Os selvagens: Edição para o ELTeC Amorim, Francisco Gomes de (1827-1891) Criação do HTML original Diana Santos Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 54630 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Francisco Gomes de Amorim Os selvagens Os selvagens Francisco Gomes de Amorim Livraria Editora de Mattos Moreira & C.a Lisboa 1875

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OS

SELVAGENS

POR

FRANCISCO GOMES DE AMORIM

LISBOA

LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C.a

68-Praça de D. Pedro-68

1875

AO CONSELHEIRO

BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES DIAS E SOUSA

MEU BENEVOLO AMIGO: — Consinta que a minha gratidão associe o seu nome á primeira tentatira de romance que publico em livro. Na quadra de descrença que atravessamos é bem doce para mim recordar que lhe fui apresentado por Garrett, em 1831, e que a amisade com que me honra, desde então, se tem tornado mais íntima á medida que eu tou ficando mais inútil. Essa rara constância de afecto, crescendo com a adversidade do amigo — perdóe-me a sua modéstia — é natural em quem, preparado desde o berço para tudo quanto eleva moralmente o coração e o espirito, se formou na escola dos homens que por dedicação a um principio afrontaram a morte no patíbulo e nos campos de batalha, padeceram no exilio e no cárcere, lutaram na imprensa e na tribuna, e foram a um tempo soldados e legisladores, poetas e estadistas, profundos nas sciencias de gabinete e invenciveis pelo patriotismo e amor á liberdade.

Quem pertenceu a essa phalange gloriosa não admira que junte ás virtudes antigas, de que ella deu provas em todas as circumstancias, a generosidade de suavisar com a sua amável presença e instructiva conversação as compridas horas de um triste valetudinário.

Ao dar-lhe este publico ainda que modestíssimo testemunho de affectuosa consideração, quizera poder perpetuar n'elle a memoria do meu reconhecimento; se não me auxiliar a fortuna, dando longa vida ao livro que lhe consagro, creia, ao menos, que por lhe ler associado o seu nome foi que nasceu tão ambicioso desejo no

Seu amigo do coração

F. Gomes de Amorim

I

Os indios mundurucús

No tempo em que os hespanhoes assombraram com as suas crueldades o grande império dos incas, todos os peruvianos, que poderam escapar da carnificina e não quizeram viver escravos dos algozes de seus pães e irmãos, se internaram nos desertos profundos e desconhecidos do Brazil.

A tribu dos tapajós, rival das dos chiquitos e carapuctias, que se distinguira sempre pela sua sabedoria durante a paz e por brilhantes feitos de armas na guerra contra os estrangeiros, atravessou o rio Ucayale, desceu pela margem direita do Amazonas, passou o Jauary na fronteira, e, mettendo-se nas florestas virgens, caminhou por ellas até ás faldas da serra dos Parecis. Encontrando ali as nascentes de um grande rio, cujas aguas crystallinas e transparentes deixavam ver, a duas e ires braças de profundidade, numerosos cardumes de peixe, estabeleceu o povo emigrado as suas primeiras tabas ou aldeias.

Eram as terras férteis de caça e de fructos, mas povoadas todas por gentio bravo e feroz, como os tigres e onças, que n'ellas abundavam. Apesar de justos e equitativos, os tapajós traziam presentes na memoria os motivos da sua expatriaçâo, e a necessidade obrigou-os a aproveitar a lição recebida dos conquistadores do Perii. Expulsos, roubados e tratados cruelmente, expulsaram, roubaram e aniquilaram por sua vez os habitantes das regiões em que iam penetrando. Senhores das duas margens do rio, que d'elles tomou então o nome de Tapajós, sempre em guerras constantes com gentes mais barbaras e cruéis do que elles, perderam pouco a pouco os hábitos, costumes e usos da vida civilisada; e alliando-se por fim com uma das nações poderosas, que dominava então n'esta parte do Brazil, e se chamava tupi, acabaram por se fundirem n'ella.

Das duas raças tapajós e tupi, misturadas d'esse modo, pretende descender a maior parte dos Índios, que actualmente habitam a vasta região comprehendida entre o Amazonas, o Madeira, o Juruena e o Tapajós ; porém os mundurucús deste ultimo rio julgam ter mais do que ninguém indisputável direito a tão illustre origem. Esses Índios são dos raros, que ainda conservam vagas reminiscências e tradições de seus antepassados, embora hoje fallem apenas, em vez da polida lingua peruviana ou do harmonioso idioma tupi, um dialecto bárbaro, derivado d'este ultimo. Mas, quer elles tivessem quer não essa ascendência, de que se vangloriam, o certo é que não se lhes pôde negar uma grande superioridade intellectual sobre a quasi totalidade dos seus vizinhos.

São de elevada estatura, bem conformados, de feições regulares, de animo valoroso, dóceis, sinceros e affectuosos quando se civilisam; porém um pouco tristes, desconfiados e cruéis no estado inculto. Apesar de se terem submettido muitos d'elles, ha perto de um século, ás auctoridades do governo do Pará e Amazonas, a maioria vive ainda sem ser baptisada, nas suas tabas ou malocas, no interior das florestas e nas cabeceiras de alguns rios, fazendo guerras de exterminio ás outras tribus, e devorando-se mutuamente.

Na margem oriental do Tapajós, acima das cachoeiras, residia a mais poderosa d'essas nações da Mundurucania, no tempo em que começa esta historia. O seu chefe Woipaigupi commandava sobre seis malocas, situadas a duas e tres léguas de distancia umas das outras; e, em caso de necessidade, tinha ainda direito de exigir trezentos arcos dos seus parentes do Tupinambaranas, a quem protegia contra os Índios muras.

Antes da eleição de Woipaigupi, alguns mundurucús, attrahidos por presentes do governo, consentiam em descer para os aldeiamentos feitos pelos missionários, em Guaranacá, Sipotúba, e outros logares próximos de Aveiro. Porém, logo que o novo chefe assumiu o commando, a noticia das suas crueldades afastou não só os padres da missão, que por vezes se approximavam das cachoeiras, mas também os Índios mansos, que estavam em contacto com os mundurucús. Até alguns catechumenos fugiram dos aldeiamentos, por acharem muito mais divertido frechar e comer os adversários do que perderem o tempo em rezas e ceremonias fastidiosas !

O cacique da tribu das cachoeiras immortalisou rapidamente o seu nome de Woipaigupi, que em mundurucú quer dizer lagarto, pela felicidade com que se apropriava de todas as manhas, ligeirezas e costumes d'este animal, quando fazia a guerra aos inimigos da sua nação. Atravessava os rios por dentro de arvores furadas, caminhava nos matos virgens por baixo das folhas seccas, que alastram o chão, e fazia buracos na terra, por onde se mettia com a sua gente, indo surgir de improviso no meio do campo inimigo, e regressando á sua povoação carregado de cabeças, enfiadas n'um cipó, como jabotis apanhados na floresta! Dentro em pouco tempo, a tranqueira da maloca chefe tinha na ponta de cada estaca um craneo inimigo, trophéus gloriosos das surprezas astuciosas de Woipaigupi!

Os Índios parintins, vizinhos dos mundurucús, começaram a estudar seriamente os meios de caçar o lagarto. Este, por sua parte, jurara dar cabo d'aquelles ou fazel-os todos prisioneiros ; mas a inadvertência de se servir sempre dos mesmos meios, perdeu-o finalmente. Quando se dispunha a irromper no meio da própria taba inimiga, foram presentidos os seus trabalhos de sapa, e os parintins abriram rapidamente uma valla profunda, desde a margem do rio até ao logar onde elle e os seus companheiros estavam minando; o peso das aguas, precipitadas repentinamente no canal, derruiu a terra que cobria a mina, e a torrente lançou-se com medonho estrondo no subterrâneo, levando tudo diante de si com fúria impetuosa !

Dos cem mundurucús, que avançavam como toupeiras atraz do seu chefe Woipaigupi, escapou um único vivo, que foi levado na onda, como um tronco de arvore, até á planicie onde se tinha começado a excavação. Era o filho do chefe. A sua tribu, que estava ali á espera do signal de acommetter por fora o campo dos parintins, ao mesmo tempo que os mineiros o atacassem por dentro, exclamou, ao vel-o fluctuar com vida entre os cem cadáveres:

— Pangip-Hú ! Pangip-Hú !

Este grito, que significa «pau d'agua», em mundurucú, exprimia a ingénua admiração dos selvagens, por verem que o companheiro nao morrera afogado como os outros.

— Pangip-Hú — disse elle, tirando-se da corrente que o trouxera — é o meu nome de agora em diante. De cem valentes, e entre elles o bravo Woipaigupi, meu pae, ninguém, senão eu, pôde sacudir de si a serpente de azas brancas, que os apertou como o sucurijú faz ao jaguar. Se a envireira não murcha, quando a quer afogar a japecanga ; se o filho da tartaruga não morre, depois que lhe voltam a mãe de costas no areial; e se o tucano sabe achar o ninho, no dia em que a frecha ou a zarabatana lhe derruba o pae dos ramos do niá, também Pangip-Hú, que apanhou já cinco vezes cinco os fructos do cajueiro, cortará cabeças de parintins sem auxilio de Woipaigupi.

— Hough ! — exclamaram os outros com admiração, como se dissessem: — Oh!

— Woipaigupi era um grande guerreiro — proseguiu o filho do cacique morto ; — mas a victoria tornou-o descuidado, como caititú em urucurisal, onde não ha frechadores. O chefe usava sempre dos mesmos meios, e a tapyra caapora não cáe duas vezes no laço de curauá ou de cipó.

— Hough! hough! Itup ! — repetiram os companheiros, dizendo que era bonito o que ouviam.

— O filho de Woipaigupi não é onça nem jacaré para morder no corpo de seu pae ; mas vae tomar as armas do cacique e guiar os seus companheiros pelo caminho da victoria. Pangip-Hú sabe que é uso dos velhos mundurucús eleger o chefe por acclamação, entre os mais bravos dos seus guerreiros. Ha ahi quem levante o seu tangapema contra o meu, em luta de morte, pelo governo da tribu?

— Itup! Itup! — gritaram os velhos, querendo dizer : — Bonito ! bonito !

Cinco guerreiros agigantados ergueram os tacapes e approximaram-se de Pangip-Hú.

— Itup! Itup! — repetiram os anciãos.

— Não basta ser forte como a tapyra dos brancos — disse Pangip-Hú, medindo com olhar desdenhoso os cinco gigantes; — é preciso ter o ouvido do goarabá, a vista do acauan, a prudência do jaboti quando fica debaixo da arvore caída, a ligeireza do veado, e a sabedoria da abelha e da formiga.

— Itup! Itup! — bradaram mais enthusiasmados os guerreiros encanecidos.

— E tu tens isso? — perguntou com desprezo a Pangip-Hú, um dos cinco pretendentes.

— Ha ahi quem seja capaz de nos levar sem perigo ao meio do campo dos parintins, como o teria feito Woipaigupi, se nâo fosse presentido? — interrogou Pangip-Hú, em vez de responder á pergunta que lhe fora feita.

Todos permaneceram calados.

— Aquelle que guiar a tribu até onde a queria conduzir meu pae, será reconhecido chefe, sem que ninguém duvide do seu valor e do seu direito?

— Sim! sim! — responderam unanimemente.

— Eu, Pangip-Hú, filho de Woipaigupi, chefe dos mundurucús, em vingança dos valentes, que as aguas precipitaram no paiz da morte, prometto que exterminaremos esta noite a tribu dos parintins, e que amanhã será comida no banquete da minha acclamação a carne do seu chefe.

— Hough! hough!

— O olho vermelho de Geruút (Deus), Tupá de nossos antepassados — tornou o joven cacique — vae remando na canoa de nuvens, pelo rio azulado, para alem das cachoeiras; logo que elle desapparecer, encoberto pelos arvoredos, que os meus irmãos sejam prestes; não accendam lume no campo; não batam com os remos dos ubás; nem assustem os animaes, que vierem comer os mortos. Os parintins, contentes com a victoria, devem estar fechados na taba, á espera de que vamos desafial-os. Emquanto elles olharem para a tranqueira, os nossos tacapes lhes abrirão por detraz as cabeças.

— Pangip-Hú é um sábio ! — exclamaram os cinco homens, que pretenderam disputar-lhe o commando, retirando-se para o meio dos companheiros.

— Itup ! Itup ! — secundou a maioria do povo.

— Antes de nascer a lua, a torrente, que matou nossos pães e irmãos, terá enfraquecido — volveu o novo cacique, afastandp-se.

— Hough ! — bradaram os outros. — É um grande chefe!

Pangip-Hú metteu-se na floresta e caminhou até ao anoitecer, rodeando de longe a aldeia ou taba dos seus inimigos. Logo que as sombras da noite escureceram a selva e o rio, approximou-se da margem, deixouse escorregar suavemente pela ribanceira, entrou n'agua e foi descaindo com a corrente, por baixo dos arvoredos, levando o tangapema enfiado no pescoço, e n'uma das mãos o arco de ymirapariba e as frechas com tacuaras de taboca. O mais pequenino vulto, que avistava agitando-se no rio, fazia-o parar sem ruido; reconhecendo que não era nenhum individuo da sua espécie, continuava a descer, não se inquietando que fossem jacarés, ou quaesquer outros monstros, que o espreitassem e seguissem com intenções sinistras. Os movimentos das folhas, os vagos rumores da floresta, os gritos dos animaes nocturnos, as vozes dos ventos e as das aguas, nada d'isso o assustava: tudo lhe era conhecido ou familiar. Mas no meio de todos esses mil murmúrios, confusos e indefinidos para o habitante das cidades, o seu ouvido maravilhoso distinguiria o mais ligeiro suspiro de uma creatura humana!

Quando chegou perto do sitio, onde os parintins abriram a valla, tão funesta aos mundurucús, segurou-se cautelosamente a um ramo e deixou-se ficar immovel muito tempo. Não vendo nem ouvindo cousa alguma, largou-se, e, apesar da escuridão da noite, mergulhou para atravessar um pequeno espaço desarborisado e surdiu na boca do canal. Ahi tomou pé e tornou a ficar sem movimento durante alguns minutos. A valla passava por baixo da tranqueira e communicava com o subterrâneo, que tinha sido admiravelmente calculado para sair no centro da povoação ! Ouvia-se cair a agua no fundo da galeria, mas de modo que indicava ter diminuido immensamente a força e volume da torrente, desde o momento em que prestara aos parintins o seu tremendo auxilio.

A estação das séccas estava ainda na sua maior força; os rios e os lagos baixavam rápida e diariamente ; e como a valla, feita á pressa, para acudir á imminencia do perigo, ficara mais funda do lado da entrada, as aguas atulhavam-n'a gradualmente de areia e lama, na parte menos cavada, sem intupirem ao mesmo tempo o caminho subterrâneo. Pangip-Hú notou isto, logo que ouviu a diminuição do ruido com que ellas caíam; todavia, para certificar-se melhor, tornou a mergulhar, e foi, pelo fundo do canal, até junto da tranqueira.

Os parintins haviam posto uma grade de jussáras por baixo da estacada, prevenindo o caso de qualquer investida por este lado. Pangip-Hú boiou ao pé d'essa grade, com todas as precauções imagináveis, comprimindo a respiração e tentando impedir que as aguas se agitassem quando elle surdia do fundo; mas, apesar d'estes cuidados, sentiu uma frecha cravar-se n'uma das estacas, onde ia apoiar-se, e apenas teve tempo de mergulhar novamente para fugir. Julgando-se fora do canal, e da vista da sentinella que o tinha presentido, veiu outra vez ao de cima, tomou o meio da corrente, e, nadando sempre sem bulha, chegou em pouco lempo ao campo dos mundurucús.

— Que o pagé não pegue no maracá! — disse elle, depois de ter feito o signal por que os da sua nação se reconhecem, para poder approximar-se sem risco. — O trabalho de Woipaigupi não será inteiramente perdido para os que vão vingar a sua morte. Os parintins esperam-nos do lado do rio, pelo canal que passa por baixo da tranqueira da taba. Pangip-Hú não se tinha enganado e vae dar a victoria aos seus irmãos.

— Pangip-Hú é um grande chefe! — gritaram os outros.

— Que os valentes tenham a prudência da sabedoria, e sigam-me todos, apertando bem os punhos dos tangapemas. Dentro de uma hora o caminho de SVoipaigupi estará sem agua. Antes que os inimigos tenham tempo de o tapar ou de abrir outro canal, terão caído como formigueiros em boca de tamanduá.

— Hough! — murmuraram os outros — Woipaigupi fez bem em morrer; seu filho é o maior sábio que teem tido os mundurucús!

— Que todas as bocas se fechem como a lacyba fecha o taracuá; e que os homens fortes das cachoeiras cumpram as ordens do chefe. No primeiro dia que Pangip-Hú commanda seus irmãos, um rio de sangue inimigo descerá pelo caminho de Woipaigupi, para consolar os que morreram com agua. Por cem homens perecerá uma nação inteira.

Um murmúrio de admiração e applauso acolheu estas palavras. Depois o gesto do chefe impoz silencio absoluto. Pangip-Hú dirigiu-se para a entrada do caminho que seu pae abrira e metteu-se por elle, seguido de todos os guerreiros. As aguas tinham diminuido tão consideravelmente, que apenas nos logares mais fundos davam pelos joelhos. Logo que penetraram no subterrâneo, nunca mais fallaram ; caminhavam ao de leve, como se adejassem sobre espinhos ; tomavam a respiração pondo as mãos diante da boca; olhavam para traz e para diante, a cada passo dado; paravam, escutando, antes de se porem outra vez em marcha. A galeria era tão estreita e baixa, que só lhes permittia caminharem a um e um, com os corpos muito curvados ; reinava n'ella a escuridão mais profunda que póde imaginarse ; batiam a todos os momentos com as cabeças e os rostos nos lados e no tecto, sendo necessário sentarem-se a miude, no chão alagado, para descansar; a terra, alluida pela força das aguas, caía sem cessar á roda d'elles, ameaçando-os com desabamentos, que lhes seriam tâo funestos como o fora a inundação da manhã aos seus companheiros. De vez em quando alguns peixes, cobras, sapos, lagartos, tartarugas e paus, embaraçavam-se-lhes nas pernas, trepavam por elles, impediam-lhes os movimentos, forçavam-n'os a uma luta rápida, em que era necessário reprimir a dor e a raiva para que se não perdesse o fructo de tamanha paciência, e por ventura a vida !

Emfim, após mil difficuldades e trabalhos sem conto, avistaram uma ténue claridade, que lhes indicou o termo da viagem. As precauções redobraram então. 0 chefe, que ia adiante, apertou o braço do companheiro mais próximo, que transmittiu este signal mudo ao segundo, este ao terceiro e assim foi passando successivamente até o ultimo. Pararam todos e Pangip-Hú adiantou-se sósinho para a boca superior do subterrâneo. Parecendo-lhe ouvir ruidos abafados e suspeitos, arrastou-se, como o surucucú se arrasta por entre a canarana para surprehender a anta que bebe no Amazonas. O que elle viu ao tremulo clarão das estrellas, fel-o estremecer de horror. Os parintins limpavam a valla entulhada, e a agua, retida atraz d'elles, rugia impaciente por precipitar-se na galeria. O novo chefe mundurucú julgou até que iam tirar a represa, e hesitou um instante, sobre se deveria procurar a morte, arremessando-se ao meio dos inimigos, ou ir esperal-a no caminho de Woipaigupi, entre os seus companheiros. A final, prevaleceu a prudência ; affirmou-se melhor e viu que trabalhavam ainda na excavação. Desceu rapidamente, sem deixar de ser cauteloso; correu para o primeiro homem, fezlhe o signal, que este transmittiu aos outros; e todos se pozeram immediatamente em marcha. Pangip-Hú subiu primeiro, e esperou, acocorado á borda do subterrâneo, que se lhe reunissem todos os seus. A invasão foi tão rápida e silenciosamente feita, que os parintins não deram por ella a tempo de impedil-a. Pangip-Hú e os seus atiraramse sobre os que desentupiam o canal, no momento mesmo em que estes soltavam as aguas. Derrubados pelos tacapes mundurucús, os parintins rolaram com ellas e desappareceram no sumidouro terrivel, soltando o primeiro e ultimo grito de alarme, que já não pôde salvar a sua nação do extermínio.

Os habitantes da taba, que acudiram, julgando o inimigo fora da tranqueira, surprehendidos na escuridão pelos tangapemas dos invasores, eram immolados quasi sem resistência, e lançados na torrente funesta, que os ia espalhar entre as suas victimas da véspera. Ao romper da manhã não restava um só com vida; e o fúnebre sumidouro já não funccionava, por se ter entupido com cadáveres !

Assim foi aniquilada a bella raça dos parintins, sendo apenas poupadas algumas mulheres para regalo dos vencedores !

II

O missionário

Espantosas festas, que os índios denominam puracés (bailes), succederam, na tribu das cachoeiras, à acclamação do novo chefe, exterminador dos parintins. Duraram por espaço de três mezes os banquetes, orgias monstruosas, em que se comiam indifferentemente as carnes moqueadas dos inimigos e as das antas e veados, antecipadamente caçadas para se misturarem com as outras n'aquelles festins bárbaros! Os vinhos de aipim, de milho, de caju e de outros fructos promoviam a embriaguez de homens e mulheres, que é o vício mais dominante dos índios. Por espaço de noventa dias representaram-se entre aquelles selvagens espectáculos hediondos de gula e de luxuria. Os que já não podiam succumbir ás bebidas embriagantes, tomavam pelo nariz, com dois ossos de ave, o pó dos fructos torrados da mimosa acacioides, que chamam paricá. Este pó, que parece ter algumas das propriedades do ópio, lançava-os em extasis prolongados, tornando-os insensivcis e indifferenles a tudo que se passava em torno d'elles. A maioria dansava até cair extenuada ; alguns travavam lutas, que só terminavam com a morte; outros suicidavam-se por meio dos mais horrendos excessos!

Aquelles delirios, com o nome de festas, só terminaram quando se acabou o ultimo pote de caxiri ou payuarú e o derradeiro pedaço de carne corrompida ! Então, homens e mulheres, embrutecidos por tão longa bebedeira, e por tantos actos de selvageria, atiraram-se todos juntos ao rio, mais por inslincto do que por sentimento de limpeza, e deixaram-se estar de molho muitas horas ! As aguas do Tapajós restituiram-lhes pouco a pouco as forças perdidas.

— Mulheres vão plantar maniba, que é tempo de crescer a mandioca — ordenou Pangip-Hú, saindo a escorrer do rio e sacudindo-se na praia, como fazem os cães. — Cada povo para sua maloca, emquanto Pangip-Hú não der signal de se fazer aos apiácas o mesmo que aos parintins.

— Aos apiácas! Aos apiácas! — gritaram centos de vozes.

Todos saíram do banho regenerador, e se sacudiram á maneira do seu chefe. Depois, seguiu cada um para a sua aldeia. Pangip-Hú, que ficara com os seus homens á beira do Tapajós, disse:

— Um ubá e dois remadores para frechar tartarugas e arpoar pirarecú. Seis homens ao lago para bater timbó; dois, á espera dos taititús; outros, vão apanhar fructos do inajá, tucumâ, miriti e mucajá. Pangip-Hú, com duas vezes cinco guerreiros, vae aprender o caminho do paiz dos apiácas, e quer achar fructos, caça e peixe moqueado, quando voltar á taba.

— Flor de Cajueiro vae com o chefe? — interrogou uma joven e formosa mundurucú, saindo do rio e agitando contra o rosto de Pangip-Hú os seus negros cabellos.

— Flor de Cajueiro não sabe andar no mato.

— É filha de um chefe de maloca! — volveu a Índia com altivez.

— Teu pae é valente guerreiro; mas a companheira de Pangip-Hú tem visto poucas vezes o cajuhy mudar de flores ; os seus pés seriam rasgados pelos espinhos do marajá e do murumurú.

— O chefe não gosta de Flor de Cajueiro!

— Flor de Cajueiro é a alegria de Pangip-Hú.

— E deixa-a ficar na taba?!

— O chefe vae procurar o covil do jaguareté.

— Os olhos de Flor de Cajueiro vêem através das folhas do guarumazal.

— Não.

— Se vierem os inimigos, durante a ausência de Pangip-Hú, levarão a sua companheira.

— Hough!

— E Flor de Cajueiro não dará um chefe aos mundurucús, como a mãe Jabota, companheira de Woipaigiipi, lhes deu o valente Pangip-Hú.

— Que Flor de Cajueiro acompanhe a expedição. Mas se ella concorrer para que sejamos descobertos pelo inimigo, ficará no mato, esmagada pelo meu tacape.

— A tua companheira assim o quer.

— Partamos.

As precauções tomadas por Pangip-Hú, para não ser surprehendido nas suas pesquizas por aquelles que desejava surprehender, como acontecera a Woipaigupi, obrigaram a expedição a gastar muitos dias até á foz do Pacuruína, rio que atravessa a região habitada pelos indios apiácas. Na occasião em que se approximavam d'esse rio, sentiram ruido adiante de si.

— Homem! — murmurou Pangip-Hú, detendo com um gesto a sua gente.

— Pela outra banda do Tapajós — lhe disse ao ouvido um dos seus — teríamos entrado no Tenuina, que fica ainda mais perto d'elles, sem que nos sentissem.

— O chefe conhece o mato — volveu orgulhosamente Pangip-Hú, faltando também ao ouvido do seu companheiro. — Woipaigupi ensinou-o a ir das cabeceiras do Tapajós até ás regiões d'onde vieram nossos antepassados.

O outro não replicou. Esperaram mais algum tempo, antes de se porem de novo a caminho; e como o ruido de passos se não repetisse :

— Vamos — ordenou o chefe, com voz apenas perceptivel. — Que os pés façam menos bulha do que a cotitiriboia, quando bebe no lago. Flor de Cajueiro, não deixes tocar nas arvores o tacape de sucupira.

Tinham dado três ou quatro passadas, quando pararam outra vez.

— É homem ! — disse Pangip-Hú novamente. — Anda pela borda do igarapé, sobre o tijuco ... segue o curso da agua, para achar o rio grande... Não é indio! ... Torna para traz ! O igarapé dá volta ... PangipHú vae ver sósinho.

Fazendo um gesto aos outros, para que não o seguissem, o chefe mundurucú desappareceu por entre as ramadas da floresta, parecendo mais deslisar do que andar pelo clião coberto de folhagem secca. Chegando á beira de um riacho, que corria ali próximo, parou estupefacto.

— Hough ! — murmurou elle.

Sobre um tronco de arvore, caído através do igarapé, estava sentado um padre branco, de cincoenta e cinco a sessenta annos, comendo melancolicamente alguns fructos de palmeira, que momentos antes andara apanhando.

O Índio tornou atraz, fez signal aos companheiros, para que se approximassem cautelosamente, e mostrou-lhes o achado.

— Hough ! — fizeram todos com espanto.

- Um branco! — disse Flor de Cajueiro. — É o primeiro que vejo !

— Padre ! — informou um guerreiro, que tinha visto muito mundo.

— Missionário! — acrescentou um segundo, mais sábio.

— Bom para comer? — interrogou terceiro.

— Hough! — responderam os outros todos, lambendo os beiços.

— Velho ! — observou um com desgosto.

— Mas é branco ! — volveram alguns, que talvez tivessem ainda gratas recordações do sabor da carne de infelizes padres.

— Deve ser bom! — rosnou o chefe.

E approximando-se do missionário pelo lado de traz, sem que este o sentisse, pozlhe a mão no hombro.

— Branco ?

— Deus seja commigo ! ... E comtigo — disse o padre, voltando-se.

Os outros Índios approximaram-se.

— Magro! — notou desdenhosamente o que já o tinha achado velho. — É duro!

— Provemos — aconselharam os companheiros.

— Sois christãos, meus filhos? — interrogou carinhosamente o branco. E como elles não respondessem, tornou:— Entendeis portuguez? — Depois fallando comsigo: — Não percebem. Vejamos se sabem tupi. Pelas pinturas do corpo, julgo que são mundurucús. A que nação pertenceis?... Valha-me Deus! Também não entendem! São talvez das cachoeiras... E d'ahi, quem sabe?! — tornou a dizer comsigo.— Talvez que não queiram responder-me; estes miseros filhos das florestas são todos muito desconfiados! — E voltando a fallar-lhes em tupi:

— Filhos, peço- vos que me auxilieis para sair dos matos; ha seis dias que ando perdido ! ... Saí das missões de Sipotúba para a aldeia de Xiringa e perdi-me. Cuidando voltar ao meu ponto de partida, para me orientar, fui-me internando cada vez mais, segundo penso. Tenho achado muitos rios, mas ainda não vi o Tapajós ! ...

— Um cipó — pediu o chefe aos seus homens.

— São mundurucús bravos — reflectiu o missionário. — Apesar da sua origem tupi, o seu dialecto differe tanto da língua mãe, que não nos entenderemos ! Os do Tupinambaranas sabem também portuguez e tupi, alem da sua giria; mas estes, não percebem uma palavra do que lhes digo ! Provavelmente são dos mesmos que teem dado gente para as missões de Sipotúba ! ...

— Amarra o branco ao tronco da ymiraitá — ordenou Pangip-Hú aos que lhe traziam um cipó delgado, comprido e flexivel como uma corda de linho.

Alguns homens agarraram no velho e ataram-n'o sem difficuldade n'um tronco de arvore.

— É inútil amarrar-me, filhos! — objectou elle, insistindo a fallar-lhes na lingua tupi. — Para onde hei de eu fugir? E para quê? Quando me encarreguei das missões do sertão, já sabia que o meu ministério podia dar d'estes fructos... na terra.

Os Índios começaram a dansar á roda d'elle, zombando dos gestos e palavras com que o bom padre os exhortava a que se convertessem, esquecido de que nâo o comprehendiam. Depois de varias ceremonias e movimentos de armas, percebeu que lhe destinavam um fim trágico e immediato.

— Preparam a minha morte?... Seja feita a vontade de Deus ! ... e bem vinda a hora do martyrio, se assim conseguir que a minha alma regenerada entre no seio do Eterno! Senhor, Senhor! Perdoa-me e perdoa também a estes infelizes, mais dignos do que eu da tua misericórdia, porque não sabem o que fazem!

Como lhe tinham deixado as mãos livres, tirou do seio um crucifixo de metal amarello, que trazia pendente do pescoço por um cordão, e beijando-o repetidas vezes continuou a orar fervorosamente.

Vendo brilhar o metal polido do crucifixo, os selvagens pararam com as dansas e acercaram-se do missionário, olhando attentamente para o objecto que elle beijava.

— Itup ! — exclamou Pangip-Hú. E tocando com o dedo na imagem do Christo, perguntou o que era aquillo.

O padre não o entendeu; mas movido sem duvida por inspiração divina, tirou rapidamente o cordão com que suspendia a imagem e deitou-o ao pescoço do gentio, pedindo intimamente a Deus que convertesse á fé aquella alma. O chefe mundurucú ficou um instante perplexo; depois pegou na cruz pela extremidade inferior, e fitou por muito tempo o olhar na imagem do Crucificado.

Os outros contemplavam, também mudos de admiração e curiosidade, aquella dadiva para elles singular. Decorreram alguns segundos. O padre orava sempre com tal fervor e convicção, que o seu rosto parecia resplandecer, illuminado por clarões nunca vistos na terra depois de mil e oitocentos annos. Afinal, nos lábios do chefe bárbaro desenhou-se um sorriso de infinita satisfação, sorriso ideal, desconhecido até ali em bocas de gentios, e que foi reflectir-se nas de todos os seus companheiros. Era o desabrochar da flor celeste, o embryão da graça, a primeira luz de nova aurora, nuncia da esperança, que raiara milagrosamente nas trevas d'aquellas almas.

O chefe mundurucú, a quem se abriam de repente os horisontes de uma existência nova, desatou o padre e correu-lhe a mão pelo cabello, em signal de affectuoso carinho; depois, voltando-se para o lado d'onde se ouviam rugir por entre as pedras as aguas do Pacuruína, exclamou:

— Que os apiácas durmam em paz! O chefe Pangip-Hú vae levar o homem de Geruút ao paiz dos seus irmãos brancos.

— Itup ! Itup ! — gritaram os outros. — Que os apiácas durmam em pazi!

O padre ajoelhou-se, dando louvores a Deus por ter tocado com a graça divina aquelles desgraçados Índios.

— Agradeço-te a minha vida também, Senhor; nao porque ella me seja agradável; mas porque tu queres que eu continue a supportal-a, para poder servir-te.

Os mundurucús ajoelharam, imitando-o; ergueram, como elle, as mãos para o céu; e mexeram os lábios com o mesmo ar de unção, como se realmente o comprehendesseml Vendo-o depois derramar lagrimas de alegria, fizeram-lhe muitas festas e caricias, a seu modo, persuadidos de que chorava com medo d'elles.

— Que o tio padre confie na lealdade e amor de Parigip-Hú — lhe disse o chefe no seu dialecto. — Os mundurucús sâo amigos do tio padre.

Pozeram-se a caminho para a taba das cachoeiras. Durante a jornada, todos os Índios porfiavam em dar ao missionário testemunhos de sincera affeiçâo e respeito. Uns lhe apanhavam os mais dehciosos fructos ; outros lhe caçavam as aves de mais formosas plumagens; este lhe trazia os peixes de melhor sabor; e aquelle, a caça mais estimada. Flor de Cajueiro esmerava-se nos seus assados e moqueados, suppondo, na sua cândida simplicidade, que aquelle homem devia ser senhor de cem tribus, visto que tão grande cliefe como Pangip-Hú se comprazia em fazer-lhe todas as vontades.

Chegados á povoação, Pangip-Iíú ordenou que se tocasse o trocano, tambor enorme, que se ouvia em todas as malocas, e servia para reunir na aldeia-chefe o povo mundurucú, nos dias solemnes da nação.

Quando toda a tribu se achou junta no terreiro da taba, Pangip-Hú apresentou-lhe o padre.

— O tio Félix — disse elle, que tinha conseguido aprender-lhe o nome — poz ao pescoço de Pangip-Hú este presente, que alegra e consola os peitos dos guerreiros...

Mostrou o crucifixo á multidão admirada, e proseguiu :

— O chefe reuniu a tribu, para honrar o branco, e quer que todos os seus guerreiros o amem e respeitem, como a luz de Geruút.

— Hough! — respondeu o povo em demonstração de assentimento. O chefe continuou:

— O tio Félix baptisará os mundurucús... Um murmúrio de espanto e desapprovação acolheu estas palavras. Todos se lembraram de que durante o governo de Woipaigupi ninguém mais descera para os aldeiamentos do baixo Tapajós, e tinham poucos desejos de trocar a vida livre da floresta pela existência de trabalho e reza, nas povoações fundadas para os Índios mansos. O chefe tornou, com ares de quem se explicava :

— Pangip-Hú não irá para os aldeiamentos dos brancos...

— Hough ! — applaudiram os outros.

— Será baptisado na sua taba, quando o tio Félix tiver aprendido a lingua dos mundurucús.

— Itup! Itup! Queremos ! Na taba mundurucú ! Na taba mundurucú !

— Ouves, tio Félix? Vae aprender mundurucú e vem baptisar os teus amigos.

O padre, sem o comprehender, estava impaciente por se pôr a caminho para a missão de Sipotúba, dezejoso de trazer de lá alguns munduruciis domésticos, que o auxihariam na catechese dos outros.

— Que dez vezes cinco guerreiros dos maisillustres acompanhem Pangip-Hú — tornou o chefe.— Vamos levar o tio Félix ás terras cultivadas dos seus irmãos. Flor de Cajueiro traze a rede do amigo padre e vem com elle.

III

Flor de Cajueiro

O padre Félix entrou como triumphador na missão de Sipotúba, acompanhado por cincoenta gigantes mundurucús e pela joven Flor de Cajueiro, sob o commando do valoroso Pangip-Hú. Este chefe escolhera de propósito os melhores dos seus guerreiros, e quizera acompanhar o missionado até á povoação dos inchos domésticos, por pura ostentação e vaidade. Imaginava que os seus cincoenta homens semi-nús iam causar a admiração do mundo civilisado, e sentia-se cheio de nobre orgulho ao desembocar com elles no terreiro da aldeia. O padre não desejava que tivesse logar aqueila exhi bicão, demasiado primitiva, entre pessoas já mais afastadas e esquecidas dos usos e costumes paradisíacos ; mas foi-lhe impossível fazer entender a Pangip-Hú, que nem elle nem os seus companheiros estavam em termos de se lhes poder dar publicidade em terras habitadas por christãos. Ainda mesmo que o bom Félix soubesse mundurucú (mas nâo o sabia), como conseguiria persuadir aquelles valentes, que se tinham na conta de perfeitos e completos em tudo, de que deveriam esconder melhor as suas bellas formas, causas do seu mais justificado amor próprio, e disfarçar as elegâncias de que mais se desvaneciam, para entrarem no povoado?! Como encaixar-lhes no cérebro a opinião de que o vestuário é a maior gloria dos povos cultos, e um par de calças o mais signiíicativo triumpho obtido pela civilisação sobre a barbárie?! A elles, que consideram como felicidade suprema o não terem o trabalho de se despir nem vestir, para nenhum acto da vida; que se acham sempre promptos a entrar no banho; que se untam com óleo de palmeiras, para que os inimigos e os ramos das arvores lhes não achem pega; que teem como a mais garbosa galantaria d'este mundo mostrar o desempeno do corpo, nas atlitudes pittorescas das suas dansas guerreiras, similhantes ás pirrhicas antigas?! Absurdo. O padre pensou vagamente no que seriam Alcides vestidos e os jogos olympicos por homens de sobrecasaca, e estremeceu por não se ter lembrado nunca de que o bello na arte era incompatível com o pudor.

— Para que servem as estatuas gregas e romanas? — scismava o excellente velho. — Escândalos do paganismo ! Horrores e brutezas de materialistas! O sublime só existe na natureza... É verdade que a natureza... A natureza é isto ! Santo nome de Deus! Todos nascem assim ... Ai ! a minha cabeça ! E o peccado de Adão?! Foi elle que fez cair dos olhos de nossos primeiros pães a venda da innocencia ! ... Estou fresco padre com as minhas reflexões!... Sâo os sessenta, que batem á porta!... E esta vida dos matos, esta agua dos rios, o sol, as chuvas, as febres das cachoeiras... Que tudo isso é melhor do que eu mereço ao Senhor!

E o santo velho entrou a pedir mentalmente perdão a Deus dos seus estranhos devaneios.

Entretanto, tinham entrado na praça. O povo dos dois sexos acudia ás portas; uns riam, outros coravam; poucos fugiam; e algumas Índias, que conheceram parentes entre os recemchegados, saíram a fallar-lhes.

Quando o missionário deu por estas graves faltas de observância dos seus preceitos, gritou, encolerisado :

— Já todas para suas casas ! — e voltando-se para os que o acompanhavam, proseguiu com menos ira: — Vão com Deus, vocês também ! Perdôo-lhes, porque não percebem o escândalo que vieram fazer ! Vãose; obrigado pela boa companhia! — E em seguida, como se fallasse comsigo: — Elles, coitados, fizeram tudo quanto poderam para me obsequiar! Adeus, meus filhos; partam depressa, que eu lá os irei baplisar.

Como os mundurucús não o entendiam, chamou um dos Índios mansos, e fez com que este lhes explicasse as suas palavras.

— O tio Félix tem medo que levemos comnosco a sua gente? Pangip-Hú é um grande chefe e um amigo leal.

Traduzidas ao padre estas palavras, volveu elle:

— Não é por isso, filho. É cá por outra cousa. Parte, anda ! — continuou, empurrando-o. — Eu lá voltarei, assim que tiver as cousas arranjadas.

— Pangip-Hú não quer separar-se do seu amigo, sem lhe deixar uma lembrança, em troca do Tupá.

— Agradecido. Sáe depressa, com os teus homens, que me estás fazendo muito transtorno.

— Pangip-Hú não partirá senão depois de dar uma lembrança ao seu tio Félix.

— Pois dá lá o que queres e muda-te.

— Flor de Cajueiro — disse o chefe á joven índia, que andara todo o caminho atraz do missionário, pudicamente embuçada n'uma capa, que este lhe havia dado ; — corre pela ultima vez as tuas mãos, lisas como a folha do tajá, pelos cabellos de Pangip-Hú.

A joven obedeceu, sem comprehender.

— Guardem essas brincadeiras lá para si! — gritou o padre Félix escandalisado.

— Flor de Cajueiro — volveu o indio, correndo tambem as mãos pela cabeça d'ella — de agora em diante o tio Félix é o teu senhor. Tio padre — continuou, dirigindo-se ao velho — Pangip-Hú offerece-te a mais formosa das suas mulheres para tua companheira.

Quando explicaram ao bom homem as palavras do chefe mundurucú, a castidade da sua alma virgem tingiu-lhe as faces de vermelho, e uma santa cólera ia romper na maior explosão, que jamais promoveram a virtude e o pudor ultrajados, quando lhe acudiu uma idéa súbita, que o fez mudar de opinião.

— Não será esta rapariga um instrumento, de que Deus quer servir-se, para espalhar entre os da sua tribu as verdades do christianismo ? — reflectiu elle. — Ensinando-lhe eu o portuguez e o tupi, e iniciando-a em todos os mysterios da religião, converto a tribu inteira sem difficuldade ! Foi Deus quem o inspirou ! — Depois, dirigindo-se a um indio manso, que lhe servia de interprete, disse-lhe: — Explica ao chefe que acceito Flor de Cajueiro, para restituir-lh'a melhorada dentro em pouco tempo.

— Não ; — replicou Pangip-Hú — quando um chefe dá presentes aos seus amigos, nâo torna a recebel-os.

— Isso veremos ! Vae tu com Deus, e quando eu achar que é tempo de tornar a entregar-te o teu mimo, discutirás.

As despedidas dos Índios e do padre foram patheticas ! Não se podia imaginar que aquelles desgraçados brutos achariam em si tanto coração e sensibilidade, para misturarem as suas lagrimas com as do velho, no momento de se separarem. Comtudo, força è confessar, que, apesar do affecto que já lhes tinha, o missionário estava desejosissimo de os ver pelas costas ; e só respirou á vontade, quando elles se sumiram na floresta, marchando com garbo inexcedivel, á maneira dos tambores mores dos nossos regimentos europeus.

Flor de Cajueiro ficou como assombrada por um raio. O seu companheiro de infância, o escolhido do seu coração, arbitro do seu destino como seu senhor e chefe da sua tribu, fizera presente d'ella, como quem dava um arco ou um tangapema de que nâo precisava !... Mas taes eram os costumes da sua nação, que a joven acceitou a mudança de sorte, sem se atrever a protestar publicamente contra ella !

— Vamos, minha filha — lhe disse carinhosamente o padre Félix, encaminhando-se para a modesta choupana de folhas de palmeira, onde costumava pernoitar, quando ia áquella aldeia da missão. A mundurucú acompanhou-o, baixando os olhos.

As outras Índias, já domesticas e ladinas, que tinham estado a espreitar os guerreiros de Pangip-Hú através das palhas mal unidas das paredes dos tejupares, vendo o padre ficar só e dirigir-se para a sua residência com Flor de Cajueiro, correram ás portas e sorriram maliciosamente umas para as outras.

— Marianna? Rosa? Felismina? — chamou o missionário, parando em frente da sua casa, e dirigindo-se a três das mais próximas vizinhas. — Tomem-me conta d'esta pequena, que se ha de chamar Maria, logo que se ache em estado de ser baptisada, e ensinem-lhe a fallar tupi, a persignar-se e benzer-se, e livrem-se de m'a deixarem sósinha ! A Felismina, que é filha de mundurucús e tem mais juizo, é quem me responde por ella e lhe ha de dar agasalho.

— Veiu uma carta de Santarém, ha muitos dias — disse um indio velho e instruido, que lhe tomava conta da choupana e governava a aldeia.

— Ha de ser de meu irmão Romualdo. Que quererá elle? Dá cá, depressa.

Abriu, leu algumas linhas e parou sensibilisado.

— Pobre Romualdo ! Teve outro ataquei Valha-me Deus ! — tornou a lançar a vista ao papel. — Pede-me que vá immediatamente... e receia... que já não esteja vivo quando eu chegar ! Pedro? Pedro? Aprompta um ubá e seis homens para me levar a Aveiro... Tomarei ali gente fresca para Pinhel ou Villa Boim; depois, até Alter do Chão e Santarém... Quem sabe se chegarei a tempo?! E em que occasião, meu Deus ! Com a perspectiva de tantas almas para salvar!... Eu bem sei que devia cuidar primeiro dos mundurucús... Mas, Senhor, o sangue falla mais alto que o dever ! Perdoae-me, meu Deus, perdoae-me! Voltarei depressa... E... para ir aproveitando, levarei commigo a joven Índia. Educo-a eu mesmo, e não ficará peior, se Deus quizer.

— Agora mesmo ia largar a canoa da carreira para Santarém, senhor padre Félix. Ainda a achei no porto e mandei esperar.

— Que felicidade! Deus te pague, meu bom Pedro, pela noticia que me dás ! É o melhor que me podia apparecer n'estas alturas! É mesmo um favor do céu, e começo a ter fé em que ainda acharei o meu Romualdo com vida. Adeus, Pedro; adeus, filhos; adeus todos. Alé breve. Se eu não poder vir logo, mandarei o padre José. Pedro, recommendo-te que vás fazendo as praticas todos os dias. Será bom ires a Guaranacá pedir ao padre António, que venha por cá de vez em quando ver isto. Flor de Cajueiro, vamos. Era outra missão a estabelecer nas cachoeiras... uma nação inteira, que se fazia christã, dentro em pouco tempo!... A falta de padres é uma calamidade para este paiz ! ... Em que occasião isto me acontece ! Emfim... vamos com Deus!

O padre ia faltando assim, já dentro da canoa, que descia o Tapajós, impellida por oito remadores vigorosos. A viagem foi rápida e sem accidente. O irmão do padre Félix, Romualdo Martins, rico negociante portuguez, residente em Santarém, achava-se quasi restabelecido, quando viu entrar o missionário em casa.

— Graças a Deus ! — exclamou enternecido, ao vel-o.

— Graças a Deus ! Que susto que me pregaste ! Abraçaram-se ternamente.

— Estive ido !

— Imagino. Para me escreveres assim !

— Quando me vieram dizer que não estavas nas missões, nem havia noticias tuas, senti-me outra vez peior! Mas não sei que voz de cima me segredava que cedo voltarias, e tornei a melhorar novamente.

— Pois agora, que eu aqui estou, é ficarme bom quanto antes! Não imaginas em que occasião deixei as missões e as cousas que tive de pôr de parte para vir ver-le í Se não fosse caso tão apertado, não vinha. Uma nação inteira de mundurucús, dos mais selvagens e ferozes que existem acima das primeiras quedas, convertida por um milagre ! ... Ainda me faz chorar de alegria o que Nosso Senhor se dignou fazer por minha intervenção.

— Tu és um santo, Félix ! Abençôa-me, querido irmão !

— Sou um grande peccador; mas Deus escolhe muitas vezes os mais pequeninos e humildes insectos para manifestar as suas maravilhas.

— Abençòa-me, Felix ! Sinto-me outro desde que chegaste ! E conta-me o que te succedeu.

— Deus te abençoe, meu querido Romualdo, como em nome d'Elle eu te abençoo !

— Ah! meu Félix ! Se nós voltássemos para Portugal?! Talvez nos fizesse bem a ambos?! Fundariamos uma igreja na nossa aldeia de Avelomar ...

— E os meus Índios ? ! E o dinheiro que elles te custam em ferramentas, quem o daria se os desamparássemos? Julgas que não servimos melhor a Deus d'este modo, do que indo fazer ostentosos templos n'um paiz que já tem de mais?! Nós não temos parentes na nossa terra, e aqui não me faltam almas que encaminhar para o céu.

— Mas tu sempre mettido nas florestas, em riscos sempre, no meio de animaes ferozes e de homens peiores do que elles ? ! ...

— É a minha obrigação.

— Se alguma vez... Tremo só de pensar n'isto!...

— Não tremas; ainda outro dia me quizeram matar para me comer ! ...

— Jesus!

— Foi Elle quem me salvou. Mostrei-o aos selvagens, implorei a misericórdia divina, para que se compadecesse d'elles, e cinco minutos depois estavam todos ajoelhados commigo, de mãos erguidas! Que espectáculo tão consolador, Romualdo ! Se o visses, chorarias de alegria, como eu chorei.

— Pois tu não vês que me rebentam as lagrimas só de te ouvir? ! Continua, Félix, continua a tua santa missão ; e perdôa-me ter-te faltado em irmos para o nosso paiz. O que te peço é que não te esqueças de pedir tanto por mim a Deus como lhe pedes pelos teus selvagens.

Os dois irmãos abraçaram-se de novo, e ficaram alguns momentos sem poderem reatar a conversação, por estarem ambos muito commovidos.

— Quem é aquella joven? — perguntou por fim Romualdo, indicando Flor de Cajueiro, que se conservara modestamente ao fundo da alcova, sem fazer um movimento.

— Ah! é o fio da historia que vou contar-te.

Flor de Cajueiro, percebendo que se fallava d'ella, approximou-se timidamente, beijou as mãos aos dois velhos, e só então elles repararam que também ella tinha chorado.

— Que tens, filha? — interrogou Félix. — Não falla senão o seu dialecto mundurucú e eu não me entendo com elle ! — continuou dirigindo-se ao irmão. — Felizmente, è intelligentissima; em poucos dias, já entende quasi tudo quanto eu lhe digo.

A Índia limpou as lagrimas e murmurou :

— Paipai bom, bom!

— Paipai, quer dizer pae e padre, na sua lingua, é como ella me trata e chama-me bom! — disse Félix, sorrindo.

— Uanumi bom, bom ! — tornou a Índia.

— Ahi tens ! Uanunii quer dizer irmão. É tudo quanto sei em mundurucú! Diz, que também és bom ; e não é maravilha nenhuma !

— Uanunú, paipai, dois bom, bom; Flor de Cajueiro amiga de uanunú.

— Declara que somos ambos bons, que nos quer bem por isso, e que é muito tua amiga. Que ingénua simplicidade! Meu Deus, e ha quem não ame estes infelizes, estas creanças da civilisaçãol... Mas vamos á minha historia.

O padre referiu miudamente ao irmão tudo que lhe tinha occorrido, depois de se terem separado, e explicou-lhe os seus projectos com relação aos mundurucús. Quando iam para se sentarem á mesa do jantar, entrou o commandante da villa.

— Soube da sua chegada — disse elle ao padre— na occasião em que mandava equipar uma canoa, que fosse ás missões de Guaranacá ou Sipotúba levar-lhe este officio, vindo do Pará, com a nota de urgentíssimo.

— Um officio, para mim?!

— Mau! — disse Romualdo — não sei que me adivinha o coração.

O padre leu e assombreou-se-lhe o rosto.

— Ordenam-me que vá immediatamente á cidade!

— Eu não dizia !

— Fazem-me muito favor no modo por que me tratam, em nome de Sua Magestade; mas eu dispensava os cumprimentos, e preferia que me deixassem desempenhar no Tapajós os deveres do meu ministério. Eu sei cá nenhumas noticias estatisticas da provincia, nem quantos Índios mansos ha nos aldeiamentos do sertão, para ir agora pôr-me a fazer mappas?!

— É para isso?

— Pois então?!

— Se o senhor padre Félix não souber — disse respeitosamente o commandante militar — quem ha de saber?

— As auctoridadcs civis.

— O governo de Sua Magestade — insistiu o official — tem a certeza de que desde Santarém até Tabatinga não ha ninguém que tenha tanta inslrucção e tão variados conhecimentos do paiz e da gente, como o senhor padre Félix. Tratando-se de uma estatística da população, que sirva de base ao recenseamento official d'este anno, o governo soccorre-se ás pessoas que julga mais competentes.

— É bem lembrado ! Ainda os meus pobres Índios nao encarreiram bem a fazer o signal da cruz, e tratam já de querer alistar-m'os para soldados ! Por isso alguns tornam a fugir para as suas malocas, depois de baptisados! E querem catechese?! Estão servidos !

— O senhor padre resolverá como entender ; peço-lhe a fineza de me dar um recibo do officio.

— Irei, que remédio?! Manda quem póde! Mas lá se vae a melhor das minhas esperanças! Um milagre, que devia dar tão bons fructos !... É verdade que Deus, que foi quem o começou, pode muito bem concluil-o sem mim. Elle que me manda ir embora, é porque não lhe sou lá preciso. Aqui está o recibo. Quando ha embarcação?

— Amanhã. Já chegaram as canoas do Rio Negro e do Tapajós; vou fechar a correspondência, e ao romper do dia poderá partir.

— Estou prompto. Faça-se a vontade de Deus e a d'el-rei. Flor de Cajueiro, verás mais mundo do que eu imaginava.

— Porque não a deixas aqui?

— E quem m'a ha de instruir na religião, á medida que ella for sabendo portuguez?

— Isso é verdade.

— Bem vês que não me deixam parar em parte nenhuma, e preciso aproveitar o tempo, durante as viagens. O que me faltava era mandarem-me para outra parte, chegando á cidade.

— Não me assustes ! E tu ias?

— A obediência é um dos deveres da minha profissão.

— Sem mim?!

— Mandava-te dizer para onde ia.

— Fico em ancias até ter carta tua.

— Esperemos em Deus, que me deixem voltar, logo que lhes der os taes apontamentos que me pedem. Que gente ! Não se lembram da falta que vou fazer aqui? ! Dos meus pobres Índios!... Só com quatro missionários, n'um rio tamanho ! ...

O padre foi para a cidade, onde o demoraram uns poucos de mezes. Ao fim d'elles, recebeu ordem para ir visitar as missões do Tocantins. De volta ao Pará, mandaram-n'o ao Xingu ensaiar um aldeiamento de jurunas. Só passados dois annos conseguiu tornar para Santarém, declarando-se doente e impossibilitado de continuar em serviço activo. Era uma grande perda para a prosperidade das missões ; mas o velho estava realmente enfermo, e a auctoridade, que lhe reconhecia o zelo, mandou-o descansar, confiando que apesar do seu estado elle promoveria, mesmo de Santarém, a evangelisação e civilisação do Tapajós.

Nao se enganou quem o julgava d'esse modo. Depois de passar três ou quatro dias na companhia do bom Romualdo, partiu para as cachoeiras, acompanhado de Flor de Cajueiro, que o seguira por toda a parte.

IV

Regresso á taba mundurucú

O chefe Pangip-Hú voltava com os seus guerreiros de uma expedição, quando avistou uma jovem, decentemente vestida á moda das Índias mansas, sentada á beira do lago que avizinha a taba chefe.

— Tapuia ! — exclamou elle.

— Tapuia ! — repetiram todos os outros, parando.

— Bonita! — acrescentou o chefe.

— Bonita ! — affirmaram os companheiros. A joven começou a sorrir-se para Pangip-Hú.

— Rindo! — tornou este, contente.

— Rindo ! — repetiram alegríssimos os seus guerreiros. E principiaram todos a sorrir-se também para ella.

— Vamos ver. — disse o chefe, encaminhando-se para a desconhecida.

— Vamos ver. — approvaram os outros, seguindo-o.

— Pangip-Hú? — chamou ella.

Todos pararam maravilhados e olhando uns para os outros.

— Pangip-Hú ! — repetiram elles. — Diz Pangip-Hú ! — E riram mais ruidosamente.

O rosto do chefe assombreou-se de repente.

— Flor de Cajueiro! — gritou, reconhecendo-a.

— Flor de Cajueiro?!

A Índia approximou-se.

— É d'esse modo que o chefe recebe a sua companheira?!

— Mulher — respondeu o mundurucú severamente: — que vieste aqui fazer? O teu senhor é o branco do Deus crucificado. Onde o deixaste? O guerreiro deu a filha das cachoeiras ao seu amigo Fehx ; se ella fugiu, voltará; se o matou, morrerá. O chefe não é desleal aos seus amigos. Escrava, que fizeste do teu senhor?

— O branco é santo; nâo quer captivas. Eu já me não chamo Flor de Cajueiro; fui baptisada com o nome de Maria. Aprendi a fallar as linguas dos brancos e dos Índios mansos; sei quem é o Deus verdadeiro, e venho explicar ao chefe os mysterios d'esse grande Tupá, que traz ao pescoço.

— Explica; e volta para aquelle a quem pertences.

— Nâo; o padre diz que sou tua mulher; que nâo podes ter outra, emquanto eu for viva; e quer que repartas commigo o teu tejupar.

— Flor de Cajueiro não lavou os seus cabellos com as aguas perfumadas do cauré e da japecanga; nao soube agradar ao branco; e por isso elle a desprezou e não quiz na sua rede.

— Disse-te que já me não chamo Flor de Cajueiro; tenho o nome da mãe de Jesus. O padre é mais sábio do que os pagés; padres não teem companheiras, porque é peccado. Maria não deve dormir n'outra rede, senão na do chefe Pangip-Hú. O tio Félix diz que tu és meu esposo, perante Deus e os homens, e que o serás também conforme as leis da Igreja.

A chegada do missionário, que tinha ficado na taba a pôr em ordem os objectos que trazia para fundar uma capella, acabou com as duvidas de Pangip-Hú.

— Levei tua mulher commigo — disse elle ao Índio, por intermédio de Maria — para a instruir nos mysterios da doutrina de Cliristo. Agora, com o auxilio d'ella e o meu, podéreis todos ter a suprema felicidade de salvar as almas, depois de regenerados pelas aguas do baptismo.

Encaminharam-se para o terreiro da aldeia.

— Pangip-Hú nâo quer contrariar o seu amigo, e por isso torna a receber Flor de Cajueiro.

— Chama-lhe Maria.

— Maria?!

— Maria?! — repetiram ingenuamente os outros, olhando para ella, para o padre e para Pangip-Hú. A final riram-se muito entre si, repetindo a cada instante: — Maria!

— Maria !

— E tu has de te chamar Manuel — disse o missionário, sorrindo-se para Pangip-Hú.

— Manuel! — repetiu este, rindo também.

— Manuel! — secundaram os outros, apontando com o dedo para o chefe.

— Manuel?!

— Manuel ! ...

— Manuel Pangip-Hú !

— Hough ! — E um coro de gargalhadas acolheu esta combinação de nomes, feita pelo próprio chefe.

— Manuel Félix, se quizeres ter o nome do bom padre — lhe disse Maria; — eu também sou Maria da Conceição Félix; tu, meu marido, serás Manuel Félix.

— Itup! Itup! Manuel Félix. Quero ! quero ! — gritou Pangip-Hú.

— Manuel Félix! — exclamaram os outros. — Nome do amigo padre?! Itup! Queremos ! Todos queremos ser Manuel Félix.

— Havia de ter que ver!— disse o padre, rindo da melhor vontade, quando Maria lhe traduziu o que elles diziam. — Um povo de Manueis Félix! Ao menos tinha novidade. Ora espera ! ... Porque não se ha de chamar a esta povoação de christãos, que eu vou fazer, aldeia do Manuel Félix? É o nome do seu chefe... Está dito! Aldeia de Manuel Félix.

Maria explicou ao chefe as palavras do padre, e os mundurucús tiveram um accesso de enthusiasmo louco, rindo como perdidos e gritando uns aos outros, ao mesmo tempo que se apontavam mutuamente com o dedo.

— Itup! Itup! Manuel Félix!

— Taba do Manuel Félix! Itup!

— Manuel Félix Pangip-Hú !

— Itup! Itup! Itup!

Nunca tiveram alegria similhante na sua vida ! O bom padre ria com elles, da simpleza que os levava a achar graça ás cousas mais insignificantes.

— Como é fácil mudar o caracter de povos, que são de natural tão triste ! — pensou elle. — Ah ! se eu tivesse saúde e menos idade... Mas não percamos tempo.

E pedindo logo a Pangip-Hú que mandasse reunir toda a população no terreiro, fez com que Maria subisse a um banco, onde era vista de todos os lados, e começou os seus trabalhos de catechese. A joven india traduzia com grande facilidade as suas palavras, não só por ter sido educada por elle e se tratar de assumptos, que desde anno e meio lhe eram familiares, como também pela natural disposição e intelligencia que tinha para as linguas. O missionário servia-se de imagens e allegorias conhecidas dos Índios; fazia comparações com aves, plantas, flores, com tudo quanto lhe parecia próprio para fixar bem na memoria d'aquelle povo, simples e infantil, a grandiosa poesia do christianismo.

Os Índios, ao principio espantados ou receiosos, começaram dentro em poucos minutos a interessar-se, a tomarem-se de curiosidade, sorrindo ao mesmo tempo com grande gosto de ouvirem os nomes conhecidoSj que o padre misturava poeticamente na lição.

No terreiro havia três ou quatro palmeiras, de cujos cimos se penduravam muitos festões de maracujás floridos ; o missionário puxou uma grinalda, e apanhando uma das grandes flores arroixadas, que deu a Maria, foi explicando por ella os mysterios da paixão. Ao cabo de alguns segundos, cada Índio tinha nas mãos um martyrio igual, e procurava com anciã reconhecer n'elle os symbolos que ouvia ir descrevendo. No fim da prédica choravam todos com o missionário e com Maria ; tinha-se convertido a nação inteirai!

N'esse mesmo dia se começou, á sombra das palmeiras do terreiro, um grande barracão, destinado para futura igreja da povoação christã. Todo o povo trabalhava com ardor igual ao do missionário. Grandes e pequenos, homens e mulheres, mais impressionados talvez pela novidade do que por verdadeiro zelo religioso, andavam á porfia a ver quem havia de fazer mais e melhor !

Uns cortavam as madeiras ; outros as traziam da floresta, arrastando-as por cima de rolos, com peitoraes de envira, que enfiavam no pescoço passando-os por baixo de um dos braços, depois de os prenderem a grandes cipós atados nos madeiros ; muitos abriam as covas e enterravam enormes estacas para se tecerem as paredes ; lançavam os vigamentos e traves ; punham os caibros; travavam e amarravam tudo, com o prego dos Índios, que são os cipós ; estes cobriam o tecto com palha de bussú ; aquelles forravam o interior da igreja com jussáras de paxiuba e folhas de pindoba ; e todos se esforçavam por agradar ao padre.

Completo o edifício, ergueu-se dentro um altar de madeira tosca ; adornou-se com as modestas alfaias que trouxera Félix, compradas com dinheiro do irmão Romualdo ; e o bom velho, que á força de vontade operava milagres, conseguiu que Maria ensinasse um joven mundurucú a decorar, sem ainda as entender, as respostas do ritual, para lhe servir de acolyto !

Foi um dia de jubilo incomparável para o excellente padre, aquellc em que disse .no templo improvisado a sua primeira missa ! Toda a população assistiu ao santo sacrifício, com o maior respeito e acatamento. Dirse-hia que todos comprehendiam já os mysterios da religião, que apenas começavam a conhecer ! De Santarém tinham vindo algumas canoas carregadas de roupas, mandadas fazer pelo bom Romualdo, a pedido do irmão ; e este teve o supremo gosto de ver todos os seus ncophytos de ambos os sexos entrarem no templo com a decência que exigia a santidade do logar. O padre chorava de alegria, ao passo que ia dizendo a missa ; e de cada vez que se voltava para o povo e notava o recolhimento com que este assistia ao acto refígioso, misturava as suas orações de louvor a Deus com as orações da Igreja ; fallava alto, parava, e tinha por vezes tentações de ir abraçar os Índios, que não estavam menos satisfeitos do que elle.

D'ali em diante as cousas caminhavam por si mesmas. A india Maria instruia o chefe na doutrina, ensinava-lhe portuguez e tupi, 6 transmittia a toda a nação as praticas quotidianas, com que a preparara o padre para as ceremonias do baptismo. Félix estudava o dialecto mundurucú, nos intervallos dos seus trabalhos de catechese ; e já se entendia menos mal com os neophytos, a quem explicava também os nomes de todos os objectos do culto, na lingua tupi e na portugueza.

Ao cabo de um mez Pangip-Hú e Maria foram solemnemente unidos pelos laços do matrimonio. Outros Índios quizeram consagrar do mesmo modo a sua união ; os costumes melhoravam-se diariamente ; diminuia a ferocidade nos homens; nascia o pudor e a virtude nas mulheres ; plantavam-se roças em larga escala ; extrahiam-se dos matos as drogas preciosas, que se mandavam para Santarém, onde Romualdo as vendia, convertendo o seu producto em objectos necessários á nascente civilisação da tribu. Sorria aos pobres Índios, mezes antes ainda tão bárbaros e ignorantes, um futuro de paz e alegria, tendo certa no fim da vida a salvação das almas.

De repente, assim como n'aquelle paiz tao bello se turvam ás vezes inesperadamente os ares e desabam sobre a terra e os rios tempestades medonhas, assim o céu azulado e côr de rosa da tribu das cachoeiras começou a cobrir-se de nuvens. O padre sentiu-se peior das suas enfermidades. A sua saúde melindrosa resentiu-se da vizinhança das primeiras cataratas, onde o Tapajós é considerado muito insalubre. Faltaram-lhe as forças para continuar a sua obra, tão admiravelmente principiada. Para não interromper as praticas religiosas, era levado ao coito para a igreja, por Pangip-Ilú, que agora se chamava Manuel Félix, e outro indio. Por fim, deixou de dizer missa; a fraqueza das pernas não lhe permittia ter-se de pé !

— Vamos ficar sem o santo Félix! — dizia tristemente Maria ao chefe. — Está cada vez peior !

O marido não respondia. Tornára-se taciturno com a doença do velho. Não o vendo rir, a nação inteira foi ficando também triste.

— Precisámos leval-o a Santarém — disse um dia a india resolutamente. — Talvez a mudança lhe de saúde?

— A Santarém ? Eu ? !

— Sim. A canoa das missões não está cá, nem volta tão cedo. O nosso ubá maior, com doze remos, e o chefe ao jacumá, vae depressa.

— A Santarém?!

— É preciso salvar a vida do santo velho, que nos tem feito tantos benefícios.

— É preciso. — concordou elie.

— Então, que o chefe mande gente para o ubá. Eu vou levar farinha e peixe moqueado.

— Doze homens dos mais fortes, com armas e remos ! — ordenou lAIanuel.

Depois de tudo prompto, o chefe e a mulher foram ter com o padre.

— Tio Félix — disse Manuel tristemente ; — vamos para Santarém.

— Para Santarém? ! Que historia é essa?

— Diz Maria que é bom para dar saúde.

— Vocês estão doentes?

— O tio Félix.

— Eu ? ! Deixem-me cá. Estou no meu posto ; se morrer é porque Deus assim o quiz. Ora essa ! Ir-me embora e deixar perder todo este trabalho, tão bem começado?! Era o que faltava ! Deixem-me cá, já disse ! Morrerei, cumprindo o meu dever, entre os meus amigos mundurucús.

— Santo Félix — volveu o chefe com as lagrimas nos olhos; — o que tu dizes é bonito e bom, como tu ; mas se tu morreres, não entra cá outro padre.

— Porquê ? !

— Porque não ha outro como tu para os mundurucús.

— Ha muitos ; muito melhores ! Todos quantos ha, são muito melhores do que eu.

— Não queremos outro.

— Como se entende isso?

— Se tu morreres, não receberemos outro. Anda para Santarém buscar saúde.

— E esta?! Que cabeçudo! Mas tu bem sabes que tenho de morrer um dia e que é preciso que...

— Já disse ; morrendo tu, acabou-se !

— O quê, homem ? ! Estou com medo de ti! Pois faltando eu, a minha obra ficaria perdida?!

— Anda procurar saúde, e depois pensaremos.

— Vamos lá. Comtigo não ha partido ! E ta consentes isto, Maria ? !

— Fui eu quem aconselhei.

— Ahl foste tu?! Bem; aqui estou; façam de mim o que quizerem. Seja feita sempre e em tudo a vontade de Deus !

Metteram-n'o na canoa e partiram.

V

Em Santarém

Santarém, assente na margem esquerda, entrando, na embocadura do Tapajós, em terreno de suave declive, gosa de excellentes ares, bella vista para o Amazonas, que itie passa defronte para receber as aguas do seu magnifico tributário, e tem fama de legar farto e salubre.

O chefe mundurucú ficou maravilhado, assim como os seus companheiros, com a posição e tamanho da villa ; admirou a grandeza e apparelho comphcado de um palhabote, uma escuna e dois cuteres, que estavam no porto ; ficou pasmado diante das poucas casas cobertas de telha, que tinha a povoação; c extasiou-se á vista de vários brinquedos de creanças, que havia expostos n'uma loja.

Depois de installado o padre, que parecia ter melhorado um pouco durante a viagem^ Maria foi mostrar miudamente a villa e o porto aos seus compatriotas, dizendo-lhes que na cidade tinham os brancos navios muito maiores do que aquelles, e mais bem armados.

— Tanta corda ! — exclamava Manuel, olhando para as embarcações. — Parecem tauariseiros cheios de cipós !

— Que faria se visses os da cidade! — respondia a mulher, encarecendo, como todos os viajantes, o que os outros não tinham visto. — Aquillo é que é bonito ! Alguns teem três mastros !

— E como se rema? — interrogou o marido.

— Não remam ; é tudo a vela, como as canoas do sertão.

— Hum ! — Manuel abanou a cabeça com ar de desapprovação. — E quando não lia vento?

Maria ficou atrapalhada.

— Faltando o vento?!... Para aquellas bandas ha sempre vento.

— Tinham ubás?

— Ubás?!

— Sim, ubás.

— Não tinham.

— Ah ! os brancos, com toda a sua sabedoria, não tinham ubás ! — exclamou o mundurucú triumphante.

— Tinham canoas pequenas, montarias. — replicou Maria.

— Que se abrem pelas costuras, quando batem nas pedras... O ubá de cedro dos mundurucús é inteiro; apodrece, mas não falha aos guerreiros que lhe confiam as vidas.

Os companheiros applaudiram. A india sentiu que pelo lado das embarcações, a superioridade era toda dos seus patricios; mas como admirara sinceramente as maravilhas dos brancos, replicou :

— E casas? Que dizes ás casas cobertas de telha? Na cidade são todas assim! Algumas teem por dentro muitos repartimentos e por fora são pintadas.

— Itup! — disseram os guerreiros. Manuel olhava para os telhados sem responder.

— Telhas cozidas no forno, tão vermelhinhas! — insistiu Maria.

— No forno?! É tabatinga?

— Sim ; ou barro ; como dizem os brancos.

— Tabatinga ! — gritou Manuel com desdém. — Quebram com pedras! Matam, caíado na cabeça! Nâo tinham casas de bussíi, na cidade ?

— Não. — respondeu a mulher despeitada.

— Não teem bussú, os brancos !

— Não teem bussú ! — exclamaram os outros com admiração.

— Tejupar sem bussú! — repetiu o chefe, rindo.

— Hough! — acudiram os seus companheiros, alegremente.

— Venham cá. — lhes gritou Maria, que acabava de ver abrir a igreja. — Vamos á casa de Tupá. Isso é que na cidade tem que ver!

— De telha. — notou o chefe. — Sem bussú ! ... E de pedra ! — acrescentou, chegando á porta do templo.

— De pedra, sim. — redarguiu Maria. — É muito mais bonito !

— Se cair — observou Manuel — mata o povo. O tecto de pindoba ou bussú não mata.

— Mas não cáe, que o Tupá não quer. Entraram.

Apesar de não ter nada de notável e de não ser de palha, a igreja de Santarém deslumbrou os Índios. Se o padre Félix podesse ver a devoção e gravidade com que elles se ajoelharam atraz da joven india, e a imitaram cm todas as suas demonstrações de piedade, ficaria consolado.

Infelizmente, a doença do bom velho era mais duradoura do que elle e os seus Índios desejavam. Ao fim de oito dias estavam estes aborrecidíssimos da villa e queriam voltar para a sua aldeia. Só a joven Maria se nâo enfastiava na companhia do seu bemfeitor; e desejaria poder ficar com elle, para o tratar da sua enfermidade. Mas aprendera que um dos primeiros deveres da esposa é acompanhar seu marido, e obedecer-lhe em tudo.

— Vamos dizer adeus ao velho. — ordenou Manuel, ao anoitecer do oitavo dia.

— Queres partir?

— Amanhã.

— Vamos.

Entraram no quarto, onde estavam os dois irmãos.

— Tio Félix — disse o homem; — a doença não sáe e os mundurucús estão sem chefe.

— Vaes-te embora, Manuel?

— O chefe não pôde dar saúde ao seu amigo.

— Tens rasão, filho; não fazes aqui nada. Se te tenho demorado é porque esperava poder ir comtigo... E, por mim, iria assim mesmo; porém, meu irmão não quer, zanga-se, ralha...

— Podéra não! Só se eu estivesse doido, é que te deixaria ir n'esse estado !

— O tio Romualdo é sábio. — volveu Manuel. — Quando a saúde vier, o amigo Félix voltará para a companhia dos seus filhos das cachoeiras.

— Deus te ouça! Mas parece-me que nâo torno lá!

— Oh!

— Eu sei ... A vontade é boa! Meus ricos trabalhos, fructificando tão santamente!... E não ter nenhum recurso!... ninguém, que me continue aquella obra! Tenho mandado a toda a parle, pedido a toda a gente, não é possivel arranjar um padre que me substitua! Vim aqui saber que dos ires missionários que estavam ás minhas ordens, acaba de morrer um, outro foi para a cidade sem me dizer nada, e o padre José, com quem sempre contei, caiu com as febres do Tapajós e está em Villa Boim ás portas da morte, se c que não morreu já! Acabo de escrever para a capitai, pedindo pelo amor de Deus que me mandem um padre capaz; veremos o que me respondem. Mas que tempo que isto levará! É preciso que me prometias receber o padre que eu mandar ; se Nosso Senhor não quizer que eu lá torne.

— Deus ha de querer. Os mundurucús não podem passar sem o seu amigo.

— Mas se eu não poder ir? Promettes?

— Manuel fará sempre a vontade do seu amigo Félix.

— Deus te abençoe, meu fllho.

— Também eu te quero pedir um favor, Manuel. — disse Romualdo.

— O tio Romualdo é irmão do tio Félix.

— Desejo ser padrinho do primeiro filho ou filha que tiveres ; has de trazel-o a Santarém, para se baptisar; e, se for rapaz, quero fazer d'elle um grande homem, deixando-me tu educal-o. Consentes?

Manuel sorriu-se, respondendo:

— O amigo Romualdo é bom como o tio Félix. Se elle quizesse ir ensinar os mundurucús, emquanto o santo não pode?...

— Não sou padre, meu amigo.

— És bom e sábio como teu irmão ; o chefe obrigaria o seu povo a obedecer-te, como ao amigo Félix.

— Não o posso substituir. Roguem a Deus que lhe dê saúde, porque nunca acharão outro padre que os ame tanto como elle.

— Oh ! não, não ! Como elle, não ha ! — responderam marido e mulher enternecidos.

Abraçaram-se todos, e os mundurucús partiram.

Os padecimentos do bom velho tomaram o estado chronico, e não lhe permittiram voltar ás cachoeiras. Da cidade responderamlhe, que os padres não chegavam para as missões mais próximas; que se tinham já feito sobre esse assumpto differentes representações a Sua Magestade, e que se remetteria também para a corte o relatório do padre Félix, porque o caso dos mundurucús, que elle contava tão poeticamente, era em verdade digno de subir á presença do soberano, para que se não perdesse a boa semente lançada á terra. A resposta concluia por dizer, que Sua Magestade, conhecendo pessoalmente o padre Félix, não deixaria de attender ao seu pedido; e que tanto o governador como o bispo sentiam vivamente não haver um único missionário disponivel para lh'o mandarem.

— Perdi toda a esperança. — disse Félix tristemente para o irmão, acabando de ler esta carta.

— Quem sabe?! — respondeu Romualdo. — Elles mostram interessar-se ; e visto que mandaram a tua exposição para a corte...

— Tu não sabes o que são governadores, e bispos, e cortes, quando se trata de gastar alguns minutos de attenção com um pobre padre, atirado por apparato social para o seio das florestas virgens. Importa-lhes tanto que elle catequise os selvagens como que seja comido por elles ! Deus me perdoe esta má lingua, provocada pelo desespero de ver tantas ahnas, que eu tinha posto no caminho da salvação, despenharem-se outra vez no abysmo da ignorância! Meu Deus, meu Deus, compadece-te d'elles!

— Não desesperes assim !

— Verás se alguém torna a fallar n'isto!

Decorrera um anno depois que Manuel Félix e sua mulher se tinham separado do padre. Este continuava quasi entrevado, em Santarém; os seus passeios limitavam-se a andar encostado a um pau, á roda do cercado ou quintal povoado de bananeiras, araticús, mangueiras e, laranjeiras, que havia na casa do irmão. Ás horas do calor atavam-se as redes nas arvores; o padre deitava-se n'uma d'ellas, lamentando sempre o seu estado e a perda dos seus Índios das cachoeiras ; e Romualdo sentava-se n'outra, consolando-o com palavras aíTectuosas, ou lendo-lhe, n'algum livro favorito, cousas de religião e de moral.

De padre que o substituísse nunca ninguém lhe fallou mais. Os espíritos andavam preoccupados, no Pará e na corte, com as noticias da revolução de 1820, em Portugal. Quem podia lembrar-se, vendo abalados pela base os alicerces das velhas sociedades europeas, de que havia um rio no Brazil chamado Tapajós, onde uns pobres índios necessitavam de quem os ajudasse a completar a obra da sua redempção ? ! A sabedoria humana trabalhava em grande n'esse momento; não podia descer a miudezas; occupava-se do geral, e não do particular ; pensava em reformar nações, e não em civilisar aldeias. O vento que andava no mundo sacudia as cabeças, e fazia cair d'ellas opiniões que espantavam os próprios que as enunciavam. Era 1820 o precursor das novas ideias, que annos depois transformavam a colónia em paiz independente e a metrópole em terra de homens livres. Rei e governos, diante da gravidade das circumstancias, tratavam da própria salvação, 6 não da alheia. O padre Félix comprehendeu isto ; deu a sua causa por perdida, e, sem se resignar nem esquecer d'ella, deixou de esperar o remédio, que sempre suspeitou que lhe não mandariam.

Uma tarde em que elle estava, como de costume, deitado na rede, ouvindo ler o irmão, abriu-se a porta que deitava para o copiar, e appareceram a ella Maria da Conceição, com uma creança ao collo, e seu marido Manuel Félix, seguidos por alguns outros Índios.

— Tio Félix?

O velho deu um pulo, com que ia quasi rebentando as cordas da rede.

— Maria! Manuel Félix! Cuidei que se tinham esquecido de mim?!

Conseguiu levantar-se e foi abraçal-os.

— Estávamos á espera que o pequeno se pozesse capaz de fazer a viagem. — respondeu Maria.

— Um pequeno?! — gritou Romualdo — Então é meu? Palavra de homem de bem, nâo torna atraz.

— Ainda mama, tio Romualdo.— tornou o chefe mundurucú. — Quando elle roer um caroço de tucumâ, o chefe virá trazel-o.

— E a nossa gente?! — interrogou o padre. — Já se não lembram de mim, nem da doutrina? Deve estar tudo esquecido!

— Maria faz a pratica todos os dias ao povo, conforme o senhor padre ensinou e mandou — volveu, corando, a india; — mas nem todos vão ouvir; palavras de mulher não fallam ao coração, como as do senhor padre.

— Isso dizem elles, para fugirem da igreja! — replicou o padre. — Madraços! Vadios ! Deixa estar, que se eu lá poder ir ainda, hão de me ouvir! Mas não importa; continua sempre a explicar-lhes a palavra de Deus, minha filha. Fazes um grande beneficio á tua alma e ás dos que quizerem aproveitar as tuas lições.

— O tio Félix já viu o pequeno Goataçára? — interrogou com certo desvanecimento o pae.

— Goataçára ? ! Quem lhe poz esse nome ? !

— Como elle engatinha sem parar, á roda do terreiro, o povo chama-lhe caminhante, peregrino e passeador...

— É isso que quer dizer a palavra tupi. Nâo me opponho a que tenha esse appellido; mas precisa nome de christãos, e vamos baptisal-o.

— Viemos para isso, e para ver o amigo padre e o amigo Romualdo.

— Compadre Romualdo, se faz favor! — disse este, sorrindo.— Parece-me que sou eu o padrinho?

— A mulher do chefe também já chama ao pequeno Romualdo Goataçára. — tornou Manuel.

— Elle é galante!— observou o padre.

— Podéra não! — respondeu Romualdo. — Basta ser meu afilhado. — Depois, pegando no pequenito ao collo, continuou, dirigindose a elle:— Promettes ser um homem ás direitas, tornar-te útil á tua familia e ao teu paiz? Ora vê lá como te portas! Olha que eu nâo admitto afilhados tolos! — Beijou a creança e disse ao irmão: — Tu não estás em termos de ir á igreja...

— Qual não estou! Verás se estou ou não; e para não ser mais tarde, ha de ser já amanhã. Nunca é cedo para fazer uma alma christã.

— Mas, olha... amanhã...

— Não tenhas receio ; vou pelo teu braço.

— Sim, mas...

— Que achas?

— É que ... eu queria fazer uma cousa de estrondo, que desse nas vistas...

— Asneira !

— Se o rapaz for alguém, quero que se lembrem do seu baptisado, e digam que o padrinho não foi nenhum unhas de fome.

— Vaidade pueril !

— Deixa.

— Faze o que quizeres.

O baptismo de Romualdo foi um acontecimento notável na villa de Santarém. Deram-se esmolas a todos os pobres, que appareceram á porta da igreja, e comida franca a quem quiz ir a casa do padrinho. Os companheiros de Manuel tiveram banquete separado, com vinho, que lhes permittiu dormirem vinte e quatro horas a fio, sem ninguém os sentir.

Manuel e Maria jantaram á mesa da família, com os convidados brancos. Verdade seja que esta honra foi um dos mais dolorosos transes por que passou em sua vida o chefe mundurucú. Sua mulher estava já familiarisada com alguns dos costumes da civilisação e sabia servir-se dos garfos e colheres ; porém elle ficou desagradavelmente surprehendido, quando o mandaram sentar n'uma cadeira, em frente da toalha lavada que cobria a banca, tendo diante de si um prato e um talher. Durante o tempo em que o padre residira na taba mundurucú, se acaso usara lá d"esses instrumentos nunca se servira d'elles na presença de Manuel, ou este, não tendo tenção de adoptal-os, prestára-lhcs pouca altenção. O certo é que vendo-os agora ali, julgou primeiro que tão graciosos objectos seriam presentes, para levar comsigo e pendurar ao pescoço nos dias de gala. O feitio do garfo sorria-lhe, e imaginava já adaptal-o á ponta de uma frecha, para o applicar aos lombos dos tucunarés e tambaquis: da faca sabia também que partido se podia tirar; porém a colher preoccupava-o mais seriamente; reconheceu que precisava meditar com descanso acerca do destino que lhe daria quando regressasse á maloca. No meio d"estas cogitações, serviram-lhe um prato de sopa; a vasilha pareceu-lhe imprópria para beber, e esteve tentado a pedir uma cuia ; não lhe permittindo comtudo o respeito que tinha aos hospedes tamanha semceremonia, pegou no prato para leval-o á boca, porém a mulher puxou-lhe ao mesmo tempo pela manga da camisa:

— Não risgues a camisa nova do compadre Romualdo! — gritou elle.

Todos o olharam, sorrindo com indulgência. Maria disse-lhe em voz baixa :

— Come com a colher.

O chefe procurou a colher á roda de si, por nâo saber o que era; foi necessário que Maria lh'a mettesse na mão, ensinando-o a servir-se d'ella. Esta maneira de comer, afigurou-se-lhe estúpida e pouco digna de um grande chefe ; mas para não offender os seus amigos, sujeitou-se a ella. Concluida a sopa, que achou boa, lambeu o prato e voltou-o com o fundo para o ar em cima da mesa. Os convidados, que por acaso lhe reparavam na cara, mal podiam suster o riso ; o neophyto social, que fizera como as creanças pequenas, quando pela primeira vez pretendem comer por sua mão, tinha o rosto litteralmente coberto de sopa. Maria fez com que se limpasse ao guardanapo, que tinha ao lado, ao que elle accedeu de má vontade, aproveitando comtudo os bocados de macarrão que vieram pegados ao panno.

Ainda não estava bem em si do primeiro ensaio, quando viu Romualdo espetar o garfo n'uma peça de carne e começar a cortal-a aos bocados. Este processo pareceu-lhe melhor que o da sopa e metteu a mão na travessa, para tirar o seu quinhão, á maneira mundurucú. O compadre antecipou-se rapidamente, dando-lh'o espetado no garfo.

Manuel riu muito d'este acto, que tomou por graça de Romualdo ; pegou com a mão direita no garfo e tirou com a outra a carne, que comeu em duas dentadas. Maria, muito envergonhada, mostrava-lhe como devia haver-se com aquelles utensilios; porém elle reagia, persuadido de que taes usos eram indignos da sua seriedade.

Ao lado de cada conviva estava um pires com farinha de mandioca, que era ainda n esse tempo o pão commum de muitas povoações do sertão. Os convidados comiamn'a ás colheradas ; Manuel apanhava-a aos punhados, que atirava de longe pela boca dentro, vaidoso de poder mostrar a sua habilidade de pelotiqueiro í Do meio do jantar em diante, o vinho começou a reconcihal-o com o systema de comer dos brancos, e quiz fazer-se amável, imitando-os ; para esse effeito tirava do prato com a mão esquerda as iguarias, que, para o livrar de diíTiculdades, lhe serviam já cortadas em bocados, e espetava-as no garfo, que linha na direita; apanhava com os dedos um pugillo de farinha, que deitava cuidadosamente na colher, e comia depois, rindo muito da sua destreza.

Um francez, que passara por Santarém em viagem scientillca, ensinara Romualdo a fabricar gelo. Á sobremesa serviram-sc vários doces, que Manuel apreciou muito, e por fim deram-lhe um sorvete de ananaz. O excellente mundurucú, que tinha bebido nobremente por seis, achou bonito aquelle castello de neve, levantado a dobrada altura das bordas do copo. Apesar de ver os outros comerem lentamente, ás colherinhas, tomando golos de agua sobre cada bocado, quiz saborear a cousa mais a seu modo, e, pegando no copo, enfiou a dose pela boca dentro de uma assentada; porém, acto continuo, deu um salto, derrubando a mesa com tudo quanto tinha em cima, expelliu a neve contra a cara do prior, que lhe ficava defronte, e saiu a correr para o quintal.

— Vão atraz d'elle ! — gritava Romualdo, apertando as ilhargas, e sem pensar no prejuízo das louças quebradas. — Corram atraz d'elle e deem-lhe outro copo ! Isto vale um conto de réis !

Todos andavam aos tombos com riso, e Manuel, que tinha enchido a boca de terra, ouvindo as gargalhadas estrepitosas dos brancos, subiu por uma mangueira e escondendo-se no mais espesso da folhagem, pozse a comer mangas, para ver se lhe passava o frio que sentia na garganta. Maria fora atraz d'eUe, sem saber se deveria rir ou chorar de vergonha, e gritava-lhe debaixo da arvore :

— O que achaste? Eu não quiz provar... Elles perguntam se queres outro copo?

— Hough! — fez Manuel, largando-lhe uma manga na cabeça.

— Basta de judiarias ! — dizia o padre Félix, que mal podia tambem conter o riso. — O Romualdo parece um rapaz! Deixassel-o comer a seu modo e não lhe servisses cousas que elle nâo conhece.

— Perdão, mano Félix ; mas eu dava muito dinheiro para ver aquillo outra vez !

— Pois eu não! — rugiu o prior, vermelho como um pimentão e acabando de limpar o rosto. — Cuspiu-me a neve em cheio na cara ! Para dar uma apoplexia n'um homem, quando se está tão quente, não é preciso mais nada!

O resto do dia passou-se todo alegremente. Conseguiu-se que o mundurucú não tomasse á má parte o riso que tinha provocado ; e alguns copos de licor predispozeramn'o para acceitar, na generalidade, os jantares dos seus amigos brancos, com a única mas absoluta exclusão dos sorvetes.

VI

Goataçára

Os acontecimentos políticos, que transformaram o Brazil em nação independente, e o estado de agitação em que durante annos se conservaram as províncias do norte do novo império, iniitilisaram completamente os trabaltios de catecliese, tão auspiciosamente inaugurados no Tapajós pelo padre Félix. Os mundurucús das cachoeiras reentraram lentamente nos hábitos e costumes da vida dos bosques. Manuel Félix principiava a gostar novamente do nome de Pangip-Hú; e sua mulher não reagia, se lhe chamavam Flor de Cajueiro. Nos primeiros tempos conseguira o padre que o chefe e sua esposa fossem todos os seis mezes fazer-lhe uma visita a Santarém, levando de cada vez quinze ou vinte dos seus homens, a quem o bom missionário avivava, por meio de longas praticas, os poucos conhecimentos religiosos que lhes tinha dado ; ao mesmo tempo exhortava Maria, para que proseguisse sempre com igual fervor nas explicações da doutrina, que ella costumava fazer ao seu povo, na igreja da aldeia. Mas estes generosos esforços do bom velho não deram grandes resultados.

O pequeno Romualdo, que tinha crescido rapidamente, era ainda um laço de união entre o missionário e os mundurucús ; tendo ficado definitivamente em casa do padrinho, para começar a sua educação, os pães iam vel-o de vez em quando, e d'esse modo conservavam latentes as suas crenças religiosas ; porém a distancia era grande ; as viagens foram-se espaçando pouco a pouco e cessaram por fim de todo. FeUx e Romualdo lembraram-se de mandar um dia o pequeno passar o mez das ferias á sua aldeia, na esperança de que á volta elle seria trazido pelo pae e a mãe e se reatariam as relações interrompidas.

Um anno depois do nascimento de Romualdo tivera Maria uma filha, que se baptisára com o nome de Gertrudes. O padre fizera bastantes esforços, para que o pae e a mãe lh'a dessem tamhem para ser educada em companhia do irmão.

— Vossês bem vêem que não posso lá tornar — dizia elle, n'uma das visitas que lhe fizeram os indios ; — estou tolhido das pernas e isto nâo se cura. Deixem cá a pequena, que, alem de se instruir, me faz bem bom arranjo, para me tratar.

— O amigo Félix já tem o afilhado.

— Esse é do padrinho. E não lhe chega o tempo para estudar.

— O chefe precisa quem faça farinha e saiba moquear, quando Maria for velha.

— Gertrudes tem apenas sete annos ; eu poderei durar ainda uns três ou quatro... depois de eu morrer a levarás.

— Faz falta, para apanhar fructos e trazer agua...

Todo o empenho do padre foi inútil. Receioso talvez de novas instancias, o mundurucú esteve alguns annos sem tornar a ir ver o filho e os seus amigos de Santarém !

Durante esse tempo a educação de Romualdo progredira muito. Era elle dotado de prodigiosa intelligencia ; aprendia tudo com facilidade, e mostrava, como sua mãe, grande propensão para as linguas. Aos dozes annos tinha-se desenvolvido tanto que o padrinho pensava em o mandar para a Europa, desejoso de que se formasse em medicina. O padre achava cedo, porque queria acabar de lhe ensinar latim a fundo.

— Deixa-o crescer mais. Entretanto, vamos mandal-o todos os annos passar as ferias á sua aldeia. Pode ser que o pae e a mâe renovem as visiías, e se não perca de todo aquella sementeira de almas...

— É uma experiência de que nâo espero nada ; mas faze a tua vontade.

No fim do mez vieram effectivamente os pães de Romualdo, acompanhal-o a Santarém; mas detiveram-se ali apenas um dia, pretextando a apanha da mandioca. A verdade porém era que o chefe ia tomando cada vez mais gosto á sua antiga existência. E o filho voltara grande admirador das florestas, e de muitos dos exercidos heróicos dos mundurucús !

Nos três annos seguintes repetiram-se as viagens, durante as ferias ; o moço ia muito contente e enlhusiasmado para a sua aldeia; e os pães vinham trazel-o á villa, assim que terminava a licença ; comtudo, nunca mais quizeram demorar-se, apesar de testemunharem sempre o mais profundo respeito e allecto aos seus amigos brancos.

O padre e o irmão, que se desconsolavam com o afastamento dos compadres, começaram a notar que o joven Romualdo parecia regressar das suas idas á terra muito menos amigo do estudo ; e o padrinho ouviu-o dizer uma vez aos creados, que gostava mais de atirar á frecha e de lutar com os seus patrícios do que de aprender latim e lógica e de ajudar á missa ! O velho Romualdo resolvera adoptal-o por filho, porém exigia do irmão que primeiro o separasse inteiramente do pae e da mãe, e para isso entendia que o melhor meio era mandal-o para a Europa.

— Os quinze annos estão á porta — dizia o padrinho ; — é tempo que elle parta. Bem sabes que o amor paternal é um sentimento frouxo nos selvagens, e o maternal quasi nullo. Vê a indifferença com que Manuel Félix e a mulher estiveram quatro annos sem vir ver o pequeno !

— Não digo que não tenhas rasão em parte — respondeu o padre; — mas considero um acto sacrílego privar o filho dos seus progenitores; o meu dever de christão é procurar despertar-lhes esses sentimentos ; fortalecer e não quebrar os laços da família; fazer comprehender á mãe a gloria da sua missão, e ao pae os deveres e direitos da paternidade. Que eu desconfio que a culpa é toda de Manuel ! A mulher é muito temente a Deus, e parecia-me boa mãe... Elle também estava já mudado ! ... Se não fosse a minha doença ! ... Deixei-os suspensos entre o céu e a terra, entre a civilisação e a barbárie ! Sem padre, continuando com os seus costumes dos matos, era natural que voltassem ao que tinham mais á mão! Apesar de tudo, custa-me a tirar-lhes o filho... Com que direito o faremos?...

— Com o direito de lhe salvarmos a alma.

— É grande, não ha duvida; mas duvido se o temos... tão absoluto.

— Não o afastando por uma vez da maloca, perde-se inteiramente. Querendo fazer-se alguma cousa d'elle, convém separalos. O pae, convertido por milagre, tão dócil e religioso ao principio, tornou ao viver antigo, talvez para manter a auctoridade de chefe, que entre os seus só se conserva pela força e por actos de grande selvajaria.

— Pôde muito bem ser. Ah! que se eu podesse lá ir ! ... Com a ajuda de Deus, mudava tudo outra vez de repente.

— Isso mudavas ! Mas se não podes?... É melhor não pensar mais n'isso.

— Olha Romualdo: apesar de tudo, tenho ás vezes lembranças bem exquisitas! Parece-me que volto lá, que elles se me deitam de joelhos aos pés, que me abraçam, que choram commigo, e depois que morrem quasi todos, e que os vejo subir para o céu ! Isto não pôde ser senão enfraquecimento do meu cérebro... e contudo, não sei que esperanças loucas me afagam o coração!...

— A Deus nada é impossível ; e comtigo tudo é possível se Elle te ajudar. Entretanto, precisámos resolver isto do pequeno. Mando-o para Portugal concluir os preparatórios, e depois forma-se em Coimbra?

— Sempre o queres para medico? Parecia-me melhor padre ...

— Para vir encher-se de achaques, com as aguas perniciosas das cachoeiras do Tapajós, como te aconteceu a ti?! Deixa-o antes pôr-se em estado de curar os outros.

— O essencial é habilital-o com os preparatórios, e deixal-o depois seguir a carreira para que mostrar maior vocação; tendo sempre em vista que os seus estudos o possam collocar um dia em posição de ser útil ao seu paiz e á humanidade.

— De accordo.

— Mas olha que vou perder o meu sonho de quinze annos, Romualdo ! Tu bem sabes que este pequeno era a alavanca, com que eu esperava mover o rochedo que está esmagando a minha obrai Fazendo-o padre, certa estava a regeneração dos mundurucús.

— Tu próprio me tens dito muitas vezes que duvidas da sua vocação ! ...

— É verdade— volveu tristemente o missionário ; — até suspeito que tem repugnância para a vida ecclesiastica ! Talvez que as tuas ídéas lhe tenham calado fundo no espirito, porque ainda aqui ha dias o ouvi dizer que já tem estudado as propriedades medicinaes de muitas plantas, para as applicar logo que seja medico.

— Então deixa-o ir; elie que escolha livremente, segundo as suas inclinações.

— Pois que vá; e faça-se como for da vontade de Deus !

— Segundo a tua opinião, que não desapprovo, convém mandal-o pedir licença aos paes?

— Sem isso, não partiria.

— Se queres, como é pela ultima vez, dão-se-lhe quinze dias para estar com elles?

— É justo.

Apesar de costumado á vida civilisada, aos usos, alimentos e commodidades da casa dos dois excellentes irmãos, que o creavam e educavam, nunca era sem grande satisfação, como já se disse, que o joven Romualdo reembarcava na canoa que subia o Tapajós, fazendo escalas por Alter do Chão, VillaBoim, Pinhel. Aveiro, Guaranacá, Sipotúba, e outras aldeias, antes de chegará cachoeira de Todos os Santos e ao salto do S. Simão. Nos costumes da sua tribu havia certamente cousas que lhe desagradavam; gostos que repugnavam á sua segunda natureza, feita pela educação : mas o padre ensinára-o a não perder por nenhuma rasão humana o amor e o respeito, que os filhos devem aos pães; e as viagens que elle fazia á laba, onde os seus viviam, conservavam sempre viva a sua aífeição por elles, impedindo que se quebrassem de todo os laços que o prendiam á vida mundurucú.

As recordações da infância assaltaram-n'o agora tumultuosamente, logo que largou do porto de Santarém, acompanhado por quatro tapuios de confiança, remadores das canoas do padrinho. Povoavam-lhe a mente as lembranças de todos os variados exercícios da pesca e da caça ; as carreiras e lutas em que nos últimos annos saíra sempre vencedor dos rapazes da sua idade; os tiros de frecha ao alvo; os combates com o jaguar e com a giboia, que elle feria sempre primeiro que os outros, com applauso dos guerreiros velhos, e do próprio pae, que gritavam enthusiasmados:

— Goataçára ! Filho do grande chefe ! Deixa os brancos, e vem commandar os mundurucús, quando teu pae descer ao paiz da morte !

O moço ardia de impaciência ; a magnifica espingarda, que lhe tinha dado o padrinho e causava a admiração da sua tribu, não bastava para distrahil-o durante a viagem. As garras, os mergulhões e os CiU"arás mostravam-se-lhe debalde, ora pousados nos ramos das arvores, que se debruçavam sobre o rio, ora nadando n'este, a pouca distancia da embarcação. Elle pensava no seu arco de pracuúba, nas frechas e no tacape, que lhe dera o pae, e que elle confiava á guarda de Gertrudes, de cada vez que ia á sua aldeia, só depois de estar dentro do ubá que o reconduzia á villa. Lembrava-se também com enternecimento da boa Maria, que entrevendo vagamente o salto enorme que elle dava da farta residência dos seus protectores para o humilde teju par dos Índios, e a desproporção de gostos entre as comidas dos brancos e as dos mundurucús, empregava todos os seus cuidados para que elle sentisse o menos possivel essas diíTerenças. Aindia aprendera a cozinhar, durante o tempo da sua educação; e, ou porque tivesse realmente o segredo de bem temperar os alimentos, ou porque não hnja manjares tão deliciosos como os que sabem preparar as mães para seus filhos, o certo é que Romualdo ia ardendo em desejos de gula, pensando na modesta cozinha da casa materna.

Manuel Félix Pangip-Hú e Maria Flor de Cajueiro, como elles voltaram a chamar-se, desde que tinham recomeçado as suas viagens â villa, condescenderam facilmente em que Romualdo fosse ver o paiz dos brancos.

— O teu padrinho que te dê bastante dinheiro. — lhe disse a máe. Eu vi, na cidade, que o dinheiro é tudo para os brancos.

— Se Manuel Pangip-Hú quizesse, daria muito oiro ao compadre Romualdo e a seu filho ; mas o oiro foi a desgraça de nossos antepassados, e o chefe não ensina as minas do Arinos.

Os quinze dias passaram como um sonho para o moço viajante.

— Gertrudes, guarda bem as minhas armas ; d'esta vez tenho de me demorar mais tempo. Dá cá os meus macacos e o meu papagaio ; deixal-os ir viajar também para onde quizerem.

Soltou os bichos, que, em vez de fugirem para o mato, seguiram atraz d'elle até á borda do rio, querendo os bugios metterse á força na canoa, e nâo desistindo da tentativa sem grande berraria. Manuel e Maria, como se bem comprehendessem pela primeira vez que aquelle filho era seu, apesar de creado longe d'el!es, foram sentar-se tristemente dentro do ubá, onde já estavam os remadores que deviam conduzil-o a Santarém; o chefe tinha os olhos húmidos, e Maria olhava com sombrio silencio para as aguas negras e profundas do rio. Romualdo, chorava, deitado no fundo da canoa de cedro.

— Os brancos são bons — murmurou o chefe, abanando a cabeça ; — mas ensinam os filhos dos guerreiros a deitar agua dos olhos, como os troncos do anani e da seringa feridos pelo tacape de ferro!

Romualdo levantou-se envergonhado, pegou no remo, sentou-se ao lado da mãe, e o ubá partiu, arrebatado pelos braços vigorosos de doze mundurucús, que acompanhavam Manuel Felix ao bota-fóra de seu filho.

Chegando defronte de Santarém, os viajantes ficaram surprehendidos por verem uma parte das casas a arder, e grande multidão de gente desconhecida correndo pelas praias e ruas, que se avistavam do rio, dando tiros, gritando, e acommettendo, ou incendiando as habitações que ainda não estavam queimadas! Suspendeu-se o movimento dos remos, e os mundurucús consuUaram-se sobre se deveriam approximar-se da terra. N'essa occasião atravessava do Tapajós para o Amazonas uma canoa, com muitas mulheres e dois ou três brancos, que remavam a toda a força ; de terra fizeram-lhe alguns tiros, no momento em que a embarcação se cruzava com o ubá.

— Hough! — gritaram Manuel Félix e os seus homens, saltando sobre as armas.

A gente da canoa, persuadindo-se de que ía ser acommettida por elles, começou a gritar-lhes, que a deixassem fugir.

— De quem fogem e porque estão queimando a villa? — perguntou Maria.

— Não sabem ? Vossês não pertencem aos inimigos ?

— Somos Índios da tribu mundurucú ; vamos procurar o padre Félix e seu irmão Romualdo.

— Ah ! Então fujam depressa ! Os bons velhos foram mortos pelos cabanos, que estão queimando a villa, como já fizeram á cidade do Pará e a outras povoações.

A canoa, que tinha largado as suas velas emquanto um dos brancos faltava com os mundurucús, afastou-se rapidamente, seguindo para o Amazonas.

— Mataram o santo Félix e o compadre Romualdo ! — exclamou a boa india, desatando a chorar.

— Os meus queridos padrinhos ! — gritou também seu filho, inundando-se-lhe os olhos. — Vamos lá, meu pae, vamos lá vingal-os !

O chefe, que se tinha erguido, curvou-se e retezou silenciosamente a corda do arco. Todos os outros o imitaram sem proferirem uma palavra. Romualdo carregou a espingarda com bala. Maria soluçava.

— Não chores, mulher; antes de conhecermos os brancos, não havia lagrimas nos olhos dos mundurucús ; elles ensinaram-nos a rir e a chorar, contando-nos as alegrias e as tristezas do seu Tupá ... O rir é bom, quando o guerreiro tem bebido os suecos fermentados do caju e do aipim ; as lagrimas queimam o rosto, como os fructos da pimenteira, pisados no tucupi, queimam a boca da çreança. Não chores, que o tio Félix e o compadre Romualdo terão quem os sirva no paiz da morte. As tradições e memorias do povo mundurucú não dizem o nome dos Índios cabanos ; se é tribu de brancos, lá se avenham entre si, com os seus systemas de guerra e com os indios mansos seus alliados.

— Não pôde ser — respondeu Maria ; — brancos não matavam aquelles dois santos. Da utlima vez que viemos á villa, ouvi dizer, em casa d'elles, que os cabanos eram indios mansos : tapuios e homens de outras cores, que tinham queimado cidade e muitas villas, para matar e roubar a gente d'alem dos mares.

Manuel meditou um instante.

— O chefe vae convocar os velhos da tribu a conselho; se a voz da sabedoria ordenar que o tio Félix e o irmão Romualdo tenham vingadores, as suas almas ficarão contentes nas planicics do céu, ainda que para isso tenha de ficar exterminada a raça de Pangip-Hú, filho do grande Woipaigupi.

Manuel largou o arco e empunhou o jacumá ; os outros pegaram nos remos, e o ubá, que voltara a proa para cima, parecia uma frecha despedida do arco a cortar as aguas transparentes do rio.

VI

Conselho na taba

Da igreja, improvisada quinze annos antes pelo missionário, restava de pé unicamente o tejupar, coroado por uma cruz de pau, que tinha já perdido as formas, sob o macisso de jasmins e de maracujás, que n'ella foram enroscar-se, depois de terem coberto inteiramente o tecto de palha apodrecida do modesto edifício. O altar fora devorado pelo cupim ; as imagens de barro quebraram-se ; duas ou três gravuras, que pendiam das paredes, em caixilhos pretos, estragaram-se com a humidade ; o cálix e as galhetas foram applicados para outros usos, por alguns jovens mundurucús ignorantes ; um Christo de pau, pregado em cruz de oliveira, foi piedosamente recolhido por Maria, no seu tejepar, depois de também mutilado pelos vermes ; e a pequena sineta, primitivamente pendurada n'um ramo de arvore, defronte da porta da igreja, viu atrozmente invertido o seu pacilico e religioso destino, porque servia agora para um guerreiro a levar na mão e tangel-a com fúria, ao som do borè, nas occasiões de investida contra os inimigos !

Nos primeiros annos da ausência do padre, a piedade de Maria conseguira manter o respeito devido ao recinto sagrado. Como no tempo do missionário, ella tocava o sino, reunia o povo, e fazia as praticas religiosas que lhe ensinara o veldo; limpava cuidadosamente o rústico templo; alumiava as imagens com azeite de nandiroba ; renovava na pia de pau a agua, que tinha por benta desde que entrava na igreja ; e collocava todos os domingos sobre o altar alguns bellos ramos das flores maravilhosas, que produzem aquellas florestas. Mas, pouco a pouco, o numero dos ouvintes fora diminuindo ; faltava-lhes quem soubesse attrahil-os o caplival-os, amenisando a sciencia das cousas de Deus; e chegou um dia em que a devota mulher se achou sósinha no templo, depois de ter tocado inutilmente a sineta, para a oração do costume ! A fé entibiâra-se em todos os corações ; e os mundurucús recuavam insensivelmente para os tempos da sua ignorância barbara. Debalde a Índia instava com o marido, para que os obrigasse ; este respondia-lhe, que desde que elles foram mais dóceis, obedecendo aos preceitos religiosos, se tinham tornado menos obedientes ao chefe, quando elle queria leval-os ao combate; que o seu povo era exclusivamente guerreiro, e não podia passar a vida a cantar a ladainha, em riscos de ser surprehendido pelos apiácas, seus cruéis inimigos; que o padre Félix era um santo, mas desde que se tinham relacionado com elle, e se baptisaram, os mundurucús já não pareciam os mesmos homens ; que se continuassem assim, viria tempo em que seriam vencidos e prisioneiros até pelas mulheres dos seus adversários.

A Índia, não achando rasôes para oppor a esta philosophia barbara, cedeu também por fim, e as viagens a Santarém foram rareando cada vez mais, d'ali em diante.

Nos últimos dois annos o templo profanou-se completamente, para um destino inverso do que devia ter. Seguia a sorte da sineta ! Sendo mais espaçoso do que o casarão, onde se faziam anteriormente as reuniões da tribu, os anciãos escolheramn'o para logar do conselho ; e ali se reuniam, quando tinham que deliberar sobre os negocios mais graves. O trocano ou tambor nacional foi posto ao centro, para se tocar nas occasiões solemnes; os velhos, que não tinham perdido ainda o vigor do corpo e do espirito, acocoravam-se em torno do monstruoso instrumento, fumando cigarros feitos com a casca do tauariseiro. As mulheres e os moços não tinham entrada nas reuniões do conselho, salvo se estes fossem chefes. Terminada a discussão, o cacique era obrigado a guiar-se pelos votos da maioria, como nas assembléas primitivas da Grécia e nas de todos os governos largamente democráticos. Vê-se que n'esta parte os mundurucús aspiravam á gloria das nações politicas mais adiantadas ; e que se tivessem duas camarás, em vez de uma só, ficariam a par dellas !

Logo que Manuel chegou á taba das cachoeiras, reuniu os anciãos na igreja profanada, e communicou-lhes o que tinha presenciado.

— O padre era amigo dos mundurucús e o irmão, compadre do chefe — disse elle; — o tio Felix fumou do nosso tabaco, e deunos do seu vinho e da sua aguardente; dormiu nos nossos tejupares, e levou-nos á sua villa, onde nos tratou como irmãos; deu-nos muitos presentes; trabalhou para nós, o não nos obrigou nunca a trabalhar para si, como fazem muitos brancos a todos os mundurucús que teem ido para as suas aldeias; ensinou-nos a conhecer o seu Tupá, que é bom e amigo do homem de todas as cores, porque foi Elle quem fez o Tapajós e o encheu de peixe, quem poz a caça nos nossos matos e nos deu maniba para crear a mandioca, o cedro para os ubás e o bussú para os tejupares. O Tupá do tio Félix entregou aos homens tudo isto, e não lhes pediu nada em troca! Vós acreditaes que Elle é bom e que devemos adoral-o?

— Sim, sim! — disseram muitas vozes.

— Esperae — volveu um velho dos mais valentes. — Elle quer, em paga do que nos deu, que não matemos os inimigos! Que perdoemos aos que nos roubam a terra de nossos pães, que nos matam os nossos filhos e comem a nossa carne, quando nos fazem prisioneiros! Se consentis em perdoar aos inimigos, quebraeas armas, largae os ubás á corrente do Tapajós^ queimae os tejupares, e mandae as vossas filhas levar á tribu dos apiácas os cipós com que elles devem vir amarrar-vos, os tangapemas para vos matar, depois de prisioneiros, e os vinhos do sacrifício, para o banquete em que hão de ser comidos os companheiros do valente Woipaigupi.

Um immenso rugido de cólera acolheu estas palavras ; os homens qne as ouviram acocorados em roda do fogo, ergueram-se de salto, em toda a grandeza de suas altas estaturas, e correram para as armas, que tinham encostadas á parede.

Romualdo, a quem se tinha permittido, por favor especial, assistir ás deliberações da assembléa por ser filho do chefe, afilhado do padre e de seu irmão, e por haver declarado que, apesar de seus curtos annos, vingaria a morte d'elles, ficou aterrado com o movimento dos Índios e levantou-se tambem. Somente o velho guerreiro, que ousara faltar contra Deus, permaneceu immovel na mesma altitude.

— Quereis obedecer ao Tupá do tio Felix? — perguntou elle.

— Não! Não! Não! — clamaram algumas vozes.

— A cólera não ensina bem os bravos — proscguiu o velho; — no conselho não se retezam as cordas dos arcos, nem se enristam as tacuáras; resolve-se com palavras de sabedoria e de prudência.

Todos collocaram novamente as armas nos logares d'onde as tinham tirado; e acercaram-se outra vez do liocano, meio envergonhados. O mesmo orador continuou a usar da palavra:

— O Tupá dos brancos é bom para elles, que teem outros costumes; também é bom para os Índios, mas não os conhece tanto e consente que os escravisem ás vezes. Respeitemol-o, porque sabe e pôde mais do que nós; sigamos as suas leis, em tudo que não contrariem a vida livre do homem forte; mas não façamos o que elle diz, perdoando aos inimigos.

— As palavras do ancião — respondeu gravemente Manuel Félix — são como gotas de agua, caindo no pé do algodoeiro sedento; a experiência alumia mais os homens do que os fachos de envireira, accesos de noite para guiar o pescador na escuridão do lago. Faça-se a sua vontade... Porém, o padre Félix era amigo dos mundurucús; foi com desejos de lhes fazer bem que os baptisou, ensinando-lhes os preceitos do seu Tupá. O cacique amava-o como irmão, e respeita va-o como tio; se houver no conselho, ou em qualquer das malocas da minha tribu, uma voz que se levante para accusal-o de perverso e desleal, escolheremos terreiro e os tangapemas decidirão entre nós.

— Não! Não! — responderam varias vozes. — O padre era bom como o fructo da pacoveira; tinha o coração da pomba juruti, e a sua voz entrava no peito dos guerreiros, como o bálsamo do imbiri entra nos golpes abertos por tacuáras inimigas.

— Os mundurucús queriam bem ao tio Félix — tornou o velho, que fallára primeiro; — dariam todos a vida por elle, para o defender dos apiácas, ou do jaguaretè pixuna... Mas o padre era branco; e as guerras das villas e cidades são entre brancos.

— Félix era protector dos mundurucús — replicou o chefe; — démos-lhe o tratamento de mais respeito que os velhos tupis concediam aos seus alliados, porque elle o mereceu. O guerreiro que desampara covardemente os seus amigos é um traidor, indigno do conselho da taba.

— Sim, sim! — grilaram alguns dos ouvintes. Outro ancião tomou a palavra:

— O padre presenteava os Índios, desinteressadamente; só acceitava d'elles hospitahdade; deixar a sua morte sem vingança, será perder a reputação de lealdade, que sempre tiveram os mundurucús. As outras tribus, que nos consideram como os mais íieis guerreiros de quantos descendem dos gloriosos peruvianos, nunca mais se fiarão nas nossas palavras, nem quererão a nossa alliança. Os brancos tralar-nos-hão como adversários despreziveis, caçando-nos como onças, com as suas armas de fogo. Eu, Ebitauáng, que faço tremer com os meus sibillos os sucurijús c as giboias, digo-vos, que se os matadores do padre não caírem derrubados pelos filhos das cachoeiras é porque na nossa tribu já não ha quem saiba apontar uma tacuára, nem manejar um tacápe!

Outro rugido acolheu as palavras do segundo velho, e só elle e o que primeiro fallára se deixaram ficar acocorados. Todos os mais se ergueram, dando um passo para o lado das armas, sem que todavia chegassem a pegar n'ellas.

— Vinguemos o padre — disse friamente o primeiro orador. — Os cabanos sâo Índios de muitas tribus; entre elles deve haver também mundurucús domésticos, netos, como nós, da raça dos homens que desceram das cordilheiras, perseguidos pelos assassinos brancos. N'esse tempo, os guerreiros de quem descendemos formavam uma grande nação; eram sábios e independentes; cultivavam artes, e tinham sabedoria, como a gente de alem do mar; os seus tejupares resplandeciam como o sol, que elles adoravam; em vez das pobres redes de maqueira e de tocúm, dormiam sobre a felpa cheirosa da mungubeira, entre paredes de oiro e prata; vestiam-se com vistosas roupas, tecidas de pennas de tucano e guainambi; as suas mulheres eram mais formosas do que a mãe d'agua, e tinham a voz suave como o canto do grunhatan; a taba em que viviam era maior do que as cidades dos brancos; e ninguém precisava trabalhar, nem correr nos matos atraz de perigos inúteis, porque não havia inimigos com quem combater. Os tapajós sentiam-se felizes, como as ahnas do paraizo do padre Félix ! Vieram os brancos de alem do mar, em procura de oiro e prata, e roubaram nossos pães; expulsaram-n'os da sua terra, internando-os pelas florestas virgens até distancia de tantos dias que nunca ninguém os pôde contar; e se os mundurucús são hoje selvagens infelizes, como dizia o padre, foram os homens de que elle descende quem os reduziu a esta condição, porque os tapajós eram nossos paes ...

Um rumor surdo e prolongado interrompeu esta peroração; mas ninguém se levantou nem pediu a palavra para responder-lhe. O orador proseguiu:

— Vinguemos o padre, se é justo que o jaguar mate a onça que comeu o veado. Dos exterminadores dos nossos passados nasceu uma pomba, mansa como a saracura; dos tapajós, furtes como a tapyra caàpora, saíram tátús, que precisam viver escondidos nas florestas; se o urubu matar a pomba, chamemos sobre nós a cólera de todos os abutres, vingando o descendente dos inimigos de nossos paes.

— Não! Não! Não!

— Os brancos — continuava lentamente o implacável velho — guerreiam-se uns aos outros, nas suas cidades e villas; os tapuios associam-se com elles, depois revoltam-se e matam-os, com rasâo ou sem ella; os mundurucús irão matar os seus irmãos Índios mansos, para vingar os brancos...

— Não! Não! Não!

— Se os tapuios vencerem no sertão, como venceram nas cidades, se se lembrarem que no Amazonas ha um logar chamado Icuipiranga, d'onde se pôde facilmente atravessar para o Tapajós, os mundurucús terão novos inimigos ...

— Não! Não! Não!

— Em vez de vingarem os aggravos de seus paes, os filhos degenerados dos homens de alem das cordilheiras retezam as cordas dos arcos, e aguçam as ivirapemas, para protegerem as vidas ou punirem as mortes dos assassinos do seus antepassados ...

— Hough! Hough! Hough! — rugiram os outros membros do conselho. O orador continuava com voz terrivelmente pausada:

— Aquelles que tantas vezes misturaram o seu sangue com as aguas do Camararé e do Juina, que destruíram os parintins e estão prestes a exterminar os apiácas, irão agora regar com elle as margens do Irurá, vaidosos de guardar lealdade aos filhos de seus inimigos, e atraiçoando perfidamente os deveres impostos á sua nação pela memoria de seus maiores. Que a jeraraca se enrosque em todas as mãos que empunharem arco e frechas por tal causa; que as sombras dos tapajós se levantem nas proas dos ubás, que levarem munduruciis para defendel-a; e que todos os que estão aqui sejam tidos por covardes e indignos do nome de guerreiros, se votarem a favor d'ella!

Vinte gritos roucos, confundidos n'um só, resoaram ao mesmo tempo, com unanimidade terrivel; e os membros do conselho, caindo a um tempo sobre o orador, parecian querer despedaçal-o, tanta era a cólera e força com que o puxavam para todos os lados. O velho triumphava dolorosamente: as suas palavras conseguiram mais do que o effeito desejado por elle; e os seus companheiros puniam-n'o pelos ter convencido, mudando de opinião impetuosamente.

Mas a indignação dos outros causava a sua gloria; o indio exultava sob os maus tratos, porque elles significavam uma ovação. Quando o largaram, endireitou-se, como sacudindo os murros com que fora coroado o seu discurso, e pegando no arco o frechas, que tinha ao pé da porta, saiu com ar ostentoso, precedido pelo chefe, que era o primeiro a celebrar-lhe a eloquência!

VII

A família

Romualdo fora o único ouvinte, que nâo applaudira a resolução tomada pela assembléa; como não tinha direito de votar, a sua opinião seria nulla. Saiu portanto calado, mas furioso.

— O santo ficará sem vingança! — disse elle á mãe, que o esperava á porta do tejupar.

— Que diz o meu filho?!

— Romualdo tem quinze annos, e não concorda com o parecer dos velhos mundurucús.

— Romualdo sabe mais do viver dos brancos do que dos usos e costumes da sua nação.

— A minha nação compõe-se de bárbaros, que teem as faculdades da intclligencia adormecidas e os sentimentos do bem e do justo embotados ou pervertidos.

— Meu filho! Romualdo! Se elles te ouvem ! ...

— Os velhos educaram-me e instruiramme, ensinando-me a não renegar meu pae e minha mãe, qualquer que fosse sempre a condição d'elles e a minha.

— Fizeram-te mais sábio do que convém a um Índio! Destinavam-te para grandes cousas, lá entre si; agora, que morreram, nunca poderás resignar-te a viver comnosco. A tua mãe consentia que estivesses com o santo Félix e o bom compadre Romualdo; mas não dará o seu filho a outros, e sabe que elle não quererá ficar muito tempo na nossa companhia. Quem conhece os segredos dos brancos não gosta de togares, onde só podem habitar selvagens; o tejupar de bussú e a rede de maqueira, que d'antes agradavam ao meu filho, porque vinha aqui por pouco tempo, de agora em diante, que são para sempre, hão de parccer-lhc mais tristes do que parece ao inambú o ninho soliInrio, onde a cobra lhe comeu os filhos. O santo era bom como os anjos de que nos fallam; mas fez mal, muito mal a Flor de Cajueiro!

— Não diga isso; minha mãe, que é mostrar-se ingrata para com a memoria d'elle!

— Ensinou Maria a adorar o filho, como as outras Índias não sabem amar os seus; e depois de lhe ter posto no coração o sentimento divino do amor maternal, que a selvagem não conhecia, creou Romualdo de modo que só se elle for muito bom poderá querer bem á pobre tapuia! ... Se eu não ia vel-o mais vezes a Santarém, era porque Manuel Pangip-Hú não consentia; os seus homens perdiam-lhe o respeito, com as viagens á villa, e ameaçavam-n'o de tomar outro chefe ...

— Boa mãe, o seu filho quer-lhe muito ! ...

— Romualdo não achará na sua aldeia a felicidade que os brancos lhe promettiam; cedo sairá d'aqui ! ...

— Minha mãe! ...

— Bem sei que ha de partir... os nossos matos, que tanto o divertiam quando vinha a elles de passeio, não servem sempre para quem viveu em casa de brancos, estimado e querido por elles, como filho...

— Minha mãe!

— Nós não temos que dar nada novo a quem deseja ver cousas que nunca viu!... Para que servem as nossas resinas cheirosas, os oleos dourados e vermelhos, as cores brilhantes das nossas aves e dos nossos peixes, se nada d'isso terá poder para demorar o meu filho?!

— Mas, boa mãe...

— Ai! Para que foi a araúna pôr os ovos na casa do japim?!

— A mãe de Romualdo desvaira ! Ainda ha pouco deixava ir o seu filho para o paiz dos brancos, alem dos grandes mares; e agora, que elie já não parte, nem tem para onde ir...

— Maria não deixaria ir seu filho, se não fosse o respeito que tinha ao velho padre e a obediência que devia ao chefe; depois que aprendeu o que é ser mãe, desejaria tel-o sempre ao pé de si; porém o santo Félix sabia o segredo de governar o chefe! PangipHú era um guerreiro invencivel e feroz; o padre mostrou-lhe o crucifixo, e fez d'elle christão! Manuel não gostava de dar seu filho ao compadre Romualdo; o padre disse — quero — e fomos logo levar-lh'o! O chefe antes quereria que seu filho fosse cacique, entre os mundurucús, do que deixal-o partir para a terra dos brancos; mas quando o padre disse— deve ir— elle repetiu:— Ha de ir! — Flor de Cajueiro cala va-se, como seu marido, obedecendo á vontade d'este, porque o padre lhe ensinara o dever da obediência. Romualdo, que tem os costumes dos brancos, como ha de agora achar gosto e alegria na companhia dos índios?! Araúna, araúna, quem te mandou metter teu filho no ninho dos japins?!

— Minha mãe ! ... O homem que nos educou e nos fez christãos morreu assassinado; o conselho da taba resolveu que a sua morte fique sem vingança. É preciso que alguém repare a iniquidade da sentença dos anciãos. O padre e seu irmão serão vingados.

— Por quem? — interrogou severamente o chefe mundurucú, entrando no tejupar.

— Por aquelle que não se esquecerá nunca dos benefícios feitos por elles ao corpo e á alma de um miserável selvagem.

— Os mundurucús teem um chefe, que acata a sabedoria dos anciãos e que seguirá o voto do conselho.

— Goataçára não é cacique, não lem palavra na assembléa dos velhos, e não jurou obedecer a resoluções injustas.

— O filho do chefe é mundurucú.

— Sou homem livre. O chefe consentiu que os brancos me educassem.

— O padre não ensinava meu filho a obedecer a seu pae ? !

— Sempre ! E é por gratidão á sua santa amisade, e aos seus admiráveis preceitos, que eu jurei honrar a sua memoria, vingando-o.

— O meu filho é bravo ! Tem no coração o sangue de Woipaigupi o grande, que descendia dos tapajós e dos tupis ; mas que ha de fazer o joven guerreiro conlra o exercito dos cabanos vencedores? A grossura da pelle do icuri nao impede que a rasguem as garras do traiçoeiro jaguareté pixuna.

— No dia em que Goataçára for ao encontro d'esses inimigos, terá meios seguros para vencel-os.

— Só, como a sururina entre os verdes talos do guarumá membeca?

— Só, como filho esforçado do invencivel chefe mundurucú.

— O meu filho aprendeu com os brancos palavras que dobram a vontade de seu pae, como os ventos do Amazonas dobram os pennachos dos tabocaes ! Porém o chefe prudente deve saber differençar o caxiri, que embriaga, do sumo do cajuhy, que mata a sede.

— O filho dos mundurucúi; — interveiu Maria — quer ser feliz á moda dos homens bons, que o educaram; e na taba de seus pães não terá nunca felicidade !

Manuel encarou a mulher sem a comprehender; mas não lhe fez nenhuma pergunta e afastou-se, cortando a conversação. A índia olhou para Romualdo, como interrogando-o acerca da resolução que elle tomaria. Gonhecendo-lhe o caracter enérgico, esperava que elle lhe descobrisse o fundo do seu pensamento ; mas, ou porque os receios e suspeitas da mãe e as palavras do pae o impressionassem, ou porque não julgasse opportuno levar mais longe a discussão n'aquelle momento, mostrou-se muito reservado, e saiu também do tejupar sem dizer mais nada. No seu cérebro germinava a semente de um projecto arrojado, e tão grande que o mancebo não ousava ainda deixal-o desenvolver-se á vontade. Só o embryão d'elle bastava para surprehendel-o, cada vez que olhava para dentro de si!

Passou-se quasi um mez sem que tomasse resolução alguma. Apesar de ter apenas quinze annos, o estudo meditado, a convivência com os dois velhos, que o crearam, a concentração forçada de espirito, em que vivia agora, por não ter a quem communicar as suas idéas, faziam-n'o rapidamente homem. Gertrudes, a quem amava ternamente, mais nova um anno e mais ignorante do que elle, era a sua confidente única ; ensinando-a a ler e escrever, affeiçoava-a aos seus hábitos e gostos ; cultivava-lhe a intelligencia, ao mesmo tempo que adquiria um auxihar, um voto a seu favor no seio da familia.

Vendo a mutua affeição dos filhos, pcrsuadiu-se a mãe de que Gertrudes conseguiria prender o irmão ao berço.

— Faze tudo quanto elle quizer — recomendava ella á joven ; — pôde ser que lhe tires a imagem do bom padre da cabeça.

— A mãe deixava-o ir para a terra dos brancos e não íamos vel-o, quando estava em Santarém !

— Também me accusas ? ! Não sabes que o chefe é quem manda, e que o santo Felix governava o chefe ? Ah ! como elle me fallava sempre tanto na felicidade ! ... Isso é que nos ha de levar o Romualdo !...

Fora da felicidade celeste que o padre fallára a Maria ; porém o tempo, a falta de contacto com pessoas instruídas no christianismo, e o afastamento completo de toda a civilisação, em que ella vivia desde muitos annos, confundiram por fim no espirito e na memoria da boa índia as cousas do céu com as da terra. A suspeita, ahás plausível, de que o filho teria tomado gosto aos hábitos dos brancos e que não se costumaria ja^ mais aos dos mundurucús, tornára-se-lhe idéa fixa ; e como elle evitava sempre discutir esse ponto, acabou a pobre mãe por se convencer de que seria impossível retel-o. Tal era porém o seu amor por elle, que passado mais algum tempo até se preoccupava já com a vida monótona que Romualdo levava na aldeia, julgando-o mais triste e infeliz do que era realmente !

A final, foi ella própria quem deu força á resolução do filho, com as suas inconsequencias e versatilidades, communs á maioria das Índias, quando a sua civilisaçâo não é completa.

— Deus dê felicidade ao meu filho — disse-lhe a mãe, vendo-o um dia mais pensativo que de costume. — Já lhe passou o desejo de ir ao paiz dos brancos ? Ah ! aquillo por lá tem muito que ver ! São tudo maravilhas ! E a cousa a que elles dão maior apreço é o dinheiro, feito de oiro e prata. O meu filho bem sabe. Seu pae conhece os matos, onde nascem as pedras queridas dos brancos ; se Romualdo aprendesse a fazer moedas, como as d'elles, até poderia ser chefe dos homens d'alem do mar !

— Oh ! minha boa mãe, minha querida mãe, esse é o meu pensamento constante e o meu maior desejo ! Não ousava revelarlh'o, com receio de que me não deixasse ainda realisal-o!

O chefe, que estava sentado á porta do tejupar, renovando as azas das frechas, levantou-se, dizendo com enfado:

— Mulheres não sabem fallar como convém a guerreiros moços. Os brancos não valem mais do que nós, salvo quando são como o tio Félix, ou o compadre Romualdo. Homem que sabe mandar a tacuára ao coração do inimigo, e ao peito do jacamim, quando atravessa nos ares as clareiras da floresta, é feliz e não tem que invejar aos mais valentes. Vive-se bem roestes maios, onde vieram acampar nossos passados, depois de terem conquistado todo o paiz que nos rodeia até á serra dos Parecis ; não nos faltam aqui antas, veados, jabulis e taititús; os motúns, os inambús e as saracuras, feridos pelas zarabatanas dos mundurucús, vêem cair no terreiro, trazendo-nos com as suas carnes saborosas as pennas resplandecentes do cocar do cbefe ; os tucunarés, os tambaquis, os acarás, os surubins, as piranbas, os jejús, os tamuaalás, astarahiras, e as tartarugas povoam as aguas d'este rio, que nunca mais perderá o nome glorioso de nossos maiores; crescem por todos os lados, em torno da taba, os doces colitiribás; o jenipapo e o bacury, que recordam os seios virgens das jovens mundurucús; a mangaba, tão amada dos brancos ; o roxo assahy, e os cajus còr de sangue parintim ; o coco da sapucaia, que resiste ao ferro como as cabeças dos bravos resistem ans tacapes inimigos; as doces favas do ingá, os íVuctos do miriti, da bacába, do lucunian... de tantas palmeiras como tem o céu de estreitas 1 Vinlios, óleos, resinas, favas cheirosas, leites, mel, tudo quanto o grande Tupú do bom Félix produzia, cria-se com abundância na terra escolhida pelos sábios tapajós ! Que mais necessita para ser feliz o filho do chefe mundurucú? Flor de Cajueiro diz palavras, que fazem andar à roda a cabeça de seu filho, como a folha da copiúba empurrada pelo vento do lago ! Ensine-o a supportar a dor, sem queixas e sem lagrimas ; a ser, como quando vinha aqui de passeio, o primeiro na carreira, e vencedor em todas as lutas ; a ter firmeza na mão, que aperta o tangapema, ou que empunha o arco ; a encarar sem tremer as taciiáras inimigas; a ver e ouvir bem tudo que se passa no coração da noite e da floresta ; a ser ágil, nadando ; hábil, fugindo ; prudente, acommettendo ; sábio no conselho e no governo do ubá... e assim será temido dos seus e dos estranhos, e ninguém lhe disputará o commando da tribu, no dia em que o chefe tiver de partir, levado pelo Tupá do céu, para o Paraizo do tio Félix.

— Os sábios da nação chamaram-me Goataçára, que na lingua dos tupis quer dizer peregrino ou viajante, porque desde pequeno mostrei tendências e desejos de correr toda a terra. Goataçára tem quinze annos e não quer, para commandar uma tribu, que seja preciso partir o chefe mundurucú para as planícies azuladas. O meu pae sabe onde ha minas de oiro ; ensine ao seu filho o caminho para ellas; comprarei aos brancos um dos seus navios e seguirei o caminho da vingança, que os dois velhos estão esperando.

— Goataçára quer ir ver onde param as aguas d'este rio, que correm sempre, depois de misturadas nas do Amazonas, e onde acabam estas florestas eternamente verdes? Quer saber o que ha alem d'ellas, e seguir a onda dos cabanos, como o jacaré segue as ilhas de canarana levadas pelas correntes ? Os brancos, que existem n'essas terras distantes, não são todos como o compadre Romualdo e o bom Fehx ; já disse ao meu filho, que as memorias da minha nação referem que nossos passados viviam felizes, n'uma região poderosa chamada Peru ; vieram os homens ladrões e ferozes, em grandes canoas, e assolaram a ferro e fogo o rico império dos incas, onde os tapajós tinham parte. Pelejaram-se bata! lias terriveis, em defeza do chão sagrado da pátria ; porém o Deus dos christãos era mais forte ; os naturaes, que não fugiram, foram mortos ou escravisados, que é peior ainda ! ... E sabe o meu filho porque foi toda essa guerra cruel? Não se lembra do que ouviu no conselho dos anciãos? Foi porque tínhamos muito oiro... e os invasores «queriam ainda mais do que esse muito que nós possuíamos. O meu filho quer aprender onde são as minas, para dizer o segredo aos brancos? Elles roubariam o índio, depois de o assassinar. O oiro foi um dos males que nos deixou na terra a cólera de Tupá.

— Que o chefe ensine ao seu filho o logar em que se acham os thesouros; tendo-os em meu poder, estudarei com os filhos dos que nos roubaram a sua arte de guerra; armarei grandes navios, como os d'elles, e irei reconquistar a terra de nossos paes.

— Antes de começar tamanha empreza, o filho dos mundurucús cairia como a barreira de tabatinga, minada pelo grande rio. Os mais fortes da nossa raça não tentaram nunca desforrar-se d'esse modo, por saberem que seria a luta do tamanduá contra a susuarana. Os tapajós transmittiram aos seus descendentes o ódio eterno, que votaram a essas pedras funestas, de côr amarellada, que lhes fizeram perder a pátria de seus maiores. Nunca direi ao meu filho onde são as minas do Arinos. Ser feliz é ser mundurucú.

O joven não insistiu. O seu plano acabava de amadurecer com esta ultima discussão ; resolveu-se portanto a pôl-o em pratica immediatamente. Elle sabia de um modo vago que os jazigos auríferos, em que raras vezes se fallava na sua tribu, ficavam nas proximidades do rio Arinos. Tinha esperado poder surprehender o segredo com o auxilio da mãe ; porém o pae e os anciãos, que eram, alem do chefe, os únicos que o sabiam, guardavam-n'o cuidadosamente. Depois de ter revelado pela primeira vez o seu desejo, notou que a reserva augmentára extraordinariamente para com elle, até mesmo da parte dos que nada sabiam.

IX

Partida

O seu projecto, concebido pouco depois da decisão do conselho, que recusara punir os assassinos dos seusbemfeitores, era aventurar-se nas florestas, ao longo do Tapajós, até encontrar o Arinos. Ahi, procurar as minas de oiro e carregar um ubá com o metal precioso ; depois descer até ao Pará, ou subir para o Peru, e trocal-o a dinheiro. Em seguida, empregaria os meios de descobrir os matadores do padrinho e do padre. Todos estes planos offereciam espantosas difíiculdades, ainda dado o caso de elle descobrir o oiro ; pareceriam até irrealisaveis a qualquer homem sensato, que os pensasse a sangue frio ; porém Romualdo tinha quinze ânnos, e era mundurucú ; isto é : tenaz, soffredor e prudente; amara sinceramente os dois velhos assassinados ; recordava-se dos seus benefícios, e o desejo de vingal-os dava-lhe uma vontade de ferro.

Confiou o projecto á irmã, propondo-lhe que o acompanhasse, e promettendo-lhe que a levaria a ver as terras dos brancos, se conseguisse achar os thesouros que ia procurar.

A joven Gertrudes era de alta estatura, constituição robusta, côr morena, olhos e cabellos pretos, e linha as feições tão regularmente harmoniosas que por isso lhe pozeram na sua tribu o nome tupi de Porangába, que quer dizer formosura. Na Europa tomal-aiam por uma bella camponeza da Andaluzia. Educada sob a influencia das idéas incompletas da mãe, misturava o sublime com o absurdo em quasi todas as suas fallas. O irmão começava porém a corrigir-lhe os defeitos, dando-lhe noções verdadeiras, conforme a sua também ainda limitada instrucção. A joven idolatrava Romualdo ; confidente dos seus segredos, deixára-se possuir insensivelmente das mesmas aspirações e desejos. Para ella não havia sábio maior ; os anciãos, o próprio pae, os brancos de Santarém, todos poderiam aprender com aquelie que a ensinava a ler! Exceptuava o padre, quo o educara a elle, e o padrinho Romualdo; mas, ainda assim, era porque tinham morrido; se os julgasse vivos, custar-lhe-hia a conceder-lhes a superioridade, para não haver no mundo quem fizesse sombra ao seu illustre mestre. A uma intelligencia não vulgar juntava ella um coração excellente, e dobrava-se com tanta docilidade á vontade do irmão, que era quasi sempre este quem pensava por ambos.

Quando lhe elle fallou na partida, perguntou a joven simplesmente :

— Quando vamos?

— Amanhã.

O chefe tinha ido n'esse dia, com a maior parte dos seus guerreiros, fazer um reconhecimento em direcção ao Amazonas.

Ao romper do sol, Romualdo armou-se com a espingarda, um sabre e um machado ; Gertrudes poz ás costas as redes de maqueira, um paneiro com farinha, e um cesto com tabaco; pegou no arco e nas frechas do irmão, e os dois abraçaram Maria, que assistia sem dizer palavra aos seus preparativos.

— Adeus, mãe. — disse Romualdo, tentando debalde esconder as lagrimas.

— Se o meu filho chora, porque parte?

— É preciso.

— Que Deus o faça feliz ! Ai ! se o deixo ir é porque reconheço a impossibilidade de impedil-o! Adeus, Porangába.

Passaram o Tapajós n'um ubá, que deixaram amarrado na margem oriental ; antes de se metterem á floresta, olharam para traz e viram ainda a mãe, na mesma altitude em que ficara do lado opposto, Niobe a quem a dor parecia ler imprimido a immobilidade do mármore.

Seguiram, subindo, o curso do rio, durante cinco dias. O mato fornecia-lhes alimentos suíTicientes ; e nâo tiveram, durante esse tempo, nenhum encontro desagradável. Estavam amarrando as redes, para passar a noite, quando foram repentinamente surprehendidos pela presença grave e austera do pae.

— O filho do cacique não respeitou as palavras da sabedoria? ! — disse elle rudemente. — Sáe do tejupar, na ausência do chefe?! Porangába desamparou Flor de Cajueiro ! Os filhos do tucano, que viram os paes saltar para fora do ninho, quizeram imital-os, cuidando que já tinham azas para poder voar?! Não sabem que podem cair na boca da giboia ? !

— Meu pae — respondeu Romualdo, também gravemente — os herdeiros dos valentes não se criam como mulheres; o seu filho tem a idade em que os mundurucús festejam a admissão dos jovens nas fileiras dos guerreiros ; eu não fui creado na taba, educaram-me os brancos,, com o consentimento do chefe ; tenho outros costumes, porém não ignoro o caminho que convém aos bravos ; deixe Goataçára ir fazer-se homem, affrontando perigos ; levo Porangába, para velar contra as surprezas do inimigo, emquanto o guerreiro moço repousar a cabeça. O bom tio Félix, que deu ao chefe esse grande Tupá, que traz ao pescoço, disse ao meu pae, que os seus filhos eram christãos, e que seriam mais felizes não continuando a viver como feras mettidas em covis. O filho de Woipaigupi é um grande chefe ; não embarace Romualdo de ir ver as terras, onde se criam os seus inimigos de longe, e vingar n'elles os aggravos feitos á sua raça, e a morte dos seus bemfeitores.

— Goataçára ! — exclamou o fero mundurucú, após um instante de meditação. — Começaste, apenas nascido, a ser passeador e peregrino ! Foste sempre como os filhos das tartarugas, que saem das covas de areia, onde abrem os ovos, para se irem metter nos lagos antes de saberem nadar! Goataçára ! Que a tua vontade seja feita ! O chefe viu também, na sua mocidade, as margens dos rios distantes, por onde desceram outrora os tapajós ; acautele-se o joven guerreiro com os Índios inimigos, que se encontram até á serra dos Parecis ; se for ao Cayari, verá os muras, mais pérfidos do que o leite de urari misturado na ticuára. O mundurucú é moço, e as filhas dos muras enleiam o peito dos inimigos, do mesmo modo que as voltas do cipó se enroscam nos troncos da envireira rugosa ; que o meu filho se não approxime d'ellas, sem ter os bicos das suas frechas molhadas no veneno do Japurá e do Tocantins, e a corda do arco bem retezada. Porangába, quem ha de preparar a caça para o chefe, quando a sua companheira se tiver tornado velha inútil, como o jacamim sem pennas?

— Goataçára é irmão de Porangába ; a mulher mundurucú obedece ao homem.

— Se a filha do chefe adormecer na rede do mura, que seja tratada como inimiga da nossa raça ; se d'elle tiver filhos, são filhos de jeraraca ; esmagam-se com o tangapema. Quando o guerreiro conhecer o paiz dos brancos, não tornará mais ás florestas em que habitam mundurucús...•

— O padre ensinou o filho a amar seu pae e sua mãe ; Goataçára é descendente dos tapajós e filho de um chefe mundurucú.

— Quer conhecer o oiro ! ... Os guerreiros só precisam armas! Que o meu filho cumpra o seu desejo, e que o grande Tupá lhe dé a felicidade, que vae procurar longe do rio que recebeu o nome de seus paes.

— O chefe não ensina ao seu filho como e aonde se procuram as pedras do metal amarellado ?

— Não; o Tupá que as deitou na terra, quando estava mal com os homens, tornou a escondel-as no seio d'ella, depois de ter pensado e resolvido que só quem quizesse ser desgraçado as fosse ahi procurar.

— Pois bem : o bárbaro, que os brancos civilisaram, sabe morrer; os thesouros escondidos fariam a sua felicidade ... se não os achar, dará a sua carne aos jacarés dos lagos.

— Só os covardes se matam a si próprios ; o Índio mundurucú deve vencer sempre ; se eu não tivesse destruído a nação dos parintins, a minha tribu não me reconheceria por seu chefe. O filho do cacique não quer succeder a seu pae? Atravesse pois para a outra banda ; siga a corrente do rio, que guiou nossos antepassados, até ás vertentes da grande serra, onde habitam os parecis ; volte para a esquerda ; passe o Juina; suba o Juruena, em que elle desagôa, até encontrar a serra de Tapira poan ; o rio que achar á direita é o Sumidouro, que faz engrossar o Arinos como o caitetú engrossa o estômago da giboia. Vire o rosto para o nascer do sol, e escute o ruido que faz o Pacuruina, saindo da sua fonte de pedra. Todo o terreno arborisado, que fica em roda, está cheio de oiro. O chefe quebrou o propósito por amor de Goataçára. Se o meu filho quizer seguir o ultimo conselho de seu pae, não volte com essas pedras pelo Tapajós...

— Que devo fazer para não desafiar o ódio da minha tribu, e a cólera do chefe?

— Suba o Juruena até ás cabeceiras ; deixe á esquerda a serra de Tapira poan, e á direita a dos Parecis ; volte as costas ao norte, e caminhe até achar as grandes aguas do rio Guaporé; o meu filho tem machado, faça um ubá, carregue a sua mercadoria e siga a corrente d'esse rio; depois de deixar á esquerda o Mamoré e o Beni e ter contado cinco cachoeiras, entrará no Cayari, que tem ainda doze saltos; depois, as margens alargam, e as correntes, serenas e rápidas, levarão o seu ubá ao grande rio, perto de Manáos. Foi o caminho de nossos paes, que o chefe aprendeu também na sua mocidade. A viagem é longa e perigosa; encontram-se dez tribus inimigas, tantos rios como os cajueiros teem de cajus, e muitas onças e surucucús famintos... mas o homem que fechou os ouvidos ás palavras da sabedoria é como o cedro levado pelas correntes. Cumpra-se a sua vontade!... Se encontrar os mundurucús do Tupinambaranas, diga-lhes que é neto de Woipaigupi.

Após estas palavras, o chefe partiu, sem olhar para traz, rodeado pelos feros companheiros.

Seguindo os seus vagos esclarecimentos, os dois jovens conseguiram chegar, quinze dias depois, á região aurífera onde o acaso lhes mostrou logo, nas areias do rio Arinos, muitas palhetas de oiro. Goataçára costumou-se depressa a distinguir das outras pedras o metal precioso ; e em breve se lhe depararam riquíssimos jazigos d'elle, á flor da terra, d'onde se arrancava sem grande esforço. A fortuna como que se comprazia em auxilial-o ! N'uma das suas maiores excavações, descobriu o leito secco de um igarapé, que n'outro tempo correra ali por entre muralhas de basalto, e que os terrenos de alluvião, trazidos pelas inundações frequentes do rio, tinham entupido completamente. Como encontrasse, misturados com a terra, pequeninos corpos brilhantes, de diversas cores, que agradavam muito á irmã, foi o moço explorador seguindo com ella a direcção do riacho desapparecido; de repente faltou-lhes o terreno debaixo dos pés e descobriram a entrada de uma gruta, que facilmente desobstruíram ; suppondo que fosse algum sumidouro do rio extincto, penetraram cautelosamente n'ella ; mas não tinham ainda dado dois passos no interior, quando foram deslumbrados pelo maravilhoso espectáculo das suas paredes, cobertas de estalactites ! Por pequeninos buracos, abertos no lecto pela infiltração das aguas, penetravam delgadissimos raios de sol, que alumiavam a gruta com uma luz que parecia admiravelmente combinada para lhe augmentar o esplendor e effeito theatral. O fundo era quasi todo em eslalagmites ; e por entre ellas brilhavam muitas das pedrinhas brancas e coloridas, que haviam captivado Gertrudes. A joven, como verdadeira filha das florestas, era muito affeiçoada a todos os ornatos de contas de crystal e de vidros de cores ; por isso teve uma alegria immensa com o achado, e começou a juntar n'um canto da gruta as mais bellas d^essas pedrinhas resplandecentes, para fazer collares com que enfeitar-se. Quanto maior seria a sua satisfação, e a do irmão, e com que desdém olhariam ambos desde esse momento para o oiro amontoado, se tivessem ali quem lhes dissesse o valor enorme dos Ihesouros que acabavam de descobrir, e que na sua ignorância julgavam pedaços de vidro ou seixos polidos pelas aguas !

X

Viagem pelo Cayari

Estava ainda longe a estação chuvosa, e as aguas do Cayari corriam limpidas e serenas, sem a violência que tomam as correntes, depois dos mezes de abril e de maio; iam quasi despovoadas dos numerosos cedros, e outros colossos vegetaes, que n'esses mezes as cobrem quasi litteralmente, arrancados das margens pela fúria dos ventos desencadeados. Era ao romper do dia ; numerosos bandos de maracanás e merequéns atravessavam, grasnando, de uma para outra margem ; as araras, acasaladas, passavam a duas e duas, soltando sobre o rio o seu grito estridulo e dissonante; nos cimos das mais altas arvores, que avizinhavam as praias, os tucanos saudavam o sol, com o seu canto permanente; as guaribas ou macacos roncadores atroavam os ares com berros monótonos, similhantes a notas graves e intermináveis de um órgão monstruoso. A viração da manhã agitava levemente os cimos dos arvoredos, e espalliava na atmosphera das aguas os perfumes deliciosos da baunilha, e de outras favas cheirosas.

Quando os primeiros raios do sol começaram a surgir por entre os troncos e ramarias, approximava-se da ultima cataracta, chamada Aroaya, um ubá de cedro, bastante carregado, e tendo a carga coberta de folhas de palmeira, tripulado por dois jovens Índios, cada um de seu sexo. O homem, muito moço ainda, tinha elevada estatura. O seu trajo pittoresco, meio civilisado meio selvagem, era feito de algodão, tecido com vistosas pennas de arara e tucano; trazia a cabeça descoberta, e recostava-se indolentemente na popa da canoa, segurando com uma das mãos o remo com que a dirigia na linha da corrente, e empunhando na outra um grande cigarro, embrulhado na entre-casca do tauariseiro. Apesar de imberbe, as suas feições denunciavam altivez e firmeza de vontade inabalável, e tinham todos os característicos de uma raça de homens fortes. A mulher, mais nova ainda, trazia por único vestuário um saial de pennas. O seu rosto, de gracioso oval, não fora deformado, nem tão pouco o do mancebo, por esses adornos selvagens, que a maioria dos Índios do Brazil costuma usar no nariz, na boca, ou nas orelhas ; nenhum dos dois estava também desfigurado por pinturas barbaras ; percebia-se comtudo, pela grandeza das estaturas, e pelas physionomias intelligentes, que ambos pertenciam a alguma tribu da familia mundurucú.

A joven india, sentada quasi á proa do ubá, pousou sobre a carga o remo, que momentos antes tinha na mão ; tirou de um pequeno cesto uma pederneira e um fusil, productos da industria dos brancos, e feriu lume, incendiando um pedaço de isca amarella, feita pela formiga taracuá, que lhe dá o nome; passou silenciosamente ao mancebo a matéria inflammada ; este accendeu o cigarro, devolveu-lhe a isca, que ella apagou e recolheu no cesto ; e ambos retomaram as posições anteriores, calados sempre, emquanto o ubá se approximava, deslisando suavemente, do salto da cachoeira.

O Cayari, que os portuguezes chamaram Madeira, é um dos rios mais caudalosos, de entre os que despejam as suas aguas no Amazonas; asdezesetecataractas, que o interceptam, incluindo as cinco do Guaporé, seu confluente, são, pela maior parte, magestosas e medonhas. Em algumas despenha-se o rio de chofre, por cima de penhascos grandiosos, formando rilheiros, correntes, voragens, e redemoinhos terríveis, e caindo na parte inferior do seu leito com tão temeroso fragor, que se assimilha ao ribombo de cem peças de artilheria, disparadas a um tempo. Os cedros, arrastados pelas suas correntes, sâo arremessados do alto das cataractas como se foram lanças atiradas por catapultas. Caindo no abysmo, pôem-se em pé, giram em redopio phantastico, e enterram-se com tão furiosa velocidade na profundez das aguas, que parecem verrumas animadas, tentando furar o globo; instantes depois, bóiam de salto, erguem-se fora do sorvedouro, e tornam a desapparecer nos braços do turbilhão, como se os movessem simultaneamente todas as forças da natureza !

Os dois Índios, apesar de conhecerem a fúria das catadupas, porque tinham passado já dezeseis, viam o seu ubá rolar na corrente, que os levava para a derradeira, com a indiíTerença de quem ve voar uma borboleta. Nos seus rostos, graves e tranquillos, parecia refleclir-se a serenidade do céu, e espelhar-se a limpidez das aguas verde-claras do Cayari. O moço fumava como se estivesse no paraizo; a joven voltara costas á proa, talvez para o ver sem esforço, e modelava pela physionomia d'elle a immobilidade da sua.

Quando se acharam a cem braças da cataracta, o estrondo d'esta pareceu inquietar um instante a india ; mas fixando o olhar no seu companheiro, e achando-o impassível, serenou também immediatamente.

— Rema ! — lhe disse elle, momentos antes do salto.

Ambos mergulharam as pequenas pás, que lhes serviam de remos; imprimiram na canoa um impulso repentino e simultâneo, e esta saltou, como frecha despedida do arco, para alem da queda. O peso da carga ameaçou um instante afundar o ubá ; as cabeças dos dois viajantes foram inundadas pela rebentação das aguas, e pela espuma que estas levantavam ; mas nem um nem outro revelou a menor commoção. Quando o ubá caiu no leito do rio, inferior á cachoeira, a joven recolheu o remo e voltou-se novamente para o seu companheiro, que continuava fumando e governando o barco, sem remar. Não proferiram uma só palavra, nem manifestaram por um único sorriso a satisfação de haverem passado o ultimo perigo, em que tinham jogado as vidas. Dir-se-hia que o salto da cataracta era, para elles, cousa tão simples como accender o taracuá ou fumar no tauari!

As aguas do Madeira, barrentas e turvas na confluência do Guaporc com o Beni, tornam-se claras e transparentes logo que o rio, liberto de ribanceiras de labalinga, se espraia por entre os arvoredos das margens baixas e planas ; passada a ultima cachoeii'a, tomam uma còr tão esverdeada e limpida que lembram as do Oceano Atlântico em algumas latitudes. Os olhos dos jovens Índios fixaram-se n'ellas com pasmo. Depois de curla hesitação, o homem metteu no rio a mão, aberta em forma de concha, encheu-a, Jevou-a á boca, e provou cautelosamente e com desconfiança ; cuspiu, tornou a saborear e a cuspir, até que, reconhecendo sem duvida a qualidade excellente do hquido, mergulhou no rio um vaso feito do coco da sapucaia e bebeu francamente.

A joven seguira-lhe todos os movimentos, imitando-o em tudo, não automaticamente, mas com a intelligente meiguice da infância, que aprende, copiando, os gestos maternos.

Terminavam o exame da agua, quando avistaram, voando por cima d'elles e seguindo o mesmo rumo, um pássaro chamado cujubi, maior que a gallinha domestica, e do qual a carne ê muito apreciada pelos povos do Amazonas. A joven levantou sem ruido as ramarias que cobriam a mysteriosa carga da canoa, descobrindo uma porção de pedras pardacentas, com veios amarellos e vermelhos, e sobre ellas, uma espingarda, um terçado, um sabre, um machado, um arco, frechas, alguns fructos, e duas redes de maqueira; tirou o arco, escolheu uma frecha, com bico de osso e pennas de arara, e passou essas armas ao seu companheiro. Este pousou o remo, levantou-se sem ruido, retesou a corda do arco, deiiou-se de peito para o ar, apontou, despediu a frecha, e, immediatamente, o cujubi com o peito atravessado, caiu, da grande altura em que voava, a duas braças da canoa. O frechaclor sentou-se novamente á popa, e retomou o remo, entregando o arco á sua companheira : esta recolheu a ave morta, arrancou-llie a frecha, poz tudo como estava, recobnndo cuidadosamente a carga, e começou a depennar o pássaro. Tudo isto se fez sem ruido e sem que nenhum dos dois precisasse dizer palavra.

Os Índios são por natureza muito calados, pouco communicativos, até entre si ; todavia, o traje do joven viajante indicava certo começo de civihsação, que devia ter modificado os seus primeiros hábitos ; quanto á sua companheira, lia-se-lhe nos olhos que recebia dos d'elle a inspiração e a vontade. Devia, pois, haver um motivo poderoso para o silencio calculado e pertinaz, que ambos guardavam, e para as precauções com que viajavam. Dir-se-hia, vendo-os limitarem-se a deixar ir a canoa, levada unicamente pelo impulso da corrente, que receiavam despertar com o bater dos remos na agua os ecbos das solidões que iam atravessando, a Coropira ou a Oiára, divindades poéticas e graciosas das florestas e das aguas !

A explicação é simples : viajavam por logares desconhecidos ; e todas as medidas de prudência parecem poucas aos Índios, quando isso lhes acontece. Por este motivo se não servia o moço mundurucú da arma de fogo, cuja superioridade sobre as frechas estava longe de desconhecer, apesar da perícia com que sabia servir-se d'estas. Navegavam sempre pelo meio do rio ; remavam raras vezes, para evitar a bulha dos remos, quando casualmente batessem nas bordas do ubá ; de noite, atracavam em alguma das ilhotas, que ha pelo meio do Cayari; o homem abstinha-se de fumar, para que se não visse de longe o lume do cigarro ; velava um, emquanto o outro dormia ; nunca paravam durante o dia ; forneciam-se de caça, pelo modo que se viu mais atraz; fi-echavam o peixe, que se mostrava á flor dagua, e assavam-n'o em brazas, que a Índia fazia sobre uma grossa camada de terra húmida, posta para esse fim no fundo do ubá.

Qualquer observador, ignorante da perspicácia dos Índios, da rapidez do seu golpe de vista, e da facilidade da sua percepção, julgaria que estes dois, tão fleugmaticos e indifferentes, passavam sem ver cousa alguma, alem da sua canoa, ou das aves e dos peixes que d'ella se approximavam. E comtudo nada ficava sem ser notado por ambos elles. No seu olhar, apparentemente vago e contemplativo, como que se reflectiam os troncos das margens, os reptis que por ellas se arrastavam, os movimentos das folhas das arvores, e o faiscar das azas dos insectos, que se agitavam ao sol, seccando-as do orvalho matutino. O homem via tudo, sem olhar, tanto para os lados como para diante da proa; a mulher, voltada para a popa, recebia a inspiração dos olhos e dos gestos d'elle, e, ao mesmo tempo, abraçava com a vista todo o espaço que se descobria atraz do ubá.

Quem não os conhecesse nem soubesse a que raça pertenciam, julgal-os-hia prestes a desfallecer, subjugados por pesada somnolencia ; porém, o homem famiharisado com elles veria, a cada ruido mysterioso que saísse da floresta, a cada reflexo de luz que se espelhasse nas aguas, illuminarem-se de clarões repentinos as pupillas dos seus languidos ollios, sem que nenlium dos dois fizesse o menor movimento ou voltasse o rosto !

Depois de assado o cujubi, tirou a joven um cacho de fructos de inajá, que estava debaixo da cobertura da carga, e, indo sentar-se ao pè do seu companheiro, começaram ambos a comer a carne do passaio, misturando-a com aquelles fructos.

Após esta frugal refeição, que recordava, excedendo-a, a sobriedade dos espartanos, o homem reaccendeu o cigarro de tauariseiro e murmurou :

— Não ha mais cachoeiras; contei dezesete. O estrondo d'ellas não pode encobrirnos a voz, e a superfície das aguas serenas conduz o som muito longe. É preciso fallar menos.

— Cale-se o meu irmão.

— Este rio vae alargando muito, e corre com grande força. É o Cayari, que os brancos chamam Madeira. O chefe ensinou bem; quando chegarmos ao Amazonas, temos de remar contra a corrente para irmos ao Quiari ou Rio Negro.

— Os mundurucús teem braços robustos.

— Até agora, não me esqueci das indicações do chefe; vamos no bom caminho.

— O meu irmão é mais sábio do que os anciãos da nossa tribu !

— Cala-te!

O sol tinha caminhado quasi até ao meio da sua carreira e dardejava os raios a prumo sobre os viajantes. O Madeira acabava de descrever uma immensa curva e tomara repentinamente o rumo do nordeste.

Quando o joven mundurucú mandou rápida e imperiosamente calar a companheira, acabava de soar-lhe aos ouvidos um ruído singular, que o fez sair da sua apathia real ou affectada,

— São remos ! — murmurou elle.

— Muitos remos ! — confirmou a joven, assustada pelo ver inquieto.

Voltaram immediatamente o ubá com a proa para cima, resolvidos a evitar o perigo que presentiam; porém, com o movimento da canoa, que ficara de popa virada para baixo, a vista do homem dominou o cotovello de terra, que lhe occultava uma grande extensão do rio.

— É tarde ! — exclamou elle. — Vamos ser impedidos de continuar a viagem !

— Nademos para o mato. — lembrou a sua ousada companheira, prestes a saltar n'agua.

— Não; observemos e sejamos prudentes.

Tornou a virar a proa e começou a estudar a situação com a sua usual placidez. Eis o que elle tinha avistado:

Na margem direita, a distancia de um tiro de bala, movia-se grande multidão de ubás, carregados de homens, que se afastavam lentamente de terra ; junto da margem opposla pairava outra esquadrilha, igual ou mais numerosa.

— Devem ser indios muras, que atravessam o Cayari. — disse o mundurucú, tentando suspender disfarçadamente a marcha da sua canoa. — Vae a tribu inteira... e leva mais de cem ubás ! Tanta gente junta ! ...

— Não são muras. — contestou a moça índia.

— Estão armados em guerra ! ... E os da outra banda pertencem a nação differente ! É uma batalha que principia !

— Fujamos !

— Escuta ! Não ouves ? Parece o grito de guerra dos piágas mundurucús!

— Nosso pae disse que uma tribu do Tupinambaranas é da nossa raça, e nossa alliada.

— Foi n'outro tempo, antes da morte de nosso avô Woipaigupi.

O ubá, que tinha descido vagarosamente, achava-se próximo das duas esquadrilhas, ao tempo em que estas deram ambas o signal de acommetter, soltando gritos terríveis, tocando tambores e borés, que apavoraram os echos do rio e das florestas, e fizeram fugir aves e feras. Uma nuvem de frechas, azagaias, e outras armas de arremesso, cruzouse nos ares, quasi por cima dos dois viajantes. Os berros de numerosos feridos, unindo-se aos sons dos instrumentos selvagens e aos rugidos dos assaltantes encolerisados, aterraram a formosa viajante.

— Vira o ubá ! Não podemos passar e ficaremos prisioneiros, se não nos matarem.

Parece que fora também esta a opinião que inspirou ao seu companheiro a vista do combate, porque voltou immediatamente a proa e ambos começaram a remar com força, contra a corrente. Não o fizeram porém tanto a tempo, que não fossem notados pelos dois bandos combatentes. Uma grande grita denunciou o seu movimento, e reconhecendo ambos os exércitos que os fugitivos não eram dos seus, saudaram-n'os com um chuveiro de frechas.

Felizmente, o ubá estava já fora do seu alcance ; e os atiradores de um e outro lado não julgaram opportuno suspender o combate, para correrem, unidos, após dois Índios estranhos.

Os fugitivos, apenas se afastaram do theatro da acção, pararam, esperando talvez o resultado da luta.

— Se vencerem os mundurucús — disse o mancebo — iremos ter com elles, e, dandonos a conhecer, poderemos passar...

— E se vencerem os contrários?

— Elles serão muras ou apiácas?

— Penso que são muras.

— Offereço-lhes resgate.

— Como o pagarás?

— Quando vendermos ou trocarmos o nosso carregamento. Os muras teem commercio com os brancos, e podem ir comnosco.

A batalha proseguia encarniçada e cruel, com toda a barbaridade própria de povos selvagens e ferozes. Os de um lado, que eram effectivamente muras, não davam quartel ; os do outro, mundurucús do Tupinambaranas, diligenciavam menos matar os adversários do que fazel-os prisioneiros. Logo que se despediram as primeiras frechas, os ubás approximaram-se, cruzando-se em todos os sentidos : abordavam-se com fúria, combatendo os tripulantes com os tacapes e as ivirapemas, derrubando-se, rolando os mortos no rio, ou no fundo das embarcações, onde eram esmagados pelos da própria trilou ; os craneos, partidos pelos tangapemas, ou de encontro ás bordas, espalhavam nas aguas o cérebro e o sangue fumegantes, attrahindo cardumes de peixes vorazes ; aqui estrebuchavam os feridos, com tacuáras atravessadas nas gargantas ; ali, outros, com os peitos abertos pelas ivirapemas, sentiam cair primeiro as entranhas do que os corpos sem vidas; alem, arremessavam-se mutuamente braços arrancados, cujas mãos apertavam ainda armas ou remos, que agitavam no ar; adiante, cabeças separadas dos troncos escancaravam horrivelmente as bocas, como tentando continuar o grito de raiva que a morte interrompera ; olhos sem pálpebras, caídos das orbitas esmigalhadas, rolavam na corrente, parecendo exprimir ainda, uns, a ameaça, outros, o triumpho, e tremiam todos de horror vendo approximar-se os bicos dos urubus famintos, que acudiam á carnificina! Os cadáveres serviam n' algumas partes de escudos aos que pelejavam; n'outras, eram arrojados ao rio os feridos ainda vivos, pelos próprios companheiros, a quem o espaço faltava para se moverem á vontade. Os ubás chocavam-se, recuavam, fugiam, avançavam, viravam-se, e traziam alguns tanta gente dentro como náufragos por fora, agarrados ás bordas. O Cayari estava coberto de membros, que fluctuavam momentaneamente, de moribundos, que lutavam com a morte, de fragmentos de canoas, de frechas, de destroços de toda a espécie, e as suas aguas corriam tintas de sangue até grande distancia. As piranhas pretas, e outros peixes vorazes, maiores e mais terriveis, apressavam-se a devorar os mortos, e acabavam depressa com os feridos, comendo-os vivos, aos pedaços. Os urubus, que seguem sempre de perto as tribus selvagens do Brazil, arremessavam-se, bandos sobre bandos, disputando aos monstros do rio uma parte da presa palpitante.

Foi uma hora de luta medonha e terrível ! O quadro era a um tempo aterrador e piltoresco. Durante a maior confusão, quando a batalha se tornou geral e quasi braço a braço, assimilhou-se, ora a um turbilhão humano, informe, elástico, vertiginoso, ora a uma erupção phantastica, saída do fundo do rio, do, meio da qual partiam gritos, berros, silvos, rugidos, sons inarticulados : mixto da voz do tigre, do sibíllo da serpente e do bramir do jacaré; ondas de carne e de madeira, agitadas por dois fluidos — o sangue do homem e o da terra sua mãe ; e d'essas vagas medonhas e tumultuosas destacavamse as pennas brilhantes dos cocares dos chefes, os adornos de contas de vidro ou de talco, resplandecentes com o sol, e as armas, purpureadas do sangue !

As feras das florestas, não ousando presenciar este delírio de selvajaria, sumiramse nos seus covis, soltando uivos dolorosos.

Por fim, os mundurucús começaram a fraquejar e a ceder; e iam já em debandada, perseguidos pelos seus inimigos victoriosos, quando o ubá dos dois viajantes desconhecidos arremetteu, com a velocidade do raio, para o meio dos combatentes, bradando o Índio que o dirigia aos fugitivos :

— Goataçára mundurucú ! Goataçára mundurucú !

Os dois bandos pararam estupefactos ; os muras, olhando com assombro e desdém para o estranho, e, ao que lhes parecia, irrisório reforço, que chegava aos seus contrários; estes, não menos espantados, e porventura offendidos, com tão pouco promettedor auxilio, iam talvez agradecel-o com frechadas, quando o joven repetiu com maior energia :

— Goataçára mundurucú 1 Goataçára mundurucú ! — E apontando a sua espingarda, a terrível arma de fogo dos brancos, ao maracatim ou canoa almirante dos muras, disparou-a, varando com a mesma bala o chefe e o seu piága, que ambos caíram e desappareceram nas aguas do Cayari.

— Goataçára mundurucú ! — exclamaram ao mesmo tempo todos os soccorridos. — Goataçára mundurucú !

E cobrando novos alentos, retomaram a offensiva, levando á frente o joven estrangeiro.

Tão bem dirigido foi o ataque e tão simultânea e impetuosamente dado, que um triumpho rápido, e pouco custoso, coroou logo o auxilio inesperado de Goataçára e de sua irmã, que guiava o ubá emquanto o irmão combatia. Em breves minutos todos os muras, que não fugiram, foram mortos, ou ficaram em poder de seus adversários !

XI

O prisioneiro branco

Os mundurucús perseguiram até á margem opposta os inimigos destroçados, e ali se apossaram do seu campo, e das suas mulheres e filhos, que não tiveram tempo de seguir os fugitivos. Vinte ubás, quinze prisioneiros, mais ou menos feridos, e numerosas armas de todas as qualidades, tal foi o premio da victoria fluvial. A inspecção dos despojos do acampamento reservou-se para mais tarde.

Após a batalha, voltaram-se as attençôes dos vencedores para o homem a quem se deviam os resultados d'ella. Esse poderoso auxiliar, desdenhado ao principio, e admirado agora como heroe, foi saudado com enthusiasmo pela tribu inteira, que lhe rodeava a canoa, gritando :

— Goataçára ! Goataçára ! Goataçára mundurucú ! É um chefe ! Um tupinambá !

Goataçára desembarcou, e todos quizerara correr-lhe a mão pelo cabello, em signal de affecto. O mesmo fizeram á sua joven companheira, a quem offereciam, como á porfia, collares, cintas de talco, e outros enfeites, que tiravam de si para lhe dar. Depois, descobriram a carga mysteriosa do ubá dos viajantes, e pozeram-se a olhar com pasmo para as pedras, ou cousa similhante, de que ella se compunha.

— Itá! — gritaram alguns em tupi, como se dissessem — pedra !

Pegaram cada um em seu fragmento e pozerara-se a miral-o, andando com elle de roda.

— Itá juba! — disse o chefe da tribu, também em tupi, que queria dizer — pedra amarella, ou oiro.

— Itá juba ! — repetiram todos os que se achavam próximos. E começaram a rir-se para Goataçára, que assistia calado ao exame.

— Itá juba. — confirmou elle.

Todos foram ver, cada um por sua vez ; examinavam os pedaços de metal com grande admiração, e visivelmente preocupados do desejo de lhes descobrirem a utilidade ; por fim tornavam a largal-os, sem terem percebido, e riam-se de novo para os possuidores d'aquelle insólito carregamento. A espingarda excitava também vivamente a curiosidade da maioria ; os menos timidos ousavam tocar-lhe no cano, porém retiravam logo a mão, como se o achassem em braza ; os outros contentavam-se com observal-a de longe, abaixândo-se para espreitar-lhe os fectios, pondo-se nos bicos dos pés para lhe verem a boca, andando á roda do dono, que não a tinha largado, e fazendo gestos de quem a estava medindo, comparando-lho o tamanho com o do arco e das frechas. Alguns imitavam, com gritos gutturaes, o som dos tiros, e n'essa occasião todos se afastavam, mais assustados do que alegres, incluindo os próprios que faziam o arremedo do estrondo. Não era, provavelmente, a primeira vez que viam armas de fogo; mas o respeito, com que olhavam para aquella, indicava que nenhum dos presentes ousara ainda servir-se d'ellas nem pegar-lhes.

Quando Goataçára lhes explicou que era filho do chefe mundurucú do Tapajós e que pretendia ir a Manáos, com sua irmã Gertrudes Porangába, para vender aquellas pedras aos brancos, os Índios fizeram-lhes muitas festas e demonstrações de amisade.

— O meu irmão é um grande guerreiro — lhe disse o chefe ; — os mundurucús do Tupinambaranas, que juraram alliança a Woipaigupi, o grande, devem-lhe auxilio, e defenderão Goataçára e Porangába até chegarem ao grande rio ; porém os muras fugidos são alliados dos senhores de Manáos...

— Os brancos são amigos de Goataçára.

— Já não os ha no Quiari.

— Não ha brancos no Rio Negro?!

— Os Índios mansos, com outros homens de côr, e também com alguns brancos, andam a queimar as villas e cidades ; tomaram Manáos.

— Os cabanos?!

— O meu irmão conhece-os ?

— Elles são amigos ou inimigos do chefe?

— Os mundurucús do Tupinambaranas nunca tiveram inimisades nem allianças com elles ; porém os Índios muras, que os ajudam na guerra, queimaram uma das aldeias da nossa tribu, e fugiram covardemente. A vingança é como os fructos do quiabeiro ; não se deve deixar amadurecer porque perde o gosto ; jacaré farto não come. Parti com os meus guerreiros ; subíamos o grande rio, para irmos combater os muras ao seu refugio do Maué-açú, quando soubemos que se tinham mettido no Cayari. Remámos atraz d'elles, desde o começo da lua, e só hontem á noite vimos de longe o seu campo ; hoje foi o dia do combate, que o meu irmão decidiu a nosso favor. Se os cabanos são inimigos de Goataçára, tambem o serão, d'aqui em diante, dos Índios do Tupinambaranas.

— Os cabanos são meus inimigos.

— Iremos combatel-os. O chefe Woinoi Causchi (Dente do diabo) prometteu acudir com trezentos arcos ao tio Woipaigupi, e aos seus descendentes, porque esse grande chefe me ajudou a destruir os muras do Mauémiri. Goataçára descende d'elle, e, ainda que não venha com a sua tribu, deu-nos a victoria, e Woinoi Causchi quer mostrar-se grato.

— Não. Goataçára agradece ao chefe ; irá sósinho á sua empreza.

— Goataçára é forte como o tronco dárairaitá... porém, os cabanos são muitos e tomaram Manáos.

— Esperarei a hora da vingança. Porangába, amarra o ubá. Ficámos aqui hoje.

O chefe da tribu foi passar revista ao campo inimigo, acompanhado pelos seus hospedes, e seguido dos principaes guerreiros da sua nação. Os vencedores installavam-se nos tejupares dos muras, e tomavam posse de tudo que n'elles encontravam : armas, farinha, remos, fructos ; cada um apanhava o que podia, sem se importar se a distribuição deveria ser equitativamente feita, entre todos, nem se reservariam alguma cousa para Woinoi Causcbi. Quando este chegou ao acampamento, a arraia miúda do exercito devorava as ultimas bananas e bacuris, e comia o derradeiro pedaço de carne moqueada. O chefe nâo manifestou o menor resentimento, ou despeito, por essa desattençâo e pouca delicadeza do seu povo.

— Tragam os prisioneiros.

Instantes depois estavam na presença d'elle os quinze captivos, amarrados com cipós, e guardados por mundurucús, que empunhavam formidáveis tangapemas.

— Os muras são traidores e covardes ! — gritou Woinoi Causcbi, assim que os avistou. — Queimaram a aldeia dos mundurucús do Tupinambaranas, que não eram seus inimigos, e fugiram como o jaguar que rouba o filho do veado !

Os presos ficaram impassíveis, frios, indifferentes e immoveis.

— Woinoi Causcbi é grande e forte como o acapú da terra firme ; os que affrontarem a sua cólera serão desfeitos, como as ilhas de canarana, que o vento da cordilheira arremessa ás correntes do grande rio.

Os captivos nem pestanejaram sequer.

— O tacape dos bravos abaterá a soberba e o orgulho da raça mura !

Um dos vencidos acocorou-se no chão e respondeu pausadamente :

— Os mundurucús mortos pelos muras sâo mais numerosos do que os fructos dos taperibáseiros, que bordam as margens do canal dos Autazes. Se não fosse o filho do Tapajós, armado com a espingarda dos brancos, os Índios do Tupinambaranas teriam caído todos, como cardume de acarás que bebeu agua de limbo. Por cada um de nós que vae morrer, succumbirara cinco dos teus !

— Mentes ! — rugiu o chefe.

— Os filhos do lago Autaz não teem medo de ti nem dos teus. — disse, acocorandose, outro prisioneiro. — As minhas armas sustentavam todos os urubus do Maués com índios do Tupinambaranas e do Tapajós.

— Do Tapajós é falso! — contestou Goataçára.

A este tempo trouxeram as mulheres, com as filhas e filhos dos muras, apanhadas no seu acampamento pelos vencedores. Vinham todas amarradas, nuas, ou com pequenos sendaes de folhas de palmeira, ou de pennas. Algumas tinham o olhar feroz e altivo ; outras pareciam desvanecer-se com a nudez, que lhes permittia ostentar as formas elegantes realçadas por todas as graças da natureza.

Nenhuma se mostrava medrosa ou abatida. Dir-se-hia que desafiavam os olhares dos vencedores, para que se recordassem se tinham visto na sua tribu encantos iguaes aos d'ellas.

Nos pequenos Índios notava-se o ar desconfiado do câo, quando passa por logares desconhecidos.

— As mulheres dos muras ficaram todas captivas. — observou o chefe.

— Os valentes do Maués e dos Autazes irão caçar filhas de mundurucús para a sua rede. — respondeu terceiro preso, acocorando-se, como os que tinham fallado primeiro.

— Os filhos dos Índios vis serão escravos, e aguçarão frechas para atravessar o peito de seus paes. — respondeu Woinoi Causchi, fulo de raiva.

— O jaguar sabe comer a mão do homem que o cria.

— Os tacapes quebrarão os dentes do jaguar.

O chefe, ao passo que discutia com os presos, ia repartindo as mulheres e as creanças pelos companheiros que mais se tinham distinguido no combale.

Quiz que Goataçára participasse também dos fructos da victoria, que tinha ganho, dando-lhe a escolher as captivas e captivos que mais lhe agradassem ; porém o joven Índio recusou tudo.

Os prisioneiros muras nem ao menos reparavam se entre as victimas estariam as que compunham a família de cada um d'elles ! Certos do destino que os aguardava, e querendo, por orgulho de raça, mostrar-se superiores a elie, começaram a cantar, com voz monótona e pausada, uma espécie de ode guerreira, dizendo cada um como, quando, e quantos mundurucús tinha morto durante a sua vida, protestando que não temia a morte, chamando covardes e insultando com palavras affrontosas a todos os seus inimigos.

— Que as velhas mundurucús preparem as ceremonias para os sacrifícios. — ordenou o chefe. — A carne dos muras é grata aos Índios do Tupinambaranas. Levae-os!

As mulheres acabavam de ser distribuídas, e cada senhor apressava-se em afastar-se com a sua, quando chegaram alguns índios, escoltando nova presa.

— Um branco ! — exclamou Goataçára.

— Um branco ! — disse também o chefe, com espanto.

— Um branco! — murmurou Gertrudes.

— Era escravo dos muras — explicou um dos que o traziam; — cortou com os dentes o cipó que o amarrava, escondeu-se no mato, e quando viu os ubás sem remadores, saltou no de Goataçára, e corria pelo Cayari como jacaré atraz de surubim ferido.

— Fugia com o meu ubá! — gritou em portuguez o indio do Tapajós. — Porque não escolheu um sem carga, que lhe permittiria ir mais depressa?! O branco reconheceu a mercadoria e roubava, fugindo!

O preso olhava para Goataçára, espantado de ouvir um indio exprimir-se com tanta facilidade, n'uma língua estranha.

Era homem de vinte e cinco a trinta annos, cara redonda, cheia, corada, olhos pequenos, vivos, de côr verde, nariz aquilino, boca pequena e coberta por espesso bigode loiro, testa alta, e a cabeça ornada de magnificos cabellos, da côr do bigode.

— Oh! Oh! — rosnou Woinoi Causchi. — Está bom para comer ! ... E eu gosto muito !

O preso voltou para elle o olhar aterrado, por ter sem duvida comprehendido as palavras do bárbaro.

— O branco sabia que género de carga levava o ubá, em que fugia? — interrogou Goataçára.

— Não tive tempo de escolher; saltei para a canoa que vi mais perto, sem reparar se essa estava carregada ou as outras vazias, — respondeu, em mau portuguez, o prisioneiro.

— O branco é brazileiro ou portuguez?

— Sou francez.

— Como estava em poder dos muras?

— Tinha vindo da cidade do Pará commerciar com os Índios do Alto Amazonas; voltava do Peru, pelo mesmo caminho, quando a canoa que me levava foi assaltada pelos muras, acima da embocadura do Tapajós, n'um sitio a que ouvi chamar Icuipiranga, onde se tinham fortificado os cabanos.

— Icuipiranga?!

— Quando passei a fronteira do Peru, ignorava o estado de insurreição e anarchia d'esta provincia.

— Os cabanos estão em Icuipiranga?!

— Parece que ali se fortificaram, porque julgam o ponto inexpugnável; mandaram expedições subir o Amazonas, e creio que já se assenhorearam de todas as villas importantes até Tabatinga.

— Os muras andam com elles?

— A tribu que me prendeu e roubou voltava do Tapajós, onde, segundo me disseram, tinha exterminado a nação mundurucú, que pretendera oppor-se á installação dos cabanos em Icuipiranga...

— Ah! — exclamou Goataçára. — E ha que tempo foi isso?

— Quinze dias.

— E disseram-lhe que exterminaram uma tribu mundurucú? ! A mais próxima de Icuipiranga?

— Affirmava-se que não escapara uma só pessoa com vida. Creio que lhe chamavam a tribu das cachoeiras.

— Ohl meu pae!... — suspirou dolorosamente Goataçára.

— Flor de Cajueiro! — murmurou Porangába.

— Mortos ! — volveu o joven indio. — E eu, que não estava lá para os defender, ou para morrer com elles ! ... — E voltando-se novamente para o branco : — Está bem certo do que me diz? Destruíram a tribu?

— Estou certissimo. Em signal de reconhecimento por esse serviço, os revoltosos de Icuipiranga consentem que os muras assaltem e roubem, de sociedade com elles, as povoações e as canoas. Depois de me terem aprisionado, vinham para Manáos, com um comboio de cabanos, quando a mulher do chefe, surprehendida na ilha de Canumá, foi levada pelos Índios do Tupinambaranas. Os muras entraram n'esse rio e queimaram uma povoação ; mas, sendo perseguidos por forças maiores de gentio mundurucú, fugiram por outro rio, que ouvi chamar furo de Urariá, e vieram ter ao Madeira, onde foram ha pouco alcançados e batidos, como sabe.

— O chefe mundurucú é amigo de Goataçára; se tem n'alguma conta o auxilio que lhe prestei, e se lembra da alliança contratada com meu avô Woipaigupi, deixe-me interrogar os prisioneiros muras... E se estiver entre elles o matador de meu pae e de minha mãe...

— Goataçára é meu irmão e meu alliado; os seus inimigos são inimigos do chefe ; que a sua vontade se faça, e que todos os prisioneiros morram ás suas mãos.

Goataçára e sua irmã foram interrogar os presos. O branco, vendo afastar o índio, cujas expressões polidas lhe tinham feito entrever a esperança de salvar-se, lançou em torno de si um olhar cheio de terror e desanimo.

— Os mundurucús do Tupinambaranas também fallam portuguez e tupi, que era a lingua de seus paes. — lhe disse o cacique, n'um dialecto mesclado, mas intelligivel. — O branco está gordo... e é prisioneiro do chefe ...

— O chefe não é baptisado? — interrogou o captivo, tremendo.

— Não.

— Os missionários nunca lhe ensinaram que deve poupar a vida do seu similhante?

— Nunca.

— Na sua tribu não ha nenhum homem que conheça as palavras de Christo?

— Nenhum.

— O chefe não perdoa a um pobre prisioneiro, que não lhe fez mal, nem é seu inimigo ?

— Os mundurucús nunca perdoam... e gostam muito de carne de branco.

— Jesus! Que horror!

Em torno do mísero andavam já a este tempo uns poucos de selvagens, impacientes com a prolongação do dialogo, passando as mãos pelos gumes dos tacapes, e olhando para o francez com ares de quem estava já antegostando uma das suas saborosas costelletas. Woinoi Causchi, que nâo parecia menos ávido do saboreal-o, ia dar o signal para começarem as dansas, e mais ceremonias, que precedem as execuções dos prisioneiros, ao tempo em que voltavam Romualdo e Gertrudes.

— Os guerreiros do chefe mundurucú não adiam a hora da vingança. — disse o indio manso. — Quando Goataçára chegou, caia o ultimo captivo debaixo dos tangapemas ! Que os mortos fossem ou não os assassinos de meus pães, a vista d'essa carnificina, feita a sangue frio, revoltou o coração do filho do Tapajós. As minhas armas nunca mais se tingirão de sangue inimigo, senão durante o combate !

Ouvindo estas palavras, raiou novo clarão de esperança na alma do estrangeiro, que fixou no joven mundurucú um olhar supplicante.

— São os usos da minha nação. — respondeu altivamente o cacique.

— Não me queixo d'elles. — volveu Goataçára.— Sou filho de chefe, e dirijo as minhas acções segundo a minha consciência.

— Salve-me, por piedade! — implorou o branco. — O senhor é christão, foi educado, e deu-lhe Deus nobres sentimentos; não consinta que me assassinem ! ...

— Não posso oppor-me, ainda que o deseje.

— Não póde?! Consentirá que na sua presença se commetta similhante atrocidade?! Estes bárbaros querem matar-me, para me comer a carne, e o senhor, meu irmão em Christo, deixará consumar tamanho crime, tendo tanto poder e influencia sobre elles? Oh ! salve-me a vida, pelo amor de Deus ! Supplico-lh'o por alma de seu pae e de sua mãe!... Por amor d'essa mulher, que vejo a seu lado, e em cujos olhos resplandece a ternura de irmã ou de amante ! ... Livreme da morte, e amal-o-hei toda a minha vida; serei seu escravo, se quizer... Deixando-me livre, voltarei ao meu paiz, para ir dizer a minha mãe e a minha irmã o nome do homem generoso, que ellas devem abençoar commigo!

— Vou tentar, mas creio que é impossivel.

— Porangába quer que salves o branco.

— Gertrudes sabe os usos dos anthropophagos; na nossa tribu houve alguns, infelizmente ! ...

— Porangába quer que salves o branco.

— Chefe Woinoi Caiischi, pedi-te os matadores de meu pae, e elles estavam mortos quando Goataçára ia interrogal-os. Dá-me a vida d'esse branco.

— Que o neto de Woipaigiipi escolha entre os meus ubás o mais novo e mais ligeiro; entre as minhas mulheres, a que eu mais amar ; a mais formosa das minhas filhas; o mais forte dos meus arcos; o melhor dos meus tangapemas; as minhas tacuáras mais cortantes... mas deixe que o chefe do Tupinambaranas se regale ainda uma vez com a doce carne de um branco, antes de descer ás solidões profundas da noite eterna, onde se perdem os mundurucús que morrem. Não se apanham brancos todos os dias, e este está bem bom ! O chefe sente-se com appetite para lhe comer uma perna, só á sua parte.

E fazendo um gesto aos seus guerreiros, que só por deferência para com Goataçára tinham tido tanta longanimidade, estes ergueram rapidamente os tacapes.

— O branco é meu! — bradou a joven índia, estendendo a mão sobre elle, e suspendendo com olhar e gesto imperiosos os movimentos dos matadores.

— Que faz Porangába?!

— Segundo os usos da nação mundurucú, logo que uma mulher virgem pôe a mão na cabeça de um prisioneiro, esse homem pertence-lhe. Porangába, filha de Pangip-Hú, neta de Woipaigupi, a quem Woinoi Gauschi deve respeito e alliança, está nas condições de salvar a vida do branco.

— E o branco acceitará por tal preço a existência? — interrogou Goataçára, dirigindo-se ao francez. — O filho d'além dos mares quererá por mulher uma india do Tapajós?

— Quero ! — gritou o prisioneiro, ainda mal recobrado do terror que tivera. — E juro, por Deus, de nunca ter outra esposa, emquanto for viva aquella que me salvou a vida.

— Sendo assim, Porangába tem direito a que o chefe Woinoi Gauschi lhe faça justiça. De ora em diante o branco é irmão de Goataçára.

O chefe e os seus companheiros olharam uns para os outros, coléricos e despeitados.

— Que o branco seja livre! — ordenou, após momentos de hesitação, o cacique. — Faça-se a vontade da filha dos mundurucús!... Porém, que Goataçára e sua irmã partam no mesmo instante com elle! A divida do auxilio está paga. Woipaigupi morreu; e Woinoi Gauschi responderá com tacuáras a quem lhe pedir mais soccorro em nome do morto.

— Seja como diz o meu irmão. — replicou Goataçára.— A filha de Flor de Cajueiro assim o quiz.

Gertrudes desamarrou o branco.

— O teu nome?— interrogou ella.

— Alberto Lacroix.

— Aonde é o teu tejupar?

— Em França, num logar chamado Passy, junto a Paris, onde meu pae tem uma fabrica de refinar assucar.

— Porangába é tua escrava; leva-a á terra onde nasceste, mas não a separes de Goataçára.

— Porangába é minha esposa, e Goataçára meu irmão; irão commigo para onde eu for, ou irei eu com elles para onde quizerem levar-me ; a minha vida pertence a ambos.

— Partamos. — disse Goataçára.

Desceram para a margem do rio, por entre alas de munduniciis, que não encobriam o descontentamento de se verem privados do seu mais querido acepipe; embiircaram no ubá, e, desamarrando-o, largaram-n'o á corrente do Cayari.

XII

Alberto Lacroix

O francez sentou-se a par de Gertrudes, e quiz tirar-lhe o remo, para remar em logar d'ella.

— Não; as tuas mãos são rosadas e macias como os fructos do cobio; o remo de ilaúba tornal-as-hia ásperas e grosseiras, como as do tracajá ou do tatu.

— Porangába é minha esposa. No meu paiz é o homem e não a mulher quem faz os trabalhos rudes.

— Quando andarmos por logáres que tu conheças melhor, com usos e costumes differentes dos meus, será como ordenares ; aqui, deixa Gertrudes seguir as tradições do seu povo.

— Gertrudes?...

— Eu fui baptisada.

— Ah!

— Para os gentios serei o que elles quizerem chamar-me ; para o branco, sou Gertrudes.

— E o meu irmão? Qual é o seu nome de baptismo?

— Romualdo.

Lacroix esperou debalde que o futuro cunhado lhe desse mais esclarecimentos, a seu respeito ou da irmã; o joven indio tinha accendido o cigarro de tauari e fumava, com a sua costumada impassibilidade, empunhando o jacumá, recostado na popa da canoa. A irmã ia remando negligentemente; e tanto um como outro pareciam não se lembrar de que tinham um novo companheiro de viagem. Já se disse porém mais atraz, que ambos viam, parecendo que não olhavam; e é provável por isso que, apesar da sua apparente indifferença, lhes não escapasse o menor gesto ou movimento do hospede. Este permanecia silencioso, sentado na incommoda travessa de pau, que servia de banco á remadora.

Salvo repentinamente da morte, por um modo tão original quanto inesperado, percebia-se que a situação presente o preoccupava ainda bastante. Com a mão esquerda agarrada à borda do ubá e a direita pousada no joelho, deixou pouco a pouco descair a cabeça sobre o peito, e contrahiu-se-lhe a fronte, enrugada pela concentração de espirito.

Navegaram assim pcrío de uma hora, sem se quebrar o silencio que todos três guardavam.

— Pára! — ordenou Romualdo.

O branco deu um salto, como se despertasse de um mau sonbo, e olhou espantado em roda de si.

Gertrudes metteu placidamente o remo dentro do ubá, e sentou-se com o rosto voltado para a popa.

Alberto, que se julgara victima de um pesadello, quando o acordou a voz do piloto, não pôde encobrir de todo a expressão dolorosa que se lhe desenhou no rosto, reachando a realidade da sua posição. Para disfarçal-a, perguntou:

— Que succedeu? Porque se deixa de remar?

— Porque seria imprudente apressarmonos atraz dos muras fugitivos.

— Ah!... também me parece.

E imitando Gertrudes, voltou-se com o rosto para a popa.

— O meu irmão arrepende-se de ter feito o contrato que o livrou dos mundurucús? — interrogou o índio.

— Eu?! — exclamou Lacroix, corando. — Porque me pergunta isso ?

— A tristeza do seu rosto denuncia-o.

— Engana-se, Romualdo. A sua inexperiência juvenil toma por indicio de arrependimento a melancolia inspirada pela lembrança de minha mãe e de minha irmã.

— O homem que sabe amar a mulher que lhe deu vida, não pôde ser desleal nem ingrato.

— Temia acaso que eu o fosse?!

— Gertrudes é índia e tu és branco...

— Gertrudes é bella como as bellas mulheres do meu paiz. Quando, em mais benigno clima, onde não se exponha ao sol, a arte se apossar dos seus formosos cabellos, e logo que os trajes elegantes das europeas lhe cobrirem o corpo, será invejada peias brancas todas.

— Tu és rico?

— Meu pae foi rico entre os ricos. Desastres successivos tornaram-n'o pobre... Ultimamente fundou uma nova industria, mas falta-lhe dinheiro para desenvolvel-a. Mandou-me ao Pará, onde se achava um seu amigo ourives...

— Ourives?!

— Tinha sido joalheiro, como eu...

— Tu és joalheiro?!

— Quando meu pae era rico, aprendi a negociar em jóias. Trouxe para o Brazil um excellente sortimento, que vendi logo, e pedi outros. A fortuna principiava a sorrir-me novamente... Porém eu impacientava-me por não enriquecer depressa ! Quando o meu commercio afrouxava na cidade, ia correr as villas e as aldeias, vendendo as jóias a troco de géneros; por fim, subi o Amazonas até ao Peru; dei-me bem com essa viagem e fiz mais três, sempre felizes ; n'esta ultima trouxe empregado tudo quanto possuia, esperando que os resultados me permittissem voltar para o meu paiz. Eífecti vãmente regressava ao Pará com essa intenção, quando os cabanos e os muras me roubaram tudo e me prenderam. — Conheces o oiro em bruto?

— Conheço.

Calaram-se ambos. O indio tomou a altitude de quem medita; porém o seu olhar ia de vez em quando cravar-se como aguda setta no rosto de Lacroix, e parecia querer abrir por ali caminho para ler-lhe o pensamento.

Alberto abaixara os olhos, talvez por acaso, sobre a cobertura da carga. Um raio de sol, que se introduziu n'esse instante por entre as folhas de palmeira, de que ella era feita, fez resplandecer alguns fragmentos de oiro. O olhar do moço ourives pareceu accender-se, a essa vista, com um fogo mais vivo do que aquelle que brilhava nas facetas do metal precioso.

Goataçára, que o examinava sempre com prudente desconfiança, teve como que um reflexo do que se lhe passava na alma, e o seu rosto illuminou-se também por um clarão sinistro; mas foi rápido como o fuzilar do relâmpago. Dominou a cólera que lhe subia do coração aos olhos, e disse, indolentemente :

— Que a minha irmã levante as folhas de bussú, que escondem a carga do ubá.

Porangába ergueu alguns ramos de palmeira, e os montes de oiro em bruto, de que se compunha o carregamento, alumiados pelo sol, deslumbraram o francez.

— Tanto oiro! — exclamou elle, impellido por um sentimento de cobiça, mais poderoso do que a sua vontade.

— Alberto sabe o meio de o trocar por dinheiro ?

— É simples. Faz-se uma forja em qualquer parte ; derrete-se nos cadinhos, e, posto era barra, fica valendo como se fosse moeda.

— O meu irmão fará as barras, e depois repartiremos entre ambos.

— Todo?!

— Todo.

— O qué?! Metade, para mim só?!

— Metade.

— Seremos riquissimosi Estão aqui muitas arrobas!

— E poderemos ir buscar mais, quando Alberto quizer ; Romualdo sabe d'onde elle se tira com pouco trabalho.

— Que fortuna ! Como a felicidade me caiu hoje das nuvens ! Abençoada prisão! Abençoados muras e cabanos! Abençoados mundurucús! Abençoado gosto que elles teem de comer carne de branco ! E abençoada sejas tu, sobretudo, minha querida Gertrudes Porangába, e tu também, meu bom Romualdo Goataçára.

Alberto levantou-se, como se fora tomado de repentino accesso de loucura; deitou-se sobre os montes de metal, rolou com elles em todos os sentidos; espojou-se, como se estivera em macia sumaúma, parecendo comprazer-se cada vez que as pontas angulosas dos pedaços de minério lhe entravam na carne ! O que teria sido para outros verdadeiro martyrio, e leito de infernaes tormentos, era-lhe cama de voluptuosas delicias!

Os jovens Índios contemplavam-n'o com espanto indescriptivel. De vez em quando encaravam-se mutuamente, interrogando-se com a vista sobre se o seu companheiro de viagem teria endoudecido realmente ; logo depois tornavam a entre-olharse, comprehendendo vagamente o mysterio d'aquelle delírio do branco; por fim tornava o pasmo e a duvida a apossar-se d'elles. O outro tinha o corpo moido, pisado, o rosto e as mãos escorrendo sangue, e continuava a deleitar-se, rasgando a carne com as asperezas cortantes do mineral!

— Porangába Gertrudes ! Dá cá um abraço, querida da minha alma ! Um beijo, mano Goataçára, ou Romualdo !

Os dois irmãos deixaram-se abraçar e beijar sem fazerem um movimento.

— Acánga y'ba ! — murmurou Gertrudes em tupi, como se dissesse: — doudo !

— Acánga y'ba nungára ! — emendou o irmão, que queria dizer: — adoudado !

— Enganam-se! — replicou Alberto, sentando-se sobre a carga. — Sei alguns termos da língua geral, que aprendi commerciando com os índios... Eu não estou doudo, nem sou adoudado ; estou alegre, contente, feliz !

— Bem dizia então o padre Félix a Flor de Cajueiro ! — notou Gertrudes, confundindo, como fazia a mãe, a felicidade celeste com a que resulta dos bens materiaes e terrenos.

— O oiro dá felicidade?

— Se o oiro dá felicidade? — respondeu o francez, com os olhos brilhantes e húmidos de jubilo. — O oiro dá tudo!

— Tudo?! — interrogou Goataçára.

— Tudo. Se tens minas, d'onde se possa tirar dez vezes uma porção igual a esta, faço-te rei de França, apesar de tu seres mundurucú.

— Oh!

— E fazia tua irmã imperatriz da Rússia ... embora ella fosse minha mulher.

Romualdo e Gertrudes, com quanto esta ultima pouco o entendesse, olhavam para elle, abrindo muito os olhos, e ouviam-n'o estupefactos.

— Ah ! — continuava o branco — o oiro é a alma do mundo, o calor, o espirito, a graça, a fecundidade e a inspiração do génio humano. Com este carregamento, convertido em barras, iremos a França, entrará cada um de vós em seu cllegio, sereis educados como filhos deprincipes, e quando eu apresentar, nas salas da primeira aristocracia da Europa, a condessa ou marqueza Gertrudes de Lacroix, e o visconde Romualdo... de qualquer terra que escolhermos, vereis se alguém se lembra de dizer que sois Índios nascidos no Tapajós! A belleza dos nossos cavallos, a elegância das nossas carruagens, a opulência e gosto do trajo dos nossos lacaios, a dislincçâo das nossas pessoas e maneiras, os nossos palácios da cidade e do campo, os nossos parques e jardins, os nossos jantares sumptuosos, e os nossos bailes esplendidos ... quando tivermos uma filha para casar ! ... Ah ! meus queridos amigos ! ... deslumbraremos tudo e todos ! ... E sabereis então o poder do oirol As mais bellas mulheres de França aspirarão á mão de Goataçára... e, apegar de eu ser casado, não me faltarão sorrisos, até das mais altivas ! Os homens eminentes e celebres na politica, os que dirigem os destinos das nações, irão, ás noites, humilhar-se e fazer-se pequenos aos pés de minha mulher, que os poderá manejar, para nosso maior engrandecimento, como agora maneja o remo do ubá que nos leva. Oh ! o oiro ! ... Temos aqui milhões ! Quero que minha mulher seja marqueza... serás marqueza, sim ; entraremos na fidalguia pela porta da Bolsa de Paris... Quando eu for um dos primeiros banqueiros, um capitalista solido... o rei Luiz Filippe gosta do elemento popular, para retemperar e democratisar a nobreza de sangue ; ierei assento na camará dos pares; Romualdo será deputado, ministro, metteremos a Europa na algibeira ! ... E que vida de prazeres, meus amigos ! Corridas de cavallos, opera italiana, theatro francez ; de vez em quando uma furtadella de cancan, ao Mabille ou á Chaumière, para variar; caçadas, viagens á Suissa, á Itália, Roma, Nápoles, Florença ! ... Alberto proseguia, enumerando longamente quantos gosos e divertimentos a imaginação lhe fazia antever, em troca d'aquelle oiro! Era uma nova forma, que insensivelmente ia tomando o seu anterior delirio. Á força de prolongar e encarecer a descripção d'aquelles prazeres antecipados, quasi que perdia a consciência do logar e da situação em que estava, da qualidade dos seus ouvintes, da causa que motivava os seus discursos, e por fim até do que estava dizendo! Dir-se-tiia que fallava n'um assumpto, mas que pensava n'outro !

— E o pae de Alberto? — interrompeu Romualdo, quebrando, ao cabo de tanto tempo, o silencio que lhe impozera o pasmo.

— Hein ? ! — interrogou o outro, como despertando.

— O pae do meu irmão?

— Meu pae ? !

— Sim.

— Está em França.

— Bem sei.

— Então... a que propósito?...

— Alberto deve-lhe os valores que elle lhe mandou?

— Vieram por conta de nós ambos. E, visto que me roubaram ! ... Que isso também era uma bagatella, comparativamente com a parte que me ha de caber do nosso thesouro.

— O velho precisa dinheiro, para desenvolver a sua industria...

— Ah!... depois, veremos... Ao principio não se devem fazer larguezas. Temos muito em que gastar ! Só a despeza de montar a casa, no pé em que eu necessito viver, para dar na vista e arranjar posição para nós todos?!... Trens, cavallos, creadagem!... E os ordenados aos mestres de Romualdo, ás mestras de Gertrudes... Em França tudo é muito caro !

— Essas despezas serão tiradas da minha parte.

— Concordo ; mas ... ainda assim ! Devo ter bastante numerário em caixa, para as operações da Bolsa, jogo de fundos, empréstimos ao governo, etc, etc. Sem isto, não se apanha influencia.

— Teu pae terá motivo de queixar-se do filho, que, sendo rico, o deixa, velho e talvez doente, condemnado a trabalhar para viver ! O meu irmão esquece-se de que elle o creou e fez homem?!

— Ah ! meu caro Romualdo, bem se vê que são ainda muito limitados os teus conhecimentos do mundo! O dever de quem tem filhos é creal-os e educal-os. Também nós seguiremos, a seu tempo, essa lei commum; e crê que não receberemos agradecimentos, porque fazemos simplesmente a nossa obrigação. Quanto a motivos de queixa, não és capaz de desencantar um único pae que diga que os não tem do fillio, sobretudo sendo este rico.

O joven índio lembrou-se com tristeza de que saíra da sua aldeia, contra vontade d'aquelle que lhe dera o ser, e curvou a cabeça. No fundo do seu coração accusou-se de filho ingrato, porque outro lhe dava exemplos de ingratidão igual á sua. Sobre tudo isto pezava-lhe a morte do pae e da mãe, como se tivesse culpa d'ella ; e lembrava-se dos conselhos de Manuel, a respeito do oiro. O francez proseguía :

— Isto de ser rico é simplesmente obra do acaso, ou da fortuna, como quizerem chamar-lhe. Todos nascemos condemnados a ganhar o sustento com o suor do nosso rosto ; os que se livram do jugo são os felizes ; favoreceu-os o acaso.

— O padre que me educou chamava-lhe Providencia.

— Porque era padre; cumpria o dever do offício.

— Porangába, não deixes perder o taracuá e o tabaco, que estão no ubá.

A índia fitou os olhos nos do irmão, leu n'elles o que quer que fosse, e pegando no cesto atou-o á cintura e poz ao pé de si o arco, as frechas, as redes e o remo. Ao mesmo tempo empurrou o terçado e a espingarda para o lado de Romualdo.

Alberto continuou, sem fazer o menor reparo n'estas arrumações:

— Meu pae, que não contribuiu de nenhum modo para que os Índios muras me prendessem, para que os mundurucús quizessem comer-me, nem para que tua irmã me salvasse e tu me fizesses rico, tem por ventura o direito de recolher os resultados do acaso, que me quiz favorecer a mim e não a elle?

— Disseste que teu pae foi rico?...

— Não soube conservar o que tinha.

— E tu sabes se a tua riqueza será mais duradoura, ou se a administrarás melhor ?

— Se eu a perder, meus filhos ficarão pobres, como meu pae me deixava também a mim. E, em iguaes circumstancias, façam como eu, que, em vez de me queixar, vim procurar o acaso.

— E achaste a Providencia.

— Não discuto nomes.

Calaram-se novamente. Romualdo tornou a fitar os olhos em Gertrudes, e depois volveu-os lentamente para a proa do barco. Um cedro enorme, arrancado pelas tempestades, ou pelas correntes, que devoram as barreiras do Guaporé e do Beni, viera, trazido por ellas, como centenares dos seus companheiros, cravar os ramos no fundo do Cayari, um pouco mais abaixo do logar onde ia o ubá n'aquelle momento. O colosso vegetal, com o tronco terminando em forma de pião monstro, e ires ou quatro raizes á roda, polidas pelas aguas, girava, ora n'um sentido ora n'outro, similhante a um parafuso de machina immensa. Após dois ou três movimentos circulares, fazia outros tantos em vaivém, abaixando-se e erguendo-se ao mesmo tempo, como se fora movido por mão invisivel. Estava no meio do rio, no centro da corrente, que redemoinhava com grande ruido em torno d'elle, enfurecida talvez por não poder leval-o.

Gertrudes, seguindo indolentemente com a vista o olhar do irmão, reparou no madeiro, voltou de novo o rosto para a popa, e pousou a mão com indifferença sobre o arco e as redes.

— O velho Lacroix teria portanto de refinar assucar, para vender aos creados de seu filho millionariol... — disse de repente Romualdo, como se fallasse comsigo.

Alberto, surprehendido por aquella observação imprevista, que lhe revelava a idéa fixa do cunhado, olhou para este sem responder, tentando ler-lhe nos olhos o pensamento. O Índio permaneceu impassivel.

— Refinar assucar não deshonra ninguém. — volveu o francez, passados instantes. — Alem de que, pelo tempo adiante, quando o velho não possa trabalhar, não digo que... umas vezes por outras...

— Estas pedras amarelladas são, pois, um dom funesto da cólera de Deus, como dizia o chefe mundurucú?!... Agora comprehendo as barbaridades dos hespanhoes no Peru e no México ! ...

— Que dizes?!

— A carga do meu ubá, inútil ainda, conhecida apenas de nós três, já tornou dois filhos ingratos! Que fará quando o seu poder mysterioso se applicar ás paixões de tanta gente, que sabe mais do que eu?!...

— Ai! Jesus!

O ubá, dando em cheio contra o cedro preso no fundo do rio, atravessara, voltando-se de fundo para o ar com a rapidez do relâmpago ; quando Alberto gritou, a borda mergulhava impetuosamente do seu lado, e uma das raizes da velha arvore, pegando n'elle pelo peito, suspendeu-o, sem o deixar quasi molhar os pés. Os dois Índios escorregaram pela borda fora, sem soltarem o menor grito ou exclamação, levando um as armas e os remos, e outro as redes e o cesto. O ubá, depois de ter fecundado com mais um thesouro o seio profundo do Cayari, foi rolando com a corrente. Goataçára e Porangába nadaram após elle; e apenas uma nova curva do rio os encobriu aos olhos de Lacroix, pegou-lhe cada um de seu lado, com a mão que tinha livre, e começaram ambos a imprimir-lhe balanços rápidos, depois de o voltarem com o fundo para baixo. Emquanto as bordas estavam ao nivel da superfície do rio, o despejo opera va-se com difficuldade e lentamente; mas logo que uma pequena descarga as elevou um pouco, a agua saltava fora com pasmosa celeridade. Em menos de quatro minutos ficou completamente esgotado, e os dois irmãos, içando-se para dentro, retomavam gravemente as posições anteriores. Ao longe, o misero Alberto, a cavallo no cedro, que o fazia dançar sem vontade, soltava gritos tão lastimosos que commoveriam até os jacarés, se o ouvissem, e, sobretudo, se o vissem!

XIII

Os cabanos

Concluída a faina, voUou-se Gertrudes para o irmão e interrogou-o com a vista.

— Deixa ficar o branco. — respondeu elle, que percebera a muda pergunta.

— Não. — volveu a joven, agarrando-se a um ramo, debruçado sobre o rio, e fazendo parar o ubá.

— É um tupinaen, um homem sem coração, que te pode ser funesto.

— Não quero que morra. Salvei-o do chefe tupinambarana...

— Talvez que tivesse sido melhor deixal-o comer pelos anthropophagos.

— Sim; antes por elles do que pelos jacarés do Cayari.

— Não esperará muito tempo uns ou outros; os mundurucús descem atraz de nós!

— Goalaçára!

— O branco é mau; quem nao ama seu pae, não será fiel ao irmão; e matará a mulher, quando se aborrecer d'ella.

— Romualdo também desprezou o conselho do chefe das cachoeiras.

— Acabo de me punir, sumindo no Cayari a causa da minha desobediência.

— E agora? Aonde vamos sem as pedras amarellas?

— Combater os cabanos, que mataram os dois velhos... e destruíram a nossa tribu.

— Sem oiro?

— Ajudarei os brancos, e elles me darão pólvora e bala.

— Para isso é bom que levemos Alberto.

— Não teimes.

— Quero.

— Sabes porque alaguei o ubá?

— Porque o branco se fazia filho ingrato. Já o castigaste; vamos buscal-o.

— Não foi só por isso. Li-lhe nos olhos que nos mataria a ambos, á traição, para roubar o nosso oiro. Elle não tem mãe nem irmã; e quando fugiu do campo dos muras, bem sabia o que levava no ubá que tinha escolhido.

— Agora que não trazemos oiro, não ha por que o temer.

— Todo o homem que é mau, deve temer-se sempre. Depois que li no seu coração, tel-o-ía morto logo, se os velhos brancos não me houvessem feito perder as tradições do nosso povo.

— Para que o deixas então no meio do rio?

— Para que morra sem que eu o mate.

— O meu irmão é injusto e cruel.

— Antes de o condemnar julguei-o imparcialmente. A sentença que o fere alcançou-me também, privando-me dos meios de me vingar mais facilmente, e destruindo os meus planos de educação e de viagens.

— Goataçára falla como os brancos sábios!... Apesar de tudo, eu quero Alberto ! Acompanhei meu irmão para que não se expozesse sósinho aos perigos das florestas ; quando elle dorme, os meus olhos não se fecham; se temos de passar um igarapé, vou adiante, para que os sucurijús se afastem, ou me comam, dando-lhe a elle tempo de fugir; nos dias em que Romualdo não pode ir frechar peixe, mergulho nos rios profundos, apanhando-lhe os acaris, de que mais gosta, ou procuro-lhe nos matos os jabotís de carne tenra; se encontro poucos fructos nas arvores, guardo-lh'os todos ; e quando acho muitos, não como nunca primeiro, para que escolha os mais doces e maduros; se nos acommette o jaguar, é só por meu irmão que receio...

— Porangába ! Porangába ! ... Por teu irmão te querer mais do que a si próprio, é que tinha condemnado o branco ! Aquelle homem não será nunca bom companheiro, bom irmão, nem bom amigo ! Agora, que não temos oiro para lhe offerecer, pensa Gertrudes que elle ainda quererá tomar por mulher a filha dos mundurucús?! Logo que veja na india um obstáculo, julgará bons todos os meios que o livrem d'ella.

— Para o prender, prometto-lhe leval-o ás minas do Arinos, e não nos deixará nunca.

— Oh! as mulheres! as mulheres! Bem dizia o santo velho ! ... Para isto foi inútil despejar a carga do ubá! Vejo que teremos de passar novamente as cachoeiras do Cayari e do Guaporé.

— Vira a proa.

— Seja! Mas lembra-te do que te disse Romualdo. Aquelle branco é perverso, e ha de ser-nos funesto. Por sua causa renunciei já ao maior dos meus projectos; elle fará com que nunca possamos realisar nenhum dos outros ; e tu has de arrepender-te ainda, se tiveres tempo, de não o termos deixado entregue ao seu destino. Rema!

Lacroix tinha perdido inteiramente a esperança de ser soccorrido.

— Talvez que os selvagens escapem! — dizia elle tristemente. — São óptimos nadadores, e estão costumados a isto... Porém, eu?! Que importa que saiba também nadar um pouco?! D'aqui ás margens é longissimo! ... O rio corre muito ; e antes de eu ter chegado a metade do caminho, afogava-me... se primeiro me não comessem os jacarés! Ai! meu Deus! — continuava em voz mais alta — Se vem por ahi algum d'esses monstros? ou uma d'aquellas enormes serpentes aquáticas, que eu via estendidas ao sol, nas praias do Solimões, e que engolem touros vivos!... Vou entontecendo com o maldito girar do cedro! D'aqui a poucos minutos sentirei a vertigem, perderei as forças... e... adeus toda a esperança! Não ha pois remédio senão tentar a travessia, emquanto me resta algum alento ! ...

Após curto silencio, proseguiu, alongando a vista pelas duas margens:

— Ninguém! ... ninguém! ... E se alguém apparecesse, não seria peior ainda? ! Feras de uma ou de outra espécie, viriam só para devorar-me! ... Que mais se ha de esperar n'estas solidões medonhas?! Para que faria Deus os monstros, que se chamam aqui homens e que se divertem destruindo os seus similhantes?... Que aterrador silencio! Que deserto pavoroso ! ... Se Romualdo e Gertrudes alcançaram a margem, pode ser que se lembrem de mim... Pareciam-me boas pessoas... e a tapuia salvou-me a vida, por ter sympathisado commigo... Ah! se me acudissem!... agora, obrigava-me seriamente a casar com ella! É inútil, porém, illudir-me com vãs esperanças!... não pensam n'isso; trata cada um de si. E se porventura tivessem alguma idéa generosa, faltava-lhes a canoa. Meu Deus!... Começa a vertigem!... Este infernal cedro não pára um instante! ... Se eu conseguisse desprendel-o do fundo do rio, talvez que elle me levasse a alguma praia amiga... ou inimiga, que importa?! Em terra sempre haverá mais probabilidades de salvação ! ...

E o desgraçado, em pé, sobre duas raizes, com as mãos agarradas a outras duas, que lhe ficavam na altura do peito, forcejava por dar á arvore movimentos diversos dos que lhe imprimia a corrente; porém as suas tentativas eram baldadas; o madeiro enorme proseguia nas suas ondulações e giros falaes, como se fosse movido pela correia de alguma occulta roda de machina de vapor !

— Impossivel! E ninguém! ninguém!... Nenhum soccorro do céu nem da terra! ... Ah! parece-me que ouvi?... Não me engano!... é bulha de remos... Se fossem os mundurucús ?! Oh! não quero que me comam ! Nâo quero morrer! ... França, minha França ! Paris ! ... Passy ! nunca mais vos verei ! ... Maldita ambição, que me trouxe tão longe ! Achava-me quasi rico, e quiz mais ! Se tivesse voltado para a Europa, acabada a terceira viagem que fiz ao Amazonas, estaria agora socegado... O que tinha ganho, permittia-me viver já em modesta independência... Paris! ... Passy! ... Joanna Bontemps, com os teus olhos azues e os teus cabellos ruivos; Margarida Pélot; Anna Maria ... Chaumière, Mabille, cancan ... foi-se tudo com os diabos ! Elles ahi vêem! ... Inferno! ao menos não me apanharão vivo!... que me comam, embora, se quizerem e poderem tirar- me do fundo do rio, ou das bocas dos jacarés!...

Ia para se atirar de cabeça para baixo, e tornou a reflectir:

— Morrer tão moço ainda!... Tendo tido nas mãos um thesouro! ... que por tão pouco me escapou ! ... Apanhal-o-ía talvez todo!... E bastava metade para que eu fosse um dos homens mais ricos da minha terra! ... Ah! cedro de Satanaz!... Foste tu que me roubaste a felicidade, e por escarneo me tens ainda aqui, suspenso sobre o abysmo, para que possa calcular a extensão da minha miséria! Maldito, maldito sejas mil vezes!1 Saber que ao pé dos teus ramos, presos no fundo, está a minha ventura perdida! ... E ver alem a terra ! ... Approxima-se a bulha dos remos! Não ha, pois, remédio senão morrer ?! Oh ! ... ainda não ! ... esperarei que appareçam... para o ponto final é sempre cedo de mais ! Póde ser alguém, que me salve... E se forem os que pretendiam devorar-me? ! ... Tirar-me-íam palpitante da agua... e depois... Oh! não! seria atroz! Entrevi já o espectáculo horrendo ! ... Eis o momento fatal ! Deus de misericórdia, onde estás?!

Proferindo estas palavras, levantou os olhos como se procurasse no céu alguém, ou alguma cousa não bem definida no seu pensamento, e atirou-se ao rio.

No mesmo instante pareceu-lhe que um echo proferia o seu nome, e ergueu rapidamente a cabeça fora de agua, tentando agarrar-se de novo ao cedro. Este porém ficava já distante, e o suicida sentiu-se levado, pela velocidade da corrente, na direcção em que se ouvia o bater dos remos. O temor de ser comido pelos mundurucús, ou por quaesquer outros anthropophagos, inspirára-lhe a idéa de se afogar; mas a presença da morte, e a esperança, que nem no limiar da eternidade desampara o coração humano, tiraramlhe a força ao designio. Entretanto, ia nadando, o melhor que podia e sabia, para a ponta de terra que lhe encobria a continuação do rio.

— Alberto ? !

— Agora, ouvi, com certeza!

— Lacroix ? !

— Gertrudes?! És tu? Por aqui!

O ubá vinha dobrando o cotovello para onde o nadador se dirigia ; e os dois Índios avistaram-n'o, quando elle já os via também.

— Acudam-me, depressa!

— O meu irmão aborreceu-se de esperar?

— Se te parece que a posição era convidativa! — respondeu Lacroix, agarrando-se á borda da canoa, e reanimando-se inteiramente.

— Íamos buscar Alberto. — lhe disse Gertrudes com meiguice, ajudando-o a embarcar.

— É a segunda vez que me salvas a vida; nunca me esquecerei.

— Que o meu irmão se lembre, principalmente, de que é a Providencia e não o acaso quem dá ou tira a felicidade.

— Ah ! o nosso oiro ! ... Providencia ? ! Um cedro espetado no meio de um rio! ...

— Foi o instrumento d'ella.

— O facto é que lá ficou ! Nós não o poderíamos tirar d'alli?

— O cedro?

— O thesouro.

— Impossível.

— O que vale é que Romualdo sabe onde são as minas? — disse Alberto, após curto silencio, tentando apalpar a opinião do indio.

— O Cayari tem doze cachoeiras, e o Guaporé tem cinco — volveu o outro; — é necessário ir de roda, pelo Tapajós, e gastar muitas semanas antes de chegar ao Arinos.

— Ainda que sejam necessários muitos mezes, a cousa vale a pena.

— Quando não houver cabanos.

— Ah! sim.

— É quasi noite, e ouço ruídos mysteríosos ao longe; entremos n'este igarapé, onde passaremos a noite.

O ubá, dirigido pelo remo de Goatacára, mergulhou por baixo de espessas ramarias, que tapavam quasi inteiramente a boca de um riosinho, e foi entrando, ora impedido pelos remos, ora servindo-se os tripulantes, para o alar, dos ramos que sobre elle se debruçavam de um e outro lado. Chegado a um sitio, aonde o terreno offerecia fácil desembarque, encostaram, amarraram a canoa e saltaram todos três cm terra. Romualdo, vendo que o rio era abundante de peixe, pegou no arco e nas frechas e trouxe, dentro em poucos minutos, dois grandes tucunarés e alguns acarás brancos e vermelhos, que Gertrudes começou logo a assar no braseiro, que antecipadamente preparara. Tendo-se perdido no naufrágio os fructos de inajá, que traziam, procuraram-se os d"essa e de outras palmeiras, para substituirem a farinha de mandioca. Nas margens do ribeiro acharam engás deliciosos, excellentes bacuris e cotitiribás, que contribuirara para tornar a ceia mais variada. Depois d'elia, seccaram-se as redes a um bom lume, ataram-se a par uma da outra, e os dois irmãos deitaram-se cada um na sua ; o branco, não tendo rede, foi dormir na canoa, depois de ter também enxugado a roupa.

No dia seguinte pela manhã tomaram outra refeição, similhante á da véspera, e saíram em seguida cautelosamente para o Cayari. Não se tinham porém afastado ainda dois ou trcs comprimentos de ubá, da boca do igarapé, quando sentiram atraz de si o bater de muitos remos. Yoltando-se, viram o rio coalhado de embarcações de vários tamanhos e feitios, que vinham surdindo de um tributário do Cayari, chamado Ariupaná, e pareciam hesitar sobre o rumo que haviam de seguir. Apenas o ubá foi avistado, toda a esquadrilha se dirigiu para elle. Do grosso das forças, destacaram-se três ou quatro canoas mais velozes, tripuladas por homens de todas as cores, armados com arcos, espingardas, terçados, espadas e machados.

— São os cabanos ! — exclamou Alberto. — Estamos perdidos ! — Fujamos para o mato. — aconselhou Gertrudes.

— É inútil. — observou Romualdo. — Que o branco se não assuste e deixe Goataçára mostrar-lhe como procederia no meu logar um chefe mundurucú.

— Ó da canoa, do ubá, ou que diabo é isso?! — gritaram de uma das embarcações mais próximas. — Pára ahi, se não queres que te metta no fundo, depois de te estragar a pelle !

Goataçára deu ainda duas remadelas, voltou a proa para o lado dos perseguidores e parou, dizendo a Gertrudes :

— Recolhe o remo.

As tres canoas, que regorgitavam de gente, chegaram em breves instantes ao pé do ubá. As suas guarnições compunham-se de indivíduos de differentes raças : tapuios (Índios domésticos), mulatos, mamelucos, cafuzes, e pretos ; entre estas cores havia ainda tantas meias tintas provenientes de cruzamentos, que dariam uma escala de cincoenta ou mais tons diversos. Nos trajos havia a mesma confusão e variedade: casacas, chambres, jaquetas, fraques, camisas de riscado, calças pelo meio das pernas, chapéus de palha, de feltro, de seda ou de castor, aitos, armados, de abas largas e sem abas, barretinas de todos os feitios, bonéts, lenços de cores ! ... E tudo isto sobre cabeças medonhas, encarapinhadas, revoltas, cerdosas, hirsutas, guedelhudas, como jubas de leões ! Alguns homens vinham vestidos de panno avermelhado, tinto em muruxl, aspiração embryonaria dos communistas vermelhos do tempo ; outros, usavam fardas bordadas, sobre a pelle ; muitos traziam as camisas sem mangas e as calças sem pernas ; os que nâo estavam inteiramente nús, vinham rotos, esfrangalhados, grutescos; lembravam bandos de macacos em trajos de carnaval, ou doudos desengaiolados, que tivessem saqueado as velhas guarda-roupas de dez theatros de provincia ! ... Unicamente n'um ponto havia igualdade entre elles: andavam todos descalços.

As caras eram indescriptiveis : estúpidas, ferozes, audaciosas, covardes, espantadas, humildes, idiotas, selvagens, insensatas, incriveis de imprevisto, e estupendas de brutalidade!... Vendo-se tão extraordinária accumulação de creaturas differentes, tão injustificável promiscuidade de physionomias, de colorido, de raças, em que até havia brancos mais sujos do que os próprios pretos, poderia julgar-se que o diabo, desejoso de pôr o inferno em harmonia com os progressos da sciencia e da hygiene moderna, o lavara com as aguas do Cayari, que despegaram de lá aquelle amontoamento de immundicias hediondas, farrapos de panno e de carne, escoria e lixo humano !

— D'onde vem esse ubá? — perguntou um dos facínoras, que parecia ser o maioral, pela selvageria. — E quem vae dentro?

— Vimos do Beni, e vamos procurar a Manaos o commandante das forças sublevadas, para o prevenir de que marcham atraz de nós seis mil mundurucús, que vão atacar os cabanos. Já destruiram os muras...

Esta noticia espalhou o terror e o espanto entre as guarnições das canoas.

— Seis mil !

— Dez mil?!

— Dezeseis mil? !

— Vinte e seis mil ? !

— Aonde estão elles?

— Quando chegam?

— Por onde vêem ?

— Como foi que os contaram?

— Quando destruiram os muras?

— Hontem de manhã ; mataram uns, fizernm outros prisioneiros, e os que escaparam devem ir adiante de mim.

— Eram os que avistámos de longe, fugindo, pelo furo de Araretamal — gritou uma voz.

— Provavelmente iam para o lago Autaz, e por isso não quizeram vir à falla. — disse outra.

— Que havemos de fazer?

— Vamos tomar conselho. Venha o ubá comnosco.

As tres embarcações voltaram as proas, e, seguidas pela de Romualdo, foram reunir-se á esquadrilha. Acolheram-n'as centenares de gritos de interrogação, que se poderiam resumir em quatro ou cinco perguntas.

— D'onde vem o ubá ?

— Para onde vae ?

— Que gente é essa?

— Que noticias traz?

Um branco, desbotado para mestiço, que parecia ser o chefe d'aquelle povo de maltrapilhos, interrogou Romualdo ; e depois de o ter ouvido, subiu para cima da tolda de uma das canoas maiores, e começou a arengar aos seus, n'uma meia lingua de preto, que quadrava perfeitamente aos que o ouviam :

— Meuz amigo ! Fomo derrotado em Cuipiranga ; pérdemo quasi todas villa do sertão e não sabemo si Rio Negro inda pertence a nós; entramo no Madeira com tenção di pidi ós mura que viesse todo com az outras tribu dos lago Autaz em nossa ajuda. Os mura acabam di sê batido dos mundurucú; quem não morreu, ficou prisioneiro ou fugiu ; honte vimo os fugitivo, que nenhum quize vir á falla, como vossês bem sabe. Se o Manáos foi já tomado também, Bararoá, que tem espia, sabe logo o rio em que mettemos, e vem attacá ; Índios mundurucú, que tem desejo de vinga seus parente do Tapajós, si desce ao mesmo tempo que Bararoá entra a subir, mette nós entre dois fogo e matam todo cos diabo !...

— Fujamos! Fujamos! — foi o grito unanime, que acolheu a burlesca peroração, e cem canoas partiram ao mesmo tempo, cada uma para seu lado, no meio de uma confusão e desordem impossíveis de descrever!

— Oiça cá ! Escuta gente, com dez milhão de diabo! Inda não acabou di fallá!... — rugia o capataz d'aquelles bravos. — Refugiemo nos lago Autazes, com oz mura e outros amigo nosso, qui já lá estão ; ou no Maué-açú, d'onde pôde tè communicações de um lado com Tapajós e doutra banda com Amazonas. Si quer antes ir a Manáos, vamo sabe se ainda é nosso, ou si governo apanhou elle já. Genli do inferno?! Pára todo ahi ! Manda seu chefe di rossês, canalha indigno! Pára, senão trabalha bacamarte ! ...

O miserável cansava-se debalde, provando a potencia de pulmões dignos de melhor causa. Ninguém o attendeu ! ... Furioso por tanta covardia, ou despeitado de ver o desprezo com que era tratada a sua auctoridade, pegou n'um bacamarte, que tinha ao lado, e disparou-o, apontando-o ao grosso dos fugitivos. Os tripulantes da sua canoa, sem serem mais valentes do que os outros, quizeram, comtudo, dar uma demonstração de apoio moral ao seu commandante, e fizeram fogo também. Os que fugiam, voltaram-se, soltando rugidos temerosos, e responderam á aggressão no mesmo tom. Dentro em poucos minutos, aquelle bando de facinorosos deu aos dois Índios mundurucús, e ao seu companheiro branco, a justificação mais plena e cabal de que não ha feras iguaes ás feras humanas, quando descem os últimos degraus da escala social.

— Rema! Rema! — gritou Romualdo á irmã. — Aproveitemos o ensejo... Ah ! estes são os que estavam em Icuipiranga ! ... Até á vista... se não se matarem todos uns aos outros. — E voltando-se para Alberto, acrescentou: — Repare o meu irmão, que também ha selvagens fora das florestas!... E peiores talvez do que os que vivem n'ellas!

— Bararoá ! Bararoá ! — clamaram alguns dos combatentes.

— Mundurucús! Mundurucús! — gritaram outros.

O movimento que se seguia a estes gritos, assimilhava-se vagamente ao que produzem os redomoinhos do vento nos areaes. As canoas principiaram a gyrar, como se fossem corpos tomados de vertigens ; os tripulantes gritavam todos a um tempo, remando furiosamente, sem repararem que ninguém estava aos lemes, e que as embarcações andavam á roda ; alguns saltavam ao rio e alcançavam a terra, a nado ; outros, afogavam-se antes de chegarem a ella; estes, arremessavam fora as armas ; aquelles, os remos; empallideciam de cólera e de medo; insultavam-se, accusando-se reciprocamente de se haverem revoltado contra as instituições e contra a sociedade ; imputa vam-se mutuamente a responsabilidade dos seus desastres, e queixavam-se uns dos outros, prevendo que seriam todos punidos em nome da moral e da religião ultrajadas por elles !

A consciência dos próprios crimes, levantando-se diante d'aquelles bandidos, como um espectro ameaçador e terrivel, mostrava-lhes, como não o teria feito o tribunal mais severo e o juiz mais implacável, a infâmia da sua causa e o castigo que mereciam.

XIV

Ambrosio Ayres Bararoá

Os cabanos tiveram origem n'uma noite de matança, na cidade do Pará, em 1835. O núcleo do bando, que mais tarde se quiz chamar politico, para ver se assim conseguia lavar a ignominia de que se cobriram os brancos associados ás suas torpezas e atrocidades, não fora composto somente de homens de côr e sem educação nem posição social. O ódio aos portuguezes, o ciúme, a inveja, as ambições mal sórdidas, a cobiça, o despeito, o desprezo das leis sociaes, as tendências ferozes de pessoas, que a civilisação não conseguira levantar moralmente ao nivel social em que as coliocára, todas as paixões más, emfim, que revolvem as almas dos entes depravados pela avidez do goso, ou embrutecidos pelos vícios, concorreram para a alliança d'aquelles facinorosos.

Apenas correu a noticia de que a cidade de Belém, então capital do Pará e do Amazonas, se tinha insurgido contra o governo, assassinando as auctoridades legaes, quasi todas as outras povoações das duas províncias a imitaram. Ninguém queria ficar atraz, nem fazer menos do que a capital. Tudo quanto havia de infame, vil, reprovado e patibular, no povo das villas e aldeias do sertão, quem sabia pegar n'uma espingarda, ou n'um arco, empunhar o machado ou a faca, e se sentiu capaz de não perdoar a parentes nem amigos, e de ser mais selvagem e feroz com os seus similhantes do que com as serpentes e os tigres, foi bem vindo á cabanagem! O maior titulo de gloria era assignalar bem a arvore, entre cujas ramadas se escondia o pae portuguez, quando se approximavam os cannibaes, e correr a denuncial-o a estes, assistindo á caçada que se lhe fazia, e festejando com os collegas a bala que o derrubava !

Perseguidos, emfim, após longos mezes de horroroso predomínio ; expulsos da capital, e das outras terras importantes do Baixo Amazonas ; batidos no seu reducto de Icuipiranga, e ameaçados em todo o Alto Amazonas e Rio Negro, espalharam-se pelos confluentes e tributários doeste, fugindo sempre covardemente, onde achavam resistência, e renovando as crueldades e torpezas cada vez que encontravam gente inerme, creanças, velhos, enfermos e mulheres!

Taes eram os cabanos.

Na margem direita do Rio Negro, ou Quiari, como lhe chamam os Índios, em frente do Padauari, e perto do Uarirá, foi creada, em 1758, pelo governador do estado do Grão Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a villa de Thomar, que o horror aos nomes portuguezes, e o código do processo, reduziram novamente a aldeia, em 1833, com o primitivo nome de Bararoá.

Para este logar fora cumprir degredo um homem chamado Ambrósio Ayres.

A filha civilisada de um descendente dos índios manáos teve a generosidade de se apaixonar por elle; infelizmente, porém, o amor do desterrado encontrou desde logo um obstáculo terrível. O commandante do posto começou também a requestar a moça, e o pae d'ella, como era natural, honravase mais com as pretensões do segundo do que com as do primeiro. O militar, sabedor de que Ambrósio era seu rival, e suspeitando-o mais ditoso do que elle, humilhava-o diante da mulher amada, condemnando-o a trabalhos degradantes, e mandando-o prender de castigo pelas mais ligeiras infracções do regulamento dos degredados. Vinte vezes a mão de Ayres apertou convulsivamente o cabo do punhal, que trazia escondido no seio, e outras tantas o nobre pensamento de poder um dia regenerar-se, por meio de alguma acção grande, o forçava a tragar silenciosamente as affrontas recebidas, poupando o insultador detestado e covarde.

Quando chegou a Bararoá a nova de que os cabanos tinham tomado Manáos, cabeça de comarca do Amazonas, houve um instante de pânico geral. O commandante militar, que teve noticia do modo vergonhoso por que as auctoridades da villa a desampararam vilmente, julgou-se obrigado a não offender os seus superiores, com um procedimento contrario ao d'el!es, e foi de opinião, que, ou fugissem todos para os matos, ou se entregassem aos rebeldes, fazendo causa commum com estes.

As principaes pessoas da terra concordaram em que não havia outro recurso.

Entre ellas contava-se o pae da amante de Ambrósio. Quando a filha soube da resolução que se projectava tomar, protestou energicamente contra as soluções covardes.

— Eu não quero expor-me ao capricho d' esses infames, nem tornar ao viver primitivo de nossos antepassados.

— Então que queres que se faça? — interrogou o pae, admirado.

— Quero que se lhes resista !

— Quem? Como?l Não sabes que era Manáos havia forças, material de guerra, muitos recursos, e que toda a gente que tinha que perder, fugiu?!

— Traidores ! Miseráveis !

— Que se ha de fazer em Bararoá, se elles cá vierem ? E vêem de certo ! Bararoá é celebre pela excellencia das suas aguas e ares, pela formosura e abundância da terra, que se chamou outr'ora a corte do Rio Negro e da nação Manáos... Consta que somos ricos, e não nos dispensam...

— Bem sei eu quem sei ia capaz de não os deixar cá entrar !

— Quem ? ! O commandante Vicente Capoeira? — perguntou o velho descendente dos Índios, com um sorriso de mofa.

— Tapuio sem pudor e sem brio ! ...

— Pois quem ? Ah ! o degredado ?

— O degredado, sim ; o único homem que entre nós sabe fatiar ao coração da mocidade, e que a levará para onde quizer, no dia em que se lhe metter isso na cabeça !

— Sempre queria ver esse rasgo !

— Ah!! duvida ? ! ... Lá vae elle passando! Nem de proposito ! Ambrósio Ayres ?! Ambrósio ? ! Ó Ambrósio Ayres ? ! ...

O homem, que andava peío largo fronteiro á casa, e bem sabia o por que, approximouse logo. Era um moço de pouco mais de trinta annos, baixo, trigueiro, de olhos castanhos, olhar firme, boca rasgada e imperiosa, como feita para o commando e para a eloquência concisa. Estava vestido com camisa e calças de riscado azul, e linha na cabeça um chapéu de palha de palmeira, que tirou cortezmente, parando diante da janella.

— Chamou por mim?

— Meu pae duvida que Ambrósio Ayres seja capaz de se oppor á entrada dos cabanos em Bararoá !

— E a menina?

— Eu não.

— Quando vêem elles?

— Não sei.

— Quer que os deixe entrar?

— Não; não quero !

— Não entrarão.

E afastou-se.

— Não entrarão; ouviu, meu pae?

— Pois tu acreditas? Crês na promessa d'esse basofio, que a lei marcou com o estigma da infâmia?! Não te julgava tão creança !

— Elle só espera occasião opportuna para rehabilitar-se ; acredito que não a deixará escapar.

— Tolice !

— Pois bem: eu, que o conheço, juro-lhe que os cabanos nâo entrarão em Bararoá!

— Tu gostas d'elle e por isso confias cegamente nas suas palavras.

— Gosto; e logo que se regenere, será meu marido.

— Esperarás toda a vida pela sua rehabilitação, e pelo meu consentimento.

— O que meu pae recusa ao degredado, não ousará negal-o ao heroe.

— Heroes de romance ! Não te deixasse eu ler as novellas que vêem da cidade!

Ambrósio Ayres encaminhára-se para a praia, onde uma parte da população se banhava no Quiari.

— Vêem ahi os cabanos. — disse elle ao povo.

— Os cabanos?!

Pararam todos do nadar e ficaram immoveis n'agua, como bóias de aninga, fundeadas para servirem de alvo ás frechas dos jovens manáos.

— Tomaram a villa da Barra e sobem o Quiari. Diz-se que aonde chegam, não perdoam a ninguém ; matam velhos, creanças, doentes!... As mulheres, só as assassinam depois de as terem violentado. Diante d'elles tem fugido tudo : auctoridades, povo, ninguém é capaz de se lhes oppor. Agora querem estabelecer-se em Bararoá...

— Em Bararoá ? ! ...

E todos os que estavam no banho, saíram a correr ; uns começaram a vestir-se á pressa; outros enfiavam as camisas nas pernas e queriam metter as ceroulas pelo pescoço; a maior parte cobria-se apenas com o necessário pííra resguardar o pudor, e fugia ; alguns nem mesmo se lembravam de prestar essa homenagem á decência publica ; pegavam na roupa e corriam, dispostos a renovar pelo meio da villa os espectáculos do paraizo.

Ambrósio Ayres contemplava-os com silencioso desprezo. Esperou que revelassem bem, pelas suas acções, o terror de que se tinham possuído, e quando viu que iam debandar, gritou-lhes, com uma entonação tão singular, que elles estacaram, como se uma força desconhecida os tivesse prendido ao solo:

— Vocês teem medo ? !

Os fugitivos experimentaram a sensação de quem leva uma bofetada no rosto ; coraram todos; sentiram que alguma cousa mais dolorosa do que a ponta de um punhal lhes entrara no coração, e ficaram immoveis, nas attitudes cm que estavam, sem ousarem voltar-se nem erguer os olhos para o degredado.

— Se teem medo, fujam ! Eu, que não sou filho d'esta terra, juro que os cabanos nâo entrarão n'ella.

Os bararoenses começaram a vestir-se para disfarçarem a commoção. O outro continuou, como monologando comsigo :

— Homens, que não receiam, cada um de per si, ir tirar os filhos ao jaguar, cortar a cabeça ao sucurijú, e prender o maior jacaré dos seus lagos, fogem de uns miseráveis ladrões, que só assassinam quem os teme ! ...

Os que o ouviam, tinham acabado de se vestir e approximavam-se d'elle timidamente e como envergonhados.

— Não ha um só — proseguia Ambrósio; — não ha um único filho de Bararoá, mesmo dos mais rapazes, que não seja para seis cabanos ! E todavia, persuadem-se que teem medo, e querem ir metter-se nos matos, entre as feras mil vezes mais temiveis do que esse bando de facinoras covardes ! ...

Todos os homens o tinham rodeado e começavam a murmurar e gesticular ; mas elle fingia não dar pela sua presença e continuava :

— Ali estão vinte canoas, que dentro em pouco pertencerão aos bandidos ... Vinte canoas!... Podem já considerar-se perdidas!... E, comtudo, bastava que me dessem três ou quatro, que cincoenta homens de boa vontade atirassem para dentro d'essas alguns alqueires de farinha, um pouco de peixe secco, os seus remos e as suas armas, que confiassem cogamente em Ambrósio Ayres, e Bararoá daria um nobre exemplo a todas as grandes villas do sertão ! ... Os cabanos seriam vencidos, expulsos do Rio Negro e do Amazonas, exterminados por Ambrósio Ayres e pelos seus bravos companheiros... se estes perdessem o medo aos assassinos de mulheres e creanças!...

A estas palavras, mo!nde da gente saltou ao rio, sem pensar em despir-se primeiro ; nadou para as canoas, desamarrou-as e veiu trazel-as á praia. A outra metade correu para a villa e dentro em poucos minutos voltou carregada de farinha, peixe, remos e armas de toda a espécie.

Ambrósio assistia impassível a este movimento de adhesão. Quando viu que a população toda, rapidamente informada do occorrido, principiava a interessar-se e commover-se, vindo pouco a pouco para a borda do rio, disse para as pessoas que se grupavam á roda d'elle:

— Dentro em oito dias chegará aqui um correio, annunciando que os cabanos foram expulsos do Rio Negro.

— Por quem ?— perguntou uma voz.

— Por mim e pelos meus companheiros; ou por mim só, se ninguém quizer seguir-me.

— Você é degredado; e eu não o deixo fugir do logar do seu degredo. — tornou a mesma voz. E em seguida, o commandante do presidio rompeu a multidão e foi pôr a mão no hombro de Ambrósio Ayres.

— Povo de Bararoá! — gritou Ambrósio, voltando-se para os circumstantes. — A comarca do Alto Amazonas está entregue aos horrores da anarcliia, e em poder de assassinos e ladroes. Se um homem de vontade enérgica e audaz não restabelecer a ordem, auxiliado por vós, dentro em poucos dias caíreis apunhalados, diante de vossas filhas e mulheres, victimas de violências inauditas. Todas as auctoridades constituidas fugiram, ou morreram ; as circumstancias são taes, que é preciso não olhar d'onde vem o remédio, comtanto que elle cure. Eu sinto-me capaz de ser o instrumento da vossa liberdade, e por isso tomo o commando militar da província, em nome da salvação publica !

Depois voltando-se para o commandante estupefacto :

— Quanto ao senhor, que propunha ao nobre povo da antiga corte de Manáos a fuga para as florestas, ou a causa commum com os rebeldes, está preso, em nome do governo da regência do imperador e da sociedade ultrajada.

— Preso ?! — O chefe do presídio soltou uma gargalhada.

— Os homens que teem amor á vida, á honra e á liberdade, obedeçam ás minhas ordens ; e sigam-me os que quizerem dar aos habitantes do Quiari e do Amazonas um exemplo heróico de valor e de virtude ! Tomo esta terra por pátria adoptiva ; deixo n'ella os nomes do degredado Ambrósio Ayres e chamo-me de hoje em diante o caudilho Bararoá.

— Viva Bararoá ! Viva Bararoá !

O commandante do presidio foi, com grande pasmo e indignação da sua parte, levado para a prisão, por alguns dos seus próprios amigos, emquanto os outros embarcavam enthusiasticamente com Ambrósio.

— Se o senhor vencer os cabanos, como promette — disse ao chefe da expedição o pae da sua amada — considero-o rehabilitado.

— Vencedor ou vencido, o meu coração é teu ! — lhe murmurou uma voz querida ao ouvido, quando elle se despedia. — E se morreres na empreza, nunca pertencerei a outro !...

Passados oito dias, hora por hora, depois de feita a promessa, entrou em Bararoá um expresso, annunciando que os cabanos tinham sido destroçados e expulsos de Manáos por Ambrosio Ayres. Em seguida, foram successivamente chegando outros, que participavam os triumphos diários do valente caudilho. A victoria parecia guiar as proas da sua esquadrilha, que deixava na esteira as aguas de todos os rios purpureadas de sangue cabano. Quando caiu o colosso de Icuipiranga, o governo do Pará reconheceu que as acções gloriosas do degredado Ambrósio Ayres Bararoá mereciam galardão condigno, e confirmou-o oíBcialmente no commando militar do Amazonas. Era a rehabilitação mais completa que se lhe podia dar.

Infelizmente, o heroe tornára-se ambicioso, não só de poder e honras, como de dinheiro! Animado talvez por exemplos perniciosos (accusava-se o commandante da expedição naval, estacionada a este tempo em Santarém, de negociar á sombra dos cabanos !) começou a exigir que os povos, libertados por eile dos assassinos, lhe pagassem resgates, que outro nome se não podia dar ás suas extorsões violentas ; e obrigava as principaes familias a fugirem de umas para outras villas, porque só assim conseguiam algumas vezes escapar á sua tyrannia !

Vencedor em Icuipiranga, que era o ultimo reducto importante dos cabanos, voltava para Manáos, em perseguição d'elles e dos muras, que os tinham auxiliado contra os pacificos mundurucús do Tapajós ; mas tendo sabido que nem uns nem outros haviam passado na boca do Madeira, entrou por este rio, e avistou-os no momento em que vinham ás mãos uns com os outros.

XV

Estado maior do dictador

Desejando simplesmente metter medo aos cabanos, para que lhe deixassem o passo livre, Goataçára fora propheta sem o saber. Os mundurucús, que elle linha deixado no acampamento dos muras vencidos, desciam effectivamente o Madeira, para voltarem ao Tupinambaranas. Excepto o numero, e os motivos da vinda, esta realisára-se, apparecendo elles á vista dos rebeldes, ao mesmo tempo que Bararoá.

Os Índios raras vezes ficam surprehendidos com os perigos imprevistos. Costumados a viver continuamente em guerra uns com os outros, e esperando a cada instante os resultados da astúcia e do ódio dos adversários, andam sempre acautelados e prevenidos para todos os casos possíveis de aggressão. O inopinado quasi que nâo existe para elles, com relação aos inimigos de espécies conhecidas, cujos ardis, astúcia e manhas lhes são também familiares. O seu primeiro movimento, ao mais leve ruido que lhes seja estranho, é esconderem-se para observar sem serem vistos; o segundo é serviremse das armas de tiro, frecha ou zarabatana. Logo que os mundurucús avistaram os cabanos, em luta comsigo mesmo, calcularam immediatamente, pela variedade das cores dos homens, e pelos diversos feitios das canoas, que eram os amigos dos muras, destruidores dos seus parentes do Tapajós.

— Cabanos ! — disse o chefe para os do seu ubá.

— Cabanos ! — repetiram estes aos das outras canoas.

Por um movimento geral e rápido, retezaram-se as cordas de quinhentos arcos.

— Matam-se uns aos outros ! — observou o chefe com alegria.

— Matam-se uns aos outros ! — proclamaram os seus companheiros á gente dos ubás mais próximos.

— É bom ! — tornou o chefe.

— O chefe diz que é bom ! — secundaram os ouvintes, com applauso.

— Ninguém atire frechas ! Os mundurucús esperam que elles cansem ou diminuam; depois custa menos a vencer o resto e a tomar-lhes as canoas.

— Woinoi Causchi é um sábio ! — responderam todos os seus com admiração.

Os cabanos avistaram as forças de Ambrósio Ayres, ao mesmo tempo que as dos mundurucús, e ficaram como loucos de terror por se acharem cercados. Depois de muitos choques de umas canoas contra as outras, com que mutuamente se impediam a marcha e augmentavam a confusão dos movimentos, conseguiram algumas, cujos chefes estavam menos perturbados, ganhar a embocadura do Ariupaná, onde tinham passado a noite, e todos os outros se precipitaram após ellas.

— Fogem ! — gritou Woinoi Causchi.

— Hough ! Hough !

A estes dois giitos gutturaes, de incitamento, levantaram-se todos os arcos e uma chuva de freclias caiu sobre os fugitivos. No mesmo instante o piága ou pagé, espécie de bardo, similliante aos que nas guerras dos poemas de Ossian cantam, durante os combales, os feitos gloriosos dos heroes, principiou a entoar um hymno guerreiro.

— Homens do jacumá? — gritou Woinoi Causchi. — Proas no igarapé ! Canta, piáta mundurucú !

O pagé, ao lado do chefe, tocava, para inspirar-se, o maracá sagrado, cabaço cheio de pedrinhas e caroços, enfeitado com pennas vistosas, e cantava assim, n'um recitativo que não era destituido de harmonia:

— «O sopro das cordilheiras tinha adormecido. Os grandes lagos pareciam pedaços de céu, onde luziam os olhos de Tupá. Havia paz com todas as tribus; e o guerreiro, atando a kiçava, para baloiçar-se, nos esteios do tejupar, adormecia, como o vento dos Andes, sem ter posto o arco e o tangapema debaixo da rede. Um dia vieram os Olhos de alem do lago immenso ; os gritos do seu mocaba açú (peça de artilheria) abalaram as montanhas e íizeram tremer os peitos das jovens Índias. As tabas levantaram-se, despejando rios de frechas contra as praias das aguas salgadas; mas a torrente dos invasores rolou sobre os bravos, e levou-os, como as cheias do Cayari levam os cedros por cima das cachoeiras. Longe da terra de seus pães, conquistaram todo o paiz que se estende do Xingíi até ao Solimôes ; exterminaram os povos que tentavam oppor-se á passagem do jaguar, ferido no covil dos filhos, e esperaram a hora da vingança. As gerações passaram, aprendendo umas das outras que se devia lavar a divida do sangue. O dia chegou ! Maldito e covarde o que não for implacável ! Maldito o que não abrir com O seu tacape a cabeça do inimigo, depois de lhe ter mettido no coração o ferro da tacuára ou a ponta da zarabatana ! Maldito o que descer ao paiz da morte sem ler comido a carne dos matadores de seus pães ! Avança, mundurucú ! Que as aguas do Cayari tomem a côr do leite da ucuúba, e tinjam de vermelho as margens do Urariá e as praias da ilha de Tupinambaranas ! ... »

O estampido de uma descarga formidável interrompeu o canto do menestrel gentio, e o ataque dos seus companheiros. Bararoá e a sua gente remaram sem fazer fogo até conseguirem alcançar a boca do Ariupaná; chegando ali, fuzilaram os cabanos quasi á queima roupa. Os que não morreram, atracaram a terra, ou se atiraram ao rio, largando todos as embarcações, que vieram cair nas mãos dos vencedores.

Só então reconheceram os mundurucús que os revoltosos estavam entre dois fogos, e que as forças de Bararoá, vindas em perseguição d'elles, os tinham destroçado com uma só descarga ; é verdade que esta fora terrivelmente bem empregada ! Muitas das canoas, que derivavam com a corrente, vinham cheias de feridos moribundos; e o Ariupaná, cobrindo-se de purpura, entregava ao seu suzerano Gayari muitas dezenas de cadáveres.

— São amigos ! — disse o chefe mundurucú.

— Goataçára ! — exclamou um dos seus.

— Goataçára?

— Ao pé do commandante.

— E o branco de Porangába!

— Tão gordo ! — suspirou o chefe.

— Tão gordo ! - murmuraram os que o ouviram, com doloroso sentimento.

Effeclivamente, quando Romualdo viu fugir os cabanos, remou para a canoa de Ambrósio Ayres, que reconheceu ser a do chefe ; pediu para fallar ao commandante da expedição e explicou-lhe rapidamente os seus desejos.

— Peço-lhe que me acceite ao seu serviço, até que seja exterminado o derradeiro d'aquelles miseráveis assassinos.

— Mataram-te alguém?

— O padre que me educou, meu padrinho, meu pae, minha mãe; a minha tribu inteira I!

— Déem-lhe uma das melhores armas ! — ordenou Bararoá — Prendam o seu ubá a reboque, e cedam-lhe o logar que elle escolher no combate.

— Tu comprehendes que é justa a minha vingança ! Obrigado ; de hoje em diante conta commigo. A bala que te procurar, ha de achar-me diante de ti.

Bararoá fitou os olhos nos d'elle e viu-o instantaneamente por dentro e por fora.

— Anda para o pé de mim. Como te chamas?

— Romualdo, ou Goataçára.

— Romualdo Goataçára, faço-te alferes do meu estado maior. Opportunamente receberás uniforme e aprenderás a manejar a espada.

— Official ou soldado, por agora basta que me dês pólvora, porque a minha molhou-se. Não quero outra arma senão esta, que já está provada. Não mandes atirar! — continuou, vendo que Bararoá dava ordem de fazer fogo.

— Porquê? — interrogou este, acudindolhe á mente uma suspeita.

— A minha vida responde-te pelos resultados. — tornou o índio, que lhe adivinhara o pensamento. — Ordena que remem a toda a força ; vê se lhes cortas a entrada do igarapé, onde querem metter-se, e, se não o conseguires, entraremos ao mesmo tempo e fuzilamol-os á queima roupa.

Executou-se esta ordem ; os resultados foram a derrota completa dos fugitivos. Cada homem da expedição dera apenas dois ou três tiros, emquanto Goataçára descarregou sete vezes a sua espingarda !

— Faço-te capitão! — exclamou Ambrosio Ayres, que não o perdera de vista. — Que gente é aquella ? ! ...

— Mundurucús ... amigos. — respondeu Romualdo, que os conhecera. — Também perseguem os cabanos, provavelmente por estes serem alliados dos muras.

O ubá do chefe mundurucú approximou-se.

— Toma metade das canoas, com tudo que tiverem dentro. — lhe gritou Bararoá. — E se queres continuar a auxiliar-nos, vamos desembarcar e perseguil-os por terra.

— Não desembarques ; quem foge não espera. — respondeu Woinoi Gauschi.

— Sabes para onde elles vão ?

— O sertão é grande; e os índios jumás acolhem gente de todas as nações. Atravessarão os rios Ganumà e Abacaxis, para irem esconder-se nas cabeceiras do Maués.

— Poderão passar de lá para o Amazonas?

— O Maués desagôa no furo de Urariá.

— Então vamos a Manáos! O inimigo, que eu de lá expulsei, refugiou-se nos lagos Autazes. É preciso aniquilal-o, antes que elle tenha tempo de robustecer-se ; depois voltaremos ao Maués. O chefe mundurucú acompanha-nos?

— Até ao canal de Canumá.

— Depressa, gente ! Passem cabos de reboque ! Deita para o largo ! Aproveitemos a força da corrente. Quem é o branco do teu ubá, capitão Goataçára?

— Meu cunhado.

— Ahi... Aquella joven é tua irmã?! Formosa moça ! Mas... teu cunhado?... A valer?

— Minha irmã salvou-lhe a vida, e elle jurou que a acceitava por mulher.

— Isso é outro caso. Também eu lhe pegava, sem ser preciso essa bella acção. Como se chama?

— Alberto Lacroix.

— Francez ?

— Francez.

— Lacroix?! Suba.

Alberto permanecera no ubá, sentado a par de Gertrudes. Apesar de ter motivos para vingar-se dos cabanos, ficou estranho á luta, sem ao menos pedir uma arma, como meio preventivo de defeza. Instado agoro para subir á canoa chefe, obedeceu, sem se apressar nem demorar-se.

Bararoá referiu aos dois, em breves palavras, quem era, em que circumstancias assumira o commando militar da provincia, e as victorias que tinha ganho.

— O senhor é estrangeiro — continuou elle, dirigindo-se a Alberto — e póde, querendo, abster-se de tomar parte na causa a que seu futuro cunhado acaba de ligar-se. Todavia, devo confessar-lhe francamente que o estado da provincia é ainda pouco tranquillisador, para se poder viajar sem perigo ; demorando-se algum tempo comnosco, poderá, mais tarde, seguir o seu caminho com segurança.

— Não me separo de Romualdo.

— Sendo assim, preciso ainda prevenil-o de que todas as pessoas que me acompanham são obrigadas a combater, quando as circumstancias o exigem. Mas pode ficar em Manáos, durante a nossa expedição aos lagos Autazes.

— Combaterei, como os outros.

— Creia que estimo sinceramente vel-o tomar essa resolução ; e, para provarlh'o, faço-o também official do meu estado maior.

— Talvez não tenha de que arrepender-se.

— Gosto dos homens que reconhecem o seu próprio mérito, e que não hesitam em confessal-o. Capitão Romualdo Goataçára e tenente Alberto de Lacroix, apresento-lhes e apresento-os aos seus collegas do estado maior : meu irmão Pedro Ayres, official de marinha dos Estados Unidos e ao presente meu ajudante : o major Guilherme de Chamburg; os capitães José Bonifácio de Campos e Bento Carapaná ; e os tenentes Manuel Tenreiro e António Acapú.

Pedro Ayres era um homem de sciencia, que se cobrira com a bandeira da União Americana para explorar, em proveito daquelle paiz ou seu, todo o território do Alto Amazonas. Aproveitando-se das expedições de seu supposto ou verdadeiro irmão (havia quem julgasse que o parentesco fora comprado a Ambrósio, para auxiliar os designios do outro), o viajante traçava planos e cartas hydrographicas, tomava alturas, estudava a geographia, a fauna, a flora, e colleccionava amostras de todos os productos naturaes da provincia.

Ghamburg fallava inglez, francez, allemão e portuguez ; dizia-se que era americano ; e de facto elle viera com Pedro Ayres, e tomava vivo interesse pelas observações e estudos d'este, associando-se a todos os seus trabalhos ; mas ninguém sabia ao certo a nacionalidade de nenhum d'elles, e houve quem os suppozesse ambos emissários da Inglaterra.

Os outros ofliciaes ás ordens do dictador, eram, como elle, militares improvisados, filhos do acaso e das circumstancias, que Bararoá associara á sua fortuna. Apesar de quasi todos descenderem de europeus, nenhum era branco. A communidade de interesses ligára-os estreitamente, desde o começo da campanha ; a continuação doesta, e os fructos que d'ella colhiam, fazia-os amar a vida que levavam, e o chefe que os enriquecia por meio de extorsões, que mal se disfarçavam com as necessidades da guerra. Ao principio mostraram-se modestos e sóbrios nos seus prazeres ; depois, a victoria, que lhes sorria por toda a parte, foi-os enchendo de vaidade e de orgulho ; nasceramIhes desejos de variar de goso, sobrevieram as ambições immoderadas, o gosto do luxo, e por fim os vicios desenfreados.

Pedro Ayres e Chamburg manejavam as paixões dos seus companheiros, e por vezes as do próprio chefe Bararoá, como as mãos ágeis de talentoso artista manejam o teclado do piano. Bararoá, bafejado pelo sopro constante da fortuna, julgava-sepor vezes um d'esses génios mihtares, predestinados para encherem o mundo com a fama do seu nome e o ruido da sua gloria. Os lisonjeiros, que lhe exploravam a vaidade, não hesitavam em comparal-o a Napoleão, e assim tinham também o gosto de se julgarem celebres como os marechaes do primeiro império.

Romualdo e Alberto foram acolhidos com manifesta indifferença por todos os officiaes aventureiros. Bararoá fora o único que avaliara Goataçára. Em Alberto não podéra ler tão facilmente, mas pareceu-lhe util aproprial-o a si, exactamente por não ter podido penetral-o.

— General — disse Chamburg — mande subir também a moça, que é bem boa !

— É minha noiva. — observou Alberto.

— E minha irmã. — acrescentou Goataçára.

— Que me importa isso? — rosnou em francez o outro.

Alberto olhou para elle espantado. Goataçára, que não o entendeu, julgou comtudo adivinhar o sentido das suas palavras e volveu placidamente :

— Queremos dizer que ella tem dois homens, em vez de um só, para protegel-a.

— Pois eu serei o terceiro. — tornou Chamburg, fallando sempre na língua franceza e rindo da própria graça. Depois, dirigindo-se a Alberto : — O senhor é francez, meu caro?

— Sou, sim. — respondeu este, encolerisando-se. — E o senhor é um...

— Sou um quê?

— Um bruto, peior do que os selvagens!

— Ah ! O senhor toma assim a cousa ? ! Pois bem ! N'esse caso, a pequena ha de vir por força ! — E voltando-se para o chefe, continuou, em portuguez: — Bararoá, manda subir a índia. Estes senhores duvidam da sinceridade das nossas intenções e ameaçam céus e terra, se a bella sair do ubá. Faze-os ter juizo.

— Venha a moça ! — gritaram alguns officiaes.

— Venha, mas que ninguém a insulte. — ordenou Bararoá.

Romualdo pegou na espingarda e lançou a mão ao cabo de reboque do seu ubá.

— Quando, ha poucas horas, vim offerecer-me como voluntário, para combater os cabanos — disse elle com indignação — julguei que me associava a homens superiores a elles em valor e virtude; o que ouço e vejo faz-me suspeitar que estou entre creaturas, dominadas pelos mesmos vicios e paixões brutaes, e capazes dos mesmos crimes ! ...

— Miserável ! — rugiram alguns officiaes, levando as mãos ás espadas.

— Ninguém se mova ! — clamou imperiosamente Bararoá. — Eu amo as virtudes heróicas e aquelles que as praticam. Se alguém tiver a imprudencia de tocar n'um cabello sequer de Romualdo, ou de sua joven irmã, ainda que seja o meu maior amigo, atravesso-lhe o coração com esta espada.

— Eras digno de commandar outra gente! — lhe disse o índio. — Estes, deshonram a tua causa ; e acabarão por te perder a ti e a ella.

— Com os diabos!

— Matem-n'o !

— Succeda o que succeder!

— Ainda que vamos todos para o fundo!

— Até para o inferno ! ...

Desembainharam-se algumas espadas, e o capitão Bento Carapaná, que estava mais perto de Romualdo, ia dar-lhe uma cutilada, quando este, que tinha ainda na mão o cabo de reboque, saltou para o seu ubá e dispoz-se para largal-o. Ao mesmo tempo, um tiro de pistola, dado por Ambrósio Ayres, derrubara no rio o capitão Bento.

— Todos os que tiraram as espadas serão fuzilados, por terem desacatado a minha auctoridade. — gritou Bararoá.

Goataçára, vendo cair o ferido, ainda com vida, mergulhou após elle, agarrou-o e recolheu-o no ubá, examinando-lhe em seguida o ferimento.

— Deita fora essa jeraraca ! — lhe disse Bararoá, pasmado de tamanha generosidade. — É bello o que tu fazes ; mas, se o curas, order-te-ha, e o seu veneno é mortal.

Os officiaes, assombrados com o sangue frio do Índio, e prestando involuntária homenagem de admiração ao seu nobre procedimento, guardavam profundo silencio.

Pedro Ayres e Chamburg, que não tinham tomado parte no movimento aggressivo, embora o segundo fosse a origem d'elle, conversavam em voz baixa, separados dos outros.

— É um Índio perigosíssimo ! — dizia Pedro Ayres.

— Vae tirar-nos toda a influencia. — volveu o outro. — Desde o primeiro instante impressionou Bararoá, que é todo imaginação, e apossou-se d'elle para sempre !

— Se o diabo lhe dá para querer outra vez mostrar-se austero e virtuoso, póde contrariar-nos muito !

— Veremos. Em ultimo caso, tornam a entabolar-se as negociações com os cabanos.

— Oh ! eu não me associo.

— Eis o homem que eu devia ter achado logo. — pensava Ambrósio Ayres. — Esta cáfila de ambiciosos estragou-me, perverteu-me, deu-me todos os seus vícios, sem se apropriar de nenhuma das minhas virtudes ! ... Tenho sido tyranno, déspota, oppressor... tudo por causa d'elles, que me empurram para o mal, no intuito de se encherem á minha sombra ! Talvez que a Providencia me enviasse este joven mundurucú, para me reconduzir ao bom caminho !...

— Embainhae as espadas, senhores ! — ordenou em voz alta aos seus, que continuavam admirando os cuidados com que Goataçára e Gertrudes pensavam a ferida do capitão Bento.

Metteram-se immediatamente os ferros nas bainhas.

O Índio tirara do cesto, onde tinha a isca, pedaços de cipó, recentemente cortados, algumas cascas de arvore, uma lingua de pirarecú, e bocados de algodão, em tiras. Depois de ter limpado a ferida, que era por baixo da ultima costella do lado direito, conseguiu extrahir-lhe a bala, e começou a espremer na cavidade que ella formara o suco de um dos cipós, que ia cortando; em seguida, ralou uma das cascas de arvore na lingua de pirarecú, e deitou o pó nas bordas da ferida ; tapou esta com isca de taracuá, e ligou-a com tiras de algodão. O doente, estendido de costas no fundo do ubá, tinha estado até então sem movimento; ao sentir-se conchegado pelo aperto das ligaduras, soltou um longo suspiro, e, passados instantes, abriu os olhos, mas parecia não ver ainda. As nuvens, e as arvores das margens do Gayari, reflectiam-se-lhe nas retinas, como se estivessem ali pintadas. Pouco a pouco o olhar foi-se reanimando, o sangue começou a circular, as faces coloriram-se ligeiramente e a vista fixou-se em Goataçára, com um pasmo que augmentava á medida que a vida readquiria todas as suas funcções no corpo.

Bararoá, fascinado pelo poder maravilhoso das nobres acções, e ainda não corrompido inteiramente, puxara com grandes precauções o cabo de reboque, descera para o ubá e contemplava, quasi enternecido, aquelle espectáculo, tão novo em taes logares! Um joven indio, flor da existência apenas desabrochada, revelando, a homens já meio pervertidos pela civilisação, os fructos da boa semente, lançada em terreno bem preparado. Apesar de muitas das suas idéas serem ainda semi-barbaras, e de se resentirem alguns dos seus costumes e usos da vida das florestas, a sua alma e a sua intelligencia, aquecidas á luz divina do amor e da caridade, davam altos exemplos de justiça e commoviam os corações. O santo velho, que o educara, soubera innocular nas qualidades heróicas da sua raça as mais bellas e sublimes virtudes do christianismo.

— Se dependesse de mim premiar o teu procedimento — disse Bararoá — fazia-te presidente da província, ou mais ainda. Tu és maior do que eu ! Se a morte me surprehender, antes de concluida a guerra, deixo-te o commando e o encargo de reparar as minhas faltas. Saudae-o, senhores! Saudae o verdadeiro valor... e a virtude, que nós não temos!

Todos os officiaes se descobriram. Bararoá proseguiu :

— Confesso que não me deitaria ao rio, com risco de me afogar, para salvar o homem que tivesse querido matar-me !

— Não perdoaria talvez a aggressâo premeditada — respondeu Romualdo; — os i,petos de arrebatamento não teem, para mim, a mesma força de criminalidade.

— N'esse caso, também eu devo perdoarlhe?

— Consulta o teu coração.

— E aos outros?

— Visto que se perdoa a este!... Peçote que o mandes transportar para outra canoa e me deixes seguir sósinho o meu destino.

— Separar-nos?! Nunca.

— Bem viste o que ia succedendo.

Os officiaes, que ouviam o dialogo da popa da canoa chefe, estenderam as mãos para o ubá.

— Não partas! — disse um, em nome de todos. — Jurámos, pela nossa honra, que de hoje em diante a tua irmã, tu e todos os que protegeres, serão sagrados para nós! Isto é no caso de não nos fuzilarem...

— Reconhecem-se culpados por desobediência e indisciplina? — interrogou o commandante.

— Reconhecemos.

— Sabem que mereceram a morte, praticando o crime em tempo de guerra?

— Sim.

— Que eu estou no meu direito, e dentro dos limites e attribuições do meu poder, mandando-os fuzilar?

— Sim.

— Perdôo-lhes, com uma condição.

— Qual é?

— Que Romualdo continuará a campanha comnosco, e que todos lhe obedecerão como a mim próprio.

— Jurámos !

— Acceitas, Goataçára?

— Seja.

XVI

Conspirações de Manáos

No terceiro dia de viagem o capitão Bento succumbiu, apesar de todos os cuidados que tiveram com elle Romualdo e Gertrudes. Para não o mudarem de canoa, no estado perigoso em que ia, os dois irmãos improvisaram-lhe uma cama, construíram uma tolda de folhas de palmeira no ubá, e renovavam-lhe frequentemente os curativos, com os suecos e as cascas tidas entre os indios como mais medicinaes e milagrosas. Tudo foi inútil. Dois dias depois do ferimento, sobreveiu febre ardente, e ao terceiro Bento Carapanà expirou em delírio, insultando com as mais affrontosas palavras aquelles que tanto e tão extremosamente se esforçaram para salval-o.

A expedição entrou em Manáos no dia do fallecimento. Apesar da admiração que todos os officiaes tinham tido por Goataçára, a morte do companheiro fazia-os pensar em que fora o indio o causador d'ella, e, pouco a pouco, as sympathias momentâneas iam cedendo o logar ao ódio implacável. Alberto, que se ligara a elles com demasiada intimidade, conhecia perfeitamente as suas opiniões e sentimentos, a respeito do cunhado, mas calava-se. Havia algum tempo que principiavam a pezar-iha também os benefícios recebidos ; e se não nutrisse a esperança de ir com Romualdo procurar as minas de oiro, tel-o-ía já deixado, ou se associaria aos invejosos collegas, para indispôl-o com o commandante. Affectava porém grande estima pelo irmão de Gertrudes, e continuava a tratar esta como noiva, dizendo que a desposaria logo que se restabelecesse a ordem na provincia, e elle podesse recomeçar os seus negócios.

Bararoá, que sentia verdadeira affeição pelo moço mundurucú, e notava os sentimentos contrários dos seus ajudantes, punia-os e humilhava-os, dando maior consideração ao indio, consultando-o frequentemente na presença d'elles, e seguindo sempre o seu parecer, quando este era contrario ao dos outros.

— É preciso dar-lhe cabo da pelle. — aconselhava Chamburg a Pedro Ayres, ao tempo em que já estavam aquartelados em terra.

— De qual d^elles? — interrogou o outro. Chamburg olhou para o seu interlocutor, que desviou modestamente a vista.

— Primeiro o índio... O outro ainda nos pôde ser preciso ... E eu bem sei de um meio infallivel, para os dois se embrulharem !

— Qual é?

— Não tens reparado nas attençôes que Bararoá dispensa á india?

— Tenho; por esse lado, nada espero. Que importa a um selvagem que a irmã se amenise com este ou com aquelle? E adverte que a pequena é toda amor pelo futuro marido ; não tem olhos para Ambrósio.

— Acreditas no que estás dizendo?! Tu bem sabes que o selvagem é mais instruído do que qualquer dos nossos camaradas, e que se fecha como um cadeado de letras. Quem sabe o que d'ah sairá ! Nós já não temos visto pouco ! Quanto ao futuro marido, não nos foi preciso ser médicos para lhe tomarmos o pulso ; casará tanto com a india como qualquer de nós. Comtudo... ha um segredo, que o prende aos dois, e eu ainda não pude apanhar-lh'o!...

— Nem eu.

— Se não fosse esse mysterioso laço, afianço-te que Alberto seria o primeiro a deitarse ao caro cunhado, no momento opportuno.

— Silencio ! Ahi vêem elles.

Ambrósio Ayres levara os dois jovens Índios para a mesma casa, em que tinha estabelecido o seu quartel general de commandante em chefe. Logo no dia da chegada, encarregou pessoas competentes de fazerem os uniformes de Romualdo, e abundância de roupas brancas para este e a irmã; pediu a uma das principaes familias da terra, que se incumbisse de dirigir a educação de Gertrudes, e declarou, publicamente, que tendo tomado os dois irmãos sob a sua protecção, era da sua vontade que todas as pessoas distinctas os acolhessem e honrassem como a elle próprio. Com quanto parecesse nova e monstruosa arbitrariedade querer apresentar uma Índia, semi-selvagem, nas salas da gente rica, trajando como as mais elegantes damas da corte do Rio Negro, ninguém ousou oppor-se nem protestar contra os desejos do salvador de Manáos. O caso, porém, não passou sem commentarios, nem fez menos sensação entre as bellas do que produziria a noticia de terem regressado inopinadamente os cabanos.

— Uma tapuia ! — murmurava o bello sexo, passados alguns dias, n'uma reunião das primeiras familias da terra.

— Feita senhora !

— Vestida á moda !

— Por nós...

— E manda-lhe fazer vestidos de sedai

— Da melhor qualidade!

— Tantas roupas brancas!

— Bordadas!

— Com as mais finas rendas !

— É amante delle...

— Que escândalo!

— Pouca vergonha |

— Patife!

— Abusa da sua posição!

— Não basta roubar-nos, a pretexto de que devemos contribuir para as despezas da guerra ? !

— Tem enriquecido á nossa custa !

— Pagamos as suas devassidões ! ...

— E as dos seus amigos, que são tão bons como elle !

— O que admira é confirmar o governo um tyranno d'estes no commando militar da provincia !

— Ora, o governo ! ... Não sabem que o Andrea é outro que tal, no Pará?!

— Antes deixassem estar os cabanos.

— Não; lá isso!...

— Olha que a differença não é grande, segundo diz meu pae.

— Os meus manos também assim o entendem.

— E o tio António.

— E os primos Lacerdas.

— E o João Vieira.

— Toda a gente pensa do mesmo modo.

— Donde viria esta selvagem?!...

- Donde querias que viesse?! Do mato.

— Dizem que tem um irmão?...

— Capitão, ás ordens do tyranno.

— Galante?

— Affirmam isso por ahi.

— Moço?

— Quinze annos.

— Oh ! ... deve ser bonito !

— Passa por um heroe. Contam-se d'elle casos extraordinários e admiráveis, actos de valor e de generosidade, que assombram toda a gente. Bararoá respeita-o e estima-o muito ; os outros detestam-no.

— Então, com certeza é homem superior ! Verão que não dura muito tempo entre essa sucia !

— Pobre rapaz!

— Tomara vel-o.

— E eu também.

— Também eu.

— Também eu.

— A irmã, apesar de tudo, não é feia.

— Não tem nada d'isso; um pouco trigueirinha, mas delicada!

— Muito modesta !

— Por acanhamento, provavelmente?

— Eu acho-a engraçada.

— Também eu. — repetiram as outras todas.

— Faz pena ! ... Com qutlorze annos! ...

— Correu que era noiva do francez, que veiu com elles?

— Historias!

— Talvez disfarce, para corar o escândalo.

— O francez chama-se Alberto?

— Lacroix, ou de Lacroix.

— Não sympathiso com elle.

— Hum...

— Eu, assim assim.

— Tem olhar de velhaco!

— Comtudo...

— Se fosse noivo deveras, não tivessem medo que deixasse o outro dirigir o vestuário da pequena ! Um francez, parisiense ! Pois não ! ...

— É porque nem elle nem os indios teem meios. Conta-se que foram roubados pelos cabanos e pelos muras.

— Ah! sim?! E o tyranno faz franquezas á nossa custa !

— Podéra ! ...

— Quem deve estar muito contente é a D. Angela, de Bararoá.

— É verdade ! É verdade ! — clamaram as outras.

— Ambrósio saberá que ella está em Manáos?

— Talvez não.

— Deve saber.

— Dizem que fora Angela quem o instigou, para vir combater os cabanos?

— Foi; elle tinha-lhe promettido casamento.

— Agora, que se julga em grandes alturas, não casa.

— É provável que não.

— Ella virá para obrigal-o?

— Essas cousas não se obrigam, filha!

— Que logro ! Depois de o ter empurrado para o caminho da fortuna, e das honras! ...

— É sempre assim ! Verdade seja que não podia esperar-se outra cousa de um miserável degredado.

— Degredado ? ! — gritaram todas com pasmo.

— Não sabiam?

— Não.

— E a D. Angela casava?!...

Abriu-se a porta e um creado annunciou :

— O senhor commandante Bararoá.

Todas as conversadoras emmudeceram, e algumas coraram.

Bararoá entrou, cumprimentou-as e perguntou á dona da casa se todas as roupas, que lhe tinha pedido o obsequio de mandar fazer, estavam promptas.

— Estão-se acabando. Hoje mesmo lh'as mando.

— Agradeço tamanha bondade. Digne-se enviar também a conta das despezas ao meu secretario.

— Sim senhor.

— Seu pae ?

— Não está em casa.

— Peço á senhora o favor de lhe dizer, que hoje á noite devem reunir-se em minha casa as principaes pessoas da villa, para se tratar de negócios graves, e que espero dever-lhe a fineza de não faltar.

— Temos nova contribuição. — - exclamaram, assim que elle saiu.

— É o mais certo ! Ladrão ! Tyranno ! Déspota !

Pelas opiniões das mulheres póde calcular-se qual seria a dos homens. Bararoá, que tinha grandes qualidades militares, embriagára-se com o fumo da gloria e tornára-se geralmente detestado. É a eterna consequência de todas as dictaduras fundadas no militarismo.

Quando Ambrósio chegou á sua residência, soube que o esperava uma visita na sala. Entrou e viu uma mulber com a cara coberta por um véu preto. O caudilho estremeceu involuntariamente.

— A minha presença faz tremer os heroes! — disse, com mal disfarçada ironia, a desconhecida.

— Ângela! Em Manáos !

— É verdade. — volveu ella, descobrindo o rosto. — O senhor esquec u-se de que é tempo de cumprir a sua promessa, e eu venho lembrar-lh'o.

— Depois de amanhã parto para os lagos Autazes; vou combater os cabanos, que lá se refugiaram; á volta, irei procurar os do rio Mauès. Destruidos estes dois ninhos de reptis, ficará a província inteiramente livre e poderei dispor de mim.

— Não partirás depois de amanhã, porque n'esse dia casarás commigo, infallivelmente.

— É impossível; o dever obriga-me...

— O teu dever mais sagrado é pagar as dívidas de honra.

— Não me recuso. Que se diria, porém, se, em vez de ir já combater os inimigos da ordem e da sociedade, eu lhes desse tempo de se reorganisarem, emquanto me casava ?!l Não sabes que se conspira contra mim, que me accusam de tyranno, que os meus próprios officiaes, esquecidos dos benefícios que lhes tenho feito, se reúnem secretamente para me atraiçoar? Queres que lhes dê ensejo de gritarem mais alto, se eu não preferir mandal-os fuzilar amanhã?

— E que se dirá de mim, se o meu filho nascer antes de eu poder nomear seu pae?!

— Ah!...

— Adia a expedição; dá-me o teu nome; castiga os traidores, e parte depois.

— Não posso; tudo está preparado para a viagem; o adiamento daria logar a que os cabanos fossem avisados, e a expedição tornar-se-ia inútil, se não perigosa.

— Eu também não posso esperar. Talvez que depois de amanhã já seja tarde.

— É preciso que te resignes. O general que diante do inimigo attendesse mais á voz da familia do que á do dever, que lhe impõe a sua posição, seria um miserável perante a história.

— Tu não me conheces, Ambrósio ! Eu sou uma mulher de paixão ardente e violenta... Já t'o provei, infelizmente para mim ! ... Não me obrigues, pois, a mostrar-te que os corações capazes de immenso amor, são também capazes de immenso ódio!

— Ameaças-me?!

— Porque duvidas? Se eu tiver meios de te perder ? ! ...

— Porque, n'esse caso, também tu me não conheces. Eu não sou homem que se deixe vencer pelo medo.

— Não ; tu és apenas vil e infame ; deshonras quem te ama, e recusas dar nome ao teu filho ... porque tens outra mulher.

— Ângela !

— Essa desgraçada, de quem se ri a villa de Manáos, por tu a quereres fazer senhora, seria, se eu quizesse, desfeita entre as minhas mãos, como este véu, que me deste em Bararoá!

— Não a calumnies ! É uma creança.

— É tua amante. — vociferou ella, acabando de fazer o véu em mil fragmentos.

— Mentes !

— Todos o affirmam em Manáos.

— Miseráveis! Pagarão caro similhante infâmia.

— Queres casar commigo, dentro em três dias?

— Já te disse, que é impossivel.

— Adeus, Ambrósio.

— Adeus, Ângela.

— Não nos separemos assim... — tornou ella, voltando atraz. — O fel, que eu levaria na alma, tinha de ser funesto a muita gente!

— Por tua culpa.

— Deixa-me ver essa joven, que tens em casa.

— Está com seu irmão e não commigo.

— Covarde !

— Ângela! Ângela!....

— Em três dias?!... Em três dias, um nome para meu filho, e tudo te perdoarei !

— À volta do Maué-açu.

— Inferno ! Assim o quizeste... Seja!

Saiu, soltando um rugido de panthera, com o olhar chammejante de cólera tão sanguinolenta que lhe tingia os olhos de vermelho.

— As mulheres de Manáos teem feito voar a fama dos teus amores com Gertrudes ! — disse Chamburg, entrando. — Por isso ouviste bonitas cousas d'essa sujeita ! Eu tenho estado na sala próxima, desejoso de te acudir, mas sem ter ensejo.

— Infames ! Infames ! — murmurava Bararoá, dando grandes passadas pela casa. — Bem sabes que é falso.

— Dize que não gostas d'ella !

— Cala-te ! Se chegam aos ouvidos do irmão essas calumnias ! ...

— Ora adeus ! Um tapuio ! ...

— Não o conheces; reúne ao espirito de um atheniense a alma de um romano antigo.

— Bolas ! — Oh ! que elle não sonhe estas patifarias ! ... Eu seria capaz de matar quem lh'as dissesse.

— Como fizeste ao pobre Bento ?! Estamos todos avisados, a respeito das tuas amisades, descansa.

— Do cunhado, pouco me importa...

— Boa pessoa ! Não o trates de resto, que é prestavel.

— Vae para o diabo com os teus gracejos !

— O que tu querias era que eu te lembrasse o meio de te vingares das bellas de Manáos ! ...

— Dize.

— Meio suave, apropriado ao assumpto, hein, velhaco?!

— Não me impacientes.

— À noite, caça bem a escota aos papás, manos e tios. A propósito da ida aos lagos, impõe a nova contribuição, que nos deve metter uns poucos de contos de réis na algibeira. Depois, ordena que todos os homens válidos de Manáos façam parte da expedição. Não dispenses ninguém ! Ficando só as mulheres, eu te explicarei a maneira graciosa por que te pódes desforrar... E os diabos me levem, se tu não gostares da cousa !

Angela, saindo de casa de Ambrósio Ayres, metteu-se por uma travessa, que ia para o lado da floresta ; seguiu-a até á ultima casa já meio encoberta pelas arvores; empurrou uma porta de palha, ou tala de guarumá, que ali chamam urupema; entrou, e achouse no meio de uns poucos de homens, que soltaram um grito, apenas se abriu a porta.

No mesmo instante mão occulta e pressurosa collocoa de novo a esteira, e a sala tornou a ficar ás escuras.

— Ângela ! — exclamou uma voz.

— O capitão Vicente Capoeira ? — perguntou a amante de Ambrósio, sem perturbarse, apesar de ter visto, com a sua apparição, brilharem punhaes ou espadas nas mãos de todos aquelles homens.

Ninguém respondeu.

— Espião ! — murmuraram alguns.

— O homem a quem procuro reside aqui; não o vejo, mas sei que estou em sua casa, e ouvi-o pronunciar o meu nome, quando entrei. Venho para o mesmo fim.

— A senhora sabe onde está? — perguntou uma voz.

— Já o declarei.

— E sabe quem são as pessoas que tem na sua presença?

— Não os conheço, mas sei para que se reúnem.

— Diga-o.

— Conspiram.

— Deve morrer? — interrogou um dos conjurados, dirigindo-se aos companheiros.

— Deve morrer. — votaram unanimemente os outros. E os ferros, desembainhados momentos antes, levantaram-se todos.

— Capitão Vicente Capoeira — tornou Ângela, com o mesmo sangue frio; — se me deixas matar, não serei tua mulher, nem poderemos vingar-nos de...

— Não digas o nome, que te perdes! — lhe murmuraram ao ouvido. — Respondo por ella, meus senhores.

— E por ti, quem responde? — perguntou um dos outros.

— A minha vida.

— É pouco ; isto não são brincadeiras !

— Pois bem : afastem-se e vigiem as portas ; preciso explicar-me com esta senhora ; se nos entendermos, darei outras garantias.

Todos se afastaram e Vicente ficou só com Angela.

— Vicente — disse esta — quando aspiraste á minha mão, outro homem era já senhor da minha vida e da minha honra...

— Ohl maldito ! maldito! — vociferou o conspirador, quebrando a ponta do punhal com os dentes.

— Não te podia corresponder. Esse homem tinha jurado dar-me o seu nome, e recusa-o agora a meu filho...

— Um filho! — rugiu elle, cravando as unhas no peito.

— Vim de Bararoá reclamar o cumprimento da sua palavra, por se approximar a hora terrível !... O miserável nega-se a salvar-me do opprobrio, por isso recorro a ti.

— Quem te disse que eu estava em Manáos?

— Vi-te, no dia em que cheguei; seguindo-te, soube que moravas só, que tinhas mudado de nome, e logo calculei os motivos.

— Que vens propor-me?

— Que me dês o teu nome para cobrir a minha vergonha.

— Por que preço?

— Por toda a riqueza de meu pae e a vida de Ambrosio Ayres.

— É pouco.

— Dar-te-hei também a tua própria vida, e a dos teus companheiros.

— Agora é de mais! Explica-te.

— Elle sabe que conspiram e quem são os conspiradores.

— Ah!

— Disse-me que os mandaria fuzilar amanha ...

— Senhores, senhores?! fujamos! Está tudo descoberto!

Os outros approximaram-se.

— Fomos denunciados.

— Impossível !

— Os que duvidarem, que esperem pelo dia de amanhã! — disse Angela.

— Que devemos fazer? — perguntou Vicente á sua interlocutora, emquanto os outros escutavam com desconfiança.

— Acceitas as minhas propostas?

— Ponho mais uma condição.

— Dize.

— Hei de matar o pae e o filho.

— Oh!...

— Sim ou não?

— Vicente! Isso não se propõe! Á mãe! Á mãe!... Que horror!

— Não ha tempo a perder.

— O meu filho!...

— É d'elle. Acceitas?

— Que preço!... Mas primeiro o pae!

— Concedido. Meus senhores, apresentolhes minha mulher. É a elia que devemos a fortuna de poder fugir... Estamos á beira do mato; cortemos para o Amazonas...

— E depois?— interrogou Pedro Ayres, que era um dos conjurados.

— Depois?— gritou Cliamburg, derrubando a porta com um pontapé e entrando ruidosamente. — Depois tomem um banho.

— Chamburg! É certo que o homem descobriu que o queríamos destituir, assim que fosse recebida a contribuição de Manáos?

— Vossês não querem crer que se deve despachar o mundurucú!...

— Foi quem nos denunciou? — Todos os olhos se voltaram para um lado.

— Desconfiam de mim?! — exclamou Alberto Lacroix — É uma injuria que me fazem!

— Mas que diabo de conveniência tem o senhor em que elle viva?!

— Perdão ; esse é o meu segredo. São negócios particulares... de interesses.

Os conspiradores olhavam uns para os outros, todos desconfiados.

— E agora, Chamburg?

— Agora? Pedaços d'asnos! Convenci-o de que se tratava simplesmente de arranjar dinheiro; disse-lhe que não nos dava bastante e que nós projectáramos fazer escândalo, em ar de conspiração, para lhe podermos apanhar mais; porém que nos arrependemos e que eu os mandei esconder, emquanto ia dizer-lhe a verdade e pedir o perdão de todos.

— E elle?

— Sempre cavalheiro ! ... Bespondeu-me, rindo: «Vae dizer a esses diabos insaciáveis, que não façam mais tolices, porque me compromettem; que repartirei entre vossês tudo quanto receber para a expedição, e farei as despezas d'ella á minha custa». — Que grande alma, general ! — exclamei eu, caindo-lhe aos pés. Íamos quasi chorando ambos !... Foi um quadro lindo e pathetico !... Tratem de ir depressa repetir-lhe a mesma cantiga; porém não exagerem, que pôde perder-se o effeito. E tomem cautela com o Goataçára! Vicente?... Adeus, até breve.

— Era simplesmente para o fim que elle diz, que vossês arriscavam as vidas?! — perguntou Angela com espanto, quando ficou só com Vicente.

— Elles, talvez. Eu, nutria outras esperanças... Aproveitaria o ensejo da revolta... Gosto de trabalhar, ladeando ! É menos arriscado e mais artistico ! ...

A mulher não acreditava na ingenuidade dos conspiradores e tinha rasão. Vicente, preso em Bararoá por Ambrósio, conseguira fugir da cadeia e viera occultamente para Manáos, desejoso de se vingar d'elle. Achando a maioria da população escandalisada com as extorsões do seu commandantej conspirou, primeiro com as pessoas mais auctorisadas da villa. Propoz-lhes assassinal-o, quando voltasse de Icuipiranga, com a simples condição de que a culpa recairia sobre todos e ninguém seria accusado. Os habitantes receiaram as consequências de similhante crime, e preferiram continuar sob o jugo tyrannico do vencedor dos cabanos. Vicente não era homem que desistisse da vingança ; porem o seu ódio intelligente aconselhava-o a proceder sempre com prudência.

— É preciso conseguir o meu fim, sem que eu corra o menor perigo. — dizia comsigo o tapuio militar. — Era fácil matal-o na rua, em casa, a qualquer hora do dia ou da noite; e não me faltaria resolução para isso... Mas, os próprios que o detestam, e que ficariam tão contentes como eu com a sua morte, seriam os primeiros a cair sobre mim ! ... Nada ; convém fazer as cousas de modo que eu possa depois gosar do meu triumpho. Caminhemos pelo seguro !

Em resultado d'estes cálculos, abriu negociações com os cabanos dos lagos Autazes. Estes, que estavam cansados da montaria que se lhes andava fazendo, como a animaes ferozes, e que tinham a Bararoá o ódio mais implacável que pôde haver em peitos de selvagens, exigiam que lhes fosse entregue o seu terrivel inimigo ; só depois de se cevarem no seu sangue, como verdadeiros tigres, deporiam as armas, obrigando-se o povo de Manáos a garantir-lhes as vidas. Esta combinação agradou a Vicente, que recomeçou as conferencias com os habitantes mais graduados. Precisava do auxilio d'elles para afastar Ambrósio da villa e fazel-o cair n'uma emboscada ; mas os homens bons da capital do Rio Negro, com quanto reconhecessem as vantagens de pôr fim á oppressão de Bararoá, manifestaram a mais decidida repugnância em se associarem a um crime abominável, filho de vinganças particulares; e declararam terminantemente que só o governo do imperador tinha poder para dar amnistia aos cabanos, e julgar se no procedimento de Bararoá havia abusos que devessem ser punidos.

A este tempo regressou Ambrósio Ayres do Madeira. Vicente, que tinha a penetração dos grandes criminosos, conheceu immediatamente que os seus verdadeiros auxiliares estavam entre os officiaes que cercavam o dictador. Afastando habilmente Goataçára, e algum outro que lhe pareceu inacessivel, attrahiu a sua casa os que lhe convinham e começou a conspirar com elles.

Chamburg, Pedro Ayres, Lacroix, e mais dois ou três, repartiriam entre si o dinheiro accumulado por Bararoá, que se julgava sufficiente para os enriquecer a todos. Alem d'isso, Vicente receberia dos cabanos uma recompensa, e combinaria com elles o modo de lhes ser entregue o caudilho, por surpreza de guerra, durante a expedição que se projectava fazer aos lagos. No porto de Manáos estaria uma canoa, sempre prompta, com doze homens robustos, para levar os conjurados á fronteira do Peni, se essa medida se tornasse necessária á segurança d'elles.

Uma única duvida tinha demorado a conclusão d'estes ajustes; era não haver quem garantisse aos cabanos a pedida amnistia para mil e trezentas vidas. No momento em que Angela irrompeu entre os conjurados, acabava Virente de declarar a estes, que tudo se resolvera finalmente; que se acharia a canoa no porto, escondida em logar que indicou; que os cabanos prescindiam da amnistia, porque, morto Bararoá, se o próprio governo a não offerecesse, eles se apossariam novamente das villas do sertão; e que emquanto ao modo da entrega de Ambrósio, se combinara também, mas era ainda segredo.

Como atraz se viu, a aterradora notícia de que a conjuração estava descoberta foi logo contrabalançada pelo génio hábil de Chamburg, que remediou tudo, deixando o caminho livre para a realisação do plano dos conspiradores.

XVII

Expedição aos lagos Autazes

Goataçára produzira um effeito prodigioso, entre as bellas de todas as classes, no dia em que, sem animo para resistir aos impulsos da vaidade juvenil, andou a mostrar-se pelas ruas de Manáos, com o seu uniforme de official do estado maior. De todas as rotulas, das janellas das casas ricas, ou das portas dos tejupares, ouvia, primeiro o cochichar soffreado das jovens manaoenses, similhante ao murmúrio harmonioso da viração da tarde, entre as ramadas das mangueiras, ou parecido com os gorgeios das aves, acalentando os filhos á borda dos ninhos; depois, a admiração tornou-se menos timida, traduzindo-se em exclamações abafadas; e por fim, chegaram-lhe distinctamente aos ouvidos estas, e outras palavras, igualmente acariciadoras :

— Galante moço !

— Lindo rapaz !

— Que bonito official!

— Tão novo!

— E tão bello!

O Índio envergonhou-se; foi buscar a irmã, também elegantemente vestida, e pozse a passeiar, de braço dado com ella. Gertrudes estava encantadora, com o seu trajo senhoril, o seu acanhamento e timidez, e rindo mais com os olhos do que com a boca dos adornos do irmão, e dos seus próprios.

— Tu gostas de estar assim? perguntava ella a Romualdo.

— E tu?

— Acho graça !

— Também eu. Ambrósio é um bom amigo !

— E as brancas de Manáos?! Que de cousas bonitas que ellas me dizem e me fazem! São tão boas para Gertrudes! Vestem-me, ensinam-me a andar, a fazer mesuras, a faltar, a ler e escrever... Escuta; não as ouves por ahi, quando passámos?!

— Enganas-te; não são ellas.

— Pois quem?

— Os homens, que te acham formosa.

— Ah ! ... e as mulheres a ti ! Se as ouvisses, como eu as tenho ouvido ! ...

— E se tu soubesses também o que de ti dizem os moços ! ...

— A gente de Manáos é muito boa, muito boa ! — volveu Gertrudes, corando. — Se nossos paes aqui estivessem ! ...

— É verdade ! ... E os velhos de Santarém!I... — acrescentou Romualdo, tornando-se triste. — Isto faz-me lembrar de que partimos amanhã para os lagos...

— Oh ! Romualdo, não me deixes ficar !

— É preciso. Estás começando a tua educação, como convém á futura mulher de um branco. Durante a nossa ausência podes aproveitar muito. Ficas com a família do presidente da camara, com as tuas amigas, que são tão boas!...

— Ai! são, são: querem-me muito ! Comtudo... separar-nos...

— É só por mim que tens pena de ficar?

— Que queres?!... Gosto tanto delle!

— Deus queira que não te arrependas! ... Nem eu também, por ter tido a fraqueza de não o deixar no Cayari ! ...

— Romualdo !

— Associou-se aos outros; conspira com elles contra o seu bemfeitor ! E Bararoá acredita o que lhe dizem; não percebe que são todos uns miseráveis, e que hão de perdêl-o por fim ! Nâo sei o que me adivinha o coração ! ... No seu logar, nâo levaria Chamburg, nem Pedro Ayres, que é tanto irmão d'elle como eu ! ... Nem Lacroix ...

— Romualdo ! Não sejas mau e injusto.

— Acautela-te ! ... Se eu levo menos cuidados é porque tu ficas e elle vae comnosco.

— Decididamente, fico?

— É para teu bem.

— Leva-me, Romualdo; quando estou comtigo, nada me mette edo; porém, logo que te perco de vista, entro a pensar no que me dizes, e tenho sustos e visões extravagantes !

— Para ti, o perigo está onde estiver aquelle homem.

— Não me tornes a dizer isso !

— Pois não tornes a pedir-me para ir commigo.

Calaram-se, e foram para casa. No dia seguinte partiu a expedição. Gertrudes ficou em companhia de umas senhoras, que se lhe tinham affeiçoado muito e se divertiam, educando-a.

Era o tempo da pesca do pirarecú. Entrando nos lagos, a esquadrilha de Ambrósio Ayres viu diante de si algumas dezenas de ubás, tendo cada um seu remador na popa e o arpoador, em pé, na proa, com o arpão levantado horisontalmente na mão direita, e a linha na esquerda.

— São Índios muras, auxiliares dos cabanos — disse Bararoá aos seus officiaes; — mas não convém que espantemos a caça grossa, por amor da miúda. Estes, ficam para depois, se valer a pena.

Foram percorrendo os lagos, que se communicam entre si até grandes distancias; vhegaram ao fim, voltaram de roda pelo la00 opposto, e nem á ida nem á vinda encontraram os cabanos. Interrogaram os muras, por varias vezes, e em differentes logares ; nenhum deu noticias d'elles. Alguns diziam que tinham visto, mezes antes, muitas canoas carregadas de gente de guerra ; porém que haviam voltado pelo mesmo caminho e que nunca mais appareceram.

— Avisaram-n'os ! — disse Romualdo, em voz baixa, a Bararoá.

— Talvez... — volveu este no mesmo tom.

— Duvidas ? !

— Quem seria?!

— Procura à roda de ti.

— Fomos logrados ! — interveiu Chamburg, approximando-se. — Alguém os preveniu.

— Fallavamos disso.

Os homens ricos de Mandos, que, depois de se lhes extorquir um novo tributo para esta guerra, foram obrigados a acompanhar a expedição, sob pretexto de augmentar o numero dos combatentes, recordaram-se das propostas de Vicente Capoeira e começaram a receiar alguma emboscada, em que tambem fossem victimas.

— Voltemos para Manáos. — disse um dos mais notáveis.

— Ficou a villa inerme, sem homens, e se os malvados se lembram de lá ir, durante a nossa ausência, ai das nossas familias! — Secundou outro.

— Para Manáos ! Para Manáos ! — gritaram de todas as canoas que levavam gente d*aquella terra.

Bararoá, reconhecendo a prudência d'esse parecer, ia dar ordem para a retirada, quando Chamburg lhe disse ao ouvido :

— Chegou o momento de tirares desforra das bellas, que calumniam a tua querida Gertrudes.

— Como?

— Dá ordem para ficarem aqui todas as forças ; dize que vaes com uma escolta, e com o teu estado maior, reconhecer e vigiar os caminhos até ao Rio Negro. Deixa Romualdo encarregado do commando ; apesar de novo, sabem que é bravo e terão confiança n'elle.

— E onde vamos nós?

— A Manáos.

— Para quê?

— Tolo ! — Fallou-lhe ao ouvido e o outro fez um gesto de repugnância.

— E a Gertrudinhas, cachorro? — tornou cynicamente Chamburg.

— Vossês perdem-me com as suas extravagâncias ! — Deu as ordens, conforme Chamburg aconselhara, e acrescentou, dirigindose a Romualdo: — Escusado é dizer-te, que se elles vierem os trates como eu faria.

— Vae descansado ! — respondeu sem desconfiança o joven Índio, que se lisonjeava com o posto interino de commandante em chefe.

A canoa de Bararoá, levando pouco mais gente do que a necessária para revezar os remadores, desappareceu rapidamente, impellida por doze remos. Apenas Goataçára deixou de a ver, poz a sua esquadra em ordem de marcha para a retaguarda, procurando um ancoradouro, que elle tinha notado na manhã d'aquelle dia como excellente para abrigo das embarcações, e que offerecia acampamento, em terra, muito próximo d'ellas. Ao fim de tres ou quatro horas estavam as canoas atracadas n'esse porto em forma de meia lua, onde a margem ficava ao nivel das bordas, havendo boas arvores para as amarrações e que davam ao mesmo tempo sombra para se abrigarem as tropas dos ardores do sol. Romualdo exerceu ali as suas funcçôes de chefe por tal modo, que, sem o querer, fez logo sentir a superioridade que o elevava acima do verdadeiro commandante. Provendo á segurança da esquadra que lhe fora confiada, occupava-se também da gente, com tanta ou mais solicitude como a que lhe mereciam as embarcações e o material de guerra. Mandou limpar e desobstruir os matos e hervas rasteiras até grande distancia, para que ninguém se podesse approximar sem ser visto ; collocou sentinellas em todos os pontos, determinou que as barracas fossem levantadas em amphitheatro e de maneira que as guarnições ficassem todas a igual distancia das suas respectivas canoas ; examinou o alimento, que se compunha de peixe secco e farinha, e deu ordem para se comprar todo o peixe fresco e caça que os muras tivessem apanhado n'aquelle dia ; por instincto politico occultou o ódio profundo que tinha áquelles índios, suppondo-os assassinos de seu pae e de sua mãe, e declarou que puniria severamente quem os maltratasse.

— Ah ! — pensava elle. — Bem me ensinava o meu santo velho padre Felix que a Providencia nunca desampara os que n'ella confiam ! Desobedeci a meu pae, por amor do oiro, com que pretendia armar-me para destruir os cabanos ; arrependo-me, porém, a tempo ; deito no fundo do Madeira o causador da minlia falta ; e Deus guia d'alii por diante os meus passos, até me dar, embora temporariamente, o commando em chefe de... É verdade?! — exclamou, como respondendo a outro pensamento súbito. — Alberto ? ! Alberto ? ! Ohl maldita vaidade, que me absorveu todo, e só agora me lembro de que o deixei ir com elles ! A caminho de Manáos ! ... Que presentimento ! ... Que diria Chamburg ao ouvido de Bararoá, para lhe inspirar aquelle gesto repulsivo? Depois cedeu ! ... E partiu ... com tão pouca gente ! ... levando comsigo todos os miseráveis ! ... E Alberto ! Alberto ! ... o mais capaz de... Dois ubás dos mais velozes ! — gritou como louco. — Saltem para elles os mais dextros e vigorosos remadores ! Corram direitos a Manáos e tragam-me Alberto Lacroix, o francez Lacroix, vivo ou morto ! ...

Julgaram todos que elle tinha endoudecido. Officiaes e soldados olhavam-n'o com espanto, sem ninguém lhe obedecer.

— Não ouvem ? ! Dois ubás com vinte homens cada um!... Meu Deus! Quasi um dia inteiro de avanço ! Aquelles homens, aquelles homens, e o segredo de Chamburg!... Digam a Bararoá, que não esperarei por elle, se não me enviar o francez ; que partirei, e que se tiver succedido alguma cousa a Gertrudes, arrasarei Manáos ! ...

— Endoudeceu ! Endoudeceu ! Que desgraça ! — murmuravam todos compadecidos. — Tão moço e tâo bravo !

— Ah! — gritou Romualdo, apertando a cabeça com as mãos fechadas. — Não podia ser outra cousa ! ... o infame detesta-me ! ... e sabe que Ambrósio gosta de Gertrudes !... Inferno ! inferno ! E não poder eu voar como o raio, para os fulminar a todos ! ... Mas, desgraçados d'elles ! ...

Atirou-se para dentro de um dos mais agudos ubás de cedro, que tinha qnasi a forma de uma frecha, e soltou novos bramidos.

— Oh!... todos! todos !... Vinte homens commigo, com armas e remos ! — Vendo que o encaravam com commiseração e que não se moviam: — Julgam-me doudo, porventura?! Ah! — continuou, reconhecendo que acertara — filhos de Manáos, que não vos lembraes de que deixastes as vossas esposas e as vossas filhas indefezas, e que Bararoá corre para ellas com os seus devassos companheiros! Ficae, que eu irei sòsinfio defender minha irmã, e direi ás vossas mulheres que agradeçam a sua deshonra á covardia de seus paes e maridos !

Um rugido immenso, temeroso, como o bramir de mil tigres enfurecidos, respondeu a Romualdo, ao mesmo tempo que lhe saltavam dentro do ubá mais homens do que n'eile cabiam.

— Escarnecidos! — gritavam muitas vozes.

— Trouxe-nos de propósito!

— Para nos roubar e deshonrar!

— Maldição!

— Partamos! Partamos! — ordenava Goataçára. — Cada momento perdido em vãs exclamações de cólera, distanceia-os de nós e approxima-os delias!

— Partamos todos! todos!

— Partamos!

Voaram para as canoas; largaram por mão ou cortaram com as armas as amarrações; disputaram entre si os remos; e a numerosa esquadrilha arremessou-se através dos Autazes, com a impetuosidade de uma convulsão da natureza. O ubá de Goataçára distanciava-se, adiante, como a cabeça que guiava aquella torrente de cólera.

De repente, os que o seguiam mais de perto viram-n'o parar e voltar para traz.

— Que é ?— perguntaram os das primeiras canoas.

— Nós viemos aqui pelo rio Autaz, depois de descermos o Amazonas até quasi á foz do Madeira ; é por esse mesmo caminho que volta Bararoá; mas dizem que os lagos teem saída para o Solimões?...

— Teem! Teem! É o canal dos Autazes.

— Não será mais perto?

— Mais perto pelo Solimões?

— Sim; os outros precisam subir até ao Rio Negro, e nós desceremos, indo por cima. Ha ahi quem conheça bem os rios e os lagos, por esse lado, e saiba se ganhamos alguma cousa com a troca? Averiguem, depressa !

Reuniram-se todas as canoas, gastou-se muito tempo em transmittir de umas para outras as perguntas de Romualdo, que se impacientava, assim como todos os mais, com as discussões e duvidas dos interrogados. Estavam ali muitos Índios mansos, para os quaes eram familiares aquelles sitios ; porém os tapuios são, em geral, muito morosos e irresolutos; não vendo o perigo imminente, hesitam em decidir-se entre dois meios ou dois caminhos ; custa-lhes a responder, e quando o fazem é indirectamente ou com evasivas; faliam com a maior pachorra, sem nunca se alterarem, indilferentes ás manifestações da cólera alheia, salvo nos casos em que lhes é materialmente demonstrada.

— Os Autazes são grandes ! — dizia um» placidamente.

— E largos ! — confirmava outro.

— Todos elles teem canaes entre si. — volvia terceiro.

— Tanto se póde ir d'aqui para o Solimões, como para o Amazonas. Até ha o furo de Araretama, que vae sair no Cayari!

— Mas por onde é mais perto para Manáos?

— Mais perto para Manáos?!

— Sim, com mil diabos!

— Mais perto? Mais perto é por um ou por outro, conforme os remadores que levar cada canoa, o tamanho d'ella, e se vae carregada ou vazia ...

— Póde-se ir por qualquer dos lados. — interrompia outro, com igual impassibilidade.

— Por qual iriam vossês, se tivessem muita pressa de chegar a Manáos?

— Por qual iriamos?

— Irra !

— Sim, por qual iriam?

— Tendo muita pressa de chegar a Manáos?...

— Tanto faz ir por um como por outro.

— Não... olha que faz differença, mano.

— Eu ia pelo Solimôes.

— Eu antes queria o Amazonas ... que o outro também é bom.

— Ambos elles são bons.

— A final, não se pôde saber por onde è mais longe?!

— Mais longe?

— Sim, mais longe ! Apre!

— Para Manáos?

— Outra vez!

— Não te zanga, compadre Gualter. Para ir d'aqui é melhor ir por cima...

— Finalmente, achas por lá mais perto?

— Eu não disse mais perto ! Mais perto pôde ser pelo outro lado, porque vamos com a correnteza até o Amazonas.

— E depois, não tinhamos que subir?

— Depois temos que subir, isso é verdade !

— Descendo o Solimôes, não subimos.

— Logo é mais perto?

— Mais perto por onde? Por Solimôes? Talvez seja. Vamos por onde o compadre achar melhor.

Depois de muitas divagações, repetições, afirmativas e negativas, conseguiu-se apurar que o melhor caminho era aquelle por onde fossem mais depressa ! Romualdo, furioso por causa do tempo perdido, votou por que fossem pelo Solimôes.

— Se for mais perto e a differença dér as seis horas, que elles nos levam de avanço, chegaremos a tempo de evitar alguma infâmia; se a distancia for igual, teremos a vantagem de não levar a gente cansada de remar, porque descemos com a corrente do Solimões até á boca do Rio Negro.

Voltaram-se as proas para a boca superior dos lagos, e a lava do volcão humano, peior ás vezes do que as do Vesúvio e do Etna, porque não tem luz que a denuncie de longe, como as que alumiam os mares de Nápoles e da Sicília, foi rolando sobre as aguas até se perder de todo na escuridão da noite.

XVIII

Surprezas e catastrophes

Por uma d'essas singulares coincidências, que tantas vezes espantam a fraca rasão humana, a mudança de direcção da esquadrilha, com todas as discussões que a precederam, era como que a maravilhosa reproducção dos successos passados a bordo da canoa de Bararoá e das resoluções ali tomadas. Havia apenas uma diíferença: a mudança de rumo da embarcação chefe era consequência de um plano premeditado; a do das outras, não.

Logo que deixou de avistar-se a esquadra, Lacroix, obedecendo a um olhar imperioso de Chamburg, disse para Ambrósio :

— Ouvi dizer que ha outro desaguadouro d'estes lagos, que aáe mais próximo do Rio Negro?

— Eu preferi este, por suspeitar que acharíamos os cabanos do lado do Madeira.

— E provavelmente por lá se passaram para o Maué-açú, onde iriam reunir-se aos de Icuipiranga. — observou Pedro Ayres.

— É o mais certo. — concordou Bararoà.

— Se elles nos encontrassem agora?! — interrogou Chamburg.— Com a vontade que nos devem ter, éramos um achado famoso!

— Que lembrança! — disse Alberto, na sua lingua, mostrando-se aterrado.

— A mim, especialmente — volveu Ambrósio — devem querer-me grande bem !

— Não seria melhor irmos pelo furo de cima, que vae, segundo julgo, sair ao Solimões ? — perguntou Chamburg.

— Se os cabanos soubessem isso, diriam que Bararoá tinha medo d^elles!

— Digam o que quizerem, que os leve o diabo ! — tornou o outro. — Já lhes mostraste quem és ; agora, que vaes com trinta ou quarenta homens somente, em viagem de recreio, só se te queres ir entregar a elles?!...

— Não tenho tal tenção.

— Além de que, pelo outro canal, iriamos mais depressa.

— Não sei o que faço, consentindo no que vossês querem, Chamburg ! É um acto que me deshonra para sempre! Ainda que eu fuja, como me aconselham, repugna-me de-' xar atraz de mim essa nódoa eterna e odiosissima.

— Então, o patife não faz estylo! Está podre de rico, não sabe como ha de sair do paiz, onde todos o detestam, eu arranjo as cousas para que fique n'estes lagos toda a gente que o poderia incommodar, offereçolhe um acepipe delicioso, tempo de embarcar as suas riquezas e de partir socegadamente comnosco para o Peru, e elle...

— É atroz o que exigem !

— Que asno ! Já lhe parece mau bocado a Gertrudinhas!...

— Alto lá!— gritou Alberto. — E eu?!...

— Tu ? ! Pois não dizes que queres ficar com o mano? Combinámos deixar-te amarrado a um esteio, para que se julgue que foste victima da tua dedicação e das nossas violências.

— Comtudo, a pequena...

— Se não te convém d'esse modo, anda comnosco.

— Não posso...

— Perdemos tempo e viagem com essas tolices.— interrompeu Pedro Ayres.— Manda voltar para o outro caminho. Boas ou más, as resoluções definitivas são superiores ás hesitações mais santas.

— Vae ahi quem saiba levar-nos pelos lagos, ao canal do Solimões, sem que sejamos vistos pela gente das nossas canoas?

Depois de muitas delongas e contestações, Bararoá resolveu as duvidas, asseverando que pelo furo superior era mais perto.

— Se ha quem saiba conduzir-nos, sem que passemos á vista da nossa gente, vira a proa para cima.

Voltaram, foram rodeando os lagos pela margem opposta, metteram-se por canaes desconhecidos, e conseguiram passar, sem que fossem vistos pelas forças da expedição, já acampadas a esse tempo.

Anoiteceu. As constellações do sul appareceram resplandecentes no firmamento ; a luz, saída de Syrius vinte e dois annos antes, chegava á tolda da canoa, onde iam os officiaes fumando, com o mesmo brilho que cincoenta e dois trilhões e duzentos milhares de milhões de léguas de caminho não tinham conseguido gastar ou empallidecer. Pedro Ayres, que desmentia pela perversidade do coração o titulo de sábio, a que parecia aspirar, contemplava o guarda luminoso dohemispherio austral e tinha estremecimentos singulares a cada rumorejar do vento na folhagem das margens. Dir-se-ia que o esplendor dos astros o estava accusando por se haver associado com facinorosos. Apoz alguns momentos de silencio, Pedro levantouse, profundamente perturbado, e desceu para debaixo da tolda, murmurando:

— É tarde ! ... é tarde ! ... — e continuou mentalmente, deitando-se na rede: — Se podesse dizer-lhe que tornássemos para traz?! Porém, os outros matavam-me!... Fatalidade! — e adormeceu.

Lacroix descera atraz d'elle, calado, sombrio, impenetrável; e estendeu-se n'outra rede. Passado algum tempo, ouviu resonar Pedro e pensou :

— Mais feliz do que eu em tudo! Até dorme ! ...

— Foram-se todos deitar ! — observou Chamburg, que ficara só com Bararoá. — Vamos nós também.

— Espera ahi, Guilherme — lhe disse Ambrósio, com estranha commoção ; — não sei que tenho...

— Bebe um copo de aguardente. É indisposição de estômago.

— Não; talvez seja alguma cousa mais grave. Eu não nasci mau, Guilherme...

— Temos asneira !

— Foram as circumstancias... que derrubam muitas vezes o homem, por ladeiras em que se não pôde parar... Achei uma raiz na encosta, por onde ia rolando, e agarrei-me a ella. Era a raiz do bem! ... Rtígenerei-me... Vieram vossês... tu...

— Eu?!

— Tu e os outros... despenharam-me de novo. Aonde me querem levar mais?! Guilherme, salva-tecommigo; ajuda-me; façamos uma acção digna de homens, que não estão ainda perdidos inteiramente !

— Então que queres?

— Voltemos.

— Tolice !

— Não digas isso ; dá-me antes apoio e força. Esta noite, estes perfumes que nos traz o vento das florestas, o brilho d'estes astros, tão bellos, suspensos sobre as nossas cabeças, não sei que rumores mysteriosos da natureza, e que vozes do céu me dizem sem cessar: «Voltai Volta! É tempo ainda! D'aqui a pouco será tarde e impossível !»

— Deste em poeta e visionário!

— Voltemos, Chamburg. Salva-me e salva-te ; sê o meu génio bom, assim como o foste mau... Se Goataçára tivesse vindo, com certeza voltávamos. Guilherme ! Chamburg ! Meu amigo...

— Ai! Jesus! — gritaram todos os remeiros, sentindo a canoa prender-se pelos mastros e voltar a proa contra a corrente.

— Que diabo é isto? — interrogou Chamburg com verdadeiro ou simulado susto.

— Algum ramo debruçado... — respondeu Ambrósio. — Ah ! ... não ! Estamos no meio do canal ! Que historia è esta?! Cipós atravessados !

— Feitiço! feitiço! — exclamaram alguns dos remadores tapuios, que eram supersticiosos como a maioria dos da sua raça. — Canoa corre para terra !

— É a mãe d'agua que puxa!

— Oiára ! Oiára ! — volveram outros, largando os remos e fugindo para debaixo da tolda. — Oiára ! Mãe d'agua !

— Dá cá um terçado e corta esses cipós ! — ordenou Bararoá. — Não vêem que são cipós?... Talvez alguma arvore que caísse os levou comsigo na queda para...

Não pôde acabar. A canoa, encontrando atravessado no canal um grosso cipó, que a prendia por cima, parecia escorregar sobre outro, estendido ao lume d'agua ; e como ambos estavam atravessados verticalmente, a embarcação descaiu com rapidez incrivel para o angulo inferior do rio, formado pelos cipós e a margem. Ao mesmo tempo que Bararoá fallava, a canoa tocou a margem e foi repentinamente invadida por grande multidão de homens armados.

— Ambrósio Ayres Bararoá — bradou uma voz, que elle julgou conhecer — estás em poder dos cabanos !

— Só me terão morto ! — respondeu elle, armando uma pistola, e tentando metter o cano d'ella na boca.

— É vivo que nós te queremos !... Nada de asneiras, meus senhores ! — proseguiu a mesma voz, dirigindo-se a Chamburg e aos outros officiaes, que tinham acudido e desembainhavam ostentosamente as espadas. — Não se fará mal a mais ninguém, se tiverem juizo. As nossas contas são com este sujeito.

Os outros metteram á pressa as espadas nas bainhas, fingindo-se contrariados. Ambrósio, que tinha sido desarmado rapidamente, foi atado ao mastro da canoa, sem proferir uma palavra. Accenderam-se então grandes fogueiras em terra, e a tripulação de Bararoá viu, á luz sinistra das chammas, alguns centos de bandidos, felicitando-se reciprocamente.

Havia, misturadas com elles, e quasi todas mais ou menos horrendas, várias mulheres, e entre estas, uma, única formosa, que parecia indiíTerente ao acontecimento, e a tudo que a rodeava : estava sentada tão perto do lume que as labaredas chegavam por vezes quasi a lamber-lhe o rosto, sem que ella fizesse o menor movimento ! Ambrosio, dando casualmente com os olhos n'ella, expelliu um grito formidável :

— Ah!

— Não te alteres assim — tornou, por detraz d'elle, em tom de mofa, a mesma voz, que lhe parecia conhecida ; — esses berros podem-te causar doenças de peito ou de garganta.

A mulher conservara a mesma apathia, e pareceu não ouvir o grito de Ambrósio Ayres.

Rompia a manhã; a luz crepuscular, desconhecida quasi n'estas latitudes, passou correndo, como véu sombrio, sobre todo o quadro; o sol, que a seguia de perto, veiu logo em seguida alumial-o.

— Ambrósio Ayres, nobre caudilho de Bararoá, vencedor dos cabanos, conheces-me? — disse, com emphase theatral, o tapuio Vicente Capoeira, collocando-se em frente do prisioneiro.

Este lançou-lhe um olhar de tão terrível e esmagador desprezo, que o outro corou de raiva, por ver perdida uma parte do effeito com que tinha contado para satisfação da sua vingança.

— Ah! — rugiu Capoeira — tu continuas a ser insolente ! Espera ahi, que já te vamos abater a proa e fazer chiar deveras.

— Não são os malfeitores da tua espécie, nem da dos teus amigos, que humilharão jámais homens da minha tempera — lhe respondeu friamente Ambrósio. — O que me acontece é justo, porque falseei o meu caracter ; oxalá que a lição aproveite a outros ! Meus senhores — continuou, voltando-se para os seus officiaes— se escaparem d'estes carniceiros, rogo-lhes que se dignem testemunhar que Ambrósio Ayres Bararoá resgatou com a dignidade da sua morte os erros da sua vida. Começae a vossa obra, scelerados! Um bramido medonho succedeu ás nobres e altivas palavras do caudilho. Vicente, que se sentiu pequeno e miserável diante d'aquelle estoicismo, enfureceu-se mais por isso e gritou aos cabanos:

— Meus amigos, aqui vol-o entrego ; é vosso ; mas peço licença para me associar á brincadeira.

— Mata esse cannibal. — disse Pedro Ayres, em francez, a Chamburg.

— Só se eu fosse tolo. — respondeu este.

— Queres que te dê um tiro, Bararoá? — interrogou Pedro, que principiava a ser devorado pelos remorsos, fallando em inglez com o preso.

— Não — disse este ; — obrigado : verás que sei morrer.

Foram as suas ultimas palavras. Compoz o rosto com grande serenidade; não tornou a olhar para ninguém, e supportou até á morte as barbaras crueldades que lhe fizeram, sem que os tormentos e dores atrozes que soffria lhe arrancassem um grito, um ai, um gemido, ou lhe contrahissem sequer um musculo da face ! Quando os cabanos se lançaram a elle com as facas e os punhaes, Chamburg, Lacroix, Pedro Ayres, e os outros officiaes, quizeram saltar em terra. Estavam todos lívidos de horror e arrependimento.

— Fiquem ! — ordenou o commandante dos assassinos. — D'aqui não sae ninguém!

E os desgraçados receberam logo ali a primeira punição do crime de terem vendido o seu chefe e amigo, presenceando o supplicio d'este.

Repugna, e a penna recusa-se a descrever as atrocidades praticadas por mais de mil facínoras sobre o corpo d'aquelle infeliz, a quem só faltara a sciencia de saber escolher os homens de que se rodeara para ter sido um verdadeiro heroe.

Depois de o haverem reduzido a um montão informe de carne moída, Vicente Capoeira cortou-lhe a cabeça, e foi lançal-a no regaço da mulher, que estava sentada junto ao lume.

— Ahi o tens !

A scismadora, como se acordasse de um sonho, olhou espantada á roda de si, viu a canoa, o tronco inerte pendente do mastro, e baixando os olhos achou a cabeça no collo e soltou um silvo como os das serpentes. Ergueu-se de snlto, direita, espectral, hirta, sublime de amor e de ódio ; pegou n'ella pelos cabellos, encarou aquelle rosto, que fora bello, agora sem vida, sem olhos, sem formas, horrendo, transfigurado! Beijou-o, acariciou-o, ensanguentando-se, com elle unido ao seio ; e depois procurou Vicente, com o olhar, em que transpareciam os mysteriosos segredos da morte; vendo-o, bradou-lhe com voz vibrante e metallica :

— Solta a canoa !

O homem obedeceu immediatamente, aterrado com o aspecto d'ella. Cortou o cipó que prendia a embarcação e segurou esta, para que a corrente a não levasse.

— Embarca ! — intimou a trágica amante, saltando primeiro para dentro.

Vicente Capoeira seguiu-a.

— Deixae passar a conjuração de Manáos f — bradou ella, mostrando o fúnebre despojo que levava na mão.

Os cabanos, que estavam a bordo, fugiram para terra espavoridos.

— Eis o vosso chefe, senhores ! — continuou Angela, apresentando a cabeça aos conjurados, mudos de terror e espanto. — Beijae-o também, ao menos depois de morto, Judas! — E encostou as faces mutiladas, do que fora seu único amor na terra, ás bocas de todos, salpicando-os com o sangue do assassinado.

— Horrível ! Horrível! — murmuraram os officiaes, estúpidos de pavor.

— Vicente Capoeira?... Faltas tu ainda !

— Ah! horror !

— Tu não querías também o outro ? O meu filho?! Não propozeste á amante e á mãe que te deixasse matar os dois? Aqui tens um !... Vamos buscar o outro !

E, rápida como o relâmpago, abraçou-se a elle, apertou entre os rostos de ambos a cabeça mutilada do seu querido Ambrósio, e derrubou Vicente comsigo na corrente do canal, onde desappareceram para sempre.

— Horrível! Horrível!— exclamou Pedro Ayres, perdendo os sentidos.

— Espantosamente horrível! — balbuciou Chamburg, deixando-se cair.

Todos os outros ficaram mais ou menos desfallecidos; somente Lacroix, que estava lívido como elles, disse friamente :

— Vossês assim o quizeram!

A canoa, sem governo, ia rolando com a rápida corrente do canal dos Autazes para as aguas do Solimões. Os cabanos, actores, auctores e espectadores da espantosa tragedia, ficaram mudos todos, olhando para a embarcação, que se afastava, e para o logar em que se tinham sumido no rio Vicente e a sua noiva, como se esperassem vel-os surdir a cada momento. Tendo saciado a sua sede de vingança bestial e selvagem, e não havendo nada novo para elles no género trágico, estavam admirados de se sentirem commovidos por tão pouco. Que importância podiam ter aquellas mortes, de uma mulher e de um homem, que se afogavam abraçados á cabeça de um terceiro, para pessoas que trabalhavam em grande n'estas especialidades, e que tinham despachado, uns como artistas e outros como amadores distinctos, muitos milhares de viclimas?!

Comtudo, tal foi o effeito do inesperado desenlace com que os surprehendêra aquella mulher, que não sentiram nem viram approximar d'elles a esquadrilha commandada por Goataçára !

— O Vicente não contava com este desfecho! — disse um cabano, ao fim de muito tempo. — Perdeu o premio em dinheiro...

— Sim, que eu dava-lh'o ! — interrompeu o chefe.

Surprehendeu-os uma descarga de fuzilaria, pondo-os immediatamente em debandada. Alguns remadores de Bararoá, que tinham ficado em terra, misturados com os cabanos, quando a canoa foi solta do cipó, saltaram ao rio e nadaram para a esquadrilha. Ali referiram ao chefe e ás tropas assombradas os successos que tinham presenciado.

— E os outros ?— interrogou rapidamente Romualdo. — Os officiaes do estado maior?

— Ahi Vão pelo rio abaixo como doudos.

— Os cabanos não lhes fizeram mal?!

— A nenhum.

— Traidores ! — bramiu o joven capitão com raiva. — Miseráveis! Infames ! Venderam o seu amigo e chefe, o homem que os enriqueceu ! Ah ! tantas vezes lhe predisse eu que elles o perderiam ! — Em seguida, voltando-se para as tropas das canoas mais próximas, continuou : — Meus senhores, quaesquer que tenham sido os erros de Ambrósio Ayres Bararoá, erros que devem recair todos sobre os homens que o cercavam, e que vieram por fim vendel-o aos cabanos, ninguém pôde recusar á sua memoria uma homenagem de reconhecimento. Foi elle o libertador da provincia ...

— É verdade! É verdade! — responderam de todos os lados.

— Era um verdadeiro homem de guerra — proseguiu Romualdo; — possuia grandes virtudes e grandes qualidades, que outros lhe annullavam. Tendo eu recebido das suas mãos o commando interino da expedição, cumpre-me substituil-o o melhor que souber, emquanto vós me julgardes digno da honra de vos commandar.

— Viva o capitão Romualdo,. commandante em chefe! — gritaram muitas vozes.

— Effectivo ! — tornaram outras.

— Sim ! Sim ! Viva o novo commandante militar do Amazonas !

— Viva!

— Obrigado, meus senhores. Cumpre que vinguemos já sobre os cabanos a morte de Bararoá; depressa alcançaremos depois os que o entregaram aleivosamente.

— Aos cabanos! Aos cabanos!

— Elles devem estar perto. Não tinham aqui as canoas, para poderem com maior facilidade surprehender o nosso chefe ; deixaram-n'as provavelmente em algum igarapé ou rio próximo. Sabeis os seus crimes ; tratae-os como merecem. As feras caçam-se como feras !

Saltaram em terra, e uma parte da gente foi bater as florestas, emquanto outra vigiava do lado do rio e defendia a esquadrilha. Depressa encontraram as embarcações dos facinoras, mettidas n'um pequeno rio, inteiramente occuUo por grandes arvoredos; a maioria dos cabanos, que tentava fugir com ellas, succumbiu logo ali, depois de curta resistência ; os outros, perseguidos até ás margens do rio Purús, tentaram passal-o a nado, e morreram de cansaço, antes de chegarem ao lado opposto.

— Agora, a Manáos ! — ordenou Goataçára. — Depois iremos ao Maué-açú, para acabarmos de limpar a provincia.

A canoa que levava o tronco mutilado de Ambrósio Ayres, com os seus officiaes, estava ainda á vista do logar, onde fora tão barbaramente assassinado o caudilho, quando se ouviu a bordo d'ella a primeira descarga, dada sobre os cabanos, pelas tropas que vinham dos lagos.

Todos os officiaes, commovidos e aterrados ainda com o espectáculo a que acabavam de assistir, olharam para traz e reconheceram a esquadrilha.

— Com os diabos ! — exclamou Chamburg, cobrando energia. — É Romualdo que vem sobre nós !

— Desconfiou, viu-nos passar, ou o diabo lh'o disse ! — volveu em voz baixa um dos outros. — Estamos arranjados !

— Vamos ter com elle — aconselhou Lacroix; — diz-se-lhe que fomos apanhados de improviso, e...

— Julgas que se fazem combinações, que dêem resultados como aquelle a que assistimos, por simples divertimento?! — volveu Chamburg a meia voz. — Rapazes — proseguiu, dirigindo-se aos homens de remo, que estavam como insensíveis, sentados uns defronte dos outros, sem remar : — deitem uns este pobre corpo ao rio... nâo ha tempo de se lhe prestarem agora honras fúnebres; depois se farão officios, exéquias, todas as cousa? que elle merece, quando houver melhor occasião ; lavem bem o sangue, que não fique nenhum signal... Os outros, peguem já nos remos, e trabalhem com alma ! É preciso chegarmos a Manáos, antes que lá saibam a noticia fatal, para que os cabanos se não lembrem de ir tomar a villa. O novo commandante Romualdo vem ahi e pôde zangar-se rum a nossa demora, se souber que não fomos logo providenciar acerca da segurança dos habitantes. Emquanto elle ensina aquelles patifes, aproveitemos nós o tempo.

Entraram no Solimões, cuja corrente impetuosa os levou com rapidez até á foz do Rio Negro. Logo que chegaram, foram reconhecer o sitio, onde devia estar occulta a canoa, mandada preparar por Vicente ; descobriram-n'a, e ordenaram em segredo ao piloto, que se preparasse para partir immediatamente. Desembarcaram, determinando que ninguém da sua embarcação communicasse com a terra, emquanto elles não preparassem os habitantes para a terrível nova.

Entraram em casa de Bararoá, da qual traziam as chaves, e procuraram no quarto de dormir d'este o iogar, onde julgavam enterrados os seus thesouros. Cavaram, e encontrando diversas caixas iam sair com ellas, quando Chamburg disse:

— Nada de precipitações ! É preciso distribuir isso aqui mesmo, para que leve cada um a sua parte, sem causar desconfianças. Vae amanhecendo, e trazemos grande dianteira aos outros.

— É melhor. — respondeu Lacroix. — Quem sabe se não seriamos logrados?

— Vamos ver.

Arrombaram os cofres, que estavam cheios de oiro e preciosidades.

— Bonitas cousas ! — exclamou Chamburg enternecido. — No fim de contas, tinha sido muito peior se nâo achássemos nada.

Repartiram a olho e sem discussão. Lacroix, que era ourives, sem que os outros soubessem, acceitou a sua parte em jóias e tornou a enterral-as no mesmo logar.

— Tu ficas com a pequena, bregeiro ! — lhe disse Chamburg, rindo. — Isso póde-te servir para ella, e nós precisámos dinheiro para a viagem.

— Deixem-me sempre algum, para o que possa acontecer.

— Prompto.

— Agora, amarrem-me a esse esteio de atar as redes; passem por casa da Gertrudes, e digam-lhe que venha cá depressa por que eu e o irmão a estamos esperando. Nâo deixem de ir por lá, que esta situação é incommoda ! Pelo seguro, deixem sempre a porta da rua aberta... Se ella não vier, gritarei por soccorro.

— Adeus, velhaco; boa fortuna!

— Adeus, Chamburg; boa viagem ! E até Paris.

Saíram ; na rua, hesitaram sobre se valia a pena irem chamar Gertrudes.

— Fica em caminho — observou Pedro Ayres; — se não temos faltado ás promessas de que proveiu o mal, cumpramos também as outras.

— Sejamos bons diabos até ao fim. — apoiou Chamburg. — Mas quer-me parecer que fizemos asneira em deixar o cofresinho enterrado?...

— Qual ? O que tocou a Lacroix ? !

— É que a situação d'elle seria mais verdadeira... amarrado e roubado ! Que acham?

— Era uma indignidade! Entre cavalheiros é necessário haver palavra.

— Apoiado ! — responderam os outros. Bateram á porta de Gertrudes, deram o recado a uma tapuia velha e partiram.

Gertrudes, que acabava de vestir-se, e estava fazendo um collar, com as pedrinhas brancas e de cores, que tinha trazido da gruta do Arinos, metteu tudo apressadameate n'um cesto, pegou n'elle e saiu a correr para casa de Bararoá. Achando a porta aberta, entrou e viu Alberto amarrado.

— Acudam ! — gemeu elle dolorosamente, apenas a sentiu.

— Jesus ! Que é isso?!

— Gertrudes ! Minha querida ! Espreita se os malvados já se foram !

— Quem? !

— Os meus collegas do estado maior ! Ai ! tira-me primeiro estas cordas, que me estão cortando o peito !

— Porque te amarraram? — perguntou ella, desatando-o. Aonde está Romualdo?

— Não deve tardar ! ... Que horrores que me teem succedido ! Os meus companheiros fogem com medo dos cabanos, e como eu os queria deter aqui por força, até á chegada de Romualdo, amarraram-me ... Que é isso que trazes ahi?

A joven recuou o cestinho, envergonhada.

— Brinquedos...

— Deixa ver.

— Não...

— Porquê?

— Alberto ria-se...

Elle tirou-lhe o cesto com meiguice.

— Ora ! ... Deixa-me ver, que eu prometto ...

— São pedras bonitas, com que eu queria fazer um collar; achei-as no rio.

O francez já nâo a ouvia. Olhava, com os olhos esgazeados, para o punhado de crystallisaõôes que tirara do cesto, e as feições iam-se-lhe alterando.

— Diamantes ! ... Saphiras ! ... Esmeraldas!... — murmurou, approximando-se da janella, para ver melhor. — Valor immenso! ... — Levou os diamantes á boca, tocou-os com a lingua e sentindo o frio das pedras preciosas, proseguiu comsigo, tornando a olhar para ellas: — Verdadeiras !... Agua puríssima ! ...

A joven contemplava-o, cheia de admiração e de jubilo. Comprehendéra que aquelles bonitos eram valiosos, que poderiam fazer a felicidade do homem a quem amava, e sentia-se tambem feliz.

— Ah ! se elles ainda lá estarão ? ! — exclamou Lacroix, como desvairado, mettendo todas as pedras nas algibeiras. — E o outro não tarda ! ...

Correu para o quarto, e começou a desenterrar o cofresinho.

— Sinto-o ! ... Inferno ! ...

— Que estás fazendo? — perguntou Gertrudes, que o seguira.

— Não ouves ? — interrogou Alberto, com o olhar espantado. — São remos ! ... É elle !

— Aonde vaes? Não ouço nada. Pareces doudo !

— Deixa-me, desgraçada! Foge! Larga-me ! D'esta vez não estou no Madeira, e nem o diabo seria agora capaz de me fazer parar !

— Não te largo ; tu não estás bom !... Queres fugir ? ! Pois leva-me comtigo ... Ah ! ... o teu rosto está ensanguentado ! ... Mataste Romualdo ? ! Tu mataste meu irmão?! Mataste?!

— Elles ahi vêem ! Elles ahi vêem ! Larga-me ! ... Não grites ! Ah ! Assim o queres !

— Ai! — suspirou Gertrudes, caindo apunhalada.

O assassino saiu, correndo direito ao togar em que sabia ter Goataçára amarrado o ubá, que trouxera do Cayari. O ouvido não o illudira; a esquadrilha acabava effectivamente de fundear, e Romualdo subia a encosta da casa do presidente da camara, ao tempo que Lacroix se encaminhava, pela floresta, para o riacho.

Sabendo que Gertrudes fora chamada em nome d'elle a casa de Bararoá, o indio correu para ali precipitadamente, com o coração a querer saltar-lhe do peito e com os olhos injectados de sangue.

— Gertrudes?! Gertrudes!... Oh! Que horror ! Inferno ! Maldição de Deus ! Foi elle ! Foi elle ! E eu tive a culpa ! ...

Ajoelhou ao pé d'ella; pegou-lhe na cabeça, beijou-a ternamente, inundando-a de lagrimas, e tornou a gritar:

— Gertrudes?! Querida irmâ?l Meu anjo, minha vida! Abre os olhes; vê-me ainda uma vez!... E dize-me, oh! dize-me se foi elle, que eu irei buscal-o ao fim do mundo !

— Foi elle ! — murmurou a joven, abrindo os olhos e fitando-os com divino affecto no irmão adorado. — As pedras bonitas... do Arinos... são pedras preciosas... brilhantes... saphiras... esmeraldas... Levou-as... Adeus!

Caiu inanimada nos braços de Romualdo, que a cobriu de beijos; e em seguida, depondo-a brandamente no chão, arremessou-se pela porta fora, levado por um presentimento funesto, que o guiou atraz do fugitivo.

Este soltava a corda do ubá, quando sentiu que lhe agarravam no braço por detraz, e ouviu um rugido, como de fera que empolga a presa. Tendo n'uma das mãos o punhal, ainda ensanguentado, com que ferira Gertrudes, atirou ao acaso um golpe com tamanha violência que Romualdo caiu, escorregando entre a canoa e a terra, e desappareceu no fundo do ribeiro.