Marina: Edição para o ELTeC Romance passional Pinho, Maria Benedicta Mousinho de Albuquerque (1865-1939) Criação do HTML original Madalena Rato Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 23596 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Marina: romance passional Maria Benedicta Mousinho de Albuquerque Pinho Biblioteca Nacional de Portugal Marina: romance passional Maria Benedicta Mousinho de Albuquerque Pinho Cernadas & C.a -- Livraria Editora Lisboa 1912

português de Portugal Converted by checkUp script for new release Adicionado à coleção ELTeC

MARIA BENEDICTA MOUSINHO DE ALBUQUERQUE PINHO

ROMANCE PASSIONAL

LISBOA

COMPOSTO E IMPRESSO NA IMPRENSA LUCAS

93 — Rua do Diário de Notícias -- 93

1912

A meu primo D. Antonio de Chatillon

A quem devo a publicação deste livro

O.D.C.

A auctora

I

O sol declinava, enviando raios, de um ouro fulvo, que vinham morrer nas pesadas cortinas do salão. Marina deixou cahir o trabalho, e, mãos cruzadas no regaço, cabeça deitada para traz, olhava o occidente, côr de purpura.

Os aneis revoltos, do seu explendido cabello negro, vinham afagar-lhe a fronte, ao impulso da viração, que nelles doidejava.

-- Que linda creatura! -- murmurou o conde de Miramar, num suspiro, afagando,com gesto nervoso, a barba branca que lhe emoldurava o rosto varonil, mas bastante envelhecido.

-- Estarás enamorado? -- perguntou o pae de Marina, com um lampejo, nos olhos claros.

O conde limitou-se a suspirar, novamente, olhando a joven.

-- E’ que, se a amasses, -- proseguiu Manoel de Lemos, procurando um charuto. -- se a amasses, podias fazer della tua mulher.

O outro estremeceu, o seu olhar scintillou,para logo se apagar, numa onda de volupia. Um calôr intenso lhe subiu ao rosto, e, voltando-se para Manoel:

-- Falas sério?

-- Porque não? -- volveu Lemos. -- Seria, para mim, uma alegria, vê-la usar o teu nome. Depois... sabes que estou sem recursos, e Marina terá de trabalhar, para viver... Estiolar-se-ha, nesta villa, aquella soberba flor... Repito : queres Marina para tua mulher?

E vendo o amigo hesitante, acrescentou, em tom trocista :

-- Ou sentes-te muito velho, para aquelles luxuriantes dezoito annos?

-- A sua belleza é um filtro, capaz de remoçar os mais decrépitos... Mas... ella, querer-me-ha?

-- Se te quer?

Chamou a filha.

Esta ergueu-se, com uma graça voluptuosa, e approximou-se.

-- Sabes, filha, de que me falava Jorge?

Ella volveu, para o conde os seus magníficos olhos garços.

Este fitou a, muito pallido e muito commovido, quasi supplicante.

-- Não comprehendo... -- murmurou a joven.

-- Perguntava-me se terias muita reluctancia, em acceitar o seu nome.

Marina estendeu ao conde a sua mão de neve. Este apertou-a, docemente, e inclinando se com perfeita galanteria, beijou-lhe os dedos, murmurando:

-- Adora-la-hei, Marina!

Dois mezes depois, Marina de Lemos era condessa de Miramar.

O deslumbramento que a joven sentira, perante as riquissimas prendas, dadas pelo noivo, continuou, durante a viajem, feita no sumptuoso caleche, ao ouvir o marido estabelecer um programma de festas, e accentuou-se ao entrar no palacete.

-- Ah! meu amigo! -- exclamou, ao penetrar nos seus aposentos, -- parece um palacio de fadas!

Elle sorriu, feliz por vê-la tão alegre, sentindo-a presa a elle, por todo esse luxo de que ia rodea-la. E, inclinando-se, a beijar-lhe a mão, deixou-a entregue á sua camarista.

Como uma creança, Marina deixou-se despir, despentear, sentindo um delicioso conforto, e, quando entrou na banheira de mármore rosa, ao sentir a agua tepida e perfumada, uma onda de volupia lhe inundou o coração.

-- Como a vida é bôa! -- murmurou.

A camarista olhava esse corpo de neve, esculptural, fresco, virginal. E pensava que taes thesouros, eram bem mal empregados, n’esse velho de sessenta annos, gasto por uma vida de orgias. Evocava o porte esbelto de Humberto de Cadaval, o sobrinho e companheiro dilecto do conde, seu commensal de todos os dias. Que diria elle, ao vêr essa formosa tia ?

Envolta no roupão de noute, deliciosamente repousada, a condessa deitou-se, dizendo, para a creada:

-- Luiza, previna o senhor conde de que me sinto muito fatigada e que desejo descançar. Traga-me um copo de leite, depois feche as portas e leve a chave, para vir accordar-me, ás 8 horas.

Pouco depois a rapariga voltava com o copo de leite, e, pondo a bandeja na pequenina meza, perto do leito, deu as bôas noutes e sahiu, fechando a porta.

Marina bebeu, vagarosamente, o leite, comeu algumas bolachas, saboreando, deleitada, o conforto, o mimo, o luxo de que se via rodeada.

Pouco depois adormecia, sorridente, sem pensar no marido.

Este, ao receber o recado, teve um gesto de contrariedade, o olhar fulgurou, e, por momentos, a rapariga julgou ir assistir a um desses ataques de ira, que tão temido o tornavam.

Mas elle dominou-se, despediu a creada, e foi encostar-se ao peitoril da janella, onde permaneceu longo tempo.

Estaria Marina realmente fatigada?

Era perfeitamente natural, depois da longa jornada :dez leguas em carruagem, a seguir ás emoções desse dia.

Elle proprio se sentia cansado, e era razoavel e sensato descançar, recuperando, assim, forças para o dia seguinte.

Mas se a fatiga da condessa fôsse, apenas, um pretexto, para de si, o affastar ? se a sua idéa fôsse essa?

Não cederia !

Não era como objecto de luxo que a cubiçára.

Desejava-a ardentemente, rejuvenescido pela sua formosura, pela sua mocidade, pelas suas formas divinas, pela epiderme assetinada, louçã, pelos labios rubros, pelos olhos incomparaveis.

Queria desvendar os mysterios desse corpo, que advinhava superior a tudo quanto gozára, deliciar-se na frescura de aquella virgindade, queria vêr-lhe roxeadas as palpebras, empallidecidas as faces, queria vê-la quebrada, sua, bem sua...

A’ mente, de libertino, occorriam as mais loucas vizões.

Tirou do bolso uma pequenina chave, dirigiu-se para a porta, occulta por pesado reposteiro, que ligava o seu quarto ao de Marina.

Abriu, de manso. ..

A lampada espalhava uma claridade suave.

Approximou-se do leito, cujos cortinados correu.

Marina dormia.

Sobre o travesseiro, negrejava a opulenta trança, uma respiração igual, entreabria os labios frescos e appetitosos.

A felicidade espelhava-se-lhe, no rosto formosissimo.

Friorentamente envolta na roupa, mal se lhe adivinhavam as formas, sob o édredon de setim, bordado a matiz.

Jorge contemplou-a durante alguns minutos.

Depois, deixou cahir as cortinas, e sahiu, como entrára, promettendo, a si mesmo, não a deixar dormir, tão tranquilla, na noite seguinte.

II

Bom dia, Jorge!

E estendia a fronte, ao marido, cerrando, um pouco as palpebras.

-- Bom dia, Marina!

Beijou-a na fronte, nos olhos, respirando o perfume dos seus cabellos, sentindo um estonteamento, ao contacto dessa epiderme setinosa.

Estreitou-a, demoradamente, de encontro ao peito.

Ella sentou-se na otomana, muito baixa, e, com um sorriso:

-- Sabe que dormi como uma collegial?

-- Sei! -- respondeu elle sorridente. -- Estive perto do teu leito, admirando-te a tranquillidade do somno.

-- Perto do meu leito? -- exclamou ella, muito surprehendida, -- mas... como pôde?...

-- Entrar no quarto? -- interrompeu, risonho, -- de um modo muito simples: abrindo a porta que liga os nossos aposentos, Marina.

Sentando-se perto da esposa, enlaçou-lhe a cinta, com o braço direito, e, com a mão esquerda, ergueu-lhe o queixo, beijando-a nos labios, demoradamente.

Ella teve um instinctivo movimento de repulsão, logo dominado.

O conde fingiu não dar por tal e repetiu o beijo.

-- Julgavas que podias encerrar-te no teu quarto, como numa fortaleza ? -- proseguiu Jorge, em tom de gracejo, -- e ficas admirada, ao saber que essa fortaleza, que suppunhas inexpugnavel, tem, como todas as fortalezas, uma porta de traição! Minha querida Marina, -- continuou, tirando do bolso a pequenina chave, -- esta chave abre-me, a toda e qualquer hora, a porta do teu quarto. Para o marido, não ha portas fechadas.

Despeitada, Marina mordia os labios.

O conde continuou:

-- O recado que mandaste por Luiza, desagradou-me. Quando queiras pedir-me qualquer coisa, pedir-me-has directamente. Não quero creados mettidos na nossa vida intima.

-- E’ uma lição? -- perguntou Marina, erguendo-se, irritada.

-- Não ! -- respondeu serenamente o conde, -- é apenas prevenir-te, para que evites a lição.

E vendo-a permanecer de pé, fremente de colera, agarrou-lhe nas mãos, forçando-a a sentar-se-lhe nos joelhos.

-- Sou um velho, e tu és a mais adoravel das mulheres bonitas. Quem te disse que podias dominar-me e obter, de mim, tudo quanto quizesses, não te mentiu. Esqueceu-se, porém, de prevenir-te que, para sêres a minha muito amada creança mimosa, é necessario que me dês carinho, affecto, que tenhas, para commigo, todas as complacencias que, como marido, tenho direito a exigir de ti.

Ao notar a firmeza destas palavras, Marina comprehendeu que havia pensado mal, quando soppuzera que elle seria para ella um pae...

Sim, elle dar-lhe-hia tudo quanto ella appetecesse, mas, para isso, era necessário que ella lhe désse a sua mocidade...

Um calafrio a fez estremecer, pensando que teria de pertencer a esse velho lascivo. Amaldiçoou a sua ambição.

Pareceu-lhe triste, o luxo que a deslumbrára, afigurou-se-lhe que os aneis lhe magoavam os dedos, e que o roupão de peluche, guarnecido de arminhos, que tão deliciosamente a aquecia, era pesado como uma mortalha.

-- Louquinha ! -- murmurou o conde beijando-a muito. -- Verás que podes ser feliz, sem fazer de mim um desgraçado.

E como as horas passavam, acompanhou-a até ao quarto, para que se preparasse para o almoço, e em seguida dirigiu-se ao escriptorio.

III

O almoço, servidona magnifica sala de meza, com um luxo principesco, dissipou o mau humôr de Marina.

Conversou e riu, mostrando-se encantadora para Jorge, que parecia radiante.

Depois de almoço, o marido conduziu-a ao gabinete que lhe destinára, e mostrando-lhe um pequenino cofre, obra de arte, de um maravilhoso trabalho em ferro e aço, entregou-lhe uma chave.

-- Neste cofre tens o dinheiro para os teus alfinetes, -- disse rindo. -- E’ preciso que sejas independente, que tenhas um peculio, a que chames particularmente teu, e de cujo emprego não terás que dar contas a ninguém.

Marina agradeceu.

Sentia-se bem, alegre, e disposta a gozar a magnifica existencia que se lhe offerecia.

Depois, lembrou o passeio promettido.

Estava impaciente por vêr Lisboa.

O passeio foi encantador.

Marina maravilhava-se. Jorge gozava deliciosamente da admiração que lia no rosto de quantas o saudavam, e ufanava-se da maravilhosa belleza dessa a quem déra o nome.

Quando regressaram a casa, ambos se sentiam plenamente felizes.

A’ noite como Jorge falasse em ir ao theatro, Marina declarou que preferia ficar em casa:

-- Se o não contrario, Jorge, faremos um pouco de musica. Por hoje, declaro-me sufficientemente divertida. Mas se o Jorge quer sahir, não se prenda...

-- Por quem és! O que pode haver que mais me encante, do que estar perto de ti?

Tocaram, conversaram.

Jorge era excellente cavaqueador, illustrado, chistoso, sabendo contar, com graça, uma historieta ou uma anedocta.

E Marina pensava que era preciso ser uma creança, inexperiente, e sem tacto, para ter imaginado ser facil dominar um homem com o espirito do conde de Miramar.

Elle calára-se.

Ella absorvia-se na contemplação da chamma azulada do fogão de alcool, invadida por vago torpôr, de novo presa dessa volupia, que na vespera a deliciára ao entrar no banho.

Um creado correu o reposteiro, annunciando:

-- O senhor Humberto de Cadaval.

-- E’ o meu sobrinho, -- disse o conde, respondendo ao olhar de Marina.

O reposteiro correu-se, de novo.

Um elegantissimo mancebo avançou.

-- Marina, -- disse Jorge, -- permitte que te apresente o teu sobrinho Humberto.

-- Sinceramente estimo vê-lo, Humberto. Jorge fala de si, com muita estima; espero merecer-lhe um pouco, da boa amizade, que dedica a meu marido.

O mancebo curvou-se, respondendo :

-- Basta V. Ex.ª ser mulher de meu tio, para ter direito á minha estima.

Pareceu a Marina muito fria, esta phrase, e, principalmente, muito banal.

Lembrou-se de que, antes do seu casamento, era Humberto o herdeiro presumptivo da immensa fortuna do conde, e por esse motivo, era natural que se sentisse pouco disposto a sympathisar com ella.

Encostou-se, novamente, ao alto espaldar da sua berceuse , estendeu os pés para o fogão, e, cerrando as palpebras, permaneceu silenciosa.

Jorge e Humberto, conversavam.

E Marina olhava-os, atravez as longas pestanas, observando-os.

Cadaval, robusto, alto, bella fronte de intelligencia, bocca vermelha, sensual, olhos avelludados tinha o mesmo porte distincto, soberano, de Jorge de Miramar, o seu mesmo sorriso de libertino sceptico.

Mas, ao passo que Jorge accusava evidente decadencia, Humberto resplandecia de mocidade, de força, de saude. Quando ria, o seu riso era franco, muito alegre, deixando vêr os dentes muito brancos.

E Marina admirava-lhe a musculatura de joven Hercules, e pensava como a vida seria diversa, se, em vez de Jorge fosse Humberto o seu marido.

O mancebo levantou-se.

Viera, de manhã, procura-los, e, como não os encontrasse, voltára, apenas para saber como tinham chegado, e pedia licença para vir, no dia seguinte cumprimentar «sua tia».

E sorria, ao chamar «tia» a essa deliciosa creatura.

Marina estendeu-lhe a mão, encantada com a idea de o revêr, no dia seguinte.

Jorge acompanhou-o ao vestibulo, voltando logo.

-- Vou deitar-me, meu amigo, -- disse Marina, erguendo-se.

E de súbito, tornou-se rubra.

-- Até já, querida, -- fez Jorge, beijando-lhe a mão.

Um calafrio fez estremecer a joven. E retirou-se, vagarosa, emquanto Jorge, perfeitamente disposto, passava aos seus aposentos.

A lampada espalhava, no quarto, a sua claridade opalina.

Um immenso conforto reinava nesse aposento, tão perfumado como um ninho, que as violetas cercassem.

Marina estava estendida na chaise-longue, envolta no roupão de flanella branca, estremecendo ao menor ruido, o olhar cravado na pequena porta, por onde Jorge devia entrar.

O coração pulsava-lhe, desordenadamente, e sentia-se quasi impaciente.

Se o sacrificio tinha de ser, porque esperava o marido?

A porta, abriu, sem ruido.

Envolto num roupão de velludo escuro, Jorge avançou, e veiu ajoelhar perto da joven, que fechou os olhos, soltando um suspiro.

Em breve, uma sensação extranha, a penetrou.

Sempre ajoelhado, Jorge beijava-lhe os braços, que as amplas mangas deixavam livres, e os seus labios ardentes subiam, até ao hombro, para descerem, vagarosos, até ao pulso, e, de ahi, até á extremidade dos dedos.

A pouco e pouco, essas caricias, quebravam a joven, entorpecendo-a. Pequenos estremecimentos de volupia, lhe percorriam a epiderme, e, sempre de olhos fechados, deixava-se invadir por delicioso langôr.

Dos braços, o marido passava, agora, ao pescoço, á orelha nacarada. Descia ao collo, sem que Marina pensasse em resistir, e, supremo artista, Jorge demorava esses beijos, percorrendo de novo, os braços, os hombros, o pescoço, approximando os labios do seio palpitante, que a sua mão desnudára, seio talhado em neve, de uma rigeza de alabastro, que parecia pedir as caricias, que tardavam, em ceder-lhe.

E, de olhos fechados, Marina sonhava...

Via o olhar avelludado de Humberto, ouvia-lhe a voz, parecia-lhe que era elle, quem alli estava.

E já sem receio, doido de amor e de febre, perante esse corpo lyrial, Jorge percorria, com os labios a epiderme assetinada, desvendava os mysterios desse corpo esculptural, queimando-o, com o seu haito de fogo, até que, doido de ventura, o ia enlaçar, para o suprêmo prazer, quando Marina abriu os olhos.

Ao vêr o rosto alterado de Jorge, soltou um grito, e tentou fugir-lhe.

Elle fitou-a, sorridente, triumphante, parecendo achar um encanto especial na lucta. Por fim, enlaçou-a, bruscamente, arrastando-a para o leito.

IV

Na severa livraria, encostado na ampla causeuse,Humberto fumava, emquanto o conde, passeando, falava com animação, descrevendo a scena da noite, ora rindo, ora semi-grave, ora baixando a voz, para uma confidencia mais intima, ora elevando-a, numa exaltação de enthusiasmo.

E, sorridente, calmo, na apparencia, Humberto escutava, olhando as espiraes de fumo, ou cofiando, vagaroso, as guias do pequeno bigode.

Jorge calou-se.

Humberto permaneceu na mesma posição, cerrando, um pouco, as palpebras para occultar, talvez, o intenso fulgôr dos olhos negros.

O conde parou, defronte do sobrinho, e, curvando-se para melhor o fitar, perguntou:

--Julgas que pensará ainda em resistir-me?

O mancebo arremessou o charuto e ergueu os olhos, scintillantes de malicia :

-- Talvez ainda o deseje, mas não creio que volte a tenta-lo.

-- Queres dizer que me não tem amor, nem nunca o poderá ter?

Humberto encolheu os hombros, levantou-se, e, travando do braço do tio :

-- Tens presente, não é assim ? a imagem d’essa seductora mulher?

Ao gesto affirmativo de Miramar, arrastou-o para defronte do espelho.

-- Achas que podes inspirar-lhe amor?

O conde volveu, sorrindo:

-- Comtudo, é certo que consegui faze-la vibrar de prazer... que lhe despertei, um pouco, o temperamento.

-- Pois bem, meu velho, seria bem melhor que o tivesses deixado adormecido.

Miramar estremeceu, e agarrando o braço do sobrinho :

-- Sim... tens razão! Mas agora... que o mal está feito, que fazer?

Humberto sorria sempre, fitando o rosto alterado e envelhecido, do tio.

Este fitava-o, tambem, com viva anciedade, mais intensa de momento para momento.

O relogio quebrava o silencio, com o seu tic-tac monotono, o fogão ardia, espalhando em calôr suave, nas jarras da índia, as flores exhalavam um perfume estonteante, unindo-se ao do fumo, que enchia o gabinete.

E Humberto olhava Jorge: -- olhos cavados, roxeados por essa noite de prazer, lábios sensuaes, em que o sangue tomava uma côr violacea, faces pallidas, marcadas por pequenas rosêtas de febre, fronte prematuramente sulcada por profundas rugas, pelle envelhecida pelos excessos. E evocava a radiante Marina, recordava a scena contada pelo tio, e ao sorriso de quasi dó, succedeu um sorriso de mephistophelica malicia.

-- Então? -- murmurou o conde, apertando-lhe o braço.

-- Cansa-a! -- respondeu vagarosamenteo sobrinho.

Jorge mostrou-se radiante, e retomou o seu passeio, esfregando as mãos, emquanto Humberto tocava o timbre.

-- Pergunte á senhora condessa, -- disse, ao creado que acudira, -- se me póde receber?

-- Ah ! Vaes vêr Marina? Estuda-a... era bom que ella te escolhesse para confidente...

Humberto soltou uma gargalhada.

-- Pobre tio! -- exclamou, -- vejo que enlouqueceste, por completo! Gomo pódes lembrar-te de que uma rapariga, escolha, para taes confidencias um rapaz da minha edade?

-- Tens razão! -- concordou Miramar, contemplando o rosto varonilmente bello, do sobrinho, parecendo notar, pela primeira vez, a sua juventude sadia. -- Tens razão! --repetiu, com um suspiro, -- oh Humberto, quanto não daria eu, pela tua mocidade!

Cadaval replicou, rindo:

-- E’ coisa que não se vende, pela razão de não haver dinheiro que a pague.

E deixou o tio, dirigindo-se, sem pressa para a pequena sala onde Marina o esperava.

Correu, de manso, o reposteiro, inclinou-se, na primeira saudação e ficou um momento, contemplando a joven.

Fresca, louçã, aquecia, ao fogão, os pequeninos pés, e enviou, ao mancebo, um adoravel sorriso.

-- Esperava-o com impaciência ! -- disse

-- Como é amavel, minha tia! -- volveu Humberto, apertando a mão que lhe estendiam e sentando-se, perto da joven.

-- Nada amavel, apenas muito sincera. Julgo que Humberto não partilhava a minha impaciencia, pois, ha bem duas horas, que está com Jorge, esquecido da visita que me havia promettido.

-- Não posso acreditar que fale a serio. E’ demasiadamente encantadora para ignorar o seu poder, e não julgo, por isso, necessario protestar, contra a accusação que me faz.

-- Encantadôra ? Então suppõe-me vaidosa, para dizer que assim me julgo?

-- Vaidosa, não, artista. E, como tal, deve esquecer-se, muita vez, diante do espelho. E’ das coisas boas que ha na vida, sabe? contemplar um rosto bello.

-- Que de lisonjas! -- respondeu a joven, rindo, -- é capaz de convencer-me de que fala verdade.

-- Não deve ser difficil.

-- E’ maluco ! --proseguiu Marina. -- Mas deixemos este assumpto, e diga-me em que hei-de passar o tempo, com esta chuva e este vento, que ameaça levar tudo pelos ares. Estou quasi a sentir saudades da minha quinta, onde nunca se sentia o vento, abrigada pelas arvores seculares, verdes todo o anno, tão bonitas, tão imponentes!...

-- Saudades da aldeia -- fez Humberto, -- da aldeia triste, rustica, sem prazeres, sem vida, sem luxo nem conforto!... até sinto frio ao ouvi-la falar assim !

-- Oh ! sentia-me bem menos isolada alli, acompanhada pelo chilrear constante dos passarinhos. Todos me conheciam, aves e habitantes e a minha boa Martha, e a afilhada, tanto amigo sincero, que alli deixei!...

-- Quando a minha formosa tia Marina, tivér relações, -- o que não demorará muito, quando fôr ao primeiro baile, quando ouvir o côro de enthusiastica admiração, que, em todos, despertará a sua belleza, quando phrases vibrantes, lhe deixem advinhar, o sentimento despertado pela seducção que, de toda a sua pessoa emana, então dir-me-ha, se ainda se lembra do chilrear dos passarinhos, das saudações dos rusticos da sua aldeia, das affeições, que alli deixou. O triumpho enebria-la-ha, e, se quizer ser adoravelmente franca, dir-me-ha: tem razão, Humberto, é bom ser assim adorada!

-- Adorada! -- repetiu Marina, -- adorada era eu, na minha aldeia! Aqui serei apenas adulada, Humberto!

-- Adulada e adorada, invejada e desejada. Creia, minha senhora, de aqui a alguns dias, toda a Lisboa a discutirá, nuvens de incenso vão rodea-la, vae ser a rainha de todos os bailes, vae atrahir todas as attenções quer nos concertos quer nos passeios.

--Encantadora prophecia!--volveu Marina, rindo, --se se rea isar, dar-lhe-hei alviçaras

-- As que eu pedir?

-- As que pedir. Não me assusta o compromisso, porque não creio na realisaçao.

-- Fica assente. Dar-me ha as alviçaras que eu pedir. E garanto-lhe que me sinto perfeitamente tranquillo. Sei que as ganharei... e V. Ex.ª também. Se não pensasse como eu, se não estivesse plenamente segura do deslumbramento que a sua belleza ha de produzir, e das emoções que, a esses triumphos, vae dever, se não estivesse, plenamente, convencida disto...

Deteve-se, hesitando.

Depois, como ella o fitasse, curiosa, seductora a mais não, curvou-se, levemente, para ella, e concluiu:

-- Não seria hoje minha tia.

Marina estremeceu. Corou, intensamente, uma nuvem de amargura, lhe toldou o olhar, e ficou silenciosa, pensativa.

Humberto observava-a. E, vendo-a tão fresca, tão louçã, perguntava, a si mesmo, se o tio lhe não teria mentido.

Na face a côr rosada, nos olhos, em vão procurava o circulo roxeado, revelador de fatiga.

Humberto evocava a scena descripta pelo tio, ao vêr contrahidos, em amargo dissabôr, os lábios rubros dessa explendida mulher.

Marina sacudiu a fronte.

-- Todos nós somos susceptiveis de sonhar -- disse. -- Mas, quando tentamos mudar o sonho em realidade, naufragamos, sem remissão. Humberto, se, alguma vez, tiver sonhos destes, -- proseguiu, levantando-se, -- evite realisa-los. O sonho tornado realidade é um pesadêlo perpetuo, destruidor de todas as alegrias...

O mancebo erguêra-se, tambem, admirando-lhe a figura tentadora, que o fato, muito justo, desenhava.

E em tom descuidado, replicou:

-- Oh! não pensemos em coisas tristes! Não se deve encarar a vida, pelo prisma pessimista. Todos os males, teem o seu lado bom. A sua vida, minha tia, é como uma senda de rosas, pense em colher as rosas, sem ferir-se nos espinhos. E verá como os pesadelos a abandonam... depois, é preciso confessar, -- acrescentou, rindo, -- que sempre é uma compensação, ter-me como sobrinho.

Marina ria, também, e, foi sem sombra de magoa, que respondeu:

-- Decerto, muito mais, se me ensinar o segredo de colher as rosas, sem ferir-me nos espinhos.

-- Tia Marina, não os procurando, acabará por esquecer-lhe a existência...

E, como Jorge entrava, despediu-se.

--O quê? -- protestou a condessa, -- Humberto pensa em fugir? Mas, antes de eu vir, para aqui, era o companheiro habitual, de meu marido. Julgo nada ter feito, para merecer que se modifiquem, habitos tão agradaveis. Hoje, como hontem, tem o seu talher á nossa meza.

E como elle protestava, acrescentou:

-- A não ser que me queira fazer acreditar que, positivamente, embirra commigo.

E elle volveu, a rir:

-- Que embirro, embirro, mas como não quero dá-lo a entender, acceitarei o seu convite, minha linda tia Marina.

-- Ambos encantadores! -- disse o conde, visivelmente satisfeito. Sejam amigos, muito amigos, se soubéssem quanto me agrada vê-los assim!

Marina córou

Humberto sorriu.

V

Realisára-se a prophecia de Humberto.

Lançada no turbilhão da vida lisboeta, Marina viu-se rodeada de admiradores enthusiastas, de côrtes apaixonadas, de adulações, de amizades, mais ou menos sinceras.

Posta ao corrente das intrigas, dessa sociedade de prazer, em breve se sentiu dominada pela mesma febre de divertimento.

O amor ardente de Jorge, fiel ao conselho do sobrinho, trazia-a vibrante. O seu olhar scintillava, a bocca tomára mais côr, a face empallidecêra um pouco, os olhos tinham, agora, um leve circulo azulado, que lhes augmentava a extraordinaria belleza.

E’ num dos últimos bailes da epocha, que a vamos encontrar.

A orchestra preludiava uma walsa.

Luiz de Castro enlaçou a cinta flexivel da condessa de Miramar, e o seu olhar ardente desceu do rosto aos hombros, que emergiam deliciosos, tentadores, do largo decote.

--Ha flôres, cujo perfume é veneno. V. Ex.ª é mais perigosa do que essas flôres, porque enlouquece. Vendo-a sentimos correr, nas veias, labaredas que nos requeimam. E que extranhas allucinações nos perturbam! Se soubesse o desejo que tenho? Matá-la... matá-la, para vêr correr o sangue, nessa garganta de neve, para que os olhos se lhe velassem, para que, dos labios, lhe sahisse um queixume! Matá-la! Matá-la... para depois a tomar nos braços, embalando-a como a uma creança!

Falava baixo, em tom profundo e apaixonado. Nos seus olhos passavam clarões selvagens.

-- Vejo, -- respondeu Marina, -- que não pode merecer-me confiança. Com esses instinctos de féra, sei lá do que seria capaz? Talvez julgue lisongear-me? Não tardará que não o possa vêr, nem ouvir...

Começára brincando, terminára em tom duro.

O seu olhar tornou-se frio e cortante, como a lamina de um punhal.

O mancebo olhou-a, supplicante:

--Perdôe! Amo-a tanto! Sou louco, louco, louco, por si! E vejo-a indifierente, sem misericordia para a minha dôr! Se soubesse como soffro, condessa Marina!

-- Sabe uma cousa? A minha flôr predilecta é a violeta, porque é discreta, e delicada. Aprenda a ser violeta, senhor Castro.

-- E, se eu conseguir dominar, um pouco a paixão que me devora... diga... merecerei um sorriso, uma palavra de affecto?

-- A alma verdadeiramente enamorada, dá amor, como a flôr perfume, sem esperança de recompensa.

-- Oh! pedia tão pouco...

-- Acha isso? Vejo que nada tem de violeta... nunca poderá interessar-me, sequér!...

E teve um gesto de soberbo desdem.

O mancebo tornou-se livido.

-- Ha tanto que a amo... que só para si vivo, condessa Marina!...

-- Eis um trabalho de que o dispenso!

-- Diga que me perdôa... que lhe mereço um pouco de dó!

-- E' funebre, senhor Castro. Esqueça-me. Nunca me interessará!

A walsa findava.

O mancebo conduziu, lentamente a condessa, ao seu logar.

E ao curvar-se, agradecendo, perguntou, em voz suffocada:

-- E' a sua ultima palavra?

-- A ultima! volveu Marina, abrindo o leque, sentindo prazer em dilacerar esse coração apaixonado.

O olhar que o infeliz lhe dirigiu foi indiscriptivel.

Curvou-se, novamente, e afastou-se, sahindo da sala.

-- Que lhe disse aquelle pobre pateta ? -- perguntou Humberto, approximando-se.

Marina respondeu, rindo:

-- Que desejava cravar-me um punhal, no coração! Acho-o muito violento e brutal. Não é o genero que eu aprecio.

-- Violentos serão sempre aquelles que a amarem, tia Marina, porque pertence ao numero das mulheres, que só paixões violentas podem dispertar. Ao vê-la, não se pensa em erguer-lhe um altar, mas pensa-se, immediatamente, que não haverá crime, nem loucura, que se não faça, para merecer-lhe amor. O homem que a amar, e perder a esperança de ser amado, pensa, fatalmente, no suicidio. Porque é uma tortura inconcebivel vê-la, de olhar incendido ou voluptuoso, labios promettendo beijos exquisitos, seio arfando, como se o coração palpitasse de desejos, e saber que tudo é ficticio, que nunca nos pertencerão esses lábios provocantes... Desilludiu Luiz de Castro? Será a sua primeira victima. Muitos corações hão de juncar o seu caminho triumphal, condessa de Miramar!

A joven desatou a ri :

-- Funebre prophecia para um baile, Humberto! Dê-me o seu braço, e leve-me ao bufete, sinto um appetite devorador.

Quando regressavam, crusaram-se com Luiz de Castro.

O mancebo deteve-se, fitou na condessa um olhar desvairado, e sahiu cambaleante, caminho do jardim.

A condessa seguiu-o, com o olhar, depois fitou Humberto, que a observava:

-- O quê? Nem um estremecimento de compaixão? Olhe que aquelle homem, tem contadas as horas de vida...

-- Meu amigo, -- respondeu Marina, penetrando na sala de baile, -- o prazer espera-me. Não tenho vagar para sentimentalismos!

E como Fernando de Luna se enclinava, perante ella, enfiou o seu braço, no d'elle, seguindo risonha, feliz, o olhar ardente de febre, os labios humidos, parecendo implorar beijos.

-- Hei-de vencer-te! -- murmurou Humberto.

-- Estamos em fins da primavera, -- dizia Fernando, -- que thermas ou campo, escolherá V. Ex.ª?

-- Não sei... é provável que vá estar algum tempo, na minha aldeia. Seu pae recommendou, a meu marido, umas semana de absoluto repouso.

-- Mas não vae fugir-nos, por muito tempo?

-- Que posso eu dizer? Tudo depende da saude de Jorge. Vou achar-me tão só, na Soledade!

-- Iremos alli vê-la, levar-lhe noticias, se V. Ex.ª permittir.

-- São dez legoas. Só se pode ir de carruagem, ou em bicicleta. Não é pois muito provável, que venha a ter muitas vizitas.

-- Se me permitte irei, frequentemente, em bicicleta, levar-lhe as ultimas novidades. ..

Marina desatou a rir.

-- Estou capaz de acceitar, para o experimentar!

-- Obrigado! murmurou Fernando.

-- Mas eu não consenti em coisa alguma, -- volveu a joven, rindo.

-- Mas não prohibe, não é verdade?

-- Não quero abusar da sua gentileza...

-- E se eu teimar... em ser gentil, não se zanga ?

Olhava-a, sorrindo:

Ella sorria, fitando-o, emocinada pela meiguice d’esse olhar.

-- Não posso impedir que dê os passeios que mais lhe agradem... -- respondeu, emfim, -- nem zangar-me por vê-lo preferir o caminho da minha aldeia...

Fernando não disse mais.

Pareceu entregar-se, por completo, ao prazer de walsar.

E, docemente commovida, Marina pensava que era assim, sem declarações intempestivas, sem ameaças, sem arrebatamentos prematuros, que ella queria ser amada.

VI

Que lhe dizia eu, condessa? Luiz de Castro suicidou-se, -- disse Humberto, fitando-a, para vêr a impressão causada pela noticia.

Marina encolheu os hombros.

-- Não sente remorsos?

-- De quê? Não o amava, não o podia amar, que devia responder ás suas declarações?

-- E nem o mais leve sentimento de dó?...

Ella olhou o, sorrindo:

-- O suicídio é uma cobardia.

-- Conforme, -- replicou Humberto. -- E' preciso coragem, e um grande desespêro, para vencer o pavor, que a morte inspira. Quem affirma o contrario nunca pensou na morte, ou nunca soube o que é soffrimento. Mas eu estou convencido de que se sente ufana, porque um desgraçado se matou, por sua causa. E’ um triumpho, não é verdade?

-- Pois preferia que o tivesse amado?

-- Não! -- respondeu simplesmente Humberto.

A condessa approximou-se:

-- Era um caracter violento, arrebatado, que não se satisfazia com um sorriso, com uma esperança, nunca realisada. E com franqueza, Humberto, prefiro sabê-lo morto, a ser sua victima. Eu gosto de viver assim, -- proseguiu, encostando-se na chaise longue, -- n’esta vibração constante, sem peccado que me faça baixar os olhos, perante Jorge, a quem respeito, sinceramente.. .E’ tão bom ser adulada ! Viver entre protestos de amor, entre olhares de adoração! Nasci para ser amada, Humberto! Não me queira mal por isso, teria verdadeiro desgosto, sabe? se pensasse mal de mim...

-- Ao vê-la tão fria, sabe o que penso, minha senhora? que o seu coração é incapaz de sentir um affecto... e que, se eu ámanhã morresse...

-- Cale-se ! -- interrompeu Marina. -- Está sendo ingrato.

-- Diga, -- insistiu Humberto, parando, junto d’el!a, -- diga, se eu morresse... seria capaz de, por mim, derramar uma lagrima?

A condessa ergueu, para elle, os formosissimos olhos.

-- E se fôsse eu, quem morresse, teria muita pena, Humberto?

-- Mais do que posso dizer-lhe...

-- Ah! fiquemos por aqui! -- exclamou a condessa, -- tanto basta para sentir-me feliz!

O mancebo dominou uma violenta commoção, e afastou-se, indo encostar-se á varanda.

Sorridente, Marina sonhava.

O conde entrou:

-- Acabo de combinar com o Luna, uma coisa que me parece dever-te agradar, Marina querida.

-- Coisas combinadas por ti, agradam-me sempre, -- respondeu a condessa, com um meigo sorriso, -- e desde já me declaro encantada.

O conde sentou-se perto d'ella, e olhando-a, com enlevo, respondeu:

-- Não se pode ser mais gentil! Gomo o Luna insiste, em que devo ir, quanto antes, para a aldeia, lembrei ir elle, com a filha, e a Suzanna de Menezes, cujo lyrismo te diverte tanto. O Fernando, como não pode deixar de ir ao hospital, irá, em bicicleta, levar-nos noticias. Já temos um ramal, da linha ferrea, que nos leva a cinco legoas da aldeia. A viagem torna-se muito mais commoda. Vês tu, Marina: os Lunas, a Suzanna, a tua amiga Martha e o marido, formaremos um grupo muito intimo, e os dias decorrerão mais breves.

-- Acho encantadora a idéa! -- disse Marina, estendendo-lhe a mão, que elle beijou.

-- Vou dar ordens para ir o pessoal necessário para pôr tudo comme il faut.

-- Se é preciso um engenheiro, aqui tem um ás ordens, -- disse Humberto, deixando a janella.

-- E se fosses dirigir os trabalhos ? Não era tolice nenhuma.

-- E porque não hei-de ir? Quando manda que parta?

-- Serão necessários muitos dias ? -- perguntou Marina, a quem a partida de Humberto agradava, mediocremente.

-- Oh, tendo carta branca..., -- disse o mancebo.

-- Tens carta branca para tudo, -- acudiu o conde.

-- N’esse caso, em oito dias porei a Soledade em termos de vos receber, e aos vossos hospedes.

-- Pobre Humberto, -- disse Marina, -- vae aborrecer-se muito!...

-- Qual historia, -- disse o conde, -- os rapazes como elle, nunca se aborrecem.

-- E’ certo, -- confirmou Humberto, -- não me recorda de ter-me aborrecido!

Tudo combinado, partiu Humberto para a aldeia, onde, oito dias depois se lhe foram reunir os condes, acompanhados pelos seus hospedes.

O vasto casarão, estava transformado n’um confortável e luxuoso palacio.

Como os Sande tivessem obras, na pequena propriedade em que habitavam, a condessa convidou os a virem para a Soledade, emquanto durassem as obras.

Martha acceitou, com prazer, e as creanças batiam palmas, alegres por irem viver perto da madrinha.

Fernando de Luna vinha, todas as tardes, trazer noticias, como elle dizia, e as mais lindas flores da sua estufa.

A vida decorria, encantadora, na quinta a que as arvores, seculares, davam um aspecto grave.

De manhã, Luiza de Luna, Suzanna de Menezes, Paulo de Sande e Humberto, jogavam os arquinhos, o tennis, ou o croket , emquanto Martha trabalhava em alguma obra, para as filhas, e Marina, recostada na cadeira de jardim, olhava os jogadores, conversando com Martha, ou brincando com as pequenitas.

Jorge e o velho Luna, passeavam, ou vinham para perto da condessa.

A’ noite, o prior vinha fazer uma partida, com os dois velhos, emquanto, n’uma outra meza, seroavam as senhoras, com excepção de Marina, a quem desagradava todo a qualquer trabalho manual.

E emquanto as mais trabalhavam, Marina ia sentar-se ao piano, onde Fernando a seguia, para voltar-lhe as folhas da musica.

-- Sabe que estamos á espera de que tenha um dia livre, para irmos ás Heras, uma propriedade de meu marido, distante uns dez ou quinze kilometros, e que Humberto diz, ser digna de vizitar-se. Iremos em barco, até ao fim da Soledade, gosando as margens. Veja se consegue que um dos seus collegas se encarregue dos seus doentes, ao menos por dois dias.

Assim falava Marina, emquanto os dedos deslisavam sobre o teclado, tocando, em surdina, uma aria de Mendelssohn.

-- Com verdadeiro prazer ! Marque V. Ex.ª o dia.

-- Mas, se de si dependemos.

-- De forma alguma. Logo que V. Ex.ª fixe o dia, eu comprometto-me a estar aqui, á hora indicada.

-- Mas é melhor ficar de vespera, para não se fatigar ?...

-- Não sou facil de fatigar-me, -- respondeu o moço medico, rindo. -- Posso andar um dia inteiro, em machina, e, a seguir, walsar toda a noite.

Marina, que abandonava o piano, parou, olhando-o :

-- Gosto de ouvi-lo falar assim. Agradamme a juventude e a força.

E emquanto elle permanecia junto ao piano, ella approximou-se da mesa, em que seroavam.

-- Podemos marcar o dia para o passeio ás Heras. O dr. Fernando vem no dia que lhe marcarmos.

-- Hoje são dez... se pudéssemos ir depois de ámanhã, na vespera de Santo Antonio ? -- lembrou Suzanna. - Teu sobrinho, diz que haverá fogueiras, e descantes. Seria agradavel assistir a isso tudo, não te parece?

-- Approvado?... -- perguntou Marina, correndo o olhar por todos.

-- Por unanimidade! -- exclamou Luiza.-- E como vamos ? em machina?

-- Pedimos dispensa, -- disse Jorge rindo.

-- E eu acompanho-os, -- acudiu Martha.

-- A condessa também preferirá o caleche, á bicicleta, -- disse Humberto.

-- Parece-lhe? -- perguntou Marina. -- Quizera saber porquê?

-- E’ mais magestoso! -- disse Luiza. -- Encostada ás almofadas de setim, com uma indolência de sultana.

-- Isso, isso! -- concordou Suzanna rindo.

-- E nós em machina, valeu? -- perguntou Luiza.

-- A’s ordens, -- disse Paulo.

-- Dê-me V. Ex.ª as suas ordens, minha senhora, -- disse Fernando, curvando-se, perante a condessa.

-- Vamos acompanhado, até á ponte, quer condessa? -- lembrou Paulo.

-- Quero! A noite está linda. Vou mudar de fato, num momento. Vocês não veem? -- perguntou para as duas.

-- A esta hora? -- disse Luiza. -- Obrigada.

-- Quero acabar esta rosa, -- disse Suzanna.

-- Vão descendo, meus senhores, em breve estarei comvosco.

Os trez mancebos desceram.

Pouco depois reunia-se-lhes Marina.

Partiram alegres, pela estrada alvacenta, que o luar illuminava, gozando o encanto da noite, e o trinado dos rouxinoes, nos salgueiros que bordavam o rio.

Na ponte despediram-se de Fernando, que partiu, como uma setta.

Voltaram, vagarosos, conversando.

A estrada, muito plana, desenrolava-se, parecendo illimitada.

De súbito, Marina exclamou:

-- Vamos a uma corrida?

E volvia, para elles, os olhos scintillantes de prazer.

-- Vamos lá! -- disse Paulo.

-- Au revoir! -- disse ella.

E deslisou com vertiginosa rapidez.

-- Bravo! exclamou Humberto, --ao chegar perto da subida, que conduzia á quinta.

-- E não está cançada?

-- Nada! E’ bom correr assim... voar... voar... Deve ser uma sensação semelhante, não lhes parece?

-- A condessa conserva se uma explendida corredora, -- disse Paulo. -- Lembra-se dos nossos passeios ?

-- Se lembro! Lisboa não se presta para este genero de Sport. Aqui, tenho-me desforrado. Todas as manhãs, muito cedo, uma boa corrida, para abrir o appetite para o almoço, e para conservar, aos musculos, a elasticidade precisa.

-- Tem guardado um tal segredo! -- observou Humberto.

- E’ porque não quero despertar em Luiza ou Suzanna, o desejo de acompanhar-me. Quero sentir-me livre, correr, voar, segundo o meu capricho.

Entravam no parque.

Paulo dirigiu-se para a sala.

Os dois demoraram se na saleta.

-- Então o Fernando, vae tendo boa cotação? -- perguntou Humberto, rindo.

-- Sabe amar! -- murmurou a condessa.

- Que lindas phrases namoradas! Gosto muito de ouvi-lo...

-- Pelo que vejo. está quasi conquistada?

Ella olhou-o, demoradamente.

EUe fitava-a sorrindo.

-- E se assim fôsse? -- perguntou Marina.

-- Dizia que Fernando era um homem feliz.

-- Só?

-- Acha pouco?

-- E não se zangaria?

-- Para isso, era necessário que me tivesse dado direitos...

-- Supponhamos que lhos dei...

E o seu olhar scintiilante, avelludou-se resplandesceu de perturbadôra meiguice.

-- Condessa Marina, condessa Marina quer enlouquecer-me ?

-- Talvez...

-- Com que fim? -- perguntou o mancebo approximando-se, e tomando-lhe as mãos, que ella não retirou.

-- Gostava de ver como seria, enamorado! -- murmurou.

-- Simples curiosidade? -- volveu elle.

Sorria, curvando-se para ella, apertando nas suas, as mãos delicadas da joven, queimando-a com o olhar, subitamente incendido.

Muito pallida, olhos afogados em volupia, labios frementes, Marina vibrava intensamente

Elle inclinou se mais. Os seus labios quasi tocaram os labios rubros da joven.

-- Feiticeira! murmurou.

Beijou-lhe as mãos, afastou se, deixando a deliciosamente commovida.

VII

Como está bonita !

Referiam-se á lancha, que devia conduzir a troupe, toda guarnecida de verdura, com o toldo vermelho, festiva e garrida.

-- Foi Humberto, -- disse Jorge. -- E’ elle quem merece as felicitações.

-- E’ um rapaz encantador, quando o quer ser, este Humberto, -- disse Suzanna.

-- Então, não quero sempre?

-- Parece-me bem que não.

-- Diga antes, que não o consigo...

-- Isso não digo. Repito: -- quanto quer consegue.

Humberto desatou a rir:

-- Quanto quero? Tenho uma sorte digna de inveja.

-- Menos tagarellice, e mais trabalho, -- troçou Sande. -- Mãos aos remos, e ao largo.

O dr. Luna ia tomar o seu, quando Marina interveiu.

-- Tenha paciência, meu amigo, mas este, é um dos meus predilectos exercícios. Tome conta do leme, vamos.

-- Pois tu sabes remar? -- perguntou Luiza, muito surprehendida.

-- Marina sabe tudo quanto é sport, -- respondeu Martha. -- Em solteira, era infatigavel, em todos os exercicios.

-- Oh, infatigavel, ainda hoje affirmo que o é, -- declarou Humberto.

-- Mais do que pensa, -- replicou a condessa.

-- Engana-se, estou perfeitamente instruido, e admiro-a, profundamente.

-- Essa phrase é sublinhada, Humberto, pedir-lhe-hei explicações, mais tarde...

-- Pois eu fico maravilhada, como Luiza, -- disse Suzanna, -- uma pessoa que leva uma vida de indolência, para quem todo o trabalho é uma fatiga, como pode gostar de remar, e remar, sem cansar-se?

-- Mas a condessa, -- interveiu Luna, -- nos bailes dansa, desde a primeira quadrilha, até ao cotillon , com o mesmo enthusiasmo.

-- Sim, mas o resto do tempo, leva-o, estendida na chaise longue , ou na berceuse. Nunca fui a casa de Marina, que não a encontrasse assim. E aqui... berceuse ou rêde.

-- Isso é a condessa de Miramar, -- acudir Martha, -- Marina de Lemos caçava, remava, montava a cavallo, guiava um carro, ou corria em bicicleta, como um rapaz.

-- E’ certo, -- confirmou Marina. -- E agora recordo esse tempo.

-- E, depois de uma vida tão accidentada, pudeste passar a viver de tão diverso modo?

-- Se eu não levasse aqui, essa vida, morria de aborrecimento. A condessa de Miramar não corre esse perigo. Gosa a vida e sonha... Sonhar é tão bom!

-- E’s muito feliz! -- disse Luiza.

-- Tenho uma vida muito doce! -- volveu Marina.

-- Uma vida um tanto oriental. As orientaes é què sonham, assim, -- disse Paulo.

-- Quem ha que não sonhe? -- replicou Marina. -- Todos temos a nossa chimera.

-- Emquanto novos! -- observou Jorge.

-- Isso! -- confirmou Luna -- E’ um dos previlegios da mocidade, que não invejo. Ter illusões, para perde-las, antes nunca as ter tido!

-- Não concordo! -- respondeu Fernando, -- antes ser feliz um momento, do que passar a vida inteira, sem saber o que é ventura.

-- O cego de nascença, não sabe o que perdeu; -- replicou Humberto, -- é lhe menos triste a cegueira, de que a outro, que contemplou o ceo, e os campos para depois cegar. Assim, quem nunca teve illusões, não pode saber o que é sonhar, e não pode soffrer o que soffre, quem as teve, e as viu morrer!...

-- Oh! a mocidade sem illusões, é a primavera sem flores! -- insistiu Fernando. -- Que ellas brotem, a esmo, no meu coração, embora tenha de perdê-las, um dia. A flôr brilha umas horas, e morre sem magoa. O coração que sonhou, pode morrer. Como a flôr, cumpriu a sua missão.

-- Que lyrismo! -- troçou Luiza. -- Pois eu prefiro não ter illusões.

-- Oh! tu, és pouco para chimeras, -- observou Suzanna, -- mas eu, sem ser, como a condessa, uma sonhadora, tenho o meu sonho. Encanta-me, embriaga-me, não o trocaria pelos mais bellos thesouros.

-- E um bello dia, vês-lo, desfeito em fumo, -- disse Luiza. -- E’ então que quero ouvir-te abençoar essa illusão.

-- E porque hei-de vê-lo desfeito? Ha muito sonho que se realisa.

-- O sonho tornado realidade, é uma borboleta sem azas, -- disse Humberto, rindo.

-- O sonho tornado realidade, -- defendeu Paulo, -- é um bello pecego maduro

-- E roido dos vermes, -- teimou Humberto.

-- Está com uns laivos de cynismo que lhe não conhecia, -- replicou Suzanna, -- Marina, tu é que o tens feito assim.

-- E’ uma honra, a que não tenho direito, -- volveu a condessa. -- Humberto é refractario á sugestão.

-- Faço notar que a condessa não repeliu o diploma de cynismo, concedido pela senhora D. Suzanna.

-- Ah, já estou habituada a que assim me chamem. Embora me revoltasse, ninguém me acreditava. Pois viu alguém defender-me?

-- O que não quer dizer que todas pensem o mesmo, -- acudiu Fernando.

-- Oh o dr. Fernando, é sempre um aduladôr.

-- Eis-nos chegados -- bradou Humberto.

Saltaram em terra.

Em cima, na estrada, avistavam-se as machinas, e o soberbo landeau.

-- Appetece correr! disse Marina.

E subiu rapida, o pequeno declive.

Ao alcançar a estrada, voltou-se para as companheiras.

Subitamente, o seu radioso olhar, toldou-se.

Avistára Suzanna, curvada para Humberto, detido a amarrar a lancha.

Mau grado a frieza com que o mancebo tratava sempre a joven, Marina não pôde esquivar-se a sentir ciume.

Sabia-a loucamente enamorada, capaz de tudo para obter um sorriso.

Cadaval concluira o trabalho.

Suzanna pediu-lhe o braço, e subiram ambos, elle indifferente, ella langorosa, sem pressa.

Marina voltou-se para Luiza:

-- Lá está Suzanna o cortejar Humberto.

-- Então! Para logo ter uma crise nervosa, provocada pela frieza d’elle. Coitada! E’ mais forte do que ella.

Partiram emfim.

Marina, Martha, o conde c o velho Luna, de carruagem, os outros em machina. Fernando, perto de landeau, os mais correndo velozes, pela estrada fóra, em alegre desafio.

O palacete das Heras, em fórma de castello, era encantador, e digno de vizitar-se.

A mobilia e os quadros que o guarneciam, tinham subido valôr.

A tarde decorreu, alegre.

A' noite, Paulo propoz descerem á Villa, para assistirem aos folguedos da vespera de Santo Antonio.

Suzanna, muito cansada, preferiu recolher aos seus aposentos.

Jorge e Luna, ficaram conversando. Os outros desceram á Villa.

A noite estava serena, o luar despontava. Estalavam os foguetes e as bombas, choravam as guitarras e as violas, ouviam-se descantes.

Tudo era alegria, na pequenina Villa.

-- Então, resolve-se a acceitar a côrte de Suzanna? -- perguntou Luiza a Humberto.

-- Se a convencesse a deixar-se d’isso,- volveu o mancebo. -- Detesto inspirar paixões infelizes.

--E’ então positivo que ella lhe não agrada? E’ uma boa rapariga, quer-lhe muito, e tem um bello dote...

-- Sim, tudo isso é verdade, mas, se não lhe tenho amor?

-- E é preciso amor, para fazer delia sua mulher? Não bastará estima-la? O amor, no casamento, parece-me um luxo.

-- Não diga isso. Só o amor, e um grande amor, póde impedir o naufragio da nossa ventura, nesse escolho que se chama matrimonio.

-- Sim, bem sei. Mas se fingisse ama-la? Talvez acabasse por se lhe affeiçoar?

-- Mas se eu, nem sympathia, por ella sinto?

-- Pobre Suzanna, a sonhar um futuro côr de rosa, a seu lado!

-- Oh! o sonho é livre! -- replicou Humberto, rindo. -- E’ um passatempo innocente, logo que se não pense, em realisa-lo.

-- Estou convencida, de que ella o faria feliz. Se quizesse...

-- Não quero. Entendo que a felicidade é como o sonho. Para ser doce, ha-de ser irrealisavel.

-- Sim, amo-a! -- dizia Fernando a Marina, -- ama-la-hei, até morrer. Não lhe peço que me ame. Não penso mesmo em obter tal ventura. Sei que é um impossivel. E amo-a! Adoro-a! Quero viver perto de si, ser um joguete nas suas mãos, tudo soffrerei, por si. Para sentir-me feliz, basta-me vê-la, e ouvi-la ! Mas ha uma coisa que eu temo, para a qual me não sinto com animo: é vê-la amar outro! Creio que enlouqueceria. Era isto, que eu desejava poder implorar-lhe, condessa Marina, se tal pedido, fôsse attendivel: não ame! Se soubesse quanto soffro, só de pensar que póde amar!

-- E se eu o amasse, a si, Fernando?

O rosto do mancebo alterou-se.

Tornou-se livido, como um cadaver.

A condessa assustou-se. Pela primeira vez sentiu remorsos, do jogo cruel, em que dilacerava corações.

-- Não brinque assim, minha senhora, -- disse, lentamente, Fernando, detendo-se para envolver a condessa num olhar de louco. -- Não brinque assim. Creia que póde enlouquecer-me!

-- Perdôe-me! Não queria fazer-lhe mal. Fui um tanto leviana. Não me retire o seu affecto, e conte-me como sincera amiga.

-- Obrigado! -- murmurou o mancebo, docemente. -- Em troca dessa amizade darlhe-hei toda a ternura do meu coração, toda a minha alma, toda a minha vida. Sou seu. Disponha de mim.

-- Para tudo ? -- brincou Marina.

-- Para tudo, -- repetiu, gravemente o mancebo.

-- Sem restricções? -- insistiu a condessa.

-- Sem restricções!

-- Adorável coração! -- murmurou Marina, -- gosto de ser amada por si, Fernando!

O moço medico, estremeceu, e ficou silencioso.

Chegavam á villa.

O barulho era ensurdecedor. Durante, algum tempo, divertiram-se, com aquella alegria.

Depois, regressaram, lentamente, ás Heras.

VIII

Como sempre, Marina ergueu-se muito cedo, e dirigia-se para o jardim, quando, no corredor, se cruzou com o creado, que levava uma chicara de leite, numa salva de prata.

-- E’ para o senhor conde? - perguntou.

-- Sim, minha senhora.

-- Dê cá, eu levo.

E dirigiu-se para o aposento do marido. Estava impaciente por saber como elle passára a noute. Opprimia-se-lhe o coração quando pensava que a doença de Jorge podia ser mortal.

Acabára por affeiçoar-se-lhe, era-lhe profundamente grata.

Abriu, de manso, a porta, approximou-se do leito.

Jorge dormia, a respiração regular, uma grande tranquillidade no rosto emmagrecido, -- oh tão emmagrecido, tão pallido, tão desfeito, que Marina sentiu confranger-se-lhe o coração.

-- Meu pobre Jorge! -- pensou.

Muito meiga, curvou-se, a beijar-lhe a fronte.

O conde estremeceu, abriu os olhos, e fitou Marina, surprehendido.

Ao vêr-lhe o doce sorriso, e, nas mãos a chavena de leite, commoveu-se.

-- Oh Marina! -- murmurou.

-- Descansaste bem, Jorge?

-- Regularmente...

Ella amparava-o um pouco, emquanto elle bebia o leite.

Depois, concertou-lhe a roupa, e curvou-se a beija-lo.

-- Obrigado! -- murmurou o conde.

-- Dorme, meu Jorge! -- disse, na sua voz dulcissima... Dorme, meu amigo!

Elle contemplou-a, commovido e grato.

Depois cerrou as palpebras e adormeceu, com o sorriso nos labios.

Marina deixou o quarto.

Sentia-se feliz por ter cedido a Jorge, um mimo que tanto o penetrára.

Alegre, desceu ao jardim.

Avistou Humberto, entretido a levantar umas braças de mandevilia, e, numa rua lateral, Suzanna.

A condessa occultou-se num caramanchão tentando assim vêr e ouvir, o que entre os dois ia passar-se.

-- Senhor Cadaval! Senhor Cadaval! -- chamava Suzanna.

O mancebo voltou-se e deu alguns passos, detendo-se perto do caramanchão.

Suzanna alcançou-o.

-- Quero mostrar-lhe esta alcachofra! Veja, como está viçosa! e diz que não devemos pensar na realisação de um sonho querido! Senhor sceptico, que diz a isto?

-- Bem aventurados os que acreditam em alcachofras.

-- Oh! eu creio e quero crer. Acho tão bonitas, tão poéticas, estas tradições nacionaes! Na noite de S. João, também o senhor Cadaval ha-de queimar uma alcachofra.

-- Eu?! Não me parece.

-- Sim, queima! Por uma intenção particular.

-- Eu não tenho amores.

-- Por alguém que mais sympathia lhe desperte...

E olhava-o, muito apaixonada.

-- A minha sympathia é igual para todas, -- volveu Humberto, com frieza.

-- Quer dizer; a sua indifferença?

-- Não discuto. Será o que V. Ex.ª quizer.

-- Pois bem, não o acredito! -- teimou Suzanna, sentando-se no banco, encostado ao caramanchel, onde Marina se escondia.

-- Todos teem um affecto, uma preferencia. Aos trinta annos, sem amôres... não creio.

-- Ah, tenho tido muitos amores, mas tudo isso passou, hoje sou um vencido da vida. Não creio em sonhos, não creio em flores, não creio em mulheres. Umas e outras déram-me o que tinham a dar.

-- Era necessario que uma desillusão lhe tivesse despedaçado o coração, para ser sincero, no que diz.

-- Talvez.

-- Está mentindo.

Humberto soltou uma gargalhada.

-- Estou-lhe achando umas pretensões inauditas! Que dados tem, para duvidar do que digo? Julga-se dotada do poder de ler, na alma dos outros? V. Ex.ª, uma pessoa que acredita em flôres, em sonhos, em mil superstições e ninharias, a pretender conhecer o coração humano!

Desatou novamente a rir, no seu riso claro, alegre, que encantava Marina.

-- Sente-se aqui, perto de mim! -- insistiu Suzanna, insinuante e coquette, olhando-o com enlevo. -- Conte-me alguma coisa da sua vida, desses amores que assim o tornaram descrente.

-- Outra coisa em que não creio, nem pratico: a confissão.

Suzanna começava a exaltar-se.

Em voz tremula, volveu:

-- Estou quasi a acha-lo perverso, sabe?

-- Por não querer confessar-me?

E desatou a rir.

-- Sim, por isso, e por muito mais... queria ouvi-lo falar do passado... cicatrizar feridas, que lhe dorissem o coração...

-- Mas eu tenho coração, alma e espirito, perfeitamente sãos, minha senhora, -- replicou Humberto. -- O meu passado, toda Lisboa o conhece. Os meus amores, são amores de que não se fala, a uma senhora. Conquistas que nos embriagam, nos enlouquecem, e nos deixam cansado o espirito e para sempre morto, o coração. Morto para tudo quanto é lyrismo, para as emoções sem peccado, e para os sonhos côr de rosa...

-- Quer dizer: a mulher casta, nunca lhe pode agradar. Ao seu coração só pode falar a hetaira lasciva, impudica, que lhe fustigue o sangue com as suas caricias de Messalina.

-- Justamente! -- confessou Humberto.

-- Oh!... não diga...

-- E’, no entanto, a verdade,minha senhora.

-- E’ então um corrupto e um vicioso, um libertino, um cynico!

-- Tudo isso, e muito mais! --concordou Humberto, em tom glacial.

-- Oh! como eu soffro! -- exclamou Suzanna.

E, occultando a fronte nas mãos, desatou a chorar, convulsivamente.

Muito sereno, Cadaval, inclinou-se, para affastar-se, vagaroso.

Marina suffocou uma gargalhada.

Abandonou o esconderijo, seguindo para casa.

Ao approximar-se, encontrou Humberto. Pararam ambos, no principio da grande escadatia de pedra musgosa.

-- Bons dias, tia Marina, de onde vem tão radiosamente bella, olhar tão luminoso, tão doudejante alegria, no rosto travêsso?

-- Bons dias, Humberto, de onde vem, com tão illuminado semblante, olhar tão mephistopiielico, sorriso tão zombeteiro?

-- De extinguir um incêndio, -- volveu, com uma vénia.

-- De assistir á sua extinção! -- disse ella, imitando-o.

Elle desatou a rir.

-- Ouviu tudo?

-- Tudo.

Humberto fitou-a:

-- E não teve dó da sua amiga?

Ella ergueu a fronte, e encarando-o:

-- Bem sabe que sou apreciadora dos jogos de corações.

-- E se eu tivesse sentido o dó, a que é inaccessivel, tia Marina, e se, por dó, cedesse a esmola do amor, que me imploravam?

O olhar de Marina teve um súbito clarão.

Mas dominou-se logo, e, com desdem:

-- A uma Suzanna?

E rindo, subiu a escada.

No regresso á Soledade, Suzanna pediu a Marina que lhe cedesse o logar na carruagem.

Não se sentia bem.

A condessa cedeu, iria em bicicleta.

Os ciclistas resolveram ir, em machina, até á Soledade, demorando assim, o passeio, e gozando a amenidade da tarde e a belleza dos campos, perto da aldeia.

Quando chegaram á quinta, já os companheiros alli estavam.

Martha veiu-lhes ao encontro.

-- A Suzanna teve uma violenta crise nervosa, assim que chegou. Agora, está a descansar.

-- Que luxo de scenario! -- troçou Luiza.

-- Duches de agua gelada? -- riu Paulo.

-- Coitadita! -- fez Marina. -- Vou vê la.

-- Não vá ficar nervosa, condessa! -- disse Paulo, rindo. -- Dizem ser doença contagiosa.

-- Paulo! -- censurou Martha, -- ella esteve muito mal.

-- Boa vara de marmello, -- insistiu Sande.

-- E’ tão ridículo, uma crise de nervos! -- concordou Luiza, rindo.

-- Mas é uma doença! -- censurou Fernando.

-- Oh! em casos destes! -- volveu a irmã rindo.

Subiram.

Jorge e Luna passeavam, na vasta sala.

-- Marina? -- perguntou o conde.

-- Foi vêr Suzanna.

-- Não se cansou?

-- Isso sim. Tem musculos de aço.

-- Foi uma zanga, aquelle incommodo de Suzanna, -- disse o conde. -- Disparatou todo o caminho, parecia maluca!

-- Ella foi sempre assim, -- disse Luna, -- por qualquer coisa, tem um ataque de nervos. Em parte é doença, em parte é desejo de tornar-se interessante.

-- Triste maneira escolheu -- replicou Jorge. -- Eu detesto estes cheliques e todo este apparato de nervosismo.

-- Também não aprecio, -- concordou Humberto.

-- Eu vou mais longe, -- disse Paulo, -- não tolero. Se Martha usasse este systema, ou vencia os nervos, ou ficava sem marido.

-- Oh! -- fez Fernando, -- sendo uma doença!

-- O Fernando está compenetradissimo da doença de Suzanna! -- riu Luiza. -- Elle e Martha estam indignados comnosco.

Todos riram.

A condessa entrava.

-- Suzanna dorme. Pareceu-me socegada. Jantaremos sem ella. E julgo que podem imitar-me, meus senhores, indo preparar-se para o jantar...

Todos sahiram, exceptuando Marina, os dois velhos, e Martha.

-- Como te sentes? -- perguntou a joven, approximando-se do marido.

-- Perfeitamente.

Pegou nas mãos da mulher, ficando-se a contempla-la, enlevado.

Ella estava linda, com o vestido, verdemar, um pouco aberto, os brilhantes scintillando nas orelhas e no cabello.

-- Tu estás cada vez mais formosa, Marina! Tu deslumbras!

-- E’ verdade! -- concordou Martha, - ainda hoje o fiz notar. Está linda!

-- Em pleno desabrochar da vida! -- disse Luna. -- Nunca vi mulher tão seductoramente formosa, como a condessa.

-- Seriamente? -- riu Marina. -- Que de aduladores nestes amigos, que eu julgava sinceros.

Os outros hospedes entravam na sala.

O creado correu o reposteiro, annunciando o jantar.

IX

Fin do jantar, dado o habitual passeio, pelo parque, regressaram ao salão, onde o dr. Luna começou percorrendo os jornaes.

-- «Dramas do adultério, uma tragédia na Figueira da Foz» -- leu elle.

-- Diga, meu pae, diga! -- pediu Luiza.

-- Não traz promenores: o barão de Caparica, surprehendeu sua mulher com um official de marinha, desfechando o rewolver sobre os culpados. O official morreu logo.

A baroneza acha-se em perigo de vida.

-- Fez o barão muito bem, -- approvou Martha.

-- Quem é essa baroneza de Caparica? -- perguntou Humberto.

-- Foi nossa companheira de collegio, -- disse Marina. -- Lembras-te d’ella, Martha?

-- E elle, sabes quem é? -- perguntou Luiza muito interessada. -- Coitados! Tenho pena d’elles!

-- Elle deve ser o Henrique de Vasconcellos, -- respondeu a mulher de Paulo, -- já o namorava em solteira.

-- Então porque não casou com elle?

-- Porque era casado.

-- Ah, uma paixão verdadeira! -- exclamou Luiza, -- conta, Marthasinha.

-- Nada mais sei. Marina dava-se mais com a Ida. Eu nunca fui amiga d’ella.

-- Pobre Ida! -- murmurou a condessa. -- Fui passar com ella, umas ferias da Paschoa, a Santarem, e diverti-me muito. Ella já gostava muito do Henrique, e elle adorava-a. O pae decidiu casa-la, e deu-a ao barão, homem estupido e grosseiro, que com ella casou, por interesse. Elle sabia que a mulher o não amava, pois que, antes de casar, Ida lhe confessára tudo.

-- Então porque a censuras, Martha? -- disse Luiza, -- ella foi leal para o marido.

-- Sim, -- concordou Jorge, -- e com que direito a matou elle?

-- Então tu achas bonito, namorar um homem casado? -- perguntou Martha, para a irmã de Fernando.

-- Bonito não. Mas, ás vezes, ha attenuantes.

-- Pobre rapaz! -- disse Humberto.

-- A situação d'ella é horrível! -- murmurou Marina -- Sobreviver ao homem amado!

-- Acho estupido este direito cedido ao marido, -- disse Luiza. -- Antes de casar, hei-de falar n’isso ao Carlos.

-- E’s doida! observou Fernando.

-- Ai não! tu verás. Digo-lhe assim mesmo: faço tenção de ser esposa leal e fiel, mas não te dou, sobre mim, direito de vida e de morte. Se eu faltar aos meus deveres, abandona-me, mas matar-me, nunca. Se juras, caso comtigo, se não juras, passa muito bem.

-- Ora! Dizes agora isso! -- duvidou Martha.

-- Diz, diz! -- affirmou o conde. -- E elle jura e prompto. E’ louco por ella!

-- Sim, mas todas as loucuras teem um termo, -- disse Fernando. -- Eu, no logar d’elle, não estava para a aturar.

-- E o desgosto que isso me dava! E também te digo que, se elle fosse como tu... não casava eu com elle.

-- Mas olhe que é difficil encontrar um Castilho, -- observou Jorge.

-- Nem ha segundo, -- disse Humberto.

-- E Luizinhas de Luna, ha muitas?

-- Ainda menos! -- volveu Humberto, rindo. -- Tem uma têlha respeitabilissima, mas é encantadora.

-- Era um elogio d’esses que eu desejava, senhor Humberto de Cadaval. Graças mil!

Levantou-se, fez uma vénia gentil e retomou o seu logar.

N’este momento entrava Suzanna.

Vinha muito pallida, com os olhos pintados, e um vestido que bastante a desfeiava.

-- Oh! -- exclamou Luiza, ao vê-la, -- pareces a Dama das camelias, no ultimo acto. Vens espectral!

Todos disfarçaram um sorriso, indo ao encontro da joven.

-- Estás melhorsinha? -- perguntou Marina. -- Tão abatida, ainda...

-- Estou bem, obrigada.

-- Mas que fez ella? -- perguntou Martha, em voz baixa, -- vem feia, como o peccado.

-- Isso não, -- acudiu Humberto, -- se o peccado fosse tão feio, estavamos livres do inferno.

-- Não o commoveu a alcachofra florida, -- disse Marina, ao sobrinho, -- veja se o commove tanta fealdade.

O mancebo sorriu, e curvou-se perante Suzanna, dizendo uma phrase banal.

Ella estremeceu.

Os lábios tiveram uma crispação dolorosa, nos olhos perpassou um clarão de odio.

Voltavam a falar no escandalo.

Suzanna approvava o procedimento do barão.

-- Se eu um dia casar, e meu marido trahir o seu juramento, mato-o.

-- A lei não concede direitos nenhuns á mulher, em casos d'estes, -- disse Luna.

-- A lei é a minha consciência.

Martha indignou-se :

-- Matar o marido? -- exclamou, -- isso nunca. O dever da mulher é ama-lo sempre, e apezar de tudo.

-- Que maxima formosissima! -- disse Luiza.

-- Mas tão difficil de cumprir! -- observou Jorge. -- Amar o marido e perdoar-lhe a traição... não creio.

-- E no entanto, quantas assim fazem! -- disse Fernando.

-- A mulher perdoa, geralmente, por indifferentismo, -- interveiu Paulo.

-- Sim, -- concordou Cadaval, -- a mulher, em geral, não tem amor a ninguem. Casa por casar, trahe por trahir, e morre sem nunca ter sentido um affecto verdadeiro, a aquecer-lhe o coração.

-- Não é exacto, -- acudiu Fernando, -- erguendo-se, para despedir-se. -- A mulher ama por natureza, por feitio. Pode mesmo dizer-se, que para amar nasceu, para amar vive. O coração da mulher é um abysmo de ternura, de abnegação!

-- O Fernando e a Suzanna, davam um bello ménage, -- troçou Luiza. -- Ambos teem o mesmo fundo sentimental, e o mesmo lyrismo. Se querem casar, prometto obter o consentimento do pae.

-- Não! -- respondeu o irmão, rindo -- a senhora D. Suzanna promette matar o marido á primeira infidelidade...

-- Olhem o sonso! -- troçou Jorge. -- Senhora D. Suzanna, quando um homem, como Fernando, confessa isto, é para desesperar encontrar marido, que não mereça um tiro.

X

A vida é doce, meu amigo, -- dizia Marina a Paulo, na varanda florida, em que se encontrava, meia estendida, na chaise-longue em verga. -- A vida é doce! Quiséra viver sempre assim!

-- Esse desejo parece-me o mais realisavel possivel! -- respondeu o mancebo, indo encostar-se á grade, voltado para a joven.

-- O que pode oppôr-se a que continue tão doce vida?

-- De aqui alguns dias, a Martha e o Paulo voltam para sua casa, saudosos, como estão, de viverem em perpetuo tête-à-tête. -- Os Lunas retiram. Humberto vae para Cascaes, o estio avança, os campos perdem este verdejar, as flores morrem... e Lisboa começa a lembrar-nos.

-- Ora! Quanto tempo ainda, para vêr verdejar os campos, e cheios de flôres os jardins. A nossa retirada, é para tão perto, que podemos continuar a acompanha-los, quasi como até aqui. Os Lunas retiram, mas o Fernando continuará a ser o pombo correio. A ida de Humberto, para Cascaes, é ainda problematica. Não vale a pena chorar o dia de hoje, gozemos o momento presente, é o meu lemma, ámanhã, será o que o destino quizér.

-- Então, nunca sentiu este desejo, que tanta vez me assalta, fazer parar o tempo, para gozar a hora presente? Nunca teve, na sua vida, essa sensação de penetrante bem estar, que presentimos não poder voltar? Nunca teve saudades da hora que passa?

Paulo de Sande sorriu.

-- Eu sou feliz. Sempre assim me julguei. Sem ambições, achei sempre bom, o quinhão que me coube, na vida. Quando creança, tudo me era pretexto para alegria, quer fosse estudo, quer folguedo. Adulto, enamorei-me de Martha, soube fazer-me querido, e até hoje nem uma nuvem perturbou o meu horisonte. Tenho na vida, a confiança dos previlegiados. Sou feliz hoje, creio, firmemente, que o serei ámanhã. Não desejo deter o tempo. O futuro encerra muitas alegrias: o desenvolvimento das minhas pequerruchas, formar-lhes a alma, guiar-lhes a intelligencia. Mas estou a falar-lhe de coisas que não comprehende. Também, para que me falou, em coisas que não entendo?

-- Sim, eu não comprehendo como o Paulo e a Martha podem ser felizes, tendo tão pouco, trabalhando, luctando dia a dia. Afigurase-me uma bem triste ventura, mas é certo que existe, pois a ambos ouço a mesma affirmativa, hoje tão rara: sou feliz! Oh! Paulo! seja generoso! Ensine-me o segredo da felicidade, quizéra tanto conhece-la!

Estendeu as mãos, num gesto de supplica, fitando o mancebo. Estava tão formosa assim, meia erguida, os cabellos soltos, afagando-lhe o rosto, que o mancebo, soltou, involuntariamente, um grito de admiração:

-- Como é bella!

-- Ora, meu -- amigo, volveu Marina, rindo, e deixando-se recahir, sobre os almofadões, -- não era um elogio, que eu lhe pedia.

-- E’ verdade! -- concordou Paulo, rindo também. -- Mas que quer? Escapou-me. Quer que lhe ensine a ser feliz? Pede-me um impossivel. A felicidade é uma coisa relativa. Para mim: consiste no amor de Martha, no affecto de minhas filhas, no conchego do meu lar. Modesto como é, não aspiro a mais. Para seu marido, está na sua posse. Para si sei lá em que poderá consistir a ventura? Quiz ser rica: - conseguiu-o. Quiz ser amada: -- é adorada. Quiz ser admirada : -- e viu Lisboa a seus pés. Que mais póde querer? Deseja tudo, tudo tem, e nada satisfaz o seu espirito inquieto. A que aspira essa alma insaciável?

-- Em fazer da vida um sonho tão bello, como o que fazia, no momento em que chegou, meu amigo.

-- Amar? -- perguntou Paulo sorrindo.

-- Amar! -- respondeu Marina.

-- Marina amar! -- disse Martha, entrando, -- isso pode lá ser? Tu vives, e viverás, unicamente para ti. Para ser amada, adulada. Nada mais podes sentir, nem desejar. Digo-te eu, querida. Amar, tu? Mas tu não sabes que amar, é esquecer-nos de nós, para só pensarmos no ente amado? Tu não sabes que, amar, é viver da vida da pessoa amada, sentir, em duplicado os seus desgostos e as suas alegrias? Amar, minha Marina, é viver como eu vivo, unicamente para o meu Paulo, pensando sempre, nelle, adorando a minha casa, porque ella é, como que o templo do nosso amor. Amar, é fazer do lar um ninho, onde o ente querido se encontre sempre bem. Amar, é sentir, como eu, que, por muito que o meu Paulo hoje mudasse, por muito que elle, hoje me fizesse soffrer, eu lhe quereria, sempre, com o mesmo affecto, e só carinhos, para elle teria, meu coração, embora elle mo negasse, diariamente. Amar, é tudo isto, e muito mais que eu não sei dizer.

Paulo sorria sempre, encostado á grade. Envolveu Martha n’um longo olhar, e depois fitou Marina.

Esta sorria, com leve sarcasmo.

-- Está bem. Amar é isso tudo. Amas Paulo, é teu marido, pódes entregar-te á felicidade de amar, de viver para elIe. Suppõe, agora, que, em vez de sua mulher, eras mulher de outro, e por Paulo sentias, esse mesmo amor. Que fazias tu?

Erguêra-se.

Envolta no roupão, de sêda rosa, com os cabellos soltos, de toda ella emanava uma perturbadora seducção.

--Fugir-lhe-hia, -- respondeu a amiga, sentada a costurar.

-- Então, por este homem que dizes amar tão loucamente, não sacrificavas a honra, não terias coragem de tudo arrastar: o desprezo da sociedade e a maldição dos teus?

-- Não, porque seria mergulhar em lama. Não, porque o meu amor seria uma vergonha, e as vergonhas occultam-se...

-- Quando se pódem occultar! -- interrompeu Marina. -- Fica então sabendo, minha pobre Martha, que estás muito longe de sentir, por teu marido, a adoração que dizes e julgas sentir. Nunca poderei amar, dizes tu, porque só a mim admiro e só para mim vivo. Pois apezar de todo esse egoísmo que em mim descobres, sei, melhor do que tu, definir o amor. Amar é amar, comprehendes tu? Não se considera, não se reflecte, não se discute. Pelo homem que amasse sabes tu o que eu faria? Abandonaria a fortuna, que me deslumbra, as adulações, todas as amizades, todos os mimos da existencia. Sacrificaria honra, familia, estima publica, para viver, exclusivamente para o bem amado. Os ultrages, não me attingiriam. A lama em que falaste, não me enodoaria, porque me protegeria a couraça diamantina da minha paixão. Teria no coração um altar, na alma um só retrato, na mente um só nome. Oh o amôr! O amôr é tudo. Olha Christo, como elle soffreu, como soube affrontar todos os martyrios, todos os insultos. Tinha, no coração, um amor illimitado, tão sublime, tão grande, que nenhum ultrage o magoava, nenhuma injuria, nenhum supplicio, o fez arrepender-se!... O amôr, quando verdadeiro, tem sempre alguma coisa de divino!

-- Falas como um estouvada, -- replicou Martha. -- Tens uma moral particular, para teu uzo. Julgas que peccar, em pensamentos não é macular o coração e perverter a mente?

-- Oh minha querida, assim, todos peccam. Tu mesma deves ter commeitido muito peccadito... e Paulo? vamos, dize, julgas que nunca um desejo, por momentâneo que fôsse, lhe fez pulsar o coração, por outra mulher?

Martha desatou a rir.

Paulo, sempre na mesma posição, sorria, malicioso, com o olhar docemente perturbado.

-- Paulo é, como eu, um pacato, -- respondeu Martha. -- Desconhece os teus arrebatamentos, as tuas emoções doentias. Não temos vagar, para deixarmos, como tu, voar livre, o pensamento. Ha sempre tantas coisas sérias a meditar!

Um sorriso travesso, entreabriu os labios de Marina. Approximou-se do mancebo, e curvando-se para elle:

-- Que diz a isto, Paulo?

O seu olhar era tão avelludado, a sua belleza tão fascinadora, que Paulo de Sande teve uma vertigem.

No seu olhar perpassou um clarão de desejo.

Um relampago de triumpho, illuminou o rosto da joven.

Cortou uma braça de trepadeira florida, e quebrando-a, entre os dedos, declarou:

-- Dois prosaicos, eis o que os senhores são.

Paulo dominára-se.

E respondeu, em tom despreocupado:

-- Eu não penso, absolutamente, como Martha. Confesso mesmo, que, na sua definição do amôr, condessa, ha mais intensidade, mais paixão, mais verdade, talvez... mas,-- concluiu rindo,-- não podendo aspirar o tal amor, vou-me contentando com a doce ternura de Martha. Tem uma vantagem sobre a sua: offerece mais probabilidades de duração.

O relogio bateu onze horas.

-- E eu por vestir! exclamou a condessa. -- Deixo-os em téte-á-tête. Arrulhem, arrulhem.

E fugiu.

-- Estonteante mulher! -- exclamou Paulo.

Ficaram silenciosos.

Martha costurava, Paulo contemplava-a.

Recordava os annos de ventura que lhe devia, e perturbava-se, pensando na seducção que sobre elle exercia o olhar, a voz, a belleza de Marina.

Se ella não fôsse amiga de Martha...

Como devia ser bom, um beijo d’esses labios rubros!

-- Vê tu, -- disse Martha, -- os bibes para a Gabriella, já levam trez metros!

Sande estremeceu, sacudiu a fronte, e approximando-se da mulher, beijou-lhe os cabellos, murmurando:

-- E’s um anjo!

Martha sorriu.

O marido, certamenje não ouvira as suas palavras, e respondêra, ao acaso.

Para não o interromper nos seus pensamentos, continuou silenciosa.

Encostado á grade, Paulo via, novamente, passar perante si, a seductora visão de Marina de Lemos.´

XI

O ceo, levemente nublado, tornava deliciosa essa manhã de julho.

Marina regressava de um dos seus longos passeios em machina, num andamento suave, gosando a vista dos campos, matizados de papoilas e de malmequeres.

A estrada descia, em curvas graciosas, até á Soledade, cujo denso arvoredo, se avistava, ao longe, arvoredo sombrio, rodeando a casa, coquette , pintada de côr de cravo, muito vivo, com as largas varandas engrinaldadas pelas trepadeiras floridas.

Marina pensava nos seus adoradores, na paixão respeitosa de Fernando, na arrebatada sympathia de Humberto, na fascinação que a sua bêlleza exercia sobre Paulo de Sande.

Se ella quizesse, esse marido modelo, esse homem sem fraquezas, cahiria rendido a seus pés, esquecendo tudo quanto não fôsse ella.

Mas elle era o marido de Martha, da amiga querida, e Marina não queria ser causa da mais leve magoa, d’esse dedicado coração.

De súbito estremeceu.

Ouvia gritos...

E avistou um grupo de mulheres, apertando-se á porta de uma casa, situada á beira da estrada.

Marina deteve-se. pensando em retroceder. Desagradavam-lhe as scenas de miséria, e professava um soberano desdem por tudo quanto era povo.

Mas, quando ia a dar a volta, reparou numa bicicleta, encostada a uma arvore.

Reconheceu a machina de Fernando, e avançou, rapida, com o coração opprimido.

Nesse momento, Fernando de Luna, sahia da casa, e ordenava silencio.

Apoz elle, vinham duas pequenitas, chorando convulsas.

O joven medico deteve-se, olhando-as, com profundo dó, e, mais uma vez se curvou, a acaricia-las.

-- Tenham piedade destas creanças! -- disse para o grupo. -- Qual de vós?...

Interrompeu se.

Avistára Marina.

Tomou as creanças pela mão e dirigiu-se á condessa.

-- Condessa de Miramar, duas orphans, que lhe imploram protecção.

A joven envolveu as creanças num olhar quasi indifferente.

-- Que m as levem, á Soledade, -- disse.

-- Isso mesmo! -- concordou o mancebo, -- uma de vós que se encarregue de as levar á Soledade.

E beijou as pequenitas, cujo olhar se fixava encantado e timido, em Marina.

Fernando montou a machina, e seguiu, com a condessa.

Pelo caminho, ia explicando: um desastre lamentável. O pobre homem, pae das creanças, fôra esmagado por uma barreira, a mulher, gravida de cinco mezes, cahira morta, ao vê-lo, sangrento e disforme. E as duas pobres pequenas de cinco e de tres annos, ficavam, subitamente, sós no mundo!

Na sua voz quente e acariciadôra, vibrava a immensa piedade, que lhe enchia o coração.

E abençoava a Providencia, que alli conduzira Marina.

As orphans, não podiam encontrar melhor protectora.

Pararam defronte de casa.

Saltando da machina, a joven perguntou, sorridente e irónica:

-- E que destino quer que dê a essas creanças, dr. Fernando?

-- Se pudesse calcular, quanta creança abandonada, existe nesta pobre aldeia! Oh a miséria das creanças, a mais triste e desoladora de todas as misérias! Labios que só risos deviam conhecer, entreabrindo-se numa supplica, olhos em que só alegria devia brilhar, toldando-se de lagrimas! Corpos rachiticos, estorcendo-se de frio e de fome! Ha tanta creança miserável, por essa aldeia! Se quisésse fundar um asylo, onde essas creanças fossem recolhidas, educadas, para poderem ganhar, honradamente a sua vida, quando adultas!

E, sem vêr o sorriso ironico da joven, proseguiu, todo entregue ao seu sonho.

-- Nos Cedros, por exemplo. A casa presta-se admiravelmente, faz-se, de alli, um asylo modelo, com vasto campo, para as creanças correrem e se desenvolverem, com excellente agua, ar puro e muito sol. Aquelles terrenos, hoje incultos, tornar-se-hiam ferteis, fornecendo legumes e fructas. E a casa, com pequenas modificações, ficava magnifica!

-- Ah! se o que deseja é essa quinta, -- volveu Marina, -- estou convencida de que Jorge a cederá, com tanto gosto como eu. Far-lhe-hemos as obras que indicar. Cheguei a temer que desejasse vêr-me receber, aqui, todos esses vagabundos, e pensasse em pôr-me á testa, desse bando de miseraveis!

Ria, alegremente, brincando com o cordão do relogio.

Elle olhou-a, e, approximando-se:

-- Decerto, mais tarde, lhe hei-de implorar que vá ao asylo, animar as creanças com o seu sorriso, que todos os males faz esquecer. As creanças vão adora-la, e verá como é bom sentir-se estremecida por esses coraçõesinhos. Eu penso, muita vez, quando estou no hospital, percorrendo os leitos, onde tanto infeliz, se debate contra a morte, penso, minha senhora, que, se quisesse ir alli, dirigir a cada enfermo, uma palavra, ou apenas um sorriso, isso bastaria para ajudar-nos a salvar muitos delles. Sim, ajudava-nos a salvar muitos, tão suave consolação sentiriam ao vêr-lhe o rosto tão bello, ao ouvir-lhe a voz tão doce. Na retina conservariam longo tempo a sua imagem luminosa, nos ouvidos, a harmonia da sua voz, e teriam sonhos doces, em vez dos pesadelos, que tanta vez os apoquentam.

-- Oh meu amigo! -- exclamou a condessa, commovida, -- não me talhe tão lindas azas, bem vê que não tenho feitio, para anjo de caridade.

-- Sim, tem! --insistiu o mancebo. -- Os olhos são o espelho da alma... que linda alma a sua, condessa Marina!

E envolveu-a num olhar de ardente veneração.

A condessa estava quasi tão commovida como elle.

Silenciosa, estendeu-lhe a mão, que elle beijou, e separaram-se.

Marina terminava a sua fresca toilette de almoço.

O conde entreabriu o reposteiro:

-- E’ permittido? -- perguntou.

-- Vem cá, meu Jorge! -- respondeu Marina, prendendo uma rosa, entre as rendas do corpete, -- tenho uma coisa a pedir-te.

O marido approximou-se, risonho, encantado.

Ella estendeu-lhe a fronte.

Elle beijou-a nas palpebras, no canto da bocca, nos cabellos, cumprimento habitual em que punha toda a voluptuosa ternura, do affecto que lhe consagrava.

Depois, subitamente, estreitou-a ao coração, beijando-lhe a nuca.

Ella sorria.

Jorge tomou-lhe as mãos, e com enlevo de amante, perguntou:

-- Que mandas, minha querida, minha soberana?

A condessa obrigou-o a sentar-se, e sentou-se-lhe nos joelhos, dizendo:

-- Pensei que, da nossa abandonada quinta dos Cedros, podiamos fazer um asylo, para creanças abandonadas. Foi o Fernando de Luna, quem me lembrou isto, a proposito de duas orphans, que hoje tomei sob a minha protecção.

E narrou a tragédia da manhã.

Jorge cedeu logo, enthusiasmado pela idea de ler, nos jornaes, longos artigos elogiando a formosíssima protectora das creanças. Não só cedia a propriedade, como punha á disposição de Marina, todo o dinheiro preciso para que o asylo fôsse digno da sua fundadora.

Uma só condição impunha: -- deveria chamar-se Asylo Marina.

A joven agradeceu a gentileza e a generosidade, dando-lhe a beijar a boca vermelha e tentadora.

-- Adoro-te! -- murmurou elle.

-- Meu Jorge! -- volveu Marina, muito meiga, -- também eu sinto, por ti, uma profunda affeição.

Elle estremeceu de alegria.

Como ia longe o tempo em que ella, só por dever, o tolerava!

Ao almoço, o conde falou do asylo, e logo se levantou um côro de louvores, a Marina.

Só Humberto troçava, lembrando a caprichosa condessa, a vida de prazeres, dirigindo um asylo de creanças!

-- Não modificarei a minha vida. Virei

apenas, de vez em quando, vêr como passam as creanças, que tomei sob a minha protecção. Serei uma especie de fiscal, nada mais.

Ria, tão divertida como Humberto, por esse papel, para o qual não sentia vocação.

Martha e Paulo, offereciam-se para leccionar as creanças, arrebatados no desejo de contribuírem para o bem dos pobresinhos.

Luiza promettia fazer fatos e casaquinhos de malha, para os mais pequeninos.

Suzanna queria dar jogos, para que os asyladinhos se divertissem.

O dr. Luna promettia uma bibliotheca infantil.

Fernando Luna, offerecia-se para tudo, em que pudesse ser prestável: medico, professor de gymnastica, escripturario, zeladôr, o que quiséssem.

O seu olhar resplandecia, todo elle vibrava, feliz por contribuir para minorar a miseria social.

-- E eu? -- disse Humberto; -- não quero destoar, neste meio philanthropico. Se me querem para porteiro?

-- E se fossemos aos Cedros, vêr o que ha a modificar? -- lembrou Jorge.

-- Sim ! Vamos! -- pediu Luiza.

-- Iremos,-- disse a condessa, -- querem que mande pôr o carro?

-- Vamos a pé. A manhã está linda!

Pouco depois sahiram.

Jorge e Luna, mais pachorrentos, deixavam seguir, adeante, o grupo alegre e turbulento.

O conde sentia-se cada vez mais enfraquecido, devorado pela paixão sensual, que o abrazava.

-- O que eu daria! -- murmurava, -- o que eu daria para viver ainda alguns annos.

-- Então?! -- animou Luna, -- e porque não has de viver?

-- Não, meu velho, não posso illudir-me, embora o deseje. Sinto a morte approximar-se. E’ horrível! E’ horrível! Acordar de um sonho deliciador, tentar evocar essas imagens que me sorriam, e em seu logar, vêr surgir, implacavel, sinistro, o phantasma que me aponta o tumulo! Morrer! deixar Marina! Deixa la livre, pensar que outro a possuirá, e lhe inspirará os transportes, que eu não consegui despertar-lhe! Possui-la, outro!... Pensar que este fogo, que me consome ha-de abrazal-a, um dia, e que será outro, quem lhe ouvirá o grito de supremo prazer que eu não consegui nunca provocar! Amo-a! Adoro-a, e por vezes, tenho-lhe odio, ao vê-la tão bella, tão calma, entregar-se, sem resistencia, aos prazeres que me deixam vencido, quando era a ella, que eu desejava vencer, quebrar, subjugar! E ella sorridente, fresca, louçã, como se sobre ella não passasse um turbilhão de fogo!

-- Então, meu pobre Jorge, socega! -- disse Luna, assustado.

Miramar parou. Arquejava. Respirou fundamente.

-- Adoro-a! Não posso viver sem ella... e no entanto, sinto que deixaria de a amar, se ella perdesse essa belleza que me enlouquece.

Chegavam aos Cedros.

De alli em diante só se discutiram as obras a fazer.

Jorge estava impaciente por vêr funccionar o asylo, lembrava uma creança, a quem promettessem um brinquedo. Queria as obras começadas, antes de regressar a Lisboa.

Marina era a menos enthusiasta, acabando por abandonar o grupo, e vir encostar-se á varanda.

Humberto não tardou a reunir-se-lhe.

-- Então a fundadora, a inspiradora, -- disse, trocista, -- deixa a discussão, no ponto mais interessante, e vem contemplar os campos, entregar-se a dulcíssimo scismar? Que imagens lhe sorriem, nesse sonho? Imagens de creanças famelicas, repugnantes de miseria, que a sua caridade vae transformar em anjos rubicundos e sadios, lembrando pequenos hercules?

Marina sorriu, meneando a cabeça.

-- Confesso que estava muito longe de tudo isso... O que eu pensava...

Hesitou, olhando o horisonte.

-- Pensava, -- murmurou Humberto, -- como seria bom amar. Toda a natureza parece convidar-nos ao amor, no zumbir das abelhas, no doidejar das borboletas, que se perseguem, nos languidos effluvios das flores, neste calôr enervante, que nos dispôe para sonhos de intensa voluptuosidade. E, como nas sébes floridas se entrelaçam as braças, como, no espaço, se beijam as borboletas, assim anceamos por quebrar, num amplexo apaixonado, ardente. Quebrar emfim, Marina, amar!

-- Amar! -- repetiu a condessa. -- O amor atrahe-me e inspira-me terror...

Sacudiu a fronte, como para fugir ao entorpecimento que delia se apoderava.

-- Não, Humberto. Nasci para ser amada... mas não saberia amar.

-- Quer que lhe dê algumas lições?

Curvára-se para ella. a sua voz vibrante de desejo, fez estremecer Marina, que fechou os olhos.

-- Queres? -- murmurou, muito perto da pequenina orelha rosada.

Um fremito agitou a joven. O seio arfou violentamente.

E elle repetiu, cada vez mais terno:

-- Queres, Marina?

Ella reagiu. Afastou-se, e erguendo, para elle, um olhar ainda velado de langor, respondeu:

-- Não, Humberto, porque o não devo aprender.

XII

O mez de agosto decorreu monotono.

Os hospedes dos condes de Miramar, haviam abandonado a Soledade.

Só Fernando vinha, regularmente, duas vezes por semana, sob o pretexto de vêr as obras do Asylo.

Os trabalhos progrediam, graças á vigilância activa do conde.

Humberto partira para Cintra.

Marina aborrecia-se.

Foi para distrahi-la, que o conde pensou em dar algumas caçadas.

Em fins de setembro, a Soledade animava-se, com numerosos convidados.

A condessa reanimou-se, entregando-se, com enthusiasmo a esse exercicio, e revelando-se uma intrepida caçadora.

De dia caçava-se, ou passeava-se, em numerosa cavalgada.

A’ noute dansava-se.

Um grupo numeroso de adoradores, cercava, constantemente, Marina.

A joven retomára os seus ares provocantes, comprazendo-se no seu jogo cruel, de dilacerar os corações, mais sinceramente enamorados.

Fernando de Luna, viu, profundamente desolado, a condessa abandonar-se, languida, nos braços dos walsistas, ouvindo sorridente, os mais ousados protestos.

Quizera erguê-la, num pedestal tão alto, adora-la, venera la, como a uma santa, e eis que a santa, descia do altar, trocando o puro incenso da sua adoração, pelo culto pagão dos que só lhe amavam a belleza, polluindo-a com olhares incendidos, que pousavam acariciadores, demorados, nas fôrmas esculpturaes, que um vestido muito justo, ou o largo decote, dos vestidos de gala, deixavam admirar.

A condessa ouvia, rindo, as timidas queixas do joven medico, troçava-o ao vê-lo triste, repetia-lhe que não nascêra para o papel que elle lhe destinára, que as azas de anjo lhe tolhiam os movimentos, sem conseguirem libra-la, ao azul em que elle vivia. E terminava dizendo ter sentido real allivio, ao deixa-las, para retomar as suas iriadas azas de borboleta.

Fernando suspirava.

Humberto, esse, vira com alvoroço reapparecer a estonteante Marina dos bailes da capital. Chegára quasi a convencer-se de que Fernando se soubéra fazer amar, pela condessa.

Mas a alegria, o enthusiasmo, a febre com que a via, hoje, receber as homenagens, e entregar-se ás emoções violentas desse jogo em que ella abrazava os corações, antes de os despedaçar, tranquillisaram-no, a esse respeito.

De si para si repetiu, que só elle seria o amante da seductora Marina.

Era nisto que elle pensava, passeando na larga varanda florida, onde os echos da orchestra chegavam indistinctos

No ceo, de um azul profundo, cruzavam-se as estrellas cadentes.

Humberto scismava.

Desejava loucamente Marina. Sentia-se capaz de todos os crimes, para chamar-lhe sua. Esse dia, talvez não estivesse longe, confiava no acaso, eterno protector dos amantes.

Elle lha arremessaria aos braços, arquejante de paixão.

Não corria a mais leve aragem, uma noite ardente carregada dos effluvios das flores.

A orchestra deixára de ouvir-se, e nos ramos dos salgueiros, á beira do rio, os rouxinoes cantavam.

O mancebo aspirou o ar perfumado, e murmurou:

-- Noite linda de amor!

-- E, numa noite assim, gosta de isolar-se, Humberto ? -- perguntou Marina, apparecendo e caminhando ao encontro do sobrinho. -- Olhe se Suzanna suspeita do seu lirismo, é capaz de vir, mais um vez, tentar a sua conquista.

-- Ah !-- murmurou elle, travando-lhe das mãos, e olhando-a longamente, -- que boa idéa a sua, vindo procurar-me!

-- Procura-lo? -- exclamou ella, rindo e retirando as mãos. -- Ora o senhor vaidoso. Vim, unica e simplesmente, para respirar um pouco. Na sala asphixia-se.

-- E, nas varandas da sala não se respira como aqui? -- troçou elle. -- Ou receava qualquer importuno e por isso veiu refugiar-se perto de mim?

-- Já vejo que não ha meio de convencê-lo, de que não vim procura-lo, -- disse Marina, tomando-lhe o braço e forçando-o a recomeçar o seu passeio, -- pois bem; confesso: sentia desejos de respirar, livremente, e como havia notado a sua auzencia, lembrei-me de vir procura-lo, e propôr-lhe uma fugida. Appetece mais passear do que dansar. Quer descer até ao parque?

-- Com alegria! mas os seus convidados?

-- Lá se divertem. Preveni Jorge, para não o sobresaltar a minha auzencia. Somos livres.

-- Deliciosa tia Marina! Mas... para passear, é mais prudente cobrir os hombros.

-- Levarei a minha mantilha. Vamos.

Desceram.

Novamente se ouviram os sons da orchestra, preludiando uma walsa.

-- Era a walsa de Fernando! -- disse Marina, embrenhando-se, com Humberto, na alameda sombria. -- O pobre rapaz vae ficar desolado. Não se é, impunemente, tão maçadôr como elle.

-- O quê? -- exclamou Humberto, -- pois tiveram assim, tão grande baixa, as acções de Fernando? Será pronuncio de grande alta?

-- Ai não é! -- respondeu Marina, -- digo-lhe mesmo que o vejo em grave risco de ruina completa.

-- Mas então?! -- interrogou o mancebo, parando junto da lampada eletrica, fitando Marina, entre curioso e trocista.

-- Olhe, sentemo-nos aqui! - disse ella, deixando-se cahir no banco de cortiça, -- sinto-me fatigada, physica e moralmente.

-- Mais me surprehende o cansaço physico do que o moral. Marina costuma ser infatigavel, por isso creio que um não será mais do que o reflexo do outro. Moralmente sim, deve sentir-se fatigada, ouvindo sempre, em torno de si, esse incessante murmurio de protestos e de declarações, desde que se levanta até que se deita! Afinal torna se monotono, fatigante, falta o ar, appetcce uma fugida como a desta noite.

-- Sabe, Humberto? já tenho notado isto, mais vezes. Nada consegue prender me e encantar-me, muito tempo. Não é possivel sentir-me satisfeita, por maior que seja a emoção! sinto sempre, dentro de mim, um anceio febril, sinto, no coração, uma impressão de frio, impossível de desvanecer, por completo. Vê? suppuz ir apaixonar-me por Fernando... Encantava me a sua maneira de amar-me, até ao culto, até á suprema adoração. Tudo nelle, era delicadeza, era veneração... E eu queria ser amada assim! tive, ao ouvi-lo, deliciosas, dulcissimas emoções. E tudo passou! Cansei-me! Achei esse amor monotono, fatigante, ridiculo! Pode hoje Fernando murmurar as mais suaves e namoradas phrases, o coração conserva-se tranquillo, e, emquanto elle fala, lembra-me aquella scena do Melro Branco , de Musset, quando o pobre melro canta, perante a pêga e a rôla, recorda-se? Quando finda, vê a pêga fugir, e a rôla responde, assim, ao seu olhar, esmolando um elogio: adeus, terno estrangeiro, tão bello, mas tão aborrecido!...

Humberto desatou a rir.

Marina riu, também.

-- E olhe que os outros, pouco melhores impressões me deixam. Entre os meus adoradores, não tenho nenhum, sabe? que eu deseje amar, ou mesmo namorar. Se me disséssem: -- esse frio que sentes no coração desapparecerá com o amôr, escolhe entre estes, aquelle que queres amar, -- eu, Humberto, que tanta vez anceio pelo amôr, responderia: não quero nenhum.

-- E porquê? -- perguntou Humberto.

-- Porque estou convencida de que era uma grande maçada, amar qualquer daquelles banaes personagens.

O mancebo soltou uma gargalhada.

-- Comtudo, -- retorquiu, -- entre elles, alguns, ha, de reconhecido valôr...

-- Artístico e litterario? -- concluiu Marina, rindo. -- Não, Humberto, tenham elles o valor que tivérem, não posso deixar de lhes chamar: banaes, insipidos, vulgares, etc., etc.

Ergueu se e retomando o braço de Humberto, tomou o caminho de casa.

-- Devo parecer-lhe muito original, ao falar-lhe assim, Humberto?

-- Se soubésse como sou feliz, ouvindo-a falar, com tanta franqueza!

-- E a mim, que bem me sabe, desabafar comsigo, Humberto! Paulo foi um amigo perdido, desde que esteve quasi a apaixonarse por mim. Ainda mal refeito, do abalo soffrido, foge de mim, como do peccado. Martha não me comprehende, censura-me por tudo. Só o Humberto tem, para ouvir-me, a indulgente benevolencia do amigo, que nos comprehende,e nos releva qualquer loucura...

-- Emquanto não me aborrecer, também! -- disse o mancebo, com leve magoa.

Marina olhou-o, e, encostando se mais ao braço delle, proseguiu:

-- Foi assim, desde o principio. Inspirou-me logo sympathia e confiança.

-- Quero-lhe com toda a minha alma, condessa Marina. Pode confiar em mim. Terá um amigo dedicado e leal, até ao dia...

Interrompeu-se.

Estavam perto do kiosque japonez.

Ao fundo, a distancia, brilhavam as luzes do salão de baile; e os accordes de uma quadrilha, chegavam, indistinctos, aos seus ouvidos.

Marina deteve-se, e fitando-o, sorridente e tentadôra:

-- Até ao dia?

-- Em que me acceite como aman...

Vivamente, a joven, poz-lhe a mão nos lábios.

-- Oh! continuemos a ser amigos, Humberto! Se aos outros, não quero amar, por temer aborrecer-me, a si...

-- A mim? -- perguntou Humberto, envolvendo-a em apaixonado olhar.

EUa fitava esse olhar inflammado, dominador.

Os olhos velaram-se lhe, arfou-lhe rápido o seio, entreabriram-se-lhe os lábios, como implorando um beijo.

Humberto travára-lhe das mãos, curvado para ella, queimava-a com o seu halito de fogo; e na sua voz quente, a que a emoção dava um penetrante encanto, repetiu:

-- Que temes, Marina?

Durante um momento, a condessa conservou-se silenciosa, deliciando-se na perturbadora commoção que a invadia.

Mas de súbito, fez um violento esforço para dominar-se, e, em tom travêsso, respondeu.

-- Ama-lo demasiadamente.

E tentou fugir.

Mas elle soltou um grito rouco:

-- Has-de amar-me!

Enlaçou-a, apertou-a, louco, de encontro a si, beijando-lhe sofregamente os lábios.

O corpo adoravel quebrou, nos braços que o enlaçavam.

Humberto arrastou-a para o kiosque, deitou-a na ottomana, muito baixa e ajoelhou a seus pés.

A lampada dava uma luz suavissima, coada atravez os vidros rosa.

Humberto cobriu de beijos as mãos e os braços da condessa, sem que ella pensasse em resistir.

Pequenos estremecimentos a sacudiam.

Os olhos, afogavam-se em langôr, os labios vermelhos, entumeciam-se, levemente, o corpo abandonava-se.

-- Ha tanto que te amo! -- murmurou Humberto. -- Vamos ser felizes... Marina, a verdadeira ventura, só o amôr a pode dar. Quero beijar-te muito, nos labios que me são paraizo, nos olhos que me são luz, nos cabellos que me são perfume! Assim... assim.

Marina teve um gesto, tentando ainda reagir:

-- Humberto! -- balbuciou. -- Humberto!

A mantilha que a envolvia, cahiu.

O collo e os hombros alabastrinos, surgiram ao olhar incendido, do mancebo, os seus beijos tornaram-se mais ousados.

Marina recahiu no divan.

Estava vencida.

Então, elle, num gesto rápido, enlaçou a...

Ella soltou um debil gemido, e, subitamente, os seus braços, até alli frouxas, enlaçaram estreitamente Humberto, os seus labios, apoiaram-se, sofregos, nos labios sensuaes do mancebo.

A brisa doidejava nas braças das arvores seculares.

No ceo cruzavam-se as estrellas cadentes, e nos salgueiraes do rio, os rouxinoes trinavam, docemente.

XIII

Regressando aos seus aposentos, Marina, deixou-se cahir sobre o divan, e permaneceu longo tempo estendida, de olhos fechados evocando, uma a uma, as commoções porque vinha de passar.

Foi um estonteamento. A sensação de sentir-se arrebatada em plena luz, a alma dilatada por indiscriptivel felicidade. No coração: -- hymnos primaveris, nos labios o sabor dos beijos, na retina a imagem do amante, nos ouvidos o echo das suas palavras namoradas.

Pela primeira vez, na vida, vibrára intensamente.

Amor é como o raio

Fere, apagou se

Depois, fica o desmaio

Que é dôce .. dôce ! (')

E nesse dulcissimo desmaio permanecia, deixando passar as horas, sem as sentir.

Despcrtou-a um ruido, muito seu conhecido.

A luz opalina da lampada, causou-lhe calafrios e o olhar, aterrado fitou a porta, que ligava, aos seus, os aposentos do marido.

O vulto de Jorge, assomou entre os humbraes.

Era a imagem da realidade, do remorso, talvez, a acorda-la, brutalmente, em pleno sonho de luz.

Ergueu-se, recuou, instintivamente, occultando o rosto.

O conde avançou, tomou-lhe as mãos, encarou-a, com inquietação.

-- Estás doente, Marina? Tens as mãos geladas, e a cabeça em fogo... Tremes... que tens, minha Marina?

(') Indiana -- de Thomaz Ribeiro.

A condessa batia o queixo, convulsa.

As caricias de Jorge produziram lhe o effeito de choques electricos. Todos os nervos lhe vibravam, dolorosamente.

Verdadeiramente assustado, Jorge, conduziu-a ao divan, tocando repetidas vezes o timbre, e chamando, em voz angustiada.

Humberto e acreada de quarto, acudiram.

-- Que ha? -- perguntou Cadaval, parando no limiar da porta.

Com o gesto, Jorge apontou-lhe Marina.

O mancebo avançou.

-- Uma crise nervosa! -- murmurou, -- dá-me os saes.

Ao ouvir-lhe a voz, Marina ergueu a fronte.

Os seus olhos dilatados, perderam a expressão de terror, e, subitamente, desatou a chorar.

-- Meu Deus! -- disse Jorge. -- Meu Deus!

Humberto levou o frasco de saes, ao nariz da joven, emquanto a creada lhe banhava a fronte com vinagre de toilette, e Jorge, assustado, repetia:

-- Meu Deus! meu Deus!

A pouco e pouco a condessa serenava. Seccaram as lagrimas, cessaram as convulsões.

A condessa fixou os rostos que para ella se inclinavam.

O de Jorge revelava angustia. O de Humberto, levemente ironico, tinha uma vaga expressão de amoroso enlevo.

-- Sentes-te melhor? -- murmurou o conde.

-- Então, passou a crise? -- perguntou Humberto. -- Quem costuma troçar dos que se deixam dominar pelos nervos, dá-nos uma sessão de nervosismo, de primeira ordem.

E sorria, com meiguice.

Ella sorriu, também, e fechou os olhos, vencida pelo cansaço.

-- Agora, o repouso absoluto, concluirá a cura. A Iria que fique, e tu, meu tio, vae dormir. Precisas tanto de repouso, como a condessa.

Jorge beijou, de manso, os cabellos de Marina, e sahiu, com o sobrinho que o troçava do seu exagero.

-- Se amasses -- insinuou Jorge -- não terias essa bella serenidade. O amôr turva-nos a razão.

-- E as noites perdidas também a turvam, -- replicou Humberto. -- Trata de dormir e de deixar dormir, verás como te sentes mais senhor de ti. Bôa noite.

-- Não! -- volveu Jorge, pousando a mão no braço do sobrinho -- se não te contraria, cede-me alguns minutos. Não me sinto ainda disposto para dormir.

Humberto seguiu-o para o gabinete, e accendendo um charuto installou-se numa poltrona.

-- Eis-me resignado a ouvir-te, -- disse, -- tu que desejas a minha companhia, é porque te sentes acommettido da febre de discursar. Padeces de uma verbosite aguda, meu pobre tio.

O conde sorriu.

-- E’ verdade, sinto necessidade de falar, e também de ouvir, meu amigo. Tu és o unico a quem patenteio meu coração, o unico que consegue acalmar os meus nervos.

O teu permanente bom humor, a tua propria ironia, e mesmo o teu sarcasmo teem-me

curado, mais de uma vez. Nunca tive segredos para ti. Durante longos annos, fôste tu o unico affecto, da minha vida e ainda hoje, não saberia viver sem ti.

Approximou-se do sobrinho, pousou-lhe as mãos nos hombros, e, fitando-o:

-- Que te disse Marina, durante os longos momentos que comtigo esteve, esta noite?

Extranho sorriso fluctuou nos labios do mancebo.

-- Fez te confidencias, decerto, -- continuou o conde. -- Porque estava ella assim tão nervosa? Costuma ser tão senhora de si! Porque abandonou o baile, dizendo-se cansada, ella, que nós sabemos infatigavel? Fala Humberto, dize tudo.

Humberto encolheu os hombros.

-- De que me falou Marina? De tudo e de nada. Criticou alguns dos seus admiradores, troçou de outros, confessou-se fatigada de homenagens. Ella, que tanto desejava ser amada, acabou por aborrecer-se de tanto amor, de tanto galanteio, de tanto suspiro. Enjoou as phrases ternas, como tu podes enjoar as trouxas de ovos, ou a lampreia doce, se, durante um anno, as tiveres a todos os quarteis.

O conde soltou um suspiro de allivio.

-- Que bem me fizeste! -- disse. -- Cheguei a temer que Marina amasse alguem...

Deu algumas voltas pelo gabinete, e voltou a parar defronte de Humberto.

-- A's vezes -- proseguiu Jorge, -- afigura-se-me que, se me soubésse trahido, morreria, fulminado pela dôr.

-- Illudes-te, -- volveu Humberto, friamente. -- Apoz uma vida como a que levaste, tanto anno, não se morre, por uma coisa dessas.

-- Outras vezes, -- proseguiu Miramar, sem parecer ter notado a ironia do sobrinho, -- outras vezes, parece-mc que a mataria...

-- Também não -- respondeu, serenamente, Cadaval. -- Crê no que te digo: se Marina tivesse um amante, soffrias, nos primeiros momentos, depois, habituavas-te. Na existência que levaste, de orgia em orgia, de lupanar em lupanar, perdeste a energia e o pundonor, que te impediriam de transigir com o que, vulgarmente se chama, deshonra conjugal. Dominaria o bom senso, e sabes o que o bom senso te aconselharia ? A que fosses gozando emquanto, para isso tivesses forças e appetite.

Jorge ficou pensativo, olhando o sobrinho com vaga tristeza.

-- Sim! -- disse, passado algum tempo, -- eu amo-a tanto, que, por ella, tudo arrostaria... mas tu, que usas o meu nome, tu, que, muito mais novo, não tiveste ainda tempo para perderes os sentimentos de pundonor, que me dirias tu, Humberto?

O mancebo ergueu-se, arremessou o charuto, e respondeu, vagarosamente, como se quizesse dar tempo a que, cada uma das suas palavras, penetrasse no intimo do conde:

-- Eu comprehendo o marido, que não sobrevive á deshonra, ou aquelle que mata ao saber se ultrajado, quando esse homem, casou por amor, e soube respeitar, na esposa, a honestidade e o pudor, que, na virgem, o encantavam. Mas o homem que faz da esposa sua amante, perdeu o direito a exigir-lhe o respeito, que não soube guardar-lhe. E, quando o casamento é um contracto, como foi o teu, acho alem de ridiculo, insensato, esse zêlo. Com o devasso pae de Marina, combinaste o teu enlace. E, nem elle hesitou, perante a monstruosidade de ligar os dezoito annos da filha, aos teus decrepitos e viciosos sessenta annos, nem tu recuaste, perante a profanação dessa mocidade em flôr. Desejaste-a, desposaste-a, e, brutalmente, maculaste a sua innocencia, espesinhaste o seu pudor, sem dó, sem piedade, perante a revolta da sua castidade. E vieste contar-me, com promenores revoltantes, os teus prazeres de satyro. Que differença fizeste, entre essa virgem e as mulheres, que, outr’ora, foram tuas companheiras de deboche? Nenhuma. Não a amas, desengana-te. O amor, nunca tu o conheceste. Deseja-la, appetecela, é-te necessária. Não, porque nella vejas a companheira que doura a tua velhice, com o fulgor da sua mocidade, mas porque ella acorda, no teu organismo, já gasto, um lampejo da tua extincta mocidade. Dás-lhe luxo, grandeza, ouro, ás mãos cheias, arremessas-lhe, ao regaço, joias sobre joias, tal e qual como a essas grandes mundanas, que, em Pariz, fizeram o teu orgulho. Ella deu-te o seu corpo: estás pago. Nada mais podes exigir-lhe. O coração, não podia o pae vender-to, porque o sentimento não se compra, meu pobre tio. Se ella, hoje tivesse um amante, não tinhas direito de castiga-la. Trabalhaste na sua desmoralisação, não tens que surprehender-te, nem que revoltar-te, contra os seus effeitos.

O conde de Miramar deixou-se cahir sobre o divan, e permaneceu, longo tempo, com o rosto occulto entre as mãos.

Humberto accendeu novo charuto, e começou medindo o gabinete a passos lentos.

A luz da madrugada branqueava as vidraças, e, no arvoredo, despertavam, chilreando, os passarinhos.

Jorge ergueu-se.

-- Tens razão, -- disse, -- nas tuas palavras, houve muito de cruel, mas não posso negar-lhes a verdade.

E estendeu-lhe a mão.

Humberto riu, apertando-lhe a mão, e, em tom ligeiro e affectuoso:

-- Meu caro tio, o cirurgião tem, ás vezes que ser cruel, para curar o doente.

-- E, como o doente, em seguida a uma dolorosa cauterisação, sinto-me exhausto, mas alliviado. Julgo poder repousar, finalmente.

-- Perfeitamente, -- volveu Humberto. -- Deita-te, dorme, e logo estarás bom.

Separaram-se.

XIV

Decorreu um anno.

Estamos, de novo, na Soledade. Quantas torturas não soffrêra Marina! Quantas revoltas, que a deixavam exhausta! Quanta vez não pensou em confessar tudo ao marido? Mas, confessar, seria perder Humberto.

E, ora se accusava, por illudir esse velho, que a adorava, ora sentia remorsos da vida de mentira, que encetára, ora se revoltava contra os direitos que, sobre ella, tinha o marido, e sentia uma repugnancia invencivel pelas suas caricias, para depois, arrependida, se lhe mostrar cada vez mais terna.

Humberto, ria dos seus escrupulos, apontava-lhe os casos, identicos ao seu, e troçava-a do seu nervosismo.

Nessa lucta, a joven perdêra um pouco, da sua louçania.

As faces empallideceram, os olhos cercaram-se de fundas orlas roxeadas, que lhe augmentavam o extranho fulgor.

Jorge, um pouco inquieto, a principio, acabára por habituar-se a vê-la caprichosa, e adorava-a, cada vez mais, num crescendo de paixão, que ainda mais a torturava.

Regressando do seu passeio matinal, Marina recordava toda essa lucta, e, de novo a acommettia o desejo de fugir a tudo e a todos, para isolar-se, com o bem amado.

Se elle quizesse, como esse sonho se realisaria facilmente!

Não se sentiria elle cansado dessa vida de prazeres continuos? Quasi não tinham tempo, para trocarem um beijo de amor.

Ah! como seria doce viver perto delle, só para elle!

Ao entrar no vestibulo, soltou um grito de alegria.

Humberto estava alli.

Como uma creança, saltou-lhe ao pescoço, beijando-o, abraçando-o, num impulso de desordenada paixão.

E arrastou-o, para a livraria, feliz por encontrar-se, um momento, a sós com elle.

O mancebo sorria, deixando-se guiar.

-- Meu bem amado! Meu bem amado!

Impellia-o para a chaise-longue, e sentava-se num tamborete, com as mãos delle nas suas, olhando o, como em extasis:

- Meu bem amado! -- repetia. -- Como eu te amo, Humberto! Quizéra soffrer, por ti, longos martyrios e crueis torturas. Sacrificar-me, por ti, meu amor, anniquilar-me, deixar de ser eu, para ser uma coisa tua, e assim, morta para o mundo, só para ti e por ti viver, meu amor!

E contou-lhe o sonho de ha pouco: -- fugir com elle, passar a vida a adora-lo, e a dizer-lho.

--E tu queres, Humberto, meu Humberto bem amado?

A voz vibrava-lhe, intensamente apaixonada, o olhar resplandecia-lhe, de louca adoração, e elle permanecia silencioso, desejando prolongar a caricia da deliciosa emoção que o invadia.

Olhava-a, encantado, deslumbrado, pelo immenso amor que a transfigurava.

-- Tu queres? -- pediu ella.

Humberto beijou-a, meigamente, e respondeu:

-- O quê, minha louquinha, fugir comtigo? Sacrificar a tua felicidade e o teu bem estar, ao prazer egoista de ter-te, só para mim? Arrancar-te ao luxuoso conforto que te cerca, para dar-te, em troca, a pobreza, os cuidados, a angustia dos que luctam pela vida? E’s uma doidinha querida. Hoje, que tens tudo: amor, consideração, homenagens, riqueza, parece-te que só o amor bastaria, para fazer-te feliz. Mas lembra, Marina minha, que, por este luxo, trocaste a tua liberdade. Lembra-te de que, quando, nesta mesma quinta, donzella ainda, deixavas voar o pensamento, não era o homem adorado, do qual partilhasses a pobreza, que te sorria, mas sim o homem, cuja collossal fortuna te pudesse rodear do luxo soberano, para o qual te sentias nascida. Não sonhavas um lar modesto, illuminado apenas pelo amor, como o de Martha. Então, não comprehendias a ventura, sem a riqueza, e trocaste a tua corôa virginal, pela coroa de condessa de Miramar...

-- Então, não te conhecia! -- interrompeu a joven, em tom de censura.

-- E agora não te conheces, -- volveu, rindo, o mancebo.

-- Enganas-te, Humberto. Sei quanto te amo... quanto me custa esta vileza, de ser, simultaneamente, tua amante e mulher de Jorge!

-- Quem teria mais razão de queixa, seria eu, e não penso em tal. Crê, Marina, o amor é uma planta delicada, que não devemos transplantar, sob pena de a matarmos, ou de, pelo menos, lhe fazer perder todo o mimo. Amei-te condessa de Miramar, trajando com superior elegancia, vendo-te scintillar, no collo, nos cabellos, nos dedos, as joias carissimas, admirando-te, no teu landeau, forrado de setim, ou no teu pur sang. Vendo-te offuscar, pela belleza e pelo explendor das tuas toilettes, as mais bellas mulhe res da nossa sociedade. Vendo-te enlouquecer, com um sorriso, com um olhar, os mais esquivos rapazes, da nossa roda. Foi assim que te amei, é assim que te amo, que te quero sempre vêr e amar.

Marina ergueu-se, despeitada.

-- Amas o meu luxo, e nada mais, -- exclamou. -- E’s como esses que apreciam o livro, pela encadernação. Queres-me como a um objecto de luxo, como eu posso querer a estas jarras, ou a estes quadros...

Humberto erguêra-se, e ria, descuidado.

-- Talvez seja assim, -- respondeu, -- mas aprecio-te, como nunca apreciei outra mulher. Apraz-me vêr-te assim, trajando sêdas e velludos, pé irreprehensivelmente calçado, sabendo que só rendas, tecidos caros e finissimos, te vestem. Não me parece que sentisse o mesmo enlevo, se vestisses pobremente e calçasses cordovão...

E soltando uma risada sonora:

-- Eu então, não sei a que proporções ficaria reduzido se tivesse de abandonar todas estas ninharias elegantes, que tão encantadôr me tornam! Perdoamos á borboleta, que tenha sido larva, não lhe perdoaríamos a metamorphose contraria.

Marina meneou, pensativa, a linda fronte.

-- Amo-te bem mais, do que tu me amas a mim!

-- As flores não teem, todas, o mesmo perfume, nem as fructas o mesmo sabor. Marina minha: gozemos a vida, tal como ella se nos apresenta, é a verdadeira philosophia, a unica maneira de ser feliz.

Com um gesto de amargura, a condessa dirigiu-se para a varanda, sentando-se na cadeira de balouço.

Humberto começou folheando um livro.

No vestibulo sentiam-se passos, ruido de vozes.

Os hospedes da Soledade, regressavam do seu passeio.

-- Marina -- disse Luiza entrando, -- o Asylo está adiantadissimo. Teremos a inauguração ainda este anno?

-- Provavelmente, em dezembro -- respondeu Humberto. -- Festejar-se-ha com dansas campestres, e concurso dos melhores gaiteiros da aldeia.

-- Está a zombar, -- disse Suzanna, -- mas era bonito, uma festa campesina.

-- Sim, -- accrescentou Marina, -- Humberto zomba, como sempre que se fala no Asylo. Mas eu já tinha lembrado de dar uma festa, a todo o povo da aldeia, no dia da inauguração.

-- Ah, mas havemos de dansar também! -- acudiu Luiza, -- só ver divertir os outros não me diverte a mim.

-- Decerto! decerto! -- concordou Jorge, satisfeitissimo. -- Daremos uma festa sumptuosa... um baile de costumes, marcando uma determinada epocha, como se tem feito, em França.

-- Approvado! -- replicou Humberto. -- O tempo das cabelleiras empoadas, e dos fatos bordados a oiro e a prata.

-- Ora! -- objectou Suzanna, --essas festas não são para Portugal.

-- Porquê? -- interveiu Fernando. -- é a mania do pessimismo, que faz abortar todas as ideas, em Portugal. Em fugindo á rotina nada se póde fazer.

--Era lindo! -- exclamou Luiza, encantada.

-- Vamos tentar, -- disse Marina. -- Humberto que marque a epocha em que pode fazer se a inauguração. Para uma festa assim, os convites teem de ser feitos, com bastante antecedencia.

-- A festa deve ser linda! -- concordou Suzanna, -- os trages antigos, luxuosos e originaes seduzem-me.

-- O Fernando, -- lembrou Paulo, -- encantar-nos-ha, vestido de trovador, recitando-nos versos de sabôr primitivo.

-- Obrigado -- respondeu o joven medico,

-- os trovadores antigos, como os de hoje, não eram ricos, e o seu fato, não seria muito para encantar. Permittir-me-has, que use trage mais elegante.

-- Tens razão, concordou Paulo, -- eu é que estou, naturalmente indicado, para trovador. Ir-me-ha muito a caracter, o modesto trage de menestrel. Vou procurar aprender alguns versos, de D. Diniz.

-- Ai flôres, ai flôres de verde Pino

Se sabedes novas, do meu amigo,

Ai Deus e hu é?

Se sabedes novas do meu amigo

Aquelle que mentiu, do que tinha jurado,

Ai Deus e hu é?

recitou Marina rindo.

-- Provam esses versos, -- disse Suzanna, -- que os homens, já então mentiam, quando falavam de amor.

Humberto respondeu rindo:

-- E que as mulheres de então, como as de hoje, continuavam, suspirando apoz elles:

Ai Deus e hu é?

-- A toleima da mulher e a perfidia do homem, datam do principio do mundo, -- replicou Suzanna.

-- Em vista da antiguidade, concedamos-lhe fóros de nobreza, -- lembrou Luiza, rindo.

-- A senhora D. Suzanna, nem sempre é justa, para comnosco, -- defendeu Paulo.

-- O homem, como o demonio, não é tão feio como o pintam, -- acudiu Jorge.

-- A eterna questão, -- observou Martha.

-- O amor, a mulher! -- continuou Jorge, por ella desejamos fortuna, talento, grandeza!

-- O amor, o homem, pensa a mulher, -- disse Martha. -- Para agradar-lhe a mulher deseja belleza, luxo, espirito... Parece que deviam entender-se perfeitamente. E, entretanto, é raro, num grupo de homens não ouvir maldizer da mulher, e num grupo de mulheres, não ouvir censurar o homem.

-- Oh! nós dizemos mal da mulher, para nos vingarmos do muito que a adoramos, -- acudiu Humberto.

-- Adoramos! -- repetiu Suzanna, rindo.

-- Esse termo, na sua boca, dá vontade de rir. Diga, senhor Cadaval, que sentido liga, a essa palavra? Quantas vezes, na sua vida, pronunciou, sem mentir, a palavra -- amo? O senhor e todo os mais, presentes, com excepção do senhor Sande, de quem Martha fez uma das maravilhas do mundo.

Humberto ria.

-- Não posso dizer as vezes, que pronunciei essa palavra, mas posso affirmar que, sempre que a disse falei verdade.

Uma gargalhada geral acolheu estas palavras.

-- Porque duvidam? Por me terem conhecido vários amores? Isso que prova? Hoje, vejo esta rosa, acho-a linda, colho-a, ou aspiro-lhe o perfume. Nesse momento, sinto-me captivo da sua belleza. Digo: amo! e não minto. Amanhã, ou porque um dia baste para empallidecer a rosa, ou porque o meu beijo lhe fizesse perder a frescura, a rosa não tem para mim, o mesmo encanto. E a baunilha que me seduz, e a quem murmuro: amo! e, sou sincero!

-- Isto é que se chama ser cynico! -- observou Suzanna, lançando-lhe um olhar entre namorado e odiento.

-- Humberto profana a palavra amor, -- interveiu Paulo. - Quando se ama, o pallôr da rosa não mata o nosso amor, antes o augmenta.

-- Durante os primeiros segundos -- insistiu Humberto. -- Depois veem o tédio, a saciedade. E a rosa não se importa de saber, se o tempo lhe roubou a graça, quer hoje e sempre, o mesmo fogo, o mesmo enlevo. Torna-se exigente, imperiosa, esquece que só o seu perfume nos captivou, e mata o nosso amor, com os espinhos com que tenta prender-nos. Ou então, torna-se rosa de musgo, tão doce, tão macia, que nos enerva. Os espinhos afastam-nos... mas o mel, por demasiado doce, acaba por enjoar-nos.

-- Conclusão, -- disse Luiza, soltando uma risada irónica, -- se os senhores são inconstantes, a culpa é toda nossa. Tomarei nota da lição, e hei-de procurar o meio termo. Martha, queres ensinar-me o segredo?

-- Não ha segredo nenhum, -- acudiu Humberto, -- o Paulo, por muito guloso, afogou-se no mel.

Riram todos.

-- Condessa Marina V. Ex.ª que diz? -- perguntou Fernando.

-- Oh eu! -- disse a joven, com intenção, -- faço como sua irmã: tomo nota da lição!

XV

Suzanna foi a primeira a suspeitar dos laços existentes entre Marina e Humberto. Com uma astucia felina, passou a vigiar os dois, até obter a certeza.

O ciume e odio, desvairaram a pobre apaixonada.

Aquelle Humberto, amado ha tanto tempo, despresando o seu amor, a sua fortuna, respondendo ao seu carinho, com phrases sarcasticas, era amante da condessa de Miramar.

Jurou vingar-se.

Não olhou á vileza dos meios a empregar. Todos lhe serviam, contanto que destruissem a felicidade criminosa, dos dois amantes.

E deixou a Soledade. Não queria vêr o resultado da sua tôrpe denuncia, temia trahir-se.

Foi numa noute de Outubro, que ao entrar no seu fumoir, o conde avistou, sobre a secretaria, a carta fatal.

Abriu-a, procurou a assignatura e, não a vendo, pensou em queimar o papel sem o lêr.

Mas, esse clarão de bom senso, não prevaleceu; teve curiosidade, leu.

Soltou uma exclamação de duvida, encolhendo os hombros.

-- Ora adeus! Marina e Humberto, amantes, que disparate. Era lá possível! O seu companheiro de tanto anno, o seu confidente, o seu conselheiro! Era uma calumnia infame e tola. Humberto? Ora adeus!

De todo o principio, existira, entre elle e Marina, essa intimidade affectuosa. Não havia, hoje, differença alguma. Humberto era sempre o mesmo, Marina... Marina mostrava-se mais terna, mais affectuosa, para o sobrinho.

O ciume começava a abraza-lo.

Marina, Humberto!

Via-os, correr em bicicleta, galopando a par, isolando-se, por vezes, em longas palestras, elle sempre zombeteiro e mordaz, mas ella mais presa, mais interessada.

O olhar de Marina tornava-se mais doce, ao fitar Humberto...

Recordava os ultimos mezes, a subita mudança de Marina, a sua pallidez, o olhar febril, os seus caprichos, mil pequenas coisas, que eram outros tantos raios de luz.

Invadiu-o uma colera de louco.

Pegou no rewolver, verificou estar carregado, e dirigiu-se para o quarto, indicado na carta.

-- Ah, eu não tenho energia para matar o amante de minha mulher? -- pensava, recordando as phrases de Humberto, -- pois bem, veremos quem se engana, senhor meu sobrinho.

Metteu hombros á porta, e a porta cedeu.

O par criminoso estava alli.

O conde visou Humberto:

-- Miserável ! --disse.

O mancebo estendeu o braço, na intenção de desarmar o tio, mas antes que tivesse tempo para isso, o conde puxava o gatilho, e Marina, que entre ambos se precipitára, recebia a bala, e cahia sem soltar um gemido.

Os dois homens recuaram, assombrados. Jorge arremessou a arma e cahiu de joelhos, perto da infiel. Humberto, já senhor de si, respondia aos hospedes, e aos creados, que o ruido da detonação fizéra acudir:

-- Uma desgraça! A condessa, brincando com o rewolver que julgava descarregado, acaba de ferir-se.

Os dois Lunas ergueram a joven, conduzindo-a para o quarto, onde lhe foi feito o primeiro curativo.

Jorge, seguira-os, como sunambulo, assistira, gelado e mudo, á sondagem e á applicação do penso, e quando Luna o arrastou para o gabinete, dizendo ser grave o ferimento, e preferivel que fossem Luiza e Martha, as enfermeiras da doente, o conde deixou-se cahir numa poltrona e desatou a chorar.

Paulo e Martha, correram á Soledade, logo pela manhã, desolados pela triste noticia, e acceitaram, sem reluctancia, a explicação do caso.

Martha ficou perto da amiga, emquanto Paulo, com a vida tomada por devêres, a que não podia faltar, promettia vir logo que os affazeres lho permittissem.

Entretanto, o velho Luna, procurava socegar o amigo, que, preso de violenta colera, falava em matar o sobrinho, accusando-o de ser elle, o verdadeiro assassino de Marina.

Muito assustado, Fernando veiu prevenir Cadaval, aconselhando-o a sahir da Soledade, não fosse o conde cumprir a sua ameaça.

Humberto ouviu, impassivel, as palavras do amigo, e quando elle terminou, disse, simplesmente:

-- Vou falar a meu tio.

-- Estás doido! -- exclamou Fernando, detendo-o, -- apparecer ao marido ultrajado, respirando vingança...

Humberto sorriu:

-- Tenho trinta e dois annos. Desde os quatorze que sou o companheiro do conde de Miramar, desde os vinte, que o domino. Tenho-lhe evitado muita vergonha, e tenho-lhe acalmado muita exaltação. A féra desconheceu, uma vez o domador, mas tranquillisa-te, não tentará nova revolta. Se Marina, desvairada ao vêr-me visado, se não tem interposto, não teria havido tragedia, e tudo se passaria de um modo muito diverso.

Mas Fernando, não se convencia, e continuava retendo o amigo, lembrando-lhe a imprudência que ia commetter.

-- Depois, tu não podes sentir-te a sangue frio, perante esse velho, a quem roubaste a mulher, e que, para ti, tem sido um pae.

Humberto desatou a rir.

-- Pae?! Meu pobre visionario, tu não sabes, nem podes calcular, o que foi a minha vida, desde que fui adoptado por meu tio. Durante as férias, percorria, commigo, todos os lupanares, rindo-se dos meus pudêres de adolescente, iniciando-me em todos os prazeres, que envenenam a alma, gozando com a minha inexperiencia, rindo se das minhas surprezas, e applaudindo-me, quando a preversão começou dando os seus fructos. Quando, aos dezoito annos, regressei com elle, de uma viagem ao estrangeiro, o meu coração perdêra todas as illusões; a mulher havia perdido, para mim, todo o mysterio, todo o encanto. Tu não podes imaginar a devassidão, o cynismo, desse velho prematuro. Vês-lo, enamorado da mulher, todo vestido de poesia, por esse amor tardio. E’ como um pantano coberto de flêres, meu pobre Fernando! Se tenho por elle, um certo affecto, é uma questão de habito. Quanto ao respeito, foi sentimento que nunca experimentei, perante elle.

E, desviando do seu caminho, o medico estupefacto, Humberto dirigiu-se para o gabinete do tio.

Ao vê-lo, Luna, soltou uma exclamação de terror e de censura:

-- Está doido!

Tranquillamente, Humberto fechou a porta, e avançou para o conde, mudo de espanto e de raiva.

Tal audacia suffocava-o.

Calmo, Humberto, fitou-o, com pungente ironia.

-- Então que excessos, que disparates são esses? Estás completamente doido? Vejo que perdeste esse resto de bom senso, que, nos últimos tempos, tens sabido manter. Porque te enfureces tu? Com que direito? Espero que não vais falar-me em honra, em dignidade, e em todos esses termos bombasticos. Sabes que te conheço, e que te não temo. Contra Marina, ao menos, não vociferas. Ainda comprehendes, que uma mulher como ella, uma vez dispertado o temperamento, por um marido como tu, havia de, fatalmente, ter um amante. Porque te indigna, que esse amante fosse eu, em vez de outro qualquer? Não me ensinaste que deviamos sempre tentar ser os primeiros a provar um bello fructo? Não me dizias, que quando uma mulher nos desperta desejo, devemos tentar satisfaze-lo, embora, para isso, tenhamos de destruir um lar, ou de despedaçar um coração? Se eu fosse egoísta, como tu, podia ter-te roubado Marina, comprehendes? E não o fiz, porque sabia que, sem ella, não poderias viver. Mas nunca pensei, que te revoltasses, assim, contra um facto tão simples, e tão natural. De ha longo tempo partilhas, commigo, fortuna, prazer, e conquistas.

O conde balbuciou:

-- Como tu és cynico!

-- E não te sentes desvanecido, perante um tal discípulo? -- replicou Humberto, rindo, e sentando-se numa poltrona.

Puxou da charuteira, oflereceu charutos a Luna, accendeu um, e estendeu outro ao conde.

-- Vamos, accende um charuto. Faz-te bem. Lembra-te de quando me dizias: meu caro Humberto, para acalmar os nervos, não ha como um bom charuto, ou uma bella amante.

Luna, surprehendido, desnorteado, accendêra o charuto, e, machinalmente, o conde imitara o amigo.

-- Tu quasi me desnorteaste, -- proseguiu Humberto, -- podes marcar um, á preta. Não estava eu quasi a pensar, como Fernando, que era melhor partir, sem dizer-te? Mas era uma tolice, combinaremos agora essa partida, que só terá logar, depois da condessa entrar em convalescença, para evitar ditos. Irei viajar algum tempo, o que, seja dito de passagem, me não desagradará, e voltarei, passado um anno ou dois. Pateta! Não pensaste que, matando-me, perdias, irremediavelmente Marina, que não te perdoaria a minha morte, e, a cujos olhos eu conservaria todo o prestigio de amante. Assim, ha-de esquecer-me, indignada perante a minha deserção.

-- Não a amas, então? -- perguntou Jorge, admirado, -- pudéste ser seu amante e conservar-te indifferente?

Olhava, assombrado, para o sobrinho.

Uma onda de volupia, avelludou o olhar de Humberto.

Mas gostava de ser amado, -- respondeu.

Luna estremeceu.

Sentiu um dó immenso, pela formosa Marina, que sacrificára a honra por um homem de aquelles!

Sentiu uma subita nausea, e levantando-se, deixou o gabinete.

Fernando, inquieto, passeava no corredor.

-- Então? -- perguntou.

-- Meu querido filho, -- respondeu o pae, arrastando-o para o jardim, -- falemos de ti. Preciso purificar os meus ouvidos, mergulhar na tua alma, para reconciliar-me com o mundo, e com os homens.

E, enternecido perante o bello e leal olhar do filho, agarrou-lhe na cabeça e beijou-o na fronte murmurando:

-- Tens uma alma tão bella, meu Fernando!

Commovido, Fernando tomou o braço do pae, replicando:

-- Seguindo sempre o seu exemplo, que admira que conserve na alma, todas as harmonias que me transmittiu ao dar-me a vida?

XVI

Dias angustiosos decorreram.

Emfim, Fernando declarou a condessa livre de perigo, e poucos dias depois, começava a convalescença.

O conde pediu a Fernando, para ver Marina. Desejava ardentemente vê-la, mas receava que a sua presença a prejudicasse.

O mancebo transmittiu, a Martha, o desejo do conde, para esta, por sua vez, nelle falar á condessa.

A joven assim fez.

Marina teve um gesto de terrôr, mas, comprehendendo que, mais tarde ou mais cedo, teria de ceder, respondeu:

-- Não é elle, mais do que nunca, o senhor da minha vida, e não devo eu sentiri-me feliz, pelo interesse que ainda me consagra?

-- O conde tudo esqueceu, -- disse Martha, docemente, -- porque não has-de fazer como elle?

-- E achas que mereço esse esquecimento, que envolve o perdão, Martha? Achas que posso sentir-me bem, perto do homem a quem trahi?

-- Quando elle se sente bem perto de ti! -- observou Martha. Depois, toda a culpa espiada, merece perdoada...

-- Não! -- interrompeu Marina. -- Para merecer perdão é preciso haver arrependimento. E eu não estou arrependida.

-- Pois bem, tanto melhor, -- replicou Martha, preferindo não discutir. -- O remorso talvez, te impedisse de melhorar tão cêdo, e todos desejamos vêr-te bem. Posso prevenir o conde?

-- Que remedio!

Martha sahiu, com Luiza.

Minutos depois, entrava o conde de Miramar.

Muito pallida e tremula, invadida por uma sensação de frio intenso, Marina olhava o marido a medo, sem ousar estender lhe a mão, ou dirigir-lhe a palavra.

Elle convulso, olhava-a em extasis, commovido ao vê-la tão pallida e tão magra.

Pensou que poderia te-la morto, e sentiu uma angustia insupportavel, opprimir-lhe o coração.

Ajoelhou, tomou-lhe as mãos diaphanas, e beijando-lhas, com ternura, murmurou:

-- Marina adorada!

-- Tiveste muito medo de perder-me, Jorge? -- disse ella, recuperando a serenidade, ao conhece-lo sempre seu escravo. -- Eu também não tinha vontade de morrer. Sou tão nova! A vida é tão bella!

Forçou-o a sentar-se junto delia, dirigiu-lhe mil perguntas, fe-lo falar em mil ninharias, pediu noticias do asylo, mostrou-se encantada com a proxima viagem.

A tarde passou agradavelmente, para ambos.

Nessa noite, Marina dormiu bem.

Apenas acordou, saltou do leito, enfiou um roupão de peluche, abriu as portas da janella, e encostou-se aos vidros, tendo um unico pensamento: vêr Humberto.

De súbito estremeceu, occultando se com as cortinas.

Miramar, Luna e Humberto, regressavam do passeio, conversando animadamente.

Marina só viu o amante.

Surprehendia-se, ao ve-lo conversar, tão alegremente com Jorge.

Momentos depois, os dois velhos sahiram e Humberto subiu as escadas.

Marina rejubilou.

Os dois velhos deviam ir ao asylo.

Feliz, por ter tempo diante de si, a joven compoz o cabello, notou com tristeza, o abatimento do rosto, e desceu, vagarosa, a escada, dirigindo-se para a livraria, onde esperava encontrar Humberto.

A cada passo sentia vertigens, mas animava-a a esperança de ir vêr e ouvir, o amante querido.

Sentia-se loucamente feliz.

Quando ia correr o reposteiro, deteve-se, contrariada.

Ouvira a voz de Fernando, perguntar:

-- Partes ámanhã?

-- A’manhã! -- murmurou a joven.

O coração confrangeu-se-lhe, dolorosamente, ao ouvir Humberto, responder alegremente:

-- E’ verdade! conto fazer uma das mais bellas viagens da minha vida.

-- E não levas saudades! -- censurou Fernando.

-- Levo. Mas isso, é mais um encanto. Tu sabes: o charuto não deve fumar-se até ao fim, e, para nos sentirmos bem dispostos, apoz á refeição é necessário conservar um pouco de appetite. Assim, a mulher, Fernando. Para que conservemos della uma boa impressão, não nos devemos saturar. Não é bom exgotar o desejo. Quando o rompimento é devido á saciedade, não imaginas a penosa recordação que nos deixa uma ligação, por mais enebriante que tenha sido. Nada mais desconsoladôr. Fica-nos, apenas, a lembrança do allivio experimentado ao recuperarmos a liberdade, e perdemos a recordação das horas felizes.

-- Receio bem, -- disse Fernando, -- que a condessa não tenha o teu modo de pensar.

-- Oh! embora chore um dia, ou dois, ao terceiro estarei esquecido. E é caso para felicitar-te, porque és tu o mais cotado, e serás, em breve, o meu successor.

A exclamação indignada de Fernando, cobriu o gemido que dos labios de Marina se escapára.

-- Porque te indignas? -- proseguiu Humberto, -- pois tu julgas que Marina se conservará fiel á minha memória? Tu não conheces as mulheres, meu visionario! só a mulher, que, por um acaso excepcional, teve o primeiro amante depois dos trinta annos, só essa, entendes? e nem sempre, -- póde ter na vida uma queda unica. Mas aquella que, como Marina, teve o primeiro amante aos vinte annos, quando chegar aos trinta, contam-se-lhe ás duzias.

-- Humberto! -- disse Fernando, em tom firme, -- peço-te para não continuares.

-- Oh meu pateta! -- exclamou Humberto com verdadeiro dó. -- receio bem que só colhas o fructo, depois das abelhas lhe terem sugado todo o mel.

Fernando avançou para Humberto, e pallido, disse, em tom que não admittia duvida:

-- Eu nunca pensei, entendes tu? em ser amante da condessa de Miramar.

-- Nem mesmo hoje? insistiu Humberto.

-- Hoje como hontem, o meu coração é o mesmo, e o meu respeito profundo! -- respondeu Fernando, cuja voz revelava immensa adoração.

Humberto fitou o joven medico, durante alguns minutos.

Depois, deixando o tom mordente, disse com sincera admiração:

-- E’s uma grande alma!

Hirta, gelada, Marina tudo ouvira.

Parecêra-lhe, por momentos, sucumbir ao excesso da dôr, e da vergonha.

Cambaleante, retomou o caminho do seu quarto.

Ao chegar alli, ergueu os olhos, e os braços, para o grande Christo, em marfim, e, num grito de suprêma dôr:

-- Perdão! Perdão!

Horas depois declarava se a febre, violenta, assustadora, e as angustias, já esquecidas voltavam cruciantes e persistentes.

XVII

Aquella recahida, inexplicavel para todos, a todos surprehendeu e alarmou.

O conde, atnbuindo-a á emoção produzida pela sua visita, estava desesperado, e recusava entrar no quarto, onde Marina se debatia contra a morte.

Durante os primeiros dias, não foi possivel convencê-lo, a ir vêr a doente.

Foi necessário repetir-lhe, por mais de uma vez, as palavras de Marina, insistindo pela sua visita, para que elle se resolvesse a ir vê-la.

A condessa estava no leito, encostada a grandes almofadões, e, ao olha-la, o conde abafou um grito de dolorosa surpreza.

Os lindos cabellos de Marina, estavam completamente brancos.

Ella sorriu, docemente, ao notar a surpreza do marido e fez um gesto, convidando-o a approximar-se.

E ficou-se a olha lo, com os seus admiraveis olhos, cujo extranho brilho era velado por funda tristeza.

Não falava. Cansava-a ter de formular a mais pequena phrase. Respondia com o gesto, ou com um volver de olhos, ao que lhe diziam.

A sua belleza desapparecêra, por completo. As faces cavadas, os lábios sem côr, as mãos de cêra, e toda ella tão frágil, tão diaphana, que dava a impressão de bastar tocar-lhe, para despedaça-la.

Agora, o conde, vinha regularmente visita-la, todas as tardes, e, cada dia se retirava, mais desanimado. Se a belleza de Marina, não voltasse?

Porque, triste é dize-lo, perante esse quasi esqueleto, o amor do conde extinguia-se, rapidamente.

-- Fiz tolice em casar-me, -- pensava.

Em dezembro, a condessa dava o primeiro passeio, na varanda envidraçada, encostando-se ao braço de Martha.

As forças voltavam, mas o olhar conservava a expressão de infinita tristeza, os labios não sorriam, as faces conservavam-se pallidas, cavadas.

Humberto partira.

O conde viu-o partir, com inveja.

Se não fôsse por parecer indelicado, abandonar a mulher, ainda tão fraca, teria partido com o sobrinho.

Para desforrar-se, passou a ir diariamente a Lisboa.

Depois ficou por lá um dia... depois trez dias... depois uma semana... Quando regressava, ao tentar desculpar-se, Marina interrompia-o, dizendo, docemente;

-- Mas, meu amigo, eu acho bem, e perfeitamente natural, que procures distrahir-te.

E, como elle um dia lhe falasse em Pariz, com evidente desejo de alli voltar, ella aconselhou o a que satisfizesse a sua vontade. Em Março, ou em Abril, ella iria reunir-se-lhe, e fariam, então, uma encantadora viagem.

Elle acceitou logo o conselho, e poucos dias depois, partia a juntar-se com Humberto, retomando, com elle, a antiga vida de prazeres.

Em Março morria o pae de Marina.

A joven poude permanecer na Soledade, sob o pretexto de luto.

Estava completamente restabelecida, ás faces voltára a côr, e a avelludada frescura. Mas não sentia desejos de ir reunir-se ao marido, aterrada pelo pensamento de ter de defrontar-se diariamente, com Humberto.

Entretanto, em Pariz, o conde gastava as ultimas forças.

Uma noite, apoz uma ceia, que terminára ao alvorecer, sentiu-se, subitamente indisposto. Chamou um fiacre, e fez-se conduzir ao hotel.

Mas, chegado alli, o cocheiro esperou, em vão, vêr sahir o freguez, e, ao abrir a portinhola deu com um cadaver.

Prevenido, Humberto telegraphou para Lisboa, noticiando a triste nova, e prevenindo de que o cadaver viria para Lisboa, onde o conde de Miramar descansaria, ao lado dos seus antepassados.

Humberto acompanhou o corpo, perguntando, de si para si, que surprezas lhe reservaria o testamento, que ia ser lido á sua chegada.

Foi para a cerimonia da abertura do testamento, a que também assistiram os Lunas, e os Sande, que Humberto e Marina, se encontraram, pela primeira vez, depois do drama.

E elle, que pelo retrato feito pelo tio, esperava encontra-la, perfeitamente fanada, ficou maravilhado, ao vê-la tão formosa, envolta nos crépes de viuva, com o rosto juvenil emmoldurado pelos bandós côr de neve.

Procurou encontrar os seus olhos, mas baixou as palpebras, ao lêr, nesses lindíssimos olhos, côr das aguas marinhas, o mais absoluto desprezo.

O notário, leu, pausadamente o testamento, em que o conde de Miramar legava a Marina, toda a sua fortuna, pedindo-lhe para dar ao sobrinho, uma pensão, annual de 600$000 réis.

Um grande rancôr, pelo morto, invadiu o coração de Humberto, cujo rosto conservou a mesma calma dignidade.

Mas estremeceu, ao ouvir a voz de Marina, dizer:

-- Meu marido, na cegueira do affecto que me consagrava, foi injusto. E’ meu desejo emendar quanto possivel, essa injustiça. Senhor Mendes, desejo que metade da fortuna que pertenceu a meu marido, passe a ser propriedade de seu sobrinho, Humberto de Cadaval, aqui presente.

Houve, na assistencia, um movimento de sympathia.

O notário entendeu dever lembrar, deixar isso, para depois de mais maduramente reflectido.

-- Já reflecti, -- insistiu Marina em tom firme. -- E desejo que tudo fique liquidado, hoje mesmo.

E como Humberto, dirigindo-se para ella, balbuciasse palavras de reconhecimento, ella teve um gesto de repulsão, logo dominado.

Em tom frio e altivo, respondeu:

-- Nada tem a agradecer-me. Reparo uma injustiça. E’ o meu dever.

O notário concluía o auto de doação, Marina assignou, bem como as testemunhas.

Ao deixar o palacete Humberto perguntava a si proprio, qual seria o sentimento que dictára, a Marina, esse acto de generosidade.

-- Será, ainda, um resto de amor? Mas o seu olhar revelava despreso. Ora adeus! Estou riquissimo ! E’ o que verdadeiramente me interessa! A vida é boa! Gozemo-la!

Entretanto, livres de importunos, os amigos de Marina, rodeavam-na, elogiando a sua generosidade.

-- Oh! -- disse a joven, -- ter-lhe-hia cedido, de bom grado, toda a fortuna, se não fossem os encargos do Asylo e dos novos melhoramentos que tenho em mente. E’ preciso pensar no quinhão dos infelizes, aos quaes vou dedicar-me, de hoje em deante.

E voltando-se para Fernando:

-- A semente levou tempo a germinar, meu amigo. O terreno era muito ingrato. Não é aos mimosos da sorte, que se deve pedir, que pensem nos desgraçados... E’ necessario ter soffrido, e ter chorado, para comprehender o soffrimento dos outros, quando se não tem uma alma como a sua, dr. Fernando.

E, envolvendo-os, a todos, num olhar de reconhecimento affectuoso:

-- Ninguem possue, como eu, tão valioso quinhão de affeições. Ainda continuo a ser uma priveligiada da sorte.

-- E agora, que tenciona fazer, condessa Marina? -- perguntou Luna.

-- Primeiro que tudo deixar esse titulo. Depois, irei para as Madresilvas, onde Martha me cede hospitalidade, até eu poder, pôr em ordem a minha vida. Se soubessem a necessidade que sinto, de não pensar!

XVIII

Os acontecimentos, na vida de Marina, haviam-se precipitado, de tal forma, os golpes haviam sido tão seguidos, que a joven permaneceu numa especie de aniquillamento, durante os primeiros mezes de viuvez.

Martha, Paulo, e as creanças rodeavam-na de affecto delicado, deixando-a isolar-se, comprehendendo e respeitando, o estado da sua alma.

Só passados quatro mezes, Marina se encontrou em estado de encarar, de frente, a situação.

A sua alma estava morta, para tudo quanto fossem alegrias. Só poderia reflectir as alegrias dos entes queridos.

O cynismo do homem, por quem se perdêra, crestára-lhe todas as illusões.

O afastamento do marido, ao vê-la doente e fanada, as suas relações affectuosas, com o sobrinho, depois do drama, em que ella ia sendo victima, surprehendêra-a dolorosamente, e acabára por inspirar-lhe nôjo.

A morte do marido, não lhe déra desgosto. Antes sentira desejo de agradecer á Providencia, have-la libertado dessa cadeia de ignominia.

Resolveu dedicar-se, por completo, aos infelizes.

Comprou, perto das Madresilvas, uma pequena casa, cercada por um terreno inculto, de que se propunha fazer um jardim, querendo ter sempre flôres, em volta de si.

Seria a villa das Violetas.

A Soledade foi aproveitada para hospital.

Era o hospital Fernando.

Fôra o mancebo que lhe talhára as lindas azas de anjo da aldeia, em que ella hoje se ia transformar.

Vendeu, não só a sua casa em Lisboa, com tudo quanto continha, como todas as suas joias, nada querendo conservar, que lhe recordasse o passado.

Martha censurára-lhe o exagero, mas cedêra perante a firme vontade da amiga.

Luiza de Luna, também não concordava, com as ideas de Marina, mas esperava vê-la, com o tempo, cansar-se da vida monotona da aldeia, e voltar a ser a radiosa Marina, que toda Lisboa admirára.

E, quando, em seguida ao seu enlace veiu despedir-se de Marina, antes de encetar a viagem ao estrangeiro, disse-lhe, abraçando-a:

--Tenho esperança, de, no meu regresso, te encontrar mais rasoavel. E’s ainda muito nova, para renunciares a todos os prazeres da vida.

Marina limitára-se a sorrir, com amargura.

O primeiro anno passou.

Chegou a Fernando a vez de auzentar-se de Portugal

O mancebo, acceitára uma missão scientifica, que devia durar alguns annos, para ceder aos desejos do pae, sobresaltado pela crescente paixão, que elle dedicava a Marina.

-- Partirei, meu pae. Tudo farei, para esquecer Marina. Mas, se apezar da auzencia o meu amor continuar o mesmo, promette deixar-me voltar a Portugal e ir, como medico da aldeia, auxiliar Marina, na sua grande obra de philanthropia?

-- Meu filho, -- respondeu Luna, que não queria, com uma promessa, alimentar a esperança -- o futuro pertence a Deus. Trabalha, estuda, tenta esquecer, deve ser este, por agora o teu unico fim.

E Fernando partira, saudoso e triste.

Entretanto, Marina proseguia na sua obra, vigiando as escolas, substituindo, ás vezes uma ou outra professora, sentindo prazer em despertar essas intelligencias infantis.

O Asylo tomava-lhe muito tempo, e Martha voltava a censurar o amigo, receando vê-la cansar, nessa febre de caridade de que se deixára possuir.

E o tempo corria.

Os annos passavam.

Nesse inverno uma epidemia de typhos encheu de doentes, os vastos salões da Soledade, transformados em enfermarias.

Marina foi sublime, percorrendo, diariamente, as enfermarias, levando aos desgraçados o balsamo da sua palavra.

E, quando os via, esquecidos do seu soffrimento, ao ouvirem-lhe a vóz, ao contemplarem-lhe o rosto formosissimo, ella sentia-se menos infeliz, lembrando as palavras de Fernando:

-- Penso, que se quisésse, parar á beira de cada leito, dirigir a cada doente uma palavra, ou apenas um sorriso, penso que isso bastaria, para ajudar-nos a salvar muitos.

Tinha razão o joven medico.

A visita de Marina, era desejada, anciosamente, por todos os enfermos.

Ella chegava, toda vestida de branco, saudando-os, desde a entrada, com um sorriso de affectuoso carinho, avançava, leve e graciosa, parando em cada leito, compondo a roupa a um, o travesseiro a outro, ministrando um remedio, applicando uma compressa, e era como um raio de sol, dourando toda a enfermaria.

Entretanto a epidemia decrescia.

A primavera trazia de novo, á aldeia, o seu aspecto garrido e sadio.

E, no jardim da sua pequenina casa, em que as violetas floriam a esmo, e a que as roseiras começavam dando uma nota alegre, Marina dizia, para Martha:

-- Mas vês, querida, que tratei os meus doentes, e não cahi enferma? Agora creio, firmemente, ser esta a minha missão, na terra. Faltava-me o baptismo da dôr, e fui busca-lo, onde esperava encontrar só alegrias!

-- Sim, minha querida Marina, mas tu tens apenas vinte e seis annos. Não achas cedo para renunciar á mais nobre missão da mulher?

-- E que outra póde haver, mais nobre, mais bella, do que a minha?

-- A de esposa e mãe! -- replicou Martha.

Marina empallideceu.

O rosto tomou a expressão amargurada, dos primeiros tempos da sua desdita.

-- Oh! Martha! Para que falas assim?

A que foi esposa do conde de Miramar e amante de Humberto Cadaval, não pode aspirar ao nome de um homem honesto. A felicidade não pode existir, para mim. O meu coração está morto.

-- E’s uma exagerada. O passado morreu, e está bem enterrado. E’ tempo de encarar, confiante, o futuro. Das bençans de tanto infeliz ha de Deus tecer uma grinalda que, nas suas mãos se mudará em alegrias para ti, minha querida Marina.

-- Se as bençans dos desgraçados, se mudam em sorrisos, nas mãos de Deus, que Elle me conceda a alegria de vêr felizes aquelles que, na desventura me teem sido, amparo e conforto.

-- Sim, mas alguém existe no mundo, cuja ventura depende da tua, minha louquinha. E esse alguem bem merece que lhe cedas, emfim, a felicidade a que tem direito.

Marina teve um gesto de saudade:

-- Esse alguem ha cinco annos que está longe... Deve ter-me esquecido... e devo desejar que assim seja.

Com um gesto brusco, enxugou as lagrimas.

Martha sorriu e beijou a amiga.

Pouco depois deixava-a.

Marina dirigiu-se para o Asylo.

A conversa com Martha, entristecêra-a. Porque lhe falara ella em tal assumpto? Para que evocára a visão de um futuro impossivel?

Fernando!

A adoração, o culto, que Marina lhe consagrava!

Como era diverso de todos os outros sentimentos!

Mas podia elle esquecer a sua falta?

Não!

Não havia lagrimas, não havia arrependidimento, que fizessem apagar essa nodoa.

Demorou-se no Asylo.

Sentia-se bem, entre aquelle bando de creanças alegres e meigas.

Quando regressou a casa, era noite.

-- Está na sala alguem, á espera da senhora, -- disse a velha creada.

-- Não disse quem era? Não conheceu, Isabel?

-- Disse que esperava, que não era necessário dar o nome.

Surprehendida, a joven dirigiu-se para a sala.

Ao abrir a porta, soltou um grito de alegria:

-- Dr. Fernando!

XIX

Era effectivamente o mancebo, que regressava, inesperadamente a Portugal, louco de saudades, cada vez mais enamorado.

Ao vê-lo, o pae, leu-lhe no olhar a febre e abraçando-o, com ternura, disse:

-- Meu Fernando, se Marina de Lemos quizer ser tua mulher, adora-la-hei como filha.

E cheio de amor e de fé, o mancebo partiu para a aldeia não se fazendo annunciar, para que a surpreza lhe permittisse ler no coração de Marina.

Ficára muito bem impressionado, ao entrar na sala, tão alegre, tão singela, sem nada que recordasse o passado.

E, quando Marina entrou, estendendo-lhe as mãos, num gesto de alegria e de affecto, elle sentiu a esperança illuminar-lhe o coração.

Beijou as mãos que se lhe estendiam, e ficou-se a olha-la, encantado de a ver tão bella, tão louçã, tão fresca, no seu vestido de fustão branco, os dedos sem aneis, as orelhas sem brincos.

E ella, não retirava as mãos, contemplando-o, feliz, trahindo a alegria de tornar a vê-lo, no olhar illuminado e no sorriso acariciador.

-- Amigo querido! -- murmurou, desprendendo as mãos, e sentando-se no sophá, em que lhe deu logar. Que boa surpreza, e como estou feliz, ao vê-lo aqui? Diga-me quando chegou, o que fez durante esta longa auzencia? Conte-me tudo: estudos, impressões, e até aventuras, se as tem. Quero saber tudo, tudo!

E fitava-o, risonha.

-- Como está formosa! -- murmurou elle, extasiado.

Ella riu.

-- Responde, exactamente, ao que lhe não perguntei. Mas, agrada-me muito mais ser bonita, do que feia. Não é por vaidade, sabe? é uma questão de arte, e também um habito.

Elle sorria, vendo-a tão simples e tão despretenciosa, quasi admittindo que fôsse por méro sentimento artistico, que ella apreciasse ser bella.

-- Quer então que lhe diga, o que fiz, durante estes cinco annos? Tentei esquece-la... Em vão. Amo-a, hoje, mais do que nunca. Voltei a Portugal, porque me sentia enlouquecer de saudade. Cheguei hontem, e eis-me hoje aqui, renovando todos os meus protestos de amor, entregando-lhe o meu pobre coração amante e saudoso. Pode esmaga-lo, não conseguirá arrancar-lhe o seu nome, pode fazer delle um joguete não lhe ouvirá um queixume. Nunca pulsou por outra, nunca teve outro jugo, que não fôsse o seu.

E de repente, retomando as mãos da joven, que se conservava pensativa e grave:

-- Marina... odeia-me assim... a ponto de deixa-la indifferente, tanta adoração... tanta dôr? Não terá, para mim, um pouco de caridade?

-- Oh Fernando! se soubesse como desejaria ve-lo feliz! Mas a sua ventura, nunca pode vir de mim, meu amigo.

-- Porque? Porque ? Só por si posso ser feliz, Marina... diga, que um dia virá em que me cederá, sem reluctancia, esta mão, que nas minhas aperto!

Ella estremeceu violentamente.

-- Fernando... é uma loucura!

-- Não é! Olhe para mim, leia nos meus olhos toda a lealdade do meu amor... deixe me ler, nos seus, a esperança, Marina!

Ella ergueu para elle o olhar resplandecente de amor, de adoração, de profundo reconhecimento.

Elle soltou um grito, e levou, aos labios, a mão que nas suas conservára.

De mãos entrelaçadas, conversaram longamente, como dois namorados, como dois amigos...

Martha disséra bem.

O passado estava morto.

No jardim, que as violetas perfumavam, e as rosas floriam, conversavam Luiza, Martha, Marina, Paulo, Fernando, Carlos, e o velho Luna.

As creanças brincavam, descuidadas, entre os canteiros em flor.

-- Agora -- disse Martha sorrindo -- já ambos comprehendem o encanto de um lar modesto, quando o amor o perfuma.

-- Ah sim, minha boa Martha,-- disse Marina, chegando ao seio, o filho mais novo, e envolvendo o marido, num longo olhar de ternura, -- ensinaste-nos o segredo das alegrias serenas.