Os miseráveis da aristocracia: Edição para o ELTeC Romance social contemporâneo Varela, A.J. Pereira (?-1878) Criação do HTML original Inês Lucas Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 134544 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Os miseraveis da aristocracia : romance social contemporaneo A. J. Pereira Varela Biblioteca Nacional de Portugal Os miseraveis da aristocracia : romance social contemporaneo A. Varela Escriptorio da Sociedade Editora Lisboa 1864

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OS MISERAVEIS

DA

ARISTOCRACIA

ROMANCE SOCIAL CONTEMPORANEO

POR

A. VARELA

G. & G.

VOLUME I

LISBOA

Escriptorio da Sociedade Editora

38, rua dos Gallegos, 38

1864

JOSÉ PEREIRA, O DEMOCRATA

I

Em 1850, vivia em Lisboa um mancebo de dezoito annos, chamado José Pereira, em companhia de seus paes, pobres anciãos desprotegidos da fortuna. O pae, que n’esta epocha contava sessenta annos, havia assistido aos combates do Bussaco, Vimeiro e Roussilhão, como simples soldado voluntario, movido unicamente pelo amor da liberdade patria, e odio ao jugo oppressor do grande contra o pequeno.

A recompensa dada a este heroe, defensor da sua patria, por todos os governos, desde 1820 até 1850, foi a que teem tido muitos heroes, quer com a espada ou com a penna, o menospreço e a desprotecção.

O pae de José Pereira requereu uma vez um mesquinho emprego; zombaram cynicamentc com elle e disseram-lhe que fosse oppositor a um concurso. Elle assim o fez, porêm ficou preterido, como muitos outros o teemsido injustamente, por já estar dado o logar quando seprocedeu ao concurso. Desilludido e amargurado, por sevêr sem posição social, porque os serviços á patria lhe haviam obstado a que completasse a arte de relojoeiro, que começára a aprender, o pobre homem, sem soltar uma queixa contra os seus tyrannos, não pediu mais nada ao governo, e começou a trabalhar incessantemente, leccionando inslrucção primaria, para alimentar sua esposa e seu filho.

José Pereira nasceu pois do seio da pobreza, e assim viveu até á idade de dezoito annos, sendo educado e instruido por seu pae, o qual não quiz mandal-o aprender um officio por se persuadir, pela viveza e intelligenciaque o filho demonstrava, que poderia sobresahir no futuro á sorte do pobre operario, que sempre vive apoquentado e mesquinhamente. O mancebo, dotado de bondoso caracter, sempre foi grato aos paes, e na epocha que descrevemos, já elle os ajudava com o pequeno producto de copias de comedias que tirava para os theatros. Porêm uma grande desgraça e desgosto o feriram repentinamente: seu pae morreu, e um mez depois falleceu tambem sua mãe.

O pobre orphão, oppresso de magoa e desgraça, viu-se obrigado a pedir protecção a um tio materno, o Conselheiro M***, o qual, pela sua posição aristocratica, nunca quizera relacionar-se com os paes de José Pereira. Dirigiu pois a seguinte carta ao tio:

«Meu tio:

«Muito estimo que Vossa Excellencia goze do perfeita saude e venturas, assim como quanto lhe diz respeito.

«Com a morte de meus queridos e infelizes paes fiquei duplicadamente desgraçado; privado da sua amizade e protecção. Vossa Excellencia bem sabe que viviamos em commum, e que nos ajudavamos mutuamente; meu pae com os seus pequenos proventos das lições, minha mãe com o producto da sua costura, e eu... com o meu incerto ganho de copista. Já vê Vossa Excellencia que de ora ávante me será impossivel subsistir e conservar decencia no vestuario, tencionando seguir vida hon’esta, e não tendo alguem que me ampare e proteja: peço, portanto, a Vossa Excellencia, se me recolhe por caridade a um canto da sua casa, no seio da sua nobre familia, por algum tempo, emquanto eu procuro algum meio pelo qual possa viver. Peço me recommende a minha tia.

«Sou com toda a consideração, seu sobrinho, servo e muito obrigado antecipadamente:

JOSÉ PEREIRA

S. C. Rua da Condeça,

nº20, 3º andar; 12 de

dezembro de 1850.

Esta carta enviou elle a seu tio, não se atrevendo a procural-o pessoalmente no seu palacio, por vergonha e receio de não ser bem accolhido.

No dia seguinte áquelle em que mandou a carta, recebeu, pelo correio, a seguinte de seu tio:

«Meu sobrinho:

«Sinto os seus incommodos. Consultando a opinião de sua tia a respeito do que você me pede, não duvido admittil-o em minha casa; porêm sob a condição, por conveniencias sociaes, de que será considerado como um hospede meu, e não parente. Comprehende? Não me chame seu tio. Póde vir quando lhe aprouver, que muito prazer dará ao

seu tio e amigo

«Luiz M***»

José Pereira sentiu-se vexado, e revoltou-se com a recommendação de seu tio, fazendo tenção, quando acabou de ler a carta, de não aceitar o que pedira; porêm, reflectindo depois, preferiu o abrigo d'um parente que sabia a sua triste posição, embora se envergonhasse em chamar-lhe sobrinho, a ir pedir a algum amigo seu, o que havia implorado a seu tio, dando-lhe d’este modo a conhecer o que ignorava. Decidiu, portanto, aproveitar-se da amarga caridade do Conselheiro M***, entrando em sua casa a 15 de dezembro de 1850.

II

O Conselheiro M*** habitava uma bella casa na rua do Alecrim, tinha quarenta annos, era casado com a filha do Barão de ***, senhora de trinta e dois annos, e que possuia uma fortuna de quarenta contos. Era muito economico; o pessoal de sua casa compunha-se simplesmente de duas criadas e um criado. Não tinha carruagem e raras vezes ia ao theatro. Dava partidas em casa, porque tanto elle como a mulher gostavam muito do jogo, e de nenhum qualquer outro divertimento. Alem das pessoas que citámos, tinha em sua companhia uma joven de dezeseis annos, orphã, filha d’um negociante portuguez, a qual possuia uma forluna de oitenta contos, e era sua pupilla.

José Pereira entrou pois em casa de seu tio, sendo ali recebido friamente, ainda que com uma bonhomia apparente e um aperto de mão do Conselheiro, o qual, analysando-o dos pés á cabeça, e vendo que ia decentemente vestido, lhe disse com um sorriso protector, levantando a voz para ser ouvido de dois amigos, o Visconde de *** e o Barão de * **, que se achavam n’essa occasião em casa do Conselheiro:

-- Já hontem o esperavamos, senhor Pereira; o seu quarto está prompto, póde transportar para lá o seu bahu.

E indicou ao moço de fretes, que levava o bahu de José Pereira, uma porta que dava para o interior da casa, dizendo a este, que estava immovel:

-- Vá com o moço; não faça ceremonia, nem se constranja.

Depois de José Pereira sair da sala, o Conselheiro, dirigindo-se aos dois amigos:

-- É um pobre rapaz, lhes disse, orphão de pae e mãe, que recolhi por caridade em minha casa, e... quero vêr se o emprégo.

-- Vossa Excellencia é demasiadamente bondoso, disse o Visconde; talvez ainda se arrependa por exercer tão bem a caridade.

-- É nobre? perguntou o Barão.

-- Coitado! respondeu o Conselheiro em tom de lastima; é filho d’um mestre eschola, homem de baixa esphera, que foi n’outro tempo soldado de linha.

-- Oh! Conselheiro, atalhou o Visconde; lastimo deveras Vossa Excellencia, agora que sei que o rapaz é filho do povo. Presentemente os fidalgos e os nobres não podem nem devem dispensar obzequios á classe baixa, porque nos querem dar leis, os mesquinhos, e julgam-se iguaes a nós. Não acha, Barão?

-- N’outro tempo ainda se podia fazer bem aos villões, quando estes nos temiam, respondeu o interrogado, porêm hoje, que não podemos castigar a sua insolencia, devemos, pelo menos, tirar a nossa desforra, não os protegendo, e odiando-os.

A conversação continuou n’este sentido na sala do Conselheiro M*** até irem todos, visitas e donos da casa, para a meza de jogo.

José Pereira, depois de installado em casa de seu tio, vivia apoquentado por vêr que o tempo ia passando, que elle não podéra ainda arranjar qualquer occupação d’onde tirasse proventos certos, e que seus tios o encarregavam constantemente de commissões; elle de levar officios, e mesmo d’alguns recados, quando o criado estava fóra, e ella de bilhetes para as suas amigas e convites aos parceiros nos dias de partida, fazendo-lhes o serviço de criado, sem salario. o que lhe minorava porêm as magoas, por se vêr só no mundo, e sem posição, era a voz de D. Julia, a pupilla de seu tio, quando se assentava ao piano e cantava, acompanhando-se. Esta joven era dotada pela natureza, d’um rosto, senão lindo no todo, ao menos muito regular e sympathico. Tinha uma expressão nos olhos, de todas as feições a mais bella, que indicava ao mesmo tempo intelligencia e bondade; era instruida; sabia a sua lingua, a historia e a choropraphia do seu paiz, arithmelica, francez, italiano, musica, desenho, e tocava piano com alguma maestria. Alem d’isto, possuia uma voz de soprano, afinada, e de tão agradavel timbre, que arrebatava quem a ouvia.

José Pereira, ouvindo pois a voz da erudita joven, não foi invulneravel ao seu encanto. Pela primeira vez, pareceu-lhe um sonho, depois uma feliz realidade. A ambição porêm, que não tem limites, começou a não o satisfazer em só ouvir cantar a donzella. Desejou vêl-a perto de si, por muito tempo, conversar com ella e appreciar-lhe os dotes do espirito; coisa que elle ainda não podéra gozar, como gozára o canto, desde que entrára em casa de seu tio.

-- Não poder, dizia elle comsigo, relacionar-me com D. Julia, dizer-lhe que o Conselheiro é meu tio! Viver condemnado a ser um humilde servo n’esta casa, quando, se meu tio quizesse, podia empregar-me, publica ou particularmente, mesmo com um mesquinho salario! Ao menos não seria considerado criado de servir, quando tenho alguma instrucção e podia ainda adquirir mais, estudando, se ao menos me deixassem. Oh! meu Deus! que martyrio e que infortunio!

III

Assim decorriam os mezes, e havia perto d’um anno que José Pereira estava em casa do Conselheiro, sem ainda ter encontrado as suas fallas com D. Julia, porque esta, quando saía do seu quarto, ia, ou para a sala, local onde elle não se atrevia a entrar, por acanhamento, para a casa de jantar, onde elle tambem não entrava, pois que comia na cozinha com os criados, ou para a rua a passeiar com a mulher do Conselheiro, onde, da mesma fórma, não a podia seguir. Elle notára por mais d’uma vez que D. Julia, quando o encontrava de passagem n’alguma casa, o cortejava com benevolencia, e José Pereira ainda notou mais: que o examinára um dia rapidamente durante o comprimento, e que desde então,o que era muito lisonjeiro para José Pereira, lhe dispensára comprimentos mais affaveis e olhares mais prolongados.

Era já completo um anno desde que José Pereira fôra para casa de seu tio, e uma tarde, depois de jantar, que o Conselheiro estava na sala com sua mulher, recebendo uns diplomatas inglezes, servindo-lhe esta de interprete, porque o Conselheiro M*** não sabia o inglez, entrou na cozinha D. Julia, e dirigindo-se á criada, disse-lhe:

-- O João já trouxe aquella musica que eu comprei no Sasseti?

-- Ainda não, menina, respondeu a criada, creio que se esqueceu, mas eu logo, quando elle vier do chafariz, o obrigarei a ir buscar-lh’a.

-- Quem sabe a que horas elle virá, disse D. Julia, e se o armazem já estará fechado. Precisava tanto hoje d’aquellas peças para as estudar...

-- O João vem cedo, atalhou a criada, não ha hoje carreira, e então não se demora.

José Pereira entrou n’este momento na cozinha para perguntar á criada se o Conselheiro a encarregára d’alguma commissão para elle. Seu tio costumava encarregar os criados de lhe transmittirem as incumbencias ou darem-lhe as cartas que devia entregar. Procurava sempre evitar o contacto com o sobrinho.

José Pereira entrou pois, como dissemos, na cozinha, porêm ao vêr D. Julia, parou confuso e ficou immovel e cabisbaixo, sentindo violentas e variadas commoções que o opprimiram e alegraram ao mesmo tempo. A criada, porêm, tirou-o d’este horrivel combate e embaraço. Vendo-o entrar, exclamou alegremente, dirigindo-se a D. Julia e indigitando José Pereira:

-- Ora ahi tem a menina Julia quem lhe vai buscar a tal musica, é o senhor Pereira.

D. Julia, subindo-lhe o rubor ás faces, depois de comprimentar cortezmente o mancebo, disse em tom aspero á criada, envergonhada pela grosseria que esta commettêra para com José Pereira:

-- Porêm este senhor não é meu criado, é hospede do senhor Conselheiro, e estou convencida de que seu amo teria grande desgosto se ouvisse a sua insolente proposta.

-- Mas, minha senhora, acudiu a serva perturbada, como este senhor faz os recados ao senhor Conselheiro, eu julguei...

-- Os recados! atalhou D. Julia attonita e cada vez mais vexada, tanto pela phrase da criada, como por vêr a horrivel perturbação e pallidez de José Pereira, as quaes descobriam quanto estava solTrendo. Os recados! é impossivel! Senhor Pereira, continuou, dirigindo-se ao mancebo, peço-lhe que desculpe aquella rapariga que, de certo, ou perdeu o juizo, ou escolheu um pessimo gracejo.

-- Oh! minha senhora!... balbuciou José Pereira.

N’este momento abriu-se o reposteiro da sala, e o Conselheiro, atravessando um corredor que dava communicação para a cozinha, entrou n’esta. Ficou, porêm, contrariado vendo D. Julia e José Pereira juntos. Observou por um momento sua pupilla, e depois perguntou-lhe com voz affectuosa, na qual, comtudo, se conhecia a colera reprimida:

-- Oue fazia a menina na cozinha? precisa d’alguma coisa?

-- Vim, respondeu D. Julia, saber se o João já me trouxe a musica que comprámos hontem no Sassetti.

-- E então? continuou o Conselheiro, já a trouxe?

-- Disseram-me que não.

-- Oh seu Pereira: vá ao Sassetti, e diga-lhe que lhe entregue a musica que hontem lá comprei; disse o Conselheiro ao mancebo em tom aspero e de commando. De caminho, continuou elle, vá a casa do senhor Visconde de *** e traga a minha capa, que hontem me esqueceu lá.

E vendo que José Pereira ficára preplexo e não se movia:

-- Então, senhor, avia-se?! gritou-lhe encolerisado.

José Pereira, ouvindo o grito do Conselheiro, fez um movimento machinal, inclinou a cabeça e saiu.

-- A modo que este senhor, a quem dou casa, cama e meza por caridade, disse o Conselheiro dirigindo-se a D. Julia, quer ser absoluto e independente em minha casa, esquecendo que me implorou para eu o receber aqui, com a condição de ser meu criado particular, por se achar morrendo á fome. A menina ainda não sabia a sua condição, pois de contrario não se baixaria a estar em contacto e conversando com nm homem de filiação obscura, que não tem posição social...

D. Julia, commovida em extremo pelas deploraveis scenas que presenciára, ás quaes se attribuia innocentemente culpada, respondeu a seu tutor com voz sumida pela commoção:

-- Eu não sabia que aquelle sugeito era criado de Vossa Excellencia... julguei, pelas suas maneiras distinctas e delicadas...

-- Pois é um miseravel, atalhou o Conselheiro, a quem expulsarei de minha casa, se tiver outra vez a insolencia de me não obedecer logo, quando o mandar com pressa a cumprir alguma commissão.

Dizendo isto, saiu.

D. Julia retirou-se ao seu quarto, e, como era senhora intelligente, depois de meditar no que havia visto e ouvido, tirou por conclusão, que José Pereira era de certo uma victima de seu tutor, por qualquer extraordinario, e para ella mysterioso, acontecimento. Sentiu-se, por um presentimenlo estranho, impellida para o mancebo por uma singular sympathia e desejo de o proteger contra o Conselheiro. Tencionou, portanto, embora arrostasse a colera de seu tutor, procurar saber, se não toda, ao menos a parte da historia de José Pereira, que o obrigára a ser criado do Conselheiro.

-- É impossivel, dizia ella comsigo, que um mancebo, sendo criado, mostre a confusão e vexame, que eu notei no infeliz Pereira quando a criada e o Conselheiro o insultaram na minha presença. Sim, foram dois insultos: um lançado pela estupidez, e o outro pela maldade.

IV

Alguns dias depois das scenas que descrevemos, uma tarde em que José Pereira estava no seu quarto, meditando tristemente na sua vida, ouviu baterem-lhe á porta. Foi abrir, e encontrou a criada grave, que lhe disse em voz baixa e como em mysterio, que D. Julia estava na sala e lhe pedia o obzequio de ali se dirigir, não o incommodando, porque necessitava fallar-lhe.

José Pereira, admirado com tal noticia, dirigiu-se immediatamente á sala e ahi encontrou D. Julia, que o esperava assentada n’um sophá, a qual, ao vêl-o entrar e ficar parado respeitosamente longe d’ella depois de a comprimentar, disse-lhe affectuosamente:

-- Tem a bondade de se assentar, senhor Pereira?

E indicou-lhe com o gesto um sophá que estava proximo ao d’ella.

José Pereira, córando e empallidecendo alternativamente, respondeu-lhe perturbado:

-- Oh! minha senhora, pois Vossa Excellencia quer que eu?!... Porêm, o senhor Conselheiro póde zangar-se comigo e com Vossa Excellencia, e eu não quizera que por minha causa soffresse qualquer dissabor...

-- Nada receie a esse respeito, senhor Pereira, disse D. Julia; o Conselheiro saiu com a esposa, e eu aproveitei esta occasião para, em primeiro logar, pedir perdão ao senhor, das grosserias e insultos que meu tutor e a criada praticaram para com o senhor Pereira, tudo por minha causa, ainda que involuntariamente... Porêm, assente-se, por quem é, senhor Pereira... continuou ella com meiguice, vendo que o mancebo ainda se conservava de pé.

José Pereira assentou-se quasi machinalmente, movido pelo imperio d’aquella encantadora voz, e ia para fallar quando D. Julia, interrompendo-o graciosamente com o gesto, continuou:

-- E em segundo, pedir-lhe, me conte as razões que teve para se submetter, com tanta humildade, a ser n’esta casa o que me constou. Não posso acreditar que o senhor Pereira seja criado do Conselheiro. Peço desculpa, por ser tão ousada que queira penetrar a sua vida; porêm rogo-lhe que seja franco, porque pretendo protegel-o e livral-o de meu feroz tutor... se o senhor quizer aceitar a minha sincera protecção e amizade...

José Pereira ficou tão admirado e aturdido pelo que acabava de lhe propôr D. Julia, que, sem saber o que fazia, lançando-se de joelhos a seus pés, exclamou amorosa e apaixonadamente:

-- Oh! minha senhora! será possivel que Vossa Excellencia queira baixar-se a proteger um homem que não conhece?!... Oh! conceda-me que lhe beije as mãos...

-- Cuidado, senhor Pereira... disse a joven sorrindo-se; quem o visse n’essa posição poderia julgar que me faz uma declaração d’amor... e...

-- E se assim fosse, minha senhora, atalhou José Pereira, a quem as proposições de D. Julia haviam excitado a ardente paixão amorosa que de ha muito nutria em seu peito; se assim fosse, Vossa Excellencia perdoar-me-hia?...

D. Julia, perturbada por tão inesperada declaração, córou em extremo e, fazendo um exforço por se mostrar severa, disse ao mancebo:

-- Peço-lhe que se levante, senhor Pereira, porque essa posição póde comprometter-nos, e eu não quizera...

Depois, vendo que o mancebo executára o seu pedido, e que a contemplava em delicioso extasis, continuou, baixando os olhos e adoçando a voz:

-- Como o senhor disse ha pouco, eu ainda não o conheço...

-- E depois de contar a minha triste vida a Vossa Excellencia, aceitará o meu amor? perguntou José Pereira arquejante.

-- Talvez, continuou a joven depois d'uma leve hesitação.

José Pereira, ouvindo o bemaventurado «talvez,» que, pelo tom de D. Julia, se traduzia por um «sim,» esqueceu o incognito que promettêra a seu tio (e quem, no caso do mancebo, faria o contrario?), contando á joven a historia da sua vida.

D. Julia, depois de o ouvir, indignada pelo procedimento de seu tutor, disse ao mancebo:

-- Senhor Pereira, acredito que foi verdadeiro no que acaba de me contar, e portanto vou ser franca. Saiba que até agora sympathisava com o senhor; porêm, desde este momento, amo-o e quero fazer a sua fortuna, esposando-o, porque sou rica.

-- Oh! minha senhora, redarguiu José Pereira transportado, o que eu aprecio é o seu amor!

-- Acredito, respondeu D. Julia; porêm, deve tambem apreciar a minha fortuna, porque sem ella não poderiamos encetar a lucta em que vamos empenhar-nos. Oiça-me com attenção, continuou ella vendo que José Pereira se lhe apoderára d'uma das mãos e a estreitava amorosamente entre as suas sem parecer ouvil-a; oiça-me com attenção, para nos vêrmos livres brevemente do jugo de meu tutor. O senhor não póde ficar n’esta casa, depois dos insultos que tem recebido...

-- Diz muito bem! gritou o Conselheiro entrando na sala, e que ouvira as ultimas palavras da joven; a menina é quem lhe dictou a sentença.

E, dirigindo-se a José Pereira, furioso, vociferou, indigitando-lhe a porta:

-- Saia no mesmo instante de minha casa, infame seductor!

V

Eram já passados oito dias desde que José Pereira fôra expulso de casa de seu tio; e D. Julia, a quem a subita apparição do Conselheiro, a scena que presenciára entre este e o mancebo, e o aspero modo com que seu tutor a tratou, lhe fizeram perder os sentidos, ainda não a abandonára a febre ou o delirio, durante o qual, em orações desordenadas, chamava por José Pereira e por seu pae, pedindo-lhes soccorro contra seu tutor.

O medico que lhe assistia, lembrou ao Conselheiro que mandasse chamar o mancebo por quem a enferma clamava, accrescentando que não achava outro qualquer remedio para um delirio febril tão extenso e arreigado, e muito receiava que a joven fosse victima da febre, não a satisfazendo no que ella pedia delirante, n’algum momento em que o delirio a deixasse.

O Conselheiro ficou estupefacto e desesperado quando o medico lhe communicou similhante coisa. Elle não queria de modo algum aproximar da joven um mancebo que podia transtornar-lhe os seus planos; porque o Conselheiro pretendia não entregar D. Julia por esposa senão ao Visconde, o qual lhe promettêra, ultimando-se o consorcio, dar-lhe metade da fortuna da joven. Á vista, porêm, do que o medico avançára, e receiando que a pupilla fallecesse, rcsolveu-se a mandar chamar o sobrinho.

Indagou, pois, onde este parava e, sabendo que estava n’uma imprensa, como aprendiz de compositor, mandou-lhe uma carta, pedindo-lhe desculpa do modo por que o tratára e ao mesmo tempo que viesse a sua casa, pois era para seu interesse.

José Pereira recebeu a carta do tio; porêm o mancebo considerava-se tão aviltado e insultado pelo Conselheiro que, apezar de lhe constar que era para seu interesse, fez tenção de não voltar a casa de seu tio, mandando-lhe dizer com franqueza, por escripto, o motivo da sua recusa.

O mancebo havia recebido tão graves insultos de seu tio, do irmão de sua mãe, do homem que o devia proteger e amar como pae, que quasi odiava os fidalgos.

-- Oh! os grandes! os nobres!... dizia elle muitas vezes comsigo; como são soberbos e máus!... Que mal fiz eu a meu tio... eu que sempre o tratei com amor e respeito, e sempre procurei comportar-me dignamente em sua casa?... É verdade que aquelle desgraçado encontro, quando D. Julia me pediu a entrevista, fez desesperar o Conselheiro, obrigando-o a insultar-me; porêm, antes d’isso como me tratava elle em sua casa, tanto moral como physicamente?... Oh! nem o quero pensar! Porêm Julia, a quem eu amava fervorosamente e de quem era amado, que é feito d’ella? nunca mais a verei!...

E o desgraçado mancebo, quando chegava a este ponto das suas tristes recordações, se estava deitado, levantava-se e passava o resto da noite velando, sem poder conciliar o sonmo, se estava comendo, parava repentinamente e não podia engulir mais nada n’esse dia, e se estava na imprensa, ficava mudo e abstracto a ponto de ser admoestado pelo proto da officina por não prestar attenção aos trabalhos que devia aprender, e classificado em voz baixa de palerma, pelos companheiros.

José Pereira poucos progressos fazia, pois, na arte a que se dedicára, já pela aspereza de quem o ensinava, já pelas suas preoccupações d’espirito. O pobre mancebo, cada vez mais desgostoso da vida, por vêr como era acolhido pelos seus e pelos alheios, via-se reduzido á ultima extremidade; sem presente nem futuro certo que lhe promettesse viver com a decencia em que fôra educado. Nem sequer ganhava para se subsistir, porque, durante o tempo que esteve em casa de seu tio, perdêra o pouco lucro das copias de comedias, pois estava substituido já por outro copista.

Apezar porêm de, no dia em que recebeu a carta de seu tio, não ter ainda comido, por se lhe haver acabado o producto d’uns objectos seus, que vendêra para pagar um mez de renda d’uma agua-furtada onde estava habitando, e alimentar-se durante os oito dias desde que saíra de casa do Conselheiro, apezar d’isto o mancebo, como acima dissemos, respondeu a seu tio que não podia aceitar o convite.

O Conselheiro recebeu a carta do sobrinho e, depois de a ler, dirigindo-se a sua mulher e mostrando-lhe o escripto, disse-lhe:

-- Que lhe parece o orgulho e insolencia de meu sobrinho, e que remedio havemos de dar a isto?

-- Quem tem a culpa d'isso, respondeu ella, é o senhor, que o recebeu em casa e foi o motor da paixão que a pequena sente pelo vadio de seu sobrinho. O senhor não pensa o que faz... Que lhe disse eu quando consultou a minha opinião a esse respeito?... Quer que lh’o recorde?

-- Não precisa, atalhou o Conselheiro com máu modo; agora de que se trata é de como havemos cumprir o que o medico ordenou a respeito da doença de minha pupilla. O que havemos de fazer para obrigar o miseravel de meu sobrinho a vir aqui? Não se lembra d’algum meio?...

-- Pois o senhor, que é conselheiro... não sabe?... tornou-lhe ella rindo. Não tem uma idéa qualquer para uma coisa tão simples?...

-- Eu entendo que este caso é muito serio, continuou o Conselheiro, e que é occasião impropria para rir como a senhora está fazendo... Conhece perfeitamente que, se a pequena morrer... é uma duplicada ruina para nós... o meu descredito depois da liquidação da sua fortuna e a fallencia do seu casamento com o meu amigo Visconde... que não ultimará comigo o negocio que sabe.

Estas ultimas palavras foram ditas quasi em voz baixa, e depois de se certificar que estava a sós com a esposa.

-- Descance, tornou-lhe esta; em primeiro logar a pequena não morre, como diz o medico, se não tornar a vêr seu sobrinho. Nós, as mulheres, assim como facilmente nos apaixonâmos, com a mesma facilidade nos esquecemos do motivo da nossa paixão. O medico engana-se, porque, sem duvida, não estudou o coração feminino... é pouco physiologista o tal medico!

-- Porêm a febre e o delirio não a deixam... replicou o Conselheiro, e ha perigo...

-- Em segundo logar, continuou a mulher do Conselheiro, se a pequena for uma excepção, o que duvido, e se continuar a soffrer esses assustadores symptomas, ha um meio muito simples de fazer comparecer aqui seu sobrinho...

-- Qual é? atalhou o Conselheiro, o qual opinava acirradamente pelo segundo caso.

-- É mandar dizer-lhe a verdade, respondeu desdenhosamente a mulher do Conselheiro. Então julga que um miseravel pobretão, constando-lhe que uma menina rica o quer a seu lado, durante uma doença, ainda mesmo que elle a não ame e tenha sido muito insultado pelo dono da casa onde está essa menina, não correrá aqui immediatamente, pondo de parte e esquecendo todos os insultos recebidos?... O senhor escreveu-lhe um bilhete methaphorico, sem me consultar, dizendo-lhe que se tratava do interesse d’elle... elle não percebeu e por isso recusou. Participe-lhe a verdade e creia que hade vir. O Conselheiro deve distinguir d’ora ávante os negocios em que póde mentir, d’aquelles em que só deve fallar verdade... É certo que nós estamos tão costumados a mentir...

O Conselheiro, contentissimo, já não a ouvira, e correndo ao seu gabinete escreveu outra carta ao sobrinho, na qual lhe contava o que se estava passando em sua casa, e isto com a mais carregada verdade.

Quando terminou não poude deixar de exclamar:

-- Minha mulher sempre tem uma cabeça... que completamente offusca a minha!

Depois d’esta enthusiastica exclamação mandou a segunda carta ao sobrinho, recommendando ao criado que lh’a entregasse com a maior brevidade.

VI

A segunda carta do Conselheiro foi pois entregue a José Pereira, no mesmo dia, causando grande admiração na officina uma correspondencia tão activa e repetida.

Um typographo critico e commentador, chegou a fazer esta observação aos dois companheiros da direita e esquerda:

-- O granjola do caloiro é de certo algum redactor encoberto ou empregado na policia secreta!

-- São talvez cartas d’amores, respondeu um dos outros typographos.

-- Se o meu olho me não mente, accrescentou o terceiro rindo, o rapaz está relacionado com diversos fidalgos, e as cartas são convites para jantares, para soirées... Deixem estar que brevemente, por intervenção d’elle, seremos nós convidados para casa d’alguns fidalgos de moralidade duvidosa...

-- Só se for isso, atalharam os dois rindo.

José Pereira, depois de ler a segunda carta, dirigiu-se apressadamente, ainda que contrafeito, a casa de seu tio, por lhe constar que se tratava da existencia da mulher que elle amava.

Quando o criado veio abrir a porta e conheceu José Pereira, foi apressadamente participar ao Conselheiro quem era. Este ordenou-lhe que conduzisse o mancebo para a sala.

José Pereira tornou pois a transpôr os umbraes da habitação de seu tio e foi introduzido na sala, local para elle de bem tristes e alegres recordações.

O criado, depois de o comprimentar e de lhe dar os parabens, perguntou-lhe:

-- Então vem outra vez para cá ficar, senhor Pereira?

-- Não sei, respondeu o mancebo.

O criado, não satisfeito com a resposta, tinha vontade de continuar o interrogatorio; porêm, sentindo que se aproximava o Conselheiro, saiu da sala, dizendo a José Pereira em voz baixa:

-- Ahi vem o patrão.

O Conselheiro entrou, e depois de receber os comprimentos do sobrinho e de lh’os retribuir com requintada polidez, pediu-lhe desculpa do modo por que o tratára quando o surprehendcu com D. Julia, e terminou dizendo-lhe com voz magistral:

-- Bem sabe que eu, como tutor, devo e tenho rigorosa necessidade de vigiar e zelar de minha pupilla tanto os bens como a honra, o que todo o homem probo e honrado deve fazer.

Depois d’esta tirada moralisadora, o Conselheiro pediu ao sobrinho que o acompanhasse, a vêr se poderia ser apresentado á sua pupilla.

E encaminhou-o para o quarto da enferma.

D. Julia, quando elle chegou, estava livre do delirio, porêm ardendo em febre.

José Pereira foi-lhe apresentado.

Quando os dois jovens se avistaram, por um movimento unisono e espontaneo quizeram lançar-se nos braços um do outro; porêm, vendo que não estavam sós, contiveram-se, e D. Julia, com voz debil e febril, disse a seu tutor:

-- Oh! ainda bem que m’o trouxeram, senão eu morria!

O Conselheiro pediu a José Pereira que se demorasse alguns dias em sua casa, visto ser o verdadeiro medico da enferma, a vêr se D. Julia se restabelecia.

José Pereira annuiu a este pedido, e no fim d‘alguns dias, D. Julia, achando-se consideravelmente melhor, mandou chamar ao seu quarto o Conselheiro e, quando este chegou, disse-lhe:

-- Senhor: eu amo José Pereira, e como sem o consentimento de Vossa Excellencia, pela minha menoridade, não posso esposal-o, rogo-lhe me conceda que eu seja esposa do homem a quem amo.

O Conselheiro, aturdido por tão inesperada declaração, ficou um momento em silencio, depois do que respondeu á sua pupilla, n’um tom affavel, porêm desmentido pelo tremor da colera concentrada:

-- Mas, minha senhora, bem sabe que a destino para esposa do meu amigo Visconde, e que é impossivel...

-- Porêm, senhor, interrompeu D. Julia, eu não amo o Visconde, e acredito que elle será bastante cavalheiro e generoso para renunciar á minha mão, se eu lhe declarar que amo outro homem. Peço, portanto, a Vossa Excellencia, que o mande chamar para lhe participar os meus sentimentos, a seu respeito, e para salvar a responsabilidade que meu tutor possa ter para com elle.

-- Serão cumpridas as suas ordens, minha senhora; balbuciou o Conselheiro.

Em seguida, fazendo-lhe um leve comprimento, saiu do quarto da convalescente.

O Visconde foi pois chamado, e depois d'uma secreta conferencia entre o Conselheiro e elle, dirigiram-se, acompanhados de José Pereira, á sala, onde os esperava D. Julia, que estava quasi restabelecida.

Depois dos comprimentos usuaes, D. Julia expoz-lhe o que communicára a seu tutor, ao que o Visconde, sorrindo, respondeu:

-- Oh! minha senhora, longe de mim está a idéa de querer contrarial-a! Vossa Excellencia ama este mancebo (e indigitou José Pereira), é amada por elle e julga-o digno de ser seu esposo?... Eu tambem sou da mesma opinião, visto que isso lhe dá ventura. Houve o projecto, é verdade, o deploravel projecto, entre mim e o Conselheiro, de que Vossa Excellencia seria minha esposa... porêm, isto não foi mais do que um castello no ar, porque... quem póde dizer ao coração d'uma dama que ame um homem, se o orgão das sensações o não póde amar?... Não fallemos mais n’isto. Acredite que muito prazer terei em a vêr unida a quem deseja, e, para prova, se não recusa, offereço-me desde já para um dos padrinhos dos ditosos noivos.

José Pereira, ouvindo isto, julgava-se victima de uma visão, e esteve quasi abraçando o Visconde por vêl-o praticar uma acção tão nobre e generosa, e que tão venturoso o fazia.

Foram pois determinadas, para d’ali a um mez, as nupcias dos dois jovens.

VII

Um mez depois dos acontecimentos que acabâmos de narrar, pelas dez horas da manhã, grande numero de seges e carruagens, e uma multidão de pobres estavam parados na rua do Alecrim, á porta do Conselheiro M***

Todos diziam: «É um casamento.»

Entre a chusma dos pobres, distinguiam-se dois, um do sexo masculino, outro do feminino, que praticavam acaloradamente um com o outro. O homem tinha mais de setenta annos, a mulher os seus sessenta.

-- Não é assim, senhor Eloio! gritava a sexagenaria ao ouvido do velho, porque este era surdo, a filha do senhor Barão de ***, casada hoje com o senhor Conselheiro M***, nunca fugiu de casa do pae com amante nenhum, isso foi a mãe, a mãe da sobredita cuja.

-- Ó sôra Graviella, respondeu o mendigo, pois você diz-me isso a mim! que estou ó fato de tudo o que se passou em casa do senhor Barão de *** em certo tempo?!... Olhe que quem me deixou tudo isto escrevido foi meu pae, que era criado confidente do senhor Barão, e torno-lhe a dezer que quem fugiu foi a filha; por signal que inté se safou com um fato de meu pae, e que o defunto, que Deus tenha em gloria, nunca poude engulir da guela p'ra baixo, por ser o melhor fato que tinha. Mas, como lhe ia dezendo, a menina fugiu para o Porto vestida de hóme em companhia d’um sargento que despois de estar na cidade invita, lhe passou as palhetas para o ultramar, deixando a pobre creança abandonada. Foi antão que o senhor Conselheiro M***, que n’esse tempo estava no Porto, travou conhecimento com ella; soube de quem era filha, que tinha boas loiras e arrecebeu-se com a filha do senhor Barão de ***.

-- Ora você, munto me conta, sôr Eloio! Declaro-lhe francamente que inorava o que me acaba de contar; mas olhe que isso não tira para que a mãe da dita pessoa não fugisse tambem de casa do senhor Barão; póde acarditar que a Baroneza tambem fugiu ao marido, e essa fugiu de tal maneira que nunca mais appareceu.

-- Pois olhe, isso tambem eu não sabia, e antão cá tomo nota no canhenho, e você póde contar afoitamente como vridico o acontecimento que lhe contei. Agora diga-me uma coisa, tia Graviella, sabe quem são os noivos e os padrinhos?

-- Ora se sei! Inté estou admirada que o senhor Conselheiro M*** entregue aquella linda menina, rica como o Quintella, a um pelintra que não tem nada de seu, nem officio nem beneficio! O demonio do rapaz enfeitiçou por força o senhor Conselheiro e a menina!

-- Ora qual! Como sabe você?...

-- Eu lh’o conto, sôr Eloio, eu lh’o conto. Minha filha lava e engomma a roupa ao criado do senhor Conselheiro M***. Pois elle contou-lhe que o patrão tinha admittido em casa, por caridade, um rapaz orphão e muito pobre, e que este rapaz tivera a pitulancia de querer seduzir a menina de quem o senhor Conselheiro é titor, e que praticou tantas poucas vergonhas que o senhor Conselheiro se viu obrigado a pôl-o na rua; e que não o metteu em justiça por ter dó d’elle. Mas a pequena, assim que viu isto, começou a apaixonar-se, e todos disseram que morria phtisica senão casasse com o melcatrefe do engeitado, porque, segundo diz o criado do senhor Conselheiro, elle é engeitado. Vaibo titor da pequena, que é um bello hóme e muito amigo d’ella, segundo diz o criado, em logar de a levar para fóra da terra a espairecer, mandou chamar o pelintrão e deu-lhe aquella linda menina, que é mesmo um anjo! Olhe que é preciso ser um bello hóme, sôr Eloio, para fazer isto, ou antão estar enfeitiçado. Olhe que isto não se conta a todos, porque o criado pediu segredo a minha filha, porque o senhor Conselheiro tambem lhe contou o caso, pedindo-lhe segredo; mas para você, que tambem me contou o outro caso, não tenho segredos.

-- Obrigado, tia Graviella, já sei mais uma historia; agora diga-me quem são os padrinhos, para eu deitar os meus cálculos a vêr se apanhamos babuje.

-- Olhe, um é o senhor Visconde de***, que diz o criado do senhor Conselheiro, é um bellissimo rapaz, muito generoso...

-- Bem, bem; e o outro?

-- O outro é o senhor Barão de *** outro excellente senhor, tambem muito generoso. Diz o criado do senhor Conselheiro, que quando ganha ao jogo, sempre lhe dá cinco tostões.

-- Bem bom, bem bom...

Aqui foi interrompido o dialogo entre os dois mendigos pelo movimento (las carruagens, o que queria dizer que o cortejo ia caminhar para o templo.

De feito, a noiva, acompanhada pela madrinha, e o noivo, pelos padrinhos, subiram ás primeiras carruagens, e toda a comitiva se dirigiu para S. Domingos.

Dava meio dia.

Ao chegar porêm á porta da igreja a carruagem ondo ia o noivo, e, no momento em que este se apeiava, chegaram-se a elle dois empregados do Governo civil, e um d’elles perguntou-lhe com voz de juiz criminal:

-- O senhor chama-se José Pereira?...

-- Chamo, respondeu o mancebo.

-- Então estã prezo á ordem do senhor governador civil, continuou o beleguim.

-- Eu, senhor! perguntou José Pereira, admirado, porque?!

-- Depois o saberá.

-- Oh! meu Deus! exclamou o mancebo, ao qual, refluindo-lhe todo o sangue á cabeça, quasi lhe tirára a vista; oh! meu Deus, o que será de mim?

Depois, dirigindo-se como doido aos dois agentes de policia, bradou-lhes em tom lastimoso:

-- Estou innoccnte, senhores, não commetti crime algum!

Dizendo isto, caiu privado de sentimento nos braços de D. Julia, que se lhe aproximára n’este momento, a informar-se do succedido.

FIM DO PROLOGO.

PRIMEIRA PARTE

O VISCONDE

CAPITULO I

As obreiras

Em uma fria madrugada do mez de dezembro do anno 1853, n’uma velha agua-furtada de Lisboa, quasi desguarnecida de mobilia, porêm onde se divisava o aceio, trabalhavam açodadamente duas pobres obreiras, á luz d'uma vela, em um rico vestido de selim bordado.

Por intervallos as pobres creaturas estremeciam, sem duvida pelo intenso frio que lhes penetrava a medulla dos ossos, largavam a obra e assopravam os dedos como para os desentorpecer e poderem continuar o apressado trabalho.

A mais idosa d’estas desventuradas, senhora de cincoenta annos, demonstrava na cadaverica physionomia graves padecimentos, tanto physicos como moraes; não carecia de ser grande observador, quem lhe examinasse o rosto com attenção, para conhecer pela finura da pelle, bonhomia e delicadeza das feições, que esta senhora não era o que vulgarmente se chama «uma mulher ordinaria.»

A outra, donzella de dezeseis annos, parecia qual linda flôr que vegetando em acanhado vaso, ao desabrochar se ostenta, ainda que com o viço, brilho e frescura da mocidade, um tanto infezada e debil no todo. O seu oval e bem talhado rosto, ornado de lindos olhos pardos, onde reluzia a candidez, bondade e ternura, de acarminados labios e alvos dentes; o seu bello rosto, ainda que um tanto pallido e desfeito, com tão relevantes attractivos fazia com que a sua possuidora fosse classificada de «formosa» pelos que só vêem belleza physica, e reconhecida por «um bondoso espirito» pelos que procuram descobrir os dotes moraes, isto é, os physionomistas.

Depois de mostrarmos aos leitores as duas obreiras, de lhes analysarmos, ainda que rapidamente, o caracter physico e moral, e esta analyse ser em abono d’ellas, não devemos demorar-nos mais, como historiador da sua vida intima, em narrar qual a razão por que as duas senhoras trabalhavam com tanto affinco a uma hora tão impropria de trabalho e só conveniente ao repouso, para nos não arriscarmos a ser taxado de haver feito a apologia de duas ambiciosas e avarentas.

-- Que frio tenho, minha mãe... estou mesmo regelada! disse a joven á outra senhora, largando de repente a costura e mettendo as mãos debaixo dos braços.

A pobre senhora estremeceu, pois embebida em profunda meditação, quando sua filha rompeu o sepulchral silencio que reinava entre ambas n’uma tristonha madrugada d’inverno, em que tudo parece estar morto, tanto no interior como no exterior das habitações, a pobre senhora, diziamos, teve medo da inesperada exclamação da filha, que echoou por toda a casa como se esta fosse um d’esses grandes templos que repetem com estrondosa força qualquer palavra pronunciada nos seus recintos.

-- Tambem eu, Amelia, disse a obreira a sua filha, depois de se lhe tranquillisar o nervoso; tambem eu... tenho os pés quasi gelados e estou soffrendo horriveis dôres nos braços; mas que lhe havemos de fazer?...

-- Vou accender o lume e aquecer-lhe uma pouca de agua, minha mãe, respondeu a joven, levantando-se.

-- Não o podes fazer, Amelia, porque não ha, nem carvão nem agua...

-- Ah! é verdade, diz Amelia caindo outra vez machinalmente na cadeira, não me lembrava...

-- E bem sabes, continuou sua mãe, que ainda que nos quizessemos outra vez valer da nossa visinha, como hontem lizemos, ella ainda está recolhida e não a havemos incommodar... Resignemo-nos, minha filha, e trabalbemos o mais que podermos para acabar o vestido hoje. Bem sabes que é a nossa taboa de salvação.

-- Ah! minha mãe, Deus queira que tenhamos forças para isso... sobretudo vocemecê, que só comeu hontem uma vez...

-- E tu, minha filha, não te succedeu o mesmo?

-- É verdade... mas minha mãe, para que eu comesse mais, não quiz comer quasi nada.

-- Não tinha vontade, minha filha...

-- Isso diz minha mãe para me consolar.

-- Porêm, minha filha, replicou a mãe d’Amelia, estamos perdendo um tempo precioso com coisas futeis... vamos, deixemo-nos de recordações tristes e trabalbemos... Olha, já não precisâmos da luz da noite, proseguiu ella apagando a vela; vem rompendo o sol e parece-me que teremos um bonito dia. Não tarda que sejamos aquecidas pelo sol... isto anima, não é assim, minha filha?

-- É verdade, minha mãe, respondeu a donzella, n’um tom que desmentia totalmente as palavras.

Depois d’isto, reinou profundo silencio na agua-furtada, só interrompido, por intervallos, pelas respirações mais longas, arfar do peito e bocejos das duas obreiras.

Eram nove horas quando o vestido foi dado por prompto pela mãe e filha.

Amelia recuperára a esperança que quasi sempre acompanha a mocidade, e que, por momentos, nos transes espinhosos da vida a desampara. Por isso a donzella, contentissima, esquecendo-se já de que comêra na vespera só uma vez, e nada tinham para se alimentar n’aquelle dia, ella e sua mãe, disse a esta rindo, ao mesmo tempo que a abraçava:

-- O demonio do vestido deu-nos que fazer, minha mãe; mas ao menos dá-nos honra, porque ficou lindo, e estou convencida que a Viscondessa hade afreguezar-se comnosco.

-- E o céo permilta, Amelia, que assim aconteça, porque teremos mais que fazer, e com maior lucro.

-- Mas a Viscondessa, replicou Amelia como assaltada por uma triste idéa, disse a minha mãe que o mandava buscar hoje pelas nove horas... são quasi dez, e nada de novo!... Deus queira que ella se não esqueça, para assim podermos almoçar.

-- Tranquillisa-te, disse-lhe a mãe para a socegar, porque já lhe assaltára a mente a mesma idéa; ella precisa o vestido para o proximo baile do seu anniversario... hade querer proval-o com antecedencia e mostral-o a alguma sua amiga... logo, não falta.

-- Oh! com os dez tostões do feitio, accrescentou Amelia dando pulos de contentamento, seremos duas rainhas!

-- Mas o nosso reinado, respondeu a mãe, durará sómente tres dias, se a Providencia nos não deparar mais trabalho.

-- Ora, minha mãe, para que está com essas idéas tão tristes? então a sua amiga, a que lhe inculcou a Viscondessa, a qual nos tem sempre protegido desde que perdi meu pae, não nos hade dar que fazer?... Dá, dá.

N’este momento, ouviram as duas senhoras pés na escada, e logo depois bateram á porta da agua-furtada.

Amelia foi prestes abrir, mesmo sem indagar quem seria, e viu no patamar um homem que trazia uma bandeja e uma toalha, o qual lhe disse que era criado da senhora Viscondessa de *** e vinha buscar um vestido de setim bordado.

A mãe de Amelia convidou-o a entrar e, depois de ler um pequeno bilhete da Viscondessa, dobrou a obra hermeticamente, com uma agitação febril, cobrindo-a com a toalha, e deu-a ao criado, o qual saiu. Depois d’isto, empallidecendo horrivelmente, deixou-se cair n’uma cadeira e disse a sua filha, com voz quasi sumida pelo desalento:

-- Estamos perdidas!

-- Porquê, minha mãe? perguntou Amelia, summamente assustada por vêr o estado de abatimento em que estava sua mãe.

-- Lê, disse-lhe a pobre senhora, estendendo a mão onde tinha o bilhete da Viscondessa.

Amelia pegou no bilhete e leu o que se segue:

«Senhora:

«Mande-me o vestido pelo portador, que é um dos meus servos. Creio que deve estar prompto, porque a senhora assim m‘o prometteu. No fim do mez mande buscar o importe do seu trabalho.

10 de dezembro

de 1853.

«Viscondessa de ***»

-- Que será de nós?! diz-lhe a mãe na maior angustia, por ter perdido totalmente o animo para poder conservar firmeza e placidez em tão horrivel situação.

-- Tenho uma idéa, minha mãe: a Viscondessa hade ser compassiva... e se vocemecê lhe mandar dizer as circumstancias em que nos achâmos, estou certa que nos mandará o dinheiro.

-- Dizes bem, minha filha.

E a infeliz senhora vai immediatamente escrever um bilhete á Viscondessa, ainda que a muito custo pela debilidade em que está, no qual lhe expõe a desgraçada situação em que se acham, ella e sua filha; depois, dizendo a esta que chame um aguadeiro, emquanto ella faz o sobrescripto, diz comsigo:

-- Oh! foi uma bella lembrança a que minha filha teve; é impossivel que a Viscondessa não se commova ao saber a posição em que nós estamos.

Amelia chamou o aguadeiro, o qual chegou á agua-furtada resmungando por ter subido tanta escada, e dando a todos os demonios predios tão altos.

A mãe de Amelia entregou o bilhete, recommendando ao aguadeiro que esperasse pela resposta.

As duas senhoras, animadas pela esperança, aguardavam a resposta, quando a porta da escada fronteira á d’ellas se abriu, e a visinha veio bater-lhes á porta, ao mesmo tempo que lhes perguntava:

-- Ó visinhas, querem alguma coisa de fóra? Eu vou sair... e então não façam ceremonia.

Amelia foi logo abrir.

A visinha entrou e, depois dos comprimentos matinaes, olhando por toda a casa como quem procurava alguma coisa, exclamou:

-- Ah! já cá não está, já o mandaram buscar, não é verdade?... E eu que tinha tanta vontade de o vêr acabado... Nunca eu me enganei quando ainda agora ouvi vozes na escada, e que fallavam em vestido cá, vestido lá... Com que então a fidalga mandou-o já buscar?

-- É verdade, minha visinha, respondeu-lhe a mãe de Amelia, e mal sabe a pena que tenho de não poder satisfazer o seu gosto.

-- Ah! que se eu ainda agora adivinhasse que a visinha já estava levantada, accrescentou Amelia, tinha-a ido chamar. Ora que pena não o vêr... ficou tão bonito!

-- Não se apoquentem, visinhas, ha mais marés que marinheiros... As senhoras teem muita habilidade, trabalham muito bem, e então teremos occasião de vêr alguma peça d'obra bonita... mesmo até me parece, que não hade tardar muito tempo que eu lhes não traga obra d’umas senhoras ricas do meu conhecimento, a quem já fallei nas senhoras e gabei o seu talento.

-- Oh! minha visinha, muito agradecidas por tanto favor, respondeu a mãe de Amelia, emquanto que a joven, cheia de contentamento, dizia:

-- Vê, minha mãe? vamos brevemente ter outra fregueza nova.

Estavam n’este ponto da conversação, quando o aguadeiro chegou e entregou á mãe de Amelia um bilhete, o qual a infeliz senhora, depois de pedir licença á visinha, abriu.

Continha o seguinte:

«Creio que hoje não é o fim do mez; quando fôr mande cá, já lh’o disse.

«Viscondessa de ***»

A visinha, vendo a pallidez da mãe de Amelia, perguntou-lhe apressadamente:

-- Que é isso, visinha, tem alguma coisa?

Amelia então, mostrando-lhe os dois bilhetes da Viscondessa, contou-lhe o resto, e accrescentou em voz baixa ao ouvido da visinha:

-- O que mais nos custa n’esla occasião é não termos com que pagar ao aguadeiro.

-- Ah! graças a Deus, tenho eu com que as possa remediar até ámanhã, respondeu a visinha do mesmo modo.

Depois, a boa mulher pagou ao moço e, saindo, voltou d’ahi a pouco com comestiveis para si e para as suas duas desventuradas visinhas.

CAPITULO II

Ir por lã, e vir tosquiado

Alguns dias depois das scenas precedentes, que apresentámos ao leitor, em uma das ricas salas do palacio do Visconde de ***, amigo intimo do Conselheiro M***, e que casára ha um anno com a filha do Conde de ***, estavam a criada grave da Viscondessa e o criado particular do Visconde em um curioso e, para elles, interessante dialogo, que começára d'este modo:

-- Então que lhe parece isto, menina Josephina? já deu meio-dia e nem o senhor Visconde ou a senhora Viscondessa ainda se levantaram! A que horas almoçaremos nós hoje?

-- Então que quer o senhor Francisco? Bem sabe que o senhor Visconde recolheu esta madrugada, e que a senhora Viscondessa entrou muito depois d’elle no seu quarto; por consequencia é justo que ainda estejam adormecidos... Mas vocemecê já tem vontade de comer, tendo ceiado quasi de dia?!...

-- É porque tenho o estamago forte e dirijo muito bem; mas o que me vale para enterter a fome é estar ao pé da menina Josephina, por quem morro de amores de tal modo... que sou capaz de estar tres dias e tres noites sem comer, vendo-me sempre ao seu lado.

-- Está bom, modere o seu enthusiasmo oratorio que póde ouvir-nos terceira pessoa e ser esse o motivo de funestas consequencias para nós ambos.

-- Então que receia vocemecê, menina Josephina? pergunta o criado olhando em torno de si como receioso.

-- Pois vocemecê não sabe que todos os patrões odeiam mortalmente os amores dos criados, chegando até a despedil-os quando os surprehendem em flagrante?...

-- Sim... mas se os nossos estão recolhidos, como é possivel?...

-- Não sabe que as paredes teem ouvidos, senhor Francisco?

N’este momento ouviram ambos o agudo som d’uma campainha.

-- Será o senhor Visconde? diz o criado, correndo apressadamente para fóra da sala.

-- Parece-me que é a senhora Viscondessa, responde a criada, fazendo o mesmo.

Francisco, encaminhando-se para o quarto do Visconde, encontrou o porteiro do palacio, que o procurava para lhe dizer que um sugeito, que dizia ser caixeiro d'uma loja de fazendas, procurava o senhor Visconde.

Francisco ouvindo isto fez um gesto ao porteiro, como dizendo-lhe que esperasse um pouco, entrou no quarto do Visconde e saindo alguns segundos depois disse ao porteiro participasse ao sugeito que procurava o senhor Visconde, que, ou esperasse um bocado, ou viesse d’ahi a uma hora.

Meia hora depois do que acabâmos de contar, na sala de refeição do palacio estavam almoçando o Visconde e sua mulher.

A Viscondessa, senhora de vinte e oito annos, esvelta, bella e elegante, estava negligentemente recostada n’um sophá, sustendo n'uma das mãos a chicára e tendo na outra um biscoito, o qual era diminuido por intervallos, entre os seus alvos e preciosos dentes. Estava um tanto pensativa e parecia que graves contrariedades, a alguma idéa sua, lhe cruzavam a mente e a faziam taciturna.

O Visconde, homem de trinta e seis annos, magro, baixo e pallido de rosto; não podendo fictar ninguem de frente, nem mesmo sua mulher; tinha os seus pequenos e verdes olhos, pregados na meza de pé de gallo onde estava o almoço, e parecia meditar profundamente.

A Viscondessa porêm veio tiral-o d’esta immobilidade sapal, perguntando-lhe com a sua argentina e flexivel voz, habituada a todos os tons:

-- Não almoça, Visconde?

Este, ouvindo o triste e magnifico tom menor em que foi feita a pergunta, e o qual poucas vezes ouvia á Viscondessa, despregou os olhos da meza passeiando-os rapidamente pelos de sua mulher, ao mesmo tempo que lhe responde:

-- Ah! sim, almóço, menina... é que estava pensando... Então, continúa elle, mudando de tom, divertiu-se muito na reunião do Barão?

-- Nem por isso; sempre os mesmos convites... ali vêem-se continuamente as mesmas physionomias e, o que ainda é mais, o mesmo vestuario. Se ao menos o dono da casa convidasse familias do povo, ricas, vá; mas convidar pobretonas que nunca passam do rococó vestido branco... é d'uma semsaboria insupportavel!

-- Com que então aborreceu-se, Viscondessa, não é assim?

-- Horrivelmente!

-- Pois eu tambem não fui feliz em casa do Conselheiro M***, não me aborreci, é verdade, porêm perdi duzentos mil réis ao jogo... fiquei esgotado das algibeiras e ainda sou devedor ao Conselheiro, de cento e cincoenta mil réis, os quaes não sei como lhe heide pagar.

-- Ora! dividas de jogo, disse a Viscondessa em tom de mofa, nunca se saldam. Dê-me o Visconde antes as vinte libras que eu tenho de pagar d'aqui a pouco pelo corte do meu vestido de setim bordado.

-- Ah! ah! ah!

E, depois de dar uma estrepitosa gargalhada, o Visconde, levantando-se e começando a passeiar pela casa, em circulos á roda da meza, disse a sua mulher:

-- A Viscondessa dá-me vontade de rir com esse seu ingenuo pedido. Eu estou completamente desprovido de metal cunhado, e isto talvez por oito dias, se me falhar uma transaeção que negociei, o que muito desconfio me succeda.

-- Então, disse a Viscondessa em tom brilhante e maior e um tanto picada, o Visconde quer dizer com isso que me obriga a faltar vilmente á minha palavra, hoje, perante o caixeiro da casa de modas, que não deve tardar?

-- Ora! pois Vossa Excellencia, respondeu o Visconde com um sorriso ironico misturado de compaixão, pois Vossa Excellencia não acha no seu intelligenle e atilado cerebro algum meio com que possa descartar-se airosamente do pobre diabo?...Oh! eu de certo o não posso acreditar!

-- Mas o Visconde, que é tão fertil em meios complicados, disse a Viscondessa no mesmo tom, porêm crescendo, é que me deve indigitar o que eu tenho a seguir n’esta critica occasião.

-- Pois será verdade que queira baixar-se á minha humilde intelligencia, pedindo-me conselho para o que deve fazer?

-- Não desejo outra coisa, senhor; bem vê o embaraço em que me adio, e meu marido, como representante da nossa casa, não hade querer que os seus brazões fiquem deslustrados por um vil logista, que será capaz de dar ordem aos caixeiros para apregoarem por todo o arruamento que o Visconde de *** é um caloteiro, e pretende vestir sua mulher á custa d’outrem.

-- Não nos zanguemos, Viscondessa: vou-lhe provar, apezar de não ser a divida feita por mim, e de não receiar quaesquer dicterios da canalha em meu desabono, vou-lhe provar, digo, que póde sair-se perfeitamente dos apuros em que está.

E preparava-se para lhe ensinar o que devia fazer, quando a criada grave da Viscondessa entrou na sala de refeição para a consultar sobre umas cortinas em projecto.

O Visconde, vendo-a entrar, consultou o relogio, e vendo que já passava da uma hora, aproximou-se da Viscondessa e, collando-lhe a boca ao ouvido como se a beijasse na face para illudir a criada, disse-lhe rapidamente em voz sumida: «Escamoteie-lhe a conta.»

Depois, dirigindo-se apressadamente para a porta da sala, disse-lhe em tom de ineffavel carinho:

-- Até logo, minha querida.

E desappareceu.

Pouco depois o criado particular do Visconde veio participar á Viscondessa que se achava no portão do palacio o individuo que já havia procurado Sua Excellencia, o senhor Visconde, porêm que este havia saido.

-- Mande entrar esse sugeito para o salão nobre, disse a Viscondessa em tom breve.

O criado saiu, e ella, chegando-se a um espelho, depois de se consultar e arranjar o cabello, disse comsigo:

-- Veremos por qual dos meios o vencerei, se pelo que imaginei, ou pelo que me apresentou meu marido.

Depois encaminhou-se para a sala, entrando na qual, viu um mancebo bem vestido e de agradavel physionomia, que a comprimentou respeitosamente em silencio.

-- Então que pretende o senhor? perguntou-lhe a Viscondessa, ao mesmo tempo que lhe indigitava um sophá para elle se assentar.

-- Senhora Viscondessa, respondeu o mancebo, conservando-se de pé, eu sou portador d'uma conta d’um vestido que Vossa Excellencia fez a honra de comprar a meu patrão.

-- Ah! já sei, disse a Viscondessa n’um tom que mostrava a pouca importancia que dava a similhante noticia; queira demorar-se um pouco, que estou esperando o meu mordomo, o qual não tardará: porêm assente-se, senhor... como se chama?

E, assentando-se em frente do joven, obrigou-o com o gesto a fazer o mesmo.

O mancebo assentou-se e, respondendo á pergunta da Viscondessa, disse-lhe:

-- Eu chamo-me José da Silva, excellentissima senhora.

-- Então o senhor Silva vai dizer-me que novidades vieram de França, sim? disse a Viscondessa aproximando a sua cadeira do caixeiro, de modo a ficar-lhe bem de frente para o poder fascinar pelos seus dardejanles olhares.

-- Minha senhora, replicou o mancebo baixando os olhos modestamente, não se atrevendo a affrontar o olhar que lhe lançára a Viscondessa, desde que Vossa Excellencia esteve na loja de meu patrão ainda não chegaram figurinos alguns, e então não posso dar-lhe novidades a esse respeito.

-- Ora que pena! disse a Viscondessa com um gracioso sorriso, que só as pessoas altamente generosas ou grandes actores da comedia humana sabem patentear quando sentem qualquer pezar e não querem aflligir a outrem; que pena o senhor Silva não poder aconselhar-me a comprar qualquer enfeite, que porventura podesse apparecer, para eu o estreiar no proximo baile do meu anniversario.

E, vendo que o mancebo se conservava calado e como contrafeito, deu um geito ao corpo de modo que um dos seus joelhos foi encontrar-se com o do caixeiro, e ahi permaneceu alguns segundos, como instigando-o a deixar de ser reservado.

Porêm o mancebo, respeitando o logar em que se achava, ou por temer dar-se ao ridiculo, recuou um pouco a cadeira em que estava assentado.

A Viscondessa, vendo este movimento, disse-lhe vivamente:

-- Incommodei-o, senhor Silva?

-- Oh! minha senhora, respondeu o mancebo córando, eu é que receiei que Vossa Excellencia não estivesse á sua vontade...

-- Ah! não! estava perfeitamente, redarguiu a Viscondessa em tom menor sentimental, que se traduzia por estas palavras: «não me comprehendeu», ou «é frio como rocha!»

-- Então em quanto importa a conta? continuou a Viscondessa, mudando assim de conversação para depois continuar de subito o seu projectado ataque.

-- Em noventa mil réis, respondeu o caixeiro, tirando ao mesmo tempo do bolso furtado do fraque uma bonita carteira de marroquim verde; póde Vossa Excellencia examinar...

E dispunha-se a abrir a carteira.

Porêm a Viscondessa, impedindo-o com o gesto, disse-lhe com intimativa:

-- Não é necessario mostrar-m’a; agora me recordo que é isso mesmo.

O mancebo, obedecendo ás ordens da fidalga, tornou a metter a carteira no bolso e esperou em silencio.

A Viscondessa então, levantando-se e dando uma volta pela sala, ostentando d’este modo a sua elegante estatura, conservou-se silenciosa alguns instantes, sem dúvida edificando na idéa os seus projectados planos, e fazendo comsigo estas reflexões:

-- Parece-me que falha o meu plano, e que terei de recorrer ao de meu marido.

Depois, aproximando-se do caixeiro, que se conservára immovel na cadeira, perguntou-lhe em tom de leviandade protectora:

-- Diga-me, senhor Silva, o senhor dança?

-- Um pouco, minha senhora, respondeu o mancebo levantando-se para não commetter a incivilidade de conversar assentado com a Viscondessa, estando esta de pé.

-- Talvez se admire de eu lhe fazeir esta pergunta, continuou a Viscondessa, sem o mandar assentar; porêm eu lhe explico a razão porque o fiz. Desejava que o senhor Silva viesse ao meu baile, e então como dança, desde já fica intimado a fazer parte dos meus convidados.

-- Oh! minha senhora, respondeu o caixeiro, aturdido com similhante e inesperada proposição; é-me impossivel aceitar o obzequioso convite de Vossa Excellencia, porque estamos dando balanço, e meu patrão não póde dispensar-me de noite...

-- Tenho immensa pena, tornou a fidalga, figurando observar o caixeiro dos pés á cabeça, porque o senhor Silva é um elegante cavalheiro, e faria uma brilhante figura nas minhas salas. Ah! mas este favor que lhe vou pedir não me recusará, continuou ella, como tocada d’uma idéa repentina, o senhor tem a estatura de meu marido...tem certamente, disse ella de novo, examinando o caixeiro; pois então hade fazer-me o favor de vestir, em quanto não chega o meu mordomo, uma casaca que o alfayate ainda agora trouxe para meu marido, porque desconfio não estar elegante. Elle não estava cá quando o alfayate veio, e não a poude provar. Faz-me este favor, senhor Silva?...

-- Oh! minha senhora, pois não heide fazer, respondeu o caixeiro inclinando-se respeitosamente diante da Viscondessa.

-- Então, com licença, que eu já volto.

A Viscondessa, dizendo islo, saiu, porêm vollou quasi no mesmo instante, trazendo na mão uma casaca nova, porêm, que o Visconde já havia vestido não poucas vezes.

Depois, apresentando-a ao caixeiro, disse-lhe desabusadamente:

-- Dispa o fraque sem ceremonia, senhor Silva.

O mancebo despiu o fraque com acanhamento; a Viscondessa antecipou-se em collocal-o sobre um sophá ao alcance da sua mão e, ajudando açodadamente o caixeiro a vestir a casaca com a mão direita, foi, com a esquerda, tirando a carteira do bolso furtado. Depois de estar de posse d’ella, dizendo ao mancebo que tivesse a bondade de andar até ella lhe dizer que parasse, para notar bem qualquer prega que a casaca fizesse, a astuciosa fidalga abriu a carteira, e, com a ligeireza digna de Hermann, escamoteou a conta depois de se assegurar ser a d’ella, e, fazendo com que o mancebo se aproximasse outra vez do sophá onde estava o fraque, porêm, sempre com as costas voltadas para o movel, tornou a introduzir no bolso a carteira do mesmo modo que a subtraira.

-- Está muito boa, não faz nem uma prega, disse a Viscondessa depois de terminada a escamoteação. Póde despil-a, senhor Silva, e muito agradecida.

E, dando-lhe o fraque com toda a delicadeza e pegando na casaca, tornou a leval-a, e, voltando logo, disse ao caixeiro:

-- Ora, até que chegou o meu mordomo; vai receber o seu dinheiro.

O mancebo, ouvindo isto, puxou da carteira e abriu-a para tirar a conta, porêm, empallidecendo e córando alternativamente, balbuciou afllicto:

-- Não está cá, desappareceu, porêm eu trouxe-a...

-- Que tem o senhor? perguntou a Viscondessa em tom de susto, magnificamente representado.

-- É que, respondeu o caixeiro tendo uma vaga e repentina desconfiança contra a Viscondessa, trazia a conta comigo, n’esta carteira, e não a tenho. Isto é horrivel...

-- Talvez que o senhor a tirasse e a mettesse em alguma algibeira, procure bem...

-- Nada, minha senhora, disse o mancebo, allucinado por similhante catastrophe.

E, pegando no chapéo e comprimcntando a Viscondessa, saiu apressadamente do palacio.

CAPITULO III

Baldados exforços

O pobre caixeiro, saindo apoquentadissimo de casa do Visconde, foi ter com o patrão, e dizendo-lhe que lhe desapparecêra a conta, sem saber como, pediu-lhe que lhe passasse outra.

O patrão, homem severo e endurecido no negocio, depois de o ouvir, fazendo uma careta e tomando uma pitada, disse-lhe em tom aspero e com voz fanhosa:

-- Parece-me que você, ha uns tempos para cá, anda com essa cabeça a razão de juros. Eu estimo e aprecio muito os caixeiros circumspectos, e aborreço muitissimo os levianos. Ámanhã lhe passarei outra conta, e heide estimar que me traga os noventa mil réis.

Dizendo isto voltou as costas ao mancebo, deixando-o immerso em tristes reflexões.

Na occasião da scena que descrevemos, no palacio do Visconde passava-se outra entre os dois fidalgos, marido e mulher:

-- Então, senhora Viscondessa, dizia o Visconde, estendido n’um sophá e saboreando um bello charuto de contrabando, como se deu com o meu conselho? Saiu-se bem da escamotagem?

-- Muito bem; póde verificar, respondeu a Viscondessa tirando d'uma algibeira a conta extorquida ao caixeiro e entregando-a ao Visconde.

-- Caspite! exclamou este rindo, nunca julguei que fosse tão boa discipula e tirasse tanto resultado da prestidigitação que lhe tenho ensinado!... Sim senhora, faz progressos em bem pouco tempo.

E tornando a dar a conta á Viscondessa, continuou em tom de superioridade magistral:

-- Agora sabe o que tem de fazer para ultimar este negocio com limpeza?

-- Então ainda m’o pergunta? respondeu a Viscondessa em tom de quem desdenha de conselhos alheios. Quer sabel-o?

-- Não será máu, replicou o Visconde como zombando antecipadamente da idéa de sua mulher; quero aconselhal-a, se caminhar mal...

-- Não hade ser necessario, atalhou a Viscondessa com uma tal energia e firmeza que espantou o Visconde, e o fez pensar se o mestre estaria convertido em discipulo.

-- Bem, bem, senhora Viscondessa, não vale zangar por tão pouco... não me queira mal por eu desejar encaminhal-a bem em veredas difficultosas; porque... se Vossa Excellencia n’este negocio não tivesse o necessario sangue frio para receber a nova conta que o logista hade enviar-lhe, perdia de certo a reputação e fazia-me perder a minha duplicadamente, na qualidade de seu mestre e na de seu marido. Por consequencia estou convencido que, o que tenciona fazer é dar essa conta a um criado, e encarregal-o de dizer á pessoa que vier com a nova conta, que Vossa Excellencia já pagou a mesma e foi para o campo. D’este modo o patrão queixa-se do caixeiro e o caixeiro não sabe de quem hade queixar-se, a menos que a escamoteação fosse por elle observada.

-- Póde estar descançado a esse respeito, Visconde; a sua ultima idéa é infundada, porque o pobre rapaz viu tanto a operação como Vossa Excellencia.

-- Peço desculpa, Viscondessa, e proclamo-a um modêlo de talento e atilação, replicou o Visconde espargindo pela sala nuvens de fumo de tabaco.

N’este momento appareccu um criado a uma das portas da sala e, dirigindo-se aos aristocratas, disse-lhes:

-- Senhor Visconde e senhora Viscondessa, tenho a honra de annunciar a Vossas Excellencias que o jantar acaba de ser posto na meza.

O Visconde levantou-se e caminhou para a casa de refeição seguido de sua mulher, que pengou pelo caminho:

-- Ainda bem que elle me indigitou o que devo fazer, pois de contrario estava tolalmente desacreditada sem saber como dirigir e ultimar esto pequeno negocio. Só tenho a fazer uma simples alteração em nomes... Porêm ao menos ignora que lhe devo mais esta lição. Que gloria para mim!

No dia seguinte ás scenas d’este capitulo, pela uma hora da tarde, José da Silva, munido da nova conta, dirigiu-se ao palacio do Visconde.

O guarda-portão, já prevenido, mandou-o subir.

O caixeiro subiu e participou a um criado quem era, e o que vinha fazer.

O criado deixou-o só por um momento e, voltando com um papel na mão, disse ao mancebo:

-- O senhor Visconde foi para o campo e entregou esta conta á senhora Viscondessa para que a mostrasse ao senhor, dizendo-lhe que já pagou ao seu patrão.

-- Mas quem pagou esta conta? perguntou o caixeiro com anciedade, depois de ter examinado o papel e conhecer a firma do patrão.

-- Já lhe disse que foi o senhor Visconde, respondeu o servo admirado da exclamação do caixeiro e sem comprehender nada, porque ignorava tudo.

-- E a quem? retorquiu este.

-- Tambem já lhe disse que a seu patrão, replicou o criado.

-- E a senhora Viscondessa, está em casa?

-- Está, mas acha-se incommodada e não póde fallar a ninguem.

Esta ultima noticia do criado é que foi um raio luminoso para o mancebo e o fez convencer de que havia sido victima d’uma fraude, porque tendo examinado bem a sua carteira para vêr se acharia a conta, notou que alguns papeis estavam amarrotados e como se houvessem sido remechidos por mão estranha.

Cabisbaixo e pensativo, saiu portanto do palacio do Visconde e foi depositar o succedido com elle em um seu intimo amigo, contando-lhe minuciosamente o que lhe acontecêra, terminando por dizer receiava bastante que o patrão o despedisse por não acreditar similhante infamia.

-- Não despede, diz-lhe o amigo, porque eu te empresto os noventa mil réis para tu me pagares como poderes, porque sei que és um rapaz honrado.

E pegando em vinte libras entregou-as ao venturoso mancebo, que possuia um tal amigo, o qual, depois de lhe dar os gratos agradecimentos e o abraçar, chorando de alegria, foi contentissimo levar ao patrão o dinheiro que não recebêra, de quem o devia e podia perfeitamente pagar, tendo de valer-se d’um amigo para não ficar com o labéo de ladrão.

CAPITULO IV

O baile

Pelas oito horas da noite do dia 20 de dezembro de 1853, anniversario natalicio da Viscondessa de ***, nas salas do palacio do Visconde, seu marido, brilhantemente illuminadas e ornadas para baile, começavam a entrar os convidados para a festa.

Entre as poucas pessoas que já se achavam nas salas viam-se, n’um grupo, os nossos antigos conhecidos, o Conselheiro M***, sua mulher, o Barão de *** e o Visconde, sempre juntos.

A Viscondessa conversava com as suas amizades intimas, n’outro grupo distante do primeiro.

-- Então o Conselheiro, perguntava o Visconde em voz baixa ao amigo, dizia que está arrependido de contribuir para que o rapaz saisse tão cedo do Limoeiro?...

-- Certamente, porque... se o demorasse lá mais dois ou tres mezes, com certeza já estaria mais esquecida a morte de minha pupilla, e bem sabe o amigo Visconde, continúa o Conselheiro baixando mais a voz, que o testamento d’ella...

-- Hum, hum... fez o Visconde, indigitando ao mesmo tempo significativamente o Barão, que conversava com a mulher do Conselheiro.

-- É tambem dos nossos, continúa este; o Visconde bem sabe que estando nós associados em certas emprezas...

D’esta vez foi o Barão que, deixando de conversar com a esposa do Conselheiro e voltando-se rapidamente para este, lhe disse com impaciencia:

-- Essas conversações não são para aqui, Conselheiro; falle n’outra coisa, homem!

-- Este meu marido, diz sentenciosamente a mulher do Conselheiro, de dia para dia vai accumulando cada vez inais inconveniencias. Nunca vi! Ninguem dirá que é um Conselheiro!...

-- Bem, bem, atalhou o Conselheiro levantando-se, não fallemos mais n’isso.

E separou-se do grupo.

-- Então onde comprou a minha querida Viscondessa, esse lindo corte de vestido? perguntava a Condessa de *** á dona da casa, no outro grupo.

-- Na Levaillant, respondeu a Viscondessa. Mas realmente, acha-o bonito, Condessa?

-- Oh! que é lindo! respondeu esta examinando bem a fazenda, e d'um tecido tão forte, que a minha querida amiga com certeza não o romperá, por se aborrecer d’elle e não querer incorrer na critica da eternidade.

Depois d’esta tirada critica, que a arteira Condessa sabia ser lisongeira para a dona da casa, e vendo que estamparecia ufanar-se com a sua opinião, continuou com essa meiguice requintada tão propria dos aristocratas:

-- O meu amor vai levantar-se, sim? para eu vêr se lh’o talharam bem... Foi mesmo feito onde comprou o corte?

-- Foi, respondeu a Viscondessa, ao mesmo tempo que se levantava para deixar vêr ás amigas a elegancia do vestido.

-- Fez bem, porque noutra parte estragavam-lh’o... sobretudo se o mandasse fazer a qualquer inepta modista portugueza.

E levantando-se, assim como todas as damas e cavalheiros que estavam no grupo da Viscondessa, exclamou, ajudando a fazer roda em torno d’esta:

-- Oh! que elegante, que perfeito e que bem acabado está! Bem se vê que é obra franceza.

-- Está lindo, disseram em côro homens e damas.

-- E quanto custou? continuou a curiosa Condessa.

-- Foi um brinde que me fez meu marido, respondeu a Viscondessa, e não me quiz dizer o preço.

-- É o mesmo, atalhou a Condessa, eu logo lh’o perguntarei e elle hade dizer-m’o, olé! em eu lhe declarando que é para comprar um d’igual qualidade.

-- E quanto levaram a Vossa Excellencia de feitio? perguntou á Viscondessa uma joven demasiado feia e trigueira, filha do Commendador F***.

-- É verdade, quanto lhe levaram pelo feitio? perguntou tambem a Condessa, atalhando a resposta que a sua amiga ia dar á joven pallida.

-- Uma libra, respondeu a Viscondessa, e foi por ser para mim, quando não...

-- De certo, de certo, atalhou outra vez a Condessa; é muito barato, muito!

N’este momento entraram mais convidados, o que deu motivo a ser interrompida a conversação sobre o vestido.

As salas foram-se enchendo, e quando eram nove horas, uma orchestra, composta de dezeseis artistas mediocres e regida pelo senhor Freitas, deu começo ao baile, executando com maestria a linda abertura da opera comica, A Marqueza, finda a qual, e depois d’um momento de repouso, executou o ritournello da bella quadrilha franceza, Les filles d’Éve.

Gruparam-se os pares. A Viscondessa teve por cavalheiro um mancebo, filho da falladora e curiosa Condessa de ***

O Visconde dançou com uma encantadora joven, filha d’uma aristocrata hespanhola, tendo por vis-à-vis um homem alto, magro e verdenegro, de olhar obliquo, chamado o Commendador F***, o qual tinha por par a joven pallida, sua filha.

O Barão de *** dançou com a mulher do Conselheiro, e foi vis-à-vis da Viscondessa.

O Conselheiro, ficando mudo espectador, por ser quasi incommunicavel para os que não eram os seus intimos, foi ler os jornaes.

Durante a contradança, o Visconde, lançando ternas olhadellas ao seu lindo par, como podem ser as d’uns olhos verde-duvidoso e pequeninos, dizia-lhe, depois de lhe apertar amorosamente a mão, emquanto l’autre partie fazia as evoluções coreographicas:

-- Vossa Excellencia é a creatura mais bella que tenho visto... e dança com uma graça, que arrebata o homem mais blasé em amor! Como o filho da Condessa de *** vai ser feliz casando com Vossa Excellencia... e como Vossa Excellencia tambem vai ser venturosa!...

-- Péro yo no lo amo... disse com intimativa a joven hespanhola. Mi madre ha querido hacer esto... y hace mal, os digo yo, señor Visconde!

-- Era isto o que eu desejava ouvir, diz comsigo o aristocrata.

Depois, fallando com a joven:

-- Estimo muito saber isso, lhe diz elle, porque conheço a inconstancia do rapaz e sei que não é digno de ser amado. Ha porêm um homem, que por uma unica palavra de amor de Vossa Excellencia seria capaz de morrer de alegria... e sei tambem que não é indifferente a Vossa Excellencia.

-- Quien és? perguntou com curiosidade a donzella.

Então o Visconde, baixando a voz o indigitando á joven o Barão de *** que n’este momento terminava airosamente uma figura, respondeu-lhe:

-- É o sensivel, apaixonado e sentimental Barão de ***.

A donzella sorriu e córou um pouco, porque conhecia já o Barão e deveras sympathisava com elle, porêm não sabia que tambem era amada.

O arteiro Visconde, que conheceu não ter errado o alvo, disse comsigo:

-- Ganhei, porque o Barão venceu.

E na occasião em que conduzia a assentar-se o seu par, por haver terminado a quadrilha, o Visconde perguntou á joven, sorrindo-se:

-- Então, posso dar os parabens ao Barão?

-- Despues hablaremos, respondeu a joven assentando-se.

Agora uma explicação aos leitores, á cerca d’este enigma.

O Visconde, d’intelligencia com o Barão, e sabendo d'este que a donzella hespanhola estava em caminho de o amar, receiando que a mãe d’esta effectuasse o casamento da filha com o primogenito da Condessa falladora, procurou sondar o gráu d’amor que a joven tributava ao mancebo, e conhecendo, como já presumira, pelas palavras d’aquella, que não amava este, lembrou-lhe logo o seu intimo Barão para avivar na donzella o começo d’amor que sentia pelo mesmo.

A razão d’este acerrimo empenho era a joven possuir de rendimento tres contos de réis, e o Barão ter feito com o Visconde uma transacção particular para, consummado o consorcio com aquelle, poder este tambem gozar parte dos rendimentos da fidalga hespanhola.

Agora continuemos.

Acabada a primeira quadrilha, chegou-se ao Visconde um mancebo de vinte e cinco annos, alto, elegante e bello, se bem que com as feições prematuramehte envelhecidas pelas continuas dissipações e aturados excessos; e dando o braço ao que elle chamava seu amigo, disse-lhe:

-- Não sabes, Visconde, a coisa fez o effeito que esperavas.

-- Sim! tornou o Visconde, ainda bem. Então enganei-me, meu creançola?

-- Chorou, continuou o mancebo, desesperou-se, e maldisse quem lhe perturbava a paz domestica. Estive quasi confessando-lhe tudo, porque agora conheço pelo desespero em que a vi, quando lhe disse que estavamos para sempre separados, que a minha pobre Adelia amava-me deveras.

-- Não sejas tolo, homem, são todas assim, disse-lhe o Visconde rindo. Se não foi d’esta vez, continuou elle batendo no hombro do mancebo, será para outra.

-- Dizes talvez bem, replicou este pensativo e principiando a duvidar outra vez da virtude feminina, pela depravada eschola que cursára desde a adolescencia, dizes talvez bem, porêm minha mulher até hoje tinha sido o modêlo das casadas, apezar de eu contribuir para o contrario.

-- Mas estás livre, atalhou o Visconde, o qual, sabendo que o mancebo era um apologista da liberdade desenfreada, procurava desvanecer-lhe o arrependimento que patenteava, estás livre, e, o que ainda é melhor, podes gozar os rendimentos de tua mulher, porque tens um filho e estás legalmente habilitado a poder administrar-lhe os bens, percebes?

-- Tens razão, respondeu o mancebo embriagado com as idéas que lhe suggeria o Visconde.

-- Agora conta-me, continuou este, como executaste o que te ensinei.

-- Olha, entrei em casa, tendo primeiro o cuidado de entregar a um gallego e recommendar-lhe que a levasse d'ahi a pouco, a carta, cujo rascunho tu me déste e eu mandei copiar por um ratão que é magnifico para estas coisas. D’ahi a alguns segundos pucham a campainha da escada: eu, que de proposito me conservava na sala, perto de minha mulher, que estava tocando piano, instiguei-lhe a curiosidade para que ella se anticipasse a algum criado, dizendo-lhe com certo modo misturado de receio e mysterio:

-- Quem será?

-- Eu vou vêr, me respondeu ella, sem saber o que lhe resultaria de similhante desejo.

E, indo á porta, recebeu a carta que o gallego lhe entregou, e que vinha sobrescriptada para ella. Disse-me que não conhecia a letra, com um vago receio que me serviu ás mil maravilhas para me dar campo á scena que se seguiu á leitura da carta, lançando-lhe em rosto a hesitação rcceiosa que mostrára, a qual claramente dizia que era peccadora e indigna de viver comigo.

-- Bem, disse o Visconde, caminhaste perfeitamente. Agora, continuou elle com voz assucarada, não te esqueças do que combinámos, hein?

-- Ah! descança, respondeu o mancebo; tão depressa possa liquidar a minha parte, heide gratificar-te.

N’este momento a orchestra começou uma polka, e todos os pares dançantes se pozeram em movimento nas salas do Visconde de ***.

CAPITULO V

A familia Mendonça

(Continuação do capitulo antecedente)

Eram dez horas da noite quando entrou no palacio do Visconde de *** um sugeito de perto de cincoenta annos, demasiadamente baixo, proprietario d’um abdomen das dimensões de pipa, com o rosto avermelhado, encaixilhado em duas enormes suissas loiras, que o fariam passar perfeitamente por inglez, senão fallasse claramente o portuguez, e uns grandes olhos entrincheirados em dois enormes vidros d’oculos, do diametro das moedas de vintem.

Este sugeito dava o braço direito a uma senhora que podemos afoutamente classificar, ser a sua antithese. Reparem: a senhora teria trinta annos; era demasiado alta, bastante magra, tinha o que vulgarmente se chama feições miudas, e olhos pequeninos e penetrantes, o que denotava ter boa vista.

O sugeito em questão entrou pois azafamado pelas salas do Visconde, dando, como dissémos, o braço direito á esposa (porque a senhora alta e magra era sua esposa), e a mão esquerda a uma menina de treze a quatorze annos, que era sua filha. Parecia que a natureza se empenhára em contrabalançar a abundancia e escassez de carne que lhe legaram seus progenitores, porque a joven, já entrando na adolescencia, era o que se chama uma bonita creatura, de formas regularissimas, assaz desenvolvida e fóra da infancia.

O tal sugeito, a quem chamaremos o senhor Mendonça, era um rico proprietario de Traz-os-Montes, aferrado á mania de comprar o titulo de barão, o qual casára, sendo ainda pobre, (caseiro d’uma quinta) com a senhora que já conhecemos, que era filha d’um antigo sachristão, porêm já rica no tempo em que namoricou o senhor Mendonça, porque o acolyto das missas herdára do pae, o prior, uma immensa fortuna.

A educação infantil que tiveram os dois esposos, vê-se claramente que, sem dúvida, fôra bem pouca, e ainda menos esmerada.

A filha recebeu pois dos seus progenitores a severa e rispida educação que costumam dar os nossos provincianos da raia, educação a que chamaremos fanatismo e hypocrisia.

Chegava a tal ponto a rigidez da mãe, que obrigava a filha a andar vestida como se tivesse oito ou nove annos: punha-lhe papelotes nos lindos cabellos, e vestia-lhe ainda fato curto, o que obrigava a pobre menina a ser devassada pelas vistas profanas dos curiosos em dias de chuva.

Eis o resultado que se lira da severa rigidez de costumes.

O senhor Mendonça entrou, como dissémos, pelas salas do Visconde, arrastando sua familia caricatamente.

-- Vamos, meninas, dizia em voz alta o gordo trasmontano, dirigindo-se á mulher e filha, vamos, que já é tarde.

E amarrotando todos os vestidos que achava na sua passagem, e pizando todos os homens, chegou finalmente em frente da Viscondessa.

-- Ainda bem que topei com a dona da casa, exclamou elle n’um tom que denotava respirar mais á vontade, julguei que não dava com ella!

E apresentando sua mulher e filha á Viscondessa, disse a esta, desfazendo-se em mesuras e rapapés:

-- Minha senhora, tenho a distincta honra de lhe apresentar minha esposa a senhora D. Pulcheria, e minha filha, D. Filomena Maria da Conceição Mendonça.

E, voltando-se para sua mulher e filha, continuou:

-- Apresento-lhes a vocês a senhora Viscondessa de ***, filha do senhor Conde de *** e esposa do senhor Visconde de ***, em cuja casa nos achâmos.

Depois d’este preparatorio apresentativo, o gordo trasmontano, suando por todos os póros, tirou um lenço da algibeira, e limpando as bagas de suor que lhe corriam pelo rosto, exclamou:

-- Arre que calor!

Esta ultima e delicada phrase acabou por encolerisar todos os fidalgos que circumdavam a Viscondessa, os quaes perguntaram em voz baixa uns aos outros:

-- Quem é este tremendo alarve?

Entretanto a Viscondessa tomava conhecimento com a esposa e filha de Mendonça, beijando com caricias aristocraticas a pequena, e abraçando do mesmo modo a mãe, dizendo-lhes ao mesmo tempo com o seu lindo tom menor sentimental:

-- Como Vossas Excellencias vem cançadas! Tenham a bondade de se assentar.

Depois, emquanto as conduzia para uma sala reservada aos intimos, disse em voz baixa á mulher do Conselheiro M***:

-- Que tres originaes nos entraram em casa!

A mulher de Mendonça assenlou-se, dizendo ao mesmo tempo:

-- Aquelle meu hóme é mesmo um farnezim!... Esqueceu-se de dar ordem, esta tarde, ao nosso cocheiro para apparelhar ás nove horas, e não quiz esperar que o trem estivesse prompto, por causa da demora, pregando comnosco pela rua a correr como se abalassemos atraz d’algum cyrio. Credo... Não sei como não emmagrece, sendo tão farnetigo!

A Viscondessa e as pessoas que estavam na sala reservada, mordiam os beiços para reprimir o riso que lhes provocára tão burlesca tirada.

-- Antão tu não dizes nada, Nina, proseguiu D. Pulcheria dirigindo-se á filha; estás enfadada, meu amor?

-- Não senhor, maman, tenho somno... ergui-me tão cedo hoje!...

-- Eu bem dezia a teu pae que eram já que horas para virmos á festa universal da senhora Viscondessa; mas teu pae, que é teimoso como um jumento, embirrou...

N’este momento ouviu-se a voz de Mendonça, bradar fóra da sala:

-- Antão adonde estão ellas?

E entrando, conduzido por um criado, e vendo sua mulher e filha em companhia da Viscondessa e mais convidados, exclamou, rindo brulalmente:

-- Oh hóme! Eu já julgava que se tivessem perdido! Topei lá fóra o Visconde e fiquei um bocado entretido a conversar com elle; vai senão quando lembro-me de vocês, volto-me...

E, querendo juntar a acção á palavra, o gordo trasmontano volta-se, e n’este movimento vai com a cabeça d’encontro á barriga do Conselheiro M***, que o escutava de pé e estava por detraz d’elle, sendo tão violento o embate que o Conselheiro deu um grito de dôr e caiu para traz sobre um sophá; e Mendonça, perdendo tambem o equilibrio, estendeu-se no pavimento para o lado opposto onde caira o Conselheiro.

Então é que não foi possivel aos convidados presentes reprimirem por mais tempo o accesso de riso que os apoquentava desde a entrada da familia Mendonça.

Rebentou pois um tal estrondo de gargalhadas, em todos os tons, que attrahiram alguns curiosos que estavam nas outras salas.

O Conselheiro, menos pezado que o gordo transmontano, ergueu-se mais depressa, mesmo porque não chegou a cair no pavimento, impedido pelo sophá.

Sua esposa correu a elle e perguntou-lhe:

-- Deu n’alguma parte?

-- Dei, mas levemente, respondeu o Conselheiro com a voz tremula pelo susto; agora o peior foi o que levei pela barriga... Creio que me quebrou alguma coisa, continua elle apalpando as algibeiras.

-- Talvez o relogio? atalhou com interesse a mulher; veja, veja lá...

-- Diz bem, respondeu o Conselheiro, puchando da algibeira esquerda do collete um relogio de ouro com o vidro partido; escangalhou-me o vidro.

-- Pois o senhor, continuou a mulher enraivecida, porêm baixando a voz para não dar escandalo, põe-se atraz d’um bruto d’aquelles?!... Ninguem dirá que é um conselheiro!

-- Mas senhora, quem podia adivinhar que?...

-- Ora qual! Um conselheiro deve adivinhar tudo!

Proferindo esta ultima sentença, separou-se do marido, e foi tranquillisar os convidados que se interessavam em saber se o Conselheiro soffrêra com a pancada, respondendo a todos:

-- Nada, não teve nada... agora o relogio, esse é que ficou escangalhado e hade custar caro o concerto.

Entretanto Mendonça, que caindo de lado deu com a cabeça no tapete da sala, partira um vidro dos oculos e tentando pôr-se de pé ficára de bruços, posição na qual ainda se conservava, fazendo a figura d'um estudante de natação, tal era o bracejar e o escoucear do rotundo trasmontano, suspenso na proeminencia da barriga, a qual o obrigava a fazer rodizio com o corpo em torno da sala.

Sua mulher, para o ajudar a levantar-se, caira-lhe em cima dando gritos, de modo que produziu o effeito contrario obrigando o pobre homem a pedir soccorro, hurrando com voz abafada:

-- Alliviem-me, com todos os diabos, não me carreguem em cima! Dêem-me cá a mão!

E bracejava, escouceava e estrebuchava cada vez mais, porêm debalde, porque sua mulher continuava sempre gritando e carregando-lhe em cima do corpo.

Felizmente para o pobre homem, sua filha que tambem gritava e chorava ao mesmo tempo, para fazer a segunda á mãe, poude ouvir o que o pae implorava, e dando-lhe a mão, para o ajudar a levantar-se, gritou ao mesmo tempo a sua mãe:

-- O papá diz que se tire de cima d’elle, maman, e que lhe dê a mão.

-- Sim, filha? Antão vamos ajudal-o.

E dispunha-se a dar a mão ao marido para finalmente o levantar, porêm não foi necessario, porque dois dos convidados que até ali se haviam conservado risonhos espectadores, vendo que Mendonça começava a estar afflicto, correram immediatamente a elle e ajudaram-no a levantar.

O gordo trasmontano foi pois erguido do chão. O rosto d’elle passára de córado a rôxo purpurino; os olhos parecia terem-lhe crescido nas orbitas; e os oculos, que lhe haviam caído para o nariz, estavam com o vidro do olho direito de menos. Tudo isto contribuia para vêr no pobre Mendonça a mais original caricatura que imaginar se póde; e ainda mais desafiava a hilaridade nos convidados, o riso que o pobre homem queria patentear, mostrando que não estava molestado.

-- Nada é... dizia elle em voz alta a sua mulher, rindo, porêm discordemente.

Depois, acariciando a filha, accrescentou:

-- Antão tu, filha, cuidavas que eu estava morto?... Sempre fazias um berreiro que nem um rebanho de cabras! Ah! ah! ah!

Ao ouvirem a ultima phrase de Mendonça, e a sua estridente e discorde risada, todos os convidados lhe responderam, em côro de gargalhadas, com tal força, que aturdiram e fizeram entrar em si o pobre ricasso gordo, o qual, dando por pretexto ter de se erguer muito cedo, despediu-se assalvajadamente de todos e arrastou a familia para fóra do palacio do Visconde, do mesmo modo que entrára.

A mulher do Conselheiro, vendo sair a familia Mendonça, não poude deixar de fazer a seguinte observação:

-- Não sei onde a minha amiga Viscondessa foi desencantar uma familia selvagem a tal ponto, que é indignissima de estar em contacto com pessoas civilisadas e que tenham relogios de preço.

-- Pois se aquelle papalvo, responde a Viscondessa rindo, anda atraz do Visconde para que elle influa no Paço afim de lhe obter o titulo de barão!...

E caminharam para a sala do baile.

O Conselheiro, dando o braço a sua esposa, amparava, com a mão do outro braço livre, a barriga, como se estivesse accommettido de dôres de colica.

CAPITULO VI

Os «intimos» reunidos

(Conclusão do baile)

Depois da tumultuosa saída da familia Mendonça, de socegarem os animos, e findarem commentarios e gargalhadas ridicularisando o provinciano, continuou o baile nas salas do Visconde.

A Viscondessa, que continuára dançando com o filho da Condessa de ***, já dera molivo a conversações em voz baixa, quasi todas suscitadas pela joven pallida, filha do Commendador F***.

-- É par effectivo da Viscondessa, não tem reparado, meu pae?... dizia a donzella trigueira ao Commendador F***. Teem dançado toda a noite um com o outro!

-- Então que queres? respondeu-lhe o pae, rapazeadas.

-- Mas não é assim, replicou a filha; os pares effectivos são pessimos n’um baile onde ha poucos cavalheiros, e o que resulta d’ahi é que, quem não tem par effectivo... por exemplo, eu, que ainda não dancei senão contradanças com o papá e gosto tanto de polkar!...

-- Então que queres, minha filha? Eu já não estou para rapazeadas.

-- Eu tambem não digo o contrario; muito tem o papá feito; agora o que desejava era que alguem me viesse tirar para uma polka ao menos... Se o papá me fizesse um favor... continuou ella ameigando a voz com velhacaria estudada para conseguir o que pretendia do trigueiro Commendador.

-- Então que é?... Dize, minha filha.

-- Se o papá fosse pedir ao filho da Condessa de ***, porêm em seu nome, se dançava comigo qualquer coisa que não seja contradança... era o papá bem bonito.

-- Oh! minha filha, isso era bom se fosse no tempo das minhas rapazeadas.

-- O papá tambem, replicou a joven em tom acre, contrastando inteiramente com a meiguice ha pouco fingida, em se lhe pedindo alguma coisa que não queira fazer, vem logo com as suas rapazeadas!

-- Então que queres, minlia filha?... Bem vês que é verdade estar eu já lia muito fóra das minhas rapazeadas...

A filha, zangada, levantou-se bruscamente e foi conversar, para longe do Commendador, com as suas amigas dançantes em disponibilidade.

-- Então Vossa Excellencia jura amar-me? perguntava em voz baixa á Viscondessa, o filho da Condessa de ***.

-- O senhor é incredulo, sem contradicção, respondeu a Viscondessa rindo. Quantas vezes quer que lhe repita mais o que já lhe confessei?

-- E quando tenciona dar-me uma prova d’esse amor? perguntou o mancebo, extasiado com o que acabava de ratificar-lhe a Viscondessa.

Porêm n’este momento, passando perto d'elles o Visconde, o qual dava o braço á linda hespanholinha, o mancebo disse com voz receiosa á Viscondessa:

-- Seu marido parece vigiar-nos; eu retiro-me de ao pé de Vossa Excellencia, sim?

-- Não seja crcança, respondeu a fidalga com todo o sangue frio; não vê que meu marido anda distrahido?! Podemos conversar afoitamente, que elle não dará por tal. O peior, continuou ella, reparado para o grupo onde estava a filha do Commendador F***, é a negrinha estar a observar-nos.

E levantando-se, pediu ao mancebo que lhe désse o braço, e caminhando desaffrontadamente pela sala, conduziu o joven para outra, dizendo-lhe pelo caminho:

-- Agora vamos ficar ao abrigo da critica.

N’este momento a orchestra começou uma mazurka.

A joven hespanhola, que estava compromettida com um cavalheiro, largou o braço do Visconde e tomou o do novo par.

O Barão de ***, que ficára livre n’esta mazurka, e que havia tempo procurava fallar a sós com o Visconde, assim que viu este desembaraçado do lindo par, correu a elle immediatamente e perguntou-lhe com aquella voz sumida que os tratantes só sabem empregar nos seus contratos particulares:

-- Então, ha boas noticias?

-- Magnificas, homem! respondeu o Visconde radiante; a pequena gosta de ti... e então é fazeres-lhe fogo activissimo se quizeres tomar a praça com brevidade.

-- Oh! que fortuna! exclamou no mesmo tom de voz o Barão. N’esse dia pago um jantar no Matta a todos os nossos amigos.

-- E eu... atalhou o Visconde hesitando.

-- E tu has de ter a tua recompensa fóra parte, por seres tão bom procurador n’este negocio.

-- Bom, isso é no futuro, continuou o Visconde; porêm agora pensemos no presente, em que estou tão falto de dinheiro. Dize-me cá, quem será hoje o pato, como dizem os jogadores da plebe, que nos hade cair nas unhas para a jogatina? o alarve do Mendonça succedeu-lhe aquella catastrophe... o Conselheiro, esse é seguro como todos os demonios...

-- Ah! exclamou o Barão, como quem teve uma subita idéa; convidâmos o pateta do Commendador F*** para a nossa partida depois do baile.

-- Boa lembrança! accrescentou o Visconde; elle é rico, gosta do jogo... e então cáe.

-- Tu dizes que não tens dinheiro? perguntou-lhe o Barão, mettendo uma das mãos na algibeira da calça e fazendo tinir bastantes peças metalicas.

-- E assim é, respondeu o Visconde.

-- Então aqui tens para para r, e não te esqueça o que sabes; assim que lhe ganhares, guarda logo o d’elle e continúa a casar d’este.

E entregou-lhe dez lindas libras com o cunho da rainha Victoria, as quaes tinham todo o brilho do ouro cunhado que tem tido pouca circulação.

-- Bem, percebo, tornou-lhe o Visconde, lançando-lhe um olhar significativo.

Eram já tres horas da madrugada.

As salas do Visconde de ***, começavam a estar desguarnecidas de convidados, porque a orchestra tocára a ultima quadrilha e já se havia distribuido o chocolate.

Pouco a pouco foram pois os convidados desapparecendo, e só ficaram na sala principal os donos da casa, o Conselheiro M*** e a mulher, o Barão de ***, o Commendador F*** e a filha.

Este septimino passou, portanto, para a sala de refeição, onde já estava na meza uma lauta ceia volante de comidas frias, vinhos generosos, fructas, etc.

As sete dentaduras começaram pois a trabalhar para fortalecerem os estomagos, e depois de haverem esgotado não poucas garrafas de bachico licôr de diversas qualidades, o Barão de ***, vendo que o Commendador F *** já estava fóra do seu estado normal, propoz uma partida de ronda.

O Commendador, ouvindo isto, bradou enthusiasmado, por ser um acerrimo amador de jogo:

-- Bravo, viva a rapaziada!

Passaram pois todos para um gabinete onde havia uma meza propria para este fim, e logo na primeira parada, na qual foi banqueiro o Visconde, perdeu o inepto Commendador cinco libras que apostára sobre o az de copas.

O Visconde recolheu o dinheiro, e depois de ter extrahido d’entre as dez libras da parada, as cinco que haviam pertencido ao Commendador F ***, como arrependendo-se de não affrontar a parada, exclamou, depois de substituir as libras que subtraira por outras cinco das suas:

-- Nada, vou as dez libras!

E assim continuou a limpar as algibeiras do tolo Commendador.

O Conselheiro M * **, que não fizera senão apalpar a barriga toda a noite, depois da cabeçada que lhe dera Mendonça, e que bebêra á ceia por quatro, conservava-se de parte, sendo espectador, dizendo alguns alegres dichotes, coisa que surprehendeu os demais convidados, e deu motivo a ser asperamente reprehendido por sua mulher. Porêm o Conselheiro tinha a cabeça em tal estado que nada attendia, e dirigindo-se ao Visconde com um risinho avinhado e com os olhos amortecidos, disse-lhe, dando á cabeça:

-- Eu não me admiro que o Visconde ganhe, porque é um portento para todas as emprezas. Nunca me poderá esquecer como elle fez com que o piegas de meu sobrinho jazesse seis mezes no Limoeiro...

Não poude acabar, porque a mulher, tapando-lhe a boca com um lenço, disse-lhe desabridamente:

-- Ninguem dirá que é um conselheiro! Forte estupido! Vamo-nos embora, continuou ella atando-lhe o lenço á cabeça; não tire o lenço da boca para não se constipar, porque faz muito frio lá fóra.

E arrastou o marido para fóra do gabinete quasi sem se despedir de ninguem.

-- O Commendador, diz o Visconde ao pato depennado, talvez se admire do que ouviu ao Conselheiro M*** a meu respeito.

-- Ora qual! respondeu o Commendador levantando-se e arranjando-se para sair. Rapazeadas, meu caro! rapazeadas... Todos nós fizemos o que podémos.

E despediu-se da companhia, chamando sua filha, que adormecêra com o pezo do alcohol que lhe subira á cabeça.

SEGUNDA PARTE

A JUSTIÇA D’ESTE MUNDO

CAPITULO I

As prizões em Portugal

Os leitores hão de estar lembrados de que deixámos no prologo d’esta obra o infeliz José Pereira desmaiado nos braços de D. Julia, e entre as garras da policia.

Quando tornou a si, o desgraçado mancebo viu-se n’uma sege que rodava apressadamente, apezar da magreza dos dois quadrupedes que a arrastavam, tendo por companheiros dois individuos da policia, os mesmos que o haviam prendido, os quaes pareciam ter-se encarnado no corpo do pobre orphão.

O mancebo, abrindo os olhos, pareceu coordenar as idéas e recapitular na memoria alguma coisa já passada, emquanto um dos dois esbirros dizia ao outro companheiro:

-- Antão o que te dezia eu, vês? Já o melro acordou. Como se vai aproximando á gaiola é como todos os outros passaros: quer naturalmente vêr se póde bater as azas e fugir. Pois está enganado, porque se a tal se atrever, eu cá por mim venho disposto a tudo; e tu ó Manél?

-- Que estás tu para ahi a bramar, homem? Bem se vê que o rapaz teve um desmaio de susto. Se te parece que era para menos, com os modos com que eu o prendi! Espera que eu parece-me que elle quer fallar, continuou o beleguim reparado que José Pereira abrira totalmente os olhos e olhava para os dois companheiros de viagem com um ar como de quem acorda d’um profundo somno.

Com effeito, José Pereira, tornando totalmente a si, pareceu-lhe primeiro que o presente era o passado, isto é, que caminhava para o templo a receber por esposa D. Julia; porêm, puchando pela idéa e encarando os dois beleguins, teve uma vaga recordação de ter ouvido vozes de prisão contra si: portanto, dirigindo-se aos dois agentes de policia, perguntou-lhes com anciedade e receio:

-- Os senhores fazem favor de me dizer para onde vamos?

Os beleguins, ouvindo esta pergunta, deram uma cotovelada um no outro, como signal de intelligencia, o qual significava: «começam as perguntas do costume.»

José Pereira, vendo que lhe não respondiam, reiterou a pergunta, e teve a seguinte resposta em voz desabrida, dada pelo beleguim o senhor Manél.

-- Antão você não sabe, homem? quer fazer-se tolo com a gente!

-- Oh! senhores, affianço-lhes, replicou José Pereira, que não sei para onde me conduzem, porque tenho as idéas tão confusas que as não posso coordenar. Eu ia, parece-me, para um acto solemne... se tudo isto não é mais que um sonho...

-- Não é sonho, não senhora, respondeu-lhe o companheiro do senhor Manél. Antão você não se lembra que, ao apear-se da carruagem, onde ia para o tal acto solemne, como você lhe chama, lhe caímos nós em cima com ordem de o prender, em consequencia de um mandado assignado pelo senhor Governador civil do Lisboa.

-- Ah! é verdade, exclamou dolorosamente o pobre orphão, que com este aviso do beleguim se lhe avivaram totalmente as idéas; é verdade, lembro-mo agora perfeitamente que me deram a voz de prezo!

-- Ah! já? Antão bem.

-- Porêm, senhores, continuou José Pereira, qual é o meu crime?! A minha consciencia não me accusa de ter praticado algum.

-- Adeus, que começam as lamurias, diz por entre dentes o senhor Manél.

Depois, levantando a voz, tendo primeiro olhado pela portinhola, diz ao infeliz orphão:

-- Estas explicações não são para aqui, mesmo porque não temos tempo de as ouvir por termos chegado ao nosso destino.

-- Agora, accrescenta o outro, a rezão porque está prezo, hade sabel-a d’aqui a tres ou quatro dias, quando fõr responder á Boa-Hora...

N’este momento parou a sege defronte do muro de construcção moderna que circumda a parte exterior, norte, do alcaçar de D. Fernando I (o formoso), nono rei de Portugal, o ultimo da primeira dynastia.

Um dos agentes de policia apeou-se, e depois de estar fóra da sege disse a José Pereira, que estava como preplexo, sem vêr nem ouvir:

-- Vamos, é sair; não podemos estar a perder tempo!

E, vendo que o mancebo não se movia, disse ao companheiro com voz de stentor:

-- Ó Manél, pega-lhe por um braço, que eu cá o pucho por uma perna.

E começou a executar o que dissera, ajudado pelo companheiro, que ficára dentro da sege.

José Pereira, saindo do estado de abatimento em que caira, pelo primeiro puchão que o beleguim lhe deu na perna direita, levantou-se rapidamente, pediu aos agentes da policia perdão por não ter ouvido as ordens que lhe intimaram, e terminou, dizendo-lhes que não era necessario violencia para o encarcerarem, porque elle tinha a consciencia livre, e o futuro o mostraria.

Os beleguins riram-se um para o outro; este riso de incredulidade traduzia-se pouco mais ou menos por estas palavras: «Oh que grande descarado!» ou «pobre pateta, estás feliz!»

Depois do riso ironico, os dois agentes de policia escoltaram José Pereira até elle dar entrada na cadeia civil, cognominada pelo vulgo «Limoeiro».

José Pereira entrou pois no Limoeiro no dia em que devia receber por esposa a mulher que amava.

Triste humanidade, a que tu estás sujeita!

Quando tencionas gozar com descanço, a justiça d’este mundo obriga-te a soffrer com desassocego, e bastantes vezes injustamente!

A justiça d’este mundo tem os olhos muito vendados!

José Pereira foi conduzido pelo carcereiro para o que se chama no Limoeiro, sala livre. O orphão ali esteve dois dias, gastando o pouco dinheiro que tinha, sendo enviado no terceiro para a enxovia por não ter com que pagar a carceragem.

Agora, visto chegarmos a este ponto, algumas palavras aos leitores, e sirvam ellas ao menos para que de futuro seja melhorada a sorte dos homens condemnados a prizão, que ainda não estão prevertidos a ponto tal que sejam indignos da sociedade.

Qual a razão porque os governos de Portugal teem até hoje descurado de proporcionar aos prezos, conforme os seus crimes, prizões onde possam arrepender-se e regenerar-se, já pelo exemplo do trabalho e sua recompensa licita, já pelo contesto de outros companheiros de crime que nivele com o seu?

Pois a Inglaterra tem casas penitenciarias, a Belgica tem casas de correcção, os Estados-Unidos tem officinas e casas onde os prezos, por grandes crimes, estão separados dos prezos por crimes leves, e em Portugal, mesmo os que são prezos por suspeitos, isto é, que ainda não teem culpa formada, não habitam em companhia de altos facinoras, reconhecidos por tal, e que até já teem cumprido degredo por mais d'uma vez!

O que resulta, e isto sem contradicção, do contacto d’um noviço no crime com o mestre da atrocidade e malvadez?

Respondam-nos a isto... Porêm é melhor respondermos nós.

O resultado do contacto do homem accusado ou suspeito de qualquer crime, e isto pela primeira vez, com o prezo embolado e empedernido, tanto pelo seu máu caracler como pelo triste legado, transferido por um outro peior do que elle, e que se arreiga ao coração do ente que odeia a sociedade, por ella o haver castigado justa ou injustamente; o resultado do contado do homem, repetimos, que tem um crime leve, e muito mais, sendo adolescente, com os prezos condemnados pela sociedade, é terrivel para a mesma sociedade, por lhe amputarem um membro, podendo antes cural-o, e depois de sarado, ser muito mais proveitoso ao corpo social.

Quando fazemos reflexões pungentes d’esta natureza, é sempre com o maior pezar, por vêrmos a nossa patria, um reino independente ha tantos seculos, e hoje tão civilisado, cheio de tantas miserias, e que muitas podiam ser regeneradas!...

Prosigamos.

José Pereira viu-se, pois, obrigado a dormir sem cama e a comer da caridade publica, elle, sobrinho do Conselheiro M***, filho da irmã d’este miseravel, que nem sequer ao pobre orphão pagou a carceragem!

Já eram passados quatro dias desde que José Pereira entrára no Limoeiro, quando, na manhã do quinto, pelas nove horas, o carcereiro, entrando na enxovia, chamou o mancebo, participou-lhe que ia responder ao interrogatorio no tribunal, e então que o seguisse.

-- Olha, o casaca vai hoje responder, disseram os prezos uns para os outros, em voz baixa. Quando chegará tambem a nossa vez?!

O mancebo seguiu o carcereiro.

Depois da saída dos dois, os prezos acharam no incidente que se déra, assumpto para discorrerem á sua vontade.

-- O gajo, diz um prezo alto, homem de trinta e seis annos, coberto de farrapos, com a tez bronzeada e coberta de rugas, o que lhe dava um ar sinistro; o gajo está sempre a choramingar dezendo que está innocente; elle virá hoje a sua innocencia em le caindo á perna o ministerio publico.

-- Eu cá, diz outro prezo, mancebo de vinte e cinco annos, com a physionomia amarellada e doentia, alludindo tambem a José Pereira; eu cá, se estivesse no caso do casaca, se é verdade o que elle diz, de o terem prendido sem ser em flagrante, e sem culpa formada, eu cá havera de dar meças aos malsins, gaitas ou cabos da pasmaceira; fazia-le como le fez o Zé tripeiro quando o prenderam sem adicarem o que elle tinha feito; não é verdade, ó Zé?

-- Tu ainda m’o próguntas, respondeu o interrogado; só se eu fosse algum papa assorda como o bolas do casaca, que se deixou filar.

-- Elle aprenderá á sua custa com o tempo, e comtigo, que não te fartas de le dar lições cá da nossa cantiga. Deixa estar que ainda te hades arrepender; olha que t’o digo eu.

Esta increpação foi feita por um prezo que estava estendido, quasi nu, sobre uns farrapos, e que mostrava ser homem de quarenta e tantos annos, porêm com uma physionomia feroz, e que lhe dava um aspecto de selvagem, pelo estado de quasi nudez em que se achava.

-- Mas que tens tu com isso, meu farrapeiro piolhoso? perguntou o interpellado Zé tripeiro com um modo nada macio; tu andas a jogar-me picuinhas, e algum dia sáe-te a coisa azêda.

-- Dize lá isso outra vez, ó tripeiro, replicou o outro prezo erguendo-se d’um salto de sobre os farrapos e aproximando-se do seu antagonista.

-- Porquê, queres le dar? perguntou o outro.

-- E antão que julgas? respondeu o farrapeiro, medindo-o d’alto a baixo e preparado-se para o combale.

Porêm n’este momento a porta da prizão abriu-se, e deu entrada a um padre que vinha confessar um prezo que se achava perto de terminar a peregrinação n’este mundo.

Os dois athletas olharam-se raivosa e reciprocamente, e disseram um ao outro por entre dentes:

-- Agora não póde ser; para outra occasião veremos quem é mais homem.

E o farrapeiro tornou a deitar-se, e os outros prezos continuaram no seu estado normal.

CAPITULO II

O interrogatorio

José Pereira, saindo do Limoeiro, encontrou no pateo o Visconde de ***, seu projectado padrinho, o qual, vendo o mancebo, estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe ao mesmo tempo em tom affectuoso e protector:

-- Então como está?

E vendo que o mancebo, vexado por tão inesperado encontro, não sabia o que responder-lhe, continuou:

-- Como me constou que o amigo era hoje interrogado, venho offerecer-lhe a minha carruagem para o conduzir ao tribunal; conhece que assim vai abrigado das vistas da plebe, não é verdade?

-- Oh! senhor Visconde, exclamou José Pereira commovido, tanta bondade em Vossa Excellencia para comigo, é uma prova d’estima que eu nunca esquecerei... Porêm, que vergonha para mim, continuou elle baixando a voz, succeder-me esta desgraçada catastrophe, vexando, sem querer, pessoas tão dignas como a minha querida Julia, Vossa Excellencia, o senhor Conselheiro e o senhor Barão. Oh! mas juro que estou innocente, que não commetti nenhum crime pelo qual mereça o que me succedeu.

E o pobre mancebo levou o lenço aos olhos para limpar duas ardentes lagrimas que lhe obstruiam a vista e lhe escaldavam as palpebras.

-- Tranquillise-se, disse o Visconde com um delicioso sorriso, porque, estando o amigo innocente, hoje mesmo ficará livre e solto.

-- Ah! senhor Visconde, se tal acontece, exclamou José Pereira com animação, que ventura será para mim e para a minha Julia! Como está ella, senhor Visconde?

-- Physicamente, passa bem; quando o viu prezo é que se sobresaltou muito; porêm tranquillisou-se depois quando lhe dissemos que descançasse, porque o amigo não era criminoso, segundo parecia.

-- Ah! quem me déra poder já abraçar aquelle querido anjo! exclamou com enthusiasmo o pobre mancebo.

O Visconde, para evitar os transportes do infeliz orphão, porque o incommodavam, disse a este n’um tom de conselho:

-- O amigo não deve demorar-se porque o interrogatorio hade começar ás dez horas, e ellas não tardam. Nunca é bom fazer esperar os juizes, em casos similhantes ao seu.

-- Então vamos, senhor Visconde, sim?

-- Eu não vou, disse o Visconde, hesitando, porque... tenho tambem que fazer ás dez horas...

-- Então, replicou José Pereira, é-me impossivel aceitar a carruagem de Vossa Excellencia, porque o senhor Visconde não hade ir a pé, e eu...

-- Descance o amigo; onde eu vou é perto d’aqui, e então não me causa incommodo. Já preveni os lacaios que me viessem buscar, depois de pôrem o amigo no tribunal.

E, despedindo-se affectuosamente do mancebo, não deu tempo a que este lhe dissesse mais nada.

José Pereira entrou pois na carruagem do Visconde de ***, escoltado pelos dois agentes de policia já seus conhecidos, que se lhe aproximaram no momento em que o Visconde se retirou.

-- Olhe que você tem bem bons amigos, diz um dos beleguins a José Pereira, depois de estarem todos sentados dentro da carruagem; senão fosse este fidalgo, seu protector, ia você dar uma enchente por essas ruas, de casaquinha e a pé.

-- Isto sim, diz o outro, isto é que é uma boa carruagem e uma excellente parelha de cavallos; não é como a outra capoeira em que viemos ha quatro dias, não é assim, Manél?

-- Ora! antão tu queres compara r, responde o interrogado, os trens da fidalgaria com as seges d’aluguer, que são puchadas por bestas com fome e pôdres, guiadas por bolieiros quasi sempre bebedos!? Tu és tolo, homem!

-- Diga-me cá, seu coisa, continuou elle dirigindo-se a José Pereira, você sabe que vai responder para depois se lhe instaurar o processo, e que é necessario que você tenha corage para não aggravar mais o crime, e que responda com afoiteza, e sem estar a titubear, hein?

-- Olhe que isto, diz o outro interrompendo o companheiro e dirigindo-se tambem ao mancebo, não se diz a todos. Você, se fôr absolvido, não se esqueça cá dos amigos, ouviu?

-- Descancem, meus caros senhores, que os heide gratificar, respondeu José Pereira, que, tendo a consciencia livre por não haver commettido crime algum, tinha quasi a convicção (pobre rapaz!) de que ia ficar brevemente em liberdade.

Chegaram ao tribunal da Boa-Hora.

Os beleguins apearam-se, assim como José Pereira, e conduziram este para a sala de audiencia do primeiro districto criminal.

O mancebo, que nunca ali entrára, nem ao menos como espectador, sentiu vergarem-se-lhe as pernas, e um arripio por toda a espinha dorsal; finalmente, teve medo.

A sala estava cheia dos ociosos habituados a não lhes escapar audiencia alguma criminal, e que são infalliveis assignantes das audiencias e processos crimes.

José Pereira transpoz os umbraes da sala, sendo saudado á entrada por diversas vozes em côro que lhe echoaram nos ouvidos:

-- Elle ahi vem, o outro accusado!

Os dois agentes da policia encaminharam o mancebo para o banco dos réos, e depois das formalidades do juramento, ordenadas pelo juiz. inquirição de nome, etc., dirigindo o magistrado a palavra a José Pereira, perguntou-lhe:

-- Vocemecê sabe de que é accusado?

-- Ignoro-o completamente, respondeu o interrogado com firmeza.

-- Tragam o outro réo, disse tf juiz ao empregado competente.

Este, executando as ordens do magistrado, abriu uma porta ao lado esquerdo da bancada, e voltou dahi a pouco com o criado do Conselheiro M***.

O juiz mandou assentar o segundo accusado ao lado de José Pereira.

-- Conhece esse homem? continuou elle, dirigindo-se ao mancebo.

Este, que ficára estupefacto, vendo entrar o criado de seu tio, classificado pelo juiz, de «outro réo», respondeu com menos firmeza que da primeira vez, por lhe occorrer repentinamente um facto que se passára entre os dois, em casa do Conselheiro:

-- Conheço perfeitamente. É o criado do senhor Conselheiro M***, em casa de quem eu estava hospedado.

-- Muito bem, proseguiu o juiz. Pois aquelle senhor, continuou elle, dirigindo-se a José Pereira e indigitando-lhe o criado, é accusado pelo senhor Conselheiro M*** de lhe haver arrombado uma secretária e tirado d’ella trezentos mil réis em notas; e vocemecê accusado pelo outro réo de cumplice d’elle; isto confirmado pelo senhor advogado por parte do ministerio publico, por se ter mandado proceder a buscas em casa do senhor Conselheiro M***, e achar-se dentro do bahú do senhor José Pereira, a referida quantia encerrada dentro d’aquella caixa (e indicou uma caixinha de madeira que fôra outr’ora um estojo de flauta, e que se achava sobre uma meza), que o accusado Manuel Alonso reconheceu como sua.

E, depois d’um silencio d’alguns segundos, o juiz continuou:

-- Tem alguma objecção a fazer a esta accusação?

José Pereira recebêra tamanho choque com tão inesperada e falsa accusação, que, empallidecendo e faltando-lhe a palavra, o que era totalmente em seu desabono em similhante occasião, balbuciou com voz entrecortada:

-- Eu, senhor, à vista de tal accusação, que heide dizer, se todas as apparencias são contra mim?

Aqui houve rumor no auditorio, rumor que se entendia ser pró e contra o accusado.

-- Então, proseguiu o juiz depois de com um scio ter amortecido o rumor, e dirigindo-se a um sugeito que estava assentado á direita da bancada, o senhor advogado por parle do ministerio publico, se tem algumas observações a fazer aos accusados, póde começal-as.

O ministerio publico fez o seu habitual discurso, o qual terminou pouco mais ou menos n’estes termos:

«É da nossa obrigação, como membros do grande corpo social, e muito mais hoje, que estamos constituidos em seus defensores, castigar os que commetteram crimes. Os réos que estamos vendo estão n’este caso, etc.»

Depois d’este discurso o juiz proferiu a sentença aos réos, n’estes termos:

«Ficam condemnados os dois rêos, Manuel Alonso e José Pereira, em um anno de cadeia, contando-se-lhes comtudo o tempo que já teem de prizão, ficando isentos de pagarem as custas do processo, por serem pobres.»

E fechou a audiencia.

CAPITULO III

Esclarecimentos

Dois dias antes do projectado para as nupcias do desgraçado José Pereira, e estando este no seu quarto, em casa do Conselheiro M***, passando revista ao fato que tinha no seu bahú, appareceu-lhe á porta, que estava meio cerrada, o criado de seu tio, o qual já os leitores sabem chamar-se Manuel Alonso, com uma caixinha na mão, hermeticamente fechada á chave, e disse ao mancebo:

-- O senhor Pereira faz-me o favor de me guardar esta caixinha até ámanhã ou depois, porque tenho aqui dentro cartas de namoro e outros papeis, e não quero que a criada da cozinha vá ao meu bahú, que está arrombado, e me faça depois troça, lendo-me as cartas.

-- Guardo, respondeu José Pereira mesmo sem vêr o que era.

-- A caixa está fechada, continuou o criado, mas a criada tem confiança comigo, e é capaz de m’a arrombar... Então o senhor mette-a no seu bahú, sim?

-- Dê-a cá, diz José Pereira estendendo o braço para receber a caixa.

Depois, mettendo-a no seu bahú, sem nem ao menos observar o que lhe confiavam como depositario, continuou, dirigindo-se ao criado:

-- Póde ficar certo que fica bem guardada até quando determinar vir buscal-a.

-- Muito agradecido, senhor Pereira, respondeu o criado fazendo muitas caretas que se pareciam ao longe com um sorriso.

-- Não tem de que, senhor Manuel, quando o podér servir n’alguma coisa, conte comigo.

O criado retirou-se.

Agora levemos o leitor a presenceiar outra scena que se déra em casa do Conselheiro M***, antes da precedente.

O Conselheiro chamou o criado, e, aconselhado pelo Visconde, propoz-lhe o seguinte:

-- Tu queres ganhar cem moedas?

O criado abriu muito os olhos, riu velhaca e estupidamente ao mesmo tempo, e respondeu:

-- Quero, sim, meu senhor.

-- Então, disse o Conselheiro, mostrando-lhe a caixa, has de levar esta caixa ao senhor José Pereira e pedir-lhe da tua parte, entende bem, que t’a guarde no seu bahú.

E, vendo que o criado não comprehendia, continuou com um tom persuasivo:

-- Isto é para me livrar d’aquelle tratante, porque tu ainda não sabes que elle seduziu a senhora D. Julia e quer casar com ella para fazer a pobre menina infeliz e roubar-lhe o que lhe pertence.

-- Ai! que velhaco! disse o criado em tom duvidoso que se podia confundir com a ironia e incredulidade.

-- Pois é por isso, vês? continuou o Conselheiro, que eu quero ensinar o rapinante, fazendo com que elle vá parar ao Limoeiro e...

-- E eu tambem, senhor? perguntou o criado recuando um passo e mostrando-se muito surprehendido.

-- Talvez, mas descança que serás protegido por mim o tempo que lá estiveres, o qual não hade ser muito, porque eu o que pretendo é despersuadir minha pupilla de casar com aquelle malvado, que a quer deixar pedindo uma esmola.

-- Mas, senhor Conselheiro, cem moedas só é muito pouco, replicou o criado que, como fino velhaco, comprehendêra que devia puchar o preço até subido gráo; bem vê que não heide ir para a enxovia, e assim não merece a pena...

-- Descança a esse respeito, tornou o Conselheiro, eu encarrego-me de te pagar a carceragem na sala livre e de dar-te um cruzado cada dia para comer, alem das cem moedas. Se queres assim, faze o que eu te disse e não tenhas receio pelo futuro, a teu respeito.

O criado, alma venal, e prevertida talvez pelo procedimento que vira praticarem os seus patrões precedentes, quasi todos fidalgos, não lhe importára commetter uma infamia da qual nem mesmo conhecia o resultado, e as consequencias que poderiam sobrevir ao desgraçado José Pereira, annuindo de boamente ao que o Conselheiro lhe propozera.

O resultado foi o que os leitores viram succeder ao pobre mancebo na occasião em que, com o jubilo na alma, caminhava para o altar a receber por esposa a mulher que adorava, e as consequencias as que o leitor verá no seguimento d’esta obra.

CAPITULO IV

Terrivel decepção

José Pereira fôra reconduzido para o Limoeiro e tornára a entrar na enxovia, horrorisado, e perguntando a si mesmo se era sonho ou realidade o que ouvira ao juiz.

Na tarde do dia em que o orphão foi condemnado, entrou o Conselheiro em sua casa muito azafamado; e chamando sua mulher e pupilla, a qual estava animada e inquieta ao mesmo tempo, com o pensamento de que o seu querido do coração podia correr algum risco sinistro, disse-lhes em tom magoado, mostrando-se ao mesmo tempo enfurecido:

-- Quem me havia de dizer que o homem a quem eu pretendia fazer feliz, o homem que recolhi em minha casa, se associaria com o criado para ambos me roubarem!...

-- Oh! senhor Conselheiro, isso é impossivel!... exclamou D. Julia, a quem o rubor da indignação coloriu por um momento as pallidas e abatidas faces; o meu querido José Pereira é incapaz de commetter similhante attentado!

-- É incapaz? continuou o Conselheiro; pois então saiba que foi hoje condemnado, no tribunal da Boa-Hora, em tres annos de cadeia, assim como o criado, por este haver declarado ser aquelle, seu cumplice, e o réo não ter negado a accusação que lhe fazia o outro. Nada respondeu, em sua defeza, quando o juiz o convidou a justificar-se.

-- Oh! meu Deus! que cruel infelicidade! disse D. Julia com a voz suffocada pelo pranto, e empallidecendo horrivelmente.

E assentando-se n’uma cadeira, começou a verter abundantes lagrimas, e entrou n’um tremor convulsivo que fazia compaixão a quem a visse.

A mulher do Conselheiro, para a animar, chegou-se a ella e disse-lhe em tom compassivo, magnificamente representado:

-- Ora, então para que está a menina a amofinar-se? Tres annos passam depressa... é ainda muito nova e póde esperar que termine esse tempo.

-- E o que diriam, a senhora, meu tutor e os seus amigos, respondeu D. Julia indignada pela proposta da mulher do Conselheiro, na qual conheceu uma zombaria cruel e pungente; que diriam se, depois de sair da prizão, o desgraçado orphão aspirasse ainda a ser meu esposo e eu annuisse a ser sua mulher?...

A mulher do Conselheiro mordeu os beiços despeitada e ficou um momento em silencio.

O Conselheiro, aproveitando esta occasião, quiz tambem dar conselhos á pupilla e, dirigindo-se-lhe, disse:

-- E depois a menina... sendo bonita e rica, como é, não tem bastantes mancebos tambem ricos, bellos... e até fidalgos por onde escolher? Por exemplo, o V...

Não acabou, porque sua mulher, lançando-lhe o olhar que a hyena lança ao tigre, vociferou ao mesmo tempo:

-- Cale-se, senhor, que não diz senão asneiras!

Depois, voltando-se para D. Julia sem se desconcertar, proseguiu:

-- A menina não me comprehendeu, ind’agora, creio; julgou talvez que eu não dizia o que sentia, e enganou-se completamente. Eu, se amasse um homem, continuou ella observando D. Julia, que estava com o olhar pregado no pavimento e se conservava immovel como uma estatua, por lhe haverem cessado os tremores nervosos; que me importava que elle estivesse tres annos prezo, se eu nunca deixaria de o amar... e quando elle saisse da prizão podia ser meu esposo?!...

-- Para isso era necessario que eu fosse livre, respondeu D. Julia, que não tivesse um tutor encarregado de me governar e de administrar os meus bens.

-- Porêm a menina, redarguiu a mulher do Conselheiro, que ainda se não dava por vencida com os argumentos que lhe apresentava a donzella; a menina tem quasi dezoito annos... e d’aqui a tres terá vinte e um, idade que a lei do nosso reino marca para qualquer pessoa que lá chegue se considerar maior... por consequencia bem vê...

-- Ah! minha senhora, replicou D. Julia um pouco consolada com a idéa que lhe suggerira a mulher do Conselheiro, quem póde dizer: «chegarei até ámanhã?»

E, levantando-se, pediu desculpa ao tutor e a sua mulher de não poder continuar a ouvil-os, por se achar bastante incommodada.

D. Julia retirou-se ao seu quarto, e os dois esposos ficaram ainda juntos.

-- Você, é o homem mais estupido que tenho conhecido! diz a esposa ao marido depois de se certificar que D. Julia não a ouvia. Olhe que quem o fez conselheiro, continuou ella, póde limpar a mão á parede, que a fez bonita!

-- Mas então... responde o interpellado, em que incorri eu nas suas iras, senhora?!...

-- E ainda m’o pergunta! Pois o senhor é tão inconsequente, que ia propôr á pequena que amasse o Visconde, quando ella o odeia mortalmente?!...

-- E a senhora, respondeu o Conselheiro zangado pelas invectivas que sua esposa lhe lançára em rosto, é tão ignorante que lhe vai dizer que ella podia emancipar-se d’aqui a tres annos, por ter então vinte e um, quando existe uma lei de D. Maria I, que authorisa a considerarem-se maiores os individuos que tiverem dezoito annos completos!

-- Ah! ah! ah! respondeu-lhe a mulher.

E depois desta ironica gargalhada, que fez com que o Conselheiro ficasse interdicto e mudo, continuou:

-- Eu então sou ignorante, por occultar á sua pupilla uma coisa que era tolalmente em nosso prejuizo?...

-- Como? perguntou o Conselheiro atrapalhado e sem comprehender.

-- Julga talvez que eu ignoro essa ordenação?... proseguiu a mulher do Conselheiro, sem responder directamente á pergunta do marido.

-- Assim parece, replicou este, a não ser que tivesse alguma idéa...

-- Pois não comprehendeu, seu obtuso, tornou ella, que se eu tivesse dito a sua pupilla que podia considerar-se maior, aos dezoito annos, segundo essa lei antiga, a pequena trabalhava para se emancipar, e zombava depois comnosco?...

-- Tem razão, senhora, ganhou! respondeu o Conselheiro, esfregando as mãos de contentamento; confesso que fiquei derrotado pela sua intelligencia.

E dando alguns passos em silencio como retirando-se da sala, parou de repente e, chegando-se á esposa, disse-lhe com ar triumphante e como de conquistador que não foi totalmente batido em retirada:

-- Diga-me cá, e o que pensa d’aquella minha idéa de dizer á pequena que a prizão de José Pereira era por tres annos?

-- Porquê, não é assim?... perguntou a mulher, que ingnorava a sentença, e sentindo ao mesmo tempo um arripio, por se lembrar que seu marido podia ter feito alguma grande asneira.

-- Não, respondeu o Conselheiro eom um sorriso que era antes uma careta, o rapaz foi condemnado só em um anno de cadeia, e eu, para tirar as esperanças á pequena, é que tripliquei o tempo. E então... que me diz a isto? ... perguntou ollc, sorrindo sempre.

-- Digo-lhe que fez bem por um lado e mal pelo outro, respondeu a mulher.

-- Bem por um lado e mal pelo outro!... não comprehendo, replicou o Conselheiro outra vez atrapalhado das idéas.

-- Eu lhe explico, tornou ella. Fez bem, porque é verdade a pequena desvanecerem-se-lhe mais as idéas de casar com seu sobrinho... isto é, sabendo nós desvanecer-lh’as com bailes, reuniões onde compareçam mancebos nossos conhecidos...

-- Mancebos... mas isso é asneira! interrompeu o Conselheiro; porque o Visconde...

-- O senhor não me interrompa, atalhou a mulher, deixe-me continuar, por favor, se quer.

-- Bem, bem, continue.

-- Os quaes mancebos, proseguiu a mulher do Conselheiro, tendo-lhes nós antecipadamente feito conhecer a paixão que o Visconde de *** sente por D. Julia, os obriguemos moralmente, e isso fica a cargo do proprio Visconde, a elevar ás nuvens a bondade d’este, patenteando á pequena o seu bello procedimento, as suas excellentes qualidades, a sua elevada posição social... e finalmente o seu forte e intenso amor pela nossa pupilla.

-- Bem, eslou satisfeito e folgo de a ouvir fallar finalmente em abono da minha ietelligencia.

-- Espere. Mas para isso, continuou ella, é necessario que a acção caminhe assim; isto que eu apresentei não é mais do que uma hypothese; póde a pequena não se prestar ao nosso plano, não querer sair...

-- Ora, a senhora vê tudo sempre pelo lado feio, atalhou o Conselheiro, um tanto abalado pela reflexão da mulher.

-- E julga que é máu sangrar-se a gente em saude, como diz o proverbio? continuou ella, fictando o marido com ar de compaixão.

-- Pois sim, sim... mas vamos, vamos adiante, tornou este com impaciencia; quero que me explique o mal que fiz na mentira que preguei á minha pupilla.

E carregou na palavra «mal,» como querendo satyrisar sua esposa.

-- Ah! eu lh’o digo, respondeu esta. Fez mal por outro lado, porque se esqueceu que a sua pupilla tem pennas, tinta e papel á sua disposição, assim como se dá o mesmo caso com seu sobrinho, e podem corresponderse ambos e saberem d’um momento para o outro que o senhor mentiu... E então, continuou ella, volta-se o feitiço contra o feiticeiro, porque sua pupilla é intelligente, e eu tenho a convicção de que ella tem desconfianças... vagas talvez, porêm tem-n’as.

O Conselheiro começou a passeiar agitadamente pela sala, e d’esta vez sem esfregar as mãos.

Depois de percorrer a sala tres ou quatro vezes, parou, aproximou-se da mulher que ficára pensativa, sem duvida coordenando a acção que intentava para lhe não falharem os seus planos, e perguntou-lhe n’um tom que denotava a submissão do subdito para com a testa coroada:

-- E descobriu já algum plano para estorvar a correspondencia?

-- Estava agora mesmo procurando-o, respondeu a interrogada, mas o senhor veio estorvar-me e interromper-me o fio das idéas que eu estava tecendo!...

Então, veja se o acha outra vez, retorquiu o Conselheiro; eu vou deixal-a pensar á sua vontade e logo virei saber qual é o plano do combate.

E saiu da sala.

Pedimos ao leitor, que deixe a mulher do Conselheiro M*** pensar á sua vontade no hediondo projecto de estorvar a correspondencia dos dois jovens, e convidâmol-o a penetrar comnosco no quarto da infeliz donzella.

-- Ah! minha querida Gertrudes, dizia ella em voz baixa, com receio de ser ouvida pelo Conselheiro ou por sua mulher, á criada grave, unica amiga e confidente que tinha em casa de seu tutor; que infelicidade a minha e de José Pereira! Elle, accusado de ladrão... Oh! nem quero pensar bem n’isto, para não endoidecer!

E a infeliz menina, não poude conter as lagrimas que lhe rebentaram abundantes com a horrivel lembrança da prizão do seu querido.

A criada vendo-a banhada em pranto, e sendo verdadeiramente amiga da infeliz joven (e para isto foi preciso á sensivel rapariga, revestir-se de toda a sua força moral para não succumbir e não desanimar ainda mais a pobre menina), disse-lhe:

-- para que está a menina a apoquentar-se? Descance, que o que tiver de ser seu, á mão lhe hade vir. Deixe estar que ainda hade ser muito feliz em companhia de seu marido, o senhor José Pereira.

-- Enganas-te, Gertrudes, respondeu-lhe a desditosa orphã com convicção, a minha felicidade será a minha morte!

-- Ai credo! que diz a menina?!... Ora não pense n’isso!

-- Ora dize-me, Gertrudes, de que serve a vida ao in¬ feliz que é perseguido desde a infancia por uma serie continua de desventuras? Perdi meu pae e minha mãe, os unicos entes queridos que verdadeiramente me tributavam amor, e aos dez annos entrei para casa de meu tutor, achando-me totalmente desamparada da amizade de que carece uma creança que se vê no mundo sem o abrigo e carinho de seus paes. Cresci sem ter uma unica amiga em quem depositasse as minhas maguas, e que me consolasse, fazendo-me esquecer a falta de meus progenitores. Chego á adolescencia, encontro um ente que me comprehendeu e que me dedicou amor sincero, porque ingenua e verdadeiramente me confessou que não lhe importava para coisa alguma a minha fortuna pecuniaria, porêm sim a minha ventura... e, o que succede? Esse ente a quem amo, ser perseguido atrozmente (por quem, ignoro-o), e impossibilitado de fazer a sua e a minha ventura. Á vista d'isto, minha querida Gertrudes, o que me resta é morrer, e elle...

E a infeliz menina, esgotada de forças pelas acerbas commoções que soffrêra e estava soffrendo, não poude terminar a phrase e caiu desfallecida.

A criada, vendo-a privada dos sentidos, correu a ella, transportou-a para sobre o leito e começou a abanal-a com o lenço até que a fez voltar a si.

A donzella abriu os olhos, e vendo Gertrudes, que n’essa occasião lhe offerecia um copo com agua, que tinha ido buscar para recorrer aos borrifos se o ar produzido pelo lenço não fizesse o desejado effeito, bebeu dois goles e, recuperando a falla, disse-lhe com voz debil porêm clara:

-- Peço-le, querida amiga, que não digas ao Conselheiro coisa alguma do que aqui se passou... Promettes-me isso?

-- Prometto, quanto ao que a menina me contou... agora quanto ao seu desmaio, não posso deixar de participar ao seu tutor que a menina está doente.

-- Oh! isso menos que tudo! exclamou D. Julia reunindo todas as suas forças para fazer esta exclamação; se és minha verdadeira amiga, Gertrudes, não lhe digas nada a esse respeito.

-- Mas porquê, minha menina? perguntou a criada carinhosamente e como lastimando-a; então quer adoecer gravemente não tomando alguns remedios?

-- Nada receies, porque, se me achar peior, eu terei o cuidado de requerer o medico... por’ora isto não é doença, é apenas um accesso nervoso, e não quero que possa constar ao meu José Pereira que eu estou doente sem o estar, o que succederia se tu dissesses o que viste. Basta já o que elle soffre, prezo innocentemente, porque o acredito incapaz de ter commettido o crime que lhe imputam!

-- Ah! então como é por isso, replicou a criada, não digo nada... E agora, continuou ella depois de reflexionar um momento, vou-me embora, porque não quero que a senhora dê pela minha falta.

-- Vai, vai, disse-lhe D. Julia, e sê sempre minha amiga, sim?

-- Oh! minha querida menina, pois não hei de ser... pelo bem que tem feito a meu velho pae?

E a boa rapariga saiu do quarto de D. Julia, limpando uma lagrima de reconhecimento ás escondidas da donzella.

CAPITULO V

Esperanças perdidas

Deixámos a mulher do Conselheiro pensando no meio de interceptar a correspondencia que porventura se estabelecesse entre os dois jovens, e ainda a vamos encontrar sem ter achado na sua sagaz intelligencia o modode evitar isto.

Felizmente para ella, que já estava um tanto embaraçada, seu marido entrou na sala dando o braço ao Visconde, que chegára havia pouco, para informar-se do resultado da audiencia.

O Conselheiro, dirigindo-se a sua mulher, perguntou-lhe:

-- Então, já achou?

-- Ainda não, respondeu ella com voz rapida; o senhor é bem impaciente e apressado! Procure tambem, se é capaz.

-- É o mesmo, atalhou o Conselheiro, felizmente temos aqui o nosso amigo Visconde, que nos veio tirar d’este embaraço.

E contou ao Visconde o receio que tinha, de D. Julia se corresponder com José Pereira.

O Visconde, depois de o ouvir, sorriu-se desdenhosamente, como homem habituado a coisas mais difficeis, e disse aos dois esposos:

-- A primeira coisa que ha a fazer n'este negocio é arranjar um criado de confiança, e d’isso eu me encarrego, se Vossas Excellencias quizerem, bem entendido.

-- Pois não, Visconde! estamos d’accôrdo, exclamou o Conselheiro. Não é assim, menina? perguntou elle a sua mulher.

-- Qual é a duvida? respondeu esta um tanto picada por não haver ganho as honras de invenção.

-- Bem, continuou o Visconde, então hoje mesmo para cá mando um homem seguro.

E depois d’alguns momentos de silencio, continuou:

-- Naturalmente a pequena hade recorrer ao correio, pois creio que não terá outros meios de poder mandar as cartas, não é assim?

-- Certamente que não, disse a mulher do Conselheiro; ella não sae só...

-- Sim, accrescentou o Conselheiro, a esse respeito nós a vigiaremos...

-- Era isso mesmo o que eu ia recommendar, atalhou o Visconde; é necessario toda a vigilancia e evitar que a pequena possa mandar cartas por alguem que não seja o criado.

-- Descance o Visconde a esse respeito, disseram ao mesmo tempo marido e mulher, que não hade haver descuido.

N’este momento veio a criada da cozinha participar que o jantar estava na meza.

A mulher do Conselheiro, depois de a ouvir, ordenou-lhe que fosse dar parte do mesmo a D. Julia.

A criada foi executar as ordens da patrôa, voltando logo, e dizendo a esta:

-- A menina pede desculpa de não ir para a meza, porque não tem vontade de jantar. Disse-me, accrescentou ella, que lhe levasse um caldo ao quarto.

-- Máu, máu, disse o Conselheiro lembrando-se que a pupilla estivera, havia ainda pouco tempo, gravemente enferma, e o quanto lhe custára para a restabelecer; parece-me que a pequena vai adoecer e que temos tudo transtornado.

-- Socegue o espirito, disse-lhe sentenciosamente a esposa; aquillo não é mais do que um capricho, e hade passar-lhe.

E, voltando-se para o Visconde ao mesmo tempo que se encaminhava para a casa de jantar, continuou:

-- Agora vamos jantar, porêm logo exporei ao Visconde quaes os meus planos para distrahir a pequena.

-- São excellentes! exclamou o Conselheiro apoiando as idéas de sua mulher, o Visconde verá.

E foram todos tres jantar.

No dia seguinte, ao amanhecer, D. Julia que, passando a noite n’um deploravel estado d’agitação febril e de horriveis sonhos, acordára, ou antes, com o alvor da manhã, melhorára um pouco, levantou-se do leito e, assentando-se a uma meza de pé de gallo que tinha no seu quarto, começou a escrever, ainda que a custo e com mão um pouco trémula pela doença e debilidade, a seguinte carta dirigida ao ente a quem tanto amava, separado d’ella pela immensa distancia que vai da liberdade ao captiveiro:

«Meu querido:

«Pelas tuas saudades e maguas, poderás avaliar as minhas.

«Sei que me amas, e tu não ignoras tambem que és amado.

«Descança pois, meu muito querido, o tempo passa rapido, e eu serei tua esposa, e de mais ninguem.

«Tem valor para poderes supportar o captiveiro, e crê sempre que te considero innocente do crime que te imputam.

«Já que nos não podemos vêr tão depressa, que ao menos tenhamos o prazer de vêrmos as nossas idéas, sempre de accôrdo, traçadas no papel.

«Comecemos hoje uma correspondencia quotidiana não interrompida, sim?

«Oh! quem me dera já o dia de amanhã para vêr e beijar os caracteres traçados por meu esposo... Sim, meu esposo, porque heide eu vaellar em dar-te este doce nome?! Não somos nós de facto dois esposos fieis e dedicados um ao outro, tendo mais direito, apezar de ainda nos não ter sido dado, para nos darmos este nome do que muitos que já o teem adquirido com fingimento e mentira sanccionada pela religião, á face do altar, tão habituado a presenceiar bem repettidos casos d’estes?!

«Avista d’isto, meu querido José, chamar-nos-hemos de hoje ávante, esposos, sim?

«Adeus até amanhã, e confia sempre na mulher que te ama com lealdade.

Sou a tua esposa

Abril 4, de 1852

ás seis horas da manhã.

«Julia de Miranda.»

A donzella dobrou a carta depois de a ler, e sobrescriptou-a a José Pereira, na cadeia do Limoeiro.

Depois d’isto, sentindo-se assaltada por dôres de cabeça, talvez produzidas por uma tosse sêcca, e por intervallos, que perseguia a infeliz desde o dia da prizão do José Pereira, D. Julia, esgotada de forças pela debilidade, doença e soffrimentos moraes, tornou a deitar-se sobre a cama, esperando d’esta fórma que acordassem em casa do Conselheiro M***.

É necessario lembrar aqui aos leitores a promessa que o Visconde fizera á mulher do Conselheiro e a este, de enviar-lhe para o serviço domestico um homem seguro.

O fidalgo cumpriu pois fielmente a sua promessa, porque na mesma tarde em que foi feita, chegou a casa do Conselheiro M*** um individuo que disse ser o criado enviado pelo senhor Visconde.

O Conselheiro recebeu-o, e depois de o interrogar e certificar-se das instrucções que lhe déra o Visconde, vendo que o astuto servo se prestaria maravilhosamente ao serviço especial de que estava incumbido, batendo-lhe familiarmente no hombro, disse-lhe:

-- Deixe estar, que se cumprir a sua missão até ao fim sem algum contratempo devido a qualquer descuido ou negligencia da sua parte, hade receber uma boa gratificação.

O criado agradeceu como por demais e com um sorriso ironico a promessa do seu novo patrão, por estar habituado a faltarem-lhe muito a promessas d’essa natureza.

O Conselheiro, depois de tambem lhe dar as instrucções do serviço caseiro, terminou por estas palavras ditas em voz baixa ao criado:

-- Recommendo-lhe sobretudo a maior vigilancia sobre as duas criadas; repare bem se ellas chamam algum moço de recados; se chamarem, diga-lhes da minha parte que eu não quero isso, que o teem a você para qualquer incumbencia, percebe?

-- Eu tomo a liberdade de lembrar a Vossa Excellencia, respondeu o criado n’um tom de hypocrisia jesuitica no qual transluzia ser antes um conselho a um tolo do que uma lembrança a um discreto, que elle dava ao Conselheiro; que talvez não seja muito bom obstar a que ellas chamem, se por acaso chamarem, algum moço de recados; isso pode fazer desconfiar a pessoa interessada em mandar as cartas e...

-- Diz bem, atalhou o Conselheiro, o qual constantemente reconsiderava e revogava as suas idéas em contrario.

-- O melhor, continuou o criado, é deixal-as chamar seja quem fôr; eu depois me encarregarei propriamente de tornar a receber a carta da mão da pessoa que a levar.

-- Mas, como? perguntou o Conselheiro.

-- Sáio em seu seguimento, respondeu o criado, digo-lhe que sou o criado da casa que cheguei n’essa mesma occasião e que lhe dispenso os serviços; e mesmo ainda que tenha de pagar a alguns moços renitentes que possam apparecer, Vossa Excellencia responde por isso, não é assim?

-- Está visto, que respondo.

E separaram-se.

O criado foi para a cozinha receber instrucções e familiarisar-se com a casa e as criadas, e o Conselheiro foi participar a sua mulher a chegada do novo servo, recommendando-lhe ao mesmo tempo a maior vigilancia sobre D. Julia, como havia recominendado ao criado a tivesse sobre as duas criadas.

-- Não eram necessarias tantas recommendações, respondeu-lhe ella. O senhor julga que como queijo? Está enganado completamente. Tome o senhor cuidado em não fazer alguma asneira de marca maior, e socegue a meu respeito.

-- Bem, menina, bem, respondeu o Conselheiro, não vale a pena zangar-se por tão pouco; mas como eu vou sair, por isso vinha recommendar-lhe que observasse em duplicado.

-- Descance, que não hade haver novidade.

O Conselheiro, depois d’esta affirmativa, saiu.

Já vêem os leitores que D. Julia e José Pereira iam ficar entre um circulo de ferro da mais rigorosa policia secreta que imaginar se póde. As pobres creanças mal sabiam que nem ao menos lhes era permitlido escreverem-se!

Oh! horrivel ambição e medonha avareza, que obrigam a praticar a humanidade acções tão vis, cobardes e hediondas!... quando deixarão vocês de predominar sobre as creaturas? Sem duvida quando a civilisação geral dos povos lhes melhore e desentorpeça os crancos, fertilisando-os e esclarecendo-os com as luzes do verdadeiro progresso.

D. Julia, como vimos, esperou pois que as criadas se levantassem em casa de seu tutor, e ouvindo a voz de Gertrudes, chamou-a e pediu-lhe que se encarregasse de lhe mandar comprar uma estampilha para a carta, e que a mesma pessoa a deitasse, depois de estampilhada, em alguma caixa do correio.

-- Fique descançada, menina, temos já um moço novo que me parece bem bom rapaz, porque nos trata com bonitas maneiras, e então vou incumbil-o...

-- Mas tem cuidado, minha Gertrudes, que meu tutor ou a mulher não saibam d'isto.

-- Deixe estar, minha menina, que não hão de saber nada. Ai! exclamou ella de repente, eu a conversar com a menina, e sem lhe perguntar se passou melhor! Não repare e desculpe, sim?

-- Estás desculpada, respondeu D. Julia, que, fazendo um exforço para se sorrir da atrapalhação da criada, teve um accesso de tosse tão violento que quasi ia ficando suffocada.

A criada, vendo-a quasi sem folego, amparou-a, batendo-lhe brandamente nas costas, ao mesmo tempo que lhe dizia:

-- Ai! que a menina está muito doente! Tem o corpo a escaldar, e depois, com uma tosse dessas!...

-- Isto é tosse nervosa, disse-lhe D. Julia para a tranquillisar. Olha, sabes? continuou ella para destruir completamente as desconfianças que a criada tinha a respeito da sua doença, estou com bastante vontade de comer e desejava bem almoçar.

-- Sim? pois eu lhe vou fazer um bife n’um instante, depois de mandar a carta ao seu destino, para que lhe chegue mais breve á mão, sim?

-- Sim, Gertrudes, a carta primeiro que tudo, e se porventura vier alguma para mim, recebe-a tu da mao do criado ou do correio, tendo tambem o cuidado de nunca dizeres para quem é a correspondencia.

-- Descance, menina, que eu farei tudo isso. Até já.

E a condescendente e bondosa rapariga foi entregar a carta nas garras da policia secreta do casa do Conselheiro M***, a qual, não só obstou a que ella chegasse ao seu destino, como tambem que D. Julia recebesse alguma do seu querido.

A pobre menina esperou debalde, dias, semanas e mezes.

Nem uma letra do seu querido!

CAPITULO VI

Uma victima da riqueza

José Pereira recebêra, na mesma tarde da sua sentença, o seu bahú, enviado pelo Conselheiro.

O mancebo teve um raio de alegria ao vêr chegar-lhe um recurso com que poder mitigar as suas nccessidades: podia vender algum fato seu, e com o producto ler melhor alimento e comprar papel, pennas e tinta para escrever á sua amada.

Informou-se pois de como poderia ultimar a venda d’um collete quasi novo e achou logo um officioso que se encarregou d’isso, ganhando com o pobre orphão cincoenta por cento.

Vamos por consequencia encontrar José Pereira escrevendo a seguinte carta á sua querida:

«Meu amor:

«Primeiro que tudo, tem animo e acredita-me innocente da infamia de que me accusam.

«Aqui estou penando, separado da metade da minha vida e unido a entes prevertidos no crime, e com os corações empedernidos para poderem comprehender as minhas maguas; zombando cruelmente de mim se me vêem triste, ou soltando alguns suspiros de afflicção e dôr!

«Ah! minha querida Julia, muitas vezes tenho medo ou de endoidecer, ou então de me associar por um poder irresistivel a estes filhos do crime, pelo constante contacto em que estou com elles. Os negros e hediondos crimes que lhes ouço narrar, fazem-me por vezes crêr que estou sonhando ou que soffri uma total transformação no meu ser!

«Eu, que me jactava de honesto, probo e bondoso, principios em que meu infeliz pae me educou, parece-me que me obrigaram a ser criminoso, cruel e máu, lançando-me entre homens perdidos para a sociedade!

«Eu não era merecedor d’isto...

«Porêm, perdão, minha querida! Insensato e egoista de mim, que te eslou torturando com considerações de factos que tu devias ignorar! Perdôa-me, anjo querido, sim?

«Deixemos as divagações e fallemos do nosso amor.

«Conheço o teu candido e terno coração para acreditar que deixaste de amar-me pelo desgraçado incidente de que sou injustamento accusado. Peço-te pois que d’ora ávante me escrevas, e que deposites no amago do meu peito as maguas, saudades e transes por que tens passado: eu farei o mesmo e será este um lenitivo abençoado, um refrigerio na arida e distante esphera em que nos achâmos...

«Separados, e incommunicaveis verbalmente dos sentimentos tão procellosos que nos agitam, o unico meio que nos resta até ao dia da minha soltura, esse dia mil vezes venturoso por que suspiro incessantemente, é a correspondencia por escripto, da qual não lancei mão ha mais tempo porque, infelizmente, não tinha aqui papel nem dinheiro para o comprar... De hoje ávante, porêm, tenho muito, porque ainda possuo alguns haveres que tinha no meu bahú, o qual me foi hoje mandado pelo Conselheiro.

«Adeus, minha muito querida esposa... Perdôa-me este doce titulo e acredita-me sempre

Cadeia do Limoeiro,

Abril 4, de 1852,

ás 6 horas da manhã.

teu fiel adorador

«José Pereira.»

Esta carta mandou-a o mancebo deitar no correio, sobrescriptada a D. Julia de Miranda, em casa do Conselheiro M***, etc.

Parece que os dois jovens estavam magneticamente combinados para se escreverem no mesmo dia e á mesma hora. Porêm, de que lhes serviu isso? A carta de D. Julia, antes de caminhar para o seu feliz destino, foi apprehendida pelo miseravel cerbéro que a foi immediatamente entregar ao patrão; e quando chegou a de José Pereira, a qual o carteiro entregou em casa do Conselheiro, pelas nove da manhã, foi-lhe dado o mesmo destino.

D. Julia, admirada e afflicta por não receber resposta alguma, escreveu outra vez; porêm, baldados exforços! Esmorecida e desconfiada da preversidade de seu tutor, escreveu ainda mais algumas cartas, as quaes tentou mandar por moços de recados, porêm o mesmo silencio da parte do seu querido.

A desgraçada joven, á vista da tyrannia do que era victima, começou a adoecer seriamente.

-- Não é possivel, dizia ella comsigo muitas vezes, como tresvairada por tão crueis pensamentos; não é possivel que José Pereira seja tão ingrato á mulher que tanto o ama, que nem ao menos uma carta escreva a quem é capaz de dar a sua vida e trocar a sua liberdade pela d’elle!... Doente, continuava ella depois de profunda meditação, tambem não está, segundo me disse ainda hoje meu tutor, que mandou saber noticias d’elle!

E a desventurada, banhada em pranto, ia-se-lhe pouco a pouco finando a existencia, por conhecer a maldade de seu tutor e não querer dar escandalo a este respeito, por se julgar ainda menor e vêr que seria supplantada pelo Conselheiro, embora tivesse razão bastante para fazer o que tanto desejava.

O mancebo, na terrivel enxovia do Limoeiro, tambem soffria horriveis insomnias e amarguras, perguntando muitas vezes a si que mal tinha elle feito para ser tão desgraçado.

-- Já me não ama! dizia elle, soluçando e reprimindo a custo ardentes lagrimas, para não ser ridicularisado pelos outros prezos. Acreditou que sou ladrão!... Oh! meu Deus! continuava elle com desespero; de que serve a miseravel justiça d’este mundo se não me póde provar que estou innocente!?...

E o desgraçado mancebo, minado por estas tristes idéas, estava completamente demudado. Pallido, cadaverico, com os olhos encovados e amortecidos pelas insomnias e lagrimas, quem o visse não reconhecia n’elle o adolescente loução e formoso que vira apear-se no largo de S. Domingos, no dia da sua ficticia ventura e real infelicidade.

Todavia, com mais robustez do que D. Julia, pois que esta havia pouco saíra triumphante de uma perigosa febre com a qual luctára não poucos dias e lhe deteriorára bastante a saude, que não era robusta, porque a joven era demasiado nervosa e debil; o mancebo ia resistindo a tão procellosa tempestade, emquanto que a desventurada donzella era consumida a fogo lento pela febre que jamais a largára.

A mulher do Conselheiro, fiel e pertinaz na combinação que os leitores sabem ter feito d’accôrdo com o marido e com o Visconde, convidou algumas vezes D. Julia para diversas reuniões de amizade; porêm, esta recusou-se conslantemente a acompanhal-a, o que, visto pela conselheira, a qual logo conheceu serem baldados todos os seus cxforços para conseguir que a orphã espontaneamente a acompanhasse, disse um dia ao marido:

-- Já sabe que não é possivel resolver sua pupilla a sair do seu quarto?... Encafuou-se ali, lá almoça, janta e ceia, e não ha meio de a convencer a ir ás nossas projectadas reuniões.

-- Bem, disse o Conselheiro, então o que lhe havemos de fazer para ella ir?

-- E ainda o senhor m’o pergunta?! tornou ella com modo desabrido. Que pobreza d’espirito!... É a quanto póde chegar!

-- Começa a senhora com as suas invectivas! retorquiu em tom aspero o Conselheiro. Vê que não póde levar ávante os seus planos e volta-se contra mim sem razão nem justiça!... Então o que devo fazer? diga, continuou elle depois d’um momento de silencio, e com um modo no qual se demonstrava estar arrependido de haver tratado sua mulher com tanta aspereza, porque esta podia vingar-se d’elle, contribuindo para lhe dizimar os interesses pecuniarios, porque elles negociavam agora reunidos, tendo já negociado separados, e se ella se desligasse agora d’elle, e começasse a fazer transacções por sua conta, de certo o Conselheiro ficava arruinado.

Estas reflexões foram rapidamente feitas pelo aristocrata, por confiar pouco na sua intelligencia isolada, emquanto perguntava a sua mulher o que devia elle fazer para a pupilla sair.

-- É obrigal-a; eu não encontro outro meio. O senhor é seu tutor... por consequencia póde e deve, porque está no seu direito, ponderar-lhe que é obrigado a velar pela saude d’ella, e que para a distrahir da melancholia em que vive, sempre encerrada no seu aposento, se lembrou de lhe proporcionar algumas innocentes distracções em abono da sua saude.

-- Apoiado! diz muito bem! replicou o Conselheiro, encantado com a lembrança de sua mulher. Descance, que eu vou immediatamente pôr em pratica as instruccões que me deu.

E dispunha-se já a ir executar o que dizia.

Porêm a conselheira fel-o parar com um gesto, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Mas não se precipite, senhor! Parece-me um creançola estouvado, e não um homem circumspecto, methodico e reservado, como deve ser um conselheiro!

O inerte aristocrata, abriu os olhos sem nada comprehender, porque apezar de ser dotado de bom ouvido, o seu rebelde e duro cranco pouco se prestava ás rapidas concepções.

-- Então devo... ou não devo ir? perguntou elle com impaciencia.

-- Deve, sim; porêm agora, não. Ámanhã devemos ir á reunião do Conde de***, e então basta que ámanhã mesmo communique as suas vontades á pequena, mesmo para ella não ficar prevenida hoje e pretextar ámanhã alguma doença phantastica... percebeu?

-- Perfeitamente! respondeu o Conselheiro, que d’esta vez percebêra, depois da ampla e cathegorica explicação de sua mulher.

Com effeito, no dia seguinte, o Conselheiro dirigiu-se ao quarto de sua pupilla e, depois de a comprimentar e saber da sua saude, disse-lhe:

-- A menina, saiba que vamos hoje a casa do Conde de ***, minha mulher e eu, e que tem de nos acompanhar porque não hade ficar só em casa com os criados.

Depois d’este exordio, o Conselheiro, fictando a vista na pupilla e vendo o transtorno e deterioração que esta apresentava na physionomia, ficou um tanto assustado, e continuou:

-- Depois... tambem se deve distrahir e não estar sempre encerrada aqui; póde ser atacada de hypocondria... bem lhe conheço nas feições, que soffre...

-- Engana-se, senhor, respondeu a donzella, eu passo aqui perfeitamente...

-- Nada, nada, proseguiu o Conselheiro com renitencia; tenho determinado que hade ir hoje comnosco... e está dito. Eu, na qualidade de seu tutor, tenho obrigação restricta de velar pela sua saude e bem estar, e então não quero ter remorsos na consciencia.

-- O senhor póde fazer o que bem lhe aprouver, respondeu D. Julia, tossindo horrivelmente com o excesso de raiva concentrada por se vêr na presença do homem que ella odiava, tendo a quasi certeza de que era elle o motor da sua desdita; é meu tutor... e como o direito do mais forte é o que prevalece, estou prompta, ainda que contra minha vontade, para não dar escandalo, a ir aonde o senhor quizer e mais sua esposa.

-- Bem; então, concluiu o Conselheiro, deve estar prompta ás oito horas.

E saiu precipitadamente do quarto da pupilla.

CAPITULO VII

Encurtam-lhe a vida

D. Julia, ficando só, disse, sorrindo-se com essa convicção proplictica que annuncia o fim da creatura:

-- Querem levar-me onde ha festas, risos e folgares, tendo eu o lucto e a morte no coração! Fazem bem, ao menos farão com que eu soffra menos tempo no mundo.

E a donzella, ardendo em febre e tossindo amiudadas vezes, principiou a vestir-se com todo o esmero para não ser censurada pelo seu tutor ou sua mulher se não fosse bem vestida.

Depois de prompta, quem a visse de passagem, julgal-a-hia com saude robusta, pelo rubor que a joven tinha nas faces; rubor devido á febre e ao cançaço que a pobre menina, debil como estava, soffreu em prepara r-se.

D. Julia viu-se ao espelho e riu-se amargamente, vendo-se vestida de gala, ella que tanto desejava andar de nojo.

Vendo que não podia acolchetar o vestido, apezar de ter feito para isso bastantes exforços todos inuteis, D. Julia tocou a campainha para chamar a criada grave.

Esta não se fez esperar, e entrando no quarto da donzella, e vendo-a prompta para festa, não poude deixar de exclamar contentissima, por ignorar tudo:

-- Ora ainda bem, minha menina, que se resolveu a acompanhar o senhor Conselheiro a casa do seu amigo, o senhor Condo de ***! Assim é que deve fazer de hoje ávante porque tristezas não pagam dividas.

E começando a acolchetar o vestido que D. Julia lhe apresentou, a rapariga continuou alegremente:

-- Está hoje muito córada, e este vestido fica-lhe muito bem... faz a menina tão airosa!

D. Julia via-se em torturas por ter vontade de communicar tudo á sua amiga, e ao mesmo tempo não o poder fazer porque podia vir a constar a seu tutor, e a donzella abominava o escandalo, não querendo nem por pensamentos vexar o Conselheiro perante os seus criados.

-- Ai! que pena, continuou a falladora rapariga, que o senhor José Pereira não esteja em liberdade para vêr a menina assim vestida, e irem ao baile juntos!

D. Julia deu um profundo suspiro ao ouvir esta reflexão da criada, perguntando-lhe ao mesmo tempo:

-- Tambem hoje não veio nenhuma carta d’elle?

-- Não, menina, porque eu preveni o André, que quando viesse alguma logo m’a entregasse: elle não me deu nenhuma, é porque não recebeu. Talvez, continuou ella para animar D. Julia, que o senhor José Pereira não possa escrever-lhe por não lhe consentirem isso no Limoeiro.

-- Hum! disse D. Julia n’um tom d’oppressão como de quem está sobrecarregado d’enorme pezo e não lhe é possivel lançal-o de si; póde escrever, e até acredito que tem escripto tanto ou mais do que eu, assim como tambem não duvido que as cartas se tenham extraviado.

-- Sim?! perguntou Gertrudes sem comprehender. Mas como? Continuou ella, com curiosidade.

-- Da mesma fôrma que se teem extraviado as minhas, respondeu D. Julia, sendo ao mesmo tempo acommetlida por um terrivel accesso de tosse sêcca e cavernosa.

-- A menina ainda está constipada! exclamou a criada n’um tom de cuidado. Ha perto de tres mezes que tem essa constipação no corpo, e isso não é nada bom.

-- Hade passar-me descança, tornou-lhe D. Julia fazendo um exforço para sorrir; isto vai-se com o tempo.

-- Ora! vai-se com o tempo, replicou a criada em tom de recriminação; e desde o dia da prizão do senhor José Pereira até hoje ainda lhe não passou! Tenha cuidado em si, minha menina, não me queira dar algum desgosto.

Depois, calando-se um momento em quanto acolchetava o ultimo colchete do vestido de D. Julia, continuou depois d’isso:

-- Mas então a menina desconfia que se teem perdido as cartas que tem escripto ao seu noivo, e tambem as d’elle? Mas isso é impossivel; então o correio havia de perdel-as todas! A menina engana-se.

-- Tens razão, respondeu-lhe D. Julia para dissuadir a criada de julgar o que ella sabia perfeitamente; era impossivel que o correio perdesse todas as cartas.

-- Então ahi está, vê? logo, o senhor José Pereira não póde escrever.

N’este momento ouviram passos no corredor, os quaes se aproximaram da porta do quarto de D. Julia, e logo em seguida a voz do Conselheiro, que perguntava:

-- Então, menina, está prompta? Já deram oito horas.

D. Julia poz o toucado, unico ornamento que lhe faltava, e abrindo a porta do quarto, respondeu-lhe com voz alterada:

-- Estou prompta, senhor; póde partir quando determinar.

-- Então, tenha a bondade de vir.

E o Conselheiro, dizendo estas palavras, encaminhou-se para a escada, depois de ter dito a sua mulher, a qual estava ainda no seu quarto de vestir, que podia sair já.

A conselheira saíu, comprimentou a joven como por demais, e com uma leve inclinação de cabeça, depois do que, descendo todos tres a escada, entraram n’uma carruagem que o Conselheiro mandára alugar ao escriptorio da companhia lisbonense.

Brevemente chegaram ao palacio do Conde de ***, pai da Viscondessa de *** a qual, n’esse tempo ainda era solteira.

O Conde de *** habitava n’um bello palacio do bairro do Rocio. Tinha luzidos trens, e uma infinidade de servos, o que tudo provava ser uma casa rica.

Todavia o Conde, até certa epocha, foi classificado pela propria nobreza, de pobretão, por ser dissipador e prodigo; porêm o máu tempo de finanças acabára porque, graças a um facto que no seguimento desta obra narraremos, o Conde tornára a enriquecer mysteriosamente.

O Conselheiro M***, sua mulher e pupilla, entraram pois nas salas do Conde de ***, nas quaes já estava numerosa sociedade.

Os donos da casa e sua filha, assim que viram os recemchegados, correram affectuosamente a elles e trocando, ellas beijos de Judas, e elles traidores apertos de mãos, começou uma infinita serie de curiosas perguntas.

-- Então como passa a minha querida D. Julia? perguntou a mulher do Conde á pupilla do Conselheiro. Ha um seculo que não tinha o gosto de a vêr!

-- Vou indo menos mal, respondeu a donzella não podendo por mais tempo reprimir um accesso de tosse que a apoquentava horrivelmente desde que se apeiára.

-- Está um pouco constipadinha, continuou a mulher do Conde; minha filha anda tambem ha tres dias com uma grande constipação nos ossos; não faz outra coisa tambem senão tossir.

E voltando-se para sua filha, disse-lhe, batendo-lhe branda e amorosamente na face:

-- Hoje a modo que está melhorsinha, a minha menina: pois á vista d’isso vão dar-nos o alegrão, tu e a D. Julia, de cantarem o dueto da Norma.

-- Oh! minha senhora, respondeu D. Julia com voz debil, tenho immensa pena de não poder condescender, porque não me acho com forças de poder cantar.

-- Ora qual! replicou a dona da casa; isso não passa d’uma exaggerada modestia, minha querida menina; sei que está uma professora tanto em piano como em canto, e então não deve eximir-se em contribuir para nos deleitar um pouco esta noite.

E voltando-se para a mulher do Conselheiro, que conversava com o Conde, disse-lhe alegremente:

-- Hoje vai Vossa Excellencia ouvir minha filha: verá os progressos que ella tem feito na musica; tem desenvolvido uma voz de contralto, segundo diz o mestre, que póde até cantar as partes dos melhores sopranos que teem vindo ao theatro de S. Carlos. Eu ouvi este anno cantar a Castellan, e estou convencida do que minha filha a envergonharia se cantasse alguma das suas partes.

Nunca vi! é uma menina que se não fosse nobre, podia ser uma excellente cantora theatral em todos os theatros publicos da Europa... e mesmo até da America.

Depois de tomar o folego e do convidar o Conselheiro, sua mulher e pupilla a assentarem-se, vendo que sua filha se retirára de ao pé d’ella e fôra para o outro lado da sala conversar com varias amigas, continuou como confidencialmente:

-- Não vou porêm gostando muito da assiduidade que ella mostra nos estudos musicaes; d’antes dava-lhe o mestre só duas lições por semana, e cada lição durava pouco mais ou menos uma hora; pois hoje dá quatro por semana, e leva duas horas em cada uma; de maneira que isto tem-lhe enfraquecido o peito e anda com uma tossinha sêcca e com olheiras, o que me dá algum cuidado...

-- Então, deve suspender-lhe as lições, respondeu a mulher do Conselheiro.

-- É verdade, accrescentou este, que quasi sempre era o echo vivo de sua mulher, deve suspender as lições a sua filha.

-- Ah! mas isso é justamente o que bastante me contraria, porque, diz o mestre, que ella está prestes a findar todos os estudos, tanto vocaes como instrumentaes, e receio que a suspensão das lições a vá atrazar.

-- Então Vossa Excelfencia, perguntou o Conde ao Conselheiro, interrompendo sua mulher no seu enthusiastico discurso; esteve por um triz a ser victima d'um roubo?

-- É verdade, Conde, respondeu o Conselheiro; e o que me tem contristado, continuou elle em tom lugubre, é eu ir denunciar um e fazer mal a dois sem tal pensar, por julgar que esse outro era innocente. Eu dava metade da minha fortuna para não o descobrir á policia, se soubesse que elle tambem era criminoso.

D. Julia não poude, apezar do seu estado afflictivo, deixar de sorrir-se ironicamente, ouvindo esta tirada dramatica do Conselheiro.

-- E depois, que magna sinto, continuou este, em haver confiado minha casa, honra e tudo, a um homem d’aquelles que, em vez de respeitar a confiança que eu depositava n'elle, e as honras que lhe concedia em dar-lhe a mão de minha pupilla, abusa da hospitalidade e...

Calou-se, porque uma energica e muda advertencia de sua mulher lhe deu a conhecer que não devia proseguir na declamação tão mal representada.

D. Julia, opprimida em extremo gráo, por se lhe avivarem tão crueis recordações, não poude suster duas abrazadoras lagrimas, dizendo com voz entrecortada á Condessa:

-- Vossa Excellencia tem a bondade de me indicar onde é o toucador?

E depois da Condessa ter chamado sua filha para conduzir D. Julia, esta, pedindo licença aos quatro aristocratas, acompanhou a filha da Condessa ao que em francez se chama boudoir, nome que está hoje muito em moda entre a aristocracia, e mesmo em parte da burguezia, d’essa democracia afrancezada.

Os quatro nobres, ficando sós, trocaram diversos olhares entre si, onde transluziam varias observações mudas, depois do que a dona da casa, dirigindo-se ao Conselheiro, disse-lhe:

-- Na verdade, Vossa Excellencia não fez bem em fallar n’aquelle desgraçado successo diante de sua pupilla; sua esposa andou perfeitamente em o avisar: eu estava com immenso dó da pobre menina porque a via torturada.

-- Mas, minha senhora, respondeu o Conselheiro desconcertado, o senhor Conde interrogou-me a esse respeito, e eu não podia deixar de responder a Sua Excellencia cathegoricamente...

-- Diga antes que devia responder convenientemente, disse-lhe em tom sentencioso a conselheira. O senhor olvida constantemente que é conselheiro, e que nunca deve esperar que lhe façam admoestações.

N’este momento entrou o Visconde de ***, o qual veio tirar o Conselheiro M*** dos apuros em que se achava, por estar mettido entre dois fogos.

-- Ora ainda bem que chegou, Visconde! diz a dona da casa estendendo amigavelmente a mão ao aristocrata; pensámos que não vinha... e eu já estava com bastante pena, porque me privava do gosto de o vêr dançar com minha filha.

E voltando-se para a mulher do Conselheiro, continuou:

-- Vossa Excellencia ainda não sabia que minha filha está dançando com uma elegancia e primôr que impressiona todos que a vêem dançar!...Que garbo, que gentileza e que attitude! como dizem os francezes, aquella menina tem adquirido com o excellente mestre de dança, Mr. Saint-Léon, que é professor da Conservatoria Real de Paris, e actualmente tambem professor da nossa! Até para a mimica ella tem a mais decidida vocação! Tanto que o professor já se propoz a ensinar-lhe mimica, porque elle é um grande professor de mimica! Tem sido enthusiasticamente applaudido nas danças em que tem representado no nosso theatro lyrico!... Pois, como ia dizendo, continuou ella, depois de tomar por um momento a respiração; minha filha tem tanta vocação para a dança, que Mr. Saint-Léon chegou já a dizer-me em francez: «Madame la comtesse, la très uoble fille de votre excellence est la seconde Psyché.»

E, depois da phrase franceza, pronunciada em lingua duvidosa, continuou com mais enthusiasmo, dirigindo-se aos tres ouvintes, porque seu marido deixára o grupo no principio dos elogios coreographicos feitos pela esposa á filha:

-- Já vêem Vossas Excellencias, que, para um professor d’aquelles classificar minha filha de «segunda Psyché,» a qual era talvez a primeira dançarina da Europa, é necessario que lhe encontre altas prerogativas para a dança! Vossas Excellencias verão logo, quando ella dançar com o Visconde... E pena, continuou, que ella esteja um pouco constipada.

-- Então o Conselheiro sempre veio? disse o Visconde ao seu amigo intimo.

-- Sempre resolvemos a nossa querida pupilla a acompanhar-nos, respondeu a conselheira anticipando-sa á resposta do marido.

-- Ah! sim?... perguntou o Visconde com interesse; e aonde está?

E depois de haver percorrido a sala com a vista, e não vendo alii a donzella, continuou, dirigindo-se ao Conselheiro:

-- Não a vejo!

-- Ora adivinhe, ande, se é capaz! respondeu-lhe a mulher do Conde, anticipando-se aos dois conjuges; procure, que hade achal-a.

E, vendo que o Visconde se afastava para fallar a um manceho que o puchára de parte, a dona da casa, dirigindo-se ao Conselheiro e sua mulher, accrescentou:

-- Bem se vê que o Visconde ainda ama apaixonadamente D. Julia, apezar da ingratidão d’esta para com elle.

Esta apologia do amor do Visconde pela joven, feita pela Condessa, fez com que os dois esposos a olhassem fictamente a vêr se descobriam as intenções com que ella a fazia.

A mulher do Conde, porêm, continuou como em confidencia e abaixando a voz, sem reparar que era observada, porque realmente era uma mulher sincera, que só tinha o pessimo defeito de encontrar em sua filha todos os talentos do mundo reunidos:

-- Elle tentou requestar minha filha, quando a pupilla de Vossas Excellencias lhe disse que estava resolvida a casar com o outro. O pobre mancebo andava tristissimo, e o que lhe valeu para recuperar a alegria esquecendo o passado, foram os dotes de minha filha: ouviu-a cantar, tocar... depois viu-a tambem dançar, e esqueceu quasi totalmente, para não dizer de todo, a ingrata donzella que desdenhára do seu amor; porêm, minha filha, que só a preoccupam as lições de musica, etc., nunca deu azo a que o Visconde podesse declarar-se.

N’esta occasião aproximou-se do grupo o Visconde de ***, que acabára de conversar com o amigo que o tinha chamado de parte.

-- Então, ainda não a achou? perguntou-lhe a dona da casa com um risinho d’ironia.

-- Ainda não, respondeu o Visconde, porque ainda não a procurei.

Depois d’isto, olhando casualmente para o fim da sala e vendo D. Julia, que regressava do boudoir da Condessa dando o braço á filha d’esta, exclamou em tom de triumpho:

-- Não foi necessario procural-a, porque vem ali.

E, enraminhando-se para as duas jovens, foi comprimental-as com requintada polidez, sendo recebido friamente por ambas, e muito mais ainda por D. Julia, que unicamente lhe fez uma leve inclinação de cabeça, sem lhe apertar a mão que o fidalgo lhe estendia.

-- Minhas meninas, diz a dona da casa dirigindo-se a sua filha e á pupilla do Conselheiro, vamos dar comêço á soirée, sim? A modo que estã isto muito monotono... Vamos, continua ella dirigindo-se a sua filha, vai tocar a linda symphonia da Semiramis.

E vendo que sua filha se dirigia para o piano, caminhou tambem para onde estava o instrumento, dizendo em voz alta a todos os convidados que se achavam no transito:

-- Vão ouvir uma bella peça executada com toda a perfeição e maestria.

A filha assentou-se ao piano e começou a executar a bella abertura de Rossini, da qual, desde o principio ao fim, não tocou um compasso em rigor de tempo, estropiando-a tambem horrivelmente na divisão, e materialidade com que a executou.

Immensos bravos e palmas serviram de complemento á malaventura symphonia da grande opera do reformador da harmonia, tocada pela filha do Conde de ***.

A mãe deu-lhe muitos abraços e beijos, dizendo em voz bastante alta para todos ouvirem:

-- Muito bem, minha filha, tocaste divinamente!...

Agora, continuou ella, depois de descançares um momento has de cantar a aria dos Capuletos, «Si Romeo t’ucisse un figlio,» sim?

-- Ora, minha mãe... replicou a filha como esquivando-se; e então o dueto com a minha amiga D. Julia?...

-- Ah! esse logo, respondeu-lhe a mãe, que, enthusiasmada pela estrondosa ovação que a filha recebêra na peça de piano, desejava que ella ostentasse a sua impagavel voz.

Finalmente, a joven não poude escusar-se a cantar a aria, não tanto pelas instancias da mãe, como pelas d’alguns convidados, amadores sem ouvido, ou amigos de criticarem.

A donzella, tornou a assentar-se ao piano, e cantou o andante e alegro da aria de Bellini com uma voz de meio soprano assaz debil, desigual e sem gosto, que transformou completamente as suaves melodias do sentimental maestro, tendo por final os mesmos applausos que tivera na symphonia.

Houve um convidado, homem entendedor, que perguntou a uma senhora, em tom sarcastico:

-- Percebeu alguma coisa?

-- Tanto como o senhor, respondeu a interrogada.

A joven, levantou-se, suando por todos os póros, pelos exforços que empregou na execução, por não ter methodo de canto.

Sua mãe, vendo-a assim, começou a enxugar-lhe a fronte com um lenço, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Estás muito cançadinha, não é assim, meu amor?

-- Nem por isso, maman, respondeu-lhe a filha, querendo mostrar que não se exforçára na execução da aria.

-- Está muito doentinha, proseguiu a Condessa dirigindo-se a alguns convidados; não quero que se cance e por isso não canta hoje mais... tinha pedido á pupilla do senhor Conselheiro M***, que cantasse com ella o lindo dueto da Norma, porêm fica adiado para outra reunião, porque desejo que minha filha ainda hoje dance uma quadrilha, e não quero que se cance mais.

D. Julia, que ouvira isto, deu parabens a si propria por se vêr livre de fazer triste figura, já pelo máu estado de saude em que se achava, como por não cantar com a filha da Condessa.

Mal sabia porêm a desditosa menina, o que lhe estava reservado para complemento de infelicidade!

Depois de se distribuirem refrescos pelos convidados, a Condessa dirigiu-se ao General C***, pianista curioso de grande nomeada, e pediu-lhe para tocar uma quadrilha.

O General, assentiu, e a dona da casa, dirigindo-se á filha, disse-lhe que escolhesse par, recommendando-lhe ao mesmo tempo em voz baixa que se apurasse o mais possivel nas figuras.

A donzella, admirada da proposta do sua mãe, disse-lhe:

-- Então eu, maman, é que hei de ir tirar par, em vez d’esperar que me venham pedir!?...

-- Isso não é reparado n’uma reunião quasi familiar; vai convidar o Visconde, menina.

-- Oh! maman, desculpe-me... dançarei com todos menos com o Visconde, porque... nada sympathiso com elle.

-- Percebo, respondeu-lho a Condessa sem perceber nada.

Depois, afastando-se da filha, pensou comsigo:

-- Quer deixar nobremente o campo livre á sua rival. Que generosidade!

E aproximando-se do Conselheiro, disse-lhe:

-- Vai eslabeleccr-se uma quadrilha, e então Vossa Excellencia faça com que sua pupilla dance com o Visconde, que é um bello par porque dança magnificamente.

E, terminando esta recommendação, separou-se do Conselheiro, para ir convidar os outros pares.

Este ultimo, depois de consultar sua mulher a este respeito e conhecer que era da mesma opinião, chegou-se a D. Julia, que se conservava assentada, triste e accommettida por horriveis dôres de cabeça produzidas pela febre, e disse-lhe:

-- A menina vai dançar esta quadrilha para se distrahir.

E separado-se, sem esperar que a joven accedesse ou não á sua proposta, foi buscar o Visconde pelo braço e, apresentou-o á pupilla, dizendo:

-- Aqui tem o seu par.

-- Porêm eu, senhor, replicou D. Julia, estou incommodada...

-- Dance, menina, dance para se distrahir! retorquiu o Conselheiro.

N’esta occasião aproximou-se-lhe sua mulher, a qual, ouvindo as ultimas palavras que o marido dirigira a D. Julia, e conhecendo pelo tom em que foram pronunciadas que a joven se recusava, accrescentou em tom magistral:

-- Não sei a razão por que a menina hade estar sempre a um canto, como se fosse uma velha ou uma idiota!

-- É verdade, acudiu o Conselheiro, parece uma velha ou uma idiota!

A infeliz donzella, não teve pois remedio senão annuir á proposta apresentada á fortiorum pelos seu algoz e ajudante, dando com repugnancia o braço ao Visconde e caminhando para o meio da sala.

A quadrilha começou, e a filha da Condessa de *** escouceou à sua vontade, o que fez com que sua mãe por mais d’uma vez exclamasse:

-- Vejam a elegancia e maestria com que dança minha filha!

D. Julia, que, desde o fim do pantalon, ou primeira parte, começára a tossir amiudadamente e sentira um total esvaecimento de forças, quando chegou o galope final, sendo impellida com toda a força pelo seu par a correr acceleradamente, foi accommettida d’um violento accesso de tosse, rebentando-lhe ao mesmo tempo o sangue pela boca em grossas golfadas, o que a fez cair totalmente desfallecida nos braços do Visconde.

O galope cessou no mesmo instante, e todos os convidados rodeiaram a infeliz donzella, que se conservou privada dos sentidos por alguns minutos, tornando a si por meio de diversos saes que lhe foram applicados ao nariz.

O Conselheiro e sua mulher, totalmente desconcertados por tão subito e para elles inesperado acontecimento, estavam desculpando-se perante os donos da casa e convidados.

-- Ella nunca se nos queixou de que se achava em tal estado, dizia a conselheira.

-- É verdade, accrescentava o marido, ella nunca se nos queixou!

E, depois de D. Julia recuperar os sentidos, saíram ambos da sala, cabisbaixos, seguindo a pupilla, que foi conduzida á carruagem nos braços de dois criados.

CAPITULO VIII

Findaram-lhe os soffrimentos!

D. Julia chegou a casa do Conselheiro n’um estado deploravel, passando uma noite horrivel com frequentes accessos de tosse que lhe fazia lançar escarros de sangue.

O Conselheiro mandou n’essa mesma noite chamar o seu medico, o qual se recusou primeiro a ir, porêm quando o criado lhe disse para onde era chamado, immediatamente se dirigiu a casa do Conselheiro, apezar da hora ser já avançada.

Depois de vêr a doente, de perguntar ha quanto tempo sentia tosse, e conhecer a invasão que a horrivel doença já fizera no physico da desventurada joven, o medico, saindo do quarto e receitando conserva de rosas para ser dada immediatamente á enferma, e ordenando que lhe ligassem os pulsos e lhe pozessem synapismos de mostarda volantes, terminou por dizer ao Conselheiro e a sua mulher, que estavam com caras de palmo e meio, pensando que todos os seus nefandos projectos estariam destruidos:

-- Ámanhã, devem transportal-a para o campo; para Bellas, por exemplo, que fica ao norte e são ali os ares puros.

-- E o que pensa o doutor, perguntou o Conselheiro com receio, do estado em que se acha minha pupilla?

-- Ao ponto a que chegou a enfermidade, respondeu o medico abanando a cabeça, duvido muito que possa salvar-se. Todavia, com a mudança dares... talvez a natureza ajudada pela juventude possa triumphar; por emquanto é o que podemos dizer.

E pegando no chapéo e bengala, saiu de casa do Conselheiro, depois de comprimentar graciosa e affavelmente o marido e mulher.

D. Julia tomou algumas colheres de chá, de conserva de rosas, o que lhe fez cessar temporariamente os escarros de sangue.

O Conselheiro, depois de recriminar sua pupilla por não lhe haver dito ha mais tempo o estado em que se achava, saiu do quarto da enferma a um signal de sua mulher, recolhendo-se ambos ao seu aposento.

A enfermeira de D. Julia, n’essa noite, foi pois a sua amiga Gertrudes, a qual, com os olhos vermelhos e inchados pelas continuas lagrimas que vertia por vêr o estado da donzella, dizia-lhe ás vezes em voz baixa, por o medico haver dito que era necessario todo o socego no quarto da doente:

-- Eu bem dizia, já ha tempo, que a minha menina andava muito doente!

-- Isto hade passar-me, Gertrudes, respondia-lhe a orphã para animar a criada, porêm com uma voz tão debil que apenas se entendia.

Na madrugada do dia seguinte estava parado á porta do Conselheiro um carro puchado a bois, e o criado da casa, ajudado por alguns moços de fretes, transportava para a rua varia mobilia, camas, etc., o que tudo denotava uma mudança temporaria ou permanente.

Com effeito o Conselheiro, que tinha um amigo, tabellião, que habitava n’uma bella casa entre o Ramalhão e o Cacem, mandára ao romper do dia um expresso participar-lhe que elle ia estar na sua companhia o tempo sufficiente para se restabelecer a sua pupilla, que se achava em máu estado de saude e era opinião do medico mudar ella de ares.

Eram pois onze horas da manhã quando a familia do Conselheiro entrou n’uma carruagem, excepto a criada grave, que ficou guardando a casa o tempo que o amo se demorasse no campo.

A mulher do Conselheiro, tendo notado a sollicitude e carinho que Gertrudes mostrava por D. Julia, aconselhou o marido para que as separasse, sendo este o motivo por que a pobre rapariga ficou só, destacada em casa do Conselheiro.

Esta resolução do amo fôra tão repentina, que mal deixára tempo ás duas amigas para se despedirem.

D. Julia, quando soube esta noticia, a qual lhe foi dada pela pobre criada que entrou no quarto da enferma com os olhos arrasados de lagrimas, sentiu um deslumbramento e uma horrivel dôr no coração, dizendo com voz abafada:

-- Tiram-me tudo quanto me ama e interessa!

E, depois de Gertrudes a ajudar a levantar, por lhe ter dito que o Conselheiro e a mulher estavam promptos para partir, a joven, abraçando a criada contra o coração e beijando-a ferventemente, disse-lhe com voz clara porêm debil, pelo estado de prostração em que se achava:

-- Adeus, minha Gertrudes; roga á justiceira Providencia pela liberdade do meu José Pereira. Adeus, minha amiga... adeus...

E vendo que a pobre Gertrudes estava banhada em pranto e soluçando, sem poder responder-lhe, continuou para a animar:

-- Não chores, minha filha, resigna-te... consola-te e tem a certeza de que nunca me esquecerei de ti nem de teu velho pae.

-- Ah! minha querida menina, exclamou Gertrudes soluçando, pouco ou nada me importa isso... o que eu desejava era tel-a perto de mim até...

-- Até eu morrer, não é verdade, Gertrudes?... Dize afoitamente, que eu ha muito tempo conheço que marcho acceleradamente para o meu fim...

Ao ouvir o que lhe dizia a joven, é que a pobre criada não poude mais conter-se, começando a chorar e a gemer em voz tão alta, que se fez ouvir pelo Conselheiro e mulher d’este, os quaes se dirigiram apressadamente ao quarto da enferma, por julgarem outra coisa; porêm vendo o grupo que formava a criada com D. Julia, tendo esta abraçada, a mulher do Conselheiro não poude deixar d’exclamar com indignação:

-- Então que é isto, Gertrudes!... Que confiança e que atrevimento é esse?!...

-- É verdade, que atrevimento! accrescentou o Conselheiro.

-- Quando é que as criadas, continuou a conselheira, se abraçaram ás amas como se fossem suas iguaes?!... Sáia já d’aqui, senhora, vá cumprir as suas obrigações!

-- Vamos, senhora, tornou a accrescentar o Conselheiro, vá cumprir as suas obrigações!

A criada suspendeu os gritos, continuando a soluçar, e, largando a joven, saiu do quarto, vexada e balbuciando aos amos:

-- Peço perdão a Vossas Excellencias... mas como sou muito amiga... da menina...

E retirou-se cabisbaixa e soluçando.

A mulher do Conselheiro, vendo-se a sós com seu marido e a pupilla, disse a esta em tom de reprehensão, offerecendo-lhe ao mesmo tempo o braço, depois de indicar ao marido que devia fazer o mesmo para ajudar a donzella a caminhar:

-- A menina tem feito mal em dar-lhe tanta confiança.

-- É verdade, tem feito mal, accrescentou o Conselheiro.

-- Conheci que era minha verdadeira amiga, replicou D. Julia com exforço, e não estou arrependida de lhe ter dado tambem a minha amizade.

A conselheira e o marido ficaram interdictos e nada responderam ao argumento da sua pupilla, conduzindo-a para a carruagem onde entraram todos tres, assim como a criada da cozinha, indo o criado do Conselheiro para a almofada do conductor.

Os ares finos e penetrantes das proximidades da serra de Cintra, fizeram com que D. Julia peiorasse progressivamente.

A phtisica pulmonar que consumia a vida da donzella, tinha-a posto em demasiada debilidade para poder resistir e restaurar-se.

Depois, vendo-se completamente isolada dos carinhos que acompanham a presença d’um amigo, porque o tabellião, dono da casa onde estava o Conselheiro, era um homem quasi incommunicavel, sombrio e d’aspecto sinistro, que vivia em companhia d'uma mulher antipathica a quem chamava prima Monica, a qual era muito devota, ouvindo missa todos os dias, confessando-se e commungando de oito em oito; a joven finava-se de dia para dia consideravelmente.

O tabellião era filho bastardo do Marquez de *** e a prima Monica, filha d’um prior de S. Pedro de Cintra. Quasi sempre estavam occupados: elle escrevendo, e ella rezando e espreitando a visinhança.

D. Julia completára já os dezoito annos, e achando-se um dia mais doente que de costume (isto é, quasi dois mezes depois de sair de Lisboa), a joven teve uma idéa curiosa, e arrastando-se como ponde até á sala da bibliotheca do tabellião, procurou entre a collecção das ordenações do Reino as de D. Maria I, por ter ouvido mais d’uma vez seu tutor fallar n’uma ordenação d’esta rainha ao tabellião, e calar-se se por acaso ella chegava n’essa occasião á sala onde estavam conversando.

D. Julia procurou pois a muito custo, pela extrema debilidade que lhe produzia horrivel cançaço fazendo o menor excesso, e achando o volume da collecção de leis da filha de D. José I, encontrou n’elle o ordenação que considerava maiores, para casos urgentes, os adolescentes que tivessem completado dezoito annos.

Isto veio confirmar á desventurada menina que tanto ella como o seu querido «esposo» eram duas victimas da cobiça de seu tutor, o que lhe exacerbou mais a enfermidade, passando essa noite ardendo em febre, tendo mais tosse e mais fastio.

O Visconde viera amiudadas vezes saber da saude da joven; porêm esta nunca lhe deu o prazer, como dizia o aristocrata, de este lhe pôr a vista em cima, porque, emquanto durava a visita, D. Julia encerrava-se no seu quarto e sempre pretextava achar-se bastante incommodada.

A donzella, conhecendo o seu proximo fim, por já não poder andar, mandou um dia chamar seu tutor, e depois d’este entrar no quarto:

-- Senhor, lhe disse ella em voz clara porêm quasi sem ter som, eu pretendo fazer o meu testamento.

-- Mas, menina... respondeu o Conselheiro, atrapalhado por não ter comsigo o auxilio da conselheira; bem vê que é ainda menor de vinte e um annos... e o Curador geral dos orphãos não a authorisa...

-- Eu vi, continuou a joven animando-se porêm faltando com muito exforço, entre os livros do dono d’esta casa, a ordenação da rainha D. Maria I, que diz, a esse respeito, poder eu testar por já ser maior. Eu propria a li.

O Conselheiro, totalmente desconcertado, respondeu balbuciando atrapalhadamente:

-- Sim? pois eu ignorava...

-- Que eu a tinha lido? perguntou a joven em tom de sarcasmo.

-- Não... menina... respondeu o Conselheiro cada vez mais atrapalhado, não sabia d'essa lei... Vou informar-me, continuou elle, e se a menina estiver no caso de testar, hade ser satisfeita.

E saiu do quarto de D. Julia com tanta precipitação, que esbarrou d’encontro a sua mulher, a qual estivera escutando o dialogo entre o marido e a pupilla, encostada á porta.

-- Safa, que bruto! exclamou a conselheira, apalpando o galo que seu marido lhe fizera na testa com o abalroamento das duas cabeças. E de mais a mais é cego!

-- Deixe-me, senhora, com as suas invectivas, respondeu-lhe o Conselheiro, entrando no seu quarto e caindo n’uma cadeira; estamos arruinados!

-- Eu ouvi tudo, replicou a mulher em tom de quem não tem de dar alviçaras. O caso não é tão feio como o senhor o pinta.

-- Sim, menina? perguntou com interesse o Conselheiro.

-- Deixe fazer a pequena o testamento, e depois fallaremos.

-- Bem, bem, retorquiu o Conselheiro esfregando as mãos, o que n’elle denotava grande contentamento por vêr-se desembaraçado de qualquer coisa extremamente difficil; então, vou immediatamente cuidar n’isso... não lhe parece?

-- Sim, respondeu-lhe a mulher, póde dizer a sua pupilla que faça o testamento quando quizer.

No dia seguinte, eram nove da manhã, hora marcada pela testadora para a elaboração do testamento, o dono da casa, como official no seu officio, acompanhado de dois aprendizes, seus escreventes, dirigiu-se, juntamente com o Conselheiro e mulher, para o aposento de D. Julia, a qual, depois das formalidades do estylo, declarou no testamento que deixava por unico e universal herdeiro de seus bens, que consistiam no capital de oitenta contos de réis, a José Pereira, seu projectado esposo, actualmente existente na cadeia do Limoeiro, deixando comtudo a cargo d’este o dar a mezada de vinte e quatro mil réis a Gertrudes Rosa da Silva, criada em casa do Conselheiro M***.

Depois de consummado este acto, a joven, tendo as forças totalmente esgotadas, entrou n’uma especie de delirio, vendo-se só na cama e conhecendo que brevemente ia findar a existencia sem poder vêr felizes os entes que amava.

De tarde, perdendo a falla e entrando em convulsões, exhalou quasi repentinamente o ultimo suspiro, esta benefica e desventurada virgem, victima da cobiça de seu tutor e da vendada justiça d’este mundo!

CAPITULO IX

Gato por lebre

O Conselheiro mandára o cadaver de sua pupilla para o jazigo de familia que ella tinha no cemiterio dos Prazeres, conservando-se ainda no Ramalhão por espaço de um mez, isto aconselhado pelo tabellião e pela conselheira, o qual tinha sido comprado por ella para guardar o maior segredo a respeito do testamento da fallecida, porque ao Conselheiro e sua mulher convinha-lhes arranjar a coisa de modo que ficassem elles por universaes herdeiros de sua pupilla, para, diziam elles, não ficarem arruinados.

Em consequencia d‘esta transacção feita com o tabellião, amigo do Conselheiro, foi redigido outro testamento á vontade do tutor da fallecida, no qual eram constituidos seus unicos e universaes herdeiros o Conselheiro e sua mulher.

As testemunhas (os dois aprendizes do mestre tabellião) foram tambem compradas por este, como elle o havia sido pelo tutor da victima.

Depois de ultimado este negocio, para o qual foi necessario gastar mais d'um mez em considerações, réplicas e tréplicas entre o tabellião e a conselheira, que era a procuradora, o dono da casa, tendo aquella chegado ao preço que elle impunha para lhe fazer aquelle serviço, resolveu-se a ultimal-o.

O Conselheiro, depois de servido, caminhou immediatamente para Lisboa, de fronte erguida e triumphante.

O Visconde, assim que lhe constou a chegada do Conselheiro á capital, foi logo procural-o, não o tendo feito ha mais tempo, porque estivera um mez de cama em consequencia d’umas dôres rheumatico-chronicas que o apoquentavam em todos os equinoxios do estio.

O Conselheiro, vendo entrar em sua casa o intimo, depois de o comprimentar, disse-lhe com ar de triumpho:

-- Então o amigo já sabe que minha pupilla me constituiu seu universal herdeiro assim como a minha esposa?

-- Sim? disse o Visconde em tom de incredulidade.

-- E a prova eil-a, replicou o Conselheiro, tirando da gaveta d’uma secretária o testamento feito depois da tesladora estar sob a terra havia um mez; póde verificar a verdade lendo este documento authentico.

-- De modo que então, tornou o Visconde depois de ler o testamento, fiquei eu arruinado, não é assim?

-- Não, porque em attenção aos serviços que o amigo me tem prestado, perdôo-lhe os dez contos de réis que me deve.

-- Muito bem, continuou o Visconde; porêm por esse facto não deixo de ficar do mesmo modo arruinado. O amigo sabe que perdi ao jogo essa quantia, e que parte d’ella foi ganha por Vossa Excellencia.

-- Mas então o que quer que eu lhe faça? perguntou o Conselheiro.

-- Vejo-me obrigado, insistiu o Visconde, a recordar a Vossa Excellencia o ajuste que fizemos entre ambos, o qual é verdade ter sido proposto por mim, porêm que Vossa Excellencia aceitou de bom grado.

-- Isso é certo, interrompeu o Conselheiro, porêm como foi sem a authorisação de minha esposa, ella fez-me reconsiderar...

-- Fel-o reconsiderar! exclamou o Visconde cortando o discurso ao Conselheiro e elevando a voz; porêm se o fez reconsiderar, essa reconsideração era toda em meu abono, porque bem sabe que eu estava resolvido a casar com sua pupilla, dando-me Vossa Excellencia unicamente metade da fortuna que ella possuia, a qual consistia em quarenta contos, segundo me consta do testamento. Bem sabe que metade de oitenta são quarenta. Logo por consequencia fiquei lesado em trinta contos, os quaes revertem a favor de Vossa Excellencia, em meu desabono.

-- Então, eu, continuou o Conselheiro, que já ia perdendo terreno perante os argumentos do seu intimo, tenho alguma culpa que a pequena morresse, e que, depois da sua morte, minha esposa me demonstrasse que devia reconsiderar a respeito do negocio, convencionado com o amigo?!

-- Pois sim, tornou o Visconde, elevando sempre a voz; porêm isso não é para nós. Vossa Excellencia bem sabe que sempre o tenho auxiliado... é verdade que tambem era em meu interesse, porêm hade concordar que trabalhei para que seu sobrinho fosse prezo...

E carregou na palavra «sobrinho,» segredo que o Conselheiro um dia deixára escapar sem querer, estando em conferencia com sua mulher e o Visconde.

No momento, porêm, em que o intimo do Conselheiro soltou as ultimas palavras, a conselheira, que ouvira tudo a occultas, e via que o dialogo se ia complicando em desabono d’ella e de seu marido, entrou na sala e dirigindo-se com aspereza ao marido, disse-lhe:

-- O senhor sempre é um homem muito incompetente para tratar negocios diplomaticos!

E, voltando-se para o Visconde:

-- Descance Vossa Excellencia, lhe disse ella, que não hade ficar lesado. Eu lhe dou a minha palavra de honra, que não havemos ficar descontentes uns com os outros.

Em consequencia da intervenção que a conselheira tomou no negocio do marido com o Visconde, recebeu este da mão do seu intimo a quantia de Cinco contos de réis para indemnisação da perda que soffrêra com a morte de sua promettida esposa, e dos relevantes serviços que prestára ao Conselheiro M***.

O Visconde, vendo-se com aquella bonita quantia, quiz dar nas vistas, sobretudo nas do Conde de ***, para que este fidalgo, rico como estava n’aquella epocha, lhe concedesse a mão de sua filha, a donzella cantante e dançante que os leitores já conhecem.

O Visconde affectou pois de ricasso, já dando avultadas esmolas para o cofre d’uma devota associação que estava no começo, e da qual era membro a Condessa de ***, mãi da requestada pelo Visconde, já pelos magnificos brindes que amiudadamente offerecia aos tres aristocratas.

Resultou d’isto tudo o Visconde vencer, obtendo dentro de dois mezes a mão da filha do Conde de ***, porêm pobre, sem dote, porque a riqueza do Conde era toda phantastica, o que fazia acreditar o proverbio -- «Bens de sachristão, cantando veem, cantando vão.»

Ficaram pois frustradas as esperanças do calculista Visconde, porque não podéra tirar o pé do lodo casando com uma mulher que, para pagar um corte de vestido, era necessario recorrer, como os leitores viram, á escamoteação que seu marido estudára para se livrar d’apuros em criticas situações, sabendo empalmar as cartas ao jogo.

O Conselheiro, depois de ultimar o negocio com o seu intimo, vendo que ficára dizimado de não pequena quantia de dinheiro, entendeu como regra economica acabar com a mezada de doze mil réis que dava ao criado que estava no Limoeiro, fóra despezas de carceragem, etc.

Começou, portanto, a trabalhar, empenhando-se com diversas summidades diplomaticas para que o criado saisse da prizão antes de acabar o tempo da sentença, porque, dizia elle, eram essas as ultimas vontades da sua querida pupilla, que lhe pedira varias vezes que fizesse com que os accusados saissem quanto antes.

-- E então, accrescentava elle, peza-me a consciencia não satisfazer ao pedido d’aquella santinha, que não póde deixar de ter a alma no céo.

Com estas lamurias e pedidos conseguiu o Conselheiro vêr-se livre de gastar por mais tempo doze mil réis mensaes, o que para elle era grande quantia, porque o réo Manuel Alonso, seu criado, foi absolvido, recuperando a liberdade, succedendo o mesmo, ainda que bem contra vontade do Conselheiro, ao desventurado e innocente orphão que estivera seis mezes na enxovia do moeiro, saindo d’ali com o labéo de ladrão, sem ter, nem posição social, nem dinheiro para poder viver.

O mancebo sai da cadeia vexado, apezar de vir decentemente vestido por ter reservado um vestuario completo, vendendo o resto, assim como o bahu, para comprar algum alimento mais solido e salutar emquanto esteve prezo, porque lhe parecia que todas as pessoas que o vissem o apontariam como ladrão. Todavia procurou logo informar-se de sua querida, e sabendo o triste fim que esta tivera, apaixonado e como doido, privou-se da liberdade, indo assentar praça, como voluntario, no regimento de infanteria n.°..., por lhe constar que este corpo brevemente ia destacado para a ilha da Madeira.

Eis pois outra vez o desgraçado, que podia ser tão venturoso, e que a justiça da Terra obrigou a ser tão infeliz, que depois de jazer seis mezes prezo innocentemente, o obrigou a perder outra vez o bem de maior valia depois da saude, vendo-se obrigado a comer o amargo pão do rei, elle que poderia com o que lhe tinham usurpado, matar a fome a tantos desgraçados!!...

Isto passava-se em outubro de 1852.

TERCEIRA PARTE

OS FABRICANTES DE MOEDA FALSA

CAPITULO I

A officina

Havia no anno de 1853, epocha em que principia a acção da primeira parte d'esta obra, perto do poço do Borratem, uma casa um tanto arruinada, d’estructura antiga, que foi demolida, não deixando de si vestigio algum na epocha em que escrevemos (1864), a não ser sinistras, horriveis e negras recordações para quem não ignora os males que d’ali sairam a encorporar-se na sociedade, não só lisbonense e de todo o reino de Portugal, como até na estrangeira, e sobretudo na do Brazil.

Esta casa compunha-se de loja e primeiro andar, sendo tudo arrendado pelo proprietario; o pavimento terreo era uma casa darrecadação de madeiras, e no primeiro andar habitava o General C***, o grande pianista.

Este sugeito dava reuniões nocturnas e quotidianas em sua casa.

Os convidados, assignantes infalliveis, eram o Conde de ***, o Barão de ***, o Bispo de ***, o ex-Ministro de *** e outros muitos de pouca importancia.

O General vivia inteiramente só; o almoço, jantar e ceia eram-lhe levados pelo moço d’uma casa de pasto proxima, com quem elle ajustára levar-lhe a comida.

O primeiro andar tinha communicação interna com a loja por meio d’uma escada em caracol que descia exactamente sobre a parte inferior do pavimento terreo.

Esta escada, por um machinismo desconhecido e optimamente combinado, carregando alguem com o pé fortemente sobre uma mola de metal, similhante a um botão, que ella tinha na extremidade superior, isto é, no pavimento do primeiro andar, descia, conforme a força da pressão, lenta ou rapidamente, a modo de machinismo theatral, levando comsigo as pessoas que estivessem nos degráos, e enterrava-se no pavimento térreo por um alçapão que ella abria na extremidade inferior, fechando ao mesmo tempo a abertura superior, isto é, do primeiro andar, por um outro alçapão que a escada deixava em cima.

D’este modo, quem estivesse no primeiro andar, e que soubesse este segredo, poderia fazer scismar muito quem o ignorasse, desapparecendo-lhe repentinamente para o subterraneo da loja, sem lhe deixar vêr para onde ia, porque o alçapão caia no mesmo instante, ficando o sobrado completamente inteiro.

Isto era quanto á descida, porque quanto á subida, bastava empregar o mesmo processo de pressão em outra pequena mola que a escada tinha na parte inferior, para immediatamente ella começar a ascensão.

Quem entrasse na loja na occasião em que a escada estivesse descida ao subterraneo, por modo algum poderia dar com o local da communicação, porque a extremidade superior da escada servia d’alçapão invisivel no pavimento, por ser da mesma madeira que este, o magnificamente construido para illudir.

Esta escada fôra invenção do General C***, porque este era um habil e excellente engenheiro.

Agora, depois de havermos descripto a casa, os leitores que se dignem acompanhar-nos ao subterraneo.

Era uma escavação de doze metros de comprimento sobre oito de largura, feita por debaixo do cabouco da casa, tendo quatro metros de profundidade.

O solo era soalhado de taboas sem serem pregadas.

As quatro paredes eram uma especie de barroca.

Esta escavação fôra feita por tres trabalhadores, sob a vigilante direcção do General C***, o qual lhes deu casa, cama e meza em quanto durou a obra, dizendo no fim da mesma, com voz sinistra a todos tres, depois de lhes pagar generosamente:

-- No momento em que disserem a alguem que fizeram esta obra, perdem a vida. De contrario, quando precisarem de mim para alguma coisa, procurem-me.

Este subterraneo tinha uma forja, fornalhas de diversas dimensões e varios balanceis; a um canto, perto da forja, via-se um montão de carvão de pedra, uma infinidade de cadinhos pretos e brancos, barras de chumbo, estanho, latão, cobre e prata, e tres bigornas, malhos, etc.

Alem d'isto tinha um tubo de ferro da circumferencia de seis pollegadas, que o atravessava desde a forja, seguindo pela parte superior das fornalhas, o qual encaminhava o fumo para a chaminé do predio.

Era este o local onde se reuniam todas as noites os convidados do General C*** os quaes se revestiam d’aventaes e blouses, e trabalhavam sob a direcção do mestre, que era o proprio dono da casa, na fabricação de moeda falsa, de prata e ouro.

As moedas que fabricavam eram meias corôas de prata, libras sterlinas e meias corôas d'ouro.

Os trabalhos eram sempre nocturnos e á luz de lanternas de furta-fogo, que os ajudantes tinham o cuidado de applicar ao trabalho dos officiaes, emquanto não estavam no caso de receberem tambem a luz d’outros aprendizes.

Muitas vezes o General C*** dava no primeiro andar luzidas reuniões, onde se juntavam numerosas damas e innumeros cavalheiros, os quaes dançavam, tocavam ou cantavam, algumas vezes acompanhados a piano pelo dono da casa, o qual, em noites que não tinha trabalhos d'importancia, deixava os officiaes trabalharem só com os ajudantes, e n’outras em que era necessaria a sua presença no subterraneo, deixava presidindo ao baile um dos seus amigos officiaes, o qual fazia as honras da casa durante a ausencia do seu amigo, communicando aos convidados do confiança que o dono da casa estava passando pelo somno.

Esquecia-nos dizer que a officina tinha arrumada em um dos angulos uma machina negra e feia, que se chama vulgarmente machina infernal, e nas paredes, panoplias com espadas, punhaes, floretes, etc.

Eis a fabrica de moeda falsa que existia em 1853, nas proximidades do Poço do Borratem.

CAPITULO II

Os operarios

Em uma noite de reunião em casa do General C***, o qual estava fazendo n’essa occasião as honras da sala, achavam-se no subterraneo uns oito ou nove individuos empregados em diversos trabalhos.

Uns occupavam-se em malhar ardentes barras de liga que saiam da forja, em braza, e estes só trabalhavam nas occasiões em que no primeiro andar dançavam ou tocavam, para em cima não notarem a bulha, e darem, sob a direcção d’um oficial, ás ditas barras a grossura marcada por este.

Outros deitavam pedaços de diversos metaes em caldeiras que estavam nas fornalhas, lançando-os depois de derretidos em tubos de ferro de diversas dimensões.

Outros, finalmente, estavam occupados em derreter dinheiro em ouro dentro de cadinhos.

-- Senhor Conde, disse um dos officiaes encarregados de derreter os metaes para a liga, já temos metal bastante para principiarmos a cunhar.

-- Veja bem, senhor Barão, respondeu o aristocrata, contramestre da officina, e n’essa occasião arvorado em mestre e direclor dos trabalhos; veja bem não seja escassa a porção e que tenhamos novamente de accender as fornalhas; isso seria um grave transtorno similhante ao que succedeu ha dias com o engano da liga.

-- Affianço-lhe que temos sufficientes barras, replicou o outro.

-- Então podem Vossas Excellencias principiar a cunhar meias corôas.

-- O ouro está derretido nos cadinhos, senhor Conde, diz o Bispo de***, elevando a voz para ser ouvido do mestre, por causa da bulha produzida pelos trabalhos da officina.

-- Então, respondeu o Conde, póde Vossa Excellencia começar a dourar as libras que já estão cunhadas.

-- A liga das meias corôas de ouro, diz o ex-Ministro de ***, desconfio que não saiu boa, senhor Conde.

-- Oh! com os demonios! exclamou este em tom do recriminação. Então, faça ponto ahi Vossa Excellencia. Não temos outro remedio senão deixar de cunhar hoje as meias corôas de ouro, continuou elle dirigindo-se aos obreiros em geral; porque eu confesso que quem podia decidir se a liga está ou não boa, é o nosso General. Elle não está cá, e então vamos trabalhar nas outras moedas.

-- Então, mãos á obra, exclamou um dos obreiros de pouca importancia; para que o General não se zangue, devemos cunhar a mais das outras moedas para compensar a falta das de cinco mil réis.

-- E eu, diz um aprendiz gordo que estava occupado em apagar a forja e as fornalhas, tenho bem precisão de moedas de cinco tostões, para entremear nas ferias que hei de pagar sabbado aos meus carpinteiros e pedreiros.

-- Pois eu tambem preciso muito de libras para as espalhar pelo ministerio, diz o ex-Ministro; estamos quasi no fim do mez e não temos tempo a perder.

-- Apoiado! apoiado! responderam os operarios todos a uma voz.

-- Scio!... atulhou o Conde; não façam tanta vozearia, porque podemos comprometter-nos.

No mesmo momento a officina ficou muda como se lá não existisse nenhum folego vivo.

Unicamente a bulha surda da pressão dos balancets sobre as barras da liga, e o som metallico da queda das moedas falsas, depois de cunhadas, se ouviam no subterraneo.

Os operarios cunharam pelo espaço de tres horas, sem dizerem palavra, findas as quaes, o mestre, que marcára este prazo, disse aos operarios:

-- Meus senhores, por hoje estão encerrados os trabalhos. Podem ensacar o dinheiro e vamos prepara r-nos para entrarmos nas salas.

-- É apenas uma hora da madrugada, disse o Bispo; podemos ainda estabelecer jogo e passarmos algumas das nossas moedas.

-- É facto, accrescentou o Barão; devem lá estar, segundo me disse o General, alguns jogadores fortes, e então vamos exploral-os.

-- Tenha cuidado, senhor Bispo, disse o Conde dirigindo-se ao prelado; olhe não vá passar hoje algumas das libras que acabámos de fazer, e que Vossa Excellencia dourou, sem as mostrar primeiro ao General; podem não ter ficado boas, e elle é o unico competente para as verificar, pezar e classificar como passageiras ou não.

-- Descance Vossa Excellencia, respondeu o Bispo, eu ainda tenho algumas já affiançadas pelo nosso director, e então não é necessario recorrer a estas de hoje.

-- Bem, então, continuou o Conde, podemos partir, não é assim?

-- De certo, senhor Conde, respondeu um dos insignificantes, o dinheiro já está ensacado.

-- Então, meus senhores, podem ir subindo a escada.

Os operarios subiram todos; o Conde, que foi o ultimo, deu com o pé na mola inferior da escada, começando esta a subir lentamente até ao primeiro andar.

Os fabricantes foram lavar-se e vestir-se, dando depois entrada nas salas do General C***, onde deixaram perder não poucas moedas falsas para ganharem as boas dos parceiros.

CAPITULO III

Paga o justo pelo peccador

Alguns dias depois das scenas que acabamos de descrever, José Pereira, que já ganhára no regimento o posto de furriel pelo seu bom procedimento e instrucção, veio, como commandante d’uma pequena força de tres soldados, á pagadoria militar buscar o pret para o regimento.

Os pobres militares receberam o pret, com o regosijo proprio d’aquelles dias, porêm houve alguns, sobretudo officiaes superiores, que receberam tudo meias corôas, das quaes metade eram falsas.

D'esta fórma começou a espalhar-se nas proximidades do quartel, que corriam por ali meias corôas falsas, de modo que os desgraçados que possuíssem moedas de cinco tostões, mesmo sendo prata de lei, era-lhes difficultoso passarem-nas.

Os officiaes, tanto inferiores como superiores, desesperados por perderem tanto dinheiro, queixaram-se ao commandante.

Este, que recebêra o soldo em prata e ouro, quando tal ouviu, empallideceu, por se lembrar que ainda não verificára se as moedas eram ou não boas.

Depois de se certificar que tinha metade do soldo em moeda falsa, o coronel, desesperado, perguntou com voz de trovão:

-- Quem é o estupido official inferior que foi á pagadoria buscar o pret?

-- É o furriel da 5.ª, responderam-lhe.

-- Que venha aqui immediatatnente, continuou o Coronel no mesmo tom.

Em consequencia d’esta ordem, José Pereira, que estava de folga no quartel, foi chamado á presença do commandante do corpo.

Este, rodeiado dos officiaes superiores e inferiores, queixosos, passeiava agitadamente pela secretária, esperando com impaciencia o desgraçado furriel, o qual não se fez esperar por muito tempo.

José Pereira tambem fôra victima dos fabricantes de moeda falsa, porque recebeu duas meias corôas fingidas.

O pobre mancebo, não duvidando do motivo porque o Coronel o chamava, por lhe haver constado o descontentamento de toda a officialidade para com elle, por causa do dinheiro falso que infelizmente trouxera com a melhor boa fé, não desconfiando da sua falsidade; o pobre mancebo, diziamos, entrou na secretária com o coração opprimido.

O Coronel, assim que o viu, disse-lhe desabridamente, porêm com um sorriso ironico, como de quem quer passar por espirituoso:

-- Então você é que foi o grande pedaço d’asno do commandante da força que trouxe o pret cá para o regimento, não é assim?

-- É verdade, meu commandante, respondeu José Pereira.

-- Não me interrompa, senhor! vociferou o Coronel. Eu não o interroguei, e ainda mesmo que o interrogasse, sem lhe dar a voz de «póde fallar», não tinha você o direito de responder.

E, depois d’esta pequena catilinaria, o Coronel deu duas ou tres voltas pela secretária para coordenar as idéas, depois do que, parado em frente de José Pereira, que se conservava perfilado respeitosamente, por se achar na presença de quasi toda a officialidade do regimento, continuou:

-- Você é um bolas! Que diabo de militar é você, que não conhece se o dinheiro é falso ou bom! Você é maduro, homem!

-- Eu tenho a ponderar a Vossa Excellencia... atreveu-se a dizer José Pereira.

-- Silencio! seu furriel, berrou o commandante; não me faça perder a paciencia, porque então vai torta!

Depois d’esta ameaça, tornando a dar outras tres voltas pela secretária, parou, e mettendo a mão na algibeira, tirou d’ella duas libras, foi buscar umas balanças pequenas a uma gaveta, e pondo uma libra em cada bandeja, e caminhando para José Pereira, continuou:

-- Veja lá, seu piegas, se esta libra tem o pezo d’esta!

E indicava a libra menos pezada a José Pereira.

-- Então que lhe parece? tornou, depois d’alguns momentos de silencio.

-- É certo que esta...

-- Cale a boca, senhor, não quero ouvir as suas reflexões. Veja, continuou elle, tirando as duas libras das balanças, pondo estas sobre uma secretária e mostrando as duas peças a José Pereira, depois de se lhe haver aproximado; veja o pezo que uma e outra teem.

E vendo que o mancebo se conservava immovel, bradou-lhe com voz fortissima, que retumbou pelas paredes da secretária, fazendo estremecer toda a officialidade presente:

-- Pegue, homem, tome-lhe o pezo!

E deitou as duas moedas nas mãos de José Pereira, que as aparou machinalmente, estremecendo ao mesmo tempo como succedeu aos outros officiaes.

-- Mas, meu coronel, eu não sabia...

-- Silencio nas fileiras! gritou o coronel, que era um homem violento, e, enfurecido pela colera, já não sabia o que dizia; silencio! quando não, mando-o chibatar, ouviu?

Depois, voltando-se para a officialidade, perguntou em geral:

-- Aonde está o capitão da 5.ª?

-- Está de guarda á Principal, commandante, respondeu-lhe um dos officiaes.

-- É pena, continuou o coronel, rindo sarcastica e assalvajadamente; é pena, porque queria dar-lhe os parabens por me haver elogiado a intelligencia e a capacidade de um estupido que recebe metade do pret em dinheiro falso.

-- Meu commandante, eu fui completamente illudido pela perfeição das moedas falsas...

-- Ah! você continua a fallar? vociferou o Coronel; então espere, que eu já o faço calar.

E voltando-se para o cabo d’ordens:

-- Vá chamar o commandante da guarda.

As ordens do Coronel foram executadas immediatamente, chegando quasi no mesmo momento o sargento que estava de guarda ao quartel.

-- Esse homem para o calaboiço, por oito dias, e a pão e agua, diz o Coronel ao sargento, indigitando-lhe José Pereira.

O desventurado orphão entregou as duas libras, as quaes conservára ainda na mão, ao Coronel, e fazendo a devida continencia militar, saiu da secretária e deu entrada, pela primeira vez, no calaboiço, depois de seis mezes que servia, durante os quaes nunca soffrêra a mais leve reprehensão dos superiores.

-- Meus senhores, disse o Coronel aos officiaes, depois de José Pereira sair, tenham paciencia de haverem perdido quasi metade do soldo; eu tambem me succedeu o mesmo, e por preço nenhum quero reenviar este dinheiro para a pagadoria: em primeiro logar, para não me chamarem tolo por eu mandar estupidos e tapados a serviços para que são incompetentes; e em segundo, porque podem ir metter alguma intriga ao ministro da guerra, a quem sou pouco affeiçoado, e haver grande chicana; por consequencia é aguentarem-se. Aguentem-se, meus officiaes, aguentem-se.

Depois d’esta allocução dirigida á officialidade, saiu da secretária.

José Pereira, o desgraçado orphão perseguido pela desventura, jazeu pois, oito dias no calaboiço, pagando o mal que não fizera, e ficando desconsiderado para com os seus camaradas, que d'ahi por diante o crismaram com o nome de furriel macanjo.

CAPITULO IV

Quem mais soffre é o pobre

Pouco mais ou menos por este mesmo tempo, em quasi toda a capital estava espalhada immensa porção de dinheiro falso.

Em uma pequena mercearia da freguezia de Santa Catharina, n’um domingo de manhã, quem n’essa occasião parasse defronte da porta da loja, ouviria o seguinte dialogo entre o dono da casa, mulher d’este e um pobre velho, trabalhador, que fôra matar o bicho no dia de folga que tinha depois dos seis do pezado e arduo trabalho:

-- Olhe que você, tio Antonio, dizia o dono da loja ao velho, no córtinho do créto que me pagou onte, deu-me duas moedas de cinco tostões falsas.

-- Ó seu João, que me diz?! exclamou o bom velhote, poisando no balcão o copinho d’aguardente que já levava aos labios; pois o dinheiro que eu arrecebi onte da mão do mestre era falso!! Deixe vêr, seu João, deixe vêr...

-- Antão você pensa que o meu hóme mente? diz a mulher do dono da casa, entromettendo-se na conversa. Elle, graças a Deus, não tem precisão de enganar ninguem.

-- Eu não quero dizer na minha, respondeu o desgraçado trabalhador, que o seu hóme queria enganar-me, tia Maria. Eu o que estou é inté admirado que o dinheiro seja falso... que assim me Deus salve em como o arrecebi do mestre, o qual o arrecebeu do patrão, e vim logo pagar o créto; porque um hóme honrado como eu sou, tia Maria, não era capaz de fazer a desfeita ao seu hóme de lhe dar dinheiro máu, dando-me elle comida boa.

E o honrado velhote quasi lhe chegaram as lagrimas aos olhos, ao pensar que desconfiavam d’elle.

-- Olhe, aqui as tem, diz o dono da casa mostrando ao trabalhador duas moedas de cinco tostões com um bocado da serrilha limada, deixando vêr serem de metal amarello; quem desconfiou d’ellas, esta manhã, foi o moço do padeiro, a quem eu paguei o pão que lhe devia de onte. Sei que são as que você me deu, porque eram as unicas que eu puz n’um dos repartimentos da gaveta.

-- Ora não ha uma coisa assim! exclamou o velho. Quem me havia de dizer tal, tio João, que eu havéra de arreceber a feria quasi toda falsa!...

-- Mas é que você, diz-lhe a mulher do tendeiro, não tem mais do que tornar a dal-as a quem lh’as deu, e pedir-lhe outro dinheiro; pois antão?l

-- É o que deve fazer, ser Antonio, concluiu o tendeiro apoiando as idéas de sua mulher.

No dia seguinte, o pobre trabalhador, assim que viu o mestre, chegou-se a elle e, com algum acanhamento, disse-lhe, mostrando-lhe as duas meias corôas:

-- Ó mestre Joaquim, olhe que eu arrecebi este dinheiro na feria da semana passada; elle é falso, e eu sou um prove hóme que não posso perder dez tostões.

-- Que quer você então que eu lhe faça? perguntou o mestre levantando os hombros.

Depois, pegando no dinheiro e examinando-o por um momento, continuou:

-- Olhe que você, tio Antonio, venderam-lhe, como o outro que diz, gato por lebre; esse dinheiro não é o que eu lhe dei aqui.

-- Pois será possivel, exclamou o trabalhador, que o João da tenda me fizesse uma tal maroteira?!... Nada, eu não o acho capaz d’isso!

-- Pois olhe, replicou o mestre, o qual, felizmente, ou não recebêra dinheiro falso ou tivera a fortuna de o passar por bom; cá da obra, póde acreditar que o não recebeu, tio Antonio; o patrão não é tolo, e não recebe dinheiro falso.

-- Anião eu é que perco os dez tostões, não é assim? Estou arranjado da minha vida!... O que hei de eu comer esta semana, não tendo pago o créto na tenda?... Inda eu por mim não me ralo; um bocado de pão e queijo faz a festa... mas a companheira, coitada, que é doente, e que não póde passar sem o seu caldinho d’arroz ou de feijáo, é que me dá cuidado. Valha-me Deus!

E o pobre homem foi para o trabalho, horrivelmente apoquentado com a idéa de que sua mulher não poderia ir á tenda buscar nem toucinho, feijões ou arroz, por ainda não ter satisfeito o importe do rol da semana finda.

Felizmente, o mestre compenetrou-se de dó pelo pobre velho, contando o caso aos companheiros, os quaes, como tiveram a fortuna de não apanharem dinheiro falso, ou de o passarem sem ser conhecido, quotisaram-se entre si, e arranjaram ao pobre e velho trabalhador a quantia que elle recebêra em moeda falsa.

Eis o resultado da maldicta officina subterranea e da negregada idéa do senhor Morgado, moço fidalgo L***, dono do predio onde trabalhava o trabalhador Antonio, em distribuir pelos malfadados obreiros, dinheiro que lhes é nocivo por duas maneiras: por ficarem privados do que queriam comprar, e arriscarem-se a perder a liberdade por suspeitos injustamente de fabricantes de moeda falsa.

Que de males pois não vem trazer a uma população, sobretudo á pobreza, a circulação de dinheiro falso, espalhado com abundancia igual á quantidade que os leitores viram se podia fabricar na officina do General C***!

CAPITULO V

O General C***

Este personagem, que mal apresentámos aos leitores, era, n’esta epocha, homem de sessenta annos, ainda rijo e vigoroso; d’estatura athletica, e com uma enorme physionomia; n’aquelle rosto tudo era grande: tinha grandes olhos, grande nariz, grande boca, grande testa e, sobretudo, faces, as quaes eram dois semi-circulos que faziam com que o seu proprietario possuisse um rosto de lua cheia propriamente dito.

O General C*** era filho d’um frade do convento de Alcobaça e da mulher d'um hortelão, homem simples e com o cerebro complelamente obscurecido pelas medonhas trevas dos mysterios da religião christã explicados pelos antigos frades e modernos padres, sempre d’um modo tão eloquente e persuasivo, que deixam os crentes sem nada comprehenderem.

O frade obrigou pois a esposa do honrado hortelão a ir em contrario aos preceitos da lei escripta «Não serás adultera;» e elle proprio foi d’encontro á maxima do fundador da religião christã, que diz: «Não desejarás a mulher do teu proximo.»

D’estas relações, licitas para os que professam a primitiva lei natural, altamente illicitas para os que seguem a lei escripta, e muito mais segundo a opinião dos ministros da lei da graça ou evangelica, nasceu o filho do crime, como chamam os hypocritas phariseus e escribas do seculo XIX aos filhos bastardos; porêm a creança nasceu já remida do peccado original por ser filha de frade.

O nosso General começou pois a crescer no lar domestico do pobre e credulo hortelão, ao qual, assim que poude articular as primeiras palavras, chamou «pae.»

Quando saiu da infancia, apoderou-se logo do espirito da creança o veneravel frei, tentando ensinar-lhe o portuguez, latim, theologia, musica, etc.; porêm, o nosso homem só poude aprender, e isso mal, a lingua materna e uns leves rudimentos de musica.

Todavia, como lodos os dias assistia ao côro no convento, e o pae natural era o organista da ordem, a creança começou a gostar dos sons que ouvia sair pelos canudos do orgão e pediu ao frade que lhe ensinasse a tocar, chegando ao meio dos principios, o que entretanto o fazia passar, como já dissemos n’outra parte d’esta obra, por tocador de piano de grande nomeada.

O rapaz era muito travêsso, e por mais de uma vez as visinhas do hortelão se queixaram a este que seu filho lhe matára á pedrada, gallinhas, coelhos mansos e gatos; isto tendo elle já os seus doze annos.

O hortelão, que idolatrava o seu querido filhinho, como elle lhe chamava, muitas vezes pagava do sou bolsinho a perda que o garoto causára ás visinhas; e outras, quando o travêsso rapaz matava algum gato e que a dona vinha toda lacrimosa queixar-se ao fazendeiro da perda que soffrêra, o pobre homem, que realmente tinha bom coração, indignava-se contra o filho e tentava dar-lhe prelecções da doutrina que elle proprio tinha bebido em pequeno.

-- Nunca devemos fazer aos mais, meu filho, dizia-lhe, o que não queremos que nos façam a nós.

O rapaz sorria-se a estas admoestações biblicas, e perguntava ao hortelão em tom de zombaria:

-- Aonde foi que vocemecê leu isso?

-- Isto, respondia-lhe o velhote atrapalhado por saber estas e outras sentenças como nós sabemos o padre-nosso, é um preceito da nossa religião.

-- Então, replicava o rapaz, não leu vocemecê o Velho Testamento: lá diz, que Deus castigava constantemente os máus com os mais severos castigos... Frei Ignacio tem-me dito muitas vezes que os gatos são máus, e eu então quero castigal-os, malando-os.

-- Pois sim, respondia-lhe o pobre homem, meio desconcertado com este argumento em que entrava a opinião do respeitavel e sapientissimo fradalhão; que os gatos sejam máus, e por isso se castiguem... vá; mas as gallinhas e os coelhos... creio que não são máus.

-- Ah! esses servem-me para me exercitar na pontaria da funda emquanto não posso com uma espingarda. Frei Ignacio tem-me dito muitas vezes que David, para matar o gigante philisteu, teve primeiro de matar muitos irracionaes para se exercitar na pontaria.

-- Pois bem, replicava o hortelão cada vez mais atrapalhado, mesmo sendo permittido esse exercicio pela Escriptura, o que me parece que não é permittido, é roubarem-se as gallinhas e os coelhos depois de mortos.

-- Frei Ignacio diz que os bens d’este mundo são nada, e que ninguem se deve inquietar em ser despojado dos bens terrestres, percebe?

O pobre homem acabava sempre por baquear perante a philosophia do discipulo do frade, levantando os hombros em signal de descontentamento e deixando de pregar aos herejes, como elle dizia entre si.

A mãe, essa então, quando lhe faziam alguma queixa do filho adulterino, respondia sempre em tom sentencioso:

-- Estão continuamente com o pequeno ás voltas, a vêr se elle é castigado; pois não hão de levar a sua ávante. Eu já me aconselhei com frei Ignacio, a este respeito, e o santo homem respondeu-me que deixasse operar a natureza. Por conseguinte meu filho não obra mal; a natureza é que o pucha a ser vivo e talentoso.

Um dia o rapaz, tinha já então dezeseis annos, chegou-se ao hortelão e disse-lhe:

-- Eu quero uma espingarda.

-- Para quê? perguntou o pobre homem.

-- Para me exercitar em atirar ao alvo, respondeu o rapaz: frei Ignacio foi quem me aconselhou a isso.

-- Pois eu te dou uma espingarda, rapaz, visto que frei Ignacio é d’essa opinião.

E deu uma espingarda carregada ao tratante, o qual, vendo-se de posse da arma, afastou-se cinco ou seis passos do hortelão, e o primeiro alvo em que empregou o tiro com certeira pontaria foi o desgraçado que lhe dera asylo desde o berço, o qual caiu morto no mesmo instante com o craneo trespassado pela bala.

Este desgraçado farto fôra aconselhado pelo frade, porêm aconselhado jesuiticamente, dizendo ao rapaz que, depois do hortelão lhe dar a espingarda, a qual estaria descarregada (o malvado sabia que estava carregada por elle desde a vespera), lhe mettesse um susto apontando-lh’a e dando ao gatilho. Isto, dizia elle ao rapaz, era para que o hortelão o considerasse já homem e capaz de o defender ao seu lado, como os filhos de Salomão.

O negregado frade o que ambicionava era gozar o adultero amor da mulher do hortelão, sem receio de um dia serem descobertas pelo marido as relações que entre os dois existiam, e alem d’isto tornar-se não só seu senhor physico, mas tambem moral; isto é, convertel-a a desprezar os bens do mundo em favor da ordem, porque o fazendeiro possuia uma fortuna menos má.

O rapaz, vendo cair o hortelão, correu a elle estupefacto, porque logo presumiu o que tinha feito.

A bulha inesperada do tiro, vendo o velho cair, e depois vêl-o banhado em sangue e com os olhos cerrados, tudo isto passou rapidamente pela idéa do rapaz como um tropel de cavados que deixam uma planicie coberta de poeira.

O rapaz abriu os olhos como quem procura vêr; depois, nunca largando a espingarda, saltou um vallado que dava para a rua, e desappareceu a correr pelas ruas d’Alcobaça.

CAPITULO VI

Primeiras occupações

O nosso homicida correu até anoitecer.

Extenuado de cançaço, por ter corrido quatro horas sem para r, e achando-se dentro d’um pinhal, deixou-se cair ao pé d’uma arvore e, pondo a espingarda no solo, encostou os cotovellos aos joelhos, e com a cabeça entre as mãos permaneceu assim por bastante tempo entregue a meditações, e todo preoccupado com a idéa vaga que tinha do que poderia succeder-lhe.

Elle ouvira contar a varias pessoas, historias de enforcados por haverem roubado ou assassinado alguem.

Pena, não sentia nenhuma pela perda do pobre hortelão, porque frei Ignacio tinha-se esmerado, na educação que lhe dera, em fazer-lhe detestar e desprezar o bom do homem.

Era já noite cerrada, e o rapaz, que o cançaço da correria lhe tinha feito somno, começava a adormecer, quando se sentiu asperamente saccudido por um vigoroso braço, ao mesmo tempo que uma voz rouquenha, porêm forte, lhe bradava aos ouvidos:

-- Eh! camarada, antão que somno é esse?!

O rapaz abriu os olhos sobresaltado, e viu-se rodeiado por tres individuos, ou antes sombras, que, pela escuridão da noite, não podia distinguir-lhes a côr.

-- Ah! é ainda um fedêlho, disse um outro, com uma voz, tambem agreste, depois de vêr o rosto do nosso heroe, que o erguêra para vêr quem o estorvava de dormir o seu somno.

-- Mas, é fedêlho que traz d’isto, accrescentou outra voz pouco mais ou menos do mesmo timbre das duas precedentes.

E, este terceiro personagem, mostrou aos dois companheiros a espingarda do hortelão, a qual era de dois canos e conservava ainda uma carga.

O rapaz, vendo-se rodeiado de homens, julgou que o vinham prender por causa do crime que commettêra, e, sem responder á pergunta que lhe fizera o primeiro dos tres individuos que o cercaram, disse choramingando:

-- Eu não é que tive a culpa... quem me aconselhou a que disparasse foi frei Ignacio, e é elle o culpado de eu ter morto meu pae.

-- Olá! já nós lá vamos? disse a primeira voz n’um tom d’exclamação; bravo, o fedêlho estreiou-se bem!

Porêm, isto foi dito ao ouvido dos seus dois companheiros, de modo que o filho de frei Ignacio nada ouvira.

-- Antão que cantiga é essa que tu nos estás cantando, rapaz?

Esta pergunta foi-lhe feita pelo que o classificára de fedêlho.

-- Não é cantiga, não, senhores, respondeu o rapaz, que tomou a pergunta n’um sentido para elle muito desfavoravel; esta é a verdade... Frei Ignacio disse-me que a espingarda estava descarregada o que eu podia desfechar para metter medo a meu pae.

-- E tu atiraste, hein? perguntou uma das tres sombras.

-- Atirei, sim senhor.

-- E mataste teu pae?

-- Eu não sei se elle está bem morto.

-- Ah! grande tratante, diz-lhe outra voz, porêm n’um tom animador e não d’exprobação, ao mesmo tempo que lhe batiam no hombro em signal de amizade; olha que sempre tens um sangue frio n’essa idade... que te hade fazer ganhar bastantes victorias!

E voltando-se para os dois companheiros, disse-lhe em tom forte:

-- Vamos levar este pobre diabo d’aqui, porque é digno de nos pertencer.

-- De certo, accrescentou outra voz, não o devemos desampara r.

Depois, dirigindo-se ao rapaz, que tremia como varas verdes, disse-lhe, mettendo-lhe o braço:

-- Acompanha-nos.

-- Mas... meus senhores... eu estou innocente...

-- Descança, que não has de ser castigado.

E encaminharam-se todos quatro para o centro do pinhal.

Pouco depois, um dos tres bandidos deu um agudo silvo, e logo se ouviu, a curta distancia, uma voz bradar na escuridão:

-- Quem vem lá?

-- Camaradas, respondeu um d’elles: «Liberdade e riqueza!»

A estas palavras abriu-se, como por encanto, um alçapão do solo e o nosso heroe viu, á luz d’uma lanterna de furta-fogo, uma escada de mão que conduzia a um subterraneo.

O filho de frei Ignacio estava no pinhal d’Azambuja, entre a famosa quadrilha de salteadores que infestava aquelles sitios em 1801.

O nosso general viu-se pois iniciado nos mysterios dos bandidos, e fez bastantes proezas, chegando a ser tenente da quadrilha.

Foi no pinhal d’Azambuja que elle aprendeu com um companheiro do crime a abrir cunhos, e com outro a engenharia pratica, tanto militar como civil.

Fez, em guerrilha, a campanha contra a invasão franceza e a pró da mesma, segundo as conveniencias do saque; e na guerra civil de 1832 a 1834, combateu sempre em guerrilha a favor dos legitimistas.

Depois, conhecendo a impossibilidade de vencer, largou o partido a que dedicára o seu braço, emigrando para o Porto, onde, pelas suas proezas, ou antes barbaridades, ganhou o posto de coronel.

Acabada a triste campanha, sempre bem visto pelo partido liberal, o nosso heroe pouco tempo esteve sem receber as dragonas de brigadeiro, posto em que o vamos encontrar em 1853, quando o apresentámos aos leitores como director e proprietario da officina de moeda falsa nas proximidades do Poço do Borratem.

CAPITULO VII

Mais um para o gremio

Uma manhã em que o Conde de *** estava encerrado no seu gabinete, verificando algarismos relativos á quantidade de moeda que tinham fabricado no mez findo, o criado particular do fidalgo veio, pé ante pé, até á porta do gabinete para não estorvar seu amo na tarefa em que estava occupado, e, aproveitando uma occasião em que o Conde accendeu um charuto, distrahindo-se por um momento do trabalho que estava fazendo, o perspicaz servo, que se conservára sempre com o olho applicado á fechadura, bateu uma pequena e significativa pancada que denotava urgencia em fallar ao aristocrata.

O Conde, conhecendo a qualidade do toque, levantou-se e foi abrir mesmo sem indagar quem era, por não o ignorar.

-- One queres? perguntou elle ao servo.

-- Senhor Conde, respondeu o criado, muito instado pelo genro de Vossa Excellencia, o senhor Visconde de ***, é que me atrevi a vir interrompel-o nos seus importantes trabalhos.

-- Então que quer elle? perguntou o Conde com impaciencia.

-- Eu não sei, Excellentissimo senhor: elle disse-me com muita instancia que viesse eu participar a Vossa Excellencia, que tem extrema e indispensavel necessidade de communicar-lhe uma importante noticia.

-- Sim? disse o Conde sobresaltado, porque o criminoso nunca está tranquillo.

E depois de pensar um pouco, disse ao criado:

-- Dize-lhe que entre.

O criado saiu immediatamente esfregando as mãos do contentamento, pela esperança de ir receber meia libra que o Visconde lhe promettêra.

-- Que demonio será o que meu genro me quer communicar? pensou o Conde. Será algum aviso para nos prevenirmos da policia?... Mas elle não sabe absolutamente nada a respeito da officina...

N’este momento entrou o Visconde no gabinete do sogro, depois de dizer ao criado d’este, pela decima vez, que não tinha n’aquella occasião trôco para lhe dar a meia libra que lhe promettêrra.

O criado, que o seguira até ao gabinete do patrão, retirou-se, deixando cair desalentado o braço direito, que trouxera estendido e com a mão aberta emquanto seguiu o Visconde.

-- Pelintra! murmurou elle por entre dentes ao retirar-se; deixa-te apanhar outra vez entalado, a querer fallar ao patrão, que tu verás como eu te sirvo!

O Visconde, depois de comprimentar o sogro e d’este o mandar assentar:

-- Peço mil desculpas, disse elle, em vir interromper Vossa Excellencia, porêm um incidente horrivel...

-- Qual é? perguntou assustado o Conde, tornando á sua primeira idéa.

-- É que os esbirros...

-- Hein! interrompeu o Conde, dando um salto na cadeira; os esbirros?

-- Estão a esta hora...

-- Aonde? interrompeu novamente o Conde, cada vez mais assustado.

-- Fazendo um embargo...

-- Em quê, senhor? acabe, com um milhão de demonios! exclamou o Conde impacientado, sem se lembrar que o estorvador da communicação do Visconde era elle proprio.

-- Permitta-me lhe observe, que Vossa Excellencia não me deixou ainda acabar, com as suas interrupções, respondeu o Visconde.

-- Pois acabe por uma vez, replicou o Conde sempre inquieto. O que estão os esbirros embargando?

-- A mobilia do meu palacio e de sua filha, por ainda não a termos podido pagar.

-- Ora ainda bem! disse o Conde, respirando á vontade como se estivera privado muito tempo da respiração.

-- Então Vossa Excellencia estima?... perguntou o Visconde sem perceber, ou antes fazendo-se desapercebido da intenção da phrase do Conde.

-- Sim, porque julguei fosse alguma coisa ainda muito peior.

-- Então Vossa Excellencia, insistiu o Visconde, acha bom que eu e sua illustre filha, fiquemos reduzidos a estarmos entre as quatro paredes das salas... e muito mais agora, que estamos compromettidos com o General G***, amigo de Vossa Excellencia, para uma reunião proxima, em que elle hade dar-nos o prazer de acompanhar minha esposa a cantar algumas peças?...

-- Pois o General comprometteu-se a ir a sua casa? perguntou o Conde em tom de duvida.

-- É um facto; e para prova, Vossa Excellencia verá na noite da reunião.

-- Mas então, o que queria o Visconde? perguntou o Conde depois d’alguns segundos do meditativo silencio.

-- Eu... da minha parte, nada quero; agora a sua illustrissima filha é que me rogou com tanta instancia que viesse pedir auxilio e protecção ao papá, que eu resolvi-me a isso, bem contra minha vontade, porque Vossa Excellencia sabe perfeitamente quanto eu abomino o importunar alguem... Tanto que eu tinha tenção de ir passar este mez na minha casa de campo, porêm quando communiquei esta idéa a minha esposa, ella coitadinha, banhada em lagrimas, expoz-me o grande vexame a que ficavamos expostos depois de haver feito convites para a soirée promettida ao General C***; de modo que eu preferi arrostar com o sacrificio de vir incommodar Vosssa Excellencia, participando-lhe isto.

-- E quanto é o importe da tal mobilia? perguntou o Conde, que o ouvira com toda a attenção.

-- Parece-me, continuou o Visconde puchando uma carteira do bolso, que entre sophás, cadeiras estofadas e mezas de pedra, anda tudo por quinhentos mil réis.

-- Safa! exclamou o Conde, é carissima a tal mobilia.

-- Então que quer Vossa Excellencia? ponderou o Visconde com voz moralisadora e amarga; se os artistas entenderam que nós devemos entregar-lhes, por meia duzia de cacos, sommas fabulosas de dinheiro! São umas sanguesugas que nos sugam constantemente o dinheiro, e até, se podessem, nos sugariam o sangue.

Depois de haver observado o Conde, e vêr que estava entregue a profundas meditações, o sagaz aristocrata continuou, como fallando comsigo, porêm em tom claro para ser ouvido do sogro:

-- O Barão de *** propoz-me ha dias uma empreza, e eu, senão receiasse algum desastre, porque ella é arriscada, annuia, só para me vêr livre do maldicto estofador, sem importunar ninguem.

-- O Barão de *** propoz-lhe uma empreza? perguntou o Conde com voz d’estalo, receiando alguma indiscrição da parte do associado.

-- É verdade, respondeu o Visconde; e como reconheço em Vossa Excellencia um verdadeiro amigo, que não é capaz de me comprometter nem ao Barão, vou depositar com toda a confiança o importante segredo que o meu amigo me confiou.

Depois d’isto, levantando-se e aproximando-se do Conde, perguntou-lhe ao ouvido em voz sumida e mysteriosa:

-- Vossa Excellencia assegura-me que estamos sós?

-- Creio que sim, respondeu o Conde, levantando-se ao mesmo tempo e indo verificar melhor, fóra do gabinete.

Depois do que, tornando a entrar, disse ao genro tambem em voz baixa por ter um vago presentimento do que ia ouvir:

-- Póde fallar, porêm n’este tom.

-- Então saiba Vossa Excellencia que o meu amigo Barão propoz-me ante-hontem se eu queria ser admittido para a sociedade dos fabricantes de moeda falsa, da qual é presidente o General C***...

-- Pois o Barão propoz-lhe isso? perguntou estupefacto o Conde.

-- É certo, e tão verdade, que até sei onde é o local...

-- Scio, prudencia, senhor! exclamou o Conde empallidecendo. Sabe que terriveis males póde causar se commetter a imprudencia de declarar similhante coisa?! Ignora porventura a vigilancia da policia em descobrir emprezas d’estas?

-- Porêm, respondeu o Visconde radiante d’alegria por conhecer que tocára a corda sensivel do sogro, mas occultando o jubilo sob a capa da estupefacção; porêm Vossa Excellencia interessa-se tanto por esses homens que quem o ouvisse julgaria!...

-- O quê, senhor? acabe.

-- Ser verdade o que o Barão me certificou.

-- Então que lhe certificou o Barão? perguntou o Conde com a voz trémula.

-- Porêm tranquillise-se, meu sogro, disse o Visconde sem lhe responder; Vossa Excellencia está tão agitado como se estivesse na presença d'um juiz criminal. Julguei que tivesse mais presença d’espirito.

-- Se o senhor me faz perder a paciencia, o animo e tudo, com as coisas incriveis que me tem dito!

-- Incriveis! É o que me disse o Barão, affiançando-me, visto a minha perspicacia, intelligencia para todas as emprezas, dedicação e segredo, que poderia ser uma excellente acquisição para a sociedade.

-- Porêm o senhor, disse o Conde muito preoccupado, ainda me não disse o que o Barão lhe certificou a meu respeito.

-- É verdade.

-- Então diga, senhor.

-- Porêm Vossa Excellencia não se escandalisa?

O Conde fictou o Visconde, e no olhar do genro conheceu que estava sendo ludibriado por elle, por um sorriso sorrateiro que lhe surprehendeu na physionomia.

Depois d’este exame respondeu-lhe:

-- Não me escandaliso, póde dizer.

-- Pois o Barão, disse o Visconde, fingindo que lhe custava a sair esta revelação, affiançou-me que Vossa Excellencia era um dos membros mais importantes da sociedade de fabricação de moeda falsa.

-- Silencio, desgraçado! Sabes a deshonra e a infamia que podem resultar d’essas palavras para o pae de tua esposa e para toda a sua familia?

-- Então, com effeito, Vossa Excellencia é?...

-- Sou... mas nem uma palavra!

-- Se Vossa Excellencia receia que eu possa divulgar o seu segredo não tem mais do que uma coisa bem simples a fazer.

-- Qual é? perguntou o Conde.

-- É fazer-me seu cumplice.

O Conde calou-se por um momento, como para coordenar as idéas, depois do que:

-- Pois bem, fallaremos n’isso, respondeu elle.

-- Esse fallaremos n’isso, retorquiu o Visconde fazendo uma careta, é uma promessa com tanta evasiva que, nem póde deixar socegado Vossa Excellencia, nem satisfazer-me a mim.

-- Então que quer, homem? falle.

-- Em primeiro logar, que Vossa Excellencia me empreste quinhentos mil réis para pagar ao meu credor do embargo.

-- Aqui os tem, diz o Conde entregando-lhe ao mesmo tempo um masso de notas, e agora o que mais pretende?

-- Associar-me, o mais tardar, depois de amanhã, á lucrativa sociedade a que Vossa Excellencia pertence.

-- Está servido, mas para isso é preciso guardar o mais profundo segredo.

-- Póde contar com elle, querido papá: juro desde já e prometto, ser um dos socios que mais lucros dêem á sociedade, e que hão de contribuir para ella se sustentar por longos annos.

Depois d’este pequeno juramento, pegou no chapéo e, apertando com effusão a mão do Conde, saiu do gabinete, dizendo comsigo:

-- Meu sogro é tolo; caiu em dois logros. o arrojo e a presença d’espirito juntos com a mentira são tres elementos poderosos para conseguirmos o que queremos.

Ao encaminhar-se para a porta da escada, encontrou o criado, que, fazendo uma carantonha de tristura, lhe estendia mudamente a mão como um mendigo privado do dom da falla.

-- Ahi tens, velhaco, disse o Visconde atirando-lhe com uma nota de moeda; anda tratante, que lucraste com a espera.

-- Oh! meu querido senhor Visconde, exclamou o criado depois de apanhar a nota e verificar de quanto era; aqui me tem aos seus pés sempre prompto ao que determinar.

E caiu de joelhos aos pés do Visconde, o qual saiu do palacio do sogro dando uma forte gargalhada, que se podia dividir em tres partes, e applicar-se para servir d’escarneo a duas pessoas: ao Conde e ao criado.

CAPITULO VIII

O poder de Baccho

A historia do embargo que o Visconde contou ao sogro, não passava d’uma falsidade; tal embargo não tinha tido logar.

O Visconde, de combinação com a mulher, intentou extorquir ao pae d’esta, quinhentos mil réis, que precisava para despezas da reunião para que estava convidado o General C***, pois cada vez estava mais empenhado, porque não tinha rendimentos, e a despeza em coisas superfluas, era abundante.

Agora quanto á proposta feita pelo Barão ao Visconde, essa foi verdadeira, porque este, desde o baile do anniversario natalicio de sua mulher, noite em que, os leitores estarão lembrados, o Barão lhe emprestou dez libras falsas para elle jogar, o Visconde, esperto como era, logo presumia d’onde lhe podia provir aquelle dinheiro.

Sabendo pois que o Barão peccava por ser amador do summo fermentado do fructo descoberto por Noé, si vera est fama, aproveitou uma noite de reunião em sua casa, á qual assistiu o Barão, e á ceia apresentou-Ihe um certo vinho aromatisado e largamente generoso, o qual obrigou a fallar o Barão, e mesmo a dizer e prometter coisas que elle nunca diria nem prometteria, estando no seu estado normal.

O Visconde, depois da ceia, vendo que o amigo precisava repoiso, enfiou-lhe o braço e, pedindo desculpa aos outros convidados, seus intimos, levou o Barão para o seu quarto.

Chegados ali, o Barão, estendendo-se na cama do Visconde, começou a cantar desafinada e estropiadamente a aria do tenor da opera o Trovador: Corro a salvar-te, madre infelice.

O Visconde deixou-o cantar em quanto elle fumava um charuto, e recapitulava na idéa como havia de começar o interrogatorio para conseguir saber o que pretendia.

-- Dize-me uma coisa, Barão, perguntou elle ao amigo quando este acabou estrondosamente a aria do Trovador, e ia principiar com a mesma força o dueto de tenor e baritono da opera Moysés no Egypto, do qual tencionava sem dúvida executar as duas vozes; dize-me uma coisa, d’onde demonio te vem tanto dinheiro, e tão novinho?...

-- Novinho! ah! ah! ah! respondeu o Barão rindo estrepitosamente, no vinho estou eu mettido... ou não, não, digo asneira, não é verdade? Elle é que se introduziu em mim, ou, para melhor dizer, eu é que o obriguei a entrar.

-- Ora deixa-te de fazer espirito, homem, e responde-me, se queres.

-- De fazer espirito! ah! ah! ah! continuou o Barão rindo estrondosamente, dize antes, de cheirar a espirito; porque nós, aquelle, olha que cheirâmos a espirito como dois toneis cheios de aguardente.

-- Dize para ahi o que quizeres, que eu já não te pergunto mais nada.

-- Então que diabo queres tu saber, amigo Visconde?

-- Não ouviste o que te perguntei?

-- Eu não, homem; só te percebi fallares no vinho.

O Visconde, observando a physionomia do Barão, e conhecendo que elle estava fallando verdade, porque, no estado em que se achava, era-lhe impossivel tingir, continuou:

-- Perguntei-te d’onde te veem tantas libras novas; isto... se não é segredo, accrescentou elle.

-- Ora, qual segredo nem meio segredo! Entre amigos ha confiança, e então eu zango-me deveras comtigo se julgas que eu minto.

-- Acredito, Barão, que és meu amigo, respondeu o Visconde dando-lhe a mão.

E depois, para lisonjear o amor-proprio do embriagado, accrescentou:

-- Não tenho eu porventura bastantes provas da tua dedicação e amizade para comigo, em emprestimos de dinheiro que me tens feito; como, por exemplo, as dez libras que ultimamente me emprestaste na noite do baile de minha mulher?

-- É verdade, lembra-me perfeitamente, respondeu o Barão rindo: por signal, tinham sido cunhadas na vespera, e por esta creança, accrescentou elle batendo no peito em signal de indigitação pessoal.

-- Sim?... perguntou o Visconde com interesse, tu sabes fazer dinheiro?

-- Então que julgas tu, meu pateta? Para que servem ao homem as faculdades intellectuaes, claras e intelligentes, e, alem d’isso, ter nascido dotado de inabilidade imitadora e até inventora?

-- Para muito, tens razão.

-- E tu, se quizeres, continuou o Barão assentando-se na cama como para dar mais força ao que ia dizer; tu, que és um rapaz atiladissimo, e até dotado de talento, poderás pertencer á sociedade. Podes contar que se chegas a entrar, a estudar e a executar, dentro em pouco poderás estar, não digo rico, porque nós nunca poderemos enriquecer, porêm sem precisares que eu ou outro qualquer te emprestemos dinheiro.

Depois d’alguns momentos de silencio de parte a parte, o Barão continuou:

-- Bem sabes que eu não tenho bens, nem rendimentos que me deixasse o perdulario de meu pae, e que, apezar de não ter casado com a hespanholita, para ficar rico, nunca deixo de ter dinheiro.

O Visconde, julgando que o amigo lhe fazia uma recriminação por não ter casado com a joven hespanhola, que os leitores já conhecem, respondeu-lhe em tom de submissão bem fingido:

-- Tu bem vês, charo Barão, que a culpa não foi minha; eu bem trabalhei para ti, e se não fosse a tua falla d’assiduidade, sobretudo, de noite, em appareceres á pequena, com certeza não teria ella deixado subjugar-se pelo avarento do Marquez de ***, com quem está para casar.

-- Bem sei, bem sei, disse o Barão; não fallemos mais n’isso. Porêm, como te estava dizendo, tu deves pertencer-nos.

-- Pois, d'accordo, disse o Visconde; porêm o que heide fazer para ser admittido?

-- Olha, se tu podesses ter a protecção de teu sogro n’este negocio, era uma coisa magnifica: eu sei que elle embirra comtigo, não sei porquê; eu tenho-lhe fallado em ti para entrares para o gremio, porêm sempre me responde que por emquanto não... que lá mais para o futuro...

-- Sim, comprehendo, evasivas, atalhou o Visconde.

-- Exactamente, evasivas.

-- Ora, quanto queres tu apostar, continuou o Visconde, em como eu tenho força moral para obrigar meu sogro a admittir-me para essa sociedade, visto elle ter poder para isso?!

-- Sim?! perguntou o Barão admirado.

-- Sim, respondeu o Visconde.

-- Porêm como?

-- Isso por emquanto é segredo; amanhã ou depois te direi como.

E o arteiro Visconde, d’ahi a dois dias, como vimos no capitulo precedente, foi ter com o sogro, e não só lhe extorquiu os quinhentos mil réis para o embargo phantastico, como conseguiu, mentindo descaradamente, mover o Conde de *** a fazel-o admittir como obreiro da officina de moeda falsa, o que de facto succedeu.

CAPITULO IX

Tambem soffrem os avarentos

O Conselheiro M*** estava um dia contando uma grande porção de prata e oiro que tinha dentro d’uma secretária, no seu quarto.

Esta operação era quotidiana, e varios dias engrossado o monte com mais prata e oiro, lucros da partida dada em casa do Conselheiro todas as semanas, uma ou duas vezes.

A conselheira tinha o mesmo habito.

Possuia outra secretária no seu quarto, a que chamava a caixa das suas economias.

O Conselheiro, pois, como dissémos, estava verificando se não fôra roubado, quando, examinando bem uma moeda de cinco tostões, viu que a serrilha apresentava á vista, em quasi todo o circulo, um metal amarellado com similhanças de latão.

O Conselheiro pegou n’um canivete, e profundando com a lamina d'este no corpo da moeda, viu que o interior d’ella era tambem de metal amarello.

O homem, a esta vista, sentiu um arripio por toda a espinha dorsal, e cobriu-se de suores frios com a idéa d’um triste presentimento.

Continuou pois a examinar as moedas de cinco tostões, não lhe importando já com a verificação da contagem, e achou entre cem meias corôas, sessenta falsas.

O avaro Conselheiro não sabia se sonhava ou estava acordado; a cada moeda falsa que encontrava, tinha um tremor e um calafrio.

Quando porêm chegou a examinar minuciosamente as libras, e que achou entre cincoenta, que tinha na secretária, trinta falsas como Judas de Cariot, o Conselheiro, levantando-se e correndo como doido pelas casas, foi parar ao quarto da esposa, que n’essa occasião se entretinha no mesmo innocente prazer de avarento agiota, e disse-lhe tartamudeando, e com os olhos esbugalhados:

-- Estou roubado, menina... atrozmente roubado!

-- Como? perguntou a conselheira, sem voltar a cabeça, nem interromper a contagem.

-- Isso é o que eu ignoro, porêm o facto é que estou roubado...

-- O senhor tambem, sempre ignora tudo, interrompeu a conselheira, nunca interrompendo o exercicio das suas funcções.

-- E a senhora, aposto que tambem foi roubada, continuou o Conselheiro para despertar mais interesse na mulher e fazer com que ella lhe prestasse attenção; examine bem o dinheiro que tem ahi, e verá.

D’esta vez voltou-se a conselheira para o marido, e vendo o transtorno e pallidez que este apresentava na physionomia, conheceu que se tratava d’algum caso serio, e disse-lhe n’um tom sêcco, porêm que denunciava curiosidade e ao mesmo tempo receio:

-- Eu não o percebo, se não se explica melhor.

-- Olhe, continuou o Conselheiro mostrando-lhe uma libra e uma moeda de cinco tostões falsas; aqui tem a prova, e uma prova bem convincente.

E fez-lhe observar a falsidade das duas moedas.

-- E quem lh’as deu?... não sabe?

-- Eu sim! Encontrei-as na caixa das economias do jogo...

-- E então pela insignificante quantia de cinco mil réis, interrompeu a conselheira rindo, vem o senhor todo azafamado correndo e gritando como se viesse seguido d’um toiro, assustar-me horrivelmente, como se tivesse perdido uma grande quantia!

-- Mas, menina, atalhou o Conselheiro, por ser uma grande quantia é que eu fiquei tão apoquentado e ainda o estou. Será pouco trinta libras e sessenta meias corôas falsas?!

-- Que me diz! exclamou a conselheira, perdendo completamente o sangue-frio e bebendo dois ou tres goles d’agua por causa do susto de grosso calibre que sentira com as ultimas palavras do marido. Pois será possivel que o senhor seja tão obtuso, cego d’entendimento e de vista que recebesse aparvalhadamente todo esse dinheiro falso?

-- Quem o poderia conhecer de noite, menina? Era impossivel distinguir o bom do falso.

A conselheira começou a examinar o dinheiro das suas economias com toda a attenção, dizendo ao mesmo tempo ao marido com voz desabrida:

-- Póde ter a certeza que lodo o dinheiro falso que eu aqui tiver quem o perde é o senhor, porque me hade dar igual quantia em dinheiro bom.

-- Eu, senhora! exclamou estupefacto o Conselheiro, o qual, os leitores já devem ter notado, chamava menina á mulher quando entendia não ter razão e tentava reconciliar-se com ella, e senhora, vice versa; porêm com que direito?

-- Com que direito! respondeu ella encolerisada! Ainda o senhor m'o pergunta? Com o direito da mulher que tem um marido tão parvo que não conhece o dinheiro que lhe dão, não avisando a esposa a que se acautelle para não receber moeda falsa.

E, vendo que o Conselheiro se conservava de pé, taciturno e mudo, continuou em tom aspero:

-- Venha cá examinar, ande, que eu não entendo nada d'isto.

O Conselheiro saiu das suas meditações e achou entre as economias da mulher, que eram mais abundantes que as d’elle, quarenta e duas libras falsas entre oitenta, e oitenta e cinco meias corôas entre cento e vinte.

-- Ora que patifaria! exclamou a conselheira. Ouem será o tratante? Tomára desconfiar para dar parte á policia!

-- Só por desconfiança, menina? atreveu-se a perguntar o Conselheiro.

-- E então, seu estupido, acha que não faço bem? Se eu chego a desconfiar d’alguem, nunca m’engano a respeito do que desconfio.

-- Mas ás vezes, precipitâmo-nos...

-- Oh! senhor, vá para o inferno dar conselhos, ou lá para o Tribunal, que eu não preciso d’elles. Ainda você hade tornar a nascer para me poder aconselhar.

-- Bem, menina; faze o que intenderes.

-- Muito obrigada pela authorisação, porêm dispenso-a bem, respondeu ella n’um tom de sarcasmo.

-- Mas, não foi com essa intenção que eu disse...

-- Cale a boca, homem, e embolse-me sem demora da quantia que me roubaram.

-- E eu... quem me embolsa?...

-- Quem é tolo, pede a Deus que o mate e ao diabo que o leve; ainda não sabia?... Vamos, continuou ella, já, já o dinheiro.

-- Mas, menina, o que possuo na minha caixa economica, não me chega para pagar tamanha quantia... Ah! uma grande idéa!... continuou elle, dando um grito, e com o rosto radiante como se fosse inspirado por um sublime pensamento.

-- Faço idéa que hade ser fresca?

-- Então oiça.

-- Toda eu sou ouvidos, respondeu ella em tom de mofa.

-- Nós escusâmos de perder esse dinheiro... vamos imbutil-o aos parceiros do mesmo modo que elles o fizeram.

-- E elles mesmo são tão tolos que o recebem, seu pacovio!

-- Diz bem, diz bem, respondeu o Conselheiro esmorecido.

Depois, pensando um pouco:

-- Ah! outra idéa, exclamou elle.

-- Se fôr como a outra, póde guardal-a.

-- Nada! por esta lhe respondo eu.

-- Vamos a ouvir.

-- Nada mais temos a fazer do que mandarmos pelo criado trocar o dinheiro, ou junto, ou pouco a pouco; o ouro troca-se a prata, e esta a cobre.

-- Digo-lhe que não ha para mim maior desgosto do que ter recebido por marido um homem tão papalvo... Pois você nem ao menos tem o discernimento para conhecer que essa miseravel idéa, posta em pratica, faria não só que o criado ou quem fosse trocar o dinheiro falso, fosse prezo por suspeito, como tambem quem lh’o tinha dado para trocar?... E quando viessem perguntar-nos d’onde recebemos nós aquellas moedas, o que haviamos de responder? ... responda, seu pateta.

-- É isso, é isso, respondeu o Conselheiro encolhendo-se todo como um homem que não sabe o que hade dizer para pedir desculpa d'uma falta que commetteu; tem razão, menina... eu tinha as idéas atrapalhadas por esta catastrophe e não soube o que disse...

-- Pois sim, sim; porêm retire-se... deixe-me em paz.

O Conselheiro retirou-se do quarto da esposa, como um escholar que tem sido asperamente reprehendido pelo mestre, todo entregue á memoria, procurando se esta lhe suggeria um meio de se vêr livre de tanto dinheiro falso, porêm que fosse substituido por outro bom.

Quanto á conselheira, ficou pensando a vêr se podia descobrir quem seria o importador de similhante contrabando em sua casa.

CAPITULO X

Primeira entrevista

Chegámos a 1854.

Na mesma agua-furtada onde levámos os leitores na primeira parte d’esta obra e que era habitada pelas duas costureiras, Amelia e sua mãe, vamos encontrar a primeira vestida de lucto pelo obito de sua infeliz mãe, a qual succumbira a um violento pleuriz, no principio do anno.

A desditosa donzella, depois da morte de sua mãe, da unica amiga que tinha no mundo, viu-se completamente só e desamparada.

A valedora visinha do lado, que os leitores já conhecem, era uma triste pensionista do Estado, viuva d’um antigo official de marinha, que tinha a mesquinha pensão de sete mil e duzentos réis mensaes, pertencendo-lhe o dobro antes da guerra civil de 1853, ficando injustamente reduzida á metade do que por lei lhe pertencia por inteiro, pois que o marido comprára do seu bolsinho aquella pensão para sua esposa usofruir por morte d’elle.

A boa visinha pois, como diziamos, vendo a tristeza e soledade da bondosa Amelia, propoz-lhe habitarem juntas.

A donzella annuiu a isto de boamente e com o maior prazer, por já estar relacionada com a boa senhora, e conhecer-lhe as pptimas qualidades e bello caracter.

D’isto resultou as duas visinhas reunirem-se a uma das aguas-furtadas (á da visinha, porque Amelia quiz deixar de vêr os logares onde lhe fallecêra a querida mãe), ficando a outra devoluto.

José Pereira, que a este tempo, apezar do desgosto que soffrêra de ser admoestado asperamente, chegando mesmo a ser castigado pelo proprio commandante, já tinha ganho o posto de segundo sargento, pelo seu hom proceder e habilidade, não gostando de prenoitar no quartel, andava em procura d’uma casinha barata, por ali perto, para a alugar e habitar n’ella.

Ora, passando um dia pela rua onde moravam Amelia e a visinlia, a quem dora ávante chamaremos D. Thereza, o mancebo reparou na agua-furtada com escriptos, e perguntando por quanto se alugava, a um sapateiro que morava fronteiro ao predio, elle respondeu-lhe:

-- Aquella casa anda em doze mil réis, mas eu não a queria nem de graça.

-- Porquê? perguntou o mancebo.

-- Ora! porque é a casa mais infeliz que ha in toda a rua, respondeu a mulher do sapateiro anticipando-se á resposta do marido.

-- Sim?... tornou a perguntar o mancebo que nada ficára sabendo; então em que é ella infeliz?

-- Ai! meu rico senhor sargento, continuou a mulher sem deixar fallar o marido, apezar d’este fazer em vão signaes mudos e gestos com as mãos para responder ás perguntas do mancebo; não ha familia nenhuma que se mude para ali, que não lhe morra lá alguem: denos que estamos aqui estabelecidos, eu e mais o meu hóme, já com este enterro ultimo, são?...

E voltando-se para o marido, perguntou-lhe:

-- Quantos são, ó Theadoro? cinco ou seis?

O sapateiro tirou os oculos, pensou um momento com os olhos no tecto, franzindo a boca e contando pelos dedos; depois do que, disse á mulher, porêm olhando e fallando com o mancebo:

-- Olha, Guiteria: a mulher do sanchristão, um.

-- Um, é verdade, disse ella.

-- O Agostinho, official de diligencias, dois.

-- Dois.

-- O... o... aquelle do nome esquesito!

-- É verdade, o do nome esquesito...

-- O tralegafico!... exclamou de repente o sapateiro, radiante de alegria por lhe ter lembrado o nome que procurava, dando ao mesmo tempo um grande estalo com os dedos da mão direita como se esta fosse um chicote.

-- É verdade, Theadoro, era o dos talefos, disse a mulher do sapateiro toda risonha por vêr que o marido tinha atinado com o nome esquecido.

-- São tres, não é verdade? continuou o sapateiro.

-- Tres.

-- O cangalheiro, quatro.

-- Quatro.

-- O Francisco Maria, pintor...

-- Esse não foi a enterrar, interrompeu a mulher.

-- Não, mas foi para o hispital, que é qazi a mesma coisa, respondeu o marido em tom de sentença. Olhe, senhor sargento, continuou elle dirigindo-se a José Pereira: o velhote tocava na pinga... pois uma vez veio para casa mais carregadito, e mediu com as costellas o comprimento de toda a escada; veja lá Vossa Senhoria como elle ficou!

-- E o ultimo, continuou a mulher interrompendo o marido, foi a pobre costureira, mãe da Ameliasinha, que deu á casca este inverno com um prioriz.

-- E quem tem a chave? perguntou o mancebo que ouvira mudo toda a historia dos cinco enterros, contada alternativamente pelos dois discipulos e advogados de S. Chrispim, e interrompida do mesmo modo por um ou outro dos conjuges; podem dizer-me?

-- Ah! a chave está na agua-furtada do lado, em casa das costureiras, cuja, uma d’ellas é a filha da inquilina que morreu.

Isto respondeu a mulher do sapateiro,

O marido, porêm, olhando para o mancebo em ar pezaroso e contristado, disse-lhe com voz lugubre, tornando a pôr os oculos:

-- Com que antão o sargento, aindas que eu mal prógunte, está tentado a ir para aquella excommungada agua-furtada?!... Eu não ia para lá nem mesmo que me recebessem a renda em dinheiro falso como esse que anda por hi a rôdo cá na cidade, capital de Lisboa.

-- Eu sou pouco supersticioso, senhor, respondeu José Pereira ao sapateiro.

-- Mas é que ainda que se seja pouco auspicioso sempre a gente tem medo de morrer, respondeu-lhe a mulher, tomando uma pitada.

-- Em toda a parte se morre, minha senhora, replicou José Pereira.

-- Pois olhe que tenho pena que o sargento vá morar para ali, diz o sapateiro, porque de certo lhe succede alguma desgracia; eu engracei com Vossa Senhoria e desejava vêl-o feliz.

-- Descance, tornou José Pereira sorrindo, por vêr a pertinacia do sapateiro em julgar que a casa era infeliz; a ventura e a desgraça em toda a parte invadem o homem.

E, despedindo-se dos conjuges, subiu os quatro andares do predio em que habitava Amelia, e bateu á porta da agua-furtada onde trabalhavam as duas senhoras,

-- Quem é?... perguntou D. Thereza, que se achava n’essa occasião só na casa de fóra, porque Amelia tinha ido á cozinha vêr o estado do jantar, para alternar com sua amiga que já lhe tinha compettido a sua vez.

-- Faz favor d’abrir, minha senhora? disse o mancebo.

D. Thereza veio abrir sem receio, porque o tom de voz de José Pereira preveniu-a em favor d’este.

Depois dos comprimentos de parte a parte, José Pereira perguntou á costureira:

-- A senhora tem as chaves do quarto aqui do lado, segundo me disseram, não é verdade?

-- Assim é, meu senhor; porquê, pretende vêr a casa?

-- Exactamente, minha senhora; tem a bondade de me confiar as chaves?

-- Faz favor de entrar emquanto eu as procuro?

O mancebo entrou.

D. Thereza, depois de procurar as chaves, não as encontrando:

-- Ó menina Amelia, disse ella levantando a voz para ser ouvida da sua companheira; sabe onde estão as chaves aqui do lado?

-- Devem estar lá fóra, respondeu do interior da casa uma voz com um timbre tão sonoro e agradavel, que José Pereira sentiu immenso desejo de conheçer-lhe a proprietaria.

-- Mas aonde? replicou D. Thereza, procurando sempre sem encontrar o que procurava.

-- Eu lá vou, tornou a dizer a voz.

E logo um leve e ligeiro ruido denotou que alguem corria por um corredor que communicava da sala para a cozinha da agua-furtada.

Amelia appareceu quasi no mesmo instante á porta da sala, e dispunha-se a correr tambem por esta, quando vendo o mancebo que se conservava de pé perto da porta da escada, a donzella ficou interdicta, córando muito por ser surprehendida por um estranho n’uma correria infantil, impropria na sua idade diante de pessoas desconhecidas.

Todavia comprimentou graciosamente José Pereira, o qual lhe correspondeu, sentindo ao mesmo tempo uma triste e doce recordação: triste, por se lembrar da sua Julia querida; e doce, porque Amelia tinha alguma similhança na physionomia com a amante finada.

Amelia trajava lucto pelo fallecimento de sua mãe; o rubor que lhe subiu ás faces, vendo inesperadamente em sua casa um joven militar, e que lhe pareceu bello e elegante, no primeiro e rapido exame que só ás mulheres é dado saberem passar; o rubor que lhe subiu ás faces, diziamos, fel-a realmente formosa.

A donzella estava mais desenvolvida do que da primeira vez que a apresentámos aos leitores: havia já passado um anno, e Amelia, na adolescencia, embora sentisse amargo desgosto com a falta de sua mãe, apezar d'isso a natureza operava n’ella como opera em tudo, aformoseando e contornando as fórmas da joven, que realmente eram d’uma admiravel perfeição.

-- Eu não as vejo aqui, menina Amelia, disse D. Thereza procurando sempre as chaves sem as encontrar; e aquelle senhor está incommodado...

-- Não estou, minha senhora, disse José Pereira com voz commovida.

-- Vamos a vêr se eu as encontro, disse a donzella com um gracioso sorriso.

E pegando no cesto de costura, afastou com uma das mãos alguns moldes e objectos de costura que havia no mesmo, e com a outra basculhou no fundo até achar as duas chaves:

-- Ellas cá estão! exclamou a joven com um risinho que se podia sub-dividir em metade d’ironia dirigida a D. Thereza e a outra metade d’alegria por ter ganho a victoria.

-- Quem é vivo sempre apparece, disse D. Thereza. Pois olhe que bem as procurei, Ameliasinha.

Depois, pegando nas chaves que lhe deu Amelia, entregou-as ao mancebo, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- O senhor, desculpe-me em o fazer esperar tanto tempo.

-- Oh! minha senhora... disse José Pereira recebendo as chaves e inclinando a cabeça ao mesmo tempo em signal de respeitoso agradecimento; acredite que nada me incommodou... pelo contrario, eu é que devo pedir-lhe desculpa, assim como áquella menina, por vir estorval-as nos seus affazeres domesticos.

E, ao proferir estas palavras, fictou com ternura os olhos nos de Amelia, a qual, confusa e enleiada, baixou os seus tornando a córar.

-- Olhe, as casinhas são muito pequenas, continuou D. Thereza, dirigindo-se ao mancebo; teem só tres quartos: sala, cozinha e quarto de cama; se Vossa Senhoria é casado...

-- Sou solteiro, minha senhora, respondeu apressadamente José Pereira.

Amelia sentiu uma alegria vaga e inexplicavel ouvindo estas palavras do mancebo.

-- Então, tornou a viuva, podem convir-lhe.

José Pereira encaminhou-se para a porta da escada, e dirigindo-se ás duas senhoras:

• Então concedem-me licença, minhas senhoras?

E tornou a olhar para a donzella, que d’esta vez não baixou os lindos olhos, e o comprimentou com um angelico sorriso, o que fez pullular o coração do mancebo.

José Pereira foi vêr a casa e, achando-a aceiada e conveniente para sua habitação, pouco se demorou em examinal-a, indo immediatamente entregar as chaves ás inquilinas.

D. Thereza recebeu-as, perguntando ao mesmo tempo ao mancebo:

-- Então, agradam-lhe?

-- Sim, minha senhora; peço-lhe que tenha a bondade de dizer a quem vier vêl-as, que já estão alugadas.

-- E sabe quem é o senhorio?

-- Não, minha senhora, e dever-lhe-hei mais um favor se me disser onde elle mora.

-- Pois é um sugeito rico, chamado Mendonça, que mora n’um palacete na calçada do Salitre, n.°...

E voltando-se para Amelia, a qual não voltára para a cozinha:

-- Ó menina Amelia, sabe o numero?

-- Não me lembra agora, minha senhora, respondeu Amelia n’um tom de voz maguado pela contrariedade que sentia com a sua rebelde memoria n’aquella occasião.

José Pereira ficou encantado com a doçura da voz da donzella, e muito mais ainda com as duas lindas fileiras de perolas que ornavam a boca d’Amelia.

-- E o mesmo, disse D. Thereza, faltando com o mancebo; em Vossa Senhoria perguntando no largo do Rato onde mora um fidalgote da província, que está para ser barão... um sugeito baixo e gordo, d’oculos, que é casado com uma senhora muito devota e esmoler, logo lhe dizem.

-- Muito bem, minha senhora, disse José Pereira; pelas indicações é impossivel que me engane.

E dando as boas tardes ás duas senhoras, agradecendo-lhes ao mesmo tempo a bondade com que o receberam, despediu-se d’ellas, olhando por ultima vez para Amelia, a qual, comprimentando-o tambem, com o seu lindo sorriso deixou vêr ao mancebo, alem dos alvos e bellos dentes que elle já divisára, duas lindas covinhas nas faces, que acabaram por fazer com que José Pereira ficasse amorosamente apaixonado pela graciosa donzella.

O mancebo, saindo, olhou tres vezes da rua para a janella da agua-furtada, e de todas ellas viu a joven na trapeira, que o seguiu com a vista até elle desapparecer.

Ao voltar a rua, o mancebo encontrou-se frente a frente com o sapateiro, que trazia um cesto com carvão, e que lhe perguntou curiosamente:

-- Antão, meu sargento, gostou da casa?

-- E tanto que a vou alugar, respondeu José Pereira.

-- Faz mal, meu sargento, faz mal!

E o supersticioso sapateiro, depois de se despedir do mancebo, afastou-se, dando á cabeça em signal de compaixão.

CAPITULO XI

Reconhecimento e revelações

José Pereira foi pois n’esse mesmo dia procurar o nosso antigo conhecido Mendonça, e alugou-lhe a agua-furtada por seis mezes.

No dia seguinte o orphão veio habitar para a sua nova morada, acompanhado d’uma pequena e modesta mobilia, composta d’um leito de ferro, uma meza, meia duzia de cadeiras, um bahú, um cabide e diversos utensilios miudos.

Tudo isto fôra comprado com o lucro das economias do pequeno soldo que o mancebo recebia.

O sapateiro e a mulher d'este, quando viram chegar o frete e os gallegos começarem a desatar os moveis para os levar á agua-furtada, vieram para a porta, e a mulher não poude deixar de exclamar, dirigindo-so á visinha do logar de hortaliça e fructa do lado fronteiro:

-- Coitado do pobre rapaz! Na flôr dos annos... e vir procurar a morte por suas mãos!

-- E para que foi elle teimoso em alugar a maldicta agua-furtada?... atalhou o sapateiro; eu bem o avisei!

-- Quem é elle? perguntou a visinha com curiosidade feminil.

-- É um sargento do regimento n.°... de infanteria, respondeu-lhe a mulher do sapateiro; e é um bonito rapaz!

-- E parece-me bem bom moço, accrescentou o marido; tem umas maneiras tão attenciosas e delicadas!...

-- Pst, pst, elle ahi vem, disse a sapateira em voz sumida á visinha que estava olhando para a mobilia; olhe, é aquelle.

Com effeito José Pereira, que mandára os moços com o frete adiante emquanto lhe davam a demasia d’um dinheiro que dera para pagar os objectos que comprára, caminhava apressadamente para chegar a tempo de assistir ao transporte dos moveis para a sua habitação.

A visinha, vendo o mancebo perto, e depois de se affirmar bem n’elle, exclamou de repente, fazendo com que José Pereira ficasse momentaneamente estupefacto:

-- Oh! senhor José Pereira, por aqui!...

O mancebo olhou para ella e viu uma raparigota gorda, dos seus vinte e oito annos, cujas feições não lhe eram estranhas, porêm não a conheceu porque lhe disse:

-- A senhora conhece-me?.

-- Pois não heide conhecer o senhor?! respondeu a rapariga. Queira entrar, que eu lhe digo d’onde o conheço.

José Pereira deu a chave da casa a um dos gallegos, dizendo-lhe que podiam ir transportando os moveis para lá, e entrou no logar com curiosidade de descobrir quem era que lhe conhecia tão bem o nome.

A logareja offereceu-lhe uma cadeira de palhinba, já usada, e depois d’elle se assentar, assentando-se tambem n’um banquinho defronte do mancebo, disse-lhe:

-- Então o senhor não se lembra da Gertrudes, criada de casa do senhor Conselheiro M***, que era muito amiga da senhora D. Julia?...

-- É a senhora Gertrudes! exclamou o mancebo, reconhecendo finalmente a rapariga e sentindo um prazer inexplicavel em encontrar quem lhe fallasse da sua tinada amante.

-- É verdade, respondeu a rapariga; depois da morte da menina (e aqui a sensivel confidente das maguas da defuncta donzella não poude conter duas lagrimas que lhe rebentaram dos olhos) o senhor Conselheiro, quando voltou para Lisboa, disse-me que não precisava já dos meus serviços e então que procurasse commodo n’outra parte. Pagou-me o que me devia e mandou-me embora. Eu então, como tinha ao canto do bahú algum dinheiro que a minha querida menina me tinha dado, puz este logarzinho, aconselhada por meu pae que foi n’outro tempo fazendeiro, e aqui vivemos eu e mais o bom velhote, graças a Deus, menos mal. Emquanto eu estive em casa do senhor Conselheiro, meu pae vivia em companhia de um amigo, com uma mezada que lhe dava tambem a minha querida menina, que Deus tenha no céo.

-- E vocemecê, senhora Gertrudes, perguntou José Pereira com a voz entrecortada pela magua da narração que ouvira, assistiu-lhe nos ultimos momentos?

-- Não, senhor José Pereira, respondeu Gertrudes em tom de profunda magua; o senhor Conselheiro não quiz que eu fosse para fóra da terra com a menina. É essa uma pena que nunca me hade esquecer em dias de minha vida!

E depois de enxugar os olhos com um lenço, a rapariga continuou:

-- O senhor sabe lá o que aquelle anjo gostava da sua pessoa? Um mez a fio depois da sua prizão nunca aquella menina deixou d’escrever-lhe todos os dias!...

-- Sim?... perguntou José Pereira com extremo assombro.

-- É verdade! Ella ás vezes queixava-se-me por não receber cartas suas, e eu lá a consolava como podia...

-- Oh! que infamia!... exclamou José Pereira, Eu, que da minha prizão nunca tambem deixei de lhe escrever todos os dias, por mais d’um mez... e nem uma carta lhe chegou ás mãos!...

-- Pois o senhor escreveu?... Então bem me queria a mim parecer, que foi o correio que não entregou as cartas.

-- Não creia tal, senhora Gertrudes, exclamou o mancebo no maior auge de colera; alguem as subtrahiu, porêm não o correio.

-- Mas quem poderia ser?...

-- Não sei, senhora Gertrudes; nem mesmo quero sabel-o, porque seria capaz...

-- Olhe, senhor José Pereira, eu entregava as cartas da menina a um criado novo que tinha ido para casa do senhor Conselheiro, por estar então tambem prezo o Manuel Alonso:

-- Ao criado?... disse José Pereira, immerso em profunda meditação por se lembrar que a um criado do Conselheiro é que elle devia toda a sua desgraça.

-- É verdade, senhor José Pereira.

-- Senhora Gertrudes, disse o mancebo dando um profundo suspiro como quem procura alliviar o pezo das maguas que sente, não fallemos mais d’esse triste passado... Agora eu, continuou elle, é que tenho a fallar-lhe de mim, e estimo, senhora Gertrudes, acredite que muito, o havel-a encontrado: vocemecê é uma boa rapariga, e a prova é que a minha querida Julia era sua amiga; e então é um immenso allivio que sinto na minha consciencia... não porque eu esteja criminoso para com alguem, porêm para lhe contar o testemunho que me levantaram, o qual me causou os males que sabe.

E contou á rapariga a historia da caixa que lhe dera a guardar o criado do Conselheiro M***.

Gertrudes, depois de o ouvir e acreditar, não poude deixar d’exclamar com voz sentida:

-- Bem me dizia minha querida menina, que o senhor era innocente do crime de que o accusavam!

-- Oh! ainda bem que me diz isso, senhora Gertrudes! não sabe o balsamo consolador que me derramou no coração com essas bemaventuradas palavras.

E o mancebo, levantando-so e abraçando a boa rapariga, disse-lhe, despedindo-se d’ella:

-- Adeus, senhora Gertrudes; se precisar de mim para alguma coisa, como venho ser seu visinho não lhe custará muito a procurar-me.

-- Outro tanto, senhor José Pereira, respondeu a rapariga correspondendo com força ao abraço do mancebo.

Este saiu do logar e encaminhou-se para a sua agua-furtadapara pôr em ordem a mobilia.

A mulher do sapateiro, admirada da grande conversação que o mancebo tivera com a sua visinha do logar, assim que este saiu da loja, atravessou ella apressadamente a rua e foi saber noticias fresquinhas da boca da logareja:

-- Antão vocemecê conhece o sargento, sêra Estrudes?... perguntou ella á rapariga que ainda estava toda commovida.

-- Se conheço, tia Guiteria!... aquillo não é rapaz, é um anjo; mas tem sido muito infeliz!

-- Ih! como vocemecê tem os olhos encarnados, sêra Estrudes!... Parece que chorou!

-- E é verdade, tia Guiteria, que chorei por elle me contar certas coisas...

-- Sim?

N’este momento entraram dois freguezes no logar, o que obrigou a vendedeira a dizer á mulher do sapateiro:

-- Eu depois lhe contarei tudo, tia...

A sapateira saiu outra vez do logar, não podendo conter-se que não dissesse ao marido quando chegou a casa:

-- Ora aquelle probe rapaz, que já é infeliz, ainda quiz fazer-se mais desgraçado vindo morar para aquella excommungada casa!...

-- Deixa lá, mulher: quem corre por seu gosto não cança.

CAPITULO XII

Vislumbre de ventura

José Pereira, quando entrou na agua-furtada, ouviu vozes femininas no interior da mesma, juntamente com as grossas vozes dos gallegos.

Ficou tambem admirado em vêr symetricamente collocadas na sala, a meza e as seis cadeiras, coisa que o surprehendeu, pois sabia que os gallegos são pouco arrumadores e zelosos dos moveis que acarretam.

Quando estava fazendo estas reflexões viu apparecerem na sala as duas visinhas fronteiras, as quaes, quando o viram, deram ambas ao mesmo tempo um ai! de susto ou de vexação, por não esperarem encontrar tão de repente o dono da casa.

Depois, D. Thereza, tomando a palavra, dirigiu-se ao mancebo:

-- Peço a Vossa Senhoria mil desculpas de vir entremetter-me na sua vida e entrar em sua casa sem licença do dono...

-- Oh! minha senhora! interrompeu José Pereira, n’um tom que denotava desculpa.

-- Porêm, continuou a costureira, estava-me fervendo o sangue por vêr os desastrados dos gallegos pôrem na sala o que pertencia ao quarto de cama, e na cozinha o que deve estar na sala. De modo que, acompanhada da minha amiga, viemos arrumar-lhe a casa.

-- Então, minhas senhoras, sou eu que tenho a pedir mil perdões por haver incorrido na falta involuntaria de as obrigar a serem minhas criadas.

-- Ora essa! responderam as duas senhoras rindo.

-- Nós tivemos immenso prazer, continuou D. Thereza, em sermos prestaveis a Vossa Senhoria. Acreditâmos que é um cavalheiro honrado...

-- Muito lhes agradeço, minhas senhoras, respondeu José Pereira comprimentando-as, o bom conceito que de mim fazem, conceito que heide fazer por merecer sempre.

E olhou para Amelia sorrindo, a qual lhe correspondeu com o seu delicioso sorriso, deixando divisar-lhe nas faces as duas encantadoras covinhas que fizeram germinar na cabeça do mancebo mil idéas confusas, entre as quaes sobresaía uma: o amor nascente.

As duas senhoras, ao retirarem-se á sua casa, comprimentaram o mancebo, sendo cortezmente correspondidas por elle.

D. Thereza, ao retirar-se, disse a José Pereira:

-- Muito estimaremos que Vossa Senhoria seja feliz n’esta casa, e quando precisar d’alguma coisa, não tem mais do que bater-nos á porta.

E retiraram-se.

José Pereira, ficando só com os gallegos, depois d'estes terem transportado tudo para a agua-furtada, pagou-lhes, depois de verificar que estava tudo quanto comprára.

Os gallegos sairam, e o mancebo, abrindo o bahú e tirando d’elle lençoes lavados, fez a sua modesta cama e saiu em seguida, por ser quasi noite e ter de comparecer ao toque de retreta no quartel.

Quando saiu, olhando da rua para a janella da agua-furtada fronteira á sua, como fizera na vespera, viu Amelia, que o seguia attentamente com o olhar, até o perder de vista.

Quando veio do quartel, depois do toque de recolher, tornando a olhar para a janella, viu um vulto que logo presumiu quem seria.

Subiu, e, entrando em casa, abriu a sua janella, e, como estava uma noite amena e de luar, levou uma cadeira para a sacada, e assentou-se a tomar o fresco.

Ahi esteve algum tempo sem vêr ninguem na janella do lado.

Começava a ser invadido pelo somno por se haver levantado muito cedo, e ia para se retirar da janella, quando viu chegar á do lado a joven costureira, a qual parecia receiosa pelas precauções que tomou em não fazer bulha, e olhando amiudadas vezes para dentro de casa.

-- Boa noite, minha visinha, disse José Pereira á donzella, n’um tom que demonstrava o contentamento que tinha em vêl-a.

-- Muito boa noite, visinho, respondeu a donzella um pouco enleiada por ser a primeira vez que fallava a sós com o mancebo.

-- Então, veio tambem tomar o fresco?

-- É verdade... respondeu a donzella hesitando.

E depois d’um pequeno silencio de parte a parte:

-- Eu vi chegar o senhor.

-- Sim? perguntou José Pereira, que não ignorando o que Amelia acabava de lhe dizer, quiz comtudo fazerse de novas.

-- É verdade, continuou Amelia como querendo dar parte da sua vida intima ao mancebo, e uma satisfação por não ter apparecido na janella ha mais tempo; ha pouco, a minha amiga chamou-me para ceiarmos; depois deitou-se, e eu, só depois de a vêr a dormir, é que vim para a janella.

-- Porquê?

-- Ora... porque ella ralhava comigo se soubesse que eu me não deitava tambem. É muito minha amiga; tem immenso cuidado em mim, e sempre me está a recommendar que não devo estar ao relento da noite por causa d’alguma constipação que posso ter.

-- AhI porêm hoje está a noite serena...

-- É certo que está uma noite linda! disse Amelia com enthusiasmo; magnifica para passeiar...

-- Então, porque não saiu com a sua amiga? atalhou José Pereira.

-- E o serão, quem o faria por nós? Não temos tempo nenhum por nosso; só apenas o domingo, e mesmo assim alguns não nos falta trabalho... O senhor bem sabe que duas costureiras que vivem unicamente do producto da sua agulha, não podem folgar um instante, a não quererem estar cheias de dividas ou não poderem viver.

-- É uma triste verdade, menina, respondeu José Pereira dando um profundo suspiro por se lembrar do seu passado, tanto em vida de seus paes, como depois de se vêr orphão.

-- Então já vê o senhor que raras vezes podemos sair, continuou Amelia suspirando tambem.

-- Os ricos tanto gozam e tão pouco trabalham! e os pobres tanto trabalham e tão pouco gozam! exclamou José Pereira em tom amargo e elevando a voz, esquecendo-se que philosophava em logar de proseguir na sua entrevista amorosa.

-- Não falle tão alto, senhor, disse Amelia n’um tom de doce reprehensão; póde minha amiga ouvil-o e...

-- Receia que a obrigue a deitar-se, não é assim Amelia? accrescentou José Pereira terminando o pensamento da joven.

-- Quem lhe disse o meu nome? perguntou Amelia, sem lhe responder.

-- A sua amiga, hontem quando lhe vim pedir as chaves.

Depois d’um pequeno silencio:

-- Então, tinha pena de se separar de mim tão depressa? perguntou José Pereira á donzella.

E vendo que ella não respondia:

-- Amelia! continuou elle com intimativa e n’um tom amoroso; peço-lhe que me falle com franqueza, sim?

-- Tinha muita pena, sim; respondeu Amelia a custo depois de ainda hesitar um instante.

-- E ainda estava com receio de me dizer isso! replicou o mancebo em tom do doce recriminação.

-- E o senhor?

-- Eu! eu quizera estar toda a minha vida a seu lado, Amelia.

-- Oh! se fosse verdade isso que diz, como eu seria venturosa!...

-- Não me acredita, Amelia?

-- Acredito; porêm tenho ouvido contar tantas historias em que os senhores nos promettem amor que...

-- É certo, Amelia, atalhou José Pereira; é certo que ha homens infames, os quaes muitas vezes abusam da confiança e innocencia d’uma donzella, e fazem com que ella passe da innocencia á maldade; e da ingenuidade e fé, á perversão e á descrença! Porêm eu, Amelia, odeio esses homens!... É verdade, continuou elle depois de um momento de silencio, que a menina não me conhece senão desde hontem, e de certo não me acredita...

-- Acredito, apressou-se em responder Amelia com toda a ingenuidade.

-- Desculpe-me fazer-lhe esta pergunta: a menina nunca amou?

-- Meu pae e minha mãe.

-- Porêm... um outro homem?

-- Nunca.

-- Falia verdade, Amelia?

-- Juro pela alma de minha querida mãe.

-- Então não póde comprehender o que eu lhe disse ha pouco.

-- Não, e estimo.

-- Oh! e deve estimar, porque podia ter tido a desventura de amar um d’esses homens que eu apontei.

-- Felizmente o continuo trabalho, desde que me en-tendo, obstou a que me podesse succeder similhante desgraça. Até aos quinze annos, trabalhei sempre ajudando minha infeliz mãe, que ficou viuva tendo eu dez; aos quinze mudei-me para onde o senhor está, e ahi perdi minha mãe.

-- E quem morava então n’essa casa? perguntou José Pereira, indicando a agua-furtada d’Amelia.

-- Esta minha amiga, que já aqui estava desde que para aqui vim... Parece-me que ella acordou, continuou Amelia sobresaltada e applicando o ouvido para dentro de casa. Adeus, senhor...

-- José Pereira, menina Amelia, disse o mancebo.

-- Então, adeus, senhor José Pereira!

-- Adeus, querida Amelia!

-- Ora... disse a donzella, com um delicioso sorriso em que se lia o pudor, vexada por se vêr assim tratada por um mancebo a quem conhecia de vespera; como posso eu ser, para o senhor, isso que diz, se me conhece unicamente desde hontem?

-- Mas, é que ha sympathias repentinas, Ameliasinha, e rostos angelicos que captivam á primeira vista!

-- Adeus, senhor Pereira, disse a joven um tanto perturbada, não posso demorar-me mais...

-- E retira-se sem ao menos me dizer se me ama?!

-- Amo... sim... prouvéra a Deus que o senhor me tivesse tanto amor!

E depois de proferir tão sublimes e encantadoras palavras, que echoaram nos ouvidos do mancebo como a mais suave melodia, a donzella desappareceu subitamente, talvez envergonhada de dar a saber o seu segredo ao homem que pela primeira vez amava no mundo; coisa que ás mulheres é bem difficil patentearem, quando verdadeiramente amam!

O mancebo deitou-se, e toda essa noite sonhou com Julia e Amelia, confundindo as duas jovens em uma só.

Amelia sonhou tambem, porêm só com o homem que amava havia vinte e quatro horas.

CAPITULO XIII

Chega-se o bem para o bem, e o mal para quem o tem

No dia seguinte, o mancebo, vendo que tinha uma porção de roupa branca, suja, e lembrando-se de que talvez as visinhas soubessem d’alguma mulher que se incumbisse de lavar e engommar, quando ia sair bateu á porta das costureiras, dizendo ao mesmo tempo que batia:

-- Não se desarranjem, visinhas, que não é pessoa de ceremonia.

Amelia, conhecendo a voz do mancebo, disse a D. Thereza, ao mesmo tempo que corria a abrir a porta:

-- É o nosso visinho!

-- Sim! diz a amiga pondo-se de pé para receber o mancebo.

Amelia abriu, José Pereira comprimentou-a ao mesmo tempo que lhe apertava a mão affectuosamente, ao que a donzella correspondeu com ardor ainda que com o maior recato.

-- Então, como passou a noite na sua nova morada, meu visinho? perguntou D. Thereza ao mancebo estendendo-lhe tambem a mão; dormiu bem?

-- Perfeitamente, minha senhora.

-- É que ha pessoas que estranham as poisadas e não podem dormir emquanto não se habituam...

-- Os militares, minha senhora, estão costumados a dormir bem em toda a parte.

-- Tem razão, senhor... É verdade, como se chama Vossa Senhoria?

-- José Pereira, minha senhora.

-- Hade ser bom moço por força, respondeu D. Thereza; os Josés são todos muito bons rapazes.

-- Hão de haver excepções, minha senhora, respondeu José Pereira rindo.

-- De certo, respondeu Amelia, rindo tambem e dirigindo-se á sua amiga.

-- Creio que muito poucas, concluiu D. Thereza para apoiar a sua primeira idéa, porêm um pouco interdicta por conhecer que os dois jovens lhe haviam dirigido os seus risos de duvida.

-- Pois, minhas senhoras, continuou José Pereira para terminar o incidente, como hontem me offereceram o seu valioso prestimo, eu hoje venho incommodal-as, pedindo-lhes uma coisa.

-- O que é? perguntaram as duas senhoras ao mesmo tempo.

-- Se estiver ao meu alcance, conte que está servido, accrescentou D. Thereza.

-- E tambem ao meu, concluiu Amelia.

-- É que... precisava uma pouca de roupa lavada e engommada, e como não conheço aqui pessoa alguma, venho pedir ás visinhas se me inculcam alguem que me possa fazer esse serviço.

-- Ora! e estava o senhor Pereira embuchado com isso ha tanto tempo!... respondeu rindo D. Thereza; não ha coisa mais facil: olhe, a visinha da loja, a que tem logar de fructa, ensabôa muito bom; eu ou Amelia, que sabemos engommar menos mal, encarregâmo-nos d’esse ultimo serviço... parece-me, continuou ella, que não podia achar lavadeira e engommadeira com mais promptidão...

-- Então, minhas visinhas, vou immediatamente buscar a roupa.

E José Pereira dispunha-se a tornar a entrar em casa, quando D. Thereza lhe disse:

-- Se o senhor Pereira não desconfia de nós e tem a roupa apartada, escusa agora incommodar-se; póde dar-nos a chave, que nós nos encarregâmos tambem de lhe arranjar a casa.

-- Oh! minha senhora, disse José Pereira n’um tom que mostrava não querer abusar da bondade das visinhas; pois eu posso lá consentir que as senhoras interrompam os seus continuos trabalhos para irem trabalhar a minha casa?... Isso nunca!

-- Sim? pois ficâmos mal com o senhor! exclamou D. Thereza em tom firme.

-- Veja o que diz a minha amiga, accrescentou Amelia com tristura; e olhe que ella é capaz de cumprir o que disse!... Deixe ficar a chave, sim?

E a formosa donzella implorava com o olhar o mancebo para que annuisse á proposta da sua amiga.

José Pereira, receiando causar grave incommodo ás visinhas annuindo ao que ellas pediam, primeiro estava resolvido a não annuir; porêm vendo o afflictivo estado de Amelia, e receiando que D. Thereza fizesse o que dissera e que a donzella confirmára ser capaz de fazer, José Pereira, dando a chave a Amelia, que lhe estendia a mão, disse ao mesmo tempo ás duas senhoras em tom de amizade:

-- Minhas senhoras, eu nunca poderia ser tão ingrato que as obrigasse a zangarem-se e ficarem mal comigo. E esta a razão, e não outra alguma d’egoismo, que me obriga a entregar o que as senhoras me pedem.

-- Pois se a nós não nos custa absolutamente nada arrumarmos-lhe todos os dias a casa, disse D. Thereza, para que a hade o senhor ter desarrumada?...

-- Pois sim, minha senhora, isso é verdade; porêm eu posso incumbir um soldado de me fazer os arranjos caseiros e...

-- E fazer-lhe um pessimo serviço, não é verdade?... e o senhor ainda em cima pagar-lhe!... Os homens nunca fazem tão bem certos arranjos domesticos como nós as mulheres.

-- Não contradigo isso, minha senhora.

-- Muito bem, então póde ir descançado... isto é, se primeiro não quizer almoçar comnosco.

-- Oh! minha senhora, muito agradecido, porêm não posso demorar-me mais, porque tenho hoje serviço.

-- Então não se demore, senhor Pereira, disseram ao mesmo tempo as duas senhoras.

José Pereira saiu, e quando á noite voltou achou a casa varrida, arrumada, a cama feita e defumada, finalmente, via-se que tinha por ali andado mão feminina, e que tomava interesse no bem estar do mancebo.

De modo que José Pereira, d’ahi por diante tinha sempre a roupa bem lavada e engommada, e isto gratis, porque, tanto a logareja como a visinha fronteira nada queriam receber pelo seu trabalho, apezar do mancebo insistir em que aceitassem a paga. Alem d’isto, tinha a casa sempre aceiada e arrumada, tudo devido ao cuidado e esmero d’Amelia, que se desvelava em ser util ao mancebo.

Assim se passava o tempo, nas duas aguas-furtadas, dividido entre o trabalho e o prazer da conversação entre visinhos que vivem d’accôrdo com amizade.

O amor que os dois jovens tributavam um ao outro, já não era ignorado por D. Thereza, a qual mesmo o authorisava, já se vê, vigiando e zelando sempre a honra da orphã.

Um dia, porêm, José Pereira, que ainda estava na cama, ouviu baterem-lhe á porta, e a voz d’Amelia que lhe dizia:

-- Somos nós, senhor Pereira!

O mancebo vestiu-se apressadamente e veio abrir.

As visinhas, apenas elle abriu, entraram ambas azafamadas, e D. Thereza, mostrando ao mancebo uma libra, perguntou-lhe afflictivamente:

-- Ó senhor Pereira, faz favor de me dizer se esta libra é falsa?

José Pereira pegou na libra e, observando-a, notou-lhe n’um lado da serrilha uma côr esbranquiçada: alem d’isto era demasiado leve para ser de ouro.

José Pereira tornou a entregar a libra a D. Thereza, dizendo-lhe, ao mesmo tempo que lhe fazia observar o que elle notára:

-- Não póde deixar de ser falsa, tanto pela côr que apresenta como pelo pouco pezo que tem.

-- Valha-me Deus! exclamou a pobre costureira com desesperação; então bem me disse o moço, a quem mandei fazer as compras, que ninguem a quer aceitar porque é falsa!

-- A senhora é que a recebeu? perguntou José Pereira.

-- Infelizmente assim é... Trabalhámos duas semanas para a aia do senhor Bispo de ***, e no fim de tudo manda-nos hontem o importe da obra e entre elle esta libra falsa: nós, como não conhecemos dinheiro... e de mais a mais na boa fé...

-- Pois mande-lh'a quanto antes, minha senhora.

-- Ora! isso é bom de dizer; porêm se ella hontem mesmo se foi embora com o senhor Bispo, para a diocese d’este!...

-- Ora que fatalidade!.,, exclamou José Pereira contristado por se lembrar de que as duas infelizes senhoras ganhavam o seu pão quotidiano com bem custo, a poder de trabalho. Eu, minhas senhoras, continuou elle, lastimo deveras essa desgraça, porque tambem já fui victima, ainda não ha muito, d’um caso similhante; agora, o que posso fazer-lhes é, se precisarem d’algum dinheiro... eu tenho, e está ás suas ordens.

D. Thereza e Amelia, que felizmente ainda tinham um resto de dinheiro, responderam ao mancebo:

-- Muito agradecidas, senhor Pereira, para agora ainda temos.

-- Então, quando quizerem estou á sua dispozição.

-- Queira desculpar-nos, senhor Pereira, de o virmos incommodar interrompendo-lhe o somno, disse Amelia sorrindo.

-- Nunca me incommodam as pessoas que me estimam, respondeu José Pereira, olhando amorosamente para a donzella.

-- Vamos, menina, disse D. Thereza dirigindo-se a Amelia; vamos tratar das compras.

-- Tenham muito cuidado, d’ora ávante, quando receberem dinheiro, porque anda na circulação muita moeda falsa.

Isto disse-lhe o mancebo, apertando ao mesmo tempo a mão a Amelia e despedindo-se das duas visinhas.

Estas retiraram-se.

Quando José Pereira saiu, a pobre Gertrudes, assim que o viu, chamou-o para lhe contar tristemente que, tendo a um canto uma quantia junta, e querendo comprar uma porção de fructa, entre o dinheiro achára uma libra falsa e duas moedas de cinco tostões.

A pobre rapariga chegou a chorar, por vêr que tanto lhe custava a alimentar-se, ella e seu pae, com o lucro da venda da fructa.

José Pereira, depois de lhe fazer o mesmo offerecimento que fizera ás suas visinhas da agua-furtada, fez-lhe tambem igual recommendação, depois de lhe contar o que lhe succedêra, a elle, quando foi receber o pret.

Eis as funestas, terriveis e hediondas consequencias, sempre em prejuizo dos pobres, que resultam das fabricas do moeda falsa como essa que, em esboço, apresentámos aos leitores, e da qual os fabricantes são alguns dos heroes da nossa obra.

QUARTA PARTE

AS DEVOTAS FINGIDAS

CAPITULO I

Reunião d’assembléa geral

Nas salas do nosso proprietario trasmontano e gordo Mendonça, dava-se, pelo meiado do anno 1854, uma grande reunião composta das principaes fidalgas do reino, para dar começo a uma pia associação que tinha por fim alliviar a desgraça dos pobres.

Eram oito horas da noite quando a dona da casa, que tinha sido eleita thesoureira da projectada associação, deu ordem para se illuminarem as salas.

D. Pulcheria havia emmagrecido mais desde a noite em que a apresentámos aos leitores; e seu marido cada vez estava mais gordo.

A galante filhinha, posto que já podesse casar e gozar as doçuras do hymeneo, continuava usando fato curto e papelotes, pois que a austeridade e devoção da mãe não lhe permittiam que fosse considerada senhora senão aos dezoito annos.

Como diziamos, os criados illuminaram as salas, as quaes estavam rica e sumptuosamente ornadas para uma festa, tendo, n’uma d’ellas levantado uma especie de estrado onde se viam tres cadeiras e uma meza coberta de velludo encarnado. O restante da sala estava guarnecido por umas oitenta cadeiras.

Todo este apparato demonstrava, que era esta a sala destinada para a sessão: as tres cadeiras, a meza e o estrado, era o local onde se deviam assentar a presidente e secretárias; e as cadeiras ao longo da sala, eram para se assentarem as socias sem cargos.

O dono da casa, sempre d’oculos, e com um vestuario caseiro, passeiava pela sala principal, dando o braço ao Visconde de ***, que jantára n’esse dia em casa do gordo trasmontano.

-- Mas antão, qual é a razão porque eu ainda não sou barão?...

Esta sucia de consoantes em versificação, eram dirigidos ao Visconde pelo nosso Mendonça.

-- Vossa Excellencia é bastante impaciente! respondeu-lhe o Visconde saboreando um bello charuto, de môfo, que apanhára ao dono da casa. Sua Magestade, já lhe foi presente o requerimento em que Vossa Excellencia demonstra, com toda a razão, a justiça do seu pedido; porêm, El-Rei diz que proximamente não é possivel ser-lhe conferido o titulo, porque tem agraciado ultimamente muitos individuos com essas honrarias.

-- E tarei antão d’esperar toda a vida, não é verdade? Ora que espiga!...

O Visconde fez uma careta, pouco lisongeira para a educação de Mendonça, ao ouvir esta ultima phrase.

-- Mas, quando lhe parece a você, Visconde, que eu posso ter o meu titulo nas unhas?

-- Talvez para o fim do anno, depois de se abrirem as camaras.

-- Eh! com todos os diabos! pois ainda tenho d’esperar tanto, homem?!...

-- E depois... talvez não chegue lá.

-- Oh! homem, se você fôr capaz de me arranjar isso antes do inverno, virá como eu o gratifico, e virá tambem que grande festança que eu dou aos amigos, á minha custa, bem entendido, pois antão?!

-- Esta idéa da associação, continuou o Visconde, que é devida a mim, é talvez o meio de Vossa Excellencia obter com mais brevidade o que deseja.

-- Sim, homem? perguntou estupefacto o provinciano sem nada comprehender; explique lá isso, seu Visconde... Mas espere, continuou elle, deixe-me você primeiro alimpar a cara, que estou a suar como uma besta!

E Mendonça tirou os oculos, por estar muito suado e terem-se-lhe embaciado os vidros, limpou-os a um lenço de seda, bem como o alentado e vermelho rosto, depois do que, disse ao Visconde:

-- Agora póde fallar.

-- Vossa Excellencia sabe perfeitamente qual a idéa dos fins d’esta associação, não é assim?

-- Não, homem; eu sei cá coisa nenhuma a esse respeito!

-- Então eu lhe explico. É crear uma caixa de soccorros do bolsinho da nobreza lisbonense, e mesmo provinciana, se os fidalgos das provincias quizerem inscrever-se.

-- Para esses vão vocês bem! atalhou o gordo trasmontano rindo; são uns sorrelfas que estão sempre a fazer caretas e a chorar como uns maricas quando a lavoeira não lhe corre como elles querem. Esses pelintras não dão nem um... chavo!

-- Pois bem, isso é o mesmo; cá está a nobreza da côrte para valer aos desgraçados; porque depois de haver em cofre uma quantia com que possamos fazer figura, começâmos logo a soccorrer o povo, como por exemplo: mandâmos vir irmãs de caridade, francezas, e padres lazaristas: as primeiras servirão para ensinarem ás nossas o methodo de tratarem dos enfermos, para educarem as creanças do nosso povo em hospicios que nós crearemos, e os segundos para professores de doutrina, e para derramarem pelo povo as maximas de Vicente de Paulo, porque o nosso povinho miudo está desenfreado, e precisa uma barreira forte que o faça entrar nas humildes condições de nossos servos, pois de contrario brevemente passaria a querer dar-nos leis, percebe?

-- Por emquanto não entendo nada cá a respeito do meu negocio.

-- Já lá vamos.

-- Antão ande, homem, disse Mendonça impacientado.

-- Vossa Excellencia é um homem frenetico a valer! Não sei como póde ser tão gordo!

-- Cebo para os episodios, seu Visconde; continue, se quer, senão adeus minhas encommendas; olhe que o mando á tabúa.

-- Mas, como ia dizendo a Vossa Excellencia, continuou o Visconde com gravidade comica e sustendo a custo o riso, tudo excitado pela linguagem do gordo trasmontano; nós havemos tambem de fundar um hospital para recebermos lá doentes; as nossas esposas visitarão os enfermos em suas casas, levar-lhes-hão dinheiro e consolações moraes transmittidas pelas beneficas irmãs de caridade, francezas, e d’este modo constará a El-rei que a esposa de Vossa Excellencia, um dos membros principaes da associação que tem feito tanto bem ao seu povo, é a primeira em ser incançavel nas visitas aos enfermos pobres, o qual, sem duvida, já se vê, com informações d’alguem, promptamente mandará passar a Vossa Excellencia o seu diploma de baronato.

-- Ah! agora, agora, exclamou o rotundo trasmontano radiante d’alegria.

N’este momento entraram na sala onde estavam os dois personagens, algumas aristocratas conduzidas pela dona da casa, que dava a mão á filha, sempre com fato curto e papelotes na cabeça, a qual, nem por um decreto largava a mãe.

As fidalgas vieram comprimentar o dono da casa e o Visconde.

Mendonça correspondeu assalvajadamente aos comprimentos, dizendo ás fidalgas:

-- Vivam, minhas princezas, passassem muito bem.

As senhoras afastaram-se interdictas, dizendo umas ás outras em voz baixa:

-- Que homem tão inconveniente é este Mendonça!

Começaram a entrar mais senhoras e cavalheiros, e quando entrou a presidente da associação, a senhora Condessa de ***, ouviu-se nas salas um murmurio geral, sem duvida lisonjeiro para a Condessa, porque esta comprimentou todas as senhoras com um angelical e magnifico sorriso, onde demonstrava o seu contentamento.

-- Vamos começar a sessão, disse alguem na sala.

-- Vamos, vamos, exclamaram varias vozes.

A dona da casa, ouvindo estas manifestações das convidadas, mandou immediatamente illuminar a meza, e dirigindo-se á presidente depois de a comprimentar, disse-lhe:

-- Vossa Excellencia quer ir começando a festança? Isto dá-me munta vontade de rir! Uma runião de mulherio para formarem uma sociedade! Ah! ah! ah!

Esta gargalhada foi secundada pela filha de D. Pulcheria, que se conservava sempre pela mão d'esta.

E afastaram-se ambas, correndo assalvajadamente pelas salas.

A primeira secretária interina, a Baroneza de ***, disse em voz baixa á presidente, alludindo á dona da casa:

-- Esta mulher é por força idiota, não acha?

-- Hum! duvido; agora o que acredito, respondeu a Condessa de *** no mesmo tom, é que não teve a mais leve sombra d’educação nem d’instrucção.

-- Ou isso, continuou a Baroneza; nunca vi uns modos tão inconvenientes n’uma senhora rica, e de mais a mais que está prestes a ter o titulo de baroneza, segundo me asseverou o Visconde de ***.

-- Parece uma mulher do povo, e de muito baixa esphera, tornou a Condessa.

-- E o marido! Ai, meu Deus! que linguagem, que phrases e que maneiras! Não seria filha minha ou menina donzella que estivesse debaixo da minha subordinação, que eu trouxesse a casa de similhante brutamontes. Sempre é um homem que diz ás vezes cada dichote que fica qualquer pessoa, e sobretudo uma dama de elevada gerarchia, com o rosto a um lado, como se costuma dizer, vexada e injuriada com taes palavrões.

-- Sim? disse a Condessa, que nunca estivera em contacto com o gordo trasmontano; se eu soubesse similhante coisa não tinha vindo aqui; preferia que a reunião fosse em minha casa. E logo escolheram, continuou ella, para thesoureira a mulher de similhante selvagem! Nada, como nós estamos nomeadas interinamente, eu não aprovo, voto contra.

-- Não, senhora Condessa; ha uma grande vantagem em que D. Pulcheria seja thesoureira: Vossa Excellencia bem sabe que o marido é rico bastante, e que poderá dar muita consideração á nossa sociedade, abonando dinheiro, quando fôr necessario, o que acredito se repetirá bastantes vezes, pois que os projectos que o Visconde de *** me apresentou, demandam cabedaes que nós não temos nem nunca teremos, para gastar com obras de caridade, entende-se.

-- Bem percebo, senhora baroneza. Se nos despojassemos dos nossos bens para os dividir pela pobreza, o resultado d’isso era depois não podermos brilhar na sociedade, como senhoras que somos d’alta gerarchia.

-- Tem muita razão, senhora Condessa; eu não sei ainda quanto é a quota mensal que devemos pagar cada uma de nós; porêm declaro que mais de doze vintens não estou disposta a gastar. Já são seis pintos cada anno, que eu tenho de dar como se fosse um fôro.

N’este momento tornou a aproximar-se das duas fidalgas a mulher de Mendonça com o appendix da filha sempre pela mão, e disse á Condessa com voz abrutada, e como de recriminação:

-- Antão, sêra Condessa, vem d’ahi, ou não? Queremos dar principio á coisa, e Antão deixe-se agora de conversas.

Depois, dirigindo-se á Baroneza, que estava com a viseira caida, bem como a outra fidalga, disse-lhe:

-- Venha você tambem d’ahi, sêra Baroneza; logo darão á taramella quando se acabar a tal runião ou que dialho de coisa é.

As duas fidalgas levantaram-se sem dizer palavra, e encaminharam-se para a meza.

A presidente subiu ao estrado, e assentou-se na cadeira do meio com a physionomia franzida como quem está de máu humor.

A secretária tomou a direita da presidente tambem com ar carrancudo.

Faltava porêm, para dar comêço á sessão, a segunda secretária, a qual era a Marqueza de ***.

D. Pulcheria, vendo que, apezar de estarem preenchidos os dois lugares, ainda faltava um, exclamou meio zangada:

-- Ora não ha! que aborrimento me estão fazendo estas pieguices de sacartárias primeiras e segundas.

E levantando a voz para ser ouvida das convidadas:

-- Não ha ahi nenhuma fidalga que vá pró lugar da sêra marqueza de *** emquanto ella não chega, para principiarmos a runião?

E, vendo a Viscondessa de ***, que chegára havia pouco, disse-lhe ao mesmo tempo que a empurrava assalvajadamente:

-- Ande, vá você pró logar da segunda sacartária.

A Viscondessa quasi que perdêra o equilibrio com o inesperado e forte encontrão que lhe deu a mulher de Mendonça.

Depois, caminhando para a meza, assentou-se na cadeira vaga, á esquerda da presidente, dizendo a esta em voz baixa:

-- Nunca vi nada tão brutal como a familia da casa onde estamos, isto começando pelo marido e acabando na filha!

-- Tem razão, senhora Viscondessa, respondeu a presidente á recem-chegada.

Depois, pegando na campainha e tocando-a, disse em voz clara e intelligivel, para ser ouvida em toda a sala:

-- Minhas senhoras, está aberta a sessão.

Todas as fidalgas tomaram assentos na sala, e a presidente, depois de ter ordenado á primeira secretária que fizesse a chamada e esta o haver executado, mandou proceder á ordem do dia, que eram eleições de cargos definitivos, e approvação d’estatutos.

O nosso Mendonça, porêm, que não ouvira na lista dos nomes, chamarem pelo seu, porque, leigo n’estas coisas, não sabia que a projectada associação era para ser composta só de senhoras, Mendonça, diziamos, sempre d’oculos e com um barretinho na cabeça, de modelo clerical, exclamou, levantando a voz para ser bem ouvido de todo o auditorio:

-- Antão que diabo é isto! eu não estou escarranchado na listra dos nomes dos socios?! Eu tamem quero ser socio!

-- Porêm Vossa Excellencia não sabe, ponderou-lhe o Visconde ao ouvido, que não é possivel a admissão de homens n’uma associação toda composta só de senhoras?...

-- Mas qual é a razão, perguntou o nosso trasmontano elevando mais a voz, porque só as mulheres pódem entrar para esta sociedade?

E, dirigindo-se á presidente, apezar dos vãos exforços do Visconde para elle não fallar, o nosso homem perguntou-lhe sempre em voz alta e vibrante:

-- Ó senhora que está na cadeira do meio, eu, o dono da casa, não posso pertencer á sociedade d’onde é socia a minha companheira?

A presidente interrompeu os trabalhos da sessão para responder a Mendonça.

-- Vossa Excellencia, disse ella, creio que ignora os nossos estatutos...

-- De que servem os institutos para o caso? perguntou Mendonça, interrompendo a Condessa de ***.

-- Eu explico a Vossa Excellencia, continuou esta em tom agradavel, porêm com o rosto contrahido pela colera; nós temos um artigo já approvado particularmente por nós, no qual se permitte serem admittidas unicamente para socios ordinarios, as senhoras titulares, e mesmo alguma senhora nobre, ainda que não tenha titulo; comtudo, continuou ella, qualquer cavalheiro que quizer contribuir com algum donativo para esta benefica e caridosa associação, inscrever-lhe-hemos o nome para depois o publicarmos no fim do anno, na conta da receita e despeza da associação.

Mendonça ouvira de boca aberta, sem nada perceber, a allocução que lhe era dirigida pela presidente.

Depois, fazendo uma careta como de quem não está convencido, replicou:

-- Tudo isso são pieguices que não se conformam cá com o meu caratel; eu gósto das coisas, pão pão, queijo queijo.

E, dirigindo-se a sua mulher, que estava em uma das cadeiras destinadas para as socias, tendo a filha ao lado, a qual tinha ao collo um grande gato, a quem dava bolos de vez em quando, e o qual já por duas vezes arranhára um fraldiqueiro pertencente á amante do Conde de ***, que era tambem socia, o nosso trasmontano disse-lhe de longe em voz alta:

-- Ó Pulcheria, quando tiver acabado esta coisa, vai-me accordar, porque eu vou dormir um bocado.

-- Vai descançado, meu velhinho, respondeu a mulher.

Mendonça, dirigindo-se a todas as visitas, continuou como despedindo-se:

-- Divirtam-se vocês por cá, que eu, como não entendo nada de runiões d’estas, antes quero estar estatalado na minha cama a roncar do que estar aqui feito palerma a ouvir pieguices escusadas. Vivam.

E, sem dizer raais nada, retirou-se da sala, sendo acompanhado d’um rumor de vozes pouco lisongeiro para elle.

Algumas senhoras não poderam conter o riso concentrado que as apoquentava havia bastante tempo, e romperam em gargalhadas, aproveitando um incidente que se deu quasi ao mesmo tempo da retirada do dono da casa.

O gatarrão que a filha do trasmontano tinha no collo, hispando o fraldiqueiro, que, pela terceira vez, alongava o focinho a vêr se a cachopa lhe distribuia tambem algum bocado de doce, saltou d’onde estava sobre o debil e medroso cãosinho, começando a esgatanhal-o com unhas e dentes, apezar dos profundos latidos do descendente da raça canina.

A dona d’este, vendo o seu querido, tão maltratado, entre as garras e fauces do malfazejo gatarrão, não poude deixar de exclamar na maior afflição, dirigindo-se á filha de Mendonça:

-- Oh! menina, olhe que o seu gato mata o meu querido bijou. Ih! coitadinho! como elle o tem agarrado pelo pescoço!

De facto, o gato, julgando que o cão fosse um rato, havia-o filado pelo cachaço como quem o queria tragar.

Algumas senhoras levantaram-se; umas compungidas, a vêr se podiam prestar alguns soccorros ao afflicto, e outras com receio que os dois contendores fossem entrincheirar-se-lhes sob as crinolines.

A cachopa, por ordem da mãe, abaixou-se e agarrou o gato; porêm este, soffrego com a nova preza, já se esquecêra dos bolos que a dona lhe dera, porque, sem attenções nem gratidão para com a mesma, cravou-lhe as unhas nas mãos, com tal força, que a pequena não poude deixar d’implorar o soccorro maternal, gritando:

-- Ai! ai! oh mãe! olhe o tareco que me come as mãos!

-- Ai a minha rica filha! exclamou a mãe, vendo o sangue rebentar das mãos da pequena, pelas grandes unhadas que o gato lhe déra.

E, correndo para o gato, arrumou-lhe um forte pontapé; porêm, perdendo o equilibrio, caiu para traz, ficando estatalada no chão, de barriga para o ar, patenteando ao auditorio os encantos occultos, que a rigida matrona sempre tivera o maior cuidado em encobrir.

Levantou-se sem estar molestada, e vendo que o gato fugira, dirigiu-se logo a sua filha, e examinando-lhe as mãos, e, vendo-lh’as esgatanhadas e vertendo sangue, disse-lhe:

-- Anda, menina, vem lavar as mãosinhas e pôr-lhe pannos de vinagre.

E, conduzindo a filha, a qual contemplava as mãos com olhos chorosos, disse-lhe, dando-lhe um beijo:

-- Anda, meu amorsinho, descança, que não te saem por ahi as tripas.

E saíram.

Foi n’esta occasião que romperam as gargalhadas que algumas damas haviam contido a muito custo.

A presidente chamou á ordem as socias, e continuou a sessão, passando á eleição da meza e da commissão administrativa, ficando nos cargos as mesmas socias que já estavam eleitas interinamente, e os estatutos approvados.

Depois de fechada a sessão, uma fidalga que presenceiára a queda de D. Pulcheria, não poude deixar de dizer a uma sua amiga:

-- Não reparou, senhora marqueza, no vestuario pouco decente que usa a dona da casa?

-- Oh! se reparei! respondeu a devota marqueza; que indecencia! Qual é a senhora decente e honesta que deixa de trazer calças?

-- É verdade, senhora marqueza, não ha nenhuma.

Levantada a sessão, como o dono e dona da casa não appareciam, o primeiro por estar dormindo, e a segunda, por estar a cabeceira da filha a adormecel-a, as fidalgas foram saindo pouco a pouco, dizendo umas ás outras:

-- Realmente, esta familia é muito original, e não tem educação nenhuma! Desapparecem da sala, deixando só os criados para se despedirem de nós!

-- É verdade, respondiam outras, que serie d'inconveniencias commettidas para comnosco!

E assim foram saindo do casa do nosso Mendonça, sem ao menos tomarem uma chavena de chá ou um copinho de licôr.

CAPITULO II

Consequencias da importação lazarista

Depois de formada a pia associação para alliviar a desgraça dos portuguezes pobres, a commissão administrativa da mesma, de intelligencia com o governo, mandou um emissario a França para tratar com o gabinete francez a concessão de poderem vir para Portugal algumas irmãs de caridade, acompanhadas de padres ou frades da ordem de S. Vicente de Paulo.

Viu-se, portanto, dentro de poucos dias, a nossa bella Lisboa povoada de matronas com vestes exquisitas, começando pela cabeça, o que deu motivo a que até os fabricantes de carruagens pozessem o nome de «irmãs de caridade», a uns churriões ou carros de fórma exotica, porêm, similhantes nas caixas, ás chapeletas d’azas que as irmãs de caridade, francezas, traziam na cabeça.

Estes taes churriões teem pouca sympathia do publico, não sabemos se derivada da pouca que inspiraram no espirito nacional as filhas de Vicente do Paulo, so por terem uma apparencia hedionda.

Prosigamos.

Depois das severas matronas, appareceram os taes frades lazaristas ou coisa assim parecida, e dentro em pouco uns e outras foram enviados para os collegios de infancia desvalida, parece-nos que para ensinarem... doutrina. Agora, o que não sabemos, é se elles a traduziam para a lingua materna, porque aliás, como poderiam as pobres creancinhas comprehender os confusos, intrincados e impossiveis mysterios da nossa religião explicados por estes senhores, e, de mais a mais, n’um idioma desconhecido ás creanças portuguezas?!

Seja como fôr, o que é historico, é que brevemente os hospicios ou casas d’asylo da infancia, se transformaram em austeros claustros, de que eram abbadessas e geraes as piedosas, virtuosas e santas irmãs de caridade, francezas, e os reverendos, tremendos e liberaes lazaristas ou jesuitas, que, na nossa opinião, formam ambas uma só ordem, que se funda nas seguintes depravadas maximas: Entorpecer os craneos das gerações nascentes para que no futuro entorpeçam tambem os cerebros dos seus descendentes, e o nosso decaido poder tornará a predominar sobre os povos mergulhados nas trevas da ignorancia.

Os chronistas d’aquella epocha, uns elogiaram desgraçadamente a importação do tao nocivas creaturas na nossa terra, e outros, sendo verdadeiramente liberaes, condemnaram os authores de tão nefanda idéa.

Elogiâmos e elogiaremos sempre os segundos, lastimando vivamente os primeiros, e muito mais por se inculcarem pertencer ao partido liberal, civilisador, regenerador ou progressista.

Um dia, pois, uma pobre viuva foi visitar uma filhinha de oito annos que estava matriculada na casa d’asylo da infancia desvalida da freguezia de...

A infeliz mãe ficou admirada de lhe apparecer á porta, recentemente chapeada de ferro, e com uma estreita grade do mesmo metal, uma irmã de caridade, franceza, que lhe perguntou em pessimo portuguez, e atravez da grade:

-- Qui qué a senhorrá?

-- Eu sou a mãe da menina F., respondeu a viuva, e desejava vêl-a.

-- Dominga, depôs la communhon.

A viuva retirou-se cada vez mais assombrada por vêr a mudança repentina que havia na direcção do asylo onde tinha a filhinha; porque, antes da importação das irmãs de caridade, francezas, a directora do asylo, quando qualquer parente das meninas as vinha visitar, promptamente lhe concedia a entrada. Alem d’isto, não havia na porta grade de convento, nem a mesma era chapeada de ferro, a modo de sombra de porta de castello feudal, de convento do Petit-picpus, ou de tribunal inquisitorial.

A infeliz viuva viu-se pois obrigada, apezar de lhe causar isso bastante transtorno, por morar em Belem, a voltar no domingo ao hospicio onde tinha sua filha, pois havia bastante tempo que não vinha vêl-a, por ter estado gravemente enferma.

No domingo, eram seis horas da manhã, já a pobre senhora estava assentada n’um banco comprido que havia no portal do collegio.

Ali esperou não pouco tempo, e o que lhe valeu para se distrahir foi encontrar tambem algumas mães que vinham para o mesmo fim que ella, as quaes esperavam do mesmo modo, assentadas no mesmo banco.

Ali conversaram até que a porta se abriu, e a mesma irmã de caridade, franceza, que já conhecemos, disse:

-- Póde vocimicês entrá.

As mães entraram com os corações cheios de jubilo por irem vêr as suas filhinhas e levarem-lhes alguns mimos que só o amor maternal sabe offerecer, mesmo luctando, para os adquirir, com milhares de difficuldades, procedidas da falta de teres.

A mãe da menina F. entrou, pois, para uma especie de cella quasi em trevas, apezar de estar o dia claro, e ali esperou que apparecesse sua filha.

Passado algum tempo, ouviu uns passos que se encaminhavam a custo e com receio, para o local onde ella estava.

A viuva levantou-se, porque o coração pareceu dizer-lhe que eram os passos de sua filha, e chegando á porta, viu com effeito que não se enganára.

Era de facto a filha da pobre viuva, que vinha fallar a sua mãe, cabisbaixa, sem despregar os olhos do chão, e hesitando em aproximar-se de quem lhe dera o ser.

Alem d’isto, trajava um vestuario singular que a desfigurava completamente.

A infeliz mãe, ao vêl-a, hesitou um instante em correr a abraçal-a, por não conhecer á primeira vista sua filha, por estar muito demudada, tanto no vestuario como nas maneiras.

Antigamente a creança, quando sabia que sua mãe a vinha visitar, corria logo alegremente a ella, abraçava-a e beijava-a com effusão; porêm, desde que as doutrinas jesuiticas se inocularam no collegio, a pequenita mudára completamente de caracter.

A mãe, todavia, reconheceu-a, porque é impossivel que uma mãe não reconheça um filho depois de o examinar, por mais demudado e transformado que elle esteja.

Correndo pois a ella, pegando-lhe ao collo e dando-lhe immensos abraços e beijos, disse-lhe carinhosamente, vendo que a creança não lhe retribuia nem os beijos nem os abraços, mas sim, que conservava os olhos fictos no chão e uma impassibilidade de creatura insensivel ou idiota:

-- Que tens tu, minha querida filha? estás doente?

-- Eu não estou doente, respondeu a pequena com voz breve e sêcca, e a minha mãe é a Virgem Santissima; não tenho outra cá no mundo.

A mãe ficou estupefacta com o que a filha lhe respondia, e tornando a abraçal-a, e tentando vêr-lhe o olhar, o que não poude conseguir, porque a pequena o conservou sempre ficto no chão, apezar dos exforços que a afllicta mãe fez para lhe vêr o rosto, disse-lhe chorando:

-- Então, tu, minha querida filha, não me conheces? Olha que sou a tua mãe e a tua amiguinha.

-- Já disse á senhora que a minha mãe espiritual e a Virgem Santissima, e meu pae, Nosso Senhor Jesus Christo. Nós, pobres creaturas, somos atomos da terra, porêm devemos aproximar-nos do céo, e para isso é necessario renunciar ao mundo.

E, dizendo isto e afastando-se, deixando a mãe perplexa, disse-lhe do fim do corredor sem nunca a encarar:

-- Adeus, senhora. O Santissimo Sacramento a illumine e acompanhe.

E desappareceu.

A pobre senhora saiu do collegio sem saber o que ouvira, o parecendo-lhe um sonho o que se passára entre ella e sua querida filha.

-- Acabou-se! exclamou ella na rua, sentindo-se abrazada em febre de delirio! Perdi a minha filha! Os jesuitas mataram-ma moralmente! Oh! porêm não! eu não consentirei; hade tornar a ser minha filha; vou queixar-me ao rei; elle hade attender-me e dar-me a minha querida filha. Sim, sim, eu vou já.

E a desventurada senhora começou a correr pelas ruas de Lisboa, gesticulando e gritando horrivelmente contra as irmãs de caridade, padres lazaristas e governo portuguez, rematando o seu desordenado discurso por dizer que o rei lhe faria justiça e lhe havia de dar a sua filha.

A infeliz tinha endoidecido...

Recolheram-n’a amarrada ao hospital, e ali succumbiu a uma febre cerebral, sempre chamando sua filha e amaldiçoando os jesuitas e lazaristas.

Eis uma pequena amostra do resultado produzido pela piedosa associação das aristocratas, a qual deu origem á importação da negregada familia dos Borgias e dos Médieis, encapotada com os habitos de Vicente de Paulo.

CAPITULO III

O jesuitismo trabalha

Quasi todas as fidalgas lisbonenses tomaram para os seus alcaçares, irmãs de caridade, francezas, crêmos que para ensinarem ás devotas aristocratas orações em francez.

As nossas, verdadeiramente caridosas irmãs de caridade ficaram, por consequencia, preteridas e desprezadas, e de mais a mais, com o epitheto de «ineptas e pouco caridosas», lançado sobre ellas pelas fidalgas lisbonenses que pertenciam á piedosa associação para soccorrer os pobres do povo.

Vêmos portanto as irmãs de caridade, francezas, e os padres lazaristas, de posse dos noveis espiritos portuguezes, ensinando o portuguez nas casas de asylo da infancia, e educando as creanças nas negregadas e medonhas maximas dos da companhia de Jesus.

Fazer mal em nome de Jesus!

Ah! se tu soubesses, grande regenerador e immenso philosopho do seculo primeiro, se tu tivesses previsto, antes de, quando no alto do Golgotha expiravas no madeiro destinado aos malfeitores, que os hypocritas, por culpa dos quaes perdeste prematuramente a tua preciosa vida para a feroz e ignorante humanidade d’aquelle barbaro tempo, se tivesses previsto que esses mesmos hediondos hypocritas, transformados seculos depois, em teus ministros, para os seus tenebrosos fins, haviam de torturar a pobre humanidade, tanto physica como moralmente, e (oh! duplicada infamia!) em teu nome; estamos convencido que abnegarias a tua sublime missão de tentar regenerar os teus similliantes no physico, porêm contrariamente oppostos no moral; de certo, não soffrerias o supplicio da cruz, e lançarias o anathema sobre aquelles que, fazendo-te Deus, teem feito com que milhares e milhares de desgraçados tenham renegado, não, as tuas sublimes e doces maximas, porêm sim, a religião que, falsamente, em teu nome, os faz soffrer crueis torturas.

A associação das fidalgas já fundára um hospital, o estabelecêra visitar os enfermos pobres nas suas proprias casas, e soccorrel-os.

Um dia, um pobre ancião, de setenta annos de idade, constando-lhe que havia um hospital destinado para os desgraçados do povo, e informando-se a quem se havia de dirigir para lhe ser concedida entrada no mesmo a uma sua filha, gravemente enferma e impossibitada de trabalhar, dirigiu-se á presidente da associação piedosa.

O ancião chegou ao pateo do alcaçar da aristocrata, cançado e afllicto, encontrando-se logo frente a frente com o guarda-portão, o qual lhe perguntou em tom aspero, porque o pobre velho levava as botas rôtas e o chapéo encebado:

-- Que quer você?

-- Pretendo fallar á senhora Condessa de ***, respondeu o ancião tirando o chapéo.

-- A senhora Condessa não póde agora fallar a ninguem, porque vai sair... Você não vê a carruagem que a está esperando?...

O pobre velho, desanimado por vêr os passos perdidos e conhecer que a enfermidade da filha carecia de promptos medicamentos e repoiso, coisa que elle não podia ministrar-lhe, por ser um desgraçado distribuidor de obras litterarias, ficou um momento pensativo, passado o qual perguntou timidamente ao guarda-portão:

-- E poderei esperar aqui por Sua Excellencia?

-- Póde esperar, respondeu o miseravel do povo em tom aspero, mas o que lhe digo é que você perde o seu tempo... A senhora Condessa tem immensos negocios a tratar para lhe poder dar attenção.

O pobre velho sentiu-se humilhado com o que acabava de lhe dizer o guarda-portão; porêm persistiu em ficar, contra os seus honrados sentimentos, porque tinha a sua querida filha n’um afflictivo estado de saude, e preferiu arrostar com todos os insultos que lhe podessem lançar, afim de obter, para sua filha, uma cama no hospital fundado pelas devotas aristocratas.

Esperou portanto meia hora com toda a resignação e paciencia, conservando-se de pé, porque o desabrido cerbero do palacio nem ao menos o convidára a assentar-se n’um banco que havia perto do seu cubiculo.

Decorrida a meia hora, viu abrirem-se os batentes da porta da escada que conduzia ao pavimento superior, e um lacaio sair correndo e dizer ao outro que se conservava na almofada da carruagem:

-- Olhe que ahi vem a senhora Condessa!

-- Aonde vão? perguntou o cerbero ao lacaio recem-chegado.

-- Confessar uma doente que deixa á associação cem mil réis no testamento.

-- Ah! sim?... replicou o cerbero. E aonde é?

Não poude ouvir a resposta á curiosa pergunta que fizera, porque o lacaio, vendo abrir os batentes e apparecer a Condessa acompanhada d’um padre lazarista, correu para fóra do pateo a abrir a portinhola da carruagem.

O ancião, vendo a Condessa, aproximou-se-lhe com humildade e, depois de respeitosamente a comprimentar, disse-lhe com voz submissa:

-- Senhora Condessa, eu tenho uma filha gravemente enferma e que não póde trabalhar; rogo portanto a Vossa Excellencia que se digne admittil-a no hospital fundado pela nobre associação de que Vossa Excellencia é digna presidente.

-- Então, quem é ella? como se chama?... perguntou a Condessa caminhando sempre para a carruagem.

-- Vossa Excellencia deve conhecel-a, respondeu o velho, seguindo atraz da fidalga; é F... que já foi criada em casa da senhora Marqueza de ***.

-- Ah! sim?... tornou a Condessa n’um tom desdenhoso, dispondo-se a entrar para a carruagem; então, meu charo senhor, desde já lhe digo que é impossivel satisfazer ao seu pedido, porque os nossos estatutos só concedem a admissão de senhoras nobres ou, pelo menos, de boas familias... para a classe de criadas de servir não temos logares.

E entrando de todo na carruagem, a qual immediatamente rodou levando dentro os dois apologistas da inquisição, deixou o pobre velho estupefacto e embrenhado em tristes e profundas meditações, das quaes o veio tirar o guarda-portão, que, com um risinho sarcastico, lhe disse como em tom de sentença:

-- Então, que lhe dizia eu?...

O ancião, vexado e corrido, não teve outro remedio senão retirar-se triste e cabisbaixo, por se lembrar da sua infeliz filha, e conhecer agora a impossibilidade d'ella ser soccorrida pela associação das fidalgas.

Este facto, do qual temos provas para alguem que nol-o queira contestar, não demonstra demasiado, que a idéa da fundação da pia sociedade para alliviar a desgraça do povo, não foi mais do que um pretexto para cobrirem com o véo da caridade os infames designios de prepara rem a joventude para a falsa devoção e negregado beaterio jesuitico?

Felizmente que Portugal, então, já civilisado como estava, só consentiu ser por alguns mezes infestado por aquella fracção dos que são o flagello dos povos, que a França, tão liberal como é, abriga no seu seio, e elles tanto a estimam, como em 1565 os catholicos estimavam o seu religioso e excellente rei Carlos IX, o qual, no dia de S. Bartholomeu, atirou das janellas do paço sobre o seu povo, sendo a isso instigado pelos seus amigos os jesuitas, então encapotados sob o nome de catholicos apostolicos romanos.

CAPITULO IV

A pena de Talião

Uma tarde estavam paradas, á porta d’uma das principaes modistas do Chiado, duas carruagens; uma com o brazão d’armas do Barão de ***, e a outra, sem brazão algum, denotava, pela magreza das duas bestas que a ella vinham atreladas, ser um trem d’aluguer.

A carruagem do Barão de *** chegára primeiro á porta da modista, apeando-se d’ella, a Baroneza de *** e o seu confessor, um frade lazarista dos seus trinta e oito annos, bastante robusto, e, para quem fosse amador da hypocrisia, tinha o que se chama uma physionomia completamente jesuitica, o que encantava a senhora Baroneza de ***.

Esta, senhora dos seus trinta annos, era o que se chama no mundo elegante, uma bella creatura; com um modo em extremo affavel, o que denotava certa brandura de caracter que tocava na languidez.

A Baroneza não podia apertar a mão a um cavalheiro com quem sympathisasse, nem mesmo encaral-o, sem baixar immediatamente os olhos e sentir um leve estremecimento, que se communicava á pessoa a quem apertava a mão.

Tudo isto denotava ser a Baroneza uma mulher em extremo nervosa e demasiado sensivel.

Tinha o rosto oval e pallido, olheiras carregadas lhe circumdavam o semicirculo inferior dos olhos, sendo estes grandes, pardos e languidos, o que tudo denunciava ou longas vigilias ou fortes excessos da parte da Baroneza.

Alem d’isto, era alta e bem feita; possuia uma cintura de sylphide, e quem lhe reparasse para o pescoço e principios do collo, sentiria fortes desejos de devassar o bello sanctuario onde se occultava o coração da Baroneza.

Como dissemos, a carruagem da Baroneza chegou primeiro, e esta, apeando-se, ajudada pela mão do lazarista, entrou apressadamente na loja de modas, e comprimentando os caixeiros, perguntou-lhes com um delicioso modo e encantador sorriso:

-- Então, o meu vestido já está prompto?

-- Madame L*** estava á espera de Vossa Excellencia para o provar, respondeu o premier commis.

-- Ah! sim?... disse a Baroneza sempre sorrindo.

-- Madame L*** enviou o moço a casa de Vossa Excellencia participar-lhe que estava prompto o seu vestido, respondeu o deuxième commis.

-- Sim?... continuou a Baroneza; pois eu não recebi o recado!

A Baroneza mentia, dizendo que não recebêra o recado da madama franceza para ir provar o vestido que lá mandára fazer.

Convinha porêm á aristocrata, que no magazin de modas, ignorassem que ella sabia estar o vestido prompto para ser provado, e presumissem que tinha ido ao établissement como por demais, acompanhada do seu confessor.

-- Vossa Excellencia póde subir quando quizer, continuou o primeiro caixeiro, dirigindo-se á Baroneza.

-- Et vous aussi, monsieur, disse o segundo caixeiro ao lazarista.

-- Bem, disse a Baroneza, então vamos a isso.

E subiu ao primeiro andar do estabelecimento, sempre acompanhada do confessor.

Chegando acima, encontrou-se frente a frente com a dona do armazem, a qual, correndo á fidalga, abraçou-a e beijou-a, dizendo-lhe ao mesmo tempo em máu portuguez:

-- Oh! eu já esperava o meu bello anjo, para provar o seu vestida.

-- Já me disseram isso os caixeiros, respondeu a Baroneza, porêm eu vim aqui por acaso, porque não recebi recado algum.

-- Oh! aquelle cochon do moço é o home mais ronceira que conheço na minha vida!

-- É portuguez? perguntou a Baroneza.

-- Non, é gallego, respondeu a madama.

-- Se fosse portuguez, continuou a Baroneza, não admirava que fosse ronceiro, porque quasi todos assim são.

-- Enton quer vir provar o seu magnifique vestida? Ficou linda, virá. Queira Vossa Excellencia seguir-me.

E caminhando adiante da Baroneza, conduziu esta para um quarto de vestir que poderia tambem servir de quarto de repoiso por ter para isso todos os necessarios arranjos.

-- Tem a bondade d’entrar aqui e de se pôr à votre plaisir? disse ella á Baroneza, depois de abrir a porta do quarto. Eu vou vêr se o vestida já tem pregada o trancelim de robe... e no entretanta reposez um pouco Vossa Excellencia.

E, depois da Baroneza ter entrado, vendo que o padre lazarista hesitava em fazer o mesmo, passeiando no corredor, a intelligente madama, chegando-se a elle, disse-lhe:

-- Et vous, mon cher monsieur le prêtre, entrez sans façon, si madame la baronne vous en permet.

Depois d’este convite deixou a Baroneza e o lazarista, demorando-se boa meia hora em acabar de pregar o trancelim na saia do vestido.

Foi n’este intervallo que chegou a carruagem d’aluguer, que indicámos aos leitores no principio d'este capitulo, a qual trazia dentro uma irmã de caridade, franceza, que tambem encommendára no armazem de madama L*** um vestido para si.

Quem podesse penetrar com a vista por entre as irrisorias abas da chapeleta, um dos ornamentos do uniforme das filhas de Vicente de Paulo, veria no rosto da irmã de caridade que se apeiava da carruagem, um tanto de beato fashionable, que faria mais d’um devoto gastar meias solas para andar um dia inteiro na sua companhia.

Teria, quando muito, vinte e oito annos. Era d’estatura regular; tinha o rosto redondo, córado e rubicundo; tinha olhos azues, e as fórmas artisticamente contornadas, apezar do grosseiro vestuario que trazia.

Finalmente, era um anjo decahido, segundo a opinião de Dante.

Quem visse esta filha d’Eva, atravez do vestuario que lhe occultava as perfeições, diria com justa causa: «o habito não faz o monge;» porque o ar ironico e lascivo que a filha de Vicente de Paulo mostrava nos deliciosos labios, habituados a oscular o crucificado, demonstrava ser exacto o citado proverbio portuguez.

A irmã de caridade, franceza, apeiou-se pois da carruagem e entrou na loja de modas.

Quasi ao mesmo tempo entrou tambem no armazem, porêm por uma porta travessa, um sugeito de quarenta annos, vestido de preto, que chegára apressadamente a pé.

Este sugeito era o Barão de ***, marido da Baroneza que estava provando o vestido, o qual, com a pressa que chegou, nem reparou na sua carruagem, que estava estacionada defronte da porta da modista.

O Barão entrou pois, como dissemos, pela porta travessa do armazem de modas, e vendo a irmã de caridade, franceza, que estava fallando com os caixeiros, aproximou-se-lhe e perguntou-lhe em voz baixa:

-- Já chegou ha muito tempo, mademoiselle?

-- Non, agor mesma, respondeu a interrogada.

O Barão nunca fôra ao armazem de modas de madame L***, e por isso não era ali conhecido.

A irmã de caridade, vendo chegar o Barão, e depois de ter perguntado aos caixeiros se a sua encommenda estava prompta para ser provada, recebendo resposta affirmativa, é rapaz, e um anjo perguntou-lhes novamente em francez:

-- Então, posso subir?

-- Pois não!... respondeu-lhe um dos caixeiros no mesmo idioma; e aquelle cavalheiro, continuou elle, póde fazer o mesmo, querendo.

A irmã de caridade chegou-se pois ao Barão, e disse-lhe em voz baixa e em portoguez, porque este entendia mal o francez:

-- O senhorr póde subirr comiga.

E subiram ambos, encontrando em cima a dona da casa, que n’essa occasião levava o vestido para ser provado pela Baroneza.

-- Oh! mademoiselle, exclamou ella vendo a irmã de caridade, sua patricia; quel grand plaisir vous me faites en vous voyant chez moi!

E voltando-se para o Barão, comprimentou-o em portuguez, dizendo-lhe:

-- Vive, meu senhorr, estou à votre disposition.

A irmã de caridade fallou em voz baixa á sua patricia, e esta, sem já lhe importar com a fregueza que esperava, havia meia hora, pelo vestido, encaminhou rapidamente o Barão e a irmã de caridade para outro quarto, em tudo similhante áquelle em que se achava a esposa do Barão, porêm n’um ponto inteiramente opposto e distante.

A irmã de caridade, franceza, dissera ao ouvido da sua patricia o nome do cavalheiro que a acompanhava; e a intelligente modista, vendo o perigo que havia em se encontrarem os dois partidos, tratou por essa razão de occultar o segundo couple ás vistas profanas d’algum importuno, o muito mais ás do primeiro couple.

Depois de haver abrigado os dois ultimos devotos, disse em voz alta e em portuguez, á sua patricia, para o Barão ouvir:

-- Tenhe a bondade d’esperrar um pouque, que eu vou voir se a sua ouvrage está prompte.

Esta recommendação era para dar a côr local... moral, queremos dizer, que os francezes em extremo apreciam.

Depois d’isto deixou-os, e só depois da Baroneza haver provado o vestido, e deixado o estabelecimento, é que deu a provar á sua patricia a obra que esta lhe encommendára.

Isto mediou, pouco mais ou menos, tres quartos de hora.

A astuta madama, correu-lhe bem o cambio n’esse dia, pois que, pelas duas provas de vestidos, recebeu duas bonitas libras, gratificação com que as partes interessantes, isto é, a Baroneza e o Barão, a remuneraram.

CAPITULO V

Bilha de leite por bilha d’azeite

O nosso Tabellião, filho bastardo do Marquez de ***, e que fizera o testamento falso ao Conselheiro M***, depois da boa gratificação que recebêra da conselheira por haver annuido ás suas sollicitações, deixára o officio e viera para Lisboa viver dos seus rendimentos, sempre acompanhado da prima Monica.

O ex-tabellião, a quem chamaremos d’ora ávante o Commendador L***, porque realmente na epocha a que chegámos, está feito commendador, pelos antigos serviços que allegou ao governo; alcançou com alguns empenhos ser director do asylo de Mendicidade, cargo em que o vamos encontrar, exercendo-o com toda a rectidão de que elle é capaz.

Sua prima Monica entrára para a piedosa associação das fidalgas, e já contribuira, por ter fama de abastada, com bastantes quantias, e não pequenas, com que a encostára a commissão administrativa da santa associação.

A magnanima devota ia dando as quantias com a mão direita, e com satisfação apparente; porêm, já por mais d’uma vez exconjurára similhante comedella, como ella lhe chamava, e fizera meia duzia de figas com a mão esquerda, gatimanhos o sortilegios, para que a associação acabasse quanto antes, afim de não mais se vêr perseguida para dar dinheiro.

Uma manhã, pois, ao almoço, a nossa devota fingida teve com o primo a seguinte conversação:

-- Então, que lhe parece ao senhor a gracinha da commissão administrativa da associação das fidalgas?... Não faz senão pedir-me dinheiro, e eu estou já disposta a sair de socia. Que lucros tiro eu d’ali?... Nenhuns. Então, não estou para dar mais esmolas sem d’isso me resultar nenhum interesse.

-- A senhora, disse-lhe o primo, faz mal em discordar com a associação aristocratica... deixe-se ir á tona d’agua como quem não quer a coisa, e vá dando sempre as esmolas que lhe pedirem, que eu tenho um meio de recuperar o perdido e ganhar ainda muito milho.

-- Sim?... perguntou com curiosidade a prima Monica.

-- É facto, respondeu o commendador feito á pressa; porêm para isso é necessario que ambos tenhamos o valimento das fidalgas, porque sem a sua protecção poderia eu sair-me mal da empreza que vou tentar... e assim sempre se poderá atrapalhar a coisa e eu continuar dirigindo o asylo, que é um manná para nós ambos...

Segundo o estudo e calculo que eu tenho feito, podemos d’ali explorar a nossa independencia... e até riqueza futura.

-- Ora essa! muito me conta, exclamou a prima Monica, soltando um risinho hypocrito-jesuitico. E então qual é o seu projecto? ... posso sabel-o?

-- É o seguinte, respondeu o primo.

E, depois de tomar uma pitada, assoar-se e escarrar, disse á devota, que era toda ouvidos:

-- Como sou director do asylo de Mendicidade, e o fornecedor de pão d’aquelle estabelecimento é meu amigo, eu já lhe dei ordem para elle comprar um pouco de trigo avariado que se molhou em agua salgada, para fabricar pão para consumo dos asylados: ora já se vê que d’isto resulta-me uma boa quantia, porque o trigo vende-se baratissimo, e o pão n’aquella casa é o genero que se consome com mais brevidade.

-- É um bello plano, sim senhor, exclamou a devota, tomando uma pitada. Pois então! continuou ella; é necessario recuperarmos o que temos dado em esmolas aos pobres... A ferida do cão cura-se com o cabello do mesmo cão.

-- Agora o que é necessario, tornou o ex-tabellião, é continuarmos as nossas relações com as fidalgas e conservarmo-nos nas suas boas graças, porque... se algum malevolo vier a descobrir a minha empreza, preciso da protecção e testemunho das piedosas aristocratas para poder provar ser falso o que me imputam; percebe?

-- Perfeitamente, respondeu a devota Monica; já sei como devo conduzir-me.

E levantaram-se ambos da meza depois de elevarem com toda a hypocrisia as mãos ao céo e fazerem a sua oração das santas graças, depois de comer.

Eram passados oito dias depois do precedente dialogo, e no asylo de Mendicidade, todos os desgraçados e infelizes asylados se queixavam do pessimo pão que lhe davam para seu alimento.

Este rumor, ao principio debil, foi crescendo a tal ponto, que os asylados começaram a manifestar o seu descontentamento em alta voz, clamando contra o padeiro que lhes fornecia pão avariado, impossivel de comer.

Um asylado que fôra outr’ora frade, e que já havia feito no asylo uma especie de sedição, mandando ao rei um requerimento, o qual tinha tanta força de verdade no seu pedido, que fez com que Sua Magestade fosse visitar o asylo e tentasse melhorar a sorte d’aquelles desgraçados asylados, variando-lhes as refeições, para não comerem sempre arroz e caldo de cebolas; este asylado, diziamos, esperou uma tarde o director quando vinha passar a sua revista; e, levando na mão um pedaço de pão feito de farinha avariada, assim que avistou o director, que conversava com um empregado, aproximou-se-lhe com todo o descaramento, e tirando o bonet, disse ao funccionario em tom claro e resoluto, mostrando-lhe ao mesmo tempo o pedaço de pão com que se munira:

-- Senhor director, Vossa Senhoria hade perdoar-me que o interrompa para lhe mostrar o pão que me dão a mim e aos meus companheiros de desgraça: é tão máu que não o podemos engulir sem taparmos as ventas.

E apresentou o pão ao director, que lhe pegou com uma visivel perturbação, pois fôra apanhado tão de subito que julgou ser um epigramma que o asylado lhe estava lançando.

O ex-frade, observando surrateiramente a physionomia do director, depois d’este haver cheirado e provado o pão, perguntou-lhe:

-- Então que lhe parece a Vossa Senhoria a qualidade do pão?

-- Vou cuidar immediatamente n’isso, respondeu o director; d’amanhã por diante hão de comer pão bom.

Depois, voltando-se para o empregado, disse n’um tom de censura, fazendo uma careta:

-- Aquelle fornecedor... não me agrada...

-- Ah! Vossa Senhoria é novo aqui, atreveu-se a exclamar o asylado ex-frade, observando sempre o director, porêm fallando-lhe n’um tom lisongeiro; e então eu que já cá estou ha um par d’annos, e que tenho conhecido alguns oito directores na casa, posso dizer que os fornecedores zombam sempre dos directores novatos que lhes falta aquella pratica necessaria para dirigirem um estabelecimento como este.

E carregou na palavra «zombam,» com significativo sentido.

O director nada respondeu ao asylado, figurando não lhe dar importancia, e despedindo-se do empregado, disse comsigo, saindo do asylo:

-- Vamos a vêr se acho um meio de impingir o resto do trigo. O demonio do frade... tenho medo d’elle...

E, caminhando sempre, soltou um ah! repentino, como uma pessoa que acha de subito uma idéa que procurava.

-- Bom, disse elle; esta não falha.

E n’essa mesma noite, embuçado n’um capote e desconhecido para todos, entrou na loja do padeiro seu amigo, e dando-se a conhecer, disse-lhe ao ouvido:

-- Amanhã heide cá vir com alguns pobres, para, á vista d’elles provar o pão: você fica prevenido para quando eu lhe pedir a amostra do pão que vai para o asylo, dar-me do bom, percebe?

-- Perfeitamente, respondeu o miseravel do povo, comprado pelo aristocrata.

No dia seguinte, o director, acompanhado d’alguns asylados, entre os quaes vinha tambem o ex-frade, entrou na loja do padeiro fornecedor do asylo, e com modo aspero, disse ao dono da loja:

-- Então consta-me que você manda para o asylo pão de farinha avariada?

E, sem esperar resposta do padeiro, continuou logo:

-- Deixe-me vêr o pão que tem para mandar para lá.

O padeiro trouxe um pão ao director, o qual o abriu, cheirou e provou, dando-o depois em pedaços aos asylados, dizendo-lhes ao mesmo tempo:

-- E este, que tal lhes parece?

Os pobres provaram o pão, e achando-o bom, porque o esperto padeiro não esquecêra a recommendação feita de vespera pelo director, apresentando-lhe um pão de farinha sã:

-- Este é bom, disse um pobre, comendo avidamente o pedaço que lhe dera o director.

-- Deus queira que assim continue, disse o ex-frade meneiando a cabeça com malicia, e observando sempre o director do asylo.

Os asylados retiraram-se, julgando comerem d’ahi por diante pão sem ser avariado, porêm continuaram a mastigar, sem poderem engulir, o resto do pão de farinha avariada que o padeiro, authorisado pelo devoto do extabellião, comprára por baixo preço, dividindo o enorme ganho com o director do asylo.

D’este modo, o Commendador L*** e sua prima despenderam dez com a associação das aristocratas, e ganharam cincoenta, especulando com a desgraça.

CAPITULO VI

O jesuitismo cria proselytos

Por este tempo estavam matriculadas no asylo d'Ajuda duas meninas orphãs de pae e mãe.

O pae, que fôra honrado, se bem que pobre, exercêra o officio de alfayate, e por morte d’elle e de sua esposa, as duas meninas, então menores, ficaram em companhia d’um irmão, tambem menor.

Estes tres infelizes entes foram pois viver para casa do tutor, o corretor M***, excellente sugeito, chefe de numerosa familia, o qual ainda conservou em sua casa, por algum tempo, os tres orphãos; porêm como só era tutor no nome, porque os finados progenitores das creanças quasi nada lhe haviam legado, por nada possuirem, o honrado chefe de familia, não podendo por mais tempo sustentar tres pessoas, propoz a uns parentes das meninas, cremos que tio e tia, o fazel-as entrar para um asylo, o qual nesse tempo era dirigido-por uma professora portugueza.

Os tios annniram de bom grado a esta propozição do honrado corretor, e este trabalhou até alcançar a admissão das duas orphãs no asylo d’Ajuda, conservando em sua casa o irmão d’ellas, o qual, n’essa epocha teria quinze annos, e empregou-o como escrevente no seu escriptorio.

As duas meninas, pois, receberam uma educação menos má, porque haviam sido recommendadas, até chegarem as irmãs de caridade, francezas, e os frades lazaristas.

Com esta horrivel importação tudo mudou tambem n’este collegio, como mudára nos outros.

As duas orphãs estavam no asylo havia tres para quatro annos, e nunca se haviam queixado aos seus parentes de coisa alguma que as molestasse emquanto a direcção do collegio esteve entregue á senhora portugueza; porêm um dia, indo visital-as seus tios e irmão, quando as irmãs de caridade, francezas, estavam de posse dos espiritos noveis de todas as creanças asyladas, a mais nova das duas irmãs, que teria os seus treze annos, queixou-se amargamente aos tios que a tratavam muito mal, que lhe indingiam rigorosos castigos e a obrigavam a uma rispida abstinencia.

-- Sim? exclamaram os tios.

E, voltando-se para a irmã mais velha, que contava quinze para dezeseis annos; por acreditarem mais na sua capacidade e intelligencia, perguntaram-lhe:

-- É verdade, E***, o que diz tua mana?

-- A mim tratam-me muito bem, respondeu a interrogada sem hesitar.

-- Então como se entende isto? replicaram os tios, voltando-se para a queixosa; tu dizes que te castigam, maltratam, e não te dão de comer, e tua irmã diz o contrario?!... Não percebemos!

-- É porque a E*** é muito amiga de mademoiselle P***, tornou a pequena com intimativa; e então ella não a castiga: andam sempre ambas a fallar francez; a rezar juntas...

Os tios iam para indagar melhor esta contradicção de tratamento que declaravam as duas sobrinhas, quando appareceu uma das mademoiselles caridosas, que veio dizer ás meninas que era chegada a hora da refeição da tarde, e que então não lhes era permittido demorarem-se ali por mais tempo.

Os tios sairam, acompanhados do irmão das duas infelizes meninas, o qual todo o caminho veio pensando seriamente nas queixas que ouvira a sua irmã mais nova; e como era um mancebo intelligente e com alguma instrucção pelas leituras liberaes, concluiu que havia grande jesuitismo encoberto no tratamento opposto que davam a suas irmãs.

Os tios tambem desconfiaram, sob outro ponto de vista, da contradicção que havia entre as duas sobrinhas, sobre a educação que lhes davam no asylo.

Todavia, como eram pobres e receiavam carregar com as duas sobrinhas, se estas saissem do collegio, não tentaram averiguar coisa alguma com mais minuciosidade.

O mancebo, porêm, fervia-lhe a imaginação com o que ouvira; e portanto, um dia, sem communicar a sua tenção a pessoa alguma, dirigiu-se ao asylo para visitar suas irmãs e syndicar melhor o que lhe dissera a mais nova.

Chegado, porêm, ao portal do collegio, tambem transformado em severo convento, e annunciando-se, foi-lhe respondido que não era permittido ás duas meninas fallarem senão com pessoas de maior idade.

O mancebo, desesperado, saiu do antro onde, desde então não mais duvidou se abrigava o negregado jesuitismo, e dirigindo-se immediatamente ao seu patrão e tutor, contou-lhe tudo quanto ouvira quando acompanhou os tios, terminando por lhe contar o que lhe succedêra n’aquelle mesmo dia, e patentear-lhe os mais vivos desejos de tirar suas irmãs d’um edificio onde se maltratavam umas alumnas sem razão, e se acariciavam outras com alguma razão.

O tutor, que tambem era um homem inimigo do obscurantismo pelas trevas espirituaes, deu-lhe authorisação para fazer o que entendesse.

O mancebo, contentissimo, correu logo a casa dos tios, participou-lhes a concessão do seu tutor, e obrigou moralmente estes, ainda que contra suas vontades, a acompanharem- no ao hospicio para tirar d’ali suas irmãs.

No dia seguinte, pois, encaminharam-se os tres unicos parentes das duas desventuradas orphãs, ao asylo d’Ajuda, e depois de lhes ser concedido estarem em contacto com as meninas, o irmão, tomando a palavra, disse a estas:

-- Tenho ordem do nosso tutor para hoje mesmo as tirar ambas d’aqui.

-- Sim!... exclamou a mais nova batendo as palmas; ainda bem, mano F***, porque cada vez me castigam mais.

E a pobre menina, com esta idéa e a de sair do centro dos seus verdugos, vieram-lhe as lagrimas aos olhos, lagrimas de tristeza pelos immerecidos máus tratos que lhe davam, e lagrimas d’alegria por saber que ia livrar-se dos seus algozes.

A mais velha, porêm, ouvindo as palavras do irmão, levantou a cabeça, coisa que poucas vezes fazia, depois que tinha a escola das irmãs de caridade, francezas, e, olhando fixamente para o irmão, disse com voz firme e resoluta:

-- Quanto a mim, não quero sair do collegio, porque vou brevemente para França com mademoiselle P***.

Os parentes ficaram estupefactos, e sobretudo o irmão, que, conhecendo então que sua irmã mais velha estava talvez completamente perdida para a boa sociedade, pelo que acabava de lhe dizer, saiu apressadamente, dizendo á irmã com voz segura e convida:

-- Sim? Pois tu dizes-me isso, E***?! Bem, continuou elle, então veremos se as leis do nosso paiz não hão de impedir que uma menina de menor idade, abandone os seus parentes para ir em companhia dos jesuitas para uma terra estrangeira.

-- Veremos quem vence! respondeu-lhe a irmã sorrindo com ironia.

O mancebo saiu desesperado e só, não esperando que seus tios o acompanhassem.

Como doido, correndo pelas ruas até chegar á redacção do liberal periodico Portuguez, contou aos redactores a tenebrosa historia de sua infeliz irmã, a vêr se por este modo poderia ainda salvar a pobre e entorpecida menina das garras dos jesuitas.

Os redactores, depois de o ouvirem e acreditarem a veracidade das palavras do afflicto mancebo, encarregaram-se de lhe advogar a causa, começando no dia seguinte a combater, n’um bem elaborado artigo, a propaganda dos lazaristas.

A este artigo responderam alguns jornaes liberaes, porêm foi tudo baldado para salvar a donzella, porque esta, com o cerebro obscurecido pelas tremendas trovas das maximas jesuiticas, depreciava já totalmente as luzes da liberdade, e nada a obrigou a renunciar aos seus deploraveis votos de irmã de caridade, persistindo em acompanhar a sua directora espiritual .

CAPITULO VII

Legados á força

A presidente da associação alliviadora das desgraças populares, recebeu um dia uma carta, na qual lhe diziam que uma desgraçada filha do povo se achava gravemente enferma.

Esta infeliz morava na rua de..., era uma senhora viuva, que vivia só, e fôra accommettida d'uma hydropisia.

A presidente dirigiu-se, pois, ao local indicado na carta, para indagar se com effeito era verdade o que n’ella lhe diziam.

De facto, a fidalga encontrou a enferma soffrendo horrivelmente.

A piedosa fidalga enviou logo no dia seguinte o seu confessor para syndicar, por meio do sigillo da confissão, se ella possuia alguns bens.

O lazarista apresentou-se, pois, em casa da enferma, e, em pessimo portuguez, resolveu a doente a confessar-se.

A pobre senhora depositou, pois, no hypocrita frade toda a confiança que uma boa e credula christã póde depositar n’um bom ministro da religião, dizendo-lhe que possuia um rendimento annual de duzentos e quarenta mil réis em inscripções, e que não tinha parentes alguns.

O masmarro, contentissimo por esta declaração, foi logo communicar á presidente quanto a enferma lhe confessára.

D'isto resultou ser a isolada viuva muito bem tratada e soccorrida pela associação aristocratica.

As irmãs de caridade, francezas, e os padres lazaristas nunca lhe abandonaram a cabeceira, e a propria presidente e mais alguns membros da piedosa associação a visitaram amiudadas vezes.

A doente peiorou, porque a enfermidade era mortal; porêm, antes de exhalar o ultimo suspiro, pediu um confessor lazarista, e leve com elle o seguinte dialogo:

-- Padre, eu posso ainda salvar-me?

-- Sim, arrependendo-se dos seus peccados.

-- E o que heide fazer para me arrepender?

-- Prometter beneficiar os ministros da religião christã, e fazer todas as obras de caridade que podér.

A boa senhora, que se achava muito afllicta com a inchação que já lhe opprimia o peito, e que era uma victima dos mysterios da religião christã, explicados pelos ministros de Jesus, resolveu-se a expoliar-se de quanto possuia para se salvar.

Oh! quanto póde o fanatismo, embutido nos espiritos fracos pelos astuciosos jesuitas!

A moribunda senhora, pois, julgando entrar no céo se fizesse o que lhe aconselhava o frade lazarista, disse- lhe, depois d’um momento de silencio meditativo:

-- Padre, se eu presentear a Igreja com as minhas inscripções, poderei achar remissão aos meus peccados?

-- Talvez; com as piedosas orações dos fieis ministros de Jesus-Christo, e algumas dezenas de missas e suffragios, póde ainda a sua alma ser admittida no seio de

Christo.

-- Muito bem, meu padre, disse a enferma, como alliviada d’um grande padecimento moral, então lego á piedosa associação que me tem soccorrido ate hoje, as minhas inscripções, as quaes vou mandar averbar em nome de tão respeitavel sociedade, e permitia Deus que por este modo eu possa alcançar o céo!

-- Oh! desse modo, não tenha duvida que Deus hade tomar-lhe em conta os beneficios que faz á sua Igreja.

Com estas e outras estudadas cantilenas foi o maldicto fradalhão extorquindo á credula e religiosa enferma todos os seus bens, e, felizmente para ella, que succumbiu á horrivel enfermidade que a apoquentava, pois de contrario, ficaria reduzida a pedir esmola de porta em porta para se alimentar e poder viver.

A infeliz falleceu, e em vez de deixar o rendimento que possuira a algum desgraçado que d’elle carecesse, legou-o á associação das aristocratas, movida pelas falsas e hypocritas palavras do frade lazarista que lhe pretendeu vender o céo por dinheiro.

Infames hypocritas! que serieis as furias infernaes, se o inferno existisse, e mercadejaes o céo por dinheiro, como qualquer mão pervertida e desnaturada mercadeja a virgindade de sua filha com os algozes da victima!

Maldictos! quando será esta raça vil e abjecta totalmente exterminada?!

Oh! esperâmos que não longe estará o dia em que os povos, acordando do seu lethargo, quando tiverem lido a Vida de Jesus, de Ernest Renan, e comprehendendo então o joguete a que se tem prestado, durante dezenove seculos, para sustentarem e serem escravisados por essa infinidade de Judas transformados em ministros da religião christã, caminharão todos para a grande revolução religiosa, decididos a vencer ou a morrer, e então acabará por uma vez a hypocrisia no mundo christão. Poderemos desde logo seguir as sublimes e simples maximas de Jesus, sem serem deturpadas e estrategicamente desentendidas pelos modernos phariseus.

Oh! grande, radiante e excelso dia, quando chegarás tu?!

Por certo não estás longe, attendendo ás manifestações d’odio que os povos demonstram pelos carcereiros intellectuaes.

Fazemos votos para que de hoje ávante o povo não dê ouvidos aos mercadores da religião vendida por enorme preço; pelo preço da escravidão physica e moral dos povos!

Se bem que os jesuitas sejam, quaes figuras de Prothêo, introduzidas na sociedade, esteja o povo precavido contra elles, e desconfie sempre, sobretudo, dos que vestem casaca e são titulares.

Continuemos.

A viuva morreu, legando á pia associação o rendimento que possuia.

Um facto identico a este teve logar n’outro domicilio.

Um chefe de familia, pequeno proprietario, adoeceu gravemente, e, vendo-se n’aquelle estado, mandou participar á presidente da associação aristocratica que carecia dos soccorros das irmãs de caridade, francezas, e dos padres lazaristas.

O pobre d’espirito havia sido educado com idéas fanaticas, e como o que o berço dá a cova o tira, vendo-se gravemente enfermo, desejava morrer, rodeiado de padres e de madres, para a alma não tomar o caminho do inferno no acto de abandonar-lhe o corpo.

Alem d’isto, o desgraçado enfermo ouvira dizer aos apologistas do lazarismo o melhor bem possivel das matronas e masmarros francezes: haviam-lh’os pintado como anjos e seraphins de doçura, bondade e caridade.

Com estas tristes idéas embutidas no craneo, é que o infeliz chefe de familia se resolveu a pedir soccorros moraes á associação alliviadora dos padecentes.

Elle não precisava de soccorros pecuniarios, porque vivia soffrivelmente com os seus pequenos rendimentos.

Assim que constou á direcção da sociedade que um enfermo, sem ser pobre, reclamava unicamente os soccorros espirituaes, pulou de contentamento, porque logo presumiu que as santas e virtuosas filhas de Vicente de Paulo, ajudadas de seus collegas, os fradalhões da escola jesuitico-lazaristica haviam de, em proveito do cofre dos soccorros, fazer com que o enfermo legasse, ou brindasse com algum donativo a piedosa associação.

Em consequencia d’estas considerações, a presidente enviou logo a casa do enfermo duas irmãs de caridade, francezas, e um padre lazarista.

O enfermo, com grande prazer, viu-se pois acompanhado do valioso triumvirato, o qual, depois de hypocritamente haver osculado um crucifixo que havia no quarto, voltou-se para o doente, e um do trio, tomando a palavra, perguntou-lhe em máu portuguez, e em tom affectadamente bondoso:

-- Então que tem vocemecê? Nós aqui estamos para o consolar.

-- Ah! meus queridos, exclamou o enfermo, fallando a custo, porque estava atacado d'um forte pleuriz; eu soffro muito, e conheço que não posso viver muito tempo. Assim, continuou elle depois d'um leve momento de descanço, desejo depositar no seio d'um padre a minha confissão geral, para vêr se assim acho mais allivio aos meus padecimentos; e como sei que Vossas Reverencias são muito bons e caridosos, desejava ser confessado por um de vós, e acompanhado nos meus ultimos momentos pelas bemfazejas e bondosas irmãs de caridade, francezas.

-- Bem, então quer confessar-se, não é assim? tornou a perguntar o padre lazarisla, que foi quem tomára a palavra.

-- Sim, meu padre, respondeu o enfermo.

Então o lazarista, voltando-se para as suas collegas, disse-lhes em francez que se retirassem d’ali.

Ellas obedeceram promptamente, saindo do quarto do enfermo, sendo recebidas na sala com immensas attenções e respeitos pela familia do dono da casa, a qual, durante a confissão d’este, se esmerou em agradar ás duas matronas, brindando-as com refrescos, bolos, etc.

O lazarista confessou o fragil chefe de familia, resultando d'esta confissão, este mandar chamar um tabellião e doar á associação das fidalgas toda a sua pequena fortuna, deixando a honrada esposa e filhos no seio da desgraça, sem coisa alguma!!

Vejam-se n’este espelho.

CAPITULO VIII

Escacez de meios

D. Thereza e Amelia, desde o dia em que receberam a libra falsa, o que causou grande transtorno á sua apoquentada vida, começaram a vêr-se em apuros por lhes não chegar o que ganhavam para supprir a enorme quantia que lhes faltára, com a qual as duas senhoras se alimentariam duas semanas.

D. Thereza teve, por esta causa, de contrahir dividas para se poder alimentar, e á orphã, sua companheira.

Um dia, pois, que José Pereira saia, a afflicta viuva, depois de o comprimentar, pediu-lhe a custo, e com acanhamento, se lhes emprestava cinco tostões.

-- Pois não, minha senhora, exclamou José Pereira mettendo a mão na algibeira e tirando a quantia pedida; se precisa mais, não se vexe, senhora D. Thereza, olhe que posso emprestar-lhe mais.

-- Não, muito agradecida, senhor Pereira, respondeu a viuva em tom de reconhecimento.

-- A menina Amelia está incommodada? perguntou José Pereira, não vendo a joven.

-- Nada! está ainda recolhida porque trabalhámos até ás tres da madrugada a vêr se acabavamos uma obra, porêm não a podêmos vencer. Foi este o motivo, continuou ella, que me obrigou a importunar o senhor Pereira; porêm fique descansado que amanhã, ou, o mais tardar, no fim do mez, assim que eu receber a minha mezada, logo lhe satisfaço.

-- Isso, minha senhora, escandalisa-me, disse José Pereira em tom desgostoso; então a senhora D. Thereza por acaso presumirá que eu desconfio da senhora? Póde embolsar-me quando podér, porque a mim não me faz falta alguma o que lhe emprestei.

E, de facto, o mancebo, poupado e economico como era, fugindo ás sociedades que arrumam os homens, tanto na saude como na algibeira, juntára uns poucos de mil réis, e como desejasse ser util á viuva e á sua querida Amelia, era a razão porque elle francamente lhes offerecia mais dinheiro.

D. Thereza, depois de pedir ao mancebo mil desculpas pelo seu atrevimento e incommodo que lhe causára, despediu-se d’elle, perguntando-lhe primeiro que horas eram.

José Pereira tirou da algibeira interior da fardela um bonito sabonete de prata, que tambem comprára com o fructo das suas economias, e depois de vêr o mostrador, disse á viuva:

-- São seis e meia, minha senhora.

-- Ih! tão cedo ainda! exclamou ella; por isso me custou tanto a levantar-me; olhe que não dormi talvez tres horas, senhor Pereira, continuou ella; porêm o cuidado em que estava por não termos dinheiro para comprar o almoço, fez-me despertar... e foi bom, porque se acordasse mais tarde, não encontrava o senhor, e teria de ir vexar-me a outra parte, e talvez ouvisse um não.

-- Olhe, minha senhora, d’hoje ávante, quando precisarem algum dinheiro, peço-lhes encarecidamente que não vão abaixar-se a alguem que depois as possa vexar; venham procurar-me, que eu espero poder sempre remedial-as.

-- Muito agradecida, senhor Pereira.

-- E agora, se me dá licença...

-- Tem hoje serviço?

-- É verdade; vou de guarda para as Necessidades.

-- Então adeus, senhor Pereira, e muito obrigada, tanto em meu nome como no de Amelia.

-- Ora, minha senhora, não me envergonhe mais. Adeus. Recommende-me á Ameliasinha.

E, dizendo estas ultimas palavras, o mancebo desceu apressadamente a escada para se livrar dos agradecimentos da reconhecida viuva.

Quando saia a escada, o mancebo ouviu chamarem, primeiro com um pst, e depois pelo seu nome.

Voltou-se e viu o sapateiro que, á porta da loja, com a sovella n’uma das mãos e com um sapato na outra, se exforçava por chamar a attenção do mancebo.

José Pereira atravessou a rua, e, chegando perto do sapateiro, este, depois de o comprimentar com a cabeça, disse-lhe:

-- Ora, salve-o Deus, meu sargento: ia com uma pressa que não o deixava ouvir nada!

-- É porque tenho hoje serviço.

-- Ah! sim? então não o quero demorar, porque lá o serviço militar está primeiro que tudo. Não sabe, continuou elle, fallando mysteriosamente para provocar curiosidade no mancebo, tenho uma grande novidade a dar-lhe. Olhe que hêde ganhar as alviçaras.

-- Vamos então a ouvir.

-- Ora o sargento ainda não sabia que o camarada do seu cornel é meu sobrinho por parte de minha mulher, e que é munto amigo do commandante e o commandante d’elle, não é verdade?

-- De certo que ignorava similhante coisa.

-- Pois antão oiça o que elle onte á noite me contou a seu respeito:

-- Sim?!

-- Sim, senhor, pois antão! Eu le conto: O cornel viu onte na sacartaria um mappa feito pelo senhor Pereira, e depois de olhar bem para elle (olhe que isto foi-me contado pelo meu sobrinho, que tambem estava na sacartaria, e elle não mente)... mas, como eu ia contando, o cornel, despois de olhar para o mappa, próguntou ó official de serviço que estava perto d’elle:

«Quem é que fez este mappa?

«Foi o segundo sargento da 5ª, respondeu o official.

«Olhe que está bem bom! não acha, capitão? tornou a dezer o cornel.

«É verdade, respondeu o capitão; este rapaz tem munta habilidade e é um bom militar; bem comportado... sem nunca faltar ó serviço...

«Bom, disse o commandante, é preciso fazel-o premeiro sargento.

«Oh! e hade ser um bom sargento de companhia, respondeu o capitão.»

-- Ora aqui está a novidade, meu sargento, continuou o sapateiro. Vê?... vai Vossa Senhoria ter o posto de premeiro, e isso já é uma patentesinha bem bonita... despois, vencendo a antiguidade, vem a banda, e já um hóme faz bonita figura.

José Pereira ficára contente com esta inesperada nova; porque, qual é o militar que não sentirá contentamento, sabendo que vai subir um posto?

No seu enthusiasmo d’alegria, metteu a mão n’algibeira e tirou cinco tostões, os quacs introduziu sorrateiramente na mão do sapateiro, dando-lh’os n’um aperto de mão.

O sapateiro, vendo a meia corôa que o mancebo lhe dava, ficou meio interdicto e confuso, dizendo-lhe:

-- Ó meu sargento, olhe que foi brincadeira o que eu le disse das alviçaras.

-- Bem sei, mestre, bem sei; porêm isso não são alviçaras... é para tomar um café.

-- Olhe, meu sargento, sabe a rezão porque eu aceito este dinheiro?... é porque tenho a minha companheira munto doente, ali n’uma cama... e tem-me feito grande testorno, cá na minha vida, ella não poder ajudar-me; e antão, este dinheirinho serve-me para passar hoje o dia e comprar uma gallinha á velhota, quando não... não aceitava.

-- Adeus, mestre, disse o mancebo commovido pelo que o pobre sapateiro lhe acabava de confessar; muito estimarei as melhoras de sua esposa.

-- Obrigado, meu sargento, obrigado.

José Pereira despediu-se do sapateiro, e caminhava apressadamente, pensando comsigo nas amarguras dos pobres pela escacez de meios, e sobretudo estando doentes, quando sentiu pucharem-lhe por um braço, e uma voz, bem sua conhecida, dizer:

-- Que pressa com que vai, senhor José Pereira!

Este voltou-se, e achou-se de frente com Gertrudes, que vinha da praça da Figueira com um moço carregado de fructa e hortaliça.

-- Adeus, senhora Gertrudes, disse-lhe o mancebo alegremente. Então anda pela rua, tao cedo!

-- Então que quer? Fui comprar fazenda.

-- Bom, muito estimo que faça bastante negocio!

-- Ora, qual!... disse a pobre rapariga com tristeza; desde que recebi aquelle dinheiro falso, desandou-me tudo. Olhe, continuou ella baixando a voz e confidencialmente, para trazer isto aqui, foi preciso ir ter com um sugeito que empresta dinheiro sobre penhores, e empenhar-lhe uma porção de roupa branca. Mas espero em Deus, que brevemente, tendo fortuna e vendendo esta fazenda toda, me poderei desempenhar.

-- Muito desejo isso, senhora Gertrudes, disse-lhe José Pereira em tom maguado; agora, continuou elle, se precisar d’algum dinheiro não torne a empenhar nada; vá ter comigo, que eu lh’o empresto.

-- Muito agradecida, senhor Pereira; olhe que é o mesmo que se aceitasse... por conhecer a boa vontade com que me faz o offerecimento.

-- Não faça ceremonia, senhora Gertrudes. E agora, accrescentou o mancebo, vou ao quartel, que já se me vai fazendo tarde.

-- Vá, vá, senhor Pereira; olhe não seja castigado?

E a gorda rapariga, apertou com força a mão que lhe estendia o mancebo, córando ao mesmo tempo e abaixando os olhos.

José Pereira apartou-se d’ella, e entrou finalmente no quartel, contente de si proprio, por conhecer o triplicado bem que fizera a tres infelizes.

CAPITULO IX

Falta de caridade

A mulher do pobre sapateiro, achava-se gravemente enferma com um furioso catharro, e estava mais perigosa do que o marido julgava quando este participou a doença a José Pereira.

A doente e o marido eram tão pobres, que uma visinha do primeiro andar, uma boa e caridosa senhora, depois de valer aos infelizes com o que lhe foi possivel, lembrou ao sapateiro, que participasse á associação das fidalgas, o estado em que se achava sua mulher.

-- Tenha a certeza, concluiu a bondosa visinha, que sua mulher hade ser soccorrida, porque me consta terem dado soccorros a outros enfermos tambem pobres.

O pobre sapateiro, esperançado com o que lhe disse a visinha, pediu ao caixeiro da tenda onde tinha credito, que lhe fizesse uma carta relatando o estado em que se achava sua mulher.

Esta carta foi pois escripta e dirigida á presidente da caridosa associação, a qual leu a carta, e só passados dois dias é que mandou uma irmã de caridade, a syndicar do estado de saude da enferma e dos haveres que possuia.

A matrona franceza apresenlou-se de sege á porta do sapateiro; o qual, vendo entrar-lhe em casa aquella mascara, ao principio não soube o que ella pretenderia; por isso, dirigindo a palavra á recem-chegada, perguntou-lhe:

-- Que pretende a senhora d’esta sua casa?

-- Sou mandada pela senhora Condessa de ***, respondeu a lazarista em máu porluguez, a vêr se ha aqui uma doente.

-- Ah! disse o sapateiro, comprehendendo finalmente o que vinha ali fazer a mascara da irmã de caridade franceza.

E, pedindo licença á matrona, foi prevenir sua mulher que se arranjasse para receber a visita, voltando logo á casa de fóra e dizendo á lazarista:

-- Queira fazer o favor de entrar, minha senhora.

E encaminhou-a para o pobre quarto da esposa.

A irmã de caridade, franceza, entrou no quarto da enferma, torcendo o nariz por vêr o estado de pobreza que a circumdava.

Demorou-se pouco tempo, depois de ter examinado tudo, e saiu dizendo ao sapateiro:

-- Tenho visto, e vou participar á senhora presidente.

O pobre sapateiro ficou desolado, vendo que a visitadora nem real lhe deixára; pois o desgraçado esperava, havia tres dias, que viessem soccorrer sua mulher, e nada tinha comido ainda n’esse dia, por não querer deixar ficar a enferma sem a panellinha de carne. O pouco dinheiro que obtivera applicou-o para o tratamento de sua mulher.

No dia seguinte, apresentou-se em casa do sapateiro um reverendo masmarro lazarista, dizendo que vinha confessar a enferma.

O pobre marido tornou a sentir esperanças, julgando que a mulher seria, emflm, soccorrida pela associação das fidalgas.

O padre lazarista foi pois introduzido no quarto da desventurada sapateira, e, assim que entrou, pediu um crucifixo.

-- Não temos, senhor padre, disse o sapateiro com tristeza.

-- Pois não teem um crucifixo!... exclamou o masmarro com indignação; então assim é que os christãos sabem amar a Deus, sem nunca o terem presente!... Eu não posso ouvir de confissão sua mulher, continuou elle, sem ella ter um crucifixo. Nós não estamos em terra de moiros. Compre uma imagem do seu Deus, e então a confessarei.

E, depois d’este virolento sermão, o hvpocrita saiu, blasphemando, de casa do triste sapateiro, que ficou outra vez desolado, por continuar no mesmo estado de penuria.

O lazarista, saindo, dirigiu-se immediatamente a casa da Condessa de ***, e communicou-lhe n’estes termos o que presenceiára em casa do infeliz sapateiro:

-- Senhore Condesse, a enferme que eu fui visitar é ume creature que não deve ser soccorride, porque creio que tanto ella como o maride son judeus, pois non teem em sua case nem um leve signal de christons. Requeri um crucifixe, non que eu non levasse o meu, porêm, para verificar as minhas dúvides, e conheci que aquella familie non tem crença.

-- Sim! exclamou a piedosa Condessa; então retirâmos-lhe a protecção que a nossa associação lhe podia dar.

-- E faz a senhore Condesse muito bem; nós devemos uniquemente valer aos nossos bons christons e a mais ninguem.

-- Diz muito bem, meu irmão, deixemos os protestantes e herejes, para unicamente valermos aos nossos irmãos em Christo.

D’este dialogo resultou ficar o desgraçado sapateiro e sua pobre mulher privados dos soccorros que a pia associação aristocratica, nos seus estatutos, estabelecêra para serem ministrados aos pobres do povo.

E digam-nos depois d’isto os apologistas do lazarismo e jesuitismo, que os liberaes fizeram mal em expellir do nosso malfadado paiz aquelle ramo de peste que nos contagiou por algum tempo, o qual pretendia enraizar no nosso liberal solo a mortifera e pestilenta planta, chamada companhia de Jesus!

Felizmente que um poderoso furacão, o symoon chamado «vontade do povo», arrojou para longe de nós aquelles negregados padres e madres, e esperâmos que o empurrão fosse tão forte que nos não tornem a perseguir mais, com receio de ficarem esmagados.

CAPITULO X

A trasmontana

D. Thereza alugára a agua-furtada ao nosso Mendonça, com arrendamento ao semestre; porêm convencionára com o gordo trasmontano, pagar-lhe aos mezes, pois as suas posses não lhe permittiam pagar um semestre por uma só vez.

Mendonça, que, apezar da sua brutalidade o falta de educação, tinha bom coração e era compassivo, annuiu á proposição da viuva, e durante dez annos, que esta habitava a agua-furtada do predio do gordo proprietario, pagára sempre pontualmente os mil e duzentos réis mensaes, que prefaziam annualmente quatorze mil e quatrocentos réis, preço por que lhe fôra arrendada a casa.

O proprietario estava pois satisfeito com a inquilina; nunca lhe levantára a renda, nem pretextára obras no predio, mandando-a despejar para depois arrendar a casa a outro, como alguns senhorios costumam fazer; finalmente viviam em perfeito accordo.

Porêm, como os leitores já sabem, D. Thereza vira-se obrigada a atrazar-se dois mezes na renda; e participando n’esses dois mezes ao procurador de Mendonça que lhe não era possivel satisfazer-lhe a renda por emquanto, o proprietario não a incommodára nem vexára para ser embolsado do seu dinheiro.

Era chegado, porêm, o terceiro mez em que a infeliz viuva se via tambem obrigada a não poder satisfazer a sua divida para com o senhorio, porque o pequeno salario que ganhavam, ella e Amelia, não lhes chegava para se alimentarem, e a mezada da viuva era para satisfazer dividas que contrahíra na mercearia, em consequencia do dinheiro falso que a ama do senhor Bispo de *** lhe mandára por bom.

D. Thereza, pois, envergonhada com o procurador do proprietario, tencionou não lhe pedir mais espera, e resolveu-se a ir ella pessoalmente fallar com o proprietario, amortisando-lhe a divida dos tres mil e seiscentos com um quartinho de que, com grandes economias, poude dispôr para esse fim.

Um dia, pois, arranjando-se e dizendo á sua companheira que não se demorava, D. Thereza dirigiu-se á calçada do Salitre, habitação do Mendonça, com tenção de contar ao senhorio o desgraçado motivo por que ainda não correspondêra á divida.

Infelizmente disseram-lhe que o dono da casa tinha saido, e que não voltaria senão perto da noite.

A infeliz senhora, que não podia esperar tanto tempo, tentou fallar á mulher de Mendonça, por lhe constar ser uma piedosa e bemfazeja senhora.

Fazendo estas reflexões de si para si, perguntou á criada se lhe era permittido fallar á senhora.

A criada deixou-a para ir perguntar á ama o que lhe propozera a viuva.

D’ahi a pouco voltou acompanhada d’uma irmã de caridade, franceza, a qual perguntou a D. Thereza:

-- Quem é a senhora, e o que pretende?

D. Thereza ficou admirada por vêr que uma estranha fazia as vezes da dona da casa; por essa razão, disse com receio:

-- Eu pretendia fallar á senhora D. Pulcheria.

-- Bem sabemos, disse a irmã de caridade em tom aspero, mas diga quem é e o que pretende.

-- Então faz favor de lhe dizer que sou a inquilina da agua-furtada do predio na rua de... e que preciso muito fallar-lhe.

-- Mas a que respeito? insistiu a irmã de caridade, a qual, sem dúvida, tinha authorisação da dona da casa, para inquerir das pessoas que a procuravam quaes eram as suas pretenções.

D. Thereza tornára a hesitar; porêm, enchendo-se de resolução, disse:

-- Venho entregar-lhe o dinheiro da renda.

-- Ah! isso agora é outra coisa, respondeu a irmã de caridade.

E abriu logo a cancella a D. Thereza, mandando-a entrar para um gabinete ricamente mobilado, porêm sem gosto ou arte alguma.

A viuva ahi esperou alguns minutos, até que appareceu a criada, e lhe disse:

-- Faz favor d’entrar para a sala?

D. Thereza levantou-se e acompanhou a criada até á sala, a qual tambem estava mobilada com máu gosto.

Todavia, existiam ali algumas preciosidades sobre uma meza de pedra; eram objeclos da India e China com que o nosso Mendonça fôra brindado.

A criada tornou a deixar só a viuva, dizendo-lhe que a senhora não tardaria.

Com effeito, d'ahi a pouco abriu-se uma porta, e a dona da casa apresentou-se na presença de D. Thereza, que immediatamente se levantou para a receber.

D. Pulcheria correspondeu com signaes de pouca importancia aos comprimentos da viuva, assentando-se n’um sophá depois de se haver mirado a um espelho immenso que havia na sala.

A mulher do trasmontano, desde que entrára para a associação das fidalgas, e que tinha em sua casa irmãs de caridade, havia mudado completamente de caracter; antigamente não era presumida nem affectada, nunca estivera diante do espelho, penteando-se, mais que meia hora; porêm, desde certo tempo para cá, passava tres e quatro horas consultando o vidro do toucador e arrebicando-se com tão pouco gosto e esmero, que parecia uma taboleta de ourives, pela quantidado de anneis, cordões e pulseiras que trazia, succedendo o mesmo com o vestuario, pois tinha as maiores similhanças com um emblema de droguista, pela profusão e variedade de côres que usava ao mesmo tempo, começando pelo carmim com que coloria as faces.

Finalmente, para em tudo estar completamente transformada (excepto nos ademanes e educação), a severa matrona condescendêra, a rogos d’uma irmã de caridade que se mostrava muito amiga de sua filha, em consentir que a donzella deixasse os papelotes e o fato curto antes da idade estipulada por D. Pulcheria, que era, como já dissemos aos leitores, quando sua filha completasse os dezoito annos.

De modo, que a joven D. Filomena Maria da Conceição Mendonça estava o que se póde chamar uma circumspecta e reservada aristocrata, pondo nas faces cold-cream, por vêr sua mãe fazer o mesmo, conservando-se quatro horas ao espelho para imitar sua mãe, e encerrada n’um quarto com a sua amiga irmã de caridade, franceza, duas horas por dia, isto tambem para em tudo imitar sua mãe, que quotidianamente se fechava n’um quarto com a sua perceptora irmã de caridade.

D’isto tudo resultou: primeiro, a donzella desdenhar de quantos homens se lhe apresentavam fazendo-lhe a côrte; ella preferia a companhia da sua amiga ás doçuras do matrimonio; e segundo, o nosso Mendonça queixar-se de sua mulher, dizendo alto e bom som que ella, havia algum tempo, lhe mostrava uma frieza de pedra fugindo sempre de estar a sós com elle.

Quando alguma vez o pobre trasmontano lhe queria tributar alguma assalvajada meiguice, que ella outr’ora tanto apreciava, e ás quaes retribuia com tanto ardor, respondia-lhe seccamente e em tom de severidade:

-- Era melhor que o senhor se entregasse mais a adorar a Deus e abandonasse as idéas mundanas!

O pacovio ficava de boca aberta com estas admoestações rispidas da mulher, e se tentava invadir os seus direitos, figurando entender que a esposa gracejava, esta então, tomando os louvaveis usos da provincia, desembaraçava-se do seu contendor, pregando-lhe seu valente murro, beliscão, e mesmo pontapé.

Depois d’esta valente resistencia, entrincheirava-se no seu quarto, onde a esperava a irmã de caridade, a qual lhe proporcionava deliciosos extasis religiosos, os quaes deleitavam suavemente a nossa trasmontana.

O mesmo caso se dava com sua filha: a amiga intima da donzella, encerrada duas horas por dia no quarto d’esta, viam ambas o céo entreabrir-se para as receber; tal era a fé e fervor com que resavam!

D. Pulcheria, pois, como diziamos, assentou-se n’um sophá, levando a grosseria a ponto de não mandar tambem assentar a inquilina.

-- Antão que quer vocemecé de mim? perguntou a trasmontana a D. Thereza, que se conservava em pé.

-- Eu, minha senhora, respondeu a viuva com acanhamento, sou a inquilina da agua-furtada do predio do senhor Mendonça...

-- Já sei isso, respondeu grosseiramente D. Pulcheria, interrompendo a humilde costureira.

-- E vinha trazer a Vossa Excellencia um quartinho da renda do mez...

-- Ora não ha! exclamou a transmontana em tom aspero; e para uma porcaria d’essas vem você incommodar-me e interromper-me nos meus affazeres! Eu julguei, continuou ella, que era alguma quantia que merecesse a pena receber-se, mas isso!

-- Eu, minha senhora, como sou pobre, replicou D. Thereza tristemente, aluguei a casinha aos mezes, e então vinha trazer o quartinho para abater nos tres mil e seiscentos que devo, e ao mesmo tempo pedir mil desculpas ao senhor Mendonça por ainda não ter satisfeito...

-- Ah! você deve tres quartinhos! disse a trasmontana cada vez com voz mais aspera. Antão passe para cá o tal quartinho depressa.

D. Thereza tirou immediatamente o dinheiro que levava na algibeira, embrulhado n um papel, e deu-o á trasmontana, dizendo-lhe ao mesmo tempo com voz submissa e respeitosa:

-- Eu devo ainda mais dois mezes, é verdade, porêm espero poder pagal-os d’aqui a pouco tempo.

-- Nada, nada, respondeu desabridamente a trasmontana depois de, com todo o descaramento, ter verificado o dinheiro, moeda por moeda, tocando-o no chão; póde pôr escriptos quanto antes, porque não me convem na casa caloteiros e pobretões. Ora o pacovio do meu hóme, continuou ella, sorrindo ironicamente, como se deixou embalar com cantigas!

E, acabando de proferir estas grosseiras palavras, que deixaram a decente costureira confusa e vexada, saiu assalvajada e brutalmente da sala.

A pobre senhora viu-se, pois, obrigada a sair só, porque nem a criada ao menos a encaminhou até á porta.

Chegou a casa afflictissima, e, caindo n’uma cadeira, disse a Amelia, que estava muito assustada, por vêr a sua amiga n’aquelle estado:

-- Vamos pôr escriptos, Amelia, porque assim m’o ordenou a esposa do nosso senhorio.

-- Mas, minha amiga, disse Amelia aterrada só com a idéa de se separar de José Pereira, agora não é tempo de nos mudarmos.

-- Não sei o que havemos de fazer, continuou D. Thereza com as lagrimas nos olhos. Quem me havia dizer que uma senhora tão piedosa, como constava que era D. Pulcheria, teria a crueldade de pôr na rua uma inquilina que nunca lhe deveu renda alguma!

-- Descance, minha amiga, disse Amelia abraçando ternamente a sua honrada companheira, que eu darei remedio a isso. Não nos mudâmos, deixe estar.

-- Então qual é o seu projecto, Amelia?

-- É um segredo, respondeu maliciosamente a donzella.

CAPITULO XI

Projectos transtornados

Amelia, quando dizia á sua amiga que não se mudavam, tinha razões fortes para assim o dizer.

José Pereira, que subira ao posto de primeiro sargento, como lhe havia assegurado o seu visinho sapateiro, tinha tido diversas entrevistas com a donzella, e na ultima disse-lhe positivamente que estava disposto a pedil-a, para esposa, a D. Thereza.

Amelia, exultando d’alegria ao ouvir tão bellas e deleitosas palavras, respondeu ao mancebo, com um tremor nervoso, devido á alegria e surpreza que experimentava:

-- Pois o senhor quer ligar-se a uma desgraçada orphã que nada possue, a não ser honradez e alguma habilidade?!

-- Acredita, minha querida Amelia, que para dois entes serem felizes não carecem de ser ricos: é sufficiente possuirem o necessario para viverem e, ainda mais do que tudo, amarem-se deveras. Se tu me amas verdadeiramente como eu te amo, continuou elle, nada receies a respeito do nosso futuro.

-- Oh! meu querido, exclamou Amelia com amargura, pois duvidas do meu amor!?

-- Não, Ameliasinha, disse José Pereira, e tu verás, dentro em pouco, a prova do contrario.

Dizendo isto, os dois jovens separaram-se por ser já muito tarde.

Isto passára-se dois dias antes de D. Thereza ir a casa da devota trasmontana.

Por isso Amelia dizia á sua companheira que não se mudariam, porque confiava em que José Pereira não consentiria em separa r-se d’ella.

Na mesma noite, pois, do dia em que D. Thereza procurára a trasmontana, Amelia que, quando José Pereira não tinha serviço, conversava da sua janella com o mancebo até alta noite, contou-lhe o que era passado entre sua amiga e a mulher do proprietario.

José Pereira, depois de ouvir a sua querida Amelia, e folgar de contentamento por lhe poder ser util, assim como á honesta D. Thereza, disse, rindo ironicamente de lastima pela miseria da trasmontana:

-- Fica descançada, minha Ameliasinha, que não te mudarás nem a tua amiga, emquanto nos não unirmos e tu quizeres habitar ahi.

-- Muito t’o agradeço, querido José, exclamou Amelia com o rosto radiante de jubilo. Que alegria me fazes sentir, continuou ella, com o que acabas de me dizer!... Não pódes fazer idéa do estado em que chegou a casa a minha querida amiga... não quiz jantar, e levou toda a tarde a gemer e a chorar, por se vêr obrigada ao vexame de se mudar antes de tempo por não poder ainda pagar dois mezes, depois de morar aqui ha dez annos e nunca dever coisa alguma ao senhorio.

-- Mas, que miseravel proprietario esse, exclamou José Pereira, que, por lhe dever uma bagatella, manda pôr escriptos a inquilina mais antiga!... Acabando este semestre, mudo-me d’aqui.

-- Tambem nós, disse Amelia; não gosto nada d’esta casa e cada vez gósto menos da rua. Foi aqui que morreu minha querida mãe, continuou a donzella com voz sentida, e ainda hontem vi o enterro da visinha ali defronte.

-- Morreu alguem na rua? perguntou José Pereira, o qual, como quasi nunca estava em casa, nada ou quasi nada sabia da visinhança.

-- Morreu a mulher do nosso visinho sapateiro, coitadinha! Era tão pobre que foi na tumba da Misericordia! O pobre marido chorava que fazia dó, e dizia a todos, como doido, que a maior pena que tinha era de não poder fazer um enterro decente á sua companheira, tão sua amiga e que tanto o ajudava.

-- Oh! que desgostos soffre a pobreza!... exclamou José Pereira, Iembrando-se de todo o seu passado e avaliando por si proprio a duplicada magua do pobre sapateiro.

E ficou mudo e taciturno depois de soltar esta exclamação.

Amelia, que o viu calado e triste, perguntou-lhe:

-- Que tens, meu José?

-- Nada, respondeu o mancebo, saindo das suas meditações; estava pensando nas desgraças d’este mundo.

-- E eu é que fui a culpada d’isso, replicou a donzella recriminando-se a si propria, porque fui fallar-te em coisas tristes... Porêm, continuou elia, pensemos n’alguma coisa alegre; sim, meu querido?

-- Tens razão, minha Amelia, fallemos do nosso futuro de felicidade. Então, proseguiu o mancebo, quando determinas que falle com a tua amiga a respeito da nossa união?

-- Quando determinares, meu querido, balbuciou a joven com ingenuo acanhamento.

-- Bem; então, depois d’ámanbã irei tratar d’isso, porque estou de folga, e dentro d’um mez estaremos casados.

-- Sim?... exclamou Amelia com a maior alegria, por vêr tão proximo o que tanto desejava. Ai! meu Deus! continuou ella sem saber o que dizia, já sei que não pregarei olho estas duas noites!

José Pereira não poude deixar de rir ao ouvir esta ingenua phrase da candida donzella.

Amelia, vexada com o riso do mancebo, conhecendo que dissera uma inconveniencia, tomou por pretexto, para se retirar, a hora avançada da noite, despediu-se do mancebo, o qual tambem se despediu da sua futura esposa com todos os signaes do mais terno e verdadeiro amor.

No dia seguinte, José Pereira assim que saiu, dirigiu-se immediatamente á loja do sapateiro e, como estava fechada, bateu.

Depois de haver batido tres ou quatro vezes sem ninguem lhe responder, admirado e resolvido a retirar-se, ia fazel-o quando ouviu uma voz debilitada perguntar de dentro da casa:

-- Quem é?

-- Sou eu, mestre... é o sargento seu visinho, respondeu José Pereira.

Depois de se annunciar, poz o ouvido á escuta ao buraco da fechadura e ouviu um leve rumor, como de quem saltava ao chão de sobre alguma coisa, e quasi no mesmo momento abriu-se a porta.

O mancebo entrou e achou-se frente a frente com um cadaver quasi nu.

Era o infeliz viuvo, que, com voz quasi extincta, pediu desculpa ao mancebo de lhe apparccer n’aquelle estado.

O desgraçado, vendo morrer sua mulher, depois de ter vendido e empenhado todo o seu fato para valer á esposa durante a sua enfermidade, resolveu seguir a mulher, por não ter nenhum recurso nem para se alimentar nem para poder trabalhar para isso.

O que fez, pois? Vendo sair o corpo da defuncta no carro da Misericordia, o desgraçado ficára tão afflicto e desesperado, que fechou a porta, e resolveu-se a morrer á mingua na mesma cama onde fallecêra sua mulher.

Por consequencia deitou-se.

Havia perto de quarenta e oito horas que o desgraçado nada comia por nada ter.

A fome e os desgostos trouxeram-lhe uma especie de entorpecimento aos membros que o fazia gozar algum allivio aos seus pezares.

Quando José Pereira bateu, estava elle dormitando emquanto não entrava no somno da morte, sendo esta a razão por que não respondeu logo ao mancebo.

Alguns visinhos, tinham-lhe já batido á porta; porêm o infeliz de proposito não respondêra, por estar resolvido a deixar-se morrer ao abandono.

Porêm, acordando á segunda argolada que o mancebo lhe dera na porta, poz-se a escutar, e, vendo a pertinacia de quem batia, teve repentinamente um presentimeento; e como sympathisava com José Pereira, resolveu-se a perguntar quem era, decidido a não abrir a porta, não sendo quem presumia.

Felizmente não se enganou.

Como dissemos, José Pereira entrou e ficou assombrado, vendo as cadavericas feições do visinho.

-- Antão já está premeiro sargento, disse o sapateiro com a voz apenas intelligivel, porêm tentando sorrir-se para o mancebo ao vêr-lhe as quatro divisas.

-- É verdade, mestre; porêm agora não tratemos de mim.

-- De quem quer antão o meu sargento cuidar?

-- Do visinho.

-- De mim?! respondeu o velho com as lagrimas nos olhos; e para quê?... Morreu-me a companheira, que me ajudava, e agora eu... o que me resta n’este mundo, senão morrer tambem?... Deixe-me morrer, meu sargento, que é o que mais desejo.

E o desgraçado levantou-se cambaleando com a deblidade, e dispunha-se a despedir o mancebo para continuar o seu projecto até o haver concluido; porêm o exforço de fallar tanto, os desgostos e a extrema debilidade, esgotaram-lhe completamente as forças, caindo sem sentidos nos braços de José Pereira, que correu a amparal-o para evitar maior desgraça.

O mancebo, vendo o desventurado ancião n’aquelle estado, e conhecendo que por si só não podia valer-lhe, chamou a vendedeira de fructa; e Gertrudes, que ouviu chamarem-na, correu immediatamente, assim como a visinha do primeiro andar do predio onde morava o sapateiro.

As duas mulheres ajudaram-no a levar para a cama, e ali lhe ministraram os soccorros caseiros que se costumam applicar n’estas occasiões, taes como banho aos pés de agua quente e mostarda, etc.

O caso é que o sapateiro brevemente tornou a si, e, vendo-se entre tanta gente, mesmo estranha que passava, perguntou onde estava e o que pretendiam d’elle.

O infeliz, saindo do desmaio, por um momento não soube de si.

N’este momento, porêm, entrou José Pereira com um moço carregado de provisões.

Vendo-o, lembrou-se então o sapateiro do que lhe succedêra estando a fallar com o mancebo, e, com um sorriso nos labios e estendendo a mão a José Pereira, exclamou:

-- Oh! meu querido sargento e amigo, se a minha pobre companheira tivesse sido soccorrida como eu o vou ser, de certo não morreria ella... E a quem devo eu isto tudo? continuou elle; é ao meu amigo sargento!

-- Scio... não falle mais, que lhe póde fazer mal, disse José Pereira; o meu amigo está muito fraco...

-- Nada, para elogiar um amigo nunca estarei fraco. Se eu tivesse contado ao meu sargento a desgraça em que se achava minha mulher, na cama, doente... e eu sem ter um real... aposto que não me teria ella morrido!... Mas, eu fui metter-mr com a sociedade das fidalgas. .. e ellas mangaram comigo, e desprezaram minha companheira por ser pobre!

E o desgraçado sapateiro começou a soluçar e a derramar ardentes lagrimas.

N’este momento, uma visinha trouxe uma tigella de caldo; e José Pereira, pegando-lhe e agradecendo á piedosa mulher, obrigou o sapateiro a beber metade do liquido, primeiro remedio para salvar o infeliz.

As pessoas que presenceavam aquella triste scena, conhecendo que o peior mal do desgraçado sapateiro era nada ler, quotisaram-se unanimemente, resultando apurarem para o pobre velho mil e quinhentos réis, que, com dez tostões que José Pereira lhe ajuntou, já era uma quantia para o ajudar a viver.

A boa Gertrudes, encarregou-se de cuidar n’elle por aquelles dias, assim como a visinha do primeiro andar; e José Pereira, tranquillisado a respeito da sorte do sapateiro, despediu-se d’elle e de todas as pessoas que o rodeavam.

-- Adeus, meu sargento, disse o sapateiro no tom mais alto que lhe permittiu a fraqueza, assentando-se na cama; queira o céo que seja sempre tão feliz como deseja vêr felizes os que soffrem!

José Pereira, saiu vexado com estas demonstrações de reconhecimento, por julgal-as immerecidas só pelo simples facto de haver praticado uma obra de caridade.

As almas nobres, sempre lhes custa que as elogiem quando praticam alguma boa acção.

Quando o mancebo saiu, Gertrudes não poude conter-se que não exclamasse:

-- Não é rapaz, e um anjo!

Agora comparem os leitores a protecção aos pobres do povo ministrada pela piedosa associação das aristocratas, com aquella prestada pelo mesmo povo aos seus irmãos do trabalho.

A associação das fidalgas deixou morrer á mingua a mulher do sapateiro, porque um infame jesuita entendeu que a desgraçada não devia ser soccorrida, por não pertencer á sua maldicta seita; o povo evitou, sem para isso ser rogado, que o desventurado marido da victima succumbisse á miséria e á dôr.

Gloria pois ao povo!

Eterna vergonha ás devotas tingidas, dominadas pelos jesuitas!

José Pereira, dirigiu-se ao quartel, e ficou aterrado quando soube que o seu regimento marchava no dia seguinte para a ilha da Madeira.

Esta ordem, intempestiva e repentina, vinha destruir completamente os projectos do mancebo, a respeito de Amelia.

Oh! quanto daria elle n’essa occasião para passar de corpo! elle, que outr’ora, antes de conhecer Amelia e depois de sair do Limoeiro, escolhêra o regimento de que fazia parte, por lhe constar que ia destacado para a Madeira!

Como os successos na vida do homem o fazem alternativamente mudar de sentimento!

CAPITULO XII

Partida

O mancebo chegou pois a casa, desolado e sem saber como daria esta triste nova á sua querida Amelia.

As visinhas, assim que o sentiram abrir a porta, como não o esperavam ainda, ficaram admiradas de o vêr chegar tão cedo.

Por este motivo, e para lhe darem os parabens pela boa acção que elle praticára de manhã, foram bater-lhe á porta.

O mancebo abriu machinalmente, por estar absorto em profundas meditações.

As visinhas entraram sem ceremonia, com a confiança de pessoas que vivem no melhor accôrdo e que se estimam deveras.

D. Thereza, depois de comprimentar o mancebo, exclamou:

-- Olhe que praticou esta manhã uma acção... que muito honra o seu bello caracter e excellentes qualidades, senhor Pereira!

-- Como o soube a senhora D. Thereza? perguntou o mancebo sempre distrahido.

-- Ora! por toda a visinhança!

-- É verdade, accrescentou Amelia, em toda a rua se tem fallado a esse respeito.

-- Isso é vexarem-me, minhas senhoras, porque eu não fiz mais que o dever que todo o bom socialista impõe a si de cumprir: o de valer ao seu similhante quando o vê afflicto.

E, depois de proferir esta sentença philosophica, o mancebo recaiu em tal tristeza, que as duas senhoras, desconhecendo-o, não poderam deixar de lhe perguntar com inquietação:

-- Tem alguma coisa, senhor Pereira?!

-- Ah! minhas senhoras, acabo de soffrer uma terrivel decepção!

-- Sim?!... exclamaram com anciedade as duas senhoras.

-- É verdade...

E voltando-se para Amelia, disse-lhe a custo:

-- Amelia, tenha animo no que vai ouvir, porque sei que me ama... Sim, continuou elle, dirigindo-se a D. Thereza; creio que a senhora não ignora que eu e Amelia já ha muito nos amâmos... não é assim?

-- De certo que não; e tenho muito gosto em saber isso.

-- Ai! muito afflicta estou eu com o que o senhor principiou a dizer-me! exclamou Amelia assentando-se n’uma cadeira e empallidecendo excessivamente.

D. Thereza correu logo a ella; e José Pereira, reconhecendo quanto mal fizera á sua querida, em vez de a animar, disse-lhe, pegando-lhe carinhosamente nas mãos:

-- Socegue, Amelia... o mal não é tão grande como talvez pensa... por minha culpa. O caso é o seguinte: Ámanhã devo partir com o regimento para a ilha da Madeira, onde vamos estacionar um anno!

-- Oh! meu Deus! exclamou Amelia, cobrindo o rosto com as mãos.

E a pobre menina começou a soluçar e a derramar abundantes lagrimas.

D. Thereza quiz animal-a; porêm, ella propria se achava em extremo commovida.

José Pereira, aproximando-se então das duas senhoras, que estavam abraçadas e ambas choravam, e pegando-lhes nas mãos, disse com voz solemne:

-- Senhora D. Thereza, concede-me a mão d'Amelia?

-- Oh! senhor Pareira, da melhor vontade... respondeu a viuva; se fôr do agrado d’ella.

-- Ouves, Amelia? continuou José Pereira, dirigindo-se á donzella. Queres ser minha esposa?

-- É esse o meu maior desejo, respondeu a interrogada, banhada em lagrimas.

-- Bem, proseguiu José Pereira; então, já que não póde ser daqui a um mez, como tencionava, será d’aqui a um anno a nossa união. Promettes-me, minha querida, amar-me sempre, e esperar por mim até terminar o tempo do meu destacamento?

-- Juro pela alma de minha mãe... disse Amelia com a voz entrecortada pelo choro, que nunca deixarei de amar o homem... por quem daria a vida e...

E, sem lhe importar a presença de D. Thereza, a joven levantou-se rapidamente e abraçou o mancebo com a maior effusão e ardor, achando se não superior, pelo menos igual retribuição da parte de José Pereira.

Os choros, juramentos e despedidas, seriam infindos, se D. Thereza, como prudente, não recordasse ao mancebo, que tinha a fazer innumeros arranjos para a sua tão proxima partida.

José Pereira attendeu á justa e util rellexão da honesta viuva, e todos tres começaram a emmalar a roupa.

O mancebo, instou com as duas senhoras para que o deixassem, elle só, e fossem trabalhar para sua casa; porêm, todos os rogos a similhante respeito foram baldados.

O. Thereza e Amelia não descançaram emquanto não viram prompta a bagagem do mancebo.

N’essa noite, José Pereira, durante o seu dialogo da janella, com a sua querida Amelia, enviou-lhe na ponta d’uma cana um papel embrulhado.

A donzella abriu-o, e ficou admirada, vendo dentro do papel uma libra.

-- Para que é isto? perguntou ella.

-- Para pagar ao avarento do senhorio, disse José Pereira. D’ora ávante, quando precisarem d’algum dinheiro, não se vexem de m’o participar.

E os dois jovens continuaram conversando, até que o despontar da aurora lhes annunciou que se deviam separa r.

Oh! quanto lhes custou esta separação!!

No dia seguinte, José Pereira, depois de dolorosamente se despedir das suas visinhas fronteiras, de Gertrudes e do sapateiro, que se ia restabelecendo, dirigiu-se apressadamente ao quartel, por se aproximar a hora em que devia embarcar o regimento.

Quasi todos os moradores da rua chegaram ás janellas para o verem partir.

Amelia, D. Thereza e Gertrudes, tinham os olhos vermelhos.

O sapateiro, quando o mancebo se despediu d’elle, dizendo-lhe para onde ia, disse-lhe, meneiando a cabeça em signal de descontentamento:

-- Ah! meu amigo e senhor sargento, eu bem lhe dizia que aquella casa era munto infeliz!

E, depois do mancebo o deixar, o supersticioso sapateiro disse, quasi a chorar, á visinha do primeiro andar:

-- Vai de certo morrer no mar! coitadinho!... Aquella maldicta casa.

FIM DO PRIMEIRO VOLUME

OS MISERAVEIS

DA

ARISTOCRACIA

ROMANCE SOCIAL CONTEMPORANEO

POR

A. VARELA

VOLUME II

LISBOA

Escriptorio da Sociedade Editora

38, rua dos Gallegos, 38

QUINTA PARTE

O COMENDADOR F***

CAPITULO I

Um esboço biographico

Os leitores devem estar lembrados do Commendador F***, d’aquelle homem alto, magro e verdenegro, que já tivemos a honra de lhes apresentar, no baile do Visconde de ***.

Pois este sugeito, era filho natural d’um grumete, que era criado do capitão-tenente da armada portugueza, o senhor Dom A***.

Este senhor D. A*** era fidalgo, como os leitores podem presumir pelo dom, e casado com uma senhora tambem filha de fidalgo.

A esposa do senhor D. A*** enamorou-se pois do criado do marido, apaixonando-se de tal fórma pelo grumete, o qual na verdade era um bonito rapaz, que o resultado d’este forte e intenso amor foi nascer o nosso heroe.

O pobre D. A*** viu-se pois obrigado a comer gato por lebre, quando, ao chegar d'uma viagem á Africa, lhe foi apresentado como filho o descendente do grumete, seu criado.

O credulo capitão-tenente, exultando de alegria, por ser este o primeiro filho que a esposa lhe dava, abraçou e beijou a creança, chegando a derramar sobre as faces do pequeno, lagrimas de ternura e commoção.

A creança, á proporção que crescia, mostrava uma tal aversão ao pae, que, quando este lhe fazia festas e caricias, o pequeno empurrava-o com as mãosinhas, chegando até a arranhar o rosto do fidalgo para se vêr livre d’elle.

Assim que soube fallar, chegou até a dar escandalo, o que não era tomado em conta pela maioria das pessoas da amizade do capitão-tenente, porêm observado por algumas más línguas, as quaes nunca podem deixar de murmurar da coisa mais simples, com tanto que lhe descubram um lado critico.

Um dia, pois, já então o pequeno fallava, e tinha tres annos; em uma reunião familiar, pelo motivo da ausencia do dono da casa, que ia fazer uma proxima viagem, a esposa do nosso fidalgote apresentava descaradamente a todas as suas amizades o fructo do adulterio, perguntando a todos os convidados:

-- Não acham que é uma creança muito atilada e espirituosa?

Já se vê que, ainda que conhecessem o contrario, todos lhe respondiam affirmativamente; porque, ha coisas n’este mundo, que só se podem pensar, e não dizer senão em contrario da nossa opinião.

-- Querem vêr uma gracinha d’elle? disse a mãe a umas suas intimas amigas; então esperem.

E chamando o pequeno, que andava correndo e saltando pela casa, arranhando a esteira e pizando os convidados, pegou-lhe ao collo e, aproximando-se do marido, disse ao filho:

-- Dá um beijnho em teu papá; anda, meu querido menino.

O pequeno, ouvindo isto, fez uma careta, estendeu as mãos como para empurrar o capilão-tenente, e disse gritando e quasi chorando:

-- Eu não quéo dá beijos n’aquelle homem, poque elle não é meu papá. Não góto nada d’elle, poque é muito feio.

Estas palavras do pequeno produziram na sala grande hilaridade.

Ali se confundiram gargalhadas de critica, com risos de lastima, de admiração e d'escarneo.

O pae do pequeno riu com os convidados, porêm não deu gargalhadas das que nós classificámos.

Riu de gosto.

A esposa, essa riu cinica ou aristocraticamente, que é quasi a mesma coisa.

-- Então de quem gostas tu? proseguiu a fidalga, depois de se tranquillisarem os espiritos, beijando ao mesmo tempo seu filho.

-- Da maman... respondeu o pequeno, fazendo reticencias por malícia, e encarando a mãe a rir com prematura maldade.

-- E de quem mais?

-- Do Fanchico.

-- E quem é o Francisco?

-- É o meu papá, replicou o pequeno rindo muito e batendo com as mãos nas faces da mãe.

Novas gargalhadas resoaram na sala.

Alguem se lembrou então de perguntar á dona da casa, ou por malicia ou por inconsiderada curiosidade:

-- Então, quem é esse Francisco a quem o menino chama seu pae?

A dona da casa fez ouvidos de mercador a esta pergunta, vendo-se obrigado o marido a satisfazel-a.

-- O Francisco, disse elle, é o meu criado; um grumete que sempre está a dar bolos e bonecos a meu filho, de modo que o pequeno, que está mais habituado a vêl-o do que a mim, que pouco tempo estou em casa, acostumou-se a chamar-lhe papá, e, emquanto não tiver uso de razão e discernimento, creio que continuará assim... Meu pae, proseguiu o capitão-tenente, aconseIhou-me que o castigasse quando elle dissesse o que acabaram d’ouvir; porêm, é ainda muito pequenino... e depois, elle não é o culpado d'isso... quem o habituou a dizer taes coisas foi a mãe, que lhe achou muita graça desde a primeira vez...

-- E verdade, sim, respondeu com audacia e acrimonia a esposa do fidalgote; fui eu... e então que tem isto de máu?... Seu pae tambem, continuou ella em tom de desprezo, é um barbaro em o aconselhar a bater no meu querido filho, que é tão bonito!

E, dizendo estas palavras, abraçou com força o pequeno, beijando-o tambem fervorosamente.

N’este momento appareceu á porta da sala o criado do capitão-tenente, que vinha dar um recado urgente a seu amo, da parte do commandante do navio d’onde o nosso D. A*** era immediato.

O pequeno, assim que lobrigou o grumete, começou a espinotear no collo da mãe, e a dizer raivosamente:

-- Quéo i ó collo do papá... quéo dá beijinhos no meu papásinho!

E, vendo-se livre da mãe, a qual se viu obrigada a pôl-o no chão, correu pela sala fóra e desappareceu atraz do grumete, que saíra tambem depois de dar o recado a seu amo.

O rapaz foi crescendo, e cada vez mostrava mais antipathia pelo capitão-tenente.

Felizmente para o pobre fidalgo, não lhe deu desgostos por muito tempo, porque o capitão-tenente morreu em uma das viagens que fez á Africa, das febres que infestam aquella parte da Terra.

Tinha então o rapaz doze annos.

O grumete, que n’esse tempo já era primeiro marinheiro, isto devido ao defuncto amo, que era muito amigo d’elle, regressou a Lisboa e foi elle mesmo o portador da noticia do fallecimento de D. A***.

A viuva pouco sentiu com a noticia, pois que tinha para se consolar o homem a quem amava, ou, por outras palavras, o homem com quem gosava materialmente, porque ella era materialista e não amava ninguem.

Francisco, vendo o filho já crescido, manifestou á mãe o desejo de o levar comsigo, como escrevente do navio, porque o rapaz, ainda que mal, por ser tapado d’intelligencia como uma porta, escrevia, lia, e sabia as quatro operações arithmeticas, tudo materialmente e á força tde palmatoadas.

A mãe, que queria estar em liberdade, annuiu de bom grado á propozição do marinlieiro, e perguntou a seu filho se queria ir viajar.

O rapaz, que tinha um caracter aventureiro, respondeu á mãe affirmativamente.

Em vista d’esta resposta, ficou justo que o filho acompanharia o pae ao Brazil, que era para onde o navio do rei fazia viagem.

D’ahi a um mez, eil-os á vela por esse Oceano fóra; e dentro de tres, chegados á capital do imperio do Brazil, que n’esse tempo era a California de Portugal, por ainda a America do Sul não estar independente e desligada de nós.

O marinheiro chegou, pois, com o filho ao Rio de Janeiro, e, conhecendo que o rapaz podia ali fazer fortuna, tratou de o arranjar como caixeiro d’uma casa de commercio, cujo dono era portuguez, porêm casado com uma Africana, da qual tinha uma filha mulata.

O nosso Commendador entrou pois, como caixeiro, na casa de commercio, depois de lhe ser dada a baixa, que o marinheiro requereu ao commandante do navio, e o qual, attendendo a que o rapaz era filho d'um defuncto capitão-tenente, resolveu-se, para honra da firma e da classe, a ceder aos rogos do verdadeiro pae.

O navio demorou-se tres mezes no porto do Rio do Janeiro, e nesses tres mezes todos os dias o marinheiro ia saber noticias de seu filho.

O patrão do rapaz estava contente com o seu novo caixeiro, porque, dizia elle, era muito esperto para o negocio e já dava lucro ao patrão, no pouco tempo de pratica que tinha de commercio.

O marinheiro exultava de alegria quando ouvia contar estas proezas do filho.

Um dia, segundo o habitual costume, foi visitar o rapaz; porêm ia triste, porque o navio seguia viagem para a India, no dia seguinte.

Despediu-se do filho, abraçando-o e beijando-o commovido, chegando-lhe as lagrimas aos olhos, e dizendo-lhe laconicamente:

-- Nunca deixes de ser honrado e amigo de teu patrão. Um hóme, sendo honrado e amigo do seu amigo, navega a todo o panno e por todo o mundo.

E saiu repentinamente do armazem, para occultar duas grossas lagrimas que lhe caiam dos olhos.

O rapaz, que tinha a compleição da mãe, pouco sentiu a separação do que elle não ignorava ser seu pae.

A filha do negociante portuguez, viu um dia o filho do marinheiro e ficou logo apaixonada por elle, porque o rapaz tinha então, n’aquelle tempo, os seus dezeseis annos; era rosado, claro e loução; alem d’isto estava gordo, o que tudo fazia com que, aos olhos d’uma calida mulatinha, elle parecesse encantador.

O rapaz, vendo-a, nada sympathisou com ella.

A mulata, porêm, conhecendo, ou antes não conhecendo a indifferença do caixeirinho de seu pae pela sua pissoa, cada vez sentia mais amor pelo sinhor moço.

Um dia pois, era um domingo, esperou a occasião em que o caixeiro ia passeiar, para o mandar chamar por uma escrava.

O rapaz ficou admirado de ser mandado chamar pela filha do patrão. Todavia seguiu a escrava, a qual se encaminhou para uma igreja, e, chegando ao largo da mesma, disse ao caixeiro:

-- Espere agora um pouquinho o sinhor moço.

Este, ficou interdicto e acanhado, por ser esta a primeira vez que fallava a sós com a filha do patrão.

A mulatinha, porêm, depois de o comprimentar, affoitamente e sem mais ceremonias, disse-lhe que sentia no peito grande amor por elle, e que, se fosse correspondida, punha ao seu dispor a sua mão e uma fortuna de sessenta contos em plantações, fazenda, dinheiro e escravos.

O rapaz ficou aturdido com tão repentina o emprevista declaração. Porêm abriu muito os olhos quando ouviu fallar em sessenta contos; porque elle, como dizia o patrão, tinha a bossa do negocio. Todavia, conheceu que haveria grandes embaraços da parte do patrão para dar a filha a um simples caixeiro.

Isto ponderou elle á mulatinha, a qual lhe respondeu, tão cega d’amor estava pelo rapaz:

-- Que m’imporla qui meu pae consinta ou não?!... como eu já sou maior, posso emancipar-mi quando quizer.

-- Sendo assim... disse o nosso futuro commendador.

-- Bem, atalhou a mulatinha, então vá amanhã pidir-mi a meu pae.

-- Amanhã já! exclamou o rapaz.

-- Pois então, hade ser pr'o fim do mundo?! disse a mulatinha, fictando os baços e amarellados olhos nos do rapaz, com ridicula ternura, e como querendo fascinal-o, dando-lhe ao mesmo tempo uma amorosa pancadinha nas faces com a ventarola que trazia na mão. Quando a gente sente palpitar o coração, continuou ella, não o deve deixar palpitar por muito tempo; é priciso allivial- o:

O mancebo, pois, á vista do que via e ouvia, a seu respeito, pela boca da filha do patrão, resolveu-se, não sem alguma repugnancia, a ir pedil-a no dia seguinte.

O rapaz recebeu um «não» redondo, quando lhe fez tal proposta. Alem d'isso, o patrão disse-lhe que se pozesse na rua, para não continuar a nutrir taes idéas.

O nosso heroe, ficando desapontado com a recusa, foi logo participal-a á mulatinha, a qual, ouvindo o que lhe dizia o mancebo, sorriu-se, dizendo ao mesmo tempo:

-- Ah! sim!... pois então, como é isso, nem mesmo quero puchar pelos meus direitos. Esta noite, continuou ella, baixando a voz, espere-me ás onze horas na minha chácara, que eu ahi estarei. Adeus, meu minino, até logo.

E, dizendo estas palavras, abraçou-o e deu-lhe tres ardentes beijos.

O mancebo saiu d’ali cheirando furiosamente a catinga, e foi esperar, impaciente, as onze horas, para a chácara do patrão.

Ainda não tinha soado a hora fixada pela joven pallida, quando elle sentiu na escuridão um tropel de cavallos ao longe.

A bulha das ferraduras foi-se aproximando, até que ouviu uma voz bem sua conhecida, bradar:

-- Estás ahi, meu quirido?

Elle correu para o sitio d’onde partia a voz, que não era outra senão a da mulatinha, e viu-a montada n’uma mula, trazendo em sua companhia a escrava que elle já conhecia, e um outro escravo, que era o confidente da minina.

-- Monte depressa, meu quirido, e vamos a fugir, disse-lhe a joven com impaciencia.

E, dirigindo-se ao escravo, disse:

-- Lulú, apeia-te e ajuda a montar o sinhor moço.

Lulú apeiou-se, e o nosso heroe montou a cavallo, ajudado pelo preto, que lhe pegou no estribo.

-- Agora vem para ao pé de mim, e dá-me a tua mãosinha, continuou ella, depois de o vêr montado.

E, depois de lhe ter dado um furioso aperto de mão, disse para os dois escravos:

-- Toca a marchar.

A caravana marchou, guiada pelo escravo confidente da mulata.

II

Como se faz fortuna

(em conclusão ao capitulo antecedente)

A apaixonada mestiça, vendo que o pae não consentia na sua união com o mancebo, a quem ella freneticamente amava, e sabendo que mediava ainda muito tempo antes da sua emancipação, para gozar as doçuras do amor, resolveu fugir de casa, e para isso convocou os dois escravos, seus affeiçoados, trazendo comsigo uma boa porção de joias, suas, e de sua mãe, e ainda maior quantidade de peças, que tirou ao pae.

Aconselhados pelo escravo, depois de se haverem afastado da capital, os quatro transfugas, cavalgando toda a noite, caminharam na direcção do Pará, aonde o nosso heroe, com o dinheiro da mulata, começou a negociar na escravatura preta e branca.

A mulata, depois de haver saciado os seus desejos com o mancebo, do que resultou dar á luz a joveu pallida, que os leitores já conhecem tambem de casa do Visconde de ***, não cessava de dizer ao nosso espertalhão que a recebesse á face do altar, ao que elle lhe respondia:

-- Descança, menina, que assim que eu tenha consolidado os meus negocios, logo satisfaço o teu pedido. Por ora não, porque ainda não tenho o meu futuro firme.

A joven, como o amava deveras, sacrificava a sua vontade ao amor; e depois, ainda que pretendesse obrigal-o, não podia, porque toda a sua fortuna estava nas mãos d'elle.

O nosso homem foi, de dia para dia, e de anno para anno, augmentando o negocio da escravatura, de modo que, passados dez annos, era possuidor d’uma colossal fortuna.

Vendo-se rico, o nosso negociante de carne humana procurou o melhor meio de se desfazer da mulher a quem devia tudo, e achou um excellente.

Comprou um escravo para que, a uma hora combinada, entrasse no quarto aonde estava a mulata e se lhe lançasse aos pés e lhe beijasse as mãos.

O escravo, com esperanças na promessa de oito peças, que o seu senhor lhe fizera, deu perfeitamente conta do recado.

Na occasião, porêm, em que estava de joelhos diante da senhora, beijando-lhe as mãos, sem ser repellido por esta, porque a bondosa mulata julgou que elle lhe queria pedir perdão por algum crime que praticára, e estivesse condemnado pelo senhor; n’este momento, a porta abre-se, e o nosso homem, apparecendo com um azorrague na mão, exclamou em ar de triumpho, dirigindo-se á sua protectora:

-- Bem me tinham dito que a senhora era uma perfida!

E, acabando de proferir estas palavras, começou encarniçadamente a azorragar o escravo o a mulher que se expatriára por sua causa, e que fizera a sua fortuna.

O escravo, espantado com o que lhe succedia, fugiu pela porta que ficára aberta, morrendo envenenado pouco depois com um charuto que lhe déra o senhor, e a infeliz mulata, espantada, muda, e sem nada comprehender, foi azorragada sem dó nem consciencia pelo seu algoz, resultando-lhe d’aqui a morte pouco tempo depois.

A desgraçada estava gravida, e o malvado deu-lhe com ancia sobro o ventre, de modo que, depois do a entregar ás leis do imperio, como sua escrava desobediente, a desventurada morreu na prizão, no acto do nascimento d’uma criança morta.

O tratante liquidou a fortuna, e veio pouco depois para Lisboa, trazendo comsigo a joven trigueira, sua predilecta, e deixando escravisados no Pará cinco filhos que ficaram orphãos por morte de sua mãe.

Chegado á capital, não quiz saber, nem de mãe nem de pessoa alguma, tratando unicamente de comprar uma commenda, o que conseguiu sem muito exforço, porque lhe custou cara.

Um dia, era já então commendador, chegou-se a elle um ancião em muletas, por ter soffrido a amputação d’uma perna, e, tirando respeitosamente um chapéo encerado, e que demonstrava ser de marinheiro, pediu-lhe esmola.

-- Não posso, respondeu o Commendador com modo aspero.

E, vendo que o mendigo lhe embargára a passagem, não podendo afastar-se depressa, por ser aleijado, disse-lhe desabridamente, empurrando o ancião com repugnancia:

-- Ora, que esta canalha hade apoquentar-nos constantemente!

E continuou a andar, deixando o desgraçado mendigo, sem ao menos lhe dar dez réis.

O infeliz coixo era o pae do nosso Commendador, que, sendo já velho, e de mais a mais, tendo caido d’uma gavea, partira uma perna e ficára inhabilitado do serviço, e reduzido a pedir esmola.

A mãe apaixonára-se, na ausencia de Francisco, por um porta-machado da guarda municipal, o qual, levando baixa, foi viver com a aristocrata para a Covilhã, sua terra natal; morrendo, pois, rendeira d’uma quinta, vendendo uvas e melancia; e o marinheiro, mutilado, n’uma enfermaria do hospital de S. José.

Eis, pois, o Commendador F *** sem ascendentes, tendo em sua companhia só um dos descendentes, porque os outros eram escravos no Pará.

Foi n’esta epocha que o apresentámos aos nossos leitores, em casa do Visconde de ***, classificando de «rapaziadas» as miserias e baixezas praticadas pelo Visconde.

CAPITULO III

O escriptorio

No começo do anno de 1855, epocha a que chegámos, da nossa historia, havia no terceiro andar d’um predio, na baixa, uma cancella onde se lia n’um rotulo de papel, pregado na mesma, escripto em bastardo maiusculo: -- ESCRIPTORIO.

Quem empurrasse a cancella para entrar, ouvia logo um carrilhão de campainhas, cujo ruidoso som seria capaz de accordar quem estivesse entorpecido com o opio ou chloro-formio.

Depois de aberta a cancella, deparava-se com um corredor que conduzia a uma casa em fórma do quadrilongo, onde havia uma secretária, meia duzia de cadeiras e uma estante com alguns livros, que de utilidade alguma serviam ao proprietario do escriptorio para auxilio commercial, porque eram romances e jornaes encadernados.

Á secretária estava assentado um individuo, indiffinivel em tudo: em idade e em feições.

Este homem tinha uns oculos azues, de quatro vidros, que lhe occultavam totalmente os olhos. Alem d'isso, um barrete preto cobria-lhe completamente a cabeça, até lhe tapar as orelhas e a testa, e, uma barba, cerrada, grisalha, á lusitana, lhe occultava o resto da physionomia.

Este sugeito folheava attentamente um caderno de papel cheio de algarismos, fazendo de vez em quando uma careta, ou por não se recordar do que desejava achar, ou por encontrar coisas que não desejava vêr.

Depois de minuciosa revista pelo caderno, sem duvida, cançado e aborrecido de estar mudamente a luctar com os algarismos, metteu o livro n’uma gaveta da secretária, e esfregando as mãos, por causa do frio proprio da estação invernosa, pois era em janeiro, bocejando d’enfado, disse por entre dentes:

-- Demonio! não apparece hoje ninguem.

Depois, talvez para vencer o somno que lentamente o invadia, levantou-se e começou a passeiar em toda a extensão do escriptorio, murmurando, sempre por entre dentes:

-- Safa, que frio está hoje!

Quem entrasse n’aquella occasião, veria um homem alto, magro, que, pela firmeza do andar, mostrava ter menos idade que a que apresentava na physionomia, por causa da enorme barba quasi branca, os oculos azues, e o barrete enterrado até ás orelhas.

Estava vestido de preto, e de casaca, por haver tirado um immenso sobretudo d’inverno, o qual estava, dobrado, nas costas d’uma cadeira.

Alem d’isto, tinha por calçado umas botas rotas nos lados, por tambem haver descalçado umas galochas de borracha, as quaes se viam por debaixo da cadeira onde estava o sobretudo, tendo por proximo companheiro um enorme chapéo de chuva com panno de seda e varetas de barba de balêa.

O individuo mysterioso continuava a passeiar agitadamente, sempre murmurando e fazendo gestos de descontentamento, quando de repente ouviu o carrilhão da cancella, o qual fazia estrondosamente a obrigação que lhe impunham.

O nosso homem, ouvindo o troante som das campainhas, curvou-se immediatamente, encaminhando-se para a cadeira d’onde se levantára.

Depois, assentando-se, puchando o barrete mais para baixo das orelhas, conchegando os oculos no nariz, e puchando pelas barbas, como para as estender mais, esperou que apparecesse quem empurrára a cancella.

Emquanto esperava, tirou da algibeira um relogio de ouro, e, vendo que os ponteiros marcavam perto de duas horas da tarde, tornou a murmurar, satisfatoriamente:

-- Até que finalmente! Já era tempo!

N’esta occasião ouviu passos no corredor, e duas vozes, que se confundiam, fallando alternadamente.

Quasi no mesmo momento entraram dois homens na casa quadrilonga onde estava a secretária e o escrevente ou proprietario do escriptorio.

CAPITULO IV

O rebatedor

Os dois recem-chegados entraram no escriptorio, e um d’elles, que era nem mais nem menos do que o nosso bem conhecido Conselheiro M***, chegou-se ao pé do sugeito vestido do preto, e estendendo-lhe a mão, disse-lhe ao mesmo tempo:

-- Então, como passa o meu amigo e senhor Rodrigues?

-- Vamos indo, respondeu o interrogado, em voz entre o falsete e o natural, distinctivo d’um homem encatharroado, ou que contrafaz a sua voz natural.

-- Faz muito frio, não acha? continuou o Conselheiro.

-- É um facto, respondeu a custo o senhor Rodrigues, sempre com a mesma voz.

Depois, abrindo uma grande caixa de tartaruga, offereceu ao Conselheiro e ao desconhecido, os quaes recusaram, dizendo que não tomavam.

O sugeito que acompanhava o Conselheiro, era homem de quarenta annos, de trajo decente, porêm bem se conhecia, observando-lhe o estado de deterioração em que trazia o fato, que fôra de bom panno outr’ora, porêm que no presente estava reduzido quasi ao fio, que era, ou um extravagante, ou então um homem apoquentado pela falta de haveres.

Para os leitores, que o não conhecem, diremos que o devem considerar no segundo caso.

Era um desgraçado amanuense do primeira classe, casado e carregado de filhos, o qual se via na horrivel necessidade de constantemente rebater o ordenado, facto este que cada vez o fazia mais necessitado, porêm a que o infeliz não podia subtrahir-se, por causa da urgencia de dinheiro para alimentar, vestir e pagar casa a sua numerosa familia.

-- Então, que pretende Vossa Excellencia de mim? perguntou o homem de preto.

-- Trago aqui este amigo e collega, respondeu o Conselheiro, indigitando o amanuense, para contratar um negocio com o senhor Rodrigues.

-- Ah! sim? disse o dono da casa, fictando atravez dos oculos, tanto o Conselheiro como o desconhecido. Então, continuou elle depois d’este exame, dirá o que pretende d’este seu criado.

O Conselheiro, voltando-se então para o amigo e collega, disse-lhe:

-- Senhor Moreira, póde propôr o seu negocio ali ao senhor Rodrigues.

Então, o pobre amanuense, levantando-se e aproximando-se da secretária, propoz ao homem de preto, se queria rebater-lhe dois mezes d’ordenado.

-- Talvez se faça o negocio, respondeu este pausadamente, sorvendo com indolencia uma pitada.

-- Póde fazel-o afoitamente, senhor Rodrigues, interrompeu o Conselheiro, porque o senhor Moreira é pessoa capaz, e por quem eu me responsabiliso.

-- Á vista, pois, do que Vossa Excellencia mo diz, replicou o dono da casa, não duvido ultimar o negocio com o seu afilhado.

E tornou a fictar o Conselheiro, fazendo-lhe um signal particular d’intelligencia, o qual foi correspondido satisfatoriamente.

-- Então, disse o amanuense, sempre de pé e dirigindo-se ao dono da casa, desejava sabor quanto me leva de premio pelos dois mezes.

-- Que mezes são? perguntou o dono da casa.

-- São abril e maio, respondeu o amanuense.

-- Ah! então já negociou o fevereiro e março?

-- É verdade.

-- Coitado, elle tem familia, disse o Conselheiro hypocritamente, e então, apezar de estarmos em janeiro, viu-se obrigado a rebater o fevereiro e março.

-- Bem, bem, respondeu o dono da casa, sorvendo outra pitada.

-- Desejava então saber, repetiu com vago receio o amanuense, quanto me descontará.

-- Olhe, meu charo, respondeu o dono da casa, bem vê que, como tenho de esperar ainda quatro mezes para embolsar o meu dinheiro, e ha viver e morrer, eu, a maior equidade que lhe posso fazer, é levar-lhe pelo abril a vinte, e pelo maio a quarenta por conto; menos d’isto, não posso.

-- Oh! senhor, exclamou o infeliz empregado publico, angustiado, isso é um juro enorme!

-- Então, que quer, meu charo senhor? disse o dono da casa levantando os hombros e abaixando a cabeça jesuiticamente, eu não obrigo ninguem a fazer negocio comigo, e portanto parece-me que não póde arguir-me...

-- Ora, mas o senhor podia fazer isso mais em conta; bem vê que os pagamentos andam em dia e que o tempo passa depressa...

-- Nada, nada, nada, disse apressadamente o dono da casa; se lhe convem, é o menos por que lhe posso fazer o negocio.

Dizendo isto, puchou pelo relogio, e como demonstrando que estava com pressa de se retirar, exclamou, dirigindo-se ao Conselheiro:

-- São já duas e meia! é tarde a valer!

E como se considerasse o negocio proposto pelo amanuense, de nenhuma importancia para si, continuou a conversar com o Conselheiro sobre assumpto muito diverso.

O infeliz amanuense estava em talas, por vêr que não ultimava o nogocio e ter necessidade de dinheiro. Por isso, pondo de parte todos os prejuizos de que ia ser victima, e dirigindo-se ao dono da casa, disse-lhe:

-- Pois, senhor Rodrigues, estou resolvido a rebater.

-- Ah! então sempre quer fazer o negocio? disse o homem negro com affectada indifferença, sob a qual se conhecia o contentamento simulado de que estava possuido.

-- Já agora, disse o amanuense, escuso andar a procurar mais rebatedores; o senhor Conselheiro M***, continuou elle, affiançou-me que o senhor Rodrigues era pessoa conscienciosa...

-- E é verdade que assim o penso, respondeu o Conselheiro, esfregando as mãos ao mesmo tempo, com frio e contentamento por vêr ultimado o negocio; quando o senhor Rodrigues lhe não descontasse por tres, não encontraria o senhor quem lhe descontasse senão por tres e meio.

-- Eu agradeço ao senhor Conselheiro a boa opinião que faz de mim, disse o dono da casa comprimentando o Conselheiro M***.

Depois, voltando-se para o amanuense, continuou:

-- Então, o senhor Moreira traz os recibos?

-- Elles aqui estão, e já assignados, respondeu o amanuense.

-- Assignados!?...

E o dono da casa, ao soltar esta palavra, fez uma careta pouco satisfatoria para o pobre empregado publico, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Seria melhor que o senhor tivesse assignado á minha vista...

-- Então o senhor desconfia de mim?! disse o honrado amanuense um tanto offendido.

-- Não, não desconfio... porêm, como não o conheço, é que...

-- Ah! eu respondo, atalhou o Conselheiro, o qual via que o negocio tomava nova face e podia não se ultimar.

E, pegando nos dois recibos que Moreira tinha na mão, depois de os examinar, continuou, mostrando-os ao dono da casa:

-- É a assignatura d’aquelle senhor.

-- Bem, disse o homem negro.

Depois, pegando nos recibos ao mesmo tempo que fazia a conta ao dinheiro que devia dar, e ao que empolgaria, perguntou ao amanuense:

-- Quem é o seu tabellião?

-- É o Sampayo.

-- Bem.

E, tirando da gaveta da secretária um maço de notas, entregou ao amanuense a importancia dos dois mezes, com o desconto de quasi metade.

O desgraçado pegou no dinheiro em papel, e tirando uma nota, apresentou-a ao Conselheiro, dizendo-lhe:

-- Aqui tem Vossa Excellencia o que eu lhe devia.

O Conselheiro pegou avidamente na nota, perguntando ao amanuense:

-- De quanto é?

-- De moeda.

-- Ah! então devo-lhe tres tostões, não é isso?

-- Mas não se incommode, que depois me dará o troco.

-- Bem, então fallaremos.

E, como para despedir o amanuense, estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Então, adeus, senhor Moreira?

O amanuense, que tambem estava com pressa de se retirar, estimou bastante o ensejo que se lhe offerecia, para se despedir do Conselheiro e do rebatedor, e saiu do escriptorio.

CAPITULO V

Que dois!

O Conselheiro, ficando só com o senhor Rodrigues, assim que ouviu cessar o som do carrilhão da porta do escriptorio, o que significava que podiam estar á sua vontade, soltou uma estridente gargalhada, exclamando ao mesmo tempo:

-- Ora, o Commendador F***, como está bem caracterisado!... Palavra de honra, que ninguem era capaz de o conhecer, ainda mesmo...

-- Scio! atalhou rapidamente o individuo dos oculos azues, barbas postiças e barrete preto, pondo um dedo na boca em signal de silencio.

Depois, fallando baixo, porêm com intimativa, disse ao Conselheiro com voz concentrada pela raiva:

-- Vossa Excellencia não vê que me compromette?!

-- Como! se estamos sós!?... perguntou o Conselheiro admirado.

-- Qual sós! póde estar alguem a escutar-nos e...

-- É verdade, tem razão... respondeu o Conselheiro, que, como os leitores não ignoram, fazia sempre as coisas inconsideradamente; confesso que não me lembrava de tal!

-- Que vexames não soffreria eu, replicou o individuo de preto, que os leitores já sabem ser o nosso Commendador F***, se viessem a descobrir quem eu sou!... É necessario ser mais circumspecto, senhor Conselheiro!

-- Diz bem, diz bem.

E, depois d’um momento do silencio de parte a parte, o Conselheiro continuou:

-- Então, que me diz ao bello negocio que lhe metti em casa, amigo Commendador?... D’estes apparecem poucos, hein?

-- Não sei como Vossa Excellencia não aproveitou a occasião e não lhe rebateu, disse o Commendador fictando o Conselheiro; podia lucrar o premio por inteiro, e assim...

-- Não me convinha... cá por coisas... respondeu o Conselheiro.

-- Poderei saber quaes são essas coisas?

-- Em primeiro logar, porque pareceria mal eu, na minha posição, rebater a um subalterno o seu ordenado... e depois, como elle é um grande pobretão, que está sempre a incommodar todos com pedidos de emprestimos de dinheiro, se eu lhe rebatesse, estaria sempre a apoquentar-me, e eu, que não quero apoquentações, nem dinheiro emprestado por mãos alheias, foi a razão por que o encaminhei para o amigo, preferindo ganhar metade do premio a ganhal-o todo para depois perder alguns pintos, que tanto me teem custado a ganhar. Não viu, elle pagar-me uma libra que me devia?... Pois seguramente tinha-m’a pedido ha dois mezes.

-- Bom, disse o Commendador, tranquillisado, depois de ouvir as razões que o seu collega acabava de apresentar, em referencia ao amanuense.

-- Então, Vossa Excellencia deve-me?... perguntou o Conselheiro, depois d’um momento de silencio.

-- A conta é facil de fazer, respondeu o Commendador; quarenta por cento do ordenado d’um mez, e vinte do outro... Póde Vossa Excellencia mesmo fazer a conta, continuou elle, apresentando papel e penna ao Conselheiro.

-- Nada, nada, disse este recusando o que lhe apresentava o collega, Vossa Excellencia, que é grande arithmetico, de certo não se engana n’uma conta tão simples.

-- Bello, disse o Commendador puchando outra vez pelo relogio.

Depois, vendo que já eram mais de tres horas, levantando-se, disse ao Conselheiro:

-- São horas de me retirar, não acha?

-- Sim... disse o Conselheiro hesitando; porêm, antes d’isso, não seria bom dividir comigo o importe do rebate que acaba de ultimar?

-- Ora essa!... respondeu o Commendador, rindo da mesquinhez e desconfiança do Conselheiro; então Vossa Excellencia desconfia de mim, que adiantei os meus cabedaes ao seu afilhado, sob o risco do não me embolsar d’elles, por algum caso imprevisto, e exige de mim metade do ganho que eu ainda não ganhei?!... Deixe passar o tempo, homem, e então fallaremos.

O Conselheiro, ficando desconcertado com a força de logica d’este argumento, respondeu atrapalhadamente:

-- É verdade, senhor Commendador, tem razão... eu pensava que era o negocio dos penhores, no qual se podem dividir immediatamente os lucros, por termos a segurança na nossa mão!... Não faça caso, que eu não soube o que disse.

O Commendador entendeu que não merecia a pena responder-lhe, porque, vestindo o sobretudo, calçando as galochas e pondo o chapéo, pegou no guarda-chuva e encaminhou-se para a porta da escada.

O Conselheiro seguiu-o em silencio, meio vexado pelo ridiculo em que incorrêra perante o seu collega.

O Commendador, depois de fechar a porta do escriptorio e descer dois lances de escada, tirou o chapéo e, com rapida ligeireza de mãos, arrancou a barba e o barrete, que formavam uma só peça, assim como os oculos, mettendo estes objectos dentro do chapéo. De modo que, se alguem o visse agora, por certo não o reconheceria como dono do escriptorio do terceiro andar; tão desfigurado o tornavam as barbas, oculos e barrete.

Alem d'isso, desencurvando-se, apresentava agora mais altura, sendo por isso impossivel reconhecer o Commendador quando estava caracterisado; e do mesmo modo, o senhor Rodrigues, depois de largar a caracterisação.

O Conselheiro, vendo esta mutação á vista, não poude deixar de dizer em voz alta, rindo:

-- Muito bem, Commendador; agora ninguem o conhecerá.

-- Cale essa boca, com um milhão de demonios! disse o Commendador, em voz baixa, porêm colerica. Irra! que é estupido!

Esta ultima phrase foi dita quasi imperceptivelmente, tanto que o Conselheiro não a ouviu.

Depois d’isto o Commendador apressou o passo, sem duvida para, quanto antes, se vêr livre do Conselheiro, porque, apenas chegaram á rua, despediu-se rapidamente do collega e seguiu caminho.

O Conselheiro, ficando só, pensou comsigo:

-- Ora, que eu heide sempre fazer asneiras!... O Commendador vai de certo zangado comigo.

E, pensando d’este modo, caminhou tambem para sua casa.

CAPITULO VI

Explicações necessarias

Depois de havermos apresentado aos nossos leitores, o seu antigo conhecido Commendador F***, transformado, moral e physicamente, em vil agiota, commetteriamos uma lacuna, não lhes explicando o motivo por que um homem rico e em elevada posição aristocratica, baixára, ainda que a occultas, a ser rebatedor usurario.

O nosso Commendador, com as relações do Visconde de ***, adquirira um novo vicio, que elle emquanlo estivera no Brazil nunca conhecêra.

Como os leitores viram uma vez, na primeira parte d’esta obra, o Commendador deixava-so constantemente depennar ao jogo, nas salas do Visconde de ***, sempre dominado pelas ambiciosas idéas de accumular maior fortuna do que aquella que possuia; porêm os prestidigitadores, amigos do Visconde, sempre lhe limpavam as algibeiras, succedendo até uma vez, como os leitores de certo se recordarão, que lhe esgotaram o seu dinheiro bom e lhe impingiram o d’elles, falso.

Como diziamos, o Commendador, de dia para dia mais aferrado ao terrivel vicio que tem arruinado milhões de familias ricas, tornára-se um perdulario ao jogo: quanto mais perdia mais forte jogava, a vêr se recuperava o perdido.

Baldados porêm eram os exforços do avarento aristocrata, porque diminuia successivamente a fortuna, e arruinava-se pouco a pouco.

Um dia, pois, verificando arithmeticamente o que possuia, conheceu que tinha dissipado metade da sua fortuna ao jogo.

Desesperado ao ultimo ponto, jurou, a si proprio, que nunca mais jogaria, e que d’esse dia em diante trabalharia para recuperar o dinheiro perdido, fosse como fosse.

Bem desejava elle que houvesse escravatura em Portugal, para dentro em breve tornar a haver o que tão estupidamente perdêra.

Ainda uma vez tentou engajar, para o Rio de Janeiro, tres desgraçados mancebos; porêm, a policia teve conhecimento d’este facto, e custou-lhe cara a tentativa, para não ficar desacreditado aos olhos do publico.

O que fez pois? O seguinte:

Procurou o Conselheiro M***, por conhecer que tambem era um grande avarento, e propoz-lhe se queria, em sociedade com elle, estabelecer um escriptorio de agencia commercial, nome com que se encobrem todos os covis de fraudo e rapina financeira.

O Conselheiro, sem comprehender o que lhe propunha o Commendador, abriu muito os olhos e respondeu:

-- Em sociedade?! Porêm, como havemos nós de fazer isso?... Bem vê que nos não convem que conste...

-- Deixe isso por minha conta, disse o Commendador ao Conselheiro; se Vossa Excellencia quer annuir, e entrar com a sua parte pecuniaria n’este negocio, asseguro-lhe um lucro pelo menos de quarenta por cento. Bem sabe que o dinheiro ganha dinheiro, e eu podia com o que tenho ganhar metade; porêm Vossa Excellencia hade conhecer que tenho boa vontade no que quero emprehender, e pretendo dar-lhe lucro, lucrando tambem eu mais, pois de contrario começava a negociar só.

O Conselheiro, aturdido com o discurso do Commendador, e pelo qual se lhe affigurou que já ganhava, sem trabalho algum, quarenta por cento, empatando unicamente algum dinheiro, annuiu de boamente á proposta do collega, entrando com quantia igual á que o Commendador promptificava para os descontos.

Com effeito, o Commendador alugou o terceiro andar que já apresentámos aos leitores, arranjou a caracterisaçao, que tambem já conhecem, e começou a negociar incognitamente, sob o nome de F. Rodrigues, dando ao Conselheiro os quarenta por cento de lucros, que lhe promettêra.

Alem d’isto, para ganhar por duas vias, destinou uma porção de dinheiro para emprestar sobre penhores, tambem em sociedade com o Conselheiro.

Alugou para este fim outra casa, na Rua Nova da Palma, na qual o encontravam, tambem caracterisado, das quatro horas por diante.

Das nove da manhã até ás tres, era cambista, e das quatro ás nove da noite, emprestava dinheiro sobre penhores.

CAPITULO VII

O prégo

Gertrudes, a nossa antiga conhecida, criada do Conselheiro M***, a quem deixámos luctando com a adversidade, depois que recebêra o dinheiro falso, para poder sustentar o seu pequeno commercio de fructas e hortaliça, teve, como os leitores viram, de empenhar uma porção da sua roupa, fundada em que venderia a fructa que comprára e recuperaria o perdido, podendo logo desempenhar-se.

Foram porêm baldadas as esperanças da pobre rapariga, porque, em vez de vender toda a fructa e hortaliça que comprára, parte d’ella apodreceu, e a infeliz logareja ainda ficou em peiores circumstancias.

Apoquentada e triste por tão infeliz acontecimento, a desventurada teve outra vez que recorrer ao prégo, resolvendo-se a empenhar umas argolas e um cordão de ouro, unicos bens que possuia, para poder continuar o seu negocio.

Então, bastantes vezes ella se lembrou de José Pereira, o qual se offerecêra para lhe emprestar dinheiro; porém, o mancebo partira para a Madeira, e por isso era impossivel poder a rapariga utilisar-se do seu offerecimento.

Um dia, pois, de manhã, dirigiu-se á Rua Nova da Palma, a uma casa onde empenhára a roupa, levando comsigo o cordão e as argolas para lhes dar o mesmo destino.

Quem lhe descobriu este prégo, foi uma vendedeira de fructa na Praça da Figueira, a qual, em occasiões de apuro, costumava tambem lá ir empenhar objectos seus.

Gertrudes, como diziamos, bateu inutilmente á porta do prégo, porque ninguem lh’a abriu.

Finalmente, depois de muito bater, ouviu uma voz que lhe dizia da agua-furtada:

-- Ahi não está ninguem, senão das quatro horas da tarde em diante.

Gertrudes agradeceu á caritativa creatura o favor que lhe fizera, e saiu, cada vez mais apoquentada, por vêr que n’esse dia já não podia governar a sua vida.

Esperou pela tarde, e quando eram quatro horas encaminhou-se outra vez para o prégo.

Bateu á porta, e d’esta vez logo uma voz rouquenha, que o bom observador poderia classificar de forçada, mas que vulgarmente passaria por natural, perguntou do interior da casa:

-- Quem está ahi?

-- Uma sua criada, meu senhor.

-- O que pretende?

-- Venho empenhar umas coisas...

A porta abriu-se repentinamente, e Gertrudes entrou.

Nós pedimos licença aos leitores, para tambem os fazer entrar no escriptorio do prégo.

Era uma casa de tamanho regular, extremamente velha, tendo o tecto todo manchado, o que denotava chover-lhe. Alem d’isso, as paredes estavam horrivelmente sujas.

A sala, se lhe dermos este nome, tinha por mobilia quatro cadeiras velhas, uma meza onde havia papeis e um tinteiro, e algumas prateleiras cheias de fardos, uns pequenos, outros volumosos, tendo todos pregados rotulos de papel com datas e numeração.

Quando Gertrudes entrou, um homem, coxeando da perna direita por esta ser mais curta do que a esquerda, a encaminhou para a sala.

Este homem, seria alto na sua juventude, pois que na idade que representava ter (sessenta annos), ainda conservava alta estatura, se bem que um tanto curvada.

Não tinha o braço esquerdo, o que denotava haver soffrido a amputação do mesmo.

Alem d’isto usava oculos verdes, de quatro vidros.

Uma cabelleira loira e semi-grisalha, e uma ampla suissa branca, completava a physionomia do dono do prégo.

O seu vestuario compunha-se d'uma calça preta rafada, d’um enorme colete que lhe cobria a barriga, e d’uma grande sobrecasaca de feitio antigo, com immensa gola e mangas estreitas.

-- Então vocemecê já sabia que aqui se empresta dinheiro sobre penhores? perguntou o dono da casa com a mesma voz rouca, coxeando ao mesmo tempo, e aproximando-se d'uma cadeira que havia perto da meza, na qual se assentou.

-- É verdade, e tanto que já cá vim uma vez, respondeu Gertrudes.

-- Sim?! disso o mutilado, fictando, atravez dos seus oculos verdes, a physionomia da rapariga. E então quem lhe ensinou esta casa? continuou elle depois de lhe examinar bem o rosto.

-- Foi a F. da Praça.

-- Ah! bem sei, disse o dono do estabelecimento, tranquillisando-se de todo; então vocemecê conhece-a?

-- É minha fregueza de hortaliça e fructa.

-- Bom, então que pretende de mim?

-- Desejava que o senhor me emprestasse sobre este cordão e estas argolas, duas libras.

-- Deixe vêr, disse o nosso homem sem se levantar.

Gertrudes aproximou-se-lhe e entregou-lhe o cordão e as argolas.

O maneta tirou, com a mão direita, de dentro duma gaveta da meza, umas balanças portateis, e depois de pezar o cordão e as argolas, disse, torcendo o nariz como quem não está contente:

-- Hum!... Isto tudo pouco mais vale do que a menina quer d’emprestimo.

-- Ora essa!... exclamou Gertrudes admirada. Pois eu dei, só pelo cordão, dezoito mil e tantos réis, e pelas argolas vinte e cinco tostões, e o senhor diz-me similhante coisa!...

O dono da casa tornou a fictar Gertrudes, e disse-lhe com voz pausada:

-- O ourives de certo a enganou, menina.

Tudo isto era falso, porque o cordão realmente tinha de pezo quasi dezeseis mil réis; porêm, o usurario desejava emprestar unicamente a terça parte do valor de qualquer objecto, para, no caso de o não irem buscar, ganhar duzentos por cento, fóra o desconto d’um mez, que fazia quando emprestava o dinheiro.

-- Não é possivel dar tanto dinheiro sobre estes objectos, continuou elle, olhando sempre para Gertrudes, a vêr o effeito que produziriam na rapariga as suas palavras desanimadoras.

-- Pois, tambem menos não me convem, respondeu esta levantando-se.

O homem, vendo que o negocio podia escapar-lhe das garras, tornou a fictar Gertrudes, perguntando-lhe ao mesmo tempo:

-- A menina não me disse ainda agora, que tinha cá alguns objectos empenhados? Diga-me lá o que é, porque, como vem aqui muita gente, eu não tenho idéa alguma sua.

-- São seis lençóes, seis toalhas de linho, e duas cobertas de cama, de chila franceza, de ramagens verdes.

-- Ah! já sei, disse o nosso homem como recordando-se.

Depois, passado um momento, continuou:

-- E quando tenciona vir buscar isso?

-- Tão depressa possa.

-- Olhe que já cá está tudo ha perto de seis mezes... e bem sabe que o tempo corre, e no fim d’um anno...

-- Se Deus quizer, heide tirar a minha roupa antes d’esse tempo.

-- Está bom, proseguiu o dono da casa, visto já ser conhecida e ter cá objectos, sempre emprestarei os nove mil réis.

E abrindo uma pequena gaveta, tirou d’ella diversas moedas, dando á rapariga uma libra, e o resto, depois do primeiro desconto, em prata.

Gertrudes, vendo isto, disse ao nosso homem:

-- Mas... eu precisava as duas libras todas, para fazer uma compra... O senhor depois tirará o juro.

-- Nada, lá isso, não; respondeu o dono da casa, abanando com a unica mão que possuia em signal de negativa. O primeiro mez não posso deixar de lh’o descontar; se convem, convem, senão...

A pobre rapariga, que julgou haver difliculdade n’outra qualquer parte em lhe emprestarem o dinheiro de que precisava, resolveu-se a receber a quantia incompleta, isto é, com o cerceamento do desconto.

Em consequencia d’estas reflexões, disse ao mutilado:

• Faz-me um grande transtorno; mas, que lhe heide eu fazer?...

-- Então, filha... respondeu o nosso homem, assucarando mais a voz; tambem a mim... sabe Deus quanto ás vezes me custa arranjar dinheiro para poder ganhar alguma coisinha!

E, depois d'este pequeno discurso sentimental, deu á rapariga o dinheiro, depois de lhe descontar sessenta réis em cada cruzado-novo.

Depois d’isto, Gertrudes saiu, e o nosso heroe, ficando só, deixou repentinamente de coxear, endireitou-se e, qual caracol, que sáe da casca quando entende que não será surprehendido, deitou para fóra da manga o braço esquerdo, e esfregando as mãos mui satisfeito, disse comsigo:

-- Isto vai bem! muito bem!

E, depois de ter feito mais alguns negocios, saiu da casa do prégo, eram nove horas da noite, deixando, depois de estar na rua, de ser côxo e maneta.

CAPITULO VIII

Os penhores a renderem

Os nossos leitores de certo já presumiram, que o homem côxo e maneta, não era outro senão o Commendador F***, não é assim?

E, de certo, não se enganaram: era elle mesmo, com outra caracterisação.

Era um habil actor, o nosso Commendador F***!

Se houvesse estudado e praticado a arte de Moliére e Talma, estamos convencidos, de que supplantaria os melhores comediantes da Europa. Sobretudo em tyrannos e velhacos, ninguem lhe ganharia a palma.

Algum infeliz que por desgraça fosse depositar no poder d’este senhor, alguma roupa, succedia-lhe, quando a ia desempenhar, achar velhas as peças novas; princimente, lencóes, toalhas e cobertas.

O Commendador F*** alugava, para uma hospedaria das mais acreditadas de Lisboa, quantos lençóes, toalhas e cobertas lhe caiam sob as garras.

D’este modo, ganhava o enorme juro de doze por cento com os donos dos penhores, e outros doze com o aluguer do que não era seu.

Era assim que o nosso homem recuperava, de dia para dia, a fortuna que perdêra ao jogo: á custa dos desgraçados que empenhavam as suas roupas!

Gertrudes, d’esta vez, foi muito feliz no seu negocio, porque comprando, com o dinheiro que recebeu sobre o seu cordão e argolas, uma boa porção de fructa e hortaliça, teve a fortuna de vender tudo com bastante lucro.

Em vista dos interesses que fez, resolveu desempenhar a roupa para não lhe correr mais juros; foi n’este proposito que uma tarde se dirigiu á Rua Nova da Palma.

Bateu á porta; o maneta veio abrir, sempre com grande precaução, e a rapariga entrou.

-- Então, que determina d'este seu criado? Perguntou-lhe o dono da casa, com certo ar de contentamento de quem tem a certeza de negociar bem.

-- Venho tirar a minha roupa, respondeu a rapariga.

-- Ah! sim?... disse o maneta, um tanto desconcertado, porêm sustentando uma firmeza propria dos grandes patifes.

Depois começou a procurar entre os pacotes numerados e datados que tinha nas prateleiras, e, depois de ter andado em busca por toda a casa, voltando-se para Gertrudes, disse-lhe com bonhomia affectada:

-- Olhe, minha menina, não seria melhor vocemecê vir cá ámanhã de tarde?... Isto é quasi noite... e eu tenho ahi tanta roupa misturada que, só querendo esperar muito tempo é que poderá levar hoje o que lhe pertence.

-- A mim, respondeu a rapariga, tambem me causa grande transtorno á minha vida voltar cá; mas, visto que o senhor não póde dar-me hoje a roupa, eu tambem não posso esperar.

-- Bem, pois então venha ámarihã, pelas quatro horas, que já terá o que é seu, apartado.

-- Então, até ámanhã, senhor...

-- Martinho, um seu criado.

-- Gertrudes saiu; e o maneta, endireitando-se, desencolhendo e patenteando o braço esquerdo, começou a passeiar agitadamente, esfregando as mãos e dizendo por intervallos:

-- Com os demonios! logo hoje esta mulher vem buscar os lençóes e as toalhas... quando o tempo por que eu os aluguei só termina depois d ámanhã!

Parou, por alguns segundos, meditando; depois deu mais duas ou tres voltas ao longo da casa, dizendo:

-- Se eu lhe désse outra roupa?... Porêm, nada, proseguiu elle, póde conhecer que não é a que lhe pertence e termos alguma historia. Heide deixar de vir aqui dois dias? Isso não me convem, porque então deixo de fazer negocio...

Depois, batendo repentinamente na tosta como quem lhe occorre uma idéa luminosa, continuou:

-- Ora espera... eu devo ter, entre os penhores que cá estão, algumas roupas que possam substituir as que tenho alugadas na hospedaria de ***.

E começou, ás mãos ambas, a deitar pacotes para o chão e a desembrulhar o que elles continham.

-- Não me enganei, disse elle radiante de alegria; sem me cançar muito, já achei o sufficienle para remediar este apuro.

E, embrulhando meia duzia de lençóes e igual numero de toalhas, que pertenciam a diversos donos, n’um grande lenço de seda que tirou da algibeira, esperou que fosse bem escuro para sair da casa do prégo com esta trouxa, e dirigiu-se apressadamente á hospedaria onde tinha alugado, para serviço dos hospedes, a roupa de Gertrudes.

Procurando o dono do estabelecimento, disse-lhe com voz que não admittia réplicas:

-- Dê-me aquella meia duzia de lençóes de linho quasi novos, que lhe aluguei ha tres mezes, e mais as toalhas, e tome lá igual numero do peças para substituir as que levo.

O dono da casa olhou espantado para elle e disse:

-- Mas, senhor Marlinho, só se fôr ámanhã, porque hoje estão as camas já feitas... de mais a mais ha alguns hospedes deitados, e bem vê...

-- E ámanhã, a que horas póde você dar-me jsso? perguntou o nosso Commendador com intimativa.

-- De manhã, respondeu o dono da hospedaria; mas, olhe que tem de mandar lavar os lençúes, porque estão sujos.

-- Então, eu cá mando um moço pela manhã cedo, e veja lá, mande-me tudo immediatamente. Agora, continuou elle, verifique se estão aqui igual numero de peças ás que tem cá.

-- O dono da hospedaria, depois de contar, e vêr se os lençóes estavam em bom uso, dispunha-se a guardar tudo, dizendo ao Commendador:

-- Está exacta a conta, mas alguns lençóes não são de linho...

-- Ora, o que tem isso? O tempo está frio, e o linho, n’esta estação, é incommodativo.

E tornou a metter tudo dentro do lenço de seda, dizendo ao dono da hospedaria, depois de metter a trouxa debaixo do braço:

-- Bem, então ámanhã, o criado que trouxer isto, levará o que você cá tem meu.

-- Sim, senhor, póde mandar.

O Commendador saiu, e no outro dia quasi de madrugada mandou um criado á hospedaria, dizendo-lhe que não entregasse o que levava, sem receber uma trouxa igual áquella.

A roupa de Gertrudes veio, de facto, parar ás mãos do Commendador F***, ainda não eram oito da manhã, mandando-a este logo ensaboar por uma criada, encarregando-se sua filha de a correr a ferro.

Eram quatro horas e meia quando Gertrudes recebeu o que lhe pertencia, pelo que pagou o enorme juro de doze por cento, quando era o dono do prégo que a devia indemnisar, por lhe haver usado demasiadamente a roupa.

CAPITULO IX

Lenitivo ás saudades

Já eram passados sete mezes depois que José Pereira saira de Lisboa para a ilha da Madeira, e Amelia, que nunca deixava de lhe enviar cartas por todos os vapores, assim como sempre as recebia do seu querido, estava um dia mais triste que de costume, pois que, quanto mais tempo passava sem vêr o seu apaixonado amante, mais melancholia e saudades a apoquentavam.

D. Thereza trabalhava açodadamente, e vendo a orphã distrahida, pensativa e sem trabalhar, disse-lhe em tom de doce recriminação:

-- Então, Amelia, que é isso, não trabalhas? Bem vês que se não me ajudares a acabar esta peça d’obra até ámanhã, a fregucza zangar-se-ha comnosco. Ella tem máu genio...

-- Ah! minha querida amiga, respondeu Amelia tristemente, tenho hoje uma tristeza e umas saudades como nunca tive. Não sei o que me adivinha o coração!...

-- Ora, deixa-te de pieguices, menina; o coração engana-nos a maior parte das vezes: talvez que ainda hoje recebas bem boas noticias.

-- Ora, qual! disso a orphã desanimada, costumo sempre receber carta a 15, e já hoje estamos a 17...

-- É que o navio, com o máu tempo que tem feito, demora-se mais... não póde ser outra coisa.

-- Oh! quem me dera que fosse por esse motivo! Quem sabe se elle estará doente ou talvez...

-- Ora, com que idéas tão tristes tu estás hoje, minha Amelia!

-- Então que quer, minha amiga? todos nós temos os nossos momentos, tanto de immensa alegria como de profunda tristeza. Hoje estou muito triste...

-- Oh! mas o trabalho, minha menina, é uma necessidade... E, graças a Deus, ha um tempo para cá, sempre temos tido que fazer, e não temos soffrido falta de dinheiro.

-- Então, escusâmos de trabalhar hoje; a amiga bem sabe que não sou ambiciosa...

-- E eu, minha filha, sou-o porventura?... Bem sabes que a dona d’este vestido é muito apressada, e que não attende a razões algumas em lhe faltando ao promettido, e então queres ouvil-a ámanhã?

-- Ora! que me importa que ella se zangue comnosco? Tudo isso é indifferente para mim.

-- Nunca te vi assim, Ameliasinha! exclamou D. Thereza, cessando de trabalhar, e examinando a joven.

Esta, depois de estar um momento pensativa, de repente, como se tivesse uma subita idéa, saltando ao pescoço da sua amiga, abraçando-a e beijando-a com ternura, disse-lhe com uma voz, irresistivel a quem a ouvisse, sendo impossivel recusar-lhe o que a joven pedia:

-- Oh! minha querida amiga, eu queria pedir-lhe um grande favor... faz-m’o?

-- Eu bem digo, Amelia, que tu hoje não estás em ti! disse a boa senhora, procurando desembaraçar-se da donzella. que inconsideradamente a incommodava, apertando-a com força contra o peito; larga-me menina!

-- Mas hade prometter-me que me faz o que lhe peço, sim? Quando não, não a largo.

De fórma que, D. Thereza, para se desembaraçar da joven, viu-se obrigada a prometter-lhe que, sendo o que ella lhe pedia, coisa possivel de fazer, não lhe estando mal, satisfazer-lhe o desejo.

-- Sabe o que eu desejo, minha amiga, é que vamos immediatamento ao correio geral saber se o paquete já chegou.

-- AgoraI exclamou a viuva; e o vestido?...

-- Ora, não me falle agora em vestidos, minha querida amiga; o que mais me interessa é ter noticias do meu José Pereira.

-- Pois bem, menina, que remedio tenho eu senão fazer-te a vontade? Isso é muito louvavel, continuou ella. porêm tambem temos obrigações a cumprir.. .Vá lá, vá!

E a excellente senhora levantou-se, e ia tratar de se vestir, quando bateram á porta.

Amelia, que, na sua impaciencia, quasi que estava prompta para sair, perguntou quem batia.

-- O correio, respondeu uma voz, que traz uma carta da Madeira, para a senhora D. Amelia da Silva; é aqui?

-- É sim, senhor, disse a joven correndo á porta, contentissima, e abrindo-a.

-- Então, continuou o carteiro, aqui a tem.

E entregou á joven uma cartinha sobrescriptada para ella.

Amelia pegou na carta, e conhecendo ser a letra do seu querido, sem saber o que fazia, beijou-a fervorosamente, mesmo á vista do carteiro e da sua amiga.

-- Então, exclamou D. Thereza, depois do carteiro se retirar, não te dizia eu que o coração nos engana a maior parte das vezes? Quando tu estavas mais triste que nunca, por não teres noticias, recebes uma carta...

Amelia já não a ouvia, pois tinha aberto o precioso escripto e devorava-o com a vista.

De repente exclamou, alegrissima, e dando pulos de contentamento:

-- Ah! minha querida amiga, oiça... oiça o que elle me manda dizer!

E leu, em voz alta, a seguinte carta a D. Thereza, a qual estava estupefacta por vêr a orphã fóra do seu estado normal:

«Minha querida Amelia:

«O meu maior prazer será que tu recebas esta com saude e ventura, o que tambem desejo succeda á tua amiga.

«Uma grande e alegre noticia te vou dar.

«Saberás que estaremos aqui dez mezes em vez d'um anno, vindo, por consequencia, a faltar só tres mezes, por já estarmos aqui ha sete.

«Já vês, minha querida, que é para nós uma grande ventura, pois nos veremos mais breve do que julgavamos.

«Oh! minha querida Amelia, quem me déra já o momento de poder abraçar-te, chamar-te minha!...

«E tu não sentes o mesmo desejo, Ameliasinha?

«Oh! estou convencido que sim; pois confio muito no amor da mulher terna, verdadeira e apaixonada que prometteu e jurou, pela sombra de sua mãe, amar-me sempre.

«Peço-te me recommendes á tua honrada amiga e companheira, á visinha do logar, e ao mestre sapateiro, e emquanto a mim, recebe mil caricias, affagos e saudades do teu

sincero amante

«Madeira, 8 de fevereiro de 1855.

«José Pereira»

-- Oh! que alegria! exclamou Amelia, depois de ler a carta á sua amiga, e beijando fervorosamente o precioso escripto; ha muito tempo que não me sinto tão venturosa!

-- Ora, ainda bem, minha amiguinha, disse D. Thereza, abraçando e beijando a joven, ainda bem que te vejo alegre e satisfeita.

-- Oh! mas que cuidados com que eu estava! disse Amelia, correspondendo com ardor aos affagos da sua companheira. Se eu tivesse muito dinheiro, continuou ella com enthusiasmo, mandava repicar os sinos da capital, deitar foguetes e tocar as musicas todas!

D. Thereza não poude, apezar da sua idade e desgostos que a apoquentavam, deixar de soltar uma grande gargalhada, ao ver o ardor enthusiastico com que Amelia soltára estas palavras.

Depois, vendo que o tempo urgia, disse á joven, depois de vêr que estava com o espirito mais tranquillo:

-- Agora, Amelia, parece-me que já podes vir ajudar-me a acabar a obra que temos de entregar ámanhã, para recebermos o dinheiro, e fazermos um banquete á saude do teu futuro esposo.

-- Valeu, disse Amelia animosamente; vamos acabar o vestido, para ámanhã folgarmos muito.

E, acabando estas palavras, começou a trabalhar com tal pressa e vontade, que, n’essa mesma noite ficou prompto o vestido, o qual, de certo, não seria entregue no dia seguinte á sua proprietaria, se a joven não tivesse recebido a carta do seu querido, e se D. Thereza lhe não occorresse a luminosa idéa de a instigar a isso, com a proposta do banquete dedicado a José Pereira.

CAPITULO X

Mais um roubo

«Não ha bem que dure, nem mal que não tenha fim.»

É este um adagio portuguez que ninguem póde contestar.

Gertrudes, a vendedeira de fructa, que, como os leitores sabem, luctára com milhares de difiiculdades para sustentar o seu pequeno commercio, e não ficar reduzida á miseria, estava agora na maré da fortuna.

Seu velho pae, tentado com as cautelas, comprára uma de seis vintens, e quiz a fortuna ou o acaso, que saisse o bilhete d’aquelle numero premiado com um conto de réis.

O ancião, pulando de contentamento, quando tal ouviu, depois de receber a parte que lhe competia, entregou-a toda á filha, por confiar n’ella, e saber que era uma excellente commerciante.

D’este modo, a rapariga, não só forneceu o logar de maior abundancia de fructas e hortaliças, como logo fez tenção de ir desempenhar o seu cordão e argolas.

Alem d’isto, deu logo um pouco de dinheiro ao sapateiro viuvo, para o ajudar a viver sem tanto trabalho.

Depois de cumprir este louvavel acto de philantropia, para com um desgraçado velho, que mal podia trabalhar, eil-a outra vez a caminho da rua Nova da Palma, a desempenhar os seus objectos.

Ficou, porêm, surprehendida, quando bateu á porta, de ouvir no interior da casa uma altercação entre duas vozes, uma das quaes era sua conhecida, e outra muito differente da voz do dono da casa.

Ainda ficou mais admirada, quando entrou, de vêr unicamente na casa do prégo, o nosso maneta que a recebeu com a sua voz rouquenha e agradavel á fortiorum.

Gertrudes procurava na sua idéa recordar-se d’onde conhecia a outra voz que ouvira, porêm a sua rebelde memoria não lhe permittiu isso.

-- Então, por cá? disse-lhe o dono da casa, fazendo um gesto que significava mandal-a assentar.

-- É verdade, senhor Martinho, venho desempenhar o meu cordão e argolas.

-- Ah! sim? disse o nosso Commendador, meio distrahido. Então, continuou elle, depois d’um momento de silencio, espere um bocadinho, que eu vou procural-o.

E deixou a rapariga só, na casa do prégo, desapparecendo por uma porta para o interior da casa.

Deixemos tambem Gertrudes por um momento, e vejamos o que foi fazer o nosso Commendador, caminhando atraz d’elle.

O Commendador, deixando de coxear e de ser maneta, seguiu por um corredor, e chegando a uma casa com uma janella onde se adiava o Conselheiro M*** por entre os vidros, com os cotovêllos encostados ao parapeito, disse ao socio, em voz baixa, porêm enraivecida:

-- Então Vossa Excellencia está-se mostrando á visinhança e a alguem que passe e o conheça, não é assim? Parece incrivel que o Conselheiro faça taes coisas.

E, vendo que o socio estava atrapalhado, sem saber o que responderia, continuou:

-- Isso compromette-o e compromette-me.

-- Tem razão, tem razão, balbuciou o Conselheiro, tambem em voz baixa, o qual já se havia retirado da janella e passeiava agitadamente, pensando inutilmente em remediar a asneira que fizera.

-- Olhe, disse-lhe o Commendador, mostrando-lhe um cordão e umas argolas, em tudo similhantes um e outras ás duas peças empenhadas por Gertrudes, não queria Vossa Excellencia que eu me zangasse aind’agora, quando lhe disse que isto tudo estava muito mal dourado.

-- Pois sim, mas eu dizia-lhe que para nos sair a coisa mais economica...

-- Qual economica, homem! ha certas economias que são desperdicios. Quer que eu agora entregue isto á dona? É preciso que ella seja muito ignorante em conhecer ouro para tomar estes objectos pelos que empenhou!

-- Agora, não sei que lhe faça.

-- E como Vossa Excellencia, depois de fazer as asneiras, responde: «não sei que lhe faça.» Eu pasmo de o ouvir! De fórma, continuou elle, depois d’uma pausa, que não tenho remedio, senão esperar que seja mais noite para impingir isto á rapariga.

E começou a pulir com um pedaço de anta os objectos de latão dourado que haviam de substituir os de ouro de lei, que pertenciam á pobre Gertrudes.

A este tempo era quasi noite, e o Conselheiro, que estava com pressa de sair, perguntou ao socio:

-- Diga-me cá: eu posso sair, não é assim? se a mulher que lá está fóra não é suspeita...

-- Eu sei, homem!... respondeu o Commendador; ella parece-me insuspeita, porêm póde conhecel-o.

-- Ora, qual!

-- Então faça o que quizer.

-- Bem, então sáio atraz de Vossa Excellencia.

-- Então, vamos, disse o Commendador, e veremos se pegam as bixas.

E, depois d’uma breve pausa, accrescentou, em tom sarcastico:

-- D’estes assados é que eu queria vêr como Vossa Excellencia se saia!

-- Confesso que Vossa Excellencia tem audacia...

E caminharam para a sala.

O Commendador entrou na casa do prégo, dizendo a Gertrudes:

-- Então, demorei-a muito?

-- Nada, não senhor, respondeu a rapariga.

O Conselheiro, que n’este momento vinha a transpor a porta que dava entrada para a casa do prégo, ouvindo a voz, reparado em Gertrudes e conhecendo-a, com a atrapalhação para evitar que a sua antiga criada grave o visse, tropeçou na meia porta, que era de vidraças e estava fechada, e, perdendo o equilibrio, veio cair sobre o Commendador, fazendo-o tambem precipitar-se com o inesperado choque que recebêra.

-- Que brutalidade, senhor! vociferou o Commendador, levantando-se e encarando raivosamente o Conselheiro.

-- Então que quer? tropecei e não pude suster-me... disse o Conselheiro levantando-se tambem.

Gertrudes não poude conter-se, e, dirigindo-se ao seu antigo amo, disse-lhe:

-- Então, como tem passado o senhor Conselheiro M***?

-- Eu... respondeu o interrogado, bem, muito obrigado.

-- Vossa Excellencia não me conhece? continuou a boa rapariga, que se alegrou, vendo o dono de uma casa onde havia servido tanto tempo. Eu sou a Gertrudes, que fui criada de Vossa Excellencia.

-- Ah! sim, bem sei... respondeu o Conselheiro, que não sabia o que havia de dizer. Então como passa? passou bem?

E sem esperar a resposta da rapariga, continuou, como para se desculpar:

-- Você vê-me aqui, porque vim perguntar aqui a este senhor... sim, vim saber se elle queria...

-- Sáia no mesmo instante, e não me comprometta mais, seu cabeça de burro, disse o Commendador F *** ao ouvido do Conselheiro.

O Conselheiro, ouvindo isto, sem dar mais explicações á sua antiga criada, deu meia volta á direita e desappareceu pelo corredor que conduzia para a porta da escada.

O maneta entregou a Gertrudes, depois do Conselheiro sair, o cordão e as argolas de latão dourado; e a infeliz rapariga, por ser quasi noite, não conheceu que fôra roubada.

Quando a rapariga ia para sair, o maneta disse-lhe como em confidencia:

-- Eu desconfio que o Conselheiro está arruinado, porque tem vindo aqui empenhar alguns objectos seus; porêm não diga isto a ninguem, porque elle pediu-me o maior segredo.

Gertrudes saiu, e só no dia seguinte, quando viu os objectos que lhe entregára o maneta, conheceu que, ou de proposito ou por engano, lhe déra o que não lhe pertencia.

A rapariga correu immediatamente á Rua Nova da Palma; porêm, depois de muito bater á porta do prégo, ouviu a voz da visinha do andar superior, que lhe dizia:

Ahi já não mora ninguem; mudaram-se esta manhã.

-- E para onde? perguntou Gertrudes sobresaltada.

-- Isso é que eu não lhe sei dizer.

-- Estou roubada!... exclamou Gertrudes, descendo apressadamente, e indo á Praça da Figueira procurar a mulher que lhe inculcára o prégo.

Esta, assim que ouviu o que Gertrudes lhe dizia, gritou tambem desesperada:

-- Ai! o ladrão do maneta, que me roubou tambem os meus brincos e o meu capote.

Deram parte d’este facto ás authoridades; porêm foram exforços inuteis, porque ninguem tornou mais a vêr o maneta.

SEXTA PARTE

CANDIDATOS E ELEITORES

CAPITULO I

Luctas eleitoraes

Estamos em setembro do 1855.

Amelia esperava em vão por José Pereira, no mez de maio, porque o regimento a que o mancebo pertencia, não regressou no fim de dez mezes, como este mandára dizer á sua querida.

Finalmente, no principio de setembro, o governo entendeu que precisava em Lisboa do regimento que estava na ilha da Madeira, e por isso mandou-o render.

D’este modo, os dois jovens, no fim de quatorze mezes d’auzencia, poderam finalmente vêr-se, abraçar-se, e confirmar, pelos seus protestos, a sua união conjugal.

O mancebo desejava unir-se a Amelia o mais breve possivel, porêm o Commandante, a quem elle foi pedir venia para consummar similhante acto, respondeu-lhe que esperasse pelo resultado das eleições da camara electiva.

-- Tome, sargento, accrescentou elle dando uma lista a José Pereira, vote n’essa lista, e depois fallaremos a respeito do que me participou.

O mancebo aceitou a lista, e resignou-se a esperar, segundo lhe ordenára o Commandante. Participou a vontade do Coronel á sua querida Amelia, a qual tambem não teve outro remedio senão ter paciencia, e esperar.

Deixemos agora os dois jovens, jurando-se quotodianamente eternos amores, para observarmos o insano movimento eleitoral nos circulos do reino, e especialmente nos de Lisboa.

A casa de Mendonça, o nosso gordo trasmontano, era propriamente um comité revolucionario.

Ali havia, desde o meiado de agosto, reuniões de diversos partidos, a combaterem-se constante e reciprocamente.

O pobre provinciano via-se aturdido por todos os lados.

Uns diziam-lhe:

-- Vossa Excellencia deve aceitar a candidatura pelo nosso circulo, porque depois com mais facilidade poderá obter a baronia.

Outros diziam-lhe:

-- Senhor Mendonça, não aceite a candidatura, porque então é-lhe difficultoso conseguir o baronato.

Estes conselhos eram dados pelo Visconde de ***, Barão de *** e outros quejandos, para vêr qual d’elles mais pecunia argentina apanharia ao gordo proprietario.

Mendonça, com a sua habitual franqueza e sem ceremonia, já por mais d’uma vez mandára ao diabo, nas proprias bochechas, os diversos individuos controversitas nas suas opiniões, quando um dia, o nosso bem conhecido Barão de ***, procurou Mendonça em particular, para, disse elle ao criado, tratar com Sua Excellencia d'um importantissimo negocio em seu abono.

O nosso gordo trasmontano, estava acabando de jantar; porêm, como ouviu dizer que o negocio era de grande importancia para elle, deu-lhe um pulo o coração, imaginando que lhe viriam participar a sua elevação ao baronato.

Levantou-se immediatamente da meza, deixando intacta uma enorme fatia de queijo do Alemtejo, sobremeza predilecta do trasmontano e sem a qual não podia passar, bebendo-lhe em cima uma garrafa de Carcavellos.

Assim que avistou o Barão, o nosso Mendonça disse-lhe alegre e brutalmente:

-- Antão que me quer você?

-- Senhor Mendonça, disse o barão com intimativa ao nosso gorducho, eu venho propôr a Vossa Excellencia um negocio d’alta importancia, o qual, se for aceite, fará a ventura de nós ambos e...

Aqui, um formidavel arroto, que echoou por toda a casa, interrompeu o arrasoado do aristocrata.

-- É o seguinte, proseguiu o barão de ***, fazendo uma careta de enojo, sem Mendonça vêr: Eu amo a filha de Vossa Excellencia, e se consente em dar-me a sua mão, eu prometto, bem entendido, antes de consummado o consorcio, de o fazer sair eleito deputado pelo nosso circulo.

E depois d’uma pequena pausa, vendo que Mendonça espalitava os dentes, sem dizer nada, por estar pensando, continuou:

-- Vossa Excellencia bem sabe que, entrando no parlamento, poderá a seu bel prazer advogar, tanto o melhoramento das suas propriedades ruraes, como a sua pretenção á baronia de ***.

-- Com que antão, você promette fazer-me entrar no palramento antes de eu lhe dar minha filha?

-- O que disso a Vossa Excellencia heide cumpril-o, se ultimarmos este negocio ainda hoje.

-- Pois bem, respondeu o trasmontano, você não é máu rapaz, está n’uma bonita posição social, como diz a minha Pulcheria ha tempos para cá, quando vê um homem com honrarias; e antão, visto isso, é sua a rapariga, mas com a condição que só lh’a darei depois de eu entrar no tal palramento de S. Bento, ou que dialho é.

-- Está tratado, não é assim, senhor Mendonça?

-- Sim, senhora.

-- Então, adeus, até logo, vou angariar eleitores... É verdade, Vossa Excellencia podia emprestar-me dez libras para eu ir comprando alguns votos? Eu estou desde hontem á espera dos meus rendimentos, porêm ainda não os recebi.

Mendonça, que não se poupava a despezas e a fadigas para ser deputado e barão, deu immediatamente ao aristocrata o dinheiro pedido por este, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Olhe que isto não é emprestimo, visto ser empregado em meu serviço: se precisar mais, diga-o; não se poupe a despezas, faça com que eu seja pae da patria, e a cachopa será sua. Olhe que está uma moçoila de truz!

-- Mal sabe, meu charo senhor Morgado, o prazer que me dá com essas palavras! Todo eu sou chammas pela rubicunda belleza da sua linda filha, e sou capaz de ir até ao inferno para fazer com que Vossa Excellencia tenha uma cadeira no parlamento. Até logo.

E dispunha-se a sair; porêm Mendonça, agarrando-o por um braço, disse-lhe:

-- Nada, já agora você não sáe d’aqui sem beber um trago á saude da minha cadeira no palramento, e tambem á da sua futura boda.

E levou o aristocrata para a casa do jantar, obrigando-o, quasi á força, a beber uma garrafa de Carcavellos, emquanto elle esgotava outra, ajudado com a sua sobremeza favorita, que deixára de comer para correr ao reclamo.

Emquanto o Barão de *** trabalhava forte e incançavelmente para que Mendonça saisse deputado (não porque o arteiro aristocrata amasse a filha do trasmontano, pois o Barão a que aspirava, era ao volumoso dote de que seria possuidor, porque a officina de moeda falsa fôra descoberta pela policia, e os aristocratas salvaram-se por obra e graça do Espirito-Santo, gemendo no Limoeiro alguns filhos do povo, instrumentos do que se serviam os fidalgos para os seus funestos fins, e o Barão estava reduzido aos maiores apuros), o governo mandava distribuir, pelas regedorias da capital, quantias de dinheiro para os regedores comprarem os eleitores rebeldes, e estes votarem em favor do ministerio.

O Conselheiro M*** era um dos trabalhadores ministeriaes. O homem não comia nem dormia, tendo só em vista fazer triumphar o governo, para ser condecorado com uma promettida commenda.

Não parava um momento, trabalhava constantemente em angariar eleitores que votassem na lista apresentada pelo governo.

Um dia, sua mulher, vendo-o pallido, magro e abatido, disse-lhe em tom de aspera recriminação:

-- O senhor dá caho de si com as maldictas eleições! Ainda se lucrasse com isso alguma coisa que désse na vista...

-- Oh! senhora, exclamou o Conselheiro, então acha pouco uma commenda e o remanescente pecuniario que me sobeja das quantias que o governo me tem dado para distribuir pelos eleitores do meu circulo?!

-- Ah! sim? disse a conselheira, que ainda ignorava as honras e interesses que o marido estava para receber, depois do trabalho eleitoral; então trabalhe, senhor, e não se esqueça tambem de mim, no dividendo do tal remanescente pecuniario, ouviu?

-- Deixe estar, senhora, que hade ser deferido o seu requerimento, quando eu tiver socego d’espirito depois de findas as actuaes eleições.

-- Veja lá se o codilham, continuou a conselheira; olhe que não tendo perspicacia para não se deixar enganar, podem, depois de servidos, rir-se do senhor.

-- Ora essa! disse o Conselheiro rindo, porêm com riso amarello, pela terrivel lembrança de sua mulher; não é possivel fazerem-me similhante coisa, porque precisam de mim.

-- Máu, replicou a conselheira com modo aspero, se o senhor não me entende, então calo-me, e deixo-o praticar quantas asneiras quizer.

-- Não percebo o que me diz, menina, disse o Conselheiro, já muito atrapalhado com a sua debil intelligencia.

-- Veja se primeiro lhe dão a commenda, antes das eleições, porque podem, por acaso, ficar mal os que esperam vencer a lucta, e depois... assobie-lho ás botas.

-- Tem razão, menina, tem razão.

E, passado um momento de silencio, continuou:

-- Vou já tratar de apanhar a commenda, antes da eleição do parlamento.

-- Veja se vai precipitar-se, e fazer alguma parvoice.

-- Descança, menina, eu...

-- Tenha placidez e não vá logo ás do cabo, continuou a conselheira, interrompendo o marido.

-- Descance, que assim farei.

E saiu.

A mulher do Conselheiro, ficando só, disse comsigo:

-- Vai fazer asneira, de certo, é um papalvo!...

CAPITULO II

Como se ganham as candidaturas

O gordo trasmontano, aconselhado pelo Barão de ***, dava um jantar, em sua casa, a varios eleitores do seu circulo, os quaes erão os prebostes do credulo povo.

Este banquete tinha logar na vespera do dia das eleições, sem duvida, para que as cabeças, ainda esquentadas com o generoso licôr bachico, podessem unanimemente contribuir, tanto com os seus, como com os alheios votos, para a candidatura do dono da casa.

O Barão era uma especie de director da reunião em casa de Mendonça.

Á sobremeza, quando lodos os espiritos já estavam triplicadamente espirituosos, o chefe, espiritualisado quadruplicadamente, porêm, conservando sempre a voz firme e clara, e possuindo uma espantosa verbosidade, ergueu um copo cheio de vinho do Porto, e exclamou, para romper o fogo:

-- Bebamos á saude do nosso muito nobre, talentoso e liberal candidato pelo nosso circulo.

E, dizendo estas palavras, poz-se de pé.

Os convidados fizeram o mesmo, sem já saber o que faziam, e esperaram a voz do commando dada pelo seu general.

-- Á saude, pois, de Sua Excellencia, o senhor Morgado Miguel José Fernandes do Espirito-Santo Macieira e Mendonça.

-- Á saude do senhor Morgado Mendonça, disseram os convidados em côro, contribuindo todos para isso, um com o seu baixo profundo, outro com o seu baritono ou tenor, e alguns, mesmo em falsete.

O dono da casa, commovido em extremo com tamanhas honrarias, levantou-se a custo (pois não o fizera até agora, por não ter a certeza que era a elle que a saude era feita, o que poderia ser censurado por algum que estivesse em estado de analysar similhante coisa), empunhou um copo, e depois de tossir e escarrar estrondosamente, atreveu-se a pronunciar o seguinte discurso:

-- Podem vocês todos ter a certeza que munto me alegram com o que acabam de me dezer. Eu, assim que entrar no palramento...

Aqui foi interrompido pelo Barão, o qual, espirrou com estrondo, para encobrir a ultima palavra soltada pelo trasmontano.

-- Podem acarditar, continuou o dono da casa, elevando a voz para ser melhor ouvido pelos seus partidarios desinteressados, que êde ser um hóme que não heide deixar passar nenhuma maroteira pela tralha.

E, tornando a escarrar, e elevando cada vez mais a voz, continuou em falsete:

-- Nunca consentirei comidellas; e qualquer melcatrefe que se atrever a praticar alguma pouca vergonha no palramento...

-- Muito bem, bravo! gritou o Barão, dando por findo, d’este modo, o discurso do gordo trasmontano, o qual, apezar dos espiritos dos convidados estarem pouco em estado de comprehensão, podia causar um grande transtorno, mallogrando a sua candidatura.

Todos os amigos de Mendonça deram bravos, para secundar os do Barão, havendo alguns mais pingados, que até chegaram a dar palmas.

O trasmontano estimou bastante este ensejo para terminar o discurso, porque, chegando-se ao Barão, disse-lhe em voz baixa, abraçando-o quasi a partir-lhe as costellas:

-- Ainda bem que você deu aquelles brabos, para eu me calar, porque estou a suar como uma besta, e já não podia dar nem pio.

Depois d’isto, abraçou individualmente os convidados, agradecendo-lhes com a sua franca e brutal linguagem.

Emquanto se passava esta scena em casa de Mendonça, na qual os antagonistas do governo trabalhavam contra a opinião do ministerio, no quartel do regimento a que José Pereira pertencia, o Coronel, mandando chamar á secretaria os officiaes inferiores, fazia-lhes um discurso a favor do governo, porque o Commandante era um dos seus mais acerrimos partidarios, sendo esse o motivo porque o regimento viera para Lisboa antes das eleições, e estivera na ilha da Madeira mais tempo do que o marcado para a estação, por causa do descontentamento manifestado n’aquella ilha contra o governo.

Quasi sempre, como diz um auctor francez, os amigos intimos soffrem dos seus amigos, o que não soffreriam dos desconhecidos.

Porêm, como diziamos, o Coronel dirigia-se aos sargentos d’este modo:

«Officiaes inferiores, ámanhã devem ir á urna. Cuidado, não faltem! Tomem sentido!»

Á vista d’este convite quasi obrigatorio, intimado pelo seu Coronel, os officiaes inferiores não deixaram de comparecer no dia seguinte, e de lançarem na urna eleitoral as suas listas dadas pelo Commandante.

O mesmo succedeu com os convidados a quem o gordo trasmontano deu um bello jantar, ganhando o nosso Mendonça uma cadeira em S. Bento, pela maioria de quarenta e cinco votos.

O mesmo succedeu com o candidato do governo, protegido pelo Coronel do regimento a que pertencia José Pereira.

É por esta razão que Portugal será sempre rococó, e pessimamente administrado, porque se, em vez de candidaturas compradas, umas a dinheiro, outras a fitinhas, fossem eleitos homens que cumprissem na tribuna o alto mister que os elegem, prosperaria, sem duvida, a nossa patria, e a desgraçada sorte do povo seria melhorada, se os seus representantes advogassem conscionciosamente, não se assentando n’uma cadeira unicamente para receberem o avantajado estipendio que percebem, ou para advogarem os interesses pessoaes.

Que triste condição, que triste gente!

CAPITULO III

As bodas de D. Filomena Maria da Conceição Mendonça

Um mez depois das eleições, tinha logar o casamento da herdeira do gordo trasmontano com Sua Excellencia, o senhor Barão de ***.

Mendonça, ao principio, logo depois de ganhar a victoria, estando eleito deputado, pretendeu, como vulgarmente se diz, roer a corda ao Barão, porêm este, conhecendo a velhacada que o trasmontano lhe queria fazer, procurou auxilio no Visconde de ***.

Por este motivo, procurou o manhoso aristocrata, seu ex-collega moedeiro, e expoz-lhe a questão, terminando por lhe prometter boas luvas, caso que o ajudasse a conseguir o dote da filha do rico proprietario.

Dizemos o dote, porque, quanto á mão e posse da joven, era coisa que elle dispensaria, por dia lhe ser completamente indifferente, quanto a amor.

O Visconde, depois de ouvir o amigo, e conhecendo que podia lucrar, sem trabalho algum, um bom par de libras, perguntou ao Barão com um delicioso sorriso aristocratico, no qual se notava um certo ar de valiosa protecção:

-- E estás prompto a passar-me uma obrigação de divida?

-- Porquê, desconfias de mim?!

-- Não, porêm ha morrer e viver...

-- Pois bem, passo.

-- E quanto dás?

-- Quanto queres?

-- Hum! fez o Visconde, retorcendo ao mesmo tempo os bigodes; a legitima da pequena devem ser por ahi uns vinte contos... Está bom, continuou elle depois d uma pequena pausa, durante a qual observou surrateiramente a physionomia do amigo, passar-me-has uma obrigação de divida, d’um conto de réis, para ser paga dentro em dois mezes. Bem vês que não sou usurario, pois só te levo cinco por cento.

-- Bem! seja; disse o Barão, depois de ter ouvido o amigo com a mais profunda attenção.

A consequencia d’este pacto foi o Visconde lisongear a mania do gordo trasmontano, deixando-lhe antever a certeza do titulo de barão, pelo qual suspirava o proprietario, se elle annuisse ao casamento de sua filha com o Barão de ***, por este ter grande influencia para com o rei.

Mendonça, ouvindo isto, pulou de contente, e chamando sua mulher e filha, disse-lhes:

-- Vocês estimam que eu seja barão, não é verdade?

-- Oiço fallar n’isso ha tanto tempo, que já me parece uma cantilena! respondeu a mulher em tom sentencioso.

-- É verdade, maman, ha perto d’um anno que não oiço outra coisa ao papá, senão dezer que hade ser barão, mas nunca é.

-- Pois filha, sabe que depende unicamente de ti o eu ser brevemente barão, continuou Mendonça.

-- Sim?! disseram as duas mulheres ao mesmo tempo com infinita curiosidade.

-- É verdade, replicou o trasmontano, e, alem d’isso, ainda outra honra.

-- Qual é? perguntou D. Pulcheria.

-- É a nossa filha ser tambem baroneza.

-- Ora essa! disse a mãe olhando para a filha com certa emulação, pois isso é possivel!...

-- Antão tu, Pulcheria, pensas que eu estou agora para chalaçar?!

E voltando-se para a filha:

-- Vamos a saber, rapariga, tu queres casar com o meu amigo Barão de ***? Olha que elle estala por ti: o rapazola anda pateta por dar comtigo o nó gordio.

D. Filomena córou, baixou os olhos, e nada respondeu.

A rapariguinha, apezar da beatice jesuitica em que estava embrenhada, possuia uma compleição quente e nervosa; já fizera os dezeseis annos, e, apezar das piedosas exhortações e deliciosos extasis que lhe proporcionava a sua amiga irmã de caridade, franceza, a donzella sentia um vacuo inexplicavel, que a apoquentava horrivelmente em desordenados sonhos, havia perto d’um anno.

Por mais d’uma vez notára as melifluas palavras e attenções que o Barão tinha para com ella, começando a sentir pelo ardiloso aristocrata uma especie de sympathia que é a base do amor.

Como dissemos, a rapariguinha ficou córada e muda, o que foi de feliz auguro para o trasmontano e sua mulher.

Os conjuges trocaram, pois, entre si um olhar significativo que se traduzia por estas palavras:

«A rapariga gosta d’elle.»

-- Antão, minha filha, continuou o pae, dando-lhe assalvajadamente pancadinhas na face, que n’elle eram raras meiguices, podemos tratar do teu casamento com o Barão?... Responde.

-- Póde, sim, senhora, respondeu a rapariga, perdendo a vergonha; eu gósto munto d’elle.

-- Munto bem, minha filha, vais ser baroneza, fazer-me barão, e baroneza tua mãe!...

E o gordo trasmontano, com a cabeça perdida, julgando-se nos seus quinze annos, e nos campos da sua terra, começou a dar pulos, e palmadas no centro de gravidade de sua mulher, a qual lhe replicou, dando-lhe sôcos e beliscões.

N’essa mesma noite, o Barão, que foi a casa de Mendonça, recebeu a agradavel noticia, de que, dentro de quinze dias, receberia a mão de D. Filomena, e o precioso dote, que era a unica ambição do aristocrata.

Esta noticia espalhou-se por todas as salas da côrte, de modo que ninguem tratava a filha de Mendonça senão pelo titulo de Baroneza de ***, antes de gozar d’essas honras.

Chegou, finalmente, o desejado dia, e é n’essa occasião que começa o nosso capitulo.

São onze horas da manhã, e tudo anda em movimento em casa de Mendonça.

Os noivos devem receber-se ao meio dia, e ainda o alfayate não mandou a immensa casaca e calça preta que o gordo trasmontano mandára fazer para assistir ao casamento de sua filha.

Mendonça engordava desproporcionalmente de dia para dia, depois da sua candidatura.

D. Pulcheria, que se levantára às nove, isto é, duas horas mais cedo do que a habitual desde que frequentava os bailes aristocraticos, estava desesperada defronte do espelho, por vêr que lhe faltava unicamente uma hora para se arrebicar, precisando ella ainda de duas para terminar o seu toucado.

A filha andára mais lesta, pois se achava já prompta, passeiando pela sala principal, na qual já se achavam alguns intimos da familia Mendonça.

O vestuario da donzella, rico na verdade, não tinha, nem elegancia nem gosto, porque D. Filomena era pouco elegante: tinha a cintura grossa e curtissima, o pescoço curto; era de estatura baixa, e demasiado gorda: finalmente, possuia o typo de seu pae. Alem d’isto, tinha um gosto depravado na escolha das fazendas: gostava immenso das côres, encarnado, amarello e verde.

D’este modo, quem a visse prompta para se entregar ao esposo, diria que era alguma collareja da Praça da Figueira que ia casar-se, tanta era a profusão das côres que circumdavam a donzella, e os grossos cordões de ouro e anneis, dos quaes, uns lhe rodeiavain o pescoço, caindo-lhe sobre o proeminente e alentado collo, e os outros quasi lhe occultavam os dedos.

Mendonça, como dissemos, estava no seu quarto, em ceroulas e camisa, á espera que o alfayate lhe trouxesse o fato novo.

O trasmontano, apezar de gordo e pachorrento, impacientava-se com a espera, por isso, saindo do quarto, encaminhou-se para a sala, onde já se achavam as pessoas de confiança de sua familia.

-- Antão, hein? que me dizem vocês do tratante do alfayate?! exclamou elle com indignação; isto é para um hóme encavacar deveras!

E, passeiando agitadamente pela sala, continuou:

-- São quasi horas da cachopa ir para a igreja; não tarda por ahi o noivo, o senhor Barão, e este patife sem apparecer! Com mil milhões de diabos, que se o apanhasse aqui, moia-lhe as costellas com um cacete.

Depois, dirigindo-se á filha, que tambem passeiava impaciente por ir para a igreja, perguntou-lhe:

-- Filomena, onde está tua mãe?

-- Creio que está ainda a penteiar-se, respondeu a donzella em tom de amarga ironia.

-- Ah! antão escuso de estar com pressa, replicou Mendonça; eu pensei que vocês já estivessem ambas promptas, mas como tua mão ainda se está apparelhando, é outro caso.

N’este momento, um criado chegou-se ao dono da casa, e disse-lhe:

-- Senhor, está ali o alfayate com o seu fato.

-- Dize-lhe que entre para aqui.

O criado saiu, e d’ahi a pouco appareceu o official de alfayate, trazendo o fato embrulhado n’um lenço de seda, e ficando á entrada da sala, admirado de vêr Mendonça, em ceroulas e camiza, entre as varias pessoas que ali estavam.

-- O bisborria do seu mestre, agora é que achou horas de me mandar o fato, não é assim?

-- Não foi possivcl acabal-o mais cedo...

-- Não me venha com cantigas, hóme, que para cá não pegam. Sabe o que o bolas do seu mestre precisava? era que eu já não quizesse o fato; mas póde agardecer a minha filha, porque se não fosse hoje o seu casamento com o senhor Barão de***, tenha a certeza que rejeitava a albarda que mandei fazer.

Depois, vendo que só faltavam dez minutos para o meio dia:

-- Vamos, disse elle ao alfayate em tom de commando, deixe cá vêr a fatiota.

O official desatou o lenço, tirou d’elle as duas peças d’obra, e entregou-as a Mendonça.

-- Está bom, continuou o trasmontano, vamos a vêr como isto me fica.

E envergou a immensa casaca, a qual, apezar de ser alentada, e larga em demasia, ainda incommodava o gordo proprietario, prendendo-lhe algum tanto o movimento dos braços.

-- Está muito bem feita, disseram algumas pessoas.

-- Pois sim, não duvido, resmungou Mendonça, mas aperta-me os sovacos, que tem diabo!

N’este momento tornou a entrar o criado, o qual disse ao patrão:

-- Chegou o senhor Barão e os padrinhos.

-- Sim?! disse Mendonça, antão bem; mande-os entrar.

-- Ó papá, então quer apparecer-lhes de casaca, e em ceroulas?!

-- Tens razão, rapariga, vou acabar de me vestir.

E, dizendo ao alfayate que no dia seguinte mandaria o importe do fato ao mestre, entrou no seu quarto para vestir a calça.

Se a casaca estava apertada, a calça, então, opprimia horrivelmente o gordo trasmontano; estava apertada a tal ponto, que obrigava o proprietario a não poder, nem assentar-se nem fazer o mais leve movimento para se abaixar.

O pobre homem estava em talas!

Todavia, como queria patentear o seu fato novo, resignou-se ao sacrificio de se conservar direito como um recruta, e apresentar-se na sala para comprimentar os padrinhos e o noivo, não sem, em voz baixa, exconjurar o alfayate, que lhe tomára tão mal a medida ás regiões posteriores.

O Barão de *** esperava na sala, acompanhado dos padrinhos e madrinha, os quaes eram os nossos conhecidos Visconde de ***, Conde de ***, e Baroneza de ***.

Mendonça entrou na sala aos pulinhos, por não poder abrir as pernas; comprimentou gravemente os padrinhos, inclinando a cabeça ao mesmo tempo que lhes dizia:

-- Vivam, passassem muito bem.

Porêm, com o movimento que fez, sentindo-se trilhado pela apertada calça, disse como para si, mas em tom que todos ouviram, fazendo ao mesmo tempo uma careta de dôr:

-- Uf! arre, que maldictas calças! não posso voltar-me para parte nenhuma!

N’este momento entrou na sala D. Pulcheria.

Vinha rica, porêm assaloiadamente vestida.

Podia classificar-se uma completa mascara, começando a analysal-a pelo rosto, o qual, á força de carmim e alvaiade, a fazia passar por uma actriz que não sabe caracterisar-se, ou então por uma ingleza embriagada.

Chegou com as ventas torcidas, dizendo a todos:

-- Não sei porque escolheram similhante hora para o casamento! Nem a gente tem tempo para se prepara r! Quasi que vim toda despenteiada!

O marido, vendo o mulher penteiada e vestida a seu gosto, quiz metter-se a gracioso, dizendo-lhe:

-- Ora, deixa-te d’isso, Pulcheria, olha que vens bem boa. Pareces-me mesmo uma cachopa. Acardita que se não fosse casado comtigo, casava-me hoje outra vez.

D. Pulcheria ficou toda desvanecida com os comprimentos do marido.

O que elle lhe acabava de dizer, recordou-lhe os seus tempos de donzella, e pareceu-lhe que o casamento que ia ter logar era o d’ella.

Olhando, por essa razão, para o marido, e vendo-o vestido de novo, a severa matrona recordou-se do dia das suas nupcias, e, chegando-se a elle, travou-lhe do braço, coisa que havia muito tempo não fazia, dizendo-lhe em voz baixa, e fictando-o sempre:

-- Então porque esperamos nós?

-- É verdade, perguntou Mendonça aos padrinhos, por que esperámos?

-- Pelo Conselheiro M*** e pelo Marquez de ***.

-- O Conselheiro, respondeu D. Pulcheria, mandou dizer que não podia vir, porque está doente de cama.

-- Sim?! perguntou o Visconde.

-- É verdade, respondeu Mendonça, está com um ataque de tricia.

-- Bem, disse o noivo, então falta-nos o Marquez de ***.

-- Olha, menino, emquanto o Marquez não chega, anda cá que te quero dizer uma coisa, disse D. Pulcheria ao marido com uma voz tão terna, que o gordo trasmontano não poude deixar de olhar para ella.

D. Pulcheria, encarando o marido, apertou-lhe significativamente o braço, e puchou-o para o interior da casa.

-- Esperem um momento, meus senhores, gritou Mendonça que ia a reboque pelo braço da esposa, que nós já voltâmos; a minha Pulcheria quer dezer-me um segredo.

E desappareceram ambos.

-- Os convidados olharam-se mutuamente, sorrindo-se alguns significativamente, e com um ar de ironia pouco lisonjeiro para os donos da casa.

Chegára já o Marquez de ***, e Mendonça e sua mulher não appareciam.

Era meia hora depois do meio dia quando os dois conjuges se dignaram apparecer na sala.

D. Pulcheria vinha um tanto despenteiada, e Mendonça trazia as faces afogueadas, e da côr da pelle do sardão.

-- Ó mamã, olhe que é quasi uma hora!... exclamou D. Filomena, que estava impaciente por caminhar para a igreja.

-- Antão, que queres tu, filha, respondeu a matrona, tive que combinar com teu pae algumas coisas importantes, e...

-- Bom, podemos partir, atalhou Mendonça, que estava um pouco enleiado.

E, dando o braço á mulher, depois de comprimentar brutalmente o Marquez de ***, dirigiu-se para a escada, sendo os dois esposos seguidos pelos padrinhos, noiva, e mais convidados para a boda.

Todos entraram em luzidos trens, que os conduziram rapida e fastosamente ao logar onde os noivos deviam unir-se pelos laços matrimoniaes.

Mendonça cada vez estava mais apoquentado com o aperto da sua calça nova.

O pobre homem, ao apeiar-se, tinha sido trilhado, e ora mordia os labios com a dôr aguda que o apoquentava, ora passeiava pela igreja, a passos curtos, fazendo de quando em quando: «uf! uf!» e uma careta de dôr.

No acto, porêm, da ceremonia nupcial, em que foi necessario ajoelhar, é que o gordo trasmontano se deu tratos para conseguir pôr um joelho em terra e inclinar o corpo para diante. Não poude conter-se, que não deixasse ouvir ao auditorio, quando procurava ajoelhar:

-- Ai! ai! que me leva o diabo!

-- Que tem, meu pae? perguntou o Barão, vendo que o sogro estava soffrendo.

-- Que êde ter, hóme? são estas maldictas calças que me apoquentam como mil diabos!

E, não podendo estar mais tempo de joelhos, tentou levantar-se, emquanto o Barão lhe dizia em voz baixa:

-- É melhor, então, sair da igreja e retirar-se; eu cá o desculparei perante os convidados.

-- É verdade, diz bem, meu genro, continuou o gordo provinciano, sempre tentando levantar-se, porêm em vão; eu retiro-me.

E, agarrou-se ao braço do genro, para, d’este modo, poder erguer-se; porêm n’este movimento, a calça, que estava esticada a mais não poder, rebentou desde o trazeiro até ao embigo do gordo trasmontano, produzindo, um som exquisito e forte que fez voltar todas as cabeças para o lado onde estava o proprietario.

Este, sentindo-se alliviado das enormes talas em que estava, deu um suspiro de satisfação, exclamando:

-- Ainda bem que rebentaram, porque eu já não podia mais.

E levantou-se sem custo, não reparado que fazia a figura d’uma criança que ainda usa calças abertas, por necessarias conveniencias.

Todas as pessoas que viram levantar-se Mendonça, e, por consequencia, o estado em que ficára, vendo-lhe as ceroulas desde o embigo, não poderam conter um sorriso, e todas, á uma, cochicharam ao ouvido do seu visinho mais proximo.

D. Pulcheria foi advertida pela madrinha do casamento de sua filha, do estado indecente em que se achava seu marido.

Este, como já não tinha dôres, aproximára-se do grupo, porque o Barão tinha-o largado por ser necessaria a sua presença perlo do sacerdote e da noiva.

O provinciano estava risonho, sem lhe importar com o tremendo rasgão da calça, por não saber que se achava em estado indecente, quando sua mulher, chegando-se a elle, lhe disse em voz baixa:

-- Vê como estás, homem; olha que tens as ceroulas á véla desde a barriga.

-- Sim?! disse Mendonça, curvando-se para examinar o estado em que se achava. Oh! com todos os diabos, exclamou elle, esquecendo-se que estava na igreja; estou uma figura indecente!

Um «scio!» do padre fez-lhe abaixar a voz, porêm não se calou, perguntando a sua mulher:

-- Ó Pulcheria, como hade ser isto agora? o que êde eu fazer para tapar este buraco?

-- Tapa isso com o chapéo, meu Zésinho; anda, para não te fazerem critiga.

Mendonça adoptou o conselho de sua mulher, e até acabar a ceremonia conjugal e entrar na carruagem, teve sempre o chapéo, seguro pela mão esquerda, a cobrir o formidavel rasgão que o punha em indecente figura.

Acabada a ceremonia, a menina D. Filomena, chamada d’ahi por diante, a senhora Baroneza de ***, subiu com o esposo para a carruagem d’este, entrando os paes da noiva, padrinhos e convidados, para as suas, e dirigindo-se todo o cortejo para o palacio do gordo Mendonça.

Este, assim que se viu em casa, despiu logo a calça e a casaca, pondo-se como estava antes de lhe chegar o fato do alfayate.

Um lauto jantar foi servido a todos os convidados, os quaes augmentaram depois da vinda do cortego, da igreja.

O nosso Mendonça, fazendo as honras aos hospedes, apresentou-se na meza em ceroulas e camiza.

Estavam, finalmente, consumados os cúpidos desejos do Barão de ***, o qual, havia muito tempo, procurava para esposa uma donzella ou viuva, comtanto que fosse rica.

O aristocrata perdêra a joven hespanhola, que os leitores já conhecem desde a primeira parte d’esta obra, porêm ganhára com a espera, casando com a rica herdeira do morgado Mendonça.

CAPITULO IV

O que póde resultar da perda d’uma eleição

O Conselheiro M***, que nós vimos andar em tanta actividade, angariando eleitores, por parte do governo, perdêra infelizmente todo o seu insano trabalho, porque o candidato proposto pelo seu circulo foi preterido por minoria de votos.

O Conselheiro fôra complelamente ludibriado pela maioria dos eleitores, seus adeptos, os quaes, como se costuma dizer, comeram a isca e..., comendo-lhe o dinheiro, e não comparecendo á urna.

Por este motivo, o Conselheiro, grandemente apaixonado, já pela perda de não pouco cabedal pecuniario, que despendêra, alem do que lhe déra o governo, como por não ganhar a commenda tão ambicionada, recolheu-se á cama no dia seguinte ao das eleições, adoentado e cançado, tanto physica como moralmente.

N’esse mesmo dia foi visital-o um eleitor, o qual lhe foi pedir desculpa de não haver comparecido, por causa de doença de familia.

Era dos taes eleitores assalariados.

O Conselheiro, que retinha, no interior, profunda colera, deixou-a reassumir, por achar contra quem a descarregar.

Por consequencia, gritou, berrou e vociferou contra o eleitor, terminando, já muito rouco, por lhe dizer:

-- Ponha-se no meio da rua, seu tratante, e nunca mais me ponha os pés cá em casa.

No dia seguinte acordou com as alvas dos olhos pronunciadamente amarelladas, e com febre.

O Conselheiro estava, pois, com um furioso ataque de ictericia.

A conselheira, desesperada com o marido por elle perder dinheiro, e não ganhar a commenda, quando elle a mandou chamar ao seu quarto para lhe dizer que estava doente, ella, depois de ouvir-lhe os queixumes, e julgando que toda aquella lamuria do Conselheiro a respeito de doença era fingida, para não a ouvir ralhar, disse-lhe, meneiando a cabeça com raiva:

-- Eu não lhe dizia, seu pedaço d’asno, que se acautelasse, tanto em não despender dinheiro como em não se esfalfar! Agora, continuou ella, chore na cama, que é parte quente, seu papalvo, seu estupido, seu palerma!

-- Ó menina, tu queres dar cabo de mim com essas tuas invectivas... Então, que lhe havemos nós fazer? Perdi... acabou-se; o que eu quero agora é a saude.

-- Pois, olhe, faço votos para que você fique de cama para sempre.

E, dizendo estas ultimas palavras, lisonjeiras para um marido enfermo, retirou-se apressadamente do quarto do Conselheiro.

Este, ficando só, começou a meditar no que sua mulher lhe desejava, e como era muito scismatico e supersticioso, começou a ter medo que se realisassem os desejos da esposa.

Estas idéas fizeram com que lhe augmentasse a lebre, e que passasse a noite variado.

O medico do Conselheiro foi chamado, e observando o enfermo, declarou que a violenta crise febril em que elle se achava, era perigosa se não cedesse aos medicamentos.

O Conselheiro sentiu algumas melhoras com os remedios que lhe foram applicados, porêm recaiu por causa das continuas injurias que sua mulher lhe dirigia.

Por consequencia, a febre progrediu, e tornou a fazer tresvariar o Conselheiro.

Eram já passados tres dias, e o facultativo, vendo que o enfermo estava em imminente perigo de vida, participou á esposa do Conselheiro que seria bom tomar as precauções christãs em identicos casos. Na manhã do quarto dia, o Conselheiro, tendo alguns allivios, chamou a mulher, e depois d’esta chegar, disse-lhe com voz quasi inintelligivel pelo abatimento em que estava, causado pela febre e fortes medicamentos:

-- Manda procurar meu sobrinho, porque preciso irremediavelmente fallar-lhe.

-- Ora, que lembrança! exclamou a mulher com um tom ironico.

-- Veja lá se executa o que lhe digo, continuou o Conselheiro com esforço, porque, do contrario, dou ordem a alguem para fazer o que lhe pedi.

-- E aonde pára elle... o senhor sabe?

-- É sargento d'infanterta n.°..., respondeu o Conselheiro.

A conselheira, mordendo os labios de despeito, saiu do quarto do marido, dando ordem ao criado para procurar José Pereira da parte do Conselheiro, e dizer-lhe que se dirigisse a sua casa, o mais depressa possivel, por elle se achar muito doente.

CAPITULO V

Ingratidão paga com gratidão

José Pereira já obtivera a licença do seu coronel para poder ultimar o matrimonio com Amelia.

Dizia-se, mesmo em voz baixa, no quartel, que o commandante do corpo seria um dos padrinhos do casamento.

O mancebo, pois, estava prestes a mandar correr os banhos e ultimar as formalidades do estylo, para se unir para sempre á mulher a quem muito amava.

Uma tarde, estava elle em casa, descançando, por ter saído da guarda, quando acordou ao baterem-lhe á porta.

Perguntou quem batia, e uma voz desconhecida disse, da escada:

-- Aqui é que mora o senhor Pereira, sargento do regimento de infanteria n.°...?

-- É aqui mesmo; que pretende o senhor? Tornou a perguntar o mancebo, vestindo a calça, e arranjando-se para apparecer ao desconhecido.

-- Venho de casa do senhor conselheiro M*** com um recado para o senhor.

José Pereira abriu a porta, e viu um homem, para elle estranho, o qual, pelo vestuario, demonstrava ser criado de servir.

Mandou-o entrar e assentar-se, porêm o criado não aceitou a segunda parte do convite, conservando-se de pé.

-- Sou eu, quem o senhor procura, disse o mancebo ao desconhecido, que era, nem mais nem menos do que o senhor André, criado inculcado ao Conselheiro pelo senhor Visconde de ***, apto para o negregado serviço de interceptar a correspondencia do mancebo e da finada D. Julia, e que o Conselheiro conservára ao seu serviço desde essa epocha.

-- Pois eu, disse o criado, venho mandado pela senhora, mas em nome do senhor Conselheiro, participar ao senhor sargento que, para um caso muito urgente, vá faltar com o patrão. Elle está muito mal! continuou o criado como em confidencial mexeriquice.

José Pereira, que estava attonito com o que o criado lhe dizia, ouvindo as ultimas palavras, não poude deixar de exclamar afflicto, por ouvir dizer que seu tio estava mal de saude:

-- Pois, meu... quero dizer, o senhor Conselheiro M*** está perigosamente enfermo?!

-- E tanto, continuou o criado, que foi confessado hontem, e sacramentado esta manhã.

O mancebo, ouvindo estas palavras, apezar do mal que seu tio lhe fizera, não poude conter-se que não lhe chegassem as lagrimas aos olhos, por lhe constar o estado em que se achava seu tio, o unico parente que lhe restava, e do qual poderia ser um verdadeiro amigo, se elle tambe, lhe correspondesse da mesma sorte.

-- Está bem, disse elle ao criado com a voz commovida pela magua, fico sciente do que me communicou. Peço-lhe que diga ao senhor Conselheiro ou á esposa, que hoje mesmo cumprirei as suas ordens.

O criado saiu, desconfiando que havia mysterio entre o patrão e o mancebo, pois lembrava-se perfeitamente da subtracção, feita por elle, da correspondencia do mancebo com a defuncta pupilla do Conselheiro.

Quando ia na rua, ouviu uma voz chamal-o pelo seu nome, e, voltando-se, viu Gertrudes, que lhe dizia da porta do logar:

-- Olá, sôr André, por aqui! Isto é grande novidade!

-- Adeus, sêra Getrudes, disse o criado vendo a antiga collega: então está aqui estabelecida?

-- É verdade que sim. Então que veio cá fazer á rua, não me dirá?

-- Vim dar um recado a um sargento que móra cá na agua-furtada.

-- Sim? perguntou a rapariga com curiosidade.

-- É verdade, um recado do meu patrão.

-- Vocemecê ainda está em casa do senhor Conselheiro M***?

-- Ainda, sim, senhor.

-- Então, elle é que o mandou dar um recado ao sobrinho?

-- Ao sobrinho?!

-- Sim, o sargento é sobrinho d’elle.

-- Que me diz, sêra Getrudes! pois o rapaz que esteve no Limoeiro é sobrinho do meu patrão?!

• Tão certo como vocemecê e eu estarmos fallando um com o outro.

-- Pois o Conselheiro parece-me que estica canella, continuou o criado, para mudar de face a conversação; tomou hoje Nosso-Pae.

-- Que me diz, sôr André! exclamou a rapariga contristada, pois o meu antigo patrão?...

-- Está muito mal.

-- Coitadinho! continuou a sensivel rapariga, com as lagrimas nos olhos.

E depois d’um momento de silencio:

-- Pois vou visital-o, disse ella com resolução; talvez a senhora se zangue comigo... mas é o mesmo; cumpro a minha obrigação.

-- Faça o que quizer, sêra Getrudes; eu cá, no seu caso, tambem fazia o mesmo... sempre podia apanhar alguma chelpa.

-- Ó sôr André, que diz vocemecê?! Acredite que se vou visitar o senhor Conselheiro não é com a idéa de que elle me dê coisa alguma, e mesmo, graças a Deus, tenho aqui o meu negociosinho, e vou-me arranjando menos mal.

-- Olhe que não é com a idéa de a oflender, sêra Getrudes, que eu lhe digo isto; nós sêmos pobres... e então...

-- É verdade, mas eu, desde o dia em que sai lá de casa, nunca me cheguei á porta do senhor Conselheiro, a vêr se elle me dava alguma coisa, e se vou lá agora é porque desejo unicamente vêl-o, para saber o estado em que elle está. Olhe, sôr André, isto não é desejar mal, nem ao senhor Conselheiro nem á senhora, mas assim Deus me ajude, em como se eu os visse em necessidade, lhes havia de valer com o que podesse. Sempre foram meus amos uns poucos de annos e... apezar de me lembrarem certas coisas... tenho pena d’aquella casa.

E a bondosa rapariga não poude por mais tempo suster as lagrimas que lhe rebentaram com abundancia.

O venal e astuto criado entendeu que era tempo de se separar da antiga companheira, para não se comprometter d’algum modo, e por isso lhe disse:

-- Sêra Getrudes, eu não posso demorar-me mais; talvez lá em casa precisem de mim...

-- Vá, sór André, vá depressa, e até logo.

O criado separou-se, pensando comsigo:

-- A espertalhona julga que comi a peta d’ella querer ir a casa de meu amo para o vêr! Que desinteresse! Ah! ah! ah!

É sempre assim, n’este mundo: os bons são julgados pelos máus do modo que Gertrudes foi julgada por André.

N’essa mesma tarde, José Pereira e a antiga criada grave do Conselheiro M*** dirigiram-se, juntos, a casa do moribundo aristocrata.

CAPITULO VI

Compra de dez réis de Paraizo

O mancebo e a ex-criada, entrando na casa que para elles tinha tão doces e ao mesmo tempo tristissimas recordações, sentiram opprimir-se-lhes os corações.

José Pereira e Gertrudes, depois de se annunciarem, foram introduzidos por uma criada para uma ante-sala, muito sua conhecida.

Ahi esperaram, silenciosa e tristemente, dez minutos, ambos cabisbaixos, quando a porta da sala se abriu, e a mulher do Conselheiro, apparecendo á mesma, disse-lhes com modo sêcco, frio e reservado:

-- Fazem favor de entrar para aqui?

Os dois levantaram-se em silencio, desanimados e sem poderem articular palavra, pelas diversas e agudas commoções que sentiam, ao entrar n’um local out’rora tão seu conhecido, e para elles de tão saudosas lembranças.

Alem d’isso, o tom em que a dona da casa lhes fallou, foi como uma chapa de ferro que lhes tapasse as bocas.

-- Então como tem passado o senhor Pereira? continuou a conselheira no mesmo tom.

-- Menos mal, minha... senhora, respondeu José Pereira com a voz commovida.

-- Então, você tambem por cá, senhora Gertrudes?! continuou a conselheira, dirigindo-se á sua antiga criada; isto é muito para admirar!

-- Eu, minha senhora, disse a rapariga enleiada e córando muito, como me constou pelo André que o senhor Conselheiro estava muito mal, por isso vim cá visital-o e...

E não poude continuar, porque começou a soluçar e a verter abundantes lagrimas.

A mulher do Conselheiro, admirada ou talvez commovida por vêr tanta gratidão na criada, que, sem motivo algum de queixa contra ella, despedira de sua casa, para não se curvar perante a sensibilidade e gratidão da rapariga, levantou-se e, caminhando para o corredor, disse aos dois intrusos com voz um tanto abalada, porêm que diligenciou por conservar firme:

-- Então, se querem vêr o senhor Conselheiro, sigam-me.

José Pereira e Gertrudes seguiram mudamente a mulher do Conselheiro M***, a qual os conduziu ao quarto onde jazia o marido, e que estava cheio de intimos do Conselheiro, entre os quaes se achavam o Barão de *** e o Marquez de ***.

A conselheira, depois de recommendar ao mancebo e á rapariga que não conversassem muito, nem em voz alta, com seu marido, pelo estado de debilidade e doença em que este se achava, entrando no quarto, chegou-so ao leito do moribundo, e disse-lhe em voz baixa, porêm que todos ouviram:

-- Olhe que está ali o senhor Pereira e outra pessoa, que pretendem fallar-lhe.

O enfermo estava n’um estado de lastimosa prostração; porêm, ao ouvir o que a esposa lhe dizia, abriu os olhos e disse com voz debil so bem que intelligivel:

-- Sim?! então que entrem.

E diligenciou, porêm debalde, assentar-se na cama.

A conselheira mandou entrar os dois filhos do povo, os quaes immediatamente obedeceram ao convite, ainda que com bastante acanhamento.

Os aristocratas que estavam no quarto do Conselheiro, assim que viram entrar o sargento, acompanhado por uma mulher do capote e lenço, sairam immediatamente d’ali, conservando-se unicamente assentados, o tabellião e o escrevente, os quaes acabavam de fechar o testamento.

O mancebo aproximou-se da cabeceira do tio, e agarrando-lhe na mão e beijando-lh’a, perguntou-lhe com anciedade, por vêr o deploravel estado em que elle se achava:

-- Então, como está, meu?...

Porêm, reconsiderando e conhecendo que commettia uma inconveniencia, terminou a phrase:

-- Como está o senhor Conselheiro? vai passando melhor?

O enfermo estendeu os labios e moveu a cabeça, dizendo com a mesma voz debil e sumida pela fraqueza e debilidade:

-- Isto vai mal, muito mal!

-- Oh! mas Vossa Excellencia não deve esmorecer, continuou José Pereira, tenha animo, que hade melhorar.

O Conselheiro abanou a cabeça, e depois de repetir este movimento mudamente umas duas ou tres vezes, continuou, fallando com o sobrinho:

-- Então, vocemecê recebeu o meu recado?

-- É verdade. Porêm, como soube Vossa Excellencia... que, eu morava ali, e que era militar?

-- Onde mora, não sei, disso o Conselheiro, porêm sei que é militar, porque o vi um dia commandando uma guarda.

E, dando um impulso ao corpo, para se voltar, deparou com Gertrudes, que se conservava de pê, distante do leito:

-- Quem está ali? perguntou o Conselheiro, que pela extrema debilidade em que tinha a vista, não podia differençar ninguem que não estivesse junto d’elle.

-- Aquella é a senhora Gertrudes, criada grave que foi de Vossa Excellencia, a qual é minha visinha, e, sabendo pelo seu criado, que Vossa Excellencia estava enfermo, veio tambem visilal-o espontaneamente.

O Conselheiro fez signal com a mão a Gertrudes para se lhe aproximar, e, vendo-a perto do si, disse-lhe com um modo um tanto benefico:

-- Então, tambem quiz visitar-me, senhora Gertrudes, apezar de eu me esquecer de você?

E, ficando um momento silencioso, continuou:

-- Agradeço-lhe essa prova de gratidão.

E voltando-se para o tabellião, fez-lhe um signal para este se aproximar d’elle.

O tabellião chegou-se á cabeceira do Conselheiro, e este disse-lhe:

-- Peço-lhe que leia aqui a meu... ao senhor José Pereira o meu testamento.

-- Pois não, senhor Conselheiro! respondeu o tabellião; com mil vontades.

-- Eu mandei-o chamar, continuou o Conselheiro, fallando com o sobrinho, para o vêr ainda uma vez, e dar-lhe uma remuneração dos seus infortunios passados.

E, acabando de dizer estas palavras, vendo que o tabellião estava prompto para começar a leitura, calou-se indicando a José Pereira que prestasse attenção.

O tabellião leu o testamento, no qual estavam exaradas enormes quantias para se dizerem missas pelas almas, grossos donativos para diversas confrarias, etc., e a quantia de dez contos de réis, em metal sonante, legada a José Pereira, primeiro sargento do regimento do infanteria n.°...

José Pereira, recebendo tão inesperada nova, subiu-lhe a côr ao rosto com a alegria; porêm, depois d’este primeiro choque, sentindo-se vexado com este donativo, por imaginar que seu tio o queria remunerar, em consequencia do desgraçado successo que deu logar a elle estar seis mezes no Limoeiro, disse ao Conselheiro com voz magoada e firme:

-- Senhor Conselheiro, eu não desejo que Vossa Excellencia se sacrifique para me remunerar d’uma infelicidade que me succedeu, ha já bastante tempo, e da qual Vossa Excellencia não teve culpa. Porêm, a magua que me resta, é eu não ter podido justificar-me, porque fui condemnado injustamente pelo crime que me imputaram.

-- Bem, disse o Conselheiro a custo, como querendo esquecer o que lhe dizia o mancebo, não fallemos mais n’isso. Acredite, senhor Pereira, continuou elle, que conheço agora a sua innocencia, e quem é o culpado; porém, é um segredo que, a meu pezar, levarei para a sepultura.

E o Conselheiro, talvez com acerbos remorsos, calou-se, fechou os olhos e ficou immerso em uma especie de prostração que por alguns momentos o privou da falla.

Depois de um profundo silencio, tornando a abrir as palpebras, olhou para o sobrinho, o qual tambem emmudecêra d’alegria, e continuou:

-- Já vê que não deve viver por mais tempo maguado. Aceite o que lhe quero dar, seja feliz e... adeus.

E estendeu a mão direita ao mancebo, o qual se apoderou d’ella com força, osculando-a ardentemente, e exclamando ao mesmo tempo:

-- Ah! senhor Conselheiro! que ventura é a minha em ouvir a Vossa Excellencia o que acaba de me dizer! Embora aos olhos do mundo passasse e passe ainda por um ladrão, não me importa; o que anhelava, pelo que eu suspirava ardentemente, era que Vossa Excellencia acreditasse na minha innocencia...

Aqui foi interrompido por alguns dos intimos do Conselheiro, que lhe disseram em voz baixa, com requintada diplomacia:

-- Desculpe-nos Vossa Senboria; porêm, bem conhece que, no estado em que se acha o enfermo, todo o socego é necessario para que o seu estado nao peiore.

-- Oh! meus senhores, disse José Pereira baixando a voz, peço mil desculpas, se me exaltei a ponto de perturbar a tranquillidade tão necessaria ao senhor Conselheiro, porêm a minha alegria foi tamanha por lhe ouvir dos proprios labios aquellas palavras, que são a minha absolvição, que não pude ser senhor de mim, expondo-me a ser classificado de máu e egoista. Mil perdões, meus senhores.

O Conselheiro fizera signal ao tabellião para lhe fallar, e este aproximou-se da cabeceira do enfermo.

Os aristocratas, vendo isto, observaram a José Pereira que o Conselheiro pretendia fallar.

O mancebo, á vista d’isto, moderou o seu enthusiasmo e alegria, ficando mudo como os demais assistentes.

-- Senhor labellião, perguntou o enfermo, seria ainda possivel accrescentar no testamento um donativo?

-- Pois não, senhor Conselheiro! o que Vossa Excellencia quizer; ainda cá estão as testemunhas...

-- Pois então, continuou o enfermo, accrescente que lego dez moedas á minha ex-criada grave, Gertrudes da Silva, aqui presente, em remuneração dos bons serviços que me prestou outr’ora.

-- Oh! senhor Conselheiro! balbuciou a rapariga, eu não vim cá para...

Em gesto do enfermo a fez calar.

-- Bem sei, senhora Gertrudes, que não veio cá para eu lhe dar coisa alguma, disse o Conselheiro á sua antiga criada; é espontaneamente, e por minha livre vontade, que lhe dou esta quantia; reze por mim nas suas orações, e aceite o que lhe dou.

N’este momento, porêm, entrou o medico, e vendo o quarto do enfermo cheio de gente, fez uma careta e disse em voz baixa á mulher do Conselheiro, que o viera

acompanhar até á porta do quarto:

-- Minha senhora, eu desejava bastante que deixassem o enfermo a sós. Este ajuntamento, e estas conversações são muito nocivos a seu esposo.

-- Senhor doutor, disse a conselheira, como meu marido quiz fazer o testamento, e creio que ainda não está acabado, é a razão por que eu não pude oppôr-me a que entrassem n’este quarto as testemunhas, o tabellião... Porêm, creio que está acabado, continuou ella, vendo o tabellião levantar-se para se retirar.

-- Ainda bem, disse o medico.

O tabellião e o escrevente sairam, e atraz d’elles os intimos do Conselheiro.

José Pereira e Gertrudes foram os ultimos a sair.

O mancebo, antes de deixar seu tio, não poude deixar de lhe pedir em voz baixa a benção, o que não lhe foi recusado pelo tio, deitando-lh’a imperceptivelmente, e dizendo-lhe, pela ultima vez, com voz quasi extincta:

-- Adeus, José, sê feliz.

-- Senhor Conselheiro, disse Gertrudes ao enfermo, com as lagrimas nos olhos, muito agradecida pela attenção que teve comigo.

-- Adeus, senhora Gertrudes, disse o Conselheiro fechando os olhos, pela extrema fraqueza em que estava; não se esqueça de orar pela minha alma.

O mancebo e a rapariga sairam tambem do quarto do enfermo, despedindo-se da dona da casa e de todos os intimos do Conselheiro, os quaes comprimentaram affectuosamente o sargento, chegando o Marquez de *** a apertar-lhe a mão.

CAPITULO VII

Ultimas honras de um eleitor aristocrata

O Conselheiro, com os exforços que fizera para fallar tanto, as commoções e remorsos que sentira, vendo diante de si dois entes a quem elle tinha esbulhado do que lhes pertencia, depois da saia de todos do seu quarto, começou a ser fortemente invadido pela febre, e a delirar.

O medico, vendo o estado do enfermo, meneiou a cabeça, receitando quatro vesicatorios para lhe serem applicados nas costas, estomago e pernas.

Depois de formulada a receita, saiu, dizendo á mulher do Conselheiro que não dava nada pelo doente.

De facto, apezar de serem applicados ao moribundo Conselheiro os medicamentos prescriptos pelo facultativo, o enfermo, peiorando consideravelmente, exhalou o ultimo suspiro na madrugada do dia seguinte.

José Pereira e Gertrudes, que foram às nove da manhã saber noticias do Conselheiro, receberam a triste noticia do seu fallecimento.

Ambos se retiraram oppressos de sentimento, Gertrudes ao seu logar, e José Pereira á sua agua-furtada.

Gertrudes foi desabafar com seu velho pae, a pena que sentia pelo fallecimento de seu antigo amo, e o mancebo depositar as suas maguas, pela perda do tio, no seio da sua fiel Amelia, a qual tambem partilhou das penas do seu querido.

D. Thereza, como senhora animosa e habituada ao soffrimento, procurou com animadoras palavras, consolar o mancebo.

-- Senhor Pereira, dizia ella ao sargento, é muito apreciavel o sentimento que o senhor mostra por seu tio; eu louvo-o muito por isso, é uma prova da bondade do seu coração; porêm, sabe perfeitamente que não somos eternos, e que estamos n’este mundo sujeitos a identicos golpes. Desanuvie a mente d'essas idéas, e pense na sua felicidade futura.

José Pereira, ao ouvir estas e outras exhortações similhantes, da honesta viuva, sentiu grande allivio na sua magua.

Amelia, que estava junto ao mancebo, e que tambem lhe dizia palavras d’amor e de consolação, muito contribuiu para as melhoras moraes de José Pereira.

-- Então, meu querido, lhe dizia ella em voz baixa, com acanhamento, pela presença da amiga, porêm terna e apaixonada, o amor da tua Amelia não te póde ainda fazer muito feliz?

-- Oh! sim!... respondeu José Poreira, apoderando-se d’uma das mãos da joven e apertando-a com força, ao mesmo tempo que a fictava amorosamente.

Amelia, vendo o olhar apaixonado e terno que lhe lançára o mancebo, baixou os seus lindos e meigos olhos, córando de pudor.

-- Oh! continuou José Pereira sempre estreitando entre as suas a mão da donzella, se me faltasse o teu amor, minha Amelia, não podia sobreviver ao abandono e solidão em que vivo. Estou convencido que só a força do teu amor me fará ditoso.

-- Meu querido, respondeu Amelia, tornando a olhar para o mancebo; de facto, nós nascemos um para o outro, porque estamos sós no mundo, sem parentes, sem amigos...

-- Então, eu, Amelia, perguntou D. Thereza em tom triste e reprehensivo, não sou tua amiga?! Assim desprezas a minha amizade?... Eu, que tambem estou só no mundo, a respeito de parentes, e que julgava ter uma amiga que igualmente me correspondia na affeição!...

-- Oh! minha querida amiga! exclamou Amelia, beijando e abraçando com fervor D. Thereza; peço mil perdões se a offendi, porêm foi inconsideradamente... Pois eu poderia nunca desconhecer a amizade da minha querida amiga, e deixar de lhe corresponder?! Oh! nunca!

D. Thereza, depois de corresponder ás caricias da donzella, disse-lhe:

-- Como tu dizias que estavas só no mundo, sem parentes e amigos!...

-- Eu referia-me a essas amizades que se adquirem na sociedade...

-- Deus te livre d’ellas, minha filha, disse D. Thereza; quasi sempre trazem a discordia domestica. É necessario ter rigorosa escolha n’essas amizades.

Estavam n’estas discussões, quando ouviram bater á porta da casa onde habitava José Pereira.

D. Thereza foi abrir, e viu um criado de libré.

Perguntou-lhe quem procurava, e o servo disse-lhe que procurava o senhor José Pereira.

A viuva chamou o mancebo, dizendo-lhe que o procuravam, e José Pereira immediatamente se apresentou para saber o que d’elle pretendiam.

-- Trago uma carta para Vossa Senhoria, disse o criado ao mancebo.

-- De quem é? perguntou José Pereira.

-- É do senhor Marquez de ***, respondeu o criado.

José Pereira certificou-se se a carta era ou não para elle, e depois de conhecer que lhe era dirigida, pediu licença a D. Thereza e a Amelia, e, abrindo-a, leu para si o que se segue:

Ill.mo Sr.

«Como intimo amigo do fallecido Conselheiro M***, tomo a liberdade de convidar Vossa Senhoria para assistir ao funeral do meu e seu amigo, o qual deve ter logar ámanhã, ás duas horas da tarde, podendo Vossa Senhoria dirigir-se ao meu palacio, rua de..., no qual achará á sua disposição a minha carruagem para o conduzir em companhia do

De V. S.ª att.° v.or

S. C. 2 d’outubro

de 185.

«MARQUEZ DE ***.»

José Pereira, depois de lêr a attenciosa carta do Marquez de ***, pediu desculpa ás duas senhoras para se retirar a sua casa, dizendo ao criado que se demorasse um pouco emquanto elle respondia a Sua Excellencia.

E, pegando na penna, respondeu ao Marquez:

Ex.mo Sr.

«Penhorado em extremo pelo obzequioso convite de Vossa Excellencia, muito agradeço, e aceito a honra que se dignou fazer-me, pois o meu maior desejo é assistir ás ultimas honras devidas ao finado senhor Conselheiro M***.

«Pela delicada attenção que Vossa Excellencia teve comigo, e pelo honroso logar que me destina, muito reconhecido se confessa o

De V. Ex.ª

C. de V. Ex.ª

2 d’outubro

de 1855.

humilissimo servo e mt.° obg.°

«JOSÉ PEREIRA.»

Depois de lacrar e sobrescriptar esta carta, entregou-a ao lacaio, dizendo-lhe que era para entregar ao senhor Marquez.

O criado retirou-se, fazendo muitos rapa-pés, sem duvida encommendados pelo amo, deixando José Pereira lisongeado, e quasi orgulhoso por ter tido a honra de receber um convite para se assentar ao lado do Marquez de *** e de mais a mais na carruagem do proprio aristocrata.

Oh! se o mancebo soubesse o que devia á aristocracia, ou antes, o de que a aristocracia lhe era devedora, com certeza desprezaria, tanto a carta do Marquez, como os seus calculados offerecimentos, e as honras premeditadas que elle lhe proporcionava.

José Pereira, depois da saida do lacaio, foi todo ufano mostrar a carta do Marquez a Amelia e a D. Thereza, as quaes, depois de a terem lido, lhe disseram:

-- Na verdade, é grande a honra que o senhor Pereira recebe; porêm acredite que se não fosse merecedor de a receber, com certeza o Marquez lhe não escrevia nem offerecia o que lhe offerece.

José Pereira, lisongeado em extremo pelo que lhe acabavam de dizer as duas senhoras, esperou com anciedade pelo dia seguinte, no qual estava de folga, e quando era uma hora, depois de haver obtido do seu Coronel, licença para poder uniformisar-se em grande gala, saiu de casa, despedindo-se affectuosamente de Amelia e de D. Thereza, e dirigiu-se para o palacio do Marquez, logar indicado na carta do aristocrata, para d’ali partirem a encorporar-se ao acompanhamento.

Depois de se haver annunciado, o guarda-portão, tendo communicado para cima o nome da pessoa que se achava no pateo do palacio, e recebendo em voz baixa as ordens que um criado lhe veio trazer, abrindo um batente da porta que conduzia ao andar nobre, disse ao mancebo, com um modo obzequioso em requinte, franzindo a testa e piscando os olhos, o que significa que similhantes attenções não são mais que vendidas, pois são encommendadas pelos donos da casa.

José Pereira subiu, e um criado, vestido diplomaticamente de casaca e calça preta, colete branco e gravata da mesma côr, convidou a entrar o mancebo para uma sala mobilada luxuosa e ricament, edizendo-lhe em voz baixa, como em confidencia:

-- O senhor Marquez não tarda em se apresentar a Vossa Senhoria; porêm, emquanto elle não chega, a senhora Marqueza fará as honras da casa.

O mancebo entrou na sala, deparado logo á entrada com uma encantadora mulher de vinte e cinco annos de idade, quando muito, a qual lhe disse com um gracioso sorriso, fazendo-lhe um engraçado comprimento, e com a pronuncia um pouco resentida do idioma hespanhol:

-- O cavalheiro é o illustrissimo senhor José Pereira, amigo do fallecido Conselheiro M***, e tambem de meu marido?

-- Sou eu mesmo, excellentissima senhora.

-- Então, tem a bondade de esperar um pouco por meu marido, que está acabando de se vestir?

-- Oh! minha senhora, com todo o gosto, respondeu o mancebo inclinando-se profundamente diante da encantadora Marqueza.

-- Então!... queira assentar-se, senhor Pereira, continuou ella.

E, para dar o exemplo ao mancebo, assentou-se n’uma cadeira de braços, indicando a José Pereira outra que se achava na sua frente.

-- Com que então, o senhor era um dos amigos do Conselheiro, não é assim?

E a Marqueza, dizendo isto ao mancebo, e esperando que elle olhasse para ella, lançou-lhe uma olhadella tão terna, que, quem n’essa occasião a estivesse observando, diria que estava praticando a sós com um amante a quem idolatrava.

Oh! terrivel, hypocrita, interesseiro e aristocratico fingimento, que offuscas a verdade desinteressada e franca, acabando por fazer acreditar aos homens habituados a conviver com os aristocratas, que não existem no mundo senão a fraude, o fingimento e o engano! Quando findarão os teus perversos e nocivos resultados?

Ai de nós! só terão fim quando os nobres não fizerem casamentos de conveniencia, e se despirem das protervas ambições, que os arrastam a commetter todas as infamias conhecidas (com honrosas excepções para os fidalgos), para conseguirem viver a seu bel-prazer, e superiores ao povo, a quem ludibriam e despojam do que de direito lhe pertence.

Esta Marqueza já os leitores conhecem desde a primeira parte d’esta obra.

É a joven hespanhola que desdenhava o filho da Condessa de ***. que estivera para casar com o Barão de ***, e que, afinal, déra a mão sem o coração ao Marquez, o qual lhe pagou na mesma moeda, pois se casou com ella, foi unicamente attrahido pela fortuna da joven hespanholita.

José Pereira ficou fascinado com o olhar que lhe lançou a Marqueza, e, assentando-se, respondeu á pergunta da fidalga, baixando os olhos, e um tanto enleiado:

-- É verdade, excellentissima senhora, era um dos amigos do senhor Conselheiro, e bastante me penalisou a sua morte.

-- O senhor Pereira é casado? continuou a Marqueza, sempre fascinando o mancebo com o seu ardente e fingido olhar.

-- Não, minha senhora.

-- Ah! disse a Marqueza.

E, depois d’esta interjeição, ficou um momento em silencio.

José Pereira estava contrafeito na presença d’esta mulher, que possuia um encanto irresistivel e tinha o poder de fascinar com a vista.

Realmente, a Marqueza era o que se póde chamar uma linda creatura, quanto ao physico.

Depois de casada, as tendencias que tinha para a leviandade, augmentaram n’ella a tal ponto, que chegára até a ser o objecto de grande e ruidoso murmurio nas salas que frequentava.

O Marquez, seu marido, fazia ouvidos de mercador ao que lhe diziam os intimos a respeito de sua mulher, e vista grossa ao que pessoalmente via.

Porêm continuemos, e deixemos estas explicações para a parte seguinte da nossa obra.

José Pereira estava ainda assentado defronte da Marqueza, contemplando-lhe o lindo rosto, que ella tinha um pouco pendente e encostado á mão, pois se conservava n’uma estudada e muda posição, que nunca falhava aos seus planos, quando uma porta se abriu, e appareceu o Marquez.

Vinha todo vestido de preto, ornando-lhe o peito os habitos de Christo e de Aviz.

José Pereira levantou-se immediatamente, vendo entrar o Marquez na sala.

Este aproximou-se do mancebo, e com o sorriso protector e benevolente que os grandes usam para com os pequenos, disse-lhe, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão:

-- Bons dias, meu charo senhor Pereira; eu peço mil desculpas de o haver feito esperar tanto tempo.

-- Oh! senhor Marquez, disse José Pereira com algum acanhamento, o que eu sinto é que Vossa Excellencia se apressasse por minha causa.

-- Qual! continuou o Marquez; eu estava acabando de me vestir.

E depois d’um breve momento de silencio, continuou:

-- Tenho pena que já seja tarde, quando não, queria mostrar a Vossa Senhoria algumas preciosidades que tenho no meu gabinete, taes como bijouterias da India o China, etc. Porêm, desde já o convido para vir passar um dia comnosco, pois teremos, eu e minha esposa, muito gosto em o receber.

-- Oh! senhor Marquei, respondeu José Pereira, estou em extremo penhorado pelo honroso convite de Vossa Excellencia, porêm não sou digno...

-- O quê! por ser militar, e ainda não possuir uma banda? Em breve a terá.

-- Ah! senhor Marquez, disse José Pereira, penalisado, ainda faltam alguns annos para que eu seja official superior.

-- Ora, accrescentou o Marquez rindo, e o senhor Pereira não póde, com a fortuna que herdou, deixar-se da militança, que não deixa senão transtornos e incommodos na vida. Peça a baixa, ou dê um homem por si, e ficará descançado, gozando do juro do capital, que póde pôr a render.

E, como para acabar esta conversação, continuou, dirigindo-se a sua mulher:

-- Veja, menina, se os seus rogos terão mais poder para resolverem o senhor Pereira a ser d’hoje ávante uma das pessoas da nossa amizade. Acredite, continuou elle fallando com o mancebo, que desde que o vi pela primeira vez em casa do meu bom amigo, o Conselheiro M***, que Deus tenha em gloria... (e aqui deu um suspiro tão bem tingido que commoveu o mancebo) logo sympathisei com o senhor.

Depois d’isto, vendo que José Pereira permanecia pensativo e cabisbaixo, fez um signal de intelligencia a sua mulher, a qual, pegando affectuosamente na mão do mancebo, disse-lhe ao mesmo tempo com o tom de voz o mais carinhoso possivel, emquanto seu marido dizia que ia buscar as luvas que lhe haviam esquecido no seu quarto:

-- Então que é isso, senhor Pereira, está triste? Olhe que eu não gósto de vêr soffrer ninguem!

E olhando, depois d’isto, para todos os lados e certificando-se de que estavam ambos sós na sala, continuou, fallando com o mancebo em voz baixa, e como confidencialmente, apertando-lhe ao mesmo tempo amorosamente entre as suas aveludadas e lindas mãosinhas, a de José Pereira, que ainda não largára:

-- O senhor hade ser de hoje ávante dos nossos amigos, sim? Venha ámanhã, oh! não falte ámanhã a jantar comnosco! Cá o espero, sim?

-- Oh! minha senhora... respondeu José Pereira, encantado com as attenções da Marqueza.

N’este momento tornou a entrar o Marquez, e a astuciosa aristocrata largou repentinamente a mão do mancebo, como para fazer acreditar a este que a presença de seu marido viera estorval-os e lançar agua na fervura.

José Pereira estava attonito com o que presenceiára, porêm o marquez veio tiral-o d’esta admiração, dizendo-lhe:

-- Quando o senhor Pereira determinar, podemos sair.

E, assim como por demais, perguntou-lhe antes de sair, na presença de sua mulher:

-- Então, quando se resolve a vir passar comnosco um dia, ou quantos quizer?

-- O senhor Pereira, atalhou a Marqueza, já me prometteu que viria ámanhã.

-- Bom, bom! terminou o Marquez, então cá o esperaremos.

José Pereira, vendo que o Marquez ia sair, preparou-se para se despedir da encantadora Marqueza, com toda a gravidade e sisudez que devia usar para com ella, porém esta, dando-lhe a mão familiarmente, disse ao mancebo n’um tom que faria perder a desvairar o homem mais frio e circumspecto:

-- Então, cá o espero ámanhã.

E lançou ao mancebo um olhar que o fez desvairar de todo, e muito mais ainda, quando ella lhe deu um significativo e amoroso aperto de mão.

O Marquez, fez assentar José Pereira á sua direita, na carruagem, a qual caminhou apressadamente a encorporar-se ao cortejo funebre, que devia acompanhar os restos mortaes do Conselheiro á sua ultima morada terrestre.

O prestito compunha-se d'um rico coche, onde ia o cadaver, berlinda, levando os padres, acompanhados do cruxifixo, sem duvida, para evitar, n’estes actos ricos, que o demonio, no meio do caminho do cemiterio, se apodere... naturalmente do corpo do defuncto; receio que os hypocritas ministros do Christo não sentem, quando vão a pé acompanhar algum corpo que não deixou dinheiro para pagar o trem.

Porque não leva o carro dos mortos da Misericordia, ou dos hospitaes, acompanhamento de padres com crucifixos, até deixarem os corpos dos finados na sua ultima morada?

A resposta a esta pergunta, deixâmol-a á discrição dos nossos leitores.

O acompanhamento funebre que seguia o finado Conselheiro, compunha-se de cem vehiculos, entre os quaes se viam carruagens do seculo passado, traquitanas em pessimo estado, seges fazendo o estridor de carretas d'artilheria, puchadas por desventurados rossinantes com a pelle sobre o osso, fazendo um completo contraste com os luzidos e luzidios trens dos fidalgos, puchados por potentes egoas inglezas e magnificos cavallos d’Alther.

Os individuos que iam dentro d’estas equipagens, eram collegas do defuncto, pela maior parte, os quaes, uns mal o tinham conhecido em vida, e outros eram seus figadaes inimigos; porêm, por um inexplicavel mysterio, os individuos que representam na escala social, quanto mais altos estão e, por consequencia, mais inimigos teem durante a vida, maior quantidade de amigos os acompanham depois de mortos.

Miserias da vida, que praticam os miseraveis d’este mundo!

O prestito chegou ao cemiterio, e depois das vendidas orações, recitada pelos tonsurados, ultima compra de outros dez réis de paraizo, feita pelo defuncto ou sua familia, e das descargas que compeliam ao cadaver, por haver sido membro do Conselho de Sua Magestade, etc., etc., o nosso bem conhecido Visconde de ***, que fôra um dos maiores inimigos do finado, aconselhando-o sempre a praticar as mais vis infamias, tirou um papelucho da algibeira, e pedindo aos convidados que o attendessem, recitou, lendo, o seguinte discurso, que encommendára na vespera a um mancebo conhecido do auctor d’esta obra, e pelo qual lhe deu cinco tostões para beber um café, mettendo depois em conta á conselheira pelo preço de uma libra.

«Senhores:

«É a todos os illustres amigos do nobre finado que eu, compenetrado da mais acerba dôr e profundo sentimento, dirijo as pungentes bubas, dictadas unicamente pela enraizada amizade que tributava ao probo, benemerito, bondoso e talentoso excellentissimo senhor Conselheiro M***.

«Quem ha que possa dizer que Sua Excellencia, o nobre Conselheiro, deixou uma unica vez de cumprir na Terra a alta missão de que se encarregára, já desempenhando como digno e elevado funccionario publico, a sua ardua tarefa, sempre d’um modo irreprehensivel e satisfatorio, já cumprindo como homem particular, actos de virtude e de bondade, dignos de serem inscriptos nos livros da historia?!

«Quem, mais do que elle, exerceu a caridade, valendo sempre aos desprotegidos da fortuna, abrindo-lhes constantemente os braços quando elles imploravam o seu soccorro e protecção?!

«Se não temesse ser taxado de parcial, classifical-o-hia de «consolador dos afflictos.» Porêm quem haverá ahi que possa dar um desmentido a estas minhas debeis palavras que, apezar de serem pronunciadas por um sincero e verdadeiro amigo do illustre finado, são verdadeiras como a propria verdade?!

«E se, por desgraça, alguem duvidar do que deixo dito, quem deixará de couvencer-se das sublimes virtudes do excellentissimo senhor Conselheiro M***, sabendo o que elle praticou quando estava nos ultimos momentos?

«Não o diria eu, se não receiasse que alguem, duvidando de mim, por ser um dos intimos amigos de Sua Excellencia, pozesse tambem em duvida as virtudes do nobre e benemerito finado.

«Saibam pois, todos os seus amigos aqui presentes, que o caridoso e benefico senhor Conselheiro M*** legou a um mancebo que estava em más circumstancias, e de quem era amicissimo, apezar de o não mostrar por conveniencias sociaes, que deixo occultas, a enorme quantia de dez contos de réis; e a uma sua antiga criada, tambem pobre, outro legado, que a alliviará completamente da desgraça.

«Alem d’estes dois actos dignos de serem registrados nos archivos da posteridade, que pios e religiosos legados não deixou Sua Excellencia?!

«Enumeral-os todos, seria um nunca acabar.»

-- E quanto deixaria ao orador?... perguntou ao ouvido do seu visinho, um critico que ouvira todo o discurso.

-- Isso é o que não se póde saber, respondeu o outro.

«Senhores, continuou o Visconde, com a voz perfeitamente commovida, vendo que acabava de lêr o discurso encommendado, porêm sem produzir effeito no auditorio, a minha commoção não me deixa continuar a recitação do necrologio que compuz, e portanto, peço desculpa, porque a magua é mais forte do que eu, e embarga-me a voz...»

E, tirando um lenço da algibeira, levou-o aos olhos figurando, qual actor no palco, limpar as lagrimas saudosas que lhe brotavam dos olhos.

No mesmo instante, alguem da multidão, comprado para esse fim, rompeu um «bravo!» o qual foi repetido por algumas, porêm poucas vozes.

O caixão foi para a terra, á espera do tumulo, e os convidados retiraram-se a suas casas, sem sentirem a mais leve commoção, excepto um, que apezar de ter soffrido não poucas vexações do finado, chegou taciturno, triste e com os olhos vermelhos á sua modesta agua-furtada.

Era a victima do Conselheiro M***, o honesto e bondoso orphão, José Pereira, o democrata.

SETIMA PARTE

O MARQUEZ DE ***

CAPITULO I

Como se lança uma rêde

O testamenteiro do defuncto aristocrata, que era o nosso conhecido Commendador F***, tres dias depois da inhumação do cadaver, convidára os herdeiros do Conselheiro M*** a comparecerem em sua casa, e ali lhes entregou os legados, exigindo recibo a todos.

José Pereira, pois, recebendo os dez contos, tratou logo de dar um homem por si para completar o tempo que lhe faltava de praça no regimento em que se alistára.

Esta resolução fôra tomada por conselhos do Marquez de ***, que se fizera seu intimo amigo, e a rogos da linda Marqueza, que, no dia que seguiu ao do enterro do Conselheiro, e no qual José Pereira jantou em casa do aristocrata, como lhe promettêra, convenceu o mancebo de que era melhor ser civil do que militar.

O Marquez era o andor d’esta idéa, porque lhe convinha que a nobreza não murmurasse d’elle, por dar entrada no seu palacio a uma praça de pret.

José Pereira, pois, como dissémos, deixou de ser militar, contratando um homem para o substituir.

O mancebo, por conselho de D. Thereza. comprou cinco contos de réis d’inscripções, os quaes lhe iam produzir d’ahi em diante, o rendimento annual de trezentos mil réis.

Depois de haver assegurado o seu futuro, começou a comprar mobilia e varios outros objectos necessarios para o seu casamento.

Deu quinhentos mil réis a Amelia para tambem fazer os seus arranjos, e cem mil réis a D. Thereza, dizendo-lhes ao mesmo tempo:

-- De hoje ávante escusam de trabalhar para fóra.

D. Thereza não queria aceitar o dinheiro que lhe dava o mancebo, porêm José Pereira ohrigou-a a isso, dizendo-lhe, sorrindo, ao mesmo tempo que fazia um signal de intelligencia a Amelia:

-- Pois bem, senhora D. Thereza, são cem mil réis que eu lhe empresto, os quaes me pagará quando podér.

-- Ah! com essa condição, aceito, senhor Pereira, respondeu a viuva.

Depois d’isto, o mancebo, que nunca se esquecia dos desgraçados, foi ter com o visinho sapateiro e disse-lhe:

-- Mestre Theodoro, de hoje ávante escusa de trabalhar mais, eu me encarrego de o sustentar o vestir; e depois do meu casamento, irá viver na minha companhia.

-- Oh! meu querido senhor sargento! exclamou o velho contentissimo; pois Vossa Senhoria quer ter a caridade de aturar um velho rabugento em sua casa, e de mais a mais, dar-lhe de comer e vestir? Mas ainda agora eu reparo, continuou o sapateiro, que, como todos os do seu officio, era curioso em extremo, o senhor sargento vem vestido á paysana! Antão já não é militar?

-- É verdade que não; dei baixa...

-- Ah! atalhou o sapateiro, antão bem me tinham dito a mim pelo alto, que Vossa Senhoria recebeu uma herdança! Será verdade?

-- Assim é, senhor Theodoro, e é por essa razão que d'hoje ávante pertenço ao civil.

Depois d'isto, o mancebo, mettendo a mão na algibeira, tirou dinheiro e, dando-o ao sapateiro, disse-lhe ao mesmo tempo:

-- Aceite isto, emquanto não vai para minha casa, a qual em breve alugarei; é para comprar os seus arranjos diarios, e deixe totalmente o trabalho, porque você precisa descançar.

-- Oh! meu querido senhor, disso o sapateiro, recusando aceitar o dinheiro que lhe dava José Pereira, eu não devo por modo algum ser-lhe pezado...

-- Aceite, quando não, olhe que ficámos mal, replicou José Pereira, quasi obrigando o sapateiro a aceitar o que de boa vontade lhe offerecia.

Depois de lhe haver passado o dinheiro para a mão, o mancebo separou-se apressadamente do sapateiro, para evitar os agradecimentos que sempre incommodam as almas nobres.

O Marquez de *** e a seductora joven hespanhola, sua mulher, cathequisaram o mancebo a ir passar em sua companhia todas as noites: havia sempre jogo, e juntavam-se os heroes da nossa obra, taes como o Barão de *** que depois de casado com a filha de Mendonça, cada vez era mais acerrimo jogador batoteiro, o Visconde de *** e o Commendador F***.

José Pereira, para não fazer figura triste, começou tambem a entrar pelo jogo e a perder successivamente.

A linda Marqueza, para o consolar das perdas pecuniarias que soffria, dizia-lhe, lançando-lhe seductores olhares:

-- Então perdeu ainda d’esta vez, senhor Pereira?

-- É verdade, minha senhora.

-- Infeliz ao jogo... feliz nos amores.

E a astuta aristocrata, ao dizer estas palavras, fictava o mancebo d'um modo que o incendiava amorosamente.

Era necessario muitas vezes a José Pereira, para se conter, recordar-se que havia longe d’elle um anjo que deveras o amava, e ao qual não devia atraiçoar, por uma mulher bella, é verdade, porêm que já déra o seu coração a outro homem.

Uma noite a Marqueza, vendo o mancebo triste e pensativo, perguntou-lhe n’um tom sentimental d’encantar:

-- Que tem, senhor Pereira, que está hoje tão triste?

-- Nada, minha senhora, respondeu o mancebo hesitando.

-- Ah! senhor Pereira, continuou a astuciosa Marqueza, é impossivel que o senhor não tenha algum grande desgosto.

E, depois de baixar o rosto por um momento, ficando n’uma estudada posição meditativa e taciturna, continuou:

-- Aposto que são alguns namoricos!?...

-- Oh! minha senhora, pois acredita?...

-- Ora... diga que não; veja se é capaz de me convencer do contrario.

E depois d’outro momento de silencio, encarando o mancebo, disse-lhe tristemente e em tom de amarga reprehensão:

-- Não é bonito, senhor, que sendo eu sua amiga dedicada, não tenha confiança em mim, para depositar no meu seio as suas maguas, as quaes para mim são como se fossem propriamente as minhas.

Estas palavras foram ditas com tal força de expressão, que José Pereira, não podendo mais conter o segredo que só elle sabia, disse á aristocrata Dalila, com voz apaixonada pelos desgostos:

-- Ah! minha querida senhora Marqueza, Vossa Excellencia tem a arte de lêr nos corações! Peço mil perdões por não ter logo depositado em Vossa Excellencia as maguas que me apoquentam e mortificam.

A Marqueza, conhecendo que se tratava d'uma revelação ou declaração, poz um dedo nos labios em signal de silencio e, vendo que os individuos que se achavam na sala, entre os quaes estava seu marido, n’essa occasião estavam fortemente preoccupados n’uma partida de ronda, da qual era banqueiro o Visconde de ***, pegando na mão do mancebo e fazendo-lhe signal para a seguir, saiu da sala e encaminhou-o para um bonito gabinete, um pouco distame de onde estavam os jogadores.

Chegada ali, assentando-se n’um canapé estofado, fez signal a José Pereira para que este se assentasse ao lado d’ella.

-- Agora, póde fallar sem receio de ser ouvido, disse a Marqueza ao mancebo. Lá fóra não convinha, porque podiam censurar-nos e...

E para animar o mancebo a revelar-lhe o segredo que o opprimia, pegando-lhe nas mãos, disse-lhe carinhosamente, apertando-lh’as com ardor:

-- O senhor Pereira sofre, e soffre muito. Póde acreditar que se eu podér dar-lhe um lenitivo aos seus pezares, com certeza lh'o não recusarei.

-- Senhora Marqueza, o que vou dizer a Vossa Excellencia não o diria a ninguem, porque estou convencido que seria talvez o alvo do ridiculo. Porêm Vossa Excellencia é sensivel, boa e carinhosa, e então acho-a muito digna de lhe revelar as minhas maguas.

-- Muito obrigada, senhor Pereira, por essa forte confiança que deposita em mim.

-- Não deve agradecer-me, minha senhora, porque é a pura verdade do conceito em que a tenho. Saiba, minha senhora, que amo uma menina, a qual está para ser minha esposa dentro em breves dias: esta menina é um anjo de candura e bondade... não é bella como Vossa Excellencia... porêm, tem os mesmos dotes moraes.

E o mancebo, depois de recopilar as idéas, continuou:

-- Nunca até hoje o mais leve desgosto perturbou o nosso amor desde que conheço essa menina. Nunca houve a mais leve desconfiança de parte a parte, de que enganavamos um ao outro: ella confiava no meu amor, como eu confiava no seu. Hontem, porêm, quando me recolhi, em vez de me esperar, como costumava, achei um bilhete por debaixo da porta (porque morâmos fronteiros um ao outro), no qual me dizia que desde que eu saira de tarde, ainda não cessára do chorar, por haver recebido uma carta anonyma, na qual lhe diziam que eu a enganava, e que vinha passar todas as noites na companhia... (Vossa Excellencia perdôa-me) d’uma amante!

-- Ora essa! senhor Pereira, exclamou a Marqueza, muito me conta!... Porêm, quem seria o infame, continuou ella com amargor, que commetteu similhante attentado?!

-- Infelizmente, minha senhora, é-me impossivel sabel-o porque, como me diz Amelia, a perfida carta é anonyma, e a letra, certamente, não é de quem a escreveu, para não se comprometter.

A Marqueza ficou um momento triste e pensativa, com a cabeça encostada á mão, e depois de se conservar por alguns segundos n’esta estudada posição, levantando a cabeça e fictando o mancebo, disse-lhe com voz sentimental e melancholica, na qual transluzia uma especie de ciosa recriminação:

-- Com que então, o senhor Pereira amava uma menina, e estava calado com isso. E quem sabe, continuou depois d’uma breve pausa, se ella lhe corresponde do mesmo modo, e...

-- Oh! senhora Marqueza, duvidarei de tudo, excepto do amor da minha querida Amelia!

-- Olhe que nós, as mulheres, senhor Pereira, sabemos fingir perfeitamente quando queremos illudir algum incauto. Quem sabe se foi ella propria quem forjou ou inventou a carta, por não lhe convir que continuassem as relações com o senhor?

-- Oh! senhora Marqueza, se Vossa Excellencia conhecesse o coração d’aquelle anjo, por certo não faria o conceito que faz da minha Amelia!

-- Pois bem, senhor Pereira, replicou a Marqueza, fingindo-se despeitada e levantando-se; á vista da confiança que deposita na sua namorada, nada mais tenho a dizer-lhe, senão que desejo immenso que o senhor Pereira, no futuro, não se engane na opinião que faz hoje d'ella.

E comprimentando o mancebo com uma leve inclinação de cabeça, continuou em tom ironico:

-- Adeus, senhor Pereira, não quero estorval-o mais, tomando-lbe o tempo, para que a sua querida não desconfie que a carta anonyma é verdadeira, e que o senhor a atraiçoa. Com licença, eu já mando uma criada para o acompanhar até á escada.

E saiu quasi repentinamente, sem dar tempo ao mancebo de lhe dizer coisa alguma.

D’ahi a pouco appareceu uma criada, que acompanhou José Pereira até á escada, e chegando ali, disse confidencialmente, e quasi ao ouvido do mancebo:

-- A senhora Marqueza fechou-se no seu quarto, e está chorando que causa dó! O senhor Pereira não saberá a razão porque ella saiu d'aqui tão triste?

José Pereira, attonito com o que lhe revelou a criada, respondeu com ingenuidade:

-- Ignoro completamente os motivos que a senhora Marqueza teve para ficar tão triste.

-- Ora! tornou a criada, que trazia o recado bem estudado, sorrindo e baixando mais a voz; eu sei porque é.

-- Sim? perguntou o mancebo cada vez mais admirado pelo modo mysterioso da serva.

-- Pois será possivel, replicou a confidente, comprada, da Marqueza, que o senhor Pereira ainda não conhecesse que a senhora Marqueza...

-- O quê? perguntou o mancebo com a curiosidade excitada pelo tom da criada.

-- Ama o senhor Pereira?! concluiu a criada, como a custo, e ao ouvido do mancebo. Porêm peço-lhe o mais profundo silencio a este respeito, porque a senhora Marqueza confiou de mim este importante segredo, e eu, por preço algum quereria que ella viesse a saber quem o revelou.

José Pereira não sabia se sonhava ou se estava acordado.

Metteu machinalmente a mão no bolso do collete, tirou d’elle meia libra, e deu-a á astuta serva, descendo rapidamente a escada sem dizer palavra.

CAPITULO II

A rede começa a pescar

José Pereira saiu do palacio do Marquez de ***, palpando-se, a vêr se sonhava ou estava acordado.

Tivera n’esse dia duas tão oppostas e inesperadas revelações, que o faziam pôr em duvida se era ou não victima de qualquer pezadêlo.

-- A Marqueza ama-me, disse-me a criada... pensava elle. É certo... agora comprehendo todas as attenções que me tem prodigalisado desde o primeiro dia em que me viu; a sua repentina despedida ainda agora, depois de eu depositar confiança n’ella, narrando-lhe o desastroso facto que se deu entre mim e Amelia... Sim, agora é que comprehendo... Oh! porêm, quem poderia presumir que a Marqueza, casada com um homem perfeito como é o Marquez, e que parece amal-a fervorosamente... quem diria que se havia de apaixonar por um homem que nunca lhe disse a mais leve palavra a este respeito, tratando-a sempre com sisudez e gravidade?!!

E o mancebo, depois de caminhar um pouco, calado, continuou:

-- E Amelia?... como poderei eu fazel-a convencer do contrario do que lhe mandaram dizer n’aquella maldicta carta?! O que a Marqueza me disse de haver fingimento no amor... Oh! meu Deus, se fosse verdade Amelia amar outro, e pretextar o que me escreveu para romper, como diz a Marqueza, os laços do amor que me uniam a ella!... Oh! não quero pensar n’isto muito tempo, para não perder o juizo.

E o mancebo chegou a casa, n’um estado deploravel.

Quando entrou em casa, viu no chão um papel; abaixou-se para o apanhar, e leu o que se segue:

«Sr. Pereira:

«Outra carta anonyma, que hoje recebi, acabou de me dar a conhecer que o senhor ama outra mulher, e que essa mulher é a Marqueza de ***, em casa de quem o senhor passa as noites.

«Ainda que bem contra vontade da minha amiga, só lhe digo que nunca mais me verá, porque vou entrar para um recolhimento, com o dinheiro que o senhor me deu, o qual não lhe entrego, pois sei perfeitamente que, se tal fizesse, offenderia o seu generoso caracter.

«Mudei-me d’aqui esta tarde, e não lhe digo para onde, porque não quero tornar a vêr o homem a quem hoje aborreço.

«AMELIA DA S.»

Deixemos José Pereira entregue ás torturas que lhe deu similhante carta, para voltarmos ao palacio do Marquez de ***.

Assim que os convidados habituaes sairam do palacio, deixando os conjuges sós, o Marquez perguntou a sua esposa, n’um tom de pouca importancia:

-- Então, Marqueza, como vão os nossos amores com o ex-sargento, vão bem?

-- Deixe-me senhor; foi preciso mandar-lhe dizer pela minha criada grave, que eu estava perdida d’amores por ello, para que o pacovio, que céga e não vê pela namorada, ficasse sabendo que é amado por mim.

E carregou na palavra amado, sorrindo-se deliciosamente para o Marqoez.

-- Deixe estar, continuou este, que a segunda carta que mandei á tal lambisgoia, foi com certeza romper os amorosos laços que uniam os dois imbecis.

-- Acredita?... perguntou a Marqueza com um modo ironico.

-- Porquê, duvida? disse o Marquez no mesmo tom.

-- Muito, porque vê-se claramente que o rapaz lhe tributa um amor quasi desconhecido nos nossos dias.

-- É o mesmo; ella é que, amando-o tanto, como eu estou bem informado pela minha policia secreta, lendo o que hoje lhe mandei dizer, de certo ficou como polvora; e se Vossa Excellencia souber aproveitar este ensejo, ateiando o abatido fogo do rapazola, e vibrando-lhe a corda sensivel, com certeza conseguiremos o que desejâmos.

-- Eu, pela minha parte, não posso fazer mais do que fiz hoje.

-- Pois continue assim, Marqueza, antes que elle comece a dizimar a herança que apanhou. Bem sabe que dentro d’um mez heide pagar aquellas letras de cambio, ou serão confiscados os bens que Vossa Excellencia possue em Montevidéo. Se necessita do meu auxilio, n’este caso, diga-o francamente, que eu a coadjuvarei com as minhas luminosas idéas.

-- Eu vi-o tão desolado quando me contou que a namorada lhe escrevêra um bilhete, dizendo-lhe que tinha recebido a primeira carta anonyma, que me parece que o rapaz talvez se apaixone e deixe de cá vir.

-- Para remediar isso, não tem Vossa Excellencia mais do que escrever-lhe uma carta enternecedora, na qual lhe diga que o espera anciosamente, etc..., que eu me encarrego de lhe escrever outra, sem nome, a qual o fará descrêr do amor da costureirasinha da Viscondessa de ***.

-- Bem, disse a Marqueza: eu vou já escrever a carta, e o senhor faça o mesmo.

E separaram-se.

José Pereira, a quem deixámos entregue á maior desesperação, recebeu no dia seguinte, pela manhã, duas cartas, uma anonyma e pelo correio, e a outra por um criado da Marqueza.

A anonyma dizia o seguinte:

«Sr. Pereira:

«Saiba que a costureira, chamada Amelia, que morava fronteira ao senhor, está para casar com um rapaz que a namorou antes do senhor a conhecer, o qual esteve dois annos na America.

«Quando o senhor foi para a ilha da Madeira, veio elle para Lisboa; ella vio-o outra vez, e como eram os seus primeiros amores, e elle era pae d’uma creança que Amelia tivera a occultas do todos, e cujo segredo só é sabido da sua confidente, a velha que vive em companhia d’ella, a rapariga resolveu deixar o senhor para casar com o homem que amou primeiro, e que é o pae da creança que existe na Misericordia.

«Aconselho, portanto, o senhor, que despreze a mulher que nunca o deveria ter enganado tanto, depois do bem que o senhor lhe tem feito.

«Não se apaixone por aquella indigna que o ludibriou.

«O senhor está no vigor dos annos; tem uma fortuna, e acredite que mulheres não faltam.

«Um seu amigo occulto.»

A carta da linda Murqueza continha o seguinte:

«Ill.mo Sr.

«Já se reconciliou com a sua namorada? ou por outras palavras: ella já fez as pazes com o senhor?

«É o que mais estimarei, ainda que para mim é uma dura provação, pois agora, que sei o amor que tributa a essa mulher, vou confessar-lhe um segredo que até hoje nunca lhe dei a conhecer.

«Saiba que o amo... oh! amo-o, como talvez essa rixal que não conheço, não seja capaz de o amar.

«E a prova é que ella é livre, está talvez n’uma posição baixa na sociedade, emquanto que eu, deixe-me ter este orgulho, sou casada, se bem que não amo, nem nunca amei meu marido; comtudo, sempre estou exposta a ser vilipendiada, tanto poa elle, se eu dér um máu passo, como pelo mundo; e na posição em que me acho, relacionada com toda a côrte, até com o rei, bem vê que estou em uma melindrosa situação.

«Porêm que me importa tudo isso, se amo, e com que amor, meu Deus?!

«Acredite que lhe digo isto por saber que lhe sou inteiramente indifferente, porque se não me houvesse dito que estava para se ligar com uma donzella a quem ama, faria o sacrificio de soffrer antes em silencio, do que declarar-lhe o que acabo de lhe dizer.

«Todavia, se quizer continuar a dedicar-me a sua amizade, muito prazer dará á

De V. S.ª amiga dedicada

P.S.

Venha hoje passar a noite

em nossa companhia, sim?

«MARQUEZA DE ***.»

O mancebo estava meio idiota, com a serie de successos que o apoquentavam ha dois dias, e muito mais ainda com a recepção da carta anonyma que denegria ao ultimo ponto a mulher a quem elle idolatrára.

Todavia, o ciume, a emulação propria dos individuos que amam ardentemente, foi uma especie de barreira que o mancebo sentiu collocar-se entre elle e Amelia.

-- Quem tal diria?! exclamou elle com as faces incendidas em colera e os olhos injectados de raios do sangue, quem diria que uma mulher que parecia tão candida, tão ingenua, e tão honesta... Oh! continuou o desventurado, depois d’uma pequena pausa, o amor puro não é mais do que uma mentira, e a candidez e virtude das mulheres que parecem virgens, uma falsidade.

E depois de ter caido n’uma cadeira, e ali se conservar por algum tempo, entregue a tristes e crueis meditações, levantando-se repentinamente, exclamou n’um tom de alegria que se assimilhava a uma vertigem.

-- Oh! porêm eu posso gozar! o auctor da carta anonyma, que me conta essa infinidade de infamias praticadas comigo por uma infame creatura, tem razão; eu estou no verdor dos annos, sou quasi rico presentemente, e então posso gozar.

-- E depois d'um momento de silencio, exclamou radiante:

-- E a Marqueza? Oh! como eu posso ainda gozar com ella esse amor adultero, que, dizem os homens scepticos em amor puro, ser de todos o que mais prazeres dá! Voêmos, reconciliemo-nos com a linda Marqueza, e gozemos o mais que podermos.

E, n’essa mesma noite, José Pereira, sem já lhe importar com a sua querida Amelia, como outr’ora lhe chamava, foi ao palacio do Marquez, e, por extravagancia premeditada, jogou forte á ronda, sendo depennado da quantia de trezentos mil réis.

Porêm, o que era para elle essa perda, se em compensação, recebeu, quando terminou a partida, um amoroso aperto de mão da linda hespanhola, e um delicioso sorriso que lhe fez entrever o céo, ao mesmo tempo que ouvia dos acarminados e formosos labios da fina aristocrata as seguintes palavras:

-- Então não faltou ao meu pedido, senhor Pereira.

-- E podia eu faltar, minha senhora? disse José Pereira fictando com audacia, pela primeira vez, a linda mulher, e abaixando a voz; seria um homem indigno entre os homens se não comparecesse aqui, para robustecer d’este modo a amizade que Vossa Excellencia me tributa.

E carregou na palavra amizade com tal expressão, que fez abaixar os olhos da Marqueza, a qual, ao mesmo tempo levou um dedo aos labios como para lhe significar que se calasse por causa, talvez, da presença do marido.

A Marqueza, depois de conservar por algum tempo a vista baixa, tornando a levantar a cabeça, disse a José Pereira com um modo ironico, e em voz baixa:

-- Está hoje muito alegre e animado, senhor Pereira! estou a desconhecêl-o! Tudo isso prova que já está bem com a sua namorada, não é assim?

-- Ohl minha senhora, encarecidamente lhe peço, disse José Pereira no mesmo tom da Marqueza, que não me torne a fallar n’essa mulher fementida, a quem desprézo, e altamente odeio.

-- Ai! que me parece que o senhor Pereira é um homem inconsequenteI Hoje está apaixonado... ámanhã odeia... Oh! meu Deus! como o senhor é!...

O mancebo, para justificar o seu procedimento, narrou á Marqueza o que ella perfeitamente sabia, a respeito da cabala urdida pelo marido para malquistar os dois jovens.

A Marqueza, depois de ouvir a triste narração, fingindo-se estupefacta e contristada, disse ao mancebo, por despedida:

-- Tenha animo, meu querido, que os desgraçados sempre encontram consolações n’este mundo.

E despediu-se, deixando o mancebo possuido das mais lisongeiras esperanças.

CAPITULO III

Effeitos da calumnia

Occupemo-nos agora um pouco de duas interessantes personagens da nossa obra, as quaes fizemos desapparecer repentinamente.

A desventurada Amelia e a sua honesta companheira, que se mudaram a occultas da agua-furtada onde moravam, vamos encontral-as n'um terceiro andar d’uima casa, na rua da Rosa, isto é, distante da sua antiga habitação, que era nas immediações da Mouraria.

São onze horas da noite, e passados dois dias ao em que Amelia recebêra a segunda carta anonyma que lhe lançou a amargura e o desespero no coração.

D. Thereza está assentada n’uma cadeira,ecscabeceando com somno, acordando por intervallos, para dizer a Amelia, que se conserva a seu lado, tambem assentada, com os olhos vermelhos e fixos, como uma pessoa insensivel a tudo:

-- Então, Amelia!... vai comer alguma coisa para depois ires descançar.

A boa senhora já fizera por tres vezes este instante pedido, e de todas ellas a donzella conservára sempre a mesma mudez e immobilidade.

D. Thereza ficava tambem silenciosa, d’ahi a pouco tornava a escabecear, e Amelia conservava-se na mesma posição.

Havia já algum tempo que D. Thereza escabeceava com força, quando, d’uma das vezes, inclinando muito a cabeça para diante, perdeu o equilibrio e caiu desamparadamente da cadeira para o chão.

D’esta vez, Amelia, ouvindo a bulha produzida pela queda da sua amiga, saiu da especie de torpôr em que estava, e correndo a ella, perguntou-lhe com voz afllicta, ajudando a levantar a pobre senhora:

-- Oh! minha querida amiga, maguou-se?

-- Não, respondeu a viuva tremendo com o susto de acordar á bulha da sua queda, não me succedeu mal nenhum. Crédo, que somno!

-- Ora, e porque não vai a minha amiguinha deitar-se? disse a joven carinhosamente á companheira.

-- E tu, porque não comes alguma coisa, e não te deitas tambem?

-- Não tenha cuidado em mim; eu não tenho, nem vontade de comer, nem somno.

-- Pois sim, mas como é possivel não adoeceres se ha dois dias não comes nem dormes? Ai! Amelia, tu queres matar-te, e matar-me tambem a mim!

-- Ah! minha amiga, se soubesse quanto tenho soffrido ha dois dias?

-- Pois bem, não duvido; porêm, que remedeias tu com isso? Em primeiro logar, sustento e sustentarei que fizeste grande asneira em dar credito a cartas anonymas; e em segundo, mesmo sendo verdade o que ellas diziam, queres finar-te á força de soffrimentos?

-- Ah! minha amiga, disse Amelia com um sorriso d’amargura, José Pereira enganava-me com certeza, porque desde que teve a herança nunca mais se recolheu cedo como costumava; bem se vê que tinha outra mulher de quem gostava, e quem me escreveu aquellas cartas teve dó de mim, e por isso o fez.

-- Bem; supponhamos que tudo isso é assim... coisa que eu não acredito; queres então castigar-te a ti propria, não te alimentando nem dormindo, quando o culpado é elle, não é assim?... Ora vamos, continuou a boa senhora, vendo que Amelia chorava, vai ao menos beber o caldinho que eu te guardei do jantar, sim?

E, abraçando a joven, fez com que ella se levantasse e a seguisse á cozinha.

Depois, deitando n’uma chavena grande uma porção de caldo que estava ao calor do lume, para se conservar quente, deu-o a beber á donzella, a qual o tomou como se fosse uma creança.

Depois d’isto, a pobre viuva, com ar victorioso como se tivesse metlido uma lança em Africa, disse a Amelia com meiguice e carinho:

-- Agora vai-te deitar, que eu vou fazer o mesmo, não é assim?

Amelia fez com a cabeça um signal affirmativo, e a viuva, radiante de alegria, encaminhou-a para o quarto, dirigindo-se depois apressadamente para o seu.

A viuva metteu-se logo na cama, e adormeceu no mesmo instante, pois havia duas noites que velava junto á sua amiga, a qual por modo algum quizera dormir.

Quanto á donzella, depois de muito soluçar e chorar em silencio, pela magua pungente que sentia com a presumida infidelidade do unico homem que amára, poude alfim, pela madrugada, conciliar o somno, descançar o corpo e o espirito, se bem que por intervallos acordava sobresaltada, com terriveis sonhos e tenebrosos pezadelos.

No outro dia, D. Thereza, levantando-se ao amanhecer, foi logo ao quarto da donzella examinar se ella dormia ou velava.

Vendo a joven profundamente adormecida, a bondosa senhora elevou as mãos ao eéo, e exclamou comsigo:

-- Oh! meu Deus, permitti que a minha querida Amelia se resigne da perda que soffreu. Dai-lhe socego d'espirito para que a pobre menina não chegue a succumbir ás maguas e ás intrigas de que é victima! fazei com que ella desista de querer ir para o recolhimento!

A boa viuva, depois d’esta oração, tratou logo de accender fogo e fazer o almoço, para que, quando Amelia acordasse, estivesse já prompto.

D. Thereza não tinha tomado criada para não augmentar essa verba nas suas despezas.

Ella tinha intacto o dinheiro que lhe déra José Pereira, a titulo de emprestimo.

Muitas vezes dizia ella comsigo:

-- Como poderei eu saber onde mora José Pereira, para lhe mandar aquelle dinheiro, que não é meu; pois agora, visto romperem-se as relações que elle tinha com a minha Amelia, não posso continuar a ter em meu poder aquelle dinheiro que me não pertence.

Eram perto de nove horas.

Amelia ainda dormia, e D. Thereza trabalhava na sala, depois de haver almoçado.

De repente bateram á porta.

D. Thereza perguntou quem procuravam, e uma voz agallegada respondeu-lbe da escada que trazia uma carta para a senhora D. Amelia da Silva.

A viuva foi abrir, e viu um moço com uma carta na mão.

-- Quem manda essa carta? perguntou D. Thereza.

-- O xenhor José Pereira, respondeu o gallego, entregando-lh’a.

D. Thereza pegou na carta, conheceu a letra do mancebo, e perguntou ao gallego:

-- Isto tem resposta?

-- Tem, xim xenhor, respondeu o gallego.

-- Pois então, continuou D. Thereza, venha logo, porque a menina passou incommodada, e está ainda recolhida.

-- Anton, a que horas quer que benha pola resposta?

-- Quando forem onze horas.

-- Baia, paxe munto ben.

O gallego retirou-se, e D. Thereza, com a carta na mão, foi, pé ante pé, ao quarto de Amelia, para vêr se ella ainda dormia.

Quando, porêm, entrava no quarto da donzella, ouviu esta perguntar-lhe:

-- Quem bateu á porta, minha amiga?

-- Ah! tu ouviste, disse D. Thereza com ternura, então já acordaste ha muito tempo?... Como passaste a noite?

-- Menos mal, respondeu Amelia suspirando; e acordei ao baterem á porta.

-- Pois é uma carta de... José Pereira, disse a viuva hesitando, e dando a carta a Amelia, que lhe pegou rapidamente, vestindo-se á pressa, e abrindo-a, leu as poucas e laconicas linhas que se seguem:

Senhora:

«Faça favor de me mandar pelo portador o dinheiro que lhe dei.

«Se exigir do mim um recibo, póde enviar o dinheiro, que eu depois terei o cuidado de lhe remetter o documento.

Sou seu venerador

«JOSÉ PEREIRA.»

-- Como o fizeram mudar completamente! exclamou a joven, depois de lêr a carta. Elle que era tão generoso e nobre, até se fez vil. Quem tal diria?!

-- Vê bem, minha menina, se essa letra será d’elle, disse D. Thereza, a quem a idade e o longo conhecimento do mundo tinham feito experiente.

Amelia examinou a carta, e depois de o haver feito, disse á sua amiga:

-- Parece-me que é a letra d’elle; senão é, está muito parecida. Tambem não me admira que a mudasse, accrescentou ella com amargura; elle está tão mudado!

E depois d’um momento de silencio, continuou, fallando com D. Thereza.

Ah! minha amiga, agora conheço que fiz mal em lhe dizer que o dinheiro que elle me deu, não lh’o tornaria a dar. De que me serve elle? eu já não quero ir para o recolhimento...

-- Ah! minha querida Amelia, que alegria que me déste com essas palavras! exclamou D. Thereza caindo nos braços da donzella, banhada em lagrimas d’alegria. Cada vez que pensava que tu me deixavas ficar só entre quatro paredes para te ires enclausurar, sentia uma tristeza immensa.

-- Pois, minha amiga, o descanço d’espirito que gozei esta noite, fez-me reconsiderar; ficarei sempre com a minha amiga até uma de nós deixar d’existir; e então, vou mandar o dinheiro ao senhor Pereira.

E abria já a gaveta d'uma commoda, para o tirar, quando D. Thereza a fez suspender n’este movimento com o seguinte conselho:

-- Ouve, minha amiguinha, disse a viuva; não sei o que me prediz o coração: parece-me que não fazes bem em entregar tanto dinheiro a um gallego desconhecido... E depois, continuou a viuva, tenho estado a scismar como foi que José Pereira soube que mora vamos aqui...

Nada, o melhor é dizeres ao gallego que eu lá vou a casa do senhor Pereira levar o dinheiro.

-- Diz muito bem, minha amiga, teve uma bella idéa, assim ficaremos descançadas.

-- Muito bem, disse D. Thereza, muito contente por vêr a resignação e animação d'Amelia, coisas que a desventurada donzella, havia dois dias, não tinha; e agora, continuou a bondosa viuva, vai almoçar emquanto o almoço está quente, sim?

-- E estou com alguma vontade de comer, disse Amelia.

-- Então, vai, minha menina, emquanto eu vou adiantar a obra que tenho entre mãos.

Amelia foi almoçar, e D. Thereza, assim que ficou só na sala, caiu de joelhos, e pondo as mãos, exclamou comsigo:

-- Oh! meu Deus, eu vos rendo mil graças por me concederdes o que ainda ha pouco vos pedi!

CAPITULO IV

Projectos frustrados

O gallego não faltou ás onze horas.

Amelia appareceu-lhe, e disse-lhe que participasse ao senhor Pereira, que D. Thereza seria a portadora do dinheiro.

O gallego, ouvindo isto, retirou-se descontente e resmungando.

Agora vamos contar aos leitores a historia d’esta carta e d’este galego:

A carta que Amelia recebeu, era escripta pelo proprio punho do Marquez de ***, o qual era um habil imitador calligraphico.

O astuto aristocrata, presumindo que José Pereira teria dado algum dinheiro á sua projectada noiva, depois da herança que recebêra, imaginou extorquir á pobre menina o que o mancebo lhe tivesse dado, escrevendo áquella uma carta em nome d’este, por saber que os dois jovens estavam totalmente indispostos e incommunicaveis um com o outro.

Para este fim, mandou indagar pelo agente, a quem elle chamava a sua «policia secreta,» onde morava a donzella, e o cerbero, depois de farejar muito, veio a descobrir a morada de Amelia.

O agente da policia do Marquez era o gallego que vimos ir levar a carta á donzella.

Este gallego era nem mais nem menos do que o nosso antigo conhecido Manuel Alonso, criado outr’ora do Conselheiro M***; finalmente, o miseravel tratante que contribuiu para a desventura de José Pereira e morte de D. Julia.

Este tratante, saindo do Limoeiro, foi por algum tempo á sua terra gastar lá o dinheiro que lhe déra o bom do amo, pela patifaria que praticára, e regressando depois a Lisboa, entrou ao serviço do digno Marquez, o qual, conhecendo as boas qualidades do gallego, o empregou no seu serviço particular, classificando-o d’ahi por diante de «sua policia secreta».

José Pereira, desde que se relacionou com o Marquez, nunca viu no palacio d’este, o causador da sua desventura, porque o esperto gallego, sabendo pelo amo quem era o sargento a quem o Conselheiro M*** legára os dez contos, contou ao Marquez o que havia entre elle e o mancebo.

D’este modo, o aristocrata, instruido de quem era José Pereira, arranjou as coisas de modo que nunca se encontrasse o criado com o mancebo.

Um dia, pois, o Marquez, chamando Manuel Alonso ao seu gabinete particular, disse-lhe:

-- Tu és capaz de saber para onde se mudou a namorada de José Pereira, a costureira que morava na rua de... n.°..., n’uma agua-furtada?

-- Beremos, respondeu o astuto gallego, bou préguntar...

-- Ganhas uma libra se souberes isso até ámanhã.

O gallego, ouvindo fallar n’uma libra, abriu muito os olhos e prometteu ao amo de fazer a diligencia por descobrir o que elle queria.

Com effeito, no dia seguinte, de manhã, depois de haver indagado peia visinhança da casa onde morára Amelia, e ter descoberto a nova morada d'esta, veio muito azafamado dizer ao Marquez:

-- Xenhor Marquez, xá sei onde mora a muchacha.

-- Sim! disse o Marquez muito contente; bem.

E tirando da algibeira meia libra, deu-a ao gallego, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Toma, ahi tens meia libra; depois te darei o resto. Agora, continuou elle, espera que hasde levar uma carta á tal menina, e trazer-me a resposta, a qual é dinheiro.

O gallego não ficou muito contente com a meia esportula; porêm, como era habito no patrão, quando lhe promettia qualquer quantia, dar-lhe só metade, resignou-se e esperou.

O Marquez, imitando a letra de José Pereira, á vista d'uma carta amorosa que o mancebo escrevera á Marqueza, e que o marido leu juntamente com a esposa, e lhe foi abandonada por esta, escreveu a carta que os leitores já conhecem, a qual não produziu o effeito desejado.

O gallego veio pois, d'orelha caida, dar ao patrão a resposta que Amelia lhe deu.

O Marquez, ouvindo o que o gallego lhe dizia, mordeu os labios despeitado.

Depois d’isto, mandando o criado embora, disse-lhe ao mesmo tempo que prevenisse a senhora Marqueza para que, quando podesse, lhe viesse fallar.

CAPITULO V

Continuam os planos de concussão

A Marqueza não tardou em vir ao reclamo do Marquez.

Este, quando ella entrou, estava entregue a profundas meditações, tanto que foi preciso a Marqueza tocar-lhe levemente no hombro com a sua delicada e seductora mãosinha, para elle acordar da especie de lethargo meditativo em que estava embebido.

-- Ah! é a senhora! disse o Marquez depois de levantar a cabeça e vêr sua esposa: não a esperava ainda...

-- Se o vim interromper e incommodar, retiro-me, senhor!

-- Não, póde ficar; o que eu estava, era unicamente coordenando as idéas para seguir a acção que ambos encetámos. Queira assentar-se, pois temos muito que conversar.

A Marqueza assentou-se em frente do marido, e, vendo que este continuava pensando, disse-lhe:

-- Então comece.

O Marquez tornou a sair das suas meditações, e disse a sua mulher:

-- Saiba que me falhou um projecto, pelo qual contava receber uma quantia de dinheiro; quanto, não sei, porêm presumo que não seria pouco.

-- Como assim? perguntou a Marqueza.

-- Eu lhe conto, respondeu o marido,

E contou á Marqueza a historia da supposta carta de José Pereira a Amelia.

A Marqueza, depois de o ouvir attentamente, disse-lhe:

-- Parece-me que o Marquez não fez bem em escrever essa carta; podem elles reconciliar-se um com o outro, e ha perigo de se comprometter...

-- Qual! disse o Marquez; ainda mesmo que os rapazes se reconciliem antes da nossa partida para Buenos-Ayres, que compromettimento me póde reverter de uma carta laconica... e a qual ninguem póde dizer que é minha?

-- Quem sabe se o mesmo gallego, comprado por alguem, virá a descobrir?...

-- E que me importa isso, replicou o Marquez rindo, em nós estando na America hespanhola?... Marqueza, continuou o aristocrata, deixemos estas banalidades, e vamos ao que interessa. Saiba que é necessario empregarmos um fogo activissimo para conseguirmos o que desejâmos, pois de contrario teremos de partir sem real, porque eu não tenho meio de arranjar dinheiro algum, falhando-me o que comecei a pôr em pratica.

-- Então o que é necessario fazer? perguntou a Marqueza com interesse.

-- É preciso tratar quanto antes de apanhar ao rapazola uma quantia boa de dinheiro.

-- Elle não tem perdido pouco ao jogo.

-- É verdade, porêm o dinheiro que elle tem perdido ao jogo não tem sido só para mim; até algumas vezes tenho eu tambem deixado nas mãos d’esses galfarros do Visconde de *** e Barão de *** o que lhe tenho ganho. D’aqui por diante, Vossa Excellencia deve desvial-o do jogo, pois de contrario, o rapaz perde toda a herança, e nós não nos aproveitâmos de coisa que faça vulto.

E depois de um momento de silencio continuou:

-- Deixo á discrição e atilada intelligencia da Marqueza, o meio de lhe apanhar uma quantia de dinheiro com que eu possa pagar as letras de cambio antes de serem protestadas.

-- Então é necessario que o senhor tambem me ajude da sua parte.

-- Pois bem, eu a ajudarei. Conto ao rapaz uma historia phantastica a respeito do nosso casamento, e, secundado pela perspicacia da Marqueza, contâmos ganhar a victoria.

-- Fico de intelligencia, respondeu a Marqueza, e agora, senão tem mais nada a dizer-me, conceda-me licença, pois tenho de ir á modista, á uma hora, e faltam apenas dez minutos.

-- Póde retirar-se, Marqueza, que nada mais tenho a communicar-lhe. Só lhe recommendo que faça quanto estiver ao seu alcance para não ficarmos arruinados e desconsiderados para o futuro.

-- Fique descançado, respondeu a Marqueza; pela minha parte não hade ser a duvida.

E saiu do gabinete do Marquez, deixando este entregue ás mesmas meditações em que o veio encontrar.

CAPITULO VI

Resultado da ligação do cão com o gato

Deixemos o Marquez entregue á combinação dos seus rapinantes planos, e a Marqueza dirigir-se para a sua modista, sem duvida, para provar algum vestido, e occupemo-nos ainda uma ultima vez da familia Mendonça.

O gordo trasmontano, oito dias depois do casamento de sua filha, determinou ir com a esposa á sua terra, passar lá os mezes de outubro, novembro e dezembro, regressando no fim do anno a Lisboa, para tomar posse, a 2 de janeiro seguinte, da sua cadeira em S. Bento.

Por este motivo, fez as partilhas da sua fortuna e entregou a legitima á esposa do Barão de *** cuja legitima constava de vinte contos de réis, em dinheiro, fóra bens rusticos e urbanos, que ainda ficaram por liquidar.

Mendonça partiu, pois, para a sua terra natal, acompanhado de D. Pulcheria e de alguns criados, deixando os restantes em casa de sua filha, cuja casa fôra alugada á custa d’elle.

Alem d’isto, entregou as chaves da sua habitação, na calçada do Salitre, ao genro, ficando este por fiel depositario da mobilia do trasmontano.

A lua de mel só durou ao Barão tres dias, ou antes, só durou tres dias á filha de Mendonça, porque no quarto, o Barão, depois de jantar saiu, e só recolheu de madrugada.

D. Filomena, que, na verdade, amava o marido, passou a noite a pé, com mil cuidados.

Quando o marido chegou, correndo a elle e abraçando-o, disse-lhe com alegria pueril:

-- Ai! meu menino, que cuidados me tens dado! Já mandei dois criados tres vezes em tua procura, porêm foram debalde, porque não te encontraram. Imagina como eu estaria.

O Barão, que vinha aborrecido e blasé de mulheres, pois fôra convidado para uma bacchanal em casa d'um intimo, onde houve toda a casta de immoralidade, depois de haverem jogado fortissimo até á uma hora da madrugada, perdendo o Barão mais d’um conto de réis ao jogo, repelliu sua mulher com um modo brusco, dizendo-lhe ao mesmo tempo n’um tom aspero:

-- Isso são pieguices de criança; a senhora escusa d’estranhar d’hoje ávante que eu me recolha ás horas que quizer; póde fazer o mesmo, se assim lhe aprouver, pois lhe dou liberdade para isso; o que pretendo é não ouvir scenas domesticas quando entrar em casa.

D. Filomena, surpreza em extremo, pela repentina mudança do marido, julgou que elle estava brincando com ella, e abraçando-o novamente com mais força, disse-lhe amorosamente:

-- Então, ainda em cima estás zangado comigo?!

-- Deixe-me, senhora, respondeu o Barão tornando a repellir a joven, e d’esta vez desabridamente; isso não são maneiras d’uma fidalga; senão lhe deram educação, bem póde aprendel-a.

Dizendo estas palavras, entrou n’um quarto que de dia mandára preparar para dormir separado de sua mulher.

O Barão, alem de zangado por ter perdido tanto dinheiro, vinha entre as dez e as onze, pela grande quantidade de liquidos alcoolicos que vasára no estomago.

D. Filomena, ficando só, começou a chorar, e passou o resto da noite de pé.

No dia seguinte, a criada grave da Baroneza, que fôra outr’ora sua ama sêcca, foi encontrar esta assentada n’uma cadeira do seu quarto, dormitando.

A criada acordou a ama, e perguntou-lhe admirada, a razão porque não se havia deitado.

-- Ah! minha Rosa, disse a pequena chorando, não sabes o que me succedeu?!

-- Então que foi, minha menina, (a criada, pelo antigo costume, não podia tratar d’outro modo D. Filomena) que lhe succedeu?

A pequena, chorando sempre, contou á sua aia tudo quanto se passára entre ella e seu marido.

A criada, estupefacta com o que ouvia, disse a D. Filomena, meneiando a cabeça:

-- Ah! minha menina, eu nunca me enganei quando algumas vezes lhe disse que fazia mal em casar com um fidalgo. Os cães e os gatos nunca fizeram boa liga.

-- Então que queres? eu gostava tanto d’elle; e depois, meu pai quasi que me obrigou a casar!...

-- Ora vejam, replicou a criada, quando isto é no quarto dia de casamento, que fará d’aqui a quatro mezes.

-- Talvez não, Rosa, quem sabe se elle recebeu alguma noticia má; elle tem-me dito que os seus negocios estão muito atrapalhados, que precisa dinheiro para pagar a alguns credores; tanto, que eu dei-lhe dois contos de réis para o vêr socegado.

-- Ah! minha menina, fez muito mal; pôl-o em muito máu costume. Verá, verá.

Não poderam continuar o colloquio, porque a porta do quarto abriu-se, e o Barão, pallido e com os olhos encovados pela orgia d’essa noite, entrou e disse á criada com voz aspera:

-- Queira sair, que preciso fallar a sós com a senhora Baroneza.

A criada saiu interdicta, e o Barão, ficando só com sua mulher, disse-lhe laconicamente:

-- Eu preciso de dinheiro, senhora.

-- Então, quanto queres? perguntou timidamente D. Filomena, não se atrevendo a encarar o marido, com receio de o fazer zangar.

-- Igual quantia a que me deu ha dois dias, respondeu o Barão com voz d’estalo.

D. Filomena levantou-se, abriu uma secretária de mogno, presente de seu pae, dentro da qual elle mandou a legitima, e disse ao marido que tirasse.

O Barão aproximou-se do movel, brilharam-lhe os olhos ao vêr luzir os montes de libras e peças que elle continha, e tirou a quantia exigida por elle a sua mulher.

Depois d’isto saiu rapido do quarto, dizendo unicamente a sua mulher um frio «obrigado».

N’essa noite recolheu-se quasi á mesma hora.

O Barão encontrára na vespera, em casa do tal intimo onde foi a bacchanal, uma rapariga italiana, dançarina do theatro de S. Carlos, a qual lhe pertenceu por essa noite, o que o apaixonou a ponto de esquecer completamente sua mulher, á qual, os leitores sabem que elle não amava.

Em consequencia d’esta nova paixão desenfreada, o Barão cada vez se tornou mais extravagante, para agradar á dançarina.

Esta, conhecendo que tocára a corda sensivel do aristocrata, e vendo que elle, pelo menos, parecia rico pelas quantias que despendia, tanto ao jogo como em brindes que lhe offerecia, a consequencia d’isto, pois, foi começar a esperta rapariga a divinisar-se, e a fazer-se valer duzentos por cento a mais do seu valor real.

Já não era paixão que o Barão sentia pela mulher que se lhe entregaria por baixo preço, se não conhecesse que o aristocrata estava ferido mortalmente pelo deus frecheiro, era delirio, um delirio febril, forte e intenso, que o fazia commetter desatinos.

Um dia, vendo-se sem dinheiro e tendo já extorquido a sua mulher mais de seis contos de réis da legitima de D. Filomena, o Barão resolveu-se, para obter dinheiro, a vender toda a mobilia do sogro, que lhe tinha sido confiada durante a ausencia do trasmontano.

O que fez pois? Chamou um homem, dono d’um bazaar, e levou-o a casa do sogro, para lhe vender, tanto os moveis como tudo quanto tinha em casa.

A mobilia de Mendonça era boa, as roupas e loiças tambem, e por isso o cabeça de pau offereceu por tudo ao Barão, quinhentos mil réis, isto é, a terça parte do valor dos objectos.

O Barão, arquejante por dinheiro, promptamente fez o negocio com o homem, vendendo-lhe tudo quanto era do sogro.

D. Filomena nunca mais tornou a vêr o marido senão á hora do jantar, e isto mesmo não era todos os dias.

A pobre pequena não teve remedio senão ir desabafar com o sogro os desgostos que passava com o marido.

O pae do Barão, Conde de R ***, era um honrado e digno fidalgo do reinado de D. João VI, o qual sentia uma viva affeição pela mulher de seu filho, por conhecer que ella era digna de lhe pertencer, pela amizade que tributava ao Barão.

A pequena fez-lhe, pois, queixa do marido, e o ancião, ouvindo os enormes desvarios de seu filho, disse à nora, depois de erguer os olhos ao céo, em signal de compaixão para com ella:

-- Descança, minha filha, que eu farei o que estiver ao meu alcance para arrancar teu marido á devassidão e vicio em que está embebido.

Com effeito, no dia seguinte, o digno homem, modêlo talvez unico, dos fidalgos portuguezes, mandou chamar o Barão, e depois de o vêr na sua presença, lançou-lhe em rosto com toda a severidade o seu indigno procedimento para com uma esposa que o amava, e que era digna de melhor sorte, terminando o seu acalorado discurso com as seguintes palavras:

-- Naturalmente queres que ella siga o mesmo trilho e desencaminhada vereda que seguem quasi todas as fidalgas casadas, não é assim? Pois enganas-te, vociferou o ancião, reunindo todas as suas debeis forças, emquanto eu fôr vivo, heide sempre obstar a que meu filho tenha o degradante nome que hoje, com razão, os homens honrados, embora sejam plebeus, dão aos fidalgos desnaturados d’esta malfadada epocha. Pobre menina, terminou elle, caindo n’uma cadeira, esgotado de forças, mal sabias tu que sairias innocente do seio da tua familia, que tanto te estimava, para a companhia d’um verdugo que te despreza e odeia! ...Oh! mas emquanto eu viver...

Não terminou a phrase, porque o Barão, achando, sem duvida, o sermão demasiado comprido, saiu bruscamente da sala, deixando o pae attonito com tão pouco respeito e tanta audacia.

O Barão tinha já tomado o seu partido.

Assim que saiu do palacio do Conde, seu pae, encaminhou-se para a loja do ferro-velho que lhe comprára a mobilia do sogro, e disse-lhe que o acompanhasse para lhe comprar outra mobilia.

O homem seguiu-o, e o Barão encaminhou-se para sua casa, ou antes, para casa de sua mulher, pois toda a mobilia, roupas e mais objectos pertenciam a D. Filomena ou a seu pae, e, fazendo-o entrar, perguntou-lhe, depois de lhe mostrar tudo, quanto lhe dava pelo que via.

O homem, depois de fazer os seus calculos, disse-lhe que o mais que tudo poderia valer eram duzentos mil réis, isto é, a quinta parte do que realmente valia.

O Barão promptamente cedeu.

O ferro-velho saiu, depois de contar o dinheiro e levar o recibo do Barão e a declaração de venda.

D. Filomena, vendo o marido só, e estranhando a visita domiciliaria do desconhecido, veio perguntar ao Barão o que vinha a ser o que tinha presenceiado.

O Barão, vendo a pequena, indefeza, diante de si, a resposta que lhe deu, foi espancal-a e fazel-a sair de casa com força de lei.

-- Vá, disse elle á pobre creança, que tremia diante do seu algoz, vá para casa de meu pae; assim como lhe vai fazer queixas a meu respeito, póde ir para lá de todo.

E, vendo que ella não se movia, empurrou-a brutalmente, gritando-lhe ao ouvido:

-- Fuja quanto antes, quando não, mato-a.

D. Filomena fugiu espantada, quasi como estava vestida, e o falso moedeiro, o devasso e o concussionario Barão, assim que se viu senhor da casa, foi á secretária, tirou o dinheiro todo quanto lá havia e saiu.

D’ahi a pouco, o ferro-velho, acompanhado por oito gallegos e duas padiolas, começou a fazer a mudança á mobilia de D. Filomena.

Os criados quizeram oppôr-se a isso, porêm o comprador mostrou-lhes a declaração da venda, assignada por seu amo, e os servos não tiveram outra coisa a fazer senão curvarem as cabeças e sairem, para não ficarem entre quatro paredes.

No dia seguinte, quando o Conde de R*** entrou em casa de seu filho, acompanhado pela nora, que tinha medo d’entrar em casa, só, o veneravel ancião e a filha de Mendonça, só encontraram as quatro paredes das casas.

A criada grave, unica que se conservava ainda guardando a casa, disse aos dois, chorando, o que tinha acontecido.

No momento em que todos tres saiam da casa desmobilada, chegou uma carta para o Conde de R ***.

Este abriu-a, e viu que era d’um amigo que lhe dava a triste noticia, que seu filho, o Barão de ***, se expatriára para a ltalia em companhia d’uma dançarina de S. Carlos, que rescindira da escriptura para acompanhar o Barão.

-- Vamos, minha filha, disse o Conde a sua nora, depois de ler a caria, teu marido é um infame a quem amaldiçôo.

CAPITULO VII

D’estes ha poucos

O conde de R*** tornou a acompanhar sua nora para casa d’elle, levando tambem comsigo, a rogos de D. Filomena, a criada grave que fôra ama sêcca da filha de Mendonça.

O Conde, penalisado em extremo pelo indigno procedimento do filho, a sua avançada idade, tudo contribuiu para que o ancião caisse enfermo.

-- Já não tenho filho, dizia elle muitas vezes, fallando só comsigo, o meu unico descendente renegou a familia, pelo seu vil e infame procedimento! Sim, de hoje ávante não o reconhecerei mais por meu filho. Que não volte a Portugal, a Lisboa, porque o faço prender como ladrão.

E o pobre velho, depois d’estas exclamações, filhas da probidade e pundonor offendidos, ficára entregue a profundas meditações, das quaes era quasi sempre arrancado pela voz de sua nora, que realmente era amiga do Conde, e lhe perguntava com voz profundamente sentida:

-- Que tem, meu pae, que está tão triste?

A resposta do velho era:

-- E que tens tu, minha filha, que tambem estás tão triste?

D. Filomena calava-se e ficava tambem cabisbaixa, triste e vertendo em silencio abundantes e sentidas lagrimas.

Então era o velho que por sua vez tambem queria consolar e animar a nora:

-- Porque choras, minha filha? Aposto que é pelo malvado do teu marido. Pois se assim é, suspende essas lagrimas tão mal empregadas em similhante... Oh! nem acho expressões com que o possa classificar!

Assim passavam o tempo estes dois infelizes, ambos victimas do Barão de ***.

O Conde de R*** escrevêra a Mendonça, narrando-lhe o triste estado a que o Barão deixára reduzida sua filha.

O Conde não poupou seu filho, antes, pelo contrario, desabafou a sua colera e magua, rebaixando ao ultimo ponto o caracter e o procedimento do Barão.

Mendonça, assim que recebeu a carta, partiu immediatamente para Lisboa.

Assim que chegou á capital, dirigiu-se primeiro que tudo, acompanhado de sua mulher e criados que levára comsigo, a casa do Conde de R ***, onde estava sua filha.

A infeliz creança, assim que viu os paes, lançou-se-lhes nos braços, derramando copiosas lagrimas.

-- Não chores, meu amor, disse-lhe o pae beijando-a e abraçando-a brutalmente. Aqui nos tens, consola-te e esquece o salafrario de teu marido.

-- Cala-te, minha cachopinha, dizia-lhe a mãe do outro lado, fazendo-lhe iguaes caricias, pois tu ainda tens pena do meliante e melcatrefe de teu marido?! Não sejas tola.

O Conde, depois de cessarem estas consolações, que os progenitores de sua nora lhe prodigalisavam, pediu mil perdões e desculpas aos trasmontanos, terminando por dizer-lhes:

-- A minha maior pena é que elle seja meu filho, pois, de contrario, mesmo velho como estou, havia de procural-o, ainda que tivesse de correr o mundo inteiro, propunha-lhe um duelo de morte, e se o cobarde recusasse, assassinava-o!

-- Não se apoquento tambem, senhor Conde, respondeu Mendonça, você é um hóme como se quer; é honrado ás direitas. Antão que lhe havemos de fazer? O peior, continuou elle, baixando a voz, é a cachopa ficar tão nova sem saber se é casada, solteira ou viuva. Mas é o mesmo, emquanto ella tiver os paes vivos, hade viver na abastança.

E voltando-se para sua filha:

-- Vamos para a nossa casa, rapariga? perguntou elle.

-- Quando quizer, meu pae.

Mendonça, depois de trocar com sua mulher algumas palavras em voz baixa, voltando-se para o Conde, disse-lhe:

-- Senhor Conde, quando quizer, aquella casa está ás suas ordens, e mesmo, se quizer ir viver para a nossa companhia, lá o teremos com munto gosto. Olhe que isto que lhe digo, accrescentou elle, não é da boca para fóra, como certa gente fina tem costume de fazer; eu cá, quando offereço alguma coisa, é francamente. Basta o favor que você fez a minha filha, recolhendo-a em sua casa e tratando-a tão bem!

O Conde agradeceu ao trasmontano em termos polidos e affaveis.

Mendonça, D. Pulcheria, sua filha e os criados que conservavam, despediram-se todos do Conde de R***, e dirigiram-se, n’uma carruagem do Conde, para a calçada do Salitre.

Mal sabia Mendonça que tambem estava roubado.

O trasmontano, ao apeiar-se da carruagem, á porta de sua casa, encontrou um seu inquilino, que morava no segundo andar do mesmo predio, o qual lhe disse, admirado:

-- Então, Vossa Excellencia por aqui!? Julguei que não vinha cá mais!

-- Porque me diz você isso? perguntou Mendonça tambem admirado.

-- Porque, como o senhor Barão de ***, seu genro, vendeu toda a mobilia e arranjos de casa que pertenciam a Vossa Excellencia, e me disse que o senhor Mendonça não vinha mais para aqui...

-- O quê?... que diz você?... gritou Mendonça, tartamudeando.

Depois, voltando-se para sua mulher, exclamou, fazendo uma horrivel careta:

-- Ai, Pulcheria, que estamos tambem roubados!

-- Que dizes, meu velho? perguntou D. Pulcheria, estremecendo desde a cabeça até aos pés.

-- Olha, ouve o que diz aqui o senhor F., nosso inquilino do segundo andar.

O inquilino repetiu a D. Pulcheria o que dissera ao marido, e esta, depois de o ouvir, e deixando-se cair n'um degrau da escada, começou a gritar e a chorar, não lhe importando os transeuntes que se iam juntando pouco a pouco.

-- Ficámos sem nada! gritava ella, debulhada em lagrimas. Uma mobilia, roupas e loiças que custaram ao meu pobre marido quasi tres contos de réis! Quanto nos custou a ganhar, a mim e a elle, só Deus sabe! Vêrmo-nos obrigados, para juntar o que temos, até a trabalhar com uma enxada, lá na nossa terra, e roubarem-nos d’este modo tanto dinheiro!

A mulher, allucinada como estava, continuaria a lamentar a sua vida, e a contar aos curiosos ouvintes os mysterios da sua fortuna, quando o marido, que tinha do arrombar a porta, por não se achar a chave, chegou onde ella estava, dizendo-lhe com um modo tragi-comico, que daria vontade de rir á pessoa mais compassiva e bondosa que ali estivesse:

-- Nada! aquelle grandecissmo ladrão de meu genro só me deixou as paredes! Limpou tudo!

D. Pulcheria duplicou os choros e as lamentações com esta noticia de seu marido, e teria feito grave escandalo publico, se sua filha e a ama d’esta não a levassem quasi em braços para a carruagem.

Mendonça, vendo sua mulher quasi desmaiada, entrou tambem na carruagem, e os criados, estupefactos, fizeram o mesmo.

D. Filomena, depois de vêr todos dentro do trem, deu ordem ao cocheiro para caminhar para casa do Conde de R***.

O Conde, depois de ouvir a infausta narração d’este outro roubo feito por seu filho, caiu sem sentidos.

Quando tornou a si, vendo-se rodeiado pela familia Mendonça, que lhe prodigalisava todos os cuidados necessarios para o fazer tornar á vida, o Conde, apertando a mão do gordo trasmontano, e vertendo ao mesmo tempo duas lagrimas de amargura, disse-lhe:

-- Senhor Mendonça, nunca julguei que tivesse vivido tanto, para, no fim da minha estada n’este mundo, passar por tantas e tão amargas provações. O senhor sabe quem é o culpado de tudo isto. Todavia, continuou elle, depois d'uma pequena pausa, eu, a indemnisação que lhe posso dar, é a cedencia d’este meu palacio com tudo quanto contém; se meu filho não me houvesse tambem arruinado completamente, gastando-me os rendimentos e empenhando a minha casa... poderia eu dar-lhe tudo quanto elle roubou á minha nora; porém, é-me impossivel fazel-o, porque tenho apenas o necessario para viver com a decencia d’um fidalgo velho, portuguez e honrado, que nunca fez figura triste na sociedade.

-- Nada, disseram ao mesmo tempo, Mendonça e sua mulher, nós não queremos que o senhor Conde nos dê coisa alguma; agora, o que pedimos, é que nos deixe ficar por alguns dias em sua casa, emquanto não arranjamos mobilia para a nossa.

-- São nobres os sentimentos que os animam, replicou o Conde estendendo a mão aos dois esposos; porêm, o menos que lhes posso conceder, é que fiquem vivendo comigo até eu fechar os olhos, o que não tardará, pois ha desgostos que abreviam a vida aos mancebos quanto mais aos velhos. O pouco que ainda tenho, continuou elle, pertencia a meu filho, unico parente que me restava; esse, para mim, morreu, e a minha herdeira é a rainha nora, e o fructo dos seus amores, que, segundo me parece, ella alimenta no seio. Então, á vista d'isto, peço-lhes que fiquem comigo, o que muito lhes agradeço, porque, pobre velho, só, não ficarei entregue a cuidados mercenarios.

Foi, pois, decidido que a familia Mendonça ficaria no palacio do Conde de R***.

D. Filomena, d'ahi a sete mezes, teve um lindo rapaz, que foi a alegria e o idolo do velho Conde, até este deixar o mundo.

Quanto ao Barão de ***, esse morreu em Veneza com uma punhalada, por haver feito lá algumas espertezas.

CAPITULO VIII

Uma historia falsa, mas que parece verdadeira

Deixámos o Marquez de ***, pensando qual o meio de chamar sua á herança que o Conselheiro M*** deixára a seu sobrinho.

O Marquez, depois de inventar alguns meios de conseguir os seus fins, porêm todos elles ou incompletos ou inexequiveis, começou a passeiar agitadamente pelo gabinete, parado por intervallos, fallando só e batendo na testa, como para vêr se lhe affluiria ao cerebro alguma idéa que podesse pôr em pratica.

De repente, parado, e sorrindo triumphante, disse comsigo:

-- Sim, isto não póde falhar.

E, assentando-se á secretária, escreveu apressadamente, um bilhete, findo o qual, tocou uma campainha.

Manuel Alonso não tardou em apparecer.

-- Onde está o José? perguntou o Marquez ao gallego.

-- Está na cozinha, xenhor Marquez, respondeu o criado.

-- Vai chamal-o.

Manuel Alonso saiu, tornando a entrar d’ahi a pouco com o criado da cozinha.

O Marquez entregou o bilhete ao cozinheiro, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Você vai á Praça do Principe Real, procure pelo numero que vai ahi escripto e, subindo ao segundo andar do predio, procure pelo senhor José Pereira, e entregue-lhe este bilhete da minha parte.

-- E se elle não estiver em casa, deixo ficar a carta? perguntou o criado.

-- Hade estar, disse o Marquez.

-- E tem resposta?

-- Tem.

O criado saiu, e Manuel Alonso, ficando só com o Marquez, perguntou-lhe:

-- Então Vossa Excellencia não precisa de mim?

-- Não, podes retirar-te.

O astuto aristocrata mandou o bilhete ao mancebo, porque sabia que o criado, apezar de ser perto de uma hora da tarde, encontraria em casa José Pereira, por este se haver recolhido de madrugada, tendo passado a noite em casa do Marquez.

José Pereira, como os leitores viram pelas indicações dadas pelo Marquez ao seu criado, mudára-se para a Patriarchal, levando para sua companhia o visinho sapateiro.

O mancebo alugára uma bonita casa, comprára uma bella mobilia, e vivia, se bem que triste, como um homem rico, tendo criado e criada e todas as commodidades que constituem uma vida socegada e abundante.

José Pereira, depois que estava relacionado com o Marquez, comia á fidalga, isto é, almoçava depois do meio dia, jantava á noite e ceiava de madrugada.

Quando chegou o criado do Marquez com o bilhete d’este, tinha José Pereira acabado d’almoçar.

«Charo amigo:

«Estou hoje muito triste e só. A Marqueza foi á modista, e Deus sabe quando virá. Preciso muito da tua companhia, pedindo-te que assim que recebas o meu bilhete, te dirijas no mesmo momento para esta tua casa.

«Tenho a communicar-te um importante segredo meu que me rala a existencia, e n’esta, occasião em que poderemos estar a sós, desejo depositar no seio d'um verdadeiro amigo, as minhas maguas. Cá te espero.

«Não faltes ao teu amigo e affeiçoado.

«MARQUEZ DE ***.»

O mancebo, depois de lêr o bilhete, disse ao criado que esperava a resposta:

-- Diga ao senhor Marquez que já vou.

O mancebo, depois da saida do criado do Marquez, vestiu-se apressadamente, perguntando ao mesmo tempo a si proprio, que segredo teria o Marquez a communicar-lhe tão de repente, quando já tinha tido não poucas vezes occasião de o fazer.

Mandou alugar um trem para chegar mais depressa, e quando ia para sair, disse á criada que o acompanhou até á porta:

-- Podem jantar quando quizerem, porque eu não venho hoje a casa senão depois da meia noite.

-- Sim, meu senhor, respondeu a criada.

Quando José Pereira chegou ao palacio do Marquez, e que foi introduzido no gabinete do aristocrata, este esperava-o com os braços abertos, dizendo-lhe, ao entrar, com voz lugubre, ao mesmo tempo que o estreitava carinhosamente (tudo tingido) contra o peito:

-- Ah! meu querido amigo, ainda bem que chegastes!

-- Então que tens, Marquez? perguntou José Pereira assustado pelo modo e tom do Marquez.

-- Sou um homem muito infeliz, meu querido Pereira! continuou o Marquez, representando magnificamente o seu papel de torturado e desgostoso; ha momentos em que chego até a ter vontade de acabar com esta miseravel existencia!

-- Porêm nunca te vi assim, disse José Pereira admirado e compungido por vêr o estado do seu amigo, o qual, até tinha a arte de mudar a physionomia quando queria fingir sentimento e dôr.

-- É porque, respondeu o Marquez, ha muito tempo que não era atacado por estas saudades e apoquentações que hoje me assaltaram. Tu, que és meu verdadeiro amigo, continuou elle apertando as mãos do mancebo e deixando vêr a bailarem-lhe nas palpebras duas magnificas lagrimas de crocodilo, que para o incauto mancebo passaram por lagrimas sentidas e verdadeiras, és digno de saber a triste historia que me opprime a existencia. Oh! narrando-te essa negra historia, acharei um lenitivo, e talvez, mesmo, tu possas animar-me com a tua sã intelligencia, a esquecer o que tenho soffrido e o que soffro.

-- Então falla, meu amigo, falla, disse José Pereira, que estava compungido devéras por vêr o triste estado em que jazia o Marquez. Se eu te poder servir d’alguma coisa para te minorar o que soffres, conta comigo.

-- Obrigado, meu excellente Pereira, exclamou o Marquez, obrigado.

E, depois de levar o lenço aos olhos como para limpar as lagrimas que lhe banhavam o rosto; de se assegurar que estavam sós, e de haver feito signal ao mancebo para se assentar n’um camapé estofado, ao lado d’elle, disse a José Pereira, pegando-lhe n’uma das mãos:

-- Então escuta-me bem, charo amigo.

E, fazendo um exforço fingido para começar, o aristocrata começou assim:

-- Antes de casar com a Marqueza, amei uma donzella, filha d‘um negociante; este amor, o primeiro e unico da minha vida, era um amor forte e vehemente. A donzella, linda e casta como os anjos, tributava-me igual amor, por ser tambem o primeiro.

«Meu pae, Duque de ***, poderosissimo fidalgo, assim que teve conhecimento das inclinações que eu tinha para com a formosa Joanninha (era assim que se chamava a linda filha do commerciante), começou logo a estorvar-me as relações amorosas, já com cartas ao pae d’ella, já com ameaças e invectivas dirigidas verbalmente a mim.

Eu, mostrando-me sempre resistente e indocil ás admoestações de meu pae, obrigei-o a que elle me mandasse a uma expedição á India, para pôr termo ás relações que o contrariavam.

Não tive, pois, remedio senão abandonar a minha querida Joanninha, e partir para onde meu pae me mandava.

Estive tres annos na India.

As cartas que de lá escrevi á minha amante querida, foram todas interceptadas por meu pae, porque vim a saber depois que Joanna nunca recebeu nenhuma.

O mesmo succedeu com as cartas escriptas pela mulher que eu adorava; nenhuma d’ellas me chegou ás mãos.

Quando voltei a Lisboa, ao fim do meu degredo temporario dos tres annos, Joanninha tinha casado com um mancebo guarda-livros.

Imagina, charo amigo, o desespero, a magua e os desgostos que soffri, vendo a mulher que eu tanto amava, casada com outro homem!

O mesmo lhe succedeu a ella.

Arrostando todas as difficuldades, Joanninha conseguiu fallar-me para me dar uma plena satisfação do passo que dera:

«Ah! meu querido, me disse ella soluçando, sem poder conter as lagrimas que lhe arrasavam os olhos; o teu silencio a tantas cartas que te escrevi, fez-me acreditar que me eras infiel, e até que estarias casado; foi por esse motivo que, desesperada por vêr tão mal correspondido o meu amor, vinguei-me de ti, casando com um homem a quem não amo.»

Imagina, charo Pereira, continuou o Marquez enxugando com um lenço os olhos humidos de lagrimas de crocodilo; imagina qual a minha desesperação e o meu furor, vendo o joguete de que ambos tinhamos sido victimas.

Para não fazer escandalo e não apoquentar meu pae, que a esse tempo se achava enfermo, calei-me e suffoquei comigo todos os amargos sentimentos que me apoquentavam o espirito.

D’ahi a alguns dias, meu pae, chamando-me em particular, disse-me que estava resolvido a legar-me os seus pergaminhos e fortuna, porêm que havia primeiro casar-me.

Eu recebi em silencio esta noticia: estive quasi recusasando a proposta que meu pae me fazia, porêm, reconsiderando, conheci que me era vantajoso ter dentro em breve um titulo do Marquez e bellos rendimentos... e por essa razão, respondi a meu pae que fizesse o que lhe parecesse, porque eu em tudo lhe obedeceria.

Meu pae, ouvindo o que eu lhe dizia, abraçou-me cordialmente, e disse-me com voz tema e carinhosa:

«Folgo de vêr que já pensas como um homem; muito estimo que já estejas curado da paixão amorosa de que foste atacado ha tres annos. Muito bem, meu filho; sabe que já te arranjei noiva: é uma linda donzella, filha do Conde de ***, e a qual dentro em pouco receberás por esposa.»

Curvei a cabeça, sem dizer palavra, á vontade de ferro de meu pae, e, parece que adivinhava ir cumprir um sacrificio, casando com uma mulher que me era inteiramente indifferente, porque, achando-me só, não pude deixar de derramar abundantes lagrimas, pela grande tristeza de que sentia oppresso o coração.

A mulher que meu pae me destinou, é de facto, formosa, como vês, porêm que importa, se vivemos ambos como irmãos, se desde a ceremonia nupcial nunca entre nós houve o mais leve signal de que eramos esposos?!

Ah! meu amigo, continuou o Marquez chorando copiosamente, ha momentos que o meu unico desejo é suicidar-me, porque deves comprehender o martyrio que soffremos, minha mulher e eu, condemnados ambos ao celibato, tendo sido recebidos á face do altar!

A mulher que eu amava, casada, o odiando me hoje mortalmente, por ignorar o que acabo de contar-te, e minha mulher, a quem nunca amei, nem poderei amar, servindo-me de estorvo a qualquer aventura amorosa que porventura se me possa proporcionar!

Podes avaliar, charo amigo, qual a minha amargurada vida!

Felizmente, encontrei um amigo com quem posso desabafar a triste historia da minha vida privada; porêm peço-te que nada contes do que acabo de revelar-te.

-- Socega, querido Marquez, respondeu José Pereira, que estava commovido em extremo pela pungente historia inventada pelo Marquez, do pé para a mão.

Os dois intimos conservaram-se juntos depois da historia, até chegar a Marqueza, a qual entrou pouco depois no gabinete do marido.

O lindo vestuario que a Marqueza trazia, ainda lhe fazia realçar mais a belleza.

Ella entrou no gabinete, e vendo o mancebo, estendeu-lhe familiarmente a mão com um abandono e graça fez estremecer José Pereira ao contacto d’aquella preciosa mão.

-- Então hoje é dos nossos, senhor Pereira, disse a Marqueza sorrindo, e deixando vêr no interior dos labios as duas lindas fileiras de perolas que lhe ornavam a boca. Ainda bem, continuou ella, porque quero mostrar-lhe uma compra que fiz. linde dizer-me com franqueza se é do seu gosto, sim?

-- Pois não, minha senhora, disse o mancebo, baixando os olhos por não poder por mais tempo arrostar com o olhar fascinador da Marqueza, que desde a historia do Marquez, lhe parecia ainda mais bella e seductora.

-- Que ventura seria a minha, pensava o mancebo comsigo, se esta mulher fosse livre, e me quizesse dar o seu amor!

José Pereira estava immerso n’estas meditações onde misturava na imaginação a linda physionomia da Marqueza com o candido e formoso rosto de Amelia, da mulher que o mancebo acreditava ingrata.

N’este momento, um criado do Marquez veio dizer que o jantar estava na meza.

-- Então vou-me despir, e vamos a elle, exclamou a Marqueza.

E, sem fazer caso algum do marido, veio metter o braço a José Pereira, e caminhou, apoiando-se-lhe amorosamente no braço, até ao seu quarto de vestir.

Chegada ali, perguntou-lhe com voz quasi sumida se elle queria entrar; porêm o mancebo, receiando commetter alguma imprudencia, vendo-se a sós com uma mulher a quem já amava com furor, recusou-se, dizendo á Marqueza que nem por pensamentos queria compromettel-a.

A Marqueza, comprehendendo, e querendo tambem fazer-se comprehender, disse-lhe em voz baixa:

-- Faz bem, por causa dos criados. Se quizer, não faltarão occasiões de nos vêrmos a sós.

E, depois d’estas palavras, que encantaram José Pereira, despediu-se d’elle, fechando a porta do quarto.

CAPITULO IX

Amor vendido

A historia que os leitores ouviram contar ao Marquez de ***, não era mais do que um mentiroso conto inventado pelo aristocrata para vêr se, d’este modo, José Pereira, atrevendo-se a requestar a Marqueza, sem receio de invadir os direitos alheios, porque o Marquez sabia que o caracter do mancebo o impedia de praticar uma infamia, poderia deixar escorregar a sua cobiçada fortuna.

De facto, a historia ficou impressionada no animo do mancebo, e acreditando no que o Marquez lhe contou, José Pereira julgou que não commettia crime algum, se d’ahi por diante requestasse a Marqueza.

O mancebo, ficando só, separado da mulher por quem suspirava, unicamente por uma porta, custou-lhe muito a conter-se para não lhe declarar o que por ella sentia.

A este tempo, a Marqueza, advertida pelo marido de como encaminhára o concussional negocio, tencionou aproveitar-se d’esse ensejo para extorquir a José Pereira a fortuna que este ainda possuia.

A Marqueza pouco se demorou em despir-se, vindo immediatamente collocar-se á meza, ao lado de José Pereira.

Durante todo o jantar, a astuta aristocrata não fez mais do que instigar o mancebo a embriagar-se, fazendo varias e repetidas saudes, ora a isto, ora áquillo, ás quaes correspondia sempre José Pereira.

O Marquez, mostrando-se taciturno e pensativo, deixava manobrar a Marqueza a seu bel-prazer.

Acabado o jantar, José Pereira, esquentado pela demasiada porção de vinho generoso que bebêra, contra o seu habitual costume, e fascinado pelo ardente olhar da Marqueza, deixou-se arrastar pelas seducções da sagaz aristocrata, revelando-lhe o ardente amor que por ella sentia, terminando por lançar-se-lhe aos pés, implorando-lhe que o attendesse ainda, como no dia em que lhe escrevêra a preciosa carta que o fez o homem mais feliz do universo.

Tudo isto, como os leitores já presumiram, foi dito, estando a sós com a Marqueza, pois o marido d’esta, depois do jantar pretextou uma indisposição, dizendo que ia procurar passar pelo somno um bocado.

A Marqueza, ouvindo a ardente declaração de José Pereira, lançou-lhe um apaixonado e fingido sorriso, dizendo-lhe ao mesmo tempo quasi ao ouvido:

-- Levanta-te, meu querido, que este Iogar não é proprio para se dizerem coisas similhantes; modera esse fogo e essa impaciencia. Queres que te repita o que te disse na minha carta?

-- Oh! sim, exclamou José Pereira, abrasado em amor, apoderando-se vivamente d’uma das lindas mãos da Marqueza, repete-me que me amas, que eu prometto ser o mais fiel e apaixonado amante que póde existir.

-- Pois sim, respondeu a Marqueza, procurando retirar d’entre as abrasadas mãos do mancebo a mão que elle lhe estreitava amorosamente; acredita que te amo, e a prova é, que sem receiar comprometter-me, na minha posição de senhora casada e da alta aristocracia, declaro-te que é a primeira vez que sinto amor por um homem, porque até agora...

E contou a José Pereira a mesma historia que este tinha ouvido da boca do Marquez.

N’este momento um criado veio annunciar a visita d’uma intima amiga da Marqueza, a qual veio n’esta occasião estorvar o agradavel colloquio dos dois amantes.

Para matar o tempo, o mancelx), emquanto esteve só, foi ler os diversos jornaes de que o Marquez era assignante, vendo em um d’elles a noticia circumstanciada da fuga do Barão de *** e do duplicado roubo que elle fizera a sua mulher e sogro.

José Pereira, admirado com tal noticia, por conhecer o Barão de *** por intimo amigo de seu fallecido tio, e tel-o em conta de homem honrado, ainda ficou mais attonito quando leu no mesmo jornal outra noticia a respeito do Visconde de ***, outro intimo do defuncto Conselheiro.

A noticia dizia assim:

Porto, 10 de Janeiro de 185...

«IMPORTANTE DESCOBERTA. O Visconde de ***, marido da interessante Viscondessa de ***, acaba do se descobrir a si proprio como um dos falsificadores de moeda, que tanto apoquentaram a capital, todo o reino, e até o imperio do Brazil.

Foi o caso:

O fidalgo estava n’uma casa de jogo, onde tambem se achava encoberto um agente de policia, encarregado de procurar descobrir algum vestigio da extincta sociedade de falsos moedeiros. O Visconde, que, segundo presumimos, estava um tanto fóra do seu estado normal, começou a fallar em dinheiro falso e a dizer que se tivesse querido, estaria já muito rico, porque sabia perfeitamente qual o processo da fabricação do moeda falsa.

Isto foi bastante para que a policia, prevenida pelo seu agente incognito, fosse cercar a casa e prendesse todos os jogadores, entre os quaes, alem do Visconde de ***, se achavam titulares, dos quaes, por conveniencias sociaes, occultâmos os nomes.

Consta-nos que no tribunal correccional se está instaurando um processo contra o Visconde, e mais alguem que este descobriu ter pertencido á extincta sociedade.

Contaremos depois aos nossos leitores, á medida que formos colhendo factos, o desenvolvimento d’este triste e lamentavel facto, no qual devem figurar alguns brazões de Portugal.»

José Pereira não podia acreditar o que acabava de ler, pois considerára até ali, o homem que estivera para ser seu padrinho de casamento, como um cavalheiro probo e incapaz de commetter tão vis e infames attentados.

A este tempo ia já anoitecendo, e o mancebo, cançado já de ler, largou o jornal, começando a impacientar-se com a prolongada ausencia da Marqueza.

Uma criada trouxe luz para a sala onde estava José Pereira.

Esta criada era a mesma confidente da Marqueza que os leitores já conhecem. Ella disse ao mancebo como em confidencia:

-- A senhora Marqueza não se demora nada, já se está despedindo da senhora Viscondessa de ***.

-- Da senhora Viscondessa de ***?! perguntou José Pereira admirado, por ter acabado de ler a accusação publica dirigida ao marido da fidalga.

-- Sim, respondeu a criada, é a visita com quem a senhora Marqueza tem estado a conversar. Então o senhor admira-se?

-- Não, respondeu José Pereira reconsiderando na exclamação que soltára, porque, pensando melhor, conheceu que nada havia mais facil do que a Viscondessa vir valer-se da sua amiga, sem que houvesse entre as duas mulheres outras relações alem da amizade do collegio.

A criada saiu, e d'ahi a pouco chegou a Marqueza, a qual disse ternamente ao mancebo, com aquelle tom de familiaridade amorosa que faz desarmar, mesmo os homens possuidos da mais ardente colera:

-- Então fiz-te aborrecer muito tempo só, não é assim, meu querido?

José Pereira, ao ouvir estas ineffaveis palavras, esqueceu tudo: o tempo que esperára, e o que lêra nos jornaes contra homens que elle respeitára outr’ora, para unicamente contemplar a interessante e seductora aristocrata hespanhola que tinha a seu lado.

A este tempo era já noite cerrada.

O mancebo, vendo-se a sós com a Marqueza, começou a avivar-lhe os protestos que lhe fizera n’essa mesma tarde, depois do jantar, e a Marqueza, correspondendo ás caricias que lhe fazia José Pereira, disse-lhe ao ouvido n’um tom de voz que fez desorientar completamente o mancebo:

-- Póde vir o Marquez... ó melhor irmos para o meu gabinete particular....

José Pereira deixou-se conduzir pela mulher que o fascinava e embriagava d’amor, ignorando que o passo dado pela Marqueza não era outra coisa mais do que a pesca resultante da rede lançada a elle, e cuja descripção já acima fizemos.

Finalmente, os poucos momentos de ventura que José Pereira ia gozar, eram-lhe vendidos por bom preço d’oiro.

José Pereira saiu do palacio do Marquez, eram duas horas da madrugada.

Nunca passára, a seu vêr, uma noite tão feliz na sua vida.

CAPITULO X

Começam as exigencias como quem não quer a coisa

No dia seguinte a esta noite, José Pereira dirigiu-se, era meio-dia, ao palacio do Marquez de ***, a pedido da esposa do aristocrata, que lhe enviou uma carta, pedindo-lhe que viesse passar o dia com ella, porque o Marquez a deixára só, para ir á caça com uns amigos, recommendando-lhe no post-scriptum que fosse ao meio-dia.

José Pereira, não querendo, nem por pensamentos, faltar aos desejos da mulher que adorava, os quaes, para elle eram importantes ordens, mal recebeu a carta, eram onze horas, tratou logo de se vestir convenientemente, e de se dirigir para o palacio do Marquez, no caminho do qual os leitores o vão encontrar.

A Marqueza esperava já o mancebo, elegante e coquêttement vestida, e assim que este entrou, estendendo-lhe com amavel abandono a sua feiticeira mão, disse-lhe ao mesmo tempo:

-- Com quê, foste pontual, meu querido. Ainda bem, continuou a Marqueza, porque vamos sair antes do jantar, pois quero que vejas na minha modista uma coisa que comprei, a vêr se tenho bom gosto. Hontem desejei mostrar-te o que é, porêm esperei em vão pelo caixeiro do armazem de modas, porque não appareceu.

E levantando-se, e vendo na pendula as horas, disse ao mancebo com um encantador sorriso:

-- Então, desde hontem pensaste muito em mim?

-- Oh! nem um unico momento me passaste da idéa, minha querida, exclamou o mancebo incendido com o seductor sorriso da Marqueza. Ha, porêm, momentos, continuou elle com tristeza, em que penso que toda a ventura e felicidade que posso gozar comtigo, me podem ser arrebatadas repentinamente pelo homem que tem direito para o fazer, e que póde um dia pedir-me estreitas contas do meu procedimento. Embora elle não te ame, e tambem não seja correspondido, sempre é teu esposo e tem direitos sagrados sobre ti.

A Marqueza, rindo, disse ao mancebo:

-- Tranquillisa-te a esse respeito, meu querido; embora meu marido tenha direitos sagrados sobre mim, para elle é absolutamente indifferente o que eu quizer fazer. E demais, não tem a liberdade de fazer o que quizer? Eu tenho o mesmo direito, pois não o constranjo em coisa alguma.

-- Oh! se podessemos viver ambos sós! exclamou José Pereira estreitando com fervor a mulher que se lhe entregára na vespera; que vida de ventura e de gozo passariamos!

-- Deixa estar, meu querido, respondeu a Marqueza correspondendo com ardor fingido ás caricias do mancebo; atraz de tempo, tempo vem, e ainda se póde realisar o teu ardente desejo. Sê-me tu sempre fiel e constante, que talvez dentro em pouco consigas o que anciosamente pretendes.

-- E posso eu ser-te infiel, eu, que por ti até olvidei a mulher que tanto amava!

-- Porque te atraiçoou vilmente, respondeu a Marqueza com um leve tom de recriminação que convinha muito para o caso.

-- Oh! não fallemos n’isso, disse José Pereira com pezar, pensemos unicamente no nosso amor.

-- Dizes bem, continuou a Marqueza, de que serve estarmos a recordar coisas tristes, e a que não podemos dar remedio?

-- Então vamos sair, sim?

-- Vamos.

E a Marqueza, tocando uma campainha, perguntou ao mesmo tempo a José Pereira:

-- Então aonde queres ir?

-- Aonde determinares, querida Marqueza.

Entrou um criado, ao qual a Marqueza perguntou se a carruagem estava prompta.

-- Sim, excellentissima senhora, respondeu o criado.

A Marqueza deu o braço a José Pereira, e ambos se encaminharam para a escada do palacio, no palco do qual estava uma brilhante carruagem, tendo atrelados dois possantes e magnificos cavallos.

A Marqueza subiu para o trem, José Pereira fez o mesmo, e o cocheiro, fustigando os valentes e cevados animaes, fez com que a carruagem rodasse para a rua e se afastasse rapidamente do palacio do Marquez.

Os cavallos trotaram até ao Chiado, e ahi, sopeados pelo cocheiro, pararam, escumando, á porta d’um armazem de modas, francez, para onde entraram José Pereira e a Marqueza, depois de sairem da carruagem.

-- Já está prompta a minha capa? perguntou a Marqueza a um caixeiro do estabelecimento.

-- Creio que sim, senhora Marqueza, respondeu o caixeiro.

-- Hontem esperei por ella toda a tarde, porêm foi o mesmo que nada, porque não m’a mandaram.

-- É porque a obreira encarregada de a acabar não deu conta d’ella, e por isso...

-- Porêm, madame A. disse-me que ficava hontem prompta, replicou a Marqueza.

-- É porque se enganou, tornou o caixeiro.

E, pedindo licença á Marqueza, deixou a loja e subiu ao pavimento superior, voltando quasi no mesmo instante com uma linda capa de senhora, de casimira côr de peito de rôla, forrada de seda da mesma côr, e ornada de pelles.

A Marqueza, assim que a viu, exclamou contentissima, dirigindo-se a José Pereira:

-- Olhe, senhor Pereira... então, não está tão linda?...

-- É verdade, senhora Marqueza, respondeu o mancebo examinando a capa; Vossa Excellencia teve um magnifico gosto.

-- Não é verdade? perguntou a Marqueza, dando mil voltas á capa, e inclinando a cabeça, ora para um ora para outro lado, afim de a mirar á sua vontade.

-- Vossa Excellencia não quer proval-a? perguntou o caixeiro á Marqueza.

-- Ah! sim, respondeu esta.

-- Então, continuou o caixeiro, tenha Vossa Excellencia a bondade de subir e dirigir-se ao toucador. Se não sabe onde é, eu a vou acompanhar.

-- Sei perfeitamente, respondeu a Marqueza.

E voltando-se para José Pereira:

-- Venha vêr que tal me fica, senhor Pereira.

O mancebo seguiu a Marqueza até ao primeiro andar do estabelecimento, e ali, encontrando ambos a dona do armazem, esta, pedindo mil desculpas á Marqueza por não ter podido acabar a capa e enviar-lh’a na vespera, terminou por lhe dizer em máu portuguez:

-- Queira Vossa Excellencia entrar no toucador.

E vendo que a Marqueza se encaminhava para o local indicado, e que José Pereira hesitava em fazer outro tanto, disse ao mancebo com aquelle sorrisinho falso como Judas, tão familiar aos francezes:

-- Vossa Senhoria póde acompanhar a senhora Marqueza... se Vossa Excellencia dá licença.

-- Venha, senhor Pereira, gritou-lhe a Marqueza já de longe, porque, com a pressa de provar a capa, até se esquecêra por um momento do amante.

O mancebo seguiu pois a Marqueza, e entrou no toucador, o qual consistia n’um luxuoso quarto, ornado de magníficos sophás e consoles de mólas, de grandes espelhos e luxuriosos quadros lithographicos, coloridos em Pariz.

A Marqueza provou a capa e, depois de se vêr ao espelho innumeras vezes, perguntou a José Pereira que que tal a achava.

-- Está muito bem feita, rospondou o mancebo encantado com a elegancia que a capa dava ao todo da Marqueza.

Esta, ouvindo o que dizia o mancebo, sorriu de triumpho, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Então, gostas d’ella, meu querido?

-- Muito, respondeu José Pereira, embriagado com o suave e toepido aroma que rescendia no quarto, com a vista dos lascivos quadros, e muito mais ainda por vêr a seu lado, e mais formosa que nunca, a linda marqueza hespanhola.

-- Ajudas-me a despir, querido Pereira? disse a Marqueza ao mancebo com voz requebrada, estendendo ao mesmo tempo os braços, com certo abandono, para traz do corpo, afim de que José Pereira lhe puchasse as mangas da capa.

A Marqueza, depois de haver despido a capa, olhando como por acaso para um dos quadros lithographicos que ornavam o quarto das provas, e que tinha o seguinte distico «Ce que ne voient pas les maris,» disso, sorrindo-se angelicalmente para o mancebo:

-- Que bello quadro, não achas?

José Pereira fictou a Marqueza, e conhecendo a intenção com que soltára estas palavras, pois que o quadro representava uma scena, livremente amorosa, entre uma dama do grande tom e um cavalheiro, substituto do marido, o mancebo não poude deixar de abraçar e oscular phreneticamente a seductora mulher que tinha a seu lado.

A Marqueza, em vez de o repellir, correspondeu aos affagos do mancebo.

Continuaram ambos a examinar os quadros, gastando n’este exame cinco quartos de hora.

Quando sairam do quarto das provas, encontraram outra vez a dona do estabelecimento, que perguntou á Marqueza se a capa estava a seu gosto.

-- Ficou muito boa, respondeu a Marqueza. É verdade, continuou ella, depois d’um momento de silencio, o Marquez já pagou o importe?

-- Ainda não, minha senhora, respondeu a modista.

-- Quanto é? perguntou apressadamente José Pereira, mettendo a mão no bolso do colete.

-- Eu vou saber, respondeu a madama. Tenham a bondade de descer ao magasin, que eu já vou ter com Vossas Excellencias.

A Marqueza e José Pereira desceram para a loja, e quasi no mesmo instante a dona da casa, apparecendo e aproximando-se dos dois freguezes, disse-lhes:

-- São dez libras.

José Pereira tirou promptamente o dinheiro da carteira e entrrgou-o á modista franceza, a qual lhe fez uma rasgada mesura, ao mesmo tempo que abria a mão, terminando estes rapa-pés com um forte e sonoro:

-- Muito agradecida.

-- Senhora Marqueza, disse o primeiro caixeiro á fidalga, desenrolando ao mesmo tempo um vistoso córte de seda para vestido; então não quer este lindo córte de que gostou tanto hontem?

-- Nada, respondeu a Marqueza n’um tom que dizia exactamente o contrario. O Marquez agora está muito economico, continuou ella rindo, e então devo resignar-me por emquanto a não comprar córte algum.

-- Tem a bondade de entregar o córte de vestido á senhora Marqueza, disse José Pereira, dirigindo-se ao caixeiro, e de dizer-me quanto é?

A dona da casa, vendo este rasgo de generosidade no mancebo, sorriu-se significativamente para a Marqueza, dizendo-lhe ao mesmo tempo, acompanhada do tal risonho francez:

-- Quando os maridos são economicos, sempre se encontram cavalheiros nobres e generosos que satisfazem as damas nos seus menores desejos.

-- Então, muito obrigado, senhor Pereira, disse a Marqueza, sem responder á modista, e estendendo a mão ao mancebo.

-- Oh! minha senhora, respondeu este delicadamente, não tem de que agradecer-me; eu é que peço desculpa da ousadia...

-- Então póde cá ficar o córte para a madama mandar fazer o vestido, continuou a Marqueza, fallando com a dona do estabelecimento.

-- Pois sim, como Vossa Excellencia quizer, respondeu a madama assim como quem tanto se lhe dá como se lhe deu.

O caixeiro, depois de fallar em voz baixa com a dona da casa, disse a José Poreira:

-- O córte e feitio do vestido são doze libras.

O mancebo tornou a puchar a carteira do bolso, e tirando d'elle a quantia exigida pelo caixeiro, entregou-a a este, dando-lhe, alem d’isso, meia libra de presente.

-- Agora, disse a Marqueza, retiremo-nos, porque vão sendo horas de jantar. Até breve, madama A***, continuou ella, despedindo-se da dona do armazem, não é assim?

-- Póde vir para a semana, senhora Marqueza, respondeu a dona da casa; heide fazer a diligencia para que fique prompto o seu lindo vestido.

José Pereira despediu-se tambem da modista, depois de lhe escorregar, n’um aperto de mão, uma libra. A madama, sentindo a esportula e comprimentando com as attenções devidas, quem lhe deixára de lucro, pelo menos, cincoenta por cento, terminou por lhe dizer:

-- Adeus, senhor de Pereira.

A Marqueza, entrou na carruagem, assim como José Pereira, o qual lhe custavam as honras de sair de carruagem ao lado da senhora Marqueza de ***, e as concessões d’esta para com elle, a bonita quantia de cento e tantos mil réis, assim como quem não quer a coisa.

CAPITULO XI

Circumstancias criticas

O Marquez de ***, dias depois das scenas passadas no capitulo precedente, passeiava um dia mui agitado no seu gabinete.

Quem estivesse observando o aristocrata, descobriria, pela contracção de suas feições, á medida que se passava o tempo, e consultava o relogio, a visivel inquietação que o accommettia, á proporção que os ponteiros se aproximavam do meio-dia.

-- Por mais que dê tratos á imaginação, dizia elle consigo, não acho meio algum para me tirar d’este apuro.

Depois tornava a passeiar, consultando novamente o relogio, gesticulando, levantando os hombros, e contrahindo o rosto horrivelmente.

-- O prazo para pagar as letras findou antes de hontem e F. de certo as vai protestar ámanhã, como já o disse, se eu até hoje á noite lhe não pagar. Como heide eu pagar-lhe, se nem tenho dinheiro para a viagem? Outra intallação! O paquete parte depois d’ámanhã para Montevideu, e se não partirmos, eu e minha mulher, ficâmos perdidos e desacreditados.

N’este momento soou meio-dia, e o Marquez, ao ouvir o primeiro som da pendula, não poude deixar de estremecer.

Ainda não havia decorrido um minuto depois de soarem as doze horas do dia, quando a porta do gabinele se abriu, e o seu criado particular e confidente, Manuel Alonso, deixando ver ao Marquez a cabeça por entre a abertura da porta, disse ao amo com voz significativa e em tom de ponto de theatro:

-- Está lá fora o senhor F. que pretendr fallar ao senhor Marquez. Que quer Vossa Excellencia que lhe diga?

O Marquez, depois de se conservar um momento immovel, petrificado e mudo, disse ao criado com voz de estalo:

-- Manda-o entrar.

-- Para aqui?

-- Sim.

A cabeça do criado desappareceu, e d’ahi a pouco entrou no gabinete do Marquez, pedindo repetidas licenças, e fazendo muitas cortezias, um homem baixo, magro, e de côr duvidosa, d’uma idade inclassificavel, vestido de preto, porêm com o fato tão rafado e tão mal ajustado ao corpo, que, dir-se-hia ter sido comprado na feira da ladra ou em qualquer loja de adello.

O Marquez empallideceu ao encarar com o homemsinho; e elle, lançando-lhe uma furtiva olhadella com os seus pequeninos e perspicazes olhos de abutre, disse-lhe ao mesmo tempo com uma voz de contralto falsete que fez estremecer o Marquez:

-- Então, como tem passado Vossa Excellencia denos de antonte para cá?

-- Menos mal, respondeu o Marqucz.com voz de quem está batendo o queixo com frio, e o senhor F.?

-- Eu tenho passado mal do meu romatigo, mesmo muito mal.

-- Então, não fez bem, disse o Marquez, sair com este tempo tão frio... Deve fazer-lhe muito mal.

O homemsinho deu um estalo com a lingua, mettendo a cabeça entre os hombros, em signal de compaixão por si proprio, dizendo ao mesmo tempo:

-- Que quer Vossa Excellencia? A necessidade é inimiga da virtude, e eu vejo-me obrigado a arrostar com a enfermidade e com o máu tempo para dar ordem á vida.

-- Então, vem a esta sua casa, para... disse o Marquez, deixando a pergunta em reticencias.

-- É verdade, respondeu o homemsinho, que, apezar de conhecer que o Marquez desejava ignorar para o fim que elle vinha, queria patentear-lhe claramente a razão da sua visita.

-- Pois, meu charo senhor F., respondeu o Marquez, deixando as evasivas e rodeios, por conhecer que eram inuteis umas e outros com o adversario com quem tinha a tratar; sinto immensamente o dizer-lhe que se incommodou debalde, porque ainda hoje não posso...

-- Olhe o senhor Marquez que eu não posso esperar senão até hoje ao pôr do sol, interrompeu o homemsinho, gesticulando muito com os braços e com a cabeça; depois, continuou elle, carregando nas palavras, não deve irar-se contra mim, porque não serei o culpado do que possa acontecer, tendo avisado Vossa Excellencia.

-- Eu lhe conto, senhor F., a razão porque não posso ainda satisfazer-lhe. Eu devia hoje receber uns cinco ou seis coutos de réis da venda que fiz d’uma propriedade de casas e quinta que possuia na provincia do Alemtejo; porêm, hoje mandou-me dizer o meu procurador que a escriptura da venda, por ser muito complicada e extensa em consequencia de foros, emphiteutas, etc., não poderá estar prompta senão d’aqui a tres dias. Ora, o senhor F., que conheço perfeitamente o foro, sabe tambem que o comprador não póde passar-me o importe da venda que lhe faço, senão no acto da leitura da escriptura perante o tabellião e o meu procurador. Vê, portanto, que estou impossibilitado de receber esse dinheiro que esperava hoje, emquanto não estiverem ultimadas as formalidades exigidas por lei, n’uma venda tão importante como é esta de que acabo de lhe fallar.

O homemsinho fez uma careta, elevou os olhinhos ao tecto, examinando rapidamente o Marquez n’esta elevação, e depois, engulindo em sêcco, assobiou por entre os dentes as seguintes palavras:

-- O senhor Marquez bem sabe que já passaram dois dias depois de expirar o prazo para o embolso das letras de cambio, e conhece perfeitamente quaes os direitos que assistem ao acceitante.

-- É verdade, senhor F., apressou-se em responder o Marquez, conheço perfeitamente a razão e o forte argumento que acaba de me apresentar; porêm, dignando-se o senhor esperar até hoje, não podia fazer-Me o especialissimo obzequio de esperar mais tres dias, até eu receber o que hoje devia embolsar?

-- Esta espera já me fez grande transtorno, replicou o homunculo, e esperar mais tres dias torna-se-me absolutamente impossivel. A pessoa a quem pedi o dinheiro para servir Vossa Excellencia tem-me apoquentado horrivelmente desde antonte, e então veja o senhor Marquez como é possivel poder esperar ainda mais tres dias.

O Marquez, que já julgava ter abrandado a pontual inflexibilidade do agiota, e contava com a concessão de mais tres dias d’espera para se evadir antes d’isso, achou-se outra vez derrotado com o que lhe dizia o homemsinho.

-- Porêm isso, senhor F., continuou o Marquez, fazendo um derradeiro exforço para convencer o seu contrario, isso é obrigar-me a uma coisa impossivel, como sabe, ou então é querer vexar-me publicamente. Nunca esperei que o senhor F. me pozesse entre taes torturas! Pois olhe que não sou merecedor d’isso; bem sabe que sempre o tenho procurado para as miuhas transacções, e não devia ser tão rispido para comigo.

Estas ultimas palavras do Marquez foram ditas com voz perfeitamente commovida, chegando a rebentarem-lhe as lagrimas dos olhos quando deixou de fallar.

O agiota, com os olhos pregados no chão, conservou-se calado alguns segundos, depois do que, dando um «ah!» como de quem está compenetrado de profunda magua, disse ao Marquez:

-- Pois, senhor Marquez, se a pessoa que me emprestou o dinheiro annuir a essa espera, cá pela minha parte esperarei...

-- Oh! senhor F., exclamou o Marquez pondo familiarmente as mãos nos hombros do agiota, dou-lhe mais cinco por cento de lucro se me fizer esse immenso favor.

O homemsinho fictou o Marquez com ar de duvida.

Este, comprehendendo o olhar do agiota, como a panthera comprehendo o olhar do tigre, para não tornar a deixar fugir a taboa de salvação que quasi tinha alcançado, disse-lhe apressadamente:

-- Dou-lhe a minha palavra do honra que terá os cinco por cento.

O agiota, ouvindo a firmeza com que o Marquez soltou estas palavras, levantando-se da cadeira onde estava assentado, e tossindo como quem tem pigarro na garganta, disse ao aristocrata:

-- Acredite Vossa Excellencia, que por ser meu freguez antigo é que eu me empenho para com a pessoa que me emprestou o dinheiro, a esperar os tres dias requeridos pelo senhor Marquez, porque a mim tanto me faz mais cinco como menos cinco. Agora o que lhe peço, terminou elle despedindo-se humildemente, é que, de hoje a tres dias, ao meio-dia em ponto, me não falte com o dinheiro.

-- Oh! senhor F., gritou o Marquez em tom de convicção do que ia dizer, pode contar com elle como com o que tem na algibeira.

-- Então, adeus, senhor Marquez.

-- Até de hoje a tres dias, meu querido senhor F.

O agiota saiu, e o Marquez, radiante d’alegria, exclamou, esfregando as mãos:

-- Oh! deste já eu estou livre! Agora vamos a combinar o meio como minha mulher hade apanhar a fortuna do papalvo de José Pereira, a qual me faz um bello arranjo para pagar a passagem no paquete, e chegar a Montevideu com uma boa quantia.

CAPITULO XII

Conferencia rapinante

O Marquez, possuido d’estas alegres idéas, tocou uma campainha, a qual fez apparecer quasi no mesmo instante Manuel Alonso.

-- Dize á senhora Marqueza que tenho absoluta necessidade de lhe fallar, e que a espero aqui.

O criado dispunha-se a ir executar as ordens do amo, quando este lhe perguntou repentinamente:

-- Tu tens dinheiro?

O criado encarou o Marquez, abriu muito os olhos, e ficou calado, sem saber o que responderia.

O Marquez, conhecendo o embaraço do criado, continuou sorrindo-se:

-- Se tens dinheiro junto, falla, que pretendo fazer um negocio comtigo, no qual ganharás uma boa porção de quartos.

O gallego, ouvindo fallar em ganho e em negocio, respondeu ao Marquez:

-- Eu, senhor Marquez, tenho umas dez moeditas ao canto da arca para levar para a terra quando lá fôr...

-- Pois bem, se queres, emprestar-m’as por tres dias, ganhas duas libras de juro.

O «se queres» do Marquez foi dito de tal modo que o gallego conheceu que se não emprestasse o dinheiro era com certeza posto na rua; e por isso, ainda que contra vontade, respondeu titubiando:

-- Pois sim, senhor, estão ás ordens de Vossa Excellencia.

-- Bem, tornou o Marquez, então vai dar o recado de que te incumbi, á senhora Marqueza, e depois vem trazer-me o dinheiro que me é hoje muito preciso para umas compras. D’hoje a tres dias, continuou elle para animar e consolar o gallego, heide receber cinco contos de réis da venda d’uma propriedade minha, e então serás immediatamente embolsado.

O gallego tornou a abrir muito os olhos ao ouvir fallar em cinco contos, e saiu, apressado, a dar o recado á Marqueza.

Esta não se fez esperar muito em vir ao reclamo.

-- Aqui me tem, senhor, disse ella, entrando no gabite do Marquez, vestida ligeiramento com roupas matinaes; o que pretende de mim?

• Temos coisas d’alta importancia a combinar, respondeu o Marquez.

Depois d’isto, indo assegurar-se de que estavam ambos completamente sós, e fechando a porta do gabinete, disse á Marqueza a meia voz para, apezar das precauções tomadas, não ser ouvido por algum servo:

-- Saiba, Marqueza, que já consegui a grande difficuldade do me vêr livre do agiota que me descontou as letras.

-- Sim? disse a Marqueza com certo desdem.

-- É verdade, replicou o Marquez.

Depois, ficando um momento em silencio, continuou como a custo:

-- Vossa Excellencia tem os seus trabalhos muito adiantados?

-- Não tanto como desejava, respondeu a Marqueza.

-- Então bem póde vêr se os ultima, porque devemos partir infallivelmente depois d’ámanhã... Então não tem nenhum meio d’invenção para poder apanhar ao rapazola a sua fortuna?

-- É verdade que não: confesso-me vencida, porque elle tem já dispendido comigo tanto dinheiro em bagatellas, que não me atrevo a importunal-o, pedindo-lhe uma quantia grande.

-- E estava a senhora com isso guardado para a ultima hora!... exclamou o Marquez em tom acre e de recriminação. Então, continuou elle moderando mais a voz, quer sair d’aqui sem real depois de pagar a viagem, e chegar lá com as mãos abanando?! Ora esta!...

E o Marquez começou a passeiar agitadamente pelo quarto.

A Marqueza ficou um momento silenciosa, e depois, como uma pessoa que não quer dar o seu braço a torcer, porêm que se vê obrigada a isso, disse ao marido vagarosamente e como retrahindo as palavras:

-- O senhor é que me póde fornecer alguma luminosa idéa, visto sor tão fertil em bellas idéas.

-- Ah! quer então que eu lhe forneça o plano de batalha? disse o Marquez parado de repente ao ouvir o que lhe dizia sua mulher.

-- Quero, respondeu ella.

-- E acha-se com forcas de o executar habilmente?

-- Creio que não hade conter coisas impossiveis e que eu não possa vencer...

-- De certo que não.

-- Então, estou prompta a executal-o.

-- Bem, disse o Marquez.

E puchando uma cadeira, assentou-se defronte da Marqueza e perguntou-lhe:

-- O rapaz vem cá hoje?

-- Assim o espero.

-- A que horas o espera?

-- Á hora do jantar.

-- Bello, disse o Marquez.

E depois de pensar um momento, continuou:

-- Pois a senhora janta só com elle, porque eu não appareço, e, quando julgar conveniente, diga-lhe que eu sai muito apoquentado, porque estou em risco de soffrer uma penhora na mobilia, não arranjando até ámanhã a quantia de cinco contos de réis, que devo pagar, d’uma letra que já venceu o prazo. D’ahi a pouco entro eu, com parecer afflicto e transtornado, recolho-me logo ao meu quarto... a senhora vai saber novidades a respeito da penhora e vem dizer ao rapaz, com afflicção bem representada, que não pude arranjar o dinheiro para pagar a letra ámanhã, e que receberei seis contos de réis d’hoje a tres dias, d’uma venda que fiz, e que só então se ultimará. Dirija-se bem ao cavalheirismo do rapaz, e se d’esse modo não podér obter o que pretende... o resto fica por sua conta... porque Vossa Excellencia não ignora que uma mulher bonita, que é marqueza, e amada por um homem do povo, póde conseguir d'esse homem quanto lhe aprouver... Só o que tenho a recommendar-lhe, para o bom acabamento da scena final, é que represente bem desde o principio da comedia.

-- A esse respeito póde ficar descançado, respondeu a Marqueza; concedo-lhe as honras de autor, porêm as de boa actriz pertencem-me sempre... apezar do senhor ser tambem um bello actor.

-- Muito bem, disse o Marquez radiante d’alegria; então vá prepara r-se para lhe apparecer convenientemente, que eu vou fazer o mesmo... São quasi duas horas, continuou elle examinando o relogio, e não temos tempo a perder.

A Marqueza saiu do gabinete do marido, e este, vendo-se só, escreveu o seguinte bilhete ao seu armador e estofador:

«Senhor:

«Peço-lhe o favor de mandar ao meu palacio algum seu collega que pretenda comprar a minha mobilia. Vou viajar por algum tempo, e quero desfazer-me d’ella. Durante a minha viagem, que talvez dure seis mezes, trate de me arranjar outra mobilia, do ultimo gosto francez, para quando eu regressar á capital.

«Sou seu am.º e obg.º

P.S.

Veja se até ámanhã, ás onze horas

do dia, manda cá o homem que

lhe peço, isso sem falta.

«MARQUEZ DE ***.»

O Marquez acabava de sobrescriptar o bilhete quando entrou no gabinete Manuel Alonso, trazendo na mão um pé de meia quasi cheio de dinheiro.

-- Senhor Marquez, disse o gallego ao amo, aqui tem Vossa Excellencia o meu dinheiro. Faz favor de contar, a vêr se estão ahi as dez moeditas?

-- Não é preciso, homem, disse o Marquez com um tom de confiança affectada e de generosidade em demasia, põe para ahi.

O gallego poz o pé de meia sobre a secretária, e dispunha-se a sair, quando o Marquez lhe disse:

-- Toma, leva este bilhete ao seu destino.

-- Tem resposta?

-- Não.

O gallego saiu, esfregando as mãos de contentamento e dizendo comsigo:

-- Baia, que o patrão não contou o dinheiro, e julga que lhe levei as dez moedas, quando só lhe dei nove e meia.

E o velhaco-pacovio saiu do palacio a rir do roubo que fizera ao amo, sem saber que o roubado era elle, da quantia que emprestára ao Marquez.

CAPITULO XIII

Ultima pesca

José Pereira, como os leitores sabem, tinha dez contos de réis em inscripções, valor nominal, os quaes lhe custaram metade, em metal sonante.

Dos cinco contos restantes, depois dos donativos que fizera a Amelia e a D. Thereza, das perdas ao jogo e do dinheiro dispendido com a Marqueza, restavam apenas ao mancebo uns dois contos.

José Pereira, cada vez mais captivo dos encantos e vendidos favores da Marqueza, corria como louco para o precipicio, isto é, para a sua ruina.

Elle não pensava no futuro desgraçado que podia ter, dissipando a sua fortuna, nem se lembrava que, gastando como o fizera até então, dentro em pouco se veria obrigado a hypothecar ou vender o capital dos trezentos mil réis de rendimento que possuia.

O mancebo, apezar das despezas enormes que fazia com a Marqueza, apezar de jantar e ceiar em casa do aristocrata quasi todos os dias, vivia abundantemente na sua nova habitação, alimentando bem a criada e o velho sapateiro, dando tambem a este, fato seu em bom uso, uma bella cama, roupa branca, e algum dinheiro para qualquer necessidade do ancião, quando saisse.

Em paga do que fazia ao pobre sapateiro, nada lhe exigia, nem mesmo queria que elle fosse a qualquer mandado, apezar dos offerecimentos que constantemente lhe fazia o velhote.

Na occasião em que começa este capitulo, vamos encontral-o na sala, assentado n’uma cadeira, lendo um jornal, ou antes pensando, porque o mancebo em vez de lêr, estava profundamente triste.

Quem sabe se estaria pensando na mulher que elle julgava tinha recompensado o seu sincero e puro amor com a mais feroz ingratidão?

Fosse em que fosse, o que sabemos é que estava abysmado em profunda melancholia.

Conservava-se n’este estado meditalivo quando a criada lhe veio entregar uma carta.

-- Quem a trouxe? perguntou José Pereira antes de lhe pegar.

-- Um criado da senhora Marqueza, respondeu a criada.

José Pereira pegou avidamente na carta e, depois de a percorrer com a vista, disse á criada:

-- Dize ao criado que participe á senhora Marqueza que não faltarei.

A criada retirou-se.

José Pereira, vendo-se só, e saindo totalmente da melancholia em que estivera immerso, beijou fervorosamente a carta, guardando-a depois na gaveta d’uma secretária.

A carta da Marqueza continha o seguinte:

«Meu prezado amante:

«Peço-te, assim que receberes a inclusa, venhas immediatamente ter comigo.

«Estou hoje só, muito triste, e preciso immenso da tua querida companhia para assim mitigar as maguas que sinto desde hontem.

«Á vista serei mais explicita.

«Não tardes, meu querido, porque, anciosa te espera

A tua amante,

que te quer como a Deus,

«MARQUEZA DE ***.»

José Pereira guardou a carta, como dissemos, e tratou immediatamente de se apromptar para sair.

Era portanto hora e meia quando entrou no palacio do Marquez de ***, sendo conduzido pela criada, confidente da Marqueza, para o gabinete particular da aristocrata.

Esta, esperava-o coquettement vestida, e assim que viu entrar o mancebo, n’um impulso de ternura fingida, lançou-se-lhe nos braços, chorando lindamente, sem mesmo lhe importar a criada que ainda não se havia retirado.

O mancebo, vendo as lagrimas da mulher que amava, aquellas lagrimas tão bem choradas que lhe escaldaram as mãos, ficou sobresaltado e perguntou á Marqueza, osculando-a apaixonadamente:

-- Porque são tantas lagrimas, querida Marqueza?

-- Ai! meu querido, respondeu a Marqueza com a voz embargada pelo choro, não sabes o mal de que eu e meu marido estamos ameaçados e de que seremos victimas, irremediavelmente ámanhã!

-- Ora essa! exclamou o mancebo estupefacto. Então, foi coisa repentina?...

-- É verdade, meu querido Pereira, continuou a Marqueza, enlaçando o mancebo, e encarando-o ao mesmo tempo com um d’esses olhares desesperados d’uma mulher que tem a convicção de ser bonita e amada; estamos prestes a ser deshonrados... escarnecidos em publico...

-- Sim?!... perguntou José Pereira, cada vez mais admirado.

-- É certo, meu querido.

-- E, conservando o mancebo sempre amorosamente enlaçado e fascinado pelo seu olhar, contou-lhe a historia do rebatedor e a exigencia d’este homem para com o Marquez, os apuros em que o marido se via por não lhe poder pagar senão d’ahi a tres dias, e finalmente a penhora que devia soffrer na mobilia, caso o Marquez não pagasse a letra no dia seguinte.

O mancebo depois de escutar attentamente a Marqueza e de sentir viva commoção pela angustia que via estampada na physionomia da fidalga, disse-lhe, acariciando-a:

-- Não deves affligir-te lanto por causa d’isso, minha querida.

-- Não devo, dizes tu! exclamou a astuta Marqueza, fingindo não perceber o sentido das palavras do mancebo, para elle não se persuadir que ella queria implorar o seu auxilio pecuniario. Então posso porventura encarar a sangue frio o meu descredito e a minha ruina?!

-- E qual é a quantia da letra?

-- São cinco contos de réis, respondeu apressadamente a Marqueza, sempre figurando que não comprehendia.

-- Então descança, minha querida, que não passarás vexame nenhum, respondeu José Pereira, depois de haver calculado o dinheiro e inscripções que ainda possuia.

-- Que dizes, meu amor?! exclamou a Marqueza, fingindo ainda não entender, pois será possivel?!...

-- Eu ainda posso realisar essa quantia, disse o mancebo com ar resoluto, e, sem fazer sacrificio algum, empresto-a com a melhor vontade ao Marquez até elle receber o dinheiro da venda que fez.

-- Oh! meu querido Pereira, tu és o nosso anjo salvador! exclamou a Marqueza, apertando o mancebo com força contra o peito e osculando-o repetidas vezes.

Depois, como reconsiderando, e qual consummada actriz, passando rapidamente a outro tom, disse-lhe, affectando uma nobreza d’alma e generosidade de caracter proprio das pessoas nobres de sentimentos, porêm que ella, sendo nobre, não possuia:

-- Oh! porêm não posso consentir que te despojes do que possues para nos valer; não aceito...

-- Oh! porêm isso seria a maior desfeita que eu posso receber, exclamou o mancebo que, incauto e acreditando cegamente no amor e nas palavras da Marqueza, não sabia que estava dictando a si proprio a sua ruina; eu, quando me offereci para valer ao Marquez na situação precaria em que se acha, foi, como declarei, sem fazer o menor sacrificio, e por isso, desejo bastante que o meu offerecimento seja aceite.

-- Basta, meu querido, basta, replicou a Marqueza; se eu soubesse que te escandalisavas com a minha recusa, nem por pensamentos teria tocado em similhante coisa. Aceito e agradeço muito.

E, para animar e tranquillisar o mancebo, desviando-o de qualquer reconsideração que elle podesse ter, por julgar não ser embolsado, ou vexar-se de aceitar o dinheiro quando lh’o quizessem restituir, continuou passado um momento:

-- Porêm com a condição que hasde prometter aceitar o embolso quando de hoje a tres dias, meu marido t’o apresentar.

-- Escusava fazel-o, porêm prometto-o, para te evitar qualquer escrupulo, disse José Pereira sorrindo para a Marqueza, ao mesmo tempo que pensava comsigo e avaliava a delicadeza e nobreza d’alma da fidalga.

Depois ficou um momento em silencio, pensando no tempo que poderia gastar para apromptar a quantia, findo o qual:

-- A que horas deve vir o agiota buscar o dinheiro? perguntou elle á Marqueza.

-- Ao meio-dia, respondeu esta, meditando alguns segundos para fazer os seus calculos.

-- Bem, cá estarei antes do meio-dia. Agora, continuou elle, hasde conceder-me licença para me retirar...

-- Antes do jantar? perguntou a Marqueza n’um delicioso tom de commiseração.

-- Não posso demorar-me mais, respondeu o mancebo com ingenuidade e franqueza, porque não sei o tempo que será necessario para poder realisar os cinco contos, os quaes não possuo todos em metal sonante...

-- Ah! meu charo amante, atalhou a Marqueza, para acabar com esta conversação, que de sacrificios e abnegação!... És um homem impagavel, que nenhum oiro do mundo poderá exceder em valor!... Sei que me amas, e por esse motivo conheço o sacrificio que fazes em deixares a minha companhia tão de repente para ires tratar d’um negocio que não é teu, e no qual, em vez de lucro e interesse, vais servir a outrem!

-- Então não tenho lucro e interesse em enxugar as lagrimas de dôr e desespero á mulher a quem amo apaixonadamente? disse José Pereira á Marqueza, lançando-lhe um olhar que valia mais que tudo quanto elle podesse dizer.

-- Pois vai, meu terno e fiel amante, vai, que eu prometto pagar-te em ternura, amor e dedicação os passos que vais dar e o favor immenso que me fazes, salvando-me da medonha situação em que me via.

O mancebo alevantou-se, pegou no chapéo e apromptou-se para sair.

A Marqueza levantou-se tambem, e enlaçando-o pela ultima vez nos seus braços, deu-lhe o ultimo beijo, sem duvida descendente, em linha recta, do que causou a morte de Jesus.

José Pereira saiu, e a Marqueza, ficando só, caiu n’um sophá, esfregando as mãos contentissima e pensando ao mesmo tempo:

-- É um papalvo o ex-sargento! Como caiu sem custo na rede que eu lhe armei!

E soltou uma estridente gargalhada de zombaria, da qual era alvo o bondoso e honrado José Pereira.

CAPITULO XIV

Com ladrão, ladrão o meio

O Marquez, que ouvira tudo, escondido atraz d’uma porta, entrou no gabinete da Marqueza, depois da saida de José Pereira, e disse a sua mulher, em tom prazenteiro e de louvor:

-- Bravo! a senhora andou perfeitamente!

-- Acha? perguntou a Marqueza com desdem; é para que veja, que sei representar e conseguir o que emprehendo... Viu, continuou ella, que não foi necessario abaixar-me a pedir-lhe coisa alguma?...

-- É facto, respondeu o Marquez inclinando a cabeça, não teve de se vexar para apanhar a quantia ao rapazola... Agora, continuou elle, trate quanto antes de arranjar a sua mala de viagem, que eu vou fazer o mesmo, para as mandar para bordo, ámanhã cedo, afim de que, depois d’ámanhã, dia da partida, não tenhamos algum empecilho, e possamos ambos sair d’aqui sem que os criados desconfiem para onde vamos.

-- A que horas sáe o vapor?

-- Ás oito da manhã, o que é uma excellente hora. Ámanhã á noite iremos ficar n’uma hospedaria perto do caes, e pela manhã, em dois passos embarcâmos.

-- E a nossa mobilia? perguntou a Marqueza.

-- Já tratei de mandar vir um homem que a compra.

-- E quando vem elle?

-- Espero que hoje, ou ámanhã de manhã.

-- Porêm isso é máu, porque vai dar nas vistas... o homem hade querer levar os moveis, e isso faz desconfiar os criados e póde constar...

-- Descance, que eu já preveni tudo. O meu estofador é o medianeiro n’este negocio, e então, eu, depois de ultimar a venda com elle ou com o homem que elle cá mandar, peço-lhe que não leve a mobilia sem eu ter saido de Lisboa.

-- Porêm elle póde recusar...

-- Não recusará, porque eu passo-lhe uma declaração de venda, e como elle me conhece, não desconfia de mim.

Estavam n’este ponto da conversação, quando a criada grave chegou á porta do gabinete e, batendo, disse ao mesmo tempo em voz alta para que os dois esposos ouvissem:

-- Está ali o estofador do senhor Marquez, que pretende fallar a Sua Excellencia.

-- Eil-o ahi, disse o Marquez com ar triumphante. Vamos á venda.

E, saindo do gabinete, foi encontrar-se com o estofador, que era um homem de meia idade, francez, e que vinha acompanhado d’um marceneiro, tambem francez, para servir d’avaliador da mobilia.

-- Adeus, senhor F***, disse o Marquez ao estofador, estendendo-lhe ao mesmo tempo a mão.

-- Senhor Marquez, Vossa Excellencia tem passado bem? disse o francez em tom estrangeirado, carregando muito nos ii e rr, o que provava, apezar de estar em Lisboa ha perto de trinta annos, ainda não ter perdido a pronuncia patria.

O Marquez, respondeu ao comprimento com uma leve inclinação de cabeça, a qual serviu ao mesmo tempo para comprimentar tambem o desconhecido que acompanhava o estofador.

-- Estou ás ordens de Vossa Excellencia, continuou o estofador.

-- Bom, disse o Marquez. O senhor já sabe de que eu o incumbi; porêm... parece-me, proseguiu o aristocrata sondando o estofador, que o senhor é o comprador. .. não é assim?

-- Nada, não senhor, respondeu o francez apressadamente, eu não sou... é este meu amigo.

-- Muito bem, replicou o Marquez; então, querem vêr a mobilia?

-- Sim, se Vossa Excellencia permitte...

-- Queiram acompanhar-me.

E o Marquez encaminhou os dois negociantes francezes á sala, onde os deixou examinarem á sua vontade os moveis, passando depois successivamente aos outros quartos.

Depois de minucioso exame dos dois francezes, o estofador perguntou ao Marquez:

-- Então, quanto quer Vossa Excellencia pela sua mobilia?

-- Olhe, respondeu o Marquez, para não estarmos com rodeios, e por eu ter de partir brevemente por causa d’um grande negocio, vendo-lh’a por quinhentos mil réis. O senhor bem sabe quanto ella me custou... olhe que foi perto do dobro d’esta quantia.

O estofador, depois de ouvir o Marquez, meneiando a cabeça em signal negativo, disse-lhe:

-- Oh! senhor Marquez, o meu amigo examinou bem os moveis, e diz-me que, no estado em que alguns estão, não é possivel dar mais de duzentos mil réis.

-- Que diz o senhor! exclamou o Marquez indignado; pois uma mobilia que está quasi nova, e que comprei ao senhor por perto d’um conto de réis, vale só a quinta parte do seu custo primitivo?!... Alem d‘isso, continuou elle, tenho por ahi muitos moveis em bom uso, que já tinha em minha casa quando o senhor me vendeu esta mobilia... e esses não valem nada?

-- De certo que não, senhor Marquez, disse o estofador. Desculpe-me Vossa Excellencia, por eu lhe dizer isto; porêm, o que valem hoje em dia, moveis antigos?

N’este momento aproximou-se do local onde os tres estavam conversando, o criado Manuel Alonso.

O Marquez, vendo-o, e não querendo por modo algum que elle desconfiasse do que estavam tratando, dirigindo-se ao gallego, perguntou-lhe:

-- O que queres tu?

-- Nada, senhor Marquez; é porque... como ouvi aqui vozes desconhecidas, vim vêr o que era...

-- Vai á senhora Marqueza, que precisa de ti, disse o Marquez ao gallego, para o afastar d’ali.

Depois, reconsiderando, e lembrando-se que a Marqueza, que nada sabia, podia comprometter-se e compromettel-o a elle para com o gallego, chamou este e disse-lhe:

-- Dize-lhe que vais mandado por mim, percebes?

-- Sim, senhor, respondeu o gallego, desapparecendo.

O Marquez, ficando outra vez só com os dois francezes, e desejando vender a mobilia por todo o preço, para não a perder, disse ao estofador:

-- Vamos lá, o seu amigo dá-me trezentos mil réis pela mobilia, e compra muito bem.

O estofador, que era o comprador e não o outro francez, conhecendo que o Marquez se via entallado por ter de partir com brevidade, e pretendia por isso desfazer-se da mobilia por todo o preço, respondeu-lhe, caminhando como quem quer despedir-se, depois de ter em voz baixa fallado com o collega:

-- Não é possivel dar mais, senhor Marquez.

O aristocrata, que viu o perigo que corria em não embolsar os duzentos mil réis, por não querer dar publicidade á sua viagem, depois de reflexionar um pouco, disse ao estofador com modo decidido:

-- Homem, é sua a mobilia. Agora o que tenho a pedir-lhe, continuou elle, é que não a mande buscar, senão depois d’ámanhã, dia da minha partida. Bem vê que póde alguem da minha amizade vir visitar-me n’estes dois dias...

-- Ah! pois não, senhor Marquez! respondeu o estofador, que não poude reprimir o contentamento por conhecer que ganhava com o negocio mais de oitocentos mil réis.

-- O senhor dá-me o dinheiro, continuou o Marquez, eu passo-lhe uma declaração do venda em boa fórma, e d’este modo fica o negocio decidido.

-- D’accôrdo, senhor Marquez, disse o estofador.

E fazendo um signal ao amigo, este tirou immediatamente do bolso uma carteira, e d’ella tirou em notas a quantia convencionada para a compra, e a entregou ao Marquez.

Este, depois de receber o dinheiro, dirigiu-so ao seu gabinete, dizendo aos dois que o seguissem, e ali passou uma declaração em como vendia ao senhor F***, marceneiro, a sua mobilia, a qual, elle marceneiro, devia ir buscar d’alli a dois dias, passando ao mesmo tempo recibo da quantia que recebêra.

Depois d'isto os dois francezes sairam, e o Marquez, esfregando as mãos de contentamento, disse comsigo:

-- Bem, ao menos não foi empolgada pelo usurario do agiota.

N’este mesmo momento, os dois francezes, descendo a escada, riam, dizendo um para o outro:

-- Foi uma bella compra!... D’estas, poucas vezes se encontram!

CAPITULO XV

Quem mal não usa, mal não cuida

No dia seguinte a este, vespera da fuga do Marquez, José Pereira que, para realisar os cinco contos de réis promettidos á Marqueza de ***, hypothecára metade das inscripções, das quaes o producto, junto ao dinheiro que o mancebo ainda possuia, prefez os cinco contos, rodava apressadamente n’um trem para o palacio do Marquez de ***.

O mancebo annunciou-se, e immediatamente foi introduzido no interior do palacio.

A Marqueza não tardou em apparecer-lhe vestida de tal modo que deslumbrou José Pereira.

-- Como passaste meu querido? perguntou a fidalga em voz baixa, dando a mão a José Pereira. Já estava com cuidado em ti.

-- Não pude vir mais cedo... respondeu o mancebo tambem em voz baixa. Porêm, continuou elle, qual é a razão porque não havemos de fallar em voz alta?

-- Meu marido está em casa, e perto de nós, respondeu a Marqueza no mesmo tom; não quiz sair para te agradecer o grande favor que lhe fazes, e então, continuou ella, vês que não seria conveniente dar-te em voz alta o tratamento d'amizade que damos um ao outro.

O mancebo, socegado pelas razões apresentadas pela Marqueza, tirou do bolso uma carteira, e d’esta um maço de notas, o qual entregou á Marqueza, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Aqui está o que me comprometti a apresentar.

A fidalga, com um divinal sorriso, pegou nas notas, e enleiando nos braços José Pereira, osculou-o amorosamente, dizendo-lhe ao mesmo tempo, sempre em voz baixa:

-- Ah! meu querido Pereira, sempre te sou muito obrigada! Olha que nos salvaste d’uma crise horrivel. Oh! mas a minha gratidão será eterna.

José Pereira, retribuindo as caricias da Marqueza, procurou fazer diminuto aos olhos d’ella, o immenso favor que acabava de lhe fazer.

Depois d'isto continuaram a conversar em voz alta e em coisas futeis, até que se abriu uma porta que havia no gabinete, e que communicava para os quartos interiores do palacio, e o Marquez, vestido de robe de chambre, com o sorriso nos labios, entrou no gabinete da Marqueza.

José Pereira levantou-se immediatamente para comprimentar o fidalgo, e este, com um encantador tom de voz, e estendendo ao mesmo tempo a mão ao mancebo, disse-lhe com intimativa de intima amizade:

-- Oh! meu charo Pereira, então sentas-te, por quem és?!

José Pereira assentou-se, e o Marquez, tomando logar em frente d’elle, depois de receber da mão da mulher o maço de notas que conseguira extorquir ao mancebo, continuou no mesmo tom:

-- Charissimo amigo, acabas de me dar a mais alta prova da tua sincera amizade para comnosco, o do teu poderoso valimento! A razão que me obrigou a aceitar o grandioso favor que offereceste a minha mulher, já ella por certo te fez conhecer. Se não fosse a desoladora situação em que me achava, sem poder embolsar um usurario que exigia de mim hoje o que eu não lhe podia satisfazer senão depois de ámanhã, nunca consentiria que fizesses talvez um sacrificio...

-- Não, Marquez, acredita, interrompeu José Pereira, com a sua habitual franqueza, generosidade e nobreza d’alma.

-- Porêm, socega, charo e prezado amigo, atalhou o Marquez, continuando o seu discurso, depois de ámanhã a esta hora, já terás sido embolsado da quantia que me emprestaste hoje. Podes estar descançado a esse respeito...

-- Ora essa, Marquez! exclamou José Pereira, vexado por pensar que o fidalgo presumisse que elle desconfiava de não ser embolsado! tenho inteira confiança, e não é necessario...

-- Muito bem, querido Pereira, disse o Marquez, conheço que és um perfeito cavalheiro, e que comprehendes os caracteres com quem estás relacionado...

Depois d’este remate, puchando pelo relogio, levantou-se rapidamente, dizendo ao mancebo:

-- Peço-te mil desculpas por não poder estar mais tempo fazendo-te companhia: é a hora marcada pelo usurario para embolsar o importe da letra. Adeus, até logo.

E, apertando a mão ao mancebo, deixou-o a sós com a Marqueza, saindo do gabinete com um sorriso de triumpho que se poderia traduzir por estas palavras:

«Apanhei o que desejava, áquelle pedaço d’asno!»

A Marqueza, ficando em liberdade com José Pereira, vendeu-lhe, qual lorette d’alto bordo, pela quantia de cinco contos de réis, os encantos e graças que reservára para esta ultima entrevista.

José Pereira, completamente tresvariado pelo gozo que a Marqueza lhe proporcionára, seria capaz de lhe entregar o resto da sua fortuna se ella assim o exigisse.

Mal sabia o desventurado orphão a horrivel decepção que brevemente receberia d’esta moderna Dalila, que em vez de o adormecer para depois o privar das forças, o embriagou o fascinou interesseiramente, para o poder despojar de quasi toda a sua fortuna!

José Pereira jantou em tête-à-tête com a Marqueza, demorando-se no palacio da aristocrata a rogos d’ella, até perto da meia noite, hora em que chegou o Marquez, o qual mandou dizer a sua mulher, por um criado, que participasse ao mancebo, que não vinha fazer-lhe companhia, por ter chegado bastante incommodado.

O mancebo, ouvindo isto, e temendo tornar-se importuno, demorando-se mais em casa do Marquez, despediu-se da amante fingida com o mais terno carinho.

Esta, que sabia os projectos do marido, não instou com José Pereira para que se demorasse mais, dizendo-lhe falsamente á despedida.

-- Adeus, até ámanhã ao meio dia, sim, meu querido?

-- Cá estarei, respondeu o mancebo, dando o ultimo osculo na Marqueza.

José Pereira caminhou para sua casa, deitou-se e sonhou toda a noite com amores, com dinheiro e com viagens.

O Marquez e sua mulher, depois da saida do mancebo, prepararam-se e sairam a pé, dizendo aos criados que iam passar a noite fóra, e que só voltariam pela manhã.

O Marquez, depois de conduzir sua mulher para uma hospedaria, perto da Ribeira-velha, dirigiu-se a sua casa pelas duas horas da noite, acompanhado d’um moço de fretes, inculcado pelo dono da hospedaria, o qual saiu do palacio do aristocrata carregado com duas malas, uma do Marquez e a outra da Marqueza.

O fidalgo esperára aquella hora da noite para entrar em casa sem ser ouvido pelos criados, os quaes já estavam adormecidos, por saberem que os patrões só recolheriam pela manhã.

CAPITULO XVI

Quem tal diria!

José Pereira acordou na manhã seguinte, pelas dez horas, e tratou immediatamente de almoçar e vestir-se para estar em casa da Marqueza de ***, á hora que lhe promettêra.

Quando o mancebo estava almoçando, a criada chegou-se a elle, e disse-lhe:

-- Senhor Pereira, o senhor Theadoro, pede-lhe se lhe vai dar uma palavra ao quarto. Elle, coitadinho, está muito doente com fevre, por causa d’uma sivela que enterrou pela mão, estando a concertar-me uns sapatos.

-- Sim!... exclamou José Pereira, inquieto. E para que trabalha elle, continuou o mancebo mostrando-se zangado; eu não lhe tenho dito que escusa trabalhar!

-- Olhe, senhor Pereira, disse a criada, com receio, elle, coitadinho, não teve culpa, eu é que lhe pedi se me concertava os sapatos, e elle, como é muito serviçal, promptamente me disse que sim. O senhor bem vê que eu sou pobre e preciso poupar...

-- Pois, quando precisar algum calçado, diga-m’o, replicou José Pereira, enfadado. Antes quero isso do que obrigarem o pobre velho a fazer o que elle já não póde. O que elle precisa agora é descanço.

E, levantando-se da meza, sem acabar d’almoçar, dirigiu-se immediatamente ao quarto do infeliz sapateiro.

Este, que estava na cama com bastante febre, em consequencia da grande inflammação que o ferro da sovela, penetrando-lhe uma pollegada pela chave da mão, lhe produzira, pela ferida que lhe fez, assim que viu o seu bemfeitor, assentou-se logo no leito, com bastante custo, e com o parecer risonho pela alegria de vêr o mancebo, apezar da enfermidade que o opprimia:

-- Então, como está o senhor Pereira, passa bem? perguntou elle.

-- Senhor Theodoro, então que é isso? constou-me que está doente.

-- É verdade, senhor Pereira, dei um lenho n’esta mão, que a tenho encarangada.

E mostrou ao mancebo a mão esquerda embrulhada em pannos.

-- Estava, continuou o ancião, sem hesitar em mentir para não apoquentar o seu bemfeitor, por saber que este não queria que elle trabalhasse; estava cortando um bocado de pão, e vai senão quando, a faca escapa-se-me, e enterrou-se-me pela mão, que me chegou até ao nervo.

José Pereira, conhecendo que o velho lhe queria encobrir a verdade, dissimulou, fingindo ignoral-o para não apoquentar o pobre homem, e perguntou-lhe:

-- E quando lhe succedeu isso?

-- Ha tres dias, senhor Pereira.

-- E por que não me participou vocemecê logo isso? disse José Pereira em tom de reprehensão. Devia ter logo mostrado a ferida a um facultativo.

-- Eu, continuou o sapateiro, como já tenho dado maiores lenhos, não fiz caso; mas onte começou-me a doer a cabeça, e a mão a inchar, de modo que hoje mandei chamar o senhor Pereira para lhe dezer que quero ir para o hispital.

-- Que diz, senhor Theodoro?! Para o hospital! exclamou José Pereira admirado.

-- É verdade... ali tem a gente tudo... balbuciou o sapateiro, ouvindo a exclamação do seu bemfeitor, e o senhor Pereira escusa de gastar dinheiro...

-- Ora essa! disse o mancebo, olhando tristemente para o bom velho, e foi para me dizer isso que vocemecê me mandou chamar, senhor Theodoro?!

-- É verdade, respondeu o sapateiro, já basta o que basta, ter aqui em sua casa um homem inutel, com quem faz despeza, dando-lhe de comer, vestir e calçar, e ainda em cima havia agora de gastar dinheiro com o surgião e os romedios!

-- O senhor Theodoro não está em si, replicou José Pereira; está a fallar em coisas que eu mais d’uma vez lhe tenho dito, desejo não ouvir. Quanto á sua ferida, hade ser curada aqui, sem precisar de ir ao hospital.

-- Ó meu querido senhor Pereira, disse o pobre velho, com voz apoquentada pela enfermidade, e por conhecer que, ficando em casa, ia obrigar o seu bemfeitor a despender, talvez, não pouco dinheiro com o facultativo e medicamentos para o seu curativo; nada, eu não posso consentir que Vossa Senhoria chame o surgião e faça despezas; eu vou muito bem para o hispital.

-- Socegue, senhor Theodoro, respondeu José Pereira commovido, por vêr o interesse com que o ancião, que elle recolhêra em sua casa, por caridade, lhe zelava os haveres; socegue, que não heide ficar pobre com a despeza que fizer com o seu curativo.

E, acabando de dizer estas palavras, apertando a mão ao velho, e despedindo-se d’elle, disse-lhe:

-- Até logo, senhor Theodoro; muito estimo as suas melhoras.

-- Adeus, meu bemfeitor, exclamou o velho com voz suffocada, depois de apertar com effusão as mãos do mancebo.

José Pereira saiu do quarto do enfermo.

Este, ficando só, não poude deixar de exclamar:

-- Oh! meu Deus! que bello rapaz! é impossivel que haja outro igual!

José Pereira saiu, e antes de se dirigir para o palacio da Marqueza, apezar de ser quasi meio-dia, foi primeiro a casa do doutor J***, seu intimo amigo, e habil cirurgião-medico da escóla moderna, e pediu-lhe para ir a sua casa vêr o seu protegido.

Depois de cumprir este piedoso dever, socegado a respeito do enfermo, encaminhou-se apressadamente para onde era o seu destino.

Já tinha soado meio-dia.

Chegando à porta do palacio do Marquez de ***, viu na rua parte da mobilia muito sua conhecida, a qual era removida por alguns moços de fretes, para cima de padiolas, demonstrando que a iam levar para longe d’ali.

José Pereira ficou um tanto admirado por vêr simiIhante espectaculo; todavia, caminhando sempre, entrou no portão, e ahi teve de para r, porque tres homens, que conversavam acaloradamente, lhe obstruiam a passagem.

-- Sim, senhor, dizia um d’elles, o qual era nem mais nem menos do que o comprador dos moveis, o estofador do Marquez; sim, senhor, eu comprei a mobilia ao senhor Marquez, e ninguem tem direito a impedir-me que eu a leve para minha casa. Olhe, veja o senhor isto.

E, mettendo a mão no bolso do peito, tirou um papel dobrado, o qual desdobrou e mostrou a um velhinho, baixo e magro, todo vestido de preto, no qual os nossos leitores, por este simples esboço, ficam já conhecendo o agiota a quem o Marquez devia pagar a letra do cambio.

O velhinho leu o papel, o qual era nem mais nem menos do que a declaração de venda passada pelo Marquez ao amigo do estofador, e depois de o ter lido todo, com a voz enfurecida pela cólera, exclamou:

-- Ora não ha maior desaforo! Que grandissimo tratante!... Roubou-me a enorme quantia do tres contos e quinhentos mil réis!

-- Pois o senhor Marquez disse-me que, tendo de partir hoje para a America hespanhola, queria desfazer-se da mobilia, e eu, sem saber as dividas que elle tinha, comprei-lh’a: já vê o senhor que ninguem, á vista d’esta declaração, poderá impedir-me que eu a leve para minha casa.

José Pereira estava estupefacto com o que ouvia.

Ainda ficou, porêm, mais attonito, quando viu chegar apressadamente da rua um homem esbaforido e escorrendo em suor, acompanhado por dois cabos de segurança, o qual, parado ao portão, gritou com força, e na linguagem dos filhos de Tuy, aos cabos de segurança:

-- Xenhores cabos, aqui está a proba da minha berdade: o meu patron roubou-me dez moedas; fugiu, e eu non posso perder assim o meu dinheirinho, e entonces quero impecer que sáia a mobilia.

José Pereira, logo pelas primeiras palavras, e depois de o ter examinado bem, conheceu o antigo criado do Conselheiro M***, o homem que falsamente o accusára de ladrão.

-- Ahi vem outro, disse o estofador levantando os hombros.

E, dirigindo-se ao gallego, disse-lhe em voz muito alta:

-- Que está você ahi a fallar em impedimentos dos moveis? Se sabe ler, leia isto.

E apresentava-lhe aberta a declaração que lhe servia de salva-guarda.

O gallego leu, ou mal ou bem, o que continha o papel, e depois, desesperado e quasi chorando, dirigiu-se ao homemsinho de preto, e saccudindo-o brutalmente pelas bandas da casaca, sem saber o que fazia, bradou-lhe:

-- O xenhor hade serbir-me de testemunha?...

-- De quê? perguntou-lhe o agiota com todo e sangue-frio, livrando-se das garras do gallego.

-- E o xenhor tambem, continuou Manuel Alonso, sem já ouvir o velhinho, voltando-se para José Pereira, que se conservava um pouco afastado.

E, encarando com o mancebo, e conhecendo-o, o gallego, esquecendo-se completamente do que lhe fizera, por estar inteiramente preoccupado pela perda das dez moedas, disse ao mancebo em tom de piedade:

-- Ah! xenhor José Pereira, ainda bem que o topei! Quer saber a minha desgracia? O xenhor Marquez pediu-me antonte dez moedas prestadas e hoje fugiu para Montevideu sem me dar conta do meu dinheirinho, que tanto me custou a ganhar!

José Pereira, apezar da estupefaeção que lhe causava o que acabára de ouvir, não poude deixar de dizer ao gallego em tom de desprezo e de raiva:

-- Pois você é tão infame e tão descarado, que se atreve a vir fallar-me depois da aleivosia que me armou em casa do defuncto Conselheiro M***?! Retire-se quanto antes da minha presença, porque me causa horror vêl-o, e se continua a estar aqui, não respondo pelo que possa acontecer.

E José Pereira, depois de proferir estas palavras, voltou as costas ao gallego, e saiu do palco do palacio do Marquez de ***.

O mancebo ainda não tinha dado trinta passos, quando ouviu a voz de Manuel Alonso, o qual o seguia, dizendo-lhe em tom supplicante:

-- Oh! meu rico xenhor Pereira, queira ouvir-me, porque quero dar-lhe uma justificaçon; tenho munto que contar-lhe.

José Pereira, ouvindo o que lhe dizia o gallego em tom de supplica, desejou ouvil-o, mesmo para vêr se poderia descobrir a verdade do terrivel acontecimento que acabava de presenceiar, e da conversação que ouvira entre o estofador e o agiota.

Por consequencia, parado, disse ao homem causador da sua desgraça, sem se atrever a encaral-o, tanta era a repugnancia que o nobre caracter do mancebo sentia por tão desprezivel creatura:

-- Póde fallar.

O gallego então contou-lhe a historia da caixa que o defuncto Conselheiro lhe ordenára désse a guardar ao mancebo, o dinheiro que lhe promettêra se elle cumprisse bem o que tinha a fazer, accrescentando com voz de compaixão:

-- Eu, xenhor Pereira, se me estrebi a fazer o que o xenhor Conselheiro me mandou, foi porque, como era pobre, precisava ganhar as moedasinhas que o patron me prometteu, e depois non xabia que o xenhor Pereira padecesse tanto por causa d’isso. Oh! mas hoje estoi munto arrependido, porque eu tambem estuve prezo seis mezes.

O mancebo, sem poder acreditar o que ouvia, disse ao gallego com voz commovida e muito agitado:

-- Você póde provar-me tudo quanto acaba de dizer?

-- Posso, xim xenhor, disse o gallego com animação; é o xenhor acompanhar-me a casa do xenhor Visconde de ***, que tambem me prometteu munto dinheiro se elle chegasse a casar com a menina Julia, que Deus tenha em gloria. Sou capaz de lhe dezer isto, e se elle me desmentir, leva-o o démo.

José Pereira, no cumulo da admiração, com o que ouvia ao gallego, e, lembrando-se ao mesmo tempo, do que lêra ha poucos dias n’um jornal a respeito do Visconde de *** e do Barão de ***, intimos amigos de seu tio, não duvidou mais de haver sido uma victima dos tres aristocratas.

O mancebo, depois de se conservar por algum tempo em profunda meditação, levantou repentinamente a cabeça e, para desanuviar a mente das desoladoras recordações do seu triste passado, e como se quizesse, com uma grave decepção presente, olvidar as preteritas, perguntou ao gallego com menos reserva que antes da narração que elle lhe fizera:

-- Então você era criado do Marquez de ***?

-- Era, xim xenhor, mas não me estrebia a apparecer ao xenhor Pereira, com medo de ser despedido pelo patron, quando o xenhor lhe dissesse o que eu o fiz soffrer sem tal pensar.

-- E como sabe você que elle foi para Buenos-Aires?

-- Esta manhã um companheiro meu, que conhece munto bem o patron e a patrôa, disse-me que os viu embarcar ambos ás sete horas da manhã, para o vapôr que vai para a America hespanhola, e que saiu ás oito horas.

E o gallego, recordando-se outra vez do dinheiro que perdêra, continuou, quasi chorando:

-- Ora veja o xenhor Pereira a minha disgracia, ficar xem um chavo e xem commodo!

E, n’um impulso colerico, exclamou, batendo ao mesmo tempo o pé no chão:

-- Nada, vou impecer que sáia a mobilia, e obrigar o comprador a pagar-me as dez moedas que me roubou o xenhor Marquez.

E, despedindo-se de José Pereira, disse-lhe por ultimo:

-- Eu procurarei o xenhor Pereira para lhe contar outra pouca bergonha do xenhor Marquez. Agora non posso quando non contaba-lh’a. Até á bista.

E deixou o mancebo repentinamente, deitando a correr para o lado do palacio do Marquez.

José Pereira, ficando só, caminhou machinalmente sem destino, apalpando-se por intervallos, por desconfiar em varios momentos, se seria sonho, e não realidade, os tres desgostos intimos que acabava de soffrer: o da perda da mulher que amava, o de haver sido ludibriado por ella, e o de ter sido roubado pelos dois fidalgos.

CAPITULO XVII

Ultima revelação

José Pereira chegou a casa n’um estado de abatimento e tristeza que admirou a criada, a qual não o esperava senão depois da meia noite, segundo o seu habitual costume.

-- Tem alguma coisa, senhor Pereira? perguntou a rapariga assustada por vêr a pallidez e a tristeza do mancebo.

-- Não tenho nada, respondeu José Pereira, a custo.

E, para distrahir a attenção da criada, perguntou-lhe:

-- Ja veio o medico vêr o Theodoro?

-- Veio, senhor Pereira; e receitou um purgante e umas papas para tirarem a inflammação, segundo elle diz.

-- E como está o doente? continuou o mancebo com interesse.

-- Depois que lhe puz as papas, parece que não lhe doe tanto a ferida... O que está, continuou a criada, é muito apoquentado por obrigar o senhor Pereira a fazer com elle despezas extraordinarias, podendo ir para o hospital...

-- Quando elle lhe disser essas e outras coisas similhantes, diga-lhe, da minha parte, que se deixe de parvoices, e que não me faça zangar com os seus receios de me arruinar com despezas.

N’este momento deram quatro horas, e José Pereira, dizendo á criada que quando o jantar estivesse prompto lh’o trouxesse ao quarto, ficou só, abysmado em profundas meditações.

Estava ainda com a cabeça encostada á mão, pensando profundamente, quando a criada lhe trouxe o jantar.

O mancebo apenas provou a comida, por lhe ser impossivel poder engulir coisa alguma, taes eram os desgostos que o opprimiam.

Depois quiz lêr, porêm foi-lhe impossivel comprehender coisa alguma, no estado em que tinha o cerebro.

Não estando bem em parte alguma, e parecendo-lhe que lhe faltava a respiração, procurou ar e espaço. Saiu.

A este tempo era já noite.

Na rua parecia-lhe que as casas andavam á roda, dançando com elle; uma especie de vertigem o accommetteu, tendo de se encostar a uma parede e de fechar os olhos para não cair.

Continuou depois a caminhar, e por vezes era assaltado por terriveis idéas.

Parecia que uma voz interior gritava em tom de censura aos ouvidos do desventurado mancebo:

«De que te serve essa existencia tão cheia de amarguras e de desgostos e sem teres um unico amigo no seio do qual possas depositar as tuas acerbas maguas?»

«De nada, respondia-lhe outra voz, e então e melhor acabar com ella por uma vez.»

O mancebo, allucinado com estas horriveis ideas visionarias, esteve por duas ou tres vezes prestes a suicidar-se; porêm, como era um espirito forte e corajoso, vencendo a tristeza que o envolvia, tanto pelo seu triste passado como pelo seu amargo presente, sentiu como uma vaga esperança no futuro, com a qual caminhou apressadamente para casa, chegando á qual, depois de haver visitado o seu protegido, beber uma chavena de chá e deitar-se, poude alfim conciliar o somno, adormecendo pelas duas horas da madrugada.

Eram nove horas da manhã do dia seguinte, quando José Pereira se sentiu acordado pela criada, a qual lhe disse, apressadamente e com interesse, assim que o mancebo abriu os olhos:

-- Senhor Pereira, eu peço-lhe mil desculpas de o vir acordar, estando o senhor a dormir tão bem; mas está ali um moço a quem eu já fiz esperar mais d’uma hora, a vêr se o senhor acordava, o qual me disse que tem a communicar-lhe uma coisa muito importante e para bem do senhor, mas que não póde demorar-se mais. Então eu, continuou a criada em tom de quem implora perdão, como ouvi dizer que era uma coisa para interesse do senhor, por isso o vim acordar.

José Pereira, ainda meio a dormir e meio acordado, ouviu o que a criada lhe dizia, e no fim, estando já completamente com as idéas desentorpecidas, perguntou á criada:

-- E quem é esse homem? como se chama?

-- Diz que se chama Manuel Alonso, e que o senhor o conhece perfeitamente.

O mancebo, ouvindo fallar no nome do gallego, primeiro esteve quasi dizendo á criada que não estava em casa para o receber, isto para não se affligir mais com a presença do homem que contribuira para a sua desventura e de D. Julia; porêm depois, lembrando-se de repente do que lhe dissera Manuel Alonso, na vespera, a respeito d’outra maroteira do Marquez de ***, disse á criada:

-- Mande-o entrar.

-- Para onde?

-- Para aqui; tenho com elle bastante confiança, para o tratar com ceremonia.

A criada ia retirar-se, para cumprir as ordens de José Pereira, quando este, recordando-se do sapateiro, lhe perguntou de repente:

-- Como passou o Theodoro, sabe?

-- Fui esta manhã dar-lhe o purgante, e elle quasi que o não quiz tomar, porque se acha muito melhor: diz que já lhe não doe a cabeça, e que tem a mão muito desinchada:

-- Bom, disse José Pereira, muito estimo isso.

A criada saiu do quarto do amo, e este, vestindo-se á pressa para receber o gallego, parecia-lhe que tudo o que presrnceiára na vespera, e os enganos de que fôra victima, não eram mais do que uma horrivel visão que se dissipára como o fumo, durante o pouco repoiso d’espirito e do corpo que gozou durante a noite.

O mancebo estava embebido n’estas philosophicas reflexões, quando lhe bateram á porta do quarto, e a voz do gallego perguntou:

-- Dá licença, xenhor Pereira?

-- Póde entrar, disse o mancebo, estremecendo contra sua vontade, ao som d’aquella voz, que para elle continha ao mesmo tempo tão doces e amargas recordações.

O gallego entrou, fazendo muitos rapa-pés e cortezias, perguntando a José Pereira, com voz aflautada:

-- Entonces como passou o xenhor?

-- Menos mal, respondeu José Pereira.

Depois, vendo que o gallego se conservava de pé, proseguiu, indicando-lhe uma cadeira:

-- Queira assentar-se.

Manuel Alonso assentou-se, e depois, coçando na cabeça como quem não sabe por onde hade começar, disse finalmente:

-- Pois eu bim cá, para lhe contar uma intriga que o tratante do meu amo, o Marquez de ***, fez entre o xenhor e...

-- Uma intriga! exclamou José Pereira, tendo um vago presentimento; uma intriga, diz você, entre mim e...

-- E uma pexoa... disse o gallego dando á cabeça em signal de triumpho ou de quem quer receber alviçaras, uma pexoa que o xenhor Pereira conhece perfeitamente...

-- Oh! falle, senhor Manuel Alonso... falle-me com franqueza e verdade, que prometto dar-lhe as dez moedas que seu patrão lhe levou.

-- Oh! meu querido xenhor Pereira, exclamou o gallego contentissimo, quasi abraçando José Pereira; munto obrigado por ton grande fabor.

-- Diga-me cá, perguntou o mancebo de repente, como tocado d’uma idéa; como soube você que eu morava aqui?... Eu nunca o vi em casa do Marquez...

-- Eu lhe conto, xenhor Pereira, eu lhe conto.

E o gallego, depois de coordenar as idéas, disse:

-- Eu era empregado em casa do xenhor Marquez, como seu criado particular, Bai elle, um dia préguntou-me se eu sabia onde moraba a menina Amelia...

-- Amelia! gritou o mancebo, quasi adivinhando tudo.

-- É berdade; a costureira que o xenhor namoraba...

-- E para quê? perguntou o mancebo com anciedade.

-- Para lhe lebar uma carta.

-- De quem?

-- Do xenhor Marquez, crêo eu, aun que a letra estaba um pouquito disfarçada.

-- Oh! que infame!... exclamou José Pereira com indignação, subindo-lhe o rubor ao rosto.

-- Bai eu, que non xabia, fui indagar, e afinal atinei com a morada da caxopita.

-- E depois?... perguntou o mancebo, cada vez mais inquieto.

-- Despues, o xenhor Marquez, em bez de querer que eu lebasse a carta, mandou-me deital-a no corrêo.

-- E depois?

-- Despues, o xenhor Marquez escrebiu mais cartas para ella, e outras para o xenhor Pereira, que eu tambem deitei no corrêo.

-- Que malvado! exclamou José Pereira, comprehendendo tudo.

-- Bai senon quando, ella mudou-se, e o xenhor Pereira tambem logo despues, e d’ahi por diente quem tracia as cartas da xenhora Marqueza para o xenhor Pereira, era o Pepe, o outro criado meu companheiro. Isto sei eu, porque elle me contaba.

José Pereira, levantando-se repentinamente, tocado de uma idéa, correu á secretária, e tirando todas as cartas que possuia, tanto anonymas como da Marqueza e Marquez de ***, escolheu d’entre ellas a primeira que recebêra e que começára a desintelligencia entre elle e a sua querida Amelia, e mostrando-a ao gallego, disse-lhe:

-- Veja se será esta a primeira carta que elle lhe entregou para mim.

O gallego, depois de a vêr e examinar, sobretudo o sobrescripto, exclamou com convicção:

-- É, xim xenhor... é esta mesmo.

José Pereira mostrou-lhe mais algumas, anonymas, e o gallego, á proporção que as via, assim como as da Marqueza, dizia logo se eram do patrão ou da patrôa.

José Pereira, depois de estar mais do que convencido da perfidia e intriga que os dois aristocratas tinham urdido, afim de o indisporem com a mulher a quem elle ia dar o nome de esposa, para d’este modo afastarem o malquistarem os dois amantes um com o outro, e despojarem-n’o da fortuna que elle possuia, como de facto succedêra, caindo n'uma cadeira esmorecido, exclamou soluçando:

-- Desgraçado de mim, que fiz eu! deixei-me enganar pela mais astuta das mulheres, e roubar pelo mais infame dos homens!... E Amelia... que é feito da minha querida Amelia! continuou o mancebo com a maior angustia. Ah! desventurado de mim, que te perdi para sempre!...

O mancebo soltou estas ultimas palavras, por se lembrar repentinamente do que Amelia lhe mandára dizer a respeito da sua entrada para um recolhimento.

-- Non se amofine, xenhor Pereira, disse Manuel Alonso, aproximando-se do mancebo; eu sei onde pára a menina Amelia.

-- Sabe, gritou o mancebo, abraçando com força o homem que sempre fôra o seu flagello; então onde está ella? diga depressa!

O xenhor Marquez, continuou o gallego, tambem me mandou lá com uma carta em nome do xenhor Pereira, a pedir um dinheiro á caxopinha, pero ella abanou-lhe as orelhas, e mandou-lhe dizer por mim que biria entregal-o pessoalmente ao xenhor, uma belhota que lá me appareceu.

-- Oh! que infame ladrão!... exclamou José Pereira no maior impeto da mais justa colera. Porêm, diga-me onde ella mora, continuou elle, implorando o gallego; diga-me onde posso encontrar a minha querida Amelia!

-- E se eu lhe disser onde ella mora, perdoa-me o mal que lhe tenho feito desde que o conheço, e dá-me as taes dez moedinhas que me prometteu? disse o gallego mostrando os dentes.

-- Tudo, tudo lhe farei, disse o mancebo, no maior accesso de alegria. Tome, acrescentou elle, indo á secretária e dando ao gallego, tres notas de vinte mil réis, resto da transacção que elle fizera para realisar os cinco contos que o Marquez, ou antes a Marqueza de *** lhe roubára; guarde tambem o resto.

O gallego, depois de vêr que em vez de quarenta e oito, recebia sessenta mil réis, agradecendo muito a José Pereira e pedindo-lhe mil perdões pelo que lhe fizera, disse finalmente ao mancebo:

-- A menina Amelia mora na rua de... n.°...

José Pereira, louco d’alegria, chamou apressadamente a criada, pediu-lhe a toda a pressa agua para se lavar, e emquanto o gallego se despedia e saia de sua casa, o mancebo, com um jubilo indiscriptivel, preparava-se acceleradamente para ir vêr a mulher que tanto amára, e n’esse que momento amava mais que nunca, pedir-lhe perdão das injuriosas e immerecidas suspeitas que tivera para com ella, e, finalmente, apertal-a em seus braços.

O mancebo havia esquecido completamente todo o passado; as infamias praticadas com elle pelos fidalgos, amigos de seu tio, pelo proprio Conselheiro, e o ultimo roubo commettido nos seus bens, pelo Marquez de ***.

OITAVA PARTE

DEPOIS DA TEMPESTADE, A BONANÇA

CAPITULO I

Pobreza e probidade

Amelia e D. Thereza, depois de se mudarem para a casa onde habitavam, haviam perdido parte das freguezas que lhe davam obra, vivendo d’este modo com mais custo, pois que ganhavam muito pouco.

A mezada que a pobre viuva tinha, unico recurso certo que as não abandonava, era muito diminuta para se alimentarem convenientemente, vestirem-se e pagarem a renda da casa, que era maior do que a que pagavam na agua-furtada.

As duas infelizes senhoras achavam-se, portanto, em apuradas e precarias circumstancias.

Apezar d’isto, nem Amelia nem D. Thereza ainda tinham tocado no dinheiro que José Pereira lhes déra.

Eram já passados dois mezes, depois do rompimento entre os dois namorados, e D. Thereza por varias vezes havia indagado a nova morada do mancebo, depois de receber a carta escripta pelo Marquez de *** na qual pedia o dinheiro a Amelia.

Foram, porêm, baldados os exforços da viuva, porque ninguem lhe soube dizer para onde se mudára José Pereira.

D. Thereza dirigiu-se a Gertrudes, sua antiga visinha da loja, porêm nem mesmo essa lhe poude dizer onde morava o mancebo.

Amelia, apezar da sua resignação philosophica, era atormentada por uma constante melancholia.

Muitas vezes lhe perguntava a sua companheira:

-- Porque estás tão triste, minha Amelia?

A donzella, saindo então das suas meditações, respondia-lhe:

-- Eu não estou triste, minha querida amiga... estava pensando...

-- Ora que sempre estás pensando! replicava D. Thereza.

A donzella, depois de ouvir estas e outras similhantes admoestações, recaia d’ahi a pouco na sua habitual melancholia, conservando-se calada o cabisbaixa, horas inteiras.

Um dia, D. Thereza, recolhendo a casa muito azafamada, disse a Amelia:

-- Não sabes, Amelia, já sei onde mora José Pereira.

-- Sim? perguntou a donzella estremecendo ao ouvir pronunciar o nome do homem a quem havia tributado tanto amor, e que ainda amava muito.

-- É verdade, continuou a viuva; encontrei o visinho sapateiro, que morava defronte de nós, e elle disse-me que vivia em casa de José Pereira, o qual mora na rua de... n.°...

-- Oh! ainda bem, minha amiga, exclamou a joven com alegria, que soube onde elle móra, para lhe levar o dinheiro que elle ha tempo mandou pedir.

-- Dizes bem, minha Amelia, é uma bella occasião para lh’o entregar.

-- Póde ir lá ámanhã, não é assim, minha amiga? perguntou Amelia, a qual desejava instantemente entregar um dinheiro, que, apezar de lhe ter sido dado pelo homem que a amára, segundo as suas idéas, não queria conservar em seu poder por mais tempo, depois do que se havia passado, e da carta que recebêra, pedindo-lh’o.

D. Thereza, pois, annuindo aos desejos de Amelia, resolveu-se, no dia seguinte, a ir entregar a José Pereira o dinheiro que este déra a Amelia, e o que lhe entregára a ella propria, a titulo de emprestimo.

No dia immediato, D. Thereza, recebendo de Amelia os quinhentos mil réis, e juntando-lhe os cem mil que recebêra, saiu e dirigiu-se á habitação de José Pereira.

Por uma singular combinação do destino, era exactamente no dia em que José Pereira, soubera por Manuel Alonso onde morava a sua Amelia.

Eram dez horas da manhã, e José Pereira, que, como os leitores sabem, se preparava a toda a pressa para ir a casa da mulher que tanto amava, pedir-lhe perdão e justificar-se perante ella do seu procedimento involuntario, foi interrompido nos seus preparativos pela criada, a qual lhe veio dizer ao quarto:

-- Senhor Pereira, está ali uma senhora que pretende fallar-lhe.

-- Quem é? perguntou José Pereira, sem se interromper.

-- Não me disse o nome, respondeu a criada. Ella deu-me a entender que precisava muito fallar-lhe para lhe entregar uma coisa.

-- Vá perguntar-lhe como se chama, replicou José Pereira, sem deixar de se vestir.

A criada saiu, e voltou d’ahi a pouco, dizendo:

-- Diz que se chama Thereza, a sua antiga visinha, a costureira.

-- Thereza! exclamou José Pereira, sem poder acreditar o que lhe dizia a criada. Mande-a entrar para a sala.

José Pereira tratou de se tornar apresentavel o mais depressa possivel, e caminhando apressadamente para a sala, ahi encontrou a honrada viuva, a qual immediatamente se levantou assim que viu o mancebo.

-- Oh! senhora D. Thereza! exclamou José Pereira no auge da alegria; que ventura é a minha em vêl-a n’esta sua casa! Então como tem passado e a minha... e a menina Amelia?

-- Vamos vivendo, graças a Deus, respondeu a viuva sempre de pé, e admirada do tom em que José Pereira lhe dirigira as perguntas.

-- Assente-se, por quem é, senhora D. Thereza, disse José Pereira, em tom affectuoso, chegando uma cadeira para junto da viuva.

Depois, assentando-se defronte d’ella, e sempre com ar prezenteiro, disse-lhe:

-- Então a que devo eu o prazer e a ventura de a vêr n’esta sua casa?

-- Venho cá, respondeu D. Thereza, meia confusa, para lhe restituir um dinheiro que Amelia e eu não devemos guardar por mais tempo...

-- Oh! que ventura a minha, exclamou José Pereira interrompendo e sem ouvir o que a viuva acabava de lhe dizer, vêl-a hoje em minha casa! Parece que tudo se combina para que seja hoje o dia da minha felicidade!

D. Thereza, cada vez mais admirada das exclamações e alegria de José Pereira em vêl-a, quando julgava que elle a receberia com frieza, e até mesmo com desagrado, tirou da algibeira o dinheiro que trazia embrulhado n’um papel, e entregando-o ao mancebo, disse-lhe ao mesmo tempo:

-- Aqui tem, senhor Pereira, o dinheiro que Amelia lhe manda entregar, e o de que tambem lhe faço entrega da minha parte... Muito obrigada por todo o tempo em que confiou de mim o emprestimo...

José Pereira que, com o jubilo que sentira em vêr D. Thereza, ainda não tinha percebido o fim da visita da viuva, ouvindo desta vez o que ella lhe dizia, mudando de tom e passando da alegria á tristeza, disse á honrada senhora:

-- Ah! senhora D. Thereza, que amargura seria a minha se eu não podesse justificar-me, perante Amelia e a senhora, da vilania que praticaram em meu nome!...

E, com um gesto, recusando o dinheiro que a viuva conservava sempre na mão estendida para elle, continuou:

-- Felizmente, conservo em meu poder provas que attestam o joguete de que tenho sido victima, e a intriga que um vil e scelerado, poude forjar entre mim e a minha querida Amelia.

-- Que diz, senhor Pereira, exclamou D. Thereza, que prestára toda a attenção ás palavras de José Pereira; por acaso receberia o senhor tambem algumas infames cartas anonymas, como nós recebemos?!

-- Desgraçadamente assim é, senhora D. Thereza, póde vêl-as, e horrorisar-se das vis mentiras que ellas contêem... Oh! agora, continuou o mancebo, que está desmascarado o infame traidor, só agora, infelizmente, é que conheço as calumnias que elle inventou. Confesso que, no momento em que recebi a primeira carta, a mudança repentina d’Amelia, sem me querer dizer para onde ia... tudo, tudo me fez acreditar o que me diziam nas depravadas cartas... Veja, senhora D. Thereza, veja.

E José Pereira, correndo á secretaria e trazendo um maço de papeis, mostrava á viuva uma por uma todas as cartas anonymas escriptas pelo proprio punho do Marquez, as quaes felizmente conservava intactas.

D. Thereza, depois de lêr desde a primeira até á ultima, n’um accesso de alegria, como nunca tivera na sua vida, sem saber o que fazia saltou ao pescoço de José Pereira, rindo e chorando ao mesmo tempo, e dizendo com a voz entrecortada pela viva commoção que sentia:

-- Ah! meu querido senhor Pereira, nunca julguei que Deus me tivesse reservado um dia de tanta ventura!. .. Oh! continuou ella, qual será o jubilo da minha querida Amelia, ao vêr estas infames cartas, e quando mostrar ao senhor Pereira as que ella felizmente conserva em seu poder, e que são forçosamente escriptas pelo mesmo punho que escreveu estas!

E a boa viuva, despedindo-se de José Pereira apressadamente, disse-lhe ao mesmo tempo:

-- Adeus, senhor Pereira, eu vou a correr dar esta feliz noticia á minha Amelia.

-- Vá, senhora D. Thereza, vá, disse o mancebo; disponha-a para me receber, porque eu d’aqui a pouco lá estarei tambem em sua casa.

E pegando no dinheiro que D. Thereza havia posto sobre um movel, entregou-o á viuva dizendo-lhe:

E agora, creio não terão escrupulo em continuarem a aceitar o meu offerecimento.

-- Agora, não, disse D. Thereza, e, despedindo-se pela ultima vez do mancebo, saiu de casa de José Pereira, dizendo-lhe:

-- Então, até já, senhor Pereira.

-- Fique certa, respondeu o mancebo.

CAPITULO II

Que alegria!

D. Thereza, saindo de casa de José Pereira, para mais depressa chegar á sua, e dar a agradavel noticia á sua Amelia, alugou uma sege. A honrada viuva, era tamanha a sua alegria pelo que acabava de saber, que, apezar das circumstancias precarias em que estava, não lhe importou entrar n’esta despeza.

Depois de se apeiar e subir a escada, D. Thereza bateu á porta com tanta força, e tão repetidas vezes, que Amelia, assustada, perguntou tremendo quem era.

-- Sou eu, minha Ameliasinha, respondeu D. Thereza apressadamente e em tom de tanta alegria, que a donzella teve um desses vagos estremecimentos e sobresaltos, os quaes nada explicam, porêm que são um presentimento d’alguma coisa extraordinaria que está para nos acontecer.

Amelia veio prestes abrir, e D. Thereza, entrando apressadamente e quasi sem respiração pela rapidez com que subira a escada, saltou ao pescoço da donzella, e abraçando-a e beijando-a alternadamente, poude finalmente exclamar, ainda que com voz entrecortada pelo cançaço:

-- Ah! minha querida Amelia, se tu soubesses... Oh! que alegria!... não pódes imaginar!.

-- Então o que é, minha amiga? perguntou Amelia, sem imaginar o que poderia ser, e sem deixar de estar assustada pelo imprevisto modo de bater, e exclamações da sua amiga.

-- Não sabes, fallei com José Pereira, continuou D. Thereza, assentando-se para descançar, e contou-me coisas!...

-- Sim? atalhou Amelia, puchando uma cadeira e assentando-se defronte da sua amiga, como uma pessoa que toma vivo interesse no que está ouvindo; e depois?

-- Depois, sabe que houve um intrigante que lhe escreveu cartas anonymas, dizendo de ti coisas incriveis; e, sem duvida, foi o mesmo que te escreveu tambem, dizendo-te as infamias que deram causa ao rompimento que houve entre ti e José Pereira.

-- Ah! minha querida amiga, exclamou Amelia caindo nos braços de D. Thereza, rindo e chorando ao mesmo tempo de prazer; que ventura e que alegria sinto com o que acaba de me dizer!

Porêm depois, largando repentinamente a companheira, sem poder acreditar o que ouvira, disse-lhe n’um tom de melancholica reprehensão e de abatimento:

-- Para que veio a senhora illudir-me, e alimentar-me recordações que eu quasi sentia extinctas?... Isso é de muita crueldade, senhora D. Thereza, porque eu bem sei...

E a desventurada menina, toda embebida n’estas repentinas idéas, começou a chorar amargamente.

D. Thereza, attonita com a subita mudança que vira em Amelia, e um tanto escandalisada pelo máu conceito que a donzella fazia do seu probo caracter e inflexivel verdade, respondeu-lhe com a voz abalada pelo sentimento:

-- Nunca julguei, Amelia, que me tenhas em tão máu conceito, que acredites vir eu illudir-te e enganar-te, quando o que acabei de dizer é a pura verdade, e eu propria vi as cartas que o infame intrigante lhe mandou, as quaes são escriptas na mesma letra das que tu recebeste!

Amelia ouviu estas palavras da sua amiga, como uma pessoa aturdida pelo troar do canhão ou pelo ribombo do trovão.

Depois, voltando a si, encarando D. Thereza e vendo na placidez do seu rosto estampada a verdade do que acabava de lhe dizer, caindo de joelhos aos pés da honrada viuva, disse com voz supplicante:

-- Perdão, minha querida amiga, perdoe-me as amargas palavras que soltei; eu não estava em mim, perdi a cabeça com a alegria do que lhe ouvi.

-- Oh! minha prezada Amelia, exclamou D. Thereza levantando a donzella e abraçando-a phreneticamente, então o que é isso, julgas que sou alguma imagem sagrada, para te prostrares diante de mim?!...

E levantando-a totalmente, disse-lhe com ternura maternal, osculando-a ao mesmo tempo:

Estás perdoada, minha menina.

-- Oh! obrigada, minha boa amiga, obrigada, exclamou Amelia, a qual se lhe coloriram as faces com o rubor do vexame, por haver duvidado um momento do que lhe dizia a sua amiga.

Depois d'isto, e como recordando-se do que mais lhe interessava na vida, disse a D. Thereza, com voz resoluta, como d’uma pessoa que deseja executar immediatamente o que diz:

-- Minha amiga, e onde está o meu José Pereira, que quero ir já vêl-o? onde está, diga-m’o depressa...

-- Nos teus braços, minha querida Amelia, exclamou o mancebo, entrando repentina e apressadamente na casa, pela porta que D. Thereza se esquecêra de fechar.

José Pereira, que se pozera a caminho da morada da sua querida, sem mesmo ir saber pessoalmente do estado do velho Theodoro, tal era a pressa que tinha em vêr a mulher que tanto amava, subia a escada no momento em que Amelia perguntava á sua amiga onde o poderia encontrar.

Amelia, ao vêr o homem a quem tributava tanto amor, sem mesmo lhe importar a presença de D. Thereza, deixou-se cair nos braços, que José Pereira conservava abertos, para n’elles a estreitar contra o coração.

Os dois amantes, permaneceram abraçados e mudos durante alguns segundos, por não poderem articular palavra, taes e tantas eram as vivas e diversas commoções que sentiam.

D. Thereza, rompendo o silencio e dirigindo-se a Amelia, disse-lhe sorrindo:

-- Então, Ameliasinha, enganei-te?

-- Oh! minha amiga!... disse a donzella, soltando-se finalmente dos braços de José Pereira, meia vexada com a presença de D. Thereza.

-- Porquê, ella duvidava?... perguntou José Pereira á viuva.

-- Julgava que eu lhe tinha vindo mentir, disse D. Thereza, fazendo uma terna caricia ao lindo e afogueado rosto da donzella.

-- Aqui estão as infames cartas, continuou José Pereira, tirando da algibeira uma porção de escriptos, e entregando-os a Amelia; as infames cartas anonymas que lançaram a discordia entre as nossas relações.

Amelia recebeu-as, e correndo á sua commoda, tirou d’uma gaveta do movel um pequeno maço e entregou-o tambem a José Pereira, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Aqui estão tambem as que eu recebi.

Amelia, José Pereira e D. Thereza, confrontaram todos tres a letra das cartas que recebêra o mancebo com as da donzella e acharam ser a mesma.

Como não ha esperto que não cáia, o Marquez de ***, para não querer dar a saber a pessoa alguma o seu infame e rapinante segredo, escrevêra todas as cartas de seu proprio punho, disfarçando a sua letra, é verdade, porêm d’uma só fórma, o que foi uma fortuna para os dois amantes, pois de contrario sempre ficariam desconfiando um do outro.

José Pereira leu as cartas que Amelia recebêra; esta leu as d’elle, e, depois de ficarem attonitos com a perversidade do Marquez, D. Thereza disse ao mancebo:

-- Porêm, não posso comprehender a razão por que um fidalgo commetteu similhante attentado!

-- Minha senhora, respondeu José Pereira, eu desejava immenso occultar o motivo que deu causa ao Marquez fazer tão indignas coisas; porêm, para illibar o meu procedimento, não posso deixar de declarar que as intenções do Marquez, lançando a discordia entra mim e Amelia, eram nem mais nem menos do que espoliar-me da herança que eu recebi do Conselheiro M***...

E o mancebo, ao pronunciar este nome, e lembrando-se das infamias que seu tio praticára para com elle, não poude deixar de estremecer.

-- Ai que ladrão! exclamaram as duas senhoras indignadas.

-- E conseguiu os seus negros intentos? perguntou D. Thereza afllicta.

-- Sempre me levou cinco contos de réis, respondeu José Pereira, fugindo hontem para a America hespanhola, como se prova por este jornal que hoje recebi antes de sair de casa.

E mostrou ás duas senhoras uma folha periodica lisbonense, a qual dava a noticia da subita partida do Marquez para Buenos-Ayres e as enormes dividas que elle deixára na capital por satisfazer.

-- Parece incrivel, exclamou D. Thereza depois de ter lido, que os nobres commettam similhantes infamias, quando deviam dar ao povo exemplos de moralidade e honradez!

José Pereira jantou n’esse dia em casa da sua querida, e, quando á noite saiu, reiterou-lhe os protestos d’amor que lhe fizera outr’ora, os quaes foram correspondidos da mesma fórma por Amelia.

O mancebo, antes de sair de casa da sua querida, prometteu desposal-a em breve, dizendo-lhe que, apezar do roubo que lhe fizera o Marquez, ainda conservava um rendimento com o qual poderia comprar um emprego e viverem ambos menos mal.

Amelia, ouvindo o que lhe dizia o seu apaixonado, disse-lhe muito contente:

-- Eu tambem tenho o meu rendimento.

-- Sim? perguntou curiosamente o mancebo, sem se recordar a que ella alludiu.

-- Então já esqueceste os quinhentos mil réis que me déste, continuou Aiuelia, baixando a voz para que D. Thereza não ouvisse o familiar e amigavel tratamento que dava ao mancebo; e os cem mil reis que emprestaste a D. Thereza?

-- Nem de tal já me lembrava, minha querida Amelia, disse José Pereira com um ar do nobre generosidade, que lhe era proprio. Porêm, é verdade, continuou o mancebo, agora me recordo que é a essa feliz circumstancia, e á probidade tanto tua como de D. Thereza, que eu devo em parte a ventura de tornar a vêr-te com tanta brevidade depois da venturosa revelação que me fez um criado do Marquez.

-- Pois agora, replicou Amelia, essas duas quantias servem-nos para augmentar o rendimento, não é assim?

-- É certo, minha nobre e generosa Amelia, respondeu José Pereira, apertando-lhe amorosamente a mão.

E depois de se despedir definitivamente, tanto de D. Thereza como da sua futura, accrescentou, dirigindo-se a ambas:

-- Então, até ámanhã.

-- Até ámanhã, senhor Pereira, disseram as duas senhoras.

CAPITULO III

Deliciosos projectos

José Pereira saiu de casa de Amelia, com o coração trasbordando em felicidade.

Amelia, ficando só com a sua amiga, depois de se conservar na janella até vêr desapparecer a sombra de José Pereira, porque, como era noite, unicamente podia distinguir a sombra, pulando pela casa como uma creança endiabrada, abraçou repetidas vezes D. Thereza, fazendo-a tambem saltar como uma azougada creança:

-- Ah! minha querida amiga, dizia ella alegremente, quem me diria que havia de ser hoje tão feliz?

-- Então, Amelia, endoideceste? perguntava-lhe D.Thereza, procurando desembaraçar-se dos braços da donzella tresloucada de alegria. Olha que me deitas ao chão; estou já muito velha e pezada para poder pular e saltar como tu!

-- Perdão, minha amiga, disse finalmente Amelia, tornando em si e fazendo assentar a viuva; porêm, a alegria em mim é tamanha por tornar a vêr o meu querido Pereira, ser mentira o que me disseram a seu respeito, e elle tambem acreditar que foram calumnias o que de mim lhe contaram, que não pude conter-me, e senti um accesso de alegria infantil como se tivesse dez ou doze annos. Porêm, continuou ella, sempre no maior auge de alegria, e alisando ao mesmo tempo o cabello da sua amiga, é neccsssrio começarmos ámanhã a trabalhar no meu enxoval, não é assim?

-- De certo que tenho a mesma vontade, respondeu D.Thereza; porêm, d’aqui até te casares, quem nos hade dar de comer? Tu bem sabes que se não trabalharmos para fóra...

-- E o dinheiro que José Pereira nos deu? perguntou Amelia, rindo da pouca memoria de sua amiga.

-- O dinheiro que te deu, queres tu dizer, porque o meu foi a titulo de emprestimo; porêm, mesmo o teu, não sou de opinião que lhe toques, sem elle te receber por esposa.

-- Ora qual, minha amiga, replicou Amelia, ainda agora elle me disse que fizessemos do dinheiro que nos deu o que quizessemos, e então não devemos ter escrupulos nenhuns em o gastarmos... e muito menos não sendo em desperdicios.

-- Muito bem, á vista do que me dizes, retorquiu D. Thereza, pódes fazer o que quizeres; eu annúo ao que determinares.

-- Ainda bem, exclamou Amelia; então ámanhã, quando vier o meu José Pereira, iremos todos tres fazer compras, e depois de ámanhã, começaremos ambas o meu enxoval do casamento, não é assim, minha boa amiga?

-- Farei tudo quanto determinares, minha querida Ameliasinha.

A conversação entre as duas senhoras, versou unicamente, n’essa noite, em projectos de compras de fazendas d’esta e d’aquella qualidade, até se deitarem.

D. Thereza dormiu socegadamente, segundo lh’o permittia a sua idade e desesperança; porêm, Amelia toda a noite dormitou em sobresaltos, suspirando pelo raiar da aurora do segundo dia da sua felicidade.

Deixemos as duas senhoras, uma repoisando e a outra projectando risonhos dias de ventura, e sigamos José Pereira.

O mancebo, saindo de casa da sua amada, dirigiu-se apressadamente á sua habitação.

Porêm, ao atravessar uma praça, ouviu chamar pelo seu nome; voltou-se e deparou com a ex-criada grave do fallecido Conselheiro M***, com a sua ex-visinha logareja, finalmente, com a bondosa Gertrudes, a qual, fazendo-lhe muita festa, lhe disse:

-- Então que é feito do senhor Pereira? já não ha ninguém que o veja! O senhor é um ingrato, mudou-se da rua sem dizer para onde...

-- Oh! senhora Gertrudes, exclamou o mancebo vexado por se haver inteiramente esquecido de participar á rapariga a sua mudança, acredite que varios desgostos que soffri quando morava na rua de..., fizeram com que eu deixasse de cumprir os meus deveres para com a menina; porêm, continuou elle, ainda bem que a encontro para lhe dizer a minha morada. Saiba que habito na rua de... n.°..., onde tem uma casa ás suas ordens.

-- Muito obrigado, senhor Pereira, disse Gertrudes ao mancebo, com modo agradecido. Eu bem sei, continuou ella, que o senhor Pereira tem em sua casa o nosso visinho Theodoro; nunca mais o vi, é verdade, mas a minha visinha fronteira contou-me que o senhor o levára para sua casa.

-- Tudo isso é verdade; tenho-o lá como meu criado particular...

-- Sim?! ainda bem, coitadinho, disse Gertrudes, elle já estava tão velho e tão impossibilitado de trabalhar pelo officio, que foi uma caridade que o senhor lhe fez. É verdade, continuou a curiosa rapariga, e o que é feito das minhas visinhas costureiras? Ellas tambem se mudaram, primeiro que o senhor, e ouvi dizer que a Ameliasinha tinha ido para um convento. Será verdade, senhor Pereira?

-- De certo que a enganaram, senhora Gertrudes, respondeu José Pereira sorrindo; agora mesmo venho eu de estar em companhia d’ellas. Houve entre mim e Amelia umas intrigas, porêm, felizmente, descobriram-se as mentiras, e eu vou brevemente casar com ella.

-- Sim, senhor Pereira? ora muito me conta! exclamou Gertrudes na maior admiração, Pois muito estimo, e dou-lhe os meus parabens! Eu bem sabia, continuou ella, sorrindo e dando á cabeça, que o senhor a namorava e que ella tambem gostava do senhor; a minha visinha fronteira contou-me isso pelo alto...

-- Pois senhora Gertrudes, continuou José Pereira, estendendo-lhe a mão para se despedir, muito estimei vêl-a, e ainda mais estimarei se a vir n’aquella sua casa, que é onde já lhe disse.

-- É muito possivel que lá me veja, senhor Pereira, a pedir-lhe um obzequio, disse Gertrudes hesitando um pouco.

-- Muito prazer me dará n’isso, respondeu o mancebo.

O tom de verdade com que José Pereira proferiu estas palavras, animou tanto a pobre rapariga que, chegando-se mais a elle e baixando a voz como para não ser ouvida dos transeuntes, disse-lhe em tom confidencial:

-- Não sabe... eu vou casar-me tambem, lá para a semana.

-- Sim! disse José Pereira, pois muito estimo, senhora Gertrudes. E quem é elle, é bom moço?

-- É um rapaz carapinteiro... respondeu Gertrudes, muito bom sugeito, e que bastante me estima.

-- Sendo como diz, dou-lhe os meus sinceros para bens, e se lhe prestar para alguma coisa...

-- Para me fazer um grande favor, atalhou Gertrudes um tanto enleiada, é que eu queria procurar o senhor Pereira; porêm... já que o encontrei, peço-lh’o vocalmente.

-- Póde pedir sem acanhamento, senhora Gertrudes, disse-lhe José Pereira em tom de animação, por vêr que a rapariga hesitava em declarar-lhe o que pretendia.

-- Pois sabe o que é, senhor Pereira... queria pedir-lhe se consente em ser um dos padrinhos do meu casamento.

-- Com todo o gosto, senhora Gertrudes, respondeu apressadamente José Pereira. Talvez que eu depois, continuou o mancebo sorrindo, se elle me quizer obsequiar, peça a seu marido a mesma coisa.

-- Oh! meu rico senhor José Pereira, exclamou Gertrudes, contentissima; que bonita coisa que isso hade ser... o afilhado tornar-se padrinho do seu padrinho!...

E, depois d’um momento de silencio, continuou:

E quando se casa o senhor?... já tem os papeis todos arranjados?

-- Vou ámanhã começar a dar andamento a isso, respondeu o mancebo, e talvez que de hoje a quinze dias...

-- É verdade, senhor Pereira, deve casar-se para a outra semana, depois de mim. Então, adeus, senhor José Pereira, accrescentou a rapariga, reflectindo que o mancebo estava com pressa, pois já se despedira d'ella; não o quero estorvar mais... e mesmo eu tambem não me posso demorar muito, porque vim fazer umas compras e tenho-me demorado bastante...

-- Senhora Gertrudes, até á vista.

E o mancebo, apertando a mão á gorda rapariga, que lhe correspondeu com effusão, separou-se d’ella.

José Pereira caminhou apressadamente para sua casa, e, antes de tudo, assim que ali entrou, foi immediatamente saber do enfermo.

Quando entrou no quarto do velho Theodoro, ficou contentissimo por vêl-o de pé, a passeiar em roda da cama, o que era um signal evidente das melhoras do pobre sapateiro.

-- Olá, senhor Theodoro, disse o mancebo ao ancião, ao mesmo tempo que entrava no quarto; então, está ainda de pé, a esta hora da noite, achando-se hontem tão doente?... Como vai isso, vai melhor?

Theodoro, como ainda n’esse dia não tinha visto o seu bemfeitor, e estranhava bastante que este o não tivesse visitado, estava com cuidado em José Pereira. Depois de perguntar varias vezes á criada se o patrão ainda não tinha recolhido, para não adormecer sem o vêr essa noite, levantou-se, mesmo porque já não tinha febre, e fez logo tenção de esperar o seu bondoso proteclor até que elle viesse.

Logo, vendo imprevistamente o mancebo, foi tamanha a sua alegria que, correndo para elle, sem se lembrar que estava tão doente da mão, quiz tiral-a do apparelho que lh’a sustinha ao peito, para abraçar o seu excellente bemfeitor.

José Pereira, vendo isto, obstou-lhe immediatamente que tal fizesse, dizendo-lhe:

-- Que quer fazer, senhor Theodoro?!...

-- Eu... respondeu atrapalhado o pobre e reconhecido velho, queria abraçal-o e agradecer-lhe...

-- Nem uma, nem outra coisa consinto que me faça, respondeu José Pereira; a primeira, porque lhe poderia ser funesta, aggravando a ferida, e a segunda, porque se incommoda e me incommoda tambem... Vamos a saber, proseguiu o mancebo, para terminar este incidente; veio o medico?

-- Veio, senhor Pereira... olá, se veio!

-- E... o que lhe disse do seu estado?

-- Disse-me que eu estava melhor, que já não tinha febre, e que me podia levantar.

-- Receitou-lhe alguma coisa?

-- Que continuasse com as papas de linhaça, na mão, e que désse no braço, por causa das dores da inflammação, fermentações de oleo de memendro.

-- Bem, disse o mancebo; e já lhe mandaram buscar o oleo?

-- A senhora Rosa mandou logo á botica buscal-o, e eu já fermentei o braço.

-- Está bom; então, adeus, até ámanhã e agora, accrescentou o mancebo em tom affectuoso, aconselho-o a que se deite e descance.

José Pereira, depois de apertar a mão ao velho, saiu do quarto e encaminhou-se para o seu.

Theodoro, cheio de alegria, por vêr o seu bemfeitor, deitou-se e adormeceu, fazendo projectos para o futuro, apezar do que estava soffrendo por causa da sovela, de fazer um bello par de botas, para com ellas brindar o seu generoso protector.

José Pereira, depois de tomar o chá, que a criada teve o cuidado de lhe levar ao quarto, deitou-se tambem, depois de fazer mil projectos futuros relativos ao seu consorcio com Amelia.

CAPITULO IV

O visinho de D. Thereza

No quarto fronteiro ao em que moravam Amelia e a sua amiga, habitava o proprietario do predio.

Este sugeito, que tinha perto de sessenta annos, era viuvo.

Fôra outr’ora um honrado commerciante, o qual, adquirindo no commercio uma boa fortuna, se retirára da praça, por estar desgostoso da vida e desejar descanço.

Já os leitores vêem, que a avareza não era o vicio dominante d’este individuo, pois que de contrario continuaria a negociar, embora estivesse triste, rico e cançado.

Este sugeito, a quem chamaremos o senhor Ventura, se bem que tivesse sido feliz na carreira a que se destinára, todavia, apezar do seu bello nome, e apezar mesmo da fortuna pecuniaria, que parece havia caprichado em não desdizer esse nome, havia soffrido grandes desventuras na sua vida, e todas ellas occasionadas pelo amor que tributára a uma mulher, com a qual se ligára na sua mocidade, sendo já rico, a qual o torturára durante os cinco annos que lhe pertencêra; tanto fôra o tempo que estiveram juntos.

Esta dama era filha bastarda do Duque de ***, já fallecido. Casára com Ventura sem o amar, porêm só levando em mira gozar, com a fortuna do marido, o luxo que não podia ter pela decadencia da sua familia, a qual consistia na mãe e no pae adoptivo, mesquinho amanuense, que mal lhe chegava o salario para alimentar a familia.

A filha do Duque, pois, levando de casa da mãe o pernicioso vicio do luxo, e bebendo na infancia as discordias domesticas continuadas, que o homem a quem ella chamava pae tinha com sua mãe, em consequencia de não lhe poder dar o vestuario que ella exigia, conhecendo que Ventura era rico, e que estava enamorado d’ella, tencionou immediatamente lançar-lhe os harpéos, para poder brilhar na sociedade, visto seu pae adoptivo não lhe poder dar o que o Duque de *** lhe dera, e a sua mãe, emquanto existiu.

Ventura, apaixonando-se pela belleza da filha bastarda do Duque de ***, em breve a desposou, por julgar, tal foi o artificio da astuta fidalga de meia tigella em o illudir, que ella tambem lhe correspondia do mesmo modo.

Brevemente, porêm, o desventurado commerciante se arrependeu mil vezes de ter dado tão funesto passo, pois que a esposa, qual vibora enraivada, não decorria dia algum em que não escandalisasse o pobre filho do povo, ora lançando-lhe em rosto a sua humilde condição, ora censurando-o por não querer apresentar-se em todos os festejos, tanto publicos como particulares, e, finalmente, acabando sempre por lhe pedir, com modo desabrido, enormes quantias de dinheiro, que o infeliz e desventurado Ventura não podia recusar-lhe, para evitar maiores escandalos.

Este negregado viver domestico, assim durou pelo espaço de tempo que já dissemos (cinco annos), até que, um dia, a bastarda aristocrata, entendendo que não devia por mais tempo aturar as baixezas de condição do honrado Ventura, desappareceu de casa do marido, sendo raptada pelo cocheiro d’este, com quem já ha tempo havia contrahido relações illicitas, e por quem estava furiosamente apaixonada.

Todavia, entendendo que não devia ir com as mãos abanando, arrombou a secretária do marido e levou-lhe, ou antes roubou-lhe, uma boa porção de dinheiro.

Ventura, quando teve conhecimento d’este horrivel facto, em vez de ficar contente, por se vêr livre de tão pezado e importuno fardo, como era um homem de honra, sentiu a maior humilhação e vexame que imaginar se póde, em vêr-se deshonrado por sua esposa.

O desventurado Ventura, pois, aborrecido da vida, liquidou a sua fortuna, ganha no commercio, e empregou-a em propriedades rusticas e urbanas, vivendo d’ahi por diante retirado e quasi inteiramente só, apenas com um criado e uma criada, usufruindo o rendimento dos seus predios.

É assim que o vamos encontrar, sendo o senhorio e visinho fronteiro de D. Thereza.

Esquecia-nos porêm dizer aos leitores, depois de lhes havermos apresentado Ventura, viuvo, o modo por que elle soube a sua viuvez.

Dois annos depois, da fuga de sua mulher com o cocheiro, um capitão de navios, amigo de Ventura, trouxe-lhe a noticia da morte d’ella.

Ventura, ouvindo esta triste noticia, como era compassivo, apezar do que sua mulher lhe fizera soffrer, apezar mesmo de o deshonrar, sentiu-se commovido, e indagou do amigo se sabia alguns pormenores acerca do fallecimento de sua mulher.

-- Queres saber a verdade? perguntou-lhe o amigo hesitando, sem duvida com receio de apoquentar o desgraçado Ventura.

-- Quero, sim, Cardozo, respondeu o viuvo.

-- Pois então, continuou o amigo, sabe que, achando-me eu ha dois mezes fundeado na Figueira, indo um dia a terra e entrando n’um estanco para comprar tabaco, deparei com tua mulher ao balcão, e, apezar d’ella não me conhecer, eu conheci-a logo, se bem que estava completamente transtornada pela magreza. Sai; e, para bem me certificar de que me não havia enganado, comecei a indagar pela praça, de dois amigos meus, ali estabelecidos ha muito tempo, quem era a estanqueira onde eu tinha comprado o tabaco, e elles responderam-me ambos o seguinte:

«É uma mulher, casada em Lisboa, pelo modo com um homem rico, mas que lhe fugiu, ha perto de dois annos em companhia d’um garoto d’aqui, que era cocheiro em casa do marido da estanqueira. Elle, accrescentaram os meus dois amigos, é um tratante, que a móe com pancadas desde que lhe gastou o dinheiro que ella trazia; não lhe dava nada para comer nem para vestir, de fórma que ella viu-se obrigada, com algum dinheiro que ainda tinha, a pôr um modo de vida. Mesmo assim, o patife do gatuno, que só quer andar á boa vida, quando não tem real de seu, vai apoquentar a pobre mulher para lhe dar o que elle não tem; e então, se ella lhe recusa o dinheiro que elle exige, agora o verás... é bordoada bravia!»

-- Eu, continuou o amigo de Ventura, commovido, não quiz ouvir mais, e sai com vontade de quebrar os ossos ao tratante; mas, depois lembrei-me de que ella era a unica culpada do que lhe estava succedendo, e disse com os meus botões: Quem corre por seu gosto, não cança.

-- E depois, replicou Ventura, que tinha estado silencioso e cabisbaixo a ouvir a triste narração do seu amigo; e depois... de que morreu ella, meu Cardozo?

-- De que morreu! respondeu o capitão desabridamente para minorar a commoção que sentia ao lembrar-se de similhante facto; morreu d’uma sóva de pán que lhe deu o malvado, oito dias depois do em que me contaram o que já te disse.

-- E o que é feito do assassino? exclamou Ventura levantando-se e como querendo ir procural-o.

-- Descança, homem, já teve a paga da sua malvadez. Quando estava moendo a sua victima, alguns soldados do destacamento que está na villa, acudiram aos gritos de tua infeliz mulher e, arrombando a porta, por elle não a querer abrir, entraram e quizeram apoderar-se do assassino; porêm este, defendendo-se com o cacete mortifero, poude evadir-se para a rua; os soldados correram sobre elle, porêm o miseravel, correndo para a praia, lançou-se ao mar... e, naturalmente, na quéda deu grande pancada na cabeça, porque no dia seguinte appareceu morto á tona d’agua.

-- E minha mulher?... perguntou Ventura, ancioso.

-- Já que pretendes saber tudo, tintim por tintim, meu velho amigo, eu te conto o resto: quando entraram no estanco a prestar soccorros a tua mulher, acharam-na com a cabeça partida em tres partes, com um olho vasado, e lançando sangue pela bocca... estava rebentada, terminou a custo o capitão de navios levantando-se, e falleceu d’ahi a uma hora.

Depois d’esta triste e pavorosa narração, os dois amigos abraçaram-se mudamente, e não puderam reprimir duas ardentes lagrimas que lhe sulcaram as faces.

Ventura separou-se do seu amigo, e no dia seguinte vestiu-se de preto, côr que desde então nunca mais largou, apezar de já terem passado perto de trinta annos, na occasião em que o apresentámos aos leitores.

CAPITULO V

Como começam as relações

Quando D. Thereza e Amelia se mudaram para o predio de Ventura, a viuva, antes d’isso, dirigiu-se, como é costume, ao proprietario, para tratar das condições do arrendamento; e o nosso Ventura, em casa de quem estavam as chaves do quarto com escriptos, acolheu cordialmente D. Thereza, sympathisando desde logo, apezar da sua triste mysanthropia, com as maneiras, delicadeza e affabilidade da viuva.

Em consequencia d’isto, começaram a conversar em assumptos diversos, e, entre outras, D. Thereza declarou-lhe que era pensionista do Estado, por ser viuva de um official maritimo.

-- E como se chamava seu marido? perguntou repentinamente Ventura, encarando bem D. Thereza e parecendo-lhe descobrir nas suas feições similhança com alguem que outr’ora conhecêra, porêm que se não lembrava d’aonde.

• Chamava-se Bento Cardozo.

-- Bento Cardozo! exclamou Ventura, dando um salto na cadeira; que foi capitão de navios mercantes, e depois passou para a armada real?

-- Exactamcnte, meu senhor, respondeu D. Thereza; porquê?... Vossa Senhoria conheceu-o?

-- Ora se conheci!... respondeu tristemente Ventura, era o meu melhor amigo.

E o mysanthropo levantou-se da cadeira e começou a passeiar agitadamente pela casa, para desanuviar a mente das tristes recordações que tinha do seu velho amigo.

Depois, parado de repente defronte de D. Thereza, continuou como faltando comsigo:

-- Aquella maldicta Angola tem rapado um bom numero de officiaes de marinha portuguezes!

E levantando desabridamente os hombros e continuando a caminhar, proseguiu:

-- Pois se o nosso governo nunca tem cuidado em fertilisar aquelle arido solo, nem em melhorar as aguas! O que póde resultar d’ahi? É que constantemente aquella provincia, assim como o resto da nossa Africa, é um foco de infecção e insalubridade; um tumulo para os desgraçados que para ali vão voluntaria ou involuntariamente. Os primeiros, continuou elle enfurecido, não lamento eu, pois preferem fazer fortuna, como elles dizem, morrendo longe da patria, ao viverem socegados, sem riqueza, é verdade, porêm com a saude que gozamos no nosso continente; agora quanto aos segundos é que me indigno e enfureço contra quem os manda para aquellas paragens, estacionados por dois, cinco, e ás vezes dez annos!

-- É verdade, meu rico senhor, disse D. Thereza, que estava commovida em extremo, pelo calor que via tomar Ventura na morte de seu marido; foi n’uma d’essas longas estações que meu marido falleceu. Elle, coitadinho, bastantes vezes me escreveu, dizendo-me que tinha officiado ao almirantado para o mandarem regressar d’ali, por causa da inchação que começou a sentir passado um anno de persistencia na Africa, porêm sempre fizeram ouvidos de mercador ao que justamente reclamava meu infeliz marido, o qual, quando chegava a queixar-se, não era com fingimento.

-- Bem o sei, bem o sei, minha senhora, disse Ventura dando à cabeça, como quem peza e acredita as palavras que ouviu; seu marido, que Deus haja, era um excellente e animoso homem, um bom amigo, e consta-me tambem que um bello marido, porque eu, depois que elle se casou, só o vi umas tres ou quatro vezes, e tenho uma vaga idéa da senhora, porque um grave e recente desgosto me impossibilitava de sair de minha casa, e de receber pessoa alguma. Elle tambem me disse, a ultima vez que nos fallámos antes da sua funesta viagem, que a senhora era uma boa e santa esposa, fiel, amiga e dedicada...

-- Oh! meu senhor!... exclamou D. Thereza, confusa e vexada pelos elogios tecidos por Ventura.

-- Acredite que isto não é lisonja, replicou este, porque eu abomino e detesto os vis lisonjeiros; esta é a verdade pura, e agora, que sei quem é, continuou elle tornando a olhar para D. Thereza, muito estimo que venha ser minha inquilina e visinha.

-- Muito obrigada, meu senhor.

-- Então está vivendo só? perguntou Ventura caminhando pela casa com as mãos traçadas nas costas.

-- Nada, não, senhor, respondeu D. Thereza; estou vivendo em companhia d’uma menina orphã, á mãe da qual fechei os olhos, e que desde então tenho comigo.

-- Ah! sim?... disse Ventura parado e tornando a examinar D. Thereza.

-- E verdade, continuou a viuva, ella é uma excedente menina, muito trabalhadora, e minha amiga dedicada; vivemos ambas como Deus com os anjos, e ajudâmo-nos reciprocamente, trabalhando com a agulha, para vivermos com decencia e honestidade...

Ventura, depois de ouvir as ultimas palavras da viuva, dando um «ah!» expressivo, e continuando a caminhar pela casa, disse:

-- A senhora tem uma amiga?... pois póde considerar-se muito feliz, apezar dos desgostos que tem soffrido depois da perda d’um esposo tão bom como era o Cardozo, pois que, quando uma pessoa chega a adquirir um verdadeiro amigo, no seio do qual possa depositar as suas maguas e desgostos, é um ente digno de ser invejado, porque poucas pessoas podem jactar-se de haverem encontrado um amigo fiel que as comprehenda, que não as contrarie nas suas excentricidades, e que chegue, como a senhora diz, a viver com o amigo como Deus com os anjos. Cá estou eu que...

E Ventura, como envergonhando-se de patentear o seu coração a uma pessoa com quem estava em contacto pela primeira vez, parou de repente, e tornando a olhar para D. Thereza, perguntou-lhe, passados alguns segundos:

-- Então em que trabalham, a senhora e a sua amiga?...

-- Em obra, tanto de homem como de senhora, respondeu D. Thereza com modestia.

-- Sim?!... disse Ventura, continuando a passeiar e esfregando as mãos; pois então vou encommendar-lhe uma duzia de camisas, outra de ceroilas, e meia duzia de camisolas de bactilha.

-- Oh! meu querido senhor! exclamou D. Thereza no maior auge da alegria por se lembrar que ia ter mais um freguez, o qual, na occasião precaria em que estavam, como já dissemos aos nossos leitores, era uma taboa de salvação para as duas senhoras; fico-lhe muito agradecida pelo grande obzequio que nos quer fazer!

-- Não tem de que agradecer-me, senhora D. Thereza, respondeu Ventura, continuando sempre o seu passeio; eu preciso de roupa branca, e em vez de a mandar fazer a outra costureira, prefiro antes que ella seja feita pelas minhas novas inquilinas.

-- Fique certo, senhor Ventura, replicou D. Thereza, de que não hade arrepender-se, asseguro-lh’o, porque a minha Amelia trabalha que é um primor; posso asseverar-lhe que é o meu braço direito; se não fosse ella, com a mesquinha mezada que eu tenho, não podia decerto viver; porêm ella é uma menina tão habilidosa que a fregueza que a incumbe de lhe fazer qualquer obra pela primeira vez, nunca mais nos deixa a porta.

-- Bom, disse Ventura á viuva, pois então vá com Deus tratar dos seus arranjos domesticos, e podem mudar-se para aqui quando quizerem.

-- Porêm ainda faltam oito dias para acabar o mez, tornou D. Thereza, julgando que Ventura não estivesse certo na data, e então...

-- E então o que tem isso? disse Ventura; pela minha parte podem vir quando quizerem; agora, lá da sua, não sei...

-- Oh! da nossa, continuou D. Thereza, estimâmos mudar-nos d’aquella casa quanto antes, porque temos soffrido ali desgostos!...

-- Sim?... perguntou Ventura, examinando d’esta vez attentamente D. Thereza.

-- É verdade, senhor Ventura; ali perdeu Amelia a sua querida mãe; ali teve um namoro com um rapaz, o qual, estando já para casar com ella, e sendo tão bom sugeito, mudou repentinamente, ou por intrigas, ou não sei porquê, o caso é que rompeu inteiramente as relações com a minha Amelia; e finalmente, somos ali muito infelizes!

Ventura parára no seu passeio, e conservava-se profundamente meditabundo ouvindo o que lhe dissera a viuva; depois de se conservar assim alguns momentos, tornou a dar ás pernas, e como se faltasse comsigo:

-- Os homens, disse elle, estão tão desconfiados com as mulheres, na epocha malfadada a que chegámos, em que ellas só procuram exploral-os e enganal-os... Isto com honrosas excepções, continuou elle, como reprehendendo-se e dirigindo-se pessoalmente a D. Thereza, que deixaram quasi de acreditar na amizade que ellas dizem tributar-lhes em quanto solteiras. Acredite, senhora D. Thereza, tem havido poucos homens felizes no consorcio e... Seu marido, por exemplo, foi um dos homens predestinados para ser venturoso com a esposa que escolheu, porêm outros... oh! que infernal flagello foram buscar perante os altares, á face da nossa religião!

E calando-se por um momento, continuou depois:

-- Quem sabe se esse mancebo de que a senhora D. Thereza me faltou, e que estimava a sua companheira e amiga, embora a menina lhe não désse motivo a isso, quem sabe se elle leve relações com algum marty r do matrimonio, como, por exemplo, um igual a mim, e que esse homem, contando-lhe as torturas, os tormentos e as horriveis inquietações produzidas pela esposa, o fez despersuadir inteiramente do consorcio, e por ser homem honrado, determinou despersuadir a menina, para não se lhe enraizar mais no coração a ami¬zade que elle lhe tributava? Não estranhe, observou elle, que eu não cite a palavra amor, porque, no meu entender, o amor é uma palavra vã, definida perfeitamente pelo nosso grande poeta Bocage, n’um quarteto, o qual lhe não posso citar por ser demasiado livre, porêm que comprehende a maior verdade; agora a sã amizade, essa sim, essa é que eu respeito, adoro e venero; porêm infelizmente, até hoje, ainda depois da morte de seu marido, essa deliciosa deusa nunca mais se dignou tributar-me os seus affagos e carinhos.

D. Thereza, depois de ouvir, admirada, o discurso de Ventura sobre as mulheres, querendo elucidal-o em abono da sua Amelia, por lhe lembrarem as abominaveis cartas anonymas que esta recebêra, disse a Ventura:

-- Meu charo senhor, creio que a minha Amelia e, sem duvida, o honrado mancebo que a amava, foram ambos victimas d’um inimigo mysterioso, porque a minha Amelia recebeu algumas cartas anonymas, nas quaes lhe faziam vêr que o homem a quem ella amava não era digno d’ella, e, naturalmente, a elle, disseram-lhe o mesmo. Vê o senhor?

-- N’esse caso, respondeu Ventura, depois de ouvir com toda a attenção D. Thereza, é outra coisa, e então é possivel que eu me enganasse no que presumi. Sendo, porêm assim o que me diz, como acredito, accrescentou elle, tenha esperança, e mais a sua amiga, que mais dia menos dia, o intrigante encoberto hade vir a conhecer-se. Acredite, senhora D. Thereza, a experiencia longa que tenho das coisas do mundo, e as amargas provações que tenho passado, fazem-me confirmar a seguinte sentença antiga: «Não se faz sobre a terra coisa alguma, por mais occulta, que não venha a ser conhecida.» Diga da minha parte á sua amiga, continuou elle, que, se amava esse rapaz e sabia ser amada por elle, continue a conservar-se digna d’elle, e que não seja impaciente, porque é muito possivel, e até provavel, que o intrigante, ou se desmascare, ou o desmascarem.

-- Oh! senhor Ventura, exclamou D. Thereza, que alegria me deu com esses seus conselhos. Vou já animar a minha Amelia...

E a viuva, levantando-se e tirando da algibeira o importe do semestre que, com tanto sacrificio seu e de Amelia, podéra juntar, ia entregal-o a Ventura, junto com o arrendamento, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

-- Aqui tem, senhor Ventura, o arrendamento já cheio, assignado e reconhecido por mim, e o dinheiro do primeiro semestre.

-- O arrendamento dê cá, disse Ventura, estendendo a mão para receber o documento; agora quanto ao dinheiro, póde leval-o e comprar com elle o panno para a roupa que lhe encommendei e guardar o resto, porque depois faremos contas.

-- Então o senhor quer?!... perguntou D. Thereza admirada.

-- Quero, sim, respondeu Ventura; então com que dinheiro compraria a senhora tanto panno como o que é preciso para a minha obra?

-- A prompto pagamento, disse D. Thereza, meio vexada, decerto que o não podia fazer, porêm tenho credito n’uma casa de fazendas...

-- Oh! pobre senhora, replicou Ventura com ar de compaixão, e o juro que pagaria ao commerciante pela espera do seu dinheiro? Nada, nada, vá comprar a prompto pagamento, e creio que já lhe disse que póde mudar-se para a minha casa quando lhe aprouver.

-- Oh! muito obrigada por tudo, senhor Ventura, disse D. Thereza commovida pela bondade do seu novo senhorio.

-- Vá com Deus, vá com Deus, e já lhe disse que não tem que agradecer-me.

E Ventura, ao mesmo tempo que lhe dizia estas palavras, acompanhava D. Thereza á porta da escada, coisa que elle ha immensos annos não fazia a pessoa alguma.

CAPITULO VI

Estreitam-se as relações

A viuva foi apressadamente participar a Amelia a fortuna que encontrára em arranjar tanta obra para fazerem, e o excellente senhorio e freguez que iam ter d’ahi por diante.

Amelia, sempre triste depois do rompimento com José Pereira, alegrou-se todavia momentaneamente, ouvindo o que lhe dizia a sua amiga, e ainda mais prazer sentiu quando esta lhe deu parte de que podiam mudar-se quando quizessem para a casa nova, porque a donzella tinha horror á casa que habitava, tanto pelo desgosto atrazado da perda de sua querida mãe, como pelo recente da perda do homem que tanto amára. Alem d’isto, como já dissemos aos leitores, ella tencionára encerrar-se em um recolhimento.

Portanto, D. Thereza cuidou, primeiro que tudo, na mudança e em comprar o panno, e no dia seguinte ao em que levou o arrendamento a Ventura, mudaram-se as duas senhoras para o predio d’este.

Foi ali que as encontrámos uma noite, como dissemos no terceiro capitulo da setima parte d’esta obra, D. Thereza escabeceando com somno, e Amelia afflicta e opprimida de magua pelos effeitos da calumnia.

Depois d’esta pequena explicação, prosigamos a nossa historia.

Uma vez installadas na sua nova habitação, e depois da reconsideração de Amelia, desistindo da idéa de se enclausurar, as duas senhoras trabalharam açodadamente para terminarem a grande encommenda que lhes fizera o seu visinho e senhorio.

Antes d’isto, porêm, no dia da mudança, quando D. Thereza foi buscar a chave, a qual lhe foi entregue pessoalmente por Ventura, este, tendo-a comprimentado com gravidade e cortezia, disse-lhe, depois de saber que a viuva e a sua joven companheira se mudavam n’aquelle mesmo dia para o quarto.

-- Então sempre se resolveram a vir antes do fim do mez?

-- É verdade, senhor Ventura, pelas razões que já contei a Vossa Senhoria, determinei tirar a minha pobre Amelia, quanto antes, da casa que para ella, e mesmo para mim, é de tão tristes recordações. Olhe que a sua obra, continuou ella, tenciono começal-a ámanhã, se Deus quizer; já comprei o panno, e tão depressa fique socegada, depois da mudança, logo lhe dou começo.

-- Eu não carecia, senhora D. Thereza, disse Ventura olhando para a viuva, d’essa satisfação: eu confio na probidade e honradez da senhora, e foi por isso que a encarreguei da obra, pois que, desde que enviuvei, e mesmo muito antes, para não ser tão roubado, preferia, até ao presente, comprar todo o meu fato e roupa branca já feita, a dal-a a fazer a costureiras e a alfayates que abusavam da minha paciencia e da minha bolsa.

D. Thereza, depois de ouvir o amigo de seu fallecido esposo com toda a attenção, e conhecendo, pelas suas palavras, quanto elle tinha sido enganado e ludibriado pela sociedade, estremeceu ao lembrar-se repentinamente de que tambem poderia cair-lhe no desagrado e ser taxada de enganadora; porque, indo Amelia para o recolhimento, como já lhe communicára ser sua terminante vontade, o que faria a pobre senhora só, sem a indispensavel companheira de trabalho? Quanto tempo lhe seria preciso para apromptar a grande encommenda de roupa que lhe fizera Ventura, e quanto lhe custaria, a ella, que já tinha a vista tão cançada pela idade e trabalho, fazer os bispontos e as casas nas camisas?

Sendo assaltada por estas apoquentadoras idéas, a infeliz viuva, olhando tristemente para Ventura, o qual, como era seu habitual costume, ou passeiava constantemente pela casa, ou se conservava quieto e cabisbaixo, pensando profundamente, conservando-se porêm d’esta vez, do segundo modo, disse-lhe com modo afflicto:

-- Eu, o que tenho a pedir antecipadamente ao senhor Ventura, é que seja indulgente comigo...

-- Porquê, minha senhora?! perguntou Ventura admirado, saindo da abstracção em que estava immerso.

-- Porque, respondeu D. Thereza, a minha amiga e companheira está teimosa em entrar par aum recolhimento, apaixonada, como se acha, pela infidelidade do seu namorado, e esta circumstancia, que me esqueci de dizer hontem a Vossa Senhoria, apoquenta-me seriamente, porque, trabalhando eu só, forçosamente, só dentro de grande prazo de tempo é que lhe poderei entregar toda a roupa prompta.

Ventura, que começára a passeiar com as mãos traçadas nos rins, depois de ouvir o que lhe disse a viuva, observando-a minuciosamente em silencio por alguns segundos, disse-lhe, findo o exame, o qual, sem duvida, fôra em abono de D. Thereza:

-- Minha senhora, não deve apoquentar-se por causa d’isso; eu tenho ainda roupa sufficiente para vestir por estes tempos mais chegados, e então, por meu respeito, não se afflija. Agora, proseguiu elle, continuando a passeiar, quanto á lembrança da sua amiga, de querer deixar o mundo, acredite-me, senhora D. Thereza, houve uma desgraçada e horrorosa epocha na minha vida em que centos de vezes determinei suicidar-me; declarei ao meu unico amigo, o seu defuncto marido, que ia ser frade, e nada d’isto fiz. Acredito-me, repito, a longa experiencia das coisas do mundo tem-me feito conhecer que o que se diz quasi nunca se faz, assim como o que se faz quasi nunca tambem se diz. A sua amiga, assim como todas as pessoas maguadas ou apaixondas, por causa das miserias d’este mundo, que conservam, por alguns dias, idéas identicas á d’ella, hade reconsiderar repentinamente um dia, e continuar a querer vêr da janella do seu quarto, o sol, a lua, as estrellas e as ruas, e da porta da escada os degráos que a conduzirão á rua quando tiver vontade de sair, percebo? Foi isso mesmo o que me succedeu; apezar dos graves desgostos de que fui victima, tenho saido, é verdade que bem poucas vezes, porêm tenho saido sem me ser necessario, para isso, pedir licença a alguem.

D. Thereza, depois de ouvir respeitosamente as reflexões de Ventura, as quaes lhe derramavam no espirito um balsamo consolador, por lhe fazerem acreditar que a sua querida Amelia desistiria do triste projecto de se enclausurar, agradeceu muito ao senhorio, tanto a confiança que depositava n’ella, como o bem que lhe fizera com as suas judiciosas palavras.

N’esta occasião chegaram os gallegos com a mobilia, e D. Thereza, vendo-os, despediu-se de Ventura, dizendo-lhe atrapalhada com a pressa:

-- Vossa Senhoria dispensa-me?... tenho de ir buscar a minha amiga, que ficou só em casa, e demorei-me tanto, que não sei como heide fazer isto! Ella, coitadinha, está lá só entre quatro paredes, e mesmo deve estar com cuidado em mim! Valha-me Deus, accrescentou a boa senhora, afllicta, quem me hade encaminhar os gallegos que devem trazer os moveis?

Ventura, vendo a afflicção da viuva, disse-lhe:

-- Vá descançada, senhora D. Thereza, que eu cá fico fiscalisando a sua mobilia, e me encarrego de a encaminhar para sua casa.

-- Pois Vossa Senhoria é tão bondoso que quer?... exclamou D. Thereza.

-- Isto não é bondade, é obrigação que todo o homem de bem impõe a si, de valer ao seu similhante nas occasiões necessarias, e muito mais ainda, quando esse similhante tambem é honesto e de bem.

-- Oh! meu rico senhor Ventura, muito agradecida.

-- Vá com Deus, senhora D. Thereza, não tem de que me agradecer, vá buscar a menina, que eu cá fico.

D. Thereza despediu-se do seu obzequiador senhorio e saiu apressadamente a ir buscar a sua Amelia.

CAPITULO VII

Commentarios de criados

Ventura, ficando a braços com os gallegos, e conhecendo que não podia dar o necessario expediente para a mobilia ser conduzida convenientemente para casa das suas inquilinas, e arrumada do mesmo modo, resolveu-se, ainda que contra vontade, a chamar o seu criado e a sua criada.

Os dois servos correram immediatamente á voz do patrão, e vieram deparar com elle na escada, rodeiado de tres gallegos que conduziam cadeiras.

-- Joaquina, disse Ventura dirigindo-se á criada, e dando-lhe ao mesmo tempo a chave do quarto alugado por D. Thereza, tome esta chave, abra aquella porta o determine a estes homens que colloquem em logar conveniente a mobilia das minhas novas inquilinas.

A criada promptamente executou as ordens do amo, abrindo a porta para dar entrada aos tres gallegos.

Ventura, dirigindo-se depois d’isto ao criado:

-- E tu, Thiago, disse elle ao servo, vai lá para baixo, para a rua, afim de evitares que os gallegos quebrem algum movel; se fôr preciso, ajuda-os. Anda, continuou elle, que eu cá fico fiscalisando na escada.

Thiago foi immediatamente cumprir as ordens do amo, e este, ficando no cimo da escada, guardando ao mesmo tempo a sua casa, e evitando que os gallegos trouxessem desastradamente a mobilia das costureiras, não entrou em casa emquanto elles não removeram todo o frete para o quarto recentemente alugado.

Os gallegos, depois de terem a padiola vasia, desceram, dizendo a Ventura que iam buscar o resto da mobilia.

Só depois d’isto é que Ventura entrou em casa, ordenando, comtudo, ao criado, que fosse ajudar Joaquina a arrumar os moveis na casa alugada, emquanto não vinham as inquilinas.

Os dois servos, vendo-se juntos, em extremo admirados da desusada cortezia e condescendencia do patrão, olharam um para o outro espantados, sem saber o que poderiam colligir do que estavam vendo.

Emquanto, pois, arrumavam os moveis, foram dando á lingua.

-- Ó sêra Joaquina, perguntou Thiago á cozinheira, que me diz você do que viu fazer ao patrão?

-- Eu sei cá o que êde dezer, seu Thiago; eu ando até aparvalhada com o que estou vendo denos hontem. Você não se lembra que o patrão conversou hontem com a velha mais d’uma hora, coisa que ainda o não vi fazer com pessoa nenhuma denos que estou cá na casa?!

-- É verdade, sêra Joaquina, que fiquei admiradissimo de vêr hontem o patrão tão conversador, mas hoje ainda estou rnais admirado... eu sei lá, estou inté apalermado em vêr o patrão tornar-se uma especia de criado d’ella, vir para a escada ajudar á mudança, dar-nos ordens para tambem sermos criados da mulher... Isto, sêra Joaquina, leva agua no bico, olé!

-- Ó seu Thiago, quem sabe se a velha embruchou o patrão, hein, que me diz?

-- Eu não sei, sêra Joaquina, mas ás vezes ha coisas...

-- Não póde ser outra coisa, acardite, continuou a criada com firme convicção; só quem não conhecer o patrão, um homem tão mettido comsigo, e que não recebe em casa nenhuma visita de conhecimentos antigos, é que poderá acarditar que a velha que se muda para aqui não o enfeitiçou.

-- Você está faltando em velha, e eu onte, quando vim espreitar para a sala pela greta da porta do corredor, não me pareceu tão velha como diz, replicou o criado com um modo ironico e significativo, como de quem se compadece dos pobres d’espirito; eu o que me parece, sêra Joaquina, continuou elle, é que o patrão, em vez de enfeitiçado, ficou embeiçado por ella.

-- Ora, deixe-se d’asneiras, seu Thiago, tornou a cozinheira, a qual era uma frescalhona matrona de quarenta annos, gorda e anafada, com pretenções a formosa, e que mais d’uma vez fizera castellos no ar, imaginando que Ventura gostava d’ella, e que talvez lhe viesse a dar o nome d’esposa; então você julga que o patrão tem tão máu gosto que se deixe captivar por uma velha e feia; porque você decerto estava com os olhos empoeirados quando a viu, senão havia de ser da minha opinião. E demais, continuou ella com pretenção, alludindo a si, o patrão, se fosse dado ao bello seixo, já ha munto tempo que se teria deixado embeiçar, como você diz.

O criado, que era um rapaz esperto e um tanto critico, esteve quasi dando uma gargalhada, por comprehender as intenções da companheira; porêm, como lhe devia favores, por Joaquina ser caridosa para com elle em momentos de criticas e urgentes necessidades, reprimiu a vontade de rir de que foi accommettido, para não romper as relações d’amizade com a mulher que se compadecia das suas precisões. Todavia, sempre lhe disse, para a desfructar um pouco, fingindo ignorar as allusões da criada:

-- Você munto me conta, sêra Joaquina... pois o patrão é namorado por alguem, sem elle o saber?

-- Ora... ora... respondeu Joaquina apanhada de chofre, sem saber o que responderia para conservar a sua reputação intacta; isto julgo eu... sim... porque elle é rico, e apezar de ser velho, é tão agradavel...

-- Como um urso, lá isso é, respondeu o criado rindo d’esta vez desafogadamente.

-- Ora, pois sim, respondeu Joaquina um tanto formalisada; ria, ria á sua vontade... você, tambem, vê tudo ás davessas... acha o patrão, velho e feio... e a seresma da velha, que se muda para aqui, moça e bonita.

-- Eu ainda lhe não disse similhante coisa, sêra Joaquina, replicou o criado parado de rir para não pôr em risco o seu credito na opinião da sua companheira e amiga; mas o que agora lhe vou dezer, é uma coisa que ainda lhe não passou pela idéa a vocemecê... olhe que eu, continuou elle para metter ferro á criada, ainda agora ouvi dezer-lhe o patrão: «Joaquina, tome esta chave, abra aquella porta e determine a estes moços que colloquem em logar conveniente a mobilia das minhas novas inquilinas.»

E, tendo carregado na palavra «inquilinas,» o criado continuou:

-- Vê, vocemecê? É mais d’uma... E quem nos diz, a nós, accrescentou elle, que alguma d'ellas seja nova e bonita, e que o patrão lhe arraste a aza já ha tempo... porque eu, parece-me... e creio que não me engano, ter ouvido hontem o patrão fallar com a... sim, com a velha, a respeito de conhecimentos antigos...

-- Pois sim, seja o que você quizer, respondeu Joaquina que, possuindo grande dose de amor-proprio, estava persuadida que Ventura, ou não amava ninguem ou, de contrario, o unico objecto do seu amor era a belleza d’ella.

No momento, porêm, em que Thiago ia replicar á companheira, ouviram ruido na porta da escada.

Como já tivessem ambos arrumado a mobilia que chegára, e receiando ser o patrão que os fosse apanhar ociosos, caminharam apressadamente para a sala, fingindo-se assustados e perguntando quem era.

Chegados porêm ali, viram duas senhoras, uma das quaes era a que elles classificavam de velha, e a outra, Amelia, que, apezar da sua tristeza e pallidez, mostrava a sua belleza e juventude em todo o esplendor.

Vinham acompanhadas por Ventura que, com modo affavel e quasi risonho, lhes mostrava a casa.

-- Já fizeram o que lhes ordenei? perguntou Ventura aos dois servos, os quaes haviam ficado mudos e quedos como estatuas, ao vêr o grupo dos tres personagens.

-- Já, meu senhor, responderam os dois, em côro.

-- Então, podem retirar-se, disse Ventura aos dois criados.

Depois, voltando-se para as duas senhoras, continuou:

-- Eu tomei a liberdade, minhas senhoras, de mandar os meus criados arrumarem a mobilia; talvez elles commettessem algum erro na collocação dos moveis, e então, as senhoras podem vêr isso... e no caso que seja como eu presumo, immediatamente elles reparam o engano.

-- Oh! senhor Ventura, disse D. Thereza ao proprietario, quanto tenho a agradecer a Vossa Senhoria os obzequios que lhe devemos, pelas delicadas attenções com que nos trata!

E voltando-se para os dois criados, que estavam como preplexos entre a porta da escada, sem se atreverem nem a sair nem a mexerem-se, a viuva disse-lhes:

-- Muito obrigada, pelo trabalho que tiveram.

-- Ah! ainda estavam ahi! disse Ventura, voltando-se tambem para a porta; creio que não ouviram o que eu lhes disse, hein?

Os dois, ouvindo a voz do patrão recriminando-os por não lhe haverem obedecido, desappareceram repentina e definitivamente.

Thiago, entrando em casa do patrão, acotovelou Joaquina, dizendo-lhe ao mesmo tempo em voz baixa:

-- Então, que lhe dizia eu, sêra Joaquina, e que tal lhe parece a carinha que acompanha a velha?

A criada fez uma careta e, encaminhando-se para a cozinha, respondeu:

-- Ora... certamente é alguma belleza por hi alem!

-- Não será, replicou o criado com malicia, mas olhe que é capaz de fazer embeiçar o patrão... se não está já embeiçado com ella.

E Thiago, depois de proferir estas palavras, examinando Joaquina, e vendo a cara estirada que ella fizera ao ouvir isto, não poude reprimir uma forte gargalhada, a qual, felizmente para elle, não foi interpretada pela companheira, pois se a comprehendesse decerto nunca lhe perdoaria.

CAPITULO VIII

Continuam a estreitar-se as relações

D. Thereza e Amelia installaram-se finalmente na sua nova habitação, e começaram a encommenda para o seu senhorio.

Felizmente para D. Thereza, realisaram-se as previsões de Ventura, a respeito da desistencia de Amelia pelo recolhimento, e a honrada viuva no fim de duas semanas poude entregar ao seu senhorio a roupa feita que elle lhe encommendára.

Em consequencia d’isto, Ventura, que quizera pôr á prova a probidade da viuva, examinando a obra e vendo que estava perfeitamente acabada, e de mais a mais por diminuto preço, conheceu a honradez de D. Thereza e, por esse motivo, d’ahi por diante continuou a tratar as duas senhoras com todo o agrado, e até mesmo carinho.

Muitas vezes, elle proprio se admirava, e dizia comsigo:

-- Pois eu, que me conservei desde a idade viril quasi enclausurado dentro de casa, sem contrahir relações de amizade com pessoa nenhuma, rompendo mesmo as que conservava, nas quaes não tinha confiança... agora, depois de velho, não devo receiar incorrer talvez no ridiculo, pela assiduidade que tenho em ir todos os dias comprimentar as minhas novas visinhas e inquilinas... das quaes é verdade que confio na mais velha, por conhecel-a ha muitos annos, porêm não conheço a mais nova, a qual, quem sabe se por mais d'uma vez terá rido á minha custa?...

E Ventura, apoquentado por estas idéas, fazia tenção, de si para si, de não voltar no dia seguinte a saber da saude das inquilinas: porêm o somno dissipava-lhe estes propositos, e no dia immediato não deixava de ir cumprimentar as duas senhoras, e mesmo de demorar-se em casa d’ellas, uma ou duas horas.

D’estas visitas quotidianas, durante dois mezes, resultou uma amizade franca e sincera de parte a parte.

D. Thereza e Amelia habituaram-se a vêr o seu senhorio todos os dias, e quando por acaso passava o dia e chegava a noite sem elle lhes apparecer, eram ellas que o iam procurar para saberem se estaria doente.

Ventura, que muitas vezes, de caso pensado, não apparecia às duas senhoras, para vêr o que ellas fariam, enchia-se de orgulho quando ouvia bater á sua porta e as vozes das inquilinas perguntando como elle tinha passado.

N’essas noites obrigava-as a tomar chá em sua companhia, e jogavam todos tres o voltarete até perto da meia-noite, hora em que se despediam cordialmente, e as duas visinhas se recolhiam ao seu quarto.

Finalmente, Ventura tributava á donzella amizade paternal, por lhe haver estudado o caracter e achar Amelia uma excellente menina; e a D. Thereza, amava-a como se ama um verdadeiro amigo velho.

Identicas circumstancias se davam por parte das duas senhoras: Amelia venerava e respeitava Ventura, como se elle fosse seu pae, e D. Thereza depositava n’elle a confiança que sempre acompanha uma amizade de longos annos.

Muitas vezes, os dois anciãos, recordando-se do seu passado, com commoções bem diversas, D. Thereza com pena, Ventura com horror, começavam a conversar ambos nos venturosos dias da sua juventude, e quando chegavam á narração do seu consorcio, a viuva era interminavel em tecer elogios á sombra de seu marido; porêm Ventura, ficava mudo, taciturno e pensativo, e, como para nada dizer a respeito da sombra de sua mulher, começava, conjuntamente com D. Thereza, a elogiar o seu unico amigo, terminando sempre por vivamente lastimar a sua curta existencia.

Amelia, ouvindo a conversação dos seus dois amigos, recordava-se tambem do seu bello passado, e quando Ventura e D. Thereza se calavam, por já não terem que dizer, achavam a donzella chorando amargamente em silencio, e muitas vezes soluçando horrivelmente pela repressão das lagrimas, as quaes Amelia tentava occultar, para não apoquentar D. Thereza e Ventura.

-- Então, que é isso, minha menina? perguntava-lhe a viuva, esquecendo-se totalmente do seu passado para acudir á sua amiga; por que estás chorando?...

-- Senhora D. Amelia, dizia-lhe tambem Ventura levantando-se da cadeira e aproximando-se da donzella, para que se está amofinando d'essa maneira?

-- Ah! meus amigos, respondia-lhes Amelia com a voz entrecortada pelas lagrimas ou soluços, ha momentos nos quaes não posso conter as lagrimas, lembrando-me tambem do passado...

-- Pois sim, bondosa menina, replicava Ventura com ternura paternal, aprecio muito essas lagrimas, pois provam a verdadeira affeição e amizade que dedicava ao seu namorado; porêm, com essas apoquentações d’espirito, que quasi sempre trazem padecimentos ao corpo, em que melhora a senhora D. Amelia a sua sorte?... Conforme-se, continuava elle, espere e tenha fé no futuro, o qual lhe póde ser ainda muito propicio; a menina é ainda uma creança, e tem de certo immensos annos ante si para gozar as doçuras da vida... se é que n’este miserando valle de lagrimas póde haver doçuras e consolações... Tenha animo, tenha animo, formosa menina.

E Ventura, depois de fazer estas considerações animadoras, calava-se, e ficava envergonhado e zangado comsigo mesmo, por se haver dirigido á donzella com um tom e maneiras que desdiziam totalmente o habitual modo, rispido e reservado, que se havia imposto desde muitos annos.

Amelia, depois de ouvir Ventura, sentia um balsamo consolador derramar-se-lhe por todo o ser; cessavam-lhe as lagrimas e os soluços, conservava-se um momento pensativa, e logo depois, saltando ao pescoço da sua amiga, como se estivesse na idade pueril, beijava-a repetidas vezes, dizendo-lhe ao mesmo tempo, já n’um tom alegre:

-- O senhor Ventura diz bem; espero em Deus que ainda heide ser feliz... e a minha amiga tambem, accrescentava ella, tambem ainda a heide vêr muito alegre e satisfeita... parece que uma voz desconhecida me brada aos ouvidos, como se fosse o écho da voz do senhor Ventura: «Espera e tem fé nó futuro,» accrescentando mais «assim como a tua amiga.»

D. Thereza, correspondendo ás caricias da joven, olhava para o amigo de seu marido, e os dois anciãos trocavam um olhar, o qual se podia traduzir por este pensamento: «Que ventura é ser joven, para viver de illusões!»

Haviam chegado a este ponto as relações d’amizade entre estes tres sympathicos personagens da nossa historia, quando José Pereira soube, por Manuel Alonso, as infamias praticadas pelo Marquez de *** para vilipendiar Amelia aos seus olhos, e desacredital-o a elle no conceito da donzella.

Depois de havermos narrado os precedentes pormenores, que serviram como de ramal para chegar ao caminho da acção principal da nossa obra, vamos continuar esta.

CAPITULO IX

A noticia e as saúdes

Na tarde em que José Pereira se reconciliou com a sua Amelia, não appareceu Ventura em casa das suas amigas.

O mancebo, como dissemos, saiu de casa da sua querida já por noite, e as duas senhoras, exultando em alegria, lembraram-se de repente da falta de comparencia do seu senhorio, e disseram ao mesmo tempo uma á outra:

-- Vamos saber como passou o senhor Ventura, sim?

-- E de caminho, accrescentou Amelia, participar-lhe a grande noticia da minha felicidade.

-- Oh! e elle que hade ficar bem contente em sabendo isso, disse D. Thereza em tom de convicção.

Em consequencia, pois, de serem accordes as idéas das duas senhoras, dirigiram-se, como era costume, á porta do seu senhorio, bateram e annunciaram-se.

Ventura esperava-as, sem duvida, porque já tinha na sala a meza posta para a partida de voltarete.

D. Thereza e Amelia, depois de o comprimentarem com alegria desusada, o que fez com que Ventura as encarasse admirado, começaram a contar-lhe o encontro de D. Thereza com o mancebo, o apparecimento subito d’este a Amelia, e a cabala urdida pelo Marquez de ***, não omittindo o roubo praticado pelo fidalgo nos bens de José Pereira.

Ventura, depois de as ouvir, estendendo o labio inferior e meneiando a cabeça como um homem que já não estranha qualquer infamia praticada pelos homens, disse ás duas senhoras, em tom solemne:

-- Eu não lhes dizia, minhas senhoras, que tudo na terra vem a saber-se, e que sempre devemos ter resignação e esperança quando a nossa consciencia está tranquilla e confiâmos nas pessoas que nos são charas?...

-- É verdade, meu respeitavel senhor Ventura, disse Amelia ao ancião; é verdade que bastantes vezes o senhor me disse que tivesse esperança e fé no futuro, e agora conheço que a sua sabedoria não se enganou.

-- Sabedoria, não, minha filha, respondeu Ventura com amargor; longa experiencia das coisas do mundo, isso sim.

E, depois de se conservar calado e taciturno por alguns momentos, continuou:

-- E quaes são as intenções d’esse mancebo, a respeito da senhora D. Amelia?

-- Prometteu-me de casar comigo dentro em breve, respondeu apressadamente a donzella, subindo-lhe ao mesmo tempo o rubor ás faces.

-- Porêm, replicou Ventura, elle ficou arruinado, sem a pequena fortuna que possuia... e então, como é possivel?. ..

-- Elle disse-me, atalhou D. Thereza, que ainda tinha cento e cincoenta mil réis de rendimento annual.

-- E o que é isso, para tomar estado?... disse Ventura sorrindo-se de compaixão; são apenas quatrocentos e dez réis por dia.

-- Porêm, elle disse-me, retorquiu Amelia, que, com o dinheiro que tem, compra um emprego para vivermos menos mal.

-- Compra um emprego!... exclamou Ventura, que, retirado do mundo ha muitos annos e, como philosopho, desprezando a politica, ignorava completamente que a mais de meio do seculo XIX se vendiam os empregos, procurando-se os mesmos para os homens e não homens para elles. Pois bem, continuou elle, abanando a cabeça em signal de lastima e reprovação; mesmo sendo assim, visto termos chegado a tão malfadada epocha, o desgraçado terá de vender o pequeno capital que tem, para comprar o tal emprego... e se depois, por qualquer circumstancia... sim, sem querer offender a capacidade do senhor Pereira, elle o não possa desempenhar satisfatoriamente por falta de pratica nos primeiros tempos, ou se o emprego fôr de tal ordem que não satisfaça o empregado, qual será o futuro de seu marido, minha querida menina?... Nada, continuou Ventura, desde já peço ás senhoras que me apresentem a elle, quando vier a sua casa, porque eu pretendo aconselhal-o a este respeito.

-- Olhe, senhor Ventura, José Pereira hade cá vir ámanhã, para sairmos a compras.

-- Sim? disse Ventura, pois então heide caturrar com elle um pedaço, e espero convencel-o de que faz uma grande asneira, vendendo o que tem certo para comprar o incerto.

N’este momento entrou a criada com o chá, e Ventura, vendo-a, disse-lhe:

-- Oh! Joaquina, traga bolachas americanas, bolos e uma garrafa de vinho da Madeira.

A criada abriu muito os olhos, ouvindo o que lhe dizia o patrão, pois que este raras vezes fazia uso de vinho forte e generoso.

Todavia, executou promptamente as ordens do amo, trazendo uma bandeja com os doces, na qual vinha tambem uma garrafa, um saca-rolhas e tres copos.

Ventura, depois de abrir a garrafa e encher os tres copos do magnifico licôr que ella continha, dirigindo-se ás duas amigas, disse-lhes:

-- Minhas senhoras, querendo eu demonstrar-lhes a satisfação que tenho com a agradavel noticia que me deram, proponho uma saude aos futuros noivos.

-- Oh! senhor Ventura, exclamaram as duas senhoras ao mesmo tempo, aceitamos muito reconhecidas tamanha prova d'amizade.

E, bebendo um gole dos calices, corresponderam gostosamente á saude proposta por Ventura.

Este, depois de beber d’um trago o liquido contido no seu copo, poz o mesmo sobre a bandeja e afastou-o de si como em signal de não beber mais.

Porêm, D. Thereza, fazendo um signal d’intelligencia a Amelia, pegando no seu copo e sendo logo secundada pela joven, disse:

-- Senhor Ventura, agora é do nosso dever fazermos tambem uma amigavel saude a quem teve tão bella lembrança.

O proprietario olhou para as duas senhoras e, como fazendo um exforço, respondeu com certo mysterio:

-- Eu não correspondo... porque... já entrei na conta.

D. Thereza e Amelia ficaram um momento pensando n’estas mysteriosas palavras.

Depois, a viuva, saindo do silencio e dirigindo-se a Ventura, replicou:

-- Porêm, nós não podemos deixar de fazer uma saude a Vossa Senhoria.

E, voltando-se para Amelia, que ainda conservava, um tanto interdicta, o copo na mão, continuou:

-- Acompanha-me, minha Amelia, a beber á saude e prosperidade do nosso bom senhorio e amigo, o senhor Ventura.

Ventura agradeceu em silencio com a mão, depois, levantando-se e indo buscar a caixa do voltarete, ao mesmo tempo que chamava a criada para levar a bandeja, chicaras, copos, e o resto do serviço do chá que estava sobre a meza, voltou a assentar-se, dizendo alfim ás duas senhoras:

-- Agradeço cordialmente a lembrança de saudarem a minha prosperidade.

Depois d’isto, tendo tirado da caixa do jogo as cartas e os tentos, começaram todos tres a jogar em silencio, o qual só era interrompido, por intervallos, para fazerem as accusações habituaes do voltarete.

Separaram-se, como era costume, perto da meia-noite, tornando Ventura a reiterar as duas senhoras, antes de se apartarem, o pedido que já lhes fizera para ser apresentado a José Pereira, no dia seguinte, quando o mancebo chegasse.

CAPITULO X

Uma surpreza

Amelia, depois d’entrar em casa, não poude deixar de perguntar a D. Thereza, em tom de curiosidade e admiração:

-- Que quereria dizer o nosso senhorio, fazendo aquella saude aos noivos... e depois declarar que já tinha entrado na conta, quando a minha amiga pretendeu fazer-lhe uma saude?...

-- Confesso-te, minha Amelia, respondeu D. Thereza, que não comprehendi, nem ainda comprehendo as intenções de Ventura.

-- É verdade, proseguiu Amelia, que elle é um homem quasi incomprehensivel, incommunicavel... e que me parece tem as suas manias. Sempre quero vêr, accrescentou a donzella rindo, o que elle ámanhã irá aconselhar a José Pereira; disse-nos que queria caturrar com elle a respeito do emprego...

-- Sabes o que eu te digo, interrompeu D. Thereza, é que são horas de nos recolhermos e de nos deixarmos de conversações tão tarde.

-- De caturrices é que a amiga devia dizer, respondeu Amelia rindo; é o termo do nosso senhorio.

-- E olha, parece-me que tens razão; tu, com franqueza, vais-te fazendo caturra.

D. Thereza, dirigindo esta amigavel e galhofeira invectiva a Amelia, pegou na luz e, despedindo-se da donzella, encaminhou-se para o seu quarto.

Amelia não poude deixar de dar uma gargalhada, dizendo ao mesmo tempo á viuva, em tom gracejador:

-- Então, vai fugindo de mim, com medo das minhas caturrices, não é assim?... Não sei como gósta tanto de conversar com o nosso visinho, sendo elle o caturra-mór do reino!

-- Adeus, não estou para te aturar.

Estas foram as ultimas palavras de D. Thereza, que, como dissemos no terceiro capitulo d’esta parte, tratou de deitar-se e dormir tranquillamente, emquanto que a donzella dormitou toda a noite, sobresaltada, desejando que brevemente raiasse o dia no qual tornaria a vêr o seu querido, depois de tão longa ausencia e de tão pungentes suspeitas.

Eram sete horas da manhã e já Amelia estava de pé, o que foi uma surpreza para a viuva, a qual estava no costume de sempre acordar a donzella; porêm, d’esta vez, vendo-a já de pé, quando se dispunha a ir despertal-a, depois de lhe dar os bons dias, não poude deixar de exclamar, admirada:

-- Olá!... como hoje madrugaste, minha preguiçosa eterna!

-- Então a amiga não sabe, respondeu-lhe Amelia, que quem tem amores não dorme?

-- Soube, soube... hoje só deixo de dormir por causa dos cuidados, os quaes tambem não deixam conciliar o somno.

D. Thereza foi cuidar no almoço, e Amelia nos preparativos para a saida, pedindo á amiga dispensa da sua ajuda, o que lhe foi gostosamente concedido pela bondosa viuva.

As duas senhoras almoçaram, seriam oito horas, e depois do almoço, D. Thereza, a instantes rogos de Amelia, foi tambem arranjar-se para sair, o que não foi muito da sua vontade, pois nem ao menos poude cuidar nas compras e arranjos para o jantar.

Seriam nove horas quando José Pereira chegou.

Vinha esmeradamente vestido com o seu mais elegante fato, sendo recebido pelas duas senhoras com a maior alegria e agrado.

O mancebo ficou surprehendido quando viu D. Thereza e Amelia preparadas para sairem.

Amelia, vendo o seu ar admirado, disse-lhe alegremente:

-- O senhor não esperava encontrar-nos promptas para sair, não é assim?

-- É verdade, confesso que não, respondeu José Pereira.

-- Foi uma idéa repentina, que hontem teve a menina, disse D. Thereza, carregando nas palavras, a modo de galhofeira recriminação; resolveu ir fazer certas compras e, por causa d’essa imprevista resolução, até nem me deu tempo para cuidar nos arranjos para o jantar. Está ha tres horas ao espelho, continuou ella sorrindo para os dois jovens, sem me ajudar em coisa alguma, e obrigou-me tambem a paramentar-me como se eu estivesse nos meus vinte annos... Porêm, ao menos, accrescentou ainda D. Thereza indo beijar Amelia, que n’este momento estava pondo o chapéo, o qual, junto ao elegante vestuario da donzella, lhe fazia assimilhar o rosto a uma das virgens de Raphael, tal era a louçania, colorido e angelical alegria que apresentava; ao menos aproveitou o tempo, porque está linda com este vestuario.

-- Ora, minha amiga... disse a donzella deixando-se beijar e retribuindo meigamente a ternura da sua companheira, para que está a dizer essas coisas?

E córando em extremo, vexada ingenuamente pelas palavras de D. Thereza na presença de José Pereira, o qual contemplava em adoração o thesouro de bondade e belleza que tinha diante de si, dirigiu-se ao mancebo e disse-lhe:

-- O senhor não faça caso do que ella disse, não?

-- Pois não heide fazer, minha querida Amelia! respondeu o mancebo, estremecendo ao pensar de repente que estivera a ponto de perder aquelle complexo de perfeições; tudo quanto disse a sua amiga é a pura verdade, sem a mais leve sombra de lisonja.

-- Ora, tambem o senhor! disse Amelia com modo amuado, caminhando para o lado opposto d’onde estava José Pereira, e abotoando neste movimento a luva que acabava de calçar.

N'esta occasião, D. Thereza, lembrando-se de repente do que na vespera lhe pedira o senhorio, exclamou vivamente:

-- Ai! que já me esquecia!...

-- O quê, minha amiga? perguntou Amelia, assustada pelo tom da exclamação de D. Thereza.

-- O que nos pediu o nosso visinho.

-- É verdade, minha amiga! disse vivamente a donzella, como uma pessoa que deseja causar uma grande surpreza; vá chamal-o depressa.

D. Thereza não se fez rogar para cumprir o que a joven lhe propunha; correu apressadamente a participar a Ventura, que já chegára José Pereira.

Ventura, que, como homem previdente e acautelado, já estava vestido decentemente para apparecer ao mancebo, seguiu immediatamente a viuva, e entrando em casa d’esta, depois do comprimentar Amelia, comprimentou tambem com toda a urbanidade José Pereira.

Este, informado por Amelia, emquanto D. Thereza o foi chamar, de quem era e o que pretendia Ventura, levantou-se immediatamente e correspondeu com toda a polidez e agrado aos comprimentos do proprietario.

Ventura, depois, dirigindo-se ao mancebo, disse-lhe:

-- Já sei a horrivel crise de que foi victima, e acredite que deveras lastimo o senhor; porêm, o que quer? o mundo está cheio do tratantes de marca maior, os quaes, pela maior parte, vivem acobertados com a capa da nobreza, ou da religião... Comtudo, proseguiu elle, o senhor deve consolar-se, porque a consolação dos desgraçados é conhecerem que existem ainda outros maiores. Heide contar-lhe a minha historia, e estou convencido de que, ouvindo-a, hade compungir-se de mim, e considerar-se muito feliz, comparativamente com o que me succedeu na sua idade... Todos pagâmos o nosso tributo á maldade do mundo, uns por pouco tempo, outros por muito. O senhor pertence aos entes felizes do primeiro caso, porque, vendo a sua pouca idade e conhecendo-se que já deixou de soffrer, não se póde classificar d’outro modo.

E, depois de haver descançado um pouco, em seguida a este exordio:

-- Agora consta-me, accrescentou elle, que o senhor tenta fazer uma coisa inteiramente em seu prejuizo; e como o meu caracter me obriga a pensar maduramente as coisas e a dar sempre bons conselhos, dir-lhe-hei...

E vendo que as duas senhoras estavam promptas para sair, interrompeu-se para lhes dizer:

-- Minhas senhoras, vejo que as estou estorvando, e por consequencia, reservo os meus conselhos a este senhor para melhor occasião.

-- Oh! senhor Ventura, disse D. Thereza, que por modo algum queria incorrer na incivilidade de despedir o proprietario; póde continuar, porque isto é ainda cedo, a baixa não é muito longe, e nós apenas temos de fazer algumas compras...

-- De certo, meu charo senhor, accrescentou José Pereira, que ficára sympathisando immensamente com o bom do velho; eu, muito gosto e interesse terei em ouvir a sua judiciosa opinião, acerca do que devo fazer para o bem estar do meu futuro e da minha Amelia.

Ventura, depois de reflectir um pouco, olhando para os tres, disse-lhes, em tom de quem deposita inteira confiança nas pessoas a quem se dirige:

-- Eu vou propôr uma coisa ás senhoras, e sobretudo ao senhor, que, usando d’esta expressão, é o chefe d’esta familia: se consentem que este velho os acompanhe na sua digressão, elle se considerará orgulhoso por isso.

-- Pois não, senhor Ventura! responderam a uma só voz e espontaneamente as duas senhoras e José Pereira.

-- Dar-nos-ha muita honra, accrescentou o mancebo, com a sua respeitavel companhia.

-- É certo, disseram as duas senhoras.

-- D’este modo, continuou Ventura dirigindo-se ao mancebo com certa amabilidade, poderemos conversar caminhando, e não estorvaremos por mais tempo estas senhoras... e sobretudo a senhora D. Amelia, a qual com certeza, o que é muito louvavel, deve estar impaciente por fazer as suas compras de noivado.

-- Nada, disso Amelia córando, por Ventura adivinhar o seu pensamento; eu não estou...

-- Está, minha menina, está; porêm, eu não lhe quero mal por isso... pelo contrario.

E, fazendo com a mão direita um gesto de confiança, como quem pede espera, accrescentou ao mesmo tempo:

-- Peço-lhes queiram esperar um momento, emquanto visto uma casaca e ponho o chapéo.

-- Cá esperâmos, senhor Ventura, respondeu D. Thereza, que sentia uma alegria inexplicavel com o convite que a si proprio fizera o proprietario para as acompanhar.

Ventura saiu de casa das suas inquilinas, entrou na sua e pediu apressadamente á criada que lhe trouxesse a casaca e o chapéo.

A criada ficou preplexa com o que lhe pedia o amo, pois estava em casa de Ventura ha não poucos annos, e nunca o vira sair de casa senão para passeiar no quintal, onde passava parte dos dias de verão cultivando flôres e hortaliças.

Por isso, ficou parada diante de Ventura, julgando ter ouvido mal o que elle lhe dissera.

-- Então, Joaquina, gritou-lhe o amo, despindo ao mesmo tempo a sobrecasaca que usava por casa; tu dás-me o que eu te pedi?!...

-- Pois o senhor quer?!...

-- A casaca e chapéo, tornou a gritar Ventura, não ouviste?

A criada, d’esta vez, deu meia volta á direita, foi buscar o que o amo lhe pedia, dizendo comsigo pelo caminho:

-- Meu amo está por força embruchado por aquella maldicta velha, ou pela sirigaita da rapariga... Coitadinho!

Ventura, ficando só, abriu uma secretária antiga que tinha no seu quarto e tirou d’ella dinheiro, o qual metteu nos bolsos do colete.

A este tempo, D. Thereza, Amelia e José Pereira, olhavam uns para os outros, estupefactos, por já saberem o systema de vida do proprietario, o seu viver retirado e quasi incommunicavel, e acabarem de ouvir a proposta que elle lhes fizera.

D. Thereza, saindo alfim do silencio, disse alegremente aos dois jovens:

-- Não sei o que me prediz o coração a respeito d’este bom homem... parece-me que elle hade dar ao senhor Pereira o que lhe roubou o Marquez de ***.

-- E a outra pessoa... accrescentou Amelia com intenção maldosa, olhando para D. Thereza; a alegria e o descanço.

-- Ora, não sei o que queres dizer com isso, respondeu a viuva com modo sacudido, percebendo perfeitamente a allusão da donzella.

-- É cá uma coisa, replicou Amelia maliciosamente.

N’este momento entrou Ventura, já prompto para sair, o que veio pôr termo á amigavel discussão parabolica das duas amigas.

Ventura dissera á criada, depois d’esta lhe haver trazido o vestuario, que, no caso de vir o seu procurador, lhe dissesse que voltasse no outro dia, porque n’aquelle não tratava de negocios, recommendando-lhe ao mesmo tempo que contasse com mais tres pessoas para jantar.

Isto ainda fez confirmar mais a opinião de Joaquina a respeito dos feitiços de que seu amo era victima, vendo-o sair aparvalhada, e até com medo d’elle, sem se atrever a perguntar-lhe coisa alguma a respeito de onde era a ida e quando seria a vinda.

-- Eis-me ao seu dispor, disse Ventura entrando em casa das suas inquilinas.

-- Então vamos, minhas senhoras? perguntou José Pereira a D. Thereza e a Amelia.

-- Vamos, responderam ellas.

E sairam todos quatro.

CAPITULO XI

As compras d’enxoval

Apenas chegaram á rua, Ventura offereceu, com toda a urbanidade, a D. Thereza o seu braço direito, o que gostosamente foi aceite pela viuva.

José Pereira fez o mesmo offerecimento á donzella, a qual o aceitou com a maior alegria.

Os dois pares caminharam como se fossem paes e filhos; os dois jovens na frente, sendo seguidos de perto por D. Thereza e Ventura, os quaes, apezar dos annos, caminhavam tão ligeiros como os dois mancebos.

Dirigiram-se á hbaixa e entráram n’uma casa de negocio.

Chegados ali, começaram a fazer as suas compras. Amelia comprou panno branco, baetilha e rendas, emquanto D. Thereza comprava panno de linho, meias de homem e de senhora, algodões, retroz, etc.

Durante este tempo, Ventura e José Pereira, que se reservaram para os ultimos compradores, conversavam assentados.

Ventura demonstrou logicamente, ao mancebo, o mal que queria fazer a si proprio, tencionando vender o seu pequeno capital, dando-lhe a entender vagamente que podia adquirir melhores meios de fortuna, sem comprar nenhum emprego.

José Pereira, ouvindo o que lhe dizia o prudente ancião, recordou-se dos presentimentos de D. Thereza, promettendo a Ventura fazer tudo quanto elle lhe aconselhasse.

-- Muito bem, meu amigo, foram as ultimas palavras do proprietario, o qual já considerava José Pereira como um honrado e bondoso rapaz, pela submissão e cordialidade com que annuia ao seu conselho.

E, levantando-se e dirigindo-se ás duas senhoras, que n’este momento estavam fazendo contas com os caixeiros, depois de fazer a José Pereira um signal de intelligencia para se lhe aproximar, disse-lhes:

-- Então, já compraram, minhas senhoras?

-- É verdade, senhor Ventura, disseram as duas, ao mesmo tempo que tiravam dinheiro das algibeiras dos vestidos para pagarem o importe.

Ventura, porêm, fazendo um gesto aos caixeiros, o qual lhes demonstrava não aceitassem o dinheiro das duas senhoras, disse ao mesmo tempo a estas, em tom cavalheiroso:

-- Minhas senhoras, saibam uma coisa; desde que me entendo, sempre ouvi dizer a meu pae: «Quando as senhoras devem, e na sua presença estão homens da sua amizade, quem paga são esses homens.»

E, voltando-se para José Pereira e indigitando-lhe Amelia, continuou logo:

-- Cavalheiro, cumpra o seu dever, que eu cumprirei o meu.

E, apezar de vêr que D. Thereza estava muito contrariada, e teimosa em pagar, Ventura satisfez ao caixeiro que aviára a viuva, a conta da despeza que ella fizera.

José Pereira fez o mesmo, pagando o importe das compras d’Amelia.

Depois d’isto, Ventura, continuando a dirigir-se ás duas senhoras, disse-lhes:

-- Agora, compette-me a minha vez.

E, dizendo a um caixeiro que trouxesse cortes de vestido e chailes, pediu a D. Thereza e a Amelia que escolhessem cada uma um vestido e chaile, a seu gosto.

Amelia, exultando d’alegria, escolheu um lindo córte de lã franceza e um bonito chaile de cachemira, e D. Thereza indicou ao caixeiro um córte de vestido e um chaile, ambos escuros.

Ventura, vendo isto, disse á viuva:

-- Então, porque não compra a senhora D. Thereza, um córte e um chaile irmãos dos da senhora D. Amelia, que são tão bonitos?

-- Oh! disse D. Thereza, de boa vontade o faria, se não fosse viuva, porque a minha Amelia teve um bello gosto.

-- Ora... replicou Ventura, baixando a voz para só ser ouvido de D. Thereza; porêm, o seu marido morreu ha já tantos annos, que não parece mal usar fato de côres.

Aconselho-a, continuou elle carregando nas palavras e levantando a voz, a que siga a opinião da senhora D. Amelia.

-- É verdade, amiguinha, disse a donzella rogando D. Thereza, não seja teimosa.

-- Emfim... continuou D. Thereza, depois de pensar um momento no que lhe dissera Ventura; já que todos são da mesma opinião, comprarei, ainda que contra minha vontade, o que me aconselham.

-- Olhe que não se hade arrepender, tornou Amelia.

E, voltando-se para José Pereira, que se conservava mudo e distrahido, accrescentou:

-- Não é assim, senhor Pereira?

-- Oh! de certo, respondeu o mancebo, o qual estava vexado, por vêr a generosidade de Ventura e não poder tambem ser generoso, por estar quasi sem dinheiro.

Ventura, que era perspicaz, depois de ter estudado tanto no mundo como nos livros, notou logo as distracções e tristeza do mancebo; por isso, emquanto as duas senhoras estavam entretidas vendo diversos enfeites, chegou-se a José Pereira e disse-lhe rapidamente em voz baixa, e em tom de convicção, pedra de toque moral pela qual, sabendo-se applicar imprevistamente, se conhecem muitas vezes as coisas de que desconfiâmos, porêm que não sabemos serem positivas:

-- O senhor está triste, porque não tem dinheiro.

-- Quem lh’o disse? perguntou José Pereira n’um tom, que patenteou a Ventura não se haver enganado a respeito do estado financeiro do mancebo.

-- Adivinhei-o, senhor Pereira, respondeu Ventura.

E, antes que o mancebo lhe dissesse qualquer coisa para o illudir, apertando-lhe a mão e deixando-lhe n'este aperto uma nota de dezoito mil réis, disse-lhe a meia voz, afastando-se depois rapidamente d’elle:

-- Torne a tomar o seu logar de cavalheiro, e depois fallaremos.

José Pereira examinou o que lhe déra Ventura e, vendo a nota, disse a Amelia e a D. Thereza que escolhessem cada uma um chapéo, o que ellas fizeram de boa vontade.

Depois desta ultima compra, chamando um moço de recados, os nossos quatro personagens puzeram-se a caminho de casa, na mesma ordem em que sairam.

Chegados a casa, Ventura instou com as duas senhoras e com o mancebo para irem jantar com elle, o que foi aceite depois d’algumas recusas, ás quaes o proprietario não annuiu.

Ventura esmerou-se em apresentar aos seus amigos um bello e lauto jantar, durante o qual se fizeram algumas saudes, aos jovens, á viuva e ao proprietario.

Quando José Pereira pretendia fallar a Ventura, a respeito dos dezoito mil réis que este lhe emprestára, o proprietario mudava logo de conversa, dizendo ao mancebo:

-- Depois fallaremos, depois fallaremos a esse respeito.

CAPITULO XII

Declarações inesperadas

Os dias passaram.

Gertrudes já se recebêra com o rapaz carpinteiro de que fallára a José Pereira, sendo este um dos padrinhos das nupcias, o qual brindou a noiva com um lindo broche, e o noivo com um excellente annel.

Alem d’isto, como a casa onde morava Gertrudes fosse pequena para convites e o noivo d’esta ainda não tivesse arrendado nenhuma, José Pereira, aconselhado por Ventura, que tomava parte activa em tudo isto, offereceu aos noivos a casa do proprietario, para ali darem o banquete depois da ceremonia nupcial.

Em consequencia d’isto, a criada de José Pereira veio encorporar-se á de Ventura, para a ajudar na cozinha e nos preparativos para o banquete.

Depois de terminada a ceremonia religiosa, noivos, padrinhos e convidados, dirigiram-se todos a casa de Ventura.

Este, que fôra um dos convidados, estava n’esse dia mais alegre e folgazão que de ordinario. Assim que chegou começou logo a dar as ordens necessarias para apressar o jantar.

Alem d’isto, tratou com toda a polidez o affabilidade tanto os noivos como os convidados d’estes, entre o numero dos quaes estava o velho sapateiro, protegido de José Pereira, o qual já se achava restabelecido.

Os dois criados de Ventura, como dois automatos obedecendo á voz do amo e sempre pasmados pela nova vida que elle adoptára desde algum tempo, não se atreviam a fazer commentarios, por causa da collega intrusa que os acompanhava.

D. Thereza e Amelia, que haviam estreiado n'esse dia os vestidos que lhes comprára Ventura, estavam como aturdidas pelo ruido que faziam os convidados, conversando.

Todavia, mostravam ambas no parecer a alegria effervescente que sempre causa um noivado.

-- Então, que lhe parece, senhora D. Amelia, este festejo? perguntou Ventura, assentando-se ao lado das duas senhoras. Pela alegria que mostram os noivos, continuou elle, poderá avaliar a que a menina hade sentir no feliz dia do seu consorcio.

Amelia, vexada com o que lhe dizia Ventura, quiz responder, porêm não poude; um vivo rubor lhe assomou ás faces, e para disfarçar o seu enleio, tirou o lenço da algibeira e assoou-se.

Ventura, que conheceu a perturbação da donzella, voltando-se para D. Thereza, continuou:

-- A sua perturbação é natural... não acha, senhora D. Thereza? Eu, accrescentou elle, dirigindo-se a Amelia, peço desculpa se a interroguei a respeito de coisas que uma menina honesta e virtuosa não deve ouvir sem córar... porêm, que querem, minhas senhoras, hoje estou a desconhecer-me... parece que me acho nos meus vinte annos, sem pensar nem o que digo nem o que faço!

-- Ah! porêm o senhor Ventura, respondeu a viuva, não commetteu nenhuma inconveniencia para com Amelia; ella é que se perturbou, como succede a todas as meninas que estão brevemente para casar e que alguem lhes falla a esse respeito.

N’este momento, José Pereira ainda veio embaraçar mais a donzella, aproximando-se do grupo dos tres, e dizendo alegremente em alta voz e olhando para Amelia:

-- De hoje a oito dias compette-nos a nossa vez; agora mesmo acaba de me dizer o encarregado dos papeis, que para a semana estará tudo prompto.

-- Bravo! exclamou Ventura fóra de si.

Depois, chamando o mancebo de parte, disse-lhe:

-- Ó senhor Pereira, eu preciso tambem d’esse homem, se elle quizer encarregar-se d’outro negocio identico ao seu.

José Pereira, sem o comprehender, olhou para elle admirado.

Ventura, comprehendendo a admiração do mancebo, continuou, sorrindo:

-- O senhor está admirado, sem poder attingir o alvo a que me dirijo? pois então, chegue-se cá, que vai saber tudo.

E, tornando a aproximar-se das duas senhoras e dirigindo-se a meia voz a D. Thereza, porêm em tom que podia ser ouvido dos dois jovens, disse-lhe:

-- Senhora D. Thereza, lembra-se de eu lhe dizer, ha dias, quando a senhora me quiz fazer uma saude, que eu já me havia mettido na conta?

-- Perfeitamente, senhor Ventura, respondeu a viuva, bem longe de pensar o que se ia seguir.

-- E, proseguiu Ventura, não comprehendeu o que eu pretendia dizer, não é assim?

-- Sim, eu confesso... respondeu D. Thereza hesitando.

-- Pois, senhora D. Thereza, replicou Ventura, vai alfim saber o mysterio que se encerrava n’aquellas minhas significativas palavras: Dois noivos, um dos quaes estava ausente, eram a senhora D. Amelia e o senhor Pereira... e os outros dois, os quaes estavam presentes, era a senhora D. Thereza e este seu criado.

-- Oh! senhor Ventura, exclamou D. Thereza, immensamente confusa e chegando-lhe tambem pela sua vez o rubor ás faces; pois quer?!...

-- Minha senhora, atalhou Ventura, eu sou muito laconico e explicito nas minhas coisas; se é do seu gosto ser minha esposa, peço-lhe queira communicar-m'o.

A este tempo, Amelia trocava signaes de intelligencia com José Pereira, os quaes queriam dizer que ás suas desconfianças, a respeito do namoro de Ventura com D. Thereza, não eram infundadas.

A viuva, commovida em extremo com tão imprevista declaração do proprietario, conservou-se um momento silenciosa, findo o qual, chamando Ventura de parte, disse-lhe em tom convicto:

-- Pois o senhor quer casar com uma velha... e de mais a mais, pobre!?

-- É isso o que mais me convem, respondeu Ventura; a senhora diz que é velha... e que direi eu, mesmo sem exagerar, como a senhora fez?... Diz que é pobre; muito bem, e eu sou rico. Acredite que se a senhora fosse joven e rica, eu não a queria nem dourada. Depois d’estas explicações, continuou elle, não deve admirar-se do meu pedido.

-- Á vista do que acabo douvir, respondeu D. Thereza sempre em tom modesto e acanhado, aceito a proposta que me faz, com o maior prazer e reconhecimento.

-- Prazer, concedo, replicou Ventura, reconhecimento, não.

N’este momento entraram os criados com o jantar, e Ventura, fazendo as honras da casa, collocou em torno da meza os convidados, conforme a regra antiga da civilidade n’estes casos, reservando para si e para José Pereira dois logares, um ao lado de Amelia, e o outro ao lado da viuva.

A alegria e a boa ordem andaram sempre juntas entre os convivas, os quaes se levantaram da meza, era já noite fechada, hora em que todos se retiraram de casa de Ventura, excepto José Pereira e o homem encarregado de lhe apromptar os papeis para o casamento, com o qual Ventura ajustou, estarem promptos no mesmo dia tambem os seus.

Depois d’isto o homem saiu; e Ventura, ficando em companhia das duas senhoras e de José Pereira, não fallando no velho sapateiro que fôra para a cozinha conversar com a criada do mancebo, disse a este, batendo-lhe familiarmente no hombro:

-- Ora o senhor, vai casar brevemente... ou, para melhor dizer, nós vamos casar brevemente, porque recebemos as noivas no mesmo dia; o senhor tem de rendimento cento e cincoenta mil réis annuaes, com os quaes lhe será impossivel viver com decencia e mais sua esposa, sobretudo quando começarem a apparecer os descendentes.

E, observando José Pereira, o qual mostrava a mais viva anciedade depois do que acabára de ouvir, Ventura proseguiu:

-- O meu procurador está velho o doente... heide fazer uma composição amigavel com elle, accrescentou como se fallasse comsigo, e constituo-o ao senhor, meu procurador, com o ordenado annual de seiscentos mil réis.

-- Oh! meu querido amigo e protector, exclamou José Pereira, abraçando com ellusão o bondoso proprietario; como lhe heide pagar um tamanho obzequio?

-- O senhor é intelligente e cultivado, respondeu Ventura, desembaraçando-se dos braços do mancebo que o estreitavam com força, e então póde pagar-me sendo um bom e honrado procurador.

-- Oh! se é só isso, exclamou José Pereira, eu desde já prometto...

-- Ta, ta, ta... disso Ventura, fazendo-lhe menção de se calar; silencio, porque eu creio firmemente que o que se diz não se faz, e vice versa.

José Pereira, pulando de contentamento pelo inesperado e excellente emprego que alcançára sem o requerer ou comprar, como já pensára, abraçou com effusão a sua querida Amelia, e até a viuva, a qual não sabia se era victima d'um pezadelo, tanto estava admirada pelos inesperados successos que haviam tido logar n’aquelle dia.

Finalmente separaram-se.

José Pereira encaminhou-se para sua casa, acompanhado pelo velho sapateiro e criada, trasbordando-lhe o coração em alegria.

Ventura, ficando só em casa, deitou-se e, pela primeira vez na sua vida, depois de tantos annos de amargura, dormiu um delicioso somno, durante o qual sonhou com amorinhos nús que o vinham coroar de rosas.

D. Thereza e Amelia, entrando em sua casa, não puderam deixar de dizer uma para a outra, ao mesmo tempo que se abraçavam com effusão:

-- Ah! minha amiga, como a ventura é caprichosa e como nós vamos ser felizes!

N’essa noite, tambem D. Thereza sonhou, como se estivesse nos seus quinze annos.

CAPITULO XIII

Os seis conjuges

José Pereira já casára com a sua querida Amelia, sendo padrinhos, o noivo de Gertrudes e o seu amigo Ventura, e este tambem se recebêra no mesmo dia com D. Thereza, sendo, por uma calculada e bonita combinação, José Pereira e o noivo de Gertrudes os seus padrinhos.

Já dissemos aos nossos leitores, no capitulo terceiro da setima parte d’esta obra, que o predio onde morava Ventura, tinha tres andares.

O proprietario, depois de casado, mudou-se para o primeiro andar, o qual estava com escriptos, sem duvida por ficar mais baixo e por consequencia para não subir tanto quando recolhesse de passeio, porque Ventura, depois do casado com a honesta costureira, passeiava amiudadas vezes.

O segundo andar, cedera-o Ventura a José Pereira e Amelia, para que as duas amigas estivessem sempre proximas uma da outra, combinando com o inquilino que ali habitava antes, a mudar-se para o terceiro andar fronteiro, onde haviam morado as duas senhoras.

No terceiro andar, onde morára Ventura por tantos annos, foram habitar Gertrudes e o carpinteiro, o qual alugára tambem as lojas para ali estabelecer uma officina de carpinteria.

D’este modo os seis conjuges, padrinhos e amigos uns dos outros, viviam constantemente em contacto, reunindo-se todas as noites em casa de Ventura, quando não iam todos seis ao theatro.

A mais perfeita e accorde harmonia reinava nos tres casaes.

Ventura e D. Thereza, amavam-se como dois velhos e bons amigos.

A sua criada Joaquina, sem duvida despersuadida de agradar ao patrão, despediu-se d’este, dizendo-lhe que se ia casar com Thiago, o qual annuiu ás vantajosas propostas que lhe fez a gorda matrona, despedindo-se tambem do patrão.

José Pereira, unido finalmente á sua querida Amelia, gozava nos braços da formosa e candida esposa as sublimes delicias do puro amor, continuando a ter em sua companhia o velho Theodoro, o qual o presenteiára, no dia do casamento, com um par de botas feito por elle, o que fez zangar bastante o mancebo, o qual todavia agradeceu cordialmente ao seu protegido a lembrança que tivera, impondo-lhe ao mesmo tempo como condição para continuar a ser seu amigo, de nunca mais dar um ponto para ninguem. Alem d'isto, conservava a mesma criada que lhe conhecemos na sua casa de rapaz solteiro.

Gertrudes e seu marido, apezar de não possuirem os sentimentos poeticos e enthusiasticos de José Pereira e de Amelia, viviam, segundo o antigo rifão, como Deus com os anjos. Gertrudes, tinha em sua companhia o seu velho pae, unico parente que lhe restava. O carpinteiro, que era um excellente rapaz e habil artista, conhecendo perfeitamente o desenho e a geometria, de boamente recolheu em casa o pae de sua mulher. Elle era já orphão de pac e mãe, e portanto reconheceu o ancião como seu proprio progenitor.

Ventura, muitas vezes dizia comsigo:

-- Oh! se a minha primeira esposa tivesse o bondoso caracter da segunda, quantas dôres e tormentos eu teria poupado na minha vida!

José Pereira, abraçando a sua Amelia, pensava tambem, não poucas vezes, na bondosa D. Julia, que tanto o amára, a qual tinha tantas similhanças, tanto no physico como no moral, com a sua meiga e bondosa esposa.

A sensivel Gertrudes, quando estava em companhia de Amelia, ficava por vezes tambem contemplando-a, depois dava um «ai!» e dizia para José Pereira, se elle estava presente:

-- Como a senhora D. Amelia se parece com a minha querida Juliasinha!... não é verdade, senhor Pereira?

O mancebo respondia affirmativamente, e Amelia, que já sabia a historia dos amores que o marido tivera com a pupilla do Conselheiro M***, lançando um braço em torno da cintura de José Pereira, e fictando-o amorosamente, dizia:

-- Ainda bem que me pareço com essa menina, porque assim sou duplicadamente feliz.

Na epocha em que escrevemos, os seis conjuges vivem ainda, felizes do mesmo modo.

José Pereira já tem o primeiro filho, que conta quasi sete annos, ao qual elle ministra, como bom pae, a primeira e infantil educação.

Um dos conselhos que elle lhe dá quotidianamente, é o seguinte:

-- Meu filhinho, quando fores homem, sê sempre reservado para com os fidalgos; nunca deposites inteira confiança nos aristocratas, sem primeiro os estudares minuciosamente. Olha que fizeram o teu papásinho muito infeliz, os homens condecorados com titulos e brazões. Os homens do povo são mais leaes, sinceros e valedores.

A creança bate as mãosinhas, e responde ao pae, depois de o comprehender, tendo-o ouvido attentamente, por assim lh’o permittir o seu tenro e intelligente cerebro:

-- Descance, meu papá, que heide fazer o que me diz.

Epilogo

Commetteriamos uma imperdoavel lacuna se, depois de findarmos este quadro, ao qual demos tão fortes e prosaicas côres, segundo a opinião de muita gente, não dessemos aos nossos prezados leitores conta do destino d’alguns importantes personagens d’este drama, os quaes fizemos desapparecer repentinamente da scena, sem mais nos occuparmos d’elles.

Vão ser satisfeitos, queridos leitores e amaveis leitoras.

A Conselheira, permittam-me que lhe dê este nome, vive actualmente retirada, guiada e aconselhada pelo seu confessor, um reverendo prior d’uma parochia da capital, o qual todos os dias faz com que a sua confessada veja aproximar-se-lhe o céo.

A nossa prestidigitadora Viscondessa de ***, vamos encontral-a viuva, porque o Visconde, descobrindo elle proprio, n’um impulso alcoolico, que fôra moedeiro, vira-se obrigado a expatriar-se para Inglaterra, morrendo lá, d’uma indigestão de bifes, n’uma aposta que fez com um filho d’Albion. A viuva escreve hoje n’um jornal com o pseudonymo de «Zélio.»

O Marquez de *** e sua linda esposa, vivem estabelecidos em Montevideo, sendo proprietarios do Hotel de la calle mayor, onde a formosa hespanhola tem vencido... e tambem perdido bastantes conquistas amorosas, entre os caballeros do seu paiz.

O Commendador F ***, dono do escriptorio e do prégo, tendo-lhe fugido a filha, levando-lhe quasi toda a sua fortuna para seguir um pelotiqueiro italiano, é actualmente barraqueiro na feira da Ladra.

O nosso Mendonça, que ainda não apanhou o baronato, separou-se de sua mulher, por esta querer continuar a proteger as irmãs de caridade francezas. O gordo proprietario vive em companhia da filha e do neto, ao qual já morreu o avô paterno, o honrado e nobre fidalgo antigo.

Manuel Alonso, que indo fazer um recado, quebrou uma perna, a qual lhe foi amputada no hospital, foi para a sua terra, por onde passeia em muletas.

Finalmente, o Commendador L***, ex-tabellião, o Bispo de *** e o General C***, soffrem os castigos que os máus experimentam depois de haverem feito soffrer a humanidade. Vivem enfermos de corpo e de espirito: são victimas das dôres physicas e dos remorsos.

Ora esta!... e então, não nos esqueciamos das aristocratas devotas fingidas, Condessa de ***, Viscondessa de ***, Baroneza de ***, etc., etc.!

Estas piedosas senhoras, vendo-se privadas das suas amigas, da ordem de Vicente de Paulo, trabalham a occultas no partido da Nação, do Bem Publico e de todos os lazaristas, para vêr se tornam a importar em Portugal (porêm, baldadas esperanças!) as irmãs de caridade francezas e padres jesuitas.

FIM

Não julguem alguns dos leitores que nas palavras «d’este mundo» alludimos á justiça do Céo, Purgatorio ou Inferno, reinos que não sabemos existirem em carta alguma geographica. N’esta nossa allusão quando escrevemos «d'este mundo» queremos dizer a Terra, assim como diriamos «a Lua», se a acção da nossa obra fosse passada n’aquelle planeta.

Por odiarmos a guerra, e sobretudo a devastadora, horrivel e atroz guerra civil, em que o irmão se vê obrigado a assassinar o irmão, o pae o filho, o amigo o amigo, por pertencerem a partidos oppostos, não estranhem os leitores que classifiquemos de «triste,» e mesmo de anti-philosophica, a encarniçada campanha sustentada por dois chefes de partido, irmãos um do outro.

Este facto é tão real e verdadeiro, que os incredulos poderão convencer-se, ou tendo as correspondencias periodicas, a este respeito, ou dignando-se procurar-nos para lhes apresentarmos o irmão das duas meninas, que é um nosso amigo. D’elle poderão então ouvir o que fielmente acabâmos de narrar no capitulo precedente.

Nome que no Brazil se dá aos rapazes solteiros; e «sinhora moça,» ás donzellas.