Inocente: Edição para o ELTeC Castro e Almeida, Virgínia de (1874-1945) Criação do HTML original André Rodrigues Alina Abbasova Fátima Pereira Rita Magalhães Ângela Correia Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 12243 97 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Virginia de Castro e Almeida Inocente Bibliotrónica Portuguesa 978-1-329-94633-0 Lisboa 2016 Virginia de Castro e Almeida Innocente Lisboa Livraria Clássica Editora 1916

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INOCENTE

Virgínia de Castro e Almeida

Lisboa | 2016

BIBLIOTRÓNICA

PORTUGUESA

«Bemaventurados os simples, porque d'elles é o reino dos ceus».

SERMÃO DA MONTANHA

S. Matheus)

Era no verão.

O ceu quasi branco; um sol esbrazeante a recozer a terra.

As pastagens queimadas, as fontes seccas, os ribeiros sem agua.

As cigarras cantavam.

A Rosa Abegôa que batia o queixo, a tremer com o frio da sezão, arranjou a cesta com o jantar do marido e entregou-o á Annitas, á filha, recommendando-lhe que o fosse levar á varzea da Corôa, lá abaixo, onde andava a lavoura.

E toda embrulhada no chale, com o lenço de lã embiucado na cabeça por cima do lenço branco amarrado em volta da testa, veiu á porta ver partir a rapariga.

«Toma sentido!» recommendou ella «Olha lá não saias do caminho. Puxa-me esse lenço pr’a cima, cachopa! Não vás de cabeça á véla com este sol!»

E emquanto a rapariga se afastava, fazendo estalar sob os sapatões cardados o matto secco estendido no caminho, a Rosa voltou-se para a visinha, a mulher do guarda que costurava sentada no degrau da porta.

«Cuidados que Deus manda, ti Zabel!» disse ella. «Nunca esta cachopa me sae de casa que eu não fique n’uma freima...»

«Inda o peor é mas é a doença.» respondeu a outra com um ar compungido. «Não lhe faltavam a vomecê ralações, pr’ainda por cima agora lhe virem as maleitas...»

«Seja tudo pelo divino amor de Deus.» tornou a Rosa acocorando-se no degrau e chegando-se para o sol a tremer como varas verdes.

A outra suspirou.

Mas a sympathia da ti Zabel não era sincera.

A Rosa fôra criada na casa dos fidalgos desde muito nova e de lá casara com o Antonio que era abegão na Quinta Grande. Os fidalgos sempre os tinham protegido e o casal prosperara, juntara uns vintensitos, comprara terras...

A casa do abegão era a melhor de toda a correnteza de casas de criados; tinha cosinha de tijolo e dois quartos de sobrado.

D’ahi... as senhoras estavam sempre a dar presentes, faziam todas as obras que o abegão mais a mulher queriam.

A ti Zabel remordia-se com estas coisas. O seu Anselmo fazia a guarda da quinta havia mais de dez annos e nunca apanhara coisa qua se visse lá dos patrões; nem sequer ao menos um sobrado no quarto de dormir, louvado fosse Deus! Era só uns dez reisitos de mel coado por cada coima que elle botava, e licença de mandar cobrir a egua e de vender o potro por sua conta... Uma desgraça!

E ella que sabia ler e coser á machina, nunca por nunca ser, era chamada pelas senhoras para trabalhar dentro de casa. Só tinham serviço para aquella mal amanhada da Rosa, aquella lingua do diabo, feia que até mettia medo, com a bocca toda á banda desde que lhe dera o ramo de estupor.

E todos os presentes iam mas era para a idiota da Annitas, um espantalho sempre com os dentes arreganhados, e com menos entendimento na cabeça, do que um cachorro ou um bacoro, Deus lhe perdoasse...

A Annitas ia longe emquanto a ti Zabel, puxando a agulha em silencio, se entregava ao feio peccado da inveja.

Seguira o caminho dos carros com muito juizo.

As piteiras no cimo dos vallados, cinzentas de pó, espetavam para o ar as folhas aguçadas; algumas erguiam muito alto a umbella enorme, aquella suprema offerta da sua vida ao deus sol, e deixavam-se morrer, rojando pelo chão, humildes, as folhas enroladas e seccas.

Algumas figueiras espreitavam por cima do talude; abrazadas de sede, estendiam com angustia os ramos retorcidos, mostravam sem pudor a folhagem encarquilhada, branca de poeira, como os pobres mostram as chagas, para que lhes acudam.

A cigarras cantavam.

Obediente ás recommendações da mãe, a Annitas seguia pelo caminho fóra, arrastando os pés, topando nas pedras, com aquelle passo descuidado de quem anda com o pensamento afastado do que está fazendo, o corpo inclinado para a esquerda contrabalançando o peso da cesta

que levava no braço direito, os olhos muitos azues perdidos em visões longinquas que lhe espalhavam no rosto um sorriso parado de bemaventurança.

Ao principio ia a pensar no pae, no jantar que lhe levava; era preciso ir depressa, chegar cedo para elle não ralhar. Depois foram-lhe acudindo outras ideas.

Viu no chão um calhau côr de rosa. Abaixou-se, apanhou-o, esfregou-o com a ponta do avental molhada em saliva.

Era bonito. Parecia corallina.

Quasi todas as cachopas que ella conhecia tinham aneis de corallina ou de prata offerecidos pelos conversados.

A Annitas não tinha anel nem conversado. Quando falava n’isso, as cachopas riam-se; diziam que o conversado d’ella era o ti Miguel Gravanço, o velho corcunda que varria as ruas do jardim na Quinta Grande.

Porque seria que todos faziam mangação d’ella?

A Annitas, entristecida, parara no meio do caminho com a pedrinha côr de rosa na mão.

De repente, de uma moita, levantou-se o rufo de um vôo de perdiz que fugia soltando um grito.

Com os olhos brilhantes e uma gargalhada de alegria, a Annitas saltou o vallado e desatou a correr pelo matto além na direcção que a perdiz tomara.

«E um perdigão!» exclamou ella radiante.

O animal poisou lá em cima, no alto do cabeço.

A Annitas foi trepando a encosta; agora ia devagar, com mil precauções, escondendo-se entre os tufos de murtas e de tojo, sob as ramadas lustrosas dos medronheiros, agarrando-se aos troncos asperos dos chaparros...

«Se eu o apanho...»

A cesta pesava-lhe; largou-a no chão.

O sol escaldava-a; cahiam-lhe gottas de suor pela cara afogueada; empurrou o lenço para traz.

Quando chegou ao cimo do outeiro, levava as mãos arranhadas, dois grandes rasgões na saia, uma das meias de linho azul cahida para cima do sapato.

Ria de prazer; o prazer selvagem da cabra á solta no monte. Appetecia-lhe dar pinotes, correr...

Já não se lembrava do pae, nem da cesta, nem da pedrinha côr de rosa, nem do perdigão...

Tudo isto se tinha successivamente apagado no pobre cerebro onde as imagens se não demoravam.

Estava na extrema da Quinta, á sombra de um sobreiro enorme cujas raizes se torciam pelo chão como serpentes. A terra cobria-se de folhas seccas.

No silencio ouviam-se apenas as cigarras a cantar.

Alli acabava a Quinta. Para além, era o baldio a perder de vista; o matto roçado curto, a terra pedregosa, rapada, nua...

Nem uma casa, nem uma arvore.

Lá em baixo, a uns cincoenta metros, passava a estrada real que tinha leguas e leguas de comprimento; vinha das serras que se esfumavam no horizonte e ia direita á villa.

Branca e coberta de pó, cheia de scintillações de mica, a estrada serpenteava, deserta, escondendo-se aqui, apparecendo além, entre as ondulações da charneca desolada.

A Annitas estendeu-se ao comprido na terra quente, de barriga para baixo, com um suspiro de satisfacção.

De repente levantou a cabeça, poz-se á escuta.

Ouvia ao longe o tilintar compassado de guizalheiras.

Ergueu o busto, espreitou para a estrada.

Viu um homem com tres machos carregados de trouxas.

Tlin, tlin, tlin...

Cada macho trazia, por cima da carga, uma manta de lã riscada de branco e castanho com as pontas a abanar.

O homem atirara a jaleca para riba de uma das cargas e vinha em mangas de camisa, com o colete desabotoado.

Tinha na cabeça um chapeu alemtejano, muito grande, de abas curvas e de borla ao lado.

Ia pela beira do caminho, atraz da correnteza dos machos, com uma vergasta na mão direita e a esquerda mettida na cinta. Para se distrahir n’aquella solidão, cantava.

Cantava uma cantiga muito velha que a Annitas sabia desde pequena:«Ó minha bella menina, Hoje sim, amanhã não...»

A Annitas levantou-se de um salto, avançou pelo cabeço para o lado da estrada e, parada, requebrada pelos rins, de mãos nas ilhargas, respondeu:«Hoje me tiram a vida, Amanhã o coração.»

Tinha uma voz fresca e pura, muito alta, afinada como a de uma toutinegra.

O homem olhou para o cimo do cabeço, viu a Annitas, parou e gritou aos machos:«A... hi!»

E como estes não obedecessem, saltou-lhes á frente, deu uma vergastada no focinho do primeiro que estacou de subito erguendo a cabeça com um violento sacão; os outros dois esbarraram com elle, espantaram-se; uma das trouxas desequilibrou-se e, se o almocreve lhe não acode, a carga ia ao chão.

«Má raios partam as bestas do diabo!» praguejou o homem empurrando a carga, com o corpo todo vergado para traz e o joelho fincado na trouxa, emquanto aos safanões ia apertando o nó da corda.

Depois virou os machos para a valleta, poz um pedregulho em cima da ponta da arreata e voltou-se para o oiteiro.

A Annitas approximara-se ainda mais. Abrigava os olhos com a mão direita por causa do clarão do sol e, divertida, ria-se.

«Olhe a jaleca!» disse ella.

O homem apanhou do chão a jaqueta que escorregara de cima do macho, atirou-a para o hombro.

Approximou-se da valleta.

«Bons dias.» disse elle tocando com os dedos na borda do chapeu. «Sabe-me dizer se ha por qui alguma fonte?»

A Annitas acenou negativamente com a cabeça.

O homem tornou, galgando a valleta e approximando-se da rapariga.

«Isto é que está um raio d’um sol... benza-o Deus!»

Suggestionada, a Annitas limpou o suor da cara com a ponta do avental e, desatando o nó do lenço, deixou-o cahir para as costas.

O homem relanceou um olhar ao cabello da rapariga, anelado, macio como fios de seda; algumas madeixas rebeldes cahiam-lhe dos lados da cara e a trança grossa, pesada, enorme, enrolava-se-lhe na nuca. O sol feria reflexos de oiro em toda aquella massa resplandecente como um thesouro.

«Arre!» exclamou o desconhecido com admiração que vomecê sempre tem pr’ahi uma crina!»

A Annitas encarou com elle, risonha, toda vermelha de prazer. Mas ao encontrar o olhar do homem estremeceu, saccudida por uma sensação nova, aguda, que era doce e dolorosa ao mesmo tempo. Pareceu-lhe que as forças lhe fugiam; e o sorriso morreu-lhe nos labios semelhante a uma flôr que murcha.

Ficaram os dois calados um bocado.

Os machos agitavam as guizalheiras lá na borda da estrada, inquietos com a mosca.

«Era capaz de dar agora uma corôa a quem me trouxesse um caneco d’agua.» disse o homem afinal, gaguejando um pouco.

Uma corôa! A Annitas ficou pasmada.

Reparou-lhe na grossa corrente de prata, no fato de bom panno.

«Pelos modos você é rico?» perguntou ella.

O homem, lisonjeado, riu-se, encolheu os hombros:

«Com’ássim... ha outros mais pobres.»

Depois olhou em redor como quem procura qualquer coisa.

«Que diabo anda vomecê por qui a fazer?»

«Nada.»

«Nada?! Hom’essa agora! E onde é a sua casa?»

«Acolá na Quinta Grande.»

Calaram-se outra vez.

O desconhecido pasmava para ella, vagamente desconfiado. A rapariga tinha uma aquella exquisita; não era como as mais.

«Qué que você traz acolá?» perguntou a Annitas apontando para a carga dos machos.

«Fazendas, quinquilherias...»

«Muitas, muitas, muitas? Traz aneis de corallina?»

E como o homem acenasse que sim, ella implorou, com os olhos brilhantes;

«Deixe vêr!»

Mas elle escandalizou-se:

«Então cuida que vou pr’aqui esbandalhar os fardos no meio da charneca só p’ra vomecê regalar os olhos?»

A Annitas baixou a cabeça, desconsolada.

E de repente, sem saber porquê, teve medo do homem e desatou a fugir.

Corria pela charneca fôra que nem uma cabra, aos saltos, com a ponta do lenço entalada entre os dentes e o resto a voar atraz d’ella como uma flamula vermelha.

«Cavallona do diabo!...» resmungou o homem seguindo-a com a vista.

Parado no cimo do cabeço, olhava ora para ella, ora para os machos, luctando contra a tentação de ir atraz da rapariga.

Depois cahiu em si. Então havia de deixar as bestas com as fazendas pr’alli no meio da estrada?

«A modos que estou parvo...» pensou elle.

Foi descendo.

Ainda se voltou; mas já não viu a Annitas que alcançara a extrema da Quinta e se sumira no chaparral.

Lembrou-se que aquillo talvez fosse bruxedo, obra do diabo para o deitar a perder.

E persignando-se, saltou a valleta, desprendeu as bestas e foi andando atraz d’ellas pela estrada além.

Lá na varzea da Corôa, na margem da ribeira, os bois vinham chegando ao fim do rego, perto da faia grande onde o abegão mandara deixar de manhã o carro com o ferrejo.

Eram doze juntas, duas a cada charrua. A terra estava dura; apezar da lavoura andar no encalço da ceifa aproveitando o resto de frescôr que a sombra do trigo deixava no chão, ainda assim já n’aquella semana tinham quebrado tres relhas. O calor e o esforço arrazavam homens e animaes.

A sineta da sésta resoou lá em cima, longamente, no frontal do celleiro, espalhando pelo silencio dos campos abrazados a sua vozita de falsete.

Lá adeante a linha multicolor dos ceifeiros quebrou-se, dobrou-se sobre si mesma, fraccionou-se.

As raparigas vinham em correrias para a margem da ribeira onde, á sombra dos choupos, a cosinheira alinhara dos dois lados do comprido tronco de pinho crepitante, as correntezas das panellas de barro negras de fumo e cujos testos dançavam empurrados pela fervura dos caldos.

Lentamente, os boieiros desprenderam as cangas, puxaram os bois pela soga para a sombra, trouxeram do carro os braçados de ferrejo que espalharam no chão sob os focinhos gulosos de onde pendiam fios de baba.

Sentados na relva, ao lado das cestas de farnel, as mulheres ou os filhos dos boieiros esperavam.

Os homens desceram a ribanceira, lavaram na agua fresca do ribeiro a cara e as mãos, e voltaram devagar, enxugando-se aos lenços tabaqueiros; depois sentaram-se junto das cestas, falando e rindo, brincando com as creanças.

O abegão foi o ultimo a chegar. Demorara-se a tirar com a ponta da navalha, uma pedra entalada entre o casco e a ferradura do boi da mão; e agora approximava-se devagar com o seu passo pesado, as pernas um pouco arqueadas, balançando o dorso de athleta.

Procurou com o olhar transparente e azul, inexpressivo, a mulher ou a filha e, vendo que nem uma nem outra chegara ainda, sentou-se no chão sem uma palavra e principiou a enrolar um cigarro.

«Nã é por fazer pouco do sê jantar, su Toino;» disse o Sebastião que era o moço mais antigo na casa depois do abegão e quem fazia as suas vezes quando era preciso «mas, com’á outra, já qu’elle inda nã chegou, se fôr servido cá do meu... O qu’é offerecido de bôa vontade, nã faz mingua a ninguem.»

«Deus t’ajude;» respondeu o abegão «a minha Rosa não deve tardar.»

A mulher do Sebastião metteu-se na conversa. «A su Rosa deu-lh’ hoje a sezão mais cedo», disse ella «Cando a gente passou, estave sentada á porta, ao sol, c’a cabeça amarrada e a tremer de frio qu’até mettia dó.»

Outra mulher acudiu:

«Mas a Annitas abalou antes da gente c’a cesta.»

O abegão empurrou o barrete para traz, lançou para longe um jacto de saliva, coçou as suissas loiras.

Impacientava-se. Tinha fome.

«Ella veiu antes da gente,» disse um dos pequenos com uma vozita esganiçada «mas sahiu do caminho e ficou para traz.»

«Cala a bocca, rapaz!» interveiu o Sebastião que não gostava de ver o abegão de mau humor «Ninguem te cá chamou.»

Mas o Antonio interrompeu-o:

«Deixa falar o cachopo. Onde é qu’ ella sahiu do caminho?»

«Foi lá além na volta da azinheira torta. E cando a gente passou ê bem n’a vim na charneca, no alto do cabeço, lá longe, parada, pasmada p’rá banda da estrada.»

Sem uma palavra, o abegão levantou-se, apertou a cinta, atirou a jaleca para o hombro e afastou-se, seguindo a margem da ribeira.

Viram-n’o atravessar a ponte lá adeante e dirigir-se para o lado da charneca.

Ia damnado, resmungando pragas.

Trabalhar um homem desde o sol fóra debaixo de um calor d’aquelles, vergado sobre a rabiça do arado n’uma terra dura como rocha... e nem sequer ter jantar como os mais nem descanço para dormir a sésta!...

Má raios de sorte a sua com aquella filha que Deus lhe dera e a mulher agora com as maleitas! A Annitas precisava um ensino, que aquillo não eram modos e andava sempre a envergonhal-o... Não era só o mal da cabeça... era mesmo malicia de femea que se leva só com pancada.

Chegara á extrema da Quinta; abrigava os olhos com a mão, estendia a vista pelo campo ondulado e nú da charneca esbrazeante de sol.

«O’ Anni...i...tas!»

O vozeirão espalhou-se no silencio, alastrou latejando pela immensidade deserta, cahiu, morreu.

As cigarras cantavam.

Da terra escaldada e secca vinha um bafo quente como da bocca de um forno.

Ao longe, lá por essa estrada além, ouvia-se um telintar compassado de guizalheiras que se afastava a mais e mais...

Estalaram uns ramos seccos por detraz do Antonio; este voltando-se, avistou a filha que se escondia entre os chaparros.

A Annitas largou a fugir; mas o pae correu atraz d’ ella, deitou-lhe a mão a um braço, saccudiu-a com força, deu-lhe pancada ás cegas.

«Ah! querias-te safar, alma do diabo! Toma, apanha, para aprenderes a fugir, grande cabra!»

A Annitas chorava alto como uma creança, com a cara escondida nos braços para se defender.

A raiva do Antonio amainou depressa.

«Cala a bocca... Qu’é da cesta?»

Mas a Annitas chorava sempre e não respondia.

A colera do pobre Antonio derretia-se como cera perante as lagrimas da filha.

«Valha-me Nossa Senhora...» resmungou elle. «A’s vezes falta-me a paciencia, Deus me perdôe, como se a desgraçada tivesse entendimento.»

Approximou-se novamente da filha, afastou-lhe com geito os braços da cara, principiou a limpar-lhe os olhos com o enorme lenço vermelho que tirou do bolso.

«Cala a bocca...» repetiu elle com doçura «O pae já não está escamado.»

Tinha outra voz, como se falasse a uma creança pequena.

A Annitas esfregou a cara no lenço, assoou-se e olhou para o pae a rir.

«Não malha mais?» perguntou ella.

«Não. Onde está a cesta?»

«Eu sei lá!... Por hi...»

Cheio de paciencia, o Antonio procurou a cesta. Acabou por encontral-a e, como tinha fome, começou a jantar alli mesmo.

«Que diabo vieste fazer para a charneca?»

Mas já não estava inquieto. Aquillo era sempre a mesma coisa; a cachopa tinha juizo de gallinha; ia por um lado e pelo outro, conforme calhava, conforme lhe dava na cabeça...

A Annitas encolheu os hombros.

Viera... assim mesmo... Já se não lembrava.

«Encontraste alguem?»

Com um olhar vago, vasio, perdido ao longe, a filha respondeu:

«Quem havia eu de encontrar?»

Sentara-se no chão, atara os braços em volta dos joelhos, balançava o corpo de um lado para o outro; cantarolava a meia voz:

!!!!!!!!«O’ minha bella menina Hoje sim, amanhã não...»

O pae, emquanto comia, olhava-a de soslaio.

Porque havia Deus de a ter feito tão linda, se não lhe dera entendimento de gente?

Para onde ella fosse levava o perigo em si... E quem a podia vigiar? Se Nossa Senhora a não guardasse... ainda por aquellas redondezas se podia vir a falar de uma grande desgraça porque ai d’aquelle que se atrevesse a tocar n’um só cabello da sua filha!

Todos os domingos havia missa na capella da Quinta Grande.

A’s dez horas ouvia-se o primeiro toque da sineta, ás dez e meia o segundo, e ás onze em ponto o padre subia os degraus do altar.

Cá em baixo apinhava-se a criadagem da casa e da lavoura assim como alguma gente do serviço e, no tempo da azeitona, das mondas, da ceifa, ou das vindimas, os barrões que se alastravam até fôra da porta.

No côro ficavam os senhores.

Quando acabava a missa, corria pela capella um grande sussurro:

«Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo...»

Depois todos sahiam, arrastando os pés, parando defronte do altar com um olhar submisso e adorador, uma leve mesura, a mão direita estendida com a palma para cima a receber a benção da imagem. Ora n’aquelle domingo, no intervallo entre a elevação da hostia e do calice, no grande silencio recolhido da capella, ouviu-se ao longe o som compassado de guizalheiras.

Tlin, tlin, tlin...

Conhecia-se mesmo que era o andar de bestas carrregadas descendo a alameda direitas á casa.

A Annitas, ajoelhada ao lado da mãe, corou, voltou-se para traz, agitou-se, soltou um grande suspiro.

A Rosa deu-lhe um cotovelão; bichanou:

«Acommoda-te, rapariga... que está alli Nosso Senhor...»

A Annitas acommodou-se. Com os olhos fitos no altar, boquiaberta, as mãos unidas, ficou immovel.

Toda a sua alma estava lá fóra.

Tlin, tlin, tlin...

Era o bufarinheiro.

Desde que encontrara a Annitas na charneca, trazia o demo da cachopa no pensar a toda a hora.

Fôra á villa; fizera por lá negocio uns tres dias; depois dispuzera-se a partir seguindo o seu rumo costumado a caminho de outra povoação grande, porque já não era bufarinheiro de aldeias e casaes nem desmanchava os fardos senão quando tinha boa freguezia, gente que sabia apreciar a fazenda e lhe pagava por bom dinheiro o contrabando.

Mas ás portas da villa, emquanto os machos bebiam na fonte de S. Miguel, á sombra do chorão, o homem sentado no muro, tirara o chapeu, puzera-se a coçar na cabeça e, como n’aquella occasião fosse passando na estrada uma galera, perguntara ao carroceiro para que bandas era a Quinta Grande.

O carroceiro ensinou-lhe o caminho; não levava mais de duas horas e não tinha que errar; seguir a estrada sempre a direito e depois, na encruzilhada, voltar á esquerda...

«Isto é mesmo o diabo que m’anda a atentar. » pensava o bufarinheiro sentado na beira do muro com os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça nas mãos, apprehensivo.

Nunca lhe succedera uma coisa assim.

As mulheres para elle tinham sempre sido gado de pouca monta; não havia uma que valesse mais que as outras. Achava-as todas iguaes como as cabras de um rebanho.

«Isto acaba mal,» dizia elle de si para si cofiando as suissas negras. «O Maldito sabe tecel-as de todos os feitios quando quer botar um home a perder. Se calhar, o demo da cabra tem o esprito malino no corpo.»

E lembrava-se de uma lá da sua terra, que fôra a perdição do padre da freguezia e que, ainda depois de morta, vinha tentar os homens de noite.

Por fim levantou-se, puchou os machos para a estrada e poz-se com elles a caminho da Quinta Grande.

«Com’ássim,» resmungou «é uma sorte... O que tem de ser...»

Quando lá chegou, encontrou tudo deserto; deu volta ao jardim, enfiou pela estrada da eira, foi ter ao enorme alpendre onde se abrigava o tronco, os bancos dos carpinteiros e para onde se abriam as portas das casas dos moços.

Só lá estava o Sebastião que tinha ficado de guarda emquanto os outros ouviam missa e que, de enchó nas unhas, se entretinha a aguçar a ponta de um fueiro.

O bufarinheiro vinha todo asseado; barba feita, camisa lavada e um lenço branco entalado á roda do pescoço. A cinta preta enrolada á alemtejana, subia-lhe até ao peito onde luzia a grossa corrente de prata.

Remirando-o todo e reparando nas bestas que estavam gordas e lustrosas, o Sebastião pensava de si para si que bufarinheiros d’aquelles vinham poucos á Quinta Grande.

«Qu’é que você traz acolá?» perguntou elle apontando para as cargas.

«Cintas, bôas mantas hespanholas, cobertores, colchas, panno de linho e d’algodão, toalhas, chales, lenços de seda, córtes de fatos, gravatas, fitas, pentes, botões, atacadores, aneis de prata, oiro e corallina...»

Palavra puxa palavra começaram a conversar.

O Sebastião bem via que aquillo não era um almocreve qualquer e que uma pessôa podia fallar deante d’elle.

Em pouco tempo disse-lhe a vida lá da Quinta, quem eram os patrões, com tratavam os criados, quanto estes ganhavam, falou do abegão e da familia...

Pelo seu lado o bufarinheiro contou-lhe lá as suas coisas.

Chamava-se Jaquim; Jaquim Horsa por via do seu pae (que Deus haja) que era almocreve para as bandas d’Evora. Elle começara cedo com aquelle officio: primeiro um fardo ás costas, depois um machito... O negocio corria bem.

Casara na terra com uma viuva que trouxera alguma coisa de seu para o casal. Tinha casa e fazenda, algum gadito... Tambem tinha já tres cachopos e o mais velho ia á escola e era mesmo uma belleza para aprender.

Ainda andava pelas estradas a acabar de juntar um dinheirito para se estabelecer lá na terra com loja de mercador. Já dera um rôr d’annos os ossos ao officio e agora queria descançar, que bem o merecia.

E o Joaquim entretanto ia descarregando os machos, desatando as trouxas e fazendo estendal das suas mercadorias.

Apenas acabou a missa, o alpendre encheu-se de gente.

As mulheres apinhavam-se empurrando-se, acotovelando-se em torno das fazendas e das quinquilherias, com a avidez de abelhas assaltando uma tijella de marmelada.

Era uma agitação, um zumbido de combinações que se bichanavam, de offertas desandando em longos regateios; ditos e graçolas cruzando-se, gargalhadas, negocios que se entabolavam a serio...

As creanças esgueiravam-se entre as saias das mulheres, espetando os pescocitos magros e tisnados, arredondando os olhos cheios de curiosidade e de pasmaceira.

E o bufarinheiro vendia, vendia...

A Rosa Abegôa ficou com uma peça de panno de algodão, dois bons lenços de seda, uma cinta e um córte de calças para o marido.

A Annitas que se encontrava ao lado da mãe não tirava os olhos de uma caixa trasbordante de aneis de corallina.

«Compre-me um, pae!» implorou ella.

O bufarinheiro estendeu-lhe logo a caixa.

«Escolha,» disse elle. Tire d’hi um. Escolha á vontade que sou que l’o dou.»

E para disfarçar, acrescentava:

«Isto é ca o meu feitio quando tenho bons freguezes.»

Outras raparigas reclamaram aneis; tambem tinham feito muitas mercas...

Mas elle fechou a caixa, abanando a cabeça:

«Ná, ná... Uma mosca não faz mingua, muitas moscas levam o assucareiro.»

E como visse que não havia mais negocio, começou a empacotar as mercadorias.

Os freguezes afastavam-se com as suas compras, dispersavam-se, uns por um lado outros por outro, sumiam-se para as casas; ia-se chegando a hora do jantar.

«Quer qu’eu o ajude?» perguntou a Annitas que ficara alli encostada a um carro.

Mirava e remirava a mão queimada pelo sol onde luzia o anel de corallina tão cubiçado.

O Joaquim sem se voltar, resmungou:

«Que m’ajude, que m’ajude... Ah! minha alma do diabo que já me deitaste a perder!»

A Annitas entristeceu.

«Se é por via do anel, pegue-o lá; o qu’é dado de má vontade até pode tirar a saude...»

O bufarinheiro largou a trouxa que acabava de atar e voltou-se para ella.

Pela segunda vez se encontraram os olhos dos dois e a Annitas sentiu de novo aquella agonia tão funda que era um prazer e uma dôr...

O Joaquim não dizia palavra; muito pallido, olhava-a, olhava-a como se não houvesse mais nada para ver sobre a terra.

Toda tafula, com o seu fato domingueiro, o seu cordão de oiro, o seu lenço de seda, a sua bocca escarlate que parecia uma flôr de romeira, a Annitas apparecia-lhe como a imagem viva da tentação e do peccado.

«Alma damnada!» suspirou elle afinal.

E começou a carregar as bestas.

«Está todo agastado...» insistiu a Annitas tirando o anel do dedo. «Já le disse, se é por via do anel, aqui o tem que eu nã n’o quero.»

Mas elle não viu o gesto da pobre mão estendida que entregava o anel com tanta pena.

Acabou de apertar o nó da corda e, approximando-se da rapariga, cada vez mais pallido, relanceou um olhar medroso pelo alpendre.

Lá ao fundo, dois boieiros fumavam e conversavam sentados n’um banco de carpinteiro; o abegão, encostado á porta de casa, falava para dentro com a mulher; uns garotos brincando, corriam com gritos de alegria em volta dos madeiros do tronco.

«Se queres um anel muito mais lindo qu’a esse...» disse o bufarinheiro em voz baixa. «Um anel d’oiro... Queres? Vem buscal-o hoje ao pôr do sol, ao cabeço da charneca onde estavas outro dia...»

A innocente recuou. Teve medo dos olhos que luziam, do halito que escaldava, do perigo desconhecido... Cahiu-lhe da mão tremula o anel de corallina e, sem responder, afastou-se devagar, tão perturbada que nem via o chão que pisava.

N’essa tarde, quando o sol começou a amainar, o abegão abalou para a villa com o boi da mão que ficara sempre coxo desde que se lhe entalara a pedra entre o casco e a ferradura; aquillo já não passava com as mésinhas do ferrador e era preciso que o veterinario lhe acudisse.

A Rosa, que morria por dar fé de tudo e tagarelar, fechou a sua porta, metteu a chave no bolso e foi para a eira onde se juntara toda a criadagem e a malta dos ceifeiros e ceifeiras engajados.

As raparigas da terra desprezavam as ganhôas, aquellas estranhas que vinham de longe, vestidas de escuro, sujas, mal penteadas, não sabendo senão cantigas tristes e envergonhando-se de bailar o valso. Mas os rapazes gostavam das cachopas lá de cima; tinham para elles o picante da novidade e do perigo tambem, porque os namorados, paes ou irmãos que as acompanhavam não eram para graças e qualquer dito ou brincadeira acarretava pancadaria.

Quando a Rosa chegou á eira, o poente principiava a afoguear-se, todo vermelho de calor.

As ganhôas dançavam uma dansa de roda, cantada, vagarosa; e os moços da lavoura com as familias apinhavam-se em redor, emquanto a creançada se rebolava na moinha e atravessava a eira em correrias.

A Rosa procurou a filha com os olhos e, vendo-a sentada n’um alqueire virado, do outro lado da eira e pasmada para para o pôr do sol, não pensou mais n’ella e embrenhou-se n’uma grande conversa com a ti Zabel e outras visinhas.

Havia um caso palpitante de uma navalha roubada que as interessava a todas apaixonadamente.

«É aquella piolhosa do casaco preto, a que tem o dedo aleijado... A Conceição diz que a viu tirar a navalha do cesto do farnel.»

A Rosa olhava, pedia pormenores, fazia commentarios.

O sol descia a mais e mais no horizonte rubro; começava a levantar-se uma brisa, mas tão fraca, tão morna, que nem chegava a refrescar.

A Annitas levantou-se, veiu ao pé do bailarico, deu umas voltas pela eira, esgueirou-se desapercebida para traz de um monte de palha e sumiu-se para o montado na direcção da charneca.

Olhava para a mão de onde lhe cahira de manhã o anel de corallina e ria.

Um anel de oiro!.. Ia ter um anel de oiro.

O sol afundara-se lá ao longe, ao longe... A paizagem tornava-se cinzenta. Um noitibó principiou a piar, e depois outro...

Levantou-se a lua cheia.

Os senhores da casa chegaram á eira. Vinham ver bailar as cachopas. Como fazia muito calor, o patrão mandou vir uma medida de agua-pé afim de animar os dansadores.

A Rosa, sentada no murosinho baixo da eira, rodeada pelas visinhas, falava, falava...

Contava coisas de casa dos senhores, do tempo em que era criada de quartos e estivera com elles em Lisbôa. Descrevia as festas, os vestidos e as joias da sua senhora, o casamento da menina...

«Qu’é da sua Annitas?» perguntou de repente a ti Zabel.

«Está pr’ahi...» respondeu a Abegôa.

«Olhe que não está.»

Procuraram-n’a com a vista. Mas á claridade do luar ainda baixo, differençavam-se mal os vultos e a gente era muita.

«O’ Annitas!» chamou a mãe.

O Sebastião respondeu:

«Onde irá ella se bem correr! Inda não era sol posto quando d’aqui abalou.»

Mas a Rosa não se affligiu.

«Aquillo aborreceu-se e foi andando para casa.»

E tentou reatar o fio da conversa com as outras mulheres.

Era quasi noite. A lua embaciava-se, toda vermelha; não dava claridade.

Chegavam-se as horas da ceia e todos debandavam.

A Rosa foi andando com as mais, direita ao alpendre, sempre tagarelando.

«Vê, eu não dizia?» exlamou ella quando chegaram.

A Annitas, segurando uma candeia, parecia procurar qualquer coisa no chão, no logar onde, de manhã, o bufarinheiro fizera o estendal das mercadorias.

Emquanto as visinhas, apressando-se, entravam para as suas casas para accender o lume, a Rosa approximou-se da filha.

«Que estás tu a préguntar?»

«Nada.»

A mãe ia insistir quando reparou que a cachopa estava toda despenteada, tinha um grande rasgão n’uma das mangas, uma arranhadela na cara e o folho da saia todo descosido.

«Por onde andaste?»

«Por hi...» respondeu a Annitas evasivamente.

Á luz da candeia a Rosa achou-lhe um olhar differente, esgazeado; pareceu-lhe pallida que nem uma defunta.

«Qu’é que tens? Dóe-te alguma coisa?»

«Nada.»

«Gira para casa.»

Docilmente a Annitas seguiu-a depois de ir pendurar a candeia á entrada da abegoaria de onde a tirara.

A Rosa accendeu o lume para aquecer um tacho de batatas e assar umas sardinhas para a ceia.

Não fez mais perguntas; já sabia que á filha, se lhe dava para estar assim bisonha, ninguem arrancava uma resposta acertada.

Emquanto a mãe andava na lida da ceia, a Annitas sentou-se á lareira, pegou n’uma navalha e deu um golpe circular em volta do anelar da mão esquerda.

Ao vêr correr o sangue, a Rosa acudiu, tirou-lhe a navalha das mãos.

«Esta cachopa mette-me no inferno!» exclamou ella. «Que diabo estavas tu a fazer, minha parva?»

«Um anel de corallina.» respondeu a rapariga toda risonha, estendendo a mão para o lume afim de ver melhor o fio de sangue.

E, de repente, com um grande soluço, tapou a cara e desatou a chorar.

A Annitas chorou toda aquella noite.

O pae que chegara da villa, principiou por leval-a com bons modos, fazendo-lhe perguntas, querendo saber o motivo d’aquelle desgosto sem consolação.

Mas a Annitas encolhia os hombros, abanava a cabeça, fechava-se n’um mutismo obstinado e chorava baixinho, sem fim, saccudida por grandes soluços.

Impaciente, o abegão afinal zangou-se, gritou, ameaçou, praguejou, deu-lhe safanões, queria bater-lhe; foi preciso a Rosa intervir:

«Deixa-a. Vae-te deitar. Não vês que a rapariga não tem entendimento, homem? Deu-lhe pr’aqm... Então ás vezes não se põe a rir sem a gente saber porquê? São coisas que lhe passam lá pela cabeça e que a gente não percebe. Deixa-a. Quanto mais lhe falas peor é.»

O Antonio deixou-se convencer e lá se foi deitar com um grande suspiro:

«Má raio de sorte a minha!»

Gostava d’aquella filha unica mais que da propria vida. Para a vêr com juizo, daria a fazenda e a casa que á custa de trabalho e de privações de tantos annos comprára á entrada da villa.

Levara-a aos medicos a Lisboa, ás aguas, á capella de S.ta Ursula que ficava a um rôr de leguas só por ouvir dizer que a reliquia da santa curava os males de cabeça.

Fizera promessas á senhora milagrosa do Oiteiro, fôra descalço e com o capuz de farricôco atraz do Santissimo na procissão do Corpo de Deus lá na villa, dera ao Senhor dos Passos da freguezia mais de cinco mil reis de cera.

Porém Deus não o quizera ouvir. A Annitas crescia cada vez mais perfeita e mais linda; quando a levava ás feiras, dava nas vistas de todos; era como um fructo maduro, como uma flôr aberta á luz do sol, sem um defeito. Nunca tivera uma doença. E bôa, sujeita, amiga dos paes...

Mas a respeito de juizo, era uma desgraça!

Aquella pobre cabeça não valia mais do que a de uma creança de cinco annos.

Não aprendia nada, nem ler, nem coser, nem cosinhar... Largava tudo a meio para ver uma mosca; esquecia tudo. Uma cabeça de gallinha, um bogalho uma cabaça vasia...

O abegão, embrulhado na manta, agitava-se na cama, sem poder dormir. Atravez do tabique ouvia o soluçar continuo da filha e o bichanar da Rosa, monotono, repetindo sempre as mesmas palavras:

«Cala a bocca, rapariga. Olha que o pae quer dormir. Alevanta-te d’ahi. Vem-te deitar. Cala a bocca rapariga...»

E as horas passavam; e a Annitas chorava...

A mãe fez-lhe um chá de folhas de laranjeira, untou-lhe a testa com azeite quente, queimou umas ervas benzidas cujo fumo tinha a virtude de afastar o diabo, deu-lhe vinagre a cheirar...

Mas a Annitas soluçava sempre.

Já era sol fóra quando por fim adormeceu enroscada na lareira como um bicho.

Accordou pouco depois e fez a sua vida de sempre, como se nada fosse. Parecia não se lembrar de coisa alguma.

«Aquillo são luas que lhe dão.» explicava a Abegôa á mulher do guarda.

Mas a ti Zabel, desconfiada, respondeu:

«Não tire as vistas de riba d’ella, su Rosa. Ha muita inveja por esse mundo. Um mau olhado depressa se apanha e pouco basta para levar uma pessôa á cova.»

«Quaes cá maus olhados!» exclamou a Rosa. «Quem pode ter má vontade áquella innocente? Aquillo é uma pomba, Deus me perdôe; não tem uma gotta de fel no corpo. O mau olhado voltava-se contra quem lh’o botasse.»

A ti Zabel abanou a cabeça.

«Ná...» rosnou ella. «A cachopa anda mudada desde honte. Olhe aquella sapathia... Desde que sahiu hoje de casa, não se tira d’acolá.»

A Rosa olhou para onde a ti Zabel apontava.

Lá adeante, no outro extremo do alpendre, a Annitas de bruços, procurava attentamente qualquer coisa entre os restos da palha que os machos do bufarinheiro tinham deixado no chão.

Espetando a agulha na costura e pondo esta no degrau, a Rosa levantou-se e foi ter com a filha.

«Qu’é que tu perdeste?»

Apanhada de surpreza, a Annitas corou, encheram-se-lhe os olhos de lagrimas.

«Nada.» disse ella.

«Não mintas!» gritou a Rosa que principiava a impacientar-se e temia agora que a filha tivesse perdido a medalha ou o cordão de oiro «Qu’é que tu andas hi á prégunta desd’honte?»

A Annitas teve medo da mãe, levantou o cotovelo á altura da cara para se defender de algum bofetão e respondeu:

«Foi o anel de corallina.»

A Rosa socegou; poz-se a rir.

«Olha que rica prenda! O que te deu o home? Foi aqui que o perdeste?»

«Cahiu-me da mão...»

«Tá bom, nã famofmes, cachopa. Em bem eu indo á villa já te merco um.»

Mas a Annitas continuou a procurar; todos os dias apenas se levantava, ia para aquelle fadario. Finalmente na quinta-feira, o corcunda que varria as ruas do jardim, veio ao alpendre de madrugada por ordem do abegão e varreu tudo, que não ficou n’aquelle chão de terra negra batida nem uma palha nem um graveto.

Quando a Annitas sahiu de casa e viu o alpendre assim varrido, ficou muito seria a olhar para o chão; e depois entendeu que o anel não podia já alli estar. Deu um grande suspiro de alivio e nunca mais o procurou.

Tinham-se passado talvez uns quatro mezes quando o bufarinheiro tornou a apparecer na Quinta Grande.

Receberam-n’o como a um antigo conhecimento e o homem fez bom negocio. Demorou-se mais que da outra vez porque se armou uma grande trovoada e elle teve de esperar que ella amainasse.

Depois das trouxas arrumadas, como era domingo e os boieiros estavam todos no alpendre, entreteve-se por alli á conversa com uns e outros. Acceitou um decilitro que lhe offereceu a Rosa e sentou-se com ella no degrau da porta; juntou-se em volta d’elles todo o mulherio a ouvil-o contar coisas da sua terra.

Por volta das cinco horas, como o ceu já estivesse limpo, o bufarinheiro começou a carregar os machos para abalar.

A Annitas, que andara por alli sempre a rondar, foi ajudal-o. Aguentava um dos fardos emquanto elle prendia o outro e depois atirava-lhe a ponta da corda.

Como da primeira vez estavam sós. Elle que não fizera caso d’eha em todo o dia, lançou-lhe de repente o mesmo olhar que a matava; gaguejou, perdido:

«Vem ao cabeço da charneca, ao pôr do sol...» Como da outra vez a Annitas estremeceu, baixou os olhos e afastou-se devagar sem uma palavra.

O Joaquim, depois do seu encontro com a Annitas no dia em que ella perdera o anel de corallina, voltara para a terra. Mas nunca mais tivera descanço.

Raça damnada de cachopa que o enfeitiçara!

Estava nas unhas do diabo, corpo e alma e bem percebia (o desgraçado!) que, se esticasse antes de se curar d’aquelle mal, ia direito para as profundas do inferno.

Emmagrecera, perdera a vontade de comer; trazia a rapariga no sangue a queimal-o todo nem que fosse uma febre.

Emquanto se demorou na terra, não fazia caso da mulher nem se importava com os filhos. Todos o estranhavam. Não cuidava dos seus haveres e largou-se a beber.

A mulher queixava-se ás visinhas e chorava; de noite emquanto elle dormia, defumava-lhe o fato a ver se espantava o diabo porque uma tecedeira velha que tinha fama de bruxa, dissera-lhe que aquillo era olhado...

O Joaquim luctava contra o demonio. Não tinha outra idea na cabeça senão voltar á Quinta Grande; mas bem sabia que era o espirito maligno que o tentava e temia uma desgraça.

Ás escondidas da mulher pagara uma novena lá ao padre da sua freguezia e offerecera-a a Nossa Senhora do Milagre para que o livrasse; consultara um curandeiro que tambem sabia artes de benzelhice e que lhe vendera por bom preço uma beberagem verde, amarga como fel, para o curar do mal que o matava.

Tornara-se medroso, elle que n’outros tempos andava pelas estradas cheio de confiança na força dos braços e na navalha de ponta que trazia no bolso bem untada e afiada; agora não gostava de andar de noite porque em cada sombra via o diabo com os olhos a luzir e a dentuça de fóra, a fazer escarneo d’elle.

Começou a crescer-lhe no peito uma grande raiva contra a Annitas, aquella cavallona, aquella desavergonhada, aquella cabra que lhe andava cravando a alma no inferno. Era uma femea differente das mais, com pensar de bicho e uma boniteza que deitava a alma de um homem a perder.

E á força de pensar sempre na mesma coisa agora lembrava-se do cheiro a enxofre que ella tinha no cabello... Bem entendia que era possessa, e botara-lhe as unhas a elle para o vender a Belzebuth...

E queria-a como um damnado... Aquelle fogo em que ardia era já o fogo do inferno.

Maldita! Se elle pudesse, esganava-a!...

Ia já em tres mezes que estava na terra; e o negocio parado. Nunca lhe acontecera demorar-se tanto.

Tinha medo de partir; bem sabia que apenas se mettesse a caminho, ia direito que nem um fuso á Quinta Grande.

E por fim, um dia resolveu-se. Tomou outra estrada com o firme proposito de não embicar para aquellas bandas.

Foi andando, andando... Parava n’uma villa, e n’outra...

Mas o negocio não lhe surtia. Perdia dinheiro.

Comprara n’uma feira fazendas de contrabando a um cigano e deixara-se enganar.

E o diabo não o largava; accordava e adormecia sempre com o mesmo sentido. Sem elle querer ia-se approximando da Quinta Grande.

A cada encruzilhada, o Maldito vinha ao seu encontro (que elle bem o sentia ramalhar nas arvores e entre o matto) e embicava-lhe os machos lá para onde elle queria...

E por fim lá voltara, á Quinta Grande.

Tinha de ser. De que servia um pobre homem luctar contra o demonio? Mais valia vender-lhe a alma por uma vez.

Na vespera, como se encontrasse na villa, entrou na capella de Santa Brigida que era milagrosa e, de joelhos defronte do altar, com uma grande devoção, o chapeu nas lages ao seu lado, as mãos juntas, prometteu duas corôas de cera á imagem se ella o não desamparasse. Já que Nossa Senhora e os Santos o não podiam livrar das unhas de Belzebuth, então ao menos pedia a Santa Brigida que o protegesse n’esta jornada e lhe chamasse a Annitas ao alto do cabeço, á sombra do sobreiro grande, como da outra vez...

Assim foi.

Mas o bufarinheiro, antes de deixar a rapariga sentiu-se abrazar de uma tal raiva, de um furor tão grande de vingança que se atirou a ella á pancada.

«Toma, cadella! Andas-m’a vender ao teu patrão... Metteste-m’a alma no inferno, mas has-de apanhar o castigo, esprito damnado, cabra do diabo!..»

Sob o chuveiro das pancadas e das pragas, a Annitas, submissa, curvava a cabeça, fechava os olhos, levantava o braço para livrar a cara e ficava quieta e calada sem uma revolta, em frente d’aquella colera que não entendia.

O homem acadou por lhe lançar um pontapé ao ventre que a fez cahir com um gemido de dor, e foi-se embora depressa sem voltar a cabeça para traz nem uma vez.

Parecia-lhe que tinha esconjurado o demonio.

Persignou-se devotamente, resou um Padre-nosso, fez uma grande jura de nunca mais alli voltar.

A Annitas, sentada no chão, gemia devagarinho. Fitava os olhos azues no vulto do homem que desapparecia a mais e mais no afastamento e se fundia no crepusculo crescente.

Alli esteve muito tempo até que deixou de ouvir no silencio a terra secca da estrada a estalar sob os passos apressados do bufarinheiro.

Escurecia. Lá ao longe as rãs coaxavam n’um charco.

Os ralos cantavam.

A Annitas levantou-se e, coxeando, com o ventre dorido e as pernas pesadas, foi-se arrastando para casa.

D’ahi por deante a Annitas perdeu a saude.

Não tinha vontade de comer, emmagrecia, tornara-se pallida, queixava-se de dores, tinha o ventre inchado.

Não queria sahir de casa. Ficava horas estendida na cama ou acocorada junto da lareira, a gemer.

O Antonio andava todo ralado; a sua Annitas nunca tivera uma dôr de cabeça e elle costumara-se a dizer, cheio de presumpção:

«Isto é rija como ferro; não ha mal que lhe chegue.»

A maior alegria da sua vida era ver aquellas faces rosadas, aquelle corpo rubusto e são, aquelles beiços de onde o sangue parecia querer espirrar tão vermelhos eram.

Experimentaram-se varias mésinhas; as visinhas ensinaram cosimentos e emplastros; a Rosa esfregava a filha todas as noites com azeite quente.

Mas o mal ia sempre a peor e a inchação augmentava.

O abegão pediu emprestado aos senhores o burro da casa e mandou a mulher com a filha á villa, consultar o medico. Aquillo não era mal para barbeiros e curandeiros. Havia de ir ao medico; elle pagaria o que fosse, remedios e tudo, contanto que lhe puzessem a filha bôa como d’antes.

Á noitinha, quando voltou do trabalho, devagar, adeante dos bois que todo o dia tinham acarretado esterco, vinha cheio de esperança.

O medico da villa era entendido; tinha curado n’um instante a mulher do Sebastião de uma espinhela cahida; e o guarda, que andava com os olhos miseraveis havia que tempos, só com umas aguas que elle lhe receitara, puzera-se fino ao cabo de quatro dias.

Com certeza havia de ter acertado com o mal da Annitas; áquella hora, quem sabe? talvez a cachopa já se achasse melhor.

Ao chegar á volta da azinheira, já pertinho, a correnteza dos carros cruzou-se com as mulheres que iam para a fonte, de cantaros á cabeça.

Logo a primeira era a ti Zabel.

«A minha Rosa já chegou?» perguntou o abegão.

«Já sim senhor; mas não vem sastefeita. Mal deu as bôas noites á gente e entrou logo para casa.»

«E a Annitas?»

«A Annitas tambem.»

«Que disse o medico?»

«Isso é lá com a sú Rosa...» respondeu a ti Zabel com azedume. «Vinha soberba; poz-se a dizer que lhe doia a cabeça e que este era o peor dia da sua vida, mas não foi capaz de mandar a gente entrar para casa nem de explicar fosse o que fosse.»

O abegão fizera parar os bois e toda a fileira dos carros parara tambem atraz d’elle.

A tarde estava a acabar; uma tarde de Outomno, calada e immovel.

Alguns boieiros, sentados no ultimo carro, fumavam e chacoteavam em voz alta.

Ouvia-se o resfolegar dos animaes cançados.

«Hasta cá, Brilhante!...»

Gritando aos bois, o abegão apprehensivo, poz-se de novo a caminho.

No alpendre, soltou a junta, levou-a para a abegoaria onde entrou atraz d’ella com o seu passo vagaroso do costume, prendeu-a, foi buscar dois braçados de ferrejo que estendeu na mangedoura.

Cada moço tratava dos seus bois.

Tinham accendido a lanterna de vidros embaciados que pendia de uma corda ao meio da abegoaria.

Os homens andavam de um lado para o outro, conversavam.

Ouviam-se os passos pesados na calçada, o matto das camas estalando sob as patas dos animaes, o ramalhar do ferrejo atirado para as mangedouras.

O Antonio deu as suas ordens ao boieiro que ficava de vigia e dirigiu-se para casa.

Ao dar com a porta fechada, bateu-lhe o coração com mais força.

Levantou a aldrava; entrou.

«Qu’é da Annitas?» perguntou elle do limiar.

A Rosa, sentada na lareira com os joelhos á bocca, não respondeu logo.

O Antonio percebeu que ella chorava.

Fechou a porta, approximou-se da mulher, deu-lhe um encontrão.

«Qu’é da cachopa?»

«Foi-se deitar.»

«Que disse o medico?»

A Rosa desatou a chorar alto.

«Nossa Senhora me acuda! Porque não havia eu de morrer antes de chegar a esta vergonha?...»

O Antonio levou a mão á cabeça, atirou o carapuço para cima da meza com violência. Via nuvens vermelhas passar-lhe deante dos olhos.

Uma idea monstruosa atravessara-lhe o pensamento.

Berrou, fóra de si, rouco:

«Fala, mulher do diabo! Raios te partam que me estás a matar!»

A Rosa gemia:

«Todos os santos e santas da côrte do ceu me valham! Maldita seja a hora em que nasci!... Mais valia vel-a morta... Ai! a minha rica filha!»

O Antonio deitou a mão enorme ao hombro da mulher, saccudiu-a com tanta força que a fez tombar para o chão, deu-lhe dois pontapés com os sapatões cardados. Appetecia-lhe espesinhal-a, esborrachal-a, matal-a como se ella fosse um bicho peçonhento.

«Deshonraram-n’a? Responde, estepor!»

A Rosa repetia:

«Mais valia vel-a morta e enterrada!... Uma innocente, uma innocente...»

«Quem foi? Quem foi?...»

O abegão tinha a garganta secca, um gosto a sangue na bocca, um desejo immenso de destruição, de morte...

Como a Rosa não respondesse, gemendo e balbuciando palavras sem nexo, ennovelada no chão como uma trouxa de roupa, atirou-se a ella, cego de raiva, louco de furor, aos murros, aos pontapés, vociferando pragas e improperios, com a razão perdida.

Depois estacando no meio da casa, olhou um momento em redor como quem procura qualquer coisa.

Á luz da candeia a Rosa viu-lhe a bocca espumante, os olhos injectados de sangue...

E logo, como um vendavel abriu a porta, sahiu para o alpendre, correndo, cambaleando, aos berros, como um toiro furioso.

«Um fueiro! Um malho!... Quero matal-a! Deshonraram a minha filha! Quero matar a mulher do diabo, o estepor do inferno que não m’a soube guardar!...»

E no escuro do alpendre procurava uma arma, fosse o que fosse, topando em tudo, sem saber o que fazia, aos urros como um animal ferido.

Os moços que ainda se encontravam na abegoaria vieram de roldão para o alpendre; e ahi hesitaram defronte d’aquelle vulto que se agitava na sombra, formidavel de dor e de colera e que não lhes parecia um ser humano.

Á claridade da lanterna trazida á pressa, reconheceram o abegão que acabara por arrancar o fueiro de um carro e se precipitava para a porta da casa.

Correram para elle, seguraram-n’o com difficuldade.

«Larguem-me! Larguem!...»

Lá dentro ouviam-se os gemidos da Rosa, moida de pancadas, que se rojava pelo chão sem poder levantar-se.

«Ah! Su Toino...» dizia o Sebastião agarrado a elle, offegante e alagado em suor. «Socegue, su Toino! Um home nã perde assim a cabeça, home! Dá-se pancada n’uma mulher quando a merece, que diabo!... que só assim teem ensino. Mas nã se lhe racha a cabeça, home! Veja se ganha juizo, su Toino!...»

O abegão já não estrebuxava. Á luz bruxuleante da lanterna, os boieiros viam-lhe a camisa toda rasgada sobre o peito musculoso e cabelludo, a cara torcida, congestionada; mas já não berrava.

Calara-se.

Olhava em redor com assombro como se não pudesse entender o que se passava.

Lá no extremo do alpendre alvejava ainda um resto de claridade que vinha do poente.

As mulheres chegavam da fonte; ao ouvirem borborinho, ao repararem no grupo de homens á porta do abegão, largaram os cantaros, correram espavoridas, informaram-se, engolfaram-se pela casa dentro a socorrer a Rosa a seu modo, juntando ás d’eha as suas lamentações com aquella facilidade que teem as mulheres do campo de se transformarem em carpideiras ou em furias conforme as circumstancias do drama que presenceiam.

A Annitas deitada na cama, ennovelada no cobertor, conservava-se immovel, aterrada, com os olhos abertos, esgazeados na penumbra.

Lá na villa o medico falara baixo á mãe e esta desatara a chorar e a gemer; e a volta para casa fôra para a innocente um longo calvario. A Rosa ora a injuriava ora se carpia; saccudida pelo chouto aspero do jumento, a Annitas cheia de agonias e de dores, sentia por vezes turvar-se-lhe a vista.

No crepusculo que augmentava, os vultos das arvores tomavam aos seus olhos febris, aspectos monstruosos.

Não sabia porque a mãe a injuriava e se lamentava assim. Fazia para comprehender, um esforço doloroso e esteril.

Ao chegar a casa, atirara-se para cima da cama como um fardo, com o pobre cerebro cançado e vasio e cheia de dores lancinantes. E, sem um pensamento, para alli ficara tolhida pelo soffrimento physico, tal qual uma vacca doente que se deita no chão entristecida, com uma resignação silenciosa e immovel que é um turvo presentimento de morte.

Ouvira as imprecações do pae, as pancadas; depois os gemidos da mãe, e o borborinho da gente que acudira; e todo o drama passara defronte da sua pobre alma que não o entendia, como as imagens n’um espelho, reflectindo-se um momento e logo fugindo.

«Mas quem seria?... Quem seria?...» repetia o Antonio, sentado n’um mocho defronte da porta.

Aquella idea absorvia-o agora por completo.

Toda a sua colera de doido furioso cahira por terra. Aquelle instincto de fera magoada que o endoidecera um momento e por pouco fazia d’elle um assassino, dera logar a um abatimento enorme.

Olhava em torno de si com um olhar submisso que implorava auxilio. No cerebro rude, deshabituado de pensar, o raciocinio penetrava lentamente.

«Mas quem seria?...»

Em volta d’elle agglomeravam-se, apinhavam-se os boieiros. Physionomias de simples, physionomias de pobres trabalhadores da terra, tisnados pelo sol, endurecidos pelo trabalho; cerebros primitivos de intelligencias vagarosas que, perante as grandes desgraças, ficam inertes.

A candeia pendurada no hombral da porta illuminava-lhes de clarões dançantes as expressões attentas, graves, recolhidas. Incapazes de uma iniciativa, de uma idea que esclarecesse, esperavam.

Ao fundo do quarto, as mulheres sentadas no chão em redor da Rosa, bichanavam, suspiravam, falavam de bruxarias, de obras do diabo, de espiritos maus, de nefastas influencias da lua. E, suggestionadas pelas proprias evocações, persignavam-se, olhavam com pavor para a porta do quarto onde jazia a innocente e que nenhuma se atrevia a transpor, assim no escuro, quasi certas de lá encontrar Belzebuth em pessoa.

A Rosa, que tinha na testa uma grande escoriação e o corpo negro de pancadas, estava sentada no chão, com a cabeça encostada á parede. Lamentava-se e gemia, repetindo que o seu Antonio a castigara sem razão, que bem guardada andava a filha e que, se tal desgraça lhe succedera, não era de certo por culpa de nenhum homem.

E contava entre soluços, com geral aprovação das visinhas, que a filha, desde que principiara a falar (e bem tarde fôra, que já ia nos oito annos e ainda não dizia coisa que se entendesse), ria e chorava sem ninguem saber porquê e respondia a sombras que só ella via. O senhor prior nunca lhe quizera dar o Santissimo depois de a ouvir em confissão. E uma vez, indo nos treze annos, como estivesse por acaso a porta da capella aberta, foram dar com ella em pé no altar, com os sapatos cujos enlameando a toalha, mesmo por cima da pedra d’ara, e tendo na mão a imagem de Nossa Senhora, de cabeça para baixo e toda despida nem que fosse uma boneca. Se a mãe lhe falava do anjo da guarda e lhe explicava que tinha umas azas brancas muito lindas, ella ia logo a correr para a capoeira e punha-se de joelhos e mãos postas deante de um perú branco rezando-lhe, na idea que era elle o anjo...

Cada visinha narrava em surdina um episodio da vida da pobre Annitas, demonstrativo da sua ligação com o espirito das trevas; e, ainda antes de dar a meia noite, já todas estavam convencidas que, no ventre da innocente, se gerava um monstro.

Todas, menos uma.

A ti Zabel, em nova, servira em Lisbôa alguns annos, apprendera a ler, tivera por lá varios namoros; fôra ao hospital dar á luz uma creança morta. Depois voltara doente para a terra, socegara, acabara por encontrar marido; mas guardara sempre, dos ensinamentos antigos, os olhos bem abertos e o diabo não lhe mettia muito medo...

Emquanto as outras acocoradas em volta da Rosa, baixando a voz evocavam bruxedos e se benziam com arrepios de pavor, a ti Zabel conservava-se calada e, mais viva, arteira, sceptica, tinha a certeza de que o mal da Annitas não era obra do demonio.

Lá no seu intimo exultava. Aquella Rosa que andava sempre inchada de presumpção, sempre com a bocca cheia dos seus haveres, do bem que vivia com o marido e da honestidade da sua vida que atirava, por dá cá aquella palha, á cara das mais, agora apanhara do homem uma sova que por pouco a não estoirava e tinha a filha deshonrada.

«Deixa estar, minha fidalga de borra...» pensava a ti Zabel saboreando aquelle desastre «que por todas essas redondezas não ha-de haver alma christã que não saiba a tua vergonha. E a historia dos espritos eu é que t’a hei-de amanhar. Has-de andar arrastada mal a tua basofia!»

Á medida que a noite avançava, os boieiros e as visinhas foram-se retirando á formiga.

Aquillo já não tinha que ver; e, cançados pelo trabalho do dia, immoveis no silencio lugubre do quarto, ia-lhes chegando o somno.

As horas foram passando.

As primeiras claridades do alvorecer vieram encontrar o Antonio, a Rosa e a Annitas tal qual a noite os deixara; elle sentado no tropeço á porta, a mulher no chão encostada á parede e a rapariga no quarto de dentro, enroscada na cama.

A Rosa á força de carpir e de suspirar, acabara por adormecer; a Annitas, tendo-lhe abrandado as dôres, dormia tambem; mas o abegão velava.

Os olhos azues bem abertos, fitos, não viam a madrugada. Toda a sua alma se tendia, todo o seu pensar se concentrava n’um objecto unico: descobrir o malandro que lhe desgraçara a filha.

Procurava na memoria um indicio, um fio conductor; concentrava n’aquelle trabalho todo o esforço da sua intelligencia lenta. Passava em revista os boieiros, a gente da quinta... Nada. Não via nada...

Apenas o sol nasceu o Antonio levantou-se e foi para o trabalho sem se voltar para dentro de casa, sem um olhar sequer para a Rosa.

Trabalhou toda a manhã nos carretos, calado, taciturno; os outros não se atreviam a dirigir-lhe a palavra.

Quando tocou a sineta da sésta, o abegão enfiou a jaleca e, deixando os seus bois ao cuidado do Sebastião, abalou direito a casa.

A Rosa que mal se podia mecher, acabava de fazer o jantar.

«Onde está a cachopa?»

«Na cama.»

O Antonio sentou-se n’um tropeço junto da meza e encostou a cabeça ás mãos.

«Quem foi, mulher?» perguntou elle.

«Como hei-de saber?... Assim a terra se abra agora e me suma se é verdade que algum home tocou na rapariga.»

E a Rosa recomeçou a lamuria da vespera.

«Cala essa bocca!» mandou o Antonio «Se fazes banzé apanhas uma tareia peor qu’a d’honte.»

A Rosa calou-se.

«Puxa pela cabeça. A cachopa nunca andava com essa malandrage das ceifas?»

«Assim a minh’alma vá direita para o ceu» respondeu a Rosa «como ella nunca se afastava da minha vista.»

«Mentes!» exclamou o Antonio.

Subia-lhe a colera de novo, fervia-lhe o sangue.

Depois amansou, encolheu os hombros com desanimo:

«As mulheres mentem todas com quantos dentes teem na bocca.» acrescentou elle falando mais para si do que para a Rosa. «Um pobr’home anda no trabalho e ganhar o pão para as sustentar e não sabe o que as cabras do diabo fazem nem pensam. Não teem aquella senão para dar á lingua. Má raios as partam.»

Levantou-se, dirigiu-se para o quarto da filha.

Hesitou, com a mão no fecho. Parecia-lhe que o coração lhe ia estoirar o peito.

Entrou.

A Annitas, assustada, fitou n’elle um olhar de angustia. Tinha medo. Medo de tudo e de todos sem saber porquê.

«Não bata, pae!» implorou ella.

«Quem foi?» perguntou elle approximando-se, muito pallido.

A Annitas fitava-o com um olhar assustado. Não comprehendia.

«Quem te desgraçou, rapariga?» repetiu o pae levantando a voz e todo tremulo de raiva.

Não entendia o que o pae queria saber; não percebia a causa do mal que tinha em si. Mas quiz-lhe responder fosse o que fosse, na idea de abrandar aquella colera que ia acabar em pancada. Tudo desandara em tristezas e terrores desde que a mãe lá na villa falara ao medico.

E a Annitas disse, levantando o cotovelo para aparar o primeiro golpe, no seu gesto habitual:

«Não se escame, pae. Foi o medico.»

«Ah! cachorra! que me queres enganar!...»

Mas não lhe bateu. Passou a vista pelo ventre que avolumava sob a roupa e cahiram-lhe os braços como se lh’os tivessem quebrado. Appeteceu-lhe rachar a cabeça contra uma esquina.

A Annitas, vendo que a sua resposta não satisfizera o pae, lembrou-se do muito que soffrera na volta para casa. Talvez elle quizesse saber o que lhe fizera aquellas dores tão grandes.

«Pae...» disse ella «foi o burro.»

O pobre Antonio sahiu do quarto como um doido e sentando-se á meza da cosinha, desatou a chorar.

Como é que havia um homem sobre a terra e com alma christã, capaz de desgraçar uma innocente d’aquellas?! Ainda que elle o procurasse de dia e de noite até á hora da morte, havia de encontral-o para lhe esborrachar a cabeça debaixo de uma pedra, ao maldito, nem que fosse um sapo...

A Rosa poz em cima da meza o tacho com couves e um pedaço de toicinho.

Mas o Antonio empurrou o prato e sahiu de casa.

Foi direito á porta dos fidalgos e mandou recado para dentro que desejava falar ao patrão.

Entrou no gabinete com o carapuço ao hombro, curvado, humilde, sem saber como havia de dizer o que tinha na idea.

«Então que é isso, abegão, temos alguma novidade?»

«Saberá V. Ex.a que tanto monta pela abegoaria como pela lavoura não ha novidade. O gado anda bom e os serviços vão adeantados, graças a Deus.»

«Mas tu não me vens dizer coisa que preste, homem. Trazes uma cara!»

O Antonio puxara o carapuço do hombro e amachucava-o lentamente entre os dedos. Não tirava os olhos do chão.

Por fim lá se decidiu:

«Vae em trinta annos que sirvo esta casa e louvado seja Deus, nunca dei escandola a ninguem e... já agora cuidava aqui morrer. Mas, com’o outro, um home nã sabe pr’ó que está guardado... Tem de préguntar outro abegão, qu’este cá é estaca já pôdre e... leva-o o diabo.»

O fidalgo olhou attentamente para o Antonio e percebeu que o homensarrão fazia um grande esforço para conter as lagrimas que lhe queriam saltar dos olhos.

Levantou-se, approximou-se do seu criado a quem devia tantos annos de bons serviços e de fidelidade e que se habituara a estimar. Deu-lhe uma palmada no hombro.

«Tudo isso é asneira, Antonio. Quem pensa em tu deixares a Quinta Grande? Nem eu posso passar sem ti nem tu sem mim.»

Mas o Antonio abanou a cabeça, obstinado na sua idea.

«Sabera V. Ex.a que tem de préguntar outro abegão.»

E por fim, narrou a sua desgraça, contendo a indignação e a raiva pelo muito respeito que lhe inspirava o patrão, mas tremulo, com a garganta secca, sentindo-se em cada palavra, em cada gesto, a agonia da pobre alma rude, o desespero e a sede immensa de vingança.

E o patrão não conseguiu demovel-o do seu proposito; todos os argumentos se quebravam contra o dique d’aquela vontade inflexivel.

«Deixe-m’ir, patrão, deixe-m’ir...» repetia o Antonio passando o lenço na testa inundada de suor. «Com’ássim não tenho cara de por qui arrastar a vergonha da cachopa. E vae d’hi, póde acontecer alguma desgracia e não quero que o patrão tenha trabalhos por via de mim.»

«Que desgraça, homem? A desgraça está feita e não és tu que vaes tornal-a maior; tu que sempre foste um homem de juizo.»

Mas o Antonio respondeu:

«O que tem de ser tem muita força, patrão. Um home ajuizado... lá lhe vem o tempo de perder a cabeça e, ainda bem não, entra-lhe o diabo no corpo...»

O Antonio deixou o seu logar de abegão na Quinta Grande e installou-se com a mulher e a filha na casita que comprara perto da villa e de onde despediu o inquillino.

Adquiriu uma junta de bois alentejanos pequenos e rijos que lhe faziam a lavoura da fazenda e que elle alugava o resto do tempo, trabalhando com elles, geira aqui, geira além, pelas terras de pequenos lavradores a quem não valia a pena ter gado seu.

A Annitas melhorara das dores e já não tinha enjôos nem agasturas; mas ia engrossando cada vez mais.

Envergonhava-se d’aquella inchação; passava os dias mettida em casa.

A Rosa d’uma vez, estando de mau humor, o que lhe acontecia a miudo desde que viera para aquella solidão sem ter com quem dar á lingua, dissera á filha:

«Que andas tu a esconder-te, minha parva? Pois não sabes o que fizeste? Cuidas que m’enganas?»

A innocente olhou para a mãe pasmada.

Não entendia.

Da sua aventura com o bufarinheiro guardava uma idea vaga, que se apagava a mais e mais e se confundia com outras.

Fôra ter com elle á charneca, sem malicia, obedecendo simplesmente ao seu instincto; e escondera-se como se escondia ás vezes para ir tomar banho á ribeira, de madrugada, entre os ramos dos salgueiros, ou para trepar a uma arvore do pomar e roubar tres pecegos. Escondera o seu acto receando que a impedissem de o praticar. Nada mais. No pobre cerebro imperfeito não existia a idea do bem e do mal.

Não sabia o que tinha. Aquella doença affligia-a pelo soffrimento que lhe causava. A inchação do ventre assustava-a; ás vezes punha-se a chorar e pedia á mãe que a curasse.

Quando sentia nas entranhas agitar-se a vida que trazia em si e que ignorava, saccudia-a um grande fremito de horror, gritava que tinha um bicho no ventre, fugia, escondia-se a tremer de medo... E a Rosa, lavada em lagrimas, rezava pedindo a Deus que lhe matasse a filha antes d’ella dar á luz o monstro gerado pelo demonio.

Estas scenas endoideciam o Antonio que não parava em casa e passava os serões e os domingos na taberna á beira da estrada, bebendo e jogando para se atordoar e esquecer.

Perdera dias inteiros de trabalho, indo por um lado e por outro, com varios pretextos, correndo todas as povoações d’aquellas redondezas, a ver se alcançava qualquer indicio que o levasse á descoberta do homem que lhe deshonrara a filha.

Mas todos os seus esforços eram baldados.

Por toda a parte o acolhiam com um ar constrangido e poucos se demoravam a falar com elle.

Uma vez ia perdendo a cabeça porque um garoto gritara á sua passagem:

«Olha o sogro do diabo!...»

D’ahi por deante principiou a beber.

Apenas o vinho lhe subia aos miolos, começava a falar da sua desgraça e se alguem o contradizia, armava logo uma desordem, com os olhos a luzirem que nem os de um lobishomem.

Mas trabalhava sempre. Trabalhava desde o sol fóra até anoitecer. Trazia as terras bem amanhadas que era um regalo e os bois nedios e lustrosos que mettiam cubiça.

Andar alli agarrado á terra era a sua maior consolação. Mas quando fechava os bois na arribana, ao sol posto, e se sentava defronte da ceia, dizia de si para si:

«Para quem andas tu a matar-te? Quando fechares os olhos quem te cuidará da fazenda, quem fará medrar os teus haveres?...»

Não queria ver a filha. Não supportava a presença d’aquele ventre enorme onde lentamente crescia a sua vergonha e a sua desgraça.

Apenas acabava de comer, sahia, vagaroso, curvado, com o seu passo pesado, balançando o dorso de athleta...

Ia para a taberna.

Uma noite, ao voltar para casa, ouviu lá dentro gritos lancinantes.

Era a voz da Annitas.

«Ah! minha mãe que eu morro! Acuda-me pela sua salvação! Meu pae! Eu morro... eu morro...»

A Rosa veio a correr ao encontro do marido:

«Toino... Vae-me chamar depressa a ti Maria Jaquina lá além á estrada... A cachopa está c’as dores.»

Docil, o Antonio voltou para traz, apressou o passo direito á estrada.

Não sabia o que fazia. Os gritos da filha retalhavam-lhe o coração. A raiva, o odio, o horror, tudo desapparecia da sua alma e se fundia n’uma dôr immensa.

«A minha Annitas, a minha Annitas...» repetia elle todo tremulo.

E juntava as mãos:

«Dois mel reis de cera a Santa Brigida se ella escapar. »

Voltou a galope com a ti Maria Jaquina.

A rapariga já não gritava.

Gemia e chorava baixinho.

O Antonio sentou-se fóra de casa, n’um monte de pedras, á espera.

Não se atrevia a entrar.

Não queria ver morrer a filha.

De instante a instante ia á porta, chamava a mulher, pedia noticias...

Já principiava a clarear o ceu quando a Annitas soltou um grito que atravessou o coração do pae nem que fosse um golpe certeiro de navalha.

O homem levantou-se suffocado. Apertava o peito com as mãos. Parecia-lhe que morria.

Seguiu-se um silencio e, de repente, o Antonio ouviu outra voz... um vagido muito fraco...

Então... só então, a imagem horrivel da creança appareceu no seu espirito.

Alli estava o maldito concebido no peccado, o ente monstruoso que lhe trouxera a deshonra.

Até alli só pensara na filha, na sua Annitas que elle não queria ver morta. O resto desapparecera.

Mas o vagido do innocente fez-lhe reviver n’um segundo a tortura dos longos mezes passados, a injuria, a affronta que não fôra vingada, a imagem do homem desconhecido que elle nunca pudera encontrar e que áquella hora se ria do mal que fizera e ficara sem castigo.

E nunca saberia... e toda a vida teria ao seu lado a creança a lembrar-lhe a sua desgraça.

Para toda a parte onde fosse, o povo o apontaria e faria escarneo d’elle...

De que lhe servia a sua existencia inteira de bom trabalhador e de homem honrado? De que lhe servia a saude e a força dos braços, se d’alli por deante era obrigado a arrastar a sua vergonha como um aleijado arrasta pelas estradas a sua miseria?

Maldição!

Ao nascente o alvorecer crescia.

Os passaros ramalhavam e piavam nas arvores.

Os galos principiavam a cantar.

O Antonio ergueu-se como um homem bebedo.

Approximou-se do poço. Um poço fundo, cheio de agua fresca e leve que nunca seccava, que lhe alimentava a horta o verão todo, sem baixar...

Despiu a jaleca. Tirou o barrete.

Juntou as mãos, fez acto de contrição, pediu a Nossa Senhora e a Santa Brigida que lhe perdoassem pelo muito que soffrera e que lhe olhassem pela Annitas, que a não desamparassem...

Benzeu-se devagar.

Debruçou-se; á luz vaga do amanhecer viu um momento a sua imagem reflectida na agua quieta, funda e negra...

Ouviu-se o ruido surdo de um mergulho.

Mais nada.

O nascente estava todo côr de rosa.

Os passaros cantavam; e na estrada ia passando gente a caminho do trabalho.

Na mesma hora, a Annitas, livre do seu mal, olhava com espanto para a creança que acabava de morrer.

De onde viera aquelle menino?

Porque seria que a mãe se debruçara para ella chorando e lh’o dera a beijar como se fosse um Menino Jesus, antes de o estender, muito quietinho, n’um taboleiro, com as mãos cruzadas sobre o peito?