O agitador: Edição para o ELTeC Romance Pinto, Fortunato Correia (18??-19??) Criação do HTML original Alina Baldé Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 73750

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O agitador: romance Fortunato Correia Pinto Biblioteca Nacional de Portugal O agitador: romance Fortunato Correia Pinto Livaria Central de Gomes de Carvalho, Editor Lisboa 1906

português de Portugal Adicionado à coleção ELTeC

FORTUNATO CORREIA PINTO

O Agitador

(ROMANCE)

LISBOA

LIVRARIA CENTRAL de Gomes de Carvalho, editor

158, Rua da Prata, 160

1906

A QUEM LER

Algumas das scenas que n'este livro pretendi descrever talvez a muitos pareçam inverosimeis,e sejam julgadas apenas um producto da minha pouca fertil imaginação. Mas não é assim. Nada difficil me seria provar que da maioria d'ellasnão passo de simples e desataviado chronista.

Da minha lavra apenas aqui ha o estylo chão e insulso e a troca de nomes e de logares. Mais nada.

Em pormenores sem importancia, posso errar, tanto mais que esta insignificante obra foi principiada e em grande parte feita no outomno de 1900, quando, n'um pinaculo d'um monte chamado Colcorinho -- ramificação da serra da Estrella -- convalescia d'uma grave e morosa enfermidade, tendo apenas como fonte dos factos historicos as minhas reminiscencias e como auxiliares do meu trabalho uma canneta, um tinteiro e um caderno de papel sobre o joelho; na sua essencia, porem, os acontecimentos aqui relatados são absolutamente verdadeiros.

Ha pelo menos cinco annos que este livro está prompto para vir a lume, tendo até, pormais d'uma vez, começado a imprimir-se.

Mas embaraços de toda a ordem me teem forçado a adiar a sua publicação, até que, emfim, agora poude ser levada a effeito.

Ao atirar á publicidade este insignificante trabalho, um fim principalmente me anima: concorrer para a libertação mental do nosso povo, infelizmente ainda tão acorrentado aos mais estranhos absurdos, aos preconceitos mais perniciosos e intoleraveis.

Por bem pago me darei, pois, de todos os incommodos se o meu fim primacial for attingido, ainda que em minima parcella.

Lisboa, novembro de 1906.

Fortunato Correia Pinto.

I

A colera popular

Era ao anoitecer do dia 12 de janeiro de 1890.

O sol acabava de sumir-se na linha sinuosa da costa e um ambiente pesado, humido e frio succedia á poeira luminosa que à pouco e pouco fora desapparecendo na direcção do oceano, deixando a cidade immersa em desalegre penumbra e varrida pela brisa algida e cortante.

O Tejo, inquieto, ruidoso e monotonamente melancholico, mas sempre impressionavel, parecia cantar, n'uma melopêa triste, a historia desta ridente cidade, desta filha dilecta que já mais duma vez vira abatida, flagellada, reduzida á ultima extremidade, e que, graças a elle, resurgia do proprio abatimento e cada vez mais se engrandecia, enfeitava e aformoseava, tornando-se soberba e garrida, forte e importante, bella e inimitavel.

E elle, que sempre a acariciara e ornara, que lhe servia de meio para ella ter mundial admiração, que a livrava dos dejectos e limpava das immundicies, que ao mesmo tempo se lhe offerecia como banheira e inclinava como espelho, que pelo fluxo e refluxo das aguas lhe enviava as auras amenas que de verão lhe suavisavam a tropical temperatura e d'invemo a punham ao abrigo dos grandes frios, elle, com aquelle seu marulhar triste como um canto elegiaco, parecia presentir a desolação que ia feri-la e agita-la.

Começavam a accender-se os candieiros, e sob aquella luz amarellenta e mediocremente diftusa, a multidão, sombria e revolta, formigava pelas ruas e pejava as praças.

Fallava-se alto, gesticulava-se colericamente, dizia-se sem rebuço o que se sentia, sem medo da policia, sem receio de compromettimentos.

A Inglaterra era coberta d'insultos, a realeza e os governantes eram atacados rancorosamente, empregando-se contra elles os epithetos mais ultrajantes.

Cada qual, para vituperar a nossa secular alliada, lembrava as delapidações que sabia ter-nos ella feito no decorrer dos seculos.

Havia tal que remontava as rapinas da odiada nação ao reinado de D. Sancho I, que se vira forçado a expulsar de Silves os bandidos cruzados d'Albion, que o ardor do roubo, mascarado com a fé religiosa, levava á Terra Santa, embora elles lhe tivessem ajudado a tomar aos arabes aquella cidade. E não se esqueciam de relembrar o saque que

elles pouco depois deram a Lisboa, apesar de entrarem como amigos, tendo os bons burguezes da capital de os correr á mão armada.

Outros descreviam o que as tropas do duque de Cambridge, que se alliara ao poltrão D. Fernando para apoiar as suas pretensões a Castella, fizeram a este pobre povo, que os recebia de braços abertos: talavam os campos, incendiavam as povoações, violentavam as mulheres, como os mais perversos e damnados inimigos.

E por aqui adeante, em tudo encontravam perfidias e violencias, salientando-as n'uma sanha insuperavel, que a todos invadia, e buscando sempre encontrar cumplicidade nos actos dos nossos reis e ministros, que, em seu entender, se não vendiam ou davam a nação aos pedaços, como fizeram a Bombaim, chave de toda a índia, e como pretenderam fazer a Lourenço Marques, é porque, simplesmente, temiam que a pelle lhes não ficasse segura.

Todas as devastações, desastres e prejuizos que nos acarretaram as invasões francezas eram avivados e attribuidos á Gran-Bretanha, que então, como sempre, nos mostrou quanto valia e custava a sua alliança.

Por causa da Inglaterra -- diziam com rancor -- é que tivemos que haver-nos com as tropas napoleonicas; e para ella nos vir ajudar a derrota-las tivemos que pagar-lhe prodigamente, sendo ella n'esta lucta tão interessada como nós, pois que o heroico imperador dos francezes era o seu mais terrivel e damnoso inimigo.

E, menosprezando o seu auxilio, continuavam affirmando que nós fomos sempre roubados por ella e que, mesmo sem Roliça e Vimeiro, Junot não poderia conservar-se mais tempo em Portugal, porque as suas tropas, em contacto constante com populações revoltadas, se iam dizimando sem que elle as pudesse refazer, pois que Napoleão, em guerra com quasi toda a Europa, trazia os seus numerosos exercitos extraordinariamente disseminados e não

podia affasta-los dum ponto sem que o seu dominio ali logo não periclitasse. Que Soult, se não passou do Porto, foi porque não poude ser soccorrido pelos outros generaes francezes, ameaçados pela energia dos hespanhoes revoltados; e que Massena, mesmo que tivesse vencido no Bussaco e atravessado as linhas de Lisboa, teria em breve de deixar Portugal, porque as suas forças eram reclamadas noutro ponto da Europa.

Para os inglezes, sim -- accrescentavam -- para os inglezes é que estes desastres das armas francezas eram proveitosos, pelo tremendo golpe que davam no prestigio das aguias imperiaes. E era exactamente pela annullação desse prestigio que elles anciavam, porque é quasi impossivel derrotar exercitos bem organisados e conscios da victoria, como quasi impossivel é fazer vencer exercitos já desmoralisados por derrotas successivas. De resto

que se importavam elles com os interesses de Portugal?

Aproveitavam para os seus fins as nossas forças, as nossas munições, o nosso propicio terreno e só pensavam em ferir o seu perigoso inimigo, sem se importarem que as nossas riquezas fossemroubadas, a não ser pela razão de que, quanto mais as forças imperiaes levassem para França, menos elles depois podiam acarretar para a Inglaterra. Nem as egrejas, em que n'este paiz fradesco e fanatico estavam amontoados extraordinarios thesouros, escaparam á avassallante rapina!

E, especialmente os commerciantes, accusavam Wellesley e as suas tropas de incendiarem os nossos melhores estabelecimentos fabris e commerciaes, para que os artefactos da sua nação aqui fossem vendidos; mas o que parecia ainda acirrarlhes os odios era a lembrança d'esse Beresford que aqui ficou a dar leis e a ceifar as cabeças dos nossos mais valorosos patriotas, com consentimento desse grutesco D. João VI, até que os heroicos patriotas de 20 o expulsaram.

Assim proseguiam nas suas ferozes invectivas, malsinando tambem todos os actos dos nossos governantes, que consideravam, em todas as epochas, vendidos á nossa potente alliada.

A causa d'esta insolita attitude da população da capital eram as consequencias d'um conflicto que surgira entre Portugal e a Inglaterra e que durava havia bastante tempo.

Serpa Pinto commandava em Africa uma expedição de exploração e reconhecimento; e, ao atravessar o paiz dos makololos, na região de Mashona, viu-se forçado a castigar estes povos, porque elles, incitados pelos inglezes, lhe queriam interceptar a passagem.

Ora a Inglaterra que pretendia, segundo o seu costume, apossar-se daquelles territórios sem nos dar satisfações, via os seus planos transtornados com aquella importante expedição. Não se deteve porém, e entrou em negociações com o nosso governo, para que este mandasse retirar todas as forças que obravam para alem do Ruo, contando, claro está, que este se não atrevesse a desobedecer-lhe.

Como, com grande espanto seu, assim não acontecia, e vendo que os processos dilatorios davam em resultado ir a expedição avançando sempre, sem que lhe dessem a satisfação que exigia pelo supposto desrespeito da sua bandeira, visto arrogar-se a protecção dos makololos, enviou então ao nosso governo um brutal ultimatum, em que dava apenas o curto espaço de 4 horas para que as suas imposições fossem satisfeitas, «aliás lá estava em Vigo a barca Enchantress para receber instrucções.»

No dia 11 de janeiro é que se recebeu esse vergonhoso ultimatum; e, logo que a noticia se espalhou pela cidade, começou a estabelecer-se uma formidavel corrente d'odios contra a ingrata alliada; mas quando correu, com a rapidez do raio, o boato de que o governo engulia a affronta e se submettia, então a agitação descambou em alteroso tumulto, o temporal desencadeou em medonha procella que ameaçava tudo submergir.

Parecia que a mesma dôr apoleava todos os corações, que a mesma vergonha vexava todos os rostos, que o mesmo patriotismo inflammava todas as almas, porque todos saltaram para a rua, promptos a offerecer o seu sangue para que a nação não ficasse emporcalhada com a arrogante e infamante nodoa, que a alliada de todos os tempos, num assomo de arrogancia, de soberba e de vil interesse, nos cuspia sobre as faces.

Admiravel coisa é o amor patrio!

Os habitantes de Lisboa, sempre timidos e egoístas, que fogem aos centos deante dum homem armado, logo que um mesmo sentimento os irmana e uma mesma causa os impulsiona, já não sabem o que é medo, já desprezam compromettimentos e alli fazem reboar na praça publica os seus gritos e clamores, associando-se, numa notavel promiscuidade, homens de todas as classes pensantes e trabalhadoras: escriptores, operarios, commerciantes,

jornalistas, industriaes, caixeiros, artistas, empregados publicos, advogados, militares, estudantes e até deputados!

Todos desejam, todos querem, todos reclamam em alterosos e retumbantes gritos a guerra com a nossa insultante alliada.

Para elles não ha outra solução senão a guerra.

Pouco lhes importa que a Inglaterra seja incomparavelmente mais poderosa, não attendem á falta de segurança das nossas costas, nem querem saber do numero de canhões que ella enviaria para nos metralhar. Só no que pensam é em lavar com seu sangue a ominosa affronta. O seu lemma é: perca-se a vida mas salve se a honra!

Foi, como dito fica, ao anoitecer do dia 12 que começou a divulgar se o boato de que o governo acatava as imposições do gabinete inglez; e todos a quem o amor da patria faz latejar o coração affluem em formidaveis catadupas aos pontos mais centraes.

Os largos e praças eram alterosos e encapellados mares, onde as ruas, quaes caudalosos rios, vinham despejar a ondeante e amotinada multidão.

O local primeiramente assaltado foi o alto de Santa Catharina, onde residia o ministro dos negocios estrangeiros.

Elle não merecia talvez as affrontas que o povo ia atirar-lhe, porque as suas respostas ás exigencias

inglezas nada tinham de servis e eram mesmo bastante dignas; mas o povo é que não sabia disso e precisava encontrar responsaveis, tanto mais que uma só resolução podia agradar-lhe e essa nenhum ministro se atreveria a toma-la, que era a guerra.

Da compacta massa viva que atulhava a praça e se ramificava pelas ruas que ali vão dar, o que lhe dava o aspecto dum polvo enorme, reboaram insurdecedoramente os gritos: «Viva a Patria ! Viva Serpa Pinto! Abaixo a nação dos piratas!» -- que foram estrondosamente correspondidos, com ardor, com ancia, com furia.

A seguir eram soltados estes em unisono: «Abaixo o governo de traidores! Morra a Inglaterra! Viva a Nação Portugueza!»

Os mais exaltados berravam: «Abaixo a realeza! Viva a republica!» Depois o tumulto recrudescia, tornando imperceptiveis as phrases, só deixando ouvir os gritos, irados, roucos, colericos.

De espaço a espaço, porem, percebiam-se algumas palavras que alguma voz mais potente emittia, como estas, por exemplo, increpando o ministro:

-- Larga as contas, jesuita, e diz aos piratas que venham cá, que nós lhes daremos a paga das suas insolencias!...

Ou estas:

-- Deixa o governo, rato de sacristia, e vae para as egrejas apagar a cêra!

Ou ainda:

Vae dizer ao rei, traidor, que não dará nem mais um palmo de terra aos seus amigos e alliados, porque nós não consentimos, ouviste?!

Depois os berros redobravam d'intensidade, os morras eram ininterruptos; e o grande prédio, immerso em sombra e silencio, mais irritava o povo furibundo, que acabou por o apedrejar raivosamente, deixando em estilhaços todas as vidraças da extensa fachada.

O proprio excesso da violencia acalmou um pouco mais a furia dos manifestantes, que abandonaram a casa do ministro Barros Gomes para correrem ao consulado inglez, á rua das Flores, onde foi feita manifestação similar, multiplicando-se os gritos contra a Inglaterra, cheios de insultos e de vituperios, impregnados do odio e da raiva da população da capital, que, para melhor manifestar o seu despreso pela arrogante alliada, até arrancou o

seu escudo e o arrastou violentamente pelas ruas.

Por toda a cidade o povo estava amotinado e era egual a indignação.

Deante de todas as redacções e de todas as corporações reaccionarias ou affectas ao Paço ou ao governo eram feitas retumbantes manifestações hostis, como em frente das que eram liberaes e principalmente republicanas se faziam altaneiras manifestações de sympathia.

Até em frente da residencia do rei, que pouco antes tinha sido acclamado, se soltaram gritos sediciosos, falando alguns mais ousados em lançar-lhe o fogo ao palacio.

O povo tornava a monarchia responsavel pela affronta e todos diziam que um só caminho restava á nação, era a republica.

Mesmo a grande maioria dos que sempre foram monarchicos assim pensava; e todos entendiam que essa era a unica solução honrosa.

Era por isso que os nomes dos grandes vultos do partido republicano eram loucamente acclamados pelas ruas. Os gritos contra a Inglaterra, contra o governo e contra a monarchia traziam sempre como consequencia os vivas a Elias Garcia, Latino Coelho, Theophilo Braga, Manuel d'Arriaga, Rodrigues de Freitas, Magalhães Lima, Jacintho Nunes, etc.

Dois nomes tambem eram constantemente victoriados: eram os de Serpa Pinto e Álvaro Ferraz, como commandantes da expedição que motivou o incidente, porque a sua bravura na repressão dos makololos era grata ao orgulho nacional.

A cidade assim revolta parecia um vulcão temivel, que, agitando o solo em terriveis convulsões, vae em breve arrasar tudo num mar de lava incandescente; mas era ao mesmo tempo bella, soberba, grandiosa! Mostrava vida, energia, patriotismo, aspecto que contrastava singularmente com o que lhe é peculiar, e que é de indolencia, de tibieza, de inercia.

A' excepção dos palacianos e do clero, que não gostam destas manifestações, que são um symptoma d'independencia e de expontaneidade popular que lhes não agrada, toda a população activa e laboriosa da capital andava na rua em altisonas manifestações; e se não fez mais foi porque a não dirigiram; e se não fez baquear o throno e afundar a realeza foi porque não souberam ou não quizeram aproveitar-lhe os primeiros impetos, que seriam irresistiveis.

Ainda assim, o governo, por fraqueza ou por calculo, é que salvou as instituições, deixando expandir sem repressão a violenta colera popular.

Se pretende pôr um dique á sua primeira effervescencia, uma insurreição geral seria a sua resposta.

No exercito lavrava tambem a maior indignação, e é mais que certo que, se o mandassem para a rua fuzilar o povo, fraternisasse com elle; e então era inevitavel o fracasso da dynastia de Bragança, sendo a republica acolhida quasi unanimemente como salvadora.

Todos contavam que assim succedesse; e era por isso que os proprios políticos da monarchia lhe viravam as costas; uns -- os sinceros -- por entenderem que era nella que estava o mal; os outros -- os exploradores e que eram o maior numero -- por julgarem que a monarchia estava perdida e desejarem estabelecer na republica o seu syndicato d'expoliação.

Os primeiros perseveraram na sua ideia até ao fim: os segundos persistiram n'ella emquanto as probabilidades d'exito não volveram a favor da monarchia.

Foi assim que d'ahi a poucos dias a policia e a municipal já podiam espadeirar e prender os manifestantes á vontade.

Nos primeiros dias a policia só prendia alguns que encontrava isolados, porque não se atrevia a fazer frente áquelle impetuoso e tormentoso oceano;

e o exercito e a guarda municipal, em vez de conterem o povo, respondiam ás suas acclamações descobrindo se e abrindo alas para o deixarem passar.

O novo governo lembrou se d'augmentar o rancho á guarda municipal, e esta, de barriga cheia, já não queria saber de patriotismos que podiam perturbar-lhe as funcções estomacaes. Os políticos, na genuina expressão de termo, regressaram aos seus postos, visto que a republica não era um facto; e os pobres patriotas, que tanto clamaram pela guerra contra a Inglaterra, não se sentiam com força nem sequer de se defenderem da policia, que lhes ia de sabre para o costado com aquella bestealidade que lhe é peculiar e que já mesmo se pode ter como axiomatica.

II

Faz-se a revolução?

Eram onze horas. Apezar do vento frio que soprava por aquellas ruas, pondo sensações de gelo nas carnes arroxeadas, as manifestações continuavam ainda; e agora um grupo de patriotas, na sua maior parte estudantes, vinha mostrar mais uma vez a sua sympathia por essa prestante corporação, que então tinha a sua séde na rua das Chagas, e que se chama Sociedade de Geographia.

Desse grupo separou-se um mancebo, que teria quando muito vinte e dois annos, e que tomou pela rua da Horta Secca, virou á rua da Emenda e foi bater a uma porta dum terceiro andar. Como ninguem lhe respondesse, tornou a descer e dirigiu-se para a praça de Camões, que estava ainda coalhada de povo, o qual applaudia freneticamente um fogoso tribuno, que, nas escadas da estatua do nosso Homero, perorava ás turbas com tal fluencia, energia e enthusiasmo, que arrebatava quantos o ouviam.

É sempre nas grandes convulsões dum povo que apparecem os grandes generaes, os grandes oradores, os grandes poetas, os grandes escriptores.

A indignação e o enthusiasmo levantam os espíritos acima do commum.

O mancebo que vinha da rua da Emenda conhecera-o de longe pela voz, cheia de vivacidade e franqueza. Era a pessoa que procurava; mas não poude, por mais esforços que fez, chegar até junto d'elle, tal era a quantidade de gente que se acotovelava para ouvi-lo. Como aquella barreira viva o impedia de aproximar-se, parou a ouvi-lo expor, com uma eloquencia que enlevava e um transporte communicativo, as vantagens que adviriam com a implantação da republica, e os desastres, vexames e vergonhas que devemos á monarchia e que nos hão de levar até á perda da nacionalidade, se nós todos -- dizia elle -- não reagirmos contra a nossa propria atonia e nos não resolvermos a fazer justiça por nossas mãos.

O auditorio victoriava-o com delirio; e, quando elle, extenuado de cançaço, terminou, levou-o em triumpho até em frente da redacção do jornal republicano, Os Debates, ao Chiado, onde mais uma vez foram levantados ruidosos vivas ao partido republicano, á patria, á redacção d'aque!le jornal e a Gilberto de Proença -- o orador que elles acabavam de ouvir e que era um intelligente jornalista republicano.

Aqui poude o patriota que procurava Gilberto, o agitador e que era um estudante de medicina, acercar-se delle e furta-lo ás expansões algo maçadoras do povo.

-- Preciso falar-te -- disse-lhe elle logo que poude -- Vamos para o teu quarto, que o que tenho a dizer-te não é para se explicar aqui na rua... e mesmo porque tu precisas descançar.

-- Vamos lá, que estou, effectivamente, exhausto.

E, atravessando ambos o Largo das Duas Egrejas, dirijiram se para aquelle mesmo terceiro andar em que o estudante havia pouco batera.

Chegados ali o jornalista tirou da algibeira uma chave e, abrindo com ella uma porta, entrou adeante para accender o candieiro. Era ali o seu quarto, que elle tinha modesta, mas decentemente mobilado. A um lado estava uma cama á franceza, arranjada de forma que se via logo andar ali dedo feminino. Junto da unica janeila que dava luz ao aposento via-se uma secretaria atulhada de papeis, jornaes, revistas, pamphletos, etc. Detraz da porta da

entrada havia uma commoda; do lado opposto uma estante, que abarrotava de livros, e no proximo canto estava um lavatorio, tendo por cima um espelho de pequenas dimensões. Pelas paredes agrupavam-se retratos de sabios e revolucionarios. O que mais fazia realçar esta diminuta mobilia era o acceio que se notava em tudo e a graça, a arte com que tudo estava disposto.

O jornalista atirou-se sobre a cama para dar algum descanço ao seu corpo fatigado. Desde a tarde até áquella hora que andara numa actividade febril, numa fadiga incessante, ora trovejando imprecações contra a Inglaterra e contra o governo e realeza, ora discursando como formidavel tribuno, salientando as vantagens do systema republicano, com que lucraria a patria, com que -- affirmava elle -- progrediria a civilisação, com que melhorariam as

condições do proletariado, com que lucrariam todos, emfim, porque só um bando ficava prejudicado -- o dos monopolisadores do governo, verdadeiras sangue sugas do Thesouro.

O estudante, de nome Armando de Sampaio, sentou-se numa cadeira junto do leito e começou:

-- Procurei-te para te dizer que acho ser agora uma occasião magnifica para se proclamar a republica.

«O povo, como viste, acha-se exaltadissimo, e o exercito egualmente. Falta apenas quem tome a iniciativa do movimento, convindo que seja quem inspire confiança. Ora tu, como tens relações com os do Directorio, podes convencê-los a pôr-se á testa da revolução, que atirará inevitavelmente por terra com a desacreditada monarchia, não achas?

Gilberto, numa expressão de grande tristeza, respondeu:

-- Logo que o povo saltou para a rua, rugindo ameaçador, corri a casa do ***, que como sabes é a voz mais auctorisáda do Directorio, e expuz-lhe a grande conveniencia de se pôrem á frente do povo, que bem dirigido transformaria rapidamente as suas manifestações em triumphante revolução; mostrei-lhe o estado da cidade, affirmando-lhe que emqualquer ponto que rebentasse a insurreição a ella se iriam reunir todas as principaes forças, não só do povo, mas do exercito e da armada; patentiei-lhe a vantagem que havia do movimento rebentar já, porque o governo está a cair de pôdre e não devíamos dar tempo a que outro se constituísse; que de tal forma todos vociferavam contra o throno, que ninguem pegaria em armas para o defender, e que em menos de 24 horas podia a republica estar implantada em Portugal, quasi sem effusão de sangue, pois que até o bando dos políticos estava prompto a virar as costas á monarchia, contanto que visse a republica com probabilidades de triumphar.

-- E que te respondeu elle ? -- perguntou, offegante, Armando.

-- Que a republica ha de ser proclamada, mas que não pode ser já; que acima das nossas paixões, devemos pôr os interesses da patria e que ella perigaria se agora nos mergulhássemos em revoluções, porque a Inglaterra, allegando a nossa anarchia interna, viria cá repor o rei no throno, apossando-se de caminho do que mais lhe conviesse, principalmente tendo, como dizem que tem, um tratado secreto com os Braganças para lhes conservar a realeza; que, para contrapor aos tratados inglezes, precisamos entender-nos com outra nação potente que

nos possa auxiliar, mas que por emquanto nada ha feito; que, levantar o estandarte da revolta sem nada preparado, era perdermo-nos sem proveito nem para a nossa causa nem para a nação; que, sobretudo, quando o povo, sem pão nem abrigo, se vê atacado da temivel influenza, seria um crime barbaro dar lhe por conforto sangue e lagrimas.

«Terminou por me dizer que esta era a sua opinião, mas que amanhã apresentaria a minha proposta aos seus collegas e que se elles a approvassem e quizessem já a revolução elle se submetteria, pois que não era por medo nem por egoismo que a contrariava.

-- Parece-me que podemos então perder a esperança, porque o mais provavel é que os outros concordem com a opinião d'elle -- murmurou desapontado o estudante.

Gilberto, passeando agora nervoso e agitado, continuou:

-- Oh! mas é para desesperar! Perde-se uma occasião que diíficilmente tornará a encontrar-se.

«Disse-me elle que era preciso pôrem-se os interesses da patria acima das nossas paixões! Pois não seria querer o bem da patria correr com esse bando de corvos vorazes que lhe dilaceram o corpo inerme!? E não seria um grande beneficio para o povo, que para ahi se fina de fome e frio, livrá-lo dessa cafila de delapidadores que vilmente o explora sem attender aos seus males e miserias!?

«Receia que a Inglaterra cá mande as suas tropas para tornar a collocar o rei no throno!

«Mas então para que servimos nós!? Para onde foi o antigo brio dos portuguezes, que assim consentem que os estranhos lhes imponham os seus chefes d'estado!?

«Dizem que a revolução não está preparada. Ora isto não é verdade. Ella lavra com intensidade no espirito do povo, e não pode haver melhor preparação. Se não está planeada, tanto melhor, impoe se pelo inesperado e não dá occasião a denuncias nem a prevenções.

-- Os nossos honrados chefes, com os seus exagerados escrúpulos, -- tornou o estudante -- hão de perder a nossa causa. Receiam sacrificar-nos e não querem pronunciar-se sem terem todas as probabilidades de victoria, mas assim nunca faremos nada.

«Á preciso que uns se sacrifiquem para o beneficio dos outros, ainda que agora os sacrificios seriam pequenos. O exercito, o unico sustentaculo do throno, só ajudaria hoje a precipitar-lhe a queda; e, a não ser que a provinda se levantasse em massa, ninguem terçaria armas para o amparar.

-- Na provincia já estão muito derramadas as ideias republicanas; mas ainda que o não estivessem, ninguem se mexeria. O provinciano é sobretudo commodista: não viria cá atacar a realeza, e muito menos defende la.

«Podes crer que em Portugal não haveria Vendêa. Eu conheço bera a provincia.

-- Pois então vê se amanhã os resolves e dá-me a resposta, porque creio que arrastaria os meus condiscipulos e toda a rapaziada das escolas. Ás duas horas da tarde ha reunião na escola Polytechnica, e era bom que eu já soubesse alguma coisa.

-- É cedo ainda...

-- Então ás sete estarei no Martinho.

-- Está dito.

Armando, dispondo-se a sair, disse ao seu amigo:

-- Ficas, não é verdade?

-- Não, ainda vou á Avenida, porque tua prima espera-me e já deve estranhar a demora.

-- É verdade! Olha que tu tem cuidado com aquelle padre que lá anda mettido em casa. Eu desconfio muito d'aquella assiduidade. Meu tio, se o chamou para lá, não foi decerto para elle te fazer o casamento com Zelia...

Gilberto não respondeu, mas o rosto avincouse-lhe, como se aquellas palavras o chocassem profundamente.

Desceram para a rua, a este tempo já quasi silenciosa, e, depois de atravessarem a praça de Camões, subiram a rua de S. Roque e desceram a Íngreme calçada da Gloria.

Era meia noite. Pela Avenida, lavada pela ventania glacial e cortante, apenas alguns vagabundos se viam perpassar, evitando os raros focos electricos, que, com as suas intermittencias de luz, pareciam tremer sezões.

O estudante, ao despedir-se do seu amigo, disse-lhe:

-- O rei foi hoje aqui altamente desfeiteado!

O povo começou a apupa-lo e, se, não se retira tão depressa, não sei o que lhe aconteceria...

-- Mas que infeliz lembrança aquella de vir passear alegremente num dia que para a patria foi de lucto!...

Effectivamente o rei D. Carlos lembrou-se de ir passear para a Avenida, assim como seu irmão se lembrou de andar nas suas costumadas correrias pela cidade, mas breve tiveram de recolher-se, porque o aspecto do povo não era nada animador.

Isto foi antes das manifestações começarem. Se é depois, podiam soffrer maior vexame.

Já lá vae o tempo cm que o povo amava os seus reis e em que os reis faziam do povo a sua grande força, para poderem fazer face a esses orgulhosos e atrevidos bispos e fidalgos, que foram sempre encarniçados inimigos do poder real, e para opporem á invasão estrangeira.

Foi sempre no povo que esteve mais radicado o amor da patria; e em todos os transes difficeis, quando ella estava em perigo, era só com o povo que se podia contar, porque o clero e a nobreza, venaes ou indifferentes, estavam com quem melhor lhes satisfizesse a ambição ou os deixasse em paz.

Foi D. Affonso II, o Gordo, quem primeiro se serviu dos seus villões, como então se chamava ao povo, para mandar contra os serracenos, que se haviam precipitado em torrentes caudalosas sobre a Peninsula, pondo em risco todas as monarchias christãs. E tal foi o seu impeto, valor e heroismo, que todos os historiadores nacionaes e estrangeiros foram unanimes em lhes tecer elogios, pois muito concorreram para a victoria das Navas de Tolosa.

Foi o povo que ejevou D. João I ao throno, e foi com elle que este monarcha poude vencer os castelhanos, na proporção de um para cinco. D. João II, para esmagar essa nobreza arrogante e presumpçosa, que pretendia reduzir a realeza a um simples titulo honorifico, teve que apoiar-se no povo. E o Prior do Crato, D. Antonio, -- esse vulto notabilissimo que tão infamado tem sido pelos historiadores que deram credito ás insídias do torpe Filippe II, -- quando quiz livrar Portugal das garras de Castella, só encontrou em volta de si o povo -- pobre povo enfraquecido, porque um doido se tinha ido sepultar com os seus mais validos filhos nos areaes de Alcácer Kibir, mas, emfim, povo!

O clero e a nobreza haviam-se vendido vilmente pelo ouro do hespanhol.

Foi um portuguez renegado, Christovam de Moura, quem, em nome de seu amo Filippe II, fez a acquisição dessas miseraveis consciencias, que levaram atreladas á sua infamia a liberdade da patria.

Mas passados sessenta annos voltou a haver reis portuguezes; porem estes divorciaram-se do povo e asssociaram-se ao mais entranhado inimigo da liberdade-- o clericalismo, podendo por isso dizer-se que, á excepção dum que pouco viveu, não houve ainda na dynastia Brigantina um rei verdadeiramente popular.

III

Nuvens em céu d'amor

Os dois amigos, depois de trocarem aquellas breves palavras, despediram-se, seguindo Armando para sua casa, na rua de Santo Antão, e Gilberto dirigiu se para onde sua amada o esperava, que era á janella dum luxuoso rez do chão.

Só quem nunca foi a uma entrevista destas é que pode ignorar as sensações que se experimentam, o alvoroço em que estamos, o accelerado das pulsações do coração, os pensamentos bellos, dulcissimos, phantasiosos, que nos perpassam pela mente, os receios, as incertezas, os desejos que nos exacerbam e apressam para respondermos ás nossas proprias interrogações: estará? não estará? arrepender-se-ia? o seu amor será verdadeiro? esistirá á familia? submetter-se-á?

Todas estas coisinhas, que, ditas assim a sangue frio, parecem banaes, nos impressionam então, nos excitam, nos impacientam a ponto tal que raras vezes nos dominamos.

Ora com quanto maior desassocego, agitação e impaciencia não iria o jornalista, depois das palavras de Armando que lhe denunciavam uma conspiração tramada contra a sua felicidade, porque elle amava com ardor aquella filha do importante director geral dum ministério, conselheiro Antão de Sampaio!

Conhecera-a alguns mezes antes numa soirée, em casa duma familia que o convidara por intermedio do estudante.

Zelia era ali a rainha da noite. Em volta della voejavam todas as attenções; para ella convergiam todos os raios visuaes dos janotas que enchiam o vasto salão.

E ella, orgulhosa por se ver assim alvo das admirações e cortejos do dandysmo, mais se envaidecia com os ciumes e raivinhas nada equivocos que despertava nas outras jovens, mesmo nas suas amigas, que ella de todo eclipsava, como o sol faz ao brilho das estrellas. Zelia era uma destas obras primas da creação, em que parece ter um supremo Artifice empregado toda a sua estetica sublime. Tinha todos os encantos e seducções proprias para inflamar o temperamento mais lymphatico.

A tez, morena e nacarina, tinha a frescura da flor que desabrocha e a maciez da petala da rosa.

Os labios eram escarlates, tendo a sombrear-lhe o superior uma avelludada e voluptuosa pennugem. Os dentes pediam ao jasmim e ao lirio a primazia na alvura. Os cilios e os sobrecilios, pretos, espessos, recurvados davam-lhe uma expressão seductora.

O cabello tambem preto, ondeado, elegante, podia cobril-a como uma tunica. A figura era airosa e gracil e as suas formas esculpturaes pareciam ter sido modeladas por Phidias. Os ademanes, gentis e aristocraticos, tomavam-na superior a uma rainha.

Mas o que sobretudo a divinisava eram os olhos, grandes, pretos, expressivos, scintillantes, que, ao volverem-se inquietos nas orbitas, desprendiam taes efiluvios magneticos e tão abrazadores raios de fogo, que provocavam as paixões mais indomaveis.

Era considerada a mais formosa menina de Lisboa, e requestavam-na os principaes janotas alfacinhas.

Ella porem divertia-se com aquella alluvião de admiradores, como uma creança se pode divertir com brinquedos que muito a distraem, mas entre os quaes nenhum lhe merece preferencia: todos lhe eram egualmente indifferentes, embora gostasse que a cortejassem assim.

Tinha então dezoito annos; e, altiva por indole e por educação, ninguem tinha sobre ella imperio algum. Seus paes, que não tinham outro filho, faziam-lhe todas as vontades; e ella, embora os estimasse muito, impunha-se-lhes, fazendo tudo que lhe apetecia.

Tinham-na instruído conforme a instrucção ministrada ás classes chamadas superiores, donde é banido tudo o que diga respeito a ideias avançadas, scientificas, políticas ou religiosas; mas ella, intelligente e curiosa, pedia livros, revistas e jornaes emprestados, e assim se inteirou de que a sua educação era defeituosa e a sua instrucção limitadissima.

Seu pae quiz prohibir-lhe as leituras chamadas subversivas; mas ella obstinou-se em ler todas as obras dos nossos escriptores revolucionarios, e até com caricias, umas vezes, com zangazinhas, outras, obrigava o pae a comprar-lhe muitas em que ouvia fallar.

Foi assim que conseguiu ler até as producções dos nossos grandes poetas Guerra Junqueiro e Gomes Leal, affirmando ella não ter lido nunca coisa de que mais gostasse.

O pae, como não podia evitar aquellas leituras, desculpava-se para si mesmo -- que era preciso saber de tudo...

Mas com o que elle se não podia conformar era que ella expozesse a toda a gente as ideias que perfilhava d'aquelles grandes espiritos.

--Nem tudo o que se pensa se pode dizer -- prégava-lhe elle-- É preciso guardar as conveniencias. Que dirão as visitas que ahi teem vindo, a quem tu dizes sem rebuço coisas contrarias á religião e ao estado?

-- Ora... que dirão? -- replicava ella desdenhosa -- Que eu não sou tão ignorante como ellas...

-- Então tu julgas -- voltava elle persuasivo -- que muitas delias não sabem tudo isso e não pensam assim?

«O que sabem tambem é fingir melhor que tu.

-- Nesse caso -- retorquia ella rindo -- dirão que não sou tão hypocrita como suas excellencias.

-- Eu tambem não acredito na efficacia das missas, das confissões, na communicação dos santos etc.; e todavia vou á missa todos os domingos, confesso-me todos os annos, e finjo venerar quantos santos vejo.

-- Ora papá!... eu é que não sou assim, nem quero ser. Como penso e sei as coisas é que as digo e não sei nem quero proceder doutro modo.

-- Deixá-la... -- rematava o pae mentalmente -- ella mudará...

Naquella soirée, apesar de toda a sua belleza e galanteria, alguem mostrava não lhe prestar attenção: era Gilberto.

Zelia notou que aquelle mancebo, modesto, mas distincto, menos dandy que nenhum outro, mas mais digno, não a galanteava nem parecia ligar-lhe importancia; e o que mais a admirou foi ver que não era por ter namoro com qualquer outra, porque era para todas egualmente indiflerente. Parecia gostar mais de conversar com velhas e discutir com caturras, que dançar e lisongear damas. Pois elle tinha attractivos que não seriam para ellas desprezarem: era alto, figura agradavel, olhar insinuante, fronte espaçosa denotando intelligencia, bigode louro e gestos comedidos mas não acanhados.

Zelia estava despeitada pelo nenhum interesse que despertara naquelle mancebo; e, como rainha que ali era, sentia tentações de reduzir á obediencia aquelle súbdito impassível e remisso.

E -- oh instabilidade do coração feminino! -- o que ainda ha pouco lhe era causa de prazer e desvanecimento, causava lhe agora tedio e repugnancia, qualificando já, in mente, de parvas e asnaticas as amabilidades que os seus numerosos admiradores lhe dirigiam, e que ella jubilosamente trocaria por uma só d'aquelle insensivel moço.

Não sopeou por muito tempo o desejo que tinha de saber quem elle era.

Chamou de parte o primo e perguntou-lhe, affectando indifferença:

-- Quem é aquelle rapaz que além está conversando? Não tomei sentido quando o annunciaram...

-- Ah! ah! Despertou-te a attenção? -- perguntou Armando, rindo.

-- Só se fôr por ainda ser bisonho! -- replicou ella a mostrar desinteresse.

-- Bisonho!? Tu sabes o que estás a dizer?

Olha que aquelle é o meu amigo Gilberto de Proença, o mais energico, honesto e talentoso jornalista de Lisboa!

-- O que ahi vae!...

-- Bem sei... Como não bajula, é bisonho! É que a sua seriedade não se coaduna com a impostura destes ditosos patetas, que enxameiam em volta de ti como zangãos em volta d'uma colmeia.

-- Sempre gostava de conhecer de perto essa avis rara, essa Phenix, caida do céu sobre esta Lisboa banal... -- gargalhou ella, fingindo troçar.

-- Nada mais facil, minha encantadora prima.

Num instante aqui o tens.

-- Agora vê lá se vaes dizer-lhe que eu é que te pedi...

-- Essa agora ! Então eu não devia ter mais juizo?

E dirigiu-se para onde Gilberto se encontrava.

Armando de Sampaio, que tinha dois annos a menos que o jornalista, era o contrario d'elle. Sempre alegre, jovial, folgazão, parecia não prestar attenção a coisa alguma e tudo lhe servia para se devertir, mas, tambem como elle, possuia um coração d'ouro e uma alma nobre, que não lhe permittiam ser desleal para um amigo ou injusto para alguem.

Chegando ao pé do jornalista travou-lhe do braço e affastando-se com elle dos grupos disse-lhe:

-- Minha prima pede-me para lhe seres apresentado.

-- Mas quem é essa tua prima que assim deseja conhecer-me?

-- Pois ainda a não conheces!? É aquella que alem está, aquella formosura.

-- Aquella pretenciosa!?... Ora adeus, meu amigo, tu estás a brincar. Ella pedia lá similhante coisa! Satellites de mais traz ella já a gravitar em volta.

-- Deixa lá, que isto ás vezes... E ella então que é uma caprichosa...

-- Queres dizer que talvez me dê sorte? Tu não estás bom! Eu nem sequer penso em tentar. Não quero que tenhas ciumes...

-- Isso não tenho. Pela minha parte podes manobrar á vontade. É verdade que eu já pensei em a namorar, mas isso passou-me logo; e, embora ella seja muito formosa, preferi namorar-lhe as creadas. É mais pratico... e eu para coisas a serio não tenho geito.

Entretanto foram-se approximando; e, feitas as apresentações, Gilberto convidou-a para a valsa que o piano já preludiava. Ella já esperava o convite; e, para o poder acceitar, tinha-se desculpado com todos que a convidaram, dizendo já estar compromettida.

Durante o tempo que andou pelo braço do sympathico jornalista, ou redopiando ou descançando, nunca deixou de conversar; queria deslumbra-lo com os seus dotes espirituaes, já que os physicos lhe causaram tão pequena impressão: fallou lhe de musica, de litteratura, de philosophia, de religião, e até de politica!

O mancebo estava espantado e ao mesmo tempo extasiado! Tanta erudição numa menina era para admirar; mas elle ainda se admirava mais do que estava sentindo.

Seguira Armando com certo desdem, pensando que aquella bella mas orgulhosa joven lhe seria sempre indifferente; porem o seu contacto incediava-lhe o coração. Era seductora em demasia para que elle pudesse conservar-se impassivel.

E Zelia, que tambem só por orgulho quizera subjugal-o, deixara-se prender por elle, ficando-o a amar desde aquelle momento.

Antao de Sampaio, que depressa o soube, ficou furioso com a escolha da filha e não estava disposto a transigir n'este caso, como fizera em muitos outros mas de inferior importancia. Gilberto não lhe servia para genro, já porque era propagandista de ideias que lhe não convinham, já porque queria quem tivesse fortuna equivalente ou superior á sua, e boa posição social.

A joven, porem, costumada a fazer todas as vontades, teimou em que havia de amar aquelle honrado rapaz; e como o pae lhe dissesse que havia de romper com elle, declarou-lhe peremptoriamente que mais depressa poria termo á existencia do que suffocaria os impulsos do seu coração.

O pae, homem finorio e experiente, fingiu transigir, mas procurou um padre seu amigo, de nome Seraphim do Espirito Santo, e incumbiu o de tirar aquellas creancices da cabeça da filha.

Gilberto, ao chegar em frente da janella, divisou por dentro dos vidros a sua adorada; e esta, logo que o viu, abriu a janella, desprezando o frio cortante que fazia. Era a primeira vez que elle faltava á hora marcada, e isto desgostou a muito, embora soubesse a que attribuir a demora.

-- Vens hoje tão tarde, Gilberto! -- perguntou ella um pouco zangada, e não lhe dando o tratamento do costume.

-- Então, minha querida, não me foi possivel vir mais cedo...

-- Se soubesses o susto com que tenho estado, por temer que te tivesse acontecido alguma coisa má, desde que me disseram que tu andavas com essa gente que para ahi gritava como possessa!...

-- Ora, mas para que havias de estar com cuidado? Que mal me podia acontecer, andando a manifestar a minha indignação perante uma grande infamia?

-- Mas, na verdade... Tu andares assim mettido com tal canalha!...

-- Canalha!?

-- Sim; o padre Seraphim disse que n'essas arruaças só andava gente da peor especie.

-- Não, Zelia; nas patrioticas manifestações contra a brutalidade ingleza e contra a cobardia dos nossos homens d'estado não andava a gente que o teu informador diz: andavam homens de brios e de coração; homens que sentem tanto as affrontas que são dirigidas á patria como se lhes fossem dirigidas a elles proprios; homens que pensam, que trabalham, que produzem: -- a parte util da sociedade.

-- E não andava ninguem mau? -- perguntou ella entre ironica e mortificada.

-- Quem pode evitar que entre a gente de bem se esconda algum patife? Quem pode dizer á agua, que é indispensavel á nossa existencia, que não dê abrigo a repellentes animaes? Quem pode dizer ao ar, que nos dá vida, que não conduza a nociva bacteria? Quem...

-- Ouve! -- interrompeu ella -- Tu sabes como é sincero, ardente, immorredouro o amor que te consagro; sabes como tenho resistido a minha familia, que me ordenava que te esquecesse, e como, apesar disso, a resolvi a consentir no nosso amor e até a tolerar o nosso casamento; pois bem, parece-me que isto deve merecer que faças por mim algum sacrificio, attendendo-me no que vou pedir-te.

Gilberto, que dêsde o principio da sua entrevista notara a sua frieza, já esperava qualquer pedido, obra por certo do assiduo frequentador daquella casa, como lhe dissera o estudante. Respondeu, pois, gravemente:

-- Dize. Que poderás tu pedir-me que eu não possa fazer te?

-- É que acabes com as tuas campanhas contra a monarchia e contra a religião, e que ponhas de parte essas tuas ideias, que hão de perder-te.

-- Estranho-te, Zelia! Tu, que até hoje só tiveste palavras de desprezo para a realeza, e que, sabendo que eu a ataco com todas as minhas forças, nunca, nem sequer indirectamente, me deste a entender que isso te desgostava; tu, que em materia de religião tinhas as minhas ideias, senão mais avançadas, que dizias que o catholicismo era uma aperfeiçoada arte de furtar, que era um attestado de estupidez e ignorancia atirado a cara de quem o acatava; tu, que eras enthusiastica admiradora do Anti-Christo, fazeres-me semelhante pedido!...

-- Pois sim... é verdade... titubiou ella -- mas isso não deve obstar a que deseje que se ponha um freio á canalha, que já vae avançando muito; e esse freio só pode ser a continuação da sua ignorancia e das suas crenças.

«Se isso lhe acaba, adeus preponderancia das classes superiores...

-- Pobre Zelia! Metteram-te agora essas teias de aranha na cabeça?

-- Não são teias d'aranha, são verdades reconhecidas por todos os que se interessam pela conservação da sociedade.

-- Sim, eu bem sei que em Portugal se vae trabalhando de sapa para que o jesuitismo torne a adquirir a grande força que já teve; e sei que clero e nobreza, esses cancros da humanidade, se mancommunaram para pôr um dique á luz radiosa do progresso que vem despontando no horisonte da patria; mas nós cá estamos para lhes cortar as lugubres azas com que pretendem interceptamo-la!

«Causa nojo ver essa nobreza, sceptica e atheia, rastejando pelas egrejas a fingir beatice, para illudir os ingénuos, mas só conseguindo salientar a sua hypocrisia. Julgam que aproveitam alguma coisa!

Insensatos! Todo esse monstruoso carcere do pensamento humano, que tentam ainda suster, ha de ruir ao fulgor da civilisação, porque os seus alicerces são de trevas.

«Nada ha que possa oppor-se á evolução das sociedades. Querer travar o progresso social é o mesmo que pretender sustar a gravitação dos astros, desviar as correntes aquaticas do Oceano ou as magneticas do Globo.

-- Não me fazes então o que te peço? -- interrogou ella pesarosa.

-- Bem vês que isso é um impossivel. Mais depressa te daria a vida que faria o supremo sacrificio de renegar as minhas ideias.

-- Mas eu não te peço que as renegues; affasta-te da lucta e mais nada.

-- Olha: eu antes de te conhecer só pensava numa coisa -- ser util á patria e á humanidade. Não tinha outros affectos, nada mais me tomava tempo, e todo o meu desejo seria offerecer-lhes a minha vida para seu beneficio. Conheci-te e comecei a amar-te com paixão estonteante, louca, ardente, mas as minhas ideias não mudaram e continuo a pôr a collectividade acima do individuo, e a universalidade acima da collectividade; o que quer dizer que considero mais a patria que a minha felicidade ou de qualquer outra pessoa. Alem disso, a lucta é o meu elemento. A lucta attrae-me, fascina-me, seduz-me!...

-- Obrigada. Vejo que não te mereço coisa alguma; nem para me seres agradavel queres contrafazer-te.

-- Tu mereces-me muito, mas a patria ainda me merece mais; emquanto ella precisa de nós não podemos nem devemos despreza-la para tratarmos das nossas paixões ou interesses.

«Que homem seria eu se em tão critico momento, quando ella tanto precisa do esforço e dedicação de todos os seus filhos leaes, me fechasse no meu egoismo e abandonasse a sua causa sagrada para satisfazer os teus caprichos, ou--eu sei! -- as satanicas imposições d'algum jesuita velhacaz!?

«Que homem seria eu se repudiasse as doutrinas que tenho proclamado, se abandonasse a defeza da liberdade e da justiça, só porque a mulher que amo me fazia este pedido!?

«Zelia! se tu mudaste d'ideias, se és agora admiradora da realeza e cleresia que até aqui dizias detestar, se queres um marido que se roje ante o throno e o altar, tens muito por onde escolher: não te faltarão homens com presumpções de fidalguia que tenham o dorso bastante flexivel para te satisfazerem esse desejo. Com a tua formusura, illustração e riqueza nada tens que recear: qualquer d'elles se dará por feliz em te ter por esposa. Eu

continuarei a ser o que tenho sido: um apologista obscuro do bem da patria, que trabalha por n'ella implantar um systema que julga fazer a sua felicidade.

«Ou o consigo, ou morro na empreza. Mas consumado ou não o meu ideal, na força da vida ou á hora da morte, bemdirei sempre o teu nome, pois foste tu que agitaste o meu coração, fazendo-me conhecer as dulcissimas sensações que só o amor produz.

Calou se anciado. Não obstante a noite estar frigidissima, a fronte inundara-se-lhe de suor.

Então a joven arrependeu se de assim o ter mortificado e apressou-se a responder:

-- Estás a offender-me, Gilberto. Suppões que eu possa perder o amor que te tenho por me não fazeres a vontade, mas enganas-te.

«O amor que te consagro é bastante forte para resistir a todas as contrariedades. Se te fazia este pedido é porque tremo pela tua segurança e porquê desejava que me dedicasses toda a tua attenção, pois que estou para ser tua esposa; mas não vale a pena agastares-te com isto. Sê o que quizeres, que eu não deixarei nunca de amar-te.

A conversação derivou, pois, para as ternuras, para os protestos de amor eterno e irreductivel, para as phrases doces e cariciosas com que os dois amantes se embriagaram até perto das duas horas da manhã.

Não os acompanharemos n'esta phase da sua entrevista, porque d'estes dialogos amorosos teem os nossos amaveis leitores e gentis leitoras tido muitos; e, por muito bem os conhecerem, me dispensam de lhes aqui relatar este.

O mancebo ao retirar-se pensava:

-- Está perdida para mim. Ainda me tem amor, mas deixa se dominar pelo patife do jesuita que fará d'ella o que quizer. Eu fui violento e até grosseiro para ella, quando afinal a amo tanto... mas haja o que houver, fazer-lhe semilhante coisa é que de forma alguma. O que eu preciso é esquece-la; mas como, se cada vez a amo mais!?

V

Libertação mental

Gilberto de Proença era beirão. Filho de paes remediados mas illetrados, teve desde a mais tenra infancia a educação religiosa em geral ministrada ao nosso povo, que é atochada de grosseiras superstições e de crendices absurdas, abandonadas á mais ligeira reflexão.

Na escola, onde foi mandado aos sete annos, Gilberto distinguiu-se por uma comprehensão admiravel, por um raciocínio e perspicácia nada triviaes, o que denunciava uma intelligencia viva e pujante.

O pae, sabedor das faculdades do rapaz, ficou orgulhoso como todos os paes a quem gabam os filhos, e foi consultar o mestre, já na disposição de o fazer padre.

O professor, porem, que não gostava da classe ecclesiastica, disse-lhe que não, que não fizesse tal, que era uma pena ver definhar o rapaz na semsaboria do latim bolorento e na estupidez do canto-chão. Que elle havia de ser um talento e por isso que o formasse, porque, embora gastasse alguma coisa mais, a differença da posição valia bem o excesso da despeza.

E o bom do homem, que até então se desvanecia com a lembrança de ver o filho a um altar a dizer missa, começou logo a acalentar a fagueira esperança de o ver ainda no tribunal da villa a defender os reus e a aconselhar as partes, e até -- quem sabe? -- poderia ainda vel o como juiz a dar sentenças!

Ah! só esta lembrança lhe tirava o apego ao dinheiro e até ás suas terras.

E, d'ahi, a despeza não podia ir muito longe, visto que o professor se responsabilisava a lecciona-lo nos preparatórios. Só precisaria, pois, ir para Coimbra quando entrasse para a universidade.

Gilberto, vendo o enthusiasmo do pae e as lagrimas de jubilo que a bondosa mãe vertia ao sabe-lo tão estudioso, esforçava-se por apprehender rapidamente tudo quanto o professor lhe ensinava, e fazia progressos que eram despantar para a sua edade.

Entre mestre e discípulo estabeleceu-se em breve a mais franca e indissoluvel amisade.

Aquelle, que se chamava Germano, era um devotado apostolo da instrucção. Estava ha muitos annos naquella terra e era ao mesmo tempo professor e estudante. Estudava tudo, estudava sempre, por gosto, pela tarantula dos conhecimentos scientificos, sem que nunca se aborrecesse.

Tudo o que podia tirar do magro salario com que a munificencia do estado retribue os serviços destes funccionarios, era para comprar livros. Assim, e sem outro mestre alem dos seus livros, estudara linguas e sciencias a ponto de leccionar, quasi sempre gratuitamente, todos os preparatorios do lyceu, quando por acaso, o que raras vezes acontecia, alguem se lembrava de o procurar para isso.

Tinha grande affecto aos seus discipulos, que estimava como filhos; mas tratava sempre com mais severidade os ricos, quando os via presumpçosos, tolos, roidos de vaidade, em razão dos mimos com que as famílias os perdiam.

Tinha uma singularidade o bom do Germano: não gostava de conviver com pessoa alguma, e parecia só ter confiança nos amigos que tinha na estante. Com os pobres e lavradores mais modestos, porem, conversava, se acontecia encontra-los; mas aos ricos evitava-os sempre que podia. Não visitava ninguem e vivia só com a esposa, bondosa e honrada mulher a quem desposara por amor, embora fosse tão pobre como elle.

Quando viera para aquella terra resolvera-se a aceitar algumas lições particulares, para assim melhor acudir ás suas necessidades. A primeira pessoa que lhe appareceu a utilisar-se dos seus serviços foi um fidalgote rico que o contractou para lá ir a casa dar lições a um filho.

Foi. O menino, para attestar ser filho de tal pae, era bronco como um suino.

O fidalgo disse-lhe que o filho já sabia alguma coisa. E Germano, com uma paciencia evangelica, começou a querer que elle dissesse, uma por uma, as syllabas duma palavra. O menino conhecia as letras, mas nada de as juntar.

O pae, ao pé, bufava por elle não dizer a palavra, que era: pitada.

Germano ia fazer-lhe juntar as duas letras que formam a primeira syllaba, quando o pae lhe diz:

-- Ó menino! é o que eu costumo cheirar!

E o menino diz logo muito depressa -- rapé.

-- É pitada, menino, é pitada! -- apressou-se o pae a dizer, Germano lembrou ao fidalgo que era melhor deixa-lo dizer, pouco a pouco, aliás aprenderia de cór, o que era um defeito que custaria a tirar-lhe e o atrazaria muito.

D'ahi a pouco, porem, o pae, vendo que o pequeno se demorava a dizer outra palavra, acode logo, elucidando:

-- É com que os serradores costumam medir as taboas...

E o pequeno diz logo: -- cordão!

-- Não é isso, é bitola!... responde o pae desapontado.

Germano é que não esteve mais para os aturar; foi-se embora e nunca mais deu lições senão na escola ou em sua casa, o que lhe valeu uma campanha de descredito do atilado, fidalgo que lhe chamava asno e espalhava que elle não sabia ensinar senão jumentos, mas havia quem dissesse que elle se enganava, pois lhe não soubera ensinar o filho.

Aos dez annos Gilberto já tinha feito o seu exame d'instrucção primaria e estudava portuguez e francez.

A sua intelligencia precoce cada vez se revelava mais e o professor ensinava-o com a mais viva satisfação, esforçando-se por desenvolver progressivamente aquelle cerebro que desabrochava e por fazer germinar n'aquella alma os mais puros e alevantados sentimentos.

Gilberto e Germano tratavam-se já como verdadeiros amigos, não obstante um ser mestre e outro discipulo, não obstante um ser uma creança e o outro um homem já avançado em annos. Gilberto tinha pelo seu professor e amigo uma verdadeira veneração, mas estranhava que elle nunca fosse á egreja; e quando ouvia o cura insulta-lo pelas costas e as mulheres mais beatas fazerem-lhe accusações pela sua falta de religião, sentia com isso um desgosto profundo. Já por mais d'uma vez lhe quizera perguntar a razão do seu procedimento, mas não se atrevia.

Apenas uma vez lhe perguntara se cá no mundo quem governava por conta de Deus era o papa; e elle respondeu-lhe que sim, que os catholicos o consideravam uma especie de guardião-mór desta especie de animaes que Deus traz cá por esta sua propriedade, châmada Terra.

E mais nada.

Entretanto chegou a quaresma, e naquelle anno havia na aldeia sermões, sendo pregador o proprio cura da freguezia.

No primeiro domingo, Gilberto encontrou se por acaso na sacristia e ouviu estar o padre a ensaiar o sacristão sobre o momento em que devia correr o panno da tribuna, como o anjo devia vir offerecer o calix a Christo, etc.

Aquillo repugnou-lhe já como uma comedia reles; mas esperava que dos sermões saisse mais arraigada a sua crença profundamente religiosa.

Foi com anciedade que viu subir ao púlpito o seu cura e pregador. Era este um homem forte, gordo, de estomago de herbivoro, faces côr de paio d'Arroyollos e de pescoço com refegos como um entestino grosso.

Subiu, ajoelhou, orou, ergueu-se, persignou-se em voz alta e roufenha e começou pelas palavras do evangelho, que recitou pausadamente, contemplando a numerosa assistencia.

Depois embrenhou-se n'um phraseado pomposo, plagiado de oradores afamados, que ninguem entendia, mas que por isso mesmo todos apreciavam muito; e, sem se saber porque, desata a berrar e a gesticular furiosamente, fazendo uma choradeira espantosa, começando a descrever as penas do inferno e fazendo recommendações como esta:

-- Mettei um dedo no lume e vereis quão grande é a dôr que sentis. Ora lembrai vos das horrorosas e incommensuraveis dores que soffrereis no

inferno, onde o fogo é milhares e milhares de vezes mais ardente, e onde não tereis um só dedo, mas todo o corpo por todos os seculos sem fim.

Como o auditorio começasse a dar ais lancinantes e especialmente as mulheres chorassem como Magdalenas, o orador enthusiasmou se e então é que era ve-lo gritar e dizer tolices!

Quasi no fim de tão espantoso berreiro, em que elle tambem chorava como um Heraclito e em que transpirava como um onagro, é que mandou correr o panno de bocca.

O sacristão, previamente ensinado, não puxou a corda ao primeiro pedido.

Então o pregador virou-se para o povo clamando sinistra e lugubremente que Deus já lhes não quer apparecer, que já não quer mostrar a sua face bemdita áquelle povo execrando.

Os choros e lamentos recrudescem e elle repete a Christo o pedido de se dignar mostrar-se, o que emfim é satisfeito. O panno foi corrido e a figura esqualida e ensanguentada do Nazareno appareceu erecta e immovel em tamanho natural na tribuna que representa o Jardim das Oliveiras, tendo os pés atarraxados sobre uma especie de roda que está occulta.

O pregador pediu-lhe que abençoasse aquelle povo, mas o sacristão deu um impulso á peça sobre que a imagem tinha os pés, a qual girou rotatoriamente, ficando o Christo com as costas voltadas para o povo.

O effeito foi então indescriptivel:

Homens e mulheres confundiam seus gritos e lamentos por aquella repulsa do Christo; e o orador, ensoberbecido por aquella dolorida confusão, que era como um applauso ao seu talento e habilidade, berra-lhes com voz cava e soturna que Deus amaldiçoa aquelles impenitentes peccadores, que estão todos excommungados, que já não pode haver perdão para as suas culpas tremendas e que serão todos sepultados nas penas do inferno.

Depois de deixar carpir por muito tempo aquella pobre gente é que o cura torna a rogar ao Christo que lhes perdoe e os abençoe.

Então o sacristão faz voltar novamente a imagem e por meio dum cordel conseguiu que um braço lhe descaísse, como para abençoar o povo.

Este deixou então de chorar, limpando as lagrimas, satisfeito por aquelle perdão que lhe foi tão ragateado; e logo que se apanhou na rua não poupou elogios ao pregador, que, para fazer chorar, não havia outro.

Gilberto, depois na rua, percebeu que muitas pessoas que elle na egreja vira chorar troçavam d'aquelles choros e affirmavam que tiveram de chegar saliva aos olhos para que supposessem ser lagrimas. Notou tambem que alguns choros lhe pareciam fingidos e tudo isto lhe denotava uma hypocrisia torpe, que repugnava á sua alma sincera e crente.

Aquelle sermão e outros que se lhe seguiram, exerceram uma influencia tal no seu espirito que nunca mais os poude esquecer.

Foram elles que, por assim dizer, acordaram a sua razão ainda adormecida.

Não podia comprehender como é que indo o corpo insensivel para o cemiterio e decompondo-se ahi nos elementos que o constituíam podia ir para o inferno soflrer, pois que o pregador pintava como corporeas aquellas penas.

Uma outra aflirmação que muito o fez pensar tambem foi a que, num dos sermões subsequentes, fez o cura de que só os que seguiam a religião catholica podiam salvar-se.

E elle, que sabia já que só uma pequena parcella da humanidade seguia esta religião, matutava sobre que estranha cegueira actuaria sobre o resto para que assim se sugeitassem ás penas eternas.

E sentia grande dôr por essa desgraça, e lamentava-se de que esses infelizes se não submettessem á verdadeira religião de Deus, pela qual podiam alcançar o ceu.

De noite não poude dormir a pensar n'isto e ao outro dia resolveu-se a perguntar ao mestre o motivo desta fatal obstinação da grande parte do genero humano.

O professor respondeu:

-- Muitos não seguem o catholicismo porque o não conhecem, outros porque não querem deixar a religião em que foram creados, a maior parte por suppor que a sua é a melhor e a unica verdadeira.

-- Mas então -- exclamou Gilberto espantado -- não teem culpa nenhuma de não serem catholicos!

-- Porque dizes isso?

-- Porque hontem o prégador disse que só os que seguem a religião catholica é que podem salvar-se! Ora se elles não são culpados não podem ser punidos por Deus por culpas que não teem.

-- Esse padre é um tolo e todos elles são assim inconsequentes. Dizem que Deus é infinitamente bom e ao mesmo tempo pintam-no espantosamente perverso, sepultando no inferno milhões d'innocentes... Uns pataratas!...

Desde então Gilberto começou a reflectir sobre todas as crendices grosseiras em que acreditara piamente e logo que eram submettidas á sua razão, já clara e penetrante, caiam-lhe desfeitas em farrapos.

Sempre que podia puxava conversa com o padre-cura, a ver se elle lhe evitava a derrocada das suas crenças, mas este não raro escondia-se atraz dos dogmas, e elle ficava sempre na mesma.

Um dia perguntou ao mestre o que vinha a ser um dogma.

Germano era livre pensador e um inimigo declarado do clericalismo. Mas entendia que os melhores processos para fazer vingar a sua ideia não eram os ataques pessoaes contra o clero nem o levantar as paixões contra esses perigosos inimigos.

Para que a victoria fosse certa, embora longínqua e morosa, era mister arrancar a crença, não pelo odio ao clero, mas pela illuminação do espirito e pela reflexão d onde brotasse a convicção do erro e a supposta falsidade das religiões.

Dizia que os que são arrastados pelo odio ao clero, sem de todo arrancarem da alma a crença, mais cedo ou mais tarde se lhe submettem; e por isso elle não era um propagandista revolucionário: era simplesmente um agente evolucionista; não fazia a guerra: fornecia as armas; não era o instrumento da destruição da fortaleza; era o foco electrico, o feixe luminoso que, na opacidade da tenebrosa noite, vae indicar o seu ponto fraco, illuminando-o.

Não queria por isso matar de repente a fé ao seu discipulo; pretendia antes que elle se fosse illustrando e a sua propria razão lhe fosse expungindo os erros em que acreditava. Respondeu-lhe portanto figuradamente:

-- Supõe tu que eu te digo que no alto d'aquelle monte que d'aqui se avista ha jardins formosissimos onde passeiam anjos que d'alli sobem por uma escada para o ceu e que te imponho o dever de ficares acreditando isto sem sombra de duvida, sem discussão e affirmando-o d'hoje em deante como uma verdade infallivel, sabida, irrefutavel...

-- Mas se eu lá pudesse ir um dia ou por qualquer outro modo pudesse provar que lá não havia nada d'isso? -- perguntou ingenuamente Gilberto.

-- Ora por isso mesmo que era um dogma, que é uma verdade revelada em que se deve acreditar sem discussão, tu não podias ver, nem admittir que ninguem te dissesse o contrario: tinhas de acreditar sem pretenderes esclarecer-te, sem fazeres mesmo caso do que os olhos vissem ou do que a razão te dissesse.

E Gilberto, meio indignado, clamou:

-- Mas então isso é maneira de impingir uma falsidade, tolhendo-nos o direito de a demonstrar, pois que onde a verdade impera não se teme nem a discussão nem a luz!

Germano, rindo, accrescentou:

-- Tens um temivel raciocinio!

VI

O inicio

Gilberto estava no 3 .° anno de direito. Seu pae não poderia já ter a suprema satisfação de ve-lo formado, porque fallecera um anno antes; e sua mãe não tardaria a ir fazer-lhe companhia no tumulo.

Isto fazia que elle perdesse todo o interesse por esse curso a que d'antes ligara todas as suas esperanças e que francamente detestava agora.

Elle julgara que os estudos universitarios tivessem uma feição de tal modo pratica e utilitaria que ao sair d'alli estivesse apto para qualquer occupação; via agora que se enganara redondamente: chegava-se ao fim dum curso sem se saber nada, e muito menos fazer applicação das materias que se haviam dado. Elle estava no 3 .° anno jurídico e não sabia coisa alguma de jurisprudencia; e o que mais o espantava era ver que os seus condiscípulos ainda sabiam menos, pois que raras vezes abriam um livro ou folheavam uma sebenta.

Coimbra simplesmente servia, para a maior parte, de meio corruptor.

Causava-lhe uma dôr immensa ver que a maioria d esses milhares de rapazes, que annualmente eram despejados na então ainda bem immunda cidade, se atascavam immediatamente em todos os vicios e confiando a passagem nos exames e actos, não ao perseverante estudo, mas áquillo que já então era e e ainda hoje mais preciso que o estudo... a carta de recommendação.

O seu desprezo e repugnância por tudo aquillo era manifesto, e isto acarretava-lhe os odios dos seus condiscipulos mais devassos e a má vontade dos lentes mais susceptiveis de se indignarem com a pouca consideração que elle mostrava ter pelos seus capellos venerabundos.

Ainda assim o digno rapaz estudava sempre as lições, não já por se importar com taes estudos, mas para dar a sua pobre mãe a talvez ultima alegria de mais uma approvação.

Quando acabou o acto, os condiscipulos e amigos -- que os tinha e leaes felicitaram-no, qualificando de brilhantes as suas provas; mas apesar d'isso foi reprovado, ficando no mesmo dia approvados outros que conscienciosamente deviam ser excluídos em instrucção primaria, se fossem presentes a tal exame.

Desgostoso e mais nauseado que nunca regressou á sua aldeia, resolvido a não voltar.

No socego e solidão campestre o seu espirit volveu ás locubrações religiosas, políticas e sociaes.

Internava-se pelos mattos, divagava pelos campos, trepava aos montes e ali se ficava horas esquecidas pensando na historia da humanidade, reflectindo na perversidade e na cegueira humana que levam sempre cada homem a pensar em escravisar os outros, e sonhava coisas generosas para o bem e perfectibilidade desta raça que se ataca e destroe mais encarniçadamente que nenhuma das raças ferinas.

De noite gostava de contemplar dos pinaculos dos cerros essa infinidade d'astros a tremuluzir na amplidão celeste e perdia-se em meditações sobre a sua genese.

Para elle todos os corpos provinham da mesma causa primaria -- o ether; e os differentes estados em que se nos apresentam eram apenas a diversa phase da sua transformação. Os corpos frios e opacos já foram e porventura

volverão o ser, por qualquer causa desconhecida, chammejantes e luminosos, bem como o sol e as estrellas se tornarão em corpos frios e opacos. As differentes especies de corpos e as formas variadas em que se nos apresentam não eram, para elle, mais que modalidades d'um mesmo agente.

Cada ser, vegetal ou animal, pela assimilação de determinadas substancias, chega a um certo desenvolvimento e depois volta a decompor-se nos componentes.

Assim entendia que devia acontecer á Terra e aos outros astros que se desenvolvem, crescem e decompõem, com a simples differença de que naquelles a duração da existencia se resume em algumas parcellas de tempo chamadas annos, em quanto que n'estes podia elevar-se a milhões de seculos.

Não admittia tambem que entre a Terra e os outros astros se fizesse o vacuo, como não acreditava que entre uns e outros houvesse differença de substancia. E discorria assim:

-- Se nos espaços inter-mundios, como nos espaços inter-molleculares, só existe o ether, é porque o ether é o agente primacial de todos os corpos. E se o ether é o principal agente dos corpos, e o ether não é materia, é porque a materia não existe e tudo isso que nos parece substancia inerte, como por exemplo uma pedra, não é mais que energia accumulada em virtude duma causa desconhecida, mas a que não será estranha a electricidade.

E sonhando assim, Gilberto olhava as religiões d'alto, e parecia-lhe que todas ellas eram invenções, erros, mentiras dos homens, e que ao homem instruído não deviam merecer credito algum.

Ás vezes porem a educação ou o atavismo levavam-no a admittir um Deus, e elle então pensava que cada homem, cada ser, cada astro, eram orgãos d'um todo e que esse todo é que era Deus.

Em politica revoltava-lhe a consciencia a lembrança de que uma creatura, porque é filha de determinado casal, deva, ainda hoje, ser imposta a um povo inteiro como o seu chefe vitalicio e incontestável. Parecia-lhe isto um intoleravel absurdo, um previlegio perigoso e immoralissimo, que pessoa alguma devia acatar. E custava-lhe a comprehender como é que meia duzia d'homens se podiam considerar governantes por mercê do povo, se essa força que do povo diziam tirar só lhes servia para o escravisarem, torturarem e expoliarem.

E se a religião e a politica o indignavam, não lhe causava menos indignação a nossa organisação social.

Elle via que esta sociedade, eivada de defeitos e de vicios, pretende ser moralista, não tolerando cada qual nos outros os defeitos proprios, e pretende ser immutavel, perseguindo ferozmente quem a não acate e respeite. E sabendo que só do trabalho mana a riqueza, porque a terra sem ser agricultada nada produz, da fabrica sem o trabalho do homemnada sae, das pedreiras e das arvores não brotam obras d'arte sem o esforço humano, elle via que os que trabalham morrem á mingua, emquanto os ociosos vivem na abundancia e no fausto á custa do trabalho de milhares de infelizes que elles exploram e a quem ainda se impõem como bemfeitores!

Tudo isto revoltava a sua alma leal e sincera, e parecia-lhe impossivel que alguem de sentimentos e de intelligencia ainda tolerasse similhantes religiões; que alguem de caracter e de honestidade ainda supportasse tal systema politico; que alguem de coração e de honra acatasse tão corrupta sociedade.

Um dia, pensando assim, demorou-se até muito tarde no alto dum monte bastante longe da aldeia.

Não havia luar, mas no firmamento brilhavam milhares d'estrellas que o enlevavam e de que elle mal podia retirar a vista, porque a terra parecia-lhe escura e tenebrosa, sem poder divisar coisa alguma.

Apenas lá ao longe se destacavam, uma de cada lado, as massas negras das tres serras -- Estrella, Caramullo e Bussaco. Pareciam-lhe tres gigantes colossaes servindo de sentinellas áquella immensa bacia.

Desceu para tomar o caminho de casa. Em baixo o caminho da aldeia cruzava se com o que ia para outra aldeia, formando duas fachas perpendiculares. Gilberto lembrou-se do susto que aquelle cruzamento de caminhos lhe causava em outro tempo, por lhe terem muitas vezes dito -- e mesmo sua mãe lh'o affirmava com convicção -- que o Diabo apparecia á meia noite em taes sitios, sempre que chamassem por elle.

Rindo agora de tão absurda superstição, poz se na intercepção dos caminhos e gritou zombeteiramente: - «Satanaz, Satanaz!»

Só a repercução das suas palavras, de monte em monte, respondeu ao seu chamamento.

Novamente elevou a voz, gritando:-- Satanaz, Satanaz! Se acaso existes porque não appareces?!»

E ia para retirar-se rindo da sua excentricidade, quando uma gargalhada estalou num pinhal fronteiro e uma voz forte se fez ouvir desta maneira:

-- Espera, que eu lá vou!

Por mais sangue frio que Gilberto tivesse, por mais que em seu espirito imperasse a descrença por coisas sobrenaturaes, o certo é que pelo dorso lhe passou um calafrio, parecendo lhe ao mesmo tempo que o cerebello se atrophiava e congelava; e foi preciso fazer appello de todas as suas forças para não desatar a fugir.

Em direcção a elle vinha se approximando um vulto, de que elle não podia distinguir as formas.

Entretanto na sua mente os pensamentos atropelavam-se:

-- Pois que! podia lá haver realmente Diabo!?

Então todas as suas ideias sobre as religiões seriam falsas e surgir-lhe-ia agora a prova do que já considerava crença grosseira? Haveria acaso inferno e ceu, Deus e Diabo, tal como eram considerados pela gente ignara?! Ah! que se assim era elle de bom grado daria tudo e até a vida para poder desvendar o mysterio. E por isso ali estava, agora já quasi sereno, á espera desse pretenso Satanaz que respondera ao seu chamamento.

O vulto, chegando a pouca distancia de Gilberto, diz lhe:

-- Então que diabo de telha é essa de andares pelas encruzilhadas de noite a gritar por Satanaz?!

O mancebo conheceu-o. Era o padre novo que viera substituir o antigo cura.

Este padre relacionara-se com Gilberto no seu primeiro anno de Coimbra, e, apesar da falta de crenças deste, tratavam-se como amigos.

-- Ah! pois és tu, padre?!--gritou-lhe Gilberto ás gargalhadas -- Eu logo vi que ao chamamento de Satanaz só podia acudir um padre!... A ti e aos da tua classe é que convém que haja diabos para expungir do corpo humano, inferno para amedrontar e ceu para vender. Sem diabos e sem inferno ninguem vos compraria o vosso ceu, porque ninguem precisaria d'elle para nada. Vocês que inventaram tudo isso, devem velar pela sua conservação.

Vieste pois em occasião opportuna, porque eu estava tirando uma prova da existencia do grande Satanaz e da sua explendorosa côrte; e agora fico acreditando que tudo isso existe... sob as vossas ordens.

-- Cala-te ahi, lingua damnada, -- volveu o padre rindo e vindo sentar-se junto delle. -- Tu cada vez estás mais magico, e estou a ver que ainda vens a dar em doido varrido.

E puxando-lhe por um braço continuou.

-- Senta-te aqui um pouco... Ora quem havia de dizer que este maluco andaria a esta hora por um sitio destes a gritar pelo Diabo!... Outro que não fosse eu que te ouvisse havia de ir jurar que tu tinhas páctos com Satanaz.

-- Pactos com que, homem? Então tu queres que eu te julgue tão pateta que vá suppor que acreditas em semelhante tolice!...

-- Tolices estás tu para ahi a vomitar.

-- Mas, francamente, tu acreditas n'isso?

O padre não respondeu logo. Ficou por momentos silencioso como quem não sabe que dizer e depois volveu:

-- Olha, se queres que te diga eu não sei em que acredito. Acredito em tudo, porque não quero pensar em nada.

Estas palavras foram ditas com uma voz tão triste que Gilberto calou-se. Depois começou a reparar nelle e perguntou:

-- Mas que fazes tu por aqui, e demais com uma espingarda?

E depois duma pequena pausa:

-- Ah! já sei! Vaes para as Devezas; não ha já por ahi ninguem que não saiba dos teus amores.

-- E d'ahi? tambem tu me condemnas? -- interrogou elle com mau modo.

-- Ó homem, eu condemno-te lá por isso! Só se te condemnasse por seres padre, que por seres homem nem eu nem ninguem te pode condemnar.

-- Pois nem por ser padre me condemnes, só se fôr por ter sido fraco em ceder á minha familia.

«Se ha padres que teem fé e que acreditam na efficacia e proveito religioso das suas funcções, poderão viver bem; mas ser padre como eu, que em nada creio, que tudo abomino, que a mim mesmo me considero um palhaço quando me vejo com as vestes sacerdotaes, ah! é tudo quanto pode haver de mais horrivel.

-- Mas porque não apostatas?

-- Tu não comprehendes que inferno eu tenho na alma; eu sou espiritualmenre um revoltado, mas sou tambem um fraco; não tenho coragem para coisa alguma.

«Eu não queria ser padre; minha familia exigiu o e eu sujeitei-me; agora digo-lhes que não posso com este fardo que me asphixia e dizem-me que os matava de vergonha se apostatasse; e eu a tudo me sujeito.

«E depois até as paixões que brotam espontaneamente da nossa animalidade, que todos os seres deixam expandir francamente, nós temos de suffocar, como se a lucta com as forças da natureza não fosse empreza superior ao nosso debil alento.

«Quando me lembro que esse maldito Hildebrando, esse Gregorio VII de negregada memória,só para formar do clero um batalhão ás ordens de Roma nos obrigou ao eterno celibato, não posso deixar de o odiar profundamente.

«Em nome d'esse pobre Christo teem-se commettido no mundo todas as infamias e todos os crimes; e até em nome de Deus se prohibe aos que se dizem ministros da religião, o exercicio d'uma funeção natural indispensavel para a conservação da especie, que, affirmam, elle aconselhou por estas palavras: -- Crescei e multiplicai-vos.

-- Esse teu Christo foi tambem um pobre inconsequente.

-- O que elle foi sempre foi muito calumniado.

«Expulso de casa pelos maus tratos do padrasto, percorreu, vagabundeando, muitas terras até que encontrou alguem que lhe ensinou a religião de Budha e as doutrinas de Platão e d'outros philosophos. Espirito simples e coração leal, entendeu que era uma necessidade prégar aquellas salutares doutrinas aos opprimidos da sua patria; mas só alguns mais desgraçados lhe deram ouvidos.

Elle prégava a humildade e a fraternidade em nome de Deus; mas em nome de Deus o crucificou o clero judaico, como depois em nome d'elle proprio foram enclausurados, mortos e queimados pelo seu clero homens tão bons como elle.

«Os apostolos, que, quando o viram na desgraça, o abandonaram e fugiram, é que depois se arrependeram da sua cobardia e attribuiram-lhe todos os feitos que em seu entender mais o podiam elevar, desde o de charlatanesco milagreiro até ao de resurgir em carne e osso.

«Todo o seu empenho era fazerem acreditar que elle era verdadeiramente, como se chegou a appellidar, um Deus, e elles os seus discipulos e interpretes.

«E esse homem bom e puro, crente e infeliz, que pretendia espalhar boas doutrinas, tem sido motivo para taes oppressões que até eu, mil e tantos annos depois, ainda sou sacrificado em seu nome.

«Aqui está como d'uma ideia generosa brotam tantas desgraças para a humanidade.

«Difficil é á gente distrinçar ás vezes o bem do mal, mas ainda mais difficil é saber quando é que do bem resulta o bem e quando é que do mal surge o mal.

Gilberto comprehendeu que n'aquella alma havia uma tragedia continua; e, não sabendo que dizer, ficou-se mudo e espantado a escuta-lo, até que o padre, dando accordo de si, lhe diz:

-- Tu has de estar espantado de me ouvires falar desta maneira, mas eu precisava desabafar. É a primeira vez que falo assim e só diante de ti o poderia fazer. Tu tens alma para me comprehender e tens um espirito de tal maneira orientado que se não offende com a minha descrença. Estou certo de que se até agora me estimavas d'hoje em diante ainda mais me estimarás sabendo-me tão desgraçado.

Gilberto, sensibilisado, ergueu-se, apertou-lhe a mão e disse lhe:

-- Vae ao teu destino e conta sempre commigo; e se alguma vez essas razões de familia, que eu me não atrevo a aconselhar te que desprezes, desapparecerem, atira fora essa golilha e vem ter commigo que, esteja onde estiver, a minha bolsa será d'ambos.

Gilberto, não acreditando na religião e vendo que quasi todos a seguiam e lhe aceitavam os mais estranhos absurdos, sentia uma magua insuperavel e a si mesmo se alcunhava de egoista, pois que a sua obrigação, achava elle, era esclarecer os que andavam em erro, illuminar os cerebros que andavam nas trevas, prégar a verdade aos que a desconheciam. E não podendo admittir que alguem desinteressadamente achasse bom o systema politico que elle achava immoralissimo e a organisação social que elle considerava torpemente especuladora, tinha como um dever imperecivel atacar tambem a monarchia, a sociedade e os que defendiam tão deprimente estructura.

E na imprensa republicana appareceram então os seus escriptos, que breve o consagraram como um combatente temivel e temido. O seu estylo simples, energico, masculo e vibrante, era inimitavel.

Um artigo não era para elle, como para muitos outros, um amontoado de phrases pomposas com bonitas figuras e palavras exquisitas: era sim a forma de transmittir os seus principios da maneira mais intelligivel e correcta.

Não pensava em agradar pela forma, mas em inocular ideias. Com as suas soberbas imagens não pretendia fazer estylo mas distillar nos espiritos os seus pensamentos, adduzindo provas, buscando irrespondiveis argumentos.

Todavia a republica não era para elle já a suprema aspiração. Queria a, desejava-a, trabalhava a seu favor, mas como um meio, não como um fim.

Para o seu grande desejo de beneficiação humana, outros horisontes se lhe antolhavam. Mas como entendia que a republica era a natural transição para essa aspiração grandiosa, trabalhava por ella com todo o seu vigor, perseverança e enthusiasmo.

Logo porem que sua mãe falleceu, abandonou a provinda e foi para a capital, pois que bem sabia que quem quizer ter a nação pelo seu lado basta-lhe conquistar Lisboa e Porto.

Algum tempo depois constou-lhe que tinha chegado á cidade o parocho da sua aldeia.

Foi procura-lo e da sua propria boca soube que elle não se achando com forças para continuar a exercer o seu insupportavel mister, resolvera romper com todas as conveniencias e ali estava prompto a ir engrossar a phalange dos que combatiam com denodo a perigosa cohorte do clericalismo.

Gilberto por muito tempo o teve como companheiro de combate até que lhe poude arranjar collocação conveniente, onde elle podia dedicar-se á feitura de folhetos de propaganda anti-religiosa, que tiveram grande successo.

VII

O enredador

Era grande o interesse que o padre Seraphim do Espirito Santo tinha em satisfazer os desejos do conselheiro Antão de Sampaio, retirando-lhe a filha do jornalista. Aquelie notavel funccionario já lhe havia feito grandes favores e era sempre bom ter por seu lado um homem tão importante. Alem d'isto, odiava o jornalista e era, portanto, um duplo regosijo para elle poder roubar-lhe o coração d'aquella adoravel creatura.

Antão de Sampaio pedira a Zelia que tratasse aquelle seu amigo como se fosse elle proprio, porque lhe devia muitos favores: e a joven, que o não conhecia ainda, julgou que elle vinha de fora de Lisboa, não desconfiando de coisa alguma.

O padre Seraphim, que era astuto, sabendo quaes eram as crenças da joven que lhe confiavam, entendeu que a melhor maneira de lhe fazer esquecer o jornalista era decerto tirar-lhe aquellas ideias subversivas da cabeça, cavando assim um abysmo entre ambos.

Para isso tratou primeiro de lhe captar a affeiçáo, fingindo-se nm padre liberal, padre que não acata os absurdos da Egreja e que, afora as suas obrigações, era um homem como qualquer outro.

Quando Zelia, depois de já ter mais confiança com elle, lhe atacava o Catholicismo, elle nunca a contrariava, mas ia sempre obtemperando:

-- Todavia... se não fossemos nós, se não fosse a religião... quem havia de conter a populaça estúpida e atrevida?

E como Zelia se risse, e ás vezes, com suas amigas, o troçasse pelos seus temores injustificaveis, elle tinha este argumento, falso e velhaco, mas que calava fundo no animo daquellas meninas, sempre influenciadas pelas presumpçosas ideias da superioridade da sua classe:

-- Vossas excellencias teem o respeito e a consideração de todos, e merecem-no, não só pela nobreza de que descendem, mas pelas suas virtudes, illustração e gentileza; mas se o throno e o altar baqueassem, isto é, se viesse a republica, a sociedade actual sofíreria uma espantosa transformação, e qualquer regateira se julgaria egual ás minhas gentis interlocutoras, que não poderiam pôr um pé na rua, porque seriam maltratadas pela mais repellente megera, caso se affastassem d'ella com repugnancia, como era natural.

-- Mas -- retorquia-lhe Zelia -- as instituições da França, da Suissa e dos differentes estados da America são republicanas e lá não acontece similhante coisa!

-- Se hoje não acontece, pelo menos já aconteceu.

E, para provar a sua asserção, falava-lhes da Revolução Franceza, deturpando os acontecimentos, inventando torpezas e pintando-lhe os vultos épicos, que ali refulgem quaes astros de primeira grandeza, como uns monstros repellentes, insaciaveis de sangue e de vidas.

As companheiras de Zelia ficavam aterrorisadas com tantas abominações, e esta sentia já offuscarse-lhe a admiração pelas theorias que até ahi a encantavam, parecendo-lhe detestável esse gigantesco pharol d'onde brotou para o mundo a luz radiosa da Liberdade.

É que o seu orgulho começava a revoltar se contra a palavra egualdade, a que até ahi não prestara attencão, mas que apreciava agora pelas insidiosas palavras do padre Espirito Santo.

Estas praticas iam-lhe fazendo tergiversar as ideias, sem comtudo querer menos ao seu escolhido.

Até este tempo ainda o seu nome não havia sido proferido diante do padre. Porem um dia a esposa de Antão de Sampaio, de acordo com elle, fingiu que se lhe queixava da filha, que namorava um rapaz de baixa condição, e como que lhe pedia conselho. Zelia, que estava presente, não desconfiou da comedia, e o padre, ao dizerem-lhe o nome do namorado, fingiu-se surprehendido, e disse que o conhecia de nome, que era muito bom rapaz, ainda que obcecado pelas paixões políticas, e que não havia motivo para contrariar a menina.

A donzella ficou radiante e agradeceu-lhe com um dos seus estonteantes olhares, mas elle, logo que ficou a sós com ella, disse-lhe:

-- V. Ex.a inspira-me uma sympathia immensa, razão porque diante de sua extremosa e veneranda mãe não quiz dizer nada que a pudesse desgostar... Mas v. ex.ª, que é a mais formosa e encantadora menina de Lisboa, podia escolher para noivo um dos mais ricos e distinctos rapazes da capital. Não quer isto dizer que o sr. Proença não seja um bello caracter e um rapaz illustrado, mas é que... emfim... a violencia dos seus escriptos... e o seu genio irascível hão de acarretar-lhe só infortúnios e desgostos.

E para attenuar o mau effeito que as suas palavras podiam deixar-lhe, accrescentou:

-- Não julgue porem v. ex.a que qualquer mau sentimento me anima contra elle, pois que até me é muito sympathico. Estas palavras são-me apenas dictadas pelo grande desejo que tenho de vê-la feliz. Ainda assim... se eu puder ser util aos dois em qualquer coisa, terei n'isso summo prazer.

Zelia, muito longe de comprehender a sua perfidia, agradecia-lhe e ficava-o considerando um amigo dedicado.

Foi nesta conjunctura que veio o ultimatúm.

Zelia via das suas janellas aquelle revolutear de gente, ouvia aquelle tumulto e estrepito, notava aquellas correrias desordenadas da população lisbonense que amaldiçoava rei e governantes por lhe acarretarem tantas vergonhas. E não comprehendendo nem sentindo o fogo sagrado do amor da patria que abrasava aquelles peitos, indignava-se, lembrandose das scenas da Revolução Franceza, que o padre Seraphim lhe havia pintado com tão negras cores, e com as quaes ella queria encontrar analogia.

O habil intrigante não quiz perder aquella magnifica occasião, com que o accaso o favorecia, para amedrontar a inexperiente donzella. Andando pelos sitiosmais escusos, para se não defrontar com os milhares de manifestantes que andavam nas ruas, veio bater á porta de Antão de Sampaio, que não estava, sendo recebido pela filha.

O Espirito Santo para ver se ia tirando proveito dos acontecimentos, calumniou os patriotas, dizendo que era um bando de arruaceiros, de cannibaes, que com aquella desordem só desejava promover o roubo e o assassínio. E que se algum homem de bem ali andava era por tresloucada paixão politica que o podia arrastar aos mais tremendos crimes.

Por fim, com a mais refalsada compuncção, disse á joven que muito sentia o que ia dizer-lhe, que era para elle uma dôr amarissima ter que confessar-lhe que o sr. Proença, o escolhido do seu coração, tambem andava á frente daquelle bando de miseraveis!

O bote era arriscado, porque elle não sabia se o jornalista ali andava e podia ser achado em mentira: mas calculou que não poderia deixar de ser assim, e queria portanto ver'o effeito que esta nova produzia na orgulhosa joven.

Esta, que se achava já mal impressionada, soffreu com tal noticia um choque profundo. E elle, como se tivesse o maior interesse em vê-la feliz e jubilosa, confortava-a e fingia desculpa-lo. Depois perguntou-lhe:

-- Mas v. ex.a tem a certeza que elle lhe tem verdadeiro amor?

Zelia, como toda a mulher que se sabe formosa, julgava impossivel não despertar intenso amor em qualquer homem, e por isso respondeu:

-- Parece-lhe que o não mereço?

Elle comprehendeu-a e confirmou;

-- Oh! decerto merece; é preciso mesmo não se ter coração para que se a não ame; mas infelizmente neste mundo ha corações para tudo... Que eu acredito que elle a ame com todo o ardor de que v. ex.ª é digna... Em todo o caso, tem agora uma magnifica occasião de o experimentar: pede lhe que abandone o caminho perigoso que trilha, que se afiaste d'essas maleficas companhias que o hão de perder, que, emfim, ponha ponto nos seus escriptos

revolucionarios. Elle fica vivendo assim mais tranquillo e em menos perigo, e v. ex.a tem uma prova evidente do seu amor, pois que por sua causa domina as suas paixões partidarias.

Zelia ficou radiante com o alvitre.

Parecia-lhe que podia de ante-mão affirmar que elle lhe faria a vontade, com custo, decerto, com muita relutância mesmo, mas, emfim, o amor tudo venceria. Por isso maior foi o embate que soffreu seu amor proprio--o mais indomavel de quantos amores ha--ao receber negativa tão cathegorica; e, embora depois continuasse a fazer-lhe protestos d'amor eterno, o certo é que ficava intimamente resentida pelo patriotismo do mancebo, que ella não comprehendia e que a sua vaidade e orgulho não queriam desculpar.

O padre Seraphim conseguira o fim que tinha em vista: lançara um germen de discordia n'aquelles dois corações, que se queriam apaixonadamente.

VIII

A espionagem

O dia 14 amanhecera sereno e rutilo, como o são muitos dias d'inverno na ridente Lisboa. Eram pouco mais de sete horas. O sol apenas começava a banhar as cumeadas da cidade, que nas suas reverberações esplandecentes, pareciam despedir myriadas de palhetas de oiro.

Pelas ruas apenas o agudo pregão das leiteiras vinha advertir as donas de casa da necessidade d'aquella despeza quotidiana, emquanto os moços de padeiro, de grandes cabazes ao hombro, começavam pelos bairros mais pobres a sua afanosa venda, sempre silenciosos e apressados.

E os operarios, caixeiros e todos a quem a sua labutação diaria obriga a levantar cedo, mal tendo tempo de barrar com hedionda manteiga um pedaço daquelle pão ainda quente e sabendo a gesso, sujam aquelle leite muitas vezes falsificado com um café feito de fava, de tremoço ou de chicoria e lá vão a correr para o seu trabalho quotidiano, servindo-lhes de unica alimentação por muitas horas aquellas, muitas vezes, perigosas substancias.

Áquella hora, pois, em que só os mais infelizes serventuarios se encontram a pé, descia pela rua da Emenda o padre Seraphim do Espirito Santo que parou em frente do predio em que o jornalista Gilberto de Proença tinha o seu quarto.

Ao ver que a porta da escada se conservava ainda fechada fez um gesto de contrariedade e esteve um momento indeciso; depois resolveu-se a dar uma forte argolada.

Passados alguns instantes sentiu abrir a porta do primeiro andar e em seguida percebeu que puchavam pela corda que levantou a aldraba da porta da rua, onde elle estava, o que lhe deixou livre a entrada. Do patamar do 1.° andar a mulher que lhe abrira a porta perguntou.

-- Quem procura o senhor?

-- Tem a bondade, diz-me se é aqui que sr.ª D. Innocencia, esposa do sr. Felisberto Ventura, alfaiate? -- pediu elle delicadamente.

-- É no terceiro andar -- resmungou a com mau modo, por a terem incommodado pouco por tão pouco.

-- Muito obrigado -- disse elle subindo ligeiramente a escada, contente comsigo mesmo pelo expediente que tomara, porque elle bem sabia que a pessoa que procurava morava no terceiro andar, mas fingira ignora-lo para conseguir que lhe abrissem a porta, sem ser ouvido em cima.

Chegado ao andar que procurava, bateu levemente á porta ao lado da do quarto do jornalista, lançando olhares inquietos para este lado; e, logo que a porta foi aberta, entrou sem cerimonia alguma, e só depois de já estar no corredor é que perguntou á creada que lh'a abrira se a sr.ª D. Innocencia já tinha saido. Como a resposta fosse negativa, dirigiu-se para a sala, como pessoa que conhece a casa e que n'ella tem a maior confiança, emquanto a creada ia prevenir a patroa, que se apresentou sem demora. Era esta uma senhora alta, gorda, corpulenta devendo ter quarenta annos, mas ainda frescalhota e com presumpções a formosa.

-- Por aqui a esta hora é milagre, sr. padre Seraphim do Espirito Santo --começou ella -- Eu estava para sahir para a missa; se vem um pouco mais tarde não me encontrava, o que me daria um grande pesar!

Effectivamente tinha já posto o chapéu, do qual pendia um veu preto que não deixava perceber bem a grande quantidade de pomadas com que empastava a cara, que não era ainda de todo desagradavel.

Olhava para o padre Seraphim muito ternamente, querendo dar viveza aos seus olhos ainda expressivos, como quem sentia grande prazer em o ver ali.

-- Já ha uns poucos de dias que não tinha o gosto de o ver -- voltava ella - e bastante tenho sentido a sua falta...

- Não tenho podido -- desculpava se elle -- e depois... agora quasi que se não pode pôr um pé na rua por causa dessa canalhada que para ahi tem andado a rosnar...

-- É verdade -- confirmou ella -- uma coisa assim...

-- Onde está seu marido e sua filha? -- perguntou elle, baixando a voz.

-- O Ventura já está no atelier; e a Eugenia ainda está na cama; podemos portanto falar á vontade.

-- Pois saiba que um dos maiores arruaceiros tem-no a senhora em casa!

-- Quem? o hospede?

-- Esse mesmo.

-- Mas parece ser muito socegado!...

-- Pois é um dos peores, e alem disso é tambem um rancoroso e damnado inimigo da santa religião.

-- E eu que o não sabia!... Ora deixe estar que vae ainda hoje para o meio da rua.

-- Não, isso não convém. Deve deixa-lo estar.

E abaixando mais a voz e chegando-se para ella:

-- O que pode é prestar-me um grande serviço, que é tambem um serviço prestado á sociedade e a Deus.

-- Oh! diga-me o que é preciso fazer, que me tem prompta para tudolo agitador

E, cravando nelle um olhar impregnado de sensualidade, accrescentou:

-- Bem sabe como lhe sou dedicada...

-- Bem sei, e por isso lhe falo com esta franqueza. Faça-me então uma coisa: quando elle estiver no quarto com alguem; veja se escuta o que dizem, porque a mim parece-me que elle e outros patifes que taes andam a planear alguma revolução.

-- Santo nome de Jesus! E então porque não prendem esses desalmados?

-- Porque se não tem a certeza. É por isso que lhe peço que ouça o que elles dizem, afim de ver se pode descobrir-se alguma coisa.

-- Esteja descançado. Isso fica por minha conta.

De hoje em diante não dirão lá uma palavra que eu não ouça.

-- Em ouvindo alguma coisa n'este sentido corra a communicar-m'o. Se for de manhã vá á egreja, e, fingindo que se confessa m'o diz; se fôr a outra qualquer hora vá onde sabe.

N'isto sentiram passos.

-- É a Eugenia -- disse D. Innocencia, contrariada.

-- Então não se resolve a manda-la para o convento?

-- Hade ir, isso é que hade. O pae, por pieguice, não quer, mas eu lhe direi quem manda.

-- Emfim, isso é comsigo... mas olhe que escusava assim de ter receios pelo seu futuro...

E deitando-lhe um olhar de fingida ternura:

-- E ficavamos nós mais á vontade.

-- Ahi vem ella -- preveniu D. Innocencia.

Entrou então na sala uma joven que teria, o muito, dezeseis annos. Quem a visse pela primeira vez supporia estar em frente dum quadro de Murillo, que de repente tomasse vida. A sua cutis, alva como a açucena, tinha nas faces o colorido das rosas. O loiro cabello tinha irradiações aurifulgentes, como a corôa duma rainha.

Os olhos, grandes, meigos, sonhadores, pareciam duas saphiras, atravez dos quaes se lhe podia ver a alma, alma serena e poética como o pallor do luar.

O rosto, comprido e insinuante, tinha a doce expressão duma fada bemfazeja.

A figura, franzina e gentil, dava nos o lêdo embaimento duma visão angelical.

Não era, como Zelia, uma d'estas provocantes formosuras que despertam de improviso loucas paixões e incendem as carnes em irresistiveis appetites. A candura da sua expressão, a pureza do seu olhar crystalino que nenhum torpe desejo ainda abrasara, as castas caricias dos seus sorrisos de virgem, não arrastam as almas pelo lodo vil do prosaismo, nem arrebatam os sentidos em doidas sensações de volupia; elevam-nos a um sentimento mais nobre, mais elevado, mais puro, a uma adoração immaculada, que quasi faz que nossas almas affaguem a chimera do amor platonico, do amor de pureza ideal, que a nossa animalidade não permitte, porque é contrario ás immutaveis leis da natureza.

Para um frascario, porém, como o padre Seraphim, incapaz de sentimentos elevados, aquella donzellinha, um primor de graça e de belleza, era desejada com toda a sensualidade do seu temperamento bestial. Desde que a vira só pensava na maneira de a possuir; mas receando um escandalo, que para a sua fama de santidade era prejudicial, pensava em a sepultar n'um recolhimento, onde tinha entrada franca. Ali facil se lhe tornava seduzil-a, sem perigo para o seu nome, tão venerado entre o beaterio da baixa e da alta roda.

Para conseguir os seus desejos, fingia-se seduzido pela decrepita e duvidosa belleza de D. Innocencia, remoçada apenas pelas abençoadas porcarias de toilette, e esta, por beatice e lascivia, em tudo lhe obedecia.

Quando a filha de D. Innocencia entrou, os olhos do padre brilharam cubiçosamente, como brilhariam os olhos da fera quando entrevê boa presa; mas durou um instante só aqueile olhar. Voltou á sua expressão de beatitude hypocrita, em que ainda assim se podiam notar uns laivos de lubricidade.

O meigo semblante da joven vinha annuviado de immensa tristeza, e cumprimentou-o como que desgostosa e resentida. E, sem delongas, disse-lhe com a sua vozinha melodiosa, mas com energia:

-- Se o sr. padre Seraphim cá vem para eu entrar no convento, escusado será incommodar-se mais, porque nem eu nem meu pae tal queremos.

O amor de minha mãe por mim é d'aquelles que permitte que eu me aparte d'ella, mas não assim o de meu querido pae, que não pode ver-se sem mim um momento. E eu tambem não posso nem quero affastar-me d elle, que tanto me estremece e a quem eu tanto amo.

«Não pensem, pois, em semelhante coisa, que não logram seu intento. Sempre respeitei muito minha mãe, em tudo lhe obedecerei, menos em separar-me d'aquelle meu tão bom como desditoso pae.

D. Innocencia deixou-a concluir por espantada que estava d'aquella ousadia, em quem sempre fôra tão humilde e submissa ; mas logo que ella terminou, levantou-se irada, ordenando-lhe:

-- Já d'aqui para fóra!

E fitando-a, rancorosa, accescentou:

-- Logo falaremos...

O padre porem interveio, pedindo a D. Innocencia:

-- Peço-lhe minha senhora que a deixe estar.

Quero mostrar lhe que se nos interessamos pela sua entrada n'aquella magnifica instituição religiosa é para o seu bem estar e para a salvação da sua alma.

E, dirigindo-se á joven Eugenia, disse lhe:

-- A menina, pela sua mimosa e delicada mas debil compleição, não póde entregar-se a trabalhos aturados, que lhe seriam perigosos.

«Ora, como não possue riquezas, se seu bom papá e extremosa mamã lhe faltassem ficaria para ahi na miseria ; emquanto que, entrando no recolhimento, nada lhe faltará, nem terá de recear a perda da sua alma, que cá fóra muito pode perigar.

-- Eu espero -- contrariou Eugenia -- que meu querido pae ainda viva muitos annos; e emquanto elle viver escuso recear a miseria, porque o seu trabalho aturado e continuo me garante a subsistencia. Depois...

-- Depois como se ha de governar, sua estupida? -- interrompeu a mãe, sem se poder conter.

-- Podia governar-me com o meu trabalho, se a mamã não me prohibisse ajudar meu pae.

-- Queria ser uma costureira de alfaiate! -- escarneceu D. Innocencia -- Que desprezivel coisa!

-- Desprezivel acho eu que é viver com deshonra. O trabalho, por mais mesquinho que seja, ennobrece, não deprime.

-- Mas -- retorquiu o Espirito Santo -- n'este mar de abominações, que está o mundo, não receia perder a alma, que é do que mais devemos cuidar, que é eterna? O corpo não nos deve merecer cuidados nenhuns, que é mortal; a alma, que nunca morre, é que carece de todas as nossas attenções e desvelos, devendo a sua salvação ser todo o nosso empenho e a nossa unica preoccupação.

Ella fez um gesto de incredulidade e contrariou:

-- Olhe, sr. padre Seraphim; por pouca que seja a minha experiencia do mundo, já conheço o que valem estas palavras de desapego da vida... para uso dos outros. Os senhores são assim; vão pregando aos outros o desprezo das coisas mundanas, para que não tenham competidores e sejam senhores de tudo.

«Deus, se nos dá a vida, não é decerto para que nós assim a desprezemos; e eu ainda estou no principio d'ella. Mas dado mesmo o caso que já quizesse pensar na outra, tanto o podia fazer cá fóra como dentro d'essas casas; e cá fóra ainda melhor, se as informações que tenho d'ellas me não enganam.

«Não comprehendo este desejo de me quererem sepultar entre as quatro paredes d'uma cella para seguir a religião de Jesus. Eu já tenho lido os evangelhos, unicos documentos em que, creio, estão exaradas as suas doutrinas, e nunca lá encontrei passagem nenhuma recommendando a clausura... só se é quando prégava que -- «quem quizesse resar se fechasse no seu quarto para o fazer, porque só era proprio dos hvpocritas e phariseus irem orar para os logares publicos, com o fim de fingirem de religiosos.» Mas, quanto a mim, isto condemna mais as missas e outras orações publicas que a liberdade dos que seguem as suas sacrosantas doutrinas.

O padre Seraphim ficou assombrado com semelhantes heresias; e D. Innocencia cresceu para a filha no proposito de a castigar ali mesmo; mas esta, fazendo uma venia ao velhaco eclesiastico saiu da sala indo cair nos braços do pae, que, banhado em doces lagrimas de jubilo, a escutava no aposento immediato, retirando-se ambos para o quarto em que elle trabalhava e que era no extremo opposto da casa.

-- Quem tem ensinado taes coisas a sua filha, sr.a D. Innocencia!? -- perguntou o padre muito admirado pelos conhecimentos d'aquella admiravel creança, que elle julgava tão ignorante como bella.

-- Eu sei lá!... Naturalmente o patife do pae!

-- Ou talvez o hospede...

-- Esse não. É verdade que ella é quem lhe tem tratado da arrumação do quarto, mas procura sempre a occasião em que elle está ausente.

-- Pois creia que não foi outro. Provavelmente quando a senhora sae, teem falado e são essas conversas que assim lh'a trazem perdida. Tenha muito cuidado, olhe que elle tem artes do Diabo para endoidecer donzellas. Uma filha de uma familia muito rica e nobre conheço eu que foi tambem enfeitiçada por este discipulo de Satanaz, a ponto tal que o pobre pae tem tido os maiores desgostos e trabalhos para que a filha o esqueça.

-- Eu a tirarei de casa para evitar tudo isso...

E a elle se o não ponho ja na rua é por nos convir saber o que andam tentando, quando não nem um dia mais cá ficava. Eu, quando vi aquelle peralvilho a primeira vez, logo disse comigo: Deus me perdoe mas não tem boa cara. E então que olhares elle me deita, quando me vê! Ora a gente sempre atura coisas...

Aquillo era vaidade da boa senhora, que queria mostrar que despertava ainda interesse.

Não lh'o levemos a mal, que é pecha muito vulgar no bello sexo... e até no sexo feio.

Pois tire-a d'aqui quanto mais depressa melhor -- volveu o santo homem.

«Nem a senhora imagina a que perigo ella tem estado exposta!

-- Mas porque me não avisou ha mais tempo? Só hontem é que soube ser esse excommungado que cá tinha em casa.

O padre, tendo morto dois coelhos com uma cajadada, isto é, tendo instigado aquella sua amante a fornecer-lhe a filha por intermédio do convento, e conseguido que ella se dispozesse, sem repugnância, a espionar o energico republicano, a quem queria perder, nada mais precisava d'ella e por isso levantou-se. E D. Innocencia, embora tivesse grande prazer em ter ali o seu dilecto confessor e amante muito querido, estava impaciente por castigar o atrevimento da filha.

O Espirito Santo disse-lhe ainda algumas palavras ao ouvido que só ella percebeu e retirou-se, não sem primeiro lhe imprimir alguns beijos n'aquella bocca rosada pelo effeito do carmim. E o certo é que os beiços d'elle tambem ficaram mais rosados, pelo menos em parte...

IX

Esposa modelo

Felisberto Ventura, o marido de D. Innocencia e pae da adoravel Eugenia, era um d'estes homens bondosos e timidos que nasceram para ser dominados e que soffrem sem revolta todas as oppressões e ultrages.

A sua modestia e humildade formavam um espantoso contraste com a vaidade e altivez da consorte. Envergonhava-se ella de ter por marido um alfaiate, embora fosse um artista activo e honrado, e escarnecia-o pela sua reles profissão, como ella dizia, sem se lembrar que era dessa mesma profissão que ella vivia regaladamente, andando pelas egrejas em mysticos embevecimentos com as materialidades de culto e em loucas lubricidades com os ministros da religião.

D. Innocencia, como ella a si mesma se chamava, era filha dum sapateiro que a creara sem a acostumar ao trabalho, deixando-a gastar, quanto elle ganhava, em tudo que lhe appetecia.

Ignorante e sem educação, julgava-se uma verdadeira senhora, porque vestia como ellas, e só pensava em deitar figura e em competir com todas as outras.

Depois de muitos namoros com todos os janotas que lhe appareciam, convenceu-se de que elles só eram assíduos emquanto ella não era condescendente; e, a respeito do casamento que ella pretendia, nenhum se resolvia a isso, desapparecendo todos, como aves de arribação, logo que ella lhes falava nos sagrados laços do matrimonio.

Estes continuos insuccessos desilludiram-na um pouco; e, quando viu que os janotas debandaram, resolveu-se a aproveitar o primeiro que lhe apparecesse, mas sem tornar a tolerar atrevimentos, emquanto a não levassem á egreja. As suas infelicidades com os namoros tornaram-na cautelosa. Mas não apparecia ninguem que a isso se prestasse, não só porque estava muito desacreditada, mas principalmente porque não tinha um real, que é o peor dos descreditos. Só passado muito tempo de desenganos e de ancias é que lhe appareceu Felisberto, que ella se resolveu a acceitar. Mas, logo após o casamento, quando elle já não podia tambem fugir, ella se envergonhou do muito a que tinha descido, e nunca o quiz ajudar nem consentiu que a filha, quando já tinha edade para isso, o ajudasse no seu mister.

Esta mulher era um flagelo para seu pobre marido. Cedo lhe conheceu a fraqueza de animo e tratou de o dominar conforme á sua soberana vontade aprazia.

Elle em nada podia contraria-la, porque, se tal fazia, ella, com berros de regateira e com terriveis ameaças, levava-o a recear um escandalo e conseguia que elle se dobrasse submisso.

O pobre Felisberto trabalhava sem descanço, mas apesar disso ella arguia-o continuamente de mandrião, e, quando lhe faltava o dinheiro para as suas despezas, muitas vezes superfluás, martyrisava-o com insultos e affrontas de toda a especie, tocando-lhe até com os punhos fechados na cara.

Elle trabalhava para as lojas de fato feito da baixa: e, quando tinha trabalho em abundancia, quasi não dormia para ver se a contentava, mas em vão. Logo que trazia o dinheiro, ella apoderava-se d'elle e depressa o consumia, maltratando-o sempre.

Era um verdadeiro inferno aquella sua vida.

Bastava olhá-lo para se comprehender quanto soffria. Parecia uma caveira, apenas vestida com uma mirrada e amarellecida pelle.

No rosto destacavam-se os malares e maxilares, deixando entre si umas desmarcadas cavidades, pela ausencia completa de tecidos.

Os olhos, de esclerotica esverdeada, tinham a pungente expressão duma agonia mortal.

O bigode preto, a grisalhar-se precocemente, pendia-lhe pela cara de modo desleixado, mostrando o pouco cuidado que fazia delle.

O trabalho constante, a má alimentação e mais que tudo isso os maus tratos da mulher -- que o traziam sempre opprimido, lhe dilaceravam o coração e envenenavam o sangue -- iam-lhe a pouco e pouco aluindo o organismo, predispondo-o para a terrivel tisica.

Ás vezes pelo seu espirito acabrunhado perpassavam pensamentos de revolta: queria livrar-se daquelle jugo ignominioso e torpe; queria tomar o predominio a que tinha jus pelo seu sexo e pelo seu trabalho; queria emfim, ser homem Mas era tarde. O ascendente moral que devia ter sobre aquella fera annulara-lh'o a sua passividade primitiva; e pela força nada faria, já porque ella era mais robusta, já porque não haveria pancadas que a subjugassem.

Só uma coisa lhe restava: fugir-lhe -- Mas impedia-lh'o o seu amor de pae. Todo o amor de que era susceptivel a sua boa alma, tinha-o áquella filha, unico refrigerio da sua vida de amarguras.

Ella era o orvalho celeste daquelle coração arado pela chama do desespero, a estrella d'alva d'aquella alma immersa na noite tormentosa do supplicio.

E Eugenia, sempre boa e carinhosa para elle, sempre meiga e amoravel, augmentava de ternura quanto mais desditoso o sabia, parecendo querer-lhe apagar as desditas com os seus beijos, com as suas caricias, com os seus requintes d'amor por elle; mas isto mesmo começou para o desgraçado a ser motivo das dores mais cruciantes, porque a D. Innocencia, aborrecendo a filha pela sua dedicação ao pae, havia muito que pensava em descartar-se della.

Felisberto suspeitava-o; mas quando ella um dia disse que Eugenia ia ser mettida no convento, então o seu soffrimento não teve limites. Por isso, quando soube pela creada que estava na sala o padre Seraphim, o coração apertou-se-lhe numa angustia immensa, porque suppoz que elle vinha para tratar da entrada da filha no coio que abominava.

Não podia apartar-se daquella creança estremecida. Era por ella e só por ella que supportava aquella vida de tormentos.

E não seria só o apartamento que havia de causar-lhe dores insuperaveis, lancinantes, mortaes: era a intuição precisa, clara, manifesta de que o interesse d'aquelle lugubre avejão em a querer enclausurar era para profanar a sua coroa de virgem, para polluir aquella casta donzella.

Elle era um humilde e desgraçado alfaiate, mas julgava conhecer muito bem a cupidez e rapacidade destes milhafres e a sordidez dos conventos.

Entendia que em taes casas só se quer quem tenha fortuna para lhes legar ou quem possa agradar ás santas creaturas que encobertamente as frequentam

E isto causava-lhe ainda maior agonia.

Mandou depois chamar a filha e contou-lhe o que se passava.

-- Não se afflija, meu querido pae, -- pediu ella beijando-o meigamente -- não se afflija que ninguem me arrancará da sua companhia.

E dirigiu-se para a sala onde a mãe e o padre estavam.

O pae, receoso que as bonitas côres com que lhe pintassem a vida conventual a seduzissem, tinha-lhe anteriormente preparado o espirito, instruindo-a com as verdades que convinha dizer a tão candida creança.

Foi com aquellas lições do pae que ella rebateu tão ousadamente os argumentos do arteiro sacerdote.

Quando ella voltou, o pae, rindo e chorando ao mesmo tempo, orgulhoso pela energia d'aquelle anjo, abraçava-a e beijava-a com transporte, pois nunca a suppozera capaz de assim falar áquella mulher arrogante e temivel, que era sua mãe.

Mas, passado o primeiro instante, veio a reflexão, e o alfaiate começou a temer a explosão de colera da mulher.

-- Minha filha, ella agora bate-te -- disse-lhe elle, receoso.

-- Não faça caso, meu bom papasinho, -- respondeu ella beijando-o. -- O que lhe peço é que me não desculpe, nem diga nada. Deixe-a bater-me que nenhum mal me faz.

-- Oh! minha adorada filha! -- exclamou o pobre Felisberto muito commovido, porque comprehendia que aquella angélica creança antes queria levar pancada da mãe do que ver que ella o insultava.

Pouco depois entrou D. Innocencia. Vinha furiosa, exasperada, hydrophoba.

Agarrou a filha por um braço e, sacudindo-a rudemente, gritou-lhe:

-- Então você, sua desavergonhada, sua gallega, tem o descaramento de me faltar assim ao respeito e de dizer similhantes baboseiras diante duma pessoa d'aquellas! Quem é que lhe ensinou esses palavrões, só proprios de pedreiros-livres, sua atrevida?

Eugenia, deixando-se abalar sem resistencia, respondeu branda e serenamente:

-- Ninguém me ensinou essas verdades; aprendi-as nos seus livros sagrados.

-- Ah, sua porca! você ainda se atreve a mangar comigo!?...

E deitando-lhe a mão esquerda ao pescoço pretendeu esbofetea-la com a direita.

Mas Felisberto, que, mais pallido que um cadaver, a tinha ouvido e observado sem largar o trabalho, ao ver assim, por sua causa, maltratada aquella filha querida, ergueu-se de chofre, e, agarrando fortemente, nervosamente, a mão da irosa companheira, que já se erguia para a cara da filha, quiz com a outra mão arrancar a que apertava o pescoço da pobre rapariga. Como o não conseguisse, cravou-lhe rudemente as unhas na adiposa garra.

D. Innocencia soltou um rugido de colera; e, largando a filha, correu para o marido, vociferando:

-- Ó cão lazarento! Ó besta reles e podre!

«Pois atreves-te a intrometter-te no que eu faço!? Espera...

E quiz lançar-lhe as mãos; mas o alfaiate apoderou se da tesoura do officio, que estava sobre a mesa em que trabalhava, e, abrindo-a, bradou-lhe:

-- Se me toca, ou nessa creança, cravo-lhe esta tesoura num ouvido!

E tal era a desusada firmeza e energia com que proferia estas palavras, que bem mostrava ser capaz de o fazer.

D. Innocencia caia de assombro em assombro.

Custava-lhe crer o que via e ouvia. Era lá possivel que ella assim fosse desacatada, desrespeitada, ella que sempre ali fora obedecida como rainha absoluta!?

Ha pouco era a filha, sempre tão pacifica e submissa, quem lhe affirmava, de fórma categorica, que não iria para onde ella queria que fosse e que argumentava como uma doutora. Agora era aquelle homem, que ella sempre dominara a seu talante, que sempre se sujeitara como um cão ás suas determinações, que soffrera sempre calado todos os seus insultos e barbaridades, quem, ameaçador, vinha impedir que ella castigasse aquella filha tornada de repente arrogante.

Era de mais! Não podia nem devia recuar, pensava ella. Se tal fizesse, perdia a sua auctoridade e d'ahi por diante não a acatariam como até ali.

Precisava, pois, retomar o seu ascendente, dando uma severa lição aos dois insubordinados, uma lição terrivel, que lhes lembrasse para sempre.

Precisava porem desarmar o marido, porque este não largava a sua tesoura, tornada de repente em formidavel arma defensiva, e que podia voltar-se em offensiva de um momento para outro.

Deu, pois, um passo á frente, e, como uma pantera cahindo sobre a presa, lançou as mãos á tesoura; mas Felisberto puxou-a de repellão e D. Innocencia rugiu novamente, mas d'esta vez com mais força e com não menos razão.

O gume do ramo da tesoura, a que ella se agarrara, ao ser puxado violentamente pelo marido, golpeara-lhe os dedos.

Cega de dôr e de raiva, com os olhos coriscando de furor, as faces congestionadas e os beiços entumecidos e trémulos de ira, correu para a filha, pretendendo cevar nell'a a sua braveza.

Eugenia, opprimida pelas proporções que ia tomando aquelle incidente, e penalisada por ver correr o sangue dos nédios e estimados dedos da mãe,não deu um passo. Esperava-a com paciente resignação. Mas o pae, de um salto, collocara-se em frente d'ella, cobrindo-a com o corpo.

Então a iracunda senhora, impotente para satisfazer a sua sede de vingança pela pancada, abriu a torneira da villania e uma torrente d'insultos grosseiros, de doestos desprezíveis, de indecentes palavrões só proprios de repellentes alcouces, caiu sobre o marido e sobre a filha, como tremenda avalanche em região alpina.

Mas a insolita coragem de Felisberto ainda se não esvaira. Parecia que uma força estranha, um poder occulto o animava, lhe agitava os frouxos nervos, lhe dava um vigor extraordinario, que o tornava desconhecido a seus proprios olhos.

Não é raro observarem-se phenomenos d'estes n'um individuo que soffre continuamente todas as oppressões, todas as affrontas, todas as ignominias sem uma exprobação, sem um clamor, sem uma revolta.

Um dia porem, ao receber um vituperio mais aculeado, aquelle ser apathico ergue-se cheio de energia, de força, de vigor, indomavel, animoso, invencivel e subjuga aquelle que o tyrannisava, victimando-o muitas vezes, para logo cair na anterior ignavia e soffrer as mais ferozes sevicias, as mais cruéis represalias.

Este individuo multiplicado forma as grandes massas, em que os mesmos phenomenos se produzem, como o attestam a observação e a historia.

Felisberto conservou-se indifferente emquanto a cara metade só a elle injuriava; mas, quando a catadupa dos impropérios attingiu tambem a filha, arremetteu com cila, sempre de tesoura em riste, bramindo:

-- Ponha-se d'aqui para fóra, infame mulher, que lhe arranco essa língua immunda!

E era tal a raiva que se lhe estampava no rostoo agitador e tal a fereza que se lhe pintou no olhar, que D. lnnocencia convenceu-se de que elle lhe cravaria a tesoura no peito se não fugisse, e não lhe deu tempo a que se aproximasse, saltando para fóra do quarto.

Então o pobre alfaiate fechou com estrondo a porta, e, vindo abraçar-se á filha que soluçava affiictivamente, exclamou:

-- Até que uma vez na minha vida fui homem!

X

Os patriotas

Estava se na tarde de 14 de janeiro. Ainda se não attenuára a indignação popular contra a Inglaterra, antes parecia exacerbar-se cada vez mais, sendo tambem cada vez maior o odio contra a realeza.

Em todas as cidades e principaes villas do paiz lavrava intensa a labareda patriotica. A academia de Coimbra offerecia-se para formar um batalhão e de toda a parte eram feitas propostas identicas, que provavam quanto o povo portuguez estava prompto a vingar o ultrage feito á patria.

Mas era principalmente em Lisboa que o movimento mais adusto se tornava. A imprensa, salvo a mais retintamente palaciana, agermanára-se na mesma lucta patriotica e atacava rudemente, aculeadamente a nação que nos affrontára com tanta injustiça, atacando tambem, a mais desassombrada, com a maior aspereza, a coroa, como causa verdadeira d'esta ignominia.

O commercio e a industria manifestavam o seu patriotismo da fórma mais positiva, a unica que podia seriamente ferir a Inglaterra: recusavam-se a gastar os productos inglezes, mandando sustar telegraphicamente todas as encommendas feitas a casas d'aquelle paiz ; e em quasi todos os estabelecimentos da capital se viam, em grandes caracteres, estes letreiros: -- Não se compra nem se vende a ingleses.

Os artistas recusavam-se a servir os naturaes d'aquella nação, e algum d'estes que apparecia era corrido como um cão damnado, sem ninguem lhe querer prestar serviços.

Até as libras, que n'esse tempo ainda circulavam com abundancia e sem agio, começaram a ser só designadas pela antonomasia de ladras.

A academia, incluindo a militar, dava as mais inequivocas provas da sua dedicação á causa sagrada da patria.

Na importantissima reunião da Escola Polytechnica, no dia 13, manifestou ella exhuberantemente os seus acrisolados sentimentos civicos. Mas a realeza, que sentia tremer o solo sobre que assentava, como se debaixo della estrondeasse o Vesuvio, mandou dissolver a reunião em que a mocidade intellectual alvitrava sobre a forma de desaffrontar a patria dos ultrages que a rapace alliada lhe infligira, apoiada no direito da força.

Quando, n'um estado constitucional, um regímen tudo prohibe, é que tudo teme.

De facto, nas regiões do poder não podia ser maior o terror, não pela Inglaterra, que d'esse lado havia a certeza de não surgirem mais hostilidades... dando-se-lhe o que ella pretendia ; mas pelo povo, que mostrava não estar resolvido a assistir passivamente á deshonra da Nação Portugueza e ao seu desmembramento territorial. Por isso, ás primeiras manifestações populares, que, como já tentei descrever, romperam como vagas alterosas em tormentoso oceano, o regimen sentiu-se perdido, o governo caiu e affirmava-se que, nos paroxismos do susto, foi pedido auxilio contra o povo á nação que acabava de esbofetear-nos.

A corôa via-se perdida. Sentia muito bem que ao primeiro grito da revolução armada todos a desamparariam, pois que junto com o povo já andava um dos partidos, que, como os alcatruzes, se revesavam no poder, porque todas as probabilidades pendiam para a revolução. E era assim que, ao mesmo tempo que do paço armavam laços á popularidade, emanavam tambem ordens para obstar por todos os modos ás expansões do civismo do povo da capital. Por essa razão foi mandada fechar a sala em que a academia se reunira, e pretendeu evitar-se que ella entregasse no parlamento a representação que lhe dirigia, mandando vedar o largo das Cortes por um forte cordão policial. Mas a multidão, que a esse tempo era superior a 15:000 pessoas, esfarrapou em toda a sua extenção aquella fragil barreira e surgiu impavida em frente do palacio de S. Bento. A guarda das cortes, de bavoneta calada, quiz, com a policia, desoccupar o largo; mas os aspirantes de marinha foram formar em frente do povo, como que a defendel-o dos ataques da força, e o certo é que esta recuou.

Emfim, quer nos clamores das ruas, quer nas discussões dos clubs, dos cafés e de todos os centros de reunião, todos os que têem um cerebro para pensar e um coração para sentir protestam o seu patriotismo e pensam na melhor forma de o pôr em pratica, mas todos affirmam que a unica salvação e a mais salutifera desaffronta era a proclamação da republica.

Eram seis horas da tarde. As ruas começavam a encher-se e pelas praças começava a rugir o leão popular.

Á porta da tabacaria Neves, no Rocio, achavase Gilberto de Proença conversando com alguns amigos. O mancebo, que durante toda a noite e todo dia não fizera outra coisa senão percorrer a cidade em todas as direcções, a procurar elementos para a revolução que com Armando de Sampaio premeditara, não descançando um só momento, estava pallido, nervoso, agitado, parecendo que umas vezes o olhar se lhe cobria de immensa tristeza, outras que se illuminava em alegres fulgores. E de instante a instante distraia-se da conversação em que estavam, e ficava-se a scismar, como se difficillimos problemas se estivessem resolvendo no seu poderoso cerebro.

Os que não estavam no segredo dos seus planos estranhavam-no.

-- Que tens tu, homem? -- perguntava-lhe um seu collega -- Em que pensas? Parece que estás na lua!

E elle, forçado a interromper as suas cogitações:

-- Não tenho nada; que hei de eu ter?

-- Não, tu tens coisa que te incommoda!

-- Ora... tive apenas esta noite umas insomnias terriveis, e os nervos sacodem-me abruptamente.

E concluiu sorrindo:

-- Parece-me que estou neurasthenico.

-- Olha, aqui tens este nosso famoso esculapio -- interveio outro, rindo, indicando um joven medico--que te mataria depressa a doença, se primeiro te não matasse a ti.

-- Precisa de banhos, mas ainda não é tempo de os tomar -- respondeu o medico intencionalmente.

-- De terra, doutor? -- interrogou Gilberto, sempre sorrindo.

-- Não, desses não, que isso é therapeutica do Pitta -- respondeu elle.

-- Então -- lembrou um festejado actor--são banhos de egreja.

-- Talvez, talvez -- exclamaram outros.

-- Quê? banhos de egreja?! Então não sabem que o nosso valente campeão nada quer d'esses logares? -- observou outro.

-- É verdade -- gargalharam todos.

-- Mas Gilberto quasi nem os ouvia.

Os graves pensamentos que lhe turbilhavam no cerebro tomavam-lhe toda a sua attenção.

Olhava para aquella massa viva, que se agitava na sua frente, para aquella onda humana que na vasta praça se revolvia tristemente, sombriamente,

como quem espera alguma coisa, e pensava nas desgraçadissimas condições do proletariado.

Aluitos d aquelles homens, de aspecto miserável e doentio, são operarios activos que com o seu productivo c laborioso trabalho ajudam a enriquecer os patrões, ficando elles cada vez mais pobres e desgraçados, sempre desprezados nas suas supplicas de justiça, sempre escarnecidos quando se queixam, sempre opprimidos quando pretendem fazer valer os seus direitos, até que as doenças ou os desastres atiram com elles para o catre de um hospital e depois, envoltos na desprezível sarapilheira, para a valia commum. Por baixo d'esses desgraçados operarios, eternamente escravos do trabalho, que cedo lhes depaupera o organismo, quando os não mata de repente, ficam outros entes ainda mais infelizes -- os sem pão, os esfaimados, que são quasi sempre os filhos ou as mulheres dos operarios que morreram, deixando, como quasi todos, os seus seres estremecidos na mais pungente das miserias.

Se esses desditosos querem trabalhar, não são aceitos; se estendem a mão á caridade publica, são repellidos; se clamam contra a sua miseria, são espesinhados; se roubam para se alimentar, são mettidos em repelentes enxovias.

De que vivem então?

De quasi nada. Roem agora uma codea que um cão rejeitaria e nutrem uma esperança de logo se allimentarem melhor; curtem depois um desespero por uma nova desillusão, e assim vão indo até que as doenças predilectas da miseria, a tuberculose especialmente, porque a tuberculose entra quasi sempre pela porta da fome, os veem arrojar ao grande laboratorio em que a Natureza produz, com os mesmos elementos, os mais diversos seres.

Sempre desprezados, em toda a parte repulsos, muitas vezes escorraçados, os seus corações enchemse de fezes e as suas almas embebem-se de odios.

Os abastados olham-nos com repugnância e desviam-se d'elles como se o seu contacto os empestasse; os fidalgos nem para elles olham e as rodas das suas carruagens se encarregam de lhes manifestar o seu desprezo, atirando-lhes ás faces esquálidas a lama das ruas; os ministros da religião, que esse admiravel Revoltado judeu se esforçou por implantar para desoppressão das classes pobres, acostumados a lidar com o beaterio janota, tratam-nos com desdem, e, como elles não têem dinheiro para satisfazer os menores trabalhos dos interesseiros seguidores do Nazareno, correm-nos brutalmente das egrejas, se acaso lá apparecem.

E então, em suas almas affrontadas, só bruxuleia, como pharol longinquo, o desejo ardente da vingança, vingança por certo cruel, feroz, brutal, mas justificada.

Aquelle mixto de desesperos recalcados, de miserias padecidas, de ignominias supportadas, tornase explosivo, que rebentará com tanto maior violencia, quanto maior fôr a força com que a sociedade o comprimir.

A revolta dos escravos romanos, a jaquerie, as matanças de setembro e tantas outras represalias dos desgraçados não são mais que a natural expansão d'essa força desoppressora, que mais dia menos dia ha de produzir tambem os seus resultados entre nós.

Gilberto, meditando em tudo isto, dizia comsigo, como cem annos antes Danton, que isso, a que chamam gentalha, tambem precisa desabafar.

E na sua preoccupação constante, que o não deixava dormir, nem comer, nem descançar, na persistente ideia da revolução que com tanta alacridade planeara, não se esquecia d'estes infelizes, pensando que era justo deixar-lhes algum desafogo e tratar de minorar-lhes as agruras, como tambem era indispensavel não os deixar commetter actos de cruel selvageria, que a sua vingança poderia justificar, mas que tornaria horrorosa a revolução salvadora.

O que elle desejava era que entre a humanidade se estabelecesse uma era de paz e amor, de trabalho geral, mas de geral abundancia.

O que a sua alma anceava não eram guerras, polvora, revoluções e sangue: eram reformas radicaes, mas pacificas, mudança de regimen, illuminação dos espiritos de modo que no mundo só reinasse a paz, o amor, a abastança, a sciencia e a verdade.

O que mais o entristeceria era se por sua causa vinha a verter-se o sangue estranho, que ao seu não ligava elle importancia.

Engolfado nestes benemerentes pensamentos, que quasi lhe interceptavam toda a relação com o exterior, esquecia-se completamente dos companheiros, que já começavam de novo a dirigir-lhe chalaças, quando da rua do Ouro desembocou um grupo de academicos, que do café Áurea vinham em altisonas manifestações. Pela rua do Ouro acima já se lhes tinha juntado muita gente; e ao entrar no Rocio toda a onda popular se lhe uniu, de maneira que ao chegar ao largo de Camões os manifestantes podiam contar-se por milhares.

Em frente do cafe Martinho, o dr. Eduardo d'Abreu, até então deputado monarchico, mas desde esse momento votado á republica, propoz que se fosse cobrir de crepes a estatua de Camões. Esta proposta foi delirantemente applaudida, e todo aquelle oceano popular derivou novamente para o Rocio e seguiu pela rua do Carmo e Chiado, levando á sua frente, entre numerosos officiaes do exercito, poetas, jornalistas, escriptores, etc. o deputado que tivera tão acertada lembrança.

Em todo o trajecto engrossara cada vez mais aquella ondeante multidão, sendo a praça do inimitavel Cantor das nossas glorias invadida num momento; e, como era estreito recinto para tão extraordinaria avalanche, ficaram ainda entulhadas as emboccaduras das ruas que ali vão dar.

Á estatua foi encostada uma escada, e por sobre os rostos dos navegadores portuguezes, que circumdam o pedestal, foram passadas largas dobras de crepes, que vinham fechar sobre a corôa que em 1880 ali foi collocada pelos estudantes.

Então um mancebo, de chapéu na mão, dispozse a ler um papel que tinha entre os dedos. Todos se descobriram e um silencio completo, profundo, assombroso se estabeleceu em continente.

E elle, com uma voz quente, vibrante, enthusiastica, leu:

-- «Estes crepes, que envolvem a alma da Patria, são entregues ao respeito e guarda do povo, do exercito e da armada nacional.

«Quem os arrancar, ou mandar arrancar, é o ultimo dos cobardes, vendido á Inglaterra.»

Uma longa, unisona, retumbante salva de palmas acolheu estas simples mas altivas palavras.

Era um quadro maravilhoso aquelle.

Muitos milhares de pessoas ali estavam descobertas ante aquella singela demonstração do luto nacional, num ferveroso culto de civismo e palmejando frementemente, como se fosse uma só pessoa pela unidade do som, mas milhões d'ellas pelo estrepito, aquellas dignas palavras que um desconhecido lia.

Aquelle papel foi em seguida affixado no mármore da estatua, no meio dos mais vehementes applausos.

E, caso notavel! ninguem se atreveu nunca a tocar naquelles crepes! Lá estiveram até que a acção do tempo os apodreceu e desfez, tal foi o respeito que este acto a todos inspirou.

Em seguida percorreu aquella multidão as principaes ruas da cidade em altivas manifestações de sympathia ás corporações e jornaes liberaes e especialmente republicanos, como havia feito nos dias anteriores, não se esquecendo de glorificar os chefes do partido republicano.

Mas eram o mais pacificas possível as suas manifestações. Assim o pediam constantemente todos os cabeças da projectada revolução, que não queriam dar motivos para procedimentos repressivos por parte das auctoridades, que podiam embaraçar o seu pronunciamento.

Ainda assim era preciso que Gilberto e os seus amigos aconselhassem sem cessar prudencia para conter os impetos d'aquelle mar revolto, não só porque a exaltação era enorme, mas tambem porque os espias policiaes, n'aquella noite destacados para o meio dos patriotas, os incitavam com os seus gritos sediciosos.

Pretendiam os que andavam dirigindo as manifestações, depois de terem percorrido todos os pontos principaes da cidade, ir debandar na Praça Luiz de Camões, d'onde tinham partido; mas, como veremos no subsequente capitulo, não haviam de ali chegar a salvo, porque na policia se lhe preparava uma aggressão tão brutal como injustificavel.

XI

A emboscada

Emquanto a população lisbonense se entregava a estas tocantes mas pacificas manifestações, tramava-se no governo civil contra a sua segurança, discutia-se a maneira de acutilar e prender os mais preponderantes cidadãos, os mais ardentes patriotas.

O governo progressista havia caido e estava-se constituindo um regenerador; mas um alto funccionario da policia, muito fertil em inventar pavorosas, não queria esperar pelas ordens do novo governo para proceder. Pretendia recommendar-se-lhe por um grande serviço, sonhava mostrar-lhe que a segurança das instituições monarchicas era mais uma vez devida ao seu acendrado zelo, ao seu afanoso trabalho, ao seu excellente tino, ao seu genio alipotente. E, caso pasmoso! rodeado de espiões, de auxiliares, de traidores, costumava saber tudo o que se passava na cidade; e apesar d'isso, nada sabia da revolução que d'ahi a dois dias devia rebentar!

Entre tantos centenares de pessoas que o sabiam não houvera um delator, tal era o desejo que todos tinham de que a republica fosse proclamada!

Mas isto não era coisa que embaraçasse o formidavel espeque da realeza. Não tinha conhecimento de nenhuma hydra? Embora, forjava-a elle.

O que lhe era absolutamente indispensavel era dar mais uma visivel prova do seu faro policial e da sua dedicação á monarchia; e havia de da-la, custasse o que custasse.

No seu amplo gabinete estavam reunidos os seus mais prestimosos auxiliares em serviços d'esta natureza, os espiões aperaltados, pulhas de casaca e luva, que, a fingirem obséquios d'amigo nas informações que lhe traziam, procuravam aquella escada para subir, por incapacidade ou falta de carácter para subirem por outra.

Os espiões de profissão, os chamados bufos, já tinham recebido instrucções e muitos d'elles andavam ja entre os manifestantes. Aquelle conciliabulo era só entre aquelles seus cooperadores secretos, que affectavam prestar-se á espionagem por arreigadas convicções monarchicas ou por dedicação áquella auctoridade... meios de desculparem inutilmente a sua abjecção.

Entravam ali ocultamente, cada qual por sua porta, e fosse lá alguem suppor que tão distinctos cavalheiros --bacharéis, padres, burocratas, litteratos, janotas sem collocação, etc, não passavam de miseraveis espias policiaes!

Entre elles achavam-se o padre Serafim do Espirito Santo e o bacharel Thadeu Rebello.

Expliquemos como é que ali se encontrava este supposto amigo de Gilberto de Proença.

Tinha elle uns dias antes do ultimatum inglez vindo recommendado a Antão de Sampaio por um seu conhecido de Coimbra. O pae de Zelia não ligou importancia alguma á recommendação nem ao recommendado, e por umas perguntas que lhe fez ficou sabendo que elle não passava d'um asno, tão presumido e pedante como ignorantão, taes foram as tolices e francezices que metteu nas suas pretenciosas respostas.

Mas Thadeu, que comprehendia que da protecção d'aquelle trunfo podia depender o seu futuro, não se calava, queria deslumbra-lo com a sua erudição e importancia.

O conselheiro deixou-o falar á vontade.

Achava um certo prazer em disfructar aquelle casquilho e penetra com presumpções a sabio e a valioso. O ridiculo coimbrão, depois de ter falado da sua linhagem, da distincção com que concluirá o curso e do quanto os lentes temiam as conséquences de mes raisonnements, como elle dizia, começou a relatar as invejas que despertara entre os seus condiscipulos por nenhum poder competir com elle.

E, citando nomes, falou em Gilberto de Proença.

Antão de Sampaio teve um sobresalto. Claro que não acreditava em coisa alguma do que o toleirão lhe queria impingir, mas acreditou todavia numa coisa: que elle conhecia o detestado jornalista. Pensou que lhe podia servir d'alguma coisa; e, dando-lhe esperanças e exacerbando-lhe a natural vaidade com palavras elogiosas aos seus meritos e ao seu manifesto talento, mandou-o vir no dia seguinte, já resolvido a entrega-lo ao padre Seraphim, afim d'elle o aproveitar como entendesse.

Foi já por ordem do arteiro sacerdote que elle procurara Gilberto no intento de saber se planeavam alguma revolução. Discutiam, no momento que ali os vamos encontrar, as informações que elle colhera. Ouçamo-los.

-- Acreditem no que lhes digo, -- dizia o padre Espirito Santo. -- O conveniente é dobrar a espionagem e não ir já ás do cabo. A minha opinião é que elles alguma coisa planeiam; e se não descobriram o jogo aqui ao snr. doutor, é porque desconfiaram d'elle.

Se assim não fosse não tinha aquelle agitador palavras de tanta moderação, quando todos sabem que elle tem prégado até agora a revolta. Alem d'isso, eu sei que elle e alguns dos seus apaniguados teem tido conferencias secretas com certos sujeitos tidos como republicanos e até com officiaes do exercito que professam tambem essas ideias. É melhor esperar mais alguns dias e tratar primeiro de saber alguma coisa de positivo. Pela rainha parte tenho as coisas bem preparadas e difficil será que eu não saiba o que andam tramando.

-- Desculpe-me v. ex.ª de ser de différent avis -- retorquiu brandamente Thadeu, fazendo-lhe uma rasgada venia, acompanhada d'um sorriso de sympathia. -- Se elles pensassem em rebelar-se ficariam em tal éblouissement com a ideia de terem quem os secundasse, que me não occultariam cousa alguma, sabendo de mais a mais a minha préeminence na academia e andando eu com elles bras dessus, bras dessous.

-- E é capaz de embarrilar estes asnos com taes palacoadas -- pensou o padre.

-- É essa tambem a minha opinião -- concordou o emerito inventor de pavorosas; mal tendo comprehendido as razões adduzidas pelo francelho, mas firmemente resolvido a encher n'aquella noite os calaboiços e a deixar expandir a brutalidade dos seus subordinados, incitando-os a que acutilassem á vontade os indefezos cidadãos.

O seu desejo era que houvesse resistencia para justificar outras violencias que idealisava, e por isso as suas ordens seriam; -- Deem para baixo!

Gostava de brincar com o fogo, o destemido Argus!... Contava com os regimentos que estavam de prevenção nos quartéis, mas não se lembrava do que elles poderiam fazer... Se elle soubesse historia, ou a tivesse presente, talvez que alguns calafrios lhe viessem percorrer a espinha dorsal.

E, sempre arrogante e desdenhoso, continuou:

-- Se elles projectam qualquer coisa que nós não conseguimos descobrir, tanto melhor para nós: fazemos-lhes gorar os intuitos e atiramos com elles para essas jaulas. Mas não, creiam, não são capazes de nada. Esta corja o que tem é medo. Grita muito, faz muita caramunha, mas em se lhe batendo o pé foge como cachorro timorato. Ora eu já estou farto de os ouvir andar para ahi a ganir, e por isso vou pôr ponto nos seus atrevimentos. E esta é tambem a opinião dos mais altos poderes, porque isto é demais.

Todos os presentes quizeram lisongear a iniciativa do grande homem, concordando plenamente com elle; só o padre Seraphim arriscou algumas palavras, justificando a sua proposta, mas, vendo que nada fazia, submetteu-se.

O que elles não sabiam era que o famoso Alcides policial já de antemão tinha combinado lançar mão de meios violentos contra os patriotas, espalhando depois que descobrira o fio duma conspiração para amedrontar assim a parte mais egoista da dessorada população da capital e para justificar o seu procedimento selvagem.

A policia, cuja missão é manter a ordem, mais uma vez ia provocar a desordem.

O Espirito Santo, vendo que não podia obstar ao assalto prematuro dos manifestantes, o que lhe vinha transtornar os planos, tratou de tirar o partido que mais lhe convinha dos acontecimentos e teve em particular uma conferencia com o dr. Thadeu, seu abjecto instrumento, retirando-se em seguida com todas as precauções possíveis.

O bacharel deraorou-se ainda no governo civil a entender-se com o chefe da manobra e com alguns guardas que precisava para uma deligencia particular. Depois saiu, tambem a occultas, e foi em busca dos manifestantes, que facilmente encontrou.

Todas as forças policiaes da capital que puderam dispensar do serviço foram mandadas occultar nas immediações do largo das Duas Egrejas, cerca das 10 da noite, contando que os patriotas ali voltassem, já porque o local era dos mais frequentados pela onda popular, já porque as ordens dadas aos agentes policiaes destacados para junto d'ella eram de a arrastar até ali.

De feito, perto das onze horas, a grande massa popular inundava aquelle largo, para, como já dissemos, ir debandar na Praça de Luiz de Camões.

Foi então que a policia, emboscada, como fica dito, nas travessas adjacentes, se precipitou sobre ella, de sabre em punho, espadeirando-a furiosamente, doidamente, como se fosse a uma alcatêa de feras.

O primeiro momento foi de estupefacção. Ninguem esperava similhante ferocidade, que não tinha justificação possivel! Mas os centenares de sabres continuavam com uma bruteza indómita a cair sobre os indefezos cidadãos, ferindo-os e deitando-os por terra. Então a confusão foi enorme.

Os gritos atroavam os ares, de medo uns, de dôr outros, de raiva todos. O primeiro impulso, natural, irreflectido, instinctivo, do povo foi para a fuga. Mas as ruas estavam todas tomadas e os que pretendiam avançar para um lado eram arrastados em sentido contrario pela immensa mole do povo que d'ali se queria furtar á cobarde aggressão.

Neste fluxo e refluxo da onda popular muitos manifestantes eram espesinhados pelos outros, no meio do maior borborinho, da maior ancia e dos mais clamorosos e afflictivos gritos.

Mas tudo neste mundo tem um limite e a paciencia do povo não poude fugir a esta lei geral.

Passados os primeiros momentos de assombro e de terror, veio a reacção, e a policia viu-se derrubada, as suas linhas rotas, e percebeu alfim a sua impotencia para dominar esse gigante apathico, que parecia querer dar signal de si. O povo, á falta de armas, começou a responder com murros e bengaladas ao espadeiramento policial.

O commissario rejubilava.

Via que, farta de ser acutilada, a massa popular se resolvia a reagir e era o que elle desejava.

Tinha perto um esquadrão de cavallaria da guarda municipal, que mandou avançar, e deu ordem para que fossem immediatamente chamadas outras forças. Ia emfim consumar-se a sua grande obra: a aggressão que preparara transformava-se em verdadeira batalha, e o povo, irrefutavelmente vencido, segundo os seus calculos, seria depois considerado como revoltoso e elle ficaria sendo o general que salvara a monarchia, suffocando a revolta.

Ordenou pois á cavallaria que tomasse as emboccaduras das ruas, emquanto não chegavam dos quartéis as outras forças para bater o povo.

Uma pequena coisa, porem, lhe transtornou todas as estrategias: -- a recusa do commandante da cavallaria em obedecer, por -- segundo dizia não achar motivos para intervir.

É facil de imaginar a fúria do homem, mas nada moveu a resolução do official.

Entretanto o povo, resistindo á policia, foi-lhe fugindo, ficando, quando muito, em seu poder um cento de manifestantes que foram enclausurados.

XII

A fuga

Antes da policia, n'uma fúria de hydrophobos, atacar a população da capital que andava na rua em ordeiras manifestações, tinha o dr. Thadeu, furando por entre ella, chegado junto de Gilberto, e, abraçando-o, dera lhe vivas e associara-se a todas as manifestações que se seguiram, n'uma expansão ridicula, mas que parecia sincera.

E, quando começou a inopinada aggressão, gritava elle indicando os aggressores:

-- A elles, vamos a elles, rapazes!

Todos os mais exaltados o secundavam, e depois do primeiro momento de pavor, alguns gritavam que se levantassem barricadas, que cada qual se armasse nem que fosse com pedras das calçadas, e que o povo fosse desaffrontado.

Mas Gilberto, que punha o seu ideal acima de tudo, pedia, rogava, instava que tivessem prudencia, que todos só se esforçassem por fugir, por se não deixarem prender; e os seus amigos que o comprehendiam, pensavam que effectivamente para castigar uma bargantaria não deviam comprometter o exito dos seus planos, e coadjuvavam-no em seus intentos pacificos, sendo a policia apenas repelida a murro e á bengalada.

Entretanto Thadeu, que não se separava de Gilberto, forcejava por arrastal-o para o lado da rua Garrett, dizendo-lhe:

-- Foge, foge por aqui.

E não o largava por mais que elle lhe pedisse que o deixasse. Continuava sempre a puxal-o, repetindo:

-- Foge, foge por aqui, não te deixes prender.

Mas em certa altura o jornalista sentiu-se agarrado pelas costas, ao mesmo tempo que uma formidavel pranchada na cabeça o deixava atordoado, quasi sem sentidos.

Sentiu-se em seguida agarrado pelos braços e arrastado.

Comprehendeu que o levavam para o governo civil.

Fez um esforço para sair d'aquella atonia em que a cutilada o prostara e conseguiu fazer uso dos pés que lhe levavam de rastos.

N'este momento, d'aquelle mar revolto desprendeu-se um fragmento que, em lucta renhidissima, se approximava do grupo formado por Gilberto e pelos tres policias que o levavam. Estes, sem se importarem com os seus collegas talvez em perigo, puxaram o jornalista com mais força ; mas elle ouvira a voz d'um dos que luctavam ali perto que dizia:

-- Ah! Ah! vieram á lã, damnados rafeiros?

Esperem que eu vos tosquio.

E as bengaladas desviavam os sabres e atiravam a terra os domados policias.

Gilberto conheceu aquella voz ; não podia enganar-se, era a de Armando.

Ora, resolvido como estava a conquistar, fosse por que preço fosse, a sua liberdade, pois que a revolução projectada para d'ahi a pouco mais de vinte e quatro horas podia gorar-se com a sua prizão, lembrou-se de pedir o auxilio do seu amigo, porque não lhe seria facil poder livrar-se dos seus captores, que eram tres e bem armados, emquanto elle estava ferido e sem a menor arma.

Fez pois um violento e rápido esforço para se soltar d'aquellas grosseiras mãos que o seguravam com toda a força, ao mesmo tempo que gritava:

-- Armando!...

Não poude mais. Os sabres de dois dos policias cahiram-lhe em cima n'uma sanha doida; mas elle tinha agora os braços livres, porque conseguira solta los, e elles, na gana de o espadeirarem, deixaram no, á excepção do que vinha detraz d'elle, que o segurava pela cintura.

Era pois indispensavel que o mancebo se libertasse d este, o que fez dando com a cabeça um impulso violento para traz, que o apanhou em cheio no rosto e o fez rugir e baquear como fera mal ferida.

Rapido como o relampago voltou-se para o que mais furibundamente o aggredia, e, evitando o sabre, agarrou-o fortemente e fê-lo estatelar na calçada. Mas o outro, para livrar o companheiro e segurar o prezo, ia cravar-lhe o sabre nas costas, quando uma valente bengalada lh'o desviou e outra a seguir o atirou a terra.

Era Armando que, ouvindo o seu amigo, correra para alli e chegara ainda a tempo de evitar que elle fosse gravemente ferido.

O guarda que Gilberto arrojara ao chão apitava com toda a força, mas como era enorme o barulho, quasi nem era ouvido; todavia, Armando, sempre humoristico, não queria ir-se embora sem o fazer calar, e bradou-lhe:

-- Ah! sim, patife? não queres calar-te? pois vaes apitar na minha bengala, já que ella está acostumada a andar hoje pelos dentes de javardos desses.

E queria por força metter-lhe a ponteira da bengala na bocca. Foi preciso que Gilberto o puxasse com força d'ali.

O jornalista escorria em sangue das feridas que havia recebido, especialmente da que primeiro lhe fizeram na cabeça. Armando percebeu-o e disse-lhe:

-- Tu estás n'um lastimoso estado!

«Vamos depressa tratar de te remendar essa pelle, que não podes perder tempo, senão não serve nem para um tambor.

E como o povo tinha debandado, á exepção dos que tinham ficado prisioneiros, e vinham chegando novas forças de cavallaria e infantaria, os dois mancebos subiram a Rua Nova da Trindade e atravessaram para o Bairo Alto, afim de chegarem a salvo á Rua da Emenda.

XIII

Amor e vaidade

N'esta mesma noite esperara Zelia até muito tarde o intemerato republicano.

Tinha-lhe promettido que iria falar-lhe, mas as horas passavam e elle sem apparecer, o que impacientava a orgulhosa menina.

-- Isto é de mais! -- bramia ella batendo nervosamente com o bem torneado pésinho na alcatifa do pavimento, ao mesmo tempo que pela janella entre aberta alongava a vista pela Avenida abaixo, a ver se o lobrigava, com manifesto desprezo da gelida aragem que em vão tentava arrefecer a seiva esbraziante que o motor da circulação lhe atirava, em grandes arremessos, contra as roseas paredes faceaes. -- Isto não pode tolerar-se ! não faz caso algum de mim; não passo d'um seu entretenimento, que só se procura quando não ha mais que fazer, uma diversão que a nada obriga.

E com uma expressão de pungente ironia continuava:

-- Quando não tem mais que fazer digna-se vir dizer algumas palavras amorosas, como se fôra uma mercê, á tolinha que julga que elle está perdido d'amores por ella.

Depois enfurecida:

-- A que eu desci! Como todas as que me tinham inveja estão vingadas!...

E passava pela mente todas as suas pseudo amigas, que lhe invejavam a riqueza, a illustração e ainda mais a formosura, algumas das quaes occupavam já logares proeminentes na sociedade.

Esta revisão restrospectiva dos seus conhecimentos desgostou-a profundamente. As insinuações do padre Seraphim iam produzindo seus effeitos, sem ella sequer se lembrar que aquellas ideias que a assaltavam eram suggeridas pelo que o assiduo ecclesiastico lhe ia insuflando.

Lembrava-se da Moraes, uma tola muito menos linda do que ella, e que fora desposada por um titular; da Pires, muito leviana, uma ventoinha, e que era já dama do paço, emquanto ella só via no seu futuro a desgraciosa miragem de andar no caminho do Limoeiro a visitar o insensato jornalista -- caso commetesse a imprudencia de o desposar.

E depois d'estes pensamentos, que punham de rastos a sua vaidosa personalidade, murmurava n'um desabafo egoista:

-- O padre é que tem razão!

Mas se n'este momento na Praça dos Restauradores se desenhava algum vulto que tomava aquella direcção, todos estes pensamentos se esvaiam, ou pelo menos eram suppesados pelo desejo de ver o ente que até ahi unicamente amára, e o coração saltava-lhe em doidas e deleitosas convulsões, esquecendo todas as reprimendas que pretendia darlhe para só dar expansão ás deliciosas emoções que então fruia.

Nunca se tem mais prazer com a chegada da pessoa amada que se espera, do que quando já se julga que ella não vem.

Mas esta risonha esperança, que vinha agitar tão jubilosamente o coração da ardente creatura, era logo supplantada pelo mais atroz desespero, por ver que mais uma vez se enganara, que o vulto que suppunha ser o do seu amado era o de qualquer noctivago residente d'aquella aristocratica arteria, que só áquella hora se recolhia, depois de ter - quem sabe? -- em orgias ou no jogo, perdido a maior parte da noite e com ella o dinheiro e a saude.

Então encolerisada, fechava a janella, resolvida a ir deitar-se; dava porém alguns passos em direcção ao seu quarto e voltava a espreitar atravez das rendilhadas cortinas, sempre na ancia de o ver chegar.

E, como que para desculpar a sua propria fraqueza, murmurava:

-- Pobre rapaz! Talvez não pudesse vir mais cedo... Alguns amigos que o empataram... e talvez o director do jornal lhe pedisse para elle escrever mais alguns artigos. Isto... quem tem obrigações não é senhor de si quando quer...

E, como consequencia d'esta cogitação, lembravase da estima e respeito que todos lhe tributavam, pelo seu caracter diamantino e pelo seu talento pujante, que elle punha com tanto valor e independencia na defeza d'um ideal, em que prejudicava os seus interesses e em que arriscava o seu socego, a sua liberdade e até a sua vida.

Era bem digno de ser amado por uma mulher superior!

Alma bonissima, esquecendo-se de si para só pensar nos benefícios da patria e da humanidade coração generoso que só sente as desgraças dos desprotegidos, espirito rutilante posto ao serviço das grandes causas, elle tinha tudo quanto pode arrebatar a imaginação d'uma mulhervalor, talento, desinteresse, heroísmo, popularidade!

E com estas ideias, tão antagónicas ás de ainda agora, Zelia abria outra vez a janella, resolvida mais do que nunca a manifestar-lhe bem quanto amor por elle sentia. Mas por mais que espraiasse a vista por aquella vasta estancia não o via apparecer, e só a algente neblina a vinha oscular, deixando sensações de gelo no seu corpo de Venus provocante, até que o desespero a dominava novamente e repetia a scena de se ir deitar, mas voltando sempre.

Porém o elegante relogio que ornava a parede da luxosa sala em que ella esperava o seu amado, era, na sua faina monotona, inexoravel com a encantadora menina, não lhe deixando sequer a agridoce esperança de ainda poderem ser satisfeitos os seus desejos, pois que déra successivamente 11 horas, meia noite, uma hora, duas, e acabava agora de dar as tres horas, pondo com as suas sonorosas campainhadas ponto brutal na espectativa da insoffrida donzella, sem ao menos modicar o seu forte sonido por compaixão para com ella, que lá foi de vez para o leito afogar entre os lençoes alvejantes os espedaçadores soluços que a falta do desejado Romeu lhe arrancava do peito.

O que ella não pensou e planeou em todo o resto da noite!... Não ha traça, por mais diabolica que pareça, que os cerebros femenís não imaginem para vingar qualquer supposta affronta que lhes faça o eleito do seu coração.

A cabeça escandecida da jovcn não lhe deixou conciliar o somno senão quando o crepusculo matutino lhe veio pôr na janella uns laivos aurifulgentes, annunciando o sol radioso que d'ahi a pouco viria joeirar sobre a indolente cidade o ether dourado dos seus vivificantes raios; mas, quem ali a pudesse estar observando, notaria que em vez d'um somno reparador, sereno, semeado de sonhos côr de rosa, como devem ser os sonhos d'estas virgens de alma limpida como uma manhã de primavera e de puras aspirações, era agitado, revolto, cheio de pesadellos que a faziam contorcer no leito e atirar para fóra da roupa os seus membros tão artisticamente modelados.

XIV

O ferido

Foi com difficuldade que Gilberto, em companhia do seu amigo, poude chegar a salvo a casa. A policia, por não ter podido levar para os calabouços todos os patriotas, desforrava-se agora prendendo quem encontrava nas ruas.

Por um feliz acaso, aos dois amigos, ao atravessarem a rua de S. Roque, deparou-se-lhes um esquadrão da guarda, cujo official os conhecia muito bem e os mandou acompanhar. Foi assim que se livraram de cahir novamente nas garras da policia, porque de mais a mais Gilberto só a muito custo se arrastava.

Armando, entrando n'uma pharmacia, comprára uma garrafa de agua borica, um maço de algodão hydrophilo e alguns grammas de iodoformio para poder fazer o penso aos ferimentos do jornalista.

Elle mesmo foi portador daquellas drogas; e logo que chegaram poz mãos á obra.

Os ferimentos não eram graves, mas precisavam de immobilidade para poderem cicatrizar. Os de maior cuidado eram dois na cabeça e um no hombro esquerdo.

Tens de ficar na cama -- recommendou Armando -- não podes nem deves fazer movimento, não vão estes rasgões inflamar-se, o que podia serte perigoso.

-- Pois tu sabes que estamos chegados ao nosso tão desejado momento e dizes-me que guarde o leito?!-- retorquiu elle sorrindo.

Mas com o hombro assim como queres tu pegar n'uma espingarda?

-- Ah! hei de poder maneja-la de qualquer maneira! Como eu tenha vida até á victoria do nosso ideal, é o que eu quero.

-- Precisas d'ella mesmo depois d'isso.

-- Talvez melhor me seja vencer e morrer -- voltou elle com um sorriso triste; -- pelo menos teria conseguido o que mais desejo po mundo, o que já é para se morrer satisfeito.

«Nem todos teem essa dita. E tu bem sabes que não é a ambição, nem a vaidade, nem o desejo de alcançar qualquer logar na republica que me levam á revolução, porque para mim nada quero. Desejo a republica, quero-a com todas as minhas forças, lucto por ella com toda a minha energia, porque vejo n'ella o engrandecimento d'esta nossa envilecida patria, o melhoramento das condições das classes pobres, o bem da humanidade, emfim.

-- Sei que és uma grande alma -- respondeu Armando, apertando-lhe a mão com vivacidade -- sei que és um convicto, mas has de ter a gloria de ver os beneficos effeitos que a revolução, de que és o principal motor, produzirá entre nós, E até ámanhã, que a minha familia ha de estar em cuidado por tanta demora.

E dizendo-lhe isto, apertou-lhe novamente a mão e saiu, promettendo voltar pela manhã.

Gilberto passou muito mal a noite.

Os ferimentos, especialmente o do hombro, incommodavam-no horrivelmente; mas o que lhe tirava o somno era o grande projecto em que trabalhava com todas as forças da sua alma, a revolução que anhelava com o seu mais acrisolado interesse e que para tão breve estava. E estremecia só em lembrar-se que a prisão, de que por um triz escapou, podia frustrar os seus planos, ou pelo menos, priva-lo de poder luctar á mão armada pela nobre causa por que ha tanto tempo pugnava com a penna e com a palavra.

-- Logo de manhã sentiu abrir a porta do lado e percebeu que alguem saíra.

-- Deve ser a D. Innocencia -- pensou elle -- que vae principiar a sua tarefa diaria, andando-de egreja em egreja a papar missas com a mesma facilidade e prazer com que uma andorinha papa insectos...

Mas a sequencia d'este pensamento fê-lo sobresaltar.

-- É verdade... -- refletiu elle -- eu preciso ter cuidado com esta beata!

«Sempre mettida pelas egrejas, deve ser, como quasi todas as outras, alcoviteira desses tonsurados, hoje todos jesuítas pela educação e pelos principios... Estas despresiveis creaturas, fanatisadas até á bestealização, commettem toda a especie de baixezas, de infamias, de crimes, a mando d'essa classe que velhacamente, astuciosamente as leva até aonde quer, sem nunca se comprometter.

«E eu aqui a planear revoluções a dois passos de tal beguina, que fará tanto escrupulo em me denunciar como eu faço em dar uma esmola a um pobre! Tenho sido um homem previdente, não haja duvida!...

Uma voz fresca, meiga, suave, melodiosa o veio tirar d'estas reflexões, perguntando:

-- Dá licença, senhor Proença?

Era Eugenia que falava á porta de communicação.

-- Póde entrar, menina Eugenia -- respondeu o mancebo, admirado, porque não era costume entrar lá quando elle estava.

A joven correu o ferrolho e entrou.

Vinha timida, receosa, envergonhada, não sabendo como começar a expôr o motivo que ali a trazia e mal se atrevendo a levantar para elle os olhos; mas, ao fazê-lo, o rubor que lhe nacarava as angelicas faces foi de repente substituido por uma pallidez mortal, por o ver com a cabeça envolta em algodão em rama.

-- Sente-se, menina, e diga me a que devo o prazer da sua vinda agora aqui --lhe disse Gilberto.

E ella, esforçando-se por perder o embaraço, começou:

-- Eu peço desculpa se vim incommoda-lo; mas hontem estava por acaso á janella quando o senhor e o seu amigo chegaram e vi que o senhor vinha ferido, mal podendo andar; quiz vir vêr se precisava alguma coisa, porém a mamã disse me que vinha ella...

-- Ah! ella veio para o lado d'este quarto?

-- Esteve ali á porta para lhe offerecer os seus serviços, mas disse que o não fez por os ouvir estar conversando alegremente, e que,portanto, não havia motivo para sustos. No entanto eu... como ella agora saiu, lembrei-me que lhe poderia ser util em qualquer coisa...

E fitava-o d'uma fórma tão meiga que o encantaria se elle pudesse prestar attenção a outra coisa que não fossem as suas palavras.

-- Agradeço-lhe o seu cuidado -- disse elle inquieto -- mas então sua mamã esteve a ouvir-nos?

-- Vinha, como disse, para saber se precisava de alguma coisa, mas, como os sentisse conversar em coisas alegres, retirou-se.

O ardente revolucionário curvou a cabeça embrenhando a sua potente imaginação nos mais complexos pensamentos.

Eugenia, vendo que elle nada lhe dizia, perguntou, d'ahi a pouco, a medo, indicando a cabeça:

-- São grandes os seus ferimentos?

E elle, como accordando de um sonho:

-- Como? Ah... coisa pouca, umas leves arranhaduras...

-- Então caiu?

-- Cai... isto é, cairam-me em cima os sabres de tres policias...

-- Ai, meu Deus! Então é isso coisa de perigo!

-- Não é nada, não é nada. Mas então sua mamã para onde foi?

-- Foi á missa. Tem lá aquelle devoção...

Calaram-se ambos. Gilberto para se entregar aos seus inquietantes pensamentos e Eugenia para o contemplar, como extatica, ainda que acanhada.

-- E ella costuma demorar-se muito? -- perguntou elle de novo.

-- Até ás dez ou onze horas; mas se o senhor quiser qualquer coisa estou ao seu dispor...

-- Fico-lhe muito obrigado, mas de nada preciso.

-- Mas o senhor não pode por certo levantar-se e não hade estar aqui sem comer -- tornou ella, ruborisando-se.

-- Por emquanto não tenho vontade; e logo vem ahi um amigo meu que tratará d'isso; todavia, se me fôr preciso, incommoda-la-hei.

-- Oh senhor... é que eu logo talvez não possa...

-- Comprehendo, sua mamã não consente que a menina aqui venha quando eu cá estou, não é verdade?

A joven baixou a cabeça e elle tornou:

-- Mas aqui perto não ha moços e eu não quero que a menina tenha o incommodo de descer á rua por minha causa.

Estas palavras produziram no casto semblante da donzella o mesmo effeito que o quente sol primaveril produz na rosa por desabrochar, que n'um instante expõe a nossos olhos as ridentes e mimosas côres da sua avelludada corolla.

-- Lá por isso -- replicou ella com intensa satisfação e alegria por ver que, emfim, lhe ia servir de alguma coisa; -- lá por isso pode mandar á vontade, porque a minha creada irá aonde fôr preciso; e em ultimo caso iria meu pae.

O jornalista, sensibilisado por tanta boa vontade, accedeu em mandar buscar um bife, chá e pão com manteiga, que constituiriam o seu almoço n'aquelle dia Eugenia, contente e feliz por poder prestar aquelle serviço ao sympathico jornalista, correu a mandar a creada buscar o que elle pedira e voltou para junto d'elle, abençoando até a beatice da mãe que lhe proporcionava aquelles momentos de felicidade.

Logo que chegou o pequeno almoço, Eugenia, com uma solicitude encantadora, cortou o bife em pedacinhos, para que elle o pudesse comer sem auxilio do braço ferido, e foi pôr o bulezinho do chá ao seu fogão, afim de não arrefecer.

Gilberto não tinha vontade, e quiz deixar a maior parte do bife; mas ella, perdida já a timidez, dizia-lhe:

-- Ah! tenha paciencia, mas tem que comer tudo!

E risonha e carinhosa, ia-o obrigando a não deixar nada.

Quando lhe temperava o chá bateu Armando á porta.

Eugenia, sobresaltada, abriu-a a pedido de Gilberto, e o estudante ficou estupefacto por encontrar uma tão mimosa deidade em companhia do seu amigo.

A joven, vendo-se alvo dos olhares do recemchegado, fez-se escarlate, e logo que poude retirou-se, envergonhada, não sem rogar a Gilberto que em precisando d'ella a chamasse.

-- Bravo! -- exclamou Armando logo que ella saiu -- Vejo que isto aqui é um ceu, pois que até és servido por anjos!...

«Palavra que para se ter uma enfermeira assim até dá vontade de estar doente. Onde foste tu desencantar esta flor?

-- É a filha da minha locadora. Mas que espantos são esses?

-- Ó homem, pois tu estás com uma indifferença d'essas, acabando de ser servido pela mais sublime das pequenas!

-- O que ahi vae de exageros!...

-- Exageros, não. Pois onde viste tu figura mais gentil e seductora, expressão mais candida e meiga, olhos mais encantadoramente cariciosos, onde se espelha uma alma pura e boa, voz mais cheia de harmonias como jámais hão imitado Vagner, Mozart, Bellini, Beethowen, Chopin e quantos compositores apreciaveis teem apparecido sobre a terra? Por mais artificios que essa peste a que chamam moda invente, nunca poderão competir com as graças naturaes desta perola.

-- Desconhecia-te essa feição panagerista... a não ser que isso seja ironia, mas que eu não percebo.

-- Pois tu não achas esta pequena adoravel !?

-- Não lhe notei nunca essas graças que exaltas.

-- Palavra d'honra, Gilberto, que se te não conhecesse, havia de dizer que estavas fingindo!

-- Mas ainda bem que me conheces para não dizeres tal coisa. Eu, não obstante estar tão perto d'ella, apenas a tenho visto umas tres ou quatro vezes; mas de nenhuma d'ellas lhe prestei attenção.

Agora mesmo quasi a não via andar aqui, de tal forma estava distrahido por certos pensamentos.

-- Pois olha que ou eu me engano muito ou tu és amado por esta deidade.

-- És doido! nem isso pode ser, nem eu podia amar a mais ninguem...

-- Ora adeus... Eu tambem tenho o coração tomado, e por mais do que uma, e, não obstante, ainda, por algum escaninho occulto, era capaz de cá deixar penetrar mais uma affeição... e até mais do que uma. Acredita, o nosso coração é como uma estalagem em que ha sempre onde agasalhar novos hospedes, embora estejam os quartos todos tomados.

-- Bom, bom; deixemos essas archiperboles e vamos ao que importa. Sabes? tenho tido bastantes dores no hombro e sinto a cabeça pesada, como se fosse uma bola de chumbo!

-- Não admira, que os ferimentos ainda foram de respeito, e ha, alem disso, as contusões. Hoje não convém mexer-lhes, e evita todos os movimentos que possas.

-- Mas eu preciso levantar-me; é preciso não deixar esfriar o enthusiasmo do povo, animando os timoratos, acirrando os indecisos.

-- Pelo menos passa o dia na cama e á noite te levantarás. Entretanto eu falarei com os que puder, ainda que não é preciso incitá los, pois que todos estão promptos para o ataque. Verás como concorrem á reunião e com que ardor annuem á revolução immediata.

-- Ah! não imaginas com que anciedade aguardo a noite!

Armando saiu a cumprir a sua missão com todo o ardor da sua nobre alma; e o jornalista, após a sua saída, chamou Eugenia para que ella mandasse a louça ao seu destino; e, lembrando-se das palavras do seu amigo, prestou-lhe mais attenção, achando, na verdade, que ella era admiravelmente bella.

O que mais insinuante a tornava era a modestia e candidez das suas maneiras. Mas a dominar qualquer impressão que aquella joven pudesse deixar no seu espirito estava a imagem de Zelia, não tão suave e fragante, mas muito mais ardente, arrebatadora, magnética, que, filtrando-se-lhe no coração, o escaldava como infernal labareda.

Gilberto pediu á joven que lhe arranjasse quem fosse levar uma carta á Avenida; e, pondo-lhe ella uma pasta com o preciso para escrever sobre a cama, elle num instante encheu as quatro paginas d'uma elegante e perfumada folha de papel, e, sobrescritando-a, lh'a entregou.

Eugenia, olhando para o endereço e lendo o nome de D. Zelia Sampaio, murmurava baixinho, emquanto ia entrega-la á creada:

-- Deve ser bem feliz esta senhora por ser amada por um tão bello e bondoso rapaz... porque isto é, com certeza, carta de namoro...

E, dando um suspiro, accrescentou mentalmente:

-- Como eu por sua causa desejava ser bem educada, linda e rica!...

XV

A calumnia

A formosa filha de Antão de Sampaio levantarase tarde; e, para que seu pae, pelas profundas olheiras e descorado das faces, não adivinhasse as suas crudelissinas impressões noctumas, mandou pedir que a dispensassem do almoço e ficou no quarto lendo a carta que a creada lhe entregara.

Rasgando o envelope, dizia comsigo, bocejando:

-- Explicações por não poder vir hontem...

E com uma expressão de magua:

-- Quantos desgostos não tenho dado ao papá e á mamã e afinal para elle se não importar comigo.

«O padre Seraphim é que diz bem. Tudo quanto elle me tem dito me tem saido certo. E eu ás vezes a desconfiar d'elle!...

Começou a leitura a querer affectar, a seus proprios olhos, indifferença, mas devorando n'um instante as quatro paginas da folha de papel. A breve trecho empallidecia, exclamando:

-- Ferido! Meu Deus, está ferido! Diz que não é nada, mas é por certo para me não affligir! E eu a recrimina-lo!.. Mas pouco e pouco o seu orgulho foi-se revoltando, lembrando-se de que se elle a tivesse attendido, se tivesse cedido aos seus rogos, e abandonasse a politica republicana, por certo lhe não aconteceria tal coisa.

-- Porque não accedeu elle aos meus pedidos, ás minhas supplicas? -- bramia ella enfurecida. -- Antes quer perder-me do que mudar d'ideias!

Oh! nada lhe mereço! Os meus pedidos são para elle coisa nenhuma!

E desalentada continuava:

-- Amor não me tem nenhum. Se o tivesse não andava por lá mettido em desordens, sujeito a inutilisar-se, a ficar talvez defeituoso...

Esta lembrança produziu-lhe um calafrio.

-- Se tal acontecesse -- dizia ella -- decerto deixaria de ama-lo, e com muita razão.

Zelia -- como quasi sempre acontece com a maior parte das mulheres -- apaixonara-se por Gilberto porque o amor do valoroso revolucionario lhe podia lisongear a vaidade. Não era, é certo, uma grande personagem, mas era activo, energico, sabedor, talentoso, popular e sobretudo uma bonita figura; e, como todos nós sabemos, as mulheres amam muita vezes mais isto do que qualquer outra coisa.

Ora se elle, por exemplo, apanhasse uma cutilada no rosto, que lh'o deformasse, ella não poderia ama-lo já, porque o apaixonado do seu coração tinha uma cara differente.

Isto fez-lhe quasi esquecer a dôr que momentaneamente sentira ao sabê-lo ferido, e agora só achava razão para exprobra-lo.

Oh! a vaidade...

-- O sr. padre Seraphim está esperando v. ex.ª na sala -- disse da porta a creada.

-- E meu pae já sahiu? -- perguntou a joven, dando ao attrahente semblante uma expressão menos mortificada.

-- Já, sim, menina.

-- Está bem, lá vou já.

-- Boa vae ella! -- monologava a creada affastando se. -- Não quer apparecer ao pae, mas assim que lhe falam no marmanjão do padreca põe se logo prompta.

«Aqui anda coisa. Aquelle cão tinhoso não sae de cá, e já cá vem mais vezes quando o patrão está ausente... Hum...

E um pouco depois:

-- Nosso Senhor me perdoe, mas não anda a faze-la limpa, o maldito. Só se for o alcoviteiro do outro... mas isso sim! Aquella rata pellada não trabalha para proveito dos outros. E ella então parece que já não pode passar sem elle!... «Ora queira Deus que Deus queira!...»

Por fim, fazendo um gesto de indiflerença, acrescentou philosophicamente:

-- Quero lá saber! «Quem bôacama fizer, n'ella se deitará».

Zelia dirigiu-se para a sala pensando:

-- Talvez que o padre Seraphim saiba porque é que elle foi ferido, e até se o ferimento é de gravidade, e onde é.

E onde é. Este é o seu interesse principal!

A mãe de Zelia fazia companhia ao Espirito Santo; mas logo que a filha chegou, pretextando muitas occupações, deixou-os a sós, como sempre fazia, conforme as instrucções que tinha do marido.

O melifluo pastor d'almas, logo que ella saiu, começou a explicar a causa da sua vinda tão cedo: que tinha a tarde tomada, que talvez mesmo não pudesse apparecer no dia seguinte em virtude das suas grandes occupações, mas que, para se não privar do prazer de a ver, viera mesmo áquella hora, confiado em que a benevolencia e bondade de sua ex.ª o absolveriam d'aquella inconveniencia...

Zelia retorquiu-lhe que não era inconveniencia nenhuma, que lhe fizera grande favor em vir, porque estava na verdade aborrecida. Mas, fixando-o meigamente, interrogou:

-- Seja franco, sr. padre Seraphim ; vem cá só por causa d'isso? Não tem nada a dizer-me?

E elle, fingindo-se atrapalhado, como quem é apanhado de supito:

-- Então que hei de eu ter que...

-- Para que quer occultar m'o?

-- É que eu...

-- Fale, não tenha receio, meu bom amigo.

Com a maior magua e compuncção pintadas no rosto, elle voltou:

--Na verdade, eu nem cá devia vir hoje, pois que hei de parecer-lhe como certas aves agourentas que só apparecem para annunciar novas tristes; mas, como sabe, a minha dedicação...

-- Não me traz já novidade nenhuma, se o que quer dizer-me é que Gilberto foi hontem ferido pela policia.

-- Pois já sabe?! -- perguntou elle, agora sinceramente espantado. -- Quem lhe trouxe a triste noticia?

-- Foi elle que me escreveu.

-- Se não é a espia que arranjei ao pandilha -- dizia para dentro o padre -- tinha-a feito fresca acreditando os jumentos da policia e o outro, que me asseveravam ter elle sido preso. Vinha dar-lhe falsas informações, que podiam fazer-me descair da sua confiança.

E sempre com a mesma expressão maguada e seraphica, continuou alto:

-- Eu, pela dôr que senti ao darem-me a ruim nova, posso muito bem avaliar quanto o seu ternissimo coração deve ter soffrido com tão alanceador acontecimento.

-- Engana-se, sr. padre Seraphim; não me penalisou, como julga, a noticia, porque não foi accidente imprevisto, nem para elle nem para ninguem.

Devia esperá lo como coisa infallivel, desde que continuava a promover disturbios. Tomou o mal por suas mãos, e, portanto, tola seria eu se me atormentasse com semelhante coisa.

Dizia isto muito agitada, convulsa, nervosa, como se os seus nervos quizessem desmentir as suas palavras.

Se entre o coração e o rosto do padre Seraphim não houvesse uma impenetravel muralha, Zelia poder-lhe-ia ter notado o immenso jubilo que taes palavras lhe causavam, pois que via ser propicia a occasião para lhe instilar na alma toda a peçonha da calumnia assacada a alguns dos patriotas que partiram um vidro d'uma montra no Chiado.

Não lhe convinha porem dizer coisa alguma sem ser solicitado. Precisava fingir que só á força e com grande desprazer contava o que ouvira.

Respondeu, pois, apenas bajulando:

-- Como no seu altissimo espirito são tão bem apreciadas todas as acções!

-- Mas diga-me? -- perguntou ella mais serena. -- Como é que soube isso?

«Vem nos jornaes?

-- Eu não leio jornaes, minha senhora. Encontrei por accaso, á saida da egreja, o commissario que commandou a policia e foi elle quem me contou tudo.

-- Mas sabe se os ferimentos d'elle são de gravidade?

-- É melhor não continuarmos com este assumpto, que lhe deve ser penoso. E depois...

-- Não se faça tão rogado, ande, diga.

-- O commissario, sem saber decerto quanto isto me incommodava, falou-me d'elle para me dizer que era o principal, o cabeça do... grupo; e como eu, consternado, lhe perguntasse se elle ficaria maltratado, respondeu-me que sim, que todos tinham levado para o seu tabaco -- phrase typica d'elle -- e que o sr. Proença tinha ficado muito ferido na cabeça e não sei se na cara, devendo estar em lastimoso estado, accrescentando que assim mesmo não tinham conseguido prendê-lo, mas que em breve o fariam. Bem deve suppor qual a minha angustia e desolação; só pensei, desde esse momento, em vir proporcionar algum balsamo á pungente ferida que devia sangrar em seu coração d'ouro logo que o soubesse.

Zelia já nem quasi o ouvia. Aquellas palavras -- «muito ferido na cabeça e não sei se na cara», -- ecoavam-lhe aos ouvidos com persistente e avernal soído.

Depois de alguns momentos de um silencio pesado e penoso, perguntou mortificada.

-- Mas a causa, o motivo de uma repressão tão violenta?

-- Permitta-me, minha senhora, que sobre isso nada lhe diga -- deprecou elle, no intuito de lhe exacerbar o interesse e de a preparar para admittir como plausivel o que ia dizer-lhe.

-- Oh! peço-lhe que me diga tudo; não queira deixar-me n'esta incerteza que... para quem é curiosa como eu, é mortificadora.

-- Mas, minha senhora... para dissabores bastam já os que hoje amarguraram a sua alma d'élite. «Não devo...

-- Seja o que fôr, por peor que seja, não m'o occulte -- instou a pungida Circe olhando-o docemente.-- Já não sinto impressão alguma com o que diz respeito a... esse senhor. Isto agora é apenas curiosidade...

A astucia do Espirito Santo já tinha afeleado sufficientemente o coração da pobre menina. Podia pois, disparar-lhe a ultima carga empeçonhada.

Mas não, a sua alma sacerdotal sentia grande satisfação em apolea-la mais e por isso divagava:

-- Por um lado, como amigo devotado e creado humillimo e submisso de v. ex.ª e do seu ex.ª pae, compette-me o dever de dizer lh'o para se esquivarem ao desaire que d'ahi lhes pode advir; mas, por outro, entendo que não devo communicar-lhe estes dizeres infamantes, porque podem ser enganosos, exagerados, deturpados, e, portanto, calumniosos para o sr. Proença, a quem considero incapaz do procedimento que tentam assacar-lhe.

-- Por Deus, meu bom padre Seraphim, não augmente mais a minha impaciencia.

-- Mas, minha senhora, é preciso não acreditar em tudo...

-- Pois sim, mas diga.

-- Disse-me o commissario que elle, á frente d'um bando de malfeitores e arruaceiros, quis saquear e roubar um estabelecimento no Chiado, chegando ainda a partir um vidro da montra...

Então a joven, endireitando-se indignada, e esquecendo o papel de indifferença que pretendia apparentar, para só deixar falar o coração, nuns assomos de sinceridade e franqueza que sempre a distinguiram entre as suas affectadas amigas e companheiras, exclamou:

-- Oh! não, padre Seraphim, isso não pode ser!

É uma villania, uma torpe calumnia, uma infamia inventada pelos seus inimigos para o desacreditarem.

Elle, se assim o quiserem, será um exaltado, um revolucionario, um sanguinario mesmo, mas nunca um ladrão! É um rapaz honrado e sem ambições, pois que se as tivesse filiar-se-ia, por certo, nos partidos monarchicos, onde com o seu talento podia ir longe, visto que tanto insignificante sóbe lá ás culminancias do poder. As suas crenças, pelas quaes elle sacrifica tudo, são a maior prova da sua probidade. Ah! meu disvellado amigo, quantas vilezas se não inventam!

-- Tudo isso lhe patentiei, mas não me acreditou. Tem-no em má conta e não ha fazê-lo mudar.

Á joven acudiam em tropel os mais atormentadores pensamentos sobre as consequencias que podiam surgir d'aquelles falsos, mas vergonhosos boatos.

-- Elle accusado de ladrão! -- gemia ella, como se uma lethal peçonha se lhe filtrasse no peito. -- Meu Deus, que dirá o papá em o sabendo! Que vergonha, que vergonha!...

-- É isso que mais me atormenta -- lastimava-se elle com uma expressão de dôr magnificamente fingida.

E ella, contorcendo se numa ancia indizivel, soluçava convulsamente:

-- Nem que de todo corte as relações com elle ninguem impede que o mundo diga que eu amei um homem accusado de ladrão!

-- Não deve assim entregar-se ao desespero, deve encarar o mal com mais coragem e tratar de fugir ás suas consequencias -- consolava o padre Seraphim, com toda a sua unção mystica.

-- Ah! meu bom padre, deixe-me chorar a minha desgraça -- implorava a desolada donzella escondendo o rosto no sophá.

Então o padre Seraphim, dirigindo-lhe algumas palavras de conforto, sahiu pensando diabolicamente:

Esse espinho é que tu já não arrancas do coração; e a ferida que elle te produzir matar-te-ha infallivelmente o amor que lá abrigas.

E rindo para dentro accrescentava:

-- Venci eu, Gilberto de Proença!

XVI

O adiamento

Durante todo o dia de quarta feira foi enorme a concorrencia de pessoas de todas as classes á Praça de Luiz de Camões, para verem os crepes que envolviam os rostos dos gloriosos navegadores que circundam a estatua do nosso grande Poeta, fazendo-se os mais acerados commentarios á rapacidade ingleza e os mais lisongeiros augurios pelo intenso patriotismo que parecia ter brotado em todos os peitos.

É de notar que os nobres e todos os palacianos

pretendiam mais que ninguem armar á popularidade. Fingiam detestar tambem a Inglaterra e associavam-se a muitos dos projectos de engrandecimento da patria que partiam dos verdadeiros patriotas, como por exemplo o de augmento da nossa marinha de guerra, entrando logo alguns para a commissão da grande cSubscripção Nacional» que para este fim se organisara. E era tal o desejo de se popularisarem que não perdiam para isso ensejo algum.

A miseria que então lavrava na capital, motivada pela influenza, era enorme. Muitas familias tinham todos os seus membros atacados da impertinente molestia, não tendo portanto quem lhes angariasse o seu sustento.

Como consequencia d'isto fechavam-se fabricas, officinas, escolas, etc. achando-se grande quantidade de pessoas impossibilitadas de ganhar a vida.

Os jornaes democraticos abriam subscripções para fornecer alimentos, roupas e remedios á população enferma, pretendendo assim attenuar esta terrivel miseria.

Foi então que a gente do paço se lembrou de promover um bando precatorio, do qual fariam parte a rainha e as suas damas, que, vestidas de azul e branco, percorreriam em trens a cidade a angariar donativos para os doentes pobres. Mas o povo percebeu-lhes os intentos. Comprehendeu muito bem que o que queriam era capta-lo até que passasse aquella effervescencia e que depois se importariam tanto com elle como se haviam importado até ahi. Não permittiu, pois, que á custa da sua miseria se armassem laços á sua ingenuidade e começou a dirigir os mais acerados epigrammas á pretensa philantropia dos aulicos, alcunhando 0 projectado peditorio de -- bando pescatorio. E tal foi a impressão que esta attitude do povo causou nos cortezãos, que se não atreveram a deixar sair as damas á rua, receando um fiasco monumental.

Gilberto passou o dia n'uma anciedade crescente. Só pensava na reunião da noite, que vinha a ser o ensaio geral do grande drama que a seguir se desenrolaria. Para matar o tempo, pretendia ler, mas, por mais que procurasse entre os livros da bem fornecida estante, não encontrava nenhum que pudesse desviar-lhe a corrente impetuosa das ideias.

Eugenia não pudéra voltar a falar-lhe, porque, depois da chegada da mãe era-lhe isso impossivel, e o pobre rapaz assim passou o dia todo, preso da maior ancia pela chegada da noite.

Foi só ao anoitecer que Armando lhe appareceu. Vinha radiante. Logo que transpoz o limiar da porta disse-lhe:

-- Tudo corre explendidamente! Estão todos promptos e...

-- Mas calou-se ante um gesto imperioso do jornalista, que lhe disse, apontando para a porta de communicação com a casa do alfaiate:

-- Fala baixo; receio que nos escute a beata que aqui mora.

E como que a justificar estas suas precauções, sentiram passos no aposento contiguo e logo a seguir a voz attrahente de Eugenia que dizia alto:

-- Vae ver se esse senhor precisa d'alguma coisa, mamã?

D. Innocencia, raivosa, louca, furibunda, quiz lançar-se á filha, que assim vinha descobrir a sua espionagem, mas, dominando-se, entendeu que podia ainda salvar a situação, e respondeu, esforçando-se por ameigar a voz:

-- Venho, sim, pois me parece que elle ainda hoje não saiu, e receio, portanto, que esteja doente e pedindo licença a Gilberto abriu a porta e entrou no quarto, fingindo-se surprehendida com a presença do estudante.

-- Peço perdão se vim importuna-los -- começou ella -- mas vinha ver se o sr. Proença precisava dos meus serviços, pois temia que estivesse doente...

«Ignorava do... porém que estivesse acompanha

-- Pois eu, minha senhora, respondeu logo Armando sem dar tempo a que o seu amigo falasse -- felicito-me por ter vindo a esta hora para ter a ventura de contemplar uma senhora tão gentil, bondosa e caritativa.

A ironia era transparente na expressão escarninha do estudante, mas ella não a percebeu, ou fingiu não a perceber, e Gilberto disse-lhe:

-- Agradeço muito a v. ex.ª os cuidados que se digna dispensar-me, mas não quero incommoda-la, pois me vou levantar já, e portanto de nada careço.

-- Oh! mas parece que está ferido! -- voltou ella. -- Então que foi isso?

-- Foi hontem á caça dos javardos -- tornou Armando -- e, como é bom caçador, foi elle o caçado.

-- Vejo que o senhor é um bom trocista... -- resmungou D. Innocencia, querendo sorrir.

-- Oh minha senhora! De forma alguma! Deus me defenda de tal, principalmente com uma senhora a cujas virtudes eu só pretendo prestar culto!...

-- Não faça caso, sr.ª D. Innocencia, que este meu amigo é sempre assim -- desculpou Gilberto -- leva a vida sempre a rir.

-- Ainda assim é bom... Mas visto que não lhe posso ser util, estimo que isso não seja nada, e até logo.

E dizendo isto cumprimentou ligeiramente os dois amigos e saiu, fechando a porta.

Percorreu a casa como um furacão á procura da filha, e, agarrando-a pelo pescoço, bradou-lhe:

-- Ó desavergonhada! Ó porca! para que foste tu falar-me, se eu não queria que soubessem que os estava escutando?

-- Ora... mas não sei que precisão tem a mamã de escutar o que elles dizem... -- respondeu a joven com indifferença, não fazendo o minimo esforço para se soltar das suas mãos.

-- E você sabe se o que eu queria ouvir me era ou não preciso e conveniente saber?

-- Como nós nada temos com a vida das pessoas que nos não pertencem, entendo que não precisamos de andar a escutar ás portas de cada um.

-- Pois tu ainda refilas!? Espera...

E esbofeteou-a fortemente, applicando-lhe tambem formidáveis pontapés.

Quem visse nos templos aquella mulher com devoto aspecto, olhar extatico, orando com unção munida de grossas camandulas, rojando-se para beijar o porco soalho, e quasi diariamente murmurar contricta, pelos ralos dos confissionarios, uma exposição geral das maiores futilidades, que confessava como graves pcccados, e a visse ali, de gesto furibundo, olhar irado e faces aradas pelo fogo da raiva a espancar brutalmente e insultar em linguagem de bordel uma filha boa e casta que lhe evitára ter commettido uma acção baixa -- quem a visse assim tão differente, repito, se viesse dentre os chamados selvagens -- perguntaria por certo que seres são estes tão contraditorios ou que religião é esta que assim os forma tão falsos e mentirosos, tão hypocritas e vis!

-- Maldita centopeia! -- exclamava Armando logo que ella saiu -- Ridículo camafeu! Tu não viste como ella trazia na carantonha a pintura já gretada que até parecia uma retrete acairelada de vermelho?

-- O que eu gostava de saber era quem foi que a incumbiu de nos escutar, porque é provavel que ella nos não estivesse espionando só por curiosidade... disse o jornalista.

-- Ora adeus, é coscuvilheira como todas as mulheres -- á excepção das nossas amadas, já se vê -- e mais nada.

«O que é certo é que a filha nos protege... ou melhor, te protege contra a espionagem da mãe, e esse é que é o grande facto.

«Vê lá se ali não anda amor por ti, meu felizão, que afinal a não mereces. Ainda se fosse eu...

-- Deixa-te de phantasias. Agora estará ella, pobresita, a pagar caro o serviço que nos prestou.

-- Mas como diabo póde uma flôr assim brotar dum pantano d'aquelles? Como pode dum sapo nascer um lirio?

-- Bem, eu vou vestir-me que são horas -- lembrou o jornalista, interrompendo as exclamações do amigo.

-- Pois anda lá, que eu sirvo-te de aio.

E, rindo-se, começou a compor-lhe as ligaduras e ajuda-lo a vestir, ao mesmo tempo que lhe dizia:

-- Eu disse hoje em casa que não podia lá jantar e, portanto, vamos juntos ver que tal é hoje o menu do Tavares. Ao menos, se algum de nós fôr esta noite para o outro mundo, que leve o estômago bem conchegado para não ter fome na viagem, pois que não sei se por lá haverá boas estalagens.

Pouco depois estavam ambos jantando alegremente, como se fossem para a mais agradavel das festas.

O predio da Costa do Castello em que os patriotas iam reunir-se prestava-se áquelle fim, não só por ter uma entrada occulta pelo quintal, mas pelas suas grandes dimensões. Como o pae ia fazer n'elle obras, Armando mandara arrancar todas as divisões do terceiro andar de fôrma a fazer ali um vasto salão.

As janellas estavam cuidadosamente fechadas e calafetados todos os interstícios, afim de não ser notada a illuminação do grande predio deshabitado.

Tanto á porta que dava ingresso ao quintal, como á da escada, estavam postados dois patriotas que as não abriam sem que os que batiam dessem a senha. Quando Gilberto e Armando chegaram, já a enorme quadra estava atulhada de revolucionarios, quasi todos seus conhecidos e amigos, entre os quaes havia officiaes do exercito e da marinha, escriptores, jornalistas, commerciantes, industriaes, estudantes, medicos, advogados, operarios, etc...

Eram todos homens d'acção e de influencia, que podiam arrastar todos os elementos vitaes da cidade.

Os dois mancebos foram abraçados por grande numero d'amigos e, especialmente Gilberto, que todos sabiam ser o iniciador do movimento, era distinguido por todos os patriotas que ali estavam promptos a offerecer a sua vida para a salvação da patria e para a realisação dos seus ideaes.

Gilberto começou porém a notar que algum desgosto pungia muitos dos seus amigos mais destemidos, especialmente officiaes do exercito, pois que os seus rostos francos assim o denunciavam. Acercou-se d'elles para se informar da causa do seu descontentamento, e a resposta que obteve fê-lo impallidecer e exclamar:

-- Não pode ser! Tem de ser esta noite, sem falta.

E iam falando uns ao ouvido dos outros, de modo que a alegria da maior parte ia-se transformando em tristeza e desolação.

Entretanto a casa tinha-se enchido completamente, ficando ainda atulhadas as escadas e corredores, por não caberem no enorme salão, onde estavam muitos centenares de revolucionarios. Deram portanto começo aos trabalhos, tomando a presidencia um primoroso escriptor, que foi e é ainda justamente apreciado. O primeiro que subiu a uma especie de tribuna que a um canto improvisaram foi um official do exercito, de patente superior, dos que mais tristes se mostravam, la expor as causas que o traziam, bem como a muitos outros, desesperado, tristonho, sombrio, lugubre.

Começou, pois, com uma expressão concentrada:

-- Cidadãos: A esquadra ingleza de Gibraltar vem a caminho de Lisboa!

Estas simples palavras causaram o mais vivo assombro nos que ainda o não sabiam. Elle continuou com gesto iroso:

-- A ladra e infame Albion, depois de nos ter esbofeteado, aponta-nos ao peito os seus canhões.

Quer que nos deixemos roubar sem protesto, sem que o grito da nossa dôr chegue aos ouvidos das outras nações que lhe podem gritar: Para traz nação de piratas e salteadores! Para traz raça damninha que só podes viver expoliando as nações honradas!

O salão agitava-se. D'aquelles peitos heroicos irrompia indómita a sêde da vingança. Os rostos contraiam-se injectando se sanguinosamente; os corações pulsavam com demasiada violencia; os braços estendiam-se; os punhos cerravam se em gestos de raiva e de furor.

Elle continuou:

-- Um nosso destemido irmão, arrostando com as malignidades do clima e com as ciladas que esses rapaces salteadores lhe prepararam, tentou estabelecer o nosso domínio em territorios que nos pertenciam; mas elles, vendo que nada o detem, que as artimanhas não surtem effeito e que as suas emboscadas são descobertas, aperram a clavina e saltam para o meio da estrada. Se os expedientes de larapio falharam, não assim os de salteador. Á primeira intimativa de -- A bolsa ou a vida! -- o governo portuguez poz se de rastos prompto a atirar-lhe com aquelles vastos territórios, com todas as colonias e até com toda a nação para salvar a vida.

Reboaram por toda a sala estes gritos abafados:

-- Serão esses homens e o regimen que os tolera os primeiros a soffrer a nossa justa vingança!

O brioso official acenou tristemente com a cabeça dizendo;

--Primeiro que tudo temos de nos lembrar de que somos portuguezes, de que a nossa primeira cidade pôde ámanhã ser bombardeada pelos couraçados inglezes e de que as suas tropas podem calcar o torrão sagrado da patria. Precisamos agora empregar todo o nosso esforço para repellir o estrangeiro; depois atacaremos então esse regimen nefasto, que não poderemos mais tolerar.

«Cidadãos! A revolução tem de ser adiada!

-- Não, não; isso é impossivel! Queremos a republica, antes de tudo! -- gritou a maior parte.

-- Mas lembrai-vos que immensos desastres pode isso acarretar sobre a nossa patria! Os inglezes em frente de Lisboa e nós a espedaçarmo-nos em luctas intestinas, em vez de nos defendermos do inimigo commum. Reflecti, cidadãos! Não queiraes merecer os epithetos com que o mundo inteiro tem mimoseado esses intrépidos parisienses, que se engolfaram na guerra civil, ante os prussianos, senhores de Paris. Escorraçar esses piratas deve ser...

Mas já nada se ouvia na sala, tal era a confusão que se estabelecera.

Todos discutiam ao mesmo tempo, sendo uns de opinião que a revolução se fizesse immediatamente, como estava resolvido, e outros que fosse adiada até á retirada da esquadra ingleza.

Durou alguns minutos esta perturbação; mas n'um momento tudo serenou ao surgir sobre o estrado destinado aos oradores a figura insinuante de Gilberto de Proença.

Todos o queriam ouvir e todos tinham esperança n'elle: uns para que a revolução rebentasse naquella mesma noite, outros para que ella ficasse para occasião mais opportuna.

O famoso caudilho da revolução começou, esforçando-se por se mostrar sereno e calmo:

-- Cidadãos! A gravidade da situação em que nos encontramos é d'aquellas que requerem uma analyse fria, circumstanciada, cautelosa, ponderada, porque das resoluções que tomarmos dependerá talvez o bom ou mau exito do nosso ideal, a felicidade ou a desgraça do povo, o engrandecimento ou a perda da patria. Precisamos em primeiro logar conhecer a causa da vinda a Lisboa da esquadra ingleza; em segundo logar ver as probabilidades que temos da nossa revolução vingar; e por ultimo attender aos obstaculos que pódem surgir no futuro para se fazer a revolução que ora premeditamos.

«Que pode querer o governo britannico mandando marchar para Lisboa a sua esquadra? Obrigar o governo portuguez a ceder ás suas exigencias?

Mas se elle já cedeu!...

«Apoderar-se, pela força, da nossa formosa cidade ou de qualquer outro porto importante da nossa costa? Impossivel, porque as outras nações nunca o consentiriam, não por espirito de justiça ou pelo amor do direito, mas porque lhes não convém que a Inglaterra se engrandeça mais. Portugal hade conservar-se como se conserva a Turquia, como se conserva Marrocos, como se conservam outros estados decadentes, porque as feras receiam que ao

debruçar-se sobre a presa as outras lhe saltem em cima e as despedacem. A não ser que repetissem a infamia commettida contra a Polonia... mas é difficil harmonisarem-se.

«Será para nos obrigar a suffocar sem um grito a nossa dôr, a nossa indignação, a nossa colera?

Não, por certo, porque, desde que consegue os seus fins, bem se importa ella das lamentações das victimas!...

«Mas então...?

«A esquadra ingleza, crêde-o, se vem a caminho de Lisboa, é para nos amedrontar, e a pedido da côrte portugueza! Sentindo aluir o edificio, pedem aos fieis aliados que a venham amparar. Precisamos pois mostrar que nos não amedrontamos e que sabemos dar a paga aos que teem o arrojo de se servirem dos estranhos para nos darem leis em nossa casa.

«Mas vejamos as probabilidades que temos de victoria, fazendo-se a revolução immediatamente.

«O movimento deve ser convergente e começar d'aqui a algumas horas. São obvias as razões.

Começando assim cêdo, julgarão a principio os mantenedores da ordem que a revolução não passa das costumadas e inoffensivas manifestações e não tomarão desde logo as providencias que lhes conviriam; e rebentando em todos os bairros, mesmo nos mais afastados, tem a vantagem de mais depressa se arranjarem forças populares que se nos unirão e de os deixar a elles preplexos, sem saberem onde acudir primeiro; e entretanto a torrente avoluma, engrossa, converge para o centro e não ha diques que possam oppor-se-lhe.

«Para nos armarmos temos os arsenaes e mais estabelecimentos publicos, que facilmente tomaremos com os regimentos com que já contamos e com os outros, que indubitavelmente confraternizarão comnosco.

«O resto não me pertence discutir nem expôr, mas sim aos illustres officiaes a quem entregamos a direcção das forças revolucionarias, que por certo nos darão a victoria; e estou convencido de que, quando os inglezes surgirem em frente de Lisboa, já teem um governo democrático com quem terão que entender-se.

A maior parte da assemblea cobriu estas palavras de vivos e calorosos applausos, mas elle continuou.

-- Dos outros pontos do paiz nada temos que recear, porque a revolução será secundada nas principaes cidades e o resto submetter-se-á sem resistencia.

«A ebridade que a indignação e o patriotismo produziu em todo o paiz transformou-o em vulcão alteroso, que ruge sobre o seu solo. A revolução essencial, a mais precisa, a mais util, imprescindivel e proficua, já se fez: é a revolução dos espíritos. Para a tornar material, para o vulcão tomar espantosa actividade d arrasar o regimen com a sua immensa vaga de lava incandescente, basta uma centelha: sel-a-hemos nós.

As suas altivas palavras, ditas com a profunda convicção d'um crente e com a elegancia e eloquencia dum verdadeiro orador, eram continuamente interrompidas pelas manifestações de regosijo dos assistentes; mas elle agradecia modestamente e proseguia:

-- Vejamos por ultimo se as causas que ora concorrem para tornar a revolução facil e a republica certa, infallivel, estavel, subsistirão de modo que o adiamento não seja o desmoronamento da revolução salvadora.

«É quasi certo que, se ella rebentar hoje, em poucas horas ficará triumphante, sendo a republica um facto em Portugal; e isto devido a quatro causas: o desnorteamento e fraqueza do governo, o fervor que lavra no povo pela vergonha a que a realeza nos expoz, a adhesão dos regimentos arrastados por esses patrióticos officiaes que ahi temos presentes e os numerosos adeptos que a nossa propaganda revolucionaria angariou. Ora o governo, vendo que o povo só clama e que a nada de mais radical se abalança, resolver-se-ha a proceder com rigor e a sua mesma fraqueza o tornara furibundo, tyrannico, inquisitorial! O vigor, a energia e a effervescencia do povo exhaurir-se hão só em exclamações inoffensivas, o torpor usual virá retomar o seu logar, não deixando a essas massas, agora sublevadas, nem a coragem sufficiente para repellir as affrontas que o governo, livre de sustos, lhes escarrará sobre as faces, quanto mais tomar a offensiva e derrubar o throno. O velho leão, um instante possuido do seu antigo vigor, recairá na apathia enervante da sua caducidade, porque não souberam aproveitar o momento opportuno. O fluido patriotico, que, inflamando o sangue da soldadesca, a impelle para a revolução, será extincto com esta simples medida do governo: melhoria de rancho...

Desculpem me os cavalheirescos militares presentes a franqueza, porque as minhas palavras não se entendem nem podem entender-se com cidadãos tão intrepidos, desinteressados e briosos, mas esta é a verdade. O governo, acalmada a ira popular, enche a barriga ao soldado, e essas substancias nutritivas atulhar-lhe-hão os duetos digestivos, interrompendo-lhe as funeções do cerebro; e do sentimento que agora o impellia já nada restará senão o medo de que vão tira-lo da sua bestialisadora inacção e pôr-lhe em risco a ração nutriente e abundosa.

«Restar-nos ha pois só a nossa energia e a de todos os republicanos convictos e patriotas, que será uma debil barreira a oppor ás bayonetas com que a monarchia nos mandará trespassar; e esses mesmos soldados, que agora nos ajudariam a derruir esse throno carcomido, serão depois os cumpridores zelosos das suas ordens ; e a grande massa anonyma, que agora nos daria o apoio da sua força invencivel, será depois indifferente espectadora do

nosso sacrificio; e essa cohorte que agora treme de susto e que na sua mente abriga talvez pensamentos de traidores canalhas por vera realeza, a quem serve, periclitante, será depois o nosso algoz insensivel; e nós que representamos o castigo merecido, logico e severo d'esse systema fallido; nós, que somos do clamor do povo pela justiça a materialisação; nós, que consubstanciamos as justas aspirações d'um povo soberano tornado escravo, d'um povo rico tornado misserrimo, d'um povo nobre tornado abjecto; nós, que podíamos ser os revolucionários victoriosos, que dariamos ao povo a liberdade e a abastança, o trabalho e a moralidade, á patria a segurança e o respeito, a riqueza e o credito--não passaremos de ser: aos olhos dos governantes, uns criminosos a quem é preciso punir; aos olhos dos amantes d'essa dissoluta a quem chamam Ordem, uns patifes desordeiros; aos olhos

do povo, uns loucos; e aos olhos dos nossos irmãos pelos ideaes, uns temerarios e desastrados que se perderam sem necessidade, porque não souberam vencer.

«Serve-vos a perspectiva? Não pode ser!...

«Cidadãos, eu sou pela revolução immediata!

Um delirio doido succedeu a estas palavras. O mancebo viu-se agarrado, festejado, victoriado n'uma expansão indescriptivel. Quasi se esqueciam do cuidado que precisavam ter para não serem percebidos, tal era a effusão, o enthusiasmo que o discurso do ardente apostolo da republica lhes tinha communicado.

Mas sobre o estrado viu-se novamente aquelle official supperior do exercito que já havia falado, que pediu em seu nome e no dos seus amigos que esperassem pelo menos mais dois dias, afim de verem as intenções dos inglezes. Não acreditava que aquella esquadra viesse a pedido da realeza, e por isso, dizia elle -- n'este pequeno espaço de tempo não pode o povo desanimar, nem o governo nortear-se e muito menos captar a parte do exercito

envolvida na conjura revolucionaria. Portanto, que nada resolvessem n'aquella noite, antes convocassem outra reunião para d'ahi a dois dias, em que se resolveria então definitivamente o que tinha a fazer-se.

A proposta não parecia desarrasoada, mas Gilberto e a maior parte da assembléa não queriam de forma alguma attendê-la, receosos de que qualquer dilação pudesse frustrar os seus planos; mas o jornalista, vendo que o grupo dos officiaes não transigia e podia tomar como uma affronta a não approvação da sua proposta, teve de ceder, porque não podia nem lhe convinha passar sem elles, e começou elle mesmo a pedir aos seus mais exaltados amigos que não contrariassem os pundonorosos militares, pois que elles só tinham em mira o bom nome, os interesses e a honra da patria.

Ficou pois aprasada outra reunião para a noite de 17 para 18. Mal supporiam elles porem que aquelle pequeno adiamento ia ser causa do aborto do plano revolucionario.

Entretanto pelas ruas principaes de todos os bairros reboavam os gritos, os berros, as imprecações de muitos milhares de patriotas, que andavam pela chegada dos seus tribunos affeiçoados, porque um rumor vago, confuso, mas formidavel, os fazia esperar alguma coisa de positivo para aquella noite.

XVII

A beata

D. Innocencia Ventura dormiu mal n'aquella noite de quarta para quinta feira. Tinha pressa de falar com o seu santo confessor e amante para lhe revelar o pouco que ouvira, mas que lhe parecia de importancia.

Ainda mal os alvores da manhã tinham vindo dar á cidade dormente uma baça claridade e já ella, á luz d um velho candieiro de petroleo, cuja chaminé meio partida estava ennegrecida pelo fumo. tratava de alvejar o rosto com as estranhas preparações que os exploradores da toleima universal têm inventado para tornar nojentas e ridículas as caras das pessoas que, sem ellas, poderiam parecer, quando muito, mais encarquilhadas, mas não tão supinamente grotescas.

O quarto onde a excellente senhora se preparava tinha inteiramente a apparencia do alojamento d'um pelotiqueiro, tal era a desordem que em tudo se notava.

A mobilia era das mais simples e ordinarias: compunha-se de uma cama de ferro, tendo por cima dos velhos cobertores uma coberta de chita de côr duvidosa, de uma pequena e decrepita commoda que servia de toucador, tendo em cima um espelho já partido e ás manchas por o aço ter desapparecido, de um antigo bahu de couro já pellado que ficava a um canto, e de um simples e pequeno lavatorio.

O que porem dava a este aposento o estranho aspecto já notado era o grande numero de caixas, de boioes, de vidros e de garrafas que cobriam a edosa commoda, as saias, saiotes, corpos, corpetes e um sem numero de trapos, cada qual mais velho, roto e sujo, que se amontoavam por sobre acama, pelas pyramides do leito e pelos cantos, e as botas, sapatos e chinellos que andavam espalhadas pelo chão, já em estado de não poderem servir.

A atmosphera era um mixto de gaz carbonico, de negro de fumo e de emanações fetidas e amoniacaes.

As paredes estavam cobertas de innumeras estampas de santos e santas, conseguindo assim D. Innocencia occultar o roto e sujo papel que forrava a sua desagradavel camara.

Á cabeceira do leito, n'um nicho com pretenções a oratorio, havia um Christo pendente da cruz, com expressão mais de nojo que de dôr, provavelmente por jazer em tão execravel possilga.

A vaidosa esposa de Felisberto Ventura estava ainda, no momento em que vamos encontra-la, em saias brancas, tendo da cintura para cima apenas a camisa e o espartilho, cujas barbas rangiam com a pressão da adiposidade de tão amplo torax, e tendo a nu os carnudos braços, sem que o frio d'aquella manhã de janeiro parecesse incommoda-la.

Primeiro penteara o cabelo, tendo o cuidado de tocar com o dedo molhado n'uma tinta preta algumas guedelhas que não ficaram bem impregnadas com o primeiro banho e que ainda ousavam apresentar-se grisalhadas. Depois começou a empastar o rosto bochechudo com umas alvas pomadas, nacarando em seguida as faces com uma pasta carminada.

Acabada esta difficil e delicada pintura, que precisa, para produzir effeito, de ficar mais natural que os celebrados cachos de Zeuxis, que só enganaram aves, emquanto esta visa a embair o genero humano, já de mais escarmentado com toda a especie de embustes, a artista acabou de vestir-se, enfiando pela cabeça uma saia preta, com todas as precauções para não tocar no penteado nem no rosto, ainda humido dos ingredientes que lhe applicara, vestiu em seguida um corpo, poz na cabeça um toque enfeitado a plumas e fitas pretas, cobriu a cara com um veu tambem preto, pintalgado, um pouco espesso para deixar destacar a brancura da cutis sem se perceberem as pomadas, pendurou um rozario no braço e deitou pelos hombros uma capa escura.

Assim enfeitada, a beata creatura não deixou logo o revolto aposento.

Como a claridade que entrava pelos intersticios das portas já completamente offuscava a luz do sujo candieiro, apagou-o d'um sopro, subindo ao ar, da negra chaminé, uma derradeira columna de fumo negro, espesso, como o ultimo estertor d'uma vida que se extingue.

Foi abrir depois a janella, indo novamente collocar-se em frente do espelho, onde começou a ensaiar visagens, deitando olhares ora languidos ora impetuosos, dando geitos ridiculamente lubricos á cabeça, soltando palavras que só ella podia ouvir, tomando posições ora mysticas ora luxuriosas, fingindo fixar o olhar, ainda com uns restos de vivacidade, n'algum objecto do culto e ficando-se, de cabeça um pouco inclinada, n'um pasmo extatico.

Quem desconhecesse a sociedade e visse aquella mulher fazer taes ademanes e caretas, distribuir olhares ternos e devotos á mistura, pronunciar monosyllabos inintellegiveis, tomar posições, etc. julga-la-ia por certo doida; mas quem já conhecesse a pyramidal e picaresca comedia humana suppô-la-ia prestes a ir ter com algum querençoso amante, a quem intentasse embaçar com o ouropel das suas artificiosas graças como se fossem ouro de lei; ou, pelo menos, julgaria que ella fosse para alguma reunião, em que pretendesse agradar, embora cais se pelo grotesco dos seus exageros. O que por certo ninguem imaginaria é que toda aquella garridice fosse para ir orar a uma egreja.

Terminando aquelle ensaio geral, a pretenciosa senhora saiu então para a rua, tomando o caminho da sua egreja predilecta.

O sol vinha surgindo no horisonte, como que indolente e melancholico, não conseguindo os seus doirados raios attenuar a frialdade da briza que lavava as ruas ainda quasi desertas.

D. Innocencia caminhava embrulhando se o mais que podia na sua capa, quasi não reparando em quem passava, pois que áquella hora só os operarios se dirigiam para os seus rudes trabalhos. Isto porem não impediu que um trabalhador folgasão, que ia esbarrando com ella, exclamasse para os companheiros:

-- Eh rapazes! a cara d'esta gaja parece a cal d'uma tábua a estoirar!

E todos desataram a rir alvarmente, seguindo o seu caminho.

D. Innocencia ouviu a graçola semsaborona e o coração deu-lhe um baque.

Passou a mão pelo rosto e convenceu-se da terrível verdade. Com o frio, a pelle contrahiu-se, o que fez que as pomadas, então já seccas, gretassem d'uma forma espantosa, dando á pobre senhora um aspecto na verdade patusco. Quiz ella retroceder para remediar aquelle desastre, mas lembrou-se de que depois não encontraria o padre Seraphim e lá se dirigiu para a egreja, confortando-se com a ideia de que no confissionario havia pouca luz, não deixando ainda assim de suspirar pesarosa e de murmurar, como o sapateiro romano que já desesperava de ensinar o corvo a saudar o imperador:

-- Perdi o meu tempo e o meu trabalho!

A egreja estava ainda quasi deserta. Apenas se viam algumas velhas, similhando morcegos, acocoradas a um canto e bisbilhotando sobre as vidas alheias, na alternativa dos padres-nossos e das outras orações.

A mulher do alfaiate foi ajoelhar perto do confissionario que o padre Seraphim costumava occupar.

Após ella foram entrando outras beatas, umas velhas, de rostos enrugados e gestos hypocritas, outras ainda novas, de olhares esconsos, desconfiadas, sensuaes, mas todas ignorantes e bestialisadas pelo fanatismo.

As beguinas que cochichavam ao canto, ao verem entrar D. Innocencia, aproximaram-se mais e começaram a falar d'ella.

-- Olhe, olhe, D. Joaquina, a mulher do alfaiate da rua da Emenda, a tal em que lhe falei -- disse uma, chamando a attenção d'uma companheira que estava embiocada ao canto.

-- A tal desavergonhada que faz do homem gato sapato?

-- Essa mesma. Não falta aqui um dia.

-- Virá talvez arrepender-se dos seus peccado -- aventou hypocritamente uma terceira, para assim se desculpar tambem da sua vinda.

-- Não é mau arrependimento!... -- volveu a primeira, com desdem; e com intenção: -- Ha quem diga que ella, como outras mais, só cá vem para tentar aquelle santo do padre Seraphim!

-- Santo nome de Maria ! -- exclamou outra. -- O mafarrico ainda de mais será capaz...

-- Isso sim! O nosso bemaventurado confessor o que quer é ver se chama á lei de Deus aquella ovelha ranhosa.

-- E bem pode ser, que aquelle é dos que estão na graça do Senhor.

-- Mas então ella é assim uma corrompida?!

-- Ui! aquillo é uma porca de marca; não ha para ahi cão nem gato com quem não tenha enganado o coitadinho do homem.

Isto disse a que primeiro fallara; mas a que tinha opinado que ella viria á egreja por arrependimento, retorquiu, por maldade, para se vingar das insinuações d'ella:

-- Ha muitas assim...

E olhando para ella, rancorosa, como quem lhe conhecia os podres, accrescentou:

-- É o que hoje mais ha!

-- E eu que bem nas conheço... -- resmoneou a outra, ferida pela allusão e pelos olhares.

Aquella ia a replicar azedamente, e não tardaria que as devotas do Senhor desatassem a insultar se furiosamente, se n'aquelle momento não descesse da sacristia a figura querida das beatas e reaccionarios, o predilecto das frequentadoras janotas da egreja, o sacerdote estimado de S. Vicente, o padre Espirito Santo, emfim.

Dirigiu-se majestoso e grave, sempre com o mesmo ar de mystica santidade, para o confissionario.

Entrando n'elle, ajoelhou, fez a sua oração, ou fingiu que a fez, e sentou-se, voltando-se para o lado em que de relance tinha percebido D. Innocencia.

Esta approximou-se do ralo, disse a confissão batendo contrictamente no peito e colou os pintados beiços ao crivo, puxando com ambas as mãos para a cara a capa, afim de lhe abafar as palavras.

O padre Seraphim não esteve com os rodeios que costumava ter com outras suas confessadas, dando apparencia de confissão ás denuncias e confidencias que lhe faziam. Para este seu submisso instrumento podia ir direito ao fim, deixando-se de subterfugios desnecessarios. Por isso perguntou logo:

-- Então, ouviu mais alguma coisa?

-- Ah! meu venerando confessor! Hontem por certo que ouviria coisas bem importantes se minha filha não vem descobrir a minha espionagem.

-- Sua filha! Mas então a senhora não sabe impor a sua auctoridade?!

-- Eu castiguei-a como ella merecia, mas já não havia remedio, porque elles estavam de sobre-aviso. Ainda assim ouvi dizer ao que lhe faz o curativo, logo ao entrar: -- «Corre tudo ás mil maravilhas! Estão todos promptos!...

«Ora parece-me que estas palavras são sufficientes para se comprehender que elles alguma coisa planeiam; porque ante-hontem diziam qua estava chegado o momento da sua revolução, e falavam em pegar em armas; e hontem a dizerem que todos estavam promptos -- Ih Jesus!... E eu que todos os dias pela manhã para aqui venho!...

O confessor não respondeu logo; pensou um pouco e disse depois:

-- Bem; agradeço-lhe as suas informações e póde ir descançada, que isso nada vale. Mas tenha cuidado com sua filha, que se ainda não está perdida por esse hereje, não tardará que isso aconteça.

-- Esse medo é que eu tenho. Mas então ainda não o posso pôr fóra?

-- Póde, querendo.

E accrescentou mentalmente:

-- Mas por agora eu te evitarei esse trabalho...

-- Obrigado, meu queri... -- ia ella a responder ternamente. Mas elle reprehendia logo, para evitar transportes amorosos, fingindo esquecer que ali mesmo outras vezes lh'os consentira e retribuirá:

-- Pschiu! Cuidado com essas palavras que nos podem ouvir! aqui não é logar para essas coisas.

E dispunha-se a rosnar o latinorio da absolvição; mas ella rogou-lhe:

-- Espere, faça favor, que tenho um peccado a pesar-me na consciencia. Hontem á noite, ao começar as orações do deitar da cama, adormeci antes de poder acaba-las. Parece mesmo que foi o demonio que estava a tentar-me!

-- Pois reze-as hoje dobradas e de joelhos, respondeu elle começando a absolve-la, simulando assim, aos olhos das outras beatas que estavam na egreja, que ella estivera confessando os seus peccados.

D. Innocencia, de cabeça curvada, fazia numa soffreguidão beatifica o acto de contricção, emquanto do lado opposto ajoelhava outra penitente, membro importante, como quasi todas as outras, da famosa policia secreta do glorioso ministro da religião, que a este tempo pensava na melhor maneira de perder o seu detestado inimigo.

XVIII

O rompimento

Ao chegar a casa, a mãe d'Eugenia encontrou Gilberto que saía; mas o mancebo ia tão perturbado que nem n'ella reparou, o que a fez resmungar despeitada:

-- Que cara elle leva! bem se vê que anda fóra da graça de Deus: parece que foi desenterrado. E então nem sequer me dá os bons dias! Está bom... Ora deixa te voltar e veras como ainda hoje te vão os tarecos para o meio da rua.

«Ora o patife!...

O mancebo dirigiu-se a casa de Armando, e, como este ainda estava na cama, mandaram-no entrar para o quarto.

Logo que o estudante o viu entrar, conheceu pela sua expressão dolorida que alguma grande dôr moral pungia e fazia vergar aquella alma heroica.

Perguntou-lhe, por isso, sobresaltado:

-- Que tens? que succedeu?

-- Toma, lê -- disse-lhe por unica resposta o jornalista, deitando-lhe sobre a cama uma carta amarrotada.

Armando, desdobrando a, leu o seguinte:

«Exmo Sr.

Bem deve comprehender que, depois do que se tem passado, impossivel se toma subsistir entre nós qualquer affeição. Eu amava-o, como muitas vezes lh'o manifestei, com toda a intensidade de que é susceptivel a minha alma. Foi o senhor que fez desabrochar em meu coração esse sentimento que tantas vezes tenho ouvido poetisar, cantar, bemdizer -- o amor -- mas que eu só tenho razões para detestar, abominar, maldizer, porque, se me proporcionou alguns momentos de prazer e de alegria, fez-me especialmente conhecer o travo de amarguras que eu não suppunha poderem existir no mundo

«Pelo senhor perdi o socego da minha vida, que, até ao momento em que o conheci, era serena, feliz, despreoccupada, como jamais o poderá tornar a

ser; pelo senhor sacrifiquei a alegria da minha familia, a quem tenho contrariado e subjugado á minha vontade despótica e injusta; pelo senhor troquei a minha felicidade futura pela vida de torturas e de lagrimas, que é a perspectiva que vejo negrejar no horizonte do meu destino.

«E que me offereceu o senhor em troca de tudo isto?

«Indifterenças, desprezos, sarcasmos, faltas de palavra, affrontas e por ultimo amesquinhar-me pela sua descida injustificavel e indesculpavel aos mais immundos antros da canalha abjecta, para se atirar com ella a todos os tumultos e indignidades, sem consideração pela sua propria pessoa e por aquella que tanto lhe queria.

«Tudo isto nos tornou incompatíveis; e eu não posso nem quero mais amar a quem assim procede, ainda que o resto dos meus dias sejam trevas e agonias.

«Acabe pois de esquecer quem tanto o amou, mas que não mais póde dedicar-lhe o minino affecto.»

E assignada = «Zelia Sampaio».

Armando que durante a leitura tinha tremido de indignação por ver em tudo aquillo os traços da intriga clerical, bradou, ao terminar, sentando-se de repellão na cama;

-- Isto é o resultado da obra d'aquelle tonsurado patife, d'aquelle infame jesuita.

Minha prima deixou-se influenciar por um sectario miseravel duma canalha infame e d'ahi a temos escrevendo coisas d'estas! Que hediondos parasitas!

«Enredadores vis, ladrões audazes a coberto das leis, eternos exploradores da ignorancia e credulidade humana, caixeiros immundos d'um Deus a quem deshonram, ainda hade tal corja continuar a ludibriar o mundo e a travar a marcha indispensavel do progresso?!

«Ah! o que nós precisamos fazer, nós, os livres pensadores de todo o mundo!...

E sempre com o rosto incendido em colera e o olhar coruscante continuou:

-- Quem vae falar com minha prima sou eu.

Quero lançar lhe em rosto a sua fraqueza, a sua versatilidade. Preciso avivar-lhe a memoria, já que tão facilmente se esquece. Hade ainda envergonhar-se da facilidade com que se deixou dominar pelo primeiro intrigante que lhe appareceu.

-- Faze-me um favor -- pediu Gilberto. -- Não lhe fales em mim, que hade julgar que é a meu pedido que o fazes, e eu não rastejo assim. E bem vês que está completamente mudada e com tal orientação não nos poderíamos já entender. O padre envenenou-lhe a alma, que era nobre e elevada, e agora não poderia já identificar-se com a minha.

«O choque foi rude e violento, mas não imprevisto, pois que, desde que soube da assiduidade do sacripanta na casa do teu tio, logo a suppuz perdida para mim.

«O meu coração hade deixar de sangrar, ainda que tenha de esmaga-lo, e depois ficarei mais livre para poder dedicar todos os esforços e todos os meus pensamentos á pratica dos meus ideaes. Talvez seja um bem.

-- Pois embora te não importes mais com ella, não desisto de ir falar lhe.

«Não posso permittir que ella julgue actos censuraveis os nossos justos protestos contra os rapinantes estranhos e poltrões nacionaes.

«Que o amor se lhe extinguisse, vá: mas que juntamente perdesse a consideração que, como a todos, lhe deves merecer, isso não!

E, desanuviando-se-lhe a fronte, accrescentou:

-- Tu almoças commigo e depois esperas me no Martinho emquanto eu lá vou.

-- Desculpa-me, mas tenho de tal forma a garganta apertada que impossivel me será deglutir qualquer coisa.

-- Não te dispenso, não te dispenso; é preciso que comas, que as tristezas são mediocre alimento para o corpo.

XIX

O padre e o estudante

O padre Scraphim do Espirito Santo, após a confissão de D. Innocencia e depois de se ter desembaraçado, o mais depressa que poude, das beatas que diariamente lhe pejavam a egreja, disse missa, e, desparamentando-se rapidamente, tomou a direcção da casa do commissario de policia seu amigo, sem attender sequer diversas pessoas que na sacristia o aguardavam.

O commissario recebeu-o sem detença e conferenciaram durante muito tempo, após o que o padre saiu, e, depois de ir a casa almoçar, dirigiu-se á sumptuosa residencia de Antão de Sampaio, emquanto o commissario, tendo entrado no governo civil, dava, apressado, diversas ordens.

O Espirito Santo encontrou ainda em casa o conselheiro, com quem conversou alguns instantes.

Depois este saiu e o padre foi annunciado a Zélia.

-- Estimei que viesse -- disse-lhe esta logo que o viu -- porque preciso desabafar com alguem as minhas maguas e não tenho com quem o possa fazer de melhor grado.

-- Honra demasiada para mim, minha senhora, que a não mereço e que só posso devê-la á sua generosidade -- disse com humildade a astuta rapoza.

-- Se acaso é honra para si, merece-a e muito e por isso tambem nada lhe quero occultar. Hontem deixei-me de tal forma possuir pela fraqueza que só podia chorar, hoje não, hoje encarei de frente a adversidade e resolvi sopea-la, fosse porque forma fosse.

«Comecei por cortar para sempre as relações com o causador de todos os meus desgostos...

-- Pois fez isso?! -- perguntou espantado o padre, sentindo um jubilo immenso, mas aferrolhando o no amago do coração.

-- Decerto. Bem sabe que não podia continuar «a servir de ludibrio áquelle a quem tinha entregado o coração e que tão ingrato me foi. De hoje em diante esse homem morreu para mim.

O padre achava-se possuído da maior alegria pelo maravilhoso exito da sua obra; mas, sempre hypocritamente, respondeu, elevando os olhos ao tecto:

-- Foi Deus que na sua infinita Graça se dignou esclarecê-la.

E olhando-a com gesto carinhoso continuou:

-- Eu não queria que dissesse que me atrevia a contrariar os impulsos do seu dôce coração, e por isso evitava dizer-lhe qualquer coisa desagradavel mas bem via que com elle não poderia encontrar a felicidade de que é tão digna...

E pretendendo acabar de partir qualquer liame que ainda existisse entre elles, accrescentou:

-- Porque... emfim, difficilmente elle poderia esquivar-se a certas relações antigas...

-- Que quer dizer?

-- Sim... que lhe havia de custar... A convivencia sempre cria raizes...

-- Por obsequio, explique-se, padre Seraphim.

E insistiu:

-- Mas o que é que lhe havia de custar?

-- A desfazer-se da amante...

-- Ah! pois elle tinha uma amante?!

-- Uma rapariga de dezesseis annos, que enganou, filha do dono da casa em que vive.

-- E ha muito tempo que tem essa amante?

-- Ha alguns mezes já, segundo me consta.

A joven sentia uma colera intensa, e já odio mesmo, contra o mancebo que amara com tanto ardor.

As mulheres tudo relevam menos as offensas ao seu amor proprio. E a ella parecia lhe a mais atroz das affrontas arranjar elle uma amante quando a namorava.

-- Porque m'o não disse ha mais tempo?--perguntou ella, pretendendo dominar-se.

-- Ora bem sabe que... Emfim, eu não queria ser a causa...

-- Ah! meu bom padre, que se m'o tem dito logo ao principio tinha-me poupado muitos desgostos, muitas lagrimas e muitas humilhações!

E, com os cotovellos fincados nos braços do sophá, apertava freneticamente a fronte entre os mimosos dedinhos.

Foi neste momento que a creada lhe annunciou o primo.

-- Manda entrar para aqui -- disse-lhe ella com energia, já antevendo o motivo da visita.

O padre Seraphim sobresaltou-se. Pensou ainda em obstar a que a joven o recebesse ali; mas que estratagema arranjar?

Todavia podia ser-lhe perigoso encontrar-se ali com o amigo do jornalista, que podia deitar-lhe por terra o acervo de embustes, de intrigas e de torpezas com que tinha affastado o coração da donzella do seu apaixonado.

Mas que fazer? Não ficaria ella desconfiada se elle lhe dissesse qualquer coisa tendente a evitar a entrada do estudante?

Pela primeira vez, diante d'ella, se encontrou embaraçado e perplexo.

Entretanto apparecia á porta da sala o estudante; e o padre, não podendo esquivar-se a vê-lo, encarou de frente o perigo, resolvido a fazer-lhe face.

De mais a expressão do mancebo não vinha de molde a causar sustos, pois que lhe bailava nos labios o seu interminavel sorriso de bondosa jovialidade.

Entrou, cumprimentou a prima e o padre e voltando-se para este disse-lhe, rindo:

-- Ainda bem que o encontro aqui, reverendo Espirito Santo, porque, na verdade, minha encantadora prima precisa de quem lhe encaminhe a alma para o ceu, emquanto vae precipitando as dos outros no inferno.

Zelia não respondeu e o padre, querendo desviar a conversação, explicou:

-- Como as minhas obrigações me deixaram este momento livre, quiz aproveita-lo visitando o meu nobre amigo, o sr. conselheiro; mas infelizmente já o não encontrei.

-- Tambem eu, como os meus deveres civicos me deixaram este momento de descanço, aproveitei-o para visitar, não o meu illustre tio, mas minha bella prima.

-- Eu julgava -- volveu o Espirito Santo tambem rindo -- que v. ex.ª, por emquanto, apenas tinha deveres escolares e filiaes...

-- Innocencias da sua alma evangélica -- retorquiu, ironico, Armando.

E, tomando uma expressão de seriedade, continuou:

-- Nenhum portuguez em quem vibre o sentimento d'amor patrio, nenhum cidadão em cujo coração palpitem os ideaes generosos e altaneiros da desopressão da Humanidade, pode ficar insensivel em face da Oppressão que vexa, affronta, esmaga e rouba, e da Baixeza que avilta, espesinha, infama e atraiçoa, sendo sempre o Povo o vexado, o affrontado, o esmagado, o roubado, o aviltado, o espesinhado, o infamado, o atraiçoado, cumprindo nos, portanto, protestar na praça publica em altos gritos contra a Oppressão, neste momento symbolisada pela Gran-Bretanha, e contra a Baixeza, bem representada pelos nossos desprezíveis governantes; e quando estes protestos platónicos não produzirem effeito, como no caso presente--porque nem a Oppressão encolhe as garras nem a Baixeza deixa de rastejar aos pés d'aquella e de morder o povo -- é nosso imprescindível dever fazer face áquella e esmagar esta, ainda que para isso tenhamos de sacrificar a nossa vida e de derramar o nosso sangue!

Zelia olhou para elle com certo interesse. Não estava acostumada a ouvi-lo falar assim, e, alem d'isso, havia ainda n'ella o lampejar d'uns resquicios dos seus principios revolucionários. O padre comprehendeu aquelle olhar e pensou que era preciso desfazer aquella impressão, pois que, se a deixasse enthusiasmar com aquellas cores vivas da democracia, poderia perder n'um instante todo o producto dos seus contínuos esforços. Respondeu portanto:

-- Os estados, como grandes famílias, teem os seus chefes que os dirigem e os governam.

«Ora assim como na familia precisa haver respeito e obediencia absoluta aos paes para se manter a harmonia domestica, assim nos estados tem de haver o acatamento respeitoso pelas acçoes dos chefes, que são os paes d'estas grandes familias, para que a ordem se não altere.

Toda a alteração da ordem deve ser punida com a severidade que um pae austero emprega para castigar a desobediencia de um filho turbulento e mau, embora esse castigo seja differente na forma.

«A ordem primeiro que tudo!

Estas palavras, proferidas com modos superiores e com a intimativa de quem profere verdades inconcussas, irritaram um pouco o mancebo, que replicou:

-- Ora deixe-se d'isso, reverendissimo.

«A ordem! Pois não sabemos nós o que é a ordem?!...

«A Ordem é este grito dos exploradores quando o explorado lhes pretende lembrar que tambem tem direito a viverEntão nós que te fazemos a mercê de nos sustentarmos do teu trabalho, nós que te damos a honra de nos utilisarmos do que tu produzes, nós que te obsequiamos gastando em toda a especie de devassidões o dinheiro que tu ganhas, nós que nos rebaixamos governando-te, mandando-te, expoliando te e castigando-te, somos assim censurados e invectivados por ti, porque nós comemos e tu tens fome, porque nós gosamos e tu trabalhas, porque nós vivemos no ocio e tu morres de cansaço, porque nós damos largas a todos os vicios, emquanto tu vives na desoladora morigeração que a miseria faculta, porque nós rimos e tu choras, porque nós evitamos os ardores do sol e nos preservamos do frio e tu arrebentas de insolação no estio ou enregelas no inverno?! Pois então espera: vês aquelles sabres, espadas, lanças, bayonetas, espingardas e canhões movidos por aquelles homens brutaes que nos obedecem como cães? São para te golpear, rasgar, atravessar, esmagar, trespassar e esmigalhar; e se escapares, olha ainda: vês aquella pocilga nogenta, repugnante, terrea, húmida, lôbrega e infecta, onde ha só um mocho por assento e um punhado de palha balienta e pôdre por cama? Éuma prisão. Ali apodrecerás, tendo para matar a fome um caldo que um suino rejeitaria e um pedaço de pão que um cão não poderia trincar, e para mitigares a sêde a agua dum caco immundo que um homem carrancudo e malcreado te renovará de tempos a tempos. Ah! Ah! -- gargalhará ainda o explorador -- falas em juizes?

«Fia-te n'elles! Não sabes que teem de nos obedecer e de cumprir uma coisa chamada lei, que nós fazemos e que elles muitas vezes tornam ainda mais cruel, torcendo-a como o vendaval torce o frágil canniço?!»

E dando uma risada perguntou:

-- São estes os princípios ordeiros de que o sr. padre Seraphim é apologista, não é verdade?

-- Esqueça por um momento -- volveu o padre desdenhoso -- essas doutrinas perigosas e subversivas e lembre-se do que seria o mundo sem essa ordem social que tanto ataca: um chãos! Veja o que foi a França durante esses terriveis dias de revolução e o que seria Lisboa se essas arruaças não fossem extinctas e se a ordem não fosse restabelecida. Essa gentalha que para ahi grita e berra faria mortes, embriagar-se-ia em sangue e commetteria toda a especie de atrocidades. Sempre desejava saber se o senhor a applaudiria...

O Espirito Santo queria pintar com as mais negras côres os perigos que podiam advir do movimento popular, para que a aversão que Zelia já sentia por elle não afrouxasse; e, além d'isso, convinha-lhe que o estudante se excedesse, porque qualquer inconveniencia de linguagem que elle com mettesse julgava poder dar-lhe bom resultado.

Mas a donzella começava a aborrecer tal discussão, que lhe não dava momento azado para patentear ao primo toda a raiva de que estava possuida contra Gilberto.

Armando retorquira:

-- Os patriotas, a quem chama com tanto desprezo gentalha, se não temessem a força armada, não commetteriam os excessos que diz, mas dariam á nação a liberdade de que ella tanto carece. Poderiam, quando muito, buscar um ou outro ente mais odiado para expansão da sua colera, aliás justificada, e por ahi por certo ficariam as suas justas represalias.

-- Justas, diz?! Lembre-se que isso é approvar o assassínio!

-- Sim, senhor... O povo, sempre esmagado e roubado, se um dia, num impulso altaneiro da sua força, faz justiça por suas mãos, é besta-fera, é assassino! Mas se um governo, ao ver-se ameaçado pelo braço popular, metralha milhares de cidadãos, não fez mais do que cumprir o seu dever, e o sangue derramado éum acto de justiça. Boa moral, não ha duvida.

«Se os chamados amigos da ordem, matam, despedaçam, assassinam, como esses sicários das matanças dos albigenses, de S. Bartholomeu, dos boulevards de Paris, do Campo de Sant'Anna, etc, são louvados , abençoados, glorificados por todos os ordeiros, a começar nos papas; se um dia o povo se levanta, e como senhor absoluto, quer mandar em sua casa, castigando os que o roubavam e escravisavam, não ha insulto que lhe não cuspam, affronta que lhe não atirem. E quer esta gente que o povo a acate e estime, a respeite como a um pae, se não é para elle senão um tigre! E querem os senhores tambem ser considerados como delegados d'um ser sobrenatural, justo e bom, e afinal collaboram com os reis em todas as injustiças, oppressões e tyrannias...

O padre Seraphim, assim increpado de frente, encheu-se d'uma santa indignação, exclamando:

-- Senhor!... Uma tal linguagem só é propria dos inimigos da nossa santa religião!

-- E quem lhe diz que eu o não seja?

-- O senhor, quasi um medico?! Não vê que a sua missão futura tem tantos pontos de contacto com a nossa!

-- Alto lá! Menos isso, sr. padre Seraphim!

«A missão do medico é diametralmente opposta á do padre.

-- Se alguma differença ha, é toda a posso favor.

Os senhores só tratam do corpo, isto é, da misera materia, emquanto nós tratamos da alma; mas ainda assim alguma correlação ha...

-- Nenhuma, absolutamente. Os senhores creem, ou fingem crer, no sobrenatural e nós negamos a sua intervenção nos phenomenos terrestres; os senhores ganham dinheiro prestando serviços imaginários, phantasticos, e cuja efficacia só se manifestaria, se nãp fosse illusoria, num outro mundo desconhecido; e nós ganhamo-lo, muitas vezes arrostando com os maiores males, prestando os sabidos, visíveis, palpaveis e de reconhecida e immediata vantagem; os senhores, emfim, defendem o dogma -- as trevas; nós defendemos a analyse -- a luz. Não ha, pois, entre nós conformidade alguma.

-- Pelo que vejo o senhor gloria-se em ser atheu?

-- Eu só me glorio de possuir os conhecimentos precisos para abominar os absurdos com que a egreja catholica tem embrutecido uma parte da humanidade, que n'ella crê, e com que tem atrazado em muitos seculos as conquistas do progresso e da sciencia. Admitto que haja uma causa d'onde dimana a materia, e mais nada. O resto são manifestações d'ella, e que só pela muita ignorancia humana e pelas hediondas repressões e imposições religiosas se tem continuado a attribuir á acção d'um Deus que tudo cria e tudo faz. Mas ainda que acreditasse no Deus de que os senhores se dizem ministros, estava longe de ser catholico. O catholicismo, -- permitta-me dizê-lo a sua benevolencia -- que é uma seita de interesses collectivos, é tambem a negação do christianismo. Sem elle...

-- Sem elle pullulariam os monstros sanguinários, como esses da revolução franceza--interrompeu o padre, mal podendo conter a sua colera.

Armando sorriu, e, serenamente, respondeu:

-- É a segunda vez que o sr. padre Seraphim me fala na Revolução Franceza. Ora se fizéssemos um parallelo entre a Egreja Catholica e a Revolução Franceza veríamos que esta inundou o mundo com a luz rutilante da liberdade e da justiça, emquanto a egreja só tem dado trevas e escravidão.

«É certo que a republica, para se prevenir contra os seus innumeros e terriveis inimigos, teve de decepar muitas cabeças; mas terá a egreja auctoridade para a arguir d'isso?

«Uma occasião ouvi aqui á minha illustrada prima, antiga revolucionaria, uns versos que são um eloquente libello atirado por um nosso grande poeta aos crimes da egreja, de que o sr. padre Seraphim é tão preclaro ministro.

«Ouça-os, que elles respondem á minha pergunta.

Jehovah! eu vi morrer Bruno contemplativo: Hypathia, Harvey, Manes, todo esfolado vivo! Eu vi Phocio proscripto e João Huss queimado, Galileu na prisão: -- Marius esquartejado. Ao titan Prometheu preso à cruz das montanhas descia o abutre antigo a arrancar-lhe as entranhas, João de Leyde soffreu porém mais crus abrolhos, Servet morreu no fogo e Masius sem ter olhos! Eu vi, Deuses, matar milhões d'Anabaptistas, Arianos, manicheus: varar os calvinistaes!... Eu vi Savanarola, um sabio, um justo, um santo, por cuja morte atrae Raphael deitou pranto e o divino esculptor Miguel Angelo luto, feito todo um tição -- o Deus forte e absoluto! Padres, Petrarchas, Deuses antigos, novos! eu vi torcer na cruz mil gerações de povos, vi ruir Berier, Tolosa e essas matanças de mais de oitenta mil homens, mulheres, creanças: vi carnagens, prisões, vi nas pedras das praças as mil degollações dos tribus e das Raças, e ao ver vossos tições, potros, polés eternas, gritei: -- és um cordeiro hyena das cavernas.

E continuou com voz vibrante e irónica até á apostrophe aos deuses.

Depois sorriu e sem dar tempo a que lhe respondesse continuou:

-- Parece me que a seita, ou seitas, que teem a bagagem historica tão soberbamente pintada n'estes versos admiraveis, não podem classificar de monstros ferozes nem os Neros, os Heliogabalos, os Dioclecianos, os Tiberios, os Dyonisios, quanto mais os astros de primeira grandeza que projectaram sobre a humanidade inteira a luz radiosa da Liberdade.

«Eu não sei dizer estes versos com aquella graça, com aquella viveza, com aquelle enthusiasmo que minha adoravel prima lhe imprimiu na unica vez que tive o prazer de ouvir lh'os recitar; mas se ella agora quizesse honrar-nos, repetindo-os, tenho a certeza de que ao sr. padre Seraphim havia de escaldar como ferro candente esse traje ecclesiastico.

Zelia sentia-se opprimida e vexada.

Era certo ter ella um dia, n'uma reunião familiar, recitado aquelles versos, que por signal produsiram um grande escandalo, mas não podia relevar a seu primo que elle lhe relembrasse aquella loucura, e, principalmente, diante do seu dedicado conselheiro, ficando por isso contrariadissima e muito ruborisada. Ao espirito Santo nada d'isto passou despercebido; e, vendo que não podia deixar de ficar encravadissimo na discussão com um homem que muito bem sabia a historia e não trepidava em atirar-lh'a á cara, pensou que o melhor que tinha a fazer era aproveitar esta occasião, em que a joven assim estava descontente com os despropositos do primo, e, fingindo se offendido com aquelles ataques á religião de que era membro, sair d ali, o que podia levar a sua proselita a zangar-se com o imprudente mancebo.

Pegou, pois, no chapeu e, tomando a expressão mais humilde e penalisada, disse:

-- Nunca pensei, sr.ª D. Zelia, que aqui pudesse ouvir palavras que tanto me ferem como homem e como ecclesiastico; e lastimo que seja na presença de v. ex.ª a quem devo todos os respeitos e attençoes, que eu assim seja vexado e obrigado a ouvir todas as heresias, pois que não posso nem devo fulminar com as provas irrespondiveis dos factos, quem tão injusta e levianamente aggride tudo o que ha de mais santo e inatacavel, para não prolongar um incidente que hade ser-lhe doloroso, faltando assim a todos os deveres de cortezia e de consideração. Por isso só tenho a pedir-lhe desculpa e retirar-me, sentindo, ao mesmo tempo, que o não tivesse feito antes que a meus ouvidos chegassem essas palavras, que me produziram uma dôr inegualavel.

E fazendo uma respeitosa venia, dirigiu-se para a porta.

-- Peço-lhe que se não retire, sr. padre Seraphim -- rogou Zelia.

-- Perdoe-me, minha senhora, mas não posso ficar -- respondeu elle, e saiu effectivamente para a rua.

Armando, que só via n'aquella saida o que ella tinha de real -- uma fuga, deu uma estrondosa risada, exclamando:

-- É a vergonha que já o faz fugir, reverendo Espirito Santo?

-- Na verdade, o primo sempre é d'uma inconveniencia!... reprehendeu Zelia, sinceramente offendida.

-- Ora... por maior que seja a minha inconveniencia, nunca chegará á volubilidade da minha amavel priminha...

-- Seja mais justo nas suas apreciações e confesse que o seu procedimento foi pouco de... de...

-- Delicado, diga, diga.

-- Pois está dito: foi pouco delicado para uma visita do papá...

-- E de quem a prima é joguete, tambem pode accrescentar.

-- Eu não tenho sido joguete senão d'aquelles que menos mereciam que eu os attendesse; d'este não. Estimo-o por duas razões: primeira por ser amigo do papá, segunda por ser sacerdote digno, honrado e respeitavel.

«Acceito por isso os seus conselhos, que são sempre honestos, desinteressados e repletos de verdade. Se todos os homens assim fossem não havia tanta malevolencia, tanto engano, tanta perfidia.

-- Agora, minha cara prima, que fez o panegyrico d'esse seu preclaro conselheiro, ouça o que vou dizer-lhe e responda se pode ou se quer fazer-me esse obséquio: foi elle que a fez mudar tão repentinamente de ideias, a ponto de abominar o que ainda ha pouco admirava?

-- É certo que elle me esclareceu um pouco, mas no meu espirito já começavam a ser rebatidas as minhas antigas doutrinas, erróneas e improprias do meu sexo e posição.

-- Foi elle que a incitou a romper com o Gilberto?

-- Não foi. Elle até me animava, embora reconhecesse a grande tolice que eu fazia; mas eu é que vi o abysmo em que ia precipitar-me e recuei a tempo. Algumas informações que elle me dava só eram filhas da sua boa fé e do desejo de me ver feliz.

-- E se eu lhe disser que esse homem é um comediante e que todos esses conselhos e informações só visavam a affasta-la do Gilberto, inventando, n'esse intuito, toda a especie de embustes, de perfidias e de calumnias?

-- Não é só dize-lo... se quer que eu o acredite: é mister prova-lo. Tem alguns dados que o habilitem a fazer essas affirmações?

-- Não tenho, por emquanto, mas julgo que me não seria difficil arranja-los.

-- Pois então, em os tendo argumente.

E com um sorriso de mofa accrescentou:

-- Olhe: veja tambem se prova que o seu amigo não tem amantes em casa...

-- Amantes?!

-- Sim, uma certa filha do dono da casa, que elle enganou...

Armando não podia crer no que ouvia, tanto isso o impressionava. Não é que elle ligasse importancia ao caso do seu amigo ter uma amante... por que não podia ser elle, por esse motivo, que o condemnasse; mas chocou-o aquella affirmativa de que essa amante era a filha do dono da casa. Era portanto por Eugenia que falava. Mas seria isso possivel?!

E lembrava-se d'aquella vez que a lá encontrara no quarto, e julgava agora descobrir o motivo porque Gilberto fugia de falar d'ella e parecia não gostar que a elogiasse. Mas elle, que era a lealdade em pessoa, e que jámais havia sido encontrado em mentirá ou em disfarce, mentiria n'aquella occasião? Não, não podia ser.

A joven, vendo-o tão pensativo, volveu:

-- Vê, que não pode destruir os factos?

-- Prima, parece-me que isso não passa d'uma calumnia torpe!

-- Porque? não existe tal creatura? -- perguntou ella, um pouco alvoraçada, desejosa de arrancar aquelle espinho que o padre lhe cravara no coração.

-- Na verdade, o dono da casa tem uma filha, ou antes um anjo, que por certo está innocente d'esse crime que lhe imputam.

-- Pois o seu amigo, embora não acredite em anjos, nem em santos, fez acquisição d'esse.

-- Já lhe disse que me parece ser isso uma calumnia...

-- Ora... primo! é melhor que fale quando tiver a certeza d'alguma coisa.

-- E se eu lhe provasse que o padre é um tratante, um calumniador e que essa rapariga nunca foi amante de Gilberto?

-- Não me parece que possa fazê-lo...

-- Mas admittamos a hypothese.

-- N'esse caso esqueceria os aggravos que tenho de... d'esse senhor, e, se tambem fosse mentira outro dito do padre Seraphim, talvez que ainda o viesse a amar mais do que nunca.

Armando passeava concentrado e sombrio; e depois d'uma pausa tornou:

-- A prima bem sabe que se me torna impossivel trazer-lhe aqui provas de qualquer facto que consiga descobrir...

-- Comprehendo; mas como sei que o primo, apesar do seu incessante humorismo, nunca dá a sua palavra d'honra em vão, contentar-me-hei com ella.

-- Obrigado, prima. Antes de vinte e quatro horas aqui estarei; e, se não conseguir alcançar provas ou a certeza do que affirmo, pelo menos quero fazer-lhe ver que nem o Gilberto, nem eu, nem qualquer dos manifestantes das ruas, merecemos o conceito em que a prima nos tem. Mas agora não quero perder tempo algum, pois que nunca elle me pareceu tão precioso.

E apertando-lhe a mão, saiu rapidamente da sala, murmurando, ao percorrer os corredores que o levavam á porta da rua:

-- Ah! cão de jesuita, que hei de desmascarar-te, ainda que tenha de ir buscar provas a casa de teu irmão Satanaz!

XX

A confissão

Armando de Sampaio, ao abrir a porta que dava para o patamar da escada, deu de cara com uma velha de rustica apparencia, que lhe tomou o passo, perguntando opprimida:

-- Faz-me favor, diz-me se aqui está o sr. padre Saraphim do Espirito Santo?

-- Que quererá esta carraça áquelle salafrario? --interrogou para si o mancebo.

E como a sua intenção era ir, por qualquer forma, investigar das virtudes do mentor de sua prima, pensou que talvez o accaso lhe proporcionasse já alli uma occasião propicia. Respondeu pois:

-- Está, sim, senhora. Que lhe deseja?

-- Desejava dar-lhe um recado.

-- Se quer dizê-lo... eu vou transmittir-lh'o.

-- A mim pediram-me que só lh'o desse a elle...

-- Parece-me que elle não pode agora cá vir fóra. Está com outros senhores a tratar uns assumptos de importancia...

-- Olhe, antão faça favor de lhe dizer que a pessoa que elle sabe, da Travessa da Boa-Hora, lhe manda pedir que vá lá o mais depresssa possivel, porque está cada vez peor e quer que elle a oiça de confissão. Ih! Jesus! Sabe Deus como ella estará agora, a pobrezinha.

-- Mas como é que soube que o sr. padre Seraphim estava aqui?

-- Ah! Senhor! não imagina quanto me custou a encontra-lo! Até já fui a Campolide! Se não é a creada lembrar-se agora de que talvez aqui estivesse, não dava decerto com elle. E isto que é de tanta pressa!... Valha me Nossa Senhora!

-- Mas porque não procurou outro?

-- Oh, senhor! antão, são sapathias. Ella só quer ao pé de si o sr. padre Saraphim. É o sr. padre Saraphim para aqui, o sr. padre Saraphim para ali, não fala senão no seu santo padre Saraphim, e até nos seus sonhos afflictos se lhe ouve o seu nome. Cá na minha, a mulher já foi creada d'elle, ou coisa que o valha. Eu sou vizinha d'ella e tenho muito dó, quando vejo alguem doente... Já meu defunto marido...

Armando, vendo que a conversa promettia dar, interrompeu-a, dizendo:

-- Bom; eu lá vou dar o recado ao sr. padre Seraphim.

E tornou a fechar a porta. Mas, em vez de tomar pelo corredor que conduzia ás salas, tomou á direita e dirigiu-se á cozinha. Teve porem o cuidado de não fazer barulho com a porta; e, como o estofo lhe abafava os passos, poude ali chegar sem ser ouvido pela prima ou pela tia.

Junto do fogão estava uma creada que, pelo volumoso das formas, e sobretudo pela côr apimentada do rosto, indicava logo a sua origem provinciana.

Logo que viu o estudante, os olhos adquiriram um brilho especial, as faces tornaram-se escarlates e os beiços sensuaes abriram-se n'um sorriso franco, exclamando:

-- Lá vem o demonico alentar-me.

-- Pois se tu és tão tentadora!...-- assentiu Armando. E começou a rir-se com ella, dando-lhe alguns belliscões nos carnudos braços.

A rapariga forcejava por se livrar d'elle, e, por fim disse-lhe, brandindo o abano, muito afogueada:

-- Olhe que leva!

Mas os seus olhos risonhos pareciam pedir mais.

Como sentisse passos, o mancebo retirou-se, receoso de que alguem fosse á porta e lhe transtornasse os planos.

No corredor encontrou outra creada; esta era franzina, pallida, estiolada, como o são todas as que passam a vida na atmosphera das cidades, sempre pobre de oxigenio,e peor do que isso, nas casas mal alumiadas pela luz do sol, mas ainda assim galante.

Era, na especie, variedade,que alguns preferem ás roliças formas das moças campesinas. Armando dirigiu-lhe, á pressa, algumas phrases trocistas, mas esta nem sequer fingia que se zangava.

Chegado á porta, disse á velha que o senhor padre Seraphim mandava dizer que n'aquelle momento lhe era absolutamente impossivel poder sair, mas que mandaria em seu logar um collega e amigo dedicadissimo que o acompanhava, o que era o mesmo que ir elle proprio. Que podia dizer á doentinha que confiasse na devoção e santidade do que ia substitui-lo.

Apesar de se ter entretido com as creadas do tio, o mancebo tinha monologado assim:

-- Havendo tanto carola n'esta malfadada terra da alface, e andando se por toda a parte á procura d'um, é porque se teem segredos que só a elle se querem revelar. Demais, se a mulher já foi creada ou amante d'aquelle patife, deve conhecer-lhe a vida, e é isso que eu pretendo saber. Preciso, portanto, arranjar padre que vá confessá-la por minha conta.

Foram estas reflexões que motivaram aquella resposta, o que fez dizer á pobre mulher:

-- Seja pelo divino amor de Deus! Muito vae custar á pobrezinha que não seja o sr. padre Saraphim quem lá vae. Ella só o queria a elle...

-- Então, bem vê... se não póde ser!... -- retorquiu Armando com mostras d'enfado e fazendo mensão de fechar a porta.

A velha desceu o pequeno lanço d'escada e saiu, saindo elle tambem quasi a seguir. Na praça dos Restauradores encontrou Gilberto, a quem contou o que se passava, accrescentando:

-- Ainda não está tudo perdido. Agora o que primeiro ha a fazer é ouvir a confissão da mulher, que pôde ser elucidativa. Depois fallaremos sobre uma intriga...

-- Mas onde diabo queres tu arranjar padre que se preste a servir-te? -- interrompeu o amigo.

-- Isso é cá commigo. Anda d'ahi.

E chegando a uma barbearia do Rocio, disse para o official que estava á porta esperando os freguezes e limpando as bem cuidadas unhas:

-- É capaz de me escanhoar em cinco minutos, Figaro donzel?

O rapaz farejou insulto n'aquellas palavras, torceu a cara n'um sorriso forçado, e respondeu:

Far-se-há no menos tempo que puder ser.

Pouco depois estava, de feito, com a cara rapada.

Gilberto, ao ver que elle mandava cortar o nascente buço, objecto de tantos cuidados, puxões e torceduras, perguntou admirado:

-- Pois tu deitas abaixo essa teimosa e rachitica lanugem?!

-- E então? um actor não precisa desempenhar papeis em que não póde usar barba? Pois a comedia em que eu hoje vou ser protagonista é d'essa natureza. O peor é a minha sentimental Julieta, que vai sentir immenso a falta do meu tão encantador adereço pilloso. Emfim, paciencia...

Ao ver-se livre das mãos do artista, foi metter-se com o amigo num coupé e mandou bater para a rua dos Douradores. Ahi mandou esperar o trem e subiu com o jornalista ao primeiro andar, onde estava installado um guarda-roupa.

-- Então tu é que queres ir fazer de padre? -- interrogou Gilberto.

-- Que remedio...

-- Não deves fazer isso, que não é acção digna de ti.

-- Ora adeus. Deixa-me cá.

E pediu uma sotaina, uma volta, um chapeu de feltro e uns oculos escuros.

E ao mesmo tempo que ia sobre si pondo aquelles jesuiticos objectos, dizia ao companheiro:

-- Ora vê lá se já não pareço um tratante como qualquer outro? O peor é a marca da fabrica, isto é, o zero na cabeça, que isso é que eu não faço.

Um instante depois estava preparado. Depositou a canção e foi, sempre acompanhado por Gilberto, metter-se no trem, mandando bater para a egreja de S. Roque.

-- Que maldita cara tu arranjaste! -- troçava o jornalista emquanto o trem ia rodando para o sitio indicado. -- Deixa-me correr os Stores, que se alguem me visse na companhia d'um jesuita estava deshonrado.

E Armando ia dizendo com desespero:

-- Malditas cangalhas! Que horrivel incommodo ellas me causam! Eu não posso supportar isto no nariz...

-- Tira-as, tira-as -- retorquia o outro rindo; -- ao menos não me parecerás tão repellente.

-- É verdade! Como diabo hei de eu arranjar-me para a absolver? Eu não sei nada d'essa lengalenga.

E como Gilberto não respondesse e encolhesse os hombros como quem desaprovava tal acto, Armando continuou:

-- Bom, tu agora saes em S. Roque e esperas-me em S. Pedro d'Alcantara.

-- Pois sim; como já conheço o cocheiro, escusas d'apparecer á portinhola quando voltares, porque logo que o trem pare, eu virei ter comtigo. Não desejo que me vejam junto d'essa roupeta.

-- Assim farei. Ainda que... são capazes de suppor que é alguma envergonhada e gentil dama que aqui se occulta.

-- É o mesmo. Antes assim.

E dando uma risada, Gilberto apeou-se, pois que o trem acabava de parar no largo de S. Roque, e deu ordem ao cocheiro para que levasse o amigo á próxima travessa da Boa-Hora, indicando-lhe o numero.

Passados alguns instantes o trem tornou a parar, e o improvisado jesuita saiu d elle, entrando n'uma loja sombria e humida, que ficava abaixo do nivel da rua.

Logo á entrada approximou se-lhe a velha a quem ha pouco fallara na Avenida, e que nem por sombras poderia suppor que aquella charra figura de jesuita era a do sympathico mancebo que lhe levara o recado ao padre Seraphim do Espirito Santo.

Ainda assim, Armando, receoso de que ella o reconhecesse, disfarçou o mais que poude a voz ao perguntar-lhe:

-- É aqui que está uma doente que o meu venerável irmão, padre Espirito Santo me recommendou?

-- É sim, sr... pa... sr. prior -- tartamudeou a mulher, sem bem saber o que dizia. E indicou um pequeno quarto onde bruxuleava a pequena luz de uma lamparina.

-- Bravo! -- dizia mentalmente Armando -- já fui elevado a prior. Com esta pressa ainda chego a papa...

E encaminhou se para o quarto, acompanhado pela velha.

Era este aposento um estreito cubiculo, onde, alem da cama, mal ficava espaço para andar uma pessoa.

Não tinha janella, recebendo o ar e a luz pela unica abertura que tinha--a porta.

A cama era modesta mas limpamente arranjada, e as paredes pareciam as do quarto de D. Innocencia, tambem todas cobertas com estampas de quantos santos reza o calendario, se bem que mais limpas e asseadas.

O estudante, ao reparar na doente, quasi recuou horrorisado, não obstante estar já habituado a ver nos hospitaes toda a especie de doenças que affligem a humanidade, e de ter, com os condiscípulos, na casa das dissecções, espostejado os cadáveres que lhes confiavam.

O que elle via na sua frente não era um ser vivo: era uma caveira movediça, apenas revestida duma mirrada pelle, e tendo nos buracos das orbitas duas nodoas negras, pavorosas.

E todavia notava-se que aquella creatura ainda não era velha; mas as doenças, ou qualquer outra causa, tinham na reduzido áquelle phantasma que ali estava.

Quando sentiu mexer na porta, voltou-se agitada e fincou os desnudados braços no colchão, conseguindo assim sentar-se na cama e deixando descoberto o secco peito, onde se não divisavam signaes de tecidos.

A caritativa e voluntária enfermeira quis acender um candieiro, visto que, fechando a porta, apenas ficava alumiando o quarto a luz subtil da lamparina; mas Armando disse-lhe não ser preciso, e fez lhe signal para que se retirasse, o que ella se apressou a fazer, fechando a porta.

Foi só então que o falso padre tirou o chapeu, para que a velha lhe não pudesse notar a falta da corôa.

Da doente, como ficava em plano inferior, não tinha que recear.

O estudante sentia-se commovido.

Quando resolvera desempenhar aquelle papel, parecia-lhe o caso uma brincadeira, e julgou poder leva-lo a bom fim sem inconveniente de maior.

Agora, porém, em frente d'aquella mulher cadaverica, que se lhe figurava uma mumia terrifica, sentia-se possuido d'um certo remorso em querer brincar com a miseranda situação d'aquella creatura por certo muito infeliz, e todo o seu desejo era poder prestar-lhe, em vez de confissões, soccorros clinicos, que com certeza bem os precisava ella.

Principalmente depois de fechada a porta, mais se deixara invadir por um secreto mal estar, tal era o aspecto lugubre da acanhada camara, onde mal se distinguiam os objectos, só se percebendo enrodilhada n'aquelle pobre catre a infeliz mulher, que mais parecia um espectro horrido do que um ser vivo.

Não podia, porem, recuar. O passo estava dado, e forçoso era ir para a frente.

Puxou pois uma cadeira que estava encostada á cama, sentou-se e começou a dirigir á desgraçada palavras de conforto e carinho, porque ella parecia possuída da maior agitação.

-- Então o sr. padre Seraphim não quis vir? -- perguntou ella com voz debil e tremula.

-- Não poude -- respondeu Armando confrangido. -- São tantas as suas occupaçoes...

-- Mas elle tinha-me prohibibo de revelar o... meu segredo fosse a quem fosse, mesmo debaixo de confissão.

-- Mas commigo não se entende isso, pois que entre mim e elle não ha segredo?, e por isso...

-- Então oiça os meus tremendos peccados, meu padre, que isto está por pouco, e eu não queria morrer sem absolvição.

Armando approximou a cadeira o mais que poude, e ella começou assim:

-- Eu sou muito peccadora e muito criminosa.

Logo de pequena, deixada em liberdade por meu pae, que só passava no trabalho o tempo que a taberna lhe deixava livre, o que só acontecia quando se lhe acabavam os últimos cinco reis, e não tendo eu respeito algum a minha mãe, que se finava de fome e desgostos pela vida perdida de meu pae, breve cahi na ultima degradação, acabando assim de matar a infeliz que me dera o ser.

«Só passados muitos mezes, e quando já tinha a nitida comprehensão da desgraça a que tinha descido, é que soube da sua morte.

«Eu estava prostituída, mas não tinha o coração pervertido. A vida que, antes de lá chegar, se me antolhava alegre e divertida, depressa se me afigurou tal qual é -- ascorosa, torpe, repellente. Aquelle pantano, onde se chafurda em toda a especie de podridões e de miserias, tem, aos olhos inexperientes, attractivos que seduzem.

«Ao saber, pois, da morte da minha mãe, foi tão grande a minha dôr e foi tal o nojo e odio que tomei a tudo e a todos, que fugi do immundo alcouce, corri á minha antiga residencia, na esperança de que fosse falsa a noticia; e ao saber que era verdadeira, precipitei me para a primeira egreja que encontrei, chorando afflictivamente e chamando por minha mãe.

-- Descance, descance um pouco -- rogou-lhe Armando, vendo-a cançada e soluçante.

Mas ella proseguiu, como quem tinha pressa em desabafar:

-- A egreja estava quasi deserta. O sacristão quiz pôr-me fóra, mas o prior, que era um homem robusto e ainda novo, chamou-me e quiz saber o motivo da minha afflicção.

«Contei-lhe toda a minha ignominiosa vida, sem occultar nenhuma particularidade. -- «Então agora que tenciona fazer?» -- interpellou elle. «Nem eu sei. Matar-me que é só o que me resta» -- respondi.

Dissuadiu-me, dizendo que não fizesse tal, que o suicidio era um dos maiores peccados que um christão podia cometter, que ainda estava a tempo de alcançar perdão para as minhas culpas e que, se não tinha mais para onde ir, ficasse em sua casa, pois que me aceitaria como creada.

«Acedi de bom grado a tal proposta. E alli passei os melhores dias da minha vida. Era elle uma boa alma que só pensava em fazer bem, mas não fazia caso da religião e tinha uma teimosia, de que não havia quem o demovesse: não queria na sua egreja confissões senão na quaresma, e mesmo então não admittia lá padres estranhos. O sr. padre Seraphim e outros quiseram para lá ir, mas elle mandou-lhes dizer que se lá apparecessem os corria com um azorrague, como Christo fizera aos vendilhões.

Eu porem entendia que para a salvação da minha alma precisava fazer penitencia, e um dia fui confessar-me ao sr. padre Seraphim, que me disse que o meu protector andava possuído de Satanaz, que para beneficio da minha alma e da d'elle era preciso que me confessasse todas as semanas e revelasse tudo o que elle fazia. Comecei, pois, a espiona-lo. Um dia soube que elle fora chamado a S. Vicente. Quando voltou era noite e vinha furioso. Mandou me fazer café, dizendo que precisava escrever muito, pois que o patriarcha e os jesuitas queriam festa, mas que haviam de dançar; accrescentando que tanto se lhe dava perder a egreja como não.

Que havia de desmascarar aquelles tartufos.

«Quando reproduzi estas palavras ao sr. padre Seraphim, meu santo confessor, lastimou-o muito, dizendo que o diabo se tinha apossado delle; e eu tambem acredito, porque até de noite se punha a gritar, ameaçando o senhor patriarcha, os jesuitas e outras pessoas que eu não conhecia. E de dia e aos serões não fazia outra coisa senão escrever, enchendo cadernos e cadernos. Eu bem os queria ler, mas só percebia palavras soltas se o titulo, que era em letras gordas e dizia: Os crimes do patriarchado.

«Como eu os não pudesse mostrar ao meu santo confessor sem elle dar por isso, deu-me o sr. padre Seraphim um liquido escuro para eu lhe deitar no café, afim d'elle os lá poder ir ver.

-- E matou-o? -- interrogou Gilberto com anciedade.

-- Ai de mim! -- gemeu a desgraçada. -- Eu julguei que elle me dissera que o deitasse todo, só depois é que soube que deviam ser cinco ou seis gottas para lhe produzir profundo somno.

«Logo que o meu bemfeitor tomou o fatal café, disse-me que sentia a cabeça muito pesada e que ia deitar-se. E lá foi cambaleando para o quarto.

«Á hora aprazada veio o sr. padre Seraphim; eu fui escutar á porta do quarto, receosa, não acordasse elle. Como nada senti, encaminhei-o logo para o escriptorio. Para não se demorar a ver tudo aquillo, enrolou todos os cadernos e levou-os, ficando em m'os mandar de madrugada. Não me deitei em toda a noite, temendo sempre que o sr. prior accordasse e desse por falta dos seus papeis, e esperando anciosamente que o sr. padre Espirito Santo

os trouxesse para os ir pôr no seu logar.

«Os meus receios eram d'aquelles que em poucas horas tiram annos de vida. Parecia-me, a cada momento, que elle se levantava e via que eu o atraiçoava. Não obstante saber que trabalhava para a salvação da minha alma, parecia-me, pela minha perfidia, maldita aos olhos de Deus.

«Entretanto amanhecia e o sr. padre Seraphim sem apparecer.

«Ardendo em febre, fui procura-lo, mas elle disse-me que ainda não lera tudoe que as seis gottas lhe dariam somno até mais tarde. As seis gottas! Pareceu-me que a meus pés se abria o inferno para me subverter.

«-- Então deviam ser só seis gottas? -- interroguei eu morta d'afflicção.

-- Pois quantas? Então eu não lhe disse que deitasse apenas essa quantidade?» -- «Ai meu Deus, que estou perdida!»--rouquejei eu, contorcendo me em ancias mortaes. E perguntei-lhe offegante, pois ainda tinha um raio d'esperança: «Mas não haverá meio de combater aquella droga? Poder-se ha ainda salvar? Oh! diga-m'o, por Deus, pela Virgem Santissima, que, ainda que tenha de apresentar-me como a mais repugnante das criminosas, quero salvar-lhe a vida!» «Se lhe deu a porção toda -- respondeu-me o sr. padre Seraphim -- ha que tempos morreu elle!» Gritei, escabujei e o que soffri e tenho soffrido, até hoje só Deus o sabe.»

A infeliz, debilitada de tanto faltar, teve de interromper-se durante alguns instantes para tomar algum alento. Dos olhos, medonhamente coruscantes pelo effeito do terror que d'ella se apoderara ao relembrar estes factos, pareciam chispar faulhas infernaes.

Pouco depois continuou:

-- O sr. padre Seraphim deixou desafogar em soluços espedeçadores e abundantes lagrimas a minha dôr e depois disse me:

«Acalme se mulher e lembre-se de que não passou d'um instrumento de que Deus se serviu para castigar um peccador e livrar a sua egreja d'um hereje sem fé nem lei. Se você não ouviu as minhas palavras, é porque Deus assim o quiz, para que fosse feita a sua divina justiça; e por isso não deve você estar a offende-lo com as suas lastimas. Cumpre lhe só acabar de fazer a vontade a Deus Nosso Senhor, Todo Poderoso, e livrar-se das garras da justiça.»

Estas palavras deixaram-me mais acalmada e pedi lhe que me dissesse o que devia fazer. «Vá para casa e em sendo dia claro mande o sacristão chamar este medico -- e deu-me um cartão -- e faça o que elle lhe disser.

«Voltei para casa a querer confortar-me, por ver que só tinha cumprido a vontade do Senhor, mas ainda assim parecia-me que um bicho me roía interiormente.

«Cumpri em tudo o que me fôra ordenado, mas sem me atrever a entrar no quarto. Quando o medico chegou, quiz acompanha-lo, mas não me senti com coragem de o fazer. Elle tambem pouco se demorou Passou logo a certidão d'obito, declarando que morrera duma congestão, e disse-me que podia mandar tratar do enterro. Incumbi o sacristão de chamar um cangalheiro, e, emquanto elle não voltava, enchi-me d'animo e quiz ver morto quem em vida tão bom fora para mim. A sua expressão decomposta, os olhos saindo das orbitas, o rosto entumescido e avinagrado, os labios inchados e negros, tinham um não sei quê de pavoroso e horrível, que ainda até hoje não pude esquecer aquella figura medonha. Quando o sacristão e o cangalheiro entraram, encontraram-me prostrada no quarto.

Ergueram me, suppondo que a pena pelo meu protector me levou áquelle ponto. Estive todo aquelle dia sem dar accordo de mim, e de noite tive uns horriveis pesadelos que nunca mais me abandonaram o somno. Vejo o, na horrorosa figura em que o vi no quarto, dirigir-se a mim, com os punhos cerrados, chamando-me infame envenenadora e apertando-me o pescoço até me asfixiar.

«Sinto-lhe mesmo o contacto dos dedos vigorosos a cumprimirem-me os gorgomillos, e parece mesmo que suffoco.

«Quando accordo, cheia de pavor, doe-me de tal modo todo o pescoço que tenho a impressão de que, com effeito, me quizeram estrangular.

«E isto sempre que me deixo vencer pelo somno, desde aquella noite fatal.

«Aqui me encerrei para fazer penitencia, só sendo visitada por esse santo ministro que o cá mandou e que me tem querido confortar, mas sempre em vão.

«O terror que de mim se apossou com os meus pungentes remorsos e as doenças, abalaram-me de tal forma a saude que me tornei n'isto que vê. Agora que me sinto morrer, só desejo que me diga se poderei alcançar perdão para as minhas tão graves culpas.

O estudante, que a tinha ouvido surpreso e espantado, viu bem que aquella mulher não tinha sido mais que o instrumento da vingança -- não de Deus, que seria abominavel attribuir-lhe tal crime, como fizera o Espirito Santo -- mas deste hediondo jesuíta.

Se a mulher não estivesse tão estupidificada com o fanatismo religioso, e se não suppnzesse, como suppunha, que o padre Seraphim era uma alma evangelica, incapaz de qualquer acção menos justa, por certo teria logo percebido isto, e ella mesmo denunciaria este crime á justiça, embora tambem se perdesse. Mas não, a fama de santidade do seu confessor punha-o ao abrigo das suspeitas da credula creatura, que se alguma vez duvidava da intervenção divina na pratica d'aquelle crime, só a si attribuia todas as culpas, apostrophando-se e deitando á conta dos seus immensos peccados a fatal obliteração das ordens que suppunha terem-lhe sido dadas.

Ella, olhando anciada o fingido padre, aguardava alli a sua sentença. Como o mancebo nada lhe dissesse, volveu:

-- O sr. padre Seraphim tem-me dito que eu não cometti crime algum, mas é só para eu não me affligir, não é verdade? Não posso ser absolvida?

Oh, diga-m'o por piedade!

E ergueu para elle as mãos supplices.

Na alma do estranho confessor debatia se uma grave questão: devia abrir os olhos áquella insensata e fazer-lhe ver a infamia do patife que ella julgava um santo, ou deixa-la por emquanto n'aquella illusão e tratar por todos os modos de a arrancar ás garras da morte, para depois a levar a accusar o padre Seraphim pelo crime que a induzira a cometter?

No fim de pesar bem os prós e os contras, deliberou seguir este ultimo caminho. Respondeu portanto:

-- Assim é, minha irmã. Perante Deus estaes sem macula por esse facto, tendo o vosso soffrimento sido superior á culpa; não tenho por isso nenhuma duvida em vos absolver.

-- Graças vos sejam dadas, meu Deus, pelo alivio que este vosso sagrado ministro me trouxe! -- orou ella, erguendo as mãos ao tecto. -- Agora já posso morrer descançada.

-- Mas vós, minha irmã, não podeis continuar aqui. Esta casa é prejudicial á vossa saude.

-- A vida de nada me serve, e tanto me faz morrer aqui como n'outra parte.

-- Não deve ser assim. Nós, em attenção ao Supremo Creador, quando outro incentivo nos não anime, devemos sempre olhar pela nossa vida e saude para não desprezarmos aquillo que elle nos deu. Por isso hade consentir que eu lhe arranje nova habitação.

-- Como fôr de sua vontade -- assentiu ella.

Então Armando, deitando-lhe a bênção, fingia que a absolvia, emquanto ella dizia com fervor o acto de contricção.

O mancebo, entrando no trem, mandou parar em S. Pedro d'Alcantara; mas, por mais que esperasse, Gilberto não appareceu. Julgando que elle andava no jardim, apeou-se e, atravessando o parque, approximou-se das grades, a ver se o divisava em baixo, mas elle tambem alli não estava.

Intrigado, voltou para junto do trem, perguntando-lhe então o cocheiro:

-- É por aquelle senhor que veio na «tipoia» que espera?

-- É, porque? viu o?

-- Deitou-lhe a policia o «gatazio», e a esta hora já elle está no «covil.»

-- Ó homem, você tem a certeza d'isso?

-- Ora se tenho! O mau foi deitar-lhe eu o luzio quando elle alli passou...

O estudante, entrando no trem, mandou bater para a rua dos Douradores. Chegado alli, pagou ao cocheiro, e, entrando como uma setta no guarda roupa, arrancou os trapos jesuíticos que trazia e correu ao Rocio para ir avisar o amigos; mas á esquina da rua da Bitesga percebeu que alguem o indicava á policia, e acto continuo sentiu se agarrado e mettido n'um trem, que partiu á desfilada para o governo civil.

XXI

Violada!

O conselheiro Antão de Sampaio foi informado do que se passava pelo proprio Espirito Santo, que lhe não occultou, sequer, a prisão do sobrinho, embora occultasse a ingerencia que teve no caso.

O importante burocrata respondeu a isto:

-- Logo que elle ia para minha casa querer intervir nas vontades de minha filha, não é mau que o deixem por lá estar alguns dias, a ver se toma juizo, e a ver se minha filha rompe de todo com o maldito republiqueiro.

O padre Seraphim resolveu, porem, não voltar lá a casa sem que Zelia o mandasse chamar, o que, aliás, não tardou muito.

Ella esperou em todo o dia seguinte por Armando; e vendo que elle não dava signal de si, entendeu que se elle não voltava é porque nada poude descobrir de mau contra o Espirito Santo, e porque nem, talvez, pudesse contestar que Gilberto tivesse a tal amante. Isto enfurecia-a contra o seu ex-amado e ia-lhe tomando verdadeira aversão. Dizia ella:

-- Provavelmente foi elle mesmo que lhe confessou ser verdade, rindo-se de mim e dizendo lhe que nada se importava commigo!... E aquelle meu primo ainda a defende-lo e a aggravar o honrado sacerdote...

O seu orgulho ferido desesperava-a, e sentia tentações de se vingar, parecendo-lhe que o melhor modo era ir passear de trem, dando attenção ao primeiro que lhe fizesse a côrte, julgando que assim enraiveceria o jornalista.

Mas estes e outros expedientes que acudiam de tropel á sua mente iam sendo postos de parte, até que por fim se lembrou de que precisava dar uma satisfação ao seu leal conselheiro, que tão affrontado fôra por aquelle estouvado de seu primo.

Dirigiu-lhe, pois, uma carta cheia de amabilidades, em que lhe pedia que a não abandonasse elle no momento em que mais precisava do conselho e da assistencia das pessoas que lhe eram dedicadas, e que, entre essas pessoas, a nenhuma considerava mais do que a elle.

O padre Seraphim, ao ler esta carta, sorriu -- mas que diabolico sorriso aquelle! -- e no dia immediato apresentou-se na casa do conselheiro. Este resolveu não ir n'esse dia á repartição e convidou o padre para o jantar, o que elle, com mostras de sensibilisado, aceitou.

Zelia, n'um momento em que o pae a deixou a sós com o Espirito Santo, disse-lhe:

-- Quer dar hoje uma grande alegria a meu pae, padre Seraphim?

-- Era para mim um grande prazer poder alegrar o meu nobre amigo, ainda que para isso tivesse de fazer os maiores sacrificios.

-- Então diga-lhe que eu já não amo o Proença e que até já cortei com elle todas as relações.

-- Mas v. ex.ª diz-me isso a serio? Auctorisa-me a dizer-lh'o?

-- Não só o auctoriso, mas até lhe peço que o faça.

-- Oh! como elle vae ficar jubiloso! Mas então permita-me que lhe reserve essa grata surprez» para o jantar.

-- Como queira. Deixo isso ao seu alvedrio.

-- Mas emfim... V. ex.ª bem comprehende que se agora o alegra com essa nova e depois torna a fazer as pazes, maior é o desgosto que elle sentirá...

-- Eu que lhe digo, padre Seraphim, que pode dizer isso a meu pae, é porque cortei essas relações para sempre. Deus me livre de o enganar!...

Ás cinco horas começou a servir se o jantar, já á luz do gaz, porque ia anoitecendo.

Apenas estavam á mesa as tres pessoas de família e o padre; apesar d'isso, o jantar era um verdadeiro banquete.

Á sobremesa, e logo que foi servido o primeiro calix do Porto de 1815 , o padre Seraphim ergueuse e pronunciou estas palavras, com a expressão de quem manda com ellas pedaços d'alma:

-- Senhor conselheiro! A generosidade ingenita de v. ex.ª, que é uma das muitas virtudes que lhe exornam a bonissima alma. fez com que eu, humilde e indigno sacerdote, tenha tido a grande honra de ser distinguido com a sua amisade, recebendo ainda innumeros obsequios, tanto mais valiosos quanto immerecidos. E como eu, conscio da minha inutilidade e nenhum prestimo, veja bem que jámais poderei retribuir-lhe uma parcella só que seja do muito que por mim tem feito, desejo mostrar-lhe, ao menos, que sei ser grato, já que não posso ser util, tributando-lhe a maior veneração, a dedicação mais sincera e incondicional, o respeito mais leal e acendrado, de que é susceptivel a minha alma.

«Nada admira, pois, que tudo o que possa alegrar v. ex.ª e sua veneranda familia me encha tambem a mim de jubilo.

«V. ex.ª tem uma filha que é, com justa razão, o seu enlevo e o seu orgulho. Bella como a divina Madona tão admiravelmente interpretada pelo grande Raphael, boa como os anjos, illustrada como as mais doutas santas, ella é o encanto de quantos a conhecem, o deslumbramento de quantos a veem. Exactamente porque é boa e porque é pura, deixou-se illudir durante algum tempo, porque a bondade é sempre confiada e a pureza é sempre sujeita á tentação. Jesus Christo tambem foi tentado.

«Nem a Elle o demonio quiz deixar em paz. Mas a causa que ensombrava a felicidade de v. ex.ª e d'esse manancial de virtudes que é sua respeitabilissima esposa, acaba de desapparecer. O Senhor, na sua infinita misericordia, acaba de esclarecer a razão da sua eleita, que está resolvida a não mais contrariar os entes que a idolatram.

Não poude acabar. O conselheiro e a esposa precipitaram se para a filha, que abraçaram, perguntando:

-- Pois é certo, minha querida filha! Será verdade que tu nos queres dar essa grande alegria?!

-- Assim é, meus queridos paes -- respondia a donairosa creatura, muito commovida pela satisfação que estava dando aos seus progenitores.

O padre Seraphim contemplava aquella effusão muito risonho, e o conselheiro, rindo e chorando ao mesmo tempo, gritava para a criada: -- Traz champagne!

E voltando se com olhos carinhosos para a filha, dizia-lhe:

-- Quero solemnisar este dia, que é um dos mais felizes da minha vida.

Veio o champagne e os brindes eram ininterruptos, não se cançando o conselheiro de beber á saude do padre, e o padre á saude do conselheiro e das senhoras. Mesmo sem quererem, estas tinham de acompanhar, e, embora a pequenissimos goles, sempre eram forçadas a beber mais do que deviam.

Por fim levantaram-se da mesa e dirigiram se á sala principal, onde lhes foi servido o café.

Zelia tocou algumas musicas mais alegres no seu magnifico piano, emquanto os dois homens fumavam os seus aromáticos havanos.

A certa altura o conselheiro viu o relogio: eram 8 horas, hora do seu wist predilecto.

Pediu ao padre Seraphim que ficasse mais algum tempo a fazer companhia ás senhoras, pois que elle tinha uns amigos á sua espera, a quem não podia faltar.

O padre acedeu, e elle saiu.

Pouco depois a esposa, que de ha muito estava tomando posições para evitar a luz incommoda dos bicos de gaz, que lhe não permittia que os olhos se conservassem abertos, pediu desculpa ao padre Seraphim de ter de o deixar, mas é que tinha de vigiar as creadas, que não faziam coisa com geito, que eram umas desastradas, que estava muito mal servida, que não apparecia nenhuma que prestasse, que as patroas eram umas infelizes, etc, e lá foi estatelar-se na cama, ficando portanto só Zelia e o Espirito Santo.

A joven não estranhou aquella saida da mãe; já estava acostumada a ve-la ir todos os dias vigiar assim as creadas; e o padre rejubilou intimamente com aquellas duas deserções.

De ha muito que elle abrigava na mente infames intenções para com a linda donzella, mas tinha-as sempre occultado, sabendo esperar a opportunidade.

Agora tinha-a alli languidamente recostada n'um sophá, deixando a descoberto o bem torneado pesinho, que calçava uma elegante pantufa.

Puxou outro sophá e sentou-se-lhe em frente, desejoso de encetar qualquer conversa que lhe despertasse a imaginação, necessariamente ardente.

-- Olhando para v. ex.ª -- começou elle -- e vendo-a tão prodigiosamente linda, muita vez tenho pensado que o Supremo Artífice, coroando assim com essa eminente manifestação do bello a immensa variedade de typos que creou sobra a terra, quis mostrar, n'um unico ser, toda a excellencia da sua maravilhosa Arte.

-- Bravo! sim, senhor! Está hoje lisongeiro como nunca o vi! -- replicou a joven, dando uma sonora gargalhada.

-- Lisongeiro, não; justo é que v. ex.ª deve dizer.

-- Quem o ouvisse julgal-o-ia um apaixonado galan, apreciando, com exagero, a supposta belleza da sua amada...

E Zelia ria, ria com vontade, um pouco envaidecida, não tanto pelos elogios, como pela qualidade da pessoa que lh'os dirigia.

-- Eu não tenho amada -- volveu elle com affectada tristeza -- nem isso é proprio d'estas vestes sacerdotaes; mas isso não impede que eu pense no que lhe diria qualquer apaixonado mancebo, se acaso tivesse a ventura de se achar no meu logar.

-- Sim?! Então diga, diga, que gosto de o ouvir. Faça de contas que está representando um papel, mas faça isso com naturalidade, que quero rir-me um bocado.

-- Se v. ex.ª o ouvisse com indifferença, por certo havia de rir-se, porque o arrebatamento que sua presença lhe produziria, a loucura mesmo que d'elle se havia d'apossar, seriam para causar riso, se não despertassem antes dó.

-- Sempre a exagerar!...

-- Não exagero. Fico ainda muito áquem da realidade. V. ex.ª tem o dom de attrair, de fascinar, de arrastar por tal forma, que toma, n'um instante, como que demente o cerebro mais bem organisado.

-- Isso é já a representar, não é verdade?

E elle, como se a não ouvisse, continuou:

-- De modo que o mancebo posto em meu logar, com o coração abrazado em fogo infernal, com a cabeça perdida, n'um completo arrebatamento dos orgãos dos sentidos, dir-lhe-ia: Senhora! esta labareda que me inflama a alma, que me escalda o sangue, que me abraza o coração, que põe em convulsões todo o meu ser, é d'aquellas que são ao mesmo tempo delicia e tormento, prazer e tortura, dulcidão e amargor, porque se é goso, deleite e doçura contemplar tão provocante Venus, é supplicio maior que o de Tantalo não me poder inebriar na fragancia que de v. ex.ª se evola, não me ser permettido tocar essas formas que me electrisam, comprimir esse corpo que me daria os mais inegualaveis deleites, as mais estranhas sensações! Ao menos, para acalmar um pouco esta chama diabolica que me consome e exgota, consinta que ponha os meus labios resequidos n'essa mão salvadora, como o sedento agareno os punha na rocha do deserto, depois de tocada pela vara do propheta.

E o padre, com a rapada caraça arada pelo fogo da lascivia que o excitava, juntou as obras ás palavras e tomando-lhe a avelludada e nivea mão, depoz-lhe um beijo férvido de appetites libidinosos, que nem já tentava mascarar com a representação que imprudentemente lhe pedira a pobre rola, que se abandonava descuidosa ao traiçoeiro milhafre.

Noutra qualquer occasião, a joven, ao ver o affogueado das faces e o inaudito atrevimento d'aquelle que julgava um homem de bem, comprehenderia os seus intentos infames e repelli-lo-ia com indignação e desprezo; mas n'aquelle momento tinha ella o cerebro turvado pelos vapores do champagne e pelas palavras do tratante, as quaes produziram uma impressão extraordinaria na sua soffrega imaginação; e por isso aquelle beijo, quente e luxurioso, poz-lhe apenas tremuras na sensível pelle e maior perturbação mental.

Elle, vendo que não era repudiado, encheu-se d'audacia e precipitou-se sobre ella, beijando-a nas faces, nos olhos, no pescoço, na bocca, babujando-a toda numa soffreguidão de demente. Zelia ainda quis resistir, estrebuxou, quis gritar, mas inutilmente: a animalidade subjugou o espirito, e a joven, com a razão obscurecida, caiu numa especie de lethargo, não sabendo o que se passava n'ella mesma.

Pobre d'ella, porem, que ao voltar a si comprehenderia que a sua qualidade de donzella estava irremediavelmente e para sempre perdida!

O padre Seraphim tinha saciado sem resistencia os seus appetites bestiaes, polluindo aquella encantadora creatura.

Algum tempo depois estava elle deante d'ella, olhando-a com um sorriso de suprema satisfação.

Nunca elle supposera que a alcançasse com tanta facilidade. Logo que o conselheiro lhe incumbira de a retirar do jornalista, elle pensara em a arranjar para si; mas pareceu-lhe empreza arriscada e difficil.

Entendia porem que era d'uma grande conveniencia para a seita fazer aquella acquisição; nova, formosa e rica, tinha todos os predicados para auxiliar as forças reaccionarias, empenhadas em fazer retrogradar para as trevas o povo que já ia avançando para a luz. É verdade que as ideias avançadas da joven tornavam-na incompativel com os intuitos d'elle; mas, se conseguisse por qualquer forma seduzi-la, torna-la-ia n'um instante um seu humilde instrumento. Alem de que nem só por isto a desejava, mas tambem para saciar a sua concupiscencia.

Soube porem conter-se até chegar a occasião propicia, aproveitando a então sem a menor sombra de escrupulo, tão insensivel a qualquer sentimento elevado, como a pelle d'um leproso é insensivel ao calor.

Quando elle a estava olhando e como que revendo-se na sua victima, a joven pareceu querer despertar d'aquella atonia, entreabriu as pestanudas palpebras, circumvagou os olhos em volta de si como se accordasse d'um sonho, e, fixando-os no seu seductor, tornou a fecha-los.

Elle quiz dizer-lhe quaesquer palavras que a desoprimissem, mas viu duas grossas lagrimas a escorregarem-lhe pelas faces, agora a empallidecerem, e disse comsigo:

-- Dizem, e já Socrates o affirmava, que depois da trovoada vem a chuva; mas aqui agora parece-me que é o contrario... Evitemos a borrasca.

E como o tapete lhe abafasse os passos, saiu sem ser presentido.

XXII

Tirando a mascara

Zelia Sampaio, chamada para o chá, mandou dizer que a dispensassem, e, dando ordem á creada para que não voltasse, fechou-se no quarto. O pae não estranhou a recusa; sorriu até, lembrando-se de que o champagne lhe devia ter turvado um pouco a cabeça. A esposa tambem não veio, mas d'essa ainda estranhou menos. Estava acostumado. O notavel burocrata tomou o chá e foi deitar-se mais satisfeito do que nunca, não podendo imaginar as scenas que na sua ausencia se tinham passado e que lhe conspurcavam a honra.

A pobre menina é que passou uma noite horrível. A sua momentânea atonia moral, em que perdera a sua corôa de virgem, era a causa do seu soffrimento ininterrupto. Deitou se, mas no leito, mais que n'outra qualquer parte a atormentava a sua desgraça. Ora mordia as roupas em paroxismos de raiva, ora tapava com ellas a bocca para abafar os gritos dilacerantes. Depois serenava um pouco, mas na sua mente revoluteavam os mais desencontrados pensamentos, e tão depressa pensava em se suicidar, como em esperar pelo infame que a violara e cravar-lhe um punhal no coração. Não podia jazer um instante socegada: levantava-se, passeava, tornava a deitar-se outra vez, sem de modo algum poder fugir um só momento ás suas dores cruciantes. O seu soffrimento, a sua raiva, o seu desespero, provinham talvez mais de ser quem foi que abusou da sua fraqueza do que mesmo da perda da sua virgindade.

Se, quando amava Gilberto com toda a exuberância do seu ardente coração, tivesse caído, revestir-se-ia por certo da precisa energia para encarar de frente esse mal e não se deixar avassallar pela desesperação. Mas assim... ella, gentil, formosa, desejada por todos, ser polluida por um padre, um jesuita, um sevandija!... Ver assim, estupidamente, bestialmente, pela lama o seu orgulho, a sua honra, as suas premicias de mulher, emfim... oh!

era de mais, era para enlouquecer! E pensava em tudo que se tinha dado, desde que aquelle vil ecclesiastico começara a frequentar a sua casa, nas malevolas insinuações que fazia a respeito do seu amado, fingindo desculpa-lo; nas calumnias que elle atirava sobre os patriotas; na maneira como a soubera captar fingindo-se um padre liberal, illustrado, despido de preconceitos; na sua injustiça para o digno mancebo a quem pedira para falsear o seu ideal, abandonar a lucta, no momento mais perigoso para a Patria; na sua ingenuidade em acreditar todas as torpezas que inventavam contra o escolhido do seu coração. Oh! agora via ella tudo bem! Seu pae fingia transigir com a sua inclinação, mas mettera em casa o lobo que devorava, julgando ser o rafeiro que guardava; e ella deixara-se guiar pelo infame, como se fôra uma idiota, uma imbecil! E quem sabe o que o pobre Gilberto teria soffrido com os seus despropositos, elle, o honrado republicano, o jornalista intemerato e illustre, o seu digno e leal apaixonado!

Quem sabe até se os seus ferimentos não teriam sido feitos n'alguma cilada que o execrando padre lhe tivesse armado!

E chorava, chorava muito a desditosa, por perder aquelle a quem tanto amara e para quem tinha sido tão injusta, sentindo na alma referver o odio contra o indecoroso sacerdote, causador de todas as suas amarguras.

Assim passou aquella cumprida e frigida noite de janeiro, sem que um só instante o somno a dominasse.

Á hora do almoço vieram chama-la, mas ella mais uma vez mandou pedir que a dispensassem, dizendo que, como estava frio, ficaria até mais tarde na cama.

O pae ficou já um pouco inquieto, e, ao dirigirse para o ministério, pensava comsigo:

-- E se ella se arrependia do que prometteu!...

Mas serenava logo, lembrando-se de que o seu amigo padre Seraphim lá estava para a dissuadir de qualquer loucura em que ainda pudesse pensar. E nem uma só vez lhe passou pela mente que o padre, a quem distinguia com a sua amizade e a quem sempre tinha enchido de obsequios, conseguindo dos governos todos os favores que elle pretendia, o pudesse atraiçoar. Estimava e protegia a seita, porque via n'ella, como todos os conservadores, o sustentaculo da realeza e a continuação do embrutecimento popular, mas não lhe conhecia as manhas. D'ahi a sua confiança illimitada n'aquelle digno specimen da tropa ultramontana.

O padre Seraphim, sentado num banco da Avenida, do lado opposto á residencia de Antão de Sampaio, esperava, fingindo ler um jornal, que elle saisse.

Não lhe convinha encontra-lo, porque não tinha já pretexto plausivel para continuar a frequentar a sua casa com a mesma assiduidade. E depois receava que se tivesse descoberto qualquer coisa.

Nada! «que o seguro morreu de velho...»

Viu-o sahir risonho e muito direito na sua sobre-casaca preta, sempre sem uma ruga, com o chapéu alto muito lustroso, que o fazia parecer ainda mais elevado, e disse comsigo:

-- Posso estar descançado. Se soubesse alguma coisa, não levava aquella expressão.

E pouco depois tocava á campainha da residencia d'elle.

A creada, que veio abrir, informou-o, sollicita, de que o sr. conselheiro já tinha saido, de que a senhora estava para o primeiro andar, e a menina ainda não tinha saido do quarto; mas que podia entrar, que entrasse, que corria a avisa-la.

O Espirito Santo, dirigiu-se á sala em que na vespera commettera a infamia de que se regosijava, dando-se os parabens por não estar a mãe.

A boa senhora era muito amiga da inquilina do 1,° andar, passando ambas uma grande parte do tempo a lastimarem a infelicidade das pessoas que teem que aturar creadas. Isto facilitava-lhe as intenções, pois que precisava encontrar-se a sós com a sua victima.

Quando a creada annunciou o padre Seraphim, Zélia sentiu-se possuída da maior indignação, pelo arrojo do patife em lhe tornar a apparecer.

A inexperiente menina estava longe ainda de conhecer bem a seita em cujas malhas caíra... Precipitou-se, pois, para a sala, disposta a fulminar com as suas invectivas, impregnadas de nojo e odio, o seu violador, intimando-o a nunca mais lhe apparecer.

Pobre mosca, que se debaterá em vão nas mandibulas de tão ascorosa aranha!....

O manhoso sacerdote percebeu á primeira olhadelia que a sua conquista não estava disposta a cair lhe ternamente nos braços, abandonando-se-lhe em extase de volúpia, antes pelo contrario -- o que estas palavras da joven, ditas n'uma sublime expressão de colera e nausea, vieram confirmar:

-- O infame que me deshonrou, atraiçoando aquelles de quem se diz amigo dedicado, terá ainda que fazer n'esta casa, que só devia lembrar-lhe a sua ignominia?!...

E como elle, em vez de responder, a olhasse fixamente, com um sorriso subtil, onde se divisava o escarneo, ella continuou com crescente exaltação:

-- Se julga que por ter abusado da minha confiança e da minha fraqueza eu ficava uma sua submissa escrava, engana-se redondamente!

«Eu tenho a coragem precisa para supportar todas as affrontas: a publicidade da minha deshonra, o escarneo de todos, a vergonha de ter sido aviltada por um reptil tão nojento, emfim,tudo por peor que seja; mas o que não toleraria era uma imposição do meu violador! Oh! desprezo-o tanto, tenho pelo verdugo da minha honra tanta repugnancia, tanto nojo, tanto asco, que mais depressa me despedaçaria a mim mesma, que consentiria que me tocasse só com um dedo!

E, sempre altiva e nobre, apontou-lhe para a porta, bradando:

-- Fóra d'aqui conspurcador da honra alheia! e não se atreva mais a pôr n'esta casa um pé, se não quer ser escorraçado como um cão!

O padre Seraphim deixou-a fallar sem a interromper, e depois disse-lhe, ainda um pouco hypocritamente:

-- Nada d'isso hade acontecer; nem se despedaçará a si mesma, nem eu deixarei de cá vir, nem serei escorraçado!

«O que aconteceu tinha de acontecer, porque Deus assim o quiz, e já não tem remedio; o que é preciso é evitar qualquer mal que d'ahi possa resultar...

-- Miseravel! atira para Deus a culpa das suas torpezas como se fosse irresponsavel...

«N'essa alma de lama não ha crenças nem respeito por coisa alguma. Deus e essa religião de que se diz ministro são simplesmente meios para conseguir os seus hediondos fins. Póde arrancar a mascara, canalha!»

-- Ora ainda bem que me comprehende! -- replicou elle em tom zombeteiro e erguendo a cabeça.

«É sempre um prazer lidar a gente com quem nos perceba... Por isso vou ser franco. -- O que nós queremos, pois que, como deve saber, não sou eu só, --somos milhões -- o que nós queremos, repito, é engrandecer-nos, tornar-nos poderosos, dominar o mundo.

«Por isso eu, como todos, trabalho; por isso aqui estou, por isso pretendo chamar a sr.a D. Zelia para o nosso grémio, e creio que hei-de consegui-lo...

-- Como é vil! Ainda troça!

-- Não troço, falo até muito a serio; teem sido esses os meus esforços e continua-lo hão a ser.

O padre Seraphim sabia bem com quem falava.

Entendia que agora só pela audacia, pela franqueza, pela grandeza do poder da seita e até mesmo pela exposição dos seus processos podia subjuga-la; e por isso assim respondia sem hypocrisias nem rodeios.

A joven retorquiu com desprezo:

-- Como eu julgava esta repellente creatura um padre honesto, para afinal me sair um jesuita abjeto, sem vergonha nem consciencia!...

-- Se considerarmos o termo jesuita como pertencendo áquelle que está filiado na companhia de Jesus, eu não o sou; mas se, por extensão, o applicarmos aos que seguem a doutrina jesuítica, aos que professam as suas ideias e obram como elles, então sim, então póde chamar-m'o, assim como á quasi totalidade do clero portuguez.

-- Não queira medir os outros pela sua bitola de infamias!

E elle cynicamente:

-- Contra o costume, estou fallando verdade. O clero portuguez, a que me honro de pertencer, é hoje jesuita por educação e por necessidade.

«Portugal, como algumas outras nações, ia avançando muito; era preciso pôr um freio á ideia; e, como a crença ainda se não apagou na alma do povo, incumbimo-nos nós de collocar esse freio, de acordo com todos os que abominam o progresso.

Mas havia um contra: o clero era desleixado e o jesuita não podia ir a toda a parte, porque a historia o condemnou antes que a lei o banisse. Só havia uma salvação: era ajesuitar o clero. Foi o que se fez. Os professores dos seminarios tiveram ordem para, antes de tudo, amoldarem o espirito dos discipulos a estes princípios; e algum que se não prestou foi substituido. Por este modo em poucos annos conseguimos fazer de cada padre um propagandista precioso, que vae, em cada freguezia, contendo as ovelhas nos limites que nos conveem.

Aos velhos, os prelados diocesanos se incumbiram de os industriar.

E assim, em poucos annos, pudemos dominar a maior parte da nação, não nos faltando até os poetas, que, com a apparencia de asnaticos sentimentalismos, vão ajudando a nossa obra.

«Cada um de nós vae sempre arranjando adeptos com os variados meios de que podemos dispor, a começar no de ameaçarmos com o inferno aquelles que n'isso creem, e a acabar no que empreguei com ex.ª.

-- Ah! miseravel, que nada consegue! Retirou-me do mancebo illustre e honrado que eu amava e que me retribuia com igual affecto, e, não contente com isso, desgraçou me para me conservar mais segura, mas engana se, que agora é que eu serei a valer inimiga encarniçada dos Tartufos, que, illudindo os ignorantes com promessas de vida de delicias álem campa, vão n'este mundo tripudiando á vontade, só pensando na maneira de serem os senhores e dominadores de tudo, embora sacrifiquem toda a humaninade.

E elle sempre zombeteiro:

-- Tudo isso será muito verdade, menos eu ter produzido a sua desgraça: o que eu fiz foi salva la, foi faze la feliz.

-- Nao sei o que me impede de lhe escarrar n'essa cara sem vergonha nem brio...

-- Repito, não a perdi, salvei-a. Se a deixasse com seus amores insensatos, onde iria ter? Á gentalha d'onde promana a seu ex-amado; assim póde subir muito, o caso é ser docil. Na nossa conjuração ha quasi todos os titulares e principalmente as esposas: ha viscondessas, condessas, marquezas, e duquezas, emfim, todas as personagens graúdas.

«V. ex.ª é joven, formosa e rica; levada pela nossa mão poderá viver n'esta roda e ser mesmo ainda uma titular, porque nós tudo podemos: far-lhehemos um casamento vantajoso...

-- Agora, depois de me ter conspurcado, infame histrião!...

-- Ah! Ah! Ah! -- gargalhou elle -- vejo que está muito atrazada!

E depois, com intimativa:

-- Pode fazer um casamento vantajoso, repito, porque nós não somos ciumentos e até preferimos que as nossas... auxiliares sejam casadas. Pode em pouco tempo ser dama do Paço, e lembre-se de que muitas lá sobem pela nossa mão.

«Será, pois, admirada e invejada antes de pouco, caso queira obedecer-me.

«Viverá na melhor sociedade e ignorar-se-ha sempre o que entre nós se passou e passar. No caso contrario, d'um dia para o outro, todos saberão que a filha do conselheiro fulano, alto funccionario de tal ministério, escolheu para amante um padre que visitava a familia. E veremos então se se não importa que o saibam.

-- Oh! que miseravel, que miseravel? -- exclamou a angustiada menina, rangendo os pequenos e alvos dentinhos.

-- E então o povo, que gosta tanto de explorar os escandalos das classes superiores, como não rirá, como não inventará episodios da sua degradação!

-- Basta de infamias! -- bradou ella colerica. -- Não se saberá tambem que o meu violador foi um infame que, com protestos de amizade, se nos introduziu em casa e que, buscando um momento de perturbação cerebral, abusou de mim?

-- Isso! diga que foi por perturbação cerebral e verá com que vontade se riem. Não tente desculpar-se que nada a absolve. Eu violenteia-a? mas porque não gritou? Eu empreguei a força, subjuguei-a? mas onde estão os vestigios da lucta? É escusado, pois, querer fugir á realidade das coisas, que ninguem a defenderia. De mim só teriam inveja e nada mais...

«Mas eu espero que se ha de humanisar, reconhecendo quanto tem de util seguir os meus conselhos. Se, porem, quizesse appellar para algum meio extremo, isto é, se quizesse lançar no meu caminho seu primo ou mesmo o seu ex-amado, que desde antes-d'hontem teem, a meu mando, por albergue os calabouços do governo civil, fique sabendo que nada ganhava, nem que elles lançassem mão de algum processo criminoso. Nós, os chamados reaccionarios, somos previdentes. Se julgasse que fechava a minha bocca, abriria milhares d'ellas. Nós somos fortes, unidos, disciplinados. Comnosco é impossivel luctar. E depois, se não posso largar a senhora D. Zelia, não é só pelos interesses collectivos, é tambem pelos meus proprios, pois sempre me

despertou o mais vivo c ardente dos desejos.

-- Oh! que patife, que villão, que canalha! -- soluçou a pobre Zelia, fugindo do torpe ecclesiastico e indo fechar-se no seu quarto.

O padre achou por bem sahir d'aquella casa, mas pelo caminho ia ruminando:

-- Custa-lhe submetter se, mas não resistirá por muito tempo. Foi bom assim... jogo franco. Para estas é o processo: patentear lhe toda a nossa força e não lhe occultar mesmo as nossas armas. A principio indignam-se, bramam, mas acabam sempre por ceder. Teem medo do escandalo e a tudo se humilham; e então esta, que é orgulhosa, ha-de querer subir e só com auxilio nosso verá o caminho.

Entretanto a insinuante Zelia, fechada no seu quarto, escabujava, preza dos mais atrozes soffrimentos. Chorava, arrepellava-se, rebolava pela alcatifa n'uma ancia horrivel, como se uma vibora se lhe abrigasse no peito e lhe esmordaçasse o coração fibra a fibra. E maior tormento lhe era querer esvair esta agonia em gritos dilacerantes e ter de os abafar, de os recalcar no intimo do peito para não ser ouvida, deixando só escapar esse ruido abafado e gutural, que, n'esta oppressão dolorosa que nos faz contrair as maxillas, se deixa escapar sem mesmo se querer.

Assim passou muito tempo nessa tortura em que, cada instante, consome annos de vida.

Depois acalmou-se um pouco, e, atirando-se sobre o fofo leito com o rosto para baixo e apertando-o entre as mãos, começou a analysar a sua triste situação.

No seu cerebro sombrio e carregado parecia-lhe que se desenhava um duplo e horrendo kaleidoscopio, em que, olhando por um lado, só divisava coisas negras, ignominiosas, terriveis: era a sua deshonra assoalhada, a vergonha matando seu pae.

Gilberto fulminando-a desprezador, Armando repelindo-a com acerbas ironias, com sarcasmos pungentes, vendo-se, emfim, em toda a parte desprezada, escarnecida, abandalhada. Olhando pelo outro as vistas eram diversas, mas causavam-lhe nauseas e desprezo: via-se rodeada de titulares que lhe estendiam os braços, a cortejavam e lhe prodigalizavam ao mesmo tempo toda a especie de considerações e lhe dirigiam todos os remoques, mas ia subindo sempre; reparava, porem, que só andava a reboque do padre Seraphim, e que, quanto mais subia na escala social, mais se via afundar-se n'um mar de lama que a engulia e suffocava.

XXIII

Suprema infamia

Começara muito mal aquelle anno de noventa.

O ultimatum, a influenza e, por ultimo, como consequencia d esta doença, uma espantosa crise de trabalho, acabrunharam de todo o povo trabalhador,

que não encontrava onde ganhar a sua subsistencia.

Centenares de homens, operarios, artistas, caixeiros, etc. percorriam a cidade sem encontrarem quem lhes desse pão, ou onde o ganhar.

Os que tinham familias nas provincias fugiam para lá; os outros iam supportando a sua miseria até que o governo lhes pudesse ir dando guias para ganharem, nas obras do estado, uns magros vintens com que matassem a fome e aos seus.

A Felisberto Ventura tambem depressa faltou trabalho. O infeliz julgava endoidecer vendo que não podia ganhar com que supprir as necessidades e caprichos da insupportavel esposa.

E nunca esta estivera mais exigente e indomavel. Só queria dinheiro, muito dinheiro, enfurecendo-se quando o pobre homem lhe não trazia o que ella precisava. A primeira vez que elle voltou para casa sem trazer obra, fez ella um alarido assustador e por pouco que o não escorraçou de casa. Chamava-lhe mandrião e dizia-lhe que a sua preguiça é que o levava a não procurar trabalho, que o que elle queria era aquillo, a occiosidade, etc.

O desgraçado supportava callado todos aquelles improperios, e o que mais o pungia era a idéa de que a filha iria passar privações; e lá voltava elle para a rua, encorajando-se para de qualquer forma arranjar onde ganhar dinheiro, mas os resultados eram infructiferos. Em toda a parte lhe respondiam que tinham roupa feita em demasia, que do que precisavam era de freguezes, pois que não se vendia nada. Apenas conseguia arranjar pequenas

coisas, que dariam, quando muito, para viver com muita economia, com privações mesmo. Mas a beata não podia contentar-se com semelhante miseria, e pela sua mente depravada passou um infame pensamento, que primeiro repelliu, mas que depois voltou a analysar, até que se identificou com elle.

Resolvida a pô-lo em pratica, procurou uma beata como ella, que nos intervallos das missas e das confissões tinha o lucrativo mister de alcoviteira amorosa.

Esta repelente creatura, desde que a cara a inhibiu, o que já havia succedido ha muitos annos, de se entregar aos leões alfacinhas, resolvera, sempre por amor delles e ainda por maior amor das suas libras, fazer-lhes entregar todas as formosuras que elles appeteciam.

Era só elles desejarem, que ella se encarregava de lh'as atirar aos braços.

Eram solteiras? casadas? viuvas? Não importai... A sua qualidade de mulher religiosa abrir-lhe-ha todas as portas e a sua pratica e habilidade supprirão o resto.

O seu freguez principal era um titular devasso e corrupto ahi dos lados da rua da Palma, mas este sultão exigente queria que as suas odaliscas fossem donzellas. Quando a monstruosa megera conseguia alcançar alguma nas condições, levava-lhe o retrato, se não podia levar-lhe o original, e a arrematação era conforme a belleza d'ellas, podendo atingir o preço de cem mil réis.

Fôra a esta miseravel creatura que D. Innocencia recorrera para arranjar dinheiro, embora á custa da honra d'essa pobresinha, tão linda como boa, que era sua filha.

-- Ora... -- pensava ella -- mais dia menos dia vinha a acontecer-lhe isto sem lucro nenhum, e então aproveito os cem mil reis, que me fazem grande conta - É verdade que isto deve ser peccado, mas emfim, Deus Nosso Senhor ha-de perdoar-me em eu me confessando e commungando, ainda que tenha de mandar dizer algumas missas para ser absolvida.

E já muito certa de alcançar a absolvição, ficava muito bem com a sua consciencia, muito convencida de que, logo que fosse absolvida por um padre estava livre e limpa de toda a culpa, como se a não tivesse commettido.

Ao titular, sensual e libertino, agradou muito o retrato da meiga e angelica Eugenia, combinando logo a sua agente com a desnaturada e infame mãe leva-la o mais depressa que pudessem áquelle hediondo serralho, nojenta macaquice do Parque dos Veados do tedioso Luiz XV. Toda a difficuldade estava em poderem lá attrai-la.

Como ella tinha muito desejo de trabalhar em qualquer coisa, para ajudar o pae, lembrou-se a mãe de lhe apresentar a alcayota como estando encarregada de procurar uma rapariga que quizesse trabalhar em roupa branca para uma casa rica, porque ella decerto acceitaria isso com transporte; e, levando-a ao engano, poderiam assim precipita-la nos braços do dinheiroso dissoluto.

Ha nada mais torpe, mais repellente, mais asqueroso e infame que os esforços d'este monstro, feito mãe não sei porque aberração da natureza, para vender a honrada filha?...

O misero alfaiate voltava para casa relativamente alegre.

N'uma das lojas haviam-lhe dado obra em abundancia e promettido mais. Tinha, emfim, que fazer, para ganhar dinheiro com que calasse a fera que tinha em casa e com que provesse ás necessidades de sua filha. N'isto se resumiam todas as suas aspirações.

Logo que entrou em casa quiz dar a boa nova á estremecida Eugenia, mas em vão a procurou por toda a parte.

Inquieto, pois que não era costume ella sau de casa, principalmente de noite, interrogou a creada, mas esta só lhe soube dizer que ella tinha saido de trem com a senhora D. Innocencia e outra senhora já velha. O pobre homem caiu das nuvens. Sua filha e sua mulher de trem, quando em casa não havia dinheiro algum!

Que queria aquillo dizer?

Provavelmente era a outra que pagava; mas quem era ella e que pretendia?

Uma terrivel suspeita lhe feriu o coração atormentado.

Seria essa desconhecida alguma enviada do convento para lhe arrastar para lá a filha?

E novamente interrogou a creada, perguntandolhe todas as particularidades a respeito da pessoa que as acompanhava, que apparencia tinha, qual o seu traje, que direcção tomara o trem, que tinha ella dito, se a filha as acompanhara voluntariamente, etc., etc.

Mas a serva ou nada sabia ou nada queria dizer, porque só respondia -- que não reparara, que não ouvira, que não prestara attenção, e assim por deante.

Esta incerteza era um novo martyrio para o pobre pae, que não sabia que fazer. Lembrava-se de correr em seu seguimento, mas onde dirigir-se? como orientar-se? Depois esforçava se por serenar, acudindo-lhe á memória as promessas da filha, que sempre dissera que nunca o deixaria por mais que a mãe quizesse aparta-los. Mas não a resolveria a penuria em que se tinham visto e os continuos despropositos da mãe?

Com tão cruéis pensamentos se debateu muito tempo, parecendo-lhe cada segundo um seculo, até que a porta foi empurrada com violencia e a linda Eugenia, pallida, desgrenhada, com o vestuário ás fitas, se lhe atirou ao peito, chorando afflictivamente.

-- Minha filha! que tens? que te aconteceu? quem te poz nesse estado? --interrogava o angustiado pae, louco de dôr.

Mas ella nada respondia; e, soluçando cada vez mais, continuava a esconder seu rosto de celestial belleza no peito descarnado do pae, vertendo copiosas lagrimas.

Só passado muito tempo voltou D. Innocencia. Procurou a filha, que não queria vê-la, e disse-lhe, contra o costume, com voz muito cariciosa:

-- Que foi isso, minha filha? Então retiraste-te sem esperar por mim?

-- Não me chame filha! - bradou com exaltação a meiga joven -- Eu não lhe sou coisa alguma!

E irrompeu de novo num choro convulso.

-- Que fez a esta creança, infame mulher? -- rugiu Felisberto, allucinado por ver assim chorosa a filha querida, mas não podendo suppor a terrivel verdade.

-- Ora... que lhe havia eu de fazer?... É doida!...

Mas n'este momento um vulto se desenhou á porta do quarto, em que ninguem reparou, e que bradou para o alfaiate, apontando-lhe a filha:

-- Pergunta o que lhe fez? Levou-a ao açougue.

Aquella mulher era uma alcoviteira, e a honra de sua filha foi vendida por essa serpe que é sua mãe!...

Era a creada que assim falava. Odiando a patroa e vendo chorar tão lastimosamente a pobre filha, não poude conter-se que não revelasse tudo ao pae. Dito isto, saiu dirigindo-se ao seu quarto para pegar na sua roupa e ir-se embora; mas a beata correra para ella, disposta a fazer-lhe pagar caro o atrevimento.

-- Que disse você, sua patifa?! -- regougou ella com gestos ameaçadores.

-- Disse a verdade! -- respondeu a creada com energia.

-- Quem foi que lhe disse semelhante coisa, grandissima atrevida?

-- A senhora julga que eu ando a dormir e que não conheço aquella bisca?

E demais, faça favor de me não chamar nomes, porque eu não me comparo com aquellas que vendem as filhas...

-- Oh sua porca!... -- rugiu a raivosa devota do Senhor, com furia de a espatifar.

Mas a creada, pondo se em guarda, gritou-lhe:

-- Não me toque, ouviu? Se me põe só um dedo que seja, faço ahi tamanho estardalhaço que hade cá vir a policia e todos hão-de ficar sabendo quem a senhora é.

A mystica amante do padre Seraphim acobardou-se, fingiu que acudia aos gritos que Eugenia soltava, e voltou para o quarto, emquanto a creada, carregando com a sua trouxa, abandonava a casa.

Eugenia gritava por ver que o pae, ao ouvir aquellas horriveis palavras, caíra no chão e se estorcia e escabujava como cobra ferida de morte. Na verdade o choque não podia ser mais terrível para o coração d'um pae. Saber polluida uma filha a quemadora, que é toda a luz dos seus olhos, todo o enlevo da sua alma de martyr, tudo quanto o prende ao mundo, e de mais vendida pela mulher a quem dá o nome d'esposa e de cujo ventre saiu aquelle

ser estremecido, era golpe superior ás suas forças!

Não o supportou, não podia supporta-lo, parecendo-lhe que a sua vida ia extinguir-se de puro tormento.

Quando, ao virar os olhos n'um espasmo convulso, o seu raio visual encontrou a mulher, pareceu que uma pilha electrica o galvanisou, pois que ergueu meio corpo e fitou-a com tão dura e odienta expressão que ella, a seu pesar, estremeceu e saiu do quarto.

Pouco depois o desgraçado alfayate abraçou-se á filha e desatou tambem a chorar. Se a pobresinha era uma victima innocente!

O enfraquecido organismo do misero Felisberto resentiu-se espantosamente com tão tremendo choque, e a tuberculose, que lentamente o ia minando, manifestou-se d'uma fórma assustadora.

A dôr ingente e brutal que tal revelação lhe produziu não se limitou só a dilacerar-lhe a alma; produziu-lhe tambem estragos physicos, que seriam mortiferos.

Os pulmões, já contaminados, fenderam-se, e desfizeram-se como um pedaço de gelo que se chegásse ao fogo; e elle jazia ali no chão sem forças já para se levantar. Aquelle organismo, que tratado regularmente, ainda podia resistir alguns annos á terrível doença que n'elle existia no estado latente, foi assim n'um momento anniquilado por uma grande tortura moral.

Eugenia, com o coração espedaçado por alanceadoras angustias, ajudou-o a arrastar-se para a cama, já preso da intensa febre que o acommettera. A infeliz creança quasi deixava de pensar em si para só attender ao seu extremoso progenitor, que ella presentia mortalmente enfermo. Não se affastou em toda a noite um só instante da sua cabeceira, querendo refrigerar-lhe as faces aradas pelo fogo febril da tuberculose com as abundantes lagrimas que seus meigos olhos derramavam, como se fossem inextinguível manancial.

O infeliz, ora com os olhos injectados apostrophava a monstruosa esposa e pretendia saltar do leito n'uma furia de louco para castigar sua infamia, ora caia desfallecido, chorando como uma creança, e apertando contra o peito a desditosa filha.

E assim passaram, em dores insuperaveis, aquella tremenda noite, emquanto a perversa confessada do padre Seraphim dormia serenamente, sonhando talvez com as bonitas coisas que podia comprar com os cem mil reis que lhe rendera a virgindade da filha.

Na madrugada seguinte levantou-se resolvida a ir remir a sua culpa, isto é, confessar-se, commungar, rezar muito e mandar dizer algumas missas.

Triste symptoma da religiosidade d'um povo, este de se commetter conscientemente uma culpa porque se tem a certeza de se encontrar quem d'ella nos absolva!...

Mas, por desgraça, a cada paço se encontram farças d'esta natureza.

Um indivíduo diz se catholico e sabe que o catholicismo prohibeo duelo; mas julgando se offendido na sua honra vae bater-se. O duelo resume-se, afinal, em fazer detonar uma arma de fogo, sem outras consequencias que o estampido, ou em esgrimir com instrumentos perfurantes, mas que só perfuram o ar, e ahi está o duelista prompto a abraçar o adversário que lhe escarrou na cara, indo a seguir deitar-se aos pés de qualquer sacerdote, que prestes o absolve da transgressão, emquanto os amigos vão espalhar aos quatro ventos que os destemidos duelistas se portaram com valentia e intrepidez.

Outro quer dar um banquete em dia de jejum.

Elle não tem escrupulo de consciencia em comer e dar a comer carnes; mas, para dar bons exemplos e para que o clero lhe não leve o caso a mal, vae no dia seguinte arranjar uma bula dispensatoria.

Tudo isto seria simplesmente ridículo se não fosse uma prova frisante da hypocrisia religiosa e da corrupção dos propugnadores do catholicismo, o que é a causa geradora de crimes monstruosos como o d'aquella mãe vendendo a honra da filha e indo depois ajoelhar aos pés d'um padre para ser absolvida do seu crime, crime tremendissimo que coisa alguma póde, sequer, attenuar.

Quando a beata chegou a casa, já com a tranquilidade de quem não tem culpa alguma a manchar-lhe a limpidez da consciencia, encontrou um medico que Eugenia mandara chamar por ver que seu pae não melhorava, embora pela manhã a febre decrescesse.

O medico observou-o e não lhe foi difficil fazer um diagonostico seguro.

Chamou de parte filha e mãe e declarou-lhes que o doente estava no ultimo periodo d'uma tuberculose.

-- Ih Jesus! -- exclamou a beguina n'um receio egoista -- Mas isso pega-se!...

-- Decerto; póde pegar-se, -- confirmou elle.

-- Oh ! mas por Deus diga me o que é preciso fazer, porque ha de por certo haver remedios para essa doença! -- rogou anciosa a infeliz Eugenia, não se lembrando do perigo proprio para só pensar no meio de poder valer a seu querido pae.

-- Olhe, minha menina, eu podia, como fazem muitos dos meus collegas, receitar-lhe qualquer droga para não deixar de prestar serviços; mas para esta doença ainda hoje não ha antidoto salutar, e o unico meio de combate-la é oppor á cellula destruida pelo terrivel mal uma nova cellula fornecida por meio d'uma boa alimentação. Já ha alguns annos que um sabio francez o declarou por esta proposição que ficou sendo axiomatica:

-- «Com um bom estomago não ha tuberculose incuravel.»

Ora os medicamentos que para ahi applicam com o fim de combater esta alarmante enfermidade, arruinam o estomago, sem por modo nenhum destruírem o bacillo que a causa; de modo que o doente que os toma vae annullar a unica probabilidade que tem de salvação, pois que, deteriorando o estomago, este não lhe digere nem supporta os alimentos e assim o tecido pulmonar é num instante destruído e com elle a vida do enfermo.

-- Mas então é preciso tomar precauções, é preciso separar a louça? -- voltou a mãe de Eugenia.

-- É conveniente, ainda que a tuberculose, em que pese a todos os bacteriologistas do mundo, é mais uma doença proveniente da fraqueza do organismo, do que do contagio. Quem quizer combate-la tem de adoptar esta prophylaxia salvadora: -- robustecer o individuo.

E, como visse nos olhos da joven uma expressão afflictiva e uma anciedade crescente, disse-lhe com carinho por a ver tão dedicada:

-- Se quer tentar a salvação do doente, veja se o faz ingerir todas as substancias alimenticias que o estomago lhe puder supportar, principalmente leite, ovos e carnes frescas.

Mas a maneira como o dizia bem mostrava não ter esperanças.

Eugenia affastavase com a morte n'alma para ir tentar por todos os meios arrancar o auctor dos seus dias á morte, emquanto a mãe ficava a informar-se dos desinfectantes que mais convinha applicgr, afim de impedir que ella fosse atacada por tão terrivel doença.

-- O medico disse que isto não era nada! foram as palavras que a joven poude balluciar para não affligir o pobre pae. Mas elle, meneando a cabeça, respondeu:

-- Não, não, isto é a morte, minha querida filha, eu bem o conheço.

-- Não diga isso, papasinho, -- soluçou ella abraçando-o muito e muito. Mas elle continuou a menear a cabeça, negativamente, e, tocando com as pontas dos dedos no descarnado peito, volveu:

-- Cá dentro não ha nada, sinto isto vazio, não tenho pulmões, É a morte, é a morte... Também só por tua causa a temo. Se não fosses tu, ve-la-ia vir com prazer.

E olhando-a com os olhos rasos de lagrimas:

-- Que será de ti, infeliz?...

-- Oh! meu bom papásinho, não fale em me deixar, que me mata! -- gemeu a pobresinha num arranco de suppliciada, contorcendo-se em ancias mortaes.

E, debilitada pela falta de alimento e pelos soffrimcntos ininterruptos que desde a vespera a apoleavam, caiu para o lado sem sentidos.

O pobre pae sentou-se na cama, sempre com ella segura por um braço para a não deixar escorregar para o chão, mas não chamou ninguem, embora sentisse uma angustia inexprimivel ao vê-la cair em delíquio. Também, quem chamaria elle? A mãe? Mas a mãe era o seu algoz!

Fixou o seu olhar desvairado no rosto angélico da meiga creança e murmurou, erguendo os olhos ao ceu:

-- Meu Deus! já que eu não posso viver para ella, melhor será que me faça companhia na sepultura!

E começou a soluçar cruciantemente.

XXIV

Encontro providencial

Como não havia provas nenhumas contra os prisioneiros denunciados pelo padre Seraphim e outros de que se tinham apoderado como medida preventiva, passados alguns dias, depois de tomarem todas as precauções para evitar qualquer percalço, puseram nos em liberdade.

O primeiro cuidado de Gilberto foi visitar todos os que tinham adherido á revolução, para, emfim, se marcar o dia, porque a sua clausura só serviu para mais lhe arraigar -- se mais era possivel -- a ideia de que era preciso deitar a terra, sem perda de um momento, a decahida monarchia. Mas estava tudo mudado. Alguns officiaes do exercito tinham sido transferidos, outros eram espionados com rigor, e os de marinha não os deixavam vir a terra; os particulares ou funccionarios mais em evidencia não davam um passo que se não soubesse; milhares de espiões escutavam ás portas, seguiam as pessoas, farejavam o que se passava.

Mas o que principalmente tornava inexequivel a revolução, era esse cancro, que corroe a sociedade presente, que lhe não deixa executar um movimento nem pôr em pratica uma ideia altruista -- o egoismo.

A maior parte dos revolucionarios tinham ido ao anoitecer do dia seguinte áquelle em que Gilberto e Armando foram presos, como haviam combinado, á casa que lhes servia para se reunirem, mas encontraram tudo fechado. Por mais esforços que fez, Armando não encontrou meio de avisar o seu creado para mandar abrir as portas. Não se podendo ahi reunir, em vez de procurarem outro local, debandaram, alguns intimamente satisfeitos por se verem livres de semelhante perigo, em que os tinha lançado um momento de irritação; os mais exaltados clamando contra a falta de palavra dos dois mancebos, principaes chefes da conspiração, que assim faltavam ao promettido, chegando até alguns a alcunhar de traição a sua falta de comparencia; e desesperados, furiosos, colericos, promoviam disturbios pelas ruas, acabando por se fazerem prender. De modo que o inquebrantavel democrata nuns encontrou desconfiança, n'outros

indifferença, em muitos má vontade e em muito poucos dedicação. Um ou outro mais sensato, embora propenso ao bem da patria, pretendia dissuadi lo, dizendo-lhe que passara o momento aproveitavel, que o enthusiasmo arrefecera, e que já não podiam contar com a grande massa popular, que nos primeiros dias, impulsionada e bem dirigida, tudo arrasaria, como avalanche formidavel que se despenhasse das eminencias alpinas; mas que se lhe esvaira em gritaria a sua indignação e assim se anniquilara; que com o exercito ainda menos se podia contar, porque andava muito vigiado e que os officiaes suspeitos ou tinham sido transferidos ou comprados; que á guarda municipal lhe tinham dado certas regalias e que isso fôra o sufficiente para a pôr prompta a trespassar esse povo que dias antes cortejava e parecia estar disposta a secundar; que a maior parte dos que entravam na revolução se

tinham vendido ao governo -- por empregos, uns; por dinheiro, outros; por promessas, muitos; que, emfim, era melhor desistir d'aquella peregrinação inutil, pois que isso só podia dar occasião a ser denunciado e novamente preso.

De tudo isto o mancebo só entendia uma coisa: que não conseguia trazer para a rua a revolução que ha tantos dias era o unico objectivo de todos os seus pensamentos. E desesperava-se, enfurecia-se comsigo mesmo por ter transigido com os que tinham proposto que ella fosse adiada, chamando se fraco, pusillanime, estúpido, arrepellando-se e soffrendo horrivelmente. E não se dava por vencido; tentava, tentava sempre convencer os indecisos, animar os irresolutos, enthusiasmar os indifferentes.

Foi a casa de Armando, certo de que este, se já estivesse em liberdade, o ajudaria n'esta ardua tarefa; mas encontrou-o perigosamente enfermo.

Resolveu deixar para o dia seguinte a continuação da sua via-sacra e foi procurar um quarto, para onde se mudasse, porque D. Innocencia o intimara, na occasião em que fôra mudar de fato, a deixar-lhe immediatamente a casa. Á ingobil creatura não lhe convinha lá o mancebo, já por aquillo que lhe dissera o seu confessor, já porque, pensando em pôr em almoeda a virgindade da filha, temia que elle o viesse a saber.

Um jornalista, e principalmente um jornalista republicano, é um espectro assustador para todos os que commettem acções infamantes. O crime teme sempre o juiz inflexivel e justiceiro; a devassidão tem horror á moralidade. Á beata parecia-lhe que tinha sempre sobre a cabeça a imminencia do perigo de se saber da sua torpeza, emquanto tivesse em casa aquelle desalmado escrevinhador.

O mancebo depressa encontrou, perto d'ali, ou tro quarto que lhe servisse.

Eugenia, que estranhara a sua ausencia, sentiu um profundo desgosto áo vêr que elle se mudava, pois não sabia que a mãe o havia despedido; mas não poude falar-lhe, que ella não a perdia de vista.

Só quando elle bateu para entregar a chave e despedir-se, é que poude vê-lo, mas limitou-se a lançar-lhe um olhar contristado, em que elle pareceu não reparar.

E, na verdade, elle não via senão o seu ideal, não pensava senão na revolução que via gorada.

Aquella mudança desagradou-lhe, mas foi por lhe roubar algum tempo que elle só queria dedicar á causa da republica.

Assim passou muitos dias procurando por todos os modos agitar a opinião, accender o fogo revolucionario na alma da população lisbonense, mettendo-se pelos quartéis, pelas fabricas, pelas officinas, pelas lojas, pelas escolas, pelos cafés e até pelas tabernas; mas, no fim de quinze dias, podia contar apenas com alguns centos de revolucionários destemidos, que podiam fazer-se matar pelos regimentos da realeza, mas não proclamar a republica. Não é que a maioria do povo, especialmente o commercio a industria, todas as classes trabalhadoras e pensantes, deixassem de ser republicanas, mas não queriam compremetter-se.

Acceitariam a republica com regosijo, mas não estavam dispostas a offerecer o seu sangue para o seu advento.

Algum tempo depois, e n'um dia em que Gilberto, muito desanimado, atravessava ao anoitecer o Caes do Sodré, deparou se-lhe um quadro que o arrancou do seu torpor. Um policia agarrava por um braço e quasi arrastava uma rapariga, que chorava affiictivamente, pedindo-lhe que a deixasse, que não fizera nenhum mal, que a não levasse presa. E o feroz agente da auctoridade, dando risadas imbecis, retorquia:

-- Já conheço essas lamurias, não me fazem mossa. Vocês todas assim dizem, mas mais te valera estar calada, minha lambisgoia. E ella cada vez chorava mais e forcejava por se desprender d aquella mão, que a segurava brutalmente.

Gilberto, que tinha uma bella alma e não podia ver chorar quem quer que fosse sem fazer a deiigencia por enxugar aquellas lagrimas, approximou-se do guarda policial e perguntou-lhe que mal havia feito aquella creatura.

-- Ora que havéra de fazer, -- retorquiu grosseiramente o selvagem -- andava á gandaia...

-- Eu não andava a coisa nenhuma--gemeu ella, mostrando não comprehender a chulice do seu captor -- estava sentada á beira do rio a chorar.

-- Bem sei, bem sei--gargalhou elle -- a esta hora ali assim, todos sabem o que quer dizer...

-- Mas então que lhe vae fazer? -- perguntou Gilberto.

-- É boa a prégunta!...

«Vae hoje dormir ao chelindró e amanhã mette-se-lhe o livro na mão, quer queira quer não queira.

-- Meu Deus, que mal faria eu para assim passar uma noite presa! -- soluçou a desgraçada. Esta exclamação mais fez ver a Gilberto que a pobre creatura ignorava o que iam fazer d'ella e convenceu-se de que estava innocente das aleivosias que a bruteza policial lhe assacava; pensou por isso em lhe valer, tanto mais que aquella voz, doce e harmoniosa, parecia ser-lhe conhecida. Não podia porém distinguir-lhe as feições, porque era escuro e n'aquelle local estavam ainda apagados os candieiros. Começou, pois a segui-los, pensando na fórma de a po-o agitador der soltar, quando, junto d'elles, um empregado da companhia do gaz accendeu um candieiro. Como se o mesmo pensamento actuasse na presa e em Gilberto, olharam se ao mesmo tempo e ambos recuaram espantados, erguendo cila para elle as mãos e uns olhos supplices, rogando:

-- Salve-me, salve-me, sr. Gilberto, diga a este senhor que não sou nenhuma ladra, que me deixe, que me deixe.

E n'aquella sua postura e assim ignorante, o mancebo via-a pura e bella, não merecendo as bestiaes palavras do fero guarda.

--Mas como se encontra aqui, menina Eugenia? Que significa isto? --interrogou elle, não achando explicação para aqnelle passeio ao anoitecer por logares tão suspeitos.

-- Ah! sou muito desgraçada, se soubesse?!

Mas salve-me, salve-me! continuou ella, rogando de mãos postas.

O guarda quiz agarra-la novamente e fazê-la andar, mas o jornalista disse-lhe:

-- Espere lá. Você prendeu indevidamente esta menina, que não é o que você julga.

-- Deixemo-nos de historias; toca a andar que já me vae chegando a mostarda ao nariz -- retrucou elle grosseiramente.

-- Já lhe disse; esta menina não pôde ir presa como vagabunda, por ser pessoa honesta... que é de mais a mais de minha familia.

-- Bem, lá no governo civil se deslindará isso, e toca andar -- resmungou elle com maus modos, deitando-lhe novamente a mão.

Então Gilberto comprehendeu que só por boas maneiras podia fazer alguma coisa delle. Tornou, pois, com modos delicados e persuasivos:

-- Ouça, senhor guarda; bem sabe que só a entrada d'esta menina no governo civil já é um vexame, que muito bem se póde escusar. O senhor, encontrando esta menina, julgou que era pessoa de má nota, e deteve a; mas, sabendo agora que se enganou, porque apparece pessoa de familia a reclama-la, solta-a; é de justiça e até não vae contra as instrucções dos seus superiores.

-- Está visto, está visto! -- disseram muitas das pessoas que se tinham juntado e que, como sempre, estavam contra a policia -- até póde ser castigado.

O homem olhou colerico para os que o rodearam e bradou:

-- Se me estão cá a finfar é que a não largo.

E no seu rude espirito travava-se uma grande batalha.

Devia manter a prisão? Devia mandar a rapariga embora?

Para a mandar embora dava uma fraca idéa de si, pensava elle, pois que haviam de dizer que foi por imposição d'aquella gente; e a sua basofia ficava amarfanhada. Mas para a levar comsigo tinha medo da colera do jornalista. Elle conhecia-o, sabia que no dia seguinte apanharia uma tunda mestra no jornal que redigia e não lhe agradava tambem a perspectiva. «Raio de sorte. Encontrar logo ali aquelle diabo... »

Mas teve uma idéa. Pediu a Gilberto que o seguisse, e atravessaram o Corpo Santo, seguidos de grande quantidade de pessoas ; mas ali pediu a outro guarda que não deixasse passar aquelles basbaques, e, subindo a calçada do Ferregial, já só com Eugenia e Gilberto, entregou a este Eugenia, dizendo lhe:

-- Vá lá, que o não fazia a mais ninguem!...

-- Obrigado -- murmurou elle.

E, pondo se ao lado da joven, começaram a andar em direcção á rua da Emenda. Depois de darem alguns passos, ella parou e perguntou-lhe, sempre com lagrimas na voz, embora mais desafogada por se ver livre do terrivel policia:

-- Para onde me leva?

-- Para sua casa, pois para onde quer ir?

-- Não sei para onde hei de ir, mas para minha casa é que não vou.

-- Como não vae! mas porque?

-- Não quero, nem devo voltar lá.

-- Mas então assim deixa sua mãe e seu pae... seu pae que parecia amar tanto!

A pobre creança desatou a soluçar.

Pelo espirito do mancebo passou uma dolorosa suspeita. Pensou que talvez o policia tivesse alguma razão e fosse essa a causa d'ella não querer voltar a casa.

Mas logo que os soluços a deixaram pronunciar algumas palavras, Eugenia disse-lhe:

-- Meu pae foi enterrado, hoje, e não quero mais ver minha mãe.

Todos os maus pensamentos de Gilberto se desvaneceram, e comprehendeu que algum motivo ponderoso devia ser o que motivava uma tão extranha resolução, n'uma creança naturalmente bondosa e tímida. E sem lhe perguntar mais nada a foi guiando até á sua nova habitação, que era na rua do Loreto, onde elle alugara, n'um terceiro andar, uma saleta e um quarto confortavel, em que não tivera ainda tempo nem paciencia para arrumar a sua limitada mobilia.

Eugenia, envergonhada por se ver assim com um homem, nem se atrevia a levantar os olhos; mas elle para a serenar disse-lhe:

-- Tem ahi o meu quarto para passar a noite; eu tenho muito que trabalhar e por isso não repare em ficar aqui: tenho ainda que escrever os artigos para levar á typographia.

-- Não me faça isso, por Deus lhe peço; não me faça tomar a sua cama, que o senhor precisa para descançar. Escreva á sua vontade, que eu não o interromperei; e depois deixe-me ficar aqui, que qualquer cadeira me serve para passar a noite. Eu não dormirei, não poderei dormir.

O coração do mancebo confrageu-se-lhe ao ouvi-la fallar; eram tão meigas, mas ao mesmo tempo tão tristes e doridas as suas palavras, que, penetrando no coração, encantavam e pungiam ao mesmo tempo. Elle tinha interesse e mesmo necessidade de conhecer os seus intuitos em relação ao caminho a seguir; disse-lhe, portanto:

-- Sim, uma noite depressa se passa; mas que tenciona fazer ámanhã? Para onde ha de ir?

-- Não sei. Toda a minha tenção era reunir-me ao meu querido pae. Depois de o acompanhar ao Alto de S. João, não voltei a casa; andei ao acaso, sem mesmo saber por onde, até que ao escurecer me encontrei no Aterro. Eu tinha promettido a mim mesma não lhe sobreviver; e ia com tenção de me deitar ao rio logo que fosse noite, para não poderem ver-me nem salvar-me; mas ao sentar-me junto da agua, approximou-se de mim um homem de má catadura e começou a dirigir-me palavras que eu não entendia. Como lhe não respondesse e me levantasse para fugir, quiz agarrar-me. Mas appareceu n'aquelle momento o policia que viu, agarrou-me sem eu saber porque e queria por força levar me presa.

«Se não fosse o senhor estaria por certo a esta hora no calabouço!

«E só esta lembrança lhe produzia calafrios.

-- Mas porque não vae para junto de sua mãe? -- perguntou elle de novo.

-- Ah! senhor! eu sou muito desgraçada. Meu pae morreu de desgostos e eu prefiro matar-me a tornar a ver minha mãe. Sou muito desgraçada!

muito desgraçada!

E os soluços irrompiam de novo, indomaveis, espedaçadores, asphixiantes.

Gilberto, muito compadecido, tentou acalma-la, mas teve de esperar muito tempo, primeiro que aquella agonia cruciantissima desafogasse um pouco.

-- É preciso não se abandonar assim á sua dôr -- lhe disse elle commovido por tanto soffrimento.

«Faça por serenar um pouco e ámanhã pensaremos no que convém que se faça. Agora peço-lhe que se vá deitar que tenho...

Mas como de repente se lembrasse de qualquer coisa, interrompeu-se dizendo:

-- Ou então deixe-se estar, que eu escrevo isto depressa.

E tomando um caderno de papel almasso, rasgou-o ás tiras e começou a escrever.

A penna corria breve sobre o papel, sem uma indecisão, sem se interromper um momento, como quem escreve uma coisa que muito bem sabe de cór; e as estreitas tiras iam sendo postas para o lado, já cheias de caracteres, com a rapidez d'uma machina, sem que fosse preciso emendar, rever ou pontoar coisa alguma. Assim como os pensamentos brotavam rapidos, logicos, concordes, assim o braço executava sem a menor omissão. Tinha passado pouco mais de meia hora quando elle se levantou, e, agarrando uns poucos de linguados que tinha escripto, collocou-os em ordem, e, dobrando-os, metteu-os na algibeira do casaco, ao mesmo tempo que dizia a Eugenia:

-- Eu vou entregar isto e já volto. Vae prometter-me que não sairá d'aqui, nem tentará contra a sua existencia emquanto eu não voltar.

A pobre creança vacillou um pouco e respondeu:

-- Prometto!

E elle, descendo a escada, dizia comsigo:

-- Que cabeça a minha! Então não queria fazer deitar a rapariga sem lhe dar de jantar, sendo provavel que ella ainda hoje não comesse coisa alguma?!

Entretanto Eugenia ficara pensando:

-- Mas que situação é a minha aqui com um homem só? Que faço eu aqui? Porque não faço o que devo?

«Que é que a mim me resta?

«Nada; a morte!

E lembrava-se de correr de novo ao Tejo e cumprir a sua promessa, que era ao mesmo tempo uma necessidade.

Mas tremia de ser novamente presa, de algum vagabundo a tornar a encontrar e agarra-la. Então lembrou-se da janella d'aquella sala, que poderia proporcionar-lhe uma morte rapida; mas tinha promettido ao jornalista não tentar contra a existencia emquanto elle não voltasse; e matar-se alli era deixa-lo mal collocado; alem disso elle era tão bom, tinha-lhe feito tanto bem livrando-a das garras d'aquelle brutal policia!

Depois amava-o tanto!...

Começava então a lembrar-se da maneira como se affeiçoara áquelle mancebo, que nem n'ella reparava, como se deliciava arranjando lhe o quarto, como sentia prazer em mexer nos objectos que lhe pertenciam, em lhe dispor tudo com ordem, em trabalhar para elle.

E que prazer ella não sentia quando, ao entrar-lhe no quarto, reparava que elle não mudara o logar que ella dera ás coisas!

Era porque lhe agradava a disposição que fizera. Como isto lhe fazia dilatar o coração em mornas e castas sensações. Depois, quando elle foi ferido, que alvoroço em sua alma em poder servir-lhe de alguma coisa! Que alegria em poder falar-lhe, ouvi-lo, ser-lhe util! Não trocaria esta ventura por todas as riquezas do mundo. E por ultimo, quanto soffrera quando elle faltou tantos dias em casa!

Como ella escutava todos os ruidos da rua, todos os passos na escada, julgando ser elle! Não é que quizesse vê-lo ou falar-lhe. Contentava-se sentindo-o.

Mas o seu desgosto ultrapassou todos os limites quando percebeu que elle, ao voltar, se mudava.

«É certo -- pensava -- vae casar-se! Tambem que esperava ella? Nada. Mas estava tão acostumada a senti-lo, a occupar-se d'elle, a vê-lo por traz dos vidros chegar ou sair!...

Chegou porem o momento da sua desgraça. Sua mãe vendeu-a, e ella julgava-se então até indigna de pensar n'elle: e se não fôra seu pae, a quem ella amava com toda a ternura de filha extremosa, ter-se-ia logo suicidado.

Mas seu infeliz pae morrera e nada mais lhe restava, la pois morrer. E eis que de repente se vê agarrada, presa e por fim nas mãos d'aquelle a quem tanto amava. Que podia porem ella esperar? Se elle soubesse o que tinha havido, teria repugnancia d'ella.

Só lhe restava morrer; e murmurava resignada:

-- Não poude ser hoje, será amanhã.

E na sua mente tornavam a desenvolver-se todas as scenas que em sua casa se tinham passado nos ultimos dias. Seu pae ferido de morte com a noticia da sua deshonra; o medico consciencioso dizendo-lhe francamente o seu estado desesperado; as lagrimas e conselhos do pae, e por fim a sua morte e enterro. Não podia esquecer-se da frieza da mãe perante o cadaver do marido, ella que se contristava e chorava perante uma maldade a um gato, ou a qualquer outro animal. E ella, a pobresita, toda a noite sósinha abraçada ao cadaver daquelle pobre martyr, querendo dar calor áquelle corpo frio, querendo animar aquella insensibilidade, querendo chama-lo á vida, e aterrorisando-se com aquelle silencio, e sentindo calefrios ante aquella rigidez.

E agora, alli mesmo, lhe parecia vê-lo, sempre inteiriçado e frio: desejava-o e tinha-lhe medo, chamava-o e espavoria-a a sua visão.

Encolhia-se louca de terror, parecendo-lhe cada sombra um phantasma, cada objecto um esqueleto.

Julgava-se no Alto de S. João e parecia-lhe que de todas as campas se levantavam defuntos para a agarrar.

Pallida e morta de terror encolheu-se mais, e estava prestes a desmaiar, quando sentiu passos na escada.

Animou-se, mas sentiu-se confrangida percebendo que era mais d'uma pessoa. Talvez não fosse ainda Gilberto; pois quem o havia de acompanhar!

Mas sentiu abrir a porta e viu este entrar e voltarse para a escada, dizendo:

-- Dê ca, e póde vir buscar isto ámanhã de manhã.

Gilberto fechou a porta e ella viu que elle tinha na mão um cabaz.

Comprehendeu que elle lhe mandara trazer de comer e sentiu-se commovida de gratidão por taes desvelos, ainda que lhe parecia não poder ingerir coisa alguma, apesar de não ter comido nada desde a vespera.

Gilberto puxou para defronte d'ella uma mesa de jogo que tinha a um canto, desdobrou-a e principiou a collocar sobre ella o conteúdo do cabaz.

-- Bem póde desculpar -- disse elle -- isto é simplesmente para não ficar de todo sem nada.

-- Oh! senhor!... Que incommodo! -- titubiava ella -- Mas eu não tenho vontade, não posso comer coisa alguma...

-- Mas é que é preciso fazê-lo. E demais eu ainda não jantei, e, como tambem não tenho vontade, espero que sempre comerá qualquer coisa para me despertar o appetite.

Com esta piedosa mentira pensava elle resolve-la, e effectivamente ella não fez mais objeção alguma e esforçou-se por deglutir tudo quanto elle lhe deitava no prato.

Gilberto, emquanto comia, tentara desviar-lhe o curso das idéas, para a distrahir. Começou pois:

-- A minha prisão fez-me perder o appetite. A vida em tão estreitos cubiculos é de tal fórma aborrecedora, violentada, tediosa que se apodera de nós uma impaciencia febril que nos rouba a alegria, o appetite e as forças.

-- Mas então esteve preso? -- perguntou muito espantada a desgraçada creança.

-- Pois não sabia?! E não fui só eu: tive muitos companheiros d'infortunio. Não no mesmo calaboço, que elles tinham o cuidado de nos separar, mas espalhados por todos os antros onde costumam alojar os gatunos e assassinos. Um dos que teve a mesma sorte foi aquelle meu amigo que lá costumava ir ao meu quarto, e que me fazia o penso, quando fui ferido; mas esse teve ainda peores resultados, pois que sahiu de lá com umas febres de mau caracter, que o teem tido ás portas da morte.

Eugenia estava pasmada e condoída d'aquella infelicidade, que ignorava, mas simultaneamente sentia lá no intimo da alma uma doçura com aquella noticia.

Não é que ella fosse má, mas é que isto lhe vinha destruir as suas desoladoras suspeitas de que aquella ausencia lá de casa fosse motivada por alguma aventura amorosa.

Faltava-lhe ainda esclarecer um ponto, e era a causa porque elle abandonára o seu antigo quarto; mas depressa o soube, porque elle accrescentou:

-- Foi no mesmo dia que fui posto em liberdade que sua mãe me ordenou que procurasse outro quarto sem detença.

Novo motivo de espanto para Eugenia que não adivinhava que interesse tivesse a mãe em o despedir, exactamente quando tanto careciam de dinheiro.

Acabada a refeição, Gilberto pediu-lhe que se fosse deitar na sua cama, que elle tinha que escrever e que depois iria dormir n'outro quarto, que a dona da casa tinha ao lado.

Ella ainda quiz escusar-se, dizendo-lhe que o canapé lhe bastava, mas elle instou de tal maneira que não havia remedio senão obedecer-lhe.

Gilberto, ficando na saleta, em vez de ir para um hotel ou para qualquer parte, onde tivesse uma cama, foi ás malas, procurou toda a roupa que podia preserva-lo do frio, estendeu-a no chão sobre o tapete, e descalçando as botas e tirando o casaco e o collarinho, deitou-se, embrulhando-se o melhor que poude.

Preferia aquillo á melhor cama n'outra parte.

Não dormiria bem se d'alli arredasse pé, pensando que precisava velar por aquella infeliz creança que o acaso lhe atravessara no caminho. E monologava:

-- Ora aqui estou eu n'uma situação que julgava só poder encontrar nos romances. Eu já tenho lido coisas assim. Um pobre diabo qualquer encontra uma rapariga abandonada, recolhe-a, deita-a, na sua cama e elle passa a noite deitado no chão: mas nunca julguei que a mim me succedesse outro tanto. Porém se eu ámanhã fosse contar a essa asnatica janotada do Martinho e da Havaneza a minha aventura, accrescentando que a minha hospeda é uma galante rapariga, estalariam de riso, chamando-me tudo, de palerma para cima. Para elles o natural era dormirmos juntos. E, todavia, eu sinto-me tão feliz aqui e tão bem com a minha consciencia...

E, como se quizesse harmonisar os factos com os seus pensamentos, adormeceu serenamente, o que já ha muito lhe não succedia.

Entretanto Eugenia, deitada n'aqueha cama, de que tantas vezes tratara, mas que nunca suppoz vir a servir-lhe de repouso, pensava com amargura no seu triste destino, chorava ainda e sempre seu bom pae, e lembrava-se, com castos transportes de reconhecimento e amor, do generoso mancebo que tão providencialmente lhe acudira.

E dizia: Como elle deve viver feliz no remanso d'esta socegada casinha. Se quer conversar, discutir, rir-se, se lhe apraz o bulicio, a convivencia, a agitação, sae para a rua ; se prefere o socego, o descanço, o isolamento, fecha-se aqui. E salientava a differença entre este viver placido, agradavel e livre e o de seu pobre pae, sempre acorrentado ao trabalho, sempre escravisado e desgostoso.

-- Ah! Como ella se julgaria ditosa se pudesse ali assim viver occulta e isolada, só com aquelle bom e honrado rapaz, embora fosse uma escrava, que elle só empregasse nos mais infimos misteres.

E com a lembrança de viver com elle, nem uma só contracção sensual, nem uma só lembrança de contacto impuro! A sua alma immaculada não transmittia ao corpo nenhuma manifestação de prazeres cupidineos.

Apenas o coração se dilatava em doces e puras sensações de amorosa veneração por elle.

-- Mas não, não podia pensar n'isso, dizia para comsigo; ella era uma rapariga deshonrada, que só lhe podia despertar desprezo. Só a morte, a morte lhe restava, e essa procura la-ia no dia seguinte.

XXV

A revelação Eugenia, que só muito tarde adormecera, vencida pelo cançaço physico e moral, tambem accordou um pouco tarde. Já o sol se espreguiçava pelo attrahente amphitheatro que a cidade forma e vinha derramar-se atravez de duas aguas furtadas, em pulverisações aurifulgentes pela janella do quarto, quando ella abriu os olhos, muito espantada, e saltou immediatamente do leito.

No seu espirito não houve a menor indecisão; accordou com a perfeita noção da sua desgraça e prompta a executar o que tinha planeado. Era seu intuito sair cedo e cumprir a sua extrema resolução

-- Morrer.

-- Meus Deus, que tarde! É capaz de já se ter levantado -- murmurou.

E ella que queria sair antes de elle accordar!

Todavia isso seria o maior sacrificio que podia fazer.

Elle era tudo quanto n'este mundo agora amava, parecendo que todos os affectos, que podiam repartir-se por tantas outras pessoas, se lhe tinham concentrado no coração a seu favor. Mas não havia remedio. Se elle a visse, podia obstar a que puzesse em pratica os seus intentos o que ella não queria, por entender que era isso e só isso o que lhe restava fazer. Preparou-se, pois, rapidamente e abriu muito devagar a porta do quarto.

Mas qual não foi o seu espanto -- espanto e ao mesmo tempo satisfação, porque não dizê-lo? -- ao ver na sua frente o risonho mancebo, olhando-a sorridente e dirigindo-se-lhe n'estes termos:

-- Então, dormiu bem? Pelo que vejo não gostou da cama, porque a vejo em disposições de quem abandona a casa.

Ella timida e commovida, balbuciou:

-- Oh senhor!... Bem sabe que não posso nem devo continuar a importuna-lo. Seria uma inconveniencia. ..

--Mas então para onde se dirige?

«Que tenciona fazer?

Ella, ruborisada e indecisa, não sabia que responder. Não queria dizer quaes eram os seus intuitos, mas tambem não queria mentir a quem tanto por ella tinha feito. Conservou se, pois, silenciosa, e elle voltou:

-- Mas vae tratar de collocar-se?

«Que collocação pretende?

-- A unica que me competia era creada de servir ; mas se não sei fazer nada!...

Gilberto não cessava de a contemplar. Nunca ella lhe parecera tão candida e tão divinamente bella. A assetinada e rosada cutis, ainda que um pouco esmaecida, tinha a frescura das virgens de Raphael, parecendo deixar transparecer, atravez d'ella, os tecidos subjacentes. Os olhos, espelho de sua alma de anjo, apesar das escuras e profundas olheiras que as suas amarguras lhe cavaram em volta, eram sempre meigos e doces, sempre expressivos de pureza e de bondade. O corpo, leve como o de uma ave, gentil como o de uma nympha, tinha um não sei quê deaereo, de sobrenatural, de deifico.

-- Mas então -- pediu Gilberto -- permitta-me que seja eu quem lhe trate de arranjar casa.

Ella ficou por um momento silenciosa. Já se tinha lembrado d'isso, de se collocar de qualquer forma. Custa tanto largar a vida aos dezasete annos, quando ainda se desconhece o mundo!...

Mas lembrava se depois da sua ignorancia e da sua pouca habilidade, quando pretendia fazer qualquer coisa, e isto dissuadia-a. Que vergonha! d'aquella idade, não saber dar um ponto nem fazer um caldo! E o que só se podia attribuir á falta de ensino e de pratica, attribuia o ella á sua inepcia.

Decididamente, antes queria morrer que deixar envergonhado o mancebo perante a casa que elle lhe arranjasse.

Respondeu, pois:

-- Muito obrigada, mas eu me arranjarei; basta o incommodo que já lhe tenho dado.

-- Mas eu é que a não deixo sair, emquanto não tiver casa para onde vá. Julgava talvez que a deixava ir tentar novamente contra a existencia? Isso é que não. Já que acceitou o meu auxilio, tem de se sujeitar ás minhas deliberações. Eu sou apologista da liberdade, mas agora far-me-hei tambem para comsigo um tyrannozinho. Já lhe nem pergunto se quer que lhe arranje para onde vá. Imponho lhe a minha vontade: hade ir para onde eu mandar...

Dizia-lhe estes palavras rapidamente, a fingir intimativa, mas com uma expressão risonha, carinhosa, de paternal protecção, que fez que ella o olhasse enternecida, mas objectando sempre:

-- Desculpe-me, mas não permitto.

«O senhor ficaria envergonhado com as pessoas a quem me recommendasse, porque eu não sei fazer absolutamente nada. Não quero, não quero que o senhor se humilhe recommendando uma desastrada e uma estupida como eu. Deixe-me com o meu destino.

E não poude reter as lagrimas que a suffocavam.

-- Está bom! Nem mais uma palavra sobre o assumpto, que está de mais discutido. Tem de submetter-se ás minhas despóticas vontades.

N'isto bateram á porta; era o creado do restaurante que vinha buscar o cabaz. Gilberto encommendou-lhe o almoço e o gallego partiu, voltando d'ahi a pouco com o que lhe fôra pedido.

Almoçaram. O jornalista, com uns requintes de delicadeza e de engenho, forçara-a a comer o sufficiente para não ter fome até á tarde, que só então poderia jantar. Em seguida saiu a procurar uma casa de gente de bem, onde recebessem a infeliz menina.

Lembrou-se d'umas senhoras que lhe tinham indicado uma vez, que trabalhavam em roupa branca, e dirigiu-se para ali.

Eram duas irmãs, ambas de cabellos já branqueados, posto que bem conservadas ainda. A mais nova era viuva dum official do exercito, que a deixara quasi sem recursos. A outra era solteira. Viviam ambas honradamente do fructo do seu trabalho, e sempre muito amigas, sem que, mesmo nos momentos de maior penúria e de maior amargura, a mais pequena dissidencia viesse emsombrar aquella paz immorredoura.

Não saíam nunca, nem mesmo quando lhe faltava o trabalho, a não ser a viuva, que uma vez por semana ia ao Alto de S. João espalhar flores sobre a campa do esposo sempre querido.

A sua religião era aquella, a religião do seu querido morto, a quem tanto culto o seu coração prestava.

Nunca entrava numa egreja, nunca se confessava, embora acreditasse n'um Ente Supremo, porque bem sabia que entre esse Ser e as religiões nenhuma relação podia haver. Eram os sabios principios de seu defuncto marido, com que ella se identificara, a actuarem no seu espirito, o que não obstava a que ella tivesse uma vida de virtudes e de abnegações, que muitos julgam só poder emanar dos principios religiosos. Foi d'estas dignas senhoras, que a necessidade tornara simples costureiras, que Gilberto se lembrou para collocar a sua desamparada hospeda.

Ninguém melhor do que ellas podia fazer d'aquella creança uma mulher seria, honesta e amiga do trabalho.

Os seus exemplos eram a mais valiosa lição de ordem, de harmonia, de actividade e de moralidade.

Receava o mancebo que as boas senhoras não quizessem encarregar-se d'ella, que na verdade o encargo era espinhoso;mas elle contava resolve-las e assim aconteceu. Contou-lhes que era uma orfã que só tinha tido n'este mundo o pae, mas que este fôra sepultado na vespera... Que, como era seu amigo,

queria velar por sua filha; e por isso procurava uma casa honesta onde a acceitassem, mediante uma mensalidade que elle pagaria. A virtuosa viuva, que conhecia Gilberto, não fez objecçoes, e pediu que lhe trouxesse a menina, que ellas a tratariam como filha.

Sahiu muito satisfeito; e, como lhe ficava em caminho, foi visitar Armando. Este não se achava melhor, o que trazia em ancias seu honrado pae e sua extremosa mãe.

Gilberto ficou ali algumas horas junto d'aquelle tão seu leal amigo, que lhe pedia pormenores de tudo o que se tinha passado. O jornalista, para o não desgostar, não lhe falava das suas infructiferas tentativas, nem da traição de grande numero dos seus antigos companheiros. Dava-lhe até esperanças de, em pouco tempo, poder dar-se o golpe.

E elle, o jovial e intelligente democrata, impacientava-se por não poder levantar-se d'aquelle leito para os ajudar.

Gilberto dirigiu-se, emfim para casa, ancioso de dar a boa nova á pobre Eugenia. De caminho deu ordem no restaurante para lhe mandarem o jantar...

Ao abrir a porta da sua pequena sala ficou agradavente surprehendido com a transformação que ali se operara.

Durante a sua ausencia. Eugenia começou a arrumar a mobilia que ainda se encontrava n'um montão, e de tal fórma dispoz tudo, com tanta graça, com tanta ordem, com tanto gosto, que o mancebo quasi que desconhecia aquelles seus aposentos. Eugenia, quando elle lhe disse que já lhe tinha arranjado uma casa de senhoras pobres mas honestas, para onde ella podia ir, agradeceu-lhe com enternecimento, embora suppozesse que ia como creada e tremesse, com antecedencia, da figura que ia fazer.

Pouco depois veio o jantar; e, acabado elle, depois de Gilberto lhe ter dito o que convinha que dissesse a seu respeito, acompanhou-a a casa das virtuosas senhoras, tendo o cuidado de fugir dos centros mais concorridos para não dar nas vistas.

Eugenia sympathisou logo muito como as boas irmãs, mas ficou muito espantada quando, em vez de a mandarem para a cosinha, a fizeram sentar n'um banquinho no quarto da costura e com modos muito affaveis começaram a ensina-la a coser. O seu espanto subiu de ponto quando á noite viu a senhora mais velha ir para o fogão e fazer o chá, sem a chamar nem a mandar fazer nada. Julgou a principio que aquillo fosse uma lição por ella não ter tido o cuidado de ir accender o lume, mas viu que se enganava quando ella lhe disse com um agradavel sorriso:

-- Não, menina, isto não lhe pertence; se quizer aprender a cosinhar, tem muito tempo.

Só agora reparava que a tratavam por menina!

Então que modos eram aquelles de tratar uma creada! E alem d'isso dizer-lhe que aquelle serviço lhe não pertencia!...

Então que era ella alli? Respondeu pois:

-- Mas não é á creada que compete fazer esses serviços? Que farei então?

-- Creada? Mas a menina não entrou para nossa casa como creada.

«O sr. Proença metteu-a cá como educanda, por isso nos paga. «Nem nós costumamos ter creada, que não temos posses para isso.

Eugenia deitou a chorar. Comprehendia agora porque Gilberto parecia tão contente em a ali metter com aquellas virtuosas senhoras, gastando com isso o seu dinheiro. E chorava como se lhe infligissem as maiores torturas, chorava porque um espinho agudo a dilacerava, o espinho do remorso.

As bondosas velhas julgavam que ella chorava pelo pae e esforçavam-se por lhe minorar a sua dôr com todos os balsamos de seus confortos.

Á noite bateu á porta um moço de fretes carregado com objectos que o jornalista lhe tinha comprado, visto ter ella comsigo apenas o fato que trazia no corpo. Mandava-lhe fazenda para vestidos, panno para camisas, meias, lenços, corpetes, camisolas, etc. Não lhe esquecera coisa alguma.

Isto mais pungiu a infeliz, que se accusava de ter occultado ao mancebo a sua vergonhosa situação, o que fazia que elle assim procedesse, julgando-a uma rapariga digna.

Depois de uma noite passada horrivelmente, levantou-se pela manhã e saiu de casa, ou, melhor, fugiu, sem que a vissem e foi bater á porta de Gilberto.

Este, que ainda estava na cama, levantou-se intrigado, sem saber quem poderia vir importuna-lo tão cedo.

Ao dar de cara com Eugenia, ficou muito admirado e perguntou-lhe:

-- Então que a traz por cá? Não lhe agradam as perceptoras que lhe arranjei?

-- Parecem ser muito boas senhoras mas eu venho dizer-lhe que não posso nem devo continuar ali.

E muito agitada e soluçante continuou:

-- Dê-me licença para seguir o meu destino. Eu não sou o que o senhor julga.

-- Mas porque? -- perguntou Gilberto, magoado e afflicto -- Que lhe fiz eu, ou que lhe disseram ellas? Faltei-lhe eu por ventura ao respeito?

-- Não senhor! não senhor! -- continuou ella cada vez mais opprimida. -- É que o senhor julga que eu sou uma rapariga digna e eu não passo duma desprezivel creatura.

O mancebo fez-se excessivamente pallido. Voltou-lhe á mente a scena do policia, e tornou a suppor que elle tivesse razão.

Mas porque empallidecia? Seria porque lhe custasse admittir que aquella aparencia de virgem, aquella candura, aquella belleza celestial abrigasse uma alma já corrompida, ou porque a amasse já?

Nem elle o podia dizer; mas o que é certo é que só esta ideia lhe produzia um desgosto profundo.

E ella, vendo-o assim já de aspecto severo, continuou:

-- Eu fui fraca, fui vil em acceitar os seus favores, porque os não merecia; e fui cobarde em lhe ter occultado a verdade.

Gilberto fê-la sentar numa cadeira e tentou acalmar-lhe a exitação nervosa, que a fazia soluçar des

pedaçadoramente.

-- Então! Não vale a pena chorar assim... Occultou-me alguma coisa? Nada tenho que lhe levar a mal; eu tambem lhe não pedi para me contar os seus segredos. Mas, se lhe pesa não têr sido franca, ainda está a tempo e não é preciso desesperar-se d'essa maneira.

E dizia-lhe estas coisas com expressão de caririnho e sorrindo, mas muito mortificado.

Eugenia precisava desabafar e desabafou.

Contou-lhe tudo o que se tinha passado: a torpeza da mãe, a sua deshonra pelo monstro que a comprara como se fosse um animal, a agonia mortal de seu pae ao sabê-lo, e, emfim, a sua fuga de casa, que elle já sabia.

Semelhante revelação deixou o honrado rapaz como que fulminado.

Nunca elle suppusera que pudesse commetterse uma tal monstruosidade! A honra d'uma virgem vendida pela propria mãe! Havia lá coisa mais infame, mais horrível, mais ignominiosa! Que depravação, que carencia de sentimentos, que hediondez!

E pallido, nervoso, colerico, olhava para a pobre creança sem proferir palavra.

E ella, depois d'uma pausa:

-- Vê, que lhe devia ter dito a verdade, para se não andar a incommodar comigo!

Elle então sentou se ao pé d'ella, e, tomando lhe uma das frias e debeis mãos, disse-lhe com um modo mais caricioso que nunca:

-- Não, se eu soubesse que era tão desgraçada e tão pura, teria até sido mais cuidadoso e sollicito.

-- Não troce da minha desgraça -- pediu ella, olhando-o comfrangida -- Pura, chama-me pura quando sabe que sou uma rapariga perdida?

-- Não falle assim, que se está insultando iniquamente. Sim, digo que é pura, porque a sua alma está mais immaculada que a de muitas virgens... no corpo. Um infame qualquer, é verdade, polluiu-a, mas não conseguiu corrompê-la. Tambem um sapo póde babujar uma rosa e não deixa ella por isso de derramar sua fragrancia. Pois a fragrancia duma mulher é a pureza, e a sua nada ainda a maculou.

-- Como é generoso! -- murmurou ella, julgando que todas aquellas palavras tinham apenas por fim confortá la. Perdoa me então ter-lhe occultado a minha deshonra?

-- Não tenho coisa alguma a perdoar-lhe, mas sim a agradecer-lhe por ser tão franca para commigo. Agora o que lhe peço é que se não demore, porque as boas velhotas hão-de espantar se com a sua deserção matutina.

-- Pois quer que eu para lá volte?! Mas não, não devo permittir que ande a dispender commigo! Como creada acceitava ficar lá ou n'outra qualquer parte; d'outra fórma não posso.

-- Se tem por mim alguma consideração, faça-me o que lhe peço. Volte para lá e acceite que tome á minha conta a sua subsistencia e as suas lições. É para mim um prazer poder assim applicar os sobejos da minha mensalidade e dos meus pequenos rendimentos.

-- Oh senhor! mas se o não mereço...

-- Merece, merece e muito. E olhe... vou dar-lhe a prova de que a considero pura e digna.

E tomando-lhe a angélica cabeça entre as mãos depoz-lhe um casto beijo na testa, dizendo-lhe em seguida:

-- Vá, ande.

Eugenia correu pela escada abaixo, ruborisada, parecendo-lhe que todos lhe veriam na testa o signal do beijo do jornalista, que ella quereria poder occultar no coração, tal fora a suavissima impressão que elle lhe causara. Para ella, aquelle beijo era a dadiva de maior preço que elle lhe tinha feito. Se pudesse chegar os labios áquelle logar, te-lo ia sorvido para não deixar fugir nada d'aquella prova de apreço do seu protector. E pela rua, ora punha a mão na testa para occultar aos transeuntes aquelle beijo que punha uma interrupção de felicidade na sua amargurada vida, ora puxava para lá as suas assetinadas madeixas, que fulgiam ao sol como filetes de ouro.

As honestas senhoras, muito espantadas por ella ter saído sem nada dizer e da sua demora, disseramlhe, logo que ella entrou, que embora o sr. Proença tivesse dito que nenhuma auctoridade tinha sobre ella e que, portanto, era livre, não havia de gostar que ella andasse assim sosinha pelas ruas; e que, pela sua parte, tambem não permittiriam semelhante coisa, porque não podiam consentir em sua casa quem desse occasião ao povo para murmurar.

Eugenia, esforçando-se sempre por occultar a testa, pediu-lhe muita desculpa, que fôra um caso de consciencia que a levara a sair assim de repente, mas que não tornaria a fazer semelhante coisa, que até o seu gosto seria não sair nunca mais.

Ellas, serenadas com estas explicações e com esta submissão, repararam então que ella tentava esconder a testa e perguntaram-lhe:

-- Que tem? Deu ahi alguma pancada?

Só então ella se lembrou de que estava a denunciar-se com aquellas precauções inúteis, e respondeu muito compromettida:

-- Uma impressão qualquer, não é nada, não é nada...

Entretanto Gilberto, passeando agitado pela sua saleta, vociferava, rangendo os dentes:

-- Que abominavel creatura! Que monstro, que repellente verme! Uma mãe vender a honra da filha! Como isto é horroroso. E ella, a infeliz sacrificada, a soffrer, a julgar se indigna de estima, a suppor-se aviltada, caida, desprezível! Pobre creatura!

E indignava-se contra o devasso titular, contra o corrupto e libertino conde, que fazia do seu palacio mercado de carne branca, onde espalhava com profusão dinheiro e desgraças, para satisfazer a sua lascivia bestial.

XXVI

A ida para o Porto

Gilberto de Proença e o grupo republicano que queria a revolução armada, tiveram um dia em que ainda puderam nutrir esperanças de a trazer para a rua, porque o povo parecia ter novamente accordado, os egoísmos restringiam-se e a lucta recomeçava temerosa: d'um lado o povo com toda a sua gritaria, com toda a sua ingenuidade e boa fé, com toda a sua força de que não sabe fazer uso; do outro lado a realeza, concentrada, implacavel para com todos os propugnadores da ideia nova, sem sympathias, mas sabendo fallar aos interesses, sem amigos, mas com inumeros serviçaes, sem populariedade, mas rodeada de baionetas.

Os republicanos pretendiam fazer novas manifestações contra a Inglaterra no dia 11 de fevereiro, por fazer um mez que ella nos escarrara o seu vergonhoso ultimatum.

Foi convocado um comicio para o colyseu da rua da Palma e projectavam se outros desforços publicos.

Mas, como o jornalista previra, o governo tinha tomado animo por sentir seguro o exercito, que tinha captado, e especialmente a guarda municipal, que ia sempre augmentando e a quem prodigalisava todos os beneficios.

Quando o povo e os oradores se dirigiam para o colyseu, acharam a ordem de que o governo não auctorisara comicios, e, para lhe dar execução, numerosas forças guardavam aquelle edificio.

A immensa mole de povo retrocedeu acompanhando os tribunos republicanos e fazendo-lhe estrondosas manifestações. No Rocio quizeram fallar ao povo os honrados democratas Manuel d'Arriaga e Jacintho Nunes, subindo aos bancos d'aquella praça. Mas a policia, auxiliada pela força armada, não só o não consentiu, mas prendeu-os, e juntamente todos os que protestavam contra tal violencia.

Estas prisões causaram a mais viva indignação, e parecia que a revolução ia estalar d'um momento para o outro.

Todos fallavam em vingança, em revolução, em exterminio, e não faltou quem alvitrasse o assalto ás lojas de armeiros e a todos os estabelecimentos publicos e particulares onde houvesse armas e munições, a fim de se responder á violencia com a violencia. Mas, como sempre, não se passou de palavras.

Todos os regimentos estavam de prevenção, e o governo tinha mandado preparar todos os nossos vasos de guerra, contando enchê los com os manifestantes. E assim aconteceu.

Ao anoitecer a vasta Praça do Commercio estava atulhada de povo que para ali tinha ido, convocado para inicio duma imponente manifestação.

Muitos milhares de pessoas ali se apinhavam, e por todas as ruas da Baixa era enorme a agglomeração de gente.

Mas n'um instante foi a Praça do Commercio cercada por numerosos esquadrões de cavallaria e por outras forças de pé, sendo toda aquella massa viva espesinhada, acutilada e presa.

Os que puderam fugir iam n'um estado lastimoso; os outros foram encerrados a bordo.

Os principaes revolucionarios foram apanhados na rede, e durante toda a noite e no dia seguinte não se ouviam senão os lamentos e as imprecações das famílias a quem faltavam os seus membros e que não sabiam se eram vivos ou mortos.

As manifestações serenaram assim pelo terror, e n'algum ponto da cidade onde se formavam grupos, eram logo desfeitos pelas numerosas patrulhas que em toda a parte appareciam.

Quando, muitos dias depois, os manifestantes foram postos em liberdade, pretenderam os revolucionários continuar a agitar os espíritos, mas breve se convenceram de que era tempo escusado. Gilberto, esse já sabia por experiencia propria que, em o povo caindo na sua habitual inercia, é preciso empregar cáusticos mui violentos para que elle se mexa.

E um pensamento começou a germinar-lhe no fecundo cerebro.

Lembrou-se de que a população do Porto fôra sempre considerada mais arrojada e energica, e de que o povo da capital, em regra medroso e indolente, só se revolucionaria a valer se visse o estandarte da revolta n'outra parte.

Esperou ainda assim que a celebração do tratado com a Inglaterra, de que corriam os mais estranhos rumores, insurgisse de novo a população alfacinha.

Mas esse tratado só foi conhecido muito tarde, e, apesar de ser vexatorio para Portugal, só trouxe á rua manifestações que obrigaram o ministerio a ir a terra e que custaram a vida a um homem, morto pela policia. Mais nada!

O povo portuguez é facil de contentar. Mande o regimen commetter os maiores attentados, que o povo, erguendo-se irado, volta para sua casa satisfeito se conseguiu a demissão do executor.

Qualquer pequena concessão que se lhe faça é para elle uma grande victoria. Embora depois o regimen venha a conseguir o mesmo ou peor do que pretendia então, isso não importa. O que se quer é que n'aquelle momento faça concessões á ingénua gritaria d'este povo, que, na sua inconsciencia, bem revela não ser em vão que pesam sobre elle as leis atavicas d'uns poucos de seculos de embrutecimento fradesco e inquisitorial.

Só o deixarem-no gritar, quando deixam, já elle julga ser um grande triumpho. Coitado! Se não fosse analphabeto, saberia que, julgando-se escravo, é afinal o unico senhor, e que a força que suppõe nos que o dominam, não é mais que a força que elle mesmo lhes dá. No dia em que lh'a queira tirar, verá que onde julgava haver um grande poder, não existe senão um enorme preconceito.

Acabaram, pois, as manifestações com a queda do ministerio, e Gilberto não se deteve mais: preparou-se, proveiu ás necessidaddes d' Eugenia, e partiu para o Porto, onde foi continuar o sua vivida e animosa propaganda revolucionaria.

Com enorme jubilo, percebeu elle desde começo que o terreno estava preparado para receber a semente que elle e outros jornalistas altivos, audazes e intelligentes lhe atiravam continuamente.

E isto enthusiasmava-o, tornava-o ditoso por perceber que em breve veria, alfim, na rua a tão anciada revolução.

A sua acção agitadora não se resumia só na campanha jornalistica: ia mais longe, tratando d'alliciar por todos os meios o elemento militar da guarnição, porque o elemento civil de ha muito estava d'alma e coração pelos revolucionarios.

Emquanto isto se passava no Porto, outros iam agitando as principaes cidades, e pouco tempo depois podiam os revolucionários portuenses contar que a revolução rebentaria ao mesmo tempo em muitas outras cidades.

O Porto seria a faisca, e a labareda revolucionaria alastraria simultaneamente por todo o Portugal, chegando por certo até Lisboa.

Mas a necessidade de anticipar o movimento pela transferencia dos sargentos revolucionarios, denunciados por um seu camarada, veio perder tudo.

Esse sargento denunciante era dos que tambem tinham entrado nos planos revolucionarios, mas quiz desempenhar papel mais odioso do que o de Judas de Kariote. Judas ganhou o seu dinheiro perdendo um só homem; e aquelle ia perder muitas dezenas d'elles. E depois, Judas arrependeu se da sua infamia e enforcou-se, o que não aconteceu áquelle Arthur Ferreira de Castro, nem a outros denunciantes que teem medrado n'estes mil e tantos annos. D'onde se conclue que Judas foi o traidor mais honrado que se conhece.

Os sargentos transferidos correram a casa de Alves da Veiga, um dos chefes da revolução que assim ia descambar n'uma revolta, pedindo-lhe marcasse sem perda de tempo a hora em que havia rebentar a insurreição, pois que de contrario elles sairiam para a rua á frente dos soldados, sem que rerem saber de mais nada.

Alves da Veiga foi conferenciar com os seus amigos, e todos foram d'opinião de que, não se podendo conter por mais tempo os sargentos e não convindo desprezar o seu apoio, a sublevação se fizesse na madrugada seguinte, que era a de 31 de janeiro.

Esta deliberação, tomada pela força das circumstancias, havia de dar azo a que os proprios republicanos das outras terras os accusassem de ambição, de vaidade e de estultas pretenções, por não darem tempo a que se prevenissem e preparassem, afim de estalar ao mesmo tempo em terras differentes, o que desnortearia o governo por não saber onde accudir primeiro, Gilberto e todos os seus companheiros, se bem que sentissem não poder ser escolhido um dia mais afastado, rejubilavam, pois que, com os elementos com que julgavam contar, era impossivel não alcançarem a victoria.

Iam emfim, poder gritar a plenos pulmões: viva a republica!

O jornalista, que conhecia toda a trama revolucionaria, estava convencido de que no Porto não haveria a minima resistencia.

É que ainda não sabia, por falta d'experiencia, que muitos dos que adherem ás revoluções quando se trata só de palavras, depois, quando é preciso traduzil-as em factos, amedrontam-se, acobardamse, envilecem-se, e vão fuzilar pelas costas os irmãos que prometteram auxiliar.

XXVII

A revolta

São tres horas da manhã. Por sobre a cidade silenciosa paira um nevoeiro densissimo, que torna a noite humida, fria e escura e mal deixa um pequeno circuito luminoso aos espaçados candieiros, que em vão tentam diffluir na compacta neblina a sua amarellenta claridade. Gilberto andara quasi toda a noite a prevenir todos os que estavam no segredo da trama revolucionaria. E ainda não eram duas horas já elle tinha começado a chamar os que se tinham compromettido a sair para a rua.

Agora, já acompanhado por um numeroso grupo dos mais dedicados e amigos, vem postar-se no Campo de Santo Ovidio, de ouvido á escuta ao menor ruido, e desprezando aquella frigida humidade que se insinua até á medula dos ossos.

A sua impaciencia é enorme. Os minutos parecem-lhe seculos, em que se consome n'uma anciedade febril. Tudo correria como fora pactuado? Os regimentos sairiam todos para a rua, dispostos a proclamarem a republica? Arrepender-se-iam alguns? Os officiaes não se retrairiam á ultima hora?

Estas e outras interrogações que se formulavam no seu espirito e a que só os acontecimentos posteriores poderiam responder, mais impaciente o tornavam, e tanto mais depressa desejava que o tempo decorresse, quanto mais moroso elle lhe parecia.

Emfim, ao soarem as tres horas, percebeu um ruido vindo dos lados do quartel de S. Bento. É o alferes Malheiro, que, á frente do regimento de caçadores n.° 9, insurrecionado por elle e pelos sargentos, para ali se dirige.

Um fremito de enthusiasmo impulsiona os republicanos presentes, e os militares são abraçados, victoriados, encorajados.

A seguir chega o regimento de infanteria n.° 10, sob o commando do capitão Leitão e do tenente Coelho; e então o enthusiasmo redobra e os applausos soam mais alto, mais cheios de alegria, de calor e de jubilo.

Depois apparecem successivamento o destacamento de cavallaria n.° 6, a guarda fiscal a pé e o esquadrão de cavallaria, e todos são calorosamente applaudidos, reboando já pelo vasto campo os vivas estrondosos á republica, á patria, aos officiaes presentes, ás tropas sublevadas, emfim. Só faltam o regimento de infanteria n.° 18 e a guarda municipal, que estão aguardando, porque todos diziam que o major Graça havia adherido ao plano revolucionario, assim como alguns officiaes e os sargentos d'infantaria 18.

E tanto assim é, dizem, que, tendo a guarda municipal tomado as embocaduras das ruas que ali vão dar, podia, se quizesse, atacar com vantagem as primeiras forças revolucionadas. Mas não, o major Graça só queria apparentar que não era dos primeiros a adherir á republica e mais nada. Com este intuito e para se justificar posteriormente, caso a revolução não vingasse, estivera pedindo a alguns sargentos que recolhessem com as praças de seu

commando ao quartel, mas sem se impôr, nem lhes dar ordens.

Era esta a opinião geral.

Quanto ao regimento de infanteria n.° 18, esperavam-no anciosamente ; e para o apressarem, davam-lhe estrondosos vivas, misturados com os vivas á republica e á patria, e com os gritos de: -- abaixo a monarchia!

Effectivamente os sargentos chamavam as companhias á formatura para as fazerem sair para a rua, a reunir-se ás outras tropas revolucionadas, e algumas ainda o conseguiram ; mas osotficiaes tentam por todos os modos demovel-os do intento, e no Campo de Santo Ovidio em vão se espera por todo o regimento, que tão proficuo apoio daria aos republicanos.

Fartos de esperar, vendo que é preciso tomar uma decisão, resolvem-se a entrar no quartel, e Gilberto é o primeiro a atirar-se á porta, arrombando a a golpes de machado.

Franqueada a entrada, penetram no quartel e instam com o commandante para que venha com o regimento auxiliar a revolução, tomando elle o commando das forças revolucionarias. Este desculpa-se, que não póde sair n'aquelle momento por não poder abandonar o cofre, promettendo porem ir ter com elles á Praça de D. Pedro. Os revolucionarios acreditam-no e deixam-no, fiados na sua palavra!

Que tola confiança aquella! A boa fé e a benovolencia dos revolucionarios é que ia ser o principal factor da sua derrota. Se elles teem procedido com mais firmeza e energia, lançando mão dos officiaes e auctoridades que não se manifestavam pela republica, executando sem tibiezas esta proposição-- «Quem não é por nós é contra nós» -- e tratam por todos os modos, antes de irem acclamar a republica para os Paços do Concelho, de fazer definir a situação da guarda municipal, ou fazendo-a passar para o seu lado ou subjugando-a, outro seria o resultado da revolta.

Mas tudo quanto haver podia de generoso, de nobre e de leal n'aquelle dia memoravel, estava ao lado dos revolucionarios.

A dissimulação, astúcia e velhacaria estavam do lado das forças que depois foram consideradas leaes por se saberem aproveitar da descuidosa confiança dos revoltosos, alcançando assim uma victoria, embora traiçoeira, mas que havia de merecer as bajulações das almas de lama que louvam sempre os vencedores, quaesquer que sejam os seus principios, os seus intuitos, ou a deslealdade dos seus combates.

Contando pois que o regimento de infanteria n.°18 fosse ter á Praça de D. Pedro, as forças revolucionarias dirigiram-se para ali, tomando pela rua do Almada, ladeadas já por milhares de pessoas que as victoriaram delirantemente.

A banda de infanteria n.° 10 tocava a «Portugueza», essa bellissima e patriotica composição de Alfredo Keil, por entre as ovações, os vivas, os gritos de jubilo, de enthusiasmo, de ruidosa satisfação do povo.

O Porto accordava. Todas as janellas se abriam enchendo se de gente, que acclamava as tropas revolucionarias. A toda a parte chega esta nova: -- vão proclamar a republica!

Não são apenas os homens que se enthusiasmam com a revolução; as senhoras adejam com seus lenços ás tropas, a manifestar-lhes que a republica está no espirito de todas e que essas forças merecem as suas mais acrisoladas sympathias. Chegando á Praça de D. Pedro, os republicanos apossam-se dos Paços do Concelho e fazem tremular no seu vertice a bandeira vermelha e verde da republica; e o dr. Alves da Veiga, discursando d'uma das janellas d'aquelle magnifico edificio, proclama por entre um delirio doido do povo e do exercito, o governo provisorio que havia de gerir os negocios da republica, emquanto outro em condições mais normaes se não constituia.

Entretanto o capitão Leitão esperava inutilmente pelo regimento de infantaria n.° 18; e na sua ingenua alma começava a brotar a suspeita de ter sido enganado.

Gilberto e outros republicanos d'acção, que lastimavam estar-se perdendo tanto e tão precioso tempo em formalidades extemporaneas e numa expectativa perigosa, em vez de se ir tomar o quartel general, o correio e outras repartições necessárias e alguns pontos de grande importancia estrategica, chegaram-se ao capitão Leitão e fizeram lhe ver isto mesmo, significando lhe porem que antes disso era preciso subjugar a guarda municipal, que estava agora na Praça da Batalha e que podia serlhes um perigo. Mas aquelle bondoso official, sempre com a sua confiança illimitada, respondeu-lhes que a guarda municipal era pela republica e que era preciso trata-la como tal; e, resolvido a mostrar ao major Graça que sabia agradecer-lhe a sua conducta no campo da Regeneração, mandou marchar as forças republicanas ao seu encontro, sem a menor precaução e subindo a rua de Santo Antonio. É mais que certo que as forças revolucionarias, em maior numero e mais dextras no manejo das Kropatcheks que a guarda municipal, podiam destroça-la rapidamente, se, tomando por outras ruas, a cercam na Praça da Batalha.

Mas não, para qué, se a guarda municipal adherira á republica?...

Era já dia claro.

O nevoeiro dissipara-se. O povo marchava misturado com o exercito, fraternisando com elle, abraçando-o, manifestando lhe por todas as fôrmas o seu intenso prazer.

Nunca a cidade do Porto viu mais jubiloso transporte.

E o povo, que via com tanto prazer este movimento, não se retraía, saltava para a rua prompto a ajuda-lo, prompto a prestar-lhe o seu concurso, o seu apoio, a sua plena e completa approvação.

Mas em cima, na Praça da Batalha, o major Graça, á frente da guarda municipal, olhava para aquellas forças sublevadas, que assim vinham temeraria e imprudentemente, sem nenhuma precaucão, apresentar-se-lhe, e na sua mente germinou uma ideia medonha, que n'um momento se desenvolveu e elle tratou de aproveitar.

Aquellas forças, misturadas com o povo jubiloso mas desarmado, subindo assim discuidosamente aquella ingreme rua, podiam facilmente ser atacadas, rotas, destroçadas, chacinadas, e elle, se tal fizesse, ficaria sendo um salvador das instituições.

Que triumpho para elle se varresse aquella rua em que vinham forças revolucionadas, que se julgavam victoriosas sem combate, e povo que as applaudia como salvadoras! Que honras, que mercês, que finezas lhe não dispensaria a coroa, por elle e só por elle salva!

Como o seu nome não echoaria por toda a parte como vencedor das tropas republicanas e salvador da monarchia!

E, emquanto estes pensamentos se lhe debatem na mente, as tropas republicanas veem subindo sempre, approximando se cada vez mais, sem poderem suppor o que as espera.

Mas, num momento, apodera-se d'ellas o assombro do raio. Uma descarga prostra as primeiras victimas, e após estas mais e sempre mais. O capitão Leitão, que não acreditava no que via e ouvia, gritava pedindo que não aggredissem os da guarda, que eram amigos, e mandava fazer toques de cessar fogo; mas o major Graça, em resposta a esta moderação, ordenava o toque de fogo vivo.

E as tropas revolucionarias, vendo aggressão de onde esperavam amisade, vendo guerra d'onde esperavam paz, vendo fogo d'onde esperavam auxilio, vendo a morte de onde esperavam a vida, voltaram as espingardas para a guarda e quizeram responder á aggressão com a aggressão, á guerra com a guerra, ao fogo com o fogo, á morte com a morte.

Mas estavam de peor partido. As tropas do major Graça, além da magnifica posição em que estavam, éncobriam-se com as esquinas dos predios e com as guardas de pedra do atrio da egreja, ao passo que os republicanos, completamente descobertos, soffriam grandes perdas com as constantes descargas dos seus improvisados inimigos. Além d'isso o povo, que não tinha armas para se defender e defender a republica, só pensou em fugir, e isto maior confusão estabeleceu nas fileiras dos republicanos. O borborinho, a confusão, os gritos, a desordem que d'ahi resultou, mais concorreram para a derrota das tropas revolucionadas, as quaes afinal não podiam manter-se muito tempo em tal posição. A debandada não podia deixar de ser rapida. Ainda assim muitos resistiram até á ultima.

Deitados na rua, ao lado dos cadaveres, com que elles se confundiam, ainda assim vomitaram balas sobre os seus traiçoeiros aggressores durante muito tempo, e só se deram por vencidos quando, ao seu ultimo reducto nos Paços do Concelho, os canhões da Serra do Pilar, que todos contavam que só ajudassem a causa republicana, vieram trovejar seus protestos pelas suas formidaveis gargantas de aço, por os revoltosos não saberem alcançar a victoria, pois n'este caso viriam troar a seu favor, e contra a monarchia, a quem agora tinham que ajudar.

Emquanto estes acontecimentos se desenrolam na activa cidade portuense, em Coimbra, que ainda poude ser avisada do movimento revolucionário, esperavam os estudantes republicanos um signal para sairem para a rua, tomarem o quartel de infanteria n.° 23 e apoderarem-se da cidade.

Mas esse signal não poude vir, por as tropas revolucionadas não chegarem a apoderar-se do telegrapho; e, quando elles tiveram noticias, eram já as mais desoladoras, isto e, que a revolução fora suffocada e que nenhumas esperanças havia já da republica poder vingar, pelo menos n'aquelle momento; começando já os monarchicos a vomitar contra os revoltosos as maiores calumnias, torpezas e villanias, deturpando os acontecimentos, inventando peripécias infamantes para os tornarem odiados pelo povo ingénuo e timorato dos outros pontos do paiz, o que conseguiram em parte. Muita gente acreditou no rosario de imposturas e aleives que lhes assacaram, e era assim que concordava com as medidas de rigor que os amigos do Paço pediam com furor tal que até queriam a cabeça dos chefes do movimento.

É certo porém que muitos d'esses que precisavam do sangue dos republicanos para saciar a sua sede de vingança contra elles, se o capitão Leitão fosse menos crédulo e bondoso, e tivesse, portanto, sido o vencedor, pediriam com a mesma ira a cabeça dos palacianos mais odiados pelo povo para vingar as suas affrontasá patria! Não se póde pôr em duvida a sua sinceridade... em quererem estar sempre ao lado dos vencedores.

Os nomes de Alves da Veiga e do capitão Leitão, que foram talvez, pela sua benignidade, os causadores do fracasso da republica, eram cobertos de injurias e doestos, não havendo plano tenebroso que lhes não imputassem. Mas a luz da verdadeacaba sempre por diffundir-se, e o povo sensato começou a vêr claro atravez da lama que os monarchicos atiraram sobre o nome dos revoltosos, porque, justo é dizel-o, nunca no mundo se fez uma revolta por gente mais bem intencionada, mais respeitadora de tudo e de todos, mais honesta. Os insurrectos, que podiam ter exercido violencias sobre officiaes que lhes eram hostis, que podiam ter atacado logo no principio as forças que, pela sua situação dubia, poderiam mais tarde ser-lhes um estorvo, que podiam utilizar-se dos cofres dos regimentos, que podiam apropriar-se, destruir ou deixar destruir os objectos de valor da camara municipal, não só nada d isso fizeram, mas procederam de forma a evitar que algum mal intencionado o pudesse fazer.

Mas a furia dos monarchicos era tal contra os vencidos, que até os republicanos que nenhuma ingerencia tinham tido na revolta, eram presos e perseguidos. Muitos puderam ganhar a fronteira e internar-se em Hespanha e entre elles o dr. Alves da Veiga e o alferes Malheiro. Os outros foram presos e julgados pelos conselhos de guerra de Leixões, onde foram condemnados a penas de prisão cellular e de degredo, que usam applicar-se aos mais perversos bandidos e salteadores.

O capitão Leitão, que pudera fugir do Porto e que fôra preso em Albergaria-a-Velha por denuncia do padre Manuel de Lemos, foi condemnado na pena de 6 annos de prisão maior cellular, seguidos de 10 de degredo, ou, na alternativa, na de 20 annos de degredo.

XXVIII

O jornalista

Gilberto de Proença tentara dissuadir o capitão Leitão de subir a rua de Santo Antonio, temendo alguma traição da guarda municipal, o que seria, como foi, um desastre para as forças revolucionarias. A sua opinião era que por outras ruas se cercasse a Praça da Batalha e se intimasse a guarda a adherir á Republica. E caso desobedecesse, se fizesse render á força das armas, porque a superioridade era incontestavel por parte dos revolucionarios.

Como não foi attendido, resignou-se a acompanhar os seus amigos, e quando soou da parte da guarda a primeira descarga, voltou para ella a sua Kropalchek, de que elle e os outros republicanos mais ferverosos se haviam munido apesar de o não supporem preciso, e começou a descarrega-la com muita presteza, sem arredar um pé do logar onde se encontrava, prompto a morrer pela sua causa. Mas a breve trecho uma bala prostrava-o, ao tempo que um commerciante, que havia descido á rua para acclamar os regimentos revoltados, corria para a escada, cuja porta sua esposa abrira, cheia de terror, para lhe dar abrigo.

Gilberto ia cair-lhe em frente da porta e elle amparou-o quasi instinctivamente; mas, a seguir, podendo mais n'elle a caridade que o medo, arrastou-o para dentro, e, auxiliado pela mulher, poude conduzi-lo ao primeiro andar, onde residia.

O humanitario commerciante não conhecia o ferido, mas isso não o impedia de o deitar sobre a sua cama e de o tratar com todos os desvelos de pae extremoso ou d'um irmão muito querido. Lembrava se de que o que aconteceu áquelle mancebo podia ter-lhe acontecido a elle, e isto bastava para lhe dedicar toda a sua sollicitude. E depois não era elle seu irmão pelos ideaes?

E não ha nada como isto para irmanar dois homens, por mais differentes que sejam seus caracteres ou condições sociaes.

Mas era preciso chamar um medico sem perda de tempo, porque elle continuava a perder muito sangue e não voltava a si por mais esforços que fizessem. Porem, como sair a procura-lo? Na rua continuava a fuzilaria, e, mesmo que a lucta acabasse, sendo os monarchicos os vencedores, como estava certo de que se riam, não se exporia a ser preso tambem como revoltoso?

E, alem d'isso, chamar um medico a sua casa não seria denunciar que tinha ali algum ferido?

Todas estas interrogações lhe accudiam de tropel á mente, sem encontrar maneira de obviar aos seus inconvenientes, quando a esposa, que volitava cuidadosa em redór do ferido, sem saber que fazer-lhe, disse, como se lhe advinhasse os pensamentos:

-- No terceiro andar ha um medico, o dr. Raymundo; é melhor ires lá chama-lo.

O honesto homem deu com os nós dos dedos na testa, exclamando:

-- Que cabeça a minha! E eu que ainda não me tinha lembrado d'esse!

E abrindo a porta correu pela escada acima sem tomar folego, indo bater á porta do medico, que por entre os vidros contemplava a rua.

Era o dr. Raymundo um velhote bondoso e agradavel para toda a gente, que, ao ver o commerciante, lhe disse entre triste e risonho:

-- Por cá é milagre, visinho! Ora bom será que não precise dos meus serviços para o sr. ou para sua esposa.

-- Felizmente não é para nenhum de nós -- respondeu o commerciante, apressado; -- mas desejava que o sr. dr. viesse ver um ferido que recolhi e que parece estar na ultima...

O medico poz-se logo prompto, dizendo:

-- Então vamos, vamos depressa!

E com voz maguada accrescentou:

-- Ah! quantos infelizes ainda poderiam salvar-se se fossem soccorridos a tempo!

E, a despeito das suas pernas já meio trôpegas, desceu n'um instante os quatro lances da escada.

Chegados ao pé do corpo entorpecido do mancebo, começaram a rasgar-lhe o fato para pôr a descoberto os ferimentos, e, emquanto o medico os sondava, marido e mulher não tiravam d'elle os olhos, estremecendo á menor visagem que fazia, como se pronunciasse uma sentença de morte.

Depois d'um minucioso exame, o dr. Raymundo disse, fazendo uma careta:

-- A bala entrou-lhe pelo peito e saiu-lhe pelas costas, atravessando o pulmão direito. É mais que provavel que haja hemorrhagias internas que lhe produzirão depressa a morte.

«Em todo o caso, se a bala não rompesse nenhum vaso importante, o que seria na verdade extraordinario, poderia ainda viver algum tempo, emquanto se não produzisse a infecção do pulmão.

«Agora o que é preciso é um penso antiseptico n'este orificio e faze-lo voltar a si. Depois quer-se muito cuidado, não vá elle com qualquer movimento produzir a ruptura d'algum vaso, que lhe abrevie a existencia.

E com toda a rapidez que as suas já cançadas pernas lhe permittiam, tornou a subir a escada, voltando pouco depois com um soluto de bi-chloreto de mercurio, algodão em rama e um frasco com uma substancia aromatica, que, depois de fazer o penso, lhe chegou ao nariz, mas sem resultado.

-- E não sabem ao menos onde elle mora? -- perguntou o medico.

-- Nada sabemos, sr. dr. -- respondeu o dono da casa. -- Eu vinha a entrar para casa quando os revoltosos aqui na rua eram batidos, e ao ver, quasi arrumado a mim, cair este rapaz, segurei-o e arrastei-o cá para dentro, com a ajuda de minha mulher, que com grande risco me foi abrir a porta!

-- Ah! grande velhaco! que você tambem ajudava á festa... -- retorquiu o medico sorrindo e colleando a nevada cabeça.

-- Oh senhor doutor! eu...

-- Sim, sim, você fez o que eu faria se tivesse a sua edade. Ah! que foi pena que isto corresse tão mal!...

E, dando um profundo suspiro, continuou:

-- Mas vejamos-lhe as algibeiras; pode ser que assim fiquemos sabendo quem elle é.

Effectivamente na carteira trazia elle alguns cartões de visita e uma carta que de Lisboa lhe fôra enviada, alem de algum dinheiro e muitos outros papeis.

-- Ah! -- exclamou o dr. Raymundo -- pois este mancebo é esse distincto jornalista?!...

-- Conhece o, sr. dr.? -- perguntaram os dois cônjuges ao mesmo tempo.

-- Conheço muito bem, de nome.

«É um jornalista audaz e sabedor.

E com expressão compungida:

-- Se eu diria, quando me deleitava com os seus bellos artigos, que ainda o havia de ver n'este triste estado!... Isto é que é crença e amor a uma ideia! Não se limita a pregar a revolução com a sua pena brilhante. Quando é preciso passar das palavras ás obras, ei-lo na rua, provando que sabe pôr em pratica as suas doutrinas. Assim é que eu os queria ver a todos. Oh! e ha-deum homem d'estes morrer aqui assim!...

-- É porque Deus assim o quer -- murmurou a chorar a esposa do commerciante, querendo em vão resignar-se.

E o medico retorquiu:

-- Olhe, boa visinha, ou Deus não existe, ou não é bom como dizem, ou então não tem ingerencia cá nas coisas mundanas; aliás não permittiria que este homem honesto, que pugna pelo bem da patria e da humanidade, aqui assim estivesse moribundo, emquanto a monarchia, onde ha tanto concussionario, tanto infame e corrupto, que elle queria derrubar, canta victoria e continua a proteger esses criminosos, atirando com os propugnadores do bem commum para o fundo duma masmorra, se primeiro as suas balas os não atiram para o fundo de um cemiterio. Eu nunca acreditei nem preciso de acreditar em deuses; mas, se alguma vez n'elles tivesse crido, bastar-me iam taes injustiças para descrer.

Todos se calaram e o irreligioso clinico debrucou-se novamente sobre o jornalista, começando outra vez a querer chama-lo á vida.

Com effeito, pouco depois Gilberto abriu os olhos, e, fitando os nos presentes, tornou a fechalos, parecendo-lhe que sonhava. Não conhecia ali ninguem, nem sabia como ali viera parar.

Quiz fazer um movimento, mas sentiu uma dôr horrivel; quiz fallar e não poude. Então no seu espirito obscurecido começou a fazer-se luz.

Lembrava-se agora do começo, com tão bons auspicios, da suspirada revolução, da proclamação da republica na casa da camara e da nomeação do governo provisorio, e por fim do ataque da guarda municipal... Não se lembrava de mais nada; mas ao ver-se ali, junto d'aquellas caras desconhecidas, que o olhavam com expressão tão carinhosa, comprehendia que fôra provavelmente ferido e que alguem o recolhera. Mas todo o seu interesse era saber qual o resultado da revolução. A sua vida pouco importava: o que era essencial era saber se o movimento revolucionário vingou. Esforçou-se, pois, novamente por falar, mas apenas emittiu com muito custo e quasi imperceptivelmente o som da primeira syllaba, viu que todos lhe acenavam para não falar e ouviu que ojmais velho lhe dizia meigamente:

-- Não fale nem se mexa, que o menor movimento pode ser lhe perigoso.

Elle bem queria obedecer-lhe, mas como, se primeiro que tudo queria saber o que se passára, se a revolução ficara victoriosa ou se tinha sido subjugada?!

Começou então a agitar as palpebras; e o dr. Raymundo, percebendo o, disse-lhe simplesmente:

-- Faça o que eu lhe aconselhar, que a republica ainda ha-de precisar outra vez do seu braço para ser implantada.

Gilberto fechou os olhos acabrunhado. Era então certo que aquella revolução, pela qual trabalhara com tanto ardor, ainda não livrava a nação da monarchia e das troupes políticas que a exploram desapiedadamente! Como isto era triste!...

O medico não abandonou em todo o dia o doente senão o pouco tempo que precisava para alimentar e os poucos minutos que se demorava ás janellas a ver levantar da rua os mortos e feridos e a ouvir as detonações da artilharia, bombardeando a casa da camara; mas á tarde notou que elle começava a ter febre, e isto mais o fazia recear pela sua vida, pois que com a febre veio o delirio e os esforços que fazia para saltar do leito podiam ser lhe fataes.

Assim esteve muitos dias entre a vida e a morte, sem que o bondoso clinico o abandonasse, senão o tempo preciso para ver de fugida os seus outros doentes, e sem que o seu salvador e a esposa afrouxassem um só instante na sua vigilancia por elle. O humano commerciante deixava os caixeiros ao balcão e ia para cima com os livros da escripturação e com à pena na orelha, a fingir que ia escrever, para lhe não abandonar a cabeceira. Precisava de todas as precauções para que se não descobrisse que tinha em casa um ferido, pois que as auctoridades, além das pesquizas que tinham feito em todas as ruas d'aquelle bairro, davam buscas domiciliarias á menor suspeita, para que lhe não escapasse nenhum d'aquelles grandes criminosos.

Quando, depois de muitas semanas, o delirio o abandonou, estava a tal ponto exhausto de forças que não podia fazer o menor movimento. Ainda assim pedia com voz debil informações de tudo o que se passava com os seu companheiros de infortunio, e lastimava que não pudesse estar junto d'elles para lhes fazer companhia e animal-os, afim de que o desalento os não invadisse. Aquelle espirito forte, mesmo á beira da sepultura, só pensava nos outros!

Passados alguns dias começou a lembrar-se de Eugenia, de quem ha tanto tempo nada sabia, e desejou ter novas suas. Pediu por isso á sua dedicada enfermeira que lhe escrevesse uma carta, que elle ditou, para as dignas perceptoras da sua protegida.

Quatro dias depois esperava elle anciosamente a resposta á sua carta. A febre tinha diminuído, e, como tomava já maior porção de leite, sentia mais algum vigor, tendo já pedido que lhe pusessem debaixo das costas algumas almofadas, afim de ficar suavemente reclinado.

A dona da casa trabalhava junto da cama, sempre prompta a prestar-lhe os serviços de que elle carecesse.

Já por duas vezes elle tinha perguntado se o correio ainda não viera, quando entrou o commerciante com uma carta na mão.

A esposa quiz evitar que o enfermo a visse antes que ella a tivesse lido, porque podia trazer qualquer má nova e o medico recommendava sempre que lhe evitassem todas as comoções; mas elle, logo que lh'a avistou na mão, pediu-lh'a, devorando-a com o olhar. Desde que a sua carta partira que esperava com impaciencia a resposta, ainda mesmo antes d'ella ter tempo de vir; e agora, que ali a tinha, como suppunha, não podia deter-se sem a ler.

Antes de cahir varado por aquella bala não pensava na meiga creança, tão senhoreado andava pela sua propaganda revolucionaria; mas ali no leito começara a esboçar-se-lhe na memória a imagem da infeliz e bondosa creatura, que lhe apparecia agora angelica e radiosa, com toda a irresistivel attracção dos seus encantos immarcessiveis; e quanto mais pensava n'ella mais desejara ter noticias suas, já que não podia aspirar, por emquanto -- e talvez nunca mais - -a vê la.

Tomou pois a carta da mão do seu caridoso hospedeiro e rasgou o enveloppe com os dedos trémulos, começando a lê-la.

Mas logo que passou pelos olhos algumas linhas, a pallidez do seu rosto accentou-se mais, até que uma espantosa lividez, acompanhada de abundante suor frio, lh'o inundou. Deixou cahir a carta das mãos, ao mesmo tempo que a cabeça, que um momento se conservara recta, caía sobre as almofadas, emquanto dos seus labios se escuavam estas palavras, que distillavam fel:

-- Depressa se esqueceu de mim e do que promettera...

Os dois esposos correram para elle, parecendo-lhes que ia desmaiar, e, emquanto a mulher lhe amparava a cabeça, o commerciante, esquecendo que a delicadeza lhe prohibia que lesse a carta, para só pensar no motivo d'aquella dôr, começou a lê-la, passando-a depois á esposa, que a leu tambem.

Eis o seu conteudo:

«Exmo. Sr. Proença.-- A carta que nos mandou deixou-nos na maior consternação, porque embora nos diga que o seu ferimento não é de gravidade, resalta á primeira vista que isso é só para nos não affligir, pois que nem poude fazer a carta, visto que a letra não é sua. Mas por nossa desgraça tinhamos que soffrer, passado mais um dia, outro choque violentissimo, de que ainda não pudemos refazer-nos, nem o poderemos, por certo, jámais.

Bem sabemos quanto isto o vae desgostar, mas nós é que não podemos nem devemos occultar-lh'o.

A menina Eugenia fugiu-nos esta madrugada de casa! Levantou-se primeiro do que nós e abandonou-nos, sem nos dizer nada, sem que possamos descortinar os motivos que a isso a levaram, a não ser que tivesse qualquer namoro, muito a occultas, pois que nunca notamos que ella desse attenção a pessoa alguma. Para a pouparmos ao desgosto que a nós nos pungia, não lhe quizemos mostrar a sua carta, em que nos dava a triste nova do seu estado; mas, pelo que se vê, ella depressa olvidou o muito que lhe deve para assim abandonar esta casa, em que era tratada como filha, graças ás suas recommendações e á sua mezada.»

A carta terminava fazendo votos pelas melhoras d'elle e com pedidos para que se não affligisse, porque ellas iriam empregar todos os esforços para saber do seu paradeiro.

Era bom de dizer aquillo -- que se não affligisse!...

Mas como podia elle faze-lo, se a suave imagem da linda creatura cada vez lhe apparecia mais nitida e deslumbrante?

E era agora, que cila estava de todo perdida para elle, que mais pensava n'ella e que via que a primitiva svmpathia se fôra a pouco e pouco concentrando, a ponto de acabar em enraizado amor.

Ah! tudo se mancommunava para o torturar!

XXIX

Surpreza

O commerciante voltava para a loja pesaroso.

Não sabia quem cra aquella Eugenia, mas comprehendia que devia ser alguma pessoa muito querida do doente para que a sua fuga assim o fizesse soffrer.

Talvez fosse alguma irmã ou alguma namorada -- pensava elle -- e soffria por vê-lo soffrer, pensando na forma de attenuar-lhe os desgostos.

Estava elle assim pensativo, encostado ao balcão, sem quasi reparar em quem entrava na loja, quando se lhe dirigiu uma senhora muito nova e elegante, que lhe perguntou, muito agitada:

-- Tem a bondade, diz-me se n'este primeiro andar é que está o sr. Gilberto de Proença? Como o numero da porta se não distingue bem...

-- Nada, não senhora -- respondeu elle atrapalhadamente, por causa dos empregados que estavam ouvindo -- mas faça favor de subir, que, como minha mulher é parenta d'esse senhor, pode ser que saiba onde elle mora.

E, subindo a escada adeante d'ella, franqueou lhe a entrada de sua casa.

A joven foi-o seguindo até junto do leito do mancebo.

Este, que respondia com um sorriso de desalento ás consolações da sua boa enfermeira, nem levantou os olhos sentindo passos, julgando ser só o commerciante que voltava; mas eis que sente as suas descarnadas mãos agarradas por umas mãozinhas delicadas e setinosas, ao mesmo tempo que ante os seus olhos apparece a doce e insinuante figura de Eugenia, mais alta e desenvolvida que elle a conhecera, mas principalmente mais attrahente e gracil, mais bella e meiga do que nunca fôra.

Um grito alegre, terno, jubiloso, lhe escapou do peito!

Eugenia!

Este grito foi uma revelação para os dois esposos, que perceberam que aquella por quem elle ainda ha pouco soffria estava na sua presença. E retiraram-se discretamente, deixando expandir aquelles dois corações que tanto mostraram querer-se.

O pobre ferido quasi não podia acreditar no que os seus olhos estavam vendo. Aquella formosa creatura, por quem ha pouco seu coração sangrava, aquella adoravel creança, que salvara das garras d'um policia brutal, aquella doce e linda joven, que já tanto amava e que julgara tresloucada por alguma paixão insensata, ali junto de si!...

Era lá possivel?! Ainda lhe parecia um sonho!

Mas não, estava bem accordado: via-a, falava-lhe, tinha até agarradas as suas mimosas mãos! Era pois certo! Tinha-a ali. Ella fugira... mas para elle. E ali estavam fitando-se extacticos, não vendo, não sentindo, não pensando senão no prazer que reciprocamente estavam fruindo.

Foi elle que rompeu aquelle enlevante silencio.

-- Que deliciosa surpreza! -- murmurou olhando-a enternecido -- Como foi que tomou assim uma tal resolução, que me torna tão ditoso?

-- É certo então que me não ralha? -- perguntou ella candidamente.

-- Mas de que lhe hei-de eu ralhar, se foi tão grande a alegria que veio trazer-me?

-- De eu sair sem nada dizer ás senhoras...

-- Ah! é verdade! Mas porque lh'o não disse?

-- Envergonhei me... E depois, ellas haviam de tentar dissuadir-me, porque parecer-lhes-ia irregular este passo; mas eu é que não podia descançar emquanto não viesse, nem podia admittir que alguem se oppusesse á minha vinda. Tinha visto que ellas receberam uma carta que as deixara muito penalisadas e que m'a occultavam; logo suppus que era do senhor. Reparei onde a escondiam e de noite levantei me, e, levando-a para o meu quarto, pude lê-la. Quando vi que não era o senhor que a escrevia... não sei que senti cá por dentro que me dizia que o senhor estava em perigo de vida, e resolvi vir vê-lo.

«E, como já lhe disse, para que as virtuosas senhoras me não pusessem obstaculos, resolvi fugir de madrugada. Sei que foi uma má acção, mas espero que ellas me hão-de perdoar.

«A estas horas ja ellas devem saber o que motivou a minha fuga.

-- Como lhe agradeço, o que fez por minha causa!... Mas o dinheiro? Como é que arranjou dinheiro para o comboio?

-- Ah! disso é que tenho tambem a pedir-lhe perdão, pois que empenhei aquelles lindos brincos que me offereceu, quando saiu de Lisboa, e aquella medalhinha em que trazia o retrato de meu pae!

«Mas Deus me livre de lá deixar ficar aquellas prendas para mim tão queridas.

E, envergonhada pela revelação, abaixou a cabeça, muito ruborisada, continuando:

-- Mas eu informei me bem.

«Posso ir pagando os juros todos os mezes; e mesmo que os não pague, ainda esperam quatro mezes. Trago aqui a cautella bem arrecadada, e como eu agora já sei fazer alguma coisa...

-- Deixe estar que não hão-de ficar lá, logo que estima esses objectos... a não ser que eu d'aqui me não levante mais. Mas ainda assim...

Eugenia empallideceu e perguntou confrangida:

-- Mas o que foi que teve? Por Deus não me queira assustar, não? É ainda coisa de gravidade?

E eu aqui a tagarellar incommodando-o talvez..

E dizia tudo isto muito agitada, mas muito carinhosa, sem lhe dar tempo a responder, e volvia:

-- Não ha-de ser nada, não é verdade? Mas que lhe aconteceu?

E elle com um sorriso de satisfação:

-- Foi uma bala que fez uma travessia do meu peito para as costas.

-- Ah! Bem o tinha eu adivinhado!

«O senhor tambem entrou na revolta! Mas está livre de perigo, não é assim? Que diz o medico?

Gilberto não se cançava de olhar para ella e cada vez a achava mais bella, mais captivante e seductora, descobrindo-lhe sempre novos encantos. Ora notava a doçura que emanava dos seus olhos caridosos, ora reparava na magia da sua voz cheia de harmonias, ora descobria a graça, a distincção dos seus gestos, a modalidade dos seus requebros, a malleabilidade das suas formas irreprehensiveis, ora emfim observava as mutações de expressão que se

succediam na sua phisionomia franca e distincta, alegres ou tristes, conforme o assumpto de que falava, mas sempre indicativas do vivo interesse que por elle sentia, o que tornava feliz e quasi o fazia esquecer a gravidade da sua situação.

Mas o que mais o admirava era a maneira elegante de dizer, a distincção que notava nas suas maneiras, os conhecimentos que lhe adivinhava atravez das suas palavras.

Eram as lições proveitosas das honradas velhotas, que não cairam em terreno safaro.

Pouco depois chegou o dr. Raymundo, que encontrou o doente muito animado, o que o fez recear que aquella animação fosse ficticia, por ser muito repentina.

De feito, d'ahi a pouco o mancebo caia n'uma prostração cataleptica. Os esforços que fizera e as commoções que experimentara tinham-lhe de todo exgotado as poucas forças.

O medico deu-lhe uma colher de um cordeal, que n'um instante mandara buscar, e dahi a poucos minutos tornava elle a abrir os olhos, que se fitaram na consternada Eugenia, mas sem poder pronunciar uma palavra.

A joven foi ajoelhar aos pés dos donos da casa, rogando-lhes que a deixassem ficar ali para ajudar a tratar do ferido, a quem queria como a um pae.

-- Pois não, minha senhora? -- Responderam ambos, fazendo-a levantar.

«Com todo o prazer. Faça de conta que está em sua casa.

E faziam esforços para reprimir as lagrimas, que teimavam em tremelicar-lhe nas palpebras.

Mas o medico, com a sua costumada expressão alegre, retorquiu:

-- Ah! Ah! Só pede permissão aos donos da casa e de mim não faz caso? Pois olhe que eu é que lhe não dou tal auctorisação, se não fizer o que eu lhe mandar. Não viu o que já ia fazendo?

E, como ella lhe dirigisse olhares supplices, volveu:

-- Bom, bom, eu não quero contrarial-a, mas é preciso ter juizinho...

E, com um agradavel sorriso para o enfermo, tornou:

-- Com uma enfermeira assim não admira que se ponha prompto num instante.

Como dizer os cuidados, os desvelos, as attenções de Eugenia pelo seu generoso protector? Raro se lhe tirava da cabeceira. Ali comia, ali dormia, ali passava todo o tempo, muito ditosa por o poder consagrar a quem tanto amava e a quem tanto devia.

Gilberto tambem parecia muito feliz por se ver assim adorado por aquella bondosa creança, a quem se affeiçoara de todo o coração; e se não fosse o pesar da revolução ter sido subjugada e a lembrança dos seus companheiros, no exilio uns, na prisão outros, no cemiterio muitos, julgar-se-ia venturoso, não obstante aquelle terrivel ferimento que o tivera e tinha ainda entre a vida e a morte, pois se esquecia d'elle para só se embriagar na contemplação d'aquella que por elle velava sem nunca mostrar impaciencia ou enfado.

E foi bem moroso aquelle tratamento!

As melhoras eram de tal fórma insensiveis que as semanas e os mêzes passavam sem se lhe notar differença alguma. O pulmão suppurava em tal abundancia que foi preciso praticar, entre as costellas, largas incisões, nas quaes foram introduzidos tubos de borracha para dar saida á grande quantidade de pus que corria incessantemente do pulmão apodrecido.

E nunca o jornalista conseguia que a terna creança se affastasse de junto d'elle quando o dr. Raymundo, sempre solicito, lhe fazia o curativo, apesar do fetido que exhalava. Quando o mancebo viu que o tratamento era tão moroso quiz recolher a um hospital, porque lhe pesava estar ali incommodando espantosamente aquelle honrado commerciante e sua caridosa esposa, mas elles é que não consentiram, com grande prazer de Eugenia, que no hospital não poderia estar sempre junto d'elle. E nunca, em tantos mezes de despezas, de cuidado e de trabalhos, mostraram a menor sombra de aborrecimento ou de má vontade.

Mas o pulmão não poude ser indifferente ao cuidadoso tratamento local, á abundante seiva que uma boa alimentação lhe enviava, e á força de vida d'aquelles vinte e cinco annos, começando a diminuir a suppuração, a adquirir tecidos novos, a cicatrizar, emfim. Gilberto começou então a erguer-se do leito, a dar pequenos passeios pela casa e depois pela cidade, acompanhado algumas vezes pelo commerciante e por Eugenia e outras vezes só por esta.

O primeiro passeio que deu foi ao cemiterio do Repouso, para espalhar flores sobre a campa dos companheiros que ali jaziam depois de derramarem o seu sangue pela causa da republica.

Durante todo este tempo nunca entre o mancebo e a sua protegida se trocou uma unica palavra de amor. Mas eram ellas acaso precisas? Não o sentiam elles bem para que fosse preciso dizel-o?

Em todo o caso os olhos continuamente faziam tacitas confissões do muito que suas almas sentiam, e cada um recebia as impressões do olhar do outro com tanta comprehensao como se seus labios proferissem apaixonadas declarações.

Um dia, porém, que os dois apaixonados tinham ido dar um passeio já mais largo pelos suburbios da cidade, e que, sentados á sombra de uma arvore, descançavam da sua fatigante caminhada, Gilberto começou a sorrir-lhe carinhosamente e a encher-se d'animo para lhe dizer qualquer coisa que o embaraçava. Este sorriso derramou no rosto rosado e fino da joven uma expressão radiosa e doce, como a primavera fazia derramar por todos aquelles valles e montes o delicado matiz das folhagens e das flores, que em gradações soberbas e inimitaveis tornava tão apraziveis e encantadores aquelles trechos dos arrabaldes da industriosa cidade.

-- Fale-me com franqueza, Eugenia -- começou elle -- gostava de ligar a sua existencia á minha?

Ella, muito ruborisada e com o coração batendo descompassadamente, respondeu, baixando os olhos:

-- Bem sabe que não mereço ser nem uma sua humilde escrava...

-- Mas responda o que sentir: alegrar-se-ia se não mais se apartasse de mim?

E ella, olhando o com firmeza, volveu ingenuamente.

-- Seria para mim a maior das felicidades.

-- Apesar de eu nunca mais, talvez, tornar a ter saude?

-- Isso só é rasão para mais desejar dedicar-lhe a minha vida.

O mancebo apertou-lhe as mãos entre as suas em signal de reconhecimento, e beijou-lhe castamente aquellas candidas faces, cobertas de fulgores.

Nada mais disseram e pouco depois tomaram o caminho de casa!

A natureza parecia querer acompanhar com suas harmonias este suave e terno idylio. Nos arvoredos em flor trinavam em maviosos desafios os incançaveis passarinhos, e num freixo, á beira de um regato, todo se requebrava em seus deleitosos garganteios um esforçado rouxinol.

Tudo por ali adeante cantava e ria como o coração dos dois feiizes apaixonados.

E então os olhos da gracil Eugenia, esses pareciam espelhar as pompas d'aquella vegetação exuberante, como espelhavam sempre a sua alma serena e pura, como a mais pura e serena aurora.

No dia seguinte pediu Gilberto aos seus bondosos hospedeiros que lhe deixassem ali ficar alguns dias a meiga Eugenia, porque tinha que sahir do Porto e, como elles assentissem, tomou nessa mesma tarde o comboio de Lisboa.

Na capital, a primeira pessoa que procurou foi D. Innocencia. Esta miseravel mulher, cada vez mais fanatica e devassa, quiz recusar-se a dar-lhe a auctorisaçao que elle pedia, mas não sei que magicas palavras elle lhe disse, que ella, atemorisada, poz-se prompta a obedecer-lhe em tudo. Depois arranjou outros documentos de que precisava, e, indo ter com Armando, contou-lhe que estava resolvido a casar-se, pedindo-lhe que o acompanhasse ao Porto. Em seguida foi fazer igual pedido ás virtuosas senhoras que tinham educado a sua noiva, ao que ellas tambem annuiram do melhor grado; e logo que ao jornalista chegaram uns documentos que esperava da terra, partiram os quatro para o Porto.

Outra pessoa tinha elle querido levar na sua companhia. Era o seu antigo mestre, aquelle bom Germano. Mas este, em resposta aos seus instantes rogos, respondeu-lhe com esta carta:

«Meu prezado Gilberto

«A tua honrosa carta mostrou-me que ainda te não esqueceste d'este pobre velho, que sempre foi e é teu amigo a valer. Alquebrado e doente como estou, a minha presença só podia inspirar-te tristeza e dôr, e á tua noiva e aos convidados desprazer ou compaixão. Ora o acto é para alegrias e diversões.

A minha presença seria, portanto, não só inutil mas inconveniente.

«Eu teria immensa satisfação só em vêr-te, podes crê-lo; mas satisfações tens-me tu dado muitas.

«Quererei eu ainda maior jubilo que o que sinto só com a lembrança de que concorri, pouco ou muito, para o desenvolvimento d'esse cerebro, onde brotam producções que devem ser o teu e que são o meu orgulho, e que causam o encanto e a admiração de todas as almas nobres que ainda ha n'esta terra portugueza? Não te pergunto se isto te tem dado proveito. É possivel que não. Mas como não vivemos só para nós nem só para os nossos interesses,

não tens senão de que te orgulhar. Se quando morreres não deixares uma fortuna, deixarás um nome, o que vale incomparavelmente mais.

«Tu foste sempre o meu discípulo mais amado, e parece que soubeste traduzir fielmcnte o que eu sentia, mas não podia nem sabia dizer.

Desejando-te todas as venturas, peço que desculpes a minha recusa e que me deixes a vaidade de suppor que n'esse tão grande espirito alguma coisa ha do meu.

«É só o que deseja o teu amigo mais querido.

Germano.»

Gilberto, pesaroso por esta recusa, teve de resignar-se com a ausencia d'aquelle tão prestimoso amigo, mas promettendo a si mesmo ir abraça-lo na primeira opportunidade.

Foi grande a surpreza e a satisfação de Eugenia quando viu as boas velhotas que lhe tinham servido de mãe e de professoras; mas quando soube a que vinham, isto é, quando Gilberto lhe disse, cheio de jubilo, que dois dias depois iriam á administração do bairro casar-se, a linda creatura chamou-o de parte, e, caindo-lhe aos pés, banhada em lagrimas, rogou-lhe que não pensasse em similhante coisa, que tal não fizesse, que isso seria uma desgraça para ambos.

E como o mancebo, espantado, julgando ser a falta d'amor que motivava tão estranhos rogos, lhe pedisse para se explicar, ella disse-lhe, sempre soluçante e supplice:

-- Não, não, eu nunca poderei nem deverei ser sua esposa. Sou uma rapariga deshonrada, o que enlamearia sempre o seu nome honesto. O senhor é bom, é generoso, quer elevar-me, mas eu é que o não devo consentir, porque isso daria logar a que no futuro, quando o amor esfriasse, tivesse vergonha do que tinha feito, o que o tornaria desgraçado e a mim muito mais, pois que teria sempre remorsos de ter acceitado um logar que me não pertencia. Uma rapariga como eu, que tem por mãe quem lhe vendeu a honra...

-- As manchas das mães não ennodoam as filhas -- retorquiu, espantado, o mancebo.

-- Mas é quando as filhas não teem macula. E o senhor bem sabe que eu não estou n'esse caso.

«Queria porventura sujeitar-se a que o apontassem como tendo casado com uma rapariga já desgraçada?

-- Quem o saberia?

-- Toda a gente, se o padre Seraphim quizesse desacredita-lo, porque minha propria mãe lh'o diria.

E depois, sabe-o a mulher que ao tempo era minha creada e ainda o monstro que me comprou.

Estas palavras cruéis mas verdadeiras, pungiam acerbamente o jornalista, que não sabia que replicar.

Perguntou pois:

-- Mas então que quer que faça?

-- Que ponha de parte a ideia de casamento comigo...

-- Mas ainda ha dias me prometteu não mais se apartar de mim!

-- Prometti-o e a minha maior alegria e felicidade será cumpri-lo.

«Eu não posso ser sua mulher, mas posso ser sua creada, sua escrava, sem que assim o envergonhe.

-- Não diga isso, Eugenia, que nunca a quereria senão para minha esposa, e ha de consentir que este meu ardente desejo se tome um facto.

-- Por Deus lhe peço que não insista.

«Nunca teria um momento de alegria, se em tal consentisse, por me lembrar que o rebaixava. Faça de mim o que quizer, que eu serei muito ditosa em o ter por meu amo, meu senhor, meu Deus, meu tudo. Quero venera-lo e adora-lo como os fanáticos adoram as materialidades do culto.

«Deixe-me esta ventura, que.se me desposasse, parecer me-ia que se tinha quebrado o meu encanto.

E tornando-lhe a ajoelhar aos pés, rogou-lhe de mãos postas que a não contrariasse.

O mancebo, com as lagrimas nos olhos de pura commoção por tão sublime sacrificio, como era o d'aquella creança, que preferia ser sua amante a ser sua esposa, só para que a torpeza da mãe o não maculasse, ergueu-a e apertou-a ao peito n'uma ancia immensa, manifestando-lhe n'aquelle impetuoso amplexo o ardente amor que lhe inflammava o coração e disse lhe com convicção:

-- Pois juro-lhe pela minha honra que a considerarei sempre em tudo minha esposa!

Á tarde d'esse dia Gilberto chamou de parte o estudante e fez-lhe conhecer a recusa da joven, mas tendo o cuidado de lhe occultar os motivos; e ambos resolveram servir se duma innocente mentira para explicar ás bondosas senhoras a causa de se não effectuar n'aquella occasião o casamento.

Estas, pesarosas por terem feito uma tão longa viagem inutilmente, aproveitaram dois dias depois a companhia de Armando de Sampaio para regressarem a Lisboa, visto que Gilberto e Eugenia ainda ficavam no Porto emquanto se não removiam as difficuldades para que o casamento pudesse realizar-se!

XXX

O ajuste de contas

Gilberto fixara residencia em Bemfica, por ser o local que mais agradara a Eugenia, que elle tratava como uma noiva muito amada e que lhe proporcionava uma vida cheia de delicias.

D'ali escrevia para os jornaes republicanos de Lisboa, onde raras vezes ia, tendo apenas por visitas longínquas o seu intimo Armando e alguns outros amigos mais dedicados.

Uma tarde passeava elle com a linda Eugenia no pequeno jardinzinho fronteiro á casa, quando avistou, vindo da estação do caminho de ferro, o estudante. Pouco depois estava elle junto do lindo par, risonho e prasenteiro, dizendo ao seu amigo:

-- Tem paciencia, mas hoje tens que me acompanhar á cidade.

-- Para quê? Ha algnma novidade?

-- Não, mas reunem-se em minha casa uns amigos e não desejava que estivesses ausente.

Eugenia havia-se retirado para casa, afim de deixar os dois amigos á vontade; e, quando Gilberto entrou e lhe disse que ia para Lisboa, ella, não obstante sentir grande desprazer, respondeu-lhe:

-- Vae, vae, meu querido, porque tambem não pódes estar sempre aqui enclausurado.

-- Mas bem sabes que é esse o meu maior prazer...

-- Pois sim, mas tambem precisas outras diversões.

E, beijando-o soffregamente, deixou-o ir ter com o recem-chegado, que lhe disse:

-- Vamos depressa, que o comboio de Cintra está a chegar.

E tomando ambos o caminho que Armando ainda ha pouco tinha percorrido, dirigiram-se para a estação.

-- Tu não me disseste a verdade! começou Gilberto.

-- Pois não disse, não -- respondeu, rindo, Armando.

-- E então que ha?

-- Não ha nada. Que diabo, tu não pódes tambem estar sempre aqui sepultado, se não tornas-te um misantropo!

-- Mau, é melhor falares francamente. Tu não vinhas buscar-me se não houvesse um motivo importante, porque bem sabes que não troco o socego da minha casa pelo bulicio da cidade: e tambem sabes que, para mim, motivos importantes são só os que dizem respeito á proclamação da republica.

Portanto, responde: Ha alguma combinação revolucionaria a fazer?

-- Então tu não sabes que o mau exito da revolta do Porto desanimou os ambiciosos que para subir nos acompanhavam? Logo que viram que a coisa não era para já, visto fracassar aquelle movimento, encolheram-se, esconderam-se, desertaram, fugiram, atraiçoaram nos, pozeram-se a nú, patenteando bem o monturo da alma, e lá foram para a monarchia, acocorados, rastejando, bajulando, desdizendo-se, penitenciando-sc, ladrando contra nós que não desesperamos com um revez, porque não temos ambições, mas um ideal que não morre.

-- Sim, isso é certo, mas então que me queres tu?

-- Quero que tomes parte num julgamento.

-- Um julgamento?! De que natureza?

-- Logo verás. Agora entremos, que ahi vem o comboio.

Effectivamente o comboio vinha chegando; e os dois amigos, entrando n'elle, apearam pouco depois no Rocio.

-- Não te convido para jantares em minha casa, porque, francamente, lá não esperam por nós; mas vamos jantar ao Tavares, que já ficamos perto do logar onde temos de ir.

Gilberto não lhe fez objecção alguma, dispondo-se a obedecer-lhe passivamente. Depois de jantarem, como já fosse noite, Armando foi guiando o seu amigo até aquella humilde casita onde elle já uma vez representara de padre. Aqui o estudante bateu com os nós dos dedos na porta, que foi immediatamente aberta, fechando-se logo após elles.

Gilberto começou a examinar o estranho aposento, alumiado por um candieiro de petroleo que com tres ou quatro cadeiras, constituía toda a mobilia que ali havia, e não podia achar a razão porque se encontravam ali. Quando entraram já lá se encontrava um forte rapagão que elle conhecia como creado de Armando.

-- Cumpriste as ordens que te dei, Francisco? -- perguntou este ao rapaz, que tinha robusta apparencia e cara alvar.

-- Saberá vossa insollencia que sim -- respondeu elle.

-- Bom; tu pões-te detraz da porta, e, quando alguem bater, abres, e fechas nas costas de quem entrar, sem dares tempo a que possam voltar para traz.

E, voltando se para o jornalista, que o olhava sem comprehender, disse lhe:

-- Isto é uma ratoeira. Devem hoje aqui cair, por um estratagema de que lancei mão, dois passaros bisnaus, que temos de julgar summariamente.

-- Mas ainda não me disseste quem elles são, e, para te falar a verdade, estou com certo interesse em sabê-lo.

-- Não tenhas pressa, que breve o saberás. Como deves estar lembrado, foi a este cubiculo que eu vim confessar uma desgraçada que aqui agonisava.

Por signal que foi no dia que nós fomos presos...

-- É verdade -- confirmou Gilberto -- estava-te esperando em S. Pedro d'Alcantara, quando o patife do Thadeu me indicou á policia que me procurava.

N'este momento duas discretas pancadas se ouviram na porta.

Armando puxou o seu amigo para um canto da casa, emquanto o creado, levantando a aldraba, abria meia porta por onde entrou o corpo nada rotundo d'um padre. Entrou sem mostrar receio, porém, logo que a porta se fechou e deu de cara com o rapagão, quiz retroceder, mas era tarde. Armando, com um riso sarcastico, appareceu-lhe, dizendo:

-- Faça favor dentrar, não faça cerimonia, meu padre...

-- Pelo que vejo não se conhecem -- disse rindo Armando, e apresentou:

-- O sr. Gilberto de Proença.

-- O sr. padre Seraphim do Espirito Santo...

-- Pois é este o tratante do padre Seraphim? -- perguntou espantado Gilberto.

-- Este mesmo.

O padre Seraphim estupefacto, medroso, desvairado, não sabia que partido tomar. Se olhava para a porta, via lá impavido aquelle latagão, que lhe parecia Cerbéro; se se lembrava do apito que trazia na algibeira ou de gritar, parecia-lhe que aquelles endemoninhados o estrangulariam antes que pudesse fazer-se ouvir. E não trouxera revolver!

Maldita imprevidencia!

-- Mas então -- interrogou Gilberto -- a que vem aqui este miseravel?

-- Não tenhas pressa... replicou Armando.

E agarrando o padre por um braço, fê-lo sentar numa velha cadeira, sentando-se elle n'outra.

-- Vou começar -- principiou elle -- por lhe contar uma historia, padre Seraphim.

Mas foi interrompido por duas leves pancadas dadas na porta e pelo ruido d'esta que se abria.

O recem-chegado, porem, receoso, parou no limiar da porta, não podendo por isso o creado de Armando fecha-la.

Então o estudante adiantou-se e disse-lhe com ar risonho:

-- Póde entrar, que o sr. padre Seraphim entrou agora mesmo.

O dr. Thadeu, pois que era elle, entrou desembaraçadamente, dizendo:

-- Sim, senhores, o logar é comme il faut para....

Mas as palavras ficaram-lhe entaladas na garganta ao deparar-se-lhe o jornalista, que estava muito longe de encontrar ali.

Armando disse-lhe ironicamente:

-- Ainda vem a tempo de ouvir uma historia que ia contar ao sr. padre Seraphim.

O bacharel, reparando na expressão de terror que se notava no semblante do padre, e vendo o ar escarnecedor com que o estudante lhe falava, gaguejou:

Mas então... a tal combinação... não passa d'uma...

-- Cilada, póde concluir -- respondeu Armando, rindo -- Estamos entre amigos, não façamos questão de palavras.

-- Mas então que fiz eu?...

-- A mim nada, que eu saiba, mas outro tanto não dirá talvez aqui o meu amigo Gilberto de Proença. Emfim, para se poderem explicar é que lhes proporcionei esta occasião...

E o poltrão do doutor, dirigindo-se ao seu antigo condiscípulo, disse-lhe com repugnante baixeza:

-- Oh! crê que eu nunca tive por ti senão a muita estima e consideração que o teu talento e a tua grande alma merecem. E não imaginas o desgosto profundo que tive quando, ao falar-te da outra vez em S. Pedro d'Alcantara, a policia te prendeu. Se eu soubesse que te procuravam, de fórma alguma pronunciava o teu nome...

Gilberto rindo enojado, respondeu:

-- Com a atrapalhação até te esqueceram os francezismos, farçante!

«Tu foste sempre vil, reles, nojento!...

«Em Coimbra eras alcoviteiro de certos lentes e assim conseguias passar sem nada saber, emquanto os que tu accusavas eram reprovados por mais que estudassem. Vieste para aqui e começaste por espião da policia para alcançares a tua nomeação de deputado...

-- Espera! -- ordenou o estudante -- em primeiro logar está este, que chegou antes. Vá por sua ordem, nada de injustiças!

Apresentou uma cadeira ao assombrado e emparvecido bacharel e pae da patria, fe-lo assentar, e disse lhe, rindo sempre:

-- Esteja á sua vontade, nada de etiquetas, e queira prestar attenção, que vou ter a honra de lhes contar uma historia que deve interessar-lhes muito, especialmente a este glorioso sacerdote.

E dirigindo-se sempre a este, começou:

-- Não sei se está lembrado d'aquella occasião em que tive a irreverencia de falar, em casa de meu tio e na presença de minha bella prima, com menos respeito da sua pessoa e da religião de que é tão digno ministro.

«Pois n'esse mesmo dia, quando eu vinha a sair -- depois de ter promettido a Zelia que dentro de 24 horas lhe havia de provar que ella andava sendo victima d'um intrigante, approximou-se de mim uma velha a perguntar-me, muito apressada, por vossa reverencia, porque n'esta casa estava quasi á morte uma desgraçada que queria confessar-se.

O padre Seraphim, já muito pallido, tornou-se livido, ao ouvir isto, e começou a agitar-se na cadeira.

Armando continuou:

-- Como, por attenção ao illustre protector de minha prima, desejava attender a pobre mulher, e não sabia onde encontra lo, resolvi fazer um sacrificio -- enorme sacrificio pois que até lhe offereci em holocausto o meu nascente buço -- decidindo me a vir em pessoa representa-lo. Arranjei pois um disfarce de jesuita -- que por signal, e seguudo á opinião d'este amigo, me fazia horroroso -- e dirigi-me a esta casa, onde n'aquelle cubiculo, -- e indicou o quarto contiguo -- penava uma infeliz as maiores torturas moraes que é dado imaginarem-se, por culpa d'um scelerado que fizéra d'ella, pelo seu fanatismo e ignorancia, um instrumento criminoso.

O padre Seraphim ergueu-se medonhamente transtornado; mas o estudante, com um violento empuxão, obrigou-o a assentar-se de novo e continuou a relatar toda a confissão da mulher, sem lhe escapar a menor particularidade Gilberto e o proprio Thadeu estavam espantados com tão extraordinaria revelação; e, embora o mancebo não tivesse ainda proferido o nome do criminoso, ambos comprehendiam que era o padre Seraphim.

Este que não pudera ainda articular uma palavra, regougou por fim, a querer tornar-se forte e estranho áquella narração:

-- Mas que tenho eu com tudo isso?

-- Pschiu! -- fez Armando -- Nem uma palavra!

-- E continuou:

-- Saí d'aqui resolvido a tentar salvar esta mulher da morte e da garra do seu remorso, e fui procurar aquelle meu amigo -- e indicou Gilberto -- que ficara a esperar-me em S. Pedro d'Alcantara; mas não o encontrei, porque tinha sido preso por denuncia do mesmo sicário que tinha levado a desgraçada que aqui agonisava a envenenar o seu bemfeitor, e d'ahi a pouco eu mesmo fui preso no Rocio.

«Quando sai do calabouço vinha gravemente enfermo, mas ainda assim mandei saber da minha confessada: tinha morrido. Logo que me ergui do leito corri a casa de minha prima para lhe explicar o motivo porque não pudera cumprir a minha palavra -- pois que a ella occultaram lhe a minha prisão e até a minha doença -- mas era muito tarde. A infeliz estava manietada; já não podia escapar-se da rede em que havia cahido, pois tinha sido deshonrada!

-- Deshonrada!? -- exclamou, admirado, Gilberto.

-- Sim, e pelo mesmo sevandija em questão.

-- É mentira! é uma calumnia! -- rouquejou o padre, já sem saber o que dizia.

-- Mas como soubeste tu isso? -- tornou o jornalista, quasi não podendo acreditar uma tal monstruosidade.

-- Meu amigo, a canalha clerical tem uma magnifica policia no beaterio, e eu, quasi sem o querer, tenho tido tambem uma policia rasoavel; não me foi portanto difficil saber isto. Eu bem sei que esta nova não será muito agradavel ao illustre deputado que está aqui presente... porque emfim, nunca se gosta de ouvir uma coisa d'estas d'uma noiva... Mas creio não ser isto grande obstaculo para tão brioso cavalheiro.»

-- Ah!! pois este poltranaz pretende tua prima? -- tornou o jornalista, caindo de surpreza em surpreza.

-- É o patife que a deshonrou e que é seu amante que quer este casamento, porque, como conhece o caracter do doutor, sabe que pode continuar a gosa-la e a domina-los a ambos.

«É para elle até menos perigoso. Meu tio é que está mais renitente, mas acabará por ceder.

E olhando bem de frente o padre Seraphim, perguntou com terrivel aspecto:

-- Dize, padre; sabes quem é o tonsurado intrigante, assassino, denunciante e violador de donzellas?

O cobarde sacerdote estava aniquilado. Nada respondia, e olhava para todos como que idiota, sem comprehender o que lhe queriam.

-- Responde, jesuita! -- volveu Armando com intimativa -- Sabes quem é o miseravel que introduzindo-se nas casas de familia sob pretextos religiosos, urde intrigas infames, desfaz-se dos que lhe fázem sombra por meio de denuncias torpes ou de envenenamentos cobardissimos, deshonra virgens, enlameia familias honestas? Não respondes? Pois respondo eu: és tu, immundo ministro duma religião de trevas e de mentira! és tu, vilissima creatura, sem honra, sem caracter, sem consciencia! és tu, asquerosa vibora, que rojando-te pelo chão, sem seres presentido, mordes, babujas, envenenas tudo quanto alcanças!

E o miseravel, em pé, hirto, epileptico, perdido, rouquejava como unico salvaterio:

-- Mas se eu sou criminoso, porque não me entregam aos tribunaes para elles me castigarem?

-- Ah! patife! tu bem sabes que n'este paiz tudo o que seja escandaloso para a cleresia ou para altos trumfos, é abafado; podias por isso contar com a impunidade. Além d'isso, as abominações que commetteste e de que eu tenho uma certeza firme e indestructivel, não eram facilmente provadas em juizo. Portanto, este é que é o teu tribunal, e nós é que somos os teus juizes. Aqui soffreu uma pobre mulher culpas que só tuas eram; aqui, pois, as has-de tu pagar tambem. Dize tu, Gilberto, qual ha-de ser a pena d'este monstro.

O jornalista respondeu pausadamente:

-- São grandes na verdade as culpas d'este tratante, mas francamente, todos o poderão castigar, menos eu; porque tudo quanto lhe fizesse havia de ser tomado á conta de odio meu, por elle ter evitado o meu casamento com tua prima, quando é certo que e a tal facto que eu devo a felicidade que estou gosando. Tu és primo d'aquella que elle violou, abusando assim da confiança que n'elle tinham depositado. A ti mesmo aggravou elle, denunciando-te como um revolucionario perigoso. Podes portanto castiga-lo.

-- Bem, então este fica por minha conta. E indicando o bacharel, interrogou:

-- E aquelle? queres deixa-lo ir sem a paga dos seus serviços?

-- Não, a este cumpre-me dar-lhe um correctivo, porque, fingindo-se amigo meu, foi sempre para mim um traidor; mas ha-de ser um correctivo de que eu não tenha que envergonhar-me.

O pobre Thadeu, que já se julgava salvo, visto o jornalista não querer castigar o padre, que tinha mais culpas, ouvindo isto, começou a tremer como um fragil vime agitado pelo aquilão, e titubeou, perdido de medo:

-- Perdôa-me, meu amigo... olha que eu... sim... eu não te fiz mal nenhum... e se alguma coisa fiz foi por instigações d'este patife... Elle é que, com grandes promessas, me induziu... mas crê que d'hoje em deante .. sim, pódes estar certo de que serei teu amigo a valer...

-- Cala-te, poltrão! Essa linguagem é propria do teu baixo caracter, mas pódes estar certo de que não me illudes e cada vez me causas maior repugnancia! Não julgues porém que vou castigar-te n'este logar; não, o que vou fazer-te é o que te faria em qualquer occasião que te encontrasse.

E voltando-se para Armando, disse-lhe, apontando-lhe o padre:

-- Arranja-te com esse como quizeres, que eu levo este canalha commigo. Para isso manda-me o teu creado ali a S. Roque buscar um trem.

Pouco depois parava o trem na rua, e, antes de entrarem n'elle, o jornalista disse para o bacharel com expressão energica:

-- Como és um cobardissimo patife, é possivel que tentes fugir ou gritar, mas previno-te de que, se alguma cousa tentares, te esgano antes que alguem possa acudir te. O melhor que tens a fazer é obedecer-me.

Armando ficou com o creado para dar uma pequena lição, como dizia, ao reverendo amante de sua formosa prima.

Gilberto fez entrar no trem o estarrecido deputado, entrou elle tambem a seguir, e este seguiu a trote largo para o local que o jornalista havia indicado ao cocheiro.

Eram dez horas da noite. As ruas mais concorridas regorgitavam de gente. As senhoras enchiam as lojas de modas, maçando os pobres caixeiros, que se esforçam sempre por lhes fazer a vontade, mostrando-lhe a loja em peso, para no fim ellas se dignarem pedir-lhes umas amostrinhas. Dos cafés saiam rumores de discussões políticas, litterarias ou artisticas de mistura com o tinir dos copos. Das tabernas silvavam obscenidades e altercações azedas;

e nas ruas, os cauteleiros elevavam acima do ruido dos vehiculos, que se crusavam em todas as direcções, o seu pregão monotono, pertinaz, irritante:

-- É o tres quatro e cincoenta e sete! É p'rós doze contos, amanhã é que anda a rodar quem quer o tres quatro e cincoenta e sete!

E o trem descia a rua de S. Roque, voltava á esquerda para o Largo das duas Egrejas, descia o Chiado e a Rua Nova do Carmo, e, sempre a trote largo, tomava pelo lado Occidental do Rocio, entrando no largo do Camões, onde parou em frente do café Martinho, que era então o mais frequentado e que áquella hora tinha numerosa concorrencia, que se derramava por todo o passeio. Havia alli escriptores, jornalistas, medicos, estudantes, poetas, deputados, a fina flôr da intellectualidade lisboeta.

O primeiro a apear-se foi Gilberto, que foi logo rodeado por uma multidão de amigos e admiradores.

-- Olhem o nosso fugidio revolucionario! Que milagre o trará por cá hoje? Já se nem digna apparecer!

E queriam agarra-lo, abraça-lo, apoderar-se d'elle.

Mas elle exclamou-lhes:

-- Alto lá, meus amigos, primeiro tenho que cumprir a missão que aqui me trouxe.

E puxou para fóra do trem o enfiado e misero dr. Thadeu, que, acocorado a um canto, e tremendo de susto, começava a comprehender o que elle queria.

-- O orador asneira! -- exclamou ao vê-lo um jornalista republicano que lhe ouvira no parlamento os seus discursos cheios de francezices e de parvoiçadas, mas vasios de grammatica e de senso commum, e que, por isso mesmo, lhe tinham alcançado grande renome, porque a sua fatuidade era considerada -- talento, a sua linguagem asnatica -- sciencia.

-- Meus senhores -- começou Gilberto segurando-o pela gola da sobre-casaca: este pulha, antes de entrar em S. Bento, e talvez depois d'isso, foi bufo policial; e fingindo se meu amigo, pois que me conhecia de Coimbra, atraiçoava-me, sendo elle que ha dois annos me deu á prisão. Quero por isso aqui publicamente dar-lhe a paga dos seus serviços.

-- Bravissimo! -- exclamaram muitos, emquanto outros deputados, que o tinham por correligionario, se escondiam por detraz dos grupos para não terem que intervir.

Gilberto tirou da mão d'um seu amigo uma flexivel vergasta de junco e com ella chibatou-lhe valentemente a cara. Em seguida, dando lhe um violento empurrão, fê-lo ir bater de nariz na sargeta proxima.

-- Isso mesmo! -- gargalharam de todos os lados

-- Na sargeta é que é o seu logar.

E o mancebo, abraçado e victoriado por todos, entrou no café, emquanto o vexado parlamentar fugia corrido e apupado pelos circumstantes.

Gilberto demorou-se entre os seus amigos e conhecidos até á partida do ultimo comboio, em que foi tranquilisar a adoravel Eugenia, que o esperava presa de mortal angustia pela desusada demora, mas que o recebeu de doce e terno sorriso nos labios, sem de modo algum lhe dar a conhecer a sua afflicção. Pois dizia ella:

-- Tenho eu algum direito a exigir que elle esteja aqui a horas?

«E não precisa elle distrahir-se?

«Meu Deus! será bom que se vá divertindo para que nunca se aborreça de mim!...

Conclusão

No dia seguinte o deputado Thadeu da Silva teve uma demorada conferencia com o padre Seraphim do Espirito Santo, na qual resolveram, por conveniencia propria, não fazer caso das sevicias que sobre elles exerceram os dois amigos, tanto mais que as costas do famoso ecclesiastico, fortemente zurzidas pelos pontapés do estudante, depressa melhorariam, cedendo ás compresas da arnica que desde a vespera as cobriam, assim como as faces do illustre deputado -- todos os deputados são illustres -- tambem não tardariam a perder os vergões que a maldita chibata lhes fizera. E depois de altercarem por algum tempo, fazendo mutuas recriminações, accordaram em que o melhor que tinham a fazer era apressar o casamento com a encantadora filha de Antão de Sampaio.

Zelia, como tinha por aquelle pretendente o mais profundo desprezo, não poz obstáculos em ser sua mulher, e depressa foi vencida a teimosia do conselheiro, que não se podia conformar -- segundo affirmava -- em ter semelhante asno por genro. Mas Zelia, sempre protegida pelos clericaes e jesuitas, é hoje uma das damas mais estimadas da sociedade alfacinha, ainda que, affirmam, nunca ninguem a tornou a ver satisfeita; e seu digno esposo, sempre colhendo novos triumphos em politica, está á bica para ministro, se o não foi já á hora em que o prezado leitor está lendo estas linhas.

Gilberto e Eugenia continuam vivendo em ininterrupta felicidade, ainda que elle espera sempre o momento preciso de se precipitar na revolução que dê á patria portugueza a anciada republica.

Armando é em Lisboa um apreciado clinico, mas tambem, como Gilberto, sempre pugnando pela republica e pelo livre pensamento.

Quanto a D. Innocencia, depois que todas as pomadas e cosméticos foram impotentes para lhe occultar os estragos que os annos lhe iam cavando no rosto, a ponto de já todos a desprezarem, a começar pelos seus ricos e santos padres, resolveu metter-se n'um convento, o que conseguiu; e as suas continuas rezas dão-lhe esperanças de ainda vir a ser canonisada, o que, segundo ella, não e coisa impossivel, pois que mais peccadora foi Maria de Magdalena e tambem é santa.

Se mandasse para Roma bons empenhos... em oiro, não era coisa que se não fizesse.

Gomes Leal -- «O Anti-Christo