Tempestades do coração: Edição para o ELTeC Romance contemporâneo Moreira, João Baptista de Matos (1845-1899) Criação do HTML original Madalena Rato Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 73261 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Tempestades do coração: romance contemporâneo João Baptista de Mattos Moreira Biblioteca Nacional de Portugal Tempestades do coração: romance contemporaneo J. B. de Mattos Moreira Typographia Portuguesa Lisboa 1867

português de Portugal Converted by checkUp script for new release Adicionado à coleção ELTeC

JARDIM DO POVO

BIBLIOTHECA ECONOMICA

TEMPESTADES DO CORAÇÃO

ROMANCE CONTEMPORÂNEO

POR

J. B. DE MATTOS MOREIRA

VOLUME I

LISBOA

TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA

35, Travessa da Queimada, 35

1868

PARTE I

Flores e espinhos

I

A festa

As raparigas da aldeia de... appareciam, risonhas e alegres, ás suas janellas, na manhã de vinte e tres de junho, vespera do dia do festejado S. João. Os corações das folgadas jovens palpitavam jubilosamente, ao lembrarem-se das horas venturosas que, em dia tão festivo, deviam passar, entregando-se aos prazeres da musica, da dansa, e, sobre tudo, ao do amor.

Amor! palavra que tanto encerras! que tanto poder tens! Umas vezes, guias-nos pelo caminho da felicidade, outras, indicas-nos o trilho, apenas, e deixas-nos perder no deserto arido das paixões! O amor é similhante ao mar, que a uns enche de riquezas fabulosas, e a outros cava a sepultura!

O dia de que fallamos passou-se phantasiando folgares, e desenrolando esperanças, por consequencia, alegre. Não será a esperança uma alegria?

O crepusculo da tarde aproximava-se -- o sol ia esconder-se no horisonte.

Via-se descer pelos torcicollos da serra o lavrador afanoso, que voltava á choupana humilde, cheio de fadiga, para confortar o estomago e descansar o corpo.

O descahir da tarde na aldeia é um quadro magnifico! Que sentimento! que poesia!

Ao longo da encosta vê-se caminhar, qual caravana de peregrinos, as mansas ovelhinhas, tão mansas que uma creança basta para dominar e guiar um rebanho enorme. Os guizos e pequenas campainhas, que pendem dos pescoços dos brandos animaesinhos, formam uma orchestra tão estranha, que, senão nos delicia o tympano, encanta-nos o coração.

Mais além, na quebrada da serra, divisa-se a ceifeira varonil, que avansa lentamente, na frente de dois soberbos boisinhos. O chiar monotono do carro que, ao perto, nos causa verdadeiro desprazer, quando se ouve em distancia tem um não sei que de agradavel, que diz optimamente com aquella solidão retoucada e verdejante.

Como tudo é suave e melancolico! Como o coração nos diz saudade! Como o mundo se apouca, e a phantasia se alarga!

Atemos o fio da narração.

As creancitas da aldeia de que fallamos soltavam á brisa o seu lêdo sussurrar, verdadeiros passarinhos na primavera. Cada uma vergava sob o peso d’um bom braçado de lenha, que ao matto haviam ido cortar, para fazerem a tão desejada fogueira ao santo pastor.

Alegres e contentes, pulavam, embevecidas por aquelle folgar tão seu. As fogueiras de S. João e Santo Antonio são o pharol da infancia.

A festa devia de ter logar n’um sitio verdadeiramente campestre. Era um terreiro circumdado por muitas arvores d'uma belleza e frondosidade incriveis. Pairava pela athmosphera um odor agradabilissimo, provindo não só das flores silvestres, que de todos os lados cresciam, como tambem dos jasmins de Italia, e rosas diversas, que povoavam um pequeno, mas elegante jardim, delicioso tapete de boninas e verdura, sobre o qual se elevava, como santuario pacifico, a modesta casinha que dominava aquelle ameno quadro da natureza em flôr.

A noite acabava de desdobrar o seu manto de sombras. As estrellas, lá do firmamento, lançavam seus olhares mysteriosos por sobre a natureza em trevas. Era tempo de accender a magica fogueira, e fazer subir os recreativos e indispensaveis foguetes. O rapazio, ancioso como estava, não fez demorar uma operação que tanto prazer lhe causava. Não tardou que grossas golphadas de fogo se elevassem em elegantes espiraes, e que o troar das bombas esturgisse.

Tudo era alegria. Trocavam-se risos, succediam-se exclamações, finalmente, sentia-se uma algaraviada indefinivel.

O já citado terreiro começou tambem de illuminar-se, por via d’uns balões, pendentes das arvores que torneavam o recinto.

As garbozas camponezas e galhardos rapazes aflluiam de todos os lados, e esperavam, cheios de anciedade, que a musica se fizesse ouvir, para a dansa começar.

Trocavam-se palavras de amor, n’essa linguagem do campo, que tão pura é, tiroteavam-se olhares apaixonados e agitavam-se os corações campesinos n’aquelles peitos adustos.

Rompeu, finalmente, a improvisada orchestra, e de logo se viram pares diversos entregues ao prazer da dansa.

Que de jubilo se respirava em tão singelo baile! Todos os rostos denotavam alegria, todos os corações diziam prazer!

Que differença havia en re aquelle baile campestre e os da alta sociedade! N’estes, a vaidade impera, a intriga fomenta-sa e o fingimento campeia: n’aquelles, a candidez renasce, a virtude caminha e a franqueza jamais desapparece!

Pouco depois, entraram na improvisada sala de baile duas senhoras, e um ancião respeitavel. Os camponezes descobriram-se, e conduziram os recem-chegados para um logar reservado, recebendo em paga os mais cordiaes agradecimentos pela deferencia que haviam tido.

Cumpre-nos dizer quem eram estes novos personagens. O ancião era um antigo militar, que na grande contenda da emancipação da patria fôra um heroe esforçado, distinguindo-se sempre, pelo que tinha sido ferido mais d’uma vez. Sendo reformado, não só pela edade, como também pela decrescencia de forças, que deixara no campo da batalha, retirara-se para a aldeia de que fallamos, onde vivia soffrivelmente com o seu soldo de coronel. Depois das lides bellicas da mocidade, entendera, e entendera bem, que só o campo poderia dar verdadeiro descanso aos seus membros debilitados pelas fadigas da guerra. As flores são uma cama maravilhosa, as copas das arvores um docel magnifico.

Raymundo de Almeida, que assim se chamava o velho militar, vivia uma vida pacifica e serena, no centro da natureza em galas, que o rodeava, e no meio das caricias e mil attenções da sua querida filha e da sua estimada esposa, que eram as senhoras que acompanhava.

A esposa de Raymundo era D. Margarida, senhora que primava em bôas qualidades, e que seguira sempre seu marido, durante as vicissitudes da guerra, com a maior resignação e coragem.

A filha idolatrada de casal tão digno tinha o lindissimo nome de Adriana. Era bella como os anjos, meiga como uma pomba! O moreno ligeiro do rosto dava-lhe uma tal expressão, um sentimento, impossiveis de descrever-se. Os olhos, de brilhantes que eram, faiscavam. Eram negros, como as trevas, e radiantes como o sol. Vastas pestanas lhe formavam uma moldura sedosa, florestaes sobrancelhas lhe serviam de encantador docel. A phisionomia de Adriana respirava sentimento. Dissera-se a paixão incarnada. A vida do rosto, misturada com uma pronunciada ternura, fazia sentir por aquella virgem mais de que amor, adoração!

Adriana era muito querida de seus pais não só pela muita applicação que tivera ao estudo, como pela obediencia e meiguice que a caracterisavam. E não só seus paes a estremeciam, mas todos que a rodeavam, e mesmo muitos que só tinham conhecimento das suas virtudes. Nunca um desgraçado se afastou de Adriana ralado pela fome. Os seus haveres mais pertenciam aos pobres que a si propria. Estava até alta noite fazendo camisinhas, jalecos, calças, vestidos, para dar ás creancinhas necessitadas, e que o inverno não poupava. Em conclusão, Adriana era, por assim dizer, a caridade animada.

-- Como é bom, e quanto me commove a alegria d'esta pobre gente, disse Adriana a seu pae. Agrada-me infinitamente a singelesa d'esta festa popular. Que rostos tão francos, que pareceres tão leaes! Outro tanto se não observara n'aquelle baile a que o pae me levou em Lisboa, quando lá estivemos no inverno.

-- És uma tontinha, uma creança, não sabes o que dizes, replicou o antigo militar, sorrindo.

-- Sei, sei. Olhe, meu pae, quer ouvir da creança a descripção d'um baile?

-- Quero sim; isso me divertirá.

-- O baile é uma hypocrita terribel. Esconde debaixo do sorriso fingido do galanteio affectado, os mais vis sentimentos. O baile é, muitas vezes, o calice que abriga futuras desgraças, e mesmo, crimes.

Exemplo: A creança inexpriente é levada pela primeira vez a qualquer baile: ao transpôr o limiar da porta, tiram-lhe a venda, que até então lhe cerrava os olhos, e deixam-lhe ver, atravez do clarão deslubrante das luzes, um sem numero de sombras confusas, que lhe passam rapidamente pela imaginação, deixando-lhe o desejo de assegurar.

«Que significa tudo isto? pergunta a pobre sentindo-se deslumbrada. Que é que sinto e que vejo, meu Deus? Todos me acham bella, adoravel, todos dizem amar-me... Será lisonja? Não, aquelles sorrisos não enganam, não ha duvida que me veneram. Oh! quanto sou feliz! Porém, será tudo isto um sonho?!» Sim, sim, um sonho, e que horrivel é o despertar! Que de lagrimas a mulher derrama, ao vêr-se victima da sua vaidade, quando conhece, mas já muito tarde, que fôra personagem d'uma comedia, a cujo ensaio não assistira, que dera assumpto a algumas columnas de folhetim, que servira, finalmente, de alvo á critica, aos commentarios irrefflectidos e perigosos, suggeridos por uma apparencia duvidosa. -- Ha duas coisas que obrigam a mulher a refletir no que disse, meu pae: uma chega quasi sempre muito cedo -- e esta é a mais prejudicial -- a outra apparece demasiado tarde. A primeira é a deshonra; a segunda, uma serie de desillusões espinhosas. Se a reflexão escapa d'aquella, esta lança-lhe as mãos, e segura-a com vehemencia. Isto é evidente, meu querido pae. No primeiro caso, a mulher embebida em falsos prazeres, recebendo amoravelmente galanteios sem nexo, deixa-se arrastar pelas seductoras palavras d'um homem sm coração até á morada da deshonra, cuja janella só o infame descerra depois da triste se despenhar. A luz torna-se portanto, desnecessaria, pois a sua apparição fôra demasiadamente tardia. No segundo caso, as phases são bem differentes: a desgraçada tem vivido cercada de enganos, de ephemeras agradabilidades, de devaneios chimericos, não sabendo o que é amargura nem goso. -- Confundindo estes dois sentimentos, para ella ha apenas o viver. Quando as rugas começam de invadir-lhe o rosto, é então que essa mulher, do mundo chamada, concentra na mente todas as phases do seu banal passado, e termina por convencer-se de que fôra apenas um brinco dos homens, a virgula d'uma oração. E sabe, meu pae, quem fez parar e refletir essa mulher? foi o despreso dos homens, que, quando joven, lhe beijavam as plantas, e que, depois, vendo apenas restos dessa bellesa tão contemplada, passam juntos a ella, sorrindo malignamente, e como que envergonhados de a terem venerado. Então, a infeliz observando o pouco que vale, lastima as miserias de que o mundo transborda, e soffre, soffre muito, porque é a primeira vez que o coração lhe diz sentimento. A clausura é o seu unico linitivo; por isso, apressa-se em abraçal-a, e em tribunar a Deus que os homens nunca lhe souberam inspirar -- amor! Já vê, meu bom pae, que um baile é, muitas vezes, o prologo do infortunio, o assassino da alegria.

Adriana sentia-se fatigada. Fitou tristemente o primeiro objecto que se lhe deparou, conservou-se immovel. A serenidade do rosto tornava-a divina: parecia tocada pelo dedo da inspiração.

Raymundo, o honrado militar, estava como que assombrado; recopilava e admirava em silencio as verdades amargas que sua filha proferira. Não sabia que responder; similhante dissertação maravilhara-o; julgara rir-se das disparatadas considerações de sua filha, e via-se forçado a curvar a cabeça em frente do talento.

Entretanto, a festa estava cada vez mais animada. Aquellas innocentes almas, cuja profundura era assás limitada, gosavam tanto, ou mais, que o avaro quando se revê nos seus thesoiros. O folgar era commum.

O leitor deve, certamente, ter assistido já a alguma d’estas scenas campestres, em que o prazer é rei. O homem do campo com pouco se diverte; não é preciso muito tambem para o entristecer. Basta o tropeçar de qualquer homem para o alegrar -- basta o leve soffrimento d'uma mulher para o consumir -- uma anecdota espirituosa enche-o de verdadeira satisfação, uma historia sentimental commove-o, torna-o taciturno, martyrisa-o. Escuta a narração com uma anciedade cohstante, e, quando ouve citar, por exemplo: -- a morte da mulher perjura, assassinada pelo amante zelozo -- o viajante assaltado por terriveis bandidos, que, depois de lhe roubarem a bolsa, o amarram ao tronco d’uma arvore -- o naufrago seguro a uma das vergas, e luctando com a furiosa agitação das ondas, ou, finalmente, outra qualquer scena tenebrosa, sente um horrivel calefrio, treme como a bandeira agitada pelo vento, cerra os olhos, mesmo sem querer, e não cahe desmaiado, porque o varapau que tem ao lado o ampara. N'essa noite dorme mal, e sonha com o ponto lobrego da narração ouvida. Este é propriamente o bom camponio, o camponio superficial, aquelle que coça a cabeça quando lhe fallam, porque, cumpre notar: ha duas cspecies de camponios: ha o camponio estupido e o velhaco. Aquelle que esboçamos pertence á primeira especie.

O camponio velhaco é terrivel: desconfia de todos, até de si proprio. Quando apparece no logar um casaca, como elles dizem, olham-n’o atrevidamente, dirigem-lhe ditos asnaticos, mas agudos, e não descansam sem o apuparem, como se fôra um toiro, ou sem lhe fazerem conhecer a fortaleza do braço, e a rigidez do cajado.

Ninguem tranzija com elles, que sahe logrado. Em quanto um olho simula chorar, o outro procura alguma coisa a que deitar a mão.

Os camponezes continuavam dansando. Adriana contemplava-os com uma especie de singela, mas tocante satisfação. A alegria desenhava-se em lodos os rostos. Os amores novos brotavam aqui e ali, espontaneos e sinceros; os antigos estreitavam-se, á força de mil protestos d'uma lealdade eterna; e se alguns arrufos se levantavam, como uma nuvem negra, n'aquelle céu todo esperanças, depressa se dissipava com o encanto de novas e doces expressões.

Passavam-se as coisas d’este modo, quando um successo imprevisto veiu interromper a alegre festa.

Eis o caso: Havia perto do logar festivo uma pequenina casa, que servia de guarida a uma desgraçada familia, que vivia rodeada da maior pobresa, quasi na indigencia.

De repente, viu-se aquelle miseravel albergue invadido por um terrivel incendio, occasionado, provavelmente, pelo lume de algum foguete, que penetrasse atravez das enormes fendas que havia no telhado.

Uma mulher sahiu d’aquelle ponto inflammado, gritando com verdadeiro desespero:

-- Salvem, pelo amor de Deus, o meu querido filho! É o meu unico amparo e consolação! Salvem m’o! salvem-m'o! exclamava a desventurada mãe com uma expressão horrivel.

As chammas redobravam de intensidade; cada vez se tornavam mais medonhas, não se atrevendo ninguem a affrontal-as. Não se via o menor movimento; dissera-se um conjuncto de estatuas.

-- Ai! que me morre o meu filho! bradava com extrema angustia a infeliz mãe.

Do repente, viu-se apparecer, afastando a populaça, um moço de parecer resoluto, e dirigir-se á velhinha, que derramava abundantes lagrimas.

-- Onde está seu filho, boa mulher?..

-- Além, entre as chammas que o matam! Ó meu filho! meu pobre filho!

O desconhecido não ouviu mais nada; precipitou-se por entre a multidão, com a celeridade do raio, e embrenhou-se n’aquella immensa fogueira, desapparecendo á vista dos espectadores de tão tenebrosa scena.

Que terrivel theatro! A cratera do Vesuvio não infundiria maior respeito.

Foi tal a admiração dos circumstantes, que ficaram como petreficados. Apenas um grito se fez ouvir: era Adriana que havia desmaiado.

A pobre menina, extremamente sensivel e timida, não poderá assistir a espectaculo tão terrível.

Apenas vira a casa em chammas, a pobre mãe clamando soccorro para seu filho, a immobilidade, finalmente, de todos, que assim commettiam, quasi, um assassinio, pois que não corriam, não a dominar o incendio, que isso era talvez impossivel, mas a salvar o infeliz que estava prestes a ser victima da horrivel catastrophe, vendo esta impassibilidade culpavel, sentiu-se indignada. A indignação tão bem cabida succedeu um tremor convulsivo. Depois, o apparecimento do arrojado desconhecido, que intrepidamente se lançara entre aquellas ondas ardentes, fizera-a vacillar. O interesse por elle fôra momentaneo. A perplexidade apoderara-se da virgem. Devia applaudir a coragem do desconhecido? O dever, a humanidade, diziam-lhe: -- sim; porém, o louco ia certamente succumbi no centro d’aquellas linguas de fogo; por isso, o coração dizia-lhe: -- não.

Taes sensações foram superiores ás suas forças; cerraram-se-lhe os olhos, e desmaiara em seguida.

O terror desenhava-se em toda a sua hediondez nos rostos adustos d'aquella massa bruta.

A athmosphera apresentava um aspecto afogueado, que parecia o terrível sorriso do assassino feroz. O ar quasi que escaldava. O chammejante montão recrescia de hediondez. Todos julgavam morto o intrepido desconhecido.

De repente, viu-se apparecer, como um phastasma de fogo, por entre as labaredas errantes, o destemido moço, trazendo nos braços aquelle por quem arriscara a vida! Dissera-se, ao vel-o atravessar aquelle redemoinhar de fogo, que Deus o tornara incombustivel, para poder praticar uma acção tão heroica e generosa!

A admiração, o espanto, a alegria foram geraes.

Ouviu-se um -- Ah! -- unisono, que faria inveja ao melhor ensemble.

O povo custava-lhe a acreditar o que via.

-- Foi um milagre! exclamavam algumas mulheres.

-- Aquillo não é homem, é o diabo! accrescentavam outras, benzendo-se.

-- Isto só por bruxaria! Cruzes! cruzes! que é coisa má!

A pobre mãe, essa, não soltava uma palavra, sequer: havia ajoelhado, e orava!

II

A electricidade applicada ao amor

Ninguem se atreve a duvidar do poder da electricidade, nem tão pouco da sua rapidez. Os physicos mais abalisados teem tirado d’ella vantagens numerosas, como é sabido. Pois apesar da proficiencia dos peritos, apostamos que muitos ignoram que o amor possue esse fluido em grande escala. Qual será a rasão porque, muitas vezes, nos sentimos estremecer em presença d'uma mulher que vemos pela primeira vez? Sabe, leitor, como se deve chamar a esse estremecimento involuntario? Electricidade. Sim, que não é outra coisa. E que sensiveis choques muitas vezes experimentamos!

Ora, é sabido, que a electricidade faz-se sentir em dois pontos, não muito distantes, quasi ao mesmo tempo. É essa a rasão porque, ao entrarmos n'uma sala adornada por gentis senhoras, dirigimos a vista, ao acaso, sem tenção alguma, para um logar certo, onde deparamos com uma firmeza de olhar, e expressão taes, que estremecemos e fazemos estremecer a mulher que nos fita: eis a electricidade. Os dois corações comprimentam-se, praticam rapidamente na sua linguagem desconhecida, e promettem desde logo uma estima tão mutua, quanto verdadeira.

Foi isto justamente que succedeu a Adriana e ao arrojado desconhecido. Apenas se viram, conheceram que a indifferença não existia para os separar.

No livro da vida de cada um d’elles, aquelle dia devia figurar como uma das paginas mais importantes!

Depois do deploravel accidente, e, ainda mais, depois da inesperada salvação do infeliz rapaz que, por pouco, ia sendo victima do terrivel incendio, Raymundo offereceu a sua casa para provisoria habitação dos desgraçados que haviam ficado sem abrigo.

-- Obrigada, sr. Raymundo, disse a pobre mãe. A sua bondade está sempre a ver-se.

Depois, voltou-se para o salvador de seu filho:

-- E ao senhor que hei-de dizer? Como poderei agradecer-lhe o serviço que me prestou?

E as lagrimas corriam-lhe pelas faces, serenas e puras, como o orvalho matutino cedendo á influencia do sol. Eram lagrimas que exprimiam o supremo reconhecimento; eram perolas brotadas da fonte mais pura; o deposito d'aquelle liquido era o coração.

-- Não tem que me agradecer, bôa mulher; fiz o meu dever. Além d'isso, os anjos presidem sempre a estas eventualidades, o que faz desapparecer a menor sombra de perigo. Isto foi dito pelo desconhecido, n'um tom insinuante e olhando para Adriana, que, cuidadosa, fornecia alguns soccoros ao salvado das chammas, o qual haviam deitado sobre um banco de musgo.

N'este ponto tornou a eletricidade a operar. Os dois corações estremecem.

O barco fôra lançado á agua. Qual será o resultado da viagem? Será amena, ou tempestuosa? Eis o que ninguem póde prever.

Se apraz ao leitor, seguiremos o baixel e observaremos os factos. O qye não posso é assegurar-lhe a bondade da viagem, bem sabe quanto ellas são variaveis e differentes. Prepare-se para gosar lindas manhãs de abril, soberbas tardes de outono, e agradaveis noites de estio; espere ver jardins recheados de odoriferas e gentis flores, lagos replectos de magia, alamedas extremamente copadas, e onde se respira amor, etc., porém, conte tambem com tenebrosas noites de inverno, com campos cheios de phantasmas, com raios e trovões, emfim, com mil coisas que desgostam e atormentam.

O meu caro leitor vae examinar um quadro, cuja frente é candida e meiga como uma pomba, sendo o reverso, pelo contrario, negro e pavoroso como uma coruja.

A vida é uma medalha: d'um lado, lyrios e rosas, do outro martyrios e saudades. Cada ser tem a sua medalha, consequentemente, todos teem angustias e praseres.

III

Apresentação

É tempo do leitor conhecer o heroe do accidente narrado. Eis a sua certidão: D. Jorge de Portugal e Mascarenhas, solteiro, filho de D. Pedro de Portugal e Mascarenhas, marquez do Açude, e de D. Leocadia, etc. Natural de Lisboa. Edade 23 annos. Signaes caracteristicos: olhos escuros como o gaz do Porto, bocca regular, nariz idem, rosto pallido, fronte elevada, cabellos negros, porte airoso e maneiras distinctas. N. B. É conde do Pinhal Viçoso.

Agora já conhecem o temerario moço.

Se o encontrarem alguma vez, olhem-n'o com admiração, e felicitem-o, se quizerem.

Continuemos.

Antonio, que assim se chamava o salvado das chammas, era um rapazote dos seus quinze annos. Apesar da pouca edade, era elle que trabalhava para sustentar sua mãe.

A pobre creança foi levada paara casa de Raymundo d'Almeida, onde lhe foram ministrados os soccorros necessarios.

Quando conduziam o doente, Raymundo aproximou-se de D. Jorge, dizendo-lhe:

-- É tempo de lhe certificar o quanto me maravilhou a sua extrema audacia; e bem assim de encarecer, quanto possivel, a nobre acção que praticou. Ha factos a que só a temeridade póde dar nascença.

-- Talvez que o arrojo fosse grande, mas a satisfação que sinto, pelo resultado do que fiz, ultrapassa essa grandeza.

-- Bem respondido, atalhou Raymundo; similhante resposta ennobrece duplicadamente quem a profere, isto quando ella parte do coração, como agora aconteceu.

E apertou a mão do fidalgo.

-- Se não fosse indiscripção, continuou o velho militar, perguntava a quem tinha tido a honra de apertar a mão?

-- Quem recebeu essa fineza, foi Jorge de Portugal e Mascarenhas.

-- O sr. conde do Pinhal Viçoso?! Desculpe v. ex.ª tel-o tratado com demasiada franqueza; porém, não o conhecia pessoalmente, apenas o seu nome me não era estranho.

Cumpre notarmos que este curto dialogo fôra proferido pelos inlerluctores, pelo prado, sendo acompanhados por Adriana e sua mãe.

Adriana, ao saber a nobreza de Jorge, soltou um gemido imperceplivel.

-- Descansemos um pouco, meu pae, disse ella. Estas pedras, cobertas de verdura, estão mesmo a dizer-nos que nos sentemos. Não desprezemos o conselho.

Depois accrescentou. sem que ninguem ouvisse, mechendo apenas os labios:

-- Ah! coração, que me enganaste!

Effectivamente, aquella alma tão simples e pura, soffrera uma dôr terrível. O seu pensar de vinte annos sonhára n'um momento todas as venturas imaginaveis. A idéa d’aquelle moço tão ousado, cuja apparição repentina viera tanto a proposito, borbulhava-lhe constantemente nos sentidos, com a effervescencia da agua em cachão. Não sabia por que, mas sentia que Jorge lhe não era estranho. Parecia-lhe que havia já muito que se conheciam e estimavam, e que essa declaração de nobreza vinha destruir todo arraigado affecto, collocando entre elles uma barreira impenetravel. O que é a imaginação aos vinte annos! Como ella se expande pelas campinas da incerteza!

Adriana soffria. Um debil tremor lhe percorria todo o corpo, similhando a planta tenue agitada pela brisa da tarde. Sentia, por um d'esses avisos extraordinarios e mysteriosos, que chegam sem que se saiba d'onde partem, que a sua existencia, até então tranquilla e cheia de simplicidade, ia mudar. A idéa d’essa mudança, e o temor que lhe inspirava, collocava-lhe o espirito em horrivel compressão.

Apoiada ao braço de sua mãe, pensava e soffria.

-- Na verdade, sr. conde, continuou Raymundo, o acto que v. ex.ª praticou, é duplicadamente para admirar.

partir da própria bòcca d’um nobre!

-- Porque diz duplicadamente?

-- Porque, numa época em que a nobreza possue ainda em subido grau altivez e soberania, perdoe-me v. exª a franqueza, é para maravilhar que um fidalgo arrisque a sua vida para salvar um simples camponio. Factos d'esta ordem são rarissimos, por isso, mais dignos se tornam de ser registrados.

-- O sr. Raymundo d'Almeida tem, talvez, rasão em stigmatisar, em parte, a primeira classe da sociedade. Effectivamente, a nobreza admitte uma divisão bem distincta. Una não só são nobres pelo sangue, como pelo coração; outros são apenas por descendencia, ou então a custo d'alguns punhados d'oiro, e estes são os mais perigosos. O homem que, durante uma longa serie d'annos, não foi mais que um ente respeitado pelos servos, a quem pagava, ou então por algum capacho de casaca e luva de côr duvidosa, porque, em geral, aquelles que se presam de ter sentimentos, não prestam culto a qualquer ser rodeado de metal, unicamente por essa circumstancia, esse homem, repito, colocado de repente n'uma posição muito superior á sua esphera, arroga-se uma soberania intoleravel, que o conduz até ao despotismo, ou faz tocar o ridiculo, tornando-se o alovo de todas as chufas. A nobreza pretenciosa é perigosissima, e ao mesmo tempo insoffrivel. Remontemos á antiguidade. O que vemos? Os povos opprimidos pelo terrivel feudalismo, derramando gota a gota o seu suor, emquanto os senhores se electrisam na effervescencia dos festins. Desperdiçam rios de oiro n'aquellas impudicas bacchanaes, porém, se um miseravel lhes vem implorar uma esmola para sua familia enferma, não prestam ouvidos, e mandam despedir o importuno, que lhes veiu distrahir a attenção, no meio do seu folgar. Miseria, e ignominia! Se o servo se não descobria ao avistar o senhor feudal, ainda que este estivesse a grande distancia, era azorragado cobardemente. Os nobres deificavam-se a si proprios. Vergonha e infamia! Felizmente, com o correr dos tempos, e sopro do progresso, a nobreza tem perdido parte dos habitos despoticos que possuia, e hoje admitte já uma divisão, o que n'outras eras não acontecia.

-- Bonito fallar, e extremamente raro, por partir da propria bôca d'um nobre!

-- D'um nobre, que se conduziu como o mais ignaro villão, pois dissertou largamente, sem se importar com a presença d’estas senhoras, que devem de estar, não só despeitadas, mas replectas de aborrecimento.

-- Nem uma nem outra coisa, objectou a mãe de Adriana. Gostamos de ouvir a linguagem da verdade, e, n'este caso, consulte o sr. conde a sua consciencia, e verá o que ella lhe diz a nosso respeito.

-- Eu, pela minha parte, accrescentou Adriana, concordo inteiramente com a opinião de minha mãe.

-- Nem era de esperar outra coisa, disse D. Jorge, dirigindo-se a Adriana. A candura exterior de v. ex.ª, deve de concordar, forçosamente, com os seus sentimentos internos.

-- O sr. conde tem o defeito, desculpe-me v. ex.ª a franqueza, de todos os cortezãos.

-- Qual é, pois, o meu defeito? perguntou D. Jorge, sorrindo.

-- O ser lisongeiro. Os senhores da côrte têem por habito a lisonja, a qual muitas vezes redunda em mordaz epigramma. É a sua arma favorita.

-- Não quer admittir uma excepção?

--Temporaria? É difficil, comtudo, é possível.

-- Não, minha senhora, permanente.

-- Ó sr. conde, isso seria mais que excepção, seria um phenomeno admiravel.

-- V. ex.ª é implacavel! Prefiro evitar a discussão, e appellar para o tempo. Naturalmente, visto o senhor seu pae me haver acolhido tão favoravelmente, não será esta a ultima vez que nos vejamos, por isso, os factos me justificarão.

-- N’esse caso, dá a batalha por terminada? perguntou Adriana com galanteio.

-- Não, minha senhora, peço apenas treguas.

A conversação continuou fluctuante e incerta, isto já em caminho para casa de Raymundo.

Apenas chegados, D. Jorge disse:

-- Sr. Raymundo d’Almeida, o prazer que em mim trasborda, por ter a honra de travar conhecimento com uma familia, tão delicada quanto respeitavel, é difficil de exprimir. Vão, talvez, chamar-me lisongeiro, adulador, que sei eu? principalmente sua filha, que, n’este ponto, é mais severa do que um juiz; embora; julguem-me como quizerem. Tenho a consciencia do que digo por consolação. Qualquer juizo contrario que façam a meu respeito, não será mais que poderoso incentivo para attribulados remorsos.

-- Tanto não duvido da sua dedicação, que me atrevo a fazer-lhe um convite. Tenha paciencia, sr. conde, v. ex.ª, com uma singeleza e boa fé admiraveis, testemunhou-me a sua generosa affeição, por isso, soffra-lhe as consequencias. Ámanhã é o vigessimo anniversario de minha filha, e, por esse facto, tenciono reunir alguns amigos para commemorar, d’alguma maneira, um dia que, felizmente, minha filha tem sabido tornar querido...

-- Meu pae... atalhou Adriana, ligeiramente envergonhada.

-- Então, queres que cale o que o coração não póde reprimir? Não, isso jámais eu farei. Porém, como ia dizendo, sr. conde, desejava que v. ex.ª me fizesse a honra de occupar um logar n’esse humilde serão, onde a amisade será a presidente.

-- Confunde-me, na verdade, a sua attenciosa deferencia, tanto mais, que ha pouco disse que só amigos assistiriam á festa. Longe de dar honra, acceitando o convite, sou eu o honrado; por isso, ámanhã, cheio de jubilo e reconhecimento, assistirei a essa reunião, cuja causa é aliás justissima.

Dizendo isto, apertou a mão de Raymundo, e despediu-se das duas senhoras o mais respeitosamente possivel. Depois, desatou a redea do cavallo, que estava presa a uma arvore, e montou, dizendo:

-- Até ámanhã.

O cavallo, sentindo os ferros agudos das esporas tocarem-lhe o ventre, deu um salto por avante, partindo em seguida a galope.

Adriana seguiu com a vista aquella sombra, que se afastava rapidamente, e que mal se distinguia por entre as arvores da estrada.

IV

Impressões e duvidas

Adriana possuia um d’esses corações breves e fogosos, que pairam constantemente sobre a alegria e a tristeza. Quer um, quer outro sentimento, vivia n’ella ephemeramente. A que se poderá attribuir incerteza tão cheia de volubilidade? Diligenciemos descrevel-o.

Adriana não era uma mulher vulgar. Era um d’esses entes privilegiados, que Deus lança ao mundo assim como uma obra que o ha de honrar. Adriana era dotada d’uma intelligencia elevada, e possuidora de uma qualidade immensamente rara: o gosto estudo. Desde os mais verdes annos fizera consistir o seu maior prazer na leitura de bons livros. Despresára sempre o fraco do seu sexo, isto é, a predilecção desordenada pela moda, e entregára-se de coração ao estudo. Quer dizer, preferiu o caminho que conduz á grandeza, despresando o que nos leva á ruina. A escolha parece, á primeira vista, natural, e até vulgar, porém, infelizmente, não só é extraordinária, mas rara. As senhoras, em geral, preferem os atavios do corpo aos adornos do espirito.

Ha, comtudo, excepções, e Adriana merece occupar o primeiro logar. O seu rapido e variavel sentir provinha, pois, da intelligencia cultivada, e do fogo dos poucos annos. Ora, a rasão e a edade são duas partes hecterogenias, o que dã em resultado uma lucta gravissima.

Adriana, observando o proceder generoso de D. Jorge, amara-o; vendo, depois, que o seu amor ecoara no peito do fidalgo, sonhara, n'um momento, todas as delicias do futuro. Trabalhou a edade. Apenas Jorge desappareceu, que o coração começou de socegar um pouco mais, principiou a rasão a aclarar-lhe os factos, e a obrigai-a a reflectir. Bem depressa se lhe patenteou toda a verdade. D. Jorge era nobre, filho, naturalmente, d'um pae altivo e zeloso dos seus fóros de nobreza, portanto, jamais consentiria em similhante enlace. Porém, tinha ella alguma prova do amor de Jorge? Não. Logo eram intempestivos os seus receios. Comtudo, sentia uma voz secreta dizer-lhe que o seu pensar não era aerio. Por outro lado, quem lhe assegurava a pertinacia do pae do fidalgo?

Adriana passou toda a noite fazendo estas e outras considerações, que, mau grado seu, a entristeciam. Era o amor que pela primeira vez a atacava, e com elle chegara a incerteza, a desconfiança, o desassocego, emfim.

O pró e o contra apresentavam-se a cada momento. A cabeça e o coração estavam em pleno combate.

Adriana só pela madrugada poude conciliar o somno, e, ainda assim, acordou cedo, e extremamente sobresaltada. Levantou-se, e dirigiu-se instinctivamente para a janella.

O dia estava lindissimo. Um sol radiante dava plena animação a tudo quanto podia abraçar. As flores pareciam saltar de contentes, tão expressiva era a sua apparencia. Adriana olhou com avidez na direcção do caminho que Jorge havia tomado na vespera, e tal era a sua alteração, que parecia ainda distinguil-o por entre a ramagem. Effeitos de um coração despertado pela primeira vez.

Adriana passou todo o dia na maior anciedade. As horas pareceram-lhe seculos. Muitas vezes uma nuvem sombria lhe passava pelo pensamento; porém, era bem depressa desvanecida pela alegria que a rodeava. Tanto seus paes, como servos, exultavam com a lembrança d'aquelle dia: Adriana não era ingrata, associava-se com elles no regosijo.

V

O prologo d'uma declaração

Ao anoitecer chegaram simultaneamente alguns amigos, que Raymundo havia convidado.

A sala da reunião estava simples, mas elegantemente adornada. Não se viam ricas tapeçarias, nem soberbos espelhos de Veneza, nem custosas porcelanas de Sevres, nem tão pouco moveis de subido preço, primando em lavores e embutidos, nada d'isso; os adornos de que fallámos eram todos devidos ao trabalho e habilidade de Adriana. As mesas estavam atacadas de pequenos enfeites de diverso labor. Via-se nas paredes quadros magnificos, quer em figura, quer em paisagem; e finalmente, uma infinidade de bordados e curiosidades, que provaram o raro talento da manufactora.

Raymundo d'Almeida, sorrindo com um sorriso de paternal orgulho, obrigada a idolatrada filha a mostrar as suas obras aos convidados, o que ella fazia visualmente envergonhada.

Quem mais attenciosamente a observasse, notar-lhe-ia, sem duvida, uma certa abstração. Effectivamente, Adriana não estava ali n'aquelle momento; ao menos o seu pensamento pairava por outros logares. Pensava em Jorge. A sua demora penalisava-a. «Se lhe terá acontecido alguma desgraça? Não virá? Porque tarda tanto?» Eram estes e outros pensamentos que a dominavam, quando a porta se abriu, e uma criada aununciou:

-- O sr. conde do Pinhal Viçoso.

D. Jorge comprimentou a assembléa, e dirigindo-se a Raymundo, disse:

-- A minha demora não provem da mingua de desejo de me ver n’uma casa tão respeitavel, e no centro duma assembléa tão illustre, mas do receio de ser antecipado, e, portanto, importuno.

-- Qualquer que fosse a hora a que o sr. conde viesse, acredite que seria sempre bem recebido, respondeu Baymundo.

O fidalgo inclinou-se.

-- Minha filha, continuou o pae de Adriana, mostrava aos nossos amigos os seus trabalhos, quando v. ex.ª entrou.

-- Espero que a minha presença, objectou D. Jorge de Mascarenhas, não sirva de obstaculo á exposição, e até, se me concedem licença, corro a encorporar-me nas fileiras dos admiradores.

-- O sr. conde, habituado a frequentar as grandes salas, que belleza poderá encontrar nos meus pobres trabalhos? replicou Adriana.

-- V. ex.ª disse-me hontem que eu possuia o defeito da lisonja, e eu descubro-lhe hoje o mau sestro da modestia. Já vê que também a accuso, e que, portanto, as hostilidades continuam a vigorar. Ora, pois, vejamos quem vence.

E a delicada exposição continuou a ser minuciosamente observada.

-- Victoria, victoria! exclamou D. Jorge. Este abençoado quadro vem fortalecer exuberantemente a minha asserção, e derrotar sem piedade a minha antagonista. Vejam, minhas senhoras e senhqres, reparem na perfeição d’esta pintura, e digam-me se os loiros me não pertencem. Examinem a firmeza d'estes braços, o excellente collorido e a precisão das sombras.

Effectivamente, era um quadro magnifico. Os circumstantes haviam-se acercado, e contemplavam, visivelmente gostosos, a excellencia da obra.

Adriana sentia-se confundida no centro d'aquelles encomios; um purpureo colorido lhe animava as faces. Sem embargo, similhantes encarecimentos eram interiormente recebidos pela sua vaidade de mulher. Desenganemo-nos, por muito exemplar que seja qualquer senhora, por muito indifferentista que deseje parecer, tem indubitavelmente uma parte maior ou menor de vaidade. Isto é um axioma. Por isso, Adriana, apesar da confusão exterior, sentia vibrar-lhe na alma as palavras de Jorge. As senhoras apraz-lhes sempre que as elogiem. Preferem, em geral, um panegyrico exagerado, que ellas mesmas conhecem ser falso, a uma verdade cruel, que, todavia, lhes aproveita. A franqueza não lhes agrada.

O exame continuou animado o faceto.

-- Oh! eis um bonito album, disse Jorge. Vejamos.

-- Está ainda muito pobre, sr. conde. Digne-se v. ex.ª enriquecer-lhe uma das paginas, com uma só linha, que seja.

-- Ó minha senhora, fraca riqueza poderei fornecer, porque, n’esta parte sou um verdadeiro indigente. Não obstante, diligenciarei obedecer a v. ex.ª

N’este momento as criadas entraram na sala para servirem o chá.

Os observadores tomaram os seus logares.

O relogio começou a dar cadenciosamente dez horas.

-- Eis a hora, exclamou Raymundo. Faz n'este momento justamente vinte annos, que Deus se dignou dar-me por filha um anjo. Acceita, minha filha, a prenda com que costumo commemorar o teu natalicio.

Adriana recebeu de seu pae um abraço, onde se revelava o supremo amor paternal. Em seguida, correu a beijar sua mãe.

Depois d’esta scena de familia, os convidados apressaram-se a offerecer a Adriana um brinde qualquer.

D. Jorge foi a unica excepção d’aquella regra. Conservava um rigoroso silencio, e dominava-o um pensar profundo.

Por um capricho do acaso, achava-se sentado ao lado de Adriana. Recostou-se com calculada negligencia, e com a maior naturalidade, e perguntou, baixando a voz, e um tanto commovido:

-- E eu, que lhe hei de offerecer, minha senhora?

Adriana guardou silencio. O coração da donzella começava de agitar-se.

Jorge insistiu:

-- Acceitaria v. ex.ª a minha dadiva?

A pergunta ficou ainda sem resposta. O peito da virgem parecia estalar.

-- Nem sequer uma palavra lhe mereço?

Foi tal a expressão d'aquella pergunta, era tal o sentimento que d’ella transluzia, que Adriana, cedendo a um impulso do coração, disse, o mais sumidamente possível:

-- Acceitava!...

-- Reflicta bem n'essa palavra, replicou Jorge, preso d'uma commoção misturada de alegria.

-- Não tenho que reflectir... retorquiu Adriana.

-- N’esse caso... offereço-lhe o meu amor!

Adriana fez um movimento repentino, que felizmente não foi notado, pois todos conversavam desapercebidamente. Todavia, foi grande a emoção. Que melhor offerta podia esperar uma virgem, cuja alma era toda affecto?... As palavras de Jorge soaram-lhe como celestial melodia. Sonhara, e o personagem principal d’esse doirado sonho começava de indicar-lhe o trilho da venturosa realidade. E depois era a primeira vez que Adriana sentia afagar-lhe os ouvidos essa palavra, alvo constante de todos os corações -- amor! A formosa donzella mal podia occultar os intimos sentimentos; talvez que se trahisse se, por ventura, uma das senhoras não viesse em seu auxilio, ainda que involuntariamente.

-- Então, sr. conde, esqueceu-se do album da minha amiga?

-- Não esqueci, minha senhora, respondeu D. Jorge, aguardava apenas a occasião propria.

Em seguida, levantou-se, dirigiu-se para a jardineira, abriu o album, pensou alguns momentos, principiando depois a transportar para o papel o que lhe viera á mente.

Passados alguns minutos, exclamou:

-- Prompto!

-- Vejamos, expressaram algumas vozes.

-- Se v. ex.ª me quizesse acompanhar?... disse o moço namorado a Adriana, n’um tom tão meigo, que não seria exagero tomal-o como supplica.

Adriana sentou-se ao piano, cujas teclas furam comprimentadas pelos dedos mimosos da virgem, que encetou com bravura um exercicio em oitavas, terminado por um acorde brilhante. O delicioso orgão das salas deixou ouvir a expressiva walsa dos Dois mundos, esse sentido canto que sempre nos commove. Findo o retornelio, Jorge recitou os versos que escrevera. Não os transcrevemos, porque o fidalgo não tinha pretenções a poeta, poeta de fórma, porque de essencia era-o como poucos. Comtudo, devemos confessar que não era coisa que fizesse desmuronar a velha Arcadia. Eram umas strophes sentidas, allusivas, em parte, ao natalicio de Adriana, firmando-se depois no amor filial, e desenvolvendo, por ultimo, umas suaves e brilhantes theorias sobre o amor em geral.

-- Bravo! bravo! exclamaram os ouvintes.

Adriana lançou a Jorge um olhar de reconhecimento.

O resto do sarau passou-se agradavelmente, dividindo-se a musica e a dansa pelos moços, e o jogo pelos velhos.

Quasi ao romper da aurora, terminou a festiva e familiar reunião.

A alvorada do novo dia teve dois hymnos em seu louvor: as preces sentidas de Adriana, e o canto dulcissimo da cotovia.

VI

A carta

D. Jorge de Mascarenhas afastou-se da casa de Raymundo d'Almeida, embebido n’uma tristeza suave, que, penalisando-o por um lado, o alegrava por outro: quer dizer, o pesar que lhe causava o apartar-se de Adriana, compensava-o a lembrança de que o seu amor era, senão retribuido, ao menos acceito.

Dirigiu-se, pois, para um antigo palacio de seu pae, onde viera passar alguns mezes de verão. Apenas chegou, encaminhou-se sem demora para o seu quarto, sentou-se á secretaria, e começou de escrever a seguinte carta:

«Minha senhora:

«É tão grande e verdadeiro o jubilo que me anima os sentidos e acaricia a alma ao dirigir-me a v. ex.ª, que, forçosamente, os desacertos serão em subido numero na carta que vou tentar escrever-lhe.

«Ó minha senhora, as almas sublimes na terra são tão raras, que, quando o acaso nos faz deparar com um desses anjos, sentimos uma voz mysteriosa dizer-nos: -- ahi tens a felicidade; não a deixes escapar, embora o preço porque a devas possuir seja uma serie de sacrificios; esses sacrificios, essas dores, quaesquer que sejam, serão compensados logo que te bafeje a ventura, que era para ti um sonho. Trabalha, que a retribuição corresponderá ao esforço. -- Em vista, pois, d’este aviso do mysterio, deveria eu calar os instinctos do meu coração? deveria entregar-me a um platonismo cruel e desesperado? Porque, francamente, minha senhora, a vista de v. ex.ª produziu em mim um effeito magnetico! Pelo amor de Deus, não chame a isto lisonja, é a verdade, a pura verdade. Depois, o conhecimento que tive do seu pasmoso talento, e das suas excellentes qualidades, foi, também, um poderoso incentivo para a realisação do meu amor. Hoje, sinto que a minha vida está ligada á sua, e que uma vez esse sublime tio despedaçado, a morte, ao menos moral, será o resultado do fatal quebramento. Consentirá v. ex.ª em contribuir para o doloroso extremo de uma existencia que a adora? Recorde-se dos remorsos, minha senhora. Não, uma alma tão pura, que parece, por assim dizer, em contacto com Deus, não póde, por fórma alguma, praticar um acto infernal. V. ex.ª plantou no deserto do meu coração o arbusto do amor; alimente-o, robusteça-o, desenvolva-lhe a seiva, não o deixe fenecer, e a sombra protectora d'esse oasis maravilhoso a deffenderá de todo o mal, e velará por v. ex.ª, com o duplo fervor do reconhecimento e da paixão.

«Jorge de Mascarenhas.»

D. Jorge, ao terminar esta carta, tomou a respiração, como se ficasse alliviado d’um peso, que o opprimira durante a escripta.

No dia seguinte, pela tarde, montou a cavallo, e dirigiu-se para a habitação de Raymundo d’Almeida.

Apenas avistou o alvo das paredes, divisou no mirante do jardim um vulto, que as lentes do seu coração lhe annunciaram ser Adriana.

Os olhos da joven fitavam-se, sem o menor desvio, na direcção do caminho que D. Jorge seguia. Esperal-o-ia Adriana? Porém, o fidalgo não lhe prevenira a vinda! Não, mas o presentimento, originado pelo amor, tomára esse encargo. Sem questão, Adriana aguardava D. Jorge de Mascarenhas.

Aproximou-se o sympathico fidalgo, e comprimentou alegremente a motora da sua vinda, lançando-lhe um sorriso que queria dizer: vê que não faltei... ao que não prometti?...

A altura do mirante era limitada; de fôrma que D. Jorge, montado como estava, chegava, quasi, ao cimo do muro.

-- Que feliz me julgo por tornar a vel-a minha senhora; disse o enamorado cavalleiro, perfilando-se com a parede. Então recebeu gostosa a minha offerta de hontem? Conserva-a sem repugnancia, não a repudia?

-- Senhor conde...

-- Não me trate com tanta gravidade, Adriana, confie mais em mim...

-- Afaste-se, sr. conde; minha mãe chama-me, não convém que nos surprehenda.

D. Jorge, ouvindo estas palavras, apressou-se em lançar a carta no regaço de Adriana. Esta, tomou-a precipitadamente, e desappareceu por uma alameda de variegadas dhalias, que ia dar á habitação.

VII

Duvidas -- O sonho

A carta de Jorge foi bem recebida. Adriana leu-a cinco vezes, no espaço de trinta minutos, o que se pôde traduzir por: ama com frenesi o conde do Pinhal Viçoso.

Um mez depois, D. Jorge de Mascarenhas havia travado relações mais intimas com a familia de Adriana, o que não é para admirar, pois ninguém ignora a franqueza que no campo predomina.

Os dois namorados viam-se todos os dias, conversavam longas horas, que, para elles, corriam com a velocidade d'uma locomotiva. Comprehendiam-se e amavam-se. Muitas vezes, percorriam os campos, acompanhados de Raymundo d’Almeida, cavalgando soberbos animaes. Adriana, com o sei immenso vestido de cauda, com o seu elegante chapeo á amasona, chicoteando o vigoroso animal, afim de o obrigar a fazer continuos corcovos, apresentava um aspecto tão magestoso, que obrigava, tanto seu pae como D. Jorge, a fital-a extasiados.

O fidalgo não pedira officialmente a mão de Adriana, dissera, apenas, ao seu futuro sogro:

mo originai; o que, mais claramente fallan-:

-- Amo sua filha apaixonadamente, com esse amor digno, que Deus sabe abençoar; comtudo, não lhe peço desde já consentimento para um enlace, que fará a minha felicidade, primeiro, porque não me julgo ainda com esse direito, segundo, porque antes que duas almas se unam, é mister que se conheçam os genios mutuamente, afim de saberem se n'essa união estará o ramilhete de duas existencias. O matrimonio é a ligação perpetua; portanto, deve ser olhado com toda a seriedade. Entrar n'elle como em qualquer loteria, é muitissimo perigoso. Cada premio está para cem brancos. Se, com o tempo, eu e sua filha conhecermos que, unindo-nos, um futuro de rozas nos espera, terei então muito prazer em lhe rogar que não roube a duas almas a ventura que anteveem, e de que lhe serão sempre gratas!

Raymundo gostara d'esta franqueza. Acreditara mais n'aquella reserva, que n'uma decidida precipitação.

Os dois namorados passaram tres mezes em delicias, embriagados sempre por esses pequenos nadas que constituem amor.

D. Jorge vinha todas as tardes a casa de Raymundo d'Almeida, onde passava horas de oiro junto á sua Adriana, lendo qualquer romance, em quanto a virgem costurava.

O bom velho e sua mulher contemplavam aquelle quadro de ventura, com uma satisfação inaudita.

O viver de Jorge e Adriana era o mais simples possivel. Afastados do bulicio da cidade, o seu amor deslisava puro como o arroio da encosta; seguia o seu ininterrompido caminho a par do socego e quietação da aldeia.

«Quem quer prazer suave e amor divino

«Feche na mansa aldeia o seu destino.

Diz Thomaz Ribeiro no seu D. Jayme, e diz uma grande verdade. O amor no campo é puro, como o ar que lá se respira. Nada o distrae; em quanto na cidade as tentações são aos milhares. O amor nas capitaes, principalmente, é genero sem extração; a falta de procura é notavel; está quasi fóra do mercado. Chegou-se a ponto que, se um inexpriente, ou atrevido, se trahe, dizendo que ama uma mulher, é apupado e tido como original; o que, mais claramente fallando, equivale a passar-lhe um diploma de... tolo.

Uma tarde, estavam os dois namorados conforme o costume, sentados perto um do outro. Jorge lia, e Adriana bordava. Esta porém, interrompia a cada passo o seu trabalho, não para escutar mais attentamente a leitura de Jorge, mas para dar largas a uma especie de meditação, que a dominava.

-- Que tens, Adriana? perguntou o fidalgo, estranhando o procedimento da virgem.

-- Nada, meu Jorge, respondeu Adriana, sorrindo angelicamente.

-- Nada! tu enganas-me, tens por força alguma coisa que te afflige. Não tentes illudir os olhos d'um amante.

-- Pois bem Jorge, sim, estou triste. Presinto que ruim nova vamos em breve saber. Sinto o coração opprimido. Diviso no horisonte da nossa ventura, uma nuvem bem sinistra.

Adriana apertou com vehemencia a mão de D. Jorge. Aquelle aperto parecia supplicar todo o auxilio de que um homem póde dispôr.

-- Que creança és, minha Adriana! Sabes tu, que esses receios me ufanam e alegram? Duvidas, despeitada talvez? Vanglorio-me, porque vejo quanto receias perder a nossa felicidade desejada; regosijo-me, por conhecer d'essa forma o teu grau de amor.

Adriana agradeceu com um olhar extraordinario a suave interpretação de D. Jorge de Mascarenhas.

Conservaram-se mudos alguns momentos, pensando cada um, naturalmente, em objecto que tendia ao mesmo fim. Aquelles que se estimam verdadeiramente e comprehendem, edentificam-se, por assim dizer. Parece existir entre as duas imaginações um fio electrico, que transmitte os menores pensamentos. Direi mais ha entes que se não comprehendem, adivinham-se.

Adriana foi a primeira a romper o silencio, aventurando a seguinte pergunta, que parecia repassada d'um amargo cogitar:

-- Dize lá, Jorge, gostavas de acordar um dia não te lembrando a menor occorencia do nosso amor? Tornares novamente ao tempo em que me não conhecias?

-- Que dizes, Adriana? Similhante pergunta...

-- Perdoa, Jorge, que queres? estou hoje celebre. Sinto as idéas em desordem. Nãosei que voz mysteriosa me diz, que eu, longe de te dar a felididade que mereces, te farei desgraçado. Desgraçado! o meu Jorge que tanto amo, e por quem daria mil vidas! Esta idéa martyrisa-me cruelmente, atormenta-me, rala-me, faz-me soffrer d’uma maneira espantosa!

-- Socega, minha Adriana, afasta para bem longe esses teus infundados receios, que não passam d’um sonho juvenil. Tonta, e ao mesmo tempo injusta e má; tens em maior conta o teu chimerico presentimento, do que a realidade do nosso presente tão feliz, e do nosso futuro tão venturoso e cheio de esperança! És muito má, repilo. E perguntas-me se desejava acordar esquecendo-te, como se esse despertar não fosse a morte! Que mal te fiz, para que me apunhal-as com palavras tão agudas?

-- Perdoa-me, Jorge, perdoa-me, que queres? o amor torna a mulher supersticiosa. Agora conheço que sou uma louca, uma insensata. Descansa, que nunca mais te communicarei as minhas creancices. Sabes o que deu aso aos meus sustos, e, quasi, descrenças? Foi um sonho.

-- Um sonho?

-- Sim, um sonho hem terrivel! Sonhei que estava n'um campo onde as florinhas se encontravam por todos os lados, e cujas variegadas côrcs formavam, conjuntamente com a verdejante relva, um tapete do mais soberbo matiz. Os passarinhos, esses sublimes cantores dos bosques, saltavam d'um para outro ramo, soltando ao vento os seus harmoniosos gorgeios. Emfim, meu Jorge, era um recinto todo magia, todo amor. Eu e tu, Jorge, estavamos sentados á beira d’um pequeno ribeiro, cujas crystalinas aguas corriam brandamente, meigas e puras como o sorriso da mãe para seu filho. Nós, com os braços entrelaçados, contemplavamos todos aquelles devaneios da natureza, e, assim tão juntos, gosavamos, sosinhos, no remanso da solidão, delicias que só um coração amante póde imaginar. De repente, o viçoso prado transformou-se n'um deserto sem fim, as virentes flores foram substituidas por espinhosos cardos, as debeis e gentis avesinhas, por passaros noctivagos, que soltavam ao vento o seu piar descompassado e tenebroso, e, finalmente o diphano ribeiro foi metamorphoseado n'uma medonha gruta, da entrada da qual escura e horrivel, sahiu um terrivel voador, que, segurand-te com as suas enormes garras, te arrancou dos meus braços, sem que eu podesse, apesar da furia com que procurava deter-te, impedir tão cruel separação. Ah! Jorge, como eu soffria! Á maneira que eras arrebatadamente elevado, ia eu perdendo as forças, e procurando a terra; de forma que, quando a minha vista não podia já alcançar-te, desmaei, jazendo horisontalmente no solo. A immensidade nos separava!...

E Adriana apertava convulsamente a mão de Jorge, parecendo temer que, realmente, lh'o arrebatassem.

O moço fidalgo conservava-se silencioso; um sorriso de ventura foi a replica que poude oppor. Gosava interiormente todo o amor de Adriana.

VIII

Castellos no ar

-- Estás melhor? perguntou Jorge a Adriana, no dia seguinte.

A donzella sorriu com meiguice, e estendeu a mão ao fidalgo.

-- Perdoas-me? disse ella.

-- Perdoar-te, meu anjo!

-- Sim, porque estou certa que hontem muito te affligi com os meus receios absurdos.

-- Não nego que me penalisaste um tanto; mas fui bem compensado.

-- Como?

-- Com a expressão franca do teu sentir, que me assegurava o amor da minha querida Adriana.

-- Duvidas, acaso?

-- Quem duvida dos anjos?

-- Lisongeiro!...

-- Tu ás vezes és muito má.

-- Ah! sempre me reprehendes!

-- É para te emendares.

-- O corarão não recebe ensino.

-- Ousar é sempre bom; experimenta.

-- Não posso cohibir-me de cerios momentos de tristesa. Ha, felizmente, uma consoladora alternativa. Hoje por exemplo, sinto-me bastante alegre.

-- Deveras?

-- Deveras. Hoje descerra-se-me o futuro cheio de luz. Não tens experimentado fechar os olhos quando o sol de estio nos bate de chapa? Afigura-se-nos um mundo novo. É tudo côr de rosa e brilhante. Vemos milhares e milhares de suppostos atomos, que se cruzam de continuo, borbulhando, borbulhando, como a queda d’uma levada. Hoje tudo se me apresenta assim.

-- Sentes-te feliz! Tens fé no futuro? perguntou Jorge, apertando a mão da virgem.

-- Confiio em ti.

-- Crês bastante no meu amor?

-- Creio.

-- Obrigado, Adriana.

Houve um momento de silencio. Ambos se embebiam em ternas esperanças. Adriana foi a primeira que descerrou os labios:

-- Havemos de ser muito felizes, não é verdade?

-- Oh! sim, muito!

-- Olha, Jorge, embora tu queiras viver em Lisboa, porque podes lá divertir-te, no verão é que não dispenso virmos passar dois ou tres mezes n'estes pitorescos sitios.

-- Viremos, sim, viremos juntos, sempre juntos.

-- Mandaremos arranjar o pavilhão do teu palacio d'além da ponte... não sabes como?

-- Não; dize lá.

-- Olha, a casa de jantar deve dar para o rio, e as paredes devem de estar vestidas de verdura e toucadas de flores. Ha de ser muilo bonito e agradavel! O rio, especie de refrigerante alcatifa, as rosas e madre-silvas, docel encantador. Tudo frescura e aroma, tudo quietação e felicidade!

-- Es uma louquinha!

-- Porém, agora me recordo: sou muito

egoista: tenho apenas phantasiado o que poderá distrahir-te.

-- Julgas que não gosarei com as tuas alegrias? Isso me bastará.

-- Mostras-te tão pouco exigente, porque és ainda namorado, quando fores esposo será outra coisa.

-- És injusta.

-- Pois serei; mas deixa-me continuar: Tu, naturalmeate, hasde entregar-te ao prazer da caça, mesmo porque estar constantemente ao lado d’uma mulher, embora se estime, torna-se material e aborrecido. Correrás, pois, montes e valles em caça d'alguma pobre perdiz, e eu, ao descahir da tarde, irei esperar-te lá abaixo á fonte. Voltaremos para casa, onde descansarás das tuas fadigas, isto no terraço do jardim, que fica voltado para o nascente, e em que o luar bate de chapa. -- Que dizes?

-- Digo que me enlouqueces com esses sonhos de amor!

-- Bravo! ha pouco chamaste-me louca, agora tu mesmo te julgas atacado. Ignorava que esta doença fosse contagiosa.

-- A alegria transmitte-se.

-- Não te arrependes de me haveres conhecido?

-- Quem se arrepende da felicidade?

-- Quem a não aprecia.

-- Mas é que eu tenho-a em grande conta.

-- Queres que te agradeça?

-- Quero que me estimes.

-- Innutil recommendação. Olha, Jorge, o que haverá de mais suave que um amor correspondido? Quando se ama, a vida torna-se-nos num paraiso permanente; as flores parece que exalam um perfume enebriante, recebe-se a alvorada com o sorriso nos labios e o prazer n'alma, porque é mais um dia de ventura que vae raiar.

-- Sim, sim, o amor tem o condão de transformar as indoles mais perversas. Dae ao scelerado um lampejo de coração, e a metamorphose será rapida.

-- O amor, na sua accepção verdadeira, é uma emanação do ceu, um sorriso de Deus. Almas ha bem enfesadas e rachiticas, acceita-me a figura, porque o sentimento jamais as inflammou. Os materialistas da epoca, não comprehendendo os mysterios do coração, lançam-lhes um sorriso de escarneo, julgando salvarem-se pela indifferença. Pobres nescios, que tanto se similham á raposa da fabula!

Jorge estava encantado pelas palavras de Adriana. Cada syllaba lhe reflectia o coração, cada letra lhe espelhava a sublime comprehenção da alma. Admirava a intelligencia da interessante menina, e expandia-se em suave embriaguez.

-- Estás um verdadeiro philosopho, minha querida Adriana, disse elle.

-- D‘esagrada-te a philosophia do coração?

-- Maravilha-me e encanta-me!

-- Se soubesses quanto exulto por me comprehenderes!...

-- As melodias comprehendem-se sempre, e escutam-se em admiravel extasis.

-- Já vejo que a lisonja, em ti, é vicio. Ouve-me, porém, ainda. Como hoje me sinto alegre, quero abrir-te a minha alma. Olha, repara bem, toda eu sou amor; d’elle vivo, elle me alenta, elle me póde tambem matar. Que haverá de mais bello que a ligação perpetua de dois entes pelo coração? Gosar em commum os mesmos prazeres, penar reciprocamente eguaes soffrimentos, alimentarem-se ambos com uma seiva unica, viverem d'uma só vida, partilharem crenças e desesperanças, afogarem saudades nu«m mutuo consolo, amarem-se, finalmenle, com esse amor santo, que provém de Deus! A mulher é uma fracção do homem, este uma parte d’aquella: formae d’elles um amalgama sublime, e tereis a felicidade!

Um fervoroso aperto de mão, foi tudo que

Jorge poude exprimir, tal era a emoção que o dominava. Esse aperto, porém, dizia muito mais que um turbilhão de palavras. A linguagem muda nem sempre é a menos expressiva.

Adriana, de dia para dia, redobrava de valor aos olhos do fidalgo. Cada novo pensamento enunciado era manancial de sublime candura. As palavras tocantes da virgem aquentavam suavemente o coração de Jorge.

Os dois jovens namorados passaram ainda felizes momentos, phantasiando delicias, projetando mil gosos por vir, entregando-se, finalmente, aos aprasiveis sonhos doirados, que o vulgo chama castellos no ar, e que são o ramilhete attraente dos vinte annos.

Ah! o ideal! Felizes daquelles que d’elle vivem! O positivismo de momento para momento mais feio se torna. O ideal é a esperança, a esperança é a ventura, a ventura é o enthusiasmo, o enthusiasmo é a vida!...

IX

A separação

Entretanto, o inverno aproximava-se, e D. Jorge devia, portanto, regressar a Lisboa. Não estava, porém, muito disposto a fazel-o. Os rigores da estação não o amedrontavam, nem a tristonha solidão lhe causava o menor gesto de enfado. A capital, com os seus elegantes salões, com seus bailes esplendidos, theatros cheios de animação, mulheres deliciosas, não era para elle mais que uma cidade chamada Lisboa. D’ella, apenas o nome lhe não esquecera. Porque tudo isto? Porque D. Jorge amava verdadeiramente Adriana, e estava certo de possuir o que ella tinha de mais encantador -- o corarão.

O amor tem uma força incalculavel, infinita; e quando se arraiga de veras ao coração, não ha conveniencias que se respeitem, conselhos que se attendam; esquece-se familia, patria, amigos, a honra titubia muitas vezes, o mundo, finalmente, desapparece da imaginação, antolhando-se, apenas, um deserto immenso, habitado unicamente pelo ente a quem amamos.

D. Jorge fazia consistir a sua felicidade na posse de Adriana, por isso, o seu unico desejo era estar junto d’ella, receber e tributar mil caricias, que lhe embriagavam a alma, divinisando-lhe a existência. Teve, porém, que resignar-se, sugeitando-se a essa fatal lei do destino, que impiedoso apenas concede ao homem, por cada mil gosos provaveis, um instante de sonhadas delicias. As horas de sublime quietação, e de suprema ventura, tinham que terminar. Tambem a açucena é candida e pura, e, comtudo, fenece; tambem a avesinha inoffensiva e meiga é victima do desalmado caçador. A felicidade é como a ave e a flor: tem por algoz o tempo, ou o mundo. Qual dos dois será mais destruidor?

O pae de D. Jorge, vendo que seu filho não regressava à capital, escreveu-lhe, intimando-o a voltar immediatamente. O pobre moço ficou deveras consternado por similhante intimação, que o obrigava a afastar-se da sua querida Adriana, e tambem por ignorar o motivo que levara seu pae a ser tão breve e terminante. Porém, que remedio senão partir? Jorge respeitava seu pae, não com esse respeito, filho unicamente do medo, mas com o que parte da intelligencia. Comtudo, assustava-se com a idéa de communicar a Adriana um apartamento, ainda que temporario. Conhecia optimamente que o amor é egoista, e que, portanto, uma separação, por muito pequena que seja, affecta sempre qualquer coração amante. Todavia, era indispensavel que Adriana soubesse de tão imprevista partida.

Jorge fez os seus preparativos de jornada, e dirigiu-se a casa de Adriana. Esta, ao ver o aspecto de partida do homem que era toda a sua ventura, sentiu um terrivel aperto de coração. Separar-se do seu Jorge, sem ter preparado o coração para a dor provavel de um despedimento imprevisto, sem ter pedido forças á sua alma, conselhos á sua rasão, coragem á sua fraqueza, era o que lhe parecia impossível.

Similhante realidade magoou-a extremamente.

-- Então o que é isso, Jorge, partes? perguntou ella angustiosamente.

-- Parto, sim, meu anjo; porém, a volta será breve.

-- E que é que te obriga a partir?

-- Uma intimação de meu pae. Bem vês que não devo esquivar-me.

-- Porém, o motivo?

-- Ignoro-o, e é isso que me faz temer um pouco. Não sei se algum mau accidente entraria na casa de meu pae.

O rosto de Adriana soffria gradualmente uma transfiguração dolorosa. Dissera-se uma variada cristalisação de saes, tal era a contracção daquellas feições regulares e bellas. O fidalgo, vendo tão saliente amargura, sentiu o coração trasbordar-lhe de cicuta. Um gesto bastara para que elle conhecesse o fel que derramava, bem a seu pesar, no peito da pobre Adriana.

A mudez é para os amantes verdadeiros uma linguagem. O amor puro é tão sublime, que se confunde, na percepção, com o Omnipotente; Deus falla-nos sem que oiçamos um unico som: com o amor succede o mesmo. Dizer amor, é dizer Deus, ambos são puros como um seio de virgem.

Jorge olhou Adriana com uma aguda tristeza, que mal tentava disfarçar, e disse:

-- Porque esse pesar que de prompto annuveou a tua limpida fronte? Descreste acaso do teu Jorge? O visivel esmorecimento, que o teu rosto denuncia, em que se baseia? Bem sei que uma separação entre quem se ama nunca transpira alegria; porém, deverá ella dar nascimento á desesperança? Offendes-me com a tua descrença, Adriana.

-- Cala-te, Jorge, cala-te, que muito mal me fazes com as tuas palavras. O que sinto não é descrença, é saudade prematura, e, para que o negar? duvida. Nota, porém, que não és tu o motor da minha falta de confinça, oh! não, que muito confio no teu amor; o que dá aso á terrível incerteza de que estou possuida, é teu pae, teu pae envolto no farto manto de nobreza, teu pae, cujo orgulho jámais consentirá que seu filho espose a miseravel filha d’um burguez. Oh! como esta idéa me punge e dilacera a alma!

-- Socega, Adriana, disse Jorge, a quem as duvidas da sua desposada começavam de inquietar. Os teus receios são meras aprehensões, apenas; não devemos, portanto, affligir-nos com um mal que nos não sobreveio, e que, talvez, nunca nos acommetta.

-- Tens rasão, Jorge, objectou Adriana disfarçando o seu intimo soffrer, e tentando acalmar o leve encapelamento do rosto de Jorge, signal evidente de próxima borrasca. Sou uma louca em conjecturar coisas que nos atormentam. É bom combater o mal que chegou; porém, é péssimo exacerbal-o antes do seu nascimento. A minha culpa, comtudo, merece absolvição, por ser filha do amor que te consagro, e do muito que temo perder-te. Oh! mas expulsemos esses maus pensamentos, e fallemos da nossa felicidade futura.

-- Sim, fallemos d’esses dias de oiro, que juntos havemos de passar!... exclamou Jorge, cheio de amor e completamente despreoccupado.

Os dois apaixonados amantes sentaram-se um perto do outro -- porque o dialogo precedente tivera logar no vão da janella que dava sobre a estrada -- entrelaçaram as mãos, apertando-as com paixão, e começavam de novo de semear no futuro as mais agradaveis e odoriferas flores, quando o som rouquenho da corneta da mala-posta se fez ouvir, som, para elles, mais terrivel que o da trombeta do juizo final. Ambos estremeceram instantaneamente, como se houvessem collocado as mãos sobre um apparelho electrico. Olharam-se, e esse olhar de fogo dizia: «tanto amor vae ser separado!...»

A carruagem aproximava-se. D. Jorge levantou-se, não largando a mão de Adriana, que estava gelada e tremula.

-- Adeus, meu anjo! disse elle preso da maior commoção. Confia em mim, e tem fé no futuro, que nos encherá de delicias!

Adriana não poude responder; sentia que as forças a abandonavam. Jorge, impedido pela paixão, apertou-a nos braços, pela primeira vez, e depoz sobre a face gelada um beijo de fogo. Effectivamente, a ardencia aquentou a pelle mimosa, porque um leve colorido assomou ás faces da donzella. A commoção da amante não conseguiu apagar o pudor da virgem.

Jorge precipitou-se pela porta, fugindo aos impetos do seu abrasado coração.

Era tempo; mais um segundo e seria tarde, a carruagem teria passado.

Adriana correu ao muro do jardim, palida, tremula, e disse n'um tom, meio afflictivo e meio melancholico, notando-se-lhe na falia uma saliente tremura:

-- Adieu, George, peut-être à jamais!

Estas palavras, repassadas da mais cruel amargura, foram proferidas em francez, para não serem percebidas pelos demais passageiros. Em seguida, Adriana olhou em roda, colheu á flor que menos lhe distada da mão agitada, e arremeçou-a a Jorge, que se sentava na almofada da carruagem.

Fatal destino! horrível augurio! A flor colhida ao acaso... era um martyrio!

X

Regresso a Lisboa

O coração humano é frágil como o vidro.

Embora uma porção de individuos apregoem a sua fortaleza moral, para mim é de fé que é esta uma regra que não possue uma unica excepção. O homem, engolphado n'uma supposta philosophia, julga-se couraçado contra todas as paixões, proclama em alta voz a sua firmeza de pensar, e, um bello dia, porque uma mulher, apesar da superioridade do seu espirito, o olhou com uma indifferença cheia de altivez, tenta subjugal-a, e, se ella resiste, eil-o rojando-se-he aos pés, ralado pela nenhuma importancia que essa mulher lhe tributa, e morto por que ella se digne, uma vez sequer, olhal-o de frente, e responder-lhe a uma das suas palavras. Eis, pois, abatido esse septicismo apparente. Septicismo, castello de fumo, que o sopro d’um desejo malogrado lança por terra...

Donzellas desprezadas, moços desditosos em negocios de amor, quereis submetter de prompto o vosso tyranno? Passae da escravidão ao poderio senhorial, e vereis que sublima metamorphose se opera no vosso viver amoroso. Se o coração humano tem a desgraça de ser assim organisado! só depois do bem se definhar se reconhece a bondade do passado, e a horribilidade do prezente. O homem ama a mulher em duas épocas bem distinctas: quando casa, isto é, quando a vaidade lhe vem enebriar os sentidos, e quando ella morre, isto é, quando esse ente creado por Deus para allivio e consolação do homem desapparece para todo o sempre! Jamais imaginam o vacuo; só o positivo lhes faz crer n’elle.

Já se vê, pois, que embora nos julguemos extremamente fortes, moralmente fallando, o tempo, esse perpetuo destruidor da materia, vem sempre, muitas vezes a pesar nosso, derrubar o edificio que haviamos construido, e que reputavamos indestructivel.

D. Jorge de Mascarenhas não era supersticioso, julgava-se até robusto em materia de superstição, mal terrivel que tantas victimas tem immolado; comtudo, chegou-lhe tambem a sua vez de ser atacado de frouxidão. A flor que Adriana colhera ao acaso, e lhe arremeçara, que, como dissemos, era um martyrio, junta ás palavras memoravelmente tristes, que a virgem proferira em francez, alliada ainda ás duvidas por ella tantas vezes expendidas, e outras tantas por elle rebatidas, tudo isto, ligado em terrivel fusão, lhe incutia n’alma o mais cruel sofrimento. Aquella flor deixara de ser para elle uma simples planta: tornara-se um desastroso symbolo. Similhava-se a essas aves agoirentas, percursoras infaliveis da tempestade.

D. Jorge de Mascarenhas, no fim d'uma jornada, tão incommoda quanto terrivel, por causa dos lugubres pensamentos que lhe haviam assaltado a imaginação, e trasbordando de saudades, chegou, finalmente, a casa de seu pae.

XI

Um coração assombrado

Entremos agora com o leitor no gabinete de s. ex.ª o sr. marquez do Açude, pae de D. Jorge de Mascarenhas, e oiçamos o dialogo que vae seguir-se, porque está em intimo contacto com o fio principal d’esta historia.

-- Vem cá, Jorge, disse o marquez, deixando entrever nos macilentos láaios um expressivo sorriso. Pelo que vejo, o ar dos campos fazia-te esquecer que, a bastantes leguas de distancia, teu pae te esperava ancioso e cheio de saudades. Confessa que o nome de ingrato te não é mal cabido.

Jorge estava maravilhado pela rara bonhomia de seu pae, porque o marquez era um d’esses typos altivos, que interpretam a nobreza como uma soberania absoluta, e que julgam possuir os seus foros heraldicos no cimo do nariz, por isso, não baixam jamais a fronte, com receio que elles se deslizem precipitadamente, internando-se, com a violencia da queda, no solo, ficando d’essa forma para sempre perdidos.

-- Engana-se, meu pae, os deveres de filho não foram despresados, nem a ingratidão me deve ser applicada, porque o meu coração conservou sempre a amisade que os extremos paternaes de v. ex.ª souberam conquistar. Longe, como estava, nunca o nome de meu pae foi olvidado, nem jámais a sua lembrança me deixou de visitar com uma corôa de saudades na fronte.

-- Porque, pois, tanto te demoraste? perguntou o marquez, lançando a seu filho um olhar escrutador.

D. Jorge poude vencer uma leve commoção.

-- Porque sentia que a vida simples da natureza que me rodeava se edentificava commigo, tornando-me a existencia tão brilhante, como a magestade singela que ostentava. Quando estendia a vista por sobre aquellas verdejantes campinas, sentia dilatar-se-me a alma e ennebriarem-se me os sentidos. O socego do campo fazia-me esquecer dos vaevens da corte, e concentrar por tal forma a felicidade, que a desgraça, de que o mundo tanto abunda, apresentava-se-me vagamente como um mitho.

-- Bravo, bravo, como vens poeta! disse o marquez, franzindo levemente o sobr'olho. Pelo que vejo, não voltavas á capital por causa de algum volume de idyllios que tentavas elaborar?

-- Não, meu pae, contentava-me em lêr no livro da creação, cujas paginas rescendem aromas deliciosos, malisadas pela celeste poesia que as esmalta.

-- É tal o ardor do teu expressar, que se a tua estada no campo se prolongasse, renegarias a nobreza do nosso nome, e farte-ias... modesto pastor. Realmente, é muito para preferir a manta remendada do camponio, aos pergaminhos que nossos avós tão honrosamente conquistaram, e nos legaram.

O marquez, fallando d'esta fórma, deixava transluzir uma ironia repugnante, acobertada, comtudo, com uma jovialidade mal fingida. Jorge sentia-se levemente indignado.

-- Meu pae exagera; entre Cresus e Job ha uma grande distancia, e toda a distancia tem um meio. O ser nobre não impõe a condição de só admirar o soberbo edificio da cidade, e despresar a singela cabana do camponez. A perfeita disposição e simplicidade do colmo satisfazzem, muitas vezes, tanto a vista, como a pesada architectura d'um palacio. O rio é menos precioso e magestatico de que o Oceano; comtudo, tem tambem a sua importancia, e a feição do bello é n’elle muito mais pronunciada. As suas margens, mais ou menos pitorescas, refrescam, em quanto que a immensidade do mar escalda.

Jorge sentia-se como em terra estranha; a vellada ironia de seu pae torturava-o. Resolveu, pais, passar a negocio mais serio, e em que a franqueza occupasse o seu respectivo logar.

-- Porém, meu pae, continuou elle, ainda me não disse o motivo que o levou a apressar tão terminantemente a minha vinda. Confesso que receiei que inesperada catastrophe houvesse assaltado o nosso lar; todavia, ainda não apercebi a menor mudança que podesse entristecer-me o coração.

-- De certo, pois que não é de tristezas que temos a tratar, muito pelo contrario, dum assumpto alegre, e que tende á tua felicidade. Se assim não fôra, não abreviaria tanto a tua vinda; porém, era tal a minha anciedade, que não pude resistir ao desejo que tinha de te annunciar, o mais breve possível, o teu risonho futuro.

D. Jorge de Mascarenhas, longe de se alegrar pelas promettedoras palavras de seu pae, sentiu um estremecimento repentino e doloroso. Vago e ao mesmo tempo terrivel presentimento o assaltou repentinamente. Sem saber porque, lembrou-se de Adriana. Caprichos do inexplicavel! Mysterios do coração!

-- Muito me lisongèio, meu pae, por lhe ouvir palavras que comprehendem um sorriso, redarguiu Jorge, tentando dissimular a leve perturbação porque passara.

-- O dever d’um pae é cuidar sem descanso na prosperidade de seus filhos. Não ignoras que não sou uma excepção d’essa regra, antes me preso de ser um dos seus mais fieis executores.

-- Faço-lhe justiça, meu pae, atalhou D. Jorge, com o coração repassado de incerteza, e receando pelo desfecho do prologo encetado por seu pae.

O marquez recolheu-se um momento, signal evidente de que ia entrar na acção.

-- A classe dos nobres, na qual occupamos um logar distincto, tem restricta obrigação de cuidar dos seus fores, e conservar a arvore genealogica, de que somos um ramo. Por isso, resolvi fazer um enxerto maravilhoso, ligando a nossa casa á dos condes de S. Francisco...

-- Não o comprehendo, meu pae! murmurou o pobre moço, attingindo, bem a seu pesar, o fim de tal revelação, mas tentando ainda illudir-se, como um esforço supremo.

-- Eu me explico mais claramente, disse o fidalgo, assumindo um tom decisivo. O conde de S. Francisco propoz-me a tua união com sua filha, e eu entendo que similhante enlace é em tudo vantajoso. A casa de S. Francisco allia a uma nobreza de antiga data, e de irreprehensivel memoria, uma riqueza fabulosa. Um tal conjuncto não deve despresar-se, por isso, acquiesci de prompto, manifestando o quanto me penhorava similhante distincção.

Imagine-se o que Jorge sentiria ao ouvir uma revelação que em tudo contrariava os seus sonhos de ventura. Cada palavra soltada por seu pae lhe cahia no coração, como gelo em agua fervente. A figura angelica de Adriana apresentava-se-lhe vagamente na imaginação. Via-a aproximar-se, aproximar-se, tocal-o, emfim, com os seus porpureos labios, e, depois, quando tentava segural-a em frenetico amplexo, afastar-se, afastar-se, até perder-se n’um horisonte de fogo.

Um minuto bastara para destruir seculos d’uma ventura sonhada. Jorge, na sua imaginação escandecida, afigurava-se-lhe impossivel que os labios de seu pae podessem descerrar-se para proferir palavras que envolviam um veneno mortifero. Eram como um raio, que lhe penetrava no coração, assombrando-lhe a alma.

-- Porém, meu pae, balbuciou o pobre moço, com as feições horrivelmente contrahidas, deve concordar que o casamento envolve uma existencia inteira... e n'esse caso...

-- Previno-te de que não admitto a menor replica. Dei a minha palavra de nobre, e um fidalgo nunca se retrata. Nada mais tenho a dizer.

E o marquez, arremeçando estas flechas envenenadas, sahiu, deixando Jorge, extatico, e como comprimido por mysteriosa prensa.

XII

Desespero d'alma

Ha golpes tão profundos, que nos fazem perder os sentidos, roubando-nos assim á sensibilidade do soffrimento doloroso; porém, quando chega o despertar, se as feridas não foram pensadas, se o sangue se derramou abundantemente, o martyrio multiplica-se, por via da ausencia do curativo.

Jorge cahiu n’uma consoladora lethargia, isto é, desmaiou moralmente; mas quando voltou á sensibilidade, e viu as chagas expulsando sangue ás golfadas, sem que mão caridosa lhes applicasse um balsamo suavisador, conheceu a horribilidade do seu estado, e entregou-se, cheio de desanimo, á dôr que o macerava. Ter que renunciar a Adriana! vêr murchar todas as suas esperanças! Que terrível desengano!

Uma só palavra bastara para destruir o edificio de ventura, que havia architectado. repleto de jubilo e ajudado por Adriana. Como teria forças para a inteirar de um acontecimento tão inesperado, e tão cheio de amargor?... E elle mesmo, como poderia supportar uma perda tão sensivel, a que se ligava, por assim dizer, a sua vida? Mil idéas lhe aflluiam á mente, formando-lhe no cerebro uma tempestade horrivel.

Na manhã do dia seguinte recebeu uma carta de Adriana. Jorge rasgou rapidamente o sobrescripto, impellido pela furia do coração. Era uma carta cheia de saudades, e crivada de recordações. Adriana pedia-lhe que voltasse breve, e rematava, dizendo:-- «Depois que partiste, meu Jorge, operou-se em mim, e em tudo, fatal mudança. Fui hontem com meu pae passeiar até ao Prado do Olmeiro. Esperava divertir-me, como de costume, mas não succedeu assim. Aquelle sitio tão lindo, e que tanto me deleitava quando lá iamos, achei-o monotono, feio não direi, mas vulgar, mais do que vulgar, triste. Emquanto meu pae se aquecia ao calor do fogão dos pobres, o sol, aproximei-me do grande olmeiro, sob o qual tantas vezes estivemos sentados, e deparei com os nossos nomes entrelaçados. Não te lembras que os gravaste na casca d’aquella arvore que nos é tão cara? A vista de tão significativa inscripção, de que, francamente, me não recordava, commoveu-me em extremo. Lembrei-me de ti, e senti que as lagrimas se me desprendiam dos olhos. Chorei, meu Jorge; porém, que importava, se tu eras a fonte d’esse pranto? Escreve-me... Vem depressa, e lembra-te da tua -- Adriana.»

A leitura d’esta carta impressionou bastante D. Jorge. Era indispensavel escrever a Adriana; porém, em vista da scena que passara com seu pae, não sabia que dizer-lhe. Lucta cruel lhe opprimia o cerebro.

D’um lado, a obediencia filial, do outro, os espontaneos impulsos da sua alma, e a gratidão que devia ao anjo que lhe tinha amimado bem gostosos momentos. Não podia, por fórma alguma, acceitar a idéa de perder a perola de subidissimo valor com que o acaso lhe fizera deparar. A felicidade, mesmo sonhada, custa baitante a despresar-se.

O pobre moço, depois de longas horas de cruel e devastador cogitar, decidiu-se a escrever a seguinte carta -- se com sangue traçasse os caracteres, não lhe custaria mais:

«Ha momentos na vida, Adriana, em que as idéas se confundem por tal fórma, que mal podemos ligar o sentido de duas palavras; este em que te estou escrevendo é um d’elles. Tenho o coração traspassado pela dôr, a alma gelada pelo soffrimento. Fito qualquer objecto, e, á força de o olhar, tprmino por não o ver. Fallam-me, e mal distingo uma palavra: chego até a duvidar se vivo! E sabes, ai de mim, Adriana! de que provem tudo isto? Não sabes? não suspeitas sequer? Oh! prouvera ao céu que o podesses ignorar. Vou casar-me, Adriana, vou casar-me com outra que não tu! Custa-me a supportar a idéa da perplexidade, do espanto, e, sobre tudo, do dilacerante desgosto que similhante revelação te deve causar! Ai! minha Adriana, ha males tão profundos, que mais parecem um sonho do que a própria realidade, tão impossiveis se nos afiguram. Porém, espera, não me condemnes sem me ouvires. Meu pae propoz me um casamento vantajoso; deves suppor que immediatamente recusei; porém, pobre de nós, minha adorada Adriana, meu pae é inflexivel, é um d'esses fidalgos de rija tempera, que nada os abala. Comprometteu a sua palavra de nobre, e preferiria matar-se a faltar a ella. Vê em que desgraçada posição me collocaram! Deves calcular a lucta terrivel que me tem cruciado. Ai! nunca julguei que o soffrimento fosse tanto alem! Estou prostrado, morto, quasi, pelo cogilar. Quanto n’esta hora invejo a vida apoucada do modesto operario! Para elle não ha conveniencias que guardar, é o coração, só o coração, que o impelle. Eu, o nobre, o fidalgo, cumpre-me curvar a fronte, e soffrer. Devo luctar contra o destino? devo aberrar dos decretos da Providencia? Não, seria considerar-me superior á Omnipotencia divina. A cruel verdade está narrada, resta-me despedir-me de ti, meu adorado anjo. Desejava consolar-te, mas como, se sou eu que mais necessito de consolações? Lembras-te de quando me disseste haveres sonhado o meu casamento com outra? A natureza começava de operar. Recordas-te de quando me perguntaste se desejava acordar um dia sem me lembrar d'uma unica circumstancia do passado? Os teus receios procuravam fundamento. Nada mais digo, porque nada mais posso dizer. A dôr embarga-me a voz... Quasi suffoco. Esquece-me, Adriana, é o ultimo favor que te pede aquelle que muito te amou! Tem resignação. Deus vellará por ti, proporcionando-te um esposo que te dê a felicidade que a tua alma de pomba merece. Em quanto a mim, penso da seguinte fórma: Adriana morreu, plantemos uma saudade sobre a sua sepultura, e lavremos na lapide esta inscripção: «Aqui jaz a unica mulher que me soube comprehender!»

«Ao terminar esta carta sinto uma lagrima deslisar-me pelas faces. Depois que sou homem é a primeira vez que tal me succede. Adeus, adeus!... Jorge .»

Mal poderá imaginar-se o estado em que esta carta engolphou o desventurado moço. Por felicidade sua, o excesso do desgosto como que lhe tirava o sentimento.

-- Está tudo acabado! dizia comsigo o pobre Jorge. Tanto amor, tantas delicias sonhadas, tanta felicidade por vir, tudo, tudo a vontade d’um homem, que o acaso fez meu pae, destroe!... Oh! quizera n’este momento collocar em menor altura os meus deveres de filho! Ó meu Deus, porque não se ha de poder comprar a vida? Quizera dizer áquelle a quem devo a existencia: -- Estamos quites!... Ai! Adriana, para que me appareceste, e para que te appareci?... Pois é crivel que a desgraça esteja no centro das flores!... Sim, quantas vezes as rosas encobrem os espinhos da haste!... quantas vezes o singelo lirio esconde o insecto que nos fere!...

O desventurado Jorge encerrou-se no seu quarto, entregando-se á dôr que de subito o assaltára, e a que não podia subtrahir-se. Quanto daria elle para não ter coração!...

XIII

No baile

Em Lisboa, como em todas as cidades civilisadas, em chegando o inverno, o espectro do indigente, succedem-se os serões, crusam-se os bailes, com um frenesi que toca o delirio. O grande mundo, em quanto o outono vae despindo as arvores e os campos, começa elle de ataviar-se, requintando de garridice, e sonhando em cada dia com um novo enfeite, ou arrebiqne. Ó moda, só tu és a rainha universal! A moda é o cancro das familias, o espectro das posições mal assentes, o sonho das donzellas, e também das não donzellas, é a deusa -- muito á puridade direi que prefiro chamar-lhe demonio -- é a deusa em cujo altar, moços e velhos, vão depôr as suas offerendas!... A moda, qual outro Democrito, atira, quando quer, uma estridula gargalhada ás faces da sociedade. Caprichosa, como é, acorda um bello dia, espreguiça-se, esfrega os olhos, salta d'um pulo do seu mysterioso leito, e diz na sua linguagem peculiar:

-- Bom dia, humanidade, não sabes? quero hoje divertir-me comtigo! Curva-te, escrava, e prepara-te para o meu novo capricho!

Dito isto, decreta logo uma das suas innumeraveis excentricidades. E a sociedade submette-se, e applaude, e empenha-se, e arruina-se, e a moda ri do alto do seu throno, ri ainda, ri mais, ri sempre!

É tão grande o poderio da tal endemoninhada rainha, que até nos fez desviar do caminho que desejavamos seguir.

Diziamos, pois, que Lisboa se desentranha em muitos e diversos bailes, mal assoma a estação diluviana. Deixemos os muitos e diversos, e entremos -- á parte a indiscripção -- n'aquelle que dá o conde de S. Francisco, baile cujo esplendor rasteja pelo Oriente.

Dispensem-nos a biographia do conde; diremos apenas que era um fidalgo em toda a extensão da palavra. Lhano como poucos, agradavel como raros.

As salas do nobre conde ostentavam um brilhantismo deslumbrante, já pelo luxuoso luz dos adornos, já pela formosa collecção de aprimoradas damas que circumdavam o festival recinto.

A animação era grande. Aqui valsava-se, ali conversava-se, mais além nada se fazia; n'um lado descansava-se, n'outro jogava-se, etc., etc.

Entre as umbreiras d’uma das portas, via-se um grupo de elegantes que, de luneta assestada e olhar em mira, percorriam com minuciosa attenção as diversas filas de senhoras, aventando cada qual o seu juizo, tiroteando dichotes e facecias, pondo, finalmente, em relevo tudo que sabiam, e mesmo o que não sabiam, a respeito das pobres victimas que estavam sendo immoladas no altar da critica pretenciosa.

-- Que me dizem á condessinha de C...? perguntava um dos elegantes para o grupo.

-- As desillusões passam n’ella rapidas como nuvem em céu de abril, replicou um espirituoso.

-- Tanto amor por Alberto de Sousa, e afinal...

-- E afinal comprehende, e comprehende muito bem, que ha muitos Albertos e muitos Sousas.

-- Anda tu, lingua perversa,..

-- Assim alcunhas a verdade? Desenganem-se, meus senhores, o amor passa como qualquer moda; em tudo similhante a esta, presta-se-lhe um verdadeiro culto de occasião, mas depois, perdido o perfume da novidade, cahe no frio gelo, e mais tarde até nos rimos d'elle, como do arrebique exagerado, que em tempo idolatramos.

-- Protesto! disse uma voz que se aproximara do grupo.

Era D. Jorge de Mascarenhas.

Todos se voltaram.

-- Ah! és tu, Jorge, disse um filho segundo d'uma casa extincta.

-- Venham as bases do protesto! gritaram todos alegremente.

-- Protesto, porque o amor existe: protesto, porque tudo é amor, e d‘elle tudo dimana; protesto, porque o amor é Deus, e ante a Divindade devemos curvar-nos reverentes.

-- Bravo, philosopho!

Jorge despresou o áparte, e continuou:

-- Que seria da humanidade sem a santa luz do amor? Viver sem affecto, era viver no vacuo, e no vacuo é impossivel a existencia. O amor em tudo se patenteia: na planta que se enamora da outra planta; na féra que, apesar dos seus instinctos de carnagem, lambe os filhos e os protege; na flôr, que no seu mysterio de affecto, lá vae, nas azas da viração, beijar a gentil companheira; na palmeira do deserto, que, isolada, nada produz, e que á vista d'outra igual e formosa arvore se desfaz um fructo; na mãe, que dá a vida pelo filhinho da sua alma; na esposa, que devota todo o seu ser ao homem que soube fazer-lhe vibrar as cordas do coração; no soldado, que arrisca a vida pela autonomia da patria; no sacerdote, que lá no sertão vae caminhando, por assim dizer, por sobre a morte, mas sempre com o estandarte de Christo arvorado; de tudo, em fim, brota o amor, e o amor de diversas especies. Imagine-se, por um momento, extincto todo o sentimento d'alma: imagine-se a humanidade sem coração: o que veriamos? em tudo e em todos a indifferença gelada, as palavras coadas por um filtro de marmore. Os homens crusar-se-iam como se foram graniticas pedras. Que fito, que aspiração teriamos? Quem nos incitaria no trabalho? quem daria vida á vida? para onde caminhariamos? para a capma, depois de termos vivido n'um tumulo! Oh! sim, o amor é o oceano para onde desaguam todos os rios d'alma! Eis motivado o meu protesto, protesto que espontaneo me sahe do coração, coado pelos labios. protesto imperterivel em mim, porque em mim se não apagou ainda o sentimento!

-- Bravo! bravo! exclamaram os ouvintes.

-- Pelo que vejo, estás apaixonado? disse o filho segundo.

-- Não estou apaixonado, mas não estou tambem pervertido.

-- Ah! meu caro Jorge, tenho dó de ti!

-- É verdade Jorge, replicou um putro personagem do grupo, diz-se por ahi que vaes concentrar todo o teu amor no coração da formosa filha do conde de S. Francisco?...

Taes palavras, simples na apparencia, foram para o pobre fidalgo escandecente scintilla. Ao dissertar sobre o amor, fixára os seus olhos d'alma na meiga virgem, que lá no campo, entre verdura e flores, lhe arroubára os sentidos! Lembrára-se apenas da sua Adriana, que tanto ihe inflammára o corarão! De repente, uma pergunta ao acaso volvia-o á cruel realidade, fazia-lhe relembrar os desejos aferrados de seu pae, desejos que o envolviam n’uma athmosphera de fogo!

O desventurado moço ficou immovel, extatico, e pronunciada pallidez lhe invadia o rosto.

Os amigos, -- chamemos-lhe assim, visto queo uso nos tem auctorisado a tanto prodigalisar tão santa palavra -- os amigos de Jorge, admirados pelo seu silencio, iam sem duvida commetter a indiscripção de inundal-o de perguntas, quando, felizmente para o pobre rapaz, um criado se acercou, dizendo-lhe em voz alta:

-- O pae de v. ex.ª pede-lhe para que se dê ao incommodo de passar á sala verde, onde o está esperando.

Jorge afastou-se machinalmenle do grupo, e dirigiu-se, com andar vagaroso, e tragando crueis presentimentos, ao encontro de seu pae.

No grupo começaram de fazer-se mil commentarios, de que Jorge de Mascarenhas era o alvo.

XIV

Supplicio d'alma

Cumpre-nos apresentar aos nossos leitores a filha do conde de S. Francisco, projectada esposa de D. Jorge, e a quem está destinado um importante papel no decurso d’esta historia.

Julia sahira havia pouco do collegio, onde adquirira uma regular educação. Entrava no mundo cheia de esperanças e phantasias, auctorisadas pelo muito que lhe era invejada a sorte entre as juvenis companheiras, que de continuo lhe faziam reílectir no vasto panorama que deveria desenrolar-se perante a filha d'um conde. Preparada assim para o fausto, idealisava grandezas e caprichos, dando largas á sua ardente imaginação de dezoito annos. Seu pae, o nobre conde de S. Francisco, tributava-lhe sentido affecto, que desejara traduzir dando um esplendido baile para celebrar o anniversario natalicio de sua filha. De manhã dissera-lhe elle, apertando-a meigamente nos braços:

-- Minha querida Julia, recebe os parabens de teu pae, e acceita a promessa d'uma prenda, que desejo offertar-te.

-- Que prenda, meu pae?

-- É uma surpreza que desejo fazer-te.

-- Então não me diz o que é?

-- Repito que é uma surpreza.

Julia começou de dar vulto á promessa de seu pae, já lembrando-se d’um vestuario de subido preço, já d’algum riquissimo adresso de brilhantes, etc., etc.

Ao jantar, não podendo resistir á tentação, disse com feiticeiro sorriso:

-- E a minha surpresa, meu pae?

-- Mais tarde. Socega, que não me esquece.

Julia ficou contrariada, e redobrou de impaciencia. O ignoto como que attrahe.

Depois, no baile, encontrando-se com o conde, de novo lhe perguntou:

-- Então, meu pae, a surpresa?

-- Mais tarde.

-- D'aqui a pouco chamo-lhe mau. Abusa da minha curiosidade.

-- Mais tarde, objectou ainda o conde, sorrindo.

Julia foi afogar em redemoinhante walsa a accirrada impaciencia que a dominava. Comtudo, não podia calar, e a diversas amigas contou a estranhesa do caso.

Passado algum tempo, o conde acercou-se-lhe, e, offerecendo-lhe o braço, conduziu-a para a sala verde. Pelo caminho ainda Julia lhe perguntou:

-- E a minha surpreza?

-- Mais tarde!...

Este mais tarde, porém, foi dito de fórma que bem significava: agora!

Na sala verde estavam á espera do conde o marquez do Açude e diversas senhoras e cavalheiros, que mais intimamente cultivavam a amisade dos donos da casa.

Quando pae e filha chegaram, entrava tambem D. Jorge de Mascarenhas, que, como presenciamos, fora mandado chamar pelo marquez.

-- Meus senhores, disse o conde de S. Francisco com ar risonho, como sabem, minha filha completa hoje dezoito annos. Para assignalar tão festivo dia, resolvi dar-lhe um brinde, que para sempre lhe lembre.

-- Ah! chegou o momento de se patentear a surpreza de que me fallou? interrompeu a formosa Julia.

-- Chegou.

Todos os auditores estavam suspensos, e anciosos esperavam ver a maravilha offertada pelo conde, cuja magnificencia e bizarria conheciam.

-- O brinde não póde ser nem mais valioso, nem mais digno de estimar-se, continuou o fidalgo. Reune todos os predicados precisos para lisonjear quem o receba.

-- Vamos, meu pae, não me tyrannise por, mais tempo... replicou Julia com um palpitante frenesi.

-- Pois bem, o brinde que desejo offertar-te é...

-- É?... perguntou a anciosa menina.

-- É?... repetiram os convidados, commettendo bem palpitante indiscripção, mas não podendo dominar a maldita curiosidade.

-- É a mão de esposo do sr. D. Jorge de Mascarenhas, filho do meu nobre e particular amigo, o honrado marquez do Açude.

O espanto foi geral. Quem poderia esperar similhante desenlace?

Julia baixou subitamente os olhos, ruborisando-se-lhe as faces do mais virginal pudor.

Jorge quasi cambaleou, e, para contrastar com aquella que lhe destinavam para esposa, o rosto assumiu-lhe a pallidez d’um cadaver. Como que lhe faltavam as forças; mas um olhar de seu pae, penetrante e ao mesmo tempo severo, veiu robustecer-lhe o animo.

-- Muito bem, muito bem! exclamaram os circumstantes.

-- Que dizes ao brinde, minha querida Julia? perguntou o conde com pronunciada jovialidade.

-- Meu pae... balbuciou a casta menina.

Por convite do conde Julia estendeu machinalmente a formosa mão, que escaldava; Jorge acercou-lhe os nevados labios, e imprimiu-lhe um imperceptivel beijo.

Dissera se o gelo osculando o fogo.

Uma lagrima borbulhou nos olhos do desventurado Jorge. Ia deslisar-lhe pelas faces, mas suspendeu-se, e foi-lhe direita ao coração, procurando assim abrigo mais seguro.

-- Não podia escolher para minha filha, disse o conde de S. Francisco, um esposo que mais digno fosse d’ella, com orgulho o digo. Jorge de ha muito que da provas da maior sensatez, e estou certo que proseguirá na mesma senda, amparando-se ao braço da minha Julia, esteio debil, mas fiel. Será um par digno de invejar-se. Em nós, meu caro marquez, se reflectirão as alegrias de nossos filhos. N’elles e com elles gosaremos.

-- Assim será, conde, objectou o pae de Jorge, que, como o leitor vê, era menos expansivo do que o seu amigo.

-- Dentro em um mez devem assignar-se as escripturas de casamento, para o que desde já os convido, meus senhores.

As diversas damas que estavam presentes apressaram-se em felicitar a formosa Julia; outro tanto fizeram os cavalheiros a Jorge.

Que se passava nas almas dos dois futuros consortes? Sentimentos de todo o ponto oppostos. N’uma, tempestade, n’outra, dia amenissimo de estio.

Julia, coração livre e com todo o viço da mocidade, do logo se entregou à sua juvenil phantasia, sonhando mundos de gozos por vir. De facto, que mais poderia ambicionar? Jorge era a suave realidade d'um bello sonho. Formoso, elegante, nobre, intelligente, tudo, emfim, que póde lisongear um coração de dezoito annos. A virgem tudo via em plena aurora, mas limpida, mas clara, mas attrahente. O rosto bem lhe espelhava o que lhe ia no intimo.

Jorge apresentava um frizante contraste. Deve facilmente imaginar-se quanta dôr o macerava. O coração desfazia-se-lhe em pranto intimo. Vergava ao peso do mais atroz supplicio, sem que podesse reagir, sem que, ao menos, podesse soltar uma queixa. Era n'aquella hora de angustia que invejava a sorte do proletario, do proprio miseravel, porque esses teem a faculdade de elegerem pelo coração quem lhes deve suavisar a espinhosa vereda da existência. -- Oh! a nobresa é escrava de si mesma! pensava elle.

--Então, D. Jorge, disse o conde de S. Francisco, dê o braço á sua noiva, e vão sellar n'uma walsa animada os laços de amor que os devem ligar no futuro.

Jorge avançou instinctivamente para Julia, e offereceu-lhe o braço.

A casta menina, ao contacto do homem que devia ser o seu protector natural, pareceu-lhe que tremia o braço offerecido; suppoz, porém, logo que o tremor era seu, o filho da emoção que a dominava.

O interessante par atravessou as salas, sendo felicitado na passagem por alguns amigos, a quem já havia chegado a noticia do futuro enlace.

Assim caminhando, dissera-se a dôr de braço dado com a alegria.

O olhar de Jorge avivara-se, não pelo amor, mas pela febre que o devorava. Todos interpretavam aquelle olhar brilhante como o jubiloso testemunho de alegrias occultas.

Pobre Jorge! Só Adriana, a desventurada Adriana, te poderia ler n'alma! E tu passavas por entre a ruidosa e animada multidão, e cada passo era um espinho, e cada comprimento uma punhalada! Caminhavas para o teu Golgotha, arrastando a cruz, e a tua cruz era um anjo!..

XV

Martyrios do coração

A filha do conde de S. Francisco, seguindo pelo braço de Jorge, depois da scena inesperada que seu pae preparara, sentia-se verdadeiramente embaraçada, sobretudo por não ouvir uma unica palavra da bocca do homem que lhe destinavam para esposo.

Jorge guardava o mais rigoroso silencio. Já viram o marmóre fallar?

Julia não sabia a que attribuir similhante reserva. Nem pela mente lhe passava que D. Jorge de Mascarenhas regeitasse, no intimo, o auspicioso enlace que se preparava; a sua vaidade de mulher, de creança, incitada, como dissemos, desde o collegio, não lhe permittia suppor um desprestigio.

Redobrando de estranhesa, aventurou-se a dizer ao seu companheiro:

-- Sr. conde, acaso soffre?..

O fidalgo sobresaltou-se áquellas palavras; como que foram despertal-o.

-- Não, minha senhora, respondeu elle.

-- Parece-me demasiado pensativo, replicou Julia; dir-se-ia que fundo pesar o preoccupa.

-- Felizmente que assim não é. Em todo o caso, cumpre-me agradecer a v. ex.ª os cuidados que lhe inspiro.

-- Creio que não serão muito para estranhar... balbuciou a filha do conde de S. Francisco baixando castamente os olhos.

Jorge despertou de todo. Por momentos se lhe encobrira a imaginação com um denso veu. Volvia á despedaçadora realidade. A mulher que levava pelo braço era o ente com quem devia unir-se pelos laços da igreja.

-- Comprehendo a delicadeza de v. ex.ª, replicou o fidalgo; é propria dos labios que a pronunciam.

-- Começa o galanteio, já vejo que é um attributo do officio de namorado.

-- Ó minha senhora...

-- Sim, o affecto é um officio, de que o coração é mestre.

-- Peço licença para não concordar com v. ex.ª! porque os officios aprendem-se, e o amor não se ensina.

-- Tem razão, brota d'alma.

-- Assim é, objectou Jorge, animando-se insensivelmente, não impellido por Julia, mas porque de novo a imagem de Adriana lhe saltitou na mente; brota d’alma, e despenha-se em borbotões, como a catadupa.

Julia ruborisou-se levemente, dizendo comsigo -- Ama-me!...

-- Vejo, accrescentou em voz alta, que a effervescencia dos prazeres, os mil deleites ruidosos, ainda lhe não afogaram o sentimento, como a tantos acontece.

-- Não, minha senhora, se a regra é essa, sou, felizmente, uma excepção. Morto o sentimento, que vale a vida? Ó coração é, e será sempre, o motor da humanidade, o fanal que nos indica um trilho de rosas, a bussola que nos dirige a existencia!

-- Que arrebatamento! pensava Julia, de certo o affecto que lhe inspiro não nasceu hoje, robustecia se talvez na sombra.

-- Almas vis que por ahi ha, continuou Jorge, não podendo reprimir uma certa excitação, que sorriem das santas crenças do amor, que apodam o sentimento que se patenteia, que motejam de tudo que vem do coração, porque é orgão que eliminam da economia animal.

-- Muito folgo por perfilhar tão nobres idéas. O amor é necessario, como a seiva á flor. Que será do homem, sem um peito amante onde vá aninhar-se nas horas de provação? Que será da mulher sem um braço forte a que se arrime?...

-- Sim, que será da mulher que se veja sosinha, qual palmeira do deserto?...

-- Principalmente quando a brisa do amor lhe tiver amimado as faces. Se, apoz um sonho de ventura, vem uma realidade tremenda, que soffrimento, que dilacerante amargura?...

Julia, sem o presentir, esmagava o coração do desventurado Jorge, phantasiando o que algures era uma verdade excruciante.

Comtudo, sentia as palavras proferidas, por que em curtos momentos se entregara ao fidalgo, e já temia que imprevisto accidente lh'o viesse arrebatar.

Jorge, receando trahir-se, guardou o mais profundo silencio.

-- Oh! uma desillusão, quando se idealisa um futuro de flores, continuou a filha do conde de S. Francisco, deve de ser terrivel!

O mesmo silencio da parte de Jorge. Julia começou de temer por esse silencio.

-- Ferir a planta debil na sua primavera, é obrigal-a a fenecer prematuramente...

Deus sabe o que se passava na alma do desditoso Jorge. Cada palavra da sua interlocutora era para elle um ferro ardente. Quasi que lhe ia um vendaval no intimo.

Julia proseguiu ainda agitada por afflictiva duvida:

-- Dado o coração ao amor, despedaçado esse amor, ainda que nascente; é gelar para sempre um peito animado, é dar um despertar de espinhos a quem sonhou com violetas, é dar a morte a quem lhe sorria a vida!...

Jorge não poude mais. Chegou ao apogeu do soffrimento. O sangue escandeceu-se-lhe nas veias, e as faces animaram-se-lhe pronunciadamente. Quizera desfazer-se n’um turbilhão de palavras; porém, um lampejo de razão veiu ainda em seu soccorro, e poude reprimir-se, dizendo, todavia, mentalmente:

-- Ó meu coração!...

E accrescentou em voz alta, como que exaltado por ardente febre:

-- Vamos, minha senhora, lá rompe a orchestra, corramos á walsa... embrenhemo-nos na effervescencia do baile... Dansemôs... dansemos...

E, impellido por febril delirio, quasi que arrastou Julia por entre os animados pares, redemoinhando em walsa veloz, como o cyclone que vem, passa e se perde na vastidão do solo. Redrobando de intencidade na carreira, dizia ainda ao ouvido de Julia com voz impossivel de descrever-se:

-- Dansemos... dansemos!...

XVI

A senhora Engracia das Dores

-- Que terá o sr. conde? perguntava um criado particular de D. Jorge de Mascarenhas á sr.ª Engracia das Dores, que fôra ama do fidalgo.

-- Eu sei lá, homem!

--D antes tão alegre e folgasão, e agora sempre mettido no seu quarto. Porque será, ó tia Engracia?

-- Já te disse que não sei, rapaz, o que me parece é que máus olhados o viram. Eu te arrenego!...

E a mulherzinha fez o signal da cruz.

-- Estará o sr. conde doente? objectou o curioso criado.

-- Aquelle menino é os meus peccados. Já uma vez, ainda elle era bem pequeno, me fez passar tratos de polé por causa de comer uma maçã que lhe tinha dado a excommungada d'uma bruxa -- Faze figas, rapaz!

E a supersticiosa velhinha cobriu com o descarnado indiçador o já chuchado pollegar, estendendo as ossudas mãos para o espaço.

-- Figas, tia Engracia exclamou o ladino criado.

-- Ai, filho ! o mundo sempre está muito cheio de almas damnadas! Tem a gente de andar sempre com o credo na bocca! Os invejosos são aos punhados, e o demo está sempre prompto a favorecer os máus.

-- Lá isso é verdade, tia Engracia.

-- Olha, rapaz, quem sabe se fariam algum feitiço ao nosso menino?...

-- Ora adeus, tia Engracia! Então vocemecê crê em bruchas!...

-- Cala-te ahi, demonico, então não hei do crêr. Olha, ainda eu era rapariga -- louvado Deus que ha bem tempo já -- havia lá na minha aldeia uma moçoila que era mesmo um palmito. As faces da pobresinha eram mesmo dois rabanetes; os olhos brilhavam-lhe como os tições da lareira; e então a respeito de gordura, isso era um gstoo vêl-a. Parecia mesmo que vendia saude. Mais bem apessoada não havia em todo o logar. Os rapazes todos á uma lhe faziam os seus rapa-pés, mas ella, a coitada, só gostava do filho do sr. morgado do Valle. O rapazelho tinha-lhe dito não sei que palavras, que lhe ensinara uma mulher de virtude, e com as taes palavrinhas diabolicas conquistara o coração da pobre Maria. Ella não via outra coisa. Cada vez que apparecia o sr. morgado mais novo, iam-se-lhe os olhos n'elle. Aquillo é que era amor! Os rapazes da aldeia mordiam-se de inveja, por Maria não lhes dar attenção. As quizilias foram crescendo, e já se ouvia um certo rumor surdo, em que se misturava o nome de Maria e o do seu arrojado. Uma vez, era um domingo, estavamos todos no cruzeiro, e eis que um tal Antonio da Graça, que era o maior pimpão do logar, se chega á Mariquinhas, e lhe diz:

« -- Ó menina Maria, quer vir brincar commigo o bailarico?...

« -- A pobresinha fez-se ainda mais vermelha do que era, e baixou os olhos sem responder. Então o Antonio tornou a convidal-a para dansar, e ella nem se atreveu a erguer a cabeça.

« -- Ah! a menina já se despresa de brincar com a gente, insistiu o endemoninhado do homem; naturalmente é por estar ali o seu conversado da cidade! Espere ahi um bocadinho que eu vou-lhe pedir licença a elle para a menina brincar.

« -- Dizendo isto, o inimigo, que parecia ter o demo no corpo, dirige-se para o filho do sr. morgado, que tambem estava presente, e diz-lhe algumas palavras, que eu não pude ouvir, porque estava distante. Ai filho! d’ali a um nadinha -- parece que ainda foi hontem -- arma-se uma grande bulha; praguejam os homens, gritam as mulheres, choram as creanças. Virgem Santissima! parecia o fim do mundo. Fôra o caso que o tal Antonio da Graça insultára o sr. morgadinho, e então alguns trabalhadores da herdade tomaram a defeza do seu patrão, acabando tudo por uma grande desgraça. Ai! minha rica Nessa Senhora do Amparo, que domingo aquelle! Nas luctas o máu homem do Antonio puchou por uma faca, e enterrou-a, salvo seja, no peito do pobre fidalgo! Coitadinho! lá se foi para a eternidade!... Padre nosso, que estaes no céu...

-- E a Mariquinhas? perguntou o criado, interessando-se pela historia.

-- Amen Jesus!... respondeu a boa velhinha, terminando a oração. A Mariquinhas?... ahi está aonde eu queria chegar. A pobre rapariga tambem teve o seu quinhão na desgraça.

-- Tambem a mataram?

-- Eu te conto, filho. A desventurada creatura, desde aquelle dia deixou de ser a mesma. As faces, rosadas que eram, tornaram-se da côr da cidra; os olhos perderam toda a viveza, e mais pareciam a luz d'uma candeia, quando lhe falta o azeite. E não foi só isto: ás vezes, lá pela noite velha, a pobre Maria encaminhava-se para o cruzeiro da aldeia, e então é que era vêl-a! Eram berros, eram gritos, eram lagrimas, eram risos, e afinal começava a tremer, a tremer, agitando muito os braços, e rangendo os dentes, que era mesmo um louvar a Deus. Toda a gente andava horrorisada, mas ninguem sabia dizer ao certo o que tinha a Mariquinhas.

-- Pois não era muito difficil, interrompeu o incredulo criado; o que ella tinha, coitadita, era um grande desgosto pela morte do namorado.

-- Cala-te, meu fedelho, sabes lá o que dizes! Queres que te diga o que tinha a Mariquinhas?

-- Quero, dila lá, tia Engracia.

-- Embruxada!... Ah! ah! ah!... repetiu o rapazote não podendo conter uma estridula gargalhada.

-- Então não querem vêr o inimigo, a rir d'estas coisas!... Credo! anjo bento!... Estava embruxada, estava, sim, posso jural-o pela benta hora, e fôra o fidalgo que lhe déra o feitiço!

-- Qual feitiço nem qual carapuça! exclamou o criado.

-- Ó rapaz, estás mesmo a tentar o espirito das trevas; valha-me Nossa Senhora da Purificação da Rocha!...

Mais uma vez se benzeu a fanatica mulher.

-- Olha, meu creançola, ouve lá o resto: mais tarde soube-se que o fidalgo fôra ter com uma mulher de virtude, para ella lhe dar uma bebida que fizesse com que a Mariquinhas ficasse morrendo por elle. Effectivamente, a tal bruxa arranjou não sei que diabolico remedio, e deu-o ao infeliz morgadinho. Desde então a desventurada Maria ficou mesmo pelo beiço, e não via já outro sol.

-- Mas, afinal, porque tinha ella as taes convulsões? perguntou o lacaio, perdido de rizo.

-- Porque?... porque a alma do fidalgo vinha ter com a coitada, ainda por iufluencia da bruxa! Ainda duvidas?

A resposta foi uma gargalhada ainda mais forte.

-- Ó demonio d'uma figa! exclamou a credula velhinha, entre o susto e a colera; queres que te aconteça alguma?... Anda, reza, inferno, reza!... Ave, Maria, cheia de graça...

-- Mas, afinal de contas, o que tem a solidão do sr. conde com o que se passou lá na era dos Affonsinhos?

-- És mesmo um paleta! O que tem? quem nos diz que não déssem ao menino alguma bebida cheia de coisa má?...

-- Adeus, minha vida, coisas más são as bexigas e as sezões! O patrão anda triste porque alguma coisa lhe dá cuidado, o que é não sei eu!

-- Fallas assim porque és um creançola. O que te digo é que hei de defumar o quarto do meu menino com alecrim e rosmaninho, e benzel-o com umas certas rezas que eu sei!... O demo ha de ir lá para as suas fogueiras, ou eu deixo de ser Engracia das Dores!...

-- Lembra-me uma coisa...

-- O que?

-- Quem sabe se o sr. conde estará descontente com o casamento que o pae lhe quer arranjar?...

-- Não dizes senão asneiras. Eu t'arrenego! Então o meu menino não havia de gostar d'um casamento que fará morder de inveja mais de quatro!

-- Eu sei lá, ás vezes ha coisas...

-- Qual coisas nem meias coisas! Valha-me a Senhora do Livramento, cada vez estás peior! Olha, esta conversa de bruxas e coisas más faz-me tremer toda cá por dentro. Credo! Coiro ao oratorio rezar uma corôa á minha rica Madrinha, e depois vou ter com o meu menino, que por força me ha de dizer o que tem. Figas demonio, figas! Adeus, rapaz. Padre nosso, que estaes no céu...

E a credula velhinha lá se foi pelos corredores fóra, levando nos labios a oração, e na alma o fanatismo.

XVII

A senhora Engracia das Dores salva o «seu menino» das garras do demonio

D. Jorge de Mascarenhas, depois da dilacerante scena de que fôra principal personagem, no baile do conde de S. Francisco, votara-se ao maior isolamento. Por mais que tentasse conformar-se com a sua sorte, lá vinha o coração a carpir-lhe maguas, e de logo, e sempre, o desalento e o desgosto radicado lhe invalidavam o socego, avultando-lhe o soffrimento!

A sós no seu gabinete, o pobre conde do Pinhal Viçoso, recordava, como lampejo de agonisante, o seu curto passado de gozos! A imagem de Adriana resaltava-lhe aos olhos intimos, sorrindo-lhe com esse sorrir de virgem, fallando-lhe com essas fallas de anjo; de repente, porém, o sorriso apagava-se, as melodiosas palavras sumiam-se como o eco pelas arcadas de velho convento, e a grata miragem transformava-se em espectro!

Que desespero d'alma, que perpassar continuo de visões crueis, que esmagam pelo desgosto!

Assim se revolvia o fidalgo no seu cogitar de fogo, quando bateram de mansinho á porta do gabinete.

D. Jorge, preoccupado como estava, nem deu por tal.

Houve um momento de silencio.

Novo bater na porta. O conde, d’esta vez, ouviu, mas não respondeu.

Pequenissimo intervallo.

-- Ó menino, faz favor de abrir? disse do exterior uma voz nazal.

O fidalgo ficou impassivel.

-- Ande, meu rico menino, abra a porta, que sou eu, a Engracia.

D. Jorge fez um gesto, que tanto podia exprimir:-- «façamos-lhe a vontade» como: -- «esta mulher é importuna!» -- e foi abrir.

Apenas a porta girou nos gonzos, appa receu no limiar a nossa boa Engracia das Dores.

-- Que o anjo da guarda esteja comsigo, meu menino, e o livre das tentações do demonio!

A beata velhinha fez assim a sua entrada, benzendo-se ao mesmo tempo com a maior devoção.

D. Jorge consagrava á santa mulher uma affeição verdadeira, pelo muito que ella o estimava. Nunca a ingratidão teve cabida em peitos dignos.

-- Então que me quer, Engracia, perguntou o fidalgo em tom suave.

-- O que quero? quero ralhar muito com o meu menino!

-- Porque? disse D. Jorge, sorrindo.

-- Então não ha mais nada do que fazer andar a gente cheia de cuidados?... Julga que já não ha corações que o estimem?

-- Mas eu não duvido...

-- Não duvida e faz com que a pobre velha ande meio apatetada! Porque se votou conciliar a im tão complelo isolamento?

O pobre moço não respondeu, e sentiu que lhe aguilhoavam o desgosto.

A sr.ª Engracia das Dores, observando da Penha de França o silencio do seu menino, não esmoreceu, e proseguiu:

-- D’antes era tão alegre, e agora parece mesmo um condemnado! Nunca sahe do seu quarto, nunca ninguém o vê... Estará o meu menino doente?

O fidalgo meneou a cabeça.

-- Deixe-me vêr o pulso, continuou a velhinha, juntando o gesto ás palavras, sem se importar com a resistencia de Jorge. Ai! que tem febre! Vou já mandar chamar o medico!

-- Venha cá, Engracia, tenha juizo; eu não estou doente.

-- Não está e tem um febrão? Mostre-me a lingua... sente dores de cabeça?... talvez tenha tido tonturas... já foi ameaçado d'algumas caimbras?... e vontadinha de comer? tem fastio?... sente máu gosto na bocca?... diga, diga o que tem?... Vou já arranjar-lhe uns sinapismos, e uns pannos d'agua sedativa... era bom também um banho aos pés... olhe, o melhor é metter-se na caminha e tomar um pouco de chá de borragem... e tambem, para arrotar, uma gotinha de chá de tilia, depois abafo-o bem e dou-lhe um xarope de casca de limão, ou antes de peros e ameixas! Isto não ha de ser nada! Espere ahi, meu menino, deixe-lhe amarrar um lencinho á cabeça! Ora, coitadinho! Não ha de ser nada, se Deus quizer!

D. Jorge estava aturdido com aquella catadupa de palavras; quando viu porém, que o gesto succedia á expressão, isto é: que a sr.ª Engracia das Dores, de lenço em punho, estava prestes a tar-lhe a cabeça, não teve remedio senão pôr-se em guarda, e reagir.

-- Então que é isso, enlouqueceu, Engracia! exclamou elle.

-- Valha-me a Senhora da Rocha! Então não fica melhor com a testa conchegadinha!

-- Mas se não tenho coisa alguma, se não estou doente!

-- Ora essa! não está doente!

-- Como quer que lh'o diga?

-- Então eu não vejo que está mesmo com uma carinha de defunto!

-- É que dormi mal de noite, não pude conciliar com o somno.

-- Ahi está! passou mal a noite, é o que eu digo! Ande, menino, não seja teimoso, deixe-me tratar de si! Valha-me a Senhora da Penha de França!

-- Torno a repetir-lhe que não sinto o menor incommodo de saude.

-- Ora essa! Então porque anda tão tristinho?

O fidalgo não respondeu.

-- Ah! já sei! bem dizia eu!...

-- Sabe?... perguntou D. Jorge com vivacidade.

-- E chamem-me tonta por acreditar em bruxedos e feitiços! Digam lá o que disserem, mas aposto que o meu menino foi victima d'alguma alma damnada que lhe lançou máus olhados! Eu te arrenego, coisa má!...

O conde, que julgára descoberto o seu segredo, convenceu-se de que se havia enganado.

-- Cada vez está mais visionaria, minha querida Engracia, disse elle sorrindo, e dirigindo-se para a secretária.

A sr.ª Engracia das Dores pareceu reflectir um momento, contemplando em silencio o seu menino.

Amisade tão pura era aquella, que bem merecia o maximo respeito. Em quasi todas as casas ha d’estas antiguidades. São como a hera, que se enrosca ao carvalho; com a differença, porém, de que a herva parasita suga a seiva do seu bemfeitor, em quanto que os respeitaveis anciãos vão deixando no tronco todo o viço da affeição.

A nossa boa Engracia sobresaltou-se de repente, illuminando-se-lhe o enrugado rosto d’uma alegria intima.

D. Jorge assentara-se n’uma poltrona, e de novo se entregara a um profundo cogitar. A extremosa velhinha aproximou-se-lhe, pé ante pé, e, tirando do seio um papel, disse:

-- Esta salvo, meu rico menino!

O fidalgo, não esperando o agudo gincho, sobresaltou-se.

-- Ande, ponha ao peito esta preciosa reliquia, continuou a credula velhinha, apresentando o papel de que fallámos.

-- O que é isso? perguntou D. Jorge.

-- O que é isto? Ai! meu menino, é uma carta sagrada, escripta pela propria mão de Nosso Senhor Jesus Christo, e achada á porta da igreja da Senhora da Arrabida.

E lá se perdeu um devoto beijo no mentiroso papel.

-- Pois crê n’essas infames falsidades, que servem de vil especulação a alguns seres abjectos, que bem merecem todo o rigor das leis, por assim enganarem os espiritos fracos?

-- Valha-me a santinha do meu nome! Ó meu querido menino, não diga essas coisas, que pôde Deus castigal-o! Então chama a isto mentira! Este papel está bento, e diz elle que quem o trouxer sempre comsigo está livre da tentação do demonio. Ande, filho, guarde no seio a carta sagrada, que nunca mais terá tristezas nem doenças!

Já viram alguém dizer ao sol: esconde-te, e elle occultar-se? já viram dizer ao raio: pára, e elle parar? já viram a caducidade credula calcar aos pés a superstição, e descerrar os olhos á luz?...

D. Jorge, para se furtar ao eterno fanatismo da boa Engracia, acceitou o sagrado papel.

Seguiu-se a mais viva expansão.

-- Agora já o meu filho está bem com Deus! dizia a velhinha. Fui eu que o salvei! a velha ainda serve para alguma coisa! Foi a minha rica Senhora das Dores, que é mãe dos pobres, que me inspirou!

-- Olhe, Engracia, interrompeu o pobre conde, se me quer obsequiar, deixe-me só, que preciso socego.

-- Pois sim, meu menino, vou-me embora, e mais satisfeita do que vim. Veja lá, não desampare nunca a sagrada reliquia! Adeus, adeus.

A sr.ª Engracia das Dores sahiu do gabinete, mas ainda foi murmurando pelo corredor:

-- Deus é pae de todos! Anda, demonio, que não has de sahir das fogueiras do inferno. Figas, figas, coisa má!... O Santíssimo Sacramento é quem nos vale! Ai minha rica Senhora do Livramento! Ave, Maria, cheia de graça...

O resto da oração perdeu-se na distancia.

XVIII

Assombro d'um anjo

D. Jorge, depois da sahida da sr.ª Engracia das Dores, de novo cahiu no marasmo que o dominava, essa atrophia d’alma, que é como que roedor cancro. Por mais que diligenciasse afastar da memoria a lembrança da pobre Adriana, não lhe era possivel. A imagem da virgem apresentava-se-lhe a cada momento, não com esse roseo colorido, que muito lhe animava as faces, mas com a pallidez do marmore. Adriana como que se lhe tornára espectro. E depois, a maldita phantasia levava-o para os mil desejos, outr'ora sonhados, e quando baixava das regiões do ideal para a mundana realidade, o coração soltava-lhe fundo suspiro! Que lucta, que horrivel lucta! Não podendo já abafar tão intensa e cruel dôr, sahiu-lhe do fundo d’alma uma afflictiva exclamação:

-- Ai! Adriana, Adriana!...

Um soluço respondeu ao dorido grito.

Jorge voltou rapidamente a cabeça para a porta, e viu uma mulher, envolta em denso véu. Era Adriana!

Correram instinctivamente um para o outro, e n’um apertado abraço se confundiram tão angustiosos soffrimentos. De logo brotaram sentidas lagrimas, que foram o baptismo de excruciantes dores!...

Devemos algumas explicações aos nossos leitores. Vamos pagar a divida, não nos damos por fallido, o que é, talvez, uma velharia.

Uma manhã estava Adriana bordando no seu gabinete de costura. No rosto da pobre menina pairava uma nuvem de soffrimento. Eram saudades. Jorge estava longe, já não a alegrava com um sorriso, já lhe não acariciava o ouvido com as sentidas expressões, que tão suas eram, e que sempre rastejavam por um hymno de amores. O sol de trocadas delicias passára a outro hemispherio. Adriana, vendo-se longe do vulto suavissimo dos seus sonhos, sentia-se gelada. O pensamento da virgem era uma pergunta.

-- Onde estão essas tardes de arroubado amor? pensava ella; onde os instantes de entranhado anceio? onde o sobresalto, ao ouvir um longinquo galope de cavallo? onde um sorriso espelhando a alma? onde esses mil planos por vir, que iam esbater-se na estatua da ventura? onde a felicidade? finalmente, onde estás tu, Jorge?...

Uma voz intima respondia: «Longe, muito longe!...»

E Adriana curvava a formosissima fronte, e não raro uma lagrima ia orvalhar o labor da donzella.

A criada entrou no gabinete, dizendo a Adriana:

-- Estava no correio esta carta para a menina.

-- Dá cá depressa, replicou vivamente Adriana. É de Jorge, accrescenlou, vendo a letra do sobrescripto.

O involucro desfez-se nas mãos agitadas da pobre menina. Passou-lhe pelo rosto um relampago de jubilo.

Ao relampago succede o raio. A carta era uma verdadeira descarga electrica; era a dorida participação do casamento de Jorge com a filha do conde de S. Francisco.

Ai! pobre Adriana, assim te matam o coração, todo amor! Sonhavas entre rosas e violetas, e despertas n’um matagal de cardos! Antolhavas no futuro um paraiso de gozos, e apenas te resta um tumulo de infonunios! Transformaram-te o véu de noiva em pungente mortalha, as flores de larangeira em ramo de saudades!

Fôra curioso observar a dolorosa gradação porque passou o meigo rosto de Adriana. Viram já alguma vez a superfície soccgada d'um rio começar de repente de encapellar-se ao sopro do vento do meio-dia? Viram, de certo; pois foi a transformação que se operou nas delicadas feições da desventurada menina.

Mal poude terminar a cruciante leitura. O golpe era demasiado forte para tão debil creança. Vergando a um peso intimo, cerraram-se-lhe os olhos, e desmaiou.

De logo accorreram os paes da infeliz menina, que, apenas voltou em si da inopinada syncope, fitou um olhar desvairado na terrível carta, que jazia por terra.

O honrado militar levantou do chão o papel, e pela leitura conheceu quanto veneno trouxera á sua desventurada filha.

Já a despedaçadora carta estava nas mãos do ancião, e ainda Adriana fitava com olhares de aguia o sitio em que estivera o escripto, e lia em caracteres de fogo as terribilíssimas palavras -- «vou casar com outra, que não tu...»

A dôr que de logo avassallou aquella modesta moradia, até então socegada e feliz, facilmente será comprehendida por um coração sentido; porém, descrevel-a é superior á humana intelligencia.

O anjo d’aquella casa fôra ferido no mais intimo d'alma. Não havia consolações, não havia balsamo que linitivasse a chaga em sangue. Que fazer? Procurar algures um remedio suavisador.

Adriana, impellida pelo acerbo desgosto, pelo anceio que lhe vinha d’alma, quiz partir para Lisboa, para se lançar aos pés do seu Jorge tão querido.

Se a fome é inimiga da virtude, o desvario do amor é o assassino das conveniências. Os paes de Adriana, vendo a febril excitação que a dominava, não se oppozeram a que partisse para a capital. O velho militar propoz-se a acompanhar a desventurada filha.

Cada lagrima que brotava dos olhos de Adriana doia mais ao honrado ancião do que os ferimentos que recebera no campo da batalha. As feridas curam-se: as lagrimas que deslisam não voltam para o sitio onde jaziam occultas.

Depois de rapidos preparativos, pae e filha lá se foram caminho de Lisboa.

XIX

Dois corações em lagrimas

Jorge e Adriana desprenderam-se, finalmente, dos braços um do outro. O rosto da virgem brilhava pelos traços das doridas lagrimas; comtudo, atravez do pranto, lá se descobria um sorriso. Era a esperança, era a flôr nascendo do rochedo.

-- Adriana!... exclamou o fidalgo apertando febrilmente a mão da pobre menina, e exprimindo no olhar o maior sentimento.

-- Jorge!... respondeu a donzella com voz insinuante e suave.

-- Soffres muito, anjo meu, não é assim?

-- Se me feriste tão profundamente!...

-- Ai! qde também eu por ti e por mim tenho soffrido!

-- É certo, pois, o que dizes na tua carta?... perguntou Adriana baixinho e a custo.

O conde não teve coragem para responder.

-- Ah ! Jorge, que me matas!...

E de novo perolas puríssimas sahiram espontaneas dos lindos olhos da virgem.

-- Socega, Adriana, socega, e occulta essas lagrimas, que são pingos de fogo que vem á porfia depositar-se-me no coração!

-- Que socegue, dizes tu! Que socego póde ter a mãe que perde o filho, ainda mesmo que seja uma féra? que socego póde ter a inoffensiva avesinha, a quem desbaratam o estimado ninho? que socego póde ter o nauta que vê submergir-se-lhe a bússola em pleno Oceano? que socego póde ter o soldado leal quando o inimigo lhe conquista o estandarte? que socego posso eu ter, roubando-me metade da alma, fazendo-me o coração em pedaços, vestindo-me a alva mortuaria e apontando-me para um tumulo gelado e solitario?!...

-- Oh ! cala-te! tem coragem!

-- Coragem! aconselhas-me que tenha coragem, quando tu dás provas da maior pusilanimidade!

-- Eu?

-- Sim, tu! aliás dás-me direito a acreditar que o teu amor não passava d’uma phantasia da mocidade, d'um devaneio que sahe com a facilidade com que entra.

-- Não prosigas, Adriana! O que dizes é uma blasphemia do coração! atalhou o fidalgo entrando mais e mais no soffrimento.

-- Pois tu não comprehendes, Jorge, que o affecto, verdadeiramente sentido, cria raizes no intimo, a ponto de nos envolver toda a alma?... Corta a raiz á planta, e a haste penderá, depois de murchadas as folhas! Quizera possuir uma d'essas intelligencias superiores, para transformar em palavras o acervo de idéas que me borbulham na mente. O attributo peculiar da mulher é a fraqueza e o sentimento. Quando encontra um homem que lhe preenche os anhelos do coração, sente-se forte e desenvolve-se-lhe a sensibilidade. O homem, por mim mil vezes sonhado, foste tu! Desde que os nossos pensamentos se uniram com mysterioso laço, deixei eu de pertencer a mim mesma, e a viver da tua vida! Tu, Jorge, que tens coração, deves comprehender toda a profunda verdade das minhas palavras. A minha alma vazou-se na tua alma, o meu pensar fundiu-se com o teu pensar, tu foste o crysol, eu a matéria liquidificada. Como é possível desunir quem tão ligado está?... Jorge e Adriana formam um ser único! O pomo, quando inteiro, vive prolongada vida; se, porém, lamina aguçada o divide em duas metades, começa por soffrer a acção do ar, depois vem a podridão, e mais tarde apparecem os vermes a corroer-lhe as fibras!

-- Basta, Adriana, basta! Não me enlouqueças com palavras tão pungentes. Tudo que dizes é certo; porém, que hei de fazer?

-- Que has de fazer!... Tudo, menos matar-me, e matares-te, porque bem conheço o grande affecto que me tributas; faço justiça ao teu nobre coração, que se assim não fôra, nem uma palavra daria, nem faria um gesto, um aceno, resignava-me com a minha horrivel sorte, e deixava-me morrer entre um suspiro e uma saudade! Porém, tu soffres, Jorge, e soffres muito. O teu coração de pomba, e como tal fraco e irresoluto, não permitte que te afastes do abysmo em que vaes despenhar-te. Isto da minha parte não é immodestia e vaidade, mas amor, e perfeito conhecimento do teu coração. Mesmo que a menina que te destinam para esposa te rodeie de candura e affecto, nunca poderás ser feliz, porque de continuo uma voz te segredará -- ingrato !-- e em vão tentarás fugir ao horrendo espectro que se chama -- remorso!

-- Ai que lucta, Deus do céu!... exclamou o pobre conde vendo que a imagem severa do seu pae se oppunha ás sentidas e verdaeiras palavras da desventurada Adriana.

A formosa virgem parecia animada por uma febre indizivel; os olhos, de tão meiga expressão, estavam marejados de contidas lagrimas, similhando-se á flor que detem no calix o rocio da madrugada - os nacarados labios, agitados pela commoção interior, moviam-se tenuamente, como a planta beijada pela viração - as faces, animadas pelo febricitante dialogo, apresentavam o roseo colorido do sol no occaso -- o peito virginal arfava violentamente -- em tudo, emfim, se patenteava a dôr que procura reagir, que é a percursora do martyrio.

-- Cobra animio, Jorge! replicou a pobre Adriana, não te deixes assim arrastar para um sacrificio, que a ninguem aproveitára; não caminhes tu proprio para o altar mortuario, sereno e socegado, como os christãos da antiguidade! Que o ardor do coração te degele os labios, e o affecto d'alma te dê forças para reagir contra a iniqua vontade de teu pae! Perdôa-me se stygmatizo o procedimento d'aquelle que te deu o ser; o fel transborda a meu pesar. E d'ahi, quem sabe? talvez teu pae, vendo o teu desespero, escutando a eloquencia que do coração te deve vir á flôr dos labios, se illumine pelo teu verbo, sentido e inspirado, e termine com uma palavra, com um gesto, o nosso mutuo soffrer, abrindo-nos um paraizo na terra! Ó Deus, pois tão difficil será esmagar o acerbo desgosto, trocando-o por um mundo de felicidades!...

-- Bem se vê, anjo da minha alma, que não conheces meu pae!... objectou o conde com amargura na voz e esmorecimento no rosto. Longe estás de calcular o que é para um fidalgo da antiga data a nobreza que herdou seus paes! Unir-se um dos troncos da respeitavel arvore á simples filha d'um burguez, ainda a mais honesta e pura, é nodoa indelevel, é, no dizer exagerado dos rigidos nobres, sujar o angue purissimo que lhe corre nas veias! Ah! rija muralha é a nobreza, e o progresso, essa alavanca da verdadeira luz, ainda lhe não poude fazer brecha! Eu é que fui um infame, Adriana, em alimentar um amor, que para ambos devia ser tão funesto! Todo o castigo devia recahir sobre mim! Tu, pobre anjo, que vivias, risonha e feliz, entre as tuas flores, e cercada pelas sentidas caricias de teus extremosos paes, devias de ser estranha a dôr tão intensa, devias ignorar o que o coração, é, quasi sempre, o assassino do homem! Despresa-me, Adriana, fulmina-me com o teu odio, que bem o mereço, esmaga-me, esmaga-me!...

A dôr do desventurado conde era tão profunda, que o impelliu quasi para o delirio.

Cahiu exhausto n'uma cadeira, arrancando do peito um magoado soluço.

Adriana acercou-se-lhe rapida, e pegou-lhe carinhosamente nas cadentes mãos.

-- Socega, Jorge, sou eu agora que te recommendo socego! exclamou a meiga virgem em tom supplicante. Tentemos um derradeiro esforço; recorre mais uma vez á piedade de teu pae, mostra-lhe com vivas côres o mal que vae causar a dois entes que se alimentam n'um sorriso trocado, abre-lhe bem o coração, diligencia illuminar aquellas densas trevas! O amor e as minhas preces hão de inspirar-te! Se, porém, esgotadas todas as tentativas, teu pae se conservar de bronze, se aquella alma de granito não puder abalar-se, então... oh! então troquemos um ultimo suspiro, e esperemos resignados (se resignação pudermos ter) a nossa união lá em cima, á face da Virgem, ante o excelso throno do Omnipotente!

-- Sim, tens razão, Adriana, se a terra só nos der espinhos, appellemos para o céu, que é todo rosas! Olha, agora sinto-me forte, capaz de tudo affrontar, e com o coração pejado de esperanças! Mais uma vez, visão dos meus sonhos, foste o anjo benefico que vieste doirar a negrura da minha alma!

E o amoroso Jorge formou dos braços um laço de amor, em que envolveu a formozissima virgem.

-- Ai! Jorge! exclamou a casta Adriana, não tendo forças para se desprender de tão grato enleio, que coisa tão linda é a mocidade, quando retoucada de flores! O affecto comprehendido e trocado traduz-se em suspiros d'alma, e esses suspiros são hymnos de amor! Quando a felicidade se nos enraiza no peito, espraiamos a vista em redor, e só vêmos vergeis floridos, lirios que desabroxam, rozaes que nos enebriam com os seus perfumes, matizes de primorosas cambiantes, em tudo vida e amor, em tudo delicias e ventura!

-- Cala-te, anjo, atalhou Jorge, rendido á commoção, não desfiras mais vibrações da tua harpa divina, que temo enlouquecer pelo excesso do gozo, ou finar-me á apparição d’um contraste horrível! Se nas tuas azas me libras por esses ares além, até tocar o céu, que queres que sinta ao voltar de novo á terra?!...

-- Silencio, lisongeiro! Vê se queres que te ralhe e muito. Agora retiro-me, e retiro-me envolta n’uma nuvem de esperança!

-- Quem te acompanhou?

-- A Lisboa, meu pae, a tua casa uma velhinha fiel

-- E teu pae consentiu...

-- Que se recusa á filha, quando a filha chora?

-- Tens razão, teu pae sabe ser pae... murmurou Jorge com significativa expressão.

-- Vamos lá, nada de mais suspiros. Confiemos e esperemos! Adeus, Jorge, firma-te no amor, que vem de Deus, e Deus advogará a tua causa, que é a sua!

As duas enamoradas creanças mais uma vez se uniram n'um sentido amplexo, e separaram-se, repletas de esperança! A esperança, porém, de Jorge, era a da saudade, que vegeta cercada de luto!

XX

As corridas

O outono, quasi a expirar, ostentava ainda os seus melancolidos dias, tão cheios d'essa suave tristeza que nos falla ao coração, e que nos faz vibrar todas as cordas da saudade.

No outono ha muita amargura, mas ha tambem muito sentimento. Aquelle cahir das folhas, aquella fuga da verdura, que se estremece e geme sob os nossos pés, impelle-nos instinctivamente para a contemplação. O outono inspira trovadores e faz poetas.

O dia rompera sereno. O sol illuminava alegremente o campo tristonho e despido.

Era n’uma quinta feira. Projectara-se entre a sociedade escolhida uma corrida no Campo grande, e o projecto punha-se por obra.

Iam chegando á arena os diversos contendores, calvalgando os melhores animaes das suas cavallariças. Nem só moços garbosos se propunham para o torneio, tambem gentis e formosas amasonas concorriam á doidejante festa.

A immensa alameda do nosso bosque de

Bolonha, que tão despresado é, abrigava sob a sua frondosa ramagem longas filas de carruagens, adornadas com numerosos espectadores.

Mais e mais se aproximava a hora fixada para a pugna, e não apparecia o cavalleiro que entre todos costumava distinguir-se. Era D. Jorge de Mascarenhas.

-- É bastante para estranhar a demora do conde! dizia um dos cavalleiros.

-- É verdade, elle que é sempre tão pontual! replicou um outro.

-- A ex.ma sr.ª D. Julia talvez possa dizer alguma coisa... accrescentou um terceiro, dirigindo-se á filha do conde de S. Francisco.

-- Eu, meus senhores, nada sei, objectou ella, e confesso-lhes que também estou surpreza e inquieta.

Julia era uma soberba amazona. Montava garridamente um magnifico alazão de pura raça, a quem judiciosamente chamavam Relampago. O garboso animal relinchava de impaciencia, parecendo ter a maior pressa em honrar a sua gentil cavalleira.

-- Ah! v. x.ª sente-se inquieta?... perguntou com intenção um moço de boa apparencia.

-- Certamente, respondeu Julia; e todos devem partilhar os meus receios, porque todos, creio, são amigos de Jorge. Acaso será uma excepção, sr. Malheus da Silveira?

-- Por forma alguma, minha senhora; o que invejo é a boa estrella do conde. Bem feliz se deve julgar o homem que tanto preoccupa as senhoras.

-- A inveja é um grande peccado! tornou Julia.

-- Não confunda v. ex.ª: entre inveja e desejo ha bastante differença. Eu não invejo em particular a sorte d’este ou d'aquelle, sinto não partilhar, note que digo partilhar, o que elles fruem.

Bem deve o leitor perceber que Matheus da Silveira não fallava sem motor encoberto. Não o occultemos: Julia impressionava-lhe o coração, ou antes os sentidos, será bom não ir tão longe. Silveira não ignorava que estava justo o enlace de Julia e Jorge; comtudo, não se recommendando pelos escrupulos, tentava sempre tactear o terreno. Apertava a mão a Jorge, chamava-lhe mesmo amigo; porem, isso que importava? A infamia lançou no mundo ao suas raizes, e é tão pertinaz como o escalracho, a maldita!

Julia não replicou.

Matheus da Silveira poude accrescentar:

-- É duro, é triste, ver murchar uma esperança que nos sorria.

-- Não o comprehendo... murmurou Julia, lisongeada, para que o negar?... lá no intimo. É assim a organisação da mulher.

-- De certo me não comprehende, objectou Silveira, porque, de contrario, leria na minha alma, que é um livro de affecto.

-- Senhor... vejo que esquece o que ha de particular entre mim e D. Jorge...

-- Perdão, interrompeu Matheus, querendo remediar o erro; disse que a minha alma era um livro de amor, mas não impõe a leitura. E não é culpa d’elle, nem minha, se ainda conserva todas as folhas fechadas.

Um episodio não annunciado veiu terminar o difficil dialogo, que ia collocando Julia n'uma falsa posição.

Um inglez, verdadeiro typo, vinha correndo pela alameda fora n’uma enorme horsa, e já de longe gritava:

-- Ó senhores cavalleiros, posto por minha Miss 100 libras!

A tal Miss era a egua.

-- Oh! não começar correr sem eu... continuava o original britanico num admiravel falsete. Mim quer postar com toda gente, Yes!

N’este momento chegou ao sitio em que todos estavam, e sofreou a egua, que, parando de repente, fez com que Mr. James fosse beijar as orelhas do animal.

Este Mr. James era um homem originalissimo. Possuia uma enorme fortuna, e toda a sua mania eram cavallos. Não poucas libras lhe havia custado aquelle vicio cavallar. Diligenciava dar-se fama de grande cavalleiro, quando, coitado! o mais insignificante jumento seria capaz de o comprometter e envergonhar. Soubera das corridas no Campo, e logo, expedito e açodado, correra para o logar da pugna.

-- Então o mylord também quer fazer parte do nosso torneio? perguntou com modo zombeteiro um dos amadores.

-- Yes! mim estar sempre prompta para éstes coises de cavallos.

-- Na sua terra tambem entrava nas corridas?

-- Yes! Em Liverpool haver beauteful corridas! Oh! isso é uma coise... véry well indeed!

O digno filho da nobre Albion em breve se tornou o alvo da attenção geral, tal era a excentricidade do aspecto, e o muito para ouvir-se da linguagem.

-- Em Inglaterra apreciam muito este passa-tempo?

-- Oh! Yes! Em Liverpool fazer-se postas mil libras. Uma vez mim ter um horse branco, que era ume coise muito boa. Eu ter dito a John: John, come her; tenhe vocemecê muito coidado com my Steemer -- ser nome de horse branco de mim -- porque my Steemer ter de fazer service a mim n'esta coise de corrida. John, dobrar vocemecê dose de comida a my horse. Ter ume posta de mil libras com lord Street. Mim querer ganhar. John, Steemer no trabalhe este mez. -- All right! dizer John.

-- E depois? perguntou uma travessa amazona, mal contendo o riso, o que succedia a toda a assembléa.

-- Depois, miss, chegar dia d’essa coise de corrida. Mim estar contente. Irmos para campo todos. Muite gente. Very well. Começar poneys. Very well. Chegar vez de mim ir Lord Street ter um horse very prety. Eu estar contente de Steemer. Depois de signal dada partimos com tode galope. Ó my God! que barulha de toda gente. Eu chegar meio caminho, e ter tanta pressa que fugir por cabeçe de Steemer. Saltar Steemer por cima de mim, contina a corre que ere ume coise... Steemer parecer ter azos: salte barreira, deixando lord Street para traz, e mim ganhar mil libras deitado no chão! Yes!

Uma gargalhada geral acolheu a narração do original inglez.

O circulo estava animado. Cruzavam-se os ditos espirituosos, servindo quasi sempre de alvo d'aquelle tiroteio de facecias o nosso querido Mr. James. Quem póde estar triste no campo, entre uma folgada companhia?

Jorge não chegava, o que dava logar a milhares de conjecturas.

O rosto de Julia cameçava de annuvear-se. Dois sentimentos diversos a dominavam. Dizia comsigo:

-- Será uma inesperada enfermidade que detem Jorge? -- será uma mulher que o prenda com os seus encantos?... Á segunda pergunta revoltava-se-lhe a vaidade, e o maldito sentimento da colera ia destruir o primeiro tão cheio de piedade.

Assim se passavam as coisas, quando apontou uma carruagem no principio da alameda, do lado de Lisboa.

Todos se voltaram. Á vista da brilhante equipagem, disseram de diversos lados:

-- É o conde!

Não se enganavam.

Acercou-se a carruagem, que conduzia o marquez do Açude e seu filho.

Jorge vinha pallido. Estampava-se-lhe no rosto o sello do soffrimento.

Alguns amigos correram á portinhola do trem.

-- Então não vieste a cavallo? perguntou um dos influentes da corrida.

-- Não, porque me sentia bastante incommodado... E se não fossem as instancias de meu pae...

-- Então não corres comnosco?

-- Não posso, meus amigos, porque ainda soffro, respondeu Jorge com voz mal firme.

-- Temos estado á tua espera...

-- Agradeço-lhes infinitamente a delicadeza, mas creiam que me é inteiramente impossivel tomar parte nas corridas.

Foi geral o sentimento; não só perdiam occasião de mais uma vez admirarem Jorge como cavalleiro, que o era muito distincto, como tambem viam soffrer um moço, que, sem questão, era credor das geraes sympathias.

O conde Jorge de logo foi innundado de perguntas, que bastante o fatigavam. Nem sequer podia dizer o mal que o macerava! A enfermidade era moral, e cumpria-lhe occultal-a.

Fôra n'aquella manhã que Jorge tentara o ultimo esforço junto de seu pae. O fidalgo mostrara-se inflexivel. Travara-se renhida lucta, e d'ella sahiu escorrendo sangue o desventurado Jorge. Abatido, prostrado, morto, por assim ver murchar todas as suas esperanças, que vontade poderia ter de embrenhar-se n'uma festa tão ruindosa quanto louca? -- Resolvera não ir ás corridas. Mais uma irrisão do perfido destino! O marquez ponderara que era indispensavel a presença de Jorge, porque Julia era uma das heroinas da festa, e cumpria que o seu futuro esposo a comprimentasse. Imagine-se o soffrimento do pobre conde! Que supplicio!

Exhausto por tanto luctar, e não podendo já oppor a menor resistencia, consentiu em entrar na carruagem com o marquez.

E lá foi o pae arrastando o filho, obrigando-o a dar mais um passo para o terrivel pelago do infortunio!

O marquez e D. Jorge foram comprimentar as diversas senhoras que adornavam a luzida assembléa.

-- Ainda soffre muito? perguntou Julia ao conde do Pinhal Viçoso.

-- Estou um pouco melhor, minha senhora, respondeu Jorge, quasi como um eco.

-- Sempre uma nuvem vem toldar o ceu. Estava tão contente...

O marquez do Açude cravava em seu filho um intenso olhar; Jorge sentia-se como

comprimido por uma prensa.

-- E agora? -- perguntou elle, vergando á fixidade do olhar de seu pae.

-- Agora... balbuciou Julia, fugiu-me a alegria.

-- Porque?

-- Porque o senhor contrasta com a festa.

-- Pobre creança! pensou Jorge; ella não tem a culpa. Praza ao ceu que não tenhas um dia de lastimar-te amarguradamente!

E accrescentou em voz alta:

-- Agradecido pela sua delicadeza, minha senhora; porém, socegue v. ex.ª, sinto muito mais debilitado o meu soffrimento.

-- Ainda bem! exclamou Julia.

-- Então, meus senhores, disse Matheus da Silveira, não se começam as corridas? Mr. James deve de estar impaciente.

-- Oh! Yes! mim parecer estar cheio de formigues.

Cavalleiros e amazonas se puzeram em movimento. Os garbosos animaes relinchavam alegremente, dando-se imponentes aspectos, como se não ignorassem o papel que seus amos lhes destinavam.

Mr. James parecia uma creança. Ria, fallava, gritava, propunha postas, como elle dizia, e por sua vontade era o primeiro a partir. Foi mister contel-o.

Distribuiram-se os turnos, emparceiraram-se os contendores, e arvorou-se um presidente.

A alegria de logo avassallou a festival alameda. Iam-se amontoando os espectadores, dando maior animação ao certame.

Os cavalleiros lançavam um olhar significativo ás suas damas, como offerecendo-lhes de ante-mão o premio da victoria. Dissera-se umas sombras d’esses brilhantes torneios da antiga e decantada Babylonia.

A um signal do presidente partiram os primeiros contendores. O nosso mylord não foi dos felizes. Tal desgraça ainda hoje lhe não esqueceu. Afinal, chegou a sua vez. Desde que o presidente o convidou com um gesto, não mais se calou. Foi uma saraivada de devils e my God. Queria apostar com toda a gente, e não lhe sahiu barata a ousadia.

Um adversario se lhe collocou ao lado, mais por mofa que por brio. Todos os espectaculos equestres devem ter o seu clown. É de rigor. Mr. James era um palhaço de primeira plana.

O original inglez quasi que nem esperou pelo signal da partida. Desde aquelle momento poz em acção tudo de que podia dispor: pés, mãos e lingua.

-- Go on; Miss! Up! up!... That is a horse! up! up! My dear girl! Good girl! Up! Up!

A meio da carreira, já esfalfado, e não primando pela rigidez das pernas, agarrou-se com toda a ancia ao selim, e uniu os calcanhares ao ventre da egua. Só o podemos comparar a esses momos que figuram nos circos, e que servem para excitar a hilaridade dos espectadores.

Chegado á barreira, o animal formou o pulo e passou além. Quando a Miss se elevou, o nosso britanico cavalleiro desceu até à garupa; ao precipitar-se a, no fim de tudo, formosa egua, Mr. James passou d’um extremo ao outro: da garupa foi até ás orelhas do animal. A distancia a percorrer valeu-lhe não ir beijar o solo.

Escusado será dizer-se que o seu adversario já havia saltado a barreira.

Mr. James pensou lá comsigo, não se atrevendo a confessal-o:

-- Se eu soubesse, tinha cahido, que era talvez o meio de ganhar a aposta.

A primeira parte das corridas era destinada para saltos de barreiras; a segunda para carreiras desenfreadas.

Chegou a vez da filha do conde de S. Francisco mostrar os seus recursos como cavalleira. O animal que montava era realmente soberbo. Pertencia á raça arabe. Pequeno sim, mas um perfeito voador.

Duas adversarias se apresentaram. As tres amazonas collocaram-se nos respectivos logares, guardando as convenientes distancias, e, apenas o presidente deu o signal da partida, tres setas voaram dos arcos, tres raios fenderam o espaço.

A corrida foi duvidosa. Os garbosos animaes, animados pelas vibrantes palavras das suas gentis cavalleiras, disputavam-se primazias na veloz carreira. Era bonito de ver-se os ligeiros corceis quasi tocarem o solo com o ventre, espumando como a onda que açoita a rocha, e fazendo de cada venta um folle. As enormes caudas dos vestidos das cavalleiras, agitadas pelo vento, pareciam victoriosas bandeiras tremulando no espaço. Todos os espectadores fitavam com olhares de anciedade, acompanhados de algumas exclamações mal contidas, as tres graças equestres, que mais pareciam aladas, tal era a impetuosidade da carreira.

O cavallinho arabe que Julia montava afrouxou um momento. Os affeiçoados da gentil cavalleira mostraram um pronunciado desanimo. Jorge estava impassivel. Julia, porém, applicou ao animal uma vigorosa chicotada, exprobrando-o ao mesmo tempo com a voz argentina. O pobre cavallinho, como que envergonhado por tal censura, deu um salto rapido, e redobrou de velocidade. Já estava proximo o termo da carreira. Todas as respirações estavam suspensas. A multidão prende-se com qualquer coisa.

-- Bravo! exclamaram diversas vozes.

Julia fôra a primeira a passar ávante do marco. Era um verdadeiro triumpho, portanto, um verdadeiro prazer.

As tres garbosas amazonas voltaram a passo para o ponto da partida, vindo Julia no logar de honra, patenteando bem claramente no rosto radiante a alegria intima. O orgulho em todas as coisas tem ingresso. As suas companheiras simulavam satisfação, sorrindo ambas, mas era um sorriso amarello, que os ha de todas as côres.

Chegaram, finalmente, ao centro da escolhida reunião, que muitos espectadores estranhos rodeavam.

Julia recebeu uma infinidade de felicitações, muitas verdadeiras, algumas por mera formalidade.

Jorge nem se movia. Já algumas senhoras, a quem nada escapa, principiavam a notar aquella tão estranha indifferença, quando o marquez se aproximou de seu filho.

-- Então não vaes comprimentar a tua futura noiva? disse o rigido fidalgo em tom severo.

-- É que, meu pae... balbuciou Jorge.

-- Estou então condemnado a desempenhar o papel de mestre de ceremonias? replicou o marquez, ainda com maior rudeza.

-- Eu vou, meu pae.

De facto, Jorge deu alguns passos para a frente, mas deteve-se de subito, transtornando-se-lhe as feições. Acabava de ver Adriana entre os numerosos espectadores, e não longe de Julia.

XXI

Uma scena inesperada

Digam lá o que disserem, mas para mim é ponto assentado que o acaso se enfeita muitas vezes com as galas do destino. O tal acaso sonha, de quando em quando, com intrincadas excentricidades, e eil-o, apenas desperta, em campo raso, tiroteando a humanidade.

Adriana fôra ferida no mais intimo d'alma.

O velho militar, vendo que sua filha se amargurava dolorosamente, propoz-lhe, no intuito de a distrahir algum tanto, um passeio pelo campo. Elle bem sabia quanto Adriana amava a vegetação, que por aquelle tempo bem minguada era. Adriana accedeu, mais por comprazer do que por intimo desejo. Em todo o caso, lá se foram ambos, pae e filha, até ao Campo Grande, a gozarem os encantos do campestre jardim.

E que me diz ao acaso, leitor? É ou não caprichoso?

Passeavam d'uma para outra rua, pae e filha, quando a selecta cavalgada começou de acercar-se, e bem assim o enorme cortejo de carruagens, e, simultaneamente, o concurso de espectadores a pé.

N’este momento estava Adriana no bosquesinho de pinheiros, solitaria e pensativa.

-- Nem aqui posso meditar sem ser interrompida! disse a virgem entre si.

O militar, ouvindo a alegria da festa, quiz que sua filha a partilhasse também, e de logo lhe propoz acercarem-se do logar festivo. Adriana esquivou-se, allegando que muito mais lhe comprazia a solidão; porém, o bom pae voltou á carga, e, afinal, venceu o inimigo.

O resto presume-o o loitor.

-- Então, Jorge, o que te detem? perguntou o marquez do Açude, vendo que seu filho estacara de subito.

Imagine-se o supplicio do desventurado moço. Estava entre Scylla e Carybdes. D’um lado, a violenta pressão de seu pae, que o obrigava a entregar um punhade de galanteios á mulher cuja presença muita dôr devia causar a Adriana: do outro, a pobre virgem, tão intimamente ferida, e que ali estava soffrendo, naturalmente, a mais cruel amargura. Era um verdadeiro dilemma d'alma. É em situações como aquellas que o proprio coração verte uma lagrima.

-- Não respondes, Jorge? insistiu o marquez.

O pobre conde volveu o olhar para o lado de Adriana, e deparou com dois luzeiros que o envolviam.

-- Rogo-lhe encarecidamente, meu pae, disse o atribulado moço, que demova o seu desejo.

-- Porque? replicou o marquez com acrimonia.

-- Porque... porque muito me punge o que exige de mim.

O pae fulminou o filho com o olhar.

-- Sou eu que lhe rogo, senhor conde, disse o inflexivel fidalgo com um terrivel gelo nas palavras, que evite um escandalo que, por tão publico, seria d’um indizivel ridiculo.

Jorge mais uma vez olhou para Adriana, e como que lhe faltaram as forças; o marquez, porém, fortaleceu-o com algumas palavras despedaçadoras.

O leitor de certo não deve estranhar o muito respeito que Jorge tributava a seu pae. Em primeiro logar, sabia comprehender o seu logar de filho, em segundo, não era indifferente a essa rigida educacão que ainda hoje se observa em algumas casas da nobreza. Apenas diremos que o abuso é sempre mau, e que tudo tem um limite.

O pobre Jorge não poude resistir por mais tempo: lá se foi com a morte n'alma até cerca de Julia, sua desposada.

A gentil menina, radiante pelo triumpho alcançado, estava bem longe de imaginar que era o alvo de muito soffrimento. Resaltava-lhe do rosto essa alegria tão franca, propria da mocidade em flor. Rainha da festa, tinha em derredor brilhante e numerosa côrte. E emquanto ella se ufanava no seu throno de gloria, a pobre Adriana rastejava pelo sopé, toda encolhidinha e afflicta. Sabiam d’uns olhos lampejos de felicidade, d'outros lagrimas pungitivas. Sempre o contraste que sangra! O mundo é assim: um sorriso e um soluço.

Ao acercar-se Jorge do grupo que rodeava Julia, todos se afastaram, porque não ignoravam os excepcionaes direitos que lhe assistiam junto da festejada amazona.

Adriana estremeceu.

Jorge fez um esforço sobre si mesmo, e balbuciou, não tão baixo que Adriana não ouvisse:

-- Depois da victoria que tão brilhantemente alcançou, não posso ficar silencioso: receba v. ex.ª os minhas sinceras felicitações.

-- Agradecida, sr. conde, replicou Julia com um sorriso que valia um mundo. O que sinto é que v. ex.ª não tomasse, tambem parte nas corridas, porque de certo conquistaria bem merecidos loiros.

-- Meu filho contenta-se com os que v. ex.ª tão dignamente ganhou, disse o marquez. Não é assim, Jorge?

Adriana tudo ouvia, e nada quizera ouvir.

Quem duvida que haja na terra verdadeiros infernos?

-- Certamente... balbuciou Jorge vergando à terrível influencia do seu pae.

-- É este um dia de geral regosijo, objectou o marquez; para meu filho, porém, duplica-se o jubilo, como v. ex.ª deverá suppor.

-- Sr. marquez... balbuciou Julia colorindo-se-lhe as faces de gostoso rubor.

-- O motivo não é nenhum segrpdo, continuou o fidalgo, todos sabem que Jorge é o feliz desposado da sr.ª D. Julia.

Um subito movimento se levantou entre os circumstantes. Uma mulher acabava de desmaiar.

Era Adriana.

O coração cansara-se de soffrer. A tortura prolongada prostra o corpo e os sentidos. A desventurada Adriana não poude por mais tempo assistir, impassivel e resignada, áquella scena de martyrio.

A pobre menina cahira nos braços de seu pae. Era muito para ver-se o aspecto do velho militar, com os seus bigodes de neve, de parecer ao mesmo tempo carregado e tristuroso, amparando o flexivel corpo de sua formosa filha, cujo rosto mais parecia de marmore.

Todos á porfia quizeram prestar soccorro á doente, mas quem mais se poude acercar foi Julia.

O acaso quiz ainda fazer das suas. Muito caprichoso é o maldito!

Julia, cedendo aos instinctos do coração, que o não tinha mau, desvelou-se em soccorrer Adriana, ainda desmaiada.

O honrado militar chegou os labios ao ouvido do marquez, o que não foi notado em virtude da confusão geral, e disse-lhe em tom aspero e sacudido:

-- Se ella me morrer, bem caro pagará v. ex.ª a sua morte!...

O marquez ficou como assombrado. Que queriam dizer aquellas palavras, que envolviam uma ameaça? Ia replicar, mas a este tempo Adriana descerrára as palpebras, procurando com a vista seu pae, que logo se acercou.

Imagine-se o que se passaria na alma da pobre Adriana, ao ver-so nos braços da mulher que lhe cortava todas as flores da existencia, que lhe apontava para um sepulchro gelado!

E Jorge? O desventurado moço estava immovel, extatico, quasi sem ter a consciencia do que se lhe patenteava á desvairada vista, tal era a estranheza do caso.. A que mysterioso poder se devia attribuir aquella scena tão imprevista? Ver unidas duas mulheres, que deviam ser, talvez, um mutuo patíbulo!

Todos fixavam a attenção em Adriana, o que foi de grande valor para Jorge, porque passou desapercebida a emoção profunda que não podia reprimir.

Adriana, ao voltar em si, e vendo-se animada pela mulher que era para ella o espectro vivo do soffrimento, volveu para Jorge um olhar de martyr. Aquelle olhar chorava. As lagrimas occultas foram todas cahir no coração de Jorge. Adriana recebia beneficios de anjo de quem para ella era, permittam-nos a expressão, um verdadeiro demonio.

Tal scena não podia prolongar-se. O velho militar conduziu sua filha para um dos trens de praça que ali estavam, furtando assim a desventurada virgem a um atroz supplicio.

Adriana mais uma vez olhou para Jorge, e esse olhar era como que um adeus de sangue!

Ha presentimentos, escusam de o negar.

Em breve toda a festiva assembléa esqueceu o inesperado accidente, e de novo se entregou ao folgar despreoccupado e expansivo. Cavalheiros e amazonas se partiram do campo das suas glorias, formando uma alegre e vistosa comitiva.

Ia na frente mr. James, que na sua linguagem peculiar postava ser o primeiro a chegar a Lisboa, porque muito confiava na sua Miss.

Jorge entrou com seu pae na carruagem. Nem uma palavra trocaram. O marquez pensava nas estranhas palavras que lhe dirigira o velho militar; Jorge desfazia-se em dôres, meditando na sua atribulada vida.

Pela estrada ainda encontraram o trem em que ia Adriana.

A desventurada virgem, vendo o homem que amava com todas as veras d'alma, e que estava condemnada a perder, sentiu as lagrimas a resaltarem-lhe dos olhos. Deixou pender o rosto nevado para o peito de seu pae, inundando a farda do digno militar com o orvalho do soffrimento.

Jorge tambem quiz occultar a fronte afflicta, mas não teve seio onde repoisar. Não era seu pae que levava ao lado, era um rochedo de granito.

XXII

Os dois paes

Bm cada hora mais se augmentava o soffrimento de Adriana. Não podia illudir-se: estavam quebrados os laços exteriores que a prendiam a Jorge. Era triste e duro; porém, que fazer?

O velho e honrado militar, vendo quanto as angustias cavavam fundo no peito da sua desventurada filha, soffria e soffria muito. Adriana era a sua luz, e ai! que se ia amortecendo!

-- Vem cá, filha, dizia o pobre veterano com voz pouco propria n’um militar, mas muito para acceitar-se n’um pae extremoso; vem cá, e diligencia afastar para bem longe a dôr que te dilacera, e que me corta o coração!

-- Ah! meu querido pae, não posso... isto é superior ás minhas forças, replicava Adriana entro soluços.

-- Concordo que Jorge é um moço bastante estimavel, porém, imaginas que, formosa e boa como és, te faltará quem muito te ame e aprecie?

-- Por Deus, meu pae, não me falle em outros homens! Faça mais justiça ao meu coração. Não me confunda com o vulgo. Quando se ama deveras, como que se vasa a alma n’outro ser. Bem sei que o mundo, em geral, ri e chasqueia de tudo que vem do coração, e desconhece todo o sublime alcance d’um entranhado affecto! Oxalá que eu pertencesse a esse numero; porém, ai de mim! que muito além me vae o sentir!

-- Sê rasoavel, filha; cumpre ter resignação.

-- Sim, terei a resignação d'um cadaver!

-- Oh! cala-te! Não amargures por tal arte o viver d’um pobre velho! Perder-te! perder a minha filha, o unico esteio que me ampara a alquebrada existencia!... E foi para isto que me pouparam as balas do inimigo!...

E o ancião sentia rolar-lhe uma lagrima até ao vasto bigode, onde se escondia. Não se admirem: as lagrimas não envelhecem; pertencem a todas as edades.

-- Perdão, meu querido pae, perdão! exclamou Adriana. Ha quasi perversidade no muito que o faço soffrer!

-- Promettes resignarte?... perguntou o honrado militar, animado por uma vaga esperança.

Adriana não respondeu.

-- Promettes diligenciar esquecer no futuro este presente tão cheio de amargor?... continuou o velho, vendo que sua filha não respondia.

O mesmo silencio da parte da desventurada menina.

Aquelle silencio, e a expressão estranha que se patenteava no rosto de Adriana, illuminaram cruelmente o infeliz pae.

-- Dá-me a minha farda mais nova, disse elle a sua filha, mudando de tom.

-- Para que, meu pae? perguntou Adriana, um tanto indecisa.

O militar vacillou um momento.

-- Para... balbuciou o bravo sem lhe occorrer uma resposta satisfatoria. Tenho que apresentar-me hoje no quartel general, accrescentou com voz rapida.

-- Mas não é costume... aventurou a interessante menina.

-- Não é costume, é certo... porém, recebi uma ordem do general e... Vae buscar a farda.

Adriana estranhava o pedido de seu pae, mas não se atrevia a interrogal-o. Obedeceu, como lhe cumpria.

Depois do velho militar vestir a farda, que tanto tempo estivera guardada, disse a Adriana, forcejando sorrir:

-- Traze-me também todas as minhas condecorações, filha; quero mostrar os meus enfeites, que, vamos lá, não me custaram muito barato.

-- Mais me surprehende ainda esse seu pedido, meu pae, porque é a primeira vez que faz uso dos honrosos distinctivos que lhe conferiram pelos seus muitos e assignalados serviços.

-- Assim é, mas hoje vejo que tenho sido um caturra com os meus escrupulos. Posso sem rebuço apresentar esses habitos, porque nenhum d’elles envolve a menor baixeza.

O espanto de Adriana crescia de ponto; não obstante, foi buscar as condecorações, e começou de pol-as no peito de seu pae.

Emquanto a filha desempenhava a tão estranha tarefa, dizia o velho:

-- Sabes o que me estás recordando, Adriana?

-- O que, meu pae?

-- As santas mulheres da edade media, que armavam cavalleiros esposos e irmãos para se irem a pelejar.

-- Mas é que meu pae não vae combater... murmurou Adriana, sumindo-se-lhe um tanto a voz.

-- Quem sabe...

-- Quem sabe? interrompeu a filha com angustiosa vivacidade.

-- Quem sabe se ainda um dia terei que pegar em armas pela defeza da patria. Tão velho me julgas já!

Havia na expressão do velho caudilho uma febre mal dissimulada. Qual seria a sua idéa? Qual o seu fito? Em breve o saberemos.

-- Estou-o estranhando, meu pae.

-- Não sei porque. Vemos, avia-te, que estou com pressa.

-- Prompto, disse Adriana.

-- Agora deixa-me pagar-te o trabalho que tiveste.

Os labios do pae colaram-se ás faces mimosas da filha, ao passo que a cingia com os seus braços, ainda robustos.

Sahiu o velho, e foi-se com andar firme até ao palacio do nobre marquez do Açude. Ali chegado, disse ao guarda-portão que desejava fallar a sua excellencia.

-- Quem direi ao senhor marquez que o procura? perguntou o criado.

-- Diga-lhe que é... que é um desconhecido que não lhe vem pedir nenhuma esmola.

O fidalgo estranhou a apresentação, e por um momento vacillou se devia receber o desconhecido que não vinha pedir nenhuma esmola. Como, porém, no fim de tudo, era um homem de rigidos principios, não quiz dar o direito, a que o taxassem á conta de repugnante soberbão.

O militar foi admittido.

Raymundo de Almeida entrou na antesala em que o marquez o esperava, com a cabeça erguida, passo firme e semblante grave.

O fidalgo sentiu-se impressionado á vista d’aquelle marcial aspecto.

Digam o que disserem, mas a dignidade não se olha por entre sorrisos e motejos.

O marquez, que se erguera á entrada do velho militar, convidou-o a sentar-se, e foi então que viu no recem-chegado o homem que no Campo Grande lhe dirigira uma ameaça. De subito se lhe franziram os sobr'olhos.

O convite foi acceito.

-- Não sei a que devo a honra?... começou o fidalgo com modo grave.

-- Em poucas palavras motivarei a minha vinda á casa de v. ex.ª. Senhor marquez do Açude, chamo-me Raymundo d’Almeida, e sou coronel do exercito portuguez.

-- Ainda não comprehendo... interrompeu o fidalgo.

-- Queira moderar a sua impaciencia, senhor marquez. -- Tenho uma filha, que é o sustentaculo de dois pobres velhos, de sua mãe e de mim. N’ella se concentram todos os nossos affectos, todos os nossos prazeres. É o calor do nosso lar, a alegria da nossa casa. A avesinha delicia-nos com os seus gorgeios, animando com o mavioso trinar tudo que a rodeia e nos circumda. Assim tem sido até aqui. Hoje, porém, homicida e cruenta espingarda lhe está apontada, e o caçador é o senhor marquez.

-- Eu!...

-- V. ex.ª.

-- Queira explicar-se.

-- É todo o meu empenho. Serei laconico, talvez mesmo que um tanto rude, mas nós, os militares d’outro tempo, tão atarefados nos vimos sempre com o inimigo, que nos minguava occasião de estudar arrebiques de estylo. O filho de v. ex.ª, o senhor conde do Pinhal Viçoso, foi, lonje d’aqui, no meio d'umas carvalheiras umbrosas, entregar o coração, que bem puro é, a uma creaturinha innocente, que lhe deu em troca uma alma de anjo, e todo o affecto que consservava intacto. A tal creaturinha é minha filha.

O marquez revolveu-se na poltrona, e mais se lhe enrugou a fronte.

Raymundo d'Almeida, vendo que não merecia uma replica, deu ao aspecto a supina gravidade, e disse em tom secco, mas delicado:

-- Senhor marquez do Açude, venho propor-lhe o enlace de minha filha com seu filho!

Parece que a poltrona era de excellentes molas, porque o fidalgo ergueu-se de subito, como se fôra impellido.

-- O senhor vem insultar-me na minha propria casa?... exclamou elle com uma altivez provocadora.

-- Insultal-o!... repetiu o militar, faiscando-lhe o olhar e erguendo-se tambem. Queira desdobrar essa palavra, senhor marquez, que me deveras me está pesando.

Era tal indignação do fidalgo, que o seu desejo seria não responder e voltar as costas ao perguntador; comtudo, sofreou o impulso, e disse com acrimonia:

-- Acaso ignora os habitos e deveres da nobreza de antiga data?

-- De certo que ignoro.

-- N'esse caso, já não estranho que venha fazer-me similhante proposição.

-- Não o comprehendo, sr. marquez, ou não o quero comprehender, tornou o militar, pallido como a gola da farda.

-- É obrigação inalteravel entre fidalgos conservar puro o sangue que lhes corre nas veias. É uma herança de antigas eras.

O velho militar trajeitou com ancia, mas poude conter-se.

-- Devia levantar o insulto que v. ex.ª nos dirige, ainda que encobertamente; não o faça, porém, por amor de minha filha. Sr. marquez, lembre-se que é pae, lembre-se que da sua vontade depende, não só entrelaçar com flores duas almas que se desatam em amor, como evitar duas desgraças que estão eminentes. Ou muito pouco conheçe eu filho, ou commette um grande crime, sendo surdo aos intimos suspiros que elle solta, e que, mais tarde, se transformarão em pungentissimas e permanentes dores. O pobre Jorge vae despenhar-se n'um terrivel abysmo, arrastando na queda a minha desventurada filha! Se em tanto coto os desgostos por vir, é que bastante conheço o nobre coração do filho de v. ex.ª, o coração que se crivará de feridas pelos muitos remorsos, porque, senhor marquez, nem eu quero pensar no que se succederá a minha filha!...

O honrado velho interrompeu-se, dominado por bem profunda emoção.

O marquez mostrava-se impassivel. Ha homens de granito.

-- Sr. marquez, continuou Raymundo de Almeida, vencendo a commoção -- para que eu, o militar independente, viesse supplicar, foi mister que a athmosphera do soffrimento bastante me abafasse. Antevejo no futuro bem crueis desgraças, e quizera evital-as de antemão. Não nego que a respeitavel casa de v. ex.ª merecesse alliar-se a outra de egual nobreza, porém, de que valem as dignidades humanas, quando o coração chora? Alem de que, se eu não sou nobre, goso d’uma honra sem mancha. Um brasão vale bem o outro. O que o sr. D. Jorge perder em distincções nobiliarias -- se em tal puder haver perda -- ganha-o de certo em amor e carinhos, que um anjo lhe prodigará. Sr. marquez, mais uma vez desço aos rogos, e n’elles se envolve uma triplice supplica: Jorge e Adriana unem tambem as suas vozes, e todos tres pedimos que santifique com benção de flores um tão suspirado enlace!...

-- Não lhe quero occultar que me sinto devéras enfadado, disse em tom aspero o orgulhoso fidalgo. O que me pede é impossivel. Rogo-lhe que não me obrigue a explicações, que lhe haveriam de doer. Não contesto as boas qualidades da menina sua filha, mas só lhe digo que ergueu demasiadamente os seus olhares. Quanto mais se sobe, mais perigosa se torna a queda. Os lances arriscados podem falhar. As especulações grandiosas peccam por difficeis!

-- Sr. marquez!... exclamou o antigo caudilho, confundindo-se-lhe a côr do rosto com a do alvo bigode. Lembre-se que sou um soldado, e que me pende ao lado uma espada, que me cumpre fazer respeitar.

-- Modere a corda da sua voz, sr. soldado, porque em minha casa ha o costume de nimguem exceder o meu diapasão! replicou o fidalgo com uma rudeza pouco louvavel.

-- Nunca me altero senão quando me aguilhoam com palavras pouco acceitaveis.

-- Acabemos com isto, senhor, queira retirar-se, sósinho, senão prefere ser acompanhado pelos meus lacaios!

O bravo militar pareceu crescer dois palmos ao ouvir aquella virulenta apostrophe. Indireitou-se sobranceiro, como o vetusto cedro da montanha, e disse, sahindo-lhe lume dos olhos:

-- Sr. marquez do Açude, quem tantas vezes expoz o peito ás balas inimigas, não póde ficar impassivel ante o repto d’um homem! Exijo de v. ex.ª uma prompta e plena satisfação!

O fidalgo mostrou um supremo ar de despreso,

--Uma satisfação! replicou elle. De certo está louco, ou embriagado!

-- Ha de bater-se commigo, ou dir-lhe-hei que é um infame cobarde! exclamou com furia o insultado militar.

-- Saia immediatamente! Eu não me bato com um tarimbeiro!

Raymundo de Almeida ia para dar alguns passos para a frente, naturalmente para fustigar com a luva, que descalçára, o rosto do fidalgo, mas de subito se lhe injectaram os olhos, avermelharam-se-lhe as faces, tremendo extraordinariamente, e cahiu para traz desamparado.

Ferira-o uma terrivel apoplexia!

XXIII

Enlace de espinhos

O ataque apopletico que assaltara o honrado Raymundo d’Almeida não fôra fulminante. Ficara apenas paralitico d’um lado.

Imagine-se a dôr da pobre Adriana ao ver entrar pela porta dentro, n’uma maca, o seu estremecido pae.

Custa a crer que um ente tão bom seja victima, a um tempo, de tantos desgostos! O verme roedor escolhe sempre o melhor fructo.

Não houve cuidados e carinhos que a desvelada filha não prodigalisasse ao infeliz ancião. Era um continuado desentranhar de affagos, e assim, toda atarefada no seu mister de cuidadosa enfermeira, por vezes varria da mente a lembrança de Jorge. Não obstante, a ferida era funda, e bastante sangrava.

O desventurado conde soffreu uma dôr agudissima ao saber da desastrosa catastrophe motivada por seu pae

O tristissimo accidente foi coberto com o maior segredo, para evitar commentarios, que de certo desagradariam á innocente Julia e a seu pae.

O marquez ficou bastante impressionado, mas não desceu um ponto sequer do seu proposito.

Julia, ignorando o papel de tyranna que na sombra lhe fôra distribuido, exultava com a idéa da sua proxima união, e toda se entregava, em espirito, ao moço gentil, por tantos dotes recommendavel, que devia de ser em breve o seu protector natural. Formava mil projectos com as suas amigas, gozando de antemão mil delicias por vir.

Os preparativos de enxoval de dia para dia redobravam de pressa. Julia era um perfeito general no centro d’aquelle exercito de sedas, veludos, rendas, cambraias, etc. Commandava a acção com uma pericia inexcedivel. E como o general gosava, vendo certa a victoria! Era uma verdadeira creança entre as suas bonecas favoritas. O conde de S. Francisco puzera os cofres á disposição dos caprichos de sua filha, pelo que se poderá avaliar a intensidade da faina.

Tudo promettia uma festa de prolongado renome. Não pouca inveja avassallava algumas almas apoucadas. Os futuros conjuges eram jovens, formosos, ricos, nobres: que mais é preciso para constituir um casamento feliz? perguntava o mundo. E eu respondo cá do meu cantinho: amor.

O marquez do Açude diligenciava, quanto possivel, accelerar a assentada união. Receava algum contratempo imprevisto, e queria cortar pela raiz qualquer dissabor inesperado. Não lhe esquecia a terribilissima scena que tivera com o velho militar, e o desastroso final; como que receava que ainda se repetisse. No seu condemnavel egoismo, exultava pelo que succedera ao pobre militar, porque se evitara d’aquella fôrma um escandalo, que teria talvez funestas consequencias. Ah! interesse, vil interesse, que tudo detuperas e pervertes!

Todos os personagens do nosso drama andavam agitados, cada qual com o seu pensamento diverso. N’uns predominava a alegria, n’outros o receio, a que se poderia chamar prematuro remorso, em outros ainda, e ai d’elles! o soffrer de todos os momentos, o soffrer que se radica n'uma vida inteira.

Foi fixado o dia para a assignatura do contracto matrimonial. Não faltaram convites. A sociedade mais escolhida de Lisboa devia ir saudar o raiar d’uma aurora de gozos. Firmar a felicidade na presença de numerosas testemunhas é sempre agradavel. Tudo que é ostentação se ageita maravilhosamento nos salões aristocraticos.

N’uma noite de desgostosa memoria lá foi o desventurado Jorge, preso á vontade paterna, até ao palacio do nobre conde de S. Francisco.

Selecta assembléa adornava a sala de honra. Tudo se apresentava com galas de festa. Faltava o contraste, o claro-escuro nunca dispensavél. Entrou Jorge e ficou preenchida a lacuna.

Quantas felicitações! quantas punhaladas! Jorge soffreu com resignação de martyr o mais atroz supplicio. Como a reunião era um tanto familiar, e pouco se observava o fausto da etiqueta, o pobre moço estava em perfeito contacto com a festa, para elle funeral. Se fôra um baile, com os seus milhares de convidados, com a sua febril agitação, ainda Jorge poderia, a espaços, furtar-se á alegria de que era alvo, e que tanto o cruciava.

O desventurado conde, por mais esforços que empregasse, não podia de todo esconder a tristeza que o opprimia. Mas então, dirá o leitor escrupuloso, como é que os circumstantes não attentavam no mal-estar de Jorge? É justa a pergunta, e justa será a resposta, que não passará d’uma interrogação. Quem se atreveria a presuppor que repugnasse a Jorge o enlace com uma menina rica de formosura, de nobreza e de haveres, alliando-se a isto uma virgindade inatacavel e um coração que não mostrara ainda o menor resumbramento de fél? Ninguém.

Creio que o leitor deve ficar satisfeito com a solução do problema.

Chegada a occasião opportuna, o tabellião leu a escriptura matrimonial, e tão subidos foram os dotes, que os circumstantes não poderam subtrahir-se a um trocado olhar de cobiça.

O que se passou em Jorge quando o tabellião lhe apresentou a penna, para firmar com a sua assignatura o venturoso contracto, nem elle o poderia explicar, nem nós o sabemos descrever. Todo o intimo lhe tremia, e o coração como que chorava. Houve uma rapida hesitação.

-- Concedam-me mais um prazer, novo, talvez, mas que muito me deliciará, disso vivamente o marquez do Açude, e muito a tempo para evitar, quiçá, um dissabor. Quero eu proprio depor nas mãos de meu filho a primeira pedra da sua felicidade.

Assim dizendo, tomou da penna que o tabellião apresentava, e estendendo-a para o pobre conde:

-- Vamos, Jorge, disse o marquez cravando no filho um olhar de marmore, ao passo que esboçava um sorriso forçado: recebe de teu pae o buril com que vaes gravar a tua immensa ventura. Deixa que me associe desde já á tua felicidade!

-- Que pae tão extremoso!... murmurou o auditorio.

Jorge sentiu-se vergar á magnetica influeucia do marquez. Pegou na penna e lavrou com o proprio punho a sua sentença de morte. Custa menos escrever com sangue!

O marquez dizia de si para comsigo:

-- Está quasi completo o meu afincado empenho. Este nescio soffre agora com esses amorios de creança, mas breve me agradecerá a pertinacia. Custa a crer que, sendo meu filho, se lembrasse d’uma união plebea! Oh! como os tempos vão mudando!

O pobre Jorge estava n’uma verdadeira roda de navalhas. Ora tinha que agradecer os parabens que lhe endereçavam, ora que responder com galanteios ás delicadas e alegres expressões que Julia lhe dirigia. Ella, sim, que se mergulhava no mais expansivo prazer.

Se Jorge não estivesse tão preoccupado e sentido pela perda do anjo que julgara destinado para lhe engrinaldar a vida, de certo soltaria um suspiro de compaixão, ao lembrar-se de que em breve se dissiparia em Julia a alegria de noiva, que murchariam as flores que entretecia na mente, que libaria as fezes d'uma desillusão cheia de espinhos! Hoje creança, desbordando de crenças e anceios, ámanhã talvez mulher, entre lagrimas e desesperanças!

Ha um patibulo social, armado constantemente na praça publica. Sobe-se para elle por differentes degraus. Este patibulo destina-se em particular aos innocentes. Chame-mos-lhe, pois, altar, porque n’elle se immollam victimas. Quem é o patibulo? A sociedade. E o que é a sociedade? É a devassidão, a impureza, a cobiça que perverte, a vaidade que desdoira, a ambição immoderada que arrasta, o crime com mascara de honradez, o interesse egoista por tudo e em todos! -- Mas o coração? O coração põe-se de banda. Mas não será o amor o laço de rozas destinado a unir a humanidade? Quem o póde negar? Ninguem. Quem o põe por obra? Raros.

XXIV

Consummatum est

Raiara sereno o dia. O sol, ainda que pouco intenso, illuminava brilhantemente o magestoso templo de S. Domingos. Os altares estavam armados em festa. Apesar de ser dia de trabalho, a igreja não rareava de fieis, fieis á curiosidade, não confundamos.

Junto á porta principal ia-se agglomerando grande numero de mendigos.

Aguardava-se um casamento faustoso. Os jornaes tinham soltado o reclamo.

Era o enlace á face de Deus dos filhos dos nobres marquez do Açude e conde de S. Francisco.

Um curioso attrahe outro curioso; dois chamam quatro, quatro arrastam cem. De momento para momento se engrossavam os espectadores da annunciada festa. Os sinos faziam o seu dever: repicavam o mais alegremente possível. O sacristão sorria satisfeito com a mira n’uma bôa esportula. Era de esperar.

De repente, os sinos mudaram de rythmo. Cessou o badalar festivo, sendo substituido pelo repique especial que annuncia aos fieis que uma alma está prestes a alar-se d’este mundo, e que precisa do consolo da religião na derradeira hora.

O caso era instante. A morte não olha a gerarchias, nem espera que se abençoe uma união fidalga. A morte é a republicana por excellencia.

O digno prior da freguezia teve de preferir a bênção do sepulchro á benção da vida.

Quando estava para sahir o sagrado viatico, entravam no templo os noivos, os padrinhos e convidados.

-- Então que é isto? perguntou o marquez do Açude ao sacristão.

-- Vieram reclamar a toda a pressa os sacramentos para um enfermo, e então... balbuciou o meio-homem da igreja.

-- Não podiam esperar para depois da benção matrimonial?... replicou o fidalgo com algum enfado.

O digno parocho, que o era, ouvira a revoltante observação do marquez, e não poude conter-se que não dissesse:

-- Christo bem sabe que só os afflictos o chamam, e então não se detem no soccorro!

O marquez franziu os sob’rolhos, mas não se atreveu a replicar.

Christo foi fazer a sua visita, e os fidalgos esperaram.

Ha coincidencias n’este mundo que mais parecem propositos. Quem imagina o leitor que pedira os sagrados sacramentos? A pobre Adriana, para seu pae moribundo. Sobreviera segundo ataque ao desventurado militar.

O encarregado de ir á igreja reclamar auxilio da religião, ao voltar para casa disse a Adriana que receava que o sacerdote se demorasse.

-- Então porque? perguntou a martyr entre um saluço e uma lagrima.

-- Porque vae lá na igreja grande festa, respondeu o mensageiro. É o casamento d’uns fidalgos.

Adriana estremeceu, e de pallida tornou-se livida.

-- Que fidalgos!... perguntou ella com voz sumida,

-- São os filhos do conde de S. Francisco e do marquez do Açude.

Então os raios também ferem os anjos?

Adriana, fraca como estava pelas muitas vigilias junto ao leito de seu pae, não poude resistir áquelle golpe tremendo. Cahiu para traz sem sentidos. Felizmente, estava ali sua mãe, que a recebeu nos braços.

D. Margarida correra logo á capital apenas soubera da desgraça que lhe ferira o esposo.

Quando Adriana voltou em si, depois de receber mil cuidados, viu á cabeceira de seu pae o ministro do Senhor.

A desventurada virgem já não tinha lagrimas. Immobilisaram-se-lhe as feições, mas redobrou-lhe de agitação o pensamento. Antes fôra o contrario. As dores phisicas ficam muito aquem das moraes.

Adriana olhava para o sacerdote, e dizia mentalmente:

-- Aquelle homem é a testemunha mais proxima de duas grandes dôres, a que talvez eu não possa resistir! Ha de santificar duas mortes: a de meu pae, e a de Jorge! Uma entre lagrimas, a outra entre risos! Porque assim estarei condemnada a tanto soffrer? Sempre julguei que na mocidade houvesse menos espinhos. E ai! como elles me rasgam o coração!...

O sacerdote, terminados os seus deveres, sahiu da tristurosa alcova.

Adriana achegou-se do leito de seu pae, e apertou entre as suas as mãos do pobre velho. O espirito foi-se a despedir-se de outro moribundo para si. Assim dividiu o corpo e a alma!

Quando o sagrado viatico volveu á casa santa, já todos estavam impacientes, apesar da demora ter sido pouca.

Julia trajava um lindo vestido de seda branca, avivado muito a fugir de azul celeste.

Emmoldurava-lhe a fronte uma linda grinalda de flores de larangeira. Aquella corôa tão pura, é, muitas vezes, uma corôa de espinhos, o que não admira, porque a arvore que lhe dá nascimento tambem os tem.

Julia estava realmente deslumbrante de formosura. Todos a admiravam, e não raros invejavam a ventura de Jorge. Oh! as apparencias!

A belleza de Julia não passou desapercebida ao conde do Pinhal Viçoso, apesar do muito soffrer que lhe rasgava o peito. Não fitou, porém, a donzella com olhos de volupluosidade, mas sim de compaixão. Ao vel-a assim tão radiante de jubilo, tão cheia de vida e mocidade, sentia bem do intimo não lhe poder dar o affecto que merecia, e porque o seu coração juvenil anciava. Accrescentava ainda em pensamentos, e com verdadeira lastima:

-- És algoz, mas de ti própria, infeliz! Algoz não, antes victima innocente! Vaes entrar n’um sepulchro pela porta da ventura. O’ meu pae, meu pae!...

Depois do ministro do altar vestir os paramentos de festa, todos se puzeram em movimento para a ceremonia.

Jorge estava pallido como a cera que illuminava a Virgem Mãe de Deus. Havia n’elle uma resignação de martyr. Sustinha-o o galvanismo do prostramento. Aproximou-se do sacerdote como se fôra um cadaver.

Quando o ministro da igreja uniu as mãos dos noivos, para lhes lançar a benção, Julia estremeceu como se houvera tocado um pedaço de marmore.

O marquez olhava para seu filho com a fixidade da serpente. Por um momento uma nuvem negra lhe atravessou o espirito. Breve se desvaneceu.

Aquelles instantes foram para Jorge seculos de excruciante supplicio. Ia sahir-lhe do peito um ai! por muito tempo reprimido, quando os cadenciosos acordes do orgão vieram em seu auxilio, abafando-lhe um suspiro de sangue

Estavam casados.

Tambem no templo sagrado, na casa de Deus, se amaçam amarguras que matam? Tambem. Então o demonio póde penetrar até junto do sacrario divino? As vezes.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

PARTE II

Uma alma para todo o lodo

I

Excertos de lagrimas

A materia resiste muitas vezes ao peso moral que pretende esmagal-a. O cedro da montanha como que sorri desdenhosamente á passagem do raio. E ainda bem que assim é. O que seria da humanidade se o corpo vergasse ás ferroadas das dôres intimas? D’essa fôrma tornar-se-ia o mundo um cemitério, porque, sem refutação, os desgostos vão bater a todas as portas, e nem mesmo o guarda-portão do palacio luxuoso lhes póde impedir a passagem.

Difficilmenle se chega ao suicidio, e em tal extremo não é ainda a materia que succumbe, é o espirito, victima do proprio espirito. A vida é uma irradiação de luz, e só uma alma em trevas vae ás apalpadelas até ao sepulchro.

Ha um esteio a que a desgraça se ampara, a esperança. O porvir é o antidoto d'esse terrivel veneno a que se chama soffrimento. O coração contrahe-se, ao mesmo tempo dilata-se o pensamento. Estabelece-se o equilibrio. O equilibrio é a grande potencia terrena. Sustenta o corpo e a alma. A incerteza do ámanhã é que hoje nos faz supportar os desgostos que nos dilaceram as entranhas. Este anceio da alma, este borbulhar dos sentidos, com a mira no ignoto, esta aspiração que não raro assenta na miseria, no pungir atroz, no pego amargo, e que d’ali se ala para o infinito, é a esperança, com as suas candidas azas e doirada plumagem, a esperança, essa filha do céo, viva scintilla desprendida da brilhante aureola do Omnipotente!

Adriana, a meiga virgem que a fatalidade foi descobrir lá na sua aldeia, entre murta e flores, para a tornar martyr, foi superior ao rasgar do coração. Ha phenomenos no corpo como na alma. Adriana viu emurchecer as rozas mais brilhantes da sua phantasia de vinte annos: viu perpassar em sombra o homem que fôra uma realidade de amor: viu transformar em cruz o seu deslumbrante phanal: viu os goivos substituirem as rozas. os cyprestes as acacias; viu brotar só abrolhos do seu cuidado jardim: viu-se envolvida na mortalha do soffrimento, aspirando a athmosphera viciada que envenena; e viu tudo isto da beira d’um sepulchro, apoiada ao leito de seu pae em agonias de morte. E a tanto resistiu a malfadada creança, tanto poude supportar aquelle coração todo candura, todo amor, todo mel e flores!... Seria a esperança alvejando-lhe por entre as trevas do martyrio? Não foi; a esperança não appareceu, ou, se appareceu, aquelles olhos, cegos pelas lagrimas, não a entreviram. Quem foi então que assim salvou do abysmo a triste que ia despenhar-se? que foi que susteve a pedra gelada que ia cahir sobre o cadaver da martyr? Um sentimento tão santo, que deve provir de Deus, um lampejo do celestial luzeiro, uma nota das harmonias dos anjos: o amor filial. A esse amor ligava-se a abnegação.

O honrado militar, que vimos entre a morte, e um soluço, repelliu mais uma vez a terrivel parca, prestes a ceifal-o impiedosa. Houve um momento em que o ancião pareceu quebrar o fio que o prendia á existencia. A morte adejava em volta com as suas negras azas. Duas preces sentidas lhe embargavam a descida. Mãe e filha se uniam n’uma unica oração. N’aquelle momento a alma do agonisante como que se desprendeu da matéria, e lá se foi rogar aos pés do Altissimo, implorando-lhe mais algum tempo de sensibilidade mundana.

Desde um dado instante o velho militar como que ressuscitou. As fervorosas preces da filha foram arrancal-o do fundo da campa gelada. A sciencia por um lado, os carinhos por outro, e também um olhar de Deus formaram uma sublime trindade, que em breve deu melhoras ao desventurado militar. Radical não foi a cura, porque ficou paralytico do lado esquerdo. A arvore estava de pé, mas precizava de esteio a que amparar-se para não tombar ao sopro do tufão.

Adriana, com o coração retalhado pela dôr, ouasi succumbindo á asfixia do desespero, olhou para seu pae sem amparo, e com os olhos intimos para o muito travor da sua alma, e estacou indecisa. Um suspiro de seu pae susteve-a na ribanceira do sepulchro. Se pela perda de Jorge cumpria morrer, por amor do pobre velho devia conservar a vida, embora cada minuto fosse um supplicio, cada seixo trilhado um pouco de ferro em brasa.

Cumpre conhecer bem fundamente o coração de Adriana, para avaliar quato se passou n'aquella alma de anjo. Podemos affiançal-o: se não fòra seu pae ter sobrevivido ao ataque que o assaltara, ella de certo resvalaria para a sepultura, ou perderia a razão. Em qualquer dos casos era a morte; ou a morte do corpo, ou a do espirito. Uma vale bem a outra.

Como a pobre Adriana soffria! Quantas vezes, passado um dia de saudades, se deleitava em sonhos, com os prazeres simplices e felizes d’um phantasiado amor! Via a seu lado o Jorge da sua alma, sorrindo-lhe com um sorriso de oiro, deleitando-a com as harmonias da sua insinuante voz, envolvendo-a n’um manto de enlevado affecto. E a virgem purpurisava-se, não de pejo, que o não ha do homem digno, mas de commoção, mas da febre que provem do amor! Quando mais se agitava com aquelles gozos d'alma, despertava do tão benefico dormitar, e soltando um suspiro, muita vez precursor d'uma lagrima, exclamava sosinha no seu leito de saudades:

-- Meu Deus, é bem pouco viver para os sonhos!

Adriana era uma verdadeira martyr, porque arrastava com o sorriso da resignação a pesada cruz com que o destino a carregara. A triste bem sabia que uma lagrima sua seria um pingo de cicuta para o coração de seu velho pae, e ella não queria envenenar-lhe esse resto de vida que o Creador lhe concedera. Por tal arte occultava o pranto e patenteava o riso, que o ancião chegava a illudir-se, bemdizendo o ceu que assim insufflava a resignação no seio d’aquella creança.

-- É bem triste nem sequer poder chorar! dizia a desventurada menina.

Ás vezes, de noite, quando tudo era silencio, refugiava-se no seu quarto, e, a sós com as saudades e a pungente amargura, ia desabafar no papel o que os labios não podiam proferir,

Eis um fragmento tirado ao acaso:

«... E assim vivo! Se te havia de perder, para que te conheci! Para que te arremeçou o ceu ao meu ninho de quietação? Então Deus compraz-se em ver sangrar as feridas dos que soffrem!... Isto é quasi blasphemar. Perdão! -- Na minha imaginação febril avistava lá muito além o ideal. Eras tu, Jorge. Vieste, todo retoucado de flores, ennebriar-me com os celestes aromas creados pela phantasia. E eu deixei-me pender gostosa ao aspirar a teu perfume: e eu deixei-me envolver descuidosa com os liames do coração! No ceu mais escuro via sempre uma estrella. A estrella eras tu. Hoje tudo são trevas; nem um lume perdido onde fitar os olhos em lagrimas. Perdar-te, Jorge, e nem ao menos poder exprobrar-te a morte que me dás! Tu também soffres, e eu sinto as tuas e as minhas dores. Oh! se não fôra meu pae!...

«Disseram-me que estiveste homtem no theatro, mas que se notava no teu rosto uma pallidez compungente, e uma tristeza profunda. O’ Deus, pois levareis tão longe o martyrio, que nem ao menos façaes com que Jorge me esqueça! Misericordia, Senhor! Ao menos que seja só eu a soffrer......»

Outro fragmento.

«Tenho-te evitado, Jorge, para que a minha vista te não recorde dias de supremo prazer, e te não desperte remorsos que não te pertencem; porém, ainda asim, affiançaram-me que a tristeza te não desampara, e que ainda hontem no Passeio, indo pelo braço de tua esposa, deste margem a alguns commentarios. Quando me vem fallar de ti, desejo impor silencio, mas não posso. É mais um supplicio. Soffres, Jorge! O’ meu Deus! então Julia não tem encantos para desenrugar a tua nobre fronte!... Triste d’ella também! Não te admires de eu não ter zelos, o que tenho é muito pesar por não seres feliz. Não tenho zelos, porque tu és uma parte da minha alma. Folga, sorri, que será o unico meio da existencia me não pesar!...»

Assim passava a pobre Adriana horas e horas, mergulhando-se n’um mar de angustias, e consumindo a tão abalada existencia, presa ainda a seu pae enfermo.

É triste existir com a morte n’alma, e viver para um quasi cadaver!

II

Impressões do Fausto

Selecta sociedade preenchia os camarotes e platéas do nosso bello e magestoso theatro de S. Carlos. Cantava-se pela primeira vez em Lisboa a soberba opera o Fausto, que tanto attrahiu a attenção dos diletanti.

Fóra do costume, ainda a orchestra não tinha dado os primeiros acordes, e já nos camarotes reluziam os brilhantes e roçagavam as sedas. Não faltava binoculos assestados de baixo, e dengosos requebros decima. Trocavam-se os comprimentos, trahiam-se alguns sorrisos, e como que se neutralisava um ar de anciosa espera. O Fausto vinha precedido de grande reputação, e esperava-se que desse alguma folga ao constante Trovador, que os senhores assignantes do theatro lyrico devem saber de cór e salteado. Effectivamente, era noite de festa n’aquelle templo de harmonia. Estava tudo a postos.

Como em tudo, havia uma excepção... o camarote do conde do Pinhal Viçoso estava vazio. Aos ociosos tudo serve de assumpto para esmagar o tempo. O camarote desoccupado servia de alvo a alguns commentarios.

-- Estará incommodada a condessinha? perguntava um impertigado curioso ao seu visinho.

-- Não me consta. É verdade que lhe notei hontem, na embaixada de Italia, uns certos ares, não direi de tristeza, mas de funda meditação, bem pouco propria em tal edade, e muito menos na condessa, que era toda alegria.

-- E Jorge?

-- Jorge está um misantropo.

-- Parece-me que aprecia pouco a flor mimosa que possue.

-- Não sei... não quero aventar uma opinião, que até certo ponto...

-- Homem, deixa essas enfadonhas reticencias. Falla.

-- Com franqueza, não tenho perdido de vista o venturoso par.'

-- E então?

-- Então, logo em principio me admirei do como nevoeiro que encobria vagamente uma lua de mel que tanto promettia, e que mais d’uma inveja despertava. Não podes negar que a condessa é em tudo a mulher capaz de ennebriar os sentidos do homem, ainda o mais material. Formosa como poucas, na edade em que o coração se descerra para o amor, trasbordando de encantos, promettendo um ceu ao aspirar-se-lhe a virgindade, e a despeito de tudo isto...

-- Outra reticência?

-- E a despeito de tudo isto, Jorge, mesmo no alvorecer de tanta felicidade, mostrava-se quasi indifferente, e até meditabundo e triste.

-- Tens rasão, agoro reflicto também. E a que attribues esse desamor pelo bello?

-- Não sei... Nutro umas vagas desconfianças, ou antes supposições.

-- Estas-me interessando deveras. Dize lá.

-- Espera, deixa-me comprimentar a mulher do conselheiro Prazeres.

-- Tambem aquella...

-- Cala-te, homem, não falles em coisas tristes.

-- Então, venham de lá as taes desconfianças, ou supposições.

-- Desconfio que Jorge sacrificou outros amores, e que o seu casamento foi forçado.

-- Ora adeus! Forçado um casamento a todos os respeitos...

-- Chiton! Agora tem a palavra o sr. Gounod. Guarda para logo as considerações.

Effectivamente, a orchestra dera as primeiras arcadas. Houve uma como agitação na sala. Era o espirito da novidade a predominar.

O camarote do conde continuava vazio. Causava verdadeira estranheza. Passou-se o primeiro acto, e nada. Finalmente, no meio do segundo, a chave deu volta na fechadura, correu-se o reposteiro, e Julia appareceu no camarote. Vinha deslumbrante de formosura, e até a pallidez que lhe inundava o rosto lhe dava um certo encanto particular. As perolas de subido preço como que brotavam d’entre os magnificos cabellos, os brilhantes eram em tal profusão, que dissera-se os milhares de lumes d’um ceu estrellado.

Apesar do grande interesse pelo espectaculo, alguns espectadores voltaram a cabeça, para saudarem o sol nascente. As senhoras, essas trataram logo de ver como o vestido da condessa vinha enfeitado, e se as luvas eram côr de carne ou de palha.

Matheus da Silveira foi o primeiro a cumprimentar a condessa. Quem de perto a observasse, de certo veria tingirem-se-lhe as faces d’um leve colorido. Porque? Nem ella mesmo o poderia dizer. A consciencia não a accusava, mas o que não podia negar era que Matheus da Silveira lhe dirigira em solteira algumas palavras significativas, e que mesmo agora, senão a importunava verbalmente, envolvia-a n’uns olhares que pouco tinham de naturaes.

Decorreu o segundo acto, que termina com essa brilhante walsa que nos falla ao coracão, e como que nos eleva nas suas azas de harmonia.

No intervallo foram alguns elegantes comprimentar a condessa Julia, indo entre elles Matheus da Silveira.

Jorge estava affavel como sempre, mas triste.

O calor das luzes, e a animação da sala tinham feito desapparecer a leve palidez que se notara em Julia. Vendo-se entre a côrte de que era rainha, pela formosura e distincção, assumiu ares de soberana, tornando-se attrahente e deslumbrante. Era positivamente uma creança, e como tal se lisongeava sempre que lhe prestavam culto e rendiam gabos. Nada ha mais prejudicial do que acirrar a vaidade feminina. Essa vaidade, de todo o ponto perigosa, só se póde debilitar com o contra-peso do amor. Em a mulher se sentindo pender pelo declive do coração para o homem a quem ama, em concentrando n’elle grande parte, ou toda a sua existencia, esquece as galas, que não raro se transformam em luto, e salva-se do despenhadeiro que começa na vaidade e termina... na deshonra.

Tinha Julia o tal coração onde refugiar-se? Cremos que não, porque bem sabemos quanta amargura dilacerava o peito do pobre conde.

Não precipitemos. Cumpre, hoje como sempre, aqui como em toda a parte, não aventar supposições mal assentes, nem ir mais longe do que a prudencia aconselha.

-- Então v. ex.ª não quiz assistir ao começo do espectaculo? perguntou com uma calculada melodia Matheus da Silveira.

-- Não foi porque me minguassem desejos, respondeu a condessa Julia; mas é que me sentia um tanto incommodada, e muito mais o conde, que esteve até para não vir.

-- Soffres, conde? perguntou ainda Matheus da Silveira, voltando-se para D. Jorge.

-- Não o nego, soffro. São os resultados das caçadas. Expõe-se a gente ao sol, morre-se de fadiga, algumas vezes de sede, e para que? por causa d’uma miseravel perdiz.

-- Então abjuraste da arte cynegetica!

-- Completamente.

-- Na verdade, hoje seria até crime se procurasses algures distracções, quando reunes em casa um complexo de encantos, pois que tens a fortuna de possuires por esposa a ex.ma sr.ª D. Julia.

-- Agradecida, replicou com sequidão a condessa.

Jorge não teve forças para confirmar a opinião do seu amigo. Para se furtar áquelle genero de conversação, voltou-se para as demais visitas e dirigiu-lhes uma pergunta futil.

Matheus da Silveira ficou mais proximo de Julia.

-- Então, senhora condessa, disse elle, gosta do Fausto?

-- A musica sempre me captiva, replicou Julia com delicadeza.

-- E tem v. ex.ª razão; a musica falla-nos á alma, eleva-nos nas suas azas de melodia, faz-nos propender para o ideal, creando-nos na mente mil fantasias agradaveis!

-- Que enthusiasmo! interrompeu a condessa com uma certa graciosidade. cantador jardim da sua Adriana. Chegada a é bello. É, todavia, a musica que mais

-- Não se admire, senhora condessa, porque sempre me enthusiasmo com tudo que é bello. A musica como que me ennebria, e n’esse alheamento sonho um mundo de delicias: sinto um affago a amimar-me as faces, um halito perfumado a refrigerar-me a febre escandecente que me devora, sinto, finalmente, que existe uma mulher que me não despresa!

-- Despresar! tão malquisto se julga das damas?... disse a condessa com uma motejadora ironia.

-- Ainda não encontrei quem acceitasse o muito affecto que me julgo capaz de dar.

-- Oh! nesse caso, cumpre avivar a luz da lanterna.

-- V. ex.ª toma á conta de devaneio o que é uma pura verdade. Se a senhora condessa sentisse em torno só gelo, quando em chammas lhe ardesse o peito, então...

Matheus da Silveira teve de pôr uma suspensão na ensossa torrente que tudo ia innundar, porque a orchestra fez ouvir os primeiros acordes do 3 .º acto.

Os visitantes sahiram do camarote, afim de retomarem os seus logares na platea.

Ainda Matheus da Silveira ia no corredor, quando a condessa murmurou com desdem:

-- Este homem é um parvo de primeira plana.

O conde não deu altenção á apostrophe.

Ser parvo na bocca d’uma mulher não é das peiores coisas para o homem. Ao menos merece uma especial menção, o que é muito melhor do que ser um como não existente. E depois não é raro tocarem-se os extremos!...

Subiu o panno. O leitor de certo conhece o 3 .° acto do Fausto, acto que encerra em si um poema de mimo e amor.

Jorge começou de impressionar-se com o soberbo typo de Margarida, a virgem descuidosa que por entre as ramadas colhe flores, que bebe a belleza e a candura nas estrellas do limpido firmamento, que anima a folhagem com a sua sublime presença, e que, sahindo innocente do seu viver entre rozas se deslumbra á vista do brilho das custosas pedrarias. Jorge sentia-se preso por inexplicavel encanto. Esquecia-se do logar onde estava, e transportava-se para o passado tão risonho, poisando no florido e encantador jardim da sua Adriana. Chegada a scena em que a formosa Margarida assoma á janella, onde o luar bate de chapa, envolvendo a virgem em ondas de luz, Jorge sentiu-se commovido. Ouviu como se fôra um hymno celeste os maviosos carmes que se desprendiam dulcissimos dos nacarados labios de Margarida, da virgem scismadora, que assim soltava ás auras os seus anhelos, com os olhos fitos na lua, e a alma embebida na lembrança do seu idolatrado Fausto. Ao amoroso chamamento d’ella acode o enlevado amante, que se lhe lança nos braços, sellando com um beijo de fogo aquelle arroubamento d'alma.

Jorge cahiu postrado na cadeira, verhando á intima commoção que o dominava.

Por um inexplicavel acaso, Julia e Matheus da Silveira trocaram um rapido olhar.

III

Ceia delirante

O resto do espectaculo foi para Jorge um verdadeiro supplicio. Todos estavam satisfeitos, menos elle. As excepções são de rigor. O claro-escuro não se dispensa.

Tudo n'este mundo tem fim. O Fausto tambem terminou.

Jorge conduziu a condessa á carruagem, mas não entrou, dando não sei que frivola desculpa. Julia resentiu-se devéras, comtudo, pouco sofrear o desgosto, e não objectou uma unica palavra.

-- Enão voltaste, Jorge? Succedeu algum accidente imprevisto? perguntou Matheus da Silveira.

-- A condessa teve algum ataque e buscas facultativo? interrogou um outro.

-- Se assim é, tem-me ás suas ordens, conde, disse um medico que fazia parte do grupo.

-- Descansem, meus senhores; nenhum desastre succedeu. Voltei, porque me sinto alegre bastante, e desejo passar algumas horas diante d’uma boa mesa, de copo na mão e rodeado de amigos. Convido-os para virem cear rommigo.

Os convidados olharam-se mutuamente. O caso era na verdade um pouco estranho. Jorge, sempre morigerado e de austeros habitos, consentir que sua esposa se retirasse sósinha, para se entregar a uma orgia, coisa a que sempre se esquivára em solteiro!

Do salão seguiram os convivas para o hotel Gibraltar. Sentaram-se todos a uma espaçosa mesa, que em breve foi servida.

Jorge estava pallido.

-- Meus senhores, disse elle com uma accentuação febril, quero hoje julgar-me solteiro e livre. Sinto-me alegre. Gozemos com estrondo. Rapaz, accrescentou dirigindo-se ao criado, enche esses copos. O vinho desperta o praser e faz esquecer as maguas!

-- Apoiado! gritaram algumas vozes.

O conde esgotou o seu copo d’um trago.

A ceia começou, e com o decorrer d’ella se foi a alegria tornando mais espansiva.

-- Proponho um brinde! disse um dos començaes, rapaz de genio folgasão, estudante da polytechnica, mas mais apreciador de soffrivel cognac do que de bons livros.

-- Prompto! exclamaram em côro.

-- O brinde que quero levantar, exclamou o estudante, é pelas mulheres que nos estimam e dão a vida por nós. São ellas que nos amparam nos seus braços de amor, são ellas que nos refrescam com o seu divino halito, quando nós lhes apparecemos com a cabeça em fogo pelo alcool que bebemos, são ellas que nos dão uma caricia em troca d’uma injuria! Ás vezes fazem-me faltar á aula; porém, que importa? Um sorriso vale bem uma alta! Se o meu lente conhecesse de perto uma certa Luizinha que eu muito aprecio, era uma vez a lição! Estariamos em ferias permanentes. Com os demonios! Se a mulher soubesse quanto vale!... Encontra a gente um credor que nos descompõe, é-se chamado á lição e não se diz palavra, o nosso correspondente préga-nos um sermão, que temos de ouvir em silencio, por causa do papá, perdemos ao bilhar uma partida de capricho, e somos apupados pelos amigos tyrannos, acontece-nos seja que fatalidade fôr, vergamos a cabeça, roendo a raiva ou o desgosto, acanha-se-nos o mundo, desesperamos ; pois bem, chegamos junto da mulher que nos ama, enflora-nos um sorriso depõe-nos um beijo na fronte annuveada, alisa-nos com os seus dedos de fada os cabellos revoltos, e nós n’um momento esquecemos despraseres e contrariedades para só nos entregarmos ao amor! Viva a mulher!

-- Viva! .. repetiram os convivas já um tanto animados, e levando aos labios os copos cheios de vinho.

A vivaz loquacidade do estudante mais impressionou Jorge. Tratava-se da felicidade que nos dá a mulher unida á nossa alma. Para elle era como que fallar dos mortos. Contra o seu costume, bebia com pequenissimos intervallos.

-- Depois da bella noite que passámos, este apendice era de rigor. O conde teve uma excellente idéa, disse Evaristo, um dos començaes, que não primava por esperto.

-- Peçam misericordia, senhores!... exclamou Alfredo da Cunha, que era o ladino estudante.

-- Misericordia porque?... perguntaram diversos.

-- Porque está eminente grande trovoada, talvez um terremoto, quem sabe mesmo se o mundo se acabará!...

-- Mas porque?... insistiram os outros, redobrando de curiosidade.

-- Porque?... porque o Evaristo disse a um tempo duas coisas acertadas!...

Uma estridente gargalhada sahiu d’entre os convivas.

-- Começas tu... disso o pobre Evaristo, com cara de piedade.

-- Começo eu!... Deus me livre de começar onde tu acabas! Seria pouco lisonjeiro.

Novas risadas.

Jorge ia-se sentindo aturdido, já pelo espirito do alcool, já pelo vozear dos alegres convivas. Firmou os cotovelos na mesa, e appoiou a testa ás mãos escandecentes.

-- Afinal, que me dizem do Fausto? perguntou um litterato, que nada percebia de

musica, e que assim desejava colher alguma

opinião alheia para no dia seguinte a perfilhar nas columnas do noticiario.

-- Excellente partitura! Instrumentação admiravel! respondeu um aferrado diletanti.

Mongini elevou-se a uma prodigiosa altura.

-- Oh! oh! exclamou o estudante com um exagerado espanto.

-- De que tanto te admiras?

-- De que?... de ter ouvido o Mongini estando lá tão alto!

-- És ridículo com o teu espirito! apostrophou o interrompido diletanti.

A resposta de Alfredo da Cunha foi uma expressiva visagem, que immediatamente afogou num copo de champagne.

-- E que me dizem do Junca? perguntou ainda o litteratiço, tomando apontamentos mentalmente.

-- Magnifico! observou o profundo amador de musica. Junca foi um Mephistofles que valia bem um Gabriel.

-- Apraz-me a imagem, gritou Alfredo da Cunha.

Temendo-lhe o verbo zombeteiro e vehemente o diletanti nem uma palavra replicou.

-- E a Volpini? perguntou ainda o curioso musical.

-- A Volpini... começou o apreciador lyrico.

-- Silencio, profano, não falles em coisas divinas! gritou o estudante batendo com o copo na mesa, o que fez sahir Jorge da sua lethargia. Volpini foi sublime na aria das joias, e depois demonstrou com tal arte a santa poesia do amor, que mesmo eu, que não primo pela sensibilidade, senti-me commovido! Com os demonios! a mulher serve para muito, não me digam que não! Ao ver aquelle anjo de loiras tranças, desbordando de meiguice, a fantasia retoma novas forças, e de logo se idealisam mil gosos enebriantes! Não é assim, Jorge?

O conde estremeceu. Aquella pergunta como que lhe aguilhoava o pensamento em febre. Com um movimento rapido lançou mão d'uma garrafa de cognac, e levou-a aos labios escandecidos. Dispunha-se a esgotar todo o liquido, mas Alfredo da Cunha interpoz-se a tempo.

-- Que fazes, Jorge? disse o estudante. Estás louco!

-- Louco, porque!... exclamou o desventurado fidalgo com uma voz algo cavernosa, effeito da demasiada bebida, a que não estava habituado. Louco por procurar a alegria, ou o esquecimento, no fundo d’uma garrafa?... Admiram se por me ver beber?... Cessem o pasmo; hoje sou outro homem. D’ora em diante quero entregar-me ao prazer, às delicias d'uma orgia, á febre dos festins! Hão-de desconhecer-me, verão. A vida é para gozar. Para longe o regimen, fóra como coração... que só os sentidos campeiem e que se asfixiem na athmosfera das baccanaes... Tragam-me uma mulher, muitas mulheres... Quero dar-lhes todo o meu amor... que eu tenho muito amor, sabem?... Porque?... porque?... é que ha um pulso de ferro que esmaga corações!... Oh! ella de certo tem chorado muito... Então ella chora, e eu, infame, não vou apagar-lhe as lagrimas com os meus beijos!... Sou um miseravel!... A minha Adriana vae morrer... lá do ceu ha de rogar por mim... Sou um egoista, immolo victimas para que, depois, anjos celestes, me implorem a salvação lá no ceu... Ceu?... não ha ceu... Deus é uma mentira... Se houvesse Deus as dôres seriam menos atrozes!... Deus é Satanaz... Ah! maldito, que sorris da minha desgraça. Quizeste para ti a minha Adriana... coitadinha, como estará soffrendo os fogos infernaes... Em vez da grinalda de flores de larangeira, cinge-te a fronte mimosa uma aureola de chammas... Sim... bem te sinto os gemidos... Pronuncias o meu nome... pedes-me que não te abandone... espera, anjo... vou voar em teu soccorro!... Mas que é isto, prendem-se-me os pés ao sobrado... immobilisam-se-me os membros... ó desespero!... Adriana... Adriana... ai!...

Jorge, dominado pela embriaguez, que se tornara em delirio, vergou ao terrivel accesso, e cahiu prostrado na cadeira, com os sentidos complelamente perdidos.

Todos correram a soccorrel-o.

Imagine-se a sensação que tal scena produziu, e a estranhesa que causaram as palavras de Jorge. Era pasto para milhares de conjecturas.

Todos rodearam o fidalgo. Houve uma excepção: foi Matheus da Silveira, que á parte disse de si para comsigo:

-- Esta allucinação foi um raio de luz! Julia em breve será minha!...

FIM DO 1.º VOLUME

PARTE II

Uma alma oara o lodo

IV

Labor da infamia

Ha naturezas bem extraordinarias. Ha homens que tudo sacrificam aos seus desejos. Uma vez associados com o egoismo, mas o egoismo revoltante, que tudo despreza, e que de todos sorri, proseguem seu caminho, calcando obstaculos, affrontando as consequencias, até chegarem aos seus fins.

Matheus da Silveira pertencia a esta pleiade asquerosa, que, por nossa desgraça, conta milhares de adeptos. Para elle, como para os da sua laia, a honra, essa convenção social, freio augusto da immoralidade, era uma simples palavra, cuja significação ignorava. É que elle nunca tivera uma irmã, cuja virgindade acatasse, cuja innocencia fosse para elle um enlevo; nunca tivera uma filha, verdadeira pombinha do lar, pela qual se sobresaltasse a todos os momentos, receando que um halito impuro lhe viesse manchar a pureza.

Viera creança para um collegio, e quando de lá sahiu já não tinha familia. Viu-se sob a protecção dum tutor pouco digno, que tirando criminosos proventos da fortuna que administrava, concedia ao tutelado a maior liberdade, com receio de que lhe pedisse minuciosas contas.

Matheus da Silveira começou de levar uma vida bastante desregrada, para o que muito concorriam tambem as más companhias. A mesada para pouco lhe chegava, o que lhe fez recorrer ao credito, sempre com grande usura. Assignou diversas letras sem data, que a deviam de ter logo que chegasse á maioridade. Apenas raiou o dia tão desejado pelos agiotas, foi um chuveiro de obrigações de divida. A fortuna de Silveira resentiu-se da borrasca; os raios deixaram largas fendas no edificio. Não obstante, o senhorio poude dominar o primeiro momento de enfado, e, sem cuidar de reconstruir a propriedade, de novo se entregou a immoderadas extravagancias, e de orgia em orgia, de devassidão em devassidão, de desregramento em desregramento, embotou-se-lhe o coração, tornando-se o cynico mais completo.

Na época em que nós o conhecemos estava elle muito em baixo de fundos, apparentando, todavia, uma certa independencia.

Cumpria lançar mão d'um meio que viesse salvar a abalada situação. Qual ? As pertinacias no jogo tinham-lhe dado um resultado negativo. Era um expediente, mas um expediente que mais o enterrava. Occorreu-lhe uma idéa, que lhe sorriu meigamente: procurar um casamento vantajoso, que o viesse salvar do abysmo.

Affagado por tão grata lembrança, começou de espraiar a vista em redor, buscando com olhos avidos o desejado alvo.

A imagem que mais lhe sorriu foi a da filha do conde de S. Francisco. Julia sahira do collegio, e era muito de suppôr que de lá trouxesse livre o coração. Além d'isso, faltava-lhe ainda a pratica do grande mundo, via tudo côr de roza e azul, e então seria talvez facil, não perdendo sequer um instante, impressional-a com seductoras palavras, levando-a a acquiescer aos desejados fins. O arbusto ainda tenro dobra-se com extrema facilidade, depois da haste engrossar é mais difficil a operação.

O abutre começou de pairar por sobre a pomba inoffensiva. Houve, porém, um grave obstaculo, que o impediu de empolgar a innocente preza: foi a inesperada declaração de casamento feita pelo conde de S. Francisco.

Matheus da Silveira indignou-se asperamente de si para comsigo, mas viu, com grande pesar proprio, que era impossivel luctar, porque fôra atacado de improviso, antes de ter preparado o terreno e delineado a acção. Dirigiu ainda algumas balas de guerrilha á formosa filha do conde, mas a fortaleza era inexpugnavel, como observámos nas corridas do Campo Grande.

Revoltou-se a vaidade do heroe. Um criminoso pensamento o assaltou:

-- Já que não poude ser minha esposa, não poderá ser minha amante?... Será bom não perder tudo. A vingança é a consolação dos despeitados!

O miseravel chamava vingança ao que será ainda pouco chamar-se-lhe infamia!

Seguindo tão criminoso fito, começou de tactear o terreno, espreitando todas as occasiões favoraveis para o conseguimento do seu condemnavel empenho.

A condessa Julia por muito tempo foi estranha áquella mina da deshonra; afinal, reparou no traiçoeiro arrojo, e toda a sua innocentes inceridade se transformou em justa indignação. Vimos como ella se portou no theatro de S. Carlos.

O leitor certamente ficou conhecendo por estes rapidos traços a índole e viver do famigerado Matheus da Silveira.

O miseravel cynico farejava constantemente tudo que podesse servir-lhe para auxiliar as suas condemnaveis intenções. O delirio do conde Jorge, na ceia que tivera logar depois da representação do Fausto, foi para elle um raio de luz. O fidalgo, no meio da allucinação produzida pelo alcool, deixára escapar por entre suspiros um nome de mulher, trahindo as mais pungentes saudades, e deixando transluzir o desgosto mais acerbo, desgosto que se associára estreitamente com o desespero.

No dia seguinte, o seu primeiro cuidado foi procurar a todo o trance algumas informações que lhe podessem servir de guia.

Custa a crêr, mas parece que ha uma estrella que protege as más acções. No fim de tudo, assim deve de ser, porque os actos meritorios, esses pedacinhos de coração que, de quando em quando, se derramam pela humanidade, teem em si proprios o impulso e a protecção.

Matheus da Silveira, como habil perito na especialidade, em breve desdobrou as sombras do mysterio. Comprou um lacaio do marquez do Açude, e por elle soube do que se passára entre o fidalgo e o honrado Raymundo de Almeida. Estava descoberta a pista. Farejou, farejou, e por fim cantou victoria.

O infame sorriu com um sorriso selvagem. Ou muito confiava em si, ou a voluptuosidade chega a embriagar; o certo é que de antemão se embalava com as mais risonhas esperanças. Afigurou-se-lhe asado o ensejo, e o terreno de facil cultura.

Ha occasiões em que uma tentativa se póde tomar á conta de certeza. É o segredo dos grandes homens, e Matheus da Silveira era um ente superior na especialidade. Tinha por si um grande auxiliar: o cynismo.

Depois de fazer a sua colheita de informações, depois de saber que Adriana era a victima que chorava, vestiu-se com o maior primor, armou-se de elegancia, como o guerreiro se armaria de ferro, e encaminhou-se para o palacio do conde do Pinhal Viçoso.

V

Semente da seducção

D. Jorge de Mascarenhas, depois da delirante ceia que lhe trahira o seu segredo, segredo que bastante desejara occultar, foi conduzido a casa pelos seus amigos. Como não estivesse habituado áquelles excessos de bebida, sentiu um maudito quebramento de forças, que o obrigou a recolher-se ao leito. Ali jazeu tres dias, e, assim tão só, todo se entregou em recopilar o passado, e analysar o presente. D'aquelle meditar sabia sempre com o coração escorrendo sangue. A lembrança de Adriana não se lhe varria da mente. Que de saudades! que acerba amargura! que desespero!

Ao erguer-se do leito, ainda combalido, physica e moralmente, resolveu ir passar alguns dias ao campo, com a esperança de lá encontrar linitivo e conforto.

Deu-se então uma circumstancia, que devia causar alguma estranheza. Julia não se offereceu para o acompanhar, como lhe cumpria na qualidade de esposa, e, demais a mais, esposa de alguns dias.

O pobre conde não reflectiu no caso, nem mostrou descontentamento, antes estimou.

O motivo da quasi indifferença da filha do conde de S. Francisco foi o seguinte: Nos dias subsequentes áquelle em que Jorge de Mascarenhas fôra accommettido d'um delirante accesso, diversos amigos se apressaram em saber noticias d’elle, incluindo-se no numero Matheus da Silveira.

A condessa tomou-lhe a visita, não sem alguma repugnancia, trocando-se entre elles o seguinte dialogo:

-- Então v. s.ª estava presente quando o conde teve o ataque? perguntou ella.

-- Estava, sim, minha senhora, e bastante me surprehendeu. O delirio do conde causou verdadeira impressão.

-- Jorge delirou?

-- E bem extravagante foi o assumpto da vertigem.

-- Extravagante! queira explicar-se, sr. Matheus da Silveira.

-- Explicar-me, senhora condessa... confesso sinceramente que não sei que lhe dizer...

Notava-se nas palavras do elegante uma calculada ironia, ao passo que um sorriso, ao mesmo tempo zombeteiro e mysterioso, se lhe desenhava nos labios.

Julia começava de inquietar-se. O expressar enigmatico d’aquelle homem impressionava-a, a seu pesar.

Nada ha mais facil do que despertar a curiosidade d'uma mulher, principalmente quando se abriga sob as azas da mocidade.

O alvo de Matheus da Silveira de certo o leitor terá já descoberto. Ia preparando o terreno da infamia. Estes miseraveis que assim a sangue frio -- permittam-me por este vez o gallicismo -- vão abrindo brecha no edificio da honra, mereciam um correctivo singular.

-- Então, sr. Matheus da Silveira, parece embaraçado... o que ha n’isto que mereça uma reticencia, uma duvida, um escrupulo?

-- Quem sabe, minha senhora.

-- Quem sabe! Falle, senhor, está-me acirrando a impaciencia.

-- V. Ex.ª colloca-me n’uma triste e difficil posição.

-- Como?

-- Vejo-me entre a necessidade de ser menos franco e verdadeiro para com uma senhora que muito respeito e aprecio, e o máu passo de trahir um amigo.

-- Falla em traição! Então Jorge disse alguma coisa que eu não devo saber?

Matheus da Silveira conservou-se silencioso. Como que para disfarçar, brincava com um boneco chinez que estava sobre a jardineira.

-Obstina-se em não me responder?... insistiu a condessa, colorindo-se-lhe as faces e animando-se-lhe o verbo.

O interrogado envolveu-se ainda no falso habito da dissimulação, e disse com a maior naturalidade de que poude dispor:

-- É do Japão este interessante boneco?

-- Não me fuja, sr. Silveira, tornou Julia mais e mais impaciente. Se alguma coisa valho a seus olhos, se lhe mereço alguma estima e consideração, satisfaça esta curiosidade que me crucia.

-- Mas, minha senhora... replicou o infame, fingindo-se cada vez mais embaraçado.

-- Falle, senão quer que de si forme um bem desagradavel conceito. Evite-me uma palavra que, mesmo sem querer, quasi me salta dos labios.

-- Que palavra, senhora condessa?

-- A de -- calumniador!

-- Oh! é demasiado. V. ex.ª acaba de ferir-me, e é excitado pela dòr que vou fallar. O meu rebuço assentava nos escrupulos de querer patentear o que é um verdadeiro desengano para v. ex.ª. Em vista, porém, do repto que me dirigiu, não posso ficar silencioso. Demais, o que hoje vae saber pela minha bocca, de certo não poderia evitar amanhã.

-- Esta indecisão é um supplicio! exclamou a pobre senhora.

-- Saiba, pois, v. ex.ª, que Jorge, no meio do delirio que o assaltou, provindo da embriaguez, que buscára para afogar os pensamentos que o opprimiam, soltou algumas palavras, que a todos surprehenderam, e que são um verdadeiro desengano para a senhora condessa.

-- Um desengano!

-- A vertigem do conde tinha um mote, e esse mote era uma mulher.

-- Uma mulher! repetiu a condessa com uma estranha viveza no olhar.

-- Hoje de tudo estou orientado. Jorge, ao unir-se a v. ex.ª, trazia vazio o peito, porque depozera o coração no regaço d’uma mulher que o idolatrava, e que hoje quasi que não tem olhos para chorar, lagrimas para verter! Jorge não póde esquecer essa mulher, porque n’ella concentrára todo o seu phantasiar de delicias, porque com ella creára um mundo a seu modo; por isso, hoje só trilha espinhos, só saudades lhe apparecem.

A desventurada condessa estava como que assombrada. Tal revelação foi um rasgar de illusões. Mal podia admittir o que lhe diziam. D'um só golpe lhe abriram duas chagas: uma no coração, outra na vaidade, que é talvez a mais susceptivel de gangrena.

-- Deveras a lastimo, senhora condessa, continuou Matheus da Silveira, ganhando terreno. V. ex.ª deslumbrante de formosura, opulenta de encantos, cheia de vida e mocidade, vêr-se a braços com uma tão espinhosa desillusão! Viuva de affectos, quando merecia um throno de amor! E ao passo que sentir a seu lado um homem de gelo, talvez que algures algum desgraçado, por causa de v. ex.ª, se revolva nas mais ardentes chammas! Ser assim despresada, quando basta um olhar de v. ex.ª para mil corações se prostrarem rendidos. Talvez que bem perto haja muito amor...

-- Senhor!... interrompeu a condessa com firmes taços de dignidade.

Matheus da Silveira não desanimou. De antemão previra a lucta, bem natural no primeiro momento. De ha muito que estudára e ensaiára o seu papel de verdadeiro conquistador.

-- Embora v. ex.ª me fulmine com a sua colera, proseguiu o cynico, dando á voz uma entoação melliflua, hei de exprimir tudo que sinto. Ha bem tempo já que este amor me inflammava o peito. As conveniencias , a fatalidade tambem, solapavam o fogo, mas afinal foi minando, minando, creando novas forças, a labareda appareceu, e hoje rebenta o vulcão!

-- Estou realmente pasmada de tão gran de ousadia! exclamou a condessa com um despeito crescente.

-- É porque é esta a primeira vez que v. ex.ª escuta palavras de tão sincero affecto. Ainda ninguém a soube apreciar, quando bem merecia, pela sua rara formosura, o mais reverente culto! Deve de ser triste soffrer as ferroadas do despreso, quando tudo é mocidade e luz, quando a alma suspira por amor! Os vinte annos não volvem. É um crime não colher todas as flores que elles nos apresentam!

A condessa, diga-se em abono da sua dignidade, nem escutava Matheus da Silveira, embebida como estava no mais cruel cogitar.

-- Senhora condessa, continuou o heroe, lembre-se que a sua vaidade está sendo atrozmente calcada aos pés. Desprese os estultos preceitos da sociedade, e acceite o coração de quem só terá hymnos para a louvar. Conceda-me ao menos uma esperança!

Julia pareceu despertar. As faces, que haviam assumido a alvura do jaspe, coloriram-se com a purpura da indignação. Desejára confundir o miserável, que assim abusava da benevola recepção que lhe faziam, dirigindo-lhe-algumas palavras vehementes, mas poude conter-se, depois de breve esforço, dizendo, todavia, com uma imponente intimativa na voz e no gesto:

-- Basta. Nem forças tenho para lhe responder. Merecia uma violenta apostrophe. Direi tudo numa palavra: saia!

Havia tal imperio n’aquella intimação, tão firme foi o gesto de Julia, tão fulminante o olhar, que Matheus da Silveira, o infame que tanto abusava do homem que lhe estendia a mão e chamava amigo, pegou silenciosamente no chapéu, e sahiu da sala, curvando a cabeça, talvez mais pela confusão, do que pela delicadeza de comprimento.

A condessa, apenas ficou só, abriu o dique a uma torrente de lagrimas, que por vaidade represára.

-- Assim se martyrisa a innocencia, meu Deus!... exclamou a infeliz.

De logo se patenteou todo o horrivel da sua situação. No primeiro impeto, assaltou-a a idéa do se dirigir a seu marido, e stigmatisar-lhe o procedimento; veiu, porém, a reflexão, sempre de companhia com a vaidade, e estacou. Pedir contas seria descer, seria quasi rogar amor, e de sobra era altiva, e demasiado sabia apreciar-se para estender a mão a um affecto.

Jorge foi pois para Cintra, acompanhado tão somente por alguns criados, entre os quaes se via, e sempre na vã-guarda, a sr.ª Engracia das Dores, que de certo o leitor ainda não esqueceu.

O dia do casamento de D. Jorge foi para a boa mulher de verdadeiro alvoroço. Não havia santo a que não rendesse graças, nem santa a que não encommendasse o seu menino. Era um despenhar de jubilosas palavras, entremeado d’um Padre Nosso ou d'uma Ave Maria. No fim de tudo, era a muita affeição, que nem sabia como patentear-se.

Imagine-se, pois, quanto a pobre velhinha soffria observando a tristeza do seu menino, e depois, para cumulo de desgosto, vel-o a braços com a doença? Não consentiu que o conde partisse sem que a levasse.

Estes predominios da amisade de cabellos brancos não são raros. E bem merecem ser attendidos.

D. Jorge illudira-se; julgara encontrar no campo uma vaga consolação, e só deparou com um aguçar de saudades. A natureza, despida das suas galas, envolvia-o n'uma profunda tristeza. Aquella melancolia do inverno, tão suave ás dores limitadas, era atroz para elle, que sentia n’alma um mar de desalento.

Tem-nos esquecido dizer que o altivo marquez do Açude, apenas viu cumpridos os seus desejos, impressionado ainda pela scena desastrosa que tivera logar em sua casa com o desventurado militar, e receando que occorresse algum accidente pouco para apreciar, pretextou não sei que nogocio no estrangeiro, e partiu para França.

Uma viva inquietação o dominava de continuo. Atormentavam-n’o as vigilias, e o dormir era agitado. Os remorsos começavam de feril-o vagamente. A elles é que se não foge. São nomadas, não teem terra fixa, apparecem em toda a parte.

O marquez não estava arrependido do passo que dera; comtudo, não podia subtrahir-se áquelle desassocego roedor. Travara-se-lhe no intimo uma grave lucta entre a duvida futura e a presente realidade. E mau é luctar! As pugnas do espirito ainda são mais para temer, porque ferem o corpo e a alma.

O quadro que tentamos esboçar vae-se cobrindo de luto. Até onde chegará o crepe?

VI

Patenteiam-se as dores

O conde do Pinhal Viçoso, não podendo supportar o muito que soffria no isolamento do campo, voltou para a capital, esperançado em encontrar na agitação da cidade um como que atordoamento de sentidos.

Ha uma circumstancia que cumpre não

deixar passar desapercebida: o genio do conde ia-se modificando, ou antes alterando.

Jorge fôra sempre d’uma pronunciada bonhomia e invariavel agradabilidade; agora ia-se tornando sacudido, impertinente, e até um tanto rispido.

Ha desgostos que esmagam, outros que aguilhoam; se aquelles prostram, estes impellem. Jorge ia passando por terrivel cambiante.

Apenas chegou a Lisboa, não faltaram visitas, o que deveras o incommodava, por tal forma, que muitas vezes respondia com uma visagem de enfado ás mil perguntas que lhe dirigiam. Tal procedimento causava a maior estranhesa, porque Jorge era tido na conta do cavalheiro mais completo.

A condessa via-se n’uma difficil posição, desde que soubera, pela bocca de Matheus da Silveira, o passado amoroso do conde, passado que se ligava ao presente por um rasto de sangue. Nem se podia illudir, porque Jorge não disfarçava um mal-estar permanente, uma tristeza de todas as horas. E a pobre creança amava-o, porque ao apresentarem-lhe o conde tinha o coração ainda virgem. Que fazer, porém? Ha situações bem tristes.

Julia, impellida por um palpitar intimo, e como que desejando esclarecer o que tanto a preoccupava, dirigiu-se ao gabinete de Jorge.

O conde estava sentado á secretaria, e fixava as folhas d’um livro aberto. Dizemos fixar, e não ler, porque, de facto, não attentava na significação dos diversos caracteres.

-- Venho saber se está melhor, conde, disse Julia com uma certa timidez.

Jorge sobresaltou-se ao ouvir aquella voz melliflua.

-- Agradecido pelo seu cuidado, condessa. Estou melhor, respondeu o pobre moço offerecendo uma cadeira a sua esposa.

Ambos estavam sobre brazas. Realmente, doe o coração ver assim a mocidade, tão cheia de vida e brilhante, com um veu de gelo a interceptar-lhe as scintillas d’alma. Havia um coração virgem a querer estreitar-se a outro coração; mas se o não encontrava!

-- Penalisa-me deveras vel-o soffrer... replicou Julia, faltando-lhe a diplomacia necessaria para entrar no assumpto que era todo o seu fito.

-- Mais uma vez agradecido... disse o conde.

Novo silencio. Julia precisava desabafar. Encheu-se de coragem, e perguntou com voz firme, fitando Jorge ao mesmo tempo sem pestanejar:

-- Não suppõe o que motivasse o seu soffrimento, conde?

Jorge não poude supportar aquelle olhar penetrante.

-- Não supponho... respondeu com accentuação mal segura.

-- Reflicta bem, sonde os factos, compulse as circumstancias, relanceie um olhar para o passado. Que pensa e o que vê? Pensa n’uma mulher, e vê... ainda a mesma mulher!...

O que quer que foi bem estranho se passou em Jorge. Como que se lhe transfigurou o rosto. Levantou-se com impelo, parecendo faiscar-lhe o olhar.

-- E é a senhora que vem fallar-eo do passado! exclamou o triste com um visivel desespero; a senhora, que me assassina o presente e me destroe o futuro! a senhora, que faz verter lagrimas de sangue a uma infeliz que se fina pela desesperança! Sonhara com ella um viver todo amor, e eis-nos para sempre desunidos, restando-nos, apenas, a saudade que mata! Duas almas que deviam tornar-se uma, somem-se a pedaços no pelago do desespero! Os risos são soluços, os canticos do coração suspiros de indizível dôr! Que é das rosas? onde os gorgeios? sómente cardos, e o uivar que fere os ouvidos. Quem desmantelou tantos encantos? a senhora; quem cortou pela raiz a mimosa planta que vegetava louçã ao sopro d’um trocado affecto? a senhora; quem é o espectro vivo da minha desventura? a senhora, sempre a senhora!...

E Jorge cahiu prostrado na cadeira.

Imagine-se o que a condessa sentiria ao ouvir taes palavras. Ser accusada, tornarem-n'a responsavel d'uma desgraça em que tinha tão grande quinhão! No verdor da vida, rica de tudo que uma mulher póde ambicionar, e ver-se ligada com os indestructiveis laços do matrimonio a um homem cujo pensamento estava sempre longe do lar, a um homem para quem era dor e não encanto! Era victima, e ainda ousavam apontal-a como algoz!

Sentiu-se profundamente indignada. As faces vacillavam-lhe a espaços entre a pallidez e o afogueado da colera. Despertou-se-lhe todo o orgulho, incendiou-se-lhe toda a vaidade.

-- Estou deveras maravilhada! disse ella com debil tremura na voz. Mal posso acreditar no que ouvi! Atreve-se a accusar-me, quando de joelhos devera pedir-me perdão! O senhor veio cortar sem dó uma planta que promettia muitas flores! Atreve-se a accusar-me, quando sou eu que devo pedir-lhe estreitas contas! Que fez e o que faz da minha mocidade, das minhas aspirações, dos meus anhelos, do meu futuro, do meu coração? Tudo destroe, tudo esmaga! Como quer que eu, cheia de vida e juventude, supporte o galvanismo d’um cadaver?

Jorge ergueu a fronte pallida, e exclamou:

-- O’ meu pae, meu pae!

-- Pois não se lhe enfraqueceu o animo no momento de lançar as garras á innocente que se lhe entregava despreoccupada de alheios affectos, e prompta a dar-lhe o muito coração que possuia? Que ha de agora ser de mim? Que viver póde ser o nosso, em presença de tão atroz desillusão? Como me hei de habituar á idéa de que meu marido ama outra mulher com um amor que o faz delirar? como hei de sugeitar-me a ser para o senhor apenas um objecto importuno, quando devera ser -- para muitos o seria -- o alvo dos mais vivos sentimentos? Que enorme barreira nos separa! O’ meu Deus, que mal vos fiz para me dardes tão grande castigo!...

E a infeliz prorompeu em doloroso choro.

Aquellas lagrimas causavam profunda impressão no desventurado conde. Olhou commovido para a triste que se debulhava em pranto, e de subito reconheceu que era tambem uma desgraçada victima.

-- Perdão! exclamou elle. Fui injusto e severo nas palavras que ha pouco expressei. É o soffrimento que me transtorna a rasão. Meu pae é o culpado de todas estas dores. Maldita altivez! Um dia dará contas do triplo assassinio que commetteu!

-- Seu pae!... exclamou a condessa com uma vivacidade febril. Porque não resistiu? porque não fez valer os seus direitos? porque, em ultimo caso, me não confessou tudo? Julga que eu acceitaria a mão d’um homem cujo coração já fôra offerecido a outra mulher?... O senhor foi um covarde e um infame!...

E a condessa, com as lagrimas a saltarem-lhe dos olhos, e a febre a atormentar-lhe o cerebro, sahiu precipitadamente do gabinete.

Jorge ficou immovel, estatico, supportando a custo o peso de tão violentas palavras. Por alguns instantes conservou o olhar fixo na porta que dera sahida á condessa. Depois, fazendo um movimento rapido, exclamou:

-- Sim, um covarde e um infame!...

Pegou convulsivamente n'uma campainha, e agitou-a, pôde dizer-se com furia.

Immediatamente appareceu um criado.

-- Depressa, traze-me cognac! gritou o desventurado conde.

VII

Mais um passo no abysmo

O soffrimento de D. Jorge não se debilitava. Assim como ha organisações de argila, ha outras de granito. A do conde era assim. O alvo do seu pensar era sempre o mesmo.

A imagem de Adriana, toda orvalhada de lagrimas, perseguia-o de continuo. Não podendo supportar a vista d’esse como que espectro de eternas saudades, diligenciava embrutecer-se -- é o termo -- nas orgias mais estrondosas.

Todos contemplavam com verdadeiro pasmo aquelle delirio, tanto para estranhar em quem sempre se distinguira pela morigeração.

O infeliz conde lançara-se no tormentoso oceano. Cumpria ir na onda. Açoitado pela resaca, abalroando com os cachopos, perdia em cada hora porções e porções da saude de ferro que d'antes gosava. Um constante pallor lhe cobria as faces macilentas, outr'ora rosadas e brilhantes. Era o rasto tremendo do desregramento e da muita dôr. Entregava-se á bebida d'uma maneira horrivel. Esgotava o primeiro copo na esperança de lá no fundo encontrar o esquecimento; porém, ai d’elle! não lograva o seu intento; parece até que se lhe avivava o soffrer. Então bebia mais, mais, bebia sempre, e a memoria a apurar-se-lhe, e as saudades a crescerem, e, por fim, o desespero a dominal-o. Era lastimoso. Era horrivel!

Ninguem tinha poder para impedir aquella torrente desastrosa. A avalanche tudo avassallava.

Não tinha o menor escrupulo de entrar na taberna mais immunda, e juntar-se com a escoria mais vil da sociedade. Queria que todos bebessem, não pedindo, mas impondo, o que dera logar a alguns desaguisados, que, felizmente, não tinham tido funestas consequencias, por conhecerem o estado do conde. N'essas oceasiões tornava-se em extremo expansivo, e de cada maltrapilho fazia um amigo.

Ás vezes, excitado pela ardencia da bebida, praticava verdadeiras loucuras, que attrahiam o despreso de uns e a compaixão de outros.

Os rapazes, em o vendo n’aquelle estado de febre, não mais o deixavam, porque o desventurado conde costumava arremeçar para a rua todo o dinheiro que trazia.

Imagine-se o desespero do pobre Jorge, quando, no dia seguinte, meio desperto da embriaguez da vespera, se lembrava vagamente das scenas vergonhosas que praticára! Jurava de si para comsigo emendar-se; mas lá vinha a noite, com ella maior tristeza, e o anceio immoderado do esquecimento. Um instante de febre, e de novo se engolphava no horrivel abysmo. Um poder occulto o dominava. Era a desgraça.

Ha uma ribanceria terrivel e ingreme que vae dar á desgraça. Dado o primeiro passo, o infeliz torna-se pella, e raro e difficilmente se lhe póde embargar a veloz carreira. Chegando ao sopé, o desfortunado envolve-se n’um circulo de ferro, embrenha-se n'um labyrintho tremendo, e muitas vezes, quasi sempre, baldam-se-lhe todos os esforços de liberdade, porque o prostra a fadiga antes do conseguimento dos seus afincados desejos.

Os amigos iam minguando ao conde, porque as vergonhas eram continuadas, e porque se viam obrigados a soffrer resignadamente muitas offensas provindas do alcool, mas que pesavam.

Jorge principiava a ter por unicos companheiros esses sevandijas de botequim, verdadeiros sanguesugas dos incautos, ou dos desvairados. Um d'elles, para levar a infamia ao ultimo grau, induziu o conde a acompanhal-o a uma casa de jogo, exaltando quanto poude, com a sua eloquencia de espelunca, as delicias d'aquelle divertimento. Como era muito rapaz, havia profundado em parte os designios de Jorge, ao envolver-se em qualquer orgia; por isso, feriu-o na corda sensivel; fallou-lhe do muito interesse que despertavam as cartas, interesse tão forte, que tudo se esquecia! Foi o bastante para o desfortunado conde correr pressuroso para junto do patíbulo dos ambiciosos.

Mais um passo para a voragem!

A tal casa de jogo, açougue de muitas victimas, podia comparar-se á flôr de attrahente apparencia, que esconde no calix um insecto venenoso. As exterioridades eram magnificas. Batia-se á porta, e apparecia um criado, decentemente vestido, a indagar o que pretendiam; então, se era alguma visita da casa, franqueava-se immediatainente o ingresso.

Entrava-se para uma sala, luxuosamente mobilada, onde estavam algumas senhoras de agradavel aspecto, e trajando brilhantes galas. Dissera-se uma apreciavel reunião de familias. Tocava-se piano, dansava-se, borboleteava-se alegremente em conversa, como é proprio entre damas e cavalheiros.

Era tudo uma preparada mystificação. Em linguagem de theatro chama se aquillo metter bem em scena.

Eram as serêas que attrahiam os incautos. E quantos navegadores seguiam aquella ficticia harmonia, que os levava a desastrosos baixios!

O conde foi apresentado á festiva assembléa, não podendo dissimular uma certa surpresa.

-- O senhor enganou-me, ou enganou-se, disse elle ao amigo que o conduzira.

-- Enganei-o!

-- De certo. Não me convidou para ir a uma casa de jogo?

-- Convidei, respondeu o amigo com um significativo sorriso.

-- Mas então... replicou Jorge relanceando um olhar em redor.

-- Então... aqui também se joga. Queira seguir-me.

Passaram a uma outra sala interior, frouxamente illuminada, aonde se ouviam algumas vozes, e um alternado telintar de dinheiro. O conde não poude reprimir um leve estremecimento.

No fim da casa havia uma porta. O amigo fez mover um puchador de metal, e a porta abriu-se.

-- Póde entrar, disse elle ao conde, sempre com um enganador sorriso nos labios.

Jorge ficou como que offuscado á vista de tanta luz, que as nuvens de fumo dos charutos rodeavam d'um ciclo baço.

Era uma sala medianamente espaçosa, e mais larga do que comprida. No centro da casa havia uma banca, coberta com um panno verde, e rodeada de muitos homens, cujos semblantes nada tinham de uniformes, antes variavam entre a alegria e o desespero.

A meio da mesa estava um homem com um baralho de cartas na mão, e com um monte de oiro e prata na frente. Era o banqueiro.

Era tal a preoccupação e o interesse dos jogadores, que nenhum attentou na entrada do conde.

Jorge estacou junto á porta. Aquelle espectaculo era inteiramente novo para elle, porque, como já dissemos, fôra sempre moderado nos seus costumes, não dando um passo, sequer, por errado caminho.

A espaços, quando a carta vinha decidir a sorte ou o azar, levantava-se um vozear descompassado, mescla perfeita de raiva e alegria. Esturgia uma risada, praguejava-se uma invectiva, erguiam-se blasfemias atrozes, e depois, como por encanto, tornava a restabelecer-se o silencio, para mais tarde recomeçar a confusão, e sempre assim.

O conde contemplava com pronunciado espanto aquelle quadro de variegado aspecto, quando se levantou da banca um dos jogadores e se lhe dirigiu apressado.

Era Alfredo da Cunha, o estudante vivaz, com quem travamos conhecimento na ceia delirante que se seguiu á primeira representação do Fausto.

-- Que vens aqui fazer? perguntou elle ao conde.

-- Venho jogar, respondeu o fidalgo.

-- Estás louco! exclamou o estudante. Jogar! tu, que sempre tens sido um vivo exemplo de bons costumes, que conservas immaculada a alma, queres assim estabelecer-te na séde de todos os males, queres chegar ao centro d’onde partem todos os raios que vão dar ás maiores baixezas!... Vae-te embora, não te demores aqui nem mais um instante, que esta athmosphera escalda!

-- E tu, não receias asfixiar-te? replicou Jorge, sorrindo.

-- Eu é outra coisa. A minha posição ainda não está definida, não passo d’um estudante. E depois estou couraçado para todos os perigos, ou antes sou invulneravel. Para mim um prazer vale tanto como outro. Entro no mar dos vicios, mas saio sempre enxuto. As epidemias não me ferem. E, no fim de tudo, sou um bom rapaz, não é verdade, Jorge?

O conde apertou a mão do sympatico estudante.

-- Vamos lá, sr. fidalgo, tornou o rapazote, dê-me o braço e saiamos d’esta casa.

-- Porém...

-- Deita para a banda os poréns, e deixa-te guiar pela cabeça d'um doido, que ás vezes não é das menos ajuizadas.

-- Talvez tenhas rasão; porém, jogar uma vez que mal faz?

-- Uma vez! Tu já viste parar a maré no seu fluxo ou refluxo? Já viste suspender-se o raio quando fende o espaço? De certo que não; pois isto de jogo é o mesmo que a maré e o raio. Olha, eu proprio, meio indifferente por tudo, conheço que as malditas das cartas são para mim uma quasi necessidade. E, torno a repetir, o meu caso é muito differente do teu. Como sabes, não tenho familia em Lisboa. Os meus pobres velhotes lá se conservam pela provincia, e antes assim. Succedia muitas vezes ver-me sósinho; atraiçoado pelas amantes, enganado pelos amigos, precisava d'alguma coisa onde fixar os sentidos. Recorri ao jogo.

-- Então o jogo encerra um poder tão forte que tudo nos faz esquecer? perguntou Jorge com uma vivacidade febril.

-- Tudo, até mesmo a honra.

-- O olvido... um completo alheamento... Quero ser jogador! exclamou o conde.

-- Endoideceste! Anda, vamo-nos embora.

-- Mas é que tu não sabes como eu soffro, não sabes que necessito esquecer a realidade da minha vida! As cartas concentram-nos o pensamento? Quero jogar... deixa-me jogar! -- Meus senhores, jogo... eu tambem jogo... Senhor banqueiro, conte commigo!

E o infeliz conde, um tanto allucinado, correu para a mesa do jogo. Alfredo da Cunha não conseguiu detel-o.

Foi então que repararam no filho do marquez do Açude. Alguns reconheceram-n’o, e, por deferencia, offereceram-lhe um logar.

Jorge começou por atirar um punhado de libras para a primeira carta que viu. Alfredo diligenciava retiral-o d'ali, mas o conde não o attendia, e o estudante não queria fazer escandalo, nem reprehender o seu amigo como se fôra uma creança.

Jorge continuou a jogar, sem calculo nem freio, perdendo quasi sempre.

A sua desgraça foi perder. Se a sorte o favorecesse, daria pouco apreço áquelle ruinoso passatempo. Não era de oiro que precisava.

A febre do jogo foi-o empolgando pouco a pouco. Succediam-se as paradas, redobrando sempre de valia. Afinal, acabou-se-lhe o dinheiro; não foi, porém, um obstaculo: o banqueiro mostrou-se generoso, acceitando a simples palavra do conde.

Alfredo continuava em voz baixa com as suas instancias, roas sempre sem resultado favoravel.

Jorge só se ergueu quando a partida terminou. Perdera uma somma consideravel.

-- Amanhã satisfarei o que devo, disse elle ao banqueiro.

-- Essa é boa, senhor conde, objectou o carrasco das bolsas; v. ex.ª tem sempre um credito aberto, e sem cifra marcada.

Alfredo da Cunha deu o braço ao conde, e só então conseguiu afastal-o d'aquella casa de perdição.

-- Venho maravilhado! exclamou D. Jorge de Mascarenhas.

-- Porque? perguntou com uma certa tristeza o estudante.

-- Porque o jogo, de que dizes tanto mal, teve o sublime condão de me obrigar a fixar os sentidos. Muitas vezes não me succede outro tanto com o alcohol. Bebo, bebo, para esquecer o que muito me atormenta, mas não consigo o meu desejo, e até por vezes me sinto mais triste e desesperado! Ó jogo quanto és apreciavel! Aquelles homens ganharam-me hoje, mas ámanhã eu tirarei a desforra! Hão de perder, e então gozarei com o vel-os desesperados!

A este tempo tinham chegado proximo da igreja dos Martyres. O conde dirigiu-se para o Café Central. Alfredo da Cunha viu-se forçado a acompanhal-o. Sentaram-se a uma mesa, e Jorge disse ao moço que lhe trouxesse cognac.

-- Ouve cá, Jorge, disse o estudante em tom serio e com uns longes de tristeza, para que te entregas a tão prejudiciaes excessos? que desgosto te amargura, que tudo te faz olvidar?

-- Que desgosto!... exclamou o conde, soltando ao mesmo tempo uma gargalhada medonha.

-- Bem sei que não tenho direito de profundar os teus segredos; sou uma creança, um doido, não mereço que me tomem ao serio; sem embargo, a creança, o doido, tem um coração sem macula, o que é já alguma coisa. Dize-me o que te faz soffrer, porque, quem sabe? talvez que eu te linitive a dôr.

-- Não, meu amigo, não podes valer-me, porque o meu mal é sem remedio.

Jorge contou então a Alfredo a historia dos seus infelizes amores, intervallando as palavras com repetidos calices de cognac.

Aquella narração rasgava-lhe a alma; porém, essas dôres quasi que lhe compraziam por provirem de Adriana.

Alfredo da Cunha tentou consolar o seu amigo, apesar de bem conhecer, de si para comsigo, que nada podia fazer para abalar aquelle doloroso proposito.

Jorge, depois de bastante fatigado pelo muito que fallara de Adriana, e começando tambem o alcohol de pesar-lhe, cruzou os braços sobre a mesa e apoiou-lhe a cabeça escandecida.

O infeliz ali adormeceu. Felizmente, tinha ao lado um amigo.

VIII

Desmaio da pureza

Quando a fatalidade começa de perseguir qualquer, apresenta-se sob todas as fôrmas, fere com todas as armas. Ha como que um declive para a desgraça.

O conde Jorge, impellido pela dôr que lhe ia n’alma, entregava-se, como o leitor tem observado, ás mais desordenadas paixões. Para aquella torreote de errados passos talvez Alfredo da Cunha podesse servir de dique, porque era um nobre coração, e havia de esforçar-se, quanto possivel, para desviar o conde d’aquella senda desastrosa; porém, para a fatalidade não dar uma só trégua, Alfredo recebeu, no dia seguinte ao escutar a triste narração do seu amigo, uma carta da familia, que vivia na provincia, carta em que lhe participavam que seu pae estava gravemente enfermo, talvez a braços com a eternidade, e que, portanto, cumpria que fosse quanto antes para junto d’elle.

O pobre estudante ficou deveras penalisado, não só pela noticia da doença de seu pae, como por não poder prestar ao amigo o auxilio de que tanto carecia.

O dever dizia-lhe que partisse, e partiu. Foi mais uma fatalidade para Jorge.

O conde, apenas chegou a noite, veiu-lhe á idéa a casa de jogo. -- «Não vou lá, disse entre si. Alfredo pediu-me tanto que não tornasse a jogar... Mas se as negregadas cartas me prendem os sentidos, que é todo o meu empenho! Que receia Alfredo? que eu perca? que me imporia o oiro! Como aquelles homens se animam, ou desesperam pela simples vista d'um carlão pintado! Ha febre em todos elles, e aquella febre é contagiosa. É como que uma onda que me envolve e arrasta tambem. Está decidido, vou jogar... Todavia, desejava fazer a vontade a Alfredo, que é um excellente rapaz... Mas não posso deixar de ir hoje para satisfazer o que hontem fiquei devendo... Sim, vou só esta noite, para que não formem de mim algum juizo temerario. É verdade que eu podia mandar...

Estava o conde assim luctando intellectualmente, quando o amigo da vespera veiu fazer pender a balança. Tornou a fallar-lhe no jogo, conseguindo, d'esta vez com menos custo, leval-o até á casa, que bem se pode chamar de perdição.

O conde jogou, e bastante forte, e novamente foi victima ou do azar, ou d’um preparado roubo. Perdeu uma enorme quantia. O capricho d'uma desforra enterrava-o cada vez mais.

Seguiram-se muitos dias, e Jorge não passava um só em que não jogasse, e com frenesi. Tornara-se-lhe um habito, mas um habito de fogo.

O jogo e a bebida cada vez mais o dominavam. Era um desespero de todas as horas. Como dissemos, os antigos amigos de Jorge, vendo-o engolphado n'aquelle desregramento vergonhoso, evitavam-n’o, e até quando o encontravam fingiam que o não viam. Isto não passava desapercebido ao desventurado conde, e era motivo para uma tremenda serie de improperios contra a sociedade. O infeliz só tinha por companheiros, embriagados e jogadores. É triste!

E o mundo é assim: quando vê um desgraçado a despenhar-se, a envolver-se no lodo, em vez de o suster, em vez de o levantar, mais o enterra com o seu despreso. Sempre o egoismo; tudo para os proprios, nada para os outros.

A condessa Julia muito soffria depois da desenganadora scena que tivera com seu marido. Chorava-lhe o coração, e encolerisava-se-lhe a vaidade. Tão nova, e sem um affecto! tão formosa, e sem ninguem que lhe apreciasse a belleza!

Instigada pela dôr, esteve para criminar seu pae do supplicio que lhe proporcionara, sob a forma casamento. De que servia, porém, fazer penar um innocente, que também fôra illudido? A condessa teve o bom senso de não soltar uma queixa ou uma recriminação junto de seu pae.

Matheus da Silveira, em todos os sitios que se encontrava com a condessa, empregava sempre os mais calculados esforços para conseguir uma infamia. Como vil seductor que era, bem conhecia o alcance de uma mulher despeitada e ferida no seu amor proprio pelo despreso do marido. Ia forjando os elos, na esperança de um dia ligar a cadêa.

A condessa sentia-se indignada pelo procedimento d’aquelle homem, que a sociedade recebia com agrado, apesar da fama de immoral que lhe andava adjunta. O mundo tem d’estes caprichos. Os tratantes são, em geral, duplamente acatados.

A filha do conde de S. Francisco lembrava-se muitas vezes de Matheus da Silveira, é verdade que desfavoravelmente, mas sempre lhe lembrava. Sem querer, perpassava-lhe pela mente a imagem d’aquelle homem. Queria fugir ao espectro, e não podia. Quanto mais forcejava varrer da imaginação aquélla figura repellente, mais se obstinava em perseguil-a. Era uma attracção diabolica.

O embaixador da Prussia abrira as suas salas, não para um baile esplendido, mas para um brilhante sarau.

Fôra convidada grande parte da melhor roda de Lisboa. O conde de Pinhal Viçoso não foi excluido da lista.

Jorge recebeu o convite, mas disse immediatamente que não ia. O desgraçado já se envergonhava de apparecer nos logares onde d’antes era tão querido e festejado. A abjecção ia-lhe pesando.

Apesar de Jorge não se utilizar do convite do embaixador, a condessa resolveu não faltar ao sarau. Foi. Dissera comsigo:

-- Ah! meu marido despreza-me, passa as noites nas orgias?... pois bem, d’aqui em diante deixarei o recolhimento a que me tenho entregado. Quero e heide divertir-me. Não quero cobrir de cinzas a mocidade, quando de direito só flores lhe competem. O conde recusa-se a acompanhar-me? irei sosinha.

O leitor de certo nos dispensará a descripção do sarau e das luxuosas toilettes que se apresentaram. Que importa, se um vestido é amarello ou azul, se tem rendas ou rufos? para encher papel é magnifico. Passemos, portanto, ao que tem intimo contacto com esta historia.

-- Diga-me, condessa, é verdade o que o outro dia ouvi em casa do conselheiro Abreu? perguntou Henriqueta de Sousa, esposa de um apreciado e intelligente capitão de engenheiros.

-- Que ouviu então a minha amiga? replicou Julia.

-- Que o conde estava inteiramente mudado, que já não era o cavalheiro que todos conhecemos, que hoje se entregava a uma vida desregrada, descurando inteiramente os deveres de marido?

Julia ficou silenciosa.

-- Ah! condessa, esse silencio é bastante expressivo! continuou a esposa do engenheiro. Realmente, custa a crer que o conde não aprecie quem de tantos dotes dispõe!

Julia sentiu subir-lhe ao rosto a vermelhidão do despeito; sem embargo, nem uma palavra replicou.

-- Pelo que vejo, não é feliz? perguntou ainda Henriqueta de Sousa, cada vez mais empenhada em obter uma resposta.

A condessa hesitou um momento, depois respondeu:

-- Não sou feliz.

-- Oro vamos, faça de mim a sua confidente, conte-me os seus desgostos. Quem sabe, talvez que eu lhe possa minorar o soffrimento.

-- De que lhe servem as minhas queixas? Que vantagem ha em rasgar mais a ferida?...

-- Ah! se meu marido me despresasse... disse a amiga de Julia, denunciando um condemnavel despeito.

-- O que fazia?

-- O que fazia?... Nem eu sei... despresava-o também. Mas não, o meu Carlos ama-me com todos as forças da sua alma. Não imagina, condessa, somos duas verdadeiras creanças. Se alguem nos observasse, ficariamos envergonhados.

-- São muito felizes? perguntou Julia com uma expressão de saudade.

-- Oh! muito! Ha já quatro annos que nos unimos, e parecemos ainda dois namorados. Carlos não volta para casa sem que me traga uma flor, mimo que eu retribuo, não sabe como? com um beijo muito sentido!

-- Esse viver de affecto deve de ser encantador, replicou Julia, mais e mais impressionada por aquelle faltar de amor e felicidade.

-- Oh! é um perfeito paraiso! O meu Carlos afadiga-se de continuo em me animar a existencia, e eu retribuo-lhe essas delicadezas de coração com todo o affecto da minha alma! Todos os meus pensamentos são para elle, assim como os seus me pertencem tambem. Oh! como eu me sinto feliz por amar e ser amada!

Aquellas justas expansões d’uma esposa digna eram um perfeito veneno. O odor das rosas é sublime, mas tambem póde asfixiar.

A condessa, ouvindo assim fallar com tanto enthusiasmo das delicias do lar, ella que se via despresada e sosinha, sentiu uma inexplicavel agitação, que era um mixto de inveja, de justa saudade e de vaidade revoltada. A cada scena de amor que Henriqueta de Sousa descrevia, Julia sentia uma nova impressão desagradavel. Satanaz, sempre de atalaia, fez com que ella n’aquelles curtos minutos tivesse tempo de confrontar o seu viver de isolamento e desamor, com a existencia engrinaldada da sua amiga. Viu em miragem o conde Jorge todo entregue a outra mulher, distrahindo-se apenas para, de quando em quando, lhe lançar uma violenta recriminação, que não merecia, porque era tambem immolada. Tudo isto lhe passou pela mente, como uma visão de fogo.

Ao mesmo tempo, quando Julia mais impressionada se sentia, quando vergava ao peso da sua desdita, quando lhe occorria uma como vaga e fatal idéa de vingança, appareceu satanaz incarnado.

Era Matheus da Silveira.

Parece que ha um deus que proteje os infames.

Julia, exarcerbada ao ultimo ponto, e sem mesmo ter a consciencia do que fazia, dirigiu-se ao officioso seductor:

-- Então não dansa, senhor Matheus da Silveira? disse ella.

-- Se v. ex.ª me quer honrar?... acudiu immediatamente o interrogado.

-- Porque não?... respondeu a condessa levantando-se quasi d’um salto.

E ambos se envolveram no turbilhão da walsa. E ambos voavam no vertiginoso galope para a morada da deshonra!

Havia nos labios de Matheus da Silveira um sorriso verdadeiramente satanico.

Mal sabia Henriqueta de Sousa que impedira para o abysmo uma infeliz! Quantas vezes o favo occulta o zangão, o rozal a vibora!...

Deus não fez nenhuma estrada real para a perdição; o mundo é que não descansou emquanto não abriu uns certos caminhos de travessia. Quem póde marcar um alvo? O acaso, sempre insaciavel caprichoso, protesta logo. Nascera Julia para a deshonra? Não. Foi victima do acaso.

IX

Apparição d'um anjo

E Adriana? Pobre martyr de amor, lá vaes arrastando a tua cruz, que é a vida entre dores e saudades. Rosa louçã de outr’ora, eis-te hoje pendida na haste, toda desbotada e já sem perfume!

A desventurada virgem tornara-se quasi diafana... Sulcava-lhe as faces pallidas, não o sello da caducidade, mas o vestigio do soffrimento, da desesperança. Ao vel-a, formosa e serena, dissera-se antes uma sombra do que um ser humano. Continuava sendo o esteio a que seu infeliz pae se amparava. A desfortunada menina via-se compellida a esconder nas dobras d'um sorriso forçado o que sentia de mais amargo, para não ferir mais fundo o honrado militar. Elle então cada vez mostrava maior necessidade da filha querida. Só o que ella fazia lhe agradava, só ella lhe adivinhava os desejos, quasi que não a podia ter longe de si um momento. Adriana fazia-lhe a vontade, tanto mais que era a sua unica prisão terrena.

Sem embargo, a pobre menina necessitava buscar algures conforto e animo para o devotado sacrificio a que se entregára. Era a religião, o paradeiro dos afflictos, que a robustecia na sua santa missão na terra.

Adriana ia frequentes vezes ao templo de Christo, implorar ao Altissimo que lhe désse resignação e coragem para supportar a corôa de espinhos que a macerava. Como, porém, seu pae não podia passar um momento sem a ver ao lado, fazia sempre as suas santas visitas pouco depois do romper da aurora, emquanto o velho militar gosava da quietação do somno, que é como que um breve interregno ás dores da vida.

Adriana fôra, como costumava, orar á igreja de S. Roque, acompanhada por uma antiga e dedicada serva.

Depois de dirigir ao Todo Poderoso a sua sentida prece, voltava pressurosa para casa, quando, ao atravessar a alameda de S. Pedro de Alcantara, deparou com um espectaculo que a gelou de commoção.

N’um dos bancos que ali ha, estava deitado um homem de fina apparencia, mas com o fato em completa desordem. Os cabellos do infeliz apresentavam o maior desalinho, e as faces rastejavam pelas d’um cadaver.

Era Jorge.

O pobre conde, conforme os seus ultimos e desesperados habitos lhe pediam, estivera até alta noite n’uma casa de jogo, onde perdera todo o dinheiro que levava, que não era pouco, porque n'aquelle dia, impellido pelo vicio, vendera umas poucas de inscripções. Além da perda satisfeita de prompto, ficára devendo tres contos de réis.

O desgraçado conheceu o ahysmo em que se ia engolphando, e soffreu bastante por não se sentir com forças para recuar.

Sahindo da casa do jogo, profundamente impressionado, proferiu uma invectiva violenta contra seu pae, tornando-o mais uma vez responsavel da desgraça, talvez abjecção, que o ia empolgando. D’ahi, necessitando afogair aquelle borbulhar amargo que o pungia, entrou na primeira taberna que viu aberta, o que não é difficil encontrar-se nas travessas do Bairro Alto.

Bebeu, e bebeu com furia. Na baiuca estavam uns poucos de miseraveis da mais infima escoria, os quaes, vendo no seu gremio um janota todo coxo, como elles dizem na sua linguagem asquerosa, começaram de dirigir-lhe algumas diatribes agudas, impregnadas de alcool. Os apodos foram crescendo, e o conde, acirrado pela excitação que o dominava, reagiu asperamente. Travou-se uma discussão tumultuosa, seguindo-se aos ditos frisantes as ameaças, e a estas uma lucta incarniçada, cujo desenlace podia ser fatal, porque já algumas navalhas se haviam aberto, se o dono da casa, verdadeiro hercules, que todos os freguezes respeitavam, não interviesse, gritando com voz de trovão que não queria desordens, que podiam comprometter o seu acreditado estabelecimento. O meio mais facil foi obrigar o conde a sahir sósinho.

Jorge vagueou por ali algum tempo, entontecido pela bebida e pela excitação da lucta. Foi dar ao acaso á alameda de S. Pedro de Alcantara, sentando-se no primeiro banco que se lhe deparou.

A fadiga do conde era extrema. Exhaurirara-se-lhe as forças, pendeu a cabeça, depois o corpo, e, servindo-lhe o banco de leito, adormeceu.

Imagine-se o que sentiria a pobre Adriana, vendo, pela primeira vez, depois do fatal casamento, em estado tão lastimoso o seu Jorge, que tanto amara, e que ainda lhe occupava todos os pensamentos! A alma como que lhe deu um salto. Estava tão longe de similhante encontro! Era, todavia, uma surpresa que sangrava.

A pobre virgem, movida por uma força interior e desconhecida, aproximou-se instinctiva e rapidamente do infeliz. Ergueu-lhe de mansinho a cabeça, e, sentando-se no banco, amparou-a brandamente no collo.

Os formosissimos olhos de Adriana gotejavam lagrimas de verdadeira dôr, as quaes iam cahir, serenas como os pingos desprendidos d’uma abobada subterranea, sobre o rosto meio desfigurado de Jorge.

Era um quadro de indizivel sentimento. Quem soubesse a historia d'aquelles dois infelizes, sentiria de certo profunda commoção, ao presenciar aquelle grupo que representava a dôr pungitiva velando pelo desespero adormecido.

Algumas pessoas que iam já passando pela rua, e aquellas que reparavam em Adriana não deixavam de fazer o seu commentario.

Passou uma rameira, envolta na sua triste abjecção, e, vendo a pobre menina, não poude conter-se que não dissesse:

-- Aquella descarada não achou logar mais proprio para vir fazer festas ao amante.

Ha irrisões n'este mundo!...

O somno do conde era bastante agitado. Proferia a espaços palavras soltas, ora violentas, ora queixosas.

Adriana, vendo que o alteroso dormitar mais alimentava a fadiga do que proporcionava descanso, abalou o conde de mansinho, afim de lhe suspender aquella lucta nas trevas.

Jorge descerrou os olhos, que pareciam cobertos com um veu vitreo, effeito natural da demasiada bebida e extrema fadiga. Encarou Adriana atravez d’uma nuvem duvidosa, e pareceu-lhe sonhar. Esfregou as palpebras com frenesi, para se certificar se estava realmente acordado.

A commoção da pobre menina crescia mais e mais. Succediam-se as lagrimas, acompanhadas de sentidos soluços. Nem ella sabia o que se passava em si. Ia-lhe no intimo uma verdadeira lucta entre o prazer e o penar. Ver Jorge, era o céu, mas era tambem o inferno. E bem triste ser o coração obrigado a regeitar alegrias.

-- És tu, Adriana! exclamou finalmente o conde com uma viva agitação. É certo que os anjos apparecem aos desgraçados!

E Jorge apertava fervorosamente a mão de Adriana.

A velha criada estava na maior afflicção, em presença de similhante scena, que nem pela mente lhe passava.

-- Retiremo-nos d'aqui, Jorge... disse Adriana. Já alguns curiosos nos estão observando... Que vergonha!

De facto, algumas pessoas que iam passando, reparando n’aquelle sentimental grupo, tinham parado, na esperança de gosarem algum espectaculo pouco frequente.

Jorge e Adriana sahiram da alameda.

X

Amor entre lagrimas

A morada da infeliz menina era ali proxima. Pouco tardou que lá chegassem.

O conde subiu a escada, com grande espanto de Adriana, que esperava que elle se despedisse ao aproximar-se da porta. Faltou-lhe o animo para lhe embargar a passagem.

A pobre D. Margarida de Almeida, vendo entrar sua filha acompanhada pelo conde, ficou admiradissima, e sem saber o que pensar de caso tão estranho. Algumas breves explicações a pozeram ao facto do acontecido.

Jorge começou de contar a sua desditosa vida, o desespero que lhe ia n’alma, e o abysmo em que mais e mais se internava, sem que podesse fugir-lhe. A exaltação foi-o assoberbando, a ponto de chegar a proferir algumas invectivas contra o altivo marquez do Açude.

-- Lembre-se que é seu pae... disse Adriana por entre lagrimas, que, a seu pesar, lhe aljofravam as faces.

-- Meu pae!... Então pelo acaso fazer com que me dèsse a existencia, assiste-lhe o direito de dispor da minha vida, de me cravar os mais atrozes espinhos, cujas feridas sangram continuamente, de me envolver n'uma mortalha de chammas?... Que divida infernal é esta do nascimento, que nunca póde ser solvida? como, qual a fôrma de dizer-se ao que nos faz presente d'isto a que se chama vida: -- estamos quites! Maldita deve de ser a paternidade que abusa do seu poder, que pesa, em vez de ajudar, que esmaga, em vez de acarinhar! E a sociedade, que tanto falla e apregôa theorias livres, consente ainda e auctorisa esta escravidão foiçada!... A terra é mãe, ninguem o póde negar, mas não passa d'um agente do cultivador. A humanidade é tambem um solo d'outro genero, cujo cultor é Deus. E quererá esse Ser Mysterioso que lhe paguem com sacrifícios e lagrimas o que constitue a sua maior gloria?... Não quer de certo!.., Oh! como eu soffro!...

Adriana não podia occultar o muito amargor que a opprimia. As lagrimas brotavam-lhe espontaneas. N'um relancear mediu o abysmo de Jorge, e não podia salval-o. O mal era incuravel.

D. Margarida, que de perto conhecia sua filha, bem lhe observava os sentimentos, e de logo calculou as tristes consequencias d'aquella scena de lagrimas.

-- Cumpre ter resignação, sr. conde... balbuciou a desventurada Adriana, diligenciando confortar aquella alma em penas, ella, que tão enferma estava tambem.

-- Resignação!... repetiu Jorge como um eco, erguendo a cabeça que lhe pendera para o peito. Resignar-me, quando um veneno atroz me circula constantemente pelas veias! resignar-me, quando vejo perdidas as minhas mais fagueiras esperanças! Ai! Adriana, quanto amor eu sinto por ti! E hoje que novamente te vejo, meiga como sempre, apenas com o acrescimo do perfume da desventura a exalar-se-te das lagrimas, sinto em mim, não a resignação que me aconselhas, mas um desespero que mata!

D. Margarida tinha sahido da sala, furtando-se assim á extrema commoção que estava prestes a desabar. Por outro lado, lhe julgára prudente ir dar parte a seu marido da visita do conde.

Jorge e Adriana tinham ficado sós.

A pobre menina eslava collocada n'uma triste e difficil situação. Ao passo que lhe pesava todo o amargo soffrer de Jorge, que lhe tornava eminente a explosão do desespero, desejava apparentar um falso socego, uma resignação ficticia, para assim dar um sublime exemplo ao homem a cujo coração se lhe entrelaçava o fio da vida. Abrir o dique ao soffrimento, era exacerbar a muita dôr d’aquelle infeliz.

Esta abnegação na mulher, se bem que bastante rara, existe ainda. Só os pessimistas o contestam.

-- Por Deus, Jorge, não blasphemes contra o destino, disse Adriana com um supremo esforço, e diligenciando desabrochar um sorriso, que muito se assimilhava ao astro-rei, quando se afadiga por irromper por entre as nuvens que lhe interceptam os brilhantes raios. Quem sabe?... proseguiu a virgem, talvez que tudo que tem succedido seja obra da providencia, que assim tenha evitado desgostos que não podemos fixar...

-- Isso é que é uma blasphemia, Adriana, atalhou Jorge; pois que maiores desgostos nos podiam estar destinados?... Separar com braço de ferro duas almas que pareciam para sempre unidas por um amplexo de flores, embotar um coração digno, atirar para o lodo com um infeliz que se destinava para um viver honesto, fazer d'elle um reprobo, um miseravel, quem sabe se um infame, visto que vae descendo de degrau em degrau, ou antes resvalando velozmente para o abysmo?...

-- Jorge... balbuciou a desventurada menina.

-- Este viver é um martyrio. A desesperança é um supplicio lento inventado por satanaz. Quando penso em certos momentos na morte que me vae n'alma, quasi que chego a taclear um crime, que seria o motor d'uma sublime ressurreição!...

-- Jorge!... murmurou Adriana com voz supplicante.

-- A barreira que nos separa é a mulher que me vi forçado a reconhecer á face da igreja: destruida a barreira, poderiamos passar ávante...

-- Silencio, desgraçado, que nem sabes o que estás dizendo! exclamou Adriana na maior afflicção. -- Ó Deus, amerceia-te d’esta alma que vae sendo victima das trevas do desespero!

-- Perdão, Adriana, anjo de virtude... sou um infame!

E o desfortunado conde escondeu o rosto entre as mãos.

-- És um infeliz! replicou a meiga virgem.

Passado um curto silencio, Jorge fixou em Adriana um olhar de singular expressão, dizendo em seguida, ou antes suspirando:

-- Quizera amar-te menos...

-- Porque? perguntou a pobre menina, não comprehendendo o alcance d’aquellas palavras.

-- Porque então não teria rebuço em fazer-te minha socia no erro... porque então dir-te-ia: Adriana, anjo idolatrado da minha alma, já que nos está eminente o gume do destino, já que a sociedade nos quer afogar com os seus preconceitos, fujamos, fujamos para bem longe, para uma aldeia ignorada, onde ninguém nos conheça... lá viveremos n’uma primavera de amor, tendo as flores por alcatifa e as estrellas por docel! Fujamos, fujamos, para que não nos abrazemos n’este fogo infernal que nos circumda! fujamos, para que a fatalidade nos não corrompa o espirito... fujamos, para que nos não abandone a crença em Deus!...

Adriana olhou espavorida para Jorge.

-- Fujamos, disse ella com uma febril animação, e deixemos atraz de nós um pobre velho, já meio curvado para a sepultura, chorando lagrimas de dolorosa vergonha, e aproveitando os ultimos momentos em amaldiçoar a filha que tudo esqueceu, dignidade e honra, e que não trepidou ao tropeçar, na culpada fuga, com o cadaver de seu pae! Fujamos, deixando o desespero e a morte, e levemos muito amor, é verdade, mas tambem muitos e crueis remorsos! Ah! Jorge, é mister que a allucinação do soffrimento te cegue para que possas proferir similhantes palavras!

E um fundo soluço sahiu d'aquelle seio virginal.

-- Não sejas injusta, Adriana; esqueces-te que tudo que disse só te seria endereçado se o meu amor por ti fosse menor, replicou Jorge em tom de exprobração e desanimo. Mal pagas o meu affecto, interpretando d’essa fórma os meus sentimentos. Não te merecia a injustiça. Julguei que melhor me conhecesses.

-- Perdão, Jorge! exclamou a formosa menina com um sorriso de alegria. Confesso que fui criminosa. Nem por um momento devia duvidar de ti. Exulto, porém, por seres ainda o mesmo nobre coração!

As mãos d'aquelles dois desventurados entes, que de certo haviam nascido um para o outro, apertaram-se com excessiva vehemencia.

N'este momento assomou á porta da sala a figura respeitavel do honrado militar Raymundo de Almeida.

Pobre d'elle, já não era o mesmo vulto marcial, apesar da edade, que em tempo conhecemos. Fôra-se o vigor, as forças tinham desertado, como elle dizia. As consequencias do desgraçado ataque apopletico que tivera faziam-se sentir bem visivelmente. Mal se descobria por detraz d’aquelle pobre ancião, que só a muito custo se arrastava, o soldado esforçado d’outr’ora, que sempre se distinguira no campo da batalha.

Adriana, sempre solicita, correu a prestar amparo a seu extremoso pae. Beijou-lhe respeitosamente a mão, e o velho fez-lhe uma festa como poude.

-- Deus te abençoe, filha, disse elle.

Adriana conduziu-o brandamente para o sophá.

-- Não sei se me alegre pela sua presença, senhor conde, ou se me entristeça, proseguiu o velho militar. Desculpe esta rudeza de soldado.

Jorge soffria um novo golpe. Era a primeira vez que via Raymundo de Almeida n’aquelle lastimoso estado. Contemplava, angustioso e petreficado, aquelle vulto do soffrimento, e contemplava-o como obra sua, porque os seus escrupulos não lhe deixavam declinar uma grande parte de responsabilidade na desgraça que accommettera o ancião.

-- Que silencio é esse, senhor conde? perguntou o militar. Causa-lhe medo, ou horror, a minha presença?

-- Causa-me dôr e remorsos! respondeu Jorge com voz compassiva.

-- Remorsos!...

-- Certamente, porque, se não fôra eu, não soffreria o senhor o que hoje soffre.

-- Não se queixe de si, queixe-se do destino. Só tem remorsos quem se julga criminoso, e v. ex.ª foi tambem victima, faço-lhe esta justiça.

-- Meu pae foi um miseravel! exclamou

Jorge, não podendo reprimir um impulso de rancor.

-- Seu pae foi, com mil bombardas!... foi um homem que não soube ser pae! Afinal, talvez que nem mau se lhe possa chamar; foi victima, naturalmente, da educação que recebeu. Ninguém se compraz em fazer tanta gente infeliz, creio. Que é feito d'elle?

-- Partiu para França logo depois do meu casamento, respondeu Jorge, sumindo-se-lhe todavia, a palavra casamento.

-- Ahi tem, é o que eu digo: seu pae não foi criminoso de intenção, senão de ignorancia. Fugiu por não poder supportar a vista da obra que era sua. Cumpre não julgar tão mal o coração humano. Em summa, não fallemos mais n'este assumpto.

A conversação proseguiu, mas interceptada por um veo de tristeza. Não rareavam os momentos de silencio, pravo evidente de que o assumpto era arido.

Sem embargo, Jorge sentia uma vaga consolação. O contacto com Adriana era um como allivio, ainda que debil. Fantasiava já uma successão d'aquelles consoladores momentos, quando de subito se lhe dissipou mais essa esperança.

-- Sr. conde, pronunciou o honrado militar, quando ainda agora, no principio da nossa conversação, disse que não sabia se devia alegrar-me se entristecer-me com a presença de v. ex.ª, não mentia. Por um lado exultava, tendo occasião de praticar com um cavalheiro que sempre prezei; por outro, enlutava-se-me o coração, vendo-me forçado a encarar de frente a desventura, e encaral-a como um espelho. Ainda não é tudo: mais um pesar se me antolhou logo.

-- Mais um pesar... repetiu Jorge com uma certa hesitação.

-- Um dever amargo, muito mais por ser inevitavel. Vejo-me compellido a pedir-lhe, sr. conde, que saia de minha casa, para nunca mais voltar. Isto doe, mas é uma dor a que não se pôde fugir.

Jorge ficou assombrado. Desabava-lhe a unica esperança de consolação.

Adriana, ferida também, fitou em seu pae um olhar de espanto e soffrimento.

-- Porque assim me esmaga?... perguntou Jorge em tom de suave exprobração.

-- Porque não quero que as linguas viperinas do mundo digam sem rebuço que o conde do Pinhal Viçoso é o amante da filha do coronel Almeida.

-- O miseravel que se atrevesse o proferir similhante falsidade, pagaria bastante caro a infamia, protestou Jorge n'um impulso de indignação.

-- Quando assim fosse, ficariam por terra as vis supposições? Não seria talvez mais um documento para a perversidade? Acredite, sr. conde, que faço plena justiça aos seus nobres sentimentos, mas não posso demover-me d'este proposito. Por Deus lh'o peço, não insista, attenda á supplica d’um pobre velho, que teve sempre a honestidade por timbre, e não deseja agora, quasi do fundo do sepulchro, que lhe assaquem uma nodoa que não tem já forças para fazer apagar. É a honra da minha familia que lhe imploro!

Jorge conheceu n'um relancear a justeza d’aquella supplica tão digna. Era a honradez a curvar-se por dignidade propria.

O infeliz conde beijou convulsivamente a mão gelada de Adriana, lançando-lhe ao mesmo tempo um olhar marejado de lagrimas, e sahiu precipitadamente da sala.

XI

Interrogatorio

A vida do conde e da condessa do Pinhal Viçoso era o mais celebre possivel. Medeava entre elles uma indifferença de gelo. Custava a crêr que ainda não houvesse um anno que a sua união fóra santificada pela igreja!

Os famulos do palacio, observando de perto aquelle viver tão improprio de dois esposos na flôr da edade, principiavam a murmurar.

Nunca se via o conde com sua esposa na sociedade, o que dava que fallar, obrigando os espiritos zombeteiros a fazer mil supposições, principalmente por verem que a condessa não deixava de apparecer em toda a parte. Alguns que a haviam conhecido mais de perto, estranhavam um tanto aquelle caracter, d'antes submisso e meigo, hoje altivo e energico.

A metamorphose fazia sensação. De mais, ha um certo grupo de ociosos cujo unico emprego é escrutar a vida privada, aspirando sempre ao escandalo.

Cumpria darem provas de grande dissimulação, tanto a condessa como Matheus da Silveira, para que ainda não fossem aponta dos positivamente como amantes. Algumas vezes se havia fallado no nome d’elle, mas ao acaso, e por entre muitos outros.

Entretanto, os rumores iam crescendo de dia para dia, e por tal modo soaram, que o digno conde de S. Francisco não ficou alheio ao fallatorio.

O conde, como já dissemos, era um apreciavel caracter, franco e leal, e que fôra tambem logrado com relação ao consorcio de sua filha. No logar d’elle, quem se não illudiria? O conde do Pinhal Viçoso era um moço distincto entre os seleclos, estimado entre os mais queridos. Nem uma nodoa o manchava, nem um pequenino abuso se lhe podia attribuir. Que melhor marido? E um pae estremoso não tem restricta obrigação de escolher para sua filha um companheiro digno, que lhe sustente a dignidade, que a estime, que a encante? Todos estes requisitos, aliás raros, encontrava o conde de S. Francisco em D. Jorge de Mascarenhas. Fantasiou-o logo para esposo de sua filha, e para isso trabalhou, até conseguir o seu empenho. Tudo isto, porém, na melhor boa fé, ignorando qualquer circumstancia contraria ao seu plano.

Chegando-lhe, pois, aos ouvidos um zumbido desagradavel em que figurava o nome de sua filha, sobresaltou-se de súbito, e immediatamente fez fito de pedir explicações. Mandou chamar a toda a pressa a condessa, a qual, assustada por ignorar a causa do chamamento, correu sem detença ao palacio de seu pae.

O nobre fidalgo estava no seu gabinete, quando Julia transpoz precipitadamente a porta entre-aberta.

-- Aqui estou, meu pae, disse ella com anciedade, porque, no fim de tudo, ainda se lhe não apagára o sentimento filial. Ha alguma novidade desastrosa? Falle!

-- Novidade ha, se é desastrosa não o posso por em quanto dizer, respondeu o conde em tom secco.

-- Assusta-me deveras. É caso muito grave?

-- Muitissimo.

--De que se trata, pois?

--Da tua honra e da minha.

A condessa estremeceu levemente. O rosto vacillou-lhe rapido entre a rubicundidade e a pallidez. Já sabia, porem, o sufficiente do codigo do fingimento para que se trahisse.

-- Queira explicar-se, meu pae, disse ella com uma admiravel firmeza.

-- Descerram-se por ahi as boccas maldizentes para murmurarem que tu tens um amante, replicou o fidalgo fixando em sua filha um profundo olhar.

D’esta vez Julia nem pestanejou, nem se lhe contrahiu um musculo, nem se lhe demudou a côr. Dissera-se a impassibilidade incarnada.

-- Foi para me dizer taes palavras que meu pae me mandou chamar tão apressadamente? disse ella com uma fleugma que tocava o desdem. Não lhe agradeço o susto que me fez sentir.

Houve um sorriso na alma do honrado conde. Tomava á conta de innocente sinceridade o que não podia acreditar que fosse requintado cynismo. Não quiz, porém, denunciar esse allivio que sentia, e replicou em tom severo:

-- Achas que o assumpto era de tão pouca importancia que não valia a pena de incommodar-te?

-- O que acho é pouca generosidade da sua parte em me esmagar com uma suspeita que me offende tão intimamente.

Havia tal segurança nas palavras da esposa culpada, tanto perfume de dignidade offendida, que o conde de S. Francisco julgou-se criminoso por ter acceitado tal suspeita, que ia ferir a filha que muito adorava.

-- Perdôa-me, Julia, disse elle levemente commovido; mas que queres? quando o golpe é violento a razão falta algumas vezes. Quero acreditar que estás innocente, filha; mas peza-me e amargura-me, que a sociedade, má tantissimas vezes, te accuse, ainda que baixinho, d'uma culpa que, quando verdadeira, deixa sempre um rasto de sangue.

-- Não deve desconhecer, meu pae, que estou muito superior a essas diatribes mordazes, e que não devo descer, um ponto sequer, para que o lodo me não salpique.

-- Essas palavras são muito bonitas, é certo; porém, infelizmente, não destroem uma calumnia.

-- Que quer então que eu faça?

-- Eu sei... As linguas mordazes deviam de ser arrancadas! vociferou o nobre conde, victima da sua credulidade.

-- Era só a desgraça que me faltava, disse a condessa com uma expressão de sentimento, meio falso meio verdadeiro.

-- A desgraça! repetiu o fidalgo com anciedade e assombro. Então não vives feliz?

Julia ficou silenciosa.

-- Falla, filha. Que dôr te opprime? insistiu o conde.

-- Nenhuma, meu pae. Mudemos de assumpto.

-- Por fórma alguma; então julgas que posso ficar assim, ruminando uma incerteza ulcerosa? Teu marido não te estima como mereces? Louca pergunta! Jorge é a nata dos rapazes d'este seculo, e foi por isso que t’o escolhi para esposo. É um nobre caracter e um excellente coração. Conheço-o desde creança. Que é, pois, que te martyrisa?

-- Então meu pae só tem bons ouvidos para as calumnias infamantes, e pessimos para as verdades crueis, que todos sabem?

-- Explica-te.

-- Acaso ignora a vida desregrada que leva meu marido?

-- Jorge?

-- Sim, Jorge, que ainda não teve para mim um carinho, um sorriso sequer. Passa as noites nas orgias mais ruidosas, ou n’essas esqualidas casas de jogo, onde se arruina.

-- Jorge, que era um modelo de honestidade e regra! exclamou o fidalgo, cada vez mais assombrado. Não posso acreditar no que me dizes, filha.

A condessa contou minuciosamente a seu pae o procedimento de D. Jorge, e o que lhe dera causa, e terminou dizendo:

-- Eis a felicidade que meu pae buscou para mim. E feriu com o mesmo golpe uma outra desgraçada, que, naturalmente, ainda hoje chora!

-- Não me accuses, filha, se não queres ser injusta, lastima-me antes.

As queixas da condesssa eram mais palavras de occasião, e um restosito de vaidade despeitada, do que verdadeiro sentimento. Sem embargo, não queremos dizer que a sua indole fosse má, pelo contrario, podemos affiançar que, se logo ao dar o primeiro passo na juventude lhe cuidassem do coracão, seria uma senhora apreciavel e irreprehensivel. As circumstancias, porém, mudaram-lhe o rumo, e hoje, já iniciada nas torpezas e calculos das salas, apresenta-se despida da camada angelical, mostrando o macisso da mulher d’alta sociedade. O casamento é para ella uma coisa muito segundaria. Chegou-lhe a indifferença pelo marido, como se fôra um movel já servido.

Era boa, o accaso, ou o mundo, fêl-a má. É sempre assim!

XII

Final doloroso

O nobre conde de S. Francisco, depois das revelações de sua filha, informou-se se de facto assentavam ou não na verdade. A duvida de logo se transformou em certeza.

Por uma notavel coincidencia, foi Matheus da Silveira o interrogado sobre a vida do conde.

O infame desenhou com os mais negros traços o desregramento de Jorge, exagerando quanto lhe foi possivel. Não houve loucura ou leviandade que não pozesse em relevo, acompanhando sempre as perfidas insinuações com o mais fingido sentimento.

-- Pobre moço! disse elle. Faz pena vêl-o seguir um tão errado caminho. Por muitas vezes tenho tentado desvial-o, mas recebe sempre com aspereza os meus conselhos, o que me obrigou a desistir. Afastou-se dos amigos verdadeiros, para se entregar-nos braços das más companhias, e ahi está o resultado, que é bem fatal. Isto magoa-me deveras. De bom grado faria um sacrificio, comtanto que podesse regenerar aquelle infeliz, que vae cahindo na maior abjecção.

Etc., etc. Creio que vale mais ser assassino do que cynico.

O conde de S. Francisco, inteirado da vida desregrada de seu genro, desregramento que muito devia de influir no coração de sua extremosa filha, sentiu-se verdadeiramente indignado, e resolveu tomar medidas energicas e concludentes.

Ignorando os dolorosos motivos que impelliam Jorge, parecia-lhe impossivel que um moço de tão exemplar caracter, e que sempre fôra inveja de muitos, e exemplo de todos, auctorisasse pelo seu proceder a condemnação geral. Não obstante, sua filha chorava, e cumpria providenciar para que essas lagrimas se enxugassem.

O bondoso pae mandou chamar o conde Jorge, recommendando a minima demora, porque se tratava d'um negocio bastante sério, e em extremo urgente.

O fidalgo esperou, e n'essa espera mil pensamentos lhe saltearam o cerebro. Vagos desgostos o opprimiam, mortal tristeza o atormentava. Era o prenuncio de bem profundas desgraças.

Ainda assim, mal pensava o honrado velho no muito fel que tinha que tragar!

Uma das grandes perfeições da organisação humana, é não ter a faculdade de adivinhar o dia de amanhã. Seria um soffrimento permanente, um murchar de esperanças, porque as dôres supplantam os prazeres, e estes de nada serviriam, sentindo-se a aproximação d'aquelle. Viver só para o presente, esquecendo totalmente o passado, seria a suprema felicidade.

Jorge sobresaltou-se um pouco quando lhe participaram que seu sogro desejava instantemente fallar-lhe. Conhecia, a seu pesar, que seguia um errado caminho, e suspeitava de antemão muitas e muitas queixas da parte do conde.

Encheu-se de coragem, e dirigiu-se para o palacio do fidalgo.

O conde de S. Francisco estava no seu gabinete. Desertara-lhe o ar de constante jovialidade, que tanto o tornava apreciavel, e fôra substituil-o um semblante carregado e rispido.

Jorge de logo ficou impressionado. Estranhou o aspecto de seu sogro, e o coração adivinhou-lhe sentidos pezares.

Houve um momento de silencio, depois de ambos trocarem um comprimento banal e vulgar.

O conde de S. Francisco começou de examinar Jorge, e esse exame amargurou-o bastante, porque o aspecto do pobre moço denunciava claramente que estrondosa mudança se lhe operára na existencia!

O rosto de Jorge não atravessára incolume as continuas orgias e as noites de desesperada vigilia. A pallidez era extrema, as rugas prematuras pareciam luctar com o frescor da mocidade. É que ha horas que valem annos, dias que valem seculos.

Além da transformação phisica porque passara o desventurado conde do Pinhal Viçoso, notava-se-lhe ainda um certo desalinho no vestuario, muito para admirar no moço elegante de outr’ora, que sempre se apresentava no rigor da moda.

O conde de S. Francisco tinha uma longa pratica do mundo, e não lhe passavam desapercebidas estas pequenas coisas, que muitas vezes servem de grande recurso para o desvendar d’um mysterio.

Ao silencio seguiu-se a discussão.

O velho fidalgo começou por stigmatisar com frases violentas o procedimento de seu genro. A acrimonia do conde teve máu resultado. Jorge, embolado pela desgraça, e como que bestificado -- é o termo -- pela vida que levava, e pelas companhias que o não deixavam, recebeu com aspereza as palavras violentas de seu sogro. Começando a discussão em tom carregado, feriu-se-lhe o orgulho, e poz do banda a delicadeza, que de certo teria se o velho conde fosse mais brando. Nem se occupou em explicar-lhe os pormenores d'aquelle casamento, nem quiz apresentar-se como victima.

O conde de S. Francisco disse a Jorge que, além dos desgostos que dava continuamente a sua esposa, ia de dia para dia com promettendo a sua fortuna, perdendo enormes sommas ao jogo, e que cumpria, portanto, que se emendasse.

O infeliz moço respondeu que era senhor dos seus haveres, e que não consentia, nem acceitava conselhos ou recriminações. O conde calou-se, para evitar algum escandalo mais serio; porém, no dia seguinte, tratou de dar os passos precisos para que seu genro fosso dado por prodigo.

Algum dinheiro distribuido com acerto conseguiu os desejos do velho fidalgo.

Esta nova decepção exasperou Jorge ao ultimo ponto. No primeiro impeto cresceram-lhe desejos de descarregar em seu sogro toda a ira de que era presa; veiu, porém, um lampejo de rasão, que desculpou em parte o procedimento do velho fidalgo. O culpado era ainda seu pae, então, como sempre, n'aquillo, como em tudo. O elos da desgraça enleavam-se sem treguas. A cadêa era pesada; mas cumpria supportal-a.

Jorge ficou prostrado; quando despertou d'aquella inanimação de espirito, resolveu sahir de casa. Não podia sujeitar-se á tutela de sua esposa. Era demasiada baixeza.

Deixou Lisboa.

XIII

Sombras de remorsos

A condessa do Pinhal Viçoso viu-se de repente em plena liberdade. Seu marido retirara-se da capital, seu pae vivia agora n'um completo isolamento. O pobre velho lamentava amargamente a sorte da filha, e sentia-se impressionado pelo passo que dera contra seu genro. Dizia entre si, porque era um homem de ajuisado pensar:

-- «Ahi está: de que servem a nobreza e a opulencia? Tão perto do fausto e da abundancia superflua, e tão longe d’uma simples nesga de ventura! É que a felicidade não se compra, nem a confere um decreto do Diario! E ainda ha quem inveje a sorte dos abastados?...»

E lá se amargurava no isolamento a que se votara.

Assim como o jogo perdera Jorge, a vaidade das salas, o brilhantismo do bom-tom deslumbraram Julia. Talvez que se vivesse mais para o aconchego do lar o seu resentimento não fosse tão longe.

Vamos encontral-a no seu boudoir, molemente recostada n’um macio sofá. A condessa mostrava uma leve impaciencia, que facilmente se adivinhava pela alterada contracção dos labios, e pela fixidade com que olhava para um relogio suisso que ficava fronteiro. Com o lindo e pequenino pé agitava brandamente, e com uma regularidade monotona, um tamborete elegante, forrado de veludo carmezim.

De subito, a attitude da condessa mudou inteiramente. Os labios immobilisaram-se, a vista espraiou-se em volta, o tamborete não tornou a oscillar. Julia passou a mão alvissima pelos olhos, ergueu-se quasi d’um salto, e deu duas voltas pelo confortavel e alindado gabinetesinho. Por mais d'uma vez repetiu aquelles movimentos, tornando depois a sentar-se. Era evidente que a perseguia uma idéa desagradavel, e que diligenciava afastal-a para bem longe.

Passados uns vinte minutos, abriu-se demansinho a porta da camara, e appareceu por um dos lados do reposteiro corrido o elegante officioso Matheus da Silveira.

-- Finalmente! exclamou a condessa. Muito e muito precisava de ti.

-- Para que, querida? perguntou o recem-chegado, beijando a mão de Julia.

-- Para que a tua presença me afastasse da mente estas idéas de fogo que me escaldam.

-- Mas que idéas são? perguntou ainda Matheus da Silveira, sentando-se no sofá, ao lado da condessa.

-- Para que o negar? respondeu Julia em tom decidido; quando me vejo sosinha, longe do bulicio que me atordôa, entre Deus e a minha consciencia, sinto uns remorsos tão fundos, que me apavoram como se foram um medonho espectro.

-- Cala-te, louca! interrompeu o seductor: não profiras puerilidades irrisorias. Despreza o mundo e concentra-te mais no amor.

E nisto beijou as lindas madeixas da condessa.

-- Preciso que me inebries com os teus affectos, que me atordoes com as tuas palavras sentidas, para que veja só em ti o homem apaixonado e não o...

-- O que?

-- O seductor infame!

-- Condessa!

-- Desculpa, meu amigo, mas isto é ainda resultado do tempo que estive a sós com os meus pensamentos. N'essas occasiões, por mais que diligencie fazer o contrario, não posso deixar de me constituir em juiz, e condemnar-te asperamente, não declinando, todavia, a responsabilidade de cumplice. Condemno-te, porque atraiçoaste o homem que te estendia a mão e que te chamava amigo: condemno-te, porque abusaste da inexperiencia d'uma pobre rapariga alheia ainda ás intrigas das salas, fazendo-lhe vibrar a corda da vaidade, e acirrando-lhe o amor proprio offendido. Não foi uma conquista, foi uma embuscada.

Matheus da Silveira, se fosse um homem digno, ter-se-ia revoltado contra aquella franqueza ultrajante; como, porém, não passava d’uma creatura ignobil e venal, contentou-se em levantar-se brandamente, e ir acender um charuto na luz que estava sobre o toucador. Depois voltou-se, e perguntou com a maior fleugma, lançando ao mesmo tempo uma baforada de fumo, cuja espiral foi seguindo com a vista:

-- Pelo que vejo, só te mereço despreso?

-- Não, não, perdôa-me! Não pódes negar que te tenho dado as maiores provas de que me não és indifferente, protestou a condessa. Ha em mim uma lucta, confesso, mas lucta de que sahes sempre vencedor.

-- És uma creança, e ás vezes merecias um pequenino correctivo. Ter escrupulos de que? de não te importares com um homem que só te vota despreso? Querias passar a mocidade entre suspiros e desenganos? Não ter um goso, uma fantasia, um inebriamento, vergando sempre ao peso da indifferença do esposo indigno? Então isto é vida? Correm os annos, a belleza vae murchando, as rugas começam de apparecer, e é então que a mulher pergunta, vendo perdido o que não pôde rehaver: -- que é da minha mocidade? onde os gosos que o mundo nos faculta? a vida é apenas isto? de que vale então a existência? -- Afasta de ti idéas carregadas, e entrega-te aos prazeres do amor, que é o sorriso da vida!...

Matheus da Silveira enlaçou pela cintura a condessa, e imprimiu-lhe nos labios um beijo ardente.

Estas scenas mais d’uma vez tinham logar. Não raro Julia sentia rancor por aquelle miseravel, de quem reconhecia a infamia. Se elle fosse menos cynico, já não diremos pundonoroso, e que por um momento sequer pugnasse pela sua dignidade, que a sua amante offendia cruelmente, ainda que com rasão, de derto aquellas criminosas relações teriam de ha muito terminado. A condessa não era uma alma de todo pervertida e eivada de infamia; entrara no crime, mas pela porta da seducção vil e calculada. Silveira bem a conhecia, e ufanando-se com aquelle amor, que muito o lisongeava, afivelava a mascara do mais requintado desfaçamento, e empregava todos os esforços para que a victima lhe não sahisse das garras. Ha homens que empolgam. Quando presentia, clara ou encobertamente, na condessa um arrependimento ou uns laivos de odio, tratava sem demora de lhe afogar as idéas em palavras e caricias. Para elle era um mister, de que se impunha cabal desempenho.

Affirmar que a condessa amava Matheus da Silveira seria um manifesto engano. O sentimento que elle lhe inspirava nem ella o sabia definir. Podemos comparar aquelles amores ás chagas que se abrem em certos enfermos, as quaes são indispensaveis para que a vida não fuja.

XIV

Sublime dedicação

Como dissemos, o conde do Pinhal Viçoso, depois de seu sogro o ter dado por prodigo, ficando a condessa com a administração dos bens, na qualidade de esposa, sahiu immediatamente do palacio, para d’essa fórma evitar a vergonha da sua nova posição. Andou todo o dia vagueando por Lisboa, pelas ruas mais pobres e afastadas, afim de não encontrar algum dos seus antigos amigos, que podiam arremeçar-lhe uma gargalhada de desdem. O pobre moço não sabia que fazer. Era-lhe a cabeça um vulcão. Por momentos o assaltou a idéa sinistra de terminar com uma vida que tão amargurada lhe ia. Duas coisas lhe enfraqueceram o animo, destruindo-lhe o intento. A primeira foi deixar atraz da mortalha o anjo da sua alma, a sua Adriana muito querida. A segunda -- e esta é muito para notar-se, por ser um dos mysterios do coração humano -- foi a existencia de seu pae. Receiava Jorge que o marquez não podesse resistir á morte do filho? não; queria, ao menos, poupar-lhe um grande desgosto? não; temia acaso que o mundo o accuzasse da morte d'um desventurado moço? tambem não. Que era, pois? Expliquemo-nos. Em geral ha um certo prazer, mas um prazer que trava, um prazer diabolico, no supportar das maguas e dores que outros nos proporcionam. As queixas são um allivio -- justamente porque se recrimina alguem. Dizer: este ou aquelle tornou-me desgraçado -- o destino persegue-me sem tréguas -- é um desabafo que consola. O viver de Jorge era uma queixa permanente. Seu pae devia sentir remorsos -- era um gozo; devia dar-lhe razão pelo passado -- era uma victoria. E as victorias custam muito sangue.

Aquelle dia foi para o desventurado conde d’uma excruciante amargura. Depois de milhares de reflexões, viu que era impossivel conseravr-se em Lisboa, no centro da sociedade, que talvez agora simulasse não o conhecer.

Resolveu partir para o Porto no comboyo da noite. O coração, porém, pedia-lhe uma despedida.

Ás Ave Maria dirigiu-se para a rua em que habitava Adriana. Não esperava fallar-lhe, mas vêl-a seria já muito, e mesmo quando aquella imagem querida se lhe não patenteasse, restava-lhe ainda a consolação de envolver com a vista a casa que lhe servia de ninho.

Estas lembranças d'alma são irrisorias para os materialistas, mas os homens de coração de certo as devem de comprehender.

Jorge começou de passar e repassar por sob as janellas de Adriana. Era á hora em que os operarios voltam do trabalho para as suas pequeninas casas, pbbrcs, mas perfumadas de quietação e felicidade. Vinham todos satisfeitos, porque era sabbado e traziam a feria, para elles de muitissimo valor, por isso que fôra ganha á custa de assiduo labor e bastante fadiga.

A espaços esbarrava com algum d’elles, absorto como andava nas suas pungentes reflexões. Então pedia humildemente desculpa, e pensava de si para comsigo:

-- Como estes homens são felizes, apesar da sua condição apoucada! Entre elles não ha d’essas conveniencias que esmagam e atrofiam. N’elles se encerra a verdadeira liberdade d'alma e de acção. Os seus desejos são moderados, por isso mesmo facilmente cumpridos. Oh! que venturoso eu seria se pertencesse á sua classe! Chegaria ao que hoje cheguei? sentiria as dores que me ulceram o coração? Não. Os operarios, quando alguma nuvem lhes tolda o horisonte, esquecem no trabalho, no meio do ruido da officina, entre os cantos singelos dos seus companheiros, as vagas tristezas que os insombram; nós, os grandes, os opulentos, os felizes, não temos esse santo recurso, porque nada sabemos fazer, porque o trabalho nos foi sempre defezo!

Assim pensando, Jorge não deixava de olhar para as janellas de Adriana. Nem uma luz; reinavam ali as trevas. Os candieiros da rua estavam já todos accesos, nas casas proximas ia apparecendo claridade. A excepção começava de impressionar o desventurado conde. A minima circumstancia é bastante para amedrontar uma alma attribulada. Jorge nem sabia que pensar. As incertezas são um mal terrivel. Finalmente, quando já o pobre moço phantasiava tudo que ha de peior, illuminou-se o alvo das suas attenções. O farol apparecera ao naufrago.

Aquella luz atravez das vidraças era uma attracção para Jorge. A luz envolvia nos seus raios a figura angelica de Adriana, que, naturalmente, estava costurando; eis o motivo porque Jorge fitava a luz com indizivel commoção. Assim se transmittiam os sentidos olhares de amor. Estas subtis delicadezas d’alma, este expressar mudo do affecto puro, nem todos os comprehendem. O vulgo chama-lhe ridiculo. O ridiculo que parte do coração tem em si uma plena desculpa.

As horas iam correndo, e Jorge não podia afastar-se d'aquelles logares. A luz continuava attrahindo aquella pobre maripoza de amor.

Afinal, seriam onze horas, a commoção de Jorge chegou ao cume. Um vulto feminino, uma imagem mais de anjo que de mulher se desenhou por detraz da vidraça illuminada. Era Adriana. O infeliz conde ficou completamente immovel, suspendeu-se-lhe a respiração, como que se lhe travou a vida. Adriana appareceu, e fugiu qual meteoro. Termiriára o serão e fôra fechar as portas interiores da janella.

Ao sol seguiram-se as trevas. Do peito de Jorge sahiu um suspiro tão profundo que antes se dissera um soluço. Já nada lhe restava ali. O fio luminoso que o prendia desapparecera. Volveu mais um olhar, em que se resumia todo o affecto d’um grande coração, para a divinal moradia da virgem idolatrada, e fugiu.

Escusado será dizer-se que a hora do comboyo já havia passado.

Jorge não quiz ir pernoitar no palacio. Levou toda a noite caminhando de rua em rua, sem sentir o ar frio do nordeste.

Apenas rompeu o dia, dirigiu-se para a estação dos caminhos de ferro de norte e leste, e esperou impacientemente o primeiro comboyo.

Horas depois, o silvo da locomotiva esturgia nos ares, e o conde do Pinhal Viçoso, a desventurada victima de nobres preconceitos, ia caminho da cidade invicta.

A primavera, esse primeiro sorriso do novo anno, viera já visitar as campinas, seu vasto imperio, e as flores, sua côrte festiva e animada. O sol fulgurava com todo o esplendor que lhe é proprio.

Era domingo. A natureza e a humanidade davam-se as mãos, e ambas apresentavam um risonho aspecto de alegria.

A locomotiva, essa scintilla do foco luzente do progresso, á proporção que atravessava villas e aldeias, ia sendo saudada pela curiosidade dos aldeões locaes. Sahiam da missa, onde tinham orado com fervor, e vinham como que receber a accelerada visita de todas as manhãs. Agrupavam-se nas estações, e formavam quadros de eloquente simplicidade. Nem um só rosto exprimia o menor sombreado de dissabor. Jorge contemplava pensativo aquelle conjuncto de espontaneo jubilo. Nada nos impressiona mais, quando nos chora o coração, do que os risos alheios. Será inveja? será egoismo? É saudade.

Jorge alugou uma casa modesta no Porto, e conservou no mais rigoroso incognito a sua qualidade de nobre. Vivia completamente sosinho, o que lhe causava verdadeira impressão. O isolamento pende para o cogitar, o que é um martyrio quando a idéa nos sangra.

Uma noite, estava Jorge, mais do que nunca, a braços com a extrema amargura, e maldizendo a sua triste sorte, exprobrando ao mesmo tempo tudo e todos, pois que todos o abandonavam e ninguém se lembrava de si, quando sentiu bater de mansinho á porta. Ergueu a cabeça, que havia encostado ás mãos, e olhou para o sitio d'onde partira o ruido. Julgou ter-se enganado. Em breve tornaram a bater.

-- Quem está ahi? perguntou o fidalgo, levantando-se.

Não foi uma voz que lhe respondeu, mas um soluço.

Jorge correu pressuroso a abrir a porta.

Immediatamente se viu de frente com um rosto amigo.

Era a pobre Engracia das Dores. A boa velhinha ajoelhou aos pés do seu joven amo, e começou de beijar-lhe as mãos, que inundava ao mesmo tempo com as suas lagrimas.

Imagine-se a commoção de Jorge. No momento em que accusava todos de esquecimento, apparecia-lhe, como por milagre, a dedicada anciã, que o creára de pequenino, e que sempre lhe tributara o mais puro affecto.

A pobre velha não pudera vêr-se separada do seu menino. Desde que elle sahira de casa, não tivera mais um momento de socego. Procurára, indagára, correra tudo, perguntára a todos, até saber onde encontraria o seu filho. Soube que estava no Porto, porque alguém o vira lá. N’esse mesmo dia arranjou o bahú, onde metteu todo o fructo da domesticidade, e partiu, sem olhar a edade nem fadigas. Chegando á cidade dos livres, dirigiu-se á auctoridade, que, depois de algumas pesquizas, lhe ensinou o trilho que desejava.

Jorge ergueu a dedicada velhinha, e obrigou-a a sentar-se n'uma cadeira.

-- Socegue, minha boa Engracia, disse o conde. Não imagina que prazer me dá!

-- Ó meu rico menino! exclamou a anciã ainda por entre lagrimas.

-- Mas como soube onde eu estava?

-- Sube-o com o auxilio de Nossa Senhora, que é minha madrinha!

-- Vir tão longe...

-- Tão longe... foi um anjinho do céu que emprestou as azas á pobre velha. O menino é um ingrato, e tenho muito que lhe ralhar. Partir sem dizer uma palavra!... Então eu já não sou ninguem, nem sirvo para nada? Vão lá ter amisade ás pessoas... Eu t'arrenego coisa má, mas ha um tempo a esta parte que o demo nos anda a fazer caretas. O meu menino merecia muitas palmatoadas. Agora já eu sei tudo. Gostava d'uma rapariguinha muito bonita e muito bondosa, e o senhor seu pae obrigou-o a casar com outra? Mas, valha-me Deus, para que consentiu? Bem sei que o senhor marquez tem um genio muito altivo, e o meu menino sempre lhe teve muito respeito, mas contasse-me tudo, que eu não tenho medo de papões, com bem o digo, e teria feito com que as coisas mudassem de figura. Meu rico Pae do céu, vêr o meu menino infeliz! Isto faz endoidecer a gente! Padre, Filho, Espirito Santo! Ah! a primeira vez que eu encontre o senhor seu pae, tem que me ouvir. Ainda lá está por essas terras estrangeiras. Não quer vêr a bonita obra que fez. E o meu menino aqui sosinho, sem ter ninguem para o estimar e servir. Se não fossem as minhas orações, sempre queria vêr o que teria sido de si. Mas agora cá me tem, com a graça de Deus. Ao menos não faltará quem o estime. O que eu queria era vêl-o feliz e satisfeito; para isso dava de boa vontade este cadaver já carunchoso. A minha rica Senhora dos Milagres ainda ha de fazer um por intenção da pobre velha. Como, não sei, mas tenho muita fé. Vêr triste o meu rico menino, é dar cabo do coração da gente!

E a boa e dedicada Engracia das Dores de novo deu largas ao pranto. Foi o que valeu, porque, se não fossem as lagrimas embargar-lhe a voz, talvez que ainda a estas horas estivesse despenhando a sua catadupa de palavras.

-- Então, Engracia, socegue, disse Jorge, receiando, naturalmente, que a inundação de lagrimas fosse igual á das palavras.

O joven conde sentia uma debil consolação com a presença d’aquella santa mulher, cujo sincero amor excedia todos os limites. Quanto maior é a desgraça, mais se aprecia qualquer insignificante linitivo.

Depois de curto silencio, Jorge perguntou baixinho:

-- E a condessa?

-- A senhora condessa não parece mostrar-se muito magoada pela ausencia do meu menino, Deus me perdoe. É rara a noite que não vae ao theatro, e não perde um unico baile. Como é ainda muito nova o que quer é divertir-se.

Jorge ficou por um momento pensativo. Depois perguntou:

-- E meu sogro?

O senhor conde é que não parece o mesmo. Desde que teve as quizilias com o menino, ninguém mais o tornou a ver. Dizem os criados que raras vezes sahe do seu quarto, e que anda sempre triste. É que está arrependido do que fez. O meu menino tinha alguns defeitosinhos, é verdade... porém, ora adeus, coisas de rapaz!

Jorge não replicou. Passados alguns minutos, perguntou ainda:

-- E a sociedade o que diz?

-- Qual sociedade?

-- A gente que me conhecia pessoalmente, ou de nome?

-- Eu sei lá o que ella diz! E que ha de dizer? Mas ainda agora eu reparo, continuou a boa velhinha tevantando-se e passando revista á modesta habitação; então o meu menino está morando n’uma casinha tão pobre?

-- É porque assim me apraz, respondeu o fidalgo com algum embaraço.

Aquella quasi pobresa tinha rasão de ser. Jorge trouxera comsigo todo o dinheiro que pudera apurar, que não fôra pouco, mas em breve o perdeu no maldito jogo, que se tornara em infernal vicio. Logo ao chegar ao Porto mobilara a casa, senão com luxo, ao menos com decencia. Comia sempre na Aguia d’ouro, o que lhe evitava ter criada. As cartas foram-lhe devorando o peculio, e afinal o infeliz viu-se obrigado a ir vendendo pouco a pouco o que comprara. Estava n'uma pendente, era difficil sustel-o.

Passado algum tempo, Jorge pegou no chapéu e dispunha-se a sahir, quando a senhora Engracia das Dores perguntou com a franqueza e liberdade que lhe davam a velha estima:

-- Onde vae o meu menino a estas horas?

-- Vou ter com uns amigos que me estão esperando, respondeu o fidalgo com uma leve hesitação.

-- Valha-me Nossa Senhora, isto não está bom. O meu menino não se benze, e o inimigo continua a fazer das suas. Vae ter com uns amigos... diga antes com uns desalmados, que lhe ensinam o mau caminho.

-- Agradeço-lhe os receios, Engraçia, mas creia que se engana.

-- Não engano, não; oxalá que eu fosse uma tonta. Meu rico Senhor Jesus dos Afflictos, onde o meu menino vae sei eu.

-- Então onde vou?

-- Vae perder a sua saude, vae-se arruinar... vae para o jogo. No dia em que o meu menino fôr o mesmo que era d'antes, prometto levar á Senhora das Mercês tres arrateis de cera, e jejuar tres dias seguidos.

-- Torno a repetir que se engana, minha boa Engracia, acredite que não vou jogar.

-- Vae, vae, e eu cá fico em ancias com receio de que lhe succeda alguma desgraça. Valha-me a santa do meu nome. O meu menino ha de fazer uma coisa á pobre velha, que lhe quer desde pequenino como ás menina dos seus olhos.

-- Então o que é?

-- É não sahir esta noite... ficar ao pé de mim. O peor é que não sei como entretel-o... Se fosse n’outro tempo, sentava-o nos meus joelhos e contava-lhe alguma d'aquellas historias de que tanto gostava. Quem nos diria então, bemdito seja Deus, que ainda se haviam de passar tantas coisas!

A boa da tia Engracia começou de fallar com tal arte do passado, recordando tudo que constitue os sorrisos da infancia, que Jorge, cheio de impaciencia em principio, terminou por dar toda a attenção á desvelada velhinha. É que elle, apesar dos desvarios, não tinha ainda a alma corrompida.

Assim se passaram algumas horas. A tia Engracia estava fatigada; tinha fallado de tudo, e até, para remontar quanto possível ao passado, contara uma historia, que foi ouvida por Jorge com um certo prazer. A pobre velha já não podia mais. Succedeu um breve silencio. Cahiu a cortina do passado. A idéa predominante do infeliz conde de novo o assaltou.

Pegou pela segunda vez no chapeu, que naturalmente deposera n’uma cadeira, e encaminhou-se para a porta.

Ia a tocar com a mão na chave, quando sentiu um soluço. Voltou-se rapido, e viu ajoelhada a pobre velha, de mãos postas, movendo os lábios e deixando as lagrimas preencherem-lhe as rugas.

Jorge sentiu apertar-se-lhe o coração. Sem saber porque, não podia afastar-se d'ali.

-- Então as lagrimas d’uma pobre velha não valerão uma supplica?... balbuciou a anciã continuando de joelhos.

-- Valem uma ordem! exclamou Jorge com fogo e um tanto commovido, no que bem patenteava a sua nobre alma.

Ao mesmo tempo erguia a dedicada Engracia, que, despresando conveniencias, beijava com sofreguidão os cabellos do seu menino.

Finda esta scena de enternecimento, disse a boa velha com risonha intenção:

-- Os amigos do meu menino cansaram-se de esperar e foram-se embora!

Jorge sorriu-se.

Pouco depois, o joven conde dormia no seu leito. Ao lado estava Engracia, aconchegando-lhe a roupa, que elle afastava durante o agitado somno.

XV

Tentação para o crime

Já vão passados dois mezes depois que o conde do Pinhal Viçoso foi viver para o Porto.

O infeliz, arrastado pela vertigem, tem caminhado sem cessar pela estrada da ruina. Arde consiantemenle na febre do jogo. Esse vicio maldito, que empolga sem piedade a triste victima que se aproxima, tem levado Jorge ao ultimo extremo. Em casa já não possue um unico objecto de valor. Tudo tem ido na voragem. É triste dizel-o, mas se não fôra o auxilio da boa tia Engracia, o conde do Pinhal Viçoso, o rico fidalgo, teria já conhecido de perto uma palavra que só labios de indigente sabem proferir com verdadeira expressão -- fome!

A pobre velha tem vivido n'um continuo martyrio. Para se comprehender o grau de desespero a que a coitada chegou, basta dizer-se que uma noite, já quasi de madrugada, cansada de orar e de esperar pelo conde, soltou as seguintes palavras:

-- Deus terá medo de Satanaz?!...

Jorge baixara á maior degradação. Ninguem o dissera um fidalgo, ao ver a maneira porque era tratado nas esqualidas espeluncas. Estabelecera-se entre elle e a cafila habitual d'aquellas casas uma familiaridade revoltante.

Demais a mais, escacendo-lhe as grandes quantias, que lhe davam livre ingresso nos sorvedoiros metalicos de primeira ordem, havendo-se individado com os jogadores de maior calibre, vira-se obrigado, cedendo sempre ao vicio, a baixar até á espelunca propriamente dita.

Estas gradações são naturaes e vulgares.

Devemos, todavia, notar que Jorge era tido, ainda assim, na conta do mais graduado entre a sua roda.

Não apontamos esta circumstancia ao acaso. Em breve se lhe achará motivo.

Uma manhã, estava o desventurado conde na sua miseravel casa, quando um moço bateu á porta e lhe entregou um bilhete, cujo contheudo transcrevemos textualmente:

Snr Jorze

«Eu e o Jaquim graviel; estemos para arranjar um Negocio de mão Cheia precizemos do senhor para convinar, venha ter com a Gente ás 2 oras á taverna do Zé da bilha!

seu amigo

Manuel Pedro

Os primores calligraphicos eram da força da orthografia.

O senhor Manuel Pedro estivera em Coimbra, mas como moço d'uma guarda de cavalgaduras.

Jorge ficou um tanto embaraçado depois da leitura do famigerado bilhete. Estava n'um dos seus momentos lucidos, assim se lhe póde chamar.

-- Que me quererá este maltrapilho? pensou o fidalgo. Que negocio terá elle a convinar commigo?... Não vou, está decidido. Cumpre evitar a companhia d'esta gentalha. De mais me tenho degradado já.

Não obstante a este fito da parte do desfortunado fidalgo, passada meia hora tornou a ler o bilhete.

D’esta vez ainda conseguiu conservar-se firme no seu proposito.

Uma terceira leitura, próxima da hora marcada, veiu tudo destruir. O demonio da curiosidade não deixava Jorge.

-- Que mal me podérá vir d'esta entrevista? Naturalmente trata-se de jogo. Saberei conter-me. Vou.

E foi.

A boa da senhora Engracia das Dores já não se atrevia a fazer a minima objecção ao seu menino. Todos os seus rogos e conselhos haviam sido despresados, e até recebidos com aspereza. Pot isso, logo que o conde sahia, o recurso de que lançava mão era resar uma corôa a Nossa Senhora.

Acontecia muitas vezes misturarem-se as cebolas com os Padres Nossos.

A taverna do Zé da bilha era situada na rua de Cima de Villa. Era uma loja d’uma porta só. muito escura e muito asquerosa, ficando superior ao nivel da rua, creio que uns quatro degraus.

Toda a mobilia consistia em duas enormes mezas ao longo da casa, ladeadas por bancas de egual comprimento. No topo de umas prateleiras de pinho, que serviam de armação, via-se, como enfeite, creio eu, um enorme registo de Nossa Senhora da Rocha, e ao lado umas avantajadas armas de carneiro. Que irrisão! Entre o povo ha d'estes contrastes, que chegam a desproposito, mas em que elle não attenta nem toma á má parte.

Para que o leitor de tudo fique ao facto, cumpre-me explicar-lhe a razão porque chmavam ao dono da baiuca, Zé da bilha. Em verdade esta bilha tem uma historia.

Fôra o caso que uma vez -- bastantes annos vão já decorridos depois que isso succedeu -- o nosso locandeiro, que então era só o seu Zé, sem mais nada, recebeu das mãos d'uns homens seus conhecidos, e que as más linguas diziam ser contrabandistas, creio que umas seis bilhas cheias de azeite, a titulo de guarda. Acceitou a incumbencia, porém, no dia seguinte, quando os taes figurões vieram buscar o liquido oleoso, viram de amellado se tornara branco de neve. O caso era realmente para espanto, e, como não fossem muito dados a acreditar em bruxedos e feitiços, perguntaram sem a menor ceremonia ao seu Zé o que queria aquillo dizer, intimando-o ao mesmo tempo a que lhes explicasse o phenomeno.

-- Dêem vossês graças a Deus, replicou o seu Zé, por assim dizer já com um pé na futura alcunha -- e escusam de procurar palavras para me agradecer, porque de certo não as encontram.

-- Mas o que é que foi? -- perguntaram os suppostos contrabandistas, augmentando de espanto.

-- O que foi? foi que alguem os viu trazer para aqui as bilhas, suspeitadas de contrabando, e foram denuncial-os á justiça.

Os heroes da barreira olharam-se mudamente.

-- E depois? insistiram elles.

-- Depois entrou-me a justiça pela porta dentro, exigindo que eu apresentasse as bilhas que tinha recebido. Reparem na minha coragem! Cuidam talvez que me atarantei? Enganam-se. Prompto, meus senhores, disse eu. Vou buscal-as n’um instantinho. Dois dos taes sucios quizeram acompanhar-me. Não me oppuz. Então, em vez de lhes apresentar as bilhas que vossês me haviam entregado, mostrei-lhes umas outras que tinha cheias da leite. A justiça ficou satisfeita, e vossês ficaram salvos.

Houve um segundo olhar entre os contrabandistas; este, porém, foi mais expressivo, e não indicava espanto, mas duvida.

-- E que fizeste das bilhas de azeite? perguntou um dos mais incredulos e desconfiados.

-- Deitei-as ao rio, com receio que me dessem busca ao interior da casa.

O caso foi ruminado pelos interessados, mas não tiveram remedio senão calar-se.

Desde então, o seu Zé, sem mais nada, passou a ser o Zé da bilha.

Não sabemos se desta aventura provém a phraso popular -- bilha de leite por bilha de azeite. Talvez. Os investigadores que o attestem.

Na taverna do nosso conhecido Zé da Bilha havia, além da sala principal, um quartosinho interior, accessivel unicamente aos frequentadores mais intimos. D’este numero era o sr. Manuel Pedro, o qual estava esperando o resultado do bilhete que escrevera no tal cochicholo interno, tendo na frente um enorme copo de vinho verde, que lhe servia para acalmar a impaciencia. Ao lado estava, como de sentinella, uma garrafa preta. E dizemos sentinella, porque, de quando em quando, era rendida.

O homem estava inquieto, e dividia o enfado entre uma nuvem de fumo, que tirava d'um cachimbo de gesso, e uma nova avansada ao castello alcoolico.

Como dissemos, Jorge, não podendo resistir á curiosidade, dirigira-se para a rua de Cima de Villa, onde lhe tinham dito que era a taverna que procurava.

Olhara para differentes baiucas, faltando-lhe sempre o animo de perguntar se era ali o estabelecimento do sr. Zé da Bilha. Finalmente, depois de descer mais de metade da rua, ouviu alguém chamar-lhe pelo nome. Era um companheiro do sr. Manuel Pedro, que estava de vigia á porta da immunda locanda.

Jorge hesitou um tanto em entrar, mas afinal venceu os escrupulos, e passou o esqualido limiar.

-- O Manuel está á sua espera, disse-lhe o maltrapilho.

-- Onde? perguntou o desgraçado com algum acanhamento.

-- Aqui, respondeu o outro. Venha commigo.

E ambos atravessaram o importante estabelecimento, áquella hora deserto. Apenas o sr. Zé da Bilha eslava do lado de dentro do balcão, occupado em sommar uns riscos feitos a giz n'uma porta que em tempo fôra azul.

O dono da casa dignou-se suspender por um momento as suas intrincadas operações, e dizer em tom jovial ao recem-chegado:

-- Tem-me á sua ordem para lhe obedecer.

Jorge moveu levemente a cabeça, e entrou no quarto em que o sr. Manuel Pedro o esperava.

-- Ora, até que afinal! exclamou este ultimo. Julguei que o sr. Jorze não fazia caso dos amigos. Sente-se e beba alguma coisa.

-- Obrigado, respondeu, o fidalgo, meio arrependido de ter vindo.

-- Vejo que recebeu o meu bilhete.

-- Recebi!

-- Ó Jaquim, tornou o sr. Manuel Pedro dirigindo-se ao seu companheiro, que ficara ao pé da porta. Dize lá ao meátre Zé da Bilha que nos traga uma garrafa de aguardente, e tu deixa-te estar ahi por fóra, para que não venha algum impecilho incommodar-nos.

O pedido, ou ordem, foi cumprida.

O taverneiro mostrou-se diligente no seu mister.

-- Prompto, aqui está aguardente, disse elle.

E dispunha-se a dar á lingua, mas o sr. Manuel Pedro cortou-lhe a palavra, dizendo-lhe em tom aspero:

-- Está bom, agora não queremos mais nada, desejamos tratar d'um negocio particular.

-- É que eu não sabia... resmungou o dono do estabelecimento, lançando a Jorge um olhar escrutador, ao passo que se dirigia para a porta.

-- Agora estamos sós, começou o sr. Manuel Pedro, e podemos fallar á vontade. Antes, porém, de principiarmos, beba um golo d’esta menina, que a primavera não vae lá muito quente.

Jorge recusou ainda, mas, afinal, não teve remedio senão ceder ás renifentes instancias do seu començal.

Esta condescendencia não teve bons resultados, como adiante se verá.

-- Não sabe para que eu lhe pedi para que viesse ter commigo? perguntou o sr. Manuel Pedro, depois de ter assentado de si para si, que a aguardente é muito superior ao vinho verde.

-- Não sei, respondeu Jorge.

-- Saiba então que temos talvez ensejo de ganhar uma dinheirama por ahi além.

-- De que maneira?

-- Jogando.

-- Ora adeus! replicou Jorge bebendo um outro copo de aguardente.

-- Ora adeus! O sr. Jorze mostra duvida porque perde quasi sempre. Tem rasão. Affianço-lhe, porém, que chegou a vez de se desforrar.

-- Desforrar-me! E'esse desejo que me tem perdido. E’ uma terrivel visão, um fantasma que debalde tento segurar!

E sem querer, pelo instincto do habito, mais uma vez despejou o copo que o seu companheiro enchera.

-- Qual visão nem qual fantasma! repetiu o outro. Os fantasmas e avejões só servem para metter medo ás creanças! Acredite no que eu lhe digo, sr. Jorze, chegou a occasião de se vingar de todas as maganeiras que as meninas cartas lhe teem feito.

-- Queira explicar-se, objectou o fidalgo, acirrado já por certa cobiça, que muito se lhe desenvolvera nos ultimos tempos, e que é bem natural nos que se entregam ao chamado prazer do jogo.

-- Então lá vae a coisa em poucas palavras. Chegaram da feira d’Agualva e estão hospedados na hospedaria do Norte, de passagem para os Arcos, dois lavradores machuchos. E’ de suppor que tragam os bolsos bem recheados, porque a feira, segundo me disseram, esteve bôa.

-- E então?

-- Então trata-se de armar uma rede aos taes amigos, e obrigal-os a entreterem-se um pouco n’uma innocente jogatina.

-- Mas como ha de ser isso? perguntou Jorge, deslumbrado, a seu pesar, pelas brilhantes cores do quadro que lhe pintava o sr. Manuel Pedro.

-- Cá tenho o meu plano.

-- Mas que plano?

-- Os homens não me conhecem; apresento-me na hospedaria, e peço um quarto. Á noite, acabada a ceia, depois de ter fallado muito á mão com elles, proponho para nos divertirmos um bocado, jogando. E’ de crer que na melhor bôa fé acceitem a proposta, e então é negocio decidido.

-- Negocio decidido! Porque?

-- Porque sou muito feliz!...

Esta ultima palavra foi pronunciada com uma inflexão especial. Denunciava-se n‘ella o ladrão descarado.

Jorge comprehendeu perfeitamente o alcance d1aquelle -- muito feliz. Reprovava intimamente a acção em projecto, mas não tinha forças para o dizer. Limitou-se a esgotar d’um trago mais um copo de aguardente, o qual começou de inflammar-lhe a cabeça.

-- Até aqui vae o negocio bem, proseguiu o sr. Manuel Pedro, accendendo ao mesmo tempo o cachimbo, que se havia apagado; mas falta ainda o principal, que foi para que eu o mandei chamar.

-- Que é então que falta?

-- A mola real da machina, respondeu o interlocutor do infeliz conde, enchendo-lhe novamente o copo. Para jogar é preciso dinheiro, e para jogar com dois lavradores endinheirados mais dinheiro é preciso. Bem vê que não posso puchar por meia duzia de pintos; era o mesmo que dizer-lhes: teem na sua frente um pelintra. Cumpre mostrar um bom punhado de loirinhas, para os homens fazerem de mim bom conceito, e cederem á tentação. Ora ahi está. Se o sr. Jorze quer ser meu socio n'este negocio, certo, torno a repelir, ha de passar-me para a mão, pelo menos, vinte libras. Creio que não desconfia de mim, em todo o caso pôde ir tambem para a hospedaria e vigiar-me à sua vontade. Até é melhor, porque se dividem logo os lucros. Que diz a isto?

-- Digo que não tenho as taes vinte libras.

O sr. Manuel Pedro soffreu um ligeiro choque, mas não desanimou. Puxou com força o fumo do cachimbo, fazendo-o assumir proporções de canno de vapor, e disse com modo convincente:

-- Não tem as vinte libras, mas de certo não faltará quem lh’as empreste. Que diabo! pois o senhor, um figurão, não póde arranjar esta insignificancia?...

-- Não posso, não posso... replicou Jorge com algum embaraço.

-- Qual não pode. Faça um pequeno sacrificio, qne vale a pena.

Não sei que artes teve o sr. Manuel Pedro para convencer Jorge a arranjar o dinheiro, o que sei é que o desgraçado moço prometteu satisfazer-lhe o dezejo, allucinado com a alegria dos lucros.

Quando Jorge sahiu da taberna do sr. Zé da Bilha não levava a rasão tão firme como quando entrara. Os repetidos copos de aguardente tinham produzido o seu effeito natural.

O conde sentia-se com febre, e n’essa excitação via passar pela mente rios de oiro de envolta com grossas nuvens de cartas, Era como uma vertigem.

N'esta disposição de animo se foi a ter com um amigo, amigo de occasião, o qual estava hospedado n’um hotel da Batalha.

O amigo tinha sahido, mas devia voltar.

Jorge resolveu-se a esperar na sala commum, pedindo para o acompanhar uma garrafa de cognac.

Insistimos ainda n’este ponto: a indole de Jorge quasi que se virara do avesso, permittam-nos a liberdade da frase. Succedera-lhe como ao joven inexperiente, que a familia tem opprimido com regras e preceitos, e que, ao vêr-se livre nas suas acções, se engolpha sem cautela em todos os prazeres, como para se desforrar do tempo perdido. É certo o atordoamento. Quando soltam a presa á agua estagnada, a inundação é inevitavel.

Jorge fôra sempre morigerado: chegando á beira do declive do desregramento, viera a vertigem, não podendo suspender o terrivel resvalar.

XVI

Desenlace inesperado

Ao lado da sala em que estava o desventurado fidalgo, havia um pequeno gabinete, que servia de escriptorio ao dono do hotel.

A porta que communicava as duas casas estava aberta, e Jorge poude vêr atravez d’ella o proprietario do estabelecimento sentado a uma secretária, fazendo contas e conferindo uma porção de dinheiro em papel e metal.

Jorge olhou com indifferença para aquelle trabalho vulgar.

Passados alguns minutos, o industrial fechou o livro em que fizera os respectivos assentos, e guardou o dinheiro: n'uma das gavetas da secretária.

Tudo isto observou Jorge ao acaso.

O dono da hospedaria sahiu do escriptorio, e atravessou a sala, reparando então no conde, a quem fez um rasgado comprimento.

Jorge, apesar de meio embriagado, não se esquecia do promettimento que fizera ao sr. Manuel Pedro.

O amigo que esperava não apparecia, e a impaciencia ia-o dominando cada vez mais. Era quasi noite, aproximava-se a hora em que ficára de entregar as vinte libras pedidas, e nada tinha ainda de positivo.

Começou de sentir um frenesi, que mal podia dominar, e que até augmentava cora as repetidas libações.

De repente, assaltou-o uma idéa infernal. Ali proximo, na casa immediata, estava dinheiro, muito dinheiro, mais do que precisava n’aquella occasião. Sentiu-se envolto n'uma atmosphera de crime. Passou a mão pela testa com verdadeira furia, como para apagar aquelle pensamento máu, que a seu pesar o empolgava, e em seguida bebeu tres copos do liquido que tinha na frente. Depois, cruzou os braços sobre a mesa, e a cabeça em fogo foi n’elles buscar apoio.

Assim esteve alguns segundos.

O que n’esse curto espaço de tempo se passou n’aquelle cerebro escandecido, não o podemos nós dizer, porque, se bem que o comprehendamos vagamente, minguam-nos as forças para o explicar.

A allucinação é uma onda de fogo que nos arrasta na sua corrente infernal.

Jorge ergueu-se d'um salto, e com os olhos injectados de sangue, as faces com a lividez da morte, os cabellos que se dissera hirtos, correu como um raio para a secretária do escriptorio contiguo, lançando as mãos febris aos puxadores da gaveta.

Ao mesmo tempo sentiu-se agarrado por detraz, e ouviu uma voz dizer-lhe em tom abafado:

-- Ladrão!... Aquella palavra feriu-o no mais intimo d'alma. Hasgou-lhe fibra por fibra. Foi-lhe ao mesmo tempo lamina aguçada e brilhante para lhe ulcerar o coração e reflectir-lhe todo o horrivel do seu viver actual. Foi tremenda a sensação, tão grande que lhe varreu a embriaguez. Aquelle instante valeu-lhe seculos de reflexões. Ia naturalmente ser preso pelo mais degradante crime, arrastando assim para o todo o nome respeitavel de seus avós. Todos lhe veriam no rosto o ferrete da suprema ignominia. Com o desespero arrancaria a pelle, mas ainda por além do sangue appareceria ameaçadora a nodoa indelevel da infamia. O cerebro do infeliz transformou-se em oceano em furia.

-- Ladrão!... repetiu como um eco o desgraçado, cahindo ao mesmo tempo n'uma cadeira.

Neste movimento, que fôra rápido, voltou-se um pouco, e o criado que lhe lançara a mão poude vêr-lhe o rosto.

-- O sr. conde do Pinhal Viçoso!... exclamou elle com um não vulgar espanto.

-- Cale-se, pelo amor do Deus!... balbuciou o fidalgo. Poupe o meu nome a tão grande vergonha!

E n'isto occultou o rosto entre as mãos com um commovedor desespero.

Passára-se no criado o que quer que era de estranho. O pobre rapaz exprimia ao mesmo tempo admiração e sentimento.

-- Descanse, sr. conde, disse elle com voz commovida; não sou ingrato. Salvou-me a vida, hoje salvo-lhe a honra!

Jorge ergueu os olhos para o seu generoso salvador, fictou-o com indizivel expressão, e mais se lhe augmentou o espanto não reconhecendo n’aquellas feições contrahidas pela magua nenhumas recordações remotas.

-- Não me conhece? perguntou o rapaz com um sorriso.

Jorge cravou lhe um olhar ainda mais profundo.

-- Não tenho a menor idéa, disse elle, não conseguindo altear a voz.

-- É que o senhor conde faz o bem sem esperar que lh’o agradeçam. Não se lembra de vêr uma vez uma pobre velha lavada em lagrimas, clamando em altos gritos que lhe salvassem o filho, que as chammas d’uma barraca incendiada promettiam devorar?...

-- Pois é...

-- Sou o homem que v. ex.ª salvou da morte, com risco da propria vida, isto quando ninguem se atrevia a mover-se, tal era a eminencia do perigo. Minha pobre mãe bastantes vezes contava esta historia, sempre com as lagrimas nos olhos, e uma benção por final. Coitadinha, já não torna a fallar n'uma coisa que não podia esquecer; só se os anjos a quizessem escutar.

-- Sua mãe morreu?

-- Morreu... replicou o bondoso rapaz, inundando-se-lhe ao mesmo tempo os olhos d'agua.

-- Foi por isso que deixou a aldeia? perguntou Jorge com um suspiro, porque ao fallar n'aquella terra querida appareceu-lhe de subito a imagem de Adriana.

-- Foi. Nada me prendia ali. De mais a mais, desde que sahira de lá o anjo do logar, reinava a tristeza por toda a parte. Para os pobres, coitadinhos, é que foi peior. Fazia mesmo chorar o coração vêr as creancinhas a perguntarem aos paes com as lagrimas nos olhos pela sua rica menina Adriana. Se ella não se occupava senão em fazer-lhes festas e dar-lhes mimos. O seu nome anda sempre ligado ás orações de todos. Contaram lá uma vez que o pae da menina tivera um ataque e estava muito doente; então reuniram-se uns vinte pequenitos, e foram todos pedir pelas portas para a ajuda d’uma missa por intenção das melhoras do pobre militar, sim porque o senhor padre prior não dá ponto sem nó, como se costuma dizer. A igreja encheu-se de gente. É que elles bem sabiam o que deviam áquella santa familia. Hoje corta mesmo o coração passar pela casa onde moravam. As janellas sempre fechadas, as paredes, d'antes tão brancas, enegrecidas pelo inverno, e o jardim, ai o jardim! no sitio das flores só se vêem cardos e ortigas, a herva brota por toda a parte. Foi-se a jardineira, e com ella a alegria. Aquillo agora não è aldeia é um cemiterio!

Imagine o leitor a impressão que estas palavras fariam em Jorge. Estava-lhe reservado para aquelle dia um sem numero de commoções diversas. Estas recordações de tempos que tanto apreciára, apesar de lhe reverdecerem as mais crueis saudades, por outro lado modificavam-lhe a dôr agudissima que sentira ao dirigirem-lhe o ignominioso epitheto de ladrão. O coração humano tem d'estas estranhas particularidades.

Com o nome de Adriana subtrahira-se Jorge á terrível pressão que o opprimia sem piedade. O desespero transformára-se em melancolia. Vêr que, apesar de haver aspirado de perto o crime mais infamante, as consequencias não tinham nada de degradantes, porque um amigo imprevisto o salvára, era sem duvida uma grande consolação.

Aquelle acto de supremo desespero fez-lhe reparar minuciosamente na sua vida actual, e d'aquelle exame sahiu com a emenda no coração e o pensamento em Deus. Quando estava no mais intenso das trevas veiu uma luz benefica illuminal-o.

«Foi a Providencia que me salvou!» pensava elle, cheio de unção e reconhecimento.

E passado um momento, em que a idéa se lhe concentrára em Adriana, accrescentou:

-- Talvez que cedendo ás orações d'ella!

Depois da scena que assim descrevemos, Jorge, não podendo dominar uma louvavel e justificada commoção, apertou nos braços o excellente rapaz, dizendo-lhe:

-- O serviço que me presta nada ha que o pague. Um dia saberá quanto sou desgraçado, e que só a fatalidade me tem levado á extrema degradação. De hoje em diante serei outro homem, infeliz sim, mas sem mancha. O que lhe posso jurar é que não encontrará muitos amigos como eu serei seu.

-- Ó senhor conde... balbuciou o rapaz, não podendo conter as lagrimas.

-- Hoje não lhe posso provar o que digo, mas um dia virá em que eu lhe testemunhe em beneficios toda a minha gratidão.

Separaram-se.

Jorge, depois de passar toda a noite com o pensamento no seu viver de hoje, horrorisou-se por tal fórma, ecoando-lhe ainda nos ouvidos a terrivel palavra -- ladrão! -- que resolveu partir para Lisboa no dia seguinte. Não podia continuar n'uma terra que o ia envolvendo no mais asqueroso lodo. Mais uma vez accusou fortemente seu pae, que era, na sombra, o verdadeiro causador de tudo que lhe acontecia. Chorou-lhe o coração, despertaram-se-lhe mil saudades do tempo em que tinha a alma tão socegada como a agua d’um lago, e quando se lembrou do castigo que merecia quem assim lhe transformara os sorrisos em dôr, limitou-se a dizer:

-- Deixal-o, bastam-lhe os remorsos para correctivo!...

É que Jorge, coração de pomba, não sabia vingar-se, e depois que vingança se ha de tirar dum pae?

Quando a senhora Engracia das Dores soube das novas disposições do seu menino, isto é, de voltar para Lisboa, e pôr um freio á vida que levava, ia-se tornando uma outra calamidade com os seus abraços e exclamações em atroador falsete. A pobre velha nem sabia que dizer ou fazer; toda ella era lagrimas e alegrias.

De facto, Jorge retirou-se do Porto.

Creio que o sr. Manuel Pedro ainda hoje está esperando as vinte libras com que tencionava attrahir os grossos dinheiros dos dois lavradores minhotos.

Parte III

Sorrisos por entre lagrimas

I

Supplicio d'um erro

Não sorriam os praticadores de más acções. O crime, ou erro, teem sempre, mais tarde ou mais cedo, o castigo que a justiça exige. Não crêmos na completa impunidade. Á falta de outro correctivo, lá estão os remorsos, que não é talvez a pena menos pesada. A tranquillidade de consciecnia é um balsamo, é uma alegria, é a coragem para tudo, é o andar de cabeça levantada, é a certeza de poder ouvir, e não a necessidade de escutar; perdida essa tranquillidade, não virá o proprio gozo envolto em sombras? não se tornará o prazer uma palavra falsa e de triste convenção? Póde encarar-se a morte de frente, mas o olhar vibrante, e intenso, e profundo, da culpa grave, acho difficil.

A condessa Julia ia sentindo, mais e mais, o peso inevitavel do errado passo que dera, verdadeira traição do acaso, ou antes da fatalidade. Alguns murmurios lhe chegavam aos ouvidos, e a vergonha inundava-lhe as faces, a seu pesar. A infeliz lastimava com lagrimas de sangue a sua sorte, que bem differente devera ter sido.

-- Não foi para isto que eu nasci. Deus do céu! dizia ella no remanço do seu gabinete, a sós com a sua consciencia, e com os pensamentos de fogo, a que não podia subtrahir-se. A minha alma estava pura, e prompta a abrir-se para o amor, mas para o amor que os anjos cantam nos seus hymnos de celeste harmonia. A desgraça, sempre infame e invejosa de tudo que respira felicidade, veiu ferir-me impiedosa, quando se me descerravam as portas do mundo, e se me fechavam as do collegio. Hoje sou outra, fugiu-me a innocencia dos meus verdes annos, o crime manchou-me a pureza, tornei-me má, quando a minha indole se inclinava para o bem. E não poder eu sahir d’este inferno! Uma terrivel mão de ferro me prende com furia, baldando-me o debater ancioso! Oh! é horrivel!

E a triste entregava se á dôr mais viva, vergando ao pezo da maior desventura, porque não tinha remedio o seu crime, porque não podia voltar para traz, porque a pureza, uma vez perdida, já não se póde rehaver. Como encontrar o diamante cahido no grande Oceano?

Para que o leitor forme uma idéa mais perfeita do soffrimento, do supplicio, d’esta infeliz senhora, ponhamos de parte o rebuço d’uma indiseripção, e presenciemos uma scena entre a condessa e o seu amante, scena passada no elegante gabinetesinho que já conhecemos.

Era noite, e noite bastante escura.

A condessa erguera-se e dirigira-se para a janella. Encostou a testa abrasada aos vidros um tanto humidos, e começou de fitar as grossas nuvens que no céu se cruzavam.

Matheus da Silveira, estranhando aquelle procedimento, aquella bem visivel indifferença, sorriu cynicamente, e principiou a folhear com a maior fleugma as paginas de um album, que estava sobre o toucador.

De quando em quando, depois de passar alguns retratos, olhava para Julia, e via-a ainda na mesma attitude contemplativa. Sorria e continuava na sua revista. Ao chegar á ultima photographia, olhou mais sériamente para a condessa, e depois, fechando o album, passou a observar os embutidos da capa, que representavam uma venus, dizendo ao mesmo tempo com voz naturalissima:

-- Estou-te estranhando hoje, condessa. Julia sobresaltou-se ligeiramente, sahindo afinal d’aquelle cogitar tão profundo. Lançou ainda um olhar para o céu, e foi silenciosa sentar-se no sofá, depois de fechar cuidadosamente as portas de dentro da janella.

Matheus da Silveira esperou por alguns momentos uma resposta, ou uma explicação. Vendo, porém, que nada obtinha, disse em tom, meio cynico e meio carregado:

-- O peso da electricidade que se está desenvolvendo lá fora parece-me que estende até aqui o seu dominio.

A condessa ainda d’esta vez não respondeu, mas também se via pelo latejar das fontes, e pelo estranho brilho do olhar, que alguma coisa extraordinaria se passava na sua alma.

Passado um pequenissimo intervallo, Matheus da Silveira replicou:

-- Então hoje não te mereço uma palavra, sequer?

A condessa, depois de breve lucta, pareceu tomar uma resolução decisiva, e, levantando-se com impeto, disse com voz vibrante:

-- Se as minhas palavras foram raios, não estaria um momento calada ao pé do senhor.

Silveira sorriu, e pensou entre si:

-- Temos ciumes!

Depois em voz alta:

-- Realmente estas scenas principiam a enfastiar-me. Cumpre pôr-lhe um termo; creio que não é a mim que compete fazel-o.

A condessa conservou o mesmo silencio.

Silveira encrespou os sobr'olhos, esperando resposta; vendo, porém, que nada obtinha, resolveu-se a continuar:

-- Até aqui tenho supportado as tuas creancices, que outra coisa se lhe não póde chamar, tenho ouvido impassivel, e perdoado sempre, os proprios insultos que me tens dirigido, mas hoje estou resolvido a emancipar-me.

-- Até que afinal! exclamou a condessa com uma alegria amarga.

Matheus da Silveira estava de ha muito habituado a ouvir bem claramente o que um homem digno não escutaria, sequer; encostando-se, porém, ao seu cynismo, não se mostrava resentido. Quando a condessa, acirrada pelos remorsos, o exprobrava até á injuria, limitava-se a simular uma sahida, esperando que a infeliz vergando ao peso da sua situação, lhe fosse embargar a passagem. Assim succedia sempre. O infame fez d’esta vez o mesmo manejo. Pegou no chapeu, dizendo em tom gelado:

-- Vejo que sou aqui demais.

O heroe dirigiu-se para a porta, na esperança de lhe não transpor os umbraes. Estava já quasi a tocar o reposteiro, e a condessa não lhe invalidava a acção. Affrouxou o passo, demorou-se quanto possível, e nada. Chegando ao pé da porta, viu illudida a expectativa, e não teve remedio senão contemporisar. Retrocedeu.

-- Não devo retirar-me sem ouvir uma explicação, disse elle, porque a minha consciencia está livre.

-- E ainda falla em consciencia, o senhor! exclamou a condessa com voz vibrante. Se tivera consciencia, respeitaria o homem que lhe chamava amigo, não abusaria da inexperiencia d’uma crcança, não lhe acirraria a vaidade despeitada, não a conduziria para o trilho da ignorancia, que conduz ao paradeiro da eterna vergonha. E falla em consciencia!... Saia, senhor, e para sempre. Poupe ao menos á victima o supplicio da presença do algoz!

O leitor espera ver, naturalmente, o importante Matheus da Silveira curvar a fronte ao peso d’aquellas amargas verdades, e sahir silencioso, por não encontrar uma palavra de defesa? Engana-se. Chegara-lhe o momento de pôr em acção todo o cynismo de que podia dispôr, que muito era, cumpre confessal-o. Gorara-lhe o plano, mas isso não era motivo para retirar. Como habil general, lançou mão da sua estrategia, dispondo-se a recorrer aos meios extremos, a jogar as ultimas.

Em vez de sahir, como lhe ordenara a condessa, foi indolentemente sentar-se, com a mais repellente placidez, n'uma cadeira á Voltaire.

-- Então que é isso, senhor? perguntou Julia, visivelmente indignada.

A resposta de Silveira foi um sorriso de desdem.

-- Pois não haverá no senhor um poucochinho de amor-proprio, de dignidade, que o obriguem a transpor o limiar d’aquella porta?... insistiu a condessa, redobrando de despeito.

-- Vejo que estás louca, replicou o cynico sem se alterar. Consola-me, todavia, a idéa de que essa loucura será passageira. Diligencia volveres á tua habitual e apreciavel lucidez, e vem sentar-te ao pé de mim, que te quero ralhar, e perdoar tambem.

A infeliz senhora passou a mão pelos olhos, como para apagar a imagem d'aquelle homem, que era o seu anjo mau.

-- O seu procedimento vae além de tudo quanto se possa imaginar! disse ella.

-- Ainda não passou o accesso. Esperemos.

-- Pela segunda vez, senhor, saia! objectou a condessa com intimativa.

-- Manda-me pôr fóra pelos teus lacaios, replicou o infame com uma risada de revoltante cynismo. Ficarão sabendo o que ignoravam, isto é, que tinham um amo desconhecido.

A desventurada condessa estremeceu até ao mais intimo d'alma.

-- Então emmudeces, meu anjo? continuou Matheus da Silveira. Vae-se-te acalmando a

febre? Por um momento julguei que a alienação te chegasse á furia, o que seria um grande desgosto para mim. Querias que eu me retirasse para entregares a pasta a algum novo adonis...

-- Senhor!

-- Devias conhecer-me melhor, minha querida. Vejo, com pesar, que de nada te serviu tratares-me tão de perto, e com tanta intimidade. Realmente, quebrar o fio que nos prende é uma rematada ingratidão, é apreciares muito mal o meu amor, que data de bem longe, porque, como sabes, assaltou-me em tempo a idéa de ser teu esposo. Não o consegui, porque primeiro estão os nobres, mas alcancei talvez mais, ainda que por meio differente. Hoje estão por tal fórma entrelaçados os nossos elos, que é um impossivel desunil-os, e pasmo, na verdade, como te veiu a idéa de os despedaçar. És uma ingrata, repito.

-- Por quem é, senhor, retire-se, e esqueça uma leviandade que será para mim um eterno remorso.

-- Vês ? estás-me offendendo o amor-proprio: chamas leviandade ao que eu me comprazia de tomar á conta de muito amor. Acredita que não saio d’aqui.

-- Porque?...

-- Porque não m'o consente o coração.

-- Ha de sahir!

-- Emfim, se muito insistires, e para te dar gosto, sahirei.

-- Ah!...

-- Mas a minha pobre alma vêr-se-ha por tal fórma cheia de amargura que, afinal, mau grado meu, trasbordará.

-- Que quer dizer?

-- Quero dizer que heide queixar-me, e não ás paredes, que essas não podem dar-me razão. Contarei aos amigos a minha desventura, com todos os pormenores, e bastante me pesa que o nome da minha querida condessa faça parte d’esses pormenores!

-- Oh!... exclamou Julia, occultando o rosto entre as mãos.

-- Estás hoje prodiga em interjeições. Essas amostras de melodrama não se ageitam com o meu paladar, é mesmo fossil.

-- Isso é uma ameaça infame. É abusar da fraqueza d'uma mulher!

-- Valha-te Deus, minha querida, tudo exageras, e não queres ver as coisas pelo lado real. Ameaça! Não crês então no fel do amor? Ora vamos, creança, tem juizo.

-- Ai! Deus do céu! exclamou a desventurada condessa, este castigo é demasiado para quem foi arrastada para o crime!

Matheus da Silveira sorriu.

-- Tenha piedade de mim, senhor! accrescentou Julia, dirigindo-se em tom de supplica ao seu amante. Que mais lhe posso eu dar? Entreguei-lhe a honra, deve conserval-a. Hoje que o arrependimento me envolve, como espera que lhe dê amor, que o receba com agrado? Esqueça-me, considere-me como um cadaver.

-- Estás hoje extremamente lugubre, minha querida, replicou Matheus da Silveira. Como queres que olvide quem me tem envolvido em ondas de ventura? Como queres que acceite como cadaver a imagem viva da formosura, da graciosidade, da elegancia, da distincção? Considerar mortos uns olhos que desprendem scintillas!... Se a morte é tão bella e brilhante, vou fixar a minha residencia no Alto de S. João!

A jovialidade intempestiva d’aquelle homem feria mais fundo do que uma apostrophe violenta.

A infeliz esposa libava todo o fel do soffrimento. Depois d’uma lucta horrivel, rebemtaram-lhe as lagrimas com pungente intensidade.

-- Tenha compaixão de mim! disse ella entre soluços. Pois nada lhe merece a mulher que lhe entregou a sua honra, a quietação de seus dias, a paz da sua consciencia, toda a sua vida, o proprio futuro, que ainda um dia lhe podia sorrir?... O senhor não pode ser tão mau que desdenhe sem piedade as lagrimas d’uma infeliz mais digna de lastima do que de punição!

-- Valha-me Deus, condessa, objectou o cynico sem se alterar; vejo com pesar que vaes descahindo: do melodrama baixaste ao drama. Estás hoje cheia de nervoso, mas tenho esperança de que a crise ha de passar. Tem suas intermitencias. Ainda agora estiveste melhor. Louca! como queres que me resigne a perder o que é para mim uma grande gloria?... depois de ti, que outra mulher me póde captivar a attenção? Quando appareces no theatro, e em qualquer parte, todos os olhares se volvem para o astro brilhante que chega a deslumbrar! As mulheres cobrem-te de inveja e odio, os homens cobiçam-te e suspiram em côro, e eu, fitando-te de soslaio, ouvindo de todos os lados gabos e admiração para ti, exulto até ás delicias, e sinto suavemente acariciada a minha vaidade. Digo então em pensamentos: aquella mulher que todos preoccupa, que todos desejam, que se distingue entre tadas do seu sexo, é minha, porque sou o seu amante querido! Que voluptuosidade!

-- Cale-se, senhor! Causa-me tedio e augmenta-me a vergonha. A sua culpa nem tem o amor desordenado por attenuante. Em si não ha mais do que a matéria asquerosa e brutal; o espirito afoga-se-lhe no lodo.

-- Torna a levantar-se a situação. É de rigor. Já vês, minha querida, que não posso despresar o meu maior prazer, talvez o unico, digo-o francamente, e rogo-te que não consideres isto como lisonja. Não tenho espirito; mas ainda possuo o necessario para te saber apreciar. És muito ingrata, porque desdenhas este meu aferro por ti. Quero perdoar-te, pelo muito que vales a meus olhos. Passada esta crise, has de julgar-me melhor. E agora retiro-me, porque vejo que estás incommodada, e eu não quero por fôrma alguma causar-te o menor desprazer. Porém, até ámanhã!

Matheus da Silveira preparou-se para sahir. Quando chegou ao pé do reposteiro, repetiu:

-- Até ámanhã!

Desappareceu.

A condessa ficou como fulminada. Que havia de fazer? Sugeitar-se á lingua viperina d’aquelle homem, que iria infamal-a por toda a parte, não tendo a nobreza de caracter para lhe sofrear o despeito?... Era horrivel!

Desde aquelle dia começou de viver no mais atroz supplicio. As lagrimas vinham sempre orvalhar as criminosas entrevistas, mas o infame e brutal seductor não mostrava a menor commoção. O rochedo zomba sempre da passagem da maré.

II

Cousequencias desastrosas

Jorge, chegando do Porto no comboyo da tarde, não julgou conveniente dirigir-se para o palacio, sem primeiro assentar entre si as bases da sua nova existencia.

Metteu-se n'um trem com a velha e fiel Engracia, e disse ao cocheiro que parasse á porta do hotel de tal, o nome não faz ao caso.

Assim foi.

-- Prepare-me dois quartos, disse elle ao criado do hotel.

-- Sim, senhor.

-- Arrange-nos tambem de jantar.

-- Isso agora é que é mais difficil, respondeu o criado.

-- Então porque?

-- Porque é já tarde, e porque se está servindo um jantar na sala grande.

-- Não me parece motivo sufficiente... objectou Jorge.

-- Só se o senhor quizer esperar que se acabe o outro serviço.

-- Pois esperarei.

A senhora Engracia das Dores foi tomar posse dos seus aposentos, importando-se pouco com a comida, porque vinha muito incommodada da jornada.

-- Isto já não é o que foi, meu rico menino, disse ella com um suspirro. Estou mesmo acabadinha de todo! Vou para o meu quarto rezar uma corôa a Nossa Senhora, por termos chegado a salvo, e depois talvez descanse um bocadinho. Entretanto, se o meu menino quizer alguma coisa, não tem mais do que chamar.

-- Vá socegar. minha boa Engracia, vá.

A senhora Engracia das Dores foi para o seu quarto, que era um pouco mais afastado, e Jorge dirigiu-se para o aposento que lhe destinaram, o qual ficava contiguo á casa de jantar.

O conde sentia-se um tanto prostrado pelos incommodos do dia, porque nada ha mais enfadonho do que passar dez ou doze horas n’uma carruagem de caminho de ferro. Subiu para a cama, e procurou ali a posição horisontal, que não é das peores. Estava-lhe, porém, reservado um supplicio de Tantalo: ao passo que o estomago lhe soltava suspiros e queixumes, ouvia distinctamente na sala proxima o telintar dos talheres nos pratos, e o vozear ruidoso dos alegres convivas. Não era muito agradavel, porque não só lhe aguçavam a vontade, como lhe prohibiam que socegasse.

Resolveu-se a pegar n’um livro, esperançado em que a leitura o distrahisse, ajudando-o a esperar. A bulha, porém, era tal, que em vão diligenciava dar valor aos caracteres que a vista percorria abstractamente. Sem querer, começou de applicar o ouvido, em principio com indifferença, mas depois com crescente attenção, porque lhe pareceu reconhecer algumas vozes entre os joviaes convivas.

Eis o que elle ouviu:

-- Pois tu sempre queres casar? dizia uma voz em tom de reprehenção.

-- Quero; é ponto assentado.

-- Estás perdido, homem!

-- Se acreditasse em bruxas apostaria que alguma te havia enfeitiçado.

-- Assim desprezas os teus protestos! Meus senhores, vão preparando as casacas, para assistirem ao enterro d'este infeliz.

-- Proponho para que todos concorramos com alguma coisa para se mandar dizer uma missa por alma desta desventurada victima.

-- Isso não, que era dar dinheiro a ganhar aos padres. Safa!

-- Mas dize-me, desgraçado, é grande paixão que te move?

-- Sim, uma grande paixão! respondeu o interpellado, sem parecer dar importancia aos dichotes que se cruzavam de todos os lados.

-- Degenerou, este maldito!

-- Quem tal havia de dizer!

-- Um rapaz com idéas tão livres!

-- E que até nos servia de exemplo.

-- Bom exemplo, não tem duvida.

-- E é muito nova a tua bella?

-- Terá, quando muito, doze annos de existencia.

-- Demais a mais uma creança!

-- Então ella julga que tu és alguma boneca?

-- Naturalmente has de levar a menina ao Passeio, para mais á vontade poder brincar com a pella e com o arco. Todos -- Ah! ah! ah!

-- Adquiri a triste certeza de que todos vossês são uns grandes parvos, disse, finalmente, o començal que servia de alvo áquella hilaridade, conseguindo, não sem algum custo, fazer-se ouvir. A minha deidade terá doze annos de existencia, mas de existencia provavel, de existencia futura, porque está quasi a entrar, se é que não entrou já, na setagessima primavera.

-- Oh!... exclamaram em coro os circumstantes.

-- Ferve em mim uma paixão violenta, infrene, mas é pelos muitos contos de réis que possue aquella Mathusalem do sexo frágil.

-- Bravo!

-- Tornamos a encontrar o nosso homem!

-- Mas se o não perdemos!

-- É verdade, apenas o tinhamos julgado mal.

-- Graças, que fazem justiça ao meu coração! Agora, meus queridos companheiros, proponho que enchamos bem os copos, e levantemos um brinde aos nossos amores!

-- Hourra! -- gritaram os convivas, accedendo ao convite.

Os copos foram esgotados, assentando depois na mesa com estrondo.

Houve uma excepção. Foi Matheus da Silveira, que tambem fazia parte da orgia.

-- Então que é isso, Matheus, despresaste o brinde? Não bebeste?

-- Não bebi, respondeu o nosso conhecido, porque não tenho amores.

-- É possível!...

-- Estou viuvo, meus amigos.

-- Então a celebre conquista de que tanto nos fallavas?

-- Evaporou-se, respondeu Matheus da Silveira com um sorriso significativo, sorriso que envolvia dois pontos.

-- O marido soube da coisa e fez escandalo?

-- Qual! o marido anda por esse mundo de Christo, em cata do esquecimento d’uns outros amores, que lhe foram malogrados.

-- Mas então?...

-- Então a minha deusa vergou ao peso dos remorsos. Ah! ah! ah!

-- E deu-te a demissão?

-- Não o quero negar; mas ha de arrepender-se.

-- Que tencionas fazer?

-- Vingar-me!

-- É assim que correspondes ao que essa mulher fez por ti? é assim que pagas o sacrificio da honra, que ella por tua causa manchou, ou antes perdeu? objectou um dos convivas, de certo o de mais consciencia.

-- Não me falles em honra, creança! respondeu Matheus da Silveira, elevando-se á altura do seu cynismo. Esse palavrão foi inventado de proposito para atemorisar os espiritos fracos. É o espectro de todas as coisas. E deve a intelligencia humana, a intelligencia esclarecida, curvar-se perante um phantasma? É ridiculo. N’este mundo, que é como uma sala de espera do ignoto, devemos fazer a diligencia de tirar o maior partido possivel do tempo que aguardamos.

-- És terrivel!

-- Serei. A mulher deve de comprehender que não passa d’uma simples escrava do homem.

-- Escrava do amor, ainda posso admittir.

-- Escrava na verdadeira e genuina accepção da palavra. E o que se faz á escrava fugitiva e que despresa o seu senhor? Apanha-se, e faz-se-lhe vibrar o azorrague!

-- Pobre mulher!

-- Mas, afinal, quem é a victima? perguntou o mais curioso dos començaes.

-- Corriam por ahi certos rumores, objectou um outro, que me parece terem rasão de ser.

-- Ate aqui tenho guardado o mais inviolavel segredo, disse Matheus da Silveira; agora, porém, que me feriram o amor-proprio, vou tudo patentear.

Os convivas ficaram todos suspensos, e como que aspirando os vagos perfumes de escandalo de que a athmosphera estava impregnada.

Silveira, depois de se interromper um momento, não sei se para reflectir se devia ou não commetter a infamia eminente, se para gosar do pronunciado anceio dos seus companheiros, proseguiu:

-- A mulher que vou denunciar é tanto mais culpada, leva tão longe o desfaçamento, que não duvida affrontar as settas da opinião publica, apesar das minhas ameaças. Este procedimento merece um correctivo singular, porque, aliás, d'aqui apouco estariamos sugeitos aos menores caprichos das nossas amantes. Cumpre provar-lhes que não ha impunidade, e que, uma vez cabidas no laço dos amores occultos, devem curvar-se ás determinações do homem, sem opporem a memor resistencia. Não ha mais do que despedir um amante, receber um outro, e rir-se a perfida com este da queda do primeiro! E a nossa dignidade?... Senhores, arvorem-se em tribunal, e sentenceiem conforme for de justiça. Eis o nome da ré: condessa do Pinhal Viçoso!

Apesar dos boatos que corriam com referencia a taes amores, a assembléa não poude reprimir um movimento de admiração.

De repente, abriu-se uma porta lateral, e um homem, pallido, e com as feições transtornadas, lhe transpoz violentamente os umbraes, dizendo com voz vibrante:

-- E o nome do reu, do infame seductor, é Matheus da Silveira!...

Era Jorge.

Imagine-se a impressão que causaria tão inesperada apparição. Todos se olharam mutuamente, convergindo depois as vistas geraes para Silveira, que não ousava erguer a cabeça. Alliava a infamia á cobardia.

Mais aquelle golpe eslava destinado ao infeliz Jorge. Não nos cansamos de o repetir: a desgraça é uma pella. Vem-lhe o movimento d'um sopro infernal. O impulso é extraordinario. Ha para isto uma consolação: é não se ter ainda descoberto o motu continuo.

-- Vamos, meus senhores, disse o conde com uma impassibilidade gelada, talvez mais para temer do que um excessivo fogo -- já que estão constituidos em tribunal, comecem os seus trabalhos. Requeiro o logar de delegado do ministerio publico.

Ninguém se atreveu a proferir uma palavra.

Jorge proseguiu:

-- Esse homem que ahi está é mil vezes mais criminoso do que o proprio bandido, porque este arranca lealmente a vida no seu ignobil mister, emquanto que o miseravel seductor, occultando-se na sombra, caminhando com cautela, vae ao seio das familias roubar a honra do lar! E esse infame que ahi está é, tão indigno que, em vez de encobrir o seu crime, vem ainda jactar-se d’elle! Oh! mas d’esta vez não ha de ficar impune. As viboras esmagam-se, para que não causem mais victimas!

Dizendo isto, aproximou-se de Matheus da Silveira, que, por medo, não se atrevia a encaral-o.

-- Não basta chamar-lhe infame para que lhe assome um poucochinho de brio?

-- Senhor! disse Silveira com voz que mais parecia um eco.

-- Esteja certo que hei de matal-o! exclamou Jorge em tom mais profundo, desvairando-se-lhe ao mesmo tempo o olhar. Procure alguem que presenceie esse acto de justiça.

-- Porém... objectou o miseravel.

-- Quer talvez desculpar-se? E proprio de si.

-- Mas é que...

-- E como talvez se esqueça de que tem de bater-se, será bom que alguma coisa lhe recorde esse dever.

Dizendo isto fustigou com o chicote que tinha na mão o rosto do miseravel e cobarde Matheus da Silveira.

Immediatamente os circumstantes se metteram de permeio, para evitarem um desaguisado, quiçá funesto.

Matheus da Silveira, apenas viu entre si e Jorge uma barreira, começou de dar-se ares de ferrabraz, proferindo asquerosas invectivas. Se o larçrassem é provavel que tomasse o caminho mais proximo da porta.

-- Hei de matal-o! gritava elle. Ousar tocar-me na face!... Ha de ser um duello de morte!...

Ao motim accoreram alguns criados, e Jorge, que não desejava prolongar o escandalo, sahiu da sala, o que fez com que Silveira redobrasse de ameaças.

Felizmente, a sr.ª Engracia das Dores, cedendo á fadiga, havia adormecido, de rosario na mão, com um Padre na bocca, deixando o nosso, que estaes no ceu, para o despertar.

Que tormentos não passaria aquella dedicada alma, se soubesse que o seu menino ia bater-se! N'aquelle momento sonhava ella que Jorge era, finalmente, feliz! Sempre ha irrisões n'este mundo!...

III

Um amigo que chega a proposito

O desventurado conde passou uma noite attribuladissima. Começou de repassar na memoria toda a sua vida, e n’esse exame se lhe desfazia o coração. Depois de tudo ter soffrido, até lhe roubavam a honra de esposo! A sociedade, pela sua organisação, tinha direito de lhe sorrir na passagem. Devia condemnar a mulher que o sugeitava aos motejos da turba estulta, e que o obrigava a arriscar a vida? Ahi principiava a lucta. O que tinha elle sido para ella? A desgraça. O que lhe tinha dado? amor? carinhos? attenções, ao menos? não, só despreso. Será isso que pede um coração juvenil, cheio de seiva, desbordando de mocidade, aspirando o ideal? Não. Tinha elle procurado enraizar na alma d’essa mulher o affecto puro e immorredoiro que prende a esposa ao esposo para todo o sempre, e que lhe dá forças para a resignação e para o martyrio? Não. O que podia, pois, impedir de despenhar-se no abysmo aquella infeliz? O preconceito social? Será bastante, terá sufficiente peso, quando se procura amor no homem e só se encontra indifferença? A rasão de Jorge vacillava, e, depois de adduzir mil argumentos, terminou por absolver a condessa. O tribunal da consciencia accusava-o a elle baixinho, e em voz alta e estridente ao marquez seu pae.

Pobre Julia! se lhe dessem affecto, daria muito amor; deram-lhe despreso, o que havia ella de offertar?. . E depois era uma creança, sem experiencia nem conselhos, sem o seio de sua mãe, para esconder as lagrimas do isolamento! A planta desamparada quantas vezes tomba ao sopro do tufão!

Aquella noite foi de fogo para Jorge. Lembrava-se de que poderia talvez perder a vida, e do desgosto que por tal sentiria a sua desventurada Adriana. A imagem da virgem vinha acompanhal-o nos seus pensamentos, não lhe servindo de linitivo, mas de acerba saudade.

Afinal, depois de muitas horas de amargo cogitar, cedendo á debilidade e á fadiga de imaginação, cahiu prostrado n’uma cadeira, e adormeceu.

Era ainda muito cêdo quando vieram bater á porta. O conde despertou em sobresalto.

-- Quem está ahi? gritou elle.

-- Queira perdoar se venho incommodal-o, disse uma voz do exterior, que era a d’um criado do hotel, mas é que está ali um sugeito que diz ser seu amigo, e que teima em querer fallar-lhe.

-- Não disse o nome? perguntou Jorge.

-- Não, senhor, respondeu o criado. Que quer v. ex.ª que lhe diga?

-- Naturalmente é algum enviado de Matheus da Silveira, pensou o conde.

E accrescentou em voz alta:

-- Dize-lhe que póde entrar.

Um instante depois, abriu-se a porta, e entrou um moço elegante, mas vestido de luto.

Era Alfredo da Cunha.

Os dois amigos lançaram-se nos braços um do outro.

-- És tu, Alfredo! exclamou Jorge.

-- É verdade, meu amigo, respondeu o antigo estudante.

-- Vejo que soffreste um desgosto de familia.

-- Soffri. Como sabes, fui chamado a toda a pressa aos lares palernaes. Quando cheguei, encontrei meu pobre pae no leito, quasi nas agonias da morte. Reconheceu-me ainda, e as suas ultimas palavras foram confortaveis conselhos e uma benção que tinha já o seu tanto do outro mundo. É um espectaculo bem doloroso, meu querido Jorge, ver um velho venerando despedir-se da vida, principalmente quando esse velho nos deu a existencia. Os sons d'aquella voz, apesar de sumidos e como que a apagarem-se, vibram-nos no mais intimo d'alma. Por muito doido que se tenha sido, n'aquella hora solemne, ouvindo os suspiros da agonia, que nos imploram que sigamos caminho mais prestadio, confrange-se-nos o coração, e protestamos no intimo um firme arrependimento.

-- Então hoje?...

-- Hoje sou um homem serio; despedi-me de todas as loucuras do passado, e só loucuras, porque bem sabes que, apesar da minha vida desregrada, nunca me aviltei. O meu patrimonio não é dos peores, e resolvi tornar-me digno de quem m’o legou, que o adquiriu á custa de bastante trabalho e fadigas. Deixo os estudos, para que me faltava, não direi a intelligencia, que seria uma offensa ao Creador, mas a necessaria applicação, e ponho-me á frente dos negocios da minha casa, o que é uma grande satisfação para minha pobre mãe. Olha que a vida de lavrador tem também os seus encantos, e não são elles poucos. Lá, no campo, é a gente rei, tendo por vassallos os numerosos criados e fieis servidores. É um reinado agradavel, porque não ha nem as baixesas, nem as intrigas da camarilha. Cada graça que se confere é recebida com um sorriso sincero, com palavras de sentido reconhecimento, e também com uma oração. Isto faz bem. -- Mas fallemos antes de ti.

-- De mim!...disse Jorge com verdadeira expressão de angustia.

-- De ti, sim, que é para que eu cá venho, e para que vim também a Lisboa. Deves lembrar-te que, na vespera da minha partida para a provincia, me contaste os grandes desgostos da tua vida, desgostos que te obrigavam a procurar-lhes o esquecimento nas maiores loucuras. Vi o perigo que te ameaçava, e como caminhavas depressa para o precipicio, e então assentei de mim para commigo salvar-te. Não podia tornar-te feliz, mas podia ao menos evitar a lama que te ia salpicando.

-- Obrigado, Alfredo!

-- Estraga palavras, estraga. Infelizmente tive que partir, e lá, depois dos primeiros dias de dor mais aguda, comecei de lembrar-me de ti e da tua trist8ssima situação. Vim caminho de Lisboa, e procurei-te por toda a parte. Ninguém sabia de ti, depois que te haviam dado por prodigo, nem mesmo teu pae me soube dar o menor esclarecimento.

-- Fallaste com meu pae?

-- Fallei.

-- Então elle está em Lisboa?

-- Está. Quando lhe perguntei por ti pareceu-me ver toldar-lhe o rosto uma nuvem bem carregada. Disse-lhe quanto eras infeliz, e elle ia-se tornando mais e mais pensativo, até que afinal me interrompeu, dizendo com voz sacudida -- «Não me falle de meu filho, se me quer obsequiar.»

-- Ainda em cima está despeitado commigo! replicou Jorge com amargura.

-- Creio que não será despeito, mas remorsos. A sua altivez é que o obriga a esconder os verdadeiros sentimentos.

-- Remorsos!

-- Afinal, ia já perdendo a esperança de te encontrar, quando hontem me contaram a scena que teve logar entre ti e o infame Matheus da Silveira.

-- Ah! já sabes.

-- Sei, e por isso com mais promptidão vim ter comtigo.

-- Ainda bem que vieste, porque ao menos tenho um amigo verdadeiro para tratar d’este nogocio.

-- Que negocio?

-- Do duello.

-- Estás doido?...

-- Doido!

-- Sim; então queres bater-te com um miserável que nem merece que se lhe toque com a ponta d’um pé?

-- É indispensavel.

-- Indispensavel. Suppunha-te mais juiso.

-- Vejo que não estás ao facto do que se passou hontem, e dos motivos que promoveram o escandalo.

-- Estou orientado de tudo, e sustento que não deves bater-te, para te não emporcalhares.

-- Pois não sabes que estou deshonrado?...

-- Deshonrado, não; soffreste um ultrage, que hontem puniste como devias. Cumpre raciocinar, e ser rasoavel. Vejamos: tua esposa trahiu-te, e quero fazer-lhe a justiça de acreditar que foi victima da calculada sedução d’um miserável; porém, o que representa essa mulher para ti? uma barreira para a tua felicidade. Medeia entre ambos o amor? peccando, feriu-te no coração? destruiu-te acaso a ventura que soharas com ella? Não. Viviam separados, eram quasi estranhos, e nada mais. Nestas circumstancias deve o homem arriscar a vida? Pois tão pouco ella vale!

-- Queres então que todos se riam de mim?

-- E porque hão de rir-se? Como podes, ser responsável da leviandade d’uma mulher?

-- Ah! meu bom Alfredo, vejo claramente que é a tua amisade que deseja põr-me a coberto d’uma tentativa tão duvidosa como cheia de perigo. Comtudo, a logica da estima nem sempre serve. Esqueces que sou marido, e que ligados a este titulo andam uns certos deveres que não me é licito declinar. Tudo, menos consentir que me escarrem na honra. Que diria de mim o mundo, se eu ficasse silencioso? que diria o homem que hontem insultei publicamente? Se a sociedade estivesse organisada d’outro modo, se um processo de adultério não fosse sempre uma irrisão para o marido atraiçoado, então poderia eu crusar os braços, e esperar que a justiça exercesse a sua vindicta. O codigo social confere-me a auctoridade de juiz, e ao mesmo tempo a faculdade de executor. Não pódes negar estas tristes verdades, Alfredo. Que farias tu no meu caso? Oh! de certo não pensarias, um momento sequer, o que hoje me aconselhas.

Alfredo da Cunha curvava-se, máu grado seu, áquelles irrespondiveis argumentos.

-- Ah! não respondes, insistiu Jorge; é porque não desejas mentir, e conheces a justiça do meu proceder.

-- Mas é triste que um homem de bem ponha assim a vida á mercê d’um miseravel, que um acaso fatal póde favorecer! replicou o ex-estudante angustiosamente.

-- Será, mas é indispensavel. Rogo-te, pois, que trates d'este negocio, e que procures uma outra testemunha. E bastante exulto por me haveres apparecido; é sempre agradavel n’estes trances ter ao lado um amigo verdadeiro.

Outra vez se abraçaram.

Depois de algum tempo, disse Jorge:

-- Agora vamos almoçar, porque preciso sahir.

-- Onde vaes?

-- A casa de meu pae. Ha muito que o não vejo; talvez tenha saudades minhas.

E um sorriso de ironia se desenhou nos labios lividos do fidalgo.

-- Quem sabe se será uma despedida!... accrescentou elle, baixando um pouco a voz.

-- Estás louco! Deixa esses pensamentos tristes. A força está sempre do lado da razão. -- Vamos almoçar, que é melhor.

Foram ambos para a meza. Alfredo da Cunha tentou por todos os modos alegrar a refeição; era, porém, forçada a jovialidade, e não surtia o desejado fim. A espaços suspendia-se a conversação, atarefando-se os pensamentos. Alfredo era sempre o primeiro a recomeçar.

Diminuta honra fizeram ao almoço. E que apetite podiam ter?...

-- Agora vae cuidar da commissão de que te encarreguei, disse Jorge, levantando-se da meza. Dou-te plenos poderes. Confio que não farás concessões que affectem a minha dignidade.

-- Visto não haver outro remedio...

-- Eu, vou agradecer a meu pae!

E foi.

IV

Desforço d'uma alma que soffre

O nobre e altivo marquez do Açude voltára, finalmente, a Lisboa. Demorara-se por França e Inglaterra até ao ponto em que as saudades da patria o apertaram com mais força. A sua sahida do reino fôra motivada pelos tristes acontecimentos do casamento de seu filho, e para evitar presencial-os, e também para furtar-se a alguma recriminação mais amarga.

O marquez era um homem cujo caracter e indole em nada desmereciam dos antigos fidalgos. O orgulho enormissimo que o dominava nunca lhe permittia curvar a fronte, embora a razão contraria o esmagasse. Conhecia muitas vezes os erros commettidos, mas nunca os confessava, nem tão pouco mostrava arrepender-se. Era uma organisação de marmore.

Homens de tal jaez são os mais desgraçados da creação. Teem um sentimento grato, e deixam-n’o na sombra, receando expandir-se; fere-os um desgosto profundo, e o maldito orgulho não lhes consente derramar uma lagrima, sequer, que é sempre um balsamo; presentem a amisade de qualquer, e embora a acceitem e retribuam no intimo, no exterior mostram uma delicadeza illimitada, que melhor se lhes póde chamar falsa indifferença. É triste e bem triste ter unicamente o coração para nos indicar pelas continuas pulsações que ainda ha vida em nós. A demasiada altivez insombra e mata o amor do pae para o filho, do esposo para esposa, do amigo para o amigo. Quando se podia viver rodeado de affecto, vive-se em completo isolamento, porque todos se acercam a medo, ou antes se afastam, ou fogem mesmo. Todo o fogo se vae apagar n’aquella enregelada creatura.

O marquez do Açude era assim. Estava ao facto dos dolorosos trances a que levára seu desventurado filho, mas mostrava-se sempre firme e inabalavel. Só no interior lhe mordiam uns pedacinhos de remorsos, mas não transpiravam para a superficie.

Jorge, conforme dissera a Alfredo da Cunha, dirigiu-se para o palacio de seu pae. O marquez recebeu-o sem a menor alteração, e tão naturalmente como se o vira na vespera, e não se tivesse passado a minima coisa extraordinaria. Aquella frieza, apesar de natural no orgulhoso fidalgo, causou em Jorge uma pessima impressão.

Pae e filho não sabiam que dizer, porque ambos queriam evitar uma discussão sobre os acontecimentos desastrosos que se haviam succedido.

Houve um pequeno silencio. Jorge sentia-se trasbordar de despeito pela indifferença de seu pae, isto na vespera de perder talvez a vida, e por causa d’elle. A amargura foi crescendo, crescendo, até que afinal sahiu dos limites.

-- A minha vinda a casa de meu pae tem por fim principal fazer-lhe tres perguntas.

-- Falla, replicou o marquez com a maior sequidão.

Jorge cruzou os braços no peito, desenhando-se-lhe ao mesmo tempo no rosto uma viva expressão de severidade, de que bem pouco estava habituado a usar.

-- Que fez da minha felicidade?... perguntou elle.

O marquez olhou para seu filho, e sentiu-se a seu pesar impressionado por aquelle aspecto severo e digno.

-- Que fez da minha honra?... continuou o pobre conde depois de curto intervallo.

O altivo fidalgo sentiu um intimo sobresalto, e não poude supportar o olhar penetrante de Jorge. Desviou a vista, como o reu perante o austero juiz.

-- A terceira pergunta, insistiu ainda o pobre moço, pallido como um cadaver, mas com voz firme, faço-lh’a hoje, porque talvez amanhã me não seja permittido fazel-a. Que fez da minha vida?...

O interrogatório foi mais além do que o marquez previa, porque n'um momento, menos que um momento, n’um rapido relancear, perdeu o seu aprumo habitual, e mostrou uma leve perturbação. Volveu-lhe a permanente impassibilidade, e disse, sem alteração na voz:

-- Que queres dizer?

-- Quero dizer que toda a felicidade que me podiam proporcionar os haveres e posição, cahiu por terra a uma determinação de meu pae; quero dizer que, ainda como effeita da mesma causa, fui descendo de degrau em degrau, de desregramento em desregramento, até me enterrar no lodo, d’onde me salvou um generoso coração; quero dizer que hoje me podem apontar ao dedo, acompanhando o gesto com uma gargalhada de desdem, porque o amante de minha mulher por toda a parte se jacta e vangloria; quero dizer que amanhã, n’um campo legal, defenderei a honra, ou antes sustentarei a dignidade, arriscando a vida, na frente de um miseravel; quero dizer, finalmente, que meu pae é o causador de todas estas desgraças, e que nos remorsos deve de ter a punição.

O marquez ficou aterrado; a mascara, porém, que sempre trazia afivellada não lhe deixou exprimir no rosto o que lhe ia na alma. As côres da desgraça do desventurado filho eram tão vivas, que foram para o fidalgo o espelho terrivel dos resultados da sua obra opressiva. Sentia-se arrependido, condemnava-se até, mas não se atrevia a confessal-o. Muito daria n’aquelle momento para poder dizer ao filho desfortunado: Errei, mas perdôa-me! O orgulho abafou-lhe o sentimento. Fez um esforço sobre si mesmo, esforço sómente permittido áquellas naturezas de granito, e disse em tom firme:

-- E quem é o culpado de tudo que te succede, senão tu proprio?

-- Eu?!... exclamou Jorge, no auge da admiração.

-- Sim, tu; se em vez de fazeres de ti um libertino estimasses tua mulher, ella saberia corresponder-te, e haviam de ser felizes.

-- Estou deveras maravilhado! Pasmo como meu pae tem a precisa coragem para me accusar!

-- Em vez de acceitarem o mundo como elle é, principiam a sonhar!

-- Antes fôra tudo um sonho! objectou Jorge com um suspiro.

-- Mas que provas tens da infidelidade da condessa?

-- Que provas tenho!... replicou o pobre moço com amargura.

Então, depois de breve alternativa, contou ao marquez o que ouvira da propria bocca de Matheus da Silveira, e o que se passara depois.

O velho fidalgo sentiu-se abalado por um momento, mas ainda o orgulho lhe paralisou a commoção.

-- Então vaes bater-te? perguntou com uma firmeza em tudo contraria ao que lhe ia n’alma e que, por isso mesmo, era digna da maior admiração.

-- Ámanhã, naturalmente.

Houve um pequeno silencio, que serviu ao marquez para crear forças para dizer o seguinte:

-- Ahi tens as consequencias do teu condemnavel procedimento!

Jorge fitou o despiedado pae com uma expressão em que mais figurava o dó do que o odio.

-- Quando a morte nos anda perto, devemos pegar-nos com a misericordia. Em troca de todo o mal que me proporcionou, receba um sincero perdão, meu pae, e um adeus!...

Jorge sahiu arrebatadamente da sala, não esperando que seu pae o detivesse.

O marquez, apenas desappareceu o desventurado filho, e se viu sem uma unica testemunha, deu largas ao desespero que lhe ia no intimo. Cahiu extenuado n'uma poltrona, faltando-lhe as forças phisicas, ao passo que o espirito se lhe agitava em convulsões.

Era um desgraçado.

-- Sou um infame! exclamou elle. Arrasto meu filho para a suprema desventura, vejo-o prestes a succumbir, talvez, na ponta d'um florete, ou ao choque d'uma bala, e tenho pejo de lhe confessar o meu arrependimento e a minha dôr, e só encontro palavras para o exprobrar, não para lhe dar uma consolação! Então isto é ser pae?... Se eu não houvera forçado o coração de Jorge, talvez que elle fosse hoje bem feliz! E assim... E se elle morrer?... Oh ! como poderei resistir aos remorsos! Não creio em espectros, por isso não receio que se levante da campa e venha perseguir-me alta noite, e tomar-me contas do mal que lhe causei, o que temo, o que me faz estremecer, é a idéa de que sou o assassino de meu filho!... Se eu podesse salval-o... Mas como, depois do que se passou, o duello é inevitavel... Ainda mesmo que o miseravel seductor esquecesse a affronta que recebeu em publico, Jorge de certo lh'a faria lembrar... Ahi está, de que me serve a nobreza com todos os seus privilegios e regalias?... É tudo uma illusão! Ó meu Deus, é esta a primeira vez que me sinto pae! -- E se eu empregasse a minha influencia para fazer prender o infame? De forma alguma; seria collocar meu filho n'uma falsa posição. Nem um só recurso! Isto é para desesperar!

E o desgraçado inclinou a fronte para o peito, como se não podesse supportar o pezo de tão difficil situação. Havia muita e muita amargura n'aquelle homem, que sempre se julgara superior a tudo, despresando conveniencias, e só attendendo ao que lhe ditava o genio altivo. Era a primeira vez que reflectia que tinha coração. Similhante a essas organisações de ferro, que as enfermidades teem respeitado, mas que uma vez sentidas de qualquer abalo, ou acha que, mal podem resistir-lhe, assim o misero marquez lhe minguavam as forças para aquella lucta que lhe era desconhecida. O que n'elle se passava, com propriedade se lhe poderia chamar a apoplexia do sentimento.

Passado algum tempo d’uma profunda meditação, o fidalgo levantou-se de subito, e transluziu-lhe no rosto uma vaga expressão de alegria.

Caminhou com passos accelerados para o fogão, e fez vibrar com força um timbre que estava sobre o marmore,

Quasi ao mesmo tempo appareceu um lacaio.

-- O sr. marquez chamou? disse o famulo.

-- Chamei, respondeu o fidalgo, retomando o tom carregado que lhe era habitual. Conheces o sr. Matheus da Silveira?

-- Não, sr. marquez.

-- És um estupido. Vae ao Chiado, e pergunta a algum d'aquelles peralvilhos pelo tal sr. Matheus da Silveira.

-- E depois, sr. marquez? interrompeu o lacaio, querendo mostrar por um fingido interesse quanto era serviçal.

-- Depois, indaga onde elle mora, ou onde podes encontral-o, e dize-lhe da minha parte que é indispensavel que venha hoje a minha casa, seja a que hora fôr. Tens entendido?

-- Sim, sr. marquez.

-- Se não cumpres o que te digo, se me não trazes aqui o tal Silveira, ponho-te na rua.

O lacaio, vendo que nada de melhor tinha a esperar, dirigiu-se apressadamente para a porta.

-- Espera, gritou o fidalgo.

O rapaz voltou-se.

-- Não te ponho na rua... faço-te saltar os miolos!

O criado desappareceu.

V

Vergonha e dor

Em quanto estas scenas se passavam no palacio do marquez do Açude, outras tinham logar na habitação da condessa Julia, e de muito maior importancia.

Nada ha que melhor se possa comparar á celeridade do raio do que uma má nova. A noticia do duello do desventurado conde correu de bocca em bocca, chegando, afinal, aos ouvidos de Julia.

Imagine o leitor o que soffreria aquella infeliz, ao saber tal novidade! As faces, de pallidas tornaram-se-lhe lividas. No primeiro momento sentiu-se aturdida, como que não comprehendia bem a sua tristissima situação. Depois, conhecendo melhor o abysmo em que cahira, o pranto sahiu-lhe de improviso dos olhos, com a rapidez d'uma catadupa.

Passados alguns segundos d'um soluçar

cheio de desespero, Julia serenou um pouco, e começou de reflectir, sem se importar com as lagrimas que a espaços lhe deslisavam pelas faces contrahidas, deixando na passagem um rasto luzidio.

-- Que me resta? pensava a infeliz. Nada. A estas horas o meu nome é citado com despreso por toda a parte. Amanhã, os esposos fugirão de mim. receiando o meu contacto, os paes desviarão as filhas, receiando que eu lhas corrompa com o meu halito envenenado; os homens sem dignidade far-me-hão a corte, animados pelo mau passo que dei; para os outros só merecerei piedade ou desdem. Oh! isto é horrível! Acaso se póde supportar assim a vida?... E Jorge? Como poderei resistir á vergonha da accusação que me deve lançar ás faces? Vae bater-se por minha causa, vae tentar lavar com sangue a affronta que a sua honra recebeu! E se o matam?... Ai!.. Tal remorso é superior ás minhas forças!

A infeliz apertou a testa com as mãos, como para apagar o fogo que lá se ateava.

Houve um pequeno intervallo.

-- Em que se tornou a minha mocidade, que na minha aurora se antolhava limpida como o mais puro crystal! accrescentou, passados alguns minutos, a desventurada Julia. De que servia o mundo prognosticar-me alegrias, se apenas dores me estavam reservadas por um poder mais forte -- o destino!... Quando ainda me deviam embriagar as flores do thalamo, eis que me asfixiam os gaivos do sepulchro! O sepulchro?... Sim, é a unica guarida onde posso ir furtar-me á vergonha. A lapida gelada não deixa passar os risos sarcasticos e desdenhosos da turba. E meu pae? Oh! cumpre que me não torne a ver, porque de certo não terá coragem para dizer ao cadaver o que diria ao corpo animado. A maldição morrer-lhe-ha nos labios, se n’essa hora algum anjo se amercear da martyr. Como deve de soffrer esse honrado velho! Mal pensava elle, que o ultimo presente de annos que dava á filha, era um passe para a sepultura! Nem eu quero profundar as causas de toda esta desgraça. Foi sorte, mas negra sorte. Não, foi Adriana, foi essa mulher a causadora de todo o meu mal! Que não possa fulminal-a, que não possa fazer-lhe libar todo o fel de que me fez mercê!... Como sou miseravel! accrescentou a infeliz sofreando o impeto de rancor, e como que exprobrando-se. Accusar essa innocente que tanto tem soffrido tambem!... Pobre martyr, a quem esmagaram o coração, que trasbordava de esperanças e affecto. Eu é que fui o algoz, ainda que involuntario. Necessito do seu perdão, preciso das suas orações. Talvez que então Deus me perdoe também o crime que vou commetter. As preces dos anjos chegam sempre ao excelso throno do Eterno.

A condessa pegou na penna, e escreveu com mão febril algumas linhas a Adriana, rogando-lhe com as mais sentidas palavras que viesse fallar-lhe na manhã seguinte, e terminava dizendo: «Se se demorar muito, talvez encontre um cadaver.» O resto d'aquelle dia queria consagral-o ás orações -- porque fôra educada com sentimentos religiosos -- e a fazer umas ultimas disposições.

A desventurada Julia estava de facto resolvida a morrer. Estes extremos são raros nos nossos dias, mas não impossiveis. Se a condessa tivesse o tempo necessario para se habituar á desgraça, a vergonha, certamente evitaria o crime do suicidio, porque n’este mundo tudo é habito. Os chinas não chegam a familiarisar-se com o veneno, e mesmo a fazel-o consistir um dos seus maiores prazeres?...

Julia via-se sósinha, nem uma consolação, nem um apoio, nem uma voz que a fortificasse. O golpe que o destino lhe vibrara colhera-a muito cedo, antes que a devassidão, a impudencia, a tivessem forrado para todas as contrariedades.

Ia morrer, martyr, não criminosa, e deixava por aquem da mortalha um grande exemplo.

Talvez que esta narrativa sirva de lição a alguns fazedores de casamentos, que apenas olham para o presente, sem se lembrarem quanta desgraça póde haver no futuro. Se a lição aproveitar, será o unico merecimento d’este livro.

VI

Antes do duello

-- Mas que tem o meu menino, que está hoje tão tristinho? perguntava a sr.ª Engracia das Dores ao infeliz conde, que se entregára aos mais profundos pensamentos.

-- Não tenho nada, respondeu o fidalgo com um certo sobresalto.

-- Tem, olé se tem! E o mais é que não estou nada contente. Valha-me a Senhora da Graça! Ainda agora, ao jantar, foi mesmo um pisco a comer. Isto não está bom. Julgava que o meu menino tinha agora mais juizinho, mas parece-me que me enganei. Ai! se os meus ricos santinhos me abandonam! É capaz de se ter entregado outra vez ao negregado jogo, e perder tudo!

-- Perder tudo!... repetiu Jorge como um eco.

-- Valha-me Nossa Senhora, que é minha madrinha! Então sempre é certo?

-- O que? replicou o conde vivamente.

-- O estar outra vez mettido com as malditas cartas?...

-- Não, minha boa Engracia, ainda não joguei, nem tornarei a jogar, respondeu o fidalgo com mais socego, pois receara que a excellente velha estivesse ao facto do duello, o que seria uma perfeita calamidade.

-- Se não jogou, se não perdeu, porque está tão surumbatico, e assim a modo com uma carinha de condemnado, salvo seja?...

Jorge não respondeu. A sr.ª Engracia das Dores redobrou de perguntas e supposições, que atordoavam o pobre moço. A entrada de Alfredo da Cunha veiu salvar o infeliz conde d’aquelle zumbidor enxame.

-- Queira deixar-nos sós, Engracia, que temos que dizer em particular.

A dedicada velhinha fingiu não ouvir, porque assim lhe convinha, e principou a desfarçar resando uma Ave Maria, quasi em voz alta. D'esta vez Nossa Senhora foi mau escudo. Jorge repetiu a intimação, e a tia Engracia teve de sahir, murmurando então um Padre Nosso, talvez por desforço á outra oração.

Os dois amigos ficaram sós.

-- Então? perguntou o conde.

-- Está tudo combinado, respondeu Alfredo da Cunha, quasi a meia voz.

-- Toda a satisfação era impossivel. O infame bate-se?

-- Bate.

-- Quando?

-- Amanhã.

-- A que horas?

-- Ás seis.

-- Onde?

-- Na baixa do Alto de S. João, para o lado de Chellas.

-- As armas?

-- Á pistola.

Seguiu-se um curto silencio, que serviu, por assim dizer, de descanso áquelle dialogo febril.

Os dois amigos olharam um para o outro, e, por um impulso instinctivo, estreitaram-se n'um apertado abraço.

-- Animo! disse Alfredo.

-- Cuidas que me falta a coragem?

-- Não, porque sei que és digno. Sem embargo, acho muito natural uma hesitação quando se barateia a vida por causa d’um miseravel. Não admira que o soldado, no campo da batalha, caminhe para a morte com o sorriso nos labios e com o braço firme, porque esse vae combater pela autonomia da patria, vae conquistar o titulo de bravo, vae alcançar uma pagina na historia; porém, o desgraçado a quem roubam a felicidade e a honra, e que ainda em cima tem de medir-se com o asqueroso ladrão, esse é muito mais digno de admiração e respeito. Um será heroe, mas o outro é martyr. Aquelle tem para o animar o ribombo do canhão, ó fumo da polvora, os cantos marciaes, as vozes dos superiores, a communidade dos camaradas e as bençãos dos seus irmãos. Caminha por sobre espinhos, é certo, mas além, lá ao fundo, entrevê o pharol da victoria, que o guia. Se conquista os loiros, a turba enthusiasta entertece-lhe uma corôa, com que lhe orna a fronte. Ao outro, ao marido deshonrado, o que succede? Quaes os cantos que o animam? Só se for os risos sarcasticos dos indifferentes. Que premio o espera, caso saia vencedor da lucta? a perseguição da justiça. Póde á volta cantar um hymno? não, apenas póde abafar um suspiro. É uma pugna ingloria. Já vês que não é para estranhar que eu te diga: coragem, amigo!

--Tens rasão. Descansa, porém, a dignidade me dará forças. Uma só coisa me fará, senão de todo tremer o braço, pelo menos vacillar.

-- O que?

-- A lembrança de Adriana. Ai! Alfredo, a idéa de que talvez nunca mais a torne a ver, é bem cruel. Hoje, depois de sahir do palacio de meu pae, onde pasmei perante a repellente indifferença d'um homem, fui passar por debaixo das janellas de Adriana, esperançado em que o acaso me fizesse entrever aquella imagem querida. Foi baldado o meu desejo; passei e repassei, e nada!

-- Foi melhor assim.

-- És bem cruel!

-- Enganas-te. Querias então ir esmagar o coração por teu alvidrio, despertar na pobre menina as mais excruciantes saudades?... Acredita, Jorge, devem fugir-se mutuamente, porque a vista dará um resultado negativo. Longe um do outro, não digo que consigam esquecer-se, mas ao menos hão de habituar-se.

-- Esquecel-a! Vou escrever-lhe, vou-me despedir d'ella.

-- Estás louco! Despedir porque? Tão pouco confias na tua causa?... Já vejo que estás com idéas muito lugubres, e por isso já não saio d'aqui. Tens-me por companheiro esta noite. A hospitalidade não se recusa, accrescentou sorrindo o ex-estudante, tentando desanuviar a conversação, que tão carregada ia.

Era difficil a tarefa. É mais facil curar o corpo do que a alma.

Jorge insistiu em querer escrever a Adriana. Alfredo da Cunha não logrou desvanecer-lhe o proposito.

Emquanto o conde escrevia, o dedicado amigo vingava-se em passeiar pelo quarto, e fumar como um desesperado.

Quando Jorge terminou, tinha os olhos marejados de lagrimas.

-- Se eu morrer, promettes entregar-lhe esta carta? disse elle a Alfredo, que afinal se sentára, entretendo-se em tirar distrahidamente a clina do estofo.

-- Prometto.

-- Ainda outro pedido, e assim cumularás a tua amisade por mim; jura-me que serás tu proprio o portador da carta, e que has de empregar todos os esforços para consolar aquelle anjo. Juras?

-- Juro.

Era a primeira vez que Alfredo da Cunha se mostrava tão mesquinho de palavras, elle que, na mais insignificante conversação, de dez partes reservava sempre nove para si.

A carta de Jorge era um complexo de phrases sentidas, tão cheias de amor como de amargura: carta obrigada á lobrega situação.

-- Agora é mister que vás repoisar, disse

Alfredo. O prostramento e a fadiga poderiam ser-te prejudiciaes.

-- Vou mandar preparar um quarto.

-- Não é necessario. Este sofá vale bem um leito. Quero ficar aqui. E vá, toca a deitar, que é tarde, e estou com somno.

Jorge obedeceu.

Alfredo da Cunha, apesar do somno que dissera ter, nem um minuto se se lhe cerraram as palpebras. Vellou toda a noite.

O conde, no fim de algum tempo, conseguiu adormecer, e nunca em sua vida teve um sonho mais doirado. Tudo lhe sorriu. Não houve felicidade que se lhe não deparasse. O ignoto tem compensações bem celebres!

Ás quatro horas, quando o sol estava prestes a romper, o antigo estudante foi despertar o seu amigo.

-- Vamos, Jorge, levanta-te, que são horas.

-- O que?... perguntou o conde ainda mal despertado.

-- É já dia claro. Como te sentes?

-- Perfeitamente. A sorte deve ser por mim.

-- Porque?

-- Porque m'o disse Adriana, era sonhos, e ella não sabe enganar, nem mesmo em espirito.

-- Em todo o caso, será bom que tomes um banho; moderar-te-ha a agitação, animando-te as forças, e cumpre que tenhas logo o braço firme.

-- Não é necessário. Nem estou agitado, nem fraco. Ha muito que me não sinto tão bem disposto.

-- Folgo em extremo que assim seja, meu caro Jorge. De facto, a julgar pelo teu rosto desanuviado, pelo teu olhar brilhante, pelo teu meio sorriso, pareces ser tu que me deves animar. Quem agora nos observasse diria de certo que era eu o duellista.

-- Então estás receioso?

--Não, mas é que estas coisas causam sempre uma tal ou qual impressão.

-- Agora vejo queestás mudado, Alfredo.

-- Não t'o disse eu. Bem, já estás vestido e prompto. Olha, o trem ali está á espera. O cocheiro foi pontual, accrescentou o ex-estudante, aproximando-se da janella.

-- Então partamos! replicou Jorge com modo resoluto.

-- Espera. Ainda falta uma coisa.

-- O que?

-- Beberes esta chavana de café, que eu mesmo preparei emquanto dormias. O café excita os nervos.

O conde não foi indifferente ao cuidado de Alfredo.

-- És um verdadeiro amigo! exclamou elle apertando-lhe a mão.

E depois de beber:

-- E o mais é que o teu café está magnifico, accrescentou.

-- As pistolas?

-- Ali está a caixa.

-- Vamos, e que Deus te proteja!

-- Ha de proteger: Adriana affiançou-m'o ainda agora.

Partiram.

VII

No campo

Na encosta do Alto de S. João, para o norte, ha um valle, vigiado de perto por innumeras oliveiras, e de longe, lá em cima, pelos cyprestes do cemiterio. Ao poente segue uma azinhaga, que vae dar ao convento das freiras de Chellas. O sitio é bastante deserto. Só lá de horas a horas passa algum carro, que se faz annunciar pelos desagradaveis uivos das rodas. Ao longe, muito ao longe, avista-se uma nesgazinha do Tejo.

Era n’aquelle ermo que devia de ter logar o duello.

A carruagem que conduzia os dois amigos parou proximo á porta do cemiterio. Jorge e Alfredo apearam-se, e dirigiram-se a pé para a azinhaga de que fallamos, que vem dar á Circumvalação.

Nem uma palavra trocaram entre ambos. Jorge olhava de quando em quando para traz, como para se despedir de alguma coisa que lhe ficava aquem. Apenas deixou de avistar o convento da Penha de França, que se erguia lá no alto, uma nuvem de tristeza lhe invadiu o rosto pallido. Custa sempre deixar o que talvez se não torne a ver.

Quando chegaram ao fim da ladeira, Alfredo rompeu o lugubre silencio.

-- Deve de ser aqui, disse elle.

Jorge não respondeu, mas seguiu machinalmente o seu amigo, que tomara para a direita.

Depois de terem andado um pedaço por um caminho que ladeava um campo de trigo, Alfredo foi ainda o primeiro a fallar:

-- Ainda lá não estão. Esperemos. O conde não respondeu, e começou de olhar para tudo com minuciosa attenção.

No fim d’algum tempo, Alfredo da Cunha accrescentou:

-- Então que é isso, Jorge, pareces-me desanimado? Quebrou-se o encanto do teu sonho?

-- Não; mas n’estas horas pensa-se tanto como em toda a vida. E depois, o aroma d'estas flores, a fresquidão d’esta verdura, o silencio que nos rodeia, o canto dos passarinhos, que ahi saltitam de ramo em ramo, fazem-me lembrar dos melhores dias da minha vida. Tenho saudades. Preferia que o que vae aqui passar-se tivesse logar n'um sitio bem triste, entre quatro escuras paredes, por exemplo. Perder-se a vida no centro da natureza que nos sorri, é uma irrisão, deves concordar.

-- Tornaste a esquecer o teu sonho, já vejo, replicou Alfredo, tentando destruir as lugubres idéas do conde. -- Aquelles senhores vão-se demorando. Espera, lá vejo uns vultos por entre as oliveiras. Dirigem-se para aqui.

-- É talvez o meu adversario.

-- Não, são amigos. É o doutor Caldeira, que convidei em teu nome, para servir de testemunha, e um seu collega, que póde ser util.

Os dois esculapios aproximaram-se com solemne gravidade, e apertaram a mão de Jorge, sem se atreverem a pronunciar uma palavra.

-- Não encontraram pelo caminho Matheus da Silveira? perguntou Alfredo.

-- Não encontrámos.

-- É celebre! O miserável esquecer-se-ia da hora, ou do local?

-- Lá estavam os padrinhos para lh’o lembrarem, observou o conde.

-- Tens rasão, a não ser que a infamia seja contagiosa.

Passou-se um quarto de hora, durante o qual a conversação teve grande difficuldade em conservar-se. O momento era pouco propicio.

-- Ora esta! disse Alfredo da Cunha, não sei que pensar de similhante demora.

-- Sobre tudo, é uma falta de consideração, observou o doutor Caldeira.

Decorreram mais quinze minutos. Matheus da Silveira não apparecia. Entre os quatro amigos reinava tanta anciedade como despeito.

-- Esperem, disse Alfredo, parece-me que chega, finalmente, o nosso homem.

-- Mais vale tarde do que nunca, replicou um dos medicos.

-- Mas vejo só um vulto na azinhaga, observou ainda o estudante, que se havia adiantado alguns passos.

-- Se Matheus da Silveira vier só, não deixará por isso de se bater, observou Jorge.

-- Mas não é elle.

-- Quem é então?

-- É uma das testemunhas.

-- E vem sósinha?

-- Vem.

-- Que quer isto dizer?...

Um instante depois, chegava ao grupo o homem que Alfredo da Cunha vira de longe. Cumprimentou todos delicadamente, e depois dirigiu-se especialmente a Jorge.

-- Estou realmente vexado, sr. conde, disse elle, mais do que vexado, pesaroso. O que succede é bem pouco proprio, e bastante estranho, besta, porém, a consolação de que sou alheio a tudo, e espero que farão justiça á minha dignidade.

-- Queira explicar-se, objectou o fidalgo.

-- Fui convidado pelo sr. Matheus da Silveira para lhe servir de testemunha n'um duello. Acceitei, porque em casos taes toda a recusa é impropria, e poderia mesmo ser taxada de covardia. Hontem, de accordo com os dois cavalheiros que vejo presentes, estabeleceram-se as condições do combate, que devia ter hoje lugar, e n'este sitio. Esta manhã, juntamente com o meu collega n'esta triste conjunctura, dirigi-me a casa de Matheus da Silveira, porque haviamos combinado vir juntos. Imagine qual não seria a minha surpreza quando o criado me disse que o senhor não tinha vindo ficar a casa, e que deixára uma carta para mim. Rasguei apressadamente o sobrescripto, e li estas simples palavras: «O meu criado tem uma carta para o sr. conde do Pinhal Viçoso. Rogo-lhe que lh’a entregue. Francamente fiquei pasmado, sem saber que pensar de similhante procedimento. Eu e o meu collega procurámos colher algumas informações, mas nada obtivemos. Afinal assentamos em que viesse eu ter com o sr. conde, e fosse o portador da missiva. Eil-a.

E entregou a Jorge uma carta cuidadosamente fechada.

Estavam todos trasbordando de admiração. O caso não era para menos.

Jorge pegou na carta, e depois de pedir

permissão, rasgou o envoltorio.

Eis o que dizia a carta;

«Ex.mo sr. conde do Pinhal Viçoso. Sou um infame. Abusei da bondade com que v. ex.ª sempre me tratou, esqueci-me de tudo, e commetti um crime, para que não peço perdão, porque o não tem. Certamente quando v. ex.ª lêr esta carta já eu estarei muito longe. Parto, vou para a America, d'onde prometto não voltar, fugindo assim, ou a perder a vida, que me é bastante cara, ou a um grande remorso, matando-o. Chame-me infame e covarde. Mereço-o. Creia que estou arrependido do mal que lhe causei. E d'ahi... talvez não... Ora adeus, vou confessar-lhe toda a verdade; nada tenho que perder, porque, como já disse, não volto mais a Portugal. O pae de v. ex.ª mandou-me hoje chamar, o que me causou bastante estranheza. Realmente não sabia que pensar. No primeiro momento estive para cerrar os ouvidos, mas o lacaio que me procurou desenvolveu um tal empenho em que eu fosse, a ponto de me ameaçar, que eu, para evitar um escandalo, resolvi-me a acompanhal-o. E depois que tinha eu a receiar do marquez? Fui. O pae de v. ex.ª mandou-me entrar para um gabinete, fechando em seguida todas as portas. Confesso, não gostei d’aquelles preparativos. Na vespera do dia em que a gente tem de bater se vê-se tudo com as côres mais carregadas. O sr. marquez disse-me então em tom sacudido, não se lhe contrahindo um unico musculo:

«-- O senhor ó um infame, escusa de o negar.

«-- Sr. marquez! exclamei eu, não gostando do epitheto.

«-- Sei que deve bater-se ámanhã com meu filho.

«-- É verdade.

«-- Quanto quer para sahir hoje para sempre de Portugal?

«Confesso que fiquei pasmado. Tudo poderia esperar, menos similhante pergunta. Não achei palavras para responder.

«-- Vamos, isto é um negocio como qualquer outro, accrescentou seu pae sem a menor alteração. Que dinheiro pretende?

«Pensei dois segundos, durante os quaes mal podia resistir ao olhar magnetico do marquez, e respondi:

«-- Vinte contos de réis.

«Seu pae mostrou ainda a mesma impassibilidade. Dirigiu-se para uma secretária, abriu a gaveta principal, e tirou uns poucos de massos de notas, que me entregou, dizendo:

«-- Saia! Se não cumpre aquillo a que ficou obrigado, julgue-se morto.

«Francamente, parecia-me tudo um sonho. Sahi do gabinete, e só quando me vi na rua, acotovelando-me, sem querer, com todos que passavam, adquiri a certeza de que não estava dormindo. Em conclusão, pensei sempre fazer a minha fortuna casando com alguma rica herdeira, mas assim!... Isto faz-me acreditar que a felicidade está, em geral, em contraposição com a honradez. Se quizesse, podia evitar esta confissão; não o faço porque sinto verdadeiro prazer em recordar o facto, que, por singular, de certo me dará um cantinho na historia.

«Adeus, sr. conde, desculpe não lhe escrever mais, mas tenho ainda que ultimar alguns preparativos, e o comboyo não tarda muitas horas em partir.

«Matheus da Silveira.»

-- Leiam, meus senhores, disse Jorge depois de chegar ao fim da carta, e digam-me se já viram maior cynismo.

Alfredo da Cunha pegou no esqualido papel, e leu em voz alta.

Terminada a leitura, que fôra escutada com uma admiração crescente, exclamaram os ouvintes:

-- É incrível!

-- Não me admira muito, replicou Alfredo; sempre o achei capaz de tudo. Outra coisa me surprehende muito mais: é teu pae, Jorge.

-- Meu pae!

-- É realmente um caracter excepcional, e um dos mais desgraçados que conheço. Até se envergonha de ser pae! Vês, Jorge, dizias que o encontravas impassivel, frio, gelado, quando no intimo lhe reinava a agitação e a febre. O remorso é um inimigo a que ninguem se pode furtar, e quasi invulneravel. Dizer-te que não odeies teu pae, é escusado, porque n'um coração como o teu o odio não tem cabida, o que te peço é que o lastimes e lhe perdôes.

O conde apertou com vehemencia a mão do dedicado amigo. Faz sempre bem quando um estranho se interessa por um dos nossos.

-- Agora, meus senhores, disse aos demais circumstantes, resta-me pedir-lhes desculpa do baldado incommodo que lhes causei, e agradecer-lhes a honra que me fizeram.

-- D'esta forma retiramo-nos com o animo socegado e satisfeito, respondeu o dr. Caldeira, d’outro modo... quem sabe?

Todos se apertaram as mãos, e cada qual entrou na carruagem que o esperava.

-- E agora? perguntou Alfredo da Cunha ao conde, depois dos cavallos partirem a trote desfechado.

--Agora... minha mulher para um convento! respondeu o fidalgo.

VIII

Agonias de martyr

Vimos o estado afflictivo a que chegara a condessa Julia, e os meios extremos de que estava resolvida a lançar mão para terminar o soffrimento que a feria no mais fundo, e que não tinha coragem para supportar.

Depois de escrever a carta a Adriana, encerrou-se no oratorio, e ali esteve longas horas entregue á mais recolhida oração. Quando sahiu do sagrado logar, trazia o semblante socegado, e se não fôra a extrema pallidez e as cavadas olheiras, disserase que só havia em si alegrias.

A pobre Julia sentou-se á secretária, e começou de escrever uma longa carta para seu esposo. Um dos períodos dizia assim:

«Já vê, Jorge, que mereço o seu perdão, porque fui illudida, servindo-se o meu instigador d’um argumento, que a minha fraqueza e vaidade de mulher me levaram a acceitar -- o despreso de meu marido. A sua intelligencia bem deve de comprehender este laço.»

Mais adiante dizia:

«Houve em tudo isto um mau destino. Seu pae foi o verdadeiro culpado. A si, Jorge, não o accuso por não me ter dado o amor que eu de certo merecia, e que estava prompta a corresponder com toda a minha alma. O seu coração já lhe não pertencia. Como deve ter soffrido a desventurada Adriana! Pobre anjo! Ora veja quantas desgraças a simples vontade dum ho«mem, estranho a tudo que é affeto, causou. Destacam-se no primeiro plano tres victimas bem salientes: Adriana, que viu fugir-lhe o homem com quem sonhara em delicias: Jorge, perdendo o anjo que em espirito destinara para lhe tornar a existencia n’um paraizo: e eu, que não só perdi todas as minhas illusões, a minha mocidade, o meu sorriso, como também a honra, vendo-me hoje forçada a esconder a eterna vergonha sob a lage d’um tumulo!... No segundo plano figura o desventurado pae de Adriana, ferido no corpo o na alma, e o meu, que nem quero pensar como receberá a noticia da deshonra de sua filha! A minha morte é inevitavel. Ninguém poderá accusar-me de proromper n’este excesso. É um sacrificio preciso, e Deus sabe apreciar todos os sacrificios, e d’ahi virá o perdão para o meu crime. A minha vida era uma continua vergonha para mim, um motejo para a sociedade, o arranco de um soluço permanente para meu pae, e sobre tudo isto um estorvo, uma barreira atroz para a felicidade de duas almas, que poderão unir-se para sempre, e para sempre partilharem ineffaveis gosos. É o ceu que me inspira esta logica incombativel. Em troca d’esta primavera que levo para o sepulchro, d'estas flôres que ceifo ao desabrochar, d’esta mocidade que assassino, peço apenas um pensamento de compaixão.»

Depois de Julia terminar a carta de que demos alguns excerptos, sentiu-se deveras fatigada. Tinha deposto n’aquellas paginas toda a sua alma, toda a amargura de que lhe estravasava o peito.

A noite ia alta. Por algum tempo se lhe immobilisou a acção, não parando, todavia, a apressada marcha, do pensamento. Repoisava, se a tal se pode chamar repoiso, porque necessitava de novas forças para o muito que tinha ainda a fazer.

Afinal, retirou a penna e começou de escrever novamente, mas d’esta vez em papel sellado. Não era uma carta, era um testamento.

Quando terminou tudo que tinha a escrever, vinha rompendo a aurora.

A condessa aproximou-se da janella, e começou de olhar com fixidade para o oriente. Assim esteve até que uma curvasinha doirada se entreviu no horisonte. A curva foi apparecendo mais e mais, turnando-se a final n’um circulo de luz. Raiava o sol com todo o esplendor.

-- É a ultima vez que te vejo! murmurou a condessa dirigindo-se ao astro-rei. Recebe também as minhas despedidas!...

Em seguida, encaminhou-se para uma elegante mêsinha de xarão, e tirou d’uma das gavetas um vidrinho azul. Ao tocar-lhe não poude furtar-se a um involuntario estremecimento. Logo, porém, cobrou animo, e disse a meia voz, sorrindo amargamente e olhando para o liquido do frasco:

-- Elixir infallivel para curar todas as dôres!

Esteve talvez dois minutos com o vidrinho na mão, sem se mover, sem dizer uma palavra. Depois, de repente, por um impulso febril, levou o vidro aos labios, e esgotou o liquido com a sofreguidão do sedento.

0 frasco cahiu-lhe machinalmente das mãos.

-- Está tudo acabado! exclamou a infeliz.

Meia hora depois sentiu um calefrio e uma rapida agonia lhe toldou a vista.

-- E Adriana sem vir... Receio que chegue tarde!...

Passados uns vinte minutos, uma formosa mãosinha afastou o reposteiro, e uma voz melliflua murmurou:

-- Dá licença, minha senhora?

-- Ah!... exclamou a condessa com vizivel alegria e como se sentisse livre d'um grande peso. Entre.

Era Adriana. A pobre menina vinha toda tremula e indecisa. Deu alguns passos a mêdo, e a condessa fez outro tanto. Chegadas proximo uma da outra, fitaram-se mutuamente com um indefinivel olhar, e por um impulso desconhecido e estranho estreitaram-se n’um longo abraço.

Como se pode explicar o ver-se assim unidas aquellas duas mulheres, que mutuamente esmagaram o coração? Ambas soffriam. Nenhuma gosava. As dôres nivellam e juntam os entes que a desgraça feriu.

-- A carta da sr.ª condessa assustou-me bastante, começou Adriana, e por isso, sem mais reflexão, apressei-me em vir.

-- E ainda bem que veiu. Necessito que me pardôe todo o mal que lhe tenho causado, ainda que involuntariamente.

-- Sr.ª condessa...

-- Murchei-lhe todas as suas esperanças, continuou a pobre Julia, destrui-lhe os sonhos doirados que lhe tinham povoado a mente, fui-lhe algoz na sombra.

-- Por quem é, sr.ª condessa, rogo-lhe que não continue, que muito mal me faz. Se houve culpa no que se passou, de certo não partiu de v. ex.ª

-- Vejo que é boa, e que me sabe fazer justiça. Todavia, fui fraca; não tive a força necessaria para acceitar impassivel o despreso de Jorge... Deixei-me vencer pelas palavras calculadas d'um homem indigno... e pequei, deshonrando meu marido.

Adriana, por um duplo sentimento de pejo e delicadeza, baixou os olhos.

-- Não me desprese, Adriana!

-- Despresal-a!... replicou a virgem erguendo a vista. Mas que tem, sr.ª condessa... sente-se incommodada? Está tão pallida!

-- Isto não é nada, respondeu Julia com um amargo sorriso. Estou com a minha enxaquequa... Preste-me o apoio do seu braço... quero descansar a cabeça, que parece ir-me pelos ares... Deitada soffrerei menos...

-- Se v. ex.ª quer, manda-se chamar um medico?

-- Oh! não, atalhou vivamente a condessa. Já me sinto melhor.

De facto, Julia foi escostar-se. O veneno que tomara principiava a fazer os seus terriveis effeitos.

-- Jorge tambem tem soffrido muito, accrescentou a condessa. Pobre d'elle! Nunca teve para mim uma palavra desabrida; não me deu amor, porque o não tinha, porque já havia entregado o coração a quem bem lh'o merecia. Deu-se aos vicios e devassidões para disfarçar o muito fel que lhe amargurava o presente, e destruía o futuro! -- Jesus!... gritou a infeliz contorcendo-se a seu pesar.

-- Pelo amor de Deus, sr.ª condessa, v. ex.ª cada vez está mais pallida... Consinta que se vá chamar um medico! exclamou a sensivel Adriana mal podendo supportar aquelles prenuncios de grave enfermidade.

-- Não... não... atalhou Julia fazendo um esforço sobre si mesma. -- Chegue-se mais para mim... Faz-me bem o seu contacto.

Adriana foi ajoelhar-se junto ao leito da condessa.

-- Assim... proseguiu esta. Como lhe disse, meu querido anjo, proseguiu depois de pequenissimo intervallo, enlodei-me na deshonra... deixei-me perder por um infame! Quando conheci o meu erro, que breve foi, quiz reagir, mas o miseravel ameaçava-me com o mundo, e eu tive de tornar-me sua escrava. Um dia, porém, fortaleceu-se-me o animo, e quiz a todo preço comprar a minha alforria. Expulsei para sempre o indigno seductor. Esse monstro foi tão covarde e abjecto, que esqueceu o sacrificio a que me arrastara, e foi jactar-se em publico de que tinha sido o meu amante, accrescentano que eu lhe devia uma vingança. Felizmente, a villania não fica impune, porque a estas horas está talvez o infame recebendo o justo castigo que merece.

-- Que diz, sr.ª condessa?...

-- Digo que Jorge se bate hoje em duello, e que Deus ha de armar-lhe o braço!

-- Ai!... exclamou a pobre Adriana, levantando-se com um só movimento.

Aquelle grito era um arranco do coração. A condessa sentiu-se estremecer no mais intimo.

-- E se matam o meu Jorge!... exclamou a desventurada virgem com a mais afflictiva dôr.

-- Perdão, Adriana! Mais claramente se patenteia a differença que ha entre nós. No meu egoismo, na minha indignação, só me lembrava que o criminoso devia de ser punido, esquecendo-me de que o vingador podia ser victima!

-- Mas isto é impossivel!... exclamou Adriana. Quero vêl-o!... quero vêl-o!... Jorge! Jorge!

E cedendo á afflicção, que não podia reprimir, correu para a porta, como se podesse ir salvar o escolhido da sua alma. Grato obstaculo lhe embargou a passagem.

Era Jorge, já de volta do gorado duello, e que vinha para pedir contas a sua esposa, e dar-lhe como castigo o recolher-se a um convento.

Adriana, esquecendo todas as conveniencias, lançou-se nos braços do conde. Quem póde impedir a furia do vento, o partir do projectil, e os impulsos do coração?...

-- Vivo!... exclamou a virgem confundindo o riso com o pranto.

A condessa olhava com satisfação para aquella scena de amor. Foi a primeira vez que a vaidade ficou impassivel no seu antro. E que me parece que ao chegar-se á beira do tumulo os anjos celestes apparecem, fazendo afastar todos os preconceitos humanos.

Entretanto, a condessa não podia já supportar as terriveis agonias que lhe agitavam o intimo.

Jorge caminhou para o leito, mas não teve palavras para exprobrar ou condemnar. Deparando com aquelle quasi cadaver, estremeceu, e curvou a cabeça com respeito.

-- Venham cá... cheguem-se para o pé de mim... murmurou a condessa. Quero que na minha ida para o sepulchro fique um rasto de felicidade...

-- Morrer! exclamou Jorge. Soffre?...

-- Soffro...

O conde agitou uma campaninha, e immediatamente appareceu uma criada.

-- Vão chamar um medico. Depressa.

-- É inutil, disse Julia. Sinto o veneno correr-me pelas veias... d'aqui a alguns minutos serei um cadaver.

-- Envenenou-se, desgraçada!... exclamou o conde.

-- A minha vida era impossivel... Não se póde viver sem affectos e com os remorsos do erro. Morrendo, termino com a minha desventura, e faço a felicidade de dois entes. Deus ha de levar-me em conta este sacrificio, se sacrificio se lhe póde chamar...

-- E o medico sem vir! gritou o fidalgo, trasbordando de desespero.

-- Repito que é inutil... replicou Julia com um sorriso. Dê-me a sua mão, Jorge... e tambem a sua Adriana... Não chore, meu anjo... Agora recebam a benção de quem é mais do outro mundo do que d'este... Uma longa existencia de flores os espera. É bom morrer fazendo alguem feliz... Estou certa que me perdoam, porque os seus corações sabem fazer justiça... Reze algumas vezes pela minha alma, Adriana... E meu pae? coitadinho... como elle hade soffrer... Diligenciem consolal-o... Digam-lhe que a sua Julia passará todos os momentos a implorar-lhe um logar no céu... Ali íicam algumas cartas, e tambem as minhas ultimas vontades... Como Jorge é bastantemente rico, e não precise de dinheiro para ser feliz, deixo uma avultada quantia para ser entregue á minha querida Adriana, que ella distribuirá pelos pobres, ou empregará como melhor entender... Agora posso morrer...

-- Isto é horrivel!... exclamou Jorge.

Adriana ajoelhára junto ao leito, e as suas lagrimas ardentes innundavam a mão gelada da moribunda.

Havia segundos que a desventurada condessa se estorcia em horriveis ancias. De proposito passamos de leve por esses pormenores, que não devem agradar muito á leitora.

-- Como eu soffro!... exclamou a desventurada. Está por pouco... Adeus... Sejam muito feli... ai!...

E uma alma subiu para a celeste mansão dos justos, e os seraphins vibraram as cordas das suas cytharas, e os martyres se afastaram para dar passagem a uma digna companheira!...

Jorge e Adriana ficaram estaticos, com o coração oprimido, sem poderem soltar uma palavra.

Um novo personagem os veiu tirar d'aquelle marasmo. Era o conde de S. Francisco.

O fidalgo trazia as feições transtornadas, e exprimindo a maior indignação. Facilmente se conhecia que vinha arvorado em juiz, e disposto a ser inflexivel.

-- Onde está a filha indigna e criminosa?... exclamou elle.

Adriana cobrou de repente uma energia de que todos a julgariam incapaz, e disse com voz suave, mas vibrante, apontando para o leito mortuario:

-- A martyr está ali!

-- Minha filha!... gritou o infeliz pae precipitando-se para o leito.

-- Está no céu recebendo o prémio do seu martyrio.

CONCLUSÃO

Vão passados oito mezes depois das scenas dramaticas a que fizemos assistir o leitor.

Nunca amanheceu um dia mais lindo, nunca o sol ostentou mais garridamente o seu brilhantismo. Sorri a natureza toda em galas ao seu protector benefico. Brota por toda a parte a verdura, lisonjeando-se de esconder a terra sob as suas frescas camadas. As flores disputam-se primasias, e são meigamente osculadas pela laboriosa abelha e pela inconstante mariposa. As avesinhas soltam á negligente brisa os seus hymnos de harmonia e mysterio. Por cima de tudo um céu azul e sem nuvens.

A aldeia de que fallamos no principio d'esta historia está em plena festa, os sinos do campanario esturgem os ares com os seus bronzeos e alegres sons. A cada porta assoma um rosto em jubilo, de cada bocca sahe uma expressão gostosa, ou um riso franco, que vem da alma.

-- Chegou o grande dia! diz um.

-- A que horas é? pergunta outro, só para fallar no caso.

-- Também vaes?

-- Pois quem não hade ir?...

-- Já está prompta a tua Mariquinhas?

-- Já, mas não me custou pouco. A endiabrada não cabia em si de contente.

-- Se te parece que não tem razão...

-- Bravo, tio Simão, como vem guapo! Só a festa lhe faria vestir a sua vestia de panno azul e alamares de prata!

-- E tu, minha delambida, para que te aceaste por essa fórma? Pareces mesmo um palmito.

-- Mas é que eu sou rapariga.

-- Então a gente por ser velho deve andar cheio de farrapos?...

-- Lá isso, não, e então agora só asssim andará quem fôr máu. D'aqui por diante não tenho eu dó dos velhos! terminou a travessa camponeza com um gracioso sorriso.

-- Nem eu das raparigas. Anda tu, invejosa... replicou o velhinho em tom de graça.

-- Invejosa? ó tio Simão, olhe que essas coisas não se dizem nem a brincar!

-- É verdade, é verdade! apoiou um grupo de gentis moreninhas, vindo em auxilio da sua companheira.

-- Está bom, está bom, apressou-se em dizer o bom do velho. Não vale por tão pouco levantar um escarceu por ahi além. Todos nós devemos estar contentes, e agradecer ao Senhor o ter mandado um anjo para nos proteger e amparar!

-- A menina Adriana! disseram vivamente todas as boccas, com uma expressão misturada de respeito e alegria.

-- Sim, a menina Adriana. Graças a ella, que de mudanças por ahi vão, louvado Deus! Olhem, lá está a tocar o sino da nossa casa, quasi que lhe podemos chamar assim. Aquillo é que foi obra! É um palacio! Ali ha de tudo: hospital para quando a gente adoecer, escola para os nossos filhos, asylo para os orphãos, abrigo para os velhinhos que perderam as forças no trabalho, e tambem...

-- O que, o que? perguntaram em côro as formosas moçoilas.

-- Cá uma coisa!... respondeu o edoso lavrador com uns ademanes de importancia e mysterio.

-- Ora diga, tio Simão, diga! insistiram as curiosas raparigas.

-- Digo... se cada uma de vossês me der um beijo.

-- Oh!... exclamou a feminina assembléa.

-- Oh!? então vão bater a outra porta, suas ladinas.

Seguiu-se um chuveiro de facecias e risadas, que por um momento atordoou o bom do tio Simão.

-- Então não querem vêr este arrojado da era dos Affonsinhos a fazer o seu pé de alteres! disse uma das gentis camponezas.

-- Se a gente lhe désse um beijo, ficava com os beiços cheios de velhice! tornou outra soltando ao mesmo tempo uma argentina gargalhada.

-- O que diria o meu Antonio! Mordia-se de ciúmes! Ah! ah! ah! deixa-me rir!

-- Ah! vossês riem e mangam?... disse afinal o folgasão velhinho; pois olhem que a novidade que eu tenho para lhes dar é coisa que se deite ao rio. Mas uma vez que não querem saber...

-- Queremos, queremos! Diga lá, tio Simão.

-- E o meu beijo?

Não ha elemento mais forte para as raparigas do que a curiosidade. É a sua corda sensível. O bom velho podia julgar-se senhor da situação.

As gentis moreninhas olharam umas para as outras, como que pedindo-se um mutuo apoio. Uma das mais expeditas salvou a crise.

-- Ora adeus! que mal ha n'isto?... disse ella dando um beijo na fronte enrugada do tio Simão.

Todas foram pagar o tributo.

E o velho ria a bom rir, e ellas riam tambem, tudo era alegria e folgar.

-- E a novidade? gritaram em côro as camponezas.

-- O promettido é devido. Lá vae.

Todos se acercaram ainda mais, formando um formoso circulo, cujo centro era o jovial tio Simão, e os raios os olhares curiosos e vivos das moreninhas.

-- Saibam, pois, suas ladinas, que a san-tinha da menina Adriana tambem se lembrou de vossês.

-- De nós?...

-- Então como?

-- Todos os annos será entregue um dote de quarenta moedas ás duas raparigas da aldeia que melhor se tiverem comportado, já ajudando e respeitando paes e mães, já conservando pura a honra, que é o unico thesoiro do pobre.

-- Ah!... exclamaram as camponezas, batendo ao mesmo tempo as palmas.

-- Agora é ter juizo e cabeça fresca. Faça cada uma por ganhar o premio, para ter uma boda alegre.

Devemos algumas explicações. Vamos pagar a divida.

Como o leitor estará lembrado, a infeliz condessa Julia, na hora do passamento, deu a Adriana um papel, em presença do qual não lhe seria entregue uma avultada quantia, cujo emprego ficava a seu cargo. Assim succedeu.

Pouco pensou Adriana na maneira como devia de applicar aquelle legado, porque logo no primeiro momento lhe occorreu uma idéá brilhante e caritativa. Não obstante, consultou Jorge, que immediatamente approvou o plano. Eil-o: Mandar construir na aldeia de que fallámos, e que fôra theatro de um delicioso prologo de amores, um modesto edificio, proporcionado á importancia da terra, que reunisse todos os predicados necessarios para proporcionar áquella pobre gente o bem-estar de que tanto carecia, e de que tanto carecem essas territas ahi para fóra, viuvas de todas as commodidades locaes.

A idéa de Adriana pôz-se por obra. Escolheu-se um sitio bem arejado, e deu-se começo ao trabalho. Se não era um monumento na fórma, era-o de certo, e muito digno, na essencia. Como dissera o tio Simão, havia ali de tudo: escola para a infancia, hospital para os miseraveis, albergue para os invalidos, e asylo para os orphãos. Já o pobre trabalhador se não entristecia com a idèa de no futuro se vêr obrigado a estender a mão á caridade, quando as forças lhe faltassem para remecher a terra: já o pae podia morrer descansado, porque não vinha exacerbar-lhe a agonia o terrível pensamento de que deixava por herança á innocente filha o abandono e a miseria, que, muitas vezes, descahe em perdição! Era muito, era tudo!

Adriana tornou-se o anjo bom da aldeia. Tinha em cada casa uma bênção e uma oração.

Jorge lastimou a triste sorte de sua finada esposa, que um fatal destino lançára para a desgraça, mas no intimo, lá bem dentro, exultou de mansinho, e agradeceu ao Altissimo o proporcionar-lhe occasião de se unir em amoroso laço com a sua estremecida Adriana. Quem se póde furtar ao egoismo?

Houve então um pronunciado e agradavel contraste: Jorge dirigiu-se, ainda coberto de crepe, ao pae de Adriana, e pediu-lhe o consentimento para uma prolongada felicidade: um dia, trajando galas, e entre a alegria da festa, sancionara o acto da sua maior desventura! Este mundo tem caprichos!...

Bem póde o leitor imaginar quanto jubilo illuminava o arrastado viver do honrado militar.

Abraçou-se á idolatrada filha, toda em lagrimas, mas lagrimas que valem mais do que sorrisos, porque são filhas primogenitas d’uma jubilosa expansão, e disse com voz entrecortada:

-- Aqui está para que Deus me não quiz matar! Tinha remorsos de roubar tão grande alegria a um pobre velho! -- Bemdito sejas, Senhor!...

Nem uma só noite Adriana deixou de misturar nas suas orações o nome da desventurada Julia. Era uma divida do coração.

Fixou-se o casamento para depois do luto de Jorge. Mais dois mezes se demorou a desejada união, que devia de ter logar na capella do novo asylo, a qual só findo aquelle praso ficou de todo prompta. Era crença firme de Adriana que a bênção ali recebida lhes daria uma eterna felicidade.

E que muito era esperar tão pouco entre rosas, quem tanto desesperara crivado de espinhos?...

Era quasi meio-dia.

Todos os habitantes da aldeia haviam sabido das suas modestas moradias, e de rostos alegres se acumulavam no rocio. Os gritos festivos da infancia confundiam-se com os risos das raparigas e com o vozear dos velhos.

Uma voz se ergueu d'entre a multidão:

-- Vamos a postos, que são horas!

Todos se agitaram jubilosameute, e d'ali se foram até á encantadora habitação de Adriana.

Apenas chegados, as camponezas formaram um formoso cordão da porta até á capella, fazendo os homens outro tanto por detraz d'ellas. As creanças agruparam-se junto á porta.

Passados breves instantes, assomou Adriana ao limiar, ao lado de Jorge, e logo atraz vinha o honrado coronel Raymundo d'Almeida, sua esposa, e diversos amigos, entre os quaes se contava o sympathico Alfredo da Cunha.

-- Viva a menina Adriana, o anjo da aldeia! Viva o sr. conde! gritou a multidão com verdadeiro enthusiasmo.

A virgem estava commovida pela muita felicidade que lhe ia n'alma, e mais lhe cresceu a emoção á vista d'aquellas sinceras e affectuosas demonstrações do sympathia e respeito. Sorriu com um sorriso de extrema meiguice, tremondo-lhe levemente os purpurinos labios, tal como o calix da rosa quando bafejada pela brisa.

A scena que então se seguiu rescendia um tal perfume de campesina bellesa, que ninguem que a presenceasse poderia deixar de commover-se. Ao passo que as alas aldeãs agitavam com frenesi os seus lenços de variegadas côres, e proferiam com enthusiasmo os nomes de Adriana e do conde, as creancinhas de que fallamos caminhavam na frente, tapetando de folhas de rosas a passagem do ditoso par.

Era a infancia com toda a sua candura e innocencia, conduzindo para a casa de Deus dois entes que muito haviam soffrido. E para onde podem os anjos levar-nos? Para a felicidade, para as delicias perennes, para o santuario do amor!

Decididamente, a esterlla protectora de Adriana e Jorge existia. Apenas uma nuvem lhe offuscara o esplendor.

Dissera-se que de ha muito os cherubins lá no ceu haviam começado de entretecer a corôa de rosas que mais tarde devia de ornar a fronte pura da virgem: prolongara-se o labor, porque os espinhos eram muitos, e cumpria inutilisal-os.

A alegre comitiva fez a sua augusta entrada na alindada capella.

O modesto templosinho era um verdadeiro sorriso. O sol passava radiante atravez dos vidros de côres que adornavam as janellas, indo esbater-se nas imagens celestes.

É impossivel imaginar-se mais attrahente mansão. O tecto, pintado por habil artista, similhava o firmamento, com a sua cerulea cor, e recamado de milhares de estrellas; por banda duas capellinhas do musgo e murta, sendo os altares enormes e toscas pedras graniticas; no fundo, servindo de docel ao altar mor, a imagem em marmore do Padre Eterno, rodeado pela sua côrte de serafins.

Sobre as bellezas naturaes da pequenina igreja accrescia uns soberbos enfeites de ocasião: eram uns graciosos festões de rosas brancas e vermelhas, que circumdavam todo o recinto. Tudo reunido, dissera-se um lindissimo presepio de brilhante fantasia.

Quem ali entrasse devia de sorrir, ainda mesmo que as lagrimas do soffrimento lhe escaldassem as faces. A alma sentia-se enlevada, o espirito descrente impregnava-se de fé, illuminava-se a rasão vacillante, repudiavam-se os crimes cá de fora, mas sem temor de violento castigo, porque se cria no perdão; abriam-se os olhos, ou cerravam-se as palpebras, e via-se o rosto sereno o bondoso do Creador.

Nem uma sombra escurecia os alegres rostos dos numerosos circumstantes.

Tendes visto o ceu azul e limpido d'uma formosa manhã de maio, sem uma nuvem, sem um unico signal insombrado? Assim era o aspecto da festa.

Os ditosos desposados dirigiram-se para a capella-mór, e em breve avançou o sacro guardião d’aquella mansãosinha divina, sacerdote respeitavel, revestido dos seus melhores paramentos e com um sorriso de paz e conforto nos labios.

Adriana e Jorge trocaram um olhar de indisivel amor.

O ministro do Senhor deu começo á ceremonia, lançando por ultimo a bênção nupcial ao estremecido par.

Estavam casados!

A' tempestade horrivel succedera uma divinal bonança; o Oceano revolto transformara-se em limpido ribeiro; o abulreda desventura deixara de empolgar aquelles dois corações desbordando de amor, e metamorphoseara-se em alvo cysne, cobrindo-os com as suas azas de nevada plumagem.

Os venturosos noivos de todos recebiam os mais cordiaes parabens. O alegre repicar dos sinos da capella confundia-se com as acclamações jubilosas dos camponezes.

Adriana, a cada nova felicitação, um leve rubor lhe roseava as mimosas faces. Era o casto despedir da virgem, o pudico comprimento á próxima esposa!

Depois da ceremonia matrimonial, sahiram todos da capella, e dirigiram-se para o interior do edificio, em cuja sala pricipal estava armada uma grande mesa. Ali foi servida uma abundante refeição a todas as creanças do logar. Os adultos tambem tiveram o seu quinhão: foi-lhes distribuido um bom e farto bodo.

Adriana deixou por um momento o esposo querido da sua alma, e toda se entregou em servir as creancinhas.

Edificante espectaculo! Onde encontrar goso mais sublime, qual o de proteger os pequeninos, atentar os pobres, limpar as lagrimas dos desvalidos da sorte?... Obra tão evangelica prende-se estreitamente com uma cadeia que principia na terra e termina ao sopé do throno do Omnipotente.

Esquecia-nos um pormenor, que cumpre não deixar na penumbra do olvido.

Logo que os jovens esposos entraram na sala do asylo, foram violentamente assaltados. Por quem? Pela nossa boa velhinha Engracia das Dores. De que maneira? Com abraços, e beijos, e gritos, e exclamações, e lagrimas... de alegria.

-- Ai! o meu rico menino! Agora já é feliz, e então póde a pobre velha morrer sem agonias. Foi a minha rica Madrinha que fez o milagre. Cheguei a temer que as vozes já cansadas dos velhos não chegassem até ao ceu. Engariei-pie, as orações ouve-as Deus ainda que apenas se murmurem. Estou tão contente... a alegria quasi que me faz mal. Sinto uma coisa a afogar-me a garganta. -- Figas, demonio, que a ias fazendo bonita! Sume-te lá para as tuas caldeiras de agua a ferver! Hei de levar um arratel de cera á Senhora dos Milagres. Não, que se não fosse ella... O’minha rica menina Adriana, faça-me sempre feliz o meu menino. Ha de fazer, que é uma santinha. -- Nem sei quem possa estar triste. Hoje é um dia de tanta ventura, que estou certa que não morre ninguem por esse mundo de Christo. Até hoje comi açorda ao almoço... se eu me sinto com tanta vida! O sr. marquez não veiu assistir á festa? É o mesmo, elle ha de saber tudo. Sempre me sahiu um tal casmurro! Cruzes, canhoto! O peor é para elle, que não dá alegria ao coração. E’ assim que Deus castiga. Em vez de tomar parte nos nossos prazeres, está sosinho lá não sei para onde. Foi-se por esses mares fora. E' bem feito. Sempre quero ver se em França es capaz de encontrar um filho como Deus te deu!... Não o mereces. Se te fallasse havias de ouvir-me! -- Anda lá, minha filha, que tens por marido um moço que é mesmo um menino Jesus. Os demonios dos bigodes é que não sei para que servem. No meu tempo só os da tropa usavam aquelles cabellos espetados. Fui eu que o creei, sim, senhores, fui eu. Tambem era um anjinho! A graça com que elle quebrava o fio das rocas das criadas velhas do palacio. Se o sr. marquez soubesse... O demonico estava sempre a pedir fructas e bolos, mas era para dar aos rapazes que passavam. Fui eu que lhe ensinei o Padre Nosso. Credo! o meu gosto era estar a fallar até á noite... mas não posso... A alegria faz mal aos velhos.

De facto, a boa velhinha estava exhausta. Foi o que valeu a Jorge e a Adriana. Ainda ha fortunas n’este mundo!

Em quanto Adriana se entregava com indizivel prazer ao seu trabalho de caridade, servindo com um disvello de mãe as innocentes creancinhas, que lhe sorriam agradecidas, o conde dirigiu-se para o vão d’uma janella, e acenou a um rapazote de rosto franco e sympathico para que se acercasse.

Era Antonio, o mocito que o fidalgo salvara das chammas, e que depois encontrara no Porto, em bem notavel situação.

-- Vem cá, Antonio, disse Jorge. Quando chegaste?

-- Esta manhã, sr. conde.

-- Quero provar-te que não me esquecem as promessas que faço. Prometti mostrar-te mais tarde o meu reconhecimento por me haveres salvado d'uma nodoa indelevel, e é chegada a occasião de me desobrigar da minha palavra.

-- Sr. conde... murmurou o rapazote um tanto confuso.

-- E’s um digno rapaz, e tudo quanto eu fizer em teu favor será pouco, comparativamente com o muito que mereces. De hoje em diante ficas sendo um dos empregados principaes d’este asylo. Os teus vencimentos te provarão que não sou ingrato.

-- O’ sr. conde, tanta bondade...

E o excellente rapaz queria beijar a mão do fidalgo, mas este invalidou-lhe o desejo.

-- Não me agradeças, atalhou Jorge; lembra-te somente que as acções generosas tarde ou cedo recebem a devida recompensa. Tomo como norma esta santa verdade, que terás um risonho futuro.

O conde afastou-se, para evitar as demonstrações de reconhecimento de Antonio, que a alegria quasi suffocava.

Alfredo da Cunha foi ao encontro do seu amigo.

-- Se acaso duvidasse da minha amisade por ti, disse elle, tinha hoje uma prova de todo o ponto evidente.

-- Porque?

-- Porque nunca me senti tão verdadeiramente jubiloso. Deve de ser muito grande a tua felicidade, porque apesar de reservares para ti um avultado quinhão, o que é muitissimo justo, ainda me cabe uma nesga, e não pequena.

O conde respondeu com um sincero e affectuoso aperto de mão ao delicado expressar do seu amigo.

-- Um largo e brilhante futuro te espera, meu querido Jorge: tens soffrido muito, as tuas dores chegaram ao desespero, o que é a mais certa recommendação para se apreciar a felicidade. Quem sempre viveu rodeado de gosos, não sabe, nem póde dar valor á ventura, ainda que seja tão completa que pareça uma filiação do ceu. E's o naufrago que escapou da horrivel tempestade, e que depois se deleita nas brandas aguas d'um formoso lago, relembrando os passados perigos.

-- Tens rasão.

-- Deves de ter a consciencia tranquilla, porque não a insombra o menor vestigio de remorso. Succedeu uma lamentavel desgraça, mas de que foste apenas o agente obrigado. E quando accaso te preoccupe uma vaga recordação tristurosa, um beijo da tua Adriana dissipará todo o amargor.

-- Obrigado, Alfredo, por essas palavras que tanto bem me fazem.

-- Em quanto a teu pae, proseguiu o ex-estudante, os remorsos servem-lhe de castigo, e são um exemplo magnifico para esses entes materiaes que em nada cotam os sentimentos d’alma.

-- Coitado, sosinho, em terra estrangeira... é bem digno de lastima, replicou o conde com modo triste.

-- Digno de lastima? será; mas o correctivo era indispensavel. Alem de que, não és tu que lh’o infiinges: é a própria consciencia que o fustiga.

-- Ha alguém que tambem soffre, e muito mais, sem que se lhe possa imputar a menor culpa.

-- Quem?

-- O pobre conde de S. Francisco.

-- E’ verdade, que é feito d'elle?

-- O desventurado fidalgo, quando soube do desastroso final da filha, julgou morrer de vergonha, porque ninguém se atreverá a duvidar de que era em tudo um homem digno. Poucas dores poderão nivellar-se com a que elle sentiu.

-- E com justa rasão. Perder ao mesmo tempo a filha que adorava, e a honra, o que é ainda mais sensível!

-- Foi tão profundo o desgosto, proseguiu o conde com uns laivos de tristeza, que lhe sobreveiu uma aguda doença, de que esteve a ponto de succumbir, o que talvez preferisse. Os cuidados e prescripções da sciencia conseguiram salval-o. Sem embargo, uma outra enfermidade o assaltou: desenvolveuse-lhe uma monomania constante, uma especie de idiotismo. Os medicos aconselharam-lhe a que se retirasse da capital, e que procurasse algures quietação e socego.

-- E então?

-- Então, aproveitou o conselho, e foi esconder n’uma herdade que tinha lá para Traz-os-Montes as lagrimas do soffrimento e a vergonha da deshonra.

-- Pobre velho!

-- Quantas vezes não terá elle amaldiçoado meu pae, que lhe roubou o que tinha de mais caro!

Alfredo da Cunha não se atreveu a replicar. Conhecia a justeza da supposição de Jorge.

Houve um momento de silencio.

-- Deixemos pensamentos tristes, que não devem de ter cabida em dia de tanto regosijo, disse o ex-estudante em tom jovial, desejando apagar da mente do amigo as leves sombras que podiam tomar maior vulto. Poucas são as horas de hoje para colher flores, não é verdade, senhora D. Adriana, accrescentou Alfredo vendo aproximar-se a joven e recente esposa.

-- De que se trata? perguntou ella.

-- Dizia eu, que hoje ficam despovoados os prados e os jardins, porque todas as suas gentis habitantes se desprendem das hastes para virem felicitar um enlace tão desejado quanto brilhante.

-- É arrojada a imagem, senhor Alfredo da Cunha; ainda assim agradeço-a, replicou Adriana com um delicioso sorriso.

-- Amigos como este são raros, objectou Jorge apertando a mão de Alfredo.

-- Mais raro é ainda encontrarmos quem seja digno da nossa amisade. N'esse ponto fui eu muito feliz, porque não precizei accender a lanterna, como Diogenes.

-- É muito forte na replica, senhor Alfredo da Cunha, tornou a formosa esposa do conde. Está-se ahi perdendo um excellente advogado.

-- Advogado! eu, que nunca passei d’um pessimo estudante! A minha missão é outra. Teem na sua frente um futuro lavrador.

-- Então?... perguntou Jorge.

-- Então, fujo da cidade, e vou para o deserto, isto é para as minhas herdades. Lá sou eu rei. Poderei dizer como o poeta:

«D'estes montes, destas selvas,

«Quem dirá que não sou rei?

Heide servir-me da espingnrda, não para assassinar o meu similhante, mas para matar alguma perdiz, ou alguma lebre, o que é menos arriscado e leal, confesso, mas que está ao abrigo da lei. De manhãsinha, mal o sol apontar no horisonte, isto é, á hora a que costumava deitar-me na capital, erguer-me-hei, e, depois de montar algum formoso cavallo, irei fazer uma visita a algum casal mais afastado. Á noite voltarei para o meu abençoado lar, e á mingua d'uns braços de esposa que me recebam e estreitem com ternura, terei o collo de minha mãe para descansar. E depois, ella, coitadinha, bem precisa ter-me ao pé de si, agora que a morte lhe roubou o idolatrado companheiro. A presença do filho dar-lhe-ha animo para supportar a perda do esposo.

-- É um nobre coração! exclamou a sensivel Adriana um tanto commovida.

-- Ao menos, has de prometter que nos farás de quando em quando uma visita, disse o conde do Pinhal Viçoso.

-- Nada, nada, que os senhores noivos não poderiam receber-me bem, replicou Alfredo com um sorriso.

-- Então porque?

-- Porque viria perturbar-lhes a sua deliciosa felicidade. Os amigos também ás vezes são importunos.

-- Ora, sr. Alfredo da Cunha... disse Adriana.

-- V. ex.ª duvida? Deixe estar que hei de convencel-a. Será um pequenino correctivo.

-- Pois sim, experimente, venha convencer-me, e castigar-me. Não queres partilhar a minha condemnação, Jorge?

-- Quero, sim, anjo da minha alma! respondeu Jorge.

-- E quando vier, sr. Alfredo da Cunha, proseguiu Adriana com galanteio, não venha só.

-- Pois quem me ha de acompanhar?

-- Quem? alguma mimosa flôr, colhida pelo senhor lá no seu deserto.

-- Ah! minha senhora, sou muito mau jardineiro. E depois, recearia sempre topar com... alguma flor de carqueja, por exemplo. As açucenas, como v. ex.ª, não se encontram lá pelas minhas montanhas. Vês, Jorge, como estou dirigindo galanteios e amabilidades á tua esposa? Não tens ciumes?

-- Tenho... de me roubares os pensamentos, respondeu o conde, sorrindo ao mesmo tempo para Adriana.

-- Também tu?... replicou ella n'um tom de adoravel exprobração.

O dialago foi interrompido pela aproximação d'um regimento de creanças, cujo commandante era o honrado Raymundo de Almeida, qne, á frente da infantil tropa, se amparava ao braço da sua estimavel companheira de desgostos e prazeres.

-- Trago-te os teus soldados, Adriana, disse o honrado militar, mal occultando um sorriso sob o alvo bigode. Vendo que o general estava ausente, principiavam a insubordinar-se.

Adriana começou de distribuir festas e beijos aos pequenitos. Um d’elles, de certo dos mais espertos, sahiu da fórma, e gritou com toda a força dos seus pequeninos pulmões:

-- Viva o nosso general!

-- Viva! repetiram todas as creançinhas n'um desafinado e atroador falsete.

Os camponezes sahiram todos alegremente do novo asylo, e foram para um pitoresco terreiro, que ficava em frente do edificio, dar largas ao jubilo que lhes esmaltava a alma. Começaram as dansas campesinas, os descantes, as toadas de aldeia, os risos francos, o murmurar alegre, tudo, emfim, que mais e melhor podia patentear o muito contentamento quede todos brotava espontaneo.

Adriana, com o Jorge da sua alma, e a demais familia e amigos, assistia jubilosa áquella festa singela, que lhe não recordava outra egual, e que fôra o prologo da tardia, mas immensa felicidade, que, finalmenle, lhe vinha animar a existencia.

Os bons camponezes só se distrahiam do seu folgar para de quando em quando acclamarem com frenetico enthusiasmo o nome do anjo da aldeia.

Horas depois, o conde do Pinhal Viçoso corria o reposteiro d'um formoso e elegante gabinete do seu palacio d'além da ponte, e convidava a entrar a adorada virgem.

Cerrou-se o reposteiro.

Os dois esposos estavam sós. Trocaram um olhar de indenivel amor, e cahiram nos braços um do outro, exclamando ao mesmo tempo com uma voz que deve vir do coração:

-- Jorge!...

-- Adriana !...

Alguns segundos estiveram unidos aquelles dois entes, que um terrivel destino quizera separar.

Ao sahirem d'aquelle grato enleio de amor, disse Jorge, commovido e brilhante:

-- Agora, anjo querido da minha alma, só nos resta libar o nectar d’um vasto futuro de delicias!

Adriana replicou com um sorriso de angelical tristeza:

-- E cobrir de flores o tumulo da martyr que morreu por nós!..

Effectivamente, todos os annos, no dia do anniversario da morte da desventurada Julia, Adriana e Jorge iam, cobertos de luto, recamar de flôres a campa da infeliz filha do conde de S. Francisco.