O agonizar de uma dinastia: Edição para o ELTeC O calvário de uma mãe Noronha, Eduardo de (1859-1948) Criação do HTML original Alina Balté Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 70630 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 O agonizar de uma dinastia Eduardo de Noronha O agonizar d'uma dynastia (O calvário d'uma mãe) Eduardo de Noronha Magalhães & Moniz Francisco Alves & C.a Porto Rio de Janeiro 1908

português de Portugal Converted by checkUp script for new releaseChecked by checkup script Adicionado à coleção ELTeC

Eduardo de Noronha

O agonizar d'uma Dynastia

(O CALVARIO D'UMA MÃE)

ROMANCE HISTORICO ILLUSTRADO COM 15 GRAVURAS

EDITORES

MAGALHÃES & MONIZ, L.da | FRANCISCO ALVES & C.a

12, Largo dos Loyos, 14 | 134, Rua do Ouvidor, 134

PORTO | RIO DE JANEIRO

PRIMEIRA PARTE

AMOR DE CREANÇA

I

A revolução

-- Viva a republica!

-- Abaixo o imperio!

-- Morram os traidores!

-- Á forca os generaes vendidos!

Sobre Paris desencadeara-se um medonho tufão de revolta popular. A turba, convulsionada numa epilepsia de furor, estorcia-se em accessos de raiva dementada, bramia como o mar açoutado pelo vendaval, espumava cuspindo imprecações pavorosas e ameaças tão violentas como um fundo abalo de terra. A multidão, galgando em ondas coléricas de resaca indómita dos grandes boulevards, dos Campos Elyseos, da Casa da Camara, da margem esquerda do Sena, pelas pontes da Concordia, do Solferino, Real, do Carrousel, das Artes e Nova, affluia, num impeto inconsciente de odio a explodir, em busca das Tulherias, da faustuosa residencia de Napoleão III.

Os crepes da noite de 3 de setembro de 1870 principiavam a desdobrar-se por cima da populosa metropole francêsa. O soberbo palacio, muda e imponente testemunha de tantos acontecimentos tragicos, conservava-se envôlto numa semi-escuridão, contraste frizante com as estonteadoras refulgencias das suas passadas e sumptuosas festas. O magnifico edificio, começado por Dalorme e concluido por Bullant, aprestava-se para assistir a mais uma manifestação da volubilidade politica dos habitantes de Paris. Presenceara já os dias angustiosos de Luiz XVI e de sua familia, o combate de 10 de agosto de 1792, o deslumbramento da epopéa do primeiro imperio, as represalias de Luiz XVIII, os sustos de Carlos X, a fuga precipitada de Luiz Filippe, o duplo fastigio do poder e da formosura da imperatriz Eugenia e ia contemplar outro acto do infindo drama que a Historia escreve dia a dia.

Num dos mais luxuosos aposentos da imperial vivenda, onde se accentuavam, na ornamentação, no mobiliario, na architectura, em cada objecto, as linhas caracteristicas do estylo denominado segundo imperio, encontravam-se duas personagens. Uma, senhora de quarenta e quatro annos, de physionomia amargurada, mas ainda de notavel belleza, sentada, e outra, um homem de cincoenta e seis annos, de semblante intelligente e enérgico, de suissas,com ar preoccupado, e de pé.

-- São então cada voz peores as noticias? -- interrogou depois de uma curta pausa a dama sentada.

-- Infelizmente, minha senhora -- respondeu o interpellado que se conservava em posição respeitosa.

De fora, por entre as janellas entreabertas, chegavam como ás rajadas de uma borrasca longinqua, no meio de um sussurro lúgubre e progressivo, os brados cada vez mais nitidos e vibrantes:

-- Viva a republica!

-- Abaixo o imperio!

-- Morram os traidores!

-- Á forca os generaes vendidos!

A dama fitou o seu interlocutor; dos cilios penderam-lhe duas lagrimas, limpidas como duas gotas de orvalho no calix de um lyrio, e depois murmurou:

-- Como o povo é voluvel!

-- Como uma creança com os seus brinquedos; despedaça hoje com furia o que hontem anhelava com ancia e festejava com carinho.

-- Deixemo-nos do sentimentalismo -- atalhou a dama com energia -- encaremos a situação de frente.

-- Vossa majestade póde contar com a minha incondicional dedicação.

-- Não resta a menor dúvida sobre o triste desenlace de Sédan?

-- Nenhuma, minha senhora. A batalha principiou antes de hontem, 1 de setembro, ás quatro da manhan. Pouco depois era ferido o marechal Mac-Mahon. Ás onze horas estava perdida, depois do exercito ser commandado, nesse pequeno espaço, por tres generaes em chefe. Ás duas da tarde foi arvorada a bandeira branca por ordem de sua majestade o imperador o hontem de manhan assignada a capitulação, que entrega oitenta mil homens ao inimigo.

-- E o imperador?

-- Sahiu de Sédan para diligenciar que o rei da Prussia suavisasse as condições da capitulação; só achou, em Donchéry, na barraca de um operario, Bismarck, que foi inexoravel. Horas depois, quando tudo se perdera, mandaram-no escoltado pelos couraceiros para um palacio á beira do Mosa. Encontrou-se ahi com Guilherme I. Mais tarde seguiu para a Allemanha, para Wilhelmshoehe, perto de Cassel, onde residiu seu tio o rei Jeronymo da Westphalia.

É tempo de explicarmos ao leitor quem eram as duas pessoas que sustentavam o historico dialogo.

A dama chamava-se Eugenia Maria de Montijo de Gusman, fôra condessa de Teba e cingia ainda nesse momento a coroa imperal da França. Nascida em 1826, com quarenta e quatro annos, fulgurava-lhe, todavia, no rosto e no porte, a offuscante belleza que avassallara Napoleão III a convertera numa das mais admiradas e invejadas soberanas da Europa.

O seu interlocutor era Eugenio Rouher, politico de influencia e dedicadissimo á causa bonapartista, ministro em varios gabinetes e, na occasião, presidente do senado. O seu ascendente era tal nos negocios de Estado que o apellidavam o vice-imperador.

Ouçamos o proseguimento da interessante conversa.

-- A repugnancia de Mac-Mahon marchar sobre Metz deu este resultado -- commentou com certo azedume a imperatriz.

-- A salvação consistia, talvez, em concentrar todas as forças em redor de Paris...

-- E abandonava-se o resto da França ao inimigo?! -- exclamou com vehemencia a impulsiva senhora.

-- Era a opinião dos nossos melhores generaes...

-- O imperador vêr-se-ia obrigado a regressar a Paris e não chegaria vivo ás Tulherias.

Neste momento entrou um official de serviço, que annunciou:

-- Sua excellencia o ministro da guerra.

Penetrou então no aposento o general Montauban, conde de Palikao. Era o vencedor da China em 1860, chamado á pasta da guerra após a queda do ministerio Ollivier, que conseguira reunir em vinte dias, em Chalons, cento e vinte mil homens, derrotados pelos prussianos ainda em menos tempo. Orçava nessa época pelos setenta e quatro annos. A sua valentia e patriotismo tinham-se tornado proverbiaes.

-- Que novas nos traz da Camara? -- inquiriu a imperatriz apenas o general lhe beijara a mão.

-- É um vulcão em actividade.

-- E Thiers, a quem pedi, por intermedio do embaixador da Austria, principe de Metternich, que me viesse falar?

-- Creio que não virá. Alguns dos principaes deputados da esquerda conduziram-no a um gabinete do palacio Bourbon e propuzeram-lhe: «A revolução é inevitavel; colloque-se á nossa frente e salvemos a França».

-- Acceitou?

-- Recusou. Quer a revolução, mas com forma legal. Pretende que a camara e o senado nomeiem uma commissão para obter um armisticio e convoquem a Assembléa nacional.

-- Que lhe respondeu, general?

-- Communiquei á camara uma parte da verdade e occultei outra.

-- Socegaram ?

-- Exaltaram-se ainda mais, Júlio Favre perguntou onde estava sua magestade o imperador, se ainda dava ordens ao ministerio?

-- A sua réplica foi...?

-- Que não, que os ministros só recebiam ordens de vossa magestade, que é a regente.

-- Protestaram...?

-- Declararam que o governo deixara de existir.

-- Todos?

-- A direita e o centro murmuraram. O presidente Schneider ergueu-se para protestar. A confusão foi enorme, era um chaos. Só um deputado conseguiu fazer-se ouvir.

-- Quem?

-- Julio Favre. Affirmou que na difficil conjuntura atravessaria pela França, todos os partidos deveriam emmudecer ante um vulto militar que representasse o país e a capital.

-- Referia-se...?

-- Ao general Trochu.

-- Que deliberou a camara?

-- A sessão encerrou-se sem ter deliberado nada; deve tornar a abrir-se, logo á uma hora da noite.

-- A população?

-- Agita-se, invectiva, estrebucha, corre de um pára outro lado como um navio sem leme.

-- Largou-o o governo da mão e perde-se perdendo o imperio -- accentuou a imperatriz com inflexo vibrante. -- Bem ouço d'aqui as suas vociferações e ameaças. E mais uma revolução, mais uma tragedia, que os parisienses tanto apreciam. Antigamente a sua galantaria poupava espectaculos semelhantes a mulheres que, como eu, só arvoravam por lemma a felicidade da patria...

O conde de Palikao moveu os labios lembrando-se da imagem ensanguentada de Maria Antonieta, mas só redarguiu:

-- Não considero ainda tudo perdido.

-- Reluz-lhe alguma esperança?

-- Aos vivas á republica dados em frente do palacio Bourbon respondeu Gambetta: « É essa a forma do governo que mais ambiciono, mas não é, equitativo que ella se torne responsavel pelas desventuras que aniquilam a França. Unamo-nos e não fomentemos a revolução.

-- É tarde para aplacar os animos; só uma victoria retumbante sobre o inimigo poderia salvar o imperio...

O ministro da guerra calou-se. A imperatriz relanceou a vista sobre Eugenio Rouher, que tambem manteve um silencio significativo.

-- Mas ninguem confia nella, não é assim? -- continuou a esposa de Napoleão III -- O corajoso e dedicado soldado francos está condemnado antecipadamente a soffrer revés sobre revés...

D'esta vez a dôr, a tensão nervosa, os choques successivos porque passara, o anceio em que a sua alma se debatia, levaram de vencida a força de vontade da experimentada senhora e avassallou-a uma convulsão de choro.

Fora, e presentemente de mais perto, rugiam as ameaças e os clamores ferozes da turba. A onda popular crescia impetuosa sobre o macisso de alvenaria da residencia imperial, nun arranco cego de furor, e bradava:

-- Viva a republica!

-- Abaixo o imperio!

-- Morram os traidores!

-- Á forca os generaes vendidos!

O conde de Palikao aproximou-se inquieto de uma janella. A imperatriz ergueu-se de chofre, enxugou as lagrimas apressadamente, e murmurou:

-- Miseraveis! se hão de correr a alistar-se no exercito para morrer pela patria, vêem aqui insultar uma mulher.

-- Socegue, minha senhora -- disse-lhe Eugenio Rouher -- o povo expande a sua dôr com arrebatamento, mas nunca ousará entrar nas Tulherias.

-- Nem eu o receio -- replicou com altivez a regente -- o meu assassinio talvez firmasse solidamente a coroa na cabeça do principe.

Exactamente neste instante abria-se uma das portas do aposento e entrava por ella um rapaz de quatorze annos, fardado de official de granadeiros da Guarda. Acercou-se da imperatriz, beijou-a carinhosamente na testa e collocou-se ao lado d'ella, como a querer protegê-la com o seu corpo.

-- Maman! Maman! -- pronunciou o recemvindo com voz que baldadamente pretendia tornar calma.

-- Luiz! Meu Luiz! -- correspondeu a regente retribuindo-lhe os beijos e afagando-lhe o cabello -- senta-te aqui junto de mim.

O mancebo que entrara era o principe Napoleão Eugenio Luiz João José Bonaparte, herdeiro da corôa imperial. Nascera nas Tulherias, a 16de março de 1856, quando seu pae tinha cerca de quarenta e oito annos e sua mãe perto de trinta. Napoleão III attingira nessa época o zenith do poder. O congresso de Paris, reunido para concluir a paz entre a Russia, França e Inglaterra, depois da guerra da Criméa, tornara-o arbitro dos destinos da Europa.

O imperador, quando partira para a fronteira, após a ruptura de hostilidades com a Allemanha, em junho de 1870, levara o herdeiro comsigo. O principe Luiz recebera o seu baptismo de fogo no combate de Sarrebruck, o unico e ephemero triumpho que os franceses obtiveram sobre o inimigo. O principe portara-se corajosamente. Logo que principiaram as desventuras e as retiradas, o successor de Napoleão III, e seu unico filho, foi enviado para Paris, para junto da mãe, regente do imperio.

-- Que quer o povo?! -- exclamou o principe crispando os punhos num movimento de indignação.

-- Allivio ás suas desditas, uma victoria que lhe restitua o antigo prestigio.

-- Porque me obrigaram a voltar para Paris? Se não vencessemos, queria morrer ao menos no meio dos que succumbem defendendo a bandeira dos seus regimentos.

-- Se os exaltados que além vociferam te ouvissem, certamente modificariam a sua opinião -- commentou a imperatriz.

E aconchegou o filho a si, num impeto de affecto maternal.

-- O senhor ministro da guerra? -- perguntou entre a porta um official de serviço.

-- Que deseja? -- inquiriu o general Montauban afastando-so da janella.

-- Uma commissão de deputados da direita procura vossa excellencia.

O conde de Palikao pediu licença á imperatriz e sahiu. Depressa se encontrou numa sala proxima com quem o procurava.

-- General -- disse-lhe o chefe da delegação, -- Delescluze e outros agitadores provocararam uma manifestação que se prolongou desde a Bastilha até o boulevard Montmartre. Foi dispersa pela policia, mas se a Camara não se apressa, o grito de: «Viva a republica!» breve se tornará geral. Consinta vossa excellencia na eleição de uma commissão governativa que se encarregue interinamente da regencia.

-- Não é tarde até ámanhan? -- objectou o ministro.

-- Até ámanhan?! -- redarguiu com pasmo outro deputado. -- Lembre-se do que são os parisienses! Amanhan arrisca-se a encontrar a camara invadida!

-- Disponho de quarenta mil homens seguros.

-- Nem de quatro mil! -- obtemperou o interlocutor.

-- Organise uma dictadura militar -- propôs quem primeiro falara.

-- É muito tarde -- replicou o conde.

Nenhuma resolução ficou assento.

A noite, nas Tulherias, apesar da varonil coragem da imperatriz, decorreu cheia de sobresaltos. Pairava sobre o esplendido palacio uma nuvem sinistra de desgraça. A criadagem, o numeroso pessoal da residencia napoleonica, receoso de qualquer subita e investida da multidão, abandonara em grande parte a sumptuosa vivenda, deixando a regente e o principe entregues á sua sorte.

Os vastos salões outrora resplandecentes de luz, de mulheres formosas, dos homens mais illustres da França e da Europa; offuscantes dos trajes mais garridos, das pedrarias mais raras e preciosas, das fardas mais phantasistas e opulentas em recamos-de-ouro, de quantas condecorações a vaidade humana inventou para ostentar a sua insania ; saturados do aroma de plantas exoticas remettidas de muitos milhares de leguas; ornados com tapeçarias de preços fabulosos, com mobilia de uma riqueza incomparavel, com um cunho deslumbrante e orgulhoso de fausto perdulario; encontravam-se nessa noite ermos, ás escuras, com o aspecto quasi de lúgubres catacumbas.

Entre as poucas pessoas que se conservavam no seu posto, fiéis á grandeza decahida, encontrava-se um major de Guias, da casa militar do principe, e uma das almas mais dedicadas á familia imperial. Era um português de familia e de nascimento.

Chamava-se Frederico de Santa Cruz, neto do coronel Santa Cruz, que embora não pertencesse á Legião Portuguêsa ao serviço de Napoleão I, fôra ajudante de campo do duque de Rivoli, distinguira-se na passagem do Danubio em 1809, conquistara calorosos elogios na carga de Znaim, recebera a Legião de honra em Wagrani e morrera, batendo-se com quatro cosacos, na retirada de Smolensko.

Seu pae brilhara como um dos mais bravos officiaes da cavallaria miguelista, e, ao pactuar-se: a convenção de Evora Monte preferiu demittir-se e tornar-se agricultor, na sua terra natal, em Villa Real de Traz-os-Montes, a render homenagem a quem antes combatera. Ahi nasceu Frederico, filho unico do intrepido partidario do regimen absoluto, em 1841.

Aos dezasete annos Frederico, orphão de pae e mãe, levado pelo espirito aventureiro dos seus antepassados, vendeu o escasso patrimonio herdado e dirigiu-se para Paris, onde, depois de submettido ás provas legaes, se matriculou na escola de Saint-Cyr. Decorrido cêrca de um anno em abril de 1859, rebentava a guerra de Italia. Frederico de Santa Cruz, encorporado num regimento de cavallaria, depois de se bater em Montebello, Magenta e Solferino, voltava alferes e com uma funda cutilada no hombro esquerdo. Em 1860 organisava a França e a Inglaterra a expedição contra a China. O corpo do alferes Santa Cruz foi um dos nomeados para partir para o Extremo-Oriente. Quando o juvenil official regressou a Paris ostentava ao peito a Legião de honra e nos braços os galões de tenente. Em 1862, o 2 de Caçadores de Africa recebia ordem para embarcar para o Mexico, para ali implantar o imperio. Ao desfilarem as tropas expedicionarias, na vinda, em 1867, após os combates sangrentos de Orizaba, Puebla e de uma infinidade de recontros mortíferos, Santa Cruz ascendera a capitão e tornara-se amigo intimo do marquez de Galliffet, que o indicou a Napoleão III para official ás ordens do principe. Fôra poucos mezes antes de declarada a guerra promovido a major (chef déscadrons).

Era um rapaz de estatura média, sêcco, nervoso, de typo caracterisadamente meridional, de olhos, cabello e bigode negros, com uma larga cicatriz na testa, recordação de uma furiosa refrega com os mexicanos. O seu olhar era vivo e franco, as suas maneiras desembaraçadas, a sua linguagem pittoresca e sincera. Não havia caracter mais alegre no regimento, nem mais polido e affavel na côrte, nem mais ardente ante uma dama, nem mais sereno no perigo. Adoravam-no quantos o conheciam.

Santa Cruz conversava com um dos seus camaradas, dos raros que conseguiram escapar-se á sangrenta armadilha de Sedan, e que trouxera mensagens de Napoleão III para a imperatriz. A conversa ia no fim e o capitão dos Guias, irado contra o seu costume, commentava:

-- ... encurralados, batidos e por ultimo obrigados a capitular.

-- Uma inacreditavel fatalidade. Pois ninguem regateou a vida. Quando o general Margueritte, commandante da divisão de cavallaria, cahiu atravessado por uma bala, substituiu-o o marquez de Galliffet. Era necessário desafrontar a infantaria, assoberbada pelas massas prussianas. O general Ducrot voltou-se para o marquez e com os olhos razos d'agua disse-lhe: «Ainda um novo esforço!»

O novo commandante cumprimentou-o, risonho, com a espada, e respondeu-lhe: «Tantos quantos queira, meu general, em quanto existir um de nós!» Ficaram lá dois terçus da divisão. Conta-se que o rei Guilherme, que assistia ao combate nas alturas de Fresnois, exclamara: «Valentes rapazes!»

-- Tanto sangue vertido merecia outra recompensa...

Esbaforido, com as feições transtornadas, precipitou-se pela antecamara dentro um dignitario, e perguntou:

-- A imperatriz?

-- Está nos seus aposentos em conferencia. Que succedeu?

-- Julio Favre acaba de apresentar na sessão nocturna da camara uma proposta em que exautora dos poderes que lhe conferiu a constituição o imperador e a dynastia; pede que o corpo legislativo nomeie uma commissão, com plenos poderes para resistir a todo o transe á invasão, e que o genoral Trochu seja investido no cargo de governador de Paris.

-- Que respondeu o ministerio?

-- Calou-se.

-- E a população?

-- Os grupos são cada vez mais compactos em redor do palacio Bourbon, expandem-se em manifestações patrioticas e os homens mais sensatos recommendam a união de todas as classes.

-- Ainda ha tumultos e arruaças?

-- Serenaram. O aspecto dos habitantes é mais de desespero e de tristeza que de desordem. Os morras e os vivas repetem-se menos. As deputações multiplicam-se na residencia do general Trochu, pedindo a deposição do imperador e a distribuição de armas.

-- Mas o general Trochu deu a sua palavra de honra de militar e de bretão á imperatriz que se responsabilisava pela segurança das instituições. Conduzam-me á regente.

Ao lado da esposa de Napoleão III encontravam-se Eugenio Rouher, o conde de Palikao e mais alguns membros do governo, que se tinham antecipado ao mensageiro que acabamos de ouvir, e que, nada tendo que accrescentar ao que a alanceada senhora sabia, se retirou.

-- De tanta gente, de tantos officiaes que juraram fidelidade ao imperador, não ha um só que se lembre dos seus juramentos!... -- Commentava a imperatriz entre indignada e melancólica.

-- Estamos nós aqui, minha senhora -- protestaram os circumstantes.

-- Não ha um unico regimento a favor do imperio? -- insistiu a regente.

-- Nem a guarda nacional, nem a guarda movel, nem as forcas de linha me inspiram a minima confiança para tentar qualquer medida extrema -- explicou o ministro da guerra.

-- Nem eu quero que se recorra á força -- replicou de prompto Eugenia de Montijo.

-- Deseja Vossa Magestade abdicar? -- interrogou Rouher com angustioso anceio.

-- Não, não posso, não me compete a mim fazê-lo; sou apenas a regente!... E meu filho...?! Não, não posso... aguardemos os acontecimentos!

-- Vossa Magestade -- disse Eugenio Rouher com respeitosa doçura -- hesita, contradiz-se, não opta por nenhuma resolução.

-- Sou mãe e esposa, -- redarguiu de prompto e com altivez -- e desempenho um duplo papel de grande responsabilidade na Historia e na Humanidade...

Acommetteu-a outra violenta convulsão de choro. Os nervos tanto tempo em vibração terminaram por vencer a sua rija força de vontade. Todos respeitaram a crise que a agitava mantendo-se silenciosos. Só Rouher, decorridos alguns minutos, lhe disse:

-- Descanse vossa magestade, o seu espirito carece de repouso.

-- Posso acaso tê-lo?!... depois, a custo, como seguindo o fio de um raciocinio íntimo, aventou -- Se eu entregasse a regencia?...

Correu-se, ao soarem estas palavras, um reposteiro e desenhara-se atrás de quem o vinha annunciar, o perfil de Jeronymo David, o funesto conselheiro do imperador no criterio do vulgo. Beijou a mão á imperatriz e logo perorou:

-- A entrega da regencia é a perda do imperio, a infelicidade do principe herdeiro, e quem sabe se qualquer desacato á familia imperial. Vossa magestade está numa situação identica á do capitão de um navio em perigo, não pode abandonar o seu posto de commando, impede-lho o dever.

Os do conselho entreolharam-se e fixaram depois a vista nos labios da imperatriz. O momento era decisivo. A esposa de Napoleão III declarou então com voz firme:

-- Manter-me-ei no meu posto e só o abandonarei quando d'elle me expulsarem.

Os circumstantes curvaram a cabeça, Jeronymo David beijou de novo a mão de Eugenia de Montijo, accentuando:

-- Saudo em Vossa Magestade o esteio heroico da dynastia.

O conde de Palikao avizinhou-se de Rouher o segredou-lhe:

-- A dynastia está a soltar o ultimo suspiro.

Fora, nos boulevards, nas pontes, nas ruas, nos Campos Elyseos, em todo o largo perimetro de Paris, a multidão, como a confirmar o asserto, gritava:

-- Viva a republica!

-- Abaixo o imperio!

-- Morram os traidores!

-- Á forca os generaes vendidos!

II

A queda d'um imperio

Ninguem dormiu nessa noite de 3 para 4 de setembro do 1870, nas Tulherias, e a imperatriz menos que ninguem. Recostara-se num divan, no seu gabinete, com o corpo quebrado pela fadiga e com a alma dilacerada por consecutivas e lancinantes torturas moraes. Nenhum esforço obtivera conciliar-lhe o somno.

O seu espirito, fundamente impressionado e sacudido, adquirira uma poderosa acuidade na evocação do passado. Cerrando as palpebras com persistencia, como a proteger e a defender os olhos dos sinistros quadros do presente, a imaginação, talvez em desforço d'essa tentativa de momentaneo aniquilamento, reproduzia-lhe, á guisa de photographia animada, toda a preterita existencia do marido, tão aventurosa e accidentada.

Era uma especie de catalepsia. Ás rajadas, como os vapores das tardes tempestuosas que correm céleres vergastados pelo norte, tomando as formas mais extravagantes á mercê do vento que as impele e ainda vistas pelo prisma da sua phantasia, aos sonhos de suave reminiscencia succediam-se pesadêlos de afflictiva recordação.

Nascera o marido ahi nessas mesmas Tulherias, onde não devia tornar a entrar, em 1808, no apogeu da gloria napoleonica. O seu espirito assistia ao baptismo d'esse Carlos Luiz Napoleão Bonaparte, terceiro filho de Luiz Bonaparte, rei da Hollanda, irmão de Napoleão I e do Hortensia Beauharnais, fructo do primeiro leito da imperatriz Josephina. Echoavam-lhe aos ouvidos, os rumores maledicentes que os palacianos segredavam pelas antecamaras ácerca da reputação da sogra, de facil condescendencia com os galanteios dos seus admiradores, de vergar ante o capricho amoroso do cunhado, da repugnancia que sempre manifestou em viver com o marido, a ponto de se attribuir a paternidade do terceiro filho ao almirante hollandez Verhuell.

Transportava-se depois ao palacio de Arenenberg, á beira do lago de Constancia, para onde Napoleão III foi viver em 1819, com sua mãe, já então definitivamente separada do esposo, com o titulo de duqueza de Saint-Leu, após a sua sahida de França, em 1815.

Seguia o pequeno estudante nos tres annos de internato no gymnasio de Augsburgo e mais tarde no curso de artilharia na escola de Thun. Via-o ahi solitario, entregue a professores estrangeiros, com um caracter tão socegado que tocava as raias da apathia, de modos timidos, de tal maneira irresoluto que parecia, condemnado a nunca occupar cargo proeminente na vida pública. Presenceava a catechese tenaz de sua mãe, convencendo-o a que se devia preparar para um futuro em harmonia com as tradições de familia, inspirando-lhe confiança na estrella do tio.

Acompanhava-o, decorridos annos, em 1831, quando partia para as provincias romanas a auxiliar o levantamento contra o papa, emprêsa onde perdeu o ultimo de seus irmãos, pois o mais velho morrera ainda creança. Encontrava-o no anno immediato, em 1832, chefe da casa Bonaparte, pelo fallecimento do duque de Reichstadt, filho de Napoleão I e da imperatriz Maria Luiza, antigo rei de Roma, expondo as suas idéas em dois folhetos, nos quaes se declarava alheio á politica na questão de divergencia de nacionalidades e sectario enthusiastico d'ella para melhorar o destino dos povos.

Presenceava o seu desastrado golpe de mão em Strasburgo, em outubro de 1836, quando se convenceu que bastava apparecer em França para que o exercito e o povo se erguessem em massa a favor da sua candidatura ao throno. Assistia á sua prisão, ao seu exilio na America, ao seu precipitado regresso ao palacio de Arenenberg, onde colheu o derradeiro suspiro de sua mãe, em 1837. Lastimava a miseria que soffreu em Londres, os expedientes de que lançou mão

para viver; lia o programma que alli redigiu com o titulo de Idéas Napoleonicas, e que elle fez espalhar serem inspiradas pelo tio. Sobresaltava-se com a sua nova conjura, tão infeliz como a primeira. Divisava o seu desembarque com um punhado de partidarios na praia de Bolonha, em 1840, a maneira rapida como o descobriram e o capturaram, a severidade da sentença que o condemnava a prisão perpetua e o seu encerramento na fortaleza de Ham.

Aqui o estado cataleptico e de dupla visão da inperatriz experimentou uma variante. Percebeu que abriam devagarinho uma das portas do gabinete e que entrava por ella seu filho e mademoiselie Conneau, da mesma edade do principe. Ambos se debruçaram sobre a imperatriz.

-- Dorme -- disse o principe.

-- Deixêmo-la socegada -- recommendou a jovem.

-- Pobre maman!

-- Tem soffrido tanto nestes ultimos dias!...

-- Quero beijá-la.

-- Não, agora, não; é um peccado roubar-lhe estes poucos minutos de repouso.

-- Muito ao de leve.

-- Só no cabello.

Ambos se inclinaram e depuzeram, quasi sem lhe tocar, um beijo nas opulentas madeixas da ainda formosa senhora. Depois, como se um irrefreavel impulso attrahisse o labio dos dois, uniram-nos num ósculo fugitivo e casto. A imperatriz estremeceu e os dois fugiram como duas andorinhas espavoridas pelo ramalhar da folhagem.

Surprehendeu-a esse ósculo, tanto mais quanto o movimento fôra instinctivo, espontaneo como um anhelo que sobe do coração e que nenhum preconceito consegue conter ou dissimular. Passado um instante, a imaginarão submetteu-se ao primitivo dominio e a vida do marido continuou a espelhar-se-lhe no cerebro. Patenteava-se-lhe com todos os pormenores a sua evasão da fortaleza de Ham, em maio de 1846, graças principalmente á dedicação do doutor Conneau, tio dessa mesma menina a quem o filho beijara ha pouco.

Via as tres casas que tinham destinado ao infeliz condemnado politico, com portas cheias de gretas e janellas que não fechavam bem; o doutor Conneau, o general Montholon, que assistira aos derradeiros momentos de Napoleão I, e

Thélin, seu dedicado companheiro, que todos compartilhavam do encarceramento do mal succedido pretendente; os quatrocentos soldados de infantaria que deviam fornecer as sessenta sentinellas postadas em redor da fortaleza; o capitão Demasle, governador da praça, obrigado a visitar o preso quatro vezes por dia e os tres guardas que o escoltavam para toda a parte para onde fosse.

Reconhecia no seu sonho que apesar de todos os formalismos a clausura não fôra severa. Napoleão cultivava flores num jardim das muralhas, jogava o whist, recebia quantas visitas desejava, correspondia-se á vontade com os seus partidarios e até se entregava ao galanteio com damas suas conhecidas. Observava as diversas phases da paixão com que captivava os corações de duas mulheres durante esse encerramento: mademoiselle G... e Alexandrina Vergeot, alcunhada a Bella Tamanqueira, rapariga de boas carnes e cheia de viço, de quem houve dois filhos -- Eugenio e Luiz -- e que mais tarde deu por esposa a seu irmão de leite, Bure, thesoureiro da lista civil.

Divisava-o todo entregue ás suas obras, escrevendo os Estatutos historicos sobre a revolução de Inglaterra, elaborando artigos para diversos jornaes, trabalhando em differentes brochuras, transformando a prisão num centro de propaganda, sendo ahi mais poderoso que em plena fruição da liberdade. Desfilavam ante a sua memoria as occasiões que lhe proporcionaram para elle se evadir, e de que não se quiz aproveitar, desde a proposta do commissario da policia da cidade até o momento em que julgou opportuno o ensejo.

O episodio da fuga reflectia-se-lhe no cerebro com intensa verdade, nos termos em que um dos seus biographos a historiou.

Pareceu a Napoleão chegada a hora, depois de recrutar amizades no partido republicano e quando a difusão da lenda napoleoniça produzia todo o seu effeito. Forneceu-lhe o pretexto a desastrada recusa do governo de consentir que assistisse aos ultimos momentos de seu pao, que expirava em Florença com o titulo de conde de Saint-Leu. Para fugir precisava dinheiro. Alcançou-lho o fiel Orsi, refugiado em Londres, do duque de Brunswick, após uma entrevista melodramatica.

O dia escolhido para a evasão foi o de 25 de maio de 1846. Disfarçou-se um tanto e com uma tabua ás costas atravessou por meio dos pedreiros que concertavam um dos seus aposentos. Cruzou sem obstaculo a parada cheia de soldados. No instante em que passava pelo tenente da guarda cahiu-lhe o cachimbo; teve a presença de se abaixar e de apanhar cuidadosamente todos os pedaços. D'ali até a ponte levadiça ninguem o estorvou no seu caminho. Encontrava-se fora da cidadella; desembaraçou-se da tabua em frente do cemiterio, despiu a camisola de operario e esperou o carro que o devia transportar. Aguardou-o durante muito tempo. Perdendo a paciencia, perguntou a um transeunte se não vira o vehiculo.

-- Não vi -- respondeu-lhe amavelmente o interlocutor, que era o delegado do ministerio publico.

O carro chega. Roda com toda a velocidade para Valenciennes, donde o caminho de ferro o conduz á Belgica. Durante este tempo, passava-se na fortaleza de Ham uma scena altamente comica.

O doutor Conneau, que ficara só, fizera numerosos preparativos. No leito do preso deitara um manequim, accendeu o fogão na sala e cobrira os moveis de frascos, de tizanas e de boiões. Quando o governador Demarle se apresentou para as costumadas visitas pediu-lhe desculpa em nome de Napoleão, enfermo, que tomara um drastico. Para tornar mais verosimil a sua narrativa, o doutor Conneau levou a sua dedicação até beber a limonada que manipulara. Não fez effeito. Preparou então com café, pão fervido e acido nitrico uma mistura mal cheirosa para illudir o criado.

Demarle voltou depois do almoço. O doutor Conneau allegou de novo o mau estado do doente, fingiu falar-lhe através da porta entreaberta e insistiu com o governador que o deixasse descansar. Demarle, appareceu pela terceira vez á hora do jantar,

-- Dorme, -- affirmou-lhe Conneau.

-- Não ha dormir eternamente -- respondeu Demarle, assentando-se. -- Espero.

Depois d'um demorado silencio, o official, de repente, exclamou:

-- O principe mexeu-se!

-- Não, não! -- assentiu Conneau, -- deixe-o dormir.

Demarle perdeu a paciencia. Levanta-se, vae direito á alcova, puxa a roupa, e grita:

-- O principe não está aqui.

-- Não está -- assentiu com toda a placidez o doutor Conneau.

-- A que horas fugiu?

-- Ás sete da manhan.

-- Quem estava de serviço?

-- Não sei.

Sem o interrogar mais, Demarle girou sobre os calcanhares, fechou-o á chave, metteu a chave na algibeira, mandou erguer a ponte levadiça, enviou correios em todas as direcções e foi contar o succedido á mulher, que desmaiou.

Tres dias depois Napoleão desembarcava em Londres.

O sonho da imperatriz proseguiu.

Rebentava agora a revolução de 1848. Luiz Filippe, expulso de França, tomava o caminho do desterro. As portas da patria escancaravam-se para o sobrinho do glorioso deportado de Santa Helena e o seu nome ia actuar com o prestigio da lenda napoleonica sobre os seus voluveis compatriotas. Em setembro de 1848 elegem-n'o deputado quatro departamentos, e a 10 de dezembro, aproveitando o anceio da gente cordata para restabelecer a auctoridade, abalada pelos acontecimentos de junho, consegue ser escolhido para presidente da Republica. Esmaga então o partido republicano, de accordo com a maioria monarchica da Assembleia nacional, e não se demora a suscitar contra essa mesma maioria um conflicto que só podia terminar por um golpe de estado.

A 2 de dezembro de 1851 proclama-se chefe do poder executivo por dois annos; no anno seguinte, a 10 de dezembro de 1852, organisa um plesbicito, que o eleva ao throno com o nome de Napoleão III. «O imperio é a paz!» declara no celebre discurso de Bordéus. Trata em seguida de consolidar o seu poder em França e no estrangeiro. Emprehende a guerra da Criméa, que dura de 1854 a 1855, para dividir as potencias do norte, e termina-a com o tratado de Paris assignado em abril de 1856. Arvora-se então em arbitro da Europa. O despotismo e a prosperidade material correm parelhas.

Cerceia as liberdades e cobre a França d'uma extensa rede de caminhos de ferro. Tenta impor o principio das nacionalidades. Declara guerra á Austria em 1859 para libertar a Italia, mas é obrigado a estacar em Villafranca ante a hostilidade da Allemanha, obtendo apenas a annexação da Saboia e Nice. Em 1863 apoia a revolta da Polonia contra a Russia, mas não intervem a tempo e perde as sympathias do tzar.

No anno anterior tinha planeado fundar um imperio no Mexico, mas receia ante a attitude dos Estados-Unidos e atira com o imperador Maximiliano para a frente do pelotão de execução do presidente Juarez e com a imperatriz Carolina para a noite da loucura. Esta dispendiosa expedição, que absorve quantias enormes e as melhores tropas francêsas, de 1862 a 1867, obriga-o a consentir que a confederação germanica desmembre a Dinamarca em 1864 e que a Prussia derrote a Austria em 1866.

Napoleão III começa a perder terreno no campo da popularidade e do prestigio. Pretende readquirir ambos por meio de concessões liberaes, soffre cheques sobre cheques nas questões diplomaticas do Luxemburgo e de Mentana e sabendo que a guerra com a Prussia é inevitavel, não se prepara devidamente para o terrivel embate.

Eugenia de Montijo, appellando então para toda a sua energia, consegue libertar-se das horrorosas scenas de morticinio que o pesadêlo lhe desenrolava ante os olhos desde o rompimento das hostilidades e acorda.

Sobre Paris desdobram-se os primeiros clarões da madrugada.

Alvorecia o agitado e historico dia 4 de setembro de 1871. As Tulherias sempre tão buliçosas, a formigar de criadagem nas horas matutinas, apresentavam-se nessa manhã ainda mais ermas que na vespera. A sumptuosa construccão figurava como um pesado mausoléo, solitario e lugubre, que commemorasse a deposição do imperio no meio da cidade effervescente de grupos movimentados e ruidosos. Pelas innumeras arterias d'esse cerebro do mundo, como lhe chamou um poeta notavel, escoava-se a espuma irrequieta da população vibrante de cólera e anciosa de cevar em alguem a furia que a acommettia, originada pelos golpes assestados no seu orgulho pelas armas allemans.

Cerca das onze horas chegava á camara dos deputados o conde de Palikao com um novo projecto do conselho da regencia, do governo e de defesa nacional, redigido em harmonia com os desejos da imperatriz. Nos corredores o ministro da guerra encontrou-se com o seu collega da pasta do interior. Este tirou da carteira um telegrama e mostrou-lh'o.

-- Já esperava a noticia -- respondeu o general Montauban depois de ler o despacho. -- A republica foi proclamada em Lyão, sem que as tropas esboçassem o minimo protesto.

-- Desta vez não esperaram por Paris.

-- Não tardará que aqui lhe imitem o exemplo; os soldados abandonam as guardas e concentram-se nos quarteis.

-- Já o imitaram. Acabam de me informar que no quartel Napoleão e nas vizinhanças da Municipalidade a tropa confraternisou com o povo e todos dão vivas á republica.

No entretanto aproximam-se dos ministros alguns deputados da direita, entre elles Buffet e os seus correligionarios do centro esquerdo.

-- Que ha? -- perguntam aos dois membros do governo.

Os dois ministros relatam a missão de que veem incumbidos.

-- E inacceitavel -- replicam os deputados. -- O melhor é Buffet ir ás Tulherias apresentar á imperatriz um projecto pelo qual decline os seus

poderes no Parlamento.

-- Concordo -- declaram os dois estadistas.

Buffet mette-se numa carruagem e vôa á procura da regente. Os demais entram na sala das sessões. A camara aprecia o projecto do governo e o da deposição do imperio apresentado na vespera por Julio Favre. A discussão ribomba áspera como uma trovoada tropical. As tribunas regorgitam de revolucionarios, Julio Favre ergue-se e diz:

-- Em nome da esquerda peço urgencia para a minha proposta.

Thiers levanta-se tambem e expõe:

-- Approvo, mas no interesse que nos deve ligar, apresento outro projecto assignado por quarenta e sete deputados de varios partidos, pelo qual, attendendo ás circumstancias, a camara nomeia uma commissão de governo e defesa nacional.

Julio Favre com a sua voz vibrante, perora:

-- Os grupos nas ruas engrossam de momento para momento; não são os díscolos vulgares das arruaças; são os representantes das classes mais serias do povo: os estudantes, os burguezes, o funccionalismo, o commercio, o operariado. Os batalhões da guarda nacional formam-se nas praças; não são magotes de soldados isolados. Paris soblevou-se.

A camara fica perplexa. Os revolucionarios, que atulham as tribunas, antigos promotores da revolução de 1848, exilados do golpe de estado de 2 de dezembro, publicistas exaltados, democratas radicais, impacientam-se, descem de galgão as escadas, aglomeram-se no cães e bradam para a multidão em furia:

-- Viva a republica!

O povo repete o brado numa explosão unisona de muitos milhares de vozes:

-- Viva a republica!

A distancia, marchando da praça da concordia, avizinha-se um batalhão da guarda nacional. Os gendarmes abrem-lhes alas, a guarda municipal recua alguns passos para lhe facultar passagem. A turba enthusiasma-se, sacode-a uma rija lufada de frenesi. Investe com a grade, entra aos troços, como num assalto, pelo cães e pela praça de Borgonha, e defronta-se com um regimento de infantaria. Os soldados deixam atravessar as fileiras. A multidão invade num arranco de furor a sala das sessões da camara, e grita:

-- Viva a republica!

Gambetta accentua um gesto. Os invasores emmudecem.

-- É necessario -- exige -- que a camara promulgue a deposição do imperio e organize o governo provisorio.

O presidente Schneider quer falar. As paredes do edificio tremem com o alarido que se levanta. A invasão é como a cheia d'um rio, augmenta sempre. Schneider põe o chapéo, sae da cadeira presidencial e some-se. A confusão é medonha, dir-se-ia um terramoto.

Gambetta domina o tumulto, necessita imprimir uma formula legal a esta torrente de paixões desencadeadas, encontrar um epilogo parlamentar para este drama politico. Sobe á tribuna e affirma:

-- Declaro em nome da Camara, que Luiz Napoleão e a sua dynastia cessaram de reinar em França.

Os applausos estrugem como milhões de girandolas de foguetes. Uma voz, porém, sobresae a todas, e intíma:

-- Proclame a republica.

-- Pois sim. Viva a republica! -- grita com todas as forças dos seus pulmões Gambetta. -- Vamos proclamá-la na Municipalidade.

A turba sae de roldão, com Gambetta e Julio Favre á frente. Num instante as ruas e praças proximas do Hotel de Ville se coalham de faces congestionadas á forca de berrar, de braços erguidos, oscillantes, como outros tantos semaphoros vivos.

A pouca gente que permanece no palacio Bourbon, afim de o guardar e evitar que os representantes do povo, fieis ao imperio, voltem e restabeleçam as instituições imperiaes, cansam-se de esperar. Nenhum deputado bonapartista levou a sua dedicação partidaria a esse ponto. Só quasi á noite o deputado bretão Glais Bizoin subiu á tribuna, quando já mal se via, e declarou:

-- Na Camara Municipal foi organizado um governo de que eu sou um dos membros. Esse governo dissolveu o Parlamento. Nenhum dos meus collegas voltará aqui.

Os poucos espectadores d'este episodio, meio serio meio comico, abandonaram o edificio e Glais mandou fechar as portas.

O conde de Palikao, homem valente e sensato, commentava para um dos seus collegas:

-- É curioso! Effectuou-se a revolução sem se derramar uma gotta de sangue, sem que ninguem pretendesse reagir. É a primeira vez que tal acontece em Paris.

-- O sôpro de morte dos campos de batalha dissipou a nebrina de falsa popularidade em que se envolvia o imperio -- respondeu o interpellado.

-- E é o senhor, um ministro, quem o diz! -- exclamou pasmado o general Montauban.

Emquanto a populaça invadia a sala das sessões, reuniam-se numa sala da presidencia aproximadamente duzentos parlamentares de todos os matizes, sem excluir os republicanos. Convidaram Thiers para presidir a essa assembléa.

-- Proponho -- expoz Garnier Pagés -- que se enviem delegados á Municipalidade para ahi conferenciarem com os nossos collegas que lá funccionam.

-- Protesto! -- exclamou alguem -- seria declinar as attribuições que só a nós aqui reunidos pertencem.

-- Tambem eu protesto -- argumentou Buffet, que voltara das Tulherias, mas muito tarde para os seus planos, com alguns dos seus amigos -- mas é contra a violencia feita á camara.

-- Communico -- declarou o deputado Marte do centro esquerdo -- que a com missão se pronuncia pelo projecto de Thiers.

-- Horas antes vinha a tempo, agora o ensejo passou -- redarguiu um dos presentes.

-- Repudio a minha primeira proposta -- participou Thiers -- e adopto a da esquerda em consequência do throno se encontrar vago.

A maioria condescendeu; foi acceita a proposta de Garnier Pagés e addiada a sessão para as oito da noite. Foi Julio Gróvy o encarregado de entregar, na Municipalidade, em nome da deputação, o projecto approvado pelo grupo dos duzentos representantes. A hora citada compareceram ali Julio Favre e Julio Simon, e responderam:

-- Constituiu-se um governo provisorio presidido pelo general Trochu. Muito agradeceremos ao Parlamento se elle ratificar esta decisão, mas o que está feito é que já não póde ser derogado.

-- Os acontecimentos actuaes pertencem á Historia -- respondeu Thiers; --nenhum dos meus collegas me encarregou de declarar se os ratificavam... mas eu, pela minha parte, faço votos pelo vosso triumpho, que será o da patria.

Julio Simon lê a relação dos vogaes que ficam constituindo o governo; eram todos deputados por Paris, visto tratar-se da defesa da vasta metropole.

-- A capital dicta mais uma vez a lei á França! -- declama um dos representantes da direita.

-- Não é verdade -- retruca outro deputado -- Paris d'esta vez não se póde gabar da iniciativa do restabelecimento da republica. Precederam-na Lyão, Bordeus, Marselha, e outras cidades, que a proclamaram antes de saber o que se passava na capital.

Julio Favre e Julio Simon, membros do governo provisorio, saem da Camara. Apenas elles desapparecem Thiers, discursa:

-- O Parlamento não é obrigado, neste instante, a reconhecer o governo que nasceu das circumstancias, mas combatê-lo é uma obra antipatriotica. Cumpre que esses homens possam contar com o auxilio de todos os cidadãos perante a Allemanha. Praza a Deus ajudá-los!... Em presença do inimigo, que cedo baterá ás nossas portas, só nos resta uma coisa a fazer: retirar-nos com dignidade.

O Senado protestou, mas ninguem o attendeu. Eugenio Roulier, seu presidente, orou a lavor da conservação do imperio, mas a sua palavra foi abafada pela formidavel algazarra das galerias.

A coroa imperial, que tombara da cabeça de Napoleão III com a capitulação de Sedan, era agora sequestrada a favor da republica, proclamada pela quasi totalidade do povo francês.

III

O prologo da tragedia

Após uma lucta renhida, mas de pequena duração, a imperatriz Eugenia convenceu-se da necessidade de abandonar Paris e a França. Era um instante de inaudita amargura esse, o segundo passo na via dolorosa, tão cheia de abrolhos e tão comprida, que lhe outorgaria no futuro o tristissimo privilegio de ser uma das mães mais alanceadas na historia da maternidade. Descia a vertente opposta da montanha de grandezas, de felicidade, de gosos intimos, do duplo dominio da formosura e do poder, que exercera durante dezoito annos, e á qual subira de salto, de improviso, por um d'esses inexplicaveis caprichos do destino. Parece que duas estrellas, como nos tempos medievaes da astrologia, radicalmente antagonicas, tinham presidido ao seu nascimento. Uma predestinara-a á mais estontoante ascensão a que a vaidade do espirito feminino póde aspirar, outra condennára-a ás dores mais cruciantes que é dado ao coração materno soffrer.

A imperatriz, apenas acompanhada por uma das poucas damas que se lhe conservara fiel na adversidade, dirigira-se num simples fiacre, para não despertar suspeitas no povo amotinado, a uma das estações do caminho de ferro menos concorridas, e seguira para a Belgica. Ali juntou-se-lhe dentro de poucas horas o filho e algumas pessoas da sua comitiva, sufficientemente dedicadas para compartilharem da sua desgraça e do seu exilio.

Quem attingira, devido exclusivamente á sua belleza e ás suas virtudes, o fastigio das dignidades sociaes, ia ali fugida, isolada, quasi sem esperaças no futuro, anciosa pelo que os acontecimentos preparavam aos seus entes mais estremecidos. Não fôra, é verdade, alvo de nenhuma violencia, mas o abandono em que a deixava o povo, o exercito, os cortezãos, tantas vezes delirantes em a acclamar, não lhe doia menos que se rompessem em doestos e em ameaças.

Eugenia de Gusman, filha de D. Cipriano Portocarrero, oitavo conde de Montijo, de Miranda del Castanar, de Mora, de Baños e de Teba, duque de Peñaranda, cinco vezes grande de Hespanha e de D. Maria Manuela Kirkpatrick de Glosburg e Grevigne, senhora oriunda de uma illustre familia irlandesa, nascera em Granada ao alvorecer de 5 de Maio de 1826. Educada em França e Inglaterra, dispondo de avultados meis de fortuna, entreteve uma parte da sua juventude em viagens, e, depois de residir temporariamente em varias cidades da Europa, fixou-se definitivamente em Paris, com sua mãe, em 1851. Os seus radiantes vinte e cinco annos, a aristocracia da sua elegancia, o conjunto das suas perfeições, a que as raças inglesa e hespanhola tinham transmittido o que possuem de mais attrahente e dominador, a sua intelligencia viva e a sua alma delicada, impressionaram fundamente Napoleão III, então ainda simples presidente da republica.

Durou o idilio cerca de dois annos, pois só a 22 de janeiro de 1853, vencendo todas as razões de ordem politica e de conveniências internacionaes, que se oppunham a um consorcio com uma noiva, sem ser de sangue real, o imperador coinmunicou aos mais altos corpos do país, reunidos nas Tulherias, o seu proximo enlace com a condessa de Montijo. O apaixonado monarca defendeu com fiabilidade o projectado casamento, declarando que, provindo o imperio da democracia, se tornava necessario romper com a lenda dos pactos entre familias reinantes. Nesse discurso explicava o sobrinho do primeiro general do seculo XIX: «A senhora, alvo da minha preferencia, é de elevado nascimento. Francêsa por sympathia de educação e pela lembrança do sangue que verteu, seu pae defendendo a causa do imperio, possue como hespanhola a vantagem de não ter em França familia a quem seja preciso conceder honras e mercês. Dota-la de peregrinas qualidades de alma, será o ornamento do throno, como no dia do perigo virá a ser um dos seus mais denodados apoios. Catholica e piedosa, dirigirá ao céo as mesmas preces que eu pela felicidade da França; gentil e boa, alimento a firme esperança do que fará reviver na mesma posição as virtudes da imperatriz Josephina.»

Apesar d'este golpe vibrado em tradições seculares, não houve opposição seria. A galantaria francêsa condoeu-se do amor um tanto serodio do chefe do Estado e principalmente cedeu ante o fascinador e captivante poderio da futura soberana. Era então á mais linda mulher de Paris, e, se ainda não se assentara no throno, ha muito que reinava em todos os corações com a despotica tirannia que só a formosura exerce.

A ceremonia nupcial realizou-se a 30 de janeiro de 1853 na egreja de Notre Dame, com estonteadora magnificencia. A municipalidade votara um credito de seiscentos mil francos para offerecer á nova imperatriz uma recordação da boda. Eugenia, com a sua doce e caracteristica amabilidade, solicitou dos iniciadores de tão bizarra gentileza que a importante somma fosse destinaria a fins caritativos, e com ella se fundou um asylo de educação para meninas pobres.

A 16 de março de 1856 nascia, como atrás dissemos, o principe imperial, bafejado, como poucas creanças, por uma lufada intensa de promessas risonhas e repletas de ventura. Que espirito, por pessimista que fosse, prophetisaria, nessa dia, em que por toda a França retumbavam jubilosas salvas, alegres repiques de sinos, manifestações de regosijo de toda a especie, o fim desastoso d'esse recemnascido, fructo desejado do affecto irrefreavel do então mais invejado imperante da terra? A vinda do principe, segurança de perpetuidade para a dynastia napoleonica, desdobrava na existencia dos seus progenitores uma alfombra de rosas sempre frescas, um porvir onde ninguem ousaria divisar uma sombra. E no emtanto a tempestade amontoava-se, longinqua sim, mas pavorosa.

A vida da imperatriz era uma serie ininterrupta de festas e de triumphos. Em 1855, depois da guerra da Criméa, declarada e realizada mais por espirito de vaidade que por qualquer outro fito de ponderosa razão, visita com o marido a rainha Victoria em Inglaterra. Essa viagem é uma ovação consecutiva. Em 1860 partem os dois soberanos para a Argelia e o enthusiasmo que os sauda attinge as raias do delirio. Em 1865, com o filho nos braços, mostra-se á população de Nancy, que lhe manifesta as mais carinhosas provas de estima. Quatro annos depois, em 1869, percorre a Corsega, a terra natal do grande Napoleão, e a vehemeneia do acolhimento não lhe deixa antever a successão de acontecimentos fataes que a esperam dentro de um prazo de um curto. Nesse mesmo anno, convidada com instancia pelo khediva do Egypto, que de proposito lhe manda construir um palacio, ainda hoje de pé com toda a sua opulencia oriental, preside á inauguração do canal de Suez.

A côrte, de que era o mais fulgurante astro, quer residisse em Paris, quer em Saint-Cloud, Fontainebleau, Compiégue ou Biarritz, é o modelo e a inveja do protocollo dos monarcas mais autocraticos, ricos e escravos da etiqueta. Duas vezes exerce a regencia na ausencia do marido e attrahe a si uma enorme popularidade. A primeira, em 1859, durante a campanha de Italia; a segunda, em 1865, no interregno de uma viagem do imperador á Argelia. A terceira e ultima arranca-lhe, numa convulsão imprevista, originada pela desorganização do exercito francês e pelas victorias incessantes dos allemães, em poucos mezes, a aureola de sympathia que por largo espaço lhe circumdara a fronte.

A declaração da guerra de 1870, que muitos asseguram ter sido aconselhada por ella, como unico recurso para salvar o imperio, rasgava-lhe essa longa estrada de infortunio inundada por caudalosos diluvios de lagrimas vertidas pelos seus formosissimos olhos. A caminho da Belgica, por Maubeuge, seguiu de lá para Inglaterra, e foi viver para Camdeu Place, em Chislehurst, retiro que é hoje considerado por todas as almas que sabem sentir, seja qual fôr o seu credo politico, um venerando sanctuario do amor de mãe.

Accusam-na alguns historiadores de se arvorar em principal fautor das intrigas e processos pouco honrosos e patrioticos, que encontraram o seu centro em Metz, no quartel general do marechal Bazaine, sitiado pelos prussianos; impugnam-na de maior culpada na vergonhosa capitulação que entregou a França, indefesa e retalhada, á furia dos seus implacaveis adversarios; e, havendo realmente indiscutivel fundamento para essas accusações e impugnações, é justo metter em linha de conta como os homens e os povos buscam sempre attribuir a alguem a culpa dos seus desastres e vicissitudes.

O então rei Guilherme I da Prussia auctorisou Napoleão III a sahir de Wilhelmshoehe, onde fora internado depois de se entregar prisioneiro em Sédan. D'essa cidade partiu para junto da imperatriz, e, enfermo, physica e moralmente, velho, alquebrado, succumbiu, após melindrosa operação, a uma doença de bexiga, a 9 de janeiro de 1873. Morreu, como nascera, no exilio.

Á semelhança do tio, vira dissipados todos os seus chimericos sonhos de gloria e de ambição, e, como elle, expirara em solo de Inglaterra, nação que, quer como amiga quer como inimiga, tão fatal tem sido á sua familia.

Á imperatriz Eugenia viuva, banida, apeada do altissimo pedestal a que um capricho de fortuna a elevara, só lhe restava uma missão na existencia -- dedicar-se á educação do filho. A ella se entregou com toda a fervorosa solicitude da sua alma dolorida.

O principe Luiz Napoleão era, aos seis annos, como é costume em tantos países monarchicos, de tradições militares, cabo dos granadeiros da Guarda Imperial. Fôra nomeado seu perceptor o general Frossard que, auxiliado por uma institutriz inglêsa, cuidaram do primeiro ensino do herdeiro da dynastia napoleonica. Deram-lhe para companheiro de estudo, o filho do dr. Conneau, medico de quem já falamos e dedicado cumplice da fuga de Ham, rapaz da mesma edade. A sua instrucção litteraria e scientifica foi, como era de presumir, esmeradissima. Não lhe ficou atrás o desenvolvimento physico.

Muito novo ainda tomava parte nas caçadas na floresta de Fontainebleau, com um traje verde, agaloado a prata e a respectiva trompa. Quando um pouco mais crescido, permittiam-lhe, na epoca estival, diversas excursões pelas provincias, que elle effectuava em companhia do seu inseparavel amigo Luiz Conneau. Num d'esses passeios, em 1866, percorreu a Lorena, não suspeitando com certeza que seis annos depois essa riquissima provincia seria tão inexoravelmente extorquida á França.

Os acontecimentos precipitaram-se, o enthusiasmo pelo imperio esvaiu-se como o fumo açoutado por uma rajada borrascosa, a guerra ruiu o throno e a adversidade roubou-lhe o pae quando apenas contava dezesete annos. É claro que uma parte importante da sua educação tinha de se basear em conhecimentos militares. Matriculou-se, pois, mediante previa auctorisação do governo inglês, na Real Academia Militar de Woolwich, que fica a poucas milhas de Chiselhurst, no curso de artilharia. Ostensivamente as auctoridades britannicas, para evitar complicações diplomaticas com a França, declararam ao novel cadete, que embora completasse o seu curso, não poderia ser promovido a official do exercito da Gran-Bretanha. O principe Luiz foi tratado desde o principio como qualquer outro alumno, mas logo se evidenciou pela sua assiduidade e estudo.

Tendo entrado para a Academia a 18 de novembro de 1872, terminou as disciplinas preliminares em 1874. Nos exames finaes de 1875 para a classificação de engenharia e artilharia, obteve, sem nenhum favoritismo, mal desconhecido nas escolas inglêsas, o numero sete num curso de trinta e quatro. Foi o sexto nas cadeiras de mechanica e mathematica, o setimo em fortificação e artilharia, o primeiro em equitação, o quinto em gymnastica. O director da Academia de Woolwich, o general sir. Lintorn Simmons, no relatorio enviado ao commandante-em-chefe, duque de Cambridge escreveu: «O principe imperial, pela sua invariavel pontualidade e exactidão no cumprimento dos seus deveres, pelo seu absoluto respeito pela auctoridade e submissão á disciplina, deu um exemplo citado honrosamente pelos seus camaradas.»

A imperatriz, fatigada com a politica e desejosa de só pensar na educação do filho, confiou a direcção do partido bonapartista a Rouher, o mesmo a quem conhecemos no primeiro capitulo d'esta obra. Quando o principe Luiz concluiu o curso de artilharia, aos dezenove annos, em 1875, declararam-no maior os magnates mais em evidencia, e apto para assumir as pesadas responsabilidades de chefe dos imperialistas e eventualmente impôr-se como pretendente á coroa de França. Nessa epoca dirigiu-se á Suissa, e, em Arenenberg, recebeu a visita, cumprimentos, adhesões e protestos de fidelidade dos vultos proeminentes do bonapartismo, que principiaram logo a trabalhar com afan para o proximo advento ao throno do herdeiro de Napoleão III.

Quatro annos depois, quando o principe necessitava rodear-se de uma certa aura de notoriedade, attrahir a si a attenção da Europa e collocar-se em foco para admiração e estímulo dos seus parciaes, rebentou a guerra dos zulos, povo aguerrido e forte da colonia de Natal. O sobrinho do vencedor de Austerlitz solicitou e obteve licença para presencear essa campanha, não como fazendo parte de qualquer unidade da expedição, mas simplesmente como voluntario, addido ao quartel-general de lord Chelmsford, commandante das forças britannicas em operações.

O duque de Cambridge escreveu duas cartas de apresentação nesse sentido. Uma endereçada a lord Chelmsford e outra a sir Bartle Frère, governador do Cabo da Boa Esperança e alto commissario do gabinete de Londres na Africa do Sul.

A primeira escripta a 25 de fevereiro de 1879, dizia entro outras coisas: «O principe imperial vae assistir, por vontade propria, á campanha da Zululandia. Anceia por partir para ali e servir no nosso exercito; o governo, porém, não póde satisfazer esse desejo, mas auctorisa-me a escrever a vossa excellencia e a sir Bartle Frère, communicando-lhes que podem ser amaveis com elle e consentir-lhe que veja o que for possivel acompanhando as columnas em movimento. É um bello rapaz, cheio de espirito e de actividade, que conta muitos condiscipulos na artilharia, seus íntimos amigos. Rogo que lhe preste todos os serviços que possa. O meu unico temor a seu respeito provém da sua muita vivacidade e desejo de querer ir para a frente».

Na segunda carta exprimia-se o velho duque nos seguintes termos: «O principe imperial parte para seguir a campanha da Zululandia na qualidade de espectador. Está ancioso por servir no nosso exercito, tendo sido, como foi, alumno de Woolwich, mas o governo não sancciona tal aspiraçãò. Mas não se oppõe a que vá por conta propria, e eu tomei a liberdade de o apresentar a lord Chelmsford e a vossa excellencia afim de que lhes facultem todos os meios para realizar o seu anhelo. E um rapaz encantador, cheio de espirito e de energia, falando inglês admiravelmente; quanto mais se lida com elle mais se estima. Conta muitos amigos na artilharia, e não duvido que com o auxilio de vossa excellencia e de lord Chelmsford consiga o que pretende.»

O orgulhoso potentado dos zulos, Catchuaio, pela sua indole sanguinaria e espirito irrequieto, constituia uma ameaça perenne para o dominio, inglês no interior da colonia de Natal e um perigo constante para a paz e desenvolvimento das transacções commerciaes nos principaes centros do littoral. De começo a Inglaterra appellara para os meios suasorios para trazer ao convivio da civilização o mais poderoso regulo de todo o continente negro. Enchera de missões religiosas o seu territorio e recommendara a mais activa propaganda para estabelecer a influencia e o prestigio britannico entre esses indomitos cafres, que tinham sabido conservar a sua independencia a despeito de quaesquer desesperadas tentativas em contrario, e ainda para suavisar os instinctos selvagens e crueis da altiva raça desdenhosa pela vida alheia e propria.

A estas medidas de avassallamento disfarçado e de provindencias civilizadoras, respondeu Catchuaio expulsando os missionarios e preparando-se para uma lucta que lisonjeava as aspirações guerreiras e intrepidas do seu povo. Em 11 de dezembro de 1878 as auctoridades locaes, com o assentimento do ministro das colonias, enviaram ao rei zulo uma serie de reclamações que representavam accentuadamente um ultimatum. Reunidos quatro delegados ingleses e quatorze dos principaes chefes indigenas, marcaram os primeiros aos segundos, depois de expostas outras reivindicações, um praso de vinte dias para receber nos seus estados um representante do governo britannico, dissolver as hordas, não derramar sangue, acolher as missões e não romper hostilidades sem previa auctorisação de Inglaterra.

Catchuaio resolveu insurgir-se e arrostar com o poder formidavel da rainha dos mares, o qual, na sua ignorancia, não sabia até que ponto era esmagador.

Tomemos agora, dadas estas explicações em absoluto indispensaveis, o fio da narrativa, que, embora de uma feição altamente romantica e dramatica, não deixa por isso de observar a mais rigorosa e flagrante verdade.

IV

Caprichos do amor

-- Mas vossa alteza parte, é esta a inexoravel realidade, sejam quaes fôr os motivos com que justifique a partida.

-- Parto, sim, Maria Izabel, principalment para te poupar as inquietações que alanceiam o teu coração.

-- Para addiar umas, é o termo proprio e provocar outras que são talvez ainda mais crueis e dolorosas.

-- Só ouves a voz do teu sentido affecto e não os brados da razão convincentes e imperiosos. Um principe que usa um nome como o meu não é de si proprio, pertence á Historia. Não é senhor nem do seu destino, nem dos seus sentimentos, nem da sua vontade; o que existe de mais íntimo, de mais affectivo, de mais vibrante na sua alma, é propriedade inalienavel d'esses terriveis despotas chamados convenção e posteridade.

-- Mas é o mais duro dos servilismos, abnegar da independencia do seu espirito, consentir que lhe agrilhoem simultaneamente o coração e o cerebro.

-- É o desforço da humildade sobre o poder. Os povos dominados, as classes dirigidas, o mundo dos pequenos, a multidão dos proletarios, queixam-se do jugo que os opprime, dos privilegios que lhes tolhem a expansão, da opulencia que lhes insulta a miseria, da desigualdade que lhes amesquinha a producção, e desconhecem quantas vezes debaixo dos tectos dourados e das tapeçarias luxuosas se estorcem caracteres avidos de liberdade, sequiosos de ventura, escravos que jamais terão alforria, victimas que nunca se emanciparão da tyrannia dos que se presumem fracos e desprotegidos.

-- Cada um tem uma missão a cumprir na terra e bem longe está de mim a idéa que vossa alteza não cumpra a sua. O affecto que lhe dedico não obscurece o meu criterio, como ha pouco affirmou. Não é um ciume esteril que dicta as minhas palavras, nem um receio pueril que sugere os meus argumentos. Obrigam-no a casar com uma princesa de sangue real a quem não ama, impoem-lhe a condição de guerrear um povo a quem não odeia. Porque não segue caminho diametralmente opposto?

-- E minha mãe, o meu partido?

-- É filho unico; se ha alguem neste momento que soffra tanto como eu, ou mais ainda, concedo-lhe essa triste supremacia, é sua magestade a imperatriz. Busque uma solução que não dilacere o seu amor materno. Em logar de principiar a vida publica com as armas na mão, inicie uma existencia de paz. Seja um homem, um principe moderno, democratico.

-- Que entendes por essas palavras?

-- Foi a vontade do povo, deslumbrado pela gloria de seu tio Napoleão I, quem lhe outorgou o sceptro e a coroa, volte-se para elle, ame-o e exalte-o, converta-se em operario do imperio.

-- Que idéa tão singular!

-- Em vez de se alistar num regimento funde uma fabrica. É rico e pode crear um estabelecimento modelo. Seu pae nos ultimos annos de reinado aproximou-se dos socialistas. Translade da theoria para a pratica os principios e as aspirações dos que trabalham descoroçoados do porvir. Tente a experiencia, quem sabe se as ferramentas, as machinas, lhe proporcionarão mais depressa o throno que as espadas e os canhões.

-- És uma utopista, uma linda cabeça de rapariga exaltada. Onde bebeste tão romanticas e avançadas maximas?

Este dialogo travara-se duro e renhido no parque de Ciselhurst, entre o principe Luiz Napoleão e mademoiselle Maria Izabel Conneau. Eram cerca das onze da manhan do dia 20 de fevereiro de 1879. Por exceqção, nessa quadra de caracterisada invernia, os campos da glacial e brumosa Inglaterra aqueciam-se e como que se espreguiçavam aos raios suaves de um sol vivificante e animador. Os extensos e fôfos relvados perdiam os tons escuros e melancolicos, para readquirirem os fulgores vicejantes que convertem os prados de certas regiões numa immensa e rútila esmeralda. Os carvalhos seculares agitavam num ramalhar compassado os troncos quasi nús de folhagens e erguiam em saudação agradecida a coma pouco densa para o chamado astro-rei. Os olmeiros, os teixos, todo o arvoredo de que se orgulha o povo britannico, sentindo desentorpecer a seiva enregelada por cinco mezes de frio e de nevoeiro, expandiam-se sacudindo os fiapos da geada que lhe branqueavam as pernadas e os galhos. Os lagos impregnavam-se de tintas de anil, libertos, em parte, do arnez de neve que os couraçava. O céo, com saudades de mostrar uma nesga do seu incommensuravel manto azul, afugentava num dardejamento de luz pallida as nuvens que lhe denegriam o brilho e expulsava a teimosa nebrina que lhe corria durante semanas a fio um véo tão espesso como o de uma religiosa medieval. Até as estatuas dos jardins pareciam, estremecendo num derradeiro calafrio, apressar-se a patentear o desconforto do seu marmore ao inesperado e bemvindo calor.

Os dois interlocutores tinham-se sentado num banco de pedra, numa especie de clareira, e sós entregavam-se a um effusivo devaneio, em que as suas almas ligadas desde a infancia por muitas e intensas affinidades, amalgamadas por assim dizer num mesmo cadinho de affectos e de sentimentos, constituiam um todo indissoluvel, que nenhuma casualidade, por anormal que fosse, conseguiria, na essencia fragmentar.

Ambos contavam a mesma edade: vinte e tres annos. Luiz Napoleão era um esbelto e desempenado rapaz, de apparencia delicada, mas de compleição robusta, de movimentos rapidos, de musculos desenvolvidos e de uma destreza pouco vulgar, mesmo em Inglaterra onde tanto se cuida da educação physica. Sob um envólucro que nada apresentava de herculeo, existia um sportsman completo no sentido mais britannico da palavra. Imprimiam-se-lhe no rosto os traços mais typicos do pae e no olhar toda a doçura e ao mesmo tempo toda a energia da mãe. De fronte ampla, sobrancelhas bem arqueadas, nariz onde se

divisava um pouco as linhas aquilinas do tio, de pequeno bigode e labios sorridentes, sobresahia-lhe da expressão o que quer que fosse de magestoso e de nobre, que não excluia a sua innata graça e a sua extrema afiabilidade.

Maria Isabel Conneau não possuia a deslumbrante formosura de algumas mulheres, que nos deixam como offuscados e que se impõem mais como idolos, que nos dominam pela sua modestia gentil e pela sua attrahente lhaneza. De perfil grego, olhos rasgados, muito fundos e muito expressivos, de bocca adoravel e candida, elegante, de estatura mais alta que baixa, desprendia-se d'ella como uma forte e magnetica corrente de sympathia a que ninguem se furtava. O desenho harmonioso das suas linhas, a viveza do seu olhar, um modo especial de repregar o mento, indicavam uma intelligencia lucida secundada por pouco commum resolução.

-- Não sou nem utopista, nem exaltada -- respondeu mademoiselle Conneau num tom de meiguice que contrastava com a vivacidade das suas palavras. -- Só tenho por mira a obtenção da sua ventura, que é a da imperatriz, que é a minha. Já temos conversado largamente sobre esse assumpto pelo que me diz respeito.

-- Então não o reedites.

-- E necessario tanto por si, como por mim. Preciso convencer de todo o coração, que reage constantemente. Amo-o com os anhelos mais puros da minha alma, amo-o desde creanca, desde os primeiros dias que brincamos juntos;

amei-o quando esse sentimento representava uma aspiração vaga e mysteriosa, um fervor desconhecido e vehemente que me illuminava a existencia com relampagos estonteantes; continuo a amá-lo quando sei que não posso ser sua mulher, com a esteril e amarga convicção de que o ha de acompanhar na vida uma estranha, alheia até hoje ás suas penas e ás suas alegrias.

-- É por isso principalmente, como te affirmei, que parto d'aqui a cinco dias para Africa. Em primeiro logar preciso confirmar o baptismo de sangue que recebi em Sarrebruk. Francês e descendente do primeiro capitão d'este seculo

tenho de me submetter ás leis do atavismo, ás exigencias da politica, ás reclamações dos preconceitos sociaes, a mil outras imposições que conheces tão bem como eu; em segundo logar durante o tempo que me demorar na Zululandia não ouvirei falar na tal princeza Thyra que me destinam para consorte. Depois, quem sabe?...

-- Palliativos, esperanças que não se baseiam em nenhuma previsão séria, talvez menos preferiveis que a realidade com as suas mais brutaes e irrevogaveis determinações.

-- Não me afflijas, Maria Isabel. Josephina de Beauharnais foi coroada em Notre-Dame pelo mesmo pontifice que ungiu meu tio...

-- Para a obrigarem a divorciar-se em nome da razão de Estado.

-- ...Minha mãe não provinha de nenhuma casa reinante.

-- Essas coincidencias não se repetem tres vezes na mesma familia -- atalhou a joven de prompto. -- Não é a perspectiva de um diadema que me prooccupa e muito menos me envaideceria muitos annos já, desde que o raciocinio lucta com os nervos, que eu sacrifiquei os meus anceios mais íntimos ao amor que os despertou. Não serei sua mulher, repito. Essa sentença, gravada a fogo no indestructivel livro do destino, não tem appêllo.

-- Por favor, Maria Isabel, não prosigas...

-- Mas quero sabê-lo feliz. Não como um general coberto de louros, mas tambem de lagrimas e de imprecações das victimas que formam o sócco do seu renome. A dôr attrahe a dôr e pesa como um anathema a que ninguem foge. Os rios de sangue que inundaram os campos de batalha do primeiro e segundo imperio arrojaram seu tio para o desterro de Santa Helena e seu pae para o exilio da Gran-Bretanha.

-- Mas qual é o teu ideal, minha visionaria?

-- Que seja o imperador da paz. Em vez de matar pretos em Africa, ou brancos na Europa, que lhes dê a vida ou procure os meios de lha prolongar. Estudou até agora a maneira mais rapida de aniquilar o seu semelhante, procure de hoje para o futuro descobrir o segredo de lhe minorar os males physicos e as agonias moraes. Medico ou industrial, engenheiro ou explorador, rasgam-se-lhe no futuro campos vastissimos onde empregar a sua actividade com os applausos unanimes de todo o universo.

-- Minha cara Maria Isabel, só conheces através dos livros e do branco cristal da tua alma o mundo onde vivemos. Um pretendente ao throno, apesar de todas as conquistas da civilizarão, rodeia-se de maior resplendor empunhando um gladio de exterminio que transformando-se num apostolo da sciencia. Necessita do culto exterior, ser, para impressionar a imaginação das massas, uma especie de semi-deus e occultar na medida do possivel as suas prosaicas fraquezas de creatura quebradiça e mortal.

Mademoiselle Conneau ia para retorquir com o ardor do costume quando os dois sentiram, a pouca distancia, passadas. Calaram-se instinctivamente. Não tardou que na mesma clareira apparecesse a imperatriz Eugenia, acompanhada

por uma das suas damas e por Frederico de Santa Cruz, que leal, devotadamente, acompanhara os imperiaes banidos na sua expatriação.

O principe correu para junto de sua mãe, a quem beijou com ternura a mão. Eugenia de Gusman, fôra tão bella que as feições conservavam ainda uma boa parto dos attractivos da sua quasi divina belleza. Pouco lhe pesavam, exteriormente, os seus cincoenta e tres annos incompletos e os desgostos e as agruras dos ultimos nove.

Do todo o seu immenso imperio apenas lhe restava essa propriedade que Napoleão III comprara em terra estrangeira; a sua numerosa côrte ficara reduzida a pouco mais pessoal do que o que ali estava presente; mas não a entristecia nem o poder que abandonara no caminho para a velhice, nem as cortezanias dos palacianos que se eclipsaram com as ultimas scintillações da sua estrella, nem o fausto de que se tornara o mais rutilante adorno, nem a falta das acclamações enthusiasticas que saudavam o seu apparecimento em qualquer sitio onde surgisse. O que lhe convertia em sonda de acerados estrepes o abrupto declive d'esta phase da sua existencia era a proxima separarão do filho, a quem as exigencias do principio dynastico iam atirar ás feras, aos selvagens, aos pantanos do mysterioso continente negro.

Perdera a corôa, symbolo da realeza mas ficara-lhe a do martyrio.

A afflicta mãe fazia esforços sobrehumanos para não deixar transparecer no rosto a mágoa que lhe crucificava a alma; ostentava a inaudita coragem de afivelar uma mascara de sorrisos quando tudo no seu íntimo chorava. Depôs na testa do filho um demorado osculo e estendeu a mão que mademoiselle Conneau lhe solicitava para beijar. Não ignorava o doce affecto que unia desde muito novos os dois enternecidos seres, e esse affecto, condenmado como estava a não ter o seu natural epilogo, mais acrisolava o seu fervido carinho.

-- A gosar este bello sol -- commentou a ex-imperatriz dirigindo-se aos dois e diligenciando que lhe alvorecesse nos labios um tom jovial.

-- A manhan convida ao passeio, não é verdade, minha mãe? -- respondeu evasivamente o principe.

-- Não me posso conformar com a partida de sua alteza -- declarou francamente e com a vivacidade habitual mademoiselle Conneau -- e dizia-lho como sinto e sem que os seus argumentos em confrario me convencessem.

A veneranda senhora envolveu a joven num olhar de enternecida commiseração, e replicou:

-- Minha filha, a viagem de Luiz significa uma tão imperiosa necessidade -- e articulou estas palavras com mal disfarçado constrangimento -- que até eu me resigno a ella e a approvo.

E em seguida, como se quizesse occultar alguma lagrima mais insistente, prestes a orvalhar-lhe os cilios, tomou o braço do filho e afastou-se por uma das ruas que d'ali irradiavam.

A dama e Frederico de Santa Cruz dispunham-se a seguir Eugenia de Montijo, quando mademoiselle Conneau, tomando subitamente uma d'essas rapidas deliberações que caracterisavam o seu temperamento resoluto, disse:

-- M. de Santa Cruz podia demorar-se um instante?

O official português encarou-a um tanto surprehendido, fusilou-lhe nas pupillas um relampago de curiosidade, e retorquiu baixinho:

-- Pois não, sua majestade decerto me desculpará por um momento -- e, voltando-se para a dama que ia a seu lado, accrescentou: -- dá-lhe licença, sim?

A interpollada accedeu com uma ligeira inclinação do cabeça e proseguiu no seu caminho atrás da mãe e do filho.

Frederico de Santa Cruz era nessa epoca um homem do trinta o oito annos, com todo o vigor do uma organisação privilegiada.

Mademoiselle Conneau fitou-o demorada, perscrutadoramente, durante um segundo e depois, com voz onde se trahia uma commoção mal soffreada, perguntou:

-- É dedicado ao principe?

-- A ponto do não encontrar vocabulos para o exprimir.

-- Acompanha-o a Africa?

-- Como a sua sombra.

-- Correrão os mesmos perigos?

-- Os que não pudor tomar só para mim.

A joven calou-se, no sou espirito desencadeara-se uma violenta tempestade; os sympto- mas d'ella reflectiam-se-lhe intensamente no parecer. Depois serenou. Tudo isto fôra por assim dizer instantaneo. Como alliviada de um peso esmagador, bruscamente disse:

-- Amo o principe...

Frederico de Santa Cruz empallideceu como um enfermo a quem o medico declara ser incuravel a doença que o chumba á cama, ennevoou-se-lhe a vista num estonteamento de vertigem, mas logo reagiu e volveu com modo tranquillo, embora com uns; certos laivos de melancolia.

-- Suspeitava-o, minha senhora.

A delicadeza do official português impediu-o de declarar á joven que tal affeição não era segredo para ninguem na comitiva da imperatriz.

-- Affirmar-se-ia -- accentuou mademoiselle Conneau, após breve hesitação -- que esta confidencia o entristeceu.

-- Nem por sombras... -- acudiu Frederico purpurisando-se tanto como o calção vermelho do seu antigo uniforme, e não conseguindo encontrar remate á phrase.

-- Amo-o como tantas mulheres nas minhas circumstancias teem amado, sem esperança, mas amo-o profundamente.

Santa Cruz inclinou-se respeitosamente, mas não proferiu um som. Maria Isabel continuou:

-- Sei que é o seu melhor amigo, que nenhum pae sente mais carinho por um filho, que não ha primogenito tão devotado á felicidade de um irmão mais novo. Vou dirigir-lhe uma supplica.

-- Ordene, que lhe dou a minha palavra que cumprirei as suas determinações.

A inflexão da sua voz era sonora e marcial.

-- Não o abandone nunca; seja o seu escudo nos combates, o seu enfermeiro nas doenças, o seu consolo nos momentos de saudade e de desalento.

-- Era a missão que a mim proprio impuzera, agora duplamente sagrada pelos desejos que manifesta. Espero em Deus restituí-lo ao affecto de sua mãe e ao seu, tal como quando d'aqui sahiu...

O major emmudeceu de repente e ficou pensativo, sonhador.

-- Que idéa o assaltou... Se não sou indiscreta?...

-- Seu tio o dr. Conneau, irmão do amigo íntimo do imperador Napoleão III, não acompanha o principe na qualidade de seu medico? -- inquiriu official português.

-- Acompanha, -- assentiu a joven patenteando no rosto uma viva anciedade.

-- Porque não vae com elle?

-- Eu!

-- São innumeras as senhoras da mais alta sociedade inglêsa, que num fim extremamente humanitario, se dirigem para a Africa do Sul afim de prestar serviço nas ambulancias, nos hospitaes de sangue, em tuda a parte onde a sua presença determine um allivio para os feridos pelo inimigo, um conforto para os doentes pelo clima. Porque não lhes imita o exemplo?

-- Receio a calumnia -- respondeu mademoiselle Couneau depois de curta vacillação.

-- A quem não morde essa vibora? Despreze-a.

-- Da calumnia sempre fica alguma coisa, como diz frei Bazilio na celebre comedia de Beaumarchais.

-- Ninguem foge a ella, a propria Historia não a consegue expurgar da alvura das suas paginas.

-- Não, não vou; acompanha-o o meu coração, mas devo ficar aqui junto de sua mãe; sinto que necessita de mim para lhe mitigar até certo ponto as saudades.

-- Convenço-me e não insisto.

-- Confio no senhor, major Santa Cruz. Encarnar-se-á no seu e meu papel. Deposito em si a mais absoluta confiança.

-- Honra-me e regosija-me. Nunca adivinhou quanto sempre me empenhei em me consagrar á sua felicidade...

E calou-se de chofre como arrependido de ter dito mais do que desejava. Maria Isabel envolveu-o num desses olhares investigadores de que só os espiritos femininos possuem o segredo.

-- Continue -- incitou a joven.

-- Nada mais tenho a accrescentar... -- balbuciou o compromettido official, tremulo pela primeira vez na sua vida.

-- Desejo que não me esconda nada, é tão leal como intrepido, seja franco com uma pobre rapariga... vamos!...

-- É que a pessoa a quem designa por pobre rapariga inspira-me uma sensação que suppunha incompativel com o meu caracter: amedronta-me.

-- E ! porque?!

-- Nem eu sei, nem encontro explicação; desvarios de pesadelo torturante. Confie em mim, mademoiselle Conneau, a minha amizade pelo principe augmenta com a sua confissão. Estimá-lo-ei pelo meu affecto e pelo seu. Até logo.

-- Occulta-me então um segredo?

-- Que não a interessa nada.

-- Mas ha então realmente um segredo?... Basta, não tenho direito a que mo revele.

-- Não o deve saher.

-- Paciencia... é mais uma desillusão entre tantas.

-- Mas não vê?... gemeu Santa Cruz muito pallido.

-- Nada... a não ser um mysterio que me magoa.

-- Amo-a... ha seis longos annos, sem que nenhuma imprudencia denunciasse o meu segredo,... agora arrancado quasi á força...

-- Desventurado! -- exclamou Maria Isabel sem se mostrar muito surprehendida -- Pois não comprehende que somos dois infelizes, jungidos a um amor esteril e desesperado?!

Neste momento ouviram-se passos. A imperatriz, seu filho e a dama de honor voltaram á clareira. Mademoiselle Conneau pregou no seu interlocutor um olhar repassado de piedade, este contemplou-a como um indio fanatico contempla a imagem do divino Brahma.

V

Porfia singular

O principe embarcara para o Cabo da Boa Esperança no dia 25 de fevereiro de 1879. A despedida em Chiselhurst foi uma scena que commoveria a alma mais empedernida. Não que houvesse lagrimas em abundancia ou dramaticos lances, mas pela difficil e afflictiva comedia que os circumstantes representaram esmaltando as physionomias de contrafeitos sorrisos, quando era difficil a todos suster o pranto. O beijo final da imperatriz foi prolongado, demorou-o talvez o presagio de que seria o ultimo. Mademoiselle Conneau estendeu a mão ao principe como se devesse tornar a vê-lo d'ali a dias, mas em compensação olhou súpplice para Frederico de Santa Cruz, a evocar-lhe as promessas feitas.

O paquete que conduzia o herdeiro da epopéa napoleonica depressa se afastou das costas de Inglaterra. A tranquilla vivenda de Camden Place ainda se tomou mais erma, mais silenciosa, mais triste. O palacio erguido no meio do

parque, assemelhava-se a um lugubre mausoléo. A viagem não se notabilisou por nenhum accidente; foi curta e monotona, apenas interrompida no inicio, por algumas horas de deliciosa estação nesse jardim, como nenhum poeta oriental sonhou, da Madeira. Depois os seus olhos não se tornaram a pousar em nenhum recanto de terra.

Passou de largo por esse escolho, cálido e vulcanico, ninho de albatrozes ou refugio de titans, rochedo oude o pavor da Europa sobresaltada agrilhoara o Prometheu do seculo XIX, por essa ilha de Santa Helena, vergonha eterna dos mesquinhos adversarios do general Bonaparte, gigantesco e selvatico penhasco onde a uguia de Austerlitz e de Eylau soltou o ultimo suspiro. Quinze dias depois desembarcava em Capetown, na cidade que se desdobra como uma extensa e alva toalha de linho pelas faldas da montanha da Meza, a meia duzia de milhas do afamado cabo das Tormentas, do terrivel Adamastor, a quem os navegadores portugueses espavoriram com a sua audacia e a quem Camões eternisou com os cantos inspirados do Luziadas.

Embora o governador da colonia do Cabo e alto commissario na Africa do Sul, sir Bartle Frère, tivesse partido para Durban, o principe hospedou-se no palacio do governo e foi acolhido pela esposa d'aquelle funccionario com as provas da mais subida consideração e carinho. Pouco se demorou na antiga metropole hollandêsa, da qual a ambição, a industria e o commercio britannicos fizeram um esplendido e civilizado centro. O seu vehemente anhelo impellia-o a seguir para o theatro das operações. Não queria separar-se dos seus camaradas, attrahia-o essa tentadora sereia chamada gloria.

Decorridos tres dias, após ter navegado perto das risonhas e viridentes costas da Zululandia, avistou o aspero morro do Bluff, que ameaça esmagar com a sua massa enorme, escura e arida a alegre e prospera cidade de Durban, que, com as suas tres interminaveis ruas, ladeadas de magnificos edificios, fórma como um colossal taboleiro do jogo da bola.

A colonia de Natal, como é sabido, ficou conhecida na geographia por este nome, devido ao seu littoral ter sido descoberto por Vasco da Gama em 25 de dezembro de 1497. Durban é o porto da colonia, e os seus possuidores teem envidado o melhor dos seus esforços para que ella seja o cães do sudeste de Africa. Oppõe-se a esse desejo tal somma de obstaculos naturaes que parece certo nunca o conseguir. O principe visitou rapidamente Durban, uma praça de grande commercio e de progressiva importancia. Construida ao norte da bahia, abrange uma area importante.

Na chamada Point, um extenso cabedello, existem depositos e construcções que armazenam o necessario para o trafego e navegação. No topo da cidade, constituindo um agreste e pittoresco fundo de quadro, ergue-se a Berea, eminencia alfombrada de arvoredo e de matto verde-escuro, através do qual surgem em manchas de diversas côres lindissimas e commodas vivendas, que se debruçam sobre o povoado e descobrem o oceano até onde a vista pode alcançar.

As antigas estradas afogadas em areia foram macdamisadas, e transportes de todas as especies ligam a Point com a Berea. As ruas são espaçosas, bordadas de passeios ensombrados de arvores, a maior parto ainda sobreviventes da primitiva floresta que cobria esse logar. Entro as esplendidas edificações que embellezam Durban avultam pela sua magnificencia a camara municipal e a egreja catholica romana. A população d'esse tempo compunha-se de vinte e quatro mil almas, das quaes um quarto indigenas e outro quarto indios.

Pouco se demorou aqui o principe, seguindo logo no comboio para Pietermaritzburgo, por abreviatura chamada Maritzburgo. É a capital da colonia e consequentemente residencia das auctoridades militares e administrativas.

O presidente da Camara de Durban, Mr. Harding homem antigo e respeitado, chronica viva e erudita da historia de Natal, acompanhou o illustre viajante, a pedido d'este, no seu trajecto ferro-viario.

-- Como vossa alteza sabe -- perorava o presidente -- a Hollanda adquiriu a supremacia dos mares quando a Hespanha absorveu Portugal. Não só conseguiu emancipar-se dos seus tradicionaes inimigos em terra: os castelhanos; mas ainda estes se encarregaram de entravar os seus competidores no mar: os portuguêses. A este facto politico deveram as colonias do Cabo e do Natal o seu desenvolvimento.

-- Os portugueses nunca se importaram muito com o Cabo -- ampliou o principe -- todas as suas attenções convergiam para a India e Moçambique.

-- Assim foi -- confirmou Mr. Harding -- Em 1602, com o auxilio do governo, fundou-se em Amsterdam uma companhia intitulada Companhia hollandeza das Indias Orientaes, com o privilegio de negociar a leste do Cabo da Boa Esperança e de navegar pelo estreito de Magalhães. Concederam-lhe o direito de assignar tratados com os soberanos estrangeiros, de construir fortalezas e levantar tropas.

-- Mas já nessa época havia discussões entre os inglêses e os hollandêses por causa do dominio do territorio -- obtemperou Luiz Napoleão.

-- Não ha duvida -- redarguiu o seu interlocutor; -- em 1620, dois officiaes britannicos, Fitzherbert e Shilling tomaram posse do Cabo em nome de Inglaterra, mas ninguem os secundou na tentativa. O primeiro governador hollandês foi Jan Van Riebeek, que desembarcou ali em 1652.

-- A verdadeira colonisacão principiou com huguenotes, meus compatriotas... -- elucidou o principe.

-- Foram essas victimas da intolerancia religiosa que constituiram o primeiro nucleo serio de colonos. As anteriores tentativas pouco valeram. Simon Van der Stell, que governou o cabo de 1677 a 1699, é que solicitou dos directores da Companhia que lhe enviassem os protestantes expulsos de França. D'ahi os appellidos franceses da maioria das familias boers. Os descendentes d'estes colonos, pouco satisfeitos com certas medidas governativas, resolveram emigrar para o norte, origem dos celebres treks ou

emigrações.

-- Seguiram-se-lhe depois a serie de combates incessantes e mortiferos que ensanguentam os annaes da Africa do Sul.

-- Mas vamos á historia do Natal, a que mais aguça a curiosidade de vossa alteza. Averiguou-se que os primeiros inglêses que pizaram terras d'esta colonia foram os tripulantes do navio Johanna, naufragado em Lourenço Marques em 1683. Os indigenas trataram-nos com a maxima humanidade. No anno seguinte fundeou aqui outra embarcação, tambem britannica, que comprou marfim aos indigenas e que queria praticar o trafico da escravatura, o que não realizou por decidida repugnancia dos nativos.

-- Houve depois tres ou quatro naufragios a fio. Os marinheiros salvos d'estes desastres tornaram-se inconscientemente os propugnadores da fundação da colonia -- adduziu o principe, que lera bastante ácerca d'essa possessão.

-- O governador hollandês Van der Steel -- proseguiu Mr. Harding -- resolveu comprar aos cafres a bahia do Natal e o terreno adjacente, o que effectuou por meio de fazendas no valor de cincoenta libras, mas nunca ali se fundou nenhum estabelecimento, talvez por causa das difficuldades da barra. No emtanto a vontade dos hollandêses de se internarem pelo interior era grande; principalmente para chegarem ao celebre imperio de Monomotapa, ou dos homens das minas, afamado pela sua riqueza e alta civilização. Contavam-se maravilhas das amazonas, antropophagas, de cabello até os pés, e de tribus que domesticavam leões e os empregavam na guerra. Emfim, para não repisar o que é muito conhecido, direi que em 1812 existiam em Natal noventa e quatro tribus de cafres, que representavam aproximadamente um milhão de almas.

-- Esses cafres, ou infiéis -- interrompeu o filho da imperatriz Eugenia -- pertencentes á grande familia bantu, emigraram do norte o impelliram deante de si os hottentotes ou khoikhoin, como estes tinham anteriormente expulsado os bushmen, suppostos aborigenes d'esta região do continente negro.

-- Exacto -- concordou o presidente. -- Principia então a epopéa zula. A tribu amtétua, que vivia no coração de Zululandia, tinha por tributaria outra, de não mais de duas mil pessoas, conhecida por amazulo. O seu chefe chamava-se Senzangacona. A vida d'estes povos fôra patriarcal até o principio do seculo. Nessa epoca, por qualquer motivo envolveu-se tudo numa guerra encarniçada desde o rio Zambeze até o de S. João.

-- O que admira é viverem tanto tempo em paz.

-- O regulo dos amtétuas, Jobe, tinha dois filhos, Tana e Godonguana. O primeiro devia succeder ao pae, mas, ambiciosos os dois irmãos, combinaram assassinar o auctor dos seus dias. A conspiração foi descoberta e mortos os conjurados, com excepção de Godonguana, que fugiu, não sem ser ferido com uma azagaia. Durante quinze annos andou foragido de bosque em bosque.

-- Sempre a mesma anciã do poder supremo entre brancos e pretos!... --commentou o principe a meia voz.

-- Pelo matto espalharam-se os boatos mais fabulosos acerca de um guerreiro acompanhado de dois animaes phantasticos. Eram dois cavallos, então absolutamente desconhecidos naquellas terras. Alguem por instincto ou por encommenda aventou que era Godonguana. O mysterio que envolvera o seu desapparecimento auxiliou-o. Apresentou-se na povoação principal, mostrou uma cicatriz de arma branca que ostentava nas costas e foi acclamado regulo com o titulo de Dinguisuaio, o maravilhoso.

-- Talvez fosse o verdadeiro, talvez fosse um usurpador; ahi está um ponto difficil de aclarar.

-- Dinguisuaio trabalhara no Cabo e estudara ali a tactica européa. Apropriou-a aos seus vassallos. Organisou regimentos e creou um formidavel exercito. O seu reinado, todavia, não foi dos mais crueis. Em 1805 um filho do regulo Senzangacona, de nome Tchaca, homisiou-se e acolheu-se á protecção de Dinguisuaio. Manifestando notaveis aptidões de general, depressa se tornou o chefe militar da tríbu. Tchaca aperfeiçoou e ainda tornou mais forte a organisação da força armada do seu protector. Ninguem lhe podia resistir.

-- Como os factos se repetem! -- commentou o herdeiro do grande Napoleão com olhar sonhador.

-- O pae de Tchaca morreu em 1810 e, embora não pertencesse ao ínclito capitão cafre o succeder-lhe, proclamaram-no regulo por influencia de Dinguisuaio. A alliança entre os dois chefes manteve-se intacta e não contaram senão victorias sobre victorias. Um dia, porém, Dinguisuaio, cahiu prisioneiro, victima de uma traição. O seu vencedor, Zuide, quiz soltal-o pagando assim a generosidade que o vencido já tivera com elle, mas sua mãe Tombazi incitou-o a desfazer-se de tão perigoso inimigo. Morreu. Tchaca vingou-o, attrahiu ao seu dominio alliados e inimigos e converteu-se no mais poderoso potentado do interior de Natal. O novo soberano alliava ás suas assombrosas qualidades de soldado uma ferocidade inexcedivel. Deixou após si caudalosas torrentes de sangue. A sua lei era o terror.

-- Um Atila de pelle e alma negra -- annotou o principe.

-- Apodavam-no de homem hyena e a sua robustissima compleição valeu-lhe a alcunha de grande elephante, o que originou designar-se o kraal que habitava por um umgunhundhlovu, ou o covil do grande elephante, indicação por que hoje tambem é conhecida pelos indigenas a cidade de Maritzburgo.

-- Muito culpados foram os colonos europeus, assistindo indifferentes aos progressos d'esse temeroso chacal -- obtemperou o sensato forasteiro.

-- Foi um erro -- assentiu Mr. Harding. -- Calcula-se que durante o seu reinado destruiu trezentas tríbus e ampliou as suas fronteiras para o norte mais de quinhentas milhas. Em 1820 a devastação do interior do Natal era completa. Os nativos que não morriam de fome succumbiam á azagaia.

-- Foi um erro politico deixar engrandecer tanto a nação zula.

-- Os inglêses dominavam já no Cabo quando Tchaca se arvorou em inexoravel flagello. Pequena era a influencia britannica no sertão, quando, em 1823, o tenente Farewell, commandante do brigue Salisbury, fundeou aqui e entabolou relações commerciaes com os zulos. Enthusiasmado com os resultados voltou no anno seguinte, com auctorisação de lord Charles Somerset, acompanhado por Henry Fynn e o tenente King, além de Isaacs, Cane, Ogle, Biggar, etc. Foram esses os verdadeiros fundadores d'esta colonia. Tchaca cedeu-lhe um tracto de terreno ao longo da costa de vinte e cinco milhas de extensão, incluindo a bahia e cem milhas para o interior.

-- Parece impossivel que um guerreiro tão cioso das suas conquistas accedesse a uma concessão de tal importancia.

-- Os europeus estabeleceram-se em diversos sitios. Pouco a pouco os naturaes, fugidos ao terror inspirado por Tchaca, foram-se agrupando em redor d'elles e constituindo assim um nucleo cada vez mais numeroso e originando novas tríbus. Neste meio tempo Tchaca, que attingira o cumulo do poder e tambem o da deshumanidade, morreu azagaiado pelas costas, quando estava dando audiencia, pelos seus dois filhos Malangana e Dingana. É d'elle, nesse momento tragico, a celebre phrase: «O occaso da vida deu-me a sua ultima lição; pensam que governarão esta terra quando eu desapparecer;

não, vejo vir de além os brancos o tornarem-se os vossos senhores». Enterraram-n'o em Dukusa no mesmo sitio onde cahira.

-- É o fim de todos os déspotas -- murmurou Luiz Napoleão.

-- Dingana, successor de Tchaca, -- continuou o presidente -- era menos habil e tão crú como o pae. Descartou-se do irmão, seu cumplice e de tal modo atemorisou os seus feudatarios que as deserções proseguiram em grande massa. Comnosco vivia ora em paz ora em guerra. O tenente Farewell foi assassinado por Queto, regulo dos amacuabas, e tomou conta da direcção da recemnascida colonia, em 1835, o capitão Allen Gardner, que fundou a cidade de Durban, em homenagem ao governador do Cabo sir Benjamin Durban. Principiaram então a estabelecer-se missões no interior e a consolidar a valer a nossa influencia. Surgia no entretanto outra difficuldade...

-- A dos boers.

-- Vossa alteza o diz.

-- Os colonos hollandêses, na sua constante preoccupação de emigrar e de se emancipar do nosso dominio, atravessaram as terras dos cafres e chegaram á bahia de Natal, onde foram recebidos com tal ou qual desconfiança pelos colonos inglêses. Caçaram durante algumas semanas, retiraram-se, mas foram narrar aos seus compatriotas maravilhas do que tinham visto.

-- O trek dos boers através dos territorios do gentio significa um romance dos mais tragicos.

-- Uma verdadeira epopéa como vossa alteza a classificou ha pouco. Accommettidos pelo regulo Mosilicatse, depois de mortiferas emboscadas, derrotaram-no em Mosega. Pieter Retief, após uma travessia dramatica chegou a Durban em outubro de 1837. Decorridos dias partiu para o kraal de Dingana com seis companheiros para assentar nas suas relações com o potentado zulo. Este recebeu-o hospitaleiramente. Quando Retief lhe pediu uma concessão de terrenos, Dingana respondeu que muito o admirava tal pedido depois de terem matado gente zula e roubado gado seu. Retief declarou estar elle e os que o acompanhavam innocente de semelhante accusação, que o autor d'essas proezas devia ser Sicunhela, regulo dos matatis.

-- Era o principio da negregada traição!

-- Era. Dingana convidou astuciosamente os boers a apprehenderem esse gado e a restitui-lo para demonstrar os seus sentimentos leaes. Retief foi, serviu-se de um ardil, algemou Sicunhela o não o libertou sem que elle devolvesse os bois do Dingana. Tudo parecia favorecer as pretensões dos colonos hollandêses.

-- Como conheciam ainda pouco a traiçoeira dissimulação do herdeiro de Tchaca!...

-- Retief deliberou voltar segunda vez ao kraal de Dingana. Houve duvidas se deveria levar ou não numerosa escolta. Offereceu-se primeiro para ir só elle; mais tarde acceitou os que voluntariamente se apresentassem para tal

fim. Partiram setenta cavalleiros, com trinta criados. A sua entrada foi saudada com ruidosas festas. Dingana, por intermedio do missionario inglez Owen e do seu interprete Wood, assignou um documento pelo qual cedia a Retief e aos seus compatriotas Porto Natal bem como o territorio adjacente comprehendido entre o rio Tugela até o Umzimvubu, a oeste e o mar ao norte.

Luiz Napoleão rememorou no seu espirito a imperdoavel aleivosia feita por Talleyrand a seu tio, mas não proferiu uma palavra.

-- Decorridos dias, em começo de fevereiro de 1838, quando os boers se preparavam para regressar aos seus laagers ou acampamentos, foram todos chacinados sem mercê. Torturaram Retief em ultimo logar para assistir ao supplicio dos seus desventurados camaradas. Este morticinio determinou uma guerra sem treguas. Os boers soffreram consecutivamente duas sangrentas derrotas e os inglêses uma terceira quando se quizeram oppor á marcha das ïmpis ou columnas zulas. Os negros invadiram Natal e quando se retiraram para as suas povoações não deixaram pedra sobre pedra.

-- Que raça tão irrequieta!

-- As forças de Dingana ainda atacaram outra vez os boers, mas foram repellidos. Verteu-se tanto sangue que o rio que deslisava perto tornou-se vermelho. É essa a origem do seu nome Rio do Sangue (Blood River). A campanha continuou com reveses e triumphos para os boers.

-- Foi nesse momento que os ingleses diligenciaram reoccupar de novo Natal...

-- Foi. Sir George Napier, governador do Cabo, mandou cem soldados europeus para Durban e publicou uma proclamação em que declarava os boers subditos britannicos. Os emigrantes hollandêses protestaram com toda a energia. Mas não houve scenas de violencia. A occupação durou pouco. A força inglesa retirou e os boers julgaram-se então definitivamente senhores da terra que tinham conquistado á custa de tantas vidas dos seus.

-- Mas não succedeu assim.

-- Não succedeu -- retorquiu Mr. Harding corando um pouco. -- Os colonos não perdoaram a Dingana. Organisaram duas expedições, uma d'ellas commandada pelo proprio irmão do regulo Panda, homisiado em Natal. O triumpho foi completo, Dingana, fugiu, mas apanharam-no depois na Suazilandia, onde o atormentaram até morrer.

Neste instante sentiu-se um rude abalo e o comboio parou tão de repente quanto era possivel. Todos suppozeram que se tinha dado um choque. Recobrados os passageiros da primeira surpresa, saltaram para fora das carruagens.

-- Que foi ? -- perguntou o principe para o major Santa Cruz, o primeiro a atirar-se á linha.

-- Um grupo de negros, que se atravessou em frente da locomotiva, e que não houve meio de afastar por mais signaes que o machinista lhe fizesse.

O caso era singular, inexplicavel.

VI

Encontro de mau agouro

Num movimento muito comprehensivel de anciedade tudo correra, passageiros e empregados, para o sitio onde estacionava o grupo. O machinista descera da locomotiva e preparava-se para interpellar com dureza os indigenas que assim tinham opposto uma barreira viva á marcha do comboio, e que, se escaparam de ser esmagados, foi apenas devido á sua pouca velocidade.

Realmente, a linha ferrea de Durban a Maritzburgo, obrigada a vencer consideraveis differenças de nivel e a descrever successivas curvas e contracurvas, caminha com uma lentidão por vezes desesperadora, muito principalmente para quem está habituado ás vertiginosas carreiras dos expressos europeus e americanos.

-- Mas que foi, que aconteceu? -- inquiria em zuli o conductor do comboio, introduzindo-se no meio do ajuntamento.

Entre os carris via-se um negro estendido, novo ainda, o que parecia gravemento ferido. Debruçado sobre ello carpia uma mulher, soltando agudos gritos, nesse tom ululante e esganiçado peculiar aos nativos. Em redor cinco ou seis cafres olhavam quasi impassiveis para a scena, não se lembrando de acudir ao moribundo nem de valer á desditosa, que manifestava com tanto ruido e afflicção o seu desespero.

Todos imaginaram, a principio, que o preto fôra colhido pela locomotiva, mas essa idéa esvaiu-se de prompto ao calcular-se a distancia que medeava entre o magote dos naturaes e a machina.

-- Antes de mais nada -- propôs o major Santa Cruz -- o melhor é removerem esse homem para fora das travessas e examinarem-lhe os ferimentos.

Tudo isto decorrera com a rapidez do relampago. O ferido foi levantado e posto á sombra de uma arvore proxima. O medico do principe observou-o e logo disse:

-- É um ferimento de arma branca.

-- Uma azagaiada -- concluiram quasi todos..

-- Poucos signaes dá de vida -- commentou alguem.

-- E pouca lhe resta -- epilogou o homem de sciencia depois de proceder ás indispensaveis sondagens.

A mulher, que calara os seus lamentos, seguia com olhar angustioso as investigações do doutor e, embora não comprehendesse as suas palavras, lera-lhe na phisionomia a sentença que acabava de proferir. Deixou então escapar um queixume tão dorido que todos a fitaram com sympathia e commiseração.

-- Mas que succedeu? -- perguntou o principe emquanto o medico pensava a larga chaga aberta no peito do negro. A pergunta foi repetida em zulo a um dos indigenas.

-- Ao certo não sabemos o que occorreu, passavamos longe quando ouvimos gritos -- respondeu o interrogado. -- Lá de cima do monte vimos dois homens a luctar e uma mulher aos berros. Ao chegar aqui já esse rapaz estava no chão e ella ao pé. O outro desappareceu.

-- Alguma desordem, é vulgar entre elles -- expôs um dos presentes, -- é um caso sem importancia.

-- Se vossa alteza não mandar o contrario -- disse o empregado superior que superitendia no movimento da linha -- continuaremos a viagem para não atrazar o comboio.

-- E esse infeliz morre ahi ao desamparo? -- redarguiu Luiz Napoleão, condoido da sorte do preto e principalmente da intensa dôr que se reflectia no semblante da mãe.

-- Ha aqui alguma povoação perto? -- indagou dos negros o mesmo conductor que ha pouco falara com elles.

-- A mais proxima fica a tres milhas -- informou o menos bisonho.

-- Bem, -- retorquiu o funccionario inglês -- façam uma maca com ramos d'esta arvore e transportem para lá o ferido que se lhes dá uma boa gratificação.

O cafre abanou a cabeça patenteando invencivel repugnancia.

-- Porque não?! -- insistiu admirado o seu interlocutor europeu.

O indigena não proferiu uma palavra, mas accentuou ainda mais o gesto negativo.

-- É curioso, -- exclamou o principe -- Então essa gente tem duvida em acudir a um dos seus, porque evidentemente pertence á mesma tríbu, de mais a mais gratiticando-os?! Ahi ha qualquer mysterio.

O caso principiava a interessar a todos.

-- Qual é o motivo porque não querem levar esse homem, seu igual, onde lhe possam prestar socorros? -- interrogou zangado o interprete.

O cafre a quem era dirigida a pergunta vacillou durante segundos e depois, a custo, balbuciou:

-- É o filho da feiticeira.

-- Da feiticeira! Qual feiticeira? Não sejam estupidos; conduzam esse desgraçado á povoação. O filho não tem nada com as culpas da mãe, mesmo quando ella fosse culpada, -- redarguiu o conductor transigindo um pouco com as superstições locaes -- este grande, -- e apontava para o principe - gratifica cada um com uma libra.

A mulher, de não mais do quarenta annos, ao ouvir o apodo de feiticeira, ergueu os olhos, expressivos e magoados, e protestou.

-- Não sou feiticeira, adivinho o que ha de vir e mais nada; os ossos que consulto nunca me enganam. Bem sabia que succederia isto a meu filho; preveni-o que aquelle rival perverso o mataria por causa dos seus amores com a filha do chefe; desafiou o destino, acompanhei-o, queria receber o seu ultimo alento. Eis a razão porque estou aqui. Nunca fiz mal a ninguem.

-- Esta mulher acarreta desgraça a todos que se chegam para ella -- declarou o negro. -- Vão-se embora, deixem-n'a aqui sósinha, que nós tambem nos vamos.

O principe olhou em redor de si como consultando o que deveria fazer. Reconhecia-se na inflexão supersticiosamente energica do indigena, que nem argumentos nem dinheiro o convenceriam a elle e aos seus companheiros a prestar qualquer auxilio ao ferido. A preta conservava-se nessa apathia morbida que caracterisa as raças inferiores ante um forte abalo moral.

-- Se os da sua raça não o querem soccorrer -- disse Luiz Napoleão -- é dever nosso fazê-lo, por humanidade e para exemplo.

-- Como vossa alteza queira -- declarou o empregado superior; -- levamo-lo para o hospital de Maritzburgo.

No mesmo instante o ferido foi conduzido para o comboio, e ahi installado o mais commodamente possivel. A mãe seguiu-o conservando um mutismo absoluto. Os cafres permaneceram impassiveis na linha e sacudiam a cabeça com ar de duvida e de um vago pesar quando as carruagens proseguiram no seu caminho.

-- É supersticioso, Mr. Harding? -- perguntou o principe, a quem causara certa estranhesa a pertinaz attitude dos negros.

-- Sou, como toda a gente -- respondeu o mayor -- mas sempre luctei por me emancipar dessa fraqueza do espirito.

- Os negros em assumptos de crendices e de abusões estão ainda hoje como os brancos na epoca medieval -- commentou Luiz Napoleão, a rir. -- Sinto um certo empenho em ouvir a mulher que encontramos, a tal feiticeira.

-- Nada mais facil -- retorquiu o presidente, -- vamos á carruagem onde ella está e chama-se o mesmo interprete do ha bocado.

Dali a pouco, atravessando os passadiços que ligavam os vagons uns aos outros, achava-se em presença da preta não só o illustre viajante mas todo o seu sequito. O filho, mais tranquillo depois do penso feito, dormitava.

-- Porque te chamam feiticeira? -- inquiriu o interprete depois de varias perguntas banaes.

-- Porque herdei de meu pae o poder de ler no futuro, de attrahir a chuva e o calor.

-- E como lês.

-- Vendo a disposição tomada pelos ossinhos que trago neste saco ao pescoço.

-- E os vaticios não falham? -- objectou Mr. Harding.

-- Nunca, -- respondeu logo e com intimativa a pithonisa de pelle de ébano.

-- Não queres saber o teu porvir, Santa Cruz? -- perguntou o principe em tom prazenteiro.

-- Que me pode elle reservar? Morrer com um tiro em qualquer escaramuça, ou cheio de rheumatismo e de emplastros na cama -- redarguiu o official português com igual jovialidade.

-- Aventura-te para eu te imitar -- convidou Luiz Napoleão.

-- Obedeço a vossa alteza, mas antecipadamente lhe declaro que, embora meridional, não acredito nada em taes profecias, nem mesmo nas das bruxas pretas, que talvez tenham mais virtude que as das brancas -- disse Santa Cruz.

Neste meio tempo a negra tirara do pescoço um saquito, d'elle uma porção de pequenos ossos de diversos feitios e espalhara-os no estrado da carruagem, onde tambem se assentara. Brincou com elles, atirou-os ao ar, observava a ordem que tomavam e murmurava baixinho palavras que o proprio interprete não comprehendia.

-- Ora veja vossa alteza -- insinuou o major Santa Cruz -- esta mulher nunca viu certamente trabalhar as suas collegas da Europa, e no emtanto serve-se dos mesmos esgares, dos mesmos feitiços e naturalmente de identicas formulas cabalisticas.

-- É que a arte da evocação dos espiritos é igual em toda a parte e assenta em analogos principios -- commentou o principe, sorrindo.

-- Na ingenuidade de uns e na esperteza de outros -- ripostou o major.

-- Bem, vamos a ouvir o oraculo a teu respeito, talvez eu me tente depois -- declarou Luiz Napoleão.

-- Que desejas saber, senhor? -- perguntou a preta com o auxilio do interprete a Santa Cruz.

-- Se lês no futuro, melhor deves conhecer o passado. Qual foi o acontecimento mais importante da minha existencia?

A negra arremessou os ossinhos, quedou-se largo espaço a contemplá-los, em seguida com voz lenta, quasi solemne, recitou, como se na verdade decifrasse os caracteres emmaranhados d'um livro occulto:

-- O apparecimento de uma mulher a quem quizeste primeiro como irman e a quem desejas agora para esposa, embora saibas que o não pode ser...

Santa Cruz empallideceu subitamente, mas fez um esforço sobre si e interrompeu motejando :

-- O asserto é vago e frivolo... onde está essa mulher?

Nova consulta aos ossinhos, nova pausa e com a mesma inflexão, declamou:

-- Vejo-a num país muito frio, com muito nevoeiro, mas mais ennevoado está o seu coração. Vem em busca do sol, da unica luz que lhe dá vista aos olhos e alegria á alma. Breve a verás.

-- Bravo -- commentou o principe, para o official português, sempre gracejando -- fico sabendo que tens uma paixão, o que ignorava, e que o objectivo d'essa paixão corre atrás do seu sol, tu. Os meus parabéns.

Santa Cruz a custo esboçou um sorriso e retrucou:

-- É uma tonta, essa preta. Em vez de pensar no filho, moribundo, ou quasi, usurpa o papel das ciganas da minha terra, que valem tanto como ella.

-- Não te zangues. Lembra-te do proverbio francês: «Moins on a raison...» Descobriu o teu segredo. A culpa foi nossa e não d'ella. Fomos nós que lhe exigimos que patenteasse a sua secreta sciencia. Vou dar-te a desforra. Sujeitar-me-ei ao alvo dos seus vaticinios.

Depois dirigindo-se ao interprete, indicou-lhe:

-- Sou eu agora quem pretendo conhecer o que o destino me reserva. Que faça as suas consultas e que me desvende todos esses arcanos mysteriosos da sorte.

A negra fitou o principe com sympathia e atirou com os ossinhos. Decorrido um instante apesar da sua typica impassibilidade, estremeceu, contrahiu-se num gesto de horror e recuou como para se furtar a qualquer repulsiva visão. Todos os presentes sentiram um calafrio agitar-lhe a espinha, mau grado seu, mesmo os mais scepticos. A profetisa emmudeceu e inclinou a cabeça sobre os joelhos.

O unico que conservava a sua natural expressão de alegria descuidosa e affavel era o filho de Eugenia de Montijo, que declarou:

-- Aguardo essas palavras fatidicas que, parece, tanto assusta todos.

-- Senhor -- balbuciou a denominada feiticera -- és um dos primeiros cavalleiros do teu país, mas a tua existencia depende d'um cavallo. -- Calou-se de subito e em seguida ainda mais vagarosamente, continuou: -- Volta para a tua terra, para junto dos que choram por ti, não os faças soffrer toda a vida. Nunca deites o cavallo á sôlta...

Tornou a emmudecer e abanou a cabeça como significando que não diria mais nada, não obstante saber muito mais.

O principe soltou uma cristallina gargalhada, e commentou:

-- Se o perigo não vier por outro lado, com os cavallos me entendo eu bem. Lembras-te, Santa Cruz, do que succedeu na nossa viagem á Escocia?

Luiz Napoleão referia-se a uma proeza hippica que praticara e que obteve na época retumbante notoriedade. Em janeiro de 1878 o principe recebera convite, bem como o então principe de Galles, para passar alguns dias nas propriedades do duque de Hamilton. Num domingo todos os hospedes do rico titular escocez visitaram Merryton, onde, em Clydesdales, Mr. Drew tinha as suas famosas coudelarias. Entre os admiraveis especimens da mais pura raça, existia um animal chamado Lord Harry, que nunca fôra montado. O cavallo, deixado á solta, no parque, para que melhor o examinassem, dava upas tremendas e saltos prodigiosos. Era uma estampa de bravura e de elegancia.

-- Ninguem seria capaz de montar semelhante fera antes de ensinado -- murmurou uma das damas presentes.

Luiz Napoleão ouviu e foi-se aproximando do cavallo. Quando julgou chegado o ensejo para o seu louco intento formou um pulo e cavalgou o poltro. Sahiu de todos os peitos um grito de pasmo e de susto. O corcel enfurecia-se, arremessava-se em galões furiosos, ennovelava-se em corcovas medonhas, distendia-se em movimentos desencontrados, mas o cavalleiro, com a flexibilidade graciosa de um acrobata e com a musculatura desenvolvida de um athleta, acompanhava todas as suas reacções e defesas sem perder uma linha do seu aprumo no dorso nú do ginete. Era a esplendida reproducção de um mithologico centauro. O cavallo, arquejante, branco de espuma, com os membros a tremer, acabou por se confessar vencido. Os espectadores da scena victoriaram enthusiastamente o heroe da façanha, mas não deixaram tambem

de lhe censurar a louca imprudencia.

Era a este facto que o principe se referia quando interpellou o seu dedicado amigo, mas o major, muito impressionado cora o que ouvira á preta, respondeu:

-- A audacia é uma optima qualidade, mas...

-- Mas precisa ser temperada pela reflexão... é o que queres exprimir, meu amigo, não é verdade? -- concluiu Luiz Napoleão. -- Os vaticinios da negra ensombraram-te o bom humor, não pensemos mais nelles, que nada valem. Vamos para a nossa carruagem.

-- Se vossa alteza não se oppõe, desejava conhecer a historia desta adivinha -- obtemperou Santa Cruz.

-- Pois ouçamo-la se ella a quizer narrar -- assentiu o principe.

-- Acudiu-me a mesma idéa -- expôs Mr. Harding que assistira quasi em silencio á scena que acabamos de narrar.

O desejo foi transmittido á aruspice africana. A principio não respondeu, como a meditar no que lhe era solicitado, depois disse:

-- A minha historia é curta e de pouco interesse. Sou de raça zula. Meu pae conhecia todas as plantas que curam as feridas e as doenças e ninguem como elle sabia consultar as estrellas e os feitiços. Ensinou-me toda a sua arte. Um dia casei-me e vim habitar uma povoação perto de Pinetown, onde meu marido trabalhava no caminho de ferro. Decorridos mezes appareceu morto. Nunca se descobriu quem o matou.

-- Trás mau agouro comsigo, o demonio da bruxa! -- resmungou em inglês alguém do lado.

A preta, como se comprehendesse a observação, lançou-lhe um olhar de doce censura.

-- Aos dezasete annos, meu filho Mahatana foi trabalhar para as minas de ouro do Transvaal. Quando voltou trazia o dinheiro sufficiente para casar. Queria para mulher a filha do chefe da povoação, mas este exigia muito dinheiro para a ceder. Partiu de novo afim de ganhar o que faltava ao preço estipulado pelo pae.

-- Ha muitos paes europeus assim -- sublinhou um dos circunstantes.

-- Neste meio tempo -- proseguiu a narradora -- appareceu um induna zulo que tambem quiz a mesma rapariga. O chefe impôs-lhe iguaes condições que a meu filho, mas não possuia os meios sufficientes para as satisfazer. Votou então um odio de morte a Mahatana. Regressava hontem, e hontem mesmo o desafiou para um combate de morte. Eu adivinhara tudo. Sabia que Macusse, é o nome do assassino, o feriria á traição, como aconteceu. Vibrou-lhe a azagaia no peito antes d'elle se poder defender.

-- E Macusse? -- perguntou Santa Cruz.

-- Deve ir a caminho sa Zululandia, juntar-se aos outros guerreiros que luctam com os inglêses. Eis a historia de Amalubi, a feiticeira, a quem todos temem e odeiam ao mesmo tempo e que nunca fez mal a ninguem.

Neste momento preveniram o principe de que pouco faltava para chegar a Maritzburgo. Luiz Napoleão, commovido com a historia e as desditas da pobre mulher, deu-lhe dez libras e participou-lhe que o filho seria tratado no hospital da cidade.

-- Obrigado, senhor, obrigado -- disse-lhe a prophetisa por meio do interprete. -- Se podes, vae para o pé dos teus que te esperam com tanta anciã; se não podes, nunca te fies nos cavallos que montares, tem-nos sempre junto de ti, nunca lhes largues as redeas.

O comboio entrava na estacão e o principe, apesar de não ir revestido de nenhum caracter official, foi recebido com affectuosa distincção pelas principaes auctoridades da cidade.

VII

Um tremendo desastre

Já dissemos que Maritzburgo é a capital da colonia de Natal e foi fundada pelos boers Pieter Retief e Gert Maritz. Está situada 2.218 pés acima do nivel do mar. Abrange uma area de quarenta e quatro milhas quadradas e prolonga-se pela cumieira e vertentes da pittoresca serra que constitue a margem norte do rio Umsunduzi. O solo castanho torrado, marchetado de vivendas coroadas de telhas rubras, as suas vedações floridas, as suas arvores e os seus jardins lembram uma grande aldeia de Inglaterra.

Os principaes edificios são o palacio do governo, o do conselho legislativo, o tribunal, a municipalidade, a cathedral e o lyceu. A sua população é de cerca de vinte mil almas, sendo metade europeus e o resto indigenas, indios e outras raças. A noroeste do povoado ergue-se a Town Hill (Monte da cidade) uma das montanhas do terceiro e natural socalco que se alteia desde a costa.

Permittam-nos os leitores que, em duas palavras, completemos a conversa entre o principe e Mr. Harding acerca da historia de Natal.

Depois da victoria do régulo zulo, Panda, sobre o irmão, André Pretorius reclamou para os boers todo o territorio comprehendido desde o Umzimvuli ao Umfolusi negro e desde o Drakensberg até o mar. A colonia ia-se povoand pouco e os emigrantes hollandêses formaram a republica de Natalia, que o governo britannico se recusou terminantemente reconhecer. O gabinete de Londres foi ainda mais além. Por uma proclamacão datada de 2 de dezembro de 1841 o governador do Cabo annunciava a sua intenção de occupar militarmente o nascente estado. Em março de 1842 o capitão Smith, á frente de uma columna de duzentos e cincoenta soldados, marchou sobre Durban. Os boers protestaram baldadamente. O official inglês tentou desalojá-los de Congella, por meio de um ataque nocturno, mas foi repellido, deixando na mão do inimigo a artilharia e tendo perdido mais de metade do seu effectivo. Os emigrantes hollandêses sitiaram-no então no seu acampamento. Os invasores viam-se reduzidos á ultima miseria e prestes a render-se quando appareceram reforços na bahia, obtidos do Cabo, para onde partira por terra um mensageiro dos cercados, viagem que é um romance dos mais dramaticos.

Fundeara no porto o Southampton e o Conch com um regimento a bordo. As forças desembarcaram, após um curto recontro, e a bandeira do Reino Unido foi hasteada para não se tornar a arriar. Os boers retiraram para Maritzburgo e meses depois submetteram-se ao direito do mais forte, principiando desde logo a evacuar as terras regadas com tanto sangue e de que foram sendo despojados successiva e persistentemente.

Em dezembro de 1845, Natal tornou-se uma provincia da colonia do Cabo, sendo administrada por um governador com a auxilio de um conselho executivo, composto de cinco membros. Durante tres annos, desde 1848 a 1851, entraram na nova possessão para cima de quatro mil emigrantes europeus. Em 1856 o governo da metropole entendeu que a provincia estava devidamente sanzonada para se governar por si propria e concedeu-lhe a autonomia administrativa. Outorgou-lhe uma constituição e creou um conselho legislativo constituido por dezaseis vogaes, dos quaes doze electivos e quatro não electivos. O numero d'esses vogaes foi augmentando gradualmente. Hoje é uma colonia independente, com um ministerio seu. A metropole só nomeia o governador, que desempenha um papel identico ao do rei numa monarchia constitucional.

Os indigenas de Natal, de caracter pacifico, formavam um frisante contraste com os zulos, sempre turbulentos e bellicosos. Durante trinta e dois annos que o regulo Panda conservou o poder supremo não hostilizou os inglêses. Já não succedeu o mesmo com seu filho e herdeiro Catchuaio. Este, suppondo que o pae favorecia as ambições de seu irmão Umbulazi, atacou os seus partidarios com um importante exercito nas margens do Tugela, em dezembro de 1856, e aniquilou-os. A batalha foi sangrentissima. Panda finou-se em 1872 e Catchuaio assumiu, de direito, as funcções de chefe, como, de facto, se investira nellas havia muito tempo.

Catchuaio foi coroado em Umlambonguenha, (lago do crocodilo), povoação ao norte do Umfolusi. Houve dansas guerreiras em que tomaram parte dez mil guerreiros. A esta ceremonia assistiram mr. Theophilo Shepstone, conhecido

pelo nome cafreal de Somseu (grande caçador), que representava a suzerania britannica e o inglês John Dunn, uma especie de conselheiro privado do régulo.

O poder militar de Catchuaio augmentou de forma prodigiosa e com elle a sua insaciavel ambição. Fazia reclamações como de igual para igual á republica do Transvaal e não era mais commedido na sua linguagem e nos seus actos com os inglêses. Promettera ser humano quando foi coroado, mas tornou-se tão sanguinario como o seu antepassado Tchaca. Pouco a pouco foi-se armando, não de simples azagaias, mas de magnificas espingardas Martin Henry, as mesmas que então usava a infantaria britannica, e que lhe foram vendidas pelo commercio da Gran-Bretanha.

As incursões, as surpresas, os morticinios, tomaram tal incremento que as auctoridades de Maritzburgo viram-se constrangidas a enviar-lhe o ultimatum de que falamos num dos capitulos anteriores. A campanha contra Catchuaio podia classificar-se, no fundo, como uma guerra da civilização contra a barbarie, embora nos calculos dos estadistas londrinos entrassem outros factores de absorpção de territorio e de expansão commercial.

O principe hospedou-se no palacio do governo, onde tambem durante alguns meses esteve sir Bartle Frère, alto commissario na Africa do Sul, como já dissemos. O governador de Natal era então sir Henry Bulwer, sobrinho do eminente novelista lord Lytton, e anteriormente governador de Labuan.

O principe tivera uma demorada entrevista com o general em chefe do exercito em operações, lord Chelmsford, em Durban, e ahi ficara assente que seria addido á força de cavallaria do coronel Redvers Buller.

O inicio da campanha não fôra auspicioso para os inglêses. Todos os corpos de voluntarios montados da colonia receberam ordem para defender as fronteiras. Organizaram-se immediatamente tres regimentos de indigenas. Além d'estas unidades existiam seis mil e seiscentos homens de tropas européas, das quaes mil e quatrocentos eram montadas. Commandava a primeira colunma, na foz do Tugela, o coronel Pearson. Compunha-se ella de quatorze companhias do regimento dos Buffs e do 99, de uma companhia de engenheiros, duzentos e setenta marinheiros dos cruzadores Active e Tenedos, duzentas praças de infantaria montada e duzentos voluntarios pertencentes ao Durban, Alexandra e Stauger Mounted Rifles e aos Hussares de Natal, o que perfazia com o contingente, indigena um effectivo de quatro mil homens. Apoiava-se esta força nos dois acampamentos fortificados proximo do rio -- o forte Pearson das liandas de Natal e o forte Tenedos já em territorio zulo.

A colunma principal, commandada pelo general em chefe, acampava em Helpmakaar. Fazia parte d'ella o coronel Glyn do 24 e era constituida por quinze companhias d'esse regimento, um esquadrão de infantaria montada, cento e cincoenta cavalleiros da policia e carabineiros de Natal, da guarda fronteiriça do Buffalo e do Newcastle Mounted Rifles, além de quatro mil nativos. A terceira columna apoiava-se em Utrecht, tinha á sua frente o coronel Evelyn Wood e comprehendia os regimentos 13 e 90, bem como a cavallaria ligeira da fronteira ás ordens do coronel Buller, official que gosava do maior prestigio entre os seus camaradas e de grande renome pela sua coragem e valor.

Foi esta ultima columna a primeira que penetrou na Zululandia, atravessando o Blood River a 6 de janeiro de 1879. Acompanhavam-na quarenta boers, á testa dos quaes se encontrava Piet Uys, filho do colono do mesmo nome, morto aleivosamente por Dingana, em 1838. A marcha executou-se com a maxima cautella e sigillo. Expediram-se patrulhas em todos os sentidos, que viram alguns grupos do inimigo, mas não houve nenhum choque. A columna estacionou primeiro no monte Bemba. O régulo d 'essa circumscripção submetteu-se sem perda de tempo. A 17 de janeiro continuou o movimento de avanço para jusante do Umfolusi e de lá para Kambula, onde o coronel Wood se entrincheirou.

A columna principal, onde ia o general em chefe, atravessou o rio Buffalo no vau Rorke a 11 de janeiro. No dia immediato feriu-se a primeira escaramuça com os zulos, que debandaram sem offerecer grande resistencia. O coronel Glyn acommetteu a serra Ngutu, onde Usiraio, um dos melhores capitães do inimigo, se estabelecera. A investida pouca opposição encontrou.

Decorrida meia hora as cavernas e o gado cahiam em posse dos inglêses. Os contrarios perdiam trinta mortos e entre elles um dos filhos de Usiraio. A semana seguinte foi dispendida em tornar as estradas e as veredas transitaveis para as carretas e outros vehiculos, e organizar os serviços de transportes e abastecimentos indispensaveis á expedição. A chuva cahia a jorros e todas as vias de communicação, já de si pouco regulares, tinham-se convertido em charcos absorventes e pantanos onde as rodas se enterravam até os cubos. A 20 as avançadas do coronel Glyn encontraram a montanha de Isandhluana, distante umas dez milhas do vau Rorke. As forças abivacaram na sua base. Os adversarios pouco se mostraram. Os estorvos encontrados até ahi eram apenas os offerecidos pela natureza.

Este pouco explicavel abandono dos oriundos do país podia comparar-se á calma que precede a tempestade. A 20 o major Dartnell, com uma pequena força da policia, voluntarios e indigenas, dirigiu-se ás posições do régulo Matnhana. Na manhan seguinte enviava uma mensagem ao acampamento prevenindo que se descobriam nas vizinhanças numerosas ímpis de Catchuaio. Esta apparição era uma habilissima cilada preparada pelo inimigo, cilada em que os officiaes britannicos iam cahir com deploravel ingenuidade. Foi um erro que lhes custou caudaes de sangue.

A 22 lord Chelmsford e o coronel Glyn partiram para Isandluana com reforços, deixando um limitado numero de soldados a guardar o acampamento sob o commando do coronel Pulleine. A partida do grande troço effectuara-se antes de romper o dia, e horas depois, ás seis da manhan, os indigenas fiéis enviados como exploradores, do campo, divisaram grupos de negros hostis. Ás nove, o official que realizara esse reconhecimento communicava que os zulos estavam perto e eram numerosissimos.

Ás dez o coronel Durnford juntou-se aos seus camaradas, vindo do acampamento de Kranskop com trezentos pretos a cavallo. O destino levara-o até ahi para tornar ainda mais tragica a hecatombe que se preparava. O effectivo de que então dispunha o coronel Pulleine elevou-se a setecentos europeus e a seiscentos pretos. Ninguem se lembrou de, ao menos, cavar uma trincheira em redor do bivaque. O desacerto ainda mais se evidenciou dispersando uma parte das unidades, que se precipitaram em varias direcções com o temerario intento de suster a acommettida dos zulos.

Mandaram uma companhia do 24 para a garganta de um monte situado a meia ilha de distancia. Todas essas pequenas e dispersas fracções se viram na necessidade de retirar gradualmente ante a esmagadora superioridade numerica das hostes zulas, que atacavam com o impeto tradicional. O exercito contrario, pois era um verdadeiro exercito, agrupava-se numa grande massa ao centro, com duas alas em forma de crescente, e que, como dois gigantescos tentaculos, se dispunham a envolver, a apertar e a triturar o microscopico punhado de desventurados, alvo da furia sanguinaria e selvatica d'essas hordas da barbarie.

Não hove ninguem da banda dos inglêses que albergasse a menos esperança de salvação. Estavam todos irremediavelmente perdidos. Eram dez ou doze das melhores mangas de Catchuaio, a flor do seu elemento militar, com um effectivo de vinte e tres a vinte e qual mil homens, formando como um negro e compacto bloco de dorsos nus e lustrosos, de milhares de cabeças phantasiosamente emplumadas, ao abrigo de outras tantas rodelas mosqueadas e pintalgadas de cores extravagantes, e que exhibiam um aspecto simultaneamente magestoso, lugubre, caricato e formidavel. As mangas destinadas ao choque distinguiam-se pelas suas enormes e ondeantes plumas vermelhas.

Os defensores do acampamento concentraram-se, agglomeraram-se como se pretendessem condensar-se numa mole que resistisse ao impetuoso e irresistivel penhasco que se ia arrojar sobre elles. Esqueceram-se da formatura em quadrado, que, annos depois tantas victorias nos havia de dar a nós em lucta com guerreiros da mesma raça. O fogo da infantaria e da artilharia foi aturado, nutrido, mortffero, mas era impotente contra tão exagerado effectivo. Os zulos nem hesitavam, nem contavam os mortos. A sua excitação era homerica, a sua bravura inexcedivel. Houve fileiras que cahiram cerces como as espigas de trigo ante uma d'essas modernas machinas de segar. Os homens que tombavam eram immediatamente substituidos. Os inglêses operaram milagres de energia e de intrepidez, mas nenhum esforço humano conseguia deter aquellas gigantescas garras que se contrahiam lentamente sobre os infelizes para os dilacerar. Quando o circulo se completou retiniu pelo plano adeante um grito unico, um grito unísono sahido de vinte e quatro mil gargantas, ávidas de morticinio, de gloria, de feroz alegria, de implacavel aniquilamento, e vinte e quatro mil braços ergueram as azagaias num gesto uniforme de assassino e cruel prazer.

O medonho epilogo não se demorou. Ao combate succedeu a chacina. Cavallos e peões, brancos e pretos, zulos e inglêses, tudo redopiou num torvelinho que nenhuma penna, que nenhum pincel, é capaz de reproduzir. A infantaria succumbiu toda. Tudo foi esquartejado. Mesmo para os cavalleiros a fuga era difficilima porque o terreno apresentava-se esfuracado de dongas, covas fundas onde os animaes se enterravam e quebravam as pernas entregando ás inexoraveis azagaias e nongas quem os montava.

Foi limitadissimo o numero dos venturosos que conseguiram alcançar um braço do BufFalo, a cinco milhas de Isandluana, e atravessar para além. O sitio ficou conhecido pela designação do Vau dos fugitivos. A estrada carreteira foi occupada pelo inimigo e por ahi ninguem se salvou. Muitos dos vencidos encontraram a morte no caminho, afogados pelas ondas tumultuosas do rio ou fuzilados pelas balas certeiras dos negros.

Os tenentes Melville e Coghill do 24 diligenciaram ambos salvar as duas bandeiras do regimento, mas ambos pagaram com a vida a patriotica tentativa. Achou-se mais tarde o cadaver de Melville com a bandeira enrolada em volta do torso. Para se fazer idéa da mortandade, basta dizer-se que só quarenta brancos tiveram a inaudita felicidade de escapar á furia dos zulos. Os corpos dos coronéis Pulleine e Durnford jaziam no terreno do combate num charco de sangue.

Praticaram-se como evidenciamos, dois erros lamentaveis. Primeiro: o commandante não obtivera informações de confiança do movimento dos contrarios, e dividiu as suas forças, na ignorancia completa de um tamanho exercito proximo a cahir-lhe em cima; segundo, em vez de organizarem um laager á moda dos boers, ou na ultima extremidade defenderem-se em quadrado, receberam o choque em linha e sem a precisa cohesão entre si.

A opinião publica em Inglaterra indignou-se com este desastre. A campanha, que se iniciara desacompanhada das sympathias da metropole, attrahiu logo num arranco dolorido e cheio de brio as desvelladas attenções e energicas providencias da orgulhosa Albion. O lucto foi geral em Inglaterra e em Natal, onde muitas familias perderam bastantes dos seus membros.

Foi uma momentosa victoria para os zulos, não ha duvida. Outorgou-lhes immensa força moral, mas, em troca custava-lhe os melhores dos seus guerreiros. Os inglêses depressa cobriram as baixas enviando novos reforços. Catchuaio é que não tinha onde ir buscar recrutas que se comparassem com os veteranos mortos.

O certo, porém, é que a colonia de Natal correu o risco de soffrer uma exterminadora invasão, se não fosse a defesa heroica do vau de Rorke pelo tenente Chard e pelos seus camaradas.

VIII

O incendio

-- Que soberbo aspecto apresenta a cordilheira do Drakensberg -- commentava extasiado o principe para o major Santa Cruz e outras pessoas da sua comitiva.

-- É o famoso Kalamba dos indigenas, que vem desde o Cabo até o Transvaal com um desenvolvimento de mais de seiscentos kilometros -- ampliou o dr. Conneau. -- Corre quasi paralela ao littoral do Oceano Indico, do qual fica separado, conforme os logares, entre cento e cincoenta a trezentos kilometros. Alguns dos seus cerros attingem altitudes de mais de trez mil metros.

-- É um dos mais seguros abrigos dos indigenas, nas suas guerras entre si, e principalmente nas que lhes movem os brancos -- explicou o principe. -- Ao que li, teem-se encontrado cavernas com desenhos toscos, que representam caçadas, combates singularos, batalhas, o que se attribue a arte dos bushmen.

-- São nessas cavernas -- adduziu Santa Cruz -- que os negros se occultam, bem como o gado e os seus bens. São esconderijos inacessiveis, alguns, que não ha maneira de descobrir a não ser por denuncia de qualquer traidor que os conheça.

-- A paizagem d'esta região engrandece-se com um cunho especial de austeridade e de agreste poesia; differe radicalmente das da Europa -- proseguiu Luiz Napoleão olhando em redor de si como para gravar bem na memoria o espectaculo que se lhe desenrolava ante os olhos.

O panorama era na verdade empolgante. O principe sahira de Maritzburgo após duas semanas de demora ali. Fôra no caminho de ferro até Newcastle, pequenina cidade, a cerca de mil metros acima do nivel do mar, sobre o rio Incandu, centro iniportante para o commercio de lans e possuindo nos arrabaldes ricas minas de carvão de pedra. O seu nome, comtudo, não provém da similaridade de producção com a industrial cidade hulheira de Inglaterra. Baptisaram-na com esse nome em homenagem ao duque de Newcastle, ministro das colonias da Gran-Bretanha em 1852 e 1859. De lá o principe seguira para uma aldeia, onde existia uma farm ou fazenda do commandante Piet Uys, auxiliar dos inglêses na campanha contra os zulos, no districto de Utrecht, em territorio do Transvaal.

A viagem com commodidades terminara em Newcastle. Dali para deante forçoso era sujeitar-se aos meios de transporte que a terra proporcionava. Luiz Napoleão e os seus companheiros metteram-se no carro que transportava as malas do correio para o interior. Era uma especie de dog-cart de eixo muito largo e alto rodado. Só tinha logar para oito pessoas, incluindo o cocheiro. Leve e solido ao mesmo tempo, de uma solidez para supportar provas a que nenhum vehiculo europeu resistiria, puxavam-no tres parelhas de apparencia pouco promettedora, mas ageis e seguras como as melhores e mais apuradas do Mecklemburgo. O que era esse trajecto e como elle se fazia é uma d'estas coisas tão assombrosas que só vendo se acredita.*

*Fê-lo uma occasião quem isto escreve e poucas vezes suppôs tão proximo o seu ultimo momento.

Por estradas sem leitos, ouriçadas de penhascos, por caminhos abertos quasi a pique e onde só a custo passavam homens, por veredas que os antílopes supporiam proprias para seu uso exclusivo, lá ia o carro com uma velocidade verdadeiramente phantastica, aos solavancos formidaveis, com sobrerodas onde tudo ameaçava desconjuntar-se, balançando-se mais que um navio batido por horrenda tempestade e que os seus passageiros julgavam a cada curva ir esbarrar e desfazer-se de encontro ás fragas que atulhavam o percurso.

A começo a impressão era de pasmo, quasi dolorosa, numa acuidade de perigo imminente que nenhum esforço lograria combater ou afastar, depois á força de repetido, de latente, de prolongado, attenuava-se, enfraquecia e acabava por se encarar com a mais desdenhosa indifferença. Foi o que succedeu com os nossos viajantes, após dez minutos de desenfreada carreira, que só uma privilegiada mão de redea, cavallos de jarretes de aço e principalmente a intervenção generosa da benevola Providencia, conseguia evitar ser a ultima no trilho para a Eternidade.

Decorridos esses dez minutos conversavam tão á vontade, embora com risco de retalhar a lingua em duas, como se jornadeassem num comboio com pouca ou nenhuma trepidação.

-- Talvez vossa alteza não saiba uma novidade -- disse o dr. Conneau para o principe -- minha sobrinha, a Maria Isabel, escreveu-me participando-me que deseja vir para Natal servir como enfermeira num dos hospitaes da colonia.

-- O quê?! -- exclamaram unisonamente Luiz Napoleão e o major Santa Cruz.

-- É o que me communica nesta carta que o correio me trouxe para Newcastle momentos antes de nos mettermos no carro.

-- Mas é uma imprudencia -- commentou o principe entre satisfeito e contristado; -- minha mãe vae sentir immenso a sua falta, e depois uma menina assim sósinha...

-- Por esse lado não ha duvida; -- explicou o medico -- é grande o numero de senhoras da aristocracia britannica que entendem por dever impreterivel dedicar-se a essa missão altruista. Se insistir em realizar o seu projecto, virá excellentemente acompanhada.

Santa Cruz era todo ouvidos, e, apesar do imperio com que conseguia dominar as suas mais intimas commoções, sentia arfar-lhe o peito com singular violencia. Pensou involuntariamente no vaticinio da feiticeira negra, e, como a sua alma só offerecia guarida a sentimentos magnanimos, estremeceu de magua pelo futuro do principe.

-- Maria Luiza -- continuou o principe -- possue um espirito viril e uma força de vontade indomavel, nada a intimida nem a desalenta. Se fosse homem iria longe; não ha muitos caracteres como os d'ella.

A conversação incidiu sobre as pessoas queridas, que todos tinham deixado na Europa, até que o endemoninhado carro vencendo a distancia com incrivel e quasi fulminante rapidez, entrou na farm boer deixando á porta da casa principal da typica aldeia os seus passageiros, moidos como farinha quando sae da azenha, mas sãos e salvos da vertiginosa jornada.

A farm situada na falda de um monte, com as suas construcções rusticas, quasi primitivas, constituia um quadro attrahente, não vulgar, risonho, tranquillo e movimentado ao mesmo tempo. Em contraste com as vivendas de paredes de caniço, matope, pedra ou zinco, cobertas de colmo ou de delgadas chapas de ferro canulado, arredondavam-se as palhotas dos indigenas, inspirando a vaga ideia de um grande timbale virado para o chão. O arvoredo, escasso, mostrava, muito dispersas, uma ou outra acacia. Em compensação o capim, as estevas, o conjunto de especimens vegetaes a que é costume chamar-se matto, embebia-se dos matizes mais deliciosos e viridentes.

A chegada do principe foi um acontecimento na aldeia. Todos os boers das farms vizinhas e ainda os officiaes inglêses que acampavam proximo foram cumprimentar o filho de Napoleão III. Sobre a tarde organisou-se o indispensavel batuque de guerra, parte obrigatoria de todas as festas no interior de Africa. Ali se reuniram todos os pretos que auxiliavam as forças britannicas contra os zulos, e não era para estranhar que houvesse entre elles espias que informassem Catchuaio de todos os movimentos operados pelos seus adversarios.

O batuque estava no seu auge. Mais de tres mil negros entoavam os seus canticos de guerra, ora sonoros e vibrantes como as notas de um clarim de batalha; ora soturnos e lugubres como o cantochão da lithurgia catholica. Ao anoitecer accenderam-se numerosas fogueiras e foram destribuidas bebidas alcoolicas, a cafreaes e européas, para não deixar esfriar o enthusiasmo dos figurantes. Os pulos, os esgares, as façanhas homericas, apregoadas e cantadas em altos brados e numa volubilidade que surprehenderia o mais fluente dos nossos oradores, interessavam immensamente o principe e a sua comitiva.

-- Vamos examiná-los de mais perto -- convidou Luiz Napoleão para quem o rodeava.

Encaminharam-se todos para a massa dos indigenas. Estes apenas os viram acercar-se uniram-se como num denso e escuro enxame, bateram com as azagaias nas rodelas, ergueram-nas em seguida e soltaram um prolongado e retumbante báiête! saudação a que só os régulos mais poderosos teem direito. O principe sorriu e fez a continencia militar. Passou-os em revista e dispunha-se a regressar á casa onde se alojara, quando de subito, numa das extremidades da linha, se produziu um tumultuoso reboliço, á mistura com imprecações e com o

ruido peculiar ao choque de armas brancas. Dirigiram-se ao ponto onde o alvoroto se manifestara.

Dois negros luctavam á azagaia com um furor de odio sem mercê. Um d'elles vibrou uma terrivel pancada com a nonga na cabeça do seu antagonista, e, aproveitando o seu momentaneo estonteamento, deitou a fugir com a agilidade de um macaco para as selvas, perseguido por algumas dezenas de pretos, que berravam como possessos:

-- Um zulo! Um zulo! A morte e espião!

-- Que aconteceu? -- inquiriu o principe.

Um dos inglêses, que o acompanhava e que falava a lingua dos indigenas, repetiu a pergunta ao negro que levara a cacetada. Este, ainda um tanto atordoado, contou:

-- Senhor, é um zulo, um espião!

-- Como o conheceste?

-- Ainda ha vinte dias me quiz assassinar numa povoação perto de Pinetown. Se estou aqui com vida, devo-a a esse couce, a esse grande, que chegou hoje.

Transmittida esta resposta a Luiz Napoleão, ficou admirado, e exclamou:

-- Pois és tu quem foste levantado moribundo da linha ferrea ?

-- Eu mesmo, senhor.

-- Como te encontras aqui?

-- Curei-me no hospital e apenas me senti com forças parti para me apresentar num dos acampamentos inglêses. Quero guerrear contra os zulos, matar aquelle homem que ha pouco me escapou e...

-- É o teu rival?

-- Senhor, a terra é pequena de mais para nos conter a ambos.

-- Ainda não será d'esta vez -- commentou o principe vendo chegar os perseguidores do zulo, com gestos de desapontados, que exprimiam ter-se elle evadido apesar de todas as diligencias para o capturarem.

-- Paciencia, senhor, chegará o seu dia.

-- E tua mãe?

-- Voltou para a nossa povoação, mas recommendou-me...

-- Que te recommendou?

-- Que tentasse o impossivel para te agradecer o beneficio que nos fizeste, que andasse tão junto de ti como a cobra anda do chão, que te defendesse mesmo contra tua vontade...

-- Não será preciso tanto -- retorquiu o filho de Eugenia de Montijo ligeiramente commovido com esta prova de gratidão; -- se estás assim disposto a arvorares-te em meu anjo da guarda, tomo-te ao meu serviço.

Mahatana soltou um enthusiastico báiête!

-- Santa Cruz -- continuou o principe -- este preto fica sendo meu criado.»

O official português fez um gesto de assentimento e seguiu Luiz Napoleão, que se retirava para a sua tosca moradia.

Horas depois farm immergira num silencio de cemiterio. Tudo dormia a somno sôlto, pretos e brancos. A noite calma, mas opaca, só tinha a interromper-lhe as trevas um ou outro fugitivo clarão das fogueiras não completamente extinctas. A brisa que soprava do norte era tepida e humida, o calor, sem ser demasiado, tornava-se incommodo, saturava a atmosphera dos invisiveis e perniciosos miasmas exhalados dos pantanos, pesava sobre os pulmões e difficultava a respiração.

Santa Cruz não lograra conciliar o somno e puxando uma cadeira assentara-se á porta da menos que modesta vivenda. Rememorou a sua preterita existencia de soldado que ia agora reviver, a patria que nunca mais vizitou e que por assim dizer enjeitara. Ia agora bater-se ao lado das tropas britannicas, não por convicção ou dever, mas para acompanhar esse rapaz, que nascera no meio das grandezas e da opulencia e que de moto proprio vinha sujeitar-se ao desconforto, ás vicissitudes, ás contingencias dos acampamentos num clima doentio e numa guerra de selvagens.

Depois lembrou-se do amor que sentia por Maria Isabel Conneau, que o assaltara sem saber como, sem lhe dar tempo para se defender; como essa paixão era simultaneamente o seu deleite e o seu tormento; affecto antecipadamente condemnado e do qual não podia falar nem mesmo á pessoa de mais íntima confianca. E vinha ahi, para ficar mais perto do homem que adorava, a quem, por supremo escarneo do destino, não podia honesta, legalmente, pertencer. Era uma situação amarga e curiosa a sua. Erguia- se-lhe como rival, ante elle, e a creatura amada, o seu melhor amigo, quasi um filho pelo carinho e dedicação que lhe votava. Não havia meio de encontrar um lenitivo ás torturas que lhe esbraseavam, que lhe despedaçavam a alma. Tudo era ermo, desolado, arido, adusto em redor do seu coração. Só se lhe offerecia um refugio, o da sua consciencia. Era um sacrario immaculado, onde nunca entrara um mau pensamento. Pois nelle se acoutaria e cumpriria a sua missão até o fim, sem um desfallecimento, até que uma bala ou uma azagaia se amerceasse do seu soffrer.

A imaginação librava-se em vôos estonteantes pelos páramos da chimera quando o seu fidelissimo instincto de soldado o advertiu que se passava perto qualquer coisa de anormal. Sacudiu com esforço essa especie de torpor que o enervava, levantou-se, pegou no revólver e dispôs-se a fazer uma ronda pela aldeia. Tudo dormia, dissemos e, a não serem os ruidos caracteristicos do matto e o rancor estrepitoso de algum dorminhoco mais alcoolisado, nenhuma bulha provocava as suspeitas.

Como a farm, não era um acampamento e se encontrava distante do theatro da guerra, não havia sentinellas, nem tinham sido tomadas nenhumas das precauções usuaes em campanha. Santa Cruz, todavia, coseu-se com as sombras das casas, e, recordando-se das emboscadas do Mexico, foi deslisando sem rumor pelo capim adeante cada vez mais convencido que a sagacidade de outrora o não trahia nesse momento.

Escutou durante alguns segundos e não ouviu nada. Principiava a duvidar das suas faculdades quando sentiu como o rastejar de um reptil. Engatilhou o revólver e esperou. Novo silencio, mas o major era paciente. Pelo descampado fora ouviu-se como um longinquo piar de mocho. O rastejar accentoou-se mais. Santa Cruz quasi não respirava.

O roçagar do capim pronunciava-se na direcção da casa habitada pelo principe. De subito luziu um clarão. No primeiro momento Santa Cruz suppôs que era um tiro e ia para desfechar por seu turno, mas logo comprehendeu que era o petiscar de um fuzil na pederneira. De subito a claridade tornou-se mais intensa e alastrou. O major comprehendeu a intenção do mysterioso noctívago: lançar fogo á casa.

A tarefa não primava pela difficuldade. Áquella hora da noite, sem ninguem de esculca, com o colmo e a palha resequidos pelo calor do dia, o incendio tomaria rapido e intenso desenvolvimento. Chegara o ensejo de intervir. Apontou e disparou. Acto continuo á detonação resoou um grito e o baque de um corpo que tombara no solo. Ao mesmo tempo ergueu-se um vulto do terreno e deitou a fugir pelas estevas.

-- Ah! eram dois! -- exclamou Santa Cruz.

-- Fogo, fogo! -- bradavam de um lado os negros estremunhados.

-- Os zulos, os zulos! -- berravam do outro os brancos lançando mãos das armas e preparando-se para repellir qualquer ataque.

Luiz Napoleão despertou como os demais, vestiu-se a toda a pressa, afivelou a espada e correu para o sitio que se lhe afigurou de maior perigo.

Santa Cruz encontrou-se em dois saltos no ponto onde vira cahir o incendiario, agora illuminado pelo reverbero das chammas que se propagaram com extraordinaria velocidade. Deparou-se-lhe ali um negro contorcendo-se e perdendo muito sangue qela ferida que o projectil lhe rasgara no arcabouço.

-- Persigam o outro que fugiu -- ordenou o official português.

Em direcção do matto partiu um bando de inglêses, boers e indigenas, ao passo que outros com ramos seccos e baldes tratavam de atalhar as labaredas que promptamente se altearam. Havia o perigo de explodir a polvora que ali se encontrava armazenada e foi essa a primeira coisa a ser removida. Emfim, ao cabo de muitos esforços, extinguiram-se as linguas vermelhas do incendio com insignificante damno para a habitação, pouco ou nada soffrendo a bagagem de quem lá residia.

O ferido foi trazido para dentro de uma das casas, examinado e pensado.

-- Poucos minutos lhe restam para viver -- informou o dr. Conneau; -- se o querem interrogar não se demorem.

Aproximou-se então d'elle o commandante boer Piet Uys e perguntou-lhe:

-- Quem és tu?

-- Zulo -- respondeu o moribundo com voz fraca.

-- Porque querias lançar fogo á aldeia?

-- Para matar esse grande que chegou hoje, filho de um dos maiores regulos da terra e que vem acabar com a nossa raça.

-- Quem te instigou a esse acto? -- inquiriu ainda o mesmo commandante.

-- Macusse, o induna da confiança de Catchuaio.

-- Onde está?

-- Fugiu para o matto quando ouviu o tiro que me derribou.

-- E como veio elle até aqui?

-- Anda atrás de um seu inimigo pessoal, de um preto de Pinetown que lhe roubou a mulher com quem elle queria casar. O grande proteje esse negro e vem destruir-nos a todos, é justo que morra...

Não proferiu mais palavra, expirara.

Quando narraram o resultado do interrogatorio ao principe, sorriu e encolheu os hombros com indifferença.

-- Obrigado, Santa Cruz -- disse Luiz Napoleão para o major, -- intervieste a tempo. Succumbir a uma bala ou a uma azagaiada é o que nos espera a todos, que andamos por aqui, mas assado não tem nada de agradavel nem de glorioso.

E estreitou-o a si com effusiva ternura.

Santa Cruz, em vez de se ir deitar como todos, depois do tragico incidente, levou a passear até amanhecer. Quando os primeiros alvores da madrugada azularam e douraram o nascente, murmurou:

-- Preciso entender-me com Mahatana; esse tal Macusse é de mais neste mundo.

E encaminhou-se para a palhota onde dormia o novo serviçal do filho de Eugenia de Montijo.

IX

Espectaculo desolador

Santa Cruz e Mahatana conversaram largo tempo. O preto, com a sua longa permanencia no Transwaal e a trabalhar sob a direcção de engenheiros britannicos, comprehendia e falava razoavelmente o inglês. Do que os dois trataram saberemos no desenvolvimento d'este livro.

Na manhan immediata o principe e a sua comitiva montaram a cavallo para se apresentar ao commandante e chefes da columna em que se iam encorporar. Eram elles o brigadeiro-general sir Evelyn Wood, major-general E. Newdigate e o coronel Redvers Buller. Sir Evelyn Wood, tão proficiente e intrépido caudilho no campo de batalha como bizarrissimo fidalgo no convivio da sociedade, acolheu o principe não só com a gentil polidez de um cortezão, mas ainda com todo o enternecido affecto de um pae.

-- Uma rude campanha esta, meu general -- disse o principe depois de trocados os primeiros cumprimentos.

-- Como nenhuma das outras a que tenho assistido -- respondeu sir Evelyn. -- Aqui o inimigo dispõe do clima, do terreno, de condições que lhe são em extremo favoraveis a elle e abertamente hostis a nós, além de contar com um effectivo poderoso e constituido por gente cuja bravura é inexcedivel

-- Maior gloria ha em a vencer -- commentou o principe.

-- E havemos de vencer e breve, exige-o o pundonor da nação e do exercito e clamam por vingança a pleiade dos nossos camaradas esquartejados em Isandluana.

Noutro grupo conversava o general Newdigate, o coronel Buller e Santa Cruz. Dizia o segundo:

-- Todos supposeram inevitavel a invasão da colonia, a ponto de, além de se estabelecer uma porção de postos fortificados na fronteira, se formarem laagers em todas as terras, sem excluir a capital, Maritzburgo, onde se organizou um d'esses entrincheiramentos capaz de abrigar quatro mil pessoas, onde se taparam as janellas e abriram setteiras e onde todas as ruas foram barricadadas.

-- Foi um mau sonho que, tenho fé, não se repetirá -- objectou o major general Newdigate.

-- A defesa de Rorke Drift redimiu no ponto de vista de heroicidade qualquer erro que tivesse sido commettido. Conte-me essa brilhante pagina, meu coronel -- solicitou Santa Cruz de Redevers BuUer.

-- A quatro ou cinco milhas de distancia de Isandluana, perto do vau Rorke, existiam duas casas, uma d'ellas pertencentes ao missionario reverendo Witt. O general em chefe aproveitou-as para hospital e para deposito de mantimentos. Commandava esse posto o tenente de engenheria Merriot Chard, tendo ás suas ordens o tenente do 24 Gonville Bromhead e o official da administração militar Dalton.

-- Quantos defensores ao todo? -- interrompeu Santa Cruz.

-- Cento e quatro bons e trinta e cinco doentes. Depois de destruido o nosso acampamento em Isandluana, cerca de quatro mil zulos de Undi prepararam-se para assaltar o deposito. Ás tres da tarde appareceram ali dois cavalleiros escapos do morticinio e narraram o que aconteceu. Merriott Chard tomou immediatamente as providencias que o perigo aconselhava. Barricadou-se como pôde, levantou uma especie de trincheira com os vehiculos que possuia, com os saccos de farinha, caixas, barricas de bolacha e esperou...

-- Não se demoraram muito?

-- Alguns indigenas fiéis que ali tinham apparecido, não confiaram na segurança do entrincheiramento e desertaram. Ás quatro e meia appareceu uma avançada do quinhentos a seiscentos zulos, quando o parapeito ainda não cobria o arcabouço de um homem. Desde essa hora até a meia noite houve uma serie ininterrupta de acommettidas. A casa que servia de hospital teve de ser abandonada e foi queimada pelos assaltantes. A outra foi defendida a tiro e á baioneta. Só ás quatro da madrugada os negros retiraram deixando ficar trezentos e cincoenta dos seus estendidos no campo. Nós perdemos dezasete homens...

O major Santa Cruz lembrou-se da defesa de Duarte Pereira em Cochim, resistindo apenas com oitenta portugueses a todo o poder de Malabar, mas não alludiu a esse facto, e exclamou:

-- Foi um brilhantissimo feito de armas que todo o mundo applaudirá.

-- Olhe -- ahi tem o tenente-coronel Russell que marchou para ali com soccorros nessa mesma manhan e que lhe pode descrever a scena que presenceou.

Apresentado este novo official e instado por Buller para narrar o que vira, relatou:

-- As seis e meia, depois de uma galopada vertiginosa, vimos uma columna de fumo erguer-se do posto. «Muito tarde! É muito tarde!» bradamos todos com o coração transido por funda angustia. O espectaculo que se nos deparou naquelle alvorecer inundado de sol era horrendo. Quando presumiamos tudo perdido, divisamos por entre a fumaceira algumas figuras que gesticulavam e que agitavam uma bandeira. Assestamos os binoculos e distinguimos fardas encarnadas.

-- Comprehendo a anciedade de todos -- interrompeu Santa Cruz.

-- Atiramo-nos ao rio, atravessámo-lo a nado e galgamos para a outra margem. Os cavallos pareciam perceber a nossa impaciencia. De repente salteou-me uma duvida. Seria um ardil dos zulos? Mas não. A brisa da manhan trouxe-nos os consoladores sons dos hurrahs inglêses. A repulsa dos assaltantes realizara-se sem o nosso concurso. Os cadaveres eram aos montes em redor das duas casas.

Neste momento o general Wood aproximou-se com o principe do grupo onde estava Santa Cruz, e disse:

-- Chegam a tempo para assistir a uma ceremonia que os deve interessar.

-- Qual, meu general? -- perguntou o filho de Eugenia de Montijo.

-- A restituição da bandeira do 24 ao seu regimento.

-- Foi encontrada?

-- Junto dos cadaveres do tenente Coghill e ajudante Melville e trazida para aqui em triumpho. Vamos montar a cavallo, que as forças já estão em parada.

Dez minutos depois, formada na esplanada do forte de Helpmakaar a guarnição, aproxidamente uns oitocentos homens, appareceu o brigadeiro-general sir Evelyn Wood com o seu estado-maior. Algumas das unidades ali reunidas apresentavam um aspecto curioso. Tendo perdido parte dos uniformes em Isandluana, pois os negros roubaram tudo quanta encontraram nas bagagens reunidas no acampamento, só possuiam o que vestiam nesse momento, e, em quanto não recebessem novos fardamentos de Inglaterra, eram obrigadas a trajar o que encontravam. Mas se a parte decorativa das fardas não primava pelo brilhantismo, a firmeza, o ar marcial de cada soldado, a seriedade, a compuncção que se lia no rosto de todos, era de molde a commover o ente mais impassivel.

Feita a respectiva continencia a sir Evelyn, o major Black, commandante do segundo batalhão do 21, empunhou a recuperada bandeira, desfraldou-a, e disse:

-- Soldados: Aqui tendes de novo o symbolo da patria que serviu de gloriosa mortilha ao tenente Melville. Contemplou ella um terrivel e sangrento desastre para as nossas armas; a Inglaterra confia em vós que ella vos guiará a victorias tão retumbantes que façam esquecer esse triste passado. É agora duplamente sagrada para nós e reclama de nós toda a nossa dedicação e sacrificio.

Entregou-a em seguida ao novo porta-bandeira. Depois com voz clara e vibrante, commandou:

-- Apresentar, armas!

Poucos eram os olhos que se tinham conservado enxutos e os do principe bem mostravam a íntima commoção que o agitava. Por facil e natural associação de idéas lembrou-se da bandeira do seu país, da que lhe formara o risonho docel do seu berço de recemnascido, da que guiara intrépida os exercitos da França contra o inimigo commum, da que ainda hoje, apesar da queda do imperio, era a mais alta glorificação do grande Napoleão I, d'esse bocado de seda tricolor á sombra do qual se escreveu a mais assombrosa epopéa dos tempos modernos. E a par da bandeira apparecia-lhe o rosto simultaneamente doce e angustiado de sua mãe, da pobre e afflicta senhora que de longe o cobria com as suas mais sacrosantas e effusivas bençãos.

-- Meu general -- solicitou o principe, decorrido algum tempo -- informaram-me que se está organisando uma columna para ir reconhecer o campo de batalha de Isandluana, desejava fazer parte d'ella.

-- Commanda-a o general Marshall, vou-lhe transmittir esse pedido. Creio que acquiescerá ao desejo de vossa alteza.

O pedido de Luiz Napoleão foi deferido immediatamente. A colunma que ia proceder a esse reconhecimento compunha-se do 17 de lanceiros, de um esquadrão de dragões da Guarda, de duas peças, de cinco companhias de infantaria, voluntarios de Natal, indigenas, etc.

-- Vae vossa alteza observar a guerra pelo seu lado horroroso -- disse-lhe Santa Cruz -- minutos antes de desembocarem no lugubre sitio -- O periodo do combate, o estrondear da artilharia e da fuzilaria, o carregar dos esquadrões, tudo quanto enleva um soldado e accende na alma o mais estonteante enthusiasmo viu-o em Sarrebruk. Presentemente o que se lhe depara é o silencio da morte, o cemiterio dos que nunca obtem sepultura, os resultados da ferocidade nas suas consequencias mais asquerosas.

Principiava agora a desenhar-se no azul diaphano do firmamento uma montanha, ou antes um rochedo, isolado e quasi inacessivel. O seu contorno, naquella aurora de tonalidades deliciosas, imitava o perfil de um leão deitado. Na falda da gigantesca fraga, á direita, surgia a linha indecisa das carretas abandonadas e meio destruidas. Exploradas as vizinhanças não se encontraram nenhuns zulos.

Avultava no instante a linha de retirada em direcção do Vau dos Fugitivos, um penhasco abrupto de um lado com um barranco, um precipicio, na sua base. Neste barranco não jaziam cadaveres, branqueavam ossos, apenas cobertos por epidermes descoloridas e com um ou outro bocado de carne putrefacta ainda pegada a elles. Alguns d'esses restos estavam quasi completamente desmembrados e formavam montes de detrictos viscosos e amarellos. Nas poucas physionomias que se conservavam intactas, as feições tinham ennegrecido e a barba tornara-se alvejante pela acção da chuva e do sol. A maior parte dos ventres deixavam sahir os intestinos. As cabeças de muitos apresentavam-se escalpeladas e o resto dos corpos patenteavam vestigios das mais atrozes mutilações. As roupas resistiram mais e cobriam ainda aqui e ali estes vestigios humanos, occultando os esqueletos á voracidade das aves de rapina.

O principe, apesar de toda a sua força de vontade, empallideceu. Fez, porém, um grande esforço sobre si, e pediu ao official português:

-- Vamos até o principal sitio do combate.

Santa Cruz esteve para o dissuadir de tal intento, mas depois raciocinou que era bom ver tudo e conhecer tudo, e accedeu, retorquindo:

-- Como vossa alteza queira.

A maioria dos cadaveres que ali estavam pertenciam ao 24 de infantaria. Eram, para nos servirmos de uma expressão significativa, como uma longa corda cheia de nós; cada nó achava-se representado por um cadaver. Nalguns si ti os havia cachos de corpos immoveis e trucidados. Reconhecia-se que eram grupos formados para tentarem uma defesa desesperada.

-- Olha que horrenda scena! -- exclamou Luiz Napoleão.

-- E terrível, na verdade, -- assentiu Santa Cruz.

Arrancara estes dois commentarios o seguinte episodio: Uma peça de pequeno calibre cahira numa cova. Enchiam-na até acima os cavallos que a puxavam, retalhados por milhares de azagaiadas, enredados nos arreios e nas posturas mais extravagantes. Um pouco mais além topava-se com um carro da ambulancia, voltado, com as mulas esquartejadas da mesma forma, e em redor uma porção de soldados, doentes ou feridos talvez, que luctaram num supremo esforço sem ter nenhuma probalidade de salvar a vida.

-- Vossa alteza quer ir mais para deante? -- perguntou Santa Cruz, a quem esses hediondos transes começavam a repugnar.

-- Até o fim, meu caro major. Preciso saturar-me d'estas scenas. Constituem uma profundissima lição.

Os dois continuaram por aquelle trilho de cadaveres, dispersos pela herva, entalados nos pedregulhos. Cada um cahira de modo differente e embora os semblantes se patenteassem agora inexpressivos, sentia-se o horror que devia ter abalado todos esses pobres seres. De quando em quando abria-se uma clareira vasia de corpos, mas depois o quadro decuplicava de horror.

-- O que me atormenta -- desabafou por fim Santa Cruz -- é que este campo de batalha não se parece com nenhum outro que eu tenha visitado. Não se vê sangue, nem se ouvem gemidos, nem ha nenhuma d'essas manifestações que se seguem immediatamente a uma peleja renhida. As carnes não palpitam, predomina uma rigidez que me obriga a pensar em phantasmas, em almas do outro mundo, em quantas superstições nos apoquentam na infancia.

-- Nunca se apartará da minha memoria -- adduziu o principe -- o que observo. Este singular mutismo no meio da solidão da natureza apavora-me. O capim cresceu em redor das carretas, o sangue, os musculos de tantos homens valentes serviram de adubo a esta feracissima vegetação.

A triste romagem proseguiu. Aqui jazia um negro cravado ao chão pela baioneta que lhe penetrara pela bocca; além um europeu mostrava o arcabouço esfuracado por sete azagaiadas; muitos apertavam tão nervosamente, com tão herculea força, as armas de encontro ao peito, que os zulos não tinham conseguido arrancar-lhas.

De um dos grupos que precediam a pesquisas, alguém bradou:

-- Aqui está o corpo do coronel Durnford.

-- Como o conheceram? -- interrogou o principe acercando-se de um ajuntamento, no centro do qual se via um cadaver ainda com restos de uniforme e com um comprido bigode pendido sobre o rosto.

-- Pelos anneis -- explicou o capitão Shepstone, que privara muito com o extincto militar -- e por este canivete que tem o seu nome.

-- São reliquias dignas de conservar-se -- disse o principe para o general Marshall.

-- Irão para um muzeu, como tudo quanto for encontrado, merecedor de perpetuidade, neste campo da desolação -- respondeu o chefe britannico.

Durnford parecia ter sido o centro de um prédo gigantesco. Em redor d'elle empilhavam-se os cadaveres. A seus pés estendia-se um preto ainda com a rodela embraçada. Em redor, uma duzia de homens, quasi todos carabineiros de Natal, conservavam as azagaias que os tinham matado apertadas entre as costellas, a descoberto. Acolá distinguia-se perfeitamente o derradeiro quadrado formado pelas tropas já dispersas e cortadas pelo inimigo. Os restos d'esses infelizes, derribados um a um, delineavam quasi geometricamente a sua derradeira formatura. Era bem o quadrado da morte, do qual não escapou ninguém para narrar a inaudita agonia d'aquelle medonho duello, em que todos os contendores de um lado estavam irremediavelmente condemnados aos mais ultrajantes supplicios. Por cima de tão miseraveis sobejos, que mezes antes eram homens cheios de vigor, de alegria, de esperanças e de aspirações, pairava um desagradavel cheiro a podridão, a carnificina, a sangue que se volatilisara e que impregnava a atmosphera de um fluido especial que os pulmões se recusavam a absorver.

Em contraste com estes indicios de uma parcella da humanidade aniquilada, resaltavam os destroços das coisas materiaes, evidenciava-se que furia de rapina presidira á pilhagem, causa determinante, inevitavel, anciosamente esperada, do morticinio. Espalhadas, numa confusão terrivel, viam-se malas abertas, arrombadas, esfaqueadas por todas as bandas, cartas de familia, photographias de entes queridos, fragmentos de jornaes, livros com manchas de sangue, garrafas em cacos, saccos de farinha meio despejados, forjas de campanha que se preparavam para o trabalho. Bebidas, espingardas e munições tinham desapparecido todas; apenas se encontravam alguns sabres e poucas azagaias. A constituir como os bastidores deste macabro scenario, subiam no azul as densas e escuras nuvens de fumo das aldeias zulas que a columna incendiara no seu trajecto.

Neste instante avizinhou-se de Marshall um official de cavallaria, e communicou-lhe:

-- Meu general, aproxima-se d'aqui uma carreta com a cruz vermelha das ambulancias, que não veio comnosco.

-- Uma carreta da ambulancia?! É que talvez se enganasse no caminho para Helpmakaar. Vamos ver o que é.

E virando o cavallo, galopou, seguido do seu estado-maior, em direcção de um vehiculo, que ostentava a bandeira da convenção de Genebra, e que, puxada por tres parelhas de mulas, rodava celere pelo desolado campo.

Em poucos minutos se encontrou a officialidade junto do inesperado carro. Dentro divisavam-se tres damas, duas das quaes com o traje usado pelas irmans hospitaleiras e a terceira vestida com modestia, mas mundanamente.

Do grupo do estado-maior sahiram, proferidas pelo principe e por Santa Cruz, duas expressões de igual inflexo:

-- Maria Isabel!

-- Mademoiselle Conneau!

Maria Isabel Conneau, porque era ella, ergueu-se vivamente do assento e estendeu a mão para Luiz Napoleão, tornando-se muito corada. Em seguida fez o mesmo cumprimento ao official português.

-- Tu!... Mademoiselle Conneau aqui! -- emendou o principe ruborisando-se por sua vez. Como está minha mãe?

-- O melhor possivel, se exceptuarmos as suas fundas saudades por vossa alteza.

-- Conhecem-se?! -- indicou o general Marshall saudando as recemvindas.

Luiz Napoleão procedeu ás respectivas apresentações.

Sôror Maria dos Anjos e Sôror Dulce, das relações de sua magestade a imperatriz em Chiselhurst e minhas companheiras de viagem -- annunciou Maria Isabel dirigindo-se a Marshall.

-- Mas como vieram parar a Isandluana? -- inquiriu Luiz Napoleão, ao mesmo tempo que cumprimentava as duas religiosas.

-- Chegamos esta manhan a Helpmakaar.

Tinhamos todas tres solicitado a honra de ali utilisarem o nosso prestimo. Informou meu tio, o dr. Conneau, a quem se dignou dispensar de o acompanhar, que vossa alteza fazia parte d'esta expedição. Levavam-nos poucas horas de avanço. Como era preciso iniciar a nossa missão de qualquer maneira, principiamos por aqui.

O principe abanou a cabeça melancolicamente como significando que a escolha não fôra feliz.

O general Marshall comprehendeu que o seu illustre subordinado desejaria conversar em particular com quem convivia tão de perto com sua mãe, e disse:

-- Nós vamos continuar o nosso triste dever, fique vossa alteza neste sitio; não necessitamos agora do auxilio d'essas tres devotadas senhoras; acho até conveniente que não vão mais além.

E afastou-se a galope com os seus officiaes.

Santa Cruz preparava-se para seguir os seus camaradas inglêses quando mademoiselle Conneau o deteve:

-- As noticias que trago tambem o interessam, senhor de Santa Cruz. Sua magestade a imperatri^ encarregou-me de, em seu nome, o cumprimentar, e agradecer-lhe a sua inexcedivel dedicação pelo principe.

-- Sua magestade confunde-me mais uma vez endereçando-me louvores pelo que não pratiquei.

-- Ainda ha pouco me salvou de um braseiro, de que não sei se escaparia com vida sem a sua intervenção.

E narrou o succedido na farm boer. Maria Isabel envolveu o major num olhar de infinito reconhecimento, e exclamou:

-- Deus o abençoará.

-- Maria Luiza -- disse-lhe Luiz Napoleão baixinho -- vou dar ordem aos guias da carreta para voltarem para Helpmakaar. Commetteste uma grande imprudencia. A columna não se demora a marchar para ali. Vou requisitar uma escolta para tua guarda.

-- Iremos eu e as duas irmans quando vossa alteza fôr.

-- Este infernal espectaculo é demasiado horrendo mesmo para quem possue uma alma superior como a tua.

-- É uma arena de martyrio como a dos antigos coliseus de Roma. Com a differença que ali as victimas succumbiam pelo triumpho de uma crença de amor e de perdão, e aqui...

-- Sacrificaram-se por um ideal tão levantado como esse, pela victoria da civilização sobre a barbarie -- retorquiu o principe.

-- Não, desculpe-me vossa alteza -- contradictou Maria Isabel, -- ha um abysmo entre as carnes dilaceradas pelas garras das feras de Nero e esses peitos varados pelas azagaias dos negros. O holocausto é, physicamente, o mesmo, concordo, mas no ponto de vista moral, é inferior.

-- Em quê?

-- A guerra não civiliza, embrutece; não avança, recua; a metralha dos canhões e o relampejar das espadas não valem os preceitos de Jesus nem são evangelhos que catechisem os espiritos.

-- Sempre a mesma utopista.

-- Serei. Lembre-se vossa alteza de quanto sangue foi ahi derramado e que de caudaes de lagrimas elle originou. Attestam-no essas cartas, essas photographias, esses mil nadas, que os negros desprezaram por supporem sem valor e que symbolisam o protesto mais eloquente contra a guerra, o protesto das mães, das esposas, das irmans, de todas as mulheres emfim...

Anoitecia. Enterrados os cadaveres o mais fundo e em maior numero que pôde ser, a columna recolheu a Helpmakaar. A carreta das tres novas irmans hospitaleiras precedia-a.

X

A cavalgada da morte

Se o coração do principe exultou com a chegada de Maria Isabel, se a alma de Santa Cruz sentiu as mais arrebatadoras alegrias e os mais cruciantes soffrimentos, ambos eram concordes era deplorar essa heroica resolução, que collocava a intrépida menina e as suas duas companheiras á mercê das contingencias de uma guerra excepcionalmente feroz e accidentada dos perigos mais terriveis.

-- Maria Isabel -- argumentava o principe, nessa noite, no melhor alojamento que se pudera arranjar no forte de Helpmakaar e que o general bizarramente offerecera ás tres senhoras -- comprehendo o teu sacrificio e a tua abnegação, enche-me de jubilo e de orgulho pelo sentimento que o dictou, mas o teu logar é em qualquer dos hospitaes das cidades da colonia, não aqui. Não existem neste entrincheiramento as mais rudimentares commodidades, por assim dizer, não se dorme em continuos alertas com as multiplicadas investidas do inimigo, numa palavra não ó sitio onde vivam mulheres.

-- Aqui soffre-se, não é verdade? Logo é aqui o meu posto.

E por mais razões que o principe generosamente accumulasse, obtinha sempre a mesma resposta, Maria Isabel rematava a discussão com a invariavel affirmativa:

-- Somos as irmans de todos vós, de inglêses, de francêses, de boers, de portugueses, sem excluir os proprios zulos. Representamos a humanidade no meio da selvageria d'esta lucta sem treguas. O nosso papel é mitigar as dores dos que padecem de corpo e de espirito. Se a nossa tarefa não fosse espinhosa, onde estava o merito de a desempenhar?

-- És um anjo, Maria Isabel, na acepção mais sublime do termo. O céu te recompensará pelo bem que o representas na terra.

Maria Isabel evitava o mais possivel conversar com o principe sem ser em presença de Santa Cruz. A sua delicadeza de sentimentos impunha-lhe essa condição. O official português, que assistia a este dialogo, accrescentou ao que Luiz Napoleão perorara:

-- Pois seja a nossa irman. Ao lado da bandeira que todos temos agora por obrigação defender, adejará a sua imagem que todos veneraremos com o mais acrisolado respeito e affecto.

Os dois, apesar dos esforços de Maria Isabel em contrario, beijaram-lhe enternecidamente as mãos e retiraram-se.

De Inglaterra e das colonias affluiam numerosos reforços para a Zululandia. Como ainda não desembarcara o sufficiente numero de tropas para começar a quadra das operações activas, as forças britannicas mantinham-se, pela imperiosa lei da necessidade, num quasi estado de defensiva. Os negros hostis, inebriados com as consequencias da mortifera cilada de Isandluana, ameaçavam exterminar ou expulsar tudo quanto fosse inglês.

O prestigio de lord Chelmsford, general-em-chefe, doera-se do tremendo golpe que lhe vibrara a carnificina de tantos dos seus camaradas. Lord Chelmsford, Frederico Augusto Thesieger, contava nessa epoca cincoenta e dois annos. Servira no cerco de Sebastopol na guerra da Criméa, na revolta dos sypaios o fizera parte da expedição á Abyssinia. Quando voltou da India foi promovido a brigadeiro-general e nomeado commandante da primeira brigada de infantaria estacionada em Aldershott. Em 25 de fevereiro de 1878 assumiu a direcção superior das forças britannicas da Africa do Sul.

A titulo de que o exercito reunido da Zululandia exigia á sua frente official de mais elevada graduação, o ministerio da guerra escolheu para esse commando o tenente-general sir Garnet Wolseley, chefe de grande celebridade e com um brilhante passado na sua carreira militar. Lord Chelmsford, apenas soube d'esta nomeação, quiz resgatar o erro de Isandluana com uma acção retumbante e ordenou que as hostilidades recomeçassem com a maxima actividade.

De Londres fôra recommendado confidencialmente ao commandante-em-chefe que evitasse o mais possível, sem constrangimento vexatorio, a presença do principe em locaes arriscados. Mas este, como se adivinhara tal recommendação, offerecia-se para as commissões mais perigosas e procurava as conjunturas onde a morte ceifava maior numero de vidas. Era muito difficil conciliar as instrucções vindas de Inglaterra com o caracter brioso, impetuosamente bravo de um rapaz de vinte e tres annos, que não tinha na familia uma unica mácula de covardia, e na qual, pelo contrario, a intrepidez era lendaria.

Na manhan seguinte ao dialogo reproduzido no principio d'este capitulo, sir Evelyn Wood recebia um mensageiro, que, coberto de pó e com todos os signaes de ter feito uma trabalhosa e apressada jornada, lhe relatava:

-- Partimos de Derby para Luneburg com um extenso comboio de carretas. Commandava-o o capitão Moriarty, que tinha ás suas ordens uma companhia do regimento 80...

-- Bem sei, continue -- disse sir Evelyn.

-- A marcha correu sem novidade até nos aproximarmos do rio Intombi. Quando metade do comboio já atravessara para a outra margem, fomos atacados de surpresa pelo régulo Umbeline com a sua gente.

-- Era muita?

-- Immensa. Uma nuvem de mosquitos negros, ou antes uma revoada de gafanhotos como esses que cobrem o sol e destroem uma seara de bastantes milhas de extensão em minutos.

-- Houve muitos mortos da nossa parte?

-- Quarenta e quatro e outros tantos feridos. Poucos ficamos de pé. O que não se pôde salvar do comboio foi destruido. As perdas dos zulos devem ter sido graves porque não nos perseguiram quando retiramos.

-- Estou informado. Vá descansar que bem precisa -- insinuou sir Evelyn com a sua usual amabilidade.

Logo que o official, emissario da importante mensagem se afastou, sir Evelyn mandou chamar o coronel Redevers Buller. Este, num instante foi informado do que succedera e terminado o relato, exclamou:

-- Torna-se necessario dar uma boa lição a Umbeline e desembaraçarmos a nossa frente.

-- É tambem a minha opinião. Lembro-me que a sua cavallaria poderia cahir inopinadamente sobre a montanha Hlobane, onde Umbeline se acouta e aniquilar tudo quanto encontre.

-- Quando queira estamos todos promptos.

-- Vou mudar o nosso acampamento para Kambula, para ficar mais perto do sitio que vae atacar.

-- Concordo plenamente.

Buller despediu-se e minutos depois sir Evelyn encontrava-se com o principe e communicava-lhe:

-- Desejava confiar uma missão a vossa alteza.

-- Ao seu dispor, meu general.

-- Tenciono mudar o nosso acampamento para Kambula; preciso que alguem reconheça o terreno. Quer encarregar-se d'esse trabalho, que não está isento de maus encontros?

-- De bons encontros, permitia o general que rectifique -- retorquiu Luiz Napoleão alvorotado de contentamento.

-- Escolha um terreno facilmente defensavel, onde caibam as forças que aqui estão e ainda mais algumas com que seremos reforçados.

-- Quando devemos marchar?

-- Hoje mesmo, sendo possivel -- respondeu sir Evelyn; -- leve vossa alteza comsigo a escolta que entender.

-- Para passar despercebido, irão apenas commigo meia duzia de soldados e um sargento habituado a este genero de serviços -- expôs o principe.

-- Vossa alteza tem carta branca. O major Santa Cruz não o acompanha?

-- Como não me demorarei mais de dois dias, prefiro desempenhar-me d'esta incumbencia sósinho.

-- Desconfie sempre dos zulos, que são extremamente traiçoeiros, como sabe.

-- Tomarei as precauções indispensaveis não só para que não me acommettam, mas até para que não me vejam.

-- Até á vista, meu caro principe -- disse sir Evelyn estendendo-lhe a mão -- é hoje o inicio da campanha para si. Nestes serviços do estado maior a prudencia reflectida substitue com vantagem o denodo exaltado. Perdôe-me o conselho que a experiencia me tem facultado mais de uma vez.

-- Até á vista, meu general; serei astuto como uma raposa, precavido como um ladrão e tão circumspecto como o homem mais valente do universo.

O principe sahiu com o sorriso nos labios e com ruidosa alegria no coração. Mal suppunha que acabava de cahir numa innocente e generosa armadilha. Sir Evelyn convidara-o a cumprir o encargo que os leitores conhecem, não indemnede riscos, na verdade, mas muito menos ouriçado de perigos que o raid* commettido á cavallaria do coronel Redvers Buller, na qual o principe estava encorporado.

* Palavra hollandêsa que significa expedição, incursão. Corresponde exactamente ao nosso antigo fossado medieval.

O major Santa Cruz ficou desesperado por Luiz Napoleão lhe prohibir terminantemente que o acompanhasse. Maria Isabel tambem apresentou diversas objecções, mas o tom deliberado do principe não admittia mais pertinaz insistencia. Logo que elle transpôs as obras exteriores do fortim, seguido pelos anhelos affectuosos de excellente jornada, pois todos o estremeciam pela sua affabilidade e inteireza de caracter, começaram os preparativos para a incursão de Buller. Foi então que Maria Isabel e o official português comprehenderam o bizarro estratagema de sir Evelyn e lho agradeceram do fundo de alma.

Santa Cruz procurou immediatamente Buller e rogou-lhe:

-- Meu coronel, espero que me dê a honra de o acompanhar.

-- Com mil vontades, meu caro major -- respondeu-lhe o intrépido official britannico -- uma espada como a sua vale por um esquadrão. Apresenta-se-lhe agora occasião de matar as saudades da China e do Mexico. Não somos muitos e o inimigo é dos mais rudes e aguerridos.

Antes de romper o dia immediato encontravam-se a cavallo os quatrocentos homens de Buller, e promptos a galopar sobre Hlobane, d'onde bastantes não deviam voltar.

-- Vá com Deus, senhor de Santa Cruz -- dissera-lhe mademoiselle Conneau quando o major se despedira d'ella. -- Poupe-se, não por si, pois não se importaria com tal recommendação, mas por causa do principe. Lembre-se da sua promessa!

-- Poupar-me-ei, tranquillise-se -- redarguira-lhe Santa Cruz. -- Nem esquecerei os meus deveres de soldado, nem os meus compromissos de amigo. A santa senhora que está em Inglaterra velará por todos. Deus não quererá torturar ainda mais aquelle dolorido coração de mãe.

O official português, ao pronunciar estas palavras, recordou-se do lugubre vaticinio da feiticeira negra e estremeceu, mau grado seu.

Pouco depois a cavalgada derribava o capim e fazia tremer o solo debaixo das ferraduras dos corceis. Foi uma desenfreada carreira até a base da montanha. Buller dividiu os seus homens em dois troços e ordenou que a ascensão se operasse com a maior rapidez possivel. Infelizmente o sigillo com que a manobra se devia effectuar mallogrou-se. Os negros estavam de sobreaviso, mas as duas columnas realizaram á sua juncção no topo do monte perdendo apenas alguns homens.

-- Agora é arrazar tudo -- ordenou Buller.

A povoação principal de Umbeline, investida com furioso ímpeto e mortos ou afugentados quantos zulos lá se encontravam em estado de combater, depressa se converteu numa colossal fogueira. O inimigo pouco ou nada deixara de valor; apenas algumas mulheres velhas que foram tratadas com a maior humanidade.

Precisamos trazer outra vez para o primeiro plano o preto Mahatana. Quando soube qual era o objectivo do raid, apresentou-se a Santa Cruz offerecendo-se para guia.

-- Conheces bem o caminho? -- inquiriu Buller, a quem o português apresentou o indigena.

-- Sei qual é a direcção e o meu odio me orientará.

-- Não é o sufficiente.

-- Não tens por onde escolher, todos os negros estão nas minhas circumstancias.

Buller indagou se haveria algum indigena que estivesse ao facto da topographia de Hlobane e convenceu-se que os conhecimentos dos outros orçavam pelos do offerente. Apartou meia duzia dos que presumiu mais habeis e destemidos e concedeu-lhes para chefe Mahatana, de quem Santa Cruz narrou a dramatica historia.

O certo é que o improvisado guia deu provas da mais aguda sagacidade. Intelligente, perspicaz, o rancor apurava-lhe as faculdades. Do troço á frente do qual se puzera, na subida para o cerro de Hlobane, poucos homens succumbiram. Indicou-lhes o meio de caminharem da forma menos exposta, cobrindo-se a si e á montada. Em seguida á tomada da povoação e em quanto as labaredas se erguiam sinistras para o céu, emmolduradas por escuros e compactos rolos de fumo, Mahatana sacudia a cabeça agitado e corria de um para outro lado interrogando inquieto o horizonte e o terreno que circumdava a montanha.

-- Que tens tu? Que andas a fazer? -- perguntou-lhe Santa Cruz.

-- Senhor, os zulos cederam muito depressa. Receio qualquer emboscada.

-- Donde póde vir? Se vier, aqui nos encontrará.

-- Talvez interrogando as velhas que ficaram.

-- Não respondem nada.

-- Ha meio de as obrigar a falar.

-- Torturando-as?

-- Em se lhes queimando os dedos a fogo lento, verás como revelam toda a verdade -- declarou Mahatana mostrando a fiada completa dos seus alvissimos dentes num sorriso de rancorosa ferocidade.

-- Não, não, isso não!

-- Então, senhor, como a povoação daqui a pouco ficará reduzida a cinzas, como os seus defensores estão mortos ou fugiram, aconselha ao commandante que ordene a retirada. O sol já desce a caminho de casa...

-- Algum motivo poderoso te inspira essas palavras...

-- Uma instinctiva desconfiança que por ora não tem nada em que se baseie, mas que sahirá certa, senhor...

-- E qual é essa desconfiança?

-- Que os zulos retiraram tão depressa para que nós descansassemos e nos pudessem colher de surpreza como em Isandula, ou em Isandluana como os brancos lhe chamam.

-- Que diz esse preto? -- perguntou o commandante boer Piet Uys, que se encorporara na columna com o filho.

Santa Cruz informou-o das suspeitas de Mahatana. O boer abanou durante um momento a cabeça, e murmurou:

-- Talvez tenha razão.

Neste mesmo instante os clarins entoavam com as suas notas claras e marciaes o signal de montar a cavallo.

-- Não é sem tempo -- resmoneou Piet Uys.

-- Senhor, senhor -- bradou Mahatana com os olhos muito fitos num ponto e apontando com o dedo hirto.

-- Que é? -- exclamou Santa Cruz zangado, suppondo que o guia se entregava a terrores sem fundamento.

-- Além! -- accrescentou Piet Uys -- Os zulos que nos cercam.

Já todos os cavalleiros estavam montados e só faltava a voz de «marche!»

-- O commandante manda recommendar a maior prudencia e sangue frio -- disse o tenente-coronel Weatherley percorrendo as fileiras a meio galope.

De cima, na esplanada da montanha, gosava-se um espectaculo simultaneamente terrivel e magestoso. Uma ímpi zula, um exercito de vinte mil negros, que caminhara occulto com a herva alta, com o arvoredo, ao abrigo de tudo que pudesse servir para o esconder, mostrava-se agora com toda a sua fera e orgulhosa grandeza. As mangas, tão perfeitamente alinhadas como o mais disciplinado batalhão europeu, destacavam os seus mil e quinhentos dorsos nús, luzidios, herculeos, no verde intenso do capim. A proporção agora ainda era mais favoravel aos guerreiros de Catchuaio do que em Isandluana. Era tal a sua certeza no triumpho que avançavam quasi lentamente. Não tinham porque se apressar naquella carnificina segura e relativamente facil.

-- A galope! -- commandou Redvers Buller, com voz de estentor, erguendo o robusto tronco sobre os estribos.

-- A galope! -- repetiram os commandantes das fracções para os seus subordinados.

Se a ascensão da montanha fôra trabalhosa, a sua descida não o era menos. As fragas, os rochedos, os pedregulhos de toda a especie e tamanho, ouriçavam o percurso de tal somma de enormes obstaculos e de estorvos quasi insuperaveis que a destruição se afigurou total, mesmo aos mais optimistas.

O inimigo, convencendo-se que não apanhara os inglêses descuidados, rompeu, em parte, a sua formatura compacta, e, como uma infinda legião de endemoninhados gorilhas, arrojou-se á escala furioso e agil, desfechando descargas sobre descargas com as suas rapidas e aperfeiçoadas carabinas Martini-Henry e arremessando aglomeradas nuvens de azagaias. Num instante foi completamente rodeada a montanha e tomadas todas as sahidas. Os mais bravos empallideceram, despediram-se da vida, promettendo vingá-la bem antes de lha arrancarem.

No momento mais crítico da medonha conjuntura, Mahatana avizinhou-se do official português e disse-lhe:

-- Senhor, descobri um carreiro por onde nos podemos escapar.

Santa Cruz participou sem detença o que o guia lhe communicara. Num segundo foi reconhecida a vereda. Era um apertadissimo trilho, juncado de calhaus soltos, occulto por altas penhas que o ladeavam de uma e outra banda á guisa de naturaes parapeitos. Offerecia, porém, um inconveniente: quasi não se podia passar a cavallo por elle.

A necessidade faz lei.

A investida dos zulos deteve-se por algum tempo. O repentino desapparecimento dos inglêses, que pareciam ter-se subvertido pelo chão abaixo, desnorteou-os. Atroaram os ares com um alarido ensurdecedor, barafustando, gesticulando e espallmndo-se em todas as direcções. Não levaram muito tempo a encontrar a chave do enigma. Quando conheceram por onde os inglêses se sumiam, soltaram estridentes urros de impotente furor. A natureza do terreno, onde agora se ia ferir o combate, neutralisava até certo ponto a superioridade numerica dos assaltantes. Os seus chefes mais experimentados nas guerras, determinavam em altos berros:

-- Matem primeiro os cavallos e depois os homens!

A indicação era absolutamente racional e pratica. A salvação da compromettida columna britannica dependia da velocidade das montadas. Quem ficasse a pé era assassinado, porque os selvagens não aprisionavam ninguem. Ai! de aquelle que fosse conduzido ainda vivo para qualquer povoação. Esperavam-no ali os supplicios mais deprimentes e afflictivos.

Os corceis principiaram a cahir varados pelas balas e crivados de azagaiadas.

-- A galope, rapazes, a galope! -- ordenavam os officiaes.

Mas os cavallos tropeçavam a cada passo, escorregavam como se o solo fosse de vidro, iam-se abaixo das mãos, relinchavam de dôr, nitriam, corçovavam-se, escouceavam como atacados de repentina insania e muitos tombavam para o lado convertidos numa massa inerte, esmagando debaixo de si o cavalleiro, se este não era sufficientemente leve para saltar e esquivar-se ao temivel desabamento.

E grande o numero de homens apeados -- participou Santa Cruz a Buller, que se multiplicava, indo desde a frente á cauda da columna com um zelo, sangue frio e coragem inexcediveis. -- Os negros ainda estão longe, mas se nós nos distanciamos, trucidarão todos.

-- Ah! isso não!

E Buller voltou o cavallo e encaminhou-se á desfilada para a retaguarda. Santa Cruz comprehendeu-lhe o intuito e seguiu-o na mesma rapida carreira.

Os dois, primeiro, e d'ali a pouco todos os officiaes, formaram com o seu corpo uma especie de muralha defensiva para permittir ás praças sacudidas dos selins tornarem a montar. O numero d'estas era limitado. As demais não o podiam fazer. Os cavallos estavam mortos.

Houve então um d'esses rasgos de heroismo e de pundonorosa camaradagem que não são vulgares. Todas as unidades, todos os soldados, pararam e offereceram as garupas dos corceis aos que se encontravam em pé, para montarem. Só Redvers Buller á sua parte salvou assim de uma chacina inevitavel seis dos seus subordinados.

No mais acalorado d'esta estupenda peleja, o commandante boer Piet Uys, não vendo o filho, perguntou:

-- Onde está o meu rapaz?

Ninguem lhe soube responder.

Então, impávido, com os dentes cerrados, de Winchester engatilliada, como se fôra a personificação da bravura fria, a encarnação do desprezo pela existencia, a estatua viva do amor paterno, voltou o cavallo e lançou-se no meio dos zulos. O filho batia-se como um desesperado no torvellinho dos negros. Piet Uys abriu caminho até elle. Ahi apeou-se e obrigou-o a montar.

-- E o pae? -- inquiriu o mancebo.

-- Salto para a garupa.

Quando o viu a cavallo, arrumou uma furiosa chicotada no animal que partiu a galope, atropelando quem se lhe atravessava na frente, ao passo que o commandante com os oito tiros da sua carabina derribava outros tantos inimigos. Depois cruzou os braços, e esperou com a fleugma desdenhosa dos heroes que o esquartejassem.

Essa funebre cavalgada custava aos inglêses mais da quarte parte do seu effectivo, cento e vinte mortos, entre os quaes se contavam, além de outros officiaes, o tenente-coronel Weatherley e o sympathico commandante boer Piet Uys.

XI

A ambulancia

O terreno escolhido para o acampamento de Kambula offerecia esplendidas condições de defesa. Sir Evelyn Wood, aconselhado pela experiencia, redobrou de precauções e tornou-o, por assim dizer, inexpugnavel. Uma das suas faces debruçava-se sobre um precipicio, outra coroava um alcantil de declive asperrimo; na frente abria-se uma estrangulada planicie, e á retaguarda, a uns duzentos metros de distancia, empoleirado numa pequena e isolada eminencia, a trinta metros acima do acampamento, erguia-se um reducto cercado por um fosso profundo.

Formavam o acampamento dois laagers, um, fora, em quadrado, constituido por noventa carretas boers, ligadas umas ás outras; outro, dentro, em circulo, composto de cincoenta carretas, onde se acoutava o gado, de noite. Levantaram-se parapeitos em tres dos lados do acampamento. O hospital ficava dentro do laager quadrado. As barracas de campanha, onde se alojavam as forças, enfileiravam-se numa especie de esplanada. Apenas resoava o signal de alarme todas estas barracas eram desarmadas e cada um occupava o local que préviamente lhe fôra designado. Todos os conductores de gado estavam armados de espingardas e azagaias. Havia exercicios amiudados. Pretos e brancos adestravam-se o mais possivel para repellir o assalto que os zulos com certeza não deixariam de dar, e que seria, como de costume, sem mercê.

No ponto de vista estrategico, a situação d'este importantissimo posto era admiravelmente escolhido. A pequena distancia da fronteira do Transvaal, num sitio onde confluem varios rios, cobria Utrecht, impunha respeito ao gentio da Suazilandia, que se poderia unir aos zulos, e vigiava tres das principaes vias de communicação.

Agora duas palavras ácerca do brigadeiro-general sir Evelyn Wood, que desempenha nesta nossa historia proeminente papel.

Entrou primeiro para a marinha e serviu com os seus camaradas da esquadra, em terra, no cerco de Sebastopol. No assalto do celebre Redente foi gravemente ferido quando encostava uma escada á trincheira. Por essa occasião foi citado na ordem do dia por lord Raglan e recebeu uma medalha turca e a Legião de Honra.

Passou então para o exercito e entrou na campanha da India em 1858. Assistiu ás batalhas de Rajghur, Sindwahs, Kharee e Baroda, foi louvado duas vezes e condecorado. Em 1859 commandou um regimento de cavallaria, principalmente encarregado de perseguir os rebeldes nos juncaes da India, serviço pelo qual o premiaram com a Victoria Cross. Em setembro de 1873 acompanhou o general sir Garnet Wolseley na expedição contra os ashantís, tomando parte nos

combates de Amoagul, Ordahsu e tomada de Comassia. Voltou d'estas operações com a graduação de coronel e com o grau de cavalleiro do Banho. Pouco depois de se romperem as hostilidades contra os zulos foi promovido a brigadeiro.

A retirada do corpo do coronel Buller sobre Kambula foi particularmente difficil e mortífera, como dissemos no capitulo precedente. Era tal, no emtanto, a disciplina e o espirito militar d'essa força, que não deixaram na mão do inimigo nem prisioneiros nem uma unica cabeça do gado que lhe tinham aprisionado.

Mahatana, que concorrera não pouco para salvar a columna, collocara-se intrépidamente ao lado de Santa Cruz, e, embora apeado, não deixou de o acompanhar. É conhecido de todos que teem estado em Africa, que um preto no matto emparelha sem grande custo com um cavallo a trote.

-- Senhor -- dizia o negro para o official português quando os zulos principiaram a afrouxar na perseguição -- não penses que elles se cansaram. Estão a reunir mais gente e hão de vir, tem a certeza.

-- Pois quê? Levarão a sua audacia a acommetter o acampamento?

-- Os brancos não conhecem os zulos. Sabes o que significa a palavra zulo, ou melhor izidu?

-- Não.

-- Os céus. Cada zulo está convencido que descende directamente do seu deus, e não tem medo de nada. Cada um suppõe-se igual ao sol, ou talvez mais, porque não irradia tanto brilho como elle.

-- São pouco orgulhosos! -- commentou Santa Cruz, sorrindo-se.

-- Como nenhum povo! E tambem não existe quem seja mais destemido, devo confessá-lo, apesar de o odiar mais que o leão á serpente.

-- Tua mãe é zula, segundo ella nos contou -- lembrou o major.

-- É uma isanusi.

-- Uma feiticeira, uma adivinha, não é?

-- Olha, senhor, o deus dos zulos chama-se Unkulunkulu, o grande dos grandes. Desencadeou ha muito tempo, tanto tempo que ninguem se lembra, uma ventania enorme que agitou todos os canaviaes. De dentro d'elles surgiram um homem e uma mulher, que ensinaram o povo a cultivar a terra, a ordenhar as vaccas, a fabricar a nossa cerveja...

-- Uma especie de Adão e Eva do nosso Velho Testamento -- monologou Santa Cruz a meia voz.

-- Os isanusi são os padres e os médicos das tríbus e vêem através do espaço e das edades.

Teem o poder de communicar com os seres invisiveis e com os espiritos dos nossos antepassados...

-- São como os espíritas lá da minha terra... -- interrompeu de novo o português.

-- Mas não cuides que usam da sua arte para fazer mal -- proseguiu Mahatana -- empregam esse saber sobrenatural para descobrir os criminosos que se entregam a maleficios e a delictos de qualquer especie...

A columna encontrava-se agora a pouca distancia do campo entrincheirado. Apenas ella foi avistada e vendo que o inimigo lhe ia no encalço, toda a guarnição formou. Alguns certeiros tiros de artilharia disparados a proposito e uma carga impetuosa da cavallaria que ficara, determinaram os adversarios a assentar-se, para nos servirmos de uma expressão muito empregada pelos negros. O inimigo deteve-se, mas não se retirou.

Toda a gente lamentava as perdas soffridas, mas como era um lugubre acontecimento de todos os dias, feita a commemoração religiosa, rezados os officios funebres, cada um dos defensores do campo tratou de aperfeiçoar o mais que pôde os elementos de resistencia contra a investida dos zulos, que não se faria esperar.

O principe abraçara com a mais effusiva alegria Santa Cruz, apenas este se apeou, exclamando:

-- Fui victima de uma inqualificavel traição. Já me queixei d'ella ao general. O unico consolo que me resta é que foi praticada sem a tua cumplicidade.

Apenas o principe terminara estas palavras, aproximou-se um sargento do grupo e disse para os dois:

-- Uma das irmans hospitaleiras pede a vossa alteza e ao senhor major a finesa de chegarem á ambulancia.

-- Immediatamente -- responderam os nossos protagonistas.

Ambos se encaminharam para o laager, no centro do qual se estabelecera o hospital de sangue.

Os medicos e enfermeiros estavam occupadissimos no desempenho da sua humanitaria missão. Em cima das camas de campanha, no chão, nos estrados das carretas, sobre toscas mesas, apropriadas para as operações, com um arsenal de instrumentos cirurgicos espalhados em redor de si, divisavam-se montões de feridos, transportados pelos seus camaradas na frente das sellas e depostos ali para soffrerem os curativos necessarios.

Uns, completamente desfallecidos, poucos ou nenhuns signaes davam de vida; outros, muito pallidos, arquejavam, reprimindo a custo os gritos que as dores lhes arrancavam. A estes contrahiam-se-lhe as physionomias num repregar de musculos, excitados pelos nervos em vibração, exprimindo assim as cruciantes torturas que experimentavam; áquelles, mais alanceados ou menos soffridos, escapavam-se-lhe por entre os dentes cerrados, gemidos aflictivos, imprecações de desespero, sons inarticulados, queixumes vindos

do mais fundo do seu organismo, preces doloridas, blasphemias logo refreadas.

E, á luz bruxuleante e pallida das lanternas, enxergavam-se semblantes lívidos, rostos envôltos em ligaduras de occasião com largas manchas rubras a resumar um liquido vermelho, faces onde o sangue se empastara e formara uma espessa crosta denegrida, chagas que se patenteavam com toda a hediondês das coisas incuraveis, ferimentos ante os quaes a sciencia se confessava impotente, membros decepados apenas seguros por frageis tecidos, mutilações

que arrepiavam os proprios operadores num calafrio de dó e de espanto, e tudo isto movimentado por gestos ora supplices, ora convulsos, revolvido pelo bracejar dos pacientes a quem se não podia anesthesiar, immerso numas meias sombras que ainda tornavam o quadro mais horroroso, amargurado pelo estertor dos moribundos que exhalavam o derradeiro suspiro, contorcendo-se de pena e chorando de saudades.

O espectaculo não impressionou Santa Cruz, mas commoveu o principe.

Atraves d'aquella atmosphera baça, onde havia como em suspensão lagrimas e sangue, soffrimentos e odios, bençãos e anathemas, a vida em inexoravel prélio com a morte, as reminiscencias sacrosantas da familia a braços com a excitação enraivecida do ultimo combate, lobrigava-se o vulto de Maria Isabel, que, com as suas companheiras, auxiliava os medicos e os seus ajudantes.

Dados alguns passos, contemplaram-na mais de perto. Ennobrecia-lhe o austero parecer uma azulada pallidez, mas todos os seus movimentos eram serenos, desprendia-se do seu corpo, nimbado como de uma auréola de abnegação, a doce tranquilidade inspirada pelo dever cumprido á custa dos maiores sacrificios.

E, em presença da desoladora scena, na qual os seus olhos incidiam por vezes em cruezas que noutra qualquer occasião revoltariam o seu pudor, indignariam o seu recato, cooperando em actos que intimidariam e fariam desfallecer homens de experimentado valor, ella só tinha vista para a magoa que se estampava nessas physionomias transtornadas pelo padecimento physico, intima e fraternal commiseração pelas torturas moraes que soluçavam no pranto a despenhar-se por tantas faces.

O principe estacou afflicto e indeciso. Santa Cruz encostou-se á roda de uma das carretas e levou a mão á testa como para arredar uma visão horrenda.

-- Como é bella assim! -- murmurou Luiz Napoleão, num suspiro.

-- Como é grande assim! -- repetiu Santa Cruz, como um echo longinquo e bem a seu pesar.

Ambos se calaram. Foi Santa Cruz quem primeiro rompeu o silencio.

-- Não ha talvez, em nenhuma circumstancia da existencia, moldura mais sublime para fazer realçar as divinas qualidades de uma mulher!

-- Tens razão -- redarguiu o principe; -- nos bailes, nos jantares, nas festas, em todos os prazeres e diversões do mundo, admirâmo-las e cobiçâmo-las.

-- Aqui, onde tudo é horror e luto, onde só existem lamentos, anciãs, clamores e supplicios, -- adduziu o major -- admirâmo-las e venerâmo-las.

Neste momento Maria Isabel fez um quasi imperceptivel signal com a cabeça para que se acercassem, e, quando os viu proximos, aproveitando um instante de descanso, deu alguns passos em direcção dos recemvindos.

-- Felicito-o, senhor de Santa Cruz -- disse para o português -- por ter sahido illeso da sangrenta refrega d'estes dias. Correu aqui o boato que não voltaria ninguem vivo da incursão.

-- Nestas conjunturas espalham-se sempre rumores pessimistas que convém não acreditar.

-- Folgo em saber que não traz sequer uma beliscadura. São tantos os feridos, é tão triste isto que estamos presenceando!...

E Maria Isabel num relancear de pupillas indicou o sinistro quadro que se lhe desenrolava em torno.

-- E tão triste -- interrompeu Luiz Napoleão -- que te vou pedir em meu nome, no de minha mãe, no que tenhas de mais estremecido na tua memoria, que saias d'aqui. Hoje mesmo falarei a sir Evelyn para te fornecer um carro e partires ámanhan de madrugada para Utrecht e de lá para Maritzburgo.

-- Rogo a vossa alteza o favor de não pensar em semelhante coisa. Antes de embarcar para Africa pesei maduramente o passo que dava. Tive que vencer muitas resistencias, superar muitas opposições.. Agora que estou aqui, ficarei. Responderei como Mac-Mahon na torre de Malakoff, j'y suis, j'y reste.

-- Soffro mais com a tua presença neste acampamento que sabendo-te em Newcastle, em qualquer outro ponto...

-- Em primeiro logar estou aqui ao lado de meu tio, do doutor Conneau. Elle é medico, eu sou enfermeira. É um caso tão vulgar que nem vale a pena citá-lo.

-- Mas se formos atacados; devemos ser atacados... -- affirmou o principe deixando escapar essa confissão terrorista de que logo se arrependeu.

-- Mais um motivo para permanecer -- accentuou com meiga energia Maria Isabel. -- Vossa alteza não crê que nós as mulheres sejamos tão pundonorosas como os homens? Acredite que tambem temos o nosso ponto de honra...

-- Bem sei, Maria Isabel, bem sei... -- atalhou Luiz Napoleão, accrescentando depois com certo orgulho -- bastava seres francêsa...

-- Que juizo faria de mim vossa alteza e toda esta gente se eu desertasse na vespera de uma batalha?

-- Maria Isabel, Maria Isabel! ninguem duvida da tua coragem, o que se torna necessario é que te furtes a estas scenas do hospital de sangue.

-- Pelo contrario, quero, observando-as, radicar ainda mais no meu espirito que repugnante crime é a guerra!

-- É uma necessidade cruel dos povos, mas é uma necessidade. É uma lei da natureza. Ninguém a pôde evitar. Está na essência do homem.

A lucta é para elle tão indispensavel como o alimento. Querer arrancar-lhe, ou sequer modificar-lhe esse sentimento ingenito, significava transformá-lo radicalmente, e não póde ser transformado porque foi feito á imagem e semelhança do Creador.

-- Quer então vossa alteza dizer que Deus fomenta a guerra...

-- Não vou tão longe, mas permitte-a...

-- Perdôe-me -- argumentou Maria Isabel; -- não a permitte, conferiu apenas á sua creatura o livre arbitrio, outorgou-lhe a faculdade de se aperfeiçoar, concedeu-lhe o direito e o estimulo de se tornar melhor.

-- Maria Isabel, provam os philosophos que, sem a guerra, a humanidade estacaria, que é ella um dos principaes fautores do progresso, uma das mais fortes alavancas do saber, e até, vê lá a audacia do paradoxo, o mais energico propulsor da civilização.

-- Que seria da controversia se não existisse a especiosidade das opiniões!

-- Ha industrias, artes, muitas sciencias, não se póde negar, que lhe devem a sua origem e o seu desenvolvimento. Se cessasse de repente, quantos milhões de braços atiraria para a inacção e para a ociosidade?

-- E porque não se aproveitaria essa infinidade de braços, empregados em matar ou a preparar elementos para a morte, que chega sempre sem que ninguem a chame, nos misteres que proporcionam abastança e alegria, sem roubar, sem arrancar a unica coisa que o homem nunca logrará dar depois de supprimida... a vida?

-- Minha boa Maria Isabel, uma existencia vale muito considerada isoladamente; comparada com o bem estar, com a conveniencia, com o avanço da grande collectividade, é uma parcella infima, uma quantidade infinitesimal. Quando caminhamos, quantos pequeninos seres, quantos microscopicos entes pisamos, esmagamos, debaixo da sola das nossas botas? Nem sentimos os seus ais, nem nos amerceamos do seu padecer. E entretanto o seu direito á existencia é igual ao nosso. Para respirarmos, para vivermos, que de hecatombes é necessario realizar na incommensuravel escala da animalidade!

-- É então decidido partidario da guerra?! -- exclamou mademoiselle Conneau com extrema vivacidade na voz, ao passo que deixava pender as mãos com desalento.

-- Não sou; expendo o que me ensinaram, o que se tem escripto. A guerra é a guarda avançada do adeantamento moral e intellectual dos povos, a charrua que abre a leira onde germina a semente das idéas novas. As phalanges gregas educaram as turbas escravisadas do Oriente; as legiões romanas ensinaram ás populações ignorantes da Gallia, de Inglaterra, da Germania, de Hespanha, quaes eram as suas prerogativas e a sua missão no mundo; os exercitos da Republica levaram aos confins da Europa, ás sociedades embrutecidas pela tyrannia, as lições de liberdade e de redempção politica aprendidas em París.

-- Não entram então para nada no raciocinio e conclusões d'esses sabios os mares de sangue e os oceanos de lagrimas que as suas maximas derramam?

-- Entram, sim, Maria Isabel. Juro-te aqui, no meio do horror d'este quadro, que se um dia ascender ao throno que meu pae deixou vago, sempre que a paz ou a guerra dependam de mim, optarei pela paz. É um juramento solemne, crê, feito em homenagem a esses pobres homens que ahi agonizam, um justo preito rendido á magnanidade e delicadeza do teu coração.

Maria Isabel, num movimento rapido, sem que o principe lho pudesse impedir, beijou-lhe a mão e declarou, levando a sua ao peito:

-- Aqui fica gravado, senhor; agradeço-lho em nome das mães e dos orphãos.

-- Como ella o ama! -- suspirou no mais fundo da sua alma Santa Cruz.

De subito estrondearam tres tiros de artilharia, disparados com espaços iguaes.

-- O alarme! -- exclamaram Luiz Napoleão e Santa Cruz, sahindo a correr da ambulancia.

-- Até á vista! -- bradou-lhes mademoiselle Conneau, num tom que baldadamente quiz tornar firme.

XII

A voz da honra

-- São os zulos? -- perguntou Santa Cruz atirando-se para cima do cavallo sem pôr o pé no estribo.

-- Não senhor -- respondeu o soldado que lhe apresentava o cavallo, -- é apenas um exercicio, e talvez provar a esses cães negros que se tencionam fazer alguma surpreza nos encontram com a bocca aberta e os dentes bem aguçados.

Os postos foram rapidamente occupados, sir Evelyn passou revista a todo o acampamento e, satisfeito com a vigillacia e promptidão dos seus subordinados, mandou destroçar, ficando de atalaia apenas as unidades de serviço.

Quando o principe e Santa Cruz se dispunham a recolher ás suas barracas, aproximou-se d'elles um vulto. A noite ia alta e a escuridão era profunda.

-- Quem é? -- inquiriu o major.

-- Sou eu, Mahatana -- respondeu o vulto num inglês arrevesado.

-- Que queres tu? -- perguntou Luiz Napoleão.

-- Senhor, falar comtigo e com o major em particular.

-- Entra -- ordenou o principe. Sentaram-se os dois ao lado de uma mesa de campanha, sobre a qual havia uma lanterna surda, que pouca claridade espargia em redor.

-- Então que mysterio temos nós? -- interrogou o principe.

-- Senhor, venho do acampamento dos zulos.

-- Tu?! -- exclamaram os dois com incredulo pasmo.

-- Como conseguiste chegar até lá?

-- Fazendo-me passar por um d'elles?

-- E se te descobrissem?

-- Matavam-me. A vida dura tanto como uma d'essas chammas que oscillam por cima dos pantanos, que ora brilham, ora se apagam. Não vale a pena poupá-la. Tanto mais que preciso saciar o meu odio.

-- E saciáste-lo?

-- Ainda não, senhor, mas soube coisas que muito interessam aos brancos.

-- O quê?

-- Cercam o campo tres grandes impis, de sete mil homens cada uma, commandadas por Mnhiamana, um dos mais habeis e destemidos chefes de guerra. O proprio régulo Catchuaio veiu de Ulundi, com tropas frescas e assiste ao combate.

-- Quando atacam, esta noite?

-- Senhor, não. Teem tanta certeza de vencer que não querem esconder-se nas trevas como as hyenas quando acommettem os antílopes. Virão de dia, quando o sol estiver no ponto mais alto do céu.

-- Ao menos são corajosos e leaes.

-- São tantos -- contam elles -- que os inglêses ficarão á sombra, entre elles e a luz do dia, que nunca mais tornarão a ver.

-- Pois bem, cá os esperamos.

-- Ainda outra coisa, senhor.

-- Dize.

-- Os isanazi, os feiticeiros, como os brancos lhes chamam, declararam que foste tu, senhor, que trouxeste feitiço a favor d'elles, que desde que tu chegaste os zulos nunca mais obtiveram uma victoria.

-- Tanto melhor -- respondeu o principe a sorrir.

-- Tanto peor para ti, é que é, -- affirmou com energia Mahatana.

-- Porquê? -- redarguiu Luiz Napoleão com desdenhosa indifferença.

-- Porque te condemnaram á morte.

-- É uma grande honra com que me distinguem os senhores zulos -- declarou motejando Luiz Napoleão, -- mas da sentença á execução ainda vae sua distancia.

-- Dez dos mais habeis atiradores -- proseguiu o negro, -- dos mais destros no manejo da azagaia e da nonga, protestaram com juramentos sagrados sacrificar as vidas, procurar-te por toda a parte, arrostar os supplicios mais horriveis para te matarem onde te encontrem.

Santa Cruz estremeceu e atalhou:

-- Atoardas que não significam nada e que a tua ungua repete com a estulta inconsciencia de um nescio.

-- Não te zangues com o preto, Santa Cruz -- insinuou o principe a sorrir, -- o acto d'elle exprime a lealdade da sua alma.

-- Vossa alteza bem sabe que nunca gostei de mensageiros agourentos.

-- Bem mostras que és meridional; nunca serás capaz de te emancipares de superstições. Descansa por esse lado! Entre tantos officiaes, como me hão differencar a mim dos outros?

-- Senhor -- elucidou Mahatana que ouvira calado a interrupção; -- lembra-te do meu rival, do meu inimigo, do mesmo que tentou lançar fogo á tua casa na farm. Esse mau homem, esse coração de chacal, conhece-te e ha ainda outros que sabem quem tu és; os zulos teem espiões por toda a parte.

-- Bem, bem, eu me acautelarei. Vae dormir tranquillo -- recommendou Luiz Napoleão. -- Informarei o general das noticias que trouxeste, e

do resto... o futuro a Deus pertençe.

Luiz Napoleão procurou sir Evelyn Wood, a quem repetiu o que ouvira ao indigena, na parte que se referia ao ataque.

-- Ainda bem que a investida se realiza de dia, teremos assim mais probabilidades a nosso favor. Se fosse de noite, com a gente que affirmam dispor, seria uma rude tarefa -- disse o general inglês com a sua costumada urbanidade.

Sir Evelyn convidou o principe e Santa Cruz a tomarem chá com elle e com os seus ajudantes, riram, conversaram, gracejaram ácerca de varios assumptos e commentaram os acontecimentos da Europa. Se não fôra os alertas das sentinellas, ninguem diria, ao attentar no aspecto jovial de novos e velhos, que esse descuidado grupo estava prestes a sustentar uma das mais impetuosas acommettidas que hordas cafres teem realizado no sertão sobre tropas europeas.

Terminado o chá cada um procurou readquirir novas forças para a refrega do dia seguinte.

O principe deitou-se meio vestido, não sem primeiro ter tirado do pescoço o retrato de sua mãe e de o beijar com a maior devoção, bem como algumas reliquias, das quaes a afflicta senhora lhe pedira que nunca se separasse. E dormiu a somno sôlto, sem que nenhum pesadêlo lhe accelerasse a respiração tranquilla. Apenas de quando em quando lhe atravessava o cerebro, com um rasto luminoso de meteoro offuscante, a imagem de Maria Isabel, com a sua physionomia severa, com a sua fronte pura, mas ensombrada de reflexões altruistas.

Com Santa Cruz, na barraca ao lado, não acontecia o mesmo. A insomnia como que lhe encandescia as palpebras, as suas pupillas ardiam, o orgão da visão tomado de desvario reproduzia formas estravagantes, figuras e episodios que o torturavam e que no momento se lhe afiguravam reaes, de tal modo se ligavam ao fio da sua existencia, de tal maneira se revestiam de um caracter natural e sequente. As palavras enigmaticas da mãe de Mahatana, envolvendo um sinistro vaticinio, photographavam-lhe na imaginação as scenas mais horrendas e sanguinarias, a que o perfil doce e energico de mademoiselle Conneau imprimia um cunho ainda mais doloroso. Santa Cruz fazia esforços violentos para se libertar da obcessão d'esses quadros, mas parecia que um poder esmagador o chumbava a esse leito de tortura, que um zulo gigantesco lhe opprimia o peito com o joelho e o estrangulava na golilha das suas mãos herculeas, que um halito repugnante, a rescender a podridões, cadavericas, lhe açoutava a face e o mantinha ahi inerme, a contemplar os supplicios mais infernaes, os tratos mais deprimentes e angustiosos.

Amanheceu por fim. Os primeiros alvores da madrugada enxotaram como um espantalho o bando de corvos negros d'essas visões lugubres. Santa Cruz sahiu da sua barraca e, levantando a lona que tapava a entrada da do principe, espreitou com a solicitude de uma mãe o seu juvenil amigo. Continuava a dormir profundamente.

-- Deus vele por ti! -- murmurou o major.

As cornetas, os clarins, os tambores, os pifanos e as gaitas de folles dos regimentos de linha e dos escocêses arremessaram pelos plainos fora as suas notas vibrantes, estrídulas e melancolicas. Esses sons pareciam ali deslocados. Não existia nada da paizagem que elles evocavam. Nem os lagos limpidos e azues como um tanque de anil, nem cumeadas de montanhas caprichosas circumdadas de brancos véus de nebrina, nem o arvoredo pittorescamente esmeraldino das florestas por onde saltam as corças e veados de ramificada armação, nem castellos medievos com os recortes esguios das suas muralhas, com as altivas e senhoris torres de menagem, com as

suas pontes levadiças e barbacans, testemunhas mudas e seculares das luctas entre os clans.

Não, não era uma paizagem nem da fabril e plana Inglaterra, nem da verdejante e opprimida Irlanda, nem da alcantilada e poetica Escocia.

Ao estrépito dos instrumentos bellicos europeus, respondeu o clamor soturno, grave, bombante das buzinas, batuques, tans-tans, de quantas coisas os cafres teem inventado para amedrontar os inimigos antes de os acommetter.

Esse formidavel e singular côro, tão selvagem que arrepiava, tão magestoso que infundia respeito, coadunava-se admiravelmente com o scenario onde se produzia, com os montes escalvados e abruptos, com a herva enorme e traiçoeira, com os bosques cerrados e cheios de ciladas, com as gradações torradas e adustas das povoações, com os pântanos miasmaticos e aleivosamente envenenadores.

Aos primeiros sons da alvorada tudo acordou, se pôs a pé e buscou o seu posto como impelidos por vigorosa mola.

-- Não são menos de vinte mil homens -- commentou sir Evelyn depois de examinar detrdamente as hordas zulas, que se mantinham fora do alcance efficaz da artilharia e ainda não formadas para combate, para os officiaes do seu estado-maior.

-- Parece que se confirma o que Mahatana disse, que só atacarão quando o sol chegar ao zenith -- expôs o principe.

-- Muito grato lhe ficamos pela sua attenção, respondeu rindo o general -- e muito mais as nossas granadas, que assim não cahirão ás cegas.

-- Não ha duvida que d'esta vez são leaes e cavalheirescos como quaesquer guerreiros das cruzadas -- observou Redvers Buller.

-- Veem confiados na victoria. A nossa retirada de hontem animou-os -- obtemperou um dos presentes; -- se, como se affirma, Catchuaio está no meio d'elles, querem offerecer-nos em holocausto ao seu rei...

-- Meus senhores -- atalhou sir Evelyn -- vamos dar as ultimas demãos á festa que se prepara.

E metteu o cavallo a meio galope para visitar, como visitou, minuciosamente cada ponto do acampamento.

Cerca do meio-dia as mangas zulas agruparam-se em formatura compacta e cercavam litteralmente o entrincheiramento. Para qualquer lado para onde o observador se voltasse, encontrava uma muralha de corpos negros por cima da qual adejava como uma nuvem de plumas dos mais variados matizes. Por ora tudo se conservava silencioso, apenas se distinguia um sussurro cavo vindo d'esse aguerrido enxame.

-- Não ha duvida -- disse Luiz Napoleão enthusiasmado, para Santa Cruz -- que pouca gente se gabará de contempllar espectaculo tão grandioso.

-- E os que se gabarem, muito terão que contar -- adduziu um juvenil official ás gargalhadas.

No acampamento tudo occupara e seu logar.

Sir Evelyn no topo da eminencia que dominava a planicie, rodeado pelos seus ajudantes, tinha atrás de si a cavallaria, prompta a acudir onde a sua acção se tornasse necessaria.

As hostes contrarias permaneciam immoveis, cobrindo o terreno adjacente.

-- Não se mexem -- observou sir Evelyn com a sua fleugma habitual, -- parece que ainda esperam mais reforços.

-- O melhor era espertá-los -- propôs Redvers Buller com a sua costumada impetuosidade; -- se o general me dá licença vamos lá levar-lhes o nosso cartão de visita; talvez se dignem depois corresponder á nossa delicadeza.

-- Pois sim. Carrega sobre o flanco esquerdo, que é o seu ponto mais fraco, se póde haver flancos neste annel de azeviche com engastes de lâminas aceradas.

-- Meu General -- solicitou o principe -- desejo que me auctorise a acompanhar o coronel Buller.

-- Peço licença a vossa alteza para recusar o que pede. O seu logar é aqui a meu lado e dou-lhe a minha palavra que o não reputo menos perigoso.

Luiz Napoleão fez-se muito côrado, mas não retorquiu.

-- Marcha pelo norte, Buller -- recommendou sir Evelyn. -- Talvez fazendo uma conversão os consigas envolver e estabelecer a desordem na sua retaguarda.

-- Vão-se empregar todos os meios para o conseguir, meu general, respondeu o coronel desembainhando a espada e cumprimentando militarmente.

Minutos depois a cavallaria, uns quinhentos homens, commandados por Redvers Buller e pelo tenente-coronel Russell, sahiam a galope por um dos lados do entrincheiramento e precipitavam-se como um furacão sobre o inimigo.

O choque foi duro, terrivel, de extrema violencia. As primeiras mangas dos adversarios recuaram, romperam-se com a força do embate e fragmentaram-se. Cada soldado, de pé sobre os estribos, vibrava cutiladas em redor de si com a furia de um archanjo exterminador. O impeto da carga levou tudo na sua frente durante algumas dezenas de metros, mas depois este vagalhão fremente, bravio, espumoso, enraivecido, esbarrou ante outras e outras hostes, que se concentravam á retaguarda e que formavam uma rocha tão densa e forte, que esses quinhentos bravos de modo nenhum, nem que se transformassem em titans, lograriam fender, separar, rasgar uma brecha através d'ella. Ao mesmo tempo outras mangas pronunciavam um movimento envolvente, afim de apertar os esquadrões nos possantes anneis d'aquella colossal constrictora e esmagá-los até que não restasse um de pé.

Sir Evelyn conheceu o perigo. Virou-se para trás e querendo dar aos seus hospedes a maior prova de consideração que um chefe pode dar a qualquer dos seus subordinados, disse:

-- Major Santa Cruz, quer fazer-me o favor de dizer ao coronel Redvers Buller que recolha ao acampamento?

O official português mal ouviu as ultimas palavras d'este honroso convite. Cravou as esporas no corcel e partiu á desfilada seguido pelos olhares invejosos dos seus camaradas inglêses.

A missão era arriscadissima, havia noventa e nove probabilidades contra cem de ser morto antes de lá chegar. O seu cavallo, porém, era um pur sang, présente do principe. Dir-se-ia uma setta cortando o espaço. As azagaias e os tiros choviam-lhe em redor como saraiva debaixo de uma goteira. Transmittiu a ordem a Buller, que obedeceu de muito má vontade. A retirada effectuou-se a passo, disputando o terreno palmo a palmo. Mas os zulos vinham tão em cima dos cavalleiros que não era possivei enviar-lhes algumas granadas sem ferir amigos á mistura com inimigos.

Os zulos chegaram até duzentos e cincoenta metros das trincheiras. A essa distancia já a cavallaria inglêsa se separara distinctamente dos contrarios. Então o 13 de infanteria, escalonado, rompeu contra elles um fogo vivissimo. Cabiam filas inteiras, logo substituidas por outras, e a immensa mole caminhava sempre animosa, destemida, impassivel.

-- General, general, -- bradou um preto a correr direito a sir Evelyn -- os zulos estão a entrar no laager do gado.

Era Mahatana que participava essa importante noticia.

-- Major Hackett -- ordenou o general -- leve comsigo duas companhias do 90 e repilla o inimigo que ameaça entrar ali com um movimento de flanco.

Prompto essa fracção acudiu ao sitio alludido.

Mahatana aproveitou o ensejo para ficar proximo do estado-maior. A seu ver o acampamento não resistiria á investida dos adversarios.

O circulo dos cafres fechara-se agora completamente. As suas tentativas mais vehementes dirigiam-se sobre a face direita e retaguarda.

-- Senhor, -- dizia Mahatana para o principe de quem se avizinhara -- os zulos andam bem informados, conhecem bem quaes são os pontos fracos do acampamento.

Ainda não terminara a phrase quando em redor do estado-maior assobiava como que uma enorme revoada de bezouros.

-- São balas, meus amigos -- exclamou sorrindo sir Evelyn para alguns dos officiaes surprehendidos com a insolita visita -- mas de onde vêem?

-- D'além, senhor -- explicou Mahatana, que antes de mais ninguem descobrira a posição tomada pelos negros.

Efectivamente um bando de zulos, dos melhores atiradores, armados de Martini-Henrys, collocara-se sob uma collina perto do entrincheiramento e de lá fazia convergir um fogo mortifero sobre os pontos mais a descoberto.

-- Uma metralhadora dos marinheiros que desaloje aquelles incommodos vizinhos -- determinou sir Evelyn sem se arredar uma pollegada do local onde se encontrava, offerecendo, assim como os que o rodeavam, um magnifico alvo ao inimigo.

O ataque proseguiu com a mesma heroica e pertinaz teimosia até as cinco e meia da tarde.

A essa hora levantou-se um immenso hurrah em todo o acampamento.

-- Os zulos retiram! Os zulos retiram!

-- Coronel Buller -- disse sir Evelyn -- chegou o momento de tirar a sua desforra, persiga-me esses importunos visitantes até cahir a noite.

-- General -- instou uma voz juvenil, -- agora já não ha perigo em me conservar a seu lado, agora o perigo é além.

Sir Evelyn franziu os sobrolhos num imperceptivel gesto de contrariedade, que teve a duração de um relampago.

-- Faça vossa alteza o que entender. Se lhe negasse o que solicita commettia um crime ante a Historia e ante a minha consciencia.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

A CATASTROPHE

I

Uma noite agitada

O principe, orgulhoso, satisfeitissimo, collocou-se garbosamente ao lado de Buller, bem como Santa Cruz, a quem sir Evelyn, antes mesmo do official português lhe rogar a necessaria auctorisação, lha concedera com um gesto risonho e repleto de bonhomia.

A cavallaria parecia voar nas azas do vento, para nos servirmos da pittoresca expressão popular. Tudo quanto ficou no acampamento, com excepção dos feridos, medicos e enfermeiros, saltou para cima dos parapeitos e dos carros para assistir ao final do drama que nessa tarde se representara nos cerros e plainos adustos d'aquella região da Zululandia.

A perseguição estendeu-se a sete milhas de Kambula e os zulos completamente desmoralisados, não oppuzeram resistencia séria. Foram apprehehdidas trezentas armas de fogo, das quaes muitas apperfeiçoadas. Em redor do acampamento jaziam tres mil negros.

A victoria, porém, não custava barata aos inglêses. Contavam-se entre os mortos e feridos cem soldados e marinheiros e sete officiaes.

O principe voltou desapontado. Não tivera ensejo de combater. Repugnava-lhe acutilar fugitivos pelas costas. Logo que regressou, dirigiu-se ao hospital de sangue, tanto para socegar mademoiselle Conneau, como para se informar que nada de anormal lhe acontecera. Encontrou-a na sua santa labuta. Ao vê-lo desabrochou no seu rosto uma alvorada de alegria, mas não se arredou do paciente a quem extrahiam um projectil.

Santa Cruz acompanhava Luiz Napoleão. Este acercou-se do dr. Conneau e perguntou-lhe:

-- Muito trabalho, infelizmente?!

-- Bastante, meu senhor. Vossa alteza incólume? Os meus parabens. E o major?

Esta ultima phrase dirigia-se a Santa Cruz, embevecido na contemplação de Maria Isabel, e que, ao ser interpellado, respondeu, como estremunhado:

-- As balas e as azagaias não querem nada commigo.

-- Ainda bem -- retorquiu o medico. -- Bastam os ferimentos que apanhou em Italia, na China e no Mexico.

Este dialogo realisava-se sem que o bisturi e a sonda do facultativo francês parasse. Os operadores eram poucos e os feridos bastantes.

-- Um completo triumpho para nós, não é assim?

-- Em toda a linha -- respondeu o principe, e accrescentou: -- onde estão os officiaes feridos?

-- Além -- e o medico indicava uma carreta onde dois cirurgiões inglêses faziam os primeiros curativos ao major Hackett, ao tenente Smith e a mais tres officiaes menos perigosamente attingidos.

O principe aproximou-se e estendeu-lhes silenciosamente a mão; os dois primeiros agradeceram-lhe com um olhar essa prova de leal e gentil camaradagem, os outros manifestaram-lhe com calor, verbosamente, quanto os penhorava a attenciosa deferencia.

Feitas estas visitas, Luiz Napoleão, que captivara todos, repetimos, pela sua affabilidade, doçura e genio expansivo, bateu de subito na testa e perguntou para Santa Cruz:

-- Que foi feito de Mahatana? Perdi-o de vista desde que perseguimos os zulos. É capaz de estar morto ou ferido...

-- Vou indagar -- redarguiu-lhe o official português; -- se não lhe succedeu mal, devo andar proximo das nossas barracas.

Afastou-se, mas não se demorou, trazendo comsigo o negro, a coxear. Da parte superior da perna direita corria-lhe um fio de sangue.

-- Que te aconteceu? -- inquiriu Luiz Napoleão.

-- Pouca coisa, senhor; um tiro, mas pouco fundo, quasi de raspão.

-- Vae curar-te.

-- Depois dos brancos, senhor. Se estivesse aqui minha mãe, nem precisava dos mézinheiros dos homens do mar.

Santa Cruz estremeceu. A lembrança d'essa mulher despertava-lhe no espirito pensamentos sinistros, que debalde tentava repellir.

-- Doutor -- disse o principe para Conneau. -- recommendo-lhe este preto, meu serviçal; logo que possa trate d'elle.

A recommendação, embora feita em francês, nem por isso deixou de ser adivinhada por Mahatana, que envolveu o principe num olhar de funda gratidão.

-- Um correio! Noticias! Noticias da Europa! -- bradavam neste momento por todo o campo.

Estes gritos causaram talvez ainda mais alvoroço que a nova de um retorno offensivo dos cafres. Effectivamente acabava de entrar para a barraca de sir Evelyn um mensageiro, que conduzira no cavallo uma volumosa mala. A derrota dos zulos facilitara-lhe a entrada rapida.

Meia hora depois, distribuida a correspondencia, os contemplados liam com avidez as epistolas das pessoas queridas. O principe recebera cartas de sua mãe e dos seus amigos mais intimos. Attribulada pelas saudades, a pobre senhora, só tinha palavras de incentivo, de esperança, de sublime abnegação, para esse estremecido ente, que consubstanciava em si todo o seu passado, todo o seu presente, todo o seu futuro. Quando terminava a leitura d'essas missivas, viu assomar á entrada da barraca o perfil aristocratico e attrahente de sir Evelyn. Levantou-se immediatamente, cumprimentou-o e convidou-o a assentar-se.

-- Recebi uma communicação de lord Chelmsford a respeito de vossa alteza -- participou-lhe o general.

-- A meu respeito?! -- exclamou o principe com surpresa.

-- Ordena-me que mande apresentar vossa alteza no seu quartel-general, o mais depressa que as circumstancias permittam.

-- Lamento essa resolução, meu general, que me priva de servir debaixo das suas ordens.

-- Agradeço a vossa alteza a bondade que taes palavras representam, mas não podemos deixar, ambos, de obedecer. Quando quer partir vossa alteza? Com a derrota de hoje, os zulos não nos incommodarão tão cedo, os caminhos estão seguros.

-- Se a determinação de lord Chelmsford é assim comminatoria partirei ámanhan; embora não occupe no exercito, officialmente, nenhum cargo, desejo mostrar-me tão subordinado como qualquer dos meus camaradas.

-- Vossa alteza parte só, ou deseja que mademoiselle Conneau e as duas irmans hospitaleiras o acompanhem? -- inquiriu sir Evelyn.

O principe sobresaltou-se. Não lhe lembrara esse ponto difficil da sua sahida de Kambula. Depois de um segundo de meditação, expôs:

-- Meu general, consultarei a vontade de mademoiselle Conneau e de seu tio, e se me dá licença, transmittir-lhe-ei depois o que ambos me responderem.

-- Com o maior prazer -- retorquiu sir Evelyn.

O principe, apesar de todos os protestos, só deixou o general á porta da sua barraca, correspondendo assim á bizarra galantaria d'este, que fôra procurar ao seu alojamento.

Luiz Napoleão narrou a Santa Cruz o que occorrera e convidou-o a ir á ambulancia.

Maria Isabel descansava um pouco das suas fadigas hospitalares e conversava com o tio ácerca do que a correspondencia recebida lhe noticiava. Em poucas palavras ficou sciente do assumpto que ali levara o principe.

-- Que respondes, Maria Isabel? -- interrogou o dr. Conneau depois de uma larga pausa.

-- Fico aqui -- declarou resolutamente a energica senhora.

Luiz Napoleão, Santa Cruz e o medico fitaram-na com um misto de respeito e de veneração, e exclamaram cada um por seu turno.

-- A propria Caridade não encontraria réplica mais adequada.

-- Cumpres o teu dever.

-- É uma alma heroica, mademoiselle Conneau.

-- O meu papel em Africa é o de ser enfermeira, como o de tantas senhoras nas minhas condições, de todos quantos soffrem e não em especial de uma só pessoa.

-- Não ha duvida -- retorquiu o principe -- nem eu esperava outra deliberação do teu caracter. Mas agora tambem eu tenho um sacrificio a fazer.

-- Qual?

-- O de me privar da companhia de um bom amigo.

-- De quem? -- exclamaram os presentes.

-- Do doutor Conneau -- redarguiu Luiz Napoleão.

-- Não vou com vossa alteza?

-- São poucos os medicos e não é justo que supprima a tantos feridos e doentes os teus soccorros, quando eu estou são. Permanecerás aqui, em primeiro logar, porque a humanidade assim o exije; em segundo, para fazeres companhia a tua sobrinha. Não é de presumir que os negros voltem a acommetter este entrincheiramento. Curados que sejam todos, podem ir ter commigo onde eu estiver. O prazo não será longo.

O dr. Conneau ficou contrariado, mas não fez a mais pequena objecção. Submetteu-se á racional determinação do principe, reconhecendo quanta delicadeza e hombridade havia no seu modo de sentir.

No dia immediato Luiz Napoleão communicou a sir Evelyn o que ficara combinado na vespera com os seus amigos. O general inglês apertou-lhe silenciosamente a mão, homenagem muda, mas que significava o mais eloquente louvor.

-- Que escolta quer vossa alteza? -- indagou por fim o general.

-- Nenhuma.

-- Será a primeira vez que não accederei a um desejo de vossa alteza.

-- Porquê? Aqui os soldados são necessarios; eu não preciso d'elles para nada. Se fôr atacado, serão poucos, por muitos que vão; se não fôr, e ha todas as probalidades que não seja, tornam-se inuteis.

-- O raciocinio de vossa alteza é certo, mas ha uma contingencia com que a sua intrepidez não argumenta.

-- Sou todo ouvidos, meu general.

-- A minha responsabilidade.

-- Pois bem, levarei cincoenta homens e uma carreta; é quanto me basta. Rogo, porém, a finesa de mo auctorisar a prescindir da força apenas a prudencia o aconselhe.

-- Mas...

-- Dou-lhe a minha palavra, meu general, que não tenho o minimo desejo de pagar a galhardia com que me recebeu e me tratou com uma leviandade. Se a vida não vale muito para mim, tenho immenso empenho em a conservar por amor de minha mãe, das tradições de minha familia, e neste caso particular por attencão a um dos mais denodados e cavalheirescos officiaes do exercito britannico.

Sir Evelyn tornou a estender a mão ao principe, que lha apertou com calor.

Pelo acampamento logo se espalhou a noticia de que o principe se retirava. Todos ficaram penalisados e recebeu nessa manhan inequivocas provas da estima que inspirava. Até Mahatana lhe solicitou licença para seguir com elle.

-- Mas tu estás ferido, coxéas, não podes andar -- obtemperou Luiz Napoleão.

-- Verás, senhor, que não ficarei para trás. O meu lugar é junto de ti.

-- Pois vem; se não te aguentares a pé jornadearás na carreta.

Feitas as despedidas, affectuosas, expansivas, depois de um ultimo adeus a Maria Isabel, cujos olhos se conservavam enxutos, apesar da sua pallidez ser a de um cadaver, o principe partiu, ibdo ao bota-fora, até grande distancia, toda a officialidade do acampamento que não estava de serviço, sem exclusão do general.

A jornada, de tres dias, fez-se sem incidentes durante os dois primeiros. A região a atravessar estava limpa de inimigos, agora concentrados em Ginginhlovo, Etshowe e Ulundi. Ao cabo do primeiro, Luiz Napoleão mandara retroceder a escolta por se convencer em absoluto da sua inutilidade. Ficou então só com a carreta, os guias do gado, Santa Cruz, quatro ordenanças e alguns serviçaes indigenas, entre os quaes Mahatana.

Quando o sol se escondia no horizonte no fim do segundo dia de jornada, estabeleceu-se o acampamento, armando-se a barraca do principe e de Santa Cruz e accendendo-se as indispensaveis fogueiras. Preparada e comida a refeição da noite, tomadas as precauções com que é de uso preservar o gado de qualquer visita desagradavel das feras, tudo entrou nesse silencio profundo e até certo ponto amedrontrador do sertão. O principe deitou-se e, depois de conceder alguns minutos de saudosa recordação a sua mãe, a mademoiselle Conneau e aos amigos ausentes, dormiu a somno sôlto.

Não teve a mesma felicidade Santa Cruz. Elle, o homem habituado á guerra, que aspirava com mais delicia as emanações acres do campo de batalha que os perfumes capitosos dos salões, trazia o espirito desassocegado. O somno que antigamente era de chumbo, que acudia fielmente a restaurar-lhe as forças apenas cerrava os olhos, por mais dura que fosse a cama e por mais temeroso que fosse o perigo em perspectiva, fugia-lhe agora das palpebras. O curso dos seus pensamentos seguia sempre o mesmo rumo, girava com a monotonia de uma nora em redor do mesmo eixo: o seu impossivel amor por Maria Isabel e a sua dedicação sem limites pelo filho de Eugenia de Montijo.

De subito, sobre a madrugada, resoou pelo mutismo da noite, ainda longinquo, mas ribombante como um trovão, um urro formidavel. Não ha nervos, por muito dominados que sejam pela vontade mais forte e mais intrépida, que não se excitem ante o clamor soturno e imponente do, com tanta propriedade chamado, rei das selvas.

A este bramido prenhe de temiveis ameaças, pregão de morte mais atemorisador ainda que os lançados pelos arautos medievos á populaça em vesperas de exemplares execuções, homens e animaes tornaram-se logo inquietos. Os pretos somnolentos, entorpecidos pela modorra, não conseguindo emancipar-se da indolencia que os subjugava, aconchegaram-se uns aos outros, os animaes acicatados pelo instincto, cheios de desassocego, jungidos ás cangas ou presos ás arvores, não podendo nem fugir nem defenderem-se, relincharam e mugiram como a pedir soccorro ante o poderoso inimigo que se avizinhava em busca de victimas para saciar a faminta voracidade.

Decorridos minutos retumbou outro urro, de mais perto. Durante segundos o ar vibrou com o pavoroso estrépito d'aquellas guellas possantes.

O temivel algoz aproximava-se. Os membros do gado principiaram a tremer como um caniçal fustigado pela borrasca.

Santa Cruz, irritado, levantou-se da cama, pegou na carabina, verificou com todo o cuidado se estava bem carregada e sahiu para fora da barraca em direcção da carreta, onde os bois, atrellados, se tinham erguido e aguardavam com terror o leão que andava perto.

O major sorriu. Ora até que o acaso lhe proporcionava ensejo de não se debater em vão contra a insomnia. A fera pagaria a excitação dos

seus nervos. Santa Cruz era um admiravel atirador. A sua pericia á pistola e a sua destresa á espada e florete causavam a admiração das salas de armas de París e Londres.

Occultou-se com o tronco de uma arvore, á espera do momento opportuno. Não havia luar, mas a noite estava clara, a atmosphera impregnava-se de uma especie de phosphorencia vulgar naquelles climas nessa epoca do anno. Santa Cruz esperava visar o felino quando se atirasse sobre a presa.

Attento, viu rastejar um vulto, encoberto com a herva.

-- Quem é? -- perguntou o major.

-- Sou eu, Mahatana, senhor.

-- Que queres?

-- Matar o leão.

-- Não tens medo?

-- Eu sou filho de uma zulu, senhor, não posso ter medo -- respondeu devagarinho, mas com orgulho o negro.

-- Já mataste algum?

-- Dois, no Transvaal, quando trabalhava nas minas de ouro.

-- Pensas então que não serei capaz de o varar com um tiro, sósinho?

-- Não duvido, senhor, mas a melhor espingarda erra. Este deve ter muita fome e quando tem fome é quasi tão valente como um zulo.

-- Fome teem elles sempre.

-- Nem sempre, senhor. Não come ha muitos dias para ousar vir aqui.

-- Com receio de ti? -- motejou Santa Cruz.

-- Não, senhor. As fogueiras conservam-se accesas e é preciso que a necessidade o aperte muito para arrostar com as labaredas...

Neste mesmo instante troou novo urro, agora apenas a algumas dezenas de metros. Os cavallos empinaram-se e retezaram as prisões com manifesta intenção de as partir e fugirem. Os bois sacudiam nervosos as cangas, batendo com as hastes uns nos outros e embaralhando-se.

-- De que banda virá elle? -- inquiriu o major.

-- Da banda dos bois, de além; conhece por instincto qual é o lado melhor para atacar a presa, embora, certamente, já nos tenha ouvido a falar.

-- Porque não trouxeste a espingarda ?

-- Basta a tua; prefiro a azagaia. Se o teu tiro falhar, ou ficar apenas ferido, estou mais á minha vontade assim.

-- Onde estão os teus companheiros?

-- Acolá, mais mortos que vivos.

-- Esses não são zulos.

-- Não, senhor, são gallinhas...

O commentario foi interrompido por um medonho rugido que parecia ter abalado ate as arvores. Santa Cruz, apesar do imperio que exercia sobre si, não conseguiu evitar um estremecimento. Os cavallos ennovelaram-se em upas prodigiosas, não se soltando por um milagre de consistencia dos cabrestilhos; os bois mugiram dolorosamente como se sentissem já cravar-se-lhes nas carnes arrepiadas as garras aduncas da fera.

Ao mesmo tempo divisou-se como num relampago um vulto enorme, a que as sombras davam proporções gigantescas. Santa Cruz, de espingarda á cara, ia puxar pelo gatilho quando, entre elle e o colossal vulto se interpôs uma forma humana. O major não pôde soffrear uma praga.

-- Má peste!...

Mas interrompeu-se ao ouvir a voz bem conhecida do principe, que bradou:

-- Quem está ahi?

Luiz Napoleão acordara estremunhado com o ultimo rugido, saltara da cama abaixo vestido como estava, pegara no revolver, ainda sem bem ter a consciencia das suas acções e correra direito á carreta. Tudo isto se realizara em muito menos tempo do que nós levamos a narrá-lo.

-- Senhor, abaixe-se -- gritou Santa Cruz.

O principe obedeceu machinalmente. O tiro partiu, mas já o leão descia no salto sobre o boi, que soltou um fundo gemido de dôr. A bala em vez de penetrar no peito da fera, roçou-lhe por uma das maxillas e abriu-lhe um largo rasgão pelo lombo adeante.

Temivel foi o bramido que se escapou das suas fauces hiantes. As garras crispadas profundaram e trituram as costellas da presa numa contracção de furia; depois, vendo deante de si o homem que presumia seu agressor, agachou-se para formar novo pulo e lançou-se no espaço convicto que num simples amplexo vingaria a audacia de tão mesquinho adversario.

Na verdade o leão encontrou um corpo, mas não foi o do principe. Mahatana, agil como um acrobata, surgira na sua frente, brandindo a azagaia com o olhar tão acceso que luzia mais que o do ferino animal. Seguro de si, com o pulso firme, enterrou a larga folha no pescoço do bruto, do qual golfou um caudaloso jorro de sangue. O golpe foi tão violento que a lamina partiu-se e o dedicado negro tombou levado ao chão pelo esmagador peso do seu exasperado contrario.

Detonaram acto continuo dois tiros. Era o revolver de Luiz Napoleão e a carabina de Santa Cruz que esphacelavam a cabeça do alentado bicho. O leão inteiriçou-se num derradeiro esticão e quedou-se inerte, sem vida, num mar de sangue.

Mahatana soffrera apenas algumas contusões, mas reabrira-se-lhe a ferida da perna.

-- Ora aqui está um preto que vale um branco dos de melhor quilate -- exclamou Santa Cruz, abraçando o indigena.

-- Nunca mais me abandonarás, meu amigo -- disse-lhe Luiz Napoleão -- serás como a minha sombra.

-- Senhor, não fiz nada; ainda não paguei toda a minha divida.

-- Bravo -- commentou Santa Cruz -- eis uma lição de reconhecimento de onde ninguem a esperava, recebida no sertão e vinda de um preto. Ahi tem vossa alteza um companheiro que lhe deve ser tão fiel como o mameluco Rostand foi do imperador Napoleão I.

Mahatana já não ouvia estes elogios. Sem querer pensar na ferida, escutava.

-- Que ouves? -- perguntaram-lhe os dois.

O leal servo deitou-se no chão e applicou o ouvido. Em seguida ergueu-se e disse para o principe:

-- Senhor, aproximam-se d'aqui algumas mangas de zulos.

-- Depois de um leão, o inimigo. Ora aqui está uma noite cheia -- gracejou o filho de Eugenia de Montijo.

II

A primeira tentativa

-- Senhor -- recommendou Mahatana -- desculpa o conselho. A primeira coisa que deves evitar é a fuga dos guias do gado; põe-lhe uma sentinella com ordem de matar o primeiro que pretender escapar-se para o matto.

-- Mas nós -- conversou Luiz Napoleão com Santa Cruz, muito prazenteiro, -- não podemos nem fugir nem defendermo-nos.

-- Mas muito menos entregarmo-nos de braços cruzados a esses selvagens -- retorquiu o major.

-- Nisso nem se fala, é claro -- accentuou o principe. -- Se eu não mandasse retirar a escolta!... Mas o que não tem remedio!... Que dirá sir Evelyn?!...

O episodio do leão fizera com que o pouco numeroso pessoal do acampamento se puzesse de pé, commentando-o cada um a seu modo.

Mahatana foi, de repente, guindado á categoria do heroe. Os outros negros reconheceram-lhe immediatamente a superioridade de entendimento e de valentia.

Já alguns dos indigenas, com a desenvolvida acuidade de percepção com que a natureza os dotara, tinham distinguido rumores suspeitos a distancia; entreolhavam-se intimidados.

Mahatana pediu ao principe para mandar apagar as fogueiras e que se observasse o mais rigoroso silencio. Os dois tiros, porém, em seguida ao derradeiro urro da fera, os relinchos dos cavallos e os mugidos dos bois, tinham com certeza echoado até muito longe e attrahido a attenção das mangas em marcha.

-- Que resolução tomar -- exclamou o principe para Santa Cruz, -- se os zulos nos apparecerem?

-- Fazer-lhes pagar cara a visita -- retorquiu o interpellado com ar sombrio -- ou então...

-- Ou então?... -- interrogou o filho de Eugenia de Montijo.

-- Vossa alteza monta a cavallo e diligencia chegar ao acampamento de lord Chelmsford, que fica a poucas horas de uma galopada veloz.

-- E abandono-os aqui? Tal não farei. Bem sabes, meu caro Santa Cruz, que um homem do meu sangue não póde commetter uma covardia. Demais, no ponto de vista de salvação pessoal, nada ganhava; tinha todas as probabilidades de ser chacinado no caminho. Morte por morte, prefiro-a a teu lado.

Mahatana andava de uma para outra banda, como quem abobóra um plano. De subito bateu na testa e, se fosse lido em historia e conhecesse a existencia do celebre sabio de Syracusa, bradaria como Archimedes:

-- Eureka!

Limitou-se, porém, a dirigir-se á carreta e a verificar a existencia do que quer que fosse que lá se encontrava. Satisfeito com o resultado do exame, encaminhou-se para o principe, e disse-lhe:

-- Senhor, na barrica vêem duas caixas d'aquella polvora muito forte, que serve para quebrar pedras nas minas.

-- Veem, duas caixas de dynamite, que sir Evelyn envia a lord Chelmsford, a requisição sua, por ter pouca, e que me pediu para eu transportar. Mas porque perguntas isso?...

-- São ellas que hão de pôr os zulos em fuga, se cá vierem.

-- Como?

Mahatana explicou a sua idéa:

-- Senhor, manda collocar um ou dois cartuchos, enterrados no chão, em varios sitios, em redor d'esta clareira. Se os zulos se aproximarem larga-se fogo aos rastilhos. Quando elles virem o lume sahir das entranhas da terra, ouvirem um grande estampido rebentar-lhes aos pés e o terreno escancarar-se como para os engulir, acreditarão num feitiço e nenhum parará a dez milhas em redor.

-- Excellente plano! -- bradou Santa Cruz exultando de contentamento.

-- És um homem precioso, Mahatana, uma especie de enviado da Providencia, -- declarou Luiz Napoleão; -- vamos já lançar mãos á obra.

Como os leitores se lembrarão, o principe tinha o curso da arma de artilharia, que completara distinctamente. Num instante, sob a sua direcção e direcção de Santa Cruz, as ordenanças e os pretos da carreta e do serviço particular construiram uma porção, do que em linguagem militar se chama fornilhos, em diversos pontos em torno do pequeno bivaque, devidamente ligados por meio de compridas mechas. Foi tal a confiança que a medida incutiu, até no animo dos mais timoratos, que todos esperavam sorridentes e com certa impaciencia a aproximação dos zulos.

O estratagema, porém, podia falhar.

Eram duas as mangas do inimigo, cerca de trezentos homens, que andavam em reconhecimento para se informar da marcha dos inglêses. Conhecendo bem os meandros do matto, caminhavam de noite, prestes a cahir sobre qualquer fracção isolada dos brancos, ou dos indigenas seus auxiliares, que se aventurassem por esses recessos mysteriosos e extermina-los até o ultimo.

-- Senhor -- preveniu Mahatana -- estão perto, não tardarão a apparecer, vou espreitá-los para dar signal.

-- Mas eu não sinto nada -- objectou o principe, incrédulo.

Mahatana já não ouvira estas palavras, pois correra em direcção das selvas. Principiava a alvorecer, azulando-se o nascente com uns laivos de anil que houve se rosaram e embranqueceram numa claridade suave.

A meio da clareira avolumava a carreta, que servia como de natural reducto a esse punhado de homens, de carabinas aperradas, pallidos, os europeus, não só pela acção deprimente do clima, mas ainda pelos reflexos lividos d'essa hora matutina. Em volta ramalhavam algumas arvores escassas de coma pouco abundante, emmaranhava-se o capim alto e traiçoeiro, as estevas enredadas e repletas de abrolhos.

Ouvia-se agora um rumor surdo, como um rolar de pequenos seixos por uma levada abaixo. Os negros comprehenderam o que esse rumor significava e o seu denodo de ha um instante transformou-se em invencivel panico. Apertaram-se uns de encontro aos outros, instinctivamente, como já o tinham feito ao primeiro urro do leão, e só por uns restos de brio é que não largaram as armas e deitaram a fugir.

O sol, que nestas latitudes accelera o seu apparecimento, talvez com ciumes das doces meias tintas do crepusculo, inundava agora já este rincão com os seus raios ainda pouco ardentes mas superabundantes de luz. A uns oitenta metros, fluctuavam por cima do verde intenso da herva uns estranhos e pintalgados vapores.

-- Os zulos! Os zulos! -- balbuciaram tranzidos de medo os negros.

-- Agora, senhor, agora! -- berrou do sitio onde se occultara no seu atrapalhado inglês o bravo Mahatana.

O principe e Santa Cruz lançaram fogo aos rastilhos, que tinham sido dispostos com todo o cuidado para que a humidade lhes não inutilisasse a acção. Mahatana corria como um galgo em direcção do grupo para não ser apanhado pelos estilhaços.

Os zulos, que avança,vam a principio cautelosos, pois não conheciam a força dos contrarios que iam acommetter, precipitaram-se com toda a velocidade para a clareira apenas se convenceram da insignificancia do seu numero. Atroaram os ares com o seu habitual alarido, pularam de contentes ante tão fraca victima e contorceram-se em horriveis esgares, que seriam comicos se não symbolisassem a sua desmarcada ferocidade.

De repente o solo estremeceu, convulsionou-se, como abalado por um medonho terramoto, detonaram cinco ou seis formidaveis explosões, as arvores oscillaram como se lhes faltassem as raizes, e tudo, homens e animaes, brancos e pretos, foi derribado, á guisa das cartas de jogar, dobradas e enfileiradas, que as creancas costumam pôr de pé nos seus brinquedos infantis, para depois as vêr cahir successiva e rapidamente, impellidas pelo seu pequenino dedo.

Parecia que tudo fôra fulminado. Aos zulos nunca succedera coisa semelhante. Que força prodigiosa os exterminara, os arremessara assim ao chão? As explosões mataram uns vinte e feriram outros tantos. Mas os que estavam vivos e bem vivos, suppozeram-se no primeiro instante transportados ao outro mundo da sua religião. Quando se convenceram do contrario, que ainda existiam neste; quando o instincto da conservação lhes aconselhou que deviam fugir; ergueram-se de chofre, espavoridos; correram como lebres, dispersos, atordoados, berrando, gemendo, vergados a um louco terror supersticioso, aturdindo os echos d'aquellas solidões com os lamentos d'uma calamidade a que não se podiam subtrahir, apregoando como possessos:

-- O feitiço do branco! O feitiço do branco!

Em poucos minutos não se via, como promettera Mahatana, a não serem os mortos e os feridos, um unico zulo em dez milhas ao redor.

O principe ria convulsivamente ante aquella precipitada fuga, Santa Cruz acompanhava-o e os indigenas olhavam para os europeus com uma expressão mista de espanto e susto. Não comprehendiam nada do que se passava. Concordavam com o juizo dos seus inimigos: aquelles dois brancos deviam ser feiticeiros e Mahatana seu cumplice.

-- Agora, senhor -- disse-lhe Mahatana, -- podes continuar a viagem descansado, ninguem te incommodará. A scena de ha pedaço espalhar-se-á por toda a Zululandia e todos se arrecearão da tua pessoa.

Meia hora depois a pequena caravana proseguia no seu itinerario em direcção do sitio onde se encontravam as tropas de lord Chelmsford. Quando, porém, teria andado umas seis milhas encontrou uma patrulha de cavallaria inglesa. O principe deu-se a conhecer e o commandante da força explicou:

-- A columna do general-em-chefe prepara-se para soccorrer o coronel Pearson, que está cercado por numerosas mangas zulas em Etshowe.

Como recebemos informações de que o inimigo tenciona atacar o acampamento afim de evitar essa marcha, e como se ouviram de la enormes explosões, incumbiu-me a mim de saber o que os motivara.

Luiz Napoleão relatou succintamente o que os leitores conhecem, ao som das gargalhadas do seu camarada.

Cerca do meio dia apresentava-se a lord Chelmsford. Recebido com a maior deferencia, foi encorporado no estado maior, bem como Santa Cruz, a quem o general britannico conhecia de Inglaterra.

-- Vossa alteza acaba de assistir á acommettida e defesa de Kambula; pois é natural que se lhe offereça breve um espectaculo semelhante aqui no Tugela. Tenciono partir ámanhan com a minha columna para Etshowe para desbloquear o coronel Pearson, que ali se tem mantido valentemente a despeito de todas as desesperadas tentativas dos negros, e sei pelos espiões que serei atacado aqui ou no caminho, ou nos dois sitios.

-- Estimo; foi esse o principal, senão o unico motivo, porque vim á Zululandia: ver e aprender a guerra; Quanto mais depressa os zulos se convencerem que teimar numa lucta esteril para elles, mais rapidamente terminará campanha e poderei ver minha mãe.

-- Sua, magestade a imperatriz teve a immensa bondade de escrever uma carta penhorantissima a minha mulher, quando soube que vossa alteza vinha servir nas forças que commando. É uma distincção de que nunca me esquecerei.

-- Sua magestade é sempre bondosa e mãe -- retorquiu o prinçipe com um, sorriso -- talvez fizesse recommendações demasiado materiaes a lord Chelmsford.

-- Nenhuma, absolutamente nenhuma, dou-lhe a minha palavra -- respondeu o general-em-chefe. -- Se as houve não provêem de quem presume...

-- Mas existem então recommendações a meu respeito? -- interrogou o principe com certa anciedade.

-- Descanse vossa alteza, não serei eu nem nenhum chefe, digno d'esse nome, que proceda de modo a melindrar-lhe o caracter. Será para mim um official como outro qualquer, para quem a honra e a coragem são os mais bellos de todos os apanagios.

Realmente na madrugada seguinte uma impi zula de onze mil homens investiu com louca temeridade o acampamento de lord Chelmsford no Tugela inferior. Commandava os negros o celebre Dabulamanzi, o mesmo caudilho que tão brilhante e sangrenta victoria obtivera sobre as armas britannicas em Isandluana. O assalto foi repellido em toda a linha.

Acto contínuo o general-em-chefe passou da defensiva á offensiva, formou a columna de ataque e dispôs-se a marchar sobre Etshowe. A columna era constituida por cinco mil e setecentos combatentes, dos quaes tres mil e quatrocentos europeus e dois mil e trezentos indigenas. Compunham as suas unidades os regimentos de infantaria 57, 60, 91 e 99, algumas companhias do Buffs e de marinha, duzentos homens de cavallaria e dois batalhões de indigenas. A força dividia-se em dois troços: a guarda avançada ás ordens do coronel Low, e a da retaguarda sob a direcção do major Pemberton.

Abriam a marcha os marinheiros desembarcados dos cruzadores Schah e Tenedos, com duas peças e tres metralhadoras Gattling. Seguiam-nos cinco companhias do 91 e do 99 e duas do Buffs. Desfilavam depois cento e cincoenta carretas, escoltadas por um batalhão indigena e infantaria montada. Formavam a cauda o regimento 57, duzentas marinheiros do Boadicea, um batalhão do 60, um batalhão indigena e o resto da cavallaria.

A columna abrangia uma distancia consideravel. Durante o primeiro periodo de avanço não houve serias difficuldades a vencer. O caminho apresentava-se razoavel, num terreno pouco accidentado. O serviço de exploração nesta parte foi confiado aos indigenas a cavallo, que flanqueavam o corpo principal numa larga area. Apenas se avistaram alguns zulos nos montes distantes, a espiar o andamento das tropas, mas sem se aproximarem a alcance de tiro.

Após dois dias de marcha a testa da columna chegou a Inhoni. Apenas se lhe juntaram as outras fracções formou-se immediatamente um laager, com as carretas no centro e as tropas em quadrado. Toda a gente se lançou apressadamente ao trabalho, e antes de se fechar a noite tinham-se construído trincheiras capazes de repellir qualquer investida do inimigo. Inhoni fica situado a nove milhas ao norte do Tugela, numa encosta d'onde se descobre o rio. Durante a marcha a columna manteve-se em communicação constante com Etshowe por meio do heliógrapho. O coronel Pearson telegraphava de lá todos os movimentos dos contrarios. A ultima mensagem participava que estavam concentrados num sitio perto de Etshowe, cerca de trinta e cinco mil zulos.

Na manhan immediata o acampamento foi transferido para a margem direita do Amatikulu, após um percurso de sete milhas. Tomaram-se ali as mesmas precauções. Como o chão era elevado, divisava-se de lá a torre de Etshowe. Ainda não estavam terminados todos os preparativos, quando o coronel Pearson telegraphou prevenindo que uma densa massa de inimigos se dirigia para Inhezane e que seria conveniente conservar o gado dentro dos parapeitos.

A noite decorreu sem alarmes, mas ás cinco e meia da manhan avistaram-se numerosas mangas zulas na direcção do nordeste. Atravessaram o rio Inhezane, e de improviso, quasi theatralmente cobriram todas as eminencias em redor. Em seguida, numa rapida e admiravel manobra, tomaram a sua formatura predilecta: um amplo e bem desenhado crescente. As disposições para os receber eram dignas do seu esforço.

Por trás de elementares parapeitos, na face da frente, postava-se o 60. Á sua direita estendiam-se os marinheiros com as Gattling apontadas no angulo das trincheiras. A seguir prolongava-se o 57. Na segunda esquina havia duas peças; o 91 defendia a face da retaguarda. No recanto ininiadiato estavam mais Gattling, adeante duas companhias do 91, tres companhias dos Buffs e do 99. Atrás formava a bateria de foguetes á Congrève. O aspecto dos zulos e dos inglêses era magnifico.

Os negros arrojaram-se para a frente com a galharda furia de sempre, mas receberam-nos tremendas descargas cerradas do 60. As investidas duraram meia hora, mas foram todas repellidas. O fogo cessou então nessa face. Escarmentado d'aqui, o inimigo convergiu sobre a direita e tentou um enorme esforço d'esse lado, mas o 57 e o 91 acolheram-no tão hospitaleiramente como os seus camaradas. Nada se compara ao denodo com que os guerreiros negros, embraçando os escudos, com as pelles de leopardo á cinta e as plumas na cabeça, com as caudas de bois bravos presas dos pescoços, avançavam de azagaia em punho contra as improvisadas fortificações. Apesar da tempestade de ferro e fogo que os cobria, corriam sempre, dansando e cantando. Sustentaram-se durante algum tempo na crista das obras e não se sabe para que lado penderia a balança se a artilharia não se mettesse na contenda.

Ante o chuveiro de metralha das Gattling e os fragmentos destruidores das granadas detiveram-se, hesitaram e recuaram. Cahiu-lhes então a cavallaria em cima. Nos primeiros momentos tentaram resistir ao embate, mas a sua tactica não estava preparada para esse genero de combate. Refugiaram-se no matto, mas foram perseguidos até Inhezane e, para completar o desbarato, os auxiliares indigenas, que nunca ousariam atacá-los de frente, sahiram do seu laager, e pelas costas, chacinaram-nos sem piedade. O solo ficou juncado de armas de todas as especies. Ao alvorecer da manhan immediata partiu uma columna volante para ir buscar a guarnição de Etshowe. Encontrou-a reduzidissima pelas enfermidades e pelo constante trabalho. Lord Chelmsford resolveu abandonar esse posto situado num local extremamente doentio. Pouco depois das forças recolherem ao acampamento de Ginginhlovo, um official preveniu o commandante-em-chefe :

-- Meu general estão fora das trincheiras alguns zulos com a bandeira branca.

-- Oh! estão muito adeantados -- respondeu-lhe lord Chelmsford -- sabem o modo de se fazer annunciar como parlamentarios, mas fingem ignorar que não devem matar os prisioneiros.

Mande-os entrar devidamente escoltados.

A meio do acampamento, e rodeado pelo seu estado-maior, lord Chelmsford recebeu a embaixada do inimigo. Em torno agruparam-se os soldados brancos e os auxiliares para assistir á audiencia. O parlamentario era nem mais nem menos que o irmão do regulo Catchuaio.

-- Que pretendes? -- perguntou-lhe lord Chelmsford.

-- O rei manda propôr-te a paz -- respondeu o embaixador -- basta já de tanto sangue derramado teu e nosso. Queremos viver como amigos, como antigamente. Catchuaio nunca desejou a guerra.

-- E Isandluana?

-- Foram os inglêses quem atiraram primeiro; os zulos só se defenderam.

-- E Hlobane?

-- Pugnávamos pelo nosso gado.

-- E Kambula?

-- Ameaçavam roubar as nossas mulheres.

-- E Ginginlhovo?

-- Foram os rapazes novos que quizeram molhar a azagaia, desobedeceram ao rei.

-- Então Catchuaio que me mande as peças de artilharia que levou de Isandluana, que entregue todas as armas de fogo que possue e que ordene a retirada, das suas impis para o norte da Zululandia, só depois escutarei propostas de paz.

-- Senhor, o rei fará tudo isso, mas pede-te que não avances mais, de contrario não poderá ter mão na sua gente.

-- Bem sei -- respondeu lord Chelmsford, que estava bem informado; -- Catchuaio tenta evitar a nossa marcha sobre Ulundi, sobre a sua povoação, mas affirma-lhe que antes de apparecer a nova lua, chegaremos lá, queimaremos tudo e elle deixará de ser o senhor d'estas terras.

-- É a tua ultima palavra, senhor?

-- É. Ou o regulo se submette completamente ou elle será o ultimo dos descendentes de Tchaca.

-- Senhor, não succederia assim se não tivesses comtigo esse branco que te trouxe feitiço.

-- Qual branco e qual feitiço?! -- exclamou lord Chelmsford fingindo-se surprehendido.

-- Esse que é filho de um soberano tão grande como o de Inglaterra, e que juntou o seu poder ao d'elle para destruir a nação zula;

O general, que comprehendeu a allusão, pois conhecia os rumores espalhados no matto a respeito do principe, sorriu-se para Luiz Napoleão presente á audiencia, e retorquiu:

-- Mais um motivo para que o régulo acceite as condições impostas.

-- Vou transmittir-lhe as tuas palavras.

-- Vae, que nós continuaremos para a frente.

Os parlamentarios foram conduzidos para fora do entrincheiramento com as mesmas formalidades, não sem primeiro terem visto a enorme quantidade de cadaveres seus que os auxilares andavam enterrando em volta do campo.

Lord Chelmsford mandou então chamar á sua barraca alguns dos prisioneiros feitos durante o combate:

-- Que gente nos atacou? -- inquiriu o inteprete a um dos que parecia mais intelligente, e a quem fora promettida a liberdade se respondesse conscienciosamente.

-- Éramos sete mil zulos, escolhidos de cinco das melhores mangas de Catchuaio, com muitos milhares de homens de outras tríbus nossas vassallas.

-- Onde está o régulo agora?

-- O rei foi com os velhos para a Inhlatyze.

-- Com o gado?

-- Não, senhor; o gado e as mulheres estão nas aringas de Umhlatusi e de Ingogo.

-- E as impis?

-- Concentram-se em Ulundi.

O prisioneiro pouco mais disse de importante, e, conforme a promessa feita, deixaram-no ir embora. Quando o principe sahia da barraca de lord Chelmsford para se dirigir para a sua, acompanhado por Santa Cruz, não reparou num preto que os seguia com toda a cautela, mas dissimuladamente.

O calor era abrasador. Luiz Napoleão e o major sentaram-se em dois pequenos escabellos em frente do seu acanhado alojamento.

-- Sinto uma sede devoradora -- declarou Santa Cruz enxugando a testa salpicada de camarinhas de suor.

-- Vamos beber cerveja? -- propôs o principe.

Acto continuo, bateu as palmas e ordenou a um dos criados negros que trouxesse da cantina dos officiaes dois copos de cerveja. O preto deitou a correr e minutos depois apparecia com uma tosca bandeja com dois copos da espumosa e refrigerante bebida.

-- Ao menos ainda nos restam alguns barris de Pale-ale -- commentou o principe com um suspiro de satisfação -- porque a agua d'aqui, nem filtrada se póde tragar.

-- Nem se comprehendia inglêses sem ella nem sem whisky -- retorquiu com uma certa ironia Santa Cruz.

E, ambos, sequiosos, estenderam as mãos para os copos, antegostando o prazer que iam sentir ao refrescar a garganta encandescida.

Mas, antes de levarem os copos á bocca, surgiu esbaforido, Mahatana, que, com um desrespeito absoluto, os arrancou da mão dos dois, os lançou ao chão e exclamou indignadissimo:

-- Senhor, tem unhala!

-- Que é unhala? -- bradou o major com mal contida ira.

-- Veneno -- explicou o indigena olhando para o solo, humido com o liquido derramado.

III

Uma aventura inesperada

Voltemos um pouco atrás.

Durante o ataque dos negros, Luiz Napoleão e Santa Cruz permaneceram sempre ao lado do general, acompanhando-o aos sitios mais perigosos que reclamavam a sua presença.

Mahatana, apenas se pronunciou a desordem nos seus odiados inimigos, largou-se de rodela no braço e brandindo a azagaia atrás dos vencidos. Não foram poucos os zulos a quem o seu odio profundo obrigou a morder a terra no derradeiro estertor. Quando ia a acabar com um dos seus adversarios, que escorregara e cahira na lucta, ouviu dizer-lhe:

-- Mahatana, não me mates!

A designação do seu nome surprehendeu-o, e, sempre de azagaia erguida, prompto a mergulhá-la no corpo do antagonista, perguntou-lhe:

-- Donde me conheces?

-- Das minas de ouro, onde trabalhamos juntos.

Mahatana fixou-o melhor, mas nem por isso estava disposto a perdoar-lhe.

-- Porque te hei de poupar?

-- Não sou zulo, obrigaram-me a acompanhá-los, a mim e a muitos outros.

Este argumento fez nascer alguma piedade no coração do intrépido negro, mas retorquiu ainda:

-- Porque não fugiste ou não te apresentaste aos inglêses?

-- Não pude.

-- Está bem, não te mato, mas entregas-me as tuas armas.

O vencido, revelando o maior pezar, desfez-se das tres azagaias que levava e da nonga.

-- Agora levanta-te -- determinou Mahatana -- e acompanha-me ao acampamento.

-- Aprisionas-me?

-- Está claro.

-- Minha mãe e as minhas mulheres não me vendo apparecer suppor-me-ão morto. Se generoso até o fim, deixa-me ir para a minha povoação.

-- Para te voltares de novo contra nós?

-- Não, não guerrearei mais contra os brancos. Olha, se fizeres isso conto-te uma coisa que te interessa.

-- Alguma mentira.

-- Uma verdade que muito agradecerás.

-- Conta.

-- E dás-me a liberdade?

-- Se a mereceres, dou.

-- Não estás ao serviço do branco que é filho de um rei?

-- Estou -- affirmou Mahatana applicando o ouvido com a maior attenção.

-- Esse branco trouxe feitiço contra os zulos; os isanusi condemnaram-no á morte...

-- Já sabia.

-- Estão no acampamento dois negros que se comprometteram a matá-lo...

-- Como?

-- Se não puder ser com ferro ou com fogo, com veneno.

-- Os seus nomes?

-- Ignoro-os. Conheço o facto e mais nada. Mahatana meditou durante alguns segundos e em seguida disse:

-- Bem, segue o teu caminho e toma as tuas armas.

O preto manifestou o seu reconhecimento soltando uma ruidosa exclamação e afastou-se contentissimo.

Mahatana voltou para o acampamento e não tornou a perder o principe vista. Não o preveniu, porque lhe ensinara a experiencia que elle não o acreditaria ou não se importaria com a advertencia. Arvorou-se em sua sentinella vigilante de dia e de noite.

Luiz Napoleão comia com lord Chelmsford e não era facil ahi envenená-lo, mas receava qualquer emboscada ou que lhe misturassem qualquer peçonha a elle isoladamente. Nenhuma coisa anormal lhe despertara as suspeitas até o momento em que ouviu o principe mandar buscar cerveja á cantina.

Seguiu o preto até o sitio da carreta que transportava as bebidas. Viu o sargento encher os dois copos, o criado retirar-se e ia para abandonar a espionagem, por inutil, quando se lhe deparou um indigena que entabolara conversação com o portador da bandeja. Não pôde ouvir o que conversaram, mas viu o outro fazer com um movimento de quem deita qualquer coisa nos copos. Correu, mas um desappareceu veloz e o outro dirigiu-se apressadamente para

o seu destino. Mahatana só tivera tempo de praticar a acção violenta que descrevemos no capitulo anterior.

-- Enlouqueceste? censurou-lhe então o principe depois de ouvir a palavra veneno.

-- Não, senhor; repara, a prova mais evidente de que o teu criado se tornara cumplice neste crime e o medo como se escapa por ahi fora.

Na verdade, o negro que trouxera a bandeja, muito pasmado com a interferencia de Mahatana, aproveitara o momento de confusão que o accidente motivou e sumia-se pelo acampamento adeante numa carreira douda.

-- O criado podia fugir com medo pelo teu acto e não por ser connivente no tal presumido envenenamento... -- objectou Luiz Napoleão.

-- És muito incredulo, senhor -- retorquiu Mahalana. -- Não perdeste nada. Vou eu agora buscar-te a cerveja, mas ha de ser em garrafas; perdoa o meu atrevimento.

E dirigiu-se, sem esperar pela resposta, para a cantina.

Na manhan seguinte a columna de lord Chelmsford voltou a reoccupar as suas posições no Tugela inferior. Dera-se antes de levantar o campo um episodio desagradavel. Algumas vedetas, imaginando que os inimigos se aproximavam, dispararam varios tiros, e retiraram. A noite era tenebrosamente escura. Das trincheriras, suppondo que se realizava uma investida em forma e tomando as sombras que se acercavam por assaltantes contrarios, desfecharam. D'este lamentavel engano resultou a morte de um soldado do 60 e de dez auxiliares que serviam ás ordens de John Dunn.

Dois traços ácerca d'esta curiosa individualidade. John Dunn fora amigo intimo do régulo Catchuaio. Inglês, nascido na Europa, de paes brancos, fixou-se em Natal como colono. Internou-se no matto a negociar e a caçar. Dentro em pouco conhecia a lingua dos indigenas tão bem como a propria. Valente, tomou parte nalgumas guerras cafres, sendo precioso o seu concurso na obtensão de differentes victorias ganhas pelos zulos. Desde então tornou-se o conselheiro privado do régulo, que o ouvia em todos os assumptos de certa importancia.

Quando rebentou a guerra com os inglêses, a que John Dunn sempre se oppôs com humana e patriotica tenacidade, despediu-se do que até ahi fôra seu amigo e collocou-se com todo o desassombro e dedicação ao lado dos seus compatriotas. Rude, mas bondoso, intrépido sem ostentação, era um collaborador inestimavel nessa campanha sangrenta e de emboscadas, em que tudo, desde o clima até os animaes, se manifestava hostil aos europeus.

John Dunn, guia da columna de lord Chelmsford quando foi soccorrer a guarnição de Etshowe, affeiçoara-se intimamente ao principe imperial, como toda a gente que d'elle se aproximava.

A narrativa das suas perigosas caçadas, das suas aventuras cortadas de lances arriscadissimos, captivavam e deslumbravam a juvenil imaginação do pretendente ao throno de França.

-- Quer então vossa alteza caçar cavallos marinhos? -- perguntava John Dunn a Luiz Napoleão uma noite no acampamento do Tugela.

-- Quero, sim; os zulos andam longe, não nos atacam, nem nós os atacamos a elles, a existencia nestas condições é d'uma monotonia atrós, preciso afugentar o aborrecimento.

Santa Cruz era do mesmo parecer. As operações achavam-se, por assim dizer, paralysadas, da banda das tropas britannicas por escassez de abastecimentos regulares. Faltavam meios de transporte, a administração militar luctava com complicadissimas difficuldades para fazer chegar desde o littoral até o sertão invio, inhospito, devastado pelo inimigo, as provisões de guerra e de bocca necessarias a um exercito de dez mil homens, acostumado a ser abundantemente alimentado. Para augmentar a já crescida somma de obstaculos, mão criminosa lançara fogo na cidade de Grey a dois immensos armazens atulhados de generos.

O principe soffrera alguns accessos de febre palustre, facilmente combatidos, mas cuja repetição convinha evitar. Este problema preoccupava não só os medicos, mas ainda o major, e o melhor remedio era distrahir-lhe o espirito, uma das condições mais hygienicas naquellas regiões pantanosas e enervantes.

-- Pois então -- acquiesceu John Dunn -- iremos amanhan á lagoa proxima, que abunda em hippopótamos, se lord Chelmsford não se oppuzer a isso.

Breve se organizou uma partida de caça, em que entravam além do principe e das pessoas do seu sequito, vários officiaes britannicos. Lord Chelmsford, por descargo de consciencia, mandou primeiro proceder a um largo reconhecimento em redor do campo, por uma força de cavallaria. Voltou esta affirmando que não descobrira nem sombra de um zulo.

Preparados dois ou tres pequenos barcos para poderem navegar na lagoa, e que para lá foram transportados pelos pretos, os caçadores montaram a cavallo, ainda de noite, e dirigiram-se para ali sob a direcção de John Dunn.

A certa distancia, por causa da natureza alagadiça do terreno, apearam-se e caminharam atolando-se na vasa que se estendia por larga area.

-- E não quer a gente ter febres num país como este! -- Commentou um dos officiaes.

-- Para matar negros e brancos inventaram-se metralhadoras, espingardas, granadas, quantas coisas o demonio foi buscar para dar cabo da raça humana, mas para extinguir os mosquitos, esse temivel vehiculo da febre, é que ainda não houve ninguem que tivesse uma idéa -- redarguiu outro.

-- Qual, meu amigo -- acudiu um mais satyrico -- a idéa está descoberta ha muito, são os medicos que compraram por bom preço o inventor para guardar segredo. Que seria d'elles e dos productores da quina se a febre desapparecesse?

A observação foi acolhida com uma salva de gargalhadas.

Ouviam-se de quando em quando os guinchos agudos dos cavallos marinhos, que, absolutamente inoffensivos, quando não atacados, não suspeitavam com certeza que se lhes preparava uma hecatombe.

John Dunn ia á frente da caravana e ordenou aos negros:

-- Lancem os barcos á agua!

Em seguida virando-se para os europeus, preveniu-os:

Cada barco só póde conter quatro pessoas, dois tripulantes e dois caçadores -- e accrescentou: -- que devem saber nadar.

-- E os outros? -- perguntou um dos officiaes mais insoffridos.

-- Vão por terra, pelas orlas da lagoa -- respondeu o director da caçada.

-- A fingir de rans? -- obtemperou um gracejador.

-- A mostrar as suas qualidades de fluctuação -- replicaram de prompto.

O bando chegara agora á beira da enorme toalha de agua, occulta aqui e ali pelo caniçal, por uma infinidade de plantas aquaticas, habitada por um verdadeiro cosmo de patos, aves de toda a especie, crocodilos e hippopótamos.

-- Que bicharia -- exclamou um dos caçadores ao vêr levantarem-se nuvens de passaros que escureciam de momento a luz do sol.

-- Esses são os que se mostram; os que se escondem, os que a esta hora estão no fundo do pantano e encobertos com a herva, são ainda mais, creiam -- explicou John Dunn.

O terreno que circumdava a lagoa, baixo, inundado nuns sitios, accidentava-se noutros pontos em ribas de cinco a seis metros de altura.

-- Que é isto? -- indagou um dos excursionistas.

E apontava para um declive aspero, onde a palha se acamava e o terreno parecia achatado por um cilindro de grandes dimensões que rolasse sobre elle.

John Dunn, sempre obsequioso, informou:

-- Os cavallos marinhos, de quando em quando, saltam em terra para pastar, e ai do milharal ou do campo de mandioca por onde passam! Não é pelo que comem, é pelo que pisam e derribam com o monstruoso corpanzil. Quando se atiram de novo á agua, ou por vontade propria ou assustados por qualquer bulha, firmam-se nas patas deanteiras, encolhem as trazeiras e deixam-se escorregar. É este movimento que produz todos esses planos inclinados que por ahi se nos deparam.

No numero dos seis caçadores, a quem coube embarcar, contava-se o principe e Santa Cruz. Luiz Napoleão estava encantado com esta diversão cynegetica. Era radicalmente differente das sumptuosas caçadas a que assistira na sua infancia em Fontainebleau. Não havia ahi nem fardas verdes agaloadas a prata, nem magnificos cavallos, nem comitivas aristocraticas, nem um bando de monteiros que enxotava as peças para a frente das boccas das espingardas. Aqui o scenario era selvagem, de agreste austeridade, o perigo effectivo, a cada aspiração o organismo absorvia legiões de miasmas palustres.

Divisavam-se, a distancia, os cavallos marinhos só com a pequena cabeça fora de agua, com os olhos muito vivos e perscrutadores, com as orelhas arrebitadas e o ouvido alerta. Ao menor ruido mergulhavam, para surgir mais adeante, sempre timidos e desconfiados. As fêmeas ostentavam as crias no dorso, onde os informes animaes brincavam como numa superficie espaçosa e firme.

-- Atirem de preferencia aos machos -- aconselhou John Dunn.

-- Porquê? -- inquiriu de dentro do barco o principe.

-- São menos ferozes quando feridos -- explicou o antigo colono.

Principiou então a caçada. As espingardas disparavam balas explosivas. As usuaes, apesar de toda a força de penetração das armas modernas, ou resaltavam se incidiam com um angulo muito aberto, ou entravam e quedavam-se alojadas na espessa camada de tecido adiposo que lhes envolve os orgãos essenciaes á vida num quasi impenetravel escudo.

O tiroteio principiou célere sendo mortos alguns animaes enormes, que se deixavam ir ao fundo primeiro, para só mais tarde fluctuar e serem apanhados pelos negros, extremamente gulosos da sua carne e tirando immenso proveito da pelle e principalmente dos dentes, que constituem uma das especialidades do marfim mais procuradas no mercado.

Nada de anormal succedeu até que um official inglês, num barco proximo do do principe, descobrindo a pequena distancia uma fêmea com a cria ás costas, apontou, fez fogo e despadaçou a cabeça do animal. A mãe soltou um grito agudissimo e desappareceu, mas de subito, sem que ninguem esperasse semelhante investida, o barco de Luiz Napoleão foi erguido da agua num impulso extraordinario, arremessado ao ar, como se debaixo d'elle se desse uma repentina erupção vulcanica e os seus quatro tripulantes cuspidos na lagôa.

-- Realizou-se o que eu temia! -- exclamou John Dunn, pousando a carabina e despindo o casaco para correr em soccorro dos naufragos, caso fosse mister.

Todos nadavam bem e breve surgiram bracejando em direcção da canôa, para a virarem e subirem de novo para ella. O principe ria com toda a alma d'este banho forçado, que não fazia parte do programma da diversão e que nenhuma

imprudencia sua provocara.

-- Cautela! -- bradou uma voz com retumbante accento.

A mãe da cria morta, furiosa, corria direita a Luiz Napoleão, disposta a enterrar-lhe os afiados e enormes dentes. O momento era crítico. Não havia tempo para alcançar a canôa e muito menos a beira do lago. Os caçadores mais proximos dispararam as armas sobre o enraivecido animal, mas, como sempre succede quando se atira com precipitação, nenhum lhe acertou e houve até serio perigo de attingir a pessoa a quem desejavam salvar.

Santa Cruz nas mesmas condições, por incommensuravel que fosse a sua coragem, nada conseguiria fazer. Mahatana, que ficara em terra, sentia-se d'esta vez na impossibilidade de recorrer a qualquer expediente efficaz. A perplexidade aturdira os cerebros como immobilisara a acção dos mais desembaraçados. Todos os homens emmudeceram. John Dunn, porém, não perdera o sangue frio. Tornou a pegar na carabina e em seguida a sua prevenção, pois fôra elle quem mandara acautelar o principe, gritou:

-- Mergulhe.

Luiz Napoleão mergulhou instinctivamente.

Antes da sua perseguidora ter tempo de lhe imitar o exemplo, John Dunn visara-a com a maxima serenidade e puxou pelo gatilho. O projectil partiu e, acertando-lhe na bocca meio aberta, desfez, ao explodir, a cabeça do irado animal.

O principe estava salvo, mas o emocionante episodio, que ia degenerando em tragedia, empanou a alegria da distracção. Desembarcaram os que andavam nas canôas, os que tinham cahido á agua puzeram os fatos a seccar, o que não levou muito tempo por causa da violencia do sol, comparavel nos seus effeitos a metal em fusão, victoriaram com enthusiasticos hurrahs John Dunn, muito surprehendido do seu acto tão natural merecer tão ruidosos applausos, e trataram do almoço, resolução acolhida com intenso contentamento e que breve fez esquecer as rapidas angustias de ha pouco.

A refeição estava quasi no fim, cada um contava as suas proezas de caça, a serie de pêtas tão peculiares aos caçadores levantavam por vezes reparos dos mais mordazes e epigrammaticos, reinava emfim a mais communicativa alegria, quando um dos negros de John Dunn lhe segredou algumas palavras.

O bravo sertanejo, apesar de todo o imperio que exercia sobre si, tornou-se muito vermelho e pôs-se a pé de um salto. Em seguida afastou-se com o preto e discutiu com elle durante alguns minutos, gesticulando e apontando para diversos pontos do horizonte. Quando voltou para o grupo, perguntaram-lhe:

-- Ha alguma novidade?

-- Nenhuma -- respondeu com uma certa hesitação, -- mas o sol vae alto e seria conveniente montarmos e recolhermos ao acampamento.

-- Mais meia hora -- propuzeram alguns dos commensaes, a quem as repetidas libações tinham tornado demasiado expansivos -- só o tempo necessario para acabar com estas garrafas de Champagne.

-- A cavallo, meus senhores -- retorquiu John Dunn, diligenciando occultar num sorriso a sua manifesta impaciencia.

-- Se não ha nada de extraordinario que nos obrigue a ir embora, porque não havemos de gosar este sitio delicioso por mais algum tempo? -- repisou um conviva mais obstinado.

-- E um favor pessoal que me fazem, meus senhores, montando sem perda de tempo -- insistiu o experiente sertanejo.

O mesmo serviçal que communicara fosse o que fôsse a John Dunn, tornou a avisinhar-se do amo e a falar com elle em voz baixa. O antigo colono curvou a fronte durante um segundo, como a meditar um plano e logo a ergueu mais resoluta e satisfeita.

-- Pois bem, já que desejam continuar aqui por mais algum tempo, dou-lhes o necessario para terminarem á vontade o Champagne... depois a cavallo.

Santa Cruz, de todos os do bando o mais reflectido e o menos atordoado pelos vapores do vinho, apenas Johu Duun pediu para que montassem, recordou-se do vaticinio da mãe de Mahatana e determinou á ordenança que se collocasse ao lado do principe com o cavallo á rédea. Comprehendia que succedera qualquer coisa de anormal e que devia ser grave para preoccupar um homem de espirito sereno como John Dunn. Aguardou, todavia, os acontecimentos com socego para não alarmar os descuidados convivas.

O sertanejo montou e metteu o seu cavallo a passo, em direcção da agua.

-- Onde estão os zulos? -- indagou do negro quando teve a certeza que ninguem os podia ouvir.

-- Além, escondidos no caniçal do pântano.

-- E o chefe?

-- Acolá, occulto com as hervas aquaticas.

-- Quem é?

-- Macusse, o grande amigo de Catchuaio.

-- Veremos quem leva a melhor, amigo Macusse -- resmoneou John Dunn.

IV

A situação complica-se

Os caçadores estavam cercados por um grupo numeroso de inimigos. Os caminhos por onde se poderiam dirigir para o acampamento tinham sido tomados. Este movimento effectuara-se em consequencia de uma denuncia feita por um dos innumeros espiões que os zulos mantinham em redor dos inglêses.

Macusse, um dos chefes de guerra mais no favor de Catchuaio e implacavel rival de Mahatana, seguia ou mandara seguir este passo a passo. O seu rancor redobrara quando o informaram que estava ao serviço do branco, filho de um dos mais poderosos reis do outro lado do mar, que viera de proposito com o seu feitiço para acabar com a raça zula, e que salvara por vezes essa vida que os da sua nação tinham jurado arrancar.

Ao odio motivado pela rivalidade do amor existente entre os dois, accrescia a radicada aversão por ser um poderoso e fiel auxiliar dos seus detestados contendores. Pedira e assumira a direcção desta emboscada e todo o seu afan era apanhar vivos essa duzia de imprudentes officiaes, no meio dos quaes se encontrava Luiz Napoleão, o que constituia não só uma bella captura para o elevar no conceito do régulo, mas ainda um ousado golpe de mão que lhe permittia apoderar-se do execrado homem que se interpuzera entre elle e a mulher a quem queria possuir. Era um rasgo de audacia que lhe proporcionaria a dupla vantagem da gloria e do proveito. A sua gente, como o servo explicara a John Dunn, dissimulou-se com o cannavial e, mettida na agua até a cintura, esperava o momento favoravel para cahir sobre os quasi indefesos excursionistas. A cilada fora tão bem delineada que só um mero acaso a trahira. O serviçal do antigo colono internara-se pelo pantano e um dos zulos, tomando-o por um camarada seu fez-lhe uma pergunta em que revelara os intuitos para que se achavam ali. O intelligente criado, indagou então tudo quanto lhe convinha saber, principalmente quem commandava a expedição, disfarçou, e, logo que pôde, preveniu o amo do inesperado incidente.

John Dunn, conhecendo os habitos dos zulos como elles proprios, metteu deliberadamente o cavallo á agua e, com todas as cautelas possiveis, avizinhou-se do sitio onde lhe relataram estar Macusse. O favorito de Catchuaio, ou por anciosa impaciencia ou por qualquer outro motivo, distanciara-se mais de cem jardas dos seus subordinados. O sertanejo chegou até pequena distancia d'elle sem ser presentido. Quando o caudilho indigena o avistou, John Dunn apontava descansadamente a carabina para elle, e dizia-lhe:

-- Sabes que nunca errei um tiro; se te mexes, se proferes uma palavra, se soltas um grito, mato-te redondamente.

O preto, com o corpo meio fora de agua, leu no semblante do seu antagonista que morreria sem remedio senão obedecesse cegamente, rigorosamente, á intimação que lhe era feita. Conservou-se na mais completa immobilidade.

-- Que fazes ahi? -- interrogou o resoluto sertanejo, e logo accrescentou: -- Responde, mas devagar.

-- Vigio os brancos que andam á caça.

-- Para os massacrar á traição?

-- Não, para os aprisionar.

-- Cahiste na propria rede que armaste; tu é que és meu prisioneiro.

-- Porquê, vaes levar-me comtigo, John Dunn?

Se assim é prefiro morrer. Atira, mas antes chamarei a minha gente que me vingará.

O astuto sertanejo raciocinou, num relampago, que a vida de Macusse estava realmente á sua mercê, mas que se desfechasse contra elle, os zulos cahiriam sob os seus companheiros e trucidariam todos do primeiro até o ultimo. Deliberou parlamentar.

-- Não te levarei commigo -- declarou então, -- se quizeres fazer um pacto.

-- Explica-te.

-- Deixo-te a vida salva e dou-te a liberdade se a tua gente não se mover, se os brancos que além se encontram chegarem ao acampamento sem que os ataquem.

-- E os pretos? -- inquiriu Macusse afagando a idéa de se apossar de Mahatana.

-- Todos quantos ali estão -- respondeu peremptoriamente John Dunn.

O chefe negro fez um gesto de desespero, mas logo o energico colono, recommendou:

-- Toma sentido, olha que te ponho os miolos ao sol.

Macusse, como todos os pretos, era fatalista, resignava-se promptamente com as sentenças do destino. Addiou a realização da sua vingança para mais tarde, e respondeu:

-- Pois bem, acceito.

-- Magnifico! A tua gente não se bolirá sem um signal teu, não é verdade? -- interrogou o ardiloso sertanejo.

-- Vaes caminhar na minha frente; ao menor symptoma de traição tens a cabeça atravessada. Logo que todos os caçadores encontrem as sentinellas inglêsas consinto que vás em paz.

-- E quem me garante o cumprimento da tua palavra -- exclamou o zulo.

-- Eu! Já ouviste contar alguma vez que a palavra de John Dunn voltasse atrás?

-- Não; estou ao teu dispôr.

Macusse ergueu-se da agua e collocou-se na frente do cavallo do sertanejo, que não despregava os olhos d'elle.

Imagine-se qual não foi o pasmo dos nossos socegados convivas quando viram John Dunn com o seu prisioneiro.

-- Agora, meus senhores, a caminho do acampamento... -- indicou o providencial colono, e depois de uma certa pausa adduziu, apontando para o negro, com maliciosa ironia: -- onde talvez não tornassemos a entrar se não fossem os bons officios d'este nosso amigo.

O audaz sertanejo contou em poucas palavras o succedido. A indicação não precisou ser repetida. Os fumos do alcool desappareceram velozes das cabeças mais toldadas e tudo montou contemplando com rancoroso desprezo Macusse, que se conservava immovel, semelhante á estatua da indifferença.

Mahatana, ao deparar-se-lhe o seu mortal inimigo, fez menção de se atirar a elle, mas contiveram-no os olhares severos do principe e de Santa Cruz.

John Dunn cumpriu religiosamente a sua promessa. Quando a caravana avistou e se fez reconhecer pelas vedetas britannicas, disse para Macusse:

-- Vae com Deus e saúda em meu nome Catchuaio. Assegura-lhe que continuo a ser seu amigo, embora o combata...

Macusse mostrou-se muito perplexo; a sua comprehensão não abrangia semelhante dualidade de sentimentos.

-- O meu coração está com elle, foi sempre bom e generoso para mim, mas o dever obriga-me a guerrear ao lado dos que nasceram na mesma terra que eu, que falam a mesma lingua, que obedecem ao mesmo rei...

-- Mas Catchuaio e a nação suppunhamos que tu eras tão zulo como qualquer de nós, apesar de branco e da tua mãe te ter dado á luz muito longe d'aqui -- argumentou Macusse, que sentia por John Dunn a maior veneração e sympathia, como todos os seus compatriotas.

-- Sou, não ha duvida -- assegurou o estimavel sertanejo, -- sempre que a nação zula não pratique actos contra Inglaterra.

-- Então és zulo e inglês, ao mesmo tempo?

-- Sou. Levaria muito tempo a explicar-te esta apparente contradicção, e nenhum de nós se pode demorar. Dize-lhe que eu o aconselho a fazer a paz quanto antes.

-- A paz para quê? Havemos de vencer d'aqui a poucos mezes, enxotarmos os brancos até o mar, e ali, se não se quizerem afogar, pedir-nos perdão. Consentiremos, mais tarde, no nosso territorio os negociantes, que nos tragam fazendas, bebidas e armas. Será o regulo quem ha de dictar a lei, a que todos obedecerão, porque só elle será soberano.

-- Tu, os conselheiros do Catchuaio e elle proprio, que varram essas idéas ambiciosas da cabeça. Os zulos suppõem-se fortes porque até aqui nenhum povo os venceu, mas lembrem-se da prophecia de Tchaca: «Pensam que governarão esta terra quando eu desapparecer; não, vejo vir de além os brancos e tornarem-se os vossos senhores».

-- Não podia ver nada, já estava cego pelas nevoas da morte.

-- Os inglêses são tantos na sua patria como os caniços nesse pantano; podes tu ou alguém contá-los? As suas libras são em tão grande numero como as sementes contidas nas arvores das florestas de todo o mundo; ha logar para as guardar? O amor pelo seu rei é tamanho como o amor de Deus pelas coisas creadas; alguém o pode igualar?

Estas comparações deixaram o negro atarantado e, apesar da ingenita eloquencia dos nativos, não encontrou argumento para lhe oppôr.

-- Aconselha-lhe a que termine a guerra, senão ficará sem o seu exercito, sem as suas riquezas, sem o seu gado e até sem a sua liberdade. Vae, leva-lhe estas palavras, que são as de um verdadeiro amigo; estas advertencias que nenhum irmão lhas daria com mais lealdade.

Macusse retirou-se e John Dunn entrou no acampamento, onde já os seus companheiros tinham chegado. Encontraram ali a mala do correio que lhes trazia noticias da Europa e d'outros pontos da Zululandia. O principe leu as cartas de sua mãe e guardou para o fim as que vinham sobrescriptadas com letra desconhecida.

Ao percorrer uma d'estas, logo ás primeiras linhas, sentiu uma tão funda comoção que se assentou como se as pernas não pudessem supportar o peso do seu corpo. Depois, por uma natural reacção, ergueu-se e bateu uma forte punhada na mesa, explosão rara no seu genio affavel e bem equilibrado. Tinha as feições transtornadas e lia-se-lhe no rosto uma lancinante expressão de dôr e de ira. Acto continuo cobriu-se, pegou na carta e encaminhou-se para a barraca de Santa Cruz.

Este, apenas o viu, comprehendeu que o apoquentava qualquer fundo desgosto, e perguntou sobresaltado:

-- Que succedeu a vossa alteza?

-- Toma, lê esta carta.

Santa Cruz pegou na missiva, devorou o seu conteudo, e, pela primeira vez na sua vida, empallideceu como um morto. Como acontecera ao principe, e apesar da presenra d'este, deixou-se cahir num escabello e duas lagrimas, volumosas como gottas de chuva de trovoada, brotaram-lhe dos olhos e deslisaram vagarosas e solemnes pela suas faces crestadas pelo sol de tantos paizes. Ao mesmo tempo exclamou num tom de indizivel desalento:

-- Mademolselle Conneau prisioneira dos zulos!

-- E essa a triste, a desoladora verdade -- affirmou Luiz Napoleão curvando a fronte como se sobre elle pesassem toneladas.

-- Que imprudencia a sua em vir para Africa! -- commentou Santa Cruz com voz torturada.

-- Sempre a dissuadi d'essa louca temeridadade -- lastimou o principe -- Foi aprisionada com as outras duas irmans hospitaleiras e com o tio, o dr. Conneau.

-- E os pormenores?

-- Poucos dá a carta, como vês. Vinham numa carreta, sem escolta, nem nenhuma especie de protecção, de Kambula para o Tugela, quando uma manga zula as aprisionou. Communica-me o tristissimo facto um official meu amigo.

-- Nem ao menos se sabe para onde foram conduzidas?

-- Nada mais.

O principe e Santa Cruz calaram-se vergados ambos ao mesmo cruciante pesar. Pintava-se no rosto dos dois a mais afflictiva irresolução. Assim se conservaram por alguns minutos. Ninguem diria ao vê-los que eram os dois homens cheios de coragem, de desembaraço, de arrogante audacia, que tantas vezes a sorrir tinham arrostado os perigos mais temerosos e superado os obstaculos mais terriveis.

-- Uma idéa! -- suggeriu Santa Cruz erguendo, as pupillas onde scintillava um raio de esperança.

-- Para a salvar? -- accrescentou Luiz Napoleão entre melancolico e risonho.

-- Para o tentar -- corrigiu Santa Cruz já com mais socego.

-- Explica-ma.

O major expôs o que lhe lembrara, succintamente, e adduziu:

-- Vamos agora procurar John Dunn, unico homem capaz de fazer luz neste chãos de pensamentos amargos em que nos debatemos.

-- Immediatamente -- redarguiu o principe.

Ambos se encaminharam para o alojamento do venerando sertanejo, a quem mostraram a carta e a quem pediram consulta sobre o modo como deviam proceder.

-- Em primeiro logar -- tranquillisou-os o velho colono, -- não ha perigo immediato para a vida das tres senhoras; os zulos, apesar da sua innata ferocidade, não estão tão selvagens que não comprehendam, até certo ponto, a missão humanitaria das irmans hospitaleiras. Com o medico succede o mesmo. De mais a mais o dr. Conneau, segundo me affirmam, não pertence ao exercito britannico e consequentemente não veste uniforme.

O principe e Santa Cruz respiraram mais livremente.

-- O que ha a fazer, sem perda de tempo, é saber para que povoação foram conduzidas. A captura é demasiado importante para não ter sido participada logo a Catchuaio. É natural que não resolvam nada sobre o destino dos prisioneiros sem ordem expressa do régulo.

-- E como se ha de saber onde estão? -- inquiriu o principe.

-- Precisava-se para isso de um preto fiel, dedicado, que falasse zulo como os proprios zulos e que não tivesse nenhum apego á vida, pois com certeza fica sem ella, se o reconhecem.

-- Mas esse preto existe -- exclamou num brado de alegria Santa Cruz -- é Mahatana!

Luiz Napoleão relatou a John Dunn quem era o indigena citado e as provas de intelligencia, de lealdade e de valentia que manifestara em mais de uma conjuntura apertada.

-- Mandem-no chamar.

Mahatana apresentou-se e, interrogado sobre o assumpto, respondeu com generosa independencia, que não se importassem com os riscos que ia correr, que, numa palavra, se encarregava da espinhosa missão com toda a boa vontade. Sorria-lhe no íntimo a probabilidade de topar com Macusse e de liquidar, de uma vez para sempre, contas com o seu figadal inimigo.

-- Onde te diriges primeiro? -- perguntou-lhe o sertanejo.

-- A Ulundi, á povoação do régulo -- replicou o destemido negro -- Hei de ahi saber alguma coisa. Como ha lá muita gente reunida, de zulos e de outras tríbus, mais facilmente passarei despercebido.

-- Tens razão -- approvou John Dunn -- e que sejas feliz na tua incumbencia.

O principe e Santa Cruz deram ao nativo tudo quanto elle declarou precisar em dinheiro e armas, entregaram-lhe duas cartas, uma para mademoiselle Conneau e outra para seu tio, e viram-no partir com os olhos humidos e com o coração commovido.

Mahatana andou lépido e não soffreu no percurso nenhuma contrariedade. Ao fim de quatro dias chegava a Ulundi, ao grande kraal do régulo da Zululandia. Convém explicar que o termo indigena kraal, espalhado por toda a Africa do Sul, parece uma corruptela da palavra portuguesa curral. A maior riqueza d'estes povos consiste em gado, o curral é o seu cofre forte, é ahi que os potentados recebem as pessoas a quem mais desejam honrar, a sua sala de throno. Não admira, pois, que o vocabulo se estendesse até designar toda a povoação.

Ulundi avista-se de muito longe. O conjunto das suas palhotas, do feitio de um hemispherio com a secção virada para o solo, affectava a forma circular. Perto, a cinco milhas, ficavam as povoações de Noduengo, residencia do finado régulo Panda, Quikazi e Ndalakaombi. O Umbeluzi branco colléa a pouca distancia por um estreito valle flanqueado de eminencias não muito elevadas. A sua confluencia com o Umbeluzi negro eftectua-se a dez milhas de Ulundi. Catchuaio estabelecera ahi uma fortissima aringa, fornecida com todos os elementos de castrametação conhecidos dos zulos.

Mahatana encontrou numerosos indigenas das tríbus avassalladas e zulos, que tinham recebido ordem para se concentrar nas immediações de Ulundi e realizarem um esforço desesperado afim de destruir todos os inglêses. Esta agglomeração de gente facilitou-lhe immensamente a sua missão. Podia apresentar-se como guerreiro de um dos contingentes citados. A não ser Macusse, poucas mais pessoas o poderiam reconhecer no formigueiro que se atropelava na régia povoação.

Linguareiros como são os indigenas, depressa soube que o seu instincto não o enganara quando o impelliu para ali. Mademoiselle Conneau, seu tio, as duas irmans hospitaleiras e mais meia duzia de prisioneiros inglêses estavam junto do régulo.

Catchuaio, ou por deliberação sua ou inspirado pelos seus conselheiros, expedira ordens aos chefes de guerra para que lhe enviassem todos os brancos capturados fosse em que circumstancias fosse. Principiava a conhecer que a

sorte das armas não lhe era propicia e pretendia agora mostrar-se aos olhos dos seus adversarios, tanto quanto possivel, humano. Não queria por isso deixar nas mãos dos seus crueis e fanaticos subordinados creaturas que de um instante para o outro poderiam ser victimas da sua crendice e ferocidade.

Mahatnna entrou sem a minima hesitação em Ulundi, sem lhe acudir sequer ao espirito a idéa de que talvez não sahisse. A povoação estava completamente vedada por tranqueiras. Só duas pOrtas davam ingresso para o interior, onde existiam curraes de gado, mais de duas mil palhotas para a guarda pessoal do régulo e uma vasta esplanada para dansas de guerra e manobras. Dentro d'esta povoação emmaranhava-se outra, tambem rodeada por alta sebe, uma especie de labirinto, residencia de Catchuaio e das suas muitas phalanges de mulheres o de serviçaes. O régulo, em vez de habitar uma palhota, vivia numa casa construida á européa, de um andar, tudo quanto se pôde imaginar de mais modesto e de mais elementar. Num e noutro lado viam-se palhotas mais pequenas erguidas do solo sobre estacas. Eram os arsenaes onde os guerreiros guardavam os escudos para os perservar da humidade e dos insectos.

Só depois de Mahatana se encontrar dentro da vedação é que pôde apurar onde tinham confinado os prisioneiros. As tres senhoras e o medico moravam numas vastas palhotas, primitivamente sede de uma missão norueguesa, que mais tarde se mudara para outro ponto, no exterior das tranqueiras. Custodiavam-nas uns cincoenta pretos, commandados por um homem da confiança de Catchuaio. Os outros prisioneiros miliares residiam dentro das tranqueiras e eram rigorosamente vigiados. Os de fora não, permittiam-lhe até uma tal ou qual liberdade.

O difficil agora era aproximar-se de mademoiselle Conneau e entregar-lhe a carta que levava do principe. Depois pensaria na maneira de a fazer evadir, caso semelhante coisa se lhe afigurasse praticavel.

Levava em redor da cintura algumas centenas de libras que devia á generosidade de Luiz Napoleão. A ellas recorreria quando houvesse mister. Encaminhou-se então para a antiga missão norueguesa. Fez-se conhecido de um dos negros da guarda, com quem trabalhara nas minas de ouro do Transvaal e inventou um romance para explicar a sua presença ali. Affirmou mais que, devendo immensos favores, a uma das prisioneiras que o tratara, quando ferido, depois de um combate contra as tropas britannicas, lhe desejava agora significar o seu reconhecimento. Tão bem andou, alliando á eloquencia das palavras o argumento da promessa de meia duzia de libras, que nessa mesma tarde conseguiu avizinhar-se de Maria Isabel.

-- Uma carta, senhora, do principe -- disse-lhe em inglês, quando chegou o momento opportuno.

A pobre senhora, apesar de toda a sua energia, sentiu esvair-se-lhe a cabeça, e não pôde reprimir uma exclamação de surpreza e de alegria.

-- Ah! Como passa? Ha quantos dias o deixaste?

Mahatana relatou-lhe quanto sabia.

-- Louvado seja Deus! Está vivo e são. Obrigado, Senhor, por me proporcionardes este allivio no meio de tão-dolorosas angustias... E o major Santa Cruz?... perguntou Maria Isabel depois de uma certa hesitação.

-- Com tanta saude como o principe -- informou-a o mensageiro.

-- Vae-te embora depressa -- instou mademoiselle Conneau para o preto -- se te conhecem, se descobrem que vens do acampamento inglês, torturam-te cruelmente e matam-te.

-- Não sahirei d'aqui sem tentar salvar-te.

-- Como, insensato?

-- Ainda não sei, mas hei de consegui-lo.

V

A dansa de guerra

Catchuaio, aproveitando o numero elevado de guerreiros concentrados em Ulundi, deliberou realizar uma imponente festa militar, que, não só deslumbrasse o seu povo, mas que principalmente patenteasse aos inglêses como era ainda enorme o seu poderio. O régulo e os seus conselheiros esmeravam-se por transmittir ao grandioso espectaculo todo o realce caracteristico de solemnidades identicas da epoca do invencivel

Tchaca. O terreno da esplanada interior da povoação fora cuidadosamente calcado e batido de novo.

Na tarde immediata a Mahatana entregar a carta a mademoiselle Conneau, cerca das quatro, era já immensa a turba de mulheres, creancas e velhos que se agglomerava para ver as invenciveis mangas de Catchuaio executar as suas marciaes evoluções e bailarem as dansas de guerra das ceremonias de gala.

Eram mais de trinta mil homens, dos quaes pelo menos dez mil zulos. Viam-se ahi representantes de todas as tríbus desde o rio Maputo até os limites da colonia do Cabo, combatentes dos abatembu, dos amacunu, dos amacuabas, dos amabomvu, descendentes dos antigos anaxosa, amankuze, amatule, até mossuates, pondos, basutos e hottentotes. A grande maioria d'essas hordas estavam ahi contra vontade, pouca resistencia offereceriam no momento decisivo; mesmo muitos dos seus compatriotas batiam-se ao lado das forças britannicas, mas faziam numero e o aspecto d'esse exercito compacto era simultaneamente aterrador e caricato.

De quando em quando sahia á frente de uma das mangas um dos heroes de sanguinarias façanhas, de trajes magnificos e ridiculos, de olhos esgazeados, de bocca contorcida, de gesto tremebundo. Exibia esgares que afugentariam um macaco, pulava, sacudia-se, convulsionava-se como nunca nenhum possesso da Edade Media o conseguira fazer para ser queimado em qualquer inquisitorial auto-de-fé. Falava, narrava proezas que assombrariam os semideuses da mythologia grega, e isto com tamanha volubilidade, cortada por taes guinchos, berros roufenhos, rugidos estridentes, clamores extravagantes, que os velhos energumenos se vexariam de estarem tão atrasados na arte de ensurdecer a humanidade e aturdir os zeladores da orthodoxia.

Excitando-se a cada palavra, excitava os seus ouvintes, os quaes depois de ouvirem no mais compungido silencio toda essa Illiada de negras e sangrentas aventuras, rompiam, quando a larynge do orador se recusava terminantemente a articular mais sons, num d'esses alaridos que nenhuma populaça da Europa é capaz de imitar por muito enfurecida ou enthusiasmada que esteja. Era uma descarga cerrada de formidaveis explosões vocaes, disparada por trinta mil vozes, a que se juntavam os accentos vibrantes e esganiçados dos espectadores do sexo feminino, os ganidos e assobios das creanças de todas as edades desde as de collo até as que entravam no limiar da adolescencia, os regougos e tremulas apostrophes dos invalidos que não se podiam arrastar para longe da palhota nem manejar a bellica azagaia.

Esta pittoresca scena, que ainda nenhum pincel de artista célebre reproduziu na tela, durava havia uma hora quando alguem bradou:

-- Ahi vem Catchuaio!

O régulo mandara convidar os seus prisioneiros para assistir a este marcial apparato e, como o convite em taes condições significava uma ordem, viam-se ao lado esquerdo da esplanada, proximo da sebe que vedava a residencia particular do potentado, mademoiselle Conneau, as duas irmans hospitaleiras, o medico e os demais prisioneiros.

Dos trinta mil guerreiros, de toda a pintalgada turba ali reunida, sahiu uma saudação estrondeante, a sonora declaração de preito dos subditos ao seu suzerano, o ruidoso baiête! com que os vassallos promettem tributo a quem tem sobre elles direito de vida e de morte.

Em seguida appareceu o régulo magestosamente revestido dos mesmos trajes com que se ornara para a sua coroação seis annos antes. Era um manto de velludo carmesim, bordado a ouro, presente do governo britannico, e uma especie de barrete, semelhante ao que usam os pares de Inglaterra nas ceremonias de gala, tambem de velludo carmesim bordado a ouro e rematado por esplendidas pennas de avestruz.

Catchuaio engordara extraordinariamente, a ponto do desenvolvimento do tecido adiposo lhe prejudicar seriamente as qualidades militares que manifestara na juventude, mas possuia um semblante que nada tinha de repulsivo e patenteava essa innata dignidade que, em geral, ostenta quem está habituado ao exercicio do poder supremo.

-- Parece impossivel -- commentou mademoiselle Conneau -- que seja aquelle o homem sanguinario que todos apregoam!

-- E, não ha duvida -- explicou um dos officiaes prisioneiros, que conhecia bem os assumptos politicos da Zululandia -- muito principalmente por causa de alguns dos seus conselheiros íntimos que não querem apartar-se da pratica de superstições crueis.

-- Será certo que nestas ceremonias immolam sempre uma creança e um adulto? -- interrogou Maria Isabel contristada.

-- Affirma-se, e naturalmente não sem motivos, que assim acontece, -- retorquiu o mesmo obsequioso informador, -- mas ha bastante tempo que esses sacrificios humanos se não effectuam na presença de europeus.

-- Succederá hoje o mesmo? -- inquiriu a juvenil senhora muito apoquentada.

-- A isso é que não posso responder categoricamente; o que, porém, se conta é que as familias levam tão longe a sua estupidez, que não se oppõem a esses holocaustos, consideram até uma honra que um dos seus membros seja distinguido por essa barbara forma.

-- Os missionários não tentaram convencer esses selvagens da enormidade de semelhante crime?! -- exclamou uma das irmans hospitaleiras.

-- Os costumes que datam de seculos custam muito a destruir, não é a catechese de alguns annos que o consegue. Os sacrificios humanos são nodoas que macularam todos os povos na sua infancia, sem excepção. Nesse ponto, como em muitos outros, os brancos não valeram mais que os negros...

A palestra foi interrompida nesta altura pelo cantico de guerra entoado pelos zulos. O effeito produzido por essas milhares de vozes, tão atinadas, cantando com tal harmonia que nenhum orpheon dos mais bem exercitados as excederia, era assombroso. O cantico, ora soturno, de cadencia demorada, de notas graves e profundas, de toada melancolica, lugubre até; ora vivo, marcial, a respirar força a cada entonação, incendiando-se por vezes num delirio estrepitoso, accelerando o compasso com a furia que symbolisava as impetuosas cargas sobre o inimigo, se por um lado infundia terror aos ouvintes, por outro aquecia-lhes o enthusiasmo até o rubro. Nem mesmo os prisioneiros se emancipavam da sua poderosa e tenaz suggestão.

-- Soberbo côro! -- applaudiu Maria Isabel, a quem a musica impressionara intensamente e fizera vibrar a sua fina sensibilidade de mulher.

-- É ao som d'este hymno -- explicou o mesmo official prisioneiro, que prestara as informações anteriores -- que os zulos investem impavidos e serenos o fogo mais mortifero da nossa artilharia. Esse cantico electrisa-os, fascina-os, magnetisa-os, domina-lhes completamente o instincto de conservação, impelle-os para a morte com o fanatismo de fakires indianos.

-- Quantos compositores europeus desejariam ter inspiração para escrever um cantico semelhante! -- commentou o dr. Conneau.

-- Nunca percebi o motivo -- expôs o official -- porque não hão de aproveitar tantos e tantos trechos de musica indigena, impregnados muitos de suavissima melodia e todos de tão dominadora harmonia que parecem compostos por mestres consumados com todas as regras do contra-ponto.

Terminado o cantico e obtida a indispensavel auctorisação de Catchuaio, iniciou-se o grande batuque de guerra. Eram simulacros de batalhas, combates em massa, investidas operadas com o impulso de compactos esquadrões, duellos de guerreiro para guerreiro, saltos prodigiosos que maravilhariam o gymnasta mais habil e arrojado, um admiravel certamen do que pode o desenvolvimento physico ao serviço de uma raça vigorosa e intrépida. Quando a dansa estava no maior auge e que tudo parecia como ébrio, arrebatado por uma lufada vertiginosa de ardor guerreiro, de vehemencia homicida, resoaram de dentro da povoação do régulo num grito estridentissimo, repassadas de intima angustia, as palavras:

-- Imamba! Imamba!

A dansa de guerra cessou como se se repetisse o biblico castigo de transformar a densa multidão, tão clamorosa e agitada, numa turba de estatuas de sal. Que magicas palavras eram essas que surgiam como as celebres e terríveis ameaças Mane, thecel, pharés, escriptas por mão invisivel a traços de fogo nas paredes da sala onde Balthazar tripudiava na derradeira orgia, exactamente no instante em que Cyro invadia Babylonia?

Imamba é uma pequena cobra que existe na Zululandia. Conhecem-se ali tres variedades: negra, cinzenta e azul. É uma especie de vibora, de cabeça chata, e que segrega em glandulas que ficam por baixo dos dentes um veneno

activissimo de que só milagrosamente se escapa. A par da mordedura quasi sempre mortal, passa por ser, entre os zulos, a encarnação do genio do mal. O seu apparecimento vaticina as mais estupendas calamidades.

A perplexidade dos guerreiros, das mulheres, dos velhos, do proprio régulo e da sua numerosa comitiva, surprehenderam no mais alto grau os europeus que assistiam a esta scena verdadeiramente theatral. Os gritos que se ouviam de dentro da povoação, evidentemente soltados por uma mulher, tinham echoado no coração de mademoiselle Conneau como um afflictivo appello de soccorro, a que a sua alma cavalheiresca e energica não podia deixar de responder.

Sem reflectir no que poderia haver de imprudente e de perigoso no seu acto, sem saber o que significavam as exclamações proferidas, acudindo-lhe apenas á imaginação que estariam matando o filho da mulher que gritava, victima

do costume feroz em que ha pouco se falara, correu, sem sequer verificar se era seguida, para dentro da sebe da residencia privada.

Nesse momento vinha sahindo uma negra joven, bonita, de feições quasi européas, que patenteava nos gestos desesperados e nos berros soluçantes a mais entranhada dôr e attribulação. Ao vê-la, Catchuaio libertou-se da immobilidade que lhe paralisara os movimentos e aproximou-se d'ella. Era a sua esposa favorita.

-- Imamba! Imamba! -- repetia a mulher no meio do seu convulsivo choro.

-- Que succedeu Changasi? -- interrogou o régulo.

-- Imamba! Imamba!

-- Mas onde está?

-- Perto de Dinizulu.

Dinizulu era o filho mais velho de Catchuaio, que lhe succedeu por sua morte, e que contava então mui pouca edade.

Maria Isabel, que fora acompanhada até á sebe pelo tio e pelos inglêses prisioneiros, parara indecisa quando se lhe deparou a mulher e ouviu a interpellação do régulo. Neste meio tempo, um dos seus companheiros de infortunio, que comprehendia algumas palavras zulas, reconstruiu o que se passou e explicou-o a mademoiselle Conneau:

-- É um reptil extremamente peçonhento, a que attribuem um poder sobrenatural; appareceu junto da creança e a mãe em vez de lha torar de perto ou de matar a cobra, desata neste berreiro!

-- Realmente é levar a estupidez muito longo -- replicou Maria Isabel proseguindo no seu caminho.

Não andou muito. Defronte da casa de Catchuaio, numa especie de largo de pequenas dimensões, estava um negrito de dez mezes para um anno. Em redor divisavam-se umas dez pretas, criadas de Changasi, que olhavam para a criança alardeando exaggerados signaes de terror e de pena, fazendo um alarido atroador, mas guardando a mesma immobilidade que toda a outra gente cá fora.

Maria Isabel a principio nada descobriu a não ser o pequeno. Afastou denodadamente as negras e entrou no espaço do qual ninguem se atrevia a avizinhar-se e precipitou-se para Dinizulu. Foi nesse momento que enxergou proximo, a arrastar-se com indolencia, uma cobra de cêrca de tres palmos, de um azul muito carregado. A creança, medrosa talvez por instincto, chorava persistentemente. Maria Isabel estacou durante um instante; os seus nervos foram, por um momento, mais fortes que a sua vontade; no emtanto, avassallando-os, subjugando-os com a costumada energia, deu um passo para a frente, mas...

Entre o reptil e o pretito, erguia-se agora um homem, um guerreiro, com todos os trajes e apetrechos da ceremonia que se realizava.

-- Mahatana! -- exclamou Maria Isabel, ao mesmo tempo alegremente surprehendida e exprimindo um certo receio.

Era na verdade o ousado serviçal que, estando misturado com os outros indigenas, na dansa de guerra, não longe do sitio onde se encontrava mademoiselle Conneau, assistia á scena que atrás descrevemos. Comprehendendo o enormissimo perigo que ella corria, só se lembrou da dedicação que devia ao principe e arrojou-se em direcção da vibora, arredando as idéas supersticiosas em que fora creado e esquecendo-se completamente de que, se alguem o conhecia e o denunciava, esse seu acto valer-lhe-ia o implacavel e atormentadissimo supplicio dos traidores e dos espiões.

Pegou numa das suas azagaias de cabo mais delgado e flexivel e dirigiu-se para o venenoso bicho quando mademoiselle Conneau se abeirava do pequeno. A cobra, presentindo um inimigo, enroscou metade do corpo como para se firmar. Preparava-se para dar o salto, com que morde e fulmina o adversario, quando a haste da azagaia batendo-lhe junto do pescoço, com destreza, a deixou atordoada, semimorta; em seguida a temivel nonga, essa possante acha-de-armas dos cafres, foi despedida com violencia e esmagalhou-lhe a cabeça, reduzindo o temeroso reptil de ha pouco a informe e pastosa massa.

A creança, salva, debatia-se nos braços de Maria Isabel, guinchando como se vira o proprio demonio deante de si. Entregou-a á mãe, que agradeceu com movida, com os olhos razos de lagrimas, a generosa intervenção d'essa mulher

européa, ahi prisioneira do régulo, e cuja bondade e meiguice como tratava nos hospitaes pretos e brancos se espalhara pelo matto e principiavam a tornar-se lendarias por toda a Zululandia.

Era tão intensa e estava tão arraigada a fanatica crendice dos zulos sobre o poder sobrenatural da nociva vibora, que Catchuaio vacillou entre o medo que tinha do temido feitiço e os seus mais legitimos sentimentos paternaes. Por fim venceram estes. Acercou-se de Maria Isabel e cheio de dignidade e até de galantaria, disse-lhe:

-- Branca, tu és digna de ser zula; já não és minha prisioneira, és minha hospeda. Vou mandar-te a ti, ás outras mulheres e ao mézinheiro que te acompanha aos inglêses, escoltados por gente da minha confiança. Affirma aos meus inimigos, que me querem expoliar das terras que foram de meu pae e das que eu conquistei a ponta de azagaia, que Catchuaio não é tão mau nem tão cruel como elles apregoam.

Estas palavras foram traduzidas a mademoiselle Conneau por um dos iadunas ou grandes que melhor falavam o inglês. Maria Isabel respondeu servindo-se do mesmo interprete:

-- Congratulo-me com a tua resolução, Catchuaio, e repetirei ás auctoridades britannicas as tuas palavras, que revelam a tua generosidade; mais grata te ficaria se soltasses tambem os demais prisioneiros

-- Esses não posso, não devo... -- redarguiu o régulo; -- os meus adversarios teem lá muitos vassallos meus e não os mandam embora. Como os tratam bem, tambem eu trato bem estes.

-- Porque não pedes a paz, Catchuaio? -- Obtemperou mademoiselle Conneau aproveitando as disposições benevolas do potentado zulo.

-- Não fui eu que levei a guerra a casa dos inglêses, foram elles que a trouxeram á minha. Se tenho de perder o que é meu, quero perdê-lo no campo como um homem que lucta até morrer e não como uma mulher que só presta para

pisar milho e chorar.

O régulo afastou-se um pouco e mandou chamar Mahatana. Os pareceres ácêrca da intervenção do denodado preto dividiam-se. Metade dos conselheiros do régulo reputavam-no um destemido guerreiro que affrontara impavido o veneno da terrivel vibora e a sua influencia demoniaca; outros consideravam-no um sacrilego, um ímpio, que se atrevera a derribar uma das mais poderosas divindades da religião zula. O proprio Catchuaio, apesar da sua opportuna interferencia ter concorrido para livrar o filho de um perigo serio e quasi inevitavel, hesitava na resolução a tomar. Devia recompensar? Devia punir?

Mahatana, no meio do largo circulo formado pelas indunas em redor de si, esperava impassivel a sua sorte. Era quasi certo que alguem o reconhecesse e o seu papel no mundo acabava ahi. Nem lhe repugnava a vida nem receava a morte. Acolheria a sentença com a resignação de um mulsumano temperada pelo fatalismo cafre.

No meio da perplexidade geral destacou-se do grupo dos magnates um induna que se adeantou com passo grave, pausado, e que pediu licença, para falar.

Era Macusse.

-- Catchuaio -- declarou depois de obter um gesto de assentimento do regulo, -- este atheu que levantou a mão para um dos nossos feitiços mais sagrados é serviçal do branco, filho de um rei, que veio de muito de longe para destruir a nossa raça, tem vendido todos os nossos segredos, é um espião, é um traidor.

-- Morra o espião! Morra o traidor! -- clamavam de todas as bandas numa tempestade de urros e de vociferações, secundados por acenos ameaçadores e cheio de raiva.

-- Meu Deus, está perdido! -- exclamou Maria Isabel.

-- Sim, sou Mahatana! -- declarou o negro lançando sobre o seu rival um olhar de profundo rancor -- sirvo os inglêses e odeio os zulos, matem-me!

VI

Em vesperas de separação

Macusse ergueu a azagaia e ia para fazer justiça immediata, assassinando ali mesmo o seu detestado émulo. Deteve-lhe, porém, a arma homicida um imperioso olhar de Catchuaio.

-- Por que não matar já este reptil, como elle matou a imamba?! -- exclamou enraivecido por ter de addiar a sua vingança.

-- Esse espião pertence aos isanusi; elles o interrogarão e decidirão a morte que deve ter - replicou o régulo num tom sêcco e auctoritario, que ninguem se atrevia a contrariar.

Tudo emmudeceu. Catchuaio voltou-se depois para Maria Isabel, consternadissima e que torturava a imaginação para encontrar um meio para salvar Mahatana, que tão dedicado era ao principe e a ella, e disse-lhe:

-- Branca, querendo, podes partir ámanhan de madrugada com os teus amigos para o acampamento das tropas britannicas que se encontrar mais proximo. Fornecer-te-ei a ti e ás outras mulheres tres machilas, carregadores e a respectiva escolta.

-- Ouve, Catchuaio, -- argumentou Maria IsaItel -- tu és um grande rei, descendente de caudilhos gloriosos, e tamanho é o teu poderio que pelejas de igual para igual com uma das mais ricas e das mais fortes potencias do mundo. Precisas honrar-te a ti e honrar os teus contendores, seres considerado um potentado de prestigio; ámanhan podes ser vencido, aprisionado até: convém-te que tanto na desgraça como na prosperidade todos os homens, amigos e inimigos, se convençam que possues um coração magnanimo e que não derramas sangue por causas futeis ou injustas; perdoa a Mahatana.

-- Branca, contaram-mo que és tão caridosa com os teus irmãos como com os nossos quando elles precisam dos teus desvellos; affirmaram-me que o teu conselho, vale o de um invencivel chefe de guerra e que a tua alma é como a nascente de agua pura para um guerreiro sequioso, responde-me: se um inglês ajudasse os inimigos contra o seu rei, o que lhe faria elle a bem da justiça e do socêgo de todo o seu povo?...

-- Mahatana não é teu vassallo, nasceu em territorio pertencente a Inglaterra, é um subdito estrangeiro -- objectou Maria Isabel.

-- Seja como asseguras -- proseguiu Catchuaio, -- não é meu vassallo, mas então o que veio fazer aqui, introduzindo-se nesta povoação, dissimulando-se com as minhas tropas, fingindo-se um dos meus soldados?

Maria Isabel esteve para relatar a verdade, integro como era o seu caracter, mas logo se lembrou que essa declaração mais aggravaria a situação altamente critica do dedicado preto, e redarguiu:

-- Com certeza não veio aqui com más intenções. Se não fora elle, teu filho teria sido mordido pela vibora e estaria agora ou morto ou debatendo-se na agonia.

-- Nem tu nem eu sabemos o que o levou a tomar aquella resolução -- retrucou Catchuaio; -- dedicação por mim não foi, pois sempre combateu contra as minhas impis e diligenciou humilhar o meu poder; talvez livrar-te a ti, se te conhece, de um perigo imminente, ou então querer deslumbrar-nos com a sua audacia, aniquilando uma das nossas divindades.

-- Não, não, Catchuaio -- insistiu de novo Maria Isabel com voz e ademanes afflictos, -- nunca te quiz mal a ti,- nem aos zulos, salvou um filho teu, deves perdoar-lhe, dar-lhe a liberdade. Eu comprometto-me a que elle se retire para fora da Zululandia emquanto durar a actual campanha.

-- Branca, um rei como eu não faz caso de um verme como elle; que viva ou não ao pé de mim, que seja meu amigo ou meu inimigo é o mesmo que a luz do um pyrilampo ao lado da do sol. Entreguei-o aos isanusi, o que elles deliberarem, ou confirmarei. Adeus!

E o régulo, fazendo um gesto amigavel com a mão, retirou-se com toda a comitiva. Foi esse o signal da debandada geral. As mangas destroçaram e cada homem buscou o alojamento que possuia, commentando na sua linguagem pittoresca e repleta de imagens o singular acontecimento. Mademoiselle Conneau, o tio e as duas irmãns hospitaleiras tomaram o caminho das palhotas da missão norueguesa.

Mahatana fora immediata e fortemente ligado e conduzido para um poste que existia numa das extremidades da povoação, onde se costumavam prender os condemnados á morte.

Collocaram-lhe dois pretos para o vigiar e deixaram-no ahi até que comparecesse ante os isanusi e elles resolvessem qual seria a especie de tortura a que o haviam de submetter até expirar. Deixemos, porém, Mahatana por algum tempo.

Na madrugada seguinte, como Catchuaio promettera, aguardavam defronte das palhotas occupadas por Maria Isabel e suas companheiras, tres machilas, os carregadores e a escolta. O régulo levara a sua gentileza a mandar um pequeno cavallo basuto para o dr. Conneau. Maria Isabel pretendeu ainda falar ao potentado afim de, num derradeiro esforço, vêr se conseguia abrandá-lo com respeito ao condemnado negro, mas elle esqui vou-se a conceder-lhe audiencia. Forçoso era partir, e assim succedeu, em direcção do Tugela, com destino ao acampamento de lord Chelmsford, então o mais proximo de Ulundi, pois este general preparava-se para iniciar a sua marcha sobre a povoação do régulo e travar com as forças contrarias uma batalha decisiva.

Ao cabo de cinco dias, quando o commandante-em-chefe, rodeado do seu estado maior, conversava, depois de um conselho de guerra reunido para discutir o modo de effectuar as operações, com alguns dos seus camaradas mais íntimos, veio preveni-lo um official dos postos exteriores:

-- Meu general, em frente das vedetas, da banda de leste, appareceu um pequeno bando zulo com tres machilas e um homem a cavallo. Este declarou ser o medico francês do serviço de sua alteza o principe imperial e tres irmans hospitaleiras, que estavam prisioneiras de Catchuaio e a quem o regulo concedeu a liberdade.

Logo ás primeiras palavras se tinha levantado o principe dominado por impaciente anciedade. Não faltou a Santa Cruz vontade de o imitar, mas reprimiu-se e aparentou socêgo.

-- É o dr. Conneau, sua sobrinha e duas senhoras que a acompanham, meu general. Dá-me licença que vá ás avançadas para as reconhecer?

-- Com todo o gosto -- respondeu lord Chelmsford, -- o major Santa Cruz tambem ha de ter desejos de abraçar o sou velho amigo e cumprimentar mademoiselle Conneau. Vão e não se demorem, estou com curiosidade de saber o motivo porque Catchuaio libertou os seus prisioneiros.

-- Obrigado, meu general

D'ali a segundos ambos montavam a cavallo e partiram á desfilada para o sitio designado pelo official que viera comnnmicar a noticia ao com mandante-em-chefe.

-- Maria Isabel! -- exclamou o principe apeando-se e pegando com fervor nas mãos da joven, pallida e enfraquecida pela acção do clima e pelo effeito de tantas commoções, mas com o mesmo olhar scintillante e a transbordar de energia.

-- Madomoiselle Conneau! -- balbuciou Santa Cruz, numa voz tão debil que mais parecia um murmurio que uma saudação.

Nunca o valente official presenceara tão renhido combate como o que se degladiava no actual instante na sua alma. Foi extrema a violencia que exerceu sobre si mesmo para não deixar transparecer os sentimentos que o agitavam. Maria Isabel comprehendeu-o e agradeceu-lho num relancear de pupillas.

Trocados os primeiros cumprimentos, cheios de effusão, dirigiram-se todos para a barraca de lord Chelmsford, que, com fidalga galhardia os veio esperar a grande distancia. A escolta zula e os carregadores ficaram fora, aguardando ordem para se retirar.

O dr. Conneau relatou minuciosamente quanto succedera, sem omittir o mais insignificante pormenor, não se esquecendo muito principalmente de esmiuçar a maneira heroica como se portara Mahatann, com certeza trucidado a essa

hora.

Lord Chelmsford ouvira a narrativa com a maxima attenção e commentou:

-- Catchuaio seria um excellente administrador, á moda cafre, é claro, se não fossem os maus conselheiros que o rodeiam, principalmente o tal Macusse, de quem ha pouco se falou.

-- É o seu espirito mau -- observou Maria Isabel; -- pelo menos é o boato que colhi durante a minha permanencia em Ulundi.

-- Bem -- adduziu lord Chelmsford -- vou devolver a Catchuaio alguns dos seus chefes de guerra que tenho aqui prisioneiros, não nos prejudicarão e provar-lhe-emos que não somos menos generosos, não é assim, John Dunn?

-- Concordo plenamente com lord Chelmsford -- respondeu o venerando sertanejo, que assistia á reunião e que não poucos agradecimentos recebera, não só do principe e de Santa Cruz, mas ainda do dr. Conneau o da sobrinha pela efficacia dos seus conselhos e pela sua intervenção quasi providencial na aventura que atrás descrevemos.

-- E eu -- accrescentou Luiz Napoleão -- enviar-lhe-ei uma das minhas melhores carabinas...

-- Que fará fogo contra nós? -- atalhou rindo John Dunn, que não era tão observador da etiqueta palaciana como os outros circunstantes.

-- Não me lembrava d'esse obice -- replicou rindo o principe -- embora o jornal de caricaturas Punch insista qne esta guerra contra os zulos foi feita para lhe vender armas das fabricas inglêsas, que atravessam uma crise difficil de conjurar...

-- Teem lá tantas -- objectou lord Chelmsford -- que mais uma não nos fará mal.

-- Não, não quero que se diga que eu abuso da hospitalidade que me concedem neste quartel general para me dedicar ao contrabando de guerra -- gracejou Luiz Napoleão; -- não, mandar-lhe-ei um dos meus relogios com a cadeia de ouro mais pesada que tiver. É de todas as armas de repetição a mais inoffensiva.

Assim ricochetou durante algum tempo a palestra, animada e alegre, onde a unica sombra que a escurecia era a recordação do pobre Mahatana.

A escolta zula voltou para Ulundi com alguns dos principaes prisioneiros que existiam no acampamento de Itelezi, varios presentes para Catchuaio e uma recompensa importante em dinheiro para ella e para os carregadores. Maria Isabel, embora supposesse tardia e improficua tal diligencia, remettia ao régulo, para que as entregasse a sua mulher Changasi e ao pequeno Dinizulu, duas lembranças apropriadas e instantes pedidos para perdoar a Mahatana a sua louca temeridade.

A noite, depois de acalorada discussão e arrazados os montes de argumentos que Maria Isabel erguera e oppuzera a essa deliberação, ficou resolvido que a juvenil senhora e as duas irmans hospitaleiras partissem para Greytown, para prestarem serviço nas enfermarias d'aquella cidade. O principe e Santa Cruz sentiram um grande allivio quando ouviram mademoiselle Conneau pronunciar a palavra sim e condescender com os supplices desejos de quantos a estimavam.

Lord Chelmsford decidira, antes de iniciar o seu movimento de avanço contra o inimigo, inaugurar em Rorke's Drift o cemiterio e o monumento que ali fora erigido á memoria dos soldados do regimento 21 cabidos em Isandluana, bem como o tosco e improvisado jazigo que marcava o sitio onde tinham succumbido os tenentes Melvill e Coghill defendendo heroicamente a bandeira do seu regimento.

O primeiro ficava situado perto do monte conhecido por Oscarberg. Consistia num massiço obelisco de base quadrada, com dois degraus de pedra, e media uma altura de dez pés. Esse trabalho fora executado pelos seus camaradas sobreviventes do 24, sob a direcção do tenente Gonville Bromhead, e substituia a rustica cruz de madeira que primitivamente ali fora collocada pelo intrépido tenente de engenharia Chard, o denodado defensor d'aquelle posto em seguida á momentosa derrota.

O segundo era um acervo de pedras, algumas de enormes dimensões, sobrepujadas por uma cruz de marmore, presente do alto commissario sir Bartle Frère, na qual fôra gravada uma legenda que commemorava o facto.

A inauguração effectuou-se com a maior pompa, tanto mais que o terreno, num raio de muitas milhas, parecia completamente indemne de inimigos. Maria Isabel quiz assistir tambem á piedosa solemnidade e foi até ali num dog-cart que existia no acampamento. Realizada a ceremonia official as tropas abivacaram para recolher ao acampamento de tarde quando fosse menos incommodativo o calor.

Luiz Napoleão, depois do lanche, aproveitando um momento em que Santa Cruz conversava com o dr. Conneau, aproximou-se de Maria Isabel e disse-lhe:

-- Não socegarei emquanto não te vir em Greytown ao abrigo das inopinadas contingencias d'esta campanha; não imaginas quanto tenho padecido ao saber-te em Kambula a tratar dos feridos e depois prisioneira dos zulos.

-- Foi por me convencer de que vossa alteza se apoquentava, e muito, que accedi a partir para onde não ha perigo. Julgo ter cumprido o meu dever dedicando uma parte da minha existencia na Zululandia a mitigar os padecimentos alheios; mas se vossa alteza descansa sabendo-me em logar seguro, eu, que me ausento, terei menos tranquillidade do que estando aqui respondeu a joven com voz pausada.

-- Possues uma rara sensibilidade, minha boa Maria Isabel -- retorquiu-lhe o principe, -- os teus nervos vibram ainda mais que as cordas de um violino, e não sei como recompensar todos esses caudaes de ternura que derramas ha tantos annos na minha alma; confia em Deus, o futuro ha de pertencer-nos...

-- Não sonhe vossa alteza utopias absolutamente irrealizaveis, já lh'o disse uma vez em Chiselhurst -- interrompeu mademoiselle Conneau -- O seu destino está traçado. Vem de imperadores, será imperador um dia como os seus antepassados. O céo ha de amercear-se de sua mãe e conceder-lhe esse supremo consolo. O meu desejo é vê-lo feliz tanto quanto o throno pode outorgar felicidade a alguém. O que rogo com vehemencia nas minhas preces é que o Senhor lhe proporcione a ventura do lar, unia esposa a quem ame e que o ame.

-- És cruel -- replicou com vivacidade Luiz Napoleão, -- já sabes que não amo, que não amarei ninguem senão a ti.

-- Como uma irman, uma irman desvellada, acceito; nada mais que isso, bem o sabe vossa alteza -- redarguiu com energia a joven.

Passeando sempre tinham-se aproximado dos penhascos que formavam o tosco jazigo dos tenentes Melvill e Coghill, coroados, como dissemos, por uma cruz de marmore alvejante.

-- Vês essa cruz? -- interpellou o principe, apontando para o symbolo da redempção christan, -- juro-te por ella...

Maria Isabel, como horrorisada, tapou-lhe a bocca com um gesto resoluto e austero.

-- Cale-se, por amor de Deus! Não faça um juramento que constituiria para mim uma tortura eterna; prometta que o não faz.

-- Pois bem, não o articularei, -- assentiu o principe -- mas elle existe dentro do meu cerebro, vive no mais recondido sacrário da minha alma e nem por isso deixa de ser tão solemne e perduravel como se o formulasse em alta voz.

-- Vossa alteza magôa-me, insistindo numa declaração que me punge, que significa quasi um ultraje para mim.

-- Eu ultrajar-te, Maria Isabel! não o acreditas certamente. Pois bem, sejamos agora apenas dois irmãos, já que assim o queres; não te contrariarei.

Luiz Napoleão calou-se e ficou durante alguns minutos a contemplar a cruzque tanto lhe attrahia o olhar.

-- Em que pensa vossa alteza? -- perguntou Maria Isabel para distrahir o principe da funebre contemplarão.

-- Olha, minha irman, -- respondeu -- quem sabe se em vez d'esse throno que tanta gente ambiciona para mim, d'essa coroa que milhões de pessoas trabalham para me alcançar, d'esse poder que talvez o mundo inteiro phantasie eu anhelar, eu encontre meia duzia de pedras como estas a cobrir-me o corpo trucidado?

Maria Isabel sentiu como uma vertigem levar-lhe a luz da vista, mas resistiu a esse desfallecimento, e retorquiu com doçura:

-- É offender a Deus deixar-se dominar por semelhante desalento, descrer do porvir; o tio e o pae de vossa alteza olharão com desdem para o seu descendente, sua magestade a imperatriz soffreria, se o soubesse, crueis amarguras no seu amor de mãe.

-- Tens razão, Maria Isabel, eu sou um forçado do nascimento, nem posso apregoar o nome da mulher que amo, nem entregar-me a pensamentos tristes; pois rirei mesmo quando as lagrimas me saltarem pela face abaixo.

E soltou uma gargalhada nervosa, vibrante, quasi metalica, como nunca ninguem lhe ouvira.

Neste momento, como se fora uma visualidade de theatro, surgiu de trás das penhas uma negra, já de certa edade, que caminhava vagarosamente. Ao deparar-se-lhe o juvenil par esboçou um movimento de surpreza e saudou, em

zulo:

-- Molo bass!

-- Boa tarde -- retribuiu o principe em inglês. A preta fixou o filho de Eugenia de Montijo demoradamente, fez menção de lhe querer beijar os pés e murmurou palavras ininteligiveis para os dois europeus.

-- Que diz essa mulher? -- perguntou Maria Isabel.

-- Não sei, mas a sua phisionomia não me é extranha, já a vi em qualquer parte. Mas onde?

Mademoiselle Conneau exultou com o apparecimento da zula que obrigava os pensamentos do principe a tomarem um rumo menos lugubre.

-- Olá! -- chamou Luiz Napoleão -- Quem ha ahi que comprehenda o que esta mulher diz.

Acercaram-se immediatamente do grupo varios officiaes e entre elles o major Santa Cruz, que vira com o coração coberto de luctuoso crepe o íntimo e demorado colloquio do principe com Maria Isabel. Odiou a magua que sentia e recalcou-a o mais a dentro que pôde no seu coração.

Ao examinar a preta estremeceu como se fora supersticioso e lhe surgisse de prompto uma apparição sobrenatural, e exclamou:

-- Amalubi, a mãe de Mahatana!

-- É verdade! -- repetiu o principe consternadissimo, -- lembrava-me do seu rosto, mas não de quem era.

-- Venho em busca de meu filho -- explicou a indigena a um dos officiaes presentes que falava a sua lingua nativa, -- não o vejo ha muito tempo, disseram-me que estava ao serviço d'este grande, que foi quem o salvou da morte quando Macusse o quiz assassinar.

Todos os circumstantes conheciam a historia de Mahatana, a essa hora em Ulundi, ou, mais provavelmente, na eternidade.

-- Estive no acampamento dos brancos, não me quizeram deixar entrar, vim até aqui, talvez seja mais feliz. Quem me dá noticias do meu filho?

Ninguem ousou participar á desditosa mulher, a infausta noticia.

-- Morreu? -- inquiriu a preta com estoica serenidade.

-- Não -- respondeu-lhe Luiz Napoleão por intermedio do interprete, -- está prisioneiro em Ulundi, mas contamos libertá-lo.

-- Em Ulundi, nas mãos de Macusse? Está perdido!

Levou a mão á testa como se a acommettesse um subito desvario, socegou, encarou o principe muito obstinadamente e repetiu, no tom roufenho e monotono de quem recita uma lição, as phrases mysteriosas do comboio:

-- Volta para a tua terra, para junto dos que choram por ti, não os faças soffrer toda a vida.

Nunca deixes o cavallo á sôlta...

VII

Lamentavel imprudencia

Vejamos o que succedera a Mahatana.

O intelligente e devotado preto não se illudia ácerca da sorte que os isaunsi lhe reservavam, e, não obstante o seu estoicismo, lamentava não ter sido morto a azagaiada. Sabia que, depois de muitas evocações feitas ás divindades mais sanguinarias e ferozes da religião zula, o atariam a uma arvore, accenderiam deante de si uma grande fogueira e que começaria o seu supplicio.

Arrancar-lhe-iam primeiro as unhas e depois os olhos, cortar-lhe-iam os dedos dos pés e das mãos, em seguida o nariz, as orelhas, todas as extremidades do corpo, e lançariam tudo isto ás labaredas que crepitavam a dois passos. Quando acabasse esta primeira phase abrir-lhe-iam o ventre para lhe extrahir os intestinos e gradual e lentamente as demais visceras até chegar a vez do coração. Para que não se ouvissem os seus gemidos, se se queixasse, dansaria e cantaria muita gente em redor, que gosaria e se riria das suas dores.

Tudo isto Mahatana sabia por ter já assistido a algumas execuções semelhantes. Não lhe custava morrer, por mais afflictiva que fosso a morte, o que lhe custava era succumbir sem ter realizado a sua vingança, partir deixando ficar na terra o seu mais implacavel inimigo. Esta lembrança atormentava-o mais, moralmente, que todas as torturas physicas que lhe pudessem inflingir. O seu desespero chegara ao auge. De subito lembrou-se que trazia comsigo algumas centenas de libras, das que o principe lhe dera.

E se subornasse os seus dois guardas, que nenhum d'elles era zulo? Não perdia nada em o tentar. A sua situação, á força de melindrosa e de crítica, não podia ser aggravada.

-- Tu não és zulo -- disse para uma das improvisadas sentinellas, -- porque serves assim com tanto zelo os tyrannos da tua tríbu, pois todas ellas estão escravisadas por esses déspotas?

-- Porque não podemos fugir ao seu dominio -- respondeu o interpellado.

-- E tu? -- perguntou para o outro.

-- Pela mesma causa -- retorquiu o segundo.

-- Ambos são dois tongas como eu, dois cães como os zulos nos chamam, porque não me ajudam a mim contra elles.

-- Como queres que te ajudemos?

-- Deixando-me fugir.

-- Para morrermos em teu logar?

-- Não, para nos salvarmos os tres.

-- Não pode ser, -- declarou o mais falador abanando a cabeça irresolutamente.

-- Fugimos os tres, escondemo-nos de dia no matto e caminhamos de noite; mais tarde apresentamo-nos aos inglêses e ninguem nos fará mal.

-- Os zulos enviarão gente em nossa perseguição, e não te salvando a ti perdemo-nos a nós.

-- Olhem -- expôs Mahatana -- eu sou rico; so me desamarrarem, se me deixarem internar no capim, dou cincoenta libras a cada um, mais do que podem forrar em tres annos de trabalho nas minas de ouro.

A proposta era tentadora, os dois guardas vacillarara.

-- Onde está esse dinheiro? -- interrogaram.

-- Perto d'aqui, num sitio que só eu sei -- declarou Mahatana não querendo confessar a verdade, com receio de que, manietado como se encontrava, o roubassem.

-- E se fôr mentira? Se nos fazes essas promessas só para te apanhares solto?

-- Affirmei que o dinheiro estava proximo d'esta povoação, a menos de meia hora de caminho. Venham commigo, se não fôr verdade tornem-me a conduzir para este sitio e a amarrar neste poste. São dois e possuem armas, eu sou só e nem uma nonga tenho.

Os negros conversaram baixinho durante algum tempo. A offerta era seductora; o espirito de avidez subjugou quaesquer outros conselhos da prudencia. Acceitaram.

Mahatana levou-os até um determinado ponto. Ahi pediu emprestada, a azagaia a um d'elles, para excavar, dizia, o chão, mas na verdade para se defender caso os dois pensassem trahil-os, e disse:

-- O dinheiro está commigo; aqui tem cada um o que lhes prometti -- e, tirando do cinto a quantia offerecida, entregou-lha; -- agora outra proposta.

-- Qual?

Acompanhem-me, resistiremos melhor a qualquer ataque das feras ou dos zulos sendo tres; logo que topemos os inglêses nada mais teremos a recear.

Eis como Mahatana se eximiu a um supplicio dolorosissimo. A sua jornada, porém, effectuou-se com cautelosa lentidão e tomando por largos desvios, de modo que quando suppunha encontrar o acampamento de lord Chelmsford já este o levantara e seguira no seu avanço sobre Ulundi.

Retrocedamos agora ao ponto em que Amalubi, mãe de Mahatana, repetira a Luiz Napoleão as fatidicas e mysteriosas palavras que havia tres mezes lhe endereçara no comboio, na viagem para Maritzburgo.

Mademoiselle Conneau estremecera e Santa Cruz levara involuntariamente a mão aos copos da espada. Nenhum d'estes movimentos escapara ao principe, que, sorrindo com a sua natural bondade, disse:

-- Boa mulher, breve seguirei os teus conselhos. Apenas acabe esta guerra irei para junto dos que me são caros e quanto aos cavallos eu me acautelarei com elles, já que tanto empenho mostras nisso.

-- Obrigado, senhor. E meu filho?

Santa Cruz, que não primava por paciente, apesar de toda a estima que voltava a Mahatana, commentou:

-- Se és adivinha, se lês no passado e no futuro, devias saber onde elle está e o que lhe aconteceu.

Isto fora dito em inglês, persuadido que a negra não o comprehenderia.

-- Eu sei o que Deus quer que eu saiba, mais nada; os seus designios secretos ninguem os pode desvendar; se pudesse poupar-te-ia a ti muitas horas de insomnia nessa lucta em que te debates entre o amor e o dever.

Santa Cruz fez os mais altos esforços para dissimular a perturbação que o invadira. Maria Isabel, ao ouvir estas phrases, repetidas pelo interprete, olhou muito surprehendida para a preta.

Luiz Napoleão, que não reparara na expressão que se reflectira no semblante do seu amigo íntimo e de mademoiselle Conneau, pôs termo a esta situação embaraçosa, dizendo:

-- Ficas no acampamento debaixo da minha protecção; vamos marchar para Ulundi, acompanhar-nos-ás e ali encontraremos o teu filho. Tenho tanto empenho como tu em o procurar e em o achar são e salvo. Devo-lhe a vida e a maior dedicação, não pouparei esforços para to restituir intacto, que bem o merece.

-- Que o teu Deus se amerceie de ti! -- respondeu Amalubi.

-- Vae, vae em paz! -- aconselhou o principe fazendo-lhe um signal de despedida, e outro a um dos seus serviçaes para que tomasse conta d'ella -- coitada! a cabeça não lhe regula bem, mas adora o filho, é mãe, devo e hei de rodeá-la de todas as attenções possiveis.

Santa Cruz tjrnara-se extremamente pensativo, Maria Isabel ainda mais.

Logo que o sol principiou a declinar, as tropas que tinham assistido á inauguração recolheram ao acampamento. A noite decorreu sem nada de notavel. Na madrugada seguinte mademoiselle Conneau partia com as duas irmans hospitaleiras para Greytown. O medico acompanhava-os até aquella cidade e voltava depois a juntar-se ao filho de Eugenia de Montijo.

-- Até á vista, Maria Isabel, -- murmurara o principe apertando a mão da joven e sentindo afogar-se-lhe na garganta um soluço.

-- Adeus! -- balbuciou a desolada senhora, a quem, nesse momento, toda a sua energia parecia abandonar e que se contorceu numa convulsão de choro.

-- Boa viagem, mademoiselle Conneau, -- desejou-lhe Santa Cruz, que preferia cem mil vezes achar-se de novo deante da metralha dos austríacos em Magenta, ou em frente das baterias prussianas de Gravelotte que presencear aquella despedida.

-- As minhas recommendações de Chiselhurst prevalecem mais que nunca -- disse baixinho Maria Isabel ao official português.

-- As minhas promessas de então não as esquecerei emquanto viver -- respondeu Santa Cruz no mesmo tom.

E assim se despediram as duas creaturas, Maria Isabel e o principe, que se amavam desde creanças e que não deveriam tornar a encontrar-se neste mundo.

No acampamento faziam-se os preparativos necessarios para a marcha das tropas. Passava-se isto nos ultimos dias de maio de 1879. Luiz Napoleão affeiçoara-se intimamente ao tenente J. Brenton Carey.

Este official, filho do vigario de Brixbam, fôra educado no Lyceu imperial francês e no collegio militar de Sandhurst, em Inglaterra. Entrou para o serviço do exercito britannico em 1865, servindo no regimento 3, indigena, das Indias Occidentaes; mais tarde nomearam-no commandante do forte de Acera, na Costa do Ouro. Voltando com o seu regimento para a Jamaica encorporou-se na expedição da Costa dos Mosquitos, e na de Honduras, merecendo a sua conducta ser citada em varios relatorios. Decorrido tempo, dissolvido o seu regimento, regressou a Inglaterra sendo collocado na inactividade. Frequentou então o curso de tiro, no qual obteve a classificação de instructor de primeira classe. Em 1870 alistou-se na ambulancia inglesa, na guerra entre a Franca e a Allemanha. A maneira como recolheu os francêses feridos grangearam-lhe levantados e repetidos elogios e uma medalha.

Matriculou-se, em seguida á paz, no curso do estado maior, onde conquistou magnificas notas. Ao rebentarem os tumultos na Zululandia offereceu-se para tomar parte, como voluntario, da campanha contra Catchuaio. Promovido a tenente para o regimento de infantaria 78, seguiu para Africa no transporte Clyde, que naufragou em Simon's Bay. A sua forma de proceder na angustiosa collisão valeram-lhe calorosos louvores officiaes. Logo que chegou a Natal, o commandante-em-chefe, aproveitando as suas especiaes aptidões, encarregou-o de reconhecer os caminhos que as tropas britannicas deviam percorrer e de escolher os pontos mais convenientes para estabelecer os acampamentos. Fazia parte do estado-maior de lord Chelmsford com o titulo de Deputy-Assistant-Quartermaster-General, ou seja uma especie de adjunto, e prestara em varias conjunturas difficeis optimos serviços.

Era um homem alto, de cabello preto, barba chamada á inglesa, tambem escura, de aspecto sympathico e que depressa conquistara a estima do todos os seus camaradas.

O tenente-general sir Garnet-Wolseley chegara a Africa do Sul a 23 de maio. Lord Chelmsford, a quem elle vinha substituir, apressou sem perda de tempo as operações.

O plano de campanha nesta ultima pliase não era dos mais complicados. O general Clifford commandava a base e a linha de communicações desde Durban até Utrecht. A linha dos rios Tugela e Buffalo, do forte Pearson a Rorke's Drift, estava guarnecida por batalhões indigenas, commandados por officiaes britannicos e apoiados por fracções do 24 de infantaria e dos dragões da Guarda.

Constituia o exercito de invasão tres colunmas. A primeira, ás ordens do major general Crealock, com a sua testa fortemente entrincheirada no rio Umlalezi, concentrava-se no forte Chelmsford e fazia avançar uma brigada para a missão inglesa de S. Paulo entre essa posição e Ulundi. O seu effectivo consistia na infantaria montada de Barrow, na cavallaria colonial de Lonsdale, numa bateria de artilharia, seis batalhões do Buffs, do 57, do 60, do 88, 91 e 99, numa força de marinheiros e nos contingentes indigenas de Barton e Nettleton.

A segunda, commandada pelo major general Newdigate, acampava a cêrca de vinte milhas a leste do monte Allein, depois de ter reconhecido e explorado o terreno até Abalamengo, distante aproximadamente cincoenta milhas de Ulundi. Essa força era formada pelo 17 de lanceiros, um esquadrão de dragões da Guarda, duas baterias de artilharia, outra de metralhadoras Gatling e quatro batalhões do 21, do 24, do 58 e 94 com grupos de auxiliares.

A columna do norte, sob a direcção do brigadeiro-general sir Evelyn Wood, avançava para sudoeste do seu antigo acampamento de Kambula, pela montanha Munida, para Abamengo, onde effectuaria a juncção com a columna Newdigate e de ali marcharia sobre Ulundi. Era constituida por uma bateria de artilharia e tres batalhões do 13, do 80, do 90 e a cavallaria de Buller.

O designio de lord Chelmsford consistia em marchar sobre Ulundi com os generaes Newdigate e sir Evelyn Wood de modo a isolar Catchuaio a nordeste da Zululandia. Saberemos mais tarde se o conseguiu.

O acampamento de lord Chelmsford estabelecera-se agora entre Landsman's Drift e kopje (monte) Allein. Estes dois pontos, com Conference Hell, occupado por sir Evelyn, formam um triangulo no territorio do Transvaal, no districto de Utrecht, limitrophe da fronteira occidental da Zululandia, e separado d'ella pelo rio Blood e pelo Buffalo que confluem em Rorke's Drift.

O rochedo isolado denominado kopje Allein, que domina um vau do rio Blood, era a posição mais além das tropas britannicas no seu movimento de avanço sobre a povoação de Catchuaio.

Estas manobras faziam andar os officiaes do estado-maior em continuas galopadas, d'um quartel-general para outro, a ponto de terem que mudar de cavallo duas e tres vezes por dia.

-- Tinha um favor a pedir a vossa alteza -- disse lord Chelmsford.

-- Não pede, ordena, meu general; em que lhe posso ser agradavel? -- retorquiu Luiz Napoleão com a sua risonha affabilidade.

-- Precisava enviar uma communicação confidencial ao general Croalock e nenhum dos meus ajudantes está aqui -- explicou ainda o commandante-em-chefe, pois sir Garnet Wolseley continuava na colonia do Cabo.

-- Quer que vá eu, meu general? Não sou aqui, nem desejo ser, mais que um simples official -- replicou o principe.

-- Agradeço muito a vossa alteza o seu offerecimento, mas não o posso dispensar de concluir o levantamento da carta topographica em que trabalha. Pedia-lhe emprestado o seu ajudante, o major Santa Cruz, por um ou dois dias -- declarou lord Chelmsford.

-- Da melhor vontade, meu general.

O official português foi chamado, e, instruido do que tinha a fazer, dispòs-se a partir no mesmo instante para se desempenhar da sua missão. Antes de largar as redeas ao cavallo, cumprimentou militarmente Luiz Napoleão, e rogou-lhe baixinho:

-- Os zulos começam a enxamear em redor de nós; o acampamento está cercado de uma immensa e invisivel nuvem de espias. Consinta vossa alteza que lhe recommende prudencia nos reconhecimentos que anda effectuando com o tenente Carey e capitão D'Arcy.

-- Vae tranquillo, Santa Cruz, não tenhas medo por mim, tu que nunca o tiveste por ti -- redarguiu o principe rindo descuidosamente. -- Dentro de dois mezes, ou menos, estaremos todos em Inglaterra ao lado de sua magestade a imperatriz; a guerra está a terminar. Vae e volta breve. Acautela-te tu, que nunca te importaste com a vida.

Santa Cruz esporeou o corcel, mas logo o reprimiu. Debruçou-se sobre a montada, para o principe, que estava a pé, e solicitou.

-- Um ultimo aperto de mão, meu senhor.

-- Aqui tens, Santa Cruz -- retrucou o filho de Eugenia de Montijo estendendo-lhe a mão com um sorriso nos labios. -- Dir-se-ia que te despedes de mim para sempre.

Em seguida o principe puxou-o para si, lançou-lhe os braços ao pescoço, e apertou-o demoradamente de encontro ao peito. Quando se desligaram, ambos tinham os olhos inundados de lagrimas. Santa Cruz galopou sentindo no coração uma dôr agudissima. Que mysterioso presentimento o assaltara? Lembrou-se involuntariamente do vaticinio de Amalubi e pensou em voltar para trás e não se separar do principe.

Mas a que pretexto? A sua honra de militar não lho consentia. Proseguiu na carreira, não sem se voltar para a retaguarda amiudadas vezes, emquanto pôde distinguir o vulto do seu juvenil amigo, que ficara como chumbado ao terreno acompanhando-o tambem com a vista.

Nessa mesma tarde organizou-se uma força para operar um reconhecimento, que devia sahir de madrugada antes de romper o dia. O principe insistiu em acompanhar a batida e não houve remedio senão acceder ao seu desejo. A exploração era realizada por sessenta homens da Fontier Light Horse, ás ordens do capitão D'Arcy e tenente Blaine, de quarenta basutos commandados pelo capitão Cockerell e tenentes Henderson e Raw e cerca de oitenta cavallos da cavallaria de Baker, tendo todos á sua frente o denodado coronel Bidler. Addidos ao commando iam o principe imperial, lord W. Beresford, ajudante d campo e mr. Drumond.

A cavalgada encaminhou-se primeiro para Conference Hell, onde estavam armadas as barracas do 94. Depois de uma rapida visita e de admirarem a bella paizagem que se desfructava d'esse ponto, os cavalleiros galoparam até um casal, a cerca de cinco milhas de distancia e abivacaram deixando que as montadas pastassem á solta pelos milharaes. Luiz Napoleão exultava com esta liberdade e com esta existencia aventurosa do soldado.

Ao alvorecer do dia seguinte o troço effectuou uma correria para o sul, atravessaram o rio Blood e subiram a uma eminencia, da qual se divisava a quatro milhas de distancia Rorke's Drift. O terreno desde Conference Hell é plano e de facil accesso. Decorridos cinco minutos, a trote curto, uma das vedetas, preveniu.

-- Uma povoação!

-- Com gente? -- perguntaram do grosso da columna.

-- Abandonada.

Os cavalleiros entraram de tropel pelo kraal dentro, mas logo um dos officiaes mais praticos nos usos do país, explicou:

-- Olá, os zulos passaram aqui esta noite.

-- E só levantaram campo de manhan.

-- Obrigado pela condescendencia de nos cederem os seus logares -- gracejou um terceiro.

Os cavallos foram desaparelhados e cada um pôs-se á vontade.

-- Olha, olha, lá vão elles -- bradou mr. Drumond, que possuia excellente vista.

Effectivamente na direcção do topo da montanha de Usirayo, que se erguia mesmo em frente da povoação, trepava um bando de negros que não pararam até que chegaram ao cume. Uma vez lá em cima principiaram a bracejar, a fazer tantos gestos que nenhum semaphoro executaria signaes mais rapidos.

-- Que estão elles a fazer? -- perguntou o principe com curiosidade.

-- Estão a chamar gente. Repare vossa alteza naquelle preto que monta um cavallo cinzento, vae agora por todas as povoações mais proximas para reunir os guerreiros. É uma especie de almuadem, desempenha o papel dos sinos nas nossas aldeias sertanejas, toca a rebate.

Na verdade, em pouco tempo, agruparam-se lá em cima algumas dezenas de zulos.

-- Bravo! O tal cavalleiro de pelle tisnada é não só almuadem, mas general, colloca a sua infantaria á esquerda e a cavallaria á direita do desfiladeiro.

-- Ora adeus, que infantaria e cavallaria! Os negros a pé não são mais de cincoenta e a cavallo mal chegam a oito.

-- Já não saem de lá sem refrega seria - commentou um dos officiaes mais novos.

-- Qual! -- respondeu o capitão D'Arcy -- Em elles vendo meia duzia dos nossos soldados direito a elles foge tudo.

-- Veremos -- duvidaram alguns.

Neste momento já o tenente Raw com seis dos seus basutos attingira o topo da montanha.

Apenas os zulos descobriram esses cavalleiros á desfilada sumiram-se como coelhos nas luras.

A força, que já se encontrava montada, dirigiu-se para o alto, a passo. De subito o principe que divisara um inimigo occulto numa das collinas, gritou:

-- Zulos! zulos!

E levado pelo seu ardor correu direito a elle.

-- Tenente Rawdon vá atrás do principe -- ordenou Buller -- leve comsigo alguns soldados europeus. Aquelle zulo é um espia, ha com certeza gente emboscada por trás d'elle.

Assim succedia, por infelicidade. Luiz Napoleão encontráva-se litteralmente cercado pelos adversarios. O tenente Raw lembrou-se de mandar dar uma descarga sobre o grupo, mas receou ferir tambem o principe imperial.

Buller e os demais officiaes viam de um alto as circumstancias críticas em que se achava aquelle seu camarada e não o podiam soccorrer.

A sua salvação dependia da velocidade dos cavallos.

VIII

A catastrophe

O coronel Buller, intrépido como era, jurava no seu íntimo não tornar a condescender com o principe quando se tratasse de incursões semelhantes. O genio do seu imperial subordinado era de uma impetuosidade e de um desassombro ante o perigo que lhe faziam recear as mais graves consequencias. Que diria a imperatriz Eugenia, o partido bonapartista, as cortes européas, todo o mundo, se lhe acontecesse qualquer desastre? A opinião publica faria recahir sobre o chefe a responsabilidade da desgraça, sem se lembrar que a guerra é a guerra, e que ninguem, absolutamente ninguem, poderia soffrear um rapaz brioso, destemido, oriundo de uma corajosa familia de militares, que ambicionava notabilisar o seu nome.

Quando Redvers Buller raciocinava assim no mais recondito da sua consciencia, os zulos, não se explica bem porquê, tomados de subito panico, fugiram em todas as direcções e deixaram Luiz Napoleão incólume. O principe voltou para o lado do coronel a rir, e Buller soltou um fundo suspiro de allivio, de mais allivio talvez que o que se lhe escapou do peito quando chegou a Kambula depois da retirada de Hlobane.

-- Perdoe, coronel, a minha vivacidade -- solicitou o principe -- mas o desalmado do preto parece que motejava de nós.

-- A vossa alteza succedeu o que é natural na sua edade, não o censuro -- respondeu Buller lealmente -- mas peço-lhe que modere o seu ardor.

O filho de Eugenia de Montijo sorriu e prometteu. Não lhe passou sequer pelo espirito que o incidente de ha pouco poderia ter sido um salutar o generoso aviso da Providencia.

-- Além é Isandluana, não é verdade? -- perguntou o principe para o capitão D'Arcy.

-- É, e estes são. os valles onde as impis zulas se occultaram para cahir de surpresa sobre os nossos desprevenidos camaradas -- informou-o o official interpellado.

A trotada proseguiu.

Como se chama aquelle monte de cume plano?

-- Mhlazatze; está circumdado de povoações do inimigo, mas parecem desertas.

Neste momento Buller ordenava:

-- Queimem os kraals que existem nas vertentes da montanha.

Em menos de meia hora todos esses povoados erguidos nas encostas do rochedo, bem como os campos de milho e de mandioca que vicejavam em tôrno ficaram reduzidos a um informe acervo de cinzas. A cavalgada continuou deixando após si um exterminador rasto de chamas e de desolação. Era tempo de voltar ao acampamento, mas anoitecera e só na manhan seguinte seria prudente effectuar á marcha.

O vento soprava frio, quasi enregelado até. Quem não se prevenira com capotes ou com cobertores, e o principe era d'este numero, não conseguia dormir. Buller prohibira accender fogueiras. Mettia pena aquelle triste quadro. A noite apresentava-se tenebrosa e a escuridão só era interrompida aqui e ali pelos clarões vermelhos, como ensanguentados, dos brazidos dos kraals dispersos.

No dia seguinte nada occorreu. A columna almoçou, jantou e recolheu ao acampamento, onde a sua demora começava a inspirar cuidado. Este raid, effectuado para provar aos indigenas que tambem elles poderiam ser surprehendidos, obteve, na sua audaciosa tentativa, pleno exito.

Chegara o dia 31 de maio. Faziam-se todos os preparativos para a grande e imminente batalha contra os zulos. O estado-maior não descansava, procedendo a reconhecimentos em todos os sentidos.

Na barraca do principe conversava com elle o seu amigo tenente Brenton Carey.

-- Vou amanhan a Edutu escolher o terreno para um novo acampamento, quer acompanhar-me, meu caro camarada? -- perguntou-lhe Luiz Napoleão.

-- Com todo o gosto, tanto mais que conheço bem esses sitios, -- declarou o interpellado. -- Quantos homens leva vossa alteza comsigo?

-- Quantos julga necessarios?

-- Creio que teremos bastante com um sargento e cinco soldados -- informou o tenente.

-- Tambem me parece.

-- Vossa alteza já preveniu lord Chelmsford que sae para o campo?

-- Não é preciso, anda longe, e o general Newdigate foi conferenciar com sir Evelyn Wood. Não estou eu encarregado comsigo, Carey, de fornecermos os esboços topographicos das posições vizinhas? -- argumentou Luiz Napoleão.

-- Não ha duvida, mas o general gosta de que lhe participem sempre que vossa alteza parte para esses trabalhos.

-- Pois d'esta vez não cumpriremos essa foralidade e lord Chelmsford não se zangará.

-- Seja como vossa alteza quizer, mas se o commandante-em-chefe se melindrar por esse facto, lembre-se que não foi por falta de aviso meu.

-- Eu me desculparei, meu bom Carey, e a si se tanto for mister.

Pouco tempo depois o tenente Brenton Carey era chamado á presença do coronel Harrison, chefe interino do estado-maior.

-- O tenente Carey acompanha o principe real no reconhecimento a que sua alteza vao proceder amanhan, não é verdade?

-- E, sim, meu coronel.

-- Deixe-lhe toda a liberdade de acção, desejo que a escolha do local do novo acampamento seja da sua completa e absoluta iniciativa.

-- Serão cumpridas as suas ordens, meu coronel.

O tenente Carey cumprimentou militarmente e retirou-se.

Na manhan de 1 de junho de 1879 o tenente Carey apresentou-se a Luiz Napoleão.

-- Já foi nomeada a escolta, para vossa alteza?-- inquiriu o official britannico depois das saudações do estylo.

-- Ainda não -- responileu-lhe o fillio de Eu-

genia de Montijo, -- tenha paciencia, vá tratar

d'isso, quando não sahimos d'aqui muito tarde.

Decorrido um quarto de hora encontravam-se em frente das barracas do quartel-general os homens nomeados pelo major da brigada de cavallaria. Pertenciam ao corpo de Bettington.

A chronica conservou os seus nomes. Eram: o sargento Willis, o cabo Grubb e os soldados Letocq, Cochrane, Abel e Roger; Letocq, de origem francêsa, e bonapartista, alistara-se de propósito para acompanhar o principe. Além d'estes europeus havia mais seis basulos a cavallo do esquadrão do capitão Shepstone e um zulo, ao serviço dos inglêses, que mr. Drummond recommendara para guia.

Minutos antes d'este pequeno bando se pôr em marcha o coronel Harrison recommendou ao tenente Carey:

-- Deixe toda a iniciativa a sua alteza, mas não o perca de vista.

-- Descanse, meu coronel -- affirmou o official britannico.

O grupo cavalgou e atravessou o rio Blood. O principe e o companheiro principiaram a desempenhar-se da sua tarefa. No flanco direito e esquerdo andavam varios basutos em serviço de exploração. Tinham attingido a crista de uma eminencia.

-- Parece-me conveniente apear-nos aqui e determinar a posição d'estas collinas com as bussolas -- propôs o principe.

Ambos se atiraram abaixo das montadas e começaram a fazer um levantamento á vista. Quando estavam quasi no fim d'este labor, notou Luiz Napoleão:

-- Vem acolá um cavalleiro a toda a brida.

Carey assestou o binoculo e logo informou:

-- É o coronel Harrison.

-- Que nos quererá? -- observou o principe.

Era effectivamente o chefe do estado-maior que, inquieto sem saber porquê, se aproximara dos dois officiaes.

-- Deseja alguma coisa, meu coronel?

-- Não,... isto é,... -- redarguiu o recem-vindo -- a cavallaria do general Alarshall manobra por aqui perto, não precisam de nada?

-- De nada, meu coronel -- retrucou Luiz Napoleão.

-- Talvez não fosse mau -- insinuou Carey -- reforçar a nossa escolta.

-- Qual, -- contrariou o filho de Eugenia de Montijo -- a que temos é mais que sufficiente. Harrison retirou vagarosamente olhando repetidas vezes para trás.

Terminados, neste ponto, os esboços do terreno, montaram de novo e avançaram cêrca de milha e meia pelo matto adeante. Subiram a uma serra penhascosa para além do rio Itiotiozi.

-- Podiamos descansar aqui um pouco e dessellar os cavallos -- indicou Carey.

-- Não, -- refutou Luiz Napoleão -- é melhor á beira do rio, teremos agua para nós e para os animaes.

Demoraram-se ahi meia hora observando minuciosamente com os binoculos a topographia da região e ainda se se descobria qualquer vestigio de inimigos.

-- Não ha ninguem -- declarou o principe -- vamos acolá para aquella povoação que está completamente abandonada.

Dirigiram-se o mais descuidadamente possivel para o kraal. Era um insignificante logarejo com quatro ou cinco palhotas, entre cem a cento e cincoenta jardas do rio Itiotiozi. A frente desensombrava-se sem nenhum obstaculo que lhe occultasse o horizonte, mas dos outros lados erguia-se o capim da altura de mais de um homem. Os negligentes militares não tinham tomado a minima precaução de vigilancia, nem sequer explorado as cercanias da aldeia.

-- Sinto-me fatigado -- declarou o principe -- repousemos aqui.

-- As ordens de vossa alteza -- condescendeu Carey.

O principe virou-se para os soldados e disse-lhes:

-- Tirem os selins aos cavallos, levem-nos a beber agua e deixem-nos depois pastar no capim, não para muito longe; os basutos que tomem conta nelles. Em seguida tratem de si, façam o seu café.

Ao espirito de Luiz Napoleão não acudiu nem por um segundo a recommendação de Amalubi, mãe de Mahatana. É natural tambem que se essa recordação lhe tivesse cruzado a mente se risse d'ella. Entrou numa das palhotas para se abrigar do calor, mas logo sahiu para tomar ar livre.

Em redor do curral do gado vagueavam dois ou tres cães soltando uivos plangentes, como se presagiassem algum acontecimento sinistro.

-- Que demonio de cães tão impertinentes! -- commentou o principe.

-- É prova que os zulos sahiram d'aqui pouco tempo antes de nós chegarmos, e que não devem andar muito afastados -- raciocinou Carey.

Luiz Napoleão conservou-se mudo. Desprendeu a phantasia e deixou-a voar pelos páramos do devaneio. Sonhou, sonhou, sonhou com quê? Com a gloria que o fascinava para o provir, com as grandezas que talvez o futuro lhe reservasse, com a continuação da deslumbrante lenda napoleonica iniciada pelo assombroso genio militar de seu tio, interrompida por seu pae e a que elle poderia outorgar o mais intenso brilho? Sonhou com sua mãe, com a illustre e desventurada senhora para quem agora representava o unico canto do admiravel e romantico poema da sua existencia, esmaltada das maiores alegrias durante o periodo da sua juventude, entristecida dos mais fundos pesares no seu occaso? Sonhou com os amores que preoccupam e rejubilam a alma de todos os rapazes de vinte e tres annos, quando o coração estremece de anceio num misto de sentimentalidade e de sensualidade que o faz vibrar de anhelos indefinidos?

O tenente Carey deixou-o permanecer largo tempo n'aquella funda meditação; depois preveniu-o:

-- Vossa alteza talvez não se lembra que são mais de tres e meia.

-- Mais dez minutos ainda para socêgo dos animaes -- retorquiu Luiz Napoleão.

Quasi logo, como tomado de uma subita pressa, ordenou:

-- Tragam os cavallos.

Um dos basutos com a montada á redea proferiu algumas palavras.

-- Que diz esse preto? -- inquiriu o filho de Eugenia de Montijo.

O cabo Grubb, que comprehendia a lingua, interpretou:

-- Saiba vossa alteza que esse cafre declara que viu um zulo atravessar o rio e subir para o cerro além defronte.

-- Apparelhem depressa -- determinou.

A determinação foi executada com a maxima celeridade.

-- Preparar para montar! -- commandou o principe, com o seu cavallo ainda á mão, -- montar! -- accrescentou.

Todos obedeceram excepto o soldado Rogers, que diligenciava apanhar a montada que lhe fugira.

De subito resoaram alarmantes gritos dados pelos negros:

-- Os zulos! Os zulos!

Na verdade, do lado do capim, do mais denso da herva, surgiam os bustos escuros e as caras ferozes de uns vinte zulos. Metteram as carabinas á cara e desfecharam uma descarga cerrada. Os cavallos atemorisaram-se, encorcovaram-se, distenderam-se em upas enormes e tomaram o freio nos dentes. O panico que se apoderou de alguns dos soldados ainda mais accelerou a carreira. Cada um tratou de si e ninguem do principe.

Á frente dos inimigos, quando estes se mostraram, pulava o vingativo Macusse, que lançou o grito de guerra.

-- Usuto! Aqui estamos, covardes inglêses!

Os soldados Abel e Roger cahiram pouco depois varados pelas balas dos adversarios. O cavallo do principe empinava-se e debatia-se de modo a não consentir que o cavalleiro montasse. Por elle, nesse supremo instante, passou o soldado Letocq, que lhe disse, em francês:

-- Despache-se, senhor, monte a cavallo que os zulos estão em cima de nós.

Luiz Napoleão mettera o pé esquerdo no estribo, mas não conseguia erguer a perna para se assentar na sella. Neste momento a cilha, mal apertada, cedeu, o selim virou-se, o principe cahiu e largou as redeas. O cavallo em liberdade, deitou a fugir numa galopada vertiginosa. O infeliz largou-se a correr atrás do corcel; não o alcançando tentou escapar a pé. Perto havia uma donga, cova profunda, a cem metros da povoação, em que não reparou. Cahiu lá dentro. Macusse e os outros negros soltaram um formidavel e selvagem urro de alegria.

A dynastia fundada pelo primeiro general do seculo XIX, por Napoleão I, extinguia-se ingloriamente, obscuramente, num povoado desconhecido no interior da Zululandia.

O principe foi azagaiado de forma barbara no fundo d'essa cova. Os seus camaradas não tinham feito a mais insignificante tentativa para o furtar ao fim cruel que o victimou.

O tenente Carey e os seus subordinados na carreria doida em que regressavam ao acampamento britannico de Itelezi, toparam com o brigadeiro-general sir Evelyn Wood e com o coronel Buller que, tendo ouvido tiros, a distancia, vinham com uma forte escolta para os livrar do mau passo. Ambos ficaram consternadissimos com a tristissima casualidade. Cerrara-se a noite e nenhuma diligencia proficua se poderia realizar a essa hora. O tenente Carey foi immediatamente preso, por ordem de lord Chelmsford, para a sua barraca.

No dia seguinte, logo de madrugada, sahiu o general Marshall á frente de uma numerosa força para pesquisar o theatro da sinistra occorrencia. Não viram um unico inimigo. Batidas as vizinhanças da povoação, um dos officiaes gritou:

-- Cá está!

-- O principe?

-- O seu cadaver.

Em redor da donga informou-se um grande circulo e todos se descobriram.

O desditoso rapaz estava completamente nú; tinham-no despojado de quanto vestia. Apenas conservava em redor do pescoço um delgado collar do qual pendia um medalhão com um retrato e cabello, um escapulario com um Agnus Dei e uma imagem da Virgem Maria, presentes de sua mãe. Valeu ao cadaver conservar essas reliquias o presumirem os zulos ser talismans magicos.

O cadaver apresentava dezanove ferimentos, dos quaes nenhum era de bala, e sim todos de azagaia. Os zulos tinham cevado no desventurado moço todo o seu fanatico odio. Duas das azagaiadas atravessavam-lhe litteralmente o corpo, do peito ás costas, outras cravaram-se-lhe nos lados e uma arrancara-lhe o olho direito. Custava a reconhecer o formoso e attrahente rapaz, que tantas sympathias inspirava.

Mais adeante descobriram os cadaveres dos soldados, a quem os ferozes zulos tinham tambem azagaiado, depois de já mortalmente feridos pelas balas.

O general Marshal não tinha ali mais nada a fazer senão transportar esses dilacerados restos para o acampamento. Com algumas lanças e cobertores foi formada uma especie de maca, e logo expedido um emissário, communicando o lugubre achado e requisitando da ambulancia uma viatura para que o corpo do infeliz principe imperial entrasse em Itelezi com todas as honras militares.

Lord Chelmsford sentiu o mais fundo pesar com o inesperado e triste acontecimento, telegraphou immediatamente a infausta noticia para o governo de Londres e determinou que nessa mesma tarde o corpo de Luiz Napoleão fosse enviado para a estação do caminho de ferro mais proxima, para ali ser mandado para Durban e nessa cidade embarcado para Inglaterra num navio de guerra britannico. Os medicos embalsamaram como puderam o trucidado cadaver, e á tarde foi o feretro collocado num armão de artilharia que o devia conduzir até Greytown.

Todas as tropas inglêsas formaram alas desde a barraca do imperial extincto até fora do entrincheiramento. Atrás da urna, coberta com a bandeira tricolor, seguia a pé o reverendo Bellow, sacerdote catholico, bem como o tenente general lord Chelmsford, acompanhado por todo o seu estado-maior, officialidade que não se encontrava debaixo de forma e M. Deléage, correspondente do jornal parisiense Figaro. Após estes ia o general Newdigate, commandante da segunda divisão, a cavallo, com os seus ajudantes; fechava a cauda deste prestito a cavallaria. Antes de transpor os parapeitos o cortejo parou e a artilharia o a infantaria deu as descargas usuaes.

No momento em que a carreta sahia e que lord Chelmsford se dispunha a voltar para trás, parou deante d'elle um cavalleiro cuja montada vinha coberta de suor e de espuma.

-- O major Santa Cruz! -- exclamou o commandante-em-chefe.

-- Meu general, a missão de que se dignou incumbir-me está cumprida, o meu dever agora chama-me a outra parte.

-- Quer acompanhar os restos do seu pobre amigo, não é verdade?

-- Sim, meu general; mas tenho outro favor a pedir-lhe.

-- Diga. major.

-- Vou a Greytown entregar o corpo de sua alteza ao dr. Conneau. depois desejo regressar aqui. Farei o impossivel para me apresentar antes da batalha que se prepara.

-- Dou-lhe carta branca para proceder como entender, é sempre bem vindo; comprehendo muito bem que deseje vingar a morte d'esse rapaz de quem foi companheiro inseparavel d'esde creança -- adduziu lord Chelmsford.

Santa Cruz mudou de cavallo, metteu na mala de viagem a roupa indispensavel e em poucos minutos de galope aturado alcançou a carreta que transportava o despedaçado e perecivel involucro d'esse descendente de imperadores.

No dia immediato chegaram os tristes despojos a Greytown, onde o luctuoso successo já era conhecido desde a vespera.

A Santa Cruz afigurava-se-lhe o occorrido um teimoso e infernal pesadêlo. Não podia acreditar na evidencia dos factos. Depois de se entregar á mais terrivel colera surda que pode convulsionar um organismo onde nunca entrara

o medo, em resultado da qual pensou em tirar um sangrento desforço das pessoas que elle suppunha serem culqadas do tragico episodio, principiou a serenar e a debater no seu espirito quanto a sua dôr devia ser menos cruciante, comparada com a magoa que sentiria a imperatriz quando a informassem da irremediavel perda.

Por deante dos olhos de Santa Cruz perpassou a imagem de mademoiselle Conneau. Como ella soffreria, e como elle cumprira a promessa que tão solemnemente lhe fizera! Como se apresentaria agora ante esse austero juiz que lhe pediria contas estrictas do penhor sagrado que lhe confiara. A sua consciencia estava tranquilla, na verdade, nada tinha que lhe exprobar, fôra uma série de fatalidades, um encadeamento de circumstancias desastrosas, mas afiguravam-se-lhe todas improficuas para a sua defesa. O dilemma não consentia outra solução: ou salvá-lo ou morrer com elle. Não cumprira nenhum d'esses dois deveres sacrosantos. Considerava-se moralmente deshonrado.

Foi vergado a estes pensamentos que entrou em Greytown ladeando o funebre vehiculo. No limiar da casa que fôra improvisada em Camara ardente encontrou mademoiselle Conneau e seu tio. Maria Isabel estendeu-lhe a mão. Tinha os olhos enxutos. Nenhum dos dois conseguira chorar. Era tal a vehemencia d'aquella pena que as lagrimas seccavam-se-lhe no trajecto do coração para as palpebras.

-- Vae para Inglaterra? -- perguntou-lhe a joven.

-- Volto para a Zululandia.

-- Para morrer?

-- Não, para matar.

IX

Ulundi

Ia representar-se o ultimo acto do sangrento drama militar, que custava á Inglaterra um sangue precioso, cortado de scenas tragicas, e que constituia sem duvida nenhuma a campanha colonial mais renhida que até ahi se ferira.

O corpo de exercito de lord Chelmsford avançara sobre Ulundi, ao longo da crista da serra Babinanga e pela banda sul do valle do Umbeluzi Branco. Commandavam as duas divisões que o compunham, como já dissemos, os generaes

Newdigate e sir Evelyin Wood. O total das tropas de que dispunha o general em chefe apresentava um effectivo de quatro mil e sessenta e dois europeus, cerca de mil indigenas e quatorze canhões. Os quatro mil europeus restantes tinham ficado a guardar a fronteira e a vigiar a linha de communicações da columna principal.

Catchuaio começava a perder todas as esperanças de vencer. A 26 de junho enviou mensageiros seus pedindo que não queimassem certas povoações collocadas no percurso das tropas. Lord Chelmsford, como é facil de prever, não condescendeu e mandou varias fracções para as destruir, mas encontrou-as abandonadas e incendiadas pelos proprios nativos. A 27 voltaram novos emissarios zulus trazendo uma porção bois que tinham tomado em Isandluana, bem como um presente de duas pontas de elephante, e uma carta escripta em inglês por um negociante doente em Ulundi, participando que o resto do gado e duas peças de artilharia seriam remettidas breve. Affirmava mais nessa missiva os seus desejos de paz e que esperava que os soldados britannicos evacuassem os seus dominios. Declarava tambem que não pudera reunir todas as armas apprehendidas em Isandluana.

O régulo vacillava entre o medo de ser vencido e o orgulho que o incitava a hostilisar os invasores. Desejava principalmente ganhar tempo, uma das bases immutaveis da diplomacia indigena. Os espias dos inglêses participavam que se concentravam numerosas impis perto de Ulundi e no matto que lhe ficava á direita.

Na manhan de 3 de julho, ás seis e um quarto, as duas divisões atravessaram o Umbeluzi, e marcharam em quadrado, com as munições ao centro dentro de um laager constituido pelas carretas da columna, e tomaram uma excellente posição entre Naduengo e Ulundi, cêrca das oito e meia. Não tardou que se avistassem as massas zulas deixando os seus bivaques e avançando de todos os lados. A cavallaria de Buller foi ordenado que lhe demorasse primeiro o passo e que attrahisse depois o inimigo, tanto quanto possivel, para debaixo do fogo.

Os basutos, a cavallo, ás ordens do capitão Cochrane, retiraram antes dos seus adversarios avançarem, e a face direita do quadrado foi a primeira a receber o choque, principiando ahi o tiroteio cinco minutos antes das demais. Ás nove menos dez minutos o combate generalisára-se. Os zulos acommettiam como leões, de todas as bandas; os inglêses estavam litteralmente rodeados de inimigos. Marcharam em silencio, ostentando a mesma bravura de Kambula e de Ginghilovo, até se aproximarem sessenta metros do quadrado. Então ahi entoaram o seu hymno de guerra e prepararam-se para a investida.

A lição de Isandluana, sempre presente no espirito dos officiaes britannicos, obrigara-os a tomar todas as precauções imaginaveis. A infantaria formava em quatro filas, com a primeira de joelhos e a quarta de peitos virados para o interior do quadrado, para a hypothese de qualquer ruptura, como succedeu mais tarde, ao nosso caçadores 2, era Marracuene, quando os landins abriram brecha na face defendida pelos soldados de Angola. O serviço de munições encontrava-se montado de forma que não podiam nem escassear, nem demorar-se o seu fornecimento.

Sobre o quadrado cahia um trovejante furacão de balas e azagaias. Os zulos cada vez avançavam mais. Os generaes britannicos chegaram a recear um combate corpo a corpo. Alguns dos negros avizinharam-se a vinte e cinco metros das metralhadoras, desfechavam e retiravam. Os artilheiros estavam desesperados, as Gatlings cessaram fogo, por desarranjo, seis vezes durante a batalha. As granadas choviam sem interrupção.

As impis zulas, que atacavam a direita dos inglêses, eram commandadas por Usirayo; as da esquerda por Dabulamanzi, o vencedor de Isandluana. Catchuaio assistia no cume de uma eminencia á acção. O corpo principal tornou-se ainda mais denso e dispôs se a cahir como uma gigantesca catapulta sobre a muralha viva d'esse reducto ouriçado de baionetas. Abeirava-se o momento supremo. Lord Chelmsford comprehendeu-o. Ordenou então ao 17 de lanceiros, formado dentro do quadrado, que carregasse. Uma das faces abriu-se e o regimento, passando da columna á linha, precipitou-se como uma borrascosa rajada de lanças em riste, de sabres nús e levantados. Os zulos não esperavam este formidavel arranco; estacaram, vacillaram, perderam o Ímpeto, a serenidade, e neste meio tempo a cavallaria fendia as suas mangas como uma cunha de ferro penetra no tronco nodoso e compacto de um carvalho secular.

A carga, porém, não foi recebida de braços cruzados. Os adversarios, embora com a cohesão perdida, defenderam-se com raivosa bravura. Cahiram para não se tornar a levantar o capitão Edgell e mais nove soldados, e feridos, mais ou menos gravemente, foram levados para a ambulancia tres officiaes e setenta e cinco soldados. Os vencidos foram perseguidos até grande distancia e logo mandado um forte troço de cavallaria para occupar Ulundi, a régia povoarão de Catchuaio, que de ahi em deante seria um proscripto nas terras que governara com despótico poder.

Agora uma interrupção.

Santa Cruz despedira-se de mademoiseile Conneau apenas o cadaver do principe imperial fui mettido no fourgon que o transportaria a Maritzburgo. Em seguida dirigiu-se para o acampamento de Itelezi, com tal velocidade e numa jornada tão aturada, que, a sete ou oito milhas d'ali o cavallo estacou de fatigado e não houve maneira de o obrigar a dar mais um passo. Era um contratempo que não poderia remediar facilmente. Resolveu esperar que o corcel descansasse um pouco para proseguir no caminho Assentou-se debaixo de uma arvore e meditou no passado e no presente que se lhe antolhava mais negro que um véo de viuva. Cinco minutos depois, divisou tres negros armados que marchavam na sua direcção. Tirou o revolver e aguardou. Distrahi-lo-ia uma lucta se fossem inimigos.

-- Quem vem lá? -- perguntou em inglês.

O preto, que caminhava na frente deteve-se, attentou no official português e bradou:

-- Sou eu, Mahatana!

Santa Cruz apesar de todos os aflictivos pensamentos que lhe pejavam o cerebro, surprehendeu-se com a resurreição do indigena, a quem fazia na eternidade havia dias.

-- Pois és tu, vivo?! -- exclamou involuntariamente o major.

-- Sim, sou eu, senhor -- e succintamente relatou-lhe o que occorrera, e informou-o de que os nativos que o acompanhavam eram os dois guardas a quem subornara.

Santa Cruz, em troca, narrou-lhe qual fôra o desastroso fim do principe. Mahatana ouviu, ouviu, com a impassibilidade apparente, que é uma das caracteristicas dos cafres, e depois retorquiu:

-- Senhor, todos no matto esperavam essa fatal occorrencia. O branco, filho do grande rei dos brancos, estava de ha muito condemnado, como eu o preveni. Nem mesmo no meio dos seus mais dedicados amigos poderia contar com a vida...

Mahatana calou-se durante um largo espaço, depois adduziu:

-- Tenho agora duas vinganças a exercer; hei de tirar duas vezes a vida a Macusse. Por mim e pelo principe.

-- Prohibo-to que o faças -- ordenou Santa Cruz com voz rouca -- a vida desse chacal pertence-me.

Mahatana emmudeceu e não deixou transparecer no rosto o que se passava na sua alma mas jurara de si para si não obedecer á imperiosa ordem do major.

-- Ah! esquecia-me participar-te -- declarou Santa Cruz-- tua mãe está no acampamento. Foi acolhida pelo principe, que prometteu buscar-te em Ulundi.

-- Sempre bondoso, bem se vê que era grande, não só pelo nascimento, mas ainda pelo coração.

-- Agora a caminho -- propôs o major enfiando a rédea da montada no braço e dispondo-se a precorrer a pé a distancia que o separava do entrincheiramente britannico.

O grupo seguiu e duas horas depois Santa Cruz apresentava-se a lord Chelmsford, que o recebeu com affectuosa distincção. Não descrevemos aqui o contentamento de Amalubi ao deparar-se-lhe o filho a quem considerava pasto dos corvos e dos abutres no local das execuções de Ulundi. A velha feiticeira quiz convencer Mahatana a voltar para a sua povoação proxima de Pinetown, onde estariam mais em socego, mas o corajoso rapaz oppôs-se tenazmente a essa resolução.

Durante todo o mez de junho era raro o dia em que Catchuaio não enviava emissarios seus, como atrás dissemos, ao general inglês, para ver se conseguia entravar o movimento de avanço. No dia 16, o ajudante-de-campo de lord Chelmsford, tenente Lysons, participou ao seu chefe:

-- Meu general, mais tres indunas zulos que trazem communicação de Catchuaio.

-- Mande-os aqui.

E o commandante-em-chefe ordenou que collocassem alguns bancos em frente da sua barraca para ahi receber os mensageiros rodeado pelo seu estado maior.

Apresentaram-se os parlamentarios inimigos e, em seguida ás demoradas contumelias de uso, o mais graduado dos embaixadores, declarou:

-- Senhor, para que vejas quanto Catchuaio lastima que alguns dos seus guerreiros matassem o filho do grande rei dos brancos, manda-te isto.

E ao mesmo tempo tirava de debaixo do cobertor de vivas côres, em que se envolvia á guisa do manto, um sabre.

-- O sabre do principe imperial! -- exclamou lord Chelmsford commovido:

Era effectivamente a espada que o desventurado rapaz levava naquella tragica tarde. Macusse presenteara com ella o régulo, como prova da sua façanha, mas Catchuaio, que via abeirar-se o momento difficil do ajuste de contas final, enviava-o por seu turno ao general britannico para diligenciar conjurar a borrasca prestes a desencadear-se sobre a sua cabeça.

-- Major Santa Cruz -- disse o commandanta-em-chefe, -- enquanto não se offerecer opportunidade para mandar essa reliquia a sua majestade a imperatriz Eugenia, confio-a á sua guarda, ninguem mais digno de ser seu depositario.

O official português quiz responder e não pôde. Saltaram-lhe dos olhos duas lagrimas, as primeiras que chorava depois da morte de Luiz Napoleão. Os seus camaradas fitavam-no com complacente sympathia. Passados segundos, quando conseguiu articular alguns sons, disse:

-- Obrigado, meu general, pela sua delicada e inapreciavel distincção. Desculpe-me, as lagrimas puderam mais que eu.

-- Não as repudie, major, -- redarguiu lord Chelmsford; -- devem tê-lo alliviado, e representam a mais honrosa manifestação de que se pode ufanar o coração de um homem, -- e abraçou effusivamente o alanceado official.

Santa Cruz pegou na espada, depô-la nos braços e conduziu-a para a sua barraca como uma mãe extremosa transporta o filho. Ali se demorou até á tarde, quando o dever o chamoua presencear uma ceremonia imponente.

Lord Chelmsford entregou aos emissarios do potentado varios presentes, para elles e para levar ao régulo, e despediu-os com as seguintes palavras:

-- Digam a Catchuaio que as minhas tropas não pararão emquanto elle não se sujeitar completamente ás condições que lhe impuz; se não se submetter a ellas, daqui a poucos dias os meus soldados dormirão nas palhotas onde hoje vivem as suas mulheres.

A ameaça fez estremecer os enviados, que saudaram os inimigos á moda do seu país, contristados, mas sempre orgulhosos e depositando no triumpho das suas armas a mais absoluta confiança.

Pouco depois lord Chelmsford montou a cavallo e dirigiu-se para a esplanada do acampamento, onde se encontravam formadas as forças do brigadeiro general sir Evely Wood. Ia alli realizar-se uma solemnidade que sempre impressiona quem a contempla e muito principalmente quem representa nella o papel de protagonista.

Ia ser entregue ao defensor de Rorké's Drift, tenente de engenharia Chard, a medalha denominada Victoria Cross. O denodado official fôra já promovido a capitão pela sua bravura e sanguefrio e desempenhava as funcções de major esta ultima parte da campanha.

O coronel Colley, chefe do estado-maior, leu o decreto que lhe concedia essa ambicionada honra com voz clara e sonora. Em seguida sir Evelyn Wood chamou:

-- Major Chard!

O intrépido militar aproximou-se do seu superior, abateu a espada e conservou-se perfilado.

-- É um valente, um official que honra a bandeira do seu país e se torna o orgulho dos seus concidadãos -- disse o brigadeiro-general. -- ufano-me, como todos nós, que seja nosso camarada.

Debruçou-se do cavallo e tirando uma insignia do proprio peito, pregou-a no do engenheiro, que parecia agora muito menos sereno que quando repelliu, com um punhado de homens, a investida teimosa e prolongada de quatro mil zulos.

Estas e outras ceremonias conservavam latente o espirito militar das tropas, que não desejavam outra coisa senão anniquillar, de uma vez para sempre, a bellica altivez dos seus adversarios.

Já narramos o que fôra a batalha de Ulundi; Santa Cruz pelejara na renhida pugna ao lado do coronel Buller. Derrotadas as impis de Catchuaio recebeu a cavallaria ordem para occupar a povoação. Penetrou ali como esse terrivel vento do deserto chamado simun, pois não era mais que uma enorme nuvem de pó que occultava os cavalleiros á vista do exercito.

No povoado não se encontrava viv'alma. Tudo fugira. Na casa de Catchuaio, composta de quatro divisões e uma varanda, só se achavam garrafas vazias.

Mahatana, que fôra dos primeiros indigenas a entrar na régia vivenda, ficou desapontadissimo. Onde procurar agora o seu mortal inimigo? Mas não desacoroçoou. Persegui-lo-ia até final. Ulundi foi incendiada até a sua ultima palhota. Terminado este exterminador dever, lord Chelmsford, de volta com as tropas ao acampamento, chamou á sua barraca os generaes que tinham tomado parte na acção, os commandantes das diversas fracções e quantos officiaes puderam ali comparecer sem prejuizo do serviço.

-- A campanha da Zululandia está virtualmente terminada, o poder militar de Catchuaio acabou e nunca mais tornará a affrontar nem a Inglaterra nem nenhuma das outras tríbus. Eu vou entregar a direcção das valorosas tropas que commandei a sir Garnet Wolseley. Conto retirar breve para a Europa e naturalmente todos que com tão boa vontade me secundaram. Todos precisam tratar da sua saude, tão cruelmente abalada por esta trabalhosa guerra de seis mezes que valeu por annos. Agradeço do mais fundo da minha alma a dedicada coadjuvação que desde os generaes até os simples soldados todos me prestaram...

A allocução de lord Chelmsford foi interrompida por uma salva de palmas, de urrahs e de saudações de toda a especie, tão vehemente como o tiroteio da manhan.

-- A batalha de Ulundi exige um epilogo -- continuou lord Chelmsford: -- a captura de Catchuaio. As mangas zulas estão destroçadas, desmoralisadas, não poderão tornar a reunir-se para oppôr qualquer resistencia séria, mas é

preciso apoderarmo-nos do régulo; só assim a Zululandia se convencerá que a sua submissão á Gran-Bretanha tem de ser completa e incondicional...

Novos applausos cortaram a palavra ao commandante-em-chefe, que, aplacado o tumulto, proseguiu:

-- A perseguição feita ao potentado terá o caracter de uma montaria aos lobos, será uma tarefa perigosa e fatigante. Em vez de eu nomear a força que a devo realizar, prefiro que ella se constitua voluntariamente. Quem quer ir?

-- Todos nós! -- respondeu unanimemente a officialidade ahi reunida.

-- Subsiste o mesmo emparaço -- replicou sorrindo lord Chelmsford.

-- Todos os meus camaradas solicitam essa honra-- disse o major Barrow, -- mas todos elles estão ha mais tempo que ou na Zululandia, e por consequencia mais affectados pelo clima, requeiro que se me confie essa missão.

-- E a mim -- declarou o major Ricardo Marter dos Dragões da Rainha.

-- E a mim -- repetiu o capitão lord Gifford.

Apresentaram-se outros officiaes e todos tão enthusiasmados que lord Chelmsford acabou por acceitar a offerta d'estes ultimos. Quando ficou assente qual seria a força que percorreria o inatto numa galopada infrene até aprisionar o descendente do invencivel Tchaca, Santa Cruz, que assistira mudo a esta patriotica scena, solicitou:

-- Um pedido, meu general.

-- Diga, major, difficil será que lho não conceda -- respondeu lord Chelmsford.

-- Não tenho a honra de pertencer ao exercito britannico, mas sirvo eventualmente debaixo das suas bandeiras quasi desde o principio d'esta campanha, e, com excepção de Isandluana, assisti ás suas principaes jornadas.

-- É um camarada nosso e dos mais intrépidos, hurrah pelo exercito português! -- bradaram de todos os lados.

-- Perdoe-me interrompêl-o, major -- disse lord Chelmsford fazendo uma leve reverencia. -- As espadas portuguesas e inglêsas, conhecem-se de longa data, a guerra da Peninsula ligou-as pelos laços indissoluveis da mais perduravel e dedicada de todas as fraternidades: a das armas.

-- Agradeço em nome do meu país essas palavras, congratulo-me por tê-las merecido e mais afoutamente então exprimo o meu pedido. Desejo que me seja permittido fazer parte da força que ha de aprisionar Catchuaio.

-- Com mil vontades, creio que todos estão de accordo?... -- e o general-em-chefe lançou em torno de si um olhar interrogativo.

A resposta foi os circumstantes erguerem o nosso compatriota em triumpho e victoriarem-no com uma espontaneidade e calor que lhe trouxeram aos labios o primeiro sorriso desde que o coração se lhe cobrira de luto.

Santa Cruz voltou para a sua barraca, logo que delicadamente se pôde furtar ás gentis manifestações de que era alvo, e mandou chamar Mahatana. Contou ao indigena o que ficara resolvido e offereceu-lhe o mandá-lo para a sua terra.

-- Não, senhor; irei comtigo, mesmo que não queiras; tu não podes matar aquelle homem sem mim. Eu sou preto, mas sempre fui leal aos brancos; porque não has de proceder da mesma forma commigo?

E Mahatana fitava o major com os olhos muito abertos e onde se espalhava a lealdade que se encontra com bastante frequencia nos negros.

-- Talvez tenhas razão -- replicou-lhe Santa Cruz -- acompanhar-me-ás.

O major começou a fazer os seus preparativos para a cavalgada que principiaria no dia seguinte. A tarefa era ardua e ninguem podia calcular o tempo que demoraria essa implacavel caçada, em que o vencido potentado tinha por si a vantagem de conhecer todos os recessos onde se poderia abrigar, e os inglêses a força moral que lhe outorgava a victoria, a defecção das forças inimigas e o abandono a que sempre é votado um tyranno quando lhe usurpam o seu despotico poder.

Na manhan immediata Santa Cruz estranhou que não lhe aparecesse Mahatana, sempre tão pontual nos seus deveres, e principalmente no momento da partida para uma expedição que tanto demonstrara interessar-lhe.

-- Onde está Mahatana? -- perguntou para um dos outros serviçaes.

-- Senhor, sahiu hontem de noite do acampamento, ainda não voltou.

-- Onde foi, sabes?

-- Partiu na direcção de Itelezi, talvez fosse visitar a mãe. que ali ficou, e não tivesse tempo de regressar.

-- É possível -- respondeu Santa Cruz.

Mas o seu raciocinio não lhe consentia acreditar em semelhante versão. Convenceu-se de que sucedera qualquer desgraça ao fiel indigena, e murmurou:

-- Não me resta ninguem que me estime; sou só no mundo.

X

«Bella matribus detestata»

Os despojos do principe imperial foram removidos immediatamente para Maritzburgo, onde o governador os recebeu, bem como as auctoridades civis e officialidade da guarnição, e ahi ficaram depositados na egreja catholica durante vinte e quatro horas. Em seguida partiram para Durban. Chegaram a essa cidade a 11 de junho e de lá embarcaram para bordo do navio de guerra Boadicca, escoltados pelas forças militares estacionadas no littoral. O Boadicca singrou immediatamente para Simon's Bay. Ahi o cadaver foi transferido para bordo do transporte militar Orontes, acompanhando-o por parte do governo inglês, o coronel Pemberton.

A noticia da catastrophe cahiu na Europa como um raio e causou dolorosa impressão mesmo nos mais decididos adversarios do imperialismo. A principio ninguem a queria acreditar, depois os mais incrédulos renderam-se ante a evidencia. Ninguem, absolutamente ninguem, se atrevia a communicar a esmagadora nova á pobre mãe. A desgraça escolhera-a para seu alvo e não lhe poupava golpes.

Em Chiselhurst as pessoas mais ligadas á desditosa imperatriz tinham tomado precauções para evitar que lesse nos jornaes, de chofre, a fatal participação. Eugenia de Montijo esperava pela mala carta do filho e não a recebera. A falta inquietara-a e confiara essa inquietação ás pessoas mais íntimas, que lhe respondiam com razões banaes e evasivas. Entrara-lhe na alma uma indefenida suspeita, quando viu uma carta de uma das personagens do sequito do principe, dirigida á familia, tarjada de preto. Foi esse o primeiro aviso que o acaso lhe enviou. Não era possivel protrahir por mais tempo a infausta communicação.

O governo britannico, que se encontrava deveras pesaroso e embaraçado, encarregou lord Sydney de ser o sinistro portador da lugubre mensagem. A rainha Victoria, muito dolorida tambem, recommendou-lhe todo o tacto e diplomacia na sua difficilissima missão. A imperatriz não queria acreditar na estupenda fatalidade, entrincheirou-se atrás de todos os argumentos que o amor materno lhe poderia suggerir, mas viu-se obrigada a ceder á realidade ante o telegramma official recebido pelo ministerio da guerra e o que lhe era enviado por lady Frère, esposa do alto commissario da Africa do Sul, exprimindo-lhe as suas condolencias.

Eugenia do Montijo ficou extremamente afflicta, mas ainda nessa suprema crise a sua indomavel energia se manifestou de modo a conservar-se digna da alta posição que occupara. Confirmado o pugentissimo infortunio, principiaram a affluir a Camden Place telegrammas de pesames de todas as partes do mundo. Um dos primeiros, foi do governo da Republica francêza, que assim prestava homenagem á desgraça que ferira a esposa de Napoleão III.

A peregrinação, desde esse momento, para Chiselhurst, assumiu proporções gigantescas. A imperatriz, por mais esforços que fizesse para se manter de pé, foi obrigada a recolher ao leito. Mas no dia seguinte, era affixado um boletim assignado pelo barão Corvisart, primeiro medico da imperial aamara, annunciando que a sua augusta cliente dormira alguns minutos durante a noite, mas que a depressão originada pelo seu profundo desgosto continuava.

Logo que a infeliz mãe se pôde levantar, ordenou que no aposento ultimamente occupado pelo principe se levantasse um altar e nelle se dissesse missa. O serviço foi celebrado por monsenhor Goddard na presença, além da imperatriz, da duqueza de Mouchy, madame Breton Bourbaki, madame de Arcos, duque de Bassano e barão Corvisart. Embora muito debil, Eugenia de Montijo conservou a maior serenidade, o quando o duque de Bassano a conduziu para os os seus aposentos, ella disse-lhe:

-- Não pensava que fosse tão forte. Ao que monsenhor Goddard observou:

-- Vossa magestade supporta a sua dôr como uma corajosa, nobre e christan dama, que é.

Em Chiselhurst todos os estabelecimentos fecharam. O interior da pequena egreja catholica, onde estão depositados os restos de Napoleão III, foi immediatamente coberto de crepes e na cruz do altar collocada uma coroa de perpetuas. A missa, no primeiro domingo que se seguiu ao conhecimento da lutuosa noticia, foi ouvida por tantos fiéis quantos os que cabiam ali. Nesse dia, as cadeiras e genuflexorios que tinham pertencido ao principe e seu pae estavam envoltos em pannos negros. Todos estes logares constituiam dolorissimas recordações para a mortificada senhora. Durante annos consecutivos assentara-se ao lado d'aquelles dois moveis, agora vasios dos seus donos, anmbo arrebatados pela morte.

A rainha Victoria, acompanhada pela princeza Beatriz, principe Leopoldo, tenente-general sir H. Ponsonby e marquez de Ely foi de proposito a Chiselhurst para dar os sentimentos á imperatriz, dois dias depois de se ter recebido em Inglaterra o fatal telegramma. A soberana de Inglaterra foi recebida pelo camarista e dama de honor. A imperatriz, muito debilitada, aguardou-a numa sala íntima. A visita durou meia hora e commoveu intensamente as duas senhoras. Quem lhes diria, annos antes, que se haviam de encontrar, ambas lavadas em lagrimas, viuvas, e a fulgurante estrella das Tulherias sem throno, exilada, a chorar a perda do unico filho que o céo lhe concedera? A rainha Victoria recolheu a Windsor extremamente impressionada. Penalisava-a, como a toda a gente, que a infelicidade se encarniçassa com tal furia numa pobre mãe, a quem de tantas grandezas e pompas e de numerosa familia, só restava esse desditoso rapaz, que mal transpuzera o limiar da existencia.

Desde que recebeu a incuravel ferida até que o corpo desembarcou em Inglaterra, perpassava-lhe pelo cerebro, com extrema acuidade de memoria, os mais insignificantes pormenores da vida do seu bem amado Luiz. A sua reminiscencia era o mais perfeito dos apparelhos cinematographicos.

Recordava esses poucos annos de adolescencia que gosara depois de sahir da escola de artilharia de Woolwich. Dos seus amores de ordem material com Carlota Watkins, de quem se affirmava haver um filho, o que era redondamente falso; do incidente succedido num hotel de Londres, para onde convidara alguns amigos a jantar, e que, tendo apparecido mais convivas não lhe chegara o dinheiro, vendo-se obrigado a pedi-lo emprestado, acto que o rumor publico interpretou ser devido a escassez de fundos que a imperatriz lhe concedia; a sua partida de Southampton onde lhe deram os derradeiros apertos de mão os seus íntimos amigos Tristan Lambert, barão Corvisart, Francischini Pietri e o duque de Feltre; tudo emfim que se prendia com os ultimos momentos em que o contemplara cheio de saude, repleto de esperanças, confiado na boa estrella do seu glorioso tio, supondo que o futuro se converteria para elle numa deslumbrante apotheose.

O testamento que fizera dias antes de embarcar, a 26 de fevereiro de 1879, denotava a sua indole bondosa e reconhecida. Era do seguinte teor:

l.º Declaro que morro observando a religião catholica, apostolica romana, em que nasci.

2.º Desejo que o meu cadaver seja sepultado ao lado do de meu pae, até que ambos possam ser transferidos para o sitio onde o fundador da minha casa descansa, no meio do povo francez, a quem nós, como elle, tão fundamente amámos.

3.º O meu ultimo pensamento é para o meu pais, pelo qual desejaria sacrificar a vida.

4.º Espero que minha mãe, quando eu já não pertença a este mundo, mantenha por mim o affecto que sempre lhe dediquei até o derradeiro momento.

5.º Asseguro aos meus amigos íntimos, aos meus serviçaes e partidarios da causa que represento, que a minha gratidão por elles só cessará com a minha vida.

6.º Morro com um sentimento de profunda gratidão pela rainha de Inglaterra, por toda a familia real e por toda a nação, da qual durante oito annos recebi a mais cordeal hospitalidade. Constituo minha mãe herdeira universal dos bens que possuo, com exclusão dos seguintes legados:

Deixava depois setecentos e vinte mil francos a varios dos seus amigos, sendo sete d'esses legados de cem mil francos cada um. Eram assim contemplados o seu antigo perceptor, ajudantes, pessoas da sua comitiva e algumas senhoras, a quem dedicava palavras da mais effusiva estima. Em seguida continuava:

«Desejo que minha mãe conceda uma pensão annual de dez mil francos ao principe L. L. Bonaparte; uma de cinco mil francos a M. Bachon, meu estribeiro; de dois mil e quinhentos francos a madame Thierry e Uhlmann. Desejo que lodos os outros meus servos continuem a receber os seus ordenados. Desejo deixar ao principe N. Carlos Bonaparte, duque de Bassano e M. Rouher tres lembranças á escolha dos meus testamenteiros. Desejo tambem deixar ao general Simmons, a M. Strode e a monsenhor Goddard tres lembranças que os meus testamenteiros escolherão das joias que me pertencem. Deixo a M. F. Pietri um alfinete de gravata com uma turqueza; a M. Corvisart o meu alfinete de gravata com uma perola côr de rosa; a mademoiselle Larminat, um medalhão que contém os retratos de meu pae e de minha mãe; a madame Lebreton, o meu relogio com o meu monogramma em brilhantes; a M. M. Conneau, Espinasse, Bizot, J. N. Murat, A. Fleury, P. de Bourgoing, S. Corvisart as minhas armas e os meus uniformes, excepto os que vestia ultimamente que lego a minha mãe. Deixo a M. d'Entraigues um alfinete de peito com uma perola, que me foi offerecido pela imperatriz. Rogo a minha mãe que se digne distribuir ás pessoas que durante a minha vida se me mostraram afeiçoadas quaesquer recordações ou objectos menos valiosos que lhes lembre a minha pessoa. Deixo á condessa Clary o meu alfinete de peito com uma perola e ao duque de Huescar, meu primo, as minhas espadas hespanholas.

«Napoleão».

«Foi todo escripto pelo meu punho.

«Não preciso recommendar a minha mãe que não se esqueça de nada que possa defender a memoria de meu tio e de meu pae. Peço-lhe que se lembre que em quanto viver um Bonaparte a causa imperialista estará representada. Os deveres da nossa causa para com o país não se extinguem com a minha vida. Quando eu morrer, a missão de continuar a obra de Napoleão III, recae sobre o filho mais velho do principe Napoleão, e espero que a minha bem amada mãe, apoiando-o com todas as suas forças, nos dará esta ultima e suprema prova de affecto.

«Napoleão.

«Em Chiselhurst, 26 de fevereiro de 1879.

«Nomeio M. M. Rouher e F. Pietri meus testamenteiros».

Estas disposições testamentarias demonstram eloquentemente quaes eram os sentimentos do principe.

O funeral do imperador Napoleão III não se effectuara com honras militares, pois residia em Inglaterra como simples particular. Mas o governo entendeu, com relação ao principe, que devia proceder de maneira differente, embora

cidadão estrangeiro, por causa das afinidades que mantinha com o exercito e da circumstancia de ter succumbido em serviço da nação inglesa.

O Orontes, que transportava o cadaver do principe, chegou a Spithead. a 17 de Julho. Aguardava-o ahi o yacht do almirantado Enchantress, para onde o corpo foi transbordado quasi immediatamente. Receberam-no ali as mais altas sumidades do partido bonapartista. A 18 foram os restos do mallogrado rapaz depositados no arsenal de Woolwich. Esperavam-nos ahi muitas individualidades inglêsas e francêsas, taes como os principes Luciano Bonaparte, Carlos Bonaparte, duque de Bessano, general conde de Fleury, M. Rouher, antigo presidente do conselho, que não se afastara do lado da imperatriz desde que a terrivel noticia se tornou conhecida, Paul Cassagnac, etc. Noutro grupo aparte via-se o actual rei do Inglaterra, então principe de Galles e os duques de Edimburgo, de Connaugut e de Cambridge, representando a soberana.

A urna, transportada de bordo, ficou em deposito numa construcção transformada em capella ardente. Ahi, após um pequeno serviço religioso, os medicos barão Clary, barão Corvisart e Mr. T. Evans, aberto o féretro, verificaram a identidade do cadaver. O corpo, transferido para outro caixão, de carvalho e chumbo, passou para um reparo da Royal Artillery e cobriram-no com a bandeira inglêsa. Escoltaram-no de Woolwich a Chiselhurst uma força de artilharia a pé e a cavallo e numerosos grupos de peões, que chegaram a Camden Place, residencia da imperatriz, ás nove da noite.

A ceremonia de Chiselhurst foi o funeral de um soldado, como o accentuou a princesa de Galles na coroa que offereceu e nas fitas da qual se lia: «morreu como um soldado defendendo a nossa causa». A rainha Victoria e o gabinete britannico, para não melindrarem as susceptibilidades do governo da Republica francêsa, imprimiram a essa solemnidade todo o caracter de um enterro de um official inglês o não de um pretendente á coroa de França.

A imperatriz Eugenia esperava desolada e anciosa os mortaes vestigios do desventurado filho, sobre os quaes se collocara um cruxifico da sua grande devoção, abençoado por Pio IX e trazido de Roma, havia dois annos, pelo capellão, monsenhor Goddard. Imagine-se a lancinante scena do encontro. A imperatriz, conservou-se toda a noite ao lado do filho. Pela madrugada, ás quatro ou cinco horas, quando os cirios soltavam os seus ultimos clarões pallidamente reflectidos na prata dos castiçaes, a desventurada mãe ouviu missa, que foi celebrada pelo capellão, acolytado pelo bispo de Constantina, e ouvida por dois antigos ajudantes do finado, de vigilia com Eugenia de Montijo. Então a alanceada senhora retirou-se para os seus aposentos, donde não sahiu durante o dia.

A rainha Victoria, mãe extremosa, comprehendia n profundidade d'aquella dôr e recommendou com instancia que preparassem o espirito da imperatriz para a ceremonia do funeral. A soberana inglesa apeou-se na estação de Chiselhurst cêrca das dez horas e dirigiu-se sem perda de tempo para Camden Place. Encaminhou-se para a capella ardente onde orou durante alguns minutos. Finda a curta prece collocou em cima da urna a sua coroa de louros. O féretro desapparecia debaixo de um denso monte de flores que mãos piedosas não cessavam de lhe atirar.

Nesse momento o principe Napoleão, ladeado pelos seus dois filhos, principes Luiz e Victor, apresentaram as suas homenagens á rainha Victoria. Neste meio tempo surgia o principe de Galles cercado por brilhante e copioso estado-maior, diplomatas e funccionarios de todas as categorias. Sua alteza vestia o uniforme do regimento de artilharia de Norfolk, com a gran-cruz da Legião de Honra e a medalha militar creada por Napoleão III. Todos os officiaes traziam fumo no braço esquerdo. O cortejo dos principes era enorme; todas as côrtes européas estavam larga e luzidamente representadas.

Os cadetes da Academia Real de Artilharia de Woolwich, corpo a que o extincto pertencera, em numero de duzentos, commandados pelo major Yun Straubenzee, formavam alas na avenida que se prolonga pela estrada até Camden Place.

Principiou o desfile. O armão de artilharia que devia conduzir a urna partiy em frente do portão. A rainha Victoria collocou-se num passeio perto da capella e ahi se demorou até que dez tenentes e capitães de artilharia, condiscipulos do principe, transportaram o féretro desde a capella até a viatura. Os tambores rufaram e ouviu-se troar o primeiro tiro de peça, repetido de minuto a minuto, até o fim da ceremonia.

A rainha Victoria, seguida de todos os principes e princesas, foi então conduzida pelo marquez de Castelbajac até um pequeno pavilhão forrado de preto, onde assistiu ao deslisar do funebre cortejo.

Caminhavam á frente, de cruz alçada, os bispos e sacerdotes franceses que tinham vindo de proposito para tomar parte no ritual; seguia-se-lhe o armão, puxado por seis cavallos, levados á mão por artilheiros. D'esta vez cobriam a urna a bandeira inglêsa e francêsa entrelaçadas; em cima divisavam-se a espada do principe, o tahni e a pasta do uniforme. Numa almofada ostentava-se a gran-cruz da Legião de Honra. Após, caminhava uma grande porção de militares transportando a alluvião de coroas. No primeiro turno pegaram ás borlas do caixão, á esquerda, o duque de Connaugbt, o duque de Cambridge e o actual rei da Noruega; á direita, o duque de Edimburgo, principe Leopoldo, principe de Galles e duque de Bassano. Ao lado d'estas personagens caminhavam os embaixadores. Atrás das coroas era levado á mão o cavallo do fallecido, chamado Stag, pelo escudeiro M. Gamble, que assistira ao baptismo do principe, bem como os dois soldados inglêses Lomas e Brown, que tinham servido como impedidos do extincto. Fechava o prestito uma verdadeira multidão de pessoas que tinham querido por esta forma render o seu ultimo preito ao estimado mancebo, delegações das cidades franceses de Roubaix, Cambrai e Turcoing, dos estudantes de Paris, de operarios de Paris, de antigos militares do exercito imperial, da sociedade La Jennesse, deputações dos departamentos de Giers, La Creuse, Tarne-et-Garonne, Allier, Sena inferior, etc.

Fora do parque esperava o cortejo um esquadrão de lanceiros do Royal Irish, com as bandeirolas envoltas em crepe. As tropas obedeciam ás ordens do general Turner, commandante de Woolwich e consistiam em duas baterias da Royal Horse Artillery e tres baterias de campanha, no 5 de lanceiros e um batalhão de infantaria. A cabeça do prestito as musicas tocavam a decima primeira sonata de Beethoven.

Na pequena egreja de Santa Maria, onde seria inhumado o cadaver ao lado de seu pae, esperavam á porta o clero. Foi então entoado o De Profundis pelo bispo de Soutwark, vestido de pontifical, por monsenhor Goddard, com trajes violetas, e pelos restantes sacerdotes. O bispo aspergiu o féretro e, sempre conduzido pelos officiaes de artilharia, foi collocado no catafalco. Começou então a missa de requiem que terminou pela ablução. Seguiram-se-lhe os canticos.

O primeiro, no latim do ritual «Napoleonis Ludovice Eugenii anima» resoou lugubremente ante aquelle auditorio de reis, principes e do que existia de mais aristocratico em Inglaterra e no bonapartismo em França. A baroneza de

Caters-Lablache cantou uma «Ave Maria» de Saint-Saens, e depois «Pie Jesu» de Faure. Houve ainda mais solos cantados pelo dr. Crookall, Mr. Doyle, e outros e uma breve allocução proferida por monsenhor Goddard.

Concluida a ceremonia, retiraram os circumstantes e a urna ficou guardada por um turno de quatro amigos íntimos do principe, que se revesavam de hora em hora. Ás sete da tarde, depois de uma rapida oração, foi o corpo transportado para a sua derradeira morada.

Calcula-se entre trinta o cinco a quarenta mil, as pessoas que assistiram a esta imponente solemnidade, e em mais de seiscentas as coroas enviadas de todas as partes da Europa. Nos dias immediatos houve em direcção de Camden Place uma caudalosa e ininterrupta romaria.

Que soffreria a crucificada mãe durante aquellas longas horas que durou a funebre consagração? Só quem passou por torturas identicas o pôde ajuizar.

Para a duqueza de Teba, que um capricho de amor collocara no mais invejado throno da Europa, tinham acabado todas as pompas do mundo. Não lhe restava esperança de realizar quaesquer ambições, se as acalentasse, nem para ella, nem para a causa bonapartista. A azagaia que matara inexoravelmente o principe, acabara com o imperio fundado por Napoleão I.

XI

Punição

O tenente Brenton Carey foi julgado em conselho de guerra e absolvido. Todavia o duque de Cambridge, marechal commandante-em-chele do exercito britannico, não se conformou tão completamente com a sentença, que não escrevesse ao general que commandava as tropas inglêsas na Zululandia, a seguinte carta:

«O marechal commandante-em-chefe approva tudo quanto lord Chelmsford determinou para a recepção e occupações do principe imperial; mas o tenente-coronel Harrison equivocou-se com as instrucções recebidas de lord Chelmsford e deu ordens ao tenente Carey não sufficientemente explicitas, de modo que o principe se convencesse que ficava subordinado ao official que o acompanhava. O tenente Carey comprehendeu mal a sua posição, e, se as suas instrucções era defficientes, os seus conhecimentos profissionaes deviam-no aconselhar a proceder conforme o dever. Em conclusão, o duque de Cambridge, interpretando o sentir do exercito, nota com magoa que os sobreviventes da fatal expedição retiraram do sitio do desastre, sem a completa certeza que tinham sido envidados todos os esforços da sua parte para evitar o triste

fim dos seus camaradas».

A carreira militar do tenente Brenton Carey ficou cortada pelo tragico incidente. A opinião publica não lhe perdoou a precipitação com que sahiu da sinistra aldeia.

Tratemos agora da perseguição de Catchuaio, realizada com impetuosa bravura pelos inglêses, e do desforço que Santa Cruz pretendia tirar do feroz e cruel Macusse.

A defecção entre os zulos principiou logo após a derrota de Ulundi. Os principaes chefes abandonaram o potentado e submetteram-se aos inglêses, sendo um dos primeiros o seu principal caudilho, Dabulamanzi. Fiel ao régulo só se conservou Usirayo, Macusse e poucos mais. Sir Garnet Wolseley, então já investido no conluiando supremo das tropas britannicas, exigiu que para acceitar a sua submissão depuzessem immediatamente as armas. Em troca promettia-lhes que não annexaria a Zululandia, mas impanha-lhes as seguintes condições: abolir a sua organização militar; ser construida uma cadeia de fortes no seu territorio e este dividido em quatro grandes districtos, governados por um chefe indigena, mas sobre a vigilancia de um representante do governo da colonia.

Catchuaio ainda fez algumas tentativas para que as auctoridades britannicas lhe concedessem a liberdade. Não o conseguindo, dirigiu-se para o norte do Umbeluzi Negro. Sempre com a cavallaria de Barrow no encalço, cada dia se encontrava mais desacompanhado. O seu principal conselheiro Mnhiama, Usinguayo e os irmãos, não podendo resistir àquella vida nómada, entregaram-se aos seus perseguidores, logo após os adversarios terem queimado a aringa de Amanacanzi.

No dia 27 de agosto de 1879, uma força de infantaria montada, acompanhada por um bando de cincoenta indigenas, percorria a floresta Ngome ao norte do Umbeluzi Negro. Ia á sua frente o major Marter, o capitão lord Gifford e o nosso compatriota Santa Cruz.

-- Com a fortuna, ha quinze dias que não dormimos, nem comemos, nem descansamos atrás d'este intangivel Catchuaio! -- queixou-se lord Gifford.

-- É um verdadeiro jogo das escondidas -- commentou o major Marter.

-- E que o terreno é vasto, as florestas espaçosas e emmaranhadas, os rios nem sempre vadeaveis -- respondeu Santa Cruz.

-- Senhor -- disse um dos pretos -- acolá naquelle cabeço empoleira-se uma povoação, vamos dar-lhe busca.

-- Pois vamos -- respondeu Marter ordenando que se caminhasse direito a um grupo de palhotas, dispostas em circulo e alcandoradas num monte.

Cercado o logarejo, os negros num instante pesquisaram todos os locaes. Não encontraram ninguem a não ser uma velha centenaria, que não fugira por não poder andar. Depois de larga conversa, o mesmo negro participou ao commandante da patrulha.

-- Senhor, Catchuaio deve andar perto, dormiu aqui esta noite.

-- Que pena não termos chegado algumas hores mais cedo-- lamentou Santa Cruz.

-- Anda com muita gente? -- perguntou lord Gifford.

-- Umas cem pessoas, não mais.

-- Em que direcção seguiu? -- indagou Marter.

-- Na direcção de Ndaza.

-- Onde não se demorará, com certeza.

-- Para a frente, meus amigos -- bradou o chefe.

Os cavalleiros metteram a galope e os pretos proseguiram no seu passo gymnastico. Andadas umas cinco milhas, um dos guias gritou:

-- Senhor, além ha uma especie de gruta, não a queres examinar?

-- Com certeza que sim.

Dirigiram-se para o sitio indicado. Era uma especie de caverna, excavada num rochedo de pouca altura, rodea-la de pedregulhos e de cactus dispersos. A abertura, em cima, fazia lembrar o espaço onde corre uma gaveta num movel.

Os negros galgaram lá para dentro num pulo e depressa berraram:

-- Polvora, armas, pontas de elephante. E o tesouro de Catchuaio.

Assim succedia realmente. O acaso, sempre o guia mais perspicaz em taes conjunturas, levara o troço para um dos depósitos que o potentado tinha espalhados pelo matto. Foi um achado precioso, porque a par das espingardas, munições e martim, toparam com alguns milhares de libras.

-- Bem, o dia não vae mal, -- commentou lord Gifford.

-- Oxalá termine ainda melhor -- redarguiu Marter.

-- Tenho o presentimento que apanharemos hoje Catchuaio -- declarou Santa Cruz.

-- Ou hoje ou nunca mais. Escapa-se-nos para a Suazilandia ou para as terras portuguêsas de Maputo e nunca lhe poremos a vista em cima.

Na verdade as diligencias d'esse dia foram infructíferas. Toda a gente desacoroçoou menos Santa Cruz. O sangue do principe exigia vingança e havia de ser vingado. No dia immediato, 28, continuou a batida, sendo minuciosamente pesquisadas quantas povoações, quantos bosques, quantos recantos, poderiam offerccer abrigo ao fugitivo.

-- Porque não vamos a Ndaza? -- propôs Santa Cruz ao cahir da tarde.

-- É quasi escusado -- replicou Marter -- Catchuaio não se refugiaria numa das suas povoações mais importantes; mas por descargo de consciencia, sigo o seu conselho.

Anoitecera. O régio kraal foi cercado de surpresa, quasi sem bulha.

Os negros, como sempre acontecia nos momentos de perigo serio, deixaram-se prudentemente ficar para trás. Avançaram os europeus. De subito produziu-se um grande alvoroto no povoado. Surgiram varios zulos brandindo azagaias e retumbaram diversos tiros. Ennovelou-se tudo numa escaramuça. A voz do Marter ordenou:

-- Não deixem fugir ninguem, quem não depuzer as armas leva um tiro.

A esta ordem dada em inglês seguiu-se outra em zulo:

-- Entreguem-se, basta de sangue.

Era o proprio Catchuaio quem proferira estas palavras. Ouviu-se nesse instante um atroador hurrah!

Os auxiliares indigenas precipitaram-se então todos em direcção do régulo e tê-lo-iam massacrado se não fosse a intervenção energica dos europeus. Ainda se tornou necessario fuzilar dois para que o energico exemplo detivesse a ferocidade de creaturas que dias antes tremeriam ante um simples olhar do poderoso vencido.

Santa Cruz, depois do major Marter tomar as providencias que o caso reclamava para completa segurança do prisioneiro, tanto para lhe defender a vida como para evitar a sua fuga, largou-se em busca de Macusse. Baldaram se-lhe os esforços, o sanguinario conselheiro do potentado conseguira evadir-se. Santa Cruz mordia os labios de furia. Que havia de fazer? Esperar.

A hora, adeantada não permittia que Catchuaio fosse removido da povoação nessa noite. Marter não confiou a ninguem a missão de vigiar o seu importante captturado. Collocou-se elle, o capitão Astey Terry, o tenente Hulton e alguns soldados brancos em redor da palhota onde o regulo repousava. Ninguem pregou olho durante essas longas horas até a madrugada. Não seria, impossivel um esforço desesperado de alguns punhados de guerreiros féis para libertarem o seu rei. Não succedeu nada de anormal. Santa Cruz toda a noite rondou em torno da povoação na esperança de que se lhe deparasse Macusse. Soffreu novo desapontamento.

-- Para onde me levam? -- perguntou Caichuaio a Marter quando na madrugada seguinte os inglêses se preparavam para marchar.

-- Para o acampamento do general Clarke.

-- A caminho -- disse o prisioneiro com uma dignidade que qualquer monarca europeu não desdenharia.

Foi logo expedido um official communicando a jubilosa noticia a sir Garnet Wolseley. O general-em-chefe enviou, sem perda de tempo, um carro para que Catchuaio viesse desde o acampamento do general Clarke até Ulundi, onde se encontrava o commandante das tropas britannicas, com a maior commodidade e tambem sem o risco de ser assassinado.

O régulo, porém, não acceitou esse meio de transporte, nem quiz tambem montar o cavallo que lhe offereceram. Preferiu fazer o percurso a pé. De tanta gente que o rodeara apenas o acompanhavam agora tres mulheres, uma serviçal, um filho, o chefe Umkosana e tres criados. Cinco dos homens do seu sequito ou tinham conseguido escapar-se ou encontraram a morte na audaciosa tentativa. Os soldados que o custodiavam marchavam a vinte e cinco metros de distancia.

Chegou a Ulundi a 31, tendo dormido a noite precedente numa aldeia a quatro milhas d'essa localidade. A sua entrada na povoação, onde reinara tantos annos despoticamente, realizou-se com certa solemnidade.

Á frente da escolta do rei caminhavam alguns dragões e praças da cavallaria de Lonsdale que tomaram parto na captura, deixando livre o espaço de alguns metros. Depois iam ainda alguns dragões, uma porção de auxiliares do contingente Barton, uma companhia do terceiro batalhão do regimento 60, e dois dragões, no meio dos quaes se via Catchuaio muito direito, digno, olhando para um e outro lado, não manifestando nem surpresa, nem medo, na sua nova e humilhante situação. A sua phisionomia apresentava-se serena, bondosamente tranquilla sem nada de cruel nas suas feições regulares. Envolvia-se num cobertor de cores extremamente vivas e trazia na cabeça a coroa peculiar a todos os zulos casados. Seguiam-se-lhe mais dragões, algumas esquadras de soldados indigenas e outra companhia do 60. Foi immediatamente conduzido a uma barraca, que se armara de proposito para elle, e as mulheres e comitiva para duas ao lado.

-- Por pouca que seja a sensibilidade d'este homem -- commentava Santa Cruz para Marter, á noite, na barraca do major -- ha de recordar-se com armargura da sua passada grandeza.

-- Certamente; possui a quantas mulheres phantasiava e era dono de numerosos rebanhos!... -- respondeu o feliz captor.

-- A sua descompassada gordura ha de incommodá-lo.

-- Reage energicamente contra ella. Anda a cavallo, caça e pesca.

-- Come muito, naturalmente?...

-- Bastante carne; todos os flias se matava um boi para elle; além d'isso sustenta-se d'uma especie de caldo de farinha e bebe pombe, cerveja feita de certos fructos cafreaes, mas não gosta de bebidas alcoolicas, o que é raro em gente da sua raça.

-- O seu temperamento é sanguinário, pelo que vimos nesta guerra e ainda pelos factos passados.

-- Mais é o dos seus conselheiros e especialmente os executores das suas ordens.

-- Os que o conhecem intimamente affirmam que é jovial, meigo, exaltado de quando em quando, mas que não se deixa arrebatar por accessos de raiva. Acreditava ha pouco, e não sei se ainda acredita hoje -- elucidou Marter -- nas tradições politicas da nação que governava, venera a memoria dos seus divinos antepassados, os heroes e conquistadores que fundaram o imperio zulo.

-- E superstições?

-- Tem as mesmas de todos os seus compatriotas. Acredita nos homens que sabem attrahir a chuva, tão preciosa para a agricultura d'estas regiões, nos nigromantes e nos mézinheiros.

Depois do indispensavel descanso, foi dada ordem para Catchuaio ser enviado para Maritzburgo. D'esta vez consentiu em se aproveitar de um dos carros da ambulancia, onde se metteu com as mulheres. A escolta agora era toda de cavallaria, porque a jornada teria de se effectuar com celeridade. Quando o prisioneiro ia pelas alturas do forte Victoria, a cêrca de dez milhas de Ulundi, chegou um ajudante de campo de sir Garnet Wolseley, a todo o galope, e participou ao official, a quem fôra commettida a guarda de Catchauio, que mudasse de caminho e seguisse para Port Durnford, onde embarcaria para o Cabo da Boa Esperança.

O regulo da Zuhdandia esteve durante alguns mezes encerrado no castello de Capetown, mais tarde foi a Inglaterra, a seu pedido, e quando regressou, o governo concedeu-lhe uma ampla propriedade na cidade do Cabo, onde viveu com abastança, sob a vigilancia da auctoridade. Em toda a parte o trataram com bondade e até com estima. O governo britannico nunca lhe regateou os meios de provar que o seu adversario da vespera era em tudo digno do esforço que a Gran Bretanha fizera para o vencer.

A Zululandia, após a guerra, encontrou-se á mercê de treze pequenos régulos, que, em vez de administrarem com justiça e sensatez o territorio que fôra confiado á sua gerencia, entenderam que deviam guerrear-se entre si. As estultas rivalidades determinaram um estado anarchico a que convinha pôr cobro. Ao mesmo tempo uma maioria importante das tríbus zulas mostravam intenso desejo do que Catchuaio reoccupasse o seu antigo logar. Repetidas deputações visitaram Maritzburgo para solicitar do governo colonial essa restauração. O governador sir Henri Bulwer expôs os seus designios ao gabinete de Londres, que foram aprovados.

A 29 de janeiro de 1883, Catchuaio tornou a ser proclamado pelo mesmo sir Theophilo Shepstone, o Somseu, que presidira á sua primeira acclamação dez annos antes, rei dos zulos na presença de cinco mil dos seus vassallos. O poder que lhe confiavam agora era limitado e estreitamento vigiado por diversos residentes britannicos. A extensão do territorio tambem soffreu alguma diminuirão, pois Usibepu, parente de Catchuaio, seu figadal inimigo e um dos treze régulos, continuou independente. Um trato de terreno importante ao sul de Umhlatoos, chamado Reserve, ficava sendo administrado por um commissario inglês. Nessa região eram dadas concessõos de terrenos a todos os zulos que não puzessem submeter-se á soberania de Catchuaio.

O vencido de Ulundi não viveu muito tempo após a sua restauração. Pouco mais de um anno depois, em fevereiro de 1884, succumbiu a uma doença que nenhum dos seus mézinheiros nem medicos europeus conseguiram debellar.

A alma de Santa Cruz debatia-se num grande desalento. Catchuaio estava aprisionado, mas Macusse, o seu damnado conselheiro, conseguira fugir. A vingança escapava-se-lhe das mãos como uma enguia quando escorrega por entre os dedos do pescador.

Na mesma tarde em que Catchuaio partia para o seu momentaneo exilio, e quando o major se entregava á sua torturante meditação, sentiu uma voz conhecida, dizer da entrada.

-- Senhor, não te quero ver triste, Mahatana não morreu, nem fugiu.

Santa Cruz ergueu a cabeça entre surprehendido e alegre, e exclamou:

-- Tu, Mahatana?!

-- É verdade, senhor. Pensaste que desertei? Não. Desconfiava, como succedeu, que Macusse era tão habil e tão protegido pelos espiritos malignos que não se deixaria apanhar como o régulo.

-- E não deixou -- assentiu Santa Cruz.

-- Não sei até se foi elle quem denunciou aos inglêses o sitio onde se escondia, quando o surprehenderam.

-- Tudo é possivel.

-- O meu odio guiou-me e sei onde se occulta, mas tem comsigo ainda uns cincoenta guerreiros, e eu só não o podia atacar.

-- Onde está? -- bradou o offícial português pondo-se a pé de um salto.

-- Eu te guiarei, mas os dois apenas somos pouco para o intento -- commentou Mahatana.

E o indigena abanava a cabeça com desanimo. Santa Cruz reflectiu durante tres segundos e disse em seguida para o negro:

-- Não te preoccupes com isso; seremos, quando fôr preciso, os bastantes para os acommetter. É longe d'aqui?

-- Um dia de jornada.

-- Pois bem, partiremos amanhan antes de romper o dia.

Mahatana retirou-se. Santa Cruz dirigiu-se á barraca de sir Garnet Wolseley e teve com o general-em-chefe uma rapida conferencia. De lá encaminhou-se para o sitio onde acampavam os boers, que voluntariamente auxiliavam as tropas britannicas na campanha. Falou com o chefe de um dos commandos, agrupamento, em geral, de cincoenta cavalleiros, e ajustou com elle fornecer-lhe dez dos seus voluntarios para um raid. Feito o contracto, os homens estavam á disposição do major antes da alvorada. Procurara sir Garnet para lhe solicitar auctorisação para fazer com os boers o pacto a que acabamos de nos referir.

O pequeno bando partiu á hora aprazada e cavalgou todo o dia. Mahatana, montado num pôtro bazuto, servia de guia. Macusse refugiara-se num bosque pouco cerrado na base de uma montanha. Era um rincão da Zululandia quasi desconhecido e talvez nunca pisado por europeus. O plano era, a certa distancia, abivacar, passar ahi a noite, e nas primeiras horas do alvorecer cercar o bosque e investir com os zulos.

Tudo decorreu como projectavam até descer a encosta da montanha. Mas apenas os cavalleiros tinham attingido a falda, as vigias dos inimigos deram o signal de alarme e tomados de panico, imaginando que o grupo era a avançada de uma força numerosa, largaram-se a correr como gamos.

O instincto, o odio ou a sua apuradissima vista, fez com que Santa Cruz distinguisse logo entre os fugitivos o execrado Macusse. Cravou com tal furia as esporas nos ilhaes do cavallo, que o animal soltou um relincho de dôv e precipitou-se para a frente como uma setta. Mahatana tambem não se demorou muito a descobrir o seu detestado rival, mas peor cavalleiro e mais mal montado, depressa o official português lhe ganhou uma grande deanteira.

Macusse, apesar de sanguinario, não era covarde. Reconhecendo que breve seria alcançado, tomou a defensiva e esperou o seu adversario. Arremessou-lhe a primeira azagaia, que Santa Cruz evitou desviando o cavallo; a segunda passou-lhe de raspão pelo braço esquerdo; a terceira não chegou a ser despedida. O major já estava perto e, com uma forca e destreza extraordinarias, furou a rodella com que o zulo se escudava e enterrou-lhe a espada do lado esquerdo do peito até os copos. Macusse tombou como uma massa inerte. A lamina varara-lhe o coração, no momento em que Santa Cruz por entre os dentes cerrados, rugia:

-- Ahi tens a recompensa dos teus crimes! Segundos depois chegava Mahatana, que, vendo o seu contendor por terra, ficou desolado e murmurou:

-- Não fui eu que o matei...

Mahatana quiz cortar a cabeça do exangue chefe. Santa Cruz não lh'o consentiu.

-- Pois nem isso, senhor? -- queixou-se o indigena.

-- Não; a nossa missão está cumprida, os abutres que principiem a sua.

O resto dos negros, perseguidos pelos boers, tinham, uns sido mortos, outros aprisionados, e outros fugiram.

EPILOGO

A campanha terminára. Os officiaes inglêses, que mais se tinham distinguido, encontraram em Inglaterra uma recepção enthusiastica, condecorações, honras e pensões que o magnanimo país nunca regateia a quem bem o serve. Sir Garnett Woseley partira para o Transvaal, onde se começavam a encastellar as nuvens que mais tarde haviam de originar a primeira guerra.

Santa Cruz nada mais tinha a fazer na Zululandia. Depois de gratificar generosamente Mahatana e de o deixar com sua mãe na povoação perto de Pinetown, onde não tardou a casar com a rapariga que accendera o terrivel odio de Macusse contra elle, dirigira-se para Durban. Contava embarcar ahi para a Europa. Surprehendeu-o nessa cidade o rumor de que a imperatriz Eugenia tencionava visitar a Zululandia e dirigir-se em piedosa romaria ao sitio onde o principe fôra azagaiado. Resolveu esperá-la.

Effectivamente, no decorrer de 1880, Eugenia de Montijo desembarcou em Durban, seguiu pelo caminho de ferro até a estação mais perto do interior e de lá em carro foi até Itelezi e depois a Edutu. A seis milhas do forte Newdigate, no valle do Ityotyozi, os camaradas de Luiz Napoleão tinham erigido um tumulo simples feito do pedras transportadas de muito longe. É como uma d'essas lousas tão frequentes em todos os cemiterios, elevada do solo alguns centimetros. Deitada sobre ella, uma cruz branca abre os seus braços, e, inferior ao sumbolo da redempção christan, ostenta-se um singelo N. inicial do morto.

Foi ahi que a inconsolavel mãe quiz orar e derramar sentidas lagrimas, ao contemplar aquella paizagem agreste e melancolica que ouvira os derradeiros suspiros do fructo unico das suas entranhas. Entre as pessoas da comitiva estava mademoiselle Conneau. Santa Cruz, como era de presumir, foi o triste cicerone d'essa lugubre romagem.

Além do esquadrão de cavallaria que o governo da colonia entendeu dever dar por escolta á antiga imperatriz dos franceses, acompanhavam-na para cima de tres mil zulos, que a acolhiam e victoriavam com as suas saudações e cantos. Quem sabe se entre esses guerreiros estaria algum dos que tinham tão cruelmente ceifado a existencia do desditoso rapaz?

Na retirada da enternecedora peregrinação, mademoiselle Conneau aproximou-se de Santa Cruz, e disse-lhe:

-- Deus o abençoe; não ha coração mais nobre que o seu, nem alma mais pura. Perdoe-me não o poder amar senão como um irmão, mas esse affecto é tão grande, tão intenso, tão perduravel, que não tem igual no mundo.

Santa Cruz não respondeu. Apertou-lhe a mão em silencio e evitou tornar a encontrar-se a sós com a mulher a quem amara tanto como o principe. Esvaira-se-lhe a ultima esperança.

Santa Cruz nunca mais voltou á Europa. Fundou uma plantação no interior e dedicou-se á agricultura. A sua farm é um modelo. Affirmam as pessoas que convivem mais intimamente com elle que, depois da visita da imperatriz á colonia de Natal, nunca mais ninguem o viu rir.

A causa da sua eterna melancolia é um mysterio para todos.

FIM