Herança de lágrimas: Edição para o ELTeC Souza, Lopo de [Ana Plácido] (1831-1895) Criação do HTML original Adeliana Silva Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 48924 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Lopo de Souza Herança de lágrimas Biblioteca Nacional de Portugal Herança de lágrimas Lopo de Souza Redação do Vimaranense-Editora Guimarães 1871

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HERANÇA DE LAGRIMAS

ROMANCE ORIGINAL

POR

LOPO DE SOUZA

«Les femmes s’imaginent être des anges et avoir reçu du ciel la mission et la puissance de sauver tous ces don Juan; mais comme l’ange de la légende, elles ne les convertissent pas, et elles se perdent avec eux».

George Sand—Lélia

GUIMARÃES

REDACÇÃO DO VIMARANENSE -- EDITORA

TYP. DO VIMARANENSE

1871

I

DIANNA DE SEPULVEDA A HENRIQUETA D’AGUIAR

Eis-me, pois, caminho de Lisboa, minha querida Henriqueta. Pediste-me uma descripção minuciosa dos pequenos incidentes d’uma jornada de trinta e tantas legoas, e dos abalos, enlevos, ou fastios do meu coração. D’este coração de que a tua graciosa e feliz bacharelice diz coisas tão feias, até descrer da sua individualidade, excepto quando o sentes pulsar junto do teu seio. Sou eu responsavel, mereço as accusações que me diriges, se algumas das fibras da minha alma se conservam fechadas no seu involtorio de gelo ? O que eu não sei ainda bem, minha amiga, é se isto é um mal que me faz padecer, ou um bem que me poupa a grandes magoas. Todavia, forçoso é confessal-o, a minha alma tem anceios de curiosas experiencias. Deus negou-me um dos attributos felizes da humanidade: as alegrias infinitas da paixão reciproca, os arrobos mysteriosos do amor exaltado, dizes tu, e com razão. Concordo comtigo, e quizera sentil-o; sentil-o, como eu o comprehendo.

D’aqui nascem estes secretos enfados que me atormentam a existencia, estes desesperos tantas vezes disfarçados n’um sorriso d'amarga ironia ao meu destino. Crêr que existe para todas as creaturas um mundo de luz embriagadora, e viver nas minhas trevas!... Aqui, ao lado d’este homem que me chama sua desde os dezoito annos, e a quem o mundo denomina meu ! Meu ! Pertence-me como o aleijão pertence ao rachitico de nascença, que debalde tenta lançar fóra de si a carga pezada e odiosa.

Que vida esta minha ! Sem estimulos de presente, sem esperança de futuro ! Bem o sabes: a minha alma inquieta e pensadora levou-me a estudar o amor, essa paixão sublime que aniquilla ou engrandece, nos romances da epocha. Achei, porém, fastidiosas as descripções, e algumas enjoativamente imitadas. Ou o espiritualismo piegas sem aquelle cambiante admiravel do Raphael de Lamartine; ou a sordidez da

materia tressudando no arredondado das formas e das galanices do estylo.

Não era isto o que eu imaginava. Tentei ir mais longe á cata de modêlos; quiz conhecer as tragedias dos grandes mestres litterarios de passadas eras. Ahi sim: admirei os typos grandiosos das Julietas, Desdemonas, e Kítty Bell; mas, nem compenetrando-me do fogo d’essas lavaredas fundidas em bronze, encontrei o mytho que devia tornar combustivel o marmore da minha essencia.

Que me faltava pois ? O meu espirito esmorecia á falta de alimento, restava-me todavia ensaiar o amor sublime do Christo. Meditei, e estudei a Religião do Divino Martyr: a minha fé ardente elevou-se a um mysticismo que se notava por exaggerado, mas, nem assim,—com vergonha o confesso,—nem os gozos celestiaes minguavam as tribulações interiores causadas pela solidão moral; suspirava por alma que se arrebatasse com a minha ás biblicas contemplações da sublime epopeia da creação do universo que me acompanhasse, emfim, até onde libravam as ancias infinitas da minha imaginação.

Se eu tivesse mãe ! pai ! irmãos !... Mas, ninguem ! Achar-me como engeitada no mundo, sem parentes, nem familia !... Perdoa, se te offendo, Henriqueta, perdoa, se te irrita dizer-te a sinceridade da minha dor que a tua affeição, grande e pura como é, não chega, nem pode saciar as minhas exigencias espirituaes. Não sei o que presinto e sonho de deslumbrante, que ainda acordada me cega.

Oh! que ninguem saiba o quanto a orphandade é triste, despedaçadora e negra !

Eu tenho um marido, um homem para cujos braços me atiraram, cumprindo-se assim a vontade d’úm pai que não conheci senão por esta farta herança de angustias que me legou.

E minha mãe ? Quem me fallará d’ella ?

Quem me dirá, talvez, que eu fiquei já no berço, amortalhada, n’uma dobra do seu sudario ! e que devo ao influxo melancolico da minha infancia esta incomprehensivel sobre-excitação moral que me revela o amor como... . creio que ia dizer-te uma tolice; minha amiga!... devia sêl-o. É tão complicada, tem umas exigencias tão sobrenaturaes esta visão que me enfeitiça o pensamento desde o arraiar da minha aurora !... Deixa-me, porém, tentar um esboço que illumine a minha idéa.

O que eu sinto é o ideal, subtilisado na chrisalida pura que a morte mesma respeita, é a parte immortal da creatura voltando-se para o fóco de luz onde se depura o barro immundo de que fomos creados.

Já vez que este ideal em nada se parece com o ideal dos poetas. O ideal d’elles é uma imagem creada aos vapores nevoentos da imaginação es-candecida pelos ardores imperiosos da mocidade. O acaso, deparando a suas vistas cubiçosas novos typos de mulher, encontra-os sempre promptos a extasiarem-se, diante muitas vezes de mediocres perfeições. Adorando hoje uma, doidejando ámanhã por outra, e enlouquecendo emfim por todas aquellas que fitam o raio fugitivo d’esses fingidos corações.

E se não, recorda o que nos diz o grande Garrett nas suas folhas cahidas

«... Aquella é formosa, «Não se me dava de a ter. «E esta ? E' sò baroneza, «Vale menos que a duqueza : « Não sei a qual attender».

Pobres mulheres ! Eu dizia a todas: fugi do poeta, do inspirado, do chamado homem de coração. Tudo isso são palavras ruidosas, laços que prendem eternamente almas impressionaveis. Elle, o poeta não pode gastar o genio n’ um só amor. O exclusivismo é para estupidez feliz que se contenta com pouco. Os bem fadados do Deus, tem de cantar as Evas antes e depois do peccado, as tempestades procellosas da vida, os desenganos do mundo, as desesperanças da terra, e as magnificencias do ceo !

Que grandiosa tarefa! A par d’ella o que é, que valor pode ter a seus olhos um coração amigo e dedicado ? ! Demais, não é isso o que elles ambicionam. Querem o triumpho, o triumpho facil acobertado com o irresistivel. Querem depois o abandono, para se carpirem, a traição para blasfemarem, o despreso para levantar voz em grita contra esses anjos transformados em demonios.

Perguntas-me tu agora quem me ensinou tanto. Respondo: não a experiencia, graças a Deus, mas o estudo que tenho aproveitado de mil exemplos, provando-me que não érro nos meus juizos.

Quanto á mulher, não creias que eu seja menos rigorosa. Detesto a que se sacrifica por ambição; nunca ella será boa esposa, nem boa mãe. Outros defeitos, não conheço nenhuma que os tenha na primavera da vida; e mais tarde, a pedirmos contas, seria á sociedade ou aos homens que as perverteram. Bom era que para taes almas houvesse mais commiseração, da parte d’essas outras que sahiram victoriosas em identicas pelejas.

Eu quero a mulher assim. Quero-a misericordiosa, doce, e singela como a flôr dos prados. Quero-lhe lagrimas para a miseria, e alegrias para os que se apaixonam de sua mão bemfaseja. Quero vêl-a scismadora, voltada ás nuvens prescrutando os mysterios indecifraveis da immensidade. Quero presentir-lhe o primeiro balbuciar de coração, quando este murmura baixinho : «Vem complemento do meu seir, não tardes. Vem, antes que o sopro da descrença me bafeje, e o anjo da desgraça queime meus labios com o ardor das paixões».

Pois queres tu saber, Henriqueta ? Eu, com os meus vinte e sete annos já feitos, adoro, tenho ainda destas visões immaculadas;é o meu thesouro este anciar virginal e sagrado, é este talvez, sem que eu mesmo o imagine, o rival de toda a imagem de homem que me preoccupa um momento.

Parece-te uma demencia remodellar-me eu assim ? Será. Eu sinto uma tristeza, uma saudade infinda, uma embriaguez dulcíssima que me arrebata para além mesmo dos caminhos percorridos pelo espirito...

Vou dizer-te tudo. Muitas vezes, quando os meus olhos se fecham ou escondem, como tu dizes, debaixo das palpebras, é que eu sinto um frémito voluptuoso e aromatico pousar-lhe ao de leve como um beijo da aragem matutina no mez d’abril. Quando a minha cabeça descae como a roza queimada na haste pelos ardores estivos, é que as pontas dos meus cabellos me roçam as faces, palidas pelo estremecimento do jubilo interior. Quando finalmente, a minha voz immudece no meio d’uma dissertação animada, é a minha alma que se desprende dos laços terrestres, e anda pairando no espaço com sua irmã fugitiva.

Depois desta confissão, minha amiga, fico certa de que menos ainda me conheces do que no passado. Ficas-me chamando excentrica, doida, romantica, e afinal de tudo isto, ha só um epitheto que me cabe perfeitamente: chama-me uma grande desgraçada, e é que acertaste. A minha primavera não pôde romper os nevoeiros em que despontou involta ; o outomno vae carregado e sombrio; e o inverno, para que eu já caminho, será pezado e fastidioso. Quando me lembra que breve chegará a velhice, esse achaque incuravel da humanidade, o qual não ha-de ter um deposito de reminiscencias que me aligeire as horas, essas horas que são como uma vida retrospectiva para o ancião, sinto um desejo quasi invencivel de pôr termo a este flagel-lo incessante do meu espirito... Silencio, Hen-riqueta ! Não, não me digas onde estava para mim a salvação. De mais o comprehendo eu !

II

Dianna a Henriqueta

Interrompi hontem bruscamente a longa carta em que, pondo de parte os mil incommo-dos d’uma jornada de sete dias, dentro d’aquelle abafador transporte da liteira, e o arrastado d’aquellas horas de permanente tête-à-tête com uma pessoa que dormita as tres quartas partes do tempo, me dispunha a descrever-te a impressão que me causou esta magnifica cidade, para a qual os provincianos, como nós, olham e não sem razão com verdadeiro enlevo.

Até mesmo para as almas prosaicas que nunca sahiram de Portugal, e que, por uma estupida monomania do seculo, só acham sublime e primoroso o que, por fé e favor dos almanacks, sabem e conhecem dos paizes estrangeiros, Lisboa deve ser uma cidade admiravel, pela mages-tosa grandeza de seus edifícios, e o espaçoso de suas ruas principaes. A mim me pareceu, vendo-a do alto de S. Pedro d’ Alcantara,—permitte linguagem figurada—uma dama graciosa espregui-çando-se gentilmente em fôfo relvado de jardins, e remirando-se alem no espelho immenso, onde se banham aquellas saudosas Tagides do nosso divinal poeta.

O Tejo ! Fazes lá idéa como é lindo, como é surprehendente por noites de luar o espectaculo que se goza do cáes de Sodré ou Terreiro do Paço, vendo fumegar uma immensidade de barquinhos, que são talvez para muitos o patrimonio, as rendas, e a esperança d’uma familia ? ! Vistas a distancia, todas aquellas luzinhas, fulgindo aqui, e alem, umas tremulas e vivazes, outras frouxas e quasi indistinctas até se sumirem nas vagas azuladas que encrespam ao de leve, e põem em suave baloiço aquellas frageis conchinhas ! Ha n’isto por vezes uma illusão d’optica que nos prende a vista e a alma. Parece queas estrellas estão baixando do céo á terra, convidando-nos o pensamento a seguir-lhes o rasto immutavel.

Agora comprehendo eu as voluptuosas gondolas de Veneza, os amorosos rugidos do Adriatico. O embate das ondas, o bramido do mar,sempre me causou sensação de dor amarga eirritante: porém, este rio, que tanto se lhe pode comparar pela grandeza, exerce no contrario sobre mim uma influencia diversa. Sinto na sya contemplação um bem-estar que me refrigera os padecimentos do espirito, sem. comtudo me atrophiar as faculdades intellectuaes.

N’esses momentos de concentração, parece que sinto despegarem-se-me umas azas invisiveis, que vou tomar o vôo, e remontar-me não sei a que mundos, a que hemispherios e plagas desconhecidas.

Ó Henriqueta ! que immensa gratidão devem a Deus aquelles que encontraram na terra esse outro ser que lhes completa a vida, refazendo n’uma só duas almas ? ! Felicidade sem sombra seria por horas d'essas achar ao nosso lado quem nos acompanhasse nas excursões febricitantes do devaneio. Como seria doce cahir d’essas alturas para sentir o braço robusto e amparador que transformaria o mundo real no paraiso de nossos primeiros paes ? !

Ai ! minha amiga, estas idéas, a que eu volto sem cessar, tornam mais medonho e horrendo este escurissimo abysmo da minha alma !

Estou a aborrecer o mundo, a detestar a sociedade e a vida. Este mundo, que tu adoras, porque és feliz, porque encontraste em Gualberto a metade do anjo que tu és, é o antro onde se pavoneam estas féras humanas, esta raça feroz e egoista, que com rara excepção, tem sempre e para tudo um riso de sarcasmo; riso, torpe, que chega a macular a propria santidade da dor. Não tenho eu sido victima d’elle ? Não me tem acoimado de mentecapta porque não festejo suas inepcias, nem me canso em fingir considerações que me não merecem ? !

A sociedade é o que tu sabes : é uma velha hypocrita e andrajosa, coberta com manto de velludo. Aqui não ha nem se precisa senão de dinheiro, esperteza e uma boa mascara para gosar distincções e respeitos.

Confesso-to : tenta-me muito a idéa do suicidio, sorri-me o aniquillamento; tenho constantemente diante dos olhos este pharol luminoso a chamar-me ao porto desejado; mas, no maior ardor da lucta, levanta-se invulneravel no meu peito a muralha do christianismo; os meus olhos volvem-se á cruz sublime, que me está dizendo : sê forte. Força, pois, ó meu Deus! permitti que as pedras, que desabam das montanhas da philosophia impia e mentirosa, não esmaguem a minha fé. Eu caminharei firmada n’um unico ponto do vosso divino evangelho. Lá dizeis Vós que na Patria Celeste dos felizes da terra «entrará um por cem». Que a vossa adoravel prophecia fortaleça os que soffrem; os que gemem algemados ao padecer atroz d’uma insomnia permanente, d’uma espertina cruel dos sentidos, como esta que eu sinto inoculada em mim, e cuja febre me devora e gasta os renovos da minha primavera. Eu já não conto senâo com o desalento do cansaço; o meu espirito está debaixo d’uma pressão infernal, d’uma irritabilidade nervosa e febril. Creio que foi debalde esta digressão de que os medicos tão lisongeiras promessas me faziam; parece-me que estou ainda mais doente desde que sahí de casa. Quanto mais me esforço por vencer este demo-nio occulto, mais elle se declara senhor imperioso de meus sentidos.

Que queres tu ? Eu nasci para o amor da familia, para as alegrias do lar domestico; e a espada chamejante do anjo, expulsou-me para sempre do éden que gozam todas as creaturas sem lhe dar o verdadeiro apreço.

Orphã de paes, sem conhecer nunca affagos de seio materno, tudo á volta de mim é mysterioso e escuro, como se a minha existencia escondesse grandes crimes.

E quem sabe ?

Gasto muitas horas a reflectir no que ha para mim de obscuro no viver de meus antepassados. Apoquento meu marido, aperto com elle de todas as formas imaginaveis para que me diga alguma coisa respeito á minha familia, tendo, como tenho, boas razões para crer que viveu na sua intimidade; mas tudo é debalde, a nada se move. Cala-se a todas as minhas perguntas, suspira, e reprime a minha curiosidade com duas palavras pronunciadas com o entono de commiseração profunda e respeitosa :

-- Não queiras saber mais do que sabes -- A memoria de teus paes é, e deve ser um culto para nós : foram dois grandes desgraçados.

Porque ? pergunta o meu espirito perdido nesta urdidura, sem poder acertar com o fio principal. Porque ? repete a minha razão, procurando nas trevas um raio de luz que me esclareça. Mas nem espirito nem razão me responde; e o raciocinio nada pode em casos destes em que é preciso adivinhar... Mudemos por tanto de assumpto, e deixa-me ver se encarreiro outra vez o aranzel que te estava fazendo do meu enthusiasmo.

Enthusiasmo ! Repara tu como ha palavras convencionaes até para o nosso proprio sentir, e como resaltam dos bicos da penna sem a gente saber dar a explicação d’ellas. Deves rir-te de mim, Henriqueta; deves dizer lá comtigo : -- Esta mulher engana-me ou illude-se a si mesma quando me falla em commoções e em extasis á vista das maravilhas surprehendentes da terra. Tens razão; ri-te de mim; ri ainda de melhor vontade, sabendo que vou ámanhã assistir a um concerto dançante dado em meu obsequio pela viscondessa de***, e que tenho preparado para essa occasião uma toilette elegantissima, segundo diz a modista, mais afamada entre as aformoseadoras do genero humano. Dou-te licença para tudo, menos para me chamar hypocrita : isso sabes tu que não sou, e que o meu desgosto e indifferença por essas futilidades, que entretem e amenisam a vida das outras, não é fingido, mas sim real.

Nunca tu saibas o que isto é, minha amiga.

III

Dianna a Henriqueta

Davam dez horas quando entrei nos esplendidos salões da viscondessa.

Nunca meus olhos se tinham aberto em ambito tão rescendente dos perfumes da sociedade escolhida. Tudo ali era grande e magnifico. Á exquisita e rica elegancia dos adornos, juntava-se o prestigio que infundem ainda estes nomes reverenciados desde seculos.

A sala de recepção, admiravel peça oitavada, molduravam-n’a quadros que deviam ser de grande custo, os quaes se reproduziam como por encanto nos ricos espelhos sobrepostos ás abundantes étagères carregadas de bijuterias de preço, de flores rarissimas e candelabros de crystal.

Seguia-se a esta a sala do concerto, onde os musicos preludiavam uma symphonia cadenciosa, fazendo lembrar um cantico da orchestra celeste, entoada por uma chorêa d’anjos. D’aqui passava-se á peça mais ruidosa e mais querida da mocidade : o salão de baile. Cada um d’estes recintos tinha a sua feição particular, sem comtudo destoar do primeiro.

As damas surprehenderam-me pelo bom gosto de seu trajar, mais que pela riqueza dos estôfos e atavios.

Inquestionavelmente, as senhoras de Lisboa primam em elegancia natural e n’uma graciosidade seductora que lhes dá ainda maior realce.

Conheci tudo isto n’um relance d’olhos; mas não sei se a minha demasiada confiança ou despretensão me valeu, para me não sentir mal em tal concurso, onde tinha por honra sahir airosamente a bem dos nossos creditos de provincia. Se consegui vencer, foi por certo com a simplicidade. Escolhi a brilhantina branca e o blon-de, como o symbolo da singeleza. A saia, toda apanhada em rufos, prendia ao lado com um bouquet de rainunculos naturaes, que juntavam a seu brilho uma graça que não desmerecia no meio dos velludos e pedrarias que sobrecarregavam alguns peitilhos; juntei a isto simples braceletes de coraes e perolas, e no collo mal se distinguia uma ligeira fita preta apertada por um rubim de preço. Os cabellos, levantei-os frisados em bandós, collocando sobre elles uma grinalda de flores iguaes á da guarnição do vestido, e vindo fechar sobre a fronte com um diadema do mesmo lavor dos braceletes.

Dito isto está dito tudo : a minha despresu-mida garridice não chamava a attenção nem afeava o brilhantismo de tal festa.

Vamos agora ao mais importante.

Quando assomei á soleira da porta, a viscondessa levantou-se d’uma cadeira d’espaldar, adiantando dois passos a receber-me com a ama-bilidade digna e nobre d’uma rainha. Depois de mutuam ente nos cortejarmos, voltou-se para duas senhoras que estavam a seu lado.

-- Apresento-lhes -- disse -- uma das mais peregrinas formosuras do nosso Minho, desse jardim onde desabrocham como espontaneamente flores desta natureza.

As minhas faces purpureavam-se ouvindo-me encarecer assim. Respondi, comtudo, superando o meu embaraço: -- O’ minha senhora !.. Ha um requinte de bondade em v. ex.a que chega a confundir-me. Todavia quem entra n’esta sumptuosa mansão presente que a magica varinha da poderosa fada d’estes logares tem o poder de transformar em roza opulenta a mais humilde e rasteira urze. --

Prometti ser sincera, minha Henriqueta, nem eu para ti estaria a cubrir-me com o véo da falsa modestia. Festejaram as damas e cavalheiros presentes a originalidade bucolica do meu dizer, e passados dois minutos confluiam para mim todos os olhares; achando-me de repente debaixo da pressão d’uma curiosidade, que com quanto me não incommodasse me perseguia, por ser o meu desejo não incitar reparos.

Começou pouco depois o concerto em que tomaram parte algumas senhoras. A este seguiu-se a dança a que não pude eximir-me temendo me acoimassem de excentrica ou da falta de saber. Acceitei, pois, os pares que á porfia me buscavam, sem bisonhice, nem grande apressamento. Fiz por conservar o meu ar naturalissimo, discorrendo com os meus pares sobre musica e litteratura, como costumavamos fazel-o ambas nas nossas familiares palestras.

Notei n’estes homens d’aqui mais conhecimentos para enlevar e prender o espirito, bem que a sua graça seja mais frivola, e por isso mesmo menos verdadeira.

Depois de ter dançado não sei quantas quadrilhas e walsas, tomei o braço d’uma das damas que me apresentára a viscondessa, não por sympathisar muito com ella, apezar da sua formosura, mas por julgar necessário travar d'estas relações de sociedade e corresponder ao amigavel acolhimento que recebi.

D. Guiomar de Menezes, é o seu nome, pertence á mais apurada e fina aristocracia. E’ casada ha annos com um cavalheiro addido á legação ingleza em Londres, onde tem demorado com a esposa que, segundo me quiz parecer, nada aproveitou dos costumes e severas lições das mulheres d’aquelle paiz.

Depois de atravessar o salão, sempre envolvidas n’uma nuvem d’homens, affastamo-nos maquinalmente para a sala do concerto, abandonada a dois ou tres sujeitos de idade, que placidamente discutiam politica.

Sentadas em frente uma d’outra, a nossa conversação esmoreceu gradualmente, começando eu a sentir a garra insanavel do fastio que me segue a toda a parte. D. Guiomar tambem me parecia preoccupada, e sem desejos de voltar ao salão onde a essa hora deviam procurar-nos.

Em que pensavamos nós ? Ella, não sei dizer-te, mas iria jurar que eram tristes seus devaneios ; eu, perguntava ao meu destino que rigores lhe mereceria mais.

Mergulhada n’estas tropelias da minha imaginação, esqueci-me completamente, e creio que suspirei.

-- Os anjos denunciam a sua essencia angelica -- murmurou uma voz aos meus ouvidos.

Voltei-me rapidamente, e dei de rosto com um mancebo que me contemplava. Cortejou-me respeitoso, estendeu a mão a D. Guiomar que o fitava com certo alvoroço e voltando-se para mim:

-- Não tenho a honra de a conhecer, minha senhora, nem a creio de Lisboa. Porem, a côr dos olhos e dos cabellos, e não sei que instincto secreto me está dizendo que fallo a uma dama portugueza. Vou pedir por tanto a v. exç.ª que me dispense costumes que nos vieram importados não sei d’onde. Fallo no louco preconceito de não poder um cavalheiro dirigir-se a uma senhora que vê pela primeira vez. Deixa-me v. ex.a esperar o perdão de tal ousadia ? -- Não pude deixar de sorrir, respondendo com alguma reserva.

-- Pede pouquissimo para receiar uma recusa. Mas como toda a culpa tem castigo, imponho-lhe a penitencia de me julgar deusa ou houry, já que me deu o primeiro diploma d'anjo.

-- Comprehendo e admiro o espirito de v. exc.ª -- respondeu um pouco vexado o meu interlocutor. -- Sinto n’este momento, uma dor, que me castiga mais o coração do que a vaidade. Creia-o, minha senhora. Se não receiasse os seus motejos dir-lhe-ia como o mais querido poeta:

«Pourqoi mon coeur bat il si vite?

«Qu’ai-je donc en moi qui s’agite

«Dont je me sens épouvanté ?»

Sem saber explicar-te porque, arrependi-me de ferir a susceptibilidade d’aquelle homem, que se me afigurava debaixo de feições mui diversas. Tomára-o a principio por futil galanteador, e logo me apparecia o poeta, o idealista talvez !

Foi com pezar que o vi ir de caminho sem esperar resposta, ficando eu discutindo-o mentalmente dois minutos, que tantos decorreriam até á entrada da viscondessa, cuidadosa da minha desapparição. Dava ella o braço a uma senhora que me tinha impressionado durante o concerto pela maviosidade e intimativa de seu canto. Estimei o ensejo de aproximar-me d’ella, trocando algumas palavras em que deixei transparecer o gosto sincero que me dera em ouvil-a. Recebeu com tanta modestia os meus gabos, que, passados alguns momentos presas por mutua sympathia, conversavamos como se de muito nos conheceramos. Continuou a dança.

De relanço notava eu que o meu incognito seguia todos os meus movimentos, mas com certo disfarce; e eu procurava affastar sempre os olhos do local em que o via, fingindo não o perceber.

No fim da noite tornei a achar-me ao lado da gentil cantora, que possue uma instrucção e espirito nada vulgar.

-- Estas festas -- disse-lhe eu -- não curam enfermos de coração, pelo contrario esta luz é demasiado viva e entoutece-os dolorosamente.

-- Assim é -- respondeu ella, depois de olhar um pouco para mim. -- Eu também gosto mais das trevas: o pensamento vôa mais livre, e a alma faz-se melhor. No meio d’este bulicio, agitam-se paixões mesquinhas, sentimentos ignobeis. Seja minha amiga, sim? Eu vivo só desde que minha extremosa mãe baixar á sepultura. Meu pai, o conde d’Alvarães, é a personificação da bondade : releve-me este sancto orgulho. Quero que o conheça, certa de que encontrei uma alma superior capaz de aprecial-o. Tenho ainda um irmão, um verdadeiro coração de poeta, um desgraçado que vive de chimeras, e que não posso roubar com todo o meu carinho não sei a que sestro infeliz que lhe cava abysmos em toda a parte. O mundo, sempre injusto, accusa-o de crimes que elle em consciencia não pratica, e por assim dizer fere-mo a mim tambem porque o estimo, e sinto as suas dores como minhas. Não faltará occasião em que v. exc.a o conheça, e verá que este elogio não é exagerado.

-- Creio; e tem já seu irmão duas recommendações a meus olhos que valem muito.

-- Eil-o! -- bradou ella de repente -- Apresento-te a senhora D. Dianna de Sepulveda. Minha querida amiga -- continuou, voltando-se para mim -- Nuno d’Alvarães, meu irmão.

Fitei o homem que estava diante de nós com certo enleio. Era elle. Comprimentámo-nos em silencio.

-- Fallavamos de ti -- tornou a minha nova amiga -- Tenho orgulho em dizer-te que achei uma intelligencia distincta n’esta senhora, e sobre tudo o coração sincero de que carecia o meu espirito.

Eu sentia-me um pouco embaraçada, e para sahir d’esta situação entendi rompel-a com arrojo.

Estendi pois a mão ao visconde de Alvarães, dizendo-lhe:

-- Culpo-me de ser ha pouco severa ou arrebatada em demasia: como v. exc.a quizer. Entre desditosos a attracção é visivel e singular Respondo agora pela authorisada voz do mesmo Alfredo de Musset que me citou, e que por assim dizer, traduz os sentimentos um pouco imitaveis da minha alma:

«Je te suivrai sur le chemin, «Mais je ne puis toucher ta main, «Ami, je suis la solitude».

Aproximou-se-nos meu marido: deixei o baile.

Assim acabou a minha entrada no mundo. Creio que não omitti coisa essencial, e que me ficarás obrigada pela prolixidade occiosa da minha narração.

IV

Henriqueta a Dianna

Ha oito dias sem carta tua ! Porque me não escreves ? Quantas horas se passam sem te lembrares de mim ?

Oh ! Dianna, Dianna ! eu estou receiosa de ouvir uma verdade, que tu foges de manifestar-me com o silencio. Porque filha ? Não, não me assustes... Conta-me tudo: eu que te conheço sei que nunca podes baixar a um nivel affrontoso para a nossa amizade.

Diz-me pois o que tens feito, o que se tem passado na tua alma para me expulsares tão repentinamente d’ella.

Responde breve, responde, e falla-me algumas vezes de teu marido, d’esse excellente homem que tem por ti todos os desvelos de pai extremoso.

Estou realmente cuidadosa, minha amiga.

Gualberto, a quem não posso encobrir os meus terrores, chama-me visionaria, e invoca a teu favor mil excentricidades e sucessos que me não servem de grande abono nem quietação; julgar-te mais doente não posso. Teu marido falla a Gualberto nas tuas melhoras, e na esperança de ver-te emfim restabelecida.

Que mysterio encobre pois o teu silencio ?! Roubar-te-ha essa nova affeição ao meu carinho ? conseguirá a amiga d’alguns dias arrancar de teu coração a raiz que desde a infancia tem bracejado formosa e opulenta?

Será este meu dessocego o vaticinio de grandes calamidades para ti ?

Cautella com o teu espirito, filha. E’ preciso represal-o, e lances ha, minha amiga, em que devemos cortar-lhe os vôos, porque na vida real são perigosas estas ascenções e sujeitas a graves quedas.

Cuidado, pois, Dianna, com quanto eu muito confie na tua illustrada intelligencia. Bom é que vás aos bailes, que te distraias, mas não te concentres demasiado em ti, nem dês tanto apreço a esses scismadores infelizes.

V

Dianna a Henriqueta

Discorres tão acertadamente respeito a estes tenebrosos de salão, quão justas me parecem as arguições que me diriges.

E’ verdade, Henriqueta. Eu tenho ás vezes illusões que cahem pedaço a pedaço como as folhas seccas desnudando o tronco em que floriam viçosas.

Tremeste pela minha tranquillidade, e razão terias para isso, minha amiga; aquiéta, porem, o teu espirito, que a sazão vae passada.

Toca-me agora illucidar-te sobre o occorrido n’estes doze dias.

Logo no seguinte áquelle do baile, procu-rou-me Beatriz com seu pae, o conde de Alvarães.

-- Authorisado pelo acolhimento que v. exª fez a minha filha -- disse elle -- e a instancias suas, venho offerecer-lhe os meus respeitos, bem como a seu marido; esperando que v. ex.ᵃˢ me concederão a honra da sua amisade e alguns momentos da sua companhia.

A isto respondi apresentando-lhe meu marido o qual, como bem sabes, possue uma graça encantadora para recambiar estas amabilidades. Na verdade, ninguem melhor que Alvaro se deixa ver debaixo d’aquelle ar singelo e grave do homem de saber. A sua bella fronte, affigura-se-me por vezes uma espessa camada de neve encobrindo um vergel esmaltado de boninas. A affeição que sinto por elle é profunda, profunda como o são todas que enraizaram na mocidade. Quando o ouço expender uma idéa e sustental-a com a fluidez do homem superior, ou refutar uma theo-ria lardeada de sophismas arguciosos d’um Voltaire simulado, penso no orgulho que eu teria se elle fosse meu pai. Pai!... sim. Era o nome que o meu coração adoptava, e que me considerava feliz de poder dar-lhe. O destino, porem, tem uma logica de lamina de cortante espada: verga mas não quebra!

Mostrou-se o conde muito agradado de nós, e n’essa mesma noite fomos pagar a sua visita, a que nos obrigou com apertadas instancias.

ais saber tudo, Henriqueta. Hoje, depois de ter analysado bem as minhas sensações, devo confessar, para castigo da minha insofrida vaidade de impenetravel, que pensei com alegria que ia tornar a ver Nuno. Preocupava-me a idea que elle estaria fazendo de mim, depois do antagonismo de caracter que em tão curto espaço de tempo lhe mostrei. Comprazia-me em imaginar não sei que romanescas peripecias em que elle tomava parte, como um anjo de consolação, nas minhas amarguras... Anjo! vês tu ? ! Não me tinha dito seu irmão que elle era um grande desgraçado ?

Entrei, pois, em caza do conde com estremecimento interior. Beatriz me disse que, não querendo distrair-se da satisfação que lhe dava a minha companhia, preferira passar a noite a sós comigo e com alguns amigos mais intimos de seu pai, a fazer convites que a obrigassem a formalidades.

Agradeci-lhe de coração esta prova obsequiosa da sua amizade, asseverando-lhe que era d’essa maneira que eu desejava e queria ser sempre recebida.

Passaram-se alguns quartos d’hora sem que Nuno apparecesse. Admirada, perguntei por elle a Beatriz, que me respondeu:

-- É hoje um dos seus dias de trevas. Appareceu-me esta manhã muito demudado das feições, dizendo-me que não conseguira descançar uma hora, e fechou-se depois no seu quarto resistindo ás minhas supplicas para o arrancar d’alli. -- Pobre moço ! exclamei eu, sinceramente commovida. Que secretos pezares são esses que lhe amarguraram a existencia, quando possue tantos d’esses attributos que concorrem para a felicidade ! Não é já um grande bem ter um pai e uma irmã como a minha querida Beatriz? Que faria se elle se achasse só, sem ter de seu lado tão grande amparo ? Diga-lhe que se console, que ha ainda creaturas mais queixozas e com mais valor moral para arrostar com os temporaes da vida.

-- Quantas vezes lh’o não tenho eu dito, minha amiga ? ! -- Tornou Beatriz -- Mas não ha forças que o demovam d’aquelle constante desalento. Foi quasi obrigado por mim que consentiu hontem em entrar alguns momentos no baile, e accusou-me já hoje de lhe ter procurado uma nova dor. Por mais que me esforce por arrancal-o áquella situação responde-me que é inútil, que não sei, e Deus me livre de comprehendel-o.

erviu-se o chá.

Meu marido e o conde abancaram n’uma partida de Wist; os outros acercaram-se da meza, e Beatriz sentou-se ao pianno. Tocou como professora que é e pediu-me que me deixasse ouvir. Não fiz objecção, e cantei a aria final de Maria de Rohan. Pouco a pouco a imagem de Nuno tinha-se esvaecido no meu espirito, e quando soltei aquelle primeiro brado «infausto hymeneo» havia só a dôr verdadeira da minha situação a alancear-me o peito.

Da outra extremidade da sala acordou-me uma explosão de bravos, quando vibrava ainda no ar a ultima nota: conheci que os jogadores tinham parado para me ouvir, e voltei-me sorrindo, para agradecer esta ovação immerecida. Em frente, de pé, e encostado ao alizar da porta, estava Nuno. Seus labios não se descerravam mas a expressão dos olhos fez-me baixar os meus, correspondendo quasi maquinalmente ao comprimento que me dirigia. Depois, sem o ver, conheci que se encaminhava para mim, e senti-me alvoraçada agradavelmente.

Desejarás por certo conhecer Nuno de Alvarães e tempo é de fazer-te o seu retrato, que nada tem de original. Não é alto nem baixo, nem magro como os heroes dos romances tragicos, nem gordo como os dos romances alegres. Tem cabellos escuros, bocca graciosa, e nos olhos meiguice natural e melancolica. Não é propriamente um Adonis, nem tão pouco possue a fealdade que é costume disfarçar-se na palavra sympathia. No que elle é comparativamente inexcedivel, é nas maneiras delicadas que denunciam logo o homem superior que tem convivido com a primeira sociedade.

-- Aqui me tem -- disse-me elle com tristeza -- quiz fugir-lhe, tinha protestado não a tornar a ver, e não pude cumprir. A sua voz arrancou-me ás minhas boas intenções; tive de ceder ao impulso violento do coração; e aqui estou, supplicando-lhe que me não repulse da sua presença. Não, eu não lhe fallo mais -- continuou, vendo que eu ia interrompel-o -- não me diga nada se as suas palavras devem ferir-me. Se soubesse que desesperos tenho hoje soffrido, que blasfemias tenho proferido contra Deus, porque m’a mostrou tão tarde! Tarde, sim, não sorria; a minha vontade attrahiria a sua alma como o iman attrahe o aço e a felicidade não seria uma chimera como cheguei a pensar tantas vezes. Creia-me: eu conheço-a ha muito! Ha muito tempo que a procuro sem poder encontral-a; e agora, quando me apparece, quando as nuvens se rarefazem para deixar brilhar o sol com todo o seu esplendor, aquellas palavras motejadoras que me dirigiu, o sorriso ironico que descerrava os seus labios, o ar severo que lhe noto na phisionomia tudo me leva a crer no seu desdem e na fatal irrisão do meu destino. Para que havia de conhecel-a em realidade, visão adorada dos meus sonhos ?!

-- Ouça-me tambem agora, senhor Nuno de Alvarães, redargui eu serenamente -- V. ex.a seria digno de grave censura, se eu não désse ás suas palavras o verdadeiro sentido. Quero acreditar que v. ex.a é em parte sincero, mesmo porque deve conhecer que nada lucraria com fingidos devaneios que o fariam abjecto aos meus olhos, e aos olhos de toda a mulher que se preza da sua dignidade. E’ por tanto, em nome d’esta que lhe peço, me poupe a ouvir expressões d’essa ordem. Das duas uma: ou v.ex.a está convencido que falla a uma mulher boçal que se deixa arrebatar pelas melodias d’um sentimentalismo exaltado, e essa persuasão é um insulto, ou sente realmente por mim uma affeição que me lisongeia. Se é essa, como supponho, acceito-a sem córar, impondo-lhe unicamente uma condição. V. ex.a não torna mais a fallar-me como ha pouco; não me fará allusões pessoaes, que são uma offensa á minha posição. Ficamos de accordo?

-- Sim -- balbuciou elle commovido. -- Veja como hontem a comprehendi de relanço, e como a minha alma achou de prompto o epitheto que lhe cabe bem ... . Anjo!

-- Basta -- tornei eu -- ou fica sem effeito o que tratámos.

Desde esse momento, as horas passaram rapidamente. Nuno estava alegre e Beatriz redobrára de carinhos como agradecendo-me o contentamento do irmão. Eu sentia-me bem: pela primeira vez saboreava o prazer de me ver obedecida e amada.

Louca, meu Deus! louca! Porque preço devia eu pagar tão intempestivo contentamento!...

E por hoje fiquemos aqui, Henriqueta: estou cançada de evocar reminiscencias que tomára eu esquecer...

VI

Dianna a Henriqueta

Ardua tarefa emprehendi, minha amiga; mas não afrouxo, não: o mesmo pêso d’ella fará abater parte das sublevações d’um espiritualismo que me adoenta, e que me faz talvez cahir em aberrações indesculpaveis.

Pelo final da minha carta ficarias entendendo que me excedi na insolita presteza com que acceitei, d’um homem quasi desconhecido, a troca d’um sentimento, a que nós as mulheres temos obrigação de demarcar certos limites, senão queremos desmerecer no conceito d'aquelles mesmo que nos obrigaram a descer um passo do nosso pedestal. A minha razão bradava; porem a minha alma, senhoreada por pensamentos d’uma suavidade embriagadora, procurava sophismas que tresmalhavam o candido rebanho das minhas idéas, que tão seguro de si caminhára até então por esses prados e alfombras !

Algumas vezes pensei em ti, e convencida estou que a tua voz levantaria alta e salutar celeuma no meu espirito; estes momentos, porem, eram instantaneos como o relampago,

Nuno e Beatriz não me davam tempo para raciocinios; e, posto que este cumprisse religiosamente a palavra que me dera, eu sabia em que altar me achava collocada, sentindo-me rica e orgulhosa com esta vassalagem humilde, sem exigencias, nem esperanças.

Não era isto o que de muito cubiçava a minha alma?

Na audicção interior do meu espirito, resoavam sem cessar todas as phrases que mais ou menos se ligavam, reforçando esta idéa, este suave e mortífero veneno da minha tranquillidade. Já emfim, graças não sei a que philtro, aquella sombra fibricitante das minhas longas noites de vigilia se tornava compacta e visivel.

Já a visão recompunha feições; a chimera tinha voz; o sonho delirios; e o coração arfava-me no seio invulneravel até essa hora... vivia! e que vida aquella! E apezar de tudo, não era isto ainda o amor, a paixão que allucinava.

Oh! de certo não, Henriqueta; não me digas que era; não me convencias, e todavia atormentavas-me. Isto não era mais que uma illusão do meu espirito, a sêde da minha alma que me arrastava tonta e cega apoz d’uns meandros amenissimos, que eu imaginava deverem confluir a uma fonte crystallina.

Como alma, coração e espirito nos enganam, minha amiga! Como nos atraiçoam! Pois não devia eu ouvir uma voz que me advertisse que aquelle homem era vil, hypocrita e refalsa-do?! Em tenebrosissima escuridão despertei!

Agora sim, agora cuido que já entrei na iniciação dos mysterios do coração humano; creio que estive prestes a tombar na fogueira das paixões ignobeis, que pairei um momento sobre essas chammas infernaes; e se sahi d’ellas corporalmente illesa, a alma soffreu muito, soffreu; ficaram-me por lá pedaços! .. Ficaram que eu sinto-me pobre: pobre do meu orgulho que barateei sem dó; pobre da isempção que fazia toda a minha soberba.

Que não vás tu pensar, filha, que eu lamento despresos ou preferencias. Não: a ferida que me doe é apenas o desengano frio e atroz das minhas aspirações; é vêr á mingoa de alento, morrer uma a uma as florinhas que renasciam d’hora a hora na minha imaginação.

Basta, porem, de exordio: escuta.

Como ha pouco te disse, N uno fazia-me viver n’uma athmosphera embriagadora. Cercavam-me attenções, carinhos, e sobre tudo aquella adoração muda e respeitosa que o coração tam bem recebe, e nunca deixa sem paga. Em contraposição, era eu a que pensava alto; era eu que me deixava levar da torrente, era eu que folgava d’ir recostar-me sobre osespinhos, tomal-os ás mãos e beijal-os! Era este o grande perigo.

Que homem! que homem aquelle! Como finge extremos que não sente, como sabe mentir com os olhos! Como podia elle haver lagrimas, quando nos meus desalentos lhe supplicava lastimas para o meu infortunio? Como podia modular a voz, como aprender o som intimo com que me dizia que nunca encontrára paragem na vida onde repousar as doces e inebriantes chimeras de seu pensamento... E mentia; mentia -- como homem! e eu imbecil, que estive a ponto de entrajal-o com as roupagens celestes ! Eu, -- confesso-o para minha vergonha eterna -- eu que o vestira de luz, que o coroára com as joias mais preciosas da minha idealidade, que o incensava com as mais puras essencias do meu espirito.

Quando recebi a tua carta, mostrei-lh’a; fallei-lhe de ti, da nossa infancia, da felicidade que gozas n’esse cantinho ignorado do mundo, e onde tu imperas como rainha, entre Gualberto e as louras cabecinhas de teus dois filhos. Sem querer, meus olhos arrazaram-se de lagrimas, e a saudade dos dias que ahi passei comtigo foi tão acerba, que me soffocou a voz. Reparando em Nuno, notei que estava commovido. Estendi-lhe a mão que pela primeira vez beijou com respeito.

Quiz depois ouvir tudo quanto eu podia dizer-lhe relativo aos nossos primeiros annos, mostrando-se admirado da minha tal qual instrucção e da tua, pelo que as tuas cartas revelam, e a que elle chamou pouco vulgar. Contei-lhe, então, como ficando orphã na primeira infancia, fui entregue por quem quer que fosse a madame Martoan, a nossa excellente mestra e quasi segunda mãe, senhora de grande intelligencia e grandes virtudes, que circumstancias imprevistas trouxeram a Portugal, e obrigaram a tomar-me para a sua companhia como educanda. A ella devi, ou antes devemos, porque também tiveste a fortuna de ser confiada á sua tutella, o pouquinho que sabemos... ..Agora comigo as saudades d'aquella nobre alma ! Muito perdemos com a sua falta, ó Henriqueta! Nunca as nossas lagrimas e o preito que damos á sua memoria pagará o muito que lhe devemos.

Depois d’estas confidencias refinou a minha cegueira. Parecia-me que Nuno ganhára novos direitos á minha estima, cuidava conhecel-o desde muito; fallava-lhe com o abandono d’uma irmã que se crê deveras estremecida.

Oh! em má hora resolvi sahir da provincia; em má hora pensei n’esta terra maldita onde eu devia conhecer as paixões mesquinhas de que me julgava a coberto... .Ouve:

Tinha Beatriz depois d’alguns dias projectado um passeio a Cintra. Esta lembrança sorrira-me primeiro que a ninguem, amiga como sou de ver o céo azulejar-se por entre os choupos, os olmos e o castanheiro em flor. Ajunta a isto a belleza do local tão afamado, e a excitação da minha curiosidade, desde que o auctor do Childe-Harold, aquelle grande espirito que eu tanto admiro, nos disse d’elle coisas tão lindas.

Marcou-se o dia que amanheceu esplendido, e ás oito horas da manhã rodavamos estrepitosamente dentro dos caleches que não eram menos de cinco. No primeiro entrára eu com Beatriz, no segundo ia com seu marido D. Guiomar de Menezes, senhora em quem deves estar lembrada te fallei, e que não tornára a ver desde a noite do concerto. No terceiro vinha a viscondessa, seguindo logo a victoria particular do visconde de Alvarães acompanhado do barão de* ** seu intimo amigo, e que eu julgo com intenções a respeito de Beatriz. Fechava o prestito o coche do conde com meu marido.

Tudo parecia prometter-nos um dia agradavel. O ar estava tepido, e os palacetes que marginam o caminho com seus balaustres engrinaldados de flores, brunidos com os raios do sol convidavam o espirito a pensamentos alegres. Todavia, a minha alma ia escura. Sentia uma oppressão inquieta e febril, um desprasimento de tudo o que via, um desejo irresistivel de mandar voltar os cavallos, e fugir não sei a que perigos que um funesto presentimento me fazia antever. Debalde Beatriz, a quem talvez não escapára esta disposição melancolica, tentava desenrugar-me a fronte e distrahir-me; a cada instante recrusdecia a minha invencivel tristeza.

Confessemos porem tudo.

Não era o meu estado devido unicamente ao vaticinio que como morcego de azas negras avoejava sobre o meu coração. O que fora a principio sombra vaga e indivisivel convertera-se a final em realidade. Essas azas negras debaixo das quaes me appareciam garras como de tigre, rodeavam-me acintosamente e pouco a pouco iam demudando de forma até se transformarem n’uma mulher: essa mulher era Guiomar !

Porque ? vais sabel-o.

Tanto o meu espirito se preoccupára com duas imagens conhecidas n’essa noite fatidica, que todas as outras quasi se esvaeceram na minha memoria. Atonita fiquei, pois, n’essa manhã, quando sem ser convidada nem esperada, no momento em que estavamos para sahir de minha caza, que era o ponto da reunião, vi chegar D. Guiomar de Menezes.

Não posso ainda que quizesse dercreverte a desagradavel impressão que me causou a sua inopinada visita. Vinha deslumbrante de formosura ! O rigoroso lucto que trajava fazia sobresahir a alvura e o assetinado de suas faces, como a çucena por entre um tufo de verdura... Protestei não te encobrir nada, Henriqueta. Olhei para mim, com descontentamento do meu vestido verde-malva, quasi escondido por magnificas rendas pretas. Achei-o vulgarissimo e de máu gosto!

Vez ? cá estava o demonio da vaidade a ageitar-se-me no seio.

Adiantei-me a todos com o melhor rosto que pude. -- A satisfação que gozo de a ver, minha senhora, é-me aguáda por tão fúnebre apparato. Perdeu alguem da sua familia ? -- Da minha familia, não -- respondeu baixinho e maviosamente, pondo os olhos em Nuno que não podia esconder o seu ar contrafeito, mas pranteio a morte da unica pessoa que amei neste mundo.

Não achei palavra para dizer-lhe: o coração pulsava-me com força. A luz bruxoleava apenas, e seu fulgor sinistro entoutecia-me já !

O barão, que se tinha apaixonado, veio em meu auxilio, dizendo:

Se v. ex.a m’o permitte aconselho-lhe a distracção, e para isso não podia escolher melhor companhia que a d’estas senhoras.

-- Distracções! nem as quero, nem as procuro -- tornou a dama com soberania, esclarecendo-me de subito que o barão conhecia o mysterio -- Tão pouco quizera vir aguar o prazer de tal festa, como ha pouco ouvi. Vim, porque julguei que ninguem repararia na minha presença, e que me consentiriam, fiada na amisade de Beatriz e benevolencia das mais pessoas, os acompanhasse, tragando assim até á ultima gotta, o fel das minhas dores.

Disse, e sem reparo do estado em que fiquei, ouvindo estas palavras que se me estavam insculpindo em bronze no coração, como sahidas do cadinho abrazador, caminhou direita ao fundo da sala comprimentando a todos com presença de espirito, e ouvindo os emboras da sua agradavel resolução.

Subimos. Desci a escada n’um atordimento indiscriptivel. Logo que me vi a sós com Beatriz, contei-lhe por alto o que se tinha passado, como pedindo uma explicação.

-- Pouco mais sei do que tu -- me respondeu. -- Esta mulher é uma doida, que toma aquelles ares sentimentaes para se fazer notavel.

-- Não me quer parecer isso -- tornei eu -- e, afóra a inconveniencia de me vir fazer confidencias a mim, é possível que ali esteja escondida uma dor verdadeira.

-- É possivel -- redarguiu Beatriz -- mas não te fies em apparencias. Eu de mim vou jurar que foi muito estudado ao espelho o effeito do vestido, e d’aquelles ridiculos momos que tanto te impressionaram.

-- Assim será; deves conhecel-a melhor do que eu; -- mas o que é certo é que ha alguma coisa entre ella e teu irmão. Foi provavelmente por elle que ella soube d’este passeio, e que resolveu tomar parte n’elle.

-- Não duvido, não. Nuno é como já te disse um visionario, tão prompto a inflammar-se por uma mulher, como a recahir no gelo do indifferentismo. Haverá tres annos, quando Guiomar cazou, que o julguei perdido da cabeça para sempre, e não chegaria bem a um mez depois, que o vi fazer taes extremos por outra, que me convenci de que isto d’amor n’elle é uma doença, uma monomania que só o tempo ha-de curar.

-- Logo é elle um hypocrita de grande força -- disse eu forçando um sorriso que me escaldou os labios.

-- Não lhe chames esse nome que és injusta e pouco verdadeira. Desgraçado é que elle é. Ninguem forja chimeras mais insensatas! e quando ellas desapparecem ao ligeirissimo sopro da vida real, cahe elle tambem prostrado da fadiga moral a que o obrigam as suas concepções. E o mau é ficar lá sempre o fermento que ha-de levedar outras.

-- És adoravel no teu santo fanatismo. Bella cruzada a tua, minha Beatriz! -- continuei eu constrangendo o espirito a uma verbosidade irritante e dolorosa -- E por tanto esta formosa Guiomar uma d’essas visões aerias que baixaram do céo com a especial missão de arrebatarem o visconde de Alvarães para os páramos infinitos da sua fertil phantasia?!

-- Não sei o que é, foi, ou será, Dianna; já vejo que estás de má fé a respeito d’elles, e eu não posso dizer-te mais do que isto.

-- E já é muito, -- interrompi eu -- é demais para a inoffensiva curiosidade que me despertaram.

Callámo-nos. As minhas idéas eram tão confusas, que eu temia perder-me no labyrintho em que insensivelmente me ia entranhando. Comprehendia a necessidade de me mostrar serena, para desviar as suspeitas que por ventura laboravam no espirito de Beatriz. Além de que, não me podia ficar duvida na intenção secreta das palavras que Guiomar affoitamente me dirigira. De mais, tinha eu direitos para me julgar affrontada? Que poderia eu exigir de Nuno se o amasse? Fidelidade no futuro, em troca da minha tolerancia sobre o passado. Esta é que é a verdade; isto e o que seria se eu o tivesse amado, com o amor vulgar das creaturas. Mas é que eu não o amava, Henriqueta! Eu adorava-o! Era a minha religião, o meu culto, o meu Deus, a minha santa e immaculada poesia! E tão sublime era esta adoração, que a confessaria a meu marido sem córar! E ainda mesmo depois de saber que era escarnecida por elle, quando me enfeitiçava com a ingenua historia da sua vida, moldada pela minha nos arroubos mysteriosos, levava a minha generosidade até o ponto de perdoar-lhe, e procurar ainda nos fragmentos do meu despedaçado idolo o pó d’essas reliquias.

O almoço correu triste. Fomos depois á Penha verde, que não te descrevo porque afóra as grandes arvores, por nós tão vistas no nosso Minho, nada temos que admirar; não vi mais nada.

Pareceu-me que os olhos do visconde de Alvarães e os de Guiomar espreitavam a miudo os meus movimentos. Foi bastante este incentivo, para que a minha dignidade sobrelevasse o desgosto que sentia.

Creio que me mostrei alegre e naturalmente tranquilla.

Vi os dois sentados debaixo d’uma grande arvore, emquanto eu e Beatriz apanhavamos aqui e além uma flor, ou admiravamos as borboletas fulgindo e adejando sobre nossas cabeças com suas azas matizadas. A distancia não deixava ouvir o que diziam, os gestos, porem, do visconde eram imperativos, e como accusando pouco contentamento.

Affastei-me de proposito, entrando n’uma rua lateral que m’os escondia; mas d’ahi a momentos Nuno sabia-nos ao encontro.

-- Porque me fogem? -- disse elle com ar pesaroso.

-- Não fugimos -- redargui eu -- Cançámo-nos atraz das borboletas, como v. ex.a corre atraz da felicidade.

-- Quer dizer que os meus esforços para a segurar são tão inuteis como as tentativas de v. ex.ᵃˢ para colher esses animaesinhos ás mãos?

-- Deus me livre de tal pensamento! -- tornei eu risonha -- Ninguém a merece tanto. O caso está em não desanimar.

Enfiei o braço no de Beatriz e deixei-o pensativo.

Quando recolhemos aproveitei o ensejo que me davam uns ataques de tosse secca e nervosa para me evadir ao jantar em casa da viscondessa.

Nuno não pôde, nem me pareceu, pelo menos, fazer esforços para se aproximar de mim. Ia tão guardado pelos olhos de Guiomar!

E que teria elle a dizer-me ?

VII

Dianna a Henriqueta

Lê a copia d’essas duas cartas para te orientares no que se tem passado.

«Dianna.

« Chamo-te na anciedade d’uma grande e afflictiva dôr. Recusarás tu acudir-me? Ha sete dias que me fechas a tua porta, que ninguem te vê; mas eu sei que vives e que passas o tempo lendo, escrevendo e sonhando como sonha a tua rica imaginação.

« Sei que pensamentos te absorvem, conheço a chaga que te faz soffrer, e desespero-me de não poder chegar-lhe o balsamo.

« Por piedade escuta-me: tenho infinitas coisas a dizerte que não ouso confiar ao papel. É uma necessidade urgente fallar-te; supplico-t’o como uma fineza da tua parte, o que nunca esquecerei.

« Lembra-te, por tanto, que espera uma resposta favorayel a sempre tua

« Beatriz».

« Resposta:

« Enganaste-te minha querida filha. Tomaste os antigos espinhos da minha cruz por novas e hervadas setas. A chaga não é d’agora: ha muito que ella sangra e sem esperanças de cura.

« Se me concentrei na minha thebaida não foi por temer recahidas perigosas; cancei do bulicio d’esse mundo em que me sinto estranha, e reatei o fio partido da minha desconfortavel vida por uma intermittencia que devia deixar-me recordações penosas. Que o não digo eu por ti, nem mesmo me queixo d’alguem. Se ha culpas, são minhas; se ha enganos são chimeras d’este pobre visionario do meu espirito.

« E agora que me queres tu ? Que posso eu fazer para te desfadigar d’esse estado d’exaltação que te fez lembrar de mim ?

« Conheço-me um átomo tão insignificante, que, por mais absurda que seja a minha vaidade, descubro claramente que por causa nenhuma posso entrar nos teus pezares. Comtudo, tu chamas-me e eu folgo de me considerar prestavel. Vem, pois, quando quizeres, que a minha alma está disposta a recolher as tuas confidencias».

Dez minutos depois Beatriz estava comigo.

Vejo-me obrigada a encurtar pormenores para te não enfastiar. Direi por tanto em resumo o que daria longas paginas, e referindo-me unicamente ao que Beatriz me contou.

As suas primeiras palavras gelaram-me de espanto. Nuno enlouquecêra! Guardavam-no á vista, receiando algum funesto incidente n'um dos frequentes accessos. A sua idéa predominante era o suicidio. Sangrado de poucas horas, arrancára as ligaduras e pedia, ora com lagrimas e já com gestos furibundos, que o deixassem morrer; O conde estava inconsolavel e os medicos temiam algum successo fatal, que de repente lançasse Beatriz na orphandade.

O sangue estuava-me nas veias; queria e sentia fallecer-me o animo para abordar directamente o ponto essencial. N’este aperto faltava-me a palavra e até o raciocinio. Uma voz interior dizia-me que de tudo era eu a causa, e o negro quadro, caregado ainda com as pezadas cores da minha imaginação tornava-se medonho.

Beatriz, que me comprehendia, não achava modo de me fortalecer, nem como dirigir-me uma insinuação pessoal em que chegariamos á dura perplexidade das explicações. Por fim, vendo que eu nada dizia de positivo que a authorisasse a fazer-me ouvir mais do que me convinha, entregou-me essa carta que tambem acharás junto, dizendo-me:

-- Vou deixar-te, Dianna. Sei que me entendeste ; e para almas como a tua escusado é apontar-lhes para o caminho mais nobre. Vou contente: levo a certeza de que não verei malograda a minha esperança. Por tanto, adeus. Conto comtigo esta noite á cabeceira d’um enfermo de quem pai e irmã te pedem o milagre da cura e da vida.

Lancei-lhe os braços ao pescoço, suffocando os soluços que me despedaçavam o seio.

-- Sim, irei, -- respondi -- e permitta Deus que lhe sejam levadas na conta das que elle sofre, as horriveis torturas que me estão martyri- sando a alma. Agora posso dizer-te tudo, Beatriz, posso. Deixo cahir esta mascara que me envergonho de ter aproveitado. Para que esconderei eu estas lagrimas ? para que procurar um disfarce indigno de mim? Repara que este orvalho da piedade não tem o queimor acre do crime, e que eu choro afoitamente diante de ti pelo homem que me mereceu uma idolatria sublime! Sim, é necessário que eu expie a minha loucura: manda-me Deus essa prova, e eu acceito-a.

-- Has-de salval-o, sim? -- redarguiu ella -- -

-- Salvarei; e, o que mais é, que nenhum de nós tenha de córar da sua fraqueza aos olhos do mundo.

Esta é a carta que Beatriz me deixou, dirigida ao barão de * * *

« Em que occasião me deixas! Foge-me alma e vida atraz d’esse espirito angelico que lá vae pairando nos astros, envolvido na sua pura chlamyde!... Espirito, sim. Aquella voz, aquelle rosto, aquelle porte sem igual, tudo denunciava uma essencia superior.

«Viste-a acaso no meio das outras? Ouviste aquellas palavras que lhe sahiam dos labios como ciciadas por um instrumento aerio e suavissimo ?! Podes-te vel-a como eu, sentada á banca carregada das obras dos mais elegantes poetas e prosadores, passados e contemporaneos? Admirastel-a na encantadora simplicidade, no abandono da sua posição abstrahida e pensadora, quando com o rosto apoiado nas mãos se embebia na mystica e celestial leitura do Tratado do amor de Deus, repetindo-me estas palavras que eu repito a todo o instante, tão dignas são dos labios que as pronunciavam, tanta analogia lhe encontro com o objecto que m’as tornou conhecidas:

«Não nasci para este mundo, pois que o mundo não chega para mim. Existe pois acima de mim algum soberano bem, de quem dependo e que para si me creou. O incomparavel artifice, que insoflou em mim este desejo de saber e inclinação a amar, é aquelle soberano bem, ao qual mister é que eu penda, e para quem é força que me eu lance, e a quem é inevitavel que me eu ligue para achar em sua bondade o que não posso achar em parte alguma».

«Sublime creatura! Como deixaria eu de amal-a até ao frenesi? Que homem teria coração para a contemplar com indifferença, quem poderia deixar de ficar vencido por tantas seducções terrestres e espiritues!

«E que magia a d’aquelles olhos! Que influxo mysterioso predomina n’aquellas branduras de seu olhar! Que poder fascinador nos subjuga a seu lado a materia e os sentidos, elevando-nos a alma a caminhar no rasto luminoso da sua até ás mais castas voluptuosidades!

«Vendo-a, comprehendi o typo divino d’a-quellas raças biblicas outr’ora proscriptas de Sião; compenetrei-me do santo e ardente enthusiasmo d’essas virgens christãs, arrastadas ao circo pelos ferozes sectarios do barbarismo, e que esquecidas de si entoavam o hymno do livramento, emquanto as feras uivavam nas jaulas á vista de suas victimas ; reconheci o poder supremo de Deus no prodigioso conjuncto de tantas perfeições n’uma só creatura; adorei aquelle ser unico em graça, a que anjos invisiveis protegem com suas azas immaculadas!

«Ó meu amigo! Eu, tão cego idolatra do genio, cheguei a odiar o Dante, Petrarcha e Milton, o Camões e Bernardin Ribeiro, e todas essas gloriosas sombras que são meus rivaes no espirito d’aquella mulher. Não, já não lhe invejo o éstro. Fosse eu um só reunindo o poder intellectual de todos, e tudo trocava, tudo dava de barato por um só premio: o amor d’ella!

«Quem poderá merecer-lh’o? Que throno ha ahi em cujos degraus não poisasse com a segurança do merito pessoal o pé d’aquella creatura? Que coroa deixaria de assentar bem n’aquella fronte magestosa, que sabe impor toda a ordem de respeitos desde a vassalagem até ao acatamento da divindade!

«Quando me ponho a reflectir na bruteza das minhas affeições e enlevos passados, tenho pejo de mim; pejo e dor de ter desperdiçado as delicadezas do sentir por veredas sujas e tortuosas, manchando as simplezas adoraveis da virgindade do coração, que eu dava hoje tudo por offerecer-lhe sem macula.

«E perdi-a! Perdi-a, sem ter pensado sequer em chamar-lhe minha!

«Grandioso predominio do espirito! Amei-a tanto, que nunca me entrou na mente obscurecer a dourada aureola que a circumdava.

«Ella crê-me mau, pervertido e traidor; as apparencias condenmam-me; mas eu quero, morrendo por ella, ganhar para a minha memoria uma rehabilitação saudosa e eterna. Quero; é preciso morrer. A vida sem a sua estima é d’um pezo incomportavel, é ir requestal-a como a uma mulher vulgar; humilhar-me e tornar-me por assim dizer indigno a seus olhos, da altura em que eu sei era visto até que o demónio da fatalidade me fez cahir, isso é que eu não posso.

«O’ Dianna, Dianna! Tu me ouvirás depois lá d’um outro mundo. Tu me farás justiça; tu saberás que santo pudor fechou meus labios á entrada do tumulo. Tu me chorarás; tu irás perguntar á minha campa o segredo que não ouso revelar-te, e eu te direi então na lingoagem dos mortos: olha para esta pedra; guarda a memoria do homem que deixou o mundo, porque não soubeste que coração perdias... ..

«Adeus; abraza-me a febre. É necessario terminar com isto. Adeus».

VIII

Dianna a Henriqueta

Deves ter notado o meu silencio n’estes quinze dias que me tem fugido rapidos, como a memoria d’um sonho.

É um encanto tão doce sentir reviver debaixo dos nossos olhares uma vida preciosa e adorada! Os mesmos sobressaltos da duvida, contrabalançados com os fulgores sempre vivos da esperança, tem um sabor especial e indiscriptivel!

Sim, agora posso dizer-to. Nuno, o idolatrado irmão da minha alma está salvo. Acabaram os meus terrores; findaram as minhas apprehensões; sinto na alma não sei que lufadas de primavera que me rejuvenescem, que me trazem envolvida n’uma athmosphera vertiginosa e encantadora.

Se tu visses, como Nuno me agradecia, não a vida que eu ia levar-lhe, segundo elle dizia, mas a dor extrema e violenta que me acercava de seu leito! ? Se viras o conde, esse ancião respeitavel por quem eu sinto uma especie de culto, e que é aos meus olhos o typo do grande fidalgo, conservando todas as poeticas tradicções de seus avós; se o visses apertar-me ao seio alteado pelos soluços, e dizer-me baixinho: abençoada seja! Se presenciasses os transportes de Beatriz, perdoavas-me este accesso de orgulho, esta alegria ineffavel que sinto junto d’esta familia que preso como minha, e de quem me vejo estimada acima dos meus insignificantissimos merecimentos.

A lucta entre a vida e a morte, a perda de sangue que foi necessario tirar ao enfermo para acalmar o ardor da febre, tornaram morosa a cura, e por vezes arriscada, quando uma pequena exaltação o fazia cahir em syncopes assustadoras.

N’esses momentos é que eu sentia forças sobrenaturaes para incutir aos outros a fé de que a minha alma mais carecia.

Pouco a pouco foi este estado degenerando n’uma prostração phisica. Os calmantes que elle só acceitava da minha mão iam-lhe conciliando uns somnos reparadores, emquanto eu sentada aos pés do leito orava e o contemplava sósinha.

Que grande revolução nas minhas idéas! Como eu pensava algumas vezes em vel-o morrer a sangue frio! A sangue frio, não digo bem, Henriqueta. Era com fremitos de coração, que eu me compenetrava da idéa de morrermos ambos. Podes tu imaginar que eu poderia sobreviver-lhe? Não se deixava morrer este pobre coração, sem soltar um queixume, sem que nem por sonhos tivesse deturpado a casta pureza de nossos amores ? Como poderia eu recompensal-o sem me altear e fugir com elle destes tremedaes da vida? Morrer elle! e por mim! Deixar o mundo que lhe promette tantos gozos; entregar aos vermes esta parte corporea tão perfeita e admiravel!

Na verdade, minha amiga, Nuno é bello. Nunca a sua formosura me saltou tanto aos olhos, como n’essas horas em que o anjo da extrema agonia o cingia já com a auréola da eternidade.

O’meu Deus! Salval-o-hia o meu amor? Este amor sacratissimo que nada tem de commum com os amores da terra?! Não achas tu que sou immensamente feliz, e que devo ao Senhor uma gratidão sem limites por este enchimento de ventura em que náda a minha alma? Este deleitoso sonhar, tão innocente como o germen da flor que, lançada á terra, viçou entre os cardos e os espinhos, e sem que a agrura d'elles lhe empanasse a lindeza!. ..

Estou certa que tu, ceifeira cuidadosa das minhas reflexões, entrarás bem no âmago de meus pensamentos. Tambem o amas, não é verdade? Tambem tu elevas o teu espirito ao Deus misericordioso, tambem tu fazes votos por este homem, tambem tu pedes para elle a realisação de tudo o que ha de mais invejavel n’este mundo: a permanencia dos sentimentos que o inobreceram a meus olhos. E para mim pede -- oh! não o esqueças nunca! pede que não fuja a felicidade que gozo n’este momento, dizendo-te com as mãos postas e com todo o fervor da minha alma agradecida: encontrei-o! encontrei-o!

IX

Dianna a Henriqueta

Vou contar-te um facto que me impressionou.

Achava-me hontem, como de costume, com Beatriz e o conde no gabinete de Nuno sentada ao lado do sophá onde elle se reclinava com a indolencia da fraqueza e do bem-estar da alma que se sente apoz longa enfermidade, quando se sorve a largos haustos a vida, e vendo em redor de nós rostos amigos e cuidadosos procurando advinhar-nos os pensamentos.

Sentia-me alegre, e com espirito solto discutíamos alguns dos nossos poetas do seculo passado tão mingoados de honras e favores no seu tempo, quanto hoje farta é d’elles a sua memoria. Depois de questionarmos um pouco, levantou-se Beatriz, voltando momentos depois com meia duzia de livros sobraçados.

-- Deixemos os nossos em descanço -- disse ella sorrindo -- eu prefiro, como profana que sou em vernaculidade, o espirito francez, e qualquer livro escripto n’aquella lingoa me entretem mais, com vergonha o digo, do que essas tão admiraveis obras e poemas.

-- Vais com a época -- redarguiu o conde -- Pois fazes mal filha. Não descures as joias que temos cá: habituando-te, verás o quilate de que ellas são. E para teu castigo imponho-te a penitencia de nos fazer uma leitura em algum d’esses despresados amigos. Volta á bibliotheca e traz-nos coisa que se possa ouvir.

Sahiu logo Beatriz fazendo um tregeito de paciente enfado.

-- Agora aqui tem -- veio ella dizendo para o conde, e classificando os livros sobre a mesa -- Aqui está o seu Camões, o seu Gil Vicente, o seu Bernardin Ribeiro, o seu Bernardes, o seu Antonio Ferreira, o seu Barros... . o que aqui vae de velharia! e quantos ainda lá ficam!

-- É verdade -- respondeu o conde -- Todos amigos velhos e d’aquelles de quem se não receberam nem esperam senão bons offlcios.

-- Estás hoje másinha -- disse eu a Beatriz -- Quem te ouvisse cuidaria que fallas de desconhecidos, quando eu sei que estas respeitaveis creaturas de cabelleiras empoadas te merecem todo o respeito e consideração. Vamos, -- continuei, folheando o primeiro livro que me estava á mão -- Lê-nos o episodio da linda Ignez contado pelo Antonio Ferreira. Não pódes dizer que te enfastia esta leitura.

Insensivelmente toquei na primeira pagina e deparei com estas duas linhas:

« O livro que mais amei na minha infancia.

« Brama d'Alvarães».

Voltei-me para o conde surprehendida do achado. Aqui tem v. ex.ª um livro estimavel. Esta senhora era sua esposa? Talvez sua mãe?

Sobresaltou-se elle, o respondeu com o semblante anuviado por melancolica sombra.

-- Nem uma nem outra coisa... .parenta re-. mota.

-- Que v. ex.a conheceu ? -- tornei eu -- não sei por que effeito de curiosidade, que me estava dando rebate a novas perguntas.

-- Pouco: é morta ha muitos annos -- disse com voz secca e breve, como se o enfastiára o assumpto, o que mais apertou o meu desejo de o ouvir.

-- Pois é pena! -- continuei -- Estimava co-nhecel-a. Não só por pertencer á família de v. ex.a, mas por que devemos ajuizar que devia ser um gentil espirito aquelle que já na sua florida primavera se desentranhava em tão auspiciosas expansões. Quando vejo uma pagina d'estas sinto-me tomada d’uma especie de venerarão por essas creaturas que viveram, pensaram e amaram, e que hoje jazem desfeitas no pó, sem deixarem talvez na terra quem as chore, ou aprecie seus legados. E, perdoe-me v. ex.a a rudeza das minhas expressões, magoa-me o olvido em que achei este livrinho, e que prova o destino de sua dona.

É pois bem morta esta pobre alma! Triste destino o da humanidade! As gerações que passam, os mesmos laços do sangue adormecem no languor dos prazeres, ou nas tristezas da vida, sem volverem olhos para os que lá ficam ao longe! Não vá v. ex.a agora acoimar-me de importuna. Eu tenho d’estas excentricidades que é preciso relevar-me. Confessarei com toda a franqueza, e sem medo ao «ridículo», que me sinto presa não sei porque insondavel mysterio a esta assignatura, cuja recente data está protestando contra o esquecimento dos seus... . Branca d'Alvarães! Basta este nome para despertar-me um tropel de idéas que me angustiam. Branca era o nome de minha mãe, que infelizmente baixou á terra para eu soffrer d’ahi a pouco a dupla orphandade que tão funesta me foi. Imagino que devia ser a dor de perdel-a que logo apoz me roubou o amor de pai, e que lá estão ambos no céo, gozando o bem que talvez não conseguiram lograr na terra. E assim fiquei eu no mundo sosinha, sem amparo, creio que aos dois annos de idade, quando nos são tão necessarios os carinhos do seio maternal. D’aqui provem a triste influencia que tem pesado sempre sobre o meu destino. Sem conhecer parentes, sem saber a que familia pertenciam os que me deram o ser, sem ter mesmo pessoa que interrogue a tal respeito, acho-me como deslocada e em terra estranha, quando ouço todos os outros fallarem nos seus antepassados.

-- Pois não tem ninguém, não conhece pessoa de familia? -- perguntou Nuno com interesse.

-- Ninguem! -- respondi com amargura mal disfarçada.

-- É admiravel -- disse do lado Beatriz -- creio que é um caso excepcional, a menos que...

-- Que seja engeitada, não é o que queres dizer? -- interrompi eu -- Estou quasi em dizer que mais agradavel me seria essa situação. Pelo menos perderia d’ahi o sentido, na impossibilidade de poder esclarecer o meu nascimento. Assim, apenas sei que minha mãe nasceu em Lisboa e que era senhora de elevada intelligencia e formosura pouco vulgar, avaliada pelo retrato que possuo, que é ao mesmo tempo para mim uma reliquia sagrada e um symbolo mysterioso, que faz volver constantemente todas as minhas idéas para essa patria desconhecida em que ella existe, e onde espero ir encontral-a um dia. A religião é um grande alimento para os infelizes: só os que se acham exilados n’este mundo conhecem o valor da santa doutrina que nos manda esperar e crer na vida eterna e na união indissoluvel das almas. Ai dos desgraçados se lhes fallecêra esta esperança!

-- E’ verdade -- redarguiu o conde -- causa-me, porem, estranheza ouvil-a fallar assim. Na sua idade o mais curial é esquecer o fim a que está condemnada a especie humana. A mocidade é avessa a profundezas d’essa ordem, e quando ellas se dão não póde deixar de haver grande aproveitamento para os que sabem e podem concebel-as.

Tem razão de lamentar a falta de seus paes. Orgulhosos devem elles sentir-se no céo, como eu o seria chamando-lhe minha filha, se de lá a escutassem n'este momento. Mas, quem tem umas idéas tão claras, não pode considerar-se infeliz, nem fallar em orphandade. Bemaventura-dos os que tem fé e crença n'uma outra vida além d’esta. Que são estes dias de prova, se não podem innoitar a consciencia que vê além o futuro da luz eterna ! Orphão é aquelle que sente o coração vasio de todo o germen de virtudes christãs. E v. exc.ª apresenta-se-nos tão rica ! tão opulentamente dotada !. .. Console-se; tem muito que agradecer a Deus. Rogo-lhe que me não tome estas palavras como um comprimento -- proseguiu elle vendo que eu ia interrompel-o -- Na minha idade está perdido o habito de os fazer. O que eu quero que creia é que a estimo sinceramente. Disse ahi ha pouco, se me não engano, que sua mãe era senhora de grande intelligencia; não era preciso isso para assim o julgar. E seu pae ? Desejava saber alguma cousa a seu respeito.

Apenas sei que era da provincia do Minho, onde herdei uma grande casa hoje em ruinas. Seu nome era Rodrigo Correia de Lacerda.

-- Rodrigo de Lacerda ! -- bradou o conde.

-- Sim, Rodrigo de Lacerda -- repeti eu admirada -- Conheceu-o ?

Passados dois minutos, com a voz ligeiramente commovida, respondeu:

-- Tenho uma idéa vaga d’esse nome. Sabe se elle viveu em Lisboa algum tempo ?

-- Oxalá que eu podesse esclarecer a v. exc.ª : infelizmente não sei mais nada.

Depois d’um curto silencio tornou elle com carinhosa intonação de voz:

-Diga-me: onde passou a sua infancia ? Quem a educou ? Como se acha ligada a um homem que me merece toda a sorte de respeitos e considerações, mas que a desproporção d’annos me faz julgar fragil esteio para a sua felicidade ?

Depois, animando-se gradualmente, continuou :

-- Diga-me tudo, Dianna, falle-me como fallaria áquelles que tantas lagrimas lhe tem custado; e não me creia estranho... estranho no que toca ao seu bem estar; eu não posso ser indifferente a elle, desde que lhe confessei que tem no meu coração um logar ao lado do de meus filhos. 76

-- Obrigada sr. conde, balbuciei eu com os olhos marejados de lagrimas -- dir-lhe-hei o pouco que sei da minha mocidade, tão escura como o são todas aquellas a quem faltou cedo a seiva vivificadora das alegrias. Mas antes, permitta-me v. exc.ª uma franqueza de rude provinciana, pouco affeita a constranger e enfrear as idéas. Não me resta duvida de que v. exc.a conheceu meu pae. A exclamação que soltou ouvindo o seu nome; a maneira porque me tem falhado não podia deixar de acordar as minhas suspeitas. Porque, sempre estas escuridões em volta d’aquellas imagens queridas ? Que condemnação querem impôr á sua memoria, que até á sua própria filha querem esconder-lhe o passado ? ! Que faltas, ou mesmo que crimes, merecem stigma tão violento ?

Supplico-lh’o, peço-lhe que falle, -- e voltando-me para Nuno e Beatriz, seus filhos, estas duas almas que me são tão caras, vão juntar-se a mim e implorar a sua annuencia a meu pedido.

-- Estou convencido que não é preciso tanto para meu bom pae ceder ás supplicas de v. exc.ª -- disse Nuno, voltando-se para elle.

-- De certo -- redarguiu o conde com ar frio e desgostoso -- Mas é que isto não passa d'uma apprehensão d’esta senhora. Nunca sahi de Lisboa; não conheço, como sabes, a provincia e estou agora seguro que é a primeira vez na minha vida que ouvi pronunciar o nome do homem que foi seu pae. Esteja v. exc.a certa d'isto -- disse voltando- se para mim -- e creia que folgaria de poder dizer-lhe alguma cousa que a satisfizesse.

Depois d’este incidente cahimos n’um recolhimento que durou minutos. Eu pensava, e ainda hoje me não quero descapacitar, que o conde não fallou verdade, sem comtudo poder inferir o motivo do seu silencio. Nuno soffria por me vêr melancholica. Lia-lhe no rosto o desejo de poder consolar-me; e Beatriz resentia-se da disposição em que todos nos achavamos.

Abreviei a minha visita para me entregar melhor ás minhas cogitações, e contei em casa a Alvaro o su ccedido.

Ouviu-me com attenção, dizendo-me por fim que devia ser mais moderada e menos impetuosa nos meus juizos se queria fugir á mofa da sociedade. 78

Aqui tens o que são os homens de cabellos brancos! Para elles, que já tem o sangue gelado nas veias, tudo são arrebatamentos e insanias!

X

Dianna a Henriqueta

Que será isto? Que transformação espantosa se operou em mim?! Explica-m'o tu, Henriqueta... mas não! calla-te, calla-te que eu tenho medo; aterra-me a idéa de ouvir o que estou adivinhando, pois que seria esse o fecho das minhas incertezas! Incertezas! ai! não sei se de mais estão ellas assentes e bem definidas! Incertezas quero eu chamar-lhe, porque o mesmo som da minha voz me amedronta, e sinto o brado da consciencia a repellir-me já d’aquelles lagos tão limpidos em que a minha inexperiencia me levava a entrar, sem temer cahir no pégo aberto debaixo de tão enganadora superficie. Cahir! Que medonho echo faz esta palavra na minha alma! E ao mesmo tempo, quando o espirito se confrange, que tropel de pensamentos, que vertigem elles me despertam! Som maldito e abençoado, que fere incessantemente os meus ouvidos, e me faz gostar reciprocamente uma doçura cuja estranheza me assombra!

Parece-me ás vezes que dormi longos annos ou que estou passando por aquella transmigração da alma, que é o alivio da morte para os sectarios de uma esperançosa crença.

Haverá dois mezes, dizia-te eu, que o sentimento que Nuno me inspirava não era o amor, e de certo não era, minha amiga, porque hoje... hoje a lembrança que me occorre d’esses dias é escura comparando-a com estas ondas de luz que me envolvem, com este sol ardente que me prostra e embriaga!

Que vida! A estrella da manhã encontra os meus olhos tristes e cançados d’uma vigilia, ora aspera e amarga, ora doce e consoladora: e a vista da aurora, depois d’aquellas trevas apenas allumiadas pelo clarão de incendio da minha alma, mergulha-me n’um enlevo, n’um extasis indiscriptivel que não ha a arrancar-me a elle! As horas do dia, que me corriam até aqui tão preguiçosas e monotonas, fogem-me em deliciosos colloquios, ou na reproducção que d’elles me faz o meu pensamento escandecido.

Amarei eu Nuno d’Alvarães? Mas então que é isto d’amor, Henriqueta? Que fogo é este, que aberração dos sentidos, que perdição da individualidade, que força violenta a impor-se acima de todas as considerações e de todos os raciocinios?! Que falsa idéa eu fazia d’este sentimento?... Meu Deus ! Meu Deus! agora comprehendo a vossa divina justiça. Castigaes-me, Senhor; punis a vil creatura que ousou queixar se dos Vossos bens e chamar-lhes rigores; Em que abysmos irei eu precipitar-me, gostosa e cega pela luz infernal que aqueceu as minhas paixões adormecidas!

Sim, amo, amo, Henriqueta! Diz-m’o o coração que me estremece de jubilo sómente ao pronunciar o nome adorado; diz-m’o a alegria que me doura este céo, todo esmaltado de brilhantes, menos fulgidos que a imagem que de lá me sorri: diz-m’o o espelho, quando contemplo o brilho estranho dos meus olhos, e não sei que athmosphera impregnada d’átomos e faiscas electricas que me fazem vibrar todos os musculos do coração.

Podeste imaginar algum dia que eu te fallaria assim ?.. . E queres saber ainda mais ? queres ver como este amor se apossou tyranna e arbitrariamente de todos os meus sentidos? Tornei-me vaidosa, esmerada nos adornos até á exageração; soberba do pouco que valho, e descommedida nos desejos de bem parecer.

Deves aborrecer-me, filha; eu conheço que muito devo desmerecer aos teus olhos; e n’este momento, a voz que interiormente me accusa brada tão alto, que não ha ahi durezas a que me poupe. Pois não devia èu prever o que succede? Não devia fugir ao encanto que me prendia junto d’um homem de quem me sentia amada? Que loucura me levava a suppor que era formada d’outro barro, e inaccessivel às fraquesas do sexo fragil ? O amor representava-se-me absoluto, é verdade, mas d’um absolutismo todo ideal, sem sombra de macula ou torpeza. E agora despovoam-se todos aquelles prados amenissimos em que a imaginação se retoucava, e o caminho aberto é marginado de penedias escarpadas? e de silvedos, em que se rasgam e vão de encontro até ficar esmagadas por outros desejos um as cubiçosas e loucas aspirações que tanto me encantaram out’rora.

Na minha descuidada ignorancia deixei-me ir arrastando levemente ao sabor das ondas, até que ha oito dias, recolhendo a caza, me entregou Angelica a carta que copio para que a vejas, e que não póde ser senão de Nuno.

Lê e ajuiza da impressão que devia causar tal leitura n’um espirito já de antemão prevenido e fascinado:

« Porque não ha-de saber que é adorada?

« Se esta adoração é recatada e silenciosa, que mal lhe pode fazer? Se nem sequer imagina o « homem que lhe escreve, como poderá elle, um dia, merecer a sua nobre e grande alma?

«As affeições profundas são as que se encontram. Se me não conhece, se não surprehendeu ainda o amor nos meus olhos e até nos disfarces, que importa dizer-lhe quem sou ?

« Nunca serei amado, Dianna, mas deixe-me adoral-a assim. Eu sei como é o seu coração e a sua alma. Bastou-me vel-a, não precisei de tratal-a de perto para descobrir as qualidades que valem este amor tão desinteressado quanto infeliz.

« Consinta a um desgraçado o desafogo e a temeridade d’esta carta.

« Eu soffro muito n’este momento.

« Se eu um dia entrasse na intimidade da sua alma, Dianna, convencia-se de que não houve dor que eu não experimentasse, quando a sua imaginação regeitava talvez até a minha admiração do seu alto espirito. Chama-se isto um amor dos que a desgraça eleva até á nobreza.

« Se a magoei com a indiscrição de escrever-lhe, despreze o desconhecido que lhe escreve, e ficará demasiadamente vingada.

« Não despreze, acceite a minha affeição, como a de um extremoso amigo que nunca visse, e perdoe-me esta expansão: era-me precisa como o ar da vida.

« Se o seu coração me fizer conhecido, tenha desvanecimento de inspirar a esperança da felicidade a um homem para quem a existencia é um supplicio.

« A minha salvação estava no amor. A mulher que tem o segredo da minha salvação ha-de ver-me padecer com indifferença, porque a sociedade me collocou n’uma posição suspeita para inspirar confiança.

« Se eu lhe quizesse agora dizer como a amo, teria precisão de recorrer a uma phrase banal. A minha suprema felicidade era dar-lhe a vida, e pedir-lhe em troca uma palavra apaixonada.

« Que immensa não ha-de ser a sua alma, bafejada pelos transportes enthusiasticos da «paixão?! Quem será o homem destinado a dispertar toda a sensibilidade que se adivinha, encoberta e aquecida pela sua grande intelligencia ? »

Rasgaram-se as nuvens que me obscureciam o entendimento.

O raio desceu sobre a minha cabeça e coração, causando-me umas pulsações tão instantaneas e violentas, uma alegria tão convulsa, que chegava a ser dolorosa. Desde esse momento as minhas idéas foram-se alinhando e percorrendo ligeiramente o fundo precipicio que repentinamente vi desenhado debaixo de meus pés. Quiz recuar, assustada do progressivo tremedal em que via a ponto de submergirem-se as boas intenções da minha alma, e os principios de dignidade e orgulho que me tem sido uma segunda religião; mas a primeira vez que me encontrei com Nuno, cahiram os meus propositos, e o enleio, a perturbação com que lhe fallei deram-lhe a certeza de que estava descoberto o seu incognito.

Depois, não sei mais o que se passou. Não sei que palavras eu disse, que phrases ardentes me segredaram, a que transportes emfim eu assisti. Quando penso n’essa hora, centuplicam-se as minhas idéas e confundem-se n'uma só. Como sou amada! Sim... é verdade... mas... que pessimo elemento como auxilio da razão, que precisa de robustecer-se para resistir a embates perigosos !

E no meio d’estas alternativas do meu espirito allucinado, tem-me esquecido fallar-te de meu marido. Será isto já uma especie de remorso? Serei eu má e ingrata?

Alvaro soffre. Ha um tempo a esta parte apresenta um aspecto doentio e melancolico que me inquieta. Insto para que me diga a causa d'isto; mas não me responde senão que são apprehensões da minha amisade. Tenho, porem, notado que acompanha ás vezes este dizer com um olhar tão perspicaz, que mesmo, sem querer, me sóbe a côr ao rosto. N’essas occasiões vou direita ao fio conductor com a minha costumada lealdade; pergunto-lhe se tem razões de queixa contra mim; peço-lhe que não tenha reservas para comigo. Falla-me então com tanta bondade e carinho, insistindo na primeira idéa, que momentaneamente se desvanecem as minhas suspeitas. Momentaneamente, disse eu, Henriqueta. Sim, desconfio que Alvaro anda suspeitoso da verdade.

Qual será então o desfecho de tudo isto? Tremo ao pensal-o, e esta incoherencia de idéas, que me leva da exaltação ao abatimento, dá esperança á tristeza, dá bonança á tempestade, quebra-me as forças para reagir.

Fecho, pois, os olhos para não ver, e vou-me deixando ir na levada dos acontecimentos. Na minha situação é o que me parece mais curial minha amiga.

Antecipar os prazeres é depreciar-lhes muito o valor; bem como adivinhar os desgostos e infortunios, é tragar o fel duas vezes.

Esperemos, pois, Henriqueta.

XI

Dianna a Henriqueta

Amanhaceu o meu dia eterno! Ai! quão cedo me fugiu a primavera! Primavera sem fructos, sem flores que me fiquem rescendendo perfumes de saudade n’este coração despedaçado. Nem isso, meu Deus?!

Que funebre aspecto apresenta o meu inverno, ó Henriqueta! Que aridez a d’este deserto immenso, em que lentamente se mirram todas as chimeras, e eu sinto já a viuvez da mocidade, restando-me o unico linitivo das minhas lagrimas. Orvalho de sangue que ha-de congelar em meu rosto, como um stigma indelevel d’estas transitorias alegrias,

E emquanto esta ebulição de fogo que me abraza me fôr diluindo a vida, os felizes da terra, como as folgadas avesinhas do céo respirarão o ar enebriante da felicidade! Para elles o sol, o murmurio das florestas, os aromas do val para mim a escuridão, as sombras e o desespero.

Oh! Christo! Ó imagem redemptora; ó sa-, grada invocação dos infelizes, amerceia-te das minhas dores; dá-me lábios puros, a resignação santa dos bemaventurados, e chegue ao teu throno de luz a minha prece! Ampara-me na escabrosa vereda do meu horto, para que, seguindo teu inimitavel proceder, me submetta a tuas leis, clamando contricta e obediente a ellas: «Seja feita a vossa vontade. »

Eu desvairo, minha amiga! Quero e não sei como temperar as forças para descrever a catastrophe que tão de chofre me colheu.

Já, porem, como expiação e conforto me impuz a relatal-a: renovos de dor e alentos do teu seio amigo poderão ir mitigando este inexcedivel desalento.

Ahi tens uma carta de Nuno. E’ mais um caminho do meu abysmo... .

« Procuremos a felicidade, minha amiga.

« Vamos ambos ao encontro d’ella, porque am-

« bos temos sido infelizes.

« Falsificaram o teu destino. Tu devias ter encontrado mais cedo o grande coração que me déste a primeira vez que te vi. Vejo-te ainda n’aquelle baile. Appareces-te-me logo o que és: um anjo com todas as galas do céo. Adoro-te como te adorei então; adoro-te porque experimentas-te a dor, e has-de prezar o homem que a tua alma esposar.

« Serei eu ? Serás tu a parte mais nobre da minha alma? O nosso encontro será a realisação da minha esperança de tantos annos?

« Estou muito velho minha filha!

« Quando te dou este nome sinto desejos de te sentar no meu collo, como se faz a uma creança. Queria acarinhar-te com o estremecimento de... não te direi de pae, mas d’um... ia a dizerte irmão; mas eu detesto cordealmente as mascaras da hypocrisia; eu quero-te e estremeço-te mais que irmã. É tão frivolo já o offerecimento de uma amisade fraternal!

« Queres tu, Dianna? Fechemos os olhos á realidade da vida, e organisemos um mundo novo para nos, sim ?

« Este mundo ha-de ser assim feito: imagina que estás ainda no regaço da innocencia, que estás namorada d’um homem, que és a esposa promettida d’esse escolhido da tua alma:

« Queria eu agora perguntar-te quem havia de ser esse homem real do nosso mundo imaginario. Se me respendesses de maneira que viessem encontrar-se com as minhas as pulsações do teu coração... Se eu colhesse essa resposta tão anciada... Mudemos de linguagem, Senti agora subir-me o sangue ás faces. Não me cabia talvez no peito. Desejava possuir agora o teu retrato e collocal-o sobre o coração.

« É pois, certo que seremos esposos no nosso mundo phantastico, e chegaremos a persuadir-nos que o consorcio é real e infinito. Sentir-nos-hemos viver um do outro. Os annos passarão desapercebidos para nós. Quando eu conhecer que o fastio te gela, terei o segredo de te incendiar de novo. Virá uma epocha em que a nossa vida esteja tão concentrada n’um sò ponto, e tão identificada n’uma só respiração, que não possamos sentir cada um á parte a sua dor ou alegria: Verás como és amada, minha filha. Verás como eu sou feliz, como a noite da minha vida se aclara, como do coração me nascem as inspirações magnificas, obedecendo ao imperio da tua vontade.

« Minha! Saberei eu descrever-te a minha alma, quando poder ajuntar aquella palavra ao teu nome? Creio que não. A ventura imbrutece como a desgraça. Verás que o silencio será a minha grande eloquencia ao pé de ti: Talvez me digas: «Que sentes tu que me não dizes nada ?» E eu, que nunca experimentei a felicidade perfeita, queria então ter lagrimas para responder-te.

« Não me deixas estar um momento ao pé de ti, sem receio de vistas importunas, filha? Se me impozesses a condição de te adorar em muda contemplação, eu acceitava, como o escravo que tem gloria de o ser.

« Se o coração te anima, se a confiança é completa, se juraste fazer a minha felicidade, deixa-me reconhecel-a n’um instante comtigo.

« Depois d’esse instante, ficas-me com a alma, e eu sentirei que a melhor parte da tua veio comigo para testimunhar o delirio de alegria que me dará a certeza de que és o meu supremo bem, a minha vida, o meu Deus, a gloria, a soberba, a inveja de todos.

« Ouve o teu coração, e responde ao teu Nuno, como se esta supplica te fosse feita ao cabo de cinco annos d’uma paixão fervorosa.»

Que responderia a essas paginas toda a mulher desamparada por Deus e obcecada pela tentação, e ébria das infernaes doçuras do amor? Tu que és mulher podes avaliar a imprevista influencia que exerceram no meu espirito, já de si brando e amollecido por frequentes allucinações e combates.

Forçoso é que o confesse: estava vencida. Fragil e amaldiçoado barro de que fomos formadas, Henriqueta! As exigencias do coração poderam mais que um longo tirocinio de virtudes! Amava e amo, a não poder tirar soccorros nem auxilios da razão. Succumbia, presa não sei de que garras satanicas que me abalavam as santas crenças da infancia, e sentindo ao mesmo tempo o presentimento surdo d’uma desgraça inevitavel, que não era bastante ainda assim a demover-me de resolução tão funesta.

Na seguinte noite recolhi-me cedo ao meu quarto pretextando um ligeiro encommodo de saude, para que meu marido se não privasse da sua costumada partida em alguma das casas que frequentava quando não as passava comigo. N'estas occasiões vinha sempre noite alta, e Nuno, prevenido, devia passar algumas horas na minha companhia. 94

Antes de sahir Alvaro entrou no meu aposento com aquelle sorriso melancolico que se lhe tornou habitual. A sua presença causou-me uma commoção interior, um abalo surdo, um como rebate de grandes perigos. Immudeci: respondia interiormente á consciencia, que me estava dolorosamente accusando.

-- Sentes-te mal, Dianna? -- perguntou elle com voz carinhosa.

N’este momento tive a idéa de dizer-lhe que já estava boa e sahir; mas a lembrança do desespero de Nuno quando me não encontrasse, e o que elle poderia julgar de mim, tomando-me por uma d’estas mulheres astuciosas que se difficultam para armar a um valor que lhes redunda em ridiculo, abafou estas boas intençães, e respondi:

-- Não é nada, meu amigo. É uma indisposição de nervos sem consequencia: ámanhã estou boa.

-- Pois então, até ámanhã: descança, eu vélo por ti -- tornou Alvaro docemente, beijando-me a testa.

E sahiu.

Não liguei sentido a esta palavra significativa dos successos que se deram, senão mais tardo. Eu sentia uma alteração, um estremecimento interior e indisivel. A minha alma esmorecia diante do futuro, aos meus proprios olhos perdera já a altiva confiança que ressumbrava das minhas menores acções. A cabeça curvava-se-me a um pezo esmagador, as fontes batiam-me com excesso, e o coração tinha contrações medonhas.

A hora aproximava-se: senti um ligeiro ruido, e, sem pensar no que fazia, corri para o pequeno quarto onde estava o meu leito. A reflexão, porem, fez-me voltar sobre os meus passos, e vi Nuno curvar-se diante de mim e tomar-me as mãos entre as suas, emquanto eu cahia sobre uma cadeira.

-- Recebo-te de joelhos, anjo, -- disse com-movido -- e esta posição, que não tomei nunca diante de mulher alguma, deve provar-te que tens aqui um escravo, que se teria por indigno e infame, se abusasse da tua fraqueza... Mas, falla-me; que eu ouço a tua vóz, para convencer-me de que não foste violentada a receber-me d’este modo.

Eu soluçava, não sei se de dor ou alegria ! Tal era o embaraço em que se achavam as minhas faculdades intellectuaes.

-- Que é isso, minha filha -- tornou Nuno já assustado de me ver assim -- Que é isso?

N’este momento a porta abriu-se e meu marido entrou e disse com voz firme e pausada:

-- E’ a consciencia da mulher nobre que chora e lhe está dizendo: «não manches o nome de teu marido. Não macules a tua face com a nodoa indelevel da deshonra; não cubras os teus dias e as cãns do homem que te tem servido de pae, de luto e ignominia».

-- Pobre mulher! -- continuou elle com ar piedoso, aproximando-se da cadeira em que eu jazia com o fulminada -- Quem poderia salvar-te, senão eu? Tinha-o promettido a teu pae moribundo e á infeliz senhora que pagou a culpa com a vida e atrozes soffrimentos. E tomando um ar mais solemne proseguiu: -- Levanta a fronte, Dianna, e ouve-me: ouça-me tambem v. ex.ª -- disse voltado para Nuno, que apoiado ao recosto do sophá, pallido como um espectro parecia estranho ao que se passava -- Eu não estou aqui, não entrei d'aquellas portas a dentro revestido com a auctoridade, ou estimulado pelos meus direitos de marido. A minha missão ao lado d’esta mulher é mais sublime! Pode-se dizer que a vi nascer, que a criei nos meus braços, e que a recebi por esposa, pura cumprir uma promessa sagrada, e para a arrancar ás seducções do mundo. Chegou a hora de arrancar o véo ao mysterio. Dianna de Sepulveda, disse olhando para Nuno, é filha de D. Branca d'Alvarães, sua tia, e de Rodrigo de Lacerda, o seductor que a perdeu. D. Branca foi o que está sendo sua filha: victima d’uma allucinação passageira. Rodrigo foi o que são todos os homens saciados, quando o stygma da sociedade peza sobre a mulher que elles arrancam de repente ao fastigio dos respeitos e considerações do mundo, para a lançarem ao caminho desastroso do desprezo publico. Não condemnemos a sua memoria; era um grande desgraçado! D. Branca foi sempre aos meus olhos, os unicos que choraram aquella longa agonia, o typo sublime da martyr que acceita pacientemente as consequencias da culpa.

Morreu emfim, ao cabo de dezasete mezes, mais tormentosos do que a phantasia do homem, por mais conhecedor que seja de taes peripecias, pode imaginar. Por vontade de Rodrigo fiquei eu administrador de tudo quanto possuia e tutor de sua filha unica, então na idade de dois annos, com a condição expressa, porem, de que nunca lhe fallaria na triste historia de seus paes, a menos que a não visse correr ao abysmo que tinha subvertido e malbaratado o destino d’ambos.

Cumpri com prazer; nem a tarefa me podia ser penosa. Dianna era uma creança encantadora, que me pagava em caricias os cuidados e amor de pae. Mais tarde, bem que immensas vezes a quizesse absolver do sacrificio que lhe impunha o voto de seu pae, vi-a acceitar com rosto satisfeito a cadeia que a prendia a estes cabellos brancos; a mocidade e a esperança, ao tumulo e ás tristezas!...

Resta-me pouco a dizer -- continuou depois de larga pausa -- Eu não me apresentei aqui para apellar do cavalheirismo d’um, nem da lealdade do outro. Dianna decidirá entre nós. D’um lado está o amigo de toda a vida, do outro o idolo d’alguns dias. Eu não quero de modo algum prevalecer-me dos direitos que me conferiu a sociedade e a religião; entendam-no bem: estou velho; a vida está por pouco; gostoso faço o sacrificio d’estes poucos dias que me restam a bem da minha querida filha. Aqui te entrego este manuscripto de que fui depositario até hoje -- me disse elle -- Medita depois da sua leitura, e se te parecer que a felicidade é certa e duradoura com teu primo, eu parto sem que me ouçam um queixume. Vou para a provincia com o pretexto de negocios indispensaveis; de lá passarei á Hespanha. Deixando para sempre Portugal, deixo-te gosar desassombrada o bem que ambicionas, sem vilipendio aos olhos do mundo. Por mim acabei: agora toca a v. ex.ª. E curvando-se diante de Nuno sahiu.

Fiquei por dois minutos immovel e castigada severamente pela sublime soberania de meu marido. Depois, por um esforço subito, os meus olhos procuraram o homem que não devo tornar a ver!...

Ai de mim! Eu só conto com o auxilio de Deus.

Quantas coisas me disseram n’este relanço os olhos de Nuno?! Adivinhei-as todas ; e sentindo-me prestes a desfallecer, só pude dizer-lhe com voz fraca apontando-lhe para a porta -- Coragem ! o Senhor me inspirará.

Nuno deu dois passos para mim, e a um gesto meu de susto e repulsão tomou-me as mãos ambas, beijou-as em silencio e retirou-se.

Cahi sem accordo: quando voltei a mim Alvaro estava junto do meu leito e tenteava-me o pulso com o ar carinhoso e estremecido que desde a infancia lhe conhecêra.

Quiz fallar-lhe, cheguei a balbuciar algumas palavras suffocadas. pela dor que me alanceiava o peito; mas, não podendo mais, escondi a cabeça n’aqquelle nobre seio; deixei-me apertar por aquelles braços protectores da minha fraqueza, e senti um grande alivio, vendo confundirem-se as nossas lagrimas.

Chorámos ambos, fallámos muito de minha mãe, e depois de ler a sua negra historia, achei-me fortalecida para escrever a Nuno a carta de que te envio a copia e a resposta.

Acabou tudo, Henriqueta. Envilheci n’uma hora: Se os cabellos não embranqueceram, sinto um gelo na cabeça, uma insensibilidade phisica e um atordoamento moral que deve ser o precursor do acabamento;

Ainda não posso separar-me do manuscripto de minha mãe. A minha consolação é percorrer as linhas angustiadas, que tem um reflexo nas minhas proprias dores; logo que possa t'o enviarei;

Agora adeus: não sei até quando. Lembra-te da tua pobre amiga em tuas orações. 101

Dianna a Nuno d'Alvarães

Bemdigamos a Providencia, que manifestamente nos susteve á borda do abysmo.

Estou salva! estamos salvos, meu amigo. Corriamos ambos sobre um prado artificial, que nos encaminhava direitos ao pégo da suprema desventura. A mão poderosa que por uma intuição divina me amparou, quando já me falseava o passo, foi a de meu marido: foi esta generosa e nobre alma, tão mal recompensada, quem sabe mesmo se no proprio momento em que se patenteava com toda a sua magnanimidade e grandeza! O anjo que me escudou das minhas paixões com a santa magia das suas azas protectoras foi a memoria de minha mãe. Foram as dores, os vilipendios que tragou aquella martvr, a pobre Branca d’Alvarães, que o mundo e os seus tão descaridosamente repelliram de si, quão cedo riscaram o seu nome da lembrança de vivos! Mas, antes isso... E’ preferivel o esquecimento a insultarem-lhe as cinzas com uma inutil e tardia piedade.

Minha querida mãe! Que adoravel previdencia a tua?! Como o amor materno se ostenta sublime, mesmo além do tumulo! Que são os outros amores da terra comparados a este? Sim, meu amigo, grandes foram as culpas de sua tia; mas, se o não magoa tomar uma parte da ignominia que peza sobre ella e sobre mim, dê alguns momentos á sua memoria para se convencer que ha na nossa situação não sei quê de providencial. D’ora ávante, o laço que fica entre as nossas almas é d’aquelles que se recordam com prazer e sem córar. Restituamos, pois, um ao outro todas essas palavras vãs, essas chimeras sonhadas; cuja recordação nos fará rir na velhice. Entre hoje e o passado estendeu-se um crepe, que a sagrada imagem de minha mãe; a veneração que sinto por ella e o meu orgulho filial me faz crer que nem mesmo a mão de Deus poderia afastar!

N’esta hora suprema d’um adeus eterno, é dar-lhe uma grande prova de estima, acreditando que me comprehende de sobejo para respeitar esta minha resolução, inabalavel como os decretos que nos vem directamente da Providencia.

Acceitemos, pois, sem queixumes e com coragem a situação a que nos força o destino, e seja feliz, Nuno; tão feliz que chegue a esquecer que conheceu no mundo uma mulher que se chamava Dianna de Sepulveda.

Resposta:

Abstenho-me de commentarios ou de invectivas contra o capricho maldito e obstinado do meu destino.

Tens a tua liberdade, minha irmã. Saberás tu, porem, o que has-de fazer d’essa liberdade ? Sentir-te-has mais feliz sem o homem que sentiste na tua alma como parte de dores e alegrias na tua vida ?

Não, Dianna. Não me esquecerás tão cedo quanto julgas, porque sei e creio que fui verdadeiramente amado por ti.

Deus vê a minha consciencia. Eu sei que não posso affastar a tua imagem do pensamento; e a minha vida d’hoje em diante, se a souberes, filha da minha alma, te provará que coração perdeste.

Não é isto a demover-te da resolução em que estás: não. Tu ficas sendo para mim o symbolo d’uma nova religião. Creio na virtude; adoro-te, anjo immaculado!

Depois d’isto sabes o que me fica? A fé em Deus; mais nada.

Temos á vista o curioso manuscripto enviado por Dianna de Sepulveda á sua amiga. Entendemos, porem, dar-lhe a forma narrativa como mais agradavel ao leitor, e de melhor feição para expor os lances e episodios d’um amor infeliz e mal galardoado, como o são todos aquelles que a sociedade repulsa de si com ignominia.

SEGUNDA PARTE

« Esforça-te santa mulher, que choras!

« Serás dos bemaventurados de quem fallou

« Christo, o amador das lagrimas ».

Fr. Diogo Ximenes -- Sermão da Magdalena.

Em 18.. D. Branca filha dos condes de Alvarães, casada havia sete annos leitos com D. Jorge de Mello, era pela alta posição de familia e a graça natural da sua pessoa a primeira e acclamada rainha dos salões mais festeiros de Lisboa.

Formosa como poucas, vinha como por de mais juntar-se a tantas perfeições a affabilidade d’um espirito distincto e bem cultivado.

O conde, seu pae, fiel ás avoengas tradicções de rara lealdade a seus principes, fôra um dos fidalgos que acompanharam o snr. D. João VI ao Brazil, e ali teve o desgosto de ver morrer sua esposa, victima d’aquelle clima doentio, deixando-lhe como laço eterno entre a vida e a morte, duas meninas de tres a quatro annos, e um filhinho ainda no berço. Ficou elle, pois, viuvo, livre, como diria um marido d’hoje, e na idade instigadora dos desvarios e das paixões. Comtudo, os languidos requebros das formosuras americanas nada poderam contra a saudade que reerguia a imagem da defuncta Leonor á perfeição inimitavel dos anjos. Ainda, passados annos, de volta á patria, d’essa emigração asperrima, que tão caro e chorado lhe fizera o sol vivificador e as frescas sombras dos seus prados e laranjaes, não faltaram seducções e incitamentos a lembrar-lhe segundas nupcias. Porem, o entranhado affecto, que dava áquellas creancinhas que com seus mimos lhe deliciavam a existencia, foi mais imperioso que os feitiços da belleza, findando por jurar á lacrimosa sombra da esposa que nunca daria madrasta a seus filhos. For bem pago se achou elle na consciencia d’este sacrificio com as blandicias das adoraveis creaturinhas, e o santo orgulho paternal. Via desabrochar e crescer em prodigios esplendidos os renovos tão cuidados de preciosa seiva, e essas vergonteas tão viçosas enlaçaram-lhe o coração desentranhando de lá toda a idéa contraria. Enlevo delicioso e suavissimo ! Assim lhe correra remançosa a vida, quando impensadamente se lhe agravaram padecimentos antigos e de pouca monta, exacerbados sem causa apparente, e com aspecto assustador. Forçoso foi então pensar na instabilidade da vida, e preparar o futuro de seus filhos, que tão cedo ficavam desamparados no mundo.

Branca, a mais velha das meninas, contava n’essa epocha dezoito annos: dezoito dias de maio sem inverno. Amelia, a segunda, que no parecer era menos formosa, e até feia poderia chamar-se-lhe, se aos olhos que se desfitavam d’ella se deparavam os do angelico rosto de sua irmã, não deixava comtudo de merecer muito, pela viveza e engraçados repentes do seu espirito um pouco frivolo e mordaz.

Branca era o perfeito contraste de seu génio. Misericordiosa para com os defeitos da humanidade, impugnava muitas vezes a sua irmã, uma palavra indiscreta que, lançada ao vento, ia encravar a frecha do ridiculo, essa arma tremenda, em pessoas que a piedosa menina lamentava, procurando desviar d’ellas a attenção. A sua alma, enthusiasta e nobre, exaltava-se com frequência, procurando revindicar com rasgos obscuros de virtude, os mesmos deprimidos por um gracejo atroz. Seu espirito comprehendia tudo o que era grande e superior. Versada na historia, na poesia e nas lingoas franceza e italiana, entranhava-se em considerações na litteratura antiga e moderna, admiraveis pela justeza e bom gosto da apreciação. Bem ao contrario, estes estudos, fatigavam Amelia, que escarnecia da persistencia da irmã, perguntando-lhe algumas vezes com aquelle ar alegre e zombeteiro que tantas inconveniencias desculpa, se tencionava defender theses como a celebre Hortencia de Castro.

Branca sorria do gracejo, e procurava convencel-a que o saber era a fonte caudal contra os enojos inseparaveis da ociosidade, terminando por affagal-a como se a differença d’um anno valesse por muitos na sua indole, permittindo-lhe a seriedade e as admoestações carinhosas e maternaes.

Primavera opulentada por tão auspiciosos dons, Branca era o encanto de toda a pessoa que a tratava de perto, e o idolo do conde que remirava n’ella a imagem gentil e aperfeiçoada d’a-quella que por tão breve espaço lhe enriquecera o mundo e coração. Pedro, a creancinha, que cahira dos braços da carinhosa esposa horas antes de fallecer, era um rapaz bunçoso e sympathico, cujas verduras proprias da idade accordavam reminiscencias ao encanecido pae, de repente alquebrado e decomposto pela doença, mais que os annos o permittiam. Em redor d’esta familia agrupavam-se tres mancebos que mais ou menos lhe estavam ligados pelos laços do sangue e da amisade. Vasco de Mesquita, Sobrinho do conde, ficara aos vinte annos sernhor d’ uma grande casa que ia esbanjando sem contar a futuros, escondendo, porem, os desregramentos da sua vida debaixo da mais simulada ordem e hvpocrisia Alvaro de Sepulveda, filho segundo d’uma nobre casa ainda aparentado com a finada condessa era moço de nobre prroceder e de esclarecida razão; razão de ser bemquisto do conde e de seus filhos, que gosavam da sua intimidade. D. Jorge de Mello, filho d'um fidalgo conhecido partidario e influente nas decisões da rainha a sr.a D. Carlota Joaquina contra o systema liberal, deveu á exaltação das suas ideas cahir no desagrado do governo constitucional, e ter de ausentar-se para fóra do reino, deixando n’elle mulher e filho. A má administração de seus bens, e os gastos extraordinarios a que o obrigara a emigração pezaram de tal sorte so- bre os rendimentos de sua casa, que pouco a pouco foi obrigado a vender tudo quanto era livre, ficando por ultimo um escasso patrimonio a seu filho. Experimentado, porem, na pouca confiança que merecem as elevações da fortuna, tratou de educar Jorge para o prospero caminho e para a adversidade, esmerando-se em tornal-o apto para entrar dignamente na carreira politica. Chamou-o a si, fel-o entrar n’um dos collegios mais distinctos da França e vigiou cuidoso seus progressos, como homem illustrado que era.

Jorge correspondeu ás esperanças a que miravam por então os votos do velho realista. Gostosamente via elle progredir o adiantamento d’aquelle espirito, que se abria á luz da sciencia com um fervor desusado n’aquellas idades; e o coração oppresso muitas vezes expediu o brado alegre que lhe auspiciava um successor digno de seu nome.

Aqui param as informações que podemos colher sobre esta epocha. Não sabemos, no intervallo de dez annos, que successos se deram na existencia d’estes dois seres; que desillusões alanciaram o velho; ou que tristezas abeiraram do seu leito mortuario. O que ficou conhecido é que importo elle, volveu D. Jorge a Portugal com a reputação de galan e muito querido das damas. Se o foi n’aquelle paiz onde a civilisação implantou uma arvore grandemente nociva aos costumes e á moral, mais devia sel-o aqui, actuando sobre o espirito limitado, e até certo ponto, incitativo d’uma sociedade que primava em dar leis á elegancia e á aristocracia de todo o mundo.

O nome e parentesco com muitas famílias illustres, abriu-lhe todas as portas, acolhendo-o os homens com interesse, avantajando-se-lho ainda as senhoras, entre as quaes realçava pelos meritos uma gentil presença e maneiras insinuantes. Ninguem se apresentava melhor, nem sabia com mais graciosidade exercitar os ditos espirituosos de salão: Dentro em pouco foram completamente supplantados todos os seus rivaes em garbo e dexteridade conquistadora, e mais d’uma mariposa d’azas brancas se foi queimar n'aquelle foco de luz viciosa e perfida.

Recebido com distincção em casa do conde e com particular estima pela marqueza de S. Gens, esposado unico irmão do conde que existia, em breve se tornou assiduo e estimado conviva d’aquella familia. As meninas agradavam-se de sua vivacidade de pensar e da volubilidade da expressão franceza que a pratica de longos annos lhe amoldava como de natural seu; e o conde prendia-se no mesmo laço, com quanto nas suas conversações a sós differissem muito as suas idéas das que expendia geralmente, convergindo todas estas praticas sobre a politica do dia, o que dava relevo á vastidão e alcance da sua intelligencia. Tal homem devia forçosamente ganhar um grande imperio sobre os animos despreoccupados d’aquella sociedade, que só visava a gosar alegremente do bem-estar pacifico, depois da renhida lucta que tão fatal fôra e tantas familias dispersara.

Era este, por tanto quem merecia da parte do conde fim accrescimo de benevolencia mui lisongeiro para aquelle que com o seu finissimo tacto o percebera. Foi ainda Jorge quem n’aquellas horas angustiosas do desprender do mundo, appareceu aos olhos do conde como o homem que, apezar de seus poucos bens, possuia bastantes riquezas pessoaes para fazer a felicidede da sua filha mais querida, d’aquelle pedaço da sua alma que com tanto custo ia arrancar de si. Mas que remedio! A morte, monstro insaciavel, que se não move a supplicas nem gemidos approxima-se. Do coração de Branca, da submissa obediencia á sua vontade, estava elle certissmo. Muitas vezes lhe dissera que sacrificaria gostosamente a sua vontade á d’elle, acceitando um estado para o qual não sentia vocação, antes repugnancia. Esta fora a causa de rejeições vantajosas e sem numero, tantos pretendentes se apresentaram já quando os doze annos incompletos de Branca lhe davam ainda gostosa folga de suas bonecas. Sacrificios, porem, é que o feliz pae não queria. De mais, lançando vista prescrutadora e orgulhosa sobre mancebos e homens feitos que aspiravam á posse do seu thesouro, repetia interiomente: «não, não encontro quem te mereça, alegria da minha velhice!»

Era assim : anjo de formosura, de graça e de meiguice!

Quando os seus braços enlaçavam o conde e aquella bocca pequenina e risonha se colava á fronte escalvada do homem que soubera aquietar as ardencias imperiosas dos desejos e conveniencias para ser pae, este acto naturalissimo e que passa ordinariamente desapercebido aos olhos dos circumstantes entre estas duas almas tão perfeitas tornava-se commovente pela sua mesma pathetica simplicidade. Se o extremo do amor paterno extravasava do coração do conde, o culto filial que Branca lhe consagrava não era menos vehemente; e, posto que os annos interpozessem grande differença na maneira de se exprimirem, conhecia-se perfeitamente quão arreigada e pura era aquella santissima união.

Acercada Branca do leito mortuario, transida de desespero, ouviu com custo e a longos intervallos expressar o agonisante o desejo de a ver esposa de D. Jorge de Mello, como um esteio á sua negra orphandade. A voz que fallava, era ainda, e mais poderosa n’este momento, a que lhe dera sempre a lei; por tanto, vencida a repugnancia pelo dever e abafando os soluços que lhe quebravam o peito, annuiu promptamente e sem balbuciar á vontade de esse pae tão idolatradamente querido, feliz ainda por poder dar-lhe n’esta hora extrema um raio de consolação.

Curtos foram esses momentos. Chamado á pressa D. Jorge recebeu das mãos do moribundo o deposito sagrado que lhe confiava: a felicidade de Branca. E o mancebo, aturdido pela imprevista nova que satisfazia os votos mais secretos e intimos ele seu coração, ajoelhou commovido até ás lagrimas, e sem voz para agradecer a joia inestimavel que lhe entregavam. Sabia, o conde que sua filha era assim amada? E’ provavel; nem d’outra maneira se explicaria a confiança que elle depositava n’esse incognito e auspicioso futuro. A Deus, porem, é que elle pertencia; e marcado estava para seguir um rumo bem diverso!

A morte do conde foi serena e mais rapida mesmo do que o aventuravam os facultativos que não desamparavam seu leito. A intensa dor da saudade mergulhava aquella familia nas melancolicas trevas do desalento. Portas a dentro d’aquella morada, pouco antes tão ruidosa e festival, não se ouvia som de vivos, tão compassadas e meditabundas eram as palavras e o viver de seus donos. Por muitos dias nem as pessoas que privavam na sua intimidade poderam alcançar a entrada e o accesso junto aos doridoss mas o tempo que vae delindo sem cessar os mai; aferrados sentimentos, foi levando na torrente do seu curso a maior força d’esta violencia, e os salões desertos encheram-se outra vez de numerosas damas e cavalheiros, presidindo a estes serões puramente de conversação, a marqueza sua tia.

Entretanto espalhára-se o boato do casamento de Branca, marcado por esta para depois de passado o tempo do luto, demora que desgostara D. Jorge, sem comtudo ousar pronunciar-se contra ella: tanto respeitava e tantos motivos secretos tinha para se conformar com a vontade de sua futura esposa.

A sensação que esta noticia causara nos dois mancebos, que a occultas se queimavam no mesmo fogo, foi fortissima. Vasco de Mesquita, que se julgava pelo parentesco com direitos, á mão de sua prima, exhalou a sua raiva em apostrophes e gritos furibundos contra o feliz noivo e o fallecido conde, propondo-se ainda a demover com ardilosas razões sua prima. Alvaro de Sepulveda, esse fechou no peito a amargura que lhe envenenou a existência, curvou-se á dor como planta açoitada pelo nordeste, e, se não triumphou de si, pôde comtudo apparentar sereno e resignado semblante. Branca sabia que em todos aquelles corações tinha um altar. Cada um de per si lh’o tinha significado com demonstrações não equivocas; mas, o seu coração livre, como a avesinha que pela vez primeira desprende vôo, era muito bem formado para alimentar, por capricho de galanteio, esperanças que não podia satisfazer. Soubera, pois, juntar ao desengano tão maviosas desculpas, que nenhum se deu por offendido no seu amor proprio. Além de que, o perspicaz ciume abrira-lhes os olhos do raciocinio, consolando-os a igualdade com que eram tratados. Comtudo, se a escolha fôra dada a Branca, Alvaro venceria os seus rivaes. Não era a gentileza do corpo nem a formosura viril de Sepulveda que lhe dava a primazia, era a soberana modestia da sua intelligencia, e a bondade e grandeza de seu coração. O afeminado Vasco, as suas bravatas como moço educado sem ter quem lhe fosse á mão, nunca podia esperar nem sequer merecer o confronto no seu espirito, a não ser com D. Jorge de Mello, por quem intimamente sentia ella uma repugnancia sem explicação. E de facto não era Jorge o mais elegante mancebo da sua roda? Haveria que dizer d’aquelles olhos, d’aquella fronte, d’aquella maneira tão distincta de expressar-se? Não: mas apezar de tantas perfeições e de o ver tão endeusado pelas damas, e quem sabe se mesmo por isso, Branca preferia os olhos menos formosos mas seductoramente meigos de Sepulveda e o seu ar nobre, simples e natural. Entregue á permanente lembrança da irreparavel perda que soffrêra, buscava ella o refugio do seu quarto para chorar asós, e interrogar a sagrada memoria de seu pae sobre o sentimento que o levara a sacrificar a sua vocação. Branca pensava que nascêra para a vida do estudo, sem comprehender que houvesse homem que lhe fizesse esquecer os seus livros e o seu gabinete, o sanctuario que poucos profanavam. Em vida do conde nunca se lembrára de tal; porem, quando lhe faltou a luz da sua alegria, cubiçou a tranquillidade do claustro, e pedia a Deus que inspirasse D. Jorge a desquital-a da palavra que fielmente estava disposta a cumprir ainda que com constrangimento e desprazer. Da sua parte é que não podia fazer nada. Tinha sempre debaixo dos olhos a imagem do conde moribundo; ouviu-o, supplicando-lhe que esposasse aquelle homem; e isto abafava todas as resoluções que podessem nascer no seu espirito. Portanto estava fixado o seu destino. Jorge não mostrava entender-lhe o pensamento, não curava de mais que de projectos, em que, a seu pezar, ella se via sempre associada.

Decorridos os seis mezes em alternativas de esperança e tristezas do desalento, effectuaram-se as nupcias, e achou-se Branca escrava voluntaria do homem a quem menos pensava pertencer.

Restava-lhe a satisfação da consciencia a inflorar-lhe os áridos caminhos da vida.

II

Os primeiros tempos d’esta união foram serenos. Jorge, a quem sua mulher tivera a franqueza de declarar antes de realisado o casamento, que por obediencia se submettia ao seu dominio, irritára-se a principio, acabando depois por acceitar a partilha que lhe dava esta excentrica formosura, incompleta talvez pela falta de coração, Se algumas vezes, no seu férvido enthusiasmo, o revoltava a impassibilidade d’aquelle rosto sempre suave e sem sombra de commoção interior, e as palavras sempre frias e singelas onde nunca transparecia a mais ligeira alteração, foi-se acostumando pouco a pouco a este viver, pensando que, pelo menos, possuia seguras garantias do procedimento de sua esposa. Além d'isso, havia entre elles um mysterio, que lhe quebrava forças e auctoridade moral, para exigir o que se apresentava como impossivel.

Branca, por sua parte, cumpriu á risca os deveres que se impozera com custo, mas resignada. Acceitava as caricias de seu marido como podia, ou talvez melhor ainda do que desejava acceital-as. Fingir, porem, extremos ou sentil-os é o que era superior ás suas forças e á sua índole altiva e sincera. Ainda que podesse baixar, a esse nivel onde tanta mulher resvala por conveniencia propria, julgar-se-hia aviltada a seus proprios olhos, e escarnecido esse nome que tantas lagrimas lhe custára e de que tão dignamente fazia uso. A sós comsigo, lamentava saudosa a sua independencia infantil; tinha, todavia, todo o cuidado em esconder estes pezares, bem certa que seu marido devia soffrer com elles, e isto querendo de maneira alguma pagar a ternura e os cuidados que lhe devia com o conhecimento fatal do pouco caminho que elles abriam em seu coração. Quanto mais Jorge redobrava de esforços para quebrar a gélida superficie que envolvia a alma da esposa, mais ella se entristecia, chegando até a desesperar-se contra si propria por não achar razões que a desculpassem. Comtudo, apezar d’estas tempestades pessoaes em que ninguem, afóra elles, penetrava, ostensivamente eram felizes. A sociedade citava-os como modelo; tanto a educação e a delicadeza soubera revestir suas maneiras de amavel sombra.

Uma noite em que Jorge se desculpára de acompanhar Branca por occorrencias politicas que reclamavam a sua presença, fechou ella as suas portas, e, recolhida a seus aposentos, pensou no seu perdido paraizo e no anjo que por uma força occulta a obrigára a sahir-lhe as portas. Perda irreparavel! D’aqui lhe veio á lembrança o unico ente com quem se expandia com mais desafogo, e que era pelos laços do sangue e parecenças ingenitas um reflexo de seu pae. Era este o marquez de S. Gens, irmão do conde, de quem já fallámos.

Com mais alguns annos que o conde, os frequentes ataques de reumathismo roubaram-no a toda a sociedade, vivendo, pode-se dizer, relegado n’uma parte de seu grandioso palacio, antigo edificio ao qual tradicções familiares de tempos mais gloriosos ligavam grande apreço.

Lembrar-se do isolamento do ancião, tocar a campainha e mandar atrellar os cavallos á sua carroagem particular, foi obra d’um momento. Commovia-a sempre a tocante satisfação com que era recebida; sentia-se bem ao lado d’esta velhice, mais respeitavel pelo quasi abandono em que a deixavam desperecer.

A marqueza era senhora entre os quarenta annos, e gozava ainda a reputação de belleza incontestavel e só igual á fama de suas reconhecidas virtudes. Casada com um marido entre o qual havia a grande difterença da idade, o seu exemplar procedimento grangeára-lhe respeitos de que era singularmente soberba, chegando a desprezar, e ás vezes por suspeitas infundadas, algumas senhoras que suppunha atreitas ás fragilidades a que está sujeita a especie humana. Isto fazia, em parte, que lhe perdoassem o esquecimento em que deixava o marido.

Quando D. dorge chegou a Portugal, ninguem levantou voz nem estranhou vel-a declarar-se abertamente sua protectora, introduzindo-o entre as principaes e mais nobres casas, cujos donos estavam como que desconfiados da identidade e qualidades moraes da pessoa. A auctoridade da marqueza era tal, e tão reverenciados seus costumes, que desde esse momento foram vencidas todas as prevenções, sabendo elle mostrar-se depois o homem apreciavel e digno da geral estima.

A noite era fria e invernosa; furiosas lufadas de vento açoitavam os vidros da carroagem e os cavallos escorregavam nas ruas lamacentas da cidade alta, bairro em que era situado o palacio do marquez. Já perto de seu destino, um trem ferindo fogo descia a ingreme calcada que fazia o caminho e passou adiante d’aquelle em que ia Branca com a rapidez do raio. Não foi, porem, com tanta presteza que ella, accordada subitamente das suas constantes cogitações, não conhecesse á luz das lanternas a carroagem de seu marido. Não lhe causou isto, como é de presumir, abalo de tristeza ou alegria. Era um encontro casual que devia leval-os a sitios oppostos.

Saltou no pateo, e como o guarda-portão se apressasse a dizer-lhe que a senhora marqueza não recebia por ligeiro encommodo de saude, mandou annunciar-se a seu tio, subindo a magestosa escadaria. Tangidas as duas badaladas que avisaram o escudeiro do marquez que estava ali uma visita, correu elle á escada, acompanhando respeitosamente a sobrinha de seu amo. Branca foi recebida nos braços e a custo desprendida d’elles.

-- Só tu, flor do céo, te lembras da minha velhice! -- dizia o ancião acariciando os longos e sedosos cabellos da sobrinha. E’s o unico rebento dos Alvarães; é em ti que eu vejo o reflexo dos nossos antepassados; és destinada a perpetuar o nome augusto de nossos avós. Que gloria seria a minha, se Deus me tivesse assim dado uma filha?

-- E não o sou eu pelo coração, meu querido tio? -- respohdeu ella com seductora meiguice. -- Eu desejava poder viver sempre a seu lado; creia que nunca as horas me fogem mais ligeiras do que passadas na sua companhia.

Era verdade: rapidos correram essses momentos para ambos. Marcava a pendula meia noite, quando Branca se levantou; e, sem esperar nem consentir que o velho tocasse, com a confiança propria de pessoa de familia, deu-lhe as boas noites, promettendo voltar breve.

Como para descer tivesse de passar pelo pa-tamar que dividia os aposentos da marqueza, e vendo pelos vincos mal juntos do reposteiro que havia luz na saleta em que ella costumava receber, pensou que poderiam levar-lhe a mal que não procurasse vel-a, sabendo que estava adoentada. Decidida por esta reflexão, atravessou a sala deserta, passou a ante-camara e achou-se de subito á porta do quarto de dormir da marqueza. Ali estacou como empedrada pelo pasmo. Viu-a languidamente recostada n’um sophá, apoiando meio corpo ao braço direito emquanto o esquerdo aconchegava ao seio mal coberto por transparente gaze a cabeça de D. Jorge de Mello, ajoelhado a seus pés em ampla almofada de velludo carmezim.

Por dois minutos Branca estupefacta não sentiu arfar as arterias: toda a precepção de seus sentidos e orgãos vitaes se concentrára na vista. Via, sem poder nem querer comprehender a significação do que estava presenciando; mas, apezar d’isso, bradava-lhe uma voz occulta que não se deixasse ver. Recuou dois passos sustendo a respiração alterosa que retomava seu curso com mais força, depois de represa e absorta em profunda meditação, retrocedeu com ligeireza, e quasi maquinalmente atirou-se para dentro do trem, dando ordem de seguir para casa. Foi só então que o seu espirito decifrou muitos enigmas obscuros, e a sua alma se revoltou contra aquella farça indecorosa, em que a sua personalidade representava um papel ignominioso e ridiculo.

Estava claro que a intimidade dos dois era antiga, e que significava n’este caso o seu casamento, as importunações amorosas de Jorge, os artificios que poderam illudir seu pae, até ceder-lhe a ventura de sua filha, os transportes d’uma felicidade ardente e embriagadora logo que a conseguira, e ainda ultimamente as recriminações que ousava fazer-lhe sobre a sua pouco fervorosa estima?! N’este ponto é que se perdiam todos os intrincados fios de tal situação. Por dignidade propria, depois de muito reflectir, promettêra-se Branca de não soltar palavra ou gesto que demonstrasse o conhecimento que lhe dera o acaso. Mas o desgosto do seu viver azedou-se interiormente, e pela primeira vez elevou-se dentro em si um murmurio surdo contra o fautor de tão negro e infeliz consorcio.

N’este estado de desagradavel excitação veio encontral-a Jorge, temeroso e desconfiado, mas contando muito com o seu sangue frio e presença de espirito para desfazer quaesquer idéas desfavoraveis que se tivessem formado no espirito de sua mulher.

Foi o caso, que no momento em que Branca se voltava para fugir á attracção que a prendia á porta do quarto da marqueza, uma das dobras de seu vestido embaraçada no pezado reposteiro empuchou-o com força, imprimindo-lhe uma ondulação rumorosa que fez voltar o rosto aos dois.

Imagine-se agora o seu espanto quando perceberam uma como visão, que repentinamente se sumira a seus olhos surprehendidos!

A marqueza agitou convulsiva a campainha e inquiriu da diligente creada que atrevido ousára penetrar até ali. Ouvida a humilde e negativa resposta, a marqueza socegou, julgando que fôra a sombra da luz projectada na espessa droga, e alguma corrente d’ar de janella menos bem fechada que causára o frémito que os assustou.

Comtudo Jorge não foi de seu aviso. Parecêra-lhe enxergar na tal sombra fórmas de sua esposa. Inquieto despediu-se da marqueza, e o seu primeiro cuidado foi saber se Branca já recolhera e onde passára a noite.

Não julgára esta ter sido descoberta, e que o fôra, pouco affeita como estava a encobrir as suas acções, é natural que lhe esquecesse a circumstancia de prevenir um inquerito.

Portanto, empregado este meio efficaz para saber o que pertendia, veio Jorge no conhecimento do expediente que era necessario para affrouxar a sua coragem.

Não havia duvida: o facto era positivo; Branca, indo ver seu tio, entrára nos aposentos da marqueza sem ser apercebida de ninguem. Em vista d'isto a necessidade era urgente e a occasião não podia ser preterida. Reflexionado isto, Jorge procurou sua mulher.

Recolhida ao seu gabinete, estava ella sentada em frente do fogão, n’uma poltrona de costas elevadas e exquisitos lavores, tornando-se notavel pela antiguidade e o confronto com o resto dos moveis, iguaes todos em valor, mas trabalhado já no gosto moderno. Era aquelle o seu assento ordinario e que ninguem ousava tomar-lhe.

Com as costas voltadas á porta, deu pela presença do marido já quando elle estava a seu lado.

-- Como está a minha formosa visionaria? -- disse Jorge risonho apertando-lhe a mão.

-- Menos mal -- respondeu ella.

-- E a noite não lhe pareceu longa? -- tornou elle sentando-se a seu lado.

-- Longa não: saudosa e triste.

-- Saudosa! Triste! -- repetiu Jorge -- Essas palavras podem abrir-me os áditos d’um mundo novo se a minha vaidade chegar a capacitar-me de que foi a minha falta sentida.

Branca não ouviu, ou mais naturalmente, não achou palavra animadora ao colloquio, entendendo que seria perigosa a replica em contrario. Fitou os olhos nas chammas que crepitavam no fogão, concentrou-se como pessoa que não attende a outra coisa, e dois pés pequenissimos, calçados n'uns sapatinhos de setim preto, poisaram levemente no rebordo do fender doirado.

-- Ahi está um coquetiismo que faz mal -- br adou Jorge -- Perdoe a minha litterata o galicismo ao enthusiasmo. É uma maldade imperdoavel expor-nos á tentação de beijar esses lindos e mithologicos pés, prohibindo-nos o respeito d’essa fronte severa que ouse um mortal tocar-lhes..

Pela primeira vez levantou Branca os olhos para o marido, e disse com uma voz em que a seu pezar transluzia a animosidade:

-- Estás hoje eloquente, Jorge !

-- Hoje como sempre minha querida Branca; a eloquencia que sinto no coração é bem diversa da que tenho nos labios. Se tu podesses ouvil-a?! Estou sempre tão sequioso de ti, ainda mesmo que poucas horas nos separem, ao proximar-me sinto viçar todas as flores da alma, como o arbusto se reforça e enriquece de seiva ao sol ardente do meio dia. O avarento delicia-se contemplando os seus thesouros: Deixa-me tu tambem gozar á maneira da minha phantasia; recrear-me com estas puerilidades que são o caracteristico do verdadeiro amor; Não achas natural a satisfação que desborda da minha alma quando te sinto a meu lado? Que mulher ha ahi mais perfeita que a minha Branca? Que homem mais rico, do que este que lhe chama sua ?!

-- Escuta-me ainda uma vez, filha -- continuou tomando-lhe as mãos entre as suas.

Eu queria, pelo menos, já que não posso fazer de ti a mulher feliz que pensei conquistar á força de extremos, que a tua razão fizesse justiça ao grande amor que te dou, que comparasses os ardores da minha paixão com o constrangimento que se percebe distinctamente te causa a minha presença, que buscasses emfim, já não digo amar-me por gratidão, que não sei se mesmo encarado d’essa maneira o mereço, mas com a satisfação e estima conscienciosa que nos deve a certeza de que temos um amigo.

Será isto pedir muito? Responde-me com lisura. Tens motivos de queixa contra mim? Estás arrependida do passo que déste para a minha felicidade?

Branca esteve um pouco callada, e respondeu :

-- Arrependida não: o cumprimento do dever é sempre agradavel; e a memoria de meu pae é tão sagrada para mim, como me foi a sua vida. Hoje como então, me sacrificaria gostosa para merecer o premio da minha obediencia. Mas, para que insistir sobre os meus sentimentos? Posso prezar-te, Jorge, ser tua amiga como o sou de meus irmãos. Pedir mais seria excesso da tua parte, sabendo muito bem que não conheço affectos mais profundos do que estes. Além de que haverá divergencia n’esta lingoagem com a exposição que succintamente te fiz da minha alma logo depois do fallecimento de meu chorado pae? Creio que não: e depois d’essa franqueza que tens tu a dizer-me?

-- Nada, minha amiga -- interrompeu Jorge -- Chamas as minhas reminiscencias a um campo doloroso; interrogas-me tu, e arvoras-te em juiz dos erros da minha paixão. Devias, entretanto, ser mais misericordiosa para com elles; lembrando-me menos que acceitar-te eu for- çada foi uma indignidade da minha parte. Foi, não o nego; mas que faltas não desculpa o amor? É verdade que foste sincera ; apezar d’isso, se devo como julgo dar inteiro credito ás tuas palavras, o teu coração livre deixava-me suppor que se renderia finalmente á entranhada presistencia dos meus carinhos; contando tambem muito com a grande força que inspira a toda a mulher virtuosa a palavra marido. Enganei-me: vejo com dor que são inuteis os meus esforços para vencer a tua frieza, e ainda mais me avilto a teus proprios olhos, insistindo em ganhar o teu affecto. Pelo que nenhum valor tem aos teus olhos a minha dedicação e fidelidade ?!

N’este ponto os labios de Branca encresparam-se ligeiramente, mas não fallou.

-- Sim, continuou elle -- Que dirias tu se désses com um marido como muitos, vivendo mais para as outras do que para sua esposa, e fazendo de sua casa habitação de poucas horas? Talvez o amasses!

-- Não creio -- respondeu ella com azedume -- O miseravel que fosse buscar uma mulher á morada feliz da innocencia, sacrificando-a á condemnação de tal vida, só me inspiraria tedio, desprezo e repulsão.

-- Convenho; mas quantos exemplos ha ahi ?

-- Bem sei: é por isso que desgraçadamente vemos a sociedade n’uma degeneração de costumes de que unicamente se pede conta á mulher -- atalhou logo Branca.

-- Que remedio! -- tornou Jorge -- O homem nada perde com essas ligeiras distracções, enquanto que a mulher em se transviando do caminho direito, traz com a perdição propria a deshonra á sua familia.

-- Deshonra! E para o homem o que chamam a esses passageiros entretenimentos? Fragilidades elegantes que engrandecem e até lhe dão prestigio! Bonito! magnifico! bradou Branca n’uma explosão de represada ira.

-- Meus Deus! assustam-me essas theorias, Branca. Quem te ouvir julgará que és uma creatura despida de todos os principios religiosos e moraes, virtudes que te reconheço, e que são a meus olhos um dos teus mais brilhantes adornos! Advogas, porem, essa causa com tanto fogo, que a não ser eu, outro qualquer imaginaria que te levava a essa discussão um interesse directo.

-- Enganava-se só por meio. Não estou agora fazendo profissão de fé, nem apotheose dos meus sentimentos; o que digo é que o homem que está habituado e não pode deixar de distrahir-se (accentuou ella com força) não deve obrigar uma mulher a quem se ligou muitas vezes por um capricho, a assistir impassivel aos seus divertimentos. Com que audacia ousará depois pedir-lhe contas em nome da sociedade, de represalias não justas, mas auctorisadas por elle como seu aviltante procedimento?! Ah! se o amor, é esse transporte delirante que leva apoz si todos os raciocinios! Se o marido que eu amasse d’esse modo, esquecendo ou despresando o juramento de fidelidade eterna que me jurára aos pés do Christo me trahisse assim!...

-- Julgavas-te no mesmo direito? -- atalhou Jorge.

-- É asquerosa a questão... Fiquemos aqui, meu amigo.

-- Pois sim, minha Branca. Perdoa-me se te irritei, e não te exaltes contra mim. Deus sabe que ainda não ha muitas horas, ouvindo tua tia fallar de ti com o enthusiasmo que inspiram as tuas adoraveis virtudes, lh’o agradeci de joelhos e com lagrimas de felicidade. Se tu podesses entrar no meu coração, filha?

-- Outro dia, outro dia fallaremos a este respeito Jorge. Sinto necessidade de repouso.

Jorge não insistiu. Levantou-se, beijou sua mulher na fronte e recolheu-se ao seu quarto pensativo. Retirava, senão derrotado, ao menos sem as honras de vencedor. Desmerecera um pouco a confiança que tinha nas felizes disposições a persuadir e ganhar os espiritos mais rebeldes. Toda a sua força se quebrára diante da dialectica fria e pensada de sua esposa. Estava convencido que não poderá illudil-a: duvidava de si.

III

Retrocedamos um pouco. É necessario que o leitor entre comigo no recesso obscuro onde nos apparece o vulto de Jorge tão confuso e in-formemente debuxado.

A sua sabida de França tinha uma explicação. Seus bens desfalcados, ou prezos a pagamentos, não chegavam a sustentar com dignidade a posição que á força de estudo conseguira ganhar na sociedade; e as muitas dividas contrahidas, umas apóz outras, tornaram-n’a pouco a pouco tão difficil, que resolveu partir para Portugal, lembrando-se que, n’aquelle circulo mais restricto e mais facil de deixar-se seduzir por exterioridades, facil lhe seria restaurar todas estas perdas um bom casamento.

A desillusão foi completa e dolorosa. D. Jorge de Mello foi recebido com indifferença por homens que deviam ainda ter presente na memoria o nome e os serviços e infortunios de seu pae. Acobardado um momento, refez-se por necessidade de confiança na sua boa estrella, e aporfiou.

Frequentou os theatros, galanteou as damas e conseguiu mostrar no parecer desassombrado o homem descuidoso de todos os prosaismos da vida.

Foi n’uma noite d’essas que notou que os olhos da marqueza de S. Gens retirada ao fundo do seu camarote seguiam todos os seus movimentos.

Como habil general que notando o ponto fraco se volta para o lado opposto no intuido de illudir a vigilancia do inimigo, Jorge mostrou-se desentendido d’este favor da fortuna; porem logo no dia seguinte apeava á porta do palacio da marqueza, mandando n’um bilhete com o seu nome rogar a permissão de apresentar os seus respeitos a s. ex.ª.

Foi recebido com bondade, e escutada com vivissimo apreço a sua locução brilhante e espirituosa. Pediu Jorge escusa da sua ousadia, recordando a amisade que ligára sua mãe, santa mulher que morrêra havia muitos annos de saudades e desgostos com a infelicidade de sua familia, á mãe da marqueza. Entrelembrou-se de ter conhecido outr’ora uma creança adoravel com poucos mais annos que elle, cheia de encantos e meiguice, e com quem muitas vezes correra por entre os arvoredos de Cintra; lamentou que a sua sahida de Portugal, quando menino, lhe roubasse a doce intimidade cuja imagem não podera escurecer na sua memoria !

Desde essa hora fatidica, a austera virtude da marqueza occultou-se tremula, assustada e já meio vencida por detraz dos frageis reductos do amor proprio, vaidoso até á ostentação do seu bom nome e dos gabos geraes.

Casada muito nova por conveniencias a que teve de conformar a sua vontade, formosa na idade de trinta e oito annos a causar invejas ás de vinte, soube Michaela manter com tanto decoro e prudencia a sua posição, que não houve nunca voz maledicente que pregoasse o seu nome. Não tomava ella isto como favor, nem devia: era a justissima recompensa dos penosos sacrificios que lhe custava a sua reputação. Educada pela velha marqueza, de quem era proverbial a repellente fealdade, e devendo talvez a ella a tranquilla paz de seus dias, sem mesmo ter tido na mocidade quem lhe fizesse um simples galanteio, mulher emfim que comprehendia, por uma intuição divina, que não existe felicidade senão no caminho da virtude, esmerou-se em enraizar estas crenças no coração da sua Michaela, d’aquella flor delicada e formosa que devia e era preciso robustecer para os dias da provação. Foi debaixo d'estes principios que Michaela começou a sentir tal e tamanho horror ao vicio, e a considerar como empestados todos aquelles que tinham um procedimento equivoco, que toda a pessoa que privasse na sua intimidade acreditaria como impossivel destruir maximas tão profundamente insculpidas em sua alma. Estava, porem, decretado que ficariam aniquilladas aos pés de Jorge.

Ha muito quem não queira crer; eu por mim creio no destino. A não ser isto como se explicariam factos de tal natureza?

Querem os homens que toda a mulher que pecca, cega pela paixão ou por um lapso involuntario, esteja pervertida. Não ha appellação nem aggravo d’esta sentença. Não lhe consentem depois sequer a virtude do arrependimento, a sublime agonia da contricção, para a qual o mesmo Christo prometteu a recompensa do céo!

Michaela era a nndher fadada para as alegrias domesticas, se o destino lhe concedêra um marido conforme aos sens gostos e annos, e dois ou tres filhos que ella visse crescer á sombra dos seus carinhos protectores. A sã razão da sua moral, a religião levada ao grau do excesso, o rigorismo contra as faltas alheias levado até ao absurdo, mas tomada como solida garantia do seu procedimento, todas estas circumstancias juntas concorriam para que se fizesse d’ella um conceito elevado. Foi resguardada com estes formidaveis escudos, que ella resistiu por espaço de tantos annos; e nem a infelicidade do seu casamento pôde abalar as suas crenças. A consciencia do dever fallou sempre mais alto que os secretos impulsos do coração. Joven, a sua singular belleza occasionava paixões verdadeiras, e por isso mesmo que não eram correspondidas. Algumas vezes, porem, não muitas, sentiu agitar na sua alma em sonhos não sei que vagas sombras de mancebos que se morriam d’amores por ella. Accordada em sobresalto, pedia soccorros de graça á religião; refugiava-se em Deus, invocava as dores de Maria, d’esse typo immaculado da eterna pureza, e a sua fé explendida e pura refulgia mais brilhante, reforçada pela energia da resignação.

Chegou, todavia, uma epocha em que devia cahir o alteroso edificio cimentado em começo com as suas lagrimas e mais tarde com a sua altiva confiança.

Justiça de Deus lhe chamava a peccadora, quando, prostrada com a face no pó d’aquelles altares que por tanto tempo serviram de baluarte á sua fraqueza, gemia attribulada e sem conforto.

-- Porque me desamparastes, Senhor, -- bradava ella n’aquella immensa afflicção. Quizestes mostrar-me que eu era feita do mesmo barro da humanidade, e mais vil talvez, porque ousei affrontar com loucos desafios a solidez que elle não tinha.

D. Jorge de Mello era um d’esses homens amestrados na sciencia da seducção. Os seus ataques eram planeados com diabolica arte e sem apparente esforço. Sabia muito bem pelo longo curso da experiencia que o melhor meio de prender e captivar uma mulher de coração e espirito distincto, em contrario do vulgar, é a delicadeza da phrase, o cortejo dissimulado com a capa estimulante do respeito e da consideração.

Foi d’ésta sorte que contou com o triumpho, que o calculo frio da sua vaidade e interesse tornavam hediondo. A conquista da marqueza de S. Gens era muito cubiçavel a todos os respeitos; e grande orgulho devia ser o do homem distinguido por ella, se esse homem podes-se avaliar os thesouros encerrados n’aquelle coração virgem; Desgraçadamente Jorge era o ultimo dos mortaes n’estas circumstancias; Acceitou o amor e os sacrificios d’aquella mulher com a ligeireza propria da sua indole. Se ella era fraca, que lhe importava saber que fôra forte até então? O que provava era apenas que tivera o bom senso e apurado gosto de se guardar para elle. Os combates em que a via luctar valentemente entre os ardores da paixão e as magoadas queixas da consciencia eram crendices que serviam unicamente para realçar o merito da victoria.

A pobre Michaela estava condemnada a chorar um dia mui acerbas lagrimas, quando conhecesse a fundo o ente que a arrastára ao crime. E perdeu-se: perdeu-se como tantas que nasceram para a virtude, e a quem o demonio fatal da tentação e da desgraça venceu.

Cinco mezes levára Jorge a esperar pacientemente o exito que tinha como certo, congratulando-se de ter apontado a sua irresistivel fascinação sobre uma mulher com quem muito contava para os seus calculos futuros.

Michaela era uma alma sincera e noviça na grande arte da hypocrisia. Passados os primeiros terrores da culpa, entregou-se cega e sem vontade propria ás exigencias d’este amor insanavel.

-- Jorge, (costumava ella dizer-lhe) nunca esqueças que me deves mais do que a vida. Lembra-te que te pedi muitas vezes de joelhos que me deixasses morrer sem macula, que me salvasses do opprobrio de que perdi a memoria para não ter de recorrer ao suicidio. E sabes tu porque eu prezei a vida? Morrer era não te ver mais; era perder-te para sempre; e eu tive horror ás trevas que iam sumir-me á luz dos teus olhos. E vivi: reneguei todas as minhas crenças da infancia; cuspi na memória sagrada de meus paes; quasi abjurei a lei do Christo! Por tanto, dispõe de mim; dá-me o prazer de imaginar que a minha dedicação te é precisa e de proveito; conta-me toda a tua vida; abre-me o teu seio como á amiga extremosa que sou, e só te peço uma recompensa. Poupa-me, poupa a minha reputação; não arrastes o nome respeitavel de meu marido ao charco ignominioso onde a minha fragilidade o atirou... E n’esta idade, Jorge!... Já quando por entre os meus cabellos negros entrevejo o protesto solemne da velhice. Se ao menos eu contasse com a tua affeição? Se uma voz occulta não me estivesse atormentando constantemente, mostrando-me a sombra terrivel d’uma rival joven e formosa que ha-de roubar-te aos meus carinhos? Oh! abençoada a morte antes d’essa hora extrema!

E Michaela soluçava escondendo a face entre as mãos. Mas logo que Jorge voltado para ella lhe descobria o rosto, chamando-lhe louca, nos olhos de Michaela brilhava de repente o reflexo da esperança e da alegria; e a nuvem que toldára aquelle sereno horisonte desfazia-se como a nebrina da manhã, deixando mais viçosas as plantas rociadas.

N’uma d’aquellas horas expansivas Jorge contára á sua amiga as difficuldades em que se achava e sem saber que remedio poderia dar-lhes.

Acudiu ella pressurosa e sentida pela falta de confiança, reclamando a administração dos bens de Jorge. Promptificou-se, fazendo elle ligeiros sacrificios, em desoneral-os dentro em pouco de todos os compromissos que os sobrecarregavam, e isto sem que elle lhe devesse mais do que alguns minutos de cuidado em cada dia. E que occupação mais agradavel podia ella ter na sua ausencia, do que cuidar propriamente n’estas coisas materiaes de que dependia a quietação do espirito do seu Jorge, do unico e estremecido amor da sua alma, do homem emfim por quem o seu coração esperára vinte e cinco annos!

Rendeu-se Jorge a estas razões depois de fracos debates, calculando bem que d’essa hora em diante podia dormir descançado sem que o accordassem os gritos dos credores.

A marqueza possuia, á parte dos bens de seu marido, um rendimento superior a oitenta mil cruzados, bens cuja parte dispendia em beneficios particulares e todos os annos se iam acumulando. Sem filhos, com parentes abastados com quem se não dava, Michaela sentiu pela primeira vez o prazer que dá o dinheiro, quando o coração nos diz que se lhe dá um bom emprego.

Com a imponente segurança que lhe dava o seu caracter, a marqueza adoptou publicamente Jorge. Chamou-lhe seu filho, declarou que elle seria seu herdeiro, e foi por esta singular maneira que ninguem ousou aventar a ordem de relações existente entre ambos.

Além d’isso, como desconfiar d’aquella provada e rigida virtude da marqueza ? O seu viver era o mesmo; o seu semblante não exprimia ao lado de Jorge senão a alegria que sente uma mãe á aproximação d’um filho querido. E na verdade, no amor de Michaela havia grandes particulas do amor maternal, d’essa emanação divina que toda a mulher sente ao lado da creancinha que começa a balbuciar as primeiras syllabas. A que é mãe reve-se no anjo, e a que espera sel-o remira-o, suspirando por gozar essas santas e promettidas delicias, que são o premio de muitas magoas e de muitas dores! O coração da pobre marqueza, orphão de todo o affecto, resequido por tão constante aridez, refazia-se agora todos os dias de nova seiva, remoçava debaixo da influencia mysteriosa d’aquella atmosphera impregnada com os subtis e escandecentes aromas da paixão. Não conhecia outra ventura, não tinha memoria d’outras alegrias senão o prazer de ver Jorge feliz.

Comtudo mal previa ella a grande prova a que ia ser submettida a abnegação do seu amor.

Vivendo a certa distancia da familia de seu marido, Michaela sabia que Jorge frequentava assiduamente a casa de seu cunhado, convivendo muito com as duas galantes meninas, que eram citadas na sociedade como um dos seus mais brilhantes ornamentos. Jorge mesmo lhe fizera por vezes subidos encomios das graças de que eram dotadas e a marqueza teve o bom senso de fingir acreditar que eram merecidos.

Dizer que a não assustavam estes enthusiasmos seria falsear o ardentissimo amor que lhe avassallava a alma, e que, como todos os affectos verdadeiros, era ciumento, desconfiado e exigente.

Rasoaveis, porem, eram estas desconfianças, exigencias e ciumes.

-- Comecei tarde -- pensava ella -- estou a entrar na sazão gélida do inverno da existencia; e Jorge com menos seis annos, tão novo ainda! Viver tão pouco! acabar tão breve! Porque envelhecerão as mulheres tão cedo?! Dentro em pouco a minha dignidade exige que eu não acceite de Jorge senão os carinhos sinceros da amisade, a não querer ver a estima que me consagra morta pela irrisão. Por tanto, necessario é ir preparando de antemão o, espirito para me não ver de subito obrigado a abdicar dos meus direitos. Sim, saberei conformar-me com a penosa realidade da minha situação, dando por este modo ampla liberdade a Jorge para seguir sem o menor constrangimento o caminho que lhe approuver. Pensar que elle recusará aproveitar-se d’ella, loucura! Que valor tem as expressões sentidas da amisade, quando os labios que as pronunciam perderam a côr graciosa e o som argentino da mocidade?! Oh! a velhice! O eterno flagello da creatura. Como eu choro os meus vinte annos! os negros aneis dos meus cabellos! o brilho dos meus olhos e de minhas faces hoje emurchecidas e desfeitas!

E lá vae tudo na impetuosa levada do tempo. A vida é um dia. Começa ao alvorecer da aurora e acaba sumindo-se no poente. Felizes dos que lhes coube em partilha o dia de primavera; e ai d’aquelles que foram condemnados a apparecer na estação escura e tempestuosa!

Era assim que Michaela se refazia de forças, procurando com valor admiravel precaver-se contra os impetos de vaidade que por vezes tentavam combater tão sabia resolução.

Jorge, sem o saber nem cuidar, apressava o momento d’uma explicação decisiva, que não podia prever, mas que devia alegral-o. A sua frieza era manifesta. Depois dos primeiros transportes do reconhecimento, o habito levava-o da mesma maneira aos pés da marqueza, tratava-a com entranhado affecto, mas reconhecia-se perfeitamente que o coração estava n'outra parte e era como alheio a estes sentimentos.

Não podéra elle ver Branca sem a amar. Tratando-a de perto, enredára-se nos fios subtis e inquebrantaveis d’aquella rede engenhosa que nos prende a um olhar, a um gesto, a um sorriso. Repellido por ella, nem assim a imagem graciosa d’aquella mulher pode desmerecer no seu alto valor. Suffocou, ainda assim, a sua dor e disfarçou, pensando que ninguem dera fé da sua derrota.

Mas lá estavam os olhos vigilantes d’um pae a ler o que se passava na sua alma.

O conde comprehendeu tudo. Conhecendo que sua filha era idolatrada, achegou-se mais ao mancebo, estudou-o de perto, e pareceu-lhe ver n’elle qualidades para fazer a felicidade d’uma esposa, contando com elle para occasião opportuna.

Na verdade, Jorge reformara muito os seus costumes. O contacto com a marqueza, a gratidão que desbordava da sua alma, e talvez mesmo que o amor que sentia por Branca o houvesse regenerado. O que é certo é que Jorge de Mello estava outro homem, e bem diverso d’aquelle que desembarcara em Portugal..

Quando a morte abeirou da cabeceira do Conde, e este fez prometter a sua filha que seria esposa d’aquelle homem, era na idéa de que a paixão que ella inspirava fosse eterna. D. Jorge de Mello não era rico; mas Branca tinha bastante de seu; e reunidos ambos, como era natural, a herança do marquez seu irmão e a da marqueza reverteria em favor d’elles.

Jorge sentiu uma hallucinação de inesperado gozo, recebendo das mãos do moribundo tão preciosa dadiva. Só mais tarde é que pensou em Michaela. Como havia elle de levar-lhe esta noticia? Que diria a pobre mulher? Que queixumes, que lagrimas, que desesperação não seria a sua?

Primeiro quiz escrever-lhe. Rasgou cinco ou seis cartas, e sempre incerto no que lhe havia de dizer.

Resolveu-se por fim, contando com a sua astuciosa delicadeza, a ir confessar-lhe de viva voz uma parte da verdade, e como mais seguro meio de a não irritar.

Michaella foi sublime de coragem! Tão sublime, que o proprio Jorge se sentiu ferido no seu amor proprio julgando-se menos amado do que suppunha.

Engano atroz! Nunca Michaela dera tanto apreço ao unico e mal premiado sonho da sua vida!

Foi a sós comsigo, que ella deu largas á dôr enorme que lhe despedaçava o peito. Lá estava porem, a religião, o anjo do conforto a chegar-lhe aos labios calcinados o calix refrigerante da paciencia.

Chorou, e resignou-se. D'essa hora em diante, a sua expiação foi terrivel; via Jorge ao lado d’uma mulher que lhe chamava seu! Mas a sua consciencia aliviou um pouco. Heroico e extraordinario espirito!

Entrou na sazão: era mãe; mais nada.

IV

A população de Lisboa tem um caracter especial.

Toda a pessoa atreita a reflectir sobre a indole e costumes de cada localidade admira-se da grande concorrencia, que se encontra todos os dias em cinco ou seis ruas convergindo todas ao Chiado, que é, por assim dizer, o centro elegante e principal da garrida cidade.

Os homens, com a volubilidade que lhes é innata, passam mirando as senhoras atravez da luneta, cortejando uma, apertando a mão a outra, indo d’este a outro grupo com aquelle ar indolente do ocioso.

Aqui discute-se o amor, além politica, e mais longe toiros ou theatro. As senhoras, que não dão pequeno contingente para aquelle oceanosinho de esperanças e illusões, são geralmente tão garbosas, que muitas vezes se lhes perdoa um ar pasmado e cubiçoso que as faz parecer estupidas, admirando qualquer das lindas futilidades que cobrem os balcões.

De certo: ha no Porto senhoras de incontestavel formosura: pois nem mesmo a essas eu aconselharia o tentar competencias com o saber apresentar-se, e o superior desdem da senhora lisbonense.

A feição mais caracteristica d’aquella cidade é a alegria. É da terra que se exhalam umas emanações tépidas e odoriferas que fazem desabrochar as flores em fevereiro, emquanto no Porto se espera o maio para ver uma tulipa ou um lyrio, enfezadinho á nascença pela nebrina.

Dá contentamento aos olhos e expansão á alma, desembarcando-se ali em pleno inverno, ver os balcões e os muros dos jardins todos inflorados de rosas, de lilazes e de baunilha. Debaixo d’aquella atmosphera radiosa ha risos em todos os labios e meiguice em todoa os olhares; emquanto que, talvez pela mesma influencia atmospherica, os habitantes do Porto, tristonhos e melancolicos parece que andam sempre envoltos n’aquelles véos espessos e nevoentos que lhes encobrem as famosas nimphas do opulento Douro.

Bem sei que muitos clamam contra a agreste vegetação dos arredores de Lisboa, encarecendo a fertilidade risonha e aprazivel dos nossos vergeis do Minho. Eu mesmo quantas vezes ali os tenho recordado! É preciso, porem, contemporisar com as circumstancias e não se exigir milagres da natureza, mui principalmente quando se possuem deliciosas compensações.

N’um dos periodos mais calamitosos da minha vida gostava eu de ir sentar-me sosinho, por manhã fresca e temperada, n’uma d’aquellas grutasinhas de verdura do passeio da Estrella, aspirando o perfume das plantas, escutando o gorgeio dos passarinhos embuscados na ramagem, lendo ou declamando mentalmente um ou outro trecho de poeta mais estimado, deleitando-me emfim em amollentar as cruezas do meu destino com o balsamo que se instillava na minha alma, e que só colhia n'aquella amenissima solidão.

N’esses momentos não podia eximir-me a confrontar o meu poetico retiro mais encantador debaixo das suas galas matutinas, com a terra em que nasci. Então o Porto apparecia-me tão mingoado d’estes pontos locaes, onde as almas feridas possam embrenhar-se sem receio de vistas importunas, e sonhar com os olhos fitos no céo na Essencia Creadora que lhes dá como allivio e esperança, -- esperança remota porque a dor e longa -- a certeza de que Deus ama a creatura, e a todo o desgraçado serão levadas em conta as lagrimas não merecidas. Então era o ver eu sumir-se insensivelmente o prestigioso arrebolda saudade e sentir que nem havia confronto possivel. Ai! como não hão-de ser ali encantadoras as mulheres, se ellas só respiram o ar alegre e embalsamado que cobre tantas opulencias? Encantadoras e formosas, que contentamento é formosura, distinctas pelo ar espirituoso que as caracterisa, radiantes como o sol que as alumia! E a formosura sem um toque expressivo de distincção pouco val, ou tem pequeno merito no meu entender.

Dei sempre a preferencia, não direi á fealdade mas ao meio termo da belleza, acompanhado da graça e do espirito.

Isto costumam tambem dizer as mulheres feias, lembrando-me ainda assim, que a brilhante Staël dava de bom grado a sua reputação litteraria e seu incontestavel merecimento, se fosse possivel trocal-o por um bello rosto.

Em geral todos os homens pensam como a celebre escriptora.

E já que tocamos no assumpto, ouçamos o que nos diz a celebre Lóla Montez, condessa de Sandsfeldt na sua Arte da Belleza:

«Todas as mulheres sabem que é pela formosura e não pelo espirito que as gerações pas-sadas tem honrado o nosso sexo. Quando os homens fallam da mulher intelligente é sempre com um ar frio, critico e sarcastico; quando pelo contrario, em se tratando de encarecer os encantos pessoaes d'uma bella mulher, sua linguagem e seus olhos brilham de enthusiasmo; mostram-se mesmo vivamente impressionados a ponto muitas vezes de se tornarem rediculos.»

Siga, pois, cada qual a sua opinião.

O tempo acaba com todos os desvanecimentos; e os primeiros cabellos brancos são o protesto mais eloquente contra as assomos da vaidade feminil. Disse o que posso com lizura, e perdoem-me as leitoras formosas esta digressão em que eu quiz com as minhas limitadas forças erigir um altar para as desfavorecidas da natureza.

Dizia eu no começo d’este capitulo que se encontrava sempre grande concurso de homens e senhoras elegantes nas immediações do Chiado. Toda esta multidão ociosa sahe o mais das vezes de suas casas com o unico fim de ver e ser vista.

Estavamos pois n’uma quinta-feira do citado anno de 18... Das carroagens armoriadas saltavam as damas formosas á porta das modistas, levando a poz si os lacaios carregados com bocetas e saccos de damasco. Dava-se uma grande festa.

A assembléa lisbonense reunia n’aquella noite, commemorando uma medida politica de geral interesse, e o enthusiasmo que lavrava entre os homens, fora conquistando o applauso das senhoras, para o qual muito concorria a idéa do prazer, gozado n'um baile: festim deleitoso para todas as idades.

Não ha espirito feminil que resista a semelhante attractivo. As moças enebriando-se com a satisfação de se verem formosas e idolatradas, as velhas, tentando ainda uma experiencia que muitas vezes lhe sahe amarga e dolorosa. 162

Em todas estas cogitações estava absorvido um mancebo, encostado ao balcão d’uma luveira que fazia esquina para a rua de S. Francisco. Pela attenção que estava dando a esta vivissima scena conhecia-se que era estranho a taes costumes, e tinha vivido longe do bulicio estridente da capital.

Quando mais occupado estava em analysar os grupos que se destacavam uns dos outros, como enxame afervorado na quotidiana lida, viu parar á porta que lhe estava em frente um rico coupé, e dentro uma senhora de admiravel formosura.

Era Branca d’Alvarães.

O lacaio saltou com ligeireza, abriu a portinhola, recebeu as ordens da dama e entrou na loja. O mancebo não podia desfitar aquella peregrina belleza.

Por casualidade, ou attrahido por magnetico fluido, os olhos d’ella encontraram-se. com os do desconhecido; Rapido como a estrella que se some no azul infinito, aquelle olhar vibrou nas cordas mais intimas do coração do moço. Branca tambem sentira alguma coisa de estranho. Passado um momento, levada pelo sentimento ávido da curiosidade, e impressionada pela commoção e quasi espanto que se manifestara no semblante do mancebo, os seus olhos procuravam-no segunda vez com insinuante e sympathica presistencia.

Elle impallideceu um pouco; a sua frente alta e espaçosa avincou-se; e uma como sombra escura contrahiu-lhe os labios e as feições.

Era a vez de Branca contemplar. Era ella agora quem interrogava o destino, eram os raios fulgidos da auréola que a cercava a tentarem romper a nuvem pezada e repentina que obscurecerá o semblante d’aquelle homem.

N’este momento o creado voltou: a portinhola fechou-se e os cavallos desandaram com possante galhardia.

A visão esvahiu-se, mas a impressão d’ella ficou.

O mancebo, pouco antes distrahido, achou fastidioso agora o perpassar constante de toda aquella gente.

As mulheres pareceram-lhe levianas em excesso, e os homens soberanamente ridiculos. No fundo da sua alma estava gravada em fogo a imagem seductora de Branca.

Quem seria ella? perguntava o seu pensamento alvoroçado. A sua posição na sociedade devia ser distincta; a superioridade do seu espirito transluzira no espirito do mancebo ao clarão lúcido e radiante do seu olhar.

Que olhos! Que magia divina ou infernal relampejava d’aquellas palpebras quasi transparentes, assombradas por longas pestanas negras? Que mysteriosa attracção a da fronte escampada, e a harmonia, o toque finissimo das feições raphaelicas!

E como saber-lhe o nome? Como saciar a ancia devoradora que o consumia?

A mulher que estava ao balcão podia talvez dar informações exactas; porem o excentrico coração do moço impedia um inquerito que desprestigiaria a mysteriosa fada que lhe alevantára o espirito ás alturas infinitas.

-- Não -- pensava elle -- não irei por minhas mãos apear o idolo, que entrevi ao clarão fascinador da minha esperança. Se é certo que esta doce imagem deve influenciar no meu destino, se é esta a alma dos meus sonhos, para que procural-a? A attracção da minha a fará aproximar. E, se pelo contrario, é só a mulher, para que desperdiçar este enganoso enlevo que me repilla o coração? O coração, continuava elle, este hospede turbulento que me não deixa descançar, e quando já tanto tempo era de repouso.

Caminho do hotel onde pousava sentiu o mancebo, ao passar perto da praça do Rocio, que o apertavam dois braços possantes; Voltou-se surpreso da rapida prisão e achou-se de frente com um amigo de infancia que não via ha muitos annos. Este amigo era Alvaro de Sepulveda.

-- Tu aqui, Rodrigo! E que milagre de memoria a tua, que ainda me reconheces! -- respondeu este. Cuidei que o infortunio me demudára de tal sorte, que nem os proprios companheiros poderiam achar feição que relembrasse o homem d’outras épochas.

Que alegre mocidade a nossa, Alvaro!.. E tu, que tens feito? Como vives? Pareces-me feliz?!

-- Feliz! -- murmurou Sepulveda com um suspiro -- Quem são os felizes n’este mundo, meu amigo? Meia duzia de parvos que devem á curteza do entendimento e ao enganoso acepipe do orgulho lograr não sei que mal ratinhadas venturas, que o homem de coração não pode invejar. Comprehendes tua felicidade d’este modo?

-- Quem sabe ? O materialismo tem adeptos distinctos e que o mundo preza; emquanto eu que tenho sido um dos acerrimos sacerdotes do coração, me vejo rodeado de trevas, cançado de lutas e engolfado n’um abysmo de desejos impossiveis! Vê por tanto se me fazes conhecer esses a quem chamas nescios, esses ditosos da terra, para que eu possa com o estudo proficuo da sua doutrina esmagar esta viscera importuna que me atormenta. Se tu soubesses que magoas, que desenganos, que desenganos atrozes tem gasto os meus ultimos annos?! A illusão sempre entrajada de falsas galas a fazer-me girar, a correr constantemente depoz d’uma lentejoula, que se desfazia ou queimava ao contacto ardente da minha paixão! E por ultimo, depois de soffrer tantas e repetidas negaças do meu espirito, encontral-o sempre do mesmo molde, talvez mesmo mais impressionavel, irritado por tão continuas decepções!

Queres saber que funesto destino é o meu? Sahi da provincia depois d’um cataclismo medonho e fujo do Porto para evitar um mais horrivel ainda! Chego hontem fatigado moralmente, desesperado contra mim e protestando comportar-me d’ora ávante como o geral dos homens para não arriscar a vida e a honra, minha e de terceiras pessoas. Chego n’estas disposições, levanto-me esta manhã afincado n’ellas, e derepente os olhos d'uma mulher fazem-me esquecer estas bellas chimeras, transtornam todos os meus pensamentos, e sinto-me outra vez subjugado pelo demonio infernal d’esta triste existencia. Já vês por tanto que isto em mim é uma doença incuravel. Amo hoje, o que aborreço ámanhã e detesto no dia seguinte! Nem mesmo sei o que é a saudade, a saborosa amargura de que nos falla o poeta de Luiz de Camões. Depois de grandes incendios, nem resquicios de cinza me ficam na alma; apenas lá fica o tédio, como lembrança eterna e desagradavel de tão malbaratadas sensações. Não sabes o que é a felicidade, Alvaro? Podes agora aprender comigo o que é a desgraça.

-- Comtigo! dizes tu? -- murmurou Alvaro, espremendo entre as pontas dos dedos as longas guias do bigode.

-- Creança! A narração que me fazes é a historia infantil de todo o homem que sente referver no peito o cachão do genio. Todo o espirito superior amanhece tarde para o inglorio positivismo, que só a experiencia se encarrega de lhe demonstrar como veio digno de exploração. O que se deprehende de tudo isso, é que a magnifica seiva da tua alma está inda intacta; que a não gastaste porque te sentes mais vigoroso a cada golpe; e eu adivinho que as tuas batalhas mais gloriosas ainda se não deram. Sim, não me interrompas -- continuou, vendo um gesto impaciente de Rodrigo -- não me digas imprudencias que renegarias ámanhã. Acredita-me, meu amigo, és mais feliz do que o suppões; tens dentro em ti riquezas ignoradas. Desgraçado e sem compensações de ordem alguma sou eu. Eu que pude resignar-me a ver a mulher fatidica, um anjo de graça e de perfeições, passar aos braços d’um d’esses ineptos ladinos, que soube insinuar-se na sociedade não sei porque occultas molas! Livre-te Deus d’um inferno igual; oxalá que a mulher que vae influenciar no teu destino não esteja presa a tão fatal condão. Vamos -- disse enfiando-lhe o braço -- eu tenho tantas coisas a dizer-te, que decidi não te deixar. Vou jantar comtigo, e á noite darás entrada nos salões da assembléa lisbonense, de que tenho a honra de ser um dos directores, e onde terás occasião de conhecer as nossas mais distinctas formosuras. Apraz-te isto?

-- Mais do que tudo, gozar da tua companhia, meu amigo. Quanto ao baile, irei: aguças-me a curiosidade, alentando uma esperança recondita. Segundo dizes, devo encontrar alli a mulher que me deslumbrou, como se fora uma apparição divina! Nunca vi coisa assim! Que olhos, Alvaro, que olhos! Tenho-os tão impressos na alma, que sem ser pintor creio que os poderia reproduzir na tella. Um olhar d’aquelles é um homicidio, Alvaro, é um d’aquelles venenos doces ao paladar, que se infiltram rapidos e mortiferos nas veias d’um homem!

-- Admiro o teu enthusiasmo, se não estás brincando.

Só conheço uns olhos dignos de taes gabos. Esses sim; não os ha iguaes em Lisboa, e creio que em todo o globo.

-- Os da mulher que amas?! -- volveu Rodrigo sorrindo --

-- Sim, os d’ella: eu te obrigarei esta noite a confessal-o, em detrimento da beldade que te enfeitiçou.

-- Seja -- tornou Rodrigo -- mas vê lá, que me não dês causa a conhecer-te a cegueira dos namorados piégas.

-- Piégas! -- exclamou Alvaro --

-- Sim, piégas, para lhe não chamar coisa peior. Ora diz-me cá: continuas a cortejar essa mulher?

-- Não: já te disse que está cazada.

-- E então? é esse obstaculo que empeça um homem de espirito de requestar uma dama?

-- Não prosigas, por Deus t’o peço, Rodrigo -- bradou Alvaro excitado -- Perdoo-te a offensa que fazes áquella mulher angelica, por não a conheceres; do contrario essa insultadora limguagem custar-te-hia a quebra da nossa amizade. Conheço Branca ha muitos annos; fui olhado sempre por ella com particular estima; e para a não perder soube abafar todos os impulsos do coração. Fica pois certo que não é a uma amante, a uma mulher vã e presumida que vou apresentar-te, é a uma das senhoras mais dignas e respeitadas da nossa sociedade.

Continuou a pratica n’este tom, entrando muito pela noite adiante. Era já tarde quando, trocadas mil confidencias secretas, os dois amigos entraram n’uma sege para ir ao cabelleireiro. Lá, obrigados a demorarem-se pela numerosa concorrencia, viram ir correndo as horas impacientemente. Livres emfim, apressaram a corrida da sege que brevemente os levou aos majestosos salões da assembléa. Percorridos estes, analysadas uma por uma as gentis damas que o aformoseavam, como flores em jardim inculto, retiraram-se os dois a uma saleta da entrada, que dava passagem para o aposento destinado ás senhoras.

-- Admiro não estar aqui Branca -- disse Alvaro.

-- Tambem a mim me falta a luz d’aquellas duas estrellas que me attrahiram a estes sitios -- respondeu Rodrigo, encostado a uma meza e com os olhos fitos no chão.

E passados momentos continuou -- Sabes que chega a encommodar-me este ruido? esta azafama, este corropio de homens e mulheres desconhecidos! Queres tu que vamos embora? deixemos estes festins para os bemaventurados da terra. Eu folgo mais, a não quereres vir, de. ir encerrar-me no meu quarto com um bom charuto e duas paginas de Goëthe ou Shakspeare.

-- Vamos, vamos: -- respondeu Alvaro -- isto tambem já me não interessa.

Com os braços cruzados atraz das costas, os dois amigos iam caminhando em direitura á porta, quando os salteou uma voz argentina:

-- Já nos deixa, senhor Sepulveda? Voltaram-se os dois repentinamente, e deram com duas senhoras paradas a quatro passos de distancia. Uma d’ellas era a esposa de D. Jorge de Mello.

Alvaro retrocedeu gostoso, emquanto Rodrigo, postos os olhos em Branca, e reconhecendo pelo alvoroço do amigo quem era a incognita dama, se sumiu n'um grupo d’homens que n’esse momento desembocavam na estrada. Branca, porem, tinha-o reconhecido.

-- Quem é o homem que o acompanhava? -- perguntou -- Não conheço d’aqui.

-- De certo não, minha senhora. E natural da provincia do Minho; conhece Lisboa ha poucas horas. Agora mesmo ia eu pedir á v. ex.ª para lh’o apresentar, como o mais querido dos meus condiscipulos de Coimbra -- disse relanceando um olhar em redor de si.

-- É uma recommendação valiosa. Vá procurar o seu amigo; vá. Sou eu que lhe peço que me não roube o prazer de o conhecer. Irei esperal-os ao salão: até já.

E dizendo estas palavras, que rematou com um gesto gracioso, affastou-se, deixando o moço seguil-a com a vista até que derepente desappareceram as caprichosas ondulações do seu elegante vestido. Findo o enlevo, recordou-se elle da promessa e sahiu á procura de Rodrigo, cuja subita desapparição admirava. Foi, pois, encontral-o logo adiante, no topo da escada, sentado em um banco meio encoberto pelos resposteiros e jarrões de flores, e tão absorvido em profunda meditação, que não deu pela sua chegada.

-- Que fazes tu aqui? Porque fugiste? -- foi bradando Alvaro logo que o avistou, se bem que teve de repetir a pergunta.

-- Não me interrogues, meu amigo -- redarguiu elle tristemente -- Não me digas nada. Vi-a!... conheço-a!... a mulher que ha-de matar-me é a mulher que tu amas; é Branca d’Alvarães.

V

Penetremos no gabinete particular da esposa de D. Jorge.

São passados dois mezes depois d’essa noite fatidica e memoranda. N’aquella existencia pouco antes, cheia unicamente pelos tedios da monotonia, havia despontado uma luz. Luz doce e infernal! Clarão d’um incendio occulto que requeimava o peito da gentil mulher. Ella! a despreocupada creança que vira prostrados a seus pés os idolos mais acatados da boa sociedade; ella, a rainha sem confronto dos salões de mais nomeada, descêra emfim até considerar dependente a sua vida do sorriso d’um homem! E que homem, santo Deus! Pobre Branca! Oxalá que o accrescimo de vida que te faz arfar o seio, podesse suffocar-te o ultimo alento.

Em que pensas tu infeliz?

Voar! voar longe d’essas cadeias que te represam. Fugir á realidade tremenda de teu destino; embrenhar-te n'esses jardins d’Armida para onde te arrasta a attracção do abysmo.

Pobresinha! Como tu amavas!...

Devido talvez á elevação de seu espirito e ao desenvolvimento que o estudo e a solidão moral operára em suas faculdades, Branca via a descoberto a ladeira do antro aberto a seus pés, mas tão enflorado era elle a seus olhos deslumbrados, que gostosa se precipitava sem attender aos espinhos que deviam despedaçar-lhe a alma e coração.

Amava, como amam as raras naturezas privilegiadas e superiores. Uma só idéa tinha: era a concentração d’uma imagem, dourada pelos arreboes de magnifica alvorada; era este o gladio que pouco e pouco afugentára o brado de sua consciencia atormentada. O mundo para ella eram os olhos de Rodrigo; nem ella vivia senão no curto ambito que illuminava a luz espargida d'elles. Posição, deveres, familia, tudo desappareceu envolto na nebrina que levou paa longe a memoria de seus dissaboriados dias. Para que havia ella de luctar subjugada como o fora pelo poder supremo do seu destino?

Branca era fatalista; fatalista por convicção e quasi experiencia propria. A longa e fria insensibilidade de sua alma, o inesperado de seu casamento, a pronunciada antipathia que sempre sentira pelo homem que diante de Deus lhe chamava sua, e que depois lhe explicava a baixeza do procedimento d’elle, tudo concorria a robustecer a estranha crença que alliviava o pezo da culpa.

Engenhoso subterfugio, gerado pela paixão que lhe avassallára o raciocinio.

Eram onze horas da manhã. Branca saltára do leito depois d'uma d’aquellas noites agitadas e sem somno, em que apenas o espirito cançado dormitava ao som interior dos vagos desejos da alma.

Embrulhada n’um penteador de musselina, guarnecido de finissimas rendas, que cabiam sobre os relevos de velludo preto da sua saia carmezim, cornos braços nuse os cabellos esparsos sobre os hombros, curvára-se diante d'uma pequena meza de charão que tinha diante de si no sophá, e lia entre soluços uma carta de muitas paginas.

Eis o seu conteúdo:

Meia Noute

Eu não sei exprimir as minhas idéas melhor do que tu, minha filha. Disseste-me ha dias que a felicidade trazia tristeza. É assim. Eu creio que ha pessoas a quem Deus prohibe o gozo completo, a satisfação plena do coração. Hoje, como nunca, precizava de ter-te no meu colo, Branca. Talvez que a minha ternura por ti chegasse até ás lagrimas, não ás lagrimas do homem acriançado e piégas, mas ás lagrimas da paixão extremosa que devem cahir no seio de uma amiga como tu, d'uma alma tão minha e tão digna d’outro homem como eu considero a tua.

Esta melancolia é saudade, é o que não soffrem os que amam por capricho ou por fascinação dos sentidos, é o que só eu posso sentir, e que só tu podes inspirar.

Se te amo tanto, minha querida amiga, este dezejo constante e cada vez mais vivo podéra esmorecer no fastio, no cansaço, na morte mais doloroza por que podia passar o novo coração que me deste? Não, nem á imaginação me vem um desfecho tão terrivel. Não consinto que esta suspeita assombre a nossa alegria. Não quero que as nossas tristezas se traduzam de modo que nos façam antever a impossivel desgraça de nos esquecermos um dia.

Tudo, tudo menos isso... Fallemos do nosso futuro.. .queres?

Vou abrir-te mais uma vez a minha alma,

Branca. Não has-de ignorar as maiores revoluções que se fazem no meu espirito. Eu fallo comtigo a lingoagem do coração e a da intelligencia, porque sei que ha em ti a comprehensão de tudo o que pertence á intelligencia e ao coração. A seriedade deste exordio prepara-te para uma grande revellação, não é assim, filha? Grande, decerto, a maior da minha existencia, a mais importante ao meu destino.

Tu sabes a minha vida passada como eu a sei. Quasi me conheces desde que vivo, por que -- acredita-me -- quando te conto as miserias da minha existencia, sinto-me melhor; parece que me purifico das manchas que nunca me sujariam a consciencia, se eu tivesse encontrado este anjo dos meus trinta e tres annos aos dezaseis que me achei no mundo com liberdade e meios de me deshonrar livremente.

Quando me vieste ao encontro, Branca, o tedio da vida tocava a extrema do dezespero. Eu não sabia o que havia de fazer desta sensibilidade que só o amor podia sustentar. Só o amor, filha, porque eu reconheço-me incapaz para coisa alguma. A gloria, o nome, o fausto, o poder, queria-os se elles me fossem precisos para merecer um coração como o teu. Amado sem esse cortejo deslumbrante de chimeras, despreso-as, sinto-me maior sem ellas, reputo-me distincto aos teus olhos, e vejo o mundo como o viam os justos, depois que, á voz de Deus, davam aos infelizes quanto possuiam.

Estás impaciente pelo desfecho desta mysteriosa confusão de idéas? Lá vou, minha filha.

Eu presagio que te perco. Deus não quer que eu me convença de que é impossivel roubarem-te á minha ternura. Antevejo uma desgraçada sahida a esta tão sancta intimidade que nos prende. Por que lhe chamo eu sancta! ? Será um abuso de palavra? Não, minha esposa, não é. Amo-te com não sei que de pureza que nem o sacramento me daria. Amo-te com uma lealdade de coração que devera ser posta em exemplo aos que promettem de joelhos um amor de esposos. Amo-te como amaria uma vez na vida todo o homem que encontrou essa nobre alma, cujo valor nem tu mesma conheces.

Agora, vais entrar no que é um segredo ainda para ti. Ouves-me com religioso respeito, Branca? Se sorrires, offendes-te a ti propria, porque respondes cruelmente a uma suprema tristeza. Olha, filha, eu pensei hoje muito na desgraça da nossa separação. Se está destinado que ella aconteça, se a desgraça for tal que todo o teu heroismo seja impotente para o venceres, queres saber o meu destino immediato? Ha ao pé de Lisboa um seminario, onde a vida é melancolica e recolhida como a dos mosteiros. Ali se fazem esses homens tristes que vestem um habito negro, e vão a tres mil leguas ensinar aos selvagens que ha um Deus para os desgraçados. Partirei d’ali com o teu nome no coração e o de Deus no espirito.

Lá ao longe não me chegará a nova de que morri na tua memoria, e o termo da minha vida de sacrificio será abençoando-te, filha da minha alma.

É isto o que te diz o teu primeiro e ultimo amigo n’uma hora que decidiu da sua vida...

Finda esta leitura, interrompida muitas vezes por um gemido e pelo pranto que lhe obscurecia a luz, Branca apertou com transporte as mãos uma n’outra, e com os olhos vidrados pelas lagrimas fitou os florões o arabescos do estuque, como se por entre elles descobrisse a imagem piedosa do Christo, invocada mentalmente em tão dolorosa agonia.

-- Já! Meu Deus! já! -- murmurou ella -- Tão cedo começa a expiação?

Um momento depois os seus dedos tremulos tomavam a penna e a custo traçaram estas linhas:

« Não é respeito, é terror, é desespero o que sinto lavrar-me na alma. Pois quê, Rodrigo! Estamos nós já á beira do Calvario? A minha sina maldita entrará como um édito tremendo a influenciar na tua existencia?

« Oh! meu amigo; Eu quero a morte. Quero morrer, mas morrer amada por ti; morrer recostada no teu seio, antes de ver-te entrajar a mortalha que te fascinou o espirito.

« Padre! Ministro de Deus! tu!... E eu, que será de mim se me falta o teu amparo? Que affectos vais tu dar a Deus que não possas repartir comigo, infeliz! Estás cançado da minha ternura? Aterra-te a enormidade da culpa?

« A este pensamento lateja-me a fronte, sinto nas faces o queimor do sangue e da vergonha.

« Duvidares tu da minha coragem para resistir aos empuxões da desgraça e dos desgostos que nos estão imminentes, é unia affronta, filho. É o mesmo que duvidar ou desconhecer a grandeza da minha affeição. Podel-o-has tu Rodrigo?...

« N’esse caso deixa-me morrer: deixa que eu vá d’este mundo onde não conheci outras alegrias senão do teu amor, e sem as quaes não comprehendo hoje nem quero a vida. Vida que não te servirá de louro: cadaver era eu antes de conhecer-te. Morta, não te peze o meu fim na consciencia: todo o artifice tem direito a aniquillar a Gallathea, creada ao sopro divino da sua inspiração. Que a minha memoria fique pois na tua alma como um symbolo da desventura.

« Contempla-me tu d’aqui, já sombra errante em outros céos; seja essa uma romagem piedosa do teu espirito para além da eternidade.

« Creio que estou ás portas do meu Gethsemani. Vejo o mundo com indifferença: resigno-me. Vive, vive tu, meu amigo. Cumpre a missão salvadora a que te destina o animo, ou o tedio dos desenganos do mundo, que já não illudem a tua experiencia. Para mim não tem outra significação a tua carta; e eu sinto a minha intelligencia reforçada n’esta hora pelo instincto secreto do coração.

« Não me digas, pois, mais nada. Silencio sobre as tuas intenções; e quando ouvires dizer que Branca não é mais do que pó, vae ajoelhar na pedra que cobrir as suas cinzas, e pede para a alma o aniquillamento do cadaver. Sim, pede, ora com fervor; eu penso que mesmo d’além tumulo te amarei ainda! Fatal apprehensão que mo rouba a idéa aprazivel do descançar eterno!

« Adeus, Rodrigo. Nada de queixas nem lamentos. Comprehendo-te, lastimo-te e amaldiçôo a negra hora em que te vi.

« Branca ».

Duas pancadas leves e compassadas soaram na porta, e logo a voz de Jorge.

-- -Já de pé, Branca ? Posso entrar ?

-- Vou abrir, -- respondeu, dobrando o papel que metteu no bolso, e conchegando o penteador do seio agitado. Jorge lançou um olhar rapido e prescutador em redor de si, antes de estender a mão a sua mulher. Depois examinou-a com inquieta curiosidade, affastou-lhe as mechas de cabellos da testa, cravando olhar ardente nos recentes vestigios do pranto.

-- Que tens tu minha Branca ? -- perguntou com affectuoso interesse ?

-- Nada, ou muito pouco, para te fazer depositario das minhas tristezas. -- disse ella com frieza.

-- E porque não ? -- tornou Jorge, sentando-se no sofá e fazendo menção para que Branca tomasse lugar a seu lado. -- Cuidas tu que seriam mal avaliadas ? Que haverá seio onde coubessem melhor ? Oh ! Branca, não haverá pois esperança para mim ? Não poderás tu amar-me um dia ! uma hora ! um minuto sequer ! Se soubesses quanto soffro com esse glacial desdem !... Diz, que queres tu que eu faça ? Que é necessario fazer para merecer-te um sorriso do coração ? Não te compadeces de mim ? Não te diz a consciencia que peccas, tratando d’esta sorte ao homem a quem juraste diante de Deos de pertencer, e que tanto soffre com a tua crueza?

Branca, minha querida esposa, ama-me. Ama o teu Jorge, ainda que mais não seja, por commiseração; que eu tudo aceito reconhecido. A primeira vez que te vi decidiu da minha vida, para te emballar nos meus braços, meiga como a rola recebendo no ninho os cuidados da mão caridosa que lhe dá todas as manhãs o necessario sustento. Sabes tu ? dava a vida, dava a vida contente, se soubesse que os teus olhos haviam de chorar-me. Não te commoverá nunca um amor assim ? Porque soffres tu, filha ?

Em outra qualquer occasião, as supplicas de Jorge, a maviosidade de sua voz, o ar terno e vehemente com que lhe fallava, podia pelo menos incitar a alma de Branca a uma resposta suave; porém, no momento solemne em que acabava de tomar uma resolução extrema, parecia-lhe um desacato feito á sua dignidade rebaixar-se a ponto de fingir o que não sentia. Se Jorge lhe fôra sempre indifferente, para não dizer molesto; desde a hora em que o surprehendêra aos pés de Michaela tornára-se-lhe objecto de insuperavel desgosto. O orgulho obrigára-a a dissimullar o fél da afronta, unicamente para que Jorge se não persuadisse que o sentimento do ciume dera entrada em sua alma. Ciumes de Jorge ! do marido que recebêra, obrigada pela vontade de seu pae ! Ciumes do homem indigno que a trahia ! que pretendia enganal-a com falsos protestos, talvez !... E que fossem sinceros, que valor podiam elles ter aos olhos da esposa que penetrára, ajudada pela perspicacia natural e pela concatenação dos factos, no vergonhoso mysterio de tal ligação ? Vergonha, que tambem recahia sobre ella ! Outros teriam desfiado o segredo, envolto na capa do rediculo que os cubria a ambos.

O mundo cuidaria que ella era conivente na infamia, com a mira posta no interesse. E para esta culpa não podia haver perdão; este foi o cancro que fôra corroendo os embriões d’uma estima que, póde bem ser, ainda chegassem a dar bons fructos.

Com o conhecimento do proceder de seu marido, Branca julgou-se moralmente desligada d’elle; todavia, evitou a separação judicial, fugindo ao escandalo de penosas e mortificantes discussões. Sem dar a conhecer os motivos, d’esse dia em diante, tratou de resumir quanto possivel as suas relações intimas ao trato amigavel, buscando sempre um pretexto para se esquivar ás demonstrações d’um sentimento repulsivo.

Quando a consciencia a accusou, Branca chorou muito a perda do que fora até então o apanagio mais brilhante da sua vaidade, sem se lembrar, comtudo, que o desdouro recahia sobre o nome de seu marido: é que, á força de o ter affastado do pensamento, quasi esquecêra, nos fervidos transportes da sua alma, o laço indissoluvel que os ligava.

Vergada agora á dor, esporeada pelo espinho que a carta de Rodrigo lhe cravara no seio, como podia ella encarar compassiva no réu de tamanhos delictos ? Solteira, Jorge arrancára-a á felicidade; casada, cuspira-lhe a infamia, obrigando-a a pensar nas torpezas occultas da sociedade, e talvez, quem sabe ? preparando-lhe d'este modo o espirito escandecido, a correr ao tenebroso desfilladeiro do crime. Portanto, se eram sinceras aquellas palavras, se havia dôres na alma d’aquelle homem, merecera-as; era justo o castigo; devia pagar o mal que lhe fizera.

Eram estes os pensamentos que febrilmente se ligavam uns aos outros na mente de Branca, emquanto Jorge a contemplava com o ar submisso do escravo, esperando uma palavra que refrigerasse a sêde d’aquelle amor. Ella porem escutava-o, abstendo-se de fallar com receio de trahir-se.

Depois de longo silencio, os labios de Jorge encresparam-se levemente, um vinco profundo uniu suas sobrancelhas escuras, e o seu olhar cravou-se como o relampago no rosto impassivel de sua esposa.

-- Falla, Branca -- disse com voz imperiosa -- Que maneiras são essas? Estou cançado de obedecer a teus caprichos. Vim aqui na intenção de dizer-t’o, e d’uma vez para sempre, sabe que estou resolvido a tomar o logar que me compete, enojado já do eterno ár de aborrecida em que te encontro!...

O desacostumado de tal linguagem despertou Branca. Um sorriso ironico appareceu-lhe á flôr dos labios, que murmuravam:

-- Ah ! vem fallar-me como senhor ?

-- Seja: -- respondeu elle -- tenho direito para isso.

-- Direito?! -- exclamou Branca encarando fita a Jorge. -- Já ahi chegámos ? Entende que o despotismo, e a significação d’essa palavra fica bem na sua bocca ?

-- Jorge arrependeu-se logo de provocar uma explicação que devia trazer consequencias desagradaveis. As maneiras de sua mulher não deixavam mais duvida a seu espirito. A audacia da resposta provou-lhe que estava descoberto. Suas faces purpurearam-se, e o semblante denunciou-lhe secreta anciedade, respondendo com voz branda e quasi timida.

-- Bem sei que não. Tens razão filha, perdoa-me; e não me olhes mais assim, que me endoudeces.. .Chamar-te minha, e não encontrar em ti mais que a dureza do bronze; sempre immovel, e rindo-se dos vãos esforços que emprego, para moldal-o á feição de meus desejos !

É horrivel, a minha vida! é horrivel! -- bradou desesperado, tapando a face com as mãos.

A’quelle grito, como que se esvaeceram as antipathias de Branca. Pela primeira vez, uma voz compassiva se fez ouvir na sua consciencia. Jorge era desgraçado, amava-a com o fervor que ella invejaria em outro peito! Um suspiro accompanhou estas ultimas palavras, como a resposta mais eloquente, que podia dar-lhe.

-- Escuta-me, Jorge -- disse por fim com meiguice, procurando o olhar de seu marido, que se fixou n’ella illuminado por um raio de luz. -- Escuta-me. Chegou a hora em que, por uma confissão muttua e um assentimento digno de nós, devemos procurar o caminho mais seguro para a tranquillidade de nossas consciencias e bem estar para o futuro. A dor que te lacera é verdadeira, e vem augmentar a minha, por não poder alivial-a!

-- Podes, podes! -- Clamou elle.

-- Impossivel! meu amigo -- respondeu Branca meneando tristemente a cabeça -- O que eu quero é desopprimir-te, e para isso é necessario applicar o cauterio á chaga, ainda mesmo que as mãos se me queimem. Jorge fez um gesto de desagrado.

Deixa-me continuar -- proseguiu ella -- quero dar-te um raro exemplo de lealdade. Retrocedamos ao passado... Sabes perfeitamente que no tempo rizonho da minha mocidade regeitei as tuas assiduidades com o acinte com que despresei o cortejo de muitos outros que frequentavam os salões de meu pae. Mais tarde, obedeci, forçada pelas circumstancias a acceitar-te por esposo. E, para amenizar esta sinceridade que pode ferir o teu orgulho, lembro-te que nunca outro te levou a primasia. O meu espirito voejava livremente pelo campo infinito da poetica liberdade dos dezoito annos, e o coração não conhecia outra lei senão as restricções da familia. A minha repugnancia pelo matrimonio tinha uma explicação rasoavel: desconhecia os terriveis effeitos do amor, a mais violenta de todas as paixões que affligem a humanidade. Comtudo, sugeitei-me, e ninguem deu pezo ao valor do sacrificio. Sujeitei-me aos deveres que mo impunha a minha posição, e posso até dizer-te que me esmerei no cumprimento d'elles. Se te não dava a felicidade, procurava todavia poupar-te a desgostos, o insensivelmente, a gratidão pelo bem que me tratavas ia desenvolvendo em mim uma gratidão mui parecida com a fraternal intimidade. Estavamos nòs n’este ponto, quando um acontecimento grave, que pouparei a ambos relatar, lançou por terra este pequenino edificio. Se te não odiei, á perda da estima seguiu-se o aborrecimento; e se te aborreci com justificados motivos, segui á risca o preceito da minha consciencia, segura pelas palavras d’um velho doutissimo, e que achei aproposito da minha situação; n'um livro que talvez conheças diz elle: «toda a esposa que tem a certeza da perfídia do marido, póde sem culpa, negar-lhe a convivencia e a intimidade conjugal» Adoptei o conselho do sabio moralista, entendendo que assim cumpria o que devia a ambos.

Aqui está a franca exposição de meus sentimentos exposição que entendi dever fazer-te para que conhecesses a fundo que ha circumstancias que tornam desculpavel o transvio da mulher. Não te queixes agora de mim, Jorge.

-- E tu, podes absolver-me ? Podes perdoar-me, Branca? murmurou elle com voz abatida -- Pelo menos convence-te de que te amei sempre, e que posso fallar-te hoje das minhas relações com Michaela sem ter de corar senão pelo passado. Que queres tu! Era rapaz; via-me sem amparo, sem familia, e essa affeição, que a principio não foi mais que um brinco dos sentidos, tornou-se-me necessaria pelo habito, e pelos extremos da verdadeira amizade. Diz-me, diz-me tu agora, se haverá marido, que não tenha mais de que accuzar-se em frente de sua mulher?! Diz-me isso com a lealdade com que começaste o teu exordio, e que, como nos bons tempos d’outrora, não ha no teu coração imagem, a que me dês preferencia... Responde, filha, responde-me que não -- continuou depois de curto silencio, tomando-lhe as mãos nas suas.

-- Não posso mentir -- balbuciou Branca, baixando os olhos.

A esta dolorosa revelação, as feições de Jorge contrahiram-se: levantou-se rapidamente, e com voz tremula e aspera, clamou:

-- Mentias ?! E’ então verdade que as minhas apprehensões não eram injustas. E' verdade que me escarnecias quando eu miseravelmente soluçava a teus pés, implorando misericordia ! E’ verdade que me atraiçoavas, emquanto me fazias padecer dores atrozes com o teu desprezo ?... Oh ! que Deus te castigue, infame ! Agora leio eu todos os teus crimes n’essa fronte insolente, onde está marcado o stigma da desvergonha. Vamos ! -- bradou em crescente irritação, e já ironia, emquanto ella parecia entorpecida.

-- Vejamos: quem é o teu cumplice ? Quem é o feliz mortal que te acompanhou nas castas e aerias excursões ? Quem é elle ? Ou quem são esses homens que fizeram de mim airrisão da sociedade?... Falla -- proseguiu com mais força, caminhando para ella -- De que serve essa mascara?

-- Meu Deus ! meu Deus ! exclamou Branca, sacudindo as pastas de cabellos que lhe escondiam o rosto.

-- E atreves-te a invocal-o, hypocrita ? Que fizeste do nome de teu pae, da honra de teu marido ? Não ! não ! Sae d’esta casa empestada com a tua presença; vae viver no centro das tuas companheiras ! O teu lugar já não é aqui. Fora ! fora !

E dizendo, lançou-lhe a mão direita ao braço e com a esquerda sacudiu agitado a campainha.

-- Jorge ! Jorge ! -- bradou Branca com gesto supplicante -- Silencio! nem mais uma palavra. Cubra a senhora com um chaile e chapeo, que vai sahir -- disse para a creada que correra alarmada ao pressuroso do toque -- Vamos, o coupé está prompto.

E sem dar tempo a mais empuxou Branca para a escada, e assim a foi levando até á porta da rua. Alli, fez ella um esforço violento para se desembaraçar da pressão e fallar; porém, a idéa da resistencia, o receio d’uma scena vergonhosa diante dos seus creados, esmoreceu-lhe o animo; falleceram-lhe as forças; e succumbiu á dor, entrando na carroagem quasi sem consciencia do que fazia.

A voz do lacaio á portinhola arrancou-a de subito á somnolencia do desespero, lançando-a em nova perplexidade. Forçoso era porém vencel-a. Depois de curta hesitação pôde dizer:

-- Campo Grande: casa de minha irmã. E dada esta ordem a formosa cabeça de Branca vergou sobre seu seio como o arbusto mimoso açoutado pelo temporal.

VI

Declinava o dia quando Branca apeou á porta do palacio, onde a infancia lhe corrêra ridentissima como sonho de virgem. Mandou regressar á casa o trem e subiu a escada, admirada d’achar deserto o logar do porteiro. A poucos passos appareceu-lhe este, dando-lhe a noticia que Amelia partira n’essa mesma manhã para Pariz, acompanhada por seu primo Vasco de Mesquita e na intenção de passarem de lá á Italia, onde seu irmão o actual conde d’Alvarães se achava. Esta nova foi cruel para a desditosa senhora. Onde iria acolher-se ? A que porta bater, onde não tivesse de explicar a sua posição? Restava-lhe a morte, mas faltavam-lhe os meios mesmo para a buscar era necessario achar asylo; não podia com a idéa de ir ella mesma procurar o ferro ou o veneno, que terminassem a sua desventurada carreira. Lembrava-lhe a branca mortalha do Tejo, mas discorria logo que seu cadaver, aportado á praia com o fato desfeito pelo embate das ondas, seria profanado e tornado assim objecto de descaridosa curiosidade. Era, pois, de necessidade procurar um refugio.

Todos estes pensamentos occupavam o cerebro de Branca, emquanto o creado fallava. Ainda uma vez lançou um olhar angustiado em redor de si, e apertando ao seio as dobras do chaile, disse:

-- Então adeus Paulo. Não sabia da partida de minha irmã.

-- Pois v. ex.a ha-de ir a pé? -- exclamou elle attonito -- Eu vou ver se ainda encontro o coupé.

-- É escusado; deve já ir longe.

-- Então, se v. ex.a o permitte, vou chamar um trem de aluguer. Tenha v. ex.ª a bondade de esperar aqui.

-- Pois sim, vae -- disse Branca irreflectidamente, entrando na sala de bilhar, onde tantas vezes nas horas de recreio se divertira com seus irmãos.

-- Prompto -- disse d’ahi a momentos Paulo: Pode v. ex.ª partir quando quizer

-- Obrigada, meu amigo, até outro dia -- respondeu ella, e querendo recompensar o cuidado do pobre velho, que a conhecia desde menina, procurou a bolsinha de seda em que costumava trazer dinheiro.

Era a segunda decepção! e tão cruel como a primeira: Branca não possuia um real de seu!

Ao ver a sua hesitação Paulo attreveu-se a dizer acompanhando-a á portinhola:

-- Quer v. ex.ª alguma cousa?

-- Não! não -- bradou Branca -- e saltou para dentro, fazendo signal ao cocheiro que tocasse para Lisboa. N’essa hora acabava de tomar uma resolução extrema. Desenganada de poder encontrar acolhimento que lhe não custasse penas e dissabores, faltava-lhe a experiencia do amor para acabar de se convencer que uma fatalidade invencivel pesava sobre ella.

Restar-lhe-hia Rodrigo?

Davam oito horas na egreja de S. Roque. Parou a sege na rua Nova do Carmo defronte d’uma casa de modesta apparencia. A falta do dinheiro suppriu-a Branca tirando do dedo um anel com um brilhante engastado em esmalte preto, e poisando-o na mão aberta do bolieiro, correu para a escada sem ouvir o que o pasmado homem lhe dizia: Os primeiros degraus subiu-os impulsada pelo fogo interior que a devorava; pouco e pouco; porem, se lhe avivou á idéa o motivo que a trazia ali, e o local em que se achava. Esfriou, tremeu, e as pernas recusaram-lhe auxilio.

Ella! Branca d’Alvarães, a mulher pouco antes rodeada do prestigio da opulencia e das adorações da sociedade, estava áquella porta mendigando um abrigo! Vinha ali procurar o amparo do homem que se convertia a Deus, depois de ter causado a sua perdição !

Esta era a dor suprema; era a unica talvez que fazia vergar a sua grande alma.

A vista fugiu-lhe dos olhos; maquinalmente se apoiou ao corrimão, cahindo sentada n’um degrau.

Poucos passos distante, apenas separado por um a porta, estava Rodrigo, inquieto e atormentado pela falta de resposta á sua carta. Acabava de vestir-se na intenção de sahir, esperando que o destino lhe deparasse occasião de saber,, senão por ella mesma,p ela creada confidente dos seus amores, como as suas palavras tinham sido interpretadas. Alguns momentos antes parecera-lhe ouvir o frémito d’um vestido; mas como aplicasse o ouvido e nada mais percebesse continuou na sua tarefa sem ligar a isto o minimo valor. A noite estava escura: a escada era apenas alumiada pelos escassos raios d’um lampeão que mal se distinguia no topo. Rodrigo, fechando a porta do quarto, cego de repente pela escuridade cerrada do exterior, tropeçou no vulto de Branca sempre immovel e quasi desfallecida.

Quem está aqui? perguntou.

Á melodia d’esta voz a infeliz fez um movimento e respondeu baixinho:

-- Sou eu Rodrigo... sou eu.

-- Que! tu aqui, Branca! Que quer isto dizer? Clamou Rodrigo emquanto a ajudava a levantar e dava entrada no seu quarto -- Por Deus, filha, explica-me a tua presença. Será possivel que te impressionassem as minhas palavras até este ponto ? E como estás pallida e fria! -- continuou elle, aquecendo-lhe as mãos com beijos. Não soffras mais, creança. Falla-me, sorri-te e esquece aquella louca idéa, de que te peço mil perdões. Esqueces tudo, sim?

Branca deixára-o fallar sem o interromper, feliz ainda assim com a triste felicidade que lhe era permittido gozar. Ver-se ainda amada era o balsamo, era senão o esquecimento, talvez que o caminho para uma doce e suave compensação.

-- Que me pedes tu que eu esqueça? -- disse ella por fim -- Sabes tu a grandeza do mal que me fizeste? Sabes ou imaginas as dores do coração; mas não avalias os lances a que me arrastou o exaspero... Sabes o nome que d’ora ávante se dará na sociedade a Branca d’Alvarães? O da mulher perdida. Perdida para o mundo, para ella e para ti, meu amigo! Fui expulsa de minha casa: já não tenho familia nem marido. Não ha telhas que cubram esta criminosa cabeça.

Seguiu-se depois a narração de tudo o que fica exposto. Quando Branca terminou, Rodrigo enxugou-lhe ternamente duas lagrimas que corriam ao longo das faces, e com semblante risonho tratou de animal-a com a persuasão do raciocinio e os carinhos do amor.

-- Não te afflijas, minha Branca. Agora é que está á prova a tua coragem; é preciso conduzir bem as coisas, de modo que não fiques lesada por todos os lados. Vamos a conversar tranquillamente sobre o futuro, filha. Em primeiro lugar, á vista dos factos que se deram, estou persuadido que estimas a separação amigavel de teu marido e isso não me parece difficil de conseguir-se. O caso está em que elle não descubra as nossas relações, para que não possa dar ao mundo esclarecimentos verdadeiros. As tuas palavras foram tão vagas que devemos presumir que, passados os primeiros assomos de colera, teu marido, depois de inuteis investigações, se arrependerá de seu indelicado proceder, implorando talvez o seu perdão.

Toca-te depois a ti assentar as bases que julgares a proposito: n’esse ponto não te aconselharei filha, temo que o coração predomine sobre a cabeça. Tens tu a certeza que elle não sabe nada de mim? Que ignora o meu nome?

-- Tenho -- respondeu Branca -- nem ha indicio algum de que possa descobril-o, como representante n’esta tragedia.

-- É o essencial -- tornou Rodrigo. Eu vou dizer-te sinceramente o que faria, se me achasse na tua situação. Vou abafar os desejos que me combatem para ter jus a merecer a tua estima. Eu adoro-te Branca, adoro-te com o fervor do desgraçado que provou todos os dissabores da vida antes de conhecer-te; não possuo na terra senão o teu amor, não antevejo a felicidade senão a que me vem de ti. D’isto queria eu que te capacitasses bem, filha, para avaliares o sacrificio a que me constranjo, dizendo-te que deves recolher-te a um hotel, escrever a teu marido em termos dignos e razoaveis, expondo-lhe a necessidade da separação. Se te responde com invectivas, lá estão os tribunaes para julgar o pleito que não pode deixar de ser-te favoravel. Separada d’elle, ficas senhora das tuas acções e livre de todo o dominio.

Louco ! -- bradou Branca com tristeza -- Como podes crêr que me apresente diante dos tribunaes pedindo o divorcio ?! Que razões havia eu de dar ? Máus tratos ? não; perfidias ? impossivel ! Eu não ousaria tanto, quando a consciencia me doe; nem poderia correr o risco de ser insultada publicamente com o desforço verdadeiro das minhas culpas. Não ! isso não posso eu, Rodrigo.

-- Então não sei, minha querida filha. Lembro-te só que, por dignidade propria, esperes os acontecimentos : tenho mêdo que te precepites. Livra-te sobre tudo de expansões; já sabes qual é o seu resultado. Se te não deixasses ir apóz ellas tinhas-te poupado a estas dôres. N’isto é que é preciso pensar. Quanto ao resto, se não conseguires o que desejas, conta com o meu braço, e sobre tudo com o trabalho do meu espirito. Pobre filho segundo, será a ti que deverei a riqueza da intelligencia; e, aquecido pelos raios do teu amor, não haverá empreza a que eu me não affoite. Hei de obrigar a fortuna a servir-me.

-- Passados instantes, proseguiu:

-- E se esta perspectiva te não agrada, minha querida amiga, volvamos os olhos para outro lado. Lembras-te de me dizer que toda a tua ambição era viver comigo n’uma casinha rodeada de tilias, onde o chão fosse tapetado de margaridas e perpetuas, e em que acordasses ao despontar do sol com o chilrear dos passarinhos? Pois esse sonho é também o meu, -- o meu sancto sonho !... Realizado elle, esqueceremos o mundo, e a primavera de nossas almas durará até á eternidade -- Mau é que não passe d’um sonho ! -- balbuciou melancolicamente Branca -- A eternidade é o porto seguro dos afflictos.

-- Branca ! Branca ! -- exclamou Rodrigo apertando-lhe as mãos com ternura -- abandona a idéa do suicidio. Esqueces o teu juramento ?

-- E’ sagrado: nada receies -- tornou ella -- A memoria de meu pae é tão respeitavel para mim, como a imagem de Deus. Vou portanto seguir o teu conselho, meu amigo. Mas já agora guia-me tu, leva-me para onde quizeres, que eu vou mais satisfeita pensando que sigo o teu parecer.

Depois d’alguns momentos de reflexão, e na impossibilidade de accompanhar Branca para a não comprometter, lembrou-se Rodrigo d’Álvaro de Sepulveda, assentando entre ambos mandal-o chamar. Com effeito assim se executou, mal pensando este no doloroso encargo que lhe destinavam. Acceitou-o todavia com a melhor sombra, encarregando-se mesmo d’ir fallar com D. Jorge de Mello. Dispostas assim as coisas, separam-se Branca e Rodrigo, e foi esta alojar-se n’uma hospedaria particular, que, depois de alguns passos, se arranjou.

Que noite aquella para a desventurada! Olhava em redor de si com espanto; tiritava de frio e debilidade; havia vinte e quatro horas que não tomára alimento. Pediu café; matou a sêde da febre com aquella estimulante bebida e gradualmente lhe foi sentindo os effeitos. Da animação, da energia ficticia que faz vibrar todas as cordas da alma, passou ao completo aturdimento dos sentidos. Via-se alli sem saber como; olhava sobre si e desconhecia-se! Parecia-lhe que se dera uma transformação magica no seu corpo, que já não era Branca d’Alvarães, mas sim outra mulher, da qual tambem possuia o espirito. Apertava a fronte, sacudia os cabellos empastados pelo suor, e recahia de novo no mesmo estado, mais invencivel pelo desfalque das forças que lhe custavam estes violentos esforços.

Os primeiros alvores do dia aliviaram um pouco estes soffrimentos. Adormeceu finalmente vencida pelo cansaço.

Seriam dez horas, quando os seus olhos se abriram e encontraram uma carta de Rodrigo que a hospedeira viera collocar ali, sem se resolver a acordal-a.

A noite d’elle pouco menos dolorosa tinha sido. Receiava muito os contratempos que deviam mortificar Branca, lamentava o mal que lhe fizera e pensava sinceramente no modo de consolal-a.

Levantou-se cedo e sentou-se á banca a escrever-lhe, ancioso de saber novas suas.

Minha adorada Branca -- dizia elle.

« Eis-me, pois, na desgraçada posição de te não poder valer, tendo-te reduzido a esse estado de excepcional desgraça!

« Valer-te chamava eu ás consolações que o meu amor e a minha presença te daria atravez d’uma longa existencia que tantas vezes sonhava a minha alma, regenerada por ti. De nada te serve este pobre amigo; sou forçado a baixar a cabeça diante da omnipotencia da desventura.

« Oh! minha amiga como tu és amada! que soberba eu sinto com a esperança de que hei-de roubar-te ás lembranças do passado e ás infelicidades do futuro! Ergue a cabeça diante de ti propria, quando pedires ao meu amor o amparo do irmão, do marido, do amigo unico. Baste-te a consciencia do sacrificio que me fizeste para avaliares a minha gratidão sem constrangimento.

«Se por um successo qualquer e que não posso prever te apertarem muito as agonias d’esta situação, se quizeres fugir a ellas, vamos, filha, fujamos para longe, porque é preciso morrer juntos. Demos um exemplo de verdadeiro amor a este mundo corrompido. Abandona os teus thesouros a esse homem... desculpa-me, Branca. Não deves ter um momento de remorso, estás absolvida. Creatura divina foste enxovalhada na tua dignidade, por ter offendido a honra de quem a pesou a dinheiro e a desaffronta agora com a vileza. Possui-me agora d’uma alegria providencial! Já não somos amantes, filha da minha alma, somos mais: somos uma vida unica atormentada pelo mesmo golpe.

«Ha alguma cousa sagrada na minha paixão que eu não me envergonho de dizer a Deus, nem temo fazer um sacrilegio, pedindo-lhe que não abandone o seu anjo. Agora tenho a convicção de que és a companheira de toda a vida: deu-se em nós a alliança dos immensos flagellos que te santificam, ó estrella do meu poente!

« Principia a sobresaltar-me a ancia de te ver. Abraçar-nos-hemos como dois esposos extremosos, ao sahirem de diversos carceres.

« Animo, sancta: Deus te dê as consolações que eu, não posso dar-te com os meus carinhos.

« Pensa bem no primeiro passo que vaes dar. O meu desejo sabes tu qual é: Tenho-t’o dito mil vezes nas minhas cartas, tenho-te chamado sempre -- e hoje com uma doce esperança -- com a vehemencia da paixão.

« Deus vê o que eu sou e serei para ti, e estes sentimentos nunca m’os inspiraria mulher que não fosses tu, minha Branca. Minha!... »

Cada uma d’estas palavras ia assentando em terreno solido, depois de limpar a crusta, que impeçonhava a cancerosa ferida de Branca. Relia essas paginas, pezava-as na recta apreciação de seu juizo, e sentia-se forte escudado por um amor assim. Qual fosse o futuro, ignorava-o; mas, nenhuma circumstancia lhe parecia mais dura e impossivel a tragar que a renuncia de tão grande affecto. Ia responder, quando se appresentou Alvaro, depois de ter procurado D. Jorge de Mello.

Da longa narrativa do moço diremos apenas o mais urgente, resumindo o que nos parecer fastidioso ou de pouco interesse para o leitor.

Jorge recebeu o enviado de sua mulher com certa reserva e desconfiança; mas logo que este, trocadas as primeiras palavras, e com a sua natural franqueza, lhe afiançou debaixo da palavra de cavalheiro que, a ser verdade e a não passarem de ficção os pertendidos amores de D. Branca, não era elle o feliz mortal, abriu-se rasgadamente, contando tudo o que havia na sua vida e o desespero em que estava por não conhecer o homem que o offendêra. Accusando a infiel esposa, não se poupou tambem a elle, notando, todavia, que lhe não tocava a ella julgal-o em vista dos extremos que eram sempre repellidos com desdem, e dos cuidados que tivera em todo o tempo para conseguir agradar-lhe. Fallando muito tempo n’este sentido, veio a declarar que não queria mais saber d’ella: que a entregava com o despreso do mundo ao homem que lhe preferira, certo de que era esse o maior castigo que podia inflingir-lhe.

-- Quanto a divorcio -- terminou elle -- nem pensar n’isso quero. Se ella não teme, e ouza arrostar com o clamor d’uma cidade inteira, que se dirija aos tribunaes. Só d’este modo, e para que lhe sirva esta pena de expiação, me achará prompto a cumprir o que devo. D’outro modo, é escuzado cançar-se, e fatigar-me os ouvidos.

-- Fui portanto infeliz, minha senhora -- acabou Alvaro -- e o peior é que receio não haver santo que faça o milagre.

-- Pois não importa -- exclamou Branca risonha -- O milagre será d’outra ordem -- E pegando na penna escreveu dois bilhetes. O primeiro dizia:

« Eu, Branca d’Alvarães, declaro que nada

« possuo, nem quero receber da mão de D. Jor-

« ge de Mello».

O outro continha também só duas palavras.

« D. Branca d'Alvarães acaba de fazer o

« seu testamento: morreu. Queres agora acceitar

« tua irmãsinha, Rodrigo ?

VII

A altiva dignidade de Branca fez suspirar D. -Jorge de Mello. Chegaram-lhe uns rebates de saudade que o fizeram receiar a fraqueza de implorar o esquecimento. Era necessario lembrar-se que era um ente abjecto e repulsivo aos olhos de sua mulher, para achar coragem que contivesse as manifestações d’uma dor verdadeira.

O ciume, entretanto, rasgava-lhe as fibras do coração; sentia assomos de raiva frenetica, pensando no indecifravel mysterio que encobria o procedimento de Branca. A principio, depois de ter inquirido dos creados que todos responderam a uma voz que nada sabiam nem sequer suspeitavam de cousa alguma, apegou-se Jorge á lisongeira esperança de que fôra illudido por uma vingança feminil. Arrependeu-se então de não ter escutado a defeza de Branca; maldisse o arrebatamento que o levára tão longe; mas ao mesmo tempo, recordando o muito que tinha soffrido e a desapiedada seccura com que eram escutados seus queixumes, não desgostou de ter esta occasião de fazer-lhe provar o fel dos dissabores, fingindo uma severidade e força d’animo que estava bem longe de ser verdadeira. E isto era por se persuadir que Branca, vendo-se só, e sabendo as disposições em que estava, viria submissa dar-lhe esclarecimentos que confirmassem tão grata idéa. Já se vê por tanto que foi influenciado por esta crença que respondeu a Sepulveda, já comtudo um pouco irritado pela lembrança do divorcio que só então lhe occorrêra. Ainda assim, era muito conhecedor do caracter de sua esposa; tenteára muitas vezes os secretos escaninhos d’aquella nobre alma, para temer o escandalo publico. A não ser assim, nunca seus labios se abririam com tão cruel resolução.

Todavia, depois de meditar e receber a carta de Branca, achou-o d’um positivo de atirar a terra com todos os seus imaginados castellos. O que não soffria agora duvida era que a situação de sua mulher necessitava amparo e se não se humilhava a implorar o seu, é que havia outro mais estimado e de maior valor... Qual seria elle? Eram as suas cogitações, sem poder resolver estas duvidas nem colher informações que o satisfizessem. Fatigado, pois, de tanto scismar, desesperado com a traição de seus domesticos que forçosamente lhe encobriam a verdade, despediu-os a todos, fechou as portas e foi para Cintra, deixando espiões pagos em Lisboa para saberem o paradeiro de Branca e informal-o de todos os seus passos.

Pelo que toca a Rodrigo a sua resposta foi um cantico de graças, um hymno de louvor, onde cada nota se alteava ás regiões do enthusiasmo e da paixão. Branca era um ente sublime, e o seu desprendimento tinha um fascinador caracter de nobreza que o entranháva em deliquios d’alegria. Não havia mulher que pudesse comparar-se-lhe, não baixára do céo anjo d’azas mais candidas, formosura mais peregrina e seductora. Infelizmente aquella exaltação devia ser passageira, por isso mesmo que se gastava em demasias extraordinarias!

Tres dias depois entrava Branca a bordo d’um vapor com destino ao Porto. A residencia em Lisboa parecera-lhe odiosa, e sobretudo arriscada para Rodrigo, que ella olhava agora como o sustentaculo da sua existencia. De commum accordo resolveram partir para aquella cidade, onde poderiam viver mais livremente e quasi desconhecidos.

N’essa mesma manhã, quando ainda os habitantes da negligente Lisboa se entregavam ás doçuras do somno, caminhava Branca, apenas acompanhada por uma creada, a fazer as suas despedidas.

Despedidas!... a quem? pergunta agora a leitora. Despedidas, sim. Despedidas ao marmore e ao pó!

No cemiterio do alto de S. João, na primeira rua transversal á esquerda, elevava-se o sumptuoso mausoleu pertencente á antiga e senhorial casa d’Alvarães. Foi ali que Branca ajoelhou com a face em terra, murmurando phrases inarticuladas e gemebundas.

Que diria ella n’aquella hora ao espirito de seu pae ? Só Deus a escutou: é comtudo de presumir que fossem de paz as suas palavras; seu rosto respirava uma resignação suave, seu olhar fito no céo parecia attrahido pela luz grandiosa da fé, que lhe apresentava as dores d’este mundo como o caminho mais seguro para a eterna verdade.

Levantou-se d’ali inspirada e fortalecida para a peregrinarão:

-- Senhor! Cumpra-se o meu destino! -- exclamára, e serena voltava a casa a terminar os aprestos da partida. Dava ella depois os primeiros passos para entrar no barquinho que devia conduzil-a ao vapor já d’ancora levantada para se fazer ao largo, quando achou a seu lado Maria, a creada que a servia desde solteira e em quem depositava toda a confiança.

-- Pois v; ex.ª partia sem me dizer adeus! -- murmurava esta offegante e com os olhos marejados de lagrimas -- Só agora o soube e corri como doida, pensando não chegar a tempo. Que desejos tenho curtido de a ir ver, minha querida senhora, mas o senhor D. Jorge deixou-me tão espionada, e eu sabia que se faziam tantos esforços por descobrir onde a senhora vivia, que temi dar causa a alguma occorrencia desagradavel, se a procurasse. Porque não me preveniu v. ex.ª? Eu deixaria pae e mãe, se os tivesse, pela sua companhia. E agora mesmo eu posso, querendo v. ex.ª, acompanhal-a. É verdade que nada deixei prevenido, mas emfim a gente não vae para o fim do mundo, creio ou, e então de lá mandarei ir a roupa.

-- Não, Maria, não -- disse Branca commovida -- Já agora ficas o bem a pezar meu; mas é necessario tambem que eu attenda ás circumstancias -- continuou com triste sorriso -- Ainda não sei verdadeiramente onde assentarei a minha tenda, e quaes os meios de que posso dispor. Estou muito pobre, Maria; não possuo de meu senão alguns palmos de terra no sarcophago da minha familia. E isso mesmo, quem sabe se m’o concederão ?

-- Que me diz v. ex.a?! -- interrompeu a creada -- Pois então o sr. Jorge teve alma de a expulsar de casa e de ficar com o que era de v. ex.a? Essa agora é melhor! E v. ex.a consente n’essa ladroeira... perdoe v. ex.a, que me não posso conter, ainda que sei que é seu marido. Isso de lhe não entregar o que é seu, é uma... minha senhora, é uma grande patifaria! O que estes velhacos d'estes homens fazem! E elle então que sabia que v. ex.a nunca o pôde ver em solteira, e que foi obrigada a esse casamento. 217

-- Obrigada não, sacrifiquei-me é verdade, mas podia, querendo, oppor resistencia á vontade de meu pae... E melhor teria sido isso!

Pronunciando estas palavras reparou Branca que o marujo, com o boné na mão dava mostras de impacientar-se; e ella mesma a todos os instantes procurava com os olhos a tolda do navio, a ver se descobria Rodrigo. -- Vamos -- disse para Maria -- se queres vem até ao vapor, que eu peço que te venham outra vez pôr em terra.

-- Obrigada, minha boa senhora, soluçou a pobre mulher. Deus sabe se a tornarei a ver.

E dizendo, saltaram no bote que singrou rapido, abordando em breve ao portaló.

Vendo que se antecipara a Rodrigo, e para fugir á curiosidade da marinhagem, Branca desceu á camara, e lá esperou entregue a uma devorante anciedade, que a não deixou prestar attenção aos dizeres da velha creada.

Tocava a sinêta a largar o porto: já o capitão se informára que faltava um passageiro; quando Branca avistou ao longe Rodrigo por um dos vidros da escotilha, fazendo remar a toda a força para o vapor. D’ali pôde ella contemplal-o, sem ser vista. Vinha palido e com as feições contrahidas por uma inquieta apprehensão. Subiu lesto a escada, e correu á camara onde sabia que o esperavam.

-- Passas-te bem? -- disse caminhando para Branca e apertando-lhe a mão; e sem esporar resposta, como a desculpar-se, foi continuando: -- Venho afflicto com uns pequenos contratenpos que me demoraram. Agora vou acima ver que me não fique a bagagem fora. Eu venho já, minha filha.

Em todo o tempo que Rodrigo fallou, Branca não desfitára os olhos d’elle, tomada d’um doloroso pasmo. O marinheiro que a conduzira veio n'esse momento intimar a sahida da creada.

-- Espera! -- gritou Branca, surprehendendo o ar compassivo da velha e que era talvez uma segunda revellação.

-- Pobre senhora! tão digna de ser feliz! -- balbuciou Maria, beijando-lhe as mãos -- Se a senhora me deixasse ir...

-- Agora é impossível! -- tornou Branca depois de meditar um pouco -- Adeus! adeus; diz-me o coração que breve nos veremos... Pede tu a Deus por mim.

-- Sempre! sempre! oxalá que as minhas orações sejam ouvidas -- soluçou ella, arrancando-se da camara. 219

Quando Maria desappareceu a coragem de Branca estava exhausta. Deixou cahir a cabeça sobre o seio e as lagrimas correram-lhe silenciosamente pelas faces.

-- Está consummado o sacrificio -- murmurou na sua consciencia -- fiz bem em resistir ao impulso que me levava para terra.

-- Que iria eu lá fazer depois de tudo o que se passou? -- perguntava com um suspiro -- Sejam quaes forem as tribulações e adversidades não devo esquecer que as mereci.

E, sentindo n'este meio tempo passos na escada, enchugou as faces e sentou-se na borda do colchãosinho que lhe estava destinado para essa noite.

Era Rodrigo que vinha já mais sereno convidal-a a subir á tolda a gosar a aprazivel vista do Tejo, precavendo-se com o ar livre para afugentar o enjôo. Seguiu Branca, mas a impressão moral d’aquella hora era muito forte para que se podesse vencer sem grande esforço. De mais a vista d’aquelles edificios, que todos mais ou menos tinham vozes a fallar no passado, sumindo-se como envoltos n’uma nuvem, causou-lhe uma turbação de cabeça que foi necessario transportal-a para baixo quasi em braços. Accresceu logo a isto terrivel encommodo do enjôo que a não largou até á barra do Porto.

Rodrigo tambem cahiu ferido do mesmo mal, pelo que nunca mais se viram, e apenas trocaram duas ou tres palavras d’um lado ao outro da camara. Comtudo estas interminaveis horas não foram desaproveitadas para Branca. O corpo jazia prostrado, mas o espirito estava lucido e forte.

A transfiguração de Rodrigo foi tão subita e instantanea, que ella chegou a pensar senão era uma illusão sua, ou antes se a cegára o amor até ao momento em que se devia rasgar a venda e descobrir aleijões em vez de graças e formosura ! O que no entanto estava bem provado é que se tinha enganado, que os seus calculos estavam desfeitos e o futuro com aquelle homem era incerto.

Que differença d’esta aproximação com os transportes com que outr’ora a recebia quasi de joelhos! Que confrontos não fazia o coração da infeliz senhora, consternada de não cahir na realidade, a tempo de salvar-se! Era tarde: tarde, é verdade; mas Branca teria a coragem de soffrer tudo, menos consentir em tornar-se pesada. Não, isso nunca! Agora que a sua experiencia a desvendára, dizia ella lá para si, não me sujeitarei ás dores da dependencia. Aquelle dizer de Rodrigo, que ella apanhou tanto á letra «somos uma vida unica» era uma palavra oca e sem mais significação que a força do estylo. Por tanto, dever alguma cousa a esse homem é que ella já não podia. O trabalho não era despreso. Sabia musica, desenho e lingoas; em qualquer parte, e debaixo d'um nome supposto, encontraria um collegio ou casa particular, onde colhesse os meios necessarios á sua sustentação.

Mal pensaria meu pae -- continuava ella o monologo comsigo mesma -- mal cuidaria elle que a sua Branca chegaria ao extremo de abençoar e colher os fructos d’uma boa educação!

Aportaram emfim no caes.

Branca olhou com assombro em redor de si. A perspectiva que tinha em frente escureceu-lhe o animo, avivando na sua memoria o desembarque do terreiro do Paço e a magestosa grandeza d’aquella praça! As casinhas feias e escuras que enxergava ao atravessar as ruas de S. João e Flores, a pobreza das lojas onde parece que até faltava o ar e a luz, causaram-lhe uma impressão do desgosto profundissimo. A falta de locomotiva para a conduzir ao hotel tor- nou-se-lhe tambem sensivel pelo descostume de caminhar a pé e a debilidade geral em que se achava, devido ao fastio e aos encommodos da viagem.

Tristes auspicios eram estes!

Rodrigo não conhecia muito o Porto, todavia parecera-lhe conveniente, ainda mesmo dando supposto nome a Branca, procurar uma hospedaria de pouca concorrencia, d’onde podesse depois transportar-se para uma casinha como ambos a queriam... e tinham sonhado.

Um homem do povo guiou-os para a rua Direita, local pouco limpo, de limitado transito e pouco alegre.

Foi d’ali que Rodrigo, depois de bater os quatro pontos da cidade, conseguiu achar em Villar uma vivendasinha em circumstancias de servir-lhe.

Gastos alguns dias em compras indispensaveis de mobilia e roupas, entrou Branca para a casinha, animada com a esperança de que ali seria mais feliz.

Com quanto Rodrigo modificasse muito a seccura de maneiras que a atemorisava no embarque, não deixava comtudo de existir uma notavel differença no seu caracter e modos, percebendo-se-lhe claramente, em algumas occasiões, um ar de constrangimento e enfado, que não passava despercebido á vigilancia com que era observado.

Estas descobertas mais reforçavam a resolução de Branca e as suas idéas tomavam mais força a cada momento.

Rodrigo não a amava; pouquissimo sentia por ella, e apezar d’isso não podia Branca resolver-se a deixal-o; não prescindia do amparo moral do homem que era o seu destino, e talvez o seu purgatorio na terra!

-- Meu amigo -- disse ella no mesmo dia da installação, quando o viu folhear com ar aborrecido um volume de Byron com que a presenteára na ante-vespera -- Antes de mais nada pedia-te que me ouvisses.

-- Escuto-te sempre com prazer, filha. Que tens tu que dizer-me? Não gostas da nossa casinha ? Aterra-te esta solidão apenas esclarecida pelos raios do meu amor? -- respondeu Rodrigo.

-- Era isto o que eu desejava -- tornou ella -- mas falta-me a tranquillidade.

Ao que acudiu elle pressuroso:

-- Pois não te sentes bem aqui?

-- Ainda não -- tornou Branca -- mas posso conseguil-o. Ora ouve. Eu nunca te perguntei os meios de que dispunhas, porque contava comigo. Sabes que possuo algumas prendas; e estou resolvida a aproveitar-me d’ellas para te não ser pesada.

-- Tu! -- bradou Rodrigo -- E como?

-- Leccionando ahi em qualquer collegio -- respondeu serenamente -- Collegios no Porto ! Cuidas que isto é Lisboa ? Louquinha! E pensas tambem, que eu consentiria em semelhante coisa? Tu, a filha e irmã dos condes d’Alvarães!... Que diria teu marido, sabendo-o ?!

-- E que me importa a mim saber o que elle diz ou pensa, Rodrigo? O que me dá cuidado, é a nossa sorte futura. Somos mais do que amantes me disseste. Recordas-te? Por tanto, deixemos as falsas modestias, é necessario assentar bem a nossa situação. Eu sei que a mesada que recebes de tua casa é avultada para ti, mas insuficiente para cubrir os gastos d'uma pequena familia. Tu, vejamos: para que te sentes habilitado? Para muito, talvez, em espirito e intelligencia; mas o descostume havia de exercer um grande imperio na tua indole inquieta, e inhabilitar-te de coisa alguma. Alem d’isso, a idéa de que fui eu a causa innocente de te prender a obrigações, fazia-me de certo mal a mim, e eu, quando mais não seja, quero gozar um lugar distincto na tua amizade.

-- Que sonhos! Que peripecias engendra a tua imaginação -- disse Rodrigo.

-- Queres então dizer que isto são loucuras? -- tornou Branca desgostosa.

-- Nem tanto, filhinha! Mas, deixa-me cá; a mim incumbe pensar n’essas urgencias prosaicas da materia... Desconheço-te! Cuidei que não baixavas assim o teu alto espirito!

-- Achas que se desprestigia a mulher que perde o valor se volve os olhos á terrivel realidade da vida! Então baixar o espirito é medir o abysmo, e não arredar pé de seu bordo? -- E a voz de Branca denotava uma ligeira alteração. -- Sejas o que quizeres -- Interrompeu bruscamente Rodrigo -- Estas disputas agradam-me pouco; tem um caracter burguez que me irrita os nervos. Não sejas másinha, minha creança -- continuou mais brando afagando-lhe as faces brilhantes pela violenta commoção -- -Bem cedo se desmoronou o meu palacio encantado! -- murmurou ella melancolica.

-- Ahi temos agora poesia! -- disse Rodrigo encolhendo os hombros -- Só as mulheres são capazes d’estas transições.

Branca, ouvidas estas ultimas palavras com dolorosa surpreza, revelou a dôr no semblante, e logo pranto amargo lhe saltou dos olhos.

Vendo isto, o bom coração de Rodrigo, commoveu-se. Passou-lhe diante dos olhos a opulencia em que a conhecêra antes de turbar o seu repouso e o grande sacrificio que lhe fizera.

Ajoelhou; tomou-a nos braços; confundiu as suas lagrimas com as d’ella; e pouco depois, as nuvens carregadas desappareceram; o sol brilhante e explendido dos amantes cubriu aquellas duas almas com o manto doirado da esperança e do amor.

VIII

O tempo, que tão rapido nos foge na infancia, quando a alma em flor se agita, rescendendo as fragrancias dos primeiros efluvios do coração, corre lento e pausado, logo que os annos e a experiencia da desgraça assentaram sobre nós a sua mão esqualida e formidavel.

A memoria! O que é então a memoria, senão um atroz pungimento para os que padecem ! É ella a subtilisadora do espirito, a despertadora da razão, é o painel que reproduz as scenas queridas d’um bem perdido para sempre; é em fim a alumiadora sinista de todos os pontos negros onde naufraga a esperança e a alegria dos infelizes.

A existencia de Branca, fica assim definida.

Repleta de amarguras e de dores, sem poder delir da alma as lembranças d’um passado feliz, comparativamente, deixava-se ir possuindo da doença moral que emergia por vezes o seu espirito n’uma espantosa noite. Desde que a estrella matinal apontava ao nascente, até sumir-se nas ultimas vascas do dia, não havia um momento de repouso, um assomo de luz que lhe espancasse as trevas interiores.

Como ella soffria! Que voraz incendio ia consumindo tantas graças e formosura !

Nos trinta dias passados, quantas amofinações ! quantos desenganos! que lenta decrepidez de coração!

Acertadamente o previra ella; a inercia de Rodrigo ultrapassára os limites imaginarios de Branca, lançando-os em embaraços pecuniarios que apertavam dolorosamente a alma da pobre senhora, mais dorida por elle mesmo, que por si. A primeira idéa a que elle se entregara e expendêra com todo o enthusiasmo de que era accessivel o seu espirito poetico e emprehendedor, foi a politica. Prometteu escrever muito nos jornaes, e auferir d’ahi interesses, que juntos com as cinco moedas mensaes da sua legitima, garantissem uma decente mediocridade á mulher que por elle deixava as regalias da suprema opulencia! Isto podia elle conseguir sem custo; mas faltava-lhe a persistencia para levar a cabo tão boas resoluções. Que a sua inteiligencia era de reconhecida superioridade ninguem ousaria negar, depois de o ouvir discorrer sobre qualquer assumpto. Os conhecimentos que possuia em alguns ramos de sciencia, e sobre tudo em litteratura geral, o gosto finissimo e delicado da sua critica, podia grangear-lhe um dos nomes mais notaveis da sua epocha, se o seu genio independente e voluvel tolerasse o trabalho e a sujeição, mais que por um ligeiro desenfado. E ninguem melhor do que elle se conhecia; mas tambem deve-se confessar que fazia quantos esforços cabiam no possivel para vencer a insuperavel preguiça, que era um dos mais notaveis caracteristicos da sua indole.

Raro era o dia em que Rodrigo não fosse sentar-se á banca no firme proposito de escrever, protestando a Branca que ella havia de admirar-se ainda da sua applicação.

Passavam-se horas, e Rodrigo curvado sobre as tiras de papel meditava em tudo, menos em politica. Que lhe importava a elle defender ou accusar uma medida do governo? Este ou aquelle partido? Para elle todos eram iguaes; de nenhuns esperava tirar proventos. Comtudo, rasgava as tiras, sobrepunha-as, tornava a pensar na necessidade de entregar-se a pensamentos serios; tomava a penna para começar, e os dedos corriam de leve e o papel apparecia tarjado, e logo em seguida começava uma ode, que deixava em meio para engenhar uma charada.

Seguia-se depois um desenho, representando uma pastora lá das suas campinas verdejantes, apascentando uns cordeirinhos. Mais adiante vinha um cão a farejar uns versos de Rousseau, e mais além elevava-se um tumulo com um conceito da Biblia, e defrontando com um syleno encavalgado n’um asno.

Emquanto isto se passava, Branca, que contava os minutos, sempre desconfiada pelos sucessos anteriores, e ao mesmo tempo esperançosa de que Deus faria um dia o milagre de abrir n’aquella fronte uma enchente de luz, apparecia na ponta dos seus pequeninos pés até colar os labios na fronte afogueada do mancebo. Contemplava com meiguice aquelle rosto pensador e inclinada sobre o papel, que elle tinha o cuidado de voltar para baixo logo que a presentia, perguntava:

-- Tens escripto muito, filhinho?

-- Alguma cousa -- respondia Rodrigo constrangido.

-- Deixas ver ?

-- Logo, logo, não me interrompas: volta d'aqui a bocado.

-- Pois sim, sim, eu venho; não te zangues. Sentia tantos desejos de ver-te!... Desculpa-me.

E sahia outra vez de mansinho, como entrava, exclamando interiormente, e fitando o Senhor lá nas immensas alturas, onde o vae encontrar, o espirito mais infimo da terra na hora da afflicção: «inspirae-o, meu Deus, inspirae-o!»

Não lhe ouvindo mais os passos, olhava por cima do hombro Rodrigo, temendo uma surpreza; voltava o papel, e, certo de que ella não viria tão cedo, entregava-se todo á idea do trabalho. Tomava outra vez a penna, contemplava a tarja florida, arredondava a pastora que lhe trazia recordações da infancia, retocava um dos carneiros zambro de pés e mãos, accrescentava um chorão á sepultura, indo no meio cortar uma syllaba á poezia e tornando logo atraz, para fazer as orelhas do syleno mais compridas que as do onagro.

As horas corriam; o papel estava sujo, mas nem uma linha sequer, uma phrase unica ficava ali de memoria. Eram tudo frivolidades que se via obrigado a rasgar, para que Branca não conhecesse em que desbaratára o tempo. Ao menos podia fazer-lhe suppor que inutilisava os escriptos por desconfiança de seu merito, e esta modestia era, ou devia ser, mais um encanto para a alma d’aquella mulher, que Deus fadára com percepção delicadissima para avaliar os defeitos e virtudes da humanidade.

Sem forças que a contivessem por muito tempo n’aquella ancia de saber, no desejo de rejubilar-se da boa estreia de Rodrigo, ella ahi tornava, mais rizonha bailando-lhe nos negros olhos a luz vivificadora da esperança. Elle então, que sentia fallecer-lhe a coragem de a desenganar, levantava-se da mesa, sacudia os fragmentos dispersos, e dizia voltando-se de má sombra:

-- Que queres?

Gelada por tal acolhimento, lançava Branca um olhar desolado em redor de si, e voltava-se para sahir.

-- Vamos! não ouves? que quer dizer essa mudez? -- tornava com voz irritada -- Estas mulheres cuidam que um homem está sempre armado de paciencia para as soffrer! Que querias tu ?

A altivez natural de Branca acudia sempre n’estas occasiões em seu favor.

-- Quero que me trates como deves -- respondia ella serena e com voz firme -- Quero que o homem que se diz cavalheiro, o prove nas acções e nas palavras. Tu é que estás indignamente abusando da minha paciencia, Rodrigo, ou por outra, prevalecendo-te da minha posição, e isso é uma indignidade para lhe não chamar outra coisa.

-- Ahi vem a dependencia! já me admirava a mim se não vinha o grande palavrão! Cuidas que esses remoques prendem alguem? Que é bonito esse ar de mestra de meninos?

-- Oh! bem sei que não -- soluçava a infeliz -- sei que me aborreces, que estás enfastiado de mim, e que só me resta um recurso... Dá-me um abraço, Rodrigo, e perdoa-me a louca confiança que me fez aceitar tal vida. Eu amava-te tanto, que me ceguei: perdoa-me! e se alguma vez ouvires ennodoar a minha memoria, não a desafrontes, que não vale a pena; mas chora o mal que me fizeste; lamenta o abysmo de ignominia em que lanças-te uma pobre mulher que talvez sem ti teria sido toda a vida honesta e virtuosa... Vistuosa, sim; não te rias, que já nem mesmo esse riso me fere.

-- E quem o duvida? quem se ri, louca? Essa tua cabeça romantica não te dá tregoas um instante, nem pode aclimatar-se com o positivo da vida real...

Adeus, adeus -- clamava ella -- algum dia me chorarás, algum dia...

Onde vais tu, doida?! -- dizia Rodrigo, correndo a impedir-lhe a passagem.

-- Deixa-me, deixa-me; é preciso acabar com isto; é necessario deixar-te na tua liberdade.

-- Vem cá, vem cá creança, socega; eu não posso viver sem ti, e tu bem o sabes. O que devias era tolerar as impaciencias do meu genio, que afinal de contas não é dos peores de soffrer.

A estas palavras, o rosto de Branca tomava uma expressão resignada: seus olhos fitavam os de Rodrigo, e vendo nos d’elle uma terna commiseração, deixava pender a cabeça sobre o unico seio que a abrigava no desamparo, sentindo ainda o prazer que lhe dava este abrigo.

-- Esqueça-se tudo, sim ? -- continuava elle beijando-lhe as mãos -- Já estás minha amiguinha?.. Olha, senta-te aqui ao pé de mim: sabes no que estive scismando? Lembra-me publicar um livro de versos. Tenho lá por casa uma rima d’elles, e com um ligeiro toque parece-me que ficariam soffriveis. Se tu quizesses, logo que findasse o mez, e recebessemos a mesada, ia-mos até Braga; tu ficavas ali, até que eu fosse a casa de meu irmão buscar esses papeis, e por essa occasião fallaria com elle, e pode ser que arranjasse dinheiro para a publicação, e para poderes gastar, sem estar a pensar que nos fará falta. Concordas, minha menina? Não te agrada esta idéa ?

-- Agrada-me tudo o que te agrada a ti, filho. Adoro a pequenina estrella, por mais remota que esteja a illuminar-nos o futuro! Deus se lembre se nós, Rodrigo.

Depois d’isto, as ultimas horas d’esse dia corriam menos apertadas; mas o seguinte não dispensava a peripecia.

Rodrigo passava grande parte do tempo fóra de casa. Dizia elle que o bestificava a solidão, e que era o seu viver estupido que lhe não deixava o espirito livre para produzir coisa alguma. Branca conhecia o subterfugio. Sabia que o que elle queria era fugir, ao estudo dos livros, em que gastava uma quantia mal aproveitada, e sobre tudo á prescrutadora vigi- lancia que, sem querer, exercitava sobre elle. Dava-se porem por desentendida, esperando ganhar com isso algumas mostras de bem querença. Não podia comtudo deixar de notar que muitas vezes recolhia Rodrigo meditabundo, refugiando-se no seu quarto, quasi sem lhe dar palavra. Começava Branca depois a scismar que eram afflicções domesticas que flagellavam a sua imaginação, não lhe passando nem ao de leve no pensamento que este homem, por quem ella quizera dar a propria vida, e depois dos sacrificios que por elle fizera, podesse despresal-a, a ponto de ir procurar caricias, ou amores n’outra parte.

Pobre Branca! Devias talvez á mão omnipotente do Creador o poupar-te essa agonia, para que eram debeis ainda as tuas forças! Um dia, quando a assiduidade do soffrimento tiver attingido o grau de resignação precisa, tu a tragarás, infeliz; tu beberás o fel até á ultima gota do teu calix.

Aqui nos vem agora, se não a ponto, muito a tempo a descripção da casinha que habitavam estas duas creaturas, tão differentes em genio e caracter, e que o destino, não sabemos porque occultos designios da Providencia, se comprouve em ajuntar.

Compunha-se ella d’um andar com duas janellas de frente. No andar terreo havia um escriptorio que lhe fazia as vezes de sala de jantar, passando-se d’aqui para a cosinha por um corredor, onde estava um quartosinho destinado á creada. Era esta uma velhita magra e alta, que se sujeitára a um diminuto ordenado por não haver quem, attendendo á sua idade, se quizesse utilisar de seus serviços. No segundo andar dividia-se a casa em dois quarteirões. O da frente destinado a Rodrigo estava mobilado com um sofá de estofo encarnado, duas cadeiras iguaes e a banca de escrever onde descançavam uns cincoenta volumes. Para o lado de traz ficava o quarto de Branca, menos espaçoso e onde apenas cabia uma mesa, uma poltrona de pau preto antiga com estofo de damasco amarello e duas cadeiras ordinarias. A cama e lavatorio ficavam escondidos na alcova que um simples tabique separava da de Rodrigo. O que ali havia mais era a luz do céo coada por umas cortininhas de riscado azul; era um horizonte largo dominando o alto da Bandeira e Candal com as suas collinas verdejantes; era finalmente, descendo os olhos perto e á terra, o quintalzinho cercado de ramadas com os muros cobertos de rosas singelas e limoeiros e o seu poço ao fundo. Fôra esta vista que seduziu Branca. Aquelle seu retiro tinha uns ares e quasi o perfume mystico d’uma d’essas cellas a que não chega o bulicio do mundo exterior, e onde o cenobita, cançado da longa peregrinação, vinha esperar o repouso, interrogando a immensidade e o destino da creatura.

N’uma tarde em que estava só, como de costume, Branca levantou-se por um esforço de vontade, e passou ao quarto de Rodrigo. Examinou os papeis riscados que pousavam em cima da mesa e descobriu muitos nomes d'homens, alguns nomes de mulheres e palavras sumidas de proposito. Isto não a alarmou, entristeceu-se por ver que o seu nome não apparecia á imaginação de Rodrigo, quando insensivelmente tantos outros lhe lembravam. Continuando a mecher entre os livros, deparou-se-lhe uma pequena carteira, onde estava escripto a lapis: «vê-te' vê-te e chora-te, ó sombra do que foste; flor d’aquelle jardim guardado por anjos»... Seguiria mais por diante, mas estava apagado de fresco por um traço.

Branca leu, e, por um impulso extraordinario, correu ao espelho e mirou no vidro a dolorosa contracção de suas feições. Comprehendeu tudo; poz as mãos e bradou n’uma grande angustia: «Como a desgraça muda as physionomias! Como a aragem maldita do crime queimou depressa os vestigios da minha mocidade! O’ Senhor, o ferrete da ignominia existe: não é sonho, não; sinto-o, palpo-o, estorço-me debalde sem poder lavar a mancha eterna da minha podridão. Aqui estão os meus cabellos a enbranquecer aos vinte e oito annos! A cor emaciada da velhice! Os olhos sem brilho, a bocca arqueada pelo sabor amargo da peçonha que me contamina o coração.

Aqui está a fealdade repugnante... Desculpo-te, Rodrigo: a infamia tem um não sei que de asqueroso e repulsivo, que mereces perdão, por me condemnares a abrir os olhos sobre esta hedionda mascara.

Jorge! Jorge! como Deus te vinga?!... Deus! agora vós: dai-me coragem. Esta noite será a ultima: a vida causa-me um horror com que não posso.

E tomando a carteira escreveu á margem: «A flor regada pelo orvalho da innocencia, murchou logo que a transplantaram para o agro torrão do infortunio, vergou na haste, e desfeita em pó, sumiu-se nas voragens da terra... Perdão para o assassino.»

Era tarde: a noite seguia seu curso, quando Branca poisou a carteira, ouvindo o toque da campainha e a voz de Rodrigo. Recolheu-se ao seu quarto pensando em todas as catastrophes porque passára em tão curto praso, e dizendo mentalmente: «Mais algumas horas de soffrimento e dissimulação, e tudo estará findo.»

Causou estranheza a Rodrigo não ver Branca no cimo da escada como era costume, antecipando alguns segundos o prazer de o ver. Procurou-a no seu gabinete, e encontrou-a a ler as cartas que possuia d’elle depois que seu marido a expulsára.

-- Que fazes tu?

Branca não respondeu: encrespou-lhe os labios um sorriso de ironia amarga, e com o indicador apontou-lhe as linhas que elle escrevêra. «Agora tenho a convicção de que és a companheira de toda a vida: deu-se em nós a alliança dos immensos flagellos que te santificam, ó estrella do meu poente! »

E voltando logo com o dedo atraz algumas linhas, fez-lhe ler o seguinte: « vamos, filha, fujamos para longe, porque é preciso morrer juntos. Demos um exemplo de verdadeiro amor a este mundo corrompido.»

Da bocca de Branca não sahia som accuzador; mas Rodrigo tel-o-hia preferido a ver n’esse instante o juiz da sua consciencia tomar-lhe contas tão severas. É verdade: enganára aquella desgraçada mulher. Aborreceu-a, logo que a necessidade de tomal-a a seu cargo a desnudou, do prestigio. Esta não era, porem, a occasião de reflectir. Encolheu os hombros com desde m dizendo:

-- A que vem cá isso agora? Não comprehendo essas subtilezas do sentimentalismo...

-- Tu o comprehenderás: vae; d’aqui a um instante irei despedir-me de ti... -- Disse Branca com um ar de frieza que lhe não era natural.

-- Mandas-me embora? -- perguntou elle admirado, e continuou logo -- Que caprichos tem estas mulheres ?!

-- Tristes caprichos os meus, n’esta hora, meu amigo. Pede ao Senhor que te salve de pagar as muitas injustiças que me tens feito. E lembra-te sempre que te perdoei tudo: ouviste, Rodrigo?

-- Ouvi! ouvi! -- e resmungou baixo sahindo da sala, mas não tanto que ella não percebesse -- O que eu queria era que elle findasse com este interminavel martyrio...

Branca segui-o com os olhos, e murmurou tambem:

-- Está a acabar: descança...

Juntou depois todos os papeis, dobrou-os; e, apertando-os n’um masso, entrou no quarto de Rodrigo que achou ainda a pé sentado á beira da cama. As suas palavras foram curtas e singelas. Abraçou-o; beijou-lhe os cabellos e a testa; e sahiu deixando o masso que trazia, e levando de cima da meza de escrever um caixãosinho de madeira em que estavam as suas cartas.

Rodrigo, admirado, espreitou pelas fisgas da porta, vio-a sahir do quarto momentos depois, e seguiu-lhe os passos com ouvido attento.

Dava meia noite n’um relogio ao longe, quando Branca descia a escada de mansinho, e caminhando ao longo do muro, parava junto do poço. Ali, ajoelhou, pôz as mãos; cravou os olhos nas estrellas, n'aquelles fachos luzentes da eternidade, murmurando palavras summidas. De repente, levantou-se, sondou a profundeza d’agua, e fez um movimento.

-- Que é isto? -- bradou Rodrigo, segurando-a com forças.

-- Ainda tu ?! -- exclamou Branca -- Deus não quer. Cumpra-se a sentença.

IX

A vigilia de Rodrigo; o cuidado que tomára pela vida de Branca, denotariam interesse verdadeiro ou extremo da amisade? Não; nem uma nem outra cousa. O que havia n’aquella alma era uma grande dose de egoismo. Parecia-lhe a elle natural que Branca soffresse; quem pecca expie, costumava elle dizer; mas o que não entrava na sua comprehensão é como elle se via enredado n’aquelle exemplar castigo da Providencia. Elle! porque ? Em que era culpado ? Ella é que era a criminosa; era a mulher que pagava as caricias do marido com affrontas; era a doida que espontaneamente se declarára culpada para não mentir!

Sublime demencia a tua, ó Branca ! Valer-te-hia mais manchar labios e consciencia com a sordida hypocrisia, que usa a blasphema contra a desmoralisação do seculo...

Rodrigo salvando-a da morte, pensava nos encommodos que lhe resultariam do suicidio, e talvez que fosse tambem por um resto da humanidade. A frieza, porem, do seu coração demonstrára-se, deixando-a experimentar todas as alternativas, e mesmo fraquezas da materia, em hora tão solemne!

Deixal-a pôr em pratica quasi até ao fim o seu nefando intento era mais uma affronta, que a perspicacia de Branca tinha a perdoar-lhe. Todas aquellas disposições não passavam no seu entender d’uma comedia. Morta, verdade é que não a desejava; mas ver-se emfim livre era o anceio de todos os momentos; era o arrebol d’uma nova primavera! Todas as suas idéas convergiam a este ponto, e a sua alma azedava-se mais, e expedia sobre a desgraçada o fel que lá dentro lhe refervia com a negrura d’estes dias de condemnação, e tendo sempre presente, como algoz implacavel da sua felicidade, um rosto macerado por continuadas torturas.

Desde essa noite estabeleceu-se entre elles mais um occulto motivo de desunião. Branca não achou mais calor no seio que a amparava, fazendo-lhe ver que commettia um grande crime matando-se. Isso mesmo lhe estava já clamando a consciencia, resolvendo-a a soffrer da melhor forma que podesse o castigo inflingido por Deus, e abandonando para sempre as tentações criminosas. No que ella agora scismava era no meio de transportar-se a Lisboa. Queria fugir para sempre d’ali, entregando-se nas mãos de Deus, quanto ao futuro.

N’este meio tempo receberam elles carta de Alvaro de Sepulveda, noticiando-lhe que D. Amelia voltara de Pariz, casada com seu primo, e D. Jorge, depois de ter passado alguns dias com elles, sahira para viajar no estrangeiro. Instava com os dois para que lhe déssem novas suas, desculpando-se de não ter escripto ha mais tempo por encommodo de saude. Reiterava offerecimentos sinceros, terminando por fazer allusões á felicidade que gozavam.

Os olhos rara vez enchutos de Branca fulguraram mais uma vez com o vidrado da commoção.

-- Digna alma! -- bradou ella -- já me não admira que sejas infeliz. Ai d’aquelles que não souberam avaliar-te!

-- Ah! temos lamentações! V. ex.ª arrepende-se de m’o não ter preferido? -- disse Rodrigo com ar escarnecedor -- Pois a preferencia teria sido para mim uma grande ventura!

E vendo que Branca ficava immovel como se não entendesse, continuava no intuito de espicaçal-a com a sua lingua ferina. -- Teu marido, pelo que vejo, não anda muito atribulado! Podera ! Lá vae elle agora mar em fóra, pensando qual seria o tolo que o alliviou de tão preciosa carga.

O unico signal de que o ferro encravára nas carnes da desgraçada Branca foi um olhar de suprema resignação para o céo.

Rodrigo começou de novo, incitado pelo demonio tentador da paciencia humana: -- E o tal Sepulveda a jogar-me de lá a sua chufazinha a respeito d’esta doce lua de mel! Está um ratão! E quem me diz agora a mim que elle não lhe conhece já o sabor? e que eu supporto não só a piedade do marido, mas tambem a d’este portento de honradez e virtude?!...

D’esta vez estavam esgotados os calculos pacientes da infeliz Branca. Levantou-se magestosa de dignidade offendida, e deu dois passos bradando com força: -- Cala-te! cala-te! assassino da minha razão. És como o vampiro esfomeado, que pertende sugar-me o sangue dessorado em lagrimas.

-- Bem; depois da farça a tragedia: cada vez melhor -- exclamou elle com escarnecedora admiração -- Pena é que não te dedicasses ao theatro! Davas uma excellente actriz.

-- Silencio! silencio, algoz! não me leves ao extremo de sahir d'aqui, patenteando ao mundo as torturas que me fazes soffrer. Oh! se as mulheres soubessem a que abysmos de vergonha, a que insultos se expõe, trahindo seus deveres; se ellas soubessem o que é o homem tornado vingador do marido por uma expiação tremenda! Se ellas podessem contemplar n’esta hora a brilhante Branca d’Alvarães, aquem ainda não ha dois mezes este mesmo homem rendia toda a casta d’adorações, chamando-lhe mulher divina! Se ellas vissem a humilhação aque cheguei, depois de ter visto curvado ante mim os nomes mais illustres de Portugal! Se ellas d'aqui tirassem ao menos a sabia conclusão de que não ha homem que sinta por nós mais que um capricho passageiro, que o vento da tempestade leva longe, que todos são traidores quando juram, que não ha um só que mereça uma saudade, uma lagrima sincera!

-- Lá isso, é verdade; até certo ponto dou-te razão -- respondeu Rodrigo com perfida candidez -- As mulheres são umas doidas! Cuidam que o espirito do homem, intelligencia e coração se deve alienar completamente, para lhes dar o gosto de nos verem a seus pés fiando n’uma roca! Que queres tu que eu te faça? De que te queixas?

-- Da barbaridade das tuas palavras; do desamor com que me tratas, desde a hora em que te vi a bordo. Se eu seguisse a inspiração que me levava para terra...

-- Melhor fora! melhor. Mas emfim, se eu já não podia ser para ti o mesmo, era minha a culpa ? Não serás tu depois, com as tuas lagrimas e remoques eternos, que fazes com que acresça o tedio ao fastio?

-- E estavas enfastiado de mim, Rodrigo, quando me escrevias aquellas cartas?

A fallar-te verdade, estava -- respondeu elle com sinceridade -- Aceitei-te forçado pelas circumstancias, e pela voz da consciencia, que me dizia que era uma cobardia atroz desamparar-te em tal occasião.

-- Oh! como eu te perdoaria o desengano!

-- Parece-te isso agora... O que é certo, Branca, é que a minha alma sente ainda ás vezes por ti uma grande piedade, e talvez estima. Lamento não poder amar-te, como mereces... sim, sim, como mereces, pobre mulher!... -- E animando-se gradualmente -- Eu é que sou um barbaro: eu é que sou o maldito de Deus. Afinal, tu terás a misericordia divina a guiar-te no teu caminho e a dar-te as consolações da fé, emquanto eu não acharei em redor de mim senão sombras irritadas a pedirem-me contas -- A’ volta de mim ha um rio de lagrimas; e quem sabe mesmo se algumas gotas de sangue lá correm juntas!... Compadece-te pois do meu destino. Negro destino, que me não deixou nunca saborear sem enojo o prazer d’uma hora!... As minhas maldades explicam-se assim. Nunca pude guardar fidelidade a mulher alguma, com a ancia de encontrar uma, que me prendesse deveras... que me escravisasse...

O espanto de Branca recrescia progressivamente. Pela primeira vez entrava nos arcanos secretos d’aquella organisação malfadada.

-- Tambem me trahiste a mim?

-- Sempre! -- murmurou elle.

-- Sempre! -- -repetiu ella -- mesmo agora ?

-- Agora, como sempre: nunca te fui fiel!

-- Oh! basta! basta: -- disso por fim Branca. Ha uma podridão moral que não posso difinir, e em que o meu escalpello não deve tocar. Fiquemos aqui, meu amigo, por Deus t’o peço.

Ficaram: nem era preciso acrescentar mais ao completo desalento de Branca. Perder-se por um amor cego e imperioso, parecera-lhe desculpavel até então, senão já santificado pelas leis divinas; mas, perder-se para satisfazer os caprichos brutaes d’um coração pervertido, trocar as alegrias e seguranças da virtude pelas inquietas e dolorosas incertezas do crime, cujo, remate era receber o atroz dezengano, sem o colorido ficticio do fingimento e da dissimulação... isto é que era o extremo a que podia levar-se o desespero !

Depois d’esta comversação, e por um tacito accordo, evitaram as occasiões de altercarem. Rodrigo esperava partir breve para Braga, e Branca convencera-o com duas palavras de que ella devia ficar, poupando-o a embaraços e encommodos. Esta proposta foi aceita com a alegria, e com não menor satisfação da parte d’ella.

Com effeito partiu Rodrigo só, e preparou-se Branca para a fuga que havia dias projectava. Sahiu sozinha, informou-se da sahida do vapor, o muniu-se de bilhete. O que a magoava era ter de empregar dinheiro de Rodrigo para a partida; mas não havia meio de que lançar mão para poupar-se a esta dor.

Dispostas assim as coisas, no dia aprazado, sahiu Branca do Porto, tendo dito á creada que hia ter com Rodrigo, e deixando uma carta para este em que resumidamente lhe fazia ver a impossibilidade de continuar em tal vida. Supplicava-lhe que esquecesse o seu nome, que não procurasse saber mais d’ella, e que lhe desse de esmola o dinheiro que lhe tirava, e era unicamente o necessario para pagar a passagem.

Chegada a Lisboa, procurou a casa d’uma pobre mulher, viuva d’um artista e prima de Maria. Ainda em vida de seu pae conhecera-a moça, risonha e bella; porem, a perda do marido, que era um anjo de coração, lançara-a n’uma atrophia e desgosto, que em breve desappareceram estes bens, ficando em troca com os achaques da tristeza, do desconsolo e da velhice. A alma de Branca tinha-se abalado ao aspecto d’aquella grande agonia, chegando a dizer á prima da mulher que a trouxesse para o seu quarto, e ella de boa vontade lhe dava de comer, emquanto vivesse, e seria esta obrigada a trabalhar. Maria instou, mas não conseguiu resolvel-a a abandonar a casinha em que passára a melhor parte da sua vida, e d’onde vira sahir o cadaver do marido.

Foi á porta d’esta filha do povo que Branca de Alvarães foi bater, temendo não a encontrar aberta. Felizmente que a Providencia lhe guardava esse asylo, como premio dos seus bons desejos d’outr’ora. Branca agradeceu mentalmente a Deus, vendo o ar alegre de Joanna e a pressa que se dava em fazer-lhe tomar algum alimento, que muito preciso lhe era. Informou-se depois de Maria, sabendo com admiração que estava a servir em casa dos marquezes de S. Gens. Pediu ella a Joanna que fosse logo chamal-a, gastando o tempo que esteve só a escrever uma longa carta a sua irmã.

Encurtaremos agora os transportes da antiga creada abraçando os joelhos de Branca. A pobre senhora, já desacostumada de sentir-se aquecida pelo reflexo d’uma affeição verdadeira, quasi se considerava feliz no meio d’aquellas duas mulheres que derramavam sinceras lagrimas, lamentando o seu destino. Passados os primeiros momentos, perguntou Branca a Maria como se achava em casa de seus tios. Respondeu que recolhendo-se logo depois do embarque, achára recado da marqueza para lhe ir fallar, e que cumprindo-o por curiosidade de saber o que queria, D. Michaela, depois de fazer-lhe muitas perguntas, a que respondeu, fingindo-se completamente estranha a tudo o que se passára em casa de D. Jorge, lhe fez o offerecimento de ficar como governante em sua casa. Aceitou ella immediatamente, lembrando-se que poderia ahi ter com mais facilidade noticias de sua senhora, e, ao mesmo tempo, ir sondando o que se passava.

-- E meu tio como vive? -- perguntou Branca.

-- Quasi demente, minha senhora, depois que lá houve uma grande desordem entre a senhora marqueza e seu marido. A sr.a D. Michaela desde esse dia está muito mudada. Passa o tempo fechada no seu quarto, não recebe ninguem, e diz a creada que lhe fica mais perto que muitas vezes, por noite alta, a ouve gemer e chorar. Peccados! peccados!

Contou-lhe então que era notorio entre a criadagem ter havido grande disputa e que D. Jorge insultára a marqueza, a ponto d’ella fugir da sala em altos gritos.

Gastas assim algumas horas, entregou Branca a Maria a carta, dizendo-lhe que fosse leval-a a sua irmã, da qual esperava resposta favoravel em vista do affecto que as tinha sempre unido. É verdade que Branca devia estar queixosa pela partida de Amelia sem lhe dizer coisa alguma, nem tão pouco de suas intenções de casamento; mas o que ella não sabia era que Vasco proseguindo impertinentemente nas antigas solicitações, perdida a esperança, lhe ganhára um odio sem limites, com intenções vingativas. Foi mesmo n’esse intuito que requestou Amelia, esperando ferir a seu tempo Branca com a desunião da sua familia. O espirito da futura esposa prestava-se de sobra aos dissimulados artificios d'elle, e em pouco tempo conseguiu despertar a emulação e inveja d’Amelia, obtendo um completo dominio sobre a sua vontade. Foi elle que a decidiu a partir sem lhe dizer adeus, fazendo agora merecimento da sua razão e finura em ter descoberto, primeiro que ninguem, os maus costumes d’aquella que já era sua conhecida.

Explicadas assim as coisas, voltemos a Branca.

Incumbiu-se Maria gostosa da commissão que lhe encarregaram, preparando-se para a executar no dia seguinte.

-- Agora, minha querida senhora, o que é preciso é descanço -- dizia ella, olhando muito para as feições desfeitas de Branca -- v. ex.a soffre de saude?

-- Muito. Sinto ás vezes uns desfallecimentos, uma perturbação de sentidos, que attribuo ás muitas dores moraes.

-- Pois sim... será... será -- gaguejou Maria, de modo que se tornou sensivel para Branca.

-- Parece que duvidas?! -- e continuou mais rapido depois de longa pausa, emquanto um raio de luz lhe atravessava o espirito: -- que idéa é a tua?

-- Não é nada minha senhora.

-- Diz! diz! -- balbuciou Branca inquieta.

Maria curvou-se e disse-lhe baixinho duas palavras.

-- Mãe! mãe! -- bradou Branca com grande exaltação, emquanto o seio lhe arfava de jubilo. Depois, volvendo olhos á realidade, poz as mãos, e duas grossas lagrimas rolaram ardentes por suas faces até lhe cahirem sobre o seio.

X

Retrocedamos um pouco, entrando no palacio dos marquezes de S. Gens no dia immediato ao da partida de Branca para o Porto.

D. Jorge de Mello regressára de Cintra, surdo á voz da razão que lhe mandava abandonar a indigna esposa, sem remorsos nem saudade. Elle por si era homem, podia trahil-a quantas vezes a isso o levassem as veleidades, os caprichos, e as occasiões sem ter de dar contas á sociedade, nem macular o seu nome; mas ella! Branca d’Alvarães deshonrar-se a si e aos seus, e ainda em cima ter a audacia de affrontal-o com a desdenhosa cedencia que lhe fazia de seus bens; isto era crime de tal ordem, que excitaria a indignação de toda aquella Lisboa, que por tanto tempo invocára vozes de fama, em respeito a suas virtudes e formosura.

Isto, não sei eu se lhe chame dignidade offendida ou amor proprio; o que fallava, porem, mais alto do que tudo, era o coração; tinha uma voz surda, é verdade, mas activa e imperiosa. A poder de muitas pesquisas, pôde elle saber que sua mulher embarcára com direcção ao Porto, entrando acompanhada por uma mulher no vapor. Levando mais longe as suas investigações, colheu tambem que a viram fallar com um mancebo que chegára quando já se dispunham a tomar rumo, e que dera o nome de Ricardo da Silva. Este nome tinha geitos de pseudonymo, e confirmou Jorge em suas suspeitas, muito mais por se ter tambem sua mulher feito inscrever na lista dos passageiros com o nome de Magdalena. Até aqui chegara elle; mais alem não podèra ir. Quem era o homem, qual a sua posição e nome verdadeiro, nem a vigilancia das espias, nem as informações d’elle proprio, colhidas com toda a circumspecção, poderam obter resultado digno de mencionar-se. Demais disso, como a sua deshonra era um segredo para a sociedade, e não se sabiam ao certo os motivos, nem que Branca fora expulsa, entendeu elle que, por honra sua, devia occultar estes pormenores, dizendo simplesmente que reciprocos desgostos domesticos levaram sua mulher a dar o passo de sahir de casa, e que elle entendera improprio da sua dignidade instar, ou fazer tentativas para uma reconciliação.

p> A sociedade, em geral, acceitou estas explicações com certa reserva. Eram já sabidos os amores d’elle com a marqueza, e não faltava quem imputasse unicamente a Jorge os extremos a que levou a pobre senhora. Algumas pessoas mais authorisadas chegaram até a fazer-lhe allusões mortificantes, que o obrigaram porfim a deixar Lisboa.

Desde o instante fatal em que conduzira sua esposa á porta da rua, indifferente n’aquelle momento de irritação ao destino que ella podes-se tomar, nunca mais viu Michaela.

Entendendo que era a ella que devia o despreso de Branca, da mulher que não podia esquecer, e cuja imagem tinha presente a toda a hora, detestou-a. A febre que lhe queimava o peito em impetos e refluxos de sangue abrazeado, precisava de dessangrar-se, em risco d’uma explosão violenta e mortifera. Era de necessidade desabafar com alguem, a respeito da refalsada Branca; N'esta disposição doentia do espirito, se encaminhou elle para o palacio dos marquezes de S. Gens, subindo até á ante-camara do marquez com a segurança que dá a familiaridade. Por um acaso não esperado, encontrou reunidos os dois esposos.

Desde que os annos e a desgraça fizeram comprehender á marqueza o que era a honrosa solidão da velhice, acercara-se piedosa da poltrona onde o ancião curtia; ha longos annos, as solitarias amarguras d’um acabar sem lagrimas nem cuidados de coração amigo; Ultimamente, quando lhe chegou aos ouvidos a fuga da sobrinha, o marquez, já com a razão um pouca abalada pelos desgostos; soffreu um ataque de cabeça do que ainda se achava em convalescença.

Viu Jorge: sahiu-lhe do seio anciado um brado de esperança, que assustou a marqueza sentada contra a porta.

-- Ha noticias d’ella ?

-- Ha -- respondeu Jorje com voz secca fazendo estremecer Michaela. Curvou-se depois diante d’ella, apertou as mãos do velho, e disse:

-- Ha, ha noticias de que a filha do conde d’Alvarães, sobrinha dos nobres marquezes de S. Gens, e esposa de um Mello, abandonou Lisboa; fugiu com um aventureiro, um homem que nem nome tem na sociedade, porque possa conhecer-se e ser punido.

O ancião chorava, e a marqueza exclamou commovida:

-- Pobre Branca!

Estava pois bem mudada a alma d’aquella orgulhosa mulher, tão implacavel outr'ora contra as peccadoras. Pobre marido, minha senhora! -- gritou Jorge, empallidecendo de raiva -- Lamentam-n’a ainda em cima? Haverá misericordia na terra ou no céo, voz que se levante, a não ser impura, para desculpar a infame que se rebaixa e cospe a deshonra no homem que faz da virtude de sua mulher o mais brilhante florão de seus brazões? Mal hajam todas aquellas que assim obram! Amaldiçoadas se vejam ellas todas n’uma velhice só e desamparada!

E seus olhos fitos em Michaela, a voz tremula e vibrante, o braço estendido na direcção da cadeira que ella occupava, tudo parecia dizer-lhe que essas duras expressões lhe tocavam.

A marqueza perturbada balbuciou baixo, curvando-se um pouco para não ser ouvida do marido.

-- Piedade Jorge! piedade -- e mais alto -- Seja forte, meu amigo; dê um exemplo de coragem aos que verdadeiramente se interessam por si. A sua dor é tambem nossa: Branca é sobrinha de meu marido.

-- É verdade senhora marqueza. Branca era sua sobrinha; v. ex.a queria-lhe muito -- continuou Jorge em crescente accesso de exaspero -- Aconselha pois a um marido offendido que se cale, que abafe a vergonha, que exulte com o opprobrio e continue a affrontar o escarneo do mundo. É um excesso de virtude da sua parte; é querer que um homem lance por suas mãos sal e vinagre na chaga aberta! Não! é preciso que a sociedade se regenere com o exemplo. É preciso que se desmascarem as viciosas, que se occultam na sombra d’uma perversa hypocrisia.

É preciso que haja castigo na terra para a criminosa que pullue o leito conjugal. É preciso que a profanadora do santo recinto da familia seja apregoada como as...

Ouvindo estas virulentas apostrophes a marqueza levantára-se e pôde interrompel-o a meia voz.

-- E ousarás tu atirar-lhe a primeira pedra?

Não ! -- bradou elle no mesmo tom -- Mas lá está o tempo, o despreso do mundo, a desconsiração propria e a consciencia atormentadora no fim da vida.

-- E será justo que o cumplice de nossas fraquesas -- atalhou ella -- o seductor que nos arrasta á perdição seja ou queira ser o nosso proprio algoz ? Será tal procedimento bem aceite de Deus?

-- Deve ser: a expiação tremenda da mulher despenhada é conhecer n'esse homem o seu primeiro juiz.

E lançando-lhe um olhar de desdenhoso despreso, sahiu da sala quasi sem olhar para o velho marquez, que, sempre immovel na sua poltrona, seguira com penetrante olhar todos os movimentos dos dois personagens.

XI

Voltou Maria com a resposta vocal de Amelia. Negava-se a acceder ao pedido de Branca, recusando-lhe um aposento na casa que pertencia a seu irmão, e onde ainda existiam muitos objectos como pratas e mobilia, pertencentes a Branca no inventario de seu pae, que esta não quizera retirar. Desculpava-se ella com a vontade de ssu marido, tendo d’aqui aproveitado espaço para se desentranhar em considerações offensivas a sua irmã, e que a creada, como boa serva, poupou á desgraçada senhora. Indagou onde pousava, queria saber o que ella fizera durante este tempo, irritando-se por esta subita apparição que destruia o boato espalhado por elles de que Branca se refugiára n’um mosteiro obscuro. Findou a sua prelecção, dizendo e Maria que aconselhasse Branca a deixar Lisboa e viver de modo, que a sua lembrança os não inquietasse com a vergonha, já que tão erradamente trilhára o caminho da honra, abusando de todas as leis da sociedade. Vasco de Mesquita, que entrára n’este momento no quarto da esposa, instruido de tudo, bradou com toda a força de seus pulmões contra a pouca vergonha de Branca, entendendo que depois das acções que praticára poderia ser ainda recebida n’aquella casa. Intimou solemnemente a Amelia que a consideraria tão perdida como a irmã, continuando a receber enviados seus, ou tendo a mais ligeira correspondencia com ella.

Fulminada por este acolhimento tão contrario ao que esperava, Maria, mal podendo responder com o sentimento da dor que ia levar á desgraçada em vez de esperança e contentamento, sahiu com o coração rasgado e a cabeça perdida, não sem ter feito um ultimo esforço, dizendo a D. Amelia:

-- Então a menina abandona a senhora D. Branca? Não lhe fallam ao coração estas paredes onde ainda resoa a voz do senhor conde que Deus haja e que tanto queria a ambas? Que dirá lá no seu tumulo a alma de seu pae, sabendo da crueldade de v. ex.ª para com sua mana, estando ella na penosa necessidade de precisar não só de asylo mas de pão?! -- continuou suffocada pelos soluços -- Não posso entender como o marido a rouba assim descaramente, e v. exc.a consente e seu marido em tal attentado, negando-lhe protecção! -- Não se admittem aqui reflexões -- atalhou Vasco bruscamente, tendo divisado no rosto de Amelia uma sombra melancolica -- Acabemos com estas crendices. Retire-se -- continuou voltando-se para Maria -- Se meu tio estivesse vivo, faria o mesmo, desprezando essa creatura que é a nossa vargonha, Amelia! -- continuou voltado á esposa -- Ordem aos creados para não deixar entrar aqui esta mulher.

É escusado, snr. Vasco de Mesquita: eu não voltarei. Não tornarei a vir dizer a v. exc. ᵃˢ que sua irmã e cunhada tem fome! Graças a Deus, ainda tenho braços, e os meus cordões ganhos honradamente com o suor de meu rosto. Que o Senhor lhes acrescente os bens; e fiquem com Deus.

Quando Maria terminou a cortada e resumida conversa que tivera com os dois, Branca levantou-se com o sorriso nos labios, e a fronte illuminada por um d’esses lampejos exuberantes de espirito que atravessam, rapidos como o meteóro por entre as massas de nuvens amontoadas em noite carregada e tempestuosa. Juntou as mãos sobre o seio e disse para as duas mulheres que a contemplavam no cumulo do espanto: -- Deixemos passar sem commentos a justiça de Deus! Dia virá, em que « os que choram serão consolados». Nada de perder o tempo em inuteis reflexões, minha pobre Maria, pequei, é necessario receber a expiação como bem merecida. Aceito o conselho de minha irmã; oxalá que ella se não arrependa nunca de tanta dureza!... Esta manhã fallou-me tua prima n’uma senhora da visinhança que engeitára o partido de ir para uma das principaes casas d’Elvas como educadora de duas meninas. Faz tu agora de conta que já aqui não está a tua antiga ama, filha dos condes d'Alvarães. Ha dois mezes, que me chamo Magdalena de Queiroz. Quem vae para Elvas sou eu.

-- Que diz minha senhora? -- bradaram as duas -- Pois v. ex.a pode lembrar-se de semilhante coisa? -- murmurava Maria -- Nada! nada! isso é impossivel! O que v. ex.a deve fazer é tratar já de obrigar seu marido a dar-lhe contas do que é seu... Eu me encarrego de ir procurar um advogado. Isto não tem geito.

-- Anda cá -- interrompeu Branca segurando-a -- Se me tens amisade prohibo-te de que penses mais n'isso. O que eu agora espero de ti é que me emprestes algum dinheiro para a jornada e para pagar a hospedagem a tua prima -- disse Branca corando um pouco, emquanto a velha creada ajoelhava a seus pés, balbuciaudo com voz entrecortada pelos soluços :

-- Ai! minha querida senhora! tudo! tudo o que eu tenho é de v. ex.ª. O’ minha senhora da Guia! quem havia de dizer tal! Jesus! que desgraça... Não sáia d’aqui, senhora D. Branca, não vá por esse mundo de Christo, sosinha e sem amparo!

-- Esquecesrte-te de Deus, Maria? Elle irá comigo -- atalhou ella.

-- Pois sim, bem sei que v. ex.ª é um anjo, mas ir só, entrar n’uma casa, quasi como creada... não minha senhora, não vá, peço-lh’o pela alma de seu pae! Eu tenho algum dinheirinho; minha prima vae-se remediando com o seu trabalho, e os meus sete cordões, um dos quaes recebi de prenda do sr. conde no dia d’annos da menina e o ultimo em que, elle viveu, hão-de chegar até ver em que isto fica. Não podem durar por muito tempo estas coisas! O marido de v. ex.a ha-de considerar-se, e no fim de tudo elle era bem seu amigo...

-- Cala-te! cala-te que me fazes mal! -- interrompeu Branca com afflictiva ancia.

Maria obedeceu, constrangida e atterrada, ás ordens de sua ama, sendo obrigada por ella a preparar os pequenos arranjos da partida, e acompanhando-a sempre até que viu desapparecer a liteira que a levava.

Á despedida Branca apertou ao coração a velha creada, dizendo: só tu me foste fiel, só em ti encontrei abrigo na miseria. Deus to recompensará! E partiu, confiada na protecção divina, n’essa Providencia que reparte com mão prodiga o alimento para todos os vermesinhos da terra.

Mal apeou em Elvas, tomadas as necessarias informações, dirigiu-se á casa indicada, onde a recebeu uma senhora de trinta e cinco a quarenta annos, porte agradavel, e maneiras bondosas. Animada por este feliz auspicio, expoz Branca o que tinha a dizer em duas palavras :

-- Viuva de poucos dias, juntava-se á eter- na orphandade da alma a escacez de meios em que ficára por morte de seu marido, e como accrescentamento de males, a triste espectativa de ser mãe. Obrigára-se por tanto a vir procurar uma posição decente sem outro abono mais que as suas palavras, esperando que lhe déssem tempo para julgar seus costumes e habilitações.

A distincção e esmero da lingoagem, a modestia do seu trajar negro, e sobre tudo os traços d’uma agonia profunda impressos em seu rosto, tocaram tanto a boa alma de D. Catharina, que, sem querer entrar em mais minudencias, lhe apresentou suas duas filhas meninas de treze a quatorze annos, formosas com a frescura e graça infantil, e já com uma parte das riquezas d'alma de sua mãe.

Catharina era esposa feliz e não abençoada. A sua casa guardava ainda os costumes antigos em toda a sua poetica e primitiva ingenuidade. Espirito limitado, mas d’uma rectidão exemplar: era o modelo de todas as virtudes.

Entre aquella ditosa familia, bem disse Branca, ou Magdalena como lhe chamavam, a visivel misericordia do Senhor, vendo-se tratada com amoravel respeito pelas suas pupilas, e extremos sinceros da mãe. Apezar, porem, de todas estas circumstancias favoraveis, Branca ia definhando de dia para dia rapidamente tornando-se mais assustadora a doença no estado em que se achava. Fazia ella tenção de sahir chegada a epocha da maternidade, e voltar depois de ter deixado o filhinho fora, por não poder dispensar-lhe os cuidados da aleitação -- Tinha portanto de deixal-a, e esta dolorosa separação magoava-a muito lembrando-se com tristeza que as suas debeis forças não poderiam resistir a tão violento esforço.

D. Catharina, que lhe surprehendera estes pensamentos, acudiu a socegal-a, logo que a hora do perigo se declarou : não consentiu na sahida; e veio ella mesma sentar-se á cabeceira da enferma, depois de ter prevenido ama para crear a creancinha.

Branca então, temerosa de que a morte a surprehendesse, e grata a tão delicadas attenções, confessou-lhe toda a sua vida; occultando-lhe unicamente o seu nome, e pedindo-lhe perdão de a ter enganado.

D. Catharina confundiu as suas lagrimas com as d’ella, assegurando-lhe que nada perdia no seu conceito, e que contasse sempre com a sua amizade.

Branca resistiu; teve o prazer de abraçar a sua filhinha, fasendo-se o baptisado na capella da caza e sendo madrinha a menina mais velha, que lhe deu o seu nome de Dianna.

O restabelecimento da doente correu moroso, augmentando os padecimentos de peito. Ainda se levantou da cama, querendo continuar nas suas obrigatorias funcções, mas as forças diminuiam progressivamente; estava por um fio tão amargurada existencia, Branca morria tysica; matavam-na os desgostos, o remorso, e a saudade! Saudade de Rodrigo! saudade do homem verdugo; mas este verdugo era o pae da sua filhinha. Como havia ella de esquecel-o, se os sorrisos da innocente imploravam a graça para o criminoso?! Branca amara-o sempre; foi o unico amor da sua vida.

D. Catharina, queria tanto á mãe e á filha; que não se separava d’ellas um instante; Occupa-va todos os santos do ceo, chamava os medicos mais afamados, e promettia a independencia aquem salvasse a enferma.

Debalde, que todos os esforços da medicina eram infructiferos. Branca pagava tudo com o sorriso da gratidão, pedindo sempre cuidados para a innocentinha que deixava no mundo. Dava-lhe cuidado o seu futuro, tremia de que ella não cahisse no mesmo abysmo que a tragára a ella, queria deixar-lhe um exemplo que a contivesse na marcha desordenada das paixões. N'este intuito, foi escrevendo nas horas mais aliviadas, uma longa narração da sua vida cheia de reflexões e conselhos, e destinada a ser em tempo competente entregue a Dianna. Devia a menina ficar em companhia de D. Catharina, a menos que depois de ter recebido uma carta que ella lhe deixava, Rodrigo não a reclamasse.

Dispostas assim as coisas, depois de ter passado quasi mezes a sentir quebrar todos os filamentos que prendem o corpo á terra, Branca viu amanhecer o seu dia com uma grande ancia de coração. Sacramentada á pressa, chamou a todos junto do leito, pediu perdão a Deus, beijou a filhinha, apertou-a nos bruços quasi sem força, e disse com voz fraca, mas severa e pausada:

-- A vida está a acabar por instantes. Vida de magoas, vida de crimes, vida de expiação! Oh! achegem-se de mim; ouçam, ouçam a peccadora implorar a misericordia do Senhor:

-- Aquelles que me tiveram por boa e virtuosa, enganados pela mascara da minha vaidade, perdoem-me. Perdoem-me pelo divino amor de Deus! Eu sou uma d’essas desgraçadas que esqueceram as sagradas leis do Evangelho; sou uma d’essas creaturas que perjuraram lançando o anathema da deshonra na sua familia...

-- Minha querida filha! -- murmurou com voz mais enfraquecida -- O’ anjo do ceo, que negra orphandade a tua! que herança te lega tua mãe? Amparai-a, ó meu Deus... Paz á innocente, que não seja ella responsavel pelas minhas culpas. Peçam; peçam todos ao Senhor por ella, que para mim é escusado... -- já vejo as portas da eternidade abertas... meu pai! levai-me comvosco... Adeus! adeus filha... preciso de descanço... vou dormir...

Disse, soltou um gemido, e por um esforço estendeu ainda os braços para o berço; onde pouco antes tinham depositado Dianna, e que n’esse momento brincava com as mãosinhas levantadas para o ceo, e sorrindo talvez para os anjos que nessa hora adejavam em torno do cadaver de sua mãe.

Repousaste, emfim, santa das amarguras! Alma regenerada pelas lagrimas, espirito purificado pela dor, e pela contrição! Repousas! o Senhor amerceou-se de ti, levando-te em conta as grandes agonias do teu padecer, e a angelica resignação com que aceitaste o castigo sem soltar um queixume contra aquelles que te assassinaram. Repousas! porque o tempo da prova findou. O inferno do mundo fechou-te as suas portas, e tu, alma redimida pela penitencia, voaste serena para o teu creador.

CONCLUSÃO

Emquanto estes successos corriam em Elvas, que fazia Rodrigo? Como expiava elle o mal feito, ou que alegrias, que compensações achava no mundo, adquirindo a sua tão cubiçada liberdade ?

Vamos encontral-o no Porto surprehendido por uma carta de letra desconhecida, narrando-lhe a morte de Branca, e incluindo o ultimo adeus da infeliz.

Dizia ella:

« Rodrigo:

« Na hora solemnissima em que a alma se prepara a entrar no limiar da eternidade apagam-se todos os odios, morrem as queixas, e o espirito contempla o passado á luz bruxoleante do crepusculo da existencia. Aqui findam os amores da terra; aqui acabam as tempestades do coração, aqui amainam as velas para sempre, as paixões indomitas da creatura. Alma, espirito, coração está tudo preso a uma idéa sublime: Deus!

« Eu vou morrer: estou chegando ao meu Golgotha. Mais um passo e tudo estará findo. Escuta-me, escuta-me tu ainda um momento. Não sei que voz interior me está dizendo agora que necessitas do meu perdão, e que a tua vida correrá alanceada de desgostos e de futuros terrores.

« Quem sabe ? talvez em breve nos veremos lá em cima!... Curva-te, Rodrigo, implora a Providencia; e, se não soffres já o castigo de tuas culpas, prepara-te pela contrição: a justiça de Deus é misericordiosa, mas inexoravel! E nós peccámos muito, meu amigo, muito! Lembras-te de todo o mal que me fizeste? a que abysmos de miseria me atiras-te, feliz ainda por ter bastante protecção divina que me salvasse da vergonha?! Eu paguei atrozmente os meus crimes; e morro na fé de que todas as dores da expiação me foram merecimento para a prompta redempção de tão duro captiveiro. Agora tu, Rodrigo; tens uma missão grandiosa a cumprir. De Branca d’Alvarães fica ahi no mundo uma memoria, um symbolo de eterna ligação entre a vida e a morte. Deixo-te uma filhinha, um anjo de seis mezes, que é nossa!..que em breve será só tua! Acolhe a innocente; abre-lhe os braços com mais carinhos do que deste á pobre mãe; cria-a longe do mundo, e sem o meu nome, que lhe poderia ser um dia causa de pezares; dispõe as coisas de maneira que ella sobre tudo receba uma educação religiosa, e que lhe fique amparo, se lhe faltares cedo; Sê, emfim, bom pai, se queres o perdão de Deus.

« Nada mais tenho que dizer; nem as dores physicas me deixam continuar.

« As palavras d’um moribundo são sagradas. Em nome das minhas agonias, eu te abençoo, Rodrigo. Possa Deus perdoar-te...

Branca d'Alvarães.»

Às primeiras linhas d’esta prece tocante, em que tão manifestamente se revelavam as virtudes de coração da infortunada mulher, Rodrigo n'uma tremura glacial, os olhos vidrados, e as feições descompostas por um pasmo afflictivo, procurava debalde achar forças para terminar a leitura. Nunca o remorso cravára garras tão agudas em sua alma, nunca o phantasma medonho da sua consciencia deixára ouvir estridor mais horrifico. Matei-a! matei-a! dizia elle: e, sentado n’uma cadeira, ficou por momentos em completa turbação dos sentidos, até que estes oppressivos pensamentos serenaram um pouco, e o alivio das lagrimas lhe ganhou animo para ler o final.

Chegado ao ponto de saber que era pai, Rodrigo ajoelhou por um impulso de suprema gratidão a Deus, sentindo uma alegria estranha como louca. Foi n’esta posição e com fervorosa piedade que recebeu a benção da mãe de sua filha, da martyr do seu fatal destino, e das suas loucas e vaidosas paixões.

Como elle agora se accusava! Como via por diverso prisma a mulher que o entediára desde que arriscou o primeiro passo? Como lhe apparecia agora a vida tão outra, se podesse resuscitar Branca á força de carinhos e viver entre os extremos d’aquella sancta amizade e os cuidados e sorrisos da sua filhinha? Agora que a sua situação lhe promettia uma segurança de futuro, quando se via senhor d’uma grande casa pela morte de seu irmão succedida mezes antes, dava-lhe o Senhor este golpe, mostrando-lhe a felicidade, que elle repellira de si.

-- Branca! Branca! -- exclamou elle, limpando as lagrimas que lhe obscureciam a vista -- ao menos vê do céo o meu pezar e remorso; viador que me rasga o seio, acceita o juramento que faço de não viver senão para a innocentinha que herdou uma parte da tua alma.

E sem mais preparativos, dando ordens ligeiras, partiu para Elvas, receoso de que lhe roubassem o thesouro mais precioso do seu coração.

D. Chatharina recebeu-o com sincero alvoroço, relatando-lhe minuciosamente todas as circumstancias que trouxeram Branca a sua casa, bem como os ultimos momentos da sua vida.

Rodrigo ouvia tudo com a filha apertada ao seio, e repetindo mentalmente o juramento, de não a affastar mais de si.

D. Catharina amava muito a creancinha, mas vendo a intenção de Rodrigo, o paternal enthusiasmo que se divisava em seus olhos sempre fitos na menina como a examinar seus desejos, apressando-se em prevenir com extremo cuidado suas ligeiras precisões, resignou-se a perdel-a, lembrando-se da vontade de Branca, e tendo lá para si que mal faria em querer roubar-lhe o sancto affecto de pai. Rodrigo, abrira-lhe a sua alma; dera-lhe parte das suas esperanças; socegára-a no tocante a futuro, fazendo-lhe saber que tinha bastante para deixar por sua morte a independencia a sua filha.

Com effeito, partiu Rodrigo com a menina e ama para a provincia do Minho onde tinha de pôr em ordem os negocios da successão, resolvendo depois voltar a Lisboa onde tencionára residir. N’aquella solitaria casa acompanhavam-no sempre uns sons vagos e quasi indistinctos, como o suspirar d’uma sombra. Era a imagem de Branca que o não deixava, era a melancolica e eterna dor do remorso que só se aplacava com o sorriso da filhinha. Procurava elle muitas vezes recordar-se, como desculpa a si proprio, do desgosto que lhe causou o desapparecimento de Branca da sua pequena casa do Porto, e dos muitos passos que dera, vindo logo a Lisboa, sem poder encontral-a. Isto porem não era bastante a adormecer os écos immorredoiros da sua crueldade para com a infeliz que lhe tinha sa- crificado posição, nome e familia, para morrer sozinha no meio de estranhos, abandonada dos seus, e talvez suppondo-se despresada por elle.

Removidas, pois, todas as difficuldades da administração de seus bens, foi Rodrigo assentar difinitivamente a sua residencia em Lisboa, comprando um palacio magnifico em Arroios, com grandes jardins, onde elle vivia entregue unicamente á saudade do espirito glorificado de Branca, e aos innocentes brincos da sua querida Dianna, que já então começava a balbuciar o doce nome de pai.

O unico homem que vinha vel-o amiudadas vezes, era Alvaro de Sepulveda. Com elle desabafava Rodrigo, terminando muitas vezes estas dolorosas expansões, por se confundirem as lagrimas d’ambos, ficando a Deus o segredo de quaes eram mais sinceras e vehementes.

N’este meio tempo, D. Jorge de Mello voltou a Portugal. Vinha alquebrado pelo desfalque de forças que gastara em excessos de toda a ordem procurando aturdir-se, e esquecer-se; mas o odio, o desejo de vingança recrudescera na ausencia da patria. Voltava sequioso de sangue e desesperado de não conseguir o que o levara tão longe.

Lisboa pareceu-lhe um deserto. Habituado ao ruidoso Pariz, sentiu-se atacado por um grande aborrecimento. A gente com quem convivia outr’ora olhava-o com espanto, divisando em seu rosto os signaes da febre occulta que lhe minava a existencia. O marquez de S. Gens era morto, deixando a sua mulher uma herança que ella distribuia já em vida por estabelecimentos de caridade. Vasco de Mesquita, e Amelia d’Alvarães, sua cunhada, viviam em continua opposição com os costumes da sociedade e quasi moralmente separados.

Jorge não se podia ver entre elles. De sua esposa não conseguira saber no decurso de tanto tempo, não ousando agora arriscar perguntas, visto que niuguem lhe fallava n’ella. Era como se resuscitasse, depois de ter passado pelo sepulchro!

Enfastiado de tal vida, resolveu ir ver a Elvas uns parentes seus que lá viviam, por parte de sua mãe. A sociedade d’aquella pequena terra festejou a chegada de tão illustre cavalheiro, aporfiando seus parentes e mais habitantes em buscar-lhe distrações que o demorassem entre elles. Levado para uma partida a casa de D. Catharina, e tendo atravessado uma sala que dava sobre o jardim, e para onde a frescura do tempo convidava as damas, deu Jorge de golpe com um retrato em miniatura que lhe arrancou um grito de surpresa. Esse retrato era o de sua mulher: era Branca; não já aquella Branca opulenta de formosura e graça que tinha sempre presente, mas a sua imagem melancolica, e aureolada por um sorriso de resignada mortificação.

D. Jorge de Mello com a mão sobre o coração para conter-lhe as pulsações desordenadas, fazendo um esforso sobre si, chamou de parte D. Catharina que o contemplava surpresa perguntando-lhe quem era aquella senhora. O tom frio, a maneira quasi indifferente com que era feita a pergunta, não incutiu mais suspeitas a D. Catharina, que tomou o primeiro movimento por preito involuntario á formosura da sua amiga. Não teve por tanto duvida em contar-lhe tudo o que se passára, achando mesmo certo prazer em avivar todas as scenas d’aquella terrivel peripecia.

D. Jorge, sopeando a custo a sua commoção, pode saber o que ha tanto tempo desejava.

Vivia, pois, o homem que lhe roubara Branca! O algoz que a abandonára, obrigando-a á penuria de entrar n'uma casa, como serva! E vivia ditoso, com a filhinha? Gozava a consolação que lhe era negada a elle!...

Estava farto d’Elvas, voltou a Lisboa. Era-lhe agora facil, encontrar duas vezes o matador da sua honra e felicidade! Indagou, rodeou a morada de Rodrigo com o affinco de animal carnivoro espiando a sua preza, e teve emfim conhecimento dos habitos e costumes de seu dono. Rodrigo sahia de casa raras vezes. Quando tinha, porem, de ir a Lisboa entrava sozinho n’um tilbury com um cavallo que elle mesmo guiava voltando á noitinha.

Jorge esperou a occasião. Espreitou-o; e n’um dia, seguiu-o de Lisboa montado n’um bom cavallo e a distancia, e quando o tilbury entrava na azinhaga que divide Arroios de Lisboa com a sua muralha de verdura, deitou a galope e desfechou dois tiros sobre o malfadado.

As balas atravessaram-lhe as costellas, indo encravar no estomago. Jorge corria a toda a brida na estrada, quando um homem descobriu o triste espectaculo. Rodrigo, desfallecido e coberto de sangue, apertava ainda o freio nas mãos frias, retendo assim immovel o paciente animal.

Aos gritos do passageiro, acudiram varias pessoas que vinham affastadas, havendo entre ellas algumas que deram informações sobre o assassinado, reconduzindo-o logo a casa onde lhe foram ministrados todos os soccorros.

Tornando a si, Rodrigo fez chamar immediatamente Alvaro, obrigando-o a jurar que nunca abandonaria sua filha, que elle lhe dava como esposa se, chegado o tempo competente, Dianna estivesse pela vontade de seu pai.

-- Quero deixar segura a felicidade da minha querida filha. Sei que cumpro assim os desejos de sua mãe -- dizia elle com voz moribunda. Depois, com singular coragem em tal extremo, recusou dizer quem o matou, dando todo o tempo a fazer as declarações precisas para segurar o futuro da creancinha.

Socegado por este lado, e pela promessa que Alvaro lhe fazia de fugir para longe com Dianna, entregou-se Rodrigo aos ultimos deveres de christão com grande contrição; Isto feito, intantes depois, como se a sua alma só esperasse pelo banho da graça, Rodrigo Corrêa de Lacerda não era mais que um cadaver.

Cumprira-se a justiça... de Deus ou dos homens?

Sabe agora o leitor que Dianna de Sepulveda, avisada por esta lugubre narrativa, pôde sondar o abysmo em que ia despenhar-se, e bemdizer o amor sublime, o unico amor grandioso na terra; o amor que ainda d’alem tumulo lhe apontava um exemplo salvador; aquelle amor, emfim, santo e abençoado de mãe!

Oxalá que estas lições da desgraça servissem para abrir os olhos a alguma d’essas almas desvairadas que por ventura lesse e meditasse as verdades que encerra esta historia, cujos personagens não são ainda todos mortos.

O amor é o atomo que gira um momento; è um raio de sol que se perde no espaço para sempre.

Estava longe essa epocha. Hoje abundam esses estabelecimentos.