O soldado de Aljubarrota: Edição para o ELTeC Bettencourt, Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz (1805-1888) Criação do HTML original Adeliana Silva Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 37359 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz Bettencourt O soldado de Aljubarrota Biblioteca Nacional de Portugal 2018 O soldado de Aljubarrota Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz Bettencourt Imprensa Nacional Lisboa 1857

português de Portugal Checked by checkup scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker scriptChecked by releaseChecker script Adicionado à coleção ELTeC

I E porque mais aqui se amanse e dome A soberba do amigo furibundo, A sublime bandeira Castelhana Foi derribada aos pés da lusitana.

CAMÕES - Lusiadas

Corria o anno de 1385, O Mestre de Aviz, plebeu por herança materna, nobre por ser filho de D. Pedro I, havia sido eleito rei de Portugal por uma revolução, e confirmado pelas Côrtes de Coimbra. Acompanhado de poucos, mas fieis e valentes portuguezes, D. João I teve que oppor-se a todo o poder do rei de Castella, D. João, tambem o I, que disputando-lhe o reino, marchava para invadi-lo. Dezoito mezes passados em porfiadas lutas, as victorias successivas que o Mestre d'Aviz havia ganho contra os hespanhoes, a retirada do rei de Castella, os esforços prolongados dos portuguezes, tudo a principio animava esse punhado de bravos que pugnavam pela independencia nacional. A memoravel batalha de Aljubarrota ia firmar essa independencia, e sustentar o sceptro que empunhara Affonso Henriques nas mãos de uma dynastia portugueza.

D. Nuno Alvares Pereira tinha então vinte e cinco annos de idade. Educado por sua mãe, D. Iria Gonçalves de Carvalhal, possuia todas as virtudes civis e guerreiras d'esse tempo. Pouco mais moço do que o joven monarcha, achando-se sem armas na occasião de ser armado cavalleiro pelas proprias mãos da rainha D. Leonor, tinha-se servido da armadura do Mestre de Aviz para aquella ceremonia, presagio a affectuoso da fraternidade que entre elles tinha de existir até á morte.

D. João I sabia apreciar o merito; e para mostrar á nação a estima que dedicava a D. Nuno Alvares Pereira, fe-lo, logo depois da batalha de Aljubarrota, Comlestavel do Reino e seu Mordomo-mór; assim como conferiu o logar de Chancelier a João das Regras, celebre juri-consulto; este para remunera-lo pelo auxilio de sua eloquencia; aquelle, para recompensa-lo do soccorro que lhe prestava com o seu braço.

Apesar porém do incansavel zêlo d'estes dois homens, apregoando os direitos do eleito da nação, suas vozes não eram ás vezes assas fortes para animar alguns dos que começaram a descorçoar. A desproporção dos dois exercitos era enorme; combatiam dez contra um. D. João de Castella era seguido por um brilhante exercito composto de cavallaria castelhana e franceza em numero de 36:000 homens; e o total de sua forca chegava a 90:000 individuos, alem de dezeseis peças de artilheria, as primeiras que até então se haviam visto em Portugal.

Havendo desistido do seu primeiro projecto de começar a campanha pelo Alemtejo, tinha repassado o Tejo, e entrado em Portugal sem dificuldade, ate chegar a Coimbra que lhe fechou as portas. Então, deixando as margens do Mondego, e assolando todo o paiz por onde passava, forao rei de Castella, como torrente caudal e magestosa, que encontrando no seu curso mil regatos engrossa com elles as suas aguas, augmentando o seu poder á proporção que se internava pela Extremadura. As guarnições das praças que ali tinha, os cavalleiros e fidalgos que as commandavam, os soldados da esquadra que tinha no Tejo, tudo se reduia aos castelhanos, de maneira que para tranquilisar os animos era preciso toda a superioridade do genio do condestavel, e a serenidade imperturbavel do Mestre d'Aviz, que respondia aos que lhe fallavam do grande numero dos inimigos: «Não julgueis que depois os achareis tão juntos, quando houverem de morrer ás vossas mãos.»

No meio da anxiedade geral, em quanto nas lastimavam o sacrificio inutil, talvez, de tantas vidas, e outros queiram coatemporisar com o inimigo, estando o exercito portuguez acampado a pequena distancia de Aljubarrota, appareceu repentinamente, sem saber-se d‘onde vinha, um cervo que, desorientado e não achando o seu rumo, perseguido de todos os lados, percorrer o acampamento, e entrou na tenda do rei, abrigando-se a seus pés. O espirito da epocha de D. João I era essencialmente religioso; a par porém d'estas idéas puras e sinceras havia as superstições populares de bruxas, de feiticeiras, de espiritos maus; superstições inveteradas, que nem as leis de D. Diniz, nem as prohibições ecclesiasticas tinham desvanecido. Os rommanos tambem com algumas de suas leis haviam deixado arraizadas no coração do povo outras crenças. O vôn dos passaros, a corrida dos animaes, o exame das entranhas, tinham muitas vezes decidido das cousas publicas entre os descendentes de Romulo; assim os lusitanos acreditavam n‘estes agouros; e os soldados do Mestre d'Aviz exultando á vista do cervo, proclamaram d'antemão a victoria. Mas D. João I, piedoso por convicção, e prestes a combater, despojando-se do orgulho de guerreiro e contiando no Senhor dos exercitos, implorava o favor do céu, d'omle só esperava soccorro, e pediu o auxilio da mãe de Deus, fazendo voto solemne de edificar-lhe um sumptuoso templo se saísse vencedor.

Finalmente na tarde do dia 14 de Agosto, vespera da Assumpção da Virgem, teve logar o sanguento combate nos plainos de Aljubarrota, onde, depois de porfiada luta, El-Rei D. João I, a pé, com a lança em punho, avançou com a retaguarda do seu pequeno exercito, e apresentou uma muralha de ferro diante do inimigo, que ja contava com a victoria. Largando então as lanças, castelhanos e portuguezes, combatiam á espada; tendo estes ultimos obrados prodigiosos feitos, até, depois de immensa mortandade sobre os inimigos, conseguirem abater a bandeira de Castella e ficarem vencedores.

O throno de D. João I estava seguro. Segundo o uso d'aquelle tempo, o rei demorou-se tres dias sobre o campo da batalha, onde ajuntou uma rico despojo. As arvores da floresta visinha carregadas em estes trophéns annunciavam que a dynastia d‘Aviz reinaria sem obstaculo em Portugal.

Mas se os esforços dos inimigos ficaram sem successo, a historia registou os feitos de bravura e de resignação praticados pelos castelhanos n‘aquella campanha, na qual, infelizmente, se lhes haviam juntado muitos portuguezes; uns despeitados contra o Mestre d‘Aviz, por haverem seguido a causa do conde Andeiro: outros, sequazes incognitos de D. João, o filho primogenito de D. lgnez de Castro, o assassino da bella Maria Telles, que do fundo de uma masmorra, onde o lançara o rei de Castella. tambem elevava as suas pretenções ao throno de Portugal. No numero dos portugueses que deviam acabar batalhando contra a patria tinha de contar-se o irmão do mais bravo e leal cavalleiro de exercito portuguez, e nobre e santo Condestavel D. Nuno Alvares Pereira. D'entre os castelhanos que sobreviveram á victoria, e que, extenuadus de fome e de fadiga, se derramaram pelos arredores de Aljubarrota, sete ficaram esmagados, victimas de uma mulher, que armada com uma pa, e possuida do sentimento geral do povo portuguez, mostrou ao mundo a que ponto chegava n'esta nação o odio ao dominio estrangeiro, e sua affeirão para com aquelle que ella tinha escolhido para defensor de seus direitos.

A historia conservou-nos o nome d'esta heroina, de quem fallaremos no capitulo seguinte.

II Contos vontade de idades a idades Uma força d'encantos que a tantos obriga.

A. F. DE CASTILHO -- Romance da S. da Nazareth.

Não longe de Leiria, perto do rio Lena que atravessa a planicie de Aljubarrota, vivia Brites de Almeida, por alcunha a Tubarda, uma pobre; padeira, que trabalhava noite e dia para ganhar a sua substancia. Esta mulher, filha de um corajoso soldado portuguez que tinha perdido a vida em 1373, nas guerras entre Portugal e Hespanha, tinha herdado de seu pae, com a pequena casa em que morava, implacavel odio contra os castelhanos. Crente, como todo o povo de Portugal, era como os da sua classe, supersticiosa no mais alto ponto. Ufana de nome portuguez, amando o seu paiz acima de tudo, se alguem podesse dizer a pobre padeira: «Brites, para assegurar a independencia de Portugal, cumpre que tu, como os Decios da antiga Róma, te offereças victima voluntaria, sacrificando a vida a bem do teu paiz»; a padeira não hesitaria um só momento. A divina religião do crucificado era mal interpretada pelo povo n'aquellas oras obscuras. O perdão das injurias que elle ensinára, a tolerancia civil e religiosa eram meras palavras cujo sentido se não comprehendia. O homem offendido nunca esquecia o ultraje senão depois de vingado. O rancor contra a religião judaica, e contra os que a professavam não era menor que o odio votado aos castelhanos; não sómente se aborrecia toda a nação hespanhola como aquella que, mais visinha e orgulhosa, tinha por vezes invadido Portugal, mas odiava-se cada indivíduo de per si. A linha do valente soldado nunca perdoara ao rei de Castella o haver entrado em Portugal, fazendo passar este reino por todos os horrores de uma guerra cruelissima; e como não podia ter vingado sobre Henrique de Transtamara a morte d'aquelle que lhe dera o ser, havia jurado saciar a sua sede de vingança sobre todos os hespanhoes que encontrasse. Este juramento era para ella sagrado; o seu fanastismo ainda ia mais longe: no fundo de seu coração. Brites de Almeida pedia a Deus uma morte immediata ao momento em que, com suas mãos, tivesse morto um castelhano. Era um baptismo de sangue, com que esperava lavar todas as suas culpas, e que a faria sahir purificada ao céu logo que perpetrasse o feito. Aconteceu pois que, em seguida á grande batalha de Aljubarrota, os soldados castelhanos, tendo-se posto em fuga e perseguidos pelos portuguezes, procuraram todos os meios de evitarem a ira dos seguidores do Mestre d'Aviz, escondendo-se de dia em qualquer logar onde lhe fosse facil abrigarem-se, e caminhando de noite para ganharem o solo de Hespanha. A boa da padeira, que durante o enthusiasmo do combate não pensava em comer, nem no fabrico do seu pão, depois de ver terminado o conflicto, lançara mão do seu ministerio, e entrando em casa, chamando um sobrinho que de pequeno creara comsigo, ordenára-lhe que fosse peneirar toda a farinha que havia no celleiro, porque ella ia para o forno, onde devia recolher alguma lenha; pois seria preciso um bom lume, visto que estava inutilisado desde a chegada dos perros dos hespanhoes. Para lá então se dirigiu a padeira. Era em um arrabalde do logar que estava construida aquella cozinha, cuja porta Brites achou entr'aberta, com muita admiração sua, tendo a chave na algibeira. Passando o limiar, Brites sentiu como um leve ruido no fundo da cozinha, que era comprida e escura. A noite approximava-se, e a padeira não tinha outra luz senão a que lhe entrava pela porta; applicou o ouvido, havia um silencio de morte. Começou então a levantar alguns paus de lenha que havia em um cauto da cozinha, quando, ou fosse o instincto da vingança que lhe animava o peito, ou fosse realidade, pareceu-lhe ouvir um ai suffocado para o lado do forno. A idea de que ali podia ter-se alguem escondido, surgiu logo, e, nesse caso, devia ser um hespanhol. Mais prompta do que o raio, larga a lenha que tem nas mãos, olha em torno de si e vê a pá com que se costumava servir no seu trahalho de cozer o pão. Não hesita; pega na arma, e dirige-se para onde sentira o ruído, e distingue, a favor da claridade que entrava pela porta, uns olhos que, há dentro do forno, a medo a observavam ! Approxima-se, e percebe distinctamente uns vultos de homens, meio-sentados, com o trajo castelhano, que, sem força para resistir-lhe, pareciam implorar o perdão de ali se haverem refugiado. Então, armada com a pá, investindo com os soldados, animada de um furor de que não ha exemplo, consegue matar aquelles sete homens que, inertes, só podiam offerecer-lhe com os braços uma fraca resistencia!

Sem o mais leve remorso depois de certificar-se que os hespanhoes estavam bem mortos, Brites de Almeida esteve um momento extatica, como que esperasse o resultado d'aquella acção: era o voto que tantas vezes tinha concebido, o desejo da sua morte que ella julgava dever por foça seguir-se á dos castelhanos. Mas rapido foi esse sentimento; Brites achou-se em breve prestes a recomeçar qualquer conflicto similhante; e querendo fazer patente o seu esforço, saiu da cozinha. D'ali, atravessando duas ruas, chegou à sua morada, e apenas entrando em casa chamou sua sobrinha o companheira e disse-lhe. «Vem, Margarida, vem ver o que tua tia acaba de fazer. Matei-os todos, filha; todos sete!! Teu avô está vingado... Cumpri a promessa! Agora posso morrer! Vem ver, pequena. Aprende com tua tia a detestar aquelles malvados; jura, jura que se não podes imitar-me, tirando-lhes as vidas, és rapaz de aborrece-los; jura-me que não has de nunca fazer boa cara a um castelhano; falla, responde, rapariga.» Mas a pobre Margarida nem podia fallar, nem escutava o que lhe dizia a tia Brites. Uma idéa confusa, mas aterradora, dominava-a inteiramente. Aquellas palavras matei-os, matei-os todos sete: teu avó está vingado = tinham-se-lhe coado n'alma. Margarida não tinha o animo varonil de sua tia. Alheia a todo o sentimento hostil para com o seu proximo, não podia nunca ter pensado que Brites effectuasse aquelles projectos de vingança, que tantas vezes a ouvira fazer. Docil á vontade d'aquella que desde o berço lhe servira de mãe, a jovem Margarida não ousava soltar uma palavra contra os horrores da guerra, mas ao seu coração singelo e innocente repugnavam esse tinir do ferro, esse cuido das armaduras, batendo sobre o solo, essas lallas de sangue, que depois de tantos mezes eram o objecto da conversação dos que a rodeavam. Durante o conflicto de Aljubarrota, Margarida não se havia afastado de casa, enquanto Brites, com o valor que já lhe conhecemos, corria todos os pontos onde podesse colher as noticias que desejava, o exterminio dos inimigos. Mas a donzella não tinha escapado a todos os perigos.

Alguns dos chefes do exercito de D. João de Castella tinham sido mortos antes de se haver declarado a victoria em favor dos portuguezes; outros, feridos sem de nova poderem entrar em combate, tinham sido levados por soldados fieis, que os conduziram para longo dos horrores do campo, e fóra do alcance do inimigo lhes prestavam os possiveis soccorros. Um destes soldados que, mais caridoso, desprezava as proprias feridas para salvar a vida ao valente capitão que trazia nos braços, tinha ido mais longe do que aconselhava a prudencia. O logar onde chegára era solitario: alguns ramos de arvores frondosas offereciam um abrigo contra os ardentes raios do sul de Agosto. Mal havia posto sobre a terra aquelle que desejava salvar, o soldado rasgára a sua propria camisa, para com ella fazer umas ligaduras, quando o moribundo com uma voz quasi extinta lhe disse=tendo sede=. O soldado largando o ferido corria para buscar-lhe uma gotta de agua, mas lembrou-se que não tinha nem taça nem copo onde Ievar-lh'a. Não desanimou comtudo; e volvendo os olhos para uma e outra parte como para escolher o rumo que mais lhe podia convir, tomou uma pequena viella, quasi deserta de habitações, e ali bateu na primeira porta com que deparou. Á primeira pancada appareceu-lhe em uma esguia janella, um rosto feminino, que ao vê-lo recuou. Mas o soldado sem lembrar-se que o seu aspecto afugentava aquella mulher, ergueu a voz, e com todo o ardor de que estava possuido exclamou: «Señora, por las llagas de Jesu-Cristo, por los dolores de Su Santisima Madre, dad-me um vaso de agua para que pueda yo refrescar las entrañas de um valiente soldado que se muere de sed y está regando la tierra de su sangre.»

A voz enternecida do soldado, as palavras que proferira, o peito de sua camisa salpicado de nodoas de sangue e denotando que estava ferido, a pallidez do seu rosto, fizeram com que a mulher, que á primeira vista fugira espavorida, voltasse á janella e podesse melhor attendar nas feições e attitude d'aquelle que implorava o seu soccorro a favor de um moribundo. Era um mancebo de vinte a vinte e quatro annos, alto, magro, com cabellos castanhos e sobrancelhas da mesma côr. Os olhos eram pretos; o nariz aquilino, a bôca ornada dos mais bellos dentes; e a voz era uma d‘estas vezes que vão direitas ao coração, cujo som ouvido uma vez nunca mais se esquece. Margarida, pois a mulher que apparecêra a janella não é mais nem menos do que a sobrinha de Brites de Almeida, esquece-se das ordens de sua tia, esquece que o homem que bate á sua porta é um inimigo, um castelhano, desce á cozinha e lançando mão da primeira vasilha que encontra em uma prateleira, enche-a de agua, e corre a entrega-la ao soldado, que a recebe e, murmurando apenas estas palavras de agradecimento: «Que Dios os lo pague, señorita»! depressa desappareceu aos olhos de Margarida, que ficára immovel na porta alguns minutos, admirando o porte nobre e gentil d'aquelle mancebo.

A tristeza é um sentimento sagrado. Margarida achava-se penetrada de respeito por aquelle soldado, cujo semblante respirava tão grande melancolia. De todos os homens que ella tinha encontrado desde que chegara ao uso da rasão, naquelle inimigo parecia-lhe entre todos o mais digno do amor de uma mulher. Uma corda do seu corarão que ninguem antes tinha tocado, acabava de ser ferida. Intimada com este sentimento tão novo para ella, lembrou-se de sua tia, recordou-se da morte de seu avô, morto pelos castelhanos, pensou no seu paiz devastado pelos hespanhoes; mas a idéa do joven soldado dominava todas as outras ideas. Margarida estremeceu com ella.

Com um genio docil e jovial a sobrinha de Brites de Almeida era dotada de affeições fortes; mas até áquella epocha estas affeições tinham-se empregado em um só objecto. Margarida adorava sua tia; mas a par do amor que lhe consagrava, havia um sentimento menos nobre que diminuia a força d'aquelle; era o medo. Quem visse Margarida uma só vez ficava conhecendo pelo seu semblante o caracter d'aquella alma. Pela sua compleição parecia uma mulher do norte da Europa. Seus olhos da côr do céu tinham uma expressão indeclinivel de doçura, e eram assombreados de longas pestanas mais escuras que os seus cabellos louros e luzidios; o nariz era cortado com a perfeição dos da nação judaica; a bôca, quasi tão expressiva como os olhos, tinha um sorriso angelico, que arrebatava; as suas maneiras eram magelas e graciosas; as suas fallas modestas e reratadas. Ninguem diria que aquelle typo, tão chegado à perfeição, era o de uma mulher do povo.

Margarida tinha então dezenove annos. Sabia ler e escrever, a sua sciencia não passava d'ahi; mas tinlia aprendido esse pouco com um mestre que lhe ensinou muitissimo, porque desde os mais tenros annos lhe fallou de Deus, da immortalidade da alma, da brevidade dos trabalhos d'este mundo, e das recompensas eternas do outro. Este mestre era um d'aquelles homens que nunca deviam morrer; um d'estes entes previlegiados que Deus deixa apparecer de espaço a espaço sobre a terra, para amenisarem com as dores da sua palavra e do seu exemplo a aridez d'este deserto que atravessâmos. Era um herdeiro das virtudes do fundador da Ordem de Cister, S. Bernardo de Claraval, monge do mosteiro de Alcobaça, onde se havia retirado depois do desengano das cousas do mundo. Este religioso, descendente de uma nobre familia de Portugal, era conhecido em todos os arredores do convento pelo titulo do Santo Monge; no mundo chamára-se D. Francisco de Menezes; Frei Francisco de S. Boaventura era o seu nome do claustro. Possuindo a sciencia que se aprende com os homens a par da sabedoria que nos vem do céu, a sua fé, a amenidade do seu carecter, a firmeza das convicções, a sua tolerancia e indulgencia para com todas as fraquezas davam-lhe tal influencia sobre quantos o approximavam, que todos recorriam á sua opinião para conselho. Frei Francisco era amado e venerado por quantos o conheciam. Quando a mãe de Margarida no seu leito da morte o chamára para ouvi-la de confissão, o santo monge exercéra as funções do seu ministerio com tanta uncção, que a pobre enferma, victima de uma molestia prolongada e no meio das mais acerbas dores, dava louvores ao céu por haver-lhe deparado nos instantes derradeiros um tal consolador. Foi n'este momento solemne que ella recommendára a sua unica filha ao ministro do Senhor, pedindo-lhe quizesse servir-lhe de guia espiritual, encaminhando-a pela estrada da virtude Frei Francisco prometteu faze-lo; e a doente então mais tranquilla sobre a sorte d'aquella que deixava orphã de mãe, entregou o espirito ao creador.

Frei Francisco cumprira fielmente a sua promessa. Todas as manhãs depois de seus exercicios religiosos, se dirigia o bom do monge a casa de Brites de Almeida, e ali ensinava á pequena Margarida os primeiros rudimentos da religião. Mais tarde ensinou-a a ler e escrever; e á proporção que a creança crescia, redobrava o seu cuidado para com ella; até que tendo Margarida chegado aos doze annos, epocha da sua primeira communhão, augmentou o monge a vigilancia, fazendo em vez de uma duas visitas diarias a casa da tia Brites.

Assim continuou Frei Francisco, por alguns annos, até que havendo escasseado os meias de subsistencia de Brites de Almeida, resolvêra esta estabelecer uma padaria nas visinhanças de Aljubarrota, onde tinha uma pequena casa, legado de seu pae. Então viu-se o monge constrangido a interrompera frequencia de suas visitas áquella casa. Contundo ainda que bem distante, ali ia todas as semanas, com a que muito aproveitava a sua educanda.

Frei Francisco tinha então setenta annos de idade; mas nem os ardores do sol durante o verão, nem o rigor dos invernos o impediam de continuar d'esta maneira a sua caridosa missão. É verdade que Frei Francisco tinha uma saude de ferro; mas os trabalhos de que estava encarregado no comento, o confessionario que o occupava toda a manhã, as suas execursões fóra do claustro, d'onde saia diariamente a levar a consolação e a esmola aos pobres e attribulados, serviriam de obstaculo a qualquer outro homem para seguir regularmente a educarão de Margarida. Frei Francisco porém tinha tempo para indo. Fiel observador das regras do Mosteiro, concorria ao côro nas rezas quotidianas que se faziam em commum; e quando de volta ao convento, ao cair da noite, o suppunham descansando das fadigas do dia, sobre as duras tábuas que lhe serviam de cama, o santo monge, recolhido á sua cela, á luz baça de uma pequena alampada, collocada defronte de um crucifixo. dirigia ao céu preces ferventes, e implorava a intercessão da virgem em favor do reino, dos opprimidos, dos afflictos e dos fracos. Depois abria um livro, cujas folhas amarellas, cujas letras gastas, estavam cobertas de manchas, e denotavam o muito que tinham sido lidas. As manchas eram das lagrimas que Frei Francisco havia derramado sobre aquellas paginas, o livro era o dos Evangelhos!

Com tão bom preceptor Margarida fez grandes progressos. Dissemos que as affeições d'aquella donzella se haviam concentrado na tia Brites. Assim era, porque o sentimento que ella tributava a Frei Francisco era uma cousa á parte; era uma imitação dos sentimentos que devemos a Deus; era uma veneração, um amor que em nada se assimilhava com a affeição e respeito que dedicâmos ás creaturas. D'esta maneira as menores sensações, os mais ligeiros pensamentos que Margarida sentisse ou concebesse eram de prompto depositados no seio do monge, que admoestava com doçura quando havia que reprovar, e louvava com moderação o que merecia louvor. N'esta disposição, quando pela volta da tarde o monge se dirigiu por um pequeno atalho a casa da tia Brites, Margarida deu-lhe parte da sua entrevista com o castelhano. Frei Francisco não a reprehendêra, mas com a sua doçura habitual, havia-lhe dito:

«Minha filha, quando o Senhor nos disse=dae de beber a quem tem sêde =, não isentou d'essa lei nem inimigo, nem herege. Haveis cumprido com uma das obras de misericordia. Comtudo, na vossa idade, n'esta presente conjuntura, e mister haver grande cantela no modo de as exercer. Parece-me que vossa tia não se devia afastar tanto de casa n'estes dias de tribulação, em que a guerra, o maior dos flagellos que podem cair sobre um povo, assola este paiz. Mas Deus ha de proteger-vos. Fechae bem a vossa porta, minha filha; e orae pelos mortos e pelos que lhes sobrevivem.»

E o bom do monge descêra a pequena escada da casa de Brites de Almeida, e contemplativo e melancólico se encaminhára ao seu convento.

A pobre donzella havia-se despedido do seu protector, e pozera em execução as suas recommendações. Quando a tia Brites entrou em casa alardeando seus altos feitos, Margarida resava as suas ultimas orações pelos que haviam acabado no campo da batalha. Sobresaltada pelas primeiras palavras de sua tia, a sua commoção foi crescendo á medida que esta ultima lhe narrava a sua heroicidade. «Quem sabe se aquelle castelhano, aquelle mancebo que expunha a sua vida para valer a um ferido, seria uma das victimas immoladas pelas mãos da tia Brites?» Esta idéa aterrou Margarida a ponto de lhe cortar a falla. Não respondêra nunca a pobre donzella ás perguntas exigentes de sua tia; e quando esta, contrariada pelo seu silencio, lhe voltou as costas, pegando em uma lanterna, que achara á mão para de novo voltar ao theatro de suas façanhas, Margarida, que já não tinha com quem constranger-se, soltou um grito, e caiu desmaiada.

III Dizei-lhe que tambem dos portuguezes Alguns traidores houve algumas vezes.

CAMÕES -- Lusiadas.

O valente capitão que expirava á sêde e exausto pelas feridas recebidas no combate, era o proprio irmão do companheiro de armas, do amigo de D. João I. Uma louca ambição o tinha levado para fóra da sua patria a combater contra ella. Depois de mil esforços que tentara para seduzir seu irmão D. Nuno Alvares Pereira. Diogo Alvares o havia sempre achado leal ao Mestre de Aviz. Não esperando d'ali nenhum auxilio para o rei de Castella, Diogo Alvares havia lançado mão do ultimo recurso. Animando com a voz e com o exemplo os seus companheiros de armas nas planicies de Aljubarrota, não podendo sustentar por mais tempo o combate, crivado de feridas e prestes a desfallecer, fôra levado para longe da acção por um joven pagem que combatêra a seu lado, e que mais de uma vez recebêra em seu peito os golpes dirigidos contra o degenerado portuguez. Este pagem, tambem portuguez, não tinha conhecido pae; na idade de um anno tinha sido levado para Hespanha; e por um acaso fôra encontrado por Diogo Alvares, que o tratou desde logo, se não como filho, ao menos como pessoa que de perto lhe tocava.

O joven Alvaro respeitava aquelle que lhe servia de pae, avisava-o e daria mil vidas para salvar a do seu protector, a quem obedecia cegamente. Costumado a aceitar quanto lhe dizia Diogo Alvares, o mancebo, a quem repugnava o combater contra a patria, não se atrevèra a soppor suas rasões ás do irmão do condestavel; mas por um instincto de lealdade á sua terra, havia imaginado um plano para nunca atacar, mas contentar-se com defender a sua vida, e mais que tudo a vida de Diogo Alvares, de cujo lado nunca se afastara. Mas quando de volta de casa de Brites de Almeida, o pobre Alvaro chegara com um pucaro de agua, destinado ao moribundo, já o misero tinha entregue a alma a Deus! Então o afflicto mancebo, ajoelhando ao lado do cadaver d'aquelle que lhe tinha mostrado tamanha affeição, beijando-lhe as mãos geladas, dirigiu ao céu uma simples mas fervida supplica pelo repouso de sua alma. Breve devia ser esta oração! Ouviam-se já perto as vozerias dos vencedores e os gritos dos vencidos. Alvaro levantou-se. Olhou em torno de si para ver se poderia achar algum instrumento de lavoura, com que desse o ultimo jazigo ao seu amigo. Nada via! Lembrou-se então de voltar á mesma casa, onde com tão boa vontade lhe tinham dado o soccorro que pedira; mas hesitava em largar o cadaver exposto no furor dos inimigos. N'esta alternativa de desejos e de sustos, o tempo corria, e os soldados portuguezes approximavam-se. Então, possuido de novo esforço, quer levantar o cadaver e fugir com elle; mas o sangue que das proprias feridas lhe vertia tinha de tal modo enfraquecido o vigor de seus braços, que mal podiam sustentar aquelle corpo frio e inteiriçado. Comtudo, conseguiu levanta-lo e dar alguns passos para o lado opposto aquelle d'onde lhe vinham as vozes. Em breve porém viu que nada aproveitava. Por detraz de uma sebe que rodeava uma pequena herdade contigua ao logar aonde Alvaro se adiava, saiu-lhe ao encontro um official portuguez que, intimando-lhe ordem de prisão, lhe mandara largar o morto. O mancebo não desconhecia as leis da guerra, e não ignorava o rancor dos portuguezes pelo nome castelhano; respondeu comtudo que estava prompto a entregar-se prisioneiro, mas que exigia uma sepultura para o seu chefe que ali tiuha nos bracos. Palavras inuteis, que apenas pronunciadas teriam sido as ultimas que houvesse de proferir o valente mancebo, se uma terceira pessoa não viesse subitamente apresentar-se em scena.

IV O que legou á terra o po da terra, Julga-lo cabe a Deus.

A. HERCULANO -- Harpa do Cr.

Era já noite quando Frei Francisco saindo de casa de Brites de Almeida se dirigira para o seu convento. As idéas que o absorviam não o deixavam bem reparar no caminho que tinha de seguir, e em vez da rua que ordinariamente tomava para alcançar a estrada que levava ao convento, seguiu um pequeno atalho que o conduziu a um largo, cheio de sobreiros, cujos ramos caindo até ao chão quasi que impediam a passagem. O monge porém com o seu bordão os foi afastando o melhor que lhe foi possivel, e conseguiu chegar á extremidade opposta, quando novos obstaculos vieram apresentar-se-lhe. O solo que elle pisava conduzia a uma especie de curral comprido, todo embardado com espinheiros e urzes, e de uma altura que o pobre monge não podia saltar. Respeitador de toda a propriedade, Frei Francisco não ousava, ajudado do seu bordão, romper uma parte daquelle obstaculo; e para não voltar para traz, foi seguindo a sebe até achar alguma cancella que o fizesse sair d‘ali. Mas a obscuridade da noite augmentava a sua difficuldade; e o bom do monge andou unido tempo antes de poder livrar-se d'aquelle labyrinto. Ja começava a pensar em retroceder, quando o braço esquerdo, cuja mão tinha sempre levado ao longo da sebe, lhe caiu sem apoio em que sustentar-se. Era uma estreita aberta que a custo pôde atravessar, e que o levaria a raminho mais trilhado. Frei Francisco continuou a andar indistinctamente, porque não via já para escolher o rumo que devia seguir, quando mui perto de si ouviu vozes, Era o soldado portuguez intimando a Alvaro a ordem de prisão. O monge chegava a tempo. Alvaro acabava de responder, e o fanatico guerreiro de Aljulbarrota, esquecendo-se do respeito devido a um cadaver e a um prisioneiro, impunha a lança para acabar os dias do mancebo, quando uma mão vigorosa lhe segurou o braço.

«Que fazeis, christão?» foram as primeiras palavras que saíram dos labios venerandos de Frei Francisco, em quanto com toda a força do seu braço apertava o do soldado, que havia ficado attonito e pezaroso com aquelle encontro. «Sois portuguez, e a deslealdade não póde morar em um peito portuguez! Ouvi uma voz que me parecia a de um homem ferido; esta voz pedia sepultura para um cadaver: e vós, esquecendo os preceitos que Jesus Christo nos deu do alto da Cruz sobre o Calvario, ousaes atacar um homem desarmado, que vos pede um pedaço de terra para sepultar um inimigo! Seguramente a allucinação no combate foi a causa d'este desvario ! Se o homem que aqui fallou é castelhano, guardae-o como prisioneiro e ide leva-lo aos vossos chefes, promettemdo-lhe uma sepultura para aquelle que já compareceu diante do unico throno onde a justiça é sempre administrada sem paixão por um juiz integerrimo que nunca póde enganar-se. Aqui mesmo talvez possamos cumprir este piedoso dever. Soldado de Christo, aqui estou eu para desempenhar uma parte da missão que elle me deixou sobre a terra. Ide acompanhar esse prisioneiro ao logar onde deve ser entregue. Respeitae na sua pessoa um inimigo indefezo. Quando o tiverdes deixado, mandae-me aqui uma lanterna e uma pá, é quanto preciso. E vós, hespanhol inimigo, se quereis dirigir o ultimo adeus ao cadaver do vosso amigo ou companheiro, podeis faze-lo. Dizei-me o vosso nome, para que eu possa deixar-vos saber mais tarde que cumpri com o vosso desejo. Este desejo faz-me pensar que a vossa alma não esta tolalmente endurecida por todo esse sangue que tendes visto, ou porventura tendes feito derramar. Perdoae no fundo de vosso coração aos vossos inimigos, para que Deus tambem vos perdoe as vossas culpais.»

Alvaro admirava aquelle homem que assim tinha fallado. Ajoelhou de novo ao lado do cadaver, e beijou-o. Depois levantando-se disse: «Prestes a partir, talvez para a morte, peço-vos, Senhor, já que não posso distinguir as vossas feições, me deixeis abraçar-vos como um testemunho do meu reconhecimento, pelo bem que haveis feito á minha alma. O meu nome é Alvaro; nunca me deram outro, nem eu sei se o tenho.

Aquelle cadaver não é o de um hespanhol; o sangue quc correu em suas veias era portuguez... Mas eu não devo accusa-lo... Elle não póde justificar-se a nossos olhos. O juiz integerrimo de quem haveis fallado, e de quem sois digno ministro, já o tem julgado, e terá piedade de sua alma! « Dizendo estas palavras, o mancebo approximou-se de Frei Francisco, que lhe estendera os braços, e partiu com o soldado portuguez.

V Alvejavam-lhe as cans das longas barbas Pelo negro burel, que o peito cobre.

ALMEIDA GARRET - Camões

Em quanto Alvaro assim marchava para uma masmorra, levado pelo portuguez, que não proferira uma palavra depois da chegada de Frei Francisco, o santo monge, de joelhos, com as longas cans de suas barbas pendentes sobre o cadaver, recitava pela paz de sua alma as orações da Igreja. Meia hora depois, dois homens traziam-lhe uma pá e uma lanterna, á luz da qual elle pôde contemplar o rosto d'aquelle inimigo estendido sobre a terra. A morte não o tinha ainda completamente desfigurado; e Frei Francisco pareceu-lhe distinguir n'aquelle semblante umas feições que havia conhecido. Esteve pois algum tempo pensativo, querendo remontar sua memoria a tempos mais distantes, a ver se se lembrava de as ter encontrado. Mas achando que o seu trabalho era innutil, deixou o exame, e disse aos homens mandados pelo soldado portuguez:

«Se não tendes pressa, meus filhos, abri uma cova para que possamos dar sepultura a este homem ; se porem não podeis demorar-vos, deixae-me a pá e a lanterna, e amanhã podeis ir busca-las ao convento de Alcobaça, onde vos serão entregues.»

Mas um dos homens logo lhe respondeu:

«Não será dito que vossa paternidade abrisse com suas proprias mãos uma sepultura para enterrar um morto: tendo dois homens a seu lado.»

«E então, vossa paternidade havia de carregar com esta pá e esta lanterna até ao convento de Alcobaça?!...»exclamou o outro. «Não, senhor, aqui estamos nós, meu compadre e eu, promptos a fazer quanto vossa paternidade mandar; e havemos depois d'isso acompanha-lo ao mosteiro, quer queira, quer não queira.»

«Meus filhos, «redarguiu o monge, «agradeço a vossa boa vontade, mas não preciso que me acompanheis até Alcobaça. Conheço a estrada perfeitamente,e se quereis emprestar-me a lanterna, não correrei o menor risco, porque ninguem fará mal a Frei Francisco de S. Boaventura.»

Apenas tinha o religioso pronunciado o seu nome, os dois homens, lançando-se espontaneamente de joelhos, exclamaram:

«Bem nos parecia a nós, que não podia ser outro senão o santo monge! Deixae-nos, senhor, deixae-nos beijar a manga do vosso habito. Bemdito seja Deus, que nos deixou ver-vos e ouvir-vos. Estamos ha poucos dias em Aljubarrota, e nem um se tem passado sem que tenhamos ouvido fallar de vós! Bemdito seja Deus!»

E os pobres homens, puxando-lhe as mangas, as beijavam com um devoto phrenesi.

«Meus filhos,» disse-lhes então Frei Francisco, «o povo d'estes contornos é bom e religioso; mas a sua bondade leva-o a terem grande conta cousas que têem bem pouca valia: e a sua religião, um tanto dominada pelo fanatismo, arvora em santos os que ainda têem muitas faltas para remir, e que ainda estão longe d'aquelle estado de perfeição. Vedes aqui apenas um pobre monge, cujas culpas foram mui grandes, mas que espera na misericordia do Senhor, e que trabalha por seguir os seus dictames, exercendo, quanto em si cabe, as obras dc misericordia. Vamos pois, meus filhos, cumprir uma d'ellas, enterrando os mortos. Abri a cova.»

Em quanto os homens a faziam, tendo um pegado na pá, e o outro ajudando-o com as mãos a tirar a terra, Frei Francisco rasgava um lenço, e com elle atava as mãos e os pés do morto. Depois, tirou do peito uma pequena medalha da Virgem, que sempre o acompanhava, e lançando-a ao pescoço de Diogo Alvares, recitou um De Profundis; findo o qual, collocaram o morto na sua ultima morada, e encheram a cova com a mesma terra que tinham tirado. pondo-lhe em cima uma cruz feita com dois paus. Depois de have-la abençoado, Frei Francisco dispunha-se a pedir a lanterna para partir sósinho, mas os seus companheiros não lh'o consentiram; e pegando um na pá, e o outro caminhando adiante com a lanterna, chegaram sem o menor accidente ao mosteiro de Alcobaça, onde se despediram de Frei Francisco, promettendo tornarem a procura-lo.

VI

Diante d'ella, realidade ou phantasma, estava a origem de seus terrores.

A. HERCULANO - Eurico

Pela volta das dez horas da noite, entrava Brites de Almeida em sua casa, e fechando a porta que ella mesma, no meio de sua exaltação, deixara aberta, apagou a luz da pequena lanterna que trazia, e subiu a escada que conduzia ao quarto onde havia deixado Margarida.

Dominada ainda pelo sentimento de seu orgulho, ou porventura pelo do remorso, Brites não reparara nem na ausencia de Margarida, que sempre a esperava junto a porta, nem na obscuridade d'aquelle quarto, onde sempre havia, sobre uma mesa redonda com tres pês já carcomidos, uma alampada que conservavam acerca desde as ave marias até que iam deitar-se. Querendo orientar-se no logar onde estava, a padeira, sem chamar a sobrinha, estendia os braços para diante, e arrastava os pés para alcançar a porta opposta áquella por onde havia entrado. A meio porém seus pés acharam um obstaculo, e abaixando-se Brites para apalpar o que lhe impedia a passagem, achou um corpo humano, estendido no chão. O animo varonil da tia Brites não se desmentia um momento. Ergue-se, volta para o lado da escada, que desce apressadamente, entra na cozinha, á direita da porta da entrada, dirige-se á lareira e ali procura uma pedra e isca para ferir lume. Conseguindo accender uma vela, torna a subir a escada e entra no quarto onde encontrara o corpo. Approxima-se d'elle, e reconhece então Margarida, que já começava a tornar a si, mas cujos olhos desvairados indicavam o delirio. Se exceptuarmos o odio que Brites nutria contra os inimigos do seu paiz, odio nascido pelo fanatismo, o coração da padeira era o melhor coração do mundo. Repartia diariamente com os pobres uma parte do pão que amassava para vender; não tinha contendas com os freguezes se porventura lhe ficavam devendo algum vintem. Nunca tinha intrigado o seu proximo; e, quanto a Margarida, amava-a tanto quanto o seu coração sabia amar. Qual foi pois a afflicção da tia Brites quando viu a donzella com a pallidez da morte sobre as faces, com os labios sem côr, os olhos espantados, pronunciar com uma voz cortada.

estas palavras: «Morreu!... foi elle!... horrivel guerra!... malvados!... um assassinato!...

Brites não comprehendia toda a extensão d''aquellas palavras; mas percebia que Margarida queria fallar dos acontecimentos do dia. Talvez em sua ausencia alguem tivesse entrado em sua casa, e relatasse a sua sobrinha o desfecho da batalha. «Mas um assassinato!...» murmurava comsigo; «matar os hespanhoes nunca foi um assassinato! Margarida» dizia então mais alto, «Margarida, minha filha, o que tens?»

Mas a triste donzella, ao ouvir-lhe a voz, levanta a cabeça, fita os olhos em sua tia, e com uma expressão indizivel, exclama;

«Vae-te, vae-te d'aqui, monstro... mataste-o, não t‘o perdôo. Aquella pá! aquella pá ha de ser a causa da tua morte! Deus ha de castigar a crueza de tua alma. Elle era tão bom... e estava ferido... e o sangue corria-lhe do peito!»

Depois exhausta pelo esforço que havia feito tornou a descair a cabeça no chão, e tapou os olhos com as duas mãos, como para não ver a tia Brites, enquanto esta vae buscar-lhe uma gotta de vinagre, que guardava cautelosamente em um vidro para levar comsigo ás igrejas em occasião de aperto. Depois, tenta levanta-la, mas Margarida oppunha-lhe tal resistencia, que achou melhor não contraria-la. Finalmente, depois de uma boa hora passada em applicar-lhe estes remedios e a fazer-lhe exhortações, Brites conseguiu conduzir a donzella ao seu quarto, onde a deitou sobre a cama, e abafando-a bem, assentou-se perto do leito, cujas cortinas a escondiam aos olhos de Margarida.

A noite passou-se do lado de Brites em vigilia absoluta; quanto a sua sobrinha, as sensações por que havia passado desde o meio dia tinham por tal modo exhaurido as suas forças que, a final, adormeceu tranquillamente.

A manhã rompia com todas as galas de que se costuma vestir durante o verão n'essa linda terra de Portugal; o sol começava a doirar com seus raios as cumiadas dos montes visinhos; as brisas do rio faziam docemente agitar os ramos das arvores proximas á morada de Brites de Almeida, quando esta se levantava da cadeira, onde havia passado aquellas horas de vigilia, para fallar com Margarida, que acabava de abrir os olhos, voltando-os á roda do quarto, como quem procurava lembrar-se onde estava, e o que havia occorrido.

«Minha filha, » disse-lhe a padeira, «estás tu mais socegada? Dize-me que sim. Estas guerras mettem-te medo, a ti, pobre e innocente donzella, que não sabes que ellas são precisas; que a patria se antepõe a tudo; a tudo sim, Margarida. Pelo marido deixa-se pae, deixa-se mãe; mas pela patria deixa-se tudo; pae, mãe, marido, mulher e filhos! Mas tu, minha filha, que não tens senão a mim n'este mundo, aqui me tens. Ninguem te chamou para a guerra; eu dei o meu contingente; mas com a graça de Deus, estou sã e salva! Olha para mim, Margarida... Mas tu choras, filha! Margarida! Margarida;

algum estrangeiro viria, na minha ausencia enfeitiçar-te! responde!»

O pranto tinha felizmente vindo em auxilio da donzella. As lagrimas começavam a alliviar a impressão fortissima que de improviso a dominara. Margarida pôde chorar, e este choro, por mais amargo que fosse, havia desvanecido a exaltação do seu delirio. Depois de uma breve pausa em seguida ás ultimas palavras de Brites, a donzella respondeu:

«Não, minha tia. Eu não fui victima de nenhum feitiço. Vi, é verdade, um estrangeiro, que aqui vein bater, ferido e cansado, pedindo uma gotta de agua para um moribundo... Eu dei-lhe a agua, mas não tive com elle mais conversa. Quando vós chegastes, e me dissestes a mortandade que havieis feito, lembrei-me que talvez aquelle ferido... com o seu companheiro moribundo, teriam acabado ás vossas mãos... e receiei...»

«Nada receieis, filha. Eu fiquei illesa, nem uma arranhadura... Elles sim, esses ficaram bem mortos!»

«Minha tia, replicou Margarida, Frei Francisco tem-nos sempre ensinado o esquecimento das injurias... Se aquelles homens vos offenderam, parece-me que devieis ter-lhes perdoado...»

«Cala-te, cala-te, que não sabes o que dizes. Mas ahi começas tu com choros e lamurias! Vallia-te Deus! Não penses mais n'isso, e fica-te aqui trauquilla, emquanto eu vou matar uma ave para fazer-te um caldo,de que tanto precisas; adeus!»

VII

A religião, querendo reformar o coração humano, inventou uma nova paixão; e para exprimi-la, não se serviu da palavra amor, por não ser assas severa; nem da palavra amisade, que ser perde no tumulo; nem da palavra compaixão, visinha do orgulho; mas achou a expressão caridade, que encerra as tres primeiras.

CHATEUBRIAND - Genio do Christian.

Quando depois da memoravel batalha, a effervescencia dos espiritos, começando a declinar, permittia ao Mestre d'Aviz pôr em pratica a generosidade do seu caracter, D. João chamou o codestavel, e ordenou-lhe que tomasse as medidas mais efficazes para obstar que, não somente se desse a morte a algum prisioneiro, mas que se impozessem severas penas aos que ousassem maltratar aquelles que tinham sobrevivido, e que já estavam em ferros, ou que se podessem encontrar procurando evadir-se.

D. Nuno Alvares Pereira, cuja bondade de coração era sómente igualada pela sua coragem e lealdade, ja tinha recommendado a seus soldados tudo quanto a humanidade pôde aconselhar. Mais forte agora com as palavras de seu rei, dava ordens expressas para impedir que o fanatico zêlo do povo e dos soldados vingasse a causa da patria sobre os individuos que tinham escapado ao combate de Aljubarrota.

Aquelle dia de gloriosa memoria para o condestavel devia tambem ser-lhe de triste recordação. Tinha visto morrer a seu lado muitos dos seus companheiros de armas. Com elle acabára a esperança que nutrira no fundo de sua alma da conversão d'aquelle irmão que muito amára. Com elIe o perdêra linalmente, e a dôr que recebêra pela sua morte tinha calado profundamente no seu peito! Sabia porém occulta-la aos olhos indifferentes, e continuava, como antes do conflicto, a visitar todos os pontos, prompto a perseguir os inimigos, que detestava como leal português:, para combate-los com as armas na mão. Mas apenas os via por terra, esse sentimento transformava-se em um sentimento todo de compaixão; procurando elle mesmo curar-lhes as feridas, e dar-lhes todo o alivio a seu alcance. Foi para exercer estes santos deveres que D. Nuno se encaminhara á masmorra onde Alvaro tinha sido levado.

A luz entrava a medo n'aquelle carcere por uma fresta esguia, atravessada com duas grades de ferro. Era terrea a prisão, e tinha no fundo, por unicos moveis, duas tabuas sobre as quaes havia alguma palha. Ao lado d'este leito improvisado estava collocado um pequeno banco de pau; sobre este banco via-se uma bilha de barro com agua e um pedaço de pão negro.

Alvaro estava só, estendido sobre as tábuas quando o condestavel entrou na prisão. A camisa ensanguentada, a pallidez quasi mortal, que se estampava nas faces do prisioneiro, claro mostravam que estava ferido. D. Nuno, dirigindo-se ao prisioneiro, perguntou-lhe se padecia; e com a sua resposta affirmativa quiz examinar-lhe as feridas. Achou que eram gravissimas, e que a demora que tinha havido em pensa-las podia ser fatal ao mancebo.

Sem hospitaes para onde o mandasse, ficou perplexo sobre o que devia fazer. A pobre vida de Aljubarrota não offerecia um abrigo de caridade para os desvalidos e enfermos. Deviam ainda passar dois seculos antes que um santo varão , possuido de ardente amor pelos pobres e afflictos, lhes dedicasse a vida, instituindo estabelecimentos pios, uns para recolher os orphãos e expostos, outros para os forçados das galés, dispersos por toda a França; e finalmente estabelecendo a congregação das Irmãs da Caridade, que deviam espalhar-se até aos confins da terra; «d‘aquellas santas mulheres que não têem ordinariamente por mosteiros senão as casas dos doentes, por ella um quarto de aluguer, por capella a igreja de sua parochia, por claustro as enfermarias dos hospitaes, por clausura a obediencia, por grade o temor de Deus, e por véu uma santa e exacta modestia »; como o mesmo varão no-las descreveu.

D. Nuno Alvares Pereira não tinha familia em Aljubarrota, nem conhecia ali ninguem. Comtudo despediu-se de Alvaro, depois de dirigir-lhe algumas palavras compassivas, e saia para procurar-lhe um melhor aposento, quando foi encontrado por Frei Francisco, que entrava a dar parte ao prisioneiro da sua missão.

O codestavel, pegando na manga do habito do monge a beijára segundo o uso do tempo, e attentando bem na physionomia do religioso, pareceu-lhe ser elle proprio a pessoa de quem carecia para encarregar-se d'aquelle ferido, e porventura de outros, que devesse encontrar n'esta corrida a que destinara o dia.

«Reverendo Padre,» disse-lhe então, « o defensor d'este reino ordena que os prisioneiros sejam respeitados, e que se prestem os possiveis cuidados aos feridos. Esta villa, desprovida, como é, de estabelecimentos de caridade, não offerece um amparo a estes ultimos. Aqui mesmo acabo de achar um pobre soldado hespanhol, que me parece moribundo; quer vossa paternidade indicar-me o que se póde fazer em beneficio d'elle, onde colloca-lo, para ser tratado convenientemente, ou procurar-me pessoa que d‘elle se encarregue?»

«Deus esteja com vossa mercê,» respondeu o monge, «e o queira sempre encaminhar na estrada da justiça. De bom grado me presto para o coadjuvar no que esteja ao meu alcance. E se vossa mercê poder dispensar alguns soldados veteranos que, impondo á soldadesca, façam respeitar as ordens de que for munido, eu vou desde já fallar com uma boa gente n''esta terra. e tratarei de convence-la de que devem prestar me quarto de sua casa (cuja capacidade conheço), para servir de uma especie de hospital, onde se recolham alguns feridos. As mulheres d'aquella casa dedicar-se-hão, não o duvido, ao serviço d'estes infelizes, enquanto vossa mercê os mandará visitar por pessoa competente que lhes ministre os soccorros para o corpo; ordenando que os veteranos, de quem eu fallei, façam o serviço externo e guardem a porta da casa contra o fanatico furor que aqui se encontra pelo nome castelhano. Os soccorros espirituaes d'estes infelizes ficarão por minha conta.»

D. Nuno agradeceu a boa vontade do monge, prometteu fazer o que elle desejava, e retirou-se a dar as suas ordens; enquanto Frei Francisco, sem entrar no carcere, se poz a caminho da casa de Brites de Almeida.

VIII

A medicina esta mais na intenção do que na arte de curar

O medico sabia que a esperança é uma grande força vital, e que cumpre sobretudo animar a vida emquanto ella luta com a morte.

LAMARTINE - Genoveva.

Era noite. Em um vasto armazem pertencente á casa de Brites de Almeida, onde de ordinario a padeira guardava a lenha e carqueija de que devia servir-se durante o inverno, tinham aberto duas grandes janellas e lançado ao longo do pavimento compridas tábuas, que escondiam o ladrilho de que antes se compunha, tornando assim aquelle aposento menos humido e mais brejado. No meio d'aquella especie de dormitorio havia um grande lampeão de forma antiquissima, que o esclarecia. Ao longo das paredes viam-se oito catres de pau, sendo tres de cada lado, e dois no fundo do armazem. Carla um d'estes catres tinha uma enxerga, lençoes de bom panno de linho, cuja alvura attestava o aceio da proprietaria, uma coberta de côr e dois travesseiros. Sobre uma mesa comprida e ainda em bom estado, collocada entre os dois leitos do fundo, estavam tres escudellas de barro, em fórma de bacias, tres jarras contendo agua fresca e crystallina e tres pucaros de loiça. Ao lado dos leitos, de duas em duas camas, via-se uma grande toalha tambem de panno, suspensa a um pau roliço, preso no alto da parede; algumas cadeiras e outra mesa, menos comprida, no meio d‘este recinto, completavam a sua mobilia, Sobre quatro d'aquelles leitos jaziam outros tantos soldados prisioneiros, cujas feridas não promettiam cura. Tres catres pertenciam a outros prisioneiros tambem feridos, mas cujo estado não era perigoso, e que estavam sentados junto ás janellas, gosando o luar de uma das mais bellas noites do mez de agosto. O proprietario do ultimo leito, collocado defronte da porta, na extremidade da parede, estava deitado sobre a sua cama, e respondia a custo ás perguntas de um velho respeitavel, quando Brites, chegando a porta do edificio, perguntou: «Daes licença? Posso entrar?»

Acompanhava-a uma mulher já idosa, mas ainda robusta, que trazia sobre a cabeça um pequeno taboleiro, contendo algumas marmitas, umas sopeiras de barro e algumas culheres de pau. Os soldados que estavam junto ás aquellas levantaram-se, e dizendo a Brites que podia entrar, ajudaram a sua companheira a depositar o taboleiro sobre a mesa. Então o velho que estava ao lado do doente dirigiu á padeira estas palavras:

«Minha boa Brites, este rapaz que acabo de ver esta muito mal. Contudo póde curar-se, se tiver um tratamento assiduo. Não é tanto o medico de que elle carece: precisa de um cuidado constante e de repouso absoluto. Aquelles quatro companheiros estão moribundos, e devem amanhã de madrugada receber os ultimos sacramentos. Solemne como é uma tal scena, póde ser-lhe fatal, impressionando-o demasiadamente. A febre e já violenta; qualquer incidente póde; augmenta-la a ponto de não se poder salvar o infeliz! Vós, boa Brites, cuja repugnancia contra os inimigos está meio vencida, graças ás exhortações do santo monge, e que haveis prestado este aposento para servir de ambulancia aos miseros, que longe da patria arrastam uma triste existencia, vós podeis ainda fazer um grande serviço; á humanidade, concedendo que aquelle pobre mancebo se recolha a um quarto da vossa casa. Hoje ainda será facil transporta-lo d'aqui; ámanhã talvez fôra tarde, se tiver de presenciar e de ouvir as orações funebres que terão de fazer-se pelos seus companheiros.»

E o medico, homem verdadeiramente caridoso, esperava com signaes de impaciencia a resposta da tia Brites, que depois de alguns momentos, murmurou:

«Já é de mais, sr. doutor! Isto não se atura! Estou vendo que me obrigam a casar com um d'estes excommungados, ou permittem que algum me leve Margarida!... Não deixo, sr. doutor, não quero estes perros em minha casa!»

N'este momento entrava o contestavel, que vinha visitar o hospital; e ouvindo as palavras de Brites, sorrindo-se, lhe disse:

«Não será dito que a boa Brites de Almeida, depois de haver mostrado todo o seu valor contra os inimigos, quer ainda conservar odio implacavel para com os desarmados e doentes, que já pagaram bem caro o terem combatido contra portuguezes. Estes homens sem patria, sem familia e sem liberdade merecem toda a compaixão; e El-Rei sabera castigar severamente aquelles que os maltratarem, assim como ha de premiar os que lhes concederem algum soccorro.

Brites, a quem nem as ameaças intimidavam, nem engooavam as promessas,não se movia ás rasões do comtestavel, comtudo estava perplexa sobre a resposta que devia dar. O medico porém tirou-a d'este embaraço, dizendo a D. Nuno:

«Não tendo mais a fazer n'esta casa durante a noite, vou sair d'ella, e mandar já um propria a Frei Francisco para dizer-lhe o estado do seu protegido, e participar-lhe que ámanhã se divem dar aos outros doentes os auxilios espirituaes. Frei Francisco estará aqui muito cedo, porque elle antepõe os deveres da caridade aos proprios exercicios religiosos. Vossa mercê dará as suas ordens para que os enfermos continuem a ser bem tratados. Quanto ao mancebo, deixae-o por minha conta. Amanhã ao romper do dia tira-lo-hei d‘aqui...»

«Não, senhor!» replicou então Brites de Almeida, que, havendo-se approximado á cama onde estava Alvaro, notára n'aquelle semblante um não sei que que a fizera estremecer. «Não, senhor! O rapaz pode ir lá para cima, se vossa mercê insiste em que isso se faça. Em vou arranjar-lhe o quarto; no entretanto, queira vossa mercê administrar a repartição d'aquelle caldo que trouxe para os doentes, e que a esta hora está frio como a neve!» E saindo precipidadamente, entrou em casa, chamou Margarida, e disse-lhe «que era preciso tirar do primeiro quarto tudo que não fosse necessario para um pobre doente que não podia ficar no hospital, e que para ali vinha ser tratado, porque o Mestre d'Aviz, D. Nuno e Frei Francisco assim o queriam.

E em quanto a sobrinha executava o que ella lhe prescrevera. Brites armava um leito na sala que era o primeiro quarto da casa, e trazia um colxão para fazer uma boa cama áquelle que uma hora antes desejava ver morto. Margarida, cheia de espanto e de curiosidade, não acreditava o que via. Ella tinha ouvido as instancias, os rogos, e as exhortações que Frei Francisco fizera a sua tia antes que esta lhe promettesse uma loja de sua casa, lençoes para o hospital, e os seus braços e os de uma visinha que a ajudava no forno, para o serviço dos doentes. Agora Brites era quem se mostrava mais diligente no desempenho de seu novo projecto; facilitava tudo; como Margarida depois do seu desmaio havia perdido a côr e parecia soffrer, a tia Brites tinha-lhe poupado todo o trabalho, já nos arranjos de casa, já nos do pequeno hospital, que, graças aos desvelos do monge, do medico e do condestavel, se tinha arvorado n'aquelle logar havia dois dias. Depois do quarto prompto Brites disse a Margarida:

«Minha filha, tu agora dormirás no meu quarto; eu devo ficar aqui como enfermeira de um soldado que está muito mal. Não desejo que trates com os castelhanos; nem é preciso que vejas o prisioneiro que ahi vem. A visinha Joanna não fará o serviço do forno em quanto os doentes tiverem precisão d'ella. Chamarei entra pessoa para isso, porque não pudemos viver sem vender o nosso pão. Tu, minha Margarida, farás os caldos para os doentes e uma sópa para nos. Não quero que te occupes em outra cousa. Ouves?»

E Margarida escutava e admirava o que ouvia, e promettia obedecer. O seu coração estava triste. Suspirava por fallar a sós com Frei Francisco, com quem não tinha conversado desde que lhe narrára a sua entrevista com Alvaro, o soldado hespanhol; mas não tinha podido faze-lo, pois Frei Francisco tinha vindo áquella casa duas vezes nos dois dias somente para resolver a tia Brites a deixar recolher os primeiros castelhanos em seus armazens.

D. Nuno Alvares Pereira tinha já saido do hospital, mas o medico, depois de ter dado o caldo aos doentes, esperava a resposta de Brites, quando esta chegou para dizer-lhe que o quarto para o ferido eslava prompto, e que se podiam chamar alguns homens para o transportarem para ali. O medico deu as suas ordens aos veteranos que estavam de guarda á porta, e foi de novo pulsar o doente e dar-lhe a beber umas gotas de um cordial que trouxera comsigo. Depois, embrulhando-o em um grande capote que trazia sobre os hombros, fê-lo conduzir á sua nova morada, deitou-o elle mesmo na cama, e, chamando de novo a padeira para recommendar-lhe o socego para o doente, despediu-se d'elle affectuosamente, promettendo voltar bem cedo na manhã seguinte.

IX

No mesmo sepulchro não ha porvir da esperança, porque ao pensamento do corpo precedeu a morte do espírito.

A. HERCULANO - Eurico

Em quanto a tia Brites revolvia na memoria as feições delicadas e sympathicas do joven soldado; em quanto Margarida, sem poder conciliar o somno, pedia a Deus melhorasse todos os feridos castelhanos, julgando que assim rogava tambem por aquelle por quem tanto se interessava; o pobre Alvaro perdia as forças, e caira em um 111 lethargo assustador. Mas a padeira, que para velar sobre elle ficara assentada ao lado da sua cama, persuadida de que um somno benefico se apoderara do mancebo, continuava a observa-lo, certa de que dormia tranquillamente.

Brites não tinha sido padeira toda a sua vida. Quando vivia em Alcobaça, antes do nascimento de Margarida, tinha tido grandes relações com uma familia nobre que passára algum tempo naquella villa.

Esta familia compunha-se de um velho militar, com sua mulher e duas filhas, a mais velha das quaes, doente e triste, não apparecia a ninguem; e apenas era vista nos dias de missa, em que acompanhada de sua mãe, ia á igreja ao

romper do dia, embrulhada em uma grande mantilha preta, que cobrindo-a da cabeça aos pés, lhe occultava inteiramente a rosto e a fórma de seu corpo.

Brites Tinha n'esse tempo dezesete ou dezoito annos: e fóra inculcada para casa d‘esta familia como costureira. Orphã de mãe, a pobre Brites vivia do trabalho de suas mãos. Seu pae andava nas guerras entre Portugal e Castella, e sua irmã, o unico parente que tinha, estava casada, e pouco podia dar-lhe alem do tecto da casa, sob o qual se abrigava. Assim, Brites aproveitava todas as recommendações que tinha para o trabalho, e foi de tal maneira agradavel a sua diligencia áquella familia, que a final Brites achou-se ali estabelecida de casa, cama e mesa. Então póde ella ver á vontade a interessante pessoa que se occultava aos olhos de todos; então foi ella conhecendo pouco a pouco as circunstancias de uma vida tão curta, como cheia de tormentos. Aquella menina, de belleza não vulgar, tinha apenas dezeseis annos de idade, quando a sua familia viera a Alcobaça. Seu pae havia feito todas as campanhas contra Castella, e apesar de ter casado com uma mulher d'aquella nação, o valente portuguez odiava os castelhanos. D‘esta maneira, por ma is angelico que fosse o caracter d'aquella que havia escolhido por esposa, o rancor inexoravel que seu marido tributava a todos os hespanhoes tinha frequentemente arrancado algumas queixas do peito d'aquella mulher. Estas queixas perturbavam a paz do seu interior

domestico, e a fizeram por vezes arrepender-se de ter unido a sua sorte á de um inimigo da sua nação. Mas ella tinha duas filhas, e por ellas sacrificava a paz e a ventura devidas ás suas virtudes, dotes e nascimento.

Assim se haviam passado alguns annos, até que estando seu marido ausente, e habitando D. Iria com suas filhas a Cidade de Evora, no Alemtejo, um acaso infeliz fê-las conhecer um mancebo, que tanto se insinuou no espirito d'aquellas senhoras que parecia um membro da familia, amado por ellas como filho e irmão. Sem pretender fazer monopolio d'aquellas affeições, o mancebo entregou-se inteiramente á doçura que d'ellas lhe provinha; e quando quiz recuar, antevendo o resultado desgraçado de um amor criminoso, era tarde.

Violante, a filha mais velha de D. Iria, amava apaixonadamente Luiz de Sousa. O mancebo era portuguez, e ligado por um voto a uma das ordens religiosas e militares do paiz, Seu pae, pertencendo a uma antiga familia, era pobre. Luiz de Sousa estremeceu com a idéa de ser perjuro, ou no voto que o prendia á religião de seus paes, ou áquelle que o ligava a uma donzella que n'elle depositara a maior confiança, o mais puro affecto! Mas era preciso decidir-se: o pae de Violante era esperado todos os dias, e a rigidez do seu caracter era por todos conhecida. O mancebo calou o que não devia occultar; e, instado por D. Iria, levou Violante á cathedral de Evora, simples mas venerando edificio, fundado em 1186 pelo bispo D. Paio, e ali, a face de Deus, a tomou por esposa.

Algumas horas depois de voltarem da igreja, regressava de suas viagens o velho militar. Não seria facil explicar o seu furor quando, tendo pedido todas as explicações, observando o embaraço de sua filha e o do marido que ella procurara, exigindo lhe narrassem todos os promenores d'aquelle casamento e da vida de seu genro, soube que elle havia abusado da sua casa, esposando uma mulher que legitimamente não podia receber. O seu genio fogoso e arrebatado não lhe permittiu a menor reflexão que porventura pudesse diminuir as culpas que imputava a sua mulher, filhas e genro; e em um excesso de raiva, ousou levantar a mão contra Luiz de Sousa!

O mancebo mudára de côr subitamente; mas nem repellira o pae de sua mulher, nem replicara uma palavra. Escondeu duas grossas lagrimas que lhe assumiram aos olhos, e abraçando Violante, desappareceu como um raio. A sua morada era contigua á de Lopo de Mendonça. Luiz de Sousa entrara em sua casa.

A franqueza, o ardor, a generosidade, esses dotes da juventude, pertenciam todos ao caracter do mancebo. Mas a vergonha não o deixava reflectir n'aquelle momento. Suppunha que o mal que havia commettido, o ultraje que soffrêra eram irremediaveis! O infeliz esquecia a religião de seus paes, e so via a mundo com todos os seus preconceitos; horriveis prejuizos que no meio das nações civilisadas formam uma religião de sangue, servida por loucos adoradores que se lhe immolam eomo victimas!

O arrependimento efficaz é um dom gratuito, concedido ás orações e as lagrimas. Luiz de Sonsa não podia recorrer a uma nem a outra cousa. Cego de raiva, arrancára do cinto o punhal que, segundo o uso dos cavalleiros, trazia sempre comsigo, o atravessára com elle o coração!

Um creado que o seguira, atemorisado pela mudança de sua physionomia, ainda ouviu as ultimas palavras que murmurara: «Meu Deus! perdão!... Violante ! » Estas palavras eram a expressão do seu amor pela creatura angelica que deixava viuva, e um signal do seu remorso por haver quebrantado o seu voto! Não pensava o misera que Violante ficava muito mais infeliz depois da morte desgraçada de seu marido, do que mesmo o seria se tivesse sido obrigada a separar-se d'elle! Luiz de Sousa morria em um momento de desesperação! Entre elle e os que deixava quebrava-se essa cadeia de esperança, que serve de communicação de um mundo a outro! A ponte de flores pela qual se devem reunir os que se amaram n'esta vida não existia para Luiz de Sonsa. Elle mesmo a despedaçara!... As orações de Violante não deviam passar através das muralhas da cidade dolorosa, que a separavam de seu marido!... O desafortunado esquecera tudo! e em seu louco furor pretendera mergulhar as idéas que o perturbavam em um somno estupido; sem lembrar-se que este somno cujo despertar seria terrivel, o levava á morte eterna!!

X

Á vista d'estes cabellos, tremula, e empallidecendo mais e mais, arranca-lh'os das mãos e pergunta-lhe : « De quem são estes cabellos? » -- «De minha mãe. »

LAMARTINE -- Genoveva.

A nova d'esta catastrophe cedo chegou aos ouvidos de Violante. A triste caira logo em delirio. A febre acommettêra-a com violencia, e durante tres mezes lutára a infeliz viuva com a morte. A sua mocidade porem, os desvelos constantes de uma extremosa mãe, a ausencia de seu pae, que outra vez entrara em novas guerras contra Castella venceram a doença, e Violante no fim d'aquelle tempo levantava-se da cama, magra, pallida, com o rosto transtornado mas resignado, e promettendo remir por uma vida de penitencia os erros da paixão de que fôra victima.

Nove mezes, dia por dia, depois da morte de Luiz de Sousa, Violante dava á luz uma crcança do sexo masculino, transumpto fiel do desafortunado cavalleiro. Este filho, que sua mãe não podia nutrir com o seu proprio leite, foi confiado, por D. Iria, a uma mulher das visinhanças de Evora, cuja honradez era conhecida por aquella familia.

Quando, tempos depois, mutilado e cansado dos combates. Lopo de Mendonça regressava a sua casa, achou Violante tão mudada, que não ousou fallar-lhe nos acontecimentos passados. Ignorava que lhe houvesse nascido um neto; e querendo mudar de residencia, para melhor esquecer-se do que ali orcorréra, tomou uma habitação em Alcobaça, perto de umas terras que ali possuia. Foi ali que esta familia conheceu a Brites; foi d'ali que a pobre rapariga, depois de bem experimentada, tinha ido por vezes, acompanhada de um fiel creado, visitar no Alemtejo o pequeno Alvaro, filho de Luiz de Sousa e de Violante de Mendonça. Mas estas visitas deviam acabar cedo. Alvaro tinha mais de um anno de idade, e crescia em forças e em graças, em quanto sua mãe perdia umas outras. Violante expiava com lagrimas de sangue o imprudente proceder de sua mocidade, a falta de confiança que tivera em sua mãe, e a sacrilega alliança que enntrahira com Luiz de Sousa; e, chegando uma manhã do convento de Alcobaca, onde tinha ido depositar suas culpas no seio de uma religião de misericordia, foi subitamente acommettida de uma violenta dôr, que lhe acabou com a vida. Matára-a uma doença d'aquelle coração já tão dilacerado pelos soffrimentos do espirito!!

O primeiro cuidado de D. Iria, depois de ter chorado, como uma mãe sabe chorar, sobre o cadaver de sua filha, foi para o pequeno Alvaro.

Não podia recebe-lo em casa; e temendo o furor de seu marido, mandou ao Alemtejo o creado de quem já fallamos, sob pretexto de arranjos domesticos, encarregando-o de uma delicada missão. Aquelle homem devia atravessar as fronteiras com o pequeno Alvaro, passar a Hespanha, e entregar a creança a uma irmã que D. Iria ali tinha casada, narrando-lhe tudo quanto havia acontecido, e pedindo-lhe um segredo inviolavel sobre o nascimento de Alvaro. Era este o ultimo sacrificio que a triste avó devia offerecer a Deus! E ella resignada, mas afflicta, como mãe que tem de separar-se de um filho querido, destinava-se a esta ausencia, talvez eterna, sem que ao menos podesse abraçar e dar o ultimo adeus ao filho de sua filha, duas vezes filho da infeliz D. Iria!

Foi assim que Alvaro passara ao reino visinho, e que tendo sido visto por Diogo Alvares em easa de sua tia, tinha sido adoptado pelo irmão do condestavel, que o tratou ternamente, mandando-o ensinar como se fóra seu filho. Conhecedor comtudo da sorte da guerra, e querendo afastar Alvaro dos perigos que ella traz comsigo, fizera-o seguir o estudo das letras, e contava deixa-lo herdeiro de seus bens.

As contendas porém do rei de Castella com o Mestre d'Aviz pozeram Diogo Alvares em caminho de Portugal. E como Alvaro não podesse resolver-se a deixar partir o seu bemfeitor sem que o acompanhasse, alcançou de Diogo Alvares que o deixasse seguir romo voluntario. A

morte repentina d'aquelle capitão deixou o mancebo sem protector e sem fortuna, e agora prisioneiro de guerra e moribundo!

Brites, como já dissemos, velava junto de Alvaro, e parecia reconhecer nas suas feições desfiguradas pela doença as feições da creanca que ella amára tanto! Entregue a esta duvida, a parteira tinha encostado os braços sobre a cama de Alvaro, e olhava para elle attentamente, quando o mancebo, n'um accesso de delirio, ergueu a cabeça do travesseiro, levantou as duas mãos, levou-as no peito, e travando na camisa, puxou-a com tal força que, rasgando-a, deixou patente aos olhos de Brites uma pequena medalha como a que ella vira D. Iria entregar ao seu creado, na occasião de mandar conduzir a creança para Hespanha, recommendando que lh'a lançasse ao pescoço, para que nunca a largasse. A medalha continha os cabellos de Luiz de Sousa e de Violante, e as letras iniciaes dos seus nomes estavam ali gravadas.

Então as suspeitas de Brites tornaram-se em uma certeza real. Aquelle rapaz era Alvaro de Sousa; portanto era portuguez. Brites podia assim dedicar-lhe todo o affecto, tanto mais que, conhecendo a historia de toda a sua familia, sabia que o mancebo tinha perdido todos os parentes do lado de sua mãe; e se algum porventura lhe restava por parte de seu pae, tinha saido do reino. D ‘esta maneira, pobre e solitario, a padeira devia prestar-lhe todo o soccorro. Assim pensava ella n‘aquelle instante: alguns momentos depois dizia comsigo a patriotica padeira:

«Mas se elle pegou em armas contra o seu paiz?! e não ha duvida que assim foi; é soldado, está ferido, e ficou prisioneiro! que mais querem?!... Santo Deus! Nunca me verei eu livre de hespanhoes, ou cousa que o valha?!... Mas este rapaz e Alvaro, aquella creança que tantas vezes passeiei nos meus braços... é o filho da boa D. Violante. Santa rapariga, que tão cedo deixou este mundo! e D. Iria... era outra santa, que não pôde sobreviver áquella filha! Depois lá veio o sarampo, que levou a outra pequena; ficou o velho, esse já ninguem o podia aturar, tão rabugento, tão rabugento... Mas coitado! Deus o tenha na sua gloria! Era um homem de mão cheia, aborrecia os castelhanos, e bastantes mandou para o inferno, até que uma noite feia, noite de trovões, estando á sua janella admirando a tempestade e o fuzilar dos raios, veio um que o estendeu no chão!... Lembro-me como se fosse hontem... Eu estava bem perto e comecei a gritar: Santa Barbara! S. Jeronymo! mas nada valeu. Lopo de Mendonça estava morto! Frei Francisco ha de lembrar-se bem d'esse caso; elle que não esquece cousa alguma. A gente de Alcobaça dizia que o santo monge emprehendêra a conversão do velho capitão, que a final já ia á igreja e frequentava o confessionario. Frei Francisco reconhecerá tambem n'este mancebo o pequeno Alvaro que elle mesmo baptisára.»

E assim recordando os passados acontecimentos, a tia Brites, dominada pela fadiga do dia, deitou a cabeça sobre o leito de Alvaro, e adormeceu.

XI

Entregue cedo a mãos estranhas, foi creado longe do tecto paterno.

CHATEAUBRIAND -- René.

O sol ia a nascer. Do alto dos montes via-se para o lado do oriente um clarão immenso, cujo reflexo brilhava sobre a planicie. As nuvens doiradas que se estendiam pelo céu, os grupos das montanhas ao longe esclarecidas, a verdura das arvores, o canto dos passaros, tudo apresentava um espectaculo sublime de harmonia.

Margarida não se havendo deitado na cama, havia aberto a janella do seu quarto, e ali admirava o quadro magnifico que tinha diante dos olhos, quando viu entrar para o hospital contiguo Frei Francisco acompanhado de dois homens. O desejo de Margarida leva-Ia-ia a descer a escada para fallar com o monge. Mas as ordens de sua tia eram explicitas, e ella não costumava desobedecer-lhe. Esperou pois que Frei Francisco saisse da sua visita de caridade para fazer-lhe signal de sahir. O silencio continuava no quarto onde jazia Alvaro: e Margarida contava ter uma boa conversa com o seu confessor.

antes que a tua Brites saisse d'ali: «Minha tia, pensava a donzella, velaria toda a noite, agora dorme e tarde acordará.» O caldo para os doentes estava feito, e Margarida podia sem inconveniente esperar á sua janella que Frei Francisco saisse do hospicio. Assim o fez, e viu com alegria que o monge se encaminhava para a porta da casa. Então, sem fazer o menor motim, desceu a escada, e saudando a Frei Francisco, disse-lhe que em quanto sua tia dormia, desejava faliar-lhe no seu quarto.

O santo monge desejava primeiro ver o joven soldado doente; mas sabendo que repousava, aceitou a proposta de Margarida, e ao entrar no quarto perguntou-lhe:

« Minha filha, o que tendes a narrar-me? »

A sobrinha de Brites contou então tudo que tinha passado com snu tia depois da morte dos sete hespanhoes; disse que a idéa do perigo d'aquelle somado a não deixara mais; fallou de seus escrupulos, e acabou pedindo a Frei Francisco houvesse por caridade de informar-se se o mancebo fóra uma das victimas de sua tia. Frei Francisco conhecia a natureza humana, e tia no mais recoadito do coração de Margarida. O monge sabia que o mancebo que ella amava era Alvaro. Sem querer dar-lhe esperanças, disse-lhe:

«O soldado de quem fallais não morreu, mas está ferido e prisioneiro; talvez possa curar-se; contundo a sua situação e triste, porque o Mestre d‘Aviz não perdoará facilmente áquelles que derramaram tanto sangue portnguez. Mas dizei-me, Margarida, não haveis visto o prisioneiro que está ao cuidado da vossa tia?»

Esta pergunta foi um raio de luz que esclareceu as idéas da donzella. A voz embargou-se-lhe na garganta, e quando Frei Francisco insistia pela resposta, um grito da tia Brites fê-los voltar sua attenção para outra parte.

«Acudam, acudam que morre!» foram as palavras que soltara a padeira, e que levaram o monge e Margarida para o logar onde estava o enfermo. Brites acordara n'aquelle instante, e attentando no mancebo, vira a lividez da morte debuxada sobre seu rosto, ouvira-lhe a respiração quasi extinta, sentira-lhe as mãos com a frieza da neve, e chamára por soccorro. O monge pediu vinagre, e fazendo-o aspirar ao doente, aquecia-lhe ao mesmo tempo os pés, em quanto Brites corrêra a chamar o medico. Margarida, como a estatua da dôr, tinha ficado immovel; seus olhos, fixos no rosto do desfigurado mancebo, tinham uma expressão indizivel:

O medico havia sido encontrado no hospital e veiu promptamente, trazendo alguns remedios, que applicou com proveito. Brites mão parava; ia de um para outo lado, sem saber o que fazia. Finalmente, quando o medico assegurou que o doente não estava em artigos de morte; que aquelle desmaio por que tinha passado era talvez um signal de que a molestia fazia crise; a madeira travou do braço do monge e disse-lhe baixinho:

«Veja vossa paternidade aquelle rosto, olhe para aquelle peito, repare n'aquella medalha e diga-me se aquelle rapaz não é Alvaro de Sousa, o filho de D. Violante de Mendonça!...»

Frei Francisco tinha apenas visto as feições de Alvaro. Depois da noite em que lhe fallára junto ao corpo de Diogo Alvares, o monge tinha estado no hospital uma vez ao cair da tarde, e mal tinha reparado n‘aquella physionomia; mas as palavras de Brites, as que o mancebo lhe dirigira em sua primeira entrevista, dizendo-lhe que era portuguez, e se chamava Alvaro; a medalha que elle havia abençoado sobre o altar antes de ser mandada ao neto de D. Iria, tudo lhe confirmava as suspeitas de Britos. Levantou os olhos ao céu, e murmurou uma breve oração de agradecimento.

Frei Francisco havia jurado sobre o leito de morte da mãe de Violante procurar saber do seu neto, para faze-lo voltar a Portugal quando morresse Lopo de Mendonça, para que podesse entrar de posse do pouco que seu avô possuia. O bom monge havia escripto para Hespanha e feito as maiores diligencias; não sabendo porém o nome da pessoa que se houvera encarregado de Alvaro, mortos os parentes de D. Iria em Castella, os seus esforços haviam ficado baldados. O céu dava-lhe agora a faculdade de pôr em pratica o que tanto desejára.

Comtudo, aquellas quatro pessoas que se dedicavam ao serviço de Alvaro conseguiram com seus cuidados o que talvez se não obtivesse se a doente houvera ficado em qualquer outro logar. A luz que frouxamente deixavam entrar n'aquelle quarto, através de uma grossa cortina que haviam posto na janella, os passos leves com que pisavam o pavimento, os remedios applicados com a maior attenção, as palavras de doçura que murmuravam a seus ouvidos, as horas passadas em profundo silencio, velando tom amor pelo doente em quanto elle repousava, enchiam o seu aposento de uma tal atmosphera de affeição que, consolando-o moralmente e curando-lhe o corpo, Alvaro pôde em poucos dias entrar em convalescença.

Margarida tinha alcançado de sua tia a permissão de acompanha-la nas suas vigilias junto do enfermo. Seus cuidados, sua meiguice e caridade, tinham ganho os affectos do mancebo antes mesmo que elle podesse adivinhar o amor que havia inspirado.

O medico fazia repetidas visitas ao doente, promettendo-lhe prompto restabelecimento.

Brites, a quem Frei Francisco impozera silencio sobre o que ella sabia acerca de Alvaro, animava-o, contando-lhe historias dos castelhanos, e prodigalisava-lhe todas as caricias de que ella era susceptivel. Frei Francisco vinha todos os dias, e passava com elle o tempo que podia roubar aos seus deveres religiosos. Finalmente, um dia em que Alvaro parecia já mais forte e capaz de escutar sem demasiada commoção o que o monge tinha a dizer-lhe, Frei Francisco pediu a Brites que se retirasse com sua sobrinha, e começou a narrar ao mancebo tudo quanto lhe dizia respeito. Fallou-lhe de seus avós, contou-lhe o imprudente proceder de seu pae, e o como tinha procurado uma morte desgraçada; disse-lhe como havia sido levado para Castella, fallou-lhe da morte de todos os seus parentes, e acrescentou finalmente: «Fui eu que vos baptisei, meu filho; foi pelos meus conselhos que D. Iria vos mandou para Hespanha, para não augmentardes os soffrimentos de vossa avó, que não podia ver-vos, e que temia revelar o vosso nascimento a seu marido, cujo corarão endurecido nas guerras não conhecia aquella virtude que um Deus de paz nos recommendou como o mais propria para fazer-nos alcançar a vida eterna. A caridade, que é paciente, doce; que não é ambiciosa, que se não irrita, que não pensa mal; que se não regosija com a injustiça, que se compraz com a verdade; que tolera tudo, acredita, espera tudo e soffre tudo , não morava n'aquella alma. Lopo de Mendonça, rigido comsigo mesmo, não perdoava as faltas e as fraquezas dos outros. Esta severidade estendia-se com mais força sobre sua mulher, anjo de bondade, que estava presa aos castelhanos pelos laços do sangue, e que se não muia aos votos e ás exclamações incessantes que seu marido vociferava contra os d'aquella nação. Promeiti a vossa avó, na hora solemne do seu passamento, de servir-vos de pae, e fazer-vos entrar nos direitos de vosso matrimonio. Trabalhei debalde por muitos annos. Hoje o céu recompensa esses esforços, fazendo-vos conhecer do pobre monge. Vou desde já occupar-me em mostrar a legitimidade do vosso nascimento; quando o tiver conseguido, quando alcançar de D. João I a vossa liberrdade, poderei exclamar com o santo velho Simcão: « Agora deixae, Senhor, o vosso servo morrer em paz!»

Alvaro escutara com a maior attenção as palavras de Frei Francisco. Por vezes tinha o mancebo, durante aquella conversarão, pegado nas mãos do monge, e lh'as apertára com toda a demonstração de agradecida ternura. Por vezes tinham-lhe as lagrimas corrido pelas faces ao ouvir a morte de entes tão caros. A final, quando o bom monge acabou de fallar, Alvaro lançou-Ihe os braços em roda do pescoço, e ali se demorou alguns instantes.

Depois de algum tempo passado em doce e reciproca expansão, Frei Francisco despediu-se de Alvaro de Sousa, entregando-o, como de costume, aos cuidados da tia Brites e de Margarida.

XII

A amargura do corarão revela a forçados laços, que unem as pessoas que vão separar-se. Mede-se a felicidade passada pela desgraça que vae começar: porque a dor é o thermometro mais seguro da amisade.

ALEXANDRE -- Deus dispõe.

O velho monge saindo de casa da padeira, pensou que antes de tudo devia tratar na liberdade do prisioneiro, e, para consegui-la, lembrou-se logo de D. Nuno Alvares Pereira; mas dirigindo-se a procura-lo, sonhe que o condestavel tinha partido na vespera, em procura de novos touros, para encontrar os castelhanos. Então pensou em João das Begras, emulo de D. Nuno; este celebre jurisconsulto havia sido feito chanceller do reino por D. João I, que, pesando na balança quanto devia áquelles dois homens, os escutava sempre com igual respeito, posto que bem persuadido que sem o auxilio do braço do condestavel toda a sciencia do doutor de Bolonha mal o teria ajudado a livrar a patria do dominio estrangeiro.

Ao chanceller pois se dirigiu Frei Francisco. Narrou-lhe succintamente a vida dos paes de Alvaro de Sousa, disse-lhe qual era a triste posição do mancebo, e pediu-lhe intercedesse por elle perante el-rei.

João das Regras desejava ter occasiões de mostrar o seu valimento: aproveitou com gosto aqiella que, pela ausencia do condestavel, se lhe apresentava, prometteu fallar com D. João e alcançar d'elle o resgate do prisioneiro.

Mas a sorte parecia teimosa contra Alvaro de Sousa. D. João I tinha deixado Alcobaça. Um proprio tinha chegado n'aquella madrugada a participar-lhe que a sua bandeira estava arvorada no castello de Santarem. As auctoridades castelhanas haviam fugido, os prisioneiros portuguezes estavam resgatados. O monarcha corrêra apressadamente para aquella villa. Os capitães que haviam ficado em Aljubarrota tiveram ordens para recolher todos os prisioneiros a um quartel para isso destinado; e quando Frei Francisco acabava de fallar com João das Regras, já Alvaro de Sousa tinha sido intimado para comparecer. O santo monge voltou a casa de Brites de Almeida, a quem achou derramando lagrimas. Margarida, a pobre Margarida, essa não chorava: parecia-lhe impossivel uma tal barbaridade. «Levarem-no d'aqui doente, não creio!» murmurava comsigo. Frei Francisco ia de uma a outra casa; fallava com os capitães, mas nada conseguia. As ordens de D. João eram positivas. Os presos deviam sair de Aljubarrota. Os capitães deviam encontrar-se com o condestavel, que seguia o caminho da Extremadura.

N'este estado de cousas a separação era forçosa. Alvaro estava melhor; não podia valer-se do pretexto da doença. O mancebo tinha-se promptamente restabelecido. Chegou a hora da partida. Foi então que o triste prisioneiro fez a Margarida a confissão dos sentimentos que ella havia feito nascer em seu coração. Foi então que a misera donzella, em presença de sua tia e de Frei Francisco, lhe jurára uma eterna affeição. Mas as palavras não podiam exprimir quanto sentiam aquelles dois corações, tão puros, tão sensiveis; e quando precisassem de palavras para se comprehenderem, não o conseguiriam : nem um nem outro podia fallar! Frei Francisco então, como o mais forte de espirito, e a quem uma mais longa vida tinha feito experimentar maiores tormentos, tomando uma das mãos de AIvaro de Sousa, disse ao mancebo:

«Meu filho, é preciso mostrar que es homem, curvar-te aos trabalhos que Deus quizer enviar-te, e accita-los com resignação. O Senhor nunca abandona os que são fieis á sua santa lei. Confia n‘elle, meu filho, e fica certo que o velho monge não te esquece. Eu vou seguir as pisadas d'el-rei; vou implorar o teu resgate. D. João I não terá esquecido com a gloria os dictames da humanidade, que o Mestre d‘Aviz sabia praticar. Enche-te de coragem, da coragem propria de um varão, e o Senhor terá compaixão de todos nós. E tu, Margarida, a tua missão é outra. Em quanto Alvaro vae como homem lutar com os perigos, dos quaes, com a graça de Deus, sairá incolume, tu, desempenhando os deveres a teu cargo, elevarás o teu coração ao céu, pedindo o soccorro que só d‘ali nos pôde vir. Eu, como soldado de Christo, seguirei os afflictos até poder resgatados. Se o não conseguir, se os meus esforços não forem coroados, ainda os acompanharei até que possa ter-lhes feito alcançar uma intera resignação á vontade do céu.» Alvaro de Sousa, penetrado das palavras do monge, pegára na mão de Margarida, e tendo-lh'a beijado com toda a ternura murmurou: « Ate á volta, Margarida. Juro que hei de esposar-te se Deus me conceder a liberdade!» Depois abraçou a tia Brites, e saiu d'aquella casa onde tinha encontrado tanto desvelo, tanto amor!

Chegando á rua achou a escolla que o esperava, e acompanhado dos prisioneiros do hospital, que haviam escapado á morte, foram todos reunir-se ao destacamento que saía de Aljubarrota.

Frei Francisco seguiu-os ate certa distancia, e tendo-se assegurado que partiam n'aquella mesma noite, tomou o caminho do seu convento.

XIII

E de by se partio logo com sua gente .. De by caminho de Castella... E assi per prazer de Deos foy vencida esta batalha, a qual durou dois dias de sol a sol em pelejar.

Chronica de Condestabre.

Não relataremos as differentes jornadas que fizeram os soldados de D. João I, antes de se encontrarem com o condestavel. Não fallaremos das injurias e vexames a que os prisioneiros castelhanos tiveram de resignar-se em seu caminho. O povo portuguez patenteava por toda a parte o seu odio para com os d'aquella nação; e os soldados prisioneiros não eram os que menos tinham a soffrer de um tal rancor.

Assim o pobre Alvaro, atravessando os valles e subindo os montes, passava cidades e villas exposto ao furor da populaça.

Frei Francisco tinha saido de Alcobaça e havia-se dirigido a Santarem. Mas ainda ali tinha dever mallogrados os seus desejos! D. João, seguro da pacificação d'aquella villa, antiga côrte dos reis de Portugal, havia partido a pé, em romaria a Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, a quem tinha feito voto se vencesse em Aljubarrota.

Mas emquanto o condestavel derrotava complelamente na Extremadura os grau-mestres de Calatrava e S.Thiago de Hespanha, um incidente deploravel esteve a ponto de romper a união fraternal que unia os dois grandes homens d'aquella epocha.

Logo depois da batalha d'Aljubarrota D. João I tinha concedido a D. Nuno muitas terras. O condestavel, cujo caracter era revestido de todo o genero de heroismo, querendo recompensar os capitães que utlimamente o auxiliaram a desbaratar o inimigo, repartiu com elles a maior parte d‘aquellas terras, e em sua munificencia doou-as mais como soberano do que como vassallo. O rei resentia-se, queixou-se, e a dissensão começou.

O condestavel taxou de ingratidão aquelle procedimento do rei, e resolvia abandonar o paiz, quando D. João, comprehendendo quanto lhe seria fatal a perda de um tal homem, fez novas concessões, conservando assim o seu fiel amigo. D. Nuno arrependeu-se sinceramente d'aquelle movimento de orgulho; e talvez que esta momentanea interrupção na amisade que unia aquelles dois homens fosse a causa principal de um acontecimento que mais tarde teremos de relatar.

O condestavel contudo, correndo apos os inimigos, tinha entrado em Hespanha, quando os capitães que haviam saido de Aljubarrota para encontra-la tiveram novas ordens para que o seguissem ao reino vizinho. Um d'estes, homem de grande bondade de coracão, tinha-se affeiçoado a Alvaro de Sousa, em quem descobrira altas qualidades. Incerto sobre a sorte do mancebo, duvidando que se alcançasse o seu resgate, qnuendo lava-lo da nodoa com que, para o futuro, podesse ser taxado, se conseguisse a sua liberdade, insinuou-lhe um meio que, deixando-o provavelmente livre, o poria a salvo, illibando o seu caracter.

As insinuações cedo se tornaram em conselhos, quasi que em ordens. Alvaro de Sousa devia dar a sua palavra de honnra de não desertar; depois combateria contra os castelhanos, procurando por seu valor fazer esquecer aos portuguezes que tinha pegado em armas contra a sua patria. O mancebo acceitou a proposta com alvoroço, e o seu amigo, muito satisfeito, apresentou-o aos outros capitães, assegurando-lhes que a sua propria vida responderia pela deserção, se Alvaro, esquecido de todos os principios de honra, procurasse fugir.

Em tenra idade tinha Alvaro ido procurar na Hespanha um asylo que não achara em seu paiz. Dezoito annos mais tarde elle passava a fronteira para combater contra a patria!... Agora o mancebo ia de novo atravessar essa fronteira; mas d'esta vez jurara de não tornar a transpô-la senão livre do ferrete de prejurio de que era accusado!

O destacamento portuguez, depois de dois dias de marcha no territorio Hespanhol, encontrou a hoste do condestavel. N'esse mesmo dia começou o renhido combate de Valverde, que durou dois dias, e no qual se praticaram prodigios de valor. N'esse mesmo combate Alvaro de Sousa, que pelejára,com extraordinaria coragem, havia recebido muitas feridas, e tinha ficado por morto no campo da batalha.

No dia seguinte porem, havendo os portuguezes continuado as suas correrias para perseguirem o inimigo que lhes fugia, alguns capitães castelhanos que tinham ficado no logar do combate, indo examinar os cadaveres, acharam muitos soldados ainda com vida: Alvaro de Sousa era um d'elles. Reconhecido como transfuga, o seu crime era tanto maior que, tendo saido de Castella para combater os portuguezes, apparecia empregando as armas de que o haviam revestido contra os proprios que lh'as tinham confiado!

D, João de Castella era cegamente obedecido em suas ordens sanguinarias contra os infractores das leis da guerra.

Alvaro de Sousa foi lançado em uma masmorra, emquanto o capitão que o induzira a pegar em armas contra Castella chorava a morte do mancebo, que elle suppunha ter acabado no ultimo encontro!

Deixemos porem o condestavel proseguir em seus gloriosos feitos, e passemos a recentrar-mos com o veneravel monge, que não achando el-rei em Santarem, saira immediatamente a procura-lo; esquecendo-se dos perigos e fadigas de uma longa viagem para alcançar o resgate do neto de D. Iria.

XIV Ó tu. que só tiveste piedade, Rei benigno, da gente lusitana. Aquella alta e divina eternidade, Que o céu revolve e rege a gente humana, Poisque de ti taes obras recebemos, Te pague o que nós outros não podemos.

CAMÕES - Lusíadas.

O espirito cavalleiroso d'aquella epocha, as crenças populares, suas superstições mesmo, a mythologia de que era revestida a idade media, davam no tempo de D. João I um caracter particular ao povo portuguez. No meio dos tumultos de uma guerra encarniçada e dos furores da populaça, a religião de Christo era sempre respeitada. O povo podia esquecer as vezes a generosidade, satisfazendo vinganças mesquinhas; mas as palavras dos ministros do santuario eram sempre escutadas com veneração, e suas pessoas consideradas como inviolaveis.

Frei Francisco, caminhando sósinho, animado ao seu bordão, ora passando pelos povoados, ora atravessando desertas charnecas, ora caminhos trilhados por uma multidão de povo que corria para encontrar D. João I, nada tinha que recciar. Já pedindo gasalhado onde permutasse, já informando-se da estrada que devia seguir, o bom monge foi recebido em toda a parte com hospitalidade e veneração, até que chegou a Chaves, na provincia de Traz os Montes. quasi ao mesmo tempo que o rei ali entrava.

Este rei magnanimo, antes de sair de Santarem. havia dado a liberdade a grande numero de prisioneiros hespanhoes que jaziam nas prisões. Mas a sua generosa bondade não parou ali. D. João achou n'aquella praça as viuvas e outras parentas dos fidalgos portuguezes mortos no campo de Aljubarrota ao serviço de Castella. O primeiro cuidado do rei caridoso foi para estas infelizes, a quem dirigiu palavras de compaixão. E sabendo que desejavam largar o reino a partir para Castella, mandou-as honrosamente acompanhar até á frota castelhana, fundeada no Tejo. Foi com estas acções cavalleirosas e christãs que o Mestre d‘Aviz soube ganhar o amor dos portuguezes e o nome de rei de boa memoria. Frei Francisco adquiriu novo animo ao relatarem-lhe o que se passára em Santarem; e quando, em conferencia com el-rei, lhe expoz a situação de Alvaro de Sousa. D. João respondeu-lhe com brandura:

«Vossa paternidade não ia de nunca ter de queixar-se do predilecto de Alvaro Paes. Os prisioneiros hespanhies foram postos em liberdade, e o protegido de vossa paternidade não ha de ficar em ferros. Eu vou mandar ordens explicitas a D. Nuno; e antes que a sua hoste se reuna a que tenho em Portugal, Alvaro de Sousa estará livre.»

«Que o Senhor dos exercitos derrame sobre vossa real senhoria todas as bençãos do céu. Aquelle cujo poder se estende, tanto sobre o throno dos reis como sobre a palhoça do pobre, protegerá sempre vossa real senhorio se, como todos temos direito de esperar, o eleito da nação continuar a defende-la durante a guerra, e a felicita-la depois, dando-lhe a paz e a justiça de que tanto ha mister. E assim, com feitos iguaes, aos que vossa real senhoria acaba de praticar aqui e em Santarem, é assim que ha de conservar a affeição d'esta boa gente portngueza. As victorias podem deslumbrar, podem seduzir o povo; mas e somente com a justiça e a magnanimidade que um rei obtem o seu amor.» E inclinando-se profundamente, disponha-se a partir, quando o rei o interrompeu, dizendo-lhe:

«Certo como estou de que ás constantes preces de vossa paternidade e ás das outras almas piedosas d'este reino devo tudo quanto tenho conseguido em prol d‘esta nação, permitia-me vossa paternidade que, confiado na sua protecção, eu peça a continuação de suas orações em meu favor para que o Senhor se digne esclarecer-me sobre o modo por que devo reger este povo que amo sinceramente e por cuja liberdade darei a propria vida.»

«Nas humildes orações do pobre monge de Alcobaça não será nunca esquecido o augusto nome do defensor d'este reino! »

Dizendo estas palavras. Frei Francisco approximou-se de D. João, que lhe beijou a manga do habito á despedida.

XV

Um sonho terrivel apoderou-se lhe dos sentidos; um horrivel grito fugiu-lhe do peito e este grito que ella verdadeiramente

Voltemos agora a Aljubarrota para narrarmos quanto ali se passára desde que Alvaro de Sousa saíra de casa da tia Brites. A padeira chorára um dia inteiro a ausencia do filho de Violante, mas a boa mulher, cuja constancia de sentimentos se limitava ao odio que consagrava nos castelhanos, depois de chorar umas doze horas pelo pobre prisioneiro, deitou-se a dormir, no dia seguinte disse a Margarida: «Minha filha, não chores, não me aflijas: o tempo tudo gasta. Alvaro de Sousa é bom rapaz, mas não deves matar-te por sua causa. Homens são homens! E demais quem sabe se elle voltará; e se, voltando, quererá casar contigo? Teu pae era um soldado

valente como os mais valentes; mas a familia de Alvaro era nobre de ambos os lados, e aquella gente, por melhor que seja, não perdoa a differença do nascimento. EIle por si, o bom Alvaro, não pensará n'isso; mas sempre ha agulhas ferrugentas... Mas tu choras?... talvez tomes a mal o que eu te digo! Mas olha, filha é para teu bem. Eu quero muito a Alvaro, a quem quasi que vi nascer: mas a ti, Margarida, a filha de minha pobre irmã, quero-te como ás meninas dos meus olhos! Devo aconselhar-te como se fica tua mãe. Vamos trabalhar, rapariga; a ociosidade alimenta os maus pensamentos. Não digo que te não lembres d'elle, coitado! Mas não te entregues toda a essa idéa. Frei Francisco lá foi. O que elle não fizer, ninguem fará! Veremos o que se arranja. No entretanto, vamos para o forno.» E travando do braço de Margarida, saiu com ella. A donzella seguiu machinalmente sua tia: as palavras de Brites de Almeida tinham-lhe feito grande mal. Margarida julgava-se como a desposada de Alvaro de Sousa, desde que este á despedida lhe jurára eterno amor. Esta idéa, mitigando a sua saudade, dava-lhe força para supportar a ausencia, emquanto com ferventes orações pedia a Deus o resgate do mancebo. Crente e sensivel esperava que o Senhor escutasse as suas preces, e confiava no soccorro divino. Mas sua tia havia em um momento desvanecido as suas esperanças. Margarida começou a duvidar da protecção do céu!... A donzella entrou com sua tia na cozinha. Seus olhos estavam enxutos mas a pallidez de suas faces dizia quanto soffria. Comtudo trabalhou com Brites ate á tarde. De volta a casa disse a sua tia que não queria ceiar, que desejava deitar-se, e pediu-lhe a deixasse dormir no seu antigo quarto. A infeliz donzella precisava de estar só. Brites annniu, e Margarida, tomando-lhe a benção, recolheu-se ao seu aposento. Ali abriu uma janella; a febre devorava-a. Depois accendeu uma pequena alampada diante de uma imagem da Virgem; quiz rezar, não pôde. A orarão, esse fio invisivel que une a creatura ao Creador, recusava vir em seu soccorro. Prostrada defronte d'aquella imagem, Margarida não pronunciava uma palavra, nem mentalmente lhe dirigia uma supplira. Assim esteve por muito tempo sem ter uma idea. A final, levantou-se, apagou a alampada, arrojou-se sobre o leito e adormeceu. Mas o que a natureza lhe negara emquanto acordada, runcedeu-lh‘o emquanto dormia. Os sonhos, com toda a magia e mysterios que por vezes os acompanham, vieram visita-la.

N‘esta visão que o céu lhe enviou. Margarida viu, ouviu e fallou a Alvaro de Sousa. O mancebo estava moribundo sobre o campo da batalha; suas feridas vertiam uma quantidade de sangue, que não era possivel estancar: o mancebo chamara um padre, e fizera Margarida prometter-lhe diante do sacerdote que se retiraria do mundo logo que elle tivesse espirado. Depois pedira-lhe que recebesse ali os seus juramentos, e tendo sido abençoado pelo ministro da Igreja, entregára a alma ao Creador! Margarida vira aquella alma nobre e pura subir á mansão de paz, e ouvira entre os sons da divina harmonia a voz de seu esposo, que louvando e bendizendo o Senhor, lhe pedia se com padecesse da esposa desditosa que deixava sobre a terra! Então acordou, dando um profundo gemido! Era dia. Margarida olhou para todos os lados, nada mais via do que tinha deixado na vespera; applicou o ouvido, tudo estava mudo. Então julgou que tivera ouvido uma inspiração do céu; que um sonho era prognostico do que devia acontecer-lhe; e, sem mostrar pelas lagrimas as sensações que a dominavam, tomou uma subita resolução. Mal porém acabava de forma-la, a tia Brites entrou no seu quarto para dizer-lhe que era obrigada a partir para Leiria, onde teria que demorar-se alguns dias; que houvesse ella de fallar com os freguezes, participando-lhes que a padeiro tinha saido para comprar algum trigo que lhe faltava, mas que a sua ausencia não seria longa. Brites, que já tinha disposto tudo para a partida, abraçou a sobrinha, e, montando sobre uma velha mula que a miudo lhe emprestava um seu visinho, poz-se a caminho de Leiria.

XVI Ó Patria! ó meu Portugal! Minhas lagrimas saudosas Embebe no teu rosal.

J. A. DE SANT'ANNA - A minha viage.

Margarida saiu logo depois da partida de sua tia para executar as ordens que esta lhe deixára. Acabada esta commissão, voltou a casa; e pegando em uma grossa e negra penna de que Brites se servia para fazer as suas contas, escreveu sobre uma folha de papel pardacento estas palavras: «O dever chama-me. A alma de Alvaro de Sousa, suspensa apenas por um debil fio, espera por mim para desprender-se do corpo e subir ao céu! Minha tia não póde estranhar que eu vá reunir-me áquelle mancebo como sua desposada. Portugueza e christã, nada farei que seja indigno d'estes dois nomes. A minha boa tia não tem que receiar cousa alguma. Sinto em mim forras extraordinarias. O céu ha-de guiar os meus passos! adeus, minha tia! Peco o seu perdão, e as suas orações em favor de Margarida.»

Estendeu depois este papel sobre a mesa da pequena casa da entrada; fechou as janellas e a porta; foi a casa de uma visinha, disse-lhe que ia até Alcobaça, e que ali ficaria uns dias; pediu-lhe guardasse a chave da casa para entrega-la á tia Brites, no caso d'esta chegar primeiro, e animada por uma vontade sobrenatural, saiu de Aljubarrota.

Margarida conhecia apenas a estrada de Leiria; para ali porém não podia dirigir-se. Não sabendo a direcção que haviam seguido os presos, pensou em Santarem. Então informou-se do caminho que a devia conduzir áquella praça, onde chegou depois de muita fadiga. Ali teve de demorar-se um dia em casa do celebre Alfageme. cuja mulher encontrara na estrada. Margarida não lhe confiára o seu projecto, mas contentára-se com dizer-lhe que ia procurar um parente seu, gravemente ferido, que pertencia ao exercito do condestavel.

Margarida, tendo apenas repousado umas doze horas, agradeceu a hospitalidade daquella boa gente, e seguiu a sua derrota. As informações que tinha obtido sobre a marcha dos capitães de Aljubarrota levaram-na a tomar a fronteira de Hespanha. Pouco costumada a taes fadigas, solitaria no meio da multidão, pensava em Alvaro e esforçava-se para vencer a distancia que a separava d'aquelle a quem jurara eterna affeição. A pobre donzella, caminhando de dia e pedindo gasalhado durante a noite, chegou a Evora em poucos dias. Ali achou alguns soldados avulsos, que regressavam de Castella; ali sonhe que os capitães de Aljubarrota se haviam reunido a hoste do condestavel e combatiam no reino visinho. As difficuIdades augmentavam no proporção que Margarida se approximava de Alvaro de Sousa. Aquella rapariga, tão innocente, tão timida, que não dava um passo sem consultar Frei Francisco, que não tinha uma idéa sem que a communicasse ao santo monge, parecia agora, quando só e desamparada, animada de uma força varonil que, desprezando o conselho, sahia effectuar qualquer resolução. Antes porém de pôr em pratica os seus projectos, quiz visitar a cathedral d'aquella cidade, onde D. Iria, levando nos braços o pequeno Alvaro, o fizera entrar na comunhão da Igreja. Frei Francisco, que n'aquelle tempo se achava em Evora, baptisára aquella creança como amigo antigo da familia; a qual mais tarde recommendára tambem Brites de Almeida.

Margarida entrou no templo ao cair da noite, e ajoelhou diante do altar-mór. A religião de Christo, ensinando-nos que os soffrimentos nos são levados em conta, se os offerecermos resignadamente como expiação de nossos erros, ou d''aquelles que nos são caros, é a maior das consolações para o desgraçado! Margarida, pela primeira vez depois das tristes palavras que sua tia lhe dirigira no dia immediato á partida de Alvaro, pôde elevar a sua alma a Deus e murmurar uma oração! As suas idéas como um raio de luz, subiam ao céu para se reflectirem depois sobre Alvaro de Sousa. A triste Margarida já não se considerava só! Fallava com Deus, fallava-lhe do seu desposado. De joelhos, com as mãos erguidas, ella abriu a sua alma ás influencias do céu, e experimentou a paz affectuosa e as sensações sublimes que, soltando os corações puros da região nebulosa que habitámos, os devam ate uma esphera brilhante, presagio dos gosos infinitos, que a Providencia envia áquelles que ama, para reanimar o seu valor.

A igreja devia fechar-se. Margarida levantou-se, approvimou-se da pia baptismal, pensou de novo em Alvaro, tomou agua benta e saíu.

No dia seguinte póz-se em jornada e cedo alcançou a fronteira. Então dizendo adeus á terra natal, resolvida a não tornar a piza-la se Alvaro de Sousa a não acompanhasse, alugou uma pequena barca e atravessando o Guadiana achou-se em terras de Hespanha.

XVII

Nunca a sua mão benefica deixou de estender-se para o logar em que a afflicção se assentava... Sacerdote do Christo percebêra que o christianismo se resume em duas palavras, fraternidade e igualdade, ou antes só na primeira.

A. HERCULANO - Eurico

Frei Francisco tinha saído de Chaves, e destinara-se a entrar no reino risinho, se não podesse colher alguma policia ácerca de Alvaro de Sousa. Escreveu comtudo a todos os capitães que havia conhecido em Aljubarrota, e communnicando-lhes o que passára com D. Joao I, lhes pedia que o informassem da sorte do mancebo, podendo enviar-lhe quarquer resposta para Evora, aonde se dirigia.

No entretanto o santo monge tomara de novo o seu bordão e encaminhára-se para o sul, donde com maior facilidade podia passar para Hespanha.

As chuvas porém que caiam abundantemente, a neve que obstruindo os caminhos, tornava o transito mui difficil, a falta de alimento, a grande porção do territorio portuguez que tinha de atravessar, postoque não podessem descorçoar a coragem toda evangelica do bom monge, levaram-no comtudo a Aljubarrota onde, informando-se do estado de Margarida, e dando-lhe as novas consoladoras do resgate de Alvaro, podia descansar dois dias, e ganhar mais vigor para continuar o seu caminho.

Mas um novo golpe devia ainda ferir o corarão do sacerdote.

Brites, na sua volta a Leiria, tinha achado a carta de sua sobrinha. A corajosa padeira não tinha nunca imaginado que Margarida podesse abandona-la. Ao ler a carta que lhe escrevêra, caira em tal excedo de furor, que perdêra a rasão por alguns dias. Quando Frei Francisco entrou em casa de Brites, achou-a assentada em um canto do quarto de sua sobrinha; as suas feições sempre varonis tinham tomado um aspecto feroz. Apenas viu o monge, levantou-se e exclamou:

«Ahi estão as lições de brandura, de tolerancia e de perdão que vossa paternidade tem dado aquella rapariga! Nunca pensei em tal cousa! Quem m'o diria! Uma rapariga que criei na minha casa, a quem amava como se fôra sua mãe, ir por ahi fóra, para encontrar um homem... Um homem com quem quer casar! E antes de deparar com elle ha de atravessar montes e valles, ha de encontrar hespanhoes! esses perros... que a matarão... Não sei como conter a minha raiva... parece-me que enlouqueço! Leia vossa paternidade aquella carta que ali está sobre a mesa!...»

«Não é assim», respondeu Frei Francisco, depois de ler a carta de Margarida, «não é assim, tia Brites, que podereis remediar tamanho mal! O Senhor, que protege a innocencia, defenderá Margarida de qualquer perigo. Vossa sobrinha não quer abandonar-vos: alguma noticia lhe chegaria aos ouvidos que exaltasse o seu affecto para com Alvaro de Sousa. Quem sabe mesmo se recebeu d'elle alguma carta? Socegae pois, tia Brites. Entrei aqui para dizer-vos o que passara com el-rei: D. João prometteu-me a liberdade do prisioreiro portuguez, assim como havia concedido o resgate de muitos outros prisioneiros hespanhoes. De Chaves escrevi para Castella aos capitães do nosso exercito, e a esta hora, com a vontade do Senhor, o desposado de Margarida estará livre. Os meus cuidados portanto são n'este momento por ella e para ella! Adeus, tia Brites. Confiae no Senhor de misericordia, e não desafieis a sua ira com a vossa desesperação!

Taes foram as palavras do monge; mas o seu corarão estava longe d'aquella tranquillidade que affectava. Frei Francisco quiz informar-se do caminho que tomára Margarida; ninguem soube dizer-lh'o. Comtudo, uma especie de instincto que dirigia todas as suas acções o encaminhou a Santarem e o levou a casa do Alfageme, onde teve a certeza de que Margarida seguira para o Alemtejo, para d'ali passar-se a Castella. Sentiu então redobrar o seu ardor e a affeição para com aquella a quem havia instruido nos primeiros rudimentos da moral evangelica. Partindo de Santarem poucos minutos depois d'ali ter chegado, poz-se em marcha, fazendo pelo caminho todas as indagações que podiam esclarecido.

Até Evora ninguem soube dizer-lhe o que havia sido feito de Margarida. Ali porém alcançou alguns esclarecimentos que o fizeram passar a fronteira. Perto de Badajoz foi encontrado por varios soldados de Aljubarrota que, feridos, regressavam a Portugal. Estes soldados reconheceram Frei Francisco e lhe narraram as ultimas victorias dos portuguezes n'aquelle reino, os perigos por que haviam passado e as perdas que experimentavam nas pessoas de muitos bravos companheiros. Então referiram a Frei Francisco os nomes dos que mais se tinham distinguido no campo da honra, entre estes, pronunciaram o de Alvaro de Sousa!

O monge não queria acreditar o que ouvia; mas os soldados, para que elle se convencesse do que lhe referiam, pediram-lhe que os acompanhasse a casa de uma pobre mulher dos arrabaldes da cidade, onde Frei Francisco devia encontrar quem o podesse pôr ao tacto de quanto havia acontecido.

Inquieto e pezaroso o bom monge seguiu os soldados, sem dizer uma palavra.

XVIII .... Deixar um triste mundu Onde tudo perdeu. ao céu voltára. Flor da existencia desfalhou; Ramos que amarellecem vão caindo; Esse viver que se alimenta em lagrimas?

ALMEIDA GARRET - D. Branca.

Nos suburbios de Badajoz, em uma pequena casa cuja mudez e escuridão indicavam a pobreza do seu proprietario, apresentaremos aos nossos leitores uma rapariga vestida de preto, estendida sobre uma cama de palha. A seu lado, de joelhos aos pés da cama, estava uma mulher velha, cuja physionomia de hbondade e de compaixão dizia mais do que podem exprimir todas as palavras. Um pouco mais longe, assentado junto a uma mesa quebrada, via-se um homem, cujo prato fazia conhecer que era soldado. Este homem estava pensativo e triste; a mulher que jazia sobre a cama tapava o rosto com as duas mãos, emquanto um monge, de joelhos a seu lado, lhe murmurava estas palavras:

«Minha filha, não desesperes. O Senhor quer experimentar a tua fé, mas a sua misericordia é infinita. O teu desamparo, a tua viuvez, os teus soffrimentos servirão de expiação pelas tuas faltas, pelas de Alvaro de Sousa, a quem pertencias por um juramento sagrado. Deus quiz chama-lo a si! cumpre, minha filha, que te curves á sua vontade e que lhe offereças toda uma vida de resignação! Margarida, é preciso que regresses á patria. O corpo de Alvaro de Sousa não foi encontrado; mas o honrado capitão que ali vês, que protegia e amava o mancebo, foi testemunha ocular da sua morte! Combatiam ao lado um do outro, quando Alvaro no ardor da peleja caiu morto! N'este mundo, minha filha, não podes pois encontra-lo, não podes orar sobre a sua sepultura, que não conheces! O dever chama-te a Aljubarrota, Margarida! Ali acharás uma pobre mulher, que por ti tem feito mais do que se fóra tua mãe. Sim, Margarida: uma mãe, desde o instante em que concebe o seu filho, não vive senão para elle. Os seus cuidados têem por objecto aquelle que vae dar á luz. As dores, os tormentos que passa n'essa hora, dá-os por pagos, quando abraça aquella porção de si mesma; as vigilias a principio, mais tarde as inquietações, os sustos, o amor, a abnegação, e os sacrificios são sentimentos proprios da maternidade. Nada ha ahi de extraordinario; é o que deve ser: o amor que não é assim, não é amor de mãe, o unico amor que não é egoista! Mas Brites não é tua mãe; Margarida, a pobre padeira de Aljubarrota concentrou em si todos esses sentimentos de abnegação e de amor. Brites de Almeida vive por ti e para ti: ama-te como se foras sua filha, venera-te como se fosses sua mãe. É chegada a hora de pagar lhe todo esse affecto, sacrificando o desejo que tens de ficar em Castella á tranquillidade de tua tia, que não pôde sair de Aljubarrota, e que não pôde viver sem ti!...»

Margarida ouvira o longo discurso do monge sem interrompe-lo. Alguns instantes depois, a triste donzella levantou a cabeça, e meio assentada sobre o leito, respondeu com um tom de voz magoado, mas firme:

«Vossa paternidade não póde comprehender o que eu tenho soffrido nestes dois dias! Superior ao resto dos homens pela sua virtude e posição, está alheio ás commoções por que eu tenho passado. Deixei Aljubarrota, atravessei uma grande parte de Portugal, como uma machina, movida por impulso estranho. Essa força que me conduziu até perto de Badajoz achou ali um obstaculo que a fez reagir. N'aquella cidade deixei de ser automato! Alvaro de Sousa não existia! Eu já não tinha desejos a formar, nem, porventura, deveres a cumprir... Que tinha pois a fazer? renunciara um mundo que se me apresentava como um deserto... Jurei pois, e foi voto solemne que não quebrantarei...» e a donzella ao dizer estas palavras havia-se posto em pé, e parecia revestida de uma força sobrenatural; «jurei de não sobreviver no mundo a Alvaro de Sousa! Esta morte que vou procurar é a clausura. Todos os esforços humanos serão inuteis para afastar-me d'este designio. Entrarei em um convento de Hespanha. Esta boa mulher que ali vedes alcançou das religiosas de um mosteiro de Badajoz a minha entrada para a casa do Senhor. Devo ficar n‘este paiz. Esta terra, que recebeu em seu seio o corpo de Alvaro de Sousa, receberá um dia o da sua infeliz desposada!»

Margarida, que tinha feito um esforço para fallar, parou subitamente, assenton-se sobre a cama e ali ficou algum tempo immovel. Ha soffrimentos e dores para os quaes tudo quanto se possa humanamente dizer e de pouca ou de nenhuma consolação! Estas dores silenciosas, que não soltam um gemido, que não derramam uma lagrima, estão n'este caso.

Frei Francisco appellava para a religião e para o tempo; a primeira apontando para o calvario e mostrando-nos a cruz como o meio mais certo de alcançar a bemaventurança; o segundo gastando sob as suas rodas todas as impressões de dor ou de alegria.

Margarida depois de transpor a fronteira havia encontrado um destacamento portuguez que se dirigia a Portugal. Alguns dos soldados d‘aquelle corpo eram das visinhanças de Aljubarrota e reconheceram a sobrinha da padeira. Admirados de vê-la sobre o solo de Hespanha, só e inteiramente desfigurada pela fadiga e inquietação, quizeram saber o motivo que a conduzia a Castella. Foi dando-lhes estes esclarecimentos que ella pronunciou o nome de Alvaro de Sousa; foi então que estes soldados em sua grosseira ingenuidade lhe narraram os feitos praticados na ultima grande batalha de Valverde, vencida pelos portuguezes contra os Hespanhoes, mas onde aquelles perderam muitos valentes. N'este numero ficára Alvaro de Sousa. Como ferida de um raio que subitamente descesse das alturas, a misera caiu sem dizer palavra. Os soldados commovidos levaram-na a uma casa visinha, onde acharam a pobre mulher que a habitava, e que vivia do trabalho das suas mãos, lavando a roupa de um convento de religiosas em Badajoz. Esta mulher de uma caridade perfeita, viu aquella gente invadir-lhe a casa, trazendo nos braços uma rapariga que parecia morta. Ouviu-os em uma lingua estranha pedir-lhes que soccoresse a moribunda, e sem lembrar-se que os que assim lhe fallavam eram inimigos, agasalhou Margarida com todo o carionho, trazendo-lhe mesmo de casa de um visinho abastado uma gotta de vinho e alguma cousa para comer. Mas a sobrinha de Brites tarde tornou a si; e quando saiu d‘aquella especie de syncope, viu no quarto onde se achava alguns vultos desconhecidos. Fixando porém sua attenção, reconheceu entre elles o capitão que em Aljubarrota vira sair com os presos: fez-lhe signal que se approximasse e com uma voz tremula perguntou-lhe: «Será certo que Alvaro de Sousa morreu?...»

O capitão era o mesmo que induzira o mancebo a pegar de novo em armas, e que o vira cair a seu lado. Temendo que a sua resposta affirmativa cansasse a morte d'aquella que já parecia moribunda, hesitava sobre o que devia dizer-lhe, quando Margarida lhe fallou n'estes termos:

«Tenho comprehendido, senhor, toda a extensão da minha desgraça!... Agora so tenho a perguntar-vos: Podeis dizer-me onde jaz o cadaver de Alvaro de Sousa?»

O capitão que não podia illudir a donzella, respondeu:

« Alvaro de Sousa caiu a meu lado! Eu vi como elle perdeu a vida... A nodoa de transfuga foi lavada no sangue do herói:! Tendo porém de seguir os inimigos, larguei com meus companheiros o campo da batalha. Mais tarde, depois de havermos desbaratado completamente o inimigo, voltámos pelo mesmo logar que havia sido junrado de cadaveres portuguezes e castelhanos, e nada encontrámos. Os inimigos tinham feito varrer aquelle campo, e os restos mortaes dos bravos que nos tinham prestado tanto auxilio tinham sido indistinctamente recolhidos, misturados com os dos castelhanos e lançados em um fosso. É quanto posso dizer-vos.»

«Agradeço-vos capitão, as informações que me daes. Nada mais preciso. Quando vos aprouver, podeis retirar-vos. Peço-vos somente que me deixeis um momento para recolher as minhas ideas.»

O capitão sahi acompanhado dos soldados.

Margarida então ergueu-se do leito e ajoelhou. A oração que ergueu ao céu foi ouvida por Deus! Breve foi ella, mas fervorosa! Tendo acabado, levantou-se e perguntou á sua hospeda se a queria acompanhar a Badajoz. A boa velha prestou-se com a melhor vontade, e ambas partiram. Durante a jornada, Margarida disse a sua companheira o que contava fazer. Encaminhavam-se ao convento das religiosas, para onde a velha costumava trabalhar. Chegadas ao mosteiro, Margarida pediu para fallar com a abhadessa, e cinco minutos depois confiava áquella freira seus infortunios passados, seus juramentos e desejos actuaes.

Depois d'esta conferencia Margarida voltara a casa da velha lavadeira, onde os nossos leitores a acharam sobre um leito, ouvindo e respondendo aos conselhos de Frei Francisco.

Mas nem a eloquencia natural do monge, nem a uncção de que sempre revestia as suas palavras, poderam abalar a resolução da donzella. Margarida devia n'aquelle mesmo dia dizer adeus ao mundo. A vinda de Frei Francisco tinha-lhe poupado o cumprimento de um dever; restava-Ihe outro que se propoz a desempenhar: era escrever a sua tia. A pobre Margarida fê-lo com as lagrimas a destisarem-lhe pelas faces; mas estas lagrimas que derramava não eram por sua causa: pensava no abandono em que ficava aquella que lhe servira de mãe, e chorou dando parte a sua tia da resolução que tomara; occultando-l he com tudo o logar onde devia recolher-se. Margarida temia que Brites quizesse dissuadi-la do seu projecto, e queria poupar-lhe esse trabalho inutil.

Quanto a Frei Francisco, Margarida havia contado escrever-lhe narrando-lhe tudo, contando-lhe o segredo do asylo que escolhêra. Agora que o santo monge parecia ter sido enviado pelo céu para ouvir e perdoar as culpas da donzella, e conduzi-la ao santuario das esposas do Senhor, Margarida só tinha a pedir-lhe quizesse consolar a tia Brites e rogar a Deus pela sua educanda.

A tarde porém approximava-se. Margarida devia entrar no claustro antes da noite. A exaltação da sua mágua dava-lhe uma certa força exterior que podia tomar-se por uma perrfeita resignação. Foi ella quem primeiro fallou em partir. Acompanhada pois do capitão, que nunca mais a deixara, de Frei Francisco e da pobre mulher que a tinha hospedado, poz-se a caminho para o convento. Quando ali chegaram dirigiam-se á igreja, onde Margarida depositou no seio do venerando monge que a devia escutar pela ultima vez as faltas commettidas, os sofrimentos experimentados e a dor pungente que lhe minava o corarão.

A donzella tinha um presagio do ponço que devia viver; este presagio foi tamebem confiado a Frei Francisco. O santo sacerdote perdoou, e aconselhou; disse-lhe que no mundo nada havia que fosse digno de uma alma immortal, que a cruz em a herança dos escolhidos de Deus; herança que os devia de conduzir á mansão de paz e de alegria para que foram creados. Que devia pois bem dizer a cruz que o Senhor lhe enviara, trabalhando por leva-la sempre com resignação e cuidando de sua existencia para ter em uma mais longa vida maiores penas e soffrimentos que offerecer áquelle que tanto soffreu por nós!

Depois de se haver confessado, Margarida saiu da igreja. Ao chegar á porta do claustro, porta que ia levantar uma barreira entre a donzella e o mundo, parou. Então tirando do seio um rosário de pequenas contas de oiro, que herdara de sua mãe, lançou-o ao pescoço da pobre lavadeira, dizendo-lhe: «Não é para pagar-vos, boa mulher, o que me haveis feito; é uma lembrança minha, que peço conserveis.» Então abraçou-a, e estendendo a mão ao capitão de Aljubarrota», ajoelhou depois aos pés de Frei Francisco, beijou-lhe a manga do habito e balbuciou estas palavras:

«Meu padre, abençoae-me... e rogae a Deus por mim!...»

«O Senhor receba benignamente o sacrificio que lhe offereceis; seja elle aceito para honra e gloria do seu nome e para utilidade da tua alma!»

«Amen!» Responderam os circunstanates. E Margarida havendo-se erguido, dirigiu-se para a porta do mosteiro, e desappareceu entre um grupo de religiosas.

XIX

E entrava todos os dias n'aquellas habitações, administrando remedios aos doentes abandonados...dando aos cadaveres sepultura christã. sem curar de si, sem temor da morte que se apresentava a todos sob forma hodionda. porque tal olhos da sua fé como o penhor certo da salvação.

M. DE LA ROCHELE

Em quanto Margarida lutava entre o pungir da sua dor, e o desejo de apparecer resignada aos olhos da communidade. Frei Francisco, havendo recommendado a abhandessa do convento a educanda quee tanto affecto lhe merecia, punha-se a caminho de Portugal, para ir consolar a padeira, que deixára meio alienada. Antes porém de partir havia pedido ao capitão de Aljubarrota inviolavel segredo sobre o retiro que Margarida escolhêra. «Él ella quem vo-lo roga; tendes visto quão grande e a força de vontade d'aquella rapariga. Todos os esforços de Brites de Almeida seriam inuteis; devemos pois impedir que a pobr mulher se exponha a fazer uma tal jornada.» O capitão prometteu tudo o que Frei Francisco desejava, e atravessou com elle a fronteira até ELvas, onde tiveram de separar-se. um para seguir aos combates a sorte da guerra levando o terror e o exterminio onde quer que houvesse de passar; outro para continuar na sua missão de paz e de amor, derramando as bênçãos e as consolações sobre os afflictos que em sua peregrinação sobre a terra podesse encontrar.

Foi assim que o santo monge chegando a Aljubarrota teve de ali demorar-se muitos dias, confortando com suas palavras Brites de Almeida, cuja rasão parecia totalmente perdida. Foi assim que depois de deixar a padeira mais conformada com a ausencia e abandono de Margarida, Frei Francisco regressara a Alcobaça, onde em novos trabalhos lhe estava reservada a coma do martyrio.

A peste havia entrado em Portugal Uma das primeiras povoações atacadas pelo flagello fôra Leiria. Os monges de Alcobaça tinham-se já espalhado pelas visinhanças d'aquella cidade, entregues ao tratamento dos doentes. Frei Francisco entrou immedintamente n'aquelle novo genero de abnegação; e, como o soldado ferido sobre o campo da batalha, o santo monge devia ganhar o contagio á cabeceira dos enfermos, ora conversando com os agonisantes sobre a mmortalidade da alma, ora administrando-lhes os remedios para o corpo, ora exaltando-lhes a fé e ministrando-lhes o sacramento ultimo, para fechar-lhes as portas de um mundo que o outro sacramento lhes havia aberto.

Victima de seu constante amor pelo proximo, Frei Francisco viu chegar com alegria a hora do passamento. N'esses momentos supremos, em que a alma, solta das prisões que a ligam a terra, antevê os gosos que lhe são destinados como recompensa de suas penas n'este valle de miserias, o santo monge bemdizia o Senhor pelos soffrimentos que lhe havia enviado. Os seus pensamentos elevaram-se mais e mais para o céu á medida que o corpo, enfraquecendo-se, se vergava para a terra!

Finalmente, rodeado de bons religiosos de Alcobaça, o santo monge, entoando com elles as orações da Igreja, terminou essa longa carreira de virtudes que o levou á bemaventurança! A sua morte foi chorada pelos seus irmãos do mosteiro, e altamente sentida pelos habitantes de Alcobaça e suas visinhanças, que perdiam com ella um pae compassivo, um mestre indulgente e um protector efficaz!

XX Não soffre o peito forte, usado à guerra, Não ter imigo já a quem faça damno; E assim não tendo a quem vencer na terra Vae commetter as ondas do Oceano. Este é o primeiro rei que se desterra lha a patria, por fazer que o Africano Conheça pelas armas, quanto excede A lei de Christo á lei de Mafamede.

CAMÕES - Lusiadas.

D. João I e o seu incansavel companheiro D. Nuno não se contentavam com as victorias ganhas em Portugal. Aquelles dois homens, nascidos quasi ao mesmo tempo, cuja vida era tão similhante nelas virtudes exercidas e pelos feitos praticados, viam a necessidade de rechaçar ainda os castelhanos sobre o solo de Hespannha. Firmes n'este proposito, não depozeram as armas contra aquella nação emquanto não julgaram inteiramente segura a independencia do seu proprio paiz.

Quando porém D. João, cheio de gloria, tinha conseguido a paz, seus filhos que se não compraziam na ociosidade, pensaram em levar uma cruzada contra os mahometanos. Os infantes desejavam ardentemente uma guerra, que na idade media parecia sempre justa aos olhos dos christãos, em que, depois de terem mostrado a sua bravura contra os infieis, podessem ser armados cavalleiros. O Mestre d'Aviz não foi somente grande pelas suas obras, mas tambem o foi pelas dos seus cinco filhos. Uns, cheios de intelligencia e de cavalleirismo, fazendo o ornato da corte de seu pae; outros, ora conversando com as musas, ora entregando-se ás sciencias, merecendo o epitheto de nunca assas louvados; este, applicando-se ás mathematicas, estudando os astros e abrindo o caminho aos progressos universaes do christianismo e da civilisação; emquanto o ultimo apparece realçando aquelle quadro de heroes, como a figura da constancia e da resignação, lutando, em abandono, contra a adversidade!

Depois de haverem, com a approvação do condestavel, communicado a seu pae o enthusiasmo das conquistas, os mancebos tiveram a maior alegria quando viram os preparativos contra Ceuta. Prestes porém a partir para as terras da Africa, um acontecimento desgraçado pareceu querer mallograr todas as suas esperanças.

A peste tinha de novo invadido o reino. D. Filippa de Lencastre, a digna esposa de D. João I. tinha sido victima d‘aquella terrivel molestia. D. Filippa, princeza de raro merecimento, tinha tido grande parte no desenvolvimento da intelligencia e das virtudes de seus filhos que a choraram ternamente.

A dor de seu marido foi profunda; mas com a sua costumada energia, este rei que sabia comprehender os seus deveres, depois de haver prestado todas as honras do mundo, de mistura com todas as pompas da Igreja, á memória d'aquella que amára fielmente, ordenou que a côrte largasse o luto, e que se vestisse de gala para celebrar a partida da armada, o que logo se effectuou.

Os feitos assignalados que osportuguezes praticaram na Africa, a gloria de que se cobriram os infantes, o despojo immenso que em Ceuta se recolheu, pertence a historia o relata-los. Aquella praça foi conquistada aos mouros em 14 de Agosto de 1413.

A grande mesquita da cidade foi desde logo consagrada ao culto dos christãos; e ali, na presença de todos os prelados que haviam acompanhado a expedição, D. João I concedeu a ordem da cavallaria aos infantes, que a transmittiram depois a seus jovens irmãos de armas. A lembrança da defunta rainha, a vista d'aquelIas espadas, que ella mesmo antes de morrer havia entregue a cada um de seus filhos, tornou ainda mais palhetica aquella nobre e piedosa ceremonia!

Com tudo, durante a batalha, D. João I havia notado que um soldado, desconhecido para elle, se tinha por vezes lançado no meio da peleja, esforçando-se já por defender a vida do rei, já fazendo escudo do seu corpo para aparar os golpes dirigidos aos infantes. O bulicio da vitoria fizera-lhe esquecer nos primeiros momentos de indagar o nome do soldado; e quando se lembrou d'isso, ninguem pôde informa-lo do que desejava. Antes porém de largar Ceuta, onde deixou uma força sob as ordens do valente Menezes, D. João passeiava sósinho uma tarde nos arredores da cidade, quando viu um velho que, assentado ao lado opposto de uma ribeira, parecia esperar que passasse alguem para ajuda-lo a transpor nos paus que serviam de ponte sobre a torrente. D. João ainda era robusto; passou para o lado onde estava o velho, e carregando-o sobre seus hombros, depositou-o sobre a outra margem da ribeira. A noite approximava-se; D. João tinha um grande chapéu que lhe encobria grande parte do rosto: o homem, não o conhecendo, quiz evprimir-lhe o seu agradecimento, dizendo-lhe:

«Deus dê a D. João I um exercito de homens

tão fortes como vós; para que elle possa derrotar sempre os mouros, que não souberam matar-me, mas que me mutilaram d'esta maneira.»

E dizendo estas palavras, o velho levantava uma grande capa que o cobria, e mostrava as feridas que recebêra e que o haviam tornado côvo.

D. João pediu-lhe então lhe narrasse como tinha recebido tantas feridas, o que o homem fez em poucas palavras. O rei reconheceu n'aquelle velho o soldado que tão corajosamente combatêra a seu lado, e despedindo-se d'elle lhe disse:

«Procurae-me amanhã dentro dos muros da cidade.»

«E por quem devo perguntar?»

«Pelo vosso companheiro na batalha de Ceuta» , respondeu D. João, que deixando o soldado entrou na praça.

No dia seguinte porém ninguem se apresentou para fallar a D. João I, ninguem soube dizer-lhe onde achar o desconhecido soldado. Entrando comtudo em mais exactas pesquizas, el-rei soube ao embarcar-se para Lisboa, que um bom em se apresentara, antes da esquadra largar as costas de Portugal, offerecendo-se como voluntario da expedição contra os mouros; que esse homem tinha parecido querer occultar-se a todos os olhos; que ao perguntar-se-lhe seu nome, estado e nação, respondêra hesitando:

«Chamo-me Alvaro, não tenho posição no mundo, e... sou portuguez! Disponho-me a servir contra os mouros; se, quereis os meus serviços, aceitae-os.»

«Então, acrescentaram os que assim fallavam a D. João I, então entrou no serviço, seguindo a expedição. Desde que chegámos a Ceuta, vimo-lo sempre combater com ardor. Onde havia mais perigo, ali se achava o soldado. Depois da tomada da praça ninguem o viu mais.»

Não podendo demorar-se por mais tempo na Barbaria, D. João tornou a embarcar com o seu exercito, e alguns dias depois, altiva das glorias alcançadas sobre os mouros, a frota ancorava no porto de Tavira.

XXI Tudo quanto nasce e vivo Sob o manto azul do céu, Se brilha, se fulge um dia, Tem um funereo trophéu, Que logo após vem a morte Erigir-lhe o mausoléu!

J. A. or. SANT'ANNA -- Poesias.

Margarida tinha seguido todas as regras do mosteiro onde se havia recolhido. Nada mais exacto, nada mais resignado, do que o rosto e as acções da donzella durante o noviciado, que, a rogos seus, findára antes do tempo prescrinto, na vespera da Assumpção da Virgem. A luta fôra grande, demasiada mesmo para as forças de Margarida; comtudo ella alcançára o que mais desejava, uma paz apparente. O seu coração estava dilacerado desde o momento em que recebêra a infausta morte de Alvaro de Sousa. No mundo não havia remedio para curar aquella ferida! Os mezes que seguiram a entrada de Margarida no convento não trouxeram mudança no seu padecer. A religião devia conforta-la; e seguramente o havia feito. Se Margarida não acreditasse na vida futura; senão olhasse para o céu como o unico ponto onde podia esperar ter alegria, o seu estado seria todo de desespero. Mas a educanda de Frei Francisco acreditava na immortalidade da alma, e desejava estar solta das prisões do mundo para reunir-se no céu a Alvaro de Sousa. A sua dor comtudo era intensissima; e o seu coração, não tomando parte nas cousas da terra, suspirava pela morte. Margarida porém ganhou as affeições de todas as religiosas, a cujos ouvidos tinham chegado um tanto desfigurados os acontecimentos que a tornavam tão infeliz. O interesse que acompanha uma pessoa de quem se contam as penas e desgraças augmenta-se na proporção que essa pessoa é menos conhecida d‘aquelles que a lastimam. A critica, sempre inexoravel para com os que vemos mais de perto, perde a força quando se trata dos ausentes que soffrem. De longe, os seus feitos, por maiores que sejam, diminuem, ou desvaneceem-se inteiramente; só vemos no reverso da medalha as suas boas qualidades e os seus infortunios. Margarida no convento onde estava, rodeada d‘aquellas religiosas, não era d'ellas conhecida. A propria abhadessa que sahia a sua vida, que lhe fallava amiudadas vezes, não podia obter a sua inteira confiança. Ninguem tinha a queixar-se da noviça. A sua polidez para com todas as religiosas era inexcedivel. Seguindo-as ao côro, orava com ellas. Se alguma adoecia, visitava-a caridosamente todos os dias; respondia a suas perguntas, mas com tal reserva, que as boas freiras, não podendo satisfazer a sua curiosidade natural, não podendo queixar-se de Margarida, imaginavam que a pobre noviça estava ali expiando algum peccado grave, e compadeciam-se tanto mais da sua sorte quanto lhe não conheciam as particularidades.

Havia chegado o ultimo dia do noviciado; Margarida tinha recebido os sacramentos, o ficára toda a noite no côro em oração. No dia seguinte, ao romper da manhã entrou na sua cella, escreveu uma carta, que metteu dentro do seu livro de orações, e foi de novo para o côro onde tinha de passar por todas as ceremonias da profissão. Algumas das religiosas que já ali se achavam notaram a pallidez de morte que cobria as suas faces. As freiras foram chegando umas após outras; então a abhadessa chegou se ás grades do côro e chamou a noviça para o seu lado. Margarida obedeceu. O sacerdote começou o sacrificio incruento, e as religiosas acompanhavam ao som do orgão as orações da missa. O momento em que Margarida, renunciando para sempre ao mundo, devia pronunciar os seus votos, tinha chegado. A noviça curvara-se de joelhos diante da abhadessa, que lhe cortára os longos cabellos louros, e fazendo-a depois levantar mandou que se deitasse sobre o esquife, cobrindo-a com um grande véu preto: ali devia esperar a ultima ceremonia. A grande multidão de povo que enchia a igreja tinha-se então approximado mais da grande que a separava das religiosas, mas que lhe não impedia de observar quanto se passava no côro. Depois de pronunciar os votos Margarida devia levantar-se do esquife e voltar com a abhadessa para o logar que ambas tinham occupado junto das grades. Mas a nova esposa do Senhor ficára na mesma posição depois de soltar as ultimas palavras. A abhadessa julgou que ella orava mentalmente, e respeitou a sua devoção. Como porém se demorasse demasiado, a santa mulher curvou-se para dizer-lhe: «Minha filha, o sacerdote espera por vós para continuar o sacrifcio. » Mas Margarida ficara immovel. A abhadessa pegou então em uma de suas mãos, e achou-a gelada... quiz levantar a donzelia, mas aquelle corpo caira sobrc o esquife sem movimento!... As religiosas, tremulas e assustadas, rodearam a abhadessa para saberem o que dava causa áquelle estado, e todas conheceram então que a misera estava morta! Margarida, ao pronunciar o ultimo voto, tinha morrido sem dor, sem soltar um ai!

As religiosas porém, impressionadas por aquella scena, choravam em redor do corpo frio e inanimado de Margarida, emquanto a abadessa, tendo-lhe beijado uma das mãos, se dirigiu á grade, através da qual o povo viu sómente estendido sobre o esquife o involucro d‘aquella alma que já subira ao céu.

Acabadas as orações do sacerdote, a abbadessa ergueu a voz para dizer ao povo que a noviça tinha deixado de existir:

«Meus irmãos, a ceremonia da profissão não se acabará. A nossa amada filha em Jesus Christo, Soror Margarida da Assumpção, já não existe! Podeis sair da igreja, meus irmãos.»

Ao silencio religioso que até ali se guardara no templo seguiu-se um murmurio confuso de vozes, cujos sons se não distinguiam. O povo, avido sempre de espectaculos tristes, largava a custo o santuario; e quando depois de muito tempo, tendo a abbadessa avisado o sacerdote do que havia acontecido, o sacristão, julgando a igreja totalmente vasia, se encaminhava para fechar a porta principal, que era muito proxima da grade do coro, viu, entre uma e outra um vulto de homem que, de joelhos com o rosto voltado para o côro, não tirava os olhos do logar onde jazia o corpo da sobrinha da padeira de Aljubarrota.

XXII

-- A trança, que ao sepulchro sonegada, prenda foi de ternura!

ALMEIDA GARRET - Camões

Margarida não somente desejara a morte, mas tinha o presentimento de que o seu desejo devia cedo realisar-se. Quando na manhã da sua profissão ella saira do côro e entrara na sua cella, aquella idea dominava-a tão fortemente, que a donzella se determinara a escrever a sua tia pedindo-lhe perdão por have-la deixado, e dando-lhe conta do que motivava a sua ausencia. Pela primeira vez depois de sair de Aljubarrota, Margarida deixava ler o que se passava em sua alma. A dôr que a minava, o martyrio que soffria, a porfiada luta de tantos mezes, tudo ali se pintava fielmente e sem exageração. A ultima parte da carta dizia assim :

« Depois do que deixo dito, bem vê minha tia como eu arrasto a existencia! Alvaro de Sousa era para mim o ideal perfeito que n‘essas longas noites de insomnia eu tinha imaginado; devia um dia pertencer-me .Morto esse homem que jurara desposar-me, o que me restava sobre a terra? Prostrar-me diante do Senhor, e renunciar ao mundo! No claustro onde me abriguei, se não pude achar a tranquilidade que desejava, curvada ante os altares pedi ao céu o perdão de minhas culpas, e um Deus de misericordia confortou a minha alma, fazendo-me esperar uma morte prematura. Com esta esperança tenho vivido até hoje; hoje, minha tia, deve ser o dia do meu resgate! Um presagio, similhante áquelle que me revelou a morte de Alvaro de Sousa, diz-me que vou reunir-me a elle. É n'esta disposição que, antes de pronunciar os meus votos, eu peço a minha tia que não amaldiçoe a minha memoria. Frei Francisco e um bom sacerdote castelhano são as unicas pessoas em quem tenho depositado a minha inteira confiança desde que sai de Aljubarrota. Um perdoou-me antes de deixar a Hespanha; o outro tem continuado a confortar-me, dando-me a esperança de uma melhor vida; e ha de minha tia ser menos compassiva do que estes, dois ministros de um Deus de paz e de amor?! Não! -- Os sinos do convento chamam-me para o côro... Terão elles ainda hoje que annunciar a morte da joven esposa do Senhor?!...»

Margarida tinha interrompido aqui a sua carta, porque effectivamente se dirigira ao côro.

Dois dias depois da morte da donzella, um desconhecido procurava pela abbadessa na porta do mosteiro. Quando appareceu a boa freira aquelle homem pediu-lhe encarecidamente lhe narrasse quanto sabia acerca da joven noviça, Soror Margarida da Assumpção. As maneiras distinctas do desconhecido, a tristeza espalhada sobre os suas feições todas varonis, dispozeram a abbadessa em seu favor. A religiosa contou tudo quanto sabia, louvou a virtude e resignarão de Soror Margarida, e manifestou tambem o desejo de conhecer a pessoa, que tanto parecia interessar-se pela defunta; á sua curiosidade satisfez o desconhecido n'estas palavras:

«Sou um homem que antes de vir ao mundo foi condemnado ao destino! Desde o berço, a minha vida tem sido uma serie de trabalhos. Obrigado na mais tenra idade a fugir da patria, tive mais tarde de combater contra ella!! Prisioneiro e ferido, achei a consolação da alma e a cura do corpo em casa de Margarida. A gratidão foi quem primeiro me levou a prometter-lhe casamento, se podesse alcançar a liberdade. Depois segui o exercito que a principio combatera, entrei com elle em terras de Hespanha; combati os que me haviam dado asilo... Mas eu só pensava então em lavar a nodoa com que me havia manchado, pegando em armas contra o meu paiz, para desposar Margarida. Ferido gravemente, fiquei por morto sobre o campo da batalha, d'onde me levaram depois os castelhanos, para me lançarem em uma masmorra! Ali passei as mais acerbas dores physicas e moraes, tendo somente para confortar-me a imagem angelica de Margarida, que me apparecia ao longe, qual pharol luminoso, para salvar-me dos escolhas que me rodeavam. Finalmente, comprehendido na amnistia de D. João de Castella que, seguindo o exemplo do de Portugal, dera a liberdade aos prisioneiros portuguezes, foi-me permitiido largar o carcere, que por um anno havia habitado. Antes porém de entrar no reino visinho, procurava em Badajoz um antigo amigo do protector da minha mocidade, quando passei pela vossa igreja. O grande concurso de povo que para ella se dirigia, o presentmento talvez da minha desventura, fizeram-me entrar no templo. O sacrificio tinha começado. Procurei achar um logar perto da grade do côro. A religiosa que, renunciando ao mundo, ia entregar-se a Deus, tinha ajoelhado junto a vós.

A belleza de Margarida foi sempre fascinante: mas o abatimento da donzella, a dor que se traduzia em todas as suas feições, davam áquella physionomia uma expressão indefinivel. Uma attracção particular levava-me a contemplar um rosto que tanto se assimilhava áquelle da que eu amava... Quando a vi estendida sobre o esquife para ahi pronunciar os votos, uma frieza de morte correu-me por todo o corpo. Sustentava-me contudo uma força occulta, até que, pronunciando as fataes palavras: «Meus irmãos podeis sair do templo, Soror Margarida da Assumpção já não existe!» vós rasgastes o véu que me offuscava a vista; mostrando-me na joven noviça, morta na minha presença, aquella por quem, no meio dos horrores da prisão, eu abençoava a existencia! Não sei dizer-vos o que em mim se passou então, nem quem me tirou do templo, nem aonde me conduziram. Creio que inteiramente alienado me levaram para algum hospicio, onde a minha constituição, mocidade e um tratamento assiduo me fizeram recuperar a rasão, e com ella entrar na terrivel realidade do meu infortunio! Hoje pela primeira vez foi-me permiti ido sair. Os meus affectos trouxeram-me á vossa igreja, que achei fechada. Quiz entrar no cemiterio do covento; não m‘o concederam! Então Iemhrei-me de vós, senhora, para pedir-vos dois favores. Em já vós haveis concedido, satisfazendo ás minhas perguntas; o outro é ainda de maior preço para um. Desejo possuir os cabellos de Margarida... Quereis dar-m‘os, senhora?...

A abbadessa, enternecida porquanto acabava de ouvir, saiu para buscar o que o mancebo desejava. Quando voltou, achou Alvaro de Sousa lavado em lagrimas! Eram as primeiras que o infeliz derramava! Passados alguns instantes de religioso silencio, a religiosa entregou a loura e copiosa trança de Margarida.iuntamente com um papel que achara dentro das horas da noviça. Alvaro abriu o papel; viu que era uma carta destinada a Brites de Almeida, e guardou- a para lê-la em outra occasião. E havendo beijado aquelles cabellos com veneração e amor, despediu-se da abbadessa com reconhecimento, e saindo do mosteiro encaminhou--se para as raias de Hespanha.

Ao chegar ás margens do rio, que separa os dois reinos, Alvaro de Sousa soltou um profundo gemido que foi repercutido pelos echos das rochas visinhas. Ficou depois silencioso, como abysmado na sua dor. e assentou-se sobre uma penha sobranceira ao Guadiana. O mancebo nunca havia rimado duas idéas, nunca fizera um verso; mas dominado pela impressão violenta que lhe causara a morte de Margarida, achou-se subitamente inspirado, e entoou um canto de saudade áquella que acabava de perder. Alvaro de Sousa não sabia que era poeta. Mas é que até aquella epocha as suas affeições, os sentimentos do seu coração, as paixões mesmo, não tinham ainda desenvolvido a poesia que aquella alma encerrava. Sim, porque os livros e os mestres podem ensinar a arte de versificar, mas o homem privilegiado por Deus, o homem inspirado por affectos sublimes, ou implore o perdão do céu, como David, ou cante os leitos assignalados das nações valorosas, como Camões ou Homero, ou narre a historia e os costumes dos povos, como Herculano, ou nos retrate o magnifico quadro que se estende desde a Cataracta do Niagara ate ás margens do mar Morto, como Chateaubriand, esse nasce poeta, Alvaro de Sousa era um d‘esses homens. O raio que o fuilminára havia feito vibrar a primeira corda de uma lyra, da qual até ali nunca havia tirado o mais leve som. Depois de haver n'este cantico de tristeza carpido a ferida que lhe rasgava o peito, Alvaro de Sousa não a sentiu curada, mas, como todos os poetas, parecia-lhe que uma mão invisivel lhe lançava um balsamo consolador sobre o corarão, suavisando-lhe os golpes que o retalhavam! E que o unisero já se não considerava sósinho; é que o poeta podia agora da terra mandar a Margarida a expressão do amor e saudade que lhe dedicava, como acabava de enviar-lhe na seguinte canção:

Anjo que o mundo deixaste, Levando-me o coração, Anjo que vejo brilhar De Deus na eterna mansão; Como uma estrella luzente, Sempre fixa lá nos céus, Alumia sobre a terra Os incertos passos meus! N'uma campina isolada Mimosa planta nascêras; Teu crescimento, teu viço A benigna mão devêras; Té que um dia, armada gente Teus debeis ramos quebrou: Depois do ferro, a tormenta Tuas folhas destroçou! Despido o tronco da planta, Crestado do norte ao vento, Ao furor do vendaval Resistiu inda um momento. Disposta para outro campo Inda parecia medrar; Inda umas folhas sem brilho Na planta vimos brotar. Mas d'Agosto ardentes raios. Com mais poder que o tufão, Mirraram na tenra planta Da raiz o corarão. Orvalhos, que do céu vinham, Anima-la não poderam, Porque as raizes da planta Da terra se desprenderam! E um verme, que ali achou Dos campos o segador. Tirara á raiz da planta A seiva, o viço, o vigor; O verme, não conhecido. Desde então chamou-se-amor Cedo mirraste na terra. Linda e delicada flor! Mas de novo desabrochas Lá nos jardins do Senhor, Onde as rajadas não crestam O teu brilho, o teu verdor! Anjo, que assim me deixaste Na tristeza e dissabor, Guia os meus incertos passos Vesta carreira de dor, E recebe lá nos céus, Este meu ardente amor!
XXIII

Quando o céu é um deserto para a esperança, onde a acharei na terra? Que póde hoje embriagar-me, senão uma festa de sangue?

A. HERCULANO -- Eurico.

Depois de haver atravessado uma grande parte de Portugal, Alvaro de Sousa chegou a Alcobaça. Era quasi noite quando o mancebo, batendo á porta do mosteiro d'aquella villa, perguntou por Frei Francisco de São Boaventura. Alvaro de Sousa queria ouvir da bôca d'aquelle santo religioso todas as particularidades concernentes á partida de Margarida para Hespanha; queria agradecer-lhe os trabalhos que o bom monge experimentara por sua causa; queria finalmente dizer-lhe que não havia descido ao tumulo, e que desejava comprovar a legitimidade do seu nascimento. Mas a sorte devia ainda ser adversa ao mancebo! Frei Francisco havia sido victima do seu zêlo evangélico. A sua cella tinha por unicos moveis a grande mesa que lhe conhecemos. Ali não se achou papel no livro que podasse orientar o pobre filho de Luiz de Sousa. Frei Francisco, havendo seguido precipitadamente o mancebo até Hespanha, na sua volta para Alcobaça, julgando-o morto, não pensara em procurar os papeis que deviam esclarecer o seu nascimento, e faze-lo entrar de posse da herança de seu avô materno. O segredo da familia de D. Iria descêra com o santo monge á sepultura.

Alvaro de Sousa achava-se de novo solitario sobre a terra! A esperança, essa ultima consolação do desgraçado, acabara para o mancebo! Sem Margarida, sem protector, sem amigo, a vida tornára-se-lhe de um peso insupportavel; mas o neto de D. Iria Gonçalves tinha presente na memoria o fim desastroso de seu pae, e não pensava em imita-lo. Suspirava pela morte, mas queria uma morte honrosa.

As guerras entre Hespanha e Portugal já não offereciam o campo desejado. Pensou então em passar a um theatro maior, escolhendo a Inglaterra, onde a rebellião, agitando os espiritos, já se preparava pra as sanguinolentas contendas, conhecidas sob o nome das Guerras das duas Rosas.

Alvaro de Sousa precisava do bulicio dos combates para sair do estado de apathica melancolia a que se achava reduzido. N'esta disposição, tendo acrescentado algumas linhas na carta de Margarida, entregou-a nas mãos de um bom religioso de Alcobaça, para que este a fizesse passar, a Brites de Almeida, e dirigindo-se a Lisboa embarcou-se em um navio inglez, para ir offerecer-se como voluntario ao serviço de Ricardo II de Inglaterra.

Entrando em todas as guerras do reinado d'este principe, Alvaro de Sousa mereceu sempre os louvores de seus commandantes. Com a morte desastrosa de Ricardo, teve de seguir as alternativas das guerras civis do tempo de Henrique IV. N'estas guerras, cheias de todos os horrores que acompanhavam as façanhas d'aquella epocha, o filho de Luiz de Sousa soube distinguir-se entre todos os seus camaradas por continuas provas de valor e generosidade.

Alvaro de Sousa tinha-se não só mente habituado ás intemperies do paiz que habitava, mas havia contrahido em parte os costumes inglezes, de maneira que já não era reputado estrangeiro pelos d‘aquella nação. Continuando a servida como voluntario, nunca aceitara posto algum no exercito. Comtudo era tão conhecido de todos os chefes que, depois da morte de Henrique, o principe de Galles, subindo-ao throno com o nome de Henrique V, quiz ve-lo de perto. O jovem monarcha, que soube conquistar a estima do seu povo, renunciando desde o começo do seu reinado todas as loucuras e extravagancias da primeira mocidade, admirou o caracter desinteressado e a temeridade do valente portuguez, que expozera tantas vezes a propria vida na defeza de muitos inglezes; e instou com elle para que aceitasse, com uma maior graduação, a recompensa que lhe era devida. Alvaro de Sousa rejeitou uma e outra, e pediu ao rei, como unico galardão de seus serviços, o deixasse continuar a combater nos seus exercitos; o que bem cedo teve logar.

Henrique, desembarcando em Calais, conquistou a Normandia, derrotando completamente os francezes em Harfleur, onde Alvaro de Sousa praticou altos feitos de coragem, tendo recebido muitas feridas, sem nunca poder conseguir o que desejava: a morte sobre o campo da batalha!

N'este tempo porém alguns cavalleiros inglezes, pertencentes á comitiva de D. Filippa de Lencastre, tinham regressado a Inglaterra, e foram reunir-se ao exercito de Henrique V, que de victoria em victoria se preparava para apoderar-se de toda a França. Estes cavalleiros, dando a noticia da infausta morte da rainha de Portugal, acrescentaram que D. JoãoII fizera apromptar uma forte armada, que devia sair do Tejo com a maior brevidade. Não se sabia comtudo qual devia ser o destino da frota. Alguns dos estados da Peninsula, assustados com os imensos preparativos d'aquella expedição. mandaram embaixadores a Portugal, para penetrarem o segredo. Baldado porém fóra o empenho: nada havia transpirado.

Alvaro de Sousa, que nunca deixara de amar a sua patria, que preferia a gloria de batalhar junto a portuezes aos louros que pudesse ganhar em outra qualquer nação, ouvindo esta nova pensou logo em voltara Portugal. Comtudo não foi sem grande contrariedade que se decidiu a faze-lo. A gloria do exercito ingleza ainda não havia chegado ao seu auge. A victoria de Azencourt, que cedo depois teve logar, devia coroar de louros aquella nação, enquanto os francezes totalmente desbaratados, teriam a chorar entre a perda de milhares de homens sete principes de sangue e o grande condestavel de França.

Alvaro de Sousa perguntava a si mesmo, se não seria melhor para elle ficar entre os estrangeiros que o tinham acolhido, e continuar a prestar-lhes o valor do seu braço até encontrar a morte que procurava: a sua resposta foi breve e decisiva. Despediu-se de seus companheiros de armas: fechou em uma pequena mala o pouco, que possuia; passou a Inglaterra, e d'ali embarcou para Portugal, onde chegou na vespera de partir a expedição para Ceuta, não como o joven e alegre soldado de Aljubarrota; o voluntario do exercito de Ricardo II, o esforçado veterano de Harfleur, tinha os cabellos brancos, a testa e as faces enrugadas; o riso nunca se deslisava sobre seus labios, fim Alvaro de Sousa só o coração não linha mudado!

XXIV

Patria e amor!...

Interrogae as aguas do Vaucluse, que talvez, no seu estalar monotomo, vos repitam algum canto vivido de sentimento do famoso Petrareba! Patria e amor!... Interrogae o Tejo, interrogae os vagalhões do oceano, interrogae as penedias da India, que vos ensinarão, se as souberdes, as melodias repassadas da crença do nosso Camões | Patria e amor!...

J. A. DE SANT'ANNA -- Patria e amor.

Quando a frota portugueza se fazia ao largo para ir demandar as costas de Portugal, um velho soldado, cuja idade parecia mui augmentada pelos desgostos e trabalhos, assentado sobre um outeiro sobranceiro á cidade de Ceuta, seguia com os olhos aquella armada, soltando do peito amiudados ais. Quando a noite, estendendo o seu manto sobre a terra, não o deixava já distinguir as velas de que se compunha a expedição, o soldado levantou-se e desceu lentamente a collina, murmurando comsigo: «Nem as masmorras de Castella, nem as planicies de Inglaterra, nem o solo ensanguentado de França, quizeram receber os meus ossos! Ceuta! Ceuta! Tambem tu não quizeste servir de sepultura a Alvaro de Sousa! Mas o triste exilado ainda espera de ti o unico abrigo... Com esta esperança evitei que D. João premiasse o veterano que lhe salvara a vida... Com ella, não regressei á patria, á patria que amo agora mais ternamente que nunca... Á patria de minha mãe! Da santa Violante de Mendonça. Á patria de Margarida!... Margarida! Margarida! Aquelle anjo que me appareceu como um meteoro brilhante que devia dissipar a escuridão que me rodeava, e que passou rapido, para deixar-me sentir mais vivaimente as trevas que envolvem o meu destino!!... Ó patria! Que quais bella me appareces ao momento de dizer-te um eterno adeus!... Patria! Quantos dias de placida ventura me seriam concedidos no teu seio, se uma morte apparente, afastando-me do numero dos vivos, não houvesse enlutado o coração da donzella que devia ser minha esposa, levando-a a pronunciar esses votos fataes que a separaram do mundo e lhe acabaram com a vida! E eu tinha tido forças para viver!... Meu Deus! Ouvi as minhas preces, tende piedade da minha solidão!» E assim fadando, o soldado linha chegado a uma pobre casa, meio destruida pelo tempo, habitada por duas irmãs mouras, que não tinham podido fugir com os seus compatriotas, quando os portugueses entravam em Ceuta.

«É tarde, nazareno», disse-lhe uma das mouras que estava á porta da casa. «Pensavamos que haveis partido com essa frota que veiu espalhar entre nós o terror e a morte.»

«Não, boa Fatima; não segui os que vieram trazer ás terras da Africa as doutrinas sublimes do Crucificado. Fiquei entre vós, como vos havia dito, quando pela primeira vez me abriguei sob o tecto hospitaleiro de vossa casa. Então expliquei do melhor modo ao vosso alcance as rasões que os portuguezes tiveram para virem a Ceuta. As guerras, boa Fatima, são sempre tristes, são flagellos necessarios, destinados por Deus que tudo rege. Felizes os reis que, como D. João I e Portugal, corajosos e destemidos durante as batalhas, sahem depois d'ellas usar da generosidade e da compaixão. Felizes os povos regidos por taes homens; felizes ainda os vencidos, boa Fatima, quando um D. João I, conquistando nações estranhas, as põe sob o governo de um D. Pedro de Menezes!»

A moura a quem se dirigiam estas palavras não respondia a Alvaro de Sousa, mas a expressão da sua physionomia bem mostrava quanto ella duvidava do que lhe diziam. Alvaro entrara em casa e dirigira-se a um pequeno leito, onde se achava a segunda moura.

Esta mulher, de extraordinaria belleza, estava deitada. Os seus membros paralysados desde tenra idade impossiblitavam-n'a de andar. Sua irmã, muito mais velha do que ella, estava na praça de Ceuta na occasião de ali entrarem os portuguezes; e querendo sair para evitar o perigo, caira em um fosso, onde ficara por morta, e d'onde a tiraram os soldados de D. João.

Fatima era uma perfeita moura: respeitadora do propheta, fatalista e inimiga dos christãos. A não ser sua irmã, que adorava com amor de mãe, Fatima não teria ficado em Ceuta depois de occupado pelos portuguezes. Mas o estado de Rachel, que não podia mover se, fez com que não abandonasse a sua casa. Ali havia recebido Alvaro de Sousa, quando depois da victoria, cheia de feridas, saíra da praça para evitar que o reconhecessem. Fatima promettêra guardar-lhe o segredo, afiançando-lhe que podia ali ficar com segurança: «Os nazarenos, dizia ella, « os nazarenos não ousarão penetrar na habitação dos descendentes dos Abencerrages! »

XXV Formosa entre as mais formosas. Alva estrella em um ceu de, Só não foi de ti captivo Quem, Moira, nunca te viu

A.LIMA

Fatima, como dissemos, era uma perfeita moura. Seu odio contra os christãos em nada tinha diminuido desde que deixara Granada, apesar de saber curvar-se á vontade de Allah, que a deixava exposta ao furor dos inimigos de Alçorão. Aquella irmã que ella vira nascer, que creára com o mais extremoso affecto, prendia-a agora ao logar occupado pelos portuguezes. As duas mouras de origem arabe descendiam do celebre Youssouf-hen-zeragh. Fatima tinha tido a desgraça de ser vista pelo rei de Granada. A sua belleza captivou de tal maneira Mahomet, que louco de amores a arrebatou dos braços maternos, e a fez entrar no seu harem. Fatima porém arrastava descontente uma tal existencia, quando um acaso feliz lhe proporcionou a liberdade por que suspirava.

Uma tarde, em que mais triste quizera respirar o ar livre, Fatima descêra aos jardins de Generalife, onde chegavam as brisas dos rins visinhos, e onde as arvores formando uma espaçosa abobada apresentavam um retiro aprazivel á joven moura. Atravessando uma parte d'aquelle labyrintho. Fatima passára, não sem um estremecimento involuntario, os altos exprestes que occupam o meio do jardim, para ir sentar-se entre duas fontes, d'onde saiam abundantes repuxos, que se elevavam em pyramides ao topo dos frondosos ulmeiros que as circundavam.

Sob o rigor do mais violento despotismo encontram-se individuos, cujos sentimentos magnanimos, elevando-se acima da esphera geral, lhes conservam o cunho da dignidade do homem.

A oppressão, o aviltamento, humilhando estas almas, as tornam capazes dos mais altos feitos. Um attentado contra uma mulher deu a liberdade a Roma. A historia enumera muitos outros exemplos com iguaes resultados. Fatima ia dever a liberdade a um d'estes sentimentos.

Postoque não fosse dotada d‘essa coragem varonil que não raras vezes se encontra no coração da mulher, Fatima sentia-se humilhada no alto esplendor a que havia chegada, e a miudo pensava nos meios de recuperar uma posição honesta. Não amando o homem que a arrebatára da casa de seus paes, a filha dos Abencerrages tinha herdado da sua familia o odio que n'ella se transmittia de paes em filhos contra os inimigos da sua tribo. Constrangida a fingir um sentimento affectuoso, ou ao menos a receber ás caricias do rei mouro, Fatima sujeitava-se a esse tormento, esperando um libertador que devia resgata-la. Quem seria esse homem, quando e como o faria, ignorara-o; mas esperava-o, e esta esperança aligeirava as penas da desventurada.

Mas Fatima havia-se demorado nos jardins mais tarde do que costumava. A noite vinha chegando, e a moura levantava-se do banco de pedra, onde estivera assentada entregue a tristes meditações, quando sentiu um pequeno ruido do lado dos cyprestes. Fatima quiz sair do labyrintho, mas o susto tolhia-lhe os passos. Aquelle jardim era destinado para os seus passeios; nenhuma outra pessoa que não fosse o sultão podia ali entrar. A joven Abencerrage temia encontra-lo. Comtudo, por um esforço de vontade conseguiu chegar ao lado opposto dos cyprestes, quando ouviu uma voz murmurar o seu nome. Admirada e receiosa. Fatima continuava o seu caminho para o palacio, mas então aquella voz, que a principio mal se fizera ouvir, pronunciou distinctamente estas palavras:

«Não fujas, Fatima. É chegada a hora do teu resgate! Nada tens que receiar. A tua fuga, de ha muito preparada, só esperava uma occasião opportuna para realisar-se. Transporás os muros d'estes jardins: junto da montanha acharás um mouro fiel e dois ginetes. O mouro servir-te-ha de guia. Não te demores em fazer-lhe perguntas ociosas; aproveita o tempo, e segue-o com confiança. Esse diadema, o teu callar, as cadeias que te cingem os pulsos e a cintura, poderás fechar em um pequeno cofre que entreguei ao mouro. » Então o desconhecido lançou sobre os hombros de Fatima um rico albornoz, cujo capuz lhe occultava inteiramente o rosto, e pegando-lhe no braço, atravessou com ella todo o jardim sem que a sultana lhe dirigisse uma palavra. Ao chegarem á extremidade do arvoredo o desconhecido deu um silvo, que foi correspondido do lado opposto da muralha, d'onde ao mesmo tempo desceu uma comprida escada de corda.

«Sobe, bella Fatima. Os momentos são preciosos. Confia na palavra de um desconhecido, que promette tornar a encontrar-te.»

« Mas por que assim quereis dispor do mim? quem sois vós? »

«Um homem que vos adora desde a primeira vez que vos contemplou, quando na melhor phase da vida, na epocha mais favoravel á belleza, vos viu, triste e silenciosa, escondendo as lagrimas que vos arrebentavam dos olhos, seguir os emissarios de um despota cruel que, desenhecendo as leis da humanidade, calcando aos pés os mais nobres sentimentos, exige as caricias de uma mulher que o despreza. Fatima, eu sou um homem que jurei vingar-te. Mahomet acaba de sair de Alhambra para ir encontrar-se com o rei de Marrocos; Alhobacem pretende vingar a morrte de seu filho, e pediu o auxilio de Mahomet. É chegado o momento supremo. Foge, Fatima; o teu vingador não póde acompanhar-te. A liberdade do povo deve seguir-se á tua liberdade. Quando ella se houver effectuado, conhecerás o meu nome, e serás o arbitro do meu destino.»

Acabando de proferir estas palavras deu outro silvo, segurou a mão de Fatima sobre a escada que pendia da muralha, esperou que a joven Abencerrage chegasse ao cimo; disse-lhe então que suspendesse a escada e a lançasse do outro lado. Fatima voltou-se para o desconhecido, poz uma mão sobre o peito, apontou com a outra para o céu e desappareceu. Minutos depois ouviu-se o galope de dois cavallos que seguiam ao longo de Xenil.

XXVI Com esforço tamanho estrue e mata O Luso ao Granadit, que em pouco espaço, Totalmente o poder lhe desbarata, Sem lhe valer defeza ou peito de aço.

CAMÕES -- Lusiadas.

Em quanto Fatima fugia apressadamente de Granada, cujo solo não tornaria a pizar, Mahomet corria com toda a sua gente para juntar-se ao formidavel exercito do rei de Marrocos e ambos combaterem contra as forças de Castella e de Porlugal. O rei de Castella Intava contra o de Marrocos, emquanto o monarcha portuguez, D. Affonso IV, que viera em auxilio do seu genro, reservava para si o medir-se com o de Granada, cujas tropas passavam pelas mais aguerridas.

Depois de porfiada luta e grande mortandade dos mouros, os dois reis musulmanos, tendo escapado á carnagem, vendo os seus exercitos completamente vencidos, foram esconder em Granada e Marrocos a vergonha de uma derrota que aniquilára o seu poder. A batalha tivera logar sobre as margens do Salado, cujo nome tomou.

O libertador de Fatima ali vira o sol pela ultima vez. O mancebo esquecêra um momento os crimes que imputava a Mahomet, para segui-lo, como rei de Granada, contra os inimigos communs. Esperava que, derrotados os christãos, podesse pôr em execução o plano que havia concebido para livrar a sua patria; então saíria de Hespanha, e iria encontrar Fatima, cujos olhos o haviam subjugado. Mas os seus projectos não se deviam realisar. O corpo do salvador de Fatima ficára entre os milhares de cadaveres que juncaram as margens do Salado, emquanto a sua protegida, continuando a sua marcha, chegara junto ao Calpe, e d'ali, atravessando o estreito em um pequeno baixel, já de antemão preparado, desembarcara com o seu companheiro em terras da Africa.

Foi ao pisar aquelle ardente solo que a triste Fatima, cheia de saudade pela patria que deixava, derramou copiosas lagrimas, e pediu ao mouro quizesse dizer-lhe onde a devia conduzir, onde acharia a sua familia, e quando podia esperar o seu libertador.

«Senhora» disse-lhe o mouro,«Ahen-malech ordenou-me que vos fizesse sair de Hespanha, com a velocidade possivel, que vos depozesse em um pequena cabana, situada na falda do Abyla; que apenas vos installasse ali, voltasse a procura-lo para participar-lhe o como se effectuára o seu mandado. Allah é grande! Vós sabeis, bella flor das Hespanhas, como até aqui tenho cumprido a minha missão: Vamos continua-la, segui-me.»E pondo-se em caminho, levou Fatima junto da montanha indicada. Antes porem de começarem a subir a pequena elevação que tinham diante de si e que os devia conduzir á cabana de que fallára o mouro, Fatima viu duas pessoas que descendo o monte com pandeiros e alaudes, tocando e cantando, se dirigiam para ella. Ao approximarem-se, curvaram-se diante de Fatima exclamando «Allah é grande! E Mahomet é o seu propheta! Bella rosa de Granada, que assim murchaveis á sombra dos jardins da Alhambra! Aquelle que vos envia, sahe quanto a vossa vinda é apreciada pelos moradores da cabana do Abyla. Vinde, vinde que chegaes a tempo.»

Quem assim fallava, era uma mulher idosa, que trazia nas mãos um pandeiro, o qual agitava nos ares, emquanto um homem já velho tirava do alande uns sons tristes e desafinados. Fatima e o mouro foram seguindo aquelles personagens, cujos trajos eram iguaes aos dos mouros de Hespanha, até chegarem á cabana.

Ali a moura entrou, fazendo signal que esperassem, e logo depois veiu dizer a Fatima, que se preparasse para ver sua mãe, acrescentando: «O estado de saude d'aquella que vos trouxe em suas entranhas é melindroso. Desde que vos perdeu de vista nunca mais o riso pousou sobre os seus labios. Vosso pae não tem consolação emquanto lhe não for dado abraçar-vos; mas hoje, nem um nem outro podem faze-lo. Vossa mãe deve hoje dar á luz um filho, e ainda que ella espera por vós, eu temo annunciar-lhe n'este momento a vossa chegada. Mas para dar animo a vosso pae, cujo valor diminue de dia em dia, eu fui dar-lhe signai que estaveis aqui; e elle disse-me baixinho: «Vae, dize-lhe que entre n'este aposento, que eu não posso deixar, e que se occulte ali detraz de uma esteira de palma, para me dar coragem pela sua presença, e para ser testemunha das dores de sua mãe.»

XXVII

Promette. Jura-me que lhe servirás de mãe; que farás por ella todos os sacrificios que uma mãe faz por um filho.

LAMARTINE -- Genoveva.

Fatima tinha-se despedido com reconhecimento do seu companheiro de viagem, e recebendo de suas mãos o cofre que lhe entregara o seu libertador, entrou com passus leves para a rabana. Aquelle quarto, forrado de esteiras de palmeira, continha quatro pessoas. Sobre um leito collocado junto da parede jazia uma mulher ainda nova e bella. Seus lindos cabellos pretos estavam soltos e cobriam inteira mente as almofadas sobre que se reclinava. Seus olhos, tambem pretos, estavam cravados sobre uma fenda quasi no tecto da cabana, para o lado do occidente, por onde entravam os furtivos raios do sol, que descia a mergulhar-se nas aguas do Estreito. A moura não fallava, não soltava uma queixa, mas as contorsões do semblante mostravam quanto soffria. A seu lado um homem já idoso segurava-lhe uma das mãos, emquanto o mouro, que descêra ao encontro de Fatima, de joelhos, aos pés do leito, parecia pensativo. Este homem era o medico e o amigo dos paes de Fatima, desde que, prevenidos por Aben-malech, fugidos de Hespanha, tinham vindo esperar em Marrocos o resgate de sua unica filha. A quarta personagem era a moura que os servia. Fatima entrara sem fazer o menor ruido, e dirigira-se para o lado do nascente, onde sua mãe a não podia ver. Mas apenas se assentara sobre uma esteira, onde haviam depositado algumas roupas que deviam servir para a creança que se esperava, um grito agudo que sua mãe soltou, fê-la levantar, e sem lembrar-se do que lhe havia recommendado a moura, e correu para o lado da cama, dizendo;

«Minha mãe, minha mãe, que tens? Minha mãe, cobra animo, a tua filha, a tua Fatima está livre, está a teu lado, para nunca mais deixar-te!»

Anima, que soffrendo depois de muitos mezes, havia perdido as forcas, via-se agora desfallecida: mas exhausta como estava, conheceu a voz de sua filha e volvia agora os olhos de uma para outra parte para poder reconhecer Fatima entre os vultos que a rodeavam.

Mas sua filha havia pegado em uma das suas mãos, que beijava com ternura e lavava com suas lagrimas, chamando sempre: «Minha mãe! minha mãe!»

Amina soltou outro grito mais forte que o primeiro, e disse então:

«Allah só é granilc! Graças ao propheta. minha filha, que me deixa abraçar-te antes de entrar no paraiso! Quantas lagrimas, quantos sustos, quantas saudades me tens custado, Fatima! Estas saudades, estes sustos, estas lagrimas minavam-me a existencia! Mas estava escripto, minha Fatima, que eu devia ver-te no momento derradeiro... » A misera ficou algum tempo silenciosa; depois continuou. «Minha querida filha, tu serás a consoladora do teu velho pae: Allah é grande!... Mas as minhas forcas diminuem, não posso... Fatima... tu... serás a mãe... da... creança... que... te... dei... xo!...»

Um grito agudissimo seguiu as ultimas palavras da moura, que não tivera forças para sobreviver á filha que dera á luz!

Então começaram os prantos, os gemidos, as exclamações dos quatro assistentes, que só tinham guardado o silencio para não aterrarem Amina, cuja coragem principiara alguns dias antes a esmorecer. Arrancando os cabellos e rasgando os vestidos para manifestarem a sua dor, aquella familia esquecia que junto ao cadaver de Amina havia um vivente que reclamava os seus cuidados.

Fatima foi a primeira que se recordou das palavras de sua mãe: «Tu serás a mãe da creança que te deixo». Desde então a joven moura enxugou as lagrimas, e deu o exemplo de valor aos seus companheiros, pedindo a seu pae e ao medico lhe dissessem o que devia fazer, poisque era a primeira vez que via e pegava em uma creatura tão pequena. O medico pediu agua, e o pae trouxe o fato que sua mulher destinara á recemnascida. Fatima queria desde logo alimentar sua irmã, que ella julgava precisada de sustento; mas o medico tendo-a socegado, prometteu providenciar a tal respeito, e saiu com o mouro para prepararem o funeral de Amina.

Fatima, postoque entregue aos cuidados da missão que sua mãe lhe encommendára, não podia esquecer aquella que lhe tinha dado a vida, e para quem fora objecto de tanto desvelo. Aquelle corpo que agora jazia frio e sem movimento a seu lado, tinha sido animado por uma alma nobre e sensivel. A deshonra de sua filha, e a saudade que esta lhe deixara, haviam dilacerado aquella existencia. Curvando-se comtudo aos decretos de Allah, a moura, taxando de fatalidade quanto lhe acontecia, nem procurara meios de subtrahir-se á sorte que a perseguira, nem ousára mesmo lamentar-se do seu rigor.

Foi d‘esta maneira que, havendo perdido a saude, ao approximar-se o tempo de lhe nascer um filho, Amina perdêra totalmente as forças até dar o ultimo suspiro, como acabámos de ver.

Mas Fatima que a principio não podia acreditar na desapparição completa de sua mãe, começou a certificar-se da realidade de sua perda desde que levaram da cabana o cadaver de Amina. Seu pae tinha para esse Jim escolhido a hora em que Fatima, estendida sobre uma esteira ao lado de sua irmã exhausta pelo cansaço do corpo e as commoções do espirito, havia adormecido. O medico e a moura que momentaneamente os servia tinham acompanhado o enterro; e quando Fatima, ao romper do dia, acordou com o primeiro choro de sua irmã, já o corpo de sua mãe tinha descido á sepultura. Fatima não podia já duvidar do que havia acontecido. Com quinze annos já tinha conhecido os soffrimentos. Agora o infortunio dava á sua rasão o cunho de uma idade avançada. Encarregada por sua mãe da sorte da pequena Rachel, Fatima jurára dedicar-se a sua irmã, e evitar o amor evitando a companhia dos homens. Com este designio, quando seu pae quiz estabelecer-se em Ceuta, ella rogou-lhe quizesse deixa-la n'aquella cabana cuja solidão ia de accordo com a sua melancolia e com os cuidados que devia prestar a Rachel. «A solidão, dizia ella a seu pae, approxima-nos de Deus; quando ali nos achámos entregâmo-nos aos sentimentos de humanidade. Ide para Ceuta, meu pae; ali podeis tratar de vossos negocios, aproveitando as riquezas com que o bom Aben-malek me doou. A caria que elle vos escreveu antes de sair para Tarifa, e que o mouro que me acompanhou desde Granada acaha de enviar-vos, deve certificar-vos que podeis fazer uso daquellas joias. Generoso protector! Allah quiz chamar-te ao paraiso sem que podesse exprimir-te a minha gratidão! Mas só Allah é grande, e no céu estava escripto que devias morrer batalhando contra os inimigos da tua patria!... Ide para Ceuta, meu pae; a moura que vos servia ficará comvosco. Eu não preciso da sua companhia. A minha Rachel occupar-me-ha o tempo e distrahirá a minha dor! Quando poderdes roubar alguns instantes ao vosso negoceio, vireis ver-me, e ambos sahiremos o Abyla para d‘ali mandarmos nas brizas as nossas saudades ás terras da formosa Hespanha!»

Aboul-azof cedeu ás instancias de sua filha. O velho mouro tinha uma sede insaciavel de oiro; o desejo de augmentar, com as joias de Fatima, o pequeno thesouro que trouxera de Granada, ou, porventura, sua conformidade absoluta aos decretos de Allah, haviam-n'o resignado á perda de Amina. Velho e doente, temendo a morte porque desejava a vida, o pae de Fatima olhava a solidão como um sudário com que se envolve o homem antes de descer á terra.

Aboul-azof partiu para Ceuta, e sua filha pôde entregar-se livremente aos sentimentos que a dominavam. Mãe, sem nunca ter concebido, a joven moura desempenhou com a mais escrupulosa exactidão os menores deveres a seu cargo, até que tendo a creança chegado á idade de poder andar, Fatima reconheceu que Rachel era defeituosa! Sem algum signal exterior que o denotasse, a pobre creança só tinha o movimento dos braços.. O resto do seu corpo estava paralytico!

A infeliz Fatima deplorou esta nova desgraça, mas sempre fatalista curvou-se a vontade de Allah, murmurando consigo: «Estava escripto no céu que eu me prenderia a esta creança pelos laços do espirito e pelos do corpo! O amor fraternal talvez não bastasse. Rachel podia amar um dia; mas assim como é apesar da sua belleza, não haverá um homem que m‘s leve...»

E Fatima sem conhecer o sentimento que lhe dictava estas palavras pintava o estado de sua alma e a força do seu affecto que se traduzia por um egoismo insano. É porque esse amor que ella julgava de mãe só era o arremedo do perfeito amor materno, o unico amor que é desinteressado.

O rei de Marrocos havia morrido depois de inutilmente ter procurado Fatima por toda a Hespanha; de maneira que já não tendo que receiar o ciume de Mahomet, Fatima, vendo a creança crescer em graças e intelligencia, tinha por algum tempo deixado a cabana e viera a Ceuta com Rachel depois da morte de seu pae, que lhes deixara, alem do entre das joias, presente de Aben-malek, a fortuna que grangeára.

Ali tinham as duas mouras vivido com inalteravel amisade; Fatima, desprezando os melhores partidos para não ter que repartir o affecto que dedicava a sua irmã; Rachel consagrando-lhe uma affeição toda filial, vivendo da vida de Fatima. rindo quando ella ria, chorando se a mais leve tristeza lhe annuveava o semblante.

Assim se passaram annos e annos. Ora habitando na praça de Ceuta, ora na cabana do Abyla, as mouras, estavam velhas. D. João I havia chegado a Ceuta e tomado a praça. Os musulmanos que ali habitavam e que escaparam á mortandade, haviam fugido.

Dos seguidores do Alcorão só restavam em Ceuta duas mulheres velhas. Uma d‘ellas era paralytica desde o berço, a outra jurára que so o tumulo as separaria uma da outra!

Alvaro de Sousa habitava um pequeno quarto da casa d'estas mulheres, situada nas faldas do Abyla, onde se abrigára para evitar ser reconhecido pelos soldados portuguezes.

XXVIII Passámos a grande ilha da Madeira. Que do muito arvoredo assim se chama; Das que nós povoamos a primeira, Mais celebre por nome que por fama. Mas nem por ser do mundo a derradeira Se lhe avantajam quantas ama, Antes sendo isto sua se esquecêra

CAMÕES - Lusiadas.

D. João I seguia tranquillamente em Portugal uma vida de ventura, mirando-se nas virtudes e no cavalleirismo de seus filhos, e exultando pelas prosperidades que o seu reinado havia trazido aos portuguezes. O Infante D. Henrique, que fôra o primeiro a subir as muralhas de Ceuta, agora entregue ás sciencias, traçava através das ondas, sobre o rochedo de Sagres, a estrada que deviam levar os seus navios até ás extremidades do mundo .

N'aquella ponta, aonde termina a Europa, elevava-se um pequeno convento, que servia de abrigo aos peregrinos que de longe vinham offerecer seus votos ao santo venerado sobre aquellas plagas . Duas leguas mais longe tinha o infante mandado edificar a seu palacio: n'este entregava-se D. Henrique a suas meditações scientificas, n'aquelle fazia as mais ferventes supplicas para que o céu protegesse os emissarios que encarregava de suas descobertas. Fôra d'ali que enviara João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz em demanda das terras nas regiões africanas. D'ali embarcaram aquelles dois homens vajentes e destemidos; regressando depois de poucos dias para participarem ao infante que haviam achado uma pequena ilha, onde crescia o Dragoeiro, arvore preciosa n'aquellas idades. Por conselho de Zarco e de Tristão Vaz mandou o infante que partissem immediatamente os dois capitães, á testa de muitos outros homens que deviam colonisar a terra descoberta, a que haviam dado o nome de Porto Santo.

Um anno depois, João Gonçalves Zarco, preoccupado por uma idea que o não deixava um momento, saiu da pequena ilha com quatro embarcações, para certificar-se se era uma terra ou illusão de seus olhos uma linha obscura que constantemente se lhe offerecia no horisonte, quando a atmosphera estava clara. Ao primeiro cabo que dobrou deu Zarco o nome do navio que o transportava, S. Lourenço. O capitão d‘esta embarcação, Morales, era castelhano; o piloto, homem velho e de physionomia triste e intelligente, dava-se tamhem por hespanhol.

Costeando ao longo da nova terra, Zarco e seus companheiros admiravam a belleza do paiz que tinham diante dos olhos. As altivas florestas que subiam em amphitheatro até ao cume das mais altas montanhas, as ribeiras caudalosas que desciam d‘estes montes e vinham misturar as suas aguas crystallinas com as do Oceano; as bahias que se formavam na costa; os braços de terra que se estendiam sobre o mar; o magnifico basalto de suas rochas, faziam um maravilhoso panorama, e deixavam adivinhar a fertilidade de uma terra que devia ser a joia mais preciosa da corôa de Portugal, se os homens ajudassem pela arte a prodigalidade com que a natureza dotara aquella ilha, a que Zarco deu o nome de Ilha da Madeira, pelo basto e alto arvoredo de que a achou coberta.

Comtudo, Zarco e os outros portuguezes, desejando ter maior conhecimento do paiz que descobriam, tinham desembarcado, e haviam chegado a uma linda praia, que chamaram Praia Formosa, e d‘ali continuaram por terra até uma especie de caverna, onde teriam sido devorados por uma grande quantidade de lobos marinhos que ali se abrigavam, se promptamente se nao houvessem recolhido ás suas embarcações. A este logar deram os portuguezes da pequena expedição o nome de Cumera de Lobos. Voltando então o rumo, passaram os mesmos sitios que haviam visto, e de novo desembarcaram perto da ponta de S. Lourenço, em uma pequena enseada entre dois altos rochedos. As arvores que ali encontraram, chegavam até ao mar, cujas ondas lhes beijavam os troncos. Ao passo porém que desejavam explorar a terra, os portuguezes receiavam encontrar n'aquella espessura alguns animaes ferozes, e por isso se contentaram com examinarem o local mais perto da costa. O piloto porem da primeira embarcarão havia-se afastado de seus companheiros, que só deram pela sua falta no momento do embarque para de novo ganharem o Porto Santo. Então começaram a chama-lo de um e de outro lado da enseada; mas não obtendo resposta, João Gonçalves Zarco mandou quatro dos seus marinheiros, homens fortes e valorosos, para que procurassem o piloto. Aquelles homens dirigiram-se para o lado do Oriente, onde o arvoredo era mais espesso, e ali, encoberto com frondosos cedros que se erguiam altivos acima das outras arvores, acharam o companheiro que procuravam, de joelhos diante de uma cruz, toscamente feita de grosseiro pau. Ás vozes dos marinheiros que gritavam: « Mestre Sousa, vamos, vamos embarcar, » o piloto levantára-se de sua humilde postura, e melancolico seguira os que tinham vindo perturba-lo.

Já iam a meio de sua navegação, entre as duas ilhas, quando João Gonçalves Zarco se lembrou de perguntar ao piloto por que se havia entranhado em um pais desconhecido.

A resposta do mestre Sousa satisfez o chefe da expedição, e fornecerá aos nossos leitores o episodio do seguinte capitulo.

XXIX Nunca leste com ternura Legenda da sepultura, Que o cinzel da desventura Na pedra fria gravou?

J. A. DE SANT'ANNA - Poesias.

No tempo de Eduardo III de Inglaterra, um corajoso mancebo d'aquelle paiz, loucamente apaixonado por uma donzella de sua nação, cujos paes recusavam dar-lhe a mão de sua filha, resolvêra arrebata-la da casa paterna. A violencia exercida contra a infeliz Anna de Arfet, os meios empregados para perseguirem o seu amante, excitando-lhes a paixão, determinaram a imprudente donzella a condescender com as exigencias de Roberto Machim, que havendo preparado a fuga, embarcou com Anna de Arfet, resolvidos a ganharem as costas de França. O céu porém parecia querer desde logo castigar os dois infelizes. Uma horrivel tempestade afastou-os immediatamente d'aquellas paragens, entregando-os durante quatorze dias á mercê das ondas. No fim daquelle tempo, havendo os navegantes avistado terra, e mandando um pequeno barco com alguns homens pura conhecerem onde estavam, souberam que o paiz parecia uma ilha deserta, mas que lhes offerecia um asylo seguro e agradavel.

Machim então com Anna e alguns companheiros de viagem desembarcaram, deixando um navio a gente precisa para guarda-lo.

A ilha era bella cheia de arvores desconhecidas, com todo o genero de fructos, de passaros de todos os paizes, de flores de todas as cores; as suas aguas eram crystalinas, suas montanhas magestusas. Parecia-lhes haverem aportado em uma terra encantada. Para gosarem pois aquelle jardim deleitoso que se levantava no meio do Oceano, e para descamarem das fadigas de uma viagem tormentosa, determinaram demorar-se ali algum tempo; e para este fim cortaram ramos das arvores da floresta que se estendia por toda a ilha, e levantaram umas pequenas cabanas onde se recolheram. Mas a sua tranquillidade devia ser momentanea. Tres dias depois de construidas estas habitações, um furacão de vento do nordeste, partindo a amarração do navio surto na pequena bahia defronte das cabanas dos inglezes. arremessou-o sobre as costas de Marrocos, onde o fez em pedaços. A tripulação que pôde salvar-se fui tomada pelos mouros, e encerrada em uma escura prisão.

No dia seguinte, Machiml, não vendo o menor vestigio do seu navio, jugou que a tempestade da noite o havia submergido, e considerava-se sem esperanças de sair da ilha. Esta nova desgraça encheu de consternação aquelles infelizes! Arma, principalmente, a pobre Anna ficou de tal maneira aterrada que pouco tempo sobreviveu áquelle acontecimento. Os ultimos dias que ali passou foram de completo martyrio. Só então conhec êra a desventurada a instabilidade de uma paixão a que sacrificara os mais sagrados deveres, abandonando a sua patria e familia, immolando a sua honra e reputação ao seu amante! EIla via agora, através de um novo prisma, o passo imprudente que havia dado; e, dissipadas as iIlusões, dilacerada pelo remorso e pela saudade, expira nos braços de Machim, que em poucos dias a seguia ao sepulchro!

Nos momentos derradeiros, Machim rogou aos seus amigos o enterrassem na mesma sepultura que havia recebido o corpo de Arfet. Depois de executado este piedoso dever, os amigos d'aquelle desditoso par gravaram sobre o seu tumulo uma inscripção, composta por Machim, narrando a sua deploravel aventura, e no fim da qual se pedia aos christãos, que houvessem de visitar aquelle logar, edificassem ali uma pequena ermida sob a invocação do Bom Jesus.

Depois da morte de Machim, os seus companheiros, que só curavam de sair da ilha, empreparam-se, com assiduidade no concerto do barco que ali tinham guardado; e em pouco tempo conseguiram embarcar-se com destino a Inglaterra. A força porém do vento, ou porventura a ignorancia dos marinheiros, levou a embarcação ás mesmas costas onde havia conduzido o navio, e onde experimentou uma igual sorte.

As prisões de Marrocos estavam então cheias de christãos de todas as nações. Entre outros havia um hespanhol de Sevilha, João de Morales, que tinha sido piloto, e que tanto se interessou pela narração dos inglezes, que lhes pediu todos os esclarecimentos sobre a formosa ilha de que fallavam; e apenas conseguiu a sua liberdade deixou Marrocos e foi offerecer os seus serviços a João Gonçalves Zarco, a quem o infante D. Henrique já havia nomeado chefe da expedição que destinava á descoberta de novas terras.

Os mouros de Ceuta, como os das outras cidades de Marrocos, maravilhados da chegada dos companheiros de Machim sobre aquellas plagas, reputavam a sua narração como uma historia milagrosa, e como tal Fatima a transmittira a Alvaro de Sousa. O filho de Violante de Mendonça, que nunca se esquecera de Margarida, enternceia-se sempre que algum acontecimento desgraçado vinha avivar-lhe a memoria da unica mulher que havia amado.

A sorte do infeliz Machim, que elle comparava á sua; a morte de Anna d'Arfet, victima no verdor dos annos, como Margarida, do mais ardente amor, fiberam nascer em sua alma o desejo de ver com seus olhos o logar encantado, como lhe chamava a moura, onde se passara aquella tragica scena. Alvaro de Sousa já não podia entrar no lidar das batalhas: o misero estava côxo, e só nos braços conservara o seu antigo vigor. Sósinho no mundo a sua existencia era horrivel. Os livros não lhe traziam consolação. A pratica das virtudes ensinadas pelo Deus crucificado sobre o Calvario não lhe era inteiramente desconhecida; sabia que devia perdoar nos que o offendiam, sabia que devia resignar-se aos decretos do céu: mas estava Ionge d‘esse estado de perfeição em que o homem, curvando-se sob o jugo da Cruz que lhe coube em sorte, e bemdiz o Senhor por haver-lhe'a enviado!

AIvaro de Sousa precisava de uma vida activa. O bulcio dos combates em Inglaterra e França tinha de alguma maneira distraindo a sua dor. Agora porém que não podia de novo entrar n‘aquella vida, lembrou-se do estudo da nautica como um meio de matar o tempo, fazendo-o talvez passar a outros paizes e conhecer differentes povos.

Ainda que pouco saia da habitação das mouras o neto de D. Iria tinha encontrado alguns nauticos portuguezes, que a miudo aportavam a Ceuta. D'elles e dos livros que poderam emprestar-lhe adquiriu os conhecimentos indispensaveis para a vida maritima, e na primeira opportunidade que se lhe apresentou, saiu como praticamente em um pequeno navio que dirigia a Portugal.

Antes porém de deixar Ceuta, agradeceu a Fatima e a sua irmã toda a hospitalidade e agasalho que lhe haviam prestado; e para recompensar de alguma maneira tanta bondade, pediu-lhes aceitassem de suas mãos um annel de ricas pedras, presente de um seu companheiro de armas em Inglaterra. Mas Fatima recusou receber aquella offerta do pobre soldado, a quem fallou n‘estes termos:

«Allah é grande! nazareno; nem Rachel nem eu precisâmos de joias. O nosso cofre ainda não esta vasio. Estamos pagas do pouco que havemos feito por ti. Nem só o dinheiro é recompensa. Tu ensinaste-nos com tua brandura a sermos tolerantes, e a mudarmos o odio que professavamos contra os da tua lei em um sentimento de compaixão. Allah é grande! E Mahoma, o seu propheta, te leve pelo caminho que conduz ao seu paraiso.»

E dizendo estas palavras, a moura entregou a Alvaro de Sousa a mala que continha a sua roupa, e que elle fez conduzir a bordo do navio que em poucos dias o levou a um pequeno porto do Algarve.

Alvaro de Sousa chegava a Sagres no mesmo dia em que João Gonçalves Zarco e Tristâo Vaz se dispunham a sair de novo para a pequena ilha do Porto Santo, que haviam descoberto.

O nosso heroe obteve facilmente o logar de segundo piloto de umadas tres embarcações, que o infante D. Henrique fizera equipar, e que partiam sob o commando dos chefes mencionados, aos quaes o infante juntou Bartholomeu Perestrello.

Descoberta a ilha da Madeira, havendo Zarco e Tristão Vaz ficado na ilha do Porto Santo entregues aos trabalhos da colonisação, voltou Bartholomeu Perestrello a Portugal em um pequeno navio, cujo capitão era Morales, e piloto Alvaro de Sousa.

Estes dois homens seguiram desde então o mesmo destino, embarcando juntos e saindo muitas vezes de Portugal em demanda das novas terras que o incansavel genio do infante mandava procurar.

XXX E aqui se conta o romance D'uns amores mallogrados, - Amores entre os do povo Por mui tristes memorados!

ANONEMO.

Depois de descoberta a ilha da Madeira, alguns portuguezes, receiando talvez que entre a espessura dos bosques que a cobriam, se abrigassem esses animaes tão geralmente encontrados nas regiões africanas, haviam lançado fogo ás suas florestas.

O infante D. Henrique, lastimando aquella imprudencia que o privava das arvores destinadas à construcção d'esses navios que deviam cobrir

os mares, mandara ordens para que de prompto se atalhasse o incendio. Mas o fogo tinha subido ao mais alto dos montes, d'onde as chammas desciam em turbilhões até ás praias, obrigando o pequeno numero de colonos já ali estabelecidos a procurarem a fuga embarcando para o Porto Santo.

Aquelle desastre, que despojara a ilha de uma parte de sua belleza, devia comtudo dar-lhe immensa fertilidade; e depois de sete annos de incendio, conseguindo-se apagar o fogo, o infante D. Henrique, aproveitando as relações que havia contraindo com alguns paizes agricolas e comnerciaes, mandou vir da Sicilia as plantas de canna de assucar, alcançando da ilha de Chypre e de Borgonha as cenas de vinha que faziam a riqueza principal dos dois paizes, e que foram mais tarde tão preciosas para a Madeira.

Alguns annos depois, Alvaro de Sousa ali aportava de novo; e como o seu navio precisasse de reparos, o piloto quiz aproveitar esse tempo para correr a ilha.

Muitas familias de todas as condições já se achavam estabelecidas na Madeira, tendo edificado uma cidade em um formoso valle, regado por caudalosas ribeiras, á qual deram, pela grande quantidade de funcho que ali acharam, o nome de Funchal.

O nosso piloto quiz ainda visitar o logar onde Machim estava sepultado, e a que Zarco chamara Machico. Achou já ali levantada a pequena ermida que encerrava o tumulo dos dois amantes, construida com os cedros que cobriam a sua sepultura. Na sua volta para o Funchal, largando o barco que o levara a Machico. Alvaro de Sousa tomou o caminho por terra, e chegou a Santa Cruz, pequena villa a uma legua de Machico, cortada tambem por uma ribeira, e situada á beiramar. Ao chegar á povoação, encontrou grande multidão de gente; e indagando a causa d'aquelle concurso, soube que o povo se dirigia á ponta de São Lourenço, onde se devia fazer uma festa, na pequena ermida de Nossa Senhora da Piedade, que havia sido edificada pouco tempo antes, e que servira de asylo a um infeliz mancebo, perseguido pelo pae da mulher que amava, e com quem acabava de desposar-se.

O amante de Margarida não escutou com olhos enxutos o narração d'aquelles amores, que deram assumpto a uma lenda, composta mais tardo, e conservado pelos habitantes de Santa Cruz. A lenda dizia assim:

I Dentro na estrada que passa De Machico a Santa Cruz, Á casa de D. Froitão Triste vereda conduz Outr'ora n'aquella casa Uma velha torre havia, Onde o vento do levante Impressão forte fazia. O dono d'aquella casa Era nobre campeão, Que nas terras da mourama Deixára o seu coração. Deixára sim; que esse orgão Occulto no peito seu, Perdêra lá n'essas terras A piedade do céu. Succedeu que filha sua, Que amára constantemente, De um mancebo do logar Se namorou ternamente. Mas Affonso não tem bens, E não é nobre infanção; Suas supplicas despreza O altivo D. Froilão. Não valeram seus gemidos, Não valem prantos, nem dor; O pae recusa attender Da filha ao intenso amor! Afastar os dois amantes D. Froitão determinou; E, em segredo, na torre A linda filha encerrou! Desde então, por alta noite, Da torre n'uma setteira, Sem ninguem o atiçar. Só se é bruxa ou feiticeira, Haja chuva ou haja vento, Vê-se alto um pharo a luzir, Que não ha ninguem d'ousado Que tal veja sem tranzir; E os mezes sempre a passar E em cada noite, certeira Aquella luz a tremer Na costumada setteira. Olhando sempre o nascente, E como em tempo marcado Por ampulheta, que o povo Tudo mui bem ha notado. Este plano ao terno Affonso Fez a prisão descobrir, E doce estrada d'esperança Veiu aos amantes abrir. Affonso fôra abrigar-se Na ermida, lá na assomada Do cabo de São Lourenço Á mãe de Deus consagrada. E quando ao cair da noite Ao seu destino se ia, Olhando a torre do nobre O pharo de Elisa via. E um suspiro de saudade Affonso, triste, soltou; E subindo a dura encosta Na pequena ermida entrou. Desde então, tambem no monte, Em pharo á noite se via Que á certeira luz da torre Sempre, sempre respondia. Affonso tentára o oceano, Qual antigo nadador, Que os mares atravessava Alta noite com ardor. Mas do velho contra Elisa Teme o duro coração; Geme o amante, mas não ousa Aggravar-lhe a posição. E n'essa hora de silencio, Hora de melancolia, Em que um mais doce pensar Nos acode á phantasia; Hora em que a mudez dos campos É lingua mysteriosa, Que diz das cousas do céu A alma religiosa; Hora votada a suspiros Do que não sabe a alegria; Hora mais louça de enlevo Que as curtas horas do dia; O mancebo que saudoso Pela donzella suspira, Velando junto do pharo Sob estes céus de saphyra; Confia ás brisas mil votos, Que destina á sua amada, Mil votos repercutidos Pelos echos da assomada! N'este estado de tormento, De lenta, lenta agonia, Se passaram doze mezes Doze mezes e um dia! II Em clara noite de Agosto, Correndo, p'ra onde irá, Barquinho que surde avante Do Seixo à banda de lá? Lua de prata n'ess'hora No céu da patria brilhava, E pelas francas das arvores Doce brisa murmurava. E os astros do firmamento, Sobre as ondas reflectidos, Pareciam n'aquelle lago Serem dos remos batidos. Nobre e formosa donzella Partia mui destemida, Com dois remeiros e um monge De São Lourenço p'ra ermida. Vestidos brancos de neve, Que negra capa occultava, Parece que o vento acinte Mau grado d'ella mostrava! Ó barco, que vás suIçando O mar com veloz corrida, Por que das rochas que passas Pedes á sombra acolhida?... É que D. Froilão, morrendo, Quiz á torre ser levado, É junto ao leito de Elisa Quiz d'ella ser perdoado. Fazendo jurar Elisa Que logo passado um dia, Vestida toda de gala, A Affonso procuraria. «Vae filha», dizia o velho, «E a poder dos rogos tens «Alcancae-me o seu perdão P'ra que eu possa entrar nos céus. «E logo que o conseguires, «Cara Elisa, filha amada, «Cara Affonso te leve á igreja «Como sua desposada! » E ao dizer estas palavras D. Froilão gemeu, gemeu... No seu ultimo suspiro Toda a terra estremeceu!! Depois de carpidos prantos Acabado o saimento, Elisa sae apressada Cumprir o seu juramento. Mas quer chegar á montanha Sem ser esp'rada do amante, Enquanto Affonso conserva O lume em pharol distante. E o haixel passou Machico, Elisa ao Cabo chegava Subindo a encosta, nos braços Do amante se lançava! E os sinos, que per si tangem Lá no alto da assomada, Dizem que Affonso p'ra ermida Conduz sua desposada. As rezas que ao céu mandaram Elisa e seu amador. Digam m‘as santos da ermida, Que as não sabe o trovador.

O infante D. Henrique, que logo depois da expedição de Ceuta fizera tentativas para que os seus navios dobrassem o cabo Bojador, continuava a manda-los frequentemente para aquelles mares. Em uma d'aquellas embarcações partiu de novo Alvaro de Sousa, depois da ultima viagem que fez á Madeira, continuando a seguir por algum tempo uma vida aventurosa.

Finalmeiite, no anno de 1430, Gil Eannes, natural de Lagos, saindo de Portugal para o mesmo fim, voltou trazendo ao infante uma planta Anastatica Hierochuntica, vulgarmente chamada Rosa de Jerichó (unico signal que podia dar-lhe de haver dobrado o formidavel cabo), que Alvaro de Sousa, piloto do seu navio, tendo descido á terra, havia colhido n'aquellas paragens.

O infante recebeu esta nova com grande alegria, concedendo a Gil Eannes honras e recompensas. Quanto a Alvaro de Sousa, desejoso de continuar n'aquella vida tormentosa, partiu com o Cabral, que seguia para os mares do oeste, em demanda de novas terras, e só voltou a Portugal no anno de 1433.

XXXI

Para entender o pensamento do mosteiro de Santa Maria da Victoria cumpre ser portuguez, cumpre ter vivido com a revolução que poz no throno o Mestre d'Aviz.

A. HERCULANO - A. Abobada

O voto de D. João I achava-se cumprido. O real mosteiro de Santa Maria da Victoria, commumnente chamado da Batalha, obra sumptuosa concebida por um portuguez, mestre Affonso Domingues, estava edificado. Havendo cegado este famoso architecto, a rainha D. Filippa alcançou de seu marido que os trabalhos fossem continuados sob a direcção de um irlandez, seu protegida, mestre Ouguet. O mosteiro fôra levantado nos contornos do logar onde se déra a batalha de Aljubarrota, em um bellissimo valle fertilisado pelo rio Lena.

As circumstancias que acompanharam o voto do Mestre d'Aviz deram ao templo a invocarão de Santa Maria da Victoria, assim como a batalha dera áquella igreja e á villa contigua o nome popular por que uma e outra são hoje mais conhecidas.

D. João fizera doação á ordem dos dominicanos do mosteiro e das terras de sua circumferencia.

D. Nuno Alvares Pereira tinha feito um voto igual ao de D. João. E quando este ultimo via cumprida a sua promessa com a edificação do convento e igreja da Batalha, já se achavam levantadas as paredes de um templo e convento que se devia erguer sobre um dos montes em que se assentava a cidade de Lisboa. Este templo foi dedicado a Nossa Senhora do Vencimento do Monte do Carmo; o convento foi o abrigo que o condestavel escolheu mais tarde contra as vaidades do mundo. Ali, á sombra do claustro, o progenitor de tantos reis, arrependido talvez de um movimento de passado orgulho, depoz aos pés da cruz a espada que tantas vezes tinha defendido a independencia nacional, e o sceptro que em Aljubarrota havia tomado a D. João de Castella.

Demando todos os seus titulos no mundo, onde não devia voltar, foi conhecido no convento pelo modesto nome de Frei Nuno de Santa

Maria. Depois de oito annos passadas no serviço do Senhor e na pratica das virtudes evangelicas o grande condestavel entregou o espirito ao Creador, na idade de setenta e um annos.

Contra os desejos do condestavel fez-se o seu enterro com extraordinaria pompa, assistindo el-rei e os infantes ao seu funeral.

D. João sentiu pvofundamente a perda de seu antigo companheiro de armas, a quem o povo ficou venerando como santo, visitando devotamente a sua sepultura.

A filha unica de D. Nuno Alvares Pereira, D. Beatriz Pereira, que havia casado com o filho natural de D. João I, D. Affonso, conde de Barcellos, primeiro duque de Bragança, tinha precedido seu pae á sepultura, e deixara descendentes. Esta successão devia legar aquelle titulo de paes em filhos, até que, em 1640, o oitavo duque de Bragança, acclamado rei de Portugal com o nome de D. João IV, fosse o tronco da actual dynastia reinante em Portugal.

XXXII

Agora resta-me unicamente o morrer como soldado da cruz.

A. HERCULANO -- Eurico

Alvaro de Sousa desembarcava em Lisboa a 14 de Agosto de 1433. Aquelle dia tinha-lhe sempre sido fatal! Anniversario de grande batalha, renovava no veterano as mais tristes recordações. Em Aljubarrota havia, mancebo, pegado em armas contra a patria; n'aquella batalha perdera o seu unico amigo, o protector de sua mocidade; n'aquelle dia tinha visto pela primeira vez a unica mulher que amara; a 14 de Agosto de 1387, saindo das masmorras de Castella, entrara em uma igreja de Badajoz, e ali fôra testemunha da morte d'aquella mesma mulher! A 14 de Agosto de 1415, expondo a vida para procurar a morte, diante dos muros de Ceuta, recebera ferimentos que o haviam inhabilitado de entrar em novas guerras! Que restava agora ao velho soldado? Chegar a Lisboa a 14 de Agosto de 1433, dia da morte do grande rei.

O Tejo estava enlutado. Os navios, os castellos, os fortes annunciavam a dor dos portugue zes. O povo em multidão carpia pelas ruas a falta do Mestre d'Aviz, titulo que mais se comprazia em dar-lhe; as igrejas abertas, o dobrar dos sinos, o choro das mulheres, tudo dava áquella cidade o funebre aspecto da morte de um homem que, pelo espaço de quarenta e oito annos, tinha tido nas mãos o governo do seu povo, cuja independencia havia conquistado com a espada, cuja ventura tinha leito, dando-lhe boas leis e liberdade.

O filho de Violante de Mendonça sentiu uma dor pungente rasgar-lhe os seios da alma! Lembrou-se do homem que nos arrabaldes de Ceuta o carregara sobre seus hombros, e derramou lagrimas de saudade! Perguntou então pelo irmão de Diogo Alvares. O condestavel já havia tambem descido ao tumulo. Recordou-se de quanto lhe devêra, quando ferido e prisioneiro tinha experimentado a bondade do seu coração; e chorou! O misero sobrevivia a todos por quem tinha tido amor, amisade e respeito! Todos os laços que o prendiam á terra estavam quebrados. Velho e cansado nada esperava do mundo. Então pensou em Deus! O sacrificio dos poucos dias que teria de viver era pequeno, mas Deus aceita a mais singela oblação que do coração lhe seja offerecida. E Alvaro de Sousa fez um voto ao Senhor!

O piloto ia alojar-se em casa de Morales, seu companheiro e amigo. Para esse fim devia passar pela Sé de Lisboa. Era noite; o templo estava aberto: Alvaro de Sousa entrou. O corpo do grande rei jazia em um ataúde de chumbo, para d'ali ser transportado a Santa Maria da Victoria, segundo a vontade do defuncto. Este ataúde estava encerrado em um caixão de pau, coberto de veludo preto, bordado de cruzes de prata. Á roda do tumulo viam-se os infantes vestidos de burel. No resto da igreja havia um innumeravel concurso de pessoas cobertas de luto, de todas as idades, sexo e condições.

O officio funebre começara. Alvaro de Sousa, de joelhos, seguiu as orações dos ministros do santuario com a mais profunda devoção.

«Senhor, tende misericordia da minha alma!

«Lavae-me cada vez mais da minha iniquidade, e purificae-me do meu peccado!

«Tende compaixão de mim, ó meu Deus, segundo a vossa grande misericordia; e apagae a minha iniquidade, segundo a multidão de vossas commiserações!

«Das profundezas do abysmo clamei por vós, Senhor!

Bemaveuturados os mortos que morrem no Senhor!»

Acabado o officio, um ecclesiastico subiu ao pulpito, fallou das virtudes de D. João I, recommendou-as como exemplo para seus filhos, louvou as acções magnanimas da sua vida, exaltou a sua piedade verdadeiramente christã; e em sublime rasgo de eloquencia, como um Massillon ou Bossnet, exclamou, finalisando seu discurso funebre:

«A verdadeira piedade não é uma profissão de pusillauimidade. A religião, longe de abater e de enfraquecer o corarão, ennobrece-o e eleva-o.

O acaso sómente faz os heroe; as virtudes domesticas é que fazem o justo. A alma fiel, no momento derradeiro, vê o mundo como sempre o vi : como uma figura que passa, como uma nuvem de fumo, que só de longe nos engana, e que vista de perto nada tem de solido e de real. Meus irmãos: no meio da grandeza e da gloria que o cercava, D. João I vae descer á sepultura! A grandeza e a gloria!... Como faltar d'estes nomes, no triumpho da morte!? Que imporia o nascimento, a grandeza, o espirito, se a morte iguala tudo, domina tudo?!»

E o neto de D. Iria murmurava em voz baixa: « Assim é, Senhor! Vós sómente sois grande! O

resto é fumo que passa! Mas a alma, formada á vossa imagem, ha de sobreviver ao corpo, que se aniquila. A vós, Senhor, dirigirei as minhas preces! Oh meu Deus, vós haveis rompido todos os meus laços; eu vos sacrificarei uma hóstia em acção de graças, e invocarei o vosso nome! Na presença do vosso povo, á entrada da vossa casa eu vos darei os meus votos!»

Os infantes e os grandes do reino ficaram em vigilia n‘aquella noite, orando junto do tumulo de D. João I. Na madrugada seguinte houve na igreja missa de pontifical, finda a qual saiu o corpo do rei popular, no meio dos prantos da multidão, e posto sobre um carro preparado para esse fim á porta da cathedral, seguiu em procissão até Odivellas, e d'ali para a batalha, acompanhado d‘el-rei D. Duarte, dos infantes, de toda a nobreza e grande parle do povo, cujas lagrimas abastavam o amor que dedicavam a D. João I.

Alvaro de Sousa acompanhara durante a noite as orações da igreja, e vira sair o prestito na manhã seguinte.

O veterano saiu então da cathedral, e foi ver o seu companheiro, com quem tinha contas a fazer. Achou-o em casa. Depois de larga conversação, Alvaro de Sousa abriu a sua mala, dentro da qual havia um segredo, onde guardava os cabellos de Margarida.

Quando de volta de Ceuta, Alvaro de Sousa, que a miudo beijava aquellas reliquias, abria o segredo para tirar os cabellos da pequena caixa onde os encerrava, achou com grande admiração sua um segundo objecto. Era um pequeno cofre de prata lavrada, contendo o diadema e as cadeias com que Fatima se adornava em Granada. Estas joias eram de grande valor e acompanhavam um papel contendo estas palavras:

« A moura de Granada nunca devia usar d'essas joias, recompensa de um affecto que não experimentou. Rica dos bens de seu pae, Fatima não as precisa para si, nem para Rachel. Possam ellas servir ao bom nazareno, que vae expor-se aos perigos de uma vida tormentosa. Que Allah o proteja! Taes são os votos de Fatima e de Rachel.»

Alvaro de Sousa havia ficado mui reconhecido ás boas mouras; mas nunca tinha leito uso do seu presente. Agora porém quiz servir-se d'elle; começando por pedir ao seu amigo, a quem devia favores e affeicão, quizesse aceitar uma d‘aquellas prendas, como uma lembrança de amisade. Então mandou cravar todas as outras joias no mesmo cofre de prata onde tinham vindo.

Emquanto porém se fazia este trabalho, o veterano partiu para Aljubarrota. Alvaro de Sousa queria despedir-se daquelles logares que tantas recordações lhe traziam a idéa, recordações tristes, mas cuja tristeza tinha doçuras. Ao chegar á villa perguntou por Brites de Almeida. A padeira dormia depois de alguns annos o seu ultimo somno na igreja de Santa Maria da Victoria, onde acabava de ser sepultado o maguanimo rei que a fizera edificar.

A casa de Brites de Almeida não existia. Alvaro de Sousa foi então ao convento erguido sobre o terreno em que a grande batalha tivera logar. Depois de visitar o mosteiro entrou no templo. Ali orou por Margarida, por D.Violante, por Luiz de Sousa; orou por Frei Francisco, por Brites de Almeida; pediu ao céu o auxiliasse no seu proposito, e poz-se em caminho de Lisboa.

Alguns dias depois de chegar áquella capital, recebia das mãos do seu antigo o cofre de prata, com as bellas joias que haviam feito o espanto do artifice que as havia cravado. Entrou então no seu quarto. Abriu a mala, tirou d'ella os cabellos de Margarida, e ajoelhando, beijou-os; e no mais santo recolhimento, fechou-os no cofre de prata, exclamando: «Faça-se o ultimo sacrificio! Recebei-o, Senhor!» E saindo de casa dirigiu-se á igreja do Carmo, onde jazia o condestavel, e ali entregando nas mãos do superior do convento o pequeno cofre com os cabellos de Margarida, pediu-lhe quizesse abençoa-lo e pô-lo aos pés da virgem, collocada no altar mór.

Satisfeito este desejo, teve uma longa pratica com o mesmo religioso; finda a qual, voltou a casa do piloto. Tres dias depois saiu d'ali para não voltar. Desde esse tempo ninguem mais ouviu o nome de Alvaro de Sousa!

XXXIII ...................entrei os muros Da veneranda Ceuta, insigue preço De sangue regio, e d'um martyrio illustre.

ALMEIDA GARRET - Camões.

A 28 de Agosto de 1437 a armada portugueza aportava em Ceuta, onde devia demorar-se alguns dias. O infante, os cabos de guerra que commandavam, os bispos, os religiosos, os cavalleiros das ordens de Christo e d'Áviz, que haviam embarcado sobre aquelles navios, tinham descido a terra, e reviam com prazer os logares que vinte e dois annos tinham illustrado por seus feitos.

Emquanto os infantes D. Henrique e D. Fernando concertavam com D. Pedro de Menezes o plano que deviam seguir para atacarem Tanger, emquanto os capitães visitavam a praça, um religioso saia da cidade, e subia vagarosamente a encosta do Abyla. Parecia octogenario. Seu porte magestoso, suas feições, que conservavam a maior regularidade, a alvura de suas cãs, a bondade que se lhe debuxava na phvsionomia, dispunham em seu favor aquelles que o encontravam. O monge havia chegado ao cimo do primeiro outeiro, e batia á porta de uma pequena cabana, que parecia reedificada de novo.

Uma mulher da meia idade veiu fallar-lhe a perguntar-lhe o que o trazia ali. O monge então pediu-lhe quizesse dizar-lhe quem habitava agora aquella casa, e de quem a tinham herdado ou alugado. A mulher com espontanea confiança respondeu n'estes termos:

«Quando os nazarenos se apoderaram de Ceuta, os mouros que a habitavam, fugiram para os montes visinhos, onde se conservaram algum tempo. Mas depois de passados os primeiros annos, tendo D. Pedro de Menezes conservado a paz, alguns dos antigos habitantes desceram das montanhas, e vieram de novo fixar-se na praça. Meu pae foi um d'esses. Com elle regressei a Ceuta; mas a nossa casa tinha, como muitas outras, sido demolida. N'estas circunistancias, meu pae, que deixara quanto possuia na sua casa, achou-se pobre. Mas Allah é grande! Meu pae era antigo amigo de duas mouras velhas que habitavam fóra da praça, n'esta mesma cabana onde vos fallo. A mais velha estava no seu leito da morte; Rachel, a mais moça das duas irmãs, era tambem velha; e, paralytica desde a infancia, não podia ser util a Fatima, que chorava, não por si, mas pela irmã, que amava ternamente e a quem não podia valer. Quando meu pae lhe expoz o motivo da sua visita, a velha moura, animada de uma alegria que ha muito não sentira, estendeu a meu pae uma mão já fria e descarnada, e exclamou: Allah é grande, e Mahoma, o seu pronheta, é quem conduz os teus passos á morada das Abencerrages! Eu vou morrer, e morro socegada; mas escuta primeiro o que tenho a dizer-lhe. Rachel, a minha Rachel, perde em mim uma metade da sua vida. Trabalha por consola-la, até que ella vá reunir-se comigo no paraiso. Debaixo do meu leito acharás um cofre; pequeno é elle, mas ainda encerra grande riqueza. Tudo que ali está será teu; mas jura-me, jura pelo propheta que tratarás Rachel com amor de pae, que lhe não negarás a menor cousa que possa desejar. Depois da sua morte disporás das prendas do cofre como melhor te aprouver. » Meu pae jurou, e logo depois veiu chamar-me á praça, onde eu havia ficado. N‘essa noite nem elle nem eu dormimos. Os suspiros de Fatima, os prantos de Rachel, não nos deixaram fechar os olhos. Uma hora antes de amanhecer, quando uns e outros tinham cessado, ouvimos um gemido que vinha do leito de Rachel. Ergui-me então para ver se a pobre paralytica soffria. Rachel exhalára a alma n'aquelle suspiro! Fatima apenas ouviu que sua irmã tinha acabado, pediu-nos chegassemos o seu leito junto ao d‘ella. Havendo nós satisfeito o seu desejo, a boa velha, que já não podia erguer a cabeça, pegou nas mãos de sua irmã, que beijou com ternura, e depois de um momento de silencio, com os olhos ditos n'aquelle cadaver, pronunciou a custo estas palavras: «Allah é verdadeiramente grande! Eu vou seguir-te, Rachel!...» E expirou ! Depois da morte das duas irmãs, fiquei aqui vivendo com meu pae, que reedificou a casa, E quanto posso dizer-vos. Mas, acaso conhecieis vós aquellas mouras? Pareceu-me ver-vos embeber uma lagrima que vos assomava aos olhos, quando vos fallei da sua morte?»

O religioso disse-lhe então:

«Não é esta a primeira vez que eu piso as terras da Africa. Ha vinte e dois annos estive em Ceuta; habitei então esta mesma casa e recebi a hospitalidade de Fatima e de Rachel. Os seus beneficio seguiram-me até longe d'aqui. Agora, que os soldados de D. Duarte deviam passar os mares para combater de novo sobre estas paragens, eu, que me alistei na milicia de Christo, tive, como soldado obediente a meus superiores, que deixar o repouso do mosteiro, que habito ha quatro annos, para vir espalhar a religião de um Deus de paz entre os que a desconhecem. Chegando a Ceuta, o meu primeiro desejo foi visitar esta cabana, postoque estava certo de que os seus antigos moradores não podiam existir. Já cumpri o meu desejo; agora resta-me agradecer-vos a bondade com que haveis satisfeito o meu pedido.»

E tendo-se despedido da moura, Frei Alvaro da Assumpção descia de novo o outeiro, dirigindo-se á praça.

Em poucos dias a frota fazia-se de véla para Tanger. Frei Alvaro tinha embarcado na armada com o resto dos que compunham a expedição.

XXXIV Codro, nem Curcio, ouvido por espanto, Nem os Decios leaes fizeram tanto.

CAMÕES - Lusiadas.

Junto d'elle orava com fervor um sacerdote respeitavel. Tinha nos labios o perfume do céu e nas vistas candidas a placidez de uma sã consciencia.

MENDES LEAL JUNIOR - O Infante Santo

A armada chegou a Tanger. O ataque da cidade começou logo; e os portuguezes cobriram-se ali de gloria. Á testa dos bravos que mais se distinguiram n'esta fatal guerra estavam os infantes D. Henrique e D. Fernando. Depois de alguns dias passados em terriveis combates, veiu finalmente o momento supremo. Em oito horas deram os infieis oito differentes ataques, renovando sempre a sua gente, e sendo oito vezes rechassados. Não podendo porém romper as trincheiras, d'onde os portugueses destemidamente os repelliram, largaram-lhes fogo e retiraram-se.

A noite passou-se da parte das christaos em apagar o fogo. Sem viveres e sem agua, os soldadas de D. Duarte matava os cavallos para não morrerem á fome; a sede abrazava-os! Comtudo, uma chuva copiosa veiu em soccorro d'aquelles bravos. Mas o seu esforço era inutil! Uma negociação com os mouros tornava-se indispensavel.

Pelo tratado que concluiram deram os mouros em refens o filho de Zalabençalá, o mesmo que perdêra Ceuta; e para segurança d‘esta praça nas mãos dos christãos entregaram estes o infante D. Fernando. Os portuguezcs tiveram desde logo a permissão de sairem de suas trincheiras e de se retirarem para as embarcações. Muitos haviam perdido as vidas diante de Tanger. Outros tinham caído em poder dos infiéis o haviam sido levados para as masmorras da cidade. N'este numero ficára Frei Alvaro da Assumpção.

A nossa penna recusa-se a narrar minuciosamente esse episodio interessante da historia de Portugal que tem por heroe o infante santo. Este principe, modelo da mais egregia virtude, cuja resignação e heroismo nunca serão assas louvados, foi conduzido a Fez, onde se tornou o objecto constante de uma acintosa perseguição. Obrigado a viver dos mais grosseiros alimentos, constrangido a submetter-se aos mais rudes trabalhos, nunca a sua constancia foi abalada.

Entregue a completa solidão, o santo infante só desejava poder fallar com alguns dos fieis capitães que o haviam seguido a Fez, para manifestar-lhe a sua gratidão, e anima-las com a sua coragem.

Portugal apreciava a grandeza do sacrificio! D. Duarte desejava resgatar seu irmão predilecto; mas o poder ecclesiastico negava-se a dar o seu consenso para que as igrejas do verdadeiro culto voltassem ao poder dos mahometanos, o que aconteceria entregando-se Ceuta. N'estas circumstancias, deixaram o infante gemer nos ferros, e aquella praça ficou pertencendo aos portuguezes!

Passados seis annos no mais duro captiveiro, sentindo D. Fernando approximar-se o momento do seu resgate, pediu a permissão de fallar com um religioso, tambem preso em Fez. O infante exaltava de alegria ao ver chegar aquelle instante porque ha tanto anhelava. Frei Gil, o seu confessor, havia morrido. Em seu logar veiu Frei Alvaro da Assumpção receber as ultimas palavras do principe constante. O que entre elles se passou n'aquella hora suprema; as confidencias reciprocas, as santas aspirações de ambos; os affectos religiosos que animavam o moribundo, as orações que dirigia ao céu em acção de graças, por cuviar-lhe a morte depois do martyrio; as saudades que mandaram á patria; os suspiros que exhalaram aquellas almas, purificadas pelo tormento, só Deus os ouviu! Fóra das muralhas do cárcere tremendo nada transpirou!...

Na manhã seguinte, quando o chefe mouro que visitava diariamente as prisões entrou na masmorra infecta que encerrava o infante D. Fernando de Portugal, achou dois cadaveres estendidos sobre o solo humido e frio d'aquelle subterraneo!

A alma de Frei Alvaro da Assumpção, quebrando a fragil cadeia que a prendia ao corpo, seguira a do santo infante á mansão celeste, para reunir-se à de Margarida!

S. Vicente de Paulo

S. Paulo aos Corinthios

Este facto é historico: a differença está em que o soldado a quem D. João I carregára sobre seus hombros tinha perdido um olho, combatendo ao lado do rei na batalha de Aljubarrota, em vez de o ter feito nas terras da Africa.

Á voz de Henrique, diz um anctor inglez, inspirado pelo céu. o gruio do cominercio e da navegação depois de muitos seculos sepultado nas profundezas do Occeano, acorda, e arremessando-se sobre a superficie das ondas, corre a reunir os mundos separados. - M. Murphy.

Aquelle cabo do santo, sendo desde então pela de Cabo de S. Vicente.

Tradição popular da ilha da Madeira, esta lenda havia sido posta em verso pela auctora. Annos depois uma pessoa de sua amisade aproveitou o mesmo assumpto para um romance em verso. Das duas composições fizemos esta que agora damos a nossos leitores.