FRANCISCO DA FONSECA BENEVIDES
No tempo dos francezes
ROMANCE HISTORICO
TERCEIRA EDIÇÃO
LISBOA
Typographia «A EDITORA»
Largo do Conde Barão, 50
1908
Junot
Era o dia 8 de junho de 1808. Era dia de grande festa em Lisboa. Não era, porém, festa para portuguezes. No Castello de S. Jorge, nos arsenaes do exercito e da marinha, no castello de Almada e nas fortalezas da barra, tremulava a bandeira franceza.
No Tejo tambem se desfraldava ao vento norte, que temperava os ardores do sol de um bello e esplendido dia, o pavilhão tricolor nas naus Vasco da Gama e Maria I, fragatas Tritão, Venus e Thetis, e mais alguns pequenos navios que, pelo seu mau estado de conservação, ou por não estarem apparelhados, tinham escapado de acompanhar a esquadra portugueza que, em 29 de novembro de 1807, levou para o Brazil a familia real.
D'estes restos improvisara uma esquadra, de que tomara o commando, o capitão de mar e guerra francez Magendie. Todos os navios se achavam embandeirados, solemnisando a gala do dia em que o exercito francez dava uma festa ao seu chefe.
Governava então Portugal, tendo o seu quartel-general em Lisboa, Jean Andoche Junot, commandante em chefe do exercito francez que, no anno anterior, invadira Portugal, por ordem de Napoleão.
Andoche Junot era, nesta epocha, um homem de 37 annos, pois tinha nascido, em 23 de outubro de 1771, em Bussy-le-Grand, departamento de la Cote d'Or. Militar valente, tinha brilhado, pela bravura com que se batera, no cerco de Toulon, em que ainda era simples sargento, e, já como official, nas campanhas de Italia e do Egypto.
Não tinha, porém, Junot, talento algum, nem capacidade especial, nem instrucção militar, como precisava ter o chefe de um exercito invasor. Apesar de já ter estado, como improvisado diplomata, representando a França imperial, junto ao principe regente, em Portugal, de 1804 a 1805, comtudo eram mui escassos os conhecimentos que possuia sobre a geographia e estado politico d'este paiz.
Foi no theatro de S. Carlos que se realizou a festa dada pelo exercito francez em homenagem a Junot. Mas antes de tratar d'esse festival, em um golpe de vista retrospectivo darei rapida noticia de alguns acontecimentos, e descreverei alguns episodios, que se ligam com a occupação de Lisboa pelos francezes.
Fuga da família real portugueza para o Brazil em 1807
São assas conhecidas as circumstancias em que o exercito francez invadiu Portugal, em 1807, e, como diante de um pequeno exercito composto de tropas francezas, esfaimadas, rotas, esfalfadas e dispersas, fugiu para o Brazil, embarcando no cães de Belem, no dia 27 de novembro d'aquelle anno, o principe regente D. João, que foi depois o rei D. João VI, com sua mãe a louca rainha D. Maria I, sua esposa a princeza, depois rainha e imperatriz D. Carlota Joaquina de Bourbon, e seus filhos os principes D. Pedro e D. Miguel, que foram depois os reis D. Pedro IV e D. Miguel I de Portugal, e suas filhas as infantas D. Maria Thereza, D. Maria Francisca, D. Isabel Maria, que foi depois regente d'estes reinos, D. Maria de Assumpção e D. Anna de Jesus Maria, e as infantas D. Maria Anna, e D. Maria Benedicta, filhas da rei D. José I e irmãs da rainha D. Maria I.
Além da familia real foram muitos nobres, fidalgos e funccionarios, com as riquezas e valores que poderam transportar para bordo, no pequeno intervallo de tempo que decorreu entre a resolução da partida e o embarque.
Os fugitivos embarcaram em uma esquadra, commandada pelo vice-almirante Manuel da Cunha Souto Maior, composta de oito naus: Principe Real, Rainha de Portugal, Meduza, Conde D. Henrique, Infante D. Henrique, Affonso de Albuquerque, D. João de Castro, Principe do Brazil; cinco fragatas: Golphinho, Minerva, Senhora da Graça, Princeza Carlota, Ulhysses; duas corvetas: Andorinha, Tirania; trez brigues: Lebre, Vingança, Voador; duas escunas: Curiosa, Esperança. Pode-se dizer que foi esta a ultima esquadra portugueza. Quasi todos os navios de que se compunha foram apodrecer nas aguas do Novo Mundo. Depois d'este triste acontecimento, nunca mais a marinha portugueza poude reunir tão grande numero de vasos de guerra.
Apezar do embarque se ter verificado no dia 27 de novembro, comtudo o mau tempo que fazia, com vento sudoeste, não permittiu que a esquadra, saisse a barra n'aquelle dia, nem no seguinte. Foi só dia 29, que, tendo o vento rondado para o noroeste, a esquadra se fez de vela, e partiu para as terras de Santa Cruz. No dia seguinte, 30 de novembro de 1807, entraram os francezes em Lisboa.
Porque foi nomeado Junot general em chefe do exercito da Gironda
Para invadir Portugal tinha Napoleão ordenado a formação de um exercito de 26:000 homens, em Bavona, ao qual dera por commandante em chefe o general Junot.
Que razões levariam o imperador dos francezes a escolher para tal empresa Junot, que era então governador de Paris?
Tem-se produzido diversas opiniões a este respeito.
Julgaria o imperador que possuia Junot as qualidades proprias para conquistar Portugal? Julgaria Napoleão facil e importante esta conquista?
Desejaria, como de grande importancia politica, o aprisionamento da familia real portugueza? Seria a nomeação de Junot para chefe do exercito invasor, um meio para o affastar, bem como a muitos outros officiaes, e batalhões, ainda suspeitos de jacobinismo opposicionista, apezar do seu manifesto enthusiasmo pelo imperador? ou seria o fim de tal nomeação affastar de Paris o seu muito galanteador governador, o general Junot, tão intrepido no
ataque do inimigo nos campos de batalha, como audaz e feliz no assalto ao bello sexo, incluindo nestas conquistas membros da familia Bonaparte, tendo-se tornado muito falado o general como coq des princesses impériales?
Todos estes motivos teem sido julgados, mais ou menos, como tendo influido no animo do imperador Napoleão; e todos teem, com eífeito, mais ou menos plausibilidade. É possivel, mesmo, que todos, ou, pelo menos, grande numero d'elles, fossem simultaneamente origem da nomeação de Junot para commandante em chefe do exercito francez invasor de Portugal.
Diz Thiers, que o imperador não dava importancia ao aprisionamento do principe regente, mas sim ao da esquadra portugueza.
Não ha duvida que a tomada d'esta esquadra pelos francezes, era de summa importancia, pois ia reforçar com alguns bellos navios a esquadra franceza, que d'isso bem estava precisada; pois as glorias francezas dos annos precedentes, não faziam esquecer o grande desastre experimentado pela esquadra franceza, na batalha naval de Trafalgar, em 1805.
Mas o aprisionamento do principe regente, e da familia real, era tambem um golpe favoravel á politica de Napoleão, e para a vaidade do general francez era o cumulo da satisfação; por isso foi grande a furia que acommetteu Junot, quando, chegando a Lisboa, soube que, por 24 horas, perdera tão bella occasião para fazer tão grande colheita de illustres prisioneiros, e com pouco trabalho; fartou-se de praguejar, lançando ao vento repetidas vezes o sacrêment et tonnerre, seu juron favorito. Por este lado a vergonhosa fuga da familia real contrariou deveras o general Junot; foi o cumulo da pirraça para o galanteador governador de Paris.
A campanha de Portugal não augmentou os louros do general Junot; pelo contrario. Não encontrando opposição alguma da parte dos portuguezes, a marcha das forças francezas foi vergonhosa e desastrosa. É verdade que não menos inepta foi a attitude das povoações. Se no peito do povo portuguez tivesse palpitado o patriotismo que alguns meses depois se manifestou, as forças francezas, dispersas, desorientadas, ignorantes dos caminhos, acossadas por temporaes e innundacões, esfomeadas, enfraquecidas, teriam sido facilmente, e de um modo completo, anniquilladas sem grandes esforços. Os portuguezes, porém, limitaram-se a ver, espantados, os soldados, rotos, descalços, afaimados, que, segundo elles diziam, vinham proteger Portugal, ao mesmo tempo que a familia real e muitos fidalgos fugiam para o Brazil.
Marcha do exercito da Gironda para Portugal
Foi a 18 de outubro de 1807 que as tropas de Junot começaram a passar o rio Bidassoa, chegando a Alcantara, em Hespanha, em 17 de novembro; aqui se lhe reuniu o general hespanhol Carafa com uma pequena força, que acompanhou o exercito francez; no dia 20 entrou Junot em Portugal, pelo Rosmaninhal, com a primeira divisão; a segunda seguiu a estrada de Salvaterra: a terceira divisão com a artilharia ficou mais atraz; no dia 21 entrou Junot em Castello Branco, e em 24 estava em Abrantes. Foi quando chegou a Lisboa a noticia de estarem os francezes em Abrantes, que foi resolvida a fuga para o Brazil.
A situação de Portugal nesta epocha era bem lastimosa; não havia estradas; o estado dos caminhos, em geral, mau ou pessimo, tinha-se tornado perigoso pelo rigoroso inverno; chuvas copiosas, tresbordo de rios e ribeiras, grandes innundações haviam assolado o paiz, tornando difficil, penosa e arriscada a marcha das tropas; a administração militar fiava-se em que o exercito invasor se sustentaria, como de costume á custa do paiz invadido; mas o desapontamento foi grande a este respeito para os francezes.
Portugal tinha poucos recursos para occorrer, sem prévia prevenção, ao sustento regular de um exercito que apparecia de improviso. Villas, aldeias, e povoações pobres, viam-se de repente assaltadas pela soldadesca desenfreada. Regimentos dispersos pelo mau tempo, maus caminhos e falta de alimento, pareciam mais bandos de aventureiros indisciplinados do que forças regulares. O povo não se mostrou hostil a estas hordas esfaimadas: a sua attitude era de espanto e de surpresa, mas benevola; não podia, porém, dar aos soldados o que não tinha, e elles precizavam, que era comida e sapatos: a falta d'este artigo fez immensamente soffrer os pobres soldados, que, descalços, se viam obrigados a marchas longas, através de caminhos impossiveis, com a barriga vazia. Mesmo na cidade de Castello Branco, como os francezes appareceram de improviso, não foi possivel fornecer ao exercito invasor o mais necessario para o seu abastecimento, o que levou ao seu auge o desespero dos soldados, que mais se indisciplinaram, começando a roubar tudo quanto encontraram nas casas e a debandar pelos campos e pelas aldeias visinhas, á procura de comestiveis, nesta phase da lucta pela vida. D'aqui se originou um principio de odio dos portuguezes, que, porém, não se traduziu logo, como conviria e seria patriotico, em represalias e hostilidades contra os invasores.
Dizia o general Foy que na expedição de Portugal as tropas, a maior parte das vezes, nem tinham onde se alojar para descançar; já se consideravam felizes quando encontravam arvores copadas, que ao menos lhes fornecessem lenha para o fogo; o que lhes fazia recordar com saudades as campanhas da Allemanha, em que as tropas francezas sempre acharam casas, ou casaes, com bom fogo para se aquecerem, e comida para se confortarem.
Não foram mais felizes as tropas francezas em Abrantes, do que o tinham sido em outras terras de Portugal; poucos comestiveis e poucos sapatos poderam ser fornecidos. A povoação fez o mesmo acolhimento que o resto do paiz; estupefacção no povo, e grandes agrupamentos de basbaques a admirarem a passagem dos rotos, descalços e famintos invasores, mas sem manifestação hostil; tal foi a attitude da recepção. Os francezes continuaram a roubar como nas terras por onde tinham passado; mas nesta cidade, e immediações, bem como pelas povoações próximas do Tejo, as ladroeiras tomaram uma feição comica, pelo assalto dos soldados aos pés dos portuguezes que passavam ou estacavam a ver os invasores; descalçavam-nos, tiravam-lhes os sapatos ou botas que logo enfiavam, se lhes serviam; no caso de não lhes servirem, atiravam com o calçado á cara dos seus primitivos donos. Ainda assim muitos soldados conseguiram apanhar bons sapatos e meias dos campinos. Tudo isto ia semeando odios, que só mais tarde, porém, haviam de dar resultado pratico.
O exercito francez invasor em Portugal
Apesar da nenhuma opposição que, até então, Junot tinha encontrado no povo, durante a sua marcha em Portugal, comtudo, chegado a Abrantes, procurou logo segurar a passagem do rio Zezere, para o que fez immediatamente occupar Punhete, hoje Villa Nova de Constancia; porém a passagem do Zezere tornou-se mui difficil, não porque houvesse da parte dos portuguezes quem se oppozesse a isso, mas por causa das grandes cheias, de modo que só se realisou, em parte, a 26 de novembro. No dia seguinte estava Junot na
Gollegã, e no dia 28 em Santarem e Cartacho.
Vendo que a unica resistencia, que continuava a ter, era a do hinverno, e que a entrada em Lisboa estava segura, procurou reunir na melhor ordem o maior numero de forças, que não attingiu comtudo 8:000 homens, e resolveu marchar a toda a pressa sobre Lisboa, quando, ali mesmo no Cartacho, soube que a faniilia real embarcára na vespera para o Brazil; já estava deitado o general quando recebeu esta noticia; o desespero que teve foi enorme; levantou-se meio nu, começou a dar soccos no ar, e a praguejar; então, para acalmar o touro, disseram-lhe que, com o vento que estava, não era possivel a esquadra sair a barra de Lisboa, o que de resto era verdade.
Pondo-se a caminho com a vanguarda do exercito, Junot julgou poder entrar em Lisboa no dia 29; mas não poude passar de Sacavem, onde chegou pelas dez horas da noite; este facto, das tropas não poderem vencer os 11 kilometros, que medeiam entre Sacavem e Lisboa, mostram bem o estado dos caminhos nos arredores da capital nesta epocha, e o estado de fraqueza em que se encontravam os invasores.
Mas se não poude nesse dia chegar a Lisboa, teve, comtudo, Junot a satisfação de receber os cumprimentos das auctoridades portuguezas, que expressamente foram de Lisboa ao seu encontro.
Entrada dos francezes em Lisboa
Retirando- se para o Brazil, o príncipe regente D. João deixara o governo do reino entregue a uma regencia, composta de: marquez de Abrantes, Principal Castro, Pedro de Mello Breyner, general Cunha e Menezes, general Xavier de Noronha, e na falta d'este o conde Monteiro-mor, e dois secretarios Salter de Mendonça e conde de Sampaio, e na falta d'este Miguel Pereira Forjaz. Os governadores do reino resolveram, logo, mandar ao encontro de Junot uma deputação, composta do tenente general Martinho de Sousa de Albuquerque e Alte, e do brigadeiro Francisco de Borja Garção Stockler, para cumprimentar o general francez em nome da regencia.
Ao encontro de Junot foi tambem uma deputação da maçonaria portugueza, composta de Luiz de Sampaio Mello e Castro, Diogo José Victo de Abreu, José Joaquim de Sampaio Mello e Castro, e Francisco Vellozo; esta commissão declarou que era aos bons officios da maçonaria portugueza, que se devia o acolhimento feito pelo paiz, e nenhuma resistencia, á entrada do exercito francez em Portugal, o que era uma grande fanfarronada; pois que a acção maçonica era insignificante sobre o povo das aldeias e dos campos, e nem as lojas maçonicas estavam ao facto da entrada dos francezes em Portugal. Junot, ou porque acreditasse no que lhe impingiram os discursos dos pedreiros livres, ou porque d'isso quizesse tirar partido, participou ao imperador Napoleão, que graças a elle, a maçonaria portugaeza tinha prestados grandes serviços, na conquista de Lisboa, e como recompensa solicitou instantemente para si a nomeação de grão mestre; mas nunca chegou a conseguir empunhar o malhete maçonico.
Apesar dos seus esforços, dos 8.000 homens, reunidos depois da passagem do Zezere, já haviam debandado tantos, que em Sacavem Junot não poude juntar mais de 1:500, e não se querendo demorar mais partiu para Lisboa, fazendo entrada por Arroyos, ainda com menor numero, porque muitos soldados cairam pelo caminho, uns prostrados de cançasso, e outros porque lhes deu na fraqueza a comida que encontraram n'esta ultima parte da sua jornada, ou porque cairam de bebedos; tal foi a entrada, dos enviados por Napoleão á conquista d'estes reinos, no dia 30 de novembro de 1807, em Lisboa; e, sem resistencia, a cidade de Ulysses se entregou aos poucos cavalleiros da triste figura capitaneados pelo general governador de Paris; a altitude do povo foi benevola ou indifferente, e grande o pasmo da gente que se encontrava por todo o caminho de Arroyos, Intendente, Mouraria e Rocio; á vista d'aquelles espectros macillentos, esfarrapados e descalços, muitas pessoas se compadeciam dos soldados, e lhes davam boccados de pão e canecas de vinho.
Onde morou Junot em Lisboa
Os governadores do reino tinham tomado disposições para aquartelar as tropas, que successivamente, durante muitos dias, foram chegando á capital, e fornecer-lhes mantimentos; e mandaram que no Arsenal do Exercito, com a maior urgencia, se apromptassem milhares de sapatos. Mandaram pôr ás ordens de Junot as carruagens da casa real, com os respectivos creados, e determinaram que ficassem á disposição do general francez, o palacio da Bemposta, o palacio de Jacome Ratton na rua Formosa, e o palacio de João Pereira Caldas.
A regencia desejava alojar no palacio real da Bemposta o general Junot, mas este, que sabia quaes eram os ricos homens d'esta nobre capital, tomou a resolução de ir aquartelar-se no palacio do barão de Quintella, na rua do Alecrim, no que teve bellissima inspiração, pois o barão hospedou-o com a maior magnificencia e esplendor; apesar d'isso o governador de Paris exigiu que o senado de Lisboa lhe desse por mez 12:000 cruzados (4:800$000 de réis), e, a titulo de emprestimo, lançou sobre a cidade o tributo de dois milhões de cruzados (800:000$000 de réis), que foram pagos, principalmente, pelos commerciantes.
Depois da entrada de Junot em Lisboa com uma pequena força, tinham vindo chegando todos os dias mais tropas francezas que foram distribuidas pela cidade, e arredores, Cascaes, Cintra, Mafra, Torres Vedras, Peniche, Santarem, etc. Ao mesmo tempo os hespanhoes occuparam parte do Alemtejo e Algarve, Porto, e outras terras. Todas estas forças chegaram a attingir perto de 50:000 homens.
Subserviencia da regencia e insolencia de Junot
Apesar da subserviencia da regencia, e dos continuados obsequios tributados pelos governadores do reino a Junot e seu exercito, tendo-o até feito
acompanhar, de Sacavem a Lisboa, por um esquadrão de policia a cavallo, e recebido em Arroyos com uma guarda de honra composta de um regimento de infanteria, e dois esquadrões de cavallaria, e de lhe darem palacios, quarteis, viveres, dinheiro, etc, o arrogante e vaidoso commandante em chefe do exercito francez, começou a tratar insolentemente os governadores do reino, e a introduzir novos elementos seus, no governo, começando por collocar lá Hermann como commissario, e depois como administrador das finanças, até que por fim, por decreto de 1 de fevereiro de 1808, foi nomeada nova regencia composta de Junot, Hermann, Pedro de Mello Breyner, Azevedo, Lhuitte, Castro, Vienez Vaublanc e conde de Sampaio.
Attractivos da musica
Pelas 8 horas da manha de uma segunda feira, 7 de dezembro de 1807, um grupo de trez officiaes do exercito francez, dirigia-se para o convento da Esperança, para os lados da portaria, com o fim de encommendar uma porção de pasteis, dos famosos bons bocados, que muito lhes tinham gabado, e que eram uma especialidade da conservaria das freiras d'este convento; primoroso manjar, que chegou aos nossos dias, cuja receita de fabricação se transmittiu através os seculos, sem alteração, até á ultima freira, e que acabou e se perdeu, com a morte da ultima moradora n'aquelle mosteiro, como se perderam tantas outras, de preciosas gulodices que se faziam em muitos conventos de Portugal, acabando, com a extincção das ordens religiosas, a perfeição com que se faziam aquellas maravilhas, e que a habilidade das mais afamadas conservarias não tem conseguido, até hoje, nem de longe, imitar.
Tendo-se approximado da porta da egreja ao atravessar o largo do adro, uma musica suave e encantadora, de vozes femininas, cantando com acompanhamento de orgão, deteve aquelles officiaes: o effeito da musica é, ás vezes, surprehendente, e excede até, em certos momentos, o que d'ella pode esperar o auctor que a compoz; concorrendo, tambem, em grande parte, para a sua acção psychologica, a especial disposição do espirito dos que a ouvem.
Attrahidos por aquellas encantadoras melodias religiosas, os trez companheiros entraram na egreja, a qual continha n'essa occasiào pouca gente.
Os trez officiaes eram muito jovens, e pertenciam ao 2.° batalhão do 70 de infanteria da divisão do general Laborde; o mais velho, já capitão, tinha 24 annos de edade, chamava-se Raoul de Remigny; os companheiros, de 22 e 21 annos apenas, eram Pierre Dufourcq, e Andre Chéviot.
O capitão Raoul de Remigny
Raoul de Remigny era nobre; seu pae Antoine Henri de Remigny tinha sido guilhotinado em Paris, com 46 companheiros, entre os quaes sua avó Susanne Thereze Séguier, veuve Remigny, e outras damas illustres, na praça do Throne renversé, em 4 de thermidor, anno II da republica franceza; (22 de julho de 1794); elle proprio Raoul estivera detido com sua mãe no convento des Oiseaux. Foi o que lhe valeu.
No tempo do Terror, em França, estar encerrado na prisão des Oiseaux, era uma especie de probabilidade de seguro contra a guilhotina. Ali se achavam detidas muitas mulheres de familias ricas, que pagavam largamente a sua forçada hospedagem. Era este interesse, do que rendia o sustento de prisioneiros abastados, com bens fóra de França, que os protegia, conservando-os ali semnelles se falar. Entretanto a fouce da febre revolucionaria já ameaçava os reclusos dos Oiseaux, quando rebentou a revolução do 9 thermidor (27 de julho de 1794), que produziu a queda de Robespierre, o qual foi guilhotinado no dia seguinte com muitos dos seus partidarios, ficando anniquillada a Commune de Paris que o sustentava, e victoriosos os seus inimigos da Convenção nacional. Era o fim do terror. Dentro de poucos dias se abriram as prisões, ficando livres muitos dos presos politicos que ali gemiam, receando a todo o instante serem conduzidos ao cadafalso. Assim se acharam livres Raoul de Remigny, contando então apenas 11 annos, e sua mãe.
Terminado o terror, veiu o Directorio, com a original e caracteristica indole, que apresentava nesta epocha a sociedade franceza, de allivio e desejos de gozar, como quem sae e desperta de horriveis pesadelos, ao mesmo tempo que, no exterior, a França continuava com as suas victorias, que o genio de Bonaparte ia elevar ás maiores alturas da gloria, que foram o verdadeiro refugio, a que se acolheram todos os francezes amantes da sua
patria, e aos quaes não era facil achar outro modo de vida, que não fosse a carreira das armas.
Obedecendo a esta corrente, e á sua vocação, Raoul, aos 16 annos, assentou praça; e no seguimento das campanhas em que, pela sua bravura extraordinaria, obteve rapidamente a subida de postos, tendo feito as campanhas de Italia e Egypto veiu, já como capitão de infanteria do exercito da Gironda, que invadiu Portugal, sob as ordens de Junot.
Os tenentes Chévíot e Dufourcq
Os seus dois amigos e companheiros eram tenentes: Chéviot, era filho de um commerciante de pannos da rua Meslay, que achara meio de se enriquecer no meio das grandes perturbações da revolução, chegando a comprar varios castellos, confiscados a nobres emigrados, por insignificantes quantias, do depreciado papel moeda (assignats). Quanto a Pierre Dufourcq era difficil dizer d'onde vinha; era filho das ruas de Paris; gaiatito de 4 annos na tomada da Bastilha em 1789, tinha depois seguido todos os movimentos populares e revolucionarios, applaudindo sempre os novos acontecimentos, pois nada tinha a perder, e sempre a ganhar, com grande pena de que a sua juventude lhe não permittisse figurar de guarda nacional, e sobretudo de official municipal e membro da communa; mas sendo sempre rapaz do seu tempo, apesar dos horrores dos excessos da revolução, conservara sempre um fundo de bom coração, que as más companhias não conseguiram estragar; assentara praça em 1802, e vinha como tenente no exercito invasor.
Assim a amizade e a camaradagem reuniam o nobre, o burguez e o jacobino, que o genio das Batalhas de Napoleão tinha englobado no mesmo corpo do exercito, e até no mesmo batalhão.
Encantos de uma melodiosa voz
Entrando-se na egreja pela porta do largo, ficava á esquerda o coro. Havia apenas poucos instantes que tinham penetrado na egreja os trez officiaes, quando cessou o coro, e uma voz de um timbre encantador, pastosa e sentimental, cantou um solo, de uma melodia simples e elevada, que era de incutir um sentimento de extase, capaz de impressionar o mais refractario á acção da musica religiosa. Até o jacobino e antigo gaiato de Paris, Dufourcq, então tenente do imperial exercito de Bonaparte, ficou pasmado de si proprio. Emquanto a Raoul a impressão foi profunda; affectado o seu coração e a sua alma religiosa, como que se achou, de subito, invadido por um amor mystico, que o fazia ter os olhares fixos sobre a grade do coro, conseguindo descobrir na freira cantora, que se aproximára da grade, á vista do luzir dos uniformes, dois olhos, cujos raios, dardejando sobre os seus, completaram o que a voz tão fortemente começára.
Findos os cantares, em louvor da Senhora da Conceição, cuja festa se celebrava no dia seguinte, veiu uma missa para um altar lateral. Com o pretexto de ouvir missa, Raoul, que não podia resolver-se a tirar os olhos da grade, deixou-se ficar. Os dois camaradas, porém, saíram da egreja, e vieram esperal- o para o adro.
Como os offíciaes francezes acharam no convento da Esperança com quem falar francez
Já, porém, havia terminado a missa, e saido as poucas mulheres de capote e lenço, e alguns velhos, e trez ou quatro pobres, que lá estavam, e Raoul não apparecia. Os amigos resolveram então ir buscal-o á egreja, para irem á portaria comprar os pasteis, cuja acquisição tinha sido o fim d'esta visita ao convento da Esperança, e deram com elle ao pé da grade de ferro, atraz da qual estava o iman vivente que o attrahia. Arrastado pelos companheiros, dirigiu-se com elles para a roda, chamando a rodeira, que logo lhes veiu perguntar o que queriam.
Nenhum dos offíciaes sabia falar portuguez; estropiavam algumas palavras do idioma de Camões.
Mas logo ás primeiras tentativas, feitas para explicarem o que desejavam, a rodeira, com grande surpreza dos seus interlocutores, lhes respondeu em francez.
A rodeira, a quem chamavam a madre Brissac, era de origem franceza; era uma mulher de 60 annos, gorducha e ainda frescalhota. Seu visavô tinha vindo, ainda muito criança, para Portugal, em 1666, no sequito da rainha D. Maria Francisca de Saboya.
Em vista do inesperado interprete, a conversação, entre os officiaes e a freira, pegou com força e generalisou-se. Não perderam os francezes occasiao de indagar quem era a soror, que tinha tão celestial voz, que, em religiosas melodias, até encantava os filhos da revolução que tinha guilhotinado tanta gente, sob o pretexto de perfilharem um catholicismo mais firme, a que então chamavam fanatismo. Mas o mais singular é que não foi Raoul, o já apaixonado e amoroso, sem saber de que physionomia, quem manifestou essa bem natural curiosidade, mas sim o jacobino amigo Pierre Dufourcq; ficaram assim sabendo que a maviosa cantora era soror Maria da Misericordia.
Soror Maria da Misericordia
No seculo chamava-se, o objecto do repentina amor de Remigny, Maria de Castro, e era filha natural de um fidalgo. Era uma belleza, em toda a extensão de palavra; physionomia sympathica; grandes olhos negros; a tez de uma alvura rara, poucas vezes apresentava algum rubor no rosto; cabello castanho escuro em muita abundancia e grande comprimento, dentes branquissimos, bem unidos e iguaes; uns labios rosados e finos, o sorriso com um tom ligeiramente melancolico; alta e esbelta. O corpo era esculptural. Tinha completado 25 annos.
Creada desde pequena no convento, tinha professado naquelle anno, tomando o habito de Santa Clara. Tinha tido uma educação esmerada, que se pode mesmo dizer extraordinaria para a epocha. Falava francez, cantava, e tocava orgão e cravo. Habil nos trabalhos de costura e bordados, não o era menos na arte de conservaria; os pasteis, que preparava, eram a ultima palavra no genero d'esta gulodice.
O que mais seduziu no momento, entre as prendas de soror Maria da Misericordia, foi o falar francez, o que induziu os tres amigos a pedirem conversa na grade, o que obtiveram nessa occasião sem difficuldade.
Como era justificado o bom acolhimento que as freiras fizeram aos officiaes francezes
O apparecimento de soror Maria da Misericordia, na grade, foi um deslumbramento para os ofiiciaes francezes. Se não ficaram todos apaixonados, todos ficaram encantados. A recepção não podia ser mais cordial por parte das freiras. Havia ainda apenas oito dias que os francezes tinham entrado em Lisboa; o acolhimento com que eram recebidos, especialmente pelas classes mais elevadas, era muito affectuoso.
Os governadores do reino e as auctoridades subalternas, bem como o alto clero, á porfia se esforçavam em recommendar aos portuguezes que, de braços abertos, e com o maior enthusiasmo, recebessem os enviados do grande Napoleão, que tudo que fazia era bem feito.
As pastoraes do Patriarcha D. José Francisco de Mendonça, do bispo do Algarve inquisidor geral do reino, D. José Maria de Mello, e a do bispo do Porto, D. Antonio José de Castro, sobresaiam entre as dos outros prelados do reino, pela força de enthusiasmo, com que exhortavam as suas ovelhas a bem acolher os lobos gaulezes, que sob o commando de Junot, e por ordem do imperador dos francezes e rei de Italia, Napoleão o grande, que Deus tinha destinado para amparar e proteger a religião, e fazer a felicidade dos povos, invadiram Portugal para esse fim, promettendo o general Junot até que, de futuro, o Algarve havia de ter o seu Camões, a Beira outro, e assim successivamente cada uma das outras provincias.
Dizia-se mesmo que na familia, de que soror Maria da Misericordia era um ramo illegitimo, havia prelado que se tornára notado, pelos seus excessos a favor dos invasores. Para não assustar as freiras, dizia o bispo inquisidor-mór na sua pastoral, entre outras coisas, que... a religião e os seus ministros seriam sempre respeitados, e que não seriam violadas as clausuras das esposas do Senhor... O bispo do Porto, D. Antonio José de Castro, depois patriarcha eleito, que Roma, porém, nunca confirmou, allegando o pretexto de ser filho natural da casa dos condes de Resende, dizia na sua pastoral, entre outros dythirambos a favor dos francezes... Os templos estão cheios d' estes militares que edificam, e que por tudo isto nos põem interiormente na necessidade de os amarmos como proprios filhos, e na obrigação de exteriormente darmos testemunho publico da nossa satisfação e do seu merecimento...
Estavam, pois, officialmente justificadas as filhas de Santa Clara, de acolherem, com a maior benevolencia, os enviados de Bonaparte, com os quaes, de mais a mais, podiam conversar em francez, colhendo noticias, que a sua curiosidade avidamente absorvia, e que em epochas agitadas, como as que vinham correndo havia vinte annos, despertavam interesse e emoção no mais alto grau.
Em como Cupido pode arremessar as suas setas mesmo através de uma grade
Se Raoul de Remjgny estava já apaixonado por soror Maria da Misericordia, a impressão, que, sobre esta, produziu o joven capitão do exercito francez, foi ainda maior; foi fatal. As condições da vida ascetica exaltam ás vezes, as paixões, levando-as ao paroxismo, sem as distracções mundanas, que muitas vezes as attenuam, e até mesmo chegam a extinguil-as, ou a fazel-as mudar de objecto.
Duas horas durou esta primeira grade, em que a conversação se manteve, quasi sempre a cinco, entre duas freiras e trez militares, nos termos os mais dignos e correctos. Por vezes era commovedora, quando Raoul narrava a subida ao cadafalso, no mesmo dia e na mesma fornada, de seu pae, sua avó, com a velha e nobre marechala de Noailles, a duqueza d'Ayen, general De-Flers, e tantos outros; a prisão de sua mãe e a d'elle; a vida durante o terror em França; emfim, os episodios d'essa epocha grande e terrivel, que se chama a revolução franceza; e, emquanto Cheviot mettia a sua fala tambem, enumerando os abusos da velha sociedade que a revolução demolira, Dufourcq amenizava a conversa com os seus ditos engraçados, procurando mostrar, que se não deviam admirar que a Revolução guilhotinasse os nobres, quando fizera o mesmo aos plebeus, seus proprios filhos, e que as glorias dos exercitos francezes faziam esquecer os males passados.
E assim terminou esta primeira entrevista, retirando-se os officiaes francezes, com o seu fornecimento de doces, que generosamente pagaram, o que de certo era um grande contraste com o que devia produzir-se tantas vezes com os seus camaradas, que usavam e abusavam das requisições de comestiveis, bebidas e objectos de uso domestico, com que vexaram os habitantes d'estes reinos.
Varias vezes voltaram á grade do convento, Cheviot e Dufourcq. Emquanto a Remigny, todos os dias, quando o serviço o não impedia, se dirigia ao convento, falando á grade, sempre que isso lhe era permittido. E assim, soror Maria e o capitão Raoul, foram alimentando reciprocamente uma paixão que os absorvia. Muitas vezes, na occasião em que chegava ao convento, não podia soror Maria vir á grade; então estava na igreja longo tempo; era o mais assiduo frequentador; por isso tambem não tardou a dar nas vistas, não só da communidade, que ficou sabendo que andava mouro na costa, mas de certas mulheres, e mendigos, frequentadores permanentes, então, e ainda hoje, das igrejas.
O que fôra antes o mosteiro da Esperança
O convento da Esperança onde se escondia esse astro brilhante, que prendia, com as suas amorosas attracções, o filho do guilhotinado da fornada do 4 thermidor, tinha-se tornado celebre e historico, por ali se ter recolhido, em 21 de novembro de 1667, a rainha I). Maria Francisca de Saboya, mulher do rei D. Affonso VI, emquanto se preparava a cabala que havia de depor o pobre rei e esposo, dos seus direitos de monarcha e de marido, em favor de seu irmão, que veiu a governar estes reinos, primeiro como regente, emquanto vivo D. Affonso VI, e depois como rei com o nome de D. Pedro II.
Primitivamente, o mosteiro fôra apenas um recolhimento de senhoras nobres, fundado no seculo XVI, por D. Isabel de Mendana, e dedicado á Virgem da Piedade, no sitio da Boa Vista, que, nesta epocha, abrangia todo o espaço que corre na encosta do monte de Santa Catharina, junto á margem do Tejo, desde S. João Nepomuceno até Santos.
O sitio da Boa Vista
No seculo XVI e ainda no seguinte, as aguas do Tejo chegavam á rua hoje chamada da Boa Vista, largo do conde de Barão e rampa de Santos. Havia nesta parte da margem do Tejo grande movimento de construcções navaes. No largo do Conde Barão ha tres casas, ou palacios, que apresentam signaes de muita antiguidade; o dos Condes-Barões de Alvito, (Lobos da Silveira), tornejando para a rua dos Mastros, onde moraram durante longos annos os donos, que deram o nome ao largo, que ainda dura, e passou depois a ser habitação dos barões de Villa Nova de Foscoa (Campos Henriques); O palacio contiguo tornejando para o lado occidental da rua das Gaivotas, chamada do Outeiro de Santa Catharina no seculo XVII, que pertencera aos Almadas, provedores da Casa da India, foi depois residencia do visconde de Trancoso, (Bartholomeu da Costa Macedo Geraldes Barba de Menezes); esteve muitos annos nelle estabelecido o Collegio Europeu, e acha-se hoje occupado pelas officinas typographicas da Companhia Nacional Editora, de que é propriedade; e o palacete que torneja para o lado oriental da rua das Gaivotas, para a qual tem o portão principal e outras portas de entrada, e que foi do alcaide mór de Torres Vedras, D. João Soares de Alarcão, e nelle está hoje a escola central n.° 2. Este ultimo palacete é historico. Tendo rebentado, em 1 de dezembro de 1640, a revolução que pôz termo á dominação hespanhola e acclamou rei, com o nome de D. João IV, o duque de Bragança; o proprietario d'esta casa não aceitou a nova ordem de cousas, não querendo reconhecer o novo rei, como alguns outros portuguezes. Logo se armou uma conspiração contra D. João IV. Alguns dos conjurados reuniam-se secretamente, segundo a tradição, em um grande sótão, que ainda hoje se vê, por cima do grande salão do andar nobre da dita casa.
O mau exito da conspiração, cujos principaes auctores, o duque de Caminha, o marquez de Villa Real, o conde de Armamar, e outros cumplices, foram executados no Rocio, a 29 de agosto de 1641, poz termo aos conciliabulos do palacete do largo do Conde Barão. O alcaide mór de Torres Vedras, D. João de Alarcão, um dos conspiradores, conseguiu fugir para Hespanha, onde foi militar nos exercitos de Filippe IV contra Portugal.
Em consequencia da conspiração, e fuga de D. João de Alarcão, o predio foi confiscado pelo tribunal chamado da represalia, especialmente estabelecido para os sequestros dos bens dos conspiradores. Rendia este palacete então 54$000 réis,dos quaes abatendo 2$000 réis de censo, que a propriedade pagava, annualmente, á irmandade de Nossa Senhora de Lantigua estabelecida na parochial de Santa Catharina, ficavam 52$000 réis, que, mais tarde, a rainha regente, D. Luiza de Gusmão, na menoridade de D. Affonso VI, mandou, por alvará de 30 de janeiro de 1658 dar a Francisco de Brito Freire, por serviços prestados ao Estado. Este Brito Freire arrendou o palacete por 100$000 réis annuaes, durante 20 annos; descontando-se-lhe a tença annual de 52$000 réis.
Pelo tratado de paz de 13 de fevereiro de 1668, assignado entre Portugal e Castella, se estipulou a restituição dos bens confiscados aos portuguezes desde a revolução de 1640. Em virtude de tal clausula, foram restituidas as casas da Boa Vista a de D. João Soares de Alarcão, bem como os morgados annexos de Torres Vedras, Alemquer e Valle de Cavallos, e, por fallecimento do proprietario, ficou successor seu filho D. Francisco Soares de Alarcão.
Pouco gosou D. Francisco, da restituição dos morgados a seu pae, pois se viu logo a braços com uma demanda, que lhes puzeram os condes de Avintes, demanda que perdeu, passando para estes o predio do largo do Conde Barão.
D. Francisco Soares de Alarcão tinha acompanhado seu pae a Castella, e lá servira, e herdara os titulos de conde de Torres Vedras e marquez de Turcifal, conferidos por Filippe IV a D. João Soares de Alarcão 8.º alcaide mór de Torres Vedras.
O conde de Avintes, D. Antonio de Almeida, era filho de D. Izabel de Castro, sobrinha de D. João de Alarcão. Reclamava a posse dos morgados, acusando D. João de Alarcão de traidor á patria, e desleal ao rei de Portugal, e egualmente ao filho D. Francisco de Alarcão, por ter servido o rei de Castella, e d'este ter aceitado mercês, sem licença do rei de Portugal, e como tal ser incapaz de succeder nos morgados.
Tambem figuravam no mesmo processo, a marqueza de Fuente al Sol, irmã de D. Francisco de Alarcão, reclamando para si os morgados, dizendo ser aleijado e de incapacidade physica seu irmão, e a condessa de S. Miguel, D. Cecilia de Tavora e Soares, allegando ser filha de D. Isabel de Castro, e ter appellido de Soares, que não tinha a condessa de Avintes, e ser natural de Castella a marqueza.
Correu o processo pejo juizo e provedoria de orphãos e ausentes, e depois pela casa da supplicação e aggravos, figurando D. Francisco de Alarcão como auctor, porque o conde de Avintes tinha-se apoderado do palacete, pela força das armas, vencendo o conde de Avintes a demanda por sentença de 18 de agosto de 1673, na 1.ª instancia, confirmada pela casa da supplicação, e regeitados os embargos em 29 de maio de 1677; assim conseguiu desalojar seu primo, e annular, judicialmente, os effeitos do tratado de 1668.
O conde de Avintes subrogou este prédio, desanexando-o do morgado de Torres Vedras, por 100$000 réis, em juros de padrões reaes de 20 ao milhar, ao inquilino Francisco de Brito Freire, precedendo licença do principe D. Pedro regente na menoridade de D. Affonso VI, por alvará de 26 de agosto de 1679.
Este predio que teve successivamente muitos possuidores, por heranças e por vendas, sendo comprado por 7:400$000 réis, em hasta publica, em 28 de setembro de 1846, por D. Luiza Driesel a D. Anna Magdalena Pereira, viuva de Francisco Pereira Paulino; coube em partilhas a seu filho Francisco Adolpho Driesel, e, por morte d'este, a siia irmã D. Rosalia Driesel, a qual o deixou, em testamento, a sua sobrinha D. Paulina Benevides.
Não se sabe quando foi construido este palacete. Sabe-se, porém, que já era velho, e carecia de obras, em 1641. Apesar de ter, provavelmente, trez seculos de existencia, é ainda, no que tem dos tempos antigos, uma construcção de immensa solidez que tem, como divisorias, valentes paredes mestras, como hoje se não fazem.
Os negociantes de Lisboa offerecem um collar de diamantes á esposa de Junot
Quando os francezes invadiram Portugal, pertencia o predio ao negociante Francisco José Pereira, por o haver comprado, em hasta publica por 20:700$000 réis, em 28 de fevereiro de 1805, a D. Isabel Joaquina de Castro, viuva de Martinho Antonio de Castro Alvellos Guimarães.
Francisco José Pereira casou com D. Ludovina Benedicta Ciriaca do Carmo, a qual herdou o predio por morte de seu marido, o qual falleceu, sem geração, em 6 de agosto de 1827, tendo feito testamento, em que instituia sua mulher testamenteira e universal herdeira, com obrigação de varios legados.
Logo desde o principio da occupação de Lisboa pelos francezes, se estabeleceram relações amigaveis entre esta familia e algumas das auctoridades francezas, as quaes procuravam, por proprio interesse, como era natural, ligar-se com negociantes ricos, capitalistas, grandes proprietarios, e influentes, com quem desejavam estar em boas relações.
Entre outros frequentavam a casa de Francisco José Pereira, na Boa Vista, o general Laborde, o general Thomiéres e sua mulher, o general Foy e sua esposa, Herrmann ministro das finanças de Junot, o capitão Remigny, o coronel Boyer, Geouffre, cunhado da esposa de Junot, etc.
No grande salão, por baixo do sótão, onde haviam tido seus conciliabulos os conspiradores de 1641, então restaurado havia poucos annos, e cujas paredes e tecto tinham pinturas attribuidas a Wolkmar Machado, representando figuras e emblemas musicaes, houve, por diversas vezes, saraus e concertos em que figuraram o tenor Mombelli, as damas Esther Mombelli, Eufemia Eckart do theatro de S. Carlos, a celebre amadora Maria Benedicta de Brito e Cunha, que reproduzia nas salas, o brio e a energia do canto da Catalani, mas, segundo diziam, ainda com mais expressão, o trompa Lenzi, o oboe Ferlendis, o flautista Rodil, rebequistas Galdino e Filippe e o violoncellista Jordàni, etc.
Junot, não contente com ter, a titulo de contribuição, obtido da cidade de Lisboa 800:000$000 réis, pagos pelo corpo de commercio, e uma mesada de 4:800$000 réis paga pelo senado, e da junta real do commercio mais de 80:000$000 réis, ainda, a titulo de agradecimento, por elle ter obtido, do imperador Napoleão, que fosse permittida a exportação do algodão armazenado neste paiz, conseguiu que a corporação dos negociantes de Lisboa offerecesse, á duqueza de Abrantes, esposa de Junot, um collar de diamantes.
Foi o cunhado da duqueza de Abrantes quem, por intervenção de D. Ludovina, induziu o negociante Francisco José Pereira, a angariar, entre os seus collegas, os fundos precisos para comprar o collar, que devia ser offerecido á duqueza de Abrantes, a qual tinha dado á luz um filho, que foi afilhado do imperador Napoleão.
Foi o barão de Quintella, então o contratador geral dos diamantes, em Portugal, e muito entendido neste artigo, quem escolheu as pedras; eram 21 diamantes grandes e de muita belleza, e que elle poude reduzir no custo aos compradores; foi no valor de 70:000$000 réis, segundo a avaliação do contraste Roberto de Sousa, ourives de ouro com loja no seu arruamento.
Foi esta dadiva remettida para Paris, onde então se achava a mulher de Junot.
Diz a duqueza de Abrantes, nas suas memorias, que estas pedras não chegaram a ser engastadas em collar, por que Junot receiava que isso ainda mais atiçasse o ciume das mulheres da côrte de Napoleão, e o odio e inveja dos seus camaradas, que já não eram em pequeno grau.
D. Ludovina apenas sobreviveu um anno a Francisco José Pereira, fallecendo em 7 de novembro de 1828, deixando a sua fortuna, em que se comprehendia o palacete do largo do Conde de Barão, a seu enteado Francisco Pereira Paulino, filho de seu primeiro marido.
Belleza do sitio da Esperança em antigos tempos -- O que deu o nome ao Mosteiro
Toda esta parte occidental da cidade era, nos seculos XVI, XVII e XVIII, de incomparavel belleza, com uma vista encantadora sobre o rio Tejo, cujas aguas vinham ali bater muito perto, desembaraçada de obstaculos que cortassem o panorama do rio e da outra Banda, com grande movimento ascendente e descendente de pequenos barcos, e muita animação de commercio e construcções navaes. Para o lado de terra, ao noroeste, o sitio da Esperança, Poço dos Negros e S. Bento, com muitas hortas e quintas, formavam um agradavel e aprasivel sitio, que bem mereceu por tudo isso o nome de Boa Vista, que chegou aos nossos dias.
Os maritimos da localidade estabeleceram, na egreja do Mosteiro da Piedade, uma irmandade com a invocação de Nossa Senhora da Esperança titulo que prevaleceu sobre o anterior e durou até aos nossos dias, dando tambem o nome ao sitio. D. Joanna d'Eça, camareira da rainha D. Catharina, mulher de D. João III, reedificou a casa, e a rainha addicionou-lhe ou outro corpo de edificio para seu retiro, com porta de communicação para o coro. A ordem era de franciscanas, da segunda regra de S. Francisco. Chamou-se de Santa Clara, por ter sido esta a primeira freira, da ordem, em 1212.
Entrando no largo da Esperança, via-se em frente, olhando para o norte, um pouco á direita, a porta da egreja, com o adro, tendo as paredes revestidas de bonitos azulejos, representando figuras e ornatos architectonicos. Contiguo á egreja, para a esquerda, corria um muro muito alto, tendo no extremo occidental o portão do pateo do convento. Ao poente, na parede lateral de um predio da rua da Esperança, estava, e ainda se conserva, um chafariz construido no seculo XVIII pelo engenheiro militar e architecto Carlos Mardel. Do lado oriental ficavam uns casebres com janellas de sacada, dependencias do convento, que chegavam até á esquina da rua do Poço dos Negros.
Na epocha (1807) em que se passam os acontecimentos que vamos descrevendo ficava ali perto, ao sudoeste, atravessando o caes do Tojo, á esquerda da calçada do Marquez de Abrantes, e ladeando a quinta do palacio do Marquez ao sul, a praia de Santos, com a sua animação maritima de construcções navaes, com uma floresta de fragatas do Tejo, varinos e botes. Mais para o poente, junto ás tercenas, ficava o caes de Antonio Pereira, que apenas havia seis annos que fôra construido, como se vê em uma lapide com a data de 1801, que ainda lá existe. Este caes e praias acham-se hoje absorvidos pela rua 24 de Julho.
Recordações da rainha D. Maria Francisca de Saboya
Quando eu entrava na egrcja, ou no mosteiro da Esperança, frequentemente me adejava á lembrança a formosa rainha D. Maria Francisca de Saboya, chamada em solteira mademoiselle d'Aumale, mulher de D. Affonso VI, que a esta casa se recolhera, quando se quiz divorciar do esposo para se ligar ao cunhado, que foi o rei D. Pedro II. D'este convento escreveu a rainha duas cartas, que enviou, uma ao rei, outra ao Cabido da Sé de Lisboa, em que declarava que D. Affonso VI se não havia satisfeito d'ella, nem consummado o matrimonio, e pedindo, e mostrando hypocritamente desejos, de se retirar para França.
Fui encontrar estas duas cartas originaes, assignadas pela Rainha, no British Museum, em Londres, na collecção dos manuscriptos portuguezes. Como iriam parar áquelle precioso archivo de antiguidades, em Londres, estas cartas? Suppõem alguns que teriam sido obtidas, e enviadas para Inglaterra, pelo embaixador inglez em Lisboa que era então Robert Southwell. Parece que a rainha tinha assignado varias copias das mesmas cartas. No cartorio do mosteiro de S. Vicente, hoje na Torre do Tombo, encontram-se copias d'estas cartas, que fazem, porém, uma pequena differença.
É sabido que, depois de um processo escandaloso, se deu por provado, que Affonso VI não consummára o matrimonio com Maria Francisca de Saboya, se lavrou sentença de nullidade em 24 de março de 1668, proclamando-se o divorcio, e em 2 de abril se realizou o casamento com o cunhado, o principe D. Pedro, que ficou regente em nome de D. Affonso VI, o qual foi deposto e preso, ficando desde 1669 a 1675 encerrado no castello de Angra na ilha Terceira, d'onde o trouxeram para os paços de Cintra, onde ficou detido até morrer em 1683. Desde 21 de novembro de 1667 até 2 de abril de 1668 residiu a rainha no mosteiro da Esperança, não se casando porém aqui, mas sim na capella do palacio de Alcantara.
Demolição do convento da Esperança -- inauguração da rua de D. Carlos em 1889 -- Quadros e azulejos do mosteiro offerecidos, pelo municipio, ao museu de Bellas Artes e ás escolas industriaes.
Depois do fallecimento da ultima freira, o convento da Esperança foi demolido, para a abertura da rua de D. Carlos, que liga o Aterro ou rua 24 de Julho, com o largo das Côrtes, e que foi inaugurada em 1889. Em troca d'esta obra dos edis de Lisboa, o governo deu á camara os restos do edificio, que ficou cortado pela passagem da nova rua, exhibindo-se, por muito tempo, este corte, atravéz da igreja, claustros e dependencias do mosteiro, á vista do publico. Actualmente acha-se ali installado o deposito de material do serviço municipal de extincção de incendios.
No interior do mosteiro havia lindos quadros em relevo, um dos quaes representava Santa Clara, no primeiro plano, de corpo inteiro, e muitas figuras ao longe, esculpidos e cobertos de pintura ou esmalte sobre uma massa, especie de alvenaria, na propria parede em que se achavam. Graças aos esforços do architecto da camara, José Luiz Monteiro, foram tirados os quadros, em 1891, sem maior deterioração, e remettidos para o museu de Bellas Artes. Um d'estes quadros tinha na parte posterior a data de 1560.
Na casa do capitulo havia, sobre o arco, duas bellas figuras de mulheres com azas, tendo uma na mão alguns pregos, e a outra um martello: estavam tambem esculpidas em uma especie de alvenaria, que fazia parte da parede: datavam do anno 1600. Antes que se perdessem, pela demolição, fiz tirar algumas reproducções em gesso, pelo formador Guido Lippi, as quaes mandei para algumas das escolas industriaes, que estavam sob a minha inspecção n'essa epocha.
Era immensa a profusão de azulejos que havia no interior do mosteiro da Esperança; muitos formavam quadros, de varias cores, alguns muito lindos, representando figuras, vasos, flores e ornatos diversos. Além d'isso, havia muitos, mais ordinarios, que guarneciam as paredes dos claustros, desde o chão até certa altura. Na maior parte pareciam datar do seculo XVII. Por proposta de Manuel de Castro Guimarães, encarregado dos pelouros das obras e fazenda da cidade, membro da commissão administrativa do municipio de Lisboa, resolveu esta commissão ceder, ás escolas industriaes, uma parte dos azulejos que guarneciam as paredes interiores do extincto convento.
Em harmonia com esta resolução, combinei com o architecto Luiz Monteiro a distribuição a fazer das collecções de azulejos, tanto dos que formavam quadros inteiros e completos, como dos que constituiam as guarnições, nas paredes, e remetti essas collecções, devidamente encaixotadas e embaladas, para as escolas industriaes da circumscripção do norte, e para os museus industriaes e commerciaes de Lisboa e Porto, partilhando assim do donativo municipal todos estes estabelecimentos.
Mau procedimento dos francezes -- Reacção popular contra elles -- Portuguezes partidarios dos francezes -- A condessa da Ega -- A legião do marquez de Alorna.
O procedimento dos francezes em Lisboa, bem como nas provincias, foi, em geral, antipathico. Destruição de objectos valiosos; numerosos roubos, á força, ou disfarçados; implicação com os portuguezes; troça dos seu habitos, principalmente das praticas religiosas; violencias, insultos e obscenidades descaradas com as mulheres; eis uma amostra da attitude dos invasores, para com os que tão benevolamente os tinham acolhido a principio. Por isso tambem a reacção começou logo. Até nas mesmas lojas maçonicas se produziu um reviramento contra os francezes, entre os affiliados, que se tinham a principio mostrado favoraveis aos invasores.
Mas antes de se desenvolverem em Lisboa symptomas de animadversão contra os francezes, a qual havia de ir successivamente augmentando, já nos campos e povoações ruraes, por onde elles tinham passado, se tinha manifestado a reacção popular contra os enviados de Napoleão, sendo os campinos do ribatejo os que iniciaram o movimento, isolado e individual, é verdade, mas que não deixava de ter importancia principalmente como-symptoma do despertar do patriotismo. Os roubos dos sapatos, e outras violencias dos soldados de Napoleão, tinham deixado nas victimas o germen do odio, que em poucos dias irrompeu terrivel, sendo espancados e massacrados muitos francezes, que, isolados, ou em pequeno numero, caíam nas mãos dos campinos, e outros populares, dos campos visinhos do Tejo.
Esta reacção contra os francezes, por então, só se manifestou no povo. Nas auctoridades constituidas, no alto clero, no Senado, na Academia das Sciencias, nos grandes negociantes, etc, encontravam os invasores a maior subserviencia e adulação. Até a Academia das Sciencias enviou a Junot uma deputação, pedindo-lhe para ser seu presidente! Junot, porém, não acceitou; quiz só a honra de ser sócio.
Houve mesmo um grupo de portuguezes, que pretendia que o imperador Napoleão fizesse Junot rei de Portugal.
Era alma d'este partido a condessa da Ega que passava por amante de Junot.
A condessa da Ega, Juliana Maria Luiza Carolina Sophia de Oyenhausen e Almeida, era filba do conde de Oyenhausen Gravenburg, Enviado e Ministro plenipotenciario de Portugal em Vienna d'Austria, e de D. Leonor de Almeida Portugal, dama de honor da princeza D. Carlota Joaquina de Bourbon; nasceu em Vienna d'Austria a 1 de setembro de 1784.
Era uma bella rapariga, formosa, de olhos azues com muito brilho, e cabellos louros, instruida e espirituosa. Dizia-se que os amores, com Junot, datavam já do tempo em que o general francez estivera por embaixador em Lisboa.
Seu marido, Ayres José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Mattos e Noronha, 2.° conde da Ega, tinha nascido no Funchal a 29 de março de 1755, e casado em 5 de março de 1786, em primeiras nupcias, com D. Maria de Almada; enviuvando em 1795, casou em 9 de fevereiro de 1800 com D. Juliana de Oyenhausen.
Foi o conde da Ega o mais enthusiastico, e activo, agente, do projecto de fazer Junot rei de Portugal, envidando os maiores esforços para angariar adeptos para o seu partido.
Mas logo, n'este pequeno grupo de portuguezes, se produziu uma dissidencia; querendo uma fracção, d'esse grupo, que Napoleão desse a Portugal um rei que não fosse Junot, e que, além d'isso, outorgasse a este paiz uma constituição liberal.
Contrariaram vigorosamente o projecto, de dar a Junot a coroa de Portugal,entre outros, o negociante francez Lécussan Verdier, o reitor do collegio dos nobres Ricardo Raymundo Nogueira, e principalmente o official de cavallaria Carrion de Nizas, litterato que mandava para França, e para jornaes estrangeiros, noticias dos escandalos das aventuras amorosas do seu general em chefe.
Corria que o general Junot tinha, ao mesmo tempo, amores com trez mulheres na mesma casa. Os jornaes inglezes, que não perdiam occasião de falar nos escandalos amorosos de Junot, contando o que havia e o que não havia, em artigos de sensação, sobre o serralho do commandante em chefe do exercito francez em Portugal, disseram, por esta occasião, que o general tinha, em Lisboa, um amor a trez, fogozo e nada platónico (a lustful and not spiritual love for three).
O imperador Napoleão, quando soube de semelhantes artigos, não resistiu ao gostinho de o participar á duqueza de Abrantes, que, com vontade ou sem ella, se poz a rir a bandeiras despregadas.
Mas se havia neste assumpto muitas coisas, que se diziam, que eram verdadeiras, muitas havia tambem que eram falsas, ou exageradas.
Além de Nizas, houve outros officiaes francezes, entre elles Souci, ajudante de campo do general Kellerman, que muito ridiculizaram ou diffamaram, verbalmente e por escripto, o seu commandante em chefe.
Quando, depois da retirada dos francezes de Portugal, a duqueza de Abrantes encontrou, em Paris, a condessa da Ega e suas enteadas, fez-lhes o mais amavel e affectuoso acolhimento.
Das duas enteadas, filhas do primeiro matrimonio do conde da Ega, uma, a mais velha, D. Violante Maria, casou em Inglaterra com Thomaz Henrique Stat Miller; a outra, a mais nova, D. Leonor Anna, casou com o marquez Augusto de Choiseul.
O conde da Ega morreu em Lisboa em 1827.
Sua viuva a condessa D. Juliana passou a segundas nupcias, casando em S. Petersbourg, com o conde de Strogonoff, Gregorio Alexandre Ironwisch, do qual enviuvou em 1857.
Falleceu a condessa D. Juliana em S. Petersbourg, com mais de oitenta annos de idade, em 14 de novembro de 1864.
Com o fim de diminuir, em Portugal, os elementos de defeza e de revolta, contra os francezes, ordenou o imperador Napoleão que se organizasse uma legião de tropas portuguezas, para ser enviada para França, e que o resto do exercito portuguez fosse bastante reduzido, licenceando-se muitos soldados e officiaes.
A legião portugueza, composta proximamente, de nove mil homens, commandada pelo marquez d'Alorna, partiu para França no principio de abril de 1808; tomou parte importante, fazendo prodigios de valor, em diversas batalhas das campanhas do imperio, ficando Napoleão satisfeitissimo das proezas d'aquella legião, e lamentando não ter mandado ir para França todas as tropas que tinha Portugal, na occasião em que os francezes invadiram este paiz.
Posteriormente o imperador quiz augmentar o effectivo da legião portugueza, mas pouco ou nada poude obter. Passado pouco tempo, depois da invasão pelos francezes, não se achava facilmente portuguezes, que quizessem pelejar nas fileiras dos francezes ou a seu lado; o que mais se encontrava era portuguezes para combater os francezes.
Um dos actos, do presumpçoso general Junot, que muito irritou a povoação de Lisboa, foi a substituição da bandeira portugueza pela bandeira franceza no castello de S. Jorge. Verificou-se esta provocante manifestação, com a maior solemnidade e pompa, no domingo 13 de dezembro de 1807.
A cerimonia da substituição da bandeira portugueza pela franceza, em Lisboa, foi precedida de uma revista de tropas, passada pelo general e Junot no Rocio.
O rocio antes do terremoto de 1755
O aspecto da praça do rocio, de Lisboa, era então bem differente do que é na actualidade, posto que já existissem, em grande parte, as casarias que guarnecem as alas do sul, leste e oeste, cuja construcção se verificou depois do terremoto de 1 de novembro de 1755.
A rea do rocio reedificada pelo marquez de Pombal, depois d'aquella catastrophe, era, proximamente, a mesma do rocio que existia antes do terremoto; mas os limites do antigo rocio, especialmente do lado oriental e occidental, eram differentes, e a forma era irregular e obliqua; a ala de leste corria da egreja de S. Domingos até á rua dos Correeiros aproximadamente, e a occidental corria do palacio da Inquisição, no local onde está hoje o theatro de D. Maria II e largo de Camões, até ao arco de Bandeira.
No lado oriental, onde hoje está o hotel de Francfort, proximamente, ficava o hospital de Todos os Santos, predecessor do hospital de S. José, occupando parte do terreno onde está hoje a praça da Figueira. Entre o palacio da Inquisição e a egreja de S. Domingos havia uma fonte, ou chafariz, com quatro bicas, tendo um pedestal com a estatua de Neptuno, que foi demolido em 1786.
As oscillações do solo, do dia de Todos os Santos de 1755, derrocaram todas as casas do rocio, fazendo um cahos d'aquella praça: o palacio da Inquisição tambem soffreu muito, ficando grandemente arruinado, posto que não de todo. Foi reedificado, logo depois do terremoto; mas as obras levaram mais de vinte annos para se concluirem.
Era este palacio o antigo paço dos Estáos edificado pelo infante D. Pedro, quando regente d'estes reinos, na menoridade de D. Affonso V, no segundo quartel do seculo XV.
Era o paço dos Estáos a principio destinado a nelle se aposentarem embaixadores estrangeiros; e é tradição que ali se hospedara, em 1451, a embaixada do imperador de Allemanha Frederico III, quando veiu negociar o matrimonio d'este soberano, com a infanta D. Leonor, irmã do nosso rei D. Affonso V; fazendo-se o casamento em Lisboa, na Sé, em 9 de agosto d'aquelle anno, sendo o imperador representado por Jacob Motz, bacharel em theologia e seu capellão.
No palacio dos Estáos habitou algum tempo o rei D. João III em 1542, e D. Sebastião ali morava em 1508, recebendo neste anno o poder das mãos do cardeal D. Henrique, em acto solemne, o qual se realisou sobre um grande estrado, para isso expressamente construido, e que ligava a face oriental do palacio ao convento de S. Domingos, ricamente ornamentado, e aberto para o lado do rocio.
Desde 1584 passou o palacio do rocio a ser a residencia da Inquisição, tribunal que a solicitações de D. João III, e apesar das resistências e manobras empregadas pelos judeus e christãos novos, foi introduzido em Portugal pela bulia do Papa Paulo III, de 23 de março de 1536. A Inquisição teve a principio a sua séde no mosteiro da Trindade, e depois no edificio das Escolas geraes, vago pela transferencia da Universidade para Coimbra, em 1537. O primeiro auto de fé verificou-se no sitio da Ribeira, defronte do Terreiro de Trigo, em 20 de setembro de 1540.
o palacio da Inquisição antes do terremoto de 1755
A area do paço dos Estáos era enorme; tinha muitos pateos e cárceres; numerosas salas, quartos, gabinetes e corredores. A entrada principal deitava para leste, para o lado de S» Domingos, com um vestibulo coberto sobre um pateo, em volta do qual corria uma arcada havendo no canto sueste uma larga escada para o andar nobre; d'este lado de leste continuava a ala do edificio com janellas para diversas viellas estreitas e tortuosas, de que resta hoje apenas o beco do Forno.
Entre o palacio dos condes d'Almada, onde está hoje o quartel general da 1.ª divisão militar, e o palacio da Inquisição, havia então trez ruas.
Do lado de oeste deitava o edificio para o pateo do palacio dos condes de Faro, depois do duque do Cadaval, onde hoje está a estação do caminho de ferro, no largo de Camões, e que então encostava a uma parte do muro da cidade.
Na frente, do lado do sul, tinha um corpo central, com sete janellas de sacada, ladeado por duas torres, tendo cada uma a sua janella de sacada com outra de peitos por cima. Por baixo do andar nobre, do corpo central, havia cinco janellas de peitos e duas portas lateraes, deitando sobre um pequeno largo.
Ao norte, o palacio confinava com as herdades de Valverde, hoje rua do Jardim do Regedor e Avenida da Liberdade, onde corria então o muro da cidade. O Inquisidor mór residia no corpo central e anterior do edificio.
Tinha este palacio um andar terreo, e trez andares por cima. Ao centro havia um grande pateo, em volta do qual ficavam os carceres, tanto no andar terreo como nos superiores. Em geral, os carceres não recebiam luz directa do exterior, pois não tinham portas, janellas ou frestas, para o pateo; apenas alguns situados no terceiro andar, do lado Occidental, tinham janellas para o pateo. Os do andar terreo, communicavam com uma pequena casa, a qual tinha janella e porta para o pateo; os dos andares superiores tinham porta e alguns também janella, para os corredores, os quaes tinham janellas para o pateo defronte das portas. Alguns carceres do andar terreo, e segundo pavimento, tinham pequenas aberturas, ou vigias, por onde os prisioneiros eram observados, e espionados, nos seus menores actos e gestos, sem o saberem. No andar terreo ficava a casa dos tormentos, com um gabinete contiguo, para os inquisidores que assistiam ás torturas. Neste mesmo pavimento, junto aos carceres do lado oriental, ficava a sepultura dos presos que falleciam na Inquisição. Por cima do andar nobre, ficava a sala publica do tribunal, o thesouro, a mesa grande, o archivo, etc.
O palacio dos Estáos, no qual el-rei D. Manuel fez grandes obras em 1520, foi reedificado depois do terremoto de 1755.
Foi architecto d'esta renovação o engenheiro militar Carlos Mardel.
O palacio da inquisição no tempo dos francezes
O novo palacio da Inquisição, o que existia no tempo da invasão franceza, tinha na fachada sul, que olha para o Rocio, um pavilhão ao centro, com um portico por onde se entrava, sobre o qual tinha uma espaçosa janella com balaustrada de cantaria, similhante á que ainda hoje se vê defronte na janella que fica sobre o arco do Bandeira; na parede superior tinha esculpidas as armas reaes portuguezas. No vertice, estava a estatua da Fé, calcando aos pés a herezia, em marmore, de Machado de Castro, a qual só foi collocada em 1773. A architectura da fachada do palacio era singela, banal, e sem elegancia, como as dos predios fronteiros, que separam as ruas do Ouro e Augusta.
Em 1785, por occasião do consorcio do principe D. João, depois o rei D. João VI, com D. Carlota Joaquina de Bourbon, o embaixador de Hespanha, conde Fernan Nunes, que se achava alojado neste palacio, deu aqui festas magnificentes com illuminações deslumbrantes.
O tribunal da Inquisição foi extincto pouco depois da revolução liberal, que rebentou no Porto em 24 de agosto de 1820, a que Lisboa adheriu a 15 de setembro, sendo convocadas côrtes constituintes, que se reuniram em janeiro de 1821. Logo por decreto de 31 de março do mesmo anno, o Congresso extinguiu o tribunal da Inquisição e Santo Officio; por esta occasião o povo derrubou, e destruiu, a estatua da Fé, que dominava sobre o frontispicio do antigo palacio dos Estáos.
O velho palacio abrigou depois no seu seio o magro thesouro nacional, com o seu abundante deposito de documentos e varia papelada, sendo tudo, porém, pasto das chammas, no violento incendio que destruiu o edificio todo, ficando apenas as paredes mestras, em 14 de julho de 1836.
Sobre as ruinas do antigo palacio da Inquisição foi construido, segundo o risco de Fortunato Lodi, o theatro de D. Maria II, que foi inaugurado em 13 de abril de 1846, com o drama O Magriço, de Aguiar Loureiro.
Em 1807 era no palacio da Inquisição que residia a regencia, nomeada pelo principe D. João quando fugiu para o Brazil; aos governadores do reino, nomeados pelo principe regente, succedeu, em 1808, a regencia de Junot, que tambem estabeleceu a sua sede no mesmo palacio. Tambem, alli se installou a intendencia de policia, á testa da qual Junot collocou o antipathico Pierre Lagarde.
o Passeio publico
Do lado do norte, o palacio da Inquisição tinha um jardim sobre muros muito altos, que deitavam para a rua do Jardim do Regedor; debaixo d'este jardim havia lojas, como tambem as havia, ainda nos nossos dias, debaixo do jardim dos condes de Lumiares, na rua Occidental do Passeio publico, jardim que, com o palacio, occupava todo o espaço comprehendido entre a calçada da Gloria e travessa da Gloria; palacio e jardim hoje desapparecidos, e substituidos por sete bellos predios sobre a Avenida da Liberdade.
Em 1808, o espaço, d'esta Avenida, comprehendido entre parte da praça dos Restauradores e a rua das Pretas, era occupado pelo Passeio publico, nesta epocha encerrado entre altos muros, escuros e cobertos de hera, com 15 janellas gradeadas de cada lado, deitando sobre duas estreitas ruas, do lado do nascente e do poente.
O Passeio publico foi estabelecido pelo marquez de Pombal, em 1764, sobre risco do architecto Reynaldo Manuel, no sitio alagadiço, e baixo, das hortas da Cêra, que tinham pertencido ao conde de Castello Melhor.
Havendo grandes difficuldades em encontrar arvores, para as plantações, pois não havia viveiros sufficientes nas quintas reaes, nem o senado os tinha, lembrou-se o celebre industrial e cultivador Jacome Ratton de offerecer numerosos freixos dos seus viveiros da Barroca d'Alva, que o grande marquez, com immensa satisfação, acceitou, dizendo que queria, que o povo tivesse em Lisboa, como os nobres fidalgos nos seus solares, uma quinta com sombra e fresco; e com effeito não podia escolher melhor local, pois é frequente ali haver fortes correntes de ar; e o frondoso arvoredo e grandes massissos de buxo, deram ao passeio o aspecto de quinta de velho fidalgo, de ancien régime.
Não se póde, hoje, fazer idéa das difficuldades, que teve o marquez de Pombal, para fazer plantar o arvoredo do Passeio publico.
Hoje é facil encontrar, nos viveiros da Camara Municipal de Lisboa, ou nos da Companhia Horticola, fundada por José Marques Loureiro, no Porto, ou em outros estabelecimentos analogos, em Portugal, ou no extrangeiro, plantas mais ou menos desenvolvidas, e até algumas de grandes dimensões, para collocar em jardins e parques, que assim se fazem rapidamente, quasi que de improviso, transplantando-se até, por meio de carros e mechanismos especiaes, arvores gigantescas, arrancadas das florestas ou parques onde estão enraizadas. Assim, no principio do inverno de 1894, foram transplantados, da praça da Alegria para o largo do Conde Barão, em Lisboa, grandes lodãos, pelo pessoal da Camara Municipal.
Ainda não ha sessenta annos, que para formar um pinhal era necessario semeal-o, pois não era facil encontrar pinheiros em vasos, em quantidade sufficiente, pequenos ou grandes, para aquella plantação.
Assim, o marquez de Pombal, esteve em risco de ter que mandar semear as arvores do Passeio publico; foi, como disse acima, Jacome Ratton, quem forneceu, dos seus viveiros, para o Passeio publico, freixos, ainda novos, mas já crescidos, que ali pegaram bem, e muito se desenvolveram.
O Passeio publico só tinha duas portas, uma ao sul, outra ao norte. Em 1838 começou-se a substituir os muros por grades de ferro e, defronte do portão de ferro do lado do sul, perto da entrada, foi collocado um grande tanque de pedra, com um elevado e abundante repudio, e no extremo norte uma fonte, com um tanque mais pequeno.
Por duas vezes, no meu tempo, foram cortadas as arvores do Passeio e substituidas por outras novas e pequenas, com differente traçado de ruas e lagos. Em 1882 começou a demolir-se o gradeamento, bem como o Circo Price, theatro das Variedades e praça do Salitre, predios da praça da Alegria, etc, para se rasgar a Avenida da Liberdade. Em 28 de abril de 1886 foi inaugurado o monumento na praça dos Restauradores, começado em 1875, e que forma a entrada da Avenida, cuja realização foi principalmente devida aos esforços de Rosa Araujo, presidente da camara municipal. No tempo dos francezes, na rua occidental do Passeio só havia o bosque, quinta e palacio de Castello Melhor, este ainda então por acabar, e pertencente hoje ao marquez da Foz, e o palacio e jardim dos condes de Lumiares; na rua oriental havia pequenos predios, perto da rua das Pretas, e em seguida ao largo da Annunciada as ruinas do palacio dos condes da Ericeira, onde hoje estão tres grandes predios, e depois o theatro da rua dos Condes, e algumas pequenas casas.
O Rocio depois do terremoto de 1755
Nesta epocha o Rocio não era empedrado. O espaço todo ao centro era accessivel a cavalgaduras e carros. Foi só em 1837 que o recinto central foi
guarnecido, todo em roda, de frades ou columnelos de pedra, unidos por correntes de ferro, tendo em certos logares, só frades de pedra mais proximos por cujo intervallo apenas podia passar uma pessoa. Foi tambem neste anno que foram começadas a construir as casas do noroeste, junto ao largo de Camões, apesar de muitas intimações feitas, anteriormente, pela camara municipal, porque o duque de Cadaval, seu proprietario, contentava-se em ir recebendo as rendas de barracas e casebres que possuia nesse terreno. Só ficaram essas casas concluidas em 1845. O mosaico actual da praça data de 1849. O actual monumento de D. Pedro IV, ao centro da praça, foi inaugurado em 29 de abril de 1870; foi projecto de Robert e Davioud, escolhido em concurso entre varios projectos portuguezes e extrangeiros, tendo antes sido começado, em 1852 um insignificante monumento, que não passou de pedestal, mesquinho e banal, que o publico alcunhou de galheteiro, e que foi demolido em 1864.
As arvores da praça foram plantadas em 1862, e as dos passeios junto ás casas em 1884. As duas fontes monumentaes foram inauguradas em 1889, sendo presidente da camara Fernando Palha de Lacerda e Faria Osorio. A collocação d'estas fontes foi a satisfação de um desejo, por muitos annos nutrido por todas as pessoas de bom gosto. Pena é que as figuras não sejam de marmore, mas sim metalicas. Desde outubro de 1880, em que foi inaugurado o canal do Alviella, tem Lisboa abundancia de agua com pressão, com o que muito teem lucrado os serviços municipaes de incendios, limpeza, parques, e jardins e arvoredos da cidade e de particulares.
Em 1808, o Rocio, apesar de já ter o traçado actual, estava, comtudo, ainda por concluir. Ao repugnante aspecto que apresentavam os casebres do duque de Cadaval, ao noroeste, vinha juntar-se ás terças feiras, um movimento e reboliço de mobilia velha, ferragens, fatos, chapéos, sapatos e mil outros objectos, usados ou deteriorados, que ali se vendiam, em publico mercado, e que constituiam a feira da ladra.
Póde o leitor curioso ver no magnifico livro do visconde Julio de Castilho, Lisboa antiga, como a feira da ladra, que, primitivamente, se fazia no Chão da feira, junto ás muralhas do Castello, pelo lado do norte, perto da rua de S. Bartholomeu e do largo do Contador, veiu, successivamente, estabelecer-se na Ribeira, no primeiro quartel do seculo XVI; passando no fim d'esse seculo para o Rocio, onde se fez por largos annos, até que, em 1809, passou para a rua occidental do Passeio Publico, começando na rua do Principe, até á praça d' Alegria, sendo em 1823 mudada para o Campo de Sant'Anna, voltando nesse mesmo anno para o Passeio, sendo mudada em 1835 para o Campo de Sant'Anna outra vez, onde se manteve até 1882, sendo em abril d'este anno mudada para o Campo de Santa Clara, tornando no mesmo mez para o Campo de Sant'Anna, até que em junho do mesmo anno foi de novo deslocada, e estabelecida, ás terças-feiras em Santa Clara, e, durante algum tempo, aos sabbados no largo de S. Bento, junto ao palacio das côrtes.
A illuminação e a policia de Lisboa no tempo dos francezes
Em 1807, o Rocio estava illuminado com candieiros de azeite; existia este systema de illuminação desde 1801. Anteriormente já o famoso intendente da policia Pina Manique tinha illuminado muitas ruas de Lisboa, começando em 17 de dezembro de 1780, anniversario natalicio da rainha D. Maria I; a rainha pagára os lampeões, mas o azeite era pago pelos moradores das ruas illuminadas, tributo que arbitrariamente imposéra Pina Manique, que, em assumptos de melhoramentos municipaes, estava muito mais avançado do que os seus contemporaneos.
O governo então não deu auxilio algum, nem resposta ás repetidas solicitações do intendente; de modo que este, apesar do seu despotismo tributario, não conseguiu manter a illuminação, além do anno de 1792, ficando de novo nas trevas a cidade, nas noites sem luar, de 1792 a 1801.
O systema de candieiros adoptado era muito engenhoso; o lampeão estava suspenso na extremidade de um braço longo e curvo, de uma alavanca de ferro, girando em torno do seu ponto de apoio, sobre uma consola de ferro, montada sobre columna ou frade de pedra, ou nas paredes das casas, tendo no outro braço uma haste de ferro, que descia até entrar em uma caixa com fechadura que se fechava á chave; assim o lampeão ficava distante da parede para melhor illuminar a rua; fazia-se descer, para accender, apagar, atiçar, limpar ou introduzir azeite na lampada, e depois de novo se elevava ao seu logar.
Os candieiros do Rocio eram poucos; e o centro da praça não estava illuminado. Alem d'isso, havendo luar, não se accendiam os candieiros.
Algumas das ruas menos importantes, do interior da cidade, ainda não estavam illuminadas.
As ruas, exceptuando as da baixa, rasgadas depois do terremoto, e algumas outras, eram estreitas, irregulares e sujas, como as de todas as cidades antigas da Europa. Quasi todas estavam mal calçadas. Neste tempo havia em Lisboa muitos jardins, e bastantes terras de semeadura, e muitos terrenos incultos. As casas quasi todas, ou sujas, ou então muito caiadas, fazendo mal á vista, pela reflexão dos ardentes raios solares. O bairro de Buenos-Ayres era o logar mais aristocratico, especialmente apreciado pelos diplomatas e inglezes; havia nos quintaes d'este bairro muitas palmeiras das tamaras. Ainda, em certos sitios, se viam minas e monturos, como tinham ficado do terremoto, com algumas barracas e casebres. Nestes monturos lançavam, á vontade, animaes mortos. Para as ruas se lançavam as immundicies das casas. Apesar dos esforços e melhoramentos policiaes do conde de Novion, e de rondarem nas principaes ruas da cidade, patrulhas da guarda da policia, comtudo a segurança era pouca nas ruas de Lisboa, especialmente a altas horas da noite.
Só quarenta annos mais tarde, começaram a ser illuminadas a gaz as ruas de Lisboa.
Pouco movimento em Lisboa em 1808
O transporte de mercadorias, e outros objectos, neste tempo, em Lisboa, era feito em carros de bois, em padiolas de gallegos, a pau e corda, e em rozarios de bestas, dispostas em columna, a uma e uma, atraz das outras successivamente, levando, cada uma, a arreata atada ao albardão da que, respectivamente, lhe ia na frente, a que chamavam ribeirinhos.
No tempo dos francezes, o movimento das carruagens era pequeno dentro da cidade. Ainda não tinham apparecido os omnibus. No Rocio viam-se alguns coches, seges e cadeirinhas, com senhoras dentro, a passeiar; muitas vezes ali paravam, a conversar com pessoas conhecidas que ali encontravam; raras vezes, porém, se apeiavam para passeio.
O que abundava, no recinto do Rocio, era gente a pé e a cavallo, a passeiar ou a tratar dos seus alfazeres. Nos dias de feira da ladra, então era um borburinho, e um ondear de massa de gente de todas as classes, de envolta com vendilhões de toda a especie de mercadoria. Eram os dias dos ferros velhos.
No Rocio estacionavam muitos pretos, a quem se incumbia a caiação das casas, e muitos moços de fretes e aguadeiros gallegos.
Durante a occupação franceza, era aquella praça um vistoso amontoado de uniformes, mesclados com o povo, serpenteados pelos classicos costumes das mulheres de capote escuro de panno, e lenço branco de cambraia na cabeça, salpicados, aqui e acolá, por mulheres de capote de cores, em que dominava geralmente o encarnado.
Os officiaes e soldados francezes eram prodigos em contender com as mulheres, juntando ás palavras obscenas, que ellas não entendiam, gestos e actos expressivos, que umas vezes eram bem acolhidos, na realidade ou na apparencia, mas que outras vezes eram repellidos, originando-se com frequencia rixas, em que intervinham, muitas vezes, os parentes, amantes ou protectores das ultrajadas.
O que a invasão franceza trouxe a Portugal
Tudo que dizia respeito ao culto religioso, era objecto de mofa e sarcasmos, da parte da soldadesca napoleonica. O padre e o frade eram, com frequencia, alvo dos apupos dos invasores, que até chegavam ás vezes a entrar nas egrejas, e a provocar escandalos, pelo seu indecente procedimento.
Sobre tudo, os familiares, e serventuarios do Santo Officio, eram objecto da mais insultante implicação, da parte dos soldados francezes, que dos farricocos e horrores da Inquisição, nada tinham que temer, no que davam não pequena satisfação aos portuguezes, que, se não ousavam entregar-se a similhantes manifestações, sentiam comtudo, no seu intimo, não pequeno odio, ao temido tribunal da Inquisição.
O Santo Officio, cuja omnipotencia já tinha sido cerceada pelo Marquez de Pombal, e cuja popularidade tinha constantemente baixado, especialmente pelas idéas philosophicas, que, nos fins do seculo XVIII, tinham irradiado da França para toda a parte, e penetrado tambem em Portugal, era nesta epocha ainda temido, mas de tal modo odiado e impopular, que a sua queda era fatal, para dentro de poucos annos, apesar da Inquisição se manifestar então muito moderada nos seus rigores, comparada com o que tinha sido. O espirito liberal, da revolução franceza, que o exercito invasor, apesar do seu despotismo, e vexações de todo o genero, introduziu em Portugal, ainda mais apressou a maturação da idéa da abolição da Inquisição nestes reinos.
A invasão franceza trouxe, porém, independente da vontade dos invasores e dos portuguezes, não só um activo fermento dos principios da revolução franceza, mas tambem a inoculação do atheismo e do jacobinismo, de que o exercito da Gironda, se achava eivado, e que deixou em Portugal idéas que, mais tarde, passadas as guerras com a França, e, constrangidas pelo governo oppressor da regencia, e influencia da Inglaterra nos negocios de Portugal, haviam de germinar, e dar em resultado a revolução liberal de 1820, por um lado, e por outro haviam de fazer desenvolver, depois, successivamente, a indifferença publica, primeiro em materia de fé religiosa, e depois na administração e governo d'este paiz, dando as maiores largas ao egoismo individual, como se tem exhibido nos nossos dias.
Botequins no Rocio no tempo dos francezes
No tempo da invasão franceza havia em Lisboa alguns botequins, posto que a vida nos cafés não estivesse muito generalisada. não era mesmo bem considerado estar, por habito, muito tempo nas lojas de bebidas, e as pessoas que tinham esse uso, não eram grandes consumidores. Ainda hoje, em geral, os portuguezes são pouco bebedores. Muitos frequentadores dos cafés, se entreteem largas horas, cavaqueando no meio de atmospheras de fumo, e pedindo, de vez em quando, agua, phosphoros, palitos e jornaes, tudo gratuito. Neste assumpto os costumes francezes e hespanhoes, da vida nos cafés, teem levado muito tempo a aclimatar-se em Portugal.
Ao Marquez de Pombal, quando levantou Lisboa das ruinas do terremoto de 1755, não lhe esqueceu este elemento da vida publica das cidades. Elle proprio provocou o estabelecimento de bem fornecidos botequins, sendo um dos principaes, o de Marcos Filippe, no largo do Pelourinho, do lado do norte, uma loja com duas portas, onde está hoje um estabelecimento de objectos de vidro apesar da reluctancia do dono, para vencer a qual, o proprio marquez foi, no dia da abertura, lá almoçar o bello chá e torradas de meleças com manteiga, o que era então uma magnifica especialidade das lojas de bebidas de Lisboa, que se manteve, com justa reputação, até aos nossos dias, mas que, ha já alguns annos, se tem perdido, inclusivamente nos afamados cafés Martinho do Terreiro do Paço, e do largo do Camões ao Rocio, e Aurea na rua do Ouro. Tudo está muito degenerado. Umas vezes acha-se falsificado o chá, que hoje é geralmente, na maior parte, importado da Inglaterra, ou de França, e algum dos Açores, e que, outr'ora, vinha directamente da China em navios portuguezes. Outras vezes a agua, em que o chá foi posto de infusão, não attingiu o seu ponto de ebullição, de modo que não extraiu ás folhas do chá os seus principios saborosos e aromaticos. Ora o pão é mau, ou mal torrado. O proprio pão de meleças não tem, geralmente, as qualidades superiores, que possuia o fabricado antigamente, e que deram celebridade ao pequeno logar de Meleças, perto de Bellas, onde primitivamente se fabricava e que deu o nome ao pão. Ora a manteiga é em mesquinha quantidade, ou tão má, que denuncia a sua adulteração pela margarina, oleina, e outras drogas fraudulentas. Não é raro reunirem-se todos, ou parte d'estes defeitos, na outr'ora appetecivel e afamada especialidade dos botequins de Lisboa. De resto tem diminuido consideravelmente o numero de freguezes do chá e torrada nos botequins, e augmentado o dos consumidores de cognac, punch, cabazes de vinho, café, etc.
Havia em 1807, no Rocio, dois botequins afamados: o Nicola e o das Parras. O Nicola occupava a loja com duas portas, no lado occidental da praça, perto da rua Nova do Carmo, onde esteve muitos annos depois o Silva livreiro, e está actualmente (1908) a camisaria Santos com os n.°s 24 e 25. O botequim das Parras ficava-lhe quasi contiguo, tendo apenas de permeio uma porta; occupava o vão de tres portas, onde está uma succursal da livraria Bertrand, e a loja de modas Mouta & C.ª, com os actuaes n.ºs 27, 28 e 29.
O Nicola era o botequim muito frequentado pelos poetas; o famoso Bocage lhe deu a celebridade; ali trovejou muitos dos seus poemas, o poeta de facil improviso. De Bocage se conta que, sahindo uma noite do botequim, se viu bruscamente detido por uma patrulha de cavallaria, e que, apontando-lhe um soldado a pistola ao peito, lhe perguntára, com modos de arremetter, quem era, d'onde vinha e para onde ia, ao que o poeta cathegoricamente respondera:
Eu sou o Bocage Venho do Nicola; Vou para o outro mundo Se dispara a pistola.
Do botequim das Parras era dono José Pedro da Silva, alcunhado depois José Pedro das Luminarias, pelas illuminações que fazia no seu estabelecimento, quando chegavam noticias de victorias, ganhas pelos portuguezes e inglezes contra os francezes. Nas illuminações figuravam tambem quadros allegoricos, pintados expressamente para essas occasiões. Além d'isso fazia imprimir, e distribuir gratuitamente versos que encommendava a poetas, que frequentavam o botequim. Este Pedro das Luminarias, apesar de tantas manifestações patrioticas, e de tanta amisade e protecção aos poetas, foi com frequencia alvo da troça lisboeta: mas mereceu que o visconde Julio de Castilho, no seu já citado bello livro Lisboa Antiga, lhe consignasse algumas paginas, commemorando as suas qualidades de abnegação e patriotico enthusiasmo.
Durante a occupaçao franceza ambos estes botequins, mas especialmente o de Nicola, eram muito frequentados por officiaes francezes; e estes eram bons freguezes; não se contentavam com agua e palitos; estavam sempre a beber, de dia e de noite; ora para se refrescarem, ora para se aquecerem, ora para se disporem a almoçar ou jantar, ou para passarem o tempo. Posto que os francezes nem sempre pagassem o que tomavam, comtudo, fizeram estas lojas de bebidas bom negocio durante a occupação de Lisboa pelos francezes, o que em nada esfriou o enthusiasmo do dono do botequim das Parras, pela expulsão dos invasores para fóra d'estes reinos, em 15 de setembro de 1808, data em que começaram as festas e illuminações do botequim, e que se repetiram varias vezes, durante a guerra da Peninsula, e marcha victoriosa dos exercitos alliados anglo-lusos, até á sua entrada, em Toulouse em 1814.
A bandeira portugueza é solemnemente substituida em Lisboa pela bandeira franceza
No domingo 13 de dezembro de 1807, pelas 10 horas da manha, começaram a formar no Rocio as tropas fruncezas, que se adiavam aquartelladas nos conventos de Lisboa, na força proximamente de 6:000 homens.
Pelo meio dia appareceu o general Junot, com o general Laborde, governador de Lisboa e commandante da primeira divisão, e todo o seu estado maior e muitos officiaes a cavallo. Apenas entrado n'aquelle recinto, o general francez foi recebido com acclamações, pelas forças do seu commando ali formadas.
Em seguida Junot passou revista ás tropas, e, acabada ella, collocou-se na frente da força e fez uma fala aos soldados, agradecendo-lhes o terem salvado a mais bella cidade da Europa, da tyrannia dos inglezes, e, congratulando-se pelo arvoramento da bandeira franceza, terminou dando vivas no imperador Napoleão, que foram enthusiasticamente correspondidos pela tropa, e por alguns portuguezes espectadores d'este acto.
Ao mesmo tempo o castello de S. Jorge salvou com vinte e um tiros, a bandeira portugueza foi arriada, e içado, em seu logar, o pavilhão tricolor da França.
Entre o povo, porém, produziu-se grande susurro, e, por diversos pontos da cidade, houve tumultos, com morras á França, que foram facilmente reprimidos pelas tropas francezas. Depois de mortos, ou feridos, alguns dos populares, restabeleceu-se o socego, ou, como se costuma dizer, em termos policiaes, a ordem ficou restabelecida.
Nesse mesmo dia, deu Junot um grande jantar, para o qual foram convidados os governadores do reino, as principaes auctoridades constituidas e muitos nobres, negociantes e outras pessoas mais ou menos graúdas. Estava o jantar em meio, quando veiu a noticia dos motins; Junot, porém, não lhe deu importancia, continuou o banquete, e, findo este, foi para o theatro de S. Carlos, com os seus convidados.
Para ainda mais accentuar o acto, a que tanta solemnidade quiz dar, Junot, nessa noite, no theatro de S. Carlos, desenrolou do seu camarote para a plateia, a bandeira franceza, no meio do grande vivorio dos francezes, a que corresponderam alguns portnguezes, mas a que muitos outros se envergonharam de associar.
Junot quer que continue a haver theatro lyrico em Lisboa
Ambicioso e vaidoso, o general Junot, que anhelava ser rei d'este occidental e abençoado torrão lusitano, emquanto essa problematica meta dos seus desejos, não era attingida, procurava gosar de facto, as delicias do summo poder sobre os portuguezes, governando, da unica maneira que sabia, e que era consoante com o seu caracter, despotica e arbitrariamente.
Como o espirito publico dos portuguezes não estava para festas, com o patrio solo occupado pelos francezes oppressores, o general em chefe do exercito de occupaçâo resolveu impol-as á força. O theatro de S. Carlos de Lisboa attraiu a sua predileção. O barão de Quintella, em cujo palacio se achava installado, tinha naquelle theatro um camarote grande na l.ª ordem, junto ao proscenio, occupando o espaço de dois dos outros camarotes. Tinha sido com a condição de ter, para sempre, para si e seus descendentes, aquelle camarote com varias salas contiguas, escada e entrada independente, que o barão de Quintella, Joaquim Pedro Quintella, dera o terreno para se construir o theatro, o qual foi edificado a expensas de uma sociedade de negociantes e capitalistas, formada por Anselmo José da Cruz Sobral, Jacintho Fernandes Bandeira, Antonio Francisco Machado, João Pereira Caldas e Antonio José Ferreira Solla.
Havia apenas quatorze annos, que funccionava o theatro de S. Carlos, quando entraram os francezes em Lisboa, pois fôra inaugurado em 30 de junho de 1793, tendo começado a construcção no mez de dezembro de 1792, sob o risco do architecto José da Costa e Silva. Era copia do real theatro de S. Carlos de Napoles, que ardeu em 1816.
Eram emprezarios do theatro de S. Carlos em 1807, Jacintho Fernandes Bandeira e João Pereira Caldas; tendo começado esta empreza na paschoa de 1805, e devendo findar no entrudo de 1808. O primeiro anno d'esta empreza ainda foi brilhante; entre outros artistas notaveis, contava-se a celebre Angelica Catalani. Mas depois os artistas, que compunham a companhia lyrica, eram muito inferiores.
Estava, pois, o theatro decadente, principalmente comparado com o que fôra nos annos anteriores, em que tinham resplandecido na scena lyrica o celebre Crescentini (castrato), as damas Catalani e Gafforini, o tenor Mombelli, o buffo Naldi, etc.
O publico que tinha concorrido menos a S. Carlos, pela inferioridade da companhia lyrica, com a invasão dos francezes e os grandes prejuizos que d'ahi provieram, ainda mais abandonou o theatro, de modo que, em vista das circumstancias presentes, e da incerteza, ou antes más probabilidades, do futuro, os emprezarios, Bandeira e Caldas, não quizeram continuar além do praso do seu contracto.
Não entrava, porém, nas vistas de Junot que o theatro de S. Carlos se fechasse.
Generaes de Napoleão candidatos ao throno de Portugal
Posto que o imperador Napoleão se irritasse muito quando soube que a familia real tinha fugido, e levado tão bella e numerosa esquadra, como então possuia Portugal, increpando o general francez de não ter andado mais depressa, e ter perdido muitos dias em Abrantes, comtudo sempre fez seu effeito á noticia da conquista de Portugal em dois mezes, como se dizia em França, e o imperador deu a Junot o titulo de duque de Abrantes.
Para solemnisar tão grande acontecimento, que deu tanto prazer a este filho da revolução que abolira os titulos, que até ao receber a noticia que, em carta, lhe enviou a esposa, se enterneceu, e chorou, resolveu Junot ir á missa, o que ainda não fizera em Lisboa.
Foi no dia 17 de abril de 1808, domingo de Paschoa, que o general assistiu á missa da festa na Sé com todo o seu estado-maior, muitos officiaes e bandas de musica, com grande prwstito de tropas nas ruas. O facto de todos os militares conservarem, na egreja, as barretinas nas cabeças indignou muito o povo, que nunca tinha visto tal coisa.
A mais, porém, do que ser duque, aspirava o general francez. Não só esperava obter o mestrado maçonico, mas adejou-lhe tambem a idéa, como já dissemos, de ser rei da Lusitania, desfazendo-se o que se projectára no tratado de Fontainebleu, de 29 de outubro de 1807, em que se declarava que a casa de Bragança era deposta do throno de Portugal, sendo este desmembrado em tres partes: ao norte, a Lusitania septentrional para a rainha da Etruria: ao sul, o Algarve e Alemtejo para o celebre Manuel Godoy, principe da Paz, conde de Alcudia, amante da rainha de Hespanha, Maria Luiza de Parma, mulher de Carlos IV, e ao centro Traz-os-Montes, Beiras e Extremadura, para de futuro se lhe dar destino.
No povo portuguez, em vista de se vêr abandonado pela familia real, que precipitadamente fugira dos francezes, nos primeiros momentos, não encontrou grande antipathia, a idéa de um rei vindo de França; de lá tinha vindo o conde de Borgonha, pae de Aftonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Nesse sentido trabalharam muitos. Mas logo houve divergencia, querendo uns Junot, e outros um membro da familia Bonaparte, ou outro que não fosse Junot, e além d'isso que fosse dada a Portugal uma constitiução, em que estivessem consignados os principios liberaes da revolução franceza, como já ficou dito.
O governo despotico, intolerante, estupido e espoliador do duque de Abrantes, porém, breve afugentou tal projecto da mente dos portuguezes, o que, juntamente com a acção da Inglaterra, produziu uma formidavel reacção contra os francezes, e assim se evitou que em Portugal se implantasse, como na Suecia, um rei feito por Napoleão.
O que parece impossivel é que ainda no anno seguinte, em 1809, houvesse alguns portuguezes, na provincia do Minho e no Porto, tendo á frente personagens de alta cathegoria da magistratura, que se lembrassem de querer para rei de Portugal, o marechal Soult, duque de Dalmacia, que, á frente de um exercito francez, invadira nesse anno a provincias do norte de Portugal.
Soult tinha entrado com o seu exercito, em Portugal, pelas provincias de Traz-os-Montes e Minho; e, apoderando-se de Chaves e Braga, marchou depois para o Porto, que atacou com 20:000 homens, e tomou no dia 29 de março de 1809.
O Porto estava mal defendido, com as suas baterias a descoberto, sem parapeitos, o que muito amedrontou os defensores, que viam os francezes, abrigados por casas e arvores, dizimarem-nos rapidamente com o fogo de atiradores. A guarnição era de 24:000 homens; mas de tropa de tinha não chegavam a 5:000; o resto eram milicias e populares armados.
O bispo do Porto, D. Antonio José de Castro, que tanto tinha adulado Junot, e os francezes, em 1087, tornara-se seu encarniçado inimigo; e teve a mania de se arvorar, a si proprio, generalissimo do exercito portuguez no Porto, tendo ás suas ordens os generaes Parreiras, Lima Barreto, Victoria, etc.
Durante a noite, de 28 para. 29 de março, os francezes ganharam as baterias da Prelada, Santo Antonio, S. Francisco, Monte Pedral e Agua Ardente. O bispo deitou a fugir para Villa Nova de Gaia, com a caixa militar, sendo seguido, pouco depois, pelo brigadeiro Parreiras. O brigadeiro Lima Barreto, logo que viu tomada uma bateria, na manhã do dia 29, disse aos seus subordinados, com ares de aterrado, que estavam perdidos, ao que os soldados responderam, dando-lhe uma descarga, que o matou. Foi na extrema direita, no Bomfim, que os portuguezes sustentaram a lucta mais tempo, graças ao valor do brigadeiro Victoria.
Apenas entraram os francezes na cidade, muita gente deitou a fugir, dirigindo-se grande quantidade de povo, em correria desordenada, para a ponte de barcas, que, da Ribeira, ligava a margem direita do rio Douro com a margem esquerda, em Villa Nova de Gaia, accumulando-se em massa compacta, sendo os que iam na frente impellidos com grande pressão pelos que vinham atraz.
A ponte, porém, a certa distancia da Ribeira tinha os alçapões levantados, ou porque o bispo assim o houvesse ordenado, ou porque a gente que da cidade fugira mais cedo, na madrugada d'esse dia, o tivesse feito espontaneamente, com a ideia de impedir que os francezes pudessem passar.
O resultado d'este facto, ignorado pelos atterrados fugitivos, foi uma medonha catastrophe. Os que iam na frente, impellidos pela força irresistivel dos que se seguiam, eram lançados no rio, onde se afogavam. As grades lateraes de madeira da ponte, com a pressão, sobre ellas exercida, pela multidão do povo desorientado, quebraram, caindo tambem muita gente ao rio pelos lados da ponte.
A cavallaria portugueza, em fuga precipitada, em breve chegou á ponte, e começou, para abrir passagem, a acutilar a massa de gente ali accumulada. Ao mesmo tempo as baterias da margem esquerda romperam o fogo contra os francezes, que appareceram no caes, mas com taes pontarias, que mataram, e feriram, muitos dos populares accumulados sobre a ponte.
Foram os primeiros soldados francezes de infanteria, que chegaram ao caes da Ribeira, e que logo perceberam que horrenda catastrophe se desenrolava em sua frente, que, de subito, de inimigos se tornaram em salvadores do povo, que ainda estava na ponte: e que em seguida lançaram pranchas no vasio dos alçapões, e, restabelecendo a communicação sobre a ponte, foram tomar as baterias de Villa Nova.
Nunca se soube ao certo quantos milhares de pessoas pereceram nesta catastrophe. O dia 29 de março ficou sendo, para o Porto, um dia de luctuosa recordação.
Quarenta e tres annos mais tarde, em 29 de março de 1852, o horroroso naufragio do vapor Porto, occorrido á entrada da barra, á vista, e á falla, de muita gente, que, da Foz do Douro, presenciava tão angustioso espectaculo, em que morreram todos os passageiros e quasi todos os tripulantes, veiu accrescentar o horror e a tristeza á memoria do fatal dia 29 de março.
Logo que as tropas de Soult se apoderaram do Porto, a cidade foi saqueada, praticando-se toda a casta de horrores, que acompanham de costume, tal acto; roubos, assassinatos, violação de mulheres, etc. O general quiz obstar a esse medonho e repugnante barbarismo; não o conseguiu. O saque tomou, mesmo, proporções maiores, porque os soldados francezes encontraram, entre os prisioneiros da sua nação, individuos que tinham sido mutilados, pela plebe armada e desenfreada, sem que as auctoridades o impedissem, antes da cidade ser atacada pelas tropas de Soult.
Só no dia seguinte conseguiu o general fazer entrar a tropa na ordem. Em seguida com a intelligencia, bondade, e moderação de que lá dera provas quando occupára Braga, começou a governar de tal modo, que, dentro de poucos dias a cidade do Porto gosava de tranquillidade e bem estar, sob a dominação franceza, como não desfructava havia muito tempo, já quando occupada pelos hespanhoes e francezes no anno anterior, já depois quando governada pela junta, e dilacerada pela anarchia do povo e desvarios do governo portuguez.
Soult não lançou tributo algum sobre a cidade conquistada. Além d'isso, conseguiu fazer restituir, a seus donos, muitos dos objectos roubados durante o saque.
Os beneficios da administração illustrada e bem-fazeja do duque de Dalmacia, deram animo ao grupo de portuguezes que queriam fazel-o rei de Portugal. Houve mesmo um jornal, o Diario do Porto, que defendia esse projecto, atacando violentamente a casa de Bragança.
Se quando Napoleão mandou, pela vez primeira, os seus exercitos a Portugal, em 1807, confiasse o commando ao duque de Dalmacia, em lugar de Junot, com a benevolencia com que os francezes foram acolhidos pelos portuguezes, e vendo-se estes abandonados pelo chefe do estado, e por toda a familia real, e com as altas qualidades que possuia o general Soult, talvez que se tornasse possivel a elevação do duque de Dalmacia ao throno de Portugal, não se podendo, então, prover se essa problematica realeza seria duradoura, como a de Bernardote na Suecia, ou ephemera como a de José Bonaparte em Hespanha e tantas outras.
Mas em 1809 era tarde. Parece impossivel que o não percebessem os partidarios de Soult. O odio contra os francezes era já tal, entre o povo portuguez, que era impraticavel um rei francez.
Além d'isso, fóra da cidade do Porto, o comportamento dos subordinados do general Soult era violento, tyrannico e espoliador. Mas ainda que o não fosse, já não era viavel uma candidatura franceza ao throno portuguez.
Mas o que é mais singular, é que a noticia, da pretensão de Soult ao throno lusitano, foi recebida em França com grande chacota e hilaridade! Taes eram as intrigas, e invejas, que agitavam os generaes de Napoleão, que, cheios de ambição, cegos pelo brilho desmedido do genio do imperador, que, com a sua victoriosa espada, esphacelava thronos pela velha Europa, todos queriam ser marechaes, duques, opulentos e reis!
Foi sonho que pouco durou. -- No dia 2 de abril saiu, de Lisboa, o general Wellesley, o futuro duque de Wellington, que reunindo, em Coimbra, uma força de tropas inglezas e portuguezas, attingindo proximamente 25:000 homens, marchou para o Porto.
Soult, julgando que o exercito anglo-luso procuraria passar o Douro junto á Foz, ao abrigo da esquadra ingleza, descurou a defeza do rio para cima da Ribeira, de modo que as forças alhadas foram, em parte, passar o Douro acima, no Prado do Bispo e Avintes, e avançaram sobre o Porto. Soult ainda tentou contrariar o resto do desembarque, mas julgando não poder sustentar-se, retirou do Porto para Guimarães, occupando os alliados a cidade em 12 de maio.
Acossadas as tropas francezas pelas forças anglo-lusas de Wellesley e Beresford, e pelos populares, o duque de Dalmacia bateu em retirada, dirigindo-se para a Galiza, e evacuou o territorio portuguez.
Depois da retirada dos francezes de Portugal, foram perseguidos, pela inepta e nefasta regencia, que ficou governando estes reinos, muitos portuguezes que tinham sido partidarios dos francezes, e tambem muitos que o não tinham sido, aos quaes, falsamente chamavam jacobinos; epitheto com que designavam, ou denominavam, as pessoas, contra as quaes se queriam satisfazer odios e vinganças.
Junot obriga Francisco Antonio Lodi a ser emprezario do theatro de S. Carlos
O duque de Abrantes não conseguiu ter o titulo de rei de Portugal; mas de facto foi governando este paiz como rei absoluto. Adorador de tudo que fosse luxo, fausto e apparato, quiz que os espectaculos no theatro de S. Carlos se não interrompessem, e como não encontrasse quem quizesse ser emprezario, em logar de tomar o theatro o proprio governo, nomeando um administrador, que teria debaixo de mao, lembrou-se de obrigar a ser emprezario á força, não a empreza Bandeira e Caldas, que encontrára gerindo o theatro, mas um antigo emprezario do mesmo theatro, Francisco Antonio Lodi.
Tinha sido este Francisco Antonio Lodi o primeiro emprezario do theatro de S. Carlos; o que, de sociedade com André Lenz, o inaugurara em 1793, e o explorára até 1799; depois tinha tido a empreza do theatro outra vez, de 1802 a 1805. Tinha sido esta ultima gerencia um dos periodos mais brilhantes do theatro.
No principio do seculo XIX, a scena lyrica de Lisboa havia sido uma das mais resplandecentes da Europa.
Com a filha de Francisco Antonio Lodi, e de sua mulher Joanna Barbara Casimiro Machado, casou mais tarde o filho do barão de Quintella, Joaquim Pedro Quintella do Farrobo, que veio a ser o seguindo barão de Quintella e primeiro conde de Farrobo, e que apenas tinha n'esta epocha seis annos. Sua futura noiva, a filha de Lodi, Marianna Carlota Lodi, tinha então nove annos.
Foi este conde de Farrobo que salvou, em 1833, a causa liberal, com o emprestimo que fez a D. Pedro IV, e que depois, de 1838 a 1840, foi emprezario do theatro de S. Carlos, onde perdeu mais de 40:000$000 réis, mas elevou a opera lyrica em Lisboa ao seu maior esplendor. Era este conde muito amador das artes bellas, e de pequeninos pés das mulheres; d'elle se dizia que escolhia, ou encommendava, mulheres para sapatos e não sapatos para mulheres.
Que razões teria Junot, para se lembrar de fazer emprezario á força Francisco Antonio Lodi, não sei. Nas condições em que se achava Portugal, e a Europa, não era possivel mandar vir do estrangeiro artistas; portanto a companhia lyrica havia de ser constituida com os mediocres cantores da anterior, que ainda se conservavam em Lisboa. O Phenix dos emprezarios pouco poderia fazer, n'estas circumstancias, em favor da arte lyrica. Além d'isso o theatro era pouco concorrido. O futuro annunciava-se carregado de nuvens, e promettia grandes tempestades. Por todas estas razões, Lodi recusou-se.
O general francez, porém, não lhe admittiu a recusa apesar de entre outras razões, allegar Lodi que não tinha o dinheiro preciso para arcar com a empreza; a isso retorquiu o duque de Abrantes que poria á sua disposição os fundos necessarios, e que queria que o theatro fosse em Lisboa o mais brilhante possivel. Mas pelas razões já expostas, o brilho, no theatro de S. Carlos, durante a invasão franceza, consistiu, principalmente, em espectaculos de gala, mais ou menos impostos por Junot, ou pelos seus officiaes. O culto da arte não lucrou muito com o despotismo lyrico do governador de Paris. O mais notavel que então se executou foi, pela primeira vez, a opera Demofoonte, do maestro portuguez Marcos Antonio Portugal.
Processos tributarios de Junot
Apesar, porém, das promessas de Junot, o governo não era prodigo em fornecer fundos para o theatro de S. Carlos. Tambem o emprezario não se ralava com isso: não tinha dinheiro, não pagava aos artistas. Pois não era porque faltasse dinheiro no quartel general; é verdade que era o producto de extorsões, em dinheiro e outros valores, e violencias de todo o genero.
Entre outras preciosidades, que Junot levou para França, figurava a celebre biblia dos Jeronymos, com ricas illuminuras do seculo XV, de que o rei D. Manuel fizera dadiva ao mosteiro de Belem. Feita a paz geral, em 1815, depois da queda de Napoleão, e precedendo laboriosas negociações diplomaticas, em que tomou parte activa o conde depois duque, de Palmella, e vencidas as difficuldades que apresentava a duqueza de Abrantes, viuva de Junot, em poder da qual se achava o precioso manuscripto, de o ceder, conseguiu-se que o vendesse por 80:000 francos, que foram pagos pelo rei de França, Luiz XVIII, que em seguida o restituiu a Portugal, sendo trazido para Lisboa e entregue ao convento dos Jeronymos, em Belem, onde esteve até 1834. Depois de extinctas as ordens religiosas, foi levada para o Banco de Lisboa, e depois successivamente para a Moeda Bibliotheca Publica e Torre do Tombo, onde hoje ainda se acha.
Se muitas eram as riquezas que Junot levou, ou mandou, de Portugal para França, muito maior era ainda a fama que d'isso corria. Em Paris, sobretudo, adquiriu proporções inverosimeis a exaggeração dos boatos, que a inveja e as intrigas faziam correr, sobre os valores que tinham tirado de Portugal, e possuiam, os duques de Abrantes.
Entre outros absurdos, dizia-se que a mulher de Junot tinha brilhantes e outras pedras preciosas, tão grandes e em tal quantidade, que não podia com o peso d'essas joias!
Quando o duque de Abrantes se viu obrigado a retirar de Portugal para França, mandou para Paris, a sua mulher, uma caixa contendo 40:000 meias moedas de ouro portuguezas. Ao chegar a casa, a caixa caiu e arrombou-se, começando a sair uma serie de moedas de ouro, deante dos creados, familia e outras pessoas que ali se achavam, e que ficaram pasmadas e invejosas de tanto dinheiro.
Durante muitos dias, era o assumpto obrigado da conversação a chuva de ouro, que Junot trouxera de Portugal.
Um dos boatos que, com persistencia, corria, era que Junot se tinha apoderado do Bragança, o grande diamante de Portugal, o maior de todos os conhecidos, superior e muito ao do Grão Mogol.
O que era este diamante? que fim levou? eis o que ainda não pude decifrar. A tradição é constante de que existia desde o tempo de D. João V. No British Museum, em Londres, encontrei, em 1878, um manuscripto com o desenho do contorno deste diamante, não lapidado, desenho que fiz reproduzir e publiquei, no 2.º tomo das Bainhas de Portugal; era ovoide, tendo 0m, 11 de comprimento e 0m,053 de diametro: dizia-se que pesava 1:680 karats.
Posteriormente, o meu collega, lente de mineralogia do Instituto Industrial e commercial de Lisboa, Alfredo Bensaude, procedeu a novas investigações, sobre o famoso diamante de Portugal; não chegou porém a obter mais esclarecimentos. sobre a historia e destino d'aquella tradicional joia da
corôa portugueza.
Consta que o famoso diamante de Portugal existia n'este paiz em 1805. A elle se refere a duqueza de Abrantes nas suas Memorias. Deste diamante existia uma imitação, de crystal, de eguaes dimensões e forma, no museu da historia natural em Lisboa.
Em uma carta escripta, em Lisboa, pelo general Junot, em janeiro de 1808, e mandada para sua esposa em Paris, com um presente de Anno Bom, de que foi portador um ajudante de campo do Principe Eugenio, encontra-se uma allusão áquelle diamante, tanto ao verdadeiro, pertencente á corôa de Portugal, como ao falso, imitação em crystal.
O presente, que o general mandava a sua esposa, era uma rica parure de saphyras e diamantes, para collar, brincos, pente, e uma saphyra solitaria para alfinete, e uma caixa de jaspe, tendo um camapheu com o retrato do Papa, para o tio abbade de Comnène.
Dizia o general na sua missiva, que pagara toda a dadiva da sua algibeira, e, como que alludindo á fama, que já corria, não só em Portugal, mas tambem em Franca, de que se apoderára de grandes valores, no paiz que invadira com as tropas imperiaes, affirma que o principe regente, e sua comitiva, quando fugiram para o Brazil, levaram todos os diamantes da corôa, tanto os lapidados como os que estavam em bruto, e que até não escapara o falso diamante, imitação do grande diamante de Portugal, que elles tinham visto no museu da historia natural, quando estiveram, tres annos antes, em Lisboa, por occasião da embaixada de Junot.
Em diversas publicações extrangeiras, sendo a mais antiga a obra de Brückmann, Abhandlung von Edelstein, publicada em 1773, se encontra noticia d'este diamante. Alguns teem opinado não ser a famosa pedra um diamante, mas sim um topasio branco.
Que tal joia existiu até 1807 na posse da corôa de Portugal, parece ser facto incontestavel; que fôra levado para o Brazil, nesse anno, com a familia real, tambem parece averiguado. O que, porém continua a ser ainda obscuro é se, na realidade, era diamante, e que fim levou.
Junot e os seus generaes tinham convertido o governo d'este paiz em uma exploração argentaria. Tinham achado uma verdadeira mina, que procuravam explorar em seu proveito. Era uma especie de syndicato, mas no qual o duque de Abrantes se attribuiu a parte do leão; porém, nada era sufficiente para o dissipador general.
Entre os diversos alvitres imaginados, não sabemos se por Junot, se por Hermann, habil financeiro, que acompanhou o exercito invasor, na invenção, como diriamos lioje, de materia collectavel, houve um engraçado.
Os governos da França e da Inglaterra tinham determinado não reconhecer neutralidade, em navios de nacionalidade alguma, para entrar ou sair do porto de Lisboa. Isto implicava o encerramento d'este porto; e, para o tornar effectivo, a esquadra ingleza, sob o commando de Charles Cotton, bloqueava a entrada da barra de Lisboa e outros portos de Portugal.
Era nesta epocha grande o numero de navios de diversas nacionalidades, surtos no Tejo. Começaram alguns a tentar a saida, apesar do bloqueia britannico.
O duque de Abrantes, porém, exigiu que, a titulo de licença, lhe fosse paga uma certa quantia. Emquanto á questão de neutralidade, inventou duas bandeiras neutras: a dos Estados-Unidos e a de Kniphausen, pequena povoação da foz do rio Elba.
Os inglezes, porém, deixaram passar os navios que saiam. Não quizeram usar das vantagens que a sua esquadra lhes garantia, para tornar effectivo e rigoroso o bloqueio, apesar de Junot ter ordenado a confiscação dos bens pertencentes a subditos britannicos, residentes em Portugal, ou por elles possuidos, no que mostravam bom senso pratico.
Nenhum mal lhes fazia a saida dos navios. Enfraquecia-se Portugal, e esses navios poderiam ir, como de facto muitos foram, para Inglaterra, levar mercadorias, passageiros e dinheiro.
XXXVJII
Como era difficil viajar no tempo dos francezes
Mas reconhecida a benevolente attitude da esquadra britannica, então tornou-se uma febre a saida de navios, e, sobretudo, de passageiros.
Muitos individuos, residentes em Lisboa, e tendo fortuna, antevendo um futuro calamitoso para Portugal, queriam emigrar.
A viagem por terra, sem estradas, com más e poucas estalagens, em um paiz devastado e infestado de francezes e de ladrões, não era convidativa. A saida por mar era a unica praticavel.
Mas, em vista d'este augmento inesperado da nova materia collectavel, o general Junot augmentou extraordinariamente o quantum do imposto. Completamente arbitraria, a licença para a saida de um navio, que a principio custava alguns centos de francos, elevou-se depois despropositadamente, pela capitação dos passageiros, a quantias exorbitantes; assim, houve navio que, avaliado em cinco mil cruzados(2:000$000 réis), para sair teve de pagar pela licença dez mil francos, quasi o valor do barco!
Como Junot se tornou fornecedor de vinho do Porto para os inglezes
Outra fonte de receita, que se tornou uma rica mina, explorada por Junot, foi a das licenças para a saida do vinho do Porto, não só para a Companhia dos Vinhos do Douro, como para qualquer pessoa que o quizesse exportar. Por cada pipa de vinho, arbitrou o general francez uma peça de ouro, que valia então 6$400 réis.
Mas não foi possivel sustentar o pagamento em metal. Já havia alguns annos, pois tinha começado em 1797, que existia a praga do papel moeda, cujo descredito ia sempre em augmento, tendo ainda antes da chegada dos francezes, sido determinado que os pagamentos se fizessem metade em papel, metade em metal; é o que então se chamava pagamento na fórma da lei. Junot não se importava, é claro, absolutamente nada com a tal fórma da lei, mas é que se tornava muito difficil, senão impossivel, obter o pagamento em peças de ouro, do tal bem imaginado imposto.
No tempo dos francezes o papel moeda chegou a ter o desconto de 60 por 100. Depois de terminada a guerra, o agio baixou a 12; mas tornou outra vez a subir successivamente, attingindo 75 por 100 em 1833. Por decreto de 23 de julho de 1834, durante a dictadura de D. Pedro IV, sendo ministro da fazenda José da Silva Carvalho, foi extincto o papel moeda, obrigando-se o governo a trocar o existente em metal, com o desconto de 20 por 100. Tal obrigação, porém, nunca se cumpriu. Hoje o papel moeda tem um valor insignificante.
Era de prever que os inglezes se não opporiam á exportação do vinho do Douro. Com effeito os navios da esquadra britannica, que deixavam passar incolumes navios que saiam da foz do Tejo com passageiros, e com carga ou sem ella, mesmo com a phantastica bandeira neutral de Kniphausen, com maior razão não oppozeram embaraço algum, á saida de navios com vinho pela barra do Douro, tanto mais que estes navios, na maior parte, se dirigiam para portos da Grã-Bretanha, onde havia os principaes consumidores, para o magico e confortavel licor das alcantiladas penedias da rica região do alto Douro, de que eram tão enthusiastas os filhos da velha Albion, sobretudo nesta epocha, em que ainda se não tinham habituado aos ligeiros vinhos da França.
A exportação do vinho do Porto tomou proporções extraordinárias: em pouco tempo excedeu 30:000 pipas; o que neste artigo produzia para o bolsinho de Junot perto de 200:000$000 réis. Era o cumulo da chuchadeira; mas acabou-se. Não ha mal que não acabe, nem bem que sempre dure.
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O que fez o imperador Napoleão quando soube das proezas tributarias de Junot. -- Louvavel procedimento dos generaes Travot e Charlot.
Chegou, ao conhecimento do imperador Napoleão, noticia do engenhoso sistema tributario do seu governador de Paris, e do exchisivo d'esta especie de monopolio, a favor da bolsa do insaciavel commandante em chefe do exercito de Portugal, e a irritação que lhe produziu tal noticia foi extraordinaria; não porque o imperador se importasse, ou lamentasse as extorsões, com que o seu delegado em Portugal opprimia os habitantes d'esta Occidental praia lusitana, pois elle mesmo imperador, de Milão, onde se achava, lançara sobre Portugal, como especie de preço de resgate, uma contribuição de cem milhões de francos, que teve de ser reduzida a metade, pela impossibilidade de Portugal poder pagar a totalidade da somma.
O que fez desesperar Napoleão, que já estava zangado com o facto de Junot não ter aprisionado a familia real, e a grande esquadra portugueza, foi o estar o seu delegado, em Portugal, a deixar sair o bello vinho do Porto, que ia quasi todo para a Grã-Bretanha, com grande gaudio dos seus irreconciliaveis inimigos, os inglezes, que tinham encontrado, em Junot, um grande fornecedor d'aquelle adoravel e balsamico cordeal, isto quando o proprio imperador não deixava sair os vinhos pelos portos da França, no seu famoso systema continental, a ponto de ser difficilimo fazer sair de Bordeaux, um barril de vinho d'esta região, custando isto os maiores sacrificios á França, e prejudicando gravemente, em especial, os interesses da vinicultura d'aquelle paiz.
Estar o governo francez com grandes prejuizos da sua agricultura, a impedir a saida dos aguados vinhos francezes, para que a Inglaterra os não obtivesse, e estar o seu general Junot em Portugal, a facilitar, aos inglezes, o beberem os alcoolicos e generosos vinhos de que tanto gostavam, e que mil vezes preferiam aos ligeiros vinhos da França, era facto para irritar qualquer outro menos irritavel que o imperador Napoleão.
O imperador deu ordem para cessar a escandalosa chuchadeira. Foi o ministro dos negocios extrangeiros do imperio francez quem o communicou a Herrmann, administrador das finanças junto a Junot, censurando o seu procedimento. Mas as communicações, nesta epocha, eram difficeis e demoradas.
Quando chegou aquella ordem a Lisboa, já os navios que havia no Tejo para sairem a barra, na maior parte o tinham feito pagando a licença exigida. Emquanto ao vinho do Douro, tambem já então se havia verificado uma enorme exportação; comtudo como havia ainda muito nos depositos, com a cessação franca da saida, estancou-se a fonte da receita, que, para o general Junot, d'ahi se derivava.
Affirma a duqueza de Abrantes, nas suas Memorias, que Junot não quiz especular com o negocio dos algodões, que lhe poderia fazer ganhar alguns milhões.
Em consequencia da prohibição de exportar algodão, de Portugal, imposta pelo governo francez, tinham-se accumulado em Lisboa quantidades enormes d'aquella mercadoria, cujo preço havia por isso baixado extraordinariamente.
Aquella prohibição, que muito prejudicava o commercio, tambem eliminava a receita, que dessa exportação poderia caber ao governo, como imposto de exportação. Por isso Junot pediu reiteradas vezes, e por fim o imperador auctorizou, quese levantasse aquelle interdicto.
Na vespera de se publicar o decreto, que ia permittir a exportação dos algodões, o secretario Magnien propoz a Junot, que, emquanto se conservava secreta esta resolução, se comprasse muito algodão, pelo intimo preço que tinha rio mercado, para o vender d'ahi a alguns dias, depois de publicado o decreto.
Diz a duqueza de Abrantes que seu marido recusou, com indignação, aquella proposta.
A ser verdade esta asserção, tal acto contrastava singularmente com o systema espoliador do duque, que tinha, além dos seus vencimentos como general, seiscentos mil francos annuaes como governador de Portugal.
Foi com o pretexto de agradecimento ao general Junot, por este ter obtido que se levantasse o interdicto sobre a exportação do algodão, que os negociantes, de Lisboa, offereceram á esposa do general um collar de diamantes, como já ficou dito.
Os outros generaes e officiaes francezes, na sua maioria, salvo honrosas excepções, seguiam n'este assumpto os exemplos do commandante em chefe, em ponto menor forçosamente.
Um dos que mais salientes se tornou nas extorsões e requisições violentas foi o general Loison. Foi tambem este quem mais barbaridades e crueldades praticou e ordenou.
Deixaram em Portugal saudosa memoria, e fama de bondosos, os generaes francezes Charlot e Travot. Especialmente este ultimo tornou-se muito querido das povoações da margem direita do Tejo e Cascaes. Nunca estes generaes, nem as tropas sob suas ordens, opprimiram os habitantes das localidades, occupadas pelas forças do seu commando, com violencias, abusos ou vexações de qualquer fórma.
O general Travot foi até o amparo dos pobres pescadores das visinhanças, e suas familias; porque tendo, durante certo tempo, o general Junot prohibido, sob penas severas, que os pescadores fossem pescar fóra da barra, para não communicarem com a esquadra ingleza, o general Travot não só fechou os olhos ás infracções d'aquella ordem, deixando sair e entrar os barcos de pesca, que a isso se quizeram arriscar; mas até soccorreu, com os recursos da administração militar da sua divisão, os pescadores e suas familias, bem como toda a pobresa d'aquellas localidades, que soffriam immensamente, com a miseria geral do paiz occupado por um exercito extrangeiro, e cujas desgraças ainda mais se tinham aggravado com a prohibição da pesca fóra da barra.
Difficuldades de communicações entre a França e Portugal, no tempo dos francezes
Em 1808, as comniiinicações, entre França e Portugal, eram pouco frequentes e muito morosas. Havia, ordinariamente, apenas um correio official (estafette), por semana, entre Lisboa e Paris.
O meio mais empregado, para fazer a viagem, de Lisboa a Paris, por terra, era, depois de atravessar o Tejo, tomar, em Aldea Gallega, uma mula, ou antes um grande e bom burro hespanhol, e n'elle cavalgar todo o caminho.
Durava esta viagem pelo menos, quinze a vinte dias. Era incommoda e perigosa, por causa dos ladroes e das guerrilhas. Não era prudente fazel-a uma pessoa só.
Nos annos seguintes ainda mais perigosas e incertas se tornaram as viagens, por terra, na peninsula hiberica, por causa das guerrilhas em
Hespanha, que adquiriram vastas proporções, pelo numero de homens valentes e atrevidos que as compunham.
Frequentes vezes, comboios inteiros de viveres, munições e viajantes, dos exercitos francezes, foram desbaratados. Emquanto aos correios eram frequentes os roubos da correspondencia, e a interceptarão das communicações, entre a França e os seus exercitos que operavam na peninsula.
O ajudante de campo Prévost, mandado, pelo general Junot, com uma carta, por este escripta, ao imperador Napoleão, pedindo a sua demissão, por se ter agastado com o ter-lhe o imperador mandado dizer, pelo general Duroc, que sendo incompativeis os logares de governador de Paris e primeiro ajudante de campo, optasse por um d'estes logares, gastou, fazendo a jornada de um tracto, quinze dias de Lisboa a Paris.
Apesar das supplicas da duqueza de Abrantes, mulher de Junot, e da princeza Carolina, o imperador, affirmando que Junot não perdera as suas boas graças, e sua estima, manteve comtudo a sua resolução, e o general ficou sendo governador de Paris, mas deixou de ser o primeiro ajudante de campo.
Quando se fez a convenção de Cintra, em 30 de agosto de 1808, em virtude da qual o exercito francez capitulou, depois de derrotado pelas forças luzo-britannicas, mandou Junot o seu ajudante de Campo, Grave, com o duplicado do tratado ao imperador Napoleão. Partindo de Lisboa no dia 1 de setembro, teve tão mau tempo que só poude chegar a Paris no dia 3 de outubro.
Durante mais de dois mezes, de 1 de julho a 4 de setembro, não houve em Paris noticias do exercito francez que estava em Portugal.
No dia 4 de setembro houve um grande baile, no Hotel de Ville, em Paris, em que a duqueza de Abrantes fazia as honras como mulher do governador de Paris, o general Junot, então em Portugal. O imperador não quiz ir ao baile. A imperatriz Josephina appareceu lá apenas um instante. A duqueza de Abrantes, assaltada de tristes presentimentos, foi perguntar ao imperador, se havia algumas noticias de Junot, ao que Napoleão, com muito mau humor, respondeu negativamente. Parece, porém, que, por via de Inglaterra, tivera noticia da derrota de Vimeiro, mas nada quizéra dizer.
Tal era a demora das communicações nesta epocha.
Segundo a opinião dos camaradas os amores do capitão Remigny não faziam progressos
Corria o mez de abril de 1808, que ia já na sua segunda metade, e os amores de Remigny e Soror Maria continuavam na mesma altura das ethereas regiões do ideal. A assiduidade do capitão francez, á grade das franciscanas da Esperança, era tanta quanto o permittiam os seus deveres de commandante de companhia de um batalhão de infantaria.
O tempo passado perto da freira, apesar de separado d'ella por uma grade de ferro, era para Raoul, por mais longo que fosse, um curto instante; tào rápido lhe parecia, no extase em que ambos se conservavam, olhando-se pelos intersticios das rotulas, que separavam ali o seculo mundano das esposas de Christo; separação, porém, só material, porque de coração e pensamento, se achavam fortemente reunidas aquellas duas almas.
Nãe era só junto á grade do parlatorio que Raoul se approximava de Soror Maria. Muitas vezes na egreja, quando esta se conservava deserta, ou assim parecia a Raoul, este commettia a imprudencia de se approximar da grade do côro, dentro do qual a freira correspondia com um movimento de approximação analogo.
Os dois amigos e camaradas de Remigny, dos quaes um, Pierre Dufourcq, era tenente da mesma companhia, estavam ao facto dos amores com a freira.
A sua admiração, porém, era grande, quando, alguma vez, interrogavam Raoul, sobre os progressos da sua amorosa aventura, e em resposta, recebiam a affirmação de que estava sempre na mesma.
O que havia era muitos protestos de reciproca affeição e muitas entrevistas á grade; havia mesmo grade de mais, que dava que falar na communidade, e despertava a curiosidade dos frequentadores da portaria, e em especial dos pobres de officio, que constituiam uma classe caracteristica da vida á porta dos mosteiros, e uma phase dos costumes da epocha, e das relações do interior da vida monastica com o mundo externo.
Os camaradas de Raoul não podiam comprehender como um bello rapaz, com tão seductoras qualidades, amado por Soror Maria, e apaixonado por ella, ficasse sempre na mesma; e estivesse tão adiantado no fim de quatro mezes, quasi como estava no dia da primeira conversa no parlatorio, na vespera do dia da senhora da Conceição; em quanto que elles, que se julgavam muito inferiores, a todos os respeitos, ao capitão, tinham tido e concluido varias aventuras, de amores faceis e rapidos.
É verdade que das mulheres que tinham cruzado a raça lusitana com a gauleza, graças ás seducções dos dois officiaes, nenhuma era freira.
Mas para os filhos da revolução, apesar da concordata que Napoleão celebrara em 1801, com o papa Pio VII, uma freira era uma mulher, como qualquer outra, apenas com sabor mais aperitivo.
XXXXTII
A concordata e o atheismo na França imperial
Napoleão tinha encontrado, quando senhor do poder, a sociedade franceza, de todas as antigas classes, em um cahos indescriptivel, estando o culto banido completamente das egrejas, apenas conservado, e na maior parte dos casos, ás occultas, pelos poucos fervorosos crentes, que tinham heroicamente resistido á tormenta revolucionaria.
A dissolução das crenças religiosas tinha sido grande; e devida mais ás ideias e escriptos dos philosophos do seculo XVIII, do que á oppressão e tyrannia do governo revolucionario. Assim quando, depois da queda de Robespierre e de ter finalisado o terror, se organisou, no anno seguinte, em 1795, outra constituição com o directorio, e a França se viu desafogada da tyrannia revolucionaria, um sopro de allivio bafejou o povo francez, e um desejo de vida airada invadiu a maior parte da gente.
Os divertimentos e prazeres, sopeados durante o terror, ganharam grandes forças, e generalizaram-se extraordinariamente, juntando-se a isso uma formidavel dissolução de costumes. A religião, porém, continuou a ter poucos adeptos, especialmente na pratica do culto, em uma grande parte do povo.
Restabelecer o culto catholico officialmente, e levantar de novo os altares, pareceu a Napoleão ser, para o seu governo, necessidade de primeira ordem, politica e social. Tal é a origem da concordata de 1801, negociada pelo cardeal Consalvi com Bonaparte, então primeiro consul da republica. Por este acto Napoleão trazia em seu favor o Papa e a egreja catholica. As boas relações estabelecidas entre Napoleão e a curia romana não haviam, porém, de ser muito duradouras.
Mas a reacção religiosa foi muito lenta, e nunca se tornou completa. Um povo, ceifado pela foice revolucionaria, não passa assim, de um momento para outro, da incredulidade religiosa, da falta inteira de fé, e do habito de não ter pratica alguma de culto, a ser, de repente, crente convicto, e devoto assiduo.
Assim, apesar dos desejos manifestados por Napoleão, ainda muitos annos depois, já no tempo do imperio, não obstante o imperador insinuar aos seus generaes e officiaes, e á sua corte, que deviam frequentar as egrejas, e irem á missa, raras vezes, a não ser em solemnidades officiaes, os imperialistas lá iam. Muitas vezes Napoleão se disfarçava, principalmente durante o consulado, e percorria as egrejas, para vêr se eram frequentadas, e por que pessoas, e as lojas e ajuntamentos para ouvir a opinião publica a seu respeito; sendo com frequencia reconhecido, o que se umas vezes lhe trouxe grandes ovações, outras vezes lhe deu não pequenos dissabores.
Uma vez, em Paris, na noite de natal, Junot e sua mulher, o general Marmont e sua mulher, e Lavallete, depois de terem ceiado juntos, convidados pelo ultimo, foram, perto da meia noite, á egreja de S. Roque para assistirem á missa do Gallo, que, segundo dizia Lavallete, já se não lembrava como era, por lá ter ido de mui tenra edade, e que os companheiros nunca tinham visto, pois nunca iam á missa, senão em ceremonias officiaes.
Dava Marmont o braço á mulher de Junot, e este á esposa de Marmont, indo na frente Lavallete fazendo muitas momices, e dizendo chocarrices, de que os companheiros riam a bandeiras despregadas. Com estes modos, e aranzel, entraram na egreja, quando, de repente, lhes saiu ao encontro um homem, com uma sobrecasaca comprida toda abotoada, e os reprehendeu, dizendo-lhes que na egreja se devia estar com decencia e respeito.
Ao reconhecerem, no inesperado censor, o imperador Napoleão, ficaram os cinco companheiros como que aturdidos, e passando-lhes de todo o desejo de assistirem á missa, voltaram para casa muito maguados, com o desgosto de terem desagradado ao homem que governava a França.
Tudo o que fazia lembrar o culto catholico, parecia então ridiculo a muito dos personagens importantes d'esta epocha. Assim, tendo Napoleão creado uma nova aristocracia, e resolvendo fazer duques muitos dos seus generaes, lembrou-se de dar a Junot o titulo de duque de Nazareth. Mas, receiando que d'alli poderia provir o ridiculo de lhe chamarem Jesus ou Junot de Nazareth, mudou aquelle titulo para o de duque de Abrantes.
Foi no combate de Nazareth, na Palestina, dado em 8 de abril de 1799, que mais brilhou Junot. Com trezentos homens derrotou a vanguarda do grão visir, composta de uma força de quatro mil homens, matando com a sua espada Ayoub Bay, que a commandava.
Apesar do despotismo imperial, e não obstante a concordata, comtudo as hostes napoleonicas, levavam, aos paizes que invadiam, o germen dos principios liberaes e das futuras constituições dos governos representativos, e a dissolução das crenças religiosas.
Não havia de tardar muito tempo, que se começasse a sentir, na propria França, o resultado do funesto influxo da anniquilação das crenças religiosas, e o desenvolvimento do egoismo individual, em uma grande parte do povo.
Quando empalideceu a estrella de Napoleão; quando, em logar de deslumbrantes victorias, começaram os revezes para os francezes, multiplicando-se successivamente as derrotas; quando, em logar de sempre avançarem, invadindo os povos da Europa, transpondo fronteiras, e conquistando terras, derrubando thronos, e fazendo, dos seus estados, provincias francezas, ou reinos para os parentes ou generaes do imperador, os exercitos francezes começaram a retirar, evacuando os territorios conquistados, ou invadidos, e recuando para as antigas fronteiras, perseguidos pelos inimigos, que, de vencidos, se tornavam vencedores; quando, já não podendo conservar as fronteiras da republica, as tropas gaulezas se viram obrigadas a recuar, para dentro das fronteiras da antiga monarchia; quando a França, invadida, ao sul pelos exercitos inglezes, hespanhoes e portuguezes, a leste pelos russos, allemães e suecos, e hostilisada, ao norte e ao poente, pelas esquadras britannicas, se viu apertada por este cinto de ferro das forças da Europa coalisada, os exercitos inimigos, apenas, encontraram opposição na pequena força, com que o imperador Napoleão lhes poude fazer frente; no resto do paiz não encontraram grande resistencia.
Os francezes, que tão brilhantemente tinham atacado e vencido as nações extrangeiras, não soubeeam defender o seu territorio. Nem o exemplo de Moscow, que os russos incendiaram, lhes serviu de lição e estimulo! Os exercitos alliados poderam passear, livremente, por toda a França!
O enfraquecimento das crenças trouxe logo o enfraquecimento do patriotismo.
O egoismo e os interesses individuaes, predominavam então na maior parte dos habitantes da velha França. Muitos dos principaes influentes, que tudo deviam aos favores, generosidade, e influencia do imperador, até parentes e antigos amigos, não hesitaram em o atraiçoar; em quanto que, por seu lado, o povo, em grande maioria, se lhe tornava hostil, ou indifferente, depois de tanto o ter adulado e acclamado!
Houve, sim, algumas honrosas e heroicas excepções. Eram, porém, casos individuaes ou isolados, que se deram em alguns pontos do territorio.
Não faltaram, é verdade, incentivos poeticos e musicaes, para despertar o patriotismo dos francezes. Assim procuraram resuscitar velhos discursos, e cantos guerreiros, da antiga monarchia, o que, principalmente, deu animo, e esperança, aos realistas, para uma proxima restauração.
O immortal Béranger compoz, então, uma canção, para chamar os francezes á guerra contra os invasores, com o titulo de Gaulois et Francs, para repellir os barbaros extrangeiros, aos quaes chamava as hordas de Attila. Uma opera, de occasião, L'oriflamme, com musica excellente, de Mehul, Päer, Kreutzer e Berton, foi dada no theatro du Grand-Opera.
Musica e poesia despertaram grande enthusiasmo, mas só na apparencia; eram espectaculos e divertimentos que agradavam, e distrahiam os voluveis francezes dos horrores da guerra e da invasão. Mas a expansão patriotica, que em 1792, sob o dominio da crença da liberdade, e do enthusiasmo da revolução, levantou heroicamente, em massa, grande parte da França, contra o extrangeiro, não se repetiu em 1814.
Mais de vinte annos haviam passado, e grandes decepções tinham tido os liberaes de boa fé; liberdade, fraternidade e igualdade, existiam apenas de nome; em seu logar tinha havido um despotismo de ferro, guerras constantes, e a creação de uma nova nobreza, para substituir a antiga.
É verdade que tinha sido um periodo de glorias extraordinarias para a França, que tinham offuscado e assustado a Europa. Mas a esse esplendor seguia-se uma serie rapida de derrotas e revezes. Só a crença robusta e firme na religião, unica que os revezes não abatem, antes exaltam, poderia ter salvado a França, cançada e exhausta, em 1814.
Os exercitos alliados praticaram muitos excessos, barbaridades, violencias, extorsões de todo o genero, em vários pontos da França, o que não era de admirar, com a sede de desforra e vingança que dominava as tropas.
O que, porém, é mais extraordinario, é que as proprias tropas francezas, acostumadas a viverem á custa das nações que, durante tantos annos, haviam invadido e assolado, praticaram as mesmas proezas no seu proprio territorio; dando-se alguns actos de verdadeira selvageria, em que os soldados, por ordem dos chefes, roubaram, violaram as propriedades e as mulheres, e incendiaram as habitações! E, coisa singular, estes excessos foram publicados nas ordens do dia das divisões militares! emquanto o jornal official, o Moniteur, segundo o seu costume, occultava, o mais possivel, os revezes soffridos pelos francezes, e a verdadeira situação da França invadida pelos exercitos da Europa coalizada!
Cincoenta e sete annos mais tarde, a França havia de soffrer uma invasão, dos exercitos allemães, não menos terrivel que aquella, aggravada com a ausencia de victorias, e accrescentada, com uma revolução fratricida, e incendiaria, a da communa de Paris, em 1871.
Como uma conquista amorosa do tenente Cheviot terminou por um tardio
«agua vae» dos costumes lisboetas
Para os camaradas de Remigny, as aventuras amorosas em Portugal tinham sido fontes de prazeres e distracções. É verdade que o tenente Cheviot, nos seus afortunados encontros, teve uma contrariedade, que quadrava bem com os costumes portuguezes da epocha.
Tinha Cheviot feito a conquista de uma creada, da viuva de um chocolateiro, que tinha loja no principio da calçada do marquez de Abrantes. Chamava-se a rapariga Escolastica, nome que o tenente nunca disse, mas que chrismou em chocolat, chamando-lhe son chocolat.
Depois de varios encontros e requebros, tinha conseguido ir a casa da patroa, que morava na travessa dos Pescadores, em um primeiro andar, e alli, a horas mortas, completou a conquista.
Continuaram estas entrevistas amorosas, com grande aprasimento dos dois, durante algumas semanas. Em uma noite, chuvosa e ventosa, de janeiro, em que o official, segundo previa combinação, entrára para a casa da chocolateira, perto da meia noite, abrindo-lhe a creada a porta com a costumada cautella, evitando maior ruido, e conduzindo o francez para o seu quarto, a patroa acordou, levantou-se, e vendo luz no quarto da creada, espreitou pelo buraco da fechadura, e ficou pasmada do que viu.
Como verdadeira portugueza, de antigos brios, em lugar de fazer alarido, occorreu-lhe a idéa da vingança mais original que se póde imaginar. Cobriu-se com um roupão e esperou que saisse o Adonis.
Passado algum tempo ouviu-se certo ruido, abriu-se a porta do quarto, e, nos bicos dos pés saiu Cheviot para a escada. Neste momento apparece de repente a patroa; fecha bruscamente a porta da escada á chave, e correndo o forrolho, e, tirando a chave, abre a janella, e agarrando ás mãos ambas um grande vaso, deposito de immundicias, que a criada desastradamente esquecera de despejar, emborcou-o todo sobre o Adonis da sua sopeira, que ficou em um estado lastimoso, coberto de immundicias mal cheirosas.
Durante um instante, emquanto a sua megera fechava a janella com estrondo dizendo agua vae, Cheviot pensou no modo de tirar a sua desforra d'aquella partida. Mas o tenente do exercito de Sua Magestade o Imperador dos francezes e rei de Italia, era, antes de tudo, bourgeois de Paris; pensou que o melhor era: prudencia e discrição.
Felizmente, que tinha o capote, o qual apanhara o maior da descarga, com alguns salpicos no bonet, tendo ficado encolume a farda.
Dirigiu-se para o largo da Esperança, e no tanque do chafariz, que ali, tão a proposito para o nosso official, edificára Carlos Mardel, lavou o bonet e o capote em satisfeito por não ter sido peior a vingança da chocolateira, retirou em boa ordem dando por finda aquella aventura.
Remigny rejeita todos os projectos e auxilio dos seus camaradas, para a conquista da freira
Por mais de uma vez, Cheviot e Dufourcq, animaram Remigny na sua conquista, offerecendo-se para o coadjuvar na empresa. Mas Raoul sempre rejeitara, não só o seu auxilio, mas até todos os alvitres que lhe suggeriam os camaradas. Estes não reflectiam que a grande paixão que dominava Raoul, junta ao seu caracter religioso, e ao seu brioso pundonor, eram grandes difficuldades, para vencer os escrupulos e os receios de Soror Maria.
O tenente Dufourcq, fertil em expedientes, e de abundante imaginação, para achar processos praticos, para chegar á meta dos seus desejos, exgotou quantas combinações o seu cerebro lhe suggeriu, para proporcionar a Raoul o poder ter entrevistas a sós, e em logar seguro, com a freira.
Era um sem nunca acabar, a serie de meios, que imaginava, em favor dos amores do amigo.
Penetrar no convento disfarçado, e vestido de mulher ainda era melhor que de homem, segundo a opinião d'elle, e não era empresa difficil, obtida a cumplicidade de alguma das serviçaes da communidade; ou escalar os muros da cerca, apesar da sua grande altura. Inclusivamente, entre os processos violentos, o antigo gaiato de Paris, até propunha deitar fogo ao convento, o que daria, ao feliz Adinis, a opportunidade de salvar nos seus braços a sua amada. Accrescentava que nenhum d'estes planos era novo, e que todos já tinham a sancção da experiência, em casos analogos, por esse mundo fóra.
A Cheviot repugnavam os meios violentos e os arriscados, pelo escandalo que acarretariam, e cujas consequencias se não podiam prever. Remigny ouvia todos esses conselhos, e exhortações, mas nunca se atrevia a falarem semelhantes cousas a Soror Maria.
O prudente Cheviot lembrava que o melhor era disfarçar-se Soror Maria vestindo-se de serviçal, e assim sahir do convento, em occasiao apropriada, e vir encontrar-se com Raoul, em entrevistas, em casa especial em sitio retirado; ou fingir-se doente Soror Maria, e obter do medico a prescripção de sahir temporariamente do convento, o que daria facilidades a poder encontrar-se, livremente, com Raoul.
A este proposito Dufourcq lembrava então o rapto, como o melhor expediente a tomar; obtendo-se previamente o assentimento da freira, que, segundo os amigos de Raoul, era cousa mais que certa. Raoul, porém, não era d'essa opinião, e não approvava nenhum dos alvitres lembrados pelos amigos.
Raoul receiava sempre dallar a Soror Maria em qualquer desses planos. Temia não só que ella não se conformasse com os alvitres propostos, mas até que se agastasse com essas conversas. A recusa que ella lhe fez a corresponder-se, por cartas, com elle, uma vez que Raoul lhe pedira isso, ainda mais o entibiou em propor cousas de audacia, ou n'ellas fallar.
Como era difficil promover, em Lisboa, uma sublevação contra os francezes
A animadversão contra os francezes, que substituiu logo a benevolencia com que foram acolhidos pelos portuguezes, começando a lavrar, primeiro pelo povo, nos campinos e povoações do Ribatejo, e depois, alastrando pelas provincias, em breve se propagou, mais ou menos, a todas as classes, e penetrou nas cidades.
Eram frequentes as rixas entre populares e soldados francezes em Lisboa, e nas provincias; produzindo-se tambem muitas vezes tumultos de mais importancia, mas sem direcção, nem plano, nem chefe, de modo que eram logo facilmente reprimidos.
Não faltava, a muita gente, vontade de provocar uma revolta contra os invasores. Tornára-se, porém a revolução mais difdicil do que teria sido a principio, logo quando se verificára a entrada dos francezes na capital, não só porque parte do exercito portuguez tinha sido mandado para França, na legião do marquez d'Alorna, mas tambem porque o resto, que ficára em Portugal, tinha, em grande parte, sido licenciado, de modo que estava muito reduzido.
Além d'isso Junot tinha ordenado, sob penas severas, a entrega de todas as armas, que estavam nas mãos dos particulares; tendo escapado a esta requisição, algumas, mas não em grande quantidade, e sobretudo em mau estado do serviço, que ficaram escondidas.
Os depositos de armas dos arsenaes tinham sido removidos para o Castello de S. Jorge, de modo que só com uma revolução, bem succedida, no Castello, poderia o povo de Lisboa armar-se para uma insurreição.
Uma outra medida, tomada pelo duque de Abrantes, difficultava qualquer tentativa de insurreição dos portuguezes contra os francezes. Era a organisação de uma policia propria, á testa da qual estava Pierre Lagarde, o qual estabeleceu a sua installação no proprio palacio da regencia, que era tambem o palacio da Inquisição.
Neste palacio quasi que Lagarde governava mais do que o proprio Junot, apezar d'este ir ali presidir ás sessões da regencia por elle instituida, a qual approvava, como era de esperar, tudo o que o seu presidente queria ou propunha.
Mas Lagarde tinha toda a confiança de Junot, que lhe suppunha uma habilidade rara para os serviços policiaes, e que lhe deu poderes discricionarios neste ramo de serviço. Á imitação do que fazia o imperador Napoleão, que escrevia, ou mandava escrever, no Moniteur, de Paris, artigos politicos, ou pessoaes, a seu gosto, assim praticou Junot com a Gazeta de Lisboa, cujo redactor em chefe era o tal intendente geral da policia Pierre Lagarde.
Não se contentou, porém, Lagarde, só com governar na policia. Não se satisfazia em ser um intendente ou prefeito de policia. Quiz equiparar-se, ou antes ainda elevar-se acima, do que foram em França os ministros da policia, o celebre Fouché, duque de Otranto, e o general Savary, duque de Rovigo.
Por intermedio dos corregedores móres. Lagarde superintendia, e tinha na sua mão, toda a magistratura d'estes reinos, que geralmente se portou com muita subserviencia.
O procedimento da policia de Lagarde foi muito oppressivo, tyrannico e injusto. O povo tinha-lhe um odio mortal. Para honra dos portuguezes, deve dizer-se que foi muito difficil encontrar, na gente do povo quem quizesse desempenhar tão abjectas funcções, para opprimir seus compatriotas.
Houve alguns renegados portuguezes, entre os agentes policiaes; mas na maior parte eram francezes.
Lagarde, dispondo do palacio do Rocio, como cousa sua, expulsou, brutalmente, alguns dos serviços da Inquisição, que se achava installada no mesmo edificio, tomando posse, para as operações policiaes, administrativas e judiciaes, das salas, gabinetes e carceres, que lhe pareceram mais convenientes.
De modo que os farricocos da Inquisição acharam, nos enviados de Bonaparte, uma concorrencia de competidores não esperados. Os processos da policia de Lagarde eram, porém, mais summarios e menos hypocritas. Não usava, como faziam os inquisidores, admoestar os presos com muita caridade, applicando-os em seguida a variadas torturas. Os seus presos eram julgados summariamente, e quasi sempre em processo só verbal, e applicava-lhe as penas que entendia; mettendo-os nos carceres, que tinha surripiado ao Santo Officio.
O que se dizia, que a policia franceza fazia aos presos, que encerrava nos carceres do palacio do Rocio, era horroroso. Dizia-se que muitos eram entaipados vivos, outros esmagados com pesos de chumbo, outros que eram batidos com saccos de areia, etc.
É de suppôr que houvesse muita exaggeração nestes boatos populares.
No meio da execração que a policia merecia do povo portuguez, julgou Lagarde que obteria resultados mais energicos e efficazes, contra a eventualidade de uma revolução, com a creação de um tribunal especial, com poderes discricionarios, para julgar, o que elle chamava, crimes contra a segurança publica.
Por decreto de 8 de abril de 1808, Junot creou o tal tribunal especial, composto de um official superior francez como presidente, um capitão relator francez, tres officiaes tambem francezes como vogaes, um juiz portuguez, um escrivão francez ou portuguez, que fallasse as duas linguas, e um interprete.
Este tribunal, em que os franeezes estavam em grande maioria, tinha poderes discricionarios, e sem appelação.
As suas sentenças eram executadas em 24 horas. Da competencia d'este tribunal era juiz o conselho do governo, ao qual era remettido o processo ou accusação, antes de ser enviada ao tribunal.
Posteriormente, foi creado no Porto, um tribunal da mesma natureza.
Com um tribunal d'esta ordem, poderia ter havido uma grande carnificina, porque para a maior parte dos delictos era applicavel a pena de morte. Mas o general Junot não era mau. Tinha um genio mau e muito irritavel; mas bom coração. Como as partes, ou processos, antes de irem para o tribunal, iam ao conselho do governo, o proprio duque de Abrantes, desviou muita vez os presos da competencia do tribunal, ficando assim livres de uma condemnação provavel e severa.
Como base do seu organismo policial, tinha Lagarde, como era natural, estabelecido uma vasta rede de espionagem, que penetrava em todas as classes. A primeira necessidade da policia, e particularmente de uma policia que teme a revolução, é ter elementos para saber o que se passa por toda a parte.
Vê-se, pois, que não era facil, promover em Lisboa, uma insurreição contra a dominação franceza.
Conspiradores pacatos e prudentes
Apesar das dificuldades e perigos que apresentava, em Lisboa, a tentativa de uma revolução contra os francezes, comtudo organizou-se uma associação, com esse fim. Os seus membros, porém, eram, em geral, muito pacatos e pouco revolucionarios.
Estava á frente d'esta associação o velho José de Seabra da Silva, por cujas diligencias se organizara a associação, com o fim de expulsar os francezes, e restaurar no throno portuguez a casa de Bragança.
Os meios para conseguir taes resultados, eram porém, muito escassos: e d'esses mesmos recursos nunca se atreveram a usar.
Em geral Lisboa não tem sido forte em iniciativas revolucionarias. Os lisboetas não teem grande queda para virem para a rua fazer sedições a serio.
Na propria revolução de 1 de dezembro de 1640, o povo de Lisboa não teve a iniciativa; foi a nobreza que a fez. O povo, logo, porém, a acceitou, adherindo e auxiliando essa restauração da autonomia portugueza, que expulsou os hespanhoes, e poz no throno o duque de Bragança, com o titulo de D. João IV.
Na associação de Lisboa, em 1808, composta de tresentas pessoas, proximamente, figuravam tambem alguns militares, nobres, negociantes e ecclesiasticos.
Entre os membros da associação revolucionaria contava-se o capitão de infanteria Verissimo Antonio Ferreira da Costa, o tenente Antonio de Padua, o engenheiro José Carlos de Figueiredo e outros.
Nos recursos com que contavam, segundo depois declararam, entravam, entre outras forças, a guarda de policia, o regimento de artilheria n.º 1, e o que não deixava de ser comico, 3:000 gallegos aguadeiros, com o capitão Matheus, inspector dos fogos, á sua frente.
Para dar unidade e concentrar a acção, e melhor guardar o segredo das deliberações, a associação elegeu uma especie de commissão executiva, a que deu o nome de conselho conservador de Lisboa! era verdadeiramente burlesco o titulo de conservador, dado ao conselho, que tinha pretensões de revolucionario, e affirmava ser o seu fim o expulsar os francezes de Portugal, e restaurar o throno da Casa de Bragança!
Era uma verdadeira comedia. Muitos dos membros da associação, a principiar pelo chefe José de Seabra da Silva, eram muito bem vistos dos francezes, estando nas melhores relações com o governo de Junot, por um lado, e por outro mantendo correspondencia secreta com todas as juntas e grupos ou associações, que, pelas provincias, se preparavam para provocarem a revolta contra os francezes!
A policia de Lagarde tinha, porém, conhecimento da existencia da tal associação. Mas Junot soube, primeiro que os espiões do intendente, não só dos conciliabulos dos conspiradores, mas até do pouco valor revolucionario de taes ajuntamentos.
Foi em casa de Jacintho Fernandes da Costa Bandeira, contratador dos Tabacos, e director de varias fabricas, de lanificios da Covilhã, Fundão e Portalegre, papel de Alemquer etc, sobrinho do barão de Porto Côvo, que Junot soube da existencia da associação revolucionaria de Lisboa, e do seu conselho conservador.
Por intermedio da mulher de um major de artilheria, que era uma das conquistas de Junot soube o general como na tal associação entravam varios militares.
Foi, só, alguns dias depois, de Junot ter, por duas vias differentes, sabido da existencia da tal commissão, que Lagarde se apresentou no palacio da Regencia, e que, em particular, e reservado segredo policial, lhe participou, como os seus espiões tinham descoberto, que se preparava uma insurreição contra a dominação franceza, e lhe deu os nomes de alguns dos conspiradores.
Ao receber tal communicação, dada em tom mysterioso, e com ares de alto segredo de estado, de uma cousa que o duque de Abrantes já sabia, por differentes vias, o general não poude deixar de rir.
Perante esta attitude do governador de Portugal, o intendente Lagarde ficou interdicto.
Não percebeu ao certo se o general se ria da insignificancia da descoberta, ou se não acreditava na sua veracidade. O que não lhe occorreu foi que o governador de Paris soubesse, antes delle, e por
outro canal, que não fosse o da sua policia, um segredo de tal importancia.
O que, porém, foi o cumulo da sua admiração foi o dizer-lhe o general que não prendesse, não perseguisse, nem incommodasse nenhum dos conspiradores, e que deixasse á vontade funccionar a tal associação revolucionaria e seu conselho conservador.
Foram os negociantes e capitalistas Jacintho Fernandes Bandeira, grande contratador de tabacos e outros productos, Francisco José Pereira o dono do palacete do largo do conde de Barão, que recebia em seus salões as autoridades francezas, e onde se preparou o offerecimento do famoso collar de diamantes á esposa de Junot, o proprio José de Seabra e Silva, grande conselheiro do duque de Abrantes, e outros membros da associação, que persuadiram Junot que a tal commissão revolucionaria era, de facto, um meio de obstar a uma verdadeira revolução, pois que sem ordem e auxilio d'ella, se não podia levar á execução revolução a serio. Sendo assim, era bem dado o nome de conservador ao seu consellio executivo.
No botequim do Nicola, onde, com frequencia se reuniam muitos officiaes francezes, eram alvo da conversação, ahi pelo mez de abril, os boatos que corriam de tumultos pelo paiz.
O tenente Dufourcq dizia então, com os seus ares comicos, que era muito bem feito; só o que admirava é que fossem tão insignificantes.
Neste assumpto, Dufourcq sabia mais que os camaradas, porque, apesar de ser apenas tenente, tambem tinha, como o General Junot, sabido da conspiração por intermedio do bello sexo, graças a uma aventura com uma linda vendedeira de leite, Amelia de Jesus, que estando com elle em um cazal, a Campo de Ourique, e chegando de repente o patrão, fechara rapidamente o tenente em um palheiro, que dava para um curral, dizendo-lhe que não saisse d'ali, até ella voltar.
Não menos de tres horas, esteve ali o tenente dos imperiaes exercitos de Bonaparte; mas não esteve todo esse tempo aborrecido, e sem ter em que se occupar; pois no curral entraram varios homens, entre os quaes dois officiaes de artilheria que, nao julgando que ali perto houvesse quem os pudesse ouvir, começaram a fallar em insurreição contra os francezes, contando um d'elles que breve rebentaria a revolução em Bragança e no Porto, e que, nessa noite, se reunia o Conselho conservador de Lisboa, para tomar resoluções importantes.
Quando a leiteira veiu dar a liberdade a Dufourcq, já havia mais de uma hora que se tinham retirado do curral os tres iniciados nos projectos de revolta. O tenente nada disse do que ouviu, e, sacudindo a palha de que estava cuberto e, abraçando a rapariga, e beijando-a sete vezes, que, dizia elle, era a sua conta, retirou-se, sabendo tanto, ou mais, que o general Junot e o seu intendente de policia.
O duque de Abrantes, não só não deixou que o tal tribunal extraordinário por elle creado, nem o intendente de policia, procedessem contra os membros da Associação revolucionaria, mas até, ou cedendo ás razões e conselhos que lhes tinham dado alguns membros d'ella, ou porque não a julgasse perigoza, tolerou que continuasse a funccionar.
Entretanto o Conselho conservador estava em correspondencia com os chefes dos movimentos revolucionarios nas povincias, com o almirante inglez Cotton, cuja esquadra cruzava na costa de Portugal, e com o almirante russo Siniavinn, commandante da esquadra russa, que estava fundeada no Tejo, e que, apesar das amigaveis relações que, desde o tratado de Tilsitt, existiam entre o imperador Napoleão, e o imperador da Russia, e não obstante os reiterados pedidos de Junot, nunca quiz coadjuvar em coisa alguma o exercito francez em Portugal, nem contra os portuguezes nem contra os inglezes, allegando não ter instrucções para isso.
O Conselho Conservador de Lisboa recebia, noticias dos movimentos projectados, ou realizados, nas provincias; mas pela sua parte não só não fazia nada, mas até os paralisava quanto podia, com pretexto de esperar melhor opportunidade.
Os conspiradores de Lisboa eram homens pacatos e prudentes, quasi todos abastados, ou em boa posição social, e que tinham muito amor ás suas pessoas e aos seus bens, nao querendo arriscar-se a collocarem-se em ostensiva hostilidade contra os francezes, e muito menos virem para as ruas fazer motins.
Foi nas provincias que explodiram os movimentos populares contra os francezes, tornando-se serios, e ganhando importancia, no mez de Junho, principalmente, com a retirada das forças hespanholas para Hespanha, no Porto, em Braga, Bragança, Coimbra, Aveiro, Figueira, Evora, Beja e outras terras.
Nem com estes factos, o tal Conselho conservador entrou em acção em Lisboa. O seu procedimento, além de ter por origem o medo, tinha tambem por alvo, não perder as boas graças do governo francez, se este continuasse a dominar; e ficar, de futuro, bem com o governo insurreccional, se a revolução vingasse, allegando grandes serviços prestados com a tal associação.
Mas parece que o grande amor á pelle, e aos seus bens, era o dominante nestes conspiradores, pois que nem depois dos francezes serem derrotados na Roliça e em Vimeiro, ousaram fazer, em Lisboa, uma revolta contra o governo usurpador dos francezes, apesar do povo que, em quantidade enorme, se reuniu no Rocio, quando chegou a noticia da batalha de Vimeiro perdida por Junot, e que estava effervescente e prompto á sedição, que não seria difficil, visto haver em Lisboa pouca tropa franceza, que seria facil prender e desarmar.
Nem assim os conspiradores resolveram aproveitar as boas disposições populares. Pelo contrario, antes trataram de acalmar o povo, com receio, diziam elles, de que a plebe praticasse toda a sorte de violencias e desacatos, entregando-se ao roubo e vinganças particulares.
O clero, officialmente, tambem contrariava, e condemnava, os movimentos sediciosos do povo. Assim, por insinuações de Junot, em 2 de julho de 1808, foram publicadas pastoraes pelo principal Castro e outros, ameaçando de excommunhão os portuguezes que hostilizassem as tropas francezas, que pacificamente occupavam Portugal, sob as ordens de um chefe amigo, em nome do grande imperador e invencivel Napoleão.
Foi assim, que a libertação de Lisboa só se realizou, quando na capital entraram as forças luso-britannicas.
Comtudo não deixaram de alardear serviços depois da expansão dos francezes. Até o capitão Verissimo se deu como auctor, elle proprio, de um projecto de insurreição. É verdade que, em contraposição, muitas pessoas, cujos nomes então foram publicados, como tendo pertencido á tal associação, vieram reclamar, na Gazeta de Lisboa, contra essa asserção, negando terem pertencido a tão pusillanime associação.
Amor, tristeza e separação
Raoul estava magro e a definhar; não comia quasi nada. Sempre triste e pensativo, só se achava bem na egreja, ou no parlatorio, do convento da Esperança.
Dizia-lhe Cheviot, fazendo estas observações, que era indispensavel, para seu bem, ou curar-se de tal paixão, rompendo de todo, se para isso tivesse forças, ou concluir a aventura conquistando materialmente o objecto do seu culto.
Dufourcq, muito judiciosamente, accrescentava que havia ainda outra rasão mais forte, de que elles nunca se lembravam, e era que não deveriam tardar a apparecer os inglezes, que todos os dias se annunciava como promptos a desembarcar, e cuja esquadra cruzava na costa de Portugal, e que era de esperar que elles tivessem de ir combater.
Um acontecimento, inesperado, pareceu vir dar rasão a Dufourcq, mais depressa talvez do que elle mesmo esperava. Estava-se a 28 de abril e, do quartel general da divisão Laborde, veiu ordem para, no dia 30, partir para Cascaes um destacamento do 70 de infanteria, composto de duas companhias, sob o commando do capitão Raoul de Remigny.
Tendo a divisão do general Travot realizado um movimento para o norte, passou a divisão Laborde a guarnecer, provisoriamente, as fortalezas da barra, as margens do Tejo e Cascaes.
Foi esta ordem um raio que veiu assombrar Raoul.
Como se fosse de admirar um tal acontecimento, tão banal e usual, na vida militar, em um corpo de exercito de occupação, em paiz extrangeiro.
Não se pode descrever o estado em que ficou Raoul com esta noticia, que procurou logo communicar a Soror Maria, o que porém, só poude conseguir no dia seguinte, que foi um dia de pranto na grade do parlatorio.
Nesta occasião, a monja não persistiu na recusa de entrar em correspondencia epistolar com Raoul. Exigiu, porém, mil cuidados. Ficou combinado que seria o tenente Cheviot, que ficava em Lisboa, quem seria encarregado de fazer chegar á freira as missivas de Remigny, e receber d'ella a correspondencia para elle, não se servindo, porém, das serviçaes como intermediarias.
Nesta entrevista, sempre recortada de lagrimas de ambos, em que se trocaram protestos de eterno amor, Soror Maria deu ao capitão Remigny um bellissimo retrato, feito, havia quatro annos, pelo celebre Bartolozzi.
No dia seguinte Remigny partiu para Cascaes commandando o destacamento.
Das emoções que, na marcha para Cascaes, teve o tenente Dufourcq
No dia 80 de abril de 1808, pelas 6 horas da manhã, partiu, para Cascaes, o destacamento do 2.º batalhão do regimento n.º 70 de linha, commandado pelo capitão Remigny.
O tenente Dufourcq, da companhia do capitão Raoul, que tinha contrahido, em Lisboa, numerosas aventuras amorosas, ligeiras e pouco duraveis, teve a comica ideia de convidar tres mulheres do seu conhecimento, uma varina, uma capelista, e uma costureira, de nenhuma das quaes era, por certo, nem unico, nem primeiro freguez, para uma entrevista na rua de S. Francisco de Paula, por onde devia passar o destacamento, junto ao caminho que dava entrada para as escadinhas da Rocha do Conde de Obidos, pelas 6 horas da manhã d'aquelle dia.
As tres filhas de Eva, sem saberem umas das outras, foram exactas ao rendez vous; e foi, com admiração e contrariedade, que, sem se conhecerem, se encontraram juntas, á entrada da estreita viella da Rocha do Conde d'Obidos.
Não tinha ainda passado um quarto de hora que ali estavam, já bastante desconfiadas de se acharem tres n'aquelle logar, quando se ouviu toque de tambores, e logo, instantes depois, passou um destacamento de infanteria franceza, a cujo flanco caminhava o tenente Dufourcq, todo risonho, e que apenas viu as tres mulheres, começou a rir e a cumprimental-as, fazendo-as passar, successivamente, pelas phases de admiração, gesticulação, descompostura e, afinal, de rixa, particularmente entre a varina e a costureira, ao passo que a capelista deitava a fugir, no que foi imitada, pouco depois, pela costureira, ficando só em campo a varina, vociferando, com as mais bellas expressões de linguagem de vendedeira de peixe, com grande gaudio do rapazio, e mais transeuntes, que tiveram a felicidade de gozar gratuitamente, áquella hora matinal, um espectaculo, que sempre é apreciado pelo sexo forte.
O destacamento fez alto em Paço d'Arcos, onde chegou antes das 9 horas. Ensarilhadas as armas, dirigiram-se os officiaes para uma casa de pasto, e mandaram fazer o almoço.
Em quanto não tomavam a refeição, Raoul tomou um quarto, e n'elle se recolheu sósinho, entregando-se á contemplação do retrato de Soror Maria. Dufourcq, deixando os seus camaradas na casa de jantar, sahiu, como se não tivesse andado mais de duas leguas, e foi dar um passeio pela praia.
Havia apenas dado entrada n'aquelle littoral, quando se viu cercado por um bando de gaiatos, de varios tamanhos, que, correndo, vinham de diversos pontos, ao seu encontro, rotos e miseraveis, fazendo uma berraria infernal, dando vivas aos francezes, e atirando com os barretes ao ar.
Tudo esperaria o tenente Dufourcq, menos uma ovação, em Paço d'Arcos aonde nunca tinha ido.
A principio, a primeira impressão foi que seria uma partida da gaiatada, uma troça, como tinha feito muitas, quando creança, em Paris. Custava-lhe a crer que a disposição dos populares fôsse, aqui, tão diversa da que manifestava ultimamente o povo da capital, sempre em rixa contra os soldados francezes. Depois recordou-se ter ouvido dizer que o general Travot, que commandava a divisão que estivera nesta localidade, tinha achado o melhor acolhimento nas povoações.
O facto é que elle colhia o beneficio da popularidade, das tropas da divisão de general Travot, que tinha sido o bemfeitor dos pobres d'esta região.
Continuando a ovação dos gaiatos, o tenente tomou a resolução de agradecer, fazendo grandes continencias, atirando com a barretina ao ar, e dando grandes vivas á rapaziada, a qual passou então da gritaria á choradeira, estendendo as mãos, e os barretes, a pedir alguma esmolinha.
Não tendo encommendado taes applausos, o tenente Dufourcq, não se julgou obrigado a pagal-os; entre tanto o seu bom coração, compadecido da miseria dos rapazes, quasi todos filhos de miseros pescadores, aos quaes era difficil poderem sair a barra a pescar, o que lhe recordava a sua triste infancia, levou-o a satisfazer os desejos da rapaziada; mas não perdendo, tambem, o seu natural de gaiato, deu-lhes quantas moedas de cobre tinha, atirando-as, porém, a distancia, estabelecendo-se uma corrida ao desafio, de todo aqnelle bando, a ver qual apanhava mais.
A esta esportula, juntou duas moedas, de seis vintens em prata cada uma, que deu para serem distribuidas por todos.
Com renovados e ruidosos vivas partiu em seguida toda aquella nuvem de pobres maltrapilhos.
Assim o julgava Dufourcq. Porém, em breve, percebeu que tinha ficado um agarrado á sua espada, que puchava sem cessar, deitando tambem alternadamente as mãos ás calças, como a querel-o levar comsigo. Era este retardatario um pequenito de cinco annos. Não estava esfarrapado como os companheiros. Apresentava-se mais ao natural. Nenhum fato tinha. Pastava nusinho de todo; apenas tinha na cabeça os fragmentos de um velho barrete que tinha sido encarnado.
Por mais que Dufourcq lhe perguntasse o que queria, só dizia, repetidas vezes, mãe, mãe, com afflictiva voz. Impressionado pela creanca que o puchava sempre, o tenente deixou-se guiar pelo rapazito, que o foi conduzindo a uma estreita rua junto á praia, e a poucos passos entrou em uma casa terrea, verdadeiro antro de miseria, que horrorizou o official francez.
Sobre uma enxerga a desfazer-se de podre, sobre o chão terreo e humido, jazia uma mulher, ainda nova, viuva de um pescador, a debater-se nas agonias da morte. De joelhos uma rapariga de oito annos, sua filha, a querer dar-lhe um boccado de pão negro e duro, que ella nem já via. A pequena distancia, sentada no chão, uma velha, a mãe da agonisante, com umas contas na mão.
De mobilia não havia mais do que uma tripeça, de pau, sem costas, tendo em cima um tacho de barro, e um pucaro grande com a aza quebrada; uma velha arca, sem tampa, e, a um canto da casa, um pote de barro, quebrado na borda.
Impressionado, com este quadro, e desejando soccorrer estes desgraçados, não sabendo bem como, porque dos quatro personagens, um estava a expirair, dois eram creanças, e a velha parecia-lhe uma idiota, Dufourcq tirou da sua bolsa um cruzado novo e tres moedas de doze vintens, (pouco mais tinha elle comsigo), distribuiu aquelle dinheiro pela velha e pela rapariga, e resolveu ir á procura de algum medico ou cirurgião. Mas quando ia a sair de casa encontrou na rua um padre, com a Santa Uncção, acompanhado de sacristão e de um velho pescador que o tinha ido chamar, e atraz dois soldados francezes fazendo chacota, um dos quaes, com uma canna, atirou ao chão o barrete
(solideo) do padre.
Neste momento os soldados, porém, viram o tenente e fugiram; mas Dufourcq, com um salto que faria honra ao mais habil jogador de savate, deu no soldado que tinha deitado ao chão o barrete do padre, um pontapé nas costas, que o fez ir de bruços ao chão, abrindo uma brecha na cara, por onde escorria abundante sangue. Apesar do choque e da ferida, o soldado levantou-se e deitou a fugir, debaixo de uma saraivada de pranchadas dadas com a espada pelo tenente.
Dufourcq, abandonando os fugitivos, voltou atraz, e entrou na casa onde o sacerdote, com uma serenidade evangelica, que não se havia alterado com os insultos, acabava de ungir a desgraçada, para a qual, instantes depois, cessavam todos os soffrimentos.
Regressando á casa de pasto, Dufourcq contou aos camaradas todo o succedido, e com o auxilio da bolsa do capitão Remigny, que era o mais endinheirado, mandou o seu impedido comprar dois colchões, uma peça de chita, dois cobertores, e outros objectos, que pagou, desprezando os conselhos dos officiaes da outra companhia do destacamento,
que lhe diziam que tudo requisitasse, e nada pagasse, e fez remetter todos aquelles objectos para a casa onde estivera, e igualmente mandou, para aquella pobre gente, uma panella com uma porção do rancho do destacamento.
Dufourcq mostrava assim que o gaiato de Paris tinha um nobre coração, e que, nas tropas francezas, não era só na divisão do general Travot que havia gente bemfaseja.
Pelas 2 horas da tarde, o destacamento pôz-se de novo em marcha, e antes da noite estava em Cascaes.
A duqueza de Abrantes, esposa de Junot -- O Imperador Napoleão e as mulheres que incorriam no seu desagrado
Laura Junot, que foi a duqueza de Abrantes, esposa do general, acompanhou seu marido na embaixada a Portugal, em 1804. Era vista com frequencia, no theatro de S. Carlos, no camarote de 1.ª ordem n.º 41, que tinha de assignatura.
Quando Junot invadiu Portugal, com o exercito do seu commando, sua esposa, que então se achava em estado muito avançado de gravidez, ficou em França.
A duqueza de Abrantes, Laura de Comnêne de Saint Martin Permont, tinha nascido em Montpellier, a 6 de novembro de 1784. Casára com Jean Andoche Junot, em 1799, tendo portanto apenas quinze annos de edade.
Quando esteve em Lisboa, como embaixatriz, Laura Junot era uma rapariga que só contava vinte annos. O general embaixador, seu marido, tinha então trinta e quatro annos. Os representantes de Bonaparte estavam no vigor da mocidade.
O imperador Napoleão foi padrinho da primeira filha de Junot. Deu, por essa occasião, á mulher do general, um predio de casas nos Campos Elysios, em Paris, e mais cem mil francos. A madrinha, a imperatriz Josephina, deu-lhe quarenta mil francos.
Por occasião do casamento de Junot, o imperador deu-lhe em dote cem mil francos, e um enxoval, no valor de quarenta mil francos.
A mulher de Junot era tão gastadora, e amiga do luxo, como o general seu marido. Quando veiu a Lisboa em 1804, fez a viagem por terra, trazendo uma grande profusão de cavalgaduras e seis carros carregados de bagagem.
A princeza do Brazil offereceu a madame Junot, a banda da ordem de Santa Isabel. O imperador Napoleão, porém, não lhe deu licença para aceitar, com o pretexto de que a imperatriz dos francezes a não usava.
Era a duqueza de Abrantes dotada de muita vivacidade e instrucção, e de conversa facil e agradavel. Em Lisboa, durante a embaixada de seu marido, recebera frequentemente em sua casa não só o corpo diplomatico, mas muitas outras pessoas de diversas classes. Esteve muito ligada com a condessa da Ega, duqueza de Cadaval, marqueza de Louriçal, marqueza de Loulé e duqueza de Lafões.
Muito conhecida e de intima amizade com Napoleão, ainda no tempo do Directorio, conservou sempre grande familiaridade com elle, mesmo depois de imperador, dizendo-lhe tudo o que lhe parecia, a respeito de tudo, e de todos; em politica, sociedade, guerras, administração, etc. Napoleão tolerava na mulher de Junot o que não admittia a mais ninguem; e fez-lhe grandes beneficios; nomeou-a dama de madame Mère, mãe do imperador, deu-lhe casa, grandes presentes, etc. Mas por fim aborreceu-se com a mania, que a dominava, de se metter em cousas com que ella nada tinha, e perdeu grande parte da estima e consideração que antes lhe merecera, chamando-lhe com enfado la petite peste.
Napoleão, ainda antes de ser consul da republica franceza, tinha sido pretendente amoroso de mademoiselle Laura, futura duqueza de Abrantes, como o tinha sido tambem, quasi ao mesmo tempo, da mãe d'ella. Alguns diziam que tinham alcançado bom exito, as suas galanterias com a futura duqueza; outros affirmavam o contrario.
D'esta resistencia aos desejos do futuro imperador, que Laura admirava e estimava, se vangloriava a mulher de Junot. A tal fiasco, tão raro nas aventuras galantes de Napoleão, attribuia ella um resentimento que, segundo dizia, nunca se apagára na memoria do imperador, e de que resultou, segundo ella contava, ser Napoleão, varias vezes, duro, injusto e ingrato para com ella, e para com seu marido e seus filhos.
Entretanto, admittindo a rigorosa verdade d'estas afífirmações, a mulher de Junot devia considerar-se muito feliz, pois o imperador fez-lhe, não só a ella, como a Junot e seus filhos, beneficios extraordinarios. Sobre tudo mais feliz ainda devia julgar-se se comparasse a sua posição como mulher do governador de Paris, tendo honras de governadora, mesmo na ausencia de Junot, com o que succedera a outras mulheres, que tinham resistido, ou desagradado, ao imperador, que levava o seu despotismo, nao só ás relações politicas, mas até á vida intima das pessoas, contra as quaes julgava ter motivos de queixa.
O imperador irritava-se extraordinariamente com as amizades, e relações dos seus amigos, com pessoas que julgava inimigas; mais facilmente tolerava que uma mulher repellisse os seus galanteios, do que recebesse em sua casa, e tivesse relações com pessoas, homens ou mulheres, com as quaes elle antipathisava, ou que julgava seus inimigos.
Assim, quem caisse no desagrado de Napoleão, não podia viver socegado no logar que lhe approuvesse: pois se o capricho do imperador lhe desse, como muito lhe era costume, para a proscripção, vinha uma ordem de exilio, que desterrava para um local, que fosse escolhido pela sua phantasia.
Muitas damas da côrte foram victimas da mania exiliatoria de Napoleão. Madame Récamier foi desterrada de Paris para Lyon. O mesmo succedeu á duqueza de Chevreuse, que foi morrer exilada em Lyon. A celebre madame Stäel foi obrigada a sair da Suissa onde gostava de viver, não lhe sendo permittido residir em França.
Como houve uma epocha, de 1804 a 1810, em que o imperio francez tinha os braços muito compridos, quem fosse perseguido por Napoleão, não tinha no continente europeu logar seguro onde se recolher.
Ás vezes, a vontade do imperador Napoleão não se limitava a fazer exilar as grandes damas; mandava-as prender. Os governos das outras nações, com a mais vergonhosa subserviencia, prestaram-se a todos os caprichos do despota que, com o seu genio das batalhas, os derrotara; conducta de que se haviam de vingar, mais tarde, quando o colosso, enfraquecido, pelo extenuamento da França, e pelo grande numero de erros politicos commettidos por elle, havia de succumbir, esmagado ela Europa coalisada.
Julgando ter rasões de queixa contra madame Spencer Smith, filha do Barão Herbert, internuncio de austria em Constantinopla, cunhada do almirante inglez Sydney Smith, e mulher do embaixador inglez em Stuttgart, que se achava em Veneza em 1805, o imperador mandou, ao chefe da policia, em Veneza, que era Pierre Lagarde, o mesmo que veiu depois a Lisboa, ordem, primeiro para obrigar madame Smith a sair de Veneza, e logo por outro correio, no dia seguinte, ordem para ser presa, e conduzida a Milão.
Foi então que o marquez de Salvo, fidalgo siciliano, que a adorava, se prestou, com a maior dedicação, amor e abnegação, a tentar uma fuga, que ambos executaram, disfarçados, atravessando o Tyrol, a Austria e Allemanha, passando inclemencias, perseguidos pelas autoridades austriacas, sendo salvos por um official de cavallaria austriaca, que a reconheceu, em gratidão de um convite para um baile, a que elle tinha tido muitos desejos de ir, e que madame Spencer lhe tinha concedido.
Depois de muitas aventuras e peripecias, correndo não poucos perigos, poderam chegar á Russia, e embarcar em Riga para Inglaterra, onde o marquez de Salvo a deixou entregue á familia de seu marido.
Emquanto á duqueza de Abrantes e seu marido, só a partir da campanha de Portugal é que começou a esfriar a affeição de Napoleão por elles, e a diminuir a extraordinaria protecção com que Napoleão sempre os tinha beneficiado, chegando, mais tarde, o imperador, a ser mesmo, por vezes, duro, injusto e ingrato, para com Junot e sua esposa.
Junot assiduo frequentador do theatro de S. Carlos, e galanteador das damas mui querido -- Retrato da princeza D. Carlota Joaquina de Bourbon, esboçado por Junot.
O barão de Quintella, tinha, como já ficou dito, no theatro de S. Carlos um grande camarote na 1.ª ordem, junto á scena, do lado esquerdo, com diversas salas e entrada independente. Para este camarote ia habitualmente o general Junot, excepto nas noites de gala em que então, com o seu cortejo de generaes, assistia ao espectaculo na tribuna real.
Nesta epocha ainda não existia o camarote real, destinado ao uso particular do rei e da familia real, e que fica fronteiro ao que pertencia ao barão de Quintella, na 1.ª ordem, junto á scena do lado direito. É das mesmas dimensões d'aquelle; occupa o espaço de dois camarotes ordinarios de boca.
O camarote real só foi arranjado no tempo da reinado de D. Miguel, para uso deste monarcha o qual, porém, nunca se utilisou d'elle. Occupa o logar dos camarotes n.ºs 45 e 46; sendo os camarotes contiguos n.ºs 44 e 43, e que communicam um com o outro, para a comitiva real. Tem o camarote real tambem algumas salas e entrada independente.
O camarote do barão de Quintella nunca teve numeração, porque sendo feito logo na occasião da construcção do theatro, não se contou com elle para numeração, por ser propriedade particular e perpetua na familia Quintella, independente da empreza, qualquer que ella fosse. Este camarote foi vendido em praça, depois da morte do conde de Farrobo, sendo comprado por el-rei D. Fernando. No inventario a que se procedeu, por morte de el-rei D. Fernando, foi avaliado em 36:000$000 réis o camarote e suas dependencias e em 446$800 a mobilia que o guarnece.
Posteriormente foi comprado pela condessa de Penha Longa, e dividido em dois, tendo ficado até agora, o camarote de boca, á disposição da condessa d'Edla, viuva de el-rei D. Fernando.
Junot tinha sido assignante no camarote n.º 41 da 1.ª ordem, do theatro de S. Carlos, de 1804 a 1805, quando esteve como embaixador da França, junto ao principe regente de Portugal, em seguida á reluzente embaixada do general Lannes.
O duque de Abrantes era assiduo frequentador, não só da sala, mas tambem do palco do theatro de S. Carlos, e o corpo de baile mereceu-lhe mais attenção do que as cantoras. Cultivando a companhia das bailarinas, em larga escala, despertou o ciume, e deu origem a não pequenas intrigas de bastidor, dos competidores, pretendentes, ou possuidores, das interpretes da arte de Terpsichore, e que não podiam conformar-se em ter o general Junot como rival, partilhando dos seus amores choreographicos.
Um dos despeitados com a investida do duque de Abrantes, pelo esquadrão choreographico, carregando, á direita e á esquerda, sem contemplações, como se tudo fosse seu, foi o bailarino Fago, que não querendo para collega o general, nos seus amores com a bailarina Julie Petit, contrariava quanto podia a côrte do duque, não se tirando da presença da dançarina, e chegando até a chamar saltimbanco ao enviado de Napoleão!
O que é mais comico é o proceder de Junot. Como faria qualquer despeitado mais reles, ciumento intriguista de bastidor, o duque de Abrantes mandou dar pateada ao bailarino Fago! e não contente com isso rasgou-lhe a escriptura.
O bailarino ficou em Lisboa, ainda que despojado do seu emprego choreographico, e da posse exclusiva da dançarina. Mas, depois da retirada dos francezes de Lisboa, reclamou, perante os tribunaes, contra a rescisão da escriptura, e o intendente da policia, Lucas Seabra da Silva, que veiu substituir Pierre Lagarde, deu razão ao bailarino.
Junot fazia diversas excursões campestres com as bailarinas; entre essas, parties de plaisir, deu muito que fallar, causando grande escandalo e enchendo de indignação os pacatos burguezes lisboetas, uma festa que, a si proprio se proporcionou o general, indo passar os dias 13, 14, 15 e 16 de março de 1808, com quatro bailarinas do theatro de S. Carlos, no palacio e quinta do Ramalhão, tendo para esse recreio, então muito original, e fóra dos habitos e costumes portuguezes, convidado varios cavalheiros e damas, portuguezes e francezes, da sua maior intimidade.
Como vistoso e atrevido galanteador que era, Junot tinha, segundo se dizia, feito mais de uma conquista na facil, e pouco moralisada, côrte
d'estes reinos. Porém, a fama das suas façanhas amorosas cresceu de ponto na sua volta a Portugal. Asseveravam que as bellas ainda foram mais promptas, em capitular, perante o jçeneral invasor, do que o tinham sido com o embaixador de Napoleão.
Quando esteve como embaixador nesta côrte, Junot com a sua bella presença de jovem, e petulante, militar, despertou, entre as damas da côrte não poucas sympathias.
Entre todas foi notada a princeza D. Carlota Joaquina, pelo que se adiantou, para com o enviado de Bonaparte, e pelos desejos que lhe manifestou, de o contar nas suas muito falladas aventuras.
Como costuma succeder em casos analogos, os cortezãos deram logo por corrente, e veridico, aquillo que se suspeitava; e a voz publica lhe foi logo écco repetidor.
Junot, interpellado por sua mulher a este respeito, negou, indignado, que tivesse correspondido ás provocações da princeza. Eis o lindo retrato physico da mulher do principe regente, traçado pelo embaixador de Napoleão.
Segundo o general Junot, a princeza tinha uma figura rachitica, com olhos pequenos e olhar obliquo e desegual, nariz grande terminando em fórma de tomate encarnado! dentes negros, verdes e amarellos, em viez, pelle aspera e rugosa, peito mettido para dentro, um hombro mais alto do que outro, e braços descarnados, chatos e sujos, dos quaes pendiam mãos com unhas sempre negras!
Accrescentava o general que a princeza, no seu conjuncto, lhe produzia uma tal impressão, de antipathia e repugnancia, que o collocava fóra da possibilidade de se prestar á satisfação dos desejos principescos. Por isso fugira dos rendez-vous na quinta da Princeza em Pedrouços.
Affirmava Junot que não tinha geito algum para diplomata, no que dizia a verdade.
Asseverava, que se vira em grandes embaraços, nas suas informações, ao governo imperial, sobre côrte portugueza. O que informára sobre a princeza, era menos de metade do que vira e ouvira a seu respeito.
Se era carregado, de côres sombrias, o retrato que, da princeza que depois foi rainha de Portugal e imperatriz do Brasil, fez o general embaixador, na sua correspondencia official e particular, não era mais favoravel a apreciação que da mesma princeza, apresentou, nos seus escriptos, a esposa do embaixador, que tambem esteve com elle em Lisboa e a conheceu pessoalmente.
A posteridade, imparcial e desinteressada, confirmou em grande parte, o juizo, que, no meio das intrigas da côrte, e das paixões politicas, da princeza fizeram os contemporaneos.
Mas, se se tornou legendario, e repetido á saciedade, em mais de cem annos já decorridos, o conjuncto de vicios e defeitos, no physico e no moral, d'aquella princeza, é justo que, em homenagem á verdade, aqui digamos de algumas qualidades que possuia.
Emquanto ao physico não diremos que era bella. Tambem não contestaremos que houvesse na princeza, bem como na familia real, e em geral na nação portugueza, a falta de limpeza, que Oliveira Martins, na sua Historia de Portugal, tão pittorescamente descreve.
Mas, segundo testemunhas contemporaneas, o bravo general deixou em silencio, na descripção pessoal de Carlota Joaquina, o cabello que era extraordinario, bello e abundantissimo. O que Junot julgou vêr, nos braços da princeza, nã era immundicia, mas sim espesso cabello.
Tinha a princeza um espirito sagaz; era instruida e dotada de muita coragem.
Foi graças a esta apreciavel qualidade, que se mostrou briosa, altiva, e heroica, perante as côrtes recusando-se, apesar de todas as ameaças, a jurar a constituição de 1822. Por isso não teve que ser perjura, como foram tantos outros que a haviam jurado e que, em 1823, contribuiram para a derrubar, e restabelecer os chamados inauferiveis direitos do absolutismo.
Assignantes do theatro de S. Carlos no tempo dos francezes
O empresario á força, Francisco Antonio Lodi obedecendo ás ordens de Junot, tomou conta do theatro e abriu assignatura; e, contra o que se poderia esperar, houve bastante concorrencia de pessoas a assignarem. O numero de assignantes de camarotes, durante a occupação franceza, foi maior do que tinha sido na ultima epocha em que Lodi fôra emprezario, de 1802 a 1805, durante o aureo periodo do theatro de S. Carlos, em que resplandeciam a Catalani e o Crescentini. Os preços tinham sido um pouco elevados no fim d'aquella epocha, em relação ao que eram primitivamente. Os preços desde 1805 eram os seguintes:
Frizuras (frizas)...... 3$200
Ordem nobre ...........3$600
3.ª ordem .............2$880
4.ª ordem .............2$400
Torrinhas .............1$600
Superior ..............1$500
Geral .................$600
Estes preços foram reduzidos em 1809, passando a ser os seguintes por assignatura:
Frizuras (frizas)...... 1$920
Ordem nobre ...........2$560
3.ª ordem .............1$920
4.ª ordem .............1$600
Torrinhas .............1$500
Superior ..............$800
Geral .................$480
Em 1805 havia 37 camarotes assignados, emquanto que em 1808 o numero de assignaturas de camarotes elevou-se a 57. Aqui vae em seguida a relação dos assignantes de camarotes nestas duas epochas; n'ella se encontram nomes de personagens muito conhecidos, alguns dos quaes teem representantes na actualidade.
Assignantes de camarotes no real theatro de S. Carlos de Lisboa em 1805
Conde de Penafiel, ManuelJosé da Maternidade da Matta de Sousa Coutinho.
Duque de Cadaval, D. Miguel Caetano Alvares Pereira de Mello.
Pedro de Mendonça.
Visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Mello Menezes e Souto Maior.
Carlos Francisco Prego.
Conde de S. Miguel, Alvaro José Botelho.
Visconde de Stronkford.
Marquez de Alorna, D. Pedro de Almeida Portugal.
Marquez de Bellas, D. José de Castello Branco Corrêa e Cunha de Vasconcellos e Sousa.
Rodrigo Pinto.
Seblaike.
Consul de Inglaterra, James Gambier.
Barretto.
Depuim.
Conde de Obidos, D. José de Assis Mascarenhas.
Marquez de Pombal, Henrique José de Carvalho e Mello.
Senado de Lisboa.
Ministro da Russia, C. Wafrillieff.
José Teixeira de Barros.
José da Silva Ribeiro.
João Antonio da Fonseca.
Legação de França
José Antonio Pereira.
Henrique José Baptista.
Alberto Meyer.
Caetano Machado.
Marquez do Louriçal, D. Luiz Eusebio.
Maria de Menezes.
Gerardo Bramcamp de Almeida Castello Branco.
Sillis.
Antonio Rodrigues Viegas.
General francez embaixador Junot.
Prior-mór de Avis, D. José de Almeida.
Conde da Louã, D. Luiz Antonio de Lencastre Basto Baharem.
João Pereira de Sousa Caldas.
Antonio Pereira Rangel.
Joaquim Pereira de Almeida.
José Pinheiro Salgado.
Assignantes de camarotes no real theatro de S. Carlos de Lisboa, durante a occupação franceza, em 1808.
José Carvalho de Araújo.
José da Silva Ribeiro.
General francez Avril.
General Taviel.
Consul da Russia, André Dubatchewskow.
Rossaque.
General Brénier.
Frizoni.
General Margaron.
Consul da Hollanda, Jacob Dohrman.
João Diogo de Mascarenhas.
Visconde da Bahia, Manuel Maria Coutinho Pereira de Seabra e Sousa Tavares Horta Amado e Cerveira.
Pedro Schlick.
Berthelot.
Carlos Honiel.
General Thiébault.
General Loison.
Jacintho Fernandes da Costa Bandeira.
Bento José Pacheco.
Gaspar Pessoa.
José de Oliveira Barreto.
Commandante em chefe da marinha.
Commissario do exercito.
Lhuyyt.
Pagador geral do exercito.
Lequen.
Manuel José Sarmento.
Francisco José Pereira.
Henrique José Baptista.
Madame Gerardo.
D. Fernando de Noronha.
José Nunes.
José Mendes.
General Quesnel.
José Antonio Leal.
Hermann.
Luiz Monteiro.
Madame Angiolini.
Miguel Setoro.
Coronel Boyer.
Coronel Prost.
Conde de Sampaio, Antonio de Sampaio Mello e Castro Torres e Lusignano.
Francisco de Azevedo.
Pedro de Mello Breyner.
Jalut.
Antonio Martins Pedra.
Conde de Almada, D. Lourenço José Boaventura.
Pedro de Mendonça.
D. Thomaz de Noronha.
Carlos Capellani.
Gerardo Bramcamp de Almeida Castello Branco.
Jeronymo Grondona.
Francisco Vanzeller.
José Manuel de Lima.
Pedro da Cunha.
Lucio José Bolonha.
José Camello.
Vê-se figurarem nesta lista muitos generaes, coroneis e officiaes da administração militar do exercito francez, tendo desapparecido muitos dos portuguezes que tinham sido assignantes em 1805. D'estes, alguns, como o duque de Cadaval, o visconde de Anadia, o marquez de Bellas e o marquez de Pombal, tinham acompanhado a familia real na sua fuga para o Brazil.
Compunha-se n'este tempo a orchestra do theatro de S. Carlos de 37 figuras; a saber: 5 primeiros violinos, 6 segundos, 4 violetas, 5 violoncellos, 3 contrabaixos, 2 flautas, 2 clarinetes, 2 oboes, 2 fagotes, 2 trompas, 3 clarins, 1 timbales. A despeza com a orchestra regulava por 60$OOO réis, proximamente, por noite de recita.
As mulheres dos generaes francezes em Lisboa
Durante a occupação franceza vieram a Lisboa, e aqui se demoraram nesta capital, emquanto o exercito de Junot se poude sustentar em Portugal, as mulheres de alguns dos generaes das forças napoleonicas.
As francezas que occuparam o primeiro logar, na sociedade de Lisboa, durante o governo de Junot, foram madame Foy, mulher do general que escreveu uma historia da guerra da Peninsula com bastante imparcialidade, madame Thomières, mulher do general que governou Peniche, e a esposa do general Trousset.
A mulher de Junot tencionava vir tambem a Lisboa, nesta epocha.
Quando, porém, o exercito da Gironda sahiu de França, e entrou em Hespanha, marchando sobre Portugal, a esposa do commandante em chefe, do exercito invasor, estava em estado de gravidez bastante adiantado. Foi esta circumstancia que a impediu de acompanhar, então, seu marido, ficando em França na sua explendida propriedade em Raincy; propriedade que nao poude conservar, porque não a tinha completamente pago, e não podendo, no meio das immensas despezas que fazia, economisar o sufficiente para pagar a divida d'aquelle grande immovel, e, não querendo o imperador fazer-lhe mais essa liberalidade, de lhe pagar aquella casa, pelo contrario, desejando-a para si, ou para a familia imperial, Junot ficou por fim sem aquella rica vivenda.
Depois de dar á luz um filho, que foi afilhado do imperador, tencionava a duqueza vir a Lisboa, tendo-lhe seu marido pedido, repetidas vezes, de vir abrilhantar a côrte do seu governo, onde tinha conservado muitas relações e conhecimentos, do tempo em que estivera, tres annos antes, com o general Junot, embaixador da França junto ao principe regente de Portugal.
O duque de Abrantes tambem, por vezes, pediu, a sua mulher, que trouxesse na sua companhia, a Lisboa, madame Thiébault, mulher do general chefe de estado maior, que escreveu o relatorio geral da primeira campanha dos francezes em Portugal.
Sob os auspicios de Claire Thiébault, filha do general, foram publicadas umas memorias de seu pae, que conteem interessantes noticias sobre as campanhas da Republica e do Imperio, e sobre os generaes francezes d'este tempo, os quaes, na maioria, se odiavam reciprocamente, e ardiam de inveja, não podendo supportar de bom grado estarem uns sob as ordens de outros; apenas supportavam serem commandados pelo imperador! Até muitas vezes se não queriam corresponder com o ministro da guerra, mas sim com o imperador! e Napoleão, ás vezes, tolerava estas pretensões, e directamente se correspondia com os generaes.
A escassez de noticias que tantas vezes se deu neste tempo, entre a França e Portugal; as difficuldades para viajar com segurança, atravessando a Hespanha e Portugal, paizes infestados de guerrilhas, sem estradas, nem estalagens; o mau tempo que se prolongou por todo o inverno de 1807 a 1808; a difficuldade de fazer a viagem por mar, de França a Hespanha e Portugal, em cujas costas cruzavam frequentemente os navios de guerra inglezes, e corsarios de varias nacionalidades; não tendo a França, na sua debil marinha, navios que pudessem contrabalançar a acção das esquadras inglezas, nem proteger efficazmente qualquer pequeno comboio, que quizesse enviar aos paizes occupados pelos seus exercitos; todas estas difficuldades obrigaram a addiar successivamente, por varias vezes, a partida da duqueza de Abrantes, e da mulher do general Thiébault, para Portugal, não chegando, por fim, a emprehender tal viagem, porque Junot se viu obrigado a capitular perante as forças anglo-lusas, e em virtude da convenção de Cintra, que se realisou em 30 de agosto de 1808, o exercito francez evacuou Portugal.
Todas as tres esposas, dos generaes de Sua Magestade o Imperador dos francezes e rei de Italia, que acompanharam a Portugal o exercito francez commandado por Junot, estabeleceram a sua residencia em Lisboa.
Eram todas tres bonitas mulheres.
Madame Foy era enteada do general Baraguayd-d'Hilliers. Era bastante formosa, muito branca e muito loura, com o nariz um pouco arrebitado para cima, que fazia lembrar o focinho de certos cães muito estimados pelos inglezes, o que comtudo não a impedia de ser bonita, e como tal apreciada. Chamavam-lhe la belle Roxelane. Muito engraçada e amavel, a sua companhia e a sua conversação eram extremamente agradaveis.
Madame Thomières era uma rapariga muito sympathica e attrahente. Tinha uma excessiva adoração por seu marido. Queria seguil-o sempre nas suas campanhas, e effectivamente acompanhou-o em todas as guerras de Portugal e Hespanha, desde 1807 a 1811.
Póde-se imaginar que inclemencias, perigos, incommodos, desgostos e receios, ella soffreu, neste periodo de quatro annos.
Foi sobretudo em Hespanha, de 1810 a 1811, que mais soffreu a estremecida consorte do general Thomières. Neste tempo acompanhou a duqueza de Abrantes que veiu a Hespanha, e que teve, ao principio, ideia de vir a Portugal, em 1810, quando o exercito francez, commandado por Massena, invadiu o nosso paiz. Mas não puderam passar de Ciudad Rodrigo, onde a duqueza de Abrantes quasi que ia morrendo de parto e de fome.
Retrocedendo, a duqueza de Abrantes e madame Thomières, dirigiram-se para o norte de Hespanha; e, nessa aventurosa e demorada viagem, correram os maiores perigos, por causa das guerrilhas, apesar de andarem sempre escoltadas, com grandes destacamentos de tropas de infantaria e cavallaria. Mas as guerrilhas, eram numerosas e aguerridas, e atacavam comboios inteiros, mesmo protegidos por grandes forças militares dos francezes.
Não eram só as esposas de alguns generaes que os acompanhavam nas suas campanhas, mas tambem ás vezes as amantes; assim o velho general Massena fez-se acompanhar em Hespanha por uma sua amante, uma linda rapariga, que frequentes vezes se vestia de official de dragões, com a cruz da legião de honra ao peito.
Estas viagens, porém, não se pareciam nada com as que fazia o rei Luiz XIV de França, quando, no seculo XVII, se fazia acompanhar, juntamente com os seus exercitos, pelas suas amantes, e por toda a esplendida côrte franceza, com grande luxo, e comitiva, de coches, carros, cavallos, bagagens, etc, em que não faltavam as commodidades, e em que os perigos não eram muitos.
Além de todos os incommodos, privações, e perigos, que soffriam as mulheres, que tinham a coragem de acompanhar, na peninsula iberica, os
exercitos de Napoleão, um continuo receio pelo marido, e um teimoso presentimento, atormentavam a sympathica consorte do general Thomières. E não era phantastico esse presentimento, porque com effeito o general Thomières foi morto na batalha de Arapiles, perto de Salamanca, em 22 de julho de 1812, em que o exercito francez, commandado pelo general Marmont, duque de Ragusa, foi derrotado pelos exercitos alliados commandados pelo duque de Wellington.
Das tres mulheres de generaes francezes, que brilhavam na côrte do duque de Abrantes, em Lisboa, a mais formosa era, porém, madame Trousset.
Era uma belleza na physionomia, no corpo, na estatura e na elegancia. Era muito branca, com bonita côr rosada. Tinha cabellos castanhos, nariz grego e uns olhos escuros avelludados, que, quando fixavam uma pessoa, lançavam raios, que faziam estremecer o homem sobre o qual ella os dardejava.
Junot não resistiu a fazer a côrte a madame Trousset. Mas o galanteador, acostumado a vencer facilmente o sexo fraco, e que tantas conquistas contava, em todas as classes do bello sexo, desde as princezas até ás mais humildes servas, fez um fiasco completo perante madame Trousset.
Tinha a bella franceza a arte, que só é dado a certas mulheres de possuir, que lhe permittia fazer-se adorar, estimar e respeitar, dos homens que lhe faziam a côrte, sem nada lhes conceder ás suas amorosas pretensões. Dizia o general Junot, com a sua rude franqueza, que a maneira como tinha sido repellido era tal, que o obrigava a nunca mais se atrever a cousa alguma com ella, continuando, comtudo, a estimal-a.
Nesta improvisada côrte do duque de Abrantes, em Lisboa, quem, porém, occupava o primeiro logar, como verdadeira rainha da festa, era a condessa da Ega, D. Juliana, de quem já falámos.
Tanto a condessa, como as mulheres dos generaes francezes, estavam frequentes vezes no camarote do barão de Quintella, no theatro de S. Carlos; camarote que então mais parecia ser propriedade, do duque de Abrantes, do que do barão contratador dos tabacos, diamantes, e de muitas industrias em Portugal.
Amor e caridade
Desde a partida de Raoul, Soror Maria não tinha tido mais um momento de tranquillidade nem de saude. A paixão, de que se achava possuida, pelo elegante official francez, tinha sido uma fatalidade para ella.
De um espirito, ao mesmo tempo, esclarecido, instruido e religioso, a freira possuia virtudes de alto quilate, e grandes perfeições na vida monastica que abraçára.
Não se tinha, comtudo, tornado saliente, como outras mulheres da vida ascetica, nas exagerações de penitencias e orações, ou abstinencias excessivas na alimentação. Não tomava disciplinas, ficando a escorrer em sangue, nem dormia sobre as frias lages. Não caprichava em andar rota e esfarrapada. Não mostrava horror á agua, fugindo ás limpezas, e alimentando, como algumas monjas muito veneradas e falladas, multidões de vermes sobre o seu corpo nunca lavado etc. Não eram estas as perfeições monasticas de Soror Maria da Misericordia.
Era esta filha de Santa Clara altamente caritativa; e este preceito do Evangelho era praticado, por Soror Maria, na mais larga escala, não só nas muitas esmolas que fazia, mas no carinho, proficiencia e zelo, com que tratava no convento as doentes, qualquer que fosse a sua cathegoria, desde a madre abadessa até á infima creada ou serviçal do estabelecimento.
Tinha Soror Maria as verdadeiras qualidades mais preconisadas pelo seu seraphico Patriarcha S. Francisco de Assis, que nunca manifestou grande predilecção pela exagerada penitencia, e martyrisação do corpo, mas sim exaltou, e aconselhou, a maxima caridade, abnegação, humildade, e desprendimento dos bens mundanos.
E não se pense que a abnegação no desempenho das delicadas funcções de enfermeira, era qualidade sempre vulgar entre as esposas de Christo, neste ou em qualquer outro mosteiro d'estes reinos. Por certo que, nos numerosos cenobios, de que se achava povoado este paiz, muitas madres houve, que se avantajaram no exercicio piedoso da excelsa virtude da caridade, cujos nomes encontramos citados com merecidos elogios, nos escriptos dos historiadores dos conventos d'estes reinos. Mas ás vezes, nas clausuradas, era, justamente, singular phenomeno, a virtude que mais falhava! As obras de caridade, tão estimadas do Divino Mestre, que, de sua bocca, afirmou aceitar por feitas, em serviço seu, as que por qualquer necessitado fizessemos, nem sempre encontraram, nas filhas do Senhor, para o tratamento dos enfermos, a collaboração mais assidua.
Se nas ordens religiosas houve muitos nobres exemplos de insignes virtudes, e heroicas acções, tambem nos conventos penetraram os vicios, as paixões mundanas, e todo o genero de desmoralisação; e, ás vezes eram, entre os monges e monjas, mais os vicios do que as virtudes, o que não é do admirar, pois são cousas inherentes á misera humanidade.
Entretanto, nos antigos tempos, em que as epidemias assolavam estes reinos, e que fugiam da peste, e dos empestados, todos quantos podiam abandonar as povoações atacadas do morbido flagello, reis, principes, nobres e plebeus; em que os valentes, heroes de batalhas gloriosas, não hesitavam em fugir, do negro e temido contagio da doença, abandonando parentes e amigos, entregues á furia do mal que invadia o lar das familias, sem conforto, faltos de recursos therapeuticos e hygienicos, era das communidades de frades e freiras, e do clero regular e secular, que então surgiam os mais edificantes exemplos de coragem, abnegação e caridade, para com a triste humanidade aflicta e dizimada pela devastadora epidemia. Era então sublime a pratica d'esses heroes, que acudiam aos enfermos, a tratal -os, a cuidar do corpo e da alma, e a suavisar seus males, com os soccorros materiaes e da religião.
As ordens religiosas -- Serviços que prestaram -- Sua decadencia -- Virtudes e vicios
As ordens religiosas prestaram, á sociedade, servidos na realidade extraordinarios. Nos primeiros seculos do christianismo, e ainda na edade media, não só foram um bem mas até uma necessidade. Nos mosteiros se refugiaram as sciencias e as lettras, n'aquelles tempos de barbaros. Aos conventos se acolhiam os infelizes, que alli achavam um natural e seguro refugio. Eram, além, d'isso, os mosteiros, o amparo dos desvalidos e o conforto dos desgraçados.
Sanctuarios da esperança e da caridade, e, durante nuiitos seculos, o mais intenso foco de civilisação, as ordens monasticas, com o correr dos tempos, adquiriram immensas riquezas e privilegios, por doações successivas, que tinham por origem a fé, a devoção, e a politica, tendo muitas vezes sido tambem a recompensa de serviços prestados.
Com as riquezas entrou, nos mosteiros, a sua usual companheira, a corrupção. Pelos seculos XI e XII a immoralidade e devassidão chegaram ao seu auge na vida monastica. Para reprimir taes males, foram introduzidas varias reformas, nas ordens existentes, e creadas outras novas, com o fim de restabelecer o antigo rigor, e a severa moral da vida nas communidades.
As mais notaveis reformas foram as introduzidas no principio do seculo XIII, por dois dos maiores vultos que tem tido a egreja catholica, e que ousaram levantar, no meio da corrupção dos ricos mosteiros do seu tempo, dois institutos de rigorosa pobresa: S. Francisco de Assis que fundou a ordem franciscana dos mendicantes, confirmada pelo papa Innocencio III em 1210, e S. Domingos de Gusmão, que instituiu a ordem dos dominicanos, confirmada pelo papa Honorio III em 1216.
Porém, com o decorrer do tempo, tudo se corrompeu de novo. Em lugar de pobresa, humildade, caridade, abnegação, a pouco e pouco entraram os bens mundanos, o luxo, a devassidão, e ainda, para agravar taes vicios, tambem a politica. Do que deixaram escripto os padres visitadores dos conventos, se vê que o relaxamento e a dissolução dos costumes se propagára atravéz as edades, pelas successivas gerações, de frades e freiras, salvo as dignas e elevadas excepções, isto apesar de reformas, sobre reformas, admoestações, exconmunhões, etc.
Rigor e... não cumprimento das leis, contra os que violavam a clausura e regras dos mosteiros de freiras
Nas relações das freiras com o mundo exterior, e em especial no que dizia respeito ao sexo forte, as leis canonicas e civis eram draconianas. Para dar um exemplo da severidade da legislação, a este respeito, citarei o alvará do rei Filippe III de Hespanha, II de Portugal, de 13 de janeiro de 1603, no qual, entre outras disposições, se consigna o seguinte:
........... Áquelle que fôr achado em algum mosteiro de freiras de religião, ou se provar que entrou, esteve, de dia ou de noite, dentro d'elle, em casa, ou lugar, que seja dentro do encerramento, para fazer cousa illicita, ou que tirou d'elle alguma freira, e esteve em alguma parte só com ella, posto que ella torne á clausura, ou que pelo seu mandado e induzimento foi fóra do mosteiro a certo lugar, e se foi com ella, se considere o delicto pior provado como se fosse visto ter copula, carnal; e será preso, pagará quinhentos cruzados ao mosteiro, perderá os bens da côroa, será privado do fôro de fidalgo e padecerá morte natural. A mesma pena se dará a quem acompanhar o delinquente.
As pessoas que se provar que levaram cartas ou recados, para se commetter qualquer dos ditos delictos, serão, com baraço e pregão, publicamente açoutadas, e degradadas por sete annos, sendo homem para as galés, sendo mulher para o Brazil............
No mesmo seculo, pela lei de 3 de novembro de 1671, o principe D. Pedro, regente, que foi depois o rei D. Pedro II de Portugal, renovou as mesmas disposições penaes, o que prova que continuava a mesma relaxação de costumes nos conventos de freiras, como assevera o relatorio que acompanha a promulgação da dita lei.
Todas estas disposições legaes ficaram, quasi sempre, lettra morta, como tinham ficado as suas predecessoras, e como ficaram as que se lhe succederam. Diz um proverbio italiano que «Fatta la lege, fatta la malizia» de modo que na maior parte dos casos as leis, ou são illudidas e sophismadas, ou não se cumprem.
Extincção das ordens monasticas em Portugal. -- Como foi um golpe contra a liberdade religiosa, a poesia e as tradições nacionaes.
As ordens religiosas foram extinctas em Portugal, e os seus bens encorporados na fazenda nacional, depois de vencido D. Miguel, durante a dictadura de D. Pedro IV, por decreto de 28 de maio de 1834, referendado por Joaquim Antonio de Aguiar.
Este grande attentado, feito em nome da liberdade, contra a liberdade, era exigido por uma fracção do partido vencedor, em consequencia, e como represalia, de terem tomado os frades parte activa na politica a favor de D. Miguel. Mas a opinião publica, na sua maioria, não o exigia; porém, tambem se não agastou com aquella medida violenta e espoliadora.
As ordens monasticas estavam então em grande decadencia, em todo o sentido. Havia poucas virtudes, e muitos vicios e ignorancia, nos seus membros, os quaes eram frequentemente alvo dos motejos populares. A opinião publica considerava, na sua maioria, que, salvo as nobres e honrosas excepções, os frades eram, em geral, mandriões ou comilões, e as freiras beatas ou devassas.
Além disso a classe media, na sua maioria, detestava frades e padres, por terem, em geral, apoiado o estupido e tyrannico governo de D. Miguel.
A curia romana tambem, com aquella medida, se conformou mais tarde, restabelecendo-se amigaveis relações entre Roma e o novo regimen de Portugal.
Foi tão fundo o golpe demolidor do ministro Joaquim Antonio de Aguiar, a quem alcunharam de máta frades, e as ordens monasticas estavam tão desacreditadas, que, ainda hoje, passados já mais de setenta annos de tantas desillusões, a reacção, a favor da liberdade religiosa, vae lenta, fria e fraca.
A medida arrojada, da extincção das ordens religiosas, teve desastrosas consequencias. Faltaram, para as colonias de Portugal, os sublimes missionarios, que alguns conventos preparavam, e que constituiram uma das perduraveis glorias portuguezas, que tanto contribuiram para conservar, na posse de Portugal, tão dilatados territorios ultramarinos, apesar da incapacidade, e frequentes erros e desvarios de muitos dos ministros, que successivamente teem passado pela administração d'este paiz.
Muitos monumentos de passadas glorias se anniquilaram. Muitos valores, e grandes preciosidades, se perderam para Portugal, indo enriquecer as galerias dos museus e as collecções dos particulares no estrangeiro; e grandes dilapidações houve a lamentar, na violenta expulsão dos frades, e na tomada da posse dos bens das ordens pelas autoridades civis.
Além d'isto tudo, como foi posta em hasta publica uma grande massa de bens, em uma epocha desgraçada, miseravel, em um paiz pobre, tendo então muitos o receio de que tal medida se não mantivesse, o estado não lucrou, no producto da venda dos bens dos conventos, as quantias equivalentes ao valor real d'essas propriedades. Só ganharam os compradores corajosos, que, por pequenas quantias de dinheiro, adquiriram predios valiosissimos.
O coração e a consciencia
A paixão, que Raoul de Remigny inspirára a Soror Maria, não era inferior ao amor que por ella sentia o official francez; mas as condições physicas, psychologicas e sociaes é que eram muito differentes.
A lucta que se travou entre a consciencia de Soror Maria e o seu coração foi tremenda.
De certo que Soror Maria, se quizesse, podia, como lhe pedia a sua paixão, entregar-se completamente a Raoul. Não faltavam, na sua communidade, e em tantas outras, abundantes exemplos, de casos mais ou menos parecidos, de amores de freiras com reis, principes, ecclesiasticos, leigos, militares, etc.; aventuras muitas das quaes tinham tido por origem até, apenas, simples caprichos de vaidade, ou desejos materiaes, mais ou menos grosseiros, ou episodios de galanteria, mais ou menos passageiros, não attingindo, na maior parte dos casos, a elevação de sentimentos das grandes paixões.
Os exemplos dos seus contemporaneos, e as tradições seculares, estavam, com insistencia a pugnar a favor dos desejos do seu coração.
Por outro lado, não lhe seria difficil achar os meios praticos, para a satisfação dos seus desejos. A grande amizade e consideração que por ella tinha a abbadessa, muito da sua intimidade, e a estima que lhe dedicava toda a communidade, sendo querida em extremo das freiras, noviças, e de todo o pessoal de serviço, tanto do interior do convento como de fóra, asseguravam-lhe a facilidade de obter se quizesse, com tranquillidade e segurança, entrevistas, em que poderia estar só com Raoul.
A sua consciencia, porem, dizia-lhe que não devia violar os seus votos de freira professa. A grandeza do affecto, e a nobreza do amor, que nutria pelo official francez, ainda vinham em favor dos dictames da sua razão, mostrando-lhe não dever praticar, entregando-se ao seu amante, o que haviam feito tantas outras, que não estavam dominadas por sentimentos tão elevados, como aquelles de que ella se julgava possuida.
Tambem combatia fortemente os desejos que tinha, de estar só com Raoul, o que sabia, e o que ouvira contar de successos avessos, em alheias cabeças, desastres não cuidados, esperanças cortadas em flor, desillusões terriveis, em que o amor desapparecera, ou antes se mostrára que não existira, ora nas mulheres que se haviam lançado, enganadas, em tal perdição, ora nos seus enganosos seductores. Mettia-lhe horror a ideia de poder deixar de ser amada, pelo homem a quem se entregasse.
Raoul de Remigny, pelos seus principios religiosos, e pelo seu caracter de brio e lealdade; incapaz de faltar aos seus deveres de gentil homem; nobre da vieille roche, incapaz de uma simples mentira, não tinha os recursos proprios para seduzir uma esposa de Christo.
Não foi com as suggestões do seu amante, que Soror Maria teve que luctar. Foi comsigo propria. Nesse terrivel combate entre o coração e a consciencia, esta não se deixou vencer. Mas as consequencias foram terriveis para a pobre freira.
Emquanto Raoul esteve em Lisboa, e com frequencia visitava a sua amada; que as entrevistas e conversas á grade se continuavam, alimentando-se reciprocamente o fogo do amor no coração dos dois jovens, póde-se dizer que viviam no Ceu. Sobretudo o nobre official do exercito de Bonaparte, desde o momento que se approximava, do mosteiro da Esperança, até ao instante em que se retirava, todo enlevado em uma especie de amor extatico e contemplativo, sentia-se completamente feliz.
Durante estas visitas a freira sentia-se tambem feliz, mas não tranquilla como o seu amante. As sensações de prazer, que experimentava, eram acompanhadas de sobresaltos dolorosos e inquietadores; e logo que elle se retirava, pensamentos contradictorios, e a peleja entre os desejos e a consciencia, torturavam-no, não conseguindo apagar esta labutação do espirito de Soror Maria, nem as orações, nem as praticas do culto, e obrigações que lhe competiam, e a que nunca se escusara.
Logo, porém, que Raoul partiu para Cascaes, em serviço militar, pareceu a Soror Maria que lhe faltava o esteio que a conservava nesta vida; e por momentos sentiu como que uma pungente pena de se não ter abandonado aos seus desejos; mas logo a ideia de haver cumprido o seu dever de religiosa, lhe trouxe como que uma consolação de tristeza; e com alternativa d'estes sentimentos se entregou a uma perigosa excitação, que lhe escandeceu o cerebro.
Amor e febre
Durante a noite d'esse dia, não se quiz deitar Soror Maria. Nem mesmo se retirou para a sua cella.
Passou toda a noite, prostrada, de joelhos, no côro entregue a orações, ao pranto, e ás torturas da sua imaginação.
Logo de madrugada, por occasião do serviço divino das matinas, as suas companheiras ahi a encontraram regelada, e custando-lhe muito a andar.
Recolhida á cama, nesse dia não se poude levantar, achando-se em grande prostração; e tendo a abbadessa, sua muito intima amiga, passado grande parte da manhã a fazer-lhe carinhosa companhia, Soror Maria lhe disse que ia morrer, e tinha um grande favor a pedir-lhe, ao que a madre abbadessa se apressou a responder, que podia contar com ella.
Disse-lhe que amava, de uma paixão louca, um official do exercito invasor, Raoul de Remigny, capitão do 2.º batalhão do 70 de infantaria, que se achava em serviço em Cascaes. Que julgava ser correspondida por elle, e que reputava o objecto da sua paixão uma alma dotada dos mais nobres sentimentos. Que elle nunca lhe propuzera cousa alguma, que fosse contra os seus deveres monasticos. Que ella ia morrer em pureza virginal. Que ao seu idolatrado amante nada dera senão o seu retrato. Queria que, depois da sua morte, que esperava, viesse breve, fosse logo prevenido Raoul, e que durante a noite em que o seu corpo estivesse na egreja fechada, antes de lhe ser dado sepultura, lhe fosse permittido velar junto d'ella. Desejava tambem, que dos seus cabellos, elle proprio, cortasse uma madeixa, e a conservasse em sua memoria. Que, por intermedio do tenente Cheviot do mesmo batalhão, deveria ser avisado Raoul de Remigny.
Tudo cumprir, segundo seus desejos, á sua querida amiga, prometteu a boa abbadessa. Aflicta e receiosa, procurava a superiora do convento, tranquillisar Soror Maria, dizendo-lhe que estava ainda longe a sua ultima hora, e que diligenciasse socegar, e conciliar o somno, nas boas graças de Deus.
No dia immediato a freira achou-se atacada de fortes dôres de cabeça, na testa e nas fontes, e com bastante febre. Por indicações da abbadessa foi-lhe dado banho muito quente aos pés, com vinagre e mostarda, e, não tendo melhorado, tambem applicou á doente sinapismos nas pernas.
Perto da noite, Soror Maria achou se mais encommodada, com dôres agudas nos olhos, sem poder suportar a mais fraca luz ou qualquer barulho. As dôres de cabeça tornaram-se mais violentas, e ao mesmo tempo foi acommettida de vomitos biliosos e frequentes. As pupillas dos olhos apresentavam ao mesmo tempo grandes contracções, e a febre tornou-se mais ardente.
Chamado o medico, dr. Antonio da Cruz Guerreiro, declarou este que a doente tinha uma febre cerebral, e se achava em estado mui grave.
Immediatamente, e antes de qualquer tratamento novo, se chamou o padre capelão Fr. José de S. Francisco, que confessou a doente e lhe deu a communhão; e em seguida a communidade passou a fazer preces ao Altissimo e a S. Francisco, pelas melhoras de Soror Maria.
O tratamento receitado pelo dr. Guerreiro, e ministrado logo depois da doente tomar o viatico, foi a applicaçào de sanguesugas sobre as apophyses mastoideas, vesicatirio na nuca. e internamente calomelanos em alta dose.
Nada porém melhorou a enferma com tal medecina. O terceiro dia foi terrivel. Declarou-se um delirio violento. A lingua tornou-se de uma seccura aspera, e nos olhos via-se uma dilatação desmedida das pupillas. De vez em quando Soror Maria dava gritos inarticulados caracteristicos da meningite, que seguia a sua rapida marcha. Aos ataques de delirio seguiu-se, por algum tempo, um estado de prostração profunda.
Como era difficil em 1808 emprehender repentinamente a viagem de Cascaes a Lisboa
Ao terceiro dia, depois da partida de Raoul, pela manhã, apresentou-se no parlatorio o tenente Cheviot, portador de uma carta do seu amigo, para entregar em mão propria, a Soror Maria.
Com grande surpreza de Cheviot, quando pediu para fallar a Soror Maria, foi lhe dito pela porteira, que a freira a que se referia se achava doente de cama, em estado muito grave e perigoso, e que se resava nessa occasião no mosteiro, implorando as melhoras da doente.
Algum tanto desnorteado Cheviot com a triste novidade, na ausencia de Raoul e de Dufourcq, não sabia bem o que devia fazer. Pensou, que, em todo o caso, devia dar, do triste acontecimento, noticia immediata a Raoul; mas lembrou-se tambem que poderia este querer vir a Lisboa, e para isso precisava de licença do quartel general da divisão; mas por causa do seu proprio serviço no batalhão, que teve nesse dia, não poude ultimar esse negocio; e pela tarde, voltando ao convento, não só soube que o estado de Soror Maria cada vez se aggravava mais, mas da bocca da abbadessa, que ella propria havia dado ordem para ser avisada, quando o tenente Cheviot ali voltasse, ouviu que muito rapida e adiantada ia a marcha da febre cerebral, que atacara a enferma, e lhe pedia que avisasse o capitão Raoul, e lhe dissesse que viesse a Lisboa.
Cheviot disse que já tinha tratado de obter licença para isso, que julgava poder ser remeitida no dia seguinte, mas que em todo o caso ia immediatamente escrever a Raoul.
Mandou, Cheviot, pelo seu impedido, uma carta a Raoul contando-lhe o occorrido, e accrescentando que esperava que no dia seguinte iria a licença para vir a Lisboa.
O soldado, transformado em correio, correu a cavallo os 27 kilometros, de máu caminho, que separavam a capital de Cascaes, em menos de duas horas.
Ao ler a triste missiva, Raoul teve uma formidavel dôr no coração; horrivel presentimento de dolorosa catastrophe; e, sem querer esperar pela licença, resolveu partir, deixando a Dufourcq o commando da companhia.
Mas não era coisa facil achar, nesta epocha, meio de transporte, de um momento para outro, para vir de Cascaes a Lisboa; só encontrava jumentos ou pequenas e detestaveis cavalgaduras; de modo que decidiu-se a fazer a jornada aproveitando o cavallo em que fôra o soldado, que lhe levára a carta, fazendo o impedido o seu regresso em um burro.
Tendo recebido a noticia da doença de Soror Maria pelas 9 horas da noite, antes do romper da manhã seguinte entrava as portas de Alcantara, e dirigindo-se a uma cocheira da rua da Flôr da Murta, hoje rua de S. Bento, que lhe indicára o impedido de Cheviot, ali deixou o cavallo; e com o espirito cheio de angustia caminhou para a portaria do mosteiro da Esperança, cujo grande portão do pateo, estava fechado, porém, que se abriu ás formidaveis argoladas que Raoul fizera soar, e que fizeram despertar a porteira, que em uma pequena casa abarracada junto morava.
Terminus doloris
Depois dos violentos delirios, alternando com o estado de grande prostração, Soror Maria pareceu socegar pela meia noite, caindo em uma especie de estado commatoso.
Pelas duas horas da madrugada, depois de ungida, teve na physionomia uma mudança. Abriu os olhos, e dirigiu um olhar de singular fixidez para a abbadessa, que poucos instantes tinha deixado de estar a seu lado, desde que adoecera, e que neste momento, comprehendendo o que queria dizer aquelle fascinador olhar, fez com a cabeça um signal affirmativo, lembrando-se do que ella lhe pedira.
Pouco depois começou o estertor. Soror Maria entrou na agonia final. Em um altar proximo se resavam os officios dos agonizantes. Não foi muito duradoura esta ultima angustia. A pouco e pouco foram diminuindo os sons do estertor: Soror Maria abriu muito os olhos, e em seguida tornou a fechal-os, ficando com uma physionomia serena e bella, como a de uma santa, digna de uma filha do seraphico patriarcha S. Francisco.
Vinha rompendo a manhã.
Nesse momento batiam fortes argoladas no portão do pateo do mosteiro.
Ao mesmo tempo grande estrondo de matracas, que se tangiam pelos corredores, noticiava, á communidade, que deixara de existir, entre os vivos, uma filha de Santa Clara, freira professa neste convento.
A ultima vontade de Soror Maria
Com grande pasmo, a porteira, ao abrir o portão do pateo viu entrar Raoul, pallido e enfiado, que, em portuguez estropiado, lhe disse ter a maior urgencia em falar á madre abbadessa.
Dirigindo-se á portaria viu, dentro de poucos instantes, apparecer-lhe, á grade, a abbadessa, cuja physionomia chorosa, e quebrada de angustia, lhe produziu tal impressão, que não poude articular uma unica palavra; apenas poude, juntando as mãos, erguer para ella um olhar, cheio de dôr, supplicante e ancioso, que dizia mais que o mais eloquente discurso.
A abbadessa, elevando os olhos para o ceu, com a mão direita indicou-lhe o lado d'onde vinham os sons do sino da torre, que dobrava tristemente, annunciando que tinha abandonado o involucro terrestre uma das filhas de S. Francisco, e disse-lhe, depois de alguns momentos de silencio, que Soror Maria de Misericordia, havia alguns instantes, estava na presença de Deus.
Nem uma lagrima neste momento poude derramar Raoul. Continuando por algum tempo na mesma attitude supplicante, e com o olhar fixo na abbadessa, cada vez mais pallido, e as feições a contrairem-se, parecia emmagrecer de instante para instante, até que, por fim, poude, de uma voz guttural e suffocada, dizer que desejava vêl-a uma ultima vez.
A abbadessa então lhe declarou, qual a ultima vontade de Soror Maria, o pedido que lhe fizera e como o auctorisara a elle proprio cortar-lhe uma madeixa de cabello, e a velar a ultima noite junto do seu cadaver; terminando por lhe dizer que o esperava ao anoitecer na egreja.
Amoris vigilia
Entregue á sua dôr, esperou o pobre rapaz que chegasse a noite, que lhe havia de trazer a permissão de vêr, pela ultima vez, o idolo do seu coração, em um esquife!
Ao anoitecer dirigiu-se para o largo da Esperança. Que triste ironia no titulo do mosteiro que o attraira tanto! Que amor profundo ali achara! e, em tão curto espaço de tempo, já a morte lhe roubara o ente mais querido!
Acompanhava Raoul o seu amigo Cheviot, que todo o dia o não abandonara, e que muito receiava do estado do triste amante.
Ali se conservaram os dois por algum tempo, ora parados, ora fazendo alguns passos. A egreja estava fechada.
Só algum tempo depois de ser noite completa, appareceu, fóra do portão do pateo, um vulto de capote, que parou e se conservou immovel. Passados alguns instantes, Raoul largou o companheiro, e dirigiu-se para aquelle lado, approximando se do portão. Então o vulto, que era uma criada da abbadessa, fez signal a Raoul de a acompanhar, e passando pelo portão, e seguindo pelo interior da portaria, introduziu-o na egreja pela porta da sacristia.
Achava-se o cadaver de Soror Maria em um caixão aberto, sobre uma eça, ladeada de quatro tocheiros accesos, no meio da egreja. Perto, do lado da epistola, estava a abbadessa de pé.
Raoul ao vêr ali exanime aquella cujos melodiosos cantos religiosos tanto o haviam impressionado, a primeira vez que entrara naquella egreja, caiu de joelhos junto á querida morta.
Passados alguns instantes, levantou-se e, approximando-se do esquife, debruçou-se, e beijou a mão direita de Soror Maria, mão que juntamente com a esquerda segurava um pequeno crucifixo.
Então a abbadessa lhe apresentou uma tesoura, com a qual Raoul cortou uma madeixa do cabello de Soror Maria, do lado direito da cabeça, e restituindo a tesoura, guardou no peito a preciosa reliquia. Em seguida a abbadessa retirou-se pelo coro, e desappareceu. Ficaram no coro, orando de joelhos, duas freiras, que, durante a noite, duas vezes foram substituidas por outras.
Ora prostrado de joelhos com a cabeça encostada ao feretro, ora de pé, debruçado, a contemplar o seraphico rosto de Soror Maria, assim passou toda a noite. Raoiil, velando aquella a quem tanto queria, e por quem tanto fôra amado.
Pouco antes de amanhecer, a mesma criada, que o introduzira na egreja, veiu, tocou-lhe no hombro, e fez-lhe signal para sair. Então Raoul beijando, suffocado de angustia, novamente, a mão de Soror Maria, e arrastado pela emissaria da abbadessa, que o puxava pela mão, saiu da egreja, e, seguindo o mesmo caminho por onde entrara, achou-se no adro da egreja, onde passeiara toda a noite o tenente Cheviot, que pelo braço o levou para fóra d'aquelle recinto. O sino da torre começava nesse momento a dobrar a finados.
Nesse mesmo dia, Soror Maria foi levada para o coro, e, depois de uma missa de corpo presente, e dos officios funebres resados pela communidade, foi sepultada no claustro.
Prepara-se no theatro de S. Carlos uma festa em homenagem a Junot, em 8 de junho de 1808
Houve durante m occupação franceza varias re-citas de gala no theatro de S. Carlos, sendo uma no dia 15 de agosto de 1808, dia da festa do imperador Napoleão. Como já disse, neste dia subiu á scena, pela primeira vez a opera Demofoonte, imitação de Metastazio, musica do compositor portuguez Marcos Antonio Portugal; foi desempenhada por Eufemia Eckart Neri, Angiola Bianchi, Luigia Caldarini, Ludovico Olivieri, Tramezzani, etc.
Entre as noites de gala houve, porém, uma expressamente dedicada a Junot. Foi o dia 8 de junho de 1808 o escolhido, para uma festa, em homenagem ao duque de Abrantes, dada pelo exercito do seu commando.
Pretexto não havia nenhum especial.
Foi apenas uma festa para satisfazer a excessiva vaidade, e fatuidade, do governador de Paris, actualmente commandante em chefe do exercito francez que occupava Portugal.
Não tinha havido victoria alguma assignalada para o exercito francez. A conquista de Portugal tinha sido, como já dissemos, realisada sem opposição d'este paiz.
Quando os officiaes francezes, porém, resolveram dar, no theatro de S. Carlos, um grande festival a Junot, já a reacção dos portuguezes contra os francezes invasores tinha começado; já estava mesmo em effervescencia, e prestes a romper a revolução nas provincias.
Organização da festa no theatro de S. Carlos
Convites e programma
Não sabemos se foi o proprio Junot quem encommendou ou insinuou, a tal festa, ou se a iniciativa partiu de algum dos generaes, ou officiaes seus subordinados. Em todo o caso os que organizaram a festa, e fizeram os convites, formando o que hoje se chamaria a commissão executiva, foram os generaes Brénier, Thiébault e Margaron, o ajudante-commandante Bagnéris, o sub-inspector das revistas Evrard e o major Contant.
A festa consistiu em um baile, jogo e ceia.
Os convidados occupavam as frizas e a platéa; a esta tinham sido tirados os bancos, e estava decorada em sala de baile, tendo, encostadas ás frizas, cadeiras collocadas em roda da sala. O buffette foi armado sobre o palco, para o qual se subia da platéa por duas escadas. Sobre o palco á frente estava a orchestra. Nos camarotes da ordem nobre e das ordens superiores estavam espectadores; pessoas que tinham obtido poder gozar da vista d'aquella festa, sem comtudo serem convidadas.
Reproduzimos aqui uma carta de convite para esta festa; era dirigida a André Guidoti, negociante italiano da praça de Lisboa nesta epocha, avó materno do meu fallecido amigo e collega lente da escola naval, o almirante Carlos Testa.
O convite era para Guidoti, sua mulher, seu filho e sua filha Nathalina. Ainda tive occasião de conhecer esta ultima, que foi a mãe de Carlos Testa, e que veiu a fallecer com perto de 100 annos de edade, e que tinha sido testemunha ocular dos acontecimentos da primeira invasão franceza em Lisboa.
Eis a carta de convite.
Lisbonne le 1es juin 1808.
Monsieur André Guidoti, madame, mademoiselle sa filie et monsieur son fils.
Vaus êtes invité d vouloir bien assister à la fête qui sera donnée, par l'armée francaise, à monseigneur le duc d' Abrantes, général en chef, le mercredi 8 juin au Théatre Saint Charles.
Vous êtes prèvenu que l'on arrivera depuis 8 heures jusqu'à 9 heures et demie du soir, et que l'on entrera par le grand péristyle.
Cette invitation est personnelle.
Nous sommes avec respect,
Les commissaires
Le général Thithault
Le général Margaron
Le général Brênier
L'adjudant commandant Bagnéris
Le sons-inspecteur aux revues Errard
Le major Contant.
Junto com as cartas de convite, era enviado, aos convidados, um programma em que, com a mais minuciosa etiqueta, não só estavam prescriptas diversas disposições policiaes, para serviço das carruagens, mas tambem se limitava o periodo em que os convidados tinham entrada; não sendo admittida pessoa alguma, convidado ou espectador, que chegasse antes das 8 ou depois das 10 da noite, determinando-se, além d'isso, a attitude, e posição onde deviam estar, á entrada do duque de Abrantes, as senhoras e os homens.
Disposições policiaes dentro e fóra do theatro
Os convidados regulamentados militarmente
A sala e camarotes achavam-se adornados com grande profusão de flores. Faziam as honras mesdames Thomières, Fox e Trousset.
No Picadeiro, e rua do Outeiro, formava um regimento de infantaria, com banda, em frente ao largo de S. Carlos.
Neste tempo ainda não existia a rua do Duque de Bragança. O largo do Picadeiro, assim chamado porque ahi existia o picadeiro dos cavallos da casa de Bragança, nãoo tinha communicação para a rua do Ferregial de Cima.
O antigo palacio dos duques de Bragança, que occupava o logar onde hoje está o hotel de Bragança, e os primeiros predios do lado oriental da rua do Thesouro Velho, hoje Antonio Maria Cardoso, tinha caido pelo terremoto de 1755, ficando todo elle, e suas circumvisinhanças, um cahos, entre cujas ruinas se installaram barracas e casebres, que ali permaneceram por muito tempo.
Quando se construiu o theatro de S. Carlos, em 1793, construiu-se o paredão da rua do Outeiro sobre o largo de S. Carlos, e alinhou-se este largo, e a rua Nova dos Martyres, hoje Serpa Pinto.
Na rua do Ferregial de Cima, no extremo Occidental, havia um arco, que ligava o edificio onde hoje está o hotel de Bragança com o primeiro predio da rua do Thesouro Velho.
Em uma casa, nas ruinas do palacio, onde está agora o hotel, morava e tinha o seu atelier, em 1808, o grande esculptor Machado de Castro.
O edificio do palacio para o lado oriental chegava até ao largo do Isidro.
Em 1 de agosto de 1841 houve um horrivel incendio, em um armazem de moveis, pertencente ao allemão Futcher, installado nas ruinas do palacio junto ao arco. O fogo chegou até ao largo do Isidro.
Foi em seguida a este incendio, que se edificaram os novos predios pertencentes á casa de Bragança, na rua do Thesouro Velho, e na nova rua do Duque de Bragança, que se abriu em 1842, a qual liga o largo do Picadeiro com a rua do Ferregial de cima, hoje Victor Cordon.
Na noite de 8 de junho de 1808, um grande desenvolvimento de tropas, com bandas de musica, formava alas na rua do Alecrim, largo do Loreto, Chiado, e rua Nova dos Martyres.
Entre as muitas precauções, que o intendente de policia, Lagarde, e o cmmandante da guarda policial, conde de Novion, tomaram, figurava um grande numero de bombas, com muitos aguadeiros com os barris cheios d'agua, postados na rua do Alecrim, largo do Loreto, rua do Thesouro Velho, Chiado, rua do Outeiro, rua Nova dos Martyres e rua da Parreirinha.
Por detraz das fileiras da tropa, estavam alinhados muitos gallegos aguadeiros, com archotes accesos.
Como se estava nas proximidades das festas de Santo Antonio, S. João e S. Pedro, havia por diversos pontos da cidade, muitas fogueiras, e nas ruas por onde devia passar o cortejo para o theatro de S. Carlos, estalavam, a todo o momento, bombas, tric-tracs, buscapés, foguetes, e outras peças pyrotechnicas proprias da epocha.
A policia, porém, que andava assustada, com os movimentos sediciosos, que começavam a lavrar pelo paiz, contra os francezes, receiou que atraz dos fogos de vista e foguetes em homenagem aos Santos, do mez de junho, se occultassem projectos revolucionarios, e por isso prohibiu, dias depois, completamente, todas essas tradicionaes manifestações populares portuguezas, como já havia prohibido que houvesse missa do gallo, em 1807, ordenando até que nessa noite, e no dia de Natal, não tocassem os sinos das egrejas!
As carruagens que traziam pessoas para o theatro de S. Carlos, vinham pela rua de S. Francisco, travessa da Parreirinha, entravam sob a arcada do peristylo, e depois de se apearem os convidados, retiravam pela rua Nova dos Martyres e Chiado.
A porta da entrada do peristylo estavam os mestres de cerimonias, officiaes superiores do exercito francez, que, immediatamente que se apeavam as senhoras, as conduziam pela mão até aos seus logares, nas frizas ou nas cadeiras da sala encostadas ás frizas. Os cavalheiros convidados dirigiam-se, immediatamente, para a extremidade da sala, junto ao palco, cujo panno de boca se conservava em baixo.
As pessoas não convidadas, mas que tinham obtido bilhete para assistir á festa nos camarotes, galerias e varandas, entravam pelo largo do Picadeiro e pela rua Nova dos Martyres, das 8 ás 10 horas da noite.
Ás 10 horas da noite fecharam-se as portas; não deixando a policia, sob as ordens do intendente Lagarde, entrar mais ninguém no theatro.
Nesta epocha, como já disse, quasi todos os empregados da policia eram francezes, porque tinha-se tornado quasi impossivel encontrar portuguezes que quizessem desempenhar esses cargos. O novo intendente tinha estabelecido a sua séde no palacio da Inquisição no Rocio, onde hoje está o theatro de D. Maria II, e pelos seus procedimentos asperos, violentos e arbitrarios, havia incutido grande terror no publico, e despertado muito odio no povo contra elle, e contra a occupação franceza, como já ficou dito.
Entrada de Junot no baile do theatro de S. Carlos. -- O que elle fez e o que fizeram os convidados. -- O cortejo.
Pouco depois das 10 horas, chegou o general Junot, governador de Paris, duque de Abrantes, coronel general de hussares, grand-aigle da legião d'honra, grão cruz da Ordem de Christo, commendador da Ordem de ferro d'Italia, grande official do imperio, commandante em chefe do exercito francez em Portugal, etc. Vinha em carruagem que tinha pertencido á casa real, a seis cavallos, precedida de um jiquete de cavallaria, e seguida de um esquadrão, achando-se o trajecto illuminado com archotes desde o palacio do barão de Quintella na rua do Alecrim, sua residencia, até ao largo de S. Carlos. Na sua passagem as musicas tocaram o chant de victoire, de Persuis, e debaixo da arcada do peristylo onde se apeiou, foi o duque de Abrantes recebido por todos os officiaes francezes presentes, no meio de atroadoras acclamações e vivas.
Apenas foi annunciada a chegada de Junot, e conforme estava determinado no programma, todos os cavalheiros convidados se collocaram junto ao palco, com as costas para a scena, e apenas apontou o general á porta por baixo da tribuna, todas as senhoras se puzeram de pé; a orchestra collocada sobre o palco, tocou o chant du départ, cujos versos eram de Marie Joseph Chénier, e a musicade Méhul.
O duque de Abrantes, avançando até ao meio da sala, saudou, abaixando a cabeça, e acenando com o chapéo ás damas que enchiam as frizas, as cadeiras da sala e os camarotes, tudo em roda, girando sobre o mesmo ponto da platéa, e olhando successivamente para todos os lados e todas as ordens de camarotes. A esta saudação todas as senhoras corresponderam, conservando-se de pé, como estava previamente marcado no progrannna.
Nesta entrada, segundo estava determinado, a sala manteve-se completamente livre e desembaraçada, conservando-se os homens em massa encostados á ribalta, e as senhoras que estavam na sala, encostadas ás frizas, de modo que monseigneur, como dizia o programma, isolado no dentro da sala vasia, poude gozar, na sua fatuidade, d'esta miragem, de uma especie de monarcha, acclamado pelos seus subditos, que soltavam estrepitosos vivas, e que eram aqui, principalmente, os officiaes do seu exercito, formando uma massa compacta junto á entrada da platéa, e salão inferior contiguo ao peristylo.
Em seguida, logo que a orchestra terminou a marcha bellica, o general assentou-se em uma grande cadeira de espaldar. Todos os convidados, senhoras e cavalheiros, se sentaram nos seus logares, e a orchestra e os artistas principaes da companhia lyrica, executaram uma cantata, de Guglielmi, com lettra propria do acto, e em homenagem ao duque de Abrantes.
Concluida a cantata, o general Junot, acompanhado de mesdames Thomières, Foy e Trousset, com um grande sequito de generaes e officiaes superiores, deu lentamente uma volta em torno da sala, junto ás frizas, cumprimentando particularmente, e com mais ou menos agrado e intimidade, successivamente as damas mais ou menos da sua predilecção e conhecimento, e recebendo d'ellas não menos amaveis e reconhecidas saudações.
Aspecto da sala do theatro de S. Carlos, na noite de 8 de junho de 1808
O aspecto que a sala do theatro de S. Carlos apresentava, na occasião da entrada de Junot, era explendido. Todas as senhoras, que enchiam os camarotes e os logares da platéa, junto ás frizas em volta da sala, de pé com grandes toilettes de gala, davam um espectaculo deslumbrante.
Por vezes, temos sido testemunhas, do bello effeito que apresenta o theatro, em noites de gala e grande illuminação, com a tribuna aberta, com a familia real e comitiva, e as senhoras em pé nos camarotes.
Em 1808 a illuminação era muito inferior á moderna do gaz, e ainda muito mais mesquinha comparada com a illuminação electrica dos nossos dias. Naquella epocha o theatro era illuminado com candelabros lateraes, collocados nas diversas ordens, com velas de cebo. Ainda então não havia Henri Chevreuil feito conhecer os seus magnificos trabalhos sobre os corpos gordos; ainda se não fabricavam as velas de estearina. No dia da festa de Junot, porém, as velas de cebo foram substituidas por velas de cera, e d'ellas havia tal profusão, que a claridade era immensamente maior do que a que habitualmente illuminava o theatro.
O que mais realçava o explendor da festa do theatro de S. Carlos, na noite de 8 de junho de 1808, era a exhibição do bello sexo. Que profusão de bellezas! Que opulencias de fórmas se patenteavam aos convidados, e aos espectadores da homenagem, que o chefe do exercito invasor se fizera prestar pelos seus subordinados! que toucados e que penteados! que deslumbramento de diamantes! as modas do imperio em todo o seu auge e explendor!
Neste ponto a França reinava sem contestação na alta sociedade em Portugal. Sobre a moda nos trajes, o seu reinado não se interrompeu. Deu a lei antes da invasão, como continuou a dal-a depois. O imperio da França sobre as modas tem-se perpetuado até aos nossos dias; generalisando-se cada vez mais, e mais rapidamente, ás diversas classes do povo.
No camarote do barão de Quintella ostentava a sua belleza, com uma vistosa toilette, apropriada a fazer sobresair os encantos naturaes, a condessa da Ega, D. Juliana, de quem já falámos, e que era a rainha d'aquella festa, pela posição, e pela estima que lhe professava o duque de Abrantes.
Na maneira de vestir, na elegancia, nos habitos e costumes, de receber em sua casa, em intimidade, ou em grandes solemnidades de recepção, na conversação, e na fórma de presidir as reuniões, a condessa da Ega, procurava imitar a celebre madame Récamier; mas esta era belleza superior, e com maior originalidade do que a condessa favorita de Junot.
No mesmo camarote estava o barão de Quintella, o conde da Ega, e outros.
Nesta epocha já estava perdida a esperança de que Junot cingisse a corôa de Portugal. Restava apenas, como consolação, o reinar, de facto neste paiz, em nome de Napoleão, com o titulo de governador de Portugal. Isto mesmo, porém, começava já a tornar-se difficil; e em breve a revolução ia alastrar, e a guerra com a Inglaterra, que não tardaria a estabelecer o seu campo de operações no solo lusitano, havia de restringir, e por fim acabar com o ephemero governo do duque de Abrantes.
Foi já nestes ultimos tempos, que o conde da Ega interveiu, officialmente, no governo intruso d'este paiz. Foi por decreto de 1 de julho de 1808, que Junot nomeou o conde da Ega membro do conselho do governo, em substituição do principal
Castro, que, por motivo de máu estado de saúde, pedira a exoneração, de encarregado dos negocios da justiça. Foi só, porém, a 1 de agosto que o conde tomou officialmente posse do logar.
Se a condessa da Ega era a rainha da festa, pelo logar que occupava, pelo direito de beldade a primeira era madame Trousset.
De dimensões mais avantajadas que a condessa, mais alta e magestosa, com grande opulencia de fórmas, que o traje da epocha, com o extraordinario decote, e o penteado alto, faziam sobresair, madame Trousset era o sol que mais attrahia e fascinava nesta brilhante reunião de mulheres, que constituiam o maior ornamento da festa, dada pelo exercito francez ao seu commandante em chefe.
As modas vindas de França
Apezar de neste tempo serem poucas, difficeis e demoradas, as communicações com a França, comtudo as modas francezas penetravam sempre em Portugal, porém com mais ou menos annos de atrazo. Assim chegaram ao extremo occidente da Europa as modas da Revolução, as do directorio e as do imperio, posto que com algum tempo de atrazo, e certa moderação e menos exageração.
Assim não nos consta que nos salões da nobreza, ou classe media, do tempo de D. Maria I e do principe regente seu filho D. João, apparecessem senhoras com trajes como se apresentára em Paris, por exemplo, a celebre Therèse Cabarus, mais conhecida pelo titulo de Madame Tallien, que apparecia nos bailes sem meias nem sapatos, apenas com sandalhas, em que assentavam as plantas dos pés, ligadas a estes por fitas tricolores, com anneis de ouro nos dedos dos pés, e argolas de ouro no logar das ligas sobre as pernas núas: com vestido muito ligeiro e curto á grega, aberto, com fendas lateraes, desde os quadris até á base.
Entretanto, que os trajes excessivamente decotados, mesmo para andar na rua e a passeio, até de inverno, se usavam em Portugal, e que essa moda se generalisou muito em Lisboa, a todas as classes no sexo feminino, não ha duvida alguma.
Estava a moda do menos tapado, e da maior transparencia possivel, no vestuario das mulheres, no seu auge, em 1804; e chegou a ponto, dizia o intendente geral da policia Diogo Ignacio de Pina Manique, que as mulheres andavam na rua quasi núas, isto ainda nos mezes de fevereiro e março d'aquelle anuo.
O intendente bem quiz pôr cobro áquelle modo de vestir, fazendo, por intervenção dos corregedores dos bairros de Lisboa, saber ás modistas que, se continuassem a fazer vestidos d'aquella forma, seriam presas no Castello de S. Jorge. Mas a moda foi mais forte do que elle. Os trajes, como elle lhe
chamava, indecentes, só acabaram completamente, quando acabou a moda.
Entretanto, nos trajes officiaes da corte, as antigas modas ainda se prolongaram por muitos annos.
Assim, quando em 1804, a mulher de Junot, embaixador da França imperial, junto do principe regente de Portugal, foi recebida pela primeira vez, com todo o ceremonial, pela princeza D. Carlota Joaquina de Bourbon, no paço de Queluz, foi obrigada a apresentar-se com um vestido, como ordenava a etiqueta, com a saia de grande amplidão, uma especie de donaire (panier), como se usava em França, antes da Revolução, e um toucado de plumas tão altas, que faziam lembrar as de alguns selvagens da America, e que lhe foi preciso tirar da cabeça, para não esbarrar com o tecto da carruagem, que transportou a mulher do embaixador francez, de Lisboa a Queluz.
Para poder entrar com o vestido na carruagem é que, porém, houve difficuldades grandes, que a embaixatriz com toda a sua esperteza feminina, o General Junot, o secretario Rayneval, e todo o pessoal da embaixada, não souberam resolver.
Entretanto a mulher de Junot insistia, que devia ser possivel, entrar na carruagem, pois que as senhoras da côrte usavam similhantes trajes, e com elles andavam de carruagem.
A final um transeunte, que por acaso ali se achava, (no largo do Loreto), foi a alma caritativa que lhes ensinou, que o balão tinha, interiormente, uns arcos, de aço, flexiveis e articulados, podendo girar em torno das articulações, sobrepondo-se, de modo que, assim dobrado, o famoso panier facilmente, e até com commodidade, entrava na carruagem, e era conduzido facilmente e sem se deteriorar.
As toilettes das senhoras em 1808
Com a invasão do exercito francez, em Portugal, as modas das senhoras passaram a estar mais em dia, deixando de andar atrazadas alguns annos, em relação ao que se usava em Paris.
Um ponto importante a notar é que, em 1080, nos trajes femininos, não figurava o espartilho metallico. Esta parte mechanica, do vestuario do bello sexo, ainda então não tinha entrado em moda. Mas estava por pouco. Foi no inverno de 1809 a 1810, que appareceu em Paris o espartilho, cujo uso, apesar das satyras com que foi acolhido, e das criticas feitas em nome da elegancia, da hygiene e da medicina, nunca mais se interrompeu, completamente, até aos nossos dias.
Em 1808, os vestidos das mulheres eram excessivamente decotados, não só os dos bailes, como tambem os de passeio; a cintura muito curta, logo abaixo dos peitos, ou mesmo cortando estes; mangas muito curtas, ou mesmo ausencia de mangas, estando o corpo do vestido apenas suspenso aos hombros por umas fitas. Os vestidos eram curtos deixando vêr bem os pés, e ás vezes tambem parte das pernas. Alguns vestidos tinham a mesma largura em toda a altura desde a cintura até á base; era a este modelo que chamavam robe sac.
As luvas eram muito compridas, passando algumas para cima dos cotovellos. Os sapatos para os bailes eram de setim branco.
Os vestidos para a rua eram geralmente muito compridos, decotados, de mangas curtas. Alguns tinham mangas longas com botões nos pulsos. Um fichú e um chaile eram os abafos mais usados.
Foi no tempo de Napoleão I, que se generalisou muito a moda dos chailes de cachemira, depois da campanha do Egypto.
Foi tambem nesta epocha, que se tornou grande tom o uso das flores artiffciaes, que já muito antes se fabricavam em Italia. Quarenta annos mais tarde um habil artista portuguez, emigrado depois da guerra de D. Miguel, o famoso Constantino, chamado o rei dos floristas, havia de tornar-se uma verdadeira celebridade em Paris, como fabricante de flores artiffciaes.
Os penteados eram muito vistosos; alguns de uma altura immensa. Usavam as senhoras muito de toucados ou turbantes; alguns faziam lembrar os dos mamelucos; introduziram-se na moda depois da expedição ao Egypto.
Plumas, tulles, cassas, diamantes e alfinetes de ouro e perolas; eis os enfeites mais usados para os penteados das senhoras em grande toilette, nesta epocha; sem contar as simples coroas de rosas, naturaes ou artificiaes, sobre um abundante cabello, que não eram de certo os menos elegantes.
Neste tempo o luxo tinha tomado proporções extraordinarias, que eram muito do agrado do imperador Napoleão. Nas noites de baile, era do melhor tom o uso de muitos diamantes e outras pedras preciosas, na cabeça e em braceletes, e os collares de perolas no pescoço, e, sobre o peito e costas, ricas e finissimas rendas.
Eram os vestuarios d'esta epocha, que, realçando, extraordinariamente, os encantos physicos das mulheres, juntamente com as apparatosas fardas dos militares e funccionarios, tornavam explendidamente vistosos os bailes e outras reuniões, da corte de Napoleão, como praticamente demonstrou Victorien Sardou, reconstruindo, na representação da sua brilhante composição theatral, a comedia que intitulou madame Sans Gêne, os costumes externos da sociedade franceza do imperio.
O luxo das joias e das rendas em 1808
Em muitas familias portuguezas, nobres e abastadas, não faltavam rendas e joias. A industria de Peniche, e as minas do Brazil, tinham fornecido, abundantemente, aquelles dois artigos do luxo e das galas das senhoras portuguezas.
Estes productos de industrias manufactureiras e extractivas, verdadeiramente nacionaes, juntamente com as rendas de Flandres e de Italia, paizes que, nos seculos anteriores, forneciam completamente Portugal de productos industriaes, artisticos e litterarios, constituiam preciosidades, que, de geração em geração, por heranças successivas, se transmittiam, conservando-se nas familias, pois ainda não era moda a liquidação permanente em leilão de bens mobiliarios. A venda, em hasta publica, quasi que se limitava nesta epocha, á da massa das fallencias, tomadias e avarias, á de alguns predios, e á das mobílias dos diplomatas e extrangeiros abastados, quando se retiravam de Portugal.
Apesar dos grandes valores de muitos particulares, que tinham acompanhado seus proprietarios na fuga para o Brazil, com a familia real, no anno anterior, e depois tambem, em navios, que successivamente tinham saido de Portugal para as terras de Santa Cruz, comtudo eram muitas as riquezas mobiliarias que tinham ficado em Lisboa; e nos adornos das damas portuguezas, que abrilhantavam o baile do theatro de S. Carlos, na noite de 8 de junho de 1808, abundavam liquissimas rendas, e valiosos e numerosos diamantes, perolas e outras pedras preciosas.
Entre as francezas que figuravam na festa de Junot, sobresaiam as esposas dos generaes. Eram na maior parte, filhos da revolução, e aventureiros, os generaes de Napoleão; amantes do luxo em excesso, enriquecidos alguns com os productos das extorsões, e dilapidações, nos paizes invadidos pelas tropas imperiaes; e as suas mulheres gostavam, em geral, de ostentar, em cima de si, muitas riquezas.
O baile -- O que se dançou -- Das difficuldades que tiveram os namorados para dançar com as suas namoradas -- Os bilhetes pessoaes para as contradanças francezas -- Os mestres de ceremonias.
Depois do duque de Abrantes ter dado a volta em torno da sala, como que passando unma especie de revista, ao physico e ás toilettes, das senhoras que occupavam as frisas, e os logares da platéa contiguos, em todo o perimetro da sala, o 1.º mestre sala veiu receber as ordens do general, para uma contra-dança, que se dançou em seguida, em que figurou o duque; contradança que só continha quatro figuras, e que foi quadrilha isolada; imitação de contra-dança monarchica, em que Junot parecia o soberano, macaqueando, com a maior etiqueta, os costumes da monarchia, que a revolução, de que o general era filho, arrasara alguns annos antes.
Logo que terminou a contra-dança de honra, immediatamente se seguiram contra-danças francezas com seis figuras, tendo quatro pares cada quadrilha, danças inglezas, e valsas alternadamente.
As valsas, e as danças inglezas, eram dançadas sem lugar marcado, observando-se comtudo a ordem de chegada dos pares, tomando o primeiro par chegado o ponto mais proximo do centro da ribalta, e o lugar immediato, cada um dos que successivamente fosse chegando, em columna elliptica, como a fórma da sala.
Nas inglezas, a dança começava simultaneamente pelos pares da frente das columnas e pelos do centro.
Quando havia mais de uma columna, os pares ficavam dispostos de modo, que as senhoras occupassem a parte interior e concava das columnas. Tudo isto era fiscalisado pelos mestres de cerimonias.
Nas contradanças francezas só era permittido dançar com bilhetes, estabelecendo qual a senhora e qual o cavalheiro que formavam o par, bem como o numero do par (1 a 4), e o numero da quadrilha e sua collocação de ordem na sala.
Assim o tinha préviamente annunciado o programma dizendo, em um dos seus artigos:
Il est impossible de contracter d'avance aucun engagement pour les contredanses françaises. Esta mania da regulamentação franceza veiu perturbar, e trazer não poucos transtornos e dissabores aos namorados.
Eram os mestres de cerimonias que distribuiam os bilhetes, e viram-se não pouco embaraçados com os pedidos, de alguns dos namorados, e com os pedidos contradictorios de outros, ou dos parentes das donzellas requestadas. As conveniencias, o amor, os ciumes, a vaidade, as sympathias e antipathias, e os interesses, entrando em jogo, deram origem a grandes difficuldades, em que se encontraram os mestres de cerimonias, para fazerem cumprir o programma. Por vezes foi a vontade, ou capricho, de Junot, que resolveu, por auma vez, a questão da união irrevogável, do cavalheiro e dama, que haviam de constituir um par, para uma certa contradança franceza.
No programma estava consignada uma tal ou qual justificação, ou explicação, d'aquella ordem. Era para que as senhoras, feias, velhas, ou pouco sympathicas, ou com falta de cavalheiros seus conhecidos, não ficassem toda a noite sem dançarem. O programma tambem queria que dançassem todos os homens; pois dizia: «Des maitres de cérémonies, qui ne danseront pas, auront le plus grand soin de faire danser successivement tous les cavaliers et toutes les dames».
Para esta festa tinham sido convidados todos os officiaes dos regimentos franeczes aquartellados em Lisboa. O regimento n.º 70 de infanteria achando-se então completo, por já terem regressado os destacamentos que tinham estado fóra, o capitão Raoul de Remigny havia sido convidado, como todos os seus camaradas.
Pelo mestre de cerimonias havia sido enviado a Raoul um cartão, em que estava designado como par de mademoiselle Nadine Dubatchewskow, filha do consul da Russia, tendo por vis-a-vis o vice-consul da Russia, em Setubal, com mademoiselle de La Fargue, 4.° par do 2.º grupo da 2.ª linha da l.ª contradança franceza.
O estado moral de Raoul, porém, que havia um mez que tinha perdido, com a morte de Soror Maria, toda a alegria, e se achava sob pressão de profundo desgosto, não lhe permittia ir a festas.
Não tendo comparecido o capitão Remigny, e indo dançar-se a 1.ª contradança, João Rocks, o namorado da que devia ser par do capitão, que sempre se conservára, quanto podera, o mais proximo possivel de Nadine, aproveitando habilmente a falta do capitão, dirigiu-se ao mestre de cerimonias, pedindo-lhe instantemente para substituir o capitão na contradança.
O mestre de cerimonias embatucado com a falta do capitão, mas aproximando-se nesse momento
Geouffre, concunhado de Junot, e que era o director de todas as festas, a quem o duque de Abrantes chamava, le surintendant des menus plaisirs, esse resolveu logo o problema, concedendo a Rocks dançar com Nadine. Eis como a morte de Soror Maria, e a tristeza que d'ella teve Remigny, deu áquelles namorados o prazer de dançarem juntos, apesar de estar determinado o contrario pelos festeiros de Junot!
Mutação de scena no palco -- A ceia -- Como se organizou o prestito -- Buffette e serviço volante
Pouco depois da meia noite e meia hora, ao terminar uma ingleza, os commissarios da festa convidaram as senhoras a sentar-se, e os cavalheiros a dirigirem-se para o lado da entrada, afim de que a sala ficasse desembaraçada, o que já tinha sido annunciado no programma, que dizia referindo-se a essa occasião, «l'intérieur de la salle sera entièrement vuidé!»
Mas esta manobra não se fez, nem era possivel fazer-se, com bastante rapidez. Então os mestres de cerimonias gritaram com vozes de stentor, «toutes les dames à leurs places: tous les cavaliers à la porte.»
Em seguida a esta intimação produziu-se um grande murmurinho, e não poucos encontrões. Uma massa compacta de cavalheiros se amontoou e comprimiu junto á porta, por baixo da tribuna, passando muitos para o salão de entrada, com receio de serem asphyxiados; outros mais fortes de musculos e de peito, com a idéa de serem dos primeiros a dirigirem-se para o buffete, conservaram as suas posições á entrada da sala com tendencia a avançarem, de modo que se tornou impossível que o interior da sala ficasse completamente livre, (entièrement vuidé), como convinha á fatuidade magestatica de Junot; pelo contrario esse espaço livre foi gradualmente restringindo-se, sendo successivamente invadido, e cerceado, pela pressão irresistivel da massa compacta dos convidados do sexo masculino.
Então a orchestra entoou o hymno Veillons au salut de l'empire, de Boy, extraido da opera Renaud d'Ast, de Dalayrac, e o panno de bocca subiu deixando ver a scena em toda a sua extensão, ornamentada com flores e bandeiras, e brilhantemente illuminada, com um explendido buffete sob uma especie de barraca de campanha, elegantemente decorada, e cujas cortinas se achavam encerradas.
Findo o hymno o maitre d'hotel passando entre as cortinas da barraca, e avançando até á ribalta, com voz forte disse: «Monseigneur est servi.» Logo aos sons da orchestra se organizou um prestito que se dirigiu para o tablado, onde estava a barraca cujas cortinas então se abriram; na frente ia o general Thiébault um dos commissarios organizadores da festa, seguindo-se o duque de Abrantes dando o braço á condessa da Ega, o almirante Siniavinn dando o braço a madame Trousset, o conde da Ega com madame Foy, o barão de Quintella com madame Thomiéres, e atraz uma serie de senhoras pelo braço de cavalheiros.
No meio da tribuna, sobre tropheos de petrechos de guerra, circumdado de uma enorme profusão de grinaldas de flores, sobresaia o retrato do imperador Napoleão, tendo a seus pés as bandeiras das nações, cujos exercitos haviam sido vencidos pelas hostes francezas. Entre aquellas bandeiras figurava tambem o pavilhão da Russia.
Esta leviandade de exhibir, perante o almirante Siniavinn, commandante da esquadra russa surta nas aguas do Tejo, a bandeira d'esta nação como um dos tropheos das glorias do Imperador, recordando a batalha de Austerlitz em que os russos, de companhia com os austriacos, tinham sido derrotados por Napoleão, era o cumulo da inconveniencia, da parte do duque de Abrantes, e mostrava bem a sua completa falta de tacto diplomatico e politico.
Recordar antigas dissenções entre a França e a Russia, depois do tratado de Tilsitt, em que os imperadores dos francezes e da Russia, tinham ficado em relações muito cordiaes e amigaveis, e, de mais a mais, estando continuamente o duque de Abrantes a solicitar a coadjuvação da esquadra russa, pedindo ao almirante, que ao menos, mandasse guarnecer, pelas forças do seu commando, as fortalezas da barra, era uma falta completa de tino, e um cumulo de inepcia e inconveniencia.
O almirante Siniavinn que assistia ao baile, e que na ceia teve o logar de honra, em frente do general Junot, não deu o menor signal de se achar offendido, com a estulta collocação da bandeira russa nos tropheos em homenagem ás glorias napoleonicas, manifestando o almirante durante toda a festa, a mais delicada galanteria e perfeita correcção diplomatica, apesar de Junot costumar dizer que o almirante moscovita era sauvage au naturel.
É verdade, que ao almirante Siniavinn, tinha sido reservado conduzir pelo braço, para a ceia, a explendida madame Troiisset, e o barbaro moscovita não queria, por causa das inconveniencias de Junot, perder o bello braço de madame Trousset, durante aquella festa.
Dias depois, porém, indo o duque de Abrantes, em 28 do mesmo mez, visitar a esquadra russa, nenhum dos navios d'essa nacionalidade salvou por occasião d'esta visita. Ficava assim estigmatisada a leviana incorrecção, praticada pelo governo de Junot, no baile do theatro de S. Carlos.
A ceia era servida em uma grande mesa, a qual era rodeada de cadeiras, onde se sentaram as senhoras conduzidas no prestito, e os seus cavalheiros. A escolha do cavalheiro, que deveria conduzir qualquer das damas, era livre, porém só podiam servir-se á mesa os homens que fossem designados pelos commissarios para terem essa honra; esse facto vinha limitar a liberdade na organisação dos pares do prestito para o buffete. Prehenchidos todos os logares da mesa pelos cavalheiros escolhidos e pelas senhoras que podiam caber: as outras damas, que tinham ficado nos seus lugares, eram servidas na sala por criados, que em bandejas levavam as comidas e bebidas; para essas senhoras, e para o resto dos cavalheiros convidados, era uma especie de ceia volante.
Tinha sido bem mais sumptuosa, e com outro cunho de grandeza, a ceia que, em 11 de novembro de 1801, o intendente geral da policia da côrte e reino, Diogo Ignacio de Pina Manique, dera a todos os espectadores no real theatro de S. Carlos, em mesas armadas nos corredores dos camarotes, para festejar a conclusão da paz entre Portugal, Hespanha e França, pelo tratado de Badajoz de 6 de junho do mesmo anno.
Continua o baile -- Começa o Jogo -- Retira-se o duque de Abrantes
Terminada a ceia organizou-se outra vez o mesmo prestito que, porém, desfilou em ordem inversa, fechando-o o general Junot e os commissarios da festa.
Em seguida cerraram-se as cortinas, desceu o panno, e em poucos minutos foi retirada a mesa da ceia, sendo substituida por pequenas mesas de jogo.
Realisada esta transformação, subiu o panno, abriram-se as cortinas, e sala e palco, ficaram livremente, á disposição dos convidados, organizando-se partidas de jogo, ao mesmo tempo que o baile continuava.
Eram tres horas e meia da madrugada quando o duque de Abrantes se retirou, sendo conduzido á sua carruagem pelos mesmos officiaes que o tinham recebido, e com a mesma etiqueta; e com o mesmo prestito regressou ao palacio da rua do Alecrim.
Na occasião da retirada do general, as musicas tocaram o Chant du départ de Méhul.
O famoso canto nacional francez La Marseillaise cujas palavras e musicas são attribuidas, geralmente, a Rouget de Lisle, mas que alguns julgam ser a musica um plagiato, quasi integralmente, de uma composição sacra, de um padre organista do seculo XVIII, tinha deixado de ser tocado pelas bandas militares, depois do estabelecimento do imperio em França.
O imperio não teve propriamente um hymno, exclusivamente seu, o que não impediu que Napoleão ganhasse brilhantes batalhas, e a gloria das águias francezas chegasse ao seu apogeo.
Entretanto o imperador quiz que o imperio não deixasse de ter um canto. Para este hymno, porém, nem sequer foi composta expressamente a musica; foram extrahir da opera Renaud d'Ast, de Dalay-rac, um motivo, a que Boy adaptou uns versos, que começam pela phrase Veillons au salut de l'empire. Este hymno nem tem musica proj^ria, nem representa tradições, nem é um canto patriotico.
Mais tarde, a rainha Hortense, da Hollanda, compoz a musica de um hymno, com lettra de Laborde, começando pela phrase Partant pour la Syrie. Este hymno foi muito tocado, durante o segundo imperio, no reinado de Napoleão III.
A procissão de Corpo de Deus
Foi a 16 de junho, que, em 1808, caiu a quinta-feira do Corpo de Deus.
Que festa extraordinária era, n'esta epocha a procissão de Corpus Christi!Affluiam, para vêr tal procissão, muitos milhares de pessoas a Lisboa, vindas não só dos arredores, mas até das provincias!
Logo, de madrugada, a povoação da capital e seus hospedes, estavam de pé, toilette feita, promptos a irem para as ruas do transito, afim de conseguirem occupar bons lugares, para verem desfilar a procissão.
Muitas senhoras ficavam penteadas de vespera, especialmente as que necessitavam de cabelleireiros, para lhes fazerem os penteados; pois o numero d'estes obreiros da arte capillar era muito pequeno, para o numero de damas que queriam, n'aquelle dia, apresentar-se com penteados á ultima moda, feitos, segundo os modernos figurinos, e pelos homens da arte.
Era no dia de Corpo de Deus que se estreavam os novos vestuarios, para a maior parte dos homens e das senhoras. Tanto as classes mais elevadas, como o povo, tinham especial predilecção, por se apresentarem n'aquella solemne festividade, com vestuario novo.
Era naquelle dia, por todos esperado com anciedade, que o exercito e a marinha começavam a usar calça branca. Era a entrada official na estação calmosa, apesar de, algumas vezes, o tempo fazer suas pirraças, não parecendo nada proprio da estação, arremessando bategas de agua sobre os militares, cujas calças ficavam uma lastima, nao só encharcadas, mas salpicadas de areia encarnada molhada, que, nas ruas por onde passava a procissão, formava um lamaçal desagradavel, e, prejudicando consideravelmente as toilettes estreadas n'aquelle dia.
Muitas senhoras das que eram penteadas de vespera, não se deitavam. Ficavam sentadas em cadeiras, á espera da madrugada para se vestirem.
Neste tempo as senhoras saiam pouco. Mas em dia da procissão de Corpo de Deus, poucas se resignavam, voluntariamente, a ficar em casa. Neste dia, na semana santa, e dia de finados, é que se viam muitas senhoras pelas ruas.
Era então muito vulgar o capote e lenço nos costumes femininos. Mesmo muitas senhoras da alta burguezia e nobreza tinham, na sua guarda-roupa, esse simples trajo com que ás vezes iam á missa. Mas no dia da procissão de Corpus Christi, trajavam os melhores vestuários que possuiam.
A procissão, naquella epocha, sahia da egreja de S. Domingos, dava volta ao Rocio, passando em frente do palacio da inquisição, e percorria as ruas do Ouro e Augusta. Todas as ruas estavam areadas, e as janellas armadas e guarnecidas com sanefas e cobertores. Em todo o transito, as tropas formavam alas, por entre as quaes desfilava a procissão.
Era extraordinario o numero de confrarias, e frades de diversas ordens, que iam na procissão.
Na frente da procissão ia S. Jorge, a cavallo, com um grande estado de bellos cavallos, ricamente ajaezados, fornecidos pela casa real, com numerosos creados da mesma casa com as librés ricas.
Na frente do estado de S. Jorge, formando o principio da procissão, iam os pretos, tocando tambores, cornetas e piphanos, com as classicas fardas, encarnadas e amarellas, de taes dimensões, que a todos serviam, e chapeus armados nas cabeças.
No primeiro cavallo da frente, do estado de S. Jorge, ia o homem de ferro, representando um cavalleiro da edade media. Era um gallego de fretes, a quem se vestia uma armadura do seculo quatorze, com o competente elmo, sob cujo peso o subdito de sua magestade catholica, ia, por tal forma, opprimido, que se não podia endireitar bem, apresentando-se todo curvado, sem poder com as manoplas dirigir bem o cavallo e empunhar a lança; por isso era auxiliado, nestas manobras, por creados da casa real.
Ao gallego que representava o homem de ferro, dava-se meia moeda em oiro, uma gallinha e uma sangria. O tirar sangue era então tratamento, tanto preventivo como curativo, muito preconisado. Julgava-se indispensavel, para evitar uma congestão, sangrar um homem, que tinha estado umas poucas d'horas debaixo de uma pesada armadura, com os movimentos presos, ás vezes debaixo de um calor ardente.
Atraz do seu numeroso estado de cavallos, levados á mão por creados da casa real, ia S. Jorge a cavallo, e a atraz d'este, tambem a cavallo, um pagem, que era geralmente um rapaz muito novo, ou uma rapariga, com bonito trajo.
Atraz de S. Jorge iam numerosissimas confrarias e ordens religiosas, e no fim da procissão ia o pallio, debaixo do qual caminhava a primeira auctoridade ecclesiastica, da diocese da capital, com o Santo Sacramento.
Seguiam atraz do pallio, o rei, os seus ministros e a sua côrte, ladeados, e acompanhados posteriormente, por uma guarda de archeiros da casa real.
Levava a procissão umas poucas de horas a passar. O que tinha mais attractivos, era o principio e o fim; o estado de S. Jorge e o pallio com o rei e sua comitiva de cortezãos, gran-cruzes, commendadores e cavalleiros com os seus mantos.
S. Jorge levava um chapeu muito rico e elegante, com grande profusão de explendidas joias, que era emprestado, todos os annos, no dia de Corpo de Deus, pelo duque de Cadaval.
Logo de madrugada sahiam os pretos do castello e iam á calçada da Ajuda, ás cavallariças da casa real, buscar os cavallos e os creados para o estado de S. Jorge. Vinham de Belem a Lisboa em prestito, tocando os pretos os seus classicos tambores, piphanos e cornetas, e iam ao castello buscar a imagem de S. Jorge.
Posta a imagem sobre o cavallo, e montando tambem os respectivos cavallos o homem de ferro e o pagem, ia o prestito a casa do duque buscar o chapeu para S. Jorge.
Munido o santo com o rico chapeu, ia todo este estado de S. Jorge, para junto da egreja de S. Domingos, formando no largo, prompto a encorporar-se na procissão de que formava a deanteira.
A procissão costumava sahir da egreja do meio dia para uma hora da tarde. O desfilar da enorme quantidade de frades e irmãos de diversas ordens e confrarias, levava muitas horas e tornava-se enfadonho. Durante esse tempo o povo entretinha-se a vêr quem estava pelas janellas.
Logo que a procissão regressava á egreja, o estado de S. Jorge ia a casa do duque de Cadaval entregar o chapeu do santo. Em seguida ia ao castello deixar S. Jorge na sua capella, e largar o pagem e homem de ferro, e depois os pretos iam entregar os cavallos nas reaes cavallariças em Belem.
Era geralmente já de noite quando os pretos de S. Jorge regressavam de Belem, mas cançados de andar tantas leguas n'aquelle dia, entravam em quantas tabernas encontravam, no caminho para Lisboa, para descançarem e beberem, ficando a cahir de bebados, e n'este pouco poetico estado recolhiam á capital.
Panico burlesco
Se era sempre anciosamente esperada a quinta feira de Corpo de Deus, no anno de 1808, não só havia o usual desejo, de vêr essa festa, mas havia o receio de que ella se não realisasse.
Os mais contraditorios boatos circulavam a esse respeito. Uns diziam que, com certeza, se fazia a procissão. Outros sustentavam que se não fazia.
Os que eram da mesma opinião, nem por isso estavam de accordo nas causas que determinavam a affirmativa ou a negativa.
Asseveravam uns que a procissão não podia sahir, por não haver, em Lisboa, pessoa real que a acompanhasse, atraz do pallio, com toda a côrte, como era costume antigo e obrigatorio.
Replicavam outros que a procissão sairia, porque seria o general Junot, governador de Portugal, quem occuparia o lugar do principe regente.
Alguns sustentavam que não haveria procissão por causa de se temer que houvesse uma revolução.
Davam alguns como razão para não haver procissão, o não ter chapeu S. Jorge. Neste argumento havia um ponto que era verdadeiro. O duque de Cadaval quando foi, em 1807, para o Brazil, levou, não o chapeu de S. Jorge, mas as valiosas joias com que estava ornamentado, e que eram propriedade sua, e que elle emprestava todos os annos no dia de Corpo de Deus, para se apresentar na procissão.
Tambem não faltou quem affirmasse, que não haveria procissão, por não querer o duque de Abrantes, que fosse no prestito S. Jorge, por ser inglez, e receiar que o imperador se agastasse, com que os seus officiaes, e as suas tropas, prestassem qualquer genero de homenagem aos inglezes, mesmo que fossem santos de pau d'aquella nacionalidade.
Houve tambem quem encarasse o assumpto pelo lado da mesquinharia, dizendo que o governo de Lisboa não queria dar, na capella de S. Jorge, a avultada esmola que era costume.
Uma das explicações, que tambem corria entre a multidão, para não haver procissão, era o receio que o muito povo, que era costume nesse dia ir ao castello, se aproveitasse d'essa occasião para fazer uma sublevação.
O facto era que andavam todos inquietos e agitados. Não se falava senão em motins e revoltas nas provincias, e desembarques de tropas inglezas.
Havia mezes que corriam estes boatos, mas agora com mais insistencia. Foi effectivamente no mez de junho que rebentaram mais a serio, e com maiores probabilidades de bom exito, as revoltas contra os francezes.
Quanto ás forças inglezas foi tambem pouco tempo depois que desembarcaram em Portugal, mas havia muitos mezes que se falava nisso.
Por vezes o general Junot, em vista dos boatos, que corriam a esse respeito, tinha mandado pôr em movimento diversos corpos de tropas, no que commettia um erro, disseminando as suas forças.
Corria com particular insistencia que as tropas inglezas desembarcariam perto da barra de Lisboa, protegidas pela sua esquadra. Junot assim o acreditou. O general inglez Wellesley, o futuro duque de Wellington teve effectivamente essa ideia; mas d'ella foi dissuadido pelo commandante da esquadra, o almirante Cottor. De modo que o desembarque foi verificar-se, perto da Figueira, em Lavos, a 1 de agosto seguinte.
Os conselheiros habituaes de Junot, effectivamente, disseram-lhe, que era prudente que não houvesse a procissão de Corpo de Deus. Mas o famoso conselho conservador da associação revolucionaria, assegurou ao duque de Abrantes que não haveria sublevação alguma.
Junot resolveu, que houvesse a procissão. Em quanto a S. Jorge, que saisse sem chapeu ou sem joias, isso era-lhe indifferente.
Entendeu, porém, o governador de Portugal, que não devia ir, querendo apparentar modestia, não querendo usurpar o lugar do principe regente atraz do pallio.
Como desculpa, disse que estava incommodado e fez-se sangrar, nesse dia de manhã, o que o punha, neste ponto, ao lado do homem de ferro da procissão, que tambem devia ser sangrado nesse dia.
Mas apenas acabava de terminar a pequena sangria, recebeu um aviso anonymo, de que, durante a procissão, deveria ser assassinado, e, juntamente com elle, muitos francezes. Emfim era uma denuncia de que naquelle dia se verificaria uma especie de vesperas portuguezas.
Medo, era coisa que Junot não conhecia. Em vista da denuncia resolveu apparecer. Mas poz, em desenvolvimento, nas ruas, grandes forças, incluindo umas poucas de baterias de artilharia, que collocou no Rocio, em frente do palacio da inquisição, com as boccas de fogo apontadas a differentes pontos do horisonte.
A final a procissão saiu para a rua. Mas quando ella appareceu, já o povo estava muito impaciente pela demora que teve neste anno.
A decepção foi immensa, quando a enorme quantidade de gente, que estacionava nas ruas, viu que faltava S. Jorge, os pretos e todo o estado do santo inglez. Foi a irmandade do santo que não quiz deixal-o sair do castello, por não ter as joias para o chapeu.
Faltava, portanto, a parte da procissão, que nesta épocha, mais agradava ao povo, o qual começou a enfadar-se com o interminavel estendal de congregações religiosas e confrarias, que parecia que, cada vez, andavam mais devagar, e sempre a pararem, á espera dos que vinham atraz.
Por fim a paragem prolongou-se por tal fórma, que logo ali se originaram os mais extraordinarios boatos, espalhando-se que havia milagre na egreja de S. Domingos, e que era o Santissimo Sacramento que não queria sair do Sacrario.
O duque de Abrantes, que estava no palacio da inquisição, na grande janella de balaustrada, sobre o portão que dava accesso ao pesado edificio, com muitas senhoras, entre as quaes a condessa da Ega, madame Thomiéres, madame Trousset, e outras, teve, logo momentos depois, noticia do milagre que andava apregoado pelo ajuntamento do povo.
Junot desceu immediatamente, e, sacudindo bruscamente os espectadores que lhe difficultavam a passagem, entrou na egreja de S. Domingos, e fez sair immediatamente o resto da procissão, acompanhando elle atraz do pallio, com um cor- tejo de officiaes, de cabeça descoberta, excepto o general Laborde, que se conservou com chapeu armado na cabeça.
Mas não tinham ainda acabado as peripecias do dia de Corpo de Deus, do malfadado anno de 1808.
Tinha-se de novo posto em movimento a procissão, quando na rua do Ouro, á esquina da travessa da Assumpção, um larapio, para empalmar o relogio a um pacifico espectador, se lembrou de gritar que havia revolta.
Produziu-se então um reboliço enorme. Um panico estupido se apoderou da maior parte dos circumstantes. Ondulações compactas, e de força irresistivel, do povo, se propagaram a todas as ruas do transito e ao Rocio, invadindo um terror subito não só os espectadores, mas tambem os membros das ordens e confrarias, e os proprios soldados francezes.
Neste momento passava o pallio defronte do palacio da inquisição. Para saudar o Santissimo, as tropas ali formadas começaram a dar descargas. Então o terror cresceu espantosamente. Parecia que todos estavam doidos.
As ruas e praças, em um momento, ficaram quasi desertas. O povo e soldados entraram, de tropel, por onde acharam, pelas lojas e pelas casas, levando, adiante de si, tudo que lhe offerecia resistencia.
Ao mesmo tempo ouviam-se vozes, dizendo, que tinham chegado os inglezes, que estavam minadas as ruas, e outros disparates semelhantes.
Com os movimentos desorientados, dos fugitivos e atterrados, muitas pessoas cairam, e ficaram atropelladas e feridas.
Pelas ruas do transito não se viam senão cruzes pelo chão, cereaes, velas e tochas de cera, barretinas, chapeus, fragmentos de capas e habitos dos monges.
Muitos dos irmãos e frades andaram aos trambulhões pelas ruas, cheios de terra e areia encarnada. Foi uma scena verdadeiramente burlesca.
Alguns officiaes francezes, que não tinham perdido o sangue frio, viram-se afflictos para fazerem regressar os soldados á forma, e para acudir aos que caiam e eram victimas dos que lhes passavam por cima.
Dizia o tenente Dufourcq, cujo regimento estava formado na rua do Ouro, que era aquelle dia o primeiro em que elle ria, depois das penas que tinha padecido, com a grande magua do seu amigo Remigny, pela morte de Soror Maria, mas que a uma scena, como a que produzira o panico, não se podia resistir sem rir.
EfFectivamente as quedas desencontradas, especialmente dos frades muito gordos, a attitude em que muitos ficaram, descompostos, uns de barriga para o ar, outros de costas, com os habitos todos revirados sobre as cabeças, ou esfarrapados, deram ao episodio um tom altamente comico e burlesco, que fez desatar em gargalhadas todos os que não tinham perdido a cabeça, ou que em poucos instantes recuperaram o sangue frio, para apreciarem aquelle inesperado incidente da procissão de Corpo de Deus.
A marinha durante a occupação franceza
A insufficiencia da marinha foi um dos pontos vulneraveis do primeiro imperio francez. Foi mesmo um dos elementos de fraqueza para as suas operações militares, não só pelas difficuldades que lhe trouxe, para as communicações da França com as outras nações, e para os transportes de tropas, mas especialmente pelo estado frequente de guerra, e de antagonismo permanente, ás claras ou occulto, em que Napoleão esteve com a Inglaterra.
Durante muitos annos, e nos primeiros tempos da monarchia, pouco desenvolvimento teve a marinha franceza. Foi no reinado de Luiz XIV, sob o ministerio de Colbert, que a marinha da França tomou notavel incremento. Depois, de novo decaiu, tornando-se insignificante, para uma potencia de primeira ordem, possuindo extensas costas, banhadas por tres mares, emquanto a Grã-Bretanha augmentava successivamente o numero de seus navios de guerra e de commercio.
Esta grande inferioridade maritima da França mais se aggravou com a batalha de Trafalgar, occorrida em 21 de outubro de 1805, em que a esquadra ingleza, commandada por Nelson, venceu as esquadras combinadas franceza e hespanhola, commandadas por Villeneuve e Gravina, ficando mortos os almirantes inglez e hespanhol, e prisioneiro o francez.
A fuga da familia real para o Brazil, levando uma bella esquadra, privou a França da acquisição de numerosos vasos de guerra portuguezes, que poderiam reforçar a sua marinha.
No Tejo só tinham ficado, quando os francezes entraram em Lisboa, os navios que estavam desarmados, ou que pelo seu mau estado, não poderiam, sem reparações importantes, seguir viagem para o Brazil.
O capitão de mar e guerra Magendie, que tomou o commando dos restos da marinha portugueza, tratou immediatamente de proceder ao concerto, e armamento, dos navios que ainda podiam ser utilizados.
Os que armaram, arvorando a bandeira franceza, foram successivamente; as naus Vasco da Gama e Maria I; as fragatas Tritão, Venus e Thetis e depois mais tarde as naus Principe Regente e S. Sebastião, fragatas Carlota e Benjamim, e brigue Gaivota, e varios navios pequenos.
A escuna Curiosa, que tinha acompanhado a esquadra que levou a familia real, apanhou muito mau tempo, abrindo agua, de modo que teve de arribar a Lisboa, onde ficou aprisionada, e arvorou a bandeira franceza. Eram quasi todos portuguezes os officiaes, e a marinhagem, d'estes navios.
Tendo o imperador Napoleão decretado que a casa de Bragança havia cessado de reinar em Portugal, Junot não tardou em considerar emigrados, aos quaes deviam ser confiscados os bens, todos os que acompanharam a familia real na sua fuga para o Brazil, e mandou quebrar os escudos e armas reaes dos arsenaes e palacios, bem como inutilizar os retratos dos membros da casa de Bragança. Para honra dos portuguezes, deve dizer-se que nenhum operario portuguez se prestou á execução d'este vandalismo, sendo preciso, para este fim, recorrer aos portamachados dos regimentos francezes.
Os nomes das naus Maria I, principe Regente, e S. Sebastião foram mudados respectivamente em Cidade de Lisboa, Portuguez e Brazil. Era uma pirraça contra a casa de Bragança e contra o culto catholico.
Era mais uma mudança de nomes, para addicionar a tantas outras, que, por vezes soffreram os navios de guerra portuguezes, pelo costume que havia de, com frequencia, os chrismarem, quando lhes faziam grande fabrico ou reparações. Estas mudanças são origem de grandes confusões, e difficuldades, para os investigadores das nossas antiguidades maritimas.
A esquadra, composta dos restos da marinha portugueza, commandada por Magendie, ainda conservava mais de dez vasos de guerra, fóra algumas pequenas canhoneiras e baterias fluctuantes. Era, porém, inferior á esquadra ingleza que cruzava na costa. Por isso Magendie não se atreveu a sair a barra de Lisboa.
Modernamente, outras nações procederam de um modo análogo. Em 1854, durante a guerra da França e Inglaterra contra a Russia, as esquadras d'esta ultima nação retiraram-se para Sebastopol e Cronstadt. Em 1870, durante a guerra franco-germanica, a esquadra prussiana, que era então muito inferior á franceza, não saiu dos seus portos.
Em 1808, durante a occupação franceza, a esquadra ingleza que cruzava na costa, varias vezes se approximava bastante da barra, e assim se conservava muito tempo, pairando, á vista do povo, que corria não só ao littoral, mas tambem aos pontos elevados da cidade, onde se conservava agglomerado até os navios se affastarem.
Algumas vezes entraram a barra, e chegaram até Paço d' Arcos e Ribamar, alguns navios da esquadra britannica, fazendo impunemente taes excursões. Em uma d'estas correrias, tomaram uma canhoneira, que estava fundeada em Ribamar, arvoraram a bandeira ingleza, em lugar da franceza, e levaram-n'a a reunir-se á esquadra ingleza que cruzava fóra da barra.
A vista d'este golpe de mão, fizeram-se de vela, tão depressa quanto poderam, e seguiram rio abaixo, a nau Vasco da Gama, fragatas Carlota e Benjamim, brigue Gaivota, escuna Curiosa, e uma bateria fluctuante; mas a esse tempo já a preza estava fóra da barra. A esquadra franceza não passou de Belem.
Foi insignificante o papel desempenhado pela marinha, nulla a sua acção, sobre os acontecimentos, na campanha dos francezes em Portugal.
Em compensação os vasos de guerra, e especialmente, a nau Vasco da Gama, serviram, frequentes vezes, de theatro para festas a bordo, durante a occupação franceza.
O mais brilhante festival foi um almoço dançante, dado a bordo da nau Vasco da Gama, em 12 de março de 1808.
Por esta occasião, todos os navios da esquadra se achavam embandeirados, e salvaram no momento do brinde ao imperador Napoleão.
As danças prolongaram-se pela noite adeante, havendo grandes illuminações a bordo de todos os navios francezes e russos surtos no Tejo.
As guarnições dos navios, tanto a officialidade, como a marinhagem, compostas quasi exclusivamente de portuguezes, conservaram-se até ao fim, fieis ao governo de Junot.
O fermento da revolta, que, nos mezes de junho a agosto, com tanta força lavrava pelas terras de Portugal, não penetrou a bordo dos navios da esquadra franceza. Nem mesmo depois das batalhas da Roliça e Vimeiro, quando Lisboa se achou quasi abandonada pelas tropas francezas, a marinha tentou revoltar-se contra o governo intruso.
Foi só depois da esquadra ingleza entrar a barra, depois da convenção de Cintra, que, em harmonia com as estipulações d'este tratado, Magendie largou o commando da esquadra, e os seus navios arvoraram a bandeira portugueza.
O que aconteceu a Raoul depois da morte de Soror Maria
Depois do fallecimento de Soror Maria nunca mais Raoul teve alegria. Nem a boa amisade de seus companheiros, nem o bom humor e os ditos engraçados de Dufourcq, conseguiram suavisar a sua dôr.
Dufourcq, que, na sua infancia, jacobino, miseravel, esfarrapado, mas sempre alegre, vira guilhotinar ou caminhar para o cadafalso, em Paris, tanta gente de todas as edades e condições, tornou-se immensamente triste! sublime encanto da amisade! estava inconsolavel com a dor do seu amigo, do nobre Raoul! sem conseguir attenual-a nunca.
Para maior aggravamento de seus desgostos, passado algum tempo, recebeu Raoul a noticia de haver fallecido sua mãe em Paris.
Então, sem esperanças que mitigassem a amargura das suas penas; nas tristezas profundas que sempre lhe trazia a evocação do passado; em um paiz inimigo, em que o odio contra os francezes cada vez se pronunciava mais; sem desejo algum de voltar a França, uma só cousa anhelava Raoul; era que se ferisse alguma batalha, em que podesse morrer, combatendo. Nisto fez-lhe Deus a vontade.
Achando-se, a 17 de agosto d'esse anno, na Roliça, quando se deu a batalha, em que as tropas francezas, commandadas pelo general Laborde, foram derrotadas, pelo exercito angio-portuguez, commandado por Arthur Wellesley, depois duque de Wellington, defendendo galhardamente, com o seu batalhão, as posições atacadas com valentia pelas forças luso-britannicas, que os francezes não poderam sustentar, ao mesmo tempo que era ferido o general Laborde, cahia morto por um estilhaço de granada, o capitão Raoul de Remigny.
Como o baile no theatro de S. Carlos foi a ultima festa para Junot -- Revoltas contra os francezes nas provincias -- Medidas oppressivas dos francezes em Lisboa -- Susto da policia e pusillanimidade da associação revolucionaria de Lisboa.
Depois do baile dado pelo exercito francez ao seu commandante em chefe, no dia 8 de junho de 1808, ainda houve, no theatro de S. Carlos, uma recita de gala, para solemnisar a festa do imperador Napoleão, em 15 de agosto. Mas póde-se dizer que aquelle baile foi, para Junot, a ultima festa que teve em Portugal, pois que no mez de agosto estava elle muito preoccupado com o não ter recebido reforços de França, e terem os inglezes desembarcado perto da Figueira, e marchado para o interior do paiz, approximando-se de Lisboa, vindo assim dar animo, e força, aos movimentos insurreccionaes que lavravam pelas provincias.
A partir d'aquelle festival do mez de junho no theatro de S. Carlos, começaram, para o duque de Abrantes, contrariedades sem fim, e maiores desastres do que combates gloriosos, não só em Portugal, mas até em outras regiões, onde pelejaram as hostes imperiaes.
O duque de Abrantes, sabendo que de Lisboa tinham saido muitas pessoas, e receando que fossem unir-se aos revoltosos das provindas, teve a ideia de incommodar os habitantes da capital, determinando, em 1 de julho de 1808, que ninguem pudesse sair de Lisboa, para qualquer casa ou quinta nos arrabaldes, sem ir munido de passaporte passado pela policia. Ao mesmo tempo mandou affixar editaes, obrigando a regressar, á capital, todas as pessoas que, sendo de Lisboa, se achavam então nos suburbios!
No dia 18 do mesmo mez houve grande reboliço no Tejo. Foram apenados, por ordem de Magendie, mais de 200 barcos fluviaes, de todas as classes e grandezas, para irem a Villa Franca, buscar as tropas das divisões dos generaes Margaron e Loison, as quaes chegaram a Lisboa no dia 20, desembarcando no Terreiro do Paço, com grande quantidade de bagagens, e muitos objectos saqueados nas provindas do norte, no meio de grande concurso de povo, que estava pasmado de tornar a vêr o general Loison, tendo corrido com insistencia, como certa, a noticia da sua morte.
O general condo de Loison, que o povo chamava o maneta, por lhe faltar o braço esquerdo, que perdera na campanha do Roussillon, combatendo contra os portuguezes, era objecto de um odio mortal do povo. O general pagava este sentimento, na mesma moeda, e com grandes juros. Por toda a parte por onde passou, praticou e ordenou, contra os portuguezes, as maiores atrocidades. Fazia, elle proprio, gala nesse procedimento. Julgava-se assim temido.
Quando passava a cavallo pelas ruas e praças, á vista dos populares, fazia-lhes, mesmo sem motivo, caretas ameaçadoras e insultantes!
Apesar de tal impopularidade, e da attitude que elle tomava sempre, propria para tornar inimigos figadaes dos francezes os mais indifferentes habitantes de Portugal, Napoleão julgou indispensavel mandar o general Loison a este paiz, em todas as campanhas que emprehendeu contra Portugal!
Dominava neste tempo uma grande exaltação nos habitantes de Lisboa, devida a correr a noticia do desembarque dos inglezes, e esperar-se a todo o intante que as tropas britannicas, juntamente com a pequena força de portuguezes que se lhe devia ter reunido, atacassem os francezes.
O governo de Lisboa, especialmente o intendente de policia Lagarde, estava sempre desconfiado e sobresaltado, tomando o receio de que se achava possuido, ás vezes, proporções burlescas.
Assim, no dia 23 de julho, sem se saber qual o motivo, Junot poz em movimento grandes forças, que occuparam as principaes ruas e praças de Lisboa: perante esta manifestação bellica fecharam muitas lojas. O Nicola, no Rocio, dispunha-se a imitar o que faziam os outros logistas, inclusivamente o seu visinho, o Pedro das luminarias, quando o cavallo do major do 4.º esquadrão do regimento n.º 26 de caçadores a cavallo, que corria junto á porta do botequim, se empinou, e logo em seguida se chapou, cuspindo o cavalleiro contra o vão de cantaria da porta, quebrando o major a cabeça e perdendo os sentidos.
Recolhido ao botequim do Nicola, foram-lhe ministrados os soccorros, pelo cirurgião do regimento, postos pontos na testa, e, tendo depois recobrado os sentidos, foi conduzido ao quartel.
Havia alguns mezes que um accidente semelhante prostrara o general Kellermann do cavallo, no mesmo sitio, sendo tambem soccorrido no mesmo botequim do Nicola.
No dia seguinte, 24 de julho, foi fuzilado no Terreiro do Paço um homem do povo, accusado de ser espião dos inglezes. Este acto despertou grande irritação nos espectadores, produzindo-se tumultos que foram facilmente reprimidos.
Lagarde andava desconfiado de tudo e de todos, inclusivamente da policia; e não era sem motivo. No dia 1 de agosto, fugiu toda a cavallaria portugueza da policia, e foi reunir-se aos revoltosos em Coimbra.
O general Junot não tendo recebido reforços de França, e perdendo as esperanças de os receber depois do desastre de Baylen, em que os francezes commandados pelo general Dupont, foram batidos pelas tropas do general hespanhol Castaños, resolveu comtudo ir ao encontro das forças inglezas, que tinham desembarcado em Lavos, perto da Figueira, apesar de não contar com muitas probabilidades de victoria.
Depois de ter mandado recolher todos os destacamentos que estavam nas praias e nas fortalezas, no dia 7 de agosto mandou apenar quantas embarcações encontrou no Tejo, para transportar tropas para Villa Franca.
Em seguida o duque de Abrantes fez embarcar, a bordo da bateria fluctuante Espada de Ferro, toda a polvora que se não julgou precisa em terra, e na nau Vasco da Gama a prata não cunhada, que estava ainda na Casa da Moeda, para onde tinha sido mandada, por ordem de Junot, em fevereiro d'este anno de 1808, e que provinha das egrejas, conventos, confrarias e capellas de Lisboa. Eram medidas preventivas para o caso eventual de uma retirada dos francezes d'estes reinos.
Junot ainda se conservou em Lisboa, até á festa de Napoleão, que era a 15 de agosto, partindo no dia seguinte para o exercito, seguindo para isso o caminho de Villa Franca, e deixando o governo de Lisboa entregue ao general barão Travot, cuja popularidade lhe pareceu efficaz para evitar uma revolta na capital.
A guarnição que ficou em Lisboa era muito diminuta. No castello de S. Jorge não havia mais de 800 homens, muitos dos quaes se achavam doentes. Era uma occasião extremamente favoravel para se realizar uma revolução popular, apoiada por uma sublevação da esquadra. Nada d'isto, porém, se produziu.
O conselho conservador da associação revolucionaria teve medo, e nada fez, nem deixou fazer. O capitão Veríssimo, com os seus planos revolucionarios e forças de que, segundo declarou mais tarde, podia dispor, deixou-se ficar tranquillo. A esquadra continuou fiel e obediente ao improvisado chefe Magendie.
O exercito francez é derrotado pelas tropas luso-britannicas -- Convenção de Cintra. -- Retirada dos francezes de Portugal para França - A bandeira franceza é substituida pela ingleza, e depois pela portugueza, em Lisboa -- Installação da regencia em Lisboa.
A 17 de agosto feriu-se a batalha da Roliça, na qual os francezes commandados pelo general Laborde foram batidos pelas tropas anglo-lusas commandadas pelo futuro duque de Wellington. D'esta victoria correu noticia em Lisboa no dia 19. Para desfazer o effeito d'estes boatos, o intendente Lagarde publicou uma carta de Junot, dizendo que os inglezes tinham sido batidos pelos francezes.
Com o general Junot, partiram tambem, de Lisboa para Villa Franca, mesdames Foy, Trousset, e Thomiéres.
Tendo o duque de Abrantes estabelecido o quartel general em Otta, madame Thomiéres, acompanhada por uma ordenança, e escoltada por um destacamento de cavallaria, foi ao encontro do marido dirigindo-se para a Cabeça de Montachique, para onde o general Thomiéres tinha retirado, depois da batalha da Roliça.
No dia 21 de agosto feriu-se a batalha do Vimeiro, em que as tropas francezas foram completamente derrotadas pelas forças luso-britannicas. Em resultado d'este desastre, Junot regressou a Lisboa, onde entrou no dia 23, com uma força pouco superior a 2:000 homens.
Mesdames Foy e Trousset assistiram á batalha de Vimeiro, ao lado de Junot, que commandava as forças francezas n'essa occasiâo.
Depois da batalha, o general francez pediu, e obteve, um armisticio, durante o qual se negociou a convenção de Cintra, regressando a Lisboa o duque de Abrantes e as suas companheiras.
Logo que se divulgou a noticia da derrota dos francezes, houve em Lisboa grande effervescencia no povo, que se agglomerou em grande massa no Rocio, e que pretendia revolucionar-se, mas cujas tendencias foram combatidas, e neutralisadas, pelo conselho conservador da associação revolucionaria.
No dia 29 fugiram todos os soldados da policia ficando o intendente Lagarde, sem força moral, e sem gente. Póde-se dizer que a cidade ficou completamente abandonada, produzindo-se muitos roubos e desordens.
Emquanto se procedia, por intermedio do general Kellermann e do general Murray, a negociações entre o duque de Abrantes e o general inglez Dalrymple, Junot preparava-se para a retirada, bem como os outros generaes e officiaes, tratando de emmalar para levarem para França, tudo de que pudessem lançar mão. Nesta occasião Junot foi de uma prodigalidade extraordinaria em dar esmolas. Dir-se-hia que queria fazer uma restituição de parte dos valores que retirara de Portugal.
No dia 30 de agosto de 1808 se fez a convenção de Cintra, entre o Duque de Abrantes, e o general Dalrymple commandante em chefe de todas as forças inglezas, em virtude da qual os francezes tiveram de evacuar Portugal, fazendo-se a retirada de 10 a 15 de setembro, em navios inglezes que para isso vieram expressamente ao Tejo.
No dia 15 embarcou Junot no Caes do Sodré, com a sua comitiva, senhoras, empregados, etc, e com parte das suas tropas, no meio de grande concurso de povo, que estava gosando aquelle espectaculo, que lhe annunciava o vêr-se livre dos invasores.
O duque de Abrantes embarcou na fragata ingleza The nymph, commandante Pery, que o conduziu ao porto de La Rochelle, onde desembarcou. Ahi lhe veiu ao encontro sua esposa a duqueza de Abrantes. Parte do exercito francez, que retirou de Portugal, desembarcou na RocheUe, o resto foi desembarcar em Quiberon.
Logo que os francezes abandonaram as fortalezas do Tejo, ás tropas britannicas, foi ali arvorada a bandeira ingleza. O mesmo succedeu no castello de S. Jorge. Só depois foi substituida pela bandeira portugueza, nas fortalezas, arsenaes e navios de guerra.
Ficava assim bem consignado que era aos inglezes, exclusivamente, que Lisboa devia o vêr-se livre dos francezes. Tal era a consequencia forçada da pusillanimidade da associação revolucionaria, e das guarnições dos navios, que se prolongava até aos ultimos instantes da occupação franceza.
Não faltaram, comtudo, tumultos, com o pretexto de pratiotismo, mas com o fim de se saciarem, os que nelles intervieram, em roubos e vinganças. De modo que pela falta de policia, foi preciso fazer entrar os inglezes em Lisboa, ainda antes de se concluir o embarque de todas as tropas francezas, apesar de estar estipulado o contrario na convenção de Cintra; mas a manutenção da ordem assim o exigiu.
O arvoramento da bandeira ingleza, em lugar da portugueza, produziu grande irritação entre os portuguezes, como a haviam tambem produzido os factos de serem excluidos os generaes portuguezes, e de Portugal não figurar na convenção.
Quizeram attribuir o facto do arvoramento da bandeira ingleza, a ser isso exigido pelo almirante russo, como condição para entregar a sua esquadra ao almirante inglez Cotton, que assim a considerou prisioneira provisoriamente, para ser mezes depois entregue ao imperador da Russia.
É porém de notar que a entrega da esquadra russa aos inglezes não figurava na convenção de Cintra.
Os generaes portuguezes eram:
Bernardino Freire de Andrade, Manuel Pinto Bacellar, depois visconde de Monte Alegre, no norte, e o marquez de Olhão, no Algarve.
A totalidade das forças portuguezas, que as juntas revolucionarias, das provincias do norte e sul de Portugal, tinham conseguido organizar, não excediam, em 1808, a 18:000 homens.
Na batalha de Vimeiro as tropas portuguezas compunham-se apenas de 2:600 homens commandados pelo coronel inglez Trant. Os inglezes attingiam 22:000 homens e os francezes 14:000.
A convenção de Cintra foi criticada, e mal recebida, em França, em Inglaterra, em Portugal e no Brazil! Todos perderam e todos ganharam.
A França poude rehaver os restos do exercito de Junot, transportados pelos navios inglezes, perdendo a occupação do territorio portuguez.
A Inglaterra não tirou todas as vantagens que lhe assegurava a victoria de Vimeiro; mas via-se, desassombrada da presença das tropas francezas, senhora de Portugal, com tempo para descançar, e preparar a resistencia e o ataque, com o auxilio de tropas portuguezas que ia organizar.
Emquanto a Portugal ganhava o vêr-se livre dos francezes: mas, em um futuro não longiquo, os portuguezes haviam de vêr o seu paiz arrasado, pelos inglezes seus salvadores, que nessa destruição acharam o meio, mais seguro e efficaz, para anniquilar os exercitos napoleonicos neste torrão lusitano: e a esses males da guerra, havia de vir juntar-se a oppressão do governo de uma regencia estupida e tyrannica.
Apesar de, pela convenção de Cintra, os inglezes não obterem todas as vantagens, que podiam tirar das victorias de Roliça e Vimeiro, comtudo o jubilo de que se achavam possuidos era enorme; pois que com terem ganho aquellas batalhas, quebrara-se o encanto que os opprimira até então, de terem sempre, em terra, sido batidos pelos francezes.
Em consequencia da sublevação de Portugal contra os francezes, foram detidos, em França, os membros da deputação, que tinham ido em abril a Bayona, cumprimentar Napoleão, em nome da nação portugueza, pedir a protecção do imperador, a outorga de uma constituição liberal e de um rei por elle escolhido.
Compunha-se esta commissão dos seguintes membros: Bispo de Coimbra, Bispo do Algarve, Prior mór de Aviz, marquezes de Abrantes, pae e filho, de Penalva, de Marialva, de Valença, D. Nuno Alvares Pereira de Mello, irmão do duque de Cadaval, conde de Sabugal, visconde de Barbacena, D. Lourenço de Lima, Joaquim Alberto Jorge, e Antonio Thomaz da Silva Leitão, representando clero, nobreza e povo, segundo elles diziam, mas na realidade apenas representavam um pequeno grupo, no qual já mesmo havia dissidentes.
Só, em 1814, com a queda do imperio, é que os membros d'aquella deputação se viram livres.
Poucos dias depois da retirada dos francezes de Lisboa, o general inglez Dalrymple reinstallou nesta capital a antiga regencia, nomeada pelo principe regente, excluindo porém os que tinham servido, ou patrocinado, os francezes, apesar do presidente da junta rovolucionaria do Porto, o bispo D. Antonio Jose de Castro, querer que a sede da regencia ficasse no Porto, sendo elle presidente.
A regencia ficou composta dos generaes Francisco Xavier de Noronha, Francisco da Cunha e Menezes, conde de Castro Marim, marquez das Minas, e bispo do Porto, tendo por secretarios João Antonio Salter de Mendonça e D. Miguel Pereira Forjaz, e presidente do erário Cypriano Ribeiro Freire. Em seguida foram dissolvidas todas as juntas revolucionarias d'este paiz.
Mau acolhimento que Napoleão fez a Junot
Obscuridade dos seus commandos
Desastres das campanhas em que entrou
De volta de Portugal Junot foi mal acolhido por Napoleão que, encontrando-o em Angoulême, lhe mostrou uma cara de fazer medo, pondo-lhe os pés de gelo e a cabeça em braza. O imperador, que dos seus generaes só queria victorias e não capitulações, disse-lhe com uma accentuação de arripiar: avant de rentrer à Paris il faudra retourner à Lishonne, não consentindo que fosse para Paris. Nunca mais o duque de Abrantes figurou no primeiro plano.
Junot esteve no cerco de Zaragoza, no fim do anno de 1808. Foi substituir o general Moncey, por ordem de Napoleão, que estava aborrecido de
vêr que o cerco se prolongava. Nao era porém o ataque que era fraco. Era a defeza que se fazia heroica; ella immortalisou Palafox.
A bravura e indomita energia dos sitiados faziam fortalezas dos conventos, das casas, e de tudo que se podia apropriar a retardar a tomada de Zaragoza. De parte a parte, o combate foi renhido. Os sitiantes iam avançando, mas lentamente, passo a passo.
Eram decorridos dois mezes depois da chegada de Junot; e tinham os francezes tomado de assalto um convento que ia facilitar a queda d'aquelle baluarte do patriotismo hespanhol. Mas o imperador, que se irritava por não terem os seus soldados tomado Zaragoza, fez brutalmente substituir Junot pelo general Lannes no cerco, ficando o duque de Abrantes sob as suas ordens. Pouco tempo depois era toma,da Zaragoza pelo general Lannes. Em vingança dos frades terem, assim como o resto da povoação, tomado parte activa na defeza, foram, depois de restabelecido o socego, mettidos muitos d'elles em saccos, e lançados ao rio Ebro.
Então o capitulo da cathedral de Nossa Senhora do Pilar, offereceu, para acalmar a furia do general Lannes, a terça parte dos diamantes do thesouro da egreja, e outra parte aos generaes duques de Abrantes e de Trévise, os quaes rejeitaram. Mas Lannes mandou buscar todos os diamantes, levou-os para Paris, e obteve que o Imperador lh'os desse todos!
Por vezes, durante este tempo, Junot teve idéa de se suicidar. Além dos desgostos moraes, as feridas antigas, que tinha soffrido nos campos de batalha, inflammavam-se a miudo, produzindo grandes dores physicas, que mais aggravavam as suas penas.
Em 1810 esteve Junot em Hespanha e Portugal sob as ordens do general em chefe Massena; fez parte do exercito francez que invadiu este paiz; e foi assim testemunha da desastrosa campanha em que os francezes se viram obrigados a retirar, perante as forças combinadas anglo-luzas, commandadas pelo duque de Wellington, no meio de povoações hostis, em que tudo faltava ás tropas de Massena, viveres e alojamento. A passagem atravez de um paiz arrazado, em que com difficuldade os francezes achavam com que se alimentar e sustentar o gado, sem poderem espalhar-se ou disseminar-se, porque apenas isolados, ou em pequenos piquetes, eram facilmente victimados pelas milicias ou pelos populares, perseguido o corpo do exercito pelas forças inimigas; eis o que o antigo governador de Paris poude vêr nesta retirada de Portugal.
A difficuldade de obter os viveres, para escassamente alimentar as tropas francezas era tal, que, com grande espanto d'aquelles bravos, que nunca tinham visto cousa semelhante, todos os dias um regimento, por seu turno, era encarregado de se apoderar de tudo que podesse encontrar, que servisse para matar a fome aos enviados de Napoleão. O veterano das campanhas de Italia, o valente general Massena, duque de Rivoli, e principe de Essling, viu-se obrigado a fazer da pilhagem (maraude) a ordem do dia do seu exercito, desde que caindo no estratagema de lord Wellington, que, retirando sempre perante as tropas francezas, até parar nas linhas de Torres Vedras, o que queria era attrair o exercito de Massena para o interior de Portugal, o principe de Essling, seguindo o exercito luso britannico, com todas as forças do seu commando, se foi internando neste paiz.
Não se julgando capaz de atacar as linhas que defendia Lisboa, o principe de Essling resolveu-se a retirar, ficando vencido, sem combater, deixando, por cada dia de demora em Portugal, muitas baixas nas tropas, por mortes e doenças, e abandonando muito material de guerra pela impossibilidade de o transportar nesta retirada, pela morte ou fraqueza do gado da artilharia, e das bagagens.
A retirada fez-se comtudo em boa ordem, graças aos habeis esforços do general Ney, apesar de serem os francezes seguidos pelo exercito anglo-luso commandado pelo duque de Wellington; simulando de vez em quando o general Massena algum movimento offensivo, que, porém, nunca illudia Wellington, que bem conhecia em que estado se achava o exercito francez.
O paiz, por onde passavam as tropas francezas estava por tal forma arrasado e abandonado, que o regimento da maraude, perdia quasi sempre o dia inteiro, percorrendo grandes distancias, sem se poder fraccionar, por causa das guerrilhas, e voltando ao encontro do exercito, com fraquissima colheita de comestiveis.
Repetia-se nesta retirada dos francezes, o que se dera na sua primeira invasão, no que diz respeito ao provimento das subsistencias para as tropas, mas agora em maior auge, e com a aggravante de ter o paiz completamente hostil, e o exercito anglo-luso em sua perseguição; o que fazia dizer a Junot que a sua convenção de Cintra de 1808 era um verdadeiro e grande exito, comparada com os resultados das campanhas de Soult e Massena, em Portugal, nos annos de 1809 e 1810.
Em um dos simulacros offensivos do exercito francez, realisado, em 20 de janeiro de 1811, perto de Rio Maior, parte do 8.º corpo atacou a vanguarda dos inglezes. O proprio general Junot commandou este reconhecimento, á frente das tropas francezas, e foi ferido por uma bala de espingarda, que entrou no nariz, desviou o osso, sem o quebrar, e foi alojar-se debaixo do osso maxillar esquerdo, perdendo o general os sentidos, com grande hemorragia; sendo comtudo levado do campo pelos seus soldados, que o conduziram a Pernes, e depois a Rio Maior, onde lhe foi extraida a bala pelo cirurgião-mór Malraison.
Lord Wellington estava tão conhecedor do que se passava no campo dos francezes, quanto estes ignoravam o que havia no dos anglo-luzos, e mesmo, pouco sabiam, e isso com muito atrazo, do que se passava em Portugal, em Hespanha e até em França, pela demora e difficuldade de communicações.
Logo pouco depois de Junot ser ferido em Rio Maior, Lord Wellington escreveu-lhe uma amavel carta, offerecendo-lhe tudo o que fosse preciso, para operar ou accelerar a sua cura, e ao mesmo tempo participava-lhe que sua esposa, a duqueza de Abrantes, tinha tido, em Ciudad Rodrigo, o seu bom successo, dando á luz um menino.
O estado de revolta em que se achava a peninsula iberica contra os francezes era tal, que umgeneral não ousava enviar uma carta ou uma ordem de importancia, a uma distancia um pouco maior, sem fazer acompanhar o portador com uma escolta de 200 homens pelo menos; e para fazer acompanhar algum personagem de cathegoria elevada, ou um comboio de viveres ou munições, nunca ia uma força inferior a 500 ou 600 homens. Mesmo com estas precauções, foram interceptadas pelas guerrilhas hespanholas, muitas cartas, e outras communicações, entre a França e os exercitos francezes da peninsula.
Algumas das guerrilhas eram muito numerosas e commandadas por intrepidos chefes, taes como D. Julian, Espoz y Mina e outros, que varias vezes massacraram horrivelmente, com a maior barbaridade, comboios completos de soldados, doentes, e mulheres, que retiravam para França. O governo francez esteve muitas vezes, semanas e semanas, sem noticias dos seus exercitos que se tinham internado pela peninsula iberica.
Junot tambem obteve, o governo da Illyria e um commando, porém, obscuro, no exercito francez na austria; mas nunca se ouviu dizer, que, em qualquer d'estas campanhas, de Portugal, Hespanha ou Austria, praticasse o general Junot alguma d'aquellas façanhas de valentia, que outr'ora lhe tinham dado tanta fama de bravura.
Esteve o duque de Abrantes na campanha da Russia em 1812, mas não só se não cita rasgo algum notavel de corajoso procedimento, nas tantas peripecias da dramatica e desastrosa campanha da Grande armée, mas, pelo contrario, foi accusado de ter andado com molesa em muitas manobras da força do seu commando.
A morte de um bravo
Amanheceu triste, ennevoado, côr de chumbo, com uma aspera briza do norte, o dia 28 de novembro de 1812, na margem esquerda do rio Berezina, na Russia, perto da aldeia de Studianka.
Os campos visinhos estavam cobertos de neve e cadaveres. O rio arrastava numerosos fragmentos de gelo, que ora se detinham, ora se soltavam, junto aos cavaletes de duas pontes de madeira, que, perto d'aquella localidade, havia lançado o exercito francez, na sua retirada da Russia, depois do incendio de Moscou.
O major Pierre Dufourcq, que encontrámos tenente no exercito que, sob o commando de Junot, invadira Portugal, e que depois d'esta campanha, tinha successivamente estado no cerco de Zaragoza, nas batalhas de Essling, Wagram e Mojaisk, achava-se, agora, nesta retirada da Russia, ás ordens do general Eblé, que commandava o corpo de pontoneiros, com o chefe de estado maior Chapelle, o coronel de artilharia Chapuis, e outros officiaes, ao serviço da importante operação de construcção e lançamento de pontes.
As tropas russas occupavam as duas margens do rio Berezina, sob o commando dos generaes Kutusoff, Tchaplitz, Wittgenstein, Debitch e almirante Tchitchakoff, que estavam sobresaltados, na ignorancia do ponto em que os francezes tentariam passar o rio.
Para desviar os russos do logar em que se projectava realizar a passagem do Berezina, tinha Napoleão mandado executar, pela divisão do general Oudinot, um ataque sobre Borisow.
Foi o general Corbineau quem, com a sua cavallaria, primeiro passou, a nado e a vau, o rio Berezina, perto de Studianka, onde, no dia 25, o general Eblé, mandou construir duas pontes, pelas quaes logo no dia 26 passaram tropas das divisões, Oudinot, Legrand, Maison, Dombrowski e Doumerc. No dia 27 passou para a margem direita do rio o imperador Napoleão, sem que até
então os russos, que occupavam as duas margens do rio, distantes d'esta localidade, tivessem conhecimento de tal facto.
No dia 27, porém, na margem esquerda, approximando-se, d'este local, as tropas russas do general Debitch, o general Victor, atacou desesperadamente as forças russas a fim de as deter, para dar logar á passagem das tropas francezas pelas pontes para a outra margem.
Durou este ataque dois dias, 27 e 28, de novembro.
Emquanto o 9.º corpo do exercito francez, commandado pelo general Victor, entretinha os russos na margem esquerda do rio, passaram successivamente as pontes, apesar de alguns accidentes que foram depressa reparados, os restos dos corpos de exercito, 4.° (principe Eugenio), 3.° (Ney), 1.º (Davoust), 5.º (Poniatowski), 8.º (Westephalia).
Na batalha da margem esquerda, que se prolongou extraordinariamente, ficou sacrificada, e quasi que anniquilada, a divisão do general Partouneaux; de 4:000 homens que a compunham ficou reduzida a 5OO.
As forças russas, atacadas pelo marechal Victor, ficaram de tal modo cançadas, que não poderam perseguir, immediatamente, os francezes, quando retiraram para a margem do rio, onde estavam lançadas as pontes.
A este campo, durante todo o dia 28, e durante a noite, vieram chegando os restos do 9.° corpo francez, e muitos fugitivos de outros corpos, extenuados, de fome, de fadiga e de frio.
O general Eblé, ahi mandou accender fogueiras, e ministrar, áquelles recemchegados, alguns mantimentos que poude encontrar. Muitos d'elles apenas poderam obter carne dos cavallos mortos. Melhor que essa parca alimentação, o que apre- ciaram os desgraçados foi o repouso de um dia, ou uma noite, que lhes era concedido, depois de uma horrivel debandada, perseguidos pelas tropas russas, as quaes só tinham cessado de os perseguir, pela necessidade impreterivel que tinham de descançar.
Pelas 9 horas da noite do dia 28, o general Victor passou para a margem direita do rio.
Pelo cair da tarde desse dia um ajudante de campo entrou no acampamento francez, trazendo, ao general Eblé, ordem terminante do imperador Napoleão, para, no dia seguinte, ás 6 horas da manhã, fazer saltar, e incendiar, as pontes, afim de deter a marcha das forças russas, que para ali se dirigiam, em perseguição dos francezes.
Em vista de tal ordem, o general determinou que logo que o resto da divisão, que já anteriormente acampava na margem esquerda do Berezina, passasse as pontes, começassem a desfilar atravessando as mesmas pontes, todos que n'esse dia haviam ali chegado, e que se tinham entregado completamente ao repouso de que tanto estavam necessitados, devendo durante a noite effectuar-se a passagem de toda aquella gente.
Para executar este plano, e salvar todos os fugitivos, o general Eblé encarregou o major Pierre Dufourcq de fazer acordar, levantar e pôr em marcha, todos aquelles desgraçados durante a noite.
A missão de que fora encarregado Dufourcq era, porém, superior ás forças humanas.
Toda aquella gente, composta, de soldados, officiaes, vivandeiras, etc, estava extenuada.
Não tinham comido cousa alguma durante mais de 24 horas.
A canceira, a que tinham sido obrigados aquelles miseraveis, rotos, a tremer com frio, era medonha.
Apenas puderam parar na sua desordenada fuga, e se deitaram, perto das fogueiras, depois de comerem alguma cousa, ficaram em um estado de prostração e apathia, de que se não podiam resolver a sair, apesar das excitações do major Dufourcq, e da força que, ás suas ordens, os impellia a levantar-se e a marchar, dizendo-lhes que não tardavam os russos, e que em breve deviam saltar as pontes, por onde tinham de retirar.
Vendo a demora na retirada d'aquella gente, o general Eblé atravessou a ponte esquerda, foi ao campo onde estava o bivac dos fugitivos d'aquelle dia, e ali passou a noite, sem conseguir fazer levantar aquella gente do torpor em que se achava, e que o nevão que, durante a madrugada, caiu, ainda mais veiu aggravar.
O que se passou nesta infernal noite, no campo francez, na margem esquerda do Berezina, é indiscriptivel.
Eram terriveis as angustias do general Eblé, que tinha de fazer saltar as pontes ás 6 horas da manhã, e que via que, d'aquella enorme quantidade de gente que elle queria salvar, apenas alguns, poucos, de vez em quando, acossados pela força commandada por Dufourcq, passavam a ponte, vindo, na maior parte, logo depois de passado o rio, deitar-se no chão, prostrados e desanimados.
As 6 horas da manhã do dia 29, estavam a seus postos os pontoneiros, com murrões accesos, promptos a lançar fogo ás minas que deviam fazer saltar as pontes. Mas do outro lado do rio continuavam deitados milhares de fugitivos do exercito francez, apesar das ameaças e violencias de Dufourcq, e dos gritos do general Eblé, que annunciava que ia fazer saltar as pontes.
Assim se passaram tres horas. Por umas poucas de vezes, o velho general Eblé esteve a pronunciar o commando do fogo; outras tantas se deteve, para deixar passar alguns soldados e mulheres, que com custo extraordinario se resolviam a passar as pontes.
De repente apparecem, no fundo do horisonte, os cossacos a cavallo á desfilada. Eblé e Dufourcq gritam aos extenuados que fujam.
Á vista do inimigo muitos francezes se levantam e deitam a correr pelas pontes.
O general Eblé junto á ponte da esquerda, pisando o terreno na margem por onde o inimigo avança, conta os minutos e segundos que poderá esperar, para salvar o maior numero de francezes, antes de fazer ir as pontes pelos ares.
O major Dufourcq a cavallo impelle quantos pode para as pontes. Uma descarga de infanteria russa, que apparece do lado norte, derruba-lhe o cavallo. Então, de pé, Dufourcq com a espada lucta contra um bando de cossacos que o crivam de lançadas, até o prostrarem morto, em quanto o general Eblé se lança a galope na ponte e, pondo os olhos no ceu, e exclamando, apontando para Dufourcq, que só Deus podia recompensar um tal heroismo, ganha a outra margem do Berezina, e dá ordem de pôr fogo ás minas.
Então um medonho cataclismo se produz com forte estampido. As pontes saltam pelos ares, projectando grande numero de estilhaços inflammados, allumiando com sinistros clarões, a fuga dos francezes que tinham passado o rio, o massacre de muitos, que a prostração obrigara a ficar na margem opposta, e o aprisionamento dos restantes.
Os que passaram o Berezina eram proximamente 50:000 homens, pouco mais que a decima parte do exercito que Napoleão levara á Russia.
Foram avaliados em 7:000 os que ficaram na margem esquerda neste fatal dia 29; que foi comtudo um dia, relativamente, feliz para os restos do exercito francez que se puderam salvar.
O imperador Napoleão acompanhou estes restos do exercito francez só até Smogorny; no dia 5 de dezembro, apesar dos conselhos contrarios de Daru e do Duque de Bassano, com o pretexto de ir á França organizar novo exercito, abandonou as suas tropas, e só com o duque de Vicence partiu secretamente para Paris.
Até Erfurt fez a viagem em trenó. D'aqui partiu em caleche, chegando a Paris á meia noite de 19 de dezembro, entrando ás occultas a esta hora no palacio das Tuileries, onde ninguem o esperava, e onde custou a ser reconhecido pela guarda da porta da grade de ferro do jardim!
O duque de Abrantes acabrunhado de desgostos é affectado de depressão mental. -- Severidade de Napoleão contra Junot. -- Suicidio do duque de Abrantes.
Os desgostos nao largaram Junot, desde o final da primeira invasão de Portugal.
O vêr-se despresado, ao passo que os seus companheiros d'armas tinham subido em honras, posição e consideração, affectou-o gravemente, produzindo-lhe uma depressão mental, que se tornou muito pronunciada na retirada da Russia.
Emfim, por já declarado desarranjo de cabeça foi-lhe dada a exoneração, e foi levado para casa de seu pae, em Montbard. Accommettido de accessos de loucura segundo uns, de febre segundo outros, suicidou-se deitando-se de uma janella para a rua, expirando em 29 de julho de 1813, arruinado, tendo perdido a grande fortuna que rapidamente adquirira e depressa dissipara.
Junot tinha um genio irascivel, e vaidoso; mas não era mau. Tinha no fundo bondade de coração e um caracter leal. Não estavam porém sempre as suas faculdades intellectuaes á altura das commissões de que o imperador o encarregara; e comtudo Napoleão devia conhecel-o bem, pois eram amigos e antigos camaradas.
Junot foi sempre muito amigo de Napoleão, e este foi-lhe devedor de muitos serviços, no tempo em que o simples official de artilharia estava longe de sonhar em ser imperador dos francezes, e em que os seus, menos que modestos, haveres, encontravam alguns recursos de reforço na bolsa do futuro governador de Paris.
Já mesmo depois de ser general, teve Bonaparte occasião de se utilisar dos serviços financeiros de Junot.
Era na occasião de ter sido nomeado commandante em chefe do exercito de Italia. Estava exhausta a bolsa do futuro imperador. Não tinha mesmo com que se sustentar, e fazer a viagem, quanto mais pagar as despezas do seu estado maior. O Directorio neste momento mostrou-se ridiculo e avarento. Bonaparte recorreu a Junot; este, porém, nesta occasiào tambem estava falho de fundos; então Bonaparte pediu-lhe para ir a uma casa de jogo, das muitas que pullulavam em Paris, e tentar a sorte, sacrificando os poucos trocos que os dois amigos possuiam. Junot assim fez, e em breve voltou victorioso com perto de 50:000 francos.
Napoleão, porém, achou pouco, e disse-lhe que voltasse á jogatina, o que Junot executou, trazendo no fim de uma hora mais de 300:000 francos, ao general Bonaparte.
No dia seguinte Napoleão partiu para Italia, onde ia encetar a serie de deslumbrantes victorias, que immortalisaram o seu nome, lhe deram o throno, e o governo da França, e o haviam depois tornar orgulhoso e despotico; e, cegando-se com o demasiado explendor da sua estrella, havia de accumular erros sobre erros, que no fim de poucos annos, fizeram baquear o collosso atacado simultaneamente por toda a Europa, e traindo por muitos dos seus, aos quaes havia elevado e enchido de beneficios.
Napoleão foi muito generoso com Junot. Recompensou largamente os seus serviços, e a sua amisade, com grandes beneficios, em posição e dinheiro, não só ao seu velho amigo, mas á sua familia.
Depois da campanha de Portugal, porém, esfriou muito a amisade e o procedimento do imperador, para com Junot. Nunca mais voltaram as antigas relações de affecto e intimidade. Napoleão, nas alturas do seu immenso poder absoluto, cada vez menos estima dispensava ao infeliz general da primeira invasão de Portugal; e ainda que, para a França, a segunda e terceira campanhas de Portugal foram mais desastrosas, apesar de dirigidas pelos famosos generaes Soult e Massena, comtudo o imperador não se mostrou tão severo para com estes dois generaes.
A diminuição do affecto do imperador, e as continuas manifestações que d'isso dava, foram grandes desgostos que affligiram Junot. Napoleão ás vezes era ingrato e brutal n'essas manifestações; assim, a primeira vez que viu Junot, depois da campanha de Portugal, na qual, batendo o exercito
francez em retirada, sob o commando de Massena, em um reconhecimento em Rio Maior foi ferido Junot, como já dissemos, ficando com um inchaço na face junto ao nariz e este tambem muito ingurgitado e encarnado, o imperador exclamou ao ver-lhe a cara assim feia: Oh que tu es laid Junot! e por vezes, quando o tornava a vêr, repetia esta exclamação em tom de escarneo; o que era uma brutalidade, de ingratidão e mau gosto, para com o general seu amigo ferido em campanha.
Foi Junot um grande conquistador do bello sexo; a voz publica apregoava numerosas proezas amorosas, em que o heroe de Nazareth ficara vencedor; é provavel, porém, como muitas vezes succede, que nem sempre fossem verdadeiras as victorias, que lhe attribuiam, sobre algumas celebridades femininas.
Todas as felicidades que desfructou Junot, nas suas aventuras de amor, nunca o impediram de ser affeiçoado a sua esposa, por quem sempre teve a maior estima, e com a qual sempre esteve nas melhores relações. Esta affeição por sua mulher, ainda augmentou com o decorrer do tempo, e com os desgostos que o affligiram.
As cartas que o duque de Abrantes escrevia a sua mulher, depois da retirada de Portugal, especialmente as da campanha da Russia, são todas cheias de tristeza e ternura pela duqueza.
O ultimo acto de Napoleão, para com Junot, foi de uma brutalidade inexplicavel. Achava-se o imperador em Dresde, onde tinha o seu quartel general, na campanha de 1813, quando, ao exonerar o duque de Abrantes do governo da Illyria e de Veneza, prohibiu que elle fosse para Paris, ou arredores, e deu ordem ao principe Eugenio de Beauharnais, vice rei de Italia, para que fizesse conduzir o desgraçado para casa de seu pae em Montbard, impedindo assim que Junot fosse levado para sua casa em Paris, onde se achava sua mulher e seus filhos, e onde havia muitos recursos para ser tratado.
Ao saber tal noticia, a duqueza de Abrantes, no auge da afflicção e muito doente, e em estado avançado de gravidez, sabendo que as ordens do imperador não admittiam discussão, nem replicas, nem supplicas em contrario, correu ao encontro de seu marido, com idéa de tomar uma casa de campo na Suissa. Mas ao chegar a Genève, soube que, por ordem terminante do imperador, tinha sido levado o seu alienado consorte para Montbard. Quiz partir immediatamente para esta localidade, mas achando-se subitamente atacada das dores da maternidade, teve um desmancho, cahindo de cama gravemente enferma.
No dia seguinte, 23 de julho de 1813, como que em allucinada visão, pareceu-lhe que no seu quarto, se achava o marido, com o semblante desfigurado, e coxeando. Esta visão de que fez communicação a Agathe Thommières, viuva do general, que esteve em Lisboa, e da qual já aqui falei, durou todo o dia, e foi tida como um delirio da enferma. Soube se porém, mais tarde, que foi neste dia que Junot se deitou da janella abaixo, fallecendo no dia 29 como ficou dito. Assim a duqueza de Abrantes não poude assistir aos ultimos instantes da vida de seu marido.
No meio de muitas intrigas, que da parte de camaradas de Junot, e outros personagens da côrte imperial, procuraram indispor Napoleão contra o duque de Abrantes e sua mulher, veiu nma carta do duque irritar extraordinariamente o imperador.
Nesta carta, escripta em momentos de accesso de loucura, dizia Junot uma grande verdade a Napoleão; accusava-se a si de o estimar loucamente, e ao imperador de fazer á guerra eternamente.
A viuva de Junot -- Precarias circumstancias em que ficou -- Despotismo e severidade de Napoleão contra elia -- Morte da duqueza de Abrantes.
Logo, depois da morte de Junot, o imperador mandou ordem para que lhe fosse restituida toda a correspondencia do duque de Abrantes, com elle e com a familia imperial, e prohibiu que a duqueza viuva se approximasse de Paris, a menos de cincoenta leguas! Napoleão fazia lembrar nestes seus actos de despotismo e ingratidão, o procedimento dos antigos reis absolutos, para com aquelles que lhes cabiam em odio ou aborrecimento; e é para notar que Napoleão devia serviços pessoaes a Junot, e á mãe da duqueza de Abrantes.
Aquella ordem iniqua era a repetição dos actos de despotismo, com que tinha exilado, de Paris, ou de França, as mulheres que se lhe tinham mostrado altivas, e não subservientes, sinceras e não aduladoras, como madame Récamier,madame Stäel, a duqueza de Chevreuse, etc, independencia que, entretanto, o imperador tinha, por longos annos, supportado na mulher de Junot.
A duqueza de Abrantes, porém, entendeu não dever cumprir a ordem de exilio, que lhe havia sido intimada pelo general Savary, duque de Rovigo, o qual ficou furioso, porque, dizia elle, obedecer ao imperador era o primeiro dever de todos os francezes; e que se Napoleão lhe ordenasse de matar seu pae, não hesitaria em fazel-o!
A viuva de Junot, acompanhada por seu irmão Alberto, partiu para Paris onde tinha seus filhos. Mas já a esse tempo o duque de Rovigo se tinha apresentado em casa de Junot, em Paris, e, apesar dos protestos do irmão de Junot, subtutor dos filhos do general, abriu um cofre especial de ferro envolvido por outros, fechado com dois cadeados e uma chave de ouro, sem difficuldade alguma; pois, sem se saber como, tirou da algibeira uma chave de ouro, que sempre Junot trazia comsigo, combinou as lettras dos cadeados, cujo segredo só Junot e sua mulher sabiam, e eram Paris, sem S, e Laure, sem e, e, immediatamente tirou as cartas de Napoleão, e de outros membros da familia imperial. Mas as cartas das princezas Paulina Bonaparte e Carolina Murat não estavam lá todas; algumas das mais compromettedoras não se achavam ali; estavam em poder da duqueza de Abrantes.
Quando a viuva Junot chegou a Paris, só encontrou, no tal cofre, alguns topasios brancos não lapidados, que, o general mandára de Lisboa para enfeitar um vestido, e que não tinham chegado a servir.
O imperador Napoleão, na sua grande generosidade dadivosa para com os generaes seus favoritos, entre muitos outros dons, havia-lhes dado grandes morgados, de terras e casas conquistadas em paizes aonde tinha levado a sua victoriosa espada.
Assim o imperador tinha constituido, em favor do general Junot, um morgado, em que entravam, entre outros bens immobiliarios, o castello e terras de Acken, na Prussia.
Quando começaram os revezes para a França, e ás victorias das armas francezas se seguiram os desastres para os exercitos de Napoleão; quando as nações da Europa coalizadas, obrigaram as hostes napoleonicas a recuar para dentro das antigas fronteiras da monarchia, recuperando os alliados o que haviam perdido, o rei da Prussia apoderou-se dos immoveis que Napoleão tinha dado a Junot, e que haviam sido antes propriedade do monarcha prussiano. Assim ficou o duque de Abrantes, e sua mulher e filhos, despojados do castello e terras de Acken.
Quando, em l8l4, os alliados occuparam Paris, a duqueza de Abrantes que ali residia, com seus filhos, teve occasião de cultivar relações muito amigaveis com os soberanos alliados, e seus ministros e generaes, e em especial com o imperador Alexandre da Russia.
Aconselhada, e excitada, pelos seus parentes e amigos, a viuva de Junot pediu ao imperador Alexandre que interviesse com o rei da Prussia, para que este monarcha restituisse, aos herdeiros do duque de Abrantes, o castello do Acken. O imperador da Russia assim prometteu á duqueza.
Passados alguns dias, o imperador Alexandre foi a casa da duqueza levar-lhe a alegre noticia de que havia fallado ao rei da Prussia sobre a sua pretensão, e que este lhe promettera satisfazer completamente o pedido. Nesse mesmo dia a viuva de Junot foi felicitada pelo principe de Metternich, pelo general Ojarowski e outros, por aquelle facto.
No dia seguinte, de manhã, apresentou-se em casa da duqueza, da parte do rei da Prussia, o seu ministro Hardenberg, inimigo pessoal e antigo da viuva de Junot, trazendo-lhe os titulos das propriedades, e rendas atrazadas, que o rei lhe restituia, com a condição, porém, de seus filhos se naturalizarem prussianos!
A semelhante proposta, a duqueza, pondo-se de pé, como se uma mola a fizesse saltar, e rugindo, purpura de ira, disse ao embaixador que rejeitava tudo; que antes preferia a miseria de que fazer seus filhos prussianos!
Assim se desvaneceram as esperanças de ser reintegrada na posse d'aquelles bens.
Além das grandes despezas, em que, Junot e sua mulher, tinham gasto immensas sommas, e das grandes dividas que herdaram a viuva e filhos do general, ainda algumas fallencias de casas bancarias, em que Junot tinha depositado valiosas quantias, vieram tornar mais critica e embaraçosa a situação financeira, em que ficou a familia do duque de Abrantes.
A viuva de Junot cultivou muito as lettras, escrevendo varios romances de pouco valor, e diversas memorias, as quaes, apesar de algumas inexactidões, conteem interessantes noticias, e anecdotas, sobre os personagens e acontecimentos seus contemporâneos.
Falleceu a duqueza de Abrantes, em precarias circumstancias, em Paris, a 7 de junho de 1838.
Dois octogenarios
Dos principaes personagens d'esta historia, os que gosaram mais longevidade foram a condessa da Ega e Cheviot.
D. Juliana de Oyenhausen e Almeida retirou com seu marido de Portugal, logo que os francezes evacuaram este paiz, em 1808, e chegaram a Paris, muito antes do duque de Abrantes.
Como dissemos, o general Junot, depois de desembarcar na Rochelle, foi ao encontro do imperador Napoleão, ao qual conseguiu falar em Angoulême, sendo mal recebido; e, ouvindo da boca do imperador, que, antes de entrar em Paris, devia voltar a Lisboa, não se atreveu a ir á capital, apesar dos desejos que tinha de tornar a vêr Paris, de que era governador. Foi só a duqueza de Abrantes que regressou nesta occasião a Paris, onde encontrou já a condessa da Ega e suas enteadas, ás quaes fez o melhor acolhimento, apesar de todas as intrigas, e fama publica dos amores com Junot, com que pretendiam malquistar a duqueza com o general e com a condessa. A delicadeza com que sempre, nestes assumptos, se portou a duqueza, contribuiu fortemente para manter, e augmentar, a estima que por ella teve sempre o general Junot.
O imperador Napoleão agraciou o conde da Ega com uma pensão annual de 60:000 francos. Com a queda do imperio, em 1814, cessou o pagamento da pensão.
Depois da retirada dos francezes de Portugal, o conde da Ega foi processado, e condemnado á morte, como traidor ao rei e á patria, e viveu exilado em França, até que, depois da paz geral, foi amnistiado, regressando a Lisboa, onde falleceu em 1827. O seu titulo ficou extincto. Os seus bens tinham sido confiscados e vendidos em praça. Do palacio da Junqueira tornou-se possuidor o barão da Folgoza, e das propriedades da Ega, perto de Condeixa, fez acquisição Francisco de Lemos Ramalho.
A condessa da Ega era muito agradavel, obsequiadora e bondosa. A sua influencia era grande sobre o duque de Abrantes; e, solicitada com frequencia para servir de empenho, para com o general Junot, foi sempre desvelada protectora dos portuguezes, que opprimidos, ou vexados, pelos francezes, imploravam o seu valioso apoio, que ella nunca recusou; o general, que sempre cedia aos rogos da condessa, e que, no fundo, era bom, passados os momentos de furia que muitas vezes o accommettia, ficava satisfeitissimo de ter deferido os pedidos, de clemencia e protecção, que lhe fazia D. Juliana.
Tendo fallecido o conde da Ega em 1827 a sua viuva desposou em S. Petersburgo o conde de StrogonofF. O segundo marido da condessa da Ega era um seu antigo conhecimento. O conde de StrogonofF tinha sido embaixador da Russia junto ao rei Carlos IV de Hespanha. Depois da abdicação a que Napoleão forçou este miseravel monarcha, Strogonoff, que tinha então apenas o titulo de barão, continuou a ficar em Madrid em boas relações com Murat, grão-duque de Berg, o qual cedeu, por ordem de Napoleão, o throno de Hespanha a José Bonaparte, indo reinar em Napoles. A condessa da Ega já tinha travado relações amigaveis com Strogonoff, antes da primeira invasão franceza. A condessa enviuvou, pela segunda vez, em 1857.
A condessa de Strogonoff continuou a residir na capital do imperio moscovita, attingindo e completando a provecta edade de 80 annos, vindo a fallecer, na mesma cidade, em 14 de novembro de 1864.
André Cheviot, que era tenente quando se realizou a primeira invasão franceza, em 1807, contando apenas 21 annos de idade, depois da evacuação de Portugal, esteve nos cercos de Astorga e Zaragoza, e em seguida passou á Allemanha fazendo todas as campanhas napoleonicas nos estados germanicos.
Durante as longas guerras do imperio, Cheviot nunca foi ferido. Não foi, porém, por que elle se não expuzesse. A seu lado caiu ferido, mortalmente, o general Lannes, duque de Montebello, na batalha de Essling, em que os austriacos foram derrotados pelos francezes, no meio de uma horrivel carnificina.
Cheviot era de bravura a toda prova. Mas era tambem muito prudente. Detestava arriscar-se em proesas inuteis, só por bravata.
Tinha um geito especial para descobrir viveres e abrigos, não só para si, como para a força do seu commando immediato, tanto como capitão de companhia, como já nos postos superiores de major e coronel.
E não se pense que esta qualidade era de pouca importancia. Sempre valiosa, pela força, e confiança nos seus chefes, que dá aos soldados, no tempo das guerras napoleonicas era de primeira ordem. Porque no meio de tantas especiaes qualidades, que sobresaiam nos exercitos do imperador Napoleão, de um grande defeito padecia a sua organisação; era a, quasi completa, falta de uma administração; o que obrigava as legiões francezas a viverem á custa das nações invadidas.
Quando os francezes eram vencedores em paiz inimigo, não se sentia tanto a falta da administrarão militar, posto que sempre houvesse certa demora, e desordem, em procurar o sustento das tropas, e essa espoliação repelida azedava e acirrava o odio dos vencidos contra os vencedores.
Quando, porém, em logar de victorias, vieram revezes, e faltaram os recursos nos paizes invadidos pelos francezes, como em Portugal, Hespanha e Russia, e as hostes imperiaes tiveram que retroceder e repassar as suas fronteiras, então aquelle grande defeito produziu verdadeiros cataclysmos, que desapiedadamente flagellaram os exercitos francezes.
Pelejando no ultimo exercito que Napoleão poude oppôr ás forças da Europa coalizada, já reduzido a defender insufficientemente o territorio patrio, aceitando, mau grado seu, a abdicação do imperador dos francezes, e a restauração da monarchia bourbonica na pessoa de Luiz XVIII, Cheviot correu a alistar-se de novo sob as bandeiras do imperador logo que este, regressando inopinadamente do seu exilio na ilha d'Elba, se apresentou em Paris, fazendo fugir o rei de França; e no desastre de Watterloo, terminou, com a queda definitiva de Napoleão, a sua carreira militar, reformando-se em general de brigada.
Tendo apenas 29 annos de edade, e senhor de uma boa fortuna, por morte de seu pae, Cheviot despozou a filha de um cultivador da Borgonha, que lhe trouxe valiosos bens em terras.
Cultivar as suas propriedades, passando o verão em uma bellissima vivenda em Ville d'Avray, e contar centenas de episodios das guerras em que tinha entrado, eis os maiores prazeres que saboreava o general reformado, que desenvolveu, e viu por largos annos, uma numerosa prole de filhos, netos e bisnetos.
Quando, em 1855, em pleno segundo imperio, Napoleão III exhibiu em Paris uma grande exposição universal, Cheviot correu a visitar a secção de Portugal, e não foi sem grande emoção, que a pequena exposição portugueza lhe trouxe as recordações da sua campanha neste paiz, a morte do seu amigo Remigny, e da freira franciscana, e tantos episodios de tempos que já iam tão longe, e que tão depressa se iam affastando.
Estas saudosas, e tristes recordações, não o impediam comtudo de saborear, deliciosamente, as amostras dos vinhos portuguezes, apesar de possuir na sua adega o bello vinho de Borgonha, que, segundo alguns beberrões, é o unico verdadeiro vinho francez, e sobretudo os bellos charutos, que o antigo contrato do tabaco fabricára expressamente para enviar a esta exposição, e que deixavam a perder de vista tudo quanto de melhor produzia a Régie em França.
Foi para Cheviot um grande jubilo o restabelecimento do imperio em França. Official da Legião d'honra, e condecorado com a medalha de Santa Helena, que ornavam a sobrecasaca, casaca, palelot, ou outra qualquer vestimenta que puzesse, Cheviot ainda gozou as glorias francezas das guerras da Russia e da Italia; e foi com grande alvoroço que soube da declaração da guerra entre a França e Allemanha, em 19 de junho de 1870.
No dia seguinte, porém, uma congestão cerebral pôz termo á vida do velho militar, que contava então 84 annos completos. Até nisto foi feliz. A morte poupou-lhe assistir, á derrota dos francezes, á funesta invasão da França pelos exercitos allemães, e á odiosa e estupida insurreição da Communa de Paris, no terrivel anno de 1871.