A conquista de Lisboa: Edição para o ELTeC Almeida, Carlos Pinto de (1831-1899) Criação do HTML original Isabel Araújo Branco Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 79883 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org Carlos Pinto de Almeida A conquista de Lisboa: romance original A conquista de Lisboa: romance original Carlos Pinto de Almeida Typ. do Panorama Lisboa 1866

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A CONQUISTA DE LISBOA

ROMANCE HISTORICO

POR CARLOS PINTO d'ALMEIDA

LISBOA

TYP. DO PANORAMA. -- Rua do Arco do Bandeira, 112.

1866.

Ill.mo ex.mo sr. Conselheiro Antonio de Serpa Pimentel.

Offereço a V. Ex.ª um simples fructo do meu trabalho, não pela convicção do seu merecimento litterario, mas sim por ser o unico meio de lhe demonstrar, que uma offerta insignificante, representa todavia o sentimento de gratidão, que me anima, para com V. Ex.a

Trabalhe e tenha fé, me disse um dia V. Exª; acceitando como um dogma estas palavras, tenho encontrado n'ellas um principio tão santo e justo, que se me não tem dado interesses materiaes, tem-me feito crear amor ao trabalho.

Escudado na bondade de V. Ex.ª espero que será indulgente para com as faltas e irregularidades de estylo, que poderão encontrar-se na obra, que o dever me levou a offerecer-lhe.

Creia-me V. Ex.ª

Seu M.to V.or e obrigado

Carlos Pinto d'Almeida.

Lisboa 2 de dezembro de 1865.

PROLOGO

No meado do século sexto os godos, os vandalos e os suevos invadindo o fertil solo da peninsula Ibérica, sacudiram o domínio romano, a fim de se estabelecerem como senhores absolutos de um paiz, que lhes pertencia, nâo por que o direito das gentes lh'o garantisse mas sim pelo da conquista, e da potencia do mais forte. Os bárbaros estabeleceram-se pois no território de hespanha e Portugal e deitando sortes sobre as províncias, aos vandalos Silingos coube a Betica, aos outros vandalos e aos Suevos a Galliza e aos alanos a Luzitania e a Carthaginense.

As lutas succederam-se rapidamente entre os conquistadores, e como entre aquelles povos bárbaros o único direito era o da espada, os godos como nação mais poderosa em breve subjugaram os dois povos rivaes, estabelecendo o seu domínio em toda a peninsula até a província Tingíntana.

Nâo era para uma epocha de selvageria, os grandes senhores dedicarem-se ou animarem o commércio e a agricultura; immersos nos prazeres materiaes, o vinho e as carneficinas dos campos de batalha eram o seu uníco elemento; e d'esta sorte a historia do império godo, até ao seu fatal limite, junto ás margens do Guadalete, é um tecido de revoluções e huma serie de crueldades que horrorisam, quando se contemplam as paginas dessa historia de sangue e oppressão.

A queda do império godo teve logar a 13 de Abril de 714, depois da mais bem ferida batalha que a Hispanha tem visto, alem das do Salado e Navas de Tolosa. A traição do bispo D. Opas e a vingança de um fidalgo traidor (o conde Julião) poseram termo a um império que contava de existência mais de duzentos annos.

A cruz foi arrastada, e nas ameias dos mais poderosos castellos tremulou a bandeira do crescente, o Al-Koran substituio o evangelho e as mais formosas donzellas da nobre hespanha, foram povoar os haréns dos seus dissolutos conquistadores! A luta que se empenhou foi longa e terrivel e só no fim de oito seculos, é que a gloria foi completa, quando as tropas de Isabel Catholica cantaram victoria junto aos muros de Granada.

Pelaio pondo-se á frente de um punhado de heroes lançou os cimentos de uma nova monarchia, e os cavalleiros asturianos acclamando-o rei no valle de Cangas ahi deixaram á posteridade um padrão de gloria, que nem os annos nem os séculos teem podido anniquilar.

Palmo a palmo foi o terreno da bella Hespanha conquistado aos invasores, e sobre hecatombes de victimas se erguia altivo o estandarte da Cruz, para ensinar aos vindouros quanto pode o amor da religião, da pátria e da liberdade.

Nos começos do século 11.° já a monarchia de Leão era forte e poderosa, e mais poderosa seria a não serem as luctas intestinas em que os barões, e demais senhores christãos se empenhavam com uma pertinacia pouco vulgar.

Os nobres asturianos, e alaveses, unidos com Castella, Leão e Galiiza formavam um poderoso estado que o grande Affonso 6.° elevou á cathegoria de império. Affonso 6.º teve grandes virtudes como Rei e como homem; e foi ella quem mais directamente contribuio para a fundação de monarchia portugueza, quede um simples condado feudal surgio mais tarde uma grande potencia, que levou seu nome e armas ás mais remotas regiões da Ásia, Africa e America.

Affonso 6.º de Leão para compensar os grandes e importantes serviços do conde Bolonhez, um dos nobres fidalgos que da França o vieram ajudar contra o poder dos sarracenos, lançou por assim dizer os cimentos da monarchia portugueza. Cimentos que a gloriosa espada de Affonso rebusteceu nos campos de S. Mamede e Val-de-Vez. Nesta abatendo o poder de Leão, naquella vencendo o orgulho do conde gallego D, Fernando de Trava.

E qual seria a sorte de Portugal se as armas de D. Thereza triumphassem do joven infante em S. Mamede? Talvez muito diferente da que foi e da que se póde imaginar.

O conde D. Henrique fundador da monarchia, foi um dos principes que mais direito teve ao amor dos seus vassalos; ninguém tanto como elle trabalhou pela sua gloria, e bem estar. De conquista em conquista caminhou sempre o valente fidalgo. E quando no leito da morte trocou a cota e a cervilheira pela pacifica mortalha do finado, quando o lugubre soar dos sinos succedeu ao rouco tanger dos tambores e ao clangor dos instrumentos de guerra, a vida dos combates substituida pelo repouso dos tumulos, limitava-se apenas ao sarcophago, que encerrava as reliquias de um grande guerreiro, que para dar a liberdade a esta terra ganhou desenove batalhas aos agarenos.

Depois da morte do glorioso conde D. Henrique, a rainha D. Thereza, esquecendo o que devia a si, às cinzas do nobre finado e ao seu nascimento, deixou-se dominar pelo amor do conde de Trava, em prejuízo de seu filho e do povo que lhe fôora confiado. D. Thereza depois da morte de seu marido, já tinha combatido contra as hostes de sua irmã a Rainha D. Urraca. E duas mulheres escencialmente bellas, demonstraram infelizmente, que a par da belleza feminil que as distinguia, e das virtudes varonis que as podiam recommendar na posteridade, tinham grandes defeitos, que se lhes não offuscam a gloria neutralisam-lhes, os merecimento relativo.

Os barões, ricos homens e mais infanções viam raivosos a influencia do conde gallego, e como os portuguezes foram sempre ciosos dos seus direitos e immunidades, auxiliaram quanto poderam e estava ao seu alcance, a causa do joven principe D. Affonso, por ser a da liberdade individual, e da pátria em geral. Desfraldou-se o pendão da guerra civil, que foi gloriosamente limitada com a liberdade e independência do povo portuguez.

Muitos nobres e valentes guerreiros seguiram a parcialidade do infante, e entre todos, os que mais se nobilitaram pelos seus serviços e dedicação, foram os de Riba Douro, os de Riba Bestança e o immortal Gonçalo Mendes da Maia; denominado o lidador.

Nâo temos por fim traçar todas as peripecias e fases de uma luta, que expirou definitivamente com esse acto de abnegação do virtuoso Egas Moniz.

Deixemos esta epocha por ser alguns annos mais antiga, da que nos vamos occupar. Egas Moniz conservou-se tranquilamente no seu solar e quinta da Gresconhe e nós passamos ao solar da Cham, habitação da nobre família dos Pintos, de que a historia bastante se occupa.

CAPITULO I

A DECLARAÇÃO

A dez legoas da cidade do Porlo polo rio Douro acima, e a quatro léguas abaixo de Lamego, a naturesa caprichosa levantou sobre a margem d'aquelle rio um monte bastante elevado, e que ainda é boje reconhecido pelos povos convisinhos, pelo Monte-de Muro .

Entre os Soutos do Crasto e Arouca, na parte mais elevada, chamada o Peneval, do lado do norte, tem origem um regato, que denominam Bestança. Este rio, ou regato, correndo por espaço de duas legoas de sul ao norte, entro os Concelhos de Ferreiros, Tendães e Sinfães, vae confundir-se com as aguas do Douro, que altivas e imponentes se vão perder no Oceano.

Na margem direita d'este regato, e a uma legoa abaixo da sua origem, ainda se vê a torre ou castello da Cham, antigo solar da familia dos Sousas Pintos, uma das mais nobres e antigas de Portugal.

A torre que ainda se diííerença, c que altiva tem resistido á natural acção dos séculos, é uma fortalesa quadrangular, apresentando todas as condições deffensaveis, exigidas no tempo da sua origem.

A maxima parte das fortalesas dos godos, nâo se assimilhavam às que actualmente possuímos, por serem de construcção muito mais moderna. A ignorância d'aquellas epochas era geral, e bem poucos godos se encontrariam que tivessem conhecimento de Euclides. E se algum comprehendia alguma cousa de um ramo de sciencia tão importante, é por que não era nobre, ou tinha sido educado por algum judeu ou sarraceno; pois como é sabido estes dois povos estavam muito mais adiantados do que os europeus.

Os nobres senhores da idade media, quando bem sabiam montar a cavallo, manejar a espada e estropiar grande numero de peões, tinham magistralmente compeletado o seu curso de educação! Lêr e escrever era para elles uma cousa inutil; e quando não assignavam de cruz, era por meio das iniciaes que traziam gravadas n'um anel, ou no cabo de um punhal, instrumento que sempre acompanhava os nobres filhos-d'algos d'aquellas epochas de illustração e humildade christã.

As fortalesas da idade media, eram por assim dizer um composto de fortes vigas e barrotes. Nos ângulos tinham algumas torres de má construcção, que pouco as defendiam. Um largo fosso em roda, muitas vezes cheio de agua em putreíacção, completavam o systema de defesa inaugurado pelos godos, que mais valentes e selvagens do que civilisados, suppriam a falta dos recursos de arte, por uma valentia bruta, e um fanatismo religioso que os tornava mais cruéis de que as próprias feras.

Junto á torre ou castello da Cham, de que já nos occupámos, achava-se um nobre e orgulhoso palácio acastellado, cujas torres e eirados se avistavam a grande distancia.

O aspecto d'este edifício era magestoso. Suas estreitas janellas, largo fosso, ponte levadiça e setteiras revellavam, que não obstante ser uma habitação de familia, estava nas circumstancias de deffesa, que n'aquella epocha se exigiam.

No alto das torres e eirados viam-se as machinas de guerra, promptas a expedir uma saraivada de pedras e virotes contra as mesnadas agarenas, que por ventura se aproximassem.

Não se julgue todavia que n'um tâo poderoso solar, se alvergava a tyrannia.

As familias portuguezas descendentes dos amigos godos, conservando todas as suas virtudes guerreiras, tinham comtudo modificado certos instinctos selvagens, e as tendencias oppressoras, que tanto destinguiam os antigos senhores das inhospitas regiões septentrionaes da Europa.

Se uma ou outra esquecia os sagrados deveres que as ligavam aos vassallos, que viviam sob seu dominio immediato, seu exemplo, não era felizmente seguido, pelos differentes senhores, a quem o feudalismo dava um poder illimitado.

Se o systema feudal existio cm Portugal, está longe de se parecer ou aproximar, a esse dispotismo feroz e truculento, que por tantos séculos insanguentou, algumas das potencias, que tanto hoje se ufanam e nos desconsideram.

O povo portuguez foi sempre um povo muito mais livre, do que o francez, allemão e inglez, não só pelo seu caracter altivo, como porque as suas leis sendo mais sociaes davam-lhe mais garantias e liberdade. Quem duvidará que Portugal foi sempre livre?

Estamos no dia 10 de janeiro de 1144. Dez horas da noite acabam de soar na torre alvarran do nobre solar da Cham. N'uma vasta sala lageada, apenas guarnecida por alguns escabellos e cadeiras de espalda, cobertas de couro e tauxeadas de amarello, passeia um mancebo de estatura mais que mediana. Seus cabellos louros e annellados caem-lhe graciosamente sobre os hombros. Os olhos são de um azul celeste tão expressivo, que lhe dão bellesa e uma certa expressão de ternura, que muito bem lhe assenta. A sua fronte é larga e magestosa, pelo que pode inspirar confiança aos caracteres mais desconfiados.

É finalmente o typo genuíno d'esses guerreiros, que no seculo quinto invadiram a Europa, espalhando-se e confundindo-se com os povos das nações, que obdeciam à antiga Senhora do mundo.

O mancebo contou as dez badaladas. Seu gesto se não era irresoluto, também não era audaz. E por quem esperava elle? É o que vamos saber.

Passados alguns momentos de reflexão, proseguio no mesmo passeio de um para outro lado; e o som metalico dos seus sapatos ferrados resoava na sala quasi deserta de moveis.

Abrio-se uma porta e a voz de um homem pareceu despertal-o da meditação a que se tinha entregado.

— Dais licença senhor? Disse elle.

O mancebo voltou-se e parou dizendo: — Podes entrar Thiago.

Thiago era um velho alto, magro, mas apresentando ainda certa rebostez e desembaraço, não obstante a sua

adiantada idade. Trazia uma espécie de zurame vestido, e um gorro de pelle na cabeça.

«Estou só lhe diz o mancebo, e quem viria habitar commigo n'um palácio velho e sem a menor distracção? Sabes que te digo! Sinto pouco animo para me apresentar na corte! não sei, parece-me que irei lutar com grandes embaraços! Que dizes?...

« — Nada que lhe possa agradar! Senhor Vasco de Souza! Custa-me a crer que vossa honra, sendo filho do senhor Bento de Souza, que tanta vez vi forte e altivo entre os maiores perigos, esteja para ahi a cacarejar como se fôra uma galinha choca! Animo senhor! Não seja como os donzeis, que tremem e vacillam na frente das damas dos seus pensamentos! Olhe que se ainda não vio os campos da batalha, soccegue, que não lhe hão de faltar occasioes».

Vasco de Souza pareceu não gostar das palavras de Thiago, mas não se mostrou zangado nem offendido. Sorrio da franqueza do velho e respondeu-lhe com o maior socego:

— «Ora essa! Julgas-me um covarde?!

— «Nunca senhor, respondeu o velho creaido. A familia dos Souzas de Riba Bestança nâo cede em nada ás mais illutres de Portugal! Nunca foi covarde nem traidora!

— «Tenho-vos visto e admirado nas selvas, no divertimento da caça, que é por assim dizer o que dá melhor idéa de um campo de batalha, tenho-vos admirado, e dito comigo mesmo, é digno fiího d'aquelle valente guerreiro que traiçoeiramente morreu às mãos dos agarenos!

O velho ao pronunciar estas palavras, callou-se-lhe no peito uma dor intença e terrível! Os olhos scintillaram e seu gesto mudou inteiramente! Estava alegre e prasenteiro, mas ficou com a fronte tâo annuviada, que não parecia o mesmo homem!

«— Thiago, lhe disse Vasco de Souza, falla-me de meu pae! Conta-me essa catastrophe, que o levou ao abysmo! Quero saber tudo, com quanto me seja muito doloroso!

Thiago ergueu os olhos! Sua fronte já estava desembaraçada! As lagrimas caiam-lhe pelas faces cavadas pela idade e sofrimentos. Encarou o mancebo com tanta vivacidade e ousadia, que o fez baixar os olhos.

— Foi justamente para isso que lhe pedi esta conferencia! Sois donzel! O sangue dos combates ainda não indureceu esse joven coração. A vossa espada está virgem! O tropel dos ginetes, o embate das armas e o clangor dos clarins ainda lhe não feriram os ouvidos!

No entretanto é preciso que saiba tudo! Tudo que respeita ás mortes de vosso pae e de vossa Santa mãe! Mas dê-me tempo para conciliar algumas idéas!

Vasco de Souza, com o coração opprimido revellava uma anciedade indescriptivel; Assentou-se n'um dos escabellos que guarneciam a sala, fazendo signal a Thiago para fazer outro tanto.

A vastidão do aposento, a hora da noite, que se achava bastante adiantada, o clarão baço e incerto que uma alampada espalhava; as immensas figuras dos guerreiros que o guarneciam e o silencio sepulchral que succedera ás ultimas palavras de Thiago, tudo contribuia, para que a scena assumisse um caracter singular e uma solemnidade, que se não revellava uma grandeza suprema, dava-lhe uma importancia sinistra e de completo interesse para o mancebo.

Thiago principiou:

— «Vossa mãe D. Leonor Pereira éra a mais formosa donzella que se conhecia em todos os feudos e sollares que se veêm entre Douro e Minho, e desde o Limia até ao Vouga. Filha ligitima do muito poderoso íilho-d'algo D. Pedro Pereira; se não dispunha de grandes cabedaes, era porque seu pae não era rico, tinha os dotes da belleza, bondade e uma virtude de que ninguém ouzava duvidar.»

«Educada no convento de Lorvão, por sua tia, a sr.ª abadeça D. Eulália do Carmo, era a senhora de mais saber e merecimento que para ahi se conhecia. Escrevia melhor que um santo abbade. Alem das muitas prendas que a distinguiam. Era fallada e admirada por toda a parte!

«Contava desoito annos, quando a muito alta e nobre infanta de Portugal, indo visitar o convento, aonde se achava vossa mãe, a vio pela primeira vez, e tanto lhe agradou seu porte esbelto e singello, que a levou em sua companhia para Guimarães, onde foi sempre a sua residência.

«Como è sabido a infanta, tresvariada com os amores do conde de Trava, dava longa margem aos ditos e comentários dos senhores ricos homens o barões portuguezes, por causa do seu comportamento e desgraçada inclinação.

«Vosso avô, que tinha seguido mais de uma vez, nos campos de batalha, o nobre conde D. Henrique, era dos primeiros a lamentar o desenfreamento da infanta. Mas que fazer? Não era ella senhora? Na qualidade de seu prestameiro e leal portuguez, reprovava, mas não ousava contradizer!

«Ora vosso pae, era n'esta epocha um dos cavalleiros mais queridos na corte. Sua figura era airosa. As maneiras agradáveis, e os actos cavalleirosos. A sua bravura nos combates, e rosto de uma belleza varonil, completavam os títulos que o tornavam a alma dos saraus, e o ídolo das donzellas, que á porfia ambicionavam o seu amor.

«Quando vossa mãe teve que seguir a bella infanta, titulo, que todos lhe davam, e que seu marido nunca lhe recusou, já se fallava em guerras e desordens. O nosso rei, então príncipe, ainda menor, tinha pedido contas ao conde Fernão Peres, da sua tutella. O repto esteve para ser lançado, mas ficou para d'ali a três annos, quando protegido pelo Arcebispo de Braga e mais ricos homem e infanções, levantou o pendão da revolta.

«Nesta occasião ainda nos achávamos em Guimarães. Vosso pae, seguiu o partido do infante e foi o primeiro a dizer, na curia que ainda podia levantar alguns homens de armas e besteiros a quem sustentaria da sua caldeira!!

«Um dia havia grande reunião no alcaçar da rainha. Vosso pae foi convidado como senhor de grande solar. O conselho foi longo e agitado e mais de uma vez as armas estiveram para fulgir, e imbeberem-se nos peitos adversários! Ora n'esta epocha já o snr. Bento de Souza tinha visto e amado vossa mãe, e com quanto não tivesse a certeza de ser correspondido, era de suppor, ou quasi certo que não seria insensível a um coração, que por tantas donzellas era requestado.

«Serião 4 horas da tarde quando vosso pae voltou do alcaçar. Seus olhos scintillavam de raiva! Todo elle era desespero.— Thiago que apromptem o meu cavallo de batalha. Corre! Dirige-te ao solar e levanta as tropas que poderes.

«Lança pregão de que sustentarei da minha caldeira todos os homens de armas besteiros, e fundibularios que se queiram accostar em torno do balsão de Bento de Souza senhor de Riba Bestança! Vae! Faz ver a esses fieis portuguezes, que o conde gallego não quer reconhecer os direitos do infante! Diz-lhe que os ricos homens e filhos-d'algos portuguezes só guardam preito aquem lhes guarda seus foros e immunidades!

Vosso pae proseguio.

«Ai desses maus cavalleiros que recusam ajudar o infante na Santa causa da liberdade! Nunca será o altivo Leonez, ou esse villão gallego, que de mim receberá preito e menagem! Covardes negarem na Cúria o direito que o infante tem às terras de Portugal! Não se lembram que seu valente pae com a lança em punho rompendo mil vezes as hostes agarenas, vingou, como heroe a matança que os sarracenos fizeram em Lisboa nos cavalleiros do conde Raymundo de Galliza!

«O príncipe hade ser o senhor e rei d'estes povos. E quando o nâo seja morreremos todos como portuguezes sepultados nas carcovas e barbacans dos nossos castellos.

«Estava pasmado do que via e ouvia. Vosso pae tirou de uma pequena carteira de couro, um pergaminho ligado com um fio de seda; Thiago me disse elle: Vae ao alcaçar: procura por D. João de Souza, meu nobre tio e entrega-lhe esta carta. Espera pela resposta, e toma bem conta no que vires tanto no burgo como n'esse soberbo castello, que deixou de ser asylo dos brios portuguezes.

«Cumpri immediatamente as suas ordens. Disse aos cavalleiriços e pagens que se apromptassem ligeiramente para uma arrancada, se tal nome se lhe podia dar, e segui para o alcaçar da infanta, aonde tudo era bulicio e confusão.

«Quando atravessei o burgo notei grande animação e um movimento tumultuoso entre os villôes, que corriam armados de escumas e fundas pelas ruas e viellas. Também vi que um grande troço de soldados almogavares corriam a todo o galope.

«No alcaçar havia grande algazarra! Os ricos homens e infançôes, conforme as suas opiniões e interesses, fallavam e gritavam de maneira que me admirou.

«O palácio não parecia o mesmo! Estava no mais completo estado de defeza! Parecia que as mesnadas agarenas já batiam aos muros do soberbo alcaçar!

«Roldas e sobre roldas percorriam as muralhas e as ruas do burgo. No cimo da grande tranqueira viam-se os besteiros de gesto carregado e ameaçador, promplos a mandar sobre a povoação um choveiro de settas. — As machinas de guerra a postos não eram menos terríveis e ameaçadoras, e ao primeiro signal derrubariam quanto se lhes oppozesse, debaixo de uma nuvem de pedras! Na torre alvarran estavam as guardas reforçadas e em toda a parte se via uma soldadesca desenfreada, sem crenças nem fé!

«Admirado de quanto via entrei no alcaçar, e assim que passei a ponte levadiça encontrei vosso tio o sr. Abbade D. João! Ficou admirado e perguntou-me receioso: — Thiago aonde ficou meu sobrinho? Responde e sê breve, por que estou com cuidado n'elle! Nestes tempos tão desgraçados... Não disse mais nada.

«O senhor ficou em casa esperando pela resposta d'esta carta. E olhae que elle vae partir.

«O sr. Abbade D. João disse-me depois, de se affirmar que eslava inteiramente só commigo:

«Thiago, tu não és um servo vulgar. Fostes educado por mim que te destinava para a vida monástica; mas tu atirando com a cogula e a roupeta à cara do padre mestre, esquecestes o pouco latim que te ensinaram, para ires accostar-te como homem de armas na bandeira de meu irmão! Nunca te absolveria de tamanha audácia, se me não tiveras demonstrado teres vocação absoluta para as armas e seres um bom soldado da cruz!

Thiago, quando pronunciou estas palavras, exclamou: Oh! sr. Vasco! O sr. Abbade D. João era um santo! Para elle não havia mouros nem christãos, nem ricos ou pobres. A todos tratava bem! Aquillo é que era um homem virtuoso.

«Vosso tio depois de ler a carta disse-me tão devagar, quo me custou a ouvir.

«Entrega esta carta a meu sobrinho e diz-lhe que se acautelle, porque o conde gallego é seu figadal inimigo, e que raras vezes perdoa áquelles que se oppoem às suas ambições! vae depressa e vê lá não a percas. Leva-a com a maior cautella.

«Beijei-lhe a mão o saltando para cima do cavallo corri a grande galope para casa e entreguei a carta a vosso pae, que me perguntou o que tinha visto pelas viellas e e beccos do burgo.— Respondi-lhe como sabia, e confesso que de nada me esqueci.

«Vosso pae depois de ler a carta, dísse-me:— Já não saio de Guimarães! Comtudo preciso de ti e como nunca. Olhou para mim de uma maneira tão ousada, que se n'aquella occasião se me dissesse: Eia por Deus e S. Thiago! Vamos romper um esquadrão de agarenos, eu teria avançado sem contar o numero nem olhar ao perigo!

«Tal era a confiança qm n'elle tinha!

«Senhor — estou prompto para o acompanhar ao cabo do mundo, lhe disse eu!

«És um valente soldado. Tenho d'isso sobejas provas! Fica sabendo que o infante aconselhado pelo sr. arcebisbo de Braga, e mais alguns fieis barões e mais filhos-d'algo resolveu esperar. Mas fica e ficará de pé a idéa.

D. Affonso hade ser rei de Portugal.

Em sendo meia noite tem prompto e acobertado o meu cavallo de batalha. Veste as armas como se fossemos de companhia entrar de mão armada pelas terras mouriscas.

«O sino da torre alvarran do castello dava meia noite. Armado de espada e lança, segurava pelas rédeas, os cavallos em que vosso pae e eu deviamos montar. A noite estava escura e tempestuosa. Ao longe sentiam-se os brados de alerta das sentinellas que vigiavam nas quadrellas do alcaçar.

«Os gritos agudos e sinistros das aves agoureiras causavam terror. E não sei por que tive medo! Tremi insensivelmente quando avistei vosso pae, que de montante ao lado e braços cruzados caminhava lentamente. Não disse nada. Calou a viseira e saltou de um pulo sobre o seu famoso lazão, que por tantas vezes o conduzio á victoria nos campos de batalha!

A noite estava medonha! Os passos dos ginetes resoavam pelas ruas do burgo, produzindo um som lúgubre que augmentava o terror de que me achava possuído! Não encontramos roldas nem peões! As ruas estavam desertas. Atravez da oscuridâo só apenas differençavamos os olhos dos gatos que brilhiavam como pequenos fachos. Avistamos o castello, que se levantava como um gigante! As torres erguiam-se alto como os braços de um monstro, que pretende elevar-se ás nuvens!

«Ao voltar de uma esquina paramos o vosso pae disse-me: — Espera e não faças caso do que vires nem do que ouvires. Não te arredes d'aqui!

«As horas foram decorrendo sem que vosso pae apparecesse! Já era alta noite. Eram quatro horas da madrugada. Os gallos principiavam o segundo canto matutino, quando ouvi um grande tropel de cavallos!

«Puchei a lança e colloquei o escudo em estado de defeza. Preparei-me para tudo.

«Quatro cavalleiros passaram por diante de mim como fantasmas! — Não vi mais nada. Nem sei a razão porque um frio suor me banhou a fronte! Todo eu tremia convulso! Mas posso afiançar-lhe que não era de medo. Apoderou-se de mim um estremecimento geral! E quem estivesse próximo, só apenas ouviria o tinir dos meus sapatos ferrados de encontro aos estribos!

«Puchei as rédeas e esporeei o cavallo. Senti finalmente um rumor como o de muitos cavalleiros que se batem em grande lucta! Receiando por meu amo e não por mim, o frio e o terror desappareceram! O que devia eu fazer não obstante as suas ordens? Não sei! O que não pude foi suster-me!

«Esperar já era muito e resolvi tomar conhecimento do que se passava. Enristei a lança e metti a galope para o lado dos combatentes, que não era muito longe.

«Mas que vi senhor! Vi que quatro maus cavalleiros atacavam de espada em punho, um outro que se defendia como um leão. As lanças já tinham saltado em pedaços, e os escudos achavam-se espalhados pelo chão. O cavalleiro que tão bruscamente era atacado bradou:

«Quem quer que sois ajudai-me contra uns miseráveis covardes, que pretendem assasinar-me!

«Já não havia tempo a perder. Tinha reconhecido a voz de vosso pae. Tudo esqueci, e ao primeiro bote de lança batti cm terra com o meu adversário! Mas a lança quebrou-se em mil bocados!

«Vosso pae já bem mal ferido reconheceu-me e apenas me disse:

«Animo, meu bom Thiago! Destes um golpe de mestre.

«Não ouvi mais nada ! Metíi mão á espada e acutilei à direita e esquerda. Consegui reunir-me a elle e carregamos o resto dos covardes assasinos, que fugiram em debandada!

«Mas que! D. Bento de Souza já não podia dar mais! Agarrou-se ao arção da sella para não cair. O sangue saia lhe em torrentes pelas fendas da armadura. Julguei-o morto! Levei-o para casa, e quando lhe despi as armas foi quando vi que desenove feridas de bastante gravidade sangravam horrivelmente.

«Appliquei-lhe os medicamentos que julguei necessários e mandei um pagem a casa do judeu Jesue, um dos médicos mais afamados do seu tempo.

«A doença foi Jonga e bastante perigosa, mas graças a Deus, â efficacia dos remédios e á sua natureza de ferro, entrou em convalescença e pouco tempo depois estava bom.

«Vosso pae nunca me deu uma palavra, sobre o acontecimento de que o ajudei a salvar, e eu não sabia a causa de tão estranho caso.

«Tanto no burgo como no palácio, por espaço de alguns dias, não se fallou se não no facto que se dera com vosso pae, mas todos ignoravam ou fingiam ignorar quem eram os aggressores.

«O sr. Abbade D. João vinha frequentes vezes e quando sahia vossa pae sempre ficava satisfeito.

«Para mim tudo era mysterio, mas como nada me dizia eu também nada perguntava, pois um servo fiel sabe o que lhe dizem e faz o que lhe mandam.

«Vosso pae já se achava em convalescença e as melhoras progrediam vesivelmente, o que bastante me agradou.

«Estava um dia limpando as grevas e os coxotes da minha armadura, quando me chamou! Larguei o que estava fazendo e fui receber as suas ordens. Vi ademirado que ma mandava assentar! pedi-lhe envergonhado para ficar de pé, mas como ordenou segunda vez tive que lhe obdecer. Era muito para um servo!

«Tu não és um servo! És um amigo, como não tenho outro, depois do meu tio o sr. Abbade D. João.

«Ia para lhe abraçar os joelhos, mas levantando-me foi o primeiro a estreitar-me nos braços! A mim! Elle que era um tão grande cavalleiro!

«Cheio de reconhecimento disse-lhe com as lagrimas nos olhos: Mandai Senhor! Cre-de que Thiago será sempre vosso servo e de todas as pessoas que vos forem caras.

«Vosso pae ao ouvir as minhas ultimas palavras, filhas da consideração e do respeito que lhe tributava, exclamou com a maior alegria.

«Por Deos e peia minha boa espada de toledo! Seguido de um homem como tu, não receiava ir a Marrocos prender o próprio Kalifa. Thiago, é preciso que saibas tudo, pois ter segredos para ti, seria um peccado que o Senhor Deus me não perdoaria!

«Vosso pae proseguio, — Conheces muito bem D. Leonor Pereira a mais formosa donzella, que piza o alcaçar da infanta? É um anjo de formosura e bondade. Vêl-a e amal-a foi uma e a mesma cousa. Vacillei por muito tempo, sobre a maneira de lhe fazer comprehender as minhas intenções, visto que os meus requestos sendo de todos conhecidos, não lhe podiam ser estranhos. Mas receiando ser mal soccedido, não me animava a fazer-lhe uma declaração!

«Ora D. Paio de Sarmento, um dos ricos homens mais poderosos do Limia, também tem pretençôes sobre a donzella; e comquanto D. Leonor lhe não preste altenção, e até o deteste, os seus requebros são apoiados pela infanta, visto ser D. Paio o mais fiel alliado do conde gallego Fernão Peres, que para vergonha d'esta terra partilha do thalamo da viuva do grande conde D. Henrique.

« — Não me animava comtudo a fazer uma exposição do meu amor, quando alguns acontecimentos me levaram a procurar a occasiâo, de lhe fazer as minhas declarações!

« — Eu tinha que expiar um grande peccado, para com o conde gallego. Na primeira reunião que o infante fez, para os seus amigos lhe advogarem a causa na cúria dos barões, lá estive e fui o primeiro depois do valente meu Moniz, do intrépido Gonçalo Mendes da Maia e do prudente Egas Moniz, senhor do solar da Gresconhe.

«Ahi gritei contra o dispotismo do conde gallego e demonstrei á face de todos os direitos do infante! Mas como nunca faltam traidores nas causas mais santas, o conde Fernão Peres foi de tudo informado.

«Um pequeno pagem irmão de Leonor, disse-me um dia:

«Cavalleiro, não sabes que te querem roubar a dama dos teus pensamentos?

«Confesso que fiquei tão atordoado com estas palavras, como se um raio me tivera cahido aos pés!

«Agarrei-o pelo braço e levei-o quasi de rojo para junto de uma gelosia, e disse-lhe com a maior anciedade; Lindo pagem! Diz a verdade! Pertendem por ventura roubar D. Leonor ao meu coração? Falla! Diz-me tudo. Quero prevenir o mal e a maneira de o fazer é sabendo a verdade.

«Disse-me que D. Paio pedira a mão de sua irmã á infanta, que se mostrou desposta a protegel-o.

«Agradeci-lhe a confidencia, e quando seguia desvairado para casa de meu tio, dei de frente com D. Paio, que de braços cruzados e rosto carregado me olhava fixamente.

«A minha primeira edéa foi arrancar do punhal, que trazia na cinta e cravar-lho no coração, mas olhando-o de alto a baixo, com gesto de insultante desprezo, passei adiante.

Entrei em casa de meu tio arquejando de cançasso. Ia para fallar, mas elle que estava lendo no seu breviário, fez um gesto tão significativo, que bem dava a conhecer, que não queria ser interrompido. Os momentos foram dolorosos, mais pela incertesa do que pela realidade. Desejava consultal-o sobre o meu amor, mas não podia fazel-o em quanto rezasse.

«— Concluio finalmente a reza, mas como padecia de gota deu alguns gemidos, com os quaes me senti mais opprimido do que estava.

«— Fez-me signal para fallar e contei-lhe tudo quanto o pagem me dissera, e sentia meu coração namorado. Conclui finalmente por lhe dizer, que mais depressa iria para a Palestina batalhar com os infiéis, a fim de alcançar a morte, do que ser testemunha da felicidade de D. Paio, que por todos os motivos detestava.

«Meu tio ouvio-me sem pastenejar! Não contrahio as feições, nem fez o menor movimento! Ficou impassível — Passados alguns momentos disse-me.

Poço-te afiançar que pouco ou nada poderei fazer, em vista da resolução da infanta. No entretanto, como D. Leonor deposita em mim inteira confiança, e detesta esse cavalleiro traidor, sem fé nem religião, espero que acceitará a tua mão, caso me auctorises, offrerecer-lh'a.

«Ella já é órfã e entre os filhos d'algos e cavalleiros portuguezes, não é uso a escravidão.

«Cheio de alegria auctorisei-o a deliberar como entendesse, com tanto que a consequência fosse a minha ventura.

«Dois dias depois reunio a Cúria dos barões, aonde tenho assento como os meus antepassados, por sempre sustentarmos gente da nossa caldeira. A reunião foi longa e tempestuosa! O villão de D. Paio mostrou-se o mais incarniçado inimigo do infante, e a não ser Egas Moniz a minha manapla teria assentado nas faces d'aquelle covarde desleal, e indigno de calçar esporas de cavalleiro.

«Ora D. Paio estava de tudo informado, especialmente das intenções de meu tio; e pelas suas espias soube da conferencia que teve com D. Leonor, desconfio de D. Elvira sua prima.

«E tanto sabia que se prevenio com a cilada que me armou, quando voltava da primeira entrevista com D. Leonor, que só em presença de meu tio e de mais duas donas ma concedeu!

«Por Deus e pela virgem! Dou por bem os ferimentos recebidos, pela ventura que gosei. D. Leonor é um anjo de formusura e bondade.

E com effeito sr. Vasco, vossa mâe era a mais bella dama que tenho visto. Não ha soffrimentos e sacrifícios que mais se justifiquem!

«Vosso pae continuou.

«Para namorados os dias parecem horas o as horas minutos. Já seriam três horas da noite quando D. Leonor ordenou a retirada, o que fiz com bastante sacrificio. Sahi pelos aposentos de meu tio, que deitavam para o jardim, e cheio de ventura ia ter contigo, quando fui atacado. Tenciono agora roubar D. Leonor á tyrannia de uma princeza, que a pretende immolar aos interesses do amante.

«Vosso pae estava restabelecido, e os acontecimentos políticos foram esquecidos.

«No alcaçar proseguiam as intrigas e cabadas por tal forma, que se o defunto conde resucitasse, teria que descalçar a manopla, para fustigar sua esposa e lançar mâo de um açoite, para castigar o infame conde de Trava, que de dia para dia se tornava mais insolente; se o carrasco e uma boa corda de canave, suspensa das ameias da torre alvarran, não fossem o premio das suas villanias.

«No dia 27 de abril de 1125, serião quatro horas da tarde, quando voltamos de casa de D. Gonçalo Mendes da Maia, de quem vosso pae era intimo amigo. — Thiago parto para o meu solar da Cham. Os escudeiros Bento Fernandes e Rodrigo Alves, que vão adiante com os pagens e bagagens. Que se ponham hoje mesmo na rota de Synfães e Crasto! Os escudeiros de mais confiança que fiquem.

«Cumpri as suas ordens e duas horas depois abalavam as bagagens escoltadas pelos pagens e escudeiros determinados!

«Três dias decorreram. Seriam dez horas da manhã, quando vosso pae mandou apromptar os cavallos; e armados dos bicos dos pés até á cabeça, seguimos a grande galope na rota do Castello da Cham.

«Era um aspecto digno de attenção!

«Vosso pae caminhava na frente, firme na sella como a crista de um rochedo, que se eleva acima de quantos o rodeiam.

«O sol reflectia sobre as armas, que do mais polido aço faziam torvar a vista.

«As longas plumas negras que lhe caiam do elmo fluctuando ao capricho do vento, pareciam a plumagem dessas altivas águias, que nos mais elevados píncaros, de olhar vivo e ousado, encaram o sol á hora do meio dia!

«Seu cavallo mursello sustentava um galope tão rápido e seguido, que quem nos avistasse â meia noite tomar-nos-hia por fantasmas!

Eu seguia-o de perto, emquanto que os demais escudeiros fechavam a saga d'esta pequena cavalgada!

«Seriam cinco horas da tarde quando avistamos o castello da Cham, suas altas torres e miradouros, que se vêem a grande distancia. Dos cavallos escorria o suor em bica, e todos nós não estávamos mais enxutos.

«Voso pae tocou uma pequena trombeta, e um escudeiro baixou a ponte levadiça.

«Foi n'esta mesma sala que entramos, e vi admirado o sr. Abbade D. João, que nos veio receber.

«Os dias decorreram socegados. A caça era o nosso constante devertimento, até que um dia pedio para entrar um pregrino, dizendo que pretendia fallar ao sr. D. Bento de Souza. A porta foi lhe franqueada, e depois de uma pequena entrevista, vosso pae fechou-se n'uma sala com o sr. D. João. Tiveram uma conferencia de mais de duas horas; o que disseram não sei, mas julgo poder afiançar o que resolveram. Vosso pae disse-me á noite:

«Quero o meu cavallo de batalha e a armadura completa. Arma-te e mais os quatro escudeiros, que nos seguiram de Guimarães e em sendo nove horas da noite que todos estejam promptos e Deus será em nossa guarda.

Nunca tive por costume fazer perguntas, mas sempre observei, se se tratava de uma arrancada contra gentes agarenas. Mas um gesto negativo destruio a pergunta. Ás nove horas em ponto caminhávamos atravez do silencio da noite.

«O luar reflectia palidamente, e todos iamos mudos como íatasmas!

«Vosso pae chegou o cavallo e disse-me: Hoje mais do que nunca preciso da tua coragem. D. Leonor será minha em vinte e quatro horas. Quero salval-a da tyrannia d'esse infame conde gallego, que a pertende casar violentamente com D. Paio de Sarmento!

«Animo e descripção.

Estas palavras foram pronunciadas n'um tom tao baixo, que mais lh'as percebi pelo gesto, do que pela expressão da voz!

«Atravessamos as extensas mattas que se prolongam pela estrada.

O zumbido dos pinheiros agitados pelo vento, que soprava do nordeste, assemelhava-se ao fragor das aguas, açoutadas pela tempestade!

«Avistá-mos um casal. Os cães latiam desesperados. Ouvimos fallar os pastores. E ainda me recordo o que disse um d'elles:

«Joaquim, os cães ladram, ve lá se são cavalleiros ou peões! Olha não seja também alguma alcatea de Lobos ou partida de infieis.

«Ao clarão de um postigo differençamos o brilho de algumas armas.

«Estavam prevenidos. E nós paramos todos, quando o silvo de uma frecha nos fez conhecer, que nos tomavam por salteadores ou agarenos!

«Vosso pae era um valente! Nunca o vi tremer, mas também não se arrebatava com cousas de pouca monta!

«É lá! Quem se atreve a hostihsar os que pacificamente vão ao seu caminho?!

«Arreda, foi a resposta, senão manda-mos mais alalgumas frechadas!

«Isto já era muito e vosso pae já impaciente exclamou — Por Christo e S. Thiago! Se a tanto vos atreveis, olhae que caro pagareis tanta audácia.

«São cavalleiros disseram os pastores. Pedimos perdão.

«Vosso pae não respondeu. Metteu a galope, e só paramos a um tiro de besta do burgo de Guimarães. Pé em terra disse elle. Todos nos apeamos. Segui-me todos á excepção de Pedro, que íica tomando conta nos cavallos. Não te arredes d'aqui. Quanto a voz se tendes olhos, não é para ver nem ouvidos para ouvir! Aquelle que der á língua, juro pelo sangue de Christo que as linguas lhes serão arrancadas.

«Acompanhou estas palavras, de um ademan tão carregado, que os pobres diabos julgaram sentir a fria lamina da sua espada sobre a garganta!

«Chegamos ao castello. Um pequeno assobio foi o signal. Abriu-se uma janella. Vosso pae collocou os homens de armas nas embocaduras das ruas. Batteu as palmas mansamente e uma mulher appareceu. Vi cair uma escada de corda. E ainda bem não estava em altura conveniente, já elle subia tão lestamente como o mais hábil marinheiro pelas insarcias de uma galera.

O velho creado fez uma pausa, dizendo para Vasco: — Deixai-me descançar, o que vos vou contar é notável e até mesmo surprendente; é um dos momentos mais sérios da minha vida.

«A janella distava do chão obra de sete ou oito covados. As cordas da escada teriam apenas um dedo de grossura se tanto. Receei por todos os motivos, e segui cuidadoso a ascenção de vosso pae. Acompanhei-lhe os movimentos com a maior aciedade, até junto da dama, que fez um movimento desembaraçado para se lhe lançar nos braços!

«Vosso pae ufanoso do precioso fardo que conduzia, principiou a descer lentamente. Não se ouvia uma palavra! E quem se achasse próximo, apenas sentiria a respiração agitada, dos três indivíduos que compunham este quadro.

«A cada bambalear da escada estremecia. Mas a minha aflição foi desesperada, quando vosso pae, que descera menos de metade lhe faltou o pé! Ficou suspenso por um braço, tendo o outro em torno da cintura de vossa mãe.

«Jesus bradei eu! Julguei-os mortos! Vi sobre elles dejar o anjo da morte! Esperei vel-os cair arrebentados sobre o lagedo!

«Santo Deus! Ainda estremeço quando recordo este acontecimento!

«Mas que! Vossa mae era uma heroina! Conheceu o perigo a que se achavam expostos, mas não tremeu!

«Animo, bradou ella, por vós e não por mim! Segurai-vos um momento que já vos desembaraço! E sem lhe dar tempo para reflectir, lançou mão â escada e escapase tão rapidamente, que dei insensivelmente um grito! Mas quando a julgava precepitada e morta, dizia tranquila para vosso pae:— Fazei uso dos dois braços e descei devagar.

Estavam salvos!

«Foi então que vi bem pela primeira vez sua figura airosa, formas delicadas, e um rosto tão formoso como nunca tinha visto!

«A um signal de vosso pae reuniram os homens de armas que estavam de vigia.

«Vossa mãe embuçou-se n'um manto branco, e dando o braço aquelle que tanto amava, caminhou com gesto senhoril.

«Firme como uma estatua se achava Pedro, com os cavallos pela rédea.

«Vosso pae tomou D. Leonor nos braços, montou-a acavallo, e nós fazendo outro tanto mettemos a grande galope na rota do caseello da Gham.

«Eram mais de três horas da noite. O galope fernetico dos cavallos, o estrépito das ferraduras n'um terreno pedrogoso, e o fluctuar do veu branco de vossa mãe, tudo contribuía para que quem nos visse julgar-nos uma visão fantástica; e mais de um vilão se benzeria pedindo o auxilio da Virgem.

«Os ginetes dos escudeiros, menos possantes de que os nossos, afroxavam visivelmente e já diíiicilmente nos acompanhavam. Mas nada faria abrandar a velocidade dos cavallos em que montavam os futuros esposos. Quanto ao meu ainda o julgava capaz de vencer o caminho, e dar mais quatro voltas em torno de uma estacada.

«Quando estávamos a mais de quatro léguas de Guimarães, disse a vosso pae que abrandasse o galope, para nâo termos que caminliar a pó. Osanimaes affrrouxavam e já tropessavam a cada momento. Mettemos a passo e ás sele horas da manha dávamos entrada n'este alcaçar!

«Vossa mâe assim que se apeou foi para a Ermida a fim de receber de vosso tio, o sr. Abbade D. João, a bençoa numpcial, que tanto desejava.

«Uma das testemunhas fui eu e a outra D. Camilia, prima de vosso pae.

«Assim íinalisou um pleito que lhe ia saindo cara, a não serem os seus numerosos amigos, que o defenderam das iras da infanta, por ter raptado uma donzelia da sua corte!

«D. Paio estava furioso e protestou vingar-se.

«Cumprio a promessa. Não como cavalleiro leal arremeçando o guante e correndo lanças n'uma estacada, appellando para a sorte das armas, mas sim como cavalleiro traidor á ordem da cavallaria.

«Os dias foram decorrendo alegres e prasenteiros! Este alcaçar que presenciou tantas lagrimas e suspiros, também foi testemunha dos dias de ventura!

Ao pronunciar estas palavras uma lagrima deslisou pelas faces resequidas do velho creado, sulcadas pela dor e soffrimentos. Ao limpar as lagrimas com a ponta do zurame, que trazia sobre as armas, apresentava um gesto interessante, pela maneira que contrastava com a fisionomia do mancebo, que comquanto ingénua, revellava todavia atravez d'uma candidez poética, uma alma forte, um caracter enérgico e uma resolução inabalável.

«Thiago proseguio, apontando para a figura inanimada, que vestia as armas, D. Bento de Souza, ainda manchadas de sangue.

«Parece que o vejo, quando vossa mãe vos deu á luz! Foi um anno depois dessa infeliz alliança, que deu a morte a dois entes, dignos de viverem eternamente.

«Ninguém dava novidades da corte, nem meu amo as perguntava. Para elle estava a felecidade, com a familia que creáva.

«Já lá iam tres annos de casados, quando vossa mãe se achou novamente gravida. Era mais um penhor de felicidade que se esperava, mas Deus mandou o contrario.

«Correu a noticia de que o sr. infante, hoje nosso rei, fugira de Guimarães, que um grande numero de cidades, villas e castellos o tinham reconhecido e que o muito poderoso Arcehispo de Braga o apoiava.

«Ora vosso pae apesar da ternura que sentia pela esposa, não esperava senão um aviso qualquer. Tanto. assim, que estavam promptos para marchar uns quarenta homens de armas e oitenta besteiros e fundibularios.

«O aviso não tardou. N'uma tarde apresentou-se no castello um coudel do campo do sr. infante, com uma carta de seu próprio punho, em que o convidava a seguir a santa causa que defendia.

«Vosso pae depois de ler a carta do infante, disse-me:

«Sr. coudel dos besteiros e homens de armas do rico homem de Riba Bestança, mande apromptar a nossa pequena mesnada, e eia, por Deus voamos aos combates, pelo príncipe, pela pátria e pelo nome portuguez.

«Não vacilei! E a fahar a verdade já estava aborrecido, de me ver mettido entre quatro paredes, espreitando a campanha pelas seteiras, como as velhas donas á lareira vigiam os domésticos.

«Lesto como um almocadem de almugavares desci às casernas aonde os nossos soldados bebiam e comiam satisfeitos!

«Eia rapazes boas novas vos trago eu.

«Porque marchamos?

«Sim e quanto antes. É afiar as espadas e aguçar os ferros das lanças! E vós besteiros acostados é apparelhar, porque também não ficareis como lopeiras mettidos n'este boraco.

«Houve gargalhada geral e todos satisfeitos trataram de cumprir as ordens.

«Vossa mãe estava lavada em pranto.

«Vae Bento de Souza ! Desculpa estas lagrimas, de mulher! Mas Deus me defenda de me oppor a tua partida.

«Estava admirado do seu caracter heróico! Quanto mais chorava mais formosa parecia. Vossa mãe proseguio:

«Vae querido esposo! Não te prendas com as lagrimas da esposa amiga e mãe estremosa! Sê fiel á pátria e aos vossos juramentos.

«O amor é um sentimento nobre, não nos pode aconselhar a covardia.

«Ergueu-se nobre como uma rainha!

«Vosso pae contemplava-a com ternura, eu com respeito religioso.

«Parte para o campo de Affonso! Vae lança abençoa a teu íilho e abraça tua esposa. Já não choro! Deus deu-me força para supportar esta ausência! Primeiro do que o amor o rei, e a pátria que pedem o teu auxilio!

«É um dever sagrado que tens a cumpnr, cumpre-o fielmente. E se o tempo não pára a contemplar os heroes, honrados serão na posteridade todos aquelles, que prestaram seu sangue pela independência d'esta terra.

«Hoje as lagrimas da separação, amanhã os louros dos combates, e nos séculos vindoros uma eterna gloria! Finalmente, se o tempo egoista não pára para contemplar a gloria, param as gerações que lhe devem a existência.

«Estava estupfacto com o que ouvia! Nunca ao padre mestre, que no convento me ensinou o latim, e a quem reputava, de grande talento, tinha ouvido dizer cousas de tanto acerto. O mesmo sr. Abbade D. João, nunca se expressou por tal forma! Confesso que cheguei a chorar!

«Ora vosso pae, era um valente guerreiro, mas homem de letras nunca foi. Escrevia menos mal, mas o latim nunca foi para elle! Quanto a mim, apesar de conservar de memoria as palavras da vossa mãe, confesso que pouco percebi d'ellas; e se me não engano vosso pae não foi mais feliz.

«Os homens de armas formados em duas fileiras esperavam a ordem de marcha, bem como as besterias e fundibularios.

«Os ginetes mordiam os freios mostrando-se soberbos da sua alta missão.

«Um terno abraço em vossa mae e um beijo em voz, foram as ultimas despedidas!

«Pouco tempo depois a hoste caminhava lestamente, na rota que nos levava ao campo do infante.

«A duas léguas de distancia encontramos as esculcas e almoga vares do exercito do príncipe. Fizemos alto, até que um almocadem se apresentou, para nos franquear o campo.

«0 exercito do infante era luzido e cheio de patriotismo. De lodos os lados chegavam soldados. As bandeiras das behetrias e Concelhos desfraldavam-se animosas; em quanto que os homens de armas, dos coutos e honras dos mais illustres Ricos homens, augmentavam todos os dias. E os próprios alcaides dos castellos do infantatico e regalengo de D. Thereza, se apresentavam prestando juramento.

«O príncipe veio receber-nos e abraçou vosso pae.

«Sejae bem vindo valente cavalleiro! Contava convosco e com os bravos do vosso acostamento! Fiz quanto pôde para não lançar o repto, mas os doestos do conde Fernão Peres augmentavam; e o filho de D. Henrique, sem quebra da sua dignidade, nâo podia continuar a soffrel-os.

«Ora eu a ultima vez que tinha visto o sr. infante, teria quando muito quinze annos, c por isso estranhei, quando em vez de um tímido donzel, vi um guerreiro de estatura agigantada, e de uma coragem e juizo que a todos admirava.

«Os parlamentarios eram immensos do acampamento para Guimarães. Mas o conde de Trava soberbo dos seus leonezes e filhos-d'algos de Galliza, julgava-se invencível e as negociações tornaram-se de nenhum effeito.

«Um dia achava-me de rolda quando os esculcas disseram, que um troço de cavalleiros de brilhantes armaduras, pretendiam entiar no arraial; e que o muito illustre D. Paio de Sarmento desejava fallar ao infante!

«Um raio que cahisse a dois passos, nâo me deixaria tão assombrado! Fui direitinho á tenda de vosso pae, que me respondeu

«Praza a Deus que D. Paio se faça mais bom cavalleiro.

Nâo pude comprehender tamanha indifferença para com a vinda do seu maior inimigo, para junto do príncipe.

«Montei acavallo e mandei entrar a hoste do sr. Prestameiro dos castellos do Limia.

«Menos crédulo que vosso pae, resolvi vigial-o de perto.

«Alliei-me intimamente com Soeiro Antunes, homem de armas do nosso troço, e um dos valentes que morreram no castello de Leiria. Matança de que escapei, para vir receber o ultimo suspiro de vossa mãe.

«Os acontecimentos politicos seguiram-se rapidamente. O exercito do infante levantou arrayal e marchou para os campos de S. Mamede, aonde o conde Fernão Peres nos esperava á frente dos estrangeiros.

«Os balsões de cores variegadas dos ricos homens e mais senhores Leoneses, apresentavam um aspecto guerrcnro e formidável.

«Mais de mil lanças contava o conde, fora besteiros e peonagem armados de escumas e fundas, e outras differentes armas de igual jaez.

«N'um alto estava o pavilhão real, donde a bella infanta D. Thereza ia ser testemunha, de um dos mais terríveis espectáculos.

«O conde de Trava á frente de alguns cavalleiros portuguezes e gallegos, formava o centro do exercito, em quanto que o Alferes mor com a bandeira real caminhava a seu lado, á frente dos valentes leoneses.

«As costaneiras direita e esquerda eram commandadas pelos íilhos-d'algos seguidores do seu partido.

«O exercito do infante marchava lenta mas ousadamente. Os ricos homens e infanções caminhavam unidos, e com as filas tão serradas, que diílicilmente se romperia tão luzida hoste.

«O infante tudo prevenia e providenciava. Vosso pae com os homens de armas completava a extrema da grande costaneira direita.

«Nem uina palavra se ouvial O tropel dos ginetes; seus relinchos, o rouco tanger dos tambores e o clangor melancólico dos clarins, produziam um sentimento tão funebre, e tristonho que tremi; e pela primeira vez na minha vida tive dó dos adversários e dos meus bravos camaradas. Mas que fazer?

«Estávamos a tiro de besta e um choveiro de setas e pedras caio sobre noz.

«Fizemos alto. O infante fez um breve discurso e os tambores e trombetas tocaram a carregar.

«O inimigo recebeu-nos com a galhardia, que era para esperar de guerreiros tâo ousados.

«Os homens de armas fizeram prodígios de valor de parle a parte. E quando os almogavares do conde voltejavam, para cortarem a saga, o infante á frente de um troço de cavalleiros escolhidos, carregou-os com tanto impeto que os obrigou a debandar, levando o terror e a desordem ao centro do exercito, que pela primeira vez recuou.

«O principe apresentava um aspecto medonho e feroz. Seu montante estava vermelho.

«O cavallo branco em que montava estava coberto de suor, poeira e sangue, parecia mais um demónio do que um nobre animal.

D. Affonso encontrou-se face a face com seu padrasto. Mas envolvidos por uma turba do cavalleiros afastaram-se para nunca mais se encontrar.

«O combate continuava sem vantagem de parte a parte. Alguns peões e homens de armas, que tinham ficado no castello, chegaram ao campo do conde c deram parte, de que o alcaçar estava em poder dos inimigos, e o burgo em completa revolta.

«Esta noticia veio afrouxar os ânimos de tantos valentes, que se tinham battido como leões. E não obstante os exforços do conde, o exercito debandou e deu as costas vergonhosamente.

« A rainha vio o seu poder aniquilado pela espada de seu filho e Fernão Peres murchar todas as suas esperanças debaixo das patas dos ginetes, dos ricos homens portuguezes.

«Os balsões estrangeiroS jaziam por terra esfarrapados, e os nossos estandartes tremulavam altivos sobre esse novo edifício, que com a espada fôra levantado. A gloria o a liberdade pertenciam-nos. Era a nossa única partilha! Se bem que os trabalhos não podiam ser melhor compensados.

«Apoz da victoria nâo vieram as vinganças. D. Affonso foi generoso. Deu a liberdade a seu padrasto, com a condição porém, de nunca mais voltar a terras de Portugal. Quanto a D. Theresa foi expiar seus desvarios no castello de Lanhoso.

«Vosso pae portou-se como um valente. A sua acha de armas abrio larga passagem aos homens de armas da sua hoste, que foram os primeiros a cantar victoria.

«Ora eu nunca perdi de vista D. Paio, que não sei se por covardia, conservou-se sempre alem da saga. Depois da lide, vi que se aproximou do infante e fallava com tanta ousadia, como se tivera bravamente combatido. Se bem que os golpes do seu mantante, nem ao menos de soslaio chegaram ao inimigo.

«Os seus desejos eram congratular-se com vosso pae, que sendo um cavalleiro de boa fé tudo esqueceu. E se lhe não concedeu uma grande estima, admitti-o de mais na sua confiança. Os resultados não podiam ser peiores.

«O génio da guerra adejando em torno de Portugal, pousara defmitivamente sobre a cabeça dos nosso joven príncipe, que não sonhava se não conquistas e mais coroas de gloria. Um vasto campo se apresentava ás suas ambições, que a meu ver ninguém melhor as poderia justificar.

«Vosso pae pedio licença para ir abraçara esposa querida e os tenros filhinhos, que o esperavam impacientes. Vosso pae poz-se na rota do castello da Cham, depois de se haver despedido de D. Paio de Sarmento, que já lhe tinha dado um abraço de cavalleiro.

«Não pude acompanhar meu amo porque me achei gravemente enfermo, e sem querer faltar á verdade, quasi si que podia jurar, que os factos que se deram na rota do Crasto, já foram promovidos por aquelle cão infiel,

traidor como um judas e mais mentiroso de que Mafoma.

«Vosso pae esteve a ponto de ser assassinado a quatro léguas de Lamego.

«Ora a sr. D. Elvira vossa irmã, nasceu justamente no dia da grande e memorável batalha de S. Mamede; e seria mais um penhor de ventura para vosso pae, se Deus nâo mandasse o contrario.

«Sabeis que Lamego foi tomada aos infiéis pelo muito poderoso conde D. Henrique. O Wali desta cidade trocou o Al-Koran pelo evangelho e baptisou-se por interesse, continuando todavia a fazer tanto caso de Christo como até ali fizera de Mafoma.

«Um sobrinho d'este Walli primo do Walli de Merida, era homem de grande saber, mas prompto semppre para toda a casta de villania, com quanto lhe decem dinheiro. Dispunha de grande privanca com D. Paio, e embreve se metteu tanto com vosso pae, que se lhe tornou indispensável. Azaharat era astrologo e alchimista consumado, e nâo sei mesmo se faltava com o diabo á meia noite; o que posso afiançar é que tinha artes diabólicas pelo que dizia e fazia. No entretanto o que não admitte duvida, é que intretinha relações com os Wallis do Alemtejo, Lisboa, Algarve e outros muitos de Hespanha, como adiante terei a honra de lhe contar.

«Pelo espaço de seis annos andamos n'um constante lidar. Todos os dias se escaramuçava. E se não era com agarenos ia-mos bater ás portas de Castella.

«O poder de Leão fora abattido nos campos de Valde Vez. Ora D. Thereza continuava a intrigar seu filho, a quem accusava de tyrannia, por lhe não admittir essa vida desregrada, opróbrio das cinzas de seu marido.

«O papa mandou lançar interdito a Portugal por um legado, mas o príncipe pondo-lhe a espada na garganta mandou-lhe levantar a escomunhão, tirando-lhe todo o dinheiro que os povos lhe deram a titulo de orações.

«Não entro na apreciação d'estas coisas, por que emfim são muito altas para um simples mordomo do solar da Cham.

«Tinha-se edificado o castello de Leiria, e em 1135, o príncipe mandou chamar vosso pae e disse-lhe:

«Bento de Souza preciso da vossa dedicação. O caslello de Leiria é um castello fronteiro. Precisa ser confiado á lealdade de um valente guerreiro. Quereis acceitar o seu governo? Olhae cavalleiro que nisso prestaes um importante serviço á religião; á pátria e a mim.

«Vosso pae acceitou pedindo três dias para se despedir da esposa e filhos queridos. E mal sabia elle, queera a ultima vez que os via e abraçava.

«Thiago nâo poude dizer isto sem chorar! Vasco de Souxa estava frio e silencioso como um espectro. O velho creado proseguio a triste narração com os olhos arrazados de lagrimas, e a voz alterada pelos soluços. Não posso senhor, recordar estas coisas a sangue frio.

«Vosso pae partio finalmente para se despedir de voz e de vossa mae, essa santa martyr. A despedida foi como era para esperar.

«Os soluços embargavam-lhe a voz, e um presentimento fatal parecia que os ligava. A sr. D. Leonor tinhavos seguro pela mão, emquanto que vossa irmã abraçada, aos joelhos do pae, parecia que o não deixava partir.

«Ainda recordo essa dolorosa despedida, que para mim será de eterna lembrança. Estava decretado nos altos desígnios da Providencia, que íicarieis orfam em menos de um anno.

«Muda testemunha de tanto soffrimento, supportei o desenlace de um quadro mais que melancólico!

«Vosso pae já não podia esperar mais tempo.

«Vamos Leonor! Animo! Foram as suas ultimas palavras, em quanto que opprimido pela magoa, lhe cahia nos braços lavado em pranto. Não havia tempo a perder. Desprendeu-se-lhe dos braços como desvairado. A dôr não podia ser mais acerba nem dolorosa, e um ultimo beijo marcou o limite de tão amarga despedida.

Vosso pae correu pelas salas, e a bulha das suas esporas resoavam por essas vastas abobadas, que pareciam soffrer com os gemidos de vossa mãe.

«Chegamos ao pateo, saltou para cima do cavallo e mettemos a galope até Coimbra.

«Pernoitamos n'esta cidade até ao romper de alva, que nos pozemos na rota do castello de Leiria, cujas ameias e cubellos avistamos no cabo de algumas horas de marcha.

«O castello de Leiria nâo é una fortalesa inteiramente roqueira. Está com tudo nas melhores condições de defeza. Tem ponte levadira, largo fosso e um barbacam de grande resistência.

«Uma estrada falsa lhe dá saida para a campanha. Nas muralhas podem as machinas de guerra trabalhar a coberto, d'esses globos de fogo, que os perros infiéis lançam sobre as fortalezas para as incendiar.

«Por espaço de três mezes nâo houve novidade. Appareceram alguns mouros, mas perseguidos pelos almogavares, debandaram.

«Estávamos no dia 25 de março de 1135. A guerra tinha-se declarado entre o nosso rei e o de Leão. E os infieis aproveitando o ensejo vieram-nos insultar até ao barbacan.

«Azaharat apresentou-se uma noite no castello. Seu génio alegre, e constantes truanices destrairam a melancolia de vosso pae, e o aborrecimento que o finava.

«Maus presentimentos tive. com a chegada d'aqulle jugral, que sem religião nem fé era capaz de todos os crimes.

«Sueiro, esse valente homem de armas, que nunca nos desamparou, era adail dos almogavares, logar que eu lhe obtivera. Nunca vi soldado mais bravo nem mais fiel a seus amos.

«Estavamos uma noite de serviço. Deitados sobre alguns feixes de palha, e notávamos que Azaharat viesse inserrar-se no castello de Leiria, votando ao despreso os tangeres e folgares da corte, que lhes eram tão predilectos; quando ouvimos um pequeno rumor do lado da estrada falsa, que ficava próxima do telheiro. Escuta me disse Soeiro. Tens certeza de que as tranqueiras da estrada falsa estão bem seguras?

«A que proposito vem essa pergunta, lhe respondi eu.

«É que senti um tão grande motim, que me pareceu de homens de armas.

«Ora vamos lá! Vamos saber o numero de bufos e morcegos, que nesta occasiao passeiam pacificamente pela estrada coberta do castello de Leiria. Levantei-me e seguido por Soeiro dirigime ao portal, e com o maior assombro vi as tranqueiras lançadas no chão.

«Não havia tempo a perder. Seguido por elle metti-me pela estrada levando um archote de resina, que agitava constantemente por causa da falta de ar, que não era pequena.

«As corujas, os morcegos e os reptis, fugiam espavoridos, uns battendo as azas, outros escoando-se pelas fendas das pedras e mais boracos.

«Chegamos á primeira tranqueira estava igualmente lançada no chão. Alguém tinha entrado ou saido do castello por este lado, que franqueava uma boa entrada aos infieis. Percorremos a vareda até ao íim, e na volta posemos as tranqueiras no seu logar.

«Procurei vosso pae que me disse: Não te assustes foi Azaharat que sahio e ganhou uma aposta.

«Fiquei admirado, mas vosso pae contou-me como Azaharat apostara, ser capás de attravessar o caminho subterraneo sem companhia nem archote.

«Não me agradou tanta condescendência por parte de vosso pae, e senti n'essa occasião uns arrepios de frio, que me ficaram os cabellos mais hirtos, de que os espinhos de um porco montez.

«Azaharat voltou com eííeito no dia seguinte, e nada mais constou.

«Estava-mos no dia 31 de março. Em todo o dia não occorreu a menor novidade. Os almogovares batteram a campanha e nada de iníieis nem rasto delles. Os homens de armas comiam e folgavam e a rolda foi reduziada.

«A campa da torre alvarran tinha marcado onze horas, quando os vigias dos cubellos, deram parte, de que um grande numero de almenares se avistavam ao longe em differentes pontos.

«Vosso pae mandou immediatamente pôr a guarnição debaixo de armas, e que as machinas estivessem promptas. Pouco tempo depois o seu ranger nos annunciou, que podiam expedir nuvens de pedras r virotes, contra as hostes e cavalgadas infieis.

«Um silencio de morte se notava em todos os lanços da muralha. Ningum tugia nem mugia. Vosso pae disse para Soeiro:

«Adail dos almogavares é montar acavallo e mais doze dos mais resolutos, e eia por S. Thiago é correr esses infiéis, que como rafeiros manhosos, só se atrevem a encommodar de longe e ao abrigo das trevas. Por Deus e pela Virgem lhes juro, que os primeiros que apanhar serão suspensos nas ameias d'este nobre castello, para servir de escarmento. Que fiquem sabendo por uma vez como o alcaide do Castello fronteiro de Leiria, recebe os seguidores do islam.

«Por accaso olhei para o lado direito aonde se achava Azabarat, e ao reflexo do luar vi o gesto mais terrível e ameaçador, que um condemnado pode fazer.

«Pareceu-me ver naqualla fronte rugosa, pelos vícios aonde a vergonha nunca se albergara, o gesto satânico de um réprobo, quando ve entrar pelas portas do inferno um tão réprobo como elle, para lhe fazer companhia.

«Torvou-se-me a vista, e levando a mão ao punhal, fil-o sair fora da bainha mais de metade. Por tres ou quatro vezes estive para apunhalar aquelle renegado traidor; e se o tivera feito, não teria vosso pae sido assassinado e a pátria perdido uma das suas melhores lanças.

«As almenaras já se avistavam mais perto. A ponte levadiça baixou. Sentiu-se o ranger dos gonzos, e o tenir das correntes. Pouco tempo depois o bravo Sueiro, á frente de doze almogavares, vencia a todo o galope a vasta campina, que se estendia pela margem do Liz. Á direita ficava uma espeça floresta, alem da qual se differençavam as almenares.

«Não posso explicar o que senti, mas sei que um suor frio e cupioso me innundou a fronte.

«Decorreram duas horas e ainda os almogavares não tinham recolhido. Pareceu ao vigia do cubello, que olhava para o norte, ter ouvido ao longe gritos e tenir de espadas, mas quando disse isto ninguém o acreditou. Eram quatro horas da madrugada e vosso pae já impaciente, disse-me. Thiago, o bom do Sueiro, se não caiu em mãos agarenas está destroncando-lhes as cabeças.

«Ouvi uma voz, como a voz de um demonio, que dos abismos do inferno festeja mais um crime e uma alma perdida! Era Azaharat que lhe respondia:

«Olhe não se engane.

«Vosso pae estremeceu. E eu arrancando do punhal, corri para elle. Mas em vez de lh'o embeber até ao cabo, achei um braço de ferro que me sustinha o pulso.

«Era vosso pae, que lavrava a sua sentença de morte!

«Deixai-me senhor, mattar este infame traidor, que zomba da morte dos nossos fieis soldados.

«Azaharat era covarde como todos os malvados. Tinha o terror estampado n'aquellas faces denegridas, como as nuvens de uma noite de tempestade.

«Outro que não fosses tu, pagaria com a vida tamanho arrojo. Montae a cavallo e á frente de trinta homens de armas, correi á campanha. Foram estas as ultimas palavras de vosso pae, que de gesto carregado parecia querer fulminar-me.

«Um quarto de hora depois corria a bom picar na direcção que Sueiro tomara, e como principiava a despontar a aurora, podia seguir o rasto dos cavallos, que n'alguns pontos se differençavam, pelo amachucado das giestas e mais arbustos, que bordavam a campina.

«Chegamos às margeus do Liz, e vimos quatro pontes, que ainda se achavam lançadas sobre o rio, cuja corrente era rápida e volumosa.

«Junto a uma clareira, na quebrada de uma serra, differençavam-se os signaes de uma grande lula. O terreno estava revolvido e bastante ensanguentado. Bocados de armaduras se viam espalhados em differentes pontos.

«Proseguimos o rasto dos cavados; e na distancia de duas léguas, pouco mais ou menos; quando a espessura da floresta era maior, demos com um aspecto atterrador e pavoroso. Eram trese corpos destroncados! e por mais que procurace-mos, nâo podemos encontrar as cabeças dos nossos infelizes camarada. Não restava duvida. Tinham cahido n'uma emboscada.

«Mas brava fora a luta! Os corpos de trinta agarenos estavam ao longe estendidos e cobertos de ramos, pois nem tempo tiveram para lhes dar sepultura. Mais nada avistamos. Voltamos a todo o galope para o castello e contamos a vosso pae a desgraça de tantos bravos, que chorou a perda daquelles valentes.

«Redobraram as roldas e sobre roídas. Mas no fim de vinte e quatro horas, no quarto de modorra, fomos subitamente atacados por todos os lados.

«A hora da noite, e a rapidez do ataque tudo contribuio para a defeza ser fraca e quasi ineficaz. Vosso pae apparecia em todos os pontos. As machinas expediam nuvens de pedras e virotes, que levavam a morte aos infiéis, mas o numero recrescia e a audácia augmentava.

«Procurei por todos os lados o renegado Azaharat mas, não appareceu em parte nenhuma.

«Ouvio-se um brado gerai, que tudo poz em confusão. Eram os soldados que nas próprias moralhas se viam atacados pelas costas.

«Vosso pae bramio como uma fera, mas já éra tarde.

«Azaharat combinado com os mouriscos, introduzi-os no castello pela estrada falsa, e mais de quatro centos entraram como senhores.

«O partido era desigual. Toda a guarnição desanimou entregando os pescoços ás semitarras agarenas.

«Vossos pae defendia-se como um leão. Em torno d'elle não se viam se não cadáveres. Com a acha em punho mandava a morte a quantos se lhe aproximavam. O escudo estava quebrado e a armadura destruida. De um salto ia acliar-me ao pé d'elle, quando um golpe de espada me fez vergar. Recobrei animo, olho e vejo Azaharat.

«Arremetter com elle e passal-o com a espada de lado a lado, foi obra de um momento.

«Cahio saindo-lhe um sangue negro e fétido pelas feridas. Fez uma careta modonha e entregou a alma ao diabo que de certo não será peior do que elle.

«Olhei e ainda vi vosso pae erguido como um sedro no meio da tempestade.

«Arremetti com os infiéis resolvido a morrer com elle, mas um segundo golpe me estendeu por terra. Não posso dizer mais nada d'aquelle quadro tenebroso.

«Não posso jurar se vosso pae é morto ou vivo. O que sei é, que quando rocobrei os sentidos era mais de sol posto. Tinha a cabeça esvaida r um grande abatimento, liguei-me como pude e fui procural-o entre os mortos, visto que a morte se estabelecera nos lanços e cubellos do castello de Leiria.

«Triste era o espectáculo. O vento suprava do nordeste e entrando pelas frestas e seteiras, arrancava um zumbido que parecia o gemer dos moribundos. Fraco e abatido, encostado ao couto de uma lança afirmava-me em lodos os cadáveres, que na máxima parte estavam sem cabeça. Os corvos esvoaçando applaudiam a festa. O seu grasnar, parecia os arrancos afflictivos, que só o ostertor da morte faz experimentar.»

«De balde procurei o corpo de vosso pae. Nâo o encontrei. Mas do que ainda hoje pasmo é de ter encontrado a armadura completa, tal qual ali se achava.»

«Thiago apontou para a figura, que vestia as armas de Bento de Sousa, que muda e silenciosa parecia um espectro.»

Era alta noite. Embrulbado n'um zurame passei a noite mais dolorosa que na minha vida tenho experimentado.

«Ao romper de alva, conforme pude, segui para Coimbra. No caminbo encontrei uma numerosa arrancada, que vinha em soccorro do castello, pois vosso pae tinha avisado. Já era tarde, para o salvar, mas ainda iam a tempo para a vingança.»

«Montei no cavallo de um pagem e seguido por dois homens de armas cheguei a este castello, aonde encontrei D. Paio, que de tudo já informara vossa infeliz mâe.»

«Não sei o que vi nos olhos d'aquelle traidor. Ainda hoje estava prompto a sustentar n'uma estacada, que não fora estranho áquella terrivel matança. Vosso pae, já tinha expiado a ventura que com vossa mâe gosou.»

«Mas para que vos hei-de magoar mais? A noite vae adiantada, concluo dizendo, que vossa mãe no fim de oito dias expirava em meus braços. A infeliz senhora não poude sobreviver ao esposo que tanto estimava.»

«Está lá em baixo na capella, aonde desde pequeno vos ensinei a ir resar todos os dias.

«A sr.ª D. Elvira, fui para o convento de Lorvão, aonde a senhora vossa tia tomou conta d'ella. Vossos tios morreram nas guerras de alem mar. Só vos restava o sr. Abbade D. João, que abandonou logo a sua abbadia, para tomar conta da vossa educação. Mas infelizmente também já lá vae.

«Eu sr. Vasco estou velho, mas tenho Paulo meu sobrinho. É um valente rapaz que vos servirá tão fielmente como eu.»

«Sois joven, rico e valente, tendes tudo a esperar do mundo. E se um dia encontrar-des D. Paio esmigalhai-lhe a cabeça como se fora a de uma serpente.

«Vasco ainda imprecionado pala narração, conservava-se mudo e quedo como uma estatua. Depois de Thiago concluir levantou-se, como se fora movido pela força motriz de um grande machinismo: Da-me um abraço Thiago. E's o único amigo que me resta. Juro-te pelo sangue de Christo, que nunca esquecerei o que te devo. Irei á corte. Não para pedir umas esporas de oiro, mas sim para lhe offerecer meus serviços. Ainda ali vejo gotejar o sangue de meu pae, n'aquella armadura. O seu sangue clama vingança.

«Pedirei licença ao monarcha, para fazer por minha conta guerra de extermínio aos infiéis. Levantarei o glorioso balsão de Riba Bestança. E em torno d'elle se acostarão os mais valentes guerreiros do solar da Cham.

«D'esde Santarém até Lisboa e d'esde Lisboa até Badajoz chegará a minha lança e aponta da minha espada. Se o capitão é novel, velhos são os brios entre a sua familia.

«Com a ajuda de Deus espero cantar o triumpho. Thiago no praso de oito dias estarei na rota de Coimbra.

CAPITULO II

O TORNEIO

No dia oito de abril do 1144 caminhava, ás 10 horas da manhã, pela estrada de Coimbra um joven guerreiro montado em cavallo mursello e ricamente ajaesado. Uma rica sella mourisca assentava nas espáduas do nobre animal, que pelas proporções, agilidade e desenvoltura, apresentava o typo jenuino d'esses nobres filhos do deserto, de que os árabes, com razão tanto se ufanam.

O joven ia armado dos pés até á cabeça, como era costume viajar numa epocha em que as más estradas, que haviam eram povoadas de agarenos ou de salteadores, sem que houvesse policia para lhes obstar. Cada qual defendia-se como podia e vingava-se como queria, visto que os códigos eram poucos e mal comprehendidos.

O cavalleiro levava pois uma rica armadura. Seu saio de malha era do mais fino tecido. O arnez era de aço tão polido, que com os raios do sol, incommodava a vista das pessoas, que por acaso passavam pela solitária estrada.

Um elmo ou casco de ferro lhe defendia a cabeça. Do alto da simeira caiam-lhe vastas plumas negras, que fluctuavam ao capricho do vento. Empunhava uma grossa lança, e do arsão da sella pendia uma acha de tão grandes dimensões, que difficilmente seria levantada por um homem de força vulgar.

A quatro ou cinco passos do distancia caminhava um escudeiro, montado em possante mula e armado de todas as armas, formava um perfeito contraste com o cavalleiro que o precedia.

As estradas do nosso primittivo Portugal não eram como as de hoje, nem como as que nos deixou o pacifico e immortal rei D. Diniz cognominado o lavrador. Se algumas havia eram as que os romanos construíram, ou as que não foram destruídas pelos godos, espécie de selvagens, fanáticos sem a menor tintura de civilisação. E a não ser o freio religioso ainda seriam peiores, de que as hordas de Atila, quando se precipitaram sobre a Itália no século quinto.

Com o decorrer dos tempos foram perdendo parte da selvajaria; se bem que os seus dignos descendentes, na epocha a que nos referimos, ainda partilhavam muitos dos seus hábitos. Dizemos descendentes, porque hoje como então difficilmente se encontrará nas veias de um peninsular, a mais pequena gota de sangue dos primitivos habitantes, depois de tantas e tão variadas invasões.

O sol espalhava seus brilhantes raios nas vastas campinas que seguiam pela orla da estrada. A cigarra cantava enthusiasmada ao calor do sol, entre as urzes e cardos que povoavam esses campos incultos, e hoje tão ricos de útil vegetação. O cavalleiro soffreou o ginete: Paudo, disse elle que bello campo para um rico homem almoçar.

O escudeiro apenas respondeu: «Como fôr de vossa vontade. A sombra d'este olmeiro convida.

Tiraram os freios aos cavallos, que passaram a enterter-se pacificamente com a relva e mais verdura dos campos.

Vasco de Sousa comeu com o maior apetite.

O aspecto dos campos era bello, como sempre, quando nos melhores dias de primavera, atravez de uma athmosphera limpida e serena, transparecem os raios fulgentes do rei dos astros, que altivo e imponente alumia a metade do pobre planela terraqueo, tue girando em si mesmo n'um certo e determinado periodo, ora vae recebendo a luz, ora as trevas conforme o giro que completa. O mundo é como algumas cabeças que apenas sâo alumiadas por um lado.

O cavalleiro entregava-se folgasão ao prazer do almomoço, quando ouviu o trupitar de alguns cavallos.

N'uma epocha em que as correrias de mouros eram vulgares, e o prazer da guerra uma paixão fernetica, olhava-se, n'uma estrada, coma maior indifferença para os cadáveres insepultos, que servindo de pasto ás aves carnívoras, a seu turno se fartavam em carniça de cavalleiros. E por este facto ninguém viajava senão armado como se fôra para entrar em grande lide.

Escuta diz Vasco de Sousa. Não sentes o tropel de muitos cavallos que se approximam?

Paulo conservando-se silencioso, levantou-se, subiu a um outeiro e disse para seu amo: «é uma grande cavalgada que vem a pequena distancia.

Vasco nada respondeu. Ia-se acostumando aos habitos do seu novo companheiro, que pelo pouco, que fallava merecia um logar distincto na academia dos silenciosos. Levantou-se, enfreou o cavallo, em quanto que Paulo fazia outro tanto á mula em que montava.

Firme na sella como um rochedo granítico, encostado á lança, se achava o mancebo, com a viseira levantada. A dois passos de distancia viase o escudeiro, cujas formas robustas e animo intrépido, formava por assim dizer uma segunda columna de ataque. A bulha crescia, e em breve as plumas e fraldões se perceberam distinctamente. Era uma luzida r numerosa cavalgada, que alegre se dirigia para Coimbra, aonde o muito alto e poderoso D. Affonso 1.º de Portugal se achava com a sua corte.

Ao passar junto do cavalleiro, um dos guerreiros que caminhava na frente, soffreou o ginete, que em corcovas e cabriolas galopava arrogante.

O cavalleiro exclamou: Bofé Senhores. Vede o porte altivo e adman guerreiro que apresenta este mancebo. Por Deus, senão é um guerreiro batido nas velhas lides, é jovem de grandes esperanças. Dai-me a vossa mão cavalleiro. Se ainda vos não encontrei nos campos de batalha espero ser vosso amigo.

«Agradeço-vos D. cavalleiro a honra qe me fazeis, mas respeitando-vos a franqueza, não posso acceitar o vosso convite sem que me digaes, com quem tenho a honra de fallar.

É justo, respondeu o cavalleiro. E se vos fizer igual pergunta?

«Vasco de Sousa, firmando-se nos estribas disse com afan.

«Posso dispensar-me de responder porque não fui o primeiro a interrogar. Estou ás vossas ordens cavalleiro.

«Por Deus que sois muito ousado para assim responder a Gonçallo Mendes da Maia, disse um da comittiva.

Vasco de Sousa aborrecido de tanto fallar, respondeu-lhe: Sou o primeiro a respeitar o cavalleiro que nomeaes, por ser a primeira lança de Portugal; mas isso não lhe dá direito a interrogar na estrada quem caminha ao seu destino.

Cumprimentou a luzida cavalgada e passou adiante a grande trote.

Os guerreiros ficaram admirados de tanta audácia. O senhor da Maia, meteu a galope. Parae cavalleiro donzel. Por Deus vos peço este favor.

Vasco fez alto e esperou pelo guerreiro, que descalçando a manopla lhe apresentou a mão com tanta lealdade, que recusal-a seria uma affronta, que Vasco não era capaz de commetter nem o cavalleiro de tolerar.

Eis a minha mão sem condições. Já sabeis o meu nome. Pouco me importa saber o vosso.

O mancebo agradeceu altivo sem orgulho e apertou com enthusiasmo aquella mão larga e nervosa, que em mais de cem recontros decepara milliares de cabeças infiéis. N'aquelles séculos de barbaria não se dava uma outra virtude que mais se recommendasse.

O joven cavalleiro, que a todo o custo pretendia conservar o incógnito, sustentou uma porfiada luta, quando o antigo amigo de seu pae apertando-lbe a mão, lhe fallou com tanta franqueza. Estava para se denunciar, mas o guerreiro lendo-lhe no rosto a luta que interiormente sustentava disse-lhe:

Guardae o incógnito se tanto vos apraz. A coriosidade só bem assenta nas velhas donas. Em guerreiros acostumados ás carniçarias dos combates é coisa dispensada.

«Aideus cavalleiro. Se fordes ás justas e torneios, que na corte se fazem em honra da nossa graciosa rainha, olha-e que desejo bastante quebrar comvosco uma lança.

Cumprimentou Vasco, e á frente dos seus homens de armas desappareceu entre os turbilhões de poeira levantados pelas palas dos corseis.

Paulo conservou-se frio e silencioso. Mas quem lhe observasse os movimentos, veria que quando o sr. da Maia se chegou para seu amo, collocára a lança em posição. A Vasco nâo escapou o movimento aggressivo do seu escudeiro, nem poude fugir á tentação de lhe dizer:

«E's homem de mais acção que de palavras. Gostei da tua resolução. Parece-me que achei um bom seguidor, para quando nos medirmos com a gente agarena.

Paulo apenas respondeu, com um som gotoral, que mais se aproximava do grunhido, de que de uma palavra qualquer; mas foi todavia comprehendido por seu jovem amo, que tinha grande consideração pelo seu escudeiro.

Deixemos Vasco de Sousa caminhando lestamente na estrada de Coimbra. Deixemol-o caminhar á vontade, não em busca de vãs e balofas aventuras, como ainda era costume entre os cavalleiros, n'uma epocha, em que a mulher não era alvo de um amor devotado, mas sim de uma adoração idolatra, que ia muito alem d'esse amor respeitoso, que ao bello sexo é devido.

Nao condemnamos o principio da cavallaria. Não senhores. Foi uma santa instituição, que não obstante ter por dogma defender os opprimidos, foi todavia protellada com o decorrer dos tempos. Tal é o vicio que preside ás coisas do mundo, que não satisfeito de alterar o que é dos homens, também se arroja a prostituir o que é de Deus.

Na bella cidade de Coimbra estava pois a corte do muito poderoso rei o senhor D. Affonso, como já dissemos.

No principio de abril do anno da graça de 1144 um afanoso bolicio se notava em toda a côrte.

Não se apparelhavam exércitos para bater ás portas de Leão. Não se fallava em correrias em terras mouriscas. Ninguém se lembrava de guerras. O que preocupava então uma corte de guerreiros, que tinha por chefe o primeiro soldado de Portugal? É o que vamos dizer aos nossos leitores, se já o não advinharam pelas palavras do senhor da Maia.

Vamos confirmar a hypothese; o facto que mais prendia a attenção da corte eram os festejos que se preparavam em honra da bella e virtuosa rainha D. Mafalda, filha do muito nobre duque de Sabóia. Os guerreiros portuguezes resignando por momentos o estrondo dos arraiaes e o ardor das batalhas ensaiavam divertimentos e folguedos, para não estarem ociosos, defeito que detestavam e que, infelizmente, tão seguido é hoje.

Em Coimbra tudo era movimento. A estacada estava prompta para a liça, por ser o principal divertimento. E quem se animaria, n'aquellaepocha, a fazer grandes festas publicas eliminando os torneios? A que ficariam reduzidas? A zero puramente zero.

No tempo em que a principal occupação dos grandes senhores era matar gente, era preciso que os torneios apparecessem quando as guerras feneciam; n'estas matavam-se os infiéis por serem fieis á sua religião, n'aquelles eram muitas vezes, mortos varões illustres, por mãos amigas, â falta de inimigos que os matassem.

De todos os pontos e solares chegavam cavalleiros á muito antiga cidade de Coimbra. As cores variegadas dos estandartes e escudos, a magnificência das armas, a riqueza dos Cavalleiros, os numerosos séquitos de pagens e homens de armas que os seguiam, tudo contribuía para o espectáculo ser bello e surprehendente.

Os cavalleiros namorados esperavam impacientes pelo dia aprasado, para desenvolverem seu brio e agilidade, na frente das damas dos seus pensamentos.

O rei quebraria a primeira lança em honra da rainha sua esposa. E aonde estava o guerreiro, que podesse medir forças com o grande Affonso? Quem havia, que melhor do que elle, manejasse uma lança e montasse a cavallo? Se tinha cavalleiros que o igualassem, nâo havia nenhum que o excedesse.

Depois dos festejos públicos estava determinada uma grande ceia, em que o vencedor, junto do monarcha, seria honrado e servido á mesa pelas mais bellas damas da corte. Quem gosará tantas honras e distincçôes? Será Men Moniz, uma das melhores espadas do seu tempo? Será o trovador Gonçalo Hermigues? Será o alentado lidador? Nâo! Nâo será nenhum destes.

Aproximava-se o tão dezejado dia. De todos os pontos de Leão e Castella chegavam guerreiros convidados pela grandeza do espectáculo; siosos do valor portuguez queriam tentar fortuna nos divertimentos, já que nas lides, não levavam vantagem.

Todos se inscreviam dando o seu nome, a fim de lhes marcarem a entrada na arena e a hora do combate, segundo a opportunidade exigisse. Assim era costume e rigor de etiqueta militar.

No dia nove de abril ás cinco horas da tarde entrava na cidade de Coimbra, pelo lado do norte, uma vistosa cavalgada, que pelo estandarte que na frente tremulava, se conhecia pertencer ao muito nobre rico homem Gonçalo Mendes da Maia.

Os cavalleiros caminhavam a três de fundo. Na frente ia um guerreiro de nobres proporções, que a todos se avantajava em galhardia e gentilesa.

Era um verdadeiro cavalleiro a todos os respeitos, pelo seu trajar e porte cavalheiroso. Era finalmente um cavalleiro completo, que ainda fazia corar mais de uma dama, nâo obstante contar perto de dos seus quarenta annos.

Os trombetas e charamellas tocando na frente, formavam perfeito contraste com o porte arrogante dos ginetes de batalha, que mordendo os freios espumavam impacientes, pelo passo vagaroso a que eram obrigados.

Os peões agrupa vam-sa nas ruas e viellas, embasbacados, ao verem tão luzidos cavalleiros. Mas se não se arredavam promptamente, eram prevenidos por meio de boas contoadas de lança, única maneira prudente, porque os vilões e burgueria eram tratador, no tempo em que se passavam estas coisas.

Os peões assim prevenidos afastavam-se, antes que um corsel fogoso lhes assentasse as ferraduras sobre as costelas.

Ainda bem a brilhante cavalgada, nâo tinha desapparecido, quando a largo trote um joven cavalleiro, armado de todas as armas, atravessava a rua principal. Montado em possante mula, o seguia a três passos de distancia, um espadaúdo escudeiro, symbolo da força e da energia.

O cavalleiro parou como quem vacillava no caminho, que devia seguir. Chegou o cavallo para um grupo de peões, que fallavam junto de uma casa de venda e levando levemente a mão ao elmo perguntou: «Podeis-me dizer aonde é a estalagem de mestre Pereira Forcado?»

Os paisanos e peões ficaram pasmados, pois nunca tinham visto um cavalleiro tâo cortez.

«Olhae senhor, (lhe diz um d'elles) é na courella de cima, junto á ponte do Mondego. Mas para que vos não enganeis, indicar-vos-hei o caminho.»

Tomou á direita, indo na frente do mancebo, que o seguiu a curta distancia.

A estalagem de mestre Pereira Forcado era um vasto aposento, aonde o viajante a toda a hora da noite encontrava cama para dormir, e bom lume no tempo do inverno. Na estalagem de mestre Pereira Forcado era grande o bolicio e maior a confusão, pela muita affluencia de hospedes.

Mestre Forcado era baixo, gordo, juvial e muito agasalhador, o que lhe mereceu o titulo de hospitaleiro. Para elle não havia servos nem senhores, e tantas attenções dispensava aos ricos como aos pobres.

Os serventes caminhavam n'um motuo continuo da cosinha para a adega e d'esta para os sobrados, aonde se ouvia uma grande algazarra. Eram os cavalleiros dos diffentes ricos homens e infançõcs, que amontoados em torno das mesas comiam e bebiam melhor, de que qualquer virtuoso abbade em dias de grande festa.

As juras e pragas não eram dispensadas, o vinho de mestre Forcado correndo pelas goelas dos seus hospedados augmentava-lhes a desenvoltura.

O mancebo que ha pouco vimos entrar dirigiu-se á estalagem, entrou no grande sobrado aonde se achavam os cavalleiros. A bulha não o incommodou; mas seguindo todavia até ao fim do comprido salão, foi assentar-se no logar mais reservado, aonde se conservou, até que Mestre Forcado seguido de Paulo se lhe apresentou.

Nobre Senhor disse o estalajadeiro. Receio não poder hospedar vossa honra como dezejava. No entretanto haveis de ter certamente um quarto e mesa separados. Tenho a casa cheia de cavalleiros de todas as nações e solares.

Arranja-me como poderes. O que exijo é o maior silencio em relação á minha pessoa.

O estalajadeiro curvou-se tanto quanto lh'o permittia a sua barriga, que não era das mais pequenas. Podeis ficar descançado, que a ninguém direi que tenho a honra de hospedar tão grande senhor.

Passaram a um quarto immediato, aonde o joven cavalleiro despiu as armas e tomou alguma refeição.

Paulo por de trás d'elle, entregava-se com a maior diligencia a devorar um grande taçalho de carne, que com a maior velocidade desapparecia das mãos, para se lhe sepultar no estômago. Vasco concluiu, mas Paulo não se dando por vencido, agarrou n'uma altamia cheia de vinho e sem a menor cerimonia despejou-a de um trago pelas guellas abaixo. Em seguida abriu a porta e eil-o num pulo na cavallariça a tratar dos cavallos.

A hora da noite ia adiantada, e o susurro diminuía. O vinho produzia o seu effeito natural ; aquellas linguas tão flexíveis e moventes perderam a mobilidade, que distingue o primeiro grão da embriaguez. Sons inarticulados, palavras balbuciantes e um constante bocejar é quanto se ouvia. Em breve os sons ronqueinhos de um resfolgar embaraçado e constrangido annunciaram a Vasco, que o ultimo grão da embriaguez invadira as cabeças dos hospedes de Mestre Pereira Forcado.

A agitação fervente da cidade foi substituída pelo repouso da noite, cujo escurvo manto se estendia sobre a rainha do Mondego. As gelosias das casas estavam hermeticamente fechadas. E atravez das nuvens a custo se differençava o brilho das estrellas.

Vasco de Sousa ainda não poderá conciliar o somno. Para elle havia uma única lembrança. Pensava no torneio e na felicidade de sair vencedor de tantos e tão afamadas guerreiros. Mas esta lembrança parecia-lhe chimerica e ociosa. Encostado sobre o leito adormeceu, sem que nenhum mau sonho o viesse inquietar. Sonhou com os festejos, e que saindo vencedor era felicitado pelas mais formosas damas da corte, recebendo das mãos da rainha uma rica espada de honra. Embebido n'estas ficções, que foram todavia precursoras da realidade, acordou o nosso heroe eram seis horas da manhã.

A cidade tinha recobrando o anterior movimento, passàra por assim dizer a um furor vertiginoso.

Os arautos e passavantes á frente dos trombetas, charamellas e tambores percorriam as ruas, tocando e tangendo mais barbaramente, de qualquer banda de gaitas de foles, de um regimento escocez.

Os pacíficos habitantes de Coimbra abriam as gelosias apreçadamente, e para gozarem melhor esfregavam desesperados os olhos, ainda torvos pelo descostume de se abrirem a taes horas.

As donzellas saltavam alegres das camas; tratando das suas galas e louçainhas; sonhavam ver triumphar o cavalleiro seu predilecto, em quanto que as mães de familia sempre attentas aos arranjos caseiros ordenavam aos domésticos, que provecem ao abastecimento da casa.

Os cavalleiros corriam a vestir as armaduras, para antes do torneio irem passear pela frente das altas e esguias janellas, aonde as damas os esperavam impacientes. E um meigo sorriso, um terno olhar era mais um incintivo que lhes dava alento. E d'esta sorte os noveis guerreiros apertando alegres o montante, esperavam vencer na liça, os cavalleiros mais experimentados. Numerosos besteiros e homens de armas policiavam as ruas. A burguezia parava embasbacada amontando-se nos ângulos das praças e esquinas das ruas. Mas não era por muito tempo que se podiam entregar a este inocente prazer. A voz de arreda, dada pelos homens de armas, era sempre acompanhada de um choveiro de pranchadas, distribuídas com tal profusão, que a ordem não era alterada; graças á convencentc lógica dos muito feis soldados, do alto e poderoso rei D. Affonso 1.º de Portugal.

As ruas estavam apinhadas de povo, não só para gosar da vista de tantos e tão variados cavalleiros, como para ver passar o monarcha e a sua real comitiva, e para ter o gosto de bradar viva o rei, expunha-se a ficar com as costellas quebradas.

Affonso era estimado pelo povo em geral, que vi an'elle um heroe, capaz de competir com os Césares e os Pompeus.

Os cavalleiros caminhavam para a arena, que em forma quadrangolar, contava para mais de duzentos covados de comprido por cem de largo.

Na frente elevava-se o estrado real. Um rico docel cobria as cadeiras de espalda, em que a família real se devia assentar e as principaes damas da corte, por sua ordem e gerarchia.

Dos lados viam-se as frisas para as famílias dos simples cavalleiros. As trincheiras estavam indistinctamente invadidas pela peonagem.

Dos lados da tribuna real erguiam-se dois estrados para as damas da alta nobieza, que não tendo empregos na corte, não tomavam assento na tribuna da rainha.

Também se notavam os logares, que os juizes do torneio deveriam occupar, para determinarem o principio e limite dos combates, como era costume em todas as liças.

Eram elles os que decidiam da lealdade dos mantenedores, e se tinham direito ou não a serem proclamados vencedores.

Eram finalmente elles que mandavam suspender os combates e entrar novos contendores.

Os arautos obedeciam-lhes assim como os menestréis e tangedores de instrumentos.

O signal que punha termo aos combales, era regularmente um bastão arrojado ao centro da arena, e continuar o duelo seria faltar ás leis da cavalleria, bastante severas para com as infracções.

O campo estava bastante aguado para que os bulcões de areia, não suffocassem os espectadores e prejudicassem os cavalleiros, que se batiam e matavam como amigos!

Que felizes tempos! Que civilisação!

Duas largas portas davam entrada para o vasto plano. Uma para sairem os contendores, que abandonavam a arena, outra para os que entravam.

Nâo era permittido a nenhum dos cavalleiros, entrar ou sair, senão pelas portas que estavam determinadas. O contrario era uma violação. Affonso seria o primeiro a quebrar uma lança em honra da formosa Rainha, com um cavalleiro seu vassallo, que por sorte lhe coubesse semelhante honra.

Tal era o programma e ordem do espectáculo, que vamos descrever.

Vasco de Sousa pouco almoçou. Vestio as armas e saltando para cima do cavallo foi tomar logar entre os contendores.

O povo reunido em prodigiosa quantidade apresentava um aspecto deslumbrante. O susurro e gritaria eram tal, que um surdo de nascença ficaria sâo.

O ondular das cabeças e vaivéns produzidos pelos movimentos contrários, revolviam as massas dos espectadores; parecia o movimento confuso das vagas, quando balidas pela tempestade, se quebram espumantes.

Vasco ainda não tinha chegado ao seu destino, quando um grande ruido de trombetas e timbales se ouvio do lado esquerdo. O povo se pretendia avançar encontrava uma barreira inespugnavel, que se lhe oppunha forte e tenazmente. Eram os homens de armas e besteiros, que não deixavam avançar ninguém, alem das garupas dos corcéis. Todos queriam ver o monarcha e a luzida companhia. Mas como o terreno não era elástico, como as consciências de alguns funccionarios de hoje, o desenlace de tanta concorrência, é que mais do uma matrona morreu esmagada. Seus gritos afflictivos lá se perdiam entre o alarido das vozes, relinchos dos coroeis e sons dos bélicos instrumentos.

O cortejo era mais guerreiro que deslumbrante. Na frente caminhavam os arautos passavantes. Seguiam-se os officiaes da casa de El-Rei. D. AfTonso montava n'um soberbo cavallo branco. Suas armas eram do mais polido aço. A sella mourisca tauxeada de ouro e prata assentava no dorso do seu cavallo de batalha.

Affonso estava no vigor da idade. Sua estatura agigantada e formas rebustas, davam-lhe um aspecto formidavel, que infundia respeito, não obstante a regularidade das suas feições e belleza varonil.

Montada em lindo palafrem murzello, caminhava a muito formosa rainha D. Mafalda, uma das mais interessantes damas do seu tempo. Seguiam-na as damas, cujas galas vistosas e formosa louçania, faziam sobresair a belleza variegada de tantos adornos e juventude. Em torno das damas caminhavam os differentes ricos homens e infanções seguidos de numerosa comitiva.

A variedade das armas e balsões, a differença das cores e divisas dos escudos, e as ondulações das plumas que dos capacetes caiam, completavam o luzimento do tão soberba cavalgada.

«Viva El-Rei». Foi o brado geral que resoou enthusiasticamente entre os numerosos vassallos do rei Affonso.

Foi um brado unanime, que saindo do coração, era um protesto solemne, contra as pretensões de Leão e Castella, caso as fizesse reviver. Era um brado tâo livre como dedicado para com o rei soldado, que sobre as ruinas do crescente fez tremular o estandarte da cruz. Era um brado solemne, que ainda resoava em Coimbra, como ha cinco annos nos campos de Ourique em ll39.

O séquito real atravessou impávido pelas ruas e vielas até ao logar da liça. A corte tomou o logar de distincção, que lhe pertencia e depois todos os mais filhos-d'algos e mais senhores pela sua ordem.

A corte estava radiante de belleza e magnificência. A rainha D. Mafalda era uma das damas mais interessantes do seu tempo; mas não obstante os dotes que a natureza lhe concedera, não eclipsava a formosura das damas portuguezas.

O lampejar das pedrarias, reunido á riqueza dos estofos e bordados, se não deslumbrassem a mocidade de hoje, fazel-a-hiam maravilhar de tanta grandeza reunida a tanto barbarismo.

Não criminamos os homens. Condemnamos seus hábitos selvagens, e a tendência da epocha para o monopólio, de tudo quanto podia amenisar aquelles caracteres nobres e simples, que adornados com as luzes da civilisoção seriam completos.

Os tangedores dos instrumentos desempenharam algumas peças de musica análogas á epocha. A musica era guerreira e digna do assumpto. O triste clangor dos clarins, o som vivido das charamellas e trombetas contrastava singularmente com as vozes melodiosas dos anafis e doçainas. Os tambores batendo compaço produziam um effeito tão imponente, que mais de um peão sentiu arripear-se-lhe as carnes.

A liça ia breve começar. Uma extensa linha de cavalleiros se via postada em frente da tribuna real. O que esperavam elles? Aguardavam a sorte par'a saberem, a qual pertenceria a honra de quebrar uma lança com o grande Affonso, considerado como o primeiro cavalleiro de toda a Hespanha.

A linha dos mantenedores era mais guerreira que luzida e mais briosa de que brilhante. As cores variegadas das armaduras e divisas davam-lhes um aspecto singular e atrahente. E se cada um guerreiro não tinha em si a riqueza de um Cresos, tinha a bravura dos heroes e a força de um Hercules.

O rei não se fez esperar. Entrou por uma porta lateral para a estacada, aonde os vivas novamente resoaram. Os cavalleiros e infanções que se achavam nos estrados levantaram-se respeitosamente, em quanto que o povo proseguia victoriando o monarcha, que por tantas vezes o conduzira á victoria nos campos de batalha.

Um arauto apresentou as sortes.

Todos os cavalleiros tiraram a que lhe pertencia.

Na extrema esíjiicrila da extensa linha dos cavalleiros, achava-se um joven guerreiro, cujas armas inteiramente negras, lhe davam um aspecto sombrio e quasi medonho; pulava-lhe o coração de alegria, quando se lembrava, que a sorte lhe podia dar a honra de se medir com o rei. Ninguém o conhecia, e se alguém lhe tinha prestado attençâo, era pela singularidade da sua armadura.

Foi o ultimo a tirar sorte. E viu que a preferencia lhe estava reservada. Todos o contemplaram invejando-lhe a ventura.

Não havia que esperar; sairam os demais ficando senhores da arena os dois campeões.

Depois dos cumprimentos do estylo, exigidos pelos regulamentos da cavallaria, tomaram as posições convenientes. Os espectadores estavam mudos e arquejantes. O aspecto do cavalleiro negro contrastava com o de Affonso, e a negridão das suas armas fazia sobresair a brancura das do monarcha.

Os arautos deram o signal, e os trombetas tocaram, e ainda bem os sons não tinham expirado, quando os dois cavalleiros de lança em riste, envoltos n'um turbilhão de poeira se arremeçaram ao encontro um do outro. Pareciam duas montanhas de ferro, que se moviam pelo motor de um forte machinismo.

As distancias que tomaram eram o sufficiente para os corcéis ganharem grande força, pela velocidade e extensão da carreira. As lanças encontraram-se e o choque foi terrível, bateram de encontro aos escudos adversários e voaram em pedaços, como se fossem duas canas!

Os cavallos recuaram dois passos e assentaram as garupas na arena; mas os cavalleiros firmes nas sellas como um rochedo, soffrearam-nos rijamente até se levantarem, mas nenhum perdeu os estribos!

Não havia vencido nem vencedor. Affonso acabava de encontrar uma lança formidável, n'um mancebo desconhecido. O rei levado pelo enthusiasrao do seu génio cavalleiroso, bradou como em delírio. «Por Deus e por São Thiago ! Quem sois cavalleiro? Dae-me a vossa mâo; olhae que não ha vencido nem vencedor, mas deveis considerar um triumpho a gloria que acabaes de conquistar! Tocae, tangedores, os instrumentos, proclamando triumphante este nobre cavalleiro!»

Os tangedores cumpriram as ordens e os instrumentos tocaram. As damas agitaram os lenços e as pontas dos veus; o enthusiasmo foi geral!

Affonso tomou assento junto da rainha, em quanto que Vasco de Sousa se retirava garbosamente pela porta da esquerda.

Differentes cavalleiros vieram á arena, mas os resultados parciaes a nenhum deu o triumpho.

Uma hora ainda restava para a conclusão do torneio.

Pela porta entrararam dois contendores. Um era o valente Sr. da Maia, o outro Vasco de Sousa.

Vasco mostrou-se cortez mandando-lhe cartel para quebrar com elle uma lança, e com mais algum cavalleiro que o quizesse honrar.

A gloria é tão veloz como a deshonra. A reputação de Vasco estava estabelecida; e o Sr. da Maia recordando o pedido que lhe fizera na estrada de Coimbra, acceitou satisfeito o convite do joven campeão.

Os contendores tomaram as distancias competentes e metteram a galope. Ires lanças se quebraram sem que se movessem da sella; os cavallos dobrando os jarretes com a violência dos choques, foram mais fracos de que os cavalleiros!

Á quarta lança, porem, arrebentaram as cilhas do cavallo em que montava o Sr. da Maia, e o valente guerreiro caiu de costas na arena! O triumpho pertenceu a Vasco de Sousa, porque um cevalleiro estava desmontado. Um outro contendor se apresentou, vestindo rica armadura.

Receber uma lança da mão de um pagem e correr a galope para o novo mantenedor, foi uma e a mesma cousa. Os cavalleiros encontraram-se, mas Vasco ao primeiro bote o arremeçou da cela a grande distancia!

Os arautos proclamaram que o mantenedor vencido era D. Paio de Sarmento. Vasco recuou espavorido, e arrancando da espada correu para elle, que de pé o aguardava!

Ia travar-se uma luta de morte: mas a hora soou e os arautos bradaram que o torneio tinha findado!

Vasco metteu a espada na bainha e disse para D. Paio.

«D. Cavalleiro, ficará o nosso encontro para melhor occasiâo. Olhae que me não haveis de fugir!»

Estas palavras foram pronunciadas com tanto rancor, que foram callar-se no peito do guerreiro, como a lamina fulguente de um punhal milanez!

D. Paio estremeceu; foi para responder, mas Vasco voltando-lhe as costas, saiu da estacada.

N'uma sala do alcaçar de Coimbra, tinha logar um grande festim em honra do cavalleiro vencedor das justas e torneios.

A sala era vasta. Suas esguias janellas estavam abertas; e os capiteis e columnatas elegantemente adornados de fustões e lacarias.

Os menestréis tocavam e os trovadores cantavam; em quanto que nas almandraquexas e escabellos, alguns cavalleiros assentados, conversavam e riam sobre os acontecimentos da liça.

A rainha retirou-se mais as damas do seu séquito, ficando Affonso, pois que o seu logar era junto dos guerreiros.

Affonso occupava o logar de honra, Vasco assentado á sua direita era alvo das maiores attenções; e o franco lidador bebeu mais de uma vez, á saúde do filho do seu amigo e companheiro d'armas.

D. Paio de Sarmento estava frio e carrancudo. Seu olhar era imbaciado, o gesto feroz e os movimentos contrafeitos. Quem o analyzasse ler-lhe-hia nos lábios um sorriso satânico, e nas faces lividas povoadas de raros cabellos, um projecto de vingança atroz e covarde, próprio d'aquella alma identificada com o crime.

Seriam duas horas da noite, Affonso propoz um brinde ao seu competidor.

Todos os cavalleiros applaudiram enthusiasmados, á excepção de D. Paio, que deixou cair o copo, para uão beber em honra do seu inimigo.

Affonso disso alegremente para os guerreiros:

«Nobres ricos homens e iníanções de Portugal; hoje o rir do festim, ánianiiã os perigos da guerra! Breve teremos novas lides. Bofé, cavalleiros, dou-me por satisfeito por ter encontrado uma lança, que pode competir com as melhores de Portugal. É mais um campeão da cruz e da pátria que ali temos, Affonso apontou para Vasco, que nos fará honra nos campos de batalha. Eia, cavalleiros! Por Deus e pela Virgem, não descançarei em quanto não tremular o estandarte da Cruz, sobre as ameias do Castello de Lisboa.»

Os gritos e os bravos provaram, que os cavalleiros portuguezes eram os mesmos, promptos sempre a voar aos combates. A victoria estava certa, toda vez que o valente monarcha a indicasse com a ponta da espada.

Vasco de Sousa levado pelo enthusiasmado, demonstrou as leaes inspirações da sua alma:

«Nobres ricos homens e infançôes, a honra que a sorte me destinou, pela primeira vez que pizei uma arena, será para mim de eterna recordação.

A gloria de quebrar uma lança com o nosso monarcha, será no futuro um preceito, para morrer no serviço de Deus e da pátria! Eia, cavalleiros, voemos aos combates, e lá entre nuvens de poeira e montões de cadáveres, ergamos alto o estandarte da Cruz. Eia até Lisboa, cavalleiros, mas olhae que na rota d'essa soberba cidade, devemos parar em Santarém.»

As palavras de Vasco foram de um effeito magnético. Os brados reboaram pelas vastas abobadas, e fugindo de echo em echo, perderam-se como o gemido mórbido em leito de dor.

Affonso abraçou o cavalleiro donzel, que tantas sympathias adquirira.

Affonso era generoso como lodos os grandes homens. D. Paio vingativo e de espirito acanhado.

«D. Paio, abraçae Vasco de Sousa! Honrai-vos de o ter por vencedor! É um valente e leal cavalleiro como seu pae.

As palavras do rei produziram wma sensação geral. Ninguém ignorava os amores de D. Paio, e o trágico fim de Bento de Sousa! Mudos como espectros, seguiam os movimentos dos dois cavalleiros, que interiormente sustentavam uma luta terrrivel.

Um queria dominar o desejo de vingar a morte do pae, outro a raiva concentrada, a inveja e o orgulho offendido. Mas a ordem do rei era positiva. Recuar era desobedecer.

D. Paio retirou-se. Não podia conter o desespero. Quanto a Vasco não ficou possuido de melhores intenções. Uma hora depois saiam todos os cavalleiros e desappareciam entre as tortuosas ruas e vielas da nobre cidade de Coimbra, que meiga se balouçava nas margens do Mondego.

Vasco foi o ultimo que se retirou. Montou a cavallo e dirigiu-se para a estalagem de Mestre Pereira Forcado.

CAPÍTULO III

JORNADA E ENCONTRO

A côrte de Affonso acostumada á cota e á servilheira e ao bolicio da guerra, apenas sonhava novas emprezas aonde podesse desenvolver a sua bravura.

Estamos no dia 30 de abril de 1144. N'uma bella salla, passeia um homem de quarenta annos. Sua estatura é elevada. Rosto comprido, macilento e pouco povoado de barba. Os olhos de um amarello deslavado. A bocca grande e os lábios delgados. Seu bigode é tão eriçado e mesquinho que se lhe podem contar os cabellos.

Um vasto roupão de tella de seda, apertado com um cinto de couro, uma gorra de peles e uns sapatos de bico revirado completam, os adornos do filho-d'algo, que parece meditar.

Abriu-se uma porta lateral. Um homem, trajando as vestes de pregrino entrou. Sua esclavina negra e larga carapuça davam-lhe mais o aspecto de um salteador, do que de um pacifico romeiro. Um grosso bordão ferrado, completavam os atavios d'este singular personagem, que pelo aspecto feroz e olhar sinistro demonstrava ser um scelerado.

D. Paio parou admirado e contemplou-o; o desconhecido avançou cumprimentando-o com certo desembaraço.

D. Paio olbou-o de alto a baixo! Analysou-o como se fora a primeira vez que o via.

Mas elle supportou esse olhar, investigador conservando-se íirme sem altivez, e respeitoso sem humilhação.

O cavalleiro foi o primeiro a fallar:

«Quem te mandou aqui?»

«O Pedro, respondeu elle.

D. Paio pareceu ficar satisfeito, e proseguio:

«Que senha te deram?»

«Lorvão.»

D. Paio deu três ou quatro passos e parou:

«Desejo saber o que fizestes, o que pretendes e se estás resolvido a cumprir o que de ti exijo. Olhae! Se me atraiçoas mando buscar-te ao inferno, para te dependurar no mais alto carvalho, que tiver nos meus feudos e senhorios. Mas se me servires bem, não te faltarão honras e muito ouro.»

O homem pareceu não se intimidar com as ameaças nem enthusiasmar com as promessas ! Olhou para o nobre rico homem e encolheu os hombros.

«Para que estaes a fazer promessas que nunca haveis de cumprir ? Julgaes por ventura que Raymundo, por alcunha o incendiário, tem medo de alguma cousa, a não ser da justiça de Deus ?

D. Paio cortou-lhe a palavra: Pois que ! Atraveste a fallar da justiça de Deus? Tu um assassino!

«Porque não? E o nobre rico homem senhor do solar do Limia não se intitula cavalleiro da cruz!?»

D. Paio era orgulhoso como todas as almas acanhadas. Seus olhos scinlillaram de raiva! Avançou para Raymundo com os punhos cerrados:

«Miserável! Esqueces que fallas a um nobre cavalleiro?!»

Raymundo era um doestes caracteres frios, que praticam o crime por habito e necessidade. Não era homem que se intimidasse. Olhou para D. Paio e disse-lhe sem se lhe notar a menor alteração. Foi como se fallasse com o seu maior amigo:

«Quando o sr. D. Paio de Sarmento me mandou chamar para se utilisar dos meus serviços, não foi para me insultar nem ameaçar. Se me não queria ouvir não fallasse comigo e se lhe não agradam as minhas palavras não as provocasse.»

«Qual é a missão de que me pretende encarregar? Digo-lha por que já a sei:

Trata-se de matar um cavalleiro que lhe faz sombra, e que em três dias deve estar na rota de Lorvão.»

«Não venho receber nem dar lições. Despreso as grandes promesssas e riu-me dos castigos que me desejam applicar.»

«Tenho muitos companheiros dedicados e sempre promptos para a vingança.»

«Quero quarenta marcos de prata para depenar o homem »

Estendeu a mão para D. Paio, que pasmou de tamanha audácia.

Raymundo vendo a sua exitação, disse-lhe era tom desabrido:

«Vamos, senhor! É desatar os cordões da bolça, porque com palavras não se faz nada.»

D. Paio reconheceu o caracter atrevido do homem com que tratava, e viu que capitulando era o único meio de triumphar. Mudou de opinião. E o tom insinuante da sua voz assemelhava-se ao silvo da serpente ou ao grunhido do chacal!

«Sois um bravo! Agrada-me a tua resolução! Pega, aqui tens os quarenta marcos de prata que exiges. São para ti ; mas se a vingança for completa, vem receber outro tanto para os teus valentes camaradas. Deu-lhe uma pesada bolsa que elle recebeu satisfeito.

«Isto agora é outro cantar ! Vou tratar de cumprir as vossas ordens. Mas olhae, se a execução não poder ter logar por qualquer motivo, dinheiro recebido não tem entrega. É este o nosso ponto de fé.»

«D. Paio fez uma careta, pois tinha tanto de miserável como de malvado- E os quarenta marcos, que logo julgou perdidos, ficaram a beliscar-lhe na consciência.

«Não havemos de ralhar. Espero da tua boa estrella que Vasco não chegue a Lorvão. Mas olha que é uma das melhores lanças que conheço!»

«É o mesmo, senhor. Eu também por lá tenho alguns rapazes que não são esmagados.» Cumprimentou D. Paio e saiu tão mysteriosamente como entrou.

N'uma antiga rua de Coimbra, estreita, suja e tortuosa, havia do lado esquerdo junto á esquina, uma casa de venda ou bodega, aonde se reuniam todas as noites os vadios da nobre cidade e suas convesinhanças.

Em nenhuma parte como ali se fazia tão bem um prato de dobrada, mimo que nas melhores mezas d'aquella epocha era sempre festejado; e mais de um santo abbade morreu de indegestão por causa de tão apetitoso guisado.

Mestre Alexandre Caveira era um antigo ferrador dos ginetes acostados do muito poderoso conde D. Henrique. Tinha numerosa prole, e ainda hoje alguns dos seus descendentes se intitulam fidalgos!

Mestre Alexandre era um honrado burguez, que recolhido na sua casa se entregava a bem servir os freguezos, sem se encommodar com as suas occupaçôes, toda vez que lhe pagassem.

Mas era guardar do contrarior, porque então não havia inimigo peior. Tudo esquadrinhava e sabia para se vingar. Tinha dois irmãos, um singrava um pequeno barco pelas margens do Mondego e o outro tinha uma atafona. Era moleiro.

Cavalleiros, palaferneiros e rufiões de encruzilhada, eram, por assim dizer, os constantes freguezes d'esta sumptuosa e popular taberna.

Mestre Alexandre dava um esplendido banquete aos seus frcguezes. Ignoramos a causa.

Entremos n'este antro alumiado por uma grande candea, cuja torcida ensopada em azeite de peixe deita um fumo negro e fetido. A luz que espalha é fraca e incerta, por causa das grandes correntes de ar, que entram pelas frestas d'esta nogenta espelunca.

Viam-se algumas vasilhas com vinho, e mezas de pinho cheias de nódoas.

Ao canto da lareira duas formidáveis caçarolas, exhalam um cheiro de refugado, que faria nausear um canibal!

Uma matrona assentada n'um banco de madeira vigia uma rapariga, de rosto repellente e gadelhas emmaranhadas, que com uma colher de pau dá volta ao guisado.

Um homem de estatura regular, magro e rosto alegre, passeia tão ousado, como qualquer rico homem nas salas do seu nobre alcaçar. É mestre Alexandre, que espera os seus convivas.

Dois homens entraram e tomaram assento. Um teria, quando muito, trinta e sete annos. Tinha hombros largos, longos bigodes negros e olhar penetrante. Quanto ao outro teria quarenta aunos, mas era robusto.

O traajo destes dois estranhos personagens, era meio militar e meio á paisana. Uns balgões de couro grosso, bragas largas e curtas de borel, gorros da mesma fazenda, e uma espécie de sotaina ou esclavina sem mangas, lhes completava o vestuário. Os dois homens entraram sem dar palavra. O mais velho depois de fazer alguns gestos ao companheiro, mandou vir vinho, e mestre Alexandre sempre solicito no serviço dos freguezes, correu a receber as suas ordens, não obstante serem-lhe desconhecidas aquellas caras.

Um espaçoso cangirão cheio de vinho e duas altamias foram postas sobre a meza.

Os homens beberam, mas sempre calados e contemplativos, como quem esperava alguma cousa extraordinária.

A tasca de mestre Alexandre ia enchendo-se paulatinamente com os freguezes, que esperavam saborear a ceia, offerecida pelo digno tasqueiro, vulto importante entre os ferradores seus contemporâneos.

O numero crescia sensivelmente, até que mestre Alexandre vendo, que nâo faltava nenhum dos seus dignos convidados, deliberou fechar a porta, por serem já dez horas da noite.

O seu primeiro desejo foi descartar-se do importuno, que ainda se conservava, nao obstante ter-se retirado o seu companheiro. Receiava alguma pendencia com os vadios que ali se reuniam; mas olhando para elle, via n'aquella cara tanta resolução, que se deixava ficar quieto. Julgou prudente nâo lhe dizer nada para se livrar de desordens e brigas.

As mezas estavam cercadas de indivíduos, que pela maior parte nâo tinham eira nem beira. As suas physioiiomias denunciavam, que a virtude nunca se alvergara n'aquelles prostybulos humanos.

Mestre Alexandre conheceu, que todos elles desejavam saber quem era o desconhecido ; mas fazendo que os não comprehendia, nunca respondeu ás suas constantes perguntas.

Dirigiu-lhe a palavra e perguntou-lhe affectuosamente se queria utilisar-se da ceia.

Paulo, por costume ou distraçâo, nâo respondeu nada, continuando o cangirâo a merecer-lhe todas as attenções.

Mestre Alexandre sempre prudente, concluiu que o homem dos bigodes, era mudo e surdo, e convencido disto fel-o constar aos seus comensaes, que satisfeitos de verem a ceia na meza acceitaram as explicações, entregando-se desafogadamente ás suas conversações de interesse mais predilecto.

Uma grande travessa de pau cheia de dobrada se achava no centro de cada meza. Alem d'este importante manjar, havia a bella forçura de carneiro, azeitonas e conserva. O vinho era bom e abundante.

Entre o numero de'stes vadios viam-se dois homens, cujas maneiras repugnantes e sórdidas excediam em asquerosidade a todos. Já esquentados com o vinho e julgando nâo serem ouvidos, principiaram a fallar:

«Attençâo, camaradas I É calar e ouvir, que temos cousas de grande interesse a dizer!»

Todas aquellas bocas se escancarraram monstruosamente.

Mestre Alexandre era o homem mais curioso do mundo, chegou-se para mais perto, convidando a digna esposa a fazer o mesmo, por muito bem saber, quanto lhe agradavam estas cousas.

Paulo ouviu o preambulo da conversação, mas nao fez caso.

«É, rapazes, vamos á historia. Todos vocês conhecem o nosso capitão o grande Raymundo incendiário.»

Um gesto de approvaçâo se viu n'aquelles rostos avinhados e de grande desvergonhamento. E o homem proseguiu :

«Escuso de o elogiar, nao ha nenhum que lhe não tenha experimentado a munificiencia do seu pulso de ferro, e da larga bolsa, sempre á disposição dos amigos, como a do viajante.

Paulo com quanto distrahido, prestava todavia attençao ao singular arrasoado do bandido, termo que perfeitamente lhe acertava.

«Haverá, pois, três dias, continuou elle, foi chamado ao solar de um grande e poderoso rico homem !

Todos abriram os olhos esgasiados. Mestre Alexandre olhou para a cara metade, mas estava tão imbebida no discurso, que nãe deu pelos olhares do esposo.

«Pois é verdade, que Raymundo foi chamado a casa de um poderoso rico homem?»

«Silencio, quando não callo-me» disse o historiador.

«É tão verdade, como a luz ser luz e o vinho embebedar. Foi á presença d'elle e... O homem disse muito baixo para os companheiros, e encarregou-o de assassinar um grande senhor filho-d'algo, que em três dias deve estar na rota de Lorvão! Deu quarenta marcos de prata, e prometteu dar-lhe mais se o frango for estrangulado.

«Boa quantia! Vale a pena depenar uma alma d'este mundo por uma continha tão redonda, disse mestre Alexandre com a maior naturalidade. Pelo que já os leitores vêem que o nosso taberneiro tinha tão boa alma, como os assassinos que lhe faziam a corte.

Paulo ouviu tudo, nâo obstante o bandido ter fallado muito baixo. Sentiu gellar-se-lhe o sangue nas veias e um arrepiamento lhe percorreu a espinha dorsal.

Conheceu o perigo em que se achava seu amo, mas de que, graças á providencia estava salvo.

Paulo conservou-se socegado, verificando todavia se ainda ao lado tinha a espada.

O bandido proseguiu. Ora vamos, rapazes, é refrescar a guela com mais algum trago. As altamias foram despejadas e a embriaguez augmentou.

Mestre Alexandre beliscado pela curiosidade, perguntou com o maior interesse: «Mas quem é esse poderoso rico homem?»

«Isso agora é segredo! mas vá lá.»

«E aquelle melro dorme, está bêbado ou é surdo?

«Podes fallar á vontade. Não ouve. Alem d'isso como vês está a dormir. Então vamos avial-o... Paulo não se moveu mas fez saltar o montante da bainha.

«Para que se ha de matar um homem que dorme? Disse um dos scelerados.

«Vá lá, se dorme e é surdo podemos fallar á vontade.»

O poderoso rico homem é o sr. D. Paio de Sarmento, e o cavalleiro que deseja morto é esse bello mancebo, que obteve o premio nos últimos torneios. É uma pena matar tão exforçado rapaz; mas quarenta marcos de prata é dinheiro!

Paulo estremeceu! Ia para os acutilar a todos, mas conteve-se. Limitou-se a fazer o papel de mudo, que perfeitamente lhe assentava.

O bolicio e algazarra augmentou, até que Paulo fingindo acordar, bocejou, ergueu a cabeça e olhou desvairado.

Mestre Alexandre agarrou n'uma escudella de vinho e offereceu-lh'a com o maior affecto. Paulo fez que não entendia.

Mas o nosso taberneiro não se deu por vencido, insistiu gritando tanto, que faria resussitar um morto.

Paulo sustentou mnravilhosamenle o seu papel, respondeu com um grunhido ou expressão gotoral, como as que os mudos dão, quando manifestam dor por lhes faltar a pronuncia.

Fez um gesto significalivo para a porta, dando a entender que desejava sair.

Mestre Alexandre disse em triumpho:

«Não vos disse que era mudo ?» Levantou a tranqueira t Paulo em menos de um segundo achava-se ao fresco da noite.

A noite estava escura. Uma nebrina espessa cobria a atmosphera, não obstante ser em maio. Caminhou cautelosamente, encostando-se ás paredes.

Encontrou ao lado esquerdo um telheiro. Escondeu-se entre os pilares e esperou.

Seriam duas horas da noite. A embriaguez na taberna de mestre Alexandre tinha tomado um caracter serio. Deu-Ihes para brigar! e como o villico não era para graças, tratou de os pôr na rua.

«Rapazes! É andar! N'esta casa come-se e bebe-se, mas não se briga nem dorme.» O antigo ferrador dos ginetes acostados do conde D. Henrique, disse estas palavras tão peremptoriamente, que todos, embriagados como estavam, trataram de seguir ao seu destino.

Paulo conservava-se silencioso, e quem passasse, por melhor vista que tivesse, não o differençaria.

Pela comprida e tortuosa rua enxergou dois vultos, que em zig-zags, caminhavam de vagar e com passo incerto.

Pelas palavras soltas e mal articuladas, conheceu serem os que esperava. Puchou do punhal, veriflcou a lamina e esperou. Um dos homens tomou á direita, mas o outro seguiu arrumando-se pelas paredes e bocejando alguns sons, que o ouvido mais atilado não poderia comprehender.

Paulo agarrou-o pelas goelas. Ia para gritar, mas vendo o punhal na garganta ficou quieto. Tremeu! Era um covarde.

Já não estava embriegado. O susto operou completa reacção. Achava-se no perfeito uso das faculdades intellectuaes, e se assim não fora não teria comprehendido o perigo.

Um salteador de profissão, nem sempre é um valente! E n'este encontramos a justificação. Olhou aterrorisado para Paulo e lendo-lhe na physionomia a intenção de o matar, disse com voz suffocada pelo terror:

«Por S. Thiago, meu nobre senhor! não me mate!»

Paulo, que cada palavra parecia custar-lhe uma onça de sangue, respondeu-lhe: «Anda! Não dês um passo para fugires. Quando não!... Mostrou-lhe a folha do montante, que fulgiu como o raio em noite de tempestade.

O miserável seguiu adiante de Paulo, que lhe ia tocando nas costas para o prevenir, de que se tentasse fugir a morte lhe cortaria os passos.

Atravessaram algumas ruas, e tomando á direita foram bater á porta da estalagem de mestre Pereira Forcado.

N'uma pequena sala passeiava o nosso heroe, recordando os acontecimentos de tão pouco tempo.

Sentiu abrir a porta e ficou maravilhado de ver entrar um homem, que mais morto de que vivo, tropeçava a cada passo.

Paulo fechou a porta, mas não disse uma palavra. Vasco, com quanto de um caracter dócil, não gostou da visita, e perguntou-lhe zangado:

«Quem é este homem?»

«Um assassino, senhor!

Vasco impaciente, respondeu arrebatado :

«Por Deus, Paulo! Não me apures a paciência ! Que tenho com esso homem? Se é um assassino como dizes, fizestes mal em m'o apresentar. Melhor seria que o conduzisses ao villico, para o mandar de presente ao carrasco. »

O homem quando ouviu estas palavras deu um gemido, que faria sensibilisar um tigre.

Vasco olhava para elle com attenção, quando Paulo lhe bateu rijamente nas costas.

Voltar-se, lançar-se de joelhos e pedir perdão foram movimentos tão rápidos, que quando Paulo disse : «Anda tratante, conta as tuas proezas a meu amo», já se achava de rastos pedindo misericórdia.

Vasco de Sousa conheceu que o caso era serio. Voltou-se para o bandido e disse-!he : «Falla, mas põe-te de pé. De joelhos só se falia a Deus e ao rei.»

O desgraçado cheio de terror levantou-se, e contou-lhe como estava para ser assassinado na estrada de Lorvão.

Vasco agradeceu a Paulo e leu n'aquella physionomia intelligente o valor incalculável de um servo fiel.

O assassino concluiu contando a maneira porque fora apanhado.

Vasco respondeu-lhe : «Podia mandar-te ao carrasco para te entregar aos disvellos de uma corda, mas nâo quero. Se tens amor á vida e desejas reahabilitar-te, presta-me um serviço. É fácil, mas para mim da mais alta consideração.

Paulo abriu os olhos admirado.

«Que pertenderá elle fazer d'esta isca?»

É o que vamos dizer.

O homem pasmou de tanta generosidade. Cahiu-lhe aos pés a chorar. Mas seriam estas lagrimas de um sincero arrependimen? É o que veremos mais adiante.

«Mandai, senhor, que eu vos obedecerei!» Foram as suas palavras. «Tens a amizade do teu chefe e elle a de D. Paio de Sarmento. Sabes o que de ti exijo? Eu t'o digo.

Quero que te introduzas na confiança de D. Paio. Julgo isto facil... Mas recorda o que te digo hoje. Se me atraiçoas, juro-te pelo sangue de Christo e pelo nome de meu pae, que no inferno que estejas, ahi mesmo te alcançará o ferro da minha lança!»

O homem jurou eterna gratidão e prometteu fazer quanto lhe determinassem.

«Mas, senhor, lhe diz elle, e como se ha de prevenir a emboscada?

«Não te dê cuidado ! Prohibo-te de fallares n'isso. Comprehendes? A emboscada não me tira o somno.

Paulo estava admirado de ver um cavalleiro donzel, com o caracter decidido de um velho guerreiro! Estava absorto. Nunca esperou tanto arrojo e audácia.

O bandido sahiu sob o juramento que prestou, e Vasco uma hora depois dormia tão socegado, como se nada tivera acontecido.

Ás seis horas da manhã montava a cavallo acompanhado do seu fiel escudeiro, e a trote largo seguiam na estrada de Coimbra para Lorvão.

O sol reflectindo nas cumeadas das montanhas, espargia seus brilhantes raios pelas differentes quebradas; e passando aos valles, atravez da densidade dos arvoredos, levava o seu vivificante brilho.

A estrada de Coimbra a Lorvão, era uma das peiores entre todas as más estradas, que n'aquella epocha possuía o nosso bom Portugal.

Uma vasta floresta se estendia á direita, em quanto que á esquerda lhe ficavam campos incultos e algumas penedias.

O caminho era desigual e cheio de barrancos.

Por duas ou três vezes tinham os ginetes tropeçado nas desigualdades do terreno, e os cavalleiros resolveram caminhar mais devagar.

Seriam sete horas da manhã quando atravessaram a matta, cujos altos carvalhos e sobreiros pareciam tocar as nuvens.

Subiram uma grande encosta, e quando coroaram o cabeço, avistaram ao longe umas andas, ou liteira, escoltada por dois cavalleiros.

Ouviram o som das campainhas dos ginetes ou muares que a conduziam. Ora, como o fim do nosso heroe não era buscar aventuras, não apressou o passo do brioso corcel.

O calor era intenso; chegaram finalmente aonde o emmaranhado da floresta era maior, e caminharam cautelosos.

Perderam de vista a liteira e o seu pequeno séquito, que se encobriu n'uma grande curvatura da estrada. O som das campainhas continuou a ouvir-se. Vasco, sem mesmo querer, accelerou o passo do cavallo, e n'um trote curto atravessaram a selva.

Os reptis fugiam amedrontados ; e atravez das urses, giestas e altas montas de asinho, se differençavam os lombos esverdinhados dos lagartos, que arquejantes aguardavam a passagem dos viajantes, para se entregarem novamente ao prazer do sol.

Caminharam um quarto de hora, sem o menor incidente. O tinir dos guisos e campainhas já se ouvia muito mais perto, quando um prolongado assobio resoou atravez dos matagaes.

O primeiro movimento de Vasco foi supiar o cavallo, que sentindo-se tratar tão bruscamente levantou as patas dianteiras com tanta violência, que se o cavalleiro não fora tão experimentado, teria caido, quando as assentou no chão, e o sacudiu com violência.

Vasco não se intimidou, afagou o nobre corcel -.«Paulo, julgo que nâo estaremos longe dos homens.» Quando pronunciou estas palavras já elle eslava de lança em guarda e tão firme na sella, que mais parecia uma estatua do que um cavalleiro armado de todas as armas.

A grande galope atravessaram o resto da selva. Entraram na estrada e vencendo uma grande rampa, seguiram envoltos em nuvens de poeira.

Gritos de soccorro e tinir de armas se ouviram distinctamente.

«Paulo, disse elle, os nossos amigos assaltaram algumas velhas donas, julgando-as cavalleiros avesados ao lidar dos combates.

A duzentos passos de distancia avistaram a liteira cercada de um bando de salteadores ; em quanto que os dois cavalleiros bravamente a defendiam.

Vasco não contou o numero dos assassinos. Cahiu sobre elles de lança em riste; e ao primeiro bote estendeu por terra um, mettendolhe o ferro da lança pelo gorjal, junto ao barbote. Paulo com a acha de armas era como o anjo exterminador, abatendo as cabeças que a terrível arma encontrava.

Os bandidos tentaram defender-se, mas apertados pelos novos campeões e pelos dois cavalleiro, que com o soccoro cobraram animo, tomaram a fuga.

A berlinda achava-se quebrada no meio da estrada.

Vasco apeou-se e ficou sabendo, que a pequena cavalgada que soccorrera, era de gente agarena. A berlinda estava ermeticamente fechada. E das portas cabiam duas cortinas de seda, que as fechavam por tal forma que o fez scismar e ser curioso.

Um dos cavalleiros teria quando muito cincoenta annos. Sua barba era tão branca e densa, que parecia um tecido de frocos de neve. O rosto d'este africano, com quanto de uma cor bronzeada, era todavia engraçado e bastante sympatbico, o que mais se pronunciava pela franqueza dos seus gestos.

Quanto ao segundo era um mancebo de vinte e cinco a vinte e seis annos. Era de alta estatura, rosto comprido e feições regulares.

Teria direito a ser considerado bomem interessante, se no olhar lhe não transparecesse uma expressão maligna e um certo adman que degenerava em ferocidade.

Vasco dirigiu-se ao mais idoso dos cavalleiros:

Cavalleiro o accaso me fez conhecer que sois meu inimigo, tanto pela raça como pela religião.

Um homem de honra não conhece inimigos senão nos campos de batalha. E se os encontra desprotegidos, estende-lhe generosamente a mão e salva-os. Dizendo-lhe todavia: hoje o dever me fez teu amigo e protector, amanhã me fará teu encarniçado inimigo n'um campo de batalha.

Dizei-me comtudo o vosso nome, para au menos saber quem protegi, com quanto saiba por experiência ser um inimigo.

O som harmonioso da sua voz. A expressão elevada das suas palavras. O gesto altivo e ao mesmo tempo bondoso, e finalmente a bravura que desenvolvera, tudo contribuía para lhe dar um aspecto tão magestoso, que o velho africano preplexo nada poude responder.

O cavalleiro joven, que se achava ao lado do ancião, conservou-se mudo e frio como o penedo erguido no centro da tempestade.

O seu gesto não demonstrava gratidão, mas sim um sentimento egoista.

Uma idéa inglória lhe dominava o pensamento, assim como o sorriso sarcástico que se lhe desenhava nos lábios, nâo inspirava senão despreso.

O velho africano respondeu a Vasco:

Sois um bravo e generoso cavalleiro. Olhae e attendei.

Reverenciaes a cruz, nós o crescente. Respeitaes o crucificado, nós Mafoma.

A vossa lei está no evangelho a nossa no Al-Koran.Mas sois homem e adoraes o mesmo Deus, porque Deus é um só.

Confesso-me grato ao serviço que me prestastes e bastante lamento que as mãos amigas de hoje, se tinjam amanhã no sangue de meus irmãos, ou que estes arranquem a vida d'aquelle que salvou de uma morte certa o Walli Alahar de Lisboa...

Vasco ao ouvir pronunciar este nome avançou dois ou tres passos. Os cabellos irriçaram-se-lhe. Os olhos engetaram-se de sangue. Pareciam querer saltar-lhe das orbitas! Uma palidez de morte lhe cobriu as faces e o coração pulsou com violência. Levou incensivelmente a mão á espada com adman tão violento, que o mouro recuou. Aquella phisionomia franca e singela estava tão demudada pelas contracções, que parecia a de Orestes possuído pelas fúrias.

O mouro ademirado de tamanho arrebatamento não podia comprehendel-o.

Mas o dever de cavalleiro dominou o desejo da vingança! O tresvario passou e a razão estabeleceu o seu domínio.

Alahar, lhe diz elle:

Podes seguir teu caminho. Nada temas de mim nem dos meus amigos. Mas foge de me encontrares n'um campo de batalha.

Estas palavras foram pronuciadas com tanta energia, que o velho pareceu sentir calar-se-lhe um agudo punhal atravez do coração. E se não sofreu a dor material, a que experimentou com a tenivel ameaça, não foi inferior.

Mas quando Vasco dominado pelo dever contra a vingança se expressava por esta forma, as cortinas da berlinda abrindo-se, deixaram-lhe ver um rosto de mulher, mas com essa belleza, que só a imaginação pôde crear por algumas vezes, mas que a natureza caprichosa em poucas apresenta.

Era a realidade do ideal! Aquella formosa cabeça transparecendo atravez das cortinas, deixou ver as ondulações dos seus longos e bellos cabellos, cujas tranças pareciam de ébano.

Seus olhos da mesma cor, se não tinham a languidez poética das mulheres do norte, encerravam esse scintillar brilhante que revela uma alma resoluta e um coração apaixonado. A alvura da cútis e seu colo alabastrino encerravam tanta perfeição, que o mais hábil pincel difficilmente os imitaria. Vasco julgou-se presa de um sonho. Seus olhos encontraram os da donzella, que os cravou no mancebo, com tamanha expressão que elle recuou, sentindo um estremecimento geral.

Vasco ia para fallar, mas a joven desappareceu.

Ficou possuido de um sentimento para elle desconhecido. As sensações que experimentou comprehendem-se mas não se descrevem.

Queria fallar mas a lingua prendia-se-lhe e os lábios cerravam-se. Mudo e quedo se conservou alguns momentos, até que erguendo os olhos leu no rosto do joven árabe a raiva e a sede da vingança.

A sua primeira idéa foi cravar-lhe o punhal no coração. Mas qual seria a causa do desespero de Albucem? Odeava por uzo e costume todos os christãos pelo mal que faziam aos agarenos seus irmãos.

Tinha visto o procedimento da donzella e a maneira porque Vasco o comprehendera. Que mais era necessário para desafiar a cólera de Albucem, que amava loucamente a bella Alice, filha do emir de Perea, e sobrinha de Alahar. Não era Alice a mais bella flor de toda a Ásia? Alahar viu no procedimento de sua sobrinha apenas um sentimento de curiosidade proprio nas mulheres, mas Albucem viu mais. Alem da curiosidade, leu nos olhos da donzella a surpreza e o rubor que lhe tinio as faces! Viu o principio de um amor que lhe levrava a sentença de morte! A sua idea foi apunhalar ali mesmo o seu libertador!

Vasco seguiu os movimentos de Albucem e o seu pensamento era inteiramente igual !

Alahar reconheceu que entre ambos haveria um repto de morte, e concluiu que o ciume de Albucem o levaria a praticar uma imprudência.

Paulo sem a menor contracção, conservava-se de pé com os cavallos pela rédea. Tinha a viseira levantada; seu resto tostado pelos ardores do sol e longos bigodes davam-lhe um aspecto feroz.

Com a lança erguida seguia as differentes fases d'este drama original.

Alahar disse a Vasco :

«Seja qual fôr a razão que tens para me odear, julgo que não te arrependestes de praticar uma boa acção?»

«Adeus, mancebo. O ceo vos abençoe e proteja. Eis aqui a minha mão. . . Dizei-me o vosso nome.»

Vasco recusou a mão de Alahar. Saltou para cima do corcel e respondeu-lhe :

«Não posso dizer-te o meu nome! Se o fizesse, teria que te matar! Alahar, entre nós existe um abysmo, e no fundo um lago de sangue!» Cravou os acicates nos flancos do cavallo; e quando olhou para a berlinda viu que dois olhos formosos o seguiam. O fulgor d'aquelle olhar torvou-lhe a vista; mas resoluto a abandonar um local de tantas sensações, cravou com mais violência os acicates no cavallo e desappareceu.

Três quartos de hora depois batia no locotorio dizendo á madre rodeira, que Vasco de Souza desejava fallar a sua irmã D. Elvira de Sousa.

CAPÍTULO IV

VISITA E DESPEDIDA - PRIMEIRAS CORRERIAS

O convento de Lorvão, um dos primeiros monumentos do velho Portugal, é anterior á fundação da monarchia. Era um soberbo edificio aonde a maioria das fidalgas portuguezas recebiam educação.

Aonde a poderiam receber melhor n'uma epocha de barbarismo e ignorância, estando o monopólio das sciencias nos conventos religiosos?

Aonde melhor de que no convento de Lorvão, podiam as nobres donzellas receber uma educação proporcionada a sua elevada gerarchia?

O templo d'este convento de tão gratas recordações, era magestoso e de uma architectura accommodada ao gosto da epocha.

As solemnidades religiosas faziam-se ali como em parte nenhuma.

Os sons melodiosos do órgão acompanhando o canto mavioso das madres e mais donzellas, espalhavam um sentimento piedoso, que o homem de crenças mais fracas sentia-se arrebatar até ao throno do altíssimo !

Os povos concorriam de dez léguas para ouvirem esses hymnos sonoros e melancholicos, que recordam a paixão o morte do Redemptor !

Oh! e quem ha ahi, que ainda hoje não sinta calar-se-lhe na alma um sentimento de aguda sensibilidade, quando ao entrar num templo, houve o cântico poético do Stabat-Matter?

Quem ha tão setico que ao ouvir a musica de uma lamentação em quinta feira maior, se não sinta arrebatar até essas épocas dolorosas, em que Jeremias predezia ao povo israelita o captiveiro da Babilónia?

Quem ha que se não sinta compungido em face d'essa magestade sublme, que inspira um cantochão acompanhado a órgão, cujos sons ora se elevam vividos e impunentes, ora fracos e tímidos como o vagido de uma creança?

Oh! Perdoem-me os leitores esta pequena divagação, filha das santas crenças de meu pae! D'esse virtuoso pae, cujas cinzas tanto respeito pelos seus talentos e virtudes.

Vasco de Sousa bateu no locutório e a madre rodeira chegando á grade respondeu-lhe, que a sr.ª D. Elvira sua irmã estava no coro, e que só depois da festa acabar lhe poderia participar a sua chegada.

Vasco era religioso como todos os mancebos da sua epocha ; mas atravessando tantas e tão variadas circumstancias, esquecera que era domingo.

Dirigiu-se ao templo. Entrou e ajoelhou, fazendo fervorosa oração.

Os momentos não podiam ser mais solemnes! Estava para se encerrar o Senhor!

Em frente do altar mòr os ecclesiasticos de capas de asperges, e o celebrante com a custodia na mão, desempenhava a augusta ceremonia da benção ao povo.

Numeroso concurso se achava no templo de joelhos e de frontes tão baixas, que causavam veneração. Não se ouvia uma voz ! As almas d'aquella humilde gente eleva-

vam-se ao ceo!

Seus corações mais ao menos singelos pediam a Deus perdão das suas manchas e peccados. N'aquella occasião solemne todos baliam nos peitos contrictos, derramando lagrimas de sincera fé e arrependimento.

As madres e donzellas cantavam hymnos ao Altissimo! A musica era bella, triste, melodiosa, poética e original!

As vozes resoavam pelas abobadas acompanhadas do órgão, que tocado habilmente produzia um efeito magnético. Vasco recordou seu pae e virtuosa mãe; chorou de saudade e sentimento!

O joven cavalleiro impressionado pelas vistas da bella Alice, alimentava um sentimento, que até ali lhe fora desconhecido !

Depois da religião que nos ensina a amar a Deus, nada encerra tanta poesia, como casto amor que se dedica a uma donzella. Vasco dominado por estes dois sentimentos, sentiu-se a abatido e para cobrar forças chorou!

Chorou, porque as lagrimas são uma demonstração sublime, quando são verdadeiras.

Chorou a virgem pelo filho amado! o Salvador pelos homens! Choram finalmente, os innocentes quando nascem e o homem quando a alma se desprende e vôa a seio do Creador.

Vasco chorou; mas as suas lagrimas eram sinceras.

As ceremonias religiosas concluíram. Sahiu, dirigiu-so ao locutório, e aguardou por sua irmã.

D. Elvira de Sousa era uma joven de estatura mais que regular, e cujas formas delicadas tornavam-na tão bella como interessante.

Seus longos cabellos louros ondulando-lhe em anneis, davam-lhe a expressão de um anjo. Era o original d'essas virgens, que mais tarde a imaginação ardente de Raphael creou para se immortalisar!

Seus olhos de um azul celeste contrastavam com o resto das suas feições, bellas e regulares.

Vasco olhava para ella ternamente e admirava n'aquelle rosto encantador, um género de formosura, que em nada se aproximava ao de Alice.

Vasco disse para sua irmã : «Venho despedir-me. Amanhã parto para Coimbra e depois para o nosso velho solar da Cham.»

As lagrimas deslisaram pelas faces da donzella, como gotas de orvalho em manhã de primavera.

As palavras de Vasco foram pronunciadas com tanta melancolia, que a joven chorou. Um presentimento fatal a cruciava. Uma voz interior lhe dizia que não seriam estas as ultimas lagrimas que tinha a derramar!

«Vasco! meu querido irmão! Falla francamente, vaes para a guerra?»

Vou. Foi a sua única resposta.

Elvira deixou pender a cabeça, e n'esta posição meditabunda era mais de que interessante! Era adorável!

Ergueu a fronte saccudindo seus longos e annelados cabellos. «Vasco, faz hoje dez annos que nossa virtuosa mãe deu o ultimo suspiro! Ouve e attende-me.»

«Orfã, não tenho outra pessoa que por mim se interesse, alem de ti e de nossa virtuosa tia.»

«Vaes expor a vida pelo serviço de Deus, do rei e da pátria. Podes morrer... A morte é sempre a partilha dos guerreiros, que como tu, se batem por causas tão santas!

«Ainda hoje recordo as dores de nossa mãe e o fim de nosso pae!

«Olha, Vasco, ambos podemos servir a Deus. Tu expondo a vida nas lides sangrentas, eu no claustro, orando por ti e pela pátria.»

«As palavras de Elvira revellavam firmeza e resolução.

O silencio prolongou-se no locutório por alguns momentos, até que Vasco o interrompeu. «És muito creança. As tuas palavras podem ser filhas de uma sincera vocação, quando não tenham origem n'uma causa exagerada. Não me opponho a que te dediques a Deus; mas o que te peço é que não pronuncies voto algum sem me consultares. Peço-te o cumprimento d'este desejo por ti, por mim e pela alma de nosso pae.»

As lagrimas escaldavam-lhe as faces. Sufocado não pôde dizer mais nada.

Elvira chorava; sua tia triste e silenciosa soffria, mas sem esse desafogo das lagrimas, que tanto alliviam! As pessoas que soffrem e não choram, se não soffrem duplamente, é porque a violência da dor é ainda em maior escalla.

Elvira com a voz entrecortada pelos soluços, proseguiu :

«Não peças nada pela alma de nosso pae! Olha, n'esta hora solemne, que talvez seja a derradeira em que te abraço, quero communicar-te um segredo, que vaes considerar creancice!

Sei que sou creança.

Vasco sorriu amargamente.

«Não te rias. O que vou dizer é muito serio.»

«Recordas aquelle dia, em que pela primeira vez me viestes visitar, em companhia de Thiago, que me deu a triste noticia da morte do nosso tio D. João?»

«Recordo, sim; mas que pertendes dizer com isso?»

«Não me acreditarás. Paciência. Mas a contar d'esse dia, por três noites consecutivas, sonhei que nosso pae não estava morto! Que vivia!»

Vasco olhou para ella admirado. Afirmou-se a fim de verificar, se no rosto lhe divisava algum signal de loucura.

Mas não! Uma aureola brilhante lhe cingia a fronte. Parecia inspirada !

«Sonhei tres noites seguidas, que nosso pae se achava captivo em Lisboa.»

Vasco deu um grito, que resoou pela abobada do locutório. Um raio que lhe caísse aos pés não o deixaria mais fulminado ?

Elvira olhava para seu irmão, que soffria muito. Quanto a sua tia estava admirada. I]ra a primeira vez que ouvia a sua sobrinha fallar de um semelhanto sonho. Mas Vasco raciocinou logicamente.

«Que rasões teriam os infiieis para conservarem a vida de meu pae, não tendo perdoado ao mais insignificante homem de armas? Um tal procedimento só tinha uma justificação! O interesse do resgate! Mas não lhe constava que os agarenos tivessem tratado d'isso. Não havia duvida. Era uma simples ficção ; mas que assumia um caracter serio, pela coincidência dos factos.

Vasco despersuadiu sua irmã; mas ella respondeu-lhe:

«Sendo a esperança o único appello dos que sofrem, não me roubes tão doce lenitivo!»

A despedida foi repassada de angustias, como era para esperar de dois corações, que tanto se uniam e comprehendiam.

Vasco ao receber a benção de sua tia, imprimiu nas pálidas faces de sua irmã um osculo, que se não lhe deu mais alento, prometeu-lhe mais esperança no futuro.

Vasco tirou um annel do dedo que lhe apresentou.

«Elvira, toma este annel. Era de nossa mãe! Conserva-o. E uma sania relíquia. Fico com um igual, que pertenceu a nosso pae!

«Recorda o que promettestes. Nâo completes votos antes dos vinte annos e sem me consultares.»

Apertou-lhe a mâo e dez minutos depois, conversava n'um pequeno quarto com o padre capellão, de quem foi hospede até ao romper de alva.

Deixemos Vasco alguns momentos e façamos uma digressão até ao solar de Cham, aonde Thiago em cumprimento das suas ordens, se dedica ao trabalho de realisar um acostamento entre os fieis vassallos do sollar da Cham.

Thiago tudo prevenia com prodigiosa actividade. Cincoenta cavallos de batalha povoavam as cavallariças ; em quanto que outros tantos homens de armas, cem besteiros e fundibularios, recebiam soldo e comiam da caldeira do nobre castellão.

Thiago assistia aos exercícios dos novos guerreiros, adestrados em todos os manejos de cavallaría e peonagem.

Era bello e até mesmo luzido o pequeno corpo de tropas, reunido em torno do balsão de Riba Bestanca. Se não era numeroso era dedicado.

«Andem rapazes, é aprender a ser bons soldados. Olhem que não é pela antiguidade das armaduras e fraldões que se avalia a bravura dos guerreiros, mas sim pela desenvoltura e agilidade nos combates.

Tanto valem os braçaes e coxotes novos como os velhos. O que se pertende é firmeza na sella e braço prompto para mandar a morte aos infiéis.»

Com estas e outras lições de moral, próprias de um velho soldado da idade media, proseguia o nosso mordomo nas occupações diurnas, e á noite nos arranjos domésticos, para que uma boa administração presidisse ás despezas de tão grande solar.

Voltemos, pois, ao joven guerreiro, deixando Thiago dedicado ás suas occupações militares.

Vasco ao romper de alva caminhava na estrada de Coimbra.

A frescura da manhã restitui-lhe a antíga alegria, que perdera desde o encontro com Alahar Walli de Lisboa.

Chegaram ao local da luta. Seu coração desejou ainda ver os olhos negros e scintillantes de Alice! Desejava todavia affastar de si o império d'esta idea, que o dominava; mas a seductora donzella reproduzia-se-lhe na imaginação, tantas vezes quantas tentava esquecel-a!...

Tal é o império do verdadeiro amor; espécie de atração magnética, que vence e verga as almas mais fortes e os corações mais indifferentes!

Caminharam todo o resto da manha e ás nove horas entravam em Coimbra.

Vasco dirigiu-re a casa de D. Paio, mas soube com admiração, que se tinha retirado para o seu castello do Limia.

Ficou irado com a covardia de tão mau cavalleiro ; mudou de tenção e seguiu para o alcaçar, aonde o grande Affonso lhe dera hospedagem.

Coimbra já não estava alegre e buliçosa.

Os cavalleiros e as damas tinham-se retirado, depois de terem concluído os festejos. O que restava na corte eram guerreiros de profissão, que não abandonavam o rei.

Affonso entregava-se á idea das conquistas.

Praticava, por assim dizer, o mesmo que Mahomet II, trezentos annos depois, quando senhor de Andrinoples, ia acordar o seu Grão Visir, para lhe dizer: Quero Constantinopla. Não posso dormir em quanto a não possuir!»

Affonso não dizia tanto. As suas ambições eram mais nobres, comtudo exclamava :

«Quero Lisboa para capital do meu reino, porque n'isso vae o interesse de Deus e dos meus vassallos.»

Affonso interteve o resto da noite conversando sobre esta e outras conquistas, com Vasco e mais alguns ricos homens portuguezes.

Vasco era de um génio activo e emprehendedor. Para elle não havia diffículdades. Tudo superava e transpunha. Não parecia um mancebo, que apenas contava dezenove annos. Era velho nos brios, valente nos perigos, e prudente na resolução.

Caminhava o nosso joven na estrada de Lamego, mas tão silencioso como o seu escudeiro. Achavam-se a três léguas d'esta cidade, aonde desejava demorar-se ao menos três horas, mas os cavallos estavam cançados e precisavam descançar.

Um castello derrocado se avistava ao longe, e como ficava affastado da estrada, Vasco disse a Paulo que fosse saber se estava guarnecido ou liabitado por alguma familia.

Paulo quando chegou junto ao barbacan viu dois homens, que se esconderam logo que o avistaram. Continuou avançando, porque nâo era homem que se prendesse com pequenas cousas. Passou por cima de uma espécie de fosso cheio de entulho e entrou. Não viu ninguém. Tratou de dar parte a Vasco, que já impaciente ia em sua procura.

Paulo assim que o viu disse-lhe :

«Vi dois homens, mas agora não vejo ninguém.

Vasco passou a verificar se haveria na fortaleza alguma entrada desconhecida; mas por mais que procurasse nada encontrou, que justificasse as apprehensões de Paulo.

Ia para se retirar, mas um gemido, que parecia sair de um canto, se ouviu indistinctamente.

Paulo puchou pelo braço de seu amo: «Fujamos senhor! Aqui não ha homens para combater, ha diabos!»

Vasco riu das suas palavras, e admirou-sr de o ouvir fallar tanto: «Se tens medo retira-te.»

Estas palavras foram de um effeito prodigioso. Vasco

vibrara a corda sensível de Paulo, que abriu muito os olhos e respondeu:

«Medo! Quem faffa de medo? Vamos, senhor ao inferno, que ahi mesmo o seguirei!»

Vasco não respondeu e caminhou ao longo da muralha.

Bateu com o coto da lança no chão, mas nada revellava a existência de vãos.

Decidido a retirar-se do castello, bateu na parede e conheceu que era ouca. Revestiu-se de paciência e principiu a experimental-a.

Paulo differençou na junctura da abobada, um pequeno botão como a cabeça de um prego. Carregou com o cabo do punhal, e a lage desprendendo-se, apresentou uma larga passagem e uma escada em aspiral. Não restava duvida. O castello era habitado.

Desceram ambos pela escada, segurando-se a uma corda, para não causem pelos húmidos e escorregadios degraus.

Acharam-se n'um vasto subterrâneo, que não poderam verificar por causa da escuridão.

O ar que se respirava era fétido e impregnado de miasmas merfitícas, que causavam tonturas de cabeça.

Um outro gemido se ouviu, mais próximo.

Vasco atravez da escuridão, conseguiu differençar alguns objectos e entre elles o vulto de um homem.

«Quem quer que soes fallae ! Conheço haver aqui pessoas que soffrem; mas dizei por Deus aonde estão!»

Um outro prolongado gemido se ouviu e uma voz respondeu :

«Se sois cavalleiros e christãos cortae-mo estas ligaduras.»

Vasco viu então distinctalnente um vulto deitado em uma espécie de tarimba, amarrado de pés e mãos. Puchou do punhal e cortou as cordas que lhe apertavam os pulsos e o prendiam a um cepo.

Era um pobre mancebo, abatido pela falta de alimento. Vasco ficou embaraçado quando lhe declarou, que se não podia mover, nâo só pela fraqueza como pelas contusões.

Paulo era o homem mais necessário para as grandes crises. Puchou de uma cabaça e de uma bolsa de couro. E sempre silencioso, agarrou-lhe na cabeça e introduziu-lhe na boca algumas gotas de vinho e dois ou três bocados de biscouto.

Estava salvo! Reanimado pelas gotas de vinho sentiu um calor, que percorrendo-lhe o corpo, o restituiu à vida! Cobrou animo e disse para Vasco n'um dialecto estrangeiro:

«D. cavalleiro, tendes direito á minha eterna gratidão! Vamos, senhor já tenho forças para vos acompanhar.»

Encostado ao hombro de Paulo caminhou até á escada, que subiu a custo.

O ar puro e o calor do sol contribuiram, para que o pobre cavalleiro se restabelecesse de todo.

D. Reinaldo era um mancebo de vinte annos. Alto, bem proporcionado, de rosto expressivo e sympathico.

Vasco não pôde fugir à tentação de ver o subterrâneo todo. Convidou D. Reinaldo, e ambos acompanhados de Paulo tornaram a descer.

Encontraram uma cancella ou portão de ferro, que dava para a campina, que ficava alem d'este velho castello, outr'ora defendido por bravos e dedicados guerreiros, e agora reduzido a um covil de salteadores.

Era claro, que os homens se tinham escapado por ali, não obstante achar-se fechada.

Deram com mais alguns esconderijos, mas em nenhum d'elles encontraram vistigios, de que houvesse ali mais alguns prisioneiros.

A revista domiciliaria estava concluída, e como o fim de Vasco era seguir para o solar da Cham, retirou-se, resolvido comtudo a perguntar a D. Reinaldo, a rasão porque se achava n'aquelle subterrâneo.

Chegaram junto do arruinado barbacan, e montando a cavallo seguiram na estrada de Lamego, aonde entraram duas horas depois.

Não foi preciso que Vasco de Sousa perguntasse ao cavalleiro a rasão, porque se achava no castello arruinado, elle é que julgou seu dever dizer-lhe tudo.

«D. cavalleiro, lhe diz elle, acabaste de me prestar um grande serviço, que por mim será eternamente recordado.»

«Sou aragonez e nasci pobre. Meu pae era um simples cavalleiro, que possuía como única fortuna a sua lança e espada.

«Sou orphão de pae e mãe desde a idade de quinze annos, em que entrei como pagem ao serviço do muito alto e poderoso D. Affonso VIIn, que me deu as esporas de cavalleiro; três annos depois, por ter combatido com vantagem, n'uma arrancada em terras mouriscas.»

«Mas a guerra cessou, e tendo adquirido os habitos de soldado, obtive licença para ir servir sob a bandeira de Affonso, vosso rei. E convidado pelos seus triumphos e boa estrella, puz-me na rota de Coimbra.

«Achavame próximo da fronteira, quando me constou o grande torneio, que n'esta cidade deveria ter logar, em honra da bella rainha D. Mafalda.»

«Resolvi visitar aquella cidade, e na rota de Portugal encontrei bastantes cavalleiros, que acceleradamente se dirigiam para a corte portugueza.»

«Sou pobre e nâo desponho de bellos cavallos de batalha. Não possuo senão o meu nobre alasão, companheiro fiel dos infortúnios.

«Andei todavia de dia e noite ; mas quando bati ás portas de Coimbra já os festejos tinham principiado.

«Fui para uma estalagem, e ahi sube, que quem levara as lampas era um cavalleiro donzel, que apenas tinha dezoito annos, e que o próprio rei lhe calçara as esporas de ouro.»

«Confesso-vos que nunca fui invejoso. Riquezas e altos brasões nunca me desvairaram. A minha maior ambição de hoje é conhecer um tão valente cavalleiro e de formar com elle sincera e profícua aliança.»

Vasco de Sousa gostou da franqueza do cavalleiro por quem já nutria verdadeira estima. E sorrindo alegre disse-lhe :

«Por Deus, meu joven guerreiro! Quem sabe se os vossos votos serão attendidos?»

«Nem sempre se acha a pedra que se arrojou, nem a ventura que se procura ; mas um cavalleiro, que se não esconde, e cuja espada e lança não é de menor extensão de que as dos demais, estae certo, que haveis de encontral-o.»

Olhou furtivamente para o mancebo, que lhe respondeu tão franca e lealmente, como era do seu caracter.

«Deus vos ouça, cavalleiro! E se o encontrar, juro, pelo corpo do nosso patrono S. Thiago, que serei seu verdadeiro amigo na vida e na morte.»

«Consta-me que é rico ; mas no coração de um grande cavalleiro, nunca entra o calculo do ouro.»

Nao fallou de cálculos algébricos, porque só dois ou tres séculos depois, é que a sciencia das quantidades positivas e negativas viu a luz do dia.

D. Reinaldo proseguiu :

«Levado pelo desejo de conhecer um tão valente como feliz campeão, dirigi-me aonde morava, mas disseram-me que se havia ausentado para Lorvão.»

«Fui até lá, perguntei se ali chegara um cavalleiro vindo de Coimbra; mas ninguém me soube responder.»

«Resolvido a viajar, puz-me outra vez na rota de Coimbra, era mais de sol posto.»

«Caminhei a bom picar, não porque o ginete carecesse que os acicates lhe tocassem os ilhaes, mas sim pela necessidade de vencer caminho e achar-me bastante cançado.»

«O sol principiava a esconder-se, e as trevas estendiam seu negro manto pelas vastas planícies, e d'ali aos pincaros mais elevados.»

«Ainda se ouvia o canto da cigarra.»

«Ao longe o balido das ovelhas, e o latido dos rafeiros me annunciavam; que não caminhava n'um deserto.»

«Senti um silvo agudo, como o da serpente, e quando olhei para a direita, vi que uma nuvem de homens armados me cercava por todos os lados.»

«Defendi-me como pôde ; mas seccumbindo ao numero fui ligado sobre um cavallo e conduzido para o castello.»

Vasco olhou para o mancebo nutrindo desconfiança. Mas aquelle rosto tinha o cunho da lealdade e do mais austero cavalheirismo.

As duvidas desappareceram.

«D. cavalleiro, não tendes que me agradecer, e se assim não praticasse teria manchado como um villão o nome de...»

Vasco ia para se denunciar, mas ainda reconsiderou a tempo.

«Sim, o nome de meus antepassados; mas dizei-me, ninguém vos conheceu?

«Ninguém. Lançaram-me sobre a tarimba, em que ainda estava quando me salvasteis.»

«Passados alguns momentos dois homens se chegaram a mim, trazendo archotes.»

«Um d'elles aproximou-se, e depois de me analysar, disse para o companheiro :

«Sois uns tolos ! O sr. D. Paio ha de ficar na verdade milito satisfeito ! Este não é o cavalleiro que elle pertendia ! Lá me parecia, que o fila do escudeiro nâo era capaz de o abandonar.»

Retirou-se tâo depressa, que nem ao menos se despediu do companheiro.»

Vasco conheceu que o mancebo fora apresionado por engano, e que a nao ser isto, se não fosse morto, estaria em poder do seu maior inimigo.»

D. Reinaldo tinha concluído, e Vasco estendeu-lhe affectuosamente a mão.

«Sei que padecesteis por causa de um pobre cavalleiro, que tem inimigos poderosos ! Mas pela cruz da minha espada vos juro, que em recompensa vos apresentarei a D. Vasco de Sousa, visto que assim o desejaes. E juro-vos que será vosso amigo dedicado.»

D. Reinaldo mostrou-se agradecido, e assim entertidos entraram em Lamego.

Pouca demora tiveram n'esta cidade. Seguiram para o solar de Cham, aonde chegaram seriam dez horas da noite.

O luar reflectia atravez das altas janellas do velho alcaçar, e seus raios prateados alumiavam a vasta sala de armas.

Thiago veio receber seu amo, a quem recebeu com o respeito de servo fiel e amor de pae.

«Vinde, meu nobre senhor ! Se bem vindo ao palácio dos vossos maiores.»

Vasco abraçou-o.

«Thiago, até que cheguei a este velho sollar. Mas olha! Vês aquella armadura tinta de sangue? É o sangue de meu pae, que ainda não foi vingado!»

«O anathema de Deus venha sobre mim se eu voltar, sem que o estertor da morte dos seus assassinos, tenha expiado a minha orphandade!»

D. Vasco apresentava um aspecto tão formidável, que D. Reinaldo estava admirado.

«D. cavalleiro. proseguiu Vasco, apresentando-lhe a mão, quereis que vos apresente a D. Vasco de Sousa, senhor do sollar da Cham?»

D. Reinaldo julgou achar-sc em face de um louco, com alguns momentos lúcidos. Chegou a duvidar; mas viu-lhe o rosto tão sereno, que se convenceu, de que não era um pobre louco, mas sim um guerreiro de grande coração!

«Ainda não mudei de tenção. O meu desejo é invariável. »

Vasco mostrou-se agradecido e estendeu-lhe a mão.

«D. Reinaldo, á falta de um cavalleiro que me apresente, e já que o destino nos tornou conhecidos, podeis abraçar D. Vasco de Sousa, como tanto o desejaes.»

Reinaldo julgou sonhar. Sentiu afoguear-se-lhe o rosto. Olhou para Vasco e não viu senão uma fronte sincera e sem a menor mancha maligna.

Cahiu-lhe nos braços com um transporte de infantil amizade. E como é sabido, as d'esta idade são sempre verdadeiras.

Não eram por ventura dois jovens, em cuja primavera da vida nada sorria?

Não se achavam ligados pelos mesmos infortúnios?

Não eram ambos orphãos de pae e mãe ?

Que diíferença medeava entre elles?

Ser um rico e outro pobre?

Mas que vale isso perante a igualdade que o infortúnio estabelece?

Perante a morte e a adversidade, não há linhas divisórias de gerarchia, nem differença nas situações. Esta é a verdade.

Os jovens abraçaram-se mutuamente, e juraram eterna amizade.

Thiago foi de tudo informado, e ficou bastante satisfeito, por ver, que seu joven amo tinha mais um amigo, que o soccorresse nos perigos.

Dois dias depois, no grande pateo do castello roqueiro, um luzido corpo de tropas se achava formado.

O balsão de Riba Bestança desfraldado ao capricho do vento, tremulava impávido como o pendão da gloria.

O relincho dos corcéis mordendo os freios, e cavando no chão, era imponente.

As armaduras reluziam, e o gesto garboso dos guerreiros formidável.

A pequena hoste formada em duas fileiras aguardava impaciente pelo chefe.

Dois jovens cavalleiros se avistaram armados de todas as armas. Escusado é dizer quem são. Os leitores já os conhecem.

Um movimento de satisfação se notou entre as fileiras, mas à sua voz tudo ficou silencioso.

Vasco recordou aos guerreiros, quanto lhes cumpria fazer, pelo serviço de Deus, da pátria e do rei.

Deu a ordem de marcha, e a hoste de Riba Bestança poz-se a caminho, animada das melhores intenções.

Vasco ia na frente, levando a seu lado D. Reinaldo, a quem dera o commando dos homens de armas.

Atravez das quebradas da serra e dos espessos matagaes, se ouvia o clangor dos clarins, cujo som melancolico se callava no intimo da alma.

Entre as agruras e penedias lá se deslisava a pequena columna de besteiros e fundibularios, sustentando um passo tâo firme e accelerado, que podia competir com a marcha prodigiosa das legiões da antiga Roma.

Ao longe via-se o luzir dos capacetes e o fluctuar das plumas, que das cimeiras cabiam.

Os vultos escondiam-se na volta de uma curva, para mais alem reapparecerem, apresentando a forma de uma serpente, que em mil corcovas se arrasta n'essas plagas ardentes da Ásia e da Africa, aonde o europeu vive mal, e o indígena satisfeito.

Vasco olhou tristemente para traz. Ainda differençava os altos cubellos e miradouros do velho sollar!

Um suspiro se ouviu, e aquelle som doloroso arrancado pela magoa, resoou pela vasta campina como o gemido, de um moribundo !

Vasco recordou seu pae, e o desejo de o vingar.

E não se lembrou de mais ninguém?

Lembrou-se de Alice! D'essa formosa donzella a quem amava loucamente, mau grado seu ?

Recordou que nutria um amor criminoso porque Alice era infiel !

A ignorância de então assim considerava o amor, que se consagrasse a uma seguidora do Al-Koran!

E hoje, não obstante as bravatas de civilisação, que para ahi se apregoam, ainda se condemna o individuo, que se liga a uma christã, toda vez que não seja catholica!.-.

Abandonemos os preconceitos, vamos á nossa historia.

A pequena hoste caminhou por espaço de duas horas, sem o menor incidente.

Já se não avistavam as ameias do castello. As trevas estabeleciam no occidente o seu dominio, em quanto que os homens do oriente, n'essa mesma occasião, iam por mais uma vez cumprimentar o rei dos astros, para algumas horas depois o apedrejarem, como fazem loucamente alguns habitantes da China e do Industão.

Na estrada que liga o norte de Portugal ao sul, n'essa via publicae, construída pelos romanos, deixemos caminhar Vasco e os seus soldados. Passemos ao capitulo seguinte, pois temos que mudar de assumpto.

CAPÍTULO V

NOVOS PLANOS-ALICE-PRIMEIRA ENTREVISTA

Um vasto palácio acastellado, junto á beira do Limia, ainda existia nos fins do século quatorze, se bem, que bastante arruinado.

Seus altos coruchéus se avistavam a grande distancia.

Suas grandes torres guarnecidas de machinas de guerra, largo fosso defendido por consistente barbacan e ponte levadiça, tudo finalmente justificava ao pobre camponez, que n'aquelle soberbo sollar, se albergava a tyrannia infrene e o despotismo feudal, com toda a sua idiondez.

As longas e esguias janellas deitavam sobre o rio Limia, cuja corrente caudolosa engrossando de volume, com as chuvas, invadia muitas vezes os vastos subterrâneos d'este ninho de abutres.

E bem cabia ao castellão este nome, porque mais triturava os vassallos, de que o abutre da fabula a Promotheu devorando-lhe as entranhas.

Duas coisas nunca se dispensavam n'um antigo castello feudal.

E sabem os leitores quaes eram? Se não sabem vão sabel-o.

Uma capella, com o competente jasigo, para resar algumas orações, recheadas de termos absurdos e rediculos, e um forte e escuro calabouço, aonde trucidavam suas victimas, aquelles religiosissimos senhores!

Ninguém julgue que tudo sorria ao pobre lavrador e à burguezia em geral. Nâo senhores. O povo meudo não gosava de melhor sorte, de que os servos russos na propriedade de um rico boyardo, cuja crueldade está em relação com a nobreza dos seus pergaminhos.

Com quanto nem todos os senhores feudaes fossem tyrannos, infelizmente, pela tendência que o homem tem para o mal, a generosidade e os princípios humanitários, nem sempre acompanhavam os actos dos grandes senhores filhos-d'algos de então.

N'um escuro subterrâneo, um homem de má catadura se entertem a arrumar alguns utensílios. O tecto é abobadado, tendo apenas uma estreita fresta no cimo da parede, por onde lhe entra uma fraca e escassa claridade.

O ar que se aspira é fétido, glacial e nauseaubundo, e pelo cheiro de baíio e musgo das paredes, se deprehende quanto será nucivo á saúde a humidade d'aquelle recinto.

O homem fechou a pesada porta de carvalho. Tomou por uma escada e bateu na parede com o cabo de um punhal. Um cavalleiro de alta estatura abriu a porta.

O homem entrou; mas conservou-se de pé.

«Então, Barnabé, tudo ficou prompto?

«Sim, meu senhor.»

«Está a gaiola arranjada, o que falta é o pintasilgo!»

Riu-se, abrindo uma bocca monstruosa.

D. Paio não secundou o riso do seu humillissimo servo; mas pareceu agradar-lhe a demonstração.

«Estou satisfeito de ti porque me tens servido a meu contento. És um excellente servo.»

«Sabes se Raymundo tomou bem as suas medidas?»

«Sim, meu senhor, Raymundo não é homem que se deixe enganar, os seus planos são sempre tanto a tempo, como as marés em mar bonançoso.»

No rosto do rico homem viam-se-lhe esses sulcos profundos, gravados pelas paixões ignóbeis, e aonde um sentimento generoso nunca desenhou um traço, que deixasse vestigio.

«Com que então julgas, que ao nobre cavalleiro nada faltará na sua nova habitação?»

Estas palavras eram repassadas de tanta malícia, que muito bem assentavam n'aquelle rosto mal feito e anuveado pelo crime.

«É verdade, senhor. Mas olhe que o pintasilgo é peior de que um falcão quando se vê aggredido!»

« Pela minha parte, já tive occasião de experimentar o valor do seu pulso de ferro, quando me agarrou por um braço e poz fora do quarto, exindo-me, que vos expionassc e vigiasse os passos.

Já vêem os leitores, que Barnabé é o homem que Paulo destramente apanhou, o a quem Vasco generosamente perdoara, esperando que aquelle coração dominado pelo crime, ainda podesse alimentar a chamma d'esse fogo sagrado, a que os homens de bem chamam honra, e as almas perdidas pieguisse!

«Tens receio de ser seu carcereiro?»

«Não senhor, respondeu o covarde assassino, não te- nho medo, toda vez que o algemem de pés e mãos. »

Estavam n'este interessante dialogo os dois traidores, dignos de serem iguaes perante a forca, como eram nas intenções, quando sentiram bater rija e apressadamente á poria secreta, que já por duas vezes mostramos aos leitores.

D. Paio foi abril-a ; um homem coberto de pó e de suor entrou bruscamente na sala.

Trazia o fato e os cabellos em desalinho, e o desespero estampado no rosto. A bulha das suas esporas era tal, que resoava pela abobada do vasto salão.

D. Paio olhou-o com certo receio repassado de anciedade.

O homem levantou-se dizendo-lhe :

«Tudo está perdido, senhor! Tudo absolutamente, tudo!

D. Paio ficou aterrado, e os olhos dílataram-se-lhe horrivelmente! Estorceu as mãos fazendo caretas monstruosas.

«Sancho! o que foi? Explica-te... Vasco fugiu ou ficou morto ?»

Sancho olhou para seu amo, admirado de o não ter ainda comprehendido.

«Essa é boa, senhor. Qual morto nem meio morto? O homem não morreu nem fugiu, não se apanhou.»

«D. Paio rugiu como o tigre, que com um jejum de vinte e quatro horas, vê fugir a presa. Um movimento convulso lhe agitou os membros, e uma espuma denegrida lhe saiu pelos cantos da bocca.

Com os dentes e punhos cerrados batia grandes punhadas na cabeça, em completo dilirio. D. Paio era feio; mas n'aquella occasião, era mais que hediondo. Estava medonho ! Sancho e Barnabé admiravam aquelle rosto desfigurado pelo desespero.

D. Paio proseguiu :

«Mas que fez Raymundo, esse miserável jugral, que tanto se ufana de valente e prespicaz, quando é covarde como um chacal e mais tonto de que uma galinha? Que fez? Responde.»

Sancho que tinha rasões para indispor Raymundo com seu amo, contou-lhe, que Raymundo não tomara as medidas necessárias e fora descuidado.

D. Paio dominado pela raiva, sentia os pulmões opprimidos.

«Muito bem ! Quo venha esse miserável pedir os quarenta marcos de prata, a titulo de ter capturado um cavalleiro, que eu o mandarei sacudir pelos palaferneiros e cavallariços de meu serviço. Se me disser que foi por engano, responder-lhe-hei: Mentes, pela gorja, traidor infame ! O teu premio está n'uma corda de canave suspensa do mais alto miradouro da torre alvarran ! Vae ao carrasco que te pague, infame, e ajusta com elle as tuas contas!»

Com estas e outras expressões desafogava o muito alto e poderoso D. Paio, filho-d'algo prestameiro dos castellos do Limia ; um dos homens mais poderosos de Portugal, e que peior uso fazia dos seus grossos cabedaes.

O fidalgo prestameiro já com o rosto mais desanuveado disse para Bernabé :

«Vasco quiz campar por esperto, pondo-te a meu lado para seres seu espião. O que te prometteu em troca de tão grande serviço? Nada! Fazer de ti um homem de bem, para o que não tens a menor queda. Careço da tua audácia. Agora sou eu que te colloco como espia junto a elle.»

«Lança mão de todos os meios, mas consegue a sua confiança. Informa-me dos seus passos, e o que mais desejo sobre tudo é a sua firma, pois só por este meio conseguirei vingar-me. Não te faltam recursos nem audácia. Vae! Não percas as occasiôes e segue-o como a sombra.

«Sei que se acha perdido de amores por uma infiel; circumstancia que pertendo conciliar com os meus interesses.

«Sabes qual é a tua recompensa? Olha que te não dou como premio o conselho de te fazeres homem de bem, mas sim ouro e muito ouro.»

Abriu uma gaveta e um aspecto deslumbrante se apresentou a Barnabé, que só viu montes de ouro.

O bandido dilatou a vista desejando mergulhal-a até ao ultimo escaninho. Grande era o thesouro.

Olhou para Sancho, e se tivera coragem, e D. Paio estivesse só, tel-o-ia assassinado ; mas com quanto a sua cobiça fosse excessiva, maior era a sua covardia. Depois de soffrer muito, disse para seu amo, que acceitava a commissáo com que o pertendia honrar.

Duas horas depois, Barnabé combinava com Sancho a maneira, porque se introduziria junto a Vasco de Sousa, sem risco do seu precioso vulto.

Estamos ainda no alcaçar de D. Paio de Sarmento. Voltemos á mesma sala em que o deixámos.

Um homem de estatura agigantada, de maneiras altivass e arrebatadas, armado de todas as armas, conversava com o poderoso rico homem.

Sua conversação é mais de que animada, é violenta.

Quem será este homem; que se arrisca a dizer tantas injurias a um tão poderoso senhor?

É Raymundo o incendiário, que vindo pedir o premio promettido, só apenas recebeu de D. Paio doestos e accusaçôes, que lhe fizeram perder a paciência.

No fim de muita altercaçáo, em que de parte a parte responderam com usura, Raymundo não podendo cumprimir por mais tempo, no pequeno circuito do peito, a raiva que o dominava, deixou-a dilatar, para que um semelhante veneno lhe não prejudicasse a saúde.

«Sois um miserável tão malvado como covarde, e tão covarde como usurário!

«É escusado ameaçar. Tenho de vós tanto receio como o nosso monarcha dos legados de Roma, que os obriga com a espada na garganta a levantar as excommunhóes.»

«Não vos temo, D. cavalleiro traidor, tão digno como eu de entregares a alma a satanaz nos braços de um carrasco !

D. Paio fulo de raiva ia para chamar os pagens e escudeiros de serviço ; mas Raymundo segurando-lhe o pulso, não o deixou tocar a pequena campa, que se achava sobre um escabello.

«Haveis de ouvir o resto. Não se nega a Raymundo o que se lhe deve. Não prendi por ventura um cavalleiro? Como poderia advinhar se era ou não o que pertendieis, encaixilhado n'uma armadura e com a viseira callada ?

«Ser ou não ser é para mim a mesma cousa. O promettido ê uma lei.»

Raymundo fez uma pausa, mas proseguiu:

«D. traidor cavalleiro, desleal e sem fé, arrecada o teu ouro : mas lembra-te de que entre Raymundo, o salteador de profissão e D. Paio, assassino covarde, existe um repto de morte.

«E olha bem, que ainda nâo deixei até hoje de bem saldar as minhas contas.

D. Paio era covarde e de uma prodigiosa avareza.

O desejo de vingança o levou a tratar com homens da laia de Raymundo. Mas ainda conservava alguns restos de pudor, fructo da educação de seus maiores.

D. Paio ergueu-se. Agarrou n'um punhado de ouro e apresentou-o a Raymundo:

«Pega! Aqui tens o premio do teu trabalho. Arrecada-o e retira-te.»

Raymundo olhou para o ouro com despreso e D. Paio com altivez.

«Amo o dinheiro que me custa a roubar! Exijo o que me devem, mas nâo acceito o que me dão por esmola! Guardae o vosso dinheiro! E o dito, dito.»

Saiu tão rapidamente, que quando D. Paio voltou a si, já se achava a grande distancia. D. Paio ia para chamar; mas lembrou-se que Raymundo teria vencido a escada, que dava para o jardim, e que em dois pulos sairia para a estrada aonde um bom cavallo o estaria esperando. Tocou a campa e mandou chamar Sancho, para combinar a maneira de se desfazer de Raymundo, o que não só era difíicil como até arriscado.

Deixemos agora o alcaçar do Limia e dirijamos as nossas vistas para mais longe.

Estamos em Lisboa no anno da graça de 1145, e no 566 período lunar ou da hégira segundo o systema de contar dos mahometanos.

Levemos as nossas vistas a esta bella cidade, que nada actualmente se parece com a do então, que por assim dizer, se limitava ao bairro de Alfama.

Sabem os leitores o que era a cidade baixa de hoje? Era um extenso vau ou esteiro aonde singravam as pequenas embarcaçães mouriscas, e se isto não succedia em todo o anno, acontecia na estação invernosa, quando as copiosas aguas vindas do monte Danduluz e dos altos serros aonde se adiam hoje o campo de Sant'Anna, S. Pedro de Alcântara e alto das Chagas, que ainda não estava separado do de Santa Catharina.

A separação teve logar no século dezeseis, em consequência de um grande tremor de terra.

S. Vicente íicava fora de portas, e aonde hoje assenta a igreja dos Martyres, estaheleceram os cruzados o seu arraial em 1147 quando D. Affonso cercou esta cidade, como mais adiante diremos.

Era este pouco mais ou menos o estado de Lisboa, cujas ruas estreitas e tortuosas ainda estão patentes, n'esse bairro de tantas recordações, e infelizmente abandonado na máxima parte á vadiagem e prostituição.

Um alcaçar mourisco existia n'aquelle tempo próximo do castello. O edifício era vasto, soberbo e de magnificos ornamentos.

Nos ângulos erguiam-se altas torres e miradouros. Os coruchéus differençavam-se a grande distancia, em consequência do vidrado, que brilhava como os raios do sol. Era finalmente um bello edifício, em tudo apropriado ao gosto da época e dos possuidores.

O interior correspondia ao exterior em belleza e magnificancia.

N'um vasto aposento ricamente mobilado ao gosto oriental, sobre differentes almofadas estava, assentada uma joven, que teria dezeseis ou dezesete annos.

Seu rosto é bello e seductor. É uma belleza ideal, como a das uris que, o Propheta prometteu aos verdadeiros crentes.

Suas formas são delicadas e os movimentos flexíveis, singelos e desembaraçados. O vestuário era como o que ainda hoje usam as mulheres de Meca, e nos differentes paizes orientaes.

Conversa com algumas escravas, que a ouvem com respeitoso silencio. «Não posso esquecer o cavalleiro christão que tão generosamente nos soccorreu ! E não saber o seu nome ! Fátima, sabes se Jesue voltou ?

A escrava curvou-se até ao chão e respondeu:

«Ainda nâo, senhora: Mas se quereis o escravo christão ir´r saber o que desejas.»

Alice não respondeu. Ficou meditabunda.

O rosado das faces se não tinha desapparecido de todo, era substituido por uma alvura alabastrina, que se lhe não dava mais formosura, dava-lhe um aspecto diaphano, tão fora do natural, que quem a visse tomal-a-hia por um sylpho, se lhe não parecesse um anjo.

O constante pensamento de Alice era o brioso cavalleiro, que vira na rota de Lorvão.

Embebida n'esta ideia deixava-se arrebatar por ella. E nos extasis de uma ventura ideal, transportava-se radiante ás mais bellas regiões, que a phantasia de um amor juvenil pode inventar.

Para ela não havia differença de religião! E raras são as vezes, que um amor verdadeiro se prende com essas cousas. E quando o dever se lhe oppõe e a rasão triumpha; um sulco profundo e terrível íica gravado para sempre na pobre alma, que tantas lutas supportou.

Para Alice não havia outro mundo e outra vida alem do seu amor. Aquella natureza ardente e imptuosa tinha amado pela primeira vez: mas amava loucamente, com esse amor dediciído, que só limita no mundo com a vida material. E quem sabe se acompanha a alma e vive eternamente como ella? Não é o amor o seu mais bello attributo ? Pois não poderá ser eterno ?

Em que pensava Alice n'aquella occasião ? É o que não podemos dizer porque o foro da consciência pertence a Deus.

Alice ergueu lentamente os olhos. Toda ella era amor! As escravas conservavam a immobilidade de estatuas.

Alice disse para Fátima:

«Chama Joaquim, escravo christão. Desejo ouvil-o em quanto Jesué não volta.

Fátima sahiu.

Joaquim, o escravo christão, era rebusto e cheio de vida, notava-se-lhe todavia, uma constante melancolia, que o tornava sympathico. Curvou-se em frente de Alice e esperou.

Alice não era soberba nem tinha essa altivez que distingue as raças orientaes. O coração era tão puro como a candidez poética da sua fronte. Olhou para Joaquim com essa meiguice, que só ás mulheres é natural, quando pertendem alguma cousa.

«Meu pobre Joaquim, sei que te ariscas para me obsequiares. Sabes se Jesué já voltou? O que ha d'esse infeliz captivo por quem me interesso tanto?»

Joaquim ficou silencioso; mas algumas lagrimas se deslisaram por aquellas faces cavadas pelo soffrimento e recequidas pelos ardores do sol.

As suas respostas foram breves.

«Jesué ainda não voltou. Quanto ao guerreiro captivo... Não pôde continuar ! As lagrimas suffocaram-lhe a voz e o infeliz soffria como se experimentasse as agonias da morte.

Alice enternecida, sentiu opprimir-se-lhe o coração. Era mulher ! Chorou!

«Joaquim, falfa francamente: morreu?

«Melhor lhe serja que assim fosse ! Quantas dores não teria poupado!»

«O desditoso não morreu ; mas está ha mais de oito dias n'um constante desespero. Chama pelo filho, pela esposa, e depois chora lagrimas de sangue.»

Alice ergueu-se, não com o gesto de uma rainha, mas sim com o adman de um anjo :

«Joaquim, em sendo alta noite ha des-me acompanhar.

Quero visitar esse infeliz, e convencel-o, de que entre tantos inimigos, ainda encontra um coração dedicado. Que importa que seja christão? Acaso não é elle um homem? Oh! sinto um brado interior dizer-me, que para Deus não ha mahometanos nem christãos!»

Joaquim estava admirado, e as escravas perpelexas. Nunca julgaram ouvir dizer tanto a sua ama, que já menos mahomotana e mais christã, expressava-se com a franqueza do seu nobre caracter.

Joaquim a um signal de Alice retirou-se. As escravas ficaram ; mas dominadas pelo respeito devido á sua joven senhora, não ousaram impugnar, o que o fanatismo religioso lhes impunha reprovar.

Alice mandou retirar as escravas, á excepção de Fátima, a quem determinou que ficasse.

Fátima era a escrava predilecta de Alice. Era uma linda mulher, que a acompanhou para a Europa, depois da morte do Emir seu pae.

Era-lhe sinceramente afeiçoada e sabia confidencialmente o amor de sua ama, em quanto que as de mais o consideravam como um simples capricho.

«Fátima, ha des-me acompanhar ao cárcere do cavalleiro chrislão.»

Fátima, com quanto lhe fosse inteiramente devotada, recordou-lhe que a lei prohibia o contacto com os iníieis.

Alice riu dos preconceitos religiosos da escrava e respondeu-lhe, que iria só ou acompanhada por Joaquim.

Fátima ia para se justificar, quando um escravo nubio se apresentou, annunciando á muito alta e poderosa princeza, filha do emir de Perea e sobrinha do Wali de Lisboa, que o judeu Jesué lhe desejava fallar.

Alice estremeceu. Uma côr acarminada lhe tingiu as faces. E ordenou ao escravo que o introduzisse.

Faltou para Fátima como para recobrar animo ; mas o som de alguns passos pesados lhe annunciaram, que Jesué se aproximava.

É a segunda ou terceira vez, que fallamos d'este personagem, e como tal. é necessário que os leitores o conheçam.

Jesué é o typo genuino da raça judaica. Trigueiro, barbas brancas, mas formosas, olhos negros, scintillantes e rosto comprido.

Era em tudo, não um digno descendente d'essa raça vil e hypochita dos fariseus, que Christo tanto condemnou, chamando-lhe raça de viboras ; mas sim uma copia fiel d'esses santos sacerdotes e levitas, que precederam Moysés e Arão, tanto na pureza da fé como na simplicidade dos costumes.

Jesué era um homem cheio de virtude. Não era usurário!

Pois é possível haver um judeu que não seja usurário?

É possível e até provável.

Nem sabemos a rasâo porque se fez da palavra israelita um synonimo de avarento ?

Não somos amigos de nenhum judeu, e nos primeiros negócios que tivemos com um, não nos demos muito bem. Mas achamos ridículo, que um escriptor vá buscar sempre um pobre israelita, para lhe distribuir o papel de usurário, quando ha por ahi alguns christãos, que são peiores de que um batalhão de judeus.

Jesué era um homem virtuoso. Não via a humanidade só na gente da sua rara, no que se affsstava das ideias de Moysés. Para elle a humanidade era uma, e todos com iguaes direitos, sem distincção de crenças religiosas.

Alice estimava-o como se fora sua filha. Admirava-lhe o saber e respeitava-lhe a virtude.

Jesué entrou, cumprimentou Alice, que com a maior defferencia lhe estendeu a mão. Alice estava sobresaltada, e o coração batia-lhe com violência.

Jesué foi o primeiro a fallar.

«Venho cumprir a promessa que vos fiz. Jesué dá um desmentido, todas as vezes que pode, a esses que se arrojam a dizer, que os israelitas aborrecem os christãos e despresam os mahometanos.»

Alice estava absorta. Seus pensamentos convergiam unicamente para um centro. Amava o cavalleiro christão; mas as palavras de Jesué eccoaram-lhe no fundo da alma.

Prestou-lhe a maior attenção.

«Donzella, proseguiu elle, em tom paternal, desejo poupar teu bello coração, claro, como a límpida atmosphera em manhã de primavera, e franco como a linguagem dos prophetas, quando fallavam ao povo de Deus.

«Não desejo cravar o punhal dos díssobores n'esse peito infantil, fiel como o da casta Judith, á memoria de seu marido.

«Mas que ! Que te posso eu dizer, que tua alma já não tenha advinhado ?

Alice n'um accesso de justa afllição, chegou-se arquejante para Jesué, e com o rosta desvairado agarrou-lhe com tanta força nos pulsos, que o fez estremecer.

Jesué olhou admirado, viu que o rosto da joven estava demudado, e que uma noticia aterradoura lhe podia dar a morte.

«Falla, Jesué! Falla, por Deus to peço; mas não me digas que morreu!»

Estas palavras foram acompanhadas de um gesto de tanto desespero, que se nâo patenteavam as contracções d'aquella alma cheia de amor, demonstravam o acerbo soffrimento, que só a verdade comprehende e faz comprehender.

Fátima soffria com o soffrer de sua ama. Quanto a Jesué comprehendeu a necessidade de a socegar; mas sem communicar-lhe o fatal segredo, que entre ambos cavava um abysmo.

«Socegae vosso coração.

«O cavalleiro vive ! Vive e ama-vos loucamente.»

Alice deu um grito e cahiu. E a não serem os braços de Jesué, teria fracturado a cabeça.

Fátima pálida e desgrenhada correu para sua joven ama, e um brado solemne, unisono e estridente reboou ao mesmo tempo pelo vasto aposento.

Era Fátima, que bradava por Alah e Jesué por Jehovah.

«Morta! Morta a minha linda senhora, gritou a pobre Fátima.

E effectivamente na fronte de Alice via-se-lhe toda a palidez da morte.

Os olhos estavam cerrados, alem de se lhe não sentir pulsação.

Jesué era medico. Observou-a attentamente.

Os momentos foram terríveis, mas a conclusão foi agradável.

«Não está morta, disse elle ; mas podia morrer.»

E sem a menor detença puchou de um frasquinho de prata, e applicou-lh'o ao nariz; momentos depois Alice abria os olhos, e uma torrente de lagrimas lhe innundava as faces.

A reacção era completa. Qnem chora não morre de alegria nem de grandes affecções moraes.

Uma hora depois. Alice inteiramente desembarada, prestava attenção a Jesué, que lhe contava como se avistara com Vasco na fronteira do Alemtejo.

Jesué proseguiu : mas que pertendeis fazer de um amor sem esperança nem futuro? Não é Vasco o maior inimigo dos serracenos e do Wali vosso tio? Não estaes promettida ao joven Albucem?

Alice não vacilou porque seu amor era inabalável.

«Sei tudo. Mas como lutar contra a vontade de Deus ? É preceito da minha lei.

«Que bem feito é o que por Deus é determinado.»

«Ora se Deus assim o quiz e eu não posso deixar de o amar, que me resta fazer?»

Detesto Albucem! E quando não seja de Vasco, não pertencerei senão á morte.»

Jesué respondeu-lhe :

«Formosa donzella, que o ceo vos abençoe e faça venturosa.

Ia para se retirar, quando Alice estendendo-lhe a mão lhe participou, que tencionava visitar o cavalleiro chrislão, que se achava captivo.

Jesué ficou aterrado ! Lembrou-se de que Alice podia dizer-lhe :

«Vasco de Sousa é um valente campeão!»

O desgraçado teria um accesso de loucura, ou uma syncope que lhe podia dar a morte. E assim veria perdidos todos os exforços que fizera, para lhe conservar a vida.

«Mas senhora, como podereis ir, tendo Albucem as chaves ?

«Mando-lh'as pedir, creio que m'as não ha de negar; e como sabeis, sou inabalável nas minhas resoluções.»

Jesué comprehendeu, que nada tinha a fazer com aquelle espirito teimoso e resoluto. Concluiu, que o melhor era pedir-lhe, para não pronunciar o nome de Vasco de Sousa, na frente do guerreiro.

Foi o que fez e obteve de Alice.

Teriam decorrido duas horas, quando um escravo annunciou que Albucem desejava entrar. Foi introduzido, achando-se Alice já cercada de todas as suas escravas.

Albucem apresentava esse aspecto contrafeito, que todos os homens desenvolvem em presença da mulher que amam, mas que ignoram se são correspondidos.

Albucem cumprimentou Alice, cruzando três vezes as mãos sobre o peito e curvando-se até quasi ao chão.

Alice correspondeu-lho friamente, sem o mandar sentar.

É para estranhar, que sendo Alice affavel e affectuosa para todos, fosse mais que altiva para Albucem ; pois alem de se mostrar soberba era fria e arrebatada. Alice conhecia admiravelmente o caracter de Albucem. Sabia, que quando o não tratasse com aspereza, aquella alma cruel, abosaria tanto quanto fossem as condescendências da sua parte.

Ha génios, que só assim podem ser guiados para se lhes recordar a esphera em que se devem manter.

Albucem estava n'estes casos: e com quanto amasse ardentemente Alice, deixaria de ter por ella a grande consideração a que tinha direito, no momento em que o tratasse com affectuosa indulgência.

Alice sem levantar os olhos disse-lhe: Exijo de ti um favor, estás resolvido a fazel-o?

Albucem encostou a mão sobre o punho de ouro da larga semitarra, e afagando o bigode respondeu com respeitouso desembaraço :

«Os desejos da formosa Alice são para mim preceitos tão sagrados como se fossem de Alah ou do anjo Gabriel.

«Mandae, formosa donzella, e crede-me tão submisso como o foi Omar aos ditames do propheta.»

Alice conservou os olhos fitos no lindo tapete persiano, e só os ergueu para os fixar em Albucem, que com ademan namorado a olhava com ternura.

«Desejo que me confieis as chaves dos calabouço do castello até ao romper de alva.»

Albucem ficou admirado de semelhante pedido, e não obstante estar de ha muito acostumado aos seus caprichos, este excedia as raias do rasoavel.

«Para que pertendeis, senhora as chaves dos cárceres e calabouços do castello? Admiro a vossa exigência.»

Alice contava com a recusa; mas lançando mão do grande império, que tinha sobre Albucem, cravou n'elle seus olhos negros, que refulgiam como dois carbúnculos.

«Se admiraes o meu pedido, eu pasmo da vossa audácia !»

«Quando é, que a filha do Emir de Perea, e neta dos Califas mais poderosos, mereceu ser tratada com tão pouco respeito?

«Se não queres satisfazer ao meu pedido, para que me interrogas ?

«Se a minha exigência foi ociosa, a tua pergunta é de pouco respeito!

« Podeis retirar- vos, já não careço de vós!»

Estas palavras foram pronunciadas com tanta altivez, que Albucem tremeu, como se visse ante si a ira de Deus.

Balbuciou algumas desculpas, mas um gesto imperioso de Alice lhe cortou nos lábios a ultima palavra.

Albucem não podia supportar mais tempo aquelle olhar de altivo despreso. Baixou a cabeça e não respondeu.

Alice tinha um excellente coração, e a não lhe conhecer a fundo o caracter, ter-se-hia compadecido.

Albucem ergueu a fronte, e olhou para a donzella.

«Quando quereis as chaves?

Alice tinha triumphado. E se não fosse tão despótica para com Albucem, seria elle o seu maior tyranno.

«Ás horas que fôr do vosso agrado.

O que não desejo é que julgueis fazer-me um grande favor. Albucem, depois de lhe beijar a mão, retirou-se satisfeito, porque Alice á despedida cumprimentou-o graciosamente.

Foi um sacrificio da sua parte ; mas o triumpho não podia ser mais completo.

CAPITULO VI

O castello de Lisboa de hoje díffere alguma cousa do de então.

Duas estradas cobertas lhe davam livre saida para as avenidas, em quanto que um outro caminho subterraneo o ligava com o alcaçar do Wali, que descrevemos.

A porta de Martim Moniz já existia, e tanto assim, que foi aonde aquelle heroe, segundo dizem, morreu atravessado, para dar entrada ás hostes do El-Rei.

Alem d'esta, havia ainda a de Alfofa, e mais alguns postigos.

Ainda hoje na praça nova se vê uma cavidade na muralha, que dizem dar para uma das estradas falsas. Mas aonde está a outra, que existia n'essas epochas remotas?

É o que nâo sabemos, e duvidamos se saiba.

O presidio de hoje não é subterrâneo ; mas no tempo a que nos reportamos era tão bom ou peior de que as presigangas, na Torre de S. Julião.

Seria meia noite, Alice embuçada num manto branco, espera alguém, que não deveria tardar. Por quem seria? Esperava por Joaquim para a acompanhar ao calabouço aonde se achava captivo um cavalleiro portuguez.

Joaquim appareceu, trazendo um archote na mão, e sem dar palavra seguiu a donzella.

Fátima quiz acompanhal-a, mas um gesto imperioso a deteve.

Atravessaram as extensas galerias aonde reflectiam os prateados raios da lua, atravez das gelosias.

As altas figuras de mármore, que se erguiam nos ângulos das salas, contrastava com o vestuário branco de Alice. O fluctuar de seu longo veu ao capricho das correntes de ar, dava-lhe o aspeto phantastico de um génio bemfasejo.

Algumas sentinellas encontraram. Seus passos compassados marcavam, por assim dizer, os momentos, que se conservavam no posto, que lhes fora confiado.

Seus turbantes brancos e albernós da mesma cor differedçavam-se ao longe, entre o clarão incerto das muitas alampadas.

Alice e Joaquim atravessaram muitas salas, desceram a um vestíbulo e entraram numa espécie de jardim lageado, guarnecido de alegretes e arvores odoríferas.

Alice abriu com uma chave de ouro, a porta que lhe ficava na frente. Um extenso corredor subterrâneo se avistou e no topo uma grade de ferro, guardada por uma sentinella das guardas do Wili, que Albucem commandava.

Alice apresentou á sentinella o annel de Albucem e abriu a porta.

O solo que pisava era escorregadio e o ar corrupto.

Alice descançou alguns momentos; sentia-se fatigada.

«Joaquim, ainda estamos muito longe dos calabouços subterrâneos ?

«Sim, graciosa senhora, Ainda temos que andar muito.

Alice fez um gesto de impaciência.

«Agita esse archote, não vês que se fina a luz com a falta de ar?

«Vamos, senhora, lhe diz elle, mas olhae, que se encontram alguns reptis e sevandijas, não tendes receio?

Alice não respondeu. Fez-lhe signal para caminhar.

Andaram mais de um quarto de hora pelo corredor. No fim estava um subterrâneo de forma semi circular, todo guarnecido de portas.

Na terceira da esquerda via-se o numero três. Joaquim pediu-lhe a chave d'este numero. Alice entregou-lh'a, e a pesada porta de castanho foi aberta.

Alice não recuou nem fugiu ; mas seus olhos dilatando-se pelo interior do cárcere, arrasaram-se de lagrimas em face do triste espectáculo que viu.

N'uma pobre cama estava assentado um vulto venerando.

Seus cabellos compridos e brancos como a neve cahiam-lhe pelas costas.

As barbas da mesma côr desciam-lhe até á cintura.

Ao sentir abrir a porta ergueu lentamente a cabeça.

«És tu meu Joaquim?

Joaquim não respondeu. Collocou um cesto no chão, e agitou o archote.

Alice, conheceu que o desgraçado captivo não tinha tanta idade como as cans indicavam.

Teria, quando muito, cincoenta annos.

Seu rosto era bello, não obstante definhado pelo soffrimentos.

O cavalleiro afirmou-se.

«Homem, vens seguido de um anjo ou de uma donzella ?

Joaquim receiando algum accesso de loucura, respondeu-lhe :

«É uma nobre donzella, que se compadeceu dos vossos sofrimentos. Mas olhae, não é christã.

O velho guerreiro afirmou-se e proseguiu;

Aproximae-vos, donzella ! Guerreei os vossos amigos, mas nunca lhes fui traidor. Inimigos pela religião sempre os considerei, sempre fui d'elles amigo toda a vez, que entravam na fé christã.

«Mas vede, aqui tenho consumido dez invernos, dez primaveras, dez estios e outros tantos outomnos!»

«Para mim não ha dia nem noite! Não ha sol nem lua, nem estrellas nem firmamento!

«Não vejo um rosto amigo, nem um coração generoso, que me de noticia de meus filhos, e de minha pobre esposa ! Ver-me aqui encerrado, eu cavalleiro da cruz, que percorria as verdes campinas, aonde ao ar livre gosei tanta ventura ! »

Deixou pender a cabeça. As lagrimas estavam estancadas ! Esse manancial, que tanto suavisa a dor, já tinha fenecido para o desgraçado!

O que lho restava pois? Restava-lhe a hediondez de uma dor secca, terrivel e truculenta, que o finava lentamente, d'encontro a esse escalvado rochedo, que se chama desesperação.

«Tinha um filho. Um filho, que a estas horas é talvez um joven, formoso, e quem sabe se um valente guerreiro!»

Alice tinha ajoelhado. Era um quadro sublime.

Balbuciou algumas palavras de affecto, que pelo guerreiro foram ouvidas com attenção.

«Ficae certo, cavalleiro, lhe diz ella com um acento gotoral, que aproximando-se do castelhano também não era portuguez, hei de suavisar os vossos soffrimentos. Assim o juro.

«Tenho o poder necessário para vos fazer todo o bem, que n'um captiveiro se pode esperar.»

Jesué será outra vez collocado a vosso lado, e Joaquim, que é christâo, continuará a ser vosso companheiro. E adeus nobre guerreiro. Talvez que ainda surjam dias mais felizes! Quem sabe?

«Hoje como senhora pacifica, no alcaçar de meu tio o Wali de Lisboa, ámanha poderei ser captiva de uma família christâ.

Alice supportou uma dor intensa, que lhe opprimia o peito. E para desafogar chorou.

O cavalleiro ao saber que Alice era sobrinha do Wali de Lisboa, estremeceu ; mas apertou-lhe a mão com o maior reconhecimento.

«A sorte já para mim não mudará ; mas quando assim succedesse, Alice seria tratada, não como prisioneira, mas sim como minha filha.»

Alice sentiu que o sangue lhe subia à cabeça, e sem saber pelo que, considerou-se feliz.

Ia para se lançar nos braços do guerreiro, quando um estranho se apresentou.

Era Albucem, que a encarava com gesto carregado. Alice recuou ; mas disse-lhe com resolução :

«Albucem, conheço o teu caracter vingativo ; mas olha bem! Vês aquelle guerreiro e este escravo ? Estão debaixo da minha protecção. Um cabello, que violentamente lhe seja arrancado, é a ti que pedirei contas.»

«Podeis retirar-vos, senhor capitão das guardas, despenso a vossa companhia.»

Albucem não se animou a justificar o seu procedimento, retirou-se rapidamente, e pouco tempo depois Alice acompanhada de Joaquim dirigiu-se aos seus aposentos.

CAPITULO VII

TRAIÇÃO E CASTIGO -- PRIMEIRA ENTREVISTA

Reportemo-nos a uns mezes mais anteriores ás ultimas scenas, que acabámos de narrar. Conduzo os leitores a uma vasta planice, aonde a valente hoste de Riba Bestança bivaqueia, depois de ter atravessado todo o vasto território entre o norte e o sul de Portugal.

Deixámos Vasco de Sousa vencendo a marchas forçadas, a distancia que o separa do Alemtejo.

A sua limitada hoste augmentara consideravelmente. Contava para cima de cem lanças, alem de duzentos besteiros e uns trezentos fundibularios.

Vasco era um verdadeiro capitão. Arrojado nos perigos, audaz nos planos e prudente na execução.

Seu poderoso montante abria sempre larga e profunda brecha entre as mesnadas agarenas ; e apontando o caminho da gloria o triumpho era certo.

Estamos n'um arraial próximo das margens do Guadiana, desse famoso rio, que divide Portugal da Hespanha entre Aymontce e Castro-Marim, e cuja nascente é na serrra de Alcaraz no reino visinho.

Este rio tão fallado na historia antiga, engrossando no trajecto com as aguas de algumas rias e arroios, tem a confluente entre as duas povoações já citadas depois deo banhar Calatrava, Ciudad-Royal, Medelin, Mcrida, Badajoz e outras diíferentes villas e cidades.

Avistava -se ao longe a serra de Ossa e as povoações, que nas vertentes se estendiam.

Vasco achava-se em terra inimiga, porque a maior parte do Alemtejo pertencia aos infiéis.

A fama de seus feitos reboava por toda a parte, e os mais valentes cabos dos Walis de Badajoz. Sevilha e Silves tinham experimentado o pezo da sua acha de armas.

Algumas tendas se viam sem ordem nem regra, como era costume n'uma opoclia, em que a arte da guerra limitava-se ao encontro das massas e aonde a cavallaria era tudo.

Sentinellas de espada e besta se erguiam nos ângulos do bivaque.

Os ginetes presos aos cabos das lanças, comiam pacificamente.

Alguns homens de armas passeiavam conversando, em quanto que outros jogam e bebem, ou fazem a comida para si e seus camaradas.

No centro do acampamento ergue-se uma tenda maior e de melhores proporções.

N'uma choça de palha alguns cavallariços pensam os cavallos be batalha, pertencentes ao senhor da Cham, seus pagens e escudeiros.

Junto a uma meza de pinho, assentados em escabellos estão dois jovens cavalleiros, armados de todas as armas; mas como teem os capacetes sobre a meza, ve-se que são jovens e formosos. Um é Vasco de Sousa o outro D. Reinaldo, seu amigo.

Vasco apoiando o cotovello sobre a meza, disse para D. Reinaldo:

«É como vos digo, cavalleiro, Hauzehri alcaide de Santarém, prepara-se para fazer uma grande correria em terras christãs. Mas que se não detanha! Por Deus lhe juro, que caro pagará se a tanto se arriscar.

«Julgará por ventura o perro infiel, que o senhor rei me deu poderes de fronteiro, para apenas deitar esculcas e arremetter de longe como um rafeiro covarde ?

«Bofé, D. cavalleiro! É aíiar o montante e dizer aos besteiros, que mettam nos carcazes bom numero de frechas.

«Cem lanças, três bestceias completas e mais almogavares e peões, é sufficiente para ir ao encontro desse cão faminto de sangue, que se julga invencível no seu ninho de abutres.»

«Aqui lhe juro sobre a cruz d'esta espada, que se me vier ás mãos mandal-o-hei dependurar no primeiro asinho, que encontrar.

Assim se expressava o valente Vasco de Sousa, cavalleiro donzel na idade, mas velho no brios e prudente no conselho.

D. Reinaldo recordou-lhe, que seria bom deitar esculcas até Évora ou mais alem, pois os mouriscos vindo de Santarém, teriam que passar o Tejo, e que naturalmente este seria o caminho, que deviam seguir.

Vasco ouviu as palavras de D. Reinaldo e respondeu-Ihe alegremente:

«Bofé, D. cavalleiro, soes acisado e de grande conselho; mas a essa é que Vasco de Sousa se não arroja.

«Para que deitar esculcas a tão grande distancia em terras inimigas?

«Se é bom saber o caminho, que os infiéis tomara, então levantemos arraial, marchemos sempre no quarto de medorra, por trilhos e veredas, que nos affastem dos almogavares agarenos; e no fim de duas ou três noutes de marcha iremos antecipar a visita, que nos desejam fazer. E agora, cavalleiro, que dizeis?

D. Reinaldo respondeu no mesmo tom:

«Digo-vos, que precisamos de um bom guia, e que se apparecer, eia, por S. Thiago ! Não serei o derradeiro da saga, mas sim o primeiro da frente.»

Não se julgue que era uma simples bravata, D. Reinaldo era um valente cavalleiro, como já dissemos e adiante se verá.

Vasco úe Sousa gostou de ver o arrebatamento de seu companheiro, que com quanto joven era mais vellio do que elle.

O plano estava assentado, o que restava era pol-o em execução. Foi de que se tratou.

Vasco tocou uma pequena corneta de prata, que lhe pendia ao lado.

Paulo appareceu; mas frio e silencioso como sempre.

«Paulo, vae chamar os caudeis das Besterias e os almocadens dos homens de armas e almogavares, diz-lhe, que lhes quero fallar immediatamente.

Paulo sahiu e meia hora depois os almocadens e caudeis entravam na tenda do chefe supremo, que era um mancebo de dezanove annos:

O aspecto dos guerreiros era bello e marcial. Armados de todas as armas, dos brilhantes capacetes lhes cabiam longos penachos de côr negra.

Todos se achavam com os guantes calçados, de lança em punho e montante ao lado, como era costume, quando se apresentavam para serviço na tenda do rico homem, senhor de caldeira.

Vasco estava de pé para os receber, e todos o comprimentaram militarmente. Vasco disse-lhes :

«Senhores, apromptae as besterías e as lanças do vosso commando, pois hoje mesmo ao primeiro canto dos galos levantaremos arraial ; marcharemos ao abrigo das trevas, porque vos não encubro, que próximo andam agarenos. Vigiae para que se aguarde o maior silencio, pois d'isso depende o bom resultado do piano que formei. Ide, senhores, dae cumprimento ás minhas ordens.

Os cabos retiraram-se, e um quarto de hora depois notava-se no arraial um grande movimento. Cumpriam-se litteralmente as ordens de Vasco de Sousa.

Eram onze horas. A noute estava bella e o ceo límpido e sereno.

Os luzentes brilhavam como pequenos fachos desseminados pelo espaço.

Ao longe sentiam-se os uivos dos lobos esfaimados, o zumbido dos extensos azinhaes agitados pelo nordeste, o piar dos mouxos e o ciciar da coruja, que se destacava entre tantas cousas, que interrompiam o silencio da noute.

As sentinellas conservavam-se nos postos com o ouvido â lerta e a besta preparada.

As fogueiras eram alimentadas nos ângulos e centro do bivaque, para afugentar os lobos, inimigos tão respeitáveis como os agarenos, com quanto peioresque qualquer manada de onagros.

Um vigia dos mais adiantados sentiu ao longe o relincho de um cavallo. Deu parte de que para o arraial se aproximava alguém.

A rolda que girava no prolongamento do campo fez alto; e tempo depois dois homens montados em excellentes corcéis foveiros, disseram em bom portuguez, que desejavam fallar ao poderoso rico homem D. Vasco de Sousa.

O adail chefe da rolda mandou-os conduzir á tenda do rico homem ; mas que primeiro lhes vendassem os olhos.

Os homens proseguiram e só em frente de Vasco é que foram desvendados.

Vasco reconheceu um d'elles a quem fallou affectuosamente; mas Paulo, que se achava preseste fez uma careta tão fóra do commum, que o recemchegado estremeceu.

E sabem os leitores quem eram elles?

Um era o covarde Barnabé, satélite predilecto de D. Paio de Sarmento, o outro o seu digno companheiro.

É escusado dizer aos leitores qual o fim, que os levava ali, porque de ha muito o sabem.

Era mais de meia noute. Os homens de armas a cavallo esperavam a ordem de marcha. Os besteiros de besta ao hombro conservavam-se firmes como estatuas, em quanto que a demais peonagem occupava o seu logar.

Paulo tomou as medidas possíveis contra Barnabé, e se Vasco lhe acreditou as patranhas, Paulo mais velho e experiente, não engolio nem uma só das petas que lhe ouviu.

Vasco a cavallo armado de lança e espada, seguido de Reinaldo e de seu escudeiro, tomou o commando da hoste, que silenciosa se poz em movimento.

Parecia uma longa serpente cujos anneis se moviam em differentes direcções.

O ceo n'esta occasiâão estava coberto de nuvens.

Um frio glacial substituíra a amenidade da temperatura, e um vento sul soprava tão violento, que levantaria grossas columnas de areia a não ser a chuva que cahia.

Ninguém trugia nem mugia. Os ginetes caminhavam socegados, e só de vez em quando fitavam as orelhas quando o uivo dos lobos se ouvia mais distante.

Mas quem era o guia, que conduzia atravez de uma província de mais de trinta e quatro léguas de comprido, por tantas de largo, a hoste de Vasco de Sousa?

Era Barnabé, que se offereceu voluntariamente pelo conhecimento pratico, que tinha do paiz.

Seria com a ideia de atraiçoar?

Não. Era muito covarde para se metter nas mãos dos infiéis, pois bem sabia, que lhe não agradeceriam o serviço.

Atravez de extensos vales e grandes matagaes caminharam por espaço de duas noutes, desde o anoutecer até ao romper de alva, sem que o mais pequeno rasto de infiéis se appercebesse.

Ora a província do Alemtejo é mais plana de que montanhosa e mais agreste de que temperada. As marchas eram penosas, não só pelos terrenos arenosos, que percorriam, como pela falta de agua, que como hoje, se manifestava.

Estavam a seis léguas de Évora, cidade antiga e de remotas recordações, especialmente, desde que Sertório tanto a nobilitou e embelleceu.

Tinham assentado arraial n'uma vasta planicie, que como um oceano se estendia alem da vista mais perspicaz.

Por um excesso de prudência, pouco vulgar n'aquella epocha, um largo fosso circumdava o campo.

Tudo estava prevenido.

Ás onze horas da manhã os esculcas correndo a todo o galope, annunciaram que o alcaide de Évora à frente de um luzido corpo de cavalleiros batia o campo:

Vasco ouviu até ao fim e disse com sangue frio a D. Reinaldo:

«D. cavalleiro, marchae com cincoenta homens de armas ao encontro dos agarenos, e que Deus vos proteja.»

A ordem foi executada e os clarins tocaram a montar a cavallo.

D. Reinaldo á frente de cincoenta lanças correu a trote largo.

Os corcéis levantavam grandes nuvens de poeira. O sol fazia brilhar as armaduras; as côres variegadas das cotas e penachos, e o branco lampejar dos cascos de ferro era surprehendente.

A distancia de uma légua avistaram o troço agareno,que contava para cima de duzentos cavallos.

Reinaldo não se occupou do numero, formou os homens de armas n'um esquadrão cerrado, e cahindo de ímpeto sobre a cavalgada, fez recuar as primeiras fillas até ao centro.

Os agarenos não se intimidaram. Reuniram as fileiras, e cobrando animo em face de tão pequeno numero, carregaram de lança em riste.

Os cavallos recuaram, e alguns houve, que assentaram as garupas no chão com a violência do embate.

Entre todos os guerreiros mouriscos, um so avantajava. Como chefe era o primeiro em tudo.

Na riqueza das armas, pela força hercúlea e coragem prodigiosa.

Montado em possante cavallo branco parecia o anjo extreminador.

Sua larga e recurva semitarra refulgia como as espadas de fogo, de que nos fallam os prophetas. E de cada golpe que acentava, era mais uma cabeça, que rolava sob a força muscular do seu braço de ferro.

Os cavalleiros portuguezes opprimidos por todos os lados, pelo numero e conçasso, cediam' terreno. D. Reinaldo conheceu o perigo, mas não desanimou. Formou os guerreigos e carregou tão bravamente, que fez uma terrível carnagem! Foi como o ultimo alento do naufrago, agarrando-se ao cabo de salvação. Os golpes resoavam pela vasta campina, e no espaço de meia légua quadrada, não se via senão sangue e pedaços de armaduras.

Os ginetes sem cavalleiros, corriam espavoridos pelo campo, e muitos foram parar ao arraial escorrendo em sangue.

Bastantes guerreiros jaziam por terra estorcendo-se nas agonias da morte; e seus rostos desfigurados apresentavam um aspecto medonho e pavoroso.

Era, finalmente um quadro tétrico, em que a hediondez da guerra apresentava toda a monstruosidade, que a caracterisa.

Reinaldo era um valente e valentes eram quantos o acompanhavam.

Ainda nenhum recuara, todos combatiam como leões em luta desesperada.

Só restavam trinta guerreiros.

Viu que o mais valente caudel acabava de seccumbir opprimido por mais de vinte infieis.»

«Tantos contra um!» disse o cavalleiro rugindo desesperado.

«A mim, cavalleiros christãos! A mim, guerreiros da cruz!» bradou elle com a voz abafada pela cólera. E n'um abrir e fechar dolhos cahiu sobre os infiéis como a sentelha, que fende os ores. Mas na sua frente encontrou um cavalleiro rebusto como o ferro e firme como um rochedo.

Era Aliasar, grande cabo de guerra do Wali de Badajoz, e commandante da cavalgada.

O guerreiro soffreou o cavallo.

Aliasar era valente; mas como tivera occasião de apreciar a força do seu adversário, aproveitou a vantagem, que tão inconsideradamente lhe dera.

Enristou a lança e carregou. Mas Reinaldo fez um rapido movimento com o cavallo, e escapou-se-lhe por tal forma, que quando Aliasar julgava deital-o por terra, viu a lança voar em dois pedaços com um alentado golpe de montante.

O mouro voltou; mas Reinaldo já prevenido, recebeu-o tão vantajosamente como da primeira.

Os golpes eram desapiedados, e as armaduras e escudos estavam destruídos.

Os dentes rangiam de raiva e uma espuma denegrida lhes escorria da bocca.

O mouro estava cançado, poz-se de pé nos estribos e atirou-lhe tão formidável golpe, que se D. Reinaldo se não tivera guardado, ter-lhe-hia marcado o limite da existência.

Mas não, seu dócil corcel infatigável nos perigos, obedecendo aos movimentos do cavalleiro, atirou um pulo tão rápido, quanto era necessário para escapar ao tremebundo talho, que lhe estava destinado.

Em movimento continuo, chegou-se tanto, que deu occasião a metter a espada por um dos boracos da armadura de Aliasar, que vacilou. Abraçou-se ao arção da sella e não se moveu.

A vida sahira-lhe pela larga ferida, que o montante de Reinaldo lhe fizera no lado esquerdo.

A morte do chefe agareno foi o signal da derrota, e a todo o galope fugiram em retirada.

Os christãos não os seguiram. O dia já llic não era adverso.

Recolheram os feridos, e eil-os a bom picar para o arraial aonde Vasco os esperava impaciente.

Dirijamos agora as nossas vistas para uma pequena choça de palha, que se acha ao fundo do acampamento.

Dois homens conversam como se fossem dois honrados burguezes.

Um terá, quando muito, quarenta annos. É baixo e secco de carnes. Seus ollios esverdinhados nunca se firmam directamente, e os cabellos de cór açafroada contrastam singularmente com o resto de uma physionomia, aonde as paixões mais ignóbeis se acham estampadas.

Quanto ao outro é alto, ossudo e dotado de feições tão pouco expressivas, que o melhor physiologista nada poderia concluir do seu exame.

Tal era a disformidade d'aquelle rosto grosseiro e rugoso, que mais se assimilhava ao focinho de um bruto da raça felina, do que a uma physionomia humana.

Ha caras, que são o espelho da alma ; mas aquella nao o era de cousa nenhuma.

O primeiro é Barnabé, e o segundo o seu digno companheiro.

Barnabé esfregou as mãos alegremente.

«Tudo vae ás mil maravilhas. Já lhe roubei o annel do selo. Agoira encarrego-te de o aviares, logo que tiveres occasião.»

«Um bom golpe de punhal, quando na tenda esteja dormindo, ou então, seguil-o por toda a parte. Mas olha lá, homem, segura-te bem, porque se o não fizeres, serás dependurado pelo pescoço numa corda do mais fino canave.

O homem ouviu socegado. Puchou de seu comprido punhal e mostrou-lh'o, dizendo com voz rouquenha:

«Julgas que sou covarde como tu? Olha lá D. ladrão, para que me serve este braço e a folha d'este punhal? Prosegue tu nos teus arranjos de topeira, e escapa-te logo que poderes, porque se te agarram não tens melhor sorte do que eu.

«Ficarei até completar o trabalho, e se não entro de mão armada em terras christãs mato o maior inimigo dos meus.»

«Porque não és christão, lhe diz elle ademirado.

O assassino encollheu os hombros.

«E que tens tu que eu seja mouro ou judeu? És tu por ventura, melhor de que eu, por seguires a lei do crucificado ? Que mais valor tens ?

«Sou judeu, escravo dos homens e das minhas ambições. Pertenço á seita dos saduceus, porque não creio na eternidade, agora vocês, que dizem crer n'isso, são peiores, que os fariseus, que o vosso Christo tanto condemnou.»

«O meu officio é ganhar dinheiro.»

Barnabé, já medroso do aspecto feroz do seu companheiro, disse-lhe com a mais vil covardia:

«Isto foi por fallar, homem. Tu tens tanto de judeu como eu de christâo, o que nós queremos é dinheiro. Mata-o com o mesmo desembaraço com que eu lhe roubei o annel !

Paulo chegara por acaso junto da choça. Sentiu fallar e por curiosidade escutou, e ouviu tudo.

Não fez a menor contracção, e tomou uma serie de medidas acertadas a fim de provar quanto bem fundados eram os receios, que nutria contra os dois assassinos.

Vasco ouviu Reinaldo, depois de voltar coberto de pó e sangue.

«Muito bem, D. cavalleiro, a vós compete as honras do dia. Sois bravo e destemido no campo, mas pouco acisado no pensar.

«Não vos faço reproches ; mas na situação em que nos achamos, depois da victoria, é preciso retirar. Tomar pelas veredas mais occultas, e fugir ao perigo.

A ganância de uma victoria como esta deita-nos a perder. E olhae, que a demora levar-nos-ha a vender as vidas mui caras.

D. Reinaldo ficou magoado ; mas Vasco fez-lhe ver, que faria outro tanto vendo-se em face dos agarenos.

Horas depois levantava o arraial, e na melhor ordem marchava por entre as extensas matas de asinho, que orlavam as péssimas vias de communicação. A hoste marchava silenciosa aíastando-se sempre dos caminhos transitáveis, para não encontrarem infiéis.

Não se julgue, que Vasco fôra prudente de mais. A quatro léguas de distancia da lide, achava-se um forte destacamento mourisco, que reunindo aos fugitivos tomou a offensiva.

E uma extensa linha de cavalleiros o peões, seis horas depois, pisavam o terreno, que os christãos abandonavam.

A hoste fatigada de uma longa marcha, acampou tomando todas as providencias para evitar qualquer surpresa.

Mas tantas foram as marchas, contra marchas e rodeios, que os agarenos lhe perderam o rasto. E como era pouco numerosa estava a quatro léguas de Alcaçar, que ainda pertencia aos mouros, sem que o soubessem.

Paulo não perdia de vista os dois assassinos ; mas como ouvira fallar de um annel e seu amo ainda não dissera nada, tirou como illação, que se enganara ; mas se assim pensou sobre este assumpto, não succedeu outro tanto para com o resto, seguindo de perto os movimentos dos bandidos.

Quanto a Barnabé de mais sabia, que não obstante ser malvado, era incapaz de puchar um ferro.

A hoste descançava entre uma extensa matta ao abrigo das arvores seculares, que a protegiam contra os insultos de um sol tropical.

Era no mez de junho de 1146.

Vasco tinha um bello rafeiro, que para toda a parte o acompanhava. Era um valente animal, que se batia vantajosamente com o mais corpulento lobo.

Seria sol posto quando se lembrou dar um passeio acompanhado do seu valente moreno.

Paulo estava alerta e notou, que Barnabé e seu companheiro o seguiam por uma vereda opposta.

O bom do escudeiro não quiz ver mais. Cingiu o montante e eil-o a caminho atravez das moitas, das urzes o tojo, umas vezes de pé e outras agachado para não ser descoberto. Os assassinos pararam junto de uma clareira. Barnabé tomou á direita por uma das veredas mais emmaranhadas e em breve desappareceu.

Paulo escondido seguiu os movimentos do que ficara, que na sua opinião era o mais temivel, não se enganava.

O coração batia-lhe com violência, não obstante seu temperamento frio, mas é que o perigo não podia ser maior.

O assassino depois de verificar que não era visto, tomou para o lado esquerdo. Paulo tirou o montante da bainha para o convidar.

Mas não. O homem seguiu em frente e revolvendo uma espessa murteira tirou debaixo dos ramos uma besta e duas setas.

A besta era de garrucha de ferro. Experimentou-lhe a corda e pondo-a ao hombro caminhou rapidamente.

Paulo tinha visto tudo. A sua primeira ideia foi matal-o ali mesmo ; mas quiz seguil-o atá ao fim, para lhe não ficar a consciência a remorder. Correu com a velocidade do galgo e no fim de seiscentos ou oitocentos passos avistou Vasco, que descansava debaixo de um copado carvalho.

O sol estava no occaso. Seus raios dourados reflectiam brandamente nas pontas dos últimos ramos. A atmosphera não apresentova esse azul puro e inimitável dos dias de primavera ; mas sim essa côr menos viva e clara, em consequência das evaporações próprias nos mezes de estio.

O bandido colloucou-se em posição vantajosa para melhor descobrir a victima, tirou de uma seta e ajustou-a. Mas quando entesou a corda e o tiro ia partir, e por consequência perder Portugal um dos seus mais valentes guerreiros, um golpe de montante dado em cheio nas costas o fez vacillar. Dobrou os joelhos e cahiu para traz.

Paulo tinha chegado a tempo de salvar seu amo. E ainda bem o assassino não cahira, já Paulo estava em cima d'elle, com um pé sobre o peito e a espada na garganta.

O malvado era de uma hidiondez pouco vulgar ; mas n'esta occasião era horrendo.

Reconheceu Paulo e viu que não tinha para onde appellar. Resignou-se e esperou, que a fria lamina do montante lhe passasse a garganta.

Não temeu a morte. Ao menos não reunia a tantos defeitos physicos e moraes a covardia.

«Confessa, malvado, os teus crimes e arrepende-te, pois se não alcançares o perdão dos homens podes obtel-o de Deos.»

«Não me falles do teu Deus, porque não creio n'elle!

«Odeio os christãos por uso e costume, e por isso estava para matar teu amo, um dos seus maiores defensores.»

Paulo cortou -lhe a palavra.

«Confessa, miserável, quem ta mandou matar um tão nobre cavalleiro?»

«Se continuas a insultar-me não te digo nada. Podes tirar-me a vida; mas ficas ignorando o resto.»

Paulo reconheceu, que o homem era corajoso; mas aborrecido de tanto fallar respondeu-lhe:

«Fu ! Fu assassino, que queres campar por homem de honra!

«Pega, ahi tens, maldito, a recompensa dos teus crimes!»

Carregou na folha do montante, cravou-lh'o na garganta.

O assassino estava com a fronte voltada para cima. Viu todos os movimentos de Paulo. E quando sentiu a garganta trespassada fez uma contracção tão medonha e deu um ronco tão pavoroso, que parecia o grito de um condemnado nos abysmos do inferno.

Um sangue negro esguichou com tanta força, que foi banhar as faces do escudeiro, que recuou dois ou três passos, com as feições demudadas e os cabellos hirtos.

Era um quadro medonho ver estes dois homens no seio de uma selva, e de um silencio sepulchral, aonde apenas se ouvia o cicio dos arbustos levemente agitados, um com as feições contrahidas pelo estertor da morte, outro com os cabellos hirtos, olhos esgasiadus e coberto de suor frio.

O assassino ainda fez um esforço sobre humano. Ergueu parte do corpo e levou a mão ao punhal, que tinha na cinta.

Mas as forças faltaram-lhe. Deu um gemido profundo, estremeceu e cahiu para nunca mais se levantar; tinha expirado.

Paulo estava como alucinado, tinha visto morrer muita gente ; mas nunca presenciou a agonia de uma victima sua.

Só tinha morto nos campos de batalha e ahi ninguém se occupa a ver o estertor dos que cahem.

O piar sinistro de uma ave nocturna o despertou.

Sentiu a ponta de uma aza açoutar-lhe as faces. Voltou a cabeça e viu o cadáver estendido.

O luar espargia um pálido clarão, que dava de chapa nos olhos envidraçados do defunto, e Paulo voltando a si ignorava o tempo que se conservara n'este estado. Arripiaram-se-lhe as carnes. Correu pelas agruras da serra e chegou arquejante ao acampamento.

Em quanto se passavam os acontecimentos que acabamos de narrar, Vasco de Sousa, ignorando o perigo que o ameaçava, alargou mais os passos do que devia.

O sol tinha desapparecido de todo quando reparou, que moreno, seu fiel rafeiro, ladrava e uivava como um desesperado, arremettendo para a frente.

Vasco partilhando dos preconceitos da epocha, sentiu arripiarem-se-lhe os cabellos e gelar-se-lhe o sangue nas veias.

Puchou da espada e verificou se nas moitas estaria algum animal carnívoro, e como nada encontrou proseguiu insensivelmente, e achou-se fora da floresta.

Uma espécie de jardim e alcaçar avistou ao longe. Foi quando reconheceu, que fora muito longe, e que podia ser covardemente assassinado pelos infiéis.

Mas n'aquelle coração de heroe nunca entrou o medo, teve curiosidade de reconhecer mais de perto o palácio e avançou.

Um formoso bosque de larangeiras, limoeiros e mais differentes arvores, espalhavam um cheiro balsâmico e agradavel, que por gosto se podia aspirar. Parado com a vizeira levantada estava admirando a belleza do nobre edifício, quando um grito reboou pela vasta solidão.

Vasco sentiu o coração sobresaltado. Parecia que se lhe arrebatava do peito.

Arrancou do elmo para melhor se afirmar e viu uma formosa donzella, que o contemplava com amor.

Parecia uma visão celeste.

Seu veu branco fluctuava ao capricho do vento e os lindos olhos de um negro aveludado diziam mais, de que o mais pomposo discurso.

Os cabellos negros caiam-lhe airosamente pelas costas. Era a figura de um anjo; e se com os anjos se não parecia com quem se parecem elles então?

Vasco absorto, levou a mão ao coração com terno adman. A donzella sorriu meigamente.

Correspondeu-lhe, e o gesto amoroso que empregou era arrebatador.

Vasco cahiu de joelhos, exclamando:

«Alice! Alice! Anjo da minha vida! Luz dos meus olhos! Único pensamento da minha alma!»

A donzella não esperou ouvir mais. Correu para o jovem guerreiro e lançou-se-lhe nos braços.

«Vasco! Vasco! foram as suas únicas palavras, e um beijo ardente lhe acentou nas faces.

O mancebo estremeceu. Apertou-a de encontro ao peito olhando-a ternamente.

Era a primaira vez que os jovens se encontravam.

Era a sua primeira declaração de amor, d'esse amor profundo, que vive alem da campa como a eternidade.

O amor é a verdadeira poesia da alma, é o primeiro attributo da vida e o sentimento mais nobre que se conhece.

Todos amam. Até os irracionaes se amam mutuamente. E quem sabe se as plantas partilham d'esse elevado sentimento?

Se o não sentem tão real e perfeito como os animaes, podem conhecel-o em relação directa á sua organisação e propriedades naturaes.

Mas quantas esposas, proclamando um amor ficticio, trituram o esposo sob a influencia de caprichos atrozes e insinuações mesquinhas?

Oh ! mas d'esses nos compadecemos nós , porque não pode haver maior soffrimento na vida.

Alice sentiu dilatar-se-lhe o espirito, que se elevava alem dessas ethereas regiões; que só amor comprehende e faz comprehender.

Agarrou nas mãos do mancebo com a expressão de uma indisivel ternura:

«Vasco de Sousa, cavalleiro christão, amas-me?

Cravou os olhos no guerreiro, como quem desejava ler-lhe no âmago da alma, o sentimento que o dominava.

Vasco olvidou a gloria dos combates, a differença das crenças e a própria vida.

Tal foi a influencia seductora d'aquella bocca de anjo, pronunciando palavras de tanto amor.

«Se te amo, donzella ? Não o sabes tu, por ventura? E quem ha, que te veja sem te amar?»

«Amo-te como Deus ama as suas creaturas, e como o primeiro homem amou sua mulher!

«Teu rosto angélico acha-se gravado n'este coração, que deixará de palpitar quando deixar de ser teu!»

Alice ouvia-o anciosa. As palavras de Vasco eram como o vivificante orvalho do estio. Eram para a joven de tanto valor, que as recolhia com soffreguidão, para que nem só uma lhe escapasse.

Aquelle temperamento ressentia-se da influencia athmospherica em que nascera. Ali tudo era fogo e dedicação.

«Oh! não digas tanto, não tenho vida para tamanha ventura! Não repitas mais palavras de amor! Pronunciadas por ti são como o fogo sagrado, que consome o crime e alimenta a virtude. Não digas mais, Vasco, que uma pobre mulher não nasceu para tamanha felicidade!»

Alice chorou, e as suas lagrimas eram pérolas, que se deslisavam pelas faces, e deixal-as correr era uma impiedade.

Vasco de Sousa ajoelhou pela segunda vez e Alice lançou-lhe os braços ao pescoço e osculou-o ternamente.

O guerreiro sentiu-se possuído de uma alucinação vertiginosa, e pela primeira vez na vida esteve para faltar ao dever de cavalleiro.

A hora da noite ia adiantada. O isolamento em que se achava e o abandono da donzella, tudo contribuía para nutrir máos pensamentos; mas o dever tudo superou e Vasco ergueu-se mais gigante pelos brios de que a própria honra, com todo o seu brilhantismo.

Fixou a donzella com gesto melancólico. Disse-lhe meigamente:

«Alice, para que havemos alimentar um amor sem futuro e sem esperança?

«Não sou eu por ventura o maior inimigo dos sectários de islan?

«Nâo medeia entre nós um abysmo cavado pela differença das crenças religiosas?

«Não és tu sobrinha do maior inimigo, que meu pae conheceu?

«Oh! Esqueçamo-nos, Alice, para não amaldiçoarmos o momento em que nos encontrámos.»

A donzella á proporção que Vasco se expressava mudava de còr. As suas palavras echoavam-lhe no fundo d'alma, e o effeito era o da ponta de um agudo punhal.

Tremula e porpelexa não lhe respondeu senão passados alguns momentos.

Julgou estar sonhando.

Depois da ventura a decepção e depois a morte! Nada mais lhe restaria se Vasco proseguisse nas mesmas intenções.

Olhou-o com gesto tão magoado, que o guerreiro baixou os olhos, para não pedir perdão e retratar-se.

«Ah! Que se ella se fizesse christã!» disse elle interiormente.

Alice já não podia. O soffrimento era muito e o peito de uma mulher fraco de mais para tamanha dor.

«Vasco, para que me tiras a vida depois de m'a teres dado?

«De que me servirá o mundo sem ti e a vida sem o teu amor?

«Sem ti o mundo será um deserto e a vida mais triste, de que o mais triste sepulchro!

«Para mim não ha sol, não ha estrellas nem firmamento, quando te não veja a meu lado!

«Os campos nâo terão bellesa nem os fructos sabor! O calor não me aquecerá nem o frio me fará gelar o sangue nas veias! Reduzida á condição de um mármore serrei uma estatua movente quando me faltar o teu amor.»

«Que mal te fiz para assim me tratares?

«Que me importa a religião de meus pais?

«O teu Deus será o meu, a tua religião a minha, porque esta vida pertence-te como tudo pertence a Deos!

«Que culpa tenho eu, estando na Ásia, que teu pae fosse inimigo de meu tio?

«Pertenderás por ventura tornar-me responsável por crimes que não commetti? Oh! Não! Tu não mentes! Tu amas a pobre Alice, e se a não amas, pega, tira-lhe a vida!» Tirou do cinto um pequeno punhal, que apresentou a Vasco com tamanha resolução, que o fez tremer.

Terríveis combates supportava interiormente. Mas não se achava resolvida, por assim dizer a maior difficuldade?

Não tinha Alice promettido que a sua religião seria a d'elle? Para que triturar aquelle coração apaixonado e tão cheio de dedicação?

Vasco nâo podia já supprimir o arrebatamento do coração, que lhe pedia uma confissão clara e um juramento de eterno amor. Foi o que fez.

«Alice, perdoa! Serei teu eternamente! A tua vida será a minha, e meu o teu soffrer!

«Aqui te juro, por Deus que me está ouvindo! Faz-te christã, que serás minha esposa.

«E se a isto não adherires, por Deus também te juro, que me sepultarei n'um claustro !

«Sem ti, não ha gloria nas batalhas, nem triumpho no perigo! Arrojarei a lança e a espada para longe, e o cilicio me cingirá até morrer!

«A cota e a cervilheiaa serão para sempre abandonadas e direi adeus ao mundo se Alice não quizer ser minha esposa.

«E agora donzella, ainda ousarás dizer que to não amo?

Alice era feliz! Julgava-se transportada a esses ceos de ventura, de que os poetas tanto fallam. E n'um arrebatamento inexplicável, disse para Vasco:

«Sim, serei tua! O meu Deus é o teu. Nâo quero outro!

«Já te seguiria, a não ter promettido protecçâo a um velho guerreiro, que nos cárceres de Lisboa está captivo ha dez annos.

«Quero salval-o, e tão depressa o consiga, irei procurar-te, embora estejas no cabo do mundo.»

Vasco estremeceu quando Alice lhe fallou no guerreiro. Um raio de esperança despontou n'um horisonte manchado pelas nuvens do passado: mas quando ia para fazer perguntas a Alice sobre o guerreiro, sentiram tropel de cavallos, em differentes direcções.

Alice julgou ser alguma partida de cavalleiros mouriscos.

«Esconde-te, lhe diz ella, esconde-te, que se sâo mouros matam-te! Oh! que o farão, especialmente se Albucem os commandar.

Porque, é assim que esse miserável infiel paga as suas dividas de gratidão?»

«Não procures virtude naquella alma, que só encontrarás a preversão hedionda e o crime na sua maioridade.

Oh! retira-te, por ti e por mim! Peço-te pelo teu Deus!

Alice cahiu de joelhos estorcendo as mãos afflicta.

Vasco julgou que atentavam contra a sua vida.

O tropel dos cavallos augmentava, Alice proseguiu:

Crê no que te digo, sendo mourqs não te perdoam. Tu bem o sabes.»

Não teve tempo para dizer mais nada. Foram cercados por dez ou doze cavalleiros, que de montante em punho, tomando Vasco por um infiel, bradaram com arrogancia :

«Dá-nos conta do guerreiro Vasco de Sousa commandante da hoste de Riba Bestança. quando não morres.»

Alice respirou.

Vasco respondeu alegremente: Bofé! Senhores! Quanto me apraz ser por vós tão estimado. Mas olhae, cavalleiros, que tambem vos tomei por infieis.

«Rogo-vos que vos affasteis, que breve serei comvosco.

Os cavalleiros retiraram-se. Tinham visto um vulto; mas nâo pedia o respeito devido a tão poderoso senhor, a menor interrogação.

A despedida de Vasco foi affectuosa.

Ia para se retirar; mas aquelle coração apaixonado, subjugado por uma paixão delirante, parecia não poder com a separação.

Alice com a voz entercorlada pelos soluços, pediu-lhe a repetição do juramento que fizera de a tomar por esposa.

Vasco assim fez, e a donzella resignando-se, despediu-se sonhando mil provires afortunados.

Aquella alma juvenil, que ha pouco se julgava á beira do abysmo, pedindo a morte, sorria agora meigamente emballada pelos sonhos de ventura.

Então a duvida contra amor lhe fez ver a mortalha e o sepulchro, agora amor contra a duvida lhe apontava a coroa do noivado e o thalamo nupcial.

Taes são as transições operadas nas imaginações ardentes dos namorados, que apenas contão desesete estios e outras tantas primaveras.

Mas as illusões perdem-se ante o prisma da realidade, como o grão de areia nos abysmos do Oceano.

Eis a triste condição da vida, aonde a ficção é tudo e real só a morte.

Vasco montando a cavallo metteu a galope até ao acampamento. Tempo depois voltou Reinaldo, que ficou satisfeito do regresso do seu amigo.

Paulo conservava-se taciturno, seu caracter frio tomara um aspecto de ferocidade, que Vasco notou. Não fez reparo, pelo costume de supportar o gesto carrregado de seu escudeiro.

Eram seis horas da manhã. A hoste do Riba Bestança achava-se formada para marchar.

O balsâo do rico homem tremulava altivo, como as azas de uma águia, que em vôos prodigiosos se arrebata alem das nuvens.

Vasco estava triste.

Recordava os momentos de ventura, que com a joven tinha passado. Seu coração opprimido pela saudade sentia um vácuo, que só ella podia prehencher.

Os pagens estavam de pé, em quanto que os cavallariços segurando os corcéis aguardavam as ordens.

Vasco não se movia. Paulo estava carrancudo e Reinaldo alegre sem saber pelo que.

«Que é feito de moreno? Perguntou Vasco de Sousa.

Paulo encolheu os hombros.

Vasco chamou um pagem.

«Antonino ide procurar o meu fiel moreno. Nâo quero partir sem elle.»

O pagem partiu e o silencio não foi interrompido.

Sentiram-se ao longe os latidos de um mastim.

Vasco disse para Reinaldo:

«Eis o meu fiei companheiro. Nâo me quiz abandonar.»

Ainda bem não acabara de pronunciar estas palavras, quando o nobre animal se apresentou, trazendo preso nos dentes um volume disforme e hediondo.

Vasco recuou. Levou as mãos aos olhos para affastar a vista de um tão repugnante espectáculo; mas moreno collocando-lh'o aos pés latio desesperado.

Todos immudeceram. Paulo parecia um cadáver.

Era a cabeça de um homem, que moreno arrastava pelos fragmentos do pescoço.

Vasco tremeu. Viu neste facto um aviso do ceo, e pela primeira vez na vida teve medo.

«Oh! Por Deus, tirem-me daqui esta cabeça disforme! Deem-lhe sepultura honrada, quer seja de mouro ou de christão.

Paulo frio e silencioso acercou-se d'ella, analysou-a attentamente e disse para seu amo sem a menor contracção, com quanto se achasse bastante pálido.

«Nao é de mouro nem de christão, é de um judeu.

Vasco encarou-o admirado.

«Como sabes isso?»

Paulo respondeu-lhe: É a justiça de Deus, que se serviu de um braço peccador para castigar um vil assassino e salvar a vida de um grande campeão da cruz.

«Vasco lembrou-se dos homens, que tinham desapparecido e interrogou Paulo, que em duas palavras o informou de tudo.

O cavaileiro reconheceu que o roubo do annel envolvia mais uma traição; mas não podia atinar com ella.

Jurou vingar-se de D. Paio, pois a mais ninguém atribuia tantos crimes.

Possuido d'este pensamento, e horrorisado como estava, montou sem a menor detença a cavallo, e á frente da hoste marchou apressadamente de um logar de tão lúgubres recordações.

Três dias depois passava o Tejo e marchava na direcção de Coimbra, tendo feito por mais deumanno crua guerra aos agarenos do Alemtejo, aonde se cobriu de gloria.

CAPITULO VIII 136

RAPTO E COMISSÃO

Vou conduzir os leitores a um covil de salteadores. Se não é bom o passeio desculpem-nos; precisamos ir até lá saber o que fazem aquellas virtuosas creaturas, dignas da morte de Judas Eschariote, vulto contemporâneo de todas as epochas, desde o anno da graça de trinta e três.

N'uma vasta cavidade, na vertente de uma serra aonde a luz nunca penetrava senão atravez das aberturas dos rochedos, se acham alguns homens de physionomia sinistra e gesto carregado.

Uma grande fogueira se vê no centro afim de aquecer aquella frigida mansão, mais própria para guarida de lobos e ursos, de que de homens com alguma tintura de civilisacão.

A bruma estava na maior intensidade, e o pobre lavrador, aquecendo-se á lareira, lamentava as tempestades que lhe impeciam os trabalhos campestres.

Os homens assentados junto ao fogo aqueciam os inteirissados membros, em quanto que um vento nordeste, zumbindo pelas fendas dos penedos espalhava um frio de regellar, a não ser neutralizado pelo calor do fogo, cuidadosamente alimentado.

N'uma espécie de zorames, ou capotes, de grande capuz, se embrulhavam lodos. Intertinham-se a assar em grandes espetos, aves e differentes peças de carne.

Bastantes armas, como bestas, frechas, espadas, e venabulos estavam espalhadas em confusão, o que provava que no caso de ataque venderiam caras as vidas.

N'uma espécie de estrado de madeira um homem estava deitado. Era de estatura elevada e de proporções athletas.

Seu rosto seria bello a nâo ser a ferocidade que se lhe notava. Parecia estar dormindo.

Os demais indivíduos, que ao todo seriam dez, fallavam e bebidam guardando com tudo alravez da licença da conversação, certa defferencia para com o chefe que acabámos de descrever.

Estamos no mez de Janeiro de 1147, epocha de eterna memoria para a historia portugueza, pelos graves acontecimentos que se deram, e que tanto contribuiram para a consolidação e engrandecimento da monarchia.

Referimo-nos á tomada de Santarém, praça forte e de grande importância militar, e á conquista de Lisboa, cidade de grande consideração pelo seu excellente porto e riqueza.

A tomada de Lisboa importava nada menos, de que a completa expulsão dos mouros de toda a província da Estremadura, a de Santarém assegurava aos christãos uma base de operações, quando tentassem lançar-se sobre o Alemtejo. Era um excellente ponto de apoio, e por tanto um abrigo seguro no caso de revez.

Era assim que o comprehendia o grande Affonso e a experiência mostrou, que se não enganava nas suas combinações.

A conquista de Santarém assegurou a de Lisboa, a desta cidade a de toda a província. E de alii, passando ao Alemtejo, o génio das conquistas só pairou no promontorio de S.Vicente, no Algarve, ultimo baluarte que os mouros conservaram.

Estamos, pois, em Janeiro de 1147, a chuva cahia em torrentes; e a caverna, com quanto abrigada, era todavia tão humida, que a não ser a fogueira, ninguém poderia ali conservar-se mais de um quarto de hora.

O homem que nomeamos levantou-se: «Camaradas, vou contar-vos uma historia.» «Uma historia! bradaram elles abrindo muito os olhos espantados.

Nunca tal lhe tinham ouvido, desde que o seguiam nas suas rapinas. Já ficam certos os leitores, de que o nosso homem era o chefe da quadrilha.

«Vamos lá, capitão. Vá lá uma historia. As noites são grandes, e o tempo hade passar.»

Foi a resposta dos dignos companheiros de Raymundo o incendiário.

Raymundo proseguio: «Entâo é caluda! Nem pio, quando nâo, não temos nada feito.» «Vamos lá, capitão, responderam todos.»

Raymundo, depois de conferenciar com uma cabaça que tinha ao lado, principiou :

«Havia um grande senhor, filho-d'algo prestameiro de muitos castellos, que desejava desfazer-se de um cavalleiro donzel, que lhe fazia sombra em certos amores.

«Ora o cavailleiro donzel era um guerreiro de mão cheia. Era homem de não voltar as costas ao perigo, nem dos que julgam que o inimigo vem sempre da saga.

«Um dia o tal rico homem, que tinha as suas rasões para se não medir n'uma estacada com o donzel, mandou chamar o chefe de um bando de homens independentes, que fazem a sua fortuna á custa do alheio, mas que arriscam a vida como valentes n'uma estrada.»

«Lá isso é verdade! Nós roubamos, mas arriscamos a vida, disseram os malfeitores.»

Raymundo deixou-os faltar e continuou: «Ora os homens independentes roubam para viver e matam para que os não matem, mas o que não sabem é assassinar por dinheiro como faz qualquer carrasco.

«O chefe foi á presença do grande senhor e logo o reconheceu como um grande usurário, pois teve a ousadia de regatear com elle, como se tratasse com qualquer villâo.

«Vá feito, disse o chefe depois de pôr o preço. Não farei nada por menos de quarenta marcos de prata. O homem está morto.»

O filho-dalgo acceitou, mostrou-se muito satisfeito e prometteu dar igual quantia depois do negocio concluido.

«O donzel desejado não foi preso, por que demais se sabia que não era elle; foi em seu logar apanhado um pobre frangaito, que se escapou, pouco tempo depois, protegido pelo mesmo que devia ser preso.

«Mas sabem vocês o que succedeu? Vão sabel-o.

«O covarde do rico homem não quiz pagar o trabalho, dizendo que não se tinha cumprido a commissão!

«Ora o chefe não desejava outra cousa para romper com um traidor sem fé e peior de que qualquer de nós.

«Foi o que fez. Rompeu com elle para ter occasião de tirar desforra de certa infâmia, quando o mandou açoutar por um lacaio. Que dizem, camaradas, fez bem?»

«Muito bem, commandante. Pague-se uma divida de gratidão, mas vingue-se uma affronta até mesmo no inferno ! Nós matamos, é verdade, mas se o fazemos é por nossa conta e não pela de ninguém. Assassinar por conta de outrem é officio de carrasco.»

«Bem, lhes diz Raymundo, folgo de os ouvir. Saibam pois que o chefe que assim praticou fui eu e o rico homem é esse infame traidor, mais covarde de que um chacal. É de D. Paio de Sarmento.

«Agora, camaradas, é preparar para a grande luta. É estar alerta.

«Ha-de pagar caro a sua miséria e os açoutes que me mandou dar em pequeno.»

Raimundo tinha concluido, quando o toque de uma campa, que se achava suspensa do tecto, resoou pela caverna tão lugubremente que faria arripiar outros homens que não estivessem tâo identificados com o crime. Comtudo ficaram sobressaltados.

O toque repctiu-se mais rijamente. Não restava duvida. Alguém que sabia do esconderijo, aonde estava a extremidade da corda, a fazia tocar.

Pegaram nas armas e esperaram as ordens do commandante.

Raymundo levantou-se, cingiu a espada, agarrou numa acha de armas, e acendeu um archote.

«Sigam-me.»

Caminhou por uma esteita e tortuosa vereda. No topo estava uma grade de ferro.

«Dois homens, disse Raymundo.»

Avançaram dois, e seguiram o chefe, que como elles teve de caminhar agachado.

Levantaram uma pedra e eil-os debaixo de uma tempestade horrivel, saltando pelos pincaros mais escalvados de uma serra cortada por abysmos, aonde as torrentes se despenhavavam com medonho fragor.

Assim caminharam um quarto de légua. Pararam atraz de um penedo.

Através da escuridão da noite differençaram um vulto. Avançaram, e como a chuva era muita, não foram percebidos. Raymundo ia na frente, e logo que a distancia lh'o permittiu, deitou as mãos ás guellas do homem, que não poude gritar.

«Que fazes aqui?» lhe diz elle. O homem, reconhecendo-lhe a voz, respondeu a custo:

«Sou eu commandante! É Barnabé.»

Raymundo largou-lhe as guellas.

«Ah! És tul Está bom; anda lá adiante. Aqui não podemos conversar.»

Os salteadores tomaram pelo mesmo ceminho e meia hora depois estavam todos á roda do fogo.

«Então que fazes por aqui a estas horas? Pretenderá por acaso teu nobre amo fazer alguma montaria aos lobos?

«Falla, homem. Entre, camaradas não ha segredos.

Barnabé era um covarde como ha poucos; mas tambem não havia ladrão mais velhaco de que elle.

Sabia que Raynmndo estava zangado com D. Paio, e resolveu não responder.

«Então que é isso, homem? Ora vá lá uma pinga.»

Raymundo conheceu que Barnabé não queria fallar, e lançou mão do único meio capaz de lhe fazer dar á lingua. Tratou de o embebedar.

«Anda, bebe, que estás frio. Vá lá mais um trago. Anda, homem, olha que te não faz mal. Diabo! Não parece que fostes leigo do um convento, soldado e salteador.

«Verdade é que fostes mao frade, peior soldado, e só excellente ladrão. Lá isso é que não tem duvida.»

Com estas e outras palavras ia Raymundo conseguindo o seu fim, até que Barnabé, bêbado de todo, começou a fallar.

Barnabê, fallando a custo, voltou-se para o capitão.

«É lá, commandante! Por Satanaz ou pela toura! Aposto que não sabe o que pretende agora fazer o sr. D. Paio meu poderoso amo? Ora vá lá que você é de segredo.

«Saberá que o pobre Jeremias foi vendimado na occasião de matar Vasco de Sousa.

«Tinha já tudo prompto; estava quasi a dar-lhe cabo da pelle.

«Mas vae se não quando o maldito escudeiro não o deixou fazer nada, e o pobre diabo a estas horas ceia no inferno com seu compadre Barrabás.»

«Ó commandante, você fez mal em o expulsar da companhia. Foi por ser judeu ? Que tinha isso? Valente era elle. Lá isso é verdade.»

Raymundo insistiu: «Mas então que pertende agora D. Paio fazer?»

«Ora essa! O que pretende fazer ê uma grande coisa. Eu lhe digo:

«Jeremias não foi feliz: mas eu consegui o que desejava. Roubei um annel que tem as armas dos Sousas; escapei-me e deio a meu amo, que m'o pagou por septenta marcos de prata. E na rota de Lorvão vae elle agora para lhe roubar a irmã do convento.

«Aquillo é um vardasca por mulheres.

Sabe o que elle diz agora? Diz que não foi feliz com a mãe, que o ha de ser com a filha.»

Barnabé bocejou; e disse ébrio de todo:

«O plano está bem combinado; e como tive licença para brejeirar vim fazer-lhe uma vizita.»

Ainda deu mais algumas palavras mal articuladas, pendeu a cabeçá e dormiu.

Raymundo soube quanto desejava.

«Rapazes, temos de um lado um valente e brioso cavalleiro, de outro um covarde assassino.

«Um é generoso e valedor, o outro usurário e vingativo. Para que lado nos devemos voltar?

«Olhae, camaradas, que Vasco de Sousa tem a privança do rei como brioso guerreiro. D. Paio é um vil, que se arrasta como a serpente, que vive como ella; e se não morde com os olhos abertos, é porque o faz ás escuras como a víbora.»

«Vamos, é resolver, nao só para bem dos nossos interesses, como para desaffronta da nossa independência.

«Eu declaro que serei fiel a Vasco de Sousa, para me vingar d'esse cão mais vil de que qualquer judeu.»

Os satélites, durante o arrasoado do commandante, estiveram irresolutos; mas assim que elle emittio a sua opinião, tomaram calor e declararam-se unanimemente por Vasco de Sousa, jurando prevenil-o e ajudal-o contra D. Paio.

Raymundo bem sabia que a sua opinião seria a de todos.

O seu pensamento era uma lei, e a sua vontade absoluta.

«Vasco de Sousa nunca aceitará o apoio de um chefe de bandoleiros; mas elle não se apresentará como tal; e como a verdade é só uma, tanto vale proclamada pelo justo como pelo peccador.»

Raymundo não esperou mais, ergueu-se e principiou a dar ordens com tanto desembaraço como o grande Alexandre na batalha de Arbella.

«Tu Joaquim defunto, amanhã montando a cavallo, segue na rota de Coimbra e diz a Vasco de Sousa, que D. Paio de Sarmento com grande cavalgada attenta contra a sua honra. Olha, não te esqueças de pedir a recompensa de tão grande serviço.

«Tu, Pedro Cacheiro, ao romper d'alva poe-te na rota de Lorvão, indaga se chegou alguma cavalgada, ou grande filho-d'algo. Mas anda de maneira que não sejas descuberto.

«Tu, João Eostica, ficas tomando conta do coté. Quanto a ti, José Besteiro, acompanharás de camaradagem esse patife do Barnabé. Vigia-o de maneira que não desconfie, pois tem tanto de velhaco como de covarde.

«Logo que recebas ordem dependura-o no tronco da primeira arvore, e deixa-o pernear á vontade.

«O resto acompanhar-me-hâo todos armados como grandes cavalleiros.

«Eia, rapazes, â sombra de uma virtude bom negocio faremos.

«Dizia meu tio, leigo de D. Muma, que o roubo para os Espartanos era uma virtude, por Deus, que lá nisso somos nós heroes como elles.

Assim se entertiveram, até pela manhã, que marcharam ao seu destino em harmonia com as ordens dadas.

Retrocedemos agora um pouco mais áquem da scena que acabámos de descrever.

Vamos ao solar de D. Paio a fim de nos informar-mos dos novos projectos, dignos, em tudo, da cabeça de um traidor sem crenças, nem fé.

D. Paio, assentado n'uma larga cadeira de espalda, falla com um homem de phisionomia repugnante pela audácia matreira, que revela no rosto deslavado, e da mais baixa vilania.

D. Paio satisfeito, falla bastante animado:

«Fostes um leal servidor. Comprehendes-tes meus desejos e o empenho que faço nesse annel. Mas diz-me, sabes verdadeiramente que Vasco não morreu, e que Jeremias foi morto pelo escudeiro?»

«Se sei, senhor, lhe diz o homem, que já os leitores sabem ser Barnabé, sei-o tão bem, como sei que estou na presença de vossa Honra. Vi tudo. Já me tinha afastado, e voltei atraz para lhe recommendar uma cousa, quando avistei Paulo.

«Escondi-me para não ser visto, e de ahi presenciei tudo até ao fim.»

«Covarde! Pois vis-te matar um camarada e não lhe acudis-tes?»

«É verdade, senhor, respondeu o tratante com o maior sangue frio, mas eu tinha a meu cargo uma jóia de grande preço para vossa Honra, e se eu morresse, não lh'a poderia apresentar.»

D. Paio, que nestas cousas de valentia não lhe era superior, accomodou-se com a resposta.

«Dá-me o annel.»

«Sim, meu senhor, e os setenta marcos de prata?»

«Eil-os.»

Apresentou-lhe uma bolsa, e recebeu em troca o tão desejado annel.

Podes retirar-te e ir brejeirar para onde quizeres. Agora não preciso de ti.

Barnabé não esperou segunda ordem, rodou nos calcanhares, e em dois pulos achava-se na única rua do burgo, a caminho das tabernas, que o demónio estabelece em frente das igrejas que os santos podem erguer.

Cinco minutos depois, assentado ao balcão enchia-se como nm odre.

D. Paio mandou chamar Bento Fernandes seu secretario, que se apresentou pouco tempo depois. Era alto, bastante magro, dotado de grande nariz e bocca prodigiosa, e com uns olhos tão pequenos, como os de um marrão de dois mezes; trazia debaixo do braço um rolo de pergaminho, e n'uma das mãos um tinteiro e duas penas de pato.

De peru não, porque ainda se não tinha descuberto o novo Mundo.

Fez três respeitosas cortezias a D. Paio, curvando a cabeça tanto, que o corpo formou um arco, que serviria para qualquer rabecão.

«Bento Fernandes, disse D. Paio, preciso de vós e da vossa sciencia de fazer garatujas, que por vida minha, por mais que deseje, não posso comprehender.

«Assentai-vos, e escrevei o que vos dictar.»

Bento Fernandes assentou-se magistralmente, e empunhou a grossa pena do pato, de tão fino aparo, que um palito escreveria melhor cursivo.

Bento Kernandes escreveu a seguinte carta:

«Querida irmã. O senhor Deus todo poderoso Houve por bem contemplar-me com uma grave enfermidade.

«Uma febre lenta me devora. Sinto-me á beira do tumulo; peco-vos, querida irmã, que logo que recebas este aviso sigas sem mais detença.

«O portador é cavalleiro de toda a minha confiança, e á frente de uma boa escolta vos acompanhará.»

Bento Fernandes, como estava acostumado ás muitas vilanias de D. Paio não estranhou mais esta. Concluio a carta, e depois de a ler recebeu ordem para se retirar.

D. Paio, assim que se achou só, pegou no annel de Vasco e timbrou-a com o selo particular da familia dos Sonsas. Fechou-a cuidadosamente, cingindo-a com um fio de seda.

Vinte e quatro horas depois, acompanhado de doze homens de armas, seguia a bom picar na rota de Lorvão.

Ora em quanto se passavam todas estas cousas na corte de Coimbra não descansava, nem o valente monarcha.

Duas cousas lhe tiravam o somno, uma era a maneira de tomar Santarém, e outra a conquista de Lisboa.

Durante as correrias que Vasco de Souza fez no Alemtejo, pelo espaço de um anno, o Alcaide de Santarém, homem valente e dado a grandes emprezas, chamando os alcaides convezinhos, tirou larga desforra levando tudo a ferro e fogo, nas terras christãs.

Em toda a provincia se viam povoações incendiadas e os pobres aldeãos fugiam, abrigando-se nos barbacans dos castellos fronteiros.

No fim todavia de alguns mezes de hostilidades ajustaram-se tréguas, entre o alcaide e o rei de Portugal.

Andava Affonso tratando de se apossar de Santarém. De ha muito que o monarcha desejava um pretexto para levar a cabo tão importante feito, mas recuava em face de um assedio, pela fortaleza dos muros, sua posição vantajosa, e numerosa guarnição.

O único meio era tomal-a por surpreza ; era preciso o desenho da praça, dos pontos mais accessiveis e menos vigiados.

Era finalmente necessário ter um perfeito conhecimento de todas estas e outras circumstancias.

Em tudo isto pensava seriamente o grande Affonso, como guerreiro prudente e de grande conselho. Precisava de um cavalleiro arrojado e de habilitações superiores a quantos o rodeavam.

Lançando a vista para os valentes guerreiros portuguezes concluia, que todos seriam capazes de trepar a uma escada e escalar as muralhas, mas nunca nos casos de colherem os dados que desejava.

Lembrou-se um dia das justas e torneios, que em Coimbra tiveram logar, e do joven cavalleiro, que com elle quebrara uma lança. Ficou satisfeito, pois encontrara o que desejava.

Vasco de Sousa não só era considerado, como uma das melhores lanças de Portugal, como também por um cavalleiro de vastos conhecimentos.

Affonso recordou-se que havia alguns mezes, regressando do Alemtejo, lhe pedira licença para se affastar da corte.

Chamou um cavalleiro distincto e perguntou-lhe por Vasco de Sousa.

O cavalleiro respondeu, que se achava no seu solar da Cham.

Duas horas depois caminhava um homem de armas pela estrada de Coimbra até ao solar de Riba-Bestança.

O homem de armas chegou ao Castello da Cham e entregou a Vasco uma carta authographa, do monarcha.

Vasco beijou-a respeitosamente, e tratou de cumprir as suas ordens, preparando-se para seguir jornada n'esse mesmo dia.

Os dias tinham deslisado, para o mancebo, frios e melancholicos. As nebrinas e tempestades encadeavam-se por tal forma, que ninguém contava um dia risonho e perfeitamente desembaraçado das serrações.

A neve caía, e as agruras da serra apresentavam um aspecto deslumbrante. N'uns pontos, a neve se assemelhava a extensos lençoes, n'outros, a grossas columnas de alabastro.

O pequeno rio Beslança levava a corrente volumosa; e. caindo de precipicio em precipício, de abysmo em abysmo, formava nma sério de catadupas, que se despenhavam com espantoso arruido.

O vento, penetrando pelas gelosias, zumbia, acoutando-as furiosamente.

Os animaes carnívoros, espavoridos fugiam de seus esconderijos para os povoados, e as aves de rapina mais robustas, nâo se animavam a sair das cryptas dos altos rochedos, nem a sacudir as azas para tentarem um vôo. Tal era o estado da bruma no anno da graça de 1147.

Vasco nem ao exercício da caça se podéra entregar. Passava os dias, ora pensando em Alice, que como um anjo lhe sorria na imaginação, ora conversando com Thiago, seu velho e virtuoso mordomo.

A carta do rei fez-lhe grande surpresa, e não obstante o rigor da tempestade e as escabrosidades do caminho, no dia immediato, seguido de Paulo e de Reinaldo, poz-se na rota de Coimbra em cumprimento das ordens do monarcha.

Dois dias depois entrava nos passos d'esta cidade. Apresentou-se ao rei, que teve com elle uma larga conferencia.

D. Affonso conduziu o mancebo para junto de uma janella e fallou-lhe com o maior interesse, sobre a necessidade de se tomar Santarém, não se esquecendo todavia de dizer, quanto difficil considerava semelhante empreza.

D. Affonso accrescentou:

«É de vós que preciso o dos vossos raros conhecimentos.

«Careço de um guerreiro, que a titulo de tratar pazes com Hauzehri, me obtenha uma descripção exacta da praça, de todos os pontos mais fortes e de mais difficil accesso.

«Preciso finalmente de um guerreiro, que reúna o saber à bravura, e a bravura e o saber á mais severa prudência.

«Procuro entre os bravos cavalleiios, cujos montantes se teem por tantas vezes banhado no sangue agareno, mas se em todos encontro valentia e denodo, em nenhum acho o que procuro, e tanto careço nesta occasiâo.

«Lembrei-me do vosso merecimento para levar a cabo este grande feito.

«E attendei cavalleiro, que alem de vós não ha um outro que vos substitua.»

Vasco estava surpreso por se ver tão honrado por um monarcha, que nunca castigou senão justamente, e só elogiava o merecimento.

O rei proseguiu: «Vasco de Sousa, quereis prestar este importante serviço a Deus, á pátria, e ao vosso rei? (*)»

Vasco de Sousa só aspirava á gloria de se immortalisar. Seu fim era vingar seu pae, lutar pela religião, pelo rei, e pela pátria.

A idea religiosa andava associada ao génio das conquistas, especialmente na época, que se impunha como penitencia, para expiar grandes crimes, ir até a Palestina matar uma ou duas centenas de infieis!

E depois do Santo varão se banhar no sangue dos seus similhantes, vinha tão puro e fresco como qualquer pagão que saía das aguas lustraes.

Que tempos em que se julgava applacar a cólera de Deus com o sangue das suas creaturas!

Que dirias tu, ó Christo, que morres-te n'uma cruz para remires o género humano! Tu remiste todos, mas os homens trucidam-se, abusando do teu Santo nome!

Vasco acceitou a missão que o rei lhe confiava. Recebeu as suas instrucções e despediu-se, promettendo pôr-se na rota de Santarém no dia seguinte ao romper de alva.

Affonso deu-lhe cartas para o alcaide; e recommendou-lhe a maior prudência.

Deixemos agora Vasco de Sousa lutando com as duvidas susci tildas por causa do aviso, que recebera contra D. Paio de Sarmento e suas damnadas intenções.

(*) Afastámo-nos da historia. O cavalleiro que foi a Santarem para se informar da praça foi Mem Monis. ]Mas os leitores já veem que é uma conveniencia de auctor. Tambem é preciso dizer, que Gonsalo de Sousa é que foi um cavalleiro muito distincto no tempo de D. Affonso Henrique. Mas não quizemos fazer de um nome historico um heroe do romance.

Se não podia resignar a missão do monarcha, não devia nem podia abandonar sua innocente irmã no perigo em que se achava.

Nesta crise momentosa confiou tudo a D. Reinaldo, seu intimo amigo.

D. Cavalleiro, vou confiar-vos o que mais tenho de sagrado! É a minha honra.

Pol-o ao facto de tudo, concluindo por lhe dizer:

«Amanhã, quando o galo cantar a primeira vez depois da meia noite, estarei na rota de Santarém, e vós na de Lorvão. Se, por acaso, alcançardes D. Paio de Sarmento, não o mateis.

«Não me roubeis o direito de o fazer.»

Reinaldo era um brioso cavalleiro. Acceitou o encargo que seu amigo lhe confiava, depois de lhe jurar eterna fidelidade.

Ao primeiro canto do galo saiam da antiga cidade de Coimbra três cavalleiros. Era Vasco de Sousa, que se dirigia a Santarém, em quanto que D. Reynaldo e Paulo tomavam a estrada de Lorvão.

Deixemos caminhar Vasco na estrada de Santarém e Reynaldo na de Lorvão.

Sigamos outro personagem, que á frente de luzida cavalgada chega ás avenidas do convento. Sabem os leitores quem é? É D. Paio de Sarmento, alma cobarde e cavalleiro desleal.

D. Paio deixou os homens de armas n'uma povoação vezinha, e tomou a direcção do convento, velho e magestoso edifício, que se erguia como um gigante no centro d'aquella solidão.

D. Paio sabia que D. Elvira não o conhecia, e por isso caminhou audaz.

Bateu no locotorio, e a madre rodeira appareceu:

«Que pretendeis, senhor?»

«Desejo fallar a D. Elvira de Sousa, respondeu o cavalleiro.»

A madre rodeira, depois de um ataque de tosse, respondeu-lhe:

«Cavalleiro, D. Elvira de Sousa nâo falla à grade, sem primeiro saber quem a procura. Dizei-me o vosso nome.»

D. Paio não vacilou. Acostumado a faltar á verdade sempre estava prompto para mentir.

«Dizei-lhe, virtuosa madre, que um intimo amigo de seu irmão é portador de uma carta que lhe deseja entregar.»

A velha freira, depois de fazer respeitosa misura, tocou uma campa.

Compareceu uma creada que levou o recado á muito poderosa fidalga.

D. Paio passeava no locotorio de um para outro lado, quando o som harmonioso de uma voz o despertou. Voltou-se e viu uma donzella, cuja physionomia angélica podia despertar ciúmes aos anjos, se por acaso da formosura fossem ciosos. D. Elvira era formosa. Mas n'aquella occasião estava ideal.

Seus olhos azues erão de tão meiga expressão, que D. Paio pela primeira vez na sua vida, teve remorsos do crime que ia cometter.

Pela primeira vez, aquella alma perdida comprehendeu um sentimento nobre. Mas breve foi suffocado pelo império do vicio, que n'elle constituía uma segunda natureza.

Não viu na donzella senão a formosura aonde poderia saciar seus damnados apetites.

D. Elvira era o retrato vivo de sua mãe, e mais lhe avivou o desejo concupiscente.

«Se bem vindo, senhor; os amigos de meu irmão tambem o são meus.»

Estas palavras, acompanhadas de um cândido sorriso, fariam mudar de tenção a outro homem, que não fosse D. Paio de Sarmento.

Mas foi tal o império da innocencia, que a vibora baixou os olhos. Balbuciou alguns sons através da viseira, que se approximavam ao silvo da serpente e entregou-lhe a carta que levava, fazendo rasgada cortezia.

D. Elvira recebeu-a impaciente; e ainda bem a não lera toda, já tinha mudado de côr por três vezes.

Do um rubor, que lhe tingia as faces, passou a uma hraíicura assustadora w de ahi á palidez da morte.

Tremula fez successivas perguntas a D. Paio, que a todas lhe respondeu.

D. Elvira, dominada pelo terror, manifestava as lutas que interiormente supportava.

«Dizei-me, cavalleiro, pelo amor do Ceo: meu irmão está em perigo de vida?»

«Sê franco. Prometo ter coragem.»

D. Paio, com uma liypocrisia, que faria honra á do pontifice Anaz, quando rasgou os vestidos e chamou blasphemo ao filho de Deus, respondeu-lhe affectando um modo sentimental:

«Serei franco, formosa donzella. Nunca soube mentir. Fallo-vos com tanta verdade, como a verdade dos santos livros de Deus.»

D. Paio blasphemava, e nesta occasiâo a alma tendia-lhe tanto para o inferno, como os corpos para o centro de gravidade.

D. Paio proseguiu:

Vosso irmão está muito mal. Poucas esperanças se podem nutrir. Está justificada a precipitarão com que vos mandou buscar.»

D. Elvira ainda sustentou mais uma luta pertinaz entre a duvida, e o amor fraternal. iMas triuniphou a amisade:

«Estou ás vossas ordens, D. Cavalleiro. Partirei já ou quando for necessário. Quero abraçar meu irmão.

As lagrimas caíram em torrentes e o sacrificio ia consumar-se. D. Elvira caminhava á sua ruina.

D. Paio, ao ver a resolução da donzella, riu como um demónio. Era o riso do vampiro que se deleita no sangue humano.

«Não podereis partir antes da noite; a berlinda que vos ha-de conduzir ainda não chegou, nem chegará antes da noite. Podeis tomar conta nos vossos arranjos até que vos venha buscar.»

Cumprimentou a donzella e montou a cavallo para se reunir aos seus.

O sofrimento da donzella era doloroso. Pensava em mil cousas, mas em nenhuma via ventura.

Via seu irmão á beira do ahysmo pedindo-lhe um derradeiro abraço. Nutria apprehensões sobre o futuro, e se deveria acompanhar um estranho.

Mas não lhe apresentara elle uma carta firmada com o selo particular de seu irmão?

A duvida foi posta de parte e a resolução adoptada.

Em quanto que D. Paio no locotorio illudia a innocente Elvira, um homem, trajando a esclavina de peregrino, descalço, com uma espécie de gorra tricornea na cabeça e bolsa de pel de cabra a tiracol, está assentado, de fronte, nos degraus de uma grande cruz de pedra. Almoça, com o maior socego, pão com cebollas cruas e vinho.

Este homem, á primeira vista, parecia não dar attenção senão á comida que devorava, mas quem se affirmasse reconheceria, que não perdia D. Paio de vista, nem o menor de seus movimentos.

D. Paio assim que desempenhou o importante papel que n'este drama vergonhoso a si distribuirá, sahiu e montou a cavallo.

O homem não tratou mais de almoço. Atirou com o pão e as cebollas para um canto e eil-o seguindo cauteloso pela azinhaga que lhe ficava á esquerda.

Entre os ramos de uma arvore estavam uns balegões, bragas e uma espécie de jaleco, que elle vestiu apressadamente. Tirou da cabeça o barrete tricorneo e poz um casco de couro laminado de ferro.

Estava transformado em guerreiro pela cabeça, no resto em salteador. Cingiu a espada, agarrou n'uma acha de armas e saltou para cima de um cavallo, seguro a pouca distancia.

Quem era este homem? Breve o saberemos.

Em quanto D. Paio dava ordem aos homens de armas para ás nove horas o acompanharem a Lorvão e de lá para o seu castello do Limia, o homem que acabámos de descrever, correndo a grande galope, chegava a um pinhal.

Levou os dedos á bocca e arrancou um silvo tão agudo que echoou nos pontos mais distantes.

Por detraz das altas moitas de mato surgiram algumas cabeças e depois sete homens a cavallo.

«O que ha?» Foi a pergunta do chefe ou capitão do bando.

«O filho-d'algo já esteve no convento, não ouvi a conversação, mas foi a seu grado, porque saiu contente.

«Andas-te bem, Pedro. Agora é espreital-o lá na quebrada de baixo, junto à pequena atalaia mourisca. Seja qual for o destino que tomar ha-de passar ali.»

«São treze, proseguiu elle, e nós apenas oito, mas por S. Thiago lhe juro, que D. Paio ha de pagar tudo.»

«A elles, rapazes, que o resgate não será peco.»

«Já os leitores vêem que Raymimdo o incendiário sabia combinar um plano, e seus satellites comprehendel-o. A prova esta na maneira porque Pedro Cacheiro desempenhou a sua missão.

Eram oito horas da noite. O ceo estava escuro e nobelado. O vento soprava rijamente do sul, e o ar que se aspirava era húmido e frio.

Apenas se ouvia ao longe o latido dos rafeiros que nos apriscos guardavam os rebanhos.

Por detraz de um morro de pedra e cal, espécie de atalaia antiga, estão seis homens escondidos, e tão cosidos com as paredes denegridas, que a custo se diferençam.

Assentado no topo d'este derrocado edifício, um homem vigia attentamente quanto passa pela estrada.

«Sinto passos de ginetes» disse elle.

«De que lado?»

«De Coimbra.»

E com effeito o estrépito de muitos ginetes se ouviu e um grupo de cavalleiros appareceu, escoltando uma berlinda.

Era D. Paio, e a sua gente.

Assim que a cavalgada desappareceu, Raimundo disse aos seus camaradas:

«Vamos, rapazes! É montar a cavallo! Vamos! E ter coragem e não voltar a cara. Apanhar D. Paio e obrigal-o a resgatar-se é uma e a mesma cousa.

«Mas (quanto á donzella, por vida minha lhes juro, que o primeiro que se exceder em palavras ou acções, pagará com a vida a sua audácia.

Esta ameaça foi pronunciada com gesto tão medonho que os bandidos tiveram medo.

D. Paio navegava em mar de rosas. Tudo lhe saía á medida de seus desejos. Chegou ao locotorio, bateu três pancadas, e fez-se annunciar.

Um quarto de hora depois, á luz de dois archotes, saía, da portaria do convento, D. Elvira. Pobre donzella! Era como a tenra avesinha que se deixa cair nas garras do abutre.

A berlinda partiu e os lacaios que levavam os archotes tomaram a dianteira, mettendo a grande trote.

A joven, julgando que breve abraçaria seu irmão, nunca esteve tão longe de o fazer.

Chorava e um triste pressentimento lhe dizia, que caminhava para um abysmo.

Ao entrar na berlinda sentiu faltarem-lhe as forças. Desejou voltar para o convento; mas já era tarde. As portinholas, fechadas por fora, não se podiam abrir.

O estrépito dos cavallos e o tinir das campainhas, tudo contribuía para se sentir opprimida.

Teriam caminhado uma hora quando os homens da frente pararam.

«Que temos, e porque param?» Disse D. Paio com a voz alterada.

Um homem de armas lhe respondeu:

«Olhae, senhor. Não vê-des aquella linha de cavalleiros que de lança em riste parecem resolvidos a impessernos o caminho?»

D. Paio affirmou-se e viu um grupo de cavalleiros firmes e impassiveis como estatuas.

D. Paio rugiu enraivecido como a hyena que vê roubarem-lhe os cachorros.

«Eia! É afastar, vilões, que os mando azorragar.»

Uma gargalhada sarcástica foi a única resposta, mas os cavalleiros ficaram firmes nas sellas.

O nobre rico homem teve um fatal presentimento. No entretanto, cobrando animo, disse para os homens de armas:

«Vamos, senhores! É sacudir com os cotos das lanças esse punhado de salteadores, que pretendem impedir-nos o caminho.»

Ouviu-se um rugido terrivel. Foi de Raymundo o incendiário, ao ouvir as palavras de D. Paio.

«Salteador és tu, covarde assassino, ladrão da honra alheia, vilão indigno de segurar nas patas de um corsel. Fu! Fu ! D. Traidor, caro pagarás as tuas palavras.»

D. Paio tremeu de raiva.

Tinha ouvido iguaes insultos, mas nunca na presença dos seus servos e vassallos.

Conheceu a voz de Raymundo e preparou-se para uma resistência desesperada.

Não teve tempo para grandes reflexões. Os cavalleiros de lança em riste precipitaram-se a grande galope sobre a cavalgada, que bravamente se bateu.

Ao pálido clarão dos archotes avançou a linha dos cavalleiros, que parecia uma d'essas legiões de demónios, descriptas nas lendas phantasticas creadas para amedrontar creanças e pobres aldeãos, que de bocca aberta as ouvem respeitosos.

Os archotes rolaram pelo chão e a confusão das trevas foi de tudo o peior.

Raymundo tinha as suas rasões para não querer estar ás escuras. Curvou-se do ginete, e poude apanhar um que agitou freneticamente.

O archote levantou lavareda, e Raymundo, com as rédeas seguras nos dentes, agitava-o na mão esquerda, em quanto que na direita empunhava uma larga espada.

D. Paio de Sarmento, junto á berlinda, mandava caminhar o guia. Raymundo esperava isto mesmo. Correu e atirou-lhe tão grande talho, que se lhe desse em cheio tel-o-hia morto.

D. Paio aparou-o e defendeu-se, mas voando-lhe pelos ares o montante, arrancado por violento golpe, sentiu a ponta da espada de Raymundo sobre a garganta.

«Nem mais um movimento, quando não ides hoje mesmo ceiar com Satanaz.»

D. Paio viu que os homens do armas fugiam ou estavam estendidos no chão. A resistência era inútil ; outro qualquer teria morrido, mas não so ahandonaria aos caprichos de um bandido.

Amarrado sobre um cavallo seguiu os salteadores que tomaram a estrada de Lamego.

D. Elvira, ao primeiro choque, tentou abrir as portinhollas, mas não poude. Comprehendeu todo o horror da sua situação e orou fervorosamente. O choque das armas, o arruido dos combatentes, suas imprecações e gemidos, causou-lhe tanto medo, que tremula e abatida desmaiou.

Raimundo andou tâo veloz que duas horas depois tinha caminhado mais de quatro léguas.

O silencio da noite succedeu ao estrondo das armas; e tempo depois quem passasse por ali veria um espectáculo repugnante e monstruoso.

Os lobos, convidados pelo cheiro do sangue e da carniça uivavam medonhamente, e avançavam de trupel.

Seus fucinhos esguios e corpos descarnados eram medonhos; precipitaram-se sobre os cadáveres ainda palpitantes, e começaram o banquete.

Os olhos fulgiam como lanternas ; um desgraçado que se achava ferido teve ainda tempo de se arrastar até junto a uma arvore. A imminencia do perigo deu-lhe forças sobre-humanas.

Viu as feras esfaimadas brigarem na divisão da presa. Sentiu estalar os ossos dos seus camaradas nos dentes dos monstros e a bulha que faziam devorando-os soffregamente.

Era horrível!

Falto de sangue teve por vezes que se agarrar aos troncos da arvore para não cair.

Ouviu ao longe um trupel de cavallos, e dois cavalleiros passaram como sombras. Não corriam, voavam. Nem deram tino dos lobos, que fugiram enraivados por serem interrompidos no melhor da festa.

Nada mais ouviu. A noite ia bastante adiantada e o frio era intenso.

O homem desfallecia. As forças faltavam-lhe. Era um salteador, é vordade, mas era homem, e como tal digno de compaixão.

Não olhemos para seus crimes mas sim para seu estado lamentavel.

Julgou-se perdido. Teve remorsos do passado, e pela primeira vez na vida de salteador orou, e pediu a Deus perdão. Jurou emendar-se.

Os passos de differentes ginetes ouviram-se novamente.

Era D. Reinaldo que voltava do convento, seguido de Paulo.

D. Reinaldo sairá de Coimbra ao anoitecer, mas quando caminhara mais de duas léguas desferrou-se-lhe o cavallo. Voltou á cidade e quando tornou a partir eram mais de onze horas. Andou por tal forma, que á uma batia desatinadamente á portaria do convento de Lorvão.

Uma voz rouca e arrebatada lhe perguntou:

«Quem bate ahi de uma maneira como se batesse á porta de um vilão?

«Ignora por ventura que é um convento de virgens do Senhor?

D. Reinaldo respondeu brandamente:

«Não ignoro, mas trago uma carta urgentíssima de D. Vasco de Sousa para sua nobre irmã.»

«Ora adeus, senhor! D. Elvira já a estas horas deve estar em Coimbra. Partiu ha mais de quatro horas, acompanhada de um grande cavalleiro.»

D. Reinaldo ficou fulminado.

«Que dizeis, senhora ? Pois D. Elvira partiu ?»

«É como vos digo. Mas a noite vae adiantada e não posso interter conversas.»

D. Reinaldo ainda não desanimou.

«Pois bem, ou menos dai-me um archote, e dizei-me que caminho seguiu.»

«Dou-vos tudo para me deixardes, respondeu a velha.

«Já vos disse que seguiu para Coimbra.»

E sem esperar resposta, fechou a porta.

Reinaldo accendeu o archote na alampada de um nicho e tomou pela estrada que trouxera.

Chegaram ao local da luta e ao reflexo da luz viram um quadro pavoroso. Reinaldo soffreou o corsel.

«Aqui está gente morta! N'este local houve grande luta. Mas olhae ! As feras já por aqui andaram!»

Um getnido foi a única resposta ás suas constantes exclamações.

O ferido desceu conforme poude da arvore e arrastou-se. O guerreiro ficou surpreso.

«D. Cavalleiro, salvae-me! Estou a expirar! Salvae-me, que já não tenho sangue nas veias.

D. Reinaldo teve dó do desgraçado. E realmente o seu estado era lastimoso.

«Homem, explica-te? Houve, por ventura, algum encontro com iníieis?»

«Nâo, senhor. N'este logar houve uma luta sangrenta entre a cavalgada de D. Paio de Sarmento, que conduzia uma nobre donzella, e uma... E uma partida de homens.

D. Reinaldo foi como se lhe caisse um raio aos pés.

«E sabes em que ficou a luta ? Para onde foi a donzella e o cavalleiro?»

«Não sei ao certo; mas a donzella e D. Paio foram levados pelo chefe Raymundo o Incendiário.»

O bandido disse isto tão baixo, que a custo se percebeu.

D. Reinaldo bramiu de raiva. Ia para levantar a acha, mas um gemido o desarmou.

«Diz para onde tomaram, que te concedo a vida ! Oh! pobre donzella, não tem que escolher entre um mau cavalleiro e um chefe de assassinos!

«Que dirá Vasco de Sousa, que tanto me pediu que velasse pela sua honra!»

O salteador, já com as forças perdidas, ainda lhe disse:

«Senhor! Dae-me uma gota de vinho ou de agua, pois tenho que revellar cousas importantes.»

Paulo chegou-lhe uma cabaça aos beiços, aonde matou a sede que o devorava.

Tomou alento e respirou.

«D. Cavalleiro! Nada temeis pela donzella. Ser-vos-ha entregue logo que Raymundo saiba que soes verdadeiro amigo de D. Vasco.

«Foi para a tirar das mãos de D. Paio, que eu e os meus valentes camaradas nos arriscámos tanto.

«Vè-de; uns ahi estão em boccados, depois de n'elles se terem saciado os lobos, e eu estou vivo por um milagre. Já vedes, D. Cavalleiro, que entre um chefe de assasiinos e um filho-d'algo traidor medeia bastante distancia. »

Reinaldo pasmava. Não podia comprehender a rasão por que um bando de malfeitores se arriscavam para prestar um serviço a Vasco. Era umi mysterio que desejava profundar, mas de que não podia duvidar, em face das declarações de Pedro Cacheiro.

«Homem, podes montar á garupa e dizeres-me aonde está D. Elvira? Oiba que compensarei generosamente teus serviços. »

«Sim, senhor, lhe diz elle, e tereis a certeza de que mais valle um chefe de salteadores, que não é traidor nem covarde, de que um poderoso rico homem, tão vil como hypocrita.

Pouco tempo depois, na garupa do cavallo em que Paulo montava, ia Pedro Cacheiro para guiar o cavalleiro a um castello, aonde já estivera recluso perto de quatro dias.

Paulo e Pedro caminhavam unidos, mas não para a conquista do mundo como os Santos Apóstolos.

CAPÍTULO VIII

EMBAIXADA E SURPRESA

Deixemos caminhar D. Reinaldo na estrada de Lamego. Passemos a outro ponto e sigamos Vasco na estrada de Santarém. Lá vae no desempenho da alta missão com que foi honrado pelo monarcha.

No dia vinte de fevereiro de 1147 quem passasse pela estrada de Leiria a Santarém encontraria necessariamente um cavalleiro, armado de todas as armas seguido por dois pagens, e outros tantos escudeiros, e mais três trombetas.

O dia estava bello. Os raios do sol reílectiam brilhantes sobre as camadas de gelo, que se viam estendidas pela vasta campina; o frio era intenso. Era um desses dias de fevereiro em que o vento nordeste, sopprando fortemente, leva o frio até á medula dos ossos.

Numerosos rebanhos pastavam nos campos ; e debalde os lavradores tentavam abrir um sulco na terra com o ferro da charrua; resequida pela geada, não se podia profundar um solo argiloso e tão consistente que parecia bitume.

O cavalleiro caminhava asseleradamente e os pastores corriam á beira da estrada, para admirarem seu gesto garboso e guerreiro ademan.

No fim de quatro horas de marcha avistou as altas grimpas dos torreões que guarneciam a muralha de Santarém. Parou o ginete e apontando com o dedo para os edifícios, disse para os escudeiros.

«Olhae! Eis ali o termo da nossa viagem. Bom agasalho nos aguarda a soberba Santarém. Auzehri, seu potente alcaide, que tanto damno tem feito em terras christâs, não recusará hospitalidade a um enviado do muito poderoso Senhor Rei D. Affonso de Portugal. Eia, por S. Thiago, que se formos felizes ninguém nos roubará a gloria deste feito.»

Assentou os acicates nos ilhaes do corsel e atravessou um extenso val, bastante alagadiço. Já se differençavam as atalaias e mais torres que como gigantes topetavam as nuvens. Ao longo da extensa muralha, que corria em torno da villa, viam-se as seteiras ao rez do chão. As machinas de guerra descançavam sobre os muros e os vigias e roídas percorriam de um para outro lado.

O fosso era largo e o barbacan da mais consistente alvenaria.

As vigias dos cobellos deram parte de que cavalleiros christãos se approximavam.

Um grande movimento se manifestou em todas as atalaias e muralhas.

Numerosos besteiros e fundíbularios correram aos postos, em quanto que o ranger das machinas de guerra annunciava que os agarenos estavam prevenidos.

Vasco de Sousa não se amedrontou. Demais sabia elle que os infeis eram cautelosos; e com quanto visse mais de mil bestas apontadas, chegou tão perto da ponte levadiça, que percebia o que diziam na muralha.

Fez alto, ficando-lhe á retaguarda os pagens e escudeiros e na frente os trombetas.

Um coudel ou almocadem mourisco lhe perguntou n'um árabe, que bastante se resentia do antigo dialecto castelhano, que os godos e alanos confundiram com o seu idioma :

«Quem soes, cavalleiro? O que pretendeis?»

Vasco de Sousa, que comprehendia talvez melhor o árabe, de que o próprio infiel, respondeu :

«Sou Vasco de Sousa, filho-d'algo cavalleiro e senhor do solar da Cham.

«Sou portador de uma carta, do muito alto e podero Senhor Rei D. Affonso de Portugal, para o alcaide da nobre villa de Santarém.»

«Esperae, cavalleiro, lhe diz o mouro. Vou dar parte ao alcaide para vos receber como amigo e alliado.

O mouro retirou-se, e pouco tempo depois a ponte levadiça baixava, dando livre entrada a Vasco e á sua comitiva.

A guarnição formava alas ; Vasco comprehendeu que todo aquelle apparato, não era tanto para o honrar, como para lhe fazer ver o numero da guarnição.

Á direita ficava a porta de Atamarma, que mais tarde se tornou celebre pela luta, que os mouros n'ella sustentaram contra os christãos. Seguiram para o Alfam. Vasco ia tomando nota de tudo para informar o monarcha.

O povo affluia de todos os lados para ver os christãos e a curiosidade era geral. Chegaram ao palácio do alcaide, que os recebeu com mais dignidade de que grandeza, e mais affecto do que era para esperar de um infiel.

Vasco de Sousa entregou-lhe a carta do rei, que Auzehri leu com attenção.

Ora Vasco, depois de se recolher ao aposento que lhe destinaram, scismou como poderia dar execução aos desejos do rei.

Lembrou-sc que o melhor meio era levar um gis de cal e traçar no escudo algumas linhas, pondo-lhes os competentes signaes para distinguir os pontos, mais ou menos vulneráveis.

É fora de duvida que os infiéis eram, muitas vezes, mais fieis de que os christãos. Estes violavam as leis da hospitalidade e os juramentos mais sagrados, aquelles raras ou nenhumas vezes o faziam, tanto n'um como n'outro caso.

Vasco teve um exemplo da hospitalidade agarena, quando no dia immediato, pedindo para vêr a praça, lli'o concederam, guardando comtudo a maior vigilância.

Com o escudo infiado no braço, ia traçando algumas linhas, e marcando com signaes os pontos mais notáveis; e andou com tanto ciso que ninguém lhe comprehendeu as intenções.

Uma hora depois estava a sua missão concluída. Recebeu do alcaide uma carta para o rei e eil-o a caminho outra vez na estrada de Coimbra.

Affonso estava impaciente. Para elle não havia idéa nem pensamento alem do de tomar Santarém e Lisboa.

Dizia aos guerreiros:

«Em verdade vos digo, nobres cavalleiros, precisamos de Santarém e de Lisboa ; esta é a chave do Tejo, é a grandeza do nosso reino e a riqueza dos nossos vassallos pelo seu excellente porto. Aquella é o fecho da estremadura, é uma porta aberta para nos lançarmos no Alemtejo e sacudir d'esta bella província os agarenos até Badajoz.

Dominado por esta idéa aguardava pelo regresso de Vasco de Sousa, com tanta anciedade, que bem revellava a impetuosidade d'aquelle génio de fogo, tão grande nas virtudes domesticas como ardente na politica.

Cinco dias tinham decorrido depois da partida de Vasco, que todos sabiam, ignorando comtudo a causa.

Eram oito horas da noite. A campa da torre alvarran do nobre alcaçar marcara oito badaladas.

N'uma vasta sala de lage passeia um guerreiro de estalura agigantaja e gesto desembaraçado. O som metálico dos seus sapatos ferrados, acompanhado do tinir dos acicates, resoa pela vasta abobada.

Alguns filho-d'algos conversam, formando differentes grupos. A conversação é de interesse, e bastante animada.

Affonso disse para um dos guerreiros :

«Mem Moniz, approximae-vos.»

Um cavalleiro de estatura regular, mas demonstrando força hercalea pela robustez dos membros, se approximou.

Mem Moniz sabia da missão do cavalleiro donzel, e approvou-a por saber qual seria o desempenho. De um para outro lado recomeçaram a passeiar, quando um pagem de serviço annunciou, que Vasco de Sousa queria fallar ao rei.

Affonso respirou. Mandou-o entrar e seguido de Mem Moniz passou á sala aonde Vasco de Sousa o aguardava.

«Se bem vindo, lhe diz o rei. Bofe, já estava cuidadoso por tão leal cavalleiro. Receiava que os perros infiéis vos dessem máo agasalhado.»

«Que me dizeis do muito poderoso alcaide da nobre villa de Santarém ?»

Vasco, depois de cumprimentar o monarcha, puchou de uma carta, que trazia entre o arnez, e lhe apresentou.

Affonso passou-a rapidamente pela vista, e pondo-a de parte, disse a Vasco :

«Vamos ao que mais interessa, dai-me novas de Santarém.»

Vasco de Sousa apresentou um largo pergaminho, aonde se achavam traçados alguns riscos horizontaes e transversaes, formando uma figura tão irregular, que o mais habil geometra de hoje ficaria indeciso, quanto á sua classificação.

Alguns signaes em cruz se viam nas linhas e outros de forma circular. Os quatro ventos principaes estavam igualmente marcados, regulando o principio e limite das differentes linhas parallellas e diagonaes que se viam traçadas.

Ora Affonso se não era um ignorante, estava longe de ser um sábio. Nada comprehendia d'aquelles riscos e disse para Vasco com a maior franqueza :

«Explicae-me o valor dessas garatujas, para as poder apreciar. »

Vasco não se admirou. A maioria dos grandes homens da sua época eram ignorantes, e com quanto D. Affonso nâo soubesse muito, valia mais de que a maioria dos filho-d'algos de então.

Vasco satisfez os desejos do monarcha, estendendo o rolo do pergaminho n'um largo bofete.

«Olhae, senhor. Eis aqui os quatro pontos cardeaes, base d'esta e de todas as plantas.

«A direita fica o nascente, o poente á esquerda, no alto o norte e em baixo o sul. Esta linha que corre do nascente ao norte é o principal lanço de muralha. Aqui aonde está uma cruz a sua altura será de seis a sete covados.»

O rei e Mem Moniz, curvados sobre o bofete, ouviam admirados as explicações de Vasco.

Vasco proseguiu:

«Estes traços descrevendo curvas, são lanços de muralha, que correm irregularmente, mas no prolongamento do norte ao poente. Estas linhas parallellas representam o barbacan que orla a aresta de um fosso, que terá quatro covados de largura.

«Vê-de mais, estes signaes circulares que se vêem nos traços, são atalaias e cobellos aonde se acham vigias de noite e de dia.

«O fosso nâo circumda as fortificações todas; ha pontos aonde nâo chega.

«Aquelle signal de forma quadrangolar e uma Ollaria, que fica junto á muralha do lado exterior.

D. Affonso estava nâo só admirado, como satisfeito por ter encontrado um guerreiro, que reunia á bravura nos combates, a prudência e a riqueza de um saber tâo pouco vulgar.

«Vagco de Sousa, lhe diz elle, soes acisado e de uma comprehensão admirável. Estou satisfeito de vós. Pedi, cavalleiro, que o vosso rei nada vos recusará. Que pretendeis ?

Vasco de Sousa não poude occultar o sentimento de gratidão, que o animava.

«Por emquanto só careço de forças para vos servir, a Deus e á pátria.

«Agradeço, grande rei, a vossa muniíicencia, mas hoje desejo apenas que me façaes justiça, quando vol-a pedir.»

«Justiça me pedis, justiça vos será feita; não por favor, mas sim de direito, se direito vos assistir.

«Affonso, rei de Portugal, pôde conceder honras e riquezas aos seus amigos e fieis servidores, mas o que nunca praticará são injustiças, porque acima da sua coroa está o Juiz Supremo.

«Bem pouco exigis, cavalleiro. Repito, justiça vos será feita quando assim o exigirdes.

«Agora dizei-me como podesteis lançar todos estes traços, sem que os infiéis desconfiassem ? Pois de tão boa fé estão elles?»

«Eu vos informo.

«No dia em que parti levantei-me ao romper de alva e em companhia de dois coudeis, dei um passeio pelas fortificações. Á proporção que avançava ia traçando com gis, nas costas do escudo, os differentes signaes e linhas, como podeis ver.»

Mostrou ao monarcha o escudo ainda cuberto de garatujas, quasi imperceptíveis.

«Soes cavalleiro donzel, mas velho no merecimento. Soes digno filho d'aquelle grande cavalleiro, que sempre lamentarei.»

«Vosso pae, se não era a primeira lança de Portugal nenhuma havia que lhe passasse adiante.

«Repito, se descubrisse o desleal, que fez perecer tantos guerreiros, pela cruz de Christo lhe juro, que não ficaria habilitado para segunda traição.

Voltou-se para Vasco, e para Mem Moniz :

«Cavalleiros, a alma dos negócios é o segredo; que não passe alem de nós a idéa que traçámos, para tomar Santarém.»

O rei, seguido de Mem Moniz e de Vasco de Sousa, entrou na sala aonde os barões e ricos homens conversavam alegremente.

Gonçalo Gonçalves, disso o rei entrando, preveni o nosso monteiro de que amanha teremos grande montaria. Será uma caçada brilhante.

«Estaes convidados, nobres filho-d'algos e senhores prestameiros.

«Ide tratar dos vossos arranjos.»

Os barões e mais cavalleiros comprehenderam, que o convite da caçada para o dia seguinte, importava a despedida da noite e por isso se retiraram. Tempo depois estavam as salas desertas.

Uma caçada no tempo da idade media em nada se parecia com as de hoje.

No dia seguinte ás sete horas da manhã, no vasto pateo do nobre alcaçar de Coimbra notava-se grande movimento.

Os cavallariços seguravam pelas rédeas os fogosos corseis, cujas sellas mouriscas, touxeadas de ouro e prata eram de riqueza admirável.

Os falcoeiros conduziam os falcões de caça, seguros por correntes de metal e os moços grandes matilhas de cães de todos os tamanhos e qualidades.

As comitivas dos filho-d'algos approximavam-se, occupando logares avulso.

As trombetas e trompas de caça resoavam; e os sons vividos e ásperos, se enthusiasmavam os caçadores, desesperavam os rafeiros, que uivavam desesperados.

Eis o que se via no pateo do nobre alcaçar de Coimbra, na manhã que devia ter togar a grande montaria, annunciada pelo muito alto e poderoso rei D. Affonso de Portugal.

Os caçadores já se achavam a postos; e os cavallariços, pagens e escudeiros promptos á primeira voz, uns para segurarem nos estribus a seus senhores, outros para montarem ligeiramente a cavallo e seguirem-nos a largo trote.

O rei, seguido de numeroso séquito, appareceu no topo da larga escadaria que dava para o pateo. As trombetas e charamellas tocaram, os cães latiram desesperados, e Affonso, montando a cavallo, rompeu a todo o galope.

A cavalgada caminhou ligeiramente ; as cores variegadas das armaduras, e o lampejar dos capacetes produziam um effeito loução e altamente militar.

Os cavalleiros, trotando sempre, ora se encubriam, ora reappareciam através das curvaturas, veredas, e das espessas ramadas dos arbustos que bordavam o caminho. O rei ia prasenteiro e satisfeito. Vasco de Sousa caminhava a seu lado em possante ginete ; os mais senhores e barões seguiam a pouca distancia.

Ora o fim de Affonso não era caçar. Dominado pelo desejo de tomar Santarém, usou d'aquelle pretexto para livremente conferenciar com seus mais íntimos conselheiros.

Os guardas e monteiros batiam a caça, estreitando, cada vez mais, o circulo em que a encerravam.

Os cães latiam correndo estouvadamente. Os ginetes, apertados nos ilhaes espumavam de cansasso, mas acceleravam a carreira, incitados pelos acicates. E de vereda em vereda lá se perdiam entre a emmaranhada floresta.

As trompas reboavam nos ares, annunciando a direcção ou approximação do pobre animal, que acoçado pelos rafeiros ia perecer no ferro de uma lança ou na ponta de um venabulo.

Affonso, assim que viu os cavalleiros entregues ao prazer da caça, chamou (*) de parte Lourenço Viegas, Mem Moniz, Pêro Paes seu alferes mór, e contou-lhe que tencionava tomar Santarém.

Os fidalgos e cavalleiros, depois de ouvirem a exposição do rei, não só ficaram satisfeitos, como maravilhados pelo segredo que em tudo houvera.

Pero Paes, seu alferes mór, com aquelle desembaraço, que sempre distinguiu os cavalleiros portuguezes, fez algumas observações.

«Mas, senhor, e quem se encarrega de conduzir esse punhado de guerreiros, que destinaes à surpresa de Santarém?

(*) A historia diz que o monarcha fora n'um passeio ás margens do Mondego, para communicar a sua resolução a respeito de Santarém. Mas não se altera o facto dizendo-se que foi n'uma caçada.

«Olhae, senhor, . que vosso alferes mór. se faz esta pergunta, é pela consideração em que tem o estandarte que lhe foi confiado, e não pelo receio do perigo que possa sobrevir á sua pessoa.»

Affonso não se mostrou offendido.

As vossas perguntas são justas e acisadas. Revellam quanto conheceis as traças da guerra.

«Sei que soes prudente no concelho, firme na execução e valente na hora do perigo. Faço-vos justiça, Pêro Paes. Mas se quereis saber quem vos guia em território desconhecido, eis o valente Mem Moniz, que promette levar-nos lá, sendo acompanhado por este cavalleiro donzel, que hontem chegou de Santarém.

«Depois de tão bons guias não é por certo o nobre alferes mor, que ha-de tropeçar e pedir para ficar na saga. Todos conhecem vosso braço de ferro e animo firme como o pincaro de uma rocha. O rei affastou-se e para se não tornar reparado foi tomar parte na caçada uma das mais felizes que se teem emprehendido.

As trevas estenderam seu escuro manto sobre a vasta floresta e os caçadores, abandonando o divertimento, tomaram a trote na direcção de Coimbra.

Quatro dias haviam decorrido depois da conferencia de Affonso com os fieis cavalleiros.

Nada constava na corte nem fora d'ella. Os dias deslisavam-se sem o menor incidente. Bastantes cavalleiros tinham chegado a Coimbra, mas quem se occupava a contar o numero dos ginetes que entravam ou saíam ?

O dia quatro de Março de 1147 era uma segunda feira. Ás duas horas da madrugada uma vistosa cavalgada abalava de Coimbra tomando a estrada de Leiria.

Os cavalleiros seguiam silenciosos como espectros. O estrépito dos corseis e o tinir das armaduras era quanto se ouvia através do silencio da noite.

O ceu estava claro e limpo.

Os luzentes brilhavam como se fossem pequenos fachos desseminados pelo firmamento.

A grande distancia lá se avistava algumas vezes uma pequena luz, que denunciava a existência de um casal, aonde o pacifico lavrador descançava das fadigas do dia.

Os mouxos, empoleirados nos ramos das arvores seguiam de longe a cavalgada com seu triste piar, que de noite se assimilha ao gemido de um moribundo, ou ao grito ancioso do condemnado. Interrompidos no seu melancholico canto agitavam-se convulsos, e adejando espavoridos saccudiam com as pontas das azas os elmos dos guerreiros.

Os cavalleiros, caminhando compactamente, formavam um corpo disforme, que se assimilhava a esses monstros horrendos, que a imaginação do homem pôde comprehender sem mesmo nunca ier visto. Parecia um d'esses formidáveis cetáceos, cujas dimensões fabulosas, constituem por assim dizer, o maior prodígio da creaçâo animal.

Affonso caminhava na frente. Sua estatura elevada sobresaia a todos os cavalleiros. Montado no cavallo de batalha, era elle quem regulava a marcha dos guerreiros que ufanosos o acompanhavam.

Duzentos e cincoenta cavallos era a força que seguia o rei de Portugal, para levar a cabo um dos feitos que mais o nobilitam.

Todos caminhavam anciosos por se medirem com os agarenos, e através das extensas campinas, lá iam avançando na conquista de mais uma coroa de gloria.

Ao romper do dia chegaram a Alfafar. Ahi resolveu Affonso acampar, tomando no dia seguinte para Coder nellas, aonde prenoitou pela segunda vez.

O aspecto do pequeno arraial era bello pela impunencia dos guerreiros e audacioso feito. Affonso, na sua tenda, rodeado pelos briosos vassallos, estava tão satisfeito como se se tratasse de um simples torneio.

«Vasco de Sousa, ainda vos encarrego de uma segunda missão. Sois donzel, e suspirais pelos perigos. É uma ambição, que vos recommendará no futuro. Ide, cavalleiro, a Santarém e declarae ao alcaide, que Affonso, rei de Portugal, quebrou as tréguas existentes, e que lhe concede três dias para preparar a defeza, por que a mais crua guerra lhe será feita.

«Dizei-lhe mais, que Affonso não faltou ás leis da honra ; concede-lhe três dias, para que não tachem de aleive o seu accommettimento.

«Ide, cavalleiro. e Deus será comvosco.»

Vasco de Sousa não necessitou segunda ordem; pouco tempo depois, montado no seu bello ginete murselo seguia na rota de Santarém, firme na sella e altivo no porte, como um alcide, ou athleta vencedor nos jogos olympicos.

Chegou a Santarém, e junto ao barbacan, depois de calar a viseira, mandou aos trombetas que tocassem.

Ao alto das muralhas altluiram innumeros guerreiros, e logo comprehenderam, pelo toque das trombetas, que se tratava de um caso de guerra.

Vasco de Sousa, disse para os infiéis, que coroavam as ameias das altivas fortificações de Santarém, em língua árabe :

«Cavalleiros agarenos, seguidores das doutrinas do islam, avisai vosso alcaide de que um cavalleiro christão, tem negocio importante a communicar-lhe.»

As fortificações estavam apinhadas de soldados de todas as armas !

Ás palavras de Vasco, succedeu um silencio sepulchral ! Mais de três mil homens estavam ali aglomerados, mas nem uma respiração se ouvia, nem um só movimento se notava. Tal era a impressão.

Um Coudel lhe respondeu :

«Esperai cavalleiro. Os vossos desejos vão ser cumpridos.»

Pouco tempo depois um guerreiro árabe, de nobre ademan, assomou á beira da murallia.

«Cavalleiro christão, disse elle, sê breve; sei a fundo qual o fim da vossa missão.

Pedia a usança dos tempos todas estas etiquetas que não sabemos, até que ponto se podem tomar como principio de moralidade.

Vasco de Sousa encostado á lança, depois de ter levantado a viseira, disse em voz clara, e tão natural, como se estivesse n'um sarau conversando com uma velha dona:

«Alcaide de Santarém, eu Vasco de Sousa, cavalleiro christão, e senhor do solar da Cham, te previno de ordem do muito alto e poderoso Senhor D. Affonso Rei de Portugal, que as tréguas existentes entre elle e ti, estão quebradas.»

«Tres dias te concede para a defeza, e findos que sejam, tem o livre direito de te acommetter.»

«Entre ti, e o Senhor Rei meu amo, já não ha tréguas, nem paz; e como signal de guerra me ordenou, que em seu nome te arremessasse a manopla.»

Ainda bem não tinha pronunciado as ultimas palavras, descalçou o guante, e atirou com elle d'encontro ao barbacan.

Os trombetas tocaram, e Vasco ainda pronunciou solemnemente :

«Fica prevenido nobre alcaide. Entre vós e o rei de Portugal feneceu para sempre a paz.»

Voltou em retirada, e quando deu o primeiro galope, sentio o ranger das machinas e o silvar de uma nuvem de setas e virotes que das muralhas lhe arremessaram.

Vasco inclinou-se sobre o cavallo, assentou-lhe os acicates com grande força, e o animal partio tão veloz, como um dardo ímpellido por força hercúlea ou braço de gigante.

Os pagens e escudeiros seguiam-n'o de perto, mas um dos trombetas menos feliz, foi alcançado por um tiro de pedra, que o arrancou do cavallo esmigalhando-lhe a cabeça.

Vasco de Sousa não andou, voou ! De dia e noite aquella organisação de ferro supportou fadigas, que a poucos homens era dado soffrer, numa idade mais robusta. Para elle não havia descanço, nem horas de repouso.

Na quarta feira á noite entrava no acampamento, debaixo de uma admiração geral.

O mesmo rei pasmou de tanta actividade. Tinha caminhado perto de vinte e quatro léguas em menos de dezoito horas.

«Senhor, lhe diz Vasco, as vossas ordens estão cumpridas, nâo sei se a vosso grado. No entretanto a guerra está declarada entre vós e o alcaide de Santarém, que a estas horas se prepara para a resistência.»

«Sois um valente guerreiro», disse Affonso. «Por S. Thiago, senhores, este nobre donzel, tem direito aos nossos incomios, pela maneira honrosa, porque tem servido a Deus, á pátria e ao seu rei.»

«Eia cavalleiros, de mais vos conheço eu e aos vossos relevantes serviços.»

«A vós tenho sempre encontrado a meu lado, de montante em punho, abrindo largo sulco nas hostes agarenas.»

«A vós, vos lenho já por vezes prodigalisado meus agradecimentos ; náo me levareis a mal, que tanto prese, quem em menos de oito dias, nos tem servido tanto.»

«Senhores, proseguio o rei com nobre ademan, hoje mesmo levantaremos arraial, e Deus nos levará em sua santa guarda.»

Quatro horas depois, levantava o campo, marchando na direcção da Serra dos Albardos.

Ali acamparam até quinta feira, e Affonso andando a passeiar em companhia de seu irmão D. Pedro, olhou para as vastas e férteis campinas de Alcobaça.

«Eis D. Pedro, o voto que faço a Deus Senhor nosso! Aqui á face de seu poder infinito, prometto, que se fôr feliz n'esta árdua tarefa, ali levantarei um convento de monges, dando-lhe em património todas as terras que d'aqui se alcançam.»

Deus ouvio-o, e o mosteiro de Alcobaça teve começo tempo depois.

O fim da expedição era apenas sabido pelos cavalleiros mais distinctos, e de quem o rei mais confiava. Em geral todos marchavam, sabendo que caminhavam para um grande feito, mas na ignorância do ponto aonde se projectava.

Ora na sexta feira ao romper d'alva achava-se a luzida cavalgada na mata de Pernes, a três léguas de Santarém. Ahi julgou Affonso conveniente participar a todos o fim para que ali os conduzira.

Todos creram na grande importância do acommettimento,mas quando o rei declarou que os seguiria, recuaram ante o perigo a que se expunha.

Affonso era um soldado valente ; e sendo o idolo dos povos, não o era menos dos guerreiros.

Um cavalleiro de condição obscura, mas soldado destemido respondeu desembaraçadamente :

«Senhor, que nós arrisquemos a vida, vá, que é nosso dever, mas vós senhor? Não, porque pertenceis ao povo que vos ama.

Affonso insistio e não houve remédio se não capitular com a sua vontade.

Chegou finalmente a tão desejada noite. Á uma hora tomaram os pagens conta dos ginetes ; o rei á frente dos homens de armas tomou a direcção de Santarém. Vasco e Mem Moniz iam na frente pelo conhecimento que tinhão do terreno.

A noite estava escura. Nem uma estrella transparecia, atravez das espessas camadas do uma nebrina tão intensa, que apenas se differençavam os vultos immediatos.

Um vento glacial regelava os membros, e a não ser a fadiga da marcha, mais de um teria succumbido á intensidade de uma temperatura de gelo.

Vasco, a duzentos passos de distancia da villa, disse para Mem Moniz :

«Vé-de ! Ali, n'aquelle ponto que chamam Alcudia haveis de arrumar a primeira escada.»

E ainda bem não dissera isto, jã se achava tão próximo da muralha, que sentiu os passos da roída que inspeccionava as sentinellas.

«Parae!» disse elle arrebatado. «Não vè-des que somos descobertos ; se avançamos mais um passo estamos perdidos!»

Os soldados pararam. Não se moveram. Pareciam estatuas.

A rolda passou e os vigias dormitaram.

Vasco disse a Mem Moniz:

«Gavalleiro, o rei nâo tardará comnosco. Atacae por aquelle ponto. Eu tomarei este, que de todos, é o mais alto. Eia, é avançar cautelosos.»

Proseguiram mansamente ; apenas se lhe ouviam as respirações agitadas. Nâo era medo. Era o receio de annular uma tão grande empresa.

Vasco parou sobresaltado.

Mem Moniz, fora presentido pelos mouros, que com voz rouca o interrogaram.

Mas o guerreiro escondeu-se nos campos vesinhos, tanto a tempo, que os mouros ficaram socegados.

Vasco lançou a primeira escada, e vio com assombro, que com quanto amparada com a ponta de uma lança, resvalara, indo cair estrondosamente sobre o telhado de uma olaria que estava próxima.

Vasco julgou-se perdido ! (*) Esteve para dar um grito de desespero. Ficou aterrado, mas não arredou um passo. Os soldados pareciam sombras. Como não fora presentido pelos mouros, cobrou animo e disse com o maior sangue frio para um soldado de estatura agigantada :

«Colloca-te sobre os meus homhros e com o ferro da lança segura como poderes a escada ás ameias da torre.»

O soldado obedeceu.

Vasco firmou as mãos na muralha, supportando todos os movimentos desencontrados, que o soldado fazia para segurar a escada.

«Ficou firme?» perguntou Vasco com voz abafada.

«Sim senhor,» respondeu o soldado.

«Muito bem, desce cauteloso», respondeu o cavalleiro quasi em segredo.

O rei achava-se a pouca distancia, e seguia os movimentos de todos com a maior anciedade.

Vasco disse aos guerreiros :

«Somos dez. Mas é nosso dever subir por esta escada. Eia pois, e que em nenhum dê tonturas de cabeça.»

Era um quadro tétrico e assustador.

Por uma fraca escada, que torcia e bambaleava ao menor movimento, começaram a subir, Vasco e os seus companheiros com as espadas seguras nos dentes, e o escudo no braço.

(*) Tudo isto é histórico, mas succedido com Mem Moniz.

Estavam a mais de meia distancia, quando o primeiro da frente escorregando, cahio precipitadamente para traz. O soldado deu um grito, mas Vasco reconhecendo o perigo ; em quanto segurava com uma das mãos a escada punha a outra sobre a boca do infeliz para que não exhalasse outro gemido.

Vasco de Sousa não era um malvado. O que fazia era para não perder uma empreza aonde estava empenhada a honra dos cavalleiros portuguezes.

O desgraçado esturcia-se com as dores; tinha uma perna quebrada, mas acima do soffrer de nm homem, estava a vida de muitos e a do monarcha. Vasco assim o comprehendeu, dizendo-lhe :

«Por Deus homem! Soífre as dores, mas nem mais um ai que se ouça, quando não vejo-me obrigado a matar-te ! »

«Olha! Ouve bem o que te digo, ao primeiro grito que deres cravo-te este punhal no coração.»

Estas palavras foram pronunciadas com tanta energia, que o desgraçado ferido arrastando-se, supportou as dores sem se lhe ouvir um gemido. Mas as lagrimas saiam em torrentes.

Vasco teve dó e disse-lhe :

«Soffre, tem coragem. Se Deus nos ajudar nada te faltará.»

O soldado nada respondeu. Tinha perdido os sentidos.

Vasco tomou rapidamente a escada, e vio satisfeito, que já fluctuava o pendão das Quinas, nas altivas ameias da Praça de Santarém.

A sentinella acordou e perguntou quem estava na muralha.

Vasco ao abrigo das trevas que não o desmentiam, respondeu-lhe em árabe, que era a rolda. E sem lhe dar tempo, carregou o agareno de espada em punho.

Agarral-o e cortar-lhe a cabeça, foi uma e a mesma cousa. Tal foi a rapidez do movimento.

Em quanto Vasco fazia tudo isto, Mem Moniz não era menos feliz.

Uma das sentinellas bradou por soccorro ; a rolda chegou a tempo do oppôr grande resistência aos portuguezes.

Mem Moniz à frente de douze guerreiros, agitou o estandarte portuguez, e bradou tão fortemente por S. Thiago, que os gritos de Alah dados pelos agarenos foram soffocados.

O partido era desigual, mas a bravura suppria o numero.

O terror não podia ser maior.

Atravez da escuridão da noite, apenas se diferençavam pelas estreitas vielas de Santarem os soldados, que de todos os lados acudiam ao perigo.

As trombetas tocavam, e as mulheres e crianças correndo pelas ruas choravam desesperadas.

O medo augmentava com o perigo, e o perigo recrescia á proporção que os christãos avançavam.

O rei á frente do resto dos guerreiros, animava os valentes que combatiam no alto das muralhas.

Affonso já se não podia dominar. Aquella alma affeita aos perigos, não admittia que os houvesse, sem nelles tomar parte.

Á frente de alguns cavalleiros trepou as escadas, coroando as fortificações com a maior felicidade.

Foi então que a resfrega mudou de face. Affonso tudo vio e prevenio.

A aurora começava a raiar, e ao seu polido crepúsculo vio Vasco rodeado de infiéis, batendo-se desesperado, á frente de alguns homens de armas.

O rei estremeceu pelos guerreiros.

«Gonçalo Gonçalves, ide a frente de um troço tomar o caminho de Sercigos, para que os agarenos não obstem á entrada dos nossos pela porta de Atamarma.»

Em quanto Gonçalo Gonçalves cumpria as suas ordens, lançava-se o monarcha de montante em punho sobre as hostes infiéis. Os seus brados por S. Thiago foram acompanhados de golpes tão rijos, que os mouros recuaram espavoridos. Principiaram a ceder; em quanto que os christaos avançavam denodados como sempre. O terreno conquistava-se lentamente, e em cada angulo da praça ou esquina de rua se via um pequeno campo de batalha.

Nunca os mouros fizeram tâo pertinaz resistência, nem os christãos tão violenta surpresa.

Vasco de Sousa era como o anjo da morte, seu montante estava vermelho de sangue; e de cada vez que refulgia era mais uma cabeça que abatia, ou um braço que decepava.

«Animo ! bradava elle com voz de trovão. Animo, guerreiros da Cruz. Eia, sigamos até ao Alfan. É ali que mais gloria nos aguarda.»

Com estas e outras palavras cada guerreiro era um demónio e cada espada um verdugo, que em nome de Deus se erguiam para flagellar seu Santo Nome. Os mouros defendiam-se desesperados. De rua em rua, de viella para viella, e de uma para outra praça, seguiam recuando mas não fugindo. E se em cada palmo de terreno perdiam uma victima, cada rua lhes custava uma centena.

A hora fatal tinha soado. As ruas estavam entulhadas de cadáveres e as praças pareciam lagos de sangue.

Auzehri tinha feito quanto um valente pode fazer.

Não lhe faltou coragem, prudência, e actividade, mas estava escripto no livro dos destinos, que o estandarte do crescente seria arrancado das ameias de Santarém, para n'ellas tremular a bandeira da Cruz.

Estava de ha muito marcado pela providencia o limite do dominio árabe em terras portuguezas; e Affonso sem se appellidar como Atila o martello de Deus e o flagello do mundo; podia ufanoso dizer:

«Sou o primeiro campeão da Cruz e o flagello das doutrinas de islam.»

Desde as portas de Atamarma até Alcudia não se via senão o génio da morte, adejando em torno da humanidade.

Os mouros, encerrados n'um circulo de ferro, tiveram que depor as armas e entregarem-se â discripção; o que não era das melhores cousas n'uma epocha em que os homens de maior virtude assassinavam em nome de Deus.

A potencia da espada estabelecia o seu dominio em 1l47 em Portugal, como fora imposto pelos árabes em Hespanha por causa do um traidor. Santarém pertencia aos portuguezes pelo direito da conquista, pela mesma maneira que pertenceu aos árabes o solo da peninsula em 714. Aos fanicios e carthaginezes em epochas mais remotas, e no meado do quinto século aos godos, alanos e suevos, que expulsaram os romanos, espécie de zangãos que por toda a parte se encontravam.

Isto é desde o Tibre até ao Eufrates e de lá até ao Nilo. Do Mincio até ao Rheno, do Rheno até ao Ebro e do Ebro até ao Tejo.

A tomada de Santarém está justificada pelo direito do mais forte, alem das grandes conveniências, politica e militar.

Os portuguezes conquistaram aos que de mâo armada os tinham dominado. Foram as represálias de quatrocentos annos.

CAPÍTULO IX

PRESENTIMENTOS E DESESPERAÇÃO

A tomada de Santarém foi um golpe mortal para o dominio agareno nas terras da Estremadura.

Alahar, Wali de Lisboa, assim o comprehendeu, preparando-se para todas as eventualidades que podessem sobrevir.

Ausehri, alcaide de Santarém, apenas se pode salvar, seguido de três guerreiros; e chorando a perda de uma Praça tão importante, só parou em Sevilha, aonde tudo contou ao Wali d'aquella cidade.

Voltemos a Lisboa e analisemos o grande movimento que se nota em toda ella.

Pelas estreitas ruas e viellas corre o povo em differentes direcções.

Os hábitos tancirtunos e circumspectos que distinguem o caracter oriental parece terem desapparecido momentaneamente.

Nota-se certa vivacidade, e um enthusiasmo fóra de commum, em todos os movimentos da povoação.

O ondolar das caberás ornadas de turbantes e o fluctuar dos albernós produzem um effeito bello e surprehendente. E quem tudo isto analisasse de perto não se julgaria n'uma cidade aonde as doutrinas do islam, eram sustentadas poios filhos de Agar.

Por que seria que os habitantes desta bella cidade caminhavam tão precerosos? Que haveria de extraordinário no alcaçar do Wali, para onde se dirigiam todos?

Nada mais fácil de saber.

Prosiga o leitor, tenha um boccadinho de paciência, que tudo ha-de saber.

Junto ao nobre alcaçar do Wali de Lisboa uma numerosa guarda de cavalleiros e frecheiros se acha formada. O apparato dos guerreiros é mais bello que imponente.

Seus escudos de aço polido eram brilhantes, suas armaduras ricas ; e os esguios penachos que ao lado lhe saiam dos turbantes, de cores variegadas, nada tinham de bello nem de marcial.

No entretanto suas frontes bronzeadas e longos bigodes negros davam-lhes um aspecto seductor e agradável.

Era finalmente uma tropa que podia agradar sem seduzir e causar respeito sem ser medonha.

Os cavalleiros armados de lança e largas simitarras soffriavam os bellos filhos do deserto, cuja casta e genealogia é pelos árabes guardada com maior consideração, de que a nobreza de sangue dos homens. Não sabemos se é bem fundado um tal systema. O que a experiência nos mostra, é que a bella raça dos irracionaes nunca desmente do seu aperfeiçoamento.

Mas de que se tratava? perguntamos ainda. Tratava-se de uma festa religiosa na grande mesquita, afim do propheta se compadecer dos males, que flagellavam os verdadeiros crentes.

Tratava-se pois de uma solemnidade aonde o grande muphti faria as orações do dia.

Um jejum tinha sido decretado e todos jejuaram.

Por que lá isso é verdade, não ha povos mais dóceis e submissos de que os mahometanos. São escravos devotados de uma religião que nunca tratou de liberdade nem de civilisação.

No bello alcaçar tudo se preparava para que á festa não faltasse pompa e magnificencia.

Alahar, vestido de gala, seguido de numeroso acompanhamento, chegou ao vestíbulo, levando a seu lado Al-bucem, na qualidade de capitão das guardas.

O povo revolvia-se e oscilava. Todos desejavam ser os primeiros a seguir o Wali á mesquita, aonde teriam logar as orações, para applacarem a ira do propheta, justamente indignado, segundo affirmavam os mais santos marabutos.

Alahar ia pensativo. Recordava um terrível sonho que por três vezes se repetira durante a mesma noite; e para o seguidor de uma religião que tem o fatalismo como dogma, nada mais era preciso para se julgar perdido.

Alahar sonhara, que uma espada de fogo, precedida de uma Cruz, relusira por três vezes, decepando três cabeças de cada vez. E que quando rolavam sob a influencia do golpe bradavam :

«Alahar ! Alahar ! Prepara-te que breve soará a tua hora.

«Os filhos de Agar fogem ante o ferro christão! Olhae! Vê-de!»

Viu um grande campo aonde os cegadores eram cavalleiros christãos.

Alahar tinha instrucção, mas era fatalista não só porque a lei moslemica o manda, como também pelos prejuízos da epocha.

Chegou ao ultimo degrau da escada. Olhou para o povo que de olhos baixos não se animava a fixal-o.

Os anafis, trombetas e tambores tocaram ; depois que os ministros e altos funccionarios montaram a cavallo, e que a luzida cavalgada seguiu, é que os vivas reboaram no pequeno largo do alcaçar.

Os cavalleiros seguiram a trote ao som dos toques e tangeres dos instrumentos guerreiros, cujos sons vividos e melancbolicos resoavam através do tropear dos ginetes e do vosear da populaça, que de todos os lados affluia.

A Sé Patriarclial de hoje, comquanto seja a mesquita maior que os mouros possuiam em Lisboa, tem todavia considerável differenca do que era, na epocha a que nos reportamos.

Não tinha as altas torres guarnecidas de sinos, que actualmente se vêem. Não senhores, porque os mahometanos embirram tanto com o toque dos sinos, como os cães com os sons de uma corneta, e os solfistas com o pregão de um cego.

Era uma sexta feira, dia sanctificado entre os musulmanos.

Desde o nascer do sol, que do alto dos coruchéus o minareis da grande mesquita, se viam os muezzins chamando, para as quatro partes do mundo, os crentes á oração.

Estes homens, que nas grandes cidades são regularmente cegos, para não devassarem o interior dos jardins e haréns, estafavam-se bradando com voz tremida pelo cançasso:

«Alah! Alah!. Vinde, vinde, ó verdadeiros crentes de todas as partes do mundo, assistir ás orações em honra do grande propheta.»

A porta do antigo edifício estava aberta, mas ninguém ousava entrar.

Um grande concurso de derviches e imans, ou explicadores das cinco orações diurnas, se achavam formados em duas alas, tendo á frente os muphtis ou grandes doutores da lei do islam.

O templo era bello, como ainda hoje se vê, alem das importantes obras, que desde o grande Affonso todos os monarchas lhe fizeram. Mas o que nenhum fez foi augmentar ou diminuir-lhe a belleza architectonica.

Segundo se affiança para ahi, foi construído pelo risco da igreja de Santa Sofia, que o imperador Justiniano mandou edificar em Constantinopla.

Mas quem deu origem a este bello edifício, que uns pretendem ser um grande Califa de Córdova, outros um rei godo? Também ha quem afirme que foi D. Affonso; mas comparando-se o gosto architectonico de S. Vicente de Fora com o da Sé de Lisboa, nota-se-lhe sensivel differença.

Mas seja como for, nao entra na missão de um romance sustentar a origem de um edifício; deixemos aos chorographos a gloria de profundar essas coisas.

Seriam onze horas da manhã do dia 25 de Março de 1147. O povo achava-se reunido no largo da mesquita, esperando a chegada do Walli para entrar de trupel.

Duas linhas de alabardeiros fechavam uma espécie de circulo, tomando cautelosamente as emboccaduras das ruas por causa dos curiosos.

O costume de arredar peões á pranchada e ás contoadas de lança, era tão vulgar entre mouros como christãos.

Mais de um verdadeiro crente se achava, com as costas esfoladas e negras das excellentes pauladas, que recebera em honra do propheta; ao que se resignavam bradando enthusiasmados:

«Foi em serviço' de Alah!»

Dizemos assim, porque entre os mahometanos a palavra Alah, acompanha inclistinctamente todos os seus actos.

O som dos tambores e mais instrumentos guerreiros ouviu-se próximo. Não é para admirar. Entre o alcaçar e a mesquita medeava pequena distancia.

Os guardas redobraram de zelo e uma saraivada de bordoadas cahiu sobre as costellas dos pacificos vassallos do Wali de Lisboa.

Entre os musulmanos as festas nem sempre são ornadas pelo bello sexo, que se por ventura comparece é tão resguardado e abafado, que mais parecem estatuas cobertas com longos véus, do que lindas e interessantes mulheres.

Por isto se deprehende, que os festejos teem tanto merecimento como uma rebeca sem cordas, ou um fructo sem sabor.

Na frente da cavalgada caminhavam os guerreiros que conduziam os estandartes.

N'um estava gravada a figura do propheta, no outro as armas e divisas do Wali.

Todos caminhavam descubertos e o povo ajoelhava com respeitoso recolhimento, quando passava a figura do Mafoma bordada no formidável pavilhão.

Os instrumentos tocavam musicas tão guerreiras o harmoniosas, que se a uns infundiam alento, n'outros produziam um sentimento melancholico, que muito se identificava com os hábitos de um povo, que só tende para o isolamento.

O brilhante cortejo parou junto aos degraus da mesquita.

Alahar apeou-se e todos lhe seguiram o exemplo.

A bandeira do propheta caminhou na frente, erguida, como para apontar aos guerreiros, o que lhes cumpria fazer nos campos de batalha.

Alahar e a corte tomaram assento á esquerda, como estava destinado, depois das competentes obulaçôes. Os mahometanos devem andar sempre muito limpinhos, pelo muito que se lavam.

O povo apinhava-se por tal forma, que bastantes ficaram suffocados; mas o respeitoso silencio não foi alterado através de tantas e variadas contingências.

Depois de todos occuparem os seus logares o muphti ou iman subiu a uma espécie de púlpito e de ahi principiou uma estirada arenga, em relação aos tempos calamitosos, que os crentes supportavam.

O povo não trugia nem mugia, e o grande iman principiou nos seguintes termos:

«Só Deus é Deus, e Mahomet seu propheta.

«Alah! Alah seja em nossa guarda.

«Do alto de mais de dez mil mesquitas assim é proclamado, chamando-se de todas as quatro partes do mundo os fieis á oração.

«Quinhentos e tantos períodos lunares teem decorrido, desde a milagrosa hégira em que o propheta foi pelo anjo Gabriel conduzido a salvamento.

«Prostramo-nos todos, ó verdadeiros crentes, ante o poder de Alah e do seu milagroso servo.

«Rojamos as frontes no pó podindo-lhe misericórdia para os nossos pcccados, afim de nos proteger contra as iras dos christãos, pertinazes inimigos das nossas santas doutrinas.

«Cumpramos, ó musulmanos, os santos preceitos do Al-Koran, d'esse livro divino, único de verdadeira sciencia.

«Alah ! Alah seja comnosco e com o nosso alto e poderoso Wali, a quem o propheta não pôde desamparar, por ser fervoroso crente e inimigo inconciliável das doutrinas Nazarenas.»

Com este aranzel, pouco mais ou menos, interteve o povo e o Wali até que passou a recitar as orações diurnas, que por lei são impostas aos mahometanos.

Mas em quanto proseguem as rezas na mesquita voltemos ao alcaçar e vejamos o que faz Alice, vulto sympathico d'este pobre romance, que só pôde merecer a indulgência dos leitores.

N'um vasto aposento, assentada em ricas almofadas se acha a formosa donzella.

O folgor de seu olhar é de tanto império, que faria animar o coração de um cadáver.

Lê e relê uma carta, como se quizera devorar uma a uma todas as palavras e phrases que encerra. Tal é o interesse que lhe inspira.

Uma mulher formosa, mas contando perto de trinta annos, está assentada a seus pés, fixando-a tão attentamente, que não perde o menor dos seus movimentos.

A uma distancia maior se vêem mais algumas jovens escravas, guardando tanto silencio, como se estivessem ouvindo pregar o próprio propheta.

Alice beijou repetidas vezes o pergaminho com o enthusiasmo da sua idade. Era um arrebatamento próprio das suas dezesete primaveras.

Era a consequência de um temperamento, que se resentia da influencia athmospherica em que nascera.

Era, finalmente, o fructo d'essa educação oriental, que só ensina a amar ou a aborrecer.

«Fátima, diz ella para a escrava, é esta a segunda carta que d'elle recebo. D'elle que tanto amo! Mas diz-me, Fatima, que fim terá este amor que devorando-mo a alma me definha o corpo?

«Não sei que presentimento fatal me domina. Uma idéa lúgubre e terrível me arrebata o espirito para um mundo desconhecido.

«Ali apenas differenço as mãos resequidas de alguns espectros que pretendem agarrar-me.

«Vejo-o em sonhos, rodeado de sangue e de cadáveres.

«Vejo Albucem de simitarra em punho prestes a degolal-o.

«Por Alah, accordo sempre nesta medonha occasião ! Que dizes, Fátima, deverei receiar pelos seus dias?»

Fátima respondeu com o maior respeito:

«Não sei, senhora, mas julgo que todos esses sonhos são o triste annuncio de futuros soffrimentos.

«O cavalleiro que amais é o maior inimigo da lei do propheta, e bem vedes que Alah deve necessariamente estar irado.»

Alice sorriu.

«Oh ! não creias em tal. O propheta é grande de mais para se occupar de cousas tão pequenas.

«Não! Nada tenho a receiar d'elle, mas sim de Albucem, que já não ignora a causa por que não é amado.»

Alice pronunciou estas palavras tão naturalmente, que deixou ficar em duvida a pobre escrava, se ella não receiava do propheta por crer na sua grandeza, ou pela convicção da sua impotência.

Nós mesmo não a comprehendemos ; só no decorrer desta leitura se encontrará o verdadeiro sentido.

«Mas senhora, proseguiu Fátima, não é verdade que os christãos entraram em Santarém?

Alice respondeu-lhe com a maior indifferença:

«Tomaram Santarém e a estas horas aproximam-se de Lisboa.

«Esta carta que Vasco me dirigiu por um prisioneiro a quem deu a liberdade, é de um pequeno povo a sete léguas desta cidade.»

Fátima não estava apaixonada por nenhum christão, e por isso fez um gesto de terror, que bem demonstrava o receio, que nutria com a approximaçâo de tão perigosos inimigos.

«Por Alah e pelo santo propheta, que faremos se vêem bater ás portas da nossa cidade? Parece que o propheta tem por fim exterminar os seus mais fieis seguidores.»

Alice ia para lhe responder, quando o estrépito de muitos passos e tinir de espadas, acompanhado de muitas vozes, a surprehendeu.

Que seria? É o que vamos dizer.

Depois da tomada de Santarém o Wall de Lisboa comprehendeu, que mais tarde ou mais cedo teria os christãos a baterem-lhe á porta, e que a questão era de tempo.

Mandou pedir soccorro a todos os alliados de Hespanha, Algarve e Alemtejo e ao próprio imperador de Marrocos e rei de Fez. A cidade estava abastecida, bem guarnecida e vigiada por mar e terra.

Todos os dias saíam troços de soldados almogavares que batiam a campanha em differentes direcções.

No dia em que se passavam as scenas que acabamos de descrever, sairam os almogavares, como sempre, á descuberta ; e adiantando-se mais do que era costume, avistaram um pequeno troço de cavalleiros christãos, que de passeio ou por curiosidade avançaram, além dos limites marcados peio rei, que ainda se achava em Santarém.

Os soldados agarenos não quizeram ver mais.

Voltaram rédeas aos corseis e eil-os a bom correr na direcção de Lisboa.

Os vigias fizeram-lhe signal, mas não sendo attendidos, deprehenderam que o caso era serio e tocaram a rebate.

A surpresa não podia ser maior nem o terror mais completo. Alahar estremeceu, mas não de medo.

Levou a mão ao punho da larga simitarra, e esperou.

Os guerreiros que o rodeavam não se moveram. Seus rostos não exprimiam receio, mas sim audácia e resolução.

Os derviches tremeram horrorisados, os imans pediram misericórdia, lançando-se por terra ; quanto ao muphti que explicava os versiculos do Al-Koran, e qun tanto aconselhara confiança no propheta, enrolando o pergaminho, summiu-se sem a menor cerimonia.

Todos julgaram ver os christãos entrando de espada em punho, levando ante si a morte e a destruição.

E bem fundado era o seu terror; não ha quem exceda em barbaridade a um christão, quando é dominado pelo fanatismo.

Esta é a verdade. Que o digam os séculos e as campanhas dos cruzados na Palestina, aonde as faces do Divino Redemptor foram flagelladas por aquelles, que, sem crenças nem fé, tinham apenas por timbre a crua ambição, e nunca o resgate do Santo Sepulchro, que se não estivesse em poder dos mahometanos, talvez de ha muito não existisse.

É esta a opinião de Lamartine, com que inteiramente nos conformamos.

Mas vamos á causa de tanto terror.

Como dissemos, os vigias tocaram a rebate, e os almogavares, entrando de trupel, declararam, não que tinham visto um pequeno troço de cavalleiros christãos, mas sim uma poderosa cavalgada.

Esta noticia correu de voz em voz, e o povo, fugindo, augmentou a confusão.

Alahar ergueu-se tranquillo e firme como o cedro do Libano.

«Vamos, cavalleiros agarenos.

«Eia, se o perigo é grande, maior é o animo dos filhos de Agar.

«Se os christãos são fortes, nós não somos covardes, e se os seus montantes são pesados, as nossas simitarras não o são menos.

«No alcaçar, ou nas ameias do nosso castello, se o perigo for imminente ahi me vereis sempre.

«Vamos, que Alah será comnosco.»

Todos o seguiram, e pouco tempo depois entrava no soberbo palácio, fazendo esse barulho, que tanto surprehendeu Alice e suas escravas.

Albucem era valente, activo e emprehendedor. Ninguem lhe pode negar estas condições, que bastante o honram.

Nao seguiu o Wali, como os demais, saltou para cima do seu bello ginete e cravando-Ihe os acicates nos flancos correu pelas estreitas ruas de Lisboa, em direcção ás portas da Alhambra; ahi se informou que a causa do rebate, se não era inteiramente falsa, era exagerada.

Redobrou os roldas e sobre-roldas. Mandou sair numerosos esculcas e voltou para junto de seu amo.

Albucem amava enthusiasticamente Alice, mas se sabia que não era amado, também não ignorava a causa.

Aquella alma soffria as torturas que só o ciúme pode criar e fazer sentir.

Para elle não havia pátria, mundo, ou religião sem o seu amor, mas conhecendo Alice, tinha perdido, por assim dizer, toda a esperança.

A violência era o seu único recurso. Mas seguro dos acontecimentos, não os precipitava.

Sabia que tinha uma vingança certa e um meio seguro, ante o qual Alice havia de recuar e descer da altivez.

Albucem entrou na grande sala aonde Alahar se achava mais os seus conselheiros e cadis. Cumprimentou a todos, e dirigindo-se ao Wali informou-o de tudo e de quanto fizera, accrescentando:

«Senhor, Albucem não descança. Vela noite e dia pelos vossos interesses.

«Aqui vos digo e affianço, que soou a hora solemne em que a bandeira do crescente ha de morrer, ou triumphar nas terras de Portugal.

Portugal é muito pequeno para tantos senhores; e se não estivéssemos divididos, nunca os cavalleiros da Cruz ganhariam o repto que lançaram a nossos maiores, depois da batalha de Guadalete, em que os filhos de Agar, commandados pelo valente Menusa, abateram de um golpe um império de três séculos.

Os ministros e conselheiros de Alahar ficaram absortos.

Albucem, se não estava inspirado, revellava esse fogo sagrado, que o amor da pátria e da religião sabe inspirar.

Todos o olhavam com amor e veneração.

O joven agareno, se não tinha a sulblidade do Camillo, quando, com a espada em punho, recusou pagar o tributo, que Brenus impozera ao povo romano, podia collocar-se a par d'esses oitenta senadores, que morreram firmes nas cadeiras curules, ás mãos do barbarismo gaulez.

Albucem tinha grandes virtudes, acompanhadas de grandes defeitos. Seria um guerreiro completo a não ser o maldito ciúme que de continuo o beliscava.

Dotado de caracter activo, era impetuoso e arrebatado. O amor que consagrava a Alice, se fosse correspondido, tel-o-ia impellido para um campo, aonde as virtudes do guerreiro seriam secundadas pela generosidade, que distingue os homens de grande coração.

Albucem proseguiu ainda, com o enthusiasmo das convicções:

«É como vos digo, senhor. Os christãos tomaram Santarém. Praça forte, e que, por assim dizer, era a chave da nossa casa.

«Estão a doze léguas de distancia, e nós devemos ir buscal-os, antes que comnosco venham ter.

«Reunamos as nossas forças, e as que nos mandarem os poderosos Walis de Badajoz, Silves, e Beja. Ataquemos os christãos em Santarém, aonde o seu poder ainda não está bastante solido; e ganhando esta praça, retardamos a nossa queda por muitos annos.

«Não vos torvem os polidos arnezes, nem o tecido das cotas de malha dos cavalleiros de Affonso.

«São homens como nós, e mais fracos porque não teem o apoio do propheta, que breve levantará o castigo, por intercessão dos nossos mais santos marabutos.

«Vamos, cavalleiros do crescente, porque Alah será em nossa guarda.

Alahar estava maravilhado com as expressões de Albucem ; nunca o vira tão audaz no perigo, e acisado no conselho, mas que poderia elle fazer?

Havia, por ventura, entre os muros da cidade, um outro guerreiro que o excedesse ou imitasse?

Quantos Albucens contava a pequena hoste de Lisboa?

Era no que Alahar pensava, e nâo só receiava de uma luta defensiva, como recuava ante a offensiva.

Nas circumstancias em que se achavam toda a prudência era necessária.

«Soes um formidável guerreiro, disse Alahar.

«Soes digno successor dos valentes, que ao lado do propheta, com a espada em punho, fundaram esse império, que foi e será sempre a maior gloria dos homens.»

«Mas attendei joven Albucem, digno filho d'essas tribus do deserto, que tanto cooperaram para a gloria de Alah!»

«Attendei, que se os nossos paes fizeram tanto, foi porque os seus pecados eram menores, e o Propheta os ajudava.»

«Não temos a espada fulgente de Ornar, o valor de Ali, nem a sabedoria de Mahomet.»

«Não temas o Anjo Gabriel a proteger-nos contra os povos selvagens do oriente! Nada d'isto possuímos!»

«O que temos é um inimigo forte e pertinaz, com a valentia de um Almansor, e a prudência do grande Abderam.»

«Aqui, vos juro pelo tumulo de Mafoma que morrerei no meu posto ; e quando os christãos pisarem este alcaçar, terão primeiro passado por sima do meu cadáver.»

«Sei quanto devo ao vosso braço e dedicação! Não o nego, nem me esqueço. E digo-te que seja qual fôr o que me pedires, como recompensa de teus serviços, ser-te-ha concedido, quando seja compatível com a honra e meu poder.»

Um raio de esperança fulgio na fronte do mancebo, anoveada pelas contradições oppostas ás vantagens de uma guerra offensiva. As palavras de Alahar tinham uma latitude tal, que não admittiam duvida, ou falsa interpretação.

A ideia de possuir Alice, animou aquelle coração triturado pelo despeito, e por um ciúme que lhe devorava as entranhas, como o abutre da fabula a Promolheu.

Subjugado por esta ideia; arrebatado por uma paixão ardente, cahio aos pés de Alahar. Não sabemos se levado pela gratidão, ou pela ideia de possuir a mulher, que, com uma palavra lhe podia dar o inferno, ou o paraizo.

O amor de Albucem , não era capricho , nem velaidade.

Era, um sentimento intimo, que da alma lhe nascera, e que só com ella, e n'ella vivia, por si e em si mesmo.

Era um sentimento nobre, tão nobre como a dedicação que se emprega na mais santa e perdida das causas.

«Wali! Poderoso Wali!» lhe diz elle.

«De ti não exijo honras, nem riquezas. Possuo-as em demazia.»

«As honras é a ti que as devo, as riquezas a meus pães. Uma e outra cousas pertencem-te como o corpo á terra, e a alma a Deus ! A virtude aos anjos, e o crime a Satanaz.»

«Em troca dos serviços que te hei pi'estado só apenas te peço uma graça, mas é tal, que fará a minha ventura.

«Para obter o que de ti vou sollicitar, tudo faria, menos renegar o Propheta. Está na tua alçada o que desejo, e dependente a minha felicidade.»

Albucem pronunciou as ultimas palavras com tanta energia, que Alahar ficou admirado.

Ergueu-o da posição humilhante em que se achava, dizendo-lhe:

«É em pé que os guerreiros, como Albucem, pedem. De joelhos, só a Alah. Diz o que desejas, que se fôr da minha competência, tel-o-has. Assim fo atlianço e juro. Bem sabes que faltar não é meu costume.»

Albucem cobrou alento, e sem o menor rodeio respondeu-lhe:

«Bem sabes, que pertenço a uma familia nobre, e, quando assim não fosse, no teu serviço me teria nobilitado.

«Não te peço riquezas nem honras. O que de ti exijo é que satisfaças tanto a este coração namorado, quanto o guerreiro te tem servido.

«Alahar! Amo tua sobrinha a formosa Alice, como os anjos amam a Deus e Deus a natureza.

«Amo-a como o propheta amou a virtude e a gloria da sua família.

«Peço-te que m'a des para mulher; e não julgues que a ventura do thalamo nupcial ha-de amollecer o caracter d'aquelle, que tende para os campos de batalha, como a vida para a morte e a alma para as ethereas regiões.»

Alahar não se mostrou admirado nem enfadado do pedido de Albucem. Apreciava seu caracter emprehendedor. Sabia por experiência quanto tinha a esperar da sua actividade e dedicação.

Era um valente guerreiro, nobre pelo nascimento e rico de avultados cabedaes. Que mais podia ambicionar?

«Albucem, lhe diz elle, o teu pedido é justo e rasoavel. De ha muito que sonho na tua alliança com Alice, e se de mim estivera dependente o complemento de teus desejos, crè, que de bom grado os satisfaria.

«No entretanto, afianço-te que empenharei a minha inffuencia para que Alice cumpra os teus e meus desejos.

«Farei quanto couber nos limites da possibilidade. Pedirei , se encontrar resistência , instarei para solver as duvidas. Hei-de, fmalmente, combater a recusa por meio da persuaçâo, mas nunca appellando para a violência, pois sou o tutor da filha de meu irmão, e não o seu tyranno.»

Albucem mostrou-se descontente. Uma pallidez terrível se lhe manifestou no rosto. As feições contrahiram-se, mas tudo isto foi tão rápido, que ninguém o percebeu.

Alahar disse para os seus ministros e conselheiros:

«Nobres varões, vou occupar-me de um negocio de familia; breve vos mandarei chamar.»

Fez-lhe um gesto com a mão e todos se retiraram para as salas immediatas.

Alahar puchou de um apito, fez o competente signal, e um escravo nubio appareceu.

«Ali, ide aos aposentos da muito nobre Alice, rainha sobrinha, e diz-lhe que a espero nesta sala.»

O escravo saiu, e pouco tempo depois entrava Alice na sala, coberta com um veu branco, como é costume entre as mulheres orientaes.

Albucem tremeu.

A sua sentença de morte estava suspensa por um fio. Demais sabia elle que Alice o não amava; e que tudo estava perdido, desde que Alahar declarara que nunca empregaria a violência.

O que lhe restava fazer? restava-lhe desafiar a cólera do Wali, contando-lhe os amores da donzella com Vasco de Sousa.

Era um meio bastante violento, mas além d'este ainda reservava outro, como adiante veremos.

Alahar, depois de Alice entrar, nâo esperou que o interrogasse, foi elle que tomou essa responsabilidade, encetando uma série de perguntas.

«Alice, lhe diz finalmente, sabes quanto devemos ao joven Albucem, guerreiro destemido e de verdadeira dedicação.

«É nobre por nascimento e pelos seus feitos. No estado em que tudo caminha precisamos de um braço robusto, que nos campos de batalha defenda nossos interesses, e no conselho nos guie com suas luzes. Em Albucem encontram-se todos estes dotes, e por isso, minha sobrinha, chegou o momento da única compensação a que aspira.

«Albucem pediu tua mão; concede-lh'a, rainha filha, e nisso satisfarás os desejos de teu tio, e verdadeiro amigo.»

Alice não se mostrou perturbada. Estava de ha muito preparada para uma luta d'este género, e respondeu desembaraçadamente :

«Podeis pedir-me toda a minha riqueza. Ser-vos-ha entregue. Se me exigires a vida, também t'a não recuso. Mas a escolha de marido pertence-me. E por isso te digo, que não posso desposar Albucem, a quem muito respeito, mas não consagro amor.»

Pronunciou estas palavras com tanta firmeza que Alahar ficou perplexo.

Albucem foi como se lhe cravassem um punhal no peito. As palavras de Alice eram profundas chagas por onde a vida lhe saía.

O silencio não foi interrompido por momentos.

Albucem estava mudo e quedo. Era a estatua da morte. Da vida só lhe restava o desespero que o ralava e o ciúme que o consummia.

Alahar foi o primeiro que fallou:

«Alice, recorda que pagas com ingratidão a quem nos tem prestado tantos serviços.

«Não te quero violentar, mas attende, que em nenhum outro cavalleiro agareno, encontrarás mais virtudes de que no valente Albucem.

«Não insto mais por emquanto; espero que breve mudarás de resolução.»

«Não mudarei. Para que me ha-des tornar a propor uma tal união? respondeu Alice.

«A minha resposta de hoje será a de amanhã, e seria tambem a de hontem, se hontem me tiveras interrogado.

«Appello para Albucem, elle que te diga se alguma vez lhe dei esperanças de amor. E não sei porque ousou propor-te um negocio d'este género, sem primeiro me ouvir, sendo eu a parte mais interessada.»

Albucem já não podia compellir por mais tempo a ira e o despeito.

O coração, ora se lhe opprimia, ora se dilatava horrivelmente.

Os beiços estavam lividos, os olhos esgasiados, e a espuma saía-lhe pelos cantos da bocca.

«Nobre donzella, filha do poderoso Emir de Perea! Áppelléis para o meu testimunho, eil-o, não se faz esperar :

«Bem sei que nunca me dirigiste palavras de amor.

«Sei que nenhum titulo me recommenda para merecer a vossa mão. Sei que os padrões de gloria, que mais podem nobilitar a vossos olhos um cavalleiro, é ser christão e figadal inimigo da santa lei do propheta.»

Albucem deu uma estrepitosa gargalhada ao pronunciar estas ultimas palavras.

Era o riso do desespero, que tanto se approxima do da loucura.

Alahar ficou fulmidado.

Alice, altiva como essas heroínas romanas, que nem mesmo sabiam chorar os esposos, quando nos campos de batalha pereciam combatendo pela patria.

Alahar ajoelhou, erguendo as mãos ao ceu.

«Alah! Alah! disse elle com desespero.

«Perdoa-lhe, Alah. É uma creança. Tu, Alice, amares um christão ! Esqueceres que teu pae morreu na Palestina combatendo contra os cruzados, que assolavam e destruíam tudo quanto havia de mais sagrado para os musulmanos!

«Esqueceres que a lei do propheta é por elles tão odeada, como por Satanaz o Paraiso !

«Oh ! não ! não é possível que Alice esquecesse as cinzas de seu pae e a lei que no berço lhe ensinaram.»

Alice arrancou o veu que lhe cobria a fronte. Seus olhos scintillavam como o brilho das estrellas no firmamento.

Seu porte era altivo e o rosto linha o sublime da belleza.

O gesto que fez quando arrancou o veu era o de uma rainha.

Semirames, apresentando-se ante os soldados, em completa revolta, não revellaria mais grandeza e magestade.

«Albucem, hontem, se não tinhas direito ao meu amor, dedicava-te consideração e estima. Mas hoje só me deves o despreso, por que o ódio é um sentimento nobre de mais para creatura tão vil.

«Não ha differença nenhuma entre o pretendente egoísta e o delator infame.

«És um miserável, que nem ou menos sabes esconder teus defeitos, como tanto desejas.

«Quem te auctorisou a denunciar o que se passa em meu coração ?

«Se é segredo de Estado devias de ha muito declaral-o, se pertence a uma mulher, fostes mais do que indigno. És um covarde.

«Alice pede licença a seu tio para se retirar. Está de mais n'esta sala. Não cabe aonde estiver Albucem.»

Albucem estava allucinado, Alahar estupefacto! Alice saiu, cumprimentandosou tio com sobranceria.

Albucem deixou dilatar a ira que o opprimia, batendo rijas punhiadas na cabeça com o maior desespero. Quanto a Alahar dizia magoado:

«Alah se compadeça de mim ! Que o propheta perdoe a essa rapariga, desvairada por um amor criminoso.»

Dominados por sentimentos oppostos, se achavam, quando um coudel pediu licença para entrar. Alahar fez-lhe signal e o guerreiro apresentou-se na sala.

Albucem encostou-se pensativo ás costas de uma cadeira de espalda, e batendo com os dedos desesperado, cogitava a maneira de se vingar de Alice e de seu odioso rival.

Alahar interrogou o coudel, que acabava de chegar:

«Que temos, Azor? Ha porventura alguma novidade?»

O coudel respondeu:

«O rei Affonso de Portugal, seguido de luzida cavalgada, tomou a rota de Coimbra. Santarém ficou guarnecida e abastecida para muitos mezes.

«E sabei mais que, Affonso projecta cercar Lisboa, e conta ser senhor d'ella antes do fim do anno.

«Sei tudo isto por boa fonte, porque no campo christão tambem ha traidores.»

Alahar ficou aterrado. Foi como se um raio o fulminasse. Tapou o rosto com as mãos e chorou.

Era a primeira agonia dessa morte lenta, que de ha muito ameaçava o poder agareno, na famosa cidade, que romanos e carthaginezes tanto respeitaram.

O Wali fez signal ao coudel para sair, e assim que se achou só com Albucem deixou-se arrebatar pelo desespero.

Albucem estava satisfeito. A ira do Wali era o que mais lhe agradava, para tocar seus desejos.

«Tudo se conspira contra a nossa causa, disse o velho agareno ! Parece que o propheta nos abandonou ! Que faremos em tão dolorosas conjuncturas ? Responde, dá-me um conselho, propôe-me um expediente qualquer, que a todos salve.

«Quereis um conselho, e uma idéa, lhe diz o joven guerreiro, com satanico sorriso, quereis um meio efficaz para salvar a cidade? É muito simples: sê franco e generoso com os amigos, e inflexivel com os inimigos.

«Olhae, poderoso Wali, proseguiu elle, tudo tenho prevenido e adivinhado.

«Em tres dias chegarão soccorros por mar e terra. Não nos faltarão valentes guerreiros nem munições para um grande cerco; e creio que este ficará tão logrado como o primeiro.

«Mas para resolver e obrar como devo, preciso de toda a tua confiança; de contrario sairei da cidade, e pôr-me-hei ao serviço do rei de Fez, ou do Kalifa de Marrocos.»

Alahar era fraco, mas não covarde. Não era traidor nem infame; era um homem de honra.

«O teu pedido é justo. Se abandonas o meu serviço, perde-se a cidade. Fica, Albucem. Eu t'o peço por ti, por mim, e pelo serviço de Alah.

«Toma, aqui tens o meu selo particular. Faz d'elle o uso que quizeres. pois sei que tudo quanto fizeres, será para serviço do Propheta e salvação de todos.

Deu-lhe o selo com o qual o cavalleiro podia usar e abusar á sua vontade.

Albucem era senhor do Wali. Tinha um poder illimitado. Podia a seu grado abusar da confiança que n'elle se depositara. Veremos como desempenhou a sua missão, e o primeiro uso que fez da força que possuia.

Se com ella não obtinha o amor de Alice, podia obtel-a pela violência.

Podia vingar-se, e para as almas perdidas, a vingança é o seu maior elemento.

«Respondo pelo resultado do cerco, caso os christãos se approximem. Podeis socegar.

«Para velar estou eu. Preciso retirar-me. O vosso serviço e guarda estâ-me confiado, crede : não darei motivo para vos arrependerdes da confiança que vos exigi.»

Cumprimentou Alahar e saiu.

Alahar foi como se o alliviassem de um grande peso. Julgou-se salvo das mãos dos christãos, e saiu da sala.

Quatro horas depois, uma scena tétrica tinha logar n'um dos calabouços do castello de Lisboa.

Um velho, do figura veneranda, se achava assentado sobre um sepo, e em frente d'elle uma joven, cuja formosura contrastava singularmente com o todo do ancião, a quem as profundas rugas não roubaram a belleza de seu rosto varonil.

«É como vos digo, formosa donzella. Recebi um aviso de que me preparasse para morrer, se de vós não obtivesse o consentimento de receber como esposo o joven Albucem.

«Eis a ordem que me foi enviada. Está assignada por vosso tio, o muito alto e poderoso Wali de Lisboa.

«Confesso-vos francamente que, se adivinhasse, que tinheis tanta repugnância a esta união, esperaria a morte resignado, mas nunca vos incommodaria com similhante declaração.

«É a sorte do captivo. Perdi a esposa, e meus filhos; agora só me resta morrer.»

Alice estava aterrada. Estimava o velho guerreiro como se fora seu parente. A ella devia elle as poucas commodidades, que no cárcere desfructava. Mas que poderia fazer em face de tão terrível ameaça ?

Sacrifical-o ? Não.

Aceeder aos desejos de Albucem, era abdicar para sempre seus sonhos de ventura.

O que lhe restava pois fazer? Não desanimar, ter coragem, e ser pela primeira vez reservada.

Foi o partido que tomou, e veremos se soube desempenhar o seu papel.

E qual é a mulher que se não sabe fingir quando pretende enganar ? Nenhuma, nem a mais santa.

Alice ergueu-se animosa.

«Dai-me esse pergaminho. Desejo ver de quem é a lettra.»

Viu que era de Albucem!

Conheceu de que lado vinha o tiro; e comquanto o não receiasse, preparou-se para a defeza.

«Socegae, nobre ancião. Nem vós nem eu nada temos a receiar. O inimigo é grande, mas Alah é maior. Não resolveis nada sem me consultar, e o resto pertence-me e ao futuro.»

Estendeu a mão ao guerreiro e retirou-se precedida de Joaquim, que, como já dissemos, era o escravo christão, que por sua ordem a acompanhava. Fechou-se no quarto, e pouco tempo depois o judeu Jesué entrava por sua ordem.

Jesué sabia quanto se passava em Lisboa e na corte de Coimbra.

A sua posição de medico o fazia respeitar. Salvou por duas vezes Alahar de uma morte certa; o que lhe obteve a estima do poderoso Wali, tanto quanto entre os cbristãos era respeitado pela sua reconhecida sciencia.

Estranho às duas religiões beligerantes, era neutro entre os dois campos; e tanto estava n'um, como n'outro.

Nunca foi espia, nem ninguém se animava a encarregal-o de tao vil serviço.

Jesué entrou no quarto da donzella com gesto grave, como tinha por costume.

Alice, assim que o viu, disse-lhe com anciedade:

«Estava desejosa de ti. Amigo, ainda te vou pedir mais um favor. Sei que possues um passe do livre entrada e saida na cidade. Rogo-te que hoje mesmo saias, para entregares esta carta a Vasco de Sousa.

«Vae, meu Jesué, e chama-me sempre tua filha.»

O israelita amava Alice! Não lhe podia recusar nada.

«Que Jehovah te proteja. Amo-le como se foras minha filha.

«O meu desejo é que professasses a mesma religião. Mas como Jehovah não quer, segue a que teu espirito escolher.

«Vou partir.»

Jesué saiu e uma hora depois seguia na estrada de Santarém, acompanhado de três escravos de confiança. E quando Albucem mandou ordem para que o passe não tivesse effeito, já elle estava a duas léguas de distancia. Albucem principiava a ser derrotado por uma joven de dezesete annos.

Deixemos Jesué proseguindo na estrada de Coimbra e occupeme-nos de Albucem e Alice. Vejamos o que se passa no seio desta cidade de tão nobres recordações.

Albucen, quando o preveniram do que Jesué sairá de Lisboa, seguido de tres escravos, havia mais de duas horas, ficou desesperado.

«Por Alah, disse elle. O maldito christão vae ser avisado. Fui derrotado, mas não desanimarei; aguardarei melhor occasião.»

Alice ignorava o que Albucem fizera em relação a Jesué.

Aos sons harmoniosos de uma harpa, cantava a joven sarracena em tom mavioso e melancholico, algumas trovas impregnadas de belleza e poesia.

Os sons arrancados pelos dedos da donzella repercutiam pelas vastas abobadas do soberbo alcaçar.

A musica era triste e insinuante ; a voz de tâo suave harmonia, que parecia elevar-se aos céus, e fazer coro com os coros dos anjos.

Alice foi interrompida por alguém, que sem se fazer annunciar, se apresentava.

Era seu tio.

A donzella levantou-se. Mas dominada pela altivez, sensurou-lhe o procedimento.

Alahar não se justificou, e só apenas lhe respondeu :

«Alice, tenho-te tratado como se foras minha filha. Tenho sido indulgente para comtigo, mas não quero que a cegueira de um amor paternal, prejudique os interesses do propheta e dos povos que me estão confiados.

«Alice, esquece esse cavalleiro christão, não desafies a cólera de Alah.»

A que propósito me vindes fallar de um ente, que não se occupa de vós nem dos vossos amigos ? Quereis que vos diga a verdade?

«Amo um cavalleiro como nunca vi nenhum, em bravura, galhardia e gentileza. Meu coração possuiu-se d'este amor, e do que não tratou foi de indagar se era mouro ou christão. Esta é a verdade.

«Nada me fará esquecel-o, nem faltar á fé que lhe jurei.»

«E sabes quem é esse cavalleiro christão? Eu t'o digo.

«É Vasco de Sousa, grande filho-d'algo, e senhor do solar da Cham.

«É aquelle, que na estrada de Lorvão nos soccorreu contra uma partida de salteadores, sem perguntar pela religião que professávamos antes de arriscar a vida.»

Alahar, à proporção que sua sobrinha fallava, ia mudando de côr. A cada palavra recuava um passo, até que foi cair sobre as almofadas, que guarneciam as paredes.

Alice estava admirada, e Alahar convulso.

Momentos depois levantou-se.

«Minha fdha, é Alah que assim o quer. Só elle é justo e grande nos seus altos mysterios.

«Uma terrível fatalidade te impelle para esse joven guerreiro. Olha, Alice, a elle devo a vida, e tu a honra, mas fica sabendo que seu pae, Bento de Sousa, é o assassino de teu pae.

«Foi elle que entrou á força de armas n'uma aldeia do Líbano, aonde teu pae estava fortificado.

«Foi elle que ordenou essa terrível matança, que os povos maronitas fizeram nos mais valentes soldados do crescente. Esquece-o, minha filha. Esquece-o, porque amal-o é um peccado que o propheta não perdoa.»

Alice ficou como se fora varada por uma frecha expedida por braço de gigante.

Mas aqudle coração tão cheio de dedicação e amor, não se deixou dominar pela primeira impressão.

«Senhor, quem vos disse que Bento de Sousa, pae do Vasco de Sousa, era o assassino de meu pae?»

«O que justifica ser elle o commandante da arrancada, para tambem ser o seu assassino.»

«Qual é a prova que me apresenteis?

«Esclarecei-me, por que nisso me vae a vida, e com a vida a ventura dos meus annos.»

Alahar apenas respondeu:

«Quem o diz é esta esrta, assígnada por D. Paio de Sarmento, um dos prímeires filho-d'algos do rei Affonso. Eil-a.»

Alice leu-a sem se lhe notar a menor contracção, se bem que o soffrimento era mortal.

«E agora, minha filha, ainda amarás esse cavalleiro?»

«Ainda, até morrer.

«Não é responsável pelos crimes de seu pae.

«Hei-de amal-o sempre. E quando lhe não pertença, não pertencerei a outro. Morrerei donzella.

«Quanto a esse cavalleiro, que vos convidou a ir sobre Leiria para tomar um castello, que pertencia ao seu rei, é de um caracter tão ignóbil, que o colloco abaixo de Albucem. E que feito é desse filho-d'algo prestameiro do castello de Leiria?»

«Está captivo ha doze annos nos cárceres de Lisboa. E se lhe concedi a vida, foi a pedido de um homem que por duas vezes me salvou da morte.

Alice ficou meditabunda. Viu em tudo um mysterio, ou um trama de Albucem. Veremos se se enganou.

Ficae certo, meu tio, Alice sabe como se ama, e não ignora como se morre.

«Concedei-me alguns dias, e findos que sejam terei a honra de vos procurar.»

Alahar, cançado da grande luta moral, que sustentara. Não esperou que sua sobrinha lhe dissesse mais, e sem lhe marcar o praso sollicitado, retirou-se com o coração opprimido e a alma ulcerada por terriveis sensações.

Alice dispunha-se para ir dar um passeio no jardim, quando um escravo lhe annunciou que Albucem desejava fallar-lhe.

«Que entre» foi a sua resposta.

Albucem entrou. Não de gesto acanhado e contrafeito, mas altivo e arrogante.

Alice conservou-se de pé.

Mediu-o de alto a baixo com tanto despreso, que o fez baixar os olhos.

«Que pretendeis, senhor?

«Dezejaes por ventura devassar mais algum segredo para ser denunciado ?

«Julgaes-me também na conta dos captivos desditosos, a quem mandeis ordens oppressoras, para obterdes por compaixão, para com um infeliz, aquillo a que por titulo nenhum tendes direito?

«Sai da minha presença, senhor capitão das guardas.

«Sai, porque as vossas traições revoltam-me e a tyrannia causa-me horror.»

Apontou-lhe a porta e saiu.

Albucem íicou furioso. Os olhos engetaram-se-lhe de sangue.

«Esperae, lhe diz elle. Esperae, que tambem me chegará a hora da vingança.»

Alice já se achava entre a porta, parou para ouvir o que Albucem lhe dizia.

Albucem proseguiu :

«Podeis renegar a pátria, a religião, e até a vossa familia.

«Ide, dae o nome de esposo ao filho do assassino de teu pae, porque o inferno festejará as bodas, e no Ceu haverá luto, dor e eterna reprovação para a mulher prejura e filha desleal.

«Ide, casae com o christão, porque a maldição dos crentes te seguirá além da sepultura. Escarra nas faces do propheta e nas paginas do Al-Koran, porque a partilha de Satanaz são as almas renegadas.

«Ri, mulher sem fé, que o mundo rirá de ti e o teu nome será recordado com horror por todos os bons musulmanos.

«Mas comprehende bem o que te digo:

«No praso de quatro horas será degolado o pae de teu amante. Receberá o premio dos seus crimes.

Alice comprehendeu de quem se tratava, e respondeu a Albucem com gesto tão frio, que o fez tremer.

Ainda a amava através do grande desespero que o minava.

«Albucem, lhe diz ella. Desempenha o oíficio de carrasco, que eu desempenharei o de juiz.

«Desce mais, que eu me elevarei.

«Vae! Procura a tua victima, commette mais um crime, porque já pertences tanto ao inferno, como os corpos aos vermes da terra.

«Olha bem, vês este punhal? Eu te juro, no momento em que esse pobre ancião expirar ás tuas mãos, depois de te apunhalar farei a mim outro tanto.

«Agora vai cumprir a tua missão de sangue.»

Albucem reconheceu tarde que com um caracter como o de Alice o terror era peior. Tinha-se excedido.

CAPÍTULO X

PRIMEIRO CASTIGO

Em quanto se passavam todas estas cousas que descrevemos nos dois capítulos precedentes, outras não menos importantes tinham logar n'um pequeno castello roqueiro, affastado de Lamego duas léguas.

Deixámos Raymundo o incendiário conduzindo D. Paio de Sarmento e D. Elvira de Sousa.

Raymundo era peior que um demónio. Temivel pela audácia era na vingança atroz.

Depois do que se assegurou de D. Paio, voava e nâo caminhava.

Aos primeiros raios crepusculares avistaram o pequeno castello, cujo estado de ruina era manifesto.

Uma estreita e tortuosa vereda lhe dava tão difficil accesso, que os cavallos tropeçavam a cada momento.

Raymundo reconheceu a impossibilidade de conduzir a liteira por um caminho tão estreito e pedrogoso.

«Eia, rapazes, o nosso fim não é incommodar a formosa donzella que vae na berlinda. Vamos, é tirar as rodas e conduzil-a a braços.»

Os companheiros de Raymundo assim fizeram, e momentos depois a caixa da liteira era conduzida aos hombros, dos dois homens mais robustos do bando.

Chegaram ao castello.

Raymundo levou os dedos á bocca e atirou um assobio tão agudo, que se n'aquelle tempo houvesse caminhos de ferro, tel-o-iam confundido com o silvo de uma locomotiva.

Um homem de má catadura espreitou pelas seteiras.

Seus cabelios crespos e irriçados davam-lhe o aspecto de um urso mettido em pelle humana.

O trajo d'este personagem competia com a hidiondez da sua physionomia.

Umas bragas de pelle de carneiro lhe desciam até aos joelhos. Urna espécie de jaleco e gorro da mesma fazenda completavam o vestuario deste bipede, que pela cabeçá parecia urso e no resto do corpo um carneiro.

O homem, depois de se affirmar que eram amigos, abriu uma porta de ferro, que deu passagem á cavalgada.

Raymundo apeou-se, e o resto dos bandidos fizeram outro tanto, conduzindo os cavallos para fora.

«Vamos, muito alto e poderoso rilho-d'algo D. Paio de Sarmento, é descer das costellas d'esso soberbo corsel, que não está acostumado a conduzir covardes.»

Assim se expressava Raymundo, em quanto lhe desligava as mãos e o conduzia para um calabouço.

D. Paio supportava essa ira concentrada que tanto prejudica e imbrutesse.

O nobre rico homem horrorisava-se da dependência em que se achava de um homem, que reputava como seu maior inimigo, depois de Vasco de Sousa.

Todavia, fértil nas idéas e audacioso na execução, tratou de ensaiar um meio, digno de um similhante aperto.

Para elle ainda havia um meio. Tinha ouro e muito ouro. Contava comprar os guardas e fugir com D. Elvira.

Emquanto D. Paio se entregava a estes pensamentos, a donzella, trémula e abatida, pedia, com as mãos erguidas, que a respeitassem.

D. Elvira, como dissemos, desmaiou ao primeiro encontro dos homens de armas; só recobrou os sentidos, próximo â vertente da serra, em cuja crista se elevava o castello, que descrevemos, edificado para servir de atalaia ou ponto fronteiro.

D. Elvira, encerrada em quatro taboas, não podia saber aonde se achava, nem para o tentar tinha forças.

Reconheceu, com assombro, que quebravam as rodas da berlinda, e a conduziam a braços.

Dominada pelo terror formava milhares de conjecturas, sem atinar com uma idéa, que podesse justificar a causa de tudo quanto soffria.

Voltou-se para Deus, e fez voto solemne de tomar o habito de religiosa, se fosse salva dos perigos que a cercavam.

Deus ouviu suas supplicas, como adiante veremos.

Sentiu, finalmente, arrombar as portas da liteira. Viu Raymundo, e caiu-lhe aos pés.

«Senhor, cavalleiro ou peão, mouro, judeu, ou christâo, respeilae a minha innocencia.»

A joven era formosa, mas nesta occasiâo estava seductora.

Raymundo o incendiário era de costumes devassos.

Salteador de profissão, mas não assassino por habito era valente e arrojado, e tão audaz que chegava a ser temerário.

O vinho, e as mulheres de má vida, davam-lhe cabo de quanto apanhava nas algibeiras dos viajantes; nunca ajuntava dinheiro.

Entre os seus companheiros não só era respeitado como temido; nunca nenhum faltou ás suas ordens, que não tivesse um punhal cravado no peito, para servir de exemplo, e não se repetirem as insobordinaçôes.

Através de tantos defeitos, não se julgue todavia que era traidor, ou desleal, e incapaz de cumprir sua palavra.

Não senhores.

Raymundo o incendiário nunca faltou á sua palavra, nem á fé que n'elle se depositou.

E foi o que salvou a innocente Elvira de uma ruina certa.

Raymundo sentiu um estremecimento geral. Pela primeira vez aquelle coração felino palpitou arrebatado.

A vista turvou-se-lhe e o espírito ficou perplexo.

Tinha visto muitas mulheres, mas nunca de tanta belleza !

Nutriu desejos, mas desejos de homem dissoluto.

Sentiu a esfervicencia dos apetites carnaes que o arrebatavam n'um desejo delirante.

Nunca a pobre donzella esteve tão próxima de ser victima da brutalidade concupiscente, como neste momento.

Mas Deus velava. E na occasiâo em que Raymundo, desvairado por tanta belleza, pensava e sentia quanto dissemos, uma voz lhe bradou no intimo da consciência :

«Raymundo, tu és um salteador, mas não traidor. Tens assassinado, mas não covardemente. Numca faltastes á tua palavra. Respeita essa donzella, recorda-te do que promettestes a Vasco de Sousa, quando o mandastes avisar. »

Esta voz, se não era a voz de Deus, era a do anjo da guarda da pobre Elvira, que lavada em pranto, pedia protecção.

Raymundo foi como se despertasse de um sonho. Os maus pensamentos haviam desapparecido.

«Socegae, senhora, lhe diz elle.

«Arrisquei a vida e a dos meus companheiros para vos salvar. Nada tendes a receiar.

«Sereis entregue a vosso irmão, ou a quem da parte d'elle se apresentar, sem nada vos exigir e tão completa como entraste.

«Não vos amedronte a idéa da minha profissão. Com quanto seja mau, não sou traidor como esse filho-d'algo, que vos roubava para saciar seus appetites.

«Raymundo o incendiário não falta á sua palavra, como esse cão infiel.

D. Elvira, ao ouvir pronunciar o nome de D. Paio de Sarmento, que não conhecia pessoalmente, deu um grito e desmaiou.

Raymundo deitou-lhe algumas gotas de agua sobre o rosto, e depois que voltou a si conduziu-a para um quarto, dizendo-lhe:

«Aqui, formosa donzella, estaes tão segura como no convento das santas madres. Fechae a porta e socegae.»

Cumprimentou-a e retirou-se.

Nada tinha a receiar dos seus companheiros. Bem sabia que a nenhum lembrava desobedecer-lhe.

Seguiu para o cárcere de D. Paio, e vejamos o que se passou entre estes dois personagens tão importantes.

Raymundo entrou no quarto aonde se achava D. Paio, com o gesto de um perfeito comediante.

«Muito alto e poderoso rico homem, senhor do solar do Limia, nada temeis do vosso humilissimo servo. Todos vos amam e respeitam.

«Como sabeis, senhor, estes pobres diabos andam sempre sem dinheiro, e pedia-vos alguma cousa para os pobres rapazes irem beber á saúde de vossa honra.»

Estendeu a mão com gesto de tanta bonhomia, que quem o visse julgaria que fallava serio.

«Vamos, senhor, proseguiu elle, sê generoso uma vez na vida. Bem vedes, aqui ninguém ha que vos não tribute profundo respeito.»

D. Paio passeava de um para outro lado; não como o leão, que na jaula passeia altivo e senhor de si, como se estivera no seio de uma floresta; mas sim como a hyena que vigia sorrateira a maneira de se vingar.

D. Paio não respondeu a Raymundo.

As primeiras palavras eram repassadas de tanta zombaria, que o orgulhoso filho-d'algo não respondeu.

Mas receiando-lhe o génio vingativo, entendeu que não o devia incitar.

Estava-lhe nas mãos e capitular era o único meio a seguir.

«Vamos Raymundo, lhe diz elle, sejamos amigos, e o passado, passado. Nem sempre a lança se quebra ao primeiro embate, nem os escudos ao segundo golpe. Diz, francamente, o que pretendes de mim?»

Raymundo sabia demais, que D. Paio queria ganhar tempo. Era difficil conseguil-o, por que estava prevenido, pela longa experiência que tinha do seu caracter.

«Muito alto e poderoso senhor, pela minha parte nada exijo de vós. Não quero resgate, o que desejo é a honra de vos conservar oito dias em minha companhia, só para vos obsequiar. É o meu fraco. Gosto de ser acompanhado por poderosos senhores.»

D. Paio reconheceu que Raymundo lhe preparava mais um laço, mas fazendo que nao comprehendia, respondeu-lhe no mesmo tom:

«Oito dias, homem ! Isso é muito. Não, isso não pôde ser.»

«É como vos digo, poderoso senhor, antes do oito dias níío saireis daqui. É um voto que fiz á Virgem e a São Thiago, nosso Santo Patrono.»

Dito isto comprimentou-o e saiu.

D. Paio comprehendeu as intenções de Raymundo, que ao sahir, chamou o homem do fato de pelle de carneiro.

«Luiz, que ao poderoso filho-d'algo, ali accommodado, não falte nada, julgo que tens a dispensa bem fornecida, como é costume. Mas olha, que não come ou bebe cousa alguma, por menos de quarenta marcos de prata.»

O homem abrio os olhos admirado, mas como se tratava de esfollar um grande filho-d^algo, sorrio fazendo uma careta horripilante.

Estavam n'esta conferencia, quando dois cavalleiros se apresentaram em frente do castello ; um d'elles trazia um homem á garupa, tão pálido e desfigurado, que parecia um cadáver de três dias.

«Queremos fallar ao vosso chefe», disse o primeiro dos guerreiros.

«Mas quem soes», lhe diz o bandido, que do alto da muralha lhe respondeu.

«Dizei-lhe que sou Reinaldo, intimo amigo de D. Vasco de Sousa, rico homem e senhor do solar da Cham.»

O salteador respondeu:

«Esperai, vou dar-lhe parte, para vos mandar entrar.»

Ia para se retirar, quando o homem que ia á garupa lhe bradou :

«José, dize ao commandante, que sou Pedro Cacheiro, salvo por este nobre senhor.»

Raimundo mandou-os entrar, dizendo :

«Bofé cavalleiro, rara é a vez que o pardal volta ao ninho do abutre, depois de se ter escapado.»

«Se um dia fugio da rede, perigoso lhe será voltar segunda vez a metter-se nas mesmas malhas.»

Reinaldo não gostou das palavras de Raimundo, mas não quiz entrar em discussões.

«Pela Virgem do Carmo, que me importa o ninho, e as malhas da vossa rede?»

«Do ninho e das malhas me escapei eu, e não sei se todos poderão dizer outro tanto, ao vilico, quando seguido de saiões os entregar aos cuidados do Alvasil, para lhes preparar o ninho.»

«Por Deus, proseguio Reinaldo, para desempenhar a missão, de que o brioso Vasco de Sousa me encarregou, não só venho ao vosso ninho, como iria também a uma caverna, aonde o menor inimigo, fosse uma serpente venenosa.»

«Ha missões tâo grandes, que morrer no seu desempenho, é a maior gloria do mundo.»

«Mas quem falla de mortes? Aqui já estive eu quatro dias, e não morri.»

Raimundo era valente, e respeitava os homens que o eram. A resposta de Reinaldo, não só o não molestou, como lhe agradou pelo desembaraço.

«Que pretendeis D. cavalleiro? Que casta de negocio vos trouxe aqui?

«Raimundo é rasoavel, e até amigo de bem tratar aquelles que o procuram.»

D. Reinaldo, puchou de uma carta, que lhe apresentou.

«Conheceis esta letra, e a pessoa a quem é dirigida?»

«Não só conheço, como respeito esse cavalleiro donzel, uma das primeiras lanças de Portugal.»

«Quanto á letra não é minha, confesso, que nunca comprehendi como se fazem essas garatujas. Sei, que a mandei escrever por um dos meus rapazes, que nos seus tempos foi leigo de um convento.»

«Agrada-me a vossa resposta, lhe diz D. Reinaldo. Eis o segredo do negocio. Mandaste avisar D. Vasco de Sousa, de que um cavalleiro desleal tentava roubar sua formosa irmã do convento do Lorvão. Que me dizes a este respeito?»

« A verdade. Se te não conhecera, crê que o não faria.»

«D. Elvira chegou a este castello, não haverá quatro horas. Sei que vinhas na rota de Lamego em sua procura.

D. Reinaldo precedido de Raimundo tomaram por um estreito corredor. No topo estava uma porta. Raimundo batteu.

«Nobre donzella, abri, que um verdadeiro amigo de vosso irmão espera para vos acompanhar no convento de Lorvão.

D. Reinaldo sentia batter o coração com tanta violência, qne se contasse as palpitações, contaria por segundo o duplo das que se contam no estado normal !

D. Elvira abrio a poria, e o joven cavalleiro recoou!

Nâo foi de medo ! Nunca vira tanta belleza. Tentou avançar um ou dois passos, não poude, parecia seguro por uma força hercúlea.

Desejou fallar, mas a lingoa prendeu-se-lhe, e apenas articulou um gemido ou espécie de intergeição, sem sentido determinado.

D. Elvira comprehendeu o embaraço do guerreiro, foi a primeira a fallar.

«Desculpai cavalleiro, se vos faço algumas perguntas; depois do que se tem passado, não me posso despensar de o fazer.»

«Soes amigo de meu irmão. Sei-o porque já me fallou de vós. Também vejo que de tudo estaes informado; agora o que pretendo é a explicação, de como sabeis o destino que me deram para este castello.»

D. Reinaldo animado pelos sons melodiosos da voz de Elvira, cobrou animo e informou-a de todas as circumstancias, que o levaram ao castello de Raimundo.

A carta de Vasco de Sousa para sua irmã, dizendo que não podia voar a seu lado, para salval-a das mãos de D. Paio, mas que ia seu companheiro de armas, era um titulo tão claro, que não admittia duvida. Satisfeita com as explicações do joven, declarou estar prompta a seguil-o.

Convencida finalmente de que nada tinha a receiar, retomou um gesto mais desembaraçado, que muito bem lhe assentava.

Reinaldo esperimentava um sentimento desconhecido, uma influencia magnética a que se não podia esquivar.

Os olhos da donzella, eram para elle de tanto brilho, como as irradiações do sol á hora do meio dia. Não podia supportar tanto folgor sem que a vista se lhe torvasse.

Arrastado pelo amor, desejava sacudir-lhe o jugo, já era tarde.

O espirito eslava imprecionado, o coração captivo. Do altivo guerreiro só apenas restava, em face de uma pudibunda donzella, um tímido namorado. Não sabemos se D. Elvira experimentava iguaes pensamentos. No entretanto, o que podemos afiançar, é que todas as vezes que seus olhos encontravam os do jovem guerreiro, o rubor lhe subia ás faces, notando-se-íhe certo embaraço.

Ignoramos se tudo isto eram prelúdios de amor. O que nos parece, é que se o nâo eram, é porque já tinha ido além, e caminhado muito em pouco tempo.

D. Elvira não esperou mais. Despedio-se de Raimundo, e agradeceu-lhe os importantes serviços que lhe prestara.

Saltou ligeiramente para sima do bello palafrem, e seguio acompanhada de D. Reinaldo e de Paulo ; uma das seguras garantias, de que o seu novo guia era um verdadeiro amigo.

Deixemos os dois jovens caminhando apressadamente na estrada de Lorvão, entregando-se enthusiasticamente á bella prespectiva dos campos bordados de flores.

Deixemol-os aspirando o balsâmico perfume das verdes campinas, aonde o balir do carneiro, junto ao mugir dos novilhos, tem o encanto poético, que nunca se encontra no bolicio das cidades.

Deixemol-os finalmente correr estouvadamente ao ar livre, imitando o adejar das avesinhas, que sem caprichos ou ambições, são o symbolo da innocencia.

Assim caminhavam os jovens, rindo e folgando, sem que um máo pensamento viesse manchar de leve, a innocencia das suas aspirações.

Em quanto porém elles proseguem no seu destino, voltemos ao castello aonde D. Paio de Sarmento, entregue ao desespero, hicta entre o orgulho e a necessidade.

São, pelo menos, oito horas da noite, e o nobre rico homem ainda esta em perfeito jejum!

A fome e a sede caminhavam a passos de gigante; pela primeira vez na vida D. Paio, que sempre olhou com despreso para a miseria, principiava a comprehender o supplicio da fome, um dos mais terríveis da vida.

Supportou nauseas, promovidas pela debilidade.

Um constante abrir de bocca o encommodava, enquanto que um desfallecimenlo no estomago, que se manifestava por todo o corpo, o definhava.

Sentiu dores de cabeça e pequenas tonturas, que augmentavam em numero e intensidade.

A vista tinha-a turva, e os objectos que o cercavam pareciam-lhe sombras, que ora se elevavam ou se tornavam de pequeno tamanho.

Na bocca nâo encontrava saliba, não obstante a fome desenvolvel-a, mas é que a sede, esse padecimento atroz, augmentava-lhe o soffrimento.

D. Paio já não podia supportar tão horríveis sensasões. Bateu na porta e um dos salteadores appareceu.

«Homem, lhe diz elle, julgo que teu chefe não tem por fim matar-me á sede e á fome. Dá-me alguma cousa de comer e beber.»

O bandido não respondeu, fechou a porta, e momentos depois appareceu o homem do fato de pelles.

«Que pretendeis, poderoso senhor?»

D. Paio ficou admirado de tão exquisito personagem.

«Que pretendo? Ainda o perguntas? Preciso que me dêem de comer e de beber, porque a fome e a sede devoram-me.»

«Não duvido senhor. É justo o vosso pedido ; e por que não disseste isso ha mais tempo? Aqui nada vos faltará. Vou buscar umas costelletas de carneiro, um pão, e uma cabaça com vinho de Alicante, como não ha em parte nenhuma.»

Saiu, e D. Paio pareceu ficar mais animado com tamanha generosidade.

Momentos depois voltou o nosso homem, e com elle um cheiro capaz de arrebatar o nariz de um defuncto.

D. Paio abriu os olhos com descomunal avidez. Tinha fome.

Luiz collocou tudo em cima de um escabello.

«Não sei, senhor, se vos agradará o preço. Isto não custará menos de cento e vinte marcos de prata.»

«Cento e vinte marcos de prata! respondeu o filho-d'algo recuando dois ou tres passos. Estás louco, homem! »

«Não estou louco, nem me divirto. A verdade é a verdade.

«Se não quereis levo tudo, e ficamos como d^antes.»

E sem esperar segunda resposta já se retirava, levando a comida.

D. Paio sentiu o desespero da fome. Sentiu-se abatido em face de um miserável salteador ! Elle, o rico prestameiro de differentes castellos !

«Espera, lhe diz elle, com a voz abafada pela cólera.

«Da-me esse comer pelo preço que exigis.»

«Ora eis ahi vossa honra acabando por onde devia ter principiado.»

E ao dizer isto estendeu a mão.

«Não tenho dinheiro; o que trazia foi-me tirado. Paga-te com o que eu possuía.»

«Então nada temos feito, senhor, o que foi achado, é achado. Com isso não tenho nada. Dinheiro, ou cousa que o valha, quando não saio já.»

D. Paio viu-se balido em todos os pontos, e como a fome o perseguia, teve que ceder.

«Mas já te disse que não tenho dinheiro. Estou fora do meu solar; que queres que faça?»

«Pouca cousa. Passae uma ordem para o vosso thesoureiro, que nós a iremos receber.

Apresentou-lbe um tinteiro e duas pennas, que pelo tamanho pareciam de abestruz.

«Não sei escrever, disse laconicamente o filho-d'algo.»

Ninguém se admire desta ignorância, porque n'aquelles tempos era vulgar.

«Também me não embaraço com isso.

«Bofé, senhor, já fui leigo d'um convento de reverendos e aprendi lá a escrever e outras muitas cousas, que cá fora se ignoram.

«Mas um dia zanguei-me com o padre guardião, por me querer metter no cárcere, fui procural-o á sella e aviei-o, não obstante achar-se acompanhado com a mais bella cachopa dos sitios.»

«Mas que tenho eu com isso?» lhe diz D. Paio impaciente.

«Ora o que tem, proseguiu Luiz fazendo um trejeito a que ninguém chamaria sorriso.

«Ora essa! Com que então não quer que lhe conte a maneira porque saí do convento?! pois hei de contar-lh'a.

«A rapariga ia para gritar, mas como teve medo calou-se e acompanhou-me. Ainda a conservo em minha companhia, e foi ella que assou estas costelletas.»

D. Paio estava desesperado. Luiz puchou de um pergaminho, aonde lavrou uma ordem para o thesouoeiro do poderoso rico homem D. Paio de Sarmento, pagar ao portador 120 marcos de prata.

D. Paio selou-a com o selo das suas armas, e recebeu em troca a tão desejada refeição.

Luiz cumprimentou-o e saiu, fechando cautelosamente a porta.

A scena que acabamos de descrcvar repetiu-se todas as vezes que D. Paio instado pela necessidade, pedia de comer ou de beber.

Raymundo tirava uma desforra monumental.

D. Paio devia-lhe para mais de mil marcos de prata, quantia fabulosa para uma epocha de pouco numerário. Não lhe fazia falta ; o filho-d'a1go era um dos mais ricos senhores daquelle tempo.

No entretanto, D. Paio ainda não se julgava perdido, nem batido. Esperava que Raymundo não fosse receber o dinheiro senão junto. Enganou-se, como adiante veremos.

Os oito dias decorreram, e Raymundo apresentou-se batendo n'um grande sacco de dinheiro.

«Eis o que devem cá os rapazes á vossa generosidade. Podeis seguir viagem.

«Um cavallo vos espera lá em baixo. O que vos não posso offerecer é escudeiro.

«Não vos passe pela idéa tirar desforra do que hei feito.

«Raymundo, quando se utilisa da bolsa de alguém, respeita-lhe a vida. Se não carecesse do vosso dinheiro, tinha-vos aviado.

«Não sou traidor nem desleal, combati comvosco no campo, arriscando a vida.

«Ide. Segui para o vosso solar, e se avistardes Vasco de Sousa ou D. Reinaldo, fugi. Se vos apanham dependuram-vos do alto de um carvalho, como se faz a qualquer vilão.»

D. Paio montou a cavallo, tomando a direcção de Lamego, para d'ahi seguir para o Limia.

D. Paio devorou as duas léguas que o separavam de Lamego, com a mesma avidez com que engoliu as costelletas de carneiro, que Raymundo o incendiário lhe vendeu por cento e vinte marcos de prata. Atanasado pela raiva, dominado pelo ciúme, e possuído de medo, proseguiu o nobre filho-d'algo, parecendo-lhe encontrar em cada arvore o formidável carvalho, em que Vasco de Sousa o pretendia dependurar.

Um vulto que avistasse o sobresaltava.

Atordoado por esta idéa mostrava-se tão medroso como impio, e tão impio como desleal e covarde. Teria andado duas léguas além de Lamego, quando deparou na estrada com um vulto medonho e pavoroso. Os cabellos irriçaram-se-lhe, o corpo tremeu, e uma horrível sensação lhe opprimiu o interior. Parecia que as unhas de uma garra de ferro lhe cruciavam o coração. D. Paio parou; uma pallidez de morte e um gemido abafado, foram os únicos signaes que deu, de que ainda não tinha morrido de susto. Esfregou os olhos, como quem desejava affirmar-se, mas não era illusão. O que ao longe via era uma perfeita realidade.

Teve medo, desejou fazer uma oração, mas só conseguiu dizer uma herezia. Cobrou todavia animo e foi avante. Que seria que lhe causava tanto horror? É o que vamos dizer aos leitores.

D. Paio, impressionado com as palavras de Raymundo, não pensava senão em cordas de canave, em carvalhos de ramos frondosos, e em Vasco de Sousa e seu amigo. E foi debaixo desta influencia que avistou ao longe um homem enforcado n'uma arvore.

Deixemos por algum tempo D. Paio entregue ao susto de que se acha possuído, e retrocedemos um pouco, afim de nos recordarmos de um personagem, que já bastante figurou nos capítulos antecedentes.

Os leitores estarão certos, de que Raymundo o incendiário encarregara um dos companheiros, a seguir de perto os passos de Barnabé, espécie de serpente bipede, que sem fé nem consciência, se entregava a toda a casta de vicio e traição.

Raymundo tinha rasoes para o desejar ver enforcado.

Alístára-se no bando, sendo transfuga de um convento; tempo depois foi traidor aos seus companheiros, que não valiam mais do que elle.

Ora, como é sabido, Raymundo tinha rompido com D. Paio; Barnabé não se encommodou com isso. Venderia seu pae, com quanto lh'o pagassem.

Encarregou-se de fazer assassinar Vasco de Sousa; e se o não conseguiu foi devido a Paulo.

Deixámol-o na caverna dos salteadores, nessa noite em que, embriagado, declarou os planos de seu amo, e nunca mais soubemos delle.

Barnabé, entregue a toda a casta de vício, vadiou, ora em Coimbra, ora em Guimarães.

Em quanto teve dinheiro andou embriagado desde pela manhã até á noite. Chegou todavia o praso fatal.

O dinheiro acabou-se-lhe, vendeu o pouco fato que lhe restava; cuberto de nudez supportou fome, sede e frio.

Um dia achava-se na taberna de mestre Alexandre, seguindo avidamente os freguezes, que entravam para comer e beber.

O miserável tinha fome e parecia acompanhar com os olhos até ao fundo do estômago, os boccados que os commensaes devoravam.

Estava n'este supplício, não sabemos se peior que o de Tântalo, quando um homem, meio guerreiro, e meio villão, de physionomia carregada e grandes bigodes, entrou na tasca do nosso mestre Alexandre, que magistralmente assentado n'uma larga cadeira de couro, lia, ou soletrava n'um grande pergaminho, em forma de rolo.

O homem pediu vinho e principiou a beber. Affirmou-se, porém, em Barnabé, duas ou tres vezes, e exclamou:

«Olá! Que fazes por aqui, grande tratante? Fu! Fu, que velhaco !

«Por São Thiago ! Pareces um santo peregrino vindo de Compostella; e se nâo tens a devoção d'elles, tens com certeza os farrapos.»

Barnabé não se agastou por se ver assim tratado.

Era descarado de mais para se encommodar com estas cousas.

«Oh! disse elle com o enthusiasmo de um cómico.

«Tu por aqui, meu querido José Besteiro ! Não te esperava nesta cidade. Deixei-te em Lamego...»

«É verdade. Mas tu. sempre tonante, como tinhas dinheiro, seguistes differente rota. Pois olha que perdestes. Chegou-se para elle, bateu n'uma espécie de bolsa, fazendo tinir dinheiro.

Barnabé não pôde conter a cobiça que o arrebatava. Olhou sorrateiramente para José e principiou a meditar a maneira de o roubar.

Era uma scena curiosa vèr dois grandes patifes a enganarem-se reciprocamente.

«Vá lá um trago, camarada, diz José Besteiro. Vamos, é petiscar.»

Mandou vir pão e queijo, e na melhor harmonia principiaram a comer.

Barnabé bebia muito vinho e instava para que José fizesse outro tanto; e como este lhe reconheceu as intenções principiou a fingir-se bêbado.

Barnabé seguia-lhe os movimentos, em quanto que elle bocejava, dando mostras de completa embriaguez.

Pareceu adormecer, dando um profundo ronco.

O ladrão não esperou mais; pela primeira vez se lembrou de praticar uma acção justa.

Isto é, de: Quem rouba a ladrão tem cem annos de perdão.

Tirou-lhe o sacco, metteu-o entre os farrapos, e poz-se no andar da rua, com tanto desembaraço, como se saísse de uma egreja.

Achava-se entre portas, quando José lhe disse estonteado:

«É camarada, acompanha-me! Com todos os diabos! Anda-me a cabeça á roda. Não vejo nada.»

Deitou-lhe a mão com tanta força que parecia o contacto de um torno de ferro.

Barnabé era covarde, como já dissemos. Teve medo. E o caso não era para menos.

José, com elle sempre agarrado, ora cambaleava, ora se encostava. E mais de uma vez oscillou, de maneira que o levou de ventas ao chão. Barnabé tremia como grande poltrão, sem se animar a dizer-lhe nada.

Assim atravessaram toda a cidade. O dia principiava a raiar; o ceu estava carregado, e uma espessa nebrina parecia regellar os membros. O frio era intenso e a neve em quantidade.

Barnabé, tranzido de medo, deitou a fugir, mas um braço hercúleo o susteve. Jose arrancou a mascara.

«Tenho ordem do chefe para te enforcar. Comtudo ainda te podes salvar. Segue-me.

Barnabé ficou fulminado. Era a figura estúpida da covardia sem o menor movimento.

«Oh! pelo amor de Deus não me mates. Tem dó de mim. Juro que serei teu amigo até morrer.

«Perdoa-me, perdoa-me, por São Thiago.»

E ao pronunciar estas palavras rojava-se pelo chão, beijando-lhe os pés.

«Levanta-te, homem. Primeiro de que tudo dá cá o dinheiro que me roubastes, e vem d'ahi, que só te levarei á presença do commandante.

Arrastou-o até a um pardieiro, aonde um cavallo comia pacificamente.

Aqui foi aonde Barnabé resistiu mais, agarrando-se á porta desesperado.

«Está quieto, quando não esmago-te a cabeça.»

Barnabé continuou a gritar, até que José Besteiro, falto já de paciência, disse-lhe arrebatado:

«Homem, morto ou vivo hei-de levar-te d'aqui. Escolhe.

«Se resistes por mais tempo, cravo-te este punhal no coração, e tudo se acabou.»

A lamina fulgiu e foi apontada com tanta resolução, que o pobre diabo caiu desmaiado. Era de medo que o miserável perdia os sentidos.

José montou a cavallo. Collocou-o no arsão da sella, e eil-o a todo o galope na direcção de Lamego.

Já tinham caminhado bastante, quando avistaram um cavalleiro, que se dirigia em sentido opposto, mas com grande afan.

José receiou um mau encontro, e para o prevenir colou pela segunda vez a ponta do punhal na garganta de Barnabé.

«Pela Virgem Santíssima, lhe disse elle, se fores interogado, e responderes, passo-te a garganta como se foras um estorninho; depois atiro-te para a estrada como se faz a qualquer sacco de farello.»

«Nem o menor movimento.»

A ponta do punhal tocou a garganta do pobre diabo, que pela segunda vez esteve para morrer de susto.

O cavalleiro aproximava-se rapidamente, e o galope do ginete era tâo veloz que parecia uma sombra, que pela estrada se deslisava. José respirou, Barnabé soltou um gemido, que parecia o ultimo do estertor.

Ambos olharam para o recem-chegado por differente maneira. Aquelle vio mais um companheiro, este mais um algoz.

O cavalleiro aproximou-se a dois ou três passos de distancia, soffreou o corsel com tanta violência que o pobre animal fincou os jarretes no chão.

«José, para onde vaes com tanta pressa com esse fardo?»

«Bofe, que se o commandante te encontrasse devia ficar contente de ti.»

«Quem é esse homem?»

«Quem é este homem, dizes tu. É Barnabé que de ha muito deveria fazer companhia ao diabo.»

Barnabé deu um grito que faria amenisar a raiva de uma hiena.

«Oh! por Deus não me matem! Salvem- me a vida! Lembrem-se que fui vosso companheiro.»

«Sim, companheiro traidor e desleal. Vamos! É encommendar a alma ao inferno, porque Deus não acceitará tão boa peça no Ceo.

Barnabé impellido pelo instincto da vida, deitou a correr com a velocidade, que o receio da morte lhe inspirava.

José correu atrás d'elle, e agarrou-o pelo pescoço.

«Anda cá homem, ninguém te faz mal! Anda, sê corajoso uma vez na vida. Qué diabo te custa a morrer? Olha, que se morres desta vez não morres segunda.»

Com estas e outras palavras que nada tinham de edificantes o arrastava, em quanto que elle se debatia com a força do desespero.

O recém chegado poz pé em terra. Puchou de uma corda de canave, e formando um laço atirou-o com mão tão certeira que lh'o infiou pela cabeça.

Puchou violentamente, dizendo para José:

«Passa o meio da corda áquelle ramo; deixa o negocio por minha conta, que este perro, mais perro que um judeu, ha de balouçar a seu gosto do alto d'este carvalho.

Ainda bem não tinha dito isto, já Barnabé, suspenso na corda, apresentava essa fisionomia medonha e repellente, própria de um enforcado.

Ainda se defendeu como pôde ; mas arrebatado com violência, apenas deu um ronco medonho, e tão horroso, como o horror da sua situação.

Os olhos sairam-lhe das orbitas. Abrio desmedidamente a bocca, e a lingoa denegrida sahio fora da bocca quasi um palmo.

Uma côr mais negra que arrochada lhe cobrio as faces, emquanto que as contracções de uma agonia lenta e dolorosa lhe desfiguraram as feições.

O quadro era tétrico! Era mais que medonho! Era bárbaro e deshumano.

José e o companheiro com as feições demudadas, e os olhos esgaziados, contemplavam estupidamente o estertor d'aquelle, que com quanto malvado, não o era muito mais do que elles.

Barnabé quasi cadaver, estorcia-se entre a vida e a morte. As pernas formaram uma espécie de circulo, e depois de um movimento convulso ficaram inteiriçadas. Tinha expirado? É o que mais adiante veremos.

José arredou a vista d'este quadro, e foi nesta occasião que differençou um cavalleiro, que se encobrio nas quebradas do caminho.

«A cavallo, disso elle. A cavallo, que temos testemunhas. E sem esperar resposta do companheiro, saltou para o ginete, mettendo a bom correr pela estrada.

Dois homens desappareciam levados pelo terror, mas âquem ficava um cadáver para attestar a sua malvadez.

O cavalleiro avistado pelos salteadores era D. Paio de Sarmento, que mais timido de que um chacal, avançava cauteloso.

Chegou junto ao supliciado o estremeceu até á medula dos ossos.

Um sentimento de piedade se alvergou pela primeira vez n'aquelle coração felino.

Pareceu-lhe reconhecer aquellas feições demudadas pela agonia da morte, e pelas contusões da corda.

Afigurou-so-lhe que ainda dava signaes de vida. Afirmou-se o reconheceu que o homem estava vivo.

D. Paio era covarde e malvado, todavia aproximou-se. Estendeu mão tremula, e cortou com o punhal a corda.

O corpo cahio e conservou-se inanimado. Momentos depois exhalou um gemido abafado. Não restava duvida, estava vivo. D. Paio apeou-se, tomou uma pouca de agua no elmo, e lançou-lha por sima. Deu signaes de vida.

O cavalleiro reconheceu Barnabé, e mostrou-se admirado.

«Tirai-me d'aqui poderoso senhor, disse elle com voz abafada. Se aquelles malvados voltam enforcam-me segunda vez.»

O terror que tinha estampado nas faces revelava-se em todos os movimentos. O poderoso rico homem a não se lembrar de que Barnabé lhe seria necessário, tel-o-hia abandonado na estrada, sem para elle mais olhar ; recordou-se da grande utilidade que delle podia tirar, e resolveu leval-o á garupa.

«Homem, isto foi uma desgraga, mas que lhes hades fazer? Anda d'ahi, põe-te á garupa como poderes.»

Barnabé não se fez rogar, sobio como pôde para o cavallo. Escarranchou-se na garupa do nobre animal, que bem innocente de tudo, conduzia dois individuos, que valiam bem uma dúzia de viboras. Um merecia ser ainda pela segunda vez enforcado; quanto ao outro, se lh'o podessem fazer uma centena de vezes não seria de mais.

Deixemos caminhar D. Paio e o seu cúmplice, e sigamos agora um nobre cavalleiro, que em possante ginete vae na estrada de Lorvão para Coimbra.

Ás duas horas da tarde entrava elle na antiga cidade, tomando a direcção do alcaçar. Ao voltar de uma viella esbarrou com um outro, que lhe disse bruscamente:

«D. cavalleiro, sê mais cautelloso na volta das viellas. Olhae que me ieis fazendo cair d'encontro a esta esquina.»

D. Reinaldo, pois era este o cavalleiro, não lhe respondeu, assentou os acicates no corsel, e metteu a trote largo.

«Por Satanaz, disse o homem que ia á garupa, este cavalleiro que encontramos é o aragonez, de quem Vasco é intimo amigo.»

«Pelos chavelhos do diabo! Cão rafeiro! Miserável! É elle que foi ao castelio buscar D. Elvira. Oh ! caro o pagará.

«Não faltam homens decididos, que queiram ganhar dinheiro para aviarem esse miserável, que furagido da sua patria por algum crime, vem zombar dos cavalleiros portuguezes.»

Assim se expressava D. Paio, até chegar á estalagem de mestre Pedro, uma das melhores de Portugal.

Dois dias depois, num quarto da mesma estalagem, um cavalleiro passeiava de um para outro lado.

«São, pelo menos, dez horas da noite. O bolicio da cidade desappareceu. Um silencio de morte é quanto resta.

«São dez horas! Ha mais de duas que partiu! Que diabo fará elle?»

Estava o cavalleiro neste monologo, quando bateram á porta. Notou-se-lhe um movimento convulso. Abriu-a, e um indivividuo de physionomia asquerosa entrou tão sorrateiramente, que parecia o escoar de um reptil, através das fendas de uma abobada derrocada.

«Até que chegastes. Então que noticias trazes?»

«O que fiz, senhor! Saberá vossa Honra que ainda não descancei para beber um trago; desde que saí, arranjei os homens. Estão promptos.»

D. Paio, pois era elle, ficou satisfeito.

«E são de resolução?»

«Oá, que sim, como poucos.

«Respondo mais por elles do que por mim. São bons de lei. Olhe, um é renegado duas vezes. Fez-se mouro para apanhar uma fortunasita. Como deu cabo della, fez-se judeu. Mas hoje vive como bom christão. Não sei se é asneira.

«Cala-te, patife, não digas heresias.»

Era D. Paio que assim fallava, sem se lembrar que melhor lhe seria ser mouro ou judeu, com tanto que tivesse algumas virtudes moraes.

Barnabé proseguiu:

«Um outro já estafou dois cavalleiros. Fez parte dos ginetes acostados da coroa, mas desertou.

«Ainda ha um terceiro, que á frente do bando que commandava, fez grandes proezas. Tanto assim, que se acostou no serviço do Wali de Sevilha, a quem roubou o thesouro. Já vé, que são valentes e experimentados.»

«Não pretendo saber quem são, nem o que fizeram. Desejo que me prestem bom serviço, e quando seja a meu contento serei generoso.

«Toma cautella comtigo. O nó da forca é bastante corredio. O que falta é apertal-o. Se escapastes dos companheiros de Raymundo, não escaparás de mim.

«Aqui tens trezentos marcos de prata para as primeiras despezas. Á primeira novidade monta a cavallo e poe-te na rota do Limia para me dares parte. Os cavallos que arrebentares, é por minha conta.»

Barnabé arrecadou os trezentos marcos com soffreguidão. Para elle já não havia outra idéa. A forca já lhe não lhe lembrava. Pouco era o tempo para calcular as moafas que tomaria com a maior parte d'aquelle dinheiro.

D. Paio, no dia seguinte, ao romper d'alva, estava, com effeilo, a cavallo, acompanhado de uma luzida cavalgada, que de vespera havia chegado. Teve a prevenção de se não dar a conhecer, e por isso se poz a caminho, sem desfraldar o balsão de sua Honra.

Deixemol-o caminhar ao seu destino, e vejamos o que fez D. Reinaldo, logo que chegou a Coimbra, depois do encontro que teve na volta da viella.

Como dissemos, na noite que partio para Lorvão, Vasco de Sousa caminhava para Santarém cumprir a alta commissão que o monarcha lhe confiara. D. Reinaldo depois de salvar D. Elvira voltou para Coimbra, julgando encontral-o.

Ora Vasco de Sousa tinha regressado, mas como é sabido, dois dias depois fazia parte da cavalgada destinada a tomar Santarém.

Ás duas horas caminhava elle na estrada de Leiria, e oito horas depois entrava D. Reinaldo na cidade.

Diriigio-se ao alcaçar do monarcha, mas como encontrou apenas alguns velhos guerreiros, e as donas da rainha, demorou-se pouco, e tomou para o seu aposento na rua da Bicarda, que já não existe.

Vasco de Sousa caminhava impaciente recordando-se do perigo a que sua irmã ficava exposta.

No dia que um postilhão coberto de suor e lama, entregava á rainha uma carta de Affonso, participando-lhe a tomada de Santarém, Paulo na mesma estrada, caminhava a todo o galope, afim de dizer a seu amo, que sua nobre irmã estava a salvamento.

Os dias deslisavam-se tristes e melancholicos para o mancebo, que recordava saudoso os momentos, que passara junto da formosa D. Elvira.

As palavras por ella pronunciadas eram repetidas com enthusiasmo e saudade. Comtudo nada tinha a esperar. E a ideia de um amor desgraçado, sem esperança no futuro era monstruosa.

Mas como homem respeitador dos preceitos da honra, nada havia que o fizesse faltar á fé que jurara, nem á confiança, que Vasco n'elle depositara.

Uma noite passeiava elle junto ao Mondego. Dois homens o seguiam ohservando-lhe os passos. Reinaldo não lhes deu attençâo. Mas quem os seguisse teria notado um outro, que se achava mais além escondido nas valas de uma granja, que se prolongava pelas margens d'esse bello e poético rio ; mais tarde testemunha das lagrimas da formosa Ignez, victima de seu devotado amor, e da barbaridade de um monarcha cheio de virtudes guerreiras, mas tâo deshumano como pae, como desobediente como filho.

Oito dias tinham decorrido desde a partida de Paulo; o joven guerreiro ainda nutria a esperança de que Vasco iria visitar sua irmã, e que sob este pretexto a poderia vêr.

Embalado por estas ideias nada lhe lembrava além do seu nmor. Nada temia nem receiava.

De repente vio-se atacado por três homens, que de espada em punho tentavam assassinal-o.

D. Reinaldo era arrojado como já dissemos, e não obstante a rapidez da aggressão, puchou do montante com tanto denodo, como sangue frio. Enrolou o manto no braço, e eil-o em guarda, dando e recebendo estocadas com tanto desembaraço, como se o partido fosse igual.

Os assassinos apertaram-n'o, a ponto de se achar bastante ferido. Mas elle cobrando animo no perigo, defendia-se e atacava com tanta felicidade, que um dos homens já se achava por terra banhado em seu próprio sangue.

Não obstante esta vantagem, os demais proseguiam como quem sabia, que mais tarde ou mais cedo havia de ceder.

A lucta prolongava-se, e Reinaldo cedia á superioridade numérica, quaudo um cavalleiro que por acaso passava, convidado pelo arruido dos golpes, cahio de espada em punho sobre os assassinos, tomando o partido do mais fraco. Os scelerados fugiram, em quanto que um outro retirava por caminho differente.

Reinaldo agarrou-o pelo pescoço, e pondo-lhe a espada na garganta obrigou-o a parar.

«Diz quem és, e quem te mandou assassinar-me! Responde para teres direito ao perdão.»

O miserável cahio de joelhos.

«Perdão senhor! Perdão, eu digo tudo.»

«Não dirás nada, vil assassino. A tua alma será preza do inferno, e a tua garganta de uma corda.»

Estas palavras foram pronunciadas com voz de trovão pelo cavalieiro que soccorrera D. Reinaldo, que frio e silencioso, contemplava o assassino, que de cabellos arripiados o olhava espavorido.

O luar dava de chapa n'este quadro singular, e as feições dos três personagens denotavam bem differentes pensamentos.

«Paulo por aqui!» lhe diz D. Reinaldo.

«É verdade nobre cavalieiro. Ainda cheguei a tempo para ajustar contas com este covarde.»

Barnabé nem uma palavra deu em sua defeza. Parecia a estatua da morte.

Paulo agarrou-o pela garganta.

O contacto de suas mãos frias como o gelo, fel-o estremecer. Foi como se lhe aplicassem uma descarga da garrafa de Leyde.

«Escusas de dizer quem te mandou dirigir os assassinos que se escaparam, já o sei. D. Paio de Sarmento é um íilho-d'algo tão infame como tu. E para desaffronta d'aquelles que calçam esporas de ouro, ainda lhe serão arrancadas para entregar o pescoço ao carrasco.

«Não sou eu que te castigo. E a justiça de Deus que te fere de morte para sempre.»

As palavras de Paulo tiveram um cunho de grandeza tal, que Reinaldo estremeceu. Barnabé rojou-se pelo chão, e a agonia que supportava não era inferior á da morte.

Reinaldo recuou ao ouvir pronunciar o nome de D. Paio. Foi como se visse a cabeça da medusa.

«D. cavalleiro, disse Paulo, acompanhai-me, e sê testemunha do juizo de Deus.»

Puchou Barnabé por um braço, e pondo-lhe a espada nas costas obrigou-a a caminhar.

D. Reinaldo segiuo-os de perto. Não se oppunha aos desejos de Paulo, tão legítimos como curiaes.

Um pouco além da margem do Mondego via-se um pequeno bosque. Foi para alii que Paulo se dirigio.

O luar rellectia sobre as aguas do poético rio, tornando-as tão brilhantes, que pareciam uma vasta superfície prateada.

Barnabé parou, voltou-se para D. Reinaldo.

«Sr. D. cavalleiro, perdoai-me, que juro emendar-me e ser homem de bem.»

«Quem, tu homem de bem?» lhe respondeu Paulo. Tu peior que uma vibora. Anda faz oração, e arrepende-te de teus peccados, porque pouco tempo te resta de vida. Puchou de um comprido cordão que o cingia, e formou um laço.

Barnabé retirou a vista desvairado; agarrou-se aos joelhos de D. Reinaldo :

«Oh! por piedade, senhor, a forca causa-me horror. Salvae-me de semelhante morte. Soes donzel, peço-vos jiela vida da pessoa que mais estimaes.»

D. Reinaldo tapou a cara com as mãos.

«Paulo, salva este homem.»

«O que, senhor ! A este maroto nenhuma morte lhe agrada. O mais que lhe posso fazer é cortar-lhe o pescoço. Salvar esta vibora é decretar a morte de meu amo.»

Barnabé emmudeceu. D. Reinaldo estava extático. Paulo inflexível como um magistrado da antiga Roma.

«Encommenda-te a Deus, e pede-lhe perdão.»

Barnabé chorou. Tarde lhe chegava o arrependimento. Pediu um padre. Não o havia.

Ajoelhou e orou tão fervorosamente, que Paulo chegou a compadecer-se.

Barnabé ergueu-se:

«Peço-te que me cortes a cabeça de um só golpe. Sei que o podes fazer. Perdoa-me o mal que te fiz e a teu smo. Deus se compadeça de mim.»

D. Reinaldo affastou-se, e Paulo puchou do montante, que fulgiu como a espada do anjo da morte. Agarrou-o pelos cabellos, e descarregou tão violento golpe, que a cabeça rolou a tres ou quatro passos de distancia! Tudo eslava concluído. Paulo parecia um espectro.

Tinha as feições contrahidas e os cabellos arripiados. As ultimas palavras de Barnabé ainda lhe soavam lugubremente:

«Nâo morri enforcado.»

Paulo agarrou na cabeça destroncado, ligou-a ao corpo, juntou-lhe uma pedra, e formando balanço, arrojou tudo ao rio.

Um choque violento se ouviu. As aguas agitaram-se, espadanando com violência, e o cadáver desappareceu.

Dez minutos depois, dois homens atravessavam silenciosos as desertas ruas de Coimbra, como se fossem duas sombras.

CAPÍTULO XI

AVISO E PREPARATIVOS

A conquista de Santarém foi um dos maiores feitos da vida gloriosa de Affonso. O génio da guerra, tendo repousado algum tempo, tornou a erguer-se altivo, e abrindo o templo de Jano, eil-o adejando em torno dos balsões triumphantes das hostes dos barões e ricos homens portuguezes.

Affonso, quinze dias depois da tomada de Santarém, voltou para Coimbra, á frente dos seus filhos-d'algos, e mais cavalleiros; não para gosar essa vida molle e ociosa que o luxo das cortes de hoje offerece, mas sim para meditar novas conquistas e mais diíliceis emprezas.

A conquista de Lisboa trazia-o preoccupado; e todas as suas vistas convergiam para tão importante assumpto.

O povo, sempre havido de novidados, festejou com tangeres e folias, mais uma acção heróica do grande monarcha, que tantos padrões de gloria legou á posteridade.

Vasco de Sousa acompanhou o rei, mas seu caracter frio e reservado, não lhe grangeava muitos amigos.

Não era porque estivesse infactuado com as glorias adquiridas, mas sim pela paixão lenta que o finava.

Alice imperava absoluta em seu coração. Para elle não havia outra idéa que mais attenção lhe merecesse.

No centro dos combates, entre o horror das carnagens, o rosto da donzella lhe apparecia meigo e seductor.

E então, o guerreiro tão bravo como a braveza dos elementos, deixava cair o montante no centro dos maiores perigos.

Assim que chegou a Coimbra, e que a etiqueta lh'o permittiu, procurou seu amigo, e nos seus braços desafogou parte dessa paixão que o cruciava.

Os dois guerreiros abraçaram-se com o transporte filho da lealdade, que preside aos actos dos jovens da sua idade.

Ambos soffriam as dores de uma terrível ausência, mas um mais infeliz do que o outro.

Vasco podia, desafogadamente, fallar de Alice a Reinaldo, e por este meio neutralisar o effeito da saudade, que o definhava, mas este, era condemnado a soffrer, em silencio, as torturas de um amor desgraçado. Não se animava a dizer a Vasco de Sousa, que amava D. Elvira de Sousa, sua irmã.

Três dias depois da chegada de Vasco, caminhavam ambos pela estrada de Lorvão.

Vasco apenas se lembrava aonde estava. Seus pensamentos divagavam por Lisboa, aonde a formosa Alice vivia, entregue a eguaes soffrimentos.

Duas cartas lhe escrevera de Lisboa. Nellas revellava esse amor apaixonado, que não admitte termo entre a ventura e o desespero. N'umas vezes melancholica, n'outras arrebatada, era o retrato fiel de um amor delirante.

As suas cartas revelavam esse amor violento que mata se não obtém ventura. Que vive para ser feliz e não para o soffrimento.

Vasco escrevera-lhe outras tantas cartas não menos tristes e amorosas.

Dominado por estas idéas, caminhava ao lado de seu amigo, até que avistaram o mosteiro de Lorvão.

A visita a D. Elvira prolongou-se por mais de duas horas.

Na frente da donzella tornou Vasco a agradecer a D. Reinaldo tanto zelo e dedicação.

Mas estava decretado que o pobre cavalleiro havia deesgotar o cálix da amargura.

D. Elvira declarou a seu irmão, que fizera voto solemne a Deus, de tomar o veu se fosse salva do perigo a que estivera exposta; e que não havia remédio senão cumpril-o.

Ao dizer estas palavras olhou para Reinaldo, que pallido tremia como frágil vergontea.

Uma lagrima de compaixão e amor se deslisou pelas faces da donzella ao ver o abatimento do mancebo.

Ella também amava e não era menos infeliz. Mas o voto era feito e a ignorância dos tempos não admittia uma infracção.

D. Reinaldo suspirou de maneira que faria compungir o coração do próprio Nero no seio de um bachanal. O gemido exhalado pelo mancebo foi como agudo punhal, que se imbebeu no coração da donzella. Mas o voto era feito.

D. Elvira amava, e amava muito, mas acima do seu amor estava o dever religioso.

Vasco comprehendeu que sua irmã amava Reinaldo. Levado pela nobreza de seu caracter, instou para que resignasse um similhante voto, obtendo a absolvição do prelado respectivo.

Mas D. Elvira, subjugada pelos preconceitos religiosos respondeu-lhe com firmeza:

«Sei morrer, mas não faltar a Deus. Trocaria uma côroa pelo veu e o mais soberbo alcaçar pelo claustro.

«Não viverei muito tempo, e lá, (apontou para o Ceu) velarei por ti, meu irmão, e por todas as pessoas que me são charas.»

Olhou ternamente para Reinaldo:

«Que me perdoem, se lhes não pude dar a felicidade a que tinham direito.»

Vasco ouvia-a tristemente. Conhecia o génio de sua irmã, e que mais fácil seria morrer, do que deixar de cumprir um voto.

Reinaldo parecia um cadáver.

De bom grado, tambem, n'aquella occasião, trocaria a cota e a cervilheira pela cogula de um monge.

As lagrimas lhe caiam em torrentes, e pelo tremor convulsivo que supportava, se lhe podia calcular o soffrimento.

«Em breve esquecerei o mundo, proseguiu D. Elvira, e a todas as pessoas peço o mesmo para mim. Esqueçam-me no mundo, para me lembrarem na eternidade, aonde todos nos havemos de reunir.

«Adeus, Vasco. Sei que breve irás tomar parte em novas guerras; quando voltares cuberto com os louros da victoria, a pobre Elvira te abrirá os braços, como esposa do Senhor.»

«D. Cavalleiro, disse ella para Reinaldo, acceitae a minha sincera estima, e que Deus vos faça tão venturoso, quanto o mereceis, pelas vossas virtudes.

Reinaldo, desvairado, apenas pôde articular algumas palavras. Suffocado pelos soluços, ajoelhou ante a donzella, beijou-lhe a mâo commovido, e erguendo-se sahiu do locotorio com a velocidade de uma seta. Ia delirante. Saltou de um pulo para o corsel, e cravando-lhe os acicates nos flancos, só parou em Guimarães.

D. Elvira caiu desmaiada nos braços de seu irmão, que por momentos a julgou morta.

Ninguém morre de affecções moraes, por que se assim fosse, o que seria da pobre humanidade? Foi o que aconteceu á pobre donzella, que recobrou os sentidos.

Despediu-se de seu irmão. Esepultando-se n'um claustro, resignando as aspirações do mundo, e o futuro de um amor, tão casto como virtuoso, fazia maior sacrifício de que sacrificando a vida.

Immulava a ventura dos seus dias e os sonhos de um futuro brilhante. Tudo resignava ! Quanto podem os preconceitos religiosos !

Vasco, não menos impressionado do que Reinaldo, montou a cavallo, seguindo tristemente para Coimbra.

Eram oito horas da noite. As ruas estavam ermas como um deserto, e silenciosas como um sepulchro. O som das ferraduras do cavallo apenas se ouvia, quando algumas pedras eram encontradas por acaso ; mas isto succedia poucas vezes, porque as ruas ainda nao eram calçadas.

Junto à porta achava-se Paulo á sua espera.

Assim que o avistou correu ao seu encontro, dizendo-lhe:

«Senhor, lá em sima espera um homem, que me disse vir de Lisboa, e vos deseja fallar.»

Vasco não quiz ouvir mais. Saltou abaixo do cavallo, e de um pulo estava na sala do andar nobre, aonde um homem de mais de sessenta annos, magro e de rosto venerando o aguardava, passeiando de um para outro lado.

«Jesué! Ainda me trareis d'esta vez novas tâo fagueiras como as ultimas que me destes?»

Assim se expressou Vasco de Sousa, abraçando o homem que o esperava na sala, e que já os leitores sabem ser o nosso virtuoso judeu Jesué.

«É verdade, D. Cavalleiro, que tanto estimaes a vizita de um judeu ?

«Sê franco. Jesué ê para vós indifferente, o que não é nem pôde ser é a pessoa, que aqui o mandou.

«Esta é a verdade, e tão verdade, como as verdades do Decalago, que Jehovah, com seu próprio dedo, escreveu nas tábuas que deu a Moysés no monte Sinai.»

Vasco, se não ficou embaraçado com estas palavras, não teve motivos para se lisongear. No entretanto respondeu com a maior sinceridade:

«Sei que fostes amigo de meu pae, e que até o tratastes de uns ferimentos. Mas confesso-vos francamente, que acima da vossa vizita me interessam as noticias de Lisboa.

«Dizei-me, Alice ainda me ama?»

«Ainda, e loucamente.

«Eis aqui uma carta que a formosa donzella me deu para vos entregar.

«Por ella vereis que vos ama, mas que as cousas se embaraçam e complicam.»

Vasco pegou na carta e leu-a com o maior interesse. Estava concebida nos seguintes termos:

«Luz de meus olhos:

«É escusado repetir que te amo. Tu bem o sabes. Cercada de perigos, son compellida a pedir o auxilio do teu braço. Albucem é um traidor, e meu tio, dominado por elle, nâo tem vontade sua. Querem violentar-me a tomar aquelle miserável por esposo ! Alice morrerá, mas nunca ha-de esquecer o que deve ao seu coração. Jesué, esse unico amigo que conto dentro dos muros desta cidade, te informará dos meus soffrimentos. Vem, meu Vasco ! Salva a honra de Alice, a tua e nossa reciproca ventura.»

Vasco sentiu-se opprimido. Parecia-lhe ver Alice succumbir e receber Albucem como esposo. O despeito e o ciúme sâo dois poderosos elementos, e bem o demonstraram nesta occasiâo.

Vasco não deu uma palavra, seguiu para a porta allucinado.

«Que fazeis?» lhe diz Jesué.

«Montar a cavallo, pôr-me á frente dos meus homens de armas, e voar sobre os muros de Lisboa, para salvar Alice.»

Jesué estremeceu de tanta ousadia. Reconheceu a extensão da imprudência, mas avaliando o soffrimento do mancebo, disse-lhe com solemne ademan :

«Esperae ! Haveis de lá ir como senhor. Não deveis expor-vos a ficar como escravo, quando a cabeça vos não rolle sob o cotello do algoz.

«Sé prudente, já que soes tão guerreiro.»

Vasco voltou. As palavras de Jesué tinham um cunho de tanta grandeza, que ouvil-as era acredital-as.

«Que pretendeis fazer ou dizer-me?»

«Pretendo trabalhar para a ventura de Alice, que amo como filha.

«Albucem é um traidor, mas nunca se animará a violental-a. Tem-lhe amor de mais para lhe abreviar os dias da vida.

«Alice ha-de ser vossa, e vós haveis de fazer o que eu disser.

Vasco, mais socegado, escutou-o com a maior attençâo.

Jesué proseguiu:

«Mancebo, mais do que nunca precisaes coragem, dedicação, e muita prudência.

«Preciso contar-vos uma historia, que liga directamente com alguns factos de hoje.

«Haverá trinta annos que um pobre judeu foi condemnado a levar mil açoutes, porque, sendo medico, não poude salvar o fllho de um rico barão! Nem que a medicina tivesse mais força de que Jehovah!

O desgraçado exturcia-se, pedia misericórdia, mas só encontrava o desprezo entre os grandes, e os apupos da villanagem, que se ria estupidamente.

Já se achava ligado ao poste fatal, quando uma lusida cavalgada passou n'aquella occasiâo.

Um nobre rico homem ia na frente montado em possante ginete ; e compadecido dos lamentos do pobre judeu perguntou aos algozes.

«Soldados, que fez esse homem?»

«É um judeu feiticeiro, que com os seus feitiços matou o filho de um nobre filho-d'algo», lhe responderam elles.

O desgraçado pedio altenção ao poderoso senhor, e contou-lhe a verdade.

«Fu! Que malvado, que assim mandas assassigar um homem, porque não poude destruir o que Deus manda.»

«Desligaio, e dizei a vosso amo, que se se considera offendido. Bento de Sousa está prompto a dar-lhe explicações n'uma estacada com a lança em riste.»

«Bento de Sousa! exclamou Vasco, Bento de Sousa era meu pae ! »

«Justamente ! lhe respondeu Jesue. Era vosso valente pae, e o judeu salvo, era o meu! Herdei-lhe o nome, mas não a sciencia.»

«Oh! lhe diz Vasco, prosegui, que bastante me interessa esss historia.»

«Meu pae foi salvo, e viveu descançado sob a protecção do seu bem feitor.

«Eu já era medico, e vivia em Lisboa, aonde tinha a consideração do Wali.

«Um dia um escravo se me apresentou. Era portador de uma carta de meu pae. em que me dizia, querer dar-me um abraço antes de morrer.

«Voei ao seu lado.

«Com effeito estava muito mal.

«Meu pae contou-me o que vos acabei de dizer. Eu nada sabia, e depois de concluir disse-me:

«Jesué, não odeis ninguém. Faz o bem que poderes a todos e nâo lhes perguntes pelas suas crenças religiosas. Mas se poderes prestar um qualquer serviço, ao poderoso rico homem Bento de Sousa, presta-lh'o embora com risco da tua vida.

«Foi elle que salvou a de teu pae. Cumpre o que to digo, e se o não fizeres sê maldito como os renegados.

«Nâo disse mais nada. Meia hora depois era cadáver.

«Nâo conhecia vosso pae, mas sabia que era valente cavalleiro, e o idolo das donzellas.

«Não voltei para Lisboa.

«Uma noite achava-me em casa, quando senti bater rijamente á porta. Era um escudeiro de vosso pae, que me disse precisar seu amo dos meus soccorros, por se achar gravemente ferido.

«Corri ao seu lado, e não obstante a gravidade das feridas, com a ajuda de Jehovah, salveio.

«Soube dos seus amores com D. Leonor Pereira, a mais formosa donzella, que entrava na corte de D. Thereza.

«Nunca o perdi de vista. Velava por elle como um pae carinhoso por seu filho.

«O acaso me fez saber um trama infernal, urdido por D. Paio de Sarmento, e Asahharat, para vingar a ventura que vosso pae gosava com a esposa querida, thesouro de virtudes e formosura.

«Não soceguei um momento em quanto me não puz ao facto de tudo.

«Ora vosso pae foi nomeado pelo rei, para governar o castello fronteiro de Leiria, concluído havia pouco tempo para obstar ás correrias dos mouros.

«D. Paio é um traidor ao seu Deus, á pátria, ao rei, e aos deveres da cavallaria.

«Escreveu uma carta ao Wali de Lisboa, dizendo-lhe que fosse sobre o castello, por que tudo estava combinado para lhe ser entregue; e que degolando o chefe, vingaria n'elle o assassino de seu irmão, morto pelos christãos nas guerras dos Cruzados.»

Vasco, não se pôde suster, bradou com voz de trovão:

«Traição infame! Vil, mais vil de que um villão! Dai-me essa carta Jesué! Quero apresental-a ao rei, e confundir o traidor ! Pedir-lhe-hei uma estacada, e vingar com seu sangue o sangue de meu pae.»

«Quereis a carta, eil-a. Eis aqui a prova da traiçâo de D. Paio. Guardai-a, e fazei uso d'ella ; mas prestai-me ainda attenção.

Vasco leu a carta com as feições contrahidas, e com um assento de indescriptivel desespero, gritou:

«Oh! vingança! Eu te vingarei, meu pae!»

Jesué proseguio:

«Assim que me constou tão horrível trama, desappareci de Coimbra.

«Corri a Lisboa, e como tinha a confiança do Wali, não me foi difficil entrar no segredo da expedição, que pelo próprio Wali foi dirigida.

«Azaharat, esse mouro desleal, que Thiago matou com as suas próprias mãos, foi quem pela estrada falsa deu entrada aos agarenos, e a guarnição foi toda degolada.

«Vosso pae combateu como um horoe, mas succumbio ao numero, e cahio desmaiado.

«Foi nesta occasião que me derigi a Alahar, e lhe disse :

«Alahar, um dia salvei-te da morte, offereces-te-me honras e riquezas. Tudo recusei, reservando-me para melhor occasião.

«Estás em divida. Paga-me salvando a vida do chefe da guarnição, Bento de Sousa.»

Vasco parecia uma estatua. Apenas se lhe ouvia o peito arquejar com violência.

Mas ao ouvir as ultimas palavras de Jesué, disse-lhe com uma anciedade tal, que talvez a vida lhe estivesse suspensa por um fio:

«E meu pae foi salvo?...»

«Foi e ainda vive!^) Foi a resposta de Jesué.

Vasco levou as mãos á cabeça, como quem duvidava da sua razão.

Cahio de joelhos, abraçando os de Jesué, que o conlemplou paternalmente.

O quadro era surprehendente.

Um joven e altivo filho-d'algo, abraçava de rastos os joelhos de um pobre judeu. Mas é que esse israelita era o salvador de seu pae ; e para as almas nobres fenecem os preconceitos do mundo, ante a sublime virtude da gratidão.

Jesué ergueo o joven cavalleiro da humilhante posição. Mas Vasco nâo se envergonhou.

«Que fazeis mancebo! Esqueceis a nobreza do vosso nascimento?»

«Nâo, lhe respondeu elle. Nunca me recordei tanto d'ella. Nâo vejo em ti o homem. Vejo o salvador de meu pae, e o instrumento de Deus. A virtude é sempre grande, seja qual for a pessoa que a pratica.

«Se o rei me exigisse um semelhante acto para me salvar a vida, eu preferia morrer.

«Vasco ainda não ajoelhou se não em face de Deus, da mulher que ama, e de ti, que salvastes seu pae.

«Oh! agora diz-me aonde se acha meu pae ! Quero voar a seu lado. Sê breve, e não dilates por mais tempo a ventura de o saber.»

Jesué estava maravilhado. E exclamou solemnemente:

«D. Cavalleiro ! Tenho perto de sessenta annos, e confesso, que se todos os christãos fossem como vosso tio, o Sr. Abbade D. João, vosso pae e vós, findaria os meus dias, acceitando a lei do Propheta Cruxificado.

«Mas não. Virtudes como as dos senhores da Cham, não são muito vulgares.»

Jesué fallava desta maneira em relação a Christo, por que fazia parte dessa seita israelita, que acceita Jesus como o primeiro propheta de Israel.

Hoje ainda na Inglaterra e na Allemanha se encontram muitos, que assim pensam a respeito de Jesus.

Josué continuou:

«Alaliar é um mouro tâo fiel á sua palavra, como alguns christãos desleaes aos seus juramentos.

«Ouvio o meu pedido, e depois de reflexionar algum tempo respondeu-me com tanta nobreza, que nunca a poderei olvidar.

«Josué! Ahi tens o prisioneiro. Elle está morto.

«Não, respondi eu. Bento de Sousa vive.

«Então que se cumpra a vontade de Alali ! Quanto Alah faz, bem feito é.

«Nâo sei ser prêjuro, por isso nao me hade elle pedir contas.

«Vosso pae estava gravemente ferido, e pela segunda vez com a ajuda de Jehovah ò salvei da morte.

Mas a minha divida ainda não está salda. Elle precisa da liberdade, e a vida de um captivo é peior que o repouso no sepulchro.

«Vosso pae está prisioneiro nos cárceres de Lisboa, e para o salvar e a Alice é que aqui venho. Mas olhae D. cavalleiro. Não sei ser traidor. Assim o juro pela vara de Arão.

«Sei que os christãos se preparam para ir sobre Lisboa. Não me perguntem esclarecimentos da cidade, por que os não darei.»

Vasco estava maravilhado. Nunca julgou que um judeu fosse possuidor de tantas virtudes. Abraçou Josué pela segunda vez.

«Devo-te a vida de meu pae, e talvez o complemento da minha ventura.

«Oh! Meu pae hade ter soffrido muito. Não o negues. Bem o comprehendo.

Estas palavras foram pronunciadas de uma maneira tão insinuante, que revellavam essa dor de alma, que se conhece, mas que só quem a esperimenta a poderá descrever.

«É verdade. Vosso pae tem soffrido muito, mas um anjo tem velado por elle.

«Alice, com quanto ignore que é vosso pae, tem-lhe aduçado os soffrimentos, desvelando-se por elle como filha estremosa.

«Ella o será. Assim o espero, porque Deus é justo e misericordioso. Ella será sua filha e minha esposa, assim o prometto e juro pela Cruz d'esta espada.»

Jesué proseguiu:

«Nâo vos nego que a vida de vosso pae periga mais de que nunca. E para o salvar, não precisamos só da bravura do leão do deserto.

«Precisamos de mais e muito mais, seguiremos a gíria da raposa. Carecemos do juizo de Salomão, e de um braço como o de Sanção.

«Attendei ao que vos digo. Precipitar é perder tudo. Esta é a verdade.

«Existem duas estradas cubertas que dão saída de Lisboa para a campanha.

Uma está entulhada e não se sabe ao certo aonde vae dar. Mas sei-o eu, devido ao acaso. É por esse trilho que havemos de entrar no castello, e de ahi passar ao alcaçar, roubar Alice a Albucem e salvar vosso pae da masmorra em que se acha.

«Mas, para fazer isto, preciso de um juramento solemne da vossa parte, e sem que o presteis não vos conduzirei até lá.»

Vasco ficou admirado e receiou. Mas olhando para a pliysionomia do judeu, viu-a tão franca e sincera, que respondeu:

«Prometto fazer o que me pedis.»

Jesué ficou satisfeito.

«Haveis de jurar, que ainda que faças parte de um exercito, que cerque Lisboa, não o conduzireis pelo caminho falso que devemos percorrer.

«Assim o pede a minha lealdade, tão positiva para israelitas, como para todos.»

Vasco comprehendeu a nobreza d'aquelle caracter.

«Ficae certo, que ninguém, por minha intervenção, entrará pela estrada cuberta em Lisboa.

«Podeis ensinar-m'a, porque, se os christãos a cercarem, hão-de subir pelas escadas ás muralhas, ou entrar pelas portas.»

«Estou satisfeita. Agora, D. Cavalleiro, é junto ao throno do monarcha que vos liga uma alta missão.

«Pedi o merecido castigo para o traidor á patria e cavalleiro desleal, assim o deveis entender e jurar.»

Principiava a despontar a aurora; os raios crepusculares espargiam seu pallido clarão sobre as ruas da nobre e antiga cidade de Coimbra.

Vasco estava agitado pelas sensações que supportára.

Passeava na sala; e o movimento nervoso que se lhe notava era tão expressivo, quanto differentes as contingências dos últimos annos da sua vida.

Jesué, assentado numa cadeira, com os braços apoiados n'um largo bofete, e a cabeça reclinada entre as mãos, parecia absorvido n'um profundo meditar.

Seriam oito horas da manhã. O sol estava brilhante, a athmosphera serena e clara, como em quasi todos os dias de maio.

Às horas que dissemos, um cavalleiro, montado em bello cavallo foveiro, se apeiou junto á larga escadaria do alcaçar de Coimbra.

Um escudeiro de gesto lanciturno tomou as rédeas do soberbo corsel, passeiando-o á roda do pateo, por se achar cuberto de suor.

N'uma sala do nobre palácio se acha Affonso, rodeado de grande numero de guerreiros.

A conversação é animada, e pelo interesse que todos lhe prestam, parece ser de grande consideração.

E, com effeito, discutiam-se altos negócios do estado. Tratava-se, nada menos, de que levar a effeito a conquista de Lisboa, de ha muito meditada, mas sempre posta de parte pelas grandes difficuldades que se erguiam.

Agora, mais do que nunca, se falla d'este assumpto.

Affonso tem escripto a todos os ricos homens e infançôes, para que reunam o maior numero de homens de armas e peonagem. Por toda a parte se levantam levas de gente que voluntariamente se vêem acostar. E o pendão das Quinas vae mais uma vez supplantar a bandeira do crescente.

Affonso a todos ouve e presta attenção. Attende seus conselhos, e ouvindo de todos, concilia as differentes opiniões com os interesses geraes.

Um pagem de serviço se apresentou, dizendo que o rico homem senhor do solar da Cham, desejava fallar ao rei com a maior urgência.

Affonso mandou-o entrar, e pouco tempo depois Vasco de Sousa beijava-lhe a mão.

«Sê bem vindo, nobre cavalleiro. A vossa presença nunca é de mais, quando se discutem interesses do estado e altos planos de guerra.

«Soes avisado no conselho e activo na execução. Dizei-me, approvaes, que se não reserve para um outro anno a conquista de Lisboa?»

Esta pergunta do monarcha foi um raio de luz, que brilhou nas trevas do desespero, que finava o coração do joven guerreiro.

Foi como o escudo salvador que cobre o golpe fatal. Nada podia vir mais a tempo para elle, que depois de pedir justiça para seu pae, tencionava propor ao rei marchar sobre Lisboa.

Viu nesta pergunta um feliz persagio ; e uma esperança fagueira transpareceu no horizonte do futuro.

A resposta de Vasco foi como os leitores já comprehenderam.

O rei, que sempre o attendia, disse para os demais guerreiros:

«Nobres ricos homens e infanções, eis mais um cavalleiro que apoia a minha opinião. O seu voto é de grande peso, não obstante ser donzel.

«Tem-nos dado demasiadas provas da sua resolução no perigo e prudência no conselho. Attendel-o é um dever.

«Ainda mais uma vez: Sê bem vindo.»

«Na corte do grande Affonso nunca a intriga e a inveja tiveram grande acolhimento ; era uma corte de guerreiros rudes, mas sinceros, valentes sem crueldade e religiosos sem hypochrisia.

Aonde se alvergam estas virtudes, não entram aquelles defeitos. E comquanto sujeitos aos preconceitos da épocha, devemos desculpal-os, porque o mais sábio apenas arranhava um péssimo latim, e um portuguez tão bárbaro, quanto ainda hoje o mostram os authographos d'aquelle tempo.

Vasco pediu uma audiência particular ao monarcha, que lh'a concedeu, passando á sala immediata.

Vasco estava pallido e com as feições demudadas. Tinha soffrido muito em pouco tempo.

«Senhor, haverá alguns mezes que vos pedi justiça. Hoje venho reclamal-a. Não só para mim, mas também para meu pae, que do fundo de uma masmorra pede vingança.»

Affonso ficou surpreso.

«Hoje, como hontem, vos respondo:

«Justiça vos será feita. Espiicae-vos, cavalleiro.»

Vasco respondeu com o fogo do desespero :

«Senhor! D. Paio de Sarmento é um traidor a Deus, á pátria, ao rei, e á ordem da cavallaria. É um villão indigno de calçar esporas de ouro.»

Affonso já não se achava surpreso. Estava perplexo. Sabia que Vasco odeiava D. Paio, mas nunca o julgou capaz de uma traição tão feia.

«Cavalleiro, se prudente. Aventaes accusaçôes sobre D. Paio, que, se as justificaes, uma corda de canave, presa nas ameias da torre alvarran, será o premio do traidor. Explicae-vos com a mais severa imparcialidade.

As palavras de Affonso foram comprehendidas por Vasco, que as acceitou no devido valor.

«Para me explicar é que eu vim á presença do rei.

«Sabereis, senhor, que meu pae ainda vive. Está captivo, ha doze annos, nos cárceres de Lisboa.»

«Estaes louco, mancebo. É a paixão que vos allucina, ou a raiva que vos tresvaria?»

«Estou no perfeito uso da minha rasao.

«A mão traidora que dirigiu o golpe, nunca se lembrou, que junto da victima haveria um amigo, que o salvasse de uma morte certa.

«Foi o que aconteceu a meu pae. Repito, senhor, está captivo ha doze annos em Lisboa.»

Em seguida informou o rei de tudo, concluindo por lhe mostrar a carta de D. Paio, dirigida ao Wali de Lisboa.

Affonso leu-a sem se lhe notar a menor contracção. Ficou tão senhor de si como se nada houvesse de extraordinário.

«Não me resta a menor duvida. D. Paio é um traidor, um covarde, sem alma nem fé.

«Um villão não se animaria a atraiçoar seu Deus, a pátria, e o rei.

«Conheço bem a sua cifra particular.

«Dizei-me, cavalleiro, não foi uma vingança de amor que o levou a praticar esla infâmia ? D. Paio não requestou vossa mãe, antes de ter desposado vosso pae?

«Ai d'elle, que assim annullou uma das melhores lanças de Portugal ! Sacrificar mais do duzentos valentes, que tanto sangue verteram pela pátria !

Oh ! o monarcha que não chora a morte dos seus vassallos, não é digno de o ser.

Uma lagrima borbulhou nas faces do rei soldado. Mas tudo passou, como se fora uma visão, e a ira apoderou-se do guarreiro, que lamenta seus camaradas, victimas de uma traição infame.

«A tua vida é pouca pnra expiar tão grande crime. Tantos bravos, degolados pela traição de um filho-d"algo portuguez ! Vergonha, maldição para o traidor.

«Quem me dera que todos ignorassem uma tão indigna covardia, para que a posteridade o não sonhasse !

«Serão vingados.

«D. Paio, no praso de oito dias. receberá, n'uma forca, o premio da sua deslealdade.»

Vasco estava firme e silencioso, mas ao ouvir as ultimas palavras do rei caiu-lhe aos pés.

«Perdão, senhor. Castigue-se o traidor, mas não se manche o cavalleiro com um supplicio infamante.

«Oh! Não, grande monarcha. Poupae-o á forca. Appellarei para um combate singular.

«Uma estacada, senhor, e Deus ajudará a boa causa.

«Lançarei um repto de honra a D. Paio, e na arena, com armas eguaes, que se defenda ou morra.

Affonso tinha um grande coração.

«Soes um cavalleiro, que fazeis honra a Portugal. E quando é que os Sousas do Riba Bestança foram covardes ou desleaes? Nunca.

«Faço-vos a vontade. É justo o vosso pedido.

«Ficará entre nós um segredo, que rouba uma família á vergonha, e à cavallaria um desdouro.

«D. Paio será chamado á corte; na minha e vossa presença será accusado do seu crime e convidado a acceitar um repto de morte.

«Terá a escolher, de um lado a corda e a vergonha, de um outro a arena, aonde morrerá como não merece.

«Estaes de accordo, Vasco de Sousa?»

Vasco respirou, ficara satisfeito.

Para elle não havia vingança por conta de outrem, e por isso se conformou com os desejos do monarcha.

Oito dias depois, um cavalleiro de physionomia repugnante e gesto mais orgulhoso de que nobre, se apeava junto ao palácio real.

N'uma sala de grandes dimensões se achava Affonso, rodeado de um luzido cortejo de guerreiros.

O cavalleiro, precedido de alguns pagens e escudeiros, entrou na sala de armas.

Seu gesto já não era altivo nem arrogante. Era mais de que submisso!

Affonso olhou-o com gesto irado. Mandou sair os pagens e escudeiros.

«D. Paio de Sarmento, lhe disse elle, depois dos pagens sairem, soes um cavalleiro traidor e mais indigno de que um villão.

«Não mereceis calçar essas esporas, e só bem vos assentaria as vestes do saião.»

D. Paio ia para fallar, mas Affonso não lhe deu tempo.

«Calae-vos, que para vós não ha justificação. As provas estão aqui.»

Mostrou-lhe a carta, que escrevera ao Wali de Lisboa, convidando-o a ir sobre o castello de Leiria.

«Lê, traidor, proseguiu Aííonso, lê, mas poupae estes cávalleiros á vergonha de vos terem por igual.»

D. Paio ficou fulminado, e os guerreiros, que ignoravam o fundo do negocio, ficaram pasmados.

Affonso, tão grande como leal, continuou:

«Quero, todavia, poupar-vos ao castigo que mereceis.

«Tens uma estacada para morreres como cavalleiro e não como qualquer villão traidor.

«Ha pouco, tentaste roubar do convento de Lorvão a joven D. Elvira de Sousa. Entre vós e Vasco existe um repto de morte, e o juizo de Deus resolverá no campo, de que lado está a justiça.

«Sabei mais, que Bento de Sousa ainda vive prisioneiro nos cárceres de Lisboa.»

Estas palavras foram como um raio. D. Paio ficou fulminado, os guerreiros recuaram de admiração.

Affonso, sempre magestoso, prosegiu:

«Com a ajuda de Deus lá iremos salval-o, e hastear nosso pendão sobre as ameias de tão soberbo castello.

«Vasco de Sousa, mandae desafiar solemneniente D. Paio, e Mem Ramires que o siga e acompanhe até ás portas da estacada.»

Levantou-se com ademan de tanta nobreza, que os Césares, com toda a sua gloria, nunca tiveram uma occasião de se mostrarem tão grandes.

D. Paio, cabisbaixo e cheio de terror não se animava a erguer os olhos. Seguiu Mem Ramires, que por ordem do rei era, por assim dizer, o seu carcereiro.

Seis dias tinham decorrido depois desta solemne audiencia.

Uma vasta estacada se achava concluída, e a ordem do dia, a que se ligavam todas as conversas, era o duello de morte que devia ter logar.

Soou a hora fatal.

Para espectadores da liça eram admittidos os cavalleiros, ricos homens, infanções, e depois a burguezia.

D. Paio, acompanhado pelos padrinhos, montava em bello ginete lasão ricamente ajaesado.

As armas que vestia eram tão negras como a escuridão de sua alma desleal.

Um pagem lhe trazia a lança, e um outro o escudo. Trazia a viseira calada, para encubrir a pallidez do rosto, mas em todos os movimentos revellava tão grande timidez, que bem claro era não ter a consciência desembaraçada.

Vasco vestia armas brancas. Seu cavallo era da mesma cór.

As plumas do capacete ondolavam açoutadas pelo vento.

Trazia a viseira levantada, e o rosto tão sereno, como as manhãs de primavera.

Em todos os movimentos demonstrava confiança e desembaraço; uma geral sympathia se manifestou nos differentes espectadores. Todos finalmente desejavam que triumphasse pela justiça que lhe reconheciam.

Dois pagens lhe conduziam a lança e escudo.

Os juizes occuparam seus logares, a anciedade não podia ser maior. Todos aguardavam silenciosos o principio, para chegarem á conclusão.

Era nos fins de maio. A tarde não estava calmosa ; o ceo coberto de nuvens, infundia certa lugubridade, sobre uma scena que nada tinha de alegre.

Dois homens iam combater. Mas um d'elles devia morrer. Qual seria?

É o que a todos preocupava, não obstante dizer-lhes o interior que Vasco levaria a victoria.

O rei seguido de alguns ricos homens e cavalleiros, tomou assento na tribuna reservada.

Os juizes mandaram proclamar pelos arautos, que Vasco de Sousa arremeçára a luva a D. Paio de Sarmento, convidando-o a um repto de honra; e que o juizo de Deus ia manifestar-se por meio de um combate singular; que não terminaria sem um dos contendores deixar de existir.

O arauto declarou mais, que os contendores iam de livre vontade, e que tinham satisfeito aos preceitos da religião, confessando-se e commungando.

Estas explicações eram fúnebres de mais, para se julgar divertido o espectáculo que ia principiar.

Ao signal dado pelos juizes, as trombetas e charamellas tocaram.

D. Paio tremeu. Mau grado d'elle. Os sons vividos dos instrumentos soavam-lhe aos ouvidos, como se fora a trombeta do anjo, que n"esse dia fatal deve marcar o limite de toda a humanidade, devendo o mundo voltar ao cahos, de que por Deus foi levantado.

Tremeu ainda D. Paio ao receber dos pagens a lança e o escudo. Olhou para o Ceo, e vio-o nublado. Parecia-lhe que a cólera divina se manifestava na serração da athmosphera.

Todo elle tremia. Era a consciência do crime ; n'aquella hora suprema pareceu-lhe ouvir os gemidos dos guerreiros, covardemente degolados por causa da sua traição.

Nâo teve tempo para reflexionar mais. O ultimo signal soou, e Vasco tomou posição.

D. Paio escolheu-a como pôde, em quanto que seu adversário corria de lança em riste.

D. Paio para ganhar terreno obrigou o cavallo a recuar. Cravou-lhe os acicates nos flancos, e partio como uma seta.

Não se ouvia uma respiração, nem o menor movimento entre todos os espectadores!

As lanças encontraram-se. Voaram em pedaços, D. Paio foi d'esta vez mais feliz. Não perdeu a sela. Cobrou alento e alguma esperança.

Arrancou da espada com tanto afan, que Vasco recuou para escapar a um talho, que se não fosse de todo fatal, ser-lhe-hia bastante perigoso.

Todos estremeceram por Vasco, que rangendo os dentes de raiva, atirou um golpe a D. Paio, que aparando-lh'o no escudo ficou aberto de alto a baixo. Não lhe deu tempo para a retribuição; uma outra vez o montante refulgio e assentou sobre o elmo, com tanto estrondo, que parecia o peso do malho, assente n'uma bigorna.

D- Paio vacilou, e para não cair atordoado abraçou-se ao pescoço do cavallo.

Vasco abateu a espada. Não quiz abusar da vantagem.

Não se podia ser mais leal!

D. Paio ergueu-se, e passou o cavallo de mão com tanta destreza e acerto, que foi cair sobre Vasco, deitando-lhe abaixo uma peça da armadura. Mas uma estocada applicada a tempo, poz termo ao combate.

D. Paio oscilou e cahio para traz. O sangue saia em borbotões por uma larga ferida aberta no coração.

Estava o juizo de Deus concluído. Vasco vingado, e salva a bonra da cavalleria, porque todos viram neste duello uma questão de família.

Os juizes annuunciaram o vencedor, e Affonso levantando-se, disse para os guerreiros que o cercavam :

«Justiça está feita. Deus é justo.

«Agora nobres cavalleiros, uma armada de cruzados cbegou ás costas de Portugal; de bom grado desembarcam, a fim de nos ajudarem a conquistar Lisboa.

«Eia por S. Thiago, que d'esta vez, com ajuda do nosso Santo Patrono, havemos de ouvir missa na mesquita maior depois de purificada.

«Em oito dias senhores, estaremos na rota de Lisboa.»

Affonso nunca disse uma cousa, que a não cumprisse, e nunca levou á execução um plano senão depois de bem meditado. No capitulo seguinte veremos como elle cumprio a sua palavra.

A arena já estava quasí deserta, quando Affonso sahio, mas no centro ficava D. Paio estendido.

O terreno estava alagado de sangue, e os corvos convidados pelo cheiro da carniça, esvoaçavam em torno do cadáver, como ha doze annos succedera no castello de Leiria, quando a guarnição foi degolada por sua causa.

Seriam dez boras da noite, um bomem frio e silencioso como um fantasma, entrou na arena, precedido de mais dois que pareciam espectros.

Agitou um arcbote, e curvando-se sobre o cadáver, examinou-o attentamente.

«Não ha duvida, disse elle, está bem morto.

«Tem os membros inteiriçados, e está frio como um gelo. Vamos, é pegar n'elle rapazes.»

Os dois homens agarraram no corpo, conduziram-no para umas andas. Mas nesta occasião, uma das aves carnívoras, levantou tamanho grito, que os dois peões pararam horrorisados.

Quem eram estes homens? Eram Paulo, e mais dois servos, que por ordem de seu amo, conduziam para uma igreja os restos de D. Paio, aonde toda a noite se lhe fizeram suffragios.

No dia seguinte ás dez horas da manhã um préstito fúnebre atravessava as ruas de Coimbra. Os sinos da cathedral dobravam, annunciando que mais um christâo deixara de existir.

De quem era o saimento, e por quem dobravam os sinos? Por D. Paio de Sarmento, a quem Vasco de Sousa mandou dar sepultura honrada, por saber, que seus parentes e herdeiros o não fariam.

O ressentimento limitou com a morte de seu inimigo. É assim que praticam as almas grandes.

CAPÍTULO XII

FUGA E CONQUISTA

Os acontecimentos seguiam rápidos. Em Lisboa tudo era terror e confusão. A noticia de que o exercito, christâo marchava sobre a cidade, tornou irresolutos os mais valentes, e inutilisou os de maior timidez.

O próprio Albucem duvidava do triumpho, nâo obstante a sua intrepidez. Elle não se illudia. Reconhecia que todas as forcas dos diferentes Walis, nâo eram sufficientes para neutralisarem o poder dos christâos.

Affonso á frente de um lusido exercilo, marcava com a espada na mâo o futuro das gentes agarenas nas terras de Portugal.

E quem havia áquem dos rios Minho e Guadiana, que lhe pudesse disputar a victoria ?

Que poderiam fazer os tímidos escravos dos Walis mais poderosos, contra as hostes portuguezas commandadas pelo primeiro soldado da epocha ?

Eis o que Albucem previa, e por isso triste e carrancudo passeava pelos muros da cidade, recordando, quanto incerto e nubeloso era o seu futuro.

Infeliz no amor e na guerra, tudo se lhe apresentava sombrio e carregado.

Os dias para Alice corriam por differente modo. Para ella não havia o terror, mas sim a esperança. A aproximação dos christãos longe de lhe inspirar receios, só lhe dava alento e confiança no futuro.

Era o dia trinta e um de Maio de 1147. O sol estava ardente, não obstante ter chovido muito no dia anterior.

Os almogavares, recolheram ás horas do costume, sem encontrarem novidade. No entretanto a bella cidade de Lisboa parecia um vasto acampamento.

Numerosos soldados africanos povoavam as ruas, pois como é sabido o rei de Fez e imperador de Marrocos prestaram auxilio a Alahar, afim de combater vantajosamente o inimigo commum.

Bento de Sousa inserrado no cárcere estava desanimado. Tres dias tinham decorrido sem Alice lhe apparecer. Joaquim, o escravo christão, apenas lhe levara uma vez o parco alimento. Vergando sob estes tristes presentimentos, sentio abrir a porta.

Era Alice, que entrava para salvar do desespero o pobre captivo, como os anjos descem do Ceo ao purgatório, para arrancarem as almas aos tormentos da expiação.

A donzella olhou para o ancião com tanta ternura, que uma filha carinhosa, não a poderia exceder. Alice foi a primeira a fallar.

«D. cavalleiro, estaes doente? Não gosto de vos vêr tão abatido. Olhae que os vossos soffrimentos pertencem-me. E já que não posso seguir-vos na ventura, quero compartir os infortúnios.»

Alice disse estas palavras com tão meiga expressão, que o guerreiro chorou de gratidão.

«Soes um anjo, formosa donzella. Quanto sinto ser um pobre captivo. Se estivera no meu velho solar, no seio da fortuna e da minha familia, então poderia demonstrar-vos quanta gratidão se ai verga n'este velho e opprimido coração.

«Quando vos vejo e ouço, minha filha, desculpa a expressão paternal, recordo meus filhos que tanto amei.

Devo ter uma filha da vossa idade. Quanto ao meu querido Vasco!...

O guerreiro julgou ter dito de mais. Josué tinha-lhe pedido para não dizer o seu nome, até occasião opportuna.

Callou-se e baixou tristemente a cabeça.

Alice sentio-se assaltada de um movimento convulso, foi como se lhe applicassem uma descarga eléctrica.

Uma côr rubora lhe tingio as faces, e o nome de Vasco passados momentos ainda lhe resoava nos ouvidos.

Vasco, disse ella com voz abafada, cravando os olhos no ancião, como se lhe quizesse ler na alma, o que ficara por dizer.

«Vasco dizeis vós, se chama vosso filho, e a que família pertenceis? Per duas ou tres vezes vol-o tenho perguntado, mas não vos mereço confiança.»

Bento de Sousa ergueu os olhos para a donzella.

«Nâo vos posso dizer meu nome, Jesue m'o prohibio, e bem sabeis que é nosso sincero amigo. Sinto ter para comvosco esta reserva. Se vos julgais offendida, então declaro tudo.

«Repito-vos, tenho um filho, que já deve ser um brioso guerreiro, e se elle vos agradace, moura, judia, ou christã, para mim nunca haveria se não Alice, para me merecer o nome de filha.»

Alice ficou extasiada. Nem mesmo poderia explicar o que sentia, quando Bento de Sousa acabou de fallar.

Parêcia-lhe ver ante si um novo mundo, aonde tudo lhe sorria.

Pareceu-lhe que conquistava uma nova existência, e que ao lado de Vasco era alvo de todas as attençôes, e do respeito das mais nobres donas portuguezas.

Alice desceu das illusôes á realidade. Vio que o pobre ancião a seguia admirado, e para o socegar, disse-lhe :

«Até amanhã meu amigo. Alice nâo faltará.»

Albucem havia mais de três semanas que a nâo importunava, umas vezes com ameaças, outras com protestos fastidiosos.

Os últimos acontecimentos abriram as hostilidades, e com quanto Alice fosse animosa, era mulher, e nutria receios, tanto por si, como pelo guerreiro, que tanto estimava.

Albucem pela sua parte meditava a maneira de a possuir, ou obstar a que Vasco a desposasse. A sua resolução eslava tomada. Se os christãos se aproximassem, e a cidade succumbisse, obrigaria Alice a seguil-o; e quando nâo quizesse, cravar-lhe um punhal no coração e fazer outro tanto a si.

Alice estava só n'uma espécie de gabinete, aonde se intretinha a ler ou a tocar. Um escravo se apresentou, dizendo, que um derviche vindo do campo lhe desejava fallar, e que se sua Honra lhe concedia uma audiência.

Alice não era medrosa, mas receiou mandar entrar um homem a taes deshoras.

O escravo era de confiança. Alli, lhe diz ella, manda-o entrar, mas não te retires para longe.

O escravo curvou-se e sahio. Pouco tempo depois entrou um homem trajando de uma maneira estravagante. Olhou para todos os lados, para se afirmar se estava só; como não visse ninguém, deitou para trás o capuz, e um rosto venerando se apresentou aos olhos da donzella.

Alice ia para dar um grito de surpreza, mas lembrou-se da recommendação que fizera ao escravo.

«Jesué! disse ella.»

«Silencio, que as paredes teem ouvidos. Não tenho medo de morrer, mas sim de comprometter a vossa felicidade. Ouvi e attendei, porque os momentos são poucos e muito o que tenho a dizer.»

Alice tinha a intelligencia necessária para comprehender a força d'estas palavras.

Jesué proseguio:

«O exercito christão chegou hoje a Santarém. Marcha sobre Lisboa. Não nego, que findou o poder de vosso tio.

Affonso, commanda um lusido corpo de tropas. Os cavalleiros cruzados acompanham-no por terra, em quanto que por mar bloqueam a cidade.

Vasco á frente dos seus homens de armas, forma a vanguarda do exercito. O joven guerreiro, ama-vos como louco. Ouereis ser sua esposa ?«

«Ser sua esposa? Bem sabes que não desejo outra cousa. Haverá porventura maior felicidade para mim? Não ! Nunca poderá haver !

Jesué pareceu satisfeito.

«Tomae conta no que vos digo:

«Em vinte e quatro horas estão os christãos ás portas de Lisboa. A sua entrada é innevitavel; mas emquanto isto não acontecer estaes sujeita aos caprichos de Albucem, capaz de vos matar para que não pertenceis a outro.»

«É preciso fugir de Lisboa e mais Bento de Sousa.

«Bento de Sousa?» Disse Alice admirada.

«Sim, Bento de Sousa, pae de Vasco, é o velho guerreiro, por quem tanto vos interessaes.»

Alice recuou.

«Por Alah! Só elle é grande! Não zombaes de mim? Oh ! E elle, que ainda hoje me disse ter um filho, que desejava ver meu esposo! Alah é grande, e o que elle faz bem feito é. Vamos, Jesué, conclue. Estou anciosa por me ver nos seus braços.»

Jesué deixou-a fallar.

«Vamos, nobre donzella, não me posso demorar. Ouvi: ha uma estrada falsa que vae dar á campanha, partindo d'este alcaçar. Logo que os christãos cheguem, e que o cerco esteja completo, vos avisaremos com antecedência, para tudo estar provenido. Podeis ir dispondo Bento de Sousa, pois seria grande embaraço ter algum desvario promovido por tão inesperada ventura. Estaes resolvida?

«É ociosa a pergunta. A minha resolução de hoje é a de hontem e será a de amanhã. Mas aonde está essa estrada e aonde vae dar?»

«Esperae, e segui-me á sala das armas. Aqui ha um corredor particular. Não vos admire saber tanto d'este palácio. Tenho a sua descripção, e foi construído por meu avô.»

Carregou no primeiro botão de um relevo, e o quadro, que parecia mettido na parede, abriu-se, apresentando um corredor secreto.

Alice foi até á sala de armas, aonde Jesué levantou um panno de raz. Fez girar duas pequenas molas, e apontou-lhe para a escada que ficava em frente.

«É por aqui que se vae para a estrada falsa, e para alguns subterrâneos de construcçâo tão antiga, que o próprio meu avô ignorova a sua origem, assim como todos a sua existência.»

Alice era dotada de grande coração ; sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias, quando olhou para o escuro caminho, que breve devia percorrer. Mas acima de tudo estava o seu amor e a esperança no futuro!

Jesuó acompanhou-a; e depois de mais algumas reccommendasões, saiu, seguido pelo escravo.

Em quanto se passavam estas cousas, Affonso, á frente do exercito, marchava sobre Lisboa.

Em quatro corpos se dividia o exercito.

O centro era commandado pelo alferes mór, a costaneira direita pelo chefe dos cruzados, e a esquerda pelo valente Mem Moniz, que mais tarde foi victima da sua bravura e dedicação; Affonso commandava todo o exercito, â frente dos seus cavalleiros, cobertos todos de ferro, desde os bicos dos pés até á cabeça.

Nos valles e nos campos resoavam os clarins, e trombetas, com tanto effeito, que bastavam para amedrontar os agarenos.

Os povos corriam a ver o lusido exercito, em quanto que os guerreiros marchavam ufanos, por levarem na frente o grande Affonso.

Vasco caminhava impaciente á frente dos homens de armas.

Seu nobre balsâo lá se via fluctuar atravez das cores variegadas dos differenles estandartes.

Depois da partida de Jesué os dias lhe pareciam annos ; e a marcha lenta do exercito era peior que o suplicio de Tântalo.

O exercito levantou campo proseguindo na direcção do Lisboa. Estavam a três léguas de Sacavém. Os esculcas avançaram, em quanto que um troço de almogavares batia o campo.

Em Lisboa a confusão passara a desalento. Os muphtis e derviches estavam desde pela manha até á noite mettidos nas mesquitas, dirigindo orações ao propbeta, para que os christãos retirassem.

Mas o prepheta fazendo ouvidos de mercador quebrado, não obstante nunca ter fallido, quando o foi em sua vida, deixava-os avançar. Albucem e Alahar tinham cobrado animo, e uma séria resistência estava preparada. Os muros da cidade e do castello viam-se coroados por machinas de guerra de todos os tamanhos e feitios. Os armazéns de viveres estavam abastecidos, as cisternas guardadas para que a agua não fosse mal applicada.

Albucem era infatigável, tudo prevenia, para que a cidade se conservasse nas melhores condições defensáveis.

No dia três de junho, os soldados ligeiros, que sairam da cidade á descoberta, voltaram pouco tempo depois, correndo a todo o galope. Os vigias deram parte ; e depois de entrarem pelas portas de Alfofa, deram parte de que o exercito christão estava a pouco mais de duas léguas da cidade.

Albucem ouvi-os; e com o maior socego ordenou, para que todas as tropas formassem, afim de marchar aos seus postos.

Em breve os muros foram povoados por uma multidão de soldados, mais bisonhos que experientes, e mais timidos de que valentes.

Alahar reunira grande conselho, e com quanto alguns covardes fossem de opinião, de que se deveria entregar a cidade sem resistência, elle se oppoz dizendo, que quem tivesse medo sahisse por que ainda era tempo.

Às quatro horas da tarde, os vigias das torres e miradouros participaram que os christãos estavam á vista. E em verdade o exercito portuguez marchava lentamente com as bandeiras desfraldadas, ao som dos tambores e mais instrumentos de guerra.

Á distancia de dois ou três tiros de besta fez alto. Os corpos desfilaram, occupando os postos que no cerco lhes estava destinados.

Nos muros da cidade reinava silencio de morte. A anciedade era geral, e todos os peitos ora se dilatavam, ora Se cumprimiam.

Tinha soado a hora fatal; Affonso á frente dos seus guerreiros ia adquirir mais uma coroa do gloria.

Não temos por fim descrever as peripécias e differentes phases deste memorável cerco. Na historia de Portugal, do distincto escriptor, o sr. Alexandre Herculano, se acha uma bella descripção do cerco de Lisboa. Nâo nos propuzemos a escrever a historia do reinado de D. Affonso I, mas sim a escrever um romance.

Alice constou-lhe a chegada do exercito christao. Estremeceu, e aguardou anhellante o desenlace, e por Jesué, para ter a ventura de se ver nos braços de Vasco.

Eram onze horas da noite. Os brados de alerta das sentinellas no campo christao ouviam-se na cidade.

Os sons perdiam-se através do ciciar dos vastos arvoredos, que povoavam o arrabalde, aonde hoje assenta o Bairro Alto. Os mouxos seguiam, ou fazaim a segunda parte aos brados desharmoniosos, que se destacavam do campo e dos muros da cidade.

Dois guerreiros, embuçados em albornoz, passeiavam na praça do casíello, hoje de S. Jorge. Seu gesto é meditabundo.

«Nâo ha remédio, senhor. Se a cidade tiver que succumbir, resta-nos ainda um recurso. Mande-se embaixada a Vasco de Sousa para que faça levantar o cerco, e quando não possa ou não queira, temos o pae em nosso poder, e a vingança ao nosso alcance.»

«Um punhal fará o resto.»

É Albucem que falla, e Alahar que o escuta.

Assim conversando, tomaram para a cidade, desapparecendo n'um dos ângulos da praça.

Albucem meditara um plano digno, não da cabeça de um guerreiro, mas sim de um salteador.

A tanto o tresvario das paixões conduz o homem!

Se a cidade tivesse que succumbir, Albucem tenciova mandar dizer a Vasco, que se não fizesse levantar o cerco, seu pae seria apunhalado. Mas o homem propõe, e Deus dispõe.

Um vulto se ergueu entre as machinas de guerra, que desarmadas se viam em monte. Este homem seguiu silencioso, mas quem o analysasse, veria que levava os cabellos arripiados e as feições demudadas.

Quem era ? Era Joaquim, escravo christao, que por acaso soube as intenções de Albucem.

Em quanto se passava tudo isto, Alice, a quem Jesué ensinára um caminho mais breve para a prisão de Bento de Sousa, caminhava, só, pelos corredores subterrâneos, levando por simples companhia uma lanterna.

Bento de Sousa, á fraca luz de uma alampada, lia n'um livro de orações, unico objecto que conservava da sua antiga existência.

Alice levava no rosto os signaes característicos de uma esperança fagueira e de um futuro abençoado.

«Que Deus vos abençoe, nobre donzella.

«Quero dizer-vos que sonhei a noite passada com guerras, grandes batalhas, e muito sangue.

«Eu, pobre velho, privado da liberdade.

«Ha dias que me disseste que os christãos marchavam sobre Lisboa. Será verdade?»

Alice nâo quiz retardar uma boa nova.

«Tanto é verdade, que estão á vista dos muros da cidade. D. Cavalleiro, tendes-me fallado de um filho; se, por acaso elle fizesse parte do exercito sitiador, que diríeis?»

Bento de Sousa interrogou Alice com gesto tão admirado, que a donzella receiou algum d´'esses accessos de loucura, que tanto o affligiram nos primeiros annos do seu captiveiro.

Os olhos do ancião fulgiram, como o raio em noite de tempestade. Aquellas faces cavadas, tomaram, momentaneamente, o viço da mocidade, e um movimento febril se lhe notou. Era um raio de esperança entre as trevas do desespero.

Alice receiou ter dito muito. Mas já não havia remédio. O que estava dito, dito estava.

«Meu filho, dizeis vós? Meu filho deve ser um guerreiro. Está na idade de o ser. Mas dizei-me, nobre donzella, sabeis alguma cousa...

O ancião proseguiu:

«Mas não, nâo é possível. Ella não sabe nada e...»

Alico calculou que, ou dizer tudo ou nada. A sorte estava jogada. Tomou animo e proseguio.

«Pois, nobre ancião, sei o nome da vossa família e o de vosso íillio, um dos guerreiros mais illustres de Affonso:

«Soes Bento de Sousa; e vosso filho Vasco de Sousa está junto aos muros de Lisboa.»

Bento de Sousa levou as mãos á cabeça; olhou para a donzella com gesto tão desvairado, que a fez estremecer.

«Senhor! Compadecei-vos de mim. Não disse mais nada.

Caiu fulminado. E a não encontrar a cama aonde dormia, teria abrido a cabeça. Alice ficou aterrada.

Ficou mais pallida de que a morte!

«Oh ! por Alah ! Fui imprudente.»

Reassumiu toda a energia do seu caracter, e approximou-se do ancião, que, com os olhos serrados, parecia dormir o somno eterno dos mortos.

Levou-lhe a mão ao coração, e viu, com alegria, que batia com violência. Estava vivo. Applicou-lhe um espirito ao nariz, e depois de o borrifar com agua, Bento de Sousa voltava a si, mas louco de todo.

Não conheceu Alice. Olhou para ella e deu uma estrepitosa gargalhada, que reboou na lúgubre mansão.

Fallou de seu filho e de sua esposa, principiando a perguntar aonde estava Alice, seu anjo protector. A donzella tremeu; e depois de innuteis esforços, para o convencer e fazer voltar á rasão, teve que se retirar, maldizendo a sua imprudência.

No dia seguinte, ás dez horas da manhã, Joaquim, escravo christão, pediu para fatiar a Alice, que o mandou entrar.

«Nobre donzella, lhe diz elle, a cabeça do infeliz captivo está posta a preço, pelo génio da traição.

«Albucem tenciona mandar dizer ao filho do infeliz, um dos maiores guerreiros do exercito christão, que se o cerco não for levantado, o coração de seu pae será trespassado pelo punhal homicida.»

Alice estorceu as mãos desesperada. Tudo se conspirava contra ella.

«Oh! Todos contra uma pobre mulher ! Que mais haverá para me tritorar a vida? Mas não desanimarei. Aqui o juro.

«Retira-te. Se descubrir um meio de salvação, eu te mandarei chamar.»

O escravo retirou-se, e Alice chorou todo o resto do dia.

O cerco proseguia activamente. De parte a parte havia bravura e dedicação.

As machinas de guerra rangiam desde pela manhã até á noite, e nuvens de pedras e virotes eram arremessadas, cruzando-se no ar.

Três assaltos se tinham dado, sem se obter vantagem.

No entretanto, na cidade, a consternação era geral; e desde Albucem até ao ultimo peão, ninguém havia, que não prevesse o fatal desenlace d'este drama sangrento.

No acampamento christão recrudescia a sanha pela resistência, e a actividade era admirável.

Jesué tinha dado conta a Vasco do que havia combinado com Alice, e a impaciência do guerreiro degenerava em desespero.

Quatro mezes tinham decorrido, depois do começo de um cerco, tão memorável entre gente portugueza.

N'uma tenda de campanha estava um guerreiro de nobre ademan.

É um joven que apenas terá vinte ou vinte e dois annos. Junto á porta, um escudeiro, de physionomia severa, parece aguardar as suas ordens.

Quem é este joven? É Vasco de Sousa, que recebeu ordem do monarcha, para fazer grandes correrias pelos arrabaldes de Lisboa.

O cavalleiro parecia entregue á meditação, quando um homem, trajando á maneira dos israelitas, entrou na tenda.

Vasco não deu por elle. Tal era a abstracção das suas idéas.

«Nobre cavalleiro, lhe diz o israelita, accordae d'esse lethargo. Temos a combinar negocio muito serio.»

Vasco deu um pulo no escabello, como se lhe applicassem um ferro em braza.

«Jesué! Que temos? Estou sempre ás tuas ordens.»

«Sempre nâo; basta que seja quando se tratar dos vossos amores.»

Jesué puchou de um escabello e sentou-se.

«Sr. Vasco de Sousa, amanha, em sendo meia noite, devemos estar além do acampamento. Está desabstruida a estrada falsa. Hoje tenho que prevenir Alice. E se não voltar, é por que algum traidor me denunciou.

«Apromptae-vos, que amanha, com a ajuda de Jehovah, podeis ser feliz, e Alice libertada.

«Será conveniente informar o rei, porque, emfim, sempre devemos prevenir o peior. Até amanhã. D. cavalleiro, antes destas horas nâo me deveis esperar.»

Vasco abraçou Jesué, que saiu immediatamente.

Vasco, embaraçado com a missão de que o monarcha o encarregara, julgou ter chegado a occasião de tudo lhe contar. Foi o que fez.

«Paulo, o meu cavallo de batalha.

O escudeiro saiu, e pouco tempo depois um brioso ginete, mordendo o freio, escavava o chão impaciente.

Vasco montou a cavallo, e a trote caminhou para a tenda de Affonso, que ficava a bastante distancia.

Vasco pediu para fallar ao rei, e como este tanto apparecia aos grandes como aos pequenos, foi immediatamente admittido á sua presença.

Affonso redigia uma carta, que um escudeiro esperava para entregar ao rei de Leão.

Assim que Vasco entrou poz a penna de parte.

«Que temos, cavalleiro? Temos novidade?»

«Não, senhor, quanto ao serviço de Vossa Honra. O que necessito, senhor, é que me dispenseis das correrias do amanhã.»

«É a primeira vez que Vasco de Sousa pede dispensa de um serviço importante. Tal será o causal.»

«Eu me justifico, senhor. Amanhã, á meia noite, hei- de estar em Lisboa, para salvar meu pae e a mulher que amo.»

«Que tinheis vosso pae captivo em Lisboa, sabia eu, mas o coração, é que eu ignorava. Explicae-vos, e olhae cavalleiro, tenho a vossa vida em muita conta para que mo nâo arreceie por ella.»

Vasco informou-o dos seus amores com Alice, acabando por lhe mostrar a carta que Alhucem lhe escrevera, havia dois dias, impondo-lhe o levantamento do cerco, em troca da vida de seu pae.

Affbnso ficou maravilhado da audácia do mouro e da coragem do mancebo.

«Ide, lhe diz elle: se quereis, darei um assalto geral â cidade, e até ao derradeiro alento hei-de combater, para salvar um guerreiro portuguez.»

«Agradeço-vos tanta honra, senhor. Acompanhado por Jesué, vou por uma estrada falsa, que vae dar ao alcaçar e que só d'elle é conhecida.

«Não receeis por mim. Jesué é de inteira confiança. Mas quando algum revez se apresente, ficae certo que Vasco de Sousa e Paulo venderão caras as vidas.

«Ide com S. Thiago, nosso Patrono. Que Deus vos proteja e salve e a vosso pae, que tanto honrou a patria no serviço de Deus.»

Vasco retirou-se, depois de lhe beijar a mâo.

Se os dias lhe tinham parecido grandes desde o começo do cerco, as horas lhe pareciam, agora, mais longas de que annos.

Parecia que a areia da impulheta não caía, nâo obStante escoar tâo regularmente como nos dias antecedentes.

Soava a hora solemne. Vasco, ou perdia para sempre a ventura, ou se nâo morresse, seria o homem mais feliz do mundo.

As horas em que Jesué devia chegar approximavam-se, pois, não obstante a impaciência do mancebo, nada ha mais regular de que o curso do tempo.

O sol desapparecia no horizonte; seus raios brilhantes iam enfraquecendo, ao passo que a terra completava seu movimento diurno ou de rotação.

Os pastores mouriscos, que ao longe pasciam os gados, transidos de medo, apertavam-n'o, para fugirem ás vistas dos guerreiros da Cruz.

O tinir das campainhas, ao longe, e o canto das ras, é quanto se ouvia.

Nas cristas dos montes differençavam-se os sentinellas, de espada ao lado, escudo no braço, e lança em punho.

Pareciam phantasmas, qando se moviam, e estatuas, quando estavam firmes.

Vasco estava impaciente. Jesué nao apparecera ainda. Que haveria ? Teria sido descuberto ? Era a idéa que mais o triturava.

Tinha tocado a recolher. As luzes do acampamento brilhavam no seio das trevas como as raras estrellas, que se avistam nas noites de tempestade.

O silencio era sepulchral, e só de tempo em tempo era interrompido pelo alerta das sentinellas, ou pelos passos cadenciaes dos roldas, que gyravam pelo arraial.

Vasco sentiu abrir a porta, olhou, e deu um grito de alegria. Era Jesué, que, ainda vestido de derviche, acabava de entrar.

Jesué não se entreteve com cumprimentos.

«Eia, é apromptar. São nove horas. D'aqui a três devemos estar a caminho.

Precisamos de uma lanterna, de dois archotes, e, sobretudo, da vossa espada e da de Paulo, que nos ha-de acompanhar.

«Alice está prompta. A donzella nada quer trazer. Nem mesmo as suas jóias. Conhecendo-vos, não me occupei d'este assumpto.»

Vasco quiz fallar, mas Jesué não o deixou, em quanto não concluiu.

«E meu pae?» disse elle.

«Vosso pae? Vosso pae também vos aguarda com impaciência, mas...»

«Mas o que?»

Jesué ficou embaraçado.

«Sim, bem vedes que aquella cabeça não está regular, mas em vos vendo tudo acabou.»

Vasco, comquanto não ficasse socegado, reconheceu que a occasião não era para muitas perguntas.

Era no principio do mez de outubro. As chuvas do outono tinham principiado com abunndancia, como é costume na peninsula.

Lisboa estava reduzida ao ultimo apuro. Um circulo de ferro a cingia pelo lado de terra, em quanto que por mar era bloqueada pelas embarcações dos cruzados.

O desalento lavrava por toda a parte, e a esperança do triumpho a ninguém illudia.

Á uma hora da noite do dia nove de outubro, três homens passavam além dos postos avançados, tomando a direcção da cidade.

A noite estava escura, e a chuva caía em torrentes.

Os campos estavam alagados e difficultavam a marcha.

Andaram mais de um quarto de hora. Achavam-se próximos dos muros da cidade; e para não serem vistos coseram-se com o muro de um jardim, proseguindo com o maior cuidado até ao prolongamento da muralha. Jesué parou.

«É aqui! Vêem esta pedra? Pois assim que a remover-mos teremos o caminho falso que tanto desejamos.

Dois homens se deitaram denodados para a remover, mas não obstante a sua força hercúlea, só no fim de bastantes exforços, é que o conseguiram.

Uma corrente de ar impregnado de miasmas merfiticas, saio com tanta violência, que todos insensivelmente levaram a mão ao nariz.

Os leitores já deprehenderam, que estes três homens eram Jesué, Vasco de Sousa e Paulo, seu escudeiro.

Jesué disse para os companheiros :

«Coragem, cavalleiros. Teremos que passar junto de um horrível precipicio. Entremos, e prosigamos. Vasco queria ser o primeivo, mas Jesué não consentio.

«Perdão, lhe diz elle, pertence-me ser o guia, por que sou eu que sei o caminho,»

Entrou seguido de Vasco e de Paulo, que accendeu o archote n'uma lanterna.

Paulo agitou o archote com mão tremula; e ao seu clarão avermelhado, é que reconheceram aonde se achavam.

Era um corredor subterrâneo, tão baixo que caminhavam curvados.

De espaço a espaço havia uma espécie de frestas por ondo vinha um ar frio e húmido.

«Para onde deitam estas frestas, perguntou Vasco.»

Jesuê, caminhando sempre, respondeu-lhe laconicamente :

«Dâo para differentes subterrâneos, que communicam com uma obra maravilhosa e gigante.»

«Com uma obra maravilhosa e gigante?»

«Sim, lhe respondeu elle, ligam com um edifício subterrâneo, que é talvez do tamanho da cidade.»

«Que dizeis, estaes louco, ou mentis?»

As vozes pareciam vir de grande distancia. Tal era a falta de ar. Numerosos reptis se encontravam, e alguns de tâo grandes dimensões, que teriam amedrontado outros, que nâo fossem Vasco de Sousa e Paulo seu escudeiro.

No entretanto Jesué com quanto não fosse um covarde, nâo podia encobrir o receio que o dominava.

«Na verdade, disse elle, a nâo vir na vossa companhia, e a não cumprir a vontade de meu pae, confesso-vos que já me teria retirado.»

E com effeito, a posição em que se achavam era realmente assustadora.

Teriam caminhado mais de seiscentos passos. O subterrâneo por vezes apresentava declives sensíveis, n'outras rampas em que era preciso caminhar de rastos.

Ao longe sentia-se como o estrondo de uma grande catadupa, ou corrente de caudaloso rio.

O ar era tão hmnido que fazia regelar.

Paulo arripiaram-se-lhe os cabellos, pareceu-lhe estar nos abysmos do inferno.

«Que diabo de caverna é esta? Para onde caminhamos nós ? Isto é peior de que um inferno. Se aqui se não acoita o diabo, é o ninho de alguma feiticeira.»

O som da voz de Paulo repercurtio ao longe com echo tão medonho que todos se arripiaram.

O mesmo Jesué que não ignorava a causa estremeceu involuntariamente.

Vasco parou.

«Que estrondo é este, que parece um rio caudeloso a despenhar-se?»

«É a agua da chuva entrando para uma sisterna, que se acha neste vasto subterrâneo, que ninguém sabe o que é. Olhae e vede.»

Vasco e Paulo dilataram a vista para o lado direito, d'onde saia um estrondo capaz de insurdecer.

Agitaram o archote. A luz reflectio pálida e inserta sobre um monstruoso espectáculo, que se lhe apresentou tétrico e pavoroso, como poderá ser a boca do inferno.

Uma grade os separava d'um vasto edificio, cujas proporções não poderam calcular.

«Santo Deus, exclamou Paulo.

«Sei morrer n'um campo de batalha, mas nâo posso supportar isto, isto é medonho ; Virgem Santíssima, valei-nos.»

«Vamos senhor. Tenho medo pela primeira vez na minha vida, aqui nâo estou mais tempo.»

Vasco também estava admirado, e Jesué contemplativo.

Altas e descomonaes cohunnas sustentavam aquelle gigante subterrâneo, e o som das vozes era abafada pelo barulho da agua, que de differentes partes se precipitava estrondosamente.

«Que será isto ? É uma grande cisterna ? disse Vasco »

«Nâo sei, lhe respondeu Jesué.»

«É um mysterio.

«Meu avò dizia-me que sabia da existência deste subterrâneo; julgando-o sempre um desses templos monstros do antigo paganismo. Outros querem que seja uma grande sistema ou casa de banhos ; ha finalmente quem também sustente, que esta construcção é anti-diluvianna.

«Seja o que fôr, isto horrorisa-me, e prosigamos a salvar Alice.

«No entretanto sempre vos digo, que extranhas cousas se vêem lá em baixo, segundo afiançava um mouro, que lá acompanhou meu avò em certa occasiâo.

«Não julguem que todo o subterrâneo se enche de agua.

«Não senhores. No tempo de verão está quasi seco. Por onde a agua se escoa é que não sei.

«Dizia o mouro ter visto columnas que dez homens as não abraçavam. Túmulos com ossadas de gigantes, e craneos tão grandes que um homom não os poderia levantar.»

Santo Deus, disso Paulo. Sao os ossos de Satanaz.»

Jesué proseguio,.

«Sentem-se ao longe gemidos, alaridos, e imia bulha como de muitos malhos a batter.»

Paulo estava arripiado. Vasco pálido como um cadáver. Era a fiei estampa do terror.

«Ha portões de ferro, que se riao podem abrir; e o que o mouro disse ter visto mais, nâo se acredita.»

A narração era tétrica para o local. O estrondo medonho das aguas. O sibillar do vento. O adejar dos morcegos, e os reptis a escoarem-se pelas frestas e buracos, tudo contribuia para amedrontar dois homens incapazes de recuar ante um esquadrão de guerreiros.»

«Mas que vio o mouro? perguntou Vasco.»

«O que vio? Vio, dizia elle, homens de horrenda catadura, de proporções agigantadas, e vestidos de uma maneira estranha, como elle nunca vio.

«Dizia o mouro, que aquelles homens eram ainda alguns dos primittivos habitantes, que se refugiaram ali, e que viviam separados do mundo, como num sepulchro.»»

Paulo tremia vesivelmente.

Um choque como de um corpo que se lança n'agua, resoou estrondosamente. Que seria ? Não sabemos.

Jesué não quiz ouvir mais nada.

«Vamos. Em menos de mil passos estaremos no alcaçar. »

Prosaguiram pelo correrdor, que por ser em zig-zags não se lhe podia bem calcular a extensão.

Jesué disse ainda:

«Não deis inteiro credito ao que vos contei. Não fico pela verdade.

«Era um velho mouro, muito crédulo, e podia confundir os factos, pois quando me contou isto tinha perto de cem annos.

No entretanto, dizia elle, que muralhas de immensa grossura, separavam este dos outros subterrâneos, descendo-se muitas escadarias.

Ainda imprecionados chegaram a um pequeno largo. Uma porta de bronze se via no topo.

Jesué puchou da chave, dizendo:

«Esta chave deu meu avô a meu pae, para que m'a legasse. Esta porta que aqui vedes nunca se abrio. Ajudai-me.»

Três homens fizeram exforços sobre humanos, e só no fim de muito trabalho conseguiram mover a fechadura. Pucharam os ferrolhos, e quando girou nos gonzos, pasmaram da sua grossura.

Entraram n'uma pequena sala. Deram volta á chave, e assentaram-se fatigados do corpo e do espirito. Haviam mais de duas horas que andavam por baixo do chão.

Vasco disse para Jesué :

«Alice e meu pae não sairão por aqui. Quero morrer traspassado por mil lanças, mas nem por pensamentos voltar pelo mesmo caminho.»

Paulo respirou. Para elle brigar com os agarenos julgava um divertimento. Mas percorrer os subterrâneos era peior de que o purgatório.

Jesué também pensava o mesmo.

«D. cavalleiro, temos que subir uma escada de duzentos degráos. Confesso que estudei este caminho, pela descripção que meu avô deixou ; mas se advinhára que era tâo medonho nâo o teria percorrido.»

«Vamos. Lá em sima traçaremos novos planos.»

Sobiram a escada cheios de cancasso, e acharam-se na sala de armas.

Depois da escuridão e do terror, uma visão angélica. Alice esperava-os.

Nunca a donzella parecera tão formosa. Era como o anjo, que risonho se apresenta abatendo as iras do génio do mal. Foi como a visão celeste após do desespero.

Vasco ajoelhou. Nunca o joven se mostrara tão amoroso, nem a donzella tão cândida. O sorriso que se lhe desenhava nos lábios, era como a bonança no seio da tempestade.

«Alice ! disse o joven, beijando-lhe as mãos, que ella meigamente lhe estendia. Alice, que Deus creou anjos no Ceo, é de fé, para todas as religiões, mas que os mandasse á terra para fazerem a minha ventura, é do que nunca me julguei digno.»

Alice levantou-o meigamente, imprimindo-lhe na testa um beijo fervente, que se não fosse menssageiro de amor, seria a prova de uma ternura fraternal.

«Vasco, que a religião de meus pães se opponha ao nosso amor pouco me importa.

«A lei de Mafoma excluindo as mulheres da eterea ventura e dos direitos que lhes pertencem, auctorisou-as a immanciparem-se, mudando de religião.

«Alice já não é mahometana. É tão christã como Vasco seu desposado.»

Os jovens abraçaram-se ternamente.

«Vamos senhores ao cárcere do captivo. Animo Vasco, que acima dos soffrimentos está a coragem do guerreiro.»

Seguidos de Alice tomaram pelos corredores subterrâneos. Tempo depois entravam no cárcere de Bento de Sousa.

Vasco não andava, voava. A respiração ora se dilatava, ora se lhe oppria. Arquejante, cheio de anciedade ia para se precipitar nos braços do ancião, mas deteve-se ao contemplal-o.

Bento de Sousa assentado n'um escabello, olhava surpreso para tanta gente. Sua fisionomia, revellando admiração, não denotava curiosidade. Jesué sabendo do seu estado mental avançou, e disse a Vasco :

«Ficae, cavalleiro, é preciso resignação. Vosso pae tem padecido de allienações, e actualmente é victima de um desses ataques.»

Vasco ficou aterrado. Ia lançar-se nos braços de seu pae, mas um gesto de Jesué o deteve.

«Que fazeis? Quereis matal-o? Esperae. Agora só Jehovah e a sciencia.»

Vasco curvou a cabeça, mas as lagrimas caíam-lhe em torrentes.

Jesué avançou magistralmente. Seu gesto era solemne.

Cravou os olhos no ancião e estendeu as mãos sobre elle.

Bento de Sousa, que até ali se conservara mudo e indifferente, ergueu-se, impellido por uma força superior. Os olhos envidraçaram-se-lhe, deu um gemido abafado e íicou extatico.

«Morto! disse Vasco com assento tão doloroso, que todos estremeceram.

«Nâo está morto. Deixae-o repousar alguns momentos, e vejamos se volta á rasão.»

A ignorância da época viu nisto um prodígio da astrologia judiciaria, quando era apenas uma influencia magnética.

Momentos depois Jesué, fazia alguns movimentos, Bento de Sousa abria os olhos, como se accordasse de um profundo somno. Olhou para todos, mas no mesmo estado de imbecilidade.

Jesué approximou-se :

«D. cavalleiro, nao me conheceis? Não conheceis Jesué, vosso antigo amigo?»

Bento de Sousa não demonstrou conhecel-o, o israelita abanou a cabeça desgostoso.

Vasco, com as feições contraidas, dilatava a vista, desejando absorver todos os movimentos de seu pae.

O ancião levou a mão à cabeça. Esfregou a testa e balbuciou algumas palavras innintelligiveis.

Alice esturcia as mãos afflicta. Pauço estava lívido, e Jesué, comquanto preoccupado, não desanimava.

«D. cavalleiro, se vos apresentassem vosso filho, conhecel-o-ieis?»

Bento de Sousa ergueu-se. As faces animaram-se-lhe, e os olhos lampejaram.

«Meu filho! Quem falla de meu filho? Oh! que se eu o visse...»

Vasco não se pôde suster, e bradou com a voz abafada pelos soluços:

«Meu pae ! Meu querido pae ! Não me conheceis?»

Todos recuaram, receiando as consequências de similhante imprudência. Já era tarde. Vasco estava nos braços de seu pae.

Os momentos foram críticos, e grande a consternação. Bento de Sousa pareceu reconhecer seu filho, que de joelhos o encarava com a anciedade, dos que aguardam pela sentença de morte.

«Pae ! Querido pae ! Por Deus, volta á rasâo e reconhece teu filho que morre de desespero.»

Estas palavras, repassadas de amargura, echoaram-lhe no fundo d'alma. Bento de Sousa fixou o mancebo com gesto desvairado, e levantou-o com arrebatamento. Agarrou-lhe na cabeça e aproximou-o a si, como quem desejava reconhecer-lhe bem as feições, e exclamou :

«Meu filho! Meu filho! Oh! reconheço estas feições! Sâo as de tua mâe! Graças meu Deus, graças, agora já posso morrer.»

Nâo disse mais nada. Imprimiu um beijo ardente nas faces do guerreiro, e ficou sem movimento. Bento de Sousa voltara á rasão momentaneamente, mas a alma voara às ethereas regiões. Não pôde com a ventura de vêr seu filho, que apenas abraçou um cadáver.

Jesué frio e impassivel, consultou-lhe as pulsações, e vio que ali já nâo funccionava nenhum dos órgãos vitaes.

Bento de Sousa estendido sobre a cama com os lábios entre-abertos, e os olhos cerrados, parecia estar dormindo. Era a fronte de um bemaventurado, que acabava de morrer martir.

Vasco mudo e quedo, não parecia menos cadáver de que seu pae. A dor que o minava era terrível e intensa. Era um d'esses soffrimentos que dão instantaneamente a morte, se as lagrimas lhes não vêem neutralisar a influencia. Alice chorava junto ao finado, beijando-lhe as mãos com devoção religiosa.

Jesué reconheceu, que se não pozesse limite a semelhante scena, em vez de um cadáver serião três.

«Levantai-vos de ahi mancebo, lhe disse elle. E vós donzella, acompanhae vosso futuro esposo. Se o amor vos unio, o infortúnio vos ligou mais. Cumpram-se os preceitos de Jehovah.»

Alice de joelhos não se animava a orar, ella só apenas sabia as rezas do Al-Koram, em que já não acreditava.

Vasco ergueu-so frio como o gelo, terrível como a morte. Em quanto collacava a mão esquerda sobre o coração, estendia a direita sobre seu pae.

«A face de Deus e dos homens juro, sobre este cadáver, guerra de extermínio a tudo quanto for agareno. Vingarei a morte de meu pae, como Viriato a dos seus concidadãos. A minha espada fulminará como o fogo e a destra como a ira de Deus.»

A voz do mancebo era estridente, e o gesto, terrivel. Viriato, jurando sobre o cadáver palpitante de uma donzella, o exterminio dos romanos, nâo apresentou maior grandeza de alma.

Alice, aterrada com as palavras de Vasco, julgou-se também fulminada com o anathema que lançava sobre seus irmãos. De joelhos, com as mãos erguidas, parecia uma visão celeste. Pela vez primeira amor se alliava com terror.

«Oh ! por Alah não me votes ao despreso, nem me retires teu amor.

Vasco contemplou-a tristemente. Levantou-a nos braços, dizendo-lhe:

«Alice, depois de ti, quem me resta no mundo? Olha, este que me deu o ser, é cadáver. Minha irmã, sepultou-se a um convento. Mãe não tenho. Um amigo verdadeiro, desappareceu. Que me resta pois no mundo?

«Oh! Crê, que a não seres tu, teria, aqui mesmo, seguido meu pae ao repouso da eternidade.»

Os jovens abraçaram-se, e depois do amor era a adversidade que os unia.

Jesué não admittiu que ficassem mais tempo no cárcere. Joaquim e Paulo velaram junto do finado.

Três dias depois deste acontecimento, Affonso, vendo que Vasco não voltava, deu um assalto geral á cidade. A luta foi longa, pertinaz e sangrenta. Mas os agarenos, apertados n'um circulo de ferro, tiveram que ceder. Recuar não é fugir. Foi o que fizeram. De rua em rua, de viella em viella, lutaram como heroes, mas ás cinco horas da tarde tudo estava concluído.

O estandarte da Cruz tremulava altivo nas ameias do castello de Lisboa. Affonso via coroados os seus exforços, e mais uma vez os louros da victoria ornaram a fronte do rei soldado.

Albucem lutou com a bravura do desespero. Á frente dos guardas do Wali fez prodígios de valor. Por toda a parte procurou Vasco de Sousa, mas debalde, porque o guerreiro, como é sabido, não estava no exercito.

Albucem viu que a resistência era impossivel, e que combater mais tempo era sacrificar o resto dos valentes que o seguiam. Mandou-lhes depor as armas, e desappareceu como um relâmpago.

Aonde iria elle ? Ao alcaçar.

Três dias esteve Vasco em companhia de Alice e de Jesué. Nada o perturbava nem amedrontava.

Ás dez horas da manhã ouviram tinir de armas e gritos de terror. Eram os christãos que atacavam.

Vasco, encerrado n'um pequeno quarto, aguardava impaciente e as horas pareceram-lhe annos. Estava separado da camara em que Alice se achava por uma porta de pouca resistência. Foi o que a salvou.

Seriam quatro horas da tarde, pouco mais ou menos, quando Albucem se apresentou no alcaçar.

«Donzella, venho salvar-vos das mãos dos christãos. Segui-me, que vosso tio vos aguarda lá em baixo.»

Albucem estava com as feições contraídas, e cuberto de sangue. Parecia um génio infernal, que em vez de adejar, se apresentava sob as formas humanas.

Alice respondeu-lhe sem a menor alteração:

«Não vos seguirei. Ninguém foge à sorte que Alah lhe destinou. Fico, e quando saia deste alcaçar não será para seguir Albucem.»

Vasco, que presenciava esta scena, através das fendas da porta, rangia os dentes desesperado; e cravando as unhas no rosto, abria profundos sulcos.

Albucem, tresvariado pelo ciúme, exclamou com voz de trovão:

«Haveis de seguir-me, morta ou viva. No ceu, ou no inferno, ha-des ser minha.»

Agarrou a donzella pelos pulsos, e arrastou-a. Ergueu o punhal humicida, e bradou:

«Pela ultima vez, segues-me?»

«Não! Não te seguirei! Detesto-te.»

Albucem, furioso, ia descarregar o golpe fatal, mas uma porta se abriu com estrondo. Era Vasco, que, de espada em punho, se precipitava sobre elle.

«Covarde assassino, defende-te.»

As espadas cruzaram-se, mas ao terceiro bote Albucem caiu, traspassado de golpes, o sangue sahio em torrentes. Era cadáver.

Alice, aterrada, desmaiou. Vasco, recebeu-a nos braços, e collocou-a sobre as almofadas, que guarneciam o quarto. Nesta mesma occasião o trupel de muitos guerreiros se ouviu. Vasco empunhou a espada; ficou firme, tanto para a defeza, como para o ataque. Eram amigos. Um troço de soldados cruzados, cubertos de sangue e pó entraram, e tomando Vasco por um infiel, iam para se precipitar sobre elle.

«Alto lá senhores, lhe diz Vasco, sou tão christão como vós.»

Os soldados recuaram, depois de reconhecerem o joven guerreiro, que tanta nomeada tinha no exercito. Abateram as espadas, e seguindo-o de perto, formaram uma espécie de guarda de honra.

Vasco deu o braço a Alice e seguio ao encontro de Affonso.

A joven, foi, n'esse mesmo dia, apresentada, por Vasco, ao monarcha, que chorou, quando soube da morte de Bento de Sousa.

Quinze dias depois da conquista de Lisboa, na mesquita maior, já sagrada, tinha logar um casamento solemne, de que eram padrinhos o rei e a rainha. Quem eram os noivos ? Era Vasco de Sousa, que se unia com a formosa Alice, depois de ter recebido as aguas do baptismo.

N'esse mesmo dia, e á mesma hora, tomava o veu de religiosa, no convento de Lorvão, D. Elvira de Sousa.

O órgão tocava, e seus sons melancholicos repercutiam pela vasta abobada. Quem era um monge que chorava e orava tão fervorosamente? Era D. Reinaldo, que, seguindo o oxcmplo do D. Elvira, trocava a cota e a cerviiheira pela cogula do monge.

Quanto a Alahar, não sabemos se morreu no assalto. Se nos perguntarem todavia o que foi feito de Raymundo o incendiário e dos seus companheiros, diremos, que se apresentaram no cerco ao rei, e prestaram grandes serviços. Que se rehabilitaram e foram, no futuro, bons soldados da Cruz, continuando a ser tão ladrões como d'antes.

FIM.

Rezende nas suas antiguidades Livro 2.º, assim o designa.