Da parte d'el-rei: Edição para o ELTeC Romance histórico do século XIV Sá, António Manuel da Cunha e (1854-1909) Criação do HTML original Inês Lucas Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 62450 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204)Zenodo.org Da parte d'el-rei: romance histórico do século XIV Da parte d'el-rei: romance histórico do século XIV e Da parte da rainha: romance histórico do século XIV A.M. da Cunha e Sá Horas Românticas Lisboa 1878

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A. M. DA CUNHA E SÁ

DA PARTE D'EL-REI

ROMANCE HISTORICO DO SECULO XIV

Todo aquelle que jouver com manceba que viver com seu senhor, qne moira porem. E esto se entenda assy nos fidalgos como nos villãos.

(Lei de D. Diniz.)

LISBOA

HORAS ROMANTICAS

102 - Rua dos Calafates - 102

ADVERTENCIA

O que vae ler-se, e a que se deu o nome de romance historico,é apenas uma desambiciosa tentativa d'alguem obscuro em coisas litterarias. Constantemente encarregado das traducções dos romances historicos publicados por uma das primeiras empresas editoras do meu paiz, muitas vezes tenho sentido verdadeiro pezar de ver que os factos da historia alheia, bem ou mal estudados, obtêem extraordinaria vulgarisação, emquanto que os factos da historia patria continuam desconhecidos para o vulgo, porque o vulgo não quer, e muitas vezes não pode aprender historia nos livros que d'ella tratam exclusivamente. Escrevendo este volume nos minguadissimos momentos roubados ás minhas não poucas horas de trabalho quotidiano e indispensavel, não tive a louca pretenção de lançar um jorro de luz sobre a epocha de que elle trata, — jorros de luz que illuminem em cheio uma epocha, só podem partir d'homens da estatura do auctor do Monge de Cister ou da Mocidade de D. João V, — mas apenas passar para o romance, cujo gosto está hoje tão generalisado, um facto que ainda não fôra, segundo me parece, tractado d'esta forma. Muitas vezes, ao consultar um ou outro livro que me podesse guiar no meu trabalho, deplorei a abstenção litteraria a que se condemnou o illustre auctor da Historia de Portugal, e outras tantas reconheci que os factos e os costumes portuguezes do seculo VIX, como da maior parte dos seculos que se seguiram, ainda estão por estudar, que o caracter do rei que se chamou D. Diniz, como de muitos de seus successores, ainda está por conhecer. O romance — Da Parte D'El-Rei — não pode, nem poderia nunca preencher similhante lacuna, em relação á epocha de que trata, nem com similhante intento foi escripto; lançado aos ventos da publicidade, poderá, o muito, attestar a boa vontade de quem o escreveu. Aquelles porem, que mais felizes, tiverem tempo e talento, que emprehendam n'este sentido mais audazes commettimentos, e ensinem ao povo a historia patria, na forma que lhe é mais grata, o romance, porque hoje, mais do que nunca, seria conveniente que o nosso povo soubesse a sua historia.

A. M. da Cunha e Sá.

I

O final de oiro

Guarde-vos Deus,

Señor e lume d'estes olhos meus.

Al vos quero dizer

De que sejades ende sabedora.

(Trovas do seculo XIV)

Corria uma noite triste e sombria dos fins do anno de 1361 da era de Cesar. Reinava profundo silencio nas ruas da velha Lisboa, a escuridão era completa, e só por vezes a lua, espreitando por algum rasgão aberto nas nuvens grossas e pardacentas encastelladas no firmamento, illuminava frouxa e instantaneamente as ruas da cidade, cuja casaria se apinhava pelas ingremes ladeiras da Alfama e da Alcaçova ou monte do Castello, e que mal cabendo no estreito recinto da muralha velha, galgara esta, espraiara-se com desafogo da banda do Occidente pelo terreno que hoje occupam as freguezias da Magdalena e S. Julião, e já começava a trepar pela assomada do monte chamado então da Pedreira, e onde presentemente aiada campeiam as ruinas do gothico mosteiro do Carmo, edificação devida á piedade do grande condestavel Nuno Alvares Pereira.

Eram porém raros esses momentos, a lua desapparecia bem depressa por detraz do negrume das nuvens, e a escuridão tornava-se profunda e tenebrosa nas viellas e encruzilhadas da velha cidade, porque ainda então ninguem se lembrara de substituir o pallido astro das noites por um systema qualquer de illuminação publica, embora mais pallido, melhoramento que só muito tarde, no seculo XVIII, segundo rezam as chronicas, o intendente Pina Manique se lembrou de introduzir na cidade de Lisboa, cuja policia estava então a seu cargo.

Reinava, pois, silencio profundo, porque havia muito que nas torres da Sé tangera o sino de correr, que era n'aquelles velhos tempos o signal para todos os habitantes, peões ou fidalgos, bésteiros do concelho ou cavalleiros da casa d'el-rei, se recolherem aos seus lares, e dormirem sob a guarda e vigilancia das roldas que percorriam as ruas, e dos velas ou vigias, que das muralhas e torres do Castelo velavam attentos a cidade adormedda.

Através das frestas e janellas dos vetustos edificios não brilhava uma unica luz, e, o que ainda é mais para admirar, apesar do senhor rei D. Dinis estar então com a sua côrte mo velho palacio da Alcaçova ou paços do Castello, como se chamava o alcaçar de Lisboa, era tambem tão absoluta a escuridão, e tão profundo o silencio na vivenda real como no albergue do mesteiral mais humilde ou do galiote mais brigão que por aquelles tempos servisse sob as ordens de Micer Pezagno, almirante das galés de sua senhoria el-rei.

De repente, porém, quando a noite já ia adiantada a avaliar pelo tempo decorrido após as ultimas badaladas do sino da cathedral ouvia-se um ruido de passos, e d'uma das viellas proximas do palacio real sahiu um vulto.

Como já dissemos, o alcaçar real chamava-se paços do Castello por ficar situado dentro do castello de Lisboa, e n'um sitio não muito distante e quasi fronteiro á porta hoje principal do castello de S. Jorge.

Pela maneira como parecia, apesar da escuridão da noite, querer esquadrinhar todos os recantos onde se podesse abrigar algum observador curioso, o vulto mostrava ter grande interesse em não ser visto n'aquella excursão feita sob o mysterio das horas mortas.

Cosendo-se o mais possivel com a parede, o vulto assomou á esquina da rua que corria ao longo do alcaçar, e espreitou.

Esta rua era formada d'um lado pelo alcaçar e do outro pela capella real. A meio da rua havia um passadiço que punha o palacio em communicação com a capella.

Depois de se certificar, quanto as trevas lh'o permittiam, que d'aquelles lados não vinha viv'alma, o desconhecido metteu pela rua em direcção á embocadura opposta.

Mas, ainda bem não tinha chegado ao passadiço, quando do fundo da rua soaram passadas, que pelo ruido pareciam de maís d'uma pessoa.

Então o mysterioso transeunte hesitou, parou e quasi fez menção de voltar para traz. Mas, como que inspirado por subita idéa, em vez de retroceder, avançou depressa, metteu-se n'uma especie de portal que havia por baixo do passadiço e esperou.

Não tardou muito que as pessoas que vinham pela rua fóra chegassem em frente do portal.

Eram dois vultos de homem. Vinham tao embuçados em fartos capeirões e com os rebuços tão puchados para o rosto, que ainda que fizesse muito luar, seria impossivel reconhecel-os.

Um dos vultos trazia uma lanterna.

Passaram tão proximo do portal, que se este não fosse muito profundo, teriam por certo divisado o vulto que se abrigava nas suas sombras.

Quando já iam a distancia do passadiço pararam ambos.

O desconhecido animou-se então a sair do portal, e poz-se em observação.

Os dois vultos tinham-se desembuçado um pouco e trocavam n'aquelle momento algumas palavras entre si. A distancia não permittia ouvir-se o que diziam; porém a luz da lanterna illuminou em cheio um d'elles, e o que se occultara no passadiço, exclamou com uma voz sumida e em que se revelava alguma commoção:

-- El-rei!

Era effectivamente el-rei D. Diniz, mas os receios do desconhecido bem depressa se desvaneceram, porque sua senhoria, aconchegando mais o rebuço do seu capeirão, tornou-se a pôr a caminho e desappareceu d'ali a pouco voltando a esquina na direcção da porta da cerca chamada da Alfofa.

Assim que o mysterioso rondador noctunno se convenceu de que sua senhoria el-rei e o seu companheiro iam já longe, atravessou mais affoito a rua, e dirigiu-se para baixo d'uma janella gothica, que n'aquelle sitio, para além do passadiço, era a unica do alcaçar.

Momentos depois de se ter aproximado da janela, ouviu-se um como ruido de uma adufa, que se abria, e uma vez mimosa e juvenil que dizia n'um tom que o receio parecia reprimir:

-- És tu, Affonso?

-- Sou, Ermezenda. Ha muito que me aguardavas?

-- Não, Affonso, n'este instante cheguei e por certo não esperava ver-te já.

-- É que o meu coração, Ermezenda, faz por abreviar o mais que pode as horas quando anceia por te ver.

-- Horas que o meu coração acha bem longas quando está triste de te não ver.

-- Ermezenda!

-- Affonso!

-- A tua promessa.

-- Insistes?

-- Imploro.

-- Oh! meu Deus.

-- Recusas?

-- Não, receio, mas não é por mim. Que valia o amor se hesitasse ante o sacrificio? É por ti, por ti só que tremo.

-- Por mim! E dizes que não hesistas ante o sacrificio? Hei de eu hesitar? Olha, Ermezenda, tenho muito, muito que te dizer, e a roda está prestes a passar. E quem sabe? talvez peor que a rolda.

Gemeu no silencio da noite um fundo suspiro e passados momentos descia da janella ao longo da parede uma escada flexivel, uma escada de corda.

O mancebo, pois que a voz do desconhecido era fresca, sonora e varonil, depois de se assegurar de que ninguem apparecia, trepou com a agilidade só permittida aos verdes annos, e em poucos instantes galgava o peitoril e achava-se da banda de dentro da janella, tendo o cuidado de recolher a escada de corda.

O aposento onde o mancebo entrou por modo tão estranho, era de limitadas dimensões. Allumiava-o escassamente a frouxa luz d'uma lampada que ardia em frente da imagem d'uma Virgem collocada em cima d'uma especie de bofete. Ao longo da parede fronteira ao bofete corria um estrado alcatifado.

Era n'este estrado que se achava o vulto de mulher que assomara ao peitoril da janella, e que dava pelo nome de Ermezenda.

Estava sentada, apoiava os braços nos joelhos e sobre as mãos apoiava o rosto. A luz da lampada dava-lhe em cheio no gracioso busto, mas não era possivel ver-lhe as feições. Occultavam-lh'as não só as mãos, mas tambem os bastos e louros cabellos, que divididos ao meio, e apenas seguros por uma estreita faixa de seda azul enfeitada de perolas que lge circumdava a fronte, lhe caiam, segundo a moda do tempo, soltos e ligeiramente annelados em volta do collo e por cima das pequeninas mãos que da maneira como estavam pareciam querer occultar senão as lagrimas do remorso, pelo menos as rosas do pudor.

Era entretanto um vulto gentil, o airoso sainho de seda que lhe envolvia o tronco accusava, apesar de muito discreto que queria ser, umas formas de delicados e morbidos contornos, e d'uma graça e d'uma flexibilidade capazes de causarem desesperada inveja á mais espartilhada beldade dos nossos tempos. Por baixo da roda da sua faldrilha ou saia refegada de festos comprimido n'uma especie de sapatinho de marroquim vermelho terminando em bico, assomava um pésinbo curvo, delicado e tentador.

Ao dar com os olhos na donzella sentada no estrado, o recemvindo estacou. Como que os movimentos se lhe paralysaram subitamente. Talvez fosse effeito do deslumbramento, talvez effeito d'um remorso repentino que lhe invadisse a alma ao ver tanta formosura como que vergando ao peso de vago soffrimento.

E de feito aquelle vulto assim curvado não parecia senão o de um anjo que houvesse descido á terra a carpir sobre a celeste flor da innocencia prestes a desfolhar-se.

Foi porem mais forte a fascinação do que a duvida ou o receio. A passos vagarosos, o mancebo dirigiu-se para a donzella e ajoelhando-lhe aos pés, disse-lhe n'uma voz suave como um murmurio, sentida como um suspiro:

-- Porque estás assim triste, Ermezenda, quando n'este momento o meu coração tresborda de alegria e de felicidade?

Ao ouvir esta voz em cuja entoação vibrava toda a doçura e todo o affecto d'uma alma apaixonada Ermezenda ergueu a fronte.

Era uma fronte mimosa e de celestial expressão; na franja das aureas pestanas scintillava-lhe a humidade de duas lagrimas recentes.

Encarando no mancebo que lhe jazia aos pés exclamou com um gesto em que se traduzia toda a ancia amorosa de que é susceptivel a alma d'uma virgem.

-- E ainda m'o perguntas? Oh! nao me perguntes pela minha tristeza, mas pelo meu desespero, pelos remorsos d'este crime que estou commettendo... que ambos estamos commettendo.

-- Crime! que palavra tão dura, tão severa estás ahi a dizer?

-- Crime, sim. O que nós estamos fazendo não tem outro nome. Pois não attentas, Affonso, em que estes aposentos fazem parte dos da rainha minha senhora? Oh! nem pensar quero nas horrendas consequencias que proviriam de se descobrir que tu, Affonso, entraste de noite a occultas, no aposento d'uma donzella do paço. Oh! demasiado sabes quanto sua senhoria el-rei é severo com similhantes faltas.

-- Vãos receios, Ermezenda, quem havia de adivinhar que Affonso Fernandes, o escudeiro mais amado da rainha , entra por altas horas no aposento de Ermezenda Sanches, donzella de mui nobre linhagem ao serviço da mesma senhora?

-- Difficil seria adivinhar, por certo, Affonso mas que impede que algum rondador nocturno veja casualmente sair um vulto de homem d'uma janella d'esta parte do palacio e acusasse a rainha... Oh! nem quero pensar n'isso.

E a donzella tornou a occultar o rosto nas mãos; pelo convulso ondular do seio parecia chorar.

-- Ermezenda, redarguiu o mancebo com voz repassada de ternura e um pouco commovida, quem faz o milagre de transformar em rosas o dinheiro e o dinheiro em rosas, pode muito melhor fazer o milagre de emmudecer a lingua d'um vil calumniador.

Como se um tal argumento lhe calasse o animo, a donzella abaixou as mãos; estava já mais serena e uma vaga alegria começava a illuminar-lhe o rosto.

-- Isso pode, Affonso, e a senhora rainha é uma santa.

Ao acabar de proferir estas palavras a donzella da rainha já chamada á realidade da situação, agarrou nas mãos do escudeiro que ainda estava ajoelhado e fez uma doce violencia para o levantar. O namorado mancebo beijou-lhe as mãos com ardor, e obedecendo decil e pressuroso aos desejos da amante, ergueu-se e sentou-se-lhe ao lado.

Foi então que reparou na imagem que lhe ficava em frente. Tirou por isso devotamente a sua gorra de veludo negro que até ali conservara na cabeça.

Ainda não tivemos occasião de descrever o personagem que primeiro figura no nosso romance. Vamos fazel-o, mas em traços muito ligeiros, agora que a luz indecisa que illumina o aposento nos permitte ver-lhe um pouco as feições.

Era um mancebo alto, robusto, e na flor da edade. O comprido cabello castanho escuro que lhe cabia solto até aos hombros, segundo o uso d'então, os olhos escuros e o rosto um pouco moreno accusavam a sua origem meridional. Tinha uma physionomia franca e expressiva que denunciava animo leal e resoluto. Trazia, como dissemos, uma gorra ou birrete de veludo negro, e só temos a accrescentar que era ornada por uma pluma branca presa ao lado por um broche de prata. Por baixo do capirote via-se-lhe um jubão de côr escura, mas farpado ou golpeado de côres mais vivas. Por unica arma cingia uma adaga presa n'um cinto de coiro ornado com alguns singelos lavores de prata. Pelo que se vê não vinha muito armado, mas a avaliar pela sua robusta corporatura, e pela energia que revelava no rosto varonil, devia ser adversario temível, se alguem se lembrasse de o atacar na solidão das vielas e encruzilhadas da tenebrosa Lisboa d'aquelles tempos.

Como dissemos, sentou-se ao lado de Ermezenda. Agarrando-lhe uma das mãos com a mão direita e rodeando-lhe com o braço esquerdo o corpo airoso que cedeu flexivel sob tão suave pressão, o moço escudeiro aconchegou-a a si.

Formavam um grupo encantador, os longos e aureos cabellos de Ermezinda confundiam-se com os cabellos negros de Affonso Fernandes.

Depois de permanecerem em silencio por algum tempo, silencio em que talvez dissessem mais do que se trocassem as palavras mais fervidas e apaixonadas que o amor inspirasse, o mancebo exclamou:

-- Que bom seria, Ermezenda, se isto podesse assim durar sempre.

-- Mas não pode, Affonso; é esta a primeira vez que entras n'este aposento, e será a ultima.

-- Que dizes, volveu o mancebo com voz commovida; pois serás tão cruel, que mal eu toco com os labios na taça da suprema ventura, m'a arranques e com ella a esperança que tão fundas raizes tem creado na minha alma?

-- Não, a esperança, não, atalhou a donzela; quanta meus labios te podem dar, quanta meu coração te pode offerecer, tel-a-has tu; mas não vês, Affonso, quão terriveis seriam as consequencias, se el-rei soubesse do feito que esta noite praticamos. Quem seria fiador da innocencia dos nossos amores, da lealdade das nossas promessas? Não é por mim, Affonso, que receio. Que me poderia acontecer? que castigo me poderiam dar porque o amor me desvairou a ponto de admittir no meu aposento o mais nobre e leal dos escudeiros que n'esta côrte se crearam? A perpetua solidão do claustro? E o que valia um tal castigo para quem tivesse a alma solitaria de todos os affectos, despojada de toda a esperança, attribulada pela dor mais cruel de quantas podem opprimir a alma d'uma donzella, a perda do ente amado, d'aquelle que constituia toda a sua illusão, todo o seu porvir? O claustro não seria castigo, seria consolo; quando as esperanças da terra nos fogem, levantam-se os olhos ao ceu, e raro será que ás almas puras e crentes não desçam as esperanças do ceu, como as gotas d'orvalho descem, nas trevas da noite, ao seio das flores. Não é por mim, repito, que tremo, é por ti Affonso. Se el-rei soubesse d'este feito, que é um attentado contra a honra do alcaçar, como a tem o mais tredo villão, fosse o castigo da tua culpa.

-- Mas quem poderia, Ermezenda, adivinhar que eu estou aqui?

-- Na côrte as paredes têem olhos e têem ouvidos. N'estes paços fervem as intrigas, e para prova ahi vemos as constantes discordias que reinam entre el-rei e seu filho D. Affonso, intrigas a que nem a propria rainha tem escapado apesar de ser tão boa e virtuosa. E demais bem deves saber o rival que tens em Fernão Froyão, hoje valido de sua senhoria el-sei, rival terrivel, não pela graça que ache ante meus olhos, mas pelo favor que el-rei lhe dispensa, e sobretudo pelos tenebrosos recessos da sua alma depravada. Se elle soubesse estarias perdido.

O moço escudeiro não pôde deixar de estremecer; lembrou-se do encontro que tivera havia pouco.

Nada disse porém a similhante respeito para não assustar a donzella.

Passados poucos instantes, em que permaneceu em grave cogitação, exclamou:

-- Tens razão no que dizes, mas por hoje estou certo que Fernão Froyão não me pôde nem me poserá vêr. Sei que a estas horas está com el-rei na torre de Albarra, el-rei só voltará tarde ao alcaçar. Por hoje todos os receios são infundados.

-- Mas não é so por elle que tens a recear, volveu a gentil donzella. Já todos suspeitam do nosso amor. Como te disse, a côrte é toda olhos e ouvidos, mas ouvidos muito apurados e olhos muito penetrantes. Ainda no outro dia, no ultimo serão que el-rei deu no paço, a poucos passaram desappercebidas aquellas trovas de tua composição, em que fallavas de fios de oiro em allusão aos meus cabellos. Todos me fitaram; não pude deixar de sentir a mais viva commoção; as faces escaldaram-me. Levada de instinctivo terror olhei para o teu rival; estava pallido e o olhar que para ti dirigia, foi mais de que um olhar de morte, foi um olhar de odio vil e covarde que não hesita em recorrer à mais baixa intriga, à traição mais vil para satisfação dos seus maus impulsos.

-- O covarde, volveu o moço escudeiro com voz tremula de colera, já não ousa medir-me face a face; tem medo, incommoda-o a minha generosidade. Lembra-se com rancor d'aquella lucta em que eu, fazendo-lhe saltar da mão a espada, lhe apontei a minha ao coração e o tive á minha mercê. Não o matei, não quiz esterilisar a terra com a peçonha d'aquelle sangue. Fiz melhor, cuspi-lhe nas faces o perdão. Hoje, mal podendo engolir a affronta, quer recorrer á intriga só propria de villões para tirar a desforra. Não receio; confio em Deus e no teu amor que para mim está logo abaixo de Deus.

-- Não blasphemes, Affonso; não juntes o santo nome de Deus ao nome d'um sentimento tão mundano e tão mesquinho.

-- Enganas-te, alma da minha alma; o amor tem uma natureza divinal. Que valeriam, sem o amor, a inspiração dos poetas e a espada dos cavalleiros? É o teu amor que dirige o meu braço na lucta das armas, é o teu amor que me inspirou um meio seguro de alcançar a minha ventura, de realisar os meus ardentes sonhos, mas de modo que nada possam contra nós, nem as intrigas da côrte, nem as odientas machinações d'algum rival indigno.

- Mas que meio é esse? exclamou Ermezenda com uma voz em que se manifestavam a anciedade e a duvida, o receio e a esperança.

-- Eis o meu plano, Ermezenda. Como sabes, o ciume com que o senhor infante D. Affonso, filho legitimo e primogenito d'el-rei, e futuro successor d'estes reinos, vê sempre as provas de entranhado affecto que sua senhoria el-rei dá constantemente ao seu filho natural D. Affonso Sanches, tem sido continuada origem de graves desordens na côrte e até de luctas á mão armada entre el-rei e o infante. Ultimamente estas luctas e dissenções estavam um pouco acalmadas em razão do senhor infante D. Affonso Sanches se haver retirado para Castella; mas como o senhor infante voltou novamente a esta côrte, o infante legitimo, o senhor D. Affonso vendo com maus olhos o regresso de seu irmão natural, poz-se outra vez em campo contra el-rei seu pae. Tomando por pretexto não lhe haver satisfeito certas pretenções, acaba de sahir de Santarem á frente dos cavalleiros da sua casa e de turbamulta de peões e de malfeitores, e vem, caminho de Lisboa, resolvido a obter pelas armas o que de bom grado não logrou obter da real munificencia. El-ra está, como das mais vezes, resolvido a ir ao encontro do filho e a reprimir-lhe a ousadia. Da irritação de animo em que se acham os dois augustos contendores é de esperar que a lucta seja renhida é sanguinolenta.

Como escudeiro fidalgo da creação d'el-rei, pertence-me acompanhal-o e pelejar em prol de sua causa. É por esta occasião que espero, Ermezenda. Se for a lide renhida, como é de crer, hei de forçosamente ter occasião de mostrar, quanto pode o gume da minha espada, quanto vale a rijesa do meu braço. Então, no mais acceso da lucta, tal proeza hei de praticar, tamanho feito d'armas hei de commetter, que el-rei, meu senhor, recompensará por certo o meu valor, armando-me cavalleiro. E eu, Ermezenda, terei conquistado pela nobresa das armas o direito de desposar uma donzella de tão nobre linhagem como tu, e não hesitarei mais em declarar a sua real senhoria o segredo do nosso amor, e pedir-lhe consinta na realisação das minhas, das nossas mais doces esperanças. Oh! e el-rei que é de animo justiceiro não me recusará por certo a legitima posse do teu amor, e tu, Ermezenda, serás minha, só minha, embora pese a covardes e traidores que me invejam a ventura de ser amado por ti.

A commoção fazia arfar o seio da donzella, cujas seductoras ondulações o sainho a custo recatava na sua prisão de seda. Com o fulgor da esperança a rutilar-lhe nos olhos, contemplava n'uma especie de embevecimento o garboso mancebo que na força da exaltação se pozera de pé.

Quando a commoção a deixou um pouco mais desenleada, Ermezenda exclamou:

-- Participo das tuas esperanças, applaudo o teu temerario projecto, mas...

-- Mas, o que, Ermezenda?

-- É incerta a sorte das batalhas, ao braço mais robusto fallece ás vezes a força. E se tu morresses? accrescentou a donzella com a voz tremula de receio.

-- Morrer! oh, não, não hei de morrer; confio em Deus, confio no teu amor, confio nas tuas orações. E foi para t'as pedir, e foi para te participar os meus projectos que vim aqui. Oh! e por isso puz em perigo a tua honra, a tua virtude! Que hei de fazer, meu Deus, para ser perdoado?

E n'isto o mancebo ajoelhou-lhe aos pés.

A donzella não redarguiu, fitou-o apenas com olhos em que se lia na profundidade d'uma alma a immensidade d'um affecto. Nos olhos do mancebo, viu ella outro abysmo; não pôde resistir á attracção, curvou-se, e pousando os seus labios nos labios do mancebo, formou assim mais um elo á cadeia que já unia aquelas duas almas sequiosas de ventura.

Foi um extase; ao accordar d'elle, Ermezenda teve uma como inspiração. Mettendo os dedos na alva gorgeira que lhe cingia o pescoço, tirou do seio um pequeno objecto que pela cor e pelo brilho parecia de oiro, e que trazia pendente do collo por uma fita de veludo negro.

Era um firmal, especie de veronica que por devoção muito se usava n'aquelle tempo extremamente religioso. Tinham similhantes objectos muitas vezes gravada uma imagem, outras vezes continham alguma santa reliquia.

Ermezenda desatou a fita e cingindo-a no pescoço do escudeiro, disse:

-- Olha, Affonso, quando fores á lide com el-rei leva este firmal. Não te esqueças de o trazer sempre comtigo. Deu-m'o a nossa santa rainha quando estive doente de perigo; mal m'o poz sarei logo. Tenho-o sempre trazido desde então. Se o levares quando fores á lide, fio que não te ha de succeder mal. Eu fico sem a sua milagrosa protecção, mas tenho ali a virgem e ella ha de amparar-me.

Affonso Fernandes levou aos labios o precioso objecto; estava ainda tepido com o calor do seio d'onde sahira.

Mas apenas tinha beijado a devota reliquia, no rosto de Ermezenda pintou-se o mais vivo terror. No aposento proximo ouviu-se o ruido d'alguem que se aproximava.

Ermezenda ergueu-se vivamente, e exclamou com voz tremula:

-- Por Deus, retira-te; é a rainha!

O ruido dos passos tornava-se cada vez mais proximo; Não havia tempo a perder; cheio de terror o mancebo dirigiu-se para a janella, salvou o peitoril e segurando-se nas mãos deixou cahir o corpo ao longo da balaustrada.

Mas no mesmo instante a maior angustia se apoderou d'elle; faltava-lhe a escada de corda, e já não era tempo de a ir buscar; a rainha, assomara á entrada do aposento e parecia dirigir-se para a janella.

Com a vista allucinada mediu a altura; não lhe pareceu muita. Enchendo-se de coragem, e enmendando-se a Deus, largou as mãos. Caiu, de pé, mas fugiu-lhe a luz dos olhos, teve uma especie de vertigem, cambaleou e baqueou de chofre na calçada.

N'aquelle momento vinham pela rua fora os mesmos dois vultos que tempo antes haviam passado e que não eram outros senão el-rei e seu valido.

Ao sentirem o baque correram ao sitio onde o corpo cahira, e viram um homem por terra.

II

As vigilias do rei e as vigilias da rainha

Esta torre era muito forte

e non foi porem acabada.

Fernão Lopes, chr. de D. Pedro.

Como soubemos no capitulo antecedente pela exclamação que o amante de Ermezenda Sanches soltou quando pôde ver do seu esconderijo os dois vultos, graças á luz da lanterna que um d'elles levava, el-rei achava-se áquellas horas fora do alcaçar real.

Segundo dissemos, el-rei parara, e se o bom escudeiro podesse a tal distancia ouvir o pequeno dialogo que sua senhoria travara com o seu companheiro, teria serios motivos para graves aprehensões. Nós porem a quem as distancias não servem de obstaculo e temos o rigoroso dever de não perder o fio d'esta veridica historia, fio que laboriosamente vamos seguindo, em meio da confusão das velhas chronicas e manuscriptos que rezam d'este caso, julgamos conveniente pôr o leitor ao facto das poucas palavras trocadas entre os dois rondadores nocturnos na rua ou viella que corria entre os paços da Alcaçova e a capella que lhes pertencia.

Quando já iam a distancia do passadiço um dos embuçados voltou-se para o que levava a lanterna e disse eu de repente:

-- Quiz-me ha pouco parecer que sentia passos d'alguem. Percebeste algum vulto; Fernão Froyão?

-- Saiba vossa real senhoria que não appercebi nem ouvi coisa alguma, se bem que não seria para admirar, porque me lembro agora de ter ouvido dizer que já alguem por horas mortas viu rondar um vulto por aqui, por baixo da janella...

-- De que janella? accudiu o outro vulto que não era outro senão el-rei D.Diniz.

-- Da janella da senhora rainha, respondeu Fernão Froyão, escudeiro que andava então muito no valimento de D. Diniz.

-- Attenta nas tuas fallas, Fernão, atalhou el-rei com a voz um pouco alterada, a senhora rainha é tão austera de sua pessoa que difficilmente alguma das suas donzellas poderia illudir-lhe a vigilancia, ou conceber sequer pensamentos ruins tendo constantemente á vista os exemplos da sua virtude. Deixemos porem esses boatos absurdos e sigamos nosso destino que já vae adiantada a hora.

E sua senhoria el-rei aconchegando mais o rebuço do seu farto capeirão, poz-se de novo a caminho, não sem primeiramente relancear um rapido olhar para o fundo da rua. Mas o silencio era absoluto e a escuridão completa, porque nem mesmo por onde vimos entrar o namorado escudeiro, irrompia n'aquelle momento pelas rotulas da adufa a mais frouza claridade que despertasse suspeitas a el-rei.

Chegados ao fim da rua, el-rei e o seu escudeiro voltaram á esquerda, e depois de atravessarem quasi diagonalmente o terreiro que havia em frente do paço, desceram pela rua ingreme que ia ter á porta da Alfôfa, que d'aquelle lado era a primeira da cidade, e devia ficar no cimo da calçada, hoje chamada de S. Chrispim.

Pela direcção que el-rei levava, pareca que ia sahir da velha cerca.

Antes porem da porta da Alfôfa, que era aberta na muralha da cidade e olhava para o poente, havia então a porta principal do Castello, que ficava muito proxima da Alfôfa e olhava para o Sul.

Por cima da porta principal do Castello elevava-se uma torre que não estava concluida e a que chamavam torre Albarrã ou do Haver. Era n'esta torre que se guardava o thesouro d'el-rei e se arrecadavam todas as quantias que constituiam os rendimentos da nação.

Ao chegarem á porta do Castello el-rei e o seu privado em vez de a transporem, desappareceram pela pequena porta que ia dar á torre Albarrã.

Não seguiremos el-rei ao interior da torre; o estado de guerra em que se achava o reino por causa da ultima rebellião do infante D. Affonso motivava algumas visitas amiudadas á casa do Haver, onde el-rei provavelmente ia consultar o seu thesoureiro-mór, o judeu D. Judas, sobre os recursos de que podia dispor para a sustentação da lucta com seu filho o infante D. Affonso. Nao affiançamos comtudo que este fosse o motivo que levava n'aquella noite el-rei á casa do thesouro, mas o que nos atrevemos quasi a affiançar é que elle a devia visitar muitas vezes, porque D. Diniz foi um rei muito zeloso e miudo em questões de dinheiro, como parecem proval-o as discordias que houve entre elle e o filho por causa do augmento dos rendimentos que D. Affonso exigia varias vezes. Não sabemos qual dos dois teria razão, nem se este motivo, entre outnos que D. Affonso allegava para se pôr em campo contra o pae seria ou não verdadeiro, comtudo affigura-se-nos que se o infante herdeiro se valia d'esse pretexto é porque elle não peccava por absurdo.

Se este livro estivesse destinado a chamar a attenção de alguem talvez fosse motivo de reparo o dar-mos a D. Diniz qualidades tão chatas e burguezas; nós, porém, fazendo, não uma apreciação de historiador, porque temos o folego curto para tamanhos sopros litterarios, mas uma simples confissão de homem sincero, dizemos que ao encarar bem de frente o rei que nos dão a conhecer nas escolas pelo cognome de Lavrador, não nos parece que fosse pessoa a quem se devam erigir altares, nem de santidade, nem de gloria. Uma outra qualidade que não o honra foi a demasiada tendencia que sempre mostrou para atraiçoar a fé conjugal. N'isto teve muitos modelos e imitadoras, mas n'elle são talvez mais para se notar similhantes faltas, porque tendo posto em vigor a lei que serve de epigraphe a este livro, era o primeiro que pelo seu exemplo induzia os vassallos a esquecerem-n'a. Fechando porém este pareathesis, reatemos o fio da narração e vejamos o que mais fez el-rei fóra dos paços da Alcaçova ou do Castello n'aquella noite fatal.

Depois de bastante demora na torre Albarrã, el-rei voltou pelo mesmo caminho por onde fôra e tornou a entrar na rua que ladeava o palacio real.

El-rei vinha cabisbaixo, e não dava palavra; parecia que profundos e talvez tristes pensamentos o preoccupavam. Fernão Froyão, pelo contrario, vinha de cabeça erguida, olhando sempre em frente, e parecia prescutar o que quer que fosse em meio das trevas.

E de feito, no momento em que ambos sahiam de baixo do passadiço, a vista inquieta do escudeiro, graças á viva claridade do luar, que n'aquelle momento conseguira infiltrar-se por uma fenda aberta no nevoeiro, descubriu um vulto que tendo galgado o peitoril da janella e deslisado pela balaustrada, se conservava suspenso e immovel ao longo da parede.

Ao aperceber o vulto, o escudeiro sentiu uma tal commoção que esquecendo-se por assim dizer da qualidade da pessoa a quem acompanhava, não se pôde conter, e parando de repente, apontou para a janella e exclamou em voz baixa, mas que deixava transparecer certo alvoroço:

-- Eil-o.

D. Diniz, ao ver parar tão de subito o seu companheiro, parou tambem, e attentando no gesto que elle fazia, olhou na direcção indicada.

Quando D. Diniz distinguiu o vulto, que evidentemente sabia da janella dos aposentos da rainha, soltou uma exclamação de colera.

N'este mesmo momento el-rei e Fernão Froyão viram com bastante assombro o vulto despenhar-se da janella, em vez de descer suavemente por meio d'alguma escada de corda, ou por outro qualquer modo.

Como relatamos no capitulo antecedente, Affonso Fernandes vacillou e cahiu de chofre sobre a calçada.

Tão fatal circumstancia veiu auxiliar el-rei a descoberta do criminoso. Ao ver o vulto por terra, correu logo para elle exclamando.

-- A elle, Fernão Froyão, precisamos de saber a todo o transe quem é o traidor.

O escudeiro foi no seguimento de el-rei, e não se mostrou menos pressuroso do que o seu real amo no reconhecimento do criminoso, que o coração já por certo lhe segredara quem fosse.

Affonso Fernandes tinha perdido os sentidos; jazia de costas, inanimado, com a cabeça descoberta. O luar banhava-lhe frouxa e tristemente o rosto pallido e demudado.

Ao reconhecerem-n'o, commoções bem diversas se manifestaram no rosto de cada um dos que o contemplavam. No rosto d'el-rei via-se a contracção d'uma colera terrivel, emquanto que no rosto do escudeiro, se divisava, mesmo á luz dubia que illuminava aquella scena, certa alegria que elle na sua bem entendida prudencia forcejava por dissimular.

El-rei, depois de contemplar por alguns momentos com fixidez sombria o mancebo que lhe jazia aos pés, exclamou em tom colerico:

-- Que vejo! pois será possivel que Affonso Fernandes de quem tanto fiava, me atraiçoasse d'um modo tão infame! Se Deus não acabou de fazer justiça tirando-lhe a vida no momento em que vem de perpetrar tão nefando crime, fal-a-hei eu, e segura e rapida como deve ser feita n'um traidor!

O mancebo continuava immovel; parecia que el-rei não teria necessidade de exercer o sea tremendo papel de juiz sobre aquelle reu.

Fernão Froyão, apesar de ser o mais interessado na solução naturalmente terrivel d'aquella scena, continuava mudo espectador. Subira a tal auge a colera do rei que não era preciso coisa alguma que a excitasse para que ella produzisse seus terriveis effeitos.

Entretanto Fernão Froyão, com os seus olhos de lynce fez de repente nova descoberta. No pescoço do prostrado escudeiro viu brilhar um objecto. Movido por inspiração diabolica baixou a lanterna para melhor examinar o objecto, que lhe feria a vista. Dirigida por este movimento a attenção de el-rei convergiu para o mesmo ponto.

Então poderam ambos ver o firmal que Ermezenda deitara ao pescoço do seu desditoso amante.

El-rei fez-se horrivelmente pallido, -- no firmal reconhecera uma devota reliquia que pertencia á rainha. No mesmo instante tirou debaixo da capa um punhal. Fernão Froyão estremeceu; julgou que el-rei ia ali mesmo por suas mãos fazer justiça ao criminoso. Foi de curta duração o engano; em vez de cravar o punhal no coração do mancebo, el-rei dispoz-se a cortar a fita que segurava o firual. Mas n'aquelle momento, profundo suspiro solevantou o peito de Affonso Fernandes, signal de que elle ia tornar em si. Então D. Diniz recuou com vivacidade. Voltando-se para o seu valido, disse:

-- Affonso Fernandes deve bem depressa recuperar os sentidos. Ficará com o firmal, o que de pouco lhe ha de valer, porque não o porá a salvo da minha justiça o sagrado influxo de tão devoto objecto.

Acabando de proferir estas palavras, el-rei e Fernão Froyão affastaram-se e desappareceram por detraz do angulo que fazia o palacio ao fundo da rua onde se achavam.

Assim que elles se retiraram, Affonso Fernandes levantou-se com alguma difficuldade, passou a mão pela fronte, e depois que pareceu reconhecer a situação de que sahia, contemplou demoradamente a janella d'onde se despenhara, e afinal partiu vagaroso e meditabundo para a banda opposta áquella por onde haviam desapparecido o rei e o seu confidente.

Tornou tudo a cahir no mais profundo silencio, a escuridão continuou a ser quasi absoluta como até ali; só a janella dos aposentos da rainha, em razão de ter aberta a adufa, estava mais illuminada de que no começo das scenas contadas no capitulo antecedente.

Como fieis narradores, vejamos o que lá se passava.

Quando a rainha entrou no aposento já o escudeiro, que era objecto da predilecção de Ermezenda, havia desapparecido. Porém, ou fosse porque sentisse ruido ou porque já andasse desconfiada, o facto é que a rainha, apenas entrou, dirigiu em roda do aposento um olhar prescutador. Em cima do estrado estava ainda o gorro que o escudeiro ali pozera e que na sua precipitação se esquecera do levar. Ao dar com os olhos no gorro, o semblante da rainha tomou uma expressão terrivelmente severa. Adivinhou toda a verdade; o dono do gorro de veludo só podia ter sahido pela janella. D. Izabel dirigiu-se immediatamente para ali.

Então Ermezenda, cheia de terror, suspeitando que a rainha tudo adivinhara, preferiu ella só incorrer na colera da sua senhora, e salvar o amante que ainda por certo não tinha tido tempo de descer. Atravessando-se diante da rainha, lançou-se-lhe aos pés, e desfazendo-se em sentido choro, abraçou-a pelos joelhos.

Similhante procedimento era uma confissão tacita da culpa propria e da culpa alheia. D. Izabel apesar da sua inexcedivel austeridade, não pôde deixar de se commover; Ermezenda além de muito nova, era a mais amada das suas donzellas, e aquella que pelo seu procedimento irreprehensivel até ali, e pela candura angelical da sua alma, mais podia merecer indulgencia n'uma primeira falta, que por certo havia de ter circumstancias que lhe attenuassem a gravidade.

A rainha, mostrando no rosto mais a comiseração do que o rigor, exclamou com voz severa:

-- Ermezenda! tal não podia esperar de ti! Que desvario foi esse que se apoderou da tua alma? Commetteste a mais negra e feia culpa que podias commetter, manchaste a pureza da tua alma e a honestidade d'estes aposentos. Ermezenda, como has de expiar tamanha culpa?

Ermezenda com difficuldade podia responder; os soluços embargavam-lhe a voz. Continuava entretanto de joelhos aos pés da rainha, cujo rosto d'uma belleza austera mas angelical, emmoldurado pelo transparente oural ou veu das donas, parecia o d'uma santa que tivesse descido das alturas movida das supplicas d'uma peccadora gentil e arrependida.

Apesar de já não se achar no esplendor da mocidade, D. Izabel ainda conservava todos os vestigios da notavel formosura da seductora princeza do Aragão que mais d'um rei ambicionara para esposa. Na sua fronte alva e immaculada reflectia-se toda a pureza d'uma alma a quem o sopro das ruins paixões, que incessantemente se agitaram em torno da mãe do infante bravo, não tinha podido empanar a nativa candura nem alterar os celestiaes instinctos.

Com uma voz em que já o affecto parecia levar de vencida a indignação, a rainha volveu:

-- Ermezenda, sabes que tenho sido para ti uma especie de mãe; deposita pois em meu seio as culpas que devastam o teu; bem sei quanto é fragil o espirito d'uma donzella, e quão funestos exemplos muitas vezes recebem n'esta côrte os jovens que são n'ella creados. Dize-me, Ermezenda, quem foi o que assim abusou do teu amor e te desvairou a ponto da faltares ao respeito que devias a ti e a estes aposentos?

-- Oh! não, nunca, bradou a joven com voz energica e entrecortada; nunca direi quem foi aquelle em quem confiei e em quem ainda confio. Castigae-me a mim só, dizei a el-rei que uma das vossaa donzellas deu logar a que violassem os vossos aposentos. El-rei mandar-me-ha por certo encerrar na mais severa clausura. Que importa! Ali a minha alma, a quem o amor com certeza não destruiu a casta essencia, evaporar-se-ha em orações por aquelle a quem amou no mundo, e fará por esquecer os momentos de innocente desvario. Não, nunca direi o seu nome. Para que? Qual é o crime? Violou este aposento, é verdade, mas acaso violou a minha alma matando-lhe a fé, destruindo-lhe a esperança? Não; a esperança ainda a tenho bem viva no fundo da alma, e a fé, nunca se perde quando aquelle que nol-a inspira ainda nol-a não roubou. E qual será o leal cavalleiro que empeçonhe com labios fementidos as crenças que seus labios arreigaram no coração d'uma donzella.

Ermezenda havia-se posto de pé; nos seus olhos mal enxutos das lagrimas transparecia a exaltação d'um coração apaixonado que não hesita ante o sacrificio.

Ao ouvir-lhe as ultimas palavras o rosto da rainha tornou a tomar uma expressão severa. Passados momentos exclamou:

-- Se o achas digno da tua fé, se o tens na conta de leal cavalleiro, porque não dizes quem elle é?

-- Oh! bem sabeis quão severo é el-rei para os que abusam da casa de seu senhor, volveu Ermezenda.

-- E quem te diz que elle saberá de tão mau feito como o que esta noite se praticou?

-- Não saberá se vós l'ho não disserdes; mas vós senhora, que tão severa sois, como podereis perdoar similhante offensa?

-- Perdoar-te-hei, volveu a rainha, se me confessares tudo.

-- Que vos hei de eu confessar, senhora? Apesar das más apparencias do crime, elle não é tão grave como se vos affigura. Foi esta a unica ves que ambos tivemos o arrojo de commetter tão audaciosa acção. Por certo que me ides perguntar com que intento foi tamanha ousadia. Com o intento de mutuamente nos inspirarmos a esperança de que carecemos; com o fim de concertarmos o melhor meio de realisarmos a nossa tão suspirada ventura.

-- Mas, atalhou a rainha, agora que me vês inclinada a perdoar a esse tresloucado mancebo, por que não dizes o seu nome?

Ermezenda continuou a hesitar; pelo convulso ondear do seio via-se que no seu intimo se travava terrivel combate.

Afinal respondeu:

-- Vós sois boa, sois santa, devo depositar no vosso seio o nome do meu amado, mas acaso não commetterei uma traição em faltar ás minhas promessas?

-- É inutil a tua traição, volveu o rainha em tom de reprehensão maternal. E inutil dizeres-me o seu nome; quem não ha de adivinhar o nome d'aquelle que celebra com tanto enthusiasmo nas suas trovas o oiro dos teus cabellos? Quem não ha de saber o nome d'aquelle cujo coração de poeta bate sobre o arnez do cavalleiro. Ermezenda, Ermezenda! porque não me disseste ha mais tempo que amavas Affonso Fernandes? Que precisão havia de chegares a este perigoso lance?

No rosto da donzella transparecia a um tempo o remorso pelo passado e a anciedade pelo futuro.

Animada porem, pelo tom maternal da rainha, redarguiu:

-- Como haviamos de combinar o melhor meio de realisar a nossa ventura?

-- E quem, Ermezenda, melhor do que eu vos poderia guiar e aconselhar, em tão grave empenho.

-- Oh! sim, volveu Ermezenda, sei quanto o vosso coração é bondoso e santo, mas quem me havia de dar forças para vos confessar uma paixão que deve por força desagradar a el-rei? Bem sabeis, senhora, quanto é nobre o sangue que me corre nas veias, em quanto que Affonso Fernandes não passa d'um simples escudeiro.

-- E é violando os reaes aposentos pela calada da noite, arriscando a vida e a honra em tão perigoso feito, que se igualam os nascimentos, que um simples escudeiro ganha o seu grao de cavalleiro fidalgo? Á fé que o não sabia e folgo muito de o saber.

Ermezenda sentiu a cruel verdade d'estas palavras; porem, conhecendo o coração angelico da rainha, não desanimou, e reprimindo as lagrimas que novamente tentavam irromper abundantes, respondeu com voz humilde:

-- Oh! não, não, Affonso Fernandes bem sabe, sabe como nenhum outro, qual é o modo de ennobrecer o sangue e engrandecer o seu nascimento.

Affonso veiu esta noite aqui, repito, para combinar comigo qual o melhor meio de realisar santamente a sua e a minha ventura.

Ermezenda contou á rainha o que ella passara na entrevista com o amante.

Acabada a narração, D. Izabel exclamou:

-- Bem, Ermezenda, perdôo-te; nunca tornes porem a confiar tão pouco na tua rainha e senhora. Quanto á tenção em que está Affonso Fernandes de praticar feito de vulto na proxima lide, espero que será tenção irrealisavel, porque Deus não ha de permittir que mais uma vez se commetta o horrendo peccado d'uma lucta entre aquelles cujos laços de sangue o amor deve robustecer. Entretanto fallarei a el-rei nos vossos projectos e estou certa que elle ha de ceder aos meus rogos. E tu, Ermezenda, pede a Deus que te illumine para que no caminho da vida não acertes mais nenhuma vez de te achares á beira de tão fundo abysmo como este de que te salvaste. Adeus, fica pedindo ao Senhor para que illumine a alma de meu filho e o afaste do errado e criminoso caminho em que tem andado.

A rainha sahiu; Ermezenda cahiu de joelhos e poz-se a orar com fervor.

Fora do alcaçar o silencio continuava a ser profundo.

No interior todos repousavam, menos duas pessoas: uma donzella a quem os cuidados do amor davam uma noite desvelada, e uma rainha cujas vigilias eram passadas em orações pela paz do reino e concordia dos entes que lhe eram mais caros, o esposo e o filho.

III

Alcaçar por sua real senhoria

El-rei D. Diniz fez tudo

quanto quiz.

Proloquio popular

No dia que se seguiu á noite em que succederam os accontecimentos narrados no capitulo antecedente, outros, mais graves porem e de mais geral interesse, se davam nos paços do Castello e traziam sobremaneira alvoroçados os moradores do concelho de Lisboa e d'arredor.

Pelas ruas e terreiros do concelho, nos numerosos ajuntamentos formados pelos moradores a quem os acontecimentos roubavam aos seus mesteres quotidianos não se fallava n'outra coisa senão na rebellião do senhor infante D. Affonso, filho legitimo d'el-rei e natural successor d'estes reinos.

Corria voz entre os populares, voz aliás bem fundada, de que o senhor infante acompanhado dos fidalgos de sua casa e de grande copia de peões já se achava perto de Lisboa, e vinha em som de guerra exigir d'el-rei seu pae accrescentamentos importantes nos rendimentos de sua casa.

Era grande a indignação das gentes do concelho, e unanime a sua adhesão a el-rei com quem n'aquella conjunctura faziam, causa commum, achando-se todos dispostos a prestar-lhe auxilio de fazendas e vidas, no caso de sua senhoria querer, como se dizia, reprimir mais uma vez a rebellião do filho e fazel-o conter nos justos limites que o respeito real e a auctoridade paterna lhe impunham.

Eram pois extraordinarios o bulicio e a inquietação em toda a area do concelho. Nas lojas dos ferreiros e armeiros reinava desusada actividade; batiam-se solhas, repregavam-se laudeis corregiam-se espadas e afiavam-se ascumas. Pelas ruas e principalmente no terreiro que havia em frente do alcaçar do Castello, apinhava-se grande chusma de populares entre os quaes já se notavam muitos peões armados das suas ascumas e paos ferrados, alguns bésteiros armados das suas bestas e munidos do competente numero de virotões, e um outro cavalleiro do concelho com a sua lança em punho, um ou outro escudeiro d'el-rei, já vestido com a sua loriga de combate.

Vê-se pois que todos esperavam só pelo signal de partida, e que apenas elle soasse, sua senhoria o bom rei D. Diniz, aquelle rei de quem se disse que fez tudo quanto quiz, poderia abalar com a sua hoste ao encontro do infante rebelde, cuja indole brava tão facilmente o levava ao esquecimento do que devia a el-rei, de quem, sobre ser vassallo, era filho.

Segundo dissemos em frente do alcaçar o ajunctamento era mais numeroso.

Provinha isso principalmente de terem logo de manhã entrado para a morada real os seguintes importantes personagens: o meirinho-mór da côrte, Lourenço Annes Redondo, o chanceller-mór, ou como se dizia n'aquelle tempo, o chançarel moor, Francisco Domingues, o bispo de Lisboa D. Gonçalo, o alferes mór d'el-rei João Affonso, e o alcaide de Lisboa, Fernão Rodrigues Bogalho acompanhado dos honrados alvasis do concelho, Fernão Lobeira e Pedro Annes Gayo.

Em quanto porem os homens bons da cidade e os moradores dos arredores esperam no terreiro do alcaçar que soe o signal para mais uma vez mostrarem o seu affecto e lealdade á pessoa d'el-rei, entremos nós na vivenda real, subamos a larga escadaria e penetremos no aposento em que sua senhoria el-rei D. Diniz conferenceia com as principaes authoridades.

El-rei estava á cabeceira d'uma grande meza, sentado em magestosa cadeira de largo espaldar ornado de bem acabados lavores.

Em volta da meza em assentos rasos achavam-se os personagens cuja entrada fora presenceada pelos populares.

Entre elles estava tambem o infante D. Affonso Sanches, o filho natural, ou o filho de ganhadia como lhe chamara no seu ciume o infante D. Affonso herdeiro do throno.

El-rei acabara de expor o motivo para que ali os chamara, e Affonso Sanches que se considerava com justa razão o motivo principal que levara o infante herdeiro a proceder d'um modo tão insolito, foi o primeiro a responder a el-rei:

Com voz grave e o aspecto entre severo e magoado, Affonso Sanches rompeu no seguinte arrasoado:

-- Muito é para sentir meu senhor rei e pae, o procedimento do infante D. Affonso. Não é esta a primeira vez que o senhor infante meu irmão recorre á força das armas para sustentar as suas desavisadas pretenções. Já bastante sangue se tem derramado repetidas vezes n'estas lactas inglorias que tanto damno trazem a estes reinos, e não seria demasiado todo o esforço que se empregasse para evitar que mais uma vez o senhor infante desembainhasse a espada em prol d'uma causa que a todos se antolha tão injusta. Apesar de dar como pretexto do seu procedimento a escacez dos rendimentos de sua casa e pedir por isso que el-rei lh'os augmente, quer-me parecer que um tal pretexto não é mais que apparente e que o motivo da irritação do animo do senhor infante não é outro senão a minha permanwncia n'esta côrte. Devotando-me pois como sempre á paz e tranquillidade do reino, entendo em meu juizo que o melhor meio de asserenar o animo do senhor meu irmão, e evitar assim a lucta que está prestes a travar-se, é a minha sahida d'esta côrte. Lembrado haveis de estar, senhor rei, que ainda nas ultimas discussões entre vós e vosso filho, este exigia que eu me retirasse da côrte, e que mal eu me fui a viver em Castella, o senhor infante largou as armas e a paz foi logo restabelecida com geral contentamento d'estes reinos. Depois que regressei á patria, da qual tanto me pezava ver affastado, o senhor infante D. Affonso, começou a dar claras mostras de descontentamento, e eil-o ahi vem sobre Lisboa com amigo decidido a desembainhar a espada contra seu rei e senhor, e dar mais uma vez ao mundo o espectaculo desolador d'um pae e d'um filho a gladiarem com a furia e o encarniçamento de estranhos e de inimigos. É meu parecer pois que se evite um tal espectaculo, o que facilmente se conseguirá retirando-me eu da côrte. Disposto estou a sacrificar-me e bastará que vós, senhor rei e pae, pronuncieis uma palavra para que eu parta logo para Castella onde vivirei saudoso da patria mas com a consciencia satisfeita de ter cumprido os deveres de bom filho e de leal vassallo.

Ao ouvirem estas razões todos os personagens que assistiam á audiencia do rei, menos os alvasis de Lisboa, deram signaes de as acharem muito sensatas e bem cabidas. Nenhum porem tomou a palavra afim de manifestar a sua opinião; aguardaram que el-rei lh'a pedisse ou a tomasse outra vez e exposesse o que sentia a respeito do alvitre proposta pelo infante.

Depois de se recolher e meditar um pouco, el-rei redarguiu:

-- Folguei muito, infante, de vos ouvir fallar com tanta isenção em materia de tamanha gravidade a que tanto entende com os vossos interesses. Foi a vossa resposta a que é propria d'um fiel vassallo, e por ella mostrastes mais uma vez quão reconhecidamente correspondeis ao muito amor que eu sempre vos consagrei, amor que infelizmente tanto ciume tem causado ao vosso irmão o infante D.Affonso.

Dou-vos muita razão quanto a dizerdes que a escacez dos rendimentos não é mais do que um pretexto apparente da parte de vosso irmão. Demasiado sei a má sombra com que o infante D. Affonso, meu herdeiro, tem sempre visto o affecto que eu vos dedico, a ponto de ter chegado no seu tresvario a conceber receios de que eu ponha na vossa fronte a coroa que de direito lhe pertence. Tresloucada suspeita e a que só a cegueira de ruins paixões pode servir de desculpa! Reconhecendo a justiça do vosso arrasoado, permitti comtudo, infante, que eu ouça primeiramente a opinião dos mais personagens aqui presentes para depois tomar a resolução que mais acorde me pareça com o que a justiça e o bem geral requerem. Dizei vosso parecer mui veneravel bispo de Lisboa.

-- Escutando a voz da minha consciencia, respondeu o bispo, devo dizer a vossa real senhoria, que em tudo me conformo com o parecer do senhor infante. E a guerra contraria á caridade e á mansidão que a religião recommendam; nenhum pastor da igreja pode em caso algum approyal-a, muito menos no caso presente em que significa a quebra d'um dos mais sagrados laços da natureza, o respeito é o amor que devem unir o pae e o filho. É pois minha opinião, a qual sustento com a mão na consciencia e o espirito em Deus, que por todos os meios e até sacrificios possiveis sei evite esta guerra e se procure a reconciliação de vossa senhoria e do senhor infante D. Affonso.

Igual parecer deram o meirinho-mór e o chanceller-mór, restava ouvir a opinião dos honrados alvasis do concelho, opinião que devia representar a dos habitantes em tão grave conjunctura.

Interrogados os alvasis sobre o caso, Fernão Lobeira respondeu do modo seguinte:

-- Não ha muito que vossa real senhoria convocou os homens bons d'este concelho de Lisboa a proposito dos males e perturbações que o senhor infante constantemente traz ao reino com as suas desvairadas pretenções. Ouvidas as rasões expostas por vossa real senhoria o concelho accordou unanimemente em que daria todo o auxilio de que el-rei houvesse mister para trazer á obediencia o senhor infante D. Affonso, e outrosim accordou em que n'este concelho não se daria guarida aos malfeitores e gente vil que andam de envolta com a hoste do senhor infante, com grande escandalo das gentes e grave prejuiso dos concelhos. O parecer que n'essa occasião o concelho fez ouvir é o mesmo que eu hoje aqui sustento em seu nome. Os homens bons de Lisboa, leaes vassallos d'el-rei, estão promptos a auxiliar por todos os modos possiveis quaesquer esforços que vossa real senhoria empregar para restituir ao reino a paz e a tranquillidade de que tanto ha mister. E mais ainda, os honrados moradores d'este concelho, mesteiraes ou homens de prol, peões ou cavalleiros não têem outro desejo senão que vossa real senhoria trate o mais prompto possivel de trazer á obediencia o senhor infante D. Affonso, para exemplo dos rebeldes e escarmento dos malfeitores que se acoitam sob a sua bandeira.

Após Fernão Lobeira, tomou a palavra Pedro Annes Gayo.

-- Ha dois annos que os homens bons d'este concelho convocados por vossa senhoria; accordaram, como acaba de dizer aqui Fernão Lobeira, em que dariam todo o auxilio de que el-rei houvesse mister para trazer á obediencia o infante D. Affonso, e outro sim accordaram que não se daria guarida n'este concelho a nenhum dos malfeitores que andam na hoste do senhor infante, auxiliando-o em toda a casta de depredações por onde quer que elle passa. Como haveis de estar lembrado, senhor el-rei, andava então o senhor D. Affonso bem longe, para as bandas do Douro e Minho e não havia pois nenhum risco proximo e imminente de que esta cidade soffresse com as devastações das gentes do senhor infante. Hoje porem correm as coisas d'outra feição, e segundo as novas recentes, a hoste do senhor infante vem proxima de Loures e segue o caminho d'esta cidade. Se ha dois annos os moradores do concelho vos prestaram de bom grado todo o auxilio que exigistes, hoje, com muito mais razão vos hão de soccorrer, porque alem do escandalo que ha tanto tempo está dando o senhor infante com a sua rebellião e desobediencia, existe o perigo de que a sua hoste entre n'esta cidade e exerça as suas malfeitorias nos habitantes e em seus haveres. E vêde, senhor, que se não levaes por diante a tenção que fazeis de ir atalhar o passo á hoste do infante, elle por certo poderá fazer-nos grande damno porque uma grande parte da cidade jaz indefesa como são as freguezias da Madanela e S. Gião; sem fallar no Rocio e na rua Nova, o que tudo fica fora da cerca que n'esta conjunctura de quasi nada nos serve. Por todas estas razões a gente do concelho não só vos presta todo o auxilio que lhe pedis, como, ainda mais, vos roga que sahiaes a campo e castigueis severamente os desmandos do senhor infante.

Durante os arrasoados dos alvasis os outros circumstantes não deram mostras de grande assombro apesar da extraordinaria differença dos pareceres, porque ha já muito estavam habituados áquella firmeza da parte da gente do concelho quando se tratava de pugnarem pelos seus interesses, e el-rei,porque assim lhe convinha, era sempre favoravel á causa popular, e muito mais agora que essa causa era tambem a sua.

Affonso Sanches cujo favoritismo parecia ser o motivo principal de similhantes acontecimentos, e que talvez concebesse vagas esperanças de que a coroa ainda lhe viesse a poisar na fronte, dissimulava a custo a alegria de ver que uma opinião importante, a do elemento popular, contrabalançava a da dos outros personagens presentes, e igualmente a opinião que elle manifestara nas suas palavras, embora talvez não fosse a que lhe dictasse a consciencia offuscada pela ambição.

Após curto silencio, el-rei, disse o seguinte:

-- Muito me approuve, ouvir-vos fallar de tal feição, honrados alvasis. Outra coisa não esperava da vossa boca. É antigo o affecto que me dedicam os meus bons habitantes de Lisboa e d'elle tenho recebido repetidas provas que jamais esquecerei. Tambem eu sou de opinião que se deve a todo o custo trazer á obediencia o senhor infante meu filho. Bastante me pesa o lance; é duro e muito duro para o coração d'um pae, ter de desembainhar a espada para um filho, mas a terrivel necessidade a isso me impelle. Chegado a esta idade tão avançada em que costumam não vir longe os horisontes da morte, tenho desejos de deixar o reino em paz e o nome real respeitado para futuro exemplo, dos meus successores. Por isso, eis a minha resolução: amanhã após a primeira refeição, partirei com os fidalgos e cavalleiros da minha casa, com os cavalleiros e pioada do concelho de Lisboa ao encontro do infante, o qual segundo noticias que tenho se acha acampado no Lumiar. Não querendo porem que se diga com justa razão que eu não procurei por todos os meios evitar tão odioso lance, enviarei adiante como embaixador, um cavalleiro da minha casa, para fazer uma ultima tentativa de reconciliação junto de meu filho. Se tão sinceros esforços não forem coroados de exito, então recorrerei á lucta que é o unico meio que me resta para dar a tranquillidade ao meu espirito e a paz ao meu reino. Ficai pois vós todos entendendo a mínha deliberação: vós, alcaide e alvasis de Lisboa, lançareis hoje mesmo pregão para que amanhã, cedo se reunam no castello todos os homens de guerra do concelho, e vós, veneravel bispo, mandareis celebrar na cathedral uma missa a que eu assistirei com a minha hoste, afim de rogarmos a Deus pelo exito de nossa causa tão justa. Vós, Lourenço Annes Redondo, apresentae-vos esta tarde depois da hora da refeição nos meus aposentos; tenho de resolver comvosco um grave negocio de justiça.

Ditas estas palavras el-rei voltou-se para os alvasis e accrescentou em tom de authoridade:

-- Em vista das vossas palavras e do anterior procedimento dos habitantes d'este concelho, espero que amanhã todos os vossos homens de guerra me acompanharão de bom grado ao encontro do infante.

-- Nem o mais insignificante peão faltará ao chamamento para a hoste, volveu Fernão Lobeira. E direi mais, os moradores d'este concelho anceiam por auxiliar el-rei a oppor-se á entrada do senhor infante na cidade. Se vossa senhoria, quer ter uma prova incontestavel do que digo, não tem mais que assomar á janella e relancear a vista para o terreiro do alcaçar.

El-rei assim fez. Como sabemos o alvasil não mentia; quando el-rei chegou á janella, alguns dos populares apinhados no terreiro, bradaram logo voz em grita:

-- Alcaçar por sua real senhoria!

Este enthusiasmo do populacho não era para admirar porque não havia muito tempo que el-rei tinha feito consideraveis concessões ao concelho, concessões a que os reis então não se podiam esquivar muito porque precisavam da gente dos cencelhos para contrabalançarem o poderio e a avidez dos fidalgos.

El-rei retirou-se para dentro.

Após a ultima scena os circumstantes comprehenderam que estava terminada a audiencia e fazendo respeitosa venia despediram-se. Assim que elles se retiraram correu voz entre os populares que a lide ficava aprazada para o dia seguinte.

O ajuntamento foi-se desfazendo pouco a pouco; um grande numero de populares voltou dos seus mesteres afim de aproveitar o que restava do dia, outros foram afiar a sua lança de peão, ou experimentar a sua modesta armadura de cavalleiro villão afim de no outro dia irem bem armados na hoste em frente da qual el-rei queria submetter o infante D. Affonso, que os povos ja appellidavam o bravo em razão da sua indole irrequieta que constantemente se manifestava na rebellião permanente contra o pae por causa dos ciumes do valimento do seu irmão Affonso Sanches o filho de ganhadia que el-rei muito amava.

IV

O meirinho-mór da côrte

O mar semelha muio aqueste Rey

Com gran tormenta o fará morrer

(Trovas do seculo XIV)

Davam tres horas as torres da velha cathedral. N'um dos aposentos do interior do palacio estava el-rei D. Diniz sentado a uma meza coberta de pergaminhos.

El-rei escrevia; pela expressão do rosto contrahido d'um modo severo, via-se que n'aquelle momento não se entregava aos devaneios de trovador, e que não era nenhuma trova ao gosto provençal o que estava traçando com a ponta do estilo na face lisa do pergaminho que tinha diante de si.

Cuidados mais graves o preoccupavam por certo n'aquelle momento.

De pé, em frente d'el-rei, na attitude em que se revelava o respeito do inferior para com o superior, estava um mancebo, que parecia aguardar as suas ordens. Trajava um rico gibão de seda golpeada, e segurava na mão direita um gorro de veludo negro com pluma ao lado presa por um broche de prata. Os cabellos, não muito compridos, corredios, cahidos sobre os hombros, eram de cor arruivada.

Segundo o costume d'então, usava a barba toda, a qual tinha a mesma côr que o cabello. O aspecto d'este personagem, que não era outro senão Fernão Froyão, o escudeiro que já conhecemos, tinha pouco de sympathico e de insinuante. O seu olhar, velado por compridas sobrancelhas era enviesado e cauteloso. A sua attitude parecia denotar mais a humildade simulada do que o respeito sincero.

Qnando acabou de escrever el-rei levantou a fronte e disse de subito:

-- Ainda não tornaste a ver Affonso Fernandes?

-- Já esta manhã o vi.

-- Que lhe disseste?

-- Nada que mereça a pena relatar-se. Encontrei-o na loja de Esteveannes, o armeiro que mora junto á porta do ferro.

-- Que fazia elle ahi? perguntou el-rei, com visivel curiosidade.

Fernão Froyão respondeu com um leve sorriso de ironia a despontar-lhe nos labios.

-- Estava a recommendar que lhe polissem o seu arnez de prova para amanhã cedo.

-- É para ir á lide, disse el-rei, ha de ir de certo mas a lide bem differente.

O escudeiro estremeceu ao ouvir estas palavras; encerravam um sentido enigmatico mas que podia ser terrivel.

Dissimulando á sua commoção Fernão Froyão volveu com voz meliflua:

-- E pena é se não for; Affonso Fernandes é um dos valentes espadas que na côrte se conhecem.

-- E um dos mais vis traidores que na côrte se abrigam, retorquiu el-rei com voz colerica; mas por isso cara lhe ha de sahir a traição, dentro de vinte e quatro horas tel-a-ha pago como merece.

Pelo olhar do escudeiro passou um fulgor estranho; foi um relampago; após elle as trevas d'aquella alma tornaram a lançar sobre aquelle olhar o veu sombrio que constantemente o velava.

A colera parecia entretanto tornar el-rei expansivo. Convinha tirar todo o partido d'aquelle estado em que se achava o real animo; foi o que fez o bom e leal escudeiro.

Contendo a alegria que lhe trasbordava da alma e ameaçava espraiar-se-lhe no rosto Fernão Froyão disse:

-- E se houvesse engano, se Affonso Fernandes tivesse ido aos aposentos da senhora rainha animado das mais puras intenções?...

-- Puras intenções! haveis endoudecido Fernão Froyão; como é possivel que se possa entrar com puras intenções no aposento d'uma dama ou donzella valendo-se para isso talvez d'uma escada de corda e por certo das trevas da noite? Se por acaso amava alguma donzella ou cuvilheira da rainha e era correspondido, porque não declarou as suas honestas intenções e não pediu a seu rei e protector o consentimento, que de certo não lhe havia de ser denegado, de satisfazer ás suas mais ardentes aspirações? Dou-vos de conselho, Fernão Froyão, que se alguma vez vos achardes em igual situação não sigaes o exemplo de Affonso Fernandes; valem mais do que as trevas da noite e as escadas de corda o nosso amor e a nossa protecção.

Era por este momento que o sagaz escudeiro esperava.

Ao acabar el-rei de dizer estas palavras lançou-se-lhe aos pés e exclamou com voz humilde e supplicante:

-- Castigae-me pois tambem, senhor rei; se não pratiquei o mau feito de violar os aposentos das damas e donzellas do paço, commetti a falta de amar a occultas a mais nobre donzella ao serviço da minha rainha e senhora. Amo louca, loucamente a formosa Ermezenda Affonso; mas se vós, senhor rei, não me julgaes digno de a possuir, deixae-me então procurar a morte na lide ou ir nas galés de Micer Manuel Pezagno que proximamente partem para as costas da Barbaria; lá nas praias dos infieis buscarei com a morte o esquecimento do meu amor e a remissão das minhas culpas.

Era tão pathetico o tom de Fernão Froyão que el-rei sentiu-se commovido. Fazendo-o levantar, disse-lhe:

-- Mas corresponde Ermezenda a esse amor?

-- Nos modos e no olhar tem-me dado inequivocas provas de que não é insensivel ao affecto que lhe dedico; porém, de que me valeria o seu amor se vossa real senhoria não houvesse por bem dar-lhe a sua approvação?

-- Bem, Fernão, a minha approvação já a tens. Se approuver a Deus voltarmos amanhã da lide com saude no corpo e paz na alma, direi á senhora rainha minha esposa que dê a Ermezenda a boa nova de que em breve desposará o predilecto de sua alma.

Foi immensa a alegria que o escudeiro repentinamente sentiu; promettiam-lhe, segura e proxima, a realisação da sua ventura, e, o que era não por certo menos, antevia tambem para breve a satisfação de seus desejos de vingança torpe e mesquinha.

Ia talvez na expansão da sua alegria lançar-se segunda vez aos pés d'el-rei, quando o reposteiro que havia a um lado ondeou um pouco e deixou ver o rosto imberbe d'um pagem que annunciou com voz juvenil:

--O meirinho-mór da côrte.

El-rei fez signal ao escudeiro para se retirar.

Momentos depois Lourenço Annes Redondo achava-se em presença d'él-rei.

O meirinho-mór manifestava na physionomia um certo pasmo d'envolta com uma leve expressão de receio. Tinha razão; os deveres do seu cargo eram assaz graves e espinhosos.

Competia ao meirinho-mór das justiças especialmente o prender os fidalgos quando delinquissem, e geralmente entender n'aquellas coisas de justiça que por sua natureza fossem de mais alta importancia. Ora Lourenço Annes Redondo reflectira e reflectira bem, que se el-rei o mandava chamar tão de chofre e com tanto mysterio era porque alguma coisa bem grave succedera na côrte para a qual se tornava necessaria a interferencia da sua pessoa. O que logo muito naturalmente lhe accudiu á lembrança foi que el-rei precisava d'elle para effectuar a prizão d'algum fidalgo ou escudeiro que tivesse incorrido em crime de rebellião por se achar de accordo ou correspondencia com o infante D. Affonso ou com algum dos do seu partido.

Os acontecimentos da epocha autorisavam sobremaneira uma tal suspeita.

Entretanto o meirinho por indicação do rei, sentou-se n'um escabello que ficava ao pé da meza e esperou as ordens regias.

El-rei recostou-se na sua cadeira d'amplo espaldar e com voz pausada e firme disse ao meirinho das justiças.

--Sabeis, meirinho, quão grave é o crime dos que abusam da protecção do seu senhor e levam á sua morada a vilta e a deshonra como se fora morada de barregan ou vil prostituta que mercadeja com o seu corpo?

O meirinho-mór cahiu das nuvens, ou antes cahiu de Scylla em Caribdes ao ouvir similhante exordio. Esperava crime de rebellião, sahia-lhe crime de amores, mas de amores, ao que parecia, com a circumstancia aggravante de abuso da morada real.

O bom do meirinho tremeu pela sorte do criminoso. Similhantes reflexões, porém, não lhe tolheram a falla e respondeu logo:

-- Mui feio crime é esse que vossa real senhoria aponta e tão feio que vossa real senhoria entendeu dever pôr em vigor uma ordenação bem severa a similhante respeito.

-- E lembrae-vos do que n'essa ordenação determino? perguntou el-rei.

-- Perfeitamente, redarguiu o meirinho.

E com voz cheia e pausada como a de qualquer mestre em leis, o meirinho accrescentou:

-- Vossa real senhoria poz ha vinte e tantos annos por lei e ainda não revogou, que todo o homem que com senhor viver, quer por soldada, quer a bem fazer sendo seu governado, ou andando por seu e jouver com sua filha, irmã, prima co-irmã, prima, ou com a sua madre ou criada do seu senhor com que viver, que moira porém. E esto se entende assy nos fidalgos como nos villãos.

Após esta citação erudita o meirinho, a despeito da gravidade do caso, revelou no rosto a mais plena satisfação que se pode imaginar no rosto grave d'um meirinho. E tinha razão; a memoria não lhe faltara, o seu credito de homem de justiças não perdera, antes ganhara em tão espinhosa conjunctura.

-- Bem, volveu el-rei, essa é a lei, agora no tocante ao modo de a executar éque surge a difficuldade.

O bom do meirinho fez novamente cara de pasmo; não se saber como se havia de cumprir uma lei era caso talvez novo nos annaes da côrte. Entretanto aguardou que seu real senhor se dignasse dar mais amplas explicações.

-- Que responderieis vós, dom meirinho, se eu vos dissesse que ha um criminoso em quem a lei que haveis citado tem forçosamente de ser cumprida, mas que do cumprimento d'essa lei, pelos modos ordinarios, proviriam grande vilta e infamia para a morada d'el-rei? O que preferieis vós, o escandalo ou o não cumprimento da lei?

O meirinho embaçou; a resposta era difficil, mas urgia dal-a; para os casos difficeis é que se tinham feito especialmente os meirinhos.

Fechando os olhos, não os do corpo, que seria falta de respeito, mas os da consciencia que não se veem, o honrado meirinho respondeu pois ás cegas:

-- Eu preferia acima de tudo cumprir a lei sem escandalo; a occultas, accrescentou timidamente.

-- Eis o meu parecer, exclamou sua senhoria, e para accordarmos n'esse meio é que vos mandei chamar.

O bom do meirinho deu um suspiro d'allivio; estava nos seus dias felizes, as respostas sahiam-lhe mal pensadas mas acertadas.

-- E para melhor dizer, accrescentou el-rei, já me occorreu um meio que me parece excellente.

Segundo suspiro d'allivio fez arfar o peito do honrado magistrado; o caso não era para menos, sua senhoria poupava-lhe trabalho; dispensava-o de cogitações.

-- E poderei saber que meio é esse? perguntou o meirinho para dizer alguma coisa.

-- Não deverá ser amanhã executado um villão grande criminoso, cuja sentença assignei ha bastantes dias?

-- Ámanhã de certo, por volta do meio dia.

-- Bem, disse el-rei, substitue-se o villão pelo traidor de quem fallo.

-- Mas como? perguntou o meirinho com a mais sincera expressão de embaraço que se pode imaginar.

-- Facilmente; entendendo-vos com o corregedor da côrte e o corregedor com o carcereiro do Castello.

-- Bem, mas é preciso que vossa real senhoria me diga quem é o criminoso, volveu o meirinho com invejavel sagacidade.

-- Poderia dizer-vol-o, mas não é preciso. O criminoso é o escudeiro que eu ámanhã vos enviar com um recado meu.

-- Que recado? acudiu logo o meirinho, o recado é o mais importante; pode haver algum equivoco desgraçado.

El-rei meditou um instante e depois respondeu:

-- Basta que diga que vae da parte d'el-rei saber se já cumpriu a sua sentença certo villão, grande criminoso.

-- Muito bem.

-- E não vos esqueça recommendar que guardem todos os objectos que elle comsigo levar, principalmente um certo firmal de oiro que deve ter ao pescoço. D'esses objectos tereis vós especial cuidado para m'os entregardes.

Agora podeis retirar-vos.

Após profunda venia o meirinho sahiu.

Qoando o meirinho transpoz o limiar do aposento se não estivesse bastante preoccupado teria feito reparo n'um vulto que se metteu apressado por uma porta lateral, como quem evita ser visto. O vulto era Fernão Froyão. Se o tivesse visto, acharia facilmente a explicação d'um phenomeno ás vezes vulgar, o de terem as paredes ouvidos.

Não fez porém reparo. Preoccupava-o o que quer que fosse, tanto que a meio do caminho, parou, hesitou, voltou para trás e correndo um pouco o reposteiro metteu a cabeça, e vendo el-rei ainda sentado, disse com voz respeitosa:

-- Occorre-me uma reflexão, e se vossa real senhoria m'o permitte dil-a-hei.

-- Pois entrae e dizei, volveu el-rei que era affavel.

-- Como tudo se ha de combinar com o corregedor parece-me mais conveniente que o recado seja levado ao carcereiro que logo ali fará a substituição dos criminosos. Parece-me de mais simples execução.

-- Fallaes avisadamente, dom meirinho; fica pois acordado que o justiçado será aquelle que fôr da parte d'el-rei saber se a sentença já foi executada. Que seja amanhã sem falta a execução.

-- Serão cumpridas as ordens d'el-rei, volveu o meirinho e retirou-se, mas d'esta vez não voltou.

Depois d'elle desapparecer el-rei soltou um suspiro de magoa e disse em tom repassado de funda tristeza:

-- Ámanhã farei dois actos de justiça. Doloroso é ser rei, porém, muito mais doloroso é ser rei e pae.

V

O armeiro da porta do ferro.

...tocam á arma, ferve a gente.

Camões, Lusiadas.

No outro dia de manhã, logo muito cedo, na loja de Esteveannes, o armeiro da Porta do ferro, notava-se desusado bulicio e movimento.

Era Esteveannes o mais acreditado armeiro que havia no concelho, e o epitetho porque se tornara conhecido provinha de se achar o seu estabelecimento nas visinhanças d'uma das portas da velha cerca da cidade chamada a porta do ferro, a qual ficava nas proximidades da Cathedral quasi no sitio onde hoje fica a igreja de Santo Antonio da Sé.

Esta porta da qual não resta o mais pequeno vestigio, era uma das mais frequentadas n'aquelle tempo, e ainda no seculo XVI, quando já a cidade occupava incomparavelmente muito maior extensão, a porta do ferro permanecia de pé com o seu arco soturno e profundo aberto na espessura da velha muralha que tambem ainda existia apesar de já ser uma coisa inutil, pois que no século XIV, el-rei D. Fernando para pôr a cidade a salvo d'algum ataque, escarmentado com a lição que recebera na guerra contra a Hespanha, mandara cercar a cidade com uma nova muralha, cuja porta mais occidental ficava nas proximidades do Loreto. Esta segunda cerca tambem com o tempo se tornou uma inutilidade, porque, graças ás riquezas provenientes das conquistas, a cidade tomou um desenvolvimento extraordinario no seculo XVI a ponto de ser uma cidade admirada pelos estrangeiros que a ella vinham.

Havia pois, como dissemos, desacostumado movimento na loja de Esteveannes. Ao fundo da loja brilhava a forja, a qual innundando com o seu clarão avermelhado aquelle negro recinto dava ao estabelecimento do armeiro uma apparencia de antro infernal. Contribuia tambem para augmentar a illusão o temeroso martellar dos mesteiraes nas solhas, nos elmos, peitos d'aço e mais peças de armadura, ai gumas das quaes, por certo, eram destinadas a servir n'aquelle mesmo dia na lide em que deviam achar-se frente a frente el-rei e o seu filho rebelde O infante D. Affonso.

Entre os diversos mesteiraes ali occupados distinguia-se o vulto espadaudo e alentado do velho armeiro. Era homem de idade avançada, mas de corporatura erecta e robusta. Tinha a barba e os cabellos já grisalhos e n'um estado tão revolto que davam ao honrado mesteiral aspecto mais repellente do que sympathico.

Esteveannes acabara n'aquelle momento de dar a segunda mão no polimento d'um arnez.

Depois de o mirar e remirar muito tempo como quem se extasia com o bem acabado da obra, disse para o mesteiral que lhe ficava mais proximo:

-- A' fé de quem sou, que na minha aturada lide de quarenta annos n'este mester d'armeiro ainda não vi arnez de mais fina prova do que este que acabo de polir. E ficou-me que nem um espelho! Desejava que apparecesse o senhor Affonso Fernandes para lhe dar os emboras da grande peça que possue; com um arnez assim não é a lança de nenhum cavalleiro do senhor infante que chega ás carnes do nosso valente escudeiro.

Após esta oração laudatoria á boa tempera da peça d'armadura que tinha na mão, o armeiro ia artumal-a a um canto, onde ficaria até que o dono a viesse buscar, quando o galopar d'um cavallo que lhe parou á porta o fez estacar no meio da loja.

O armeiro soltou uma exclamação de surpreza e de satisfação ao vêr quem era o cavalleiro que se apeara e lhe entrava pela porta dentro, de viseira erguida.

-- Bem vindo sejaes, senhor Affonso Fernandes; já vos aguardava; n'este momento fallava em vós, exclamou Esteveannes com a sua voz aspera e sonora.

-- Se não me engano, honrado Esteveannes, é meu o arnez que tendes na mão?

-- É vosso, dom escudeiro, e bofá que é uma peça como poucas.

-- Creio bem, Esteveannes, e se alguma duvida me restasse a tal respeito, hoje teria uma occasião de me convencer do que dizeis.

-- Fio, senhor Affonso Fernandes, que não vos haveis de arrepender dos bons maravedis que por elle houverdes dado.

-- Pois sabei Esteveannes, redarguiu o escudeiro pegando no arnez, que não foram nem maravedis nem nenhuma moeda de outra qualidade o que me deu a posse de tão valiosa peça.

-- Como assim, dom escudeiro, acaso a obtivestes pelas más artes d'alguma feiticeira que a fosse buscar ás forjas de Belzebuth? replicou o armeiro escancarando a grande boca n'um riso de satisfação, crusando as mãos atrás das costas e descaindo um pouco o corpo para diante na attitude descançada de quem se dispõe ao prazer da conversa.

-- Pois não acertastes, Esteveannes, e bem sabeis que nunca me quiz com bruxas nem feitiços. Este arnez que aqui vêdes e que merece os vossos gabos, foi dadiva que me fez Micer Pezagno, almirante d'el-rei, que o trouxe lá das terras de Italia onde se fabricam pptimas armaduras. Mas dizei-me, não ides hoje á lide incorporado na hoste?

-- Não falto, segundo é minha tenção, respondeu o armeiro. E vós, escusado é perguntar, partis já, a avaliar pela pressa que trazeis.

-- Não, Esteveannes, venho n'esta pressa porque vou primeiramente da parte d'el-rei levar um recado á prizão da Alcaçova.

-- Mas n'esse caso, senhor Affonso Fernandes, bem que vos peze, não podereis ouvir a missa que hoje se dirá na Cathedral e á qual assiste el-rei com a sua hoste?

-- Não me peza, Esteveannes, já achei remedio a isso. A senhora rainha que é tão zeloza cumpridora dos seus deveres, ordenou igualmente, segundo sei de boa fonte, que se rezassem hoje tres missas na capella real para que Deus na sua grande misericordia se amerceie d'estes reinos e derrame a sua luz no espirito do infante D. Affonso e faça com que elle ainda se lembre do que lhe cumpre como bom filho e successor do reino. A nossa boa rainha e senhora põe ainda toda a sua esperança na intervenção divina e está convencida de que hoje mesmo se fará a paz entre el-rei e seu filho sem que nenhum d'elles tenha de desembainhar a espada. N'este ponto as esperanças da senhora rainha não vão accordes com a opinião geral da côrte que antevê uma lucta muito encarniçada nas proximidades de Lisboa. Entretanto, eu, como cavalleiro e bom christão, não podendo talvez assistir á missa da Cathedral, vou já d'este passo assistir a uma das missas que se hão de rezar na capella do alcaçar. Depois de cumprir estes dois deveres hei de ter ainda tempo de alcançar a hoste real no caminho para o Lumiar.

-- E a côrte não assiste ás missas da rainha?

--Não; tem ordem d'el-rei para assistir á da Cathedral. Ás missas da capella real só provavelmente assistem as covilheiras e donzellas da senhora rainha, accrescentou o escudeiro.

Quem attentamente tivesse observado a physionomia do enamorado escudeiro ao proferir estas ultimas palavras ter-lhe-hia notado claros symptomas de extrema commoção. O armeiro não era porém homem no caso de fazer observações subtis, e a alteração que se deu no rosto do escudeiro passou desapercebida.

- Ora bem, exclamou de subito o escudeiro, não convem demorar; aqui mesmo envergarei o arnez.

Affonso Fernandes arredou-se para um canto da loja, tirou o elmo, despiu um brial, que era uma veste que se costuvava trazer por cima da armadura, e envergou o arnez.

Passados poucos momentos tinha já posto o elmo e tornado a vestir o brial.

-- Agora, mestre Esteveannes, disse o escudeiro segundo o nosso ajuste pagar-vos-hei esta divida quando receber d'el-rei a minha quantia. Mas dizei-me, na vossa qualidade de bésteiro do concelho, não ides, como vos cumpre, á lide?

-- Vou já n'este momento armar-me da minha besta e do meu bacinete para me encorporar com a gente de guerra do meu concelho. Na minha qualidade de morador de Lisboa não faltarei com o meu braço no feito de atalhar o passo ao senhor infante que vem sobre a cidade, segando se diz, com animo de entrar n'ella acompanhado de chusma de malfeitores e bem sabeis o damno que isso poderia causar á cidade.

Instantes depois, Affonso Fernandes, despediu-se do armeiro, montou a cavallo e partiu a galope pela ingreme ladeira que conduzia á Alcaçova.

Ainda se ouvia distinctamente o galope do cavallo quando da banda da Alcaçova, appareceu um outro cavalleiro.

Como trazia o rosto descoberto, o armeiro que assomara á porta no momento de Affonso Fernandes partir, reconheceu logo o recem-vindo e bradou:

-- Bem vindo sejaes, senhor Fernão Froyão; que vos traz para estas bandas a taes horas?

-- Guarde-vos Deus mestre Esteveannes, o mais entendido armeiro de Lisboa e arredores, redarguiu Fernão Froyão apeando-se. Muito folgo de aqui vos encontrar porque hei mister da vossa arte para o corregimento d'esta viseira, que está perra e não a posso calar e erguer tão prestes como desejara.

-- E Fernão Froyão que já a este tempo entrara na loja, tirou e elmo e pol-o nas mãos de Esteveannes.

O armeiro examinou-o e depois de o entregar a um dos officiaes, fazendo-lhe algumas explicações sobre a maneira de o correger, rapidamente, voltou para junto do escudeiro.

-- Que vos pareceu? perguntou-lhe o escudeiro d'el-rei. Será caso para grande demora?

-- Pouco vale aquillo, respondeu-lhe o armeiro; quatro martelladas só e tel-o heis prompto n'um abrir e fechar d'olhos.

-- Ora pois assim convem, volveu o escudeiro, porque tenho de me encorporar com a hoste que vae ao encontro do senhor infante e que já vem caminho da Cathedral.

-- Que me estaes dizendo! pois a hoste d'el-rei já vem caminho da Cathedral! Oh! exclamou com sobresalto o armeiro. E eu ainda aqui! Dispensae-me, senhor Fernão Froyão, não devo deter-me mais tempo; o arranjo do elmo ahi fica entregue a boas mãos, e pouca demora pode levar. O Anadel já deve ter dado pela minha ausencia. Vou arranjar-me, e n'um credo acho-me com a hoste afim de tambem assistir á missa da Cathedral. E vós, mesteiraes, accrescentou, fallando aos que trabalhavam podeis-vos tambem ir; alguns de vós pertencem ao troço de guerra da cidade e conviria que não faltasseis ao feito de hoje. E vós, Lopo Baião, disse dirigindo-se ao que se incumbira do elmo, assim que tiverdes concluido o corregimento d'essa peça, fechae a loja, e abalae tambem para a hoste.

Acabando de proferir estas palavras, Esteveannes vestiu o seu saio, poz na cabeça um chapeo de feltro de grandes abas, despediuse de Fernão Froyão e abalou rijo pela porta fora.

O conselho do armeiro foi seguido; d'ali a pouco só havia na loja Lopo Baião e o escudeiro.

Passado um quarto de hora, o muito, Lopo Baião apresentava ao escudeiro o elmo já devidamente corregido.

Fernão Froyão encaixou-o na cabeça e experimentou a vizeira; baixava e subia perfeitamente.

Depois de pagar o concerto e quando hia a retirar-se, acudiu-lhe uma idéa subita e voltando-se para Lopo Baião perguntou-lhe:

-- Dizei-me se sabeis, quem era aquelle cavalleiro que partia d'aqui quando eu chegava?

-- Era o senhor Affonso Fernandes, respondeu de prompto Lopo Baião.

-- Affonso Fernandes! exclamou o escudeiro em tom de grande assombro. Mas que veio elle aqui fazer? accrescentou no mesmo instante.

-- Veio por um arnez que tinha cá posto. Quando vós chegaveis partia elle a encorporar-se na hoste.

-- A encorporar-se na hoste! redarguiu Fernão Froyão cujo assombro subiu de ponto.

-- Não, para a hoste, não, atalhou de golpe Lopo Baião; agora me occorre que elle aqui fallou por alto n'um recado que devia levar da parte d'el-rei não me lembra aonde. Só depois de dar o recado d'el-rei é que se vai reunir a hoste.

-- Bem sei, exclamou Fernão Froyão, bem sei que recado é esse que elle vai levar da parte d'el-rei. Eu tambem vou para o Castello a reunir-me a el-rei, -- e a ver de caminho se o recado de sua real senhoria foi cumprido como é mister -- accrescentou fallando comsigo.

Depois de calar a viseira, Fernão Froyão tornou a montar no seu ginete, esporeou-o com ancia e partiu para o Castello.

No caminho encontrou a hoste que já descia da Alcaçova.

Não tardou muito que não passasse tambem o armeiro Esteveannes na mesma direcção.

Como dissera tinha ido armar-se para se juntar á hoste d-el-rei.

Na sua qualidade de bésteiro do concelho levava ao hombro a sua besta de polé, na cabeça um bacinete de camal, que era um elmo com defeza de malha de ferro para o pescoço, e no peito uma armadura a que chamavam solhas.

Quando já tinham dado onze horas, sahia da cidade a hoste em direcção ao Lumiar. El-rei que acabara de assistir á missa que devotamente mandara dizer, segundo era costume antes d'uma hoste entrar em combate, el-rei postara-se rodeado dos cavalleiros incumbidos da guarda da sua real pessoa, proximo da porta de ferro, e estivera vmdo deslisar a sua gente formada em ordenança de guerra.

No momento em que a çaga ou rectaguarda já franqueava a escura e profunda porta da cerca, e el-rei se dispunha tambem a pôr-se a caminho, ouviu-se das bandas da rua que subia para a Alcaçova bradar uma voz rouca e desgradavel:

-- Justiça que sua senhoria el-rei mandou fazer n'este traidor; que morra enforcado como qualquer villão.

El-rei que ouvira o pregão sinistro, deu de redea ao cavallo e disse ao cavalleiro que lhe ficava mais proximo:

-- Aquelle nunca mais torna a ser traidor ao seu rei, se é que o foi.

-- Quando é que a justiça d'el-rei se engana? volveu o cavalleiro.

Ao ouvir estas palavras, el-rei bem a seu pezar, estremeceu sobre o seu ginete de guerra.

N'aquella mesma tarde, na forca armada no sitio chamado hoje S. João da Praça balouçava um cadaver.

Pelo que dissera o pregoeiro, aquelle cadaver era o d'um traidor que morria como merecem morrer os villões traidores.

Porém entre a villanagem que assistira á execuçao e que reparara no rosto livido do cadaver, corria voz que aquelle não era um vil peão, mas um escudeiro da creação do Paço.

Qual fora porém o crime que o tornara merecedor de morte tao aviltante?

Eis o que a villanagem não sabia dizer.

VI

O Balsão negro

Este rei D. Diniz houve guerra

com seu filho D. Affonso, per

razão que queria que Affonso

Sanches, que era seu filho de

barregão que reinasse.

Livro das Linhagens.

A hoste real franqueou a chamada a porta do ferro, desceu á rua Nova, que tão celebre e fallada depois se tornou e cuka edificação devia ser então recente e tomou em direitura ao rocio. Aqui el-rei, como lhe cumpria, tomou logar na vanguarda rodeado d'uns vinte cavalleiros que formavam a guarda da sua pessoa. Entre elles achavam-se os seus dois filhos D. Pedro, conde de Barcellos e D. Affonso Sanches, mordomo-mór e talvez causa principal da lucta que se ia travar.

João Affonso na qualidade de alferes-mór empunhava a signa ou bandeira real a qual ia ainda mettida na respectiva funda, porque, segundo o regimento de guerra d'aquelles tempos a bandeira, real só se desfraldava quando a hoste entrava em combate.

Logo atrás d'el-rei e dos cavalleiros a quem competia a honra de rodear a pessoa do rei quando ia á guerra, cavalgava o resto dos fidalgos do partido d'el-rei devidamente revestidos das suas pesadas armaduras, e acompanhados dos seus aquantindos, isto é, dos homens d'armas que elles tinham ao seu serviço e que recebiam por isso soldo ou quantia.

Após os cavalleiros fidalgos e seus aquantiados formavam os cavalleiros-villãos os quaes, na maior parte, iam unicamente armados de lança e escudo e um simples peito de ferro.

Na rectaguarda ou çaga iam os bésteiros do conto armados pela mesma forma que ha pouco vimos o armeiro da porta do ferro, isto é de bestas de polé, solhas ou peitos d'aço e de bacinetes de camal.

Quasi de envolta com os bésteiros ia um grande numero de peões do concelho armados, uns de lanças e de cutellos, e outros apenas de paos ferrados.

Do rocio a hoste tomou o caminho de Valverde, que era o sitio onde hoje está o Passeio Publico, e d'ahi seguindo para Andaluz, que ainda tem o mesmo nome, chegou aos campos d'Alvalada, que presentemente se chamam Campo Grande e Campo Pequeno.

Nos campos d' Alvalada el-rei mandou fazer alto.

No lado opposto avistavam-se alguns corredores da hoste do infante D. Affonso que, segundo noticias recebidas, estava acampado no Lumiar.

No rosto do rei transpareceu então a mais pungente amargura; via-se quanto lhe era doloroso aquelle lance, e que só a dura obrigação que lhe impunha a dupla qualidade de pae e de rei, o levava a tão extrema resolução.

Em cumprimento do que promettera no dia antecedente, el-rei enviou um dos seus cavalleiros mais autorisados, Alvaro Martins d'Azevedo, ao campo da hoste inimiga afim de emprazar D. Affonso a voltar para Santarem com as suas gentes de guerra sob pena de receber ali mesmo pela força das armas, o severo castigo dos seus desmandos e insolitas pertenções.

Alvaro Martins d'Azevedo calou a viseira e desembainhando a espada d'armas partiu ao galope do seu possante ginete para a hoste acompanhado d'um simples pagem.

Passada cerca de meia hora Alvaro Martins de Azevedo voltava do campo inimigo.

Foi de mau agoiro a impressão que produziu quando ergueu a viseira; trazia o aspecto demudado e revelando mal reprimida colera.

Quando o viu, el-rei, participou da impressão geral; deu-se comtudo pressa em perguntar:

-- Dizei, Martins d'Azevedo, que acolhida deu o senhor infante á missão que de mim lhe levastes?

-- Senhor, respondeu Martins d'Azevedo com voz que a commoção e a colera tornavam pouco firme, tendes no senhor infante o mais respeitoso dos filhos e o mais leal dos vassallos.

-- Então, volveu el-rei com um certo alvoroço, o senhor infante resignou-se a voltar para Santarem e aguardar ahi o que nós houvermos de determinar?

-- O senhor infante, respondeu o cavalleiro d'el-rei com voz repassada de severa mas respeitosa indignação, não só não se resigna á vontade real como disse que se eu não fosse cavalleiro da casa d'el-rei seu pae, me mandaria ali mesmo cortar a cabeça a um traidor.

-- O senhor infante, volveu el-rei n'um tom em que mais se revelava a magua d'um pae do que a colera d'um rei, tem genio mal sofrido e com razão lhe chamam o bravo.

-- Teve porém motivo para de tal modo me ameaçar. retorquiu o cavalleiro com indizivel ironia, na minha qualidade de fiel vassallo e amante da dignidade real e do bem d'estes reinos que tanto padecem com os desmandos do senhor infante, tomei a liberdade de fazer algumas respeitosas considerações; ao ouvil-as o senhor infante arremetteu para mim ás estocadas, e se não fossem os cavalleiros que se achavam presentes, teria por certo ali soffrido grande desaire ou a dignidade do rei na pessoa do seu cavalleiro ou a lealdade d'um vassallo por causa do senhor infante.

Ao, acabar Martins de Azevedo de proferir estas palavras a indignação transpareceu no rosto de todos os circumstantes; Affonso Sanches, o filho natural, deu claras mostras de impaciencia.

El-rei permanecia a um tempo indignado e perplexo; bem se via quanto o lance lhe ia ser custoso e quanto hesitava em dar ordem de manrchar contra o filho, agora que não lhe restava duvida de que a lucta se deveria forçosamente empenhar. A sua hesitação durou comtudo pouco tempo. Ao dirigir a vista para a extremidade do campo viu apparecer a vanguarda da hoste do infante D. Affonso, que marchava ao encontro d'el-rei; a lide era pois inevitavel.

El-rei poz-se pallido e em toda a hoste real levantou-se um rumor e percebeu-se uma agitação percursora por certo de temerosa tempestade. Nós, porém, agora que se prepara a lucta, temos de retroceder um pouco e vermos o que se passava em Lisboa no alcaçar do Castello, ao tempo que el-rei marchara para a lide.

Como Affonso Fernandes declarou, a rainha D. Izabel, a santa, mandara dizer por especial intenção algumas missas na capella real para que Deus houvesse de permittir que a paz e a concordia novamente se estabelecessem entre el-rei D. Diniz e seu filho sem que nenhum dos contendores tivesse de desembainhar o gladio homicida.

A rainha, portanto, á hora aprazada, dirigiu-se pelo passadiço de que fallamos no primeiro capitulo d'este romance para a capella real, acompanhada de todas as suas donzellas e covilheiras, as quaes partilhando os receios e soffrimentos da sua real ama, quizeram unir as suas preces ás d'ella para que Deus se amerceasse da amarga situação em que el-rei se achava, abrandando o coração do filho e fazendo com que elle se lembrasse dos seus deveres de infante e de vassallo.

Ao tempo que el-rei se dispunha a partir com a sua hoste para assistir á missa que se havia de rezar na Cathedral, prostrava-se a rainha conjunctamente com as suas serviçaes no pavimento da capella real, e com exemplar devoção e inexedivel recolhimento começava a ouvir a primeira das missas que mandara dizer pela paz do reino e concordia do filho e do marido.

Entre as donzellas e covilheiras do paço achatam-se Urraca Vasques, Estevainha Martins, Maria Annes, Joanna Peres, D. Guilhemoa e D. Marqueza Rodrigues que segundo dizem foi aia e collaça da rainha, e, eomo era natural, Ermezenda Sanches, a formosa donzella que já conhecemos.

Ermezenda distinguia-se facilmente d'entre as mais pela singular belleza dos seus longos e aureos cabellos cahindo-lhe em caprichosas ondas pelos hombros e pelo collo de graça incomparavel

O silencio profundo que reinava no templo era apenas interrompido pelas palavras que em voz grave o ministro e o seu acolyto proferiam na consagração do incruento sacrificio.

De repente no meio d'aquella solemne quietação, ouviram-se nas lages do pavimento, ao longo da nave, uns passos pesados e sonoros e um como tinir d'armas.

Á devoção e profundo recolhimento da rainha e de muitas das suas damas e donzellas passou desappercebido aquelle inesperado ruido. Porém, algumas voltaram a cabeça com certo alvoroço e Ermezenda foi uma das que não se pôde subtrahir ao impulso da curiosidade.

Quando a donzella bem amada da rainha olhou para trás, ás faces cobertas da pallidez de magoas recentes assomou-lhe um vivo carmim, e um mysterioso estremecimento percorreu-lhe o corpo. O som das passadas que lhe despertara a curiosidade era motivado por um cavalleiro completamente armado que entrara na egreja. O recemvindo avançou até ao meio da nave, ajoelhou e começou com todas as mostras de profunda devoção a ouvir a missa que n'aquelle momento já ia em meio.

Porque estremecera Ermezenda? Porque tão de subito se avivaram as desbotadas rosas d'aquelle rosto gentil? Foi porque no cavalleiro que entrara reconhecera Affonso Fernandes, que, segundo o que os leitores já sabem, tinha ido assistir a uma das missas que a rainha mandara dizer, por não poder, em consequencia do recado d'el-rei, assistir á que se celebrava na cathedral.

Entretanto quando as tres missas se acabaram de rezar e a rainha concluiu as suas orações e se levantou, já o namorado escudeiro havia desapparecido.

O desditoso mancebo fora cumprir o mandado d'el-rei, mandado que tinha, como os leitores sabem, alcance tão sinistro e fatal.

Quando a rainha se ergueu, todas as damas e donzellas do seu sequito a imitaram.

Então D. Izabel voltando-se para D. Marqueza Rodrigues, dama já idosa e de aspecto venerando, disse:

-- Minha boa Marqueza, agora que me sinto mais animada pelas orações que dirigi a Deus vou pôr em execução o meu intento. Estou que o Todo Poderoso me ha de ajudar no meu empenho, e dar-me ao gesto tal authoridade e ás palavras tanta eloquencia que meu filbo cahirá em si, e embainhando a espada criminosa se reconciliará com el-rei seu pae.

-- Pois insistis, senhora rainha? volveu D. Marqueza.

-- Insisto, sou rainha, sou mãe e confio em Deus. Vós ficae ahi com as minhas damas e donzellas a orar pelo bom successo da minha missão. Espero firmemente que bem depressa hei de voltar com as boas novas de paz e então só teremos a agradecer a Deus o auxilio que na sua grande misericordia se dignou dispensar-nos n'este lance tão grave e doloroso.

E ditas estas palavras a rainha poz-se a caminho.

As damas e donzellas seguiram-n'a. A' porta da igreja um pagem segurava pela redea uma mula que tinha sobre o possante dorso um commodo silhão.

Depois de se despedir affectuosamente das suas serviçaes, D. Izabel montou na mula, envolveu-se n'uma mantilha que o pagem lhe entregou, e partiu pelas ruas da Alcaçova em direcção ao logar da lucta.

Os populares a quem encontrava pelo caminho descobriam-se respeitosamente mal a viam, e voltando-se uns para os outros perguntavam:

-- Onde irá a nossa santa rainha?

Nós porém que já sabemos onde se dirigia a boa e virtuosa senhora precedel-a-hemos a fim de vermos o que se passou no campo da lide depois que as duas hostes se viram em frente uma da outra.

Com essa hesitação que antecede sempre as tremendas luctas e os criminosos feitos, nenhum dos contendores, apesar das suas rancorosas disposições teve animo de logo mandar tirar da funda e desfraldar a respectiva signa e dar de semilhante modo o signal de começar a lide.

As duas hostes não haviam ainda travado decididamente a peleja, e estavam como dizem os velhos chronistas que fallam d'este caso, em alas paradas.

Entretanto na costaneira esquerda, ou como se diz na linguagem technica de hoje, no flanco esquerdo, muitos homens d'armas, bésteiros do concelho e peões, levados do seu ardor bellicoso tinham já travado lucta com a costaneira inimiga que lhes ficava em frente.

Os virotes das bestas, atravessavam, silvando, de um a outro lado do arraial, muitas das lanças da peonagem voavam em bastilhas e nos escudos e armaduras dos homens d'armas soavam temerosos os golpes dos montantes ou espadas d'ambas as mãos.

A gente do infante agrupava-se em redor d'um balsão negro que um pagem d'armas empunhava.

Era este balsão o motivo principal da lucta. Debalde porém tentavam os hemens d'el-rei apoderar-se d'elle. Não só lh'o impediam os homens de pé que o defendiam, como tambem um esforçado cavalleiro a quem o balsão pertencia, e cuja estatura agigantada e armas negras pareciam só pelo seu terrivel aspecto, intimidar os mais ousados e ardidos.

Porém de repente, quando mais accesa estava a lucta e mais debatida a posse do balsão, chegou ao campo um novo cavalleiro.

Pelo ruidoso resfolegar do seu formoso ginete todo coberto de suor, parecia vir de longe e ter sustentado vertiginosa carreira.

Mal chegou e viu o cavalleiro das armas negras, abriu caminho com o sea ginete pelo meio dos combatentes e approximou-se d'elle.

Os que pelejavam affastaram-se e alguns fazendo reparo no escudo sem divisa do recemvindo, exclamaram:

-- Um escudeiro d'el-rei!

Chegado que foi proximo do cavalleiro de negro, o que parecia escudeiro, bradou em voz sonora:

-- Martim Gonçalves Leitão, lembras-te do teu feito de Coimbra em que fizeste aquella grande traição a Gonçalo Pires Ribeiro, o melhor cavalleiro d'el-rei?

Martim Gonçalves Leitão por unica resposta soltou um rugido de colera.

-- Já vejo que te lembras, redarguiu o escudeiro d'el-rei. És pois um vil traidor, Martim Gonçalves. E sabe que hei de hoje apresentar a el-rei esse teu balsão em prova de que a tua traição já foi castigada.

-- Para m'o tirares seria preciso tirares-me primeiro a vida, e essa não a ha de tirar a Martim Gonçalves, um insignificante escudeiro que eu não conheço e que é talvez filho d'alguma das suas barregans.

Por seu turno foi o escudeiro quem deu um rugido.

-- Se me queres conhecer, dom traidor, fende-me o elmo e a viseira primeiro que eu te ganhe esse balsão e te arranque a vida que só te ha servido para feitos vis como os de Coimbra.

E ditas estas palavras os dois contendores arremetteram um para o outro com temeroso impeto.

VII

O anjo da paz

Antre as muitas virtudes que

houve na Rainha Dona Izabel em

quanto viveo foy procurar sempre

paaz e amisade de que ella

se presou muito.

Ruy de Pina, Chr. de D. Dinis.

Mas que traição era esta de que fallava o escudeiro?

Eis o que vamos dizer em poucas palavras, em quanto os dois adversarios não satisfazem a sanha de que estão possuidos com a derrota d'um d'elles.

Pelo que já temos dito, no decurso d'este romance, lenda ou o que lhe quizerem chamar, facilmente se deprehende que não era esta a primeira vez que D. Affonso se punha em campo contra o pae, apparenteioente por causa da exiguidade dos rendimentos de que D. Affonso se queixava, mas na realidade por causa dos receios que lhe inspirava o grande valimento de que seu irmão natural D. Affonso Sanches gosava no animo de el-rei.

N'uma d'essas vezes, no anno 1359 da era de Cezar, dois annos antes da lucta de que se falla na presente narrativa, os exercitos do pae e do filho tinham-se encontrado em Coimbra. D. Affonso achava-se de posse da cidade, e D. Diniz vendo que o filho não acceitava as condições que lhe tinham sido propostas resolveu-se a atacal-a, tentando entrar pela ponte que ficava sobre o Mondego. Foi aqui que se deu o feito a que o escudeiro se referiu no repto ao cavalleiro da hoste do infante. Martim Gonçalves Leitão, e seu irmão Estevam Leitão, vassallos de D. Affonso defendiam a ponte. Na investida distinguiu-se sobremodo um cavalleiro d'el-rei por nome Gonçalo Pires Ribeiro, que fiado no seu esforço, segundo o dizer da chronica, conseguiu entrar a porta que ficava sobre a ponte; porem, se o ardor dos que atacavam era extraordinario não era menor o denodo dos que defendiam a entrada da cidade, e Martim Gonçalves Leitão, isto é o cavalleiro que vemos agora em combate singular com o escudeiro, ajudado pelo seu irmão, conseguiu lançar da ponte abaixo a Gonçalo Pires Ribeiro. Não diz a chronica d'onde extractamos a narração doeste episodio se o cavalleiro d'el-rei se affogou no rio, mas se a memoria nos não falha, Gonçalo Pires Ribeiro figura no testamento da rainha Santa Izabel, que foi feito annos depois de terem acontecido os factos a que nos referimos, e por conseguinte a sua audacia não teve tão funestas consequencias como seria para receiar.

Era d'esta affronta ao vassallo d'el-rei que o escudeiro queria tirar vingança.

Dadas estas explicações que nos pareceram indispensaveis, vejamos o que se passava entretanto no campo d'Alvalada.

Foram logo terriveis os primeiros golpes; se no cavalleiro de negro se notava a firmeza de homem endurecido nas pelejas, no escudeiro revelava-se todo o ardor e toda a agilidade dos verdes annos.

Esteve por muito tempo indecisa a lucta. Houve um momento em que os da hoste do infante tremeram pela vida de Martim Gonçalves Leitão. Foi quando elle tendo vibrado um temeroso golpe com a sua espada d'armas, o escudeiro lh'o aparou no escudo, e a espada saltou feita pedaços. Porém contra o que todos esperavam, o escudeiro não se valeu da superioridade em que aquelle incidente o collocou, e aguardando que o seu adversario empunhasse o montante que um pagem lhe veiu trazer, dispoz-se a recomeçar a lucta mesmo em condições tão desiguaes.

Se não era loucura o procedimento do escudeiro, era porque então combatia fiado n'alguma protecção ignota e mysteriosa.

Martim Gonçalves estava cego de colera; a generosidade do escudeiro pareceu que em vez de o acalmar mais lhe augmentou a sanha. Erguendo com ambas as mãos o montante descarregou com furia um tremendo golpe sobre o escudeiro. Porém este em vez de o aparar no escudo, como da vez primeira, evitou o golpe fugindo para o lado, e o montante só encontrou o vacuo. No impeto que vibrou o montante e faltando-lhe a resistencia que esperava, o cavalleiro perdeu o equilibrio e cahiu de bruços sobre o pescoço do cavallo.

Não deixou o escudeiro escapar como da primeira vez tão favoravel circumstancia; atirando um fortissimo golpe com a sua espada d'armas á cabeça do seu adversario fez com que elle atordoado soltasse os braços e cahisse do cavallo, o qual, vendo-se sem governo, partiu desenfreado pelo campo fora.

Entretanto o escudeiro vencedor apeou-se e correndo para o seu adversario derribado apontou-lhe a espada á parte superior do gorjal, que deixava um pouco a descoberto a garganta, e bradou:

-- Rende-te, dom traidor!

N'este momento, porém, uma frecha perdida partiu do campo do infante, cravando-se no lado direito do escudeiro fel-o largar a espada e vacillar.

bésteiros e outra gente da hoste real rodearam-n'o logo e conduziram-n'o para a çaga onde foi entregue aos cuidados do mestre Estevam, physico mór d'el-rei, que tambem fôra na hoste.

O escudeiro estava tambem ferido, e podia ser que mortalmente, porque as frechas n'aquelle tempo eram muitas vezes hervadas ou empeçonhadas.

Não tardou muito que aos ouvidos d^el-rei chegasse a nova de que um escudeiro de sua casa vencera em combate singular o vassallo do infante Martim Gonçalves Leitão, o traidor que na ponte de Coimbra lhe ia matando Gonçalo Pires Ribeiro.

Quando tal soube, d-rei exclamou:

-- Dê-lhe Deus vida que eu lhe darei o mais valioso galardão que elle desejar.

Quando D. Dimz acabava de proferir estas palavras, João Affonso, seu alferes, que levava o estandarte real, chamou-lhe a attenção para o que se passava na hoste inimiga.

El-rei olhou e viu desenrolada a signa do infante e ouviu ao mesmo tempo as trombetas darem o signal de arremetter.

Então D. Diniz aprumando o corpo que os annos e mais ainda os desgostos traziam já alquebrado, ordenou a João Affonso que desfraldasse o estandarte real.

No mesmo instante abalaram os ares em clamor guerreiro as trombetas e anafís d'ambas as hostes. Então os cavalleiros embraçaram os escudos, ergueram as espadas d'armas, ou terçaram as lanças os peões brandiram as ascumas, e os bésteiros encurvando os arcos das bestas disposeram-se a arremessar os seus virotões hervados sobre a hoste que lhes ficava em frente.

Foi um momento terrivel; como cumpria aos primeiros cavalleiros do reino, achavam-se na vanguarda das hostes quasi em frente um do outro el-rei D. Diniz e seu filho o infante D. Affonso; ia talvez n'aquelle instante perpetrar-se o mais horrendo dos crimes.

Mas de subito, como por encanto, calaram-se os bellicos instrumentos, os cavalleiros sopearam os cavallos prestes a abalarem em vertiginosa carreira, os peões baixaram as suas ascumas, e os bésteiros afrouxaram as cordas das bestas já promptas para arremesarem as empeçonhadas armas.

Que milagrosa causa produzia tão maravilhoso effeito? Fora porque rei, infante, cavalleiros, bésteiros e gente meuda das hostes, em meio dos homens d'armas cegos de ira, das bestas que se curvavam, dos montantes que se erguiam e das ascumas que scintillavam aos raios do sol prestes a fenderem os ares, tinham visto apparecer de subito, como visão milagrosa, como iris de paz em meio das nuvens temerosas da procella, a rainha D. Izabel, aquella que o povo já chamava santa, muito antes que a igreja lhe prestasse a devida homenagem ás suas virtudes celestiaes.

E o povo tinha razão; D. Izabel, alem da severidade angelical do seu proceder em meio das intrigas que ferveram na côrte em tempos de D. Diniz, da doce resignação com que via seu esposo entregarse constantemente a amores criminosos, resignação que chegava ao ponto, segundo dizem os seus chronistas, de acolher com protecção maternal os filhos bastardos d'esses amores, D. Izabel não se esqueceu do povo, e alem de muitas outras instituições de beneficio, fundou, por exemplo, o hospital dos Innocentes em Santarem, onde recolhia as creanças engeitadas.

O povo não esquece porém os seus bemfeitores, e uma moeda em que lhes paga é a gratidão, tanto mais valiosa quanto mais durado ira, porque passando de geração em geração, perpetua-se durante seculos, como sucede com D. Izabel, cujo vulto suavemente illuminado pelas doces irradiações da poesia popular, figura ainda nas formosas lendas tão geralmente conhecidas em que ora o dinheiro dos pobres se transforma em rosas no regaço da rainha, ora as rosas da rainha se transformam em oiro nas mãos dos pobres que ella protegia.

Assim como partira dos paços do Castello D. Izabel vinha montada na sua mula. Com a rapidez da carreira descompozera-se-lhe um pouco o transparente oural ou veo das donas que lhe emmoldurava a fronte angelica e veneranda; o sol, que já caminhava para o poente, dava-lhe em cheio e reveberando no manto d'escarlata em que vinha envolvida, rodeava-a d'um vivo fulgor que produzia nos que para ella olhavam o effeito da aureola que costuma circumdar as celestiaes apparições.

Apeando-se e dirigindo-se para o infante que estacara no seu impeto guerreiro, a rainha com uma voz em que se alliava a severidade da indignação, com a doçura do amor maternal, exclamou:

-- Que fazes, Affonso! Que doloroso espectaculo reservaste para os meus dias derradeiros?

D. Affonso ao ver a rainha ao pé de si apeou-se respeitosamente.

D. Izabel proseguiu:

-- Affonso, meu filho, esqueceste embora da obediencia que o vassallo deve ao rei e ao senhor mas não esqueças o amor e o respeito que os filhos devem aos paes, não olvides que tambem és pae e has de vir a ser rei e bem sabes quanto a Providencia é inexoravel com os filhos que desobedecem aos seus maiores.

O infante abalado por estas palavras, embainhou a espada d'armas e beijou a mão da rainha. Na rosto transparecia-lhe grande indecisão.

D. Gonçalo, o veneravel bispo de Lisboa, que tambem fôra na hoste, ao ver o infante em tão favoravel disposição, acudiu logo com a sua voz autorisada a persuadil-o tambem de que devia ali reconciliar-se com el-rei.

Entretanto em todo o campo d'Alvalada estabelecera-se profundo silencio; el-rei tinha a viseira levantada e no seu rosto lia-se mais o affeto do pae, que abria os braços para receber o filho desvairado, do que a severidade do rei que quizesse castigar o vassallo rebelde.

D. Izabel ao ver a indecisão do filho e querendo acabar d'uma vez com aquellas inglorias e fataes, que tanto damno traziam aos povos e tão mau exemplo lhes davam, tornou a dirigir-lhe a palavra e lembrou-lhe as promessas solemnes que fizera dois annos antes e os juramentos que por essa occasião proferira. Mostrou-lhe quão feio ena o procedimento d'um cavalleiro que nem os seus juramentos cumpria, e d'um filho e vassallo que tão facilmente esquecia as promessas de obediencia e respeito a seu rei e pae.

D. Affonso, como depois mostrou no seu reinado, era brioso cavalleiro, e não pôde deixar de reconhecer a verdade d'aquellas palavras e de se sentir pesaroso do seu procedimento irreflectido agora que a voz suave e o rosto sereno da rainha lhe faziam abrandar os impetos do seu genio irascivel.

Dirigindo-se para o pae que aguardava a sua resolução e que tambem já se apeara, poz um joelho em terra e beijou-lhe a mão.

-- Infante, disse então D. Diniz fazendo-o erguer com gesto amoravel, sei que vos queixaes de terdes recebido alguns aggravos d'el-rei. Não ignoraes quanto o nosso animo é inclinado a justiça; exponde portanto vossos aggravos, que á fé de quem sou, fio que não heis de dizer que só ao primeiro dos meus vassallos é que nego a justiça que lhe cabe.

O infante respondeu então:

-- Os aggravos que tenho recebido, não d'el-rei mas d'alguem que eu agora não nomeio, guardo-os para occasião mais propria os expor; por agora só peço a el-rei meu pae licença para voltar para a boa villa de Santarem.

-- Se é essa apenas a vossa vontade podeis retirar-vos para onde bem vos aprouver.

Após esta scena pathetica, as duas hostes pozeram-se em movimento; a do infante voltou para o Lumiar e a d'el-rei para Lisboa.

Dias depois D. Affonso achava-se em Santarem.

Douravam os ultimos raios do sol poente as muralhas do Castello e o cimo das torres da Cathedral, quando el-rei á frente da sua hoste entrava na cidade velha pela porta do ferro.

No rosto da rainha lia-se a mais doce satisfação. Mais uma vez desempenhara a sua missão de anjo de paz para a qual parece que a Providencia a destinara fazendo-a rainha d'estes reinos.

VIII

A justiça de sua real senhoria

Ó virtude adoravel!

Ó tu das almas nobre encanto.

Caldas. Poesias sacras.

Estavam por tanto mais uma vez feitas as pazes entre el-rei e o infante graças á benefica influencia da santa rainha D. Izabel, cuja missão de paz esteve quasi a exercer-se outra vez, annos depois, por occasião da guerra de D. Affonso IV e do rei de Castella; n'esta occasião, porém, a rainha não chegou a realisar o seu intento porque, no caminho para Extremoz, onde D. Affonso se achava, falleceu, talvez por effeito do cansaço da viagem a que a sua organisação já debilitada pelos annos não podera resistir.

No dia que se seguiu á lide que houve nos campos d'Alvalada reinava o habitual socego nas ruas e viellas da Alfama e Alcaçova, e o costumado bulicio e animação na rua Nova que já começava a ser o centro do movimento da cidade: os mesteiraes punham de banda a besta ou a ascuma e voltavam aos seus mesteres, e os fidalgos e aquantiados de fora do concelho regressavam aos seus lares.

Nós que temos porém de ver qual foi o desfecho do drama mysterioso que intimamente se liga com estes factos historicos, vamos para isso penetrar outra vez nos Paços de sua senhoria el-rei e ver o que ali se passava.

Hão de estar lembrados os nossos leitores do moço escudeiro d'el-rei que, d'um modo bisarro, vencera em combate singular o cavalleiro do partido do infante, Martim Gonçalves Leitão.

Tambem não deve ter esquecido que o escudeiro ficara ferido e fora entregue aos cuidados de mestre Estevam, physico-mór d'el-rei, e que sua real senhoria dissera, ao saber do resultado do combate, que se o escudeiro vencedor escapasse do ferimento, teria o galardão que mais desejasse em recompensa de tão brilhante feito.

Era porém mysterio ainda, para quasi todos os moradores do Paço, quem seria o feliz e brioso cavalleiro que praticara acção de tamanho vulto. Geralmente apenas se sabia que na vespera tinham desapparecido dois escudeiros: Fernão Froyão e Affonso Fernandes. Um d'elles devia forçosamente estar morto, porque não apparecia, e o outro devia ser o que tinha ficado ferido e entregue aos cuidados de mestre Estevam.

Quem portanto estava forçosamente ao facto da verdade era o physico do Paço. Por este motivo, mestre Estevam, principiara logo de manhã, a soffrer incessante perseguição da parte dos curiosos ou dos interessados, que queriam, não só saber qual o estado do ferido, mas tambem quem elle fosse.

Porém mestre Estevam tivera a estranha birra de responder a todos, que bem depressa se saberia quem fora o heroe do dia antecedente, porque elle não havia de tardar a apparecer são e escorreito, graças -- accrescentava mestre Estevam com louvavel modestia -- não ao meu grande saber de physico, mas á nenhuma gravidade do ferimento.

Esta curiosidade parece que não foi só das creaturas inferiores do Paço, porque até a propria rainha mandou logo muito de manhã chamar aos seus aposentos o physico da côrte, e apenas elle sabia da presença da sua senhora, recebia igualmente ordem de se apresentar a el-rei que o aguardava.

Levados tambem de mui natural curiosidade vejamos o que se passara com o physico-mór nos aposentos de sua senhoria.

El-rei achava se na mesma casa onde pela ultima vez fallara com o seu escudeiro favorito e com o meirinho-mór da côrte. Tinha o parecer mais alegre.

Na frente da meza, em altitude respeitosa, estava o mestre physico.

El-rei rompeu o silencio:

-- Mandei-vos chamar, não para vos perguntar quem seja o ferido, porque demasiado o presumo, mas para saber do seu estado.

-- Visto que vossa senhoria sabe quem é o ferido, só direi que o seu estado se pode julgar de perfeita saude.

-- De perfeita saude! volveu el-rei sobremodo admirado.

-- De perfeita saude, retorquiu o phisico, porque apenas ficou levemente ferido n'um lado pela frecha d'um bésteiro, que fora despedida com tamanha força, que a não ser de tão fina tempera o arnez onde bateu, já a estas horas não existiria o vosso escudeiro. Ainda assim valeu-lhe não ser a frecha empeçonhada.

-- Deve por tanto a saude á rijeza do seu arnez, que impediu que aquella frecha traidora fizesse n'elle maior estrago, volveu el-rei com ar prazenteiro.

-- E nada deve á minha pobre sabença, retorquiu mestre Estevam inclinando modestamente a fronte scientifica.

-- Tal não digaes, mestre physico, não chameis pobre ao vosso saber, que por mim não conheço outro mais sabio do que vós na nobre arte de curar. Só me peza que tamanho saber não exista em homem christão.

Nova curva arqueou o corpo de mestre Estevam, mas d'esta vez um meio sorriso de satisfação assomou-lhe, mau grado seu, á flor dos labios delgados.

El-rei proseguiu:

-- Voltando ao heroe da lide, visto achar-se elle de boa saude pode vir á nossa presença. Sabeis em que parte do Paço estará n'este momento?

-- Agora mesmo acabo de o ver no corredor que dá para os aposentos das donzellas da senhora rainha, respondeu o physico-mór com um sorriso malicioso, sorriso que el-rei não advertiu, porque se distrahira n'aquelle momento com um pedaço de pergaminho que tinha diante de si.

Comtudo ao ouvir as ultimas palavras de mestre Estevam, levantou a cabeça e redarguiu com algum assombro:

-- E que fazia elle ahi?

-- É de crer que tivesse sido chamado pela senhora rainha, acudiu pressuroso, o physico, talvez arrependido das palavras que acabara de proferir, a senhora rainha já esta manhã me perguntara novas do escudeiro ferido na lide.

-- Bem, tornou el-rei, visto saberdes onde pouco mais ou menos pára, podeis-vos retirar e ao primeiro pagem que encontrardes por esses corredores, dizei-lhe que o vá chamar da minha parte e venha o mais prestes que possa á minha presença.

El-rei fez um aceno de despedida.

Depois de respeitosa venia o physico-mór sahiu do aposento.

Momentos depois de mestre Estevam se haver retirado, finos e longos dedos de mão alva e franzina colhiam o reposteiro pelo meio e affastavam-n'o um pouco.

El-rei que depois da sahida do seu physico-mór não despregara os olhos do reposteiro, esperando ancioso ver apparecer d'um momento para o outro o seu escudeiro predilecto, altivo, de fronte erguida, orgulhoso do feito que praticara e que mais uma vez o faria merecedor da estima e particular affecto d'el-rei, em contrario do que esperava, viu apparecer, não a varonil figura de Fernão Froyâo, mas o vulto ainda formoso mas severo da rainha.

El-rei ergueu-se e foi ao seu encontro.

Depois que os dois esposos mutuamente se saudaram e a minha se sentou, D. Diniz disse:

-- Não vos esperava, senhora, mas folgo bastante de vos ver porque sempre as vossas subitas apparições costumam ser indicio seguro de paz e de ventura. Ainda hontem, senhora, se vós hão surgisseis em meio da peleja, como anjo de paz baixado das alturas, teriamos hoje por certo na nossa alma graves motivos para lagrimas e quem sabe se para remorsos.

-- O que eu hontem fiz, senhor el-rei, não tem merito nenhum. Estaes enganado se suppondes que foi á minha presença e ás minhas palavras que se deveu a paz. A Deus, só a Deus, cujo auxilio implorei nas minhas orações, é que deveis a paz que hoje se disfructa no reino e a tranquillidade que ora haveis de sentir na alma. É a Elle, só a Elle, que tendes de dar graças no fundo do vosso coração e no mysterio das vossas orações.

-- Concordo no que dizeis, D. Izabel; é de Deus que dimanam, não só as amarguras que nos depuram a alma em horas de soffrimento, como os momentos de paz e tranquillidade que veem após a inquietação e o padecer. Porém não é isso impedimento a que eu e os meus vassallos, sejamos reconhecidos ao desvelo com que sempre curaes das coisas que dizem respeito ao bem d'este reino.

-- É esse o meu dever, volveu a rainha, e crêde-me que se as forças me teem faltado algumas vezes para bem o desempenhar, não me accusa a consciencia de jamais ter esquecido a quanto me obrigam as minhas qualidades de esposa e de mãe.

A voz da rainha era grave. El-rei contrahiu a fronte; as palavras que D. Izabel acabava de proferir eram talvez uma recriminação pela injustiça que não havia muito elle lhe fizera. Dois annos antes D. Diniz desterrara a esposa para Alemquer por suspeita de que ella era favoravel á causa do infante D. Affonso e connivente com a sua rebellião.

-- Mas, volveu a rainha mudando de assumpto, já que fallaes de gratidão e de reconhecimento, não haveis de ter esquecido que os deveis a alguem que hontem se distinguiu na lide.

-- Tanto me não esqueço dos que me servem, disse el-rei, que mesmo agora acabo de mandar vir á minha presença esse que eu julgo ser a mesma pessoa de quem fallaes.

-- Eu referia-me, disse a rainha, ao escudeiro que hontem venceu aquelle grande traidor e rebelde que se chama Martim Gonçalves Leitão.

-- Era d'elle mesmo que eu fallava, exclamou D. Diniz. Acaso tambem particularmente vos interessaes por esse bom escudeiro?

-- Tambem, e não é outro o motivo que me trouxe a fallar-vos. Haveis já colhido mercê digna do seu feito?

-- Fal-o-hei cavalleiro fidalgo.

-- Acaso ja lhe escolhestes noiva?

-- Não lh'a escolhi, porém já lhe concedi a que elle me pediu. E agora que m'o lembraes, é occasião azada para fallarmos d'esse assumpto. Sabeis quem elle me pediu para noiva?

-- Se elle corresponde, como firmemente creio, ao ardente affecto que lhe dedicam, não deve ter pedido outra senão Ermezenda Sanches, aquella formosa donzella que está ao meu serviço e que vós bem conheceis.

-- Foi effectivamente Ermezenda quem elle me pediu para noiva. Não hesitei, como bem deveis suppor, em lh'a conceder, mui principalmente por me haver elle confessado que a vossa donzella correspondia ao affecto que lhe votava. Prometti-lhe que vos havia de fallar a tal respeito, e já estava de antemão seguro do vosso consentimento, porque demasiado conheço quanto sois inclinada a tudo quanto é devido e justo, e nada ha no mundo mais justo do que unir duas almas que se amam e que Deus formou uma para a outra.

-- Bem fizestes em dar o vosso consentimento, volveu a rainha, e se a desigualdade do nascimento fosse serio obstaculo para similhante união, o feito que hontem o vosso escudeiro praticou, torna-o digno do fôro de cavalleiro e realça-lhe a nobreza do nascimento.

-- Dizeis bem, senhora, Fernão Froyão é digno a todos os respeitos de Ermezenda Sanches.

Ao ouvir similhantes palavras transpareceu no resto da rainha o maior assombro e sobresalto. El-rei, a quem aquella subita commoção não passou desappercebida, não pôde deixar de exclamar:

-- De que vos admiraes? Por ventura não concordaes com as minhas palavras?

-- Não vos comprehendo, respondeu a rainha. De quem estaes fallando?

-- Da quem estamos fallando, disse el-rei, a quem coube a vez de se admirar, de quem senão de Fernão Froyão, meu fiel escudeiro e de Ermezenda Sanches que lhe dedica ardente amor.

-- Ermezenda Sancbes nunca dedicou amor a esse escudeiro; Ermezenda só amou, só ama, segundo o que ella propria me tem confessado, o bom e leal escudeiro Affonso Fernandes.

Ao ouvir este nome o rosto do rei tomou uma expressão carregada e severa.

-- Se Ermezenda Affonso ama esse que dizeis, ama um vil e um traidor; se Ermezenda teve tal desvario e nelle presiste, deplorae a desdita da vossa donzella porque a misera dedica mal fadado affecto a um morto!

A rainha fitou el-rei com a maior expressão de assombro que se pode imaginar.

-- A um morto, dizeis!

-- A um morto, sim, volveu el-rei. Affonso Fernandes jaz morto d'esde hontem.

-- Como podeis dizer tal, exclamou D. Izabel, se ainda ha pouco mestre Estevam me disse que o escudeiro, que hontem se distinguiu na lide, apenas soffreu um leve ferimento, e que bem depressa, quem quizesse o poderia ver são como se nada lhe houvesse succedido.

-- Mestre Estevam, retorquiu el-rei com um ar de convicção aterrador, não vos enganou; o escudeiro que hontem se distinguiu na lide está são como se nada lhe houvesse succedido, mas esse escudeiro não é Affonso Fernandes, porque elle não podia hontem ir á lide em consequencia d'um recado que foi levar dá minha parte á prisão da Alcaçova donde não tornou a sahir.

-- Mas, atalhou a rainha, como é isso possivel, se mestre Estevam não negou que esse escudeiro fosse Affonso Fernandes?

-- Mestre Estevam, tomou el-rei com firmeza, ou não vos quiz desenganar, ou, o que é mais de crer, apesar de homem de bom e claro entendimento, com a canceira dos seus muitos estudos na arte de curar, perdeu repentinamente o siso.

A rainha não podia ainda convencer-se do que ouvia; comtudo começava a recear pela sorte do escudeiro e a sentir-se assaltada por funestos presentimentos. Passados poucos instantes perguntou como que machinalmente:

-- E como foi sua morte?

-- Affonso Fernandes, respondeu el-rei, soffreu a morte que soffrem os traidores mais vis.

No rosto de D. Izabel transparecia a maior afflicção, começava a advinhar toda a verdade. O que se passara nos seus aposentos uma das noites antecedentes justificava as mais terriveis apprehensões.

El-rei proseguiu:

-- Hontem, ao tempo da lide, Affonso Fernandes foi enforcado como qualquer villão na forca da cidade.

-- Porém, como é possível que um escudeiro fidalgo soffresse morte tão afrontosa?

-- Eu vol-o explico. Se Affonso Fernandes fosse julgado pelos meios ordinarios, proviria d'isso grande deshonra para estes Paços. Com o fim de a evitar, entendendo-me primeiro com o meu meirinho, mandei hontem o traidor á prisão da Alcaçova com um recado meu, e ali, em cumprimento de ordens já recebidas, deve ter sido violentamente obrigado a substituir um grande criminoso e a marchar para a forca em seu logar.

-- Mas qual foi o seu crime? perguntou a rainha cheia de angustia.

-- O maior crime que um vassallo pode commetter contra o seu senhor. Affonso Fernandes tinha a criminosa ousadia de escalar por horas mortas os muros d'este Paço e entrar nos seus aposentos. E sabeis em que aposentos?

A rainha estremeceu; demasiado sabia quanta verdade havia nas palavras de D. Diniz.

-- Em que aposentos? perguntou machinalmente.

-- Nos vossos, senhora; abusava da vossa ausencia, da vossa confiança. Conheceis muito bem a lei especial que fizemos para os casos em que alguem, fidalgo ou villão, abusar por similhante modo da confiança e da morada de seu senhor. Affonso Fernandes commeteu esse crime; penetrava nos vossos aposentos e mantinha relações criminosas com alguma das vossas damas ou donzellas.

-- Estaes enganado, senhor el-rei, acudiu a rainha com firmeza. Quereis saber toda a verdade? Eu vol-a digo. Affonso Fernandes penetrava, ou melhor disendo, penetrou uma unica vez nos meus aposentos. As suas intensões eram puras. Confessou-m'as a sua propria cumplice, a sua desditosa amante, Ermezenda Sanches e Ermezenda não mente. Similhante crime, se crime se lhe pode chamar, merece toda a indulgencia, eram ambos novos e amavam-se. Demasiado deveis saber a que desvarios o amor leva as creaturas quando o amor é ardente e apaixonado. A lei que impera nos meus aposentos é severa, rigorosa, é dura. Amavam-se, tinham muito que dizer, e não souberam concertar outro meio para se fallarem. O que vos digo é a verdade; Ermezenda não sabe mentir. Tenho sido para ella mais uma mãe do que rainha. Com os meus olhos maternaes vejo-lhe ainda no rosto a mesma immaculada pureza, nas fallas a mesma inexcedivel candura. Se mandaste matar Affonso Fernandes por este unico crime, a vossa justiça, rei que blasonaes de justiceiro, foi cega e cruel.

El-rei, apesar da eloquencia severa d'estas palavras, não se mostrava abalado na sua convicção.

-- Não fui cego nem cruel, volveu com severidade, nunca a minha justiça feriu d'um modo tão certeiro. Julgando castigar um crime castiguei dois. Affonso Fernandes foi amplamente traidor; faltou ao respeito a casa do seu rei, e correspondia-se com os fidalgos traidores do partido do infante, com os fidalgos que só trabalham para a perda do meu filho. E senão, vêde este pergaminho que foi encontrado ao traidor momentos antes de expiar a sua culpa.

El-rei pegou n'uma tira de pergaminho que tinha em cima da meza e leu o seguinte:

«E vós, em prol da vossa causa, procurae por todos os modos possiveis indispor el-rei com a rainha. Como sabeis dentro em pouco, el-rei e o infante empenhar-se-hão forçosamente em lucta decisiva, e convem que a rainha, como já uma vez aconteceu, não appareça em meio dos contendores quando a lucta estiver para nós no seu aspecto mais favoravel. Um meio seguro de indispor os dois reaes esposos seria o convencerdes el-rei de que a rainha...»

-- Falta n'este pergaminho, continuou el-rei, um pedaço que foi rasgado e que a mim me quer parecer que seria d'uma aleivosia infame se não fosse absurda. O que resta é comtudo, se o meu juiso não erra, sufficiente para provar a traição. Depois d'esta prova quem vos affirma que o traidor nã0 subisse aos vossos aposentos para que as suspeitas recahissem sobre vós? Como explicaesa posse d'um firmal de ouro que Affonso Fernandes devia ter comsigo e que eu sei que vos pertence?

-- Affonso Fernandes, redarguiu a rainha, com firmeza, é incapaz de tanta infamia, e esse firmal de que fallaes ha muito que eu o dei a Ermezenda; foi ella quem provavelmente o deu por seu turno ao vosso escudeiro levada d'alguma devota intenção. Porem, se Affonso Fernandes, foi, como dizeis, castigado, porque não estaes tambem de posse d'esse firmal que forçosamente se lhe deveria ter encontrado?

-- Eis o que ainda não pude explicar, porque bastante recommendei que guardassem todos os objectos que o criminoso comsigo tivesse, e muito especialmente um certo firmal de ouro. Entretanto bem depressa saberemos a razão de tudo isso, porque o meirinho-mór das justiças deve estar prestes de volta da prisão do castello, aonde foi inquirir mais a fundo a maneira como as coisas se passaram. Em todo o caso, accrescentou el-rei, cuja convicção era inabalavel, aqui temos este pergaminho que prova que Affonso Fernandes foi traidor. E se o não era, porque estava elle de posse de similhante documento?

-- Os mortos não ressussitam, respondeu a rainha com tristeza. E como explicaes vós a falsidade de Fernão Froyão qae vos mente dizendo que Ermezenda o ama?

-- Essa falsidade elle mesmo a explicará, porque já mandei chamar Fernão Froyão, e não deve tardar.

Quando el-rei acabava de proferir estas palavras communicaram-lhe que um escudeiro queria fallar com el-rei para lhe dar conta d'um recado.

-- Mandae-o entrar.

E voltando-se para a rainha accrescentou:

-- Os mortos não ressussitam, mas ahi tendes um vivo, interrogae-o.

A rainha voltou-se com anciedade para a porta.

VIII

O Juizo de Deus

Ser isto ordenação dos Ceos divina,

Por signaes muito claros se mostrou.

Camões, Lusiadas.

Quando el-rei acabava de proferir as palavras que deixamos transcriptas no antecedente capitulo, correu-se o reposteiro e entrou um mancebo.

Ao vel-o, el-rei ergueu-se em sobresalto; a rainha nãoo pôde conter uma exclamação, a um tempo de assombro e de alegria.

O recemvindo era Affonso Fernandes.

Tinha no rosto a pallidez dos cadaveres.

Quando o escudeiro entrou, não pôde deixar de sentir certa estranheza ao attentar na impressão que a sua presença causava. Porém, como lhe cumpria, nada disse, e avançando até ao meio do aposento, parou e esperou que el-rei lhe dirigisse a palavra.

Como dissemos, el-rei posera-se de pé; em vista das idéas supersticiosas em voga n'aquelles tempos, não era para admirar que elle julgasse ter diante de si um espectro.

Foi por isso que em tom pouco firme, perguntou;

-- Que me quereis, alma penada?

Em voz pausada, mas que deixava transparecer o natural assombro gue a pergunta d'el-rei n'elle despertara, o moço escudeiro respondeu:

-- Venho dar vos conta do vosso recado, senhor el-rei. Como me ordenastes, fui antes da lide á prizão do Castello. Em resposta ao vosso mandado disseram-me que as ordens d'el-rei já tinham sido cumpridas na pessoa d'um escudeiro, que ali tinha ido antes de mim com um recado da parte d'el-rei. Custou-me a comprehender, e ainda agora não comprehendo, a significação d'estas palavras. Entretanto, como a missão que vossa real senhoria me confiou se limitava áquelle recado, parti logo d'ali para o campo da lide afim de vos prestar o fraco auxilio do meu braço contra os vossos inimigos. Quando cheguei já as hostes estavam formadas em frente uma da outra. Um golpe que recebi n'um combate singular em que me empenhei, foi causa de que eu não viesse hontem mesmo dar conta a el-rei da missão de que fui encarregado.

Depois que o escudeiro acabou de fallar, el-rei ficou um breve espaço sem dizer palavra e com ar meditabundo; parecia tambem custar-lhe a comprehender a razão de tudo aquilo, e afinal disse:

-- Bem sei do combate singular que hontem houve na lide e de que me acabaes de fallar, mas fulguei que fosse outro e não vós, o author de tão nobre feito. Porém, dissestes que quando fostes á prizão da Alcaçova já alguem ahi tinha ido com o mesmo recado; acaso sabeis quem foi o mensageiro e como succedeu que outrem se vos adiantasse no cumprimento do meu mandado?

-- Ignoro quem fosse, respondeu o escudeiro. Em todo o caso serviu melhor vossa real senhoria do que eu, que não andei tão prestes como deveria andar no desempenho do cargo que recebi.

-- E porque empregastes tão pouca diligencia no desempenho das ordens d'elrei? O que vos distrahiu do vosso reconhecido zelo pelo serviço de sua real senhoria? atalhou a rainha com alvoroço na voz e no gesto.

-- Um motivo de natureza tal que estou que el-rei me ha de perdoar a minha negligencia. Receando não me ser possivel, por causa do recado d'el-rei, assistir á missa que se devia dizer na Cathedral pelo bom successo da lide, e não querendo, como bom christão e cavalleiro faltar a tão saudavel preceito, passei, no meu caminho para a prisão da Alcaçova, pela capella do paço e entrei. Rezava-se n'aquelle momento uma das missas que a senhora rainha mandara dizer por intenção da paz do reino. Assisti devotamente áquelle acto que me fez esquecer mais do que devia o serviço d'el-rei, e por isso quando cheguei á prisão de Alcaçova já outro mais zeloso, ou mais afortunado, se havia adiantado e cumprido o vosso carrego.

No rosto da rainha pintou-se a mais viva alegria; com voz commovida acudiu logo, dirigindo-se a el-rei:

-- Já vêdes, senhor, que a vossa justiça se enganou e que a proteeção divina baixou sobre a cabeça de quem vós julgaveis criminoso. Deus não esquece nunca os bons e os que bem o servem.

Affonso Fernandes não podia comprehender o que se passava desde que entrara; apenas percebia que succedera alguma coisa de extraordinario.

Entretanto el-rei já via que o seu escudeiro não era o traidor que elle suppunha; e que só escapara d'um castigo tremendo, de que não era afinal merecedor, por um acaso em que manifestamente se revelava a protecção de Deus.

Com gesto mais tranquillo já, D. Diniz exclamou, dirigindo-se ao escudeiro:

-- Julguei-vos, Affonso, um vassallo indigno que abusava da morada do seu senhor, e destinei-vos um castigo proprio de tamanha culpa. Salvou-vos da affrontosa pena uma bem manifesta intervenção do Todo Poderoso. Pelo que a rainha já me disse, vejo que o castigo era demasiado para a vossa culpa, e Deus, salvando-vos da vilta e da deshonra, veiu mostrar-me que havia um outro que era o verdadeiro traidor. Esse -- tremendo designio da Providencia! -- expiou hontem no logar em que os villões expiam os crimes, expiou a traição que só a sua morte me veiu descobrir. Não sei ainda quem elle fosse, mas não me peza que tal succedesse, porque esse outro era grande criminoso. Salvou-vos a piedade: sois bom christão e bom vassallo. Da primeira qualidade tivestes já, como acabaes de ver, a devida recompensa. Falta-vos o premio da segunda; é a mim, como rei, que me compete dar-vol-a. Sois um simples escudeiro, far-vos-hei cavalleiro fidalgo, que bem o mereceis pelo vosso nobre feito de hontem na lide; já sei porém que o vosso coração ambiciona mais valiosa recompensa. Que desejaes, dizei?

Era extraordinaria a commoção de Affonso Fernandes; se bem que entrevia confusamente a verdade do gu6 se passara, não lhe restava comtudo duvida de que escapara d'um grande perigo, e de que tinha, como nunca, proxima e segura a realisação da sua tão anhelada ventura.

Cobrando por isso animo respondeu a el-rei com uma voz que forcejou por tornar firme:

-- Senhor, o feito que hontem pratiquei na lide não é merecedor de tanto encarecimento como vós julgaes. Venci, e não podia deixar de vencer, porque pelejava por uma causa justa e sob o influxo d'um milagroso objecto. A causa pela qual pelejava era a vossa; o sagrado objecto que me protegia era este.

Dizendo estas palavras, Affonso Fernandes tirou do seio o firmal que pertencera á rainha.

El-rei conheceu-o; agitado por mysteriosa impressão que não pôde deixar de se fazer pallido, e de perguntar:

-- Quem vol-o deu?

Ao ouvir similhante pergunta, Affonso Fernandes deu mostras de mais evidente hesitação.

A rainha, que bem conhecia a causa que motivava aquelle natural receio, atalhou logo:

-- Fallae com franqueza, Affonso; a verdade deve sempre dizer-se, e não sou eu por certo que vos assegure que el-rei não a saiba.

Tomado d'uma subita resolução o escudeiro d'el-rei respondeu:

-- Este firmal deu-m'o Ermezenda, a quem amo e que me ama...

-- Não digaes mais, interrompeu el-rei, repeti-me apenas que Ermezenda vos ama.

-- Repito, volveu Affonso, porque ella m'o jurou.

-- Bem está, Affonso, acredito n'essas palavras e vejo que Fernão Froyão me mentiu quando disse que Ermezenda o amava a elle. Fernão Froyão mentiu pois, e só parece que o falso já sabe que foi descoberta a sua falsidade porque nem hontem o vi na lide nem hoje no alcaçar...

Ao dizer estas palavras el'rei estremeceu; um vago presentimento lhe assaltou o animo.

Mas n'aquelle momento annunciaram o meirinho-mór da côrte.

Pouco depois achava-se Lourenço Annes Redondo na presença d'el-rei.

O bom meirinho trazia cara de pouca satisfação; parece que os espinhos do seu alto cargo não lhe davam treguas á consciencia e lh'a espicaçavam a miudo.

El-rei, apenas elle entrou, disse-lhe:

-- Escusaes de me participar que não trazeis o firmal; não era possivel trazerdes-m'o.

Ao ouvir assim fallar el-rei, o meirinho creou alma nova, mas não pôde deixar de fazer comsigo a seguinte reflexão que muito abonava a sua sagacidade.

-- Pois el-rei já sabe que eu não trago o que elle quer? Dar-se-ha caso que el-rei se entregasse ultimamente ás más artes de feiticeria e adivinhação?

E ao acabar este monologo intimo, o bom meitinho sentiu um como impeto de fazer o signal da cruz.

Não teve porem remedio senão conter-se.

El-rei continuou:

-- Porém, embora, nao saibaes do firmal de que vos fallei, acaso sabereis novas do meu escudeiro Fernão Froyão?

Na physionomia, aliás pouco expressiva do meirinho mór, manifestou-se o maior pasmo que se pode manifestar no rosto d'um vassallo sem que deva por isso ser acusado de falta de respeito pela pessoa do seu rei.

E de feito o pasmo de Lourenço Annes Redondo não conhecia limites; apesar da grande conta em que até ali tinha tido a lucidez d'espirito d'el-rei seu senhor, não pôde deixar de mudar de idéas e de fazer a seguinte reflexão, atilada e logica como todas as suas reflexões:

-- Terá porventura endoudecido sua senhoria el-rei?

E não atinando de prompto com uma resposta decisiva, o meirinho apenas articulou a seguinte exclamação:

-- Senhor!

El-rei que viu o embaraço de seu ministro, embaraço que lhe robustecia as suspeitas, insistiu na pergunta.

Vendo-se muito instado e não sabendo explicar a si proprio a curiosidade d'el-rei, o meirinho respondeu afinal, decidido a arrostar todas as eventualidades que podessem provir d'algum erro grave que se tivesse dado, que era o que elle começava a agoirar em vista da pergunta d'el-rei.

-- Senhor, Fernão Froyão, como lembrado haveis de estar, levou hontem um recado de vossa real senhoria á prisão do Castello, e d'ahi, segundo o que fora ordenado por vossa real senhoria...

Todos os personagens que tomavam parte n'esta scena sentiram-se agitados por extraordinaria commoção.

El-rei, com um certo alvoroço na voz, e o rosto repentinamente animado, disse ao meirinho:

-- Acabae, Lourenço Annes, ieis a dizer que Fernão Froyão levou o recado de que eu vos fallei e foram n'elle executadas as minhas ordens?

Lourenço Annes ao observar a favoravel mudança que se operava no rosto d'el-rei, sentiu o alivio que sentiria se lhe tivessem tirado o peso d'algumas libras de cima do peito; com a voz mais desafogada, respondeu:

-- Fernão Froyão, em cumprimento do que por vossa real senhoria fôra ordenado, soffreu morte affrontosa, hontem, ao tempo da lide, na forca da cidade. Ainda que outros crimes não tivesse commettido, bem teria merecido similhante castigo só pelo traiçoeiro accordo em que andava com os rebeldes que acompanham o senhor infante.

É inexplicavel a impressão que a rainha, Affonso Fernandes e o proprio rei sentiram ao ouvir as palavras do meirinho.

Eststva aclarado o qqe succedera: Affonso Fernandes comprehendia que um acto de devoção o salvara d'um castigo imminente e que elle não merecia, a rainha reconhecia mais uma vez quanto valem uma consciencia pura e uma alma devotada a Deus, e el-rei via claramente quanto o seu juiso era falso e como a Providencia se incumbira de o remediar, substituindo o innocente pelo verdadeiro criminoso.

Voltando-se então para o escudeiro, disse: .

-- Pelo que acabaes de ver, Affonso Fernandes, fui injusto para comvosco, e a minha injustiça poz-me em risco de perder um servidor, sincero e leal. Se hontem não assistisseis á missa da rainha, terieis chegado mais cedo á prisão do Castello com o meu recado e em vós seriam cumpridas as minhas ordens. Salvou-vos a piedade; Fernão Froyão, inspirado talvez pela Providencia que vela pelos bons e castiga os maus, Fernão Froyão precedeu-vos, e teve a sorte que reu destinara áquelle que ali fosse com um recado da minha parte. Como sempre, a Providencia acertou d'esta vez, porque Fernão era um traidor como a sua morte nos veiu mostrar, e agora vejo quão fementidas eram as suas palavras quando fallava em vosso desfavor. Se a mim me peza o erro da minha justiça, não vos deve a vós pezar o successo, em que tão grave perigo correstes, porque elle deu logar a que bem claramente se patenteasse de que lado estavam a culpa e a infamia. Mas á fé de quem sou, juro-vos que a minha injustiça será largamente reparada. Tereis mercê de cavalleiro fidalgo e desposareis, visto que vos approuve ao coração tão excellente escolha, a nobre Ermezenda Sanches. Ide já levar-lhe tão boa nova, e dizei-lhe que el-rei lhe dá os emboras do bom emprego que deu ao seu affecto.

Affonso Fernandes, cuja immensa commoção não lhe permettia achar palavras com que agradecesse tamanha mercê, ajoelhou perturbado diante d'el-rei e beijou-lhe a mão; depois de fazer o mesmo á rainha, retirou-se.

Após elle o meirinho-mór tambem se retirou.

A rainha, que ficara só com el-rei, disse-lhe:

-- Já vedes que não foi preciso que um morto resuscitasse para saberdes que a justiça real se engana.

-- Os juizos dos homens são falliveis, senhora, já ha muito que o sei, respondeu el-rei com tristeza, falliveis como o seu entendimento é curto, e é por isso que não logro comprehender como soube Fernão Froyão da traça que eu ideei com o meu meirinho para castigar o criminoso, nem o motivo que lhe inspirou a fatal lembrança de ir á prisão do Castello em tão perigosa conjunctura.

A rainha encolheu os ombros e redarguiu:

-- Assim como sabeis ha muito que os juisos dos homens são falliveis, tambem deveis saber que ha um juizo que jamais se engana, e que ás vezes dá aos maus inspirações que são a sua ruina e castigo.

-- É o juizo de Deus! exclamou el-rei com solemnidade.

-- Pois foi o juizo de Deus que emendou o vosso, senhor el-rei.

EPILOGO

Pouco nos resta que dizer.

Como el-rei lhe promettera, Affonso Fernandes teve mercê de cavalleiro e desposou Ermezenda Sanches, a querida do seu coração.

Dias depois, na capella real, effectuaram-se os desposorios a que a côrte assistiu. Ermezenda levava o veu da Santa que a rainha costumava pôr ás noivas da sua casa e com o qual tinha particular devoção.

Continuaram ambos a viver no paço.

Das chronicas e manuscriptos d'onde extrahimos esta veridica e extraordinaria historia, não podemos apurar se foi pequena ou numerosa a progenie dos dois venturosos esposos. Mas, o que podemos affiançar, tomando por fundamento os citados documentos, é que Affonso e Ermezenda viveram n'uma especie de lua de mel indefinida, a ponto de quasi o antigo escudeiro se esquecer de fazer trovas ao gosto provençal, o que explica em parte o facto de no Cancioneiro da Vaticana, valiosa collecção de canções e trovas dos poetas d'aquella epocha, só se encontrarem duas canções suas.

Pelos mesmos documentos vê-se tambem que Affonso Fernandes, por morte de D. Diniz, continuou ao serviço da côrte, onde era estimado pelo esforço do seu animo e lealdade do seu caracter. Por occasião da batalha do Salado, tão gloriosa para as nossas armas, batalhou na hoste portugueza, e provou mais uma vez quanto podia o gume da sua espada e a pujança do seu braço.

Quanto a D. Affonso, que depois reinou com o titulo de Affonso IV, o Bravo, e foi o matador da formosa D. Ignez de Castro, retirou-se depois da lide d'Alvalada, para Santarem como promettera ao pae. Mas, d'ahi a pouco, esteve outra vez prestes a travar lucta com el-rei a proposito tambem de seu irmão natural D. Affonso Sanches.

D'esta vez o conde D. Pedro e mais algumas pessoas de bom conselho impediram um completo rompimento.

Um anno depois dos acontecimentos narrados n'esta historia, D. Diniz, por effeito talvez de tão continuos desgostos, cahiu perigosamente enfermo e falleceu.

Sobreviveu-lhe a boa rainha D. Izabel, que hoje se venera como santa nos altares do catholicismo.

Talvez que algum esmiuçador de peccados litterarios, ao ir consultar o livro das linhagens do conde D. Pedro, nos acoime de pouco consciencioso por não encontrar o nome de Affonso Fernandes entre os dos fidalgos d'aquelle tempo.

A isto responderemos nós que o nosso primeiro historiador, o sr. Alexandre Herculano, já reduziu ás suas justas proporções a importancia do livro das linhagens, e que o mysterioso manuscripto que trata principalmente d'este caso, e que tivemos occasião de ver n'uma bibliotheca ainda mais mysteriosa, diz muito positiva e terminantemente que Affonso Fernandes, trobador que trobou muy ben, foi o que levou o recado da parte d'el-rei, e que d'el-rei recebeu mercê de cavalleiro.

Pelo tempo adiante, Affonso Fernandes e o meirinho conversando muitas vezes sobre aquelle estupendo caso que se passara com elles pelo tempo da lide de Alvalada, forcejavam por descobrir a maneira como Fernão Froyão soubera das ordens d'el-rei, o que dera logar a que elle fosse mais cedo do que o verdadeiro condemnado saber se essas ordens tinham sido cumpridas e cahisse assim no laço armado para outrem.

De todas as vezes que discutiam este ponto, na impossibilidade de o resolverem, concluiam dizendo que todo fora por secreto designio da Providencia.

Nós, porém, que estamos mais ao facto de como as coisas se passaram, devemp-nos lembrar de que Fernão Fróyão escutou a conversa que el'rei teve com o meirinho no dia anterior á lide.

Foi-lhe fatal a curiosidade; como vimos no dia da lide, ancioso de saber se já tinham sido cumpridas as ordens de seu amo, foi á prisão do Castello saber o que se passara, dizendo que ia da parte d'el-rei. E no Castello, vendo aquelle escudeiro que levava similhante recado, executaram n'elle as ordens que tinham recebido.

A descoberta do pergaminho confirmou os homens da justiça na ideia de que elle era o criminoso que el-rei mandava justiçar.

Quando Affonso Fernandes appareceu, suppozeram muito naturalmente que aquelle segundo mensageiro não ia alli mais do que para satisfazer a curiosidade d'el-rei, que queria saber se effectivamente as suas ordens tinham sido cumpridas.

N'aquelle momento já tinha começado a ser executada a real justiça no primeiro mensageiro que ali apparecera.

De tarde, ao tempo da lide, balouçava um cadaver na forca da cidade; ao reparar n'elle, a villanagem dizia que não era o cadaver d'um peão, mas d'um fidalgo da creação do paço. Como sabemos, a villanagem acertava; o cadaver era de Fernão Froyão.

E foi assim que a Providencia, que no dizer da rainha Santa Izabel, vela sempre pelos bons, salvou da morte ignomiosa o piedoso escudeiro que effectivamente ia da parte d'el-rei.

NOTA FINAL

Na historia da Vida, Morte e Milagres da Rainha Santa Izabel, pelo bispo do Porto, D. Fernando Correia de Lacerda, vem entre outras, contada a seguinte lenda:

Certo pagem consegue convencer el-rei de que um outro pagem, muito estimado da rainha, tem amores com ella. D. Diniz combina com o dono d'um forno de cal, que será lançado dentro do forno o individuo que elle ali mandar com um recado. O pagem, que urdira a entriga, ancioso de saber se o seu camarada já tinha soffrido a morte que el-rei lhe destinara, foi ao forno da cal, e por um equivoco muito facil -- nas lendas principalmente -- é tomado pelo verdadeiro condemnado e arremessado ás chammas, não lhe valendo protestos nem declarações. O supposto criminoso salvou-se, porque chegou depois, em consequencia de ter entrado n'uma igreja e assistido á missa que então se resava.

Como se vê, esta lenda foi que serviu de base ao enredo do romande Da parte d'el-rei.

Entre todas as lendas em que figura a rainha Santa Izabel, não é esta, por certo, a mais poetica, mas lançámos mão d'ella, por ser, segundo nos pareceu, a que melhor se prestava a encadear-se com os successos notaveis do reinado de Diniz que imperfeitamente deixamos esboçados.

Tambem se nota n'esta lenda, devemos confessal-o, um pronunciado sabor fradesco, e o seu inventor, querendo exaltar a Providencia divina, que tão de molde acode aos bons e aos crentes, deprime a virtude da rainha Santa, admittindo a supposição d'el-rei acreditar que a esposa lhe era infiel.

Similhante supposição é absurda, attendendo ao caracter e á idade de D. Izabel, e nós, sentindo a verdadeira repugnancia por esta parte da lenda, apesar de que nos facilitava o effeito romantico, affastámo-nos d'ella quanto pudemos fazendo recahir as suspeitas d'el-rei n'uma donzella do paço.

Apesar de absurda nos accessorios, a lenda dos dois pagens, é verosimil na sua essencia. O facto d'el-rei castigar com a morte os que abusavam nos seus amores, da morada real, é um facto provado. El-rei D. João I, rei de caracter mais cavalheiroso e levantado que D. Diniz, castigou severamente um fidalgo por similhante delicto, como se pode ver pelo admiravel romance -- O MONGE DE CISTER -- a que esse facto serve de assumpto. D. Pedro I praticou, por identico motivo, uma crueldade inaudita em um individuo de sua casa, como se pode ver em Fernão Lopes que narra o caso com uma simplicidade notavel, simplicidade que nós nem de longe queremos imitar, porque nem sempre conveem narrações demasiado simples. El-rei D. Diniz, embora a historia não lhe attribua iguaes proezas, mandou pôr em vigor a lei que já citámos, e que diz: aquelle que jouver com manceba que viver com seu señor que moira porem, ou em linguagem d'agora, aquelle que tiver relações amorosas com mulher solteira que viver em casa do seu senhor que morra por isso.

Pelo que se vê, todos os senhores reis d'aquelle tempo eram inexoraveis com faltas d'esta ordem, porém, o que tambem se observa, é que nenhum d'elles dava o exemplo de ser o primeiro a respeitar a lei.

Damos estas esplicações quanto á parte romantica da composição; quanto á parte historica procurámos ser o mais rigoroso possivel.

No romance -- DA PARTE DA RAINHA -- que se ha de publicar em referencia á mesma epocha, tencionamos empregar igual rigor, e tomar por assumpto factos historicos do mesmo reinado.

A. M. DA CUNHA E SÁ

DA PARTE DA RAINHA

ROMANCE HISTORICO DO SECULO XIV

D. Diniz mandou cartas geraes

a toda las Cidades e Villas do

Reyno em que pubricava por treedores

todos aquelles que acodissem

aho Infantes ou com elle andassem.

E apartou de si ha Rainha e ha

mandou ha Alanquer.

(Ruy de Pina. Chr.)

LISBOA

HORAS ROMANTICAS

Rua dos Calafates, 102

Typ. das Horas Romanticas -- Trav. da Parreirinha (a S. Carlos)

ADVERTENCIA

Sobre as muitas difficuldades que sempre surgem ao intentar-se a exposição dos factos da historia sob a fórma tão popular e attrahente, chamada romance historico, depararam-se-me varias outras quando tratei de idear e traçar a narrativa -- Da parte da rainha. Escripta muitos mezes depois da narrativa -- Da parte d'el-rei -- tive não só de subordinal-a a esta no enredo, de modo que ambas se ligassem o mais natural e logicamente possivel, como tambem de procurar que no estylo e colorido das scenas não houvesse entre ellas muito sensivel desharmonia.

Se consegui ou não este natural e justificado intento, dil-o-hão, os que tiverem lido a narrativa -- Da parte d'el-rei -- e lerem a que sae agora a publico: quanto ás dífficuldades inherentes a este genero d'escriptura, de que acima fallo, direi apenas que me ficou da segunda tentativa, como me ficara da primeira, a convicção de que, toda a vez que seja tomado a serio e considerado como a consciencia litteraria e o bom gosto exigem, o romance historico é um dos labores de litteratura mais difficeis e para os quaes não basta recommendar-se, qualquer pelos dotes, imaginação, mas é necessario ser, na maior parte dos casos, critico, investigador e erudito.

Quem não tiver estes predicados tão valiosos e raros, poderá deitar á circulação volumes formosos que nos prendam e deleitem com as peripecias d'um bem tecido enredo, que nos agitem a alma com o imprevisto e dramatico de bem imaginados episodios, de bem traçadas scenas -- e isto já não é pouco, é muito até -- porém d'ahi a arrancar ao passado os seus mysterios, a apresentar as suas coisas taes como foram, a resuscitar os seus homens e os seus heroes, taes como elles pensaram, taes como elles amaram e creram, é tarefa de que só cabalmente se desempenham os que tiverem, como o auctor do Ivanhoé, o privilegio d'um talento superior, ou, dizendo talvez melhor, d'uma intuição historica acima do commum.

Á falta, portanto, de tão peregrinos dotes, foi agora o meu intento, como o tinha sido da primeira vez, reproduzir na pequena tela de brevissima narrativa alguns factos notaveis do seculo XIV, de modo que a historia não fosse adulterada, e se podessem ler sem esforço, e até com interesse.

Da maneira por que realisei a primeira condição podem avaliar os entendidos em coisas antigas, os lidos em chronicas e pergaminhos; quanto á segunda condição, poderá d'ella ajuizar o leitor mais despreoccupado de antigualhas. D'uns e d'outros estimaria o applauso, se a elle tivesse direito, porque assim como merece elogio quem sabe fazer um livro instructivo e verdadeiro, tambem não deixa de o merecer aquelle que possue a arte de urdir uma narrativa que se leia com interesse e aprazimento.

A. M. da Cunha e Sá

DA PARTE DA RAINHA

I

O valor d'uma rosa

Mas se en desden

O per ventura algum louco ten,

Con gran tormenta o fará morrer.

Pelo meado de 1359 da era de Cesar, quasi tres annos antes d'aquelle memoravel successo da lide que se começou a ferir rios campos d'Alvalada entre as gentes de guerra d'el-rei D. Diniz e as de seu filho o infante D. Affonso, em alvorada promettedora de formoso dia, atravessava o eirado da mais elevada torre da alcaçova de Santarem, um vulto de mulher embuçada em ampla mantilha de seda, posta porém de modo que não só lhe resguardava meio corpo, como graciosamente lhe toucava a cabeça e lhe occultava em parte as feições.

Tornava-se por isso impossivel reconhecer, logo á primeira vista, se era dona ou donzella a que assim deixara o agasalho dos aposentos do alcaçar; comtudo, moça devia por força de ser, porque a mantilha em que vinha cuidadosamente envolvida não lograva, no desartificio das suas pregas e ondulações, disfarçar-lhe a graça e delicadeza do vulto requebrando-se airoso na pressa com que se abeirava da parte do eirado que dizia para o norte, e d'onde se descortinava grande extensão das terras que circumdavam a alcaçova de Santarem.

Ao chegar a que parecia joven ás ameias negras e meio derruidas pela garra do tempo, apoiou n'ellas a mãosinha alva e afilada e percorreu rapidamente com o olhar todo o espaço dominado pela torre; mas esse espaço estava ermo e silencioso: nem um vulto, quer de cavalleiro ou peão, se divisava na maior distancia a que a vista podia alcançar. Por isso, não satisfeita ainda na sua curiosidade, curvou o corpo sobre a ameia e mergulhando o olhar na profundidade, observou com attenção o que ali se passava. Como nos arredores, havia no sopé da torre, e no cerro sobre que ella se erguia, a mesma solidão, e a ponte levadiça, que conduzia á entrada da torre, entrada que ficava d'aquelle lado, permanecia erguida, segura pelas suas grossas e enferrujadas correntes de ferro.

Depois d'este rapido, e ao que bem se via, infructifero exame, a desconhecida ergueu o corpo e tornou a alongar a vista pela extensão que tinha diante de si.

D'esta vez, porém, não tornou a affastar os olhos d'aquelle lado; era d'ahi, por certo, que devia apparecer quem quer que lhe havia de satisfazer a ancia ou a curiosidade, porque depois de estar um pouco de tempo com o corpo erecto, exclamou n'uma voz magoada, n'essa voz que parece vir do coração e que só no proprio coração é destinada a echoar, que não em ouvidos de estranhos:

-- Era hoje que elle devia vir. Meu Deus, ter-lhe-ha succedido alguma funesta aventura!

E acabando de proferir estas palavras sentidas, sem desfitar o espaço, tornou a curvar o corpo, não para examinar, como da vez primeira, a entrada da Alcaçova, mas para se apoiar á ameia, na qual firmou o cotovello esquerdo. Na mão esquerda tambem, encostou suavemente o rosto, em quanto que o braço direito, curvo e apoiado igualmente na ameia, sumia-se por baixo da mantilha e parecia, pela direcção que tomava, ir comprimir ou observar as palpitações d'um coração que tudo faria suppôr, senão apaixonado, pelo menos ancioso.

O viandante que passasse áquella hora proximo do cerro sobre que se erguia a negra mole da alcaçova de Santarem, e olhando para a torre mais alta, visse aquelle vulto formoso e solitario, apoiado na attitude da anciedade e da espectativa ap parapeito meio arruinado da ameia, e illuminado pela claridade incerta do crepusculo, talvez que, transportando-se pela imaginação a remotas eras, suppuzesse ver ali o vulto de moura apaixonada aguardando anciosa o regresso do amante, que ha muito tivesse partido, encorporado n'algum troço de lanças mouriscas do kayd de Chantaryn, em perseguição de chusma guerreira de christãos. Porém quem tal suppozesse teria illusão de breves momentos, porque o melancolico e compassado tanger da sineta christã acabava n'aquelle instante de tocar as trindades matutinas nas proximidades da Alcaçova, prova incontestavel de que Santarem já não era terra de mourisma, nem aquelle busto gentil podia ser de filha de agarenos.

Entretanto se pelos annos de 1359 já ha muito tinham deixado de se ferir encarniçadas pelejas entre mouros e christãos, nem por isso corriam os tempos muito tranquillos. Ia quasi para sete annos que principiara a discordia entre el-rei D. Diniz e seu filho legitimo, e á data em que abre a nossa narrativa essa discordia, em vez de cessar, parecia tornar-se mais accesa. Comtudo, fosse como fosse, apesar dos geraes receios, na madrugada em que estamos não se notava ainda desusado bulicio no recinto da Alcaçova, e os cuidados, por muito graves que os houvesse, parecia que roubavam algumas horas de repouso sómente áquella graciosa creatura que espreitava no alto da torre a chegada d'alguem anciosamente esperado.

E tão alheia ficou no seu posto d'observação a tudo o que se passava em volta d'ella, que não deu pela chegada de mais uma companheira que a imitava na sua vigilia matutina.

Poucos momentos depois da que parecia joven haver firmado o cotovello no muro da torre, assomou á platafórma, rapido mas silencioso, como visão d'além mundo, um vulto similhante ao que primeiro ali chegara.

Era tambem uma figura gentil de mulher. Como a primeira dirigia-se tambem para o lado do norte, e trazia os olhos fitos na mesma direcção; mas, reparando na desconhecida que já ali se achava, estacou a meio caminho da anteia com vivas mostrasde assombro e quasi de susto.

Menos receosa da frescura da manhã, ou por outro qualquer motivo, não tivera o cuidado de se embuçar, e por isso, em vista do seu trajo e do seguro indicio dos seus cabellos soltos, apenas cingidos na fronte por uma faixa estreita de seda negra, conhecia-se logo que era donzella.

Como a joven que a precedera, tinha tambem na estatura e nos movimentos essa gentileza e seducção só proprias da mocidade e da belleza, porém pela opulencia das fórmas que haviam adquirido todo o desenvolvimento compativel com a graça e o encanto feminino, pela finneza e expressão do olhar, pela decisão dos seus movimentos, via-se que a recem-chegada já attingira essa segunda epocha da mocidade, em que muitas vezes a mulher, tendo a consciencia das suas seducções, não põe n'ellas simplesmente a esperança de innocentes affectos, mas sabe, quando quer, transformal-as em armas terriveis do seu amor ou dos seus caprichos.

E ai d'aquelle para cujo coração fossem apontadas essas armas, porque difficil seria não sair mal ferido da lucta, se luctar quizesse contra ellas. Era de irresistivel fascinação a belleza da joven. Cabellos negros, extremamente compridos, ondeados, cujas scintillações lembravam vagamente as scintillações que ha nas espiraes da serpe traiçoeira, estatura alta e flexivel, busto elegante em que apesar do recato do trajo facilmente se adivinhavam opulentissimos thesouros de formosura, olhos rasgados, negros e d'expressão profunda, realçados por bem desenhadas sobrancelhas que deviam ser terriveis, quer as contrahisse o despeito ou as dilatasse o amor, rosto oval, cuja côr mas levemente morena denunciava que o sangue d'aquella mulher devia participar do ardor a um tempo morbido e vivificante do sol das Hespanhas, tal era o conjuncto de irresistiveis encantos que logo á primeira vista se notavam na desconhecida.

Quando mais serena pôde melhor ajuizar da situação, ao rosto que se lhe fizera pallido, assomou-lhe um leve rubor. Não se deixou porém levar dos primeiros impulsos, fossem quaes fosse, porque ficou por algum tempo a observar attentamente o que fazia aquella que inesperadamente ali encontrava.

Afinal, como que estremecendo por effeito de subita idéa, contrahíu as formosas sobrancelhas, e com um olhar terr'ivel dirigiu-se para ella com violencia.

D'esta vez o ruido dos seus passos fez com que a primeira joven voltasse a cabeça, e se endireitasse com sobresalto, dando um pequeno grito.

Á subita pallidez que invadíra as faces d'esta, seguiu-se um vivo rubor, proprio de quem fosse colhida em acção reprehensivel.

Forcejando, mas debalde, por dissimular a sua commoção, exclamou n'uma voz que pretendia ser alegre mas não passava de receosa:

-- Que fazes aqui, Froyla?

-- E tu o que fazes, Ermezenda? redarguiu com um tom levemente ironico a que se chamava Froyla.

Ermezenda, pois que a jovem que primeiro chegara não era outra senão a loura e timida donzella de que já uma vez esboçámos o retrato em outra narrativa, baixou os olhos cheia de confusão ao ouvir aquella pergunta, cuja entoação levemente ironica não lhe passara desapercebida.

Porém Froyla, recuperando completamente o sangue frio e como que adivinhando toda a verdade em vista da confusão de Ermezenda, fez violento esforço, e dando á voz a entoação naturalmente meiga e melodiosa, e ao rosto a expressão serena e fascinadora que lhe era habitual, redarguiu:

-- Não tens confiança em mim, Ermezenda? fazes mal; comprehendo e adivinho tudo. Arreceias-te da minha presença, e bem vejo que até chegas a interpretal-a d'um modo funesto ao teu coração. Que louca suspeita! Nada tem de extraordinario o meu subito apparecimento. Como sabes, a senhora rainha foi hoje, antes do romper do dia, segundo muitas vezes costuma, assistir ás rezas da sua capella. Acompanhava-a eu, Joanna Peres e Estevainha Martins. Antes porém de franquearmos a porta da capella, a rainha voltou-se para mim e disse-me: -- Froyla, como és mais moça, e por isso não te deves arrecear tanto do ar da manhã, vae ao ponto mais alto da Alcaçova e vê se chega aquelle mensageiro que foi de mandado d'el-rei saber novas do senhor infante meu filho. Tão depressa o avistes corre a avisar-me. Praza ao céo que elle chegue ainda esta manhã e traga o desmentido dos ruins boatos que ha dias correm na alcaçova. -- Em obediencia á ordem da rainha entendi que o ponto mais alto da alcaçova era este e aqui estou de vigia, como qualquer fronteiro na sua torre de menagem. Mas, ao que parece, o mensageiro d'el-rei, que deve estar hoje de volta, ainda não deu mostra de sua pessoa.

-- Não, por certo, redarguiu Ermezenda, porque eu que me postei aqui mais cedo do que tu, não o vi chegar.

E a joven, esquecendo por um momento os seus receios, e pondo de parte crueis suspeitas, olhou na direcção em que o mensageiro devia vir.

Porém no horizonte não se divisava o vulto anciosamente esperado.

-- Agora, disse Froyla, tomando novamente a palavra, já que te aclarei o mysterio da minha presença aqui, é de razão que me faças igual confidencia.

Ermezenda deu mostras de hesitação e respondeu apenas:

-- Não disseste que tinhas adivinhado?

Froyla sorriu por modo natural e encantador.

-- Adivinhei, sim, disse ella, apesar de não possuir as más artes de bruxa ou feiticeira. E quem não ha de adivinhar, considerando que és muito moça e formosa e que d'um momento para o outro se espera um cavalleiro moço tambem, valente e bello, e que do alto d'esta torre se pode mais facilmente do que qualquer outro ponto vêl-o chegar?

Ermezenda não respondeu, porém Froyla, procurando dar á voz ainda mais suavidade e ternira, prosseguiu:

-- Não possuo, Deus louvado, como te disse, artes de bruxa ou feiticeira, mas á fé que não imaginas, Ermezenda, quanto me é facil comprehender pelo rosto o que se passa no coração, mui principalmente quando, como em ti está succedendo, os sentimentos do coração, a despeito de inuteis esforços se revelam na transparencia do semblante e do olhar.

D'esta vez a joven teve uma especie de sobresalto, e fitou com inquietação o rosto da companheira. Porém n'aquelle rosto expressivo e fascinador não se notavam outros indicios que não fossem os da sinceridade e do affecto.

Illudida por taes mostras, Ermezenda não pôde resistir a um impulso expansivo do seu coração, pouco affeito ao fingimento e á perfidia.

Colhendo com affectuoso arrebatamento as mãos de Froyla, deixou deslisar dos labios as seguintes palavras rapidas e desordenadas, como desordenados são os pensamentos das almas a quem a paixão desvaira e exalta:

-- Adivinhastes, Froyla. Para que te hei de enganar? E depois que necessidade tinhas tu de me fazer traição? A rainha não sabe que eu vim aqui, e ai de mim se ella o soubesse! Em quanto vós a acompanhaveis nas orações da manhã, saí eu do meu aposento, e tremula de medo e de commoção, subi até aqui para o ver chegar. É hoje que elle deve vir, segundo a conta que deitam na côrte, salvo se lhe succedeu alguma aventura funesta. Oh! mas Deus tal não ha de permittir, porque elle é bom cavalleiro, bom christão, e fiel ao serviço d'el-rei n'um tempo em que tantos o atraiçoam.

Ermezenda não pôde continuar, porque Froyla, que a este tempo já difficilmente dissimulava no gesto as commoções violentas que lhe iam na alma, interrompeu-a com uma voz cujo timbre de seu natural suave e melodioso soffrera bem perceptivel alteração.

-- Segundo dizes, amas loucamente o escudeiro Affonso Fernandes?

Ermezenda, ao vibrar-lhe nos ouvidos aquella voz, entoada tão pouco naturalmente, reparou com mais attenção no rosto da sua companheira.

A expressão que n'este rosto vagamente se debuxava fez-lhe largar as mãos que affectuosamente segurava entre as suas e recuou um passo.

-- Porque me perguntas de similhante modo se eu amo aquelle escudeiro que foi saber novas do senhor D. Affonso?

Froyla não, respondeu logo. Fitando demoradamente Ermezenda foi, durante este espaço, deixando assomar ao rosto todo o resentimento e todo o ciume que lhe trasbordavam da alma.

Ermezenda adivinhou toda a verdade: n'aquella que até ali contara como amiga, e a que ha pouco tomara por confidente, tinha uma rival terrivel.

Finalmente Froyla, fulminando-a com um olhar de desdem, respondeu em tom de profunda ironia:

-- Pergunto, porque me compete perguntar. Quem te deu direito áquelle coração? Que louca presumpção te inspirou a esperança de seres amada por Affonso?

A primeira impressão de Ermezenda ao ouvir estas palavras proferidas com tanta firmeza por uma rival, que tão de subito lhe apparecera, foi, pode bem dizer-se, uma impressão de receio e quasi de vago desespero. D'um relance pareceu-lhe ver desabar um throno d'esperanças deslumbrantes, cujos degráos ella contara subir um a um, cingida pela aureola d'um bem fadado amor. Porém passado o primeiro abalo, escutando a voz do coração que lhe bradava animo, refez-se um poco do choque, encarou mais friamente a sua situação e resolveu avalial-a sob o ponto de vista do seu amor e das suas esperanças possiveis.

Por isso com voz, senão completamente isenta de receio, pelo menos despida de terror, redarguiu:

-- Que direito tenho, perguntas-me tu? O direito que toda a mulher tem de amar e de ser amada. Fallas-me em presumpção louca! Não estás tambem, pelo que vejo e adivinho, no caso de mereceres essa accusação? Porque não hão de ser mais loucas as tuas do que as minhas esperanças?

Ao proferir estas palavras, o rosto ingenuo e timido da joven tomara uma expressão grave e resoluta de que Froyla chegou mesmo a assombrar-se.

Comtudo esta, conservando o seu aspecto desdenhoso e a sua voz ironica, retorquiu-lhe:

-- Olha; em todas as esperanças ha sempre uma parte de loucura, porém se fossemos a comparar a origem das tuas e das minhas esperanças, não poria duvida em vaticinar que as minhas levam de vencida as tuas na segurança dos seus fundamentos.

Filho da certeza ou presumpção, era tal o tom de convicção de Froyla que Ermezenda fez-se pallida.

Comtudo respondeu com voz hesitante:

-- Façamos pois a comparação.

-- Para que? redarguiu Froyla. Acho inutil, e o futuro dará o desengano ás tuas pretenções. E depois, accrescentou uma pungente zombaria, não sou facil em fazer confissões em torres elevadas ao ar livre da madrugada.

Ermezenda fez-se ainda mais pallida e foi-lhe necessario empregar grande esforço para que uma lagrima de despeito e de magoa não lhe assomasse aos olhos.

-- Mas fallando reflectidamente, volveu Froyla com ar de gravidade, tencionas ainda esperar pelo teu cavalleiro?

-- Porque não? tornou Ermezenda com um ar de firmeza que espantou Froyla. Só ou acompanhada, que me importa?

Froyla mordeu os labios.

-- É porque, redarguiu ella com ironia, talvez Affonso Fernandes não goste de que estranhos saibam do nosso amor.

Ermezenda soltou uma risada contrafeita.

Froyla proseguiu:

-- E demais, queria fazer-lhe uma offerta.

E levando a mão a um cinto de seda que trazia sobre a saia de panno de arraiz de formosos lavorões, tirou d'elle um ramo de rosas.

-- Olha, disse ella; desisto de ser avara dos meus segredos. Tinha colhido estas rosas sob pretexto de as offertar hoje á Virgem na capella da rainha. Deus e a Virgem santa me perdoem, porque o pretexto foi falso. Não depuz as rosas em altar nenhum, e trago-as aqui para as lançar aos pés do cavallo em que Affonso vier. Admiras-te da idéa? Não te admires; estas rosas são uma allusão que Affonso bem deve comprehender. Verás como elle as apanha com soffreguidão. Compõe-se o ramo de rosas brancas e vermelhas. As vermelhas representam o ardor da minha paixão, as brancas a sinceridade e pureza do meu affecto. Mas como elle se demora, meu Deus!

E dizendo isto tornou a olhar anciosamente para o horizonte. Mas n'este momento soltaram ambas um grito. Ao longe avistava-se o vulto d'um cavalleiro.

-- É elle de certo, disseram ao mesmo tempo.

O cavalleiro, quem quer que fosse, em razão talvez do cansaço do cavallo, ou por qualquer outro motivo, vinha devagar.

Ambas se pozeram a observar aquelle vulto com o coração palpitante. Froyla estava radiosa; Ermezenda estava pelo contrario pallida e abatida: parecia que as esperanças lhe haviam fugido, acossadas pelas palavras desdenhosas da sua rival. Houve um momento em que lançou um olhar de inceja oara as flores que ella segurava nas mãos. Aquelles emblemas da virgindade e do amor haviam de saudar o cavalleiro que se approximava, em quanto que ella, Ermezenda, nada tinha que lhe offertar. Porém de repente o olhar illuminou-se-lhe. Do ramo de Froyla caira uma rosa branca, pequena, quasi em botão. Se a rosa branca é emblema de virgindade, aquella tão pequena e singela parecia tambem emblema de modestia e timidez. Deu-se por isso pressa em apanhal-a e disse para Froyla:

-- Olha, tambem tenho uma flor que atirar. Não receies do mal que esta pobresinha te possa fazer. Não ha de ser nenhum esse mal, porque ao pé do teu ramo formoso e opulento passará desappercebido ao olhar de Affonso.

Froyla sorriu-se com malicia.

-- Já vaes procurando uma desculpa para o mau successo da tua saudação. Mas não quero, accrescentou com um ar de orgulho, não quero que te valha o pretexto. Atiras uma rosa branca, tambem eu atirarei apenas uma rosa vermelha.

E dizendo isto escolheu do ramo a rosa vermelha maior e mais formosa que n'élle havia.

Entretanto a cavalleiro approximara-se, e como divisasse os vultos que o aguardavam da torre da alcaçova, esporeou o cavallo, que principiou a devorar o espaço em rapida carreira.

Dentro de pouco tempo achou-se no sopé do cerro sobre que estava edificada a alcaçova, e as donzellas poderam certificar-se de que effectivamente era chegado Affonso Fernandes.

Montava garbosamente um possante cavallo mursello, o qual vinha coberto de suor e poeira.

O sol que já apparecera no horizonte, scintillava-lhe nas calças de fina malha e no elmo polido, de fórma conica, terminando quasi em bico, e que se chamava bacinete. Ao lado esquerdo pendia-lhe a espada d'armas larga e curta, mettida em bainha de couro com ponteira d'aço, e do lado direito a adaga ou punhal. Até á cintura descia-lhe uma sobreveste de seda chamada cota d'armas.

Além d'isto via-se-lhe a tiracollo uma escarcella ou bolsa de couro lavrado. Por baixo do elmo desciam-lhe, espalhando-se-lhe pelos hombros, bastos e longos cabellos castanho-escuros.

Quando chegou ao pé do cerro olhou para a torre e fez uma saudação. Mantendo o possante corcel na mesma carreira, bem depressa galgou o cerro e se achou á beira da cava ou fosso, em frente da ponte levadiça.

Aqui tornou a erguer os olhos, e porque d'aquella distancia reconheceu talvez feições que lhe fossem gratas, descerrou os labios n'um sorriso d'expressão ineffavel.

A este tempo Froyla, que o contemplava do alto da torre, atirou-lhe com a rosa que segurava entre os dedos. Ermezenda, vendo isto, imitou-a. Ambas as flores, descrevendo varios giros, tomaram direcção differente.

A flor vermelha veio cair pouco distante do cavalleiro; a rosa branca teve peor sorte porque, ou por capricho da aragem, ou por fraqueza do impulso que a arremessara, não se affastou muito da perpendicular e foi cair nas aguas turvas que enchiam a cava ou fosso que circumdava a alcaçova.

Comprehendo facilmente a intenção com que lhe eram enviados aquelles delicados symbolos do amor e da belleza, o cavalleiro apeou-se ligeira e apressadamente para os colher.

Quando Ermezenda viu que a sua flor ia perder-se irremediavelmente nas aguas que a arrastavam e que o escudeiro se dirigia para a rosa de Froyla que jazia pouco longe, soltou um grito como de quem vê desvanecer-se a ultima esperança, e levou machinalmente as mãos aos olhos.

Estaria assim muito tempo para não ver a victoria da sua rival, quando um grito d'esta a levou a observar o que se passava.

Fora um grito de despeito e angustia o grito de Froyla, porém mais plenamente justificado que o de Ermezenda.

A rosa vermelha ainda jazia no mesmo sitio, mas o escudeiro, valendo-se do desmoronamento que havia em certo sitio da barbacã, ou muro exterior, agarrara-se firmemente a uma saliencia e debruçando-se sobre a cava apanhava, com perigo de queda desastrosa, a rosa que dentro d'ella boiava.

Depois ergueu-se, olhou com o gesto ledo para a torre, levando ao mesmo tempo a flor aos labios, e dirigiu-se par ao seu corcel, que apesar de livre, não se affastara.

N'este instante, rangendo nos seus gonzos de ferro, descia a pesada ponte levadiça e franqueava a entrada da alcaçova.

Lançando a mão ás redeas do seu corcel, o escudeiro desapparecia d'ali a pouco pela porta ogival do antigo castelo de Santarem.

Após elle entraram mais dois homens d'armas que o tinham acompanhado na jornada e aos quaes ganhara grande dianteira.

Quando a ponte levadiça se tornou a erguer, já Ermezenda tinha tambem desapparecido do eirado e se dirigia alegre e pressurosa para o seu aposento.

Froyla estava ainda no mesmo logar; tinha porém o gesto formoso transtornado pela contracção violenta das suas feições delicadas, e contemplava com um olhar scintillante de despeito a rosa que ella atirara e em que se viam signaes de ter sido calcada. E por quem, pelos pés do ingrato escudeiro ou pelas patas ferradas do cavallo? Nem ella o sabia; só sabia que aquillo significava o desprezo e o espesinhamento do seu orgulho e do seu amor.

D'ali a pouco tomava vagarosamente o caminho dos aposentos do alcaçar, mas ia dizendo comsigo:

-- Atraiçoaste-me. Pois bem, traição por traição. Em poucos dias verás talvez que, se a rainha minha senhora tem o condão de transformar as rosas em ouro, eu tenho o de transformal-as na infamia e talvez na morte.

Quando Froyla descia da torre já no alcaçar havia grande bulicio.

Eram chegadas novas do infante e ruins novas deviam ser se se confirmassem as apprehensões que os passados successos muito naturalmente geravam.

II

As novas do infante

A rainha em cada hum dia saia-se

á Capella que ella consigo

tragia mui rica e mui ben

apostada.

(Lenda de Santa Isabel)

Que successos eram estes que só podiam dar motivo a apprehensões pouco tranquillisadoras? Eis o que vamos explicar em breves palavras para que melhor se possa comprehender, no seu seguimento, a narrativa que principiámos a esboçar.

Como já dissemos no capitulo anterior, começara havia sete annos, a discordia entre el-rei e o infante herdeiro D. Affonso. Fora o seu motivo principal, segundo se infere das relações do tempo, o ciume com que o infante via a predilecção d'el-rei pelo bastardo D.Affonso Sanches e a exiguidade dos rendimentos concedidos ao herdeiro do reino para sustentação da sua casa. Porém, graças á intervenção do Papa, os animos serenaram um pouco, e só dois annos depois o infante, renovando os mesmos pretextos, saiu abertamente a campo, e ajudado pelos fidalgos que lhe eram affeiçoados e por uma hoste, que segundo o dizer dos chronistas, não passava de bando desprezivel de malfeitores, começou a devastar os campos de Entre Douro e Minho.

Vendo que não lhe restava agora outro recurso senão a força das armas, D. Diniz resolveu-se a lançar mão d'esse meio violento e começou por enviar cartas a todos os representantes do poder real nas cidades e villas do reino, em que declarava traidores os que de qualquer modo prestassem auxilio ao infante, e por conseguinte incursos nas penas severas que a taes delictos se impunham.

Entretanto D. Affonso, mau grado as disposições severas em que el-rei parecia estar continuou a hastear a signa da revolta, e apoderou-se de Leiria.

O facto de pertencer esta villa á rainha, e a facilidade com que o infante ali entrou fez suspeitar que D. Isabel fosse connivente no feito ou d'alhum modo favorecesse a rebellião do filho.

Acudiu logo el-rei a retomar Leiria, porém D.Affonso, sabendo da approximação de D. Diniz, volveu sobre Santarem, em cuja alcaçova entrou. Então el-rei contramarchou igualmente para Santarem, mas D. Affonso, como fizera em Leiria, do mesmo modo se retirou ao saber da approximação da hoste real.

Como estas houve mais algumas contramarchas, e em todas ellas os dois contendores pareciam evitar uma lide decisiva, até que afinal, não muito longe de Lisboa, n'uma aldeia chamada das Alvogas, proximo de Bemfica, as duas hostes se viram em frente uma da outra. Porém ainda d'esta vez os dois contendores, talvez horrorisados de tão tremenda situação, não vieram ás mãos. Segundo se diz, D. Isabel, que seguia a hoste d'el-rei, teve no Lumiar uma entrevista com o infante.

O que se passou entre a mãe e o filho não se pôde averiguar; mas a verdade é que depois d'este encontro D. Affonso partiu para o norte nas mesmas disposições revoltosas em que até então estivera, e as suspeitas de ser a rainha inclinada á parcialidade do infante mais uma vez despertaram no animo d'el-rei dos do seu partido.

Começa a nossa singela narrativa em epocha posterior a estes factos, e por ella saberemos que fundamentos tinham as suspeitas contra a rainha, ás quaes a tradicção e a historia se referem.

Que intentos levaria o infante e o que fizera no seu caminho para as terras do norte, é o que o mensageiro d'el-rei fôra averiguar, e do que elle houver colhido poderão tambem aproveitar os leitores que tiverem a curiosidade de saber que outros acontecimentos se seguiram aos que vimos de mencionar.

Vagarosamente se dirigia Froyla para a capella da rainha, toda absorta nas suas idéas de despeito e de vingança, e quasi esquecida totalmente da missão que sua senhora lhe incumbira. Por isso, em consequencia de tamanha lentidão, quando ali chegou já as rezas eram acabadas, e só encontrou mestre Gonçalo, capellão da rainha, que se despia das suas vestes sacerdotaes.

Quando isto viu, foi então que Froyla se lembrou verdadeiramente da missão que lhe tinha sido confiada, e dirigindo apenas uma pequena mas respeitosa saudação a mestre Gonçalo, dispoz-se a tomar precipitadamente o caminho dos aposentos de sua real senhoria.

Porém o veneravel capellão, que estava ao corrente dos successos, vendo a pressa com que Froyla partia d'ali, e suspeitando que alguma nova recente se dava na alcaçova, bradou-lhe com voz alvoroçada:

-- Minha senhora D. Froyla, onde ides n'essa pressa? acaso está ahi perto o senhor infante, ou é chegado aquelle escudeiro que foi saber onde elle jazia com a sua hoste?

Mas Froyla, que queria recuperar o tempo perdido, retorquiu-lhe precipitadamente, parando por um momento no meio do corredor que da capella levava aos aposentos das donas e donzellas.

-- É chegado o escudeiro Affonso Fernandes, reverendo padre, e vou já prevenir do caso a minha senhora rainha, segundo me foi recommendado.

-- Ide, ide, senhora, volveu quasi voz em grita o reverendo capellão, que eu tambem breve estarei no aposento de sua senhoria para saber o que é passado.

Estas ultimas palavras já não as pôde ouvir a donzella, porque a esse tempo havia desapparecido ao fundo do corredor, tamanha era a diligencia que ella agora punha no cumprimento das ordens que recebera.

O reverendo capellão, tomando muito interesse, como era natural, nos successos da côrte, que tão alvorotada andava, acabou de despir a toda a pressa as vestes com que assistira aos officios da manhã, e ficando simplesmente com a sua garnacha de panno preto, tomou d'um aparador proximo um gorro tambem preto, e cobrindo com elle a cabeça mal povoada de cabellos, e esses meninos já grisalhos, dirigiu-se tambem apressado para o corredor por onde havia pouco desapparecera a donzella da rainha.

Mestre Gonçalo, homem de aspecto grave e já bastante entrado em annos, e cujo rosto pallido e um tanto cavado, respirava auctoridade, benevolencia e bom conselho, tomou pelo corredor fóra, e bem depressa se achou n'um aposento lageado, que recebia luz por duas frestas gradeadas que deitavam, segundo parecia, para o campo.

Apesar da pressa que levava, ia mestre Gonçalo táo absorto e cabisbaixo, que ao desembocar no aposento de que fallámos, não reparou n'um outro personagem que ao mesmo tempo assomava a uma outra porta, coberta por um reposteiro, e que ficava do lado direito da que ia ter á capella.

Saindo do corredor, mestre Gonçalo inclinara-se para a esquerda e ia a pôr o pé no primeiro degrau d'uma escada que conduzia a um aposento superior, quando foi detido pela voz sonora e varonil do que apparecera ao reposteiro.

-- Guarde-vos Deus, mestre Gonçalo, exclamou o segundo personagem.

Ao ouvir esta voz, que lhe era de certo conhecida, o reverendo estacou e voltou-se para quem lhe fallava.

Mostrando todo o ar de satisfação que podia assentar no seu rosto grave e auctorisado, o reverendo padre redarguiu:

-- Deus vos guarde, senhor Gonçalo Peres. Tão de manhã já por aqui! Claro se vê que andam nos ares rumores de gravidade para assim estarem já todos tão alvoroçados!

O personagem a quem mestre Gonçalo se dirigia era homem na força da idade e em cujo rosto se observava a par do sobrecenho de cavalleiro a suavidade do homem affeito ao tracto da côrte. Trajava gibão de fino panno escuro golpeado de seda de côr mais viva; emmolduravam-lhe o rosto uma barba espessa e negra e cabellos da mesma côr, que lhe deslisavam longos e abundantes sobre os hombros, segundo a moda da idade media.

Pelo que ouvimos ao capellão da rainha, tinha elle o nome de Gonçalo Peres, e não era outro senão Gonçalo Peres Ribeiro, rico homem e cavalleiro d'el-rei, alcaide dos castellos de Montemór-o-Velho e Gaia, e que exerceu na casa da rainha o alto emprego ou dignidade de mordomo.

Ás palavras do capellão respondeu logo Gonçalo Peres:

-- Não me parece, salvo vosso respeito, bem fundado tal reparo. Como bem sabeis, tenho andado nas lides d'el-rei com o senhor infante, e na guerra contrahe-se o habito de dormir pouco, ou melhor dizendo, de não dormir nada. Devieis pois achar natural que eu madrugasse. Quanto á segunda parte da vossa exclamação, não podia ella ser mais justa. O escudeiro que hontem se esperava, ahi é chegado. As novas que me dizeis andarem no ar é elle quem as traz.

-- E que novas são? atalhou com anciedade mestre Gonçalo.

-- Nada sei ao certo por em quanto, meu padre.

-- Pois ainda não fallastes com elle?

-- Fallei, mas que quereis? entendi que não me devia deter com perguntas. Julguei mais conveniente ao serviço da minha senhora, ir já prevenil-a da chegada do escudeiro.

-- Mas onde está elle? perguntou mestre Gonçalo com ar de admiração.

-- Não deve tardar a apparecer. Sentindo ruido da ponte levadiça que descia, tive uma suspeita e corri a saber o que era. Encontrei á entrada da Alcaçova Affonso Fernandes que se apeava. -- Senhor cavalleiro, me disse elle, estimo encontrar-vos. Na vossa qualidade de privado da rainha, ninguem melhor do que vós pode prevenil-a da minha chegada. N'um instante serei comvosco. -- Não quiz ouvir mais nada; dirigi-me logo para aqui. E vós, senhor padre, -- perdoae a pergunta, -- que ieis fazer aos aposentos da rainha, porque, segundo me parece, não é outra a direcção que levaes?

-- Tambem me chegou a mim a noticia da vinda do mensageiro, e vou ver se consigo saber o que elle traz de novo.

-- N'esse caso iremos juntos, redarguiu. Gonçalo Peres Ribeiro.

E ditas estas palavras o capellão, acompanhado do cavalleiro, começou a subir a escada de pedra que ia ter aos aposentos da rainha e das suas donas e donzellas.

Chegando ao cimo, Peres Ribeiro dirigiu-se para uma porta em arco, de castanho lavrado, e empurrando-a, entrou, seguido do capellão, n'um aposento que recebia luz por uma janella tambem em arco, estreita, profunda e gradeada, e que dava seus ares de setteira.

Ao ruido que a porta fez no momento de se abrir, assomou a uma outra porta interior o vulto d'uma mulher já avançada em annos, e que trazia na mão um pellote, um saio de seda e mais alguns objectos de uso feminino n'aquella epoca.

Mal a viu Gonçalo Peres exclamou:

-- Deus vos salve, senhora Joanna Peres; já que me apparecestes, ide dizer á senhora rainha que estamos na antecamara e que lhe queremos fallar a respeito do senhor infante.

-- Ah! exclamou Joanna Peres, covilheira da rainha, bem sabemos que já chegou o senhor Affonso Fernandes. A senhora rainha quer-lhe fallar quando antes. Onde está elle?

-- Está aqui, respondeu uma voz do lado da porta por onde haviam entrado o mordomo e o capellão.

Estes voltaram-se e viram que a pessoa que tinha respondido era o proprio escudeiro, que n'aquelle momento acabava tambem de chegar.

Affonso Fernandes despira as armas e vestira um trajo mais leve e adequado ao trato da côrte.

-- Bem, disse Joanna Peres, podei entrar; a rainha disse que vos levasse a sua presença assim que vos apresentasseis. Vós, senhor cavalleiro e senhor capellão, podeis tambem vir porque a rainha deseja igualmente a vossa presença.

E dizendo isto Joanna Peres poz os objectos que tinha na mão em cima d'um estrado e dirigiu-se, seguida dos tres personagens, para a porta por onde apparecera.

Ao transporem-n'a acharam-se em presença da rainha. Acompanhavam-n'a Froyla, varias outras damas do seu serviço, e um personagem de aspecto grave, trajado modestamente, e de olhar intelligente e vivo. Este personagem era Affonso Martins, aquelle tempo thesoureiro da rainha.

D. Isabel estava sentada n'uma cadeira d'espaldar e docel, e escutava com attenção D. Froyla, que em pé diante d'ella, lhe participava de certo a chegada do escudeiro. Emmoldurava-lhe a fronte uma especie de toucado de linho, cuja alvura extrema não conseguia offuscar a do seu rosto ainda formoso, apesar de já cavado, não só pela idade e pelo cansaço e mortificação dos continuados jejuns e incessantes praticas religiosas a que era muito dada, como talvez mais pelos passados desgostos que el-rei lhe causara na sua qualidade de esposo, e principalmente agora pelo profundo pezar de ver a criminosa lucta em que andavam os entes que mais devia amar e estremecer.

Do outro lado da rainha, quasi a seus pés, sentada n'um estrado, estava D. Marqueza Rodrigues, antiga dama do seu serviço.

Quando viu entrar Joanna Peres, seguida dos tres personagens que já conhecemos, e que lhe fizeram respectiva venia, a rainha dirigiu logo com alvoroço a palavra ao escudeiro.

-- Bem vindo sejaes, dom escudeiro. Que nova nos trazeis? São boas ou, segundo o costume, ruins?

-- Senhora, respondeu Affonso Fernandes, com bastante pezar vos digo, são ruins, como é costume nos tempos que vão correndo. O senhor infante, no seu caminho para o norte, dirigiu-se logo sobre Thomar...

-- E acaso entrou ahi? atalhou a rainha com vivo interesse.

-- Não, senhora, respondeu o escudeiro. Encontrou em Thomar tão dura e inesperada resistencia que teve de desistir do intento. Para desforço de tão contrario successo, destruiu e devastou os arredores com sanha inaudita.

A rainha, que se fizera pallida em extremo, deu um suspiro.

O escudeiro proseguiu:

-- Feito isto, o senhor infante abalou de Thomar e continuou a jornada para Coimbra. Segundo as informações que pude colher, vae de animo feito a entrar em Coimbra pela força e a ficar senhor da cidade.

Todos os circumstantes fizeram um movimento de assombro.

Affonso Fernandes continuou:

-- Depois de tomar Coimbra, dizem ser o intento do senhor D. Affonso tomar igualmente todos os castellos da provincia de Entre Douro e Minho que não lhe quizerem render preito e menagem.

A rainha, que escutava attentamente o que dizia o escudeiro, exclamou após um momento de meditação:

-- Pois de nada teem aproveitado n'esta lucta as lições do passado? Será possivel que já saisse da lembrança do infante aquelle horroroso momento em que se viu em frente d'el-rei, não muito longe de Lisboa?

-- Assim parece, senhora, redarguiu respeitosamente o escudeiro. Das assolações que vi nos arredores de Thomar, deprehende-se que a sanha do senhor infante redobrou.

-- E o mesmo fará em Coimbra, em Guimarães, em Montemór-o-Velho, e em todos os logares de Entre Douro e Minho que approuver ao infante investir, volveu a rainha. Que vos parece, senhores?

-- Sou do vosso parecer, senhora, respondeu o capellão, porque é de esperar que em todos esses logares o senhor infante encontre dura resistencia. Ahi tendes, por exemplo, Guimarães que é castello bem forte.

-- E isso que importa, mestre Gonçalo? Tambem Leiria, tambem Santarem era castellos muito fortes, e vae para um anno cairam em poder do infante.

-- Porque lhes faltava a verdadeira força, a qual consiste na fidelidade de dez alcaides, exclamou Affonso Martins, thesoureiro, que até ali se conservara calado, e bem sabeis, senhora, que Affonso Domingues, o alcaide de Leiria, foi traidor a el-rei. Entretanto não me permitte o meu mester fallar com acerto em coisas de guerra; mas ahi tendes o senhor Gonçalo Peres Ribeiro que, na sua qualidade de cavalleiro, pode fallar mais auctorisadamente n'esta materia.

Gonçalo Peres Ribeiro, vendo que a rainha se voltava para elle, tomou a palavra.

-- Sou inteiramente do parecer do senhor Affonso Martins; e demais conheço muito de perto Mem Rodrigues de Vasconcellos, alcaide de Guimarães; é bom e leal cavalleiro, e estou que ahi, pelo menos, ha de o infante encontrar dura resistencia. Entretanto para todos estes damnos e todos estes temores havia efficaz remedio, se el-rei o quizesse empregar.

-- Bem sei de que remedio quereis fallar, senhor Gonçalo Peres porém vós discursaes como cavalleiro, e el-rei deve proceder como pae.

-- Porém, senhora, el-rei não ha de querer de certo que chegue um dia em que o senhor infante lhe tire a corôa da cabeça. Sua senhoria é justo e severo, e ha de alguma vez perder essa natural hesitação e pôr termo a estas discordias, custe o que custar. Talvez, segundo o caminho que as coisas vão levando, essa occasião seja chegada. E eu, senhora, se vós não ordenardes o contrario, partirei hoje mesmo para Lisboa, porque não devo estar aqui ocioso, como qualquer matrona enregelada pelos annos ao canto da lareira, em quanto el-rei se prepara para a guerra, porque estou certo que sua senhoria ha de em breve tornar a sair a campo contra o infante. Levarei á alcaçova de Lisboa estas novas funestas. Não buscarei de modo nenhum induzir el-rei á continuação d'esta triste guerra, mas, fallando como leal vassallo cavalleiro, prestarei todo o auxilio do meu braço a el-rei, se sua senhoria, como é de crer, novamente quizer pôr cobro aos desmandos e maus feitos do senhor infante.

A rainha não contradisse as palavras do mordomo, mas ficou largo espaço absorta em profunda meditação.

Afinal exclamou:

-- Não serei eu quem vos impeça no cumprimento d'isso que reputaes vosso dever. Se entendeis que hoje mesmo deveis partir para a alcaçova de Lisboa, fazei-o muito embora. Entretanto não me parece ser isso em extremo necessario, porque se el-rei sair mais uma vez, como infelizmente é de crer, ao encontro do senhor infante, deverá passar, por Santarem, e então facilmente podereis encorporar-vos na hoste real. Quanto ás novas recebidas, poderá levar-lh'as o thesoureiro-mór D. Judas, que ainda ahi está Santarem e que amanhã ou depois deverá partir para Lisboa. Demais, senhor Gonçalo Peres, careço muito de vós na presente conjunctura.

Gonçalo Peres Ribeiro fez uma venia, que ao mesmo tempo signficava agradecimento pelas palavras lisongeiras que a rainha acabava de lhe dirigir, e conformação com os desejos que ella manifestara quanto á sua permanencia na alcaçova de Santarem.

A rainha proseguiu:

-- Quanto a vós, senhor Affonso Fernandes, em nome d'el-rei vos dou os emboras pela diligencia e zelo com que desempenhastes a missão de que vos encarregaram, e ide descansar, porque bem cedo tereis de emprehender nova jornada em meu serviço. Vós, senhor capellão, e vós, Affonso Martins, voltae esta noite ao meu aposento porque hei mister do vosso auxilio para uma carta que tenho de escrever ao senhor infante, a qual não ha de ser por certo, como deveis saber, em desserviço de Deus nem do infante.

O capellão deu mostras de ficar satisfeito com as palavras da rainha, e fez um gesto apenas perceptivel a Affonso Martins, thesoureiro.

A um signal de D. Isabel todos os personagens fizeram uma venia e retiraram-se.

Passados momentos n'um dos corredores da alcaçova ouvia-se um sussurro de duas vozes differentes. Uma era a de Affonso Fernandes, outra a da loura joven que vimos na platafórma da torre.

A joven dizia:

-- Oh! não imaginas, Affonso, como receei que apanhasses a rosa de Froyla.

-- És injusta, Ermezenda, redarguiu Affonso em tom de branda reprehensão. Porque havias de suppôr isso?

-- Oh! Froyla disse-me coisas tão terriveis.

-- Froyla é uma louca, replicou o escudeiro com um ar grave e serio. Deixemos porém coisas frivolas: fallemos de nós. Sabes, Ermezenda, que brevemente torno a partir.

-- Que dizes? perguntou a joven fazendo-se pallida.

-- A verdade, a triste verdade. Parto com um recado da rainha.

-- E estarás muito tempo ausente? perguntou Ermezenda com anciedade.

-- Não sei ao certo. Parece-me que vou da parte da rainha levar uma carta ao infante e, segundo me deu a suspeitar Affonso Martins, alguns dinheiros.

-- Oh! não sei o que me adivinha o coração. Se não voltasses! redarguiu a donzella com um gesto de terror.

-- Se não voltasse! Que estás dizendo, Ermezenda? Se nem sequer vou entrar em lide, que perigo posso correr que me impeça de voltar?

Ermezenda não respondeu; porém em vez d'ella respondeu outra voz que soou com ironia pungente do extremo do corredor:

-- Porque é que Affonso Fernandes não ha de voltar quando vae em serviço de Deus e do infante?

Ermezenda sentiu uma especie de calefrio, ao ouvir o tom em que estas palavras eram proferidas.

No mesmo instante avançou no corredor um vulto magestoso e seductor.

Era o vulto de Froyla.

Passando por pé dos dois namorados accrescentou, fazendo uma graciosa mesura:

-- Cuidado, Ermezenda, lembrae-vos que a rainha é severa e vigilante. E vós, senhor Affonso Fernandes, sêde bem succedido no desempenho da missão da rainha.

E deslisando como visão, a um tempo deslumbrante e fatidica, Froyla desappareceu pelo fundo arqueado do corredor.

Na mesma noite que se seguiu aos successos que vimos de narrar, segundo fôra aprasado, reuniram-se no aposento que já conhecemos, mestre Gonçalo, capellão da rainha, e Affonso Martins, seu thesoureiro.

Era jã tarde quando de lá sairam.

Mestre Gonçalo vinha dizendo para o thesoureiro:

-- Senhor Affonso Martins, muito me admira que vós fizesseis tamanha opposição aos bons desejos da rainha, e portanto aos meus proprios desejos.

-- Que quereis, redarhuiu-lhe o thesoureiro homem tambem de idade, porém, como já dissemos, de olhar ainda vivo e attitude erecta e respirando bastante vida, o thesouro de sua senhoria não está tão farto como suppondes. Digo-vos mais, mestre Gonçalo, nas arcas da rainha não existe ao presente a somma de que havemos mister.

Mestre Gonçalo descerrou os labios n'um sorriso de innocente malicia.

-- Acreditar-vos-hia de boamente, senhor Affonso Martins, se não soubesse que em vós o zelo com que geris os haveres de sua senhoria, não vos fizesse muitas vezes fechar o coração á piedade, para não dizer aos deveres mais sublimes. É possivel que não haja nas arcas da senhora rainha a somma de que havemos mister, porque ninguem melhor do que eu sabe que, embora ella disponha de grandes riquezas, não as deixa jazer inuteis, e antes as aproveita em obras de piedade e de religião. Porém tambem sei que vós sois um homem muito escrupuloso em questões de consciencia, e não haveis de querer faltar pela primeira vez á palavra que acabastes de dar a sua senhoria de que as duzentas libras haviam de chegar ao seu destino.

-- É verdade, mestre Gonçalo, redarguiu Affonso Martins, relanceando o olhar para um rolo de pergaminho que trazia na mão, que me prezo de ser isso que dizeis. Nunca me esqueço dos meus deveres, e se agora a memoria me faltasse nas obrigações do meu cargo, aqui estavam estes documentos que depressa m'as fariam lembrar.

-- Visto isso, tornou mestre Gonçalo, com o rosto banhado em suave alegria, amanhã, ou depois d'amanhã, o mais tardar, tereis juntado as duzentas libras, e Affonso Fernandes irá da parte da rainha desempenhar a missão que sabemos.

-- Assim espero, caso não sobrevenha impossibilidade absoluta de reunir a quantia, a enorme quantia de que se precisa.

Mestre Gonçalo encolheu os hombros.

-- Não creio. Deus ha de ajudar-nos n'este louvavel empenho. E vós, senhor Affonso Martins, sois um homem muito sages nas coisas que dizem respeito ao vosso mester.

O thesoureiro da rainha fez um gesto que mais parecia de resignação do que de modestia.

Após este gesto Affonso Martins redarguiu:

-- A proposito, mestre Gonçalo, não notastes a ausencia de Gonçalo Peres Ribeiro na reunião d'esta noite?

-- Notei, mas nao me causou assombro. Que quereis vós? Peres Ribeiro é um cavalleiro muito leal, mas na sua qualidade de cavalleiro, não quer que as coisas se levem senão em som de guerra. E o conselho que esta noite se reunia no aposento da rainha era todo de paz.

-- Na vossa opinião, senhor Gonçalo. Se fordes perguntar a Peres Ribeiro o seu parecer, dir-vos-ha, como já a mim me tem dito, que a intervenção da rainha nas discordias d'el-rei e do infante não dará em resultado senão guerra e mais guerra.

N'este ponto os dois servidores da rainha haviam chegado aos primeiros degraus da escada pela qual se descia para a casa onde estava a capella da rainha.

-- Adeus, senhor Affonso Martins, disse então mestre Gonçalo; amanhã serão mandadas as duzentas libras, não é verdade?

-- Não sei, respondeu Affonso Martins sorrindo, em todo o caso, accrescentou elle, após um momento de reflexão, depois de amanhã partirá Affonso Fernandes com a carta para o senhor infante.

-- Bem, fico inteiramente tranquillo; uma coisa não poderá ir sem a outra.

E dito isto os dois personagens, dirigindo-se mutua venia, separaram-se. Mestre Gonçalo tomou pela escadaria abaixo e Affonso Martins desappareceu por traz d'um reposteiro.

Talvez os dois personagens julgassem que o seu colloquio não fôra ouvido, porém havia sufficiente motivo para supporem inteiramente o contrario, porque após elles appareceu no corredor um vulto que avançou cautellosamente, e levantando com precaução o reposteiro por onde desapparecera Affonso Martins, sumiu-se d'ali a pouco na mesma direcção.

Á luz da lampada que allumiava o corredor, facilmente se podia ver que era Froyla quem seguia os passos de Affonso Martins.

III

O thesoureiro-mór d'el-rei

Com a cobiça de mór rendimento

acha-se a christandade submettida

á jurisdicção judaica.

Herculano, Historia da Inquisição.

Ao tempo que a rainha acabava de dictar no seu aposento o escripto que devia ser levado ao infante D. Affonso, n'uma outra parte da Alcaçova passava-se uma scena bem diversa.

Quem divagasse áquella hora em redor do castello de Santarem, e olhasse para a torre em que se deram os successos narrados no primeiro capitulo d'este livro, havia de notar que através d'uma das setteiras brilhava o clarão de frouxa luz, indicio da que alguem velada talvez no ponto do castello chamado torre albarrã, logar onde-el-rei costumava muitas vezes guardar dentro de solidas e bem seguras arcas os dinheiros da corôa e os que particularmente lhe pertenciam, principalmente aquelles que eram cobrados em Santarem, concelho de primeira ordem, e em cujas terras el-rei possuia bastantes reguengos, isto é, herdades cujos fóros constituiam rendimentos exclusivamente destinados ás despezas de sua casa.

Quem não estivesse bem ao facto dos ultimos acontecimentos, havia portanto de suppôr que áquella hora el-rei se achava na casa do thesouro, e folheando e rabiscando alguns velhos pergaminhos, computava e calculava, auxiliado pelo seu thesoureiro-mór o rabi D. Judas, quantas livras se achavam nas suas arcas, e que reunidas ás que tinha na sua torre albarrã do castello de Lisboa, e ás que por acaso se achassem n'alguma outra torre albarrã do seu reino, perfaziam a totalidade do seu thesouro, ao qual el-rei D. Diniz, segundo se infere dos documentos e memorias do tempo, estimava mais do que a prosperidade dos seus fidalgos, cujas honras e privilegios elle cerceara com bem entendida economia, e do que o sangue dos seus villãos que elle chupava sem dó, carregando-lhe os impostos e os fóros com desalmada avidez, mais propria de judeu usurario do que de rei christão.

Porém errava quem tal suppozesse, porque D. Diniz havia já partido para o alcaçar de Lisboa, e quanto ás arcas da casa do Haver era voz publica que estavam vasias, porque dois annos antes, quando D. Affonso se apossou da alcaçova de Santarem não encontrou n'ellas nem um maravedi, o que levava a crer que o prudente monarcha, para mais segurança talvez, juntara todos os seus dinheiros na alcaçova, da sua fiel cidade de Lisboa, sob a immediata vigilancia do thesoureiro D. Judas.

O que logo de certo acudia á lembrança de quem observasse aquella luz brilhando no meio das trevas da noite e estivesse ao facto dos acontecimentos do dia, é que, se alguem se achava na casa das arcas, não podia ser outro senão o proprio D. Judas, de quem a historia perpetuou o nome e a tradição celebrou a cobiça, e que accumulava com as supremas funções de rabi-mór dos judeus em Portugal, o emprego e a dignidade de thesoureiro-mór de sua senhoria el-rei D. Diniz.

Com effeito esta supposição não podia ser mais fundamentada. Havia poucos dias que el-rei se retirara, como dissemos, para Lisboa, e D. Judas que tinha vindo com elle, deixara-se ficar em Santarem, com profundo desgosto, ou melhor dizendo, com incrivel horror dos foreiros e mais contribuintes do concelho para quem D. Judas representava, não um simples official, não uma simples creatura d'el-rei, mas uma calamidade em carne e osso, um flagello disfarçado na pelle engelhada e resequida do judeu mais cobiçoso de que havia memoria.

E de feito, todas as vezes que D. Judas, thesoureiro d'el-rei, honrava os habitantes de Santarem ou de qualquer outra terra do reino com a sua presença, deixava sempre assignaldda a sua passagem com as devastações proprias d'uma praga mandada, não por Deus, em nome da sua omnipotencia ultrajada, mas por el-rei, em nome dos interesses do fisco, ou antes da avidez da sua escarcella e da voracidade da sua cobiça.

Não era entretanto isto proveniente de D. Judas fazer em pessoa a cobrança dos foros e dos impostos nas terras onde se achava; e de n'ella empregar o mais pharisaico rigor, pois que ao thesoureiro d'el-rei não competia similhante tarefa, a qual unicamente pertencia aos mordomos do fisco ou a algum rendeiro de impostos; porém D. Judas, com um zelo que faria honra a um moderno beleguim, com uma sagacidade e um rigor que fariam inveja ao mais habil ministro da fazenda dos nossos tempos, acompanhava muitas vezes os empregados da corôa no acto da cobrança, e sempre que o fazia era raro não descobrir algum contribuinte que se eximisse, com as artes proprias e diabolicas de todos os contribuintes em todos os tempos, ao pagamento d'este ou d'aquelle imposto injusto e odioso, ou algum foreiro das terras reaes, cujo fôro elle não achasse bastante leve e diminuto, e por conseguinte não inspirasse a el-rei a diabolica idéa de augmentar.

Quando succedia este segundo caso, o que era vulgar, D. Judas, thesoureira d'um rei da primeira dynastia, funccionario publico em pleno seculo XIV, era a mais perfeita imagem do ministro da fazenda do seculo XIX, tirando a este a verbosidade parlamentar e as divagações de relatorio. N'essas occasiões D. Judas, com o aprumo d'um empregado da confiança d'el-rei e a concisão de ministro omnipotente, exclamava, parodiando uma phrase vulgar nos nossos tempos: -- Estas terras rendem muito; o foreiro pode e deve pagar mais. -- E voltando costas ao pobre villão, deixava-o a pensar na maneira como havia de arranjar mais dinheiro para no anno seguinte attestar a bolsa do mordomo ou do rendeiro d'impostos, da qual, passando pelas mãos do thesoureiro, derivava para as arcas d'el-rei.

Por isto tudo, todas as vezes que em Santarem ou em qualquer, outra terra do reino corria voz de que D. Judas, montado na sua mula pobre de carnes, envolto no corame ou mantão de viagem bastante coçado, e com o seu sombreiro, cujas abas, com a canceira dos annos e do uso, já começavam de pender melancolicamente sobre os hombros do dono, todos os jugadeiros da terra olhavam ccom tristeza para os seus celleiros replectos, e todos os foreiros dos reguengos d'el-rei apertavam machinalmente as poucas pratas que lhe tiniam na escarcela; com D. Judas vinha o vento da maldição, que podia acabar de devastar adegas e celleiros, na pessoa do thesoureiro viam todos a representação da guerra inexoravel do fisco, que constantemente se cravava nas carnes e na substancia do misero villão.

Fôra o que succedera havia pouco tempo em Santarem, e por isso dissemos que a luz que brilhava através da seteira da torre, não podia ser senão indicio de que D. Judas, e não outro, se achava áquella hora na casa do Haver.

Nós, porém, a quem o mester de narrador dispensa de supposições mais ou menos fundamentadas, deixaremos a contemplação d'aquella especie de luz fatidica que brilhava em meio das trevas da noite, e usando do nosso privilegio de romancista, penetraremos outra vez na alcaçova, desceremos uma escada gasta e escorregadia, chegaremos a uma porta de carvalho chapeada de ferro, fechada pela banda de dentro, e usando d'esse mesmo privilegio, entraremos, sem mais detença nem difficuldade na parte de alcaçova onde se via a luz de que fallámos, e achar-nos-hemos em presença, nada mais nem menos, do que do proprio D. Judas, rabi é thesoureiro de sua senhoria el-rei.

A luz que se via brilhar da banda de fóra da alcaçova provinha d'uma lampada de cobre já muito esverdeada, cujos dois bicos acesos, derramando nauseabunda fumaceira, allumiavam o aposento. Tinha este limitadas dimensões, e pelo que podemos deprehender do primeiro golpe de vista, eram de pedra as suas paredes denegridas e bem assim o tecto escuro e profundo, construido em fórma de abobada.

Em frente da lampada, em cima d'uma arca de grandes dimensões, sentado n'um escabello de pinho, achava-se D. Judas absorto, ao que parecia, em profundas locubrações. Como o escabello era muito baixo, e a arca bastante elevada, o velho judeu tinha commodamente o braço esquerdo dobrado e apoiado na arca, em quanto que o direito, a , firmado no cotovello, especava-lhe o queixo afilado e recurvo que desapparecia quasi no concavo da mão, como se fosse em estojo de proposito affeiçoado para aquelle fim. O nariz recurvo tambem, como que obedecendo juntamente com o queixo a uma attração mutua e fatal, as faces chupadas, amarellas e enrugadas como folhas de pergaminho velho, a calva luzidia e da côr das faces, as melenas ralas e brancas, a barba tão rala e tão branca como as melenas, mas d'uma côr tirando para ruiva nas proximidades da raiz, completavam o conjuncto d'aquellas feições em que tinha desapparecido a suavidade da linha natural e curva para só ficar a asoereza das feições cavadas e angulosas d'uma mumia.

Diante do judeu, além da lampada, viam-se tambem varias folhas de papel de côr pardacenta, alguns pedaços de pergaminho cobertos de garatujas mouriscas, e um tinteiro portatil acompanhado da sua competente penna.

Dissemos que D. Judas parecia estar absorto em profundas locubrações. De feito, por algum tempo permaneceu na posição em que o achámos, sem fazer o mais pequeno movimento, com os pardos olhinhos fitos na parede fronteira, e animados d'essa expressão vaga de quem só contempla as miragens interiores e não os objectos presentes.

Esteve porém pouco tempo assim, porque de repente saiu da sua immobilidade, e desafferrando a mão do queixo, pegou n'uma das folhas de papel e começou a rever com attenção o que n'ella se achava traçado.

Quando pareceu concluir a leitura exclamou, conservando o escripto na mão:

-- Não existe n'esta terra de Santarem foreiro mais remisso do que Pero Bogalho. Todos, embora com o costumado custo, porque não ha villão que não se desapegue sem grande difficuldade e sem grandes lamentações, do que justamente deve a el-rei, -- todos teem cumprido exactamente o seu fôro, menos Pero Bogalho, o foreiro do melhor reguengo que ha no concelho de Santarem. Temos aqui o fôro de Estevão da Atamarma, mais o de Pero Torto, o de Lourenço Jugadeiro, e o de Annes de Guilhade, e em summa os fóros de toda esta villanagem a quem el-rei faz a grande mercê de arrendar as suas terras... É verdade que el-rei já por duas ou tres vezes lhe augmentou o fôro e no anno passado, segundo me foi dito, Pero Bogalho jurou pelo Deus dos christãos que não seria elle quem daria mais um ceitil sequer para as arcas d'el-rei...

Ao chegar a este ponto do seu monologo o judeu calou-se e ficou com ar sombrio e apprehensivo. Parece que a jura do villão, de que acabava de se recordar, tinha grandes visos de se cumprir; porém não era D. Judas creatura que descorçoasse facilmente, porque no mesmo instante desanuviou-se-lhe o encarquilhado rosto e proseguiu, sem sombras de receio:

-- Que estou dizendo! Deixemos fallar Pero Bogalho. Um villão não se desapega facilmente da terra onde foi nado e creado. Das duas primeiras vezes que el-rei lhe augmentou o fôro, proferiu elle umas taes juras e ameaças que levariam a acreditar que o maldito ia largar o reguengo e dar cabo de si, a outrem que não soubesse, como eu, o que são juras e ameaças de christãos avarentos, que querem cevar-se a si, e cevarem as mulheres e os filhos nas terras de sua senhoria el-rei. Pero Bogalho, se não pagou, ha de pagar, pelos santos Patriarchas o juro, porque amanhã irei eu proprio fallar-lhe, e se tanto fôr mister; com as minhas ameaças em nome de sua real senhoria, reduzirei á obediencia áquelle villão avaro e descrido.

Depois d'este remate violento, como quem não punha duvida alguma na efficacia das suas ameaças, D. Judas poz de banda o escripto e deu novo curso ás suas reflexões.

-- Ora bem, proseguiu elle, imaginando e imaginando com muita razão que Pero Bogalho paga o que deve, nada mais me resta a fazer n'esta villa, e sob a protecção de Deus que protegeu os meus antepassados na passagem do Jordão, partirei para a alcaçova de Lisboa a entregar a sua senhoria el-rei todo o producto da cobrança de Santarem, e levar-lhe as novas do que é passado depois que elle partiu para Lisboa...

Mas n'este ponto D. Judas fez uma pequena pausa, e esboçando um sorriso de malicia proseguiu:

-- Todo! disse eu. E qual seria o premio do meu zelo, das minhas canceiras, da minha paciencia em supportar os odios e as pragas de todos os villãos d'estes reinos? El-rei é muito sagaz, mas de que me serviria ser seu thesoureiro, se não fosse mais sagaz do que el-rei?

E tornando a sorrir, D. Judas disse ao mesmo tempo:

-- Lá estão, é verdade, os livros do Deposito de Recabedo mas nos livros pode-se escrever ou deixar de escrever o que se quer. E se não fôra assim, como havias de tu, pobre D. Judas, augmentar os teus pobres haveres, accrescentar o humilde legado de tão honrado e venerando pae!

E D. Judas, acabando de proferir estas palavras, como que assaltado por idéa subita, levantou-se de repellão e dirigiu-se para uma arca que estava no recanto mais escuro da casa. Curvando-se então, pegou n'uma das argolas de ferro que a arca tinha de cada lado, e fazendo um esforço violento que lhe abalou todo o corpo, conseguiu com muito custo arredal-a do pé da parede. Em seguida curvando-se mais, tirou d'um buraco bastante fundo, occulto até então pela arca, uma escarcelha bastante usada, mas que, a ajuizar pelo bojo, parecia estar bem repleta.

Tomando a pôr a arca no mesmo logar, D. Judas voltou apressado para ao pé da lampada e sentou-se outra vez no escabello.

Trazia a escarcella apertada contra o seio com a ancia e a cautella da mãe que estreita contra o seio o fructo das suas entranhas.

Olhando á volta de si, como se temesse que mesmo em meio d'aquella solidão e d'aquelle silencio alguem o espiasse, D. Judas abriu a escarcella e despejou o seu contheudo em cima da arca.

Os olhinhos pardos do judeu illuminaram-se: de dentro da escarcella sairam, rolando sobre a arca, numerosas moedas de ouro e prata, que scintillaram d'um modo fascinador á luz mortiça da lampada.

-- Meu rico thesouro! sangue das minhas veias! pedaços da minha alma! exclamou D. Judas, misturando e fazendo tinir os maravedis de ouro e as libras de prata que haviam saido da escarcella; não deram comvosco durante a minha ausencia! Como ides crescendo á custa das minhas jornadas e canceiras, a despeito da vigilancia de sua senhoria el-rei e da má vontade dos foreiros, cujo gosto era verem-me assado em vida! Oh! mas não; primeiro que me assem, hei de eu ajudar el-rei a tirar-lhes a pelle com as unhas do fisco. Pela sagrada toura vos juro, nazarenos, que dentro de tres annos hei de ver triplicado o meu thesouro e quadruplicados os vossos fóros. Meu rico thesouro!

E D. Judas, arqueando as mãos e varrendo com ellas o tampo da arca, fez um monte circular de todas as moedas, e cingindo-as e amparando-as com as mãos tremulas e recurvas, ficou a olhar para o luzente montão, com a avidez extatica do namorado que cinge a cabeça da amante nas ancias d'um desejo.

-- Ah! tornou elle dando um suspiro, podias ,estar maior, se os bens d'el-rei não andassem tão esbanjados. A colheita havia de augmentar na proporção do campo que se lavrasse. Para que havia de el-rei pôr casa ao infante herdeiro? Ahi tem os fructos; o infante dispõe d'um grande rendimento e ainda quer mais. Porque havia d'el-rei ser tão generoso com sua mulher, que ainda hoje tem nada mais nem menos do que as villas de Obidos, Abrantes, Porto de Moz, Leiria, Torres Novas e Atouguia, e cujos rendimentos passam da prodigiosa quantia de doze mil libras! Para que, pergunto eu? Para empobrecer o seu thesouro e atiçar a guerra, porque, segundo dizem, e el-rei começa a crer, a rainha manda grandes ajudas de dinheiro a seu filho D. Affonso, - o que, seja dito aqui muito á puridade, eu tambem acredito e farei diligencia por acabar de convencer el-rei d'isso, porque tem-se visto muita coisa, e el-rei poderia muito bem, e com muita razão, tirar á rainha o que lhe deu. - Ah! prouvera a Jehovah que tal succedesse, porque então como não cresceria o thesouro d'el-rei... e o meu thesouro.

E o judeu ficou a olhar fascinado para aquelle montão de moedas conscienciosamente ganhas em serviço de sua real senhoria, montão que tomava proporções cada vez mais colossaes, ampliado pela miragem enganadora das suas esperanças cobiçosas.

Porém de repente, quando mais embevecido estava na contemplação d'aquelle luzente matiz, D. Judas deu um pulo violento e voltou-se cheio de terror para o lado da porta.

Da banda de fóra acabavam de soar duas pancadas.

A primeira idéa que lhe accudiu foi tornar a metter o dinheiro na escarcella, porém a sua perturbação redobrou, porque ouviu uma voz bradar-lhe, abafada pela espessura da porta:

-- Abri sem receio, D. Judas; sou eu.

Então o honrado ovençal para evitar mais delongas, pegou na lampada, e abrindo a arca atirou-lhe para dentro com dinheiro, escarcella e pergaminhos, e tornando a fechal-a, foi em passo tremulo e incerto correr o ferrolho.

Momentos depois entrava Affonso Martins, o thesoureiro da rainha.

D. Judas não ficara pouco surprehendido com a visita, mas apesar d'isso, não deixou de rapidamente aferrolhar a porta, correndo em seguida precipitadamente a pôr a lampada no mesmo logar em que estava.

Feito isto, sentou-se com rapidez e violencia na tampa da arca onde tinha guardado os seus haveres.

IV

O thesoureiro da rainha

Shylock -- Three thousand ducats, -- tis a good round sum

Three months from twelve, then let me see the rate.

Shakespeare - Merchant of Venice.

Affonso Martins, assim que Judas se sentou, sem mais ceremonia sentou-se tambem no escabello de que fallámos no capitulo antecedente.

D. Judas aguardou, sem dizer palavra, que o thesoureiro da rainha explicasse a sua visita nocturna. Entretanto, olhando para elle, o judeu começou por não se sentir muito á sua vontade. Nos labios do thesoureiro da rainha brincava um risinho de mofa.

A impressão desagradavel causada por este risinho ainda mais augmentou, quando Affonso Martins proferiu as seguintes palavras:

-- Estaveis muito ocupado, D. Judas; a prova é que não me ouvistes bater logo á primeira vez.

-- Enganaste-vos, senhor Affonso Martins, redarguiu D. Judas, olhando com desconfiança para o seu companheiro, ouvi á primeira vez, e se não abri logo, foi porque não esperava aqui ninguem a uma hora tão estranha, e julguei me enganavam os ouvidos, que em razão dos estragos da idade, já não têem aquella finura d'outros tempos.

Affonso Martins, tomando um ar de affectada seriedade, retorquiu-lhe com uma voz em que a ironia e o desprezo transpareciam levemente:

-- Razão tendes, honrado e respeitado D. Judas, thesoureiro-mór de sua senhoria el-rei e rabi-mór dos judeus d'estes reinos; aqui estou eu tambem que em razão dos achaques e estragos, não da velhice, mas d'uma vida afadigada, não sou capaz, quando succede baterem á porta do meu aposento, de ouvir nem á primeira nem á segunda vez. E se por acaso estou occupado em coisas do meu mester, accrescentou elle, olhando fito para o judeu, se estou por exemplo applicado á contagem dos dinheiros recebidos em tempos de cobrança... oh! então o tinir das dobras e das libras, dos soldos e dos dinheiros, dos fortes e meio fortes, põe-me dentro das orelhas um tal zumbido que difficilmente ouço mesmo a curta distancia.

Affonso Martins acabou de proferir estas palavras com ar imperturbavel, porém o honrado D. Judas sentiu-se mais incommodado com esta seriedade do que se sentira com o sorriso de mofa.

O que vinha de ouvir confirmava-o nas suspeitas de que o thesoureiro, fosse como fosse, percebera, no momento de entrar, a natureza da occupação a que elle se achava entregue. Por isso remechendo-se, bem apesar seu, com certa inquietação, acabou por se sentar com mais firmeza e espalmar as mãos em cima da tampa da arca, como se de tal modo quizesse fechal-a com mais segurança.

Depois d'estes movimentos, que afinal eram apenas filhos, não da reflexão, mas do seu instincto de usurario que farejava na vinda do thesoureiro perigo talvez remoto e incerto para o peculio que elle juntara á custa de tanta fadiga das suas pernas e de tanto risco das suas costellas, o judeu cobrou com esforço um pouco de animo e reflectiu socegadamente na situação.

O resultado das suas reflexões fêl-o serenar um tanto. Fundado nos precedentes do honrado thesoureiro da rainha, e mais do que isso, fiado muito principalmente nos dotes e qualidades que, -- mau grado a sua modestia, -- reconhecia em si proprio, D. Judas disse comsigo, e disse bem, que Affonso Martins, dado o caso que soubesse da quantia que o seu companheiro possuia n'aquelle momento, não era homem para lhe extorquir com violencia o dinheiro. Suppondo porém, com boa razão, que Affonso Martins substituisse á violencia a persuasão, á força bruta as manhas do seu mester, para o levar á realisação d'algum negocio, cuja segurança e cujos lucros não satisfizessem a uma afferição rigorosamente pharisaica, então elle D. Judas -- e n'isto é que padecia grandemente a sua modestia -- sentia-se com firmeza sufficiente para resistir á persuasão, com astucia bastante para rebater as manhas não só do thesoureiro da rainha, como de todos os thesoureiros de todos os reis e rainhas de Portugal e Castella.

Como dissemos, tão sensatas reflexões tiveram por natural consequencia serenar um pouco o animo do honrado thesoureiro d'el-rei.

Comtudo, á inquietação que primeiro d'elle se apossara, succedeu um outro sentimento que a situação plenamente justificava, o sentimento da curiosidade. D. Judas dava tratos ao seu cerebro que os frios de sessenta invernos bem contados não tinham conseguido de todo enregelar, para descobrir a razão ou motivo d'aquella visita tão inesperada e tão impropria nas horas.

Além d'esta circumstancia uma outra havia que mais lhe espicaçava a curiosidade: era um pergaminho enrolado, cingido por um fio de linho do qual pendia um sello de cera vermelha, que o thesoureiro da rainha trazia na mão.

Dado que fosse verdade terem os achaques da velhice deteriorado os orgãos da audição no respeitavel rabi, o mesmo não lhe succedera aos orgãos da visão. Como Affonso Martins estava sentado a pouca distancia d'elle, e mesmo em frente da lampada, a luz dava-lhe em cheio na mão em que tinha o pergaminho, e D. Judas pôde d'um relance examinar o sello que d'elle pendia. As barras cruzadas das armas de Aragão, que se viam n'uma das faces do sello, e a legenda: Elisabethe Regina Portugaliae que o orlava, indicaram-lhe logo que o pergaminho era algum documento expedido pela chancellaria da rainha. Por isso, o que ia Affonso Martins fazer ali áquella hora e o que significava aquelle pergaminho? Eis os dois problemas que se apresentavam ao espirito do judeu, problemas que talvez afinal não formassem mais do que um só, e os quaes elle já interiormente jurava pelas venerandas barbas dos prophetas de Israel não deixar sem resolução, dado o caso, já se vê, que essa resolução não fosse impossivel o que não era de crer, ou não lhe saisse muito cara, o que infelizmente era de recear.

Depois d'estes raciocinios que lhe passaram pelo rapidos como o relampago, com o intento posto unicamente na satisfação da sua curiosidade, D. Judas exclamou:

-- Ora bem, senhor Affonso Martins, não entremos em ociosas divagações, e vamos direitos ao fim que vos trouxe aqui. Que vos obriga a procurar este pobre judeu que não passa d'um simples thesoureiro-mór d'el-rei, n'uma hora tão impropria? Acaso careceis do seu fraco saber para a resolução d'algum calculo difficil com que deparastes ao ordenar as vossas contas de thesouraria?

Affonso Martins fingiu não perceber a ironia das primeiras palavras do judeu e redarguiu:

-- Quasi acertastes, honradissimo D. Judas; topei com uma difficuldade em assumpto relativo ao meu mester, e eis-me aqui, porque sei que só vós, veneravel rabi, me podeis prestar ajuda efficaz n'esta difficil conjunctura.

D. Judas sorriu-se hypocritamente.

-- Careceis pois do judeu. Bem, exponde portanto o caso que aqui vos traz, sem a maior sombra de hesitação. Bem sabeis que nunca hesito, apesar de judeu, em valor a um christão, todas as vezes que me é possivel.

E D. Judas accentuou as ultimas palavras, pondo com humildade os olhos no chão.

Affonso Martins meneou a cabeça e disse comsigo:

-- Todas as vezes que os lucros são avultados.

E levantando a voz proseguiu:

-- Demasiado vos conheço, e por isso passo a expôr-vos com franqueza a minha pretensão. Carecia de que me traçasseis uma cedula tão clara e explicita que á vista d'ella Salomão Arbabanel, judeu de Coimbra, com o qual sei ha muito que tendes tractos de dinheiro, entregasse ao portador que lh'a apresentasse, a somma de duzentas libras em prata de boa lei. Parece-me, salvo vosso parecer, que isto vos seria summamente facil, attendendo a que nada perderieis no negocio.

Quando Affonso Martins acabou de fallar, D. Judas encarava n'elle com o maior espanto.

-- Que necessidade terá o nazareno, dizia elle comsigo, de duzentas libras, e entregues em Coimbra... em Coimbra, onde está o infante?

E a esta idéa D. Judas olhou machinalmente para o pergaminho com o sello da rainha que Affonso Martins trazia na mão. A vista de similhante objecto e as palavras do thesoureiro despertaram n'el-rei um turbilhão de suspeitas que lhe fizeram, d'um modo estranho e inexplicavel, palpitar aquelle sitio do corpo onde todos, mesmo os thesoureiros judeus do seculo quatorze, teem um chamado coração.

Como era natural, D. Judas sentiu logo desejos de averiguar a verdade que apenas suspeitava. Se as suspeitas se confirmavam, o judeu, com o alcance que ao espirito mais rude dão a ambição e a esperança, entrevia uma tenebrosa intriga, ao cabo d'ella a discordia d'el-rei e da rainha, e além d'esta catastrophe, aos horizontes tentadores d'uma vaga possibilidade, os bens da rainha encorporados aos d'el-rei, e elle thesoureiro, como Ruth, aquella seua antepassada de que fallam os livros santos, respingando em campo mais vasto mais farta colheita de libras e de dinheiros.

Nos olhos de D. Judas parecia reflectir-se o fulgor d'aquellas brilhantes perspectivas; Affonso Martins olhava porém para elle com indifferença e seriedade, ou porque não suspeitasse o que se passava na alma do judeu, ou porque não lhe conviesse manifestar as suas suspeitas. Entretanto parecia aguardar a sua resposta.

Não se fez esta demorar muito. Com a sagacidade da sua alma cavilosa, D. Judas comprehendeu quanto convinha não pôr de sobreaviso o seu companheiro, e desejando, como dissemos, averiguar a verdade do que suspeitava, entendeu, arreceando-se da conhecida perspicacia do thesoureiro da rainha, que o melhor meio de o conseguir era fallar, sendo a mais leve sombra d'astucia, do assumpto sobre o ponto de vista que elle reputava verdadeiro.

Por isso redarguiu desaffectadamente:

-- Dizeis ser facil o que me propondes, é essa tambem a minha opinião, e por isso não ponho duvida em vos passar a cedula de que haveis mister Salomão Arbabanel é homem de probidade, e á vista da minha firma não hesitará um momento em entregar ao senhor infante as duzentas libras que vós lhe mandaes em nome da rainha.

Affonso ao ouvir estas palavras carregou os gestos.

-- Que estaes ahi a dizer do infante e da rainha, senhor judeu? Ensandecestes. As duzentas libras serão recebidas por Affonso Fernandes, o qual amanhã mesmo partirá para Coimbra com a cedula que vós me derdes.

O judeu sorriu-se com finura.

Affonso Martins proseguiu, carregando cada vez mais o gesto:

-- As duzentas libras são destinadas sómente a uma devota applicação, e o senhor imfante apenas receberá uma carta que eu acabo de escrever por ordem da rainha, e na qual erlla o reprehende severamente pelo seu criminoso procedimento. E são tão repassadas de magoa, e tão cheias de eloquencia as expressões que n'ella puz e sua senhoria dictou, que é impossivel que á sua leitura o senhor infante não se affaste do errado caminho em que anda.

-- Perdoae, senhor Affonso Martins, redarguiu D. Judas, fingindo acreditar o que ouvia, perdoae se me enganei. Tem-se dicto que a rainha é favoravel á causa do infante, e eu acho isso natural, porque o affecto cega os olhos maternaes a ponto de não verem os desvarios dos filhos. Porém d'ahi a mandar-lhe auxilios de dinheiro vae grande distancia, e facilmente acredito a vossa affirmativa.

-- Bem, volveu Affonso Martins, não fallemos mais em similhantes frivolidades, estaes pois disposto a passar a cedula?

-- Já vol-o disse claramente.

E fallando comsigo, D. Judas accrescentou:

-- O sandeu do nazareno suppõe que me engana.

Ao mesmo tempo Affonso Martins dizia tambem comsigo:

-- Julgava-te mais manhoso, cão descrido.

E fallando em voz alta proseguiu:

-- Passal-a-heis n'esse caso agora mesmo. Aqui tendes pergaminho e todo o necessario para escrever.

D. Judas poz-se de pé, e pegando nos objectos de que lhe fallava o thesoureiro e acocorando-se junto da arca, dispoz-se a escrever.

Teve porém cuidado de não voltar as costas para o companheiro.

-- Escreverei pois aqui, disse elle sem porém fazer o que dizia, que Salomão Arbabanel entregará ao mensageiro Affonso Fernandes cento e cincoenta libras.

E D. Judas olhou de soslaio para Affonso Martins.

-- Que estaes dizendo! exclamou este; duzentas libras é o nosso ajuste.

-- E o juro?

-- O juro!

-- Achaes muito, volveu D. Judas com ar admirado, vinte e cinco libras em cada cem! Nos meus tractos com fidalgos não recebo d'elles similhantes miserias. E depois, se quereis, faremos as coisas d'outro modo: contar-me-heis aqui duzentas e cincoenta libras e Salomão Arbabanel contará duzentas a Affonso Fernandes.

Affonso Martins deitou-lhe um olhar de desprezo e disse-lhe:

-- Apesar do vosso dom, da vossa qualidade de rabi-mór e do valimento com que vos honra sua senhoria el-rei, haveis de sempre mostrar que sois judeu.

D. Judas, sem se mostrar vexado com estas palavras, fez um gesto que significava: Se não quereis, paciencia.

Affonso Martins continuou:

-- Demais não vos contarei coisa alguma. Não posso, ou dizendo talvez melhor, não me convem ao presente privar-me de duzentas libras em prata, aliás não vos pediria os vossos serviços, e Affonso Fernandes as levaria na sua escarcella até Coimbra.

-- Então, atalhou D. Judas que se erguera, pondo porém á maneira de precaução, um pé em cima da tampa da arca, de que modo pretendeis pagar-me?

-- Ouvi: dar-me-heis a cedula e eu em troca vos darei outra para Isaac Soleima, mercador da rua nova em Lisboa. Depois d'amanhã quando chegardes a Lisboa, recebereis o vosso dinheiro.

D. Judas encolheu os hombros.

-- E o que lucro eu n'isso? disse elle.

-- Virá um dia em que precisareis tambem de mim, volveu Affonso Martins. Serviço por serviço.

D. Judas sorriu-se com hypocrita ironia e redarguiu:

-- Um pobre judeu não pode prestar serviços a ninguem.

Affonso Martins fez um gesto de impaciencia.

-- Mas pode deixar de lançar certos fóros no livro do Recabedo e fazer outras que taes alcavalas, volveu elle, accentuando as ultimas palavras.

D. Judas poz-se fulo.

-- Por Abrahão, balbuciou elle, por Isaac...

-- Não prosigaes nas vossas juras, judeu, atalhou irado Affonso Martins. Um d'estes dias partirá a rainha para o alcaçar de Lisboa, nada direi na côrte a respeito do livro de Recabedo. Passae pois a cedula. Recebereis de Isaac Soleima, o mercador da rua nova, não duzentas libras, mas duzentas e vinte. Aviae-vos.

E Affonso Martins poz a mão no hombro de D. Judas.

Como se obedecesse a esta pressão, o judeu acocorou-se outra vez junto da arca, pegou na penna e dispoz-se a escrever.

Porém, antes de traçar a primeira palavra assaltou-o novo receio, e pondo-se outra vez em pé, perguntou:

-- E a vossa cedula? Passae primeiro a vossa cedula.

E estendeu a penna de ferro para Affonso Martins.

Affonso Martins tornou a metter a mão no forro do gibão e puxando d'uma pequena tira de pergaminho, exclamou:

-- Ahi a tendes, senhor judeu.

E atirou-a com um gesto de desprezo para cima da arca.

D. Judas baixou-se rapidamente e examinou o pergaminho com avidez.

Parecendo ficar satisfeito com o contheudo, principiou a passar a cedula sobre Salomão Arbabanel, judeu da communa de Coimbra.

Quando chegou ao ponto em que devia declarar a quantia, o judeu hesitou e ia quasi pondo cento e oitenta libras em vez de duzentas. Porém lembrando-se da possibilidade dos bens da rainha passarem para o poder d'el-rei, e imaginando tambem a possibilidade de possuir dentro em pouco as suas quinze mil libras, notavelmente accrescentadas, D. Judas resignou-se e escreveu duzentas libras.

Apesar da confusão de cifras que n'aquelle momento se tinham baralhado no cerebro do judeu, quando Affonso Martins leu o pergaminho achou-o rigorosamente exacto.

É verdade que D. Judas lera-o por tres vezes antes de lh'o entregar.

Passados poucos momentos Affonso Martins despedia-se.

-- É verdade, disse elle, partis de madrugada para a alcaçova de Lisboa?

-- Não, senhor thesoureiro, só parto ao meio dia. Tenho primeiro de me ir informar do que é passado com certo foreiro bastante remisso no pagamento do seu fôro.

-- De que foreiro fallaes? perguntou Affonso Martins com ar de curiosidade.

-- Fallo de Pero Bogalho. Acaso sabeis quem seja?

Affonso Martins em vez de responder logo soltou uma formidavel gargalhada.

-- Arredae d'ahi o sentido; áquelle foreiro já nem vós nem el-rei podeis tirar a pelle.

-- Que estaes dizendo? exclamou D. Judas com anciedade.

-- A verdade. Pero Bogalho abandonou o reguengo.

D. Judas ia quasi deixando cair a lampada em que pegara.

Affonso Martins proseguiu.

-- El-rei, ou quem sabe, vós talvez, havieis-lhe augmentado o foro a ponto de Pero Bogalho não o poder pagar. A rainha condoeu-se d'elle e admittiu-o n'uma sua herdade em Leiria, em condições que não teem nada de judaicas.

E Affonso Martins, deixando D. Judas entregue á sua estupefacção, desaferrolhou elle mesmo a porta e sumiu-se rapidamente pela escada por onde viera.

V

O anjo mau

Tu és um exercito em batalha!

Tu pareces vir do deserto,

dos leões e dos leopardos!

(Cantico dos Canticos)

Quando já não se ouviam os passos do thesoureiro da rainha foi que D. Judas tornou a si do seu assombro.

-- Ah! nazareno! bradou elle, cerrando o descarnado punho e movendo-o com gesto de ira na direcção em que Affonso Martins desapparecera, cravaste-me cobardemente o dardo no momento da retirada! Mas espera que ainda me hei de vingar; ainda has de deixar de gerir os rendimentos da rainha, porque tambem aprendi o mester da intriga na côrte de meu senhor. Eu direi a sua real senhoria que foste tu que aconselhaste Pero Bogalho a abandonar o reguengo. Oh! e el-rei...

E acabando de proferir estas ameaças, que pareceram alliviar-lhe um pouco a colera, D. Judas tornou a fechar a pesada porta de castanho e depois de correr cuidadosamente os ferrolhos, voltou para junto da arca, e tornou a sentar-se no escabello de que fizemos menção.

Tornando outra vez á postura em que primeiramente o vimos, o honrado e generoso thesoureiro d'el-rei pareceu entregar-se novamente a profunda meditação.

Afinal, ao cabo d'alguns momentos de silencio, D. Judas tornou a descerrar os delgados labios e exclamou, fallando comsigo:

-- Nada, seria demasiado arrojo e arriscadissimo feito. Affonso Martins assevera que a rainha apenas manda ao infante uma carta, e essa mesma reprehendendo-o severamente do seu proceder. Quanto ao dinheiro disse tambem o thesoureiro que era applicado a uma devota intenção. Tudo isto pode ser, embora eu nem por sombras creia nas palavras d'Affonso Martins. Mas que provas tenho eu para me arriscar a uma intriga tão audaciosa? Se por artes de Belzebuth viesse a provar-se que tudo a que eu dissera não passava d'uma aleivosia? Nada, não posso por em quanto dirigir os tiros tão alto. Mas se amanhã vir que é verdade ter Pero Bogalho abandonado o reguengo, eu vos juro, senhor thesoureiro beato e hypocrita, rematou o judeu com voz alterada e fazendo um gesto de ameaça, como se tivesse diante de si o objecto das suas iras, eu vos juro que farei toda a diligencia junto d'el-rei para que vós percaes o vosso emprego ou vos aconteça coisa peior.

E ditas estas palavras D. Judas levantou-se de repellão, guardou o pergaminho no forro da sua veste e collocando no chão a lanterna que pozera em cima da arca, abriu esta, ajoelhou e dispoz-se a tirar de dentro o dinheiro que precipitadamente ali guardara.

Teve porém de desistir do seu intento porque de fóra da porta bateram novamente.

D. Judas não esperou d'esta vez que tornassem a bater; levantou-se de repente com ar de impaciencia, fechou a arca cuidadosamente, e dirigiu-se para a porta, resmungando com expressão de enfado:

-- Pela tribu de Judá! Não se dorme hoje na Alcaçova. Teremos outro negocio?

Quando ia a meio caminho ouviu uma voz bradar-lhe:

-- Abri, D. Judas, não tenhaes receio.

Apesar de abafada pela espessura da porta, D. Judas conheceu que era uma voz sonora mas juvenil e extremamente melodiosa, uma voz de mulher.

Com expressão de immenso assombro, o judeu correu apressadamente os ferrolhos.

No mesmo instante entrou desembaraçadamente no antro do judeu um vulto de mulher embuçada em manto de seda que lhe occultava as feições.

D. Judas no seu assombro esquecia-se de fechar a porta, e ficara pasmado e boquiaberto, com a lanterna em punho, a olhar para aquella dama que tão insolitamente lhe invadira o aposento.

Porém a dama, fosse quem fosse, vendo a abstracção do judeu, bradou-lhe com voz imperiosa mas tranquilla:

-- Fechae a porta, D. Judas; quereis que me vejam a sós com um judeu?

Volvendo em si, D. Judas obedeceu áquelle mandado com precipitação e voltou para dentro.

A este tempo a dama já atirara com o manto para longe de si e sentara-se com o maior desembaraço na arca de que temos fallado.

Quando D. Judas olhou para as feições da recem-chegada, exclamou com uma express-ao de assombro indefinivel:

-- Vós, senhora D. Froyla!

Era effectivamente D. Froyla, a formosa donzella que já conhecemos, quem ali se achava.

-- Eu mesma, D. Judas, redarguiu ella. Porque pasmaes? Acaso uma dama do paço não pode precisar de vós, como qualquer escudeiro ou cavalleiro?

-- De certo, respondeu D. Judas em voz alta.

E em voz baixa accrescentou:

-- Precisará tambem de dinheiro?

Froyla estava um pouco pallida, o que fazia realçar mais a extraordinaria expressão dos seus olhos negros e brilhantes, orlados então d'um livido circulo.

D. Judas, em pé diante d'ella, contemplava-a silenciosamente. A pupilla usualmente apagada do judeu começava a animar-se e a cobrar um certo brilho. A mão com que segurava a lampada tremia-lhe um pouco, e D. Judas teria ali ficado immovel e perplexo se D. Froyla, sorrindo com uma leve expressão a um tempo de mofa e de desprezo, não lhe dissesse:

-- Então que é issom D. Judas, não saís do vosso pasmo? Acaso vos enfeitiçaram, que ficaes ahi que nem a estatua de sal em que foi transformado um dos vossos antepassados?

E dizendo isto a desenvolta donzella alçou o pésinho calçado com um airoso sapatinho terminando em bico, e empurrou o escabello que lhe ficava em frente.

-- Sentae-vos, D. Judas, proseguiu ella; não é bem que tão grande personagem como o thesoureiro d'el-rei e rabi-mór dos judeus de Portugal, fique de pé diante d'uma donzella, como qualquer villão medroso diante do seu senhor. Sentae-vos e ponde-vos a vosso commodo, porque temos de discursar sobre negocio de ponderação.

Ao ouvir estas palavras, D. Judas, como o cão que humilde obedece a um aceno do dono, foi pôr a lampada em cima d'outra arca e pegando no escabello sentou-se a pouca distancia da joven.

Entretanto continuava a dizer comsigo:

-- Que quererá D. Froyla? Extraordinarias coisas estão hoje succedendo n'esta alcaçova!

-- Senhor D. Judas, volveu a donzella, sois esta noite grandemente honrado com amiudadas visitas.

D. Judas fez um gesto de assombro.

-- Ah! sabeis... volveu elle.

-- Sei, tornou D. Froyla, e mais do que suppondes. Ha pouco esteve aqui Affonso Martins, thesoureiro da rainha.

D. Judas fez machinalmente um gesto affirmativo.

-- Encontrastel-o?

-- Encontrei, respondeu D. Froyla com ar de indifferença.

D. Judas dilatou mais uma vez os pardos olhinhos por effeito do assombro.

-- E elle viu-vos aqui entrar? perguntou com expressão de susto.

D. Froyla soltou uma gargalhada que fez com que D. Judas levasse as mãos á cabeça com um gesto de terror.

-- Senhora D. Froyla, que vos perdeis e me perdeis a mim, bradou elle.

-- Desvairaes, D. Judas? tornou-lhe a joven com ar de commiseração; acaso receaes de pagar alguma multa, por vos saberem aqui a sós com uma christã?

-- Não é só por mim, senhora... nem por causa da multa, accrescentou com ar contrafeito, mas tambem por vós. Que escandalo! Que diriam, Deus de Abrahão, se soubessem que vós aqui estaes a esta hora na companhia d'um judeu?

Terceira gargalhada resoou n'aquelle recinto de pedra e fez tremer o judeu como um epileptico.

-- Socegae quanto á minha honra, D. Judas, que nunca ella correu menos perigo do que na vossa companhia, redarguiu a donzella n'um tom profundamente ironico. Quanto á multa socegae tambem porque ninguem sabe que aqui estou comvosco, e é de crer que o fisco tenha perdido mais d'essas multas.

D. Judas entreabriu os labios n'um sorriso de malicia que lhe poz á mostra, com serio desgosto de Froyla, os dentes ralos e amarellados.

Ao mesmo tempo disse comsigo:

-- Se soubesseis quantas vezes na minha mocidade lesei o fisco!

E um suspiro ruidoso, arrancado das entranhas, abalou-lhe as costellas asternaes.

Em seguida deitou um olhar de soslaio para o delicado pésinho de D. Froyla, a qual com a perna direita traçada sobre a esquerda, o agitava por baixo da orla da sua saia ou fraldilha de vistosa e fina tela.

-- Punhamos porém ponto nas nossas divagações, volveu a joven, e voltemos, honrado D. Judas, ao objecto que motiva a nossa entrevista. Como vêdes, sei que Affonso Martins aqui esteve tambem ha pouco.

D. Judas fez distrahidamente um signal affirmativo.

Porém no mesmo instante tornou a fitar D. Froyla.

-- Sabeis, disse elle de subito, que ao attentar agora em vós, acho-vos parecenças com as mais formosas mulheres da minha raça.

D. Froyla fez um gesto de repugnancia.

-- Abrenuntio! Nossa Senhora me valha! Eu parecida com uma judia! Suspeiro que não estaes hoje com todo o vosso siso, D. Judas. Mas, voltando a Affonso Martins; venho aqui para objecto que tem grande relação com aquelle que elle tratou comvosco.

-- Sim? volveu o judeu com curiosidade; explicae-vos pois.

-- Affonso Martins veio pedir-vos duzentas libras.

-- Como sabeis isso? perguntou pasmado D. Judas.

-- Eis o que não vos deve importar.

D. Judas encolheu os hombros.

-- Mas o que vós não sabeis, D. Judas, exclamou a joven em tom breve, é o destino a que são reservadas aquellas duzentas libras.

D. Judas levantou a cabeça com sobresalto.

-- E vós sabeis? perguntou elle.

-- Sei, e não é difficil adivinhar. A mim parece-me até que, attenta a vossa notavel sagacidade, deveis saber tanto como eu.

-- Talvez, redarguiu D. Judas, lisongeado por aquellas palavras.

-- Entretanto não ignoraes de certo que Affonso Fernandes é quem vae levar as duzentas libras ao seu destino.

-- Sei, porque Affonso Martins m'o disse. Porém, como estaes vós ao facto do que entre nós se passou? Parece que me escutastes.

-- Isso é o que não vos deve importar, como já uma vez vos disse.

-- Seja como fôr, volveu D. Judas, visto como sabeis tanto, tambem não deveis ignorar que Affonso Martins me affirmou que aquelle dinheiro era destinado pela rainha a obra de caridade ou devoção. Acreditando, rematou o judeu em tom hypocrita, piamente nas palavras do honrado thesoureiro da rainha, homem merecedor de toda a fé, promptamente me prestei a ceder as duzentas libras.

D. Froyla sorriu maliciosamente.

-- Acredito na vossa promptidão, disse ella, como vós acreditastes nas palavras de Affonso Martins.

D. Judas encarou n'ella com olhar de amigavel reprehensão.

-- Sois injusta, D. Froyla, para comigo, para com Affonso Martins e para com a rainha. Pois dizei, senhora, exclamou D. Judas, fingindo profunda convicção, que destino querieis que a senhora rainha desse a uma tal quantia?

-- Sois muito manhoso, D. Judas, mas as vossas manhas não me illudem, e portanto deixae-vos d'ellas agora. O que vós quereis é saber ao certo o destino das duzentas libras. Socegae que promptamente vos satisfaço. Aquelle dinheiro é para o infante.

D. Judas fez uma cara de pasmo que nem que fosse natural.

-- Que dizeis, senhora D. Froyla? Santo Deus de Abrahão, que estaes accusando a rainha nada mais nem menos do que de traidora! Ponde cobro nas vossas palavras, que não assentam bem na boca d'uma donzella ao serviço de tão santa senhora.

-- E vós a teimardes, senhor judeu hypocrylta, volveu a donzella, não me enganaes com o vosso horror. Se quereis, sincera ou falsamente, defender a rainha, podeis fazel-o perfeitamente invocando justas razões, como eu faço. A santa rainha minha senhora vae enviar um soccorro em dinheiro ao senhor infante, e segundo o meu ver, faz coisas muito natural em mãe carinhosa. Porém notae vós, senhor judeu manhoso, quem merece severa reprehensão é esse traidor escudeiro Affonso Fernandes, que pertencendo ao serviço d'el-rei se presta a levar da parte da rainha ajudas em dinheiro a um infante rebelde a seu pae e senhor. Porque não faz elle como o cavalleiro Gonçalo Peres Ribeiro, que havendo querido a minha senhora dissuadil-o de partir para Lisboa, a encorporar-se na hoste d'el-rei, elle, mau grado a vontade da rainha, porá um d'estes dias por obra o seu intento? Mas que quereis, senhor D. Judas, se Affonso Fernandes está nesciamente apaixonado por Ermezenda, donzella da rainha, e põe toda a sua vontade em servir a ama da dama dos seus pensamentos para de tal guisa aplanar o caminho da sua futura felicidade. Ora fallae com franqueza ao menos uma vez: em qual dos dois achaes vós motivo de reprehensão, na rainha que obedece aos impulsos do seu coração de mãe, ou no escudeiro que tão levianamente esquece o que deve ao seu rei e senhor?

D. Froyla proferira a sua replica com uma vehemencia em que o judeu não pôde deixar de fazer reparo.

-- Ta, ta, disse elle comsigo, já compreendo tudo. Andam n'isto ciumes. Pelas barbas de Aarão, que talvez a moça me sirva para accender a discordia entre os filhos d'Ismael.

E levantando a voz exclamou com o ar hypocrita que de principio adoptara:

-- Não é de todo desarrasoado o voso discurso, mas ainda assim, senhora D. Froyla, attentae em que seria bem censuravel o procedimento de Affonso Fernandes se elle se recusasse a obedecer á rainha.

D. Froyla fez um gesto de impaciencia.

-- Persisto na minha idéa, D. Judas, disse ella, vós trazeis o siso um pouco desarranjado talvez por effeito do muito que vos cançaes com a gerencia dos dinheiros d'el-rei. Qual está primeiro, senhor , o serviço d'el-rei ou da rainha?

D. Judas escancarou a boca, como quem se admirasse bastante de ha mais tempo não lhe ter occorrido uma tão solida razão.

-- Isso é verdade, senhora, disse elle afinal; porém, accrescentou com fingida vehemencia, o que vós não lograreis incutir no meu espirito é a idéa de que o procedimento da senhora rainha seja altamente reprehensivel. Digo-vos mais, senhora, chego a duvidar de que esse dinheiro tenha o destino que dizeis.

-- Pois não duvideis, D. Judas, volveu D. Froyla com alguma heditação, não duvideis, e amanhã, se ainda estiverdes em Santarem, vereis partir Affonso Fernandes com destino a Coimbra. Na sua escarcella, vos juro, está destinado que leve a cedula das duzentas libras, uma carta da rainha, e certo pergaminho cujo theor ao certo não conheço.

O olhar quasi sempre velado do judeu animou-se subitamente. Isto porém passou desapercebido a D. Froyla, a qual, possuida de tenebrosos pensamentos, já nem dava pela malicia que transparecia nas palavras e nos gestos do judeu.

-- Acreditando, redarguiu elle, como não posso deixar de acreditar em vista da vossa affirmativa, que o dinheiro é para auxilio do infante, não posso deixar de condemnar o procedimento do escudeiro por mais que me sinta inclinado a defendel-o. E d'uma coisa podeis tambem ficar certa, senhora D. Froyla, é que se Affonso cometter essa traição, ella ficará impune porque el-rei ha de sempre ignoral-a. Ah! que se el-rei soubesse...

-- O que succederia? senhora D. Froyla, sem conseguir fingir uma completa indifferença.

-- O que succederia, senhora D. Froyla? volveu o judeu que muito a custo reprimiu um sorriso de perfeita malicia. Pois ainda m'o perguntas? Ignoraes quanto sua senhoria é severo? Pelas minhas cãs de sessenta annos vos juro que se el-rei tal soubesse, não era Ermezenda Sanches quem veria realisados os seus sonhos de amor, se, como pareceis dizer, ella os tem tido.

D. Froyla sentiu bater com força o coração.

-- E sabel-o-ha, senhor D. Judas, sabel-o-ha, disse ella, pondo de lado todo o fingimento, porque não vos soffrerá o animo ver el-rei atraiçoado d'um modo tão vil. Demasiado vos conheço; sei que sois d'uma grande lealdade, e estou certo que logo que chegardes a Lisboa, delatareis o traidor.

D. Judas porém, ao contrario do que ella esperava, fitou-a com ar serio, e passado um momento redarguiu gravemente:

-- Que estaes dizendo? Tal nao farei. Julgaes-me tão louco que vá accusar a rainha?

D. Froyla fez um gesto de impaciencia. Franzindo os negros e formosos sobr'olhos e desprendenda chammas do olhar profundo, exclamou:

-- Pois deixareis ficar impune similhante traição?

Onde está a vossa lealdade e o vosso affecto a el-rei? Ah! proseguiu ella, n'um tom de cruel sarcasmo, esquecia-me de que não passaveis d'um judeu manhoso e interesseiro.

-- Senhora, atalhou D. Judas fingindo-se offendido, vêde que sois injusta. De bom grado delataria o traidor, mas não o posso fazer sem gravemente comprometter rainha, ou melhor dizendo, sem gravemente me comprometter a mim, porque el-rei, -- seria loucura pensar o contrario, -- el-rei nunca por coisa alguma castigaria a rainha. Se eu ousasse revelar-lhe similhante successo, el-rei tomar-me-hia por aleivoso, e como tal entregar-me-hia nas mãos de Lourenço Annes Redondo, e ai da minha pobre cabeça que serviria de alvo aos motejos da villanagem, cravada na picota de Lisboa, ali pelas bandas da Sé.

D. Froyla cravou um olhar de desprezo em D. Judas, o qual proferira estas palavras com a mais hypocrita humildade.

Passado um momento em que fingiu reflectir, D. Judas proseguiu:

-- Não succederia porém assim se por acaso, pois que o acaso é caprichoso, eu tivesse em meu poder a cedula que dei a Affonso Martins e a carta que a rainha escreveu ao infante. Então não poria duvida alguma em ir ter com el-rei e dizer-lhe: -- Senhor, achei, por um acaso inexplicavel, no fundo da minha escarcella, o pergaminho que aqui vêdes e esta cedula. O theor do pergaminho comprehendel-o-heis vós, o da cedula serei eu quem vol-o explique. Levara Affonso Fernandes este pergaminho e esta cedula para Coimbra, onde ora deve estar, e bruxas ou feiticeiros os puzeram em mãos do vosso fiel servidor. Ordenae a este respeito o que melhor vos approuver.

-- Não porieis duvida em fazer isso? atalhou com alvoroço D. Froyla.

-- Não, senhora, fal-o-hia com certeza, porque esse seria o meu dever.

-- E não recearieis que isso motivasse grande discordia entre el-rei e a rainha?

-- Que quereis vós que el-rei fizesse contra a rainha? El-rei tem-lhe grande affecto e o amor de mãe tudo desculpa.

-- E que julgaes vós que el-rei faria a Affonso Fernandes?

-- Quem sabe? a alma d'el-rei é negra. Vêde o que sua senhoria mandou fazer áquelles moradores de Leiria que não pozeram assaz resistencia quando o infante investiu a villa. Encarregou Lourenço Annes Redondo de os castigar, e passados dias cinco cabeças cravadas em postes, attestavam, para exemplo, qual era a severidade d'el-rei contra os traidores. E demais, não ignoraes de certo que el-rei mandou cartas geraes a todas as cidades e villas em que publica por traidores todos os que acudirem ao infante ou com elle andarem.

D. Froyla empallideceu. A natural doçura da mulher parecia querer suffocar os brados da vingança.

D. Judas, como que adivinhando isto mesmo, instillou mais uma gota de fel n'aquella alma empeçonhada pelo ciume.

-- Porém tudo isto é imaginario, disse elle com affectada indifferença; ainda D. Ermezenda gozará largos dias de amor com o escudeiro d'el-rei.

-- Se vós não achardes a cedula e a carta, atalhou D. Froyla com certa violencia.

-- Não é de crer similhante caso, disse D. Judas com .

-- Quem sabe? digo eu agora. A que hora partis amanhã para Lisboa? perguntou a joven decidida.

-- Partirei ao meio dia.

-- Affonso Fernandes parte antes. Com a precipitação da partida é possivel deixar por algum tanto da Alcaçova os documentos para o infante. Em todo o caso fallae comigo antes de vos irdes.

-- Bem, volveu D. Judas, logo de manhã tenho de ir fallar com um certo foreiro um tanto remisso no seu pagamento: á volta passarei pela alcaçova e fallarei comvosco para receber as vossas ordens, gentil senhora.

D. Froyla pozera-se de pé. A orla da fraldilha prendera-se-lhe na arca de modo que lhe deixara por um momento completamente descoberto o pésinho, porém D. Judas não deu por esta circumstancia, porque havia grande pedaço que de todo se esquecera de admirar o gracioso e delicado sapatinho da donzella. O ardor do sangue, que difficilmente resiste aos frios de sessenta invernos, cedera n'elle muito principalmente diante das perspectivas da cobiça.

Momentos depois a joven, embuçada com recatado donaire no seu manto, desapparecia pelos escuros corredores da alcaçova.

-- Vae-te, dizia D. Judas, fechando a porta, vae-te, anjo formoso e anjo mau; nem imaginas a tempestade que a tua louca vingança vae desencadear.

Era noite velha e ainda a luz brilhava na fresta da torre e ainda D. Judas, curvado sobre um pergaminho velho, computava e calculava a quanto poderiam ascender os rendimentos d'el-rei se os da rainha lhes fossem encorporados.

VI

O mensageiro da rainha

D. Diniz distinguiu-se por cobiça

memoravel nos seus aforamentos;

mas essa cobiça foi castigada,

abandonando-lhe muitas vezes

os foreiros as terras.

Herculano, Foraes.

A despeito da affirmativa do thesoureiro da rainha, o qual lhe dissera terminantemente que e Pero Bogalho abandonara as terras que trazia aforadas a el-rei, por já não poder pagar o fôro que o seu senhor lhe exigia, em razão de ser muito elevado e em desproporção com os rendimentos d'essas terras, D. Judas na sua cobiça difficilmente acreditava em tal calamidade, e queria por seus proprios olhos certificar-se do que era suceedido.

Por isso, como dissera a Froyla, mandou logo de manhã apromptar a mula em que viajava, porque a ossada carcomida pelos annos não lhe permittia faser caminhadas a pé, e pondo o seu chapeirão de gralcries abas, especie de signal sombrio e ominoso que fazia empallidecer os villãos que já o conheciam quando esse signal assomava no horizonte, D. Judas cavalgou no seu ginete habitual, atravessou a ponte levadiça, desceu o cerro sobre que se erguia a alcaçova, e tomou em frente pelo valle que ainda hoje se chama, da Assacaia.

Não seguiremos o judeu na diligencia em que vae, porque a mula, velha como elle e debilitada, senão pelas canceiras, ao menos pelos jejuns a que a alma avarenta do dono a obrigava, caminha vagarosamente, e contentemo-nos simplesmente com ver o thesoureiro d'el-rei D. Diniz affastar-se pelo valle fóra, escarranchado na mula, com as delgadas pernas pendentes ao longo dos desfalcados ilhaes, e o corpo e o balançando ambos ao mesmo compasso por effeito .

Entretanto, ainda que não nos convem, ou não nos é possivel seguir o honrado thesoureiro d'el-rei, e para clareza d'esta veridica historia que esperamos o seu regressso do alto do , por ser ponto d'onde se avista grande distancia, e pela expressão que lhe vimos na physionomia, ou por outro qualquer indicio, poderemos cessem não só de , o que effectivamente muitas vezes succedia, mas que D. Judas nem por sombras tentava ou discutir aos olhos do mundo.

Passado muito tempo, quando já, a avaliar pela altura do sol, se approximava a hora em que D. Judas promettera á donzella da rainha vir buscar os documentos que haviam de servir para a condemnação do infeliz escudeiro, appareceu D. Judas ao fundo do valle para onde se dirigira ao sair de alcaçova.

Porém, com extraordinario espanto de dois bésteiros que n'aquelle momento se achavam no terreiro da alcaçova, encostados á muralha, e de ha muito conheciam a pessoa e os costumes do amaldiçoado thesoureiro d'el-rei. D. Judas não trazia a mula na sua habitual e ronceira andadura, nem vinha compassada e mellancolicamente abanando o corpo com o judas de palha que o rapazio ata ao dorso de lazarento onagro em ; pelo contrario, agitando as pernas e batendo com os calcanhares na barriga do malaventurado animal, brandindo uma vara delgada e nodosa que costumava trazer em suas habituaes cavallarias. D. Judas estimulava a mula e fazia-a com immenso custo sustentar o mais vertiginoso galope de que havia memoria em bicho tão descarnado.

Extraordinario successo fôra de certo o que tinha provocado da parte do cavalleiro e do seu ginete tão violento esforço. Effectivamente, passado algum tempo depois de ter apparecido no horizonte o thesoureiro d'el-rei, grandes magotes de populacho, formados de individuos de ambos os sexos e de todas as idades, mas da condição da gente do campo, d'aquella villanagem que mais odiava o ovençal da corôa, por saber por obras e por fama que a elle eram em grande parte devidos os rigores e as odiosas exacções com que el-rei a opprimia, appareceram tambem na direcção d'onde vinha D. Judas.

Porém não era nenhum cortejo de honra ou de gloria o que assim seguia em rapida carreira o agora desventurado favorito de sua real senhoria. As pragas e blasphemias com que a villanaguem o mimoseava, já se ouviam da muralha da alcaçova onde estavam os dois bésteiros; e não eram só pragas e blasphemias que choviam sobre o misero, como tambem projectis de toda a casta, que os seus perseguidores, baizando-se, quasi sem interromper a carreira, apanhavam e lhe arremessavam com pontaria ora feliz, ora infeliz.

Apesar da distancia que D. Judas conseguira pôr entre si e os seus perseguidores, não deixava de ser terrivel a sua situação, porque a cada momento o alcançavam aquellas improvisadas armas d'arremesso, despedidas quasi sempre por mão possante, e que lhe arrancavam um guincho de dôr; mas D. Judas, com o olho ora na alcaçova, que elle considerava n'aquelle momento como a terra da , ora nos seus perseguidores, evitava o mais que podia os temerosos projectis, principalmente os que lhe eram dirigidos á cabeça, dobrando-se para este fim sobre o pescoço esgalgado do paciente animal.

Houve comtudo um momento em que D. Judas deu por segura a sua salvação: foi quando chegou ao pé do cerro, e lhe faltava portanto galgar este para se abrigar na alcaçova, cuja ponte levadiça estava por fortuna descida n'aquelle momento.

E era já tempo. Deshabituada de taes cavallarias, havia bom espaço que a mula começara a affrouxar na carreira, resfolegando d'um modo tão ruidoso e deploravel que o judeu receava, a cada momento, vêl-a estourar ou estatelar-se no caminho.

Além d'isso a turba vinha já tão proxima da alcaçova, que o seu vozear ensurdecia o pobre do thesoureiro, e os dois bésteiros, que do alto da muralha se recreavam com aquella scena, distinguiam as differentes exclamações:

-- Mata o judeu, mata o hereje, dizia um.

-- Apanhemol-o para o deitarmos ao Tejo, dizia outro.

-- É elle que aconselha sua real senhoria a que augmente os fóros, bradava um terceiro.

Porém quando D. Judas ia jã a meio do cerro, a turbia estacou de subito, e soltou unanimemente o seguinte brado:

-- Aponta bem, bésteiro.

Dera lugar a este bradio o que se passava no terreiro da alcaçova.

-- Quando os bésteiros conheceram que era o judeu quem fugia diante da turba, disse um d'elles para o companheiro:

-- Olha o pão do thesoureiro d'el-rei que vem perseguido.

-- Escapará d'esta?

-- Não escapa.

-- Escapa.

E levantou-se uma questão sobre a possibilidade do judeu subtrahir-se á vingança popular.

Quando D. Judas começou a subir o cerro, disse o que primeiro fallara:

-- Eu não te dizia, Lopo Ayras, que o maldito de D. Judas escapava?

-- Não escapa, te digo eu outra vez; aquella vibora com que el-rei nos chupa o sangue, ha de ir para os infernos d'esta vez.

E o bésteiro que assim fallava, alçando a bésta, estendeu n'ella um virote, e fazendo pontaria ao judeu, esperou que elle chegasse ao alcance do tiro.

Porém D. Judas, a quem a apertada situação fizera extraordinariamente vigilante, olhou tambem para a alcaçova e viu que perigo o ameaçava d'aquelle lado. A sua afflicção augmentou por isso d'um modo incrivel: se avançava para a alcaçova era com toda a certeza atravessado pelo virote do besteiro; se voltava para traz caía nas mãos da villanagem. Notando que a turba parara, parou tambem. Porém não pôde conservar-se muito tempo n'esta indecisão, porque os seus perseguidores, vendo que o judeu não estava ainda ao alcance do tiro, tornaram a correr sobre elle e a aggredil-o com as armas d'arremesso que podiam improvisar.

D. Judas tinha forçosamente de tomar uma resolução. Ente os dois perigos optou pelo que lhe pareceu menos serio. Dando de redea á mula, voltou-se para traz e inclinando-se para a esquerda, tomou uma direcção obliqua afim de escapar á turba que o perseguia.

Em razão do pequeno folego que tinha tomado, a mula recobrara novas forças, e como agora o caminho era em descida, mais facilmente o judeu se poria fóra do alcance da villanagem. Porém estava escripto que aquelle dia seria um dia de provação para o filho d'Israel. Quando D. Judas já concebia toda a esperança de escapar á vindicta popular, saiu da alcaçova um cavalleiro bem armado montado em possante corcel. Vendo aquelle alvorote e desejando saber o que fosse, o cavalleiro abalou rijamente na direcção da turba.

Quando os villãos viram vir aquelle cavalleiro bem armado sobre elles, ou por medo ou por prudencia, suspenderam a perseguição do judeu.

-- Tende mão, gente atrevida, bradou-lhes o cavalleiro; porque perseguis traiçoeiramente o honrado thesoureiro de sua senhoria el-rei?

-- Porque é o vexame de toda esta terra de Santarem, exclamaram alguns homens com voz possante.

-- Não sabeis que elle só cumpre as ordens de sua senhoria el-rei? redarguiu o escudeiro.

-- Ouvi, senhor escudeiro, atalhou um villão que empunhava uma fouce, não é só as ordens d'el-rei que elle cumpre. Ora vêde. Ainda ha pouco, sabendo que morrera Joannes Vaz, teimou que a mulher havia de pagar a luctuosa, e bem sabeis que Santarem está por seu fôro isenta de pagar um tal imposto.

-- E além d'isso, acudiu um homem espadaúdo que tinha na cabeça um bacinete e parecia ser besteiro, a D. Judas ouvi eu dizer, com os meus proprios ouvidos que sua senhoria el-rei e mais os seus cavalleiros eram uns covardes que nunca seriam capazes de conter em respeiro o senhor infante.

E dizendo estas palavras o que parecia bésteiro piscou disfarçadamente o olho para os que o rodeavam.

-- Pois o aleivoso proferiu similhante infamia! volveu o escudeiro.

-- Eu tambem ouvi! bradou grande numero em côro.

-- E alevantou por terceira vez o fôro de Pero Bogalho, acudiram varias vozes.

-- E fez com que o misero abalasse sem eira nem beira da terra que o vira nascer, accrescentaram outros.

Mas a este tempo já o escudeiro partira atraz do juseu.

-- Agora não escapa, vozeou a turba com frenesi.

Quando o judeu viu vir sobre elle aquelle fero cavalleiro de espada erguida, julgou-se perdido.

-- Deus d'Isaac e d'Abrahão, só vós podeis salvar-me das mãos do nazareno, bradou elle.

E apesar da sua confiança no Deus d'Isaac e d'Abrahão, fustigou desatinadamente as esbrugadas ancas da mula.

Porém de nada lhe serviu isso porque d'ali a momentos, voltando a cabeça, viu fulgurar a lamina d'uma espada e sentiu ao mesmo tempo ao longo das costellas, em sentido transversal, uma violenta pranchada.

Fosse por effeito do choque ou fosse por effeito do susto, D. Judas perdeu o equilibrio, caiu no mesmo instante da mula e ficou estatelado de costas na dura terra.

Foi immenso o seu horror quando n'aquella posição viu o escudeiro que lhe apontava a espada ao peito.

Fechando os olhos, pondo as mãos e encolhendo as pernas de modo que lhe ficavam quasi á , bradou:

-- Misericordia! Se augmentei o fôro foi por ordem d'el-rei; se pedi a luctuosa foi por ordem d'el-rei... não, não, foi porque julguei que Santarem não estava isenta de a pagar. Perdão, senhor escudeiro, perdôo-vos o que me deveis.

E conservando-se na mesma posição, em que dava ares d'enorme escaravelho deitado sobre o dorso, D. Judas esperava a cada momento sentir-se trespassado pela espada.

Não succedeu porém assim, e com bastante assombro, acabou por não ouvir perto de si o mais pequeno ruido. Animado com esta circumstancia atreveu-se a estender uma perna e em seguida a outra, depois começou por abrir um olho, após este o outro, e afinal ergueu um pouco a cabeça e olhou na direcção onde deviam estar os seus perseguidores.

O que então viu fêl-o erguer rapido, como se o impellisse rija mola de aço, e de suores feios. A villanagem tripudiava e em redor do escudeiro, que tirava d'uma escarcella varias moedas e generosamente as distribuia pela turba.

Em vez de trespassar o judeu, o mais humano, apanhara-lhe com a ponta da espada a escarcella que se lhe tinha desprendido na queda, e levara aquelle despojo do vencido em guisa de tropheu.

-- Desgraçaram-me, D. Judas arrepellando as barbas com desespero, desgraçaram-me para sempre aquelles malditos; a escarcella que elles despejam é minha, e aquelle dinheiro é o dos impostos de Santarem, de que hei de dar contas a el-rei.

E pobre judeu desatou a chorar com desespero.

-- Nazareno! exclamou. Conheço-te, és Affonso Fernandes. Eu contarei tudo a el-rei. Agora que tenho a certeza de qual é a tua missão, direi a sua senhoria o que vaes fazer a Coimbra. Morrerás, e a beata da rainha ha de padecer tambem. Oh! verão quanto pode a lingua d'um judeu desgraçado. Graças a vós, D. Froyla, que me proporcionastes o meio de me vingar...

-- Mas n'este ponto assaltou-o a idéa de que não podia ir á alcaçova buscar os pergaminhos que D. Froyla lhe promettera.

-- Não importa, disse elle, fallando comsigo e apalpando o peito, tenho aqui a cedula de Affonso Martins que já é uma prova. Sua senhoria el-rei ha de me acreditar e eu dir-lhe-hei o que me fez Affonso Fernandes, que me roubou os dinheiros pertencentes a el-rei, e que Pero Bogalho foi para uma terra pertencente á rainha. Mas... se eu fosse á alcaçova...

Bem depressa teve porém de repellir esta idéa, porque a turba que repartira o dinheiro, vendo que o judeu ainda ali se achava, dispoz-se a perseguil-o novamente.

D. Judas montou então o mais depressa que pôde, e dando uma varada na mula, varada que tambem lhe arrancou um grito, porque o movimento augmentou-lhe a dor que ainda tinha nas costellas, abalou precipitadamente em direcção ao alcaçar de Lisboa.

-- Apanhem-me agora, cães descridos; deixae estar, sanguesugas do meu corpo, que me haveis de cair nas mãos, exclamou elle.

E effectivamente a distancia tornou inutil a perseguição. Bem depressa a villanagem o perdeu de vista.

Quando Dw Judas e Affonso Fernandes já se achavam longe de Santarem, este a caminho de Combra, aquelle a caminho de Lisboa, saiu da alcaçova um outro escudeiro que tomou tambem a primeira direcção.

Quem elle fosse e a razão porque emprehendia uma tal jornada, é o que poderemos saber se entrarmos mais uma vez na alcaçova e virmos o que lá se passou depois que o thesoureiro-mór d'el-rei fôra acossado pela turba dos moradores da terra de Santarem.

Como havemos de estar lembrados, D. Judas combinara com D. Froyla que á volta da excursão que tinha de fazer por causa de certo foreiro remisso, entraria na alcaçova a fallar com ella antes de partir para Lisboa.

Quando a donzella soube da assuada feita a D. Judas e da impossibilidade em que elle se achava de ir á alcaçova cumprir o promettido, sentiu immenso dissabor, ao qual pouco faltou para tocar nas raias do desespero. Porém o seu espirito diabolico, estimulado pela raiva dos zelos, bem depressa atinou com um meio de tudo remediar.

Era simples este meio.

Á similhança do que D. Judas fizera, Froyla resolveu explorar em proveito dos seus resentimentos, a paixão e o desvario alheio. Sabendo quanto Fernão Froyão, um outro escudeiro da casa d'el-rei, que então se achava tambem em Santarem, amava a dama dos pensamentos de Affonso Fernandes, e sabendo tambem que elle se supunha correspondido, D. Froyla não hesitou em se lhe dirigir no intento de fazer d'elle instrumento dos seus tenebrosos projectos.

Ia já adiantada a tarde quando a donzella encontrou Fernão Froyão n'um dos corredores do alcaçar.

-- Senhor Fernão Froyão, disse ella ao escudeiro, folgo muito de vos encontrar, porque hei gran mister da vossa ajuda. Tenho-vos na conta de cavalleiro muito servidor das damas, e espero por isso que não me haveis de recusar o que de vós pretendo.

-- Não passará, vos asseguro, por mentirosa a vossa esperança, gentil senhora, redarguiu o escudeiro, não pouco d'aquellas palavras. Dizei em que vos poderei servir, que vos prometto, dado mesmo que preciseis do meu sangue para vossa defensão, que de bom grado e promptamente verterei o meu sangue por vossa causa.

-- Não esperava menos dos vossos , senhor cavalleiro, porém não hei mister de tamanho sacrificio.

-- Dizei pois o que quereis, senhora.

-- Passo a satisfazer-vos, senhor cavalleiro. El-rei, atalhou D. Froyla, fingindo que a assaltava uma idéa subita, esquecia-me de primeiramente fazer-vos uma pergunta.

-- Que pergunta, senhora?

Froyla redarguiu, sorrindo apparentemente sem segunda intenção, e d'um modo seductor.

-- Já destes os emboras ao vosso amigo e companheiro Affonso Fernandes?

-- Emboras porque, senhora da minha alma? perguntou o moço escudeiro sobremodo admirado.

-- Pela proeza que acaba de cometter.

-- Cada vez vos comprehendo menos. E demais não sei de lide que ultimamente houvesse, na qual Affonso Fernandes tivesse ensejo de obrar alguma façanha.

A joven sorriu-se por segunda vez.

-- São outras façanhas, façanhas de amor.

-- Ah! exclamou o mancebo com ar indifferente.

-- E não imaginaes qual fosse o premio da victoria?

-- Á minha fé que não imagino.

-- Pois nem sequer suspeitaes quem seja? perguntou a donzella com vehemencia, olhando fito para o escudeiro.

D'esta vez, ao ver a insistencia da joven, Fernão Froyão concebeu uma singular suspeita.

-- Quem é? perguntou elle com interesse.

-- Ermezenda, respondeu Froyla em tom breve.

O escudeiro recuou um passo.

Uma hacha d'armas que lhe resvalasse n'aquelle momento pelo elmo, não lhe causaria maior abalo.

-- Enganae-vos, senhora, redarguiu elle com firmeza.

-- Não me engano, senhor escudeiro, nem vos minto. Por esta sagrada reliquia que o nosso santo bispo Domingos Annes Jardo trouxe de Roma, accrescentou a donzella, tirando do seio uma reliquia do santo lenho e beijando-a, vos juro que é verdade o que acabo de dizer. E demais, ouvi.

E em tom rapido, mal dissimulando o resentimento que lhe lavrava na alma, a donzella contou a scena que narrámos no primeiro capitulo.

Fernão Froyão estava pallido. Quando Froyla acabou a sua narrativa, levou machinalmente a mão ao punho da espada.

Este gesto não passou desapercebido á donzella, cujos olhos se animaram com sinistro jubilo.

-- Porém ainda não vos disse o que de vós carecia, proseguiu Froyla, passando com simulada indifferença para assumpto diverso.

-- Dizei-m'o que eu vos escuto, redarguiu Fernão Froyão com ar distrahido.

-- Vêdes este escripto fechado e sellado? perguntou a donzella.

-- Vejo, respondeu o mancebo, mal olhando para o objecto que lhe mostravam.

-- Este escripto devia ser levado a el-rei por D. Judas.

Froyla olhou fito para o mancebo. Este pareceu acreditar inteiramente n'aquellas palavras.

-- Porém D. Judas, continuou a donzella, com a precipitação da partida deixou-o na alcaçova, e é mister que elle seja entregue quanto antes a el-rei D. Judas não pode ir longe. Farieis pois um grande serviço partindo no encalço de D. Judas, e entregando-lh'o logo que o alcançasseis.

-- De bom grado vos farei o que pedis, senhora, apesar das ruins novas que ha pouco me destes e com as quaes me affugentastes mil sonhos de ventura.

E dizendo estas palavras pegou no escripto.

Foi n'aquelle momento que verdadeiramente attentou n'elle.

-- Que vejo! disse. Tem o sello da rainha! Não era este o escripto, que segundo ouvi dizer, Affonso Fernandes devia levar a Coimbra?

D. Froyla hesitou na resposta.

-- Não, senhor escudeiro, esse leva-o elle a estas horas, respondeu ella afinal fazendo um esforço. O que vós aqui vêdes é para el-rei.

Fernão Froyão, acreditasse ou não n'aquellas palavras, guardou distrahidamente o rolo de pergaminho.

-- Agora, disse D. Froyla com os olhos quasi chammejantes, já que condescendeis em prestar este serviço, não vos demoreis. Parti depressa. Facilmente alcançareis D. Judas, e antes da noite deveis estar de volta á alcaçova.

-- Parto já, gentil senhora, porém quanto á volta, -- se voltar, -- não serei tão breve.

E dito isto Fernão Froyão partiu a cumprir o pedido da donzella que elle vagamente suspeitava ser por ordem da rainha.

Froyla exclamou então, como se fatiasse comsigo mesma:

-- Afinal nem foi preciso fazel-o cumplice da minha intriga. Vae d'este passo no alcance de D. Judas, suppondo talvez que vae em serviço da rainha e depois, -- leio-lhe uma intenção sinistra no olhar, -- depois partirá no alcance do seu rival. Affonso, Affonso, o meu procedimento vejo agora que é impensado e perigoso, porém tu difficilmente escaparás.

D'ali a momentos saía de Santarem a toda a brida um outro escudeiro. Era o mensageiro de Froyla.

Porém esta enganara-se um pouco. Em vez de ir no alcance de D. Judas, o escudeiro, movido de secreto designio, partiu no alcance de Affonso Fernandes pelo caminho de Coimbra.

VII

O juizo d'el-rei

Aconselharam el-rei que apartasse

de si a rainha e que lhe tolhesse

as villas e os logares que

per o Reino tinha e as rendas

que havia.

Brandão - Monarchia Lusitana

Correu a jornada de D. Judas sem incidente notavel. Esquivr-nos-hemos por isso a descrevel-a, o que, por demasiado monotono, tornar-se-hia sobremodo enfadonho. Para não perdermos porém o fio d'esta veridica historia, fio trabalhosamente seguido por entre amarelladas e comidas folhas de^ volumosas chronicas, tão respeitaveis pela gravidade que respiram como pelo numero de annos que contam de existencia, iremos encontrar o judeu já nos paços do castello, onde é provavel tivesse sua morada. Não nos esclarecem n'este ponto as chronicas que deixamos citadas, e nós, se por indole e por dever não fossemos inexoravel e meticuloso em cousas de historia, affirmariamos muito positivamente que D. Judas ali morava, porque não é de crer que um personagem de tanta importancia como o rabi-mór dos judeus e thesoureiro-mór d'aquelle bom e manhoso rei D. Diniz, vivesse muito afastado do seu senhor, para quem as questões de dinheiro, segundo opiniões competentissimas, eram da maior importancia, e havia portanto de folgar em ter sempre á mão a pessoa que geria os seus dinheiros, e que melhor entendia, como judeu que era, de questões d'algarismos, de impostos e de usuras.

Deixando porém este importantissimo ponto á decisão do esclarecido criterio de quem por estranho capricho nos houver acompanhado n'esta semsaborona narração, encaminhar-nos-hemos para a entrada da alcaçova, subiremos a ladeira que principiava n'aquelles bons tempos no patim de castello, e inclinando-nos um pouco á direita, daremos entrada na edificação chamada paços da alcaçova, onde el-rei D. Diniz costumava morar quando se achaca em Lisboa, o que nem sempre succedia, porque D. Diniz gostava muito, como rei burguez que era, de vaguear pelo reino, e ora residia em Santarem, ora em Lisboa, ora em Leiria. Subindo as escadarias já gastas pelos annos, entraremos no aposento onde el-rei se achava, e onde acabara de tomar a sua segunda refeição, o que indicava que pouco mais era de meio dia, porque n'aquelles tempos, que se podem quasi chamar patriarchaes, qualquer estomago, mesmo o d'um rei, exigia que o jantar se servisse á hora em que os estomagos degenerados do nosso tempo mal comportam comida que pela sua ligeireza não possa ter o epitheto fidalgo e estrangeirado de lunch.

O aposento era alcatifado e tinha as paredes tambem cobertas de tapeçarias onde estavam representadas algumas scenas religiosas e de cavallaria. Ao meio do aposento havia uma mesa comprida, coberta com uma fina tela, á maneira das toalhas d'hoje. A mesa rea ladeada de varios assentos e escabellos, e no topo viam-se duas cadeiras d'espaldar onde provavelmente se sentavam o rei e a rainha. Arrumados ás paredes do aposento havia varios bofetes de madeira escura, com lavores e embutidos. Sobre estes bofetes, segundo o costume d'então, via-se toda a baixella de ouro e prata pertencente á casa do rei, como escudellas, copas, vasos, picheis, talhadores e bacios, e muitos outros objectos de valor.

El-rei estava n'aquelle momento sentado no poial comprido d'uma profunda janella em ogiva, e com a mão sobre os olhos, para os abrigar dos raios do sol, parecia attentamente observar o andamento de duas galés que vinham rio acima puxadas á força de remos, e que provavelmente pertenciam á esquadra portugueza do commando do almirante Manuel Pezagno, genovez que el-rei mandara vir de proposito para dar incremento á marinha de guerra, a qual mais tarde tanta gloria havia de trazer a Portugal, na grande epocha das conquistas e navegações.

Quando mais attento se achava n'aquella contemplação, o leve ruido d'um reposteiro corrido por um pagem fêl-o voltar a cabeça.

O nosso conhecido D. Judas acabava de entrar.

Respeitosamente encolhido, o judeu avançou até razoavel distancia d'el-rei e fez uma mesura tão humilde que em vez de formar com o corpo um angulo obliquo. como é costume em todas as mesuras, chegou a formar um angulo recto, o qual teria de certo chegado a angulo agudo se os estudos gymnasticos de D. Judas o habilitassem a fazer uma proeza de que só era capaz algum folião ou bobo d'el-rei em occasião de festejos ou momos no paço.

D. Diniz levantou-se, voltou para dentro, e depois que D. Judas se endireitou, disse-lhe:

-- Soube que ereis chegado de Santarem e por isso vos mandei chamar. Que novas me trazeis de lá?

-- A respeito do senhor infante nada mais posso dizer além do que já sabeis.

-- Pois não era chegado ainda a Santarem o escudeiro Affonso Fernandes?

-- Chegou um dia antes de eu partir, respondeu D. Judas fazendo uma leve careta e um pequeno movimento de hombros, como pessoa que tem as costas doridas.

A el-rei não passou desapercebido o movimento. Não adivinhando porém a causa que o motivara, disse:

-- Já estaes velho para tamanhas jornadas, D. Judas. O vosso zelo ha de matar-vos.

Os olhinhos do judeu fuzilaram quando el-rei lhe disse estas palavras. Foi um relampago de alegria e de odio. D. Judas ia abrir a boca para retorquir áquella observação, mas el-rei não lhe deu tempo, e D. Judas, desanimado, teve de cerrar os labios.

-- E que novas trouxe o escudeiro?

D. Judas contou fielmente a el-rei tudo o que Affonso Fernandes dissera á rainha, por occasião da sua chegada a Santarem.

Quando elle acabou el-rei estava pallido.

-- Não ha mais remedio, disse elle. Terei de novamente sair em hoste a impedir pela força das armas que D.Affonso continue nas suas fevastações.

Mas no mesmo instante, como que assaltado por idéa subita, redarguiu:

-- E que resultado colhestes das vossas diligencias quanto á cobrança de Santarem?

D. Judas tomou o folego: era por esta pergunta que esperava.

-- Ah! senhor, respondeu elle, fazendo uma cara tão magoada que moveria á compaixão outro que não fosse D. Diniz, foi uma desgraçada expedição aquella.

-- Pareceis-me, hoje, D. Judas, uma ave de ruim agoiro; não daes senão novas aterradoras. Assustar-me-hieis se não soubesse por experiencia que sois o judeu das lamentações e dos prantos todas as vezes que se vos falla em coisas respectivas ao vosso mester. Deixae-vos pois de lastimas e fallae com isenção e com verdade.

D. Diniz proferiu estas palavraas com impaciencia.

Mas d'esta vez D. Judas em logar de se aterrar folgou com a disposição em que via o animo do seu senhor.

-- Oh! bem sabe vossa real senhoria, redarguiu com o seu ar humilde, que sou homem verdadeiro, e a prova é a confiança com que vós me honraes. D'esta vez, senhor, tão certo como eu ser judeu e vós serdes christão, venho de Santarem tão pobre como Job, o meu antepassado. Com a differença porém que Job soffria com paciencia as suas miserias, e eu mal soffro a dôr de duas costellas quasi partidas em serviço d'el-rei meu senhor.

A impaciencia d'el-rei cedeu n'elle logar ao assombro.

-- Não vos entendo, D. Judas, disse D. Diniz. Que tem que ver o meu serviço com as vossas costellas ou as de qualquer judeu?

-- Ah! senhor el-rei, as dores do meu pobre corpo são o menos, disse D. Judas fazendo uma visagem de magoa que não condizia com as palavras que acabava de proferir, porém o que é mais é que a bolsa em que trazia o dinheiro que devia hoje entrar nas vossas arcas, anda a estas horas nas mãos da villanagem de Santarem.

-- Que dizeis, D. Judas, exclamou D. Diniz fazendo um gesto de colera, ensandecestes ou destes, sendo judeu, em mostrar virtudes de christão? O que fizestes ao dinheiro que não vos pertencia, espalhastel-o em esmolas?

-- Ah! senhor el-rei, o vosso leal servidor foi roubado e espoliado d'um modo infame pelos villãos de Santarem, e além d'isso maltratado cruamente por um escudeiro da vossa casa.

D. Judas encarava em el-rei com os olhos, ao que parecia arrasados de lagrimas. Para despertar maior interesse ao seu senhor, o manhoso judeu calou-se no meio das suas lamentações.

D. Diniz ao ouvil-o assim fallar, carregou os sobr'olhos e e exclamou encolerisado e impaciente:

-- Comtinuae, D. Judas, continuae; de que roubo estaes fallando; a que cavalleiro vos referis?

D. Judas deu-se pressa em proseguir:

-- Quando andava informando-me do modo como se fazia a cobrança dos vossos reaes direitos, os villãos de Santarem atacaram-me para me roubar.

Bradei por soccorro, e por felicidade vi sair da alcaçova um escudeiro completamente armado. Ah! senhor el-rei, achei-me enganado nas minhas esperanças. Esse escudeiro em vez de me valer, deu razão aos villãos, aggrediu-me com violentas pranchadas brandidas pelo seu pulso vigoroso, derribou-me da mula, pizou-me com as patas do seu corcel, apontou-me a espada á garganta, exigiu-me que lhe entregasse a bolsa dos dinheiros d'el-rei, e como eu corajosamente resistisse, elle mesmo m'a tirou e arrancou, distribuindo o seu contheudo pelos villãos que me insultavam a mim, que vos insultavam a vós. E tudo isto porque, senhor?

D. Diniz estava pallido e olhava com rancor e duvida para o seu servidor.

-- Porque? disse elle machinalmente.

D. Judas, dissimulando sob as suas lagrimas a alegria que já começava a invadil-o, tomou novamente o folego, e contou a el-rei tudo o que lhe succedera com a turba, mas adulterando e exaggerando, como exaggera as pranchadas do escudeiro.

Quando elle acabou D. Diniz, cuja exaltação diminuira um pouco, redarguiu-lhe:

-- Bem, logo que Pero Bogalho não quiz pagar o fôro, porque não fizestes penhorar os seus haveres pelo porteiro do concelho?

-- Ah! senhor, como podia eu fazel-o se o villão abalara, abandonando a vossa terra com a mulher, os filhos e os haveres?

E para onde foi o villão?

-- Foi, segundo me certificaram, para Leiria, para umas terras pertencentes á senhora rainha.

-- Pois a senhora rainha abrigou-o depois de similhante procedimento?

-- Bem sabeis quanto a senhora rainha é boa e caritativa, redarguiu D. Judas com o seu ar hypocrita; condoeu-se da mingoa d'aquelles desgraçados e deu-lhes um fôro mais favoravel.

-- Oh! volveu D. Diniz com inflexão inexplicavel, a minha senhora D. Isabel é muito caritativa, sempre o foi; é mais do que isso, é uma santa.

E D. Diniz começou a passear pelo aposento, com as mãos atraz das costas.

Por algum tempo não se ouviu ali mais do que o ranger abafado dos seus sapatos de bezerro sobre o chão alcatifado do aposento.

D. Judas aguardava, a um tempo alegre e receoso, o resultado da colera d'el-rei, porque el-rei estava effectivamente encolerisado.

De repente el-rei disse, continuando a passear:

-- Sabeis que vou recomeçar a lucta com meu filho e que é preciso dinheiro.

-- É a primeira vez que tenho a honra de o ouvir dizer a vossa real senhoria.

D. Diniz continuou a passear e proseguiu:

-- Portanto é da vossa bolsa que ha de sair o dinheiro da cobrança de Santarem e que vós talvez, com o vosso zelo excessivo, perdestes ou deixastes roubar.

D. Judas fez-se fulo; tudo esperava menos isto.

-- Ah! senhor, exclamou elle, e d'esta vez com verdadeiras lagrimas a marejarem-lhe os olhos, se carreguei mais o fôro de Pero Bogalho, foi porque vós m'o ordenastes. E como poderei eu pagar a vossa real senhoria?

E D. Judas, vendo o perigo em que se achava, resolveu-se a tudo ganhar ou tudo perder, inclusive a propria cabeça.

-- Como poderei eu pagar a vossa real senhoria proseguiu elle, se alguns dinheiros que possuia e estavam em mãos de Salomão Arbabanel, judeu de Coimbra, se esses mesmos já não tenho e não hei grandes esperanças de os recuperar tão breve como me foi promettido?

-- Se os não tendes arranjae-os, atalhou el-rei com violencia.

-- Oh! exclamou D. Judas com affouteza, se eu soubera não os tinha emprestado quando Affonso Martins m'os pediu em nome da senhora rainha.

Ao ouvir estas palavras D. Diniz estacou. Endireitando a estatura já um pouco alquebrada pelos annos, e fitando no judeu os seus olhos claros, nos quaes se notava extraordinaria vivacidade e intelligencia, apesar da expressão um pouco vulgar e sensual da sua physionomia, D. Diniz exclamou com violencia.

-- Mentis, D. Judas; que precisão tem a rainha do vosso dinheiro?

D. Judas poz a mão no peito e respondeu com ar humilde:

-- Pela sagrada toura vos juro, senhor, que não minto, pelo Deus de Abrahão, de Isaac...

Mas detendo a corrente de juras que ia a escapar-lhe, continuou:

-- Quem me pediu o dinheiro foi Affonso Martins para o mandar para Coimbra.

E D. Judas narrou tudo o que passara com o thesoureiro, e como Affonso Fernandes partira para Coimbra a levar o dinheiro que elle D. Judas asseverava ser para o infante.

E afim de melhor comprovar o que dizia, apresentou a el-rei a cedula que o thesoureiro lhe passara.

D. Diniz pegou n'ella e leu-a attentamente.

Quando acabou disse com fingida tranquillidade:

-- Deve aqui chegar brevemente Gonçalo Peres Ribeiro que de certo ha de querer encorporar-se na minha hoste, e d'elle obterei mais algumas informações sobre isso que dizeis.

-- Gonçalo Peres Ribeiro já aqui estaria, senhor, acudiu D. Judas, aproveitando mais este ensejo para acabar de urdir a sua intriga, se a senhora rainha não o dissuadisse de vir encorporar-se na hoste d'el-rei. A senhora rainha evita o mais possivel tudo o que possa atear a discordia entre vós e o senhor infante, concluiu o judeu hypocritamente.

El-rei machucava nervosamente, com immenso terror de D. Judas, a cedula que este lhe havia dado.

Afinal, atirando com a cedula para cima d'um movel, disse em tom concentrado:

-- Portanto esse Affonso Fernandes é culpado de varios delictos: de vos ter espancado, de ter incitado a villanagem á rebellião, de ter fallado em desfavor d'el-rei, de andar agora com o infante, de ter...

Mas aqui el-rei deteve-se, e passado um instante proseguiu como se fallasse comsigo:

-- Partiremos mais tarde ou mais cedo contra o infante, e havel-o-hemos ás mãos, a esse traidor escudeiro. Succeder-lhe-ha o que succede aos traidores que se põem ao serviço do infante.

E depois, dirigindo-se para D. Judas, disse-lhe:

-- Ide-vos.

D. Judas saudou el-rei respeitosamente e retirou-se, não sem primeiramente ter lançado mão da cedula de Affonso Martins.

Quando D. Judas atravessava o terreiro em frente do alcaçar, esfregava as mãos de satisfeito.

-- Pobre Affonso Fernandes, dizia elle a meia voz, não suspeitando nada, como has de escapar? E a rainha? El-rei está como uma vibora.

E todo entregue ao seu contentamento D. Judas desceu ao patim do Castello, franqueou a porta principal, e tomando pela encosta abaixo, ao longo da muralha, saiu pela porta do Ferro.

D'ali encaminhou-se para a rua nova e entrou na tenda ou loja de Isaac Soleima, a cobrar a importancia da cedula.

Foi aquelle um dia feliz para D. Judas. Isaac Soleima não poz duvida em entregar-lhe á vista da cedula, duzentas e vinte libras de contado em boa prata.

Dias depois, quando soava o primeiro toque da manhã no sino da cathedral, partia dos paços do castello um mensageiro em direcção a Santarem.

Que missão levava elle? Eis o que D. Judas tratou logo de inquerir. Não lhe foi isso muito difficil, porque mesmo n'aquella tarde D. Judas podia segredar ao seu amigo o physico-mór do paço a extraordinaria nova de que sua senhoria tirara os rendimentos a sua mulher, por ter obtido a certeza de que ella os applicava muito mal, enviando importantes ajudas de dinheiro ao infante D. Affonso.

E a esta nova accrescentou tambem o que Ruy de Pina conta pelas seguintes palavras: «El-rey apartou de si ha rainha e ha mandou para Alanquer.»

VIII

O combate singular

This is indeed the judgment of God.

Walter Scott -- Ivanhoe.

Como se vê, não fôra preciso que el-rei visse a carta escripta pela rainha ao infante para acreditar nas palavras envenenadas de D. Judas. Explica-se esta demasiada credulidade pela muita confiança que depositava em D. Judas e pelas suspeitas que ha muito trazia da parcialidade da rainha a favor de seu filho.

Mas como succedia que tendo Fernão Froyão partido de Santarem para Lisboa com o pergaminho que Froyla lhe dera para ser entregue a D. Judas, como succedia não haver a mais pequena noticia do escudeiro?

Volvendo atraz na nossa narrativa, e acompanhando Fernão Froyão desde o momento em que partiu da alcaçova de Santarem, facilmente obteremos a explicação do successo, com que de certo não contara a zelosa donzella.

Em vez de se dirigir directamente a Lisboa, o escudeiro, dominado por idéa sinistra, tomou o caminho de Coimbra.

Facilmente se adivinha a intenção com que Fernão Froyão ia no encalço do seu companheiro em armas, se reflectirmos que elle tambem julgara, illudido pelas suas esperanças, entrever nos formosos olhos d'Ermezenda doces raios d'amor, os quaes afinal eram apenas irradiações seductoras proprias da alma amoravel e meiga da donzella, que constantemente lhe realçavam a formosura e facilmente illudiam e atrahiam os que a fitavam menos despreoccupadamente.

Fôra o que succedera ao desditoso escudeiro, e por isso agora, enganado e illudido, compenetrado da falsa idéa dos direitos que não lhe assistiam, ia em carreira vertiginosa após o seu rival, a quem queria castigar e afogar em sangue o que elle reputava grande ousadia.

Não logrou no primeiro dia de jornada alcançar, como desejava, o mensageiro da rainha; porém na segunda noite foi mais feliz, e pôde achar-se em frente do seu rival.

Antes porém de se dar o encontro dos dois escudeiros, precederemos Fernão Froyão e veremos em primeiro logar o que fazia Affonso Fernandes quando o seu perseguidor estava prestes a alcançal-o.

Amanhecera o segundo dia de jornada formoso, sereno e ardente, mas, por uma d'essas repentinas mudanças tão faceis de se darem em tempo calmoso, ao cair da tarde cobrira-se o céo de pesadas e tenebrosas nuvens, e a atmosphera tornara-se densa e oppressiva.

Pouco tardou que formidaveis relampagos não começassem a fender as nuvens, abrindo a espaços nos seus seios cavernas immensas e abysmos profundos, illuminados momentaneamente por temerosas linguas de fogo, cujo clarão rubido e deslumbrante offuscava os ultimos resplendores do sol que se immergia, prestes a apagar-se, nas nuvens menos densas e mais raras que principiavam a velar o poente.

Quando o ultimo clarão do dia se desvaneceu de todo, fulgiu um relampago mais intenso, estalou nos ares o primeiro trovão, e grossas gotas d'agua desprenderam-se dos seios dilacerados das nuvens.

Ao ver os primeiros annuncios d'uma noite terrivel e tempestuosa, Affonso Fernandes esporeara o corcel e fizera-o accelerar a carreira.

Fôra o seu intento chegar ao primeiro povoado antes que a tempestade se desencadeasse com mais furia; porém não lhe succedeu como queria, porque antes de lá chegar, uma chuva torrencial, acompanhada do fulgurar dos relampagos e do temeroso ribombar dos trovões, despenhava-se das alturas com impeto que ameaçava não abrandar tão cedo.

Affonso Fernandes, para se preservar d'aquelle diluvio, embuçou-se no seu çorame, e continuou a jornada com rapidez.

Mas afinal, vendo que a chuva não abrandaria tão cedo, e o seu corcel começava a dar signaes de fadiga, entendeu que o melhor seria procurar um abrigo e esperar que a tempestade affrouxasse de cansada. O unico abrigo que se lhe offereceu, foi uma arvore muito copada que alongava em redor de si os seus compridos ramos cobertos de densa folhagem. Dirigiu-se para ali, e esperou sem se apear, que o seu corcel descansasse ou que a tempestade lhe permitisse proseguir na jornada a passo mais moderado.

Estava n'aquelle sitio havia pouco tempo, quando de repente viu o cavallo arrebitar as orelhas e resfolegar com força.

Prevenido por este incidente, Affonso Fernandes,, cujo pensamento estava de certo longe d'alli e vagueava talvez por algum mysterioso aposento da alcaçova de Santarem, concentrou a attenção no que se passava em volta de si. A principio nada viu que justificasse a agitação do corcel, porém pouco tardou que aos ouvidos não lhe chegasse um ruido que sobresaía d'entre o rumor abafado da chuva batendo no solo e na folhagem densa dos ramos que o abrigavam.

Este ruido foi-se aproximando gradualmente e tornando mais distincto.

Quando Affonso Fernandes percebeu que era o galopar d'um cavallo, preparou-se para algum encontro perigoso no meio d'aquelle descampado, desembuçou-se com a maior tranquillidade, enrolou o seu çorame e prendeu-o no arção dianteiro. Em seguida embraçou o escudo que tirou da funda, e desembainhando a sua espada larga e curta, firmou-se bem nos estribos e colhendo um pduco as redeas aguardou o que podesse succeder.

Devia Affonso Fernandes confiar mais na força do seu braço e no seu valor do que na propria armadura, porque era incompleta e um pouco ligeira. O escudeiro apenas pozera um peito de aço, enfiara uns braçaes, e cobrira a cabeça com um capello de vizeira, mas sem defesa de malha para o pescoço. No resto do corpo não trazia defesa alguma de lamina nem de malha d'aço, confiando talvez, como já dissemos, apenas na boa folha da sua espada d'armas manejada pelo braço agil e vigoroso que a empunhava.

Na attitude defensiva esperava pois Affonso Fernandes o que succedesse. A este tempo diminuira a chuva, e sómente os relampagos continuavam a vibrar nos ares as suas linguas de fogo, illuminando a espaços o campo solitario e desolado.

D'estes clarões momentaneos aproveitava-se o escudeiro para alongar a vista á maior distancia, e procurar dividar quem se aproximava. Effectivamente d'uma das vezes avistou o vulto muito distincto d'um cavalleiro armado, e cujo arnez e capacete polidos scintillaram feridos por um relampago. Comtudo não lhe foi logo possivel conhecer quem fosse.

Ao approximar-se da arvore onde se abrigava Affonso Fernandes, o recem-chegado colheu as redeas ao corcel que resfolegava ruidosamente.

-- Segundo dia perdido, bradou elle em voz alta, julgando que ninguem o escutava. Affonso Fernandes parece levar azas. É provavel que a estas horas já esteja em Thomar, abrigado talvez n'alguma cella dos cavalleiros de Christo, onde pediu agasalho d'uma noite.

Quando acabava de proferir estas palavras, novo relampago illuminou o recem-vindo. As scintillações que fulguraram em todo o seu vulto, deram a conhecer que elle vinha bem armado, e que além do arnez e de braçaes, trazia grevas e coxotes, e nos intervallos que estas peças deixavam entre si apercebia-se o entrançado de fina malha de aço. Cobria-lhe a cabeça um bacinete de , isto é com defesa de malha para o pescoço.

Affonso Fernandes, que o observava do seu abrigo, onde o recem-chegado não o podia ver facilmente, ao reconhecel-o e ao ouvir-lhe as palavras que proferira, e cuja explicação não podia encontrar, bradou-lhe com voz sonora, mas em que não se manifestava a menor sombra de receio ou desconfiança:

-- Não estou ao abrigo de nenhuma cella dos bons cavalleiros de Christo, Fernão; infelizmente só tenho para me abrigar esta arvore que tambem vos pode dar o mesmo agasalho. Porém haveis proferido o meu nome: acaso me procuraveis?

Fernão Froyão ao apparecer-lhe tão inopinadamente o seu rival, sentiu uma commoção tão violenta, não de susto mas de assombro, que machinalmente puxou as redeas ao cavallo e o fez recuar de salto.

Readquirindo porém no mesmo momento o sangue frio, exclamou com voz socegada mas vibrante e acerada como o gume d'uma espada d'armas.

-- Procurava-vos, sim; ha dois dias que não dou descanso ao meu cavallo, que não dou treguas á minha impaciencia, e venho em vosso seguimento.

-- Porque? exclamou o mensageiro da rainha, assombrado extraordinariamente, não só d'aquellas palavras, como tambem e muito principalmente do tom singular em que eram proferidas.

-- Porque? volveu o mensageiro de Froyla com o mesmo tom em que primeiro fallara; pois ainda m'o perguntaes? Não voz diz o coração qual seja o motivo que me traz em vosso seguimento, armado, e fortemente armado, não só do meu arnez, da minha espada e do meu punhal, como da minha colera, do meu odio, dos meus desejos de vingança?

-- Cada vez vos comprehendo menos, Fernão, redarguiu Affonso Fernandes com o mesmo tom pausado e cheio de assombro. Que tenho eu com o vosso odio, com a vossa colera, com os vossos desejos de vingança? Acaso esses maus sentimentos são contra mim? Por minha fé, repito, que não vos comprehendo.

-- E eu, por minha fé, vos digo que me parece não quererdes comprehender-me, que me parece que sois covarde.

-- Fernão! bradou o mensageiro da rainha com a voz já um pouco turbada. Medi as vossas palavras, pois que bem sabeis que sou muito capaz de as medir com a espada a quem não as mede com a cortezia. Porém, em quanto vós não vos explicardes, irei imputando ao desvario e á loucura o que não posso imputar ao odio e ao rancor justificados. Entretanto, ai de vós, se com razão ou sem ella, repetirdes essa palavra. Na garganta vos cortarei a perfidia com esta espada.

E o escudeiro, agitado já por um furor que debalde procurava reprimir, brandiu a espada com um gesto de ameaça.

Fernão Froyão, em vez de responder, desembainhou a sua, e pondo-se em altitude defensiva exclamou com uma voz concentrada e tremula de colera:

-- O que uma vez disse, não retiro: tenho-vos na conta de covarde, e ainda mais, na conta de traidor. Vós ides a Coimbra, em missão da rainha: essa missão não pode ser senão em desserviço d'el-rei.

Quando mal acabava de proferir estas palavras, teve de aparar no escudo um golpe da espada do seu adversario, vibrado com vigor inexcedivel.

O escudo resistiu e a espada resaltou.

No mesmo instante um golpe igual soava no esctudo do mensageiro da rainha; porém, ou porque a espada fosse de melhor tempera ou o escudo menos resistente, a espada embebeu-se no escudo, e por pouco não chegou ao braço de quem o embraçava.

Decididamente Affonso Fernandes estava logo no começo do combate em situação desfavoravel. Comtudo não se intimidou, e proseguindo na lucta com ardor e denodo inexcediveis, exclamou:

-- Não são de tão boa tempera as minhas armas, mas a minha alma é superior á vossa na tempera dos seus instinctos. A inveja, a baixa inveja, o ciume de me verdes gozar tanto do valimento d'el-rei como do valimento da rainha, é que vos moveu a assaltar-me de noite, na estrada, como qualquer bandido que assalta o viajante.

E um golpe vibrado com força incrivel resvalou pelo escudo e apanhou Fernão Froyão na coxa.

Porém o escudeiro trazia coxotes e a espada embotou o fio nas laminas de que eram formados.

Ao ver a inutilidade dos golpes do seu adversario, o escudeiro soltou uma gargalhada estridente e sarcastica e redarguiu:

-- Desenganae-vos, senhor escudeiro de recados, isto não é apanhar rosas por madrugadas de verão.

E vibrou um outro golpe á cabeça do seu adversario.

Quando Affonso Fernandes ouviu as ultimas palavras do seu companheiro d'armas, estremeceu por effeito d'uma suspeita que repentinamente o assaltou.

Esta commoção fez com que não reparasse a tempo no golpe que lhe era dirigido, e a espada do adversario apanhou-o em cheio no capello. Felizmente o aço de que esta era feita resistiu á violencia do golpe, aliás Affonso Fernandes teria sido victima do seu descuido.

-- As rosas perturbam-vos, Affonso, volveu Fernão Froyão com o seu tom sarcastico; será que o grato aroma d'aquellas flores ainda vos embriague o cerebro?

Affonso Fernandes começava a suspeitar a verdade; o motivo do insolito procedimento do seu adversario era apenas o ciume. Porém quem julgava Fernão Froyão que elle amava, Ermezenda ou Froyla? Eis o que Affonso, já mais senhor de si, procurou saber.

Continuando a defender-se e a atacar com o mesmo ardor do começo, Affonso retorquiu:

-- Embriaga-me, sim, esse aroma; mas ainda ha uma outra coisa que mais me embriaga, é a esperança, a esperança que lhe derivou dos labios, e que eu trago na alma resguardada como a reliquia no seio de quem a possue. Oh! vós, Fernão, nunca bebestes a esperança nos labios d'uma donzella amada, e por isso não sabeis que embriaguez ha n'essa esperança, que maiores esperanças nascem d'essa embriaguez.

Fernão Froyão deu um como rugido. Aquellas palavras embeberam-se-lhe na alma como um punhal que lhe atravessasse o arnez e lhe penetrasse nas carnes.

-- Ermezenda, bradou elle, mentiu-te, vaidoso escudeiro. Os labios da mulher mentem mais facilmente do que os seus olhos que são o espelho da alma. É nos seus olhos que eu tenho lido. E demais, não vos acredito, cavalleiro fementido e traidor, Ermezenda jamais vos fallou de amor, nem vos fallara nunca, porque não ha de aqui vir fallar-vos á sepultura.

E os dois adversarios, cegos e desvairados, estimulados ferozmente pelas ultimas palavras que mutuamente se tinham dirigido, e que os confirmavam na sua rivalidade, arremetteram um para o outro com dobrada furia e rancor.

Quando o trovão deixava de ribombar, ouvia-se o temeroso estreito das espadas, embatendo ora nos escudos, ora nas armaduras dos dois adversarios.

D'uma das vezes feriu os ares um tinir mais agudo e violento. Fôra o escudo do mensageiro da rainha que se partira.

Quando isto viu Affonso reputou-se perdido; sem se dar porém por derrotado, e para envenenar o triumpho provavel do seu adversario, exclamou:

-- Talvez venças, Fernão, graças ao bem armado que vens e não ao vigor do teu brsço e á valentia do teu animo. Porém sabe já que não vencerás a alma de Ermezenda. Ama-me; sirvam-me de testemunhas as paredes de certo corredor da alcaçova de Santarem, cujos echos repetiram a confissão do seu amor e a confirmação das minhas esperanças. E se para lá voltares vencedor, interroga esses mesmos echos, que elles te dirão o que Ermezenda me disse a mim, -- que te odeia.

Após estas palavras, acorde com o ribombar d'um trovão que principiava a soar ao longe, ouviu-se um rugido que não se poderia dizer se era de dor ou de raiva, e um dos combatentes vacillou no seu corcel e caiu.

O outro apeou-se no mesmo instante, e apontando-lhe a espada á garganta, exclamou:

-- Não te mato, perdôo-te para desprezo. Jura porém que não mais porás olhos de amor n'aquella que só a mim jurou amar.

Esteve assim algum tempo, mas o cavalleiro derribado não proferiu palavra. Uma suspeita, aliás muito justificada, passou pela mente do vencedor.

-- Terá morrido! exclamou.

E abaixando-se, á luz d'um relampago que n'aquelle momento brilhava, examinou o seu adversario.

A pallidez da morte cobria as feições do escudeiro derribado.

O vencedor ficou perplexo por algum tempo.

Mas de repente chegou-lhe aos ouvidos o estrepito d'uma cavalgada, que para ali parecia dirigir-se.

Effectivamente momentos depois chegavam ao logar do combate varios cavalleiros de Christo, cujo convento não ficava muito longe d'ali, seguidos d'alguns peões armados de paus ferrados que pareciam serventuarios da ordem.

Depois de trocadas as indispensaveis explicações entre elles e o escudeiro que saíra vencedor d'aquelle combate singular, um dos cavalleiros recem-chegados apeou-se, e ajudado pelos peões tirou o arnez do vencido e poz-lhe a mão sobre o coração.

-- Vive, bradou elle, vive e não está ferido; apenas tem o arnez e o capello amolgagos. Convem pois transportal-o para o convento, e ali o physico da ordem explicará este caso e lhe porá remedio. Ainda que não sou physico nem entendido na arte de curar, antolha-se-me que este moço cavalleiro está assim por effeito de grande canceira ou poderoso abalo.

E transportando cautellosamente o prostrado cavalleiro, pozeram-se todos a caminho em direcção ao convento de Christo em Thomar.

Ali o physico da ordem empregou todo o seu disvello e saber em tornar á vida o que parecia jazer morto.

IX

O alcaide de Guimarães

Só entregarei este castello, no alto

e no baixo, irado e pagado, de

noite ou de dia, áquelle que de mim

tiver preito e menagem.

Palavras de menagem.

Em sitio alto e defensavel pela natureza demorava a antiga e nobre villa de Guimarães, berço da monarchia e assento e morada da côrte dos nossos primeiros reis. Cingida d'alta e fortissima muralha, e rodeada esta da competente cava ou fosso, tendo ao centro alta e já vetusta torre, cuja fundação se perdia na noite dos tempos, e cujo vulto negro e sombrio o viandante apercebia de grande distancia, Guimarães podia offerecer longa e tenacissima resistencia a hostes inimigas, toda a vez que o alcaide que mandasse dentro dos seus muros, fosse dotado de animo elevado como a torre de menagem, firme e inabalavel como as pedras e o cimento de que era formado o velho castello onde, dizem, foi nado e creado aquelle grande rei Affonso Henriques a quem depois a historia, em preito e homenagem a seus grandes feitos, justamente apellidou de conquistador.

Era isto o que succedia em principios do anno de 1360 da era de Cesar, isto é, alguns mezes depois dos ultimos e notaveis acontecimentos que atraz deixamos esboçados.

Mem Rodrigues de Vasconcellos, alcaide do castello de Guimarães, por el-rei D. Diniz, mostrava que a sua lealdade a el-rei era inabalavel, que a sua coragem era invencivel.

Havia já dez dias que D. Affonso, o infante rebelde, cercava Guimarães com as suas gentes de guerra, compostas de muitos cavalleiros que se lhe tinham reunido, atraiçoando villãmente a causa de el-rei, de muitos homens d'armas, aquantiados dos mesmos cavalleiros, e de grande turba de malfeitores, d'esses individuos sem principios nem convicções, que em todos os tempos se aggregam a qualquer partido, com a mira unicamente no ensejo de praticarem roubos, devastações e latrocinios.

Porém, se o ataque tinha sido violento e feroz, firme e tenacissima fôra a resistencia.

Inuteis eram os dardos e virotões e toda a casta d'armas d'arremesso que os do infante lançavam aos chuveiros sobre os defensores; inuteis tambem os engenhos de guerra que havia dez dias procuravam abalar e derruir as muralhas da cerca; aos viratões dos assaltantes, respondiam, cruzando-se com elles, os virotões lançados certeiramente do alto das torres e ameias, ao violento embate dos engenhos de guerra respondia apenas o som cavo das muralhas, como que gemendo, mas não cedendo aos golpes formidaveis que as abalavam.

Vencedor saira o infante em Coimbra, Montemór-o-Velho, Gaya, Feira e Porto, que tinham outr'ora voz por el-rei e agora a tinham por elle infante; mas era porque no Porto, na Feira, na Gaya, Montemór-o-Velho e Coimbra, a traiçãoo invadira o coração dos alcaides, e lhes fizera tremer e hesitar o braço que segurava o pendão real, e por fim o infante lh'o empolgára substituindo-o na torre de menagem pelo pendão da revolta. Em Guimarães succedia o contrario; após dez dias de ataque, o castello estava ainda por el-rei, e o alcaide mostrava-se cada vez menos disposto a attender ás propostas insidiosas com que o infante queria corromper a sua lealdade.

Uma coisa havia apenas que attestava os esforços encarniçados do ataque; eram as desvastações que as gentes de D. Affonso tinham exercido nos arredores de Guimarães: os campos talados, as sementeiras arruinadas, as arvores de fructo destruidas, as cabanas derribadas ou queimadas, mostravam com triste eloquencia que o gladio da guerra tinha ali vibrado os seus golpes mais destruidores, transformando a campina viridente e fecunda de esperanças para o lavrador, em plaino alastrado de ruinas e desolação.

E sabe Deus a que ponto chegaria a sanha ferocissima do infante D. Affonao e da sua gente, se não fosse um successo que inesperadamente se deu ao decimo dia de cerco.

N'este dia, quando o infante e os seus cavalleiros e peões estavam, como de costume, occupados em assaltar as muralhas, um dos cavalleiros que mais proximos se achavam de D. Affonso, olhou casualmente do ponto elevado onde se postára a hoste e avistou ao longe uma numerosa cavalgada.

Apesar de lhe não permittir a distancia distinguir perfeitamente as pessoas de que ella se compunha, o cavalleiro teve um presentimento, que, bem ou mal fundado, as circumstancias auctorisavam.

Voltando-se por isso para o infante, bradou com voz alvoroçada:

-- Senhor, senhor; olhae que podemos ser atacados á traição. Vêde aquella cavalgada que acolá assoma e que não pode ser senão gente d'el-rei que vem ao nosso encontro.

E todos os cavalleiros, incluindo o proprio infante, volveram pressurosos a vista para o ponto indicado pelo cavalleiro que déra o brado.

As desconfianças que assaltaram o animo do infante foram as mesmas que tinham ocorrido ao cavalleiro que o avisára. Porém, passado algum tempo, desvaneceram-se completamente do animo de todos, porque tendo-se encurtado a distancia em que vinha a cavalgada, poderam perceber que não era tão numerosa como ao principio se lhes affigurava e vinham com ella algumas damas, o que não permittia rasoavelmente suppôr que os recem-chegados formassem hoste que para ali se encaminhasse em som de guerra.

-- A fé, senhores, disse o infante olhando attenta e demoradamente na mesma direcção, a fé de quem sou, que não parece d'assustar a apparencia d'aquelles cavalleiros, e pelo contrario se me affigura que hão de ser recreio dos olhos e prazer do coração, pois que na frente d'elles vem um grupo de damas ás quaes anda commummente incumbida a missão da paz e do amor e não a do odio e da guerra.

-- Senhor, accudiu d'ali um cavalleiro que havia nome de Gonçalo Annes de Berredo, quer-me parecer que vêem ali pessoas de alto nascimento, pois que nenhumas outras poderiam trazer tão luzida e numerosa comitiva, entre a qual a minha vista distingue alguns homens de armas.

-- E á frente, accrescentou o cavalleiro que primeiro avistára a cavalgada, vem ladeando uma dama, que pelo toucado que traz se conhece perfeitamente ser dona e não donzella, um vulto que pelo habito parece ser clerigo e uma outra dona que se me affigura, não sei porque, ser serviçal da que vae no meio.

-- Ali não pode vir senão a vossa esposa, senhor infante, redarguiu Gonçalo Annes de Berredo, ou, -- quem sabe -- a rainha.

-- A senhora rainha minha mãe não pode ser, pois que segundo novas ha pouco recebidas, está desterrada em Alemquer por ordem d'el-rei, atalhou o infante; será pois D. Brites, minha mulher? Se ella fôr, grandes successos ocorrem lá por Coimbra.

E o infante, cujo rosto manifestou repentinamente grave cuidado, mettendo esporas ao seu ginete, disse para os cavalleiros que lhe ficavam mais perto:

-- Segui-me; convêm saber desde já que estranhas novas traz a minha senhora D. Brites.

E abalou a galope em direcção á cavalgada.

Passado algum tempo passava o infante cheio de assombro e apeava-se.

Seguiam-n'a varias donas e donzellas. O clerigo que vinha ao lado d'ella era mestre Gonçalo, seu capellão. Vinha tambem na sua comitiva Affonso Martins, thesoureiro, e varios empregados da sua casa.

A rainha trazia no rosto profundos vestigios de grandes magoas, as quaes, reunidos á expressão de cansaço proveniente da viagem, davam-lhe um aspecto amargo, doloroso e commovedor.

Impressionado vivamente por similhante visita, D. Affonso, que se apeára, como dissemos, beijou-lhe a mão formosa mas descarnada, com mostras de grande respeito e ternura.

-- Julgava-vos, senhora, disse, em Alemquer, para onde a severidade d'el-rei meu pae entendeu no seu alto juizo dever desterrar-vos.

E D. Affonso accentuou estes palavras d'um modo tão rancoroso que não passou desapercebido a D. Isabel.

-- Não censureis sua senhoria el-rei, disse ella em tom de magoa e de reprehensão; vosso pae errou, mas levado pelas perfidas suggestões dos que o rodeiam. Porém, Deus que vela pelos innocentes, bem cedo o illuminará e fará arrepender da maneira injusta como me tratou.

-- Pois que, volveu D. Affonso cheio de admiração, ainda estaes desterrada! Mas sendo assim, como é que vindes aqui?

-- Venho aqui, desobedeço a el-rei, incorro no seu desaggrado, por amor de vós ambos. É mister que esta guerra acabe, guerra que não só prejudica os corpos e fazendas dos nossos vassallos, mas, peor ainda, causa grande damno á vossa alma. Far-se-ha uma composição entre vós e el-rei, para a qual eu servirei de medianeira.

D. Affonso fez um gesto de duvida.

-- El-rei não cederá. E vós, senhora, indo ter com el-rei, só tirareis em fructo da vossa diligencia incorrer mais uma vez no seu desagrado, e agora bem justificadamente, pois que lhe desobedeceis de um modo declarado.

-- Não, não, volveu a rainha, Deus ha de me amparar e esclarecer, e esclarecer tambem el-rei. E depois, repito, é mister que isto acabe, proseguiu ella, olhando em roda e observando os estragos de toda a campina; vêde que depredações ahi vão; que de pão de Deus perdido que podia aproveitar aos pobres. Aqui sois vós, infante, -- e o seu tom tornou-se severo -- além, em Coimbra, é el-rei...

-- Pois que, el rei está em Coimbra! atalhou de subito o infante tornando-se repentinamente pallido e carregando o gesto.

-- Para lá se dirigiu, redarguiu a rainha.

-- Senhora, ha muito que saí de Coimbra, onde deixei D. Brites, minha mulher, com boa guarda e defensão. Porém se el-rei atacar Coimbra...

-- Já a estas horas talvez a atacasse, volveu D. Isabel com amargura.

-- Então, senhora, devo partir quanto antes ao encontro d'el-rei, exclamou D. Affonso com impaciencia. É preciso acabar d'uma vez para sempre com esta contenda.

-- Não ireis, retorquiu D. Isabel em tom severo; não ireis vós com os vossos homens d'armas. Irei eu com as minhas lagrimas e os meus rogos por vós todos.

D. Affonso dissimulou a custo a sua impaciencia.

-- Agora, proseguiu D. Isabel, preciso descansar d'esta longa viagem. Ámanhã acordaremos no melhor meio de acalmarmos o animo d'el-rei e de pôrmos termo a tamanha discordia.

Momentos depois voltavam todos na direcção de Guimarães, em cujo arrabalde D. Affonso pousava com os seus privados.

Dizem as chronicas que nem as lagrimas nem os rogos da rainha conseguiram demover o infante de proseguir no seu intento.

De feito, depois de dez dias de cerco, o infante abalava com a sua hoste em direcção a Coimbra, afim de levantar o cêrco que el-rei ía pôr a esta cidade.

A rainha anciosa, magoada, mas incansavel no cumprimento dos seus deveres de esposa, de rainha e de mãe, foi no seguimento do infante.

A Coimbra iremos nós tambem assistir á lide, se lide houver entre el-rei e seu filho, e ao desenlace do pequeno drama que toscamente temos desenhado.

Mem Rodrigues de Vasconcellos cumprira briosamente seu preito.

No alto da torre de menagem do antigo castello de Guimarães continuava a ondular o pendão de sua senhoria el-rei.

X

A lide de Coimbra

O infante quando soube que seu

padre jazia sobre Coimbra, alçou-se

de Guimarães e com gran poder

de cavallaria chegou-se a S. Paulo

e jouve hi tres dias per tregua que

ouve entre seu padre e elle.

(Nobiliario do conde D. Pedro.)

Se Giumarães mostrou lealdade inabalavel á causa d'el-rei, igual exemplo deu Coimbra em prol da causa do infante.

Ao tempo que D. Affonso levantava o cêrco de Guimarães e acudia em defesa de Coimbra, dava el-rei principio ao apertado cêrco d'esta cidade, aonde chegou, segundo asseveram graves historiadores, aos 6 de março de 1360, indo pousar no velho alcaçar que ficava junto a S. Lourenço.

Porémm, á similhança do que succedera em Guimarães ao infante, foram inuteis os esforços das gentes d'el-rei. Coimbra, encerrada no negro cinto da velha cerca, que para aquelle tempo era inexpugnavel, resistira impavida aos ataques do inimigo, o qual para desforço, segundo o dizer dos mesmos historiadores, arraiou e devastou os arredores.

Em meado d'este mesmo mez, passados quasi dez dias de cêrco, a numerosa hoste de D. Affonso houve vista da cidade. O espectaculo que se offereceu aos olhos do infante só serviu, como é facil de imaginar, para mais lhe atiçar a ira contra el-rei. Além d'isso, por uma terrivel fatalidade, a hoste d'el-rei achava-se postada, ou como se dizia então, jazia sobre o caminho de Guimarães, por onde o infante vinha. Tornava-se pois inevitavel uma lucta sanguinolenta e pecaminosa entre dois entes que os laços de sangue deviam de estreitamente unir.

Porém, no momento em que D. Affonso parecia disposto a proseguir no seu caminho, e a dar por este motivo logar a um choque violento entre as duas hostes, do mesmo lado por onde elle viera appareceu um cavalleiro que forcejava alcançal-os ao trote d'uma vigorosa mas já fastigada mula.

Quando chegou aonde estava D. Affonso, este reconheceu-o logo e fez um gesto de assombro e de impaciencia que a ninguem escapou.

-- Senhor infante, disse o recem-chegado com voz agitada por effeito da corrida, a senhora rainha, a quem a vossa partida repentina não passou desapercebida, tem vindo em vosso seguimento e pede que vos detenhaes, porque tem um alvitre a propôr-vos, que de certo haveis de acceitar. O mensageiro da rainha não era agora outro senão o seu capellão, mestre Gonçalo.

-- Ide dizer á senhora rainha e minha mãe volveu o infante com um modo bastante impaciente, que não posso agora deter-me porque tenho grande pressa de levantar o cêrco de Coimbra, e logo que se ferir a lide decisiva em prol da minha causa, lhe ouvirei os alvitros que me quizer propôr, os quaes desde já pode considerar como acceites por virem de pessoa de tanta auctoridade e de tão bom conselho.

E D. Affonso conservando os seus modos impacientes, fez menção de se pôr a caminho.

Porém mestre Gonçalo não arreava pé; parecia disposto a deixar-se antes esmagar pelos ginetes da comitiva do infante do que deixal-os ir sobre a cidade.

Entretanto teria de ceder se não fosse o apparecimento inopinado da propria rainha.

-- Senhor, exclamou elle, vossa mercê ha de inevitavelmente ouvir o alvitre da minha senhora, pois que ella ahi vem em pessoa fazer o seu arrasoado.

Mau grado seu o infante teve mais d'uma vez de sopear o ginete.

Montada em docil mula de viagem, com um toucado na cabeça e um farto manto sobre os hombros, a incansavel e santa esposa de D. Diniz aproximava-se d'elle.

-- D. Affonso, disse ella n'um tom em que se percebia facilmente a prostração da longa viagem; não posso deixar de afeiar o vosso procedimento em partirdes assim tão de subito e em irdes com tão mau intento sob o logar onde jaz vosso pae com sua hoste.

-- Senhora, redarguiu o infante com uma firmeza que assombrou a propria rainha, demasiado sabeis a justiça das minhas queixas contra el-rei. Vós mesma me tendes reconhecido essa justiça. Logo que a não obtenho de bom grado d'él-rei é preciso que a obtenha pela força das armas.

-- Mas vêde, Affonso, redarguiu a rainha, com um ar ao mesmo tempo de ternura e de reprehensão, que Deus não pode nunca applaudir os filhos que se revoltam contra os paes. É mister primeiramente esgotar todos os artificios que a prudencia pode inspirar em tão graves conjuncturas.

-- E não os esgotastes já, senhora?

-- Não, porque jámais são demasiados os esforços da persuasão. Por isso, Affonso, suspendei a vossa marcha, que eu me encarrego de levantar o cêrco e de fazer com que el-rei vos deixe entrar em Coimbra.

-- Que dizeis, minha mãe e senhora? volveu o infante com alvoroço. Poderei hoje mesmo rehaver Coimbra e abrasar finalmente a infanta minha mulher?

-- Espero em Deus que assim succederá; é porém preciso que da vossa parte eviteis toda a occasião d'algum encontro com a hoste real. Dou-vos por isso de conselho que vos desvieis do caminho d'el-rei e acceiteis aquellas condições que a sua justiça houver por bem impôr-vos.

-- E as minhas queixas, senhora, os meus aggravos, as minhas condições?

-- Tambem exporei as vossas queixas, e farei valer os vos aggravos, redarguiu D. Isabel com firmeza.

O infante esteve algum tempo indeciso. Afinal exclamou:

-- Ide, pois, senhora, que eu aguardarei o resultado da vossa missão e farei o que dizeis. El-rei foi injusto comvosco e da sua ultima injustiça ainda pesam sobre vós as funestas consequencias. Permitta Deus que querendo desaggravar-me a mim, não recebaes vós mais algum aggravo d'el-rei.

-- É em Deus que ponho toda a minha fé, e é da minha fé que espero o galardão d'estas fadigas, volveu ella.

Passado algum tempo D. Affonso pousava com a sua hoste no mosteiro de S. Paulo, que ficava uma legua mais acima do logar onde estava el-rei, e D. Isabel franqueava a entrada do velho alcaçar de Coimbra.

N'este momento el-rei achava-se n'uma das lageadas e quasi núas salas. Em volta d'elle, estavam, além de Affonso Sanches e João Affonso seus filhos bastardos, varios cavalleiros, entre os quaes se viam, Estevam da Guarda, seu privado, Gonçalo, Pires Ribeiro, Lourenço Annes Redondo, seu meirinho-mór, Francisco Domingues, prior da alcaçova e seu chanceller, e o nosso eterno D. Judas, seu thesoureiro e valido.

Já ali chegára a nova da approximação do infante e D. Diniz dava as ordens indispensaveis n'aquella grave conjunctura, quando um homem de armas trouxe segunda nova que maior assombro produziu, a de achar-se no alcaçar a rainha.

Os circumstantes olhavam estupefactos uns para os outros.

A primeira idéa que lhes accudiu foi que o homem d'armas se enganára ou fôra enganado.

D. Judas, esse, por motivo que não soube logo explicar a si proprio, sentiu entre as duas espaduas uma especie de calefrio, e desejou, sem tambem saber porque, vêr-se arredado d'ali dez leguas.

Não teve porém tempo para reflectir no caso, porque passados momentos assomou D. Isabel á porta da sala.

El-rei ergueu-se machinalmente e offereceu-lhe com um gesto a poltrona de alto espaldar e docel com chaparia amarella d'onde acabava de se levantar.

-- Os reos não se devem sentar diante dos juizes, disse a rainha conservando-se de pé, e muito menos eu, que além do crime de que já me castigastes, sou ré d'um novo crime, o da desobediencia.

-- Senhora! balbuciou el-rei córando máu grado seu.

---Saí d'Alemquer, fui a Guimarães, vim depois aqui, e todas estas canceiras e toda a minha desobediencia não são para me tornardes o que me tirastes, mas para que restituaes a paz ao reino e o affecto ao vosso filho. Elle ahi vem senhor, sobre Coimbra, e se não se empenha já em lucta com a vossa hoste foi isso devido aos meus esforços e graças principalmente ao benefico influxo da Providencia divina. O infante está inclinado á paz, ou antes não deseja outra coisa, sujeita-se ás oondições que a vossa justiça lhe impozer; só resta, que vós tomeis em devida conta as suas queixas e os seus aggravos.

No rosto d'el-rei manifestou-se uma viva satisfação.

-- Senhora, se o infante quer paz, tambem ha muito que não é outro o meu desejo. Quanta aos seus aggravos e queixas far-lhe-hei toda a justiça a que elle tiver direito. Está porém o infante resolvido a acceitar as condições que eu lhe impozer?

-- Dizei pois quaes são que eu por elle as acceito.

-- Por agora só exijo que me venha jurar obediencia e vassalagem, volveu el-rei. Ao diante firmaremos a paz em condições duradouras e seguras.

-- O infante vos jurará obediencia, senhor, retorquiu a rainha com firmeza. Sêde vós porém o primeiro a dar uma prova de que pondes de lado todo o rancor. O infante tem aqui sua mulher e sua casa; deixae-o pois entrar em Coimbra, e retirae-vos com a vossa gente para o outro lado do rio.

-- Que dizeis, senhora! volveu D. Diniz com espanto. Seria desdouro para a minha auctoridade de rei o desalojar-me por causa do infante.

A rainha não perdeu porém a esperança ante esta razão d'el-rei.

-- É o melhor caminho para a paz, senhor el-rei; a proximidade em que se acham as duas hostes daria logar a arruidos e a pelejas entre os differentes bandos. D'ahi poderia occasionar-se uma lide geral. Imaginae, senhor, que horroroso espectaculo não seria o de vós e vosso filho desembainharem a espada um em frente do outro!

El-rei fez-se pallido. Bem se via que para elle as considerações de pae estavam primeiro que os interesses de rei.

Depois d'alguns momentos de hesitação, exclamou:

-- Bem, senhora, sairei da cidade e vós ficareis fiadora das promessas do infante. Amanhã esperal-o-hei em S. Martinho do Bispo, para onde vou pousar.

-- E eu, redarguiu D. Isabel, logo que as pazes sejam feitas, voltarei para Alemquer em cumprimento das ordens que a vossa justiça vos inspirou.

El-rei tomou a córar mau grado seu. Dirigindo porém em volta de si um olhar de observação, encontrou o olhar de D. Judas.

Scintillava nos pardos olhinhos do judeu uma tão diabolica expressão, que el-rei, assaltado de idéa subita, exclamou dirigindo-se novamente á rainha:

-- Esquecia-me d'uma condição que devo impôr ao infante; entre os diversos fidalgos traidores que o acompanham, ha um principalmente que desejava castigar. Refiro-me ao escudeiro por nome Affonso Fernandes, que ha tempo anda com elle. Dizei ao infante que m'o mande entregar logo que der entrada em Coimbra.

-- Affonso Fernandes traidor! exclamou a rainha cheia de espanto; enganaes-vos, senhor; parece-me que esse escudeiro nunca foi inclinado ao partido do infante.

-- Enganada sois vós, senhora, volveu el-rei.

E dando á voz uma estranha expressão, proseguiu:

-- Haveis de estar lembrada, senhora, de certo recado que elle foi levar da vossa parte ao infante.

-- Lembrada estou, redarguiu D. Isabel, com alguma perturbação na voz; porém o que vós não sabeis é que ainda não tive novas d'esse leal escudeiro depois que elle partiu para Coimbra. Muito receio que lhe succedesse alguma funesta aventura.

---Dizei antes propicia aventura, tornou el-rei com ironia. D. Affonso cobrou-lhe provavelmente affecto e tem-n'o ao seu serviço. Não vos esqueçaes pois, de exigir do infante a restituição de tão leal servidor.

E todos os personagens, com mostras de grande veneração, despediram-se de D. Isabel e sairam.

A rainha caiu prostrada de cansaço na poltrona que el-rei ocoupara, e ficou ahi grande espaço pensativa.

El-rei, como promettera, saiu da cidade, e atravessando o rio n'uma barca, dirigiu-se para S. Martinho do Bispo.

Passados tres dias achava-se el-rei ainda ali. Estava no claustro, rodeado dos mesmos personagens que se achavam com elle por occasião do apparecimeato de D. Isabel.

-- Começo a recear, senhores cavalleiros, dizia D. Diniz n'um tom ao mesmo tempo magoado e colerico, que não se acabará este feito tanto em paz e contentamento como a senhora rainha esperava e promettia. São já passados tres dias de tregoa, e ainda o infante não me veio prestar homenagem, como é de razão.

-- Senhor, volveu Gonçalo Peres Ribeiro, o nosso conhecido alcaide de Gaia e Feira, cujos castellos já tinha perdido no meio das discordias d'el-rei e do infante, demasiado conhecemos a rainha minha senhora e fio que ella ha de ter empregado os maiores esforços para que o senhor infante venha submetter-se a vossa real senhoria. Mas tambem todos conhecemos o infante, e é de presumir que elle mais uma vez se obstine em conservar hasteada a signa da revolta. Ora se a senhora rainha não logra com os seus esforços o desejado effeito, que remedio poderá vossa real senhoria pôr á obstinação e aos desmandos da indole indomavel do senhor D. Affonso senão procurar obter n'uma lide renhida o que não é possivel alcançar pelos meios brandos que a senhora rainha, na sua bondade de santa, põe por obra?

Ao ouvir as ultimas palavras do cavalleiro, el-rei poz-se a passear agitado pelo lagedo do claustro.

Á roda d-elle estabelecera-se profundo silencio; em quasi todos os rostos lia-se a indecisão.

Afinal el-rei parou, e dando ao semblante uma expressão meio tranquilla, meio aevera, disse:

-- Não ha remedio; não quer Deus que D. Affonso comprehenda o horror d'esta lucta. Tendes razão, senhor Gonçalo Peres Ribeiro, partamos desde já sobre Coimbra e tomemol-a pela força, já que o infante não quer vir a uma composição comnosco.

-- Porém, senhor, redarguiu Gonçalo Peres Ribeiro, para que se possa evitar alguma scena horrorosa perante Deus e a natureza, haveis de permittir que eu vá na vanguarda e com a minha gente seja o primeiro a forçar a entrada da cidade.

Como era de presumir, el-rei concedeu logo o que Gonçalo Peres Ribeiro lhe pedia, e d'ali a pouco a gente d'el-rei partia em ordenança sobre a cidade.

A hoste tomou pela ponte do Mondego e dirigiu-se para a porta que sobre ella ficava.

Antonio Brandão na Monarchia Lusitana relata este facto. Ouçamos pois o que elle diz:

«Como a entrada era pela ponte, acudiu ali a principal resistencia, e uns por ganhar a porta e outros pela entrar, tiveram um recontro tão bem ferido, que se fôra sobre qualquer cidade inimiga contra Moiros, ou lá na Palestina ou cá na Hespanha, fôra muito de louvar. O ardimento d'ambas as partes teve egualdade. Da parte d'el-rei se avantajou um cavalleiro principal, por nome Gonçalo Peres Ribeiro, que confiado no seu esforço conseguiu entrar a porta; mas dois vassallos do infantes que a defendiam a saber: Martim Gonçalves Leitão e Estevão Gonçalves, seu irmão, lhe fizeram tal resistencia que o lançaram da ponte abaixo.»

Porém o que não diz o chronista é quem primeiro acudiu a Gonçalo Peres Ribeiro, ou se elle morreu.

Que elle não morreu sabe-se por figurar annos depois no testamento da rainha santa D. Isabel. Quanto ao seu salvamento passou-se elle da seguinte maneira:

Como era de recear, com o peso das armas o cavalleiro afundou-se logo. Porém no mesmo instante, d'entre a turba que defendia a porta, irrompeu violentamente um vulto que, conseguindo com algum custo desembaraçar-se dos contendores d'um e d'outro bando que o queriam deter á força, se lançou ao rio, quasi ao mesmo tempo que Peres Ribeiro desappareceu.

Havia n'aquella occasião alguns bateis amarrados aos pilares da ponte; passados momentos n'um d'esses bateis dois homens forcejavam por alcançar a praia.

Um d'elles, que era Gonçalo Peres Ribeiro, dizia ao outro:

-- Por onde tendes andado, senhor Affonso Fernandes, que ha tanto tempo não se recebiam novas de vós na alcaçova?

-- Estranhas aventuras me teem succedido, que vós me ouvireis contar, respondia Affonso Fernandes, pois que effectivamente era elle.

Com os successos que os d'el-rei experimentaram contrarios, diz ainda Antonio Brandão, se retiraram, e el-rei se recolheu ao mosteiro de S. Francisco junto á ponte, do qual já não ha vestigios, arruinado tudo com as areias e enchentes do Mondego.

XI

As libras de D. Judas

E assi haviam d'ella as Donas

d'algumas Ordens o que ella

entendia que era cumpridoira sa

esmola.

Lenda de Santa Isabel.

Nada obtivera pois el-rei pela força das armas, como diz o chronista. Porém lá estava junto do infante a rainha D. Isabel, a santa companheira d'el-rei, o anjo da paz d'aquelle reinado tão perturbado no seu fim pelas discordias e pela guerra civil. Aproveitando de certo as scenas dolorosas e tristes que na vespera se tinham dado sobre a ponte e junto da porta da cidade, scenas que não seriam senão o prologo de outras mais terriveis e pecaminosas dado que se prolongasse a lucta entre el-rei e seu filho, a rainha santa redobrou de esforços junto do infante e conseguiu afinal que elle entrasse n'uma composição com seu pae, composição que fosse o preludio de paz mas duradoura.

Dizem que para o exito das diligencias da rainha junto do infante, tambem muito concorreu D. Pedro, conde de Barcellos, o supposto auctor do Nobiliario, filho natural de D. Diniz, mas que sempre seguiu o partido do infante legitimo, por deferencia simplesmente pela sua alta qualidade de successor da corôa.

Em virtude d'esta composição e para affastar todo o pretexto de nova lucta, accordou-se que el-rei se retiraria com a sua hoste para Leiria e D, Affonso para Pombal.

Na vespera da partida achava-se el-rei n'uma casa do convento de S. Francisco. Estavam com elle D. Judas, thesoureiro-mór, e Lourenço Annes Redondo, meirinho-mór da côrte, personagem a quem cumpria a prisão dos escudeiros e cavalleiros.

N'aquelle momento era el-rei quem fallava.

-- Ficae pois sabendo, dom meirinho, que soffrerá morte de traidor o escudeiro Affonso Fernandes.

-- Porém quando, senhor? volveu o meirinho-mór.

-- Amanhã, antes de partirmos com a nossa hoste para Leiria.

-- Mas saiba vossa real senhoria que o criminoso ainda não está em meu poder.

-- Estará dentro em pouco, eu vol-o affianço. Não tarda que o traga aqui Gonçalo Peres Ribeiro, que hontem o encontrou entre a gente do infante.

-- Mas... redarguiu ainda mais uma vez o meirinho, segunda parecia, embaraçado.

-- O que se vos offerece, dom meirinho? perguntou el-rei.

-- Que genero de morte deverá soffrer? tornou o meirinho. Quando castiguei em Leiria por ordem de vossa real mercê aquelles traidores que tinham entregado o alcaçar ao senhor infante, segundo vosso mandado decepei-os e queimei-os.

D. Diniz encolheu os hombros.

-- Como quizerdes, meirinho.

E poz-se a ajustar as pregas do seu gibão.

D. Judas aproveitou aquelle momento em que el-rei estava distrahido para segredar a Lourenço Annes Redondo:

-- É melhor queimal-o.

-- E vós, D. Judas, tornou el-rei, que novas me trazeis?

-- Senhor, aproveitando as tregoas, fui á cidade e fallei com Salomão Arbabanel.

-- E então?

-- Disse-me que fôra ter com elle um mensageiro do infante a quem dera duzentas libras em troco da cedula por mim assignada.

-- O que prova claramente que o escudeiro é deveras criminoso e a rainha...

El-rei deteve-se.

No momento em que ia fazer signal aos personagens que estavam com elle para que se retirassem, um servidor annunciou a rainha.

Effectivamente momentos depois entrava a rainha. Vinha com o seu costumado trajo de viagem e acompanhavam-n'a Affonso Martins e mestre Gonçalo e algumas das suas donas e donzellas. Entre as ultimas viam-se Froyla e Ermezenda.

Com bastante assombro dos circumstantes, entraram logo após ella Gonçalo Peres Ribeiro, cavalleiro, e Affonso Fernandes, escudeiro.

-- Senhor, venho despedir-me de vós, disse D. Isabel. Agora que a minha missão está terminada, volto para Alemquer, onde pedirei a Deus vele por vós e pela paz do vosso reino. Mas antes de partir quizera que ouvisseis Affonso Fernandes, a quem segundo me dissestes, reputaes traidor a vossa causa.

Todos se voltaram para o escudeiro, menos D. Judas que não podia, por muito que desejasse, olhar fito para elle.

-- Cedendo ao vosso desejo, disse el-rei, Affonso Fernandes poderá dizer o que lhe occorrer em sua defensão. Mas parece-me que lhe bastará responder de modo satisfactorio a uma só pergunta, para ficar limpo de toda a culpa.

E voltando-se para o escudeiro, perguntou-lhe em tom pausado e em que o rancor levemente se manifestava:

-- Porque andaveis vós com a hoste do infante?

-- Senhor, respondeu o escudeiro com voz um pouco perturbada, não andava na hoste do senhor infante, estava, ao contrario, preso por sua ordem na prisão de Coimbra.

Ficaram todos extremamente assombrados da resposta do escudeiro.

-- Porque delicio? perguntou el-rei, em quem o assombro não era menor.

-- Porque tambem o senhor infante me reputou traidor, respondeu o escudeiro.

Affonso Fernandes calou-se n'este ponto, com mostras de bastante hesitação.

A rainha porém acudiu logo:

-- Dizei tudo, Affonso Fernandes, não caleis coisa alguma do que vos succedeu. Contae d'aquella missão de que vos encarreguei.

Animado por estas palavras o escudeiro proseguiu:

-- Senhor, trazia para sua mercê o infante um escripto sellado e fechado que me dera a rainha minha senhora. Quando cheguei a Coimbra apresentei-me ao senhor infante, e quiz dar-lhe o escripto; porém debalde o procurei na escarcella; tinha desapparecido. Então o senhor D. Affonso, tomando-me, com justa razão, por algum mensageiro mandado por sua senhoria el-rei para espiar o que se passava em Coimbra, mandou-me prender na alcaçova, onde talvez me houvera succedido peor sorte se o senhor infante não tivesse ido para Guimarães, esquecendo-se de certo de mim por essa occasião. No dia em que se travou peleja sobre a ponte consegui eu escapar.

A narração do escudeiro tinha toda a verosimilhança; porém a hesitação que se observava n'elle deixava grandes duvidas no espirito d'el-rei.

-- Como succedeu porém, volveu D. Diniz, perderdes tão facilmente um escripto em que devieis pôr tanto cuidado?

O escudeiro revelou novamente grande hesitação; mas enchendo-se no mesmo instante de resolução proseguiu:

-- No meu caminho para Coimbra tive, mau grado meu, de travar combate singular com Fernão Froyão, escudeiro, que me atacou. No movimento da lucta é que provavelmente perdi o escripto da rainha.

-- E matastes o vosso adversario? perguntou el-rei carregando o gesto.

-- Não, senhor el-rei; talvez por effeito do cansaço e do furor de que estava possuido, Fernão Froyão caiu do cavallo como morto. Alguns cavalleiros de Christo que appareceram repentinamente, levaram-n'os a ambos para Thomar, onde o physico da ordem tratou de Fernão Froyão e de mim, que tambem recebi algumas feridas. Quando sarei puz-me a caminho de Coimbra, mas Fernão Froyão, a quem sobrevem perigosa doença, continuou entregue aos cuidados do physico do convento de Thomar, onde talvez terá morrido, porque, segundo asseverou o mesmo physico, homem muito sabedor na arte de curar, a doença de Fernão Froyão era de morte.

Affonso Fernandes fallava agora com voz sonora e sem nenhuma hesitação a respeito do crime do escudeiro. A duvida começava a assaltar o espirito d'el-rei.

Voltando-se por isso para D. Judas perguntou-lhe com gesto severo:

-- Como se explica pois o ter dito o judeu Salomão Arbabanel que pagou a cedula passada por vós?

D. Judas estava enfiado e as pernas fraquejavam-lhe. Só a mentira o podia agora salvar. Fazendo das fraquezas forças respondeu:

-- Juro-vos pela sagrada toura, pelos santos prophetas de Judá, que Salomão Arbabanel assim m'o affiançou.

Em vista da affirmativa de D. Judas, pessoa de quem muito fiava, el-rei tornou a ficar perplexo. Afinal tomou uma resolução.

-- Bem, disse elle,, em quanto não averiguam melhor os factos que haveis exposto, considerae-vos preso, Affonso Fernandes .

-- Mandae entrar, disse el-rei com voz alvoroçada.

Quasi no mesmo instante pintou-se o maior assombro no rosto de todos os circumstantes. Pallido, coberto de pó, com aspecto de grande fadiga e grande abatimento entrou Fernão Froyão.

Trazia na mão um escripto fechado.

Dirigindo-se a el-rei, fez profunda venia e entregou-lh'o.

El-rei, quasi duvidando se teria diante de si um vivente ou um espectro, estendeu machinalmente a mão tremula e recebeu o envolucro.

-- Senhor, disse Fernão Froyão, ha mais tempo devieis ter recebido este escripto, que me foi entregue na alcaçova de Santarem por mão de D. Froyla para que eu o levasse, a D. Judas e este o desse real senhoria. Um incidente fatal que me em jornada impediu-me de vol-o entregar fez uma narração que não desmentia Fernandes dissera foi o thesoureiro da rainha que deitou de triumpho para o thesoureiro d'el-rei.

D. Judas sentiu, sem saber porque, o mesmo calefrio que já uma vez sentira, entre as espadoas.

Quanto a Lourenço Annes Redondo começava a scismar n'aquelle intrincadissimo caso e não o comprehendia.

El-rei, que tornara a si d'aquella subita impressão, estendeu o escripto para a rainha e disse-lhe:

-- É a vós, senhora, que este escripto pertence; levae-o para Alemquer se assim entenderdes conveniente.

A rainha recebeu o escripto, porém em vez de o guardar, abriu-o pausada e serenamente e deu-o a Affonso Martins.

-- Senhor Affonso Martins, disse ella, lêde em voz alta o que ahi mandei traçar.

Affonso Martins vibrou segundo olhar de triumpho na direcção de D. Judas e dispoz-se a ler.

Lourenço Annes Redondo estendeu o pescoço e prestou a maior attenção, na esperança de que ia finalmente comprehender aquelle intrincadissimo caso.

A D. Judas tremiam-lhe as pernas mas dizia comsigo:

-- A rainha ensadeceu; para que quer ella attestar a sua parcialidade pelo infante diante de tantas testemunhas?

Affonso Martins, indeciso a principio sobre qual dos escriptos contidos no envolucro devia ler primeiro, optou afinal por um pergaminho, do qual pendia um sello em cera vermelha preso por um fio de linho.

E em voz sonora e clara leu o seguinte:

Em nome de deus Amen. Eu Dona Isabel pela graça de Deus Reynha de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta viren faço saber que eu con todo o meu sisso e entendimento a louvor de deus e da virgen Santa Maria sa madre e santa Helisabeth por minha alma e en Remymento de meus pecados, dou, doo e outorgo para todo o sempre ao meu mosteiro de Santa Clara e de santa Helisabeth de par de Coimbra, a minha quintãa de ffungalhaz e o casal que chamam de Paayaluo, e o casal das couraceiras termho de Torres nouas, e as casas que ey en essa vila de Torres nouas con seus Ressios e con seus Pardeeyros. A qual quintãa, Casaes, herdamentos e Casas eu comprei de Affonso guilhelme. Dou ao dito Moesteiro as cousas de sub ditas con todas sas pertenças e dereytos, con entradas e saaydas, en Monte e en fonte Roto e por Romper, assi e de dereyto mais compridamente devo auer. E tenho por ben e mando que o dito Moesteiro aia e possuya os ditos herdamentos e casa pera todo o sempre. E faça en eles e deles, assi como de sua cousa propria. En testemuynho d'esta cousa mamdey dar ao dito meu Moesteiro esta carta aberta e seelada do meu seelo Pendente. Data en Santaren, vynte e quatro dias de Abril. A Reynha o mandou.

Quando Affonso Martins acabou de ler reinava o mais profundo silencio.

Todos escutavam com profunda attenção.

El-rei com um gesto entre severo e ledo, disse:

-- Senhora, haveis de chegar a empobrecer-vos com tão quantiosas esmolas.

-- Tal não succederá, senhor, volveu a rainha, porque me faltam os bens que eu repartia com os pobres e com os que se dedicam ao serviço de Deus.

El-rei mordeu os labios.

-- Continuae, disse elle a Affonso Martins para dissimular a sua commoção; lêde-nos esse outro escripto.

Affonso Martins redarguiu:

-- Isto agora é uma carta para o senhor infante, que eu proprio escrevi por mandado da senhora rainha.

E desdobrando uma folha de papel pardacento e cheio de felpa, leu o seguinte:

«Ao muy alto e muy nobre infante D. Affonso, meu amado filho. Dona Isabel, por graça de Deus Reynha de Portugal e do Algarve, saude como a quien amamos muy de coraçon e de quien muyto fiamos e para quien querriamos que Deus desse tanta vida e tanta saude, con onrra té, por muitos annos e boõs como para nós mesma.

E continuando n'este mesmo estylo e linguagem a rainha n'aquella carta reprehendia severamente o infante pela sua rebellião, lembrava-lhe os deveres de filho e de vassallo, mostrava-lhe os grandes males que causava ao reino, o grande damno que fazia á sua propria alma com tão peccaminoso procedimento e concluia por lhe pedir, invocando os sagrados direitos de mãe, que fizesse as pazes com el-rei.

Afinal, n uma especie de post-scriptum, dizia-lhe que entregasse duzentas libras, que o mensageiro levava, ás religiosas do mosteiro de Sant'Anna para ajuda da conclusão da sua nova casa na vinha da Varzea, pois que a antiga, junto á ponte, estava arruinada, e lhes pedisse rogassem a Deus pela paz do reino e concordia d'elle com el-rei.

Quando acabou a leitura, Affonso Martins, aproveitando o silencio que reinava, accrescentou:

-- O mensageiro Affonso Fernandes não trazia as duzentas libras, mas uma cedula d'esse valor, que elle devia apresentar a Salomão Arbabanel, judeu de Coimbra. A cedula foi a meu rogo passada aqui pelo honrado D. Judas, o qual recebeu por ella duzentas e vinte libras.

Quando Affonso Martins concluiu, todos, incluindo el-rei, olharam para D. Judas.

O pobre thesoureiro d'el-rei agarrou-se, para não cair, ao espaldar d'uma poltrona.

El-rei disse-lhe então com uma voz que soou aos ouvidos do juseu mais terrivel que a trombeta do exercito de Gedeão aos ouvidos dos seus inimigos:

-- Mentistes como um perro, D. Judas, comido seja eu pelos cães como Jesabel...

-- Deixae-vos de juras, bradou-lhe el-rei; é preciso pois que se entreguem ás donas de Sant'Anna as libras que lhe são destinadas, com a differença porém que em vez de duzentas contareis a Affonso Martins as duzentas e vinte que elle vos pagou.

-- Ah! senhor, exclamou D. Judas, como poderei eu, eu mais pobre que Job...

-- Não vos lastimeis, D. Judas; pobre sois vós, mas da graça de Deus.

E voltando-se para a rainha exclamou:

-- Amanhã, senhora, iremos nós mesmos levar aquelle donativo ás boas donas de Sant'Anna e dar graças a Deus por nos ter restituido a paz tão milagrosamente.

-- Então, redarguiu a rainha com doçura, só depois d'amanhã partirei para Alemquer.

-- Peço-vos que não façaes tal; ficae antes em nossa companhia; cumpri a vossa missão de paz até ao fim.

A este tempo Lourenço Annes Redondo, que já começara a perceber levemente o que se passara, adiantou-se repentinamente e disse a el-rei:

-- Ainda quereis, senhor, que tome sob minha guarda e vigilancia o escudeiro que veio a Coimbra da parte de sua senhoria a rainha?

-- Não, disse el-rei; substitui-o antes pela pessoa do honrado D. Judas.

-- Ah! senhor el-rei, exclamou D. Judas caindo de joelhos, com o rosto livido e os olhos afogados em lagrimas; não me mandeis queimar que não tive a culpa de todos estes tristes successos.

E com a voz entrecortada pelos soluços, contou a el-rei tudo o que se passara na alcaçova de Santarem.

-- Afinal, concluiu elle, a culpada de tudo foi D. Froyla e ella ahi está que desminta as palavras do mais desgraçado filho d'Israel.

Quando D. Judas acabava ouvia-se um brado de afflicção do outro lado do aposento.

Era D. Froyla que caía tambem debulhada em lagrimas aos pés da rainha.

A rainha porém disse-lhe com brandura:

-- Levantae-vos, que por mim está perdoado o vosso desvario. Porém só Deus vos pode lavar de toda a culpa. Soccorrei-vos a elle, que é misericordioso.

Ermezenda estava pallida mas sorria com expressão ineffavel para Affonso Fernandes.

Quando D. Judas recuperou alguma serenidade já todos tinham desapparecido menos Affonso Martins e Lourenço Annes Redondo.

-- Falharam os vossos planos, senhor dom intrigante-mór do paço, disse-lhe Affonso Martins: para cá as vinte libras que usurariamente me apanhastes.

Ao mesmo tempo o grave e sisudo meirinho dizia-lhe do outro lado:

-- Antes de vos julgarem e queimarem haveis de me explicar todas essas intrigas que eu afinal não comprehendo muito bem, D. Judas.

O desgraçado thesoureiro olhou para ambos repetidas vezes com um ar desvairado, e por ultimo, fitando o thesoureiro da rainha, exclamou ao mesmo tempo que lhe rebentavam novamente as lagrimas dos olhos:

-- Enforquem-me, queimem-me em vida; mas não me apanhareis nem mealha, maldito servidor d'aquella beata que foi a minha perdição.

EPILOGO

Segundo dizem os historiadores, estabeleceu-se effectivamente a paz entre el-rei e o infante.

El-rei fez-lhe varias concessões. Augmentou-lhe os rendimentos, prometteu mandar-lhe concertar o palacio e deu-lhe Coimbra, Montemór-o-Velho e o burgo do Porto.

D. Affonso prestou juramento de fidelidade a el-rei, e prometteu tambem entregar os malfeitores que andavam com elle.

A D. Pedro, conde de Barcellos, foram restituidos os bens que lhe tinham sido confiscados.

Feita a paz, o infante, cedendo aos rogos de sua mãe, veiu a Leiria pedir perdão a D. Diniz. Em seguida partiram todos para o alcaçar de Lisboa.

No romance -- Da parte d'el-rei -- contámos nós como a paz foi novamente alterada, e como, graças tambem á intervenção da santa rainha, se tomou a estabelecer depois de pae e filho terem estado um em frente do outro no campo d'Alvalada, proximo a Lisboa.

Tambem d'essa vez a questão foi por causa dos rendimentos, de cuja exiguidade D. Affonso se queixava, e do valimento de seu irmão natural D. Affonso Sanches, valimento que elle não via com bons olhos. D'estes factos pode-se concluir que os defeitos principaes de D. Diniz foram o muito amor ao dinheiro e o muito desamor ao leito conjugal.

Isto quanto á historia. Quanto ao drama, as nossas investigações levaram-nos a suppôr que D. Judas sempre pagou as vinte libras, porém não foi nem queimado, nem degolado, nem ao menos enforcado. Como D. Diniz o estimava pelo seu merecimento em questões de impostos, de usuras e alcavalas, ou como hoje diriamos, em questões de fazenda, esqueceu-se do delicto e continuou a utilisar o judeu em serviço das suas arcas e vexame dos seus povos.

De Froyla sabemos ao certo que desenganada no seu amor e arrependida da sua leviandade, sacrificou os opulentos e formosos cabellos perante o altar da senhora Sant'Anna de Coimbra, e envolvendo as encantadoras fórmas no triste habito de religiosa, fez voto de esquecer o mundo e as suas tentações entre as paredes d'uma cella.

Deus, que lê nos corações, sabe se ella os esqueceu, e se quando adormecia no seu leito de virgem não acordava para os aureos e mentirosos sonhos do seu passado.

O que mais succedeu a Affonso Fernandes e a Ermezenda no deslisar dos seus amores, contamol-o nós no romance -- Da parte d'el-rei -- que é como o remate do romance -- Da parte da rainha.

NOTAS

«Entretanto se pelos annos de 1359 já há muito tinham deixado de se ferir encarniçadas pelejas entre mouros e christãos...» Pag. 12.

Isto entende-se só com Portugal, pois, como é sabido, só no seculo XV é que Fernando e Isabel acabaram com o imperio arabe na Hespanha.

«Todos os jugadeiros da terra...» Pag. 55.

Chamavam-se jugadeiros os foreiros que, em virtude d'um contracto com a corôa, passavam a ter a posse hereditaria das terras aforadas, pagando por ellas uma porção invariavel dos fructos que colhiam. Chamavam-se reguengos as terras que pertenciam ao rei e das quaes elle tirava as despezas da sua casa.

Mordomos do fisco eram os empregados da corôa encarregados da cobrança dos impostos. Muitas terras gozavam do privilegio de nomearem o seu mordomo, privilegio que lhes era concedido pelo foral. Santarem, por exemplo, estava n'este caso.

Todos estes assumptos se acham tratados nos magnificos trabalhos do sr. Alexandre Herculano, para os quaes mandamos os estudiosos.

«Livro do Deposito e do Recabedo.» Pag. 60.

Livro do Deposito ou Depositario era aquelle onde se registavam os reguengos, e o do Recabedo ou Recábedo Regni aquelle onde se registavam os bens da corôa.

«Cujos rendimentos passam da prodigiosa quantia de doze mil libras!» Pag. 63.

Segundo os calculos do illustre auctor das Memorias das rainhas portuguezas, o sr. Figanière, doze mil libras valiam tanto como hoje podem valer setenta contos de reis.

«Acaso receaes pagar alguma multa, por vos saberem aqui a sós com uma christã?» Pag. 87.

Na idade media era expressamente prohibido por lei estarem a sós uma christã e um judeu. Os que transgrediam a lei pagavam uma forte multa, e se reincidiam, eram açoutados.

«Se pedi a luctuosa...» Pag. 108.

Chamava-se luctuosa o imposto pago pela familia de qualquer villão que acabava de morrer. Santarem estava isenta pelo foral do pagamento da luctuosa. No mesmo caso se achava Lisboa, se a memoria nos não falha.

«Por esta sagrada reliquia que o nosso santo bispo Domingos Annes Jardo trouxe de Roma...» Pag. 113.

Domingos Annes Jardo esteve effectivamente em Roma. A respeito d'este veneravel vulto da igreja, lembra-nos de ter ouvido na nossa infancia uma lenda singela, formosa e poetica, e que daria bem para um gracioso conto. Na epocha altamente religiosa de D. Diniz estavam muito em uso as reliquias de trazer ao pescoço. Nos testamentos d'este rei e da rainha Santa Isabel se faz d'ellas menção.

«O nosso conhecido alcaide de Gaia e Feira, cujos castellos tinha perdido no meio das discordias d'el-rei e do infante.» Pag. 165.

Por lapso muito facil de occorrer n'estes trabalhos, dissemos aqui Feira em vez de dizer Montemór-o-Velho. No romance temos sempre apresentado este cavalleiro com intenções e discursos bastante bellicos. A razão porque o fizemos poder-se-ha facilmente imaginar, em vista do que d'elle se diz no nobiliario do conde D. Pedro, que nós aqui transcrevemos textualmente:

«Gonçalo Peres Ribeyro a quem el-rei D. Dinis de Portugal fez muito bem, e muita mercê, e deo-lhe dois castellos, que tevesse del, com quatrocentas livras; e hud'estas castellos foy o de Montemór-o-Velho e o outro o de Gaya, e fez-lhes por elles menage; e depois deoos o dito Gonçalo Peres Ribeyro a dous villãos, que os tevessem del, e non lhes deo con elles, senon senhos moyos de milho; e elle perderom os castellos depois, e deromnos em tal maneyra, ca nunca El-rey Don Dinis os pode cobrar; e assim ficou este Gonçalo Ribeyro em tal pena, e tal desventura, qual ouvides. Este Gonçalo Peres Ribeyro foy casado con Dona Constança Lourenço filha de Lourenço Escola e non ouverom semel julgou-lhes Deus bem.»

Ora ahi está porque o nosso cavalleiro era d'opinião que D. Diniz aniquilasse, as forças di infante; receava, como depois succedeu, que os dois castellos com quatrocentas libras, fossem tomados pelo infante. E o peor foi que nunca mais os pôde cobrar, como se vê pelo tratado de paz entre el-rei e o infante, e além d'isso, como diz ingenuamente o nobiliario, não houve descendencia, em castigo de ter entregue os castellos d'el-rei a dois villãos cobardes, para quem os taes moios de milho rião serviam de incentivo que lhes levantasse os animos.

Para mais verosimilhança transcrevemos este documento com a ortogfaphia que tem no original. Pag. 179.

«E desdobrando uma folha de papel pardacento e cheio de felpa...» Pag. 180.

O papel foi inventado, segundo auctorisadas opiniões, em principio do seculo XII. No seculo XIV apenas se serviam d'elle para documentos de pouca importancia. Em consequencia dó atrazo da industria, os productos d'este genero não podiam pois deixar de ter o aspecto que aqui lhe damos. O imperador Frederico II, como diz o bibliophio Lacroix, fez em 1220 uma ordenação em que prohibia o uso do papel nos documentos de maior importancia.

NOTA FINAL

Sobre a epocha em que D. Diniz apartou de si a rainha e lhe tirou os rendimentos, pode haver grandes duvidas. Apesar de opiniões em contrario, não hesitámos em seguir n'este caso o parecer do sr. Figanière, o auctor das Memorias das rainhas, que já acima citámos. Segundo este illustre escriptor assevera, existem documentos da epocha anterior áquella em que se passa a nossa narrativa, assignados pela rainha. D'esta circumstancia se pode concluir que o facto, aliás muito verosimil é provavel, do desterro da rainha e da privação dos seus rendimentos, só se teria dado por occasião da lucta ao pé de Coimbra ou pouco antes, e não muito anteriormente, segundo parece dizer Ruy de Pina.

ERRATA

Na pag. 59, lin. 5, onde se lê «ceitil» deve-se ler «mealha». Ceitil foi moeda cunhada por D. João I depois da tomada de Ceuta.

Estes objectos de devoção e similhantes eram muito usados n'aquelles tempos. No testamento de D. Diniz falla-se nas minhas cruzes pequenas que são de trazer ao colo.

Solhas, armadura formada de laminas de aço que defendia o tronco. Laudel, especie de saia de malha. Ascuma, lança curta. Besta, arco que servia para arremessar ou virotões ou frexas. Loriga, armadura parecida com o laudel mas talvez mais completa.

A cerca ou muralha que rodeava Lisboa descia do Castello, passava em frente da Sé, voltava pela rua das Canastras, corria á beira mar e subindo pela Adiça ia encorporar-se outra vez no Castello pelo lado do nascente. Na Adiça, quem quizer ainda hoje pode ver um resto da antiga muralha. Como dizia Pedro Annes Gayo estava sem defensão uma parte importante da cidade, e foi porque reconheceu isso por uma terrivel experiencia que D. Fernando mandou construir nova muralha, cujo ambito muito maior já comprehendia o elegante Chiado de hoje e toda a parte da cidade que presentemente se chama a baixa.

Pena de ferro com que se escrevia em pergaminho.

Copiado textualmente do codigo das ordenações Affonsinas onde vem esta lei de D. Diniz. Jouver é ter ajuntamento carnal.

Quantia era uma especie de soldada que el-rei dava aos seus fidalgos.

Anadel, capitão d'uma companhia de bésteiros.

Saio era uma veste de homem, que parece chegava á cintura. O sainho de que já acima fallámos, era trajo de mulher, que tambem chegava á cintura, arredondado em baixo e sem abas. Isto tudo são supposições. Dos trajos de tão remotas epochas, só rigorosamente se conhecem os nomes, porque se encontram nos documentos. O finado romancista portuense Arnaldo Gama, escriptor estudioso e investigador profundo, nas descripções de trajos toma por guia os escriptores francezes que tratam da especialidade. O sr. Alexandre Herculano, de todos o mais competente, não desce nos seus romances admiraveis a minuciosidades n'este ponto, o que leva o autor d'este livro a crer que não existem monumentos por onde se possa ajuizar dos trajos portuguezes na edade media. Pelo menos ainda os não viu nem tem grandes esperanças de os ver.

É encostando-nos á opinião de Alexandre Herculano que fazemos figurar entre a gente de guerra do rei os bésteiros do concelho que n'esse tempo é provavel que ja estivessem organisados. Rebello da Silva já os faz figurar um seculo antes no seu romance Odio velho não cança. Talvez seja cedo de mais.

O montante era uma espada muito comprida, de que os cavalleiros se serviam com ambas as mãos, no meio da confusão e no mais acceso da lucta. A espada d'armas era mais curta, e por conseguinte mais manejavel.

Estas promessas e juramentos tinham sido feitos dois annos antes. A rogos tambem de D. Izabel, D. Affonso viera pedir perdão ao pae e prometter-lhe submissão e affecto. Como se vê, a rainha santa era o anjo da paz que andava constantemente a reconciliar o pae e o filho.

Para estes e outros termos pouco conhecidos, vejam-se as notas no fim do livro.