o elegante mancebo dos bailes de Lisboa, e o representante da mais antiga e poderosa família de Coimbra, se refugiara das tempestades da vida n'aquellas ásperas serranias, trocando o nome fidalgo de seus avós pela denominação piedosa e humilde de Eremita de Castromino.
NOTAS
1... os habitantes de batina de lila. Pag. 23, 1. 12.
Traziam os estudantes de Coimbra, como agora, batinas de panno ; aos lentes porém era concedido usal-as de lila.
... apostilla escripta, á moda de Filippe II, na parte superior da margem. Pag. 36, 1. 16.
Era costume de Filippe II. Ha d'elle algumas apostillas curiosas. Pertence a este número a que o monarcha hespanhol escreveu de sua razão na carta em que o duque de Alva se escusava de tomar o commando do exército para a conquista de Portugal, allegando que estava adoentado e queixando-se de lhe não ter sido paga certa somma que requeria. Paguem-lhe e que venha, escreveu o futuro rei de Portugal. Tive nas minhas mãos este documento.
Não as vejo eu agora cá de tão longe, etc. Pag. 62, 1. 4.
Estas linhas foram escriptas em Pariz no anno de 1861. Alludia nas que se lhe seguem, á base do monumento a D. Pedro IV na praça do Rocio, a que chamavam o Galheteiro em rasão da forma que lhe haviam dado. Seria mal cabido o reparo hoje depois de alçada sobre formosa columna a estátua do imperador.
... até áquelle aqueducto de el-rei D. Sebastião que tão em secco deixara a fonte e os tanques dos cónegos regrantes. Pag. 62, 1. 19.
Da água tirada aos cónegos regrantes dá cabal informação a chronica d'elles, assim como da resistência em que se empenharam, e do acanhado favor com que n'este ponto os attendeu o soberano.
... a famosa crasta que D. Joáo III lhes riscara de seus reaes dedos na manga do roupão. Pag. 62, 1. 21.
D'este facto succedido em 1527 resultou ficar ao claustro o nome de claustro da manga. Chron. dos cónegos Regr.
6. ... espíritos malignos da vaidade e da inveja, demónios a que a mão justiceira do Eterno deu maior liberdade entre o Guadiana e o Minho do que em qualquer outra região da terra. Pag. 64, 1.8.
É opinião de João de Barros, de Pêro de Andrade Caminha, e do conde da Ericeira no Portugal Restaurador, no primeiro volume do qual referindo como em 1640 foi lembrada a instituição de republica, á similhança de Hollanda, accrescenta que não obteve acceitação o alvitre por se considerar a differença das nações e o defeito que os portuguezes padecem na difficuldade da união, sentindo ordinariamente mais que a desgraça própria a fortuna alheia, desconcerto que totalmente destroe os fins de uma republica. Port. Rest. Tomo 1.o pag. 89 da edição in 4.o. 7.o No venerando mosteiro fundado em 1132 pelo arcediago de Coimbra D. Tello, no sítio chamado dos Banhos Reaes. . . Pag. 116, 1. l.V
Acerca do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra podem os curiosos de antiguidades consultar a maior parte dos nossos historiadores e especialmente a chronica dos cónegos regrantes.
8.o Do mercado pessoal do voto poucos ou nenhuns foliavam ainda então... Pag. 120, 1. 16.
Isto foi escripto em 1861, mas referia-se ao anno de 1839, no qual ainda se não vendiam tão descaradamente os votos.
... ilha fronteira á cidade de Loanda, n'aquella magnífica bahia que enganou os portuguezes á força de belleza... Pag. 154, 1. 2.
Se os não tivera enfeitiçado, de certo edificariam em outro logar a cidade cujas principaes ruas são de areia, e para onde a agua potável se vae buscar ao rio Bengo cinco léguas ao norte de Loanda. Sentiram os hollandezes este inconveniente, e nos seis annos do seu dominio emprehenderam trazer a água do Quanza por um canal. Chegou a principiar-se a obra, mas, depois da reconquista, o nosso desleixo não permittiu que fosse continuada. Nem vestígios se encontram hoje d'aquella acertada tentativa. Nas margens do Zaire devia ser a capital dos domínios portuguezes na costa occidental de Africa.
10.o
... fora moda abrir o Virgílio á ventura e procurar nos primeiros versos de uma das páginas o segredo do futuro. Conta-se de Carlos I de Inglaterra. Pag. 247, 1. 23.
Entre as chamadas sortes virgilianas são dos mais citadas as de Falkland e de Carlos I na visita á bibliotheca de Oxford. O rei abriu no livro iv da Eneida, vers. 614 e leu:
Et sic fata jovis poscunt, hic terminus hoereí: At bello audaàs popúli vexa tus et ar mis, Finibtis extoiTÍs, complexa avulsas Jali, Auxiliam implorei videatque indigna suaram Funera; ncc, cnm se sub leges pacis iniquce Tradiderity regno aut opta ta lace fruatnr; Sed cadat ante diem, mediaqae tnhumattis arena.
Depois que em 1649 morreu no cadafalso o desditoso monarcha pareceu prophetica a sorte virgiliana, como succedêra em 1643 quando o visconde de Falkland, secretário de Estado de Carlos I, foi morto na batalha de Newsbury aos 33 annos de sua edade.
11.o
Em Inglaterra já havia communicação por caminho de ferro entre Liverpool e Manchester. Pag. 282, 1. 2.
O caminho de ferro a que allude o texto, data de 1829. Foi o primeiro da Europa que levou carruagens para passageiros.
12.o
... não havia na corte de D. Filippa uma única dama a quem ousasse manchar a calumnia. Pag. 296, i. 22.
Assim o refere o Leal Conselheiro de el-rei D. Duarte.
Houve porém uma dama da Rainha, por nome D. Beatriz de Castro, que admittiu na sua camara a Fernando Affonso, pagem de D. João I, e afamado na corte pelos seus dotes. Soube-o el-rei, e mandou advertil-o. Não se emendou o pagem atè que foi preso mesmo no Paço. Pôde comtudo fugir no caminho, e penetrando na egreja de Santo Eloy, abraçou-se com a imagem do santo para que lhe valesse a immunidade ecclesiastica e a piedade d'aquellas eras. Foi el-rei em pessoa ordenar que o arrancassem d'ali, e sem embargo de affirmar o pagem que estava cazado com D. Beatriz, mandou que no dia seguinte morresse queimado no Rocio, e assim se executou.
13.o
A sociedade prepara os crimes ; o criminoso executa-os ... Pag. 381,1. 8.
Esta era a opinião do eminente estatístico, o sr. Quetelet, nas seguintes palavras:
14.o
... Eremita de Castromino. Pag. 436, 1. 13.
Nunca existiu, fora da imaginação do auctor, o pico de Castromino, nem o castro romano, nem a ermida. Quem procurar o alcantilado serro, entre Arouca da Serra, Valezim, Loriga e S. Romão, de certo o não encontrará. Sempre é bom declaral-o para socego de espíritos curiosos, inquietos, e propensos á credulidade.