Ele : edição para o ELTeC Campos, Claudia de (1859-1916) Criação do HTML original Adeliana Silva Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 50822 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Elle Arquivo Municipal de Sines Elle Cláudia de Campos Livraria Editora de Carlos Tavares e Irmão Lisboa 1899

português de Portugal Converted by checkUp script for new releaseChecked by checkup scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker script Adicionado à coleção ELTeC

CLAUDIA DE CAMPOS

ELLE

Com o retrato da auctora

LISBOA

LIVRARIA EDITORA DE TAVARES CARDOSO & IRMÃO

5, Largo de Camões, 6

1899

I

O relogio da pequena villa de Sutil, situada em amphiteatro sobre as rochas, á beira do Oceano, fez ouvir no povoado silencio de uma clara e serena manhã de maio as seis horas. O sol ia dissipando a transparente neblina e despindo a agreste paizagem dos veus de gaze que a envolviam. Cortavam o ar milhares de azas; pela, terra os insectos zumbiam. As casas, pouco elevadas, brancas, amarellas, côr de rosa e azues, destacavam-se a pouco e pouco, d'entre horizonte, outras no fundo escuro do pinhal.

Nesgas de paredes, janellas, telhados vermelhos, mirantes caiados, assomavam d'entre os espessos arvoredos. O ceu começava a reflectir-se no oscillantc crystal das aguas; os trabalhadores partiam em todas as direcções, ao passo que das chaminés subiam espiraes de fumo, projectando um instante as suas caprichosas sombras na seda clara do firmamento.

Não obstante a hora matinal, em casa da familia Guedes -- vasta residencia que se avistava a meio kilometro da villa, enquadrada em um jardim junto á charneca -todas as janellas do rez-do-chão estavam abertas, todos os creados ha muito a pé, varrendo, limpando o pó, areiando, cosinhando, e a propria ama, D. Sophia Guedes, dispunha na casa de jantar, em vasos de louça, as orvalhadas flores que o jardineiro ha pouco trouxera das quintas, e guarnecia com ellas a meza, sobre a qual uma creada desdobrára a larga toalha adamascada, de irreprehensível alvura, e ia collocando os talheres.

Sophia Guedes era uma senhora de estatura regular, um pouco nutrida, cabellos cinzentos, pelle fina, onde a alvura da mocidade fôra subsituida por um vermelho de sienna, feições regilares, bocca graciosa, e uns doces olhos candidos, apesar dos cincoenta annos. Educada por austeros paes alemtejanos, nada conhecêra além da limitada vida da provincia. Os apertados dogmas da religião catholica, os rispidos deveres de uma acanhada moral taes eram os principios em que fôra creada e que do coração acatava. Adorar sinceramente Jesus-Christo, fechar o espirito a todo o raciocinio, sacrificar-se de boa vontade pelos seus, ser casta em actos e palavras, respeitar, sem commentarios, tudo o que lhe ensinaram ser digno de respeito, de mistura com umas vagas noções de grammatica, leitura de compendios, livros sagrados, calligraphia, arithmetica e musica, eis tudo quanto a mãe, e a unica mestra que tivera, aparte trabalhos caseiros, lhe haviam feito aprender. A sua indole submissa e affectuosa prestou-se, de pequenina, sem custo, á obediencia passiva, e no cerebro, quasi virgem de cultura intellectual, engastaram-se-lhe para sempre certas idéas, que nenhum poder do mundo teria força de remover. Com taes predicados, a que um rosto bonito e meia duzia de contas de réis augmentavam o valor, Sophia Guedes estava apta para ser uma boa mãe de familia, segundo os preceitos do codigo alemtejano. E assim succedeu. Casada aos dezenove annos com Luiz Guedes, honrado e intelligente commerciante, dono de importantes fabricas de cortiça, ella foi para o marido e para os filhos, que constituiam todo o seu amor, de uma dedicação constante, de uma paciencia illimitada. Não havia um só pensamento seu, que para elles não convergisse.

Sophia representava a esposa christã, o representava egualmente a mulher pouco illustrada, domesticada por seculos de servidão, sentindo ruminar em si obscuros atavismos, que a tornavam inhabil para se governar só, e a deixavam inconscientemente humilde perante a força do Homem, o poder incondicional do marido, que para ella era o Senhor. No caso de Sophia, o Senhor mostrá-se, é certo, generoso; o Homem, despota carinhoso.

O seu casamento, contrahido havia trinta e cinco annos, fôra, pois, inalteravelmente feliz, e nem uma unica vez os dois se arrependeram do passo dado, ou deixaram de festejar com egual jubilo a memoravel data. Esse anniversario, bem como o do companheiro querido, e os das tres filhas, constituiam as maiores venturas e os mais importantes acontecimentos na pacifica existencia de Sophia Guedes. Eram exactamente os preparativos para uma d'estas festas, que a occupavam tanto n'aquella formosa manhã de primavera, fazendo-a sahir do leito logo ao amanhecer.

Estava-se a vinte de maio; fazia sessenta annos Luiz Guedes. Haveria, como de costume, almoço e jantar extraordinarios; sendo offerecidos os brindes, em segredo preparados, á entrada de Luiz Guedes na casa de jantar, para a primeira refeição; e á noute dar-se-hia a soirée, para que estavam convidadas as pessoas mais importantes da localidade.

-- O papel de sêda franjado, para guarnecer os pudins, Maria ? pediu D. Sophia Guedes, collocando na meza as jarras já enfeitadas.

Quando a creada voltou, trazendo n'uma bandeja as vistosas franjas multicôres, soou a campainha, apparecendo, quasi ao mesmo tempo, Elsa, a filha mais velha de Sophia, casada com o Arthur Moreira, proprietario e dono de uma fabrica de conservas, duas filhas d'elles, Georgina--a Gina--e Helena, acompanhadas da mestra, a miss Clarke.

-- Avó, -- exclamou a travêssa e galante Gina, adoravelmente branca e loura, muito alta e desenvolvida para os seus quinze annos, agitando na mão um grande embrulho, emquanto se trocavam beijos,--avó, é capaz de adivinhar o que eu e a Helena trazemos de presente ao avô?

-- Nem eu tinha mais que fazer senão pôr-me a adivinhar charadas.

-- Não mexas aqui, Helena, -- disse a Gina afastando a irmã, uma pequenita de onze annos, menos bonita e mais grave, --

-- Mas eu quero tambem mostrar o meu presente! retorquiu a outra, segurando com mais força o embrulho.

Elsa Moreira, a mãe, admoestou-as com brandura, pondo-se a abrir um estojo que continha uma cigarreira de prata lavrada, com as iniciaes de Luiz Guedes.

-- Acha a seu gosto, mamã? Eu e o Arthur não soubemos escolher melhor.

-- Muito bonita, respondeu D. Sophia Guedes, mirando, satisfeita, a cigarreira, e indo depol-a sobre o buffete, onde estavam reunidos os brindes que o dono da casa logo receberia, cheio de orgulho e de ventura.

-- Então? Gina! Helena! observou Sophia, vendo que as netas, sem se decidirem a ceder os direitos uma á outra, apesar das observações de miss Clarke, questionavam, rasgando o papel aos bocadinhos.

-- Pois nenhuma de vocês ha de vencer. Sou eu quem abrirei o embrulho, decidiu, separando e beijando as sobrinhas, a Amelia, a mais nova das Guedes, que acabava de entrar, e de pôr na meza um dourado e appetitoso pudim d'ovos, por ella propria cosinhado.

-- Muito bem feito, concordou Elsa.

Os dedos ageis de Amelia desataram n'um momento o laço do cordel, operação seguida com todo o interesse por Helena e Sophia, ao passo que Gina, amuada, se afastára para o lado da janella. Do cubiçado pacote sahiu um quadrinho a oleo, e uma pasta de setim bordada a ouro.

-- Avósinha, o bordado é meu! exclamou Helena, excitada, orgulhosa da sua bella obra.

Os trabalhos mereceram a admiração das pessoas presentes, e Gina, perante os elogios da avó e da tia, esqueceu a pequena birra e reuniu-se ao grupo.

-- E habilidosa, e tem feito progressos, -- declarou D. Sophia, desculpavelmente envaidecida com a neta, e examinando o quadro -- Pintar uma cousa d'estas só com tres mezes de lições! A sua discipula faz-lhe honra, miss.

Miss Clarke, uma pobre irlandeza, de grandes pés e grandes mãos, sem encantos physicos nem elevados dotes intellectuaes, porém, paciente e habil na sua mediocridade, sorriu, lisongeada do cumprimento, murmurando no seu mau portuquez:

-- Si, si, mas ella ter talento, muito...

-- A D. Thereza Bastos ! exclamou Amelia, que, ao debruçar-se da janella, a avistára entrando o portão do jardim.

Gina e Helena foram sahir-lhe ao encontro, seguidas da tia que, não obstante haver já completado os vinte e quatro annos, era quasi tão creança como as sobrinhas.

-- D. Thereza, que bom! Hoje vae-me contar mais contos! disse Helena, pendurando-se-lhe ao pescoço.

-- E a mim as historias de mouras encantadas, acudiu Gina.

-- E a mim aquelles casos de feiticeiras, acrescentou Amelia.

E as tres meninas abraçaram e beijaram D. Thereza, n'uma sincera expansibilidade onde se reflectia a estima que por ella tinham e o apreço que davam á sua companhia.

D. Thereza Bastos sorria, com um sorriso feito de muita ignorancia e de muita resignação, promettendo o que lhe pediam.

Esta senhora, solteira, dos seus cincoenta e cinco annos, nutrida, baixa, de cabellos brancos e rosto picado de bexigas, mus saudavel, meiga, serviçal, conhecia como poucos a arte de vivver com todos, sabia tornar-se prestavel e por vezes indispensavel. Habitando só com uma creada velha, e possuindo por unicos bens um predio que lhe rendia apenas cem mil réis annuaes, a D. Thcreza nunca lhe faltava nada. Os presentes affluiam-lhe sem cessar á porta. Amiga de infanda do D. Josepha Salter, de Sophia Guedes, da condessa do Valle, e de quasi todas as principaes senhoras do sitio, a todas se tornava necessaria, a todas estava prompta a prestar serviços, já perdendo noutes em casos de doença, já ajudando a fazer os dôces por occasião de festas, já olhando pelas creanças, emquanto as mães sahiam fóra da terra. Ella representava n'aquelle cantinho da provincia um papel sympathico e insubstituivel. Despida de invejas, discreta e sisuda, escutava as confidencias das filhas como escutára as confidencias das mães, supportava as travessuras dos filhos, como em nova supportára os galanteios dos paes, galanteios innocentes, porque D. Thereza, -- a Therezinha, como lhe chamavam as amigas do seu tempo--feia e pobre, jámais fôra a sério requestada. Ninguem nunca a amára, e ella, pelo seu lado, nunca se apaixonára tambem. Acceitára de pequena o seu destino alegremente. Eram-lhe desconhecidas as revoltas, que amarguram tanta existencia. Ser muito rica, muito formosa, possuir dotes que inspirassem sentimentos desordenados e vivos, eram cousas que se lhe afiguravam caber por sorte só aos outros, e de cuja privação ella não sentia desgosto. Acharia D. Thereza tão absurdo alguem perguntar-lhe se soffria da falta d'estes dons, como se lhe perguntassem se soffria de não ser actriz da moda, rainha, escriptora celebre, general, ave ou insecto. O mundo apparecia-lhe como dividido em dois campos: o d'aquelles que teem de desempenhar os papeis importantes e estar sempre em scena, e o dos espectadores que vivem obscuramente, gozando o espectaculo que se lhes offerece, sem fazer ruido nem figura por si mesmos. E este papel de espectador por fórma alguma lhe desagradava. Assim como nas raras vezes que fôra ao theatro, nunca ambicionára largar a sua cadeira e ir para o palco substituir qualquer das actrizes presentes, assim nunca desejára abandonar o seu cantinho, para figurar de heroina em qualquer drama, tragedia ou comedia, no theatro da vida real. Sentia que nascera para espectadora, e como simples espectadora queria morrer.

Na sala de jantar, não menos calorosa recepção esperava D. Thereza Rastos.

-- Therezinha, o que me dizes a estes doces ? Therezinha, os teus bolos ficaram optimos! D. Thereza olhe o meu presente ! D. Thereza, que tal acha o meu quadro? D. Thereza mostre-me o seu brinde!

Eis o que se ouvia em redor de Thereza Bastos, que sem poder responder a tudo ao mesmo tempo tirava, com gestos lentos, como todos os seus gestos, o lenço de sêda e o mantelete, procurava na algibeira e fazia d'ella sahir um papelão côr de rosa, que attrahiu logo todos os olhares. Dentro d'elle vinha um porte-montre em velludo roxo, bordado a sêdas e missangas.

-- Esse bordado é do tempo dos Affonsinhos, D. Thereza, observou a Gina, rindo e pegando no porte-montre. Porque me não pediu um debuxo moderno?

-- Ora, filha, eu sou antiga e gosto das cousas á antiga, foi a resposta tranquilla.

-- Deixa-a falar, está muito bem feito; o Luiz ha de aprecial-o muito.

E D. Sophia, depondo o brinde ao lado dos outros, começou a consultar a amiga e a Elsa sobre o menu do jantar, não largando ao mesmo tempo de vista os arranjos de meza, que a creada ia fazendo.

-- Avó, o Storff!

E Helena correu á janella, onde a cabeça de um bonito cão negro, da Terra Nova, assomára, ladrando e tentando firmar-se no parapeito com as mãos. A pequena acariciou-lhe o focinho e ajudou-o a dar o pulo. Então o Storff, abanando a cauda, foi dar os bons dias a todos, saltando de novo pela janella a um assobio do dono, o Carlos Lentz, sympathico e perfeito rapaz, de trinta e dois annos, sobrinho de D. Sophia pelo lado materno, visto que sua mãe era irmã d'ella, e filho do fallecido Karl Lentz, um allemão que, logo no começo do fabríco de cortiça n'aquellas paragens, viera como empregado da casa Salter, passando pouco depois a socio da mesma firma, casando e assentando definitivamente ali a sua residencia.

O ladrar do Storff apressou a toilette de Alice Guedes, a segunda e mais formosa filha de Sophia Guedes, que, mirando-se pela ultima vez ao espelho, desceu, correndo, as escadas, radiante na sua simples toilette de chiffon azul, os olhos escuros, brilhantes como dois sóes, a bôcca entreaberta n'um sorriso alegre e feliz, e entrou na casa de jantar onde já se encontravam Carlos, a mãe D. Maria e a nora, Leonor Lentz, mulher do filho mais velho.

-- Sahiu a nympha dos seus aposentos; era de esperar, ouvindo o Storff; -- commentou Amelia, maliciosa.

-- Não foi por isso que me apressei, retorquiu Alice, ruborisando-se e cumprimentando. Estive dando os ultimos toques no meu cesto. Que tal o acham?

E dizendo isto levantou no ar um cesto de papeis, artisticamente ornado de trabalhosos lambrequins. A resposta foi, como era de prever, um côro de elogios.

-- Agora, que já viram o meu presente, adivinhem que boa nova lhes trago, continuou ella entregando á mãe o cesto.

-- Boa, muito boa ? interrogou logo Helena.

E a Gina, aproximando-se:

-- Diga o que é, tia Alice.

-- Acerto eu, acudiu D. Thereza, eu e o senhor Carlos, náo é verdade?

-- Maldosa D. Thereza, admoestou Alice, de novo córada.

-- Primo Carlos, o que foi? Diga ao ouvido, que eu guardo segredo.

-- Amelia, que disparate, não é nada do que julgas, interrompeu Alice. A nova está aqui n'esta carta.

E tirou do cinto uma folha de papel, que mostrou.

-- De quem é, de quem é? perguntaram ao mesmo tempo as sobrinhas, as irmãs e Carlos, intrigado.

-- Carta da Cléo participando que te manda uma lembrança no dia do teu casamento, atalhou Amelia, que reconhecera a lettra.

-- Enganas-te... Carta da Cléo participando que vem passar aqui o verão, devendo chegar no proximo sabbado.

-- Ora, historias! espera bom por ella que logo cá apparece, observou D. Sophia.

-- Mamã, olhe que d'esta vez a Cléo assevera ...

-- Deixal-a asseverar...

-- Eu tambem sou da tua opinião, Sophia, concordou D. Thereza.

-- E eu... e eu... e eu, accrescentaram Maria Lentz, Leonor, Elsa, Amelia e Carlos, pondo-se todos o discutir a improbabilidade da noticia, e rindo da boa fé de Alice, que teimava na sua affirmativa, apostando até com a travêssa Gina perder a que se enganasse uma das caixas de papel de phantasia que Luiz Guedes lhes trouxera, havia pouco, de Lisboa.

Mas, não obstante a apparente convicção, Alice Guedes sentia-se já abalada de duvidas. Essas duvidas, frustrando-lhe a esperança que a carta da amiga fizera nascer, desapontaram-n'a momentaneamente. Ella tivera desde creancinha uma amizade profunda por Cléo. Apenas um anno mais nova do que a outra, educadas juntas até aos dezeseis annos, queria-lhe mais do que ás proprias irmãs. Fôra a sua confidente, a sua conselheira e companheira durante a infancia e a adolescencia, e, não obstante os treze annos decorridos de completa separação, a sympathia era a mesma, e maior talvez ainda o prestigio que sobre ella, Cléo desde pequena exercera. Alice admirára-a sempre, soffrera immenso com a ausencia voluntaria por parte da amiga, e um dos seus maiores anhelos era tornar a vel-a, escutal-a, abraçal-a. Agora, principalmente, que estava prestes a realisar o seu sonho, prestes a ser a esposa de Carlos, a quem desde os treze annos amava, e por quem fôra havia duas semanas pedida, o desejo de vêr Cléo, a unica pessoa a quem confessára esse amor, e que a havia consolado nas horas de incerteza, augmentava. Que felicidade, abrir-lhe como d'antes o seu coração, fazel-a partilhar os seus jubilos presentes, como a fizera partilhar as suas passadas maguas, quando julgava Carlos indifferente, ou preoccupado com a filha da condessa do Valle!

O desejo, porém, tornou a afigurar-se-lhe quasi irrealisavel perante a ironia da familia, acabando por se convencer de que era demencia pensar mais em tal, quando ao almoço o pae, homem baixo e nutrido, de lustrosa camisa, fato preto muito escovado, collete claro onde reluzia sobre um bojudo ventre a grossa cadeia de ouro enfeitada de berloques, a larga e desanuviada face vermelha sulcada de fundas rugas, expandindo-se n'um largo e franco sorriso onde appareciam os dentes amarellos, mas bem conservados,--fez côro com os outros, tomando a incredulidade arreigada e geral.

-- Paciencia, murmurou Alice comsigo, --e procurou distrahir-se, não occupar mais o espirito com semelhante cousa. -- Afinal tenho Carlos ao lado, e isso é para mim o principal.

O raciocinio era bem formulado, e a gentil noiva, vencendo a contrariedade, entregou-se toda á idéa do proximo enlace e á doçura de passar quasi todo o dia junto do primo.

Emquanto o pae, no escriptorio, recebia amigos e empregados; emquanto a mãe, as irmãs e a tia caminhavam atarefadas da cosinha para a casa de jantar, e d'esta para a cosinha; emquanto no quarto de costura miss Clarke lia, attenta, uma novella de miss Braddon, e D. Thereza, de oculos no nariz e linha preza n'um gancho em fórma de pomba, pregado ao hombro, fazia meia econtava á Gina e á Helen a, varias historias que ellas escutavam n'uma attenção fixa; Alice, no sophá, ao lado de Carlos, deliciava-se com as suas phrases apaixonadas, mergulhava no d'elle o seu olhar innocente e leal, fazia mil projectos risonhos para um futuro bem pouco distante.

O copioso jantar, regado de vinhos caros, terminou, contra os habitos alemtejanos, perto das sete horas, passando toda a familia para a vasta sala, dividida ao centro por um arco. As largas janellas achavam-se guarnecidas de symetricas cortinas, bordadas em tule claro; e tres portas, virgens de reposteiros, resplandeciam na alvura immaculada do seu verniz, reflectindo na polida superficie a luz projectada pelas vélas accezas nos dois lustres dourados, pendentes do tecto, e pelos dois altos e bojudos candieiros de petroleo, encapotados de guarda-luzes.

A's oito horas achavam-se já ali reunidas para a soirée todas as pessoas das relações dos Guedes. Compunha-se ella, como todas as soirées alemtejanas, onde o acanhado do meio obriga a fataes promiscuidades quem não tenha a coragem de viver n'um altivo isolamento, de uma sociedade mixta, onde se entrechocavam os mais diversos elementos. Um conde authentico, com pergaminhos e fortuna, jogava o whist em boa camaradagem com o boticario romantico, descendente de um serviçal, e o director do correio. Em amavel convivio conversavam a um recanto a velha condessa do Valle, D. Josepha Salter, D. Sophia Guedes, D. Maria Lentz, D. Pulcheria Vasques, a modista D. Aurora Reis, a mulher do boticario e a filha de uma padeira, cujo marido havia quatro annos apanhára n'um bilhete a sorte grande, o que lhe permittiu logo dar-se ares e entrar ufano na «primeira roda». Ao fundo, um mestre escola á Julio Diniz, ignorante dos mysterio da syntaxe, um delegado e dois lavradores endinheirados, entretinham-se, falando das proximas eleções e apreciando os actos do governo, a politica dos regeneradores e progressistas, elles todos filiados n'este ultimo partido. O negociante Antonio Vasques contava ao folgazão padre Matheus e ao pacato Arthur Moreira o recente escandalo em que figurava uma lavradora sua conhecida, a creada d'ella e um maioral. Junto do capitalista Salter , alquebrado e cachetico desde a congestão que o ia fulminando apoz o fallecimento do filho, discutiam negocios o José Paulino, dono da primeira loja da villa, todo o dia atarefado ao balcão, o Formigas, proprietario illetrado e galanteador, em mira de um bom casamento, e o Lopes, sujeito de baixa estirpe, educado n'um lyceu de Lisboa, muito conceituado pela sua esperteza e grandes qualidades commerciaes, de que dera ha quatorze annos provas, administrando juntamente com os seus bens, adquiridos por essa administração, os bens da casa Fratel, uma das mais opulentas do Alemtejo, que tinha por unica herdeira Cleontina Fratel, viscondessa de Mello, a Cléo, como lhe chamavam as amigas e todos quantos de pequenina a haviam conhecido.

O velho Salter, de nobre linhagem, todo embebido nas implacaveis convenções mundanas da Grã-Bretanha, fôra quem mais soffrera com aquelles usos, com aquella mayonnaise social a que se vira obrigado quando fixou ali residencia. Homem pratico, porém, cedo se resignou aos inevitaveis contactos, refugiando-se no doce sonho extincto: crear para o filho estremecido a existencia que por si não lográra fruir. A morte da grande esperança que lhe alimentára a vida aniquilára-o completamente, e no olhar apagado e frio, nos labios seccos e pendentes, no andar lento e oscillante, nas gestos indifferentes de autómato, pairava a lugubre desolação d'aquelles para quem tudo findou.

Jogavam cartas uns, conversavam e discutiam outros, giravam, sem descanço, os pares novos ao som das valsas que, alternadamente, tocavam ao piano todas as senhoras possuidoras d'esta util prenda, quando a uma porta assomou a veneranda figura do Dr. Macedo, o convidado retardatario por deveres profissionaes.

Embora na villa houvesse um outro medico, Dr. Silva, rapaz dos seus vinte e nove annos, sahido não havia muito da escola, a clientella do Dr. Macedo nem por isso diminuira. E elle, que era justo e bom, apesar de ter conquistado á força de trabalho um razoavel peculio, e de ver a filha estremecida amparada pelo casamento, havia dois annos, com o conde do Valle, filho unico e possuidor de bons duzentos contos de reis, jámais deixava de acudir ao appello dos que soffriam e punham toda a confiança no seu saber. A sua presença constituia a ultima ventura, o ultimo desejo de tanto moribundo; representava a esperança e a tranquillidade de tanto doente, que negar-se parecia-lhe uma injustiça, uma verdadeira crueldade. E lá ia, tanta vez afadigado, triste, tanta vez sacrificado, sempre que o chamava o dever.

N'aquelle dia, resolvido a jantar e a passar a noute com a familia Guedes, que o adorava desde que elle salvára Alice de uma febre typhoide, o destino obrigára-o a transtornar os seus projectos, fazendo-o montar a cavallo pela manhã, em direcção do Monte Velho, onde a mulher do lavrador agonisava, nos horrores de um laborioso parto.

Foi uma alegria para Luiz Guedes e para D. Sophia, logo que deram pela presença do Dr. Macedo, com quem já não contavam.

-- Doutor, doutor, nem por mim largou o seu posto! observou o Guedes, apertando-lhe fortemente a mão, emquanto Mr. Salter,-- para quem o medico, depois da tremenda catastrophe que o ferira, havia quatro annos, era o exclusivo amigo, o confidente, que lhe entendia as lagrimas e com quem desabafava o passado,--para elle se encaminhava, no seu andar indeciso, apoiado á bengala.

-- Impossivel, meu bom amigo. O caso era urgentissimo... Minha filha deve ter-lhe explicado e pedido em meu nome mais uma vez desculpa.

-- Ella disse-nos, é verdade, já nós tínhamos recebido o seu bilhetinho, e tivemos tanta pena ! atalhou D. Sophia. E para o velho Salter, cuidadosa :--Senhor Salter, olhe esta cadeira, não vá tropeçar.

O Dr. Macedo, dando o braço a Mr. Salter, e tendo ao lado os esposos Guedes, atravessou a sala, indo depor no seu logar o negociante inglez. Suspendeu-se a dança, e os pares vieram cumprimental-o.

-- Senhor Dr. Macedo, eu não esqueci que perdeu no domingo passado a aposta, porque a trovoada dissipou-se, a tarde esteve linda, e portanto tem de dançar logo commigo os lanceiros, disse Alice, ruborisada pela excitação da valsa, largando o braço de Carlos.

-- O promettido é devido, volveu o Dr. Macedo. A culpa tive-a eu. Metter-me em semelhante aposta com os meus cabellos brancos, e perdel-a por esta fórma!...

-- Olhe, senhor doutor, está vingado, porque a tia Alice vae perder tambem uma aposta que fez hoje commigo, explicou Gina, muito satisfeita.

-- O que me conta ? interrogou o Dr. Macedo, fingindo-se, para contentar Gina, muito interessado.

-- Que faladora! commentou Alice, sentando-se no sophá junto do medico.

Tomando logar n'uma cadeira proximo d'elles, Gina proseguiu:

-- A tia recebeu uma carta da amiga, a Cléo, dizendo-lhe por brincadeira que vinha cá passar o verão. Acreditou logo; mas a mamã, o avô, a avó, a tia Amelia, a tia Maria, a D. Thereza, affirmaram que era falso, que não podia ser de fórma alguma. Como eu vi que não era verdade a viagem da Cléo, porque todos se riram da noticia, e a tia Alice continuava muito crente, apostei com ella uma cousa que vou ganhar.

-- Cousa bonita?

-- Bonita. A caixa com papel de phantasia, côr de rosa e verde, que o avô lhe deu de presente.

-- E se perder?

-- Se perder fico sem a minha caixa, em branco, azul e ouro. Mas não perco, tenho a certeza.

-- Pois prepare o seu papel, minha querida Gina, e console-se commigo.

-- O quê, doutor, sabe alguma cousa ? interrogou vivamente Alice, emquanto o malicioso olhar de Gina fitava incredulo o medico.

-- A viscondessa de Mello deve chegar no fim d'esta semana, pois recebi uma carta do meu collega e seu medico assistente, o Dr: Figueiredo, por cujo conselho ella vem restabelecer-se de um ataque de influenza, annunciando-me o facto, dando-me explicações sobre a doente e o tratamento por elle seguido, e confiando-a aos meus cuidados durante o tempo que se demorar aqui.

-- E' então sempre verdade!

E sem poder conter-se, Alice correu ao grupo onde se encontrava a mãe.

O Dr. Macedo precedeu-a, promettendo em segredo á inconsolavel Gina mandar-lhe vir ás escondidas outra caixa de papel, ainda mais bonita do que a que tinha de perder.

D. Sophia, D. Josepha Salter, D. Thereza Bastos e D. Maria Lentz mostraram-se, apesar das explicações de Alice, ainda incredulas. O Dr. Macedo, porém, leu alto a carta do Dr. Figueiredo, a qual desvaneceu todas as duvidas.

-- Só a doença a arrastaria até cá, observou D. Sophia.

-- Melhor era que se deixasse por lá ficar, suspirou Leonor Lentz.

-- Nunca teve coração aquella rapariga, nunca teve amizade a ninguem, volveu com azedume Maria Lentz.

-- Nunca. E' uma egoista, uma cabeça de vento ! confirmou D. Josepha.

-- Egoista, não. Ella é boa... As distracções, a vida da cidade, é que a teem mudado, atalhou a D. Thereza, com aquelle seu fundo de inexgotavel indulgencia.

E a conversa continuou n'este tom, generalisando-se, dando cada qual a sua opinião, e separando-se todos ás duas horas da noute, pensando com curiosidade em Cléo.

II

Nas terras pequenas, onde o viver decorre lento, e os dias se succedem todos parecidos, em constante monotonia, qualquer acontecimento, por insignificante que seja, vem servir de distracção, assumindo as proporções de um caso sensacional.

No dia seguinte ao da soirée de Luiz Guedes, a proxima chegada de Cléo era o assumpto obrigado de todas as conversas, a palpitante novidade que mais ou menos preoccupava todos os espiritos. Desenferrujavam-se as linguas das comadres, contando casos d'ella em pequenina, deslindando toda a geração dos Frateis, a começar no avô de Cléo, o senhor capitão-mór. Exultavam os pobres, para quem tal visita representava uma esmola certa. A junta de parochia urdia projectos de pedir melhoramentos e varias bemfeitorias para a localidade, pois que a viscondessa de Mello passava por estar altamente relacionada. As mulheres dos rendeiros da casa, casadas de fresco, acalentavam a idéa de convidal-a para madrinha dos primeiros filhos; os logistas preparavam-se para auferir bons lucros no fornecimento dos comestiveis; e os festeiros que promoviam a festa annual da Senhora da Rocha, contavam já nomeal-a juiza perpetua e pedir-lhe o seu auxilio para que os festejos pudessem ser mais apparatosos.

Nas casas ricas da villa, a discussão sobre Cléo era mais do que em parte alguma acalorada. Recordavam todo o passado d'ella; o mimo exaggerado que a mãe lhe dera, especialmente desde o fallecimento do pae, o rico e n'aquelle sitio deveras chorado negociante Antonio Fratel; o seu caracter extranho, desegual; a sua inclinação, aos quinze annos, pelo filho mais velho de D. Maria Lentz; a partida para Lisboa, no intuito de completar a educação: o subito casamento; o desamor áquelles sitios, teimando em viver sempre d'elles ausente ; a morte inesperada da mãe, que a deixára, aos vinte annos, possuidora de grande fortuna, seguida, tres annos depois, da morte do marido, o visconde de Mello. Lembravam a inesperada paixão de Cléo pelos prazeres mundanos, os rumores de segundo matrimonio com um alto personagem da capital, e de todos estes factos pormenorisados, tiravam erradas deducções, formulavam conjecturas, nem sempre muito lisongeiras.

Depois do apparecimento, nas Fontainhas, de Margarida de Lencastre, havia já annos, e do triste drama 1 de que ella fôra sem querer a heroina, a villa cahira na sua tranquilla insipidez, no seu prosaico, methodico e apagado viver. A subita nova produzira como que um choque electrico, animando os espiritos, avivando reminiscencias, incutindo calor ás conversas, enchendo de esperança muitos pobres e de curiosidade muitos ricos. Por toda a parte se tracejavam planos; mas nenhum cerebro trabalhava n'esse sentido como o de Alice Guedes, nenhum coração pulsava de maior jubilo que o seu.

1 Veja-se Ultimo Amor.

Passára a noute agitada -- agitação commum á alegria, que produz, como o soffrer, insomnias -- e de manhã, mal o almoço findou, sahiu em cabello pela grande rua do jardim, enfiou pelo portado, atravessou a poeirenta e nua estrada que, desembocando no largo da Senhora da Rocha, d'ali parte até á villa, e penetrou no jardim de Cléo, fronteiro ao seu, no intuito de falar á Anna, a velha creada, ha mais de trinta annos ao serviço da familia Fratel, e que habitava sósinha a residencia, outr'ora tão povoada e animada, e agora triste e deserta como um sepulchro abandonado.

De lenço de chita aos ramos, atado em volta da cabeça, saia de bacta encarnada, mangas arregaçadas mostrando os braços grossos, d'onde pendiam as mãos callosas, endurecidas pelo trabalho, a senhora Anna, como devido á edade e á sua posição de creada de confiança todos geralmente a tratavam, assomava á porta do quintal das gallinhas, chamando polo Diogo, o moço dos recados, no momento em que Alice apparecia entre as accacias cm flôr do pequeno largo. Ao vêl-a, Anna dirigiu-se-lhe, dizendo, em voz alegre:

-- A senhora já deve saber... A minha menina vem no sabbado... Fiquei que nem eu sei como! Já não esperava tornar a vêl-a! Estava agora mesmo p'ra lá ir.

-- Tive carta, contou Alice; mas ninguem a principio acreditou. O Dr. Macedo foi quem tirou as duvidas, e eu vinha perguntar-lhe se vocemecê já tinha tambem recebido algum aviso.

-- Recebi, hontem de manhã; mas como não sei lêr esperei até á tarde pelo Diogo, que tinha ido ao moinho. Fiquei pasmada com a nova, até me parecia que o rapaz estava lendo mal, que não podia ser assim... mas era verdade. A senhora quer ler? Que de recommendações! Deus queira que me não esqueça alguma cousa!

E a Anna tirou do bolso do avental uma folha de papel, que entregou a Alice Guedes. Esta percorreu-a avidamente e depois, devolvendo-a, perguntou:

--A senhora Anna entendeu bem ? A Cléo quer que lhe prepare o quarto de cama e o gabinete de vestir, ao lado do sul, onde eram d'antes o escriptorio do pae e a sala do piano, e que os antigos aposentos d'ella e da mãe se reservem para quarto da aia e guarda-roupa. O mais fica tudo como está, percebe?

-- Eu percebo; mas está-me fazendo uma áquella esta mexida. Já estou velha para isto! Olhe, se a senhora D. Alice quizesse entrar e demorar-se um bocadinho, explicando melhor ?...

-- Pois sim...

E contente de ir prestar um pequenino serviço á amiga, Alice penetrou com a velha creada na solitaria casa de Cléo, onde ha muito não ia.

Ao sul, e assente sobre a alta e escarpada barroca, erguia-se, dominando a charneca e o mar, a habitação da familia Fratel, habitação pesada, no gosto pouco artistico do negociante Fratel, que a mandára construir. Compunha-se ella de rez-do-chão bastante elevado, onde ficavam as salas, as cosinhas, e os aposentos particulares da familia; de um primeiro andar destinado á creadagem e arrecadações, e de um subterraneo dividido em adegas e dispensas. O pequeno jardim que a circumdava, e no qual ficavam, em um dos extremos as cocheiras e no outro os celleiros, tinha duas sahidas: a primeira por um portão de ferro, em frente da casa e do portão das Guedes, deitando, como o d'ellas, para a estrada, e a segunda por um portado de madeira, pintado de verde, que abria sobre a matta de cucalyptos, adjuncta ao areal. Para esta abria tambem o portado de um outro jardim, d'onde por entre accacias e loendros se divisava o palacete amarello dos Lentz. O comprido braço de terra, conhecido pelo nome de Pedras Negras, decerto por causa da côr dos majolos e rochas que o sustentavam, e que da villa se extendia pelo oceano dentro, parecia assim estar guardado pelas habitações de tres dos seus mais opulentos negociantes: os Guedes, os Frateis e os Lentz, dando, a distancia, a poetica illusão de castellos, defendidos ao sul e poente por gigantescos penhascos, e ao norte pelos pinheiros enfileirados e direitos como um exercito a postos, tendo a isolal-os, em vez de fossos, a escura charneca e o branco areal, que se desenrolavam a perder de vista.

E a villa, assim elegantemente fechada ao sul, terminava com a mesma elegancia ao norte, por um castello arabe em ruinas, no cimo da escura barroca, e pelos dois palacios, junto á estrada real, um moderno, outro já velho, entre jardins e pomares, dos outros dois capitalistas do sitio, o conde do Valle e o velho Salter. A riqueza occupava ali os dois pólos, e entre elles florescia, como um ramo de flores campestres, a villa risonha e clara, trepando pelos penhascos, espreguiçando-se nas areias, alastrando-se pelas dunas, pendurando-se dos rochedos, reflectindo-se nas aguas, turgida de sãs emanações, lavada pelas brisas maritimas.

-- Se tiver qualquer duvida e precisar de mim ainda, senhora Anna, mande-me um recado, que eu venho logo, disse Alice, quando terminou as pacientes indicações á creada, boa de coração, porém, dura de intelligencia.

Deixando Anna desfazer-se em sinceros agradecimentos, sahiu. Quando cruzava a estrada detiveram-n'a os passos de um cavallo, e uma voz chamando:

-- Prima Alice...

Era Frantz Lentz, o unico irmão de Carlos, mais velho do que este cinco annos. De grande estatura, elegante e bem proporcionado, olhos azues, em geral inexpressivos ou duros, tendo, porém, momentos de grande suavidade, cabello e bigode louros, de um louro quente, como impregnado de luz, Frantz conservava-se um bello homem, no apogeu do vigor physico. Casado havia nove annos com Leonor Vasques, filha do abastado lavrador Antonio Vasques, Frantz resolvera, pouco depois do casamento, acceder ás instancias do tio Hermann, de Francfort, solteiro e irmão mais novo do pae, o qual, sentindo-se velho, o chamara para o collocar á frente da sua grande casa bancaria, interessando-se por elle a ponto de o fazer seu universal herdeiro. Desde então, fixára residencia na Allemanha, junto do tio, vindo todos os annos no verão com a esposa e um filho unico passar dois mezes em casa de sua mãe.

Para esta ultima, a separação foi o principio custosa, pois desde a cruel e precoce viuvez os dois filhos eram todo o seu amor e toda a sua ventura. Resignára-se, porém, ante as vantagens do offerecimento do cunhado, e consolára-se com a promessa de Carlos, quer solteiro, quer casado, jámais se separar d'ella.

Quem nunca se conformára bem com aquella mudança de todos os seus habitos, fôra a mulher de Frantz. Desprovida, por culpa dos paes, de cultura intellectual, tendo menos que rudimentares conhecimentos do seu idioma, e ignorando completamente qualquer outro, Leonor Vasques, morena, sem reaes attractivos, não possuindo outro dote além d'aquelle que o pae lhe dera em metal, só se sentia á vontade na terra do seu nascimento, entre pessoas de educação, intelligencia e crenças eguaes ás suas. Ao passo que o marido aspirava a subir e ser alguem, ella só aspirava a estacionar, a não ser ninguem.

N'esse ponto Leonor tinha a ajudal-o, além da sogra, a familia Vasques, e outros parentes alemtejanos, e contra as acanhadas idéas de todos elles se iam quebrar as ambições de Frantz, que, subjugado por aquelle meio deprimente, tinha de refrear os impulsos intimos, os sonhos arrojados d'outros tempos.

Este casamento desegual, urdido em parte por Maria Lentz, que temia ver qualquer dos filhos unido a uma allemã, como tinha sido a preoccupação do marido, e tambem o desejo do tio Hermann, havia causado extrnnheza. Evidentemente, Leonor Vasques, a filha do Vasques bruto, como alcunhavam o pouco delicado e ricaço lavrador, e da D. Pulcheria, a maior estouvada d'aquelles sitios, oriunda de uma geração de cretinos e epilepticos, que dera brado na mocidade com apparatosos ataques de nervos, espalhafatosas toilettes, e ditos tão peculiares quanto absurdos, nem por descendencia, nem por educação estava á altura de ser a companheira de um homem como Frantz Lentz. E comtudo, elle acceitára-a, dizia-se que em parte a instigações da familia, em parte visando aos lucros, pois que Leonor era filha unica e por morte do pae senhora de solidas propriedades, mesmo pegadas ás dos Lentz, formando o conjuncto um bello dominio. Mas esta explicação, muito acceitavel para o vulgo, não o era bastante para os que de perto conheciam Frantz. Acreditavam esses que a verdade residia n'uns certos boatos de ter uma intimidade maior do que o permittem conveniencias sociaes -- intimidade promovida até certo ponto por Maria Lentz -- gerado, n'um momento de perturbação, compromissos sérios, dos quaes resultára o desproporcionado enlace a que Frantz Lentz não pudera airosamente subtrahir-se. Fosse como fosse, depois do passo dado, forçoso se tornára arcar com as consequencias.

O marido acceitou as responsabilidades e deveres que por culpa propria ou alheia acarretou sobre os hombros, e de boa mente aprendeu a philosophia conciliadora dos que se encontram em identicas circumstancias. Afinal, n'um sentido, a esposa pouco o incommodava, possuindo a passiva obediencia de uma serva, e deixando-o senhor absoluto.

Contra o costume, e para que o filhinho acabasse de restabelecer-se, com o uso dos banhos, da fraqueza em que o deixára o ataque de escarlatina do inverno passado, Frantz Lentz viera n'esse anno da Allemanha mais cedo, tencionando prolongar a sua estada no Alemtejo ate aos fins de setembro.

--Pensei que só chegasse á tarde... A Leonor tinha-me dito... começou Alice.

-- E' que me despacharam mais depressa do que eu suppunha, em Santa Margarida.

-- E o fogo foi pequeno?

-- Pequeno... Dominou-se logo.

-- E o homem sempre cedeu a herdade pelo preço offerecido ?

-- Cedeu, tudo se arranjou a contento... A mamã deve ficar satisfeita.

-- Ainda bem, e muito obrigada.

-- Era um dever,--atalhou elle sorrindo, emquanto a prima córava,--fazer as vezes de Carlos, para que elle não deixasse de assistir a essa festa de familia, nem de estar ao seu lado em tal dia. Divertiram-se muito?

-- Muitissimo, e para que a alegria fosse completa recebemos uma boa noticia de manhã, confirmada á noute pelo Dr. Macedo.

-- Que boa noticia foi essa ? inquiriu elle indifferente.

-- A chegada de Cléo no proximo sabbado. Póde imaginar como eu fiquei! Venho agora mesmo de casa d'ella, onde estive ensinando á Anna a desempenhar-se das instrucções que recebeu.

E com um «adeus primo, que não posso demorar-me», Alice desappareceu ligeira, na rua saibrosa do jardim.

Afrouxando as redeas, Frantz quedou-se um instante pensativo; depois, esporeando o cavallo, torceu á direita e internou-se na matta de eucalyptos, dizendo inconscientemente, em voz alta: «Vae chegar a Cléo...»

E como uma resposta mysteriosa sahindo do fundo das rochas, o echo repetiu, dando-lhe um subito fremito : A Cléo !

III

Pela deserta estrada alemtejana, a carruagem de Cléo, que na vespera a fôra esperar á estação onde o comboio do sul despeja os passageiros com destino áquellas paragens, rodava lentamente, conforme as ordens da dona, seguida de um char-à-bancs de aluguel, em que vinham tres creadas, a governante e o creado de meza.

Mandando descer o capello e moderar o andamento dos cavallos, a viscondessa de Mello, toda vestida de cinzento, um pouco reclinada nas almofadas de setim, com o pequeno véu arregaçado sobre a curta aba do chapeu, tambem cinzento, contemplava com inesperado interesse a paizagem tão conhecida. Revia, com um secreto estremecimento, as estevas ondulando pelos outeiros, os raros amontoados de arvoredo, as pittorescas trunfas de matagal, os barrancos franjados de arbustos, os largos tapetes de ceáras, os pegos á flôr dos quaes as rãs irrompem coaxando. As narinas palpitantes, a inquieta chamma do olhar incendiando a pallidez do rosto, os labios apartados, ella aspirava aquellas emanações, bebia deliciada o inconfundivel aroma do logar que lhe fôra berço. E, comtudo, não tinha sido de vontade propria a jornada que emprehendera. Nem um desejo forte, nem um sentimento poetico a haviam impellidoa dar tal passo. Voluntariamente, nunca ella viria, embora por pouco tempo, enterrar-se n'uma aldeia. O que a trazia a Sutil era apenas a imperiosa ordem do Dr. Figueiredo, em quem Cléo, como medico, depunha a maior confiança. Queria curar-se por completo da pertinaz anemia que se declarára apoz a influenza, oxygenar os pulmões, renovar o sangue, retemperar os nervos, adquirir novas forças que lhe permittissem continuar na sua elegante ociosidade agitada, usar as ultimas modas, ser de todas as premières, apparecer em todas as festas em que é de bom tom ser vista, entreter o espirito com todas as complicações e subtilezas da futil vida mundana. O Dr. Figueiredo, na sua rude franqueza--embora, tratando-se de Cléo, a sua rudeza habitual fosse attenuada pelo olhar banhado de cariciosa sympathja, e por um sorriso onde adejavam os mais quentes cumprimentos -- impuzera-lhe a penitencia de uns mezes de absoluto socego, longe do bulicio que a rodeava, seguindo á risca um regimen simples, sem o quê se não responsabilisava pela cura completa. Perante o desagradavel ultimatum. a viscondessa curvára, obediente, a airosa cabeça, coroada pelos revoltos cabellos de um negro retinto, déra as ordens necessarias e partira aborrecidissima.

Levava pena do que abandonava, pena dos dois mezes de villegiatura na umbrosa Cintra, pena do seu chalet cm Cascaes, dos seus conhecimentos, dos seus admiradores, das lindas toilettes que não podia vestir, das convencionaes amigas com quem gostava de se entreter, dos homens de espirito com quem lhe era agradavel conversar: e pena ainda da sua confortavelcasa -- um predio independente nas alturas de Buenos

Ayres -- tão elegante e táo intima, onde os inoveis pareciam guardar qualquer cousa do seu ser, onde a sua individualidade imperava, desde o apanhado de uma cortina, atú á escolhu e disposição de uma photographia. Dizer adeus aos pequeninos triumphos de vaidade, adeus ás breves e alegres viagens na primavera, sacrificar tres rnezes pelo menos da sua existência -- tres mezes mortos, tres mezes perdidos pura tudo quanto constituia a sua ventura -- que na febril impaciência lhe parecia interminaveis, e isto exactamente ao entrar nos que a mulher, chegada a meio caminho da estrada só no presente, -- porque o futuro é a triste descida, o lento e inevitavel occaso, -- representava uma contrariedade enorme para a viscondessa. Quando ella com tanto amor architectava mil planos, quando mais anceiava viver depressa, conhecer o maior numero de emoções nos annos que lhe restavam até abordar os desfloridos cincoenta, eis que a estupida doença lhe infligia um forçado repouso, detendo-a desde janeiro em casa, e impondo-lhe a estagnadora província todo o verão!

No compartimento reservado do comboio, que a fôra internando nas serranias alemtejanas, e afastando mais e mais da capital, lagrimas de contrariedade correram em fio pelas desmaiadas faces de Cléo. Socegando, embalada pela trepidação suave do wagon, poz-se a meditar na primeira e unica vez que fizera aquelle trajecto, e nas deliciosas surprezas, nas irresistiveis attracções que a aguardavam do outro lado do Tejo. N'aquella mesma linha, ha treze annos percorrida, n'aquelle bello rio, atravessado com o cerebro fremente de mal reprimidas curiosidades, o obscuro destino voltára uma pagina do livro aberto da sua vida em flôr. Que alvoroço, quando a descuidosa quietude dos seus dias foi perturbada pelas cartas da tia de Lisboa, a condessa de Miranda, aconselhando a irmã a passar na capital algum tempo com a sobrinha !

« Não ha meio para Cléo de se tornar uma mulher distincta e verdadeiramente prendada, continuando a viver n'esse ermo. Uma menina do seu nascimento e da sua fortuna merece que se lhe dê uma educação condigna. Não sacrifiques, portanto. Luiza, a um imperdoavel egoismo, o futuro de tua filha escrevera entre outras cousas a condessa.

Sonhando com os horizontes novos que ante os seus passos se abriam, excitada pelo que havia de inesperado e mysterioso na mudança que a tia propunha, Cléo insistiu com a mãe, derrubou sem difficuldade um a um os frageis obstaculos que a pobre senhora accumulava para se oppôr áquella resolução, que a ia arrancar á sua casa, á sua gente, aos seus habitos, a tudo quanto lhe era querido.

-- Nunca fugi a despezas, e com boas mestras não vejo porque a pequena se não pudesse educar bem aqui, tentava discutir Luiza Fratel, com quem faziam logo côro Sophia Guedes, Josepha Salter, Maria Lentz e Thereza Bastos.

Cléo, porém, com uma insistencia pertinaz, que admirou e penalisou as pessoas da sua intimidade, secundava a tia condessa, e perante as duas vontades mais fortes, D. Luiza cedeu.

-- Não quero ter remorsos, nem que depois se queixem contra mim, explicava ella chorosa, despedindo-se das amigas.

Cléo disse um adeus alegre, um adeus sem pranto, um adeus ingrato, embevecida no desconhecido que a esperava, com a cabeça a vibrar de extravagantes phantasias. A proposta da tia accordára n'ella alguma cousa ate ali dormente, alguma cousa apenas presentida durante a leitura de certas paginas dos raros romances e dos jornaes que lhe chegavam ás mãos. Parecia-lhe só começar devéras a viver, quando no trem que a levava ia vendo perder-se na fluidez dos longos o perfil da sua terra, diluir-se a melancholica paizagem, scenario da sua infancia. N'um anceio de vêr e de gozar, não perdia um só dos aspectos novos que a natureza lhe mostrava. A villa onde devia pernoitar, que linda lhe appareceu na phantasmagoria de um pôr de sol outomnal, reflectindo-se no rio em frente, semelhando um espelho emmoldurado no verde escuro dos juncos! Que fremitos exquisitos, jamais sentidos, perpassavam na serena madrugada, hora da partida para não perder o comboio das onze da manhã! A espera na estação, o caminho de ferro, os apitos, o movimento, a balburdia, despertavam-lhe desusadas sensações, fazendo-a esquecer completamente os que deixára. Que atordoamento ineffavel, que ingenuo gozo o seu, quando desembarcára no Terreiro do Paço, e percorrera, na carruagem da tia e ao lado da elegante prima,--a filha solteira da condessa do Miranda,-- algumas ruas da cidade já quasi toda illuminada, até repousar emfim no pequeno quarto do Alliança, onde sua mãe se hospedára! Que vasto e bello era o mundo, o mundo que ia conhecer, pensava ella no dia seguinte, apoz o almoço, calçando as luvas e espraiando a vista pelo Chiado, onde formigavam atarefados transeuntes, que se lhe afiguravam creaturas contentes e importantes!

Do continuo rodar dos trens, do surdo bulicio onde esfuziavam gritos agudos de pregões, brotavam ondas de vida que lhe aqueciam o sangue. As pulsações do vasto coração da cidade repercutiam-se no seu proprio coração, tão cheio de seiva, inebriando-o. A sua gloriosa adolescencia aformoseava todas as fealdades, entretecia de ouro todas as perspectivas. Aquelle primeiro passeio, aquella primeira visita ás lojas de modas, e depois a casa da tia, na rua de S. Francisco, o primeiro jantar ceremonioso, o primeiro baile, o primeiro espectaculo a que assistiu, foram outras tantas datas memoraveis. Com o decorrer do tempo as impressões modificaram-se, é certo. Os theatros. especialmente S. Carlos, as salas luxuosas, as toilettes garridas, os jantares de etiqueta, as soirées, os bailes, os passeios, perderam o sabor unico da novidade, mas passaram a ser habitos adorados, habitos indispensaveis á sua existencia. Por maiores esforços que D. Luiza empregasse, por melhores argumentos que buscasse para abandonar a capital quando deu por finda a educação de Cléo, e voltar á sua querida villa, nada poude conseguir. Filha, irmã, sobrinhas, relações, todos eram de parecer contrario, ninguem lhe achava razão.

-- Com a fortuna que tens podes muito bem fazer a vontade á pequena, observava-lhe a condessa de Miranda, que detestava o Alemtejo, onde nunca mais puzera os pés desde o seu casamento, havia trinta e cinco annos. Que gosto o teu vegetar para ali, cercada de estupidez! cercada de estupidez!

-- São modos de vêr as cousas. Eu não penso, nem nunca pensei, como tu, redarguia com brandura Luiza.

-- Mas pensa a Cléo, tens de attendel-a, de não a sacrificar egoistamente.

Esta razão era, para Luiza Fratel, a mais ponderosa que se lhe podia apresentar. Adorava aquella filha, cuja creação tanto trabalho lhe dera. Ambicionava vêl-a feliz, satisfeita, empregava n'isso todas as forças da sua intelligencia e da sua alma. Estava prompta a qualquer sacrificio para obter este resultado. E' não seria um sacrificio penoso para ella, já edosa, alheia aos prazeres da sociedade, estar tres mezes mettida n'um hotel triste, e depois n'um primeiro e sombrio andar da rua do Thesouro Velho, com a lembrança viva das suas quintas, do seu bello mar, da sua residencia espaçosa, cheia de luz e de paz? Em nome da ventura e do futuro da filha era-lhe exigido o prolongamento d'este martyrio.

Sem comprehender bem a necessidade de semelhante prolongamento, sentia que lhe era impossivel deixar de annuir a elle. Não tinha coragem de pronunciar um não decisivo. Que esperanças tão diversas tinham sido as suas! Admirava as bruscas disposições de espirito de Cléo, desconhecia-a. Operára-se n'ella uma transformação que a espantava e entristecia. A rapariga turbulenta e meiga, simples e activa, que na provincia se entretinha dias inteiros com brinquedos infantis, sem exigencias, sem requintes de luxo, despreoccupada e alegre, contente da sua sorte, seria a mesma de Lisboa, artificiosa, coquette, estudando poses ao espelho, fria para com as amigas, só occupada em toilettes e em futilidades mundanas, ambiciosa de grandeza, de agitação, de variedade?

«Como a geme muda, meu Deus! » murmurava baixo D. Luiza, vendo a filha atravessar as salas pelo braço de pretenciosos elegantes, conversar fluentemente em tres linguas, receber e pagar visitas com desembaraço; e o seu espirito voava até á aldeia, e até Frantz Lentz, o genro da sua eleição, com quem esperava vêl-a casada. Luiza Fratel atreveu-se uma vez, uma só, a falar á filha em Frantz.

-- Nunca pensei em tal, a sério; a mamã enganou-se; foi a resposta breve, que deixou confusa a mãe.

Cléo fôra e não fôra sincera ao dizer isto. Pensára a sério, durante um tempo, em Frantz, como a sério pensára n'outras cousas; mas novo viver mostrava-lhe sob aspectos ridiculos os seus antigos devaneios e projectos.

-- Que simples eu era! Não conhecia nem sabia nada! Destinar-me a envelhecer entre as quatro paredes de um predio, perdido nos confins da provincia, ao lado de um marido burguez, seguindo a velha rotina, e indo para o tumulo de olhos fechados, como a mãe das Guedes ou a Maria Lentz! Que horror I Eis o que me esperava, se fizesse a vontade á mamã!

E jurará a si mesma reair contra quaesquer imposições, seguir á risca o plano traçado, e ser uma mundana como a prima Amelia, casada com o diplomata Ayres, a marqueza de Loredo, a baroneza Zuttman e a condesa de Moréda, os seus modelos predilectos.

O encontro com o futuro marido, o elegante e abastado visconde de Mello, déra-se em casa d'esta ultima, durante um five-o'clock. O visconde era um marido de molde a satisfazer as suas aspirações do momento. Rico, bem relacionado, distincto, muito conhecedor do mundo, de educação irreprehensivel, vestindo bem, sabendo valsar, conversar, jogar, não houve para elle difficuldade em ser attendido de Cléo, que tambem correspondia perfeitamente ao ideal sonhado por um tal marido. Custou muito, embora as apregoadas vantagens, aquelle casamento a D. Luiza. Era o quebrar dos ultimos élos, era o adeus definitivo á terra, onde a noticia causou tristeza e admiração.

Cléo, porém, sentia-se feliz. Amava, ou julgava amar, o marido, sem sentimentalismos nem exaggeros, a que elle era aliás refractario; comprazia-se na liberdade que lhe outhorgavam, sentia-se no seu elemento, podendo viajar, gozar e gastar á vontade. Um filho apenas, fallecido aos seis mezes, veiu lançar uma nota discordante n'aquella harmonia de elegancias. Cléo pouco chorou pelo filhinho, a quem não deu successor. Pensou que a maternidade não se alliava bem com o seu temperamento. A quasi esterilidade caracteristica de certas mundanas, afigurava-se-lhe um cunho de irrefutavel aristocracia. Parecia tel-as Deus destinado á missão de conservar no mundo a belleza, a finura, a graça, deixando a propagação da especie ás outras, mais burguezas e mais vulgares. O que seria d'ella, dos seus sonhos, se se visse, mesmo rica, a braços com umas poucas de creanças ? A idéa aterrorisára-a durante o periodo de gravidez. Depois, as declarações do medico socegaram-n'a, o sobresalto findára, o episodio esquecêra.

Começou então a epocha mais brilhante para ella, a epocha da florescencia luxuriante de todas as idéas, de todos os pensamentos, de todos os desejos, de todas as sensações, que jazem latentes n'um recanto do ser feminino. Que satisfações de amor proprio, que vaidades lisongeadas, que flirts deliciosos, que voluptuosa atmosphera, que de cousas entrevistas, que de cousas presentidas! Comtudo, jámais Cléo se manchára, como tantas da sua roda, no adulterio, que condemnava por grosseiro, humilhante e despoetisador. Encontrava na vida tantos gozos subtis, sem necessidade de descer a uma falta d'essa ordem! A paixão, que só se desenvolve com o tempo e no silencio, nunca passára, na sua alma, dos primeiros preludios. E' uma flôr delicada, que se não acclima sob as excitações da vida social.

Imaginação amiga do sonho, idealisadora não amava ninguem. O devorador turbilhão que a envolvia não a deixava escutar-se, analysar-se, entender-se. Tudo passava por ella á superfície, deixando o verdadeiro fundo do seu sêr, intacto e obscuro aos seus proprios olhos. A' superficie apenas, foi sentida a morte da mãe dedicada, e de egual modo chorada a perda do marido, arrebatado em poucos dias por um typho. Passado o luto rigoroso, rodeada de faceis consolações, de constantes distracções, o antigo viver recomeçára, ainda com mais entrain. Nova, rica, formosa, livre, adorada e adulada, Cléo não tinha vagar para soffrer intensamente ou para pensar muito. Desapontamentos, contrariedades, desgostos, eram n'ella momentaneos, affloravam-lhe o coração, diluindo-se n'um mar de pequenos gozos e excitações. A anemia teimosa que a debilitára, travava-lhe subitamente a actividade, condomnava-a a um isolamento que a assustava, e Cléo, tanto no comboio, comona villa, - a villa a mirar-se no espelho do crystallino rio debruado de verdes juncos-- onde pernoitou, sentiu o peito opprimido, revoltou-se contra a doença, emquamo relembrava os prazeres passados, e aquelles de que durante uns mezes ia privar-se.

Foi, portanto, com infinita surpreza que, no dia seguinte, percorrendo a longa e fastidiosa estrada alemtejana, percebeu que as cousas não eram o que se lhe tinham afigurado, que aquelles sitios possuiam alguns encantos, por ella levianamente olvidados. No seu espirito mobil, -- onde as idéas se sobrepunham, passavam, deslisavam umas sobre outras, deixando, as que iam desapparecendo, projectada a sombra sobre as que lhes succediam, -- episodios anteriores á partida para Lisboa vinham accumular-se, destruindo a pouco e pouco o imperio absoluto dos que ella na vespera evocára. A cada passo da carruagem, a cada volta do caminho, surgiam reminiscencias, primeiro vagas, depois mais nitidas, que lhe humedeciam o olhar. Via-se outra vez nos seus quinze annos, de trança cahida. porte infantil, a correr livre pelas areias, sem preoccupações nem cuidados. As festas de familia, os velhos habitos, os rostos dos conhecimentos, cruzavam-se-lhe na imaginação. Assistiu, attónita, ao resuscitar de pessoas e de cousas que lhe surgiam deante dos olhos, inesperadamente desenterradas do esquecimento. Olhares, vozes, sons, perfumes, acenavam-lhe, chamavam-n'a, como a exprobarem-lhe suavemente o olvido a que haviam sido votados.

«Mas eu afinal ainda amo tudo isto», murmurou Cléo, admirada dos seus proprios sentimentos, fitando a charneca salpicada de alecrim selvagem, de acres losnas, sombrio rosmaninho, estevas, camarinheiras, piornos e delicadas urzes.

Ah! os seus deliciosos passeios de creança, em busca de camarinhas, e mais tarde, as merendas, as estouvadas correrias, o regressar á noute, tendo por lanterna a lua, que prateava o mar!

No ultimo d'estes passeios, acompanhavam-n'a Alice, a sensata Elsa e Frantz. Cléo deteve-se n'este nome e cerrou um pouco as palpebras. A imagem desenhou-se-lhe na mente com clareza. A mesma figura alta, os mesmos cabellos louros, a expressão peculiar dos seus olhos azues quando a fitavam.

«O que nós dissemos n'aquella tarde, o que cu lhe prometti e o que fiz... Julgava amal-o tanto, e depois... tudo mudou em mim, nem sei como!»

E Cléo ficou meditativa, meio perdida n'um sonho a que veiu arrancal-a o som das patas de um cavallo, batendo o secco macadam. Endireitou-se e olhou.

Era Frantz.

Um cumprimento frio. um meio sorriso, e cada um seguiu o sêu caminho, em direcções oppostas.

«Está pouco mudado, pensou, espraiando a vista pela inculta planicie, que lhe fechava dos lados o horizonte, deixando para traz as collinas. de um cinzento rosado, da villa de S. Mauricio, construida no sopé da montanha, em cujo cimo se erguiam as ruinas do secular castello mourisco, junto do qual alvejava o templo votado ao Santo padroeiro, que dá o nome á villa, emquanto na frente se ia desenrolando o mar de esmeralda fluida, a que o sol arrancava chispas de fogo. Tornejando a ponta da Moura -- a graciosa ponte ensombrada de álamos, cuja lenda de D. Bataça tanto lhe entretivera a imaginação juvenil--Cléo avistou os dois moinhos, em pé sobro medãos de areia, movendo os braços alados como grandes azas de aves marinhas.

-- Tudo está da mesma fórma, só eu é que estou differente !

D'ali a um instante divisou a carruagem das Guedes, em que Alice, Amelia, Elsa e Gina a vinham esperar. Ordenando ás pessoas do seu sequito que seguissem directamente para as Pedras Negras, mandou parar e apeou-se. As Guedes apearam-se tambem, e Alice adeante, correndo, veiu abraçar a viscondessa.

-- Tambem ella não mudou, disse comsigo Cléo, reparando na sincera expressão de jubilo que se espelhava no rosto da amiga, no olhar limpido, na bocca rubra, que lhe sorriam como outr'ora.

Retribuiu com doçura os beijos, olhando-a e sorrindo-lhe, por sua vez, com os sentimentos antigos. As outras senhoras approximaram-se. Elsa dirigiu-se-lhe com mais reserva, Amelia e Gina com timidez.

-- Como a tua filha está crescida! exclamou a viscondessa, que no primeiro momento não reconheceu a pequenita a quem deixára com dois annos apenas. E muito galante. Mas tu tens mais filhos. Quantos?

Ao vêr a naturalidade de Cléo, a quem temera ir encontrar affectada, pretenciosa e ironica, Elsa começou a falar, desafogada, dos filhos, e a conversa animou-se. A attitude da viscondessa desfez inesperadamente o constrangimento. Quiz ella seguir a pé um pedaço, e dando o braço a Alice não descançava com perguntas, ria pelo mais leve pretexto, informava-se de tudo, apanhava á beira da estrada hastes de urzes côr de rosa. Quando dobrava o corpo flexivel para colher um novo ramo. viu, descançando entre as folhas, a cabeça de esmeralda e as azas de gaze de uma mosca muito vulgar n'aquelles sitios. Como aos quinze annos, pegou-lhe nas pontas dos dedos e approximou-a de Alice, fazendo esta dar um grito e saltar para a charneca. Rindo ambas, Cléo perseguiu-a, até que fatigada, deitou fóra o pobre animal, e mostrando a mão livre á amiga, disse-lhe, com a mesma vivacidade de outros tempos:

-- Olha, pódes vir que já cá não está nada.

O gêlo acabou de romper-se, e quando proximo ás Fontainhas, -- a triste e isolada residencia de Margarida de Lencastre, em frente da estrada, com todas as janellas d'aquelle lado cerradas, mansão de luto e de morte, guardada por esguios eucalyptos, lugubres como cyprestes, -- as relações entre Cléo e as Guedes eram as mesmas que no dia da sua partida para Lisboa.

-- Levo commigo Alice, declarou a viscondessa, subindo para o trem e offerecendo á amigao logar á sua direita.

Logo que se viram sós, ella ordenou, n'aquelle seu tom de uma ternura imperiosa, a que a outra não sabia resistir:

-- Fala-me de Carlos.

Tão rubra como a flôr de romeira do seu chapeu de palha clara, Alice narrou o que soffrera, emquanto Carlos, indifferente para ella, concluia os estudos na Allemanha e se enamorava de uma franceza lá encontrada.

-- Foi um desgosto para a tia Maria! Elle mostrava-se aborrecido o tempo que passava aqui, inventava a todo o momento pretextos para ir a Lisboa... Já nem sequer em mim reparava; não fazia caso algum dos conselhos que lhe davam... E uma correspondencia assidua ! A franceza era bonita... O que eu chorei sósinha, depois da tia, muito zangada, nos. mostrar o retrato que o Carlos por descuido deixára sobre a meza do quarto... Julguei-o apaixonado... Julguei-o perdido para mim. Cahi doente com o typho e tive desejos de morrer. Lembrei-me muito de ti n'essas horas. Fizeste-me tanta, tanta falta! E logo por fatalidade, quando melhorei de todo e fomos a Lisboa não te encontravas tu lá. Afinal, o tio Hermann, que veiu assistir ao casamento de Frantz, aconselhou a tia Maria a não ligar grande importancia ao caso. Era uma rapariga de café concerto... Aquillo não passava de uma aventura vulgar e muito desculpavel em rapazes. Hermann levou comsigo Carlos n'um passeio a New-York, onde se demorou seis mezes. Voltou bastante mudado. Tomou gosto pelo trabalho, começou a administrar com zêlo a casa. Tornou-se pensativo, sério. Principiou para mim outro supplicio, Já nada receava da franceza, nem da filha da condessa do Valle; mas o novo aspecto de Carlos intimidava-me, confundia-me... A seriedade de que se revestira era para mim como uma muralha, que mais e mais nos separava. Foi ha dois annos, pelos S. João, que elle começou a dar-me as primeiras provas de verdedeira sympathia...

N'este ponto, Alice baixou a voz, e tremula de commoção, narrou em breves palavras o seu ingenuo romance.

Silenciosa, Cléo escutava com prazer aquelle sussurro de phrascs, habitual ao seu ouvido, ao mesmo tempo que via deslisarem pequenos cerrados muito verdes, cravejados na arenosa planicie, defendidos uns por estreitos e toscos muros, outros por vallados cobertos de cannas e piteiras; grupos de pinheiros selvagens, habitantes das infecundas costas; a suja e derrocada ermida de Santa Catharina, asylo de pardaes e andorinhas, desenhando na areia a desairosa sombra, recortando no céo o campanario sem sinos; os montes brancos, plantados entre cannaviaes e figueiras, e, mais além, o cemiterio, nu de arvoredo, banhado em pulverisações de ouro. Ao norte, ao poente, ao sul, scintillava a fita ondeante das aguas, como se o oceano tentasse ir fechando n'um doce amplexo aquella ponta de terra.

Alice calou-se de subito, o trem passou rapido junto do velho palacio dos condes do Valle, e entrou a rodar, aos solavancos, pelas calçadas deseguaes de Sutil. O relogio do velho castello bateu cinco badaladas.

Ah! aquellas vozes de bronze, que o vento levava até ás Pedras Negras, que instantes felizes marcaram na juventude da viscondessa!

Das casitas baixas, umas caiadas de novo, outras tisnadas pelos soes, corriam ás janellas e portas mulheres do lenço na cabeça, e creanças semi-núas, espantadas. Rcceiando que a memoria a trahisse, Cléo fazia a meia voz perguntas a Alice Guedes, cumprimentando como ella, com um franco sorriso á flôr dos labios.

A' esquina da loja do José Paulino estava postada uma grande parte da élite masculina. Todas as cabeças se descobriram, todos os olhos seguiram a carruagem, que tomou pela rua Direita, rua ingreme e mal calçada, ainda assim a mais bem frequentada da povoação, com as suas casas de um andar, o seu club, a sua botica, as suas lojas garridas. Os predios interromperam-se bruscamente, á esquerda, por um muro baixo, bifurcando-se n'esse ponto o caminho. Um ramal descia ate á fonte, aberta na rocha, onde a gente do sitio se fornecia de agua. Appareceu então de chofre a barroca, erriçada de salgadeiras e jonias, coberta a espaços por cannaviaes, sem descanço balouçados pelo vigoroso sopro maritimo, e o irrequieto lençol das aguas, picado de esguias barças. Lá ao fundo, de encontro ás pedras, a maré cheia arremessava as ondas, que ao quebrarem-se explodiam n'uma chuva de perolas, alagando tudo em redor. A' direita, passada a fileira de casebres, quasi todos habitados por pescadores e gente pobre, extendiam-se de novo as areias, e por ellas subia e seguia a estrada para as Pedras Negras, nua e batida dos ventos, guardada por uma alta e desolada cruz. Outra estrada, em baixo, acompanhava o paredão, que resguardava o estreito porto de abrigo, e o mal construido caes. Na frente cortava o horizonte a sombria massa do pinhal, envolvendo, sem de todo os encobrir, tres palacetes, graciosos nos seus tons claros, nas suas linhas irregulares, que a distancia e apaizagem em torno d'elles romantisavam.

O trem chegava ás Pedras Negras. Duas grandes fabricas de cortiça, tres modestas casas de empregados, o largo com a branca e velha ermida da Senhora da Rocha, que lhe havia dado o nome, e a carruagem de Cléo cruzava o portado de ferro e parava junto dos quatro degraus de pedra da residencia de seus paes.

Esperavam-n'a ali a senhora Anna, a irmã d'esta, Maria Joanna, sua ama, alguns serviçaes, D. Sophia Guedes, D. Thereza Bastos, Miss Clarke, Arthur Moreira com a filha Helena, e o Lopes, administrador da casa Fratel, que, pressuroso, correu a abrir a portinhola.

Impressionada pelo espectaculo, que desde manhã cedo contemplava, Cléo saltou do trem, beijou affectuosamente as senhoras, e foi abraçar a Anna e a velha ama que a creára. Pelas faces enrugadas das duas correram lagrimas de alegria. O carinho de Cléo produziu bôa impressão na mãe das Guedes.

-- Bem dizia eu, observou baixo D. Thereza, bem dizia eu, que o coração d'ella era o mesmo.

-- Julgava-a tambem mais mudada, redarguiu D. Sophia, com certa surpreza.

-- Eu é que acertei, mamã, volveu Alice, que ouvira a phrase da mãe, quando affirmei que a Cléo continuava a ser para nós como d'antes. E pegando na mão da amiga, que se juntára ao grupo: Quando se é bôa como tu, não é possível mudar.

O Storff, ladrando, veiu aos saltos interromper Alice e farejar, desconfiado, as saias da recem-chegada. Esta passou-lhe a mão pela grossa cabeça, interrogando:

-- De quem é?

O dono, acompanhado de Luiz Guedes, appareceu ao mesmo tempo que Alice respondia :

-- É do Carlos.

Trocados os cumprimentos, a viscondessa de Mello, convidando as pessoas presentes a seguil-a, subiu os degraus, perguntando a Carlos Lentz pelo Koller, o formoso cão com o qual tanta vez brincára.

-- Morreu afogado. O Frantz teve muita pena, informou elle.

Entrando na espaçosa sala, trastejada de pesados moveis, o rosto de Cléo mudou de côr um instante. Era a primeira vez que deveras a pungiu a lembrança do pae, e sobre tudo a da mãe. Lá estavam ainda os fauteuils de bourrette azul, onde elles costumavam sentar-se, a banca do jogo das damas, que quasi todas as noutes jogavam, a cadeira que por suas proprias mãos ella bordára a lãs, a ponto cruzado, o recanto favorito junto da étagere, ao lado do piano bom, recanto que tantas conversas esccutára entre ella e o irmão de Carlos.

-- Vem vêr o teu quarto. Eu é que ensinei á Anna o que devia fazer... A pobre mulher atarantava-se...

Alice levou comsigo Cléo, a qual, antes de sahir, pediu graciosamente desculpa da pequenina demora. Na sala, todos eram unanimes nos elogios á viscondessa.

-- Está mais abatida, menos fresca, o que não admira porque tem mais annos; mas com muito bonitas maneiras e a mesma naturalidade, declarou convicta, Elsa Moreira.

-- E' verdade que sim, opinou com a sua habitual franqueza, Thereza Bastos.

-- Eu gosto immenso d'ella, avósinha... Já me prometteu bonecas e mais cousas bonitas, disse Helena: Depois, voltando-se para a mestra: E a Miss Clarke?

-- Eu gostar de todos, volveu a irlandeza, que na sua vida só mostrára predilecção por um gato.

A conversa continuou n'este tom. Cléo, que tirára apenas o chapéu e as luvas, voltou á sala, ao tempo em que o creado anunciava ir servir-se o jantar.

-- Nós retiramos, disse D. Sophia, levantando-se do sophá. Deve sentir-se cançada.

Cléo affirmou que não, e instou para que ficassem mais um bocado. Sophia Guedes, porém, que estava com cuidados no que lá ia por casa, declinou o convite.

-- Temos agora muito tempo de estar juntas. E' verdade, minha irmã Maria pede desculpa de não ter vindo commigo. Sentia-se hoje indisposta...

-- Não consinto ceremonias nenhumas, atalhou vivamente Cléo. Entre nós fica banida a etiqueta. Vamos viver tal qual como viviamos antes. Ella vem quando puder e quizer.

E vendo D. Thereza Bastos fazer menção de pôr na cabeça o lenço de seda de figuras chinezas:

-- Quem lhe deu licença, D. Thereza ? Não sae hoje d'aqui, fique sabendo. Quero a sua companhia. Já até dei ordem para lhe prepararem o quarto, o mesmo do tempo da mamã.

-- Mas isso não tem geito... Não avisei... Tenho a creada á minha espera...

-- Todos os meus creados estão ás suas ordens. Vae-se mandar sem demora recado.

-- E não se esqueça que depois d'amanhã prometteu passar o dia commigo, advertiu Gina.

-- Não tens outro remedio, Therezinha, senão aturares as filhas como aturaste as mães, observou D. Sephia, despedindo-se.

A' meza, Cléo devorou com appetite o saboroso jantar, cosinhado pela Anna, rindo dos episodios alemtejanos que a D. Thereza e a ama lhe contavam.

Quando, ás dez horas, recolheu aos seus quartos, despreoccupada, bem disposta, como ainda se não sentira desde que adoecera, abriu uma das janellas de sacada e encostou-se á varanda, a vêr o céu tranquillo, crivado de estrellas, e o mar inquieto a reflectil-as: os dois céus, como ella em pequenina dizia, crente que um era o céu dos peixes, assim como o outro era o nosso.

Os sonhos feitos n'aquelle mesmo logar, áquella mesma hora, em outros tempos, visitaram-n'a, e com elles a sua individualidade presente escapava-se-lhe, dissolvia-se, para dar logar ao seu eu anterior.

Cerrando a janella, abriu a porta de vidros e desceu de manso ao jardim. Ali, o cantar agudo das cigarras na relva, acompanhando o monótono coaxar das rãs. entre os limos do tanque, a lua que acabava de nascer, filtrando-se atravéz das dentaduras dos ramos, os dois predios adormecidos entre a verdura, a luz brilhando na penultima janella do primeiro andar de um d'elles, pertubaram-n'a mais. Sentou-se n'um banco de pedra e tentou rememorar as emoções da jornada. Onde estavam as contrariedades da vespera, os desesperos, os desejos, que ainda ha pouco a atormentavam ? A cidade, os admiradores, as festas, as ambições e vaidades pareciam-lhe cousas longinquas, esbatidas confusamente n'um fundo escuro do seu espirito, e o que n'elle fulgia agora, dominando-a, era essa cousa importante, que ella até então esquecera, e que acabava de encontrar: o paraizo da sua infancia, composto de horas que sorriem até ao fundo d'alma.

IV

Sim, ella acabava de encontrar o paraizo da sua alegre infancia, e da sua confusa adolescencia, quando atravez de um diáphano e dourado véu, entrevia a aurora das cousas ignoradas.

Sob a deliciosa impressão, que lhe povoara de sonhos bons o tranquillo somno, adormecêra; sob a mesma impressão acordava, sentindo-se melhor, mais forte, como se a saude tambem n'aquelle logar a estivesse aguardando.

Logo que nas fendas da janella se accendeu uma fita de luz, chamou Bertha, a sua lisboeta creada de quarto, saltou da cama, lavou-se, penteou os cabellos que deixou cahidos n'uma longa trança, vestiu um simples vestido de piquet verde, e percorreu as casas todas, abriu portas e vidraças, foi dispertar a D. Thereza, que, de touca de crochet e camisa de panno crú, ainda se conservava no leito, ás escuras, rezando as orações da manhã.

Passou de lá á cosinha. Acabava de chegar um dos quinteiros, trazendo o cavallo carregado com duas golpelhas de hortaliças. Provando gulosamente os morangos, que a Anna, com todo o cuidado, tirava para uma cesta forrada de parras frescas, ouvindo o velho pescador, José Pedro, que vinha, como em antigos tempos, com a canastra razada do mais fino peixe de armação «para servir primeiro que ninguem a patrôa», e a amo que, pouco habituada a etiquetas, substituira o tratamento de «senhora viscondessa», pelo de «minha menina», passou por Cléo o mesmo nervosismo, a mesma sensação especial que só ali havia sentido. Impaciente por visitar todos os logares conhecidos, mandou servir o almoço, comeu depressa, e sem esperar pela D. Thereza, -- que tomou a subir ao quarto, porque nem tempo tivera n'aquella precipitação para se pentear, e que estava admirada de vêr uma pessoa, que se dizia tão fraca, mover-se tal qual como se estivesse de saude perfeita,-- correu ao jardim, aspirando com voluptuosidade o aroma das accacias, então em plena florescencia, e que fizeram passar de novo por ella as mesmas impressões nervosas, ainda ha pouco sentidas. «Nunca poderiamos amar tanto a terra, se n'ella não existisse para nós a infancia» disse, no mais subjectivo dos seus romances, George Eliot; e a phrase da grande escriptora, insignificativa para Cléo quando ha pouco a lêra, acudiu-lhe agora aos labios, consciente pela primeira vez d'aquella verdade, em unisono com aquelle sentir. Ergueu os braços e apanhou um mólho de flôres que, depois de passar repetidas vezes pelo rosto, metteu no cinto de seda. Chegando ao portado, ouviu o surdo rodar de um trem. Debruçou-se para a estrada. Era o Dr. Macedo, na sua victoria. A viscondessa acenou-lhe com a mão. O medico mandou parar e apeou-se.

O Dr. Macedo, que ha dez annos residia na villa, conhecera perfeitameme a viscondessa de Mello, em Lisboa, onde elle então exercia clinica, sendo até um dos convidados na ceremonia nupcial. Havia-lh' apresentado a condessa de Miranda, durante um five o' clock, n'estes termos:

-- Minha sobrinha, Cleontina Fratel, simples alemtejana ha pouco mais de seis mezes, e hoje uma elegante, como o doutor está vendo.

Elle confessára-se admirado. A rapariga, que tinha em frente, um pouco timida, porém sem gaucherie, er a a antithese de todas as provincianas que conhecera, e não eram ellas em pequeno numero. Figura, maneiras, toilette, linguagem, harmonisavam-se reciprocamente, exhalando um perfume de graça e distincção pouco vulgares, que a designaria, mesmo ao mais experimentado observador, como uma creatura de eleição, uma flôr de aristocracia, desabrochada no meio de uma sociedade muito culta. Em successivos encontros, e no decurso de breves diálogos, descrevera ella ao medico a insipidez da aldeia, para onde não queria por fórma alguma voltar, e o irresistivel encanto, para a mulher, na vida das grandes capitaes.

-- São o nosso paraizo, concluira ella, emquanto o doutor, que tinha por habito não contrariar opiniões d'esta ordem, cedo ou tarde alteradas pela dura experiencia, mentalmente respondia que o tal paraizo era, na maior parte das vezes, apenas uma ponte de passagem para o inferno. Macedo, probo cm excesso para grangear pela profissão grandes haveres, resolveu, para limitar despezas, afim de viver mais desafogado, e poder dar a Angelina -- unica filha nascida do seu casamento com uma adoravel senhora, cuja morte prematura o deixára em uma triste viuvez, -- uma educação a seu gosto, simples, solida e economica, estabelecer-se na villa alemtejana, que já conhecia bem, por ter na mocidade assistido ali a partidas de pesca e de caça, a convite do velho conde do Valle, havia muito fallecido, e de quem fôra hospede e amigo.

Cléo ficou admiradissima de semelhante resolução e disse-lho com franqueza, quando elle se despediu:

-- Olhe, doutor, para uma pessoa se enterrar por livre vontade n'uma terra d'aquellas, eu só admittia duas hypótheses: ou ter, n'esse Iogar vivido sempre, de olhos fechados, n'uma santa ignorancia, ou soffrer de desarranjo mental. Mas vejo com surpreza haver ainda uma terceira, que não é possivel definir.

-- E que eu lhe não vou explicar, porque ha cousas que só podem ser entendidas passada uma certa edade.

-- Será assim, retorquira Cléo, rindo. Ficará para mais tarde a minha comprehensão dessa terceira hypóthese.

-- E mesmo da quarta, ou da quinta, que não se limita a tres o numero de casos pelos quaes podemos trocar uma cidade por uma simples aldeia, retorquiu elle.

Desde este ultimo diálogo, que ao apear-se rememorava, o Dr. Macedo nunca mais encontrára a viscondessa, embora ouvisse varias vezes falar d'ella, e tivesse conhecimento de pormenores da sua vida, ignorados em Lisboa.

-- Folgo deveras em vêr que o meu collega Figueiredo, como aliás era de esperar da sua proficiencia, não se enganou na receita, um pouco amarga, decerto, para V. Ex.a, disse com o seu bondoso sorriso o medico, apertando a mão de Cléo e fitando n'ella o seu olhar prescrutador.

-- Amarga, do facto, no começo; mas a quassia, que a distancia me apavorava, quando a levei aos labios transformou-se em nectar. Deve ser a sua terceira hypóthese... Começo a comprehendel-o, como vê...

-- O tempo é um grande mestre, volveu o Dr. Macedo, cujo espirito tentava penetrar as causas da inesperada mudança.

-- O tempo e sobre tudo as circumstancias... Sem a grippe d'este inverno eu ignoraria o que hoje sei; jamais sentiria, talvez, o que sinto. Nem nunca, decerto, se daria a evolução por que estou passando, da qual sou a primeira a espantar-me. E julgava eu conhecer-me bem, doutor!...

-- O seu caso succede mais ou menos a todos; console-se, minha querida senhora. Mesmo os que melhor julgam entender-se interiormente, sabem tão pouco de si mesmos!...Temos uma consciencia tão perturbada, tão vaga, de certos phenómenos que se operam em nós !

-- O peior, é que esses phenómenos, traduzidos no exterior por actos que ninguem espera ou prevê, podem dar em resultado interpretações falsas dos nossos sentimentos.

E Cléo, internando-se com o medico no jardim, relatou-lhe as suas disposições de espirito no dia em que sahira de Lisboa, e as modificações por que haviam passado ate áquelle momento. Naturalmente reservada, como toda a mulher de sociedade, a viscondessa de Mello gostava de ser sincera e expansiva com os medicos da sua confiança. Instruidos, adquirindo na intimidade da sciencia uma grande largueza de vistas, na frequentação do mundo feminino uma especial delicadeza de tacto e um conhecimento profundo da sua physiologia, no contacto com a dôr a noção clara das miserias humanas que, não lhes embotando brutalmente a sensibilidade, os deixa mais condoidos, mais pacientes e indulgentes, Cléo encontrava n'elles pessoas que a entendiam, a quem podia mostrar todos os seus soffrimentos physicos e muitos dos seus estados moraes, deante de quem podia

desvendar parte do seu pensamento e satisfazer essa imperiosa necessidade da alma: a confissão, pois que o confessionario da egreja lhe não merecia fé. Ajoelhava lá para cumprir uma simples formalidade ; mais nada. Eram-lhe em geral tão antipathicos os padres como sympathicos lhe eram os medicos. Recusava-se-lhe a intelligencia a acreditar na pretenciosa sabedoria e infallibilidade de doutrinas d'aquelles, que só tinha por verdadeiros quando, sobre os degraus do altar, tomam a sagrada hostia, murmurando: Domine non sum dignus, ao passo que depunha uma relativa e dôce confiança na sciencia humana, limitada embora, e nos que do coração a ella se dedicavam.

-- As sensações antigas deixaram, no seu ser, infiltrações de idéas. que se a vigoraram de subito logo que o pensamento foi rebuscar o passado, o que é o mesmo que idealisat-o. E' preciso, para manter o equilibrio, reagir contra ellas, e o melhor meio é evocar a capital, o paraizo da mulher, explicou o Dr. Macedo, sublinhando a ultima phrase.

-- Paraizo sem valor para mim, agora que possuo de novo o antigo, acudiu ella vivamente.

Elle tinha muito que responder a esta phrase espontanea; mas no olhar escuro de Cléo transverberava tanto enthusiasmo, na sua pequena cabeça adivinhavam-se tantas chirmeras, a sua figura gentil respirava tanta graça, o seu coração devia pulsar ainda com tanto alento, que o medico não ousou demonstrar-lhe o perigo dos sonhos, que misturam uma nota melancholica em todas as alegrias e um sabor amargo em todos os risos.

-- Pois n'esse paraizo a vou deixar, minha querida senhora, satisfeitissimo de que a minha visita se não estivesse tornando urgente, como eu receiava, articulou o Dr. Macedo, após um silencio, passando a mão pela sedosa barba.

-- Tambem me sinto contente de dispensar a sua presença como medico, o que não quer por fórma alguma dizer que a sua visita como amigo me não seja extremamente agradavel, hoje e sempre.

-- Muito obrigado, e a esse titulo virei uma ou outra vez cumprimental-a, já que, desnecessarios.

-- E' uma gentileza rara no sua classe, sabe? Tenho muita vez comparado os medicos a certas aves agourentas, que só se approximam quando cheira a cadaver... Mensageiros da desgraça, que nos visitam com assiduidade apenas no soffrimento e na dôr. A sua presença em qualquer casa é prenuncio de catastrophe... Prescindir d'elles, que ventura! Ter de chamal-os, que tristeza! Se eu fosse medico, mudava de tactica, tratando-se de certos clientes, já se vê, que ha deferencias até ridiculas com indelicados e especuladores, promptos sempre a abusar.

-- Penso da mesma fórma sobre o assumpto, volveu elle rindo, e para lh'o provar virei vêl-a, sem ser necessario um recado, pondo o meu limitado prestimo ás ordens de V. Ex.ª

E o habil physiologista e psychólogo que era o Dr. Macedo, conhecendo que a sua presença áquella hora e n'aquelle logar se podia tornar importuna, despediu-se.

Acabava elle de partir, quando a D. Thereza assomou no largo, muito rodada na sua saia de chita preta, aos ramos, um grande lenço de malha azul marino cobrindo-lhe os hombros e cruzando no peito, o cabello grisalho, muito liso, apartado em risca na frente, enrolado atraz em fórma de biscoito, e seguro com um pente de tartaruga.

-- Venha, venha mais depressa, gritou-lhe Cléo.

D. Thereza, complacente, apressou o andamento, chegando arquejante junto da viscondessa.

-- Vamos ás Guedes, quero ir com ellas por essas areias fóra.

-- Pois lá é que me não arrastam, decidiu D. Thereza, assustada com a espectativa, e lembrando-lhe um esfalfamento que tinha apanhado, uma vez em que andára, sem necessidade, só por comprazer com o desejo alheio, a enterrar-se no areal.

-- Pobre D. Thereza! Que horror lhe devem inspirar estes passeios extravagantes, para ter a coragem de uma recusa tão formal! exclamou Cléo a rir, atravessando a estrada e passando o portado das Guedes. Em todo o caso, se eu insistisse, não sei quem cantaria victoria...

-- O' menina, deixe-me socegada, pelo amor de Deus, pediu D. Thereza, receiosa de que beijos e promessas a demovessem da sensata decisão. Olhe que já está em edade de ter juizo...

-- Qual juizo ! Sou ainda a mesma.

E Cléo, circumdando a larga cintura da meio da rua.

-- Ai, que demonico! respirou emfim D. Thereza, compondo o fato, sem força para se zangar. Julguei que lá por essas cidades havia outro proposito.

A ingenua observação fez surgir deante dos olhos da viscondessa as duas Cléos, a das salas e a das charnecas, e o contraste arrancou-lhe uma sonora gargalhada.

-- Está-se rindo da minha figura ?

-- Estou rindo de mim, D. Thereza; e Cléo beijou-a com meiguice, pedindo perdão da maldade.

-- Olhe o Frantz, disse ella, avistando-o na rua das parreiras, aberta á sua direita; e n'um movimento impulaivo, correu-lhe ao encontro.

A reflexão veiu-lhe apenas quando estacou em frente d'elle, que a cumprimentava, surprhendido. Córando e fitando as sardinheiras que bordavam o parreiral, ella disse, em fórma de explicação:

-- A D. Thereza fez-me abstrahir da realidade, imaginar que tinha quinze annos e que portanto, me era licito ainda praticar uma das minhas travessuras...

-- Porque não, se isso lhe dá prazer, respondeu elle, impenetravel, no seu falar vagaroso.

-- Prazer que sahiria carissimo se em vez de encontrar reciprocidade, desagradasse...

-- Tambem podia ser bem acceite sem dispertar satisfação nem magua.

-- Indifferença ? e os olhos negros, interrogadores, fitaram-n'o.

Houve uma pausa. Frantz Lentz preferia passar por malcreado a dirigir-lhe um galanteio, especialmente quando julgava poder ella estar-se divertindo á sua custa.

-- Talvez, respondeu elle por fim.

-- E' bom nunca julgarmos os outros por nós. Se da estabilidade do meu sentir eu houvesse deduzido a estabilidade do sentir alheio, que desillusão a minha agora ! murmurou Cléo, de palpebras descidas, começando a desfolhar as rubras malvas.

-- A estabilidade do seu sentir! repetiu Frantz sorrindo ironicamente.

Aquelle sorriso maguou-a E comtudo, era logica a incredulidade que o provocára. Ella não tinha o direito de fazer acreditar a ninguem na actual metamorphose. O que resaltára aos olhos de todos, fôra a sua inconstancia, a mutabilidade do seu caracter.

-- Que conceito de mim será o seu?

-- O melhor que póde ser. minha senhora.

O tratamento ceremonioso, pela primeira vez sahido d'aquella bocca, irritou-a como na harmonía de um concerto uma nota desafinada.

-- Cheiram tão mal estas flôres, disse ella de subito, voltando as costas e descarregando a contrariedade n'um ramo de sardinheiras, que arremessou para longe.

-- O antigo costume: atirar fóra, aborrecida, com o que lhe serviu de distracção um momento!

-- E' verdade... Lembra-se das rosas bravas? aquellas rosas embrenhados nas silvas e de que eu quiz por força um mólho?

-- E obrigou-me a ir colhel-ás, a rasgar-me todo nos espinhos, para se esquecer das pobres flôres e deixal-as morrer, antes de tempo, á sêde...

-- Que estouvada eu fui sempre!

E ambos se calaram, de olhar perdido na longa rua, ao fim da qual gemia a nóra, como esquecidos do presente, absortos n'uma visão distante, que lhes entrançava de recordações as almas.

D. Thereza estacára junto a uma das arvores da rua principal, cheia de espanto e contrariedade com o que acabava de presenciar. Uma senhora viuva, dirigir-se d'aquella fórma a um homem, e um homem casado, e ficarem os dois parados a conversar, tal qual como quando se namoravam, era um procedimento incorrectissimo, sob o ponto de vista de D. Thereza.

-- Esta gente perdeu o juizo, louvado Deus, repelia ella comsigo, á medida que os minutos passavam.

Por fim, temendo que alguem os visse e a julgasse connivente no caso, D. Thereza, fazendo um esforço penoso á sua indole pacifica, refractaria a desmancha-prazeres, avançou para elles, atrevendo-se a observar timidamente:

-- Então, nós não vamos?

A pergunta quebrou o encanto; mas d'elle ficou em dois corações e em dois espiritos a sua perigosa doçura, e aberto o roseo caminho dos paraizos defesos. Caminho tentador e doloroso, cheio de espinhos que rasgam a carne, de perfumes que estonteiam o cerebro, e que o mero acaso desenrolava aos pés de Frantz e de Cléo.

Sem mais uma palavra trocada, as duas senhoras, precedidas de Frantz Lentz, entraram em casa das Guedes, que em volta da meza, onde o almoço já fôra servido, ainda permaneciam a conversar com Maria Lentz e Carlos. Aquella sala de jantar transmittiu a Cléo um verdadeiro choque. A mesma decoração de outr'ora, o mesmo armario de canto, o mesmo aparador, o mesmo buffete, o mesmo largo sophá de satinette aos ramos, a mesma cadeira á Voltaire, collocada no mesmo logar, á esquerda da janella deitando para o largo da entrada, e por essa janella, coando-se, os mesmos raios de sol, que incendiavam o frizo do mesmo quadro, douravam os cabellos de Amelia, banhavam uma nesga da meza. Perante a duração d'estas cousas, os treze annos que a separavam d'ellas deixaram n'aquelle instante de ser uma realidade.

--Tu já a pê! e eu que não quiz ir lá cedo, imaginando que estavas muito cançada e que só tarde te levantarias! foi a exclamação de Alice Guedes, ao dar pela presença da amiga.

Os cumprimentos trocados entre esta e D. Maria Lentz foram embaraçosos para ambas. A mãe de Frantz não perdoára nem desculpára o procedimento da viscondessa para com o filho. E' verdade que nenhum compromisso sério existia; mas existia conhecido de todos, o affecto reciproco, e o desejo ardente de uma familia inteira, das duas mães sobre tudo, em vêr realisado aquelle enlace. A decepção infligida por Cléo foi brutal. Era até certo ponto justo o resentimento.

« Como apagal-o e fazer-me perdoar? » perguntava ella a si mesma, sorrindo com toda a amabilidade para Maria Lentz, que, reservada e fria, fitava exprobativamente o filho pela triste idéa de vir acompanhando Cléo.

A viscondessa entendeu-a. Era a primeira mundança grande com que deparava. Fez-lhe doer o coração. Dominando-se, pediu licença a D. Sophia para levar Alice e Amelia a um passeio pelas rochas, accrescentando:

-- Deixo-lhe em troca a D. Thereza, que por fórma alguma quer ir comnosco.

-- Está dada a licença, com uma condição : é que depois do passeio ha de jantar e passar a noute em nossa companhia.

Nos avelludados olhos de Cléo brilhou um sincero jubilo. D. Sophia Guedes continuava a ser para ella o que sempre fôra. Emquanto D. Thereza, Amelia e Alice applaudiam a lembrança, a viscondessa, commovida, acceitava a condição da mãe das Guedes.

-- E o senhor Carlos, que faz esta manhã? indagou ella.

-- Vou á pesca na companhia de meu irmão, que veiu agora mesmo para esse fim convidar-me.

-- Podemos partir todos juntos, acudiu Alice, interessada em ter o noivo junto de si todo o tempo que lhe fosse possivel.

-- Como quizerem, disse Frantz, cujo rosto permanecia fechado a toda a observação.

Maria Lentz não gostou da proposta. No seu entender, Cléo e o filho deviam evitar-se e não associar-se.

-- E' uma falta de dignidade e de decoro, pensava, sem todavia se atrever a emittir alto uma opinião, que iria contrariar a futura nora e Carlos.

Tomando das mãos da creada o largo chapeu de campo, que mandara vir de casa, Cléo ousou perguntar a Maria Lentz, com quem ficára sósinha um momento, se não assistia ao jantar da irmã ou, se pelo menos, não viria á noite.

-- Dava-me muito prazer que todos se reunissem como d'antes...

-- Não posso, explicou ella sêccamente, o meu neto anda constipado, faz-lhe mal sahir depois do pôr do sol, por causa da humidade do clima, e tanto eu como Frantz devemos ficar acompanhando a mãe.

Cléo adivinhou-lhe a intenção e sentiu-se melindrada. Foi com desdenhosa altivez que voltou as costas e chegou á escada a chamar pelas amigas, que tinham ido preparar-se.

Pouco passava das onze quando as tres partiram, alegres nos seus trajes claros, como a clara manhã primaveril, seguidas pelos dois irmãos Lentz. D. Sophia, D. Thereza e D. Maria ficaram á porta, até o grupo desapparccer entre os cannaviaes que resguardavam o morangal.

-- Não sei o que isto me parece, desafogou Maria Lentz. Não é por meu gosto que os rapazes lá vão... Aquella Cléo é uma doida... Quando ella fez o que fez aos dezesete, imaginem do que será capaz agora!

D. Sophia, que se achava bem impressionada, defendeu-a. D. Thereza secundou-a, guardando só para si a scena presenceada havia pouco, scena que perturbava de duvidas a serenidade do seu espirito honesto.

-- Tu e a Thereza parecem cegas... Até lhes fica mal tomarem calor por uma pessoa que tanto nos tem desprezado!

E Maria Lentz, de espirito comezinho e rancoroso, insistiu nos innocentes aggravos recebidos, como se fossem offensas que nem na morte se perdoam.

Entretanto, Cléo e as amigas passavam do jardim para o areal. A viscondessa parou, abraçando n'um relance a paizagem onde abrira os olhos e que para ella resumira já todo o universo. O sol, ha pouco tão brilhante, fôra subitamente eclipsado por grossos rolos de nuvens cinzentas, que se iam alastrando pelo azul, e tornando as areius mais pallidas, as camarinheiras e estêvas mais negras, o mar glauco mais profundo. Como ella gostára sempre dos dias de maio, ora amoraveis, ora desabridos, que soluçam e riem em poucas horas, desatando-se em flôres e perfumes, pondo cantos na garganta ás aves -- dias em que o céu chora sobre a terra e ruge pela voz do trovão, para se illuminar d'ali a pouco, partilhando a festa de toda a natureza! Era como elles a sua alma.

-- Não passamos a tarde sem trovoada, observou Amelia.

-- Que temporaes nós apanhámos aqui n'estes sitios! relembrou Cléo.

-- Então, está. dito, encontrar-nos-he-raos á volta, no pinhal, na condição que os que chegarem primeiro hão de esperar pelos outros, interrompeu Alice, que estivera a meia voz conversando com o noivo.

Feita a combinação, os dois irmãos despediram-se, seguindo pela charneca, e as tres senhoras tomaram na direcção da praia dos Majolos, enterrando os pés na fôfa areia, arrastando na orla das saias pedaços de cardos resequidos. Uma por uma, desceram rindo, escorregando aqui, tropeçando acolá, a estreita ladeira em zig-zag, unico caminho para a praia, pequenina, calçada de majolos pedrados na sua maior parte, circundada de despenhadeiros, em cujos topos se escondiam ninhos de alcatrazes e gaivotas. As ondas quebravam-se com estrondo ao penetrar na estreita enseada, por onde a agua corria espumosa, alagando as pedras revestidas de caramujos e lapas, e empoçando-se em differentes sitios. Alice escolheu para sentar-se uma elevação no rochedo, e Cléo, deitando-se-lhe aos pés, mesmo á beira-mar, tirou o chapeu e encostou a cabeça nos joelhos d'ella.

Por um habito de pequena, logo que viu as duas entretidas a conversar, Amelia sentou-se a distancia, e abriu um livro de contos, que levava já de prevenção. Desde os nove annos que comprehendia ser de mais quando Alice e Cléo se encontravam reunidas. Tinham sempre que falar sobre assumptos para ella vedados. Quando fez esta descoberta zangou-se, prometteu queixar-se, chorou julgando que ellas a detestavam, a escarneciam e desprezavam. Depois, vendo que nem as irmãs, nem Cléo ligavam importancia ao seu despeito infantil, o que tanto D. Luiza como D. Sophia, e até a propria D, Thereza se riam de semelhante magua, resignou-se a ficar em plano secundario, e não tomou a intrometter-se nos segredos que declinavam revelar-lhe e que ella, com a sua intuição feminina, não tardou em decifrar.

De todas as Guedes, Amelia era a mais parecida com a mãe. O mesmo sorriso, o mesmo olhar, a mesma estatura, os mesmos traços de caracter. Sem possuir a intelligencia e o senso moral de Elsa, nem a formosura, a graça, o cerebro devaneador e o coração apaixonado de Alice, Amelia era uma dona de casa modelo, paciente, arranjada, activa e economica, o meu braço direito como lhe chamava a mãe. Pouco affeiçoada a estudos, cuja utilidade nunca entendera, sem vocação para o piano, que apoz um anno de improficuas e arduas lições, terminantemente se recusou a aprender, ella mostrou-sw muito cedo eximia na arte de preparar um bife e confeccionartoda a sorte de doces. A cosinha attrahia-a, e não menos a attrahiam outras occupações domesticas, e entre ellas costurar e cuidar da roupa. Era um acto solemne, quando ella e a mãe, iam, de mólho de chaves, abrir no quarto grande das aguas-furtadas as arcas e bahús enormes, acogulados de serviços de cama e de meza, em algodão e linho fino, recamados de bordaduras caras, quasi todos laboriosamente marcados á mão, e contavam as peças, arejavam-n'as, tirando algumas para uso ou juntando novas compras, feitas com as economias sobre o dinheiro que Luiz Guedes entregava á esposa para gastos diarios. O sonho de Amelia Guedes consistia em possuir uma boa casa, bem montada, com muitos crvstaes, pratas, roupas, complicados utensilios de cosinha, absorver toda a sua existencia no trabalho domestico e na preservação dos objectos familiares e queridos. O amor não tinha, por assim dizer, logar n'este sonho de rapariga alemtejana. Amelia nunca fôra romanesca. Sabia-se bonita, com a sua pelle fresca e branca, os seus cabellos muito louros, o seu corpo robusto e são, e gostava de sel-o, mas sem visos de garridice. O seu unico romance consistira n'uma inclinação secreta, aos quatorze annos, pelo primo Carlos, que não dera por tal. O affecto, porém, desvaneceu-se sem causar o menor soffrimento, perante a idéa de que era uma loucura perder tempo a pensar em cousas impossiveis, e a certeza de que o primo, se d'alguma d'ellas viesse a gostar, seria sem duvida de Alice, cujos sentimentos a irmã não ignorava.

-- E' muito mais bonita do que eu, é justo que soja a preferida, disse comsigo Amelia; e desprendeu d'ali sem grande custo o pensamento. Tanto a mais velha como a mais nova das Guedes se haviam habituado a considerar Alice a formosura da família, e concediam-lhe, n'esse campo, fóros de superioridade, sem um vislumbre de inveja. Simplicidades da provincia, desconhecidas no grande mundo. «Alice e Cléo são as bellezas da terra» declaravam Amelia e Elsa com sinceridade a todos, parecendo-lhes, portanto, a cousa mais natural do mundo inspirarem ellas maior numero de sympathias.

Nem rivalidades mesquinhas, nem ambições matrimoniaes perturbavam pois a serena alma de Amelia, a qual, todavia, como toda a herdeira abastada, tinha tido os seus pretendentes. O primeiro fôra um delegado janota, regeitado por antipathico, e por não querer Amelia sujeitar-se a uma separação quasi certa da familia: o segundo fôra um rapaz de S. Mauricio, rico, mas extravagante, bulhento, amigo de estroinices, que os proprios paes lhe aconselharam a recusar, não obstante as bôas herdades do pretendente; o terceiro fôra o Formigas, o abastado e romantico lavrador, rude mas bom, tendo apenas um fraco: o desejo de uma alliança com uma mulher de posição social e educação superiores á sua. Não se lhe dava muito a fortuna, o que queria era uma esposa fina, elegante, sabendo falar e apresentar-se bem, com entrada em todas as casas nobres do sitio. Até agora as mulheres dos seus affectos tinham sido todas formadas nas indelicadezas da cosinha, no aspero labutar dos campos, nos grosseiros attritos do povo, e elle ambicionava possuir, antes de morrer, uma senhora, de mãos cuidadas, trajando sedas, sabendo dizer phrases bonitas em mais de uma lingua, costumada de creança a tratar com pessoas graúdas. Amelia, como antes d'ella Fanny Salter, recusou satisfazer a ambição do lavrador. Crear por si familia e amores, para quê? Não tinha ella paes, irmãos, sobrinhas, tanta cousa com quem repartir affectos ? E agora, com o casamento de Alice, não lhe augmentavam as obrigações e os cuidados ? Não se ia vêr só com a mãe era casa, responsabilisando-se por tudo, vigiando tudo, desde o gallinheiro até ás dispensas e adegas ? Não lhe viriam novos sobrinhos, a quem teria de ajudar a crear como já ajudára os outros ? Os sobrinhos substituiam para ella os filhos. Sentia-se bem no seu papel de tia, e deixava correr o destino, sem procurar dar-lhe outro rumo. Se Amelia, sem esperar divertir-se, annuiu a acompanhar Alice e Cléo n'aquella manhã, foi por ser o primeiro pedido que a viscondessa, desde que chegára, lhe fazia, e para retribuir a attenção que com ella tivera, trazendo de Lisboa, de proposito para lhe offerecer, um grande e completo estojo de costura e bordados. Adorava estes objectos caseiros, e o estojo, -- com o seu dedal, jogo de tesouras e agulheiros em prata, a profusão de linhas, torçaes e retrozes multicôres, as talagarças, os debuxos coloridos, as agulhas de todas as dimensões, as elegantes navelles em marfim, -- agradou-lhe particularmente, agradou-lhe até mais do que os presentes de maior valia, offerecidos ás irmãs. Merecia a pena fazer um sacrificio por quem d'ella com tanta gentileza se lembrára. Portanto, Amelia incumbiu das suas gallinhas, do papagaio e dos dois cães a velha Agueda, relegou para o dia seguinte as bainhas de uns soberbos guardanapos em damasco de linho, confiou, com varias recommendações, a chave da dispensa á mesma velha serva, e foi para o passeio, de boa vontade, como comparsa.

-- Fala-me agora d'Elle, pronunciou Cléo, quando Alice acabou de lhe relatar, com todos os pormenores, o que já no trem lhe havia dito por alto: o seu romance de amor.

O pedido formulado n'um momento de irreflectida curiosidade, foi ingenuamente satisfeito por Alice que, sem lhe fazer commentarios, se pôz a contar o que sabia, o que a viscondessa queria ouvir. Tal fôra o habito adquirido nas longas confidencias da adolescencia, que Elle, na bôccade uma, era Carlos, na bôcca de outra, Frantz Lentz, e embora os annos decorridos, Alice achou naturalissimo que este ultimo continuasse a ser para a amiga: Elle.

Cléo escutou ávidamente a narrativa da tristeza de Frantz, do seu silencio obstinado, das explosões de Maria Lentz, até ao começo da intimidade com a filha do Vasques bruto. Neste ponto fez perguntas, quiz conhecer todas as circumstancias.

-- Crês na possibilidade de amor entre ambos, pelo menos da parte de Frantz?

-- Não. Elle podia lá apaixonar-se pela Leonorsinha! redarguiu Alice, rindo da idéa.

-- Julgas que me perdoou e que ainda se recorda, da mesma fórma que eu me recordo?

-- Se te perdoou, não sei, porque jámais a ti allude; mas que se lembra tenho a certeza... Quem uma vez te conheceu não póde, ainda que queira, esquecer-te, e vês por mim.

A viscondessa beijou, enternecida, a pequenina mão que lhe pousava nos cabellos, eem quanto Alice, sincera e sem malicia, se detinha, para lhe agradar, no mesmo assumpto, ella, embalada pelo canto das recordações.

Vivos, como se fossem de hontem, acudiam-lhe ao espirito episodios, destaca-vam-se quadros, representando-lhe todos o seu primeiro amor. Via-se aos doze annos, delgada e magra, com os longos cabellos mal contidos pela travessa de tartaruga, cobrindo-lhe a testa em anneis revoltos, aflorando-lhe o rosto, brincando-lhe cintura. Teimosa, auctoritaria, pelo mimo que desde a morte do pae, a mãe e a avó lhe prodigalisavam, mas boa no fundo e innocente, o seu pensamento, em constante contacto com a natureza, era, como ella, são e puro.

Chegára Frantz, n'esse tempo, da Allemanha, onde estivera a educar-se havia dois annos, por expressa determinação testamentaria do pae Lentz, pois d'outra fórma, Maria Lentz, refractaria a estrangeirismos e educações modernas, nem para lá o mandaria, e como houvesse estudado bem, o tio Hermann déra-lhe de presente um bonito relogio de ouro, com a competente cadeia, e a mãe satisfizera-lhe o grande desejo, por elle em cartas varias vezes manifestado, de ter um cavallo para dar passeios durante as férias. Encarregára-se da compra, Luiz Guedes, e logo que o rapaz chegou, D. Maria, acompanhada da familia e das amigas, desceu no jardim, emquanto o cunhado apresentava solemnemente o Frantz, contentissimo pela surpreza, um esplendido cavallo, de pello branco e liso como seda.

Cléo, que assistira a este acto, guardára na mente a figura gentil de Frantz, -- que d'ali fôra, rapazito de dezeseis annos, travêsso, timido, esquivo, imberbe, sempre sujo de andar a toda a hora pelas charnecas, e que voltava agora rapaz de dezoito annos, alto, elegante e bem vestido, -- e nâo esquecêra o sorriso da sua bôcca sombreada pelo bigode, e a alegria dos seus olhos claros quando lhe entregaram o formoso animal, de que ia ser exclusivo dono.

Toda a noite ella pensára em Frantz e no cavallo, toda a noite com ambos sonhára. Deu-se no outro dia o primeiro passeio. As tres familias dos Pedras Negras foram ao largo vêl-o montar e seguir pela estrada fóra. Cléo era toda olhos. N'aquelle genero nunca presenciára espectaculo, que mais a impressionasse. O cavalleiro dos contos ha pouco lidos, que salvára a princeza Azulina, não podia ser mais bello nem montar o seu alazão com maior garbo. «Como eu gostaria de ser tambem uma princeza Azulina!» foi o corollario d'esta idéa.

Recusando tomar parte nos jogos para que as Guedes e Carlos a convidaram, toda a tarde Cléo yagueára pela rua do. portão, escutando o menor ruído, inspeccionando o caminho, até onde a vista podia alcançar. Pouco depois das sete horas, quando o afogueado sol d'aquelle dia de junho descia nas aguas, pondo em chammas o horizonte, e as aves n'um doido chilrear recolhiam aos ninhos entre a folhagem, Cléo, a quem a impaciencia fez ir caminhando pela estrada, parou, com uma exclamação de jubilo, junto á cruz, Frantz, que a reconhecera, dirigiu-se-lhe soffreando o animal.

-- Aqui só, Cléo ?

-- Estava á sua espera, foi a ingenua resposta. Está muito bonito rapaz e eu gosto muito de o vêr no seu cavallo.

Elle achou graça á confissão sincera e, como todo o homem, sentiu prazer na vaidade lisongeada.

-- E' um gosto facil de satisfazer, porque eu tenciono sahir agora todos os dias.

-- A que horas ?

-- De manhã cedo, pelas seis, por cousa do calor, e volto ás nove, a tempo do almoço.

-- A'manhã ás seis sem falta, estarei no meu portado, disse ella; e desatou a correr até ao jardim das Guedes, entrando como um turbilhão no terraço onde sabia estarem todos reunidos, e annunciando a chegada de Frantz.

Na manhã seguinte, e durante todas as manhãs do resto de junho, ella, vestida e prompta ao amanhecer, saltava, sem fazer ruido, pela janella do quarto, e ia esperar o cavallo branco e o dono d'elle. Frantz parava, conversava um bocado, satisfeito pela espontanea sympathia d'aquella creança galante e amimada, docemente perturbado pelos grandes olhos negros, intelligentes e vivos, que com tanta candura o fitavam.

Foi a Anna quem, por acaso, deu com estes rendez-vous, levantando-se um dia mais cedo para ir, antes de aquecer o sol, visitar á villa a irmã doente. Ambos se ruborisaram ao vêl-a, sem saberem porquê, e a Anna tirou dos factos deducções lá a seu modo. Na volta da visita contou o caso ás outras creadas e a D. Luiza, que, muito surprehendida, o repetiu a Maria Lentz. Ficaram contentes as duas pela descoberta, e desde essa hora alimentaram, com a plena adhesão de Sophia e de Luiz Guedes, a esperança de um enlace entre os filhos.

Nada podia sorrir mais a D. Luiza e a D. Maria, nem corresponder melhor aos seus desejos e ambições do que o casamento de Cléo e de Frantz. Desde a descoberta das entrevistas, tornadas publicas, a pobre Cléo era apoquentada pelas creadas e amigas, com pequeninas allusões. E o mesmo succedia a Frantz. Elle, porém, córava e sorria sem ligar importancia ao caso. Ella chorava, zangava-se, amuava-se, cada vez que na sua presença alludiam ao «cavallinho branco».

Foi uma epocha infernal, a do «cavallinho branco», termo que a cada instante lhe soava aos ouvidos

Os innocentes rendez-vous cessaram; porém, a sympathia continuou, sendo Frantz quem a consolava, sempre que por causa d'elle a magoavam. Com o seu regresso ao estrangeiro voltou a serenidade, e tudo pareceu esquecer.

Cléo desenvolveu-se rapidamente, e quando no anno seguinte, concluidos os estudos, o filho mais velho de D. Maria Lentz regressou de todo a casa, estava ella quasi uma senhora, com os seus treze annos e meio, de fatos a tocarem no cano da bota, cabello cahido n'uma longa trança, fórmas um pouco mais pronunciadas. Entrou então n'um periodo extranho, cortado de sobresaltos sem motivo, de alegrias fóra de proposito, de desejos e de anceios vagos. Qualquer phrase allusiva a Frantz a deixava enervada, a presença d'elle causava-lhe um mixto grande de prazer e de angustia, não tinha força de o fitar como d'antes, nem de lhe dizer como o admirava. Quando se sentia envolvida pelo seu olhar azul, atordoava-se, tremia, ficava completamente aniquilada. Anceiava estar ao pé d'elle, e fugia logo que ovia approximar-se. Quanto mais queria reagir, mais aggravava a situação.

Havia momentos em que, consciente do seu ridiculo, se detestava, como succedeu por uma celebre manhã de setembro. Combinara-se um pic-nic nas Bailadeiras, praia arenosa, pouco distante da villa. Além dos habitantes das Pedras Negras, iam a condessa do Valle com os filhos, e os Salters com Fanny e Mario, que contava dez annos apenas, e que, no seguinte mez, o pae levou para Inglaterra a educar. Como fosse relativamente curto o trajecto, decidiram todos ir a pé, levando atraz os burros carregados com as cestas de comida. Chegaram a um ribeiro semeado de pedregulhos, que era necessario atravessar com cuidado. Arrancando uma comprida canna, d'entre o cannavial que orlava a proxima azinhaga, Frantz limpou-a, passou primeiro, e do outro lado extendeu a vara sobre o ribeiro, para as senhoras firmarem as mãos emquanto iam saltando as pedras. Querendo ser a ultima, Cléo deixou passar os outros adeante. Mario gostou da brincadeira e Mr. Salter ficou comelle ao lado de Frantz. Contrariada, pois desejava atravessar o ribeiro quando todos estivessem distrahidos e n'ella não reparassem, Cléo segurou-se, muito nervosa, á vara e deu o primeiro salto.

-- Nimn dich in acht. meine Liebe. disse-lhe Frantz, em allemão.

Ella córou, levantou a cabeça para responder, encarou com o olhar meigo d'elle, e tudo se lhe confundiu deante da vista. Em vez de saltar para a outra pedra deixou-se cahir dentro d'agua. Frantz largou a canna, deu um pulo, firmou-se na rocha, agarrou-a pela cintura e tirou-a para fóra, ao collo. D. Luiza, D. Maria Lentz e as Guedes rodearam-n'a, muito assustadas, julgando que lhe linha dado alguma cousa.

-- Não foi nada, sou eu que sou uma idiota; olhei para cima em vez de olhar para baixo e deixei-me cahir, explicava ella desesperada comsigo, recusando o offerecimento de montar no burro, tirando as botas e as meias, e declarando que andaria o resto do passeio descalça.

Nem as objecções da mãe, nem as das outras senhoras, a demoveram do proposito. Assim foi caminhando, com os pés nús, ao lado da desconsolada Alice, sentindo gozo em se castigar a si propria. D. Luiza, que por demais conhecia o genio da filha, a quem não tinha força de reprimir, deixou-lhe satisfazer a extravagancia. Frantz disfarçava-a contrariedade de a vêr ir d'aquella maneira, fumando um cigarro e conversando com o velho Salter.

-- That won't do, miss Fratel, declarou Mr. Salter por fim, vendo espirrar-lhe o sangue de um pé, ferido nos cardos. Come here, Lentz e fazendo-a parar, formou com as suas e as mãos de Frantz uma improvisada cadeirinha, onde a convenceu a sentar-se, emquanto Alice lhe ligava com o lenço o pé ensanguentado.

Aquelle pic-nic foi desastrado para Cléo, que não se divertiu nada, aggravando a situação o velho Salter, o qual, tanto na volta, como á noite, na sala da casa d'ella, onde houve soirée, a amofinou alludindo sem cessar ao «naughty little brook.» Elle tinha razão, era evidente; ella, porém, não supportava que lhe descobrissem as fraquezas. E assim, com alternativas de ventura intima, confusão e tristeza, foram deslisando os mezes, até que, mulher feita, as cousas que no espirito lhe fluctuavam indecisas tomaram fórma e côr. Longo e divino periodo aquelle em que amou, sabendo-se amada, sem comtudo ninguem a forçar a traduzir por palavras o que lhe ia n'alma!

O quadro com que se fechava este periodo desenhou-se-lhe de repente na memoria. Era em abril. Na vespera fizera annos D. Sophia, e, como de costume, houve lauto jantar e soirée onde se dançou bastante, terminando a festa com jogos de prendas e as competentes sentenças, impostas aos que perdiam. Na ultima, a «Cara de Pau,» que coube a D. Thereza, Cléo e Frantz foram obrigados a abraçar-se e beijar-se. Aquelle beijo tão desejado-- o primeiro beijo de amor entre ambos -- desvairou-os. Nem um nem outro poude dormir, e mal despontou a madrugada,

Cléo desceu ao jardim, e foi andando até ao circulo de pinheiros onde Frantz, que da janella do seu quarto a avistára, appareceu em poucos minutos. Sósinhos, em face um do outro, no melancholico silencio das areias, os corações palpitantes, sentindo-se dominados pelo mvsterioso impulso, o forte borbulhar de seiva que cria desejos, incute coragem, alimenta a vontade, desabrocha as flores, e faz crescer as folhas, permaneceram os dois longo tempo, até que Frantz murmurou: «Cléo!» Por unica resposta ella rompeu em soluços, escondendo-lhe no peito o rosto. Elle estreitou-a nos braços, e sem phrases, sem explicações, beijaram-se ambos com loucura. Interrompeu-os o Koller, seguido logo de Carlos.

Que bellos mezes os d'esse verão, quasi sempre junto de Frantz, phantasiando projectos de um honesto e delicioso futuro, emquanto pelo seu lado D. Luiza e D. Maria, satisfeitissimas, faziam combinações e calculos, decidindo tratar do assumpto, a serio, logo que Cléo completasse os dezoito annos. Em pleno idyllio, em pleno architectar de tantas felicidades, cahiu de chofre a carta da condessa de Miranda, em resposta á de Luiza Fratel, pedindo que lhe arranjasse nova mestra para completar a educação de Cléo, pois que a antiga, a Fraulein Sals, que partira para o seu paiz já doente, mandára dizer que, devido ao mau estado de saude, com ella não contassem mais.

A suggestão foi poderosa em Cléo, absorveu-lhe todas as faculdades, esfriando-lhe até o amor. Ha muito que ella, lendo os jornaes da capital e os jornaes illustrados inglezes e allemães, era assaltada pela curiosidade de vêr tanta cousa bella, de assistir aos espectaculos com pomposa adjectivação descriptos, de fazer parte do numero das privilegiadas elegantes, cujos nomes são citados com louvor em toda a imprensa. Os seus nervos vibrateis, sempre em alvoroço, não descançaram emquanto a mãe não annuiu á proposta. Debalde Frantz, em segredo, lhe implorou que esperasse, que realisado o casamento elle a levaria onde ella quizesse. Cléo insistiu teimosamente, e escreveu cheia de enthusiasmo á tia. D. Luiza, ente passivo, que em solteira obedecera sempre á unica irmã, mais velha do que ella quatro annos,-- irmã a quem um dos amigos do velho conde do Valle, herdeiro de boa fortuna e titulo, durante uma caçada n'aquellas paragens namorára e desposára, -- e que só sahira da tutella da familia para se submetter á tutela do marido, e, depois da morte d'este, ao jugo da filha, não soube resistir e cedeu, esperançada em que, satisfeito o capricho, as cousas voltariam á mesma.

Era tambem a illusão de Cléo. Mas quando ella entrou na cidade, quando lhe saboreou infantilmente os primeiros gozos, quando aspirou o capitoso perfume do luxo, que aformoseia e aristocratisa, quando brilhou nas festas que acariciam a vaidade e exacerbam os sentidos, uma Cléo desconhecida se desdobrou n'ella, fazendo recuar, retrahir-se e eclipsar-se a Cléo da aldeia. Outras perspectivas, outras ambições, outras chimeras lhe vieram dançar na mente; outro coração, outro sentir, supplantaram o coração e o sentir primitivos. A sua inexperiente mocidade não soube analysar os phenómenos psychicos por que passava, nem medir o soffrimento que o seu desamor causava. Acceitou egoistamente os factos, e deixou-se levar por elles, deslisando ao de leve na vida sem voltar a cabeça para reparar no que lhe ficava atraz, aflorando tudo sem nada profundar, preenchendo com mil futilidades o vacuo da existencia, desaprendendo os sãos principios em que fôra creada, renegando os ideaes, que d'antes tanto venerára. E agora, eis que volvida á terra esquecida, cahia-lhe dos olhos a venda : o ser antigo resurgia, ao mesmo tempo que a edade e as horas solitarias a que a doença a obrigára, lhe acordavam a consciencia, lhe abriam o cerebro á reflexão. Era uma alma que, desnorteada e sulfocada até ali no turbilhão dos devaneios e das vaidades mundanas, se encontrava, se interrogava e

-- Porque fiz eu o que fiz? Que secreta força se desencadeou em mim subitamente ? Tive na mão parte do meu destino, dar-lhe-hia um acertado rumo? Se o fixasse d'outra fórma não disfructaria maior ventura ?

E n'estas interrogações se afundou Cléo, nem reparando que Alice guardára. ha muito, silencio, respeitando-lhe a abstracção. Foi só quando Amelia, prevenindo que ia chover, a fez levantar, e quando na ladeira alguns pingos d'agua lhe salpicaram os braços, o vento lhe fustigou as faces e o trovão estoirou ao longe, que ella voltou de todo a si. No pinhal, onde os Lentz as esperavam, surprehendeu-as um forte aguaceiro.

-- Então, apanharam muito peixe? foi a primeira pergunta de Alice.

-- E' vergonha confessar que fomos hoje desastrados e infelizes... Eu não apanhei nada e o Frantz apenas tres salmonetes.

-- Como eu gostava d'elles, lembra-se ? disse Cléo voltando-se para Frantz Lentz.

-- Perfeiramente, e tanto que dei ordem ao José Pedro de os levar para sua casa.

Cléo agradeceu a attenção com um olhar demorado, que fez perpassar um relampago de luz nos olhos d'elle.

A chuva, de que um pouco os resguardava a cupula do cerrado pinhal, cahia a jorros do céu negro, isolando-os n'aquelle recinto, com o seu véu de poeira liquida, atravez do qual nada se distinguia. Da terra a humidade levantava emanações exacerbantes; o vento, os trovões e o oceano casavam as suas vozes n'uma grave escala de tons, onde pareciam vibrar todas as cordas da lyra humana. Amelia, arregaçando cuidadosamente o vestido, esperava com paciencia que o tempo estiasse, muito preoccupada com o que a Agueda teria feito. Alice, encostada a um grosso tronco, embevecia-se em Carlos, que junto d'ella fumava. Cléo e Frantz, esquecidos pelos outros, ficaram proximo e sós, pela segunda vez n'aquelle dia, como se um mysterioso destino se propuzesse avivar-lhes a memoria, despertar-lhes perigosas tentações.

Ella talou sem descançar, nos insigniacantes incidentes da jornada, na doença que a acommettêra, nas melhoras obtidas, para não escutar as vozes intimas e o desordenado pulsar do coração. Elle ouvia-a e observava-a, sem tentar interrompel-a.

A chuva cessou, o vento cahiu, as nuvens adelgaçaram , rasgando-se do lado do vens adelgaçaram, rasgando-se do lado do norte. norte. O trajecto até casa das Guedes, pela areia cortada de matto, foi excitante para a viscondessa. A pesada e humida atmosphera enervava-a, a presença de Frantz perturbava-a, a visão do passado seguia-a na paizagem melancholica onde elle se desenrolára. Emquanto Amelia e Alice foram mudar de calçado e de roupa, no quarto de toilette de D. Sophia, Cléo, sentada n'uma ottomana, esperava a chegada de Bertha com o fato que mandára buscar. Reparando-lhe na prostração e na pallidez, D. Sophia sentou-se no chão, junto d'ella, e com maternal solicitude descalçou-lhe as botas encharcadas, tirou-lhe as meias humedecidas, esfregou-lhe n'uma toalha turca os pés, como o faria a qualquer das suas proprias filhas. Perante aquelle inesperado carinho, a viscondessa, ha tanto affeita só a cuidados interesseiros ou mercenarios, commoveu-se. O pranto brotou-lhe dos olhos.

-- Sente-se mal? interrogou assustada Sophia Guedes.

-- Não... E' que me fez lembrar muito a mamã...

A mãe das Guedes calou-se, relembrando a pobre D. Luiza. Rolaram-lhe pelas faces duas lagrimas. Cléo deitou-lhe os braços ao pescoço, beijou-a com ternura, chorando com ella devagarinho. D. Sophia sentiu estremecerem-lhe todas as fibras do seu bom coração, e quando a pequena soirée terminou, ás dez da noite -- soirée a que assistiram, de fóra, só Elsa com as pequenas e Carlos -- e que viu partir Cléo na companhia de D. Thereza, contou impressionada, a Luiz Guedes, o succedido, e nas suas orações pediu pela gentil orphã, a quem a irmã e outras pessoas negavam quaesquer qualidades affectivas, e que a ella se lhe patenteava tão amoravel e tão sensivel.

V

O dia amanheceu sombrio. A viscondessa de Mello, a quem as excitações da vespera produziram uma consequente depressão, deixou, depois do almoço, que D. Thereza partisse para a promettida visita ás filhas de Elsa; addiou, no seu torpor nervoso, a conferencia com o Lopes sobre assumptos administrativos; e foi fechar-se no seu gabinete de toilette, que d'antes fôra a sala do piano.

Era um quarto espaçoso, com duas grandes janellas para o mar, e outras duas para o jardim. Ali costumava ella em antigos tempos brincar, nos domingos chuvosos, com as bonecos, passar as noites em familia, estudar os exercicios de Czerny, e, sabidos estes, os de Thalberg, no piano usado, que o outro, o rico, ostentava-se na mais sumptuosa sala de visitas. Lá estava ainda, em frente do sophá, o velho instrumento, batido dos pequenos dedos, ha tanto mudo sob a capa de pellucia e flanella que o cobria. Cléo abriu-o, arrancou-lhe uns sons roucos, o preludiou os primeiro? compassos da popular canção irlandeza, que uma mestra d'esse paiz lhe ensinára, aos doze annos : The Wearíng of the Green. Acompanhando a doce melopeia, a sua voz entoou baixo:

O Paddy dear, and did you hear

The news that's going round?

The shamrock is by law forbid

To grow on Irish ground.

Quiz começar a outra estrophe, porém, a garganta opprimida recusou-se-lhe, e emquanto as mãos continuavam a fazer vibrar as téclas, e pelo quarto resoava o Wearing of the Green, resuscitando tanta cousa morta, o pranto ia-lhe toldando a vista.

--E' triste de mais; não posso; murmurou, levantando-se.

E todavia, em que risonhas disposições de espirito a canção fôra aprendida e executada ! Como a alma destinge em tudo as côres de que se veste!

-- Aqui guardava a mamã a bonita collecção de cartas de jogar, por nós todas tão cubicada, e os retratos que lhe não cabiam nos albuns; e Cléo abriu a tampa da secretária de pau santo, e rebuscou as pequeninas gavetas.

Encontrou, entre outros mais vulgares ou usados, dez baralhos novos, tal qual como os seus olhos de creança os haviam contemplado, de margens douradas, caprichosos ornatos, vistosos chromos, representando uns, exoticas paizagens, outros costumes e usos extrangeiros, outros personagens historicos. Estes ultimos eram os seus predilectos. Que prazer, a unica vez que lhe foi permittido -- no memoravel dia em que prefizera treze annos -- servir-se na manilha com as Guedes e os primos dellas, de um dos elegantes baralhos, aquelle em que o rei de ouros representava Henrique IV, de França; o rei de espadas, Carlos VI; o rei de paus, Francisco I e o de copas, Luiz XIV. Quanto a intrigou que n'este baralho as damas, em vez de serem, como no baralho onde figuravam os reis inglezes, as esposas d'esses monarchas, fossem : para o rei de ouros, Gabriella d'Estrees; para o rei de espadas, Odette; para o rei de paus, a duqueza d'Etampes, e para o rei de copas, a La Valliére.

A mestra falou-lhe em grandes senhoras da côrte, dando explicações vagas, que a não satisfizeram; mas com as quaes teve de contentar-se.

Um dia, limpando e arrumando com Alice os livros pertencentes ao fallecido Fratel e ao avô de D. Luiza, o capitão mór, e que esta conservava, sem nunca havel-os folheado, fechados nas grandes estantes do escriptorio do marido, deparou com um volume fancez, de capa amarellecida, ornado de uma boa gravura e intitulado M. elle de La Vallière. Reconheceu logo a dama de copas. Abriu-o, curiosa, dando com as seguintes linhas:

Mademoiselle de La Vallière, qui resta fille d'honneur en devenant maitresse du roi...

Cléo e Alice suspenderam a leitura.

-- Amante do rei, quer dizer, amada do rei... Mas Luiz XIV era casado! foram as considerações de Cléo.

-- E' que a historia passou-se quando elle era ainda solteiro, ponderou Alice.

-- Não, olha.

E Cléo apontou, muito admirada, para esta phrase do fim da pagina :

La pauvre reine était jalouse.

Continuaram a lêr alguns trechos, para ellas de sentido obscuro, deixando-lhes idéas confusas, d'entre as quaes só se destacava bem este facto espantoso e condemnavel para ambas: que a La Vallière acecitára o amor de um homem casado, e que o rei trahira sua mulher

-- E' muito mal feito, dizia Cléo, á noite, discutindo o caso com as Guedes, infligirem sem escrupulo tal dôr á rainha.

-- Muito mal, dizes bem, confirmou Elsa, cuja opinião as outras acatavam sem restricçóes. O casamento é sagrado. Todo o homem que engana a mulher desobedece a Deus e commette um crime; toda a mulher que levanta os olhos para o marido de outra, cahe em peccado mortal e perdeu o direito ao céu.

Nunca mais Cléo mirára as gentis figurinhas das peccadoras e peccadores que ellas reproduziam.

-- Que tola que eu era então! pensou. Quantas La Vallière sem arrependimento, quantos homens de moral tanto ou mais facil que a de Luiz XIV, conheci e até admirei na sociedade onde eram e são o principal ornamento e encanto! Que pontos de vista se adquirem quando se habita as cidades! O que se me afigurava aqui feio e mau, chegou depois a parecer-me bom e bello! Maridos e esposas fieis, ideal só facil de alimentar n'este escampado, á hora em que a lua bate em cheio nos desoladas charnecas, povoando de caprichosas sombras os jardins, e em que o mar geme de encontro ás pedras, purificando com as suas brizas o ambiente. Fidelidade conjugal, crença adorada da minha adolescencia, como a crença em tantas outras virtudes, tu só pódes ser comprehendida e tomada a sério n'estes solitarios brejos, á sombra dos resinosos pinheiros, sobre estes áridos promontorios. Fóra d'aqui, és apenas uma palavra banal, ôca de sentido, como tantas outras !

E Cléo, fazendo estas reflexões, passava uma por uma as cartas dos historicos personagens, cujos episodios desde muito lhe eram perfeitamente conhecidos. Surprehendeu-a sentir-se inclinada para o modo de vêr antigo. Faltas sem importancia aquellas? Não... Faltas graves.,. Perjurios, vergonhas, peccados... Elegantes taes aventuras ? Engano, a suprema distincção é o Bem. Superior a todas as paixões é a virtude da alma que as domina. N'este ponto travou-se n'ella uma curiosa lucta entre os novos e os velhos ideaes.

Guardando os baralhos no mesmo logar, examinou o maço de photographias macillentas, grupos de habitantes das Pedras Negras, tirados por amadores, retratos de mestres e mestras, retratos de negociantes extrangeiros, relacionados com a casa Fratel, retratos de actrizes hespanholas, de troupes ambulantes que por ali passavam, retratos de pessoas de familia, quasi todas fallecidas. Fel-a rir um detestavel grupo d'ella com as Guedes, a Miss Ward, D. Luiza e D. Sophia, dando ideia de um bando de selvagens a assomar d'entre uma gruta. N'um outro cartão, a sua figura estava representada aos seis annos, em pé, de cabello solto, expressão idiota, o braço esquerdo, a que a perspectiva dava dimensões irrisorias, extendido ao longo do corpo, segurando na dextra uma dhalia hirta, núa de folhas, e ao lado, sentada á borda de uma cadeira de verga, Irene, a sua irmã, mais velha do que ella sete annos--a sua unica irmã, uma esbelta e formosa loura que a morte ceifára em plena juventude -- de tranças cahidas, mãos espalmadas sobre um livro estupidamente collocado no regaço, o olhar espantado, como se estivesse presenceando um caso extranho.

-- Era tão bonita, e aqui... parece quasi um monstro.

E reviu, tal qual a metteram no caixão, a pobre Irene, tão branca entre as brancas rosas e as rendas que a envolviam, sorrindo angelicamente. Que dôr formidavel attrubulára o seu coraçãosinho de oito annos, e quanto lhe custára conformar-se com a idéa de jámais tornar a vêr na terra a virtuosa irmã, tão sua amiga, tão boa sempre, tão indulgente!

Ao retrato de Irene seguiu-se um perfeito busto de Frantz, tirado em Berlim aos dezenove annos.

-- O retrato que elle deu á mamã... Que de vezes em segredo o cubicei... Para afinal rasgar sem dó, na vespera do me offereceu, pouco antes da partida para Lisboa...

A viscondessa permaneceu com o olhar fixo no busto adorado e desprezado.

-- O correio, senhora viscondessa, avisou Bertha, do corredor. O Diogo veiu mais tarde porque a diligencia teve demora.

Ella recebeu o sacco de linho com a correspondencia, tornou a cerrar a porta, despejou-o sobre a papeleira, e d'elle cahiram o Illustrado, o Figaro, e quatro cartas elegantes, de longos sobrescriptos, fechados por obreias de perfumado lacre, onde se gravavam iniciaes. Abriu uma ao acaso. Era da condessa de Moréda, lastimando-a do degredo a que se vira obrigada, contando-lhe os compromissos mundanos de todo o verão e outomno.

« Que je te plains, ma pauvre amie !» terminava a condesa.

Cléo admirou-se da frieza em que a deixou essa leitura. Pela primeira vez lhe acudiu á mente, que o espectaculoso viver da formosa Moréda, entre os requintes do luxo e as subtilezas da mentira, podia muito bem não representar o cumulo da ventura. Seria um destino devéras invejavel enganar para a direita e para a esquerda, mentir a si e aos outros, representar constantemente, só para a intima satisfação de mesquinhos egoismos e pequeninas vaidades ? As cartas da prima Miranda e da baroneza Zuttman tambem a não enthusiasmaram. Que lhe importavam as projectadas festas da baroneza de Roure, em Cintra, para se aturdir e esquecer por momentos a inevitavel e proxima velhice; o futuro enlace do visconde de Lucena, com a Maria Luiza Aguiar; o escandalo da subita fuga do conselheiro Matheus do Amaral com a mulher do banqueiro Alvaro Garcia ? Parecia-lhe estar tão separada de taes cousas, como se longos annos houvessem interposto entre o seu viver da cidade e o seu actual viver! As pessoas e os d'aquellas folhas de papel evocava, tinham a fugidia e longinqua realidade de figuras e historias ha muito contempladas, e diluidas em remotas brumas. O que havia de commum entre ellas e a sua presente, individualidade ? Se tentasse descrever-se tal qual se estava sentindo, o que diria uma Moréda, uma Zuttman, uma Miranda ? De todos as novidades, só uma a abalou. Foi a noticia da grave doença do conde Alfredo Villar1.

-- Pobre Lydia, como ella deve soffrer a esta hora ! Amor singular, quasi ridiculo á força de excessivo, o d'essa rapariga, que todos julgavamos tão leviana, tão insensivel, e que possuia um coração capaz dos mais vivos affectos! Como a sociedade se riu do ludibriado Noronha e do seu donaquixotismo ! Como applaudiu e invejou o vencedor e bello Villar! E como elle e Lydia, após o casamento, corresponderam mal ás espectativas, vivendo um para o outro no seio da familia, em vez de se entregarem aos ruidosos divertimentos, extravagancias e coups de tête, com que o publico selecto contava, dados os antecedentes da nova condessa!

Meditativa, Cléo rasgou o ultimo sobrescripto. A carta era de um brilhante diplomata, seu grande admirador. Achou-lhe falta de espirito, estylo guindado, sentimento piegas, e atirou-a, aborrecida, para o chão. Extendendo-se commodamente no sophá, rompeu a cinta de um dos jornaes, que deixou pender no collo, emquanto que os olhos pareciam fitar no espaço um ponto invisivel.

No morno silencio que a rodeava, discernia-se o surdo zum-zum das moscas, acompanhado a espaços pelo mais forte zumbir do moscardo; o compassado tic-tac do velho relogio do corredor; o vigoroso rumorejar das folhas das accacias e dos eucalyptos; o irrequieto ciciar de pintasilgos e pardaes; a confusa toada da capoeira, d'onde sobresahia o glu-glu dos perús. Ao longe, pela janella aberta sobre o mar, echoava, morrendo em dolentes suspiros, prolongados pelo vento, a ladainha que, na praia, os pescadores, cheios de fé, psalmodiavam, deitando as redes nas barças com destino ás armações. Cada vez que a aragem trazia ao seu ouvido uma ou outra phrase solta da tão familiar cantilena, um ligeiro estremecimento percorria o corpo de Cléo; cujo olhar negro continuava a fixar o espaço.

1 Veja-se A Esphinge, romance da auctora.

Uma nova pancada na porta fez com que a viscondessa se aprumasse, perguntando o que lhe queriam:

-- Está na sala a senhora D. Maria Lentz, a nora, a mestra e uma senhora D. Pulcheria. Como V. Ex.ª não deu ordem em contrario, o Augusto mandou entrar. O sr. Frantz Lentz acompanhava-as; mas deixou bilhete e retirou-se.

Cléo ergueu-se vagarosamente. Elle recusára visital-a, e ella via-se obrigada a receber sósinha D. Maria, cuja attitude a irritava, e a encontrar-se com Leonor e a mãe, creatura que lhe era tão desagradavel.

Fôra-lhe sempre antipathica a mulher do Vasques bruto. Desde que se entendia no mundo, aquelle typo symbolisava para ella toda a sorte de estupidez e de incongruencia de que é capaz um ser humano ! Vêl-a entrar em qualquer parte, radiante no ramalhar das saias retesadas pelagomma, dando um saltinho a cada passo, com um riso alvar a contorcer-lhe o rosto, os olhos redondos humedecidos de equivocos sentimentos, a face angulosa, onde o curto e delgado nariz remexia sem cessar, espalhafatoso turbante á cabeça, trajes vistosos, sem harmonia, -- parodia viva aos trajes da condessa do Valle, a quem macaqueava,--escorrendo-lhe dos labios um borborinho de palavras sem nexo, bracejando para a direita e para a esquerda, era experimentar logo uma incoercível vontade de rir, de mistura com uma irraciocinada repulsão.

A taes influencias não podia a filha esquivar-se. Cléo media Leonor e D. Pulcheria pela mesma craveira. E se considerava Leonor Vasques o prototypo da mãe, não a desligava tão pouco da individualidade do pae, o Vasques bruto, homem magro, espigado, trigueiro, assim alcunhado pelo estupida teimosia das suas opiniões, elaboradas n'um cerebro, que estudo algum oxygenára, um cerebro espesso, d'onde nada sahia, onde nada tão pouco podia penetrar. Observar-lhe a expressão idiota da physionomia enquadrada em oleosos cabellos grisalhos, o lascivo sorriso dos labios grossos, arregaçando um ralo bigode, o palpitar das narinas atufadas de rapé, os brilhantes olhos de suino, com transparentes expressões de fauno, era adivinhar-lhe a baixa concupiscencia, a crassissima ignorancia, a pronunciada erotomania.

Conhecendo Leonor desde pequena, Cléo jámais sentira por ella uma affeição séria. Tanta cousa interiormente as separava que, apesar das suas edades approximadas, e de constantes brinquedos em commurn, nunca a poude considerar, como ás Guedes, sua companheira, sua egual. Quando, por acaso, o Vasques bruto, que fôra muito dedicado ao fallecido Fratel, e que tinha na mais alta conta a boa D. Luiza, mandava para casa d'ella, em angustiosos transes de graves arrelias domesticas, e durante semanas, a filha, Cléo tinha nesta um excellentc automato, acudindo ao menor chamamento, obedecendo sem discussão a qualquer ordem, uma sombra, emfim, que a seguia sem um murmurio por toda a parte: mas não tinha como a sua boneca articulada, Cléo trata-lhe um dia entrouxal-a em panninho escarlate, envolvel-a em festões de malvaiscos, e collocal-a, fingindo estatua, a um canto do jardim, com um braço na cabeça, outro na cintura, dando-lhe ordem de assim permanecer até ella voltar. Correu a ir chamar as Guedes, para admirarem este bello. trabalho. Ellas entretiveram-na e fizeram-lhe esquecer a Lenorinha, diminutivo que lhe davam. A' hora do jantar, quando iam sentar-se á mesa, é que, vendo o logar ao seu lado vago, Cléo se recordou, correu ao jardim, onde, banhada em lagrimas, porém na mesma pose, a humilde Leonor continuava estacada!

-- Parva, porque te não mexeste, uma vez que eu não apparccia ?

-- E' que eu não sabia, tartamudeára a filha do Vasques, contente por se libertar da penitencia.

«Eu não sabia», era o estribilho de Leonor. Cléo e as amigas puzeram-lhe «o não sabia.»

Em Lisboa, no meio dos divertimentos de um inverno fertil em distracções, a noticia espantou-a, e por momentos -- aquelles que decorreram durante a sua toilette para um baile, entre o calçar das meias de seda, o afivelar das ligas de setim, até ao pregar do bouquet no fundo decote, e o abotoar das longas e perfumadas luvas -- incommodou-a. Agradava-lhe, no turbilhão de uma valsa capitosa, escutando a languida musica de uma opera, ou lendo um livro sugestivo, pensar que lá ao longe, entre os rochedos, alguem solitario a adorava, e por ella estava soffrendo. A imaginação encontrava pasto, em momentos de ociosa divagação, para idealisações lisongeiras á natural vaidade feminina. Elle votado ao celibato, não obstante o abandono em que o deixaram, que interessante e simpathico heroe! elle, porém, cahido na mesquinha prosa da vida, por um casamento archiburguez, que absurdo, que reles, que insignificante aos olhos de Cléo!

-- Não merecia nada, nada, nem o pouco que lhe dei; dissera ella mordida de despeito, ao pôr a capa de arminhos, e emquanto pegava no leque de marabouts, sorria ao espelho e partia para o baile, que finalmente apagou a contrariedade.

Foram as ultimas scentelhas sahidas das cinzas do esquecimento onde pensava jazer, completamente morto, o seu amor da aldeia, quando elle, apenas adormecido, estava prompto, mal lhe tocassem, a resuscitar como Lazaro.

Na persuasão de um terminante ponto final sobre todo aquelle assumpto, outr'ora querido, viveu uns poucos de annos Cléo, e na mesma persuasão partiu para Sutil. Nada mais havia a accrescentar ao romance cujo desastrado epilogo o próprio Frantz escrevera. Nada havia? Que desmentidos a vida se encarrega de dar ás nossas mais arreigadas convicções! Juraria a viscondessa de Mello, ainda ha uma semana que, entre ella e Frantz tudo acabára, nada mais era possivel. E agora, emquanto ajudada por Bertha, compunha melhor o cabello, enfiava uma cuidada matinée em Seda crúa, e se encaminhava para a sala, sentia vagamente que se illudira, que o livro, que julgára completo, podia muito bem achar-se apenas no prólogo !

-- Senhora viscondessa... Está melhor? Ora... Ora... Como vêm mudada... E formulando esta sentença, D. Pulcheria, n'um vestido de faille verde, romeira em renda preta, e capota de alto penacho, apertava na sua mão enluvada de amarello, a mão de Cléo, e examinava-a dos pés á cabeça. Não quiz demorar a minha visita ... O Antonio pede desculpa... Sempre lá mettido para a Dorna .. E' a sua mania, a Dorna.

E D. Pulcheria, gesticulando muito, continuou na sua incuravel garrulice. Leonor, em cabello, e vestido de voile aos quadradinhos, córando até aos olhos, ficou de pé, indecisa, em frente de Cléo, tregeitando a bôcca mal fechada, devido á proeminencia dos dentes. A viscondesse hesitou um segundo, o tempo de dirigir um frio cumprimento a D. Maria, o outro á Fraulein. Dominando-se logo, deu um beijo na face da mulher de Frantz, tratando-a, como d'antes, por Leonor. Depois curvou-se e beijou o pequenito, que ella trazia pela mão, perguntando-lhe nome.

-- Hermann, como o tio, que foi padrinho, respondeu Leonor, mais senhora de si pela caricia feita ao filho.

Cléo sentou ao seu lado a creança, formosa e a loura como o pae, fazendo recahir sobre elle a conversa, sobre o que aprendia e as maldades que fazia, sobre a escarlantina do inverno que lhe abalára o organismo, e a constipação recente que o obrigava ainda a muitos cuidados, e a evitar sahidas á noite. Era aquelle o filho de Frantz, a sua carne, o seu sangue, a crystallisão do seu affecto! Affecto? Não. O pequeno representava tudo, menos o fructo de um amor... Em todo o caso, o resultado era o mesmo... Se ella houvesse consentido, seria sua aquella creaça, ou outra parecida, mais bella ainda. A idéa, Cléo sentiu-se palpitar até ao mais profundo das entrenhas. Pela primeira vez estremecia a maternidade latente no seu ser.

A conversa animava-se; D. Pulcheria remexia-se e tagarellava sem treguas; Leonor atrevia-se a pronunciar monosyllabos, acompanhados pelo seu eterno e deslavado sorrir; a Fraulein, que mal as entendia, escabeceava; D. Maria, rispida e séria, escutava, e a viscondessa respondia machinalmente, rentendo nas suas uma das mãos de Hermann, mirando-o com o espirito atormentado por teimosas visões.

-- Eu queria bolos, tu não tens? perguntou elle de subito, baixando muito a voz para que o não ouvissem, e lhe não ralhassem.

Aproveitando a boa liberdade alemtejana, onde os requintes da etiqueta são desconhecido luxo, Cléo levantou-se, pediu licença a Leonor, levou consigo Hermann á casa de jantar, tirou dos aparadores os melhores dôces que encontrou, e deixou-o escolher á vontade. Sorrindo com a sua boquinha gulosa, elle provava, saboreava, e ia guardando nas algibeiras o que mais lhe agradava. Ella observava-o n'uma especie de fascinação, e quando o pequeno afastou de si o resto dos dôces, declarando já não querer mais, ajoelhou, tomou-o nos braços, e beijou-o como o beijaria se Hermann lhe pertencesse.

-- Não digas á mamã que fui eu que pedi... recommendou elle ao ouvido.

O enthusiasmo de Cléo, ao ouvir isto, arrefeceu. Veiu-lhe um ciume irraciocinado. A mamã do filho de Frantz! O «não sabia» ! E estava ella, doida, acariciando a creança, lembrando-lhe sómente o pae e o passado, quando ella era tambem por egual a carne, o sangue e os nervos da filha do Vasques bruto, a crystallisação de um affecto extranho ao seu! O amor de uma outra mulher por Frantz! Como isto lhe soava mal!

-- Que estupidez, que devo eu importar-me...murmurou Cléo, pegando da mão do pequeno, entretido a comer uma trouxa de ovos, e dirigindo-se para a sala, onde, todos de pé, recebiam os cumprimentos das visitas chegadas durante a curta ausencia da viscondessa, as importantes irmãs Rochas, -- os seis rochedos, -- como pelo sitio lhes chamavam.

Logo que as avistou, Hermann, largando a mão que o retinha, desatou a correr pelo corredor, escapando-se pela porta de entrada. Debalde Cléo, Leonor e a avó o chamaram.

-- Não quero falar ás bruxas, gritou elle do patamar.

E galgando os degraus de pedra, desappareceu emquanto a mãe e D. Maria se desculpavam e despediam, e a Fraulein, resmungando em allemão, corria ao jardim em procura do travesso rapaz.

Cléo sentiu impetos de imitar Hermann ao achar-se sósinha em presença das irmãs Rochas, aquellas celebres irmãs, todas donzellas, que os annos pareciam respeitar, e que ella sempre conhecêra da mesma maneira, com os cabellos grisalhos sob os engommados lenços de cambraia, muito brancos, os corpos ossudos e pequenos, cobertos com os negros e rodados capotes, os de formosura, parecidos como copias fieis de um modelo unico, sulcados pelo mesmo numero de rugas.

Com os seus methodicos e inveterados habitos, foi a mais velha, a mana Catharina, o rochedo numero um, quem primeiro avançou, extendeu a mão núa e tomou a palavra.

-- Como passa a senhora D. Cleontina? Vae melhorsinha? Estimo... Estimo...Como ficou a senhora sua tia? E como vão as senhoras suas primas? E o menino da que se casou ?

Seguiu-se-lhe a mana Antonia, a da voz meliflua, que entoou por seu turno:

-- Como passa a senhora D. Cleontina? Vae melhorsinha? Estimo... Estimo...Como ficou a senhora sua tia? E como vão as senhoras suas primas? E o menino da que se casou ?

Succederam-se a esta a mana Victoria, a mana Ignacia, a mana Joaquina e a nervosa e romantica mana Ricarda, expressando-se todas da mesma fórma, fazendo os mesmos gestos e mesuras, e, terminada a ceremonia, sentando-se todas ao mesmo tempo, muito chegadas umas ás outras.

A viscondessa encetou logo o assumpto mais svmpathico para ellas, o assumpto invariavel das suas conversas em occasiões solemnes: a festa da Senhora da Rocha, padroeira dos pescadores.

De novo a mais velha tomou a palavra, para censurar a pouca religião do povo, o estado de desleixo em que se deixam as cousas sagradas. Até o proprio párocho pensava mais em divertir-se do que nos seus deveres.

-- Vae um tempo, minha querida senhora...

Por isso ha tanta desgraça n'este mundo!

Côro das manas, em tom menor:

-- Por isso ha tanta desgraça neste mundo!

-- Gasta-se dinheiro a jorros em cousas inuteis, e para as cousas santas ninguem dá nada.

Outro côro das manas:

-- E' verdade... Para as cousas santas ninguem dá nada.

-- Se não fossemos nós, que o anno passado, das nossas parcas economias, lhe offerecemos o manto novo, continuou Catharina animando-se, o que seria da imagem de Nossa Senhora! Nem fato a estas horas teria !... O melhor vestido que possue é o de setim branco bordado a ouro, offerecido pela mãe de V. Ex.ª,

a virtuosa senhora D. Luiza, que Deus haja... Nunca mais tornou a ter outro!

-- A senhora D. Catharina fica encarregada de encommendar o fato que a Senhora da Rocha necessitar, e enviar-me depois a conta.

-- Muitissimo obrigada, minha boa senhora.

-- Deus e a Virgem Maria é que a hão-de recompensar do bem que faz.

-- Deus e a Virgem Maria é que a hão-de recompensar do bem que faz, entoaram as outras manas.

As lamentações de Catharina passaram dos vestidos da Senhora para os trajes do Menino Jesus.

-- Tem um fatinho novo, que lhe offereceu o lavrador da Ervideira, como promessa no caso da filha se pôr boa da molestia que a ia matando ; mas o ouro com que o bordaram é táo inferior que se vae marcando todo. E' uma vergonha para os Irmãos o Menino apparecer d'aquella maneira na procissão. Ainda no altar, com as luzes, disfarça; mas cá fóra, de dia, não se póde vêr.

Cléo prometteu dar tambem um fatinho ao Menino Jesus o comparecer na sacristia, ao vestir das imagens, encargo este ha longos annos delegado nas irmãs Rochas, que se retiraram satisfeitas, apoz as formalidades da despedida, identicas ás da chegada.

-- Coitadinhas, muito boas pessoas, mas não ha meio nenhum de as supportar... Porque haverá virtudes tão repellentes, tão intoleraveis como vicios ?

E Cléo, monologando, muito mal disposta, jantou, mandou pôr a carruagem, e sahiu sem enviar ás Guedes recado, nem procurar vêl-as.

Desejava, n'aquelle momento, sentir pulsar o coração e expandir-se-lhe a alma na soledade da agreste, paizagem, a vêr se se entendia melhor. Atravessou a villa, quasi deserta áquella hora, em que nas fabricas centenas de creuturas labutavam pelo duro pão; e no começo da estrada de S. Mauricio, mandou descer o capello e torcer á direita, pela estrada de Mortagua.

O vento soprava rijo e fresco; no céu, porém, as nuvens haviam-se separado e vagueavam recortadas cm phantasticos arabescos, deixando a descoberto o sol. Para cá da distante serra, via Cléo a árida planicie, o curto matto que projectava manchas negras no terreno saibroso, e a linha do horizonte fundindo-se nos anilados tons da serrania. Do outro lado, no sólo era declive, alteavam-se escuros pinheiros, separados por médãos de areia, e logo grandioso na sua immensidade, tão verde ainda de manhã, e agora de um tão puro azul.

Como Cléo amava aquelle mar multicôr e mysterioso, aquelle mar prothreano e rico de harmonias! N'elle mergulharam os seus

-- Deus e a Virgem Maria é que a hão-de recompensar do bem que faz, entoaram as outras manas

As lamentações de Catharina passaram dos vestidos da Senhora para os trajes do Menino Jesus.

-- Tem um fatinho novo, que lhe offereceu o lavrador da Ervideira, como promessa no caso da filha se pôr boa da molestia que a ia matando ; mas o ouro com que o bordaram é tão inferior que se vae marcando todo. E' uma vergonha para os Irmãos o Menino apparecer d'aquella maneira na procissão. Ainda no altar, com as luzes, disfarça; mas cá fóra, de dia, não se póde vêr.

Cléo prometteu dar tambem um fatinho ao Menino Jesus e comparecer na sacristia, ao vestir das imagens, encargo este ha longos annos delegado nas irmãs Rochas, que se retiraram satisfeitas, apoz as formalidades da despedida, identicas ás da chegada.

-- Coitadinhas, muito boas pessoas, mas não ha meio nenhum de as supportar... Porque haverá virtudes tão repellentes, tão intoleraveis como vicios ?

E Cléo, monologando, muito mal disposta, jantou, mandou pôr a carruagem, e sahiu sem enviar ás Guedes recado, nem procurar vêl-as.

Desejava, n'aquelle momento, sentir pulsar o coração e expandir-se-lhe a alma na soledade da agreste paizagem, a vêr se se entendia melhor. Atravessou a villa, quasi deserta áquella hora, em que nas fabricas centenas de creaturas labutavam pelo duro pão; e no começo da estrada de S. Mauricio, mandou descer o capello e torcer á direita, pela estrada de Mortagua.

O vento soprava rijo e fresco; no céu, porém, as nuvens haviam-se separado e vagueavam recortadas em phantasticos arabescos, deixando a descoberto o sol. Para cá da distante serra, via Cléo a árida planicie, o curto matto que projectava manchas negras no terreno saibroso, e a linha do horizonte fundindo-se nos anilados tons da serrania. Do outro lado, no sólo em declive, alteavam-se escuros pinheiros, separados por médãos de areia, e logo abaixo extendia-se a perder de vista o mar, grandioso na sua immensidade, tão verde ainda de manhã, e agora de um tão puro azul.

Como Cléo amava aquelle mar multicôr e mysterioso, aquelle mar protheano e rico de harmonias ! Nelle mergulharam os seus grandes olhos de velludo, como a pedir-lhe a explicação do que por ella se estava passando.

-- O que desejo, o que quero eu ? O que me alegra e me perturba desde que cheguei aqui? Porque me não sinto a mesma que era ainda ha poucos dias? Porquê? Nada de novo me succedeu... Nada de novo?

Cléo parou n'esta interrogação. Materialmente nada lhe succedêra mais do que a prevista, prosaica e trivial viagem. A mudança a que a doença a obrigou, não podia só por si modifical-a a este ponto; mas era fóra de duvida que lhe accentuára a personalidade, revelando-lhe lados obscuros.

Os acontecimentos exteriores nada criam de novo dentro do nosso ser; mas descobrem-nos muita vez cousas que lá trazia-mos escondidas. No intimo da alma de Cléo é que alguma cousa extranha se passava. N'ella é que as recordações evocadas faziam brotar, crescer, alastrar-se, em horas apenas, a saudade, a mesta e melancholica flôr, que só no tumulo desampara aquelles de quem se apossa. Saudade, sim, era o nome do tormento até ali ignorado, saudade do tempo feliz, decorrido n'aquelle ermo, e que não mais volveria ; saudade dos mortos adorados, que aos tumulos jamais despertariam; saudade da sua infancia, dos seus primeiros desesperos, quando tentava apanhar as reluzentes gottas de orvalho e ellas se lhe derretiam entre os dedos ; saudade das suas primeiras alegrias, quando rompia a primavera e com ella appareciam as aves, as bonitas flôres, os saborosos fructos; saudade das suas primeiras admirações, quando contemplava o oceano em furia, ou fitava o deslumbrante arco iris; saudade ainda das infantis crenças murchas, dos brinquedos e travessuras, do alvorecer da adolescencia, da voz, dos gestos, do rosto, do modo de sentir d'aquelle periodo; saudade do simples coração que lhe batia no peito, do innocente olhar que pousava na paizagem; saudade tambwm, do seu passado amor e da ventura que elle lhe déra.

-- Eu amava-o tanto, tanto; imaginava uma vida tão boa ao lado d'elle, servindo-o, adorando-o; não comprehendia a felicidade sem a sua presença, o seu carinho... E as minhas idéas mudaram no contacto com a sociedade... Julguei haver-me enganado... Julguei que podia ser feliz por outra fórma. Pensei que o amor era a febre do gozo, era a vaidade lisongeada, era o egoismo satisfeito, quando elle afinal paira tão alto e tão longe d'estas pequenas miserias...

O amor,-- a paixão fecunda em emoções, até de ordem esthetica, pois que representa um papel predominante na propria origem da arte, e põe mesmo na alma obscura dos animaes uma claridade vaga, esboço do sentimento do bello, -- fôra só aqui que se lhe revelára com verdade, bem o reconhecia agora, estremecendo nos ninhos entre a verdura, exhalando-se do pollen das flôres e da perfumada atmosphera, suspirando voluptuosamente pela possante voz do oceano, incendiando-se á noite na branca luz do pyrilampo, cantando sob o luar pela maviosa garganta dos rouxinoes, e reflectindo-se nos grandes e limpidos olhos azues de Frantz.

-- Com que intensidade o amei a elle, e ao scenario do nosso affecto!

Pensando isto, duas lagrimas, a que o sol arrancou irisações, desprenderam-se-lhe das longas pestanas e rolaram-lhe devagar pelas faces.

-- Vamos, coragem, disse ella enxugando-as, é preciso dizer um adeus eterno ao passado como um adeus eterno temos de dizer á vida. Este amor acabou... Que serve preoccupar-me com o que não existe?

E avistando o pequeno monte que alvejava na encosta, entre montados, a viscondessa reconheceu o sitio em que estava, mandou parar, apeou-se, atravessou uma nesga do pinhal e começou a descer a ingreme ladeira, em direcção á praia das Mouras, tão embevecida nos seus pensamentos, que nem reparou que, um pouco adeante, na estrada, á sombra de uns pinheiros, estava postado outro trem.

Acabou... Este amor acabou... ia ella repetindo, fazendo rolar adeante de si com a ponteira da sombrinha as pedras miudas.

De repente estacou.

E se elle ainda se lembrasse ? Se ainda gostasse de mim um pouco? Se não pudesse apagar do seu coração o que no meu sem esforço se extinguiu?... Não... Estou mentindo a mim mesma, tal qual como se me encontrasse em publico, volveu ella, sacudindo a cabeça. Mera illusão... No meu ser não se extinguiu de todo o sentir antigo... Dar-se-ha com elle o mesmo ?...

Cléo continuou a andar, sem concluir o pensamento, até penetrar na vasta e solitaria praia, com o seu enorme recife ao sul, a praia cuja lenda tanto a fizera scismar em pequena, ao ouvir contar á avó e ás creadas, que por certas noites de luar os pescadores viam sobre as pedras, á entrada da gruta, tres formosas mouras penteando os sedosos cabellos com pentes de ouro. Quantas lendas de mouras encantadas aprendera, e como anhelára pelo apparecimento de uma d'ellas, sempre que á noite olhava para os rochedos e para o mar! No seu primeiro passeio áquella praia--ha quantos annos já ! -- postára-se sobre as mysteriosas lages que, no dizer popular, escondiam thesouros e palacios de princezas enfeitiçadas, e chamára devagarinho por ellas, que não acudiram ao chamamento.

-- Patetices que fazemos em pequenas e de que em grandes nos rimos... Sim; mas patetices que nos causam saudades, e pelas quaes trocariamos sem pezar a dura sabedoria d'outra edade.

Parou outra vez a viscondessa contemplando o espectaculo que a rodeava. Seriam seis horas da tarde. As vagas, rendadas de prata, lambiam a fina e lisa areia, aos seus pés; quasi á superficie das aguas pairavam bandos de gaivotas espreitando as incautas prezas que por ali vagueavam em cardumes, reconhecidas nas tonalidades de um vermelho metallico, que o oceano apresentava n'esses pontos. O sol empoeirava de ouro pallido a atmosphera, e amarellecia as areias onde os rochedos da gruta desenhavam em tintas negras as rudes fórmas seculares. Para elles se dirigiu Cléo, no intento de repousar. Quando tornejava o alto despenhadeiro, que escondia e resguardava o recinto da gruta, suspendeu-se vendo sentado, justamente sobre uma pedra das Mouras, um vulto feminino todo vestido de preto. Embora a visse de costas, devia não ser ainda velha aquella mulher, pois que eram abundantes e de um castanho claro os cabellos negligentemente enrolados sob a aba do chapeu tambem preto, comprida e fina a cintura, esbelto e delicado o busto. A imaginação da viscondessa volveu ao tempo em que tomaria por uma lendaria princeza a creatura immovel, sentada na sua frente. E immovel se quedou ella tambem, ante a visão, que voltou afinal a cabeça.

Não obstante as feições emaciadas, os olhos mais encovados, o rosto desbotado, indeleveis estygmas de fundo soffrer, a viscondessa de Mello reconheceu immediatamente Margarida de Lencastre. e para ella, sem hesitar, se encaminhou.

Na sociedade, os mesmos preconceitos que sanccionam a convivencia publica com quem sabe esconder fraquezas e faltas sob o manto de hypocritas virtudes, ou tem arte de as escudar sob um nome que obriga a convencionaes respeitosm não admittem relações com quem, mais sincero, não poude ou não quiz tomar parte na grande comedia mundana. Como succede no palco de theatro, os actores do palco do mundo são assobiados pelo publico em desequilibrando o jogo scenico e representando mal os papeis. A esposa de Affonso de Lencastre mostrára-se uma pessima actriz, e, como tal, fôra com justiça posta fóra do proscenio e votada pelas suas collegas ao ostracismo. Para que se teria ella compromettido escrevendo com o seu proprio punho ao visconde de Lauriac? Porque não enganou melhor, e porque tomou a sério um episodio que deve ser encarado de outra forma ? Quem a mandaria acreditar no cavalheirismo de um amante, quando bastava o simples facto d'elle a querer arrastar onde a arrastou, para dar direito a julgar mal da sua dignidade e do seu caracter? Porque não foi previdente e cauta como tem obrigação de sel-o toda a mulher de sociedade ? «Porque não procederia como nós?» interrogava ainda o côro feminino do seu conhecimento, orgulhoso da sciencia propria, que lhe permittia eguaes peccadilhos, evitando-lhe cahir em identicos laços, e voltando sem piedade as costas á amiga da vespera, que lhes offendia a artificial pureza, com os desmandos do seu coração sincero.

A viscondessa de Mello, que muito convivera com Margarida em Lisboa, tanto mais que Affonso de Lencastre, proprietario em Sutil e S, Mauricio, terra da sua naturalidade, era visita assidua de D. Luiza, não ousou comtudo abrir excepção e dar um exemplo, que ninguem approvaria e que a prejudicaria ainda por cima. No seu intimo lastimou Margarida, não a julgou peor do que as outras, nem tão pouco a desprezou. Mas a covardia natural a quem não possue auctoridade nem forças para sósinho combater erros sociaes e injustas leis, inhibira-a de lhe patentear por qualquer fórrna, em publico, sympathia ou respeito. Afastou-se, portanto, discretamente. Encontrava-a agora n'um ermo, aureolada demais a mais pela fama que chegára até á capital, da paixão inspirada a Mario Salter, a ponto de o despenhar no tumulo -- paixão que a fizera a ella e ás outras meditar e que por momentos invejára -- e o que se não atreveria a praticar na roda a que ambas pertenciam, era-lhe grato praticar, livre dos jugos d'esse meio.

Ah! podermo-nos emfim guiar pelos generosos impulsos da nossa alma, escutar a voz da nossa consciencia, e o que de melhor pulsa no nosso seio !

Margarida de Lencastre apertou ao de leve na sua a mão que lhe extendiam, esboçando um sorriso de vaga e doce ironia. Ha annos, teria ella replicado com altivo desdem ao cumprimento, e recusado esse aperto de mão á amiga, que n'outro logar fingiria, talvez, nem conhecel-a. Agora, porem, mais comprehensiva e indulgente, sabia esquecer e desculpar as passadas offensas. Depois, não aprendêra ella a perdoar tudo nas horas de agonia, sobre o tumulo de Mario, pedindo perdão sobre o tumulo de Mario, pedindo perdão á sua tal memoria?

Ha soffrimentos innarraveis e de uma tal acuidade, que representam, para quem os soffre, um segundo baptismo. D'esse baptismo certas almas sahem purificadas e transfiguradas.

A dôr que as apertou no seu rijo e por vezes salutar amplexo, fez-lhes brotar, dos mais fundos recessos, ignotas fontes de piedade; iniciou-as nos divinos caminhos; transmudou-lhes a revolta em resignação e o odio em sympathia por tudo quanto sobre a terra palpita, mostrando-lhes como todas as vidas são tristes e dignas de compaixão.

Os primeiros soffrimentos de Margarida, em parte filhos da educação e dos maus exemplos que a rodejavam -- porque a mulher é sempre mais ou menos o reflexo da sociedade que a creou--alteraram-lhe o caracter, produziram-lhe brutaes revoltas, radicaram-lhe fataes descrenças, atiçaram-lhe violentos odiós, lançaram-na para o negro e desconsolador pessimismo. Julgou-se innocente e ambicionou vingar-se. Sentiu-se illudida e desejou illudir. Viu-se ferida e quiz ferir tambem. Renegada dos seus eguaes, renegou o proprio Deus. Alanceada por duvidas, fez da duvida o seu credo.

A dôr mais forte, a dôr mais nobre, a dôr sem conforto, que a surprchcndcu no deserto de Sutil -- dôr que a teria enlouquecido ou trucidado se não fossem os pa-temacs cuidados do dr. Macedo -- cortou pela raiz as flôres do mal, que lhe bebiam a seiva da alma; expurgou de miasmas deleterios a almosphera moral que respirava; levou-a a fazer as pazes com Deus, com a sua consciencia e com a humanidade. Ao scepticismo succedeu a abençoada fé, que illumina a propria ignorancia, incute virtude á fraqueza, e que lhe abria a ella as portas de ouro da immortalidade, de que o seu coração tanto necessitava, desde que no mysterioso mundo das trevas possuia um ente adorado. O amor verdadeiro é o grande mestre, o principio de todo o bem, a base de toda a religião. Nem mais discussões nem subtis raciocinios ella travou comsigo mesma. O pessimismo antigo foi supplantado por um optimismo triste. Fermes les yeux et tu verras, eis o preceito que adoptára, e que lhe sahira certo. Na physionomia tão espiritualisada pelas agonias soffridas, pairava a expressão de angelica bondade de certos rostos de santas.

Cléo, que guardava na memoria a figura garrida, o olhar voluptuoso, a nervosa coquetterie da brilhante mundana, tal qual como a vira pela ultima vez n'um raout da Condessa de Alvim, vestida de seda e gaze em tons amarellos, recamada de lantejouladas bordaduras, dando no revolutear das valsas idéa de uma grande flôr de ouro, ficou surpreza com a completa mudança. «O que ella terá soffrido para este resultado!» pensou, emquanto entre ambas se trocavam umas banalidades sobre a saude e sobre o tempo.

-- Deves sentir-te tão só e aborrecida aqui! ousou dizer Cléo, apoz um curto silencio.

-- Nunca se está só onde ha pobres, nem aborrecida quando se vota a existencia, que d'outra fórma seria um fardo inutil, a consolar os que soffrem sem que ninguem d'elles se occupe. Ha tanta miseria no mundo... Ha tanta dôr ignorada !

-- E' certo; mas somos todos tão egoistas, que na felicidade esquecemos completamente o proximo... Olha, proseguiu Cléo, foi preciso a doença d'este inverno e a ordenança medica de ares nataes, para eu acordar da vertigem que nos transmitte a mundanalidade do nosso viver, na consciencia do mal por mim feito aos outros...

Os melancholicos olhos garços de Margarida pousaram-se longamente em Cléo, como procurando entender-lhe o verdadeiro sentido das palavras. Sob aquelle olhar perspicaz, de mulher intelligente e experiente, a viscondessa perturbou-se. Sentiu-se instinctivamente adivinhada.

-- A tarde vae declinando e arrefecendo... E' melhor não te demorares mais, que a villa ainda fica distante e a cacimba da noite póde ser prejudicial á tua saude melindrosa. Eu retiro-me tambem.

Cléo agradeceu o cuidado, e as duas atravessaram, sem mais uma palavra, a praia. No começo da ladeira deteve-as o magnifico panorama do sol, que se ia submergindo nas empurpuradas aguas, incandescendo o horizonte, rosando as nuvens ligeiras e diáphanas como plumas, envolvendo nos seus ultimos lampejos o pardo amontoado de rochas e a praia reluzente de conchas, até se afundar de todo nas ondas. O céu empallideceu, as estrellas a pouco e pouco surgiram, triumphando o seu dourado brilho dos reflexos crepusculares.

Tudo era silencio em redor. Só as vagas batendo nos rochedos faziam ouvir o seu constante lamento. Imperava ali uma atmosphera sã, afugentando idéas pequenas, mesquinhos calculos e baixos interesses.

-- Hei de cedo ir vêr-te, disse Cléo, voltando-se para Margarida ao subirem a ladeira.

-- Não penses n'isso, atalhou a outra, na tua posição, na tua roda...

-- Na minha posição, na minha roda...

E repetindo a phrase, uma onda de amargura passou de subito pela alma de Cléo, e uma visão, por tal fórma intensa lhe atravessou a vista, que soltou um riso nervoso, expirando n'um soluço.

- Cléo, murmurou a doce voz de Margarida...

-- Como nós, mulheres, somos fracas, Guida...

-- Os homens são ainda mais fracos...

-- E' possivel; mas ha tambem alguns mais corajosos e melhores...

Margarida não fez observações, porque no seu pensamento se ergueu Mario.

Que alegria, terem-nos sido reveladas certas virtudes, por modo a não podermos contestar a existencia d'ellas!

Calaram-se ambas de novo, e, chegadas á estrada despediram-se, tendo-se entendido melhor e estimando-se mais, do que nos longos annos de convivencia em theatros e salões.

Na carruagem, de volta a casa pela escura estrada povoada de indistinctas fórmas mas, Cléo foi scismando na Margarida presente, tão diversa da Margarida que ella conhecêra, nas tristezas geradas pelo amor fóra do casamento, e nas injustiças da lei, que os homens fizeram.

VI

Então, homem, que me diz você ao caso do mulher do Ramires, hontem, em S. Mauricio? Que grande pagode!

Isto dizia o Antonio Vasques, puxando para o escuso vão de uma janella da casa de jantar de Maria Lentz, onde a familia almoçava a essa hora, o padre Matheus, que acabava de chegar e cumprimentar as pessoas presentes, com os seus mais compostos ares, a simularem uma beatitude que lhe duva a expressão de um satyro em preces.

Baixando a voz com receio de ser ouvido por D. Maria, pela Fraulein, por D. Leonor ou D. Pulcheria, que desde a vespera se conservava na companhia da filha, o forte e alto padre Matheus, bohemío pelo calada, interessado em todas as intrigas onde entrasse o elemento feminino, esboçou um sorriso que lhe pôz rugas circulares nas largas e escuras faces, marcadas de bexigas, dilatou, pelo appetitoso faro a escandalo, as narinas do grosso e curto nariz, e replicou:

-- Não sei nada ainda! Andei hontem pelos montes a confessar moribundos... Voltei muito tarde, e bastante cançado. Ella ha de ser boa! Desembuche lá, seu Antonio...

O Vasques bruto relanceou primeiro um olhar para a meza...

As senhoras entretinham-se discutindo, e saboreando pausadamente a omelette; Hermann trincava acepipes e alinhava sobre a toalha filas de soldados de chumbo; Frantz --cujo irmão fôra almoçar com a noiva -- comia em silencio, folheando ao mesmo tempo os jornaes.

Vendo todos distrahidos, o Vasques tirou com os seus vagares, da grande caixa de prata, uma pilada de rapé, e sorvendo-a começou, piscando os olhinhos humidos e passando pelo nariz o lenço encarnado:

-- Quem me contou foi o Manuel Zé, o antigo cortador, muito lá de casa d'elles. Encontrei-o hontem ao sol posto, vinha elle na diligencia, no pé do cemiterio... Desceu do carro só para me dizer... Viemos por ahi fóra até á villa caturrando... O que lá foi, o que lá foi! Não se falava n'outra cousa...

-- Escandalo grosso, já vejo. Foi apanhada? interrogou ávidamente o padre.

- Apanhada pela Maria do Lagar, a cosinheira, que desde que a ama a reprehendêra por ter fechado na cosinha, uma tarde, o visinho sapateiro, jurára aos seus deuses vingar-se, descobrindo-lhe as mazellas das filhas. A Marianna Ramires, casada em Rulhe, veiu como de costume passar a primavera com a mãe. a D. Francisca Mendes, em S. Mauricio. Pelos modos, o marido não lhe bastava, e o diacho da rapariga não se põe a reparar no moço da cocheira, que é guapo ? Era José para aqui, José para ali, José para além, José para tudo! O demonio são as mulheres! A Maria do Lagar, fina como um coral, começou a desconfiar de tanto José... Homem, ouvindo a Marianna chamar pelo rapaz, que a ajudasse a arrumar umas peras na casa da fructa, a ladina da Maria mette-se no celleiro contiguo, e espreita pela fechadura...

-- O' homem! Essa é de truz! exclamou o padre cada vez mais interessado.

-- Ouça o melhor...

E Antonio Vasques, perfeitamente no seu elemento, falou muito animado ao ouvido do Matheus,

-- E foi só a Maria quem viu ?

-- Qual, retorquiu logo o Vasques, mettendo na algibeira do grosso e sebento sobretudo o sujo lenço encarnado, que o enthusiasmo do momento lhe fizera conservar na mão. Ella e uma bisca! Para não passar por mentirosa, foi chamar mais uma das creadas e outro creado. E findo o espectaculo foi tudo pelas testemunhas posto em pratos limpos á D. Erancisca Mendes, que já telegraphou ao Ramires.

- Que trapalhada! disse a rir o padre, movendo as espessos sobrancelhas negras, sob as quaes brilhavam os olhos, como sob uma floresta dois fundos poços.

E logo em seguida:

-- Que tal é ella ?

-- Boa devéras, volveu o Antonio, mostrando-se muito entendido.

E descreveu-a ao outro, que entremeiava de observações picantes a descripção, promettendo ir breve a S. Mauricio, vêl-a com os seus proprios olhos.

-- Uma chavena de chá ou de café com leite, senhor Prior? offereceu D. Maria, quando a creada trouxe a bandeja com os bules de christofle, reluzentes como espelhos, o prato de bolos finos, e as appetitosas torradas, cobertas de manteiga fresca. Vou preparar o seu café, senhor Vasques.

Interrompeu-se o interessante dialogo e os dois homens tomaram logar á meza: o padre ao lado da Fraulein, e o Vasques junto da filha.

O rosto do padre Matheus reassumiu a unctuosa expressão de quando chegára.

-- Ainda não expliquei á senhora D. Maria o motivo, que me trouxe a sua casa...

-- As missas, não, senhor Prior ?

-- As missas, primeiro. Preciso saber o dia certo em que V. Ex.a deseja que sejam ditas, e se é na egreja matriz ou aqui, na ermida da Senhora da Rocha...

-- Aqui, na ermida, é muito mais cómmodo... Vamos todos á vontade, como andamos por casa.

-- Decerto, decerto... E o dia ?

D. Maria pôz-se a fazer calculos :

-- Ámanhã é sexta... Temos os esfregados, não póde ser... Quero que as creadas assistam todas... Sabbado a lavadeira... Na proxima terça-feira, causa-lhe transtorno?

-- Nenhum absolutamente, replicou, solicito, o padre, empenhado em rezar as cinco missas por alma dos paes de Maria Lentz, por causa da generosa propina que era de costume darem-lhe. Está então combinado ?

-- Está combinado, accentuou D. Maria.

-- Queria tambem fazer saber a V. Ex.ª que o digno Prior de Rulhe acceitou o convite e virá, pelo preço fixado, prégar os dois sermões na festa da Senhora da Rocha.

-- Está bem... E' muito mais em conta que mandar vir um pregador de Lisboa, como tinhamos pensado.

-- E este é um homem illustradissimo, que faz honra ao sacerdocio... Quer V. Ex.ª vêr a carta?

E o padre Matheus tirou do bolso e entregou respeitosamente e d'olhos baixos a carta a D. Maria, juiza da festa n'aquelle anno, e que como tal se encarregara de ajudar no que pudesse os festeiros, pescadores na maior parte.

-- Comeste pouco, Chéché. observou para a filha, emquanto Maria Lentz se absorvia na leitura, o Vasques bruto. Chéché era um dos nomes carinhosos por que o Vasques tratava Leonor, a unica pessoa que elle n'este mundo adorava, a ponto de lhe não haver consentido em solteira que estudasse cousa alguma, para a não contrariar. Até ella completar os treze annos, o pae cognominára-a.de Chichi; até aos oito de Pirolito; e antes d'essa edade de Tric-trac e de Piçorro. Uma mania do Vasques, pôr alcunhas a toda a gente. A esposa só era Pulcheria durante os contendas domesticas. Passadas ellas era a Quériasinha e a Quéquinha.

-- Comi o mesmo que sempre costumo comer, papá; respondeu Leonor, impacientada.

D. Pulcheria, ha muito calada, contra o seu costume, interveiu logo:

-- Lá estás tu, Antonio, lá estás tu com as tuas... A pequena comeu bem.

E os dois armaram a habitual questão, que Leonor apaziguou servindo-se de mais torradas, para descançar o pae sobre o seu appetite.

-- Olha, Antonio, preveniu D. Pulcheria, passada a ligeira borrasca, ainda hoje não vou comtigo. Á noite ha grande reunião em casa da D. Sophia. Chega d'aqui a bocado o visconde da Torre, de S. Mauricio, tu sabes, com a familia. Vêm cá de visita e ao mesmo tempo escolher casa para os banhos, que a do anno passado não prestava... Anda lá tudo n'uma roda viva... Esteve aqui a Alice, ha pouco, a avisar-nos e a mostrar-nos o telegramma recebido... Já me convidaram, e a D. Maria quer que eu fique.

-- Pois que geito tinha ir-se embora, para voltar á noite por esse areal, observou Maria Lentz, entregando a carta ao padre, o qual, gastrónomo consummado, ia devorando, em silencio, bolo apóz bolo.

-- Bem... bem... como quizeres, replicou o Vasques bruto, que nunca governára nem a mulher nem a filha. Eu por lá apparecerei... Tenho curiosidade de vêr que tal está a Cléo.

-- Ora, como ha de ella estar, com mais treze annos por cima, e a bonita experiencia lá das cidades, foi a réplica azeda de D. Maria.

-- Muito estragada, muito estragada, accresccntou D. Pulcheria.

-- Pois era uma linda rapariga, asseverou o Vasques.

-- Muito linda, confirmou o padre Matheus, lembrando-lhe bem quanto secretamente a admirára.

-- Ai, isso como era não está, faz bastante differença ! disse a Leonor com satisfação mal simulada, mastigando sem vontade a ultima fatia.

-- Não me parecia que a mudança fosse tão grande, replicou ingenuamente o padre que, não obstante a sua maliciosa esperteza, apanhava mal os casos complexos. Não fui ainda visital-a; mas vi-a hontem a distancia, na estrada de Mortagua, conversando com a D. Margarida de Lencastre.

-- Ah! são amigas... Era de esperar... Hão de entender-se perfeitamente... Dize-me com quem lidas... acudiu D. Maria. Que dirá a Sophia em sabendo ?

-- Hum! são amigas! murmurou entre dentes o Vasques, piscando, o luzidio olho ao padre, como quem diz: esperem-lhe pela pancada.

-- Então isso que admira ? acudiu pressuroso, D. Pulcheria, que desde a sua paixoneta por um carpinteiro, o Adonis de Sutil, se sentia plena de indulgencia para com alheias fraquezas. Viviam ambas em Lisboa, na mesma roda... Não haviam de falar-se?... Tanto mais que a Margarida agora porta-se muito bem, ninguém tem que lhe dizer, e reparte tudo que possue pelos pobres. Muito lhe ha de ter sido perdoado, não é assim, senhor Prior?

-- E' como diz, minha senhora, respondeu o padre, que no seu intimo não só absolvia como abençoava todas as peccadoras. Apesar da sua antiga falta de religião e pouco senso moral, Deus Nosso Senhor ha de perdoar-lhe tudo pelo bem que ella está fazendo... Eu que o diga.

E o padre, que gostava de fazer justiça ás mulheres interessantes, e que sabiam amar, relatou actos de divina caridade praticados pela amante do desditoso Mario Salter.

-- Aquillo é uma santa! exclamou, convencida, D. Pulcheria.

-- Boas santidades... Quando o diabo está velho faz-se ermita, hem sei... opinou D. Maria. A Cléo que lhe siga o exemplo, se acaso não tem já feito peor lá por onde tem andado.

-- Ahi é que eu não ponho as mãos no fogo, pronunciou o Vasques. O que diz você, ó Frantz?

Assim interpellado, Frantz Lentz, que de olhos pregados no jornal não tomára parte na conversa, ergueu a cabeça.

-- O que hei de eu dizer, se nem sei do que se trata.

E o rosto impassivel d'elle, impassivel ficou, articulando, esta mentira.

-- Trata-se da Cléo... explicou Leonor, desejosa de ouvir a opinião de Frantz, a quem se não atrevia a questionar abertamente sobre a ex-noiva. Perguntava-te o papá...

-- Pum! Pum! Pum! e ao mesmo tempo que estes tres sonoros Puns sahiram dos vermelhos labios de Hermann, chamando a attenção geral, cahia por terra, fuzilado pelo inimigo, um regimento de infanteria; e a chávena da Fraulein, que ella levava á bôcca ao soar a descarga que obrigára o filho de Frantz a bracejar com violencia, voava derramando sobre o padre o resto do café, e indo partir-se de encontro ao aparador.

-- Hermann, Jesus, meu Deus, que desinquieto tu estás! Isto não se atura! exclamou a avó, levantando-se e apanhando os cacos.

Leonor reprehendeu o filho e foi ajudar o padre Matheus a limpar-se.

Todas as outras pessoas se ergueram, rindo o Vasques a bom rir da travessura do neto, o seu Erne-Erne. Frantz, pondo-se muito sério, mandou a creada levar d'ali e guardar os bonecos de chumbo, prohibindo que voltassem á meza, o que foi para Hermann tão grande desgosto que lhe fez assomar as lagrimas aos olhos. Em seguida, pegou-lhe na mão e levou-o comsigo para o jardim.

Os seus fortes pulmões respiraram fundamente, por se vêr ao ar livre, o por escapar, graças á abençoada idéa do pequeno, ao embaraço das perguntas, ao constrangimento das respostas, ao martyrio de ouvir alguem na sua presença alludir a Cléo. Porque, mesmo distante, mesmo ingrata, mesmo falsa, ella continuava sendo para elle a mulher unica, aquella que jámais esquece, e que impera sem rivaes no decurso de uma vida inteira.

Ha homens versateis por natureza, que mudam de affectos com a mesma rapidez com que o camaleão muda de côr. Sob os largos peitos viris, batem corações frageis como flôres, instaveis como cataventos, curvando-se e movendo-se ao sabor de todas as brisas. Outros ha que, embora não saibam inteiramente eximir-se a certas fraquezas, só pódem entregar-se por completo e sentir a divina loucura, uma vez apenas -- não mais.

Frantz Lentz fazia parte d'este numero. Cléo representára, no desabrochar da sua juventude, o conjuncto de graças e attractivos com que elle revestira o ideal feminino ; revelára-lhe as delicias do amor novo, sincero, puro e partilhado; iniciára-o n'um mundo de sentimentos e de sensações impossiveis, dado o seu organismo, de experimentar duas vezes, e que para todo o sempre ficaram pertencendo áquella que os dispertou. Com quantas mulheres jovens e lindas, mais lindas talvez mesmo, do que a antiga noiva, Frantz se encontrára durante os annos que não a vira! Pois nenhuma, embora se abandonasse toda, o faria estremecer tão infimamente, nenhuma o perturbaria como Cléo, querendo ella.

Sim, querendo ella; que Frantz conhecia-se bem e sabia ter forças e coragem para tudo, excepto para lhe resistir. Um riso d'aquelles labios, um olhar d'aquelles olhos, uma caricia d'aquellas; mãos, arrastal-o-hiam até onde lhes approuvesse. Inutil ter presente como de homem a humilhação recebida, a recusa terminante de ligar o seu destino ao d'elle, a indifferença esmagadora para o seu amor proprio. A tempestade, que ella com a sua cruel contradicção dentro d'elle provocou, ia-o trucidando, e certo, mas não conseguiu matar-lhe o sentimento, cujas raizes tocavam os mais fundos escaninhos do seu ser, alastrando-se já pelo mysterioso dominio que a vontade não governa. Quem tentasse desenraizar-lhe do peito esse sentimento, teria de arrancar primeiro todas as fibras do seu coração, de derramar ate á ultima gotta todo o sangue das suas veias, de lhe apagar por completo a vida, e ainda assim, era preciso que na morte acabasse tudo. Sobrevivendo a alma ao corpo, era immortal o seu amor. Podia, é certo, transformar-se, mas não podia findar.

Isto, porém, guardava elle religiosamente em si mesmo. Inimigo de expansões e de morbidos sentimentalismos, arcou sósinho com a sua dôr, não confiou de ninguem os seus pensamentos, mostrando-se resignado, tranquillo, na apparencia mesmo esquecido d'aquella de quem nem sequer pronunciava o nome. A maior contrariedade de Frantz era ouvir dizer mal de Cléo. O seu espirito, que lhe havia perdoado, insurgia-se que os outros, sem soffrerem o que elle soffreu, sem a conhecerem como elle a conheceu, sem a verem como elle a viu, se arrogassem o direito de a julgar. Esse direito, só d'elle, e que nunca exercêra, era-lhe odioso vêl-o exercer fosse por quem fosse. E se intoleravel se tornava para elle ouvir discutil-a, o que seria quando lhe pediam a sua opinião sobre o assumpto, opinião que tinha de ser mentirosa, porque lhe era vedada a franqueza ? Como é que sua mulher, e sua mãe, sobre tudo, não presentiam toda a verdade e o forçavam a falar quando deviam perceber o seu desejo de estar calado?

-- Muito myopes são as mulheres, mesmo aquellas que connosco lidam de pela manhã até á noite! murmurou Frantz, acabando de subir a rua das parreiras, e sentando-se n'um cadeirão, entre a nora e o tanque, onde Hermann, pedindo e obtendo licença, se debruçou para brincar com os peixes.

Diziam-n'a muito mudada, menos fresca, menos bonita. Que tolice! Como se elle achasse taes cousas, elle que a não via nem julgava como os outros, indifferente, a sangue frio, pelo raciocinio puro. Aos seus olhos, Cléo era a mesma. Na pessoa a quem devéras se amou está sempre presente a belleza especial que lhe encontrá-mos, estão sempre presentes os traços que nol-a tornaram querida. No rosto pallido de Cléo, onde as rosas da mocidade em flôr se desbotavam, na sua bôcca em arco de flecha, de um viço mais apagado, nos olhos negros onde a experiencia substituira a innocencia, Frantz sabia divisar todos os encantos que o captivaram, todos os encantos que ella e só ella para elle possuia.

-- Papá, vou buscar uma cousa.

E sem mais explicações, Hermann saltou lésto da pedra sobre a qual se empoleirára, correu pela rua abaixo, arrancou da latada a que as parreiras se enroscavam uma canna, e montando-a em ar de cavallo partiu a galope, estacando junto do pae.

-- Que nova extravagancia temos? interrogou Frantz Lentz, franzindo o sobrolho.

O pequeno tirou da algibeira da blusa um pião, desenrolou-lhe o cordel e atou-o na extremidade mais fina da canna, explicando:

-- É para pescar.

-- Tu não tens isca.

-- Olha...

E Hermann, que do alfinete que lhe segurava a gravata fizera um anzol e o suspendia com arte na ponta do cordel, mostrou uma das algibeiras das calças, atufada de bolos.

-- Feio rapaz, ir tirar bolos á avó, ás escondidas.

-- Não fui tal.

-- Então onde os arranjaste?

-- Deu-m'os aquella senhora bonita de Lisboa, e deu-me tambem muitos beijos aqui e aqui, disse elle batendo com as mãosinhas nas faces. Comi doces á farta, e os que não quiz comer guardei debaixo do colchão para a mamã m'os não tirar... Agora são para os peixinhos... Têm-se regalado. Elles gostam muito, papá.

-- E tu queres apanhal-os e matal-os depois do banquete! Bom coração.

-- Não quero, não. Faço-lhes só uma festinba e deito-os na agua outra vez... Papá, papá, olha a Fraulein lá no principio da rua, exclamou elle avistando a velha mestra e apontando com o dedito, muito contrariado. Diz-lhe que me déste licença... Que me deixe brincar mais um bocadinho.

-- Está bem, mas nada de maldades, toma sentido, que então...

Frantz não teve animo de concluir a ameaça. Encostou-se um instante ao tanque, parecendo seguir interessado os desordenados movimentos dos peixes vermelhos e côr de ouro, em volta do tentador anzol. Quando a Fraulein se approximou, elle recommendando juizo a Hermann. pegou da carinha do pequeno, um pouco surpreso, e beijou-o bruscamente nas duas faces, onde Cléo havia pousado os labios, seguindo pela rua abaixo a assobiar, distrahindo.

Grande fôra a azáfama em casa de Sophia Guedes ao saber-se da chegada do visconde da Torre com a familia. Mataram-se e depennaram-se aves á pressa, á pressa se chamaram D. Thereza e Elsa, á pressa ainda, se distribuiram convites para essa noite.

Amelia e a mãe, carregadas de chaves, corriam dos bahús aos armarios, e d'estes a casa de jantar e á cosinha, desdobrando os lençoes e as toalhas ricas, collocando em artisticas dobras os guardanapos, tirando o melhor serviço de porcelana, guarnecendo com esmero os fructeiros, dando ordens para a direita e para a esquerda, secundadas por Alice, que se encarregára de fiscalisar os arranjos da sala e dos quartos dos hospedes; por Elsa, que determinava o menu e dava explicações á cosinheira, e por D. Thereza que, sentada em frente de um fogareiro, procedia á confecção de uma lampreia, quebrando e mexendo ovos, emquanto o assucar tomava ponto.

O visconde da Torre -- um ricaço de S. Mauricio, que sem trabalho herdára os quatrocentos contos de réis que possuia, e a quem um deputado seu amigo fizera em troca de uma divida perdoada, visconde, titulo que a sua vaidade recebeu com alvoroço tornára-se intimo de Luiz Guedes, desde que este, havia já dois annos, lhe ficava com as cortiças a preço convidativo. Um bom freguez, o Guedes, honrado, rico e laborioso, merecedor de plena confiança. E o impertigado visconde, ufano do nome e das relações feitas na capital, onde passava os invernos, abriu-lhe os braços e lisongeiou com habil tactica o menos astuto e pretencioso negociante de Sutil.

Ha almas como mortas, impossibilitadas de amar ou de odiar profundamente, de estremecer de piedade ou de rugir de indignação, almas indifferentes á verdade e á mentira, ao bem e ao mal, escravas dos seus pobres interesses, dos seus mesquinhos prazeres, dos seus pequeninos rancores, e incapazes de se levantarem um instante que seja acima do vulgar bom senso que as acorrenta, das egoistas e estupidas rotinas a que se amoldam. Tal era a alma do ricaço visconde da Torre.

A viscondessa, pertencente a uma conhecida familia lisboeta, estava á altura do marido, a quem graciosamente secundava. De pura visita de ceremonia passou ella a tratar com a maxima cortezia e franqueza Sophia Guedes. A amizade acabára de apertar-se o anno passado, no tempo dos banhos.

Dois filhos tinha este par, um de vinte, outro de vinte e quatro annos. O mais velho, Casimiro Pereira, futuro herdeiro do titulo, orgulho dos parentes da cidade, e assombro dos parentes alemtejanos, concluira com distincção, segundo diziam os collegas e os jornaes, a formatura de bacharel em Coimbra. Muito rico para exercer a profissão, occupava-se em devaneiar e em cultivar as musas. Que cultura e que devaneios, apregoados pela trombeta da fama, até aos quatro cantos do paiz! Elle descobrira novos ideaes, e cantava-os n'uma fórma atormentada, em linguagem de deuses, decerto, visto a differença entre essa linguagem e a dos simples mortaes. Revolucionario na arte, que se propunha retumbante, menos laboriosa, nem menos elogiada pelos amigos do que os seus versos. De cabellos negligentemente deitados para traz, deixando bem a descoberto a fronte, para que se visse quanto era marcada pelo cunho da intelligencia, olhar firme de quem se sente senhor de si e de quem sabe o que vale, sorriso ironico e compassivo para com a estupidez e ignorancia alheias, o illustre poeta Casimiro era o oraculo dos paes, --que o não entendiam, e por isso mesmo ainda mais o admiravam-e o portento de S. Mauricio!

O irmão mais novo, o Vasco, tão alto e forte quanto o outro ficára enfezado e baixo, talvez pelo peso do talento que lhe ia curvando a espinha, alegre e bom rapaz na sua mediocridade, destinado á vida de lavrador, que elle amava, sentia a superioridade incontestavel do Casimiro, e professava por elle a mais alta consideração.

-- É o grande homem da nossa familia, confessava, muito consciente da sua propria insignificancia, aos outros rapazes, cuja opinião era identica á sua, e que em segredo invejavam os contos de réis, o genio e a celebridade do vate.

Não admira pois que este dispertasse intensas curiosidades no seu caminho, e que attrahisse a si a attenção geral quando em publico se mostrava, ou se dignava, depois de muito instado, recitar uma das suas extraordinarias composições poeticas, como estava succedendo essa noite, logo que se reuniram os convidados em casa de Luiz Guedes.

No silencio da sala, onde as pessoas presentes se calaram para o inspirado poeta repetir o seu Coração partido, resoavam como fanfarras as sonoras quadras, repercutidas de timbres, estrelladas de rythimos, esfumadas em flocos de sonhos multicôres, que os barbaros não logram entender e que o commum dos homens nem escreve nem percebe. Em aureo galeão de vélas pandas, recortando-se no frio azul em traços de nuvens argentinas, lá ia o poeta olhando os altos, onde tremeluzem as palpebras inscientes das estrellas, que vogam em zodiacaes fulgores. Cahido elle das alturas, mudava o quadro, e apparecia a procissão sinistra dos lividos espectros, vagueiando por noites de luar lavadas e de metal polidas, desferindo, em negras harpas, extranhas liturgias e cynicos clamores, emquanto o pobre coração, ora de joelhos ora de rastos, soluçava e se desfazia em maldições e anáthemas.

D. Thereza, morta de somno, tendo por vis-a-vis a modista da terra, escabeceava a um canto, ao desafio com a outra. D. Sophia não despregava os olhos do heroe da festa, para lisongeiar os viscondes que, sentados ao pé d'ella, sorriam, satisfeitos, como dizendo: Vejam, ouçam, e admirem !

Luiz Guedes observava o rapaz, da maneira por que observava certas especies de animaes, para elle raros, nos seus passeios ao Jardim Zoológico, As outras senhoras entretinham-se pensando em projectos e affazeres domesticos, um pouco envergonhadas da sua ignorancia, que lhes não permittia perceber nada. O Vasco Pereira, não podendo elevar-se a tão altos transcendentalismos, consolava-se olhando enternecido a encantadora Gina, muito córada, e que baixava os olhos, receiosa, sem saber porquê, do olhar que procurava o seu. O padre Matheus tentava fazer commentarios para o Formigas:

-- Isto parece-me historia, homem... Elle tem mais cara d'asno. que d'outra cousa.

-- Cale-se, seu padre, interveiu o Formigas, assustado de que os ouvissem e o julgassem a elle idiota, por escutar uma opinião, que lá no intimo tambem era a sua. Rompiam applausos entremeiados de phrases lisongeiras, que o Casimira Pereira agradecia com altivez, como um justissimo preito, e com um ligeiro encolher de hombros, significativo da diminuta importancia que ligava áquella sociedade tão pouco á sua altura, quando Cléo entrou, precedida do Dr. Macedo, que se esquivára a ouvir a recitação, deixando-se ficar na casa de jantar de Luiz Guedes, conversando com o Arthur Moreira, -- marido de Elsa, um perfeito homem dos seus trinta e oito annos, possuidor de pequenos cabedaes, porem honesto e trabalhador, amando extremosamente as filhas e a mulher, que lhe inspirava illimitado respeito, -- e com Frantz Lentz, que, a pretexto de entreter o filho, com elle para ali se fôra sentar.

Já passava das nove horas; porém, Cléo, que mal conhecia os hospedes dos Guedes, entendera melhor não seguir á risca os usos alemtejanos, que marcam as oito como a hora de dar principio a uma soirée, e mesmo a um baile.

Todas as pessoas se levantaram, todos os olhos se voltaram para a mulher alta, delgada, flexivel, de fartos cabellos ondeados, que, passando-lhe sobre a orelha e encobrindo-lh'a, iam enrolar-se no alto da cabeça, contrastando, na sua côr de azeviche, com a alvura do rosto e do collo, ligeiramente descoberto. A belleza da viscondessa de Mello tornára-se, com o decorrer dos annos, mais intellectual do que physica, pela extraordinaria mutabilidade da physionomia delicada, onde tudo era expressivo, desde os grandes olhos meridionaes, até ao perfeito nariz classico; pela gentileza peculiar dos gestos e a elegancia do bem lançado busto; pela graça ondulosa do andar e a maneira de vestir, que era um primor. Na disposição da toilette diáphana, em gaze de seda ás riscas rosa e crème, orlada de fartas ruches, apertando na cintura por uma fita de setim bem justa; nas laçadas dos hombros, entre crepes aerios, que palpitavam como azas ao menor movimento; nas duas rosas naturaes que se anichavam no seio, casando o colorido das suas pétalas com o colorido das riscas do vestido; nas compridas e transparentes mangas, franzidas de cima abaixo, deixando entrevêr a nívea pelle dos finos e torneados braços; no alto pescoço, nú adeante, encoberto atraz por nuvens de gaze, d'onde se destacava a polida nuca, mordida de pequenos frisados negros; em tudo isto, havia mais do que artificio e effeitos estudados, havia arte instinctiva, que se não aprende nem ensina, só se educa.

-- A senhora viscondessa deve conhecer, disse Sophia Guedes para a viscondessa da Torre, indicando-lhe a recem-chegada.

-- Perfeitamente, lembro-me d'ella em pequena, e tenho-a encontrado bastantes vezes em Lisboa, respondeu a viscondessa, que gostava de se mostrar muito relacionada com os personagens importantes, votando ao esquecimento apenas os mediocres e os pobres.

Foram cordeaes os cumprimentas entre ella e Cléo, que não se lhe dirigiu sem primeiro falar ás amigas. Além de a conhecer mal dos seus tempos de creança, a viscondessa de Mello nunca, depois do seu casamento, se dera com ella na cidade. Era mais acanhado o circulo da esposa do visconde da Torre, que, aliás, não fazia villegiaturas elegantes, não frequentava a opera nem os bailes, nem as reuniões do corpo diplomatico, limitando a ceremoniosas visitas e a uma insipida soirée mensal as suas relações na grande roda.

Frantz Lentz e o Moreira vieram postar-se ao humbral da porta, onde se lhes juntou

Carlos e o conde do Valle, genro do Dr. Macedo, que se foi reunir ao grupo formado

pelos Salters.

Casimiro Pereira avançou pressuroso para Cléo. A mãe apresentou-o, com mal simulado envaidecimento. Elle dirigiu-lhe, em fórma de cumprimento, um bouquet de phrases feitas, e seguiu-a até ao sophá, tomando logar ao seu lado. Como para distinguil-a e fazer sentir bem aos outros que elle e ella eram creaturas áparte, intelligencias d'élite, acima e muito acima do meio em que o acaso os collocára, aptos a discutirem assumptos da maior elevação, entabolou o Casimiro Pereira uma animada conversa sobre problemas sociaes, litteratura e arte.

Fusilavam da bôcca do Casimiro arrojados paradoxos, imitados de Oscar Wilde, e ditos cruéis a respeito dos vultos consagrados do seu pequeno paiz, onde, sem o dizer, porém insinuando-o, só elle era deveras grande. Mas aquelle gasto de palavras, aquelle desfazer de reputações, eram apenas para a galeria, porque se o illustre filho do visconde da Torre, que era um misogyno, julgava Cléo superior a todas as pessoas presentes, julgava-a inferior, e muito inferior a si proprio e á maioria dos homens.

A viscondessa escutava-o com um delicioso sorriso a brincar-lhe nos labios, e respondia-lhe com a sua arte consummada de espirituosa e verdadeira mundana, dando-lhe a illusão de acreditar que elle era o que queria ser.

Não ha homem que resista á doçura de se julgar comprehendido, ao prazer de ouvir lisongeiarem-lhe as fraquezas como se fossem qualidades, e de encontrar no proximo a sua superioridade tomada a serio. Quando a conversa foi interrompida pelos accordes do piano, Casimiro Pereira levantou-se, indo passear pelo corredor, seguro do bom effeito produzido, e repetindo, satisfeito, comsigo:

«É intelligente esta mulher, uma anomalia no sexo; mas não ha que vêr, é intelligente!»

-- Pela attenção que lhe déste, e pelo que lhe disséste, já vejo que o Casimiro sempre é, como aqui affirmam, um genio, observou Alice, que se conservára ao lado da amiga, desde que ella havia chegado.

-- Isso depende da accepção que se dê ao termo...

-- Não te entendo...

-- Não entendes, não... Tu só conheces a Cléo d'estes sitios; a melhor. A Cléo que tu ouviste ha pouco, e que agora te deu uma resposta ambigua, é a Cléo da cidade. Um dia, com vagar, te explicarei o que ella vale e o sentido das phrases... que repete aos Casimiros.

E a viscondessa, deixando Alice confusa com a explicação, foi reclinar-se n'uma sua conhecida cadeira, bordada a lãs, a um dos cantos da sala, para ouvir, sem ser interrompida, o piano onde Fanny Salter preludiava uma sonata de Bethoven.

A filha de Mr. Salter, que logo de pequena mostrara não vulgares aptidões musicaes, dedicára-se com amor ao piano desde a morte do irmão. A dôr do seu coração de creança encontrára nas composições dos mestres uma voz para se queixar, um esteio para se amparar, e confidentes a quem descobrir o que a ninguem na terra podia ou sabia explicar. O triste drama de ha quatro annos produzira profundos abalos no inviolavel segredo da sua alma, tornára-a pensativa, quasi séria, para a sua pouca edade, incutira-lhe a paixão do estudo, paixão que a abstrahia das mortificadoras realidades. Muito loura, toda de branco, de apparencia vaporosa, correndo sem affectação nem vaidade pelo teclado os delicados dedos, Fanny deixava affluir á superficie o fogo intimo, communicava ás notas de uma sensibilidade fremente. Sem d'isso ter consciencia, interpretava com a sua alma a alma divina de Beethoven, e elevava-se por momentos, ás suas vertiginosas alturas.

Cléo sentiu-se captivada e perturbada. A musica é talvez ainda mais suggestiva do que a poesia. O seu sortilegio aviva os desejos latentes, acorda os sonhos adormecidos, penetra até aos mais profundos recessos do nosso ser, fazendo de lá brotar pensamentos e devaneios informes, aspirações sem objecto e sem limite. Á sua voz, surgem ante os nossos olhos miragens confusas, que se desvanecem para tornar a apparecer. Todos os estados de alma, que a palavra não logra definir nem abranger na sua rapida e eterna fuga, exprime-os a arte que, sem copiar nenhuma fórma viva, se presta á inconstancia das visões e das chimeras.

Decorrido o primeiro momento de surpreza, Cléo deixou-se embalar pela doce harmonia, refugiu a pouco e pouco ao passado, á época das soirées dos seus dezeseis annos, n'aquella mesma sala, que lhe era tão querida por tudo quanto ali se havia dito, por tudo quanto ali se havia feito, por tudo quanto sahe do coração e ao coração se dirige.

A musica cessou por fim.

Fanny recebeu com simplicidade os elogios que lhe teceram. O Casimira Pereira interrompeu o passeio pelo corredor e o colloquio com os seus Ideaes para, da porto, lançar um applauso de favor á insignificante provinciana incapaz de o entender a elle.

Acordada do seu devaneio, Cléo foi direita a Fanny, sentada ao lado do pae, que lhe sorria tristemente, e expressou-lhe, sem exaggero, a sua admiração. Ella córou, intimidada, procurando uma phrase de agradecimento, quando o Dr. Macedo, que se approximára, interrompeu:

-- A senhora viscondessa acaba de dizer a esta menina o mesmo que eu lhe tenho dito e lhe vinha repetir... Foi, sem o saber, minha interprete... Resta-me, portanto, agradecer-lhe, minha querida Fanny, o delicado prazer espiritual que nos proporcionou a todos.

E o Dr. Macedo, com aquelle seu cavalheirismo, que em novo tão prestigioso o havia tornado para as mulheres, beijou reverente a mão da filha do capitalista Salter.

Sophia Guedes, na sua qualidade de dona de casa, muito consciente da obrigação de distrahir os convidados e proporcionar-lhes o maior numero possivel de distracções, veiu tomar logar ao piano, fazendo ouvir os primeiros compassos de uma antiga valsa de Strauss. Luiz Guedes, jovial e amavel, pôz-se de pé incitando rapazes e senhoras a valsar. O primeiro parque timidamente se apresentou foi Vasco, dando o braço a Gina. Ao vêl-os, a elle tão novo, desenhando-se-lhe no rosto viril e sympathico a inequivoca perturbação interior, e a ella; fresca e viçosa como uma flôr na aurora do seu desabrochar, rubra de innocente confusão, cercada como que de uma auréola feita de kuventude e de candura, a viscondessa de Mello recebeu uma impressão violenta. Era a miragem da sua propria e radiosa adolescencia que lhe passava em frente. A visão tinha para ella tal intensidade, que lhe fazia mal. Quiz fugir-lhe; porem, á porta da sala onde ainda se encontravam Frantz, o Moreira e Carlos, deteve-a Alice, dizendo:

-- Vou dançar com o Carlos, tu não

-- Não tenho par, foi a resposta distrahida, inconsciente.

-- Frantz, faça você os deus deveres, que o seu irmão já está compromettido e eu nunca valsei na minha vida, interveiu o honesto e simples Moreira, no seu tom familiar, achando naturalissimo que Cléo e Frantz dançassem juntos.

Elle ficou perplexo ante aquella inesperada proposta, Ia balbuciar uma desculpa, quando os olhos de ambos se encontraram. Ella baixou as palpebras, ao passo que ás faces lhe affluia o sangue, e que um ligeiro tremor lhe agitava os labios e o seio. Perante a evidente emoção que lhe tornava viva e real a rapariga que elle amára e que o amára, Frantz Lentz não poude discutir comsigo, nem attender a razões. Fez o convite e offereceu o braço, onde a mão de Cléo ao de leve pousou.

Outros pares, além de Vasco Pereira e Gina, se haviam reunido e revoluteavam já pela sala ao som da scintillante composição de Strauss. Eram: o conde do Valle com Amelia; o medico novo, Dr. Silva, com Fanny, a quem pretendia conquistar; a filha da condessa velha -- que assim era chamada a mãe do conde, para se distinguir da nórâ -- com o illustre poeta Casimiro; a filha do Dr. Macedo com o macilento delegado; o telegraphista snob com Luiza de Abreu, sobrinha unica de D. Josepha Salter e retrato vivo da tia, e o boticario sentimental com a morena filha do mestre escola.

Enlaçada nos braços, que mais e mais pareciam apertal-a, Cléo nem via quem dançava, nem ao lado de quem passava. Os seus sentidos concentravam-se n'um só objecto, tudo o mais eslava obliterado. Como ella quizera reter a embriagadora emoção que a dominava, fazer parar o decurso das horas, prolongar por seculos aquelles fugidios instantes, partir d'essa valsa, nos braços d'elle, para a eternidade, onde nada os separaria! Mas tudo é breve e instavel na vida, a ventura principalmente. Morreram no espaço os ultimos accordes do Danubio azul; os valsistas dispersaram.

Atordoada, Cléo deixou-se cahir na cadeira onde Frantz, esforçando-se por parecer tranquillo, a conduziu.

-- Não deve fatigar-se tanto, é uma imprudencia, observou-lhe baixo o Dr. Macedo, que não cessára de a examinar durante a dança, e que viera de proposito procural-a.

-- Isto vae passar já, volveu ella offegante, abrindo o leque, ora corada, ora palida, até qie, n'um crescente enervamento, com as lagrimas mal contidas a darem-lhe um desusado brilho aos olhos, se levantou bruscamente, atravessou o corredor, subiu a escada, entrou no quarto das duas Guedes, lançou-se sohre um dos leitos e desatou n'um pranto convulsivo.

-- Mas eu amo-o, amo-o ainda, tal qual como outr'ora! gemia Cléo, espavorida pela revelação dos seus proprios sentimentos.

Parecia-lhe que um facho de luz se accendêra dentro d'ella e lhe puzera de subito a alma a nú, Alice, que a vira subir, seguiu-a e foi ajoelhar, afflicta, junto do leito onde Cléo, por entre lagrimas, repetia:

-- Eu amo-o, meu Deus... Eu amo-o!

-- Que tens tu ? perguntou ella a tremer, não ousando dar qualquer sentido ás palavras da amiga.

Ao som d'aquella voz, Cléo levantou a cabeça; os seus olhos fitaram os anciosos e meigos olhos que a interrogavam, e n'esse olhar desvendaram em silencio o segredo do seu coração.

-- Oh! Cléo, Cléo! respondeu Alice, chorando, apóz um intervallo, estendendo-lhe os braços e enlaçando-a, como para a proteger da agonia que sobre ellla pesava.

Permaneceram assim abraçadas, durante minutos, no quarto onde tanto haviam brincado e devaneiado, no quarto illuminado pelo candieiro de petroleo, de abat-jour verde -- o mesmo candieiro de ha treze annos.

Por uma das largas janellas abertas peneirava o pallido luar; da escuridão do jardim partiam os sons plangentes das rãs e das cigarras.

-- Mas se gostavas tanto d'elle, como pudeste deixal-o? interrompeu Alice, no seu doloroso assombro.

«Como pudeste deixal-o!» Eis a pergunta irrespondivel para todos, para ella propria. Como se póde abandonar amando, como se póde amar esquecendo ? Como se póde sentir hoje o que hontem nem lembrava?

A intelligencia tem a missão ingrata de procurar motivos razoaveis e explicações plausiveis para os instinctos e accões, determinados pelo que em nós ha de inconsciente e de mysterioso.

A viscondessa buscou debalde uma resposta, sem nada encontrar que a explicasse e a

absolvesse aos olhos dos outros. Que dizer, que responder, até mesmo ao proprio Frantz?

Ah! só poderiamos tornar bem comprehensiveis os nossos sentimentos, se pudessemos abrir o peito c mostral-os. Quem póde explicar a sua vida intellectual e sentimental, se só dentro do proprio ser ella é explicavel ?

O que a filha de Luiza Fratel comprehendeu n'aquelle transe afflictivo, é que as nossas acções, boas ou más, nos seguem pela vida fóra, e que dos suas influencias combinadas se fórma uma grande parle do nosso destino.

-- Ouço o piano, é melhor descer, podem extranhar a demora.

E Cléo, com esta evasiva, foi ao lavatorio banhar os olhos, compoz o cabello e o vestido, passou a houppe de veloutine pelo afogueado rosto, e voltou á sala, indo sentar-se entre Elsa e Sophia Guedes, junto da qual estavam Maria Lentz, Leonor, D. Pulcheria e D. Thereza, esta ultima defendendo com brandura a viscondessa das asperas censuras contra ella formuladas pelas outras tres senhoras.

Frantz Lentz não tornou a apparecer essa noite na sala. A viscondessa de Mello não mais dançou nem se moveu d'aquelle logar, até ás onze e meia, em que, desculpando-se com a sua delicada saude, e aconselhada pelo Dr. Macedo, se retirou, com aquella pergunta fixa no cerebro, como um prego, a endoidecel-a:

-- Se gostavas tanto d'elle, como pudeste deixal-o?

VII

Se gostavas tanto d'elle, como pudeste deixal-o?... thema sobre o qual, sem descimaginação de Cléo.

Sim, como poude ella deixal-o, deixal-o e ligar-se. a outro, por sua livre vontade? Ignorava que na sua alma -- como aliás em tantas outras almas--existiam recantos escuros, onde não haviam penetrado os raios da paixão, e que n'esses recantos se guardavam os germens de outras sympathias e de outros desejos. Que desgraçada dualidade essa, que nem a deixára realisar as suas primeiras aspirações, nem agora lhe permittia o repouso, para desfructar aquillo que no momento da posse lhe parecêra tão bom!

A ventura que fôra seu sonho,-- ventura tranquilla, egual, que nos dá a posse do ente amado, pelo penetração lenta de duas almas, que a pouco e pouco rompem as barreiras do individualismo e transformam a passageira união dos sentidos e dos desejos, no sagrado laço de um affecto que as acompanha ao tumulo, -- que irrisoria, que pequena, que burgueza lhe pareceu, aoi entrar na sociedade! Em vez d'ella, quiz o ruido, o luxo, as admirações masculinas, as invejas femininas, o enervamento das festas, um amor de sala, sem calor nem estabilidade, um casamento de apparato, convencional e calculado, e flirts banaes, flirts de acaso, onde se reparte por muitos o thesouro que deveria pertencer a um só. E tudo para quê? Para voltar ao pomo de partida, para retroceder aos ideaes antigos, e reconhecer, tarde de mais, o terrivel e irreparavel erro. Irreparavel! Eis o que a desesperava mais que tudo, a certeza de que cousa alguma podia revogar o que por suas proprias mãos fizera. Cousa alguma?

E a sua cabeça exaltada, perdia-se em divagações.

Se elle a amasse -- e amava, que lh'o dizia o seu instincto feminino -- não haveria meio de derrubar os. obstaculos presentes, meio de o desligar de Leonor ? Tem porventura o casamento direito de monopolisar o coração? E' justo conservar unidos os que desejam desunir-se? Ceux qui s'aiment sont époux, e a phrase de Saint Just, que tem por corollario logico a formula : Ceux qui ne s'aiment plus ne sont plus époux, vinha-lhe servir de argumento contra o matrimonio de razão. Mas o argumento só tinha valor sob o ponto de vista anthropologico e physiologico, ella bem o sabia. Sob o ponto de vista moral, era perfeitamente refutavel. Travava-se uma lucta no seu intimo, análoga á lucta de Jacob e do anjo. Acudiam-lhe em tropel ao espirito as theorias modernas sobre o assumpto, aprendidas em livros impregnados de idéas avançadas, ou ouvidas da bôcca de homens illustres, com quem conversára.

Relembrava, tal como a sua experiencia de mundana lh'a mostrara, e tal como para si a acceitára, a mentira do casamento, onde o homem faz gala mesmo da sua polygamia, a despeito da monogamia legal, e onde tudo figura excepto o sentimento -- o sentimento que ella alcunhára de piegas e achára ridiculo até ainda ha pouco! Mas acudiam-lhe logo, tambem, fazendo calar experiencias e razões, os principios em que fôra creada, as doces crenças em que fôra embalada.

Ella era filha de paes virtuosos e honestos, recebêra lições que jámais de todo se desaprendem, crescêra rodeada de salutares influencias, e por mais que fizesse e dissesse, o amor não se lhe representava elevado e completo, senão no casamento, como se fossem dois irmãos invencivelmente ligados um ao outro, incompletos um sem o outro, e só poderosos um pelo outro. E o casamento implicava deveres imprescindiveis e sagrados. Por muito que certos exemplos mephiticos a houvessem alterado não podiam destruir n'ella de todo poderosas hereditariedades, noções bebidas com o leite, doutrinas incutidas desde o berço. Sublime como principio eterno, a theoria da indissolubilidade dos laços conjugaes -- theoria tão consoladora para os que sinceramente se amam e sinceramente se entregam, pois que traz comsigo a grande idéa de estabilidade, n'uma vida onde tudo muda, e representa um ponto de apoio e uma esperança, nos corações onde tudo se apaga -- mais do que nunca se lhe impunha, n'aquelle ambiente da sua infancia.

-- O melhor é fugir a isto tudo e fugir d'elle, decidiu ella assustada, cançada de inuteis arrazoados.

E procurou de boa fé distrahir-se, evitar Frantz, evitar mesmo achar-se a sós com Alice Guedes, para se esquivar a perguntas e ao perigo das confidencias.

Deu largos passeios de carruagem, acompanhada pelas amigas; passou alguns dias na sua grande quinta, a um kilometro de S. Mauricio. A estada ali foi-lhe agradavel e fertil em reminiscencias. Que de cousas evocadas ao penetrar na casa amarella, entre eucalyptos, composta de rez-do-chão e um só andar, coberta, ao nascente, de bougainville, que engrinaldava as janellas do seu quarto de rapariga, e d'onde os passaros, mal rompia a aurora, a acordavam com o seu chilrear! Com que saudade percorreu as longas ruas de meospóros, e a rua do fundo, a ultima, a rua dos medronheiros, ligada a acenas inolvidaveis entre ella e o antigo noivo! Quantas horas passou absorta, sentada no cadeirão sombreado por um frondoso e florido loendro, junto do tanque sobrepujado por uma exotica rainha de madeira pintada, empunhando, arrogante, um sceptro amarello, e fitando com os olhos de gesso o mysterioso céu. Conseguiu que a D. Thereza passasse com ella esses dias, afim de a distrahir dos seus teimosos pensamentos. Na volta a Sutil pagou varias visitas, foi vêr Margarida de Lencastre, e procurou de preferencia a companhia de Elsa.

Tanto para as irmãs e primos, como para Cléo, Elsa representava o supremo bom senso, a honestidade inconcussa, a bondade mais perfeita. Era a conselheira de todos elles, e a natural confidente em determinadas crises. Havia n'esta rapariga, muito alta, bastante magra, isenta de coquettismos, de bastos cabellos castanhos emmoldurando um rosto redondo e alvo, sem belleza de linhas e contornos, mas illuminado por um olhar leal e um sorriso franco, muita intelligencia alliada a um caracter de rectidão pouco vulgar, todo formado de abnegações e sacrificios, de deveres fielmente cumpridos.

Para Cléo, Elsa fôra sempre alguem que não póde errar, alguém superior ás tentações e ás pequenas vaidades, alguem cuja presença será importuna, sim, durante as horas de extravagancia, mas que se toma preciosa, impagavel, nas horas angustiosos, em que se carece de guia seguro e de amparo.

N'essa manhã, uma brumosa manhã de junho, apóz o almoço, Cléo foi com D. Thereza vêr Elsa, que morava na villa, em uma casa de dois andares, cercada de um terreno ajardinado, deitando sobre a barroca e sobre o mar.

Sem fazer ao de leve allusão ao que dentro d'ella se passava, Cléo arranjou um pretexto para obter opinião e conselho. Relatou um caso, tendo analogia com o seu, analogia que se limitava a apresentar a heroina solteira, e o heroe um homem casado, sem affeição pela esposa. Elsa não lastimou uma, lastimou as duas mulheres, a quem a sorte collocára em tal situação, mostrando o que a amiga até ali, no seu inconsciente egoismo, não vira: que ambas eram por egual infelizes. Não poupou o homem, que entra no casamento sem ponderar bem as graves responsabilidades que para si vae crear, e apontou a unica solução digna, no seu entender: vencerem, á força de virtude, a paixão que os torturava.

-- Olha, Cléo, concluiu Elsa, não ha prazer que valha o de uma consciencia tranquilla, nem ventura estavel quando não tenha por base o Bem.

Saber vencer-se, sacrificar-se, resignar-se, eis o resumo d'esta doutrina, de que sua mãe e avó tinham sido perfeitos exemplos.

-- Sim, o caminho a seguir é este. A consciencia deve pôr-se ao serviço da justiça. Quero ser digna dos meus, e digna tambem da confiança que em mim Elsa e as irmãs depositam, prometteu a viscondessa a si mesma, impressionada, ao despedir-se, perto das tres da tarde, e entrando com D. Thereza na carruagem que, á porta de Elsa Moreira, a aguardava.

«Saberei ser forte e boa; saberei dominar-mo, governar os meus vagabundos impulsos, as minhas impetuosas paixões,» continuou ella comsigo, emquanto o trem rodava pela rua direita, onde a cada janella e porta assomava uma cabeça.

As pesadas brumas da manhã haviam-se dissipado. No céu encoberto rolavam grossas nuvens sem fórma caracteristica, de um pardo uniforme, amontoando-se umas sobre as outras. Fluctuavam no espaço as azas claras das gaivotas, soprava, rijo o sueste, sacudindo pela barroca as salgadeiras e os cannaviaes.

Quando o trem penetrou na desabrigada e deserta estrada das Pedras Negras, uma chuva de areia veiu açoutar as faces de Cléo. Lá em baixo, a maré subia, o vendaval encrespava as ondas, que se atropellavam espumantes, rebentando com estrondo e elevando-se em vertiginoso repuxo.

Melancholica, ella recebia as caricias bravas d'aquelle vento indómito, alheio a piedades e renuncias, uivando louco e destemido pelas charnecas, derrubando sem dó tudo quanto obstava á sua passagem; e contemplava esse vasto mar revolto, violado desde immemoraveis tempos por milhares de embarcações, e que tantos seres tinha engulido, que tantas dôres tinha presenceado, que tantos crimes havia çommettido, continuando, apesar d'isso, immutavel, indifferente ao bem e ao mal, sob o olhar triste ou alegre das gerações que se succedem.

Como ella gostava, em dias semelhantes, de percorrer as areias onde, por momentos, forçoso lhe era deitar-se, para a ventania a não arrastar, de vaguear entre as escarpadas rochas, de arrostar, acompanhada por Frantz, com a furia dos elementos! Que horas divinas passadas a sós com elle, n'esse escampado, batidos do vento, molhados de espuma, e tão felizes de se pertencerem, de se olharem, de se amarem, em meio da natureza inclemente, que por todos os ladosgemia e gritava! E á, volta, o bem estar apoz a fadiga; o contentamento de se verem na confortavel sala; de conversarem e rirem, na doce tepidez que os cercava; de ceiarem e tomarem juntos o chá, bem saboroso e bem quente, que lhes refazia as forças para recomeçarem novos e arriscados passeios no dia seguinte; e de se despedirem, por fim, para irem repousar e sonhar, com os pensamentos cheios um do outro.

N'estas disposições de espirito chegou a viscondessa de Mello a casa, jantou silenciosa, e sem resistir ao desejo de desafiar, como outr'ora, a tempestade, afastou, com o pretexto de uma recommendação á governante, a D. Thereza, deitou sobre os hombros uma capa de sêda preta debruada de fartas ruches, pôz na cabeça um capuz do mesmo estofo, guarnecido de folhos de gaze de egual côr, escapou-se pela porta de vidros do seu gabinete, e enfiou pelo portado de madeira, aberto sobre a matta de eucalyptos, que se balouçavam n'um rumor continuo, produzido pelo rude attrito das folhas e o ranger dos troncos que vergavam.

Seguiu pelo ermo areial até aos negros penhascos, e parou, debruçando-se no precipicio, onde as alterosas e phosphorescentes vagas se debatiam convulsas, partindo-se em niveos jorros, golfando a ressaca em furia jactos de espuma na areia com um sussurro formidavel.

O oceano e o vento pareciam unir-se, gemendo n'um lamento inconsolavel -- o lamento de tudo que soffre na terra sem poder queixar-se.

Ella permaneceu ali algum tempo, fascinada por esse mar atormentado, como os seus pensamentos. Por fim, aturdida, cançada, foi procurar abrigo no velho Forte, que erguia as suas pobres ruinas sobre o proximo despenhadeiro.

Era um antigo e abandonado reducto, a que dava ingresso um corredor de abobada, tendo um quarto á direita, outro á esquerda, ambos com porta para o quadrado terraço de lages, fronteiro ao mar. Sobre esses quartos corria um mirante, para onde se subia por uns derrocados e grosseiros degraus.

Cléo descançou sobre a pedra, que servia de banco, no terraço. Encostou-se á pequena muralha que circumdava o recinto e fechou os olhos, abrindo-os quasi no mesmo instante, assustada pelo forte ladrar de um cão. Partiam de alto os latidos. Erguendo a cabeça, viu, empoleirado na esburacada amei do mirante, o Storff, que a reconhecêra e a chamava, e, por detraz d'elle, Fratz Lentz.

O animal, que Frantz trouxera comsigo, visto o dono passar a tarde com a familia da noiva, foi o primeiro a descer. Frantz metteu no bolso o livro que estava lendo, um poema allemão que tanta vez percorrera com Cléo, intitulado Der Schatzluiler, e seguiu-o.

Como ella, tambem elle se sentira profundamente perturbado, desde a valsa que juntos dançaram; como ella ainda, recordá-ra, soffrera e chorára, da fórma porque os homens da sua tempera choram: lagrimas d'alma sem assomar aos olhos. E a sua situação era mil vezes peor. Cléo vivia só e livre, não tinha a quem dar satisfações sobre as suas mudanças de humor, sobre qualquer dos seus actos, ao passo que elle era vigiado, analysado, espreitado, tendo de recorrer á mentira, que tão odiosa era ao seu caracter. Que coragem lhe fóra necessaria para supportar as severas admoestações da mãe, e as mesquinhas represalias da esposa, em casa, apóz a soirée. para ouvil-as injuriar e apoucar a mulher que elle estremecia! Que tremenda lucta, a sós comsigo, para vencer o ardor do sangue e o calor do coração que falava alto

Elle tivera-a nos braços, sentira que era ainda amado, e era vez de correr para ella, perseguil-a, conquistal-a mais uma vez, como todo o seu ser lhe pedia e a sua virilidade lhe exigia, eis que tinha de fugir-lhe, pois que a approximação lhe era defeza. Muito embora o seu casamento estivesse longe de ter tido por mobil uma affinidade electiva, isso não o isentava das responsabilidades que do acto fatalmente derivam. Desencadeava-se n'elle o eterno conflicto entre o dever conjugal e a aspiração ardente que o dominava. Fingir, fingir, fingir, tal era o unico recurso honesto que se apresentava a Frantz Lentz. Cléo tornava a ser a estrella do seu céu, o centro do seu universo, o sopro da sua vida, a esposa eleita do seu coração, e, no emtanto, elle permaneceria para sempre ligado a outra, tendo paro sempre de mentir-lhe, tendo pura sempre de enganal-a, tendo para sempre de occultar-lhe de que eram feitas as suas alegrias e as suas tristezas. O amor, não extincto, porém socegado ha tanto, reapossava-se, vencedor, da sua alma. Como esmagal-o e desattendel-o ? Como encontrar na peculiar fraqueza para as tentações d'esta ordem, que caracterisa o ser masculino, forças para combater, armas com que defender-se ?

O melhor é fugir, pensou elle.

E começou pelo seu lado a esconder-se, ora internando-se dias inteiros nas charmecas, ora indo visitar herdades e montados, ora ainda vagueiando pelos rochedos e mattos. N'aquelle dia jantára cedo e sahi-ra, na intenção de dar um longo passeio. O temporal não o deixou avançar, e como lhe fosse desagradavel a perspectiva de uma tarde fechado em casa, procurou refugio no solitario Forte. Mas o acaso, que tem ironias crueis, tece os cousas de modo que separa, se nem sempre de facto, pelo menos, muita vez, por todas as fibras intimas, aquelles a quem sociedades e codigos impõem uniões perpetuas, e vae reunir os que precisam e tentam, para seu repouso, conservar-se afastados.

A inesperada presença de Frantz, fez Cléo levantar-se machinalmente, como se galvanisada.

O Storff veiu passar-lhe o focinho repetidas vezes pela saia.

Nenhum d'elles extendeu a mão, nenhum pronunciou uma palavra. E' que o silencio, em certas occasiões, é a suprema eloquencia. Os olhos azues fitaram os olhos negros, e ambos mergulharam na alma um do outro, entendendo-se.

Que caricias, que promessas, que confissões podem conter-se e trocar-se n'um olhar!

Obedecendo a antigos habitos, Cléo encostou a cabeça ao peito d'elle, que a apertou contra si e lhe beijou com paixão o rosto...

-- Frantz... Frantz... murmurou ella no seu delirio, com aquella voluptuosidade especial, já aos dezeseis annos sentida, de lhe repetir vezes sem conto o nome.

Elle estreitava-a mais e mais, parecendo a ambos que os corpos se lhes abriam, que o sangue, a vida, se lhes confundiam. Continuando a sustel-a nos braços, Frantz Lentz, foi collocal-a no banco de pedra, sobre o qual se sentou tambem. Então, interrompidos os beijos, desafogaram, contando, sem nenhuns rodeios, os mais secretos sentimentos.

Frantz poupou-lhe a pergunta feita por Alice Guedes, e que ella temia ouvir, por não saber como explicar-se. Elle percebeu que o não ludibriavam, que a viscondessa era sincera no seu arrependimento e no seu amor, e isso lhe bastou.

Todos os nervos de Cléo vibravam, dispertando-lhe adormecidos instinctos. Isolada com Frantz n'aquelle ermo, entre o céu e o mar, separada do mundo e dos seus convencionalismos pela extensão de médãos e brejos, que se lhe afiguravam sem limite, as idéas tomavam insensivelmente outro rumo.

A natureza, que não reprime os seus fortes impetos ; que cumpre, a despeito de tudo, os seus designios ; que satisfaz, sem constrangimento, os seus appetites, ensinava aos dois amantes uma perigosa lição, convidando-os, com todo o vigor dos seus pulmões, a imital-a, parecendo escarnecer-lhes os escrupulos, as peias em que deixavam amarrar-se.

«Não vos importeis reconhecer mais do que as minhas leis, as únicas verdadeiras e eternas», bradava-lhes ella pela voz das cousas, que o vulgo julga inanimadas.

E elles dobravam-se, deliciados e submissos, á acção da feiticeira, que perfidamente se insinua, a despeito de nós mesmos, n'essas regiões obscuras, onde não penetra a consciência.

Fugirem-se, evitarem-se! Que pueril e ridicula lhes pareceu, n'aquelle logar, semelhante resolução! Lembrando-a, as duas bôccas sorriram e uniram-se n'um longo beijo.

Em volta d'elles, a cerração augmentára. A chuva começou cahindo, o sombrio crepusculo avançando.

Cléo e Frantz refugiaram-se n'um dos quartos, forrado de toscos ladrilhos, pertencente aos pescadores, que para aquelle logar vinham muita vez dormir a sesta e concertar as redes. Ali permaneceram esquecidos do que os separava, do que os ameaçava, e de que a honra e o dever se interpunham entre os seus desejos.

Corria em jorros do ceu a agua, bramia pela charneca o tufão, proseguiam na sua incançavel marcha os minutos, unindo duas existencias pela fragil o indissoluvel cadeia que prende a morte á vida.

Soavam no relogio de Sutil as nove, quando a carunchosa porta do quarto, escondido no reducto, rangeu nos gonzos, abrindo-se.

Cessára a chuva; o temporal abrandára.

Tomando o braço que lhe offerecia Frantz, Cléo sahiu do Forte, dirigindo-se ao pinhal. Delicioso e curto foi para ambos esse trajecto, atravez de uma penetrante humidade, que nenhum d'elles sentia.

Separaram-se á entrada da matta de eucalyptos, não pensando já em fugir, mas promettendo procurarem-se e juntarem-se sempre que se lhes deparasse occasião.

A essa hora, D. Thereza fazia meia no quarto de costura, com janella para o jardim, quasi encoberta da parte de fóra pela folhagem de uma accacia, e a senhora Anna trabalhava nas complicadas rosetas de crochet, destinadas a uma colcha, começada havia dois annos.

Pouco se admiraram ellas do desapparecimento de Cléo, considerando logo ter a viscondessa ido passar a tarde com as Guedes. Contente de a haverem esquecido, pois que lhe não sorria nada sahir por semelhante tempo, D. Thereza procurou a companhia da Anna, com quem se entendia bem, caso que lhe não succedia com as creadas e a governante de Lisboa. Conversas, habitos, modos, tudo era diverso d'ella, e tudo a confundia.

-- Isto é uma gente, uma gente! observava D. Thereza Bastos para a Anna, fechadas ambas no pequeno aposento; eu não as aturava nem por quanto houvesse.

-- O que a senhora me diz! volvia a Anna, de cabellos grisalhos muito empastados, saia e casaco de chita verde, avental de riscado azul, lenço amarello aos ramos, cruzado no farto peito.

E contavam uma á outra os desperdicios que presenceavam; as cousas que ali se davam, sem a dona da casa saber.

Esta distracção innocente, muito femenina e muito burgueza, de criticar actos alheios, foi interrompida pelo apparecimento da viscondessa, que apenas mudára de calçado, por não ter animo de tirar o vestido, desde agora ligado a um momento precioso da sua existencia, tão rica de gosos, e que ainda assim nada sentira comparavel á impressão d'aquelle dia.

No rosto mobil, que a paixão indenciára, espelhava-se perfeitamente a loucura interior. Mas, a senhora Anna e a D. Thereza, destras na meia, no crochet e n'outras prendas caseiras, porém, inaptas para lerem uma alma no olhar, no sorriso, no gesto, na expressão physionomica, attribuiram aquelle parecer animado á distracção com as amigas.

-- Já vejo que se divertiu, disse, muito convencida, a ingenua D. Thereza, respondendo com um beijo ao beijo da viscondessa.

-- Diverti... diverti... Que linda tarde!

-- Linda tarde! Ora esta! E' ainda a mesma menina Cléo, emittiu a Anna levantando-se.

-- A mesma, e por isso vaes sentar-te onde estavas e contar-me historias.

Satisfeita de vêr a sua presença apreciada, a Anna balbuciou:

-- Ora, ora, os meus peccados! Eu já me não lembro nada...

E retomou o seu logar, junto da meza onde estava o candieiro de petroleo, de florido abat-jour.

Cléo fechou a porta, puxou de um banquinho, desatou os opulentos cabellos, que lhe rolaram pelos hombros e costas, sentou-se aos pés da D. Thereza e deitou-lhe a cabeça no regaço. Thereza Bastos comprehendeu que serviço lhe exigiam. Gostava a viscondessa, de pequenina, que lhe corressem ao de leve os dedos pelo cabello até adormecer, e tinha por habito, em certas noites, mesmo depois de crescida, despentear-se e encostar-se para esse fim aos joelhos da mãe ou de D. Thereza Bastos.

Começou a Anna a contar os contos, tanta vez repetidos, a evocar, na sua pittoresco linguagem, a legião dos feiticeiros e das fadas, que soccorrem os cavalleiros destemidos, recompensam as donzellas virtuosas, e protegem os amores contrariados. Batiam os ramos das accacias nos embaciados vidros, cahia em cheio a luz sobre o sobrado amarello. Tudo era silencio em redor, apenas interrompido pela voz proxima da Anna e a longinqua voz do vento.

Cléo, toda entregue ao amor que a surprehendêra, amor estreitamento unido áquelles logares que lhe representavam um periodo para sempre extincto da sua duração terrestre, deliciava-se em escutar a confusa melodia da velha serva, em vêr o usado mobiliario do aposento, conservado tal qual como d'antes, em sentir os dedos de D. Thereza acariciarem com paciencia e meiguice a sua doida cabeça. Dava-lhe tudo aquillo a illusão de que as cousas não haviam mudado, de que a idéa de ventura póde unir-se á idéa de estabilidade. Cerraram-se-lhe a pouco e pouco as palpebras, distenderam-se-lhe os nervos cançados, e o somno, com o seu cortejo de sonhos, apossou-se do cerebro de Cléo, prolongando-lhe a illusão.

VIII

Rompera ha muito o dia, limpido, sereno, cheio de sol, apoz a tempestade da vespera.

Cléo despertou tarde, no seu leito de pennas, linho, seda e rendas.

A illusão da noite desvanecêra-se; mas no seu logar renasciam outras chimeras, que lhe velavam as prosaicas realidades. A consciencia dormia, a vontade afrouxára, só o amor reinava n'ella, como um rei absoluto, nos seus conquistados dominios.

Ao passo que se vestia, Cléo quiz discutir com elle, oppondo-lhe a razão. Falhavam-lhe os argumentos, ou voltavam-se todos contra o seu proposito. Remorsos e escrupulos tornavam-se termos ôcos de sentido, não correspondiam a sentimentos. Repetiu alto as palavras de Elsa, tanto as ultimas, como as antigas, aquellas que pronunciára a proposito do baralho de cartas : «O casamento é sagrado. Todo o homem que engana a esposa, desobedece a Deus e commette um crime. Toda a mulher que levanta os olhos para o marido de outra, cahe em peccado mortal e perdeu o direito ao Céo».

A isto, o amor segredava-lhe logo, apontando outra face da mesma verdade: «As unicas uniões sagradas são as que eu sancciono. Todo aquelle que se atrever a affrontar as minhas eternas leis, emanadas do proprio Deus, cahe no peccado da mentira e em mil outros peccados... Espera-o o inferno».

«Mas eu devo sacrificar-me pelo bem dos outros... Devo resignar-me para não destruir a ventura do meu proximo.»

«O individuo deve subordinar-se, é certo, aos interesses alheios; mas essa subordinação ha de ser combinada com o mais alto desenvolvimento da sua propria individualidade...»

Cléo sahiu do quarto, e foi ter com as creadas, dar ordens, para se esquivar á contradicção dos pensamentos, que a assaltavam e a faziam costear abysmos.

O futuro d'ella e de Frantz estavam na sua mão.

Que decidir?

Tres caminhos se lhe offereciam: as relações clandestinas, cortadas de sobresaltos e angustias; a quebra de todos os laços, pela audaciosa união livre, ou a dura renuncia á ventura que a chamava e a tentava.

Qual escolher?

Qual escolher? perguntava ella ainda, depois do almoço, ao lembrar-se que era vespera de Santo Antonio, que D. Sophia Guedes tencionava armar, por causa das netas, um mastro no jardim, e dispondo-se para ir assistir, como promettêra, a esses tão seus conhecidos preparativos.

Vespera de Santo Antonio! Que anniversario! E ia vêl-o a elle mais uma vez, gosar da presença querida, inebriar-se e inebrial-o!

Esta idéa communicava-lhe uma energia nova, feita de extranhos ardores. Ao seu appello, todas as delicadas fibras dos nervos e dos musculos, todos os desejos gravados na fina téla da alma se entrechocaram, dispertados.

Acabava ella de segurar com alfinetes de ouro o cinto do vestido, em linho claro, bordado o branco, quando alguem bateu á porta do quarto, perguntando:

-- Posso entrar?

Bertha foi abrir.

Era Elsa Moreira.

A creada retirou-se immediatamente, com aquelle tacto que ellas adquirem no serviço das senhoras de um certo mundo. Se em vez de Bertha fosse a Agueda, ou outra creada a servir n'aquelles sitios, deixar-se-hia ficar até lhe darem ordem de sahir, e interromperia a cada momento, por observações pessoaes, a conversa.

-- Vens buscar-me ? interrogou Cléo beijando Elsa.

-- Venho... As pequenas querem ouvir a tua opinião sobre uns arranjos... Chegou de manhã o carro com a verdura e as flôres... Já começaram os trabalhos... Requeremos a tua presença...

-- Tencionava ir para lá cedo, mas não sei como foi, logo hoje me levantei tardissimo, desculpou-se a viscondessa, que havia esquecido a promessa de ir para casa das Guedes ás nove.

-- Como é meio dia e tu não apparecias, fiquei em cuidado, não te tivesse feito mal o passeio, hontem, com aquella chuva, e tão tarde!

-- Quem te disse que eu sahi ?

-- A tia Maria... Ella e a Leonor deram uma tal importancia ao caso!

-- Mas como souberam? indagou Cléo surprehendida.

-- Pelo Manuel, o moço dos recados, que passava na matta de eucalyptos, justamente na occasião em que tu e o Frantz ali chegavam.

-- Não o viste, mas elle viu-te e contou á Leonor, que o relatou logo á tia... Que tolices ellas imaginaram e foram dizer-nos, não fazes idéa !

-- E o que lhe responderam ?

Cléo formulou esta pergunta n'uma grande anciedade.

-- Tanto a mamã, como eu e a Alice, te defendemos e affiançámos que o encontro devia ser mero acaso.

-- Como posso jurar-te que foi.

-- Nunca duvidei d'isso, respondeu Elsa com sinceridade, envolvendo a viscondessa no seu olhar leal e candido. Tu não eras capaz de commetter a acção de que te accusavam, nem de semear a discordia no meio de uma familia.

-- Não era, não, e agradeço-te do fundo d'alma teres feito justiça ao meu caracter.

Cléo pronunciou com esforço estas palavras, tomando a beijar Elsa, para encobrir a côr que lhe subira ás faces.

Caso extranho, que na cidade pudesse mentir sem pestanejar, sem que um musculo sequer do rosto a trahisse, e que ali, n'aquelle pequenino meio, rodeada d'aquellas cousas, a mentira lhe pezasse quasi como um sacrilegio, a deixasse envergonhada e humilhada!

-- Depois, este absurdo que eu apontei á tia: a impossibilidade de uma inclinação -- e só gostando de um homem, uma mulher se compromette com elle -- por quem afinal nunca te soube captivar, e a quem tu nunca amaste a sério, continuou a simples Elsa, contente de verificar que se não enganára com respeito á amiga.

A quem ella nunca amára a sério ! Cá estava a eterna incomprehensibilidade do seu sentir, que poucos acreditariam. O que certa gente entende por amar a serio! E que logica empregam para explicarem aquillo que não logram perceber!

Fugindo a uma resposta directa, Cléo disse:

-- Que direito daria eu á D. Maria e á Leonor para pensarem de mim como pensam?

-- A tia Maria é injusta... Tem aquelle genio tão desconfiado... Além d'isso, o resentimento que lhe ficou por tu não quereres o filho... Agora, aqui para nós, a Leonor, coitada, tem desculpa. Sobram-lhe ximação do marido... Não deves offender-te... Ella não ignora que elle gostou de ti como de mais ninguem, e o abalo que lhe deu o teu abandono.

-- Gostou está no passado, não faz mal, observou com volubilidade Cléo, sorrindo maliciosa.

-- Sim, porém, bem sabes que de ti depende a conjugação d'esse verbo no presente, retorquiu Elsa em tom reprehensivo, desgostosa que a outra considerasse levianamente um caso d'esta importancia.

-- A Leonor é uma tonta... Para que acceitou o que acceitou, sabendo o que sabia? Que me deixe em paz, em vez de suppôr que vim metter-me em Sutil para fazer experiencias grammaticaes, volveu a viscondessa com ligeiro azedume, compondo os frisados e collocando ao espelho o chapeu de jardim, em linho bordado, egual ao vestido.

-- A Leonor é uma pobre rapariga, acudiu Elsa com brandura. Deves ser indulgente e poupar-lhe dissabores. A sua pouca intelligencia e educação fazem-n'a temer ainda mais a tua superioridade. O instincto supplanta n'ella o raciocinio. Ha alguma cousa que a não engana, e que lhe diz não poder nunca o casamento d'ella ser o que foi, por exemplo, o do papá com a mamã, o que ha de ser o do Carlos com a Alice, o que seria o teu com Frantz.

O casamento d'ella com Frantz! A idéa, que em tempo a endoidecêra de ventura, que mais tarde a fizera encolher os hombros, desdenhosa, fazia-a agora de novo estremecer.

-- Estou prompta, vamos...

Sahiram ambas pela porta de vidros, que a viscondessa deixou entreaberta.

Andando ao lado da amiga, pela rua das accacias, Elsa continuou a dissertar, com a sua habitual sensatez, sobre o assumpto, sem a mais leve suspeita do drama da alma de Cléo. E que drama, sobre tudo agora, que sentia imminente o rebentar de um escandalo, sem precedentes no sitio! Só de o pensar, só de imaginar o que todos ficariam dizendo, os joelhos vergavam-lhe, inundava-a um suor frio. Quizera ficar em casa, a sós com o seu coração, preparando-se melhor para a lucta, ou estudando a maneira de evitar explicações, caso houvesse de succumbir. Não podia. Obrigára-se a comparecer n'aquelle dia festivo, e uma desculpa banal no momento preciso em que sobre a sua conducta alguem levantava duvidas, seria contraproducente. Precisava escudar-se contra os olhares curiosos, ser energica, mostrar verdadeira presença de espirito.

Perto do espaçoso largo, em frente da casa das Guedes, appareceram Helena, Gina e Alice.

-- Venha vêr o que nós estivemos arranjando, pediram as filhas de Elsa, cheias de enthusiasmo.

Cléo seguiu-as.

Em volta do largo apinhavam-se braçadas de verdura e de flôres. De um lado, junto a uma montanha de alecrim, para a fogueira da noite, vestia-se de folhagem o mastro, que fôra ainda ha pouco um bello pinheiro. Mais adiante, enfeitavam-se de vistosos ramos os quatro arcos. Leonor e a mãe cosiam fitas e preparavam o grande bouquet, ornamentações que faziam parte da bandeira dourada, com o retrato do santo.

A Fraulein e Miss Clarke, n'um banco proximo, liam e conversavam em inglez. D. Maria ajudava a irmã em casa, onde havia muito que fazer tambem. D. Thereza. que ha pouco chegára, tinha em frente da cadeira baixa, em que estava sentada, um cesto de enormes laranjas, a que pacientemente ia tirando o interior, conservando-lhes inteiras as cascas, para serem penduradas dos arcos, e que, ao escurecer, se illuminariam por dentro.

E, por toda a parte, flôres espalhadas, novellos de barbante onde os pés se embaraçavam, fructas partidas no chão e espesinhadas, balburdia, risos, perfumes acres; creadas novas e velhas, n'uma azáfama; raparigas e rapazes da villa, filhos de empregados do Guedes, que vinham ajudar; o Vasques a passeiar, arreganhado, entre os grupos, atirando-lhes das suas costumadas chufas; pilhas de foguetes para lançar ao ar quando á tarde se arvorasse o mastro, e á noite chegasse a musica; e Hermann, radiante, no meio d'aquella confusão, augmentando-a.

Gina e Amelia mostraram a elegante capella de flôres, e Helena os cachos de fructas, biscoitos, rosas e cravos, que deviam, depois de tudo prompto, ser dispostos symetricamente entre a folhagem que revestia o mastro.

Dando a sua opinião e elogiando o bom gosto das pequenas, a viscondessa abrangia com o olhar o scenario, que lhe relembrava uma infinidade de figuras e de quadros, burilados no livro da memoria. Treze annos apenas haviam decorrido desde o ultimo Santo Antonio a que ali assistira, e já tanto passára d'essa corrente da vida, cujas ondas põem em movimento elementos tão diversos, e nos levam, atravez de tanta metamorphose, até ao nosso mysterioso destino.

D. Pulcheria, mal deu pela sua presença, veiu falar-lhe, e o mesmo fez Leonor, contrafeita.

Não obstante, nas suas queixas, a mulher de Frantz não accusar este, fingindo até nem suspeitar d'elle, e deitando todas as culpas sobre os hombros da viscondessa, no intimo sabia bem de que lado a ameaçava o perigo. Se o marido estivesse tranquillo, ou se fosse absoluta a confiança que n'elle depunha Leonor, como por orgulho queria fazer acreditar, é evidente que nenhuma cousa grave ella receiaria. Esse era o ponto doloroso. Presentia o poder da viscondessa, sem ignorar que elle provinha apenas do affecto enorme que inspirára a Frantz, affecto que a sua perspicacia femenina lhe dizia não estar extincto, embora em alta voz affirmasse o contrario, simulando uma segurança, que estava longe de possuir.

Alice, de quem o noivo acabava de despedir-se, para montar a cavallo e ir á quinta mandar vir mais flôres e fazer certas recommendações ao quinteiro, a pedido da futura sogra, travou por fim do braço da viscondessa de Mello, e levou-a até ao caramanchel, meio occulto entre tufos de baunilha, junto do largo.

-- Vens ajudar-me, sim? pediu ella, contente do que julgava ser boa disposição de animo de Cléo, a quem, ao ter conhecimento do passeio da vespera, receára tanto achar alterada, que. nem coragem tivera para ir com Elsa, ou mesmo antes, buscal-a.

-- Da melhor vontade.

Alice tirou de uma cesta de costura duas formidaveis agulhas, que enfiou em compridas linhas. Entregou uma a Cléo, e com a outra começou a unir os malvaiscos, postos no cadeirão em alguidares de barro.

-- Ainda sabes fazer este trabalho ?

-- Se sei! redarguiu a viscondessa, matisando as flôres e dispondo-as em grinaldas, que pela parte de baixo dos arcos lhes serviriam de recorte.

-- A partida que tu uma vez me fizeste com esta flõr!

-- Que bello tempo, Alice! suspirou Cléo, a quem occorreu logo a travessura a que a outra se referia. Fôra n'uma vespera de Santo Antonio. Estavam ambas, como agora, armando grinaldas. Haviam aprendido na vespera, n'um velho alfarrabio que lhes viera ás mãos, a linguagem das flôres, que muito as divertira. Carlos e Frantz appareceram de subito junto d'ellas. A maldosa Cléo, separando um malvaisco raiado, que significava se tu soubesses, offereceu-o a Carlos, explicando: «E' um presente da Alice». Esta ruborisou-se, desmentiu-a, amuou-se; o primo riu, e Frantz apanhou e guardou na carteira a pobre flôr, que a prima arrancára das mãos do futuro noivo e atirára ao chão.

Quantas conjecturas boas formulára a cabeça de Cléo observando o acto !

Áquella seguiram-se no seu espirito outras imagens. O vestido que a mãe estreára n'esse dia: a vaporosa côr do céu; um ramo de folhas de accacias, que o vento balouçava de certa maneira; o sabor de uns bolos que a Amelia lhe deu a provar; os latidos agudos do Koller, a quem o moço do carro pisára uma pata; o lenço novo da Anna, semeado de papagaios verdes, sobre fundo escarlate; a Fraulein, de rabo-leva, posto pelos pequenitos do jardineiro; o pinto que se extraviou da capoeira e, atordoado, se foi metter debaixo do banco onde D. Thereza estava sentada, assustando-a com os gemebundos pios; o zurrar furioso do burro, carregado de ginjas e rosas, quando Maria Lentz e D. Sophia se lhe approximaram; o trambulhão da Agueda, que sobraçando o cesto dos biscoitos de mel, escorregára n'uma casca de laranja; a capella torta, o Santo á banda, quando o mastro foi içado, sendo os homens obrigados a arreal-o, por entre as gargalhadas d'ellas todas; o saboroso jantar comido á pressa, com devorador appetite; o accender das lanterninhas, cortado de peripecias; o saltar da fogueira a duas e duas; o baile de roda; as mãos suadas dos trabalhadores; a chegada da philarmonica; e, á meia noite, as sortes, em que se fazia muita trapaça.

Ah! quantas cousas insignificantes se bordam assim em pontos miudos sobre a talagarça da existencia ! Quantas recordarções se gravam em nós com tal vigor, que o tempo jámais póde apagal-as! Sob os annos, encontramos sempre os desenhos das suas linhas profundas. No momento de Cléo atravessar essas horas, voaram ellas sem deixar uma impressão especial. Agora, assim longinquas, mortas n'um passado morto, adquiriam irresistivel encanto. Revivel-as, revivel-as ,quaes ellas foram, para as fixas mais uma vez, tal era o ardente o esteril anhelo da viscondessa, rememorando-as!

Mas cousa alguma para a creatura humana recomeça; nenhum rio volve á sua nascente. Forçoso è deslisar com os annos e olhar, sem superfluas saudades, aquillo que nenhum esforço nos póde restituir.

-- Menino Hermann, esteja quieto, olhe que ahi vem o seu papá, gritou uma das raparigas, tentando desembaraçar-se dos arreios do cavallo de pau, que o pequeno lhe enfiára pelo pescoço, apertando-lh'o e querendo trepar-lhe aos hombros.

-- Hermann, Hermann, Welche Schande! soou, zangada, a voz de Frantz.

Apanhado em flagrante, Hermann largou os arreios sobre a preza de momento, desatou a fugir para o caramanchel, saltou para os joelhos de Cléo, fazendo-lhe cahir agulha e malvaiscos, e abraçou-a segredando-lhe:

-- Dize ao papá que eu não fazia mal nenhum, sim ? Não quero ficar castigado.

Aquelle corpinho robusto e esbelto, junto do seu, as mãosinhas que a apertavam, a cabeça de emmaranhados anneis louros, encostada ao seu hombro, a boquinha rosada, que lhe falava, os olhos travessos, que lhe sorriam, perturbaram-n'a profundamente pela segunda vez. Ah! a doçura sem egual de ser mãe, de ter em volta de si um ou mais filhinhos a quem educar, vigiar e amar, com que intensidade ella a comprehendia emfim!

Frantz Lentz, que chegára ao largo, exactamente quando o filho praticava a maldade, dirigiu-se ao caramanchel para onde o viu sumir-se.

No olhar de Cléo e no d'elle, que a não esperava ali, accendeu-se um extranho brilho, que nenhum soube a tempo reprimir, emquanto se trocava um ceremonioso cumprimento, e sob as palpebras delicadas de Alice desenrolou-se uma nuvem de tristeza, que passou despercebida.

-- Então, depois da proeza ainda vens incommodar esta senhora ? articulou Frantz n'um tom brando, que queria parecer severo.

-- Papásinho, aquillo foi só brincar.

-- Boa brincadeira, não ha duvida... Para que se não repita...

-- O Hermann não torna a praticar hoje mais travessuras, acudiu Cléo.

-- Não torno, affirmou o pequeno, voltando a carinha risonha e gaiata para o pae, sem comtudo largar o collo em que repousava.

-- Portanto, é de justiça que se lhe perdôe por esta vez.

-- Bem, redarguiu Frantz, após uma pausa, agradece a quem por ti intercede...

-- Que não sou castigado, papá?

-- Que não és castigado, está dito...

Exultante com a decisão, Hermann agitou os pés, bateu as palmas, beijou estouvadamente Cléo, declarando:

-- Gosto muito de ti e quero que venhas para a minha casa, que tu não ralhas como os outros.

E sahiu do caramanchel correndo.

-- Que pena a minha não ter um filho como este ! disse Cléo n'um mumuirio, apanhando as flôres que a creança lhe deitára por terra.

Ha annos, dissera ella ao Dr. Figueiredo:

«Que felicidade não ter filhos, que estupido e incommodo que tudo isso é !»

Antinomias inherentes á natureza humana, instavel desde o berço até á cova.

Sem parecer tel-a ouvido, Frantz conservou-se de pé, encostado á porta, do lado de traz do caramanchel, porta aberta sobre uma rua escusa, que, velada pelas accacias e sardinheiras da rua principal, corria ao longo do muro, até ao portão de entrada. Passára elle a noite em claro, e parte da manhã fechado no escriptorio, negando-se a explicações sobre o passeio da tarde anterior, guardando obstinado silencio perante as invectivas da mãe e as observações da esposa.

-- Encontrei-a por mero acaso, foi a unica declaração, que puderam obter da sua bôcca.

Toda a lucta interior n'elle expirára, desde o que inesperadamente lhe succedêra. Era absurdo luctar, tendo a certeza de ser vencido. Succumbiu uma vez, succumbiria sempre, é claro. A voluptuosidade imprimira-lhe os seus beijos de fogo; a sua vaidade fôra-lhe exaltada e enthronisada ; não era um santo, era um homem: escravo de ambas ficaria. Nem se deu ao trabalho de pôr a questão nos termos em que a pôz Cléo. Nâo disse: «Tenho deante de mim tres caminhos... Qual d'elles devo seguir?» Bem via Frantz muitos caminhos; mas, visto o acaso tel-o embrenhado na vereda a que quiz fugir -- a mais perigosa com certeza, a mais agradavel tambem -- de que servia fatigar o pensamento se a escolha estava feita ? O que elle sentiu bem, foi que, tendo reconquistado a unica mulher a quem adorava, queria continuar a possuil-a, e não se resignaria a perdel-a e a abandonal-a por imposições alheias á vontade d'ella.

-- Cléo é livre, póde, querendo, fazer-me o sacrificio do seu futuro... raciocinava elle, firme na resolução que tomára.

Na sua qualidade de homem, estava melhor collocado, mais ao abrigo das censuras, não tendo a temer, nem o demasiado rigor das leis, nem o desprezo dos seus eguaes. Afinal, o que lhe poderia succeder, na peior hypothese ? Um rompimento com a obscura alemtejana? Se não fosse a sua pretensão a uma grande honestidade de conducta, era até uma ventura, de que aliás estava livre, porque Leonor nem saberia nunca intentar-lhe um processo, nem se atreveria a semelhante cousa. Além d'isso, ignorante e fraca, não podia prescindir do apoio d'elle. Esse apoio estava Frantz prompto a dar-lh'o, em todas as circumstancias; prompto a ser generoso e benevolo; mas d'ahi a alienar a liberdade das suas inclinações intimas, ia uma enorme distancia. Tudo lhe entregava de boa mente, como era do seu dever, excepto o coração, que era de outra, e que elle não podia offerecer a mais ninguem. Quer hypocritamente, quer ás claras, isto tinha de ser assim. O seu amor havia de permanecer sempre divorciado do seu lar domestico.

A presença de Frantz voltou a perturbar o espirito de Cléo, apagando d'elle as impressões dispertadas por Elsa. A' medida que se trocavam olhares longos e ávidos, todos os sentimentos tumultuosos se uniam no imperioso desejo de tornar a estar só com elle, e de o separar de Leonor, fazendo-o seu.

-- E' tolice minha ceder... Todos nós temos direitos, sophismava ella comsigo. Só a attracção reciproca legitima e sancciona as uniões. A indissolubilidade do casamento não póde conciliar-se com a liberdade, com a autonomia, com a moral mesmo. Nada póde justificar a perpetuidade de um contracto, que tem por objecto a união de duas pessoas, porque nada ha que possa justificar a anniquilação do individuo, a abjuração da vontade propria...

E como a approval-a, a reforçar mais uma vez os seus argumentos, a natureza ria, e expandia em volta d'ella a sua contagiosa voluptuosidade, expondo-a sem meios de resistencia á tentação.

Dançava o sol entre as finas dentaduras da folhagem, semeando de oscillantes pontos de ouro o caramanchel perfumado pelo capitoso odor dos cachos da baunilha, de um lilaz rosado; gorgeavam sem descanço pela ramaria as andorinhas e os pardaes; na dourada poeira perseguiam-se moscas, borboletas e tavões; o brando rumor do vento e do oceano acompanhava em surdina o hymno de vida, de liberdade e de amor, sahido do coração universal.

No largo, onde a animação crescia, uma das raparigas começou cantando:

Se o querer-te tanto é peccado,

Um crime sem ter perdão,

Crê tu que o meu coração

Ha de ser sempre culpado

Outras vozes se lhe juntaram, continuando em côro:

Eu hei de amar o meu bem,

Diga o mundo o que disser,

Quem ama não quer conselhos,

Quer só o que o amor quer.

Cléo e Frantz estremeceram. Aquellas mesmas cantigas tinham elles ouvido ha tantos annos, quando se namoravam -- como agora -- porém, em circumstancias bem diversas. Quem lhes diria então!...

Nos olhos de Cléo borbulharam lagrimas de desejo, de saudade, de ventura e de tristeza. Largou os malvaiscos, desculpando-se com o cheiro forte da baunilha, que lhe provocava dôres de cabeça, passou pela porta a que Frantz se encostára, e foi andando devagar pela rua escusa.

Elle seguiu-a.

O olhar de Alice toldou-se, ao vêl-os partir juntos. No rosto assomou-lhe uma grande expressão de angustia. Abandonou as grinaldas e ficou afflicta, indecisa.

D. Sophia, acompanhada de Maria Lentz, descia n'este momento ao largo, a observar os preparativos da festa. Do seu logar, Alice avistou-as. Vencendo hesitações, ergueu-se de um pulo, e foi, correndo, ter com Frantz e Cléo. Parou enleiada ao approximar-se-lhes, sem a menor explicação. Sem nada dizerem, tambem, elles separaram-se, continuado Cléo a descer com Alice a rua, ao passo que Frantz tomava em sentido opposto e desapparecia do lado das cocheiras.

O encontro, interrompido abruptamente, augmentou em ambos os mal reprimidos impulsos.

Ella passou o portão de ferro e seguiu pela estrada, até ao largo da Senhora da Rocha, onde echoava o arrastado e dolente canto das raparigas.

A modesta ermida, exposta áquella hora ao sol, offuscava a vista com a intensa luz reverberada pelas suas paredes, brancas de cal. Estava aberta a negra e estreita porta da sacristia, semelhando um remendo preto na crueza d'aquella alvuru. Cléo entrou, machinalmente, passando á egreja onde ajoelhou, como Alice, aos pés do altarmór.

O recinto era claro, tirando aquelle ar de doce mysterio que tanta influencia exerce sobre o espirito, nos logares sagrados. Pobreza, aceio, profusão de luz, entrando a jorros da grande janella do côro, eis o que se notava no interior da egreja, cujas paredes, forradas de azulejos até meia altura, eram caiadas d'ali pura cima, bem como a simples cupula. Inferiores douraduras emmolduravam nos altares lateraes os envidraçados nichos de dois santos. Um d'elles, S. Benedicto, carregado de fitas de vistosos coloridos, intrigára muito Cléo em creança.

Ella curvou a cabeça e balbuciou por habito uma prece, em frente da Senhora da Rocha, sobrecarregada de bordaduras e flôres trémulas, que protestavam contra o bom gosto e o bom senso.

Como estavam modificadas as suas ingenuas crenças nas realidades suprasensiveis que tudo aquillo symbolisava! Cléo viera ao mundo n'uma época angustiosa, em que se apagavam a maior parti dos sonhos e miragens que tem aformoseado a vida humana. Frequentára cedo a sociedade, ouvira as discussões de muitos homens de valor sobre assumptos transcendentes, lêra as modernas producções litterarias dos mais civilisados paizes.

Pelo effeito de uma sensibilidade especial, que força certas almas a adivinharem o que não aprenderam a fundo, ella sentiu os esforços dos obreiros das nossas desillusões, comprehendeu-os e passou a vêr o mundo quasi como elles. Mas a mesma sensibilidade que a fizera penetrar tão ávante em certas profundezas do pensar humano, evitára-lhe qualquer fórma de grosseiro atheismo, de irreverente scepticismo. A sciencia assim adquirida, não lhe fechára as portas do infinito; deixára-lh'as, ao contrario, bem abertas, alargando-lhe os horisontes, tornando-lhe maior a idéa de Deus.

A humilde egrejinha, com as suas tôscas imagens, cobertas de pretenciosos ouropeis, quantas reminiscencias boas lhe avivava ! Conservou-se por longo tempo abstrahida, de olhos cerrados, respirando aquella atmosphera impregnada no cheiro do incenso, formulando preces vagas, embalada pela poetica doçura das cousas religiosas. A voz aguda de uma das manas Rochedos, á qual fazia acompanhamento o roufenho contralto da velha ermitã, obrigou Cléo a levantar-se, assustada com a perspectiva de tal encontro.

-- Fujamos, Alice, antes que nos vejam.

E as duas amigas, rindo baixinho, atravessaram de pé ante pé a egreja, abriram a porta principal, que, apesar dos cuidados, rangeu nos gonzos, e atravessaram á pressa o largo, em direcção ao jardim das Guedes.

No caramanchel terminava Amelia, ajudada pelas sobrinhas e por D. Sophia, os festões que Alice e Cléo haviam deixado em meio.

-- E' sempre assim, exclamou Amelia, vendo-as entrar, estorvam mais do que ajudam, estas meninas...

-- Não te zangues, que não serve de nada... Nós nãó nos emendamos, respondeu a viscondessa, dando-lhe um beijo.

-- Pois não serve... Mas agora, já que estão aqui, trabalhem um pouco. Vae-me tu dando os malvaiscos, e a Alice que vá buscar mais, pois estes não chegam.

As ordens foram cumpridas, e as duas ociosas penitenciaram-se, não largando o trabalho emquanto o não deram por concluido.

As quatro horas collocavam-se os ultimos enfeites no mastro que, pouco depois, o cocheiro, o jardineiro, e mais tres creados vieram içar, por meio de cordas, serviço annunciado ao som de estrepitosas girandolas de foguetes.

Terminou tarde e correu alegre o jantar, não obstante o ar reservado e severo de Maria Lentz, e a melancholia de Leonor. Assistiram a elle todas as pessoas que durante o dia tinham ajudado aos preparativos da festa.

Dissolviam as pequenas nuvens as suas impalpaveis e fluidas architecturas no bello céu crepuscular, que se ia recamando de incertas e inaccessiveis estrellas, quando se deu começo á illuminação, accendendo-se as lanternas de côres e os balões venezianos, presos ás cordas enroladas em verdura e sustidas por altos postes, da mesma verdura enfeitados, que circumdavam o largo.

Creados, trepando escadas, deitavam lamparinas e azeite nas laranjas preparadas por D. Thereza, e que rodeavam os arcos, marinhando até á capella. As raparigas acarretavam e arrumavam cadeiras e bancos, para os visitantes da villa e as pessoas de casa.

Cerca das oito horas, em presença da familia reunida no largo, accendeu-se a fogueira. Da méda crepitante sahiam espessas ondas de fumo, adelgaçadas e espalhadas a certa altura pela fresca viração maritima.

Rescendia e inebriava o cheiro do alecrim queimado, ao qual se misturavam os suaves perfumes das flôres agonisantes. Os multicôres e incendiados olhos das lanternas e balões transmittiam desusados brilhos e extranhos aspectos ás cousas que os rodeavam. As douradas orbitas, pendentes dos escuros festões que cingiam o mastro, davam-lhe a apparencia de uma fabulosa arvore, carregada de fructos de ouro, e aguardando as suas Hesperides.

Conversava-se, para passar o tempo, até chegar a musica e se abrir o baile de roda. Vozes cantavam a Santo Antonio.

Hermann, com os filhos do quinteiro, e vigiado pela Fraulein, atirava valverdes, bichaninhas e busca-pés, lançando estes sempre para o lado das mulheres, divertidissimo com os gritos de susto que o caso provocava.

Excitada por aquelles aromas, e pela presença de Frantz, de quem o resto do dia lhe não fôra possivel approximar-se, mas que pudera vêr á sua vontade, Cléo, lembrando-se sempre do passado, que ali via tão nitidamente repetido, quiz saltar a fogueira. Como o desejo foi enunciado só a duas das amigas e á D. Thereza, cousa alguma obstou á sua realisação. E' verdade que para o formular alto, Cléo esperára que Maria Lentz e D. Sophia fossem a casa fiscalisar uns preparativos, e que Leonor, ouvindo ralhar a Fraulein, corresse para junto do filho.

Abraçada a Amelia, pois Alice, do lado opposto, estava entretida com o noivo, ella saltou por entre as chammas, ligeira como outrora, esquecida da fraqueza, esquecida dos nervos doentes, sentindo apenas que do fundo do caramanchel dois olhos ardentes lhe seguiam os mais insignificantes movimentos, que um coração palpitava por ella, chamando-a, e que era bom viver, assim amada.

-- Espera um bocadinho, tem paciencia! disse Amelia, vendo a Agueda fazer-lhe de longe signal.

Cléo largou-a, olhou em volta, e reparou com surpreza que estava só. D. Thereza, a quem o fumo fazia espirrar e chorar os olhos, fôra juntar-se ao rancho de raparigas, que baixinho cantarolavam, anciosas por darem começo ao bailarico; e Elsa Moreira, parecendo lhe que o entretimento de Amelia e da viscondessa se prolongasse, tinha ido vêr o que faziam Helena e Gina, tão inexplicavelmente socegadas.

Cléo lançou, a tremer, novo olhar em redor, e doida de tentação, passou rente com o caramanchel, murmurou para dentro uma phrase, e esgueirou-se pela rua da entrada, cosendo-se com as accacias, cuja sombra a protegia, ao passo que um vulto, sahido de traz das arvores e tomando-lhe a dianteira, se mettia na rua das parreiras e parava a meio, esperando-a.

Contendo a respiração, ella internou-se por sua vez no parreiral, sem reparar que alguem, muito proximo, a observava.

Esse alguem era o Dr. Macedo, que vinha com os seus vagares, pela rua acima, e que parou ao vêr o primeiro vulto negro desapparecer rapidamente á direita, seguido do um outro, claro, que do mesmo modo e no mesmo sitio desappareceu.

Não obstante a edade, o Dr. Macedo ainda gosava de muito boa vista. Facil lhe foi, portanto, reconhecer as duas sombras que, postado mesmo em frente do caminho por ellas tomado, poude lá ao longe enxergar, sumindo-se n'um profundo massiço de folhagem, que elle sabia ser um retirado e aprazivel kiosque de cortiça, coberto de hera.

Nem a mais leve expressão de assombro se desenhou no seu rosto sereno. Quem, como elle, tanta experiencia adquirira, tanto sondára o coração humano, já nada tinha de que admirnr-se. Além de quê, 0 Dr. Macedo, com o que d'antemão sabia da historia de Cléo, e com o que presenceou na soirée offerecida aos viscondes da Torre, previu logo este resultado, ameaçador de grave desfecho.

Meditando no caso, o medico foi andando até ao largo; e sem se dirigir a nenhum grupo, escolheu, para sentar-se, o sitio mais isolado, que era tambem o mais proximo do parreiral. Não passou muito tempo, porém, despercebida a sua presença. Gina e Helena foram as primeiras a vel-o.

-- O senhor dr. Macedo! exclamaram ellas ao mesmo tempo.

E Gina, interessada em saber novos da promettida caixa de papel; foi falar-lhe.

-- A tal cousa bonita chega no vapor de 16, informou elle, que não ignorava a que devia a solicitude da encantadora filha de Elsa. Affiança-me quem a comprou ser de muita novidade e muito gosto.

-- Tomára já vêr! retorquiu Gina, sorrindo-lhe, radiante na sua despreoccupada e feliz adolescencia. Em a tia Alice sabendo... oh!...

-- Isso é que ha de ser bom! Mas, chut! que ella ahi vem! avisou elle, avistando Alice.

-- Viram por aqui a Cléo ? foi a pergunta sahida dos labios de Alice Guedes, apertando a mão do Dr. Macedo.

-- Não vi nada, respondeu Gina.

-- Nem eu, secundou o medico. Mas, vamos a saber, quando é o grande dia ? continuou elle, que lêra a perturbação de Alice ao inquirir da amiga, e com tristeza lhe percebeu a causa.

-- Que grande dia?

-- O dia do nosso casamento, aquelle felicissimo dia, pois não me entende ?

E o Dr. Macedo, com a sua natural finura, levou Alice a contar os projectos que estavam feitos para 15 de julho, entretendo-lhe d'este modo a imaginação, com o fim de a desviar de uma suspeita dolorosa, e de uma busca intempestiva.

Maria Lentz, escoltada pela nóra, veiu interrompel-os, interrogando:

-- Sabem-me dizer o que é feito do Frantz?

-- Tambem elle! Andam aqui bruxas! Esta noite todos desapparecem, acudiu Amelia, chegando ao mesmo tempo em que a tia formulava a pergunta.

-- Milagres do Santo, que quer divertir-se á nossa custa, minha senhora, disse o Dr. Macedo. E a quem procura ?

-- Procuro ha meia hora a Cléo, que deixei juntos da fogueira, e ninguem me sabe dar novas d'ella! volveu Amelia com ingenuidade, sem perceber o alcance que para os outros tinham as suas palavras.

Voltou de novo ao rosto de Alice a expressão anciosa de quem preadivinha uma calamidade.

Os receios e os ciumes de Leonor, a indignação e a desconfiança de Maria Lentz, estamparam-se-lhes nas physionomias, incapazes de disfarçar, pelo poder da educação e da vontade, os sentimentos que as agitavam.

Só Amelia e Gina, livres de conjecturas, se conservavam risonhas.

Vendo o caso complicar-se, o Dr. Macedo, que tinha por conselheiras e inspiradoras a ironia e a piedade, ironia indulgente e doce, piedade profunda e reflectida, asseverou:

-- A senhora viscondessa não sei eu onde pára, agora o seu filho, senhora D. Maria, se me não engano, vi-o ha um instante atravessar, ali defronte, o morangal, e seguir em direcção a casa.

-- Ah! sim ! mas lá não está elle, que já se mandou saber...

-- Talvez seguisse até ao pinhal, alvitrou o medico.

-- Lembrou-se bem, senhor doutor, confirmou Maria Lentz, suppondo logo um passeio semelhante ao da vespera. Ate já.

E nervosa, tomando o braço da triste Leonor, partiu, julgando ter seguro o rastro de quem procurava.

Contente pelo exito do seu pequeno estratagema, porque elle mentira affirmando ter avistado Frantz para aquelles lados, o

Dr. Macedo, notando que a anciosa Alice seguira no encalço da tia, e que Amelia e Gina se entretinham em acalorada discussão, levantou-se, metteu-se entre as arvores, e abordou resoluto o parreiral.

Bem sabia elle onde paravam aquelles dois fugitivos.

-- Que imprudencia ! Que loucura! murmurou, andando cauteloso ao longo da rua.

Era a sua razão, porém, que falava. Parando de manso, a alguns passos do kiosque, d'onde sahia um sussurro de phrases abafadas, o coração segredava-lhe que nenhuma vida valeria a pena viver-se, sem commetter imprudencias e sem loucuras analogas.

Aquelles divinos momentos, roubados á dôr, á rotina, ás mil engrenagens que nos acorrentam, ás mil realidades que nos humilham, não teve animo o corajoso velho para interrompei-os brutalmente. Quedou-se, encostado á latada, procurando justificar-se aos seus proprios olhos por tal demora.

Reinava n'aquelle recanto uma doce paz, que o serrilhar contente das cigarras tornava ainda mais doce. Nascera ha pouco a lua, pondo gradeamentos de luz e sombra nos intersticios do parreiral. Tudo em redor eram claridades phantasticas, vagas profundidades, fórmas fluctuantes, um gracioso chaos de confusas apparencias, uma paizagem de sonhos e miragens.

Noite de amor! Noite de Santo Antonio ! A propria aragem, agitando as folhas, prateadas de luar, parecia acaricial-as.

-- E' preciso chamal-a! E' preciso avisal-os! repetia comsigo o Dr. Macedo.

E ficava-se como pregado ao chão, a fitar os negros tufos de hera que encobriam os dois amantes, relembrando que tambem fôra novo, que tambem amára, que tambem para elle tinham soado horas de egual vertigem, horas que jámais soariam. A desolada velhice, a perspectiva da morte, e as memorias queridas, que até entrar na eternidade o acompanhariam, eis tudo quanto lhe restava agora.

Um suspiro de saudade amarga e de melancholica resignação sahiu do peito do velho medico, humedecendo-lhe os olhos, cavando-lhe os sulcos das faces.

Soou por fim lá ao longe a philarmonica, estoiraram pelo ar os foguetes. Na estrada, um rancho de frescas vozes--vozes de mocidade -- entoou:

Canta o soldado na guerra,

Canta o pescador no mar;

Quem canta seu mal espanta,

Eu tambem quero cantar.

Da profundeza das accacias desatou em amorosos gorgeios um invisivel rouxinol, parecendo ser os proprios ramos que cantavam, para mostrarem aos cantadores da estrada as suas incomparaveis e ternas melodias.

Noite de amor! Noite de Santo Antonio ! A alada esperança descia á terra, por entre o fumo das fogueiras, aquecendo canções, segredando promessas, alliviando maguas.

Continuaram as vozes:

Mal te vi a vez primeira

Perdido d'amores fiquei;

Bemdito seja esse instante

Em que te vi, que te amei.

Approximava-sw a musica, estoiravam mais fortes os foguetes, trinava mais alto o rouxinol, cantava com mais ardor o rancho:

O' meu amor, se te fôres

Leva-me se puder ser,

Que eu quero ir expirar

Onde tu fores morrer.

No caramanchel rumorejaram sedas, e a figura de Cléo mostrou-se á porta, branca de luar, n'aquelle fundo escuro, como uma apparição de balada. Espreitou a medo, recuando trémula, ao deparar com o medico.

-- Não se assuste, minha senhora, e não pense mal de me encontrar aqui... Depois entenderá tudo... explicou o Dr. Macedo em voz baixa.

E como ella, aturdida, ficasse calada, elle continuou:

-- O que não temos é tempo a perder. Queira V. Ex.ª acceitar o meu braço para voltarmos ao largo, onde a têm procurado e a esperam.

Cléo preveniu Frantz, o qual, preparado já para a peior hypothese, comprehendeu immediatamente a situação, e a necessidade de retrahir-se; depois, sahiu do recinto e tomou o braço do medico, que, tão correcto sempre em todas as relações do mundo, só por um caso de força maior, e com o mais alto cavalheirismo, em tal momento lh'o offerecia.

Caminharam ambos, embaraçados e silenciosos, até á nóra. Ali, antes de virarem para a rua que corria ao longo da casa, Cléo, n'um irresistivel impulso, pegou na mão do medico e beijou-a com todo o respeito.

Apparentando tranquillidade, sorrindo, desculpando-se e affiançando não merecer semelhante homenagem, no intimo o Dr. Macedo sentia-se fortemente commovido.

Para elle haviam ha muito acabado todos os gosos. Só uma voluptuosidade lhe restava: alliviar os males physicos e moraes do proximo, e proteger a fraqueza, sob qualquer fórma que ella se lhe deparasse. E como os mais fracos eram sempre os enfermos, as creanças e as mulheres, eram estes tambem que obtinham os seus maiores carinhos e disvelos. As mulheres, sobre tudo, que elle em tempos idos tanto amára, e que a experiencia lhe demonstrára serem a principal ventura do homem, a razão da sua existencia, a compensação dos seus males, a méta das suas ambições, o supremo ideal do seu universo, as mulheres mereciam-lhe todas as indulgencias e attenções. Que thesouros d'alma, que o seu sexo raro attinge, elle descobrira em quasi todas, mesmo nas mais humildes filhas do povo!

-- O que ahi vae de gente ! observou o Dr. Macedo, interrompendo o novo silencio em que ambos cahiram, ao avistar o largo, no qual d'ali a um instante penetravam.

Alice, a primeira a reconhecel-a, foi a correr para Cléo.

-- Por onde andavas ?

-- Andava devaneiando commigo, ora essa ! Rendez-vous delicioso, muito premeditado.

A resposta do medico desannuviou a fronte de Alice; mas tal fôra o seu sobresalto e a ancia da espectativa, que a certeza do perigo dissipado fez-lhe vergar os joelhos, empallidecer e sentar-se n'um banco para não cahir.

A viscondessa entendeu-a, e fremente de ternura, a que se alliava um vago remorso, sentou-se ao lado d'ella, beijando-a como á mais querida irmã da sua alma.

Fingindo não dar pelo pequeno desfallecimento de Alice, nem perceber o alcance do que presenceava, o medico encaminhou-se para o grupo de senhoras, que se lhe dirigia. Entre as figuras desempenadas, alegres e francas, de sua filha, que viera com Fanny Salter, de Gina, de Amelia e de mais tres ou quatro pessoas, destacavam-se as perturbadas physionomias de Sophia Guedes, de Elsa, de Leonor e de Maria Lentz.

-- Onde se metteu o papá, que estou aqui ha tanto tempo e ainda não pude vêl-o ? indagou a sorrir a joven condessa do Valle, beijando o pae nas duas faces.

-- Tenho andado a divagar, a compôr estrophes á lua; como o nosso Casimiro, acompanhado da senhora viscondessa de Mello.

-- Já a encontrou ? Onde estava? inquiriu vivameme D. Maria, ao passo que muitos olhos se fixaram n'elle com avidez.

-- Onde estava ? repetiu o medico, brincando, porque assim lhe convinha, com toda aquella curiosidade. A pergunta é indiscreta, que o segredo não me pertence, e eu não sei... Mas, continuou elle reparando que a viscondessa se approximava dando o braço a Alice Guedes, ahi vem a interessada no assumpto. Ella decidirá se devo responder ou calar-me.

-- Era de mim que falavam? inquiriu Cléo, que ouvira as ultimas palavras.

-- Exacto, volveu o medico. Pergunta-se-me, por uma curiosidade bem feminina, onde a fui eu encontrar, quando ninguem, por mais que procurasse, poude descobrir V. Ex.ª. Guardo segredo ou digo?

A pergunta do Dr. Macedo foi com tal naturalidade feita, e com tal naturalidade Cléo, levantando risonha para elle o rosto, respondeu sem pestanejar, «póde dizer», que todas as suspeitas e duvidas se desvaneceram do cerebro de Sophia Guedes e de Elsa, desensombrando-se tambem um pouco o parecer de Leonor. Apenas Maria Lentz, no franzir da testa, deixava conhecer a persistencia das suas desconfianças.

-- O enervamento produzido pelas recordações de familia--da mãe, sobre tudo-- que esta festa lhe tem suggerido, combinado com as irritantes brisas do mar, um pouco fortes para a sua actual fraqueza, e talvez, para sermos sinceros, com as saudades da cidade, provocaram uma crise de lagrimas, que S. Ex.ª quiz esconder, para não assustar, isolando-se lá para as bandas da nóra, junto ao tanque....

Olhares de sympathia choveram sobre a gentil e culpada Cléo, a quem D. Sophia, lembrando-se de como já uma vez a vira chorar pela mãe, estreitou, dizendo:

-- Que doidice, minha filha, sentir-se incommodada e abalar assim sósinha, em vez de vir ter comnosco!

De olhos baixos, confusa e ruborisada, a viscondessa retribuiu a caricia sem pronunciar uma phrase.

-- O meu filho mais velho é que ninguem dá com ella; observou com entonação dura Maria Lentz. Até já mandei procural-o ao Forte.

-- Ao Forte, n'uma noite d'estas! Sempre a tia Maria tem cousas! gargalhou a innocente Gina, a quem a idéa pareceu um disparate.

D. Sophia, desagradada pela indelicada allusão e pela insistencia da irmã, mudou de conversa, advertindo que estava a chegar a musica, e pedindo ao marido, -- que ali acabava de apparccer e abraçava com effusão o medico -- para indicar á Agueda os vinhos que as creadas deviam dentro em pouco servir.

-- Ora ahi vem o senhor Frantz! exclamou o Dr. Macedo, que o esperava d'esse mesmo lado, e o avistou quando a philarmonica ia cruzando o portado. Sou hoje o homem das descobertas! Não ha que vêr, o Santo inspirou-me.

As senhoras riram, serenando assim todos os animos.

Frantz Lentz, que saltára o kiosque e atravez do arvoredo tomára para a estrada, enfileirando-se no acompanhamento que seguia os musicos, todos rapazes bem conceituados e conhecidos na villa, aprescntou-se despreoccupado e alegre, fazendo assim calar as ultimas desconfianças da esposa e da mãe.

A festa animou-se de subito. Na fogueira foram lançadas novas remessas de alecrim. Do lado da cocheira os creados deitavam foguetes, que rebentavam nos ares, estralejando.

Hermann, reanimado pelo bello somno que dormira, dava vivas e saltava, atropellando as pessoas n'uma doida alegria.

O largo encheu-se de gente, que se voltou toda para a rua das accacias, por onde subia, tocando, a philarmonica, ladeada de archotes, cujas linguas de fogo inflammavam os rostos em reflexos esbrazeados, arrancando scintillacões fulvas ao metal dos instrumentos. O cortejo, fechado por moços que de instante a instante atiravam foguetes, deu entrada no largo, por entre rolos de fumo, vozearia e estrondear de polvora, e parando em frente do mastro, fez ouviro hymno de Santo Antonio.

Terminada esta ceremonia, foram os musicos cumprimentar os donos da casa, que lhes mandaram offerecer vinhos, bolos e licôres. Rompeu em seguida o baile, pelo qual as raparigas suspiravam.

-- Tudo ha de aqui dançar esta noite, declarou Luiz Guedes, feliz pela felicidade d'aquelles que lhe eram queridos.

Ninguem se fez rogado, nem mesmo a propria D. Sophia, nem a rabugenta D. Maria, contagionadas pelo enthusiasmo geral.

Luiz Guedes arranjou pares aos mais indolentes e indecisos. Quando, depois de arrumar o Dr. Macedo com a D. Thereza, e metter o braço de Leonor no de Frantz, offerecia o seu á viscondessa de Mello, que, debalde, tentára esquivar-se, surgiu como um turbilhão Hermann, gritando, encolerisado:

-- Tio Luiz, ninguem quer dançar commigo!

-- Então a Helena? perguntou-lhe o tio.

-- A Helena disse que eu era bruto, e escolheu outro par, confessou elle muito afflicto.

-- Deixa estar, homem, não te apoquentes. Vae dizer á Maria do Quinteiro, que chegue aqui.

A Maria, a filha do Quinteiro, uma pobre e galante pequena de dez annos, cuja irmã era creada de Maria Lentz, e que fôra victima de diversas proezas de Hermann, acudiu obediente ao chamamento.

-- Tu és o par do menino, participou-lhe Luiz Guedes.

-- Não quero, meu senhor, que elle bate-me.

-- Has de querer, que manda o tio, retorquiu Hermann, beliscando-a com toda a força dos seus dedinhos brancos.

-- Ai, ai, não me faça mal: ai, ai! desatou chorando a pequena.

-- Ora ahi está como tu tratas as damas ! E admiras-te depois que te regeitem! observou a rir o Guedes.

Mas Hermann, desesperado pelo contratempo, e conjecturando que o pae não podia vêl-o, porque já andava no baile, lançou-se á bofetada á pequena, dizendo-lhe:

-- Ou danças, ou bato mais.

A Maria, que tambem tinha genio, defendia-se e correspondia-lhe com arranhões, tendo Luiz Guedes e Cléo de separal-os e de entrar na roda, elle, abraçando a chorosa filha do Quinteiro, e a viscondessa dando o braço ao arranhado Hermann.

Giraram longo tempo os pares, ao som do vagaroso e dolente rythmo das cantigas populares, n'um vasto circulo em volta do mastro. A fogueira esmorecia, agonisando em crepitações fugazes.

-- Cousa mais viva, mais alegre, que isto não presta; parece uma procissão de enterro, declarou Luiz Guedes.

E muito influido, rompeu elle proprio, na sua voz de barytono: A casaca mexe.

Accelerou-se o andamento: meneavam-se moços e velhos com presteza, por entre risos e apartes. Cada vez que os pares se calavam trocando-se entre si, ficava a voz de Hermann a repetir sem descanço: Mexe, mexe, ó casaca mexe.

Fez cessar o doido corropio a Agueda -- a unica pessoa que, com a senhora Anna, duas velhinhas e a cosinheira, ficára fóra do baile--chamando pelas creadas de fóra e prevenindo de estar prompto o chá.

Todos pararam, excitados, satisfeitos e cançados.

Pedindo desculpa de não assistir ao chá e ao tirar das sortes, Cléo, apesar das instancias das amigas, despediu-se e retirou com D. Thereza, para quem foi uma satisfação poder finalmente ir descançar.

Em frente da rua das parreiras deteve-se, de subito, a viscondessa.

As impressões violentas e contradictorias de todo aquelle dia fundiam-se agora n'uma tristeza incoercivel, n'uma desesperança pessimista, n'uma saudade dolorosa. Entrou no parreiral, com grande pasmo de D. Thereza Bastos, que a julgava morta de somno, e atirou-se sobre o cadeirão do kiosque. Como ella desejaria atirar da mesma fórma com o fardo da sua attribulada e inutil existencia!

Tudo jazia immerso em trevas. Haviam emmudecido os ramos, a que o rouxinol emprestára voz; o canto fatigado das cigarras gemia como se as hervas se estivessem pranteando; lua e céo haviam-se encoberto sob um toldo de neblina. Que aspectos differentes as cousas tomam de um momento para o outro! Contemplára ella ha pouco, no seu delirio, a vida, atravez dos prismas d'um brilhante; agora, no desalento, apparecia-lhe como uma pedra sem reflexos, contendo apenas phases, mudanças e subitas revelações de escondidas forças. Desde pela manhã, que de sensações, cujo valor reside na maneira como na alma se repercutem!

A acção exterior só vale pela reacção interior que produz; é a diversidade de transformações, que ella opéra em cada individuo, que faz com que nós sejamos nós, e não possamos ser mais ninguem.

Nenhuma das pessoas reunidas n'aquella festa, sentiria, nas circumstancias de Cléo, o que dentro d'ella se passava, nem mesmo á propria Alice, nem Frantz. Quem comprehenderia, pois, a fundo, as variadas manifestações do seu sentir? Como se lhe patenteava esta grande e melancholica verdade: a solidão irreparave! de uma alma!

-- D. Thereza, como eu gostava de morrer n'este momento! desafogou Cléo, sem forças, banhada em lagrimas.

Thereza Bastos, alheia, como a propria natureza, ás causas d'aquelle soffrimento, encostou-lhe a cabeça ao seio, prodigalisou-lhe caricias, limpou-lhe os olhos e as faces, consolando-a com as mesmas puerilidades que empregava para consolal-a, quando ella era pequenina. Mas essas puerilidades soaram como harmonias ao ouvido de Cléo, e como uma creança, por ellas se deixou embalar, acalmar e conduzir a casa, onde a haviam precedido as creadas.

Quiz que D. Thereza a despisse e ficasse n'uma cama improvisada junto do seu leito, com receio de que mal se retirasse a boa e paciente senhora, a serenidade lhe fugisse do cercbro, que precisava repousar n'um affecto seguro e brando, sem pensar.

Quando por fim adormeceu, no seu espirito, onde perpassavam as figuras d'esse dia, gravára-se esta lição inolvidavel: Que as creaturas não se medem, como ella julgára na adolescencia e até ha pouco, pela formosura, pela fortuna, pela elegancia e pela intelligencia; mas tambem e principalmente pelas qualidades moraes que possuem, e pela delicadeza de sentimentos que revelam.

IX

Bertha, percebendo que a ama, embora a não houvesse ainda chamado, estava ha muito acordada, conversando com a D. Thereza, avisou do quarto de toilette:

-- Está ali o Dr. Macedo, que procura por V. Ex.ª... O Augusto póde mandar entrar?

-- O Dr. Macedo?! repetiu Cléo, ao passo que, com este nome, entrava na plena consciencia da sua situação. Conduzam-n'o á sala e peçam-lhe o favor de esperar um instante... Não demoro nada.

E saltou logo da cama abrindo as duas janellas.

-- Que tarde que é! observou D. Thereza, reparando no sol já alto, e descendo do leito para se vestir.

-- Meio dia, certificou a viscondessa, consultando no quarto de toilette o seu pequeno relogio de ouro.

Lavou-se, enfiou um saut de lit que tinha á mão, em flanella créme, alisou os cabellos, que na pressa deixou como estavam, soltos pelas costas, e sahiu do quarto, de novo excitada, vibrante de todas as commoções do dia anterior.

-- O que me dirá elle? O que resolverei eu? O que sahirá d'aqui? interrogou, parando junto da porta, n'uma agonia crescente.

Ali permaneceu um pedaço, sem se atrever a cruzar os humbraes para ir ao encontro da sua sorte, que bem sabia depender d'essa entrevista, destinada a ser um dos mais importantes marcos no accidentado caminho da sua existencia.

-- Covarde, que nem tenho a coragem dos meus actos, chamou ella a si mesma, erguendo com esforço a cabeça altiva, e penetrando por fim na sala, pallida, como as pallidas rendas do roupão que vestira.

-- O promettido é devido...V. Ex.ª não poderá censurar-me de faltar á minha palavra, ou de ser como alguns dos meus collegas, que nunca apparecem em casa dos clientes senão a urgente chamamento... Olhe que não esqueço a sua epigrammatica phrase, comparando os medicos ás aves de mau agouro, que só se approximam quando lhes cheira a cadaver... Considere, portanto, V. Ex.ª esta minha visita como simples visita de amigo, disse o Dr. Macedo, que avançára para ella e lhe apertava a mão, fitando-a com bondade.

Mais senhora de si pelo olhar que a banhava n'uma luz tão doce, promettedora de tanta indulgencia, ella, sentando-se no sophá e offerecendo-lhe o fauteuil ao seu lado, respondeu :

-- E que bom amigo!... Ainda bem que me deu ensejo de lhe agradecer...

-- For Deus! Não me queira humilhar, minha querida senhora! Nem mais uma palavra a esse respeito, se não quer que eu me retire já, acudiu o Dr. Macedo. O ensejo que reputa feliz seria mesmo motivo para eu a não procurar tão cedo, se outro motivo mais forte não houvesse...

-- Qual?

-- A sua saude, de que me constitui responsavel... Está doente, senhora viscondessa, necessita de sérios e promptos cuidados .. Este isolamento e estes ares são-lhe, por emquanto, nocivos... Mais tarde, quando os nervos estiverem mais tonificados e a emotividade menos viva, então sim, que lhe hão de ser salutares os asperas brisas da sua terra. O Dr. Figueiredo errou por uma vez, o que é desculpavel em quem tem acertado tantas.

-- E o que me ordena ? inquiriu ella, perturbada.

-- A mudança immediata para um clima um pouco mais temperado, e para um logar mais animado... O Estoril, por exemplo...

-- Não posso seguir o seu conselho... Não tenho forças, balbuciou ella, abanando com tristeza a cabeça.

Elle observou um momento aquella deliciosa figura, infinitamente impressionavel e inquieta, bem mulher pelo nervosismo fremente.

-- A força adquire-se. E' questão de vontade, n'este caso.

-- Crê então que da minha vontade depende quebrar os laços...

Ella parou a meio da phrase, sem se atrever a proseguir.

O Dr. Macedo approximou do sophá o fauteuil, tomou nas suas uma das mãos de Cléo, e disse:

-- Imagine que é um pae dedicado que lhe fala, como eu imagino estar falando a uma filha... Da sua vontade, apenas, depende não prolongar uma situação, que a victimaria sem remedio até ao seu ultimo suspiro.

-- Engana-se, que eu já tentei reagir contra os meus sentimentos e ellhe venceram-me, retorquiu Cléo, de quem os nervos se iam a pouco e pouco apossando.

O Dr. Macedo calou-se um instante. Elle sabia que nas pessoas da sensibilidade da viscondessa, a insistencia demasiada provoca um recrudescimcnto de resistencia.

-- Os sentimentos cedem sempre quando têm a guial-os uma boa cabeça e um bom coracão, redarguiu com brandura o medico. E não estamos nós n'este caso ?

-- Não, volveu ella n'uma crescente exaltação: sinto-me má, tão má, que se me vir forçada a partir d'aqui... a nada attenderei.

-- E o que quer fazer ?

-- Quero levar Frantz... Quero que elle me siga.

-- Valha-me Deus! Porque ha de elle seguil-a?

-- Porque nos amámos, como o doutor sabe; porque nos amámos desde creanças; porque, separados por uma estupida phantasia, tornando-nos a encomrar reconhecemos que foi completo o nosso erro e que ainda somos os mesmos um para o outro; porque nos amaremos o resto da vida, como nos amaremos para além da morte, se depois d'ella houver alguma cousa, replicou Cléo com vehemencia.

-- E, no seu entender, isso é bastante para explicar e absolver o acto que intenta praticar? perguntou o Dr. Macedo, muito sério, fitando-a.

-- E'... confirmou Cléo, desviando d'elle os olhos. Ninguem pódc obstar á união d'aquelles que se amam...

-- Uma verdade relativa, como, aliás, todas as verdades... O que pensaria V. Ex.ª se estivesse no logar de Leonor Lentz ?

-- A posição de Leonor é diversa; diverso, portanto, o seu ponto de vista. Ella ama o marido e...

-- E não tem direito de se oppôr a que lh'o roubem ? interrompeu o medico.

-- Não, porque não é amada...

-- Minha querida senhora, -- replicou o Dr. Macedo, largando-lhe a mão, -- essas theorias são arriscadas, e podem um bello dia voltar-se desapiedadamente contra a propria pessoa que as defende... O amor, só por si, i base cm demasia frágil para n'cllc sc assentar o pesado edifício da sociedade e da família.. .Nunca a sua intelligen-cia lhe fez vêr isto?

-- Póde ser... Mas também reconheço que 6 odioso c injusto obrigar a viver juntos aqucllcs que desejam separar-sc...

-- Conforme.. .Ha desejos que precisam d'esse freio.

-- E os meus, c os de Fruiu, são d'esses?

-- Talvez...

-- Comprehendo. Já vejo que se eu, por exemplo, tivesse um marido a quem detestasse, o seu conselho seria idêntico áquellc que, na comedia dc Dumas, Madaxne Smith dá á Francillon: II l'a trahie; il n'a pas de cteur; il ne te cnmprends pas; il ne le com-prendra peut-étre jamais; délestc-le, mi!-prise-le, plains-le, mais garde-le. Cest le mari.... E' o marido... E' a mulher... Conservam-se; na repulsão, na inditfc-rença, no desprezo, na mentira, náo importa ... Conservam-se.

E Cléo, soltando um riso sarcástico, cr-gueu-se do sophá e começou a passear pelo sola.

-- Se tivesse um mau marido, que a estivesse ludibriando, que lhe inspirasse aversão, cu dir-lhe-hia apenas: «separe-se», sentindo que o deficiente codigo do meu paiz não me permittisse trocar a palavra «separação» pela palavra «divorcio.»

-- E as convenções, os preconceitos, o mundo, doutor? inquiriu ella ironica, parando em frente d'elle.

-- Devem desprezar-se quando se tornam cumplices de injustiças e ignominias. A sociedade precisa que a habituem a vêr, n'aquelles que por motivos de todo o ponto justificaveis e dignos se separaram, pessoas corajosas e sinceras, honestas e orgulhosas, que se não abaixam a nenhum compromisso miseravel com as suas consciencias, e como tal distinguil-as e rodeal-as de respeito.

-- Bem; mas se pensa assim, porque não dá a Frantz o direito de proceder por egual fórma?

-- Primeiro, porque o caso é diverso, começou o Dr. Macedo.

-- Em quê ?

-- A mulher nunca lhe faltou ao que elle podia esperar d'ella...

-- E depois ? interrogou a viscondessa.

-- Depois, porque, a par dos direitos existem deveres, minha querida senhora.

Cléo tornou a sentar-se, empallidecendo mais. Sentia-se prostrada, opprimida. De pé, em frente d'ella, o Dr. Macedo proseguiu:

-- Reforme a sociedade a seu gosto; modifique a seu bello prazer as leis; derrube os caducos preconceitos; que, ainda assim, os deveres para com o proximo e para comnosco mesmo ficarão de pé como d'antes. Ha alguma cousa acima de todas as theorias e de todas as paixões humanas: é a consciencia, que, tenho a certeza, V. Ex.ª consultar.

O rosto de Cléo tingiu-se de vermelho.

Não, ella não se esquecêra de consultar a consciencia: a consciencia pura e recta da sua juventude. Ouvira-lhe a voz bem clara; o amor é que fôra mais forte: obrigára-a a emmudecer.

-- A minha consciencia está em perfeito desaccôrdo com o meu coração e com as minhas idêas, confessou ella, por fim, com os formosos olhos marejados de lagrimas.

O medico tornou a sentar-se, dizendo com doçura:

-- Pois escute-a e obedeça-lhe a todo o transe, minha boa amiga... Pede-lh'o um velho muito sincero, que conhece as lamentaveis e tragicas dôres da pobre existencia humana e lhe queria evitar um mal certo.

E como a viscondessa soluçasse, sem lhe responder, elle prosseguiu no mesmo tom:

-- A pratica do dever tem isto de admiravel : consola todas as dôres; acalma todas as revoltas. E' uma lei augusta e santa, e a unica regra estavel.

-- Ah! meu Deus! meu Deus! eu queria morrer! bradou ella, a soluçar, escondendo o rosto nas almofadas do sophá.

-- Coragem, vamos, murmurou o medico, affagando-lhe a cabeça ardente, satisfeito com a salutar crise de pranto. A sua alma generosa e boa ha de vencer-se, tenho a certeza... Foi um sonho impossivel, bem vê... E' tempo já de accordar.

A viscondessa permaneceu silenciosa, apoiada nas almofadas, convulsionada pelo choro.

Sim, elle tinha razão. Dizia-lh'o aquella voz interior, que ella conseguira abafar, e que n'este decisivo instante tornava a fazer-se ouvir, com força. Parecia-lhe que das paredes, dos quadros, dos moveis, de todos os recantos da casa, mysteriosos sons applaudiam o medico e lhe falavam pela sua bôcca. As advertencias do Dr. Macedo, não obstante serem pronunciadas por outros termos, eram no fundo as mesmas que lhe fariam seus proprios paes, as amigas, D. Sophia, todos, emfim. que a estimaram e que ella aprendêra cedo a respeitar. Todo o bem que havia n'ella respondeu a este appêllo supremo. Acudiram-lhe as impressões dos treze annos, quando achára um facto espantoso e condemnavel que a La Valliére acceitasse o amor d'um homem casado, e que o rei trahisse a esposa. Como d'antes sentiu que a suprema distincção é o bem, e que, superior a todas as paixões, é a virtude da alma que as domina. E sentiu ainda o que ignorava até ali: que enormes sacrificios são necessarios, ás vezes, para se pôrem em pratica estas doutrinas.

Esperando o resultado, o Dr. Macedo, sem a perder de visto, passeava pausadamente, com as mãos cruzadas atraz, ao longo da comprida sala.

Que bonita ella estava, assim prostrada, nas suas roupagens claras, sobre as quaes se desenrolava o negro véu dos longos cabellos em elegante desalinho, soffrendo, como ellas soffrem todas, quando o amor lhes imprime o seu indelevel sêllo !

Limpando os olhos, Cléo ergueu afinal a cabeça, deixando a descoberto o afogueado rosto.

No tremendo combate interior a Cléo das salas sentira-se dominada e vencida pela simples e honesta Cléo da aldeia.

O Dr. Macedo, tratando-a como creança amimada, que ella sempre ficára, ajudou-a a levantar, puxou-a para si, e desviando-lhe os cabellos da testa, perguntou, a sorrir:

-- Então, vamos de novo embrenhar-nos em inuteis divagações, sophismar e complicar as cousas, sem querermos atinar com o que se deve fazer, ou estamos em pleno uso das nossas faculdades mentaes, e podemos conversar com juizo?

-- Podemos conversar, disse Cléo, sorrindo tambem, com dolorosa graça.

-- Bom. E para que me comprehenda melhor e não me supponha leviano ou injusto nas minhas observações, pezemos todos os seus argumentos...

-- Não vale a pena, interrompeu ella. Renuncio ás minhas theorias e rendo-me ao seu conselho, que seria o conselho de meus oaes, se elles vivessem... Supportemos a vida tal qual ella é... Sahirei d'aqui sem demora e só... como vim.

-- Creia que essa resolução me causa infinito jubilo, respondeu o Dr. Macedo, curvando-se e beijando-lhe as mãos. Mil vezes obrigado por ella...

-- O reconhecimento é todo meu... Salvou-me...

-- Simples dever profissional. Não sou eu medico?

Ella sorriu-lhe com um sorriso divino, como as mulheres sabem sorrir em determinadas circumstancias, acrescentando:

-- Vou mandar preparar tudo para partir sem falta, ámanhã, ás oito... Uma hesitação, um addiamento, podem perder-me outra vez... Ajude-me, pois, na mentira com que hei de explicar esta subita partida, que tanto barulho ha de causar...

-- Estou ás suas ordens, minha senhora, volveu de prompto o medico, a quem aquella precipitação convinha. Ella fazia até parte do seu plano. Uma delonga qualquer podia bem annullar todo o trabalho feito até ali.

-- Vou d'aqui vêr a familia Guedes, a quem communicarei o succedido, declarando que, por minha indicação, é que V. Ex.ª altera os seus projectos e segue jornada...

-- Faz-me ainda um favor? supplicou ella, fitando-o, receiosa.

-- Um, dois, tres, mil... V. Exª póde dispôr como lhe aprouver do meu pouco prestimo, retorquiu elle.

-- Devo uma explicação a Frantz... Quer ter a bondade de lhe entregar a carta que vou escrever?.. Não confio em mais ninguem...

-- Da melhor vontade. E se V. Ex.ª puder, escrcve-a agora mesmo, que eu tenho tempo, e espero aqui...

Agradecida, ella accedeu e retirou-se.

Disposto para a demora, o Dr. Macedo recomeçou o passeio ao longo da sala; tinha bastante que fazer n'esse dia, mas sahir sem a carta era arriscado. Um adeus verbal, em taes alturas, representava um recrudescimento certo de febre, e a repetição do que elle justamente queria evitar.

Decorrido um quarto de hora, reappareceu a viscondessa.

-- Entrega-lh'a hoje mesmo, sim? pediu ella dando a carta ao Dr. Macedo.

-- Hoje mesmo, sem falta; póde ficar descançada.

-- Quanto custa ser boa! suspirou Cléo, outra vez banhada em lagrimas. È' a existencia toda que sacrifico, pois que toda a existencia feminina se resume no amor...

-- Não, minha senhora, atalhou, o Dr. Macedo. O amor tem, é certo, um papel predominante nas pessoas do seu sexo; mas os sentimentos da mulher podem e devem irradiar para além das paixões, para além do limitado circulo a que lhe têm cingido a actividade...

Cléo escutou-o attenta.

-- Tem mais uma vez razão, disse ella, pensativa, despedindo-se.

-- Até amanhã, que, se me permitte, acompanhal-a-hei a meio caminho.

-- Com o maior prazer, volveu ella, reconhecida.

E n'um d'aquelles seus adoraveis impulsos, beijou o velho nas faces, como o beijava a propria filha.

O Dr. Macedo seguiu para casa das Guedes, a quem deu a novidade, que a todos admirou e consternou. D'ali foi vêr Maria Lentz, e a pretexto de um negocio, passou com Frantz para o escriptorio d'elle. Quando de lá sahiu, depois de haver cumprido a promessa feita a Cléo, o Dr. Macedo trazia nos labios um d'aquelles seus peculiares e finos sorrisos. Conhecedor da comedia humana, era-lhe muito difficil illudir-se. Concorrêra quanto pudéra para resolver Cléo áquella separação; acalmára com prudentes conselhos a momentanea revolta de Frantz; mas tudo fizera sabendo bem que as cousas ficavam no mesmo pé.

Onde encontrar resolução duravel quando dois seres se amam com tal intensidade?

Os mares não são bastante largos, o mundo não é assaz vasto, para aquelles que anceiam encontrar-se. Os labios que querem unir-se, á força de perseverança, conseguem-n'o. O amor sabe sempre abrir caminhos, e a distancia -- a distancia que, por sua indicação, ia pôr-se entre Cléo e Frantz -- podia bem ser um dos mais seguros meios de lhe avivara chamma. A convivencia esfria e mata os desejos; o afastamento augmenta-os e póde tornal-os impereciveis. A receita por elle prescripta á viscondessa, alliviava, não curava. Aquillo tinha, elle bem o sabia, o effeito das ordenanças medicas perante certas enfermidades. Temporisava com o mal, sem debellal-o.

Emfim, se as causas continuavam a existir, o perigo imminente de agora estava passado, o escandalo evitado, e esta certeza, com que rejubilava, podia elle ao menos ter.

Logo que o Dr. Macedo se retirou, Cléo foi participar a resolução tomada ás pessoas de casa, e deu as necessarias ordens para estar tudo a postos cedo, no outro dia.

Bertha e a criadagem que viera de Lisboa, não cabiam em si de contentes. A ama, a senhora Anna e a D. Thereza é que ficaram desoladas. Cléo fechou-se com esta ultima no seu gabinete.

-- D. Thereza, ha de ir commigo, ainda que seja só por um mez, pediu ella, muito meiga.

-- O' filha, tudo quanto quizer, menos fazer-me sahir cá do meu canto. Já estou velha para viagens...

A viscondessa insistiu, rogou, supplicou.

-- Não posso... não posso... explicava a D. Thereza, afflicta por ter de recusar.

Abraçando-a então, Cléo segredou-lhe, n'uma voz quebrada:

-- Por alma da mamã, D. Thereza, faça-me este favor... Não me deixe partir só... Vou muito doente, e, se morrer, quero ter junto do leito uma amiga da minha terra...

A D. Thereza não soube resistir mais. Com as lagrimas a apertarem-lhe a garganta, balbuciou:

-- Pois bem... irei...

Cléo beijou-a n'um sincero transporte de gratidão. Quem lhe diria a ella, que aquella velha alemtejana, que tão insignificante e ridicula em tempos lhe parecêra, se lhe tornaria ainda uma preciosa companheira !

Mais socegada pela condescendencia da boa senhora, condescendencia que lhe permittia levar comsigo alguem com quem pudesse falar de tudo que lhe era querido, a viscondessa almoçou, vestiu-se e dirigiu-se a casa das Guedes, atravessando o jardim, de olhos baixos, para evitar novas fraquezas. Promettêra jantar com as antigas, nesse dia santo. Ia despedir-se e pedir desculpa de ter de faltar á promessa.

Estavam todas reunidas no quarto de costura, onde ha pouco haviam tambem chegado Maria Lentz, o neto, Leonor, D. Pulcheria e o Vasques, o que poupou a Cléo o martyrio d'aquella visita.

-- Então, assim nos deixa ! disse-lhe D. Sophia, ao vêl-a entrar.

-- E com tanta pena!.. tão contrariada!... atalhou Cléo, commovida.

D. Maria, a quem a jornada da viscondessa descançava, sorriu ironica ao ouvil-a. Nunca ella acreditaria que fosse apenas a doença a causadora de tal precipitação, nem mesmo que o Dr. Macedo lh'o jurasse.

-- Novidades recebidas da capital... Saudades do que lá deixou... E vem então iliudir-nos, mais ao pobre medico! tinha D. Maria Lentz dito, logo que soube a noticia. Era de vêr que não parasse cá. O Frantz não deu sorte... E a ella fallava-lhe divertimento a seu modo...

Apesar de mais ninguem avançar tanto, todos, exceptuando Alice, estavam convencidos que os verdadeiras razões eram mais ou menos estas.

A viscondessa surprehendeu e entendeu o sorriso de D. Maria, que se repetiu inconscientemente em mais alguns rostos.

-- Como vivemos enganados uns com os outros! pensou ella, a quem a experiencia acabava de demonstrar que é muita vez mais facil convencer com uma mentira, do que fazer acreditar n'uma verdade. Quem, na vespera, duvidára do improviso do Dr. Macedo? Quem, hoje, se podia convencer do sacrificio enorme que ella fazia, deixando Sutil, onde lhe ficava o coração ?

Alice Guedes permanecia calada; mas os olhos vermelhos de lagrimas recentes diziam mais do que palavras.

-- A D. Thereza acompanha-me, participou Cléo.

-- A D. Thereza! exclamaram ao mesmo tempo muitas vozes, surprehendidas.

E .Maria Lentz, n'um áparte-a D. Pulcheria:

-- Foi sempre parva, a Therezinha... Vae metter-se em boa, não ha duvida!

A conversa continuou fria. A não ser o Vasques, a Gina, a Helena e o Hermann, entretido a dar corda a uns vistosos caminhos de ferro, que, cheios de passageiros, corriam doidos em volta da casa, ninguem estava á vontade.

D. Sophia, Amelia e Elsa, embora a desculpassem, julgavam que a viscondessa fôra pouco sincera com ellas. Não lhe approvavam nem entendiam a conducta; achavam-lhe cunhos de alvoroço, que se não casavam com os seus pacatos modos de vêr. D. Maria, Leonor e Pulcheria consideravam aquillo uma comedia, que muito as divertia, e que muito a tempo viera para as livrar de semelhante creatura.

-- Nem de proposito... Ellas sempre se armam!... A desinquietar-nos a todos... Deus não dorme!.. dissera, sentenciosa e risonha, Maria, para a nora, que mal disfarçava o contentamento, obrigando o palerma do Vasques a perguntar-lhe pela terceira vez:

-- O' Chéché, tu hoje estás tão alegre! Que demonio tens tu, Chéché?

Constrangida, Cléo não se demorou. A' porta, onde Alice a veiu acompanhar, a viscondessa disse:

-- E o teu casamento! Que egoista eu sou...

-- Paciencia... Tu não tens culpa... O que fazes é bem feito, e mais gósto de ti por isso...

-- Entendeste-me, Alice?...

-- Entendi, foi a timida resposta, em voz baixa.

Cléo abraçou-a e beijou-a, com um reconhecimento infinito.

-- Que mais devo eu esperar ou querer, repetiu ella, contente com a sua consciencia, seguindo no trem para a villa, onde ia continuar as despedidas. Ser comprehendida e estimada pelo Dr. Macedo, por Alice, e por Elle, é já uma ventura grande... Os mais, que pensem o que quizerem...

Cléo voltou tarde, fatigada, jantou mal, e em seguida foi escrever para Lisboa, primeiro para casa, depois ás amigas que lhe tinham escripto, e a quem não contava responder tão cedo.

-- Como ellas hão de acreditar! Nem o vislumbre de uma suspeita perturbará a certeza que lhes dou de que fujo ao aborrecimento da provincia... Se soubessem a que eu fujo!...

E soltou um riso triste, acabando a carta mentirosa á Moréda.

-- Estou uma comediante da sua força... Quasi que nos valemos.

Deitou-se tarde, e, sem poder dormir, passou horas de angustia no leito, torturada pelos pensamentos que a accommettiam, e pela saudade, que lhe arrancava lagrimas. Descia até ás secretas profundidades do seu pobre coração, onde se lhe deparavam ternuras infinitas e tantos annos ignoradas, um oceano de amor, que só agora tivera tempo de sondar, e que forçoso lhe era reprimir. Como se sentia mudada! Ao contacto de toda aquella amargura, desabrochava n'ella uma nova mulher, superior á Cléo dos dezeseis annos e á outra Cléo, pelas qualidades affectivas que acabavam de revelar-se, pelas severas lições que a Vida acabava de ensinar-lhe.

Mal rompeu a manhã, ergueu-se, cançada e pallida de insomnia. Depois de vestir o fato de viagem -- o mesmo fato cinzento que trouxera -- abriu uma janella do seu quarto de toilette, e encostou-se um bocado ao peitoril, a dizer com o olhar um longo adeus á paizagem.

Estava encarvoado o céu, humida a atmosphera. As aguas pardacentas e tranquillas pareciam lá ao longe prolongar-se no firmamento. Nenhum traço lhes demarcava no horisonte o limite. Banhados n'aquella claridade torva, os pinheiros appareciam negros, como borrões de tinta, e os eucalyptos sujos, nos seus tons esbranquiçados, como se houvessem rolado no pó. Ah! o verde, o cinzento e o negro das charnecas, dos rochedos e do mar, que impressão de abandono, de isolamento e de tristeza nos transmittem!

Quanto aquelle cantinho do mundo era agora querido á viscondessa, e com que ternura o contemplava! Adorava-o, reverente, como se adora o cemiterio que guarda os despojos d'aquelles que mais queridos nos foram. E um cemiterio representava para ella esse logar: cemiterio onde jaziam tantas chimeras, tantas esperanças, tantas venturas, que jámais resuscitariam; cemiterio que encerrava a recordação de tudo que de melhor lhe fôra dado fruir, e que não mais voltaria.

Pensando isto, Cléo sentiu-se invadir por uma lassidão immensa. Temêra ella até ali a morte, quando é a vida que faz soffrer, e que mette pavor. A morte é o abençoado descanço, apoz a improficua lucta.

Os olhos tristes de Cléo fitaram, com uma supplica de que a não esquecessem, como ella já não podia esquecer.

Quer viva, quer morta, ser lembrada d'aquelles sitios, lembrada d'aquelles que amava; viver na memoria d'elles todos, tal foi o pedido d'aquella, que ia voluntaria e dolorosamente ausentar-se.

Entretanto, os preparativos activavam-se. Alice chegava e, apoz ella, as irmãs. Cléo demorou-se a conversar com a primeira, de quem obteve a promessa d'uma visita logo depois do casamento.

Terminado o ligeiro almoço, em que a viscondessa mal tocou, appareceram o Dr. Macedo, D. Sophia, o marido e Carlos Lentz. Quasi no mesmo instante o creado veiu annunciar que os carros de bagagem estavam carregados, e as carruagens promptas. á porta.

Cléo despediu-se em lagrimas, deixando surprehendidas e commovidas Elsa, Amelia e D. Sophia, que não podiam já duvidar d'aquella dôr, sem, comtudo, entendel-a.

A' mesma hora em que ella dizia um ultimo adeus á familia Guedes, reunida, como á sua chegada, no largo, e em que partia com a D. Thereza e o Dr. Macedo, transtornando tantos planos aos habitantes de Sutil, contrariando-lhes tantos projectos, frustrando-lhes tantas esperanças, Frantz Lentz, que não tivera forças para se despedir em publico, relia, embrenhado na matta de eucalyptos, a apaixonada carta d'ella, á qual respondêra essa noite, e que devia ser recebida no outro dia, em Lisboa.

-- Cléo, meu amor... Cléo! soltou Frantz por fim n'um soluço, beijando as folhas de papel, emquanto a carruagem da viscondessa rodava pela estrada fóra, afastando-a para sempre d'elle, ou approximando-a mais... quem sabia ?

Lisboa, 1898.

Veja-se o Ultimo Amor.