Mathilde: Edição para o ELTeC Sá, Ana Maria Ribeiro de (?-?) Criação do HTML original Alina Baldé Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 55384 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Mathilde Anna Maria Ribeiro de Sá Biblioteca Nacional de Portugal Mathilde D. Anna Maria Ribeiro de Sá Lucas & Filho, Editores Lisboa 1874

português de Portugal Converted by checkUp script for new release Adicionado à coleção ELTeC

BIBLIOTHECA UNIVERSAL

Dedicada ao visconde de Castilho

N.°9

D.ANNA MARIA RIBEIRO DE SÁ

MATHILDE

ROMANCE ORIGINAL

COM UM PROLOGO

DO

ILL.MO E EX.MO SR. M. PINHEIRO CHAGAS

LISBOA

LUCAS & FILHO - EDITORES

Rua dos Calafates, 93

1874

A empresa reserva-se o direito de reproducção e traducção

I

Quem não conhece, ao menos por tradição, a Varzea de Collares?

E delicioso aquelle sitio cheio de sombras e do frescura, como um idylio namorado.

A agua corre alli, torcendo-se em graciosos meandros no seu leito todo bordado do flôres. As arvores dobrando-se do um para outro lado da corrente enlaçam os troncos amigos e a hera vem logo estreitar esta alliança, lançando-lhes por cima os seus abundantes festões.

A luxuosa magnificencia da vegetação desenvolve-se á beira do limpido crystal com todo o esplendor, e as velhas arvores carregadas de hera veem já crescerem-lhe aos pés as tenras hastes das que hao de mais tarde substituil-as. As silvas, o alegra campo e mil outros arbustos gentis unem-se em fraternal abraço, e juntos lutam a ver qual ha de chegar mais longe com o seu verde manto. De quando em quando a agua, entrando mais pela terra, alarga um pouco e seu leito e um tronco d'arvore, já dobrado pelos annos, ou uma pedra musgosa vem embaraçar-lhe o caminho.

Ao pé da repreza ha um espaço sombreado pelos ramos de formosos platanos e onde se reunem todas as pessoas que vem de Cintra e de Collares passar algum tempo no logar mais ameno de quantos ha pelos arredores d'esta villa.

Ahi estavam ha bem poucos annos, sentadas nos bancos de pedra collocados á sombra das arvores, algumas pessoas e entre ellas duas, cuja historia talvez tenha algum interesse para quem deseja estudar o coração humano nas suas innumeraveis contradições.

Tinham dado duas horas e era chegado o momento em que as elegantes de Cintra vem passeiar até á Varzea. N'aquelle dia, fosse porque fosse, era pequena a concorrencia e apenas trez ou quatro familias tinham vindo para o favorito ponto de reunião. Só nos demoraremos a descrever as duas figuras mais importantes do grupo.

Uma d'ellas era um homem de sessenta annos, alto e robusto, com uma d'essas physionomias em que se lê como n'um livro aberto. São tão raras as caras assim! Tinha as feições bem accentuadas, e, apezar das rugas que lhe cortavam a fronte larga, e dos cabellos brancos, que abundantes lhe emmolduravam nos anneis de prata as fontes pensadoras, conheciam-se-lhe ainda vestigios de uma belleza varonil, que os pczares e o tempo não tinham podido apagar de todo. A cabeça tinha-a elle um pouco inclinada para traz com um gesto cheio de naturalidade, nos olhos pretos e brilhantes luzia a intelligencia e a franqueza; não usava barba alguma e a bocca desenhava-se-lhe graciosa, deixando perceber uma certa tendencia para a ironia fina, que, bem combinada, nem sempre prejudica a bondade; o nariz era aquilino.

Havia no olhar e no sorriso do homem que descrevemos uma expressão ao mesmo tempo suave e austera; via-se bem que n'aquella alma, atravez da polida condescendencia do homem bem educado, permanecia sempre inflexivel a firmeza do um caracter, onde o dever e a honra tinham o primeiro logar. Todos reconheciam a bondade deste homem, mas ao mesmo tempo todos temiam a muda reprovação dos seus olhos e dos seus labios levemente franzidos. Aquelle olhar e aquelle sorriso teriam força bastante para suster a mão do crime, se até o pensamento de o commetter podesse existir debaixo da sua influencia mysteriosa! Os olhos assim vêem por força dentro d'alma, quando se fitam implacaveis n'uma physionomia qualquer; é por isto que diante d'elles parece que até ha medo de pensar.

O homem de quem acabamos de esboçar o retrato, chamava-se Pedro da Silveira; passeiava encostado á sua bengala, e só interrompia o passeio para vir de vez em quando parar um instante diante de uma menina, que sentada desfolhava uma rosa sobre o liso espelho das aguas, onde se perdia o seu olhar distraído.

Esta menina era sobrinha de Pedro da Silveira e chamava-se Luiza. Teria pouco mais de dezoito annos e era bella; não da belleza sensual e robusta d'essas formosas estatuas em que só a custo se divisa o espirito, mas do outra mais elevada em que as feições são apenas um diaphano véo, atravez do qual scintilla a formosura d'alma. Era formosa, formosissima até, mas Rubens não a saberia retratar; só Raphael acharia nas suas paletas divinas o segredo de transportar para a tela toda a etherea expressão d'aquelle rosto angelico.

Luiza era alta e esbelta; o seu corpo, talvez excessivamente magro, tinha a nobre flexibilidade da verdadeira elegancia; as suas mãos mostravam na alvura assetinada e nos dedos finos e bem torneados a fidalga delicadeza, que raras vezes engana; o seu collo, meio inclinado para diante, trahia o habito da meditação e na sua tez pallida quasi nunca vinha a vivida côr da rosa despontar em meio da immaculada brancura das faces. As feições de Luiza pareciam abertas no marmore pelo apuradissimo cinzel d'algum seraphico esculptor; a sua fronte, larga e admiravelmente bem modelada, tinha essa rara pureza que faz sonhar com a candura dos anjos, e as suas finas sobrancelhas descreviam a curva pensadora, que deixa adivinhar, logo á primeira vista, uma intelligencia superior.

O nariz tinha-o levemente aquilino, e a bocca abria-se-lhe breve o rosada, como flor humedecida pelo orvalho da manhã. Os seus olhos oram negras, deste negro profundo como noite do cerração e ao mesmo tempo brilhante como o scintillar de uma purissima chamma. Eram olhos pretos com olhar azul, que são os mais raros e os mais bonitos de todos. N'estes olhos ha crepitações, lagrimas, ternuras, mundos d'affecto, que nos outros é impossível descobrir. Só elles possuem o segredo da suprema fascinação, porque só elles teem esse avelludado adoravel, mixto, indescriptivel de timidez e de seducção, de suavidade e de orgulho, que dominam um momento, se n'um volver empregam todo o magnetismo da sua irresistível belleza. Quando Luiza cerrava as palpebras e deixava cair sobre as faces pallidas a comprida franja das suas negras pestanas, não haveria rosto na Italia, que mais do que o seu fosse digno de inspirar o artista desejoso de traçar uma d'essas imagens da madona, em que todos á porfia tentam representar o verdadeiro typo da belleza feminina.

Luiza tinha abundantes cabellos pretos o as largas tranças assetinadas enfeitavam-lhe com austera simplicidade a pequenina e airosa cabeça.

Agora basta de retrato, que já vae longo. Imaginem os animos piedosos a belleza de um anjo e sonhem os profanos a de uma houri; conseguirão d'esse modo formar idealmente uma imagem candida, vaporosa, seductora e languida como o ethereo vulto da innocencia, ou como a encantada personificação do amor. Tudo isso dará mais idéa da formosura de Luiza do que o poderão fazer todas as descripções traçadas pela minha prosaica penna.

Luiza estava vestida do branco e sentada ao pé do parapeito fronteiro ao espaço occupado pelos formosos platanos. As vezes seu tio dizia-lhe uma ou duas phrases affectuosas, e ella respondia-lhe no tom meigo e submisso, que fica tão bom ás mulheres.

Estavam alli algumas outras senhoras, mas Luiza sentara-se um pouco longe de todas o permanecia portanto quasi inteiramente estranha ás conversações, em que as suas visinhas iam gastando todo o sal attico e não attico dos seus espiritos, mais ou menos polidos. De vez em quando uma ou outra pergunta chegava aos ouvidos da donzella, mas esta, distraida, nem sempre respondia a tempo.

O murmurio das vozes ia já caindo para um certo decrescendo, que é signal de estarem quasi exhaustos os assumptos e de começarem os bocejos a sua luta com o disfarce, quo a delicadeza exige a todos quantos se aborrecem em companhia. É esta uma das posições insupportaveis que a sociedade inventou, sob pretexto do divertimento. Aborrecer-se cada um na sua casa, só no seu quarto, é mau; mas aborrocer-se n'uma sala, n'um passeio, ou n'um logar qualquer em que muitas pessoas se reúnem com pretenções a passar agradavelmente um pouco d'esse tempo, que tão depressa foge sem que andem a correr atraz d'elle, -- é mais que mau, é pessimo.

Estavam portanto as cousas n'este lamentoso estado quando na estrada se viu appareceram ao longe, no meio de nuvens do pó, dois cavalleiros.

Todas as cabecinhas femininas so ergueram e até os homens, que, na ociosidade pelo menos, são tão curiosos como as mulheres, até elles se voltaram para ver quem assim vinha caminho da Varzea.

Iam-se os cavalleiros approximando e já se lhes divisava as feições, porque tinham chegado perto dos platanos.

-- O de branco é o visconde de Lorval, disse alguem, abaixando instinctivamente o tom da voz, como que temendo que os recemchegados notassem o interesse com que estavam sendo observados.

-- O de preto não conheço. Não me lembro de o ter visto por aqui. Parece estrangeiro.

-- É verdade, parece estrangeiro, repetiu uma ingenua, dada a poeticas meditações; tem cabello louro.

Pedro da Silveira e Luiza assistiam silenciosos a toda esta scena.

Os dois recemchegados apearam-se e vieram até á entrada da Varzea. Estavam alli havia instantes quando o visconde de Lorval deu com os olhos em Pedro da Silveira; correu immediatamente para elle, e, comprimentando Luiza com um gesto um tanto pretencioso, agarrou nas duas mãos do velho.

-- Oh! v. ex.ª por aqui; e eu que não tenho tido ha tanto tempo o gosto de o ver!

-- Ora, meu caro visconde, os rapazes da sua edade e do seu genio não padecem muito com a ausencia dos velhos, disse, sorrindo, Pedro da Silveira.

-- Ahi está a injustiça com que nos tratam, a nós pobres rapazes, que não temos outro crime senão o de aproveitarmos o melhor possível estes dias de primavera, que Deus nos dá para folgar.

-- Veja que se engana, attribuindo assim a Deus intentos, que Elle nunca teve -- Então o que ha de fazer a mocidade, que sente o fogo queimar-lhe as veias? Le feu sacré de la jeunesse!

-- O que ha de fazer? Ora essa! Ha de empregar esse fogo no serviço de uma idéa, nobre, grande, generosa, em vez de o ir apagar todo no seio de mil desvarios, que não deixam após si mais do que os gelos de uma experiencia prematura e por isso mesmo fatal. E as pupillas do velho brilhavam com fulgor extraordinario emquanto assim falava.

-- Ah! v. ex.ª quer que sejamos todos gigantes, e não vê quanto nos custa já a sermos pygmeus! Idéas nobres, grandes, generosas! Que é dellas? Para que serviriam n'este seculo do Dio del'oro? e o visconde de Lorval acabou a phrase cantarolando uns compassos da famosa aria do Fausto.

-- Assim ó que a mocidade se perde. Ensinam-lhe a escarnecer de tudo, poem-lhe diante dos olhos o que os seculos têem venerado, e com meia duzia do sarcasmos mostram-lhe que devem deitar por terra essas estatuas, que tantos acharam sublimes e que elles agora tratam como idolos com pés de barro.

-- Meu caro sr., le monde marche, e é preciso ir com elle, se não queremos perder o fio d'este labyrintho, que se chama vida. Nunca poude comprehender os santos e os martyres. Para mim são esphinges peiores que a da fabula. São sublimidades que não sei como poderam caber alguma vez em carne humana.

-- N'essas respostas são todos mestres. Não lhes convinha a fé, inventaram a duvida. Feliz troca, pois não!

-- A proposito, tenho alli um amigo que pertence á cathegoria dos rapazes velhos. Apresentaram-n'o ha dias n um baile. Parece-me um estouvado, que se fez misantropo, como certas mulheres se fazem beatas quando já não podem ser outra cousa.

-- Mas o seu amigo parece-me muito novo, e portanto não póde estar ainda n'esses casos extremos, em que qualquer pessoa se deixa cair seja onde for, por não poder ficar onde está bem.

-- Eu, a falar a verdade, declaro que não entendo nada quando é preciso procurar os motivos de certas aberrações moraes. V. ex.ª gosta d'esses estudos, e se dá licença vou apresentar-lhe o meu amigo.

-- Quando quizer. Parece-me estrangeiro, disse Pedro da Silveira.

-- É francez. Chegou ha oito dias de Paris, respondeu o visconde de Lorval, e partiu com todo o donaire da sua elegancia requintada.

-- Francez... repetiu como um echo Pedro da Silveira.

Dahi a instantes voltava o mancebo, trazendo pelo braço o companheiro do passeio.

-- Apresento-lhe o sr. Henrique d'Églemont, representante de um dos mais bellos nomes da aristocracia franceza. Meu caro Henrique, está vendo um dos homens mais respeitaveis de Portugal, o sr. Pedro da Silveira.

-- Sr. d'Égle...mont, disse lentamente o velho.

Os nomes estrangeiros não foram feitos para eu os pronunciar. Os francezes principalmente passam tormentos commigo. Nunca poude falar francez.

-- Ora ahi temos uma difficuldade que o meu caro Henrique resolve num instante. C'est une trouvaille. Imagino que o meu amigo é um francez que fala perfeitamento portuguez.

-- Fala perfeitamente portuguez, repetiu sempre com o mesmo vagar Pedro da Silveira, que, desde que o visconde lhe falara no amigo estrangeiro, tinha ficado como que perdido n'uma recordação, sem duvida dolorosa, porque nas suas faces desmaiadas morrera de todo o sorriso e nos seus olhos fitos em Luiza amortecera o brilho habitual.

-- O meu amigo exaggera. Falo o portuguez como o pódo falar um parisiense, que vem agora pela primeira vez a Portugal.

Henrique d'Églemont disso estas palavras com o tom despretencioso de quem aprendeu a falar uma lingua no trato familiar. Pronunciou-as com um leve accento estrangeiro, que, sem lhes alterar a pureza, lhes dava um certo cunho gracioso.

-- Oh! vejo que o visconde não exaggera. Se não recciasse ser indiscreto perguntava-lhe como aprendeu o portuguez. Desculpe a curiosidade de velho.

Aprendi-o, respondeu Henrique um pouco commovido, na minha infancia... Tive um bom mestre, que falava muito bem esta lingua e a quem devo a minha primeira educação.

-- Era então portuguez?

-- Era.

-- Como se chamava?

-- Nunca soube o seu nome portuguez. Usava um francez.

-- É extraordinario! observou Pedro da Silveira, e, voltando-se para d'Églemont, accrescentou:

-- Ha de gostar de ir dar um passeio pela Varzea. Vamos o conversaremos ao mesmo tempo, se querem. Vem comnosco, Luiza. Tu que és tão admiradora das bellezas d'este sitio, deves acompanhar-nos quando tencionamos conquistar-lhes mais um voto do louvor.

Luiza levantou-se e em breves palavras ficaram concluidas as cerimonias da apresentação.

O visconde do Lorval foi o primeiro quo saltou para o bote e offereceu a mão a Luiza que sobre ella pousou levemente a sua. A donzella foi sentar-se ao leme, seu logar favorito; o tio e Henrique sentaram-se-lhe ao lado e o visconde empunhou os dois remos, sem querer ceder um d'elles ao amigo.

II

O visconde de Lorval era um elegante do primeira ordem, e parece-me que muito pouco mais.

Não tinha feia figura e o seu rosto poderia até chamar-se formoso, se não fosse a nullidade intellectual, que a natureza, ajudada pela educação, tinha gravado nas suas feições, bellas, mas frias, porque raras vezes as aquecia a chamma do pensamento.

O visconde julgava-se muito intelligente e muito instruido. Era um d'estes papagaios da civilisação, que aprendem nas modernas encyclopedias tanto quanto é preciso para estar pouco mais ou menos á altura de todas as conversações, que se podem travar na sociedade. Aprendem do cór meia duzia de nomes proprios, uma certa quantidade de bons pensamentos, e algumas definições scientificas, que sabem empregar menos mal. Ordinariamente os sabios d'esta tempera são bastante habeis para se retirarem a tempo quando o terreno começa a ser escabroso, e quando das generalidades se passa a questões mais positivas, em que só a verdadeira sciencia não faz naufragio. O peior é que o apparato falso com que se apresentam engana muito, e estes eruditos improvisados passam ás vozes por homens muito instruidos.

O visconde de Lorval tinha tambem a pretenção de falar muito bem francez. Despresava profundamente a lingua materna, e para elle uma pessoa que não falasse francez e que não tivesse maneiras do parisiense, era pouco mais de um aborto. Só Pedro da Silveira escapava ao anathema geral. O visconde tinha por este homem, amigo antigo da sua familia, uma respeitosa deferencia, que destoava da sua indole leviana. Poucos caracteras ha que não tenham assim uma feição mysteriosa, que resiste a todo o estudo do observador. São cousas que se vêem, mas qne se não explicam.

Henrique d'Églemont, apezar do parisiense, não tinha o dandysmo affectado do seu amigo. Nas suas maneiras adivinhava-se o homem de extremada educação, mas a delicadeza não excluia n'elle um certo aspecto viril, notavel principalmente na expressào do seu rosto, onde o sello da divindade se tinha profundamente gravado.

Henrique era alto, tinha cabello louro, olhos azues e feições bem accentuadas. Os cabellos, naturalmente annelados, caiam-lho para traz, descobrindo-lhe a fronte vasta, onde, apezar da extrema mocidade, a meditação tinha já deixado signaes indeleveis. As sobrancelhas, finas e bem traçadas, quasi que se uniam, formando uma só linha. Os olhos eram de uns que têem tão escuro azul, que muitas vezes igualam na firmeza os negros. O brilho destes olhos tinham um não sei quê do intimo, que resumia toda a força de um caracter ardente mas reservado, desde que uma a uma vira as suas expansões escarnecidas no meio da frieza convencional das relações mundanas, que, em resposta aos seus enthusiasmos de rapaz, lhe tinham lançado ao rosto os fructos de uma experiencia desanimadora.

D'estas pungentes lições conservava Henrique signaes no franzir dolorosamente ironico dos labios sombreados por um gracioso e assetinado bigode.

O seu rosto, habitual mente melancholico e excessivamente pallido, era sempre interessante; mas quando falava, a animação fulgurava lhe nos olhos, illuminavam-se-lhe as feições com um reflexo extraordinario, e era preciso ter gosto muito difficil para não achar formosissima aquella cabeça de poeta, nobremente erguida por um irresistivel impulso de verdadeira superioridade.

Luiza era uma menina a quem amigas e conhecidas chamavam incomprehensivel. Davam-lhe este nome gracejando, mas não conseguiam nem do leve mudar-lhe o genio. Criada sem mãe, Luiza ignorava a doçura dessas primeiras caricias, que ternamente suavisam os nossos primeiros passos na vida o cuja recordação é em toda ella um balsamo para o espirito enfraquecido pela dôr. Poucos dias depois do nascimento do Luiza, morrera sua mãe. Seu pae, tinha morrido tres mezes antes, victima do um prejuizo fatal. A orphã ficou pois entregue a uma avó, pobre senhora, que bem depressa acabou a carreira amargurada, deixando a Pedro da Silveira todo o encargo da educação da sobrinha.

Luiza, saindo assim de um berço tão envolvido em lutos, devia conservar toda a vida o cunho de tristeza, cuja impressão foi a primeira que recebeu, logo ao abrir os olhos á luz do dia. Criança ainda, passava horas inteiras meditando, e muitas vezes a foram achar sósinha, ajoelhada ante uma imagem da Virgem e banhando de lagrimas as mãos convulsamente cruzadas debaixo do rosto angustiado.

Pedro da Silveira ralhava-lhe então, mas a sobrinha tinha taes meiguices na voz e nos gestos que o tio esquecia bem depressa a reprehensão, e ia com ella passeiar ao campo, colher flôres ao jardim, ou sentar-se no meio de um pomar, onde a laranjeira, espalhando o perfume das suas floridas hastes, lhes formava docel, com os troncos carregados de flores de neve, abertos em leito do esmeraldas.

Foi no meio d'essas sombras perfumadas, e debaixo de viçosos caramanchões que Luiza começou a escutar attenta, debruçada sobre os joelhos de seu tio, primeiro os contos phantasticos da infancia, e depois as palavras cheias de eloquencia com que Pedro da Silveira lhe ensinava a decifrar em cada uma das bellezas que os rodeavam o nome d'Aquelle, ao pé de quem tudo é átomo, porque só elle é immenso. Foi tambem alli que a orphã aprendeu depois a perceber nos versos, que a ávida memoria decorava, o encanto mysterioso da harmonia e a feição sublime que a poesia empresta a todas as cousas, sobre que por algum tempo estende o reflexo dourado das suas diaphanas azas.

Luiza tinha dezoito annos e vivera ora no campo, ora em Lisboa, sempre cercada do luxo elegante, que só o bom gosto unido á riqueza sabe crear e manter. O espirito da orphã, desenvolvendo-se n'essa atmosphera suave e no meio das relações mundanas, tinha conservado o cunho um pouco triste da sua individualidade.

Não se julgue entretanto que Luiza tinha o sentimentalismo affectado das romanticas exaggeradas, que estudam ao espelho um caracter, quando pensam que lhes está bem.

A tristeza da sobrinha de Pedro da Silveira não tinha essa origem ridicula. Trouxera-a do berço com a elevação do caracter, com o coração feito para comprehender todos os nobres sentimentos, todas as sublimes virtudes, que o mundo tão a miude chama loucuras.

Almas e corações d'estes teem de confranger-se muitas vezes debaixo do tormentos horriveis.

Luiza tinha apenas visto dos bastidores o palco fatal, em que a sociedade vae representando todos os dias a sua eterna comedia. Mas essa experiencia tão curta, que para outras seria indifterente, tornara-se para a orphã um thema inexhaurivel de reflexões dolorosas. Acostumara-se a pensar nas longas horas da solidão, e o seu espirito, exaltado pela applicação demasiada, não lhe deixara um só instante de tréguas. Como todas as imaginações poeticas, Luiza tinha formado para si um mundo d'archanjos onde ella habitava nos momentos do extasi em que sentia a torra como que fugir-lhe debaixo dos pés. Esse mundo era em tudo differente do outro cm que a realidade a prendia. Luiza,quando se via cair das suas tão queridas alturas, sentia um frio mortal percorrer-lhe as veias. A pureza immaculada do seu caracter repugnava a maior parte dos meios que o mundo inventou para manter a tão desejada harmonia social. Custava-lhe encarar as mascaras permanentes, debaixo das quaes cila quasi adivinhava as contorsões horrendas do rosto verdadeiro.

Entretanto Luiza, quando apparecia n'um baile ou n'outra festa qualquer, não se apresentava com o aspecto melancholico, que se poderia receiar, se, a par de um prematuro desalento, ella não tivesse no espirito a delicadeza de sensitiva, que faz com que as almas elevadas fechem no seio o segredo das suas mais pungentes reflexões, temendo vel-as servir de alimento á voracidade insaciavel dos profanadores de tudo quanto é santo, e elles chamam ridiculo.

Quem visse Luiza no meio da animação das relações mundanas, nao adivinharia o abysmo que a sua imaginação tinha eavado entre ella e a alegria ficticia dos entes que lhe tumultuavam em torno.

E em verdade a donzella tão entregue parecia aos encantos da sociedade, que de muita desculpa era digno quem lhe não percebesse no rosto signaes de desagrado. Esta animação era algumas vezes sincera, porque não ha tristezas nem reflexões que envelheçam deveras a extrema mocidade; outras vozes era exigencia do seu caracter ativo. Luiza depois das festas, em que o riso lhe tinha volteado quasi incessantemente nos labios, passava muitas vezes horas immersa na profunda melancolia, que já na infancia era um dos distinctivos do seu caracter.

A donzella, até nos momentos de mais sincero contentamento, sentia no fundo d'alma a amargura d'ignotas lagrimas. Parecia-lhe que o seu ser estava dividido em duas partes bem distinctas; emquanto uma d'ellas provava o calix perfumado dos prazeres mundanos, a outra carpia-so sósinha no seu sacrario intimo.

Tal era Luiza no dia em que a vimos saltar ligeira para o bote e guial-o com mão experiente pelos meandros descriptos pela agua em meio do floridos campos.

Henrique d'Eglemont tinha vinte e dois annos, muita poesia no coração e muita descrença na cabeça. Pertencia ao numero dos que se fiam na experiencia dos homens, que escreveram os livros predilectos da moderna geração. Esta confiança perigosa tinha-lhe feito tomar, como verdades, sophismas, que podem entreter o espirito gasto de um autor celebre, mas que não podem senão confundir cerebros formados para receber em cheio a luz da verdadeira inspiração, e nunca os pesadelos cançados de intelligencias envoltos nos nevoeiros de um desalento de convenção. Henrique tinha portanto aprendido o nada de todos os sentimentos, antes de ter tempo para os abrigar no peito.

A gargalhada do scepticismo, saindo a miudo dos seus livros queridos, tinha chegado a ser para Henrique um som natural. A força do a ouvir, já não percebia como ella desafina horrivelmente no meio do cantico harmonioso, que incessantemente se eleva do seio da natureza. Taes livros calumniam a humanidade, porque seus autores nunca a estudaram senão atravez das suas paixões sem limites.

Deixem á mocidade as suas crenças, os seus enthusiasmos, e até as suas santas loucuras. Para lhe pouparem desenganos, offerecem-lhe o scepticismo; é como se para lhe evitar pequenas quedas a precipitassem n'um abysmo insondavel. Apoz as desillusões que a humanidade deixa no coração de quem longo tempo a contemplou, ainda póde haver logar para a indulgencia, e para a aspiração sublime, que, fazendo sair o homem da sua acanhada esphera, o eleva pelo sentimento até Deus; mas apoz longos annos de secpticismo, deliberado e voluntario, não póde haver senão gelos, indifferença e morte na alma, que, renunciando á fé, cortou para sempre o laço que a prendia á sua immaculada origem.

Felizmente Henrique era poeta, e, para o scepticismo lançar fundas raizes no seu coração, era preciso que d'alli expulsasse primeiro a fada dos eternos enthusiasmos, que n'elle se tinha vindo teimosamente aninhar.

Descrer por experiencia alheia, é mais difficil do que se pensa. Vae tudo bem emquanto se não passa da theoria, mas quando se chega á pratica mudam immediatamonte os horizontes. Onde o coração não está morto, ha sempre logar para uma aurora redemptora.

III

A conversação ia animada no bote. Depois dos primeiros momentos de silencio, todos começaram a falar, quasi como amigos que se tivessem visto na vespera.

-- Demora-se algum tempo em Cintra? perguntou Pedro da Silveira a d'Églemont.

-- Tenciono demorar-me, tanto quanto puder.

-- Meu bom amigo, disse o visconde de Lorval, saiba que o sr. d'Églemont veiu a Lisboa unicamente com o intento de seguir logo viagem para a ilha da Madeira. Agora viu Cintra, e já não ha quem o faça partir.

-- Ha de tambem gostar da Madeira, que é toda um viçoso jardim.

-- Depois dos medicos lhe terem dito que só o clima da nossa ilha poderia restabelecer-lhe a saude, não sei como ainda póde demorar-se antes de ir procurar aquella panacêa bemdita, disse o visconde.

-- Está doente, e foge do remedio! observou Luiza.

-- Não fujo, minha senhora. Aproveito o que se me apresentou primeiro. Custa-me ir mais longe quando me sinto tão bem aqui.

-- Ora, isto são projectos de touriste que mudam de um instante para o outro. Este então que, segundo me dizem, é dos mais infatigaveis. Creio que tem passado pelos principaes paizes da Europa, como borboleta por meio de flôres. Só em Cintra lhe aprouve suspender a peregrinação. Á tout seigneur tout honeur, observou o elegante Lorval.

-- Esperava que me desse noticia de eu já ter feito uma viagem á roda do globo. Tenho viajado um pouco, mas não tanto como lhe apraz dizer.

-- Nada de modestia. É cousa que fica pessimamente a um parisiense, atalhou rindo o visconde.

-- O nosso caro Lorval é sempre assim. Não quer ouvir a verdade, sob pretexto de que fica mal.

-- Vamos, sr. d'Églemont, vejo que elle tem razão quando o obriga a confessar as suas predilecções. Quem é tão reservado, merece que lhe revelem os segredos, disse Pedro da Silveira com o seu sorriso de ineffavel bondade.

-- Olhe que tambem é avareza, privar os outros de ouvir o que lhes póde dar satisfação, disse Luiza.

-- Falando das minhas viagens arrisco-me a ser muito massador, e o que eu posso dizer é tão pouco interessante que prefiro parecer avarento, porque essa accusação ouço-a com a consciencia tranquilla. Todos nós gostamos do papel de victimas... quando não passa de representação, já se sabe.

-- Minha senhora, não faça caso d'aquellas desculpas. É introducção obrigada. D'aqui a pouco começam a chover descripções.

-- Não fale assim; olhe que póde estragar tudo, disse a meia voz Pedro da Silveira, interrompendo o visconde.

-- É verdade, não sei como v. ex.ª se não tem resolvido a ir dar um passeio pela Europa com sua sobrinha. Os homens mais sabios da antiguidade tinham em grande apreço as viagens. Os gregos e os romanos julgavam-se muito pouco emquanto não saiam da sua terra, disse o sabio Lorval.

-- Um passeio pela Europa para me engrandecer a meus proprios olhos, parece-mo inutil, porque não só não conseguiria tal resultado, mas até me parece puerilidade desejal-o, respondeu Pedro da Silveira.

-- Pois sim; ainda que o dispense como instrucção, devia aprovoital-o como divertimento. Na sua situação não ir ao menos ver Paris, é realmente indesculpavel, disse o visconde, inclinando a cabeça para traz o pondo os olhos em alvo, emquanto falava do seu querido idolo, que só conhecia de nome.

-- Esse indesculpavel não está mau, mas apezar d'isso tenciono morrer sem ir a Paris. Tem muitas saudades da sua terra, sr. d'Églemont?

-- Não sou dos que mais soffrem de nostalgia; quando se vêem fóra de Paris.

-- Não se parece com os antigos egypcios, pelo que vejo, disse o visconde.

-- Vê bem, meu caro. Entretanto não costumo ir buscar tão longe os meus originaes.

-- Esteve em Londres?

-- Estive algum tempo e percorri depois quasi todos os tres reinos unidos.

-- Então viu os lagos e as montanhas da Escocia, disse Luiza, que, sem o parecer, seguia attenta a conversação.

-- Vi os lagos e as montanhas tão queridas de Walter Scott. O tempo em que alli estive, passou como um sonho para mim. Vivi-o cercado das formosas creações do poeta. Parecia-me ás vezes que escutava em cada gota d'agua e que via em cada pedra o segredo das suas inspirações.

-- São muito melancolicas aquellas paisagens, não é assim? perguntou ainda Luiza.

-- Têem uma agreste tristeza que nos domina. Contrastam perfeitamente com as risonhas campinas da Inglaterra. Offerecem-nos estas vistas de idyllio encantadoras na sua simplicidade caseira.

-- Oh! os idyllios! Foram os deuses da mocidade do meu tempo. Agora riem-se todos das ingenuidades pastoris. O que tem graça é a familia Benoiton e companhia, disse Pedro da Silveira com a sua parcialidade de velho.

-- A familia Benoiton não tem em Lisboa à propos nenhum. Em Paris é que foi verdadeiramente uma peça palpitante de actualidade, observou Lorval.

-- Palpitante de actualidade é irmos nós parar ás silvas, se não toma sentido nos remos, disso Luiza em tom de gracejo.

-- Peço mil vezes perdão a v. ex.ª, mas uma distracção tem desculpa, respondeu o visconde, corando um pouco e entoando para disfarce os primeiros compassos da formosissima barcarola das Vesperas Sicilianas.

-- Oh! a Italia; murmurou d'Églemont, estremecendo involuntariamente ao ouvir aquelles sons, que lhe recordavam a terra escolhida das artes.

-- A Italia é que eu talvez ainda vá um dia. Desejara que Luiza visse Roma, Napoles e Veneza.

-- Tem razão. Para a alma, não ha nada como a Italia. Todos os paizes têem bellezas, mas assim reunidas nenhum as possue. E magnifica a serie de quados, que se offerecem alli á nossa imaginação. Roma com os seus monumentos de epocas tão distinctas, com o Vaticano e o Colyseu, com S. Pedro e o Capitolio; Milão com as suas festas o luxo; Veneza com as suas recordações seductoras; Florença com as suas galerias e as memorias das suas guerras; Napoles com os seus vulcões e o seu povo tão indolente como artista; tudo isto aquecido pelo sol brilhante daquelle paiz de maravilhas e «debaixo do seu esplendido céo são cousas que, uma vez vistas, nunca mais esquecem a quem lhes soube sentir a irresistivel belleza.

-- Estudou muito a Italia, não é verdade? Enthusiasmou-se por ella? disse Luiza.

-- Sim, minha senhora; estudei-a com toda a devoção da minha alma. Quero-lhe como á minha mais intima crença, como á minha mais cara affeição.

-- Bem se vê que é um poeta que está falando, e de mais a mais um poeta moço, disse Pedro da Silveira.

-- Poeta! Quem não é poeta quando pensa na Italia depois de a ter visto e de a ter amado?!

-- Gosto d'isso. Não imagina o prazer que sinto ao ouvir-lhe esses enthusiasmos tão de rapaz. São raros agora, acudiu ainda o tio de Luiza.

-- Eu tambem gosto de o ouvir falar assim, meu caro d'Églemont. E a primeira vez que tal me acontece, desde que tenho a honra e a satisfação de o conhecer. Dou-lhe os parabens. Vejo que o seu spleen não é incuravel, disse o visconde deixando cair dos olhos a luneta, e esfregando os como quem desconfia da propria vista.

-- É intermittente, meu caro Lorval. Depois as recaidas é que são de temer, respondeu Henrique, em cuja physionomia começou outra vez a desenhar-se a expressão de tristeza um pouco ironica, que lhe era habitual.

-- Ora esqueça-se das recaídas e verá como ellas desapparecem. As rugas que os annos não fizeram, nunca sao tão fundas que não as possa apagar um sorriso do que julgamos ventura. Os gelos postiços derretem-se n'um nistante, quando menos se espera, e na sua edade não ha outros. Desculpe a franqueza, que é uma das regalias dos annos e da experiencia, concluiu Pedro da Silveira, fitando em Henrique os olhos brilhantes, cuja expressão tao bem se casava com o sorrir dos seus labios finos e intelligentes.

N'isto tocaram em terra e desembarcaram todos, ao som das queixas do visconde, que se lastimava ao ver o estado em que os remos lhe tinham deixado as mãos.

Depois partiram pela estrada. Os dois mancebos foram até ao logar em que a estrada da Varzea se liga á que vae para Cintra. Alli despediram-se do Pedro da Silveira e de Luiza com uma certa cordialidade, que só no campo existe.

Todos sabem como no campo as relações são fáceis, e como uma hora de conversação ao ar livre, debaixo de copadas sombras, predispõe melhor o animo para a mutua sympathia do que mezes e até annos de trato assiduo no meio das quatro paredes de uma sala.

Henrique d'Églemont foi até Cintra conversando e rindo; o visconde maravilhado não sabia a que attribuir a mudança do taciturno companheiro, transformado repentinamente n'um ouvinte amavel e attencioso.

É que o visconde, apezar de saber muitas cousas, ignorava quasi completamente essa sciencia das sciencias, que se funda no estudo do coração humano. Para elle o homem era uma creatura que vive, copiando e repetindo; e não um ente, que pensa e sente.

O visconde não percebia que Henrique o escutava com tanta attenção, porque elle falava de uma mulher formosa como poucas, e cujo aspecto, todo cheio de gracioso magnetismo, ia arrancar sympathia ao coração de quantos lhe sentiam o suave influxo.

Julio de Lorval conhecia Luiza quasi desde a infancia, e, cedendo ao prazer de ser escutado, nem sequer suspeitou a diplomacia do amigo, que nunca deixava passar a conversação do assumpto que o interessava, fazendo para o sustentar algumas perguntas nos momentos em que via perigo de transição. O viscondo deixava-se levar por este innocente artificio, e chegaram a Cintra, falando sempre da sobrinha de Pedro da Silveira.

Alli o visconde encontrou alguns amigos com quem d'Églemont o deixou, depois de lhe ter apertado a mão com uma effusão, que foi para Lorval mais um incidente inesperado d'aquelle dia de surprezas.

IV

O coração de Luiza até aos dezoito annos não tinha sentido senão uma affeição profunda e uma saudade não menos intensa. Pertencia a primeira a seu tio e a segunda ia prender as raizes no tumulo de seus paes. Não queremos dizer com isto que a donzella não pensava no amor: todas as mulheres pensam n'elle, mesmo as mais ingenuas, e estas talvez ainda mais que as outras. Só affirmamos que Luiza até então ainda não tinha baixado os olhos ante um olhar ardente o apaixonado, que lhe estivesse revelando amor; ainda não conhecia a commoção que a voz adorada do homem a quem se ama leva até ao intimo d'alma.

Como donzella eminentemente interessante pela formosura, pelo espirito e até pela riqueza (essa grande conquistadora de corações), Luiza tinha ouvido no intervallo de uma quadrilha, ou no meio de uma walsa, algumas dessas declarações, que são já como que o acompanhamento obrigado da musica, da luz e das flôres, que, unidas, formam a atmosphera enebriante do baile. Essas declarações, ligeiras como o fumo e mais inconsequentes do que elle, porque nem sequer provam a existencia de uma faisca, teem levado a vigilia ás palpebras formosas de muitas meninas romanticas; para Luiza eram apenas palavras, a que nenhum sentido se ligava. Os homens que lhe falavam de amor, estendendo-lhe a mao para a fazerem passeiar qualquer figura de uma contradança, pareciam-lhe automatos aperfeiçoados, a quem obrigavam a pronunciar umas formulas que o uso tornou sacramentaes em certas circumstancias e por isso mesmo completamente insignificantes. A sua mão nunca tremera sobre as luvas apertadas dos seus elegantes pares, e o seu rosto tranquillo nunca desmentira as phrases indifferentes com que punha remate a todas essas a afeições de instantes, que, mais infelizes ainda do que a rosa do poeta, nascem e morrem no espaço de uma dança.

Mas ha para todos um momento em que o coração acordando deita por terra as frias reflexões do espirito. N'esse momento ergue-se alguma coisa dentro do peito, que previne a razão do que o seu dominio está, se não findo, pelo menos suspenso.

As conveniencias, o impossivel, ou o orgulho podem ainda então esconder o amor aos olhos indifferentes dos profanos; mas assim mesmo apertado no coração, quando ninguem o veja, vê-o quem o sente; escondido ás vezes para todos, só para si mesmo não póde nunca ser mysterioso.

No dia seguinte ao da apparição dos dois mancebos começava Luiza com a consciencia um debate inteiramente novo para ambas.

Logo de manhã foi a donzella, como era seu costume, passeiar ao jardim, mas na sua attitue pausada e meditativa havia uma alteração, apenas sensivel á vista despreoccupada. Por momentos as feições animadas pareciam trair uma sensação intermediaria entre o prazer e a melancolia, mas pouco depois um leve signal do impaciencia dissipava os sonhos fugitivos, e lá vinha outra vez a nuvem negra pousar na fronte da donzella.

Estas transições repetiram-se muitas vezes, até que Luiza, deixando cair algumas flôres que apertava nas mãos, disse:

-- Que loucura, meu Deus, que loucura!

Luiza dizia isto com toda a sinceridade do seu coração, porque deveras não sabia dar outro nome ao quo desde a vespera a perturbava tão extraordinariamente. Dantes nos seus sonhos apparecia um vulto de homem, mas era indefinido, mysterioso, fracamente esboçado. Agora esse vulto apresentava-se com os gestos, o porto e as feições de Henrique d'Églemont. Luiza, a indifferente Luiza, que esquecia tão depressa todas as homenagens das salas, lembrava-se agora até da mais leve inflexão de voz com que o estrangeiro lhe tinha falado, e das suas palavras nem uma só deixava de vir echoar-lhe na memoria. A donzella julgava loucura o desvio da sua imaginação, que desde a vespera lhe não recordava senão um homem, a quem tinha visto uma só vez e a quem ella pensava ser de todo indifferente, porque, nas suas recapitulações do que se tinha passado, não descobria no procedimento escrupulosamente delicado de Henrique d'Églemont cousa alguma que podesso trair uma d'essas sympathias subitas, que interessam pela rara espontaneidade a pessoa que as inspira.

Tem grande influencia na vida das donzellas o momento em que ellas julgam encontrar o seu ideal no homem que melhor soube impressional-as. Ás vezes o ideal phantastico não se parece nada com o ideal positivo, mas a imaginação, de accordo com o sentimento, combina tudo, o não ha milagres de que não sejam capazes estes bemaventurados thaumaturgos.

Não acontecia outro tanto com Luiza. A scismadora menina admirava-se do ver como Henrique era similhante ao idolo dos seus mais intimos devaneios, e a sua alma enchia-se de espanto ao ver como esta similhança a preoccupava, ao ponto de lhe parecer que algum indissoluvel laço a prendia áquelle francez, que ella ainda ha dois dias não tinha visto, mas cuja imagem lhe dormia ha annos na phantasia.

Pedro da Silveira veio buscar a sobrinha ao jardim, e, sem lhe notar a alteração de espirito, foi-lhe falando de um passeio que deviam dar n'esse dia.

-- Mas talvez gostes mais de ir á Varzea, disse elle, percebendo a frieza com que Luiza lhe escutava os planos.

-- Oh meu tio, iremos onde quizer. E que hoje não me sinto com disposição para sair.

-- Estas doente, filha? disse elle com desassocegado aspecto.

-- Creio que não, socegue, mas deixe-me hoje ficar em casa.

-- Não; deves sair sempre um pouco. Iremos só até á Varzea, onde encontrarás as tuas amigas. É perto, e bem sabes como precisas de distracção.

-- Pois sim, meu tio, disse Luiza com leve sobresalto de alegria, que a si propria quizera esconder, tão desarrazoado o julgava.

-- A proposito da Varzea, tenho-me lembrado de quem hontem lá vimos de novo. Se vir hoje outra vez o visconde, hei de perguntar-lhe porque estando por aqui, nos não vem visitar. Aquelle rapaz tem cada vez mais desenvolvida a bossa do estrangeirismo. Agora de mais a mais não dispensa a companhia de um amigo francez, sem calembourg, já se sabe.

-- Meu tio não perdoa nada aos francezes, respondeu Luiza, fazendo um esforço para sorrir.

-- Perdoar, filha! Na minha edade perdoa-se tudo... Este tambem não tem culpa...E sympathico até... Emquanto lhe falava, parece-me que cheguei a esquecer-me da prevenção com que vejo todos os seus compatriotas.

-- Assim me pareceu tambem, e admirei-me de ver como lhe falava, disse Luiza.

-- Não lhe fiz senão justiça. Como os annos gastam tudo, meu Deus! murmurou Pedro da Silveira, como que perdido nas mesmas dolorosas recordações, a que o vimos já uma vez entregue.

Eram frequentes estas allusões ao passado, e Luiza, sem as estranhar, foi levando pouco a pouco a conversação para assumpto que menos as despertasse.

Naquelle dia já o visconde de Lorval o Henrique d Églemont estavam na Varzea, quando Pedro da Silveira alli chegou com a sobrinha. Os dois mancebos vieram comprimental-os e de então em diante nem um só dia se passou sem que elles se reunissem ao circulo escolhido de que D. Luiza de Menezes e seu tio eram o centro. Na Varzea, nas formosas quintas de Collares e nos pitorescos arrabaldes d'esta viçosa villa, era certo ver o visconde e o amigo tomarem parte nos passeios dirigidos pelo sempre amavel Pedro da Silveira.

Assim Henrique d'Églemont e Luiza viam-se todos os dias. Era portanto difficil para a donzella fugir ás preoccupações com que a vimos debater-se sem lhes poder vencer a influencia dominadora. Entretanto Henrique não lhe falava d'amor e nem sequer parecia querer dar-lhe a perceber esse sentimento. Se falando com ella deixava ás vezes adivinhar a sua bella alma de poeta, via se que logo depois uma amarga reflexão vinha outra vez trazer-lhe ás faces e aos labios o tom e o sorriso da ironica frieza.

Luiza quasi que tremia quando ás vezes elle recitava alguns versos dos poetas com quem mais tinha aprendido o seu scepticismo sem experiencia.

Henrique dizia esses versos com uma convicção tanto mais digna de lastima, quanto mais sincera elle a julgava.

Mas pouco a pouco a estes versos seguiram-se outros muito differentes; de vez em quando ouviam-n'o repetir algumas estrophes de Victor Hugo, em que a idéa de Deus apparece no incio dos sublimes accordes da lyra grandiosa do poeta gigante; depois até os meigos hymnos de Lamartine vieram a ser repetidos pelo pallido d'Églemont, e uma tarde emquanto Luiza trabalhava, o moço francez leu-lhe algumas das queixas maviosissimas que o poeta de Milly exhala, no soluçar d'alma que incessante resoa nos seus carmes inspirados.

Todas estas cousas com o correr do tempo não escaparam a Lorval. O que o visconde não podia perceber era a ingenuidade com que Henrique ia assim mudando as inclinações do seu espirito. D'Églemont conhecia perfeitamente que amava Luiza com um d'estes amores, que, mesmo mortos pelo tempo e pela desgraça, deixam para sempre no coração de quem os sentiu o sello indelevel de um sentimento, que de todo os dominou. Henrique era um dos poucos entes que se consubstanciam, para assim dizer, num affecto unico quando uma vez chegam a amar. Estes corações, quando se dão assim, querem antes ficar ignorados do que succumbir ante o desengano ou o esquecimento. Foi por isto que, vendo Luiza todos os dias, passou dois mezes sem lhe revelar, nem por uma palavra, nem por um olhar o ardente amor que ella lhe inspirara. Escondia-se a miudo para a ver melhor, para a poder contemplar na atmosphera luminosa de que o extasi da sua alma a cercava.

Luiza, por um instincto privativo das mulheres, percebia tudo atravez da extrema reserva do mancebo. Havia momentos em que tinha toda a certeza de ser amada e então sentia-se feliz como só em sonhos o fôra, e parecia-lhe que umas azas niveas, descendo dos cêos, lhe pousavam nos hombros e a elevavam toda resplandecente de luz para a etherea vastidão do espaço, onde lhe parecia divisar o vulto de Henrique, arrebatado como ella para longe da terra.

São bellos estes instantes, que separam o amor que ainda se esconde do amor que já se confessa. Luiza gozava-os com todo o enthusiasmo, com todo o fervor das suas dezoito primaveras.

Como dissemos, Julio de Lorval observava o amigo e não perdia nenhum symptoma, que lhe podesse servir a curiosidade. Entretanto a reserva de Henrique, quando a conversação poderia ir tocar em ponto tão melindroso, tinha-o até então obrigado a guardar silencio sobre tal assumpto.

Um dia de manha em Cintra houve um incidente que retardou a chegada dos cavallos em que os dois amigos costumavam montar, e Henrique, a quem a impaciencia devorava interiormente, propôz que se partisse a pé. O visconde condescendeu, sorrindo de um modo bastante duvidoso.

Quando passaram pela fonte dos Pis~ees, Lorval levou a mão á luneta, gesto seu predilecto quando tinha alguma cousa importante a dizer, e, batendo com a bengala na parede, coberta de insxripções commemorativas, disse para d'Eglemont com uma accentuação falsamente prazenteira.

-- Sempre sou muito descuidado! Ainda não lhe tinha mostrado isto. Estes souvenirs devem entretel-o agora muito; similia similibus, é a legenda homoeopathica. Não quero dizer com isto que trate de se curar. Uma vez que lhe agrada a doença, conserve-a.

-- Meu caro, sempre tive a desgraça de não entender enygmas. Falta ao meu espirito finura para tanto, respondeu d'Églemont com indifferença.

-- Já me não acontece outro tanto a mim. Adivinho até os enygmas que mais indecifraveis se consideram.

-- Dou-lhe os parabens, disse Henrique, sem quasi descerrar os labios.

-- E eu acceito-os com todo o gosto. Olhe, meu amigo, deixe-se de historias o seja franco.

-- Franco em quê?

-- Em quê?! Ainda m'o pergunta, quando lhe digo que adivinhei?!

-- Mas não mo disse o que adivinhou.

-- Ai! quer o caso claro como agua? Então ahi vae. Adivinhei que o meu sizudo e melancholico amigo é mais uma victima das settas que despedem os formosos olhos da sr.ª D. Luiza de Menezes.

-- Victima ou não, dipenso lastimas e peço-lhe até que nunca mais cite assim o nome d'essa senhora.

-- Não se zangue por Deus. Não quero provocar confidencias e muito menos lastimal-o. Sinto apenas que não tenha mais confiança em mim. Creia que não desejo ser seu rival. Esse tempo passou.

-- Que tempo? perguntou Henrique, com as faces ligeiramente afogueadas.

-- O tempo em que eu fazia a côrte á sr.ª D. Luiza de Menezes.

-- O sr. visconde?

-- Eu mesmo; mas não se inquiete, ella não m'a acceitou. Podia dizer-lhe o contrario; quero antes provar-lhe que não mereço a qualificação de fatuo que lhe estou lendo nos olhos. Digo-lhe mais; sabe que eu ainda sou primo d'essa senhora, conheço-a desde criança e não ha nada mais natural do que ter havido entre as nossas familias um projecto de alliança.

-- Se o que diz é uma advertencia, sr. visconde, peço-lhe que a defina em termos mais claros, disse com inexcedivel altivez Henrique d'Églemont.

-- Não é advertencia, nem eu tinha direito para a fazer. Isto são apenas confidencias que eu estou fazendo a uma pessoa, que não me julga digno de ouvir os seus segredos. Esses projectos do outro tempo passaram, como eu lhe disse, e para sempre, Até deixei de ir a casa de Pedro da Silveira, e já havia bastante tempo que não falava á sobrinha quando os encontramos ambos na Varzea.

-- Eu ignorava completamente isso tudo, disse Henrique, mostrando na voz que o animo lhe ia serenando um pouco.

-- Oh! não foi nada; eu não lhe tinha verdadeiramente amor. Era uma criancice e desappareceu como tal; mesmo porque a idéa era mais do meus paes do que minha. Eu acceitei-a como obrigação e quasi que nunca me dediquei a ella como devoto.

-- Mas porque foi que D. Luiza...?

-- Porque foi? Ora quem sabe nunca porque as mulheres querem, ou não querem uma cousa? Nem ellas mesmas o sabem. A verdade é que não me concedeu nunca um instante d'attenção. De-me outra vez a sua mão e fiquemos amigos, que é o que me importa agora.

-- Fiquemos, e até para o sermos melhor é preferivel que eu me resolva a ir para a semana dar o meu passeio até á Madeira, respondeu Henrique, apresentando-lhe a mão.

-- Até á Madeira! Deixe-se d'isso. Já está bom, e o que lhe eu disse não é nada. Quer então que minha prima se metta freira, só porque eu lhe fiz uma corte, que ella não acceitou?

-- O motivo é outro, e é impossivel que a sua delicadeza o não comprehenda.

-- Não se lembro de tal. Prohibo-lhe que se retire. Isso não tem sens commun, disse o visconde, que não era mau rapaz, apezar do sou amor pelos gallicismos.

Lorval não queria estorvar a affeição de Henrique; o que elle não podia era ver que alguem tinha a ousadia de lhe occultar qualquer cousa, vivendo na sua intimidade. O visconde detestava o segredo e a respeito de amores era feroz a sua perseguição, emquanto não sabia todo o fio da intriga em que elles se firmavam.

Henrique falou pouco em todo o resto do caminho e parecia embebido n'uma meditação de que havia de sair uma resolução qualquer. Estava mais do que nunca triste, e Luiza, notando-o interiormente, affligiu-se.

V

Havia algum tempo que a donzella já não tentava matar pela razão e sentimento a que ainda ás vezes chamava loucura; deixava-o crescer, sem pensar no que seriam os resultados; comprehendia que mais tarde ou mais cedo havia para tudo um desenlace; esperava-o receiosa mas firme no seu puro affecto. Na existencia da donzella havia recordações que lhe enchiam de magoa o coração, quando via o predominio que sobre elle tinha tomado o moço estrangeiro. Era uma historia de familia que Pedro da Silveira recordava ás vezes.

Luiza não se podia lembrar d'ella agora, sem sentir o sangue gelar-se-lhe nas veias. Este era o grande espinho que a dilacerava nos momentos em que ella se abandonava ao inebriante prazer do se sentir cercada das castas rosas do primeiro amor.

No dia em que o visconde do Lorval tinha feito as suas confidencias a d'Églemont, ficaram ambos para jantar em casa de Pedro da Silveira, e á noite, quando voltavam para Cintra, demoraram-se ainda a conversar com o velho na formosa estrada que liga esta villa á de Collares. Luiza ia conversando com uma sua amiga e Henrique, que em todo aquelle dia tinha estado muito silencioso, deixou os seus companheiros e, voltando para traz, veio para o lado de Luiza. Pouco depois, por um d'estes acasos que parecem estar sempre ao serviço dos namorados presentes, passados e futuros, a amiga com quem Luiza conversava foi falar a umas senhoras que vinham um pouco atraz, e os dois caminharam alguns instantes sós, um ao pé do outro.

A noite estava lindissima. O azul do céo era um véo diaphano, todo esmaltado de pallidas estrellas, cujo brilho parecia esmorecido pelo brilhante luar.

Na atmosphera tudo era silencio. Os troncos annosos das arvores, com as suas formas elegantes e caprichosas, desenhavam-se no ar sem que um sopro esse agitar-lhes as folhas. Gigantes e immoveis tinham deixado por algum tempo de ser a voz que geme no meio da solidão; eram apenas braços que se erguiam para o céo.

Era portanto uma noite luminosa, cheia de visões ethereas, de perfumes embriagantes, do cânticos celestes, uma d'estas noites em que se não vê um ponto negro no horizonte, em que a alma se dá toda a um sentimento, porque não ha receio que a assuste, nem desconfiança que a detenha. Está então tudo tão tranquillo, tão sereno, fala tudo tanto de Deus, e Deus é tão bom, tão clemente, tão piedoso para os que amam!

Luiza e Henrique caminhavam um ao pé do outro, como dissemos, e podiam falar sem que os ouvissem, porque já estavam distantes das pessoas que os seguiam e ainda longe de Pedro da Silveira e dos outros seus amigos que iam adiante. Passavam ambos por um formoso logar da estrada, em que as arvores, pendidas de um para outro lado, entrelaçavam os troncos mais altos e formavam uma aboboda verdejante, atravez da qual transparecia o azul do céo e a luz scintillante dos astros que o illuminavam. Luiza sentia uma commoção extraordinaria vibrar-lhe dentro do peito. Parecia-lhe que estava pisando uma relva luminosa, e via uma como que atmosphera de constellações a cercal-a de todos os lados. Henrique sentia fogo no coração, e de vez em quando comprimia a fronte, onde a luta de mil idéas differentes vinha depôr ora sombras de tristeza, ora reflexos de prazer.

Iam os dois já saindo da parte da estrada mais ensombrada pelas arvores; os raios da lua caiam sobre a bella fronte de Luiza. Henrique nunca vira a donzella tão formosa como n'aquelle instante e a allucinação, que desde o começo do passeio se lhe tinha apoderado do espirito, chegou a tal ponto que, sem poder já dissimular mais tempo, murmurou com voz fraca mas repassada de ternura:

-- Luiza.... diga-me, não sabe... não adivinhou nada ainda?...

-- Eu? ciciou a donzella, meia assustada, meia attraida pela expressão de profundo affecto, que se divisava na physionomia de Henrique.

-- Queria dizer-lho ha tantos dias, mas... tinha medo de quebrar o encanto... tinha medo de ver fugir a minha felicidade, e eu não sou feliz senão quando a vejo, senão quando a sinto, quando sei que não está longe de mim o meu anjo adorado. Amo-a Luiza, e é este o meu primeiro amor; dou-lhe todo o meu coração: não o recuse, porque seria matar-me.

-- Matal-o? interrompeu Luiza.

-- Sim; não julgue quo isto sejam protestos de poeta, são palavras de um homem que sentiu o céo dentro d'alma quando a viu, Luiza, quando todo se lhe entregou para sempre. Luiza, o meu nome é um nome honrado, quer acceital-o com a minha mão? Permitte-me que peça a sua a seu tio?

-- A meu tio... disse a donzella, que tinha escutado d'Églemont como se um sonho a estivesse enlevando. Finalmente pareceu acordar e fitando em Henrique os olhos cheios do luz continuou:

-- Falar a meu tio agora é... impossivel.

-- Impossivel, Luiza?! Odeia-me então? está certa de não poder vir um dia a ter-me algum amor?

-- Então pensa que só o meu odio poderia estorvar a nossa união? Nunca percebeu a prevenção que meu tio tem contra... os francezes? e a donzella pronunciava a custo estas palavras, como se com ellas se lhe estivesse despedaçando o coração.

-- É só isso, Luiza? Tenho reparado no que me diz, mas não sei se foi o meu amor que me fez notar que falando commigo o sr. Pedro da Silveira parecia esquecer-se inteiramente das suas prevenções.

-- É verdade que o não tenho visto tratar nenhum outro francez com tanto affecto; mas não é bastante. As prevenções de meu tio têem uma origem muito triste, e não julgo que seja facil vencel-as.

-- Então, Luiza, partirei ámanhã para Lisboa e dahi sairei para sempre do Portugal, disso o mancebo, querendo disfarçar debaixo de uma expressão de frieza o sombrio desespero que o torturava.

-- Partir porquê? disse Luiza, animando-se subitamente e envolvendo outra vez Henrique na formosa chamma dos seus olhos negros.

-- Luiza, não me quero illudir. Vejo que estive sonhando; deixe-me acordar. Diz que não póde ser minha esposa; que faço eu então aqui?

-- Mas quem lhe diz quo o futuro não será melhor? Meu tio póde mudar e conhecer que a experiencia de uma vez não deve servir para sempre.

-- Mas o que foi essa experiencia? o que é esse mysterio?

-- Ha de sabel-o talvez um dia. E uma historia de familia, e perdoe-me dizer-lhe que ainda é cedo para lh'a contar.

-- Tambem eu teria alguma cousa a revelar-lhe, se promettesse vir a ser minha esposa. Oh! não é nada para sustos, continuou d'Églemont, percebendo em Luiza um movimento de surpreza. É apenas uma recommendaçâo de minha mãe, que ella me fez sem prever o quo acontece, e do que sei que desistirá logo que o saiba. Póde crer-me.

-- E creio agora.

-- Pois devia crer sempre, Luiza, disse Henrique com um sorriso a adejar-lhe nos labios, como alvorada de ventura.

E o mancebo era feliz. Luiza, se não lhe respondia ás palavras d'amor, escutava-as, e ser escutado é grande cousa em tudo, mas em amor é grandissimo adiantamento. De mais a mais a donzella, na innocencia do seu affecto, deixara romper atravez da reserva uma expansão, que lhe traía os sentimentos intimos quando aconselhou a Henrique que ficasse.

Iam chegando ao grupo em que estava Pedro da Silveira e já se ouvia o visconde, que chamava pelo amigo, empregando quantas interjeições a lingua franceza contém.

-- Então, Luiza, devo partir amanhã?

-- Não, disse a donzella tão baixinho que só ouvidos de namorado a poderiam ouvir.

-- Promette-me que...

-- Hoje ainda não. Foi uma mudança tão repentina!

-- Tem razão, Luiza. Fico. Hei de obedecer-lhe em tudo. E um anjo, e aos anjos não é preciso pedir que sejam bons.

Luiza ficou silenciosa e os dois chegaram pouco depois ao pé das pessoas que os estavam esperando.

O visconde de Lorval deu o braço a Henrique e despedindo-se do todos disse:

-- Isto só á viva força, meus caros senhores. Estão em Cintra á nossa espera e não ha quem leve d'aqui este homem, se não fôr assim. E peior do que senhoras a despedir-se. Sr.ª D. Luiza, v. ex.ª não trouxe capuchon, e vae constipar-se. Meu caro sr. Silveira, leve-a depressa para casa, emquanto eu conduzo o meu prizioneiro. Tenho a honra de os comprimentar.

E o falador visconde depois de uma saudação profunda, montou a cavallo e partiu a galope. Henrique seguiu-o e bem depressa desapparcceram na volta da estrada.

VI

N'aquella noite Pedro da Silveira falou pouco.

Havia dias que serias reflexões lhe preoccupavam o espirito. Sentado n'uma ampla cadeira de braços mal escutava a sobrinha, que lhe estava lendo os jornaes chegados pelo correio. As palavras que ouvimos proferir ao visconde de Lorval tinham esclarecido um ponto que na mente do velho ainda até alli estava duvidoso. Via-se que Henrique só estava bem em Collares. O visconde tambem alli vinha todos os dias, mas este não se esquecia dw tudo o mais, como Henrique; lembrava-se sempre dos jantares, das partidas, que o esperavam em Cintra, e voltava para lá, ainda que o amigo o não acompanhasse.

Percebia-se que Henrique, entrando na sociedade de Pedro da Silveira, não fazia nem a sombra do um sacrificio, porque fóra della não havia cousa alguma que o prendesse, emquanto que o visconde nem sempre podia encobrir um sentimento de condescendencia, ás vezes bem contrafeita. A isto chamaria o elegante Julio de Lorval uma nuance, mas os cambiantes são sufficientes para conhecer a diferença que distingue o homem namorado, d'aquelle que o não está.

Pedro da Silveira tinha estudado com o seu zelo de homem cheio de experiencia o caracter de Henrique, e chegara a convencer-se de que elle era deveras estimavel. Para vir a esta conclusão tinha-lhe sido preciso calcar prejuizos arraigadissimos, mas o tio de Luiza era um dos poucos homens para quem não havia impossiveis quando se tratava de fazer justiça. Longe e muito longe das paixões da mocidade, lembrava-se entretanto da sua perigosa influencia. Adivinhava o affecto de Henrique, e temia que Luiza lho correspondesse. Confiava plenamento no juizo da sobrinha, e tinha certeza de que ella nunca lhe desobedeceria, mas isto não era bastante, porque a não queria ver infeliz, e, sabendo que sem elle o permittir ninguem obteria a mão da donzella, conhecia muito bem no mesmo tempo que á sua autoridade podia fugir o coração, pois que não está na nossa mão dal-o ou quital-o, como diz D. Magdalena no admiravel drama de Garrett.

Pedro da Silveira pensava em tudo isto e a sua sollicitude não desprezava os menores symptomas.

Não tinha nenhum facto positivo que o levasse a desapprovar inteiramente a inclinação, que via augmentar todos os dias, mas quando repetia isto nas suas reflexões vinham mil duvidas assaltar-lhe o espirito. Henrique falava muito pouco da sua familia e até da sua patria. Só uma ou duas vezes o ouviram falar da mãe, e perguntando-lho alguem um dia só ainda tinha pae, respondeu que elle morrera, e havia na sua resposta um tom de tão amarga tristeza que ninguem mais lhe falou em tal.

O visconde de Lorval, apezar de sua leviandade, tinha um fundo de sensatez em que se podia confiar, e mais de uma vez o elegante fidalgo tinha assegurado a Pedro da Silveira que o seu amigo lhe tinha sido apresentado, com todas as recommendações possiveis, por um diplomata francez digno de todo o credito e estima pelo seu caracter e pela sua posição social.

Entretanto o tio do Luiza não estava tranquillo.

E era uma puerilidade o que mais o atormentava, mas uma puerilidade que para elle tinha importancia. Quando no correr da conversação uma palavra vinha ferir a susceptibilidade do moço francez, ou quando a ironia da represalia lhe tremia nos labios desdenhosos, Henrique tinha na expressão do olhar o que quer que fosse de fria altivez. Pedro da Silveira surprehendeu um dia esta expressão glacial e rigida como o marmore, e pareceu-lhe que já tinha visto aquelle mesmo olhar e aquelle mesmo sorriso n'um outro rosto; affigurou-se-lhe que via diante de si o retrato vivo de um homem, que representara na sua familia um papel funesto. Esta similhança, sensivel nos fugitivos momentos de exaltação, desapparecia quasi inteiramente quando d'Églemont se entregava outra vez ao caracter essencialmente sonhador da sua indole de poeta. Pedro da Silveira não esquecia entretanto o relampago, que lhe viera avivar recordações pungentes, e em vão lutava comsigo mesmo para se livrar d'essa idéa que o perseguia cada vez com mais vigor.

Entretanto o velho não dizia nada á sobrinha; lembrava-se de que não é bom acordar o leão que dorme, e conhecia que, mesmo nos melhores animos, uma prematura opposição póde fazer de germens ainda ignorados paixões indomaveis. Este constrangimento influiu finalmente no caracter tão affectuoso do velho e as praticas familiares, que são o encanto da vida domestica, eram cada dia mais curtas e menos expansivas, porque tanto Luiza como seu tio, entregues a teimosas preoccupações, não viam já senão segredo e desconfiança.

Na noite em que Henrique falou pela primeira vez a Luiza no seu amor, esta ao fazer, como dissemos, a leitura habitual, esquecia-se a miudo do que estava lendo, e já no fim não sabia a que santos rogar que a livrassem de distracções tão inconvenientes em similhante momento. Pedro da Silveira acabou-lhe o supplicio, dizendo com um tom de austeridade inteiramento novo para ella:

-- Escusa a menina de se incommodar mais. Póde deixar os jornaes e entreter-se com outra cousa, que menos a enfade.

-- Que lhe fiz eu, meu tio?... perdoe-me, disse a donzella, caindo de joelhos ao pé do tio, e escondendo as lagrimas que lhe saltavam dos olhos.

Para Luiza, amimada desde a infancia, as palavras de Pedro da Silveira foram um golpe inesperado, que não podia deixar de ferir-lhe o coração.

-- Não foi nada, filha, respondeu o velho levantando-a nos braços. Não chores, Luiza. São impaciencias da minha edade; não te afflijas.

E Luiza, sem perceber o que assim transtornava o caracter de seu tio, fazia-lhe mil perguntas, a que elle respondia tranquillisando-a. Finalmente serenou a tormenta e ambos ficaram ainda conversando por algum tempo, mas ao despedirem-se cada um d'elles estava descontente comsigo; o tio porque não aproveitara a occasião para falar a Luiza nas duvidas e nos receios que o perseguiam, a sobrinha porque deixara tambem fugir um ensejo de confessar a influencia exercida no seu coração pelo apparecimento de Henrique d'Églemont.

Ambos preferiram calar-se. A continuação mostrará se este silencio lhes foi ou não favoravel.

VII

Nos dias seguintes d'Églomont continuou a vir passeiar até Collares, umas vezes com o visconde e outras vezes só.

Entre o amor que se sente, mas que ainda se esconde, e o amor confessado, ha uma grande differença. Separa-os a distancia que separa a desconfiança da certeza, a supposição da verdade. O amor correspondido vem a ser depois da confissão um bello dia depois de uma formosa aurora. Quando esta transição se realisa, trocam-se muitas vezes os papeis dos namorados. Foi assim que Luiza, dantes risonha e quasi sempre expansiva em presença de Henrique, sentiu de repente uma invencivel timidez cheia de suave melancolia apoderar-se do seu espirito quando via d'Églemont. Este pelo contrario ia deixando pouco a pouco os recatos exaggerados, e já não havia sombra de tristeza que lhe cortasse a palavra enthusiasta quando, na presença da mulher, que amava, se deixava levar pela inspiração.

Não faltou quem notasse estas mudanças. Eram ellas sensiveis em demasia para escaparem aos olhos de lynce, que em toda a parte espreitam qualquer inclinação. Só nos desertos do Novo Mundo poderá haver amor que não desperte a intriga, ou pelo menos a curiosidade, e ambas são mais ou menos invejosas. E isto é verdade em todas as classes, porque o coração humano póde ser tão pequeno nas mais altas, como nas infimas regiões sociaes. A educação póde pulil-o, mas difficilmente o engrandece, se a intelligencia o não illumina, se a luz que vem de cima lhe não descobre os escaninhos tenebrosos.

Pedro da Silveira via e ouvia tudo, mas este homem tão forte contra as provações da existencia quando a cruz lhe pertencia toda, hesitava agora, porque não era o seu coração que devia ferir; era o da sobrinha, que elle já sentia prezo, quem sabe se para sempre, pelo estrangeiro desconhecido.

Uma noite estavam muitas pessoas reunidas em casa de Pedro da Silveira. Luiza acabava de cantar com a sua voz cheia de melancolico affecto uma aria do mavioso Bellini. O maestro amante tinha sido magnificamente interpretado pela donzella, então entregue ao delicioso arrulhar do pombas, que nas almas candidas acompanha a primeira alvorada do amor. Applausos prolongados seguiram a ultima nota da aria, e a donzella, para se furtar a tanto enthusiasmo, foi, sob pretexto de tomar ar, encostar-se a uma janella. Felizmente uma das senhoras presentes começou a tocar piano, e todos, voltando a attenção para a pianista, deixaram a donzella só. A noite estava formosissima e a lua, dando em cheio no rosto de Luiza, augmentava-lhe a grave formosura, realçada pela distincção do seu gesto cheio do nobreza. Henrique d'Églemont, chamado por Pedro da Silveira para acalmara tempestade levantada por dois ou tres parceiros a proposito de whist, pôde emfim ver-se livre da tarefa espinhosa; e deixando outra vez todos meio tranquillos á roda da mesa de jogo, voltou para a sala onde tinha ouvido cantar a donzella; já não a viu e, sem procurar um logar entre os que de pé rodeavam o piano, achou-se ao pé da janella, que dava entrada para a varanda em que vimos Luiza. Henrique adiantando-se um pouco com o seguro presentimento dos namorados, viu-a inclinada sobre o parapeito e toda banhada de luz, como uma figura celeste. Esqueceu-se de que o poderiam ver e foi pé ante pé collocar-se ao lado de Luiza. Era a segunda vez que um acaso os isolava assim.

A donzella vendo-o recuou surprehendida e ia talvez retirar-se, mas Henrique olhou para ella com tão ineffavel ternura e supplica tão irresistivel que Luiza ficou. Ambos permaneceram silenciosos e n'estes casos para ganhar terreno não ha nada que eguale um silencio. Quasi todas as confissões de amor são precedidas por um silencio mais ou menos extenso. O silencio é a verdadeira eloquencia dos namorados. O amor que fala muito não é amor, é pretexto para discursos.

Henrique pegou na mão do Luiza, ella ia retiral-a, mas o mesmo olhar que a tinha demorado alli veiu quebrar-lhe de novo o animo com o seu immenso magnetismo.

D'Églemont nunca se tinha sentido tão feliz, nunca pensara que na terra se podia estar tão perto do céo. Luiza, essa nem ha palavras que exprimam o extase da sua alma e a commoção indefinivel que de toda ella se apoderou.

-- Minha querida, disse emfim o mancebo, minha querida Luiza! Já não me foges, não?

-- Não, Henrique, respondeu ella toda tremula.

-- Porque me não chamas teu Henrique, como eu te chamo minha Luiza? Porque tu és minha; agora já não pódes recusar-me a tua mão; foste tu mesma que m'a deste, e d'Églemont beijava os niveos dedos, que em vão procuravam fugir-lhe.

-- Henrique, meu Henrique, eu ainda não disse sim, respondia a donzella em tom do meiga ameaça.

-- Que me importa que o não dissesses, se eu o ouvi sem tu o dizeres. Anjo dos meus amores! Se tornas a sorrir com esse modo de incredula, castigo-te, repetindo mil vezes que te amo, para te obrigar a dizer que acreditas.

-- Não duvido, não, meu Henrique. Sé tenho medo de uma cousa, e é de que Deus me castigue por eu ter fé tão cega no que me dizes.

-- Medo, minha Luiza, de seres boa! Tens então medo de me ter amor, e é por isso que m'o não dizes?

-- Não é medo, não sei o que é, nem eu mesma me entendo; mas deixemos isto. Queres que eu diga que te amo? Não o sabes já?

-- Dize sempre. Custa tanto a crer na extrema felicidade! Amas-me?

-- Amo-te. Olha, parece-me que todo o meu ser é amor e que todo elle só vive para ti.

-- É assim que te amo tambem. Longe de ti não ha no mundo nada que valha para mim a pena da existencia. O meu sonho, o meu pensamento, a minha vida toda és tu, meu amor, minha esperança, e Henrique tornou outra vez a apertar nas suas a mão da donzella.

Os dois ainda ficaram trocando em voz baixa protestos e confidencias. De tudo se lembravam, tudo explicavam desde que a doce união de suas almas tinha começado para ambos.

Havia instantes que o piano já se não ouvia, e logo depois o ruido das conversações animadas e passos que se avisinhavam da janella vieram chamar Henrique e Luiza ás exigencias da inevitavel realidade.

D'Églemont voltou para a sala e a sobrinha do Pedro da Silveira entrou para um pequeno gabinete, então solitario e cuja porta envidraçada abria tambem para a varanda, em que se passou o que se acaba de ler.

Trez ou quatro dias depois recebeu Pedro da Silveira convite para um baile que se dava em Cintra, e onde devia reunir-se a élite da sociedade, como dizia o bom Lorval. Luiza foi áquelle baile, mas quando entrou na sala pareceu-lhe que uma nuvem negra, levantando-se ante os seus olhos, embaciava os espelhos, escurecia o brilho dos lustres, e murchava o viço das flôres. Pouco a pouco voltou a si, e as amigas riram do que ellas chamaram um ataque de nervos disfarçado.

Ia já o baile em meio, e Luiza walsava com d'Églemont. Ambos repousavam um instante, quando de uma das salas proximas saiu um mancebo de extremada elegancia, e que pouco antes voltara de Paris, onde se tinha demorado alguns annos.

Chegando perto de d'Églemont, o elegante recuou cheio de surpreza, e dirigindo-se a Henrique, disse:

-- Por aqui, sr. conde de Berville?!

Ao ouvir este nome, Luiza largou o braço do seu par e caiu sem sentidos aos pés do homem que o tinha pronunciado. Pedro da Silveira tinha ouvido tambem, e, pallido como um defunto, levantou a sobrinha nos braços, repelliu com um gesto de suprema autoridade d Églemont, que fóra do si corria tambem a amparal-a, e levou-a para um gabinete distante.

Um quarto d'hora depois, Luiza, branca e pendida como o lyrio batido pela tempestade, entrava na carruagem, em que poucas horas antes tinha vindo, cheia do felicidade e de esperança. Pedro da Silveira consternado não disse uma palavra á sobrinha.

Quando a carruagem partiu, Luiza, apertando as mãos de seu tio, encostou-lhe ao peito a fronte ardente e deixou proromper a sua dôr em torrentes de lagrimas e em palavras incoherentes, cortadas pelos soluços.

Porque ora isto tudo e porque um nome e um titulo mudavam assim em lagrimas de amargura os sorrisos da festa?

É que esse nome e esse titulo resumiam uma historia fatal. Para a contarmos temos de voltar uns poucos d'annos atraz.

VIII

D. Pedro IV acabava do entrar em Lisboa. Entre os militares que lhe tinham ajudado a recuperar o throno da filha, havia alguns estrangeiros.

Um d'elles era o conde Luciano de Berville, fidalgo francez de muito boa linhagem, mas de poucos haveres, graças á bossa da estravagancia, hereditaria na sua familia, como a nobreza, e desenvolvida até ao maior grau na pessoa de Luciano.

O conde de Berville tinha trinta e cinco annos.

Era um homem alto e de porte elegantemente marcial. Ninguem sabia levar com mais natural eleganxia a mão aos cópos da espada, e ninguem ao mesmo tempo sabia acariciar o farto bigode com gesto mais singularmente gracioso. Os seus olhos de um verde muito escuro tinham os furores e as ternuras felinas do tigre. As mãos d'aquelle homem quando se estendessem para acariciar deviam ferir como garras. Luciano tinha as feições fortemente accentuadas; tudo no sou rosto era varonil, desde a fronte espaçosa, onde brilhava a intelligencia, até á bocca bem modelada, onde se via sempre a expressão de mais que altivo, quasi cynico desdem. Tinha o conde fartos cabellos castanhos, tez pallida o rosto comprido. Era um homem incontestavelmente bello e sabia-o talvez demais. Não quer isto dizer entretanto que o conde tivesse comsigo as attenções exaggeradas da maior parte dos dandys. Luciano desprezava a affectação e em todo o seu porte não havia senão muita elegancia e nobreza natural.

Entretanto é lastima, mas devemos confessal-o: aquelle bello involucro continha um ente pessimo.

O conde de Berville tinha todos os vicios, e seria difficil, senão de todo impossivel, perceber-lhe alguma virtude. Era um homem sem crenças, sem principios, sem freio algum moral. Para elle a vida era um banquete em que cada um devia gozar o mais que podesse, sem se importar nem com os meios, nem com as victimas. A taça do prazer, queria elle esgotal-a até ao fim. Para a não largar das mãos deixar-se-ía até salpicar de sangue e de lodo. O conde de Berville era um romano do tempo das saturnaes, ou um atheniense das epocas em que a febre dos deleites sensuaes offuscou a gloria do povo de Pericles. A julgar pelas apparencias, a orgia era o elemento do conde de Berville. Entretanto aquelle homem satanico a tudo se amoldava, quando só com o disfarce podia obter a satisfação de algum dos seus imperiosos caprichos. Não devemos perder isto do vista em todo o curso da seguinte historia.

Já tinham dado havia muito Ave-Marias, e o conde passeiava pelas ruas de Lisboa. Ia sem destino certo. No seu rosto lia-se o enfado; passava distraído, sem que nenhuma cousa lhe attraisse o olhar. Caminhando assim, chegou quasi á noite ao pé de uma das mais vastas egrejas da capital. Alguns vultos de mulher, envoltos em trajes escuros, despertaram a attenção de Berville. Elle tinha ainda tido poucas occasiães de ver as senhoras portuguezas, e não quiz desperdiçar a que alli se lhe offerecia. Entrou apoz os vultos que se dirigiam para o templo, onde os chamava uma solemnidade, religiosa. O conde foi encostar-se a um dos altares lateraes, e, acerando cada vez mais o seu desdenhoso sorriso, começou a mirar friamente todos os rostos do mulher alli reunidos. Os seus olhos cançados iam já dando o caso por perdido, quando Luciano divisou muito perto de si duas donzellas ajoelhadas e formosas como o esplendido arrebol da aurora. O conde encarou-as com mais demora e o seu olhar glacial fulgurou subitamente com a ardencia de uma chama vivaz.

As duas donzellas não se pareciam. Nem sequer havia entre ellas esse ar de familia, que logo deixa advinhar irmãs nas que menos similhanças tem umas com as outras. Uma d'ellas era branca e loura como as filhas do norte, a outra, a mais nova, tinha a pallidez morena e as madeixas negras das andaluzas. A mais velha era bella como uma visão etherea e os seus olhos azues fitps na cruz tinham um luzir de estrella, que parecia pertencer ao céo. A sua belleza era das que seduzem poetas; não tinha portanto materialismo bastante para seduzir o conde.

Tambem não foi esta que lhe prendeu mais o olhar ousado; era a outra que elle contemplava, formando já comsigo os planos de seducção.

A gentil morena tinha o rosto bem feito e as feiçães delicadas: os seus labios, um pouco grossos, tinham extrema graça e louçania; antevia-se n'elles um sorriso divino, realçado ainda pela frescura scintiliante de duas fieiras de perolas; os olhos negros da donzella traíam no inquieto fulgor abysmos de luz e de paixão; as sobrancelhas eram duas curvas finissimas, e os seus bastos cabellos pretos verdadeiramento bellos; debaixo da mantilha da donzella adivinhava-se a belleza esculptural das fórmas: era pois a sua formosura completa tanto quanto possivel. Tinha o original d'este retrato pouco menos de dezoito annos. A sua companheira, de compleição mais debil, tinha um genero de belleza mais grave e contava já vinte o dois annos.

A morena chamava-se Mathilde de Menezes, a loura era Martha da Silveira. Ambas estavam com uma senhora de perto de cincoenta annos e muito parecida com Mathilde; era sua mãe, a mulher de D. Lopo de Menezes, fidalgo realista.

O condo do Berville ignorava ainda tudo isto; os seus olhos pareciam devorar a esplendida belleza da nobre donzella. Esta deixava correr distraída as contas do seu rozario de marfim. Mathilde estava alli do joelhos, mas o seu espirito divagava fóra do recinto sagrado; lembrava-se da figura esbelta de um homem que ella, escondida por detraz das cortinas da sua janella, tinha visto passar, montado em soberbo ginete. Aquelle homem, vendo mover o cortinado, tinha-a encarado por duas ou tres vezes, e tanto foi bastante para que Mathilde nunca mais podesse esquecer a expressão singularmente dominadora da sua physionomia. A donzella nunca até esse momento tinha visto rosto, que assim tão profundamento se lhe gravasse na memoria. A belleza do desconhecido não era vulgar; era a potente belleza da estatuaria unida a toda a expressão que unia alma d'artista sabe communicar ao marmore.

Mathilde estava debaixo do pezo dos pensamentos que a preoccupavam sem cessar quando a mão baten-lhe no hombro deu o signal para se retirarem. O conde de Berville percebeu-o e foi collocar-se á saída ao pé do outro altar. Quando Mathilde passou ao pé d'elle a luz de uma alampada suspensa alli perto illuminou a formosa cabeça do militar, e a donzella vendo-a sentiu o sangue refluir-lhe ao coração: era aquelle o homem que ella tinha visto já uma vez, era aquelle o que havia dias, lhe não saía da imaginação. Este encontro em tal logar e hora, e a expressão apaixonada com que Luciano a fitava acabaram de enlouquecer Mathilde. O conde, experimentado n'estas cousas como poucos, tinha percebido tudo, e mal sabia ainda a pobre donzella a rêde de perigos que desde esse momento começava a envolvel-a.

Mathilde era uma d'estas almas de fogo para quem todos os sacrifícios são faceis, quando as domina a paixão. D'estas mulheres faz ás vezes a religião de Christo martyres e santas, porque foi ella quem inventou o arrependimento e as Magdalenas. Na existencia de Mathilde esta ultima phase ainda estava longe, porque a donzella começava apenas a sentir as primeiras commoções do amor.

IX

O conde do Berville seguiu a alguma distancia as tres senhoras, até vel-as entrar n'uma casa de boa apparencia; atravez de duas ou tres janellas d'esta casa via-se uma sala illuminada e o conde fitava-as com uma impaciencia quasi febril. Daria muito para estar n'aquella casa e torturava a imaginação para ver como o conseguiria. A lua estendia já pela cidade os seus raios prateados, eram nove horas e o conde ia retirar-se quando viu dobrar a esquina um vulto, que apressado se dirigia para a casa attentamente examinada pelo francez.

A noite estava muito clara e o conde, reconhecendo o homem que alli acabava de apparecer, tolheu-lhe o passo por um habil manejo, e começou a falar-lhe do seguinte modo:

-- Sr. Gonçalo Pereira, mal sabe o gosto que me dá com a sua presença, e o conde segurava familiarmente o braço do recem-chegado.

-- Eu... v. ex.ª... em que lhe posso ser util... Valha-me Deus... e o pobre homem tentava sorrateiramente ver-se livre da mão que o prendia.

-- Não se assuste. Diga-me antes aonde ia com tanta pressa.

-- Eu, sr. conde... ia... ia... e a voz sumia-se-lhe n'um tremor invencivel.

-- Deixemo-nos de historias; nada de reticencias. Aonde ia, sr. Gonçalo Pereira?

-- Mas v. ex.ª sabe... eu sou um pobre homem, que não faço mal a ninguem; não me perca pelo amor de Deus.

-- Nem pelo amor do... e o conde interrompeu a imprecação, sacudindo com força o pobre medroso. Vamos, continuou o militar, não me apure demais a paciencia. O senhor ia entrar n'esta casa fronteira, não é verdade?

-- Ia... mas...

-- Nada de mas... Quem móra alli? Não me minta, porque ámanhã saberei tudo o depois grite por Santo Antonio a ver se elle lhe acode.

-- Eu ia alli para alguns negocios... urgentes... umas occupações, não era para fins politicos, creia v. ex.ª. A minha lealdado á causa triumphante é notoria.

-- Dispensamos agora protestos. Responda ao que lhe pergunto. Quem móra n'aquella casa? e nos olhos do conde havia a mais imperiosa expressão.

-- Aquella casa é a casa... do sr. D. Lopo de Menezes.

-- Ah! um velho fidalgo do partido miguelista.

-- Dizem isso, mas v. ex.ª bem sabe que eu...

-- Está bem, bem sei quem é o sr. Gonçalo Pereira, não se canse a explicar-m'o. Esse sr. D. Lopo tem duas filhas?

-- Duas filhas, não; tem uma só.

-- Então quem é a outra?

-- Qual outra?

-- Pois não moram alli duas meninas, uma trigueira e uma loura?

-- Queira v. ex.ª perdoar. Alli móra só a trigueira, a sr.ª D. Mathilde; a loura em que fala ha de ser uma amiga, que a acompanha ás vezes... ha de ser a noiva do sr. D. Luiz, o filho mais velho do sr. D. Lopo.

-- Agora são esclarecimentos de mais. Não me importo com a loura para nada, disse o conde sempre impaciente.

-- Com que então importa-se mais com a moreninha, hum! disse como que para comsigo Gonçalo Pereira, mais animado desde que ia percebendo o fio da intriga.

-- Nada de graças. O sr. Gonçalo Pereira é recebido n'aquella casa, fala á sr.ª D. Mathilde?

-- Tenho essa honra quasi todos os dias, disse o interrogado, empertigando-se.

-- Ah! agora já é honra. Olhe que ainda está falando com um partidario do sr. D. Pedro IV.

-- Eu não dizia isso assim; mas é que... tratando-se de uma senhora.

-- Pois sim, sim. Vá fazer a sua visita. Amanhã hei de procural-o em casa. Preciso falar-lhe em cousas d'importancia, e não é na rua que lh'as posso dizer.

-- Quando v. ex.ª quizer. Estou sempre á sua disposição, sr. conde, e Gonçalo Pereira, cumprimentando quasi até ao chão, entrou em casa de D. Lopo de Menezes, contente por escapar, ainda que por pouco tempo, á presença inquisitorial do conde do Berville.

A consciencia de Gonçalo Pereira não era das mais limpidas, como se terá adivinhado ao vel-o tremer como varas verdes ante a perspectiva de um interrogatorio serio. Este homem pertencia ao typo vulgarissimo dos que pescam nas aguas revoltas de todas as commoções politicas; são sempre do partido do vencedor e nunca ninguém os vê ao lado dos vencidos senão na vespera da luta. No dia seguinte são triumphantes, por mais estranha que lhes seja a parcialidade que obteve a victoria. A elasticidade das opiniões de Gonçalo Pereira não se reduzia só á politica; abraçava todos os mais principios que regem a vida humana. Gonçalo dava sempre razão ao mais forte, sem sacrificar as proprias convicções, porque as não tinha. Parasita social, ninguem poderia dizer ao certo de que elle vivia. Era recebido em casa de illustres fidalgos, e nenhum d'elles poderia explicar muito bem porque lhe mandava abrir a porta pelos seus lacaios.

Gonçalo Pereira com a sua consciencia de molas tinha varios prestimos que não eram de todo para desprezar. Intrigante eximio, ninguem como elle manejava as instrumentos occultos com que se produz primeiro a calumnia e depois o escandalo; medianeiro sagaz, estava ao facto de quantos negocios amorosos alvoroçavam os corações na sociedade que elle frequentava; humilde até á baixeza, para elle todos os meios eram bons, comtanto que escapasse a salvo das intrincadas meadas em que a sua perigosa industria o envolvia ás vezes.

Tal era moralmente Gonçalo Pereira; o physico tinha n'elle pouca vantagem sobre o moral.

Gonçalo era alto e esguio, os seus braços pareciam estar sempre prezos á cintura polos cotovellos; as pernas eram magrissimas e mostravam alguma tendencia para arcos de rebeca; as mãos tinha-as grandes, largas e as pontas dos dedos recurvavamse-lhe por uma contracção cubiçosa. Estas mãos são terriveis; são capazes de todas as vilanias. O rosto de Gonçalo era, como o seu corpo, alto, esguio e guarnecido por dois pedaços de cabello grisalho que lhe descia até a baixo das orelhas, collando-se-lhe ás fontes; tinha uma bocca d'estas que ameaçam não acabar nunca, dentes raros e amarellos, o que dava ao seu pseudo-sorriso um tom do velhacaria felina; as faces tinha-as elle encovadas e como que repuxadas pelas immensas orelhas; a fronte era baixa e vulgarissima, os olhos sem côr e quasi sem olhar. Gonçalo Pereira não usava barba, vestia sempre de preto com um esmero, que não lograva encobrir o pouco que elle devia á madrasta natureza.

O conde de Berville conhecia-o desde que chegara a Lisboa; tinha-o visto nos gabinetes dos que a fortuna acabava de fazer poderosos; tinha-lhe presenceado as mesuras repetidas nos corredores de todas as secretarias e sabia confidencialmente que elle vinha alli farejar se pelos ares haveria alguma pingue recompensa para os espiões officiosos.

Eis porque Gonçalo Pereira tremia diante do altivo francez.

Em pontos do litteratura Gonçalo adorava a mythologia e as scenas pastoris; até dizem que na mocidade cantara duas Marcias e tres Marilias.

X

Quando o nosso heroe entrou em casa do D. Lopo, já este o estava esperando, porque lhe faltava um parceiro ao jogo e Gonçalo era sempre quem preenchia taes lacunas. O jogo é, depois da morte, o mais efficaz dos niveladores sociaes. O homem mais cheio de preconceitos aperta cordealmente a mão do que mais intimamente despreza, considerando-o desde o momento em que vê só nelle um parceiro. As mesas de jogo são linhas de união, que reunem por algum tempo os principios, as idéas e as educações mais contrarias.

-- Vem hoje tão tarde! foi a saudação do D. Lopo.

-- Que quer v. ex.ª, n'estes tempos tudo é extraordinario.

-- Aconteceu-lhe alguma cousa? perguntou Mathilde.

-- Não foi cousa de perigo, formosa Diana. Os Endymiões são ousados, e Gonçalo Pereira cumprimentou a donzella ennovellando quanto pôde a desgraciosa figura.

-- Não percebo o que diz, sr. Gonçalo Pereira.

-- Tambem a falar a verdade não sei a que vem tanta mythologia para responder a minha filha, disse Lopo com o modo secco de quem está descontente por ter esperado.

-- Deixe v. ex.ª; isto são idéas minhas.

-- Ah! são! Por isso é que eu não percebi, disse Mathilde com um sorriso de travessura quasi infantil.

-- Mathilde, não permitto que fales assim.

-- Meu pae, o sr. Gonçalo Pereira sabe muito bem que não é por mal.

-- Ora se sei! A nossa nympha não é capaz de offender ninguem. Agora reparo, onde está a nossa deusa? Ah! alli vem mais bella do que nunca e com a cabeça sempre coroada de aureos fios.

Martha da Silveira saiu tambem da janella e respondeu com um leve aceno de cabeça á laboriosa comparação do velho Gonçalo.

-- O sr. Pereira dizem que está nas boas graças do novo governo, observou D. Lopo.

-- Eu! v. ex.ª está enganado.

-- Ora! Até me disseram que se dá muito com toda essa gente, principalmente com os militares.

Gonçalo Pereira lembrou-se do encontro que tivera e imaginando erradamente que alguem de casa de D. Lopo o tinha visto falar com o francez, disse:

-- Só falei hoje a um, o conde de Berville; vi-o ainda agora. Por signal é guapo moço, alto, bem feito e com uns olhos verdes tão brilhantes que parece que entram pelo peito dentro.

Ouvindo isto, Mathilde sentiu o coração bater-lhe com tal força que se arreceiou de que as pessoas presentes lhe contassem as pulsações.

-- Ah! o conde de Berville é seu conhecido? perguntou um moço de vinte e tantos annos, de porte austero e physionomia grave.

-- É... quer dizer... falo-lhe ás vezes... quando acontece.

-- O homem, não se afflija. Continuo com socego a fazer-nos a descripção do seu Adonis, atalhou D. Lopo.

-- E bem Adonis que elle é. Nem falta quem lh'o prove. Feliz aquella que elle escolher, e Gonçalo olhava de soslaio para a filha de D. Lopo.

A donzella sentia a respiração cada vez mais offegante e pedia a Deus que lhe não fosse preciso falar para que o tremor da voz a não traisse.

-- Esse conde de Berville é homem de extremado valor pelo que dizem, tornou Pedro da Silveira, que assim se chamava o mancebo a quem já ouvimos pronunciar o nome do francez.

-- Dizem que é valente como um leão. Não admira que seja assim numa batalha, porque mesmo em tempo de paz bem se vê quanto lhe custa deixar a espada na bainha.

-- É espadachim de mais a mais, disso D. Lopo. Nunca o conheci tão bravo, sr. Gonçalo Pereira. Ter relações com um espadachim, já é!

-- Pelo que ouvi dizer o conde de Berville tem tido tantos duellos, que nem já lhes sabe a conta.

-- Ora isso são historias da caroxinha. Vamos ao nosso jogo. Estas cousas não são para as ouvirem senhoras. Olho como a Mathilde está pallida, e D. Lopo encaminhou Gonçalo para ao pé da mesa favorita.

-- Martha, teu irmão conhece o conde do Berville? disso baixinho a filha de D. Lopo de Menezes.

-- Não sei. Que te importa isso?

-- Conheço-o apenas de nome, minha senhora, disse Pedro, que a tinha ouvido.

-- Responder sem ser perguntado, é quasi ser indiscreto, disse Mathilde, gracejando para disfarçar o rubor que lhe vinha ás faces.

-- V. ex.ª sabe muito bem que eu não sei usar de rodeios. Ouvi que desejava saber uma cousa e achei muito simples dizer-lh'a sem mais diplomacias.

-- Sempre severo, como dizia no outro dia meu pae quando lhe chamou não sei já o quê.

-- Chamou-me Catão e eu não me offendi com isso. O genio dá-o Deus; serio ou folgazão, ninguem póde mudar o que tem. Se podesse!

-- Se podesse, o quê? Mudava o seu, que me mette tanto medo ás vezes?

-- Mudava, mesmo para lhe não metter medo, disse Pedro, juntando uma indefinivel doçura ao tom habitualmento grave da sua voz.

-- Diz isso de um modo! Parece que fala serio.

-- Sr.ª D. Mathilde, quando foi que lhe eu falei do outro modo?

-- Bom, lá o temos outra vez com a testa franzida. Bem digo eu; é incorrigivel.

-- Mathilde, atalhou Martha como que reprehendendo a amiga, não o atormentes.

-- Deixa-a, minha irmã. Eu é que tenho a culpa, porque não sei fingir o que não sou.

-- E faz bem. Eu gosto da franqueza, até da franqueza desagradavel, continuou a caprichosa Mathilde.

-- Será esse o unico merecimento, que de ora em diante procurarei conservar a seus olhos.

-- Agora não vá abusar á custa da franqueza.

-- Sr.ª D. Mathilde, que desgraça para mim não podermos nunca concordar em cousa alguma! Parece que todos os dias augmenta a distancia que separa todas as nossas idéas.

-- É verdade, mas tambem somos dois teimosos, como não ha outros. Ao menos n'isto parecemo-nos.

-- Triste similhança, meu Deus! e o mancebo, deixando as duas meninas, foi encostar-so a uma mesa, onde estavam alguns jornaes. Começou a percorrel-os sem lhes entender o sentido o como que alheio a tudo o que podia distraíl-o do seu continuo meditar. Ao pé d'esta mesa estava tambem outro mancebo, que de quando em quando amarrotava com gesto febril os jornaes e as cartas que lhe vinham á mão. Este tinha talvez trinta annos e chamava-se D. Luiz de Menezes. Nunca feições e porte foram melhor talhados para representar a nobreza. Apezar da sua pouca edade, D. Luiz era um d'estes homens a quem respeitamos instinctivamente desde o momento em que os vemos. As suas maneiras extremamente cortezes estavam tão longe do orgulho, como da familiaridade. A expressão do seu rosto era grave, sem melancholia nem affectação; na fronte adivinhava-se-lhe sempre o elevado pensamento, nunca o vago sonhar; nos olhos resplandecia serena toda a pureza de uma alma superior, e seria difficil egualar a suavidade que irradiava da sua physionomia, quando ao olhar profundo se unia o sorriso approvador da sua bocca fina e intelligente. D. Luiz de Menezes não era um homem formoso; era talvez mais do que isso, porque era um homem verdadeiramente sympathico.

D. Luiz falava pouco; explicava a sua opinião tranquillamento e raras vezes combatia as convicções alheias. Não signicava isto frieza ou indolencia, era antes prova de uma alta philosophia, que não reconhecendo nem erros, nem acertos absolutos, acatava a sciencia humana sem lhe desconhecer as fraquezas.

D. Luiz do Menezes, filho mais velho de uma casa nobilissima e ao mesmo tempo discipulo da escola philosophica inaugurada em França no seculo dezoito, estava em 1834 n'uma posição difficil.

Se por um lado via todas as tradições brilhantes de que seu pae lhe falava, prégando-lhe fidelidade aos antigos principios; do outro appareciam-lhe no meio de exaltados pensamentos as sublimes revelações, que, derramadas pelo genio sobre o povo, foram em França a pilha electrica que o acordou do seu lethargo de seculos. E não era um cadaver galvanisado o que assim se erguia; era um corpo cheio de vida, uma vontade cheia de vigor, uma aspiração capaz de vencer todos os obstaculos. D. Luiz de Menezes era muito moço para não sentir toda a verdade das idéas, que, partindo da França, tinham espalhado por toda a parte o elemento revolucionario. Porém acima d'esta certeza havia para elle, homem leal por excellencia, um dever mais que todos sagrado. D. Luiz podia não concordar com os velhos sentimentos do seu nobre pae, mas não devia combatel-os abertamente. D. Lopo, fidalgo ás direitas mas já velho e enfermo, contentava-se com a deferencia passiva do filho, e este, regosijandose por não sor constrangido a servira causa que no fundo do coração condemnava, nunca teve a insensata lembrança de prestar á contraria o auxilio do seu braço. Escravo de um nome illustre, tinha jurado conserval-o com as condições que lhe impunham, como necessarias para que o brilho se lhe não empanasse.

Por uma d'estas contradicções que hão de sempre deitar por terra todos os raciocinios da philosophia, um dos melhores amigos do teimoso absolutista D. Lopo do Menezes era o fervente liberal Rodrigo da Silveira, homem de vasta intelligencia, mas de nascimento quasi plebeu. Rodrigo era um dos mais poderosos o ricos agentes da revolução.

D. Lopo sabia-o e mal se poderia descrever quanto custava á sua consciencia accommodar o respeito ás velhas crenças com a amisade e a gratidão devidas ao amigo, que lhe fôra na adversidade salvador dedicadissimo.

Mais extraordinario ainda que tudo isto, é o seguinte: Rodrigo da Silveira, commensal assiduo do D. Lopo, tinha um filho, Pedro, liberal tão exaltado como o pae, e uma filha, Martha, creatura celestialmente formosa, tanto no corpo, como na alma; e querem saber o que produziu a intimidade quasi quotidiana das duas familias, a do altivo fidalgo e a do rico plebeu? A mulher de D. Lopo amava Martha, que embalara no berço, como se fosse uma segunda filha e com a sua bondade de mãe santa e indulgente abençoou com lagrimas o filho quando este lhe contou com a sua voz firme e sincera o segredo de um amor, que elle julgava muito escondido, mas que o não estava devéras, porque as mães são grandes feiticeiras; adivinham quasi sempre o que se lhes não diz. Desde esse dia Martha ficou sendo noiva de D. Luiz de Menezes, porque D. Lopo, percebendo que Martha lhe tinha muito innocentemente conquistado os affectos, consentiu no que lhe pediam, dando parabens á sua fortuna de pae emquanto dava mais uma vez pezames aos seus preconceitos de fidalgo.

O moço Pedro da Silveira ficou sendo naturalmente amigo intimo do D. Luiz de Menezes. Queriam-se como dois irmãos apezar da grande differença de caracteres que havia entre ambos. Pedro, poeta, scismador, apaixonado pelas crenças que julgava absolutamente boas, era o contraste de Luiz, espirito dado á reflexão rigorosa, ás ideas claramente definidas, e em tudo pausadamente reservado.

XI

Mathilde, descontente com todos e principalmente comsigo mesma, retirou-se por algum tempo.

Martha ficou ao pé da sua futura sogra, devota senhora que pouco a pouco foi deixando cair a conversação para se dedicar toda a um rozario bento em Roma, si vera est fama, e cujas contas ia movendo com os dedos de marfim, emquanto o murmurio da oração morria nos labios finos da sua bocca outr'ora formosissima. Martha estava portanto só no meio d'aquella sala em que se jogava, lia e rezava. Veio então para ao pé d'ella o noivo e começaram ambos uma d'essas conversações cheias de intimo enlevo em que por mais que se diga sempre é menos do que se sente.

Mas no meio das suas affectuosas confidencias D. Luiz lembrou-se do amigo, que tinha visto levantar-se pezaroso de ao pé das duas meninas.

D. Luiz percebia todos os padecimentos moraes, mesmo os mais occultos e delicados, e isto sem perguntar, sem parecer observar; os seus olhos aquecidos pelo fogo d'alma penetravam tudo.

-- O que tem hoje minha irmã? Parece-me mudada. Falou ainda agora de um modo tão decidido quando Pedro aqui estava.

-- Oh! Mathilde diz-lhe ha muito a mesma cousa.

-- Mas o que é?

-- Ora! Pedro ama-a, ella suspeita-o e ha dias em que se zanga muito com isso. Já esta manhã mo disse a chorar que não tinha culpa de elle lhe ter amor, e que não podia, que bem sentia que não podia corresponder-lhe.

-- Mas Pedro fala-lhe alguma vez n'essas cousas?

-- Claramente nunca; mas... ha tantos modos de dar a conhecer o amor, mesmo sem falar n'elle, accrescentou timidamente a donzella, córando muito.

-- Martha, como te lembras de tudo! já lá vão esses tempos. Agora posso dizer muitas vezes que te amo sem precisão de disfarces. E ainda mais quando fores minha, querida, quando fores minha esposa, oh! então serei feliz, feliz como nem eu posso imaginar sem sentir no coração a alegria da bemaventurança. Ter sempre ao pé de mim um anjo, meu Deus; não fiz nada que mereça tanto, e D. Luiz apertava a mão da noiva, encarando-a com um olhar cheio de immensa ternura.

-- E eu, meu Luiz!? não falas da minha felicidade! viver só para ti, para o nosso amor, não termos ambos senão um coração, uma alma. Luiz, ás vezes á força de pensar n'isto parece-me que enlouqueço: tenho um medo horrivel de perder todo o meu querido sonho.

-- Criança! O que nos ha do separar? Nunca; é impossível. Olha, querida, creio que nem a morte.

-- Nem a morte, tens razão. Mas não sei que presentimento me faz estremecer no meio dos mais felizes sonhos. É um pezo que me vem de repente esmagar o coração quando mais cheio de esperança elle está.

D. Luiz pegou-lhe na mão e fitando se na donzella os seus olhos mostravam desassocego; não era o presagio que o inquietava, mas na sua alma varonil, tão firme e tão serena, havia só uma fraqueza -- era o amor sem limites que tinha á noiva. Fraqueza bemdita era esta!

-- Querida, porque te affliges assim sem motivo? Então hoje! Faz dois annos que eu te disse pela primeira vez que te adorava. Quando teu primo chegou do Brazil e te pediu em casamento, teu pae disse-m'o na tua presença, porque não tinha segredos para mim, e eu, lembras-te? recebi a noticia sem que no meu rosto apparecesse o mais leve signal da tormenta que desde aquelle momento começou a despedaçar-me o coração, porque já então eu não comprehendia a vida sem ti. O meu orgulho infernal chegou a ponto de me dar forças para dizer não sei o quê em favor do casamento que te propunham.

-- Como eu padeci então! porque eu tambem te amava havia muito no segredo da minha alma; e quando te vi tão impassivel, approvando o desejo de meu pae, quando me pareceu que até a tua mão queria precipitar-me no abysmo, senti um frio como de morte gelar-me o coração.

-- Estavas tão pallida que eu tive medo do que tinha dito, mas julgava primeiro que tambem tu querias aquelle casamento. Saí como louco. A expressão dos teus olhos tinha-me afinal revelado n'um relampago tanto amor e tanta saudade! Mas ao mesmo tempo o orgulho dizia-me tantas cousas, aconselhava-me tão mal! Oito dias depois esperava eu Pedro no teu jardim. Senti soluçar alguem; eras tu. Estavas mudada. No teu rosto lia-se o padecimento, mas eu achei-te assim mais bella do que nunca, porque era pelo amor que padecias. Fui egoista, não é assim? Mas perdoaste-me. E desde aquella noite nunca mais fui infeliz; acontecesse o que acontecesse, estava certo do teu amor, o resto era nada para mim.

-- Luiz, isso é demais. A felicidade assusta; eu tenho medo da minha.

-- E eu adoro-a, porque a minha felicidade és tu. Não me póde meter medo, bem vês.

A donzella sorriu e a conversação continuou sempre affectuosa e intima, mas de vez em quando Martha empallidecia debaixo do pezo do pressentimento horrivel que a atormentava.

Os maus presentimentos, ainda quando fossem Verdadeiros, tinham contra si um mal gravissimo, porque, annunciando de ante-mão a desgraça, duplicavam a agonia. Deus quiz que o homem ignorasse a maior parte das vezes qual o instante em que a dôr lhe ha de despedaçar o coração. A misericordia Divina compadecendo-se dou-lhe essa ignorancia salutar; foi um grande allivio. É preciso além de homem ser Deus para resistir á agonia de lagrimas e dôres passada em Gethsmani. E ainda o homem-Deus pediu um instante que o calix se arredasse! E que o padecer annunciado tem antes do ferro que repentinamente corta, os espinhos que pouco a pouco dilaceram.

D. Mathilde do Menezes appareceu outra vez na sala, mas fôra melhor que o não fizesse; estava visivelmente preoccupada, e por conseguinte ou não falava ou dizia algumas phrases inconsideradas, o que ainda era peior do que o silencio. Pedro da Silveira era sempre a sua victima predilecta, apezar dos signaes que Martha e D. Luiz lhe faziam.

A noite ia já adiantada. Todos se retiraram e á despedida Mathilde notou que Gonçalo Pereira a encarava com certo modo de cumplicidade. A donzella, sem o perceber ainda, estremeceu.

XII

Quinze dias mais tarde entrava Pedro da Silveira em casa de D. Lopo.

-- Ha quasi oito dias que o não vemos. O que foi que o trouxe tão entretido que nem um instante teve para nos dar?

-- Póde v. ex.ª tomar essas contas a meu pae. Tem-me feito servir de cicerone a um francez que lhe foi muito recommendado e que me não deixa.

-- Quem é? perguntou D. Lopo.

-- É o conde Luciano do Berville.

-- O conde Luciano de Berville! repetiu Mathilde quasi insensivelmente.

-- Elle proprio, minha senhora.

-- É seu amigo? perguntou ainda Mathilde.

-- Não; é só meu companheiro obrigado ha seis dias.

-- Peza-lho o encargo, pelo que vejo, disse D. Lopo.

-- Já pezou mais. Se querem que diga a verdade, o conde inspirou-me uma grande antipathia no primeiro momento em que o vi; hoje porém vi-o praticar uma boa acção, e as boas acções são tão raras que se não deve desprezar a occasião de admirar uma.

-- O que foi então? disse Mathilde, que mal podia reprimir o interesse que para ella tinha o assumpto.

-- Ia já dizer-lh'o. Estavamos em Campolide, eram perto de quatro horas, o conde parecia mais enfastiado do que nunca, o que não é lisongeiro para a minha companhia, mas não importa. Ao voltar de uma rua vimos um rapazito de cinco para seis annos, coberto de farrapos e chorando a bom chorar.

Quando passámos ao pé d'elle, o rapazito agarrou-se a mim e ao conde, pedindo-nos soccorro e contando-nos uma historia de que nenhum de nós percebia palavra. O conde impacientou-se e, livrando-so das mãos do rapaz, sem querer fel-o cair de encontro a uma porta que estava entreaberta.

O rapazito, gritando cada vez mais, pedia pelo amor de Deus que o seguíssemos, e não largava a aba do meu casaco. Entrei e o conde veiu commigo. No fim de um corredor estreito e escurissimo vimos uma scena horrivel, em que a miseria era o primeiro actor. Estava um homem de aspecto cadaverico deitado sobre os restos de uma enxerga; ao lado d'elle chorava uma mulher extenuada pela fome e pelo soffrimento, com uma criancinha nos braços, e em volta d'ella choravam mais quatro, pedindo-lhe pão que ella não tinha. O pobre doente olhava para tudo isto com uma expressão de medonho desespero. Contou-nos que não podia trabalhar havia mais de trez mezes. O conde deitou todo o dinheiro que a sua bolsa continha no regaço da afflicta mãe, e retirou-se logo visivelmente impressionado. -- Quem me diria que viria hoje representar o papel de Providencia, disse elle já na rua.

Esqueceu a Pedro da Silveira dizer que antes do conde atirar o seu oiro ao regaço da pobre mulher tinha elle escondido a sua bolsa na enxerga do doente. As almas verdadeiramente generosas teem d'estes esquecimentos.

Mathilde ouvia-o com avidez e quando elle acabou disse:

-- Essa acção não parece de homem que pintam tão máo e tão vicioso.

-- Tem razão, nobre defensora; todos teem propensão para carregar as côres e até do anjo das trévas se diz que não é tão feio como o pintam, acudiu Gonçalo Pereira officiosamente.

-- Pois sim, mas bem sabem que uma contradicção só não é bastante para fazermos um santo de uma alma depravada. Não ha resgate sem contricção nem penitencia, não é assim Dolores? disse D. Lopo a sua mulher, hespanhola pelo berço.

-- É, mas o arrependimento deve offerecer-se a Deus, e o conde de Berville pelo que dizem...

-- O conde de Berville não será talvez devoto, mas tambem não asseguram que seja atheu.

-- Não; dizem até que reconhece varios deuses, e estes são os seus caprichos, redarguiu severamente D. Lopo.

-- V. ex.ª julga-o portanto pagão, disse Gonçalo Pereira. O paganismo foi a religião de grandes heroes.

-- E de grandes criminosos tambem. Nunca imaginei que o sr. Gonçalo Pereira se lembrasse de defender os idolos; parece-me que ainda o veremos adorar o bezerro de oiro.

Gonçalo, que não tinha feito outra cousa em toda a vida, empertigou-se muito e disse:

-- Tomo isso como uma brincadeira, sr. D. Lopo, mas bem sabe...

-- Bem sei, atalhou o fidalgo, eu sei tudo a seu respeito.

Gonçalo empallideceu. Julgou achar n'estas palavras um sentido que não tinham, mas que a sua consciencia lhe indicava.

-- V. ex.ª quer dizer...

-- Eu não quero dizer nada; vamos á nossa partida que já é tarde, e D. Lopo fez sentar ao seu lado o homem que infimamente desprezava, mas que n'aquella hora era um parceiro.

-- Seu pae parece não gostar nada do conde de Berville, disse Pedro da Silveira a D. Mathilde para ter um principio de conversação.

-- Meu pae nem o conhece, mas para meu pae lhe ter aversão basta saber que elle serviu a causa da liberdade.

-- Perdão, isso não é motivo para merecer a aversão do seu pae. A minha presença e a dos meus n'esta casa é uma prova de que seu pae não é capaz de tal injustiça.

-- Pois sim; mas o que me diz é uma excepção para muitos incomprehensivel.

-- Porque não sabem, porque ninguem lhes diz que a seu pae, sr. Pedro da Silveira, devemos toda a tranquillidade de que podemos gozar n'esta epoca calamitosa para tantos, a quem falta uma tão generosa protecção, interrompeu a mulher de D. Lopo.

D. Mathilde mordeu os beiços ao ouvir esta confissão, que lhe abatia o orgulho.

-- Minha senhora, o cumprimento de um dever não merecia ficar assim na sua memoria; é uma cousa que se póde esquecer sem ingratidão, respondeu Pedro, notando a attitude contrafeita de Mathilde.

-- Nunca. Diga a seu pae que eu todos os dias rogo a Deus lhe restitua em bênçãos o que elle fez pela minha familia. É o unico signal de gratidão, que me é permittido.

-- É o mais valioso de todos, porque são orações de uma santa.

-- Não se faça agora lisongeiro com a sua velha amiga, respondeu Dolores.

-- Digo-lhe só a verdade, minha segunda mãe, continuou o mancebo commovido.

Mathilde fez-se muito pallida e pedindo licença á mãe retirou-se.

Se no seu quarto a donzella percorreu-o algum tempo em todas as direcções com passos febris; depois deu volta á chave da porta e começou a ler uns papeis que tirou do seio. Eram cartas. A mais recente dizia:

«Tenha piedade de mim. Creia que o reprobo merece uma lagrima de compaixão. O meu anjo ha de comprehender a sua sublime missão de mulher.

Dizer que lh'o agradecerei de joelhos, é pouco; para o provar não sei se bastará toda uma vida de adoração. Amanhã á noite estarei em casa de Rodrigo da Silveira. Ser-me-ha facil apresentar-me alli, porque ha oito dias que o filho, Pedro, me acompanha sempre. Elle não desconfia de nada. Tenho tido a coragem de não lhe falar da minha formosa Mathilde. Não receie; nunca se ha de arrepender do perdão concedido ao amaldiçoado pelo mundo.

Juro-lh'o e desejava sellar este juramento com todo o meu sangue.

« Luciano ».

XIII

Berville foi, como tinha dito, procurar Gonçalo Pereira. Soube d'este todos os esclarecimentos que desejava a respeito de Mathilde.

Ouvindo que ella era romantica e exaltada, o conde resignou-se a representar á risca um papel de galan quasi lacrimoso. Estas metamorphoses eram faceis para elle, homem sempre disposto a tomar o caracter mais proveitoso para os interesses da sua vontade inquebrantavel. Como exordio, o conde escreveu meia duzia de cartas no estylo empolado da que transcrevemos e mandou-as á donzella pela mão de Gonçalo Pereira, que tinha conciliado a posição de amigo dos paes do Mathilde com o officio de mensageiro ou instrumento do conde.

Mathilde não tinha respondido a essas cartas, mas ia todos os dias passear ao jardim exactamente á hora em que passava por defronte dos seus muros o elegante e soberbo Berville. Mathilde não lhe apparecia ostensivamente, mas nem sempre deixava de o ver através dos festões verdejantes de um caramanchão situado na extremidade da rua.

A filha de D. Lopo de Menezes tinha marcado um dia para ir ver a sua amiga Martha, cuja debil saude estava então um pouco alterada.

Gonçalo ouviu-o e preveniu Berville. Fôra tambem o velho parceiro de D. Lopo que lembrara ao conde a conveniencia de travar relações com Rodrigo da Silveira, homem dedicado á causa da liberdade, e ao mesmo tempo muito amigo do pae de Mathilde. Já vêem que o astuto Gonçalo sabia bem escolher as bases em que devia assentar a sua leal negociação.

Mathilde tinha com a cabeça de uma criança o coração de uma mulher. O seu caracter era um mixto de capricho e altivez, de exaltação e indifferença. Levava a frieza até á crueldade e levaria o amor até â loucura. A paixão é terrivel quando entra n'um coração d'estes; é uma arma exterminadora que ceifa na passagem o pouco que fracamente ainda lhe resiste. Mathilde tinha tambem a sêde perigosa do mysterio. Para ella Pedro da Silveira, o companheiro da sua infancia, era um namorado impossivel. Não comprehendia a transição que faz passar da amisade ao amor. Para ella o incendio não podia nascer lentamente de uma faisca; queria vel o romper logo em chammas.

O conde de Berville, apparecendo á donzella com toda a seducção do desconhecido, com todas as graças de um brilhante espirito e o prestigio do uma valorosa fama, era pois um inimigo terrivel para o repouso da familia de D. Lopo de Menezes.

Para Mathilde o conde era um idolo sem mancha; a maior parte das que lhe imputavam julgava-as ella falsas e as outras já as tinha mentalmente lavado com as suas lagrimas e a sua absolvição.

A donzella conhecia perfeitamente os obstaculos que se haviam de antepor ao seu amor tão subito como violento, mas como é costume essa convicção não serviu senão para firmar mais e mais o novo sentimento, que toda a enlevava com os seus magicos esplendores.

D. Lopo ia poucas vezes a casa de Rodrigo da Silveira, e nunca o visitava de noite com receio de encontrar alguns dos seus maiores inimigos politicos, que alli iam ás vezes. Não acompanhou portanto a mulher e a filha na visita annunciada.

Mathilde esteve mais de uma vez para pedir á mãe que não a levasse comsigo; assustava-se involuntariamente quando se lembrava da scena preparada quasi com o seu consentimento e temia que lhe faltasse coragem para se não trair. Depois de entrar em casa de Rodrigo da Silveira, cada vez que a porta se abria agitava-lhe o peito um tumulto de confusos desejos e receios. Finalmento appareceu Pedro da Silveira e com elle Berville. Pedro, ignorando inteiramente a intriga tramada, foi apresentar o conde ás duas senhoras. Mathilde, quando viu tão perto de si o homem que tinha chegado a abalar-lhe o animo com os protestos escriptos de uma profunda paixão, ficou um instante como que curvada debaixo do pezo da alegria esplendida que lhe illuminava o coração e dos terrores instinctivos que lhe dilaceravam a consciencia.

Ao principio apenas pôde balbuciar algumas palavras e a sua manifesta commoção foi para Berville mais uma prova de triumpho. Sentado a alguma distancia do Mathilde, contemplava-a a furto e poucas vezes lhe dirigia a palavra; mas apezar d'isto não deixava do notar todos os encantos que pouco a pouco a donzella mais animada foi desenvolvendo. Mathilde tinha no genero da sua formosura e na viveza do seu espirito um não sei quê de andaluza, que a tornava fascinadora nas suas horas mais felizes. Luciano, que tinha entrado n'aquella sala com um sorriso do desdem a muito custo disfarçado, saiu d'alli entregue a um vago devaneio para elle, conquistador intrepido, quasi totalmente novo. O capricho, o entretenimento de algumas horas ia talvez mau grado seu, transformar-se em amor.

Martha adoeceu mais gravemente e durante tres semanas Mathilde quasi que a não desamparou.

N'este tempo Berville com a sua finissima diplomacia foi-so tornando quasi familiar em casa de Rodrigo da Silveira. Mathilde via-o frequentes vezes. O conde era do uma amabilidade inexcedivel e as suas maneiras tinham essa extrema e desaffectada polidez, que annuncia iminediatamente um berço illustre, ou natural elevação de espirito. No conde era signal do primeiro, da segunda não podia ser. Entretanto Luciano já não escrevia á filha de D. Lopo e nunca alludia ao que lhe dissera nas suas cartas. Este silencio, forçado em parte pelas circumstancias, magoava Mathilde, e nos caracteres como o seu as reacções do amor proprio são decisivas quando elle chega a estar deveras ferido. Infelizmente o descontentamento da donzella não chegou a attingir tão elevado grau.

Um dia Martha estava melhor e pediu que a levassem ao jardim. Mathilde colheu algumas flôres e fez dellas um ramo que offereceu á amiga, guardando só para si uma rosa que prendeu no cinto.

Berville, encostado ao tronco do uma magnolia, contemplava-a em silencio. Pouco depois chegou D. Luiz de Menezos; Martha desprendeu do seu ramo a flôr mais viçosa para lh'a offeracer e ambos trocaram algumas phrases repassadas de intima ternura. N'este momento Mathilde estremeceu como se aquella ventura a offendesse e encarando o conde viu no seu rosto que o mesmo sentimento o agitava.

-- Comprehendeu-me ainda agora? murmurou-lhe Luciano ao ouvido, quando já tinham voltado para a sala.

-- Comprehendi, mas que importa? disse a donzella.

-- Porque não seremos felizes como elles? continuou o conde.

-- Oh! é impossivel! suspirou Mathilde.

-- Nada é impossivel quando se ama, e eu adoro-a.

Berville naquelle instante não mentia. As organisações como a sua nem sempre saem completamente incolumes dos perigos a que se expõem. No seu caracter cheio de orgulhosos defeitos havia um grande fundo de paixão. Mathilde tinha-o fascinado primeiro com a sua esplendida formosura, deslumbrou-o depois quando, vendo-a quasi todos os dias, pôde admirar a rara flexibilidade do seu espirito, que, livre absolutamente do qualquer pretenção litterata, brilhava como expansão toda original de idéas e sentimentos naturalmente graciosos. Se Mathilde fosse uma donzella indefeza, pertencente ás classes mais baixas da sociedade, que o vaidoso conde desprezava, então teria elle arranjado um plano de conquista em que a virtude não obteria notavel consideração. Se o plano falhasse, Berville, depois de ter movido todas as molas do interesse, recorreria a outros meios e só daria o caso por perdido quando a astucia visse inutilisados todos os seus variados manejos; mas D. Mathilde era uma senhora da alta sociedade, tinha paes illustres, tinha um irmão corajoso. Tudo isto offerecia um aspecto que se não accommodava com a idéa de uma empresa vulgar. Se o conde visse unicamente em Mathilde uma bonita amante, a sua paixão, contida pela esperança de ser em breve satisfeita, não teria talvez passado do simples brinquedo que lhe deu origem; mas as circumstancias eram outras e obrigavam o conde a confessar que a donzella não podia pertencer-lhe senão com o titulo de esposa. Esta reflexão fel-a o conde primeiro com impaciencia e depois com phrenesi. E que a difficuldade tinha ido despertar todas as voragens latentes do seu genio contradictorio. Havia momentos em que o conde, o libertino audaz, o escarnecedor implacavel, iria de bom grado ajoelhar ante o altar onde um padre viesse unil-o á mulher que então lhe dominava o coração. Estes accessos quasi febris vieram a ser cada vez mais frequentes e deviam ainda augmentar quando a saude restabelecida de Martha não exigisse já as visitas repetidas da filha de D. Lopo de Menezes. Em casa d'este não entrava o conde de Berville e era tambem esta uma opposição que, innocente em seu principio e occulta até certo ponto, exacerbava ainda assim a violencia das unicas alternativas que se offereciam ao espirito allucinado do conde. Mathilde, depois das phrases que lhe ouvimos trocar com Berville, levantou-se, tirou do cinto a rosa colhida no jardim e deu-a a Luciano, dizendo-lhe com a sua voz suavissima.

-- Já não tem de que ser invejoso.

-- Tenho, disse o conde extasiado ante o languido olhar que parecia acaricial-o.

-- De quê? perguntou a imprudente donzella.

-- Não foi só as flôres que invejei, foi o amor com que as offereceram.

-- O amor de Martha? perguntou Mathilde, sorrindo-se maliciosamente e como se não percebesse que estava brincando com fogo.

-- Não, o de Mathilde, ao pé do qual o outro não seria senão uma fraca sombra.

-- É impossivel, respondeu a donzella com profunda tristeza.

-- Outra vez essa palavra! Impossivel porquê? Ama alguem? Diga-m'o por piedade. Ama?

-- Ninguem, atalhou a donzella precipitadamente.

-- Ninguem! repetiu o conde, fazendo-se muito pallido e ferido devéras no coração. Ninguem, sr.ª D. Mathilde! tornou elle ainda fitando na donzella os olhos brilhantes em cujas facetas de esmeralda luzia ao mesmo tempo a ternura apaixonada e o furor insano.

Luciano estava assim verdadeiramente bello; a tempestade era o seu elemento. Mathilde, muito sincera para esconder por mais tempo o que lhe tumultuava no seio, contemplava-o em silencio, envolvendo-o todo no fluido inebriante do seu olhar namorado.

-- Mathilde, é verdade, não amas ninguem? disse emfim Berville já meio rendido e pegando na formosa mão da donzella.

-- Não é... Amo-te, Luciano, e, desprendendo as mãos, a donzella fugiu apressada de ao pé do conde, enviando-lhe de longe um adeus e um olhar de irresistivel ternura.

O conde estendou os braços, fez um movimento para a seguir, mas depois vendo-a desapparecer deixou-se ficar n'aquelle logar, onde tinha sentido uma deliciosa commoção apoderar-se-lhe soberanamente do coração, que elle julgava já extenuado pelas continuas sensações da sua tumultuosa existencia.

Perecia-lhe que tomava outra vez a ter a sua alma dos vinte annos; escaldava-lhe as veias um sangue cheio de mocidade e de vigor; o nome da mulher amada vinha morrer-lhe nos labios e fazia-o estremecer como a primeira confissão d'amor, como o primeiro beijo timidamente colhido numa bocca de rosa.

-- Estou deveras apaixonado, murmurou o conde com um suspiro e passando a mão pela fronte abrazada. Tambem não admira, é um anjo, uma houri, e o conde, ficando na ultima comparação, mais profana e evidentemente mais a seu gosto, começou a beijar repetidas vezes a flôr dada pela donzella.

N'este momento voltou-se e viu ao pé de si Pedro da Silveira. O mancebo estava muito pallido; não sabia nada ao certo, mas o seu amor infeliz ajudava-lhe a adivinhar quasi tudo; as ultimas palavras do conde resoaram-lhe lugubremente no coração, porque eram um indicio para elle terrivel.

O conde, surprehendido assim, valeu-se então da mobilidade extrema da sua physionomia e n'um instante tornou a ser o mesmo homem frio e desdenhoso. Pedro da Silveira considerava-o com uns assomos de raiva indiscriptivel. Odiava aquelle homem com toda a furia do ciume, e a diplomacia admiravel com que o rival tinha a habilidade de encobrir os pensamentos ainda mais lhe exacerbava a allucinação do seu animo generoso e inimigo de todo o fingimento.

-- Sr. Pedro da Silveira, que noticias ha, soube alguma coisa d'importancia? perguntou o conde.

-- Soube.... uma coisa para mim muito importante.

-- Logo que o vi notei na sua physionomia que tinha sabido alguma coisa extraordinaria.

-- Extraordinaria, não, disse o mancebo quasi suffocado pela colera.

-- É alguma noticia politica?

-- Não, sr. conde, respondeu com firmeza Pedro da Silveira.

-- Oh! perdão. Fui indiscreto, pelo que vejo; mas quando se dirigiu para mim com tão visivel desassocego imaginei que tinha alguma coisa a dizer-me a respeito do que o preoccupava.

-- Talvez tenha um dia.... hoje ainda é cêdo, disse lentamente o mancebo.

-- Não o entendo, sr. Pedro da Silveira.

-- Nem tal é preciso por emquanto, sr. conde, continuou Pedro, accentuando todas as palavras, como se cada uma d'ellas devesse significar uma ameaça.

Nos olhos de Berville passou um clarão infernal, os do Pedro da Silveira repetiram-lhe tambem vingança. Desde esse instante aquelles dois homens eram decididamente inimigos.

Esta scena podia ter tido logo resultados fataes, se ao tempo em que as ultimas palavras expiravam nos labios de Pedro não tivessem entrado na sala Rodrigo da Silveira e Martha. Não era porém a paz que elles traziam, eram apenas treguas.

XIV

O conde de Berville tinha gasto em França uma boa fortuna e figurara alli brilhantemente no meio das sumptuosidades mais estravagantes. Um dia porém viu cair a sua estrella e teve orgulho de mais para a ver pizar aos pés pelos mesmos que em Paris lhe tinham admirado o esplendido zenith.

Refugiou-se pois n'uma quinta, que ainda possuia na provincia, e foi alli que o seu genio impetuoso lhe suggeriu a idéa de se ir alistar no exercito, que servia ás ordens de D. Pedro IV.

Estando em Lisboa, o conde recebeu a noticia da morte de um seu parente, o barão de La Rochenay, que lhe deixava com a sua bênção vastas propriedades e um cofre recheado de oiro.

Berville deu graças á fortuna, que lhe acudia tão a proposito. Mas essa herança que por um lado favorecia tanto o projecto formado pelo conde de esposar a filha de D. Lopo, vinha por outro difficultal-o muito. No testamento, que fazia Luciano herdeiro, havia clausulas que em vista das suas actuaes idéas o incommodavain muito. Berville estava em relações mais do que frias com todos os membros da sua familia, e uma das causas d'esta frieza fôra a predilecção que La Rochenay mostrara toda a vida pelo querido Luciano, como elle lhe chamava. O defunto barão era um homem de maneiras asperas, avarento o irascivel em extremo; estas disposições, juntas á consciencia de possuir uma grande fortuna, faziam d'elle um homem perfeitamento intratavel.

Só Berville conseguia dobrar-lhe ás vezes o genio, mas o conde era orgulhoso de mais para se prestar ao humillimo papel de cortezão de heranças provaveis. Ia portanto visitar muito poucas vezes o barão, que lhe dava bem a perceber que se lhe fazia o favor de o tratar com bom modo, era por fraqueza excepcional, que nunca se estenderia a animar-lhe a affeição com auxilios positivos. La Rochenay reprovava as loucuras do sobrinho e tinha-lhe provado a inutilidade de esperar d'elle salvação em caso de naufragio. O barão foi sempre inflexivel a este respeito, e Berville, tinha-lhe já coberto o nome de imprecações, lençando ao limbo toda a esperança de vir a ser herdeiro de um homem tão ferozmente firme nas suas ideas. Mas La Rochenay percebeu que não podia ir todo á sepultura; cumpria-lhe deixar na terra a riqueza que lhe fôra até então parte da vida e hospeda favorita do coração. Ora como aborrecia profundamento os numerosos parentes, que desde o desapparecimento de Berville o perseguiam com as continuas provas da sua dedicaçao interessada, julgou o barao muito a proposito deixar-lhes nas suas ultimas vontades mais um testemunho da inquebrantavel constancia do seu caracter. La Rochcnay tinha informações exactas ácerca da existencia de Berville, apezar de lh'as quererem occultar. Na vida do barão havia um mysterio, que só Berville conhecia e que o testamento veio descobrir. La Rochenay tinha uma filha, educada longe da casa paterna e para quem o nome de seu pae fôra sempre um segredo. Tinha Berville vinte e cinco annos e a donzella quinze, quando La Rochenay prometteu a Luciano que o faria seu universal herdeiro, se elle quizesse desposar-lhe a filha. O conde, todo entregue aos prazeres da sua brilhante mocidade, recusou a alliança proposta. Berville nunca tinha visto a filha de La Rochenay; entretanto sabia que ella era não só feia, mas de mais a mais muito menos intelligente do que é permittido ser quando se pretende figurar na sociedade sem flagrante ridiculo. O conde estava n'uma disposição em que a mais enfeitada cadeia dr matrimonio parece sempre um captiveiro insupportavel. La Rochenay não insistiu, esperando melhor resultado quando a fortuna do conde estivesse gasta, mas ainda errou mais este calculo, porque Berville esqueceu de todo o casamento frustrado pela sua recusa. O barão no seu testamento deixava toda a fortuna ao conde no caso de elle casar com Julia de La Rochenay, e no caso de elle recusar satisfazer-lhe n'este ponto os seus desejos, deixava-lhe só o usofructo de metade d'essa mesma fortuna, vindo a pertencer outra a Julia, que por morte do conde tinha direito a receber a metade herdada por elle.

Tudo isto pedia serias reflexões da parte de Berville; sentia-se elle menos do que nunca resolvido a ser esposo do M.elle de La Rochcnay, já tinha feito tenção do casar com D. Mathilde, e, em pontos de teima, era o conde o digno herdeiro do seu illustre parente; de outro lado via que se o seu casamento celebrado em Portugal fosse conhecido em França iria provavelmente dar aos ex-herdeiros, cada vez mais rancorosos desde que a fortuna os trahira de todo, um meio de difficultar a execução do testamento, explorando certas disposições pouco claras que se podiam attribuir ao receio que o testador tivera de que o conde viesse a casar com outra senhora que não fosse M.elle de La Rochenay. Essas palavras do barão, filhas da convicção de que seria difficil resolver o conde a acceitar a noiva que lhe recommendava podiam prestar-se a interpretações desfavoraveis para o ultimo, se mãos habeis as dirigissem pelo labyrintho de uma demanda.

O conde, cada vez mais apaixonado pela filha do D. Lopo de Menezes, não encarava siqeor a possibilidade de desistir do intento de lhe chamar sua, custasse o que custasse. O amor de Mathilde era absolutamente necessario á sua vida, n'aquelle tempo; pouco lhe importava que, depois do impeto satisfeito, o arrependimento fosse provavel. Renunciaria a tudo, menos a sentir os braços da donzella enlaçarem-n'o com brando carinho, menos a escutar bem perto do seu peito o arfar do seio d'ella emquanto dois labios de rosa se pousassem nos seus beiços sedentos do amor exaltado o inebriante da mulher, que toda se esquece para dar a suprema ventura ao homem que lhe fez brotar no coração esse sentimento divino, que encerra o segredo das delicias mais intimas que se podem gosar na terra.

Mathilde era admiravelmente bella, e a sua belleza estava dia e noite na imaginação do Luciano; via lhe sempre as feições delicadas e expressivas, os longos cabellos ondados, os olhos cheios do fulgores mysteriosos, e a riqueza do formas, escrupulosamente contida nos limites da elegancia perfeita; e o conde queria adoral-a como Pygmalião adorou a Galathea, quando o fervente calor dos seus beijos o das suas delirantes caricias fizeram palpitar um instante o marmore que apertava nos seus braços apaixonados.

Bcrville sabia que D. Lopo de Menezes, a quem os acontecimentos politicos tinham prejudicado muitissimo, não estava no caso de dar á filha grandes cabedaes em dote e até ouvira dizer que lhe não podia dar nada. Isto era para o conde uma vantagem desde que elle estava outra vez rico, porque o enfeitava com uma aureola de desinteresse, util na sua situação; mas Berville não ignorava tambem o odio do velho fidalgo contra o que lhe recordava os triumphos liberaes do que fôra victima, e o conde pelo facto de ter tomado parte n'elles, conhecia que lhe tinha certa a animosidade. Effectivamente havia motivo para receiar que D. Lopo não quizesse para genro o homem que julgava um aventureiro cheio de vicios e de imposturas. Já dissemos que a familia Silveira era a unica excepcionalmente favorecida no rigoroso tribunal em que D. Lopo condemnava todos os defensores das instituições liberaes. Luciano esperava que os seus novos haveres e os seus velhos titulos, devidamente autenticados, destruiriam muitos dos escrupulos do pae de Mathilde, e lembrou-se ao mesmo tempo de que D. Lopo se não negaria a uma combinação, que, livrando-o de ouvir tão cedo as censuras dos seus correligionarios politicos a proposito de uma alliança tão extraordinaria, servira tambem os interesses de Berville. O conde, depois de pensar muitos dias sobre o assumpto, e obedecendo afinal a um impeto da paixão que o subjugava, escreveu a D. Lopo, pedindo-lhe a mão de Mathilde e mostrando-lhe como, por conveniencias de ambas as familias, seria bom que o casamento se fizesse secretamento, aguardando melhor occasião de o tornar conhecido; o conde esperava que da sua parte essa occasião não tardaria muito, o renunciaria mesmo ao segredo, se elle não fosse necessario para zelar a riqueza que ia pertencer á esposa da sua escolha, e dar a elle Luciano os meios de proporcionar-lho a existencia toda de mimos e regalos, a que ella estava costumada desde a infancia.

Tudo isto desenvolvia Luciano na carta com uma eloquencia admiravelmente persuasiva. Berville era um homem de vasta intelligencia, e a sua penna poderia ter sido um astro brilhante nos annaes da litteratura, se lh'a não arrancassem da mão as exigencias do seu caracter avesso a tudo que não fosse dissipação e ocio.

Mais tarde contaremos o effeito produzido no espirito de D. Lopo pela tão meditada missiva.

XV

Pedro da Silveira até ao dia em que percebera o monologo de Berville, e os arrobos apaixonados com que elle beijava a rosa, ignorava tudo quanto se tinha passado; depois atormentavam-n'o desconfianças, mas as suas conjecturas ainda estavam muito longe da realidade porque não sabia que Mathilde amava o conde. Via em Berville um rival, mas não o suppunha um rival feliz, ou antes, se isto temia occultava-o para não molestar o amor offendido e as illusões teimosamente arraigadas.

Algum tempo depois de passada a scena da rosa, Rodrigo da Silveira chamou o filho ao seu gabinete, onde ambos se demoraram muito. Ninguem soube em casa o que alli se passou, mas nos romancistas não é má educação espreitar através de uma porta para descobrir segredos; usando de similhante privilegio vamos repetir o dialogo travado entre o pae e o filho.

Rodrigo da Silveira era um homem de meiaedade, baixo, gordo, de cara prazenteira e modos affaveis.

Tinha já os cabellos quasi todos brancos e usava oculos dourados. Sob uma apparencia pouco significativa Rodrigo encobria um coração de ouro e um caracter elevadissimo; fôra em toda a vida a honradez e a franqueza personificada. Ao seu genio repugnava tudo quanto não era rectidão e justiça; nos momentos decisivos sabia desenvolver extraordinaria energia, destruindo com a sua razão esclarecida todos os ardis inventados pela hypocrisia.

Fóra de taes occasiões Rodrigo era a propria moderação.

-- Pedro, dizia elle ao filho percorrendo distraido uns papeis, preciso falar comtigo a respeito de coisas importantes. D. Lopo está doente; aquelles ataques do gotta que elle soffre repetem-se agora a miudo, depois que os desgostos lho fizeram adoptar uma vida excessivamente sedentaria. O medico, continuou elle depois de uma pausa, falou-me hontem e disse-me que o estado do doente lhe parecia grave.

-- O medico engana-se talvez, atalhou Pedro.

-- Talvez, dizes bem, mas talvez não é certeza e, se D. Lopo fallecer, a situação da mulher e da filha ha de ser muito precaria.

-- E D. Luiz de Menezes, meu pae... julga que elle lhes negará amparo?

-- D. Luiz tem um nobre coração e uma alma como ha poucas, mas isso não é bastante. Nas circumstancias actuaes, com os principios professados pela sua familia, ser-lhe-hia difficil escolher uma carreira publica em que podesse honrosamente ganhar o pão de sua irmã. Sabes o que elle me disse hontem, falando do perigo em que o pae está?

-- O que foi?

-- Disse-me que havia horas em que a consciencia o accusava de ir fazer uma victima unindo Martha á sua existencia obscuramente infeliz. Falou-me dos pesados deveres que lhe caberiam, se D. Lopo morresse. Assegurou-me que nunca tinha falado em tal a minha filha, mas que devia dizer-m'o para eu resolver como me aconselhassem o meu amor de pae e a minha prudencia.

-- E que lhe respondeu?

-- Fiz toda a diligencia para lhe tirar aquellas idéas da cabeça, chamei-lhes criancices, e quando lhe perguntei se já não amava minha filha para ter a lembrança de se desligar da sua promessa, caíu-me nos braços a soluçar e pediu-me que fizesse o que me approuvesse, mas que não duvidasse um instante do maior affecto da sua vida.

-- E é verdade, meu pae; eu creio n'elle como em mim mesmo, disse Pedro acudindo commovido pela defeza do amigo.

-- Tambem eu se lhe falei em duvidas foi só para lhe acabar com os escrupulos. Depois d'esta conversação tenho pensado e parece-me que ha um meio muito bom de acabar com elles para sempre; mas para o conseguir preciso consultar-te.

-- Estou prompto para tudo quanto dependa de mim, disse o mancebo mostrando-se admirado.

Rodrigo da Silveira hesitou algum tempo e, encarando o filho com gesto de branda autoridade, disse:

-- Tu amas Mathilde.

-- Meu pae, balbuciou Pedro, levantando-se da cadeira e mudando de côr.

-- Não é um crime, pódes confessal-o sem receio.

-- Quem lh'o disse? eu nunca falei n'isso a pessoa alguma.

-- Não negas; ainda bom.

-- Ainda bem!? Que quer dizer?

-- Quero dizer que vou pedir amanhã para ti a mão de Mathilde. Acabarão assim os sustos de D. Luiz e poderão os filhos do meu antigo protector partilhar sem desaire os bens que o meu trabalho só não teria alcançado, se o fidalgo não tivesse auxiliado o plebeu nos tempos em que elle podia quasi tudo e eu quasi nada sem elle. E uma divida sagrada, meu filho, vamos a pagal-a...

Pedro tinha-se outra vez deixado cair na cadeira; as palavras do pae caíam lhe como ferro em braza no peito, e n'aquelle momento, por uma allucinação do espirito exaltado, pareceu-lhe que ouvia o riso mephistophelico do conde de Berville. A desconfiança assaltava-o com mais força desdo que lhe falavam na possibilidade de casar com Mathilde.

-- Então não respondes? disse emfim o pae. Tremes como uma menina que tem medo de ouvir ralhar.

-- Meu pae, é verdade que amo Mathilde e tanto que, sem ella conheço que nunca poderei ser feliz; mas o projecto em que me fala é impossivel. Mathilde tem por mim a mais completa indifferença.

-- Foi ella quem t'o disse? continuou o pae quasi em tom de gracejo.

-- Não é preciso que o diga. Certas coisas não se ouvem, sentem-se, disse o mancebo, animando-se.

-- Pois se tu és poeta! E ter eu de fazer entrar a realidade n'esta cabeça esquentada, disse Rodrigo da Silveira, passando a mão pela testa ardente do filho. Depois continuou: Então julgas que eu queria fazer um romance em que fosse preciso contar até as mais fracas pulsações das arterias dos meus heroes? O que chamas indifferença é naturalmente em Mathilde a reserva propria de uma menina e portanto a meus olhos mais uma boa qualidade, que raras vezes se encontra unida a tanta belleza e a tanto espirito como tem Mathilde. Demais já te disse que não tenho pretenção a ir consagrar pelos laços do casamento a chamma de dois corações, que se consomem um pelo outro, como dizem os poetas, teus irmãos. Mathilde ha de casar com o homem que seu pae lhe escolher, e, como ella é muito virtuosa, podemos estar certos de que terá pelo seu marido toda a consideração e affectos necessarios.

-- Na minha edade não se encara assim o casamento, principalmente quando se ama a mulher que só contra sua vontade viria ser a companheira de toda a nossa vida. E sabe meu pae? Mathilde era capaz de odeiar-me, se a obrigassem a casar commigo. O coração d'aquella mulher é um enigma, que eu estudo ha muito tempo, tremendo de lhe perceber o sentido. Trata-me como irmão ás vezes, mas, se lhe deixo adivinhar a exaltação do meu affecto, vejo-a logo mudar de tom e atormentar-me com uma frieza desdenhosa, que eu não soffreria n'outra pessoa. Mas perdôo-lhe tudo... parece-me que até lhe perdoaria se me obrigasse a commetter um crime, que lhe beijaria a mão com que me arremessasse ao abysmo da condemnação universal, se lá no fundo eu podesse dizer que, ao menos um momento, o seu amor tinha correspondido ao meu. Oh! se eu podesse apagar esta sede immensa que me devora... e Pedro da Silveira, indifferente a tudo e até a presença do pae apertou com desespero a fronte nas mãos como para suster o latejar febricitante do sangue, que lhe queimava as veias.

Rodrigo da Silveira, em pé diante do filho, escutava em silencio as frases apaixonadas que elle soltara, mas a physionomia do velho ainda agora tão indulgente e risonha ia-se transfigurando; o pae deixava a condescendencia o revestia-se da autoridade, o homem energico ia apparecer em toda a magnitude do seu nobre caracter. Começou a percorrer a passos lentos o estreito aposento; a sua pequena estatura parecia desenvolver-se, os olhos animavam-se-lhe atravez dos vidros dos oculos e a sua fronte calva, engastada em anneis de cabellos brancos, mostrava o sello da reflexão e da experiencia, comprado por uma longa vida de luta e de virtude.

-- Pedro, disse emfim o pae, ainda agora eram consultas e projectos, agora são ordens e resoluções. Depois do que me disseste não pódes oppôr-te a que eu peça para ti a mão de Mathilde. Hei de fazel-o ámanhã.

-- E se ella recusar? perguntou Pedro ancioso.

-- A filha de D. Lopo não ha de desobedecer ás ordens de seu pae, e do consentimento d'este estou eu quasi certo.

-- Meu pae, eu não dispenso o consentimento de Mathilde. Sem elle nunca serei seu marido.

-- E quem diz que o não terás? criança que te atormentas com sonhos e fazes da vida um inferno imaginario, onde só a tua loucura é uma realidade. Escuta-me. Se ámanhã a resposta for negativa, exijo que saias de Portugal e que te demores um ou dois annos nos paizes estrangeiros. A ausencia é um grande remedio; é mesmo o unico possivel para doenças como a tua. As viagens são sempre uma luz para o espirito, e n'este caso são tambem um balsamo para o coração.

-- Obedecer-lhe-hei em tudo, meu pae, mas prometta-me que os desejos de Mathilde hão de ser consultados, prometta-me que a não deverei unicamente a uma ordem de seu pae.

-- Prometto. Estás contente agora?

-- Não, meu pae. Receio que todos os esforços da sua bondade sejam inuteis. O coração adivinha, e o meu...

-- Estudou astrologia, não é assim? pois empregou mal o seu tempo. Quero pedir-te um cousa. Anda pelas regiões da lua quantas vozes quizeres, mas falando commigo, resolve-te a pisar a terra, porque eu não tenho azas para subir, e assim, estando tu nas alturas, falamos de tão longe, que é difficil entendermo-nos.

Rodrigo da .Silveira acabou estas frases já no seu tom habitual de fino gracejo.

Pedro beijou-lhe a mão e retirou-se sem uma esperança. O que para outros seria aurora de ventura parecia-lhe prenuncio de tempestade. A situação do seu espirito assimilhava-se á medonha tranquillidade do mar, quando, mudamente irritado, sente preparar-se-lhe no seio a tormenta. Pedro velou toda a noite n'esse estado horrivel, peior do que a morte, porque é mudez sem descanço intimo; no dia seguinte viu sair o pae e confrangeu-se-lhe mais ainda o coração. Saiu tambem pouco depois e começou a andar ao acaso, quasi não conhecia as pessoas que o comprimentavam, não percebia o eterno vae-vem dos que percorriam as ruas, levados pelas multiplicadas occupações da vida social; toda aquella gente parecia seguir um rumo certo, dirigir-se para um fim qualquer: só elle não tinha nada que o prendesse aos interesses da existencia. De vez em quando caminhava muito depressa, como fugindo ás pessoas que via, e no meio das quaes lhe parecia estar como mumia da antiguidade, exposta ás observações dos curiosos, depois moderava o passo como se esperasse que a vida que por todos os lados o cercava podesse visital-o tambem. Pedro viu n'esse dia o conde de Berville e ao encaral-o dir-se-hia que uma vibora o mordera; recuou dois ou tres passos e levando a mão á aba do chapéo para corresponder á amavel saudação do conde, desappareceu pela travessa que mais próxima achou. Luciano seguiu-o com a vista, dando á physionomia uma expressão de comica piedade, que Pedro não chegou a ver.

Rodrigo da Silveira esperava já o filho em casa quando elle entrou pallido, abatido, com as forças physicas exhaustas, mas com o espirito mais tranquillo.

-- Mathilde recusou, não é verdade? -- foram as primeiras palavras do mancebo.

-- Ainda não sei. O pae consente, mas expuz-lhe as tuas duvidas e as tuas exigencias; prometteu falar á filha e dar-me a resposta definitiva dentro em tres dias.

-- Mais tres dias como o d'hoje, meu pae! disse Pedro com um profundo suspiro e como se vergasse ao pezo de uma grande angustia. Esperar, continuou elle, não é nada, quando se tem fé; mas quando se não crê, é horrivel.

-- Pois sim. É tão impossivel metter eu as minhas idéas na tua cabeça, como fazeres tu que eu perceba as tuas. Não admitto que Mathilde se lembre de regeitar o noivo que o pae acceitou. Só se... e o velho calou-se, como se receiasse dizer um absurdo.

-- Só se... amar outro, não é isto, meu pae?

-- Mas não póde ser. Mathilde vive muito retirada. Além da familia, não vê em casa senão tu e o Gonçalo Pereira, que, sem vaidade de pae, não é rival que te deva assustar, atalhou Rodrigo, que persistia em não querer tomar o caso a serio.

-- Não é esse, disse Pedro.

-- Então quem é? Ha de ser naturalmente phantasmagoria d'esse volcão que tens em cima dos hombros em logar de cabeça. Olha, o mundo mimoseia-nos com bastantes contrariedades, sem que precisemos de andar á procura do tormentas invisiveis.

-- Deus permitia que seja phantasmagoria; nunca desejei tanto enganar-me. Um engano era para mim agora a salvação.

-- Mas ainda não me disseste como se chama o teu rival.

-- Chama-se... não, lh'o digo; ainda o não sei com certeza.

-- Sempre criança. E eu a suppôr que tinha já em ti um homem para me ajudar; afinal ainda te não entretens senão com castellos de cartas. Deixemos agora os teus sonhos e vamos ver estes papeis que chegaram hoje; lê os jornaes e marca o que te parecer mais importante, que eu o lerei depois.

XVI

Emquanto o pae e o filho assim estavam conversando, passava-se em casa de D. Lopo uma scena muito differente. O velho fidalgo estava sentado na sua cadeira de braços e occupava-so em esclarecer um ponto obscuro de genealogia, recompondo mentalmente a serie dos seus avós. Entre os illustres ascendentes havia um ou dois, cuja memoria não agradava muito a D. Lopo, mas não descobria meio de os eliminar da frondosa arvore de geração, que lhe ensombrava a fronte. Estas locubrações foram interrompidas pela entrada de um criado, que lhe apresentou n'uma salva de prata uma volumosa missiva. D. Lopo olhou para o sobrescripto e não conheceu a letra, abriu-o e, vendo o nome do conde de Berville no fim da ultima pagina ficou admirado e esfregou os olhos, como se temesse que a vista o estivesse enganando. O pae do Mathilde percorreu a carta, e emquanto a lia as faces iam-se-lhe fazendo lividas, as mãos apertavam em crispações nervosas o papel, os labios desmaiados tremiam-lhe e as rugas da testa tornando-so mais fundas augmentavam ainda a severa expressão da sua physionomia. Finalmente um rubor fugitivo passou pelas faces do velho, e, lançando a carta para longe, tocou com violencia a campainha. Appareceu o mesmo criado.

-- Está ahi o homem que trouxe esta carta? disse D. Lopo, sem poder reprimir completamente a alteração da voz.

-- Não quiz esperar. Disse que v. ex.ª não poderia dar já a resposta.

-- Ah! posso, não tem duvida. Vaes tu leval-a immediatamente. Dá cá uma penna e papel; chega-mo essa mesa. Não poder eu andar!

-- Que mais quer v. ex.ª?

-- Mais nada; eu te chamarei d'aqui a um instante.

D. Lopo ficou só e então o seu rosto exprimiu um paroxismo de inexcedivel colera, emquanto murmurava frases incoherentes o escrevia apressado algumas linhas.

-- Ah? receiava que eu gastasse muito tempo a pensar. Era natural. Uma honra d'aquellas. E minha filha, minha filha animal-o! Em que epoca vivemos, meu Deus!

Eis a carta de D. Lopo:

« Tão nobre e rico senhor deve escolher alliança que lhe não empane o dourado do brazão. N'estes casos não se escondem senão as nodoas; portanto v. ex.ª, querendo desposar minha filha secretamente, considerava como tal este casamento. Permitta-me que lhe não acceite a abnegação. A minha casa é hoje pobre e sem lustre, mas ainda ha de haver homem honrado, que se não envergonhe de entrar n'ella á luz do dia.

«Julgo conveniente dizer-lhe que, mesmo sem a condição do segredo, a sua proposta seria por muitos motivos inacceitavel.

«D. Lopo de Menezes».

O fidalgo mandou logo esta carta ao seu destino, e, chamando a filha, contou-lhe em poucas palavras o que tinha succedido.

-- Mathilde, este homem é um cobarde, que ousou insultar um velho, só porque o vê sem valimento.

-- Meu pae, elle não o fez decerto por mal.

-- Cala-te! disse D. Lopo, fulminando-a com o olhar irado. Não defendas esse ente abominavel, esse aventureiro, que tem levado a vida no seio das mais vergonhosas torpezas. Tu sabias a opinião que eu tinha d'esse homem e permittiste que elle se me offerecesse para genro! Não vias que, emquanto te não envergonhavas de lhe acceitar a mão, elle queria esconder-se para que não vissem que apertava a tua. Eu julgava que a minha filha não era capaz de esquecer a similhante ponto a consideração que deve a seu pae; julgava que não seria ella quem viria com as suas loucuras amargurar mais ainda estes dias já tão tristes e tão chegados ao tumulo. Enganei-me. O ultimo golpe veio d'onde eu menos o esperava; feriu tambem muito mais fundo. Mathilde, olha que o arrependimento é muito pesado, quando temos de arrastar a cruz por toda a vida.

-- Meu pae, meu pae, veja que me mata, soluçou a donzella debulhada em pranto.

-- Eu matar-te! os cadaveres não matam, filha, perdoam... ás vezes. D'aqui a pouco tempo estarás sem pae. Occultam-t'o, mas eu quero dizer-t'o para que vejas bem a gravidade que n'este momento tem para mim tudo quante se refere ao teu futuro.

Devo dispor bem as cousas, porque depois estarei muito longe para as remediar. Antes de morrer queria ver-te casada com um homem a quem amo como a filho. Daqui a um mez serás mulher de Pedro da Silveira. Mathilde ergueu se d'um pulo e, fitando no pae os olhos ardentes, exclamou:

-- Não, meu pae, isso nunca.

-- O teu procedimento a respeito do conde de Berville fez-te perder o direito de seres consultada em similhante assumpto. Ainda esta manhã tinha tenção de ouvir a tua opinião, porque tinha fé no teu juizo, mas agora é inutil da tua parte qualquer resistencia. E preciso que estejas casada o mais depressa possivel.

-- Ouça-me, meu pae. Diga-me que a minha morte lhe é necessaria, e eu morrerei; mas casar com Pedro é impossivel.

-- Impossivel porquê? disse friamente D. Lopo.

-- Porque o não amo.

-- Optima razão, não ha duvida. Estás adiantada em boas idéas. Desprezas a affeição de um homem honrado, que conheces desde a infancia, que tem um coração de ouro, e um caracter nobilissimo.

-- Será tambem nobreza de caracter querer obrigar uma mulher a desposal-o contra os desejos do seu coração e da sua consciencia?

-- É nobreza de caracter perguntar a opinião do pae antes de endoidar a filha, como fazem certas pessoas, que ainda depois se envergonham de confessar ao mundo as obrigações, que d'esse modo contraíram.

-- Pois se Pedro tem nobreza d'alma não ha de querer levar-me ao altar contra minha vontade, e, se assim o fizer alli mesmo protestarei contra simiIhante casamento.

-- Mathilde, não calques aos pés as ultimas vontades de teu pae. O escarneo que lhe atirares ás faces ha de cair sobre a tua cabeça.

-- Eu não posso ser esposa de Pedro. A estima que tenho por elle converter-se-ha em odio no dia em que elle podesse chamar-me sua. Reconheço que tem excellentes qualidades, e é esta mais uma razão para não o querer fazer infeliz, unindo a minha vida á d'elle. Se for preciso direi eu mesma a Pedro que amo outro homem, porque é a verdade e a verdade salva sempre.

-- Não destruas assim o teu futuro, não chames sobre ti o despreso dos que te ouvirem, filha desobediente, e mulher que não respeitas a propria reputação.

-- Meu pae, o desespero justifica muita coisa. Eu vejo Pedro desde criança e habituei-me a estimal-o fraternalmente; a sua presença não alterou nem uma só vez o pulsar do meu coração. Nunca o animei, nem com um simples olhar, nas occasiões rarissimas em que percebi n'elle sentimentos differentes da singela amizade que eu desejava merecer-lhe. Quiz a minha má estrella que eu visse o conde de Berville e desde essa hora fatal pertenceram-lhe todos os meus pensamentos. Os homens podem separar-nos, diante do Deus pertenço-lhe, e julgaria um sacrilegio ir jurar fidelidade a outro homem, quando o meu coração e as minhas idéas o estariam trahindo a todos os instantes.

-- Mathilde, não te quero ouvir por mais tempo. Concedo-te tres dias para mudares essas palavras em outras mais conformes com os preceitos de Deus, que agora mesmo invocaste.

-- Meu pae, é inutil. Dir-lhe-hei, no fim de tres dias, o que lhe disse hoje.

-- Vae-te, Mathilde. Lembra-to de que estás chamando sobre ti a minha maldição, mas os novos principios que te ensinaram talvez mandem tambem desprezar a maldição de um pae.

Mathilde caiu de joelhos, soluçando, mas o pae mostrou-lhe a porta com um gesto de soberana autoridade, dizendo ao mesmo tempo:

-- De hoje a tres dias saberei se ainda tenho uma filha.

A donzella retirou-se para o seu quarto e alli ficou entregue a um desespero, que se approximava da loucura. As situações extremas causam lutas violentas dos bons contra os maus instinctos, e muitas vezes a razão enfraquecida foge d'estas pugnas tremendas. Fica só um cabos onde predomina a idéa, que primeiro pôde desembaraçar-se de entre a confusão geral. Em Mathilde essa idéa era o amor insensato que Luciano lhe tinha inspirado; já se vê portanto qual seria o errado curso seguido pelos seus tumultuosos pensamentos. Cada vez se tornara mais firme na resolução de resistir a todo o transe á vontade do pae, quando uma carta de Berville, escripta depois de recebida a resposta do D. Lopo, veiu ainda convencel-a mais de que tal resolução era a unica possivel. O conde, dando conta á donzella do que se tinha passado, pedia-lhe como ultimo favor que lhe proporcionasse n'aquella mesma noite um meio de lhe dizer um adeus, antes de partir para França, como elle tencionava.

Na carta de Luciano havia amor, desespero, blasphemias e até signaes ainda humidos de lagrimas; pelo menos taes pareceram a Mathilde, apezar de que para a leitora incredula este caso talvez não fique sendo ponto de fé.

Gonçalo Pereira serviu n'este ensejo o conde, communicando a Mathilde o plano que ambos tinham feito. A casa de D. Lopo de Menezes tinha um vasto jardim, no fim do qual se viam as ruinas de uma capella ha pouco incendiada. Na parede meio demolida d'esta capella havia uma porta e uma janella gradeada, que deitavam para o jardim do velho fidalgo. Nas ruinas era facil penetrar porque estavam situadas n'uma escura travessa quasi sempre solitaria, e pouco custaria despregar depois as taboas mal juntas que tapavam a janella. A porta estava fechada e o conde só no outro dia poderia obter uma chave falsa que servisse. Entretanto quiz aproveitar a noite para preparar o terreno como era preciso, afim de realisar o projecto satanico, que n'um momento se tinha desenvolvido na sua mente depravada. Lembrou-se portanto de falar a Mathilde e empregou toda a força das suas supplicas para conseguir que ella estivesse depois das onze horas da noite na fatal janella. Gonçalo Pereira encarregou-se do aplanar todas as difficuldades que podessem surgir.

XVII

Eram dez horas da noite e Pedro da Silveira saía do gabinete de seu pae, onde tinha trabalhado desde o anoitecer. Vendo-se livre, entregou-se outra vez ás suas pungentes reflexões. Ao cabo de alguns instantes pareceu-lhe que abafava dentro de casa, e, embuçando-se n'uma ampla capa saiu sem destino certo; mas por uma attracção, que a poucos amantes parecerá extraordinaria, foi para a casa onde morava Mathilde que se dirigiram os passos de melancolico moço. Era já tarde para ir visitar D. Lopo, mas por mais pueril que o julguem ha uma incomprehensivel delicia na contemplação das paredes que encerram a pessoa amada. Aquellas pedras tomam um caracter sagrado, principalmente á noite quando a olhar do que vela parece proteger o repouso do que dorme.

Tudo isto sentia e pensava Pedro da Silveira, quando de repente viu sair um vulto do uma das ruas proximas, parar ao vel-o e retroceder emfim.

Esta scena repetiu-se mais duas vezes, o Pedro, que julgou reconhecer no vulto uma pessoa muito sua conhecida, dobrou a esquina fronteira á casa de D. Lopo, e foi emboscar-se no vão de uma porta, que alli se lhe apresentou, mesmo de feição para observar, sem poder ser visto.

D'esta vez Pedro da Silveira esperou inutilmente, o vulto não tornou a apparecer. No fim d'algum tempo saiu o mancebo do esconderijo e começou a examinar tudo quanto no logar o poderia esclarecer. A noite, no principio clara, tinha-se carregado muito depois que a lua desapparccera. O azul muito escuro do céo estava semeiado do estrellas, mas o seu brilho reflectia-se pouco na terra. Pedro da Silveira, reduzido á escassa luz de alguns raros candeeiros, lutava com serias difficuldades para perceber o fio do enygma, que se lhe offerecera alli inesperadamente. Entretanto, seguindo o muro do jardim de D. Lopo, veiu a entrar na solitaria travessa em que falámos. Alli um murmurio de vozes, ao principio pouco distinctas e depois mais claras, veiu prender-lhe toda a attenção. As vozes partiam de ao pé das ruinas, e Pedro, levado por uma força irresistivel, encaminhou-se para lá. Escondido pelas paredes derrocadas pôde ouvir o seguinte dialogo:

-- Mathilde, como te amo! És tão linda. Se tu soubesses o que eu sinto quando te vejo ao pé de mim, quando o fogo dos teus olhos me escalda o peito... tinhas compaixão do mim. Fizeste-me tanto mal com a tua innocencia. Ficas indifferente emquanto eu estou louco de paixão, e o conde fitava n'ella o olhar magnetico da serpente, que fascina a cubiçada presa.

-- Se assim fosse estava eu aqui, Luciano?

-- Perdão, querida, disse elle, acariciando a mão da donzella, mas eu não posso ver a resignação com que recusas o que te peço e te resolves a ficar sujeita aos caprichos da tua familia, que te quer lançar nos braços d'aquelle odioso Pedro da Silveira, para pagar assim o que os teus devem ao pae d'elle. Preferes esse sacrificio ao de saciares com o teu amor a sede immensa de affecto, que eu sinto no coração.

-- Escuta-me. Eu nunca serei mulher de Pedro. Morrerei, se for preciso, para sellar o juramento que fiz de não pertencer a ninguem, já que tudo me separa de ti, meu Luciano, meu unico amor, e a apaixonada donzella deixava cair em fio sobre o seio lagrimas da mais funda magua.

-- Não te pedir mais, meu anjo, quando me falas assim! Oh! tu não sabes nada, querida, não sabes o que é uma paixão como a minha, quando ouve confissões d'estas de labios puros como os teus. Juro-to que logo que saires d'aqui um padre abençoará a nossa união. Dize-me, não queres ser minha esposa? julgas que eu poderia enganar-te? Então não me amas, porque se não ama o homem que nos parece cobarde; não amas, porque não crês, Mathilde.

-- Meu Deus, sou muito infeliz! Como ou soffro, Luciano, não digas que não creio em ti, que te não amo... creio... amo-te... enlouqueço... nem eu sei como t'o hei de dizer.

-- Dizendo que has de ser minha, que tens fé na minha palavra, que não me offenderás mais com as tuas recusas. Mathilde, queres que eu parta com o desespero no coração? Porque hesitas ainda?... Tremes tanto. Como são bellos os teus olhos assim húmidos de lagrimas e cheios de amor! São as minhas queridas estrellas; já não póde haver outras no meu céo, depois que ellas o illuminaram.

Mathilde sentia arfar-lhe o peito com violencia, o olhar do amante attrahia-a como um iman fatal, dos labios tremulos saiam-lhe apenas palavras sem nexo, brandos queixumes e recusas ainda mais brandas. O conde, quasi certo de triumpho, cobria-lhe as mãos de beijos e enfeitiçava-a com a eloquencia do seu amor, sincero n'aquelle momento, porque o vencera a seducção da formosissima mulher, que alli via prestes a cair-lhe nos braços, subjugada pela paixão.

Um grito, que parecia resumir todo o soffrimento, toda a angustia, todo o furor que um peito humano póde conter, veiu n'este ponto quebrar o enlevo dos dois amantes, e Pedro da Silveira, surgindo do meio das ruínas, chegou-se ao conde de Berville o bradou:

-- Miseravel!

O conde, passando instantaneamente do extremo do amor ao extremo da colera, lançou-se sobre o imprudente mancebo, e, tirando do peito um punhal, brandiu-o com um impeto satanico. Travou-se ent3o uma luta horrivel. Pedro, que viera desarmado e n'um instante ficara coberto de sangue, tentava arrancar o punhal das mãos do assassino. Os dois, abraçados um no outro, estorciam-se, combatendo com toda a furia de um odio immenso. Pedro tinha enlaçado os dedos om volta do pescoço do conde e, por um movimento nervoso ia talvez estrangulal-o, quando, saíndo-lhe o sangue em jorros de uma ferida mais funda, caiu inanimado, largando a presa. O conde julgou-o morto e, depois de um olhar de ferocissima satisfação, chegou outra vez ao pé da janella, mas já não viu ninguem.

Mathilde, louca de desespero, tinha-se retirado logo ao principio d'esta scena sanguinolenta, sem saber como salvar os dois contendores. Ia gritar pelo irmão, revelar tudo, quando ao entrar em casa as forças a abandonaram e caiu sem sentidos.

Esteve muito tempo immersa n'um profundo lethargo; quando acordou ouviu bater repetidamente a uma porta que da casa communicava para a travessa a que temos alludido, comprehendeu então que tudo se ia saber, e, fechando cautelosamente a porta do jardim, entrou no seu quarto. Alli só comsigo e com a sua consciencia, essa companheira constante da virtude e do vicio, Mathilde chorou amargamente, e estremeceu, lembrando-se do abysmo que para ella poderia estar áquellas horas cavado, se alguem a tivesse visto jazer inerte á entrada do jardim. Mediu a extensão da sua culpa pelo terror que lhe inspirava a idéa de a ver descoberta. Mathilde sentia uma angustia indizivel ao escutar as pancadas, que resoavam cada vez mais apressadas. Era porque um presentimento lhe estava revelando a terrivel verdade.

Afinal ouviu a voz do D. Luiz de Menezes, dando ordem a um criado para abrir a porta, e logo que esta ordem foi executada ouviu falar muitas pessoas que entravam ao mesmo tempo. O tumulto augmentou até que os recem-chegados ouviram a voz de D. Luiz; mas o mancebo tinha dado apenas dois ou tres passos no corredor, quando um espectaculo horrivel o fez recuar hirto o pallido, como se um temeroso pesadelo lhe estivesse torturando a imaginação. Defronte d'elle estava o corpo inanimado de Pedro da Silveira, o sangue tingia-lhe o fato, as mãos tinham a rigidez do cadaver e nas faces lividas não se lhe divisava nem um sopro de vida. D. Luiz, passado o primeiro movimento de surpreza, ajoelhou ao pé do amigo, inclinando-selhe sobre o peito. O silencio era geral. Ao cabo de algum tempo percebeu D. Luiz uma fraquissima pulsação, que veio acordar a esperança, já extincta no coração do todos. Pedro não estava morto. Examinando-o depois viram que as feridas, apezar de numerosas, podiam não ser fataes. A mais funda era ao pé do coração; o conde errara o golpe e foi isto a salvação da sua victima.

D. Luiz levou o ferido para o seu quarto, e um instante depois D. Lopo e Dolores estavam tambem ao pé da cama em que jazia o desventurado mancebo. Só Mathilde não apparecia. No meio do confuso rumor percebera algumas palavras, que, revelando-lhe tudo, exacerbaram o terror e o remorso que lhe enchiam o coração.

XVIII

Os homens que tinham trazido Pedro da Silveira eram militares, todos moços e conhecidos pelas suas façanhas, tanto na guerra como na paz. D. Luiz olhou para elles emquanto uma cruel suspeita lhe assaltava o espirito. Um delles percebendo-o talvez, adiantou-se e disse:

-- Recolhiamos hoje mais cedo que de costume; eram duas horas da manha, correra-nos mal a fortuna e ia cada um de nós pensando na sua vida, sem dizer nada aos outros, quando ao passarmos aqui perto de uma casa arruinada ouvimos gemidos. Seguimos logo todos para o logar onde suppunhamos que alguem estava pedindo soccorro e demos com um homem estendido no chão. Levantei-lhe a cabeça como pude e logo depois elle abriu muito os olhos o tornou a cair sem dar mais signal de vida. A primeira casa que vimos foi esta, batemos á porta e o resto sabe-o o senhor tão bem como eu. Devemos entregar o caso ás indagações da policia e é o que eu vou já fazer. Sabe como se chama o ferido?

-- Chama-se Pedro da Silveira.

-- Ah! o filho do liberal Silveira. Pois escolheu mau logar para morrer; póde vir a incommodar os vivos, disse sarcasticamente um militar, que não olhava com bons olhos para o rosto pallido de D. Luiz.

-- É verdade. Acabar mesmo á porta de um realista dos quatro costados! murmurou outro.

D. Luiz ouvia estas infames suspeitas com mal reprimida colera e replicou:

-- Senhores, Pedro da Silveira é meu amigo intimo e debaixo d'este tecto está tão seguro como se estivesse em casa de seu pae. Deus permittirá que elle ainda possa falar para destruir as calumnias que podem correr a proposito da desgraça aqui succedida esta noite. Ninguem mais do que eu deseja que os assassinos não fiquem impunes, mas não é bem que se accusem innocentes sob pretexto de descobrir criminosos.

Estas palavras foram ditas n'um tom de serenidade, que desarmou as desconfianças dos militares, e um instante depois retiraram-se todos, deixando a consternação no seio de uma familia, que ainda ha pouco repousava sem entrever mesmo em sonhos o drama que bem perto se estava representando.

Começava a raiar a primeira luz da aurora quando Pedro voltou a si, mas não pôde dizer uma só palavra. Apertou as mãos do pae e as de D. Luiz, fitou em Martha um olhar cheio de interrogações, depois de ter procurado com a vista uma pessoa que ainda alli faltava. Mathilde já sabia tudo, mas faltava-lhe coragem para se apresentar diante do homem, que podia com uma só revelação fazer-lhe subir ás faces toda a vergonha, que ella sentia no coração.

Todo o dia soffreu o mancebo dos fallecimentos e accossos da febre, que fizeram impossivel obter d'elle qualquer esclarecimento a respeito do que se passara. Perto da noite Mathilde ouviu o medico dizer a D. Luiz.

-- Agora devemos esperar um accesso maior do que os outros, e é natural que venha acompanhado de um grande delirio.

-- Póde haver esperança de o salvar?

-- Ainda tenho alguma. As crises violentas dão n'estes casos milagrosos resultados.

-- E não podermos ao menos saber quem foi o malvado...

-- Socegue; por emquanto não ha nada perdido. Esperemos que elle viverá para esclarecer tudo.

Estas palavras eram punhaes para Mathilde. E -- estranha aberração d'aquelle caracter -- não era Pedro quem ella mais lamentava; o nome que lhe estava no coração e que ella recommendava á Providencia era o do conde de Berville. Temia mais que tudo ver o nome do amante marcado com o ignominioso ferrete de assassino. Mathilde esquecia que o conde tinha tirado um punhal contra um homem desarmado e chamava defeza ao que tinha sido apenas um cobarde ataque. Quando ouviu o medico annunciar o delirio sentiu que podiam estar proximas as revelações que ella tanto receiava. Mathilde ainda poderia contar com a piedade de Pedro da Silveira, se elle estivesse no pleno uso da sua razão, mas uma vez que esta deixasse de ser governada pelos impulsos da vontade era provavel que uma palavra imprudente fosse como raio de luz para os que a ouvissem.

Para a filha de D. Lopo a accusação que podia pezar sobre a sua familia e até a morte de Pedro eram questões secundarias ao pé do terror com que encarava a possibilidade de ver descoberto o crime de Luciano. Tal era o estado de fraqueza a que a tinha levado o seu louco amor.

XIX

Gonçalo Pereira, sempre sollicito, veiu repetidas vezes visitar o velho fidalgo, cujos padecimento se tinham exacerbado muito com o violento desgosto que estava soffrendo. A noite, antes de falar a D. Lopo, Gonçalo entregou a Mathilde uma carta do conde de Berville. A donzella estremeceu ao lel-a e dentro de seu peito houve ainda um resto de indignação, que, assenhoreando-se d'ella um instante, ia-lhe dando forças para despedaçar a carta, antes de ler o que ella continha. Mas o amor, sempre mais forte na sua organisação apaixonada, reagiu e venceu. Caíam lhe as lagrimas em grossas bagas pelas faces emquanto lia a carta do conde.

«Mathilde.

«Desde hontem a minha vida é um inferno. Aquelle homem era meu rival e insultou-me. Senti que um de nós devia deixar de existir. Dizem-me que ainda vive, e estremeço quando me lembro do perigo que pódes correr, se os labios do Pedro da Silveira se abrirem para revelar a verdade. O facto de se ter encontrado um liberal moribundo ao pé da casa de teu pae tem despertado suspeitas, que os odios de partido recebem sempre favoravelmente. Ainda que Pedro, por um resto de consideração para comtigo, hesito ante a idéa de tornar publico tudo o que motivou o funesto acontecimento da noite passada, renunciará de certo a essa delicadeza quando vir que o seu silencio pode justificar a accusação, que vae pouco a pouco tomando vulto. Vês portanto que deves abandonar esta derradeira esperança. Amanhã ao romper do dia partirei como tencionava. Levarei a morte no coração, se me não acompanhares. Hontem n'um momento de extasi, que eu nunca poderei esquecer, ia-te fugindo dos labios a promessa de me fazeres para sempre feliz, confiando no juramento que ainda agora repito. Serás minha esposa no dia em que saires d'essa casa. É ella o unico obstaculo á nossa felicidade; porque o não destroes dando o passo que deve unir os nossos destinos? Desde que te vi existo só para adorar-te; longe de ti não sei de que será capaz o meu desespero. E Deus não pedirá contas á victima; irá talvez procurar a mão seductora, que, sem piedade, me precipitou no abysmo quando eu lhe implorava o unico auxilio que ainda me podia salvar. -- Tenho uma ultima graça a pedir-te; hoje á meia-noite rogo-te que estejas no jardim, has de ver alli um homem que, antes de se despedir para sempre do mais bello sonho da sua vida, quer pedir-te perdão por ter vindo perturbar a tranquillidade da tua alma angelica. Não virás, Mathilde, dizer-me o ultimo adeus? Quererás que eu parta, amaldiçoando o coração, que só tem forças para amar-te, e que não me poderá dar um só instante de coragem para fugir de ti? Não; has de querer que eu leve ao menos a recordação de uma lagrima, que tu, pensando no meu infortunio, deixes cair d'esses olhos tão promptos em seduzir e tão esquivos quando deviam pagar com meiguice a paixão que inspiraram. Até logo, Mathilde, não queiras ser a mão amaldiçoada, que na ultima hora do agonia chega aos labios do que padece a esponja molhada em fel. Até á morte teu « Luciano ».

Mathilde ao acabar do ler a carta de Berville ficou perplexa. Não admittiu nem por um instante a idéa de o acompanhar a França. Entretanto a filha de D. Lopo era excessivamente romantica e n'este momento decisivo devia esperar-se que não desapparecesse a bossa predominante do seu caracter. Mathilde além d'isso amava devéras o conde e acreditava ingenuamente que o amor de Berville estava purificado como o d'ella no crysol das paixões ultra-ideaes. A sua indole apaixonada fazia-lhe entrever ás vezes horisontes soberbos, coloridos pelas seducções mais inebriantes do amor, mas a educação tinha-lhe arraigado no espirito principios e crenças que difficilmente se esquecem. O conde de Berville não comprehendia esta influencia que prejudicara por vezes os seus bem traçados planos.

Deram onze horas da noite e D. Luiz de Menezes, pedindo a todos que fossem descançar, encarregou-se de velar ao pé do amigo, que então estava entregue á mais completa prostração, precursora do delirio, que algum tempo depois devia manifestar-se em movimentos e palavras desordenadas.

D. Lopo de Menezes tinha tambem n'aquella noite um enfermeiro officioso, Gonçalo Pereira, que nenhumas instancias poderam arredar de ao pé do velho fidalgo, a cujas lamentações respondia com interminaveis discursos.

Tinha cessado todo o bulicio, que, nas casas habitadas por muitas pessoas, precede á noite a perfeita quietação e ainda Mathilde velava, sem poder sair das incertezas que a torturavam. Pallida e abatida pela vigilia, com o cabello em desalinho e o gesto demudado, a donzella parecia a muda estatua da angustia no grau em que ella se approxima já da loucura. Fazia compaixão vel-a de joelhos, com as formosas tranças caidas, as faces banhadas em lagrimas e torcendo as mãos nos impetos do seu immenso desespero. Era uma dôr horrivel a que lhe devorava n'aquelle momento o coração. Soou meia-noite e a donzella poz-se de repente em pé, como se mão occulta a tivesse levantado. Na sua imaginação exaltada pela febre cruzavam-se medonhos phantasmas, as paredes do quarto parecia-lhe que se iam abater sobre ella e os moveis afigurava-se-lhe que os via sair dos seus logares para a prenderem no circulo traiçoeiro de uma dança satanica. Apertava a fronte nas mãos e corria para a porta, mas alli esperavam-n'a novos terrores. Era o rosto livido do pae, o vulto severo do irmão, a figura ensanguentada de Pedro, eram as lagrimas da mãe que a enlouqueciam com um aspecto cheio de silenciosas mas tremendas ameaças.

Estas lutas renovaram-se muitas vezes, até que Mathilde, olhando para o relogio, viu que já tinha passado um quarto depois da hora aprazada. Então, lembrando-se das ultimas palavras da carta de Luciano, a donzella abafando todas as recriminações da consciencia, e, suspendendo para assim dizer o pensamento, ouviu só a voz do amor. Atravessou com ligeiros passos o corredor e ia dar volta á chave da porta do jardim quando percebeu que a tinham fechado em falso. Viu n'isto a mão da Providencia, que lhe facilitava a caminho e entrou mais resoluta na rua fronteira toda orlada de acacias. O ar fresco da noite veio dispersar as sombrias visões que antes lhe tumultuavam na cabeça e foi já com passo firme que se encaminhou para o logar onde devia dizer o ultimo adeus ao desesperado amante. Quando Mathilde chegou ao meio do caminho viu o conde de Berville, que se lhe ajoelhava aos pés. Nâo o esperava alli; contava vel-o ainda atravez das grades que na vespera tinham presenciado as scenas já descriptas. E entretanto o enygma tinha facil explicação. Luciano não era homem que se assustasse com difficuldados grandes, quanto mais com uma que se reduzia á posse de uma chave; foi já com ella na mão que se dirigiu para as ruinas e sem vacillar ante a possibilidade de pisar o sangue que o seu punhal derramara na vespera, o conde abriu a porta que dava para o jardim de D. Lopo e entrando n'elle esperou Mathilde. Outras disposições tinha ainda tomado o conde para que lhe não escapasse a presa, mas ainda é cedo para as mencionar.

A donzella toda enleiada e sentindo que perdia o imperio sobre a sua razão, deixou-se cair em cima de um banco, procurando retirar as mãos, que o conde cobria de osculos apaixonados.

-- Fugires-me agora?! não é possivel. Os anjos quando nos levam comsigo ás ethereas regiões não se arrependem no meio do caminho, não nos precipitam quando já começamos a respirar a pura atmosphera que os rodeia. Olha, Mathilde, seria para mim mais facil morrer aqui a teus pés do que deixar-te ir outra vez para longe.

-- Luciano, pelo nosso amor te peço que me deixes, supplicava a donzella cheia de susto.

-- Pelo nosso amor, querida? Então que seria o nosso amor se tu me fugisses? A desgraça de toda a minha vida e eu não a soffreria de corte sem que tentasse pôr-lhe cobro com a morte. E tu ainda me pedes que te deixe, agora que mais do que nunca o meu amor exige que sejas minha! Essas tuas duvidas não te vem do coração, porque esse é meu, não é verdade, Mathilde?

-- Por piedade, Luciano, se o conheces tão bem, porque te não compadeces da sua criminosa fraqueza?

-- Criminosa, meu anjo?

-- Sim, porque todos os deveres nos separam.

-- Quaes deveres, querida? Se to eu disser que logo, d'aqui a um instante, estaremos na presença de um padre que nos abençoará, se eu t'o jurar ainda outra vez, recusarás sempre?

-- Não me comprehendes. E meu pae e todos os meus?

Luciano levantou-se subitamente. O seu gesto, transfigurando-se, perdeu toda a expressão de meiguice, e nos olhos já não lhe fulgurava senão raiva concentrada.

-- Perdão, minha senhora, disse elle, vejo que tem razão; não a comprehendi até agora, só n'este momento percebo tudo. E justo. Deve alliar-se aos homens que vão bem depressa perseguir-me, póde até ajudal-os com revelações importantes. Pedro da Silveira ha de perdoar-lhe quando a vir empenhada na minha perdição. Para que partilhar os perigos de um homem que tudo arriscou, fiado nas promessas de um amor imaginario? Deus queira que no meio das mil venturas que a esperam aqui, nunca a atormento o remorso do ter sacrificado a um sentimento de puro egoismo o homem que a amou até á loucura do commetter um crime por por sua causa.

E Luciano, comprimentando-a com altivez glacial, dirigiu-se lentamente para a porta que tinha deixado aberta. N'este momento, Mathilde, que o escutara silenciosa, correu para elle e detendo-o murmurou com voz entrecortada pelos soluços:

-- Perdão, Luciano, perdão!

Elle voltou-se e apontando para a casa mostrou-lhe uma luz, que apparecera subitamente á porta que Mathilde tinha cerrado antes de entrar para a rua das acacias. A donzella olhou e comprehendeu então que já era tarde para recuar; tinham dado pela sua falta e vinham talvez procural-a. Percorreu-lhe as veias um frio mortal e caiu desanimada nos braços do conde, que já se estendiam para a amparar. Luciano desviou as ondas de cabello que cobriam a fronte da donzella, e beijou-a apaixonadamente, dizendo:

-- É minha, emfim... Já não ha poder que m'a possa roubar.

Levantando nos braços a donzella inanimada, Berville saiu do jardim, fechou cuidadosamente a porta e atravessando as ruinas chamou alguem em voz baixa. Appareceram logo dois homens e instantes depois Mathilde ainda desmaiada repousava ao lado do conde sobre as almofadas de uma carruagem.

Estava tudo acabado. A má estrella triumphara ainda uma vez; ia abrir-se uma era de amarguras na vida da desventurada filha de D. Lopo de Menezes.

XX

Agora voltemos atraz e vamos esclarecer alguns pontos que ficaram obscuros na precedente narração.

Na manhã seguinte á noite em que Pedro da Silveira foi ferido, estava Gonçalo Pereira gozando ainda as delicias de Morpheu, quando lhe vieram entregar um bilhete muito laconico do conde de Berville. Dizia elle:

«Venha ja; preciso falar-lhe immediatamente».

Gonçalo achou a ordem desagradavel e mais ainda o tom decidido com que lh'a davam, mas por motivos só d'elle conhecidos e provavelmente justos, não se lembrou de desobedecer e foi-se vestindo com a possivel brevidade; em menos de uma hora estava em casa do conde. Este recebeu-o reclinado sobre um sophá e com a physionomia visivelmente alterada. Luciano estava muito pallido e os seus olhos fatigados traíam a vigilia da noite. O conde não se tinha deitado desde a vespera; já sabia que Pedro da Silveira poderia escapar á morte e conhecia que era prudente sair de Portugal. Ora para isto havia só um obstaculo, mas este obstaculo era dos que só o tempo ou a violencia podem destruir. O conde cada vez mais louco pelo amor da donzella, que tantos perigos lhe custara, tinha já commettido por elle um crime. N'estas coisas o primeiro passo é o mais difficil, depois já se não vacilla, se a consciencia não é melindrosa, como de certo não era a do conde de Berville. Luciano queria partir para França, mas não lhe consentia a paixão que partisse sem Mathilde. Eis o dilemma que o tinha preoccupado toda a noite. O seu espirito cançado não lhe suggeria senão pessimos planos e o conde, perdido num labyrintho de idéas contradictorias, via fugir-lhe a serenidade d'animo que o acompanhara em toda a vida. Foi então que se lembrou de Gonçalo Pereira, cujo talento conhecia por experiencia cara, mas proveitosa.

-- Já sabe as novidades d'esta noite? disse voltando-se para elle e falando-lhe com o habitual desdem.

-- Não sei nada; então que houve?

-- Eu lh'o digo. Ia matando esta noite Pedro da Silveira.

-- V. ex.ª! disse Gonçalo, tão admirado da noticia, como do fleugma com que o conde lh'a dava.

-- É verdade, e devo dizer-lhe que não foi por minha culpa que não acabei a obra tão bem começada. Ainda não sei como errei o golpe... Foi a primeira vez, accrescentou elle com olhar sinistro.

Depois continuou tranquillo:

-- Sabe que se defendeu bem, apezar do não ter pau nem pedra, aquelle poeta enfezado?!

-- Mas eu não comprehendo. V. ex.ª diz coisas, que deveras...

Então o conde sorrindo, contou-lhe em poucas palavras o que tinha acontecido.

-- Agora se v. ex.ª não foge está perdido. Que desgraça! Ainda se o golpe tivesse sido mortal...

-- Mas como não foi, é inutil pensar n'isso. Diz bem; não posso ficar aqui. Falemos de Mathilde; sem ella não saio de Lisboa.

-- Isso é que eu não esperava de v. ex.ª. Um homem de juizo perder-se por causa de uma mulher; é o que falta por esse mundo.

-- Olhe que eu, apezar de perdido, ainda terei com que pagar-lhe os serviços, sr. Gonçalo Pereira. É inutil tentar dissuadir-mo. Jogarei a partida até á ultima carta.

-- Mas que tenciona fazer? disse Gonçalo já intimidado pela replica do conde.

-- O que hei de fazer, ha de dizer-m'o o senhor; foi para isso que o chamei.

-- Eu?!

-- Sim senhor. O pae de Mathilde recusou-m'a; eu não posso viver sem ella. Esta noite hei de partir e não a quero deixar aqui. O que hei de então fazer?

-- Leval-a, respondeu socegadamente Gonçalo, que já tinha pensado no caso emquanto o conde passeiava todo entregue a um phrenesi invencivel.

-- Pois sim; mas como fazel-a sair d'aquella casa, agora principalmcnte que tudo lá deve estar cheio de desconfiança?

-- Sim; deve haver por lá grande alvoroto; serve-nos perfeitamente, deixe-me reflectir um pouco.

O conde continuou a passeiar e Gonçalo ficou todo entregue ás suas reflexões; no fim d'alguns minutos levantou-se radiante d'alegria.

-- É para hoje, disse elle, que lhe prometteram a chave das ruinas?

-- É; hoje ao meio dia estará aqui.

-- E á meia-noite estará v. ex.ª no jardim de D. Lopo.

-- Mas que adianta isso, se Mathilde não vae lá? Depois do que se passou esta noite, mulher como ella é em toda a extensão da palavra, bem vê que não põe tão cedo os pés no jardim.

-- Não põe? Isso é o que diz. E se v. ex.ª lhe escrever uma d'aquellas cartas que ella lê a chorar, pedindo que lhe deixe dizer adeus?

-- Então ella não ha de saber a verdade? perguntou o conde.

-- Não sei para quê, disse Gonçalo, em tom de superioridade.

E devéras tinha razão de falar assim, porque dos dois era elle o superior em velhacaria.

-- Pois bem, escrevo e depois?

-- Depois v. ex.ª está no jardim á hora combinada e eu fico em casa de D. Lopo sob pretexto de ajudar a tratal-o, como já tenho feito algumas vezes. Sempre é bom para o que der e vier.

-- Mas se ella não quizer seguir-me? Eu conheço-lhe muito bem o genio; sei que resistirá e a violencia é perigosa nestes casos, principalmente sendo o jardim tão proximo de casa e sendo natural que esteja alguem velando os dois doentes.

-- Eu estou lá, como disse, respondeu Gonçalo. Em faltando um quarto para a uma hora, espreito para ver se os avisto no jardim e então se me parecer que o meu auxilio é necessario, vou a casa, trago luzes e farei como se desconfiasse d'alguma cousa e estivesse empenhado em a descobrir. Não lhe dê tempo para que ella me conheça, assuste-a dizendo-lhe que tudo está descoberto e que fica para sempre perdida. Verá que ella então não resiste mais, conhecendo que tudo é inutil.

-- Bem dizia eu que me havia de arranjar um bom plano. Esse a falar a verdade é d'uma simplicidade admiravel. Mas, accrescentou elle empallidecendo muito, se Pedro da Silveira tiver já falado, se se souber tudo? Hão de guardal-a á vista, e depois?

-- Tem razão, disse Gonçalo visivelmente contrariado, mas eu vou já daqui para lá ver o que se passa e dar-lhe-hei conta de tudo. Se os ares se turvarem conte commigo. O caso ainda não é desesperado. Infelizmente o malvado tinha razão; não havia motivo para desespero. Provou-o demasiadamente o exito do seu atrevido plano.

XXI

Gonçalo Pereira emquanto percorria com uma luz na mão uma das ruas lateraes do jardim, sentiu fechar a porta que dava para as ruinas; era o conde que levava a sua victima. Voltou logo para casa, entrou no quarto de Pedro da Silveira e demorou-se alli mais de uma hora a acompanhar na vigilia D. Luiz de Menezes.

O mancebo encostado á cama do amigo, deixava apparecer no rosto signaes bom evidentes da luta que lhe dilacerava o intimo d'alma.

Pedro murmurou primeiro palavras inintelligiveis, mas de repente desfigurou-se-lhe a physionomia com um d'esses raios de loucura que gelam o coração de quem os contempla, e rindo-se convulsamente começou a falar mais claro.

-- Era noite, dizia elle, uma noite tão escura, meu Deus, como agora... é tudo noite para mim depois que ella... mas não é verdade... Amar aquelle homem! mas se eu ouvi... olha Pedro, tu ouviste, não é verdade? Ella dizia -- amo-te... e elle... elle beijava-lho as mãos e mentia-lhe. Oh! se mentia! Foi então que eu... depois elle... Cobarde... Eu tinha só as minhas mãos... E ella estava alli... não disse nada, nem um grito... Eu já tinha adivinhado tudo. Aquella rosa, aquelles beijos... Oh! meu Deus, eu já não tenho sangue... bebeu-m'o todo aquelle miseravel. Foi o que eu lhe chamei. E o meu sangue tambem a ha de manchar a ella, quando tocar a mão d'elle, quando lhe chamar seu... Que mulher! Que maldição a minha! E eu amo-a! Elle fazia bem... queria arrancar-me o coração, este coração fraco que se deixa dominar assim. O meu orgulho de rapaz, que é d'elle? Tudo sacrifiquei áquella mulher... e ella... Vae-te Mathilde, o conde espera-te... olha o assassino que te estendo os braços... vae, vae... Que nome este -- Berville!... tenho-o oscripto em letras de fogo no coração... escreveu-o elle com o seu punhal... foi aqui -- e o desgraçado lançava as mãos ás ligaduras das feridas e queria arrancar tudo.

D. Luiz sentia um frio de morte a percorrer-lhe as veias. As palavras do amigo eram pronunciadas no meio do delirio, mas D. Luiz estabelecendo entre ellas um certo nexo, entrevia n'uma d'essas desventuras que a imaginação não sonha sem invencivel terror.

D. Luiz sabia que a irmã amava o conde. D. Lopo tinha-lhe lido a carta de Berville e foi recordando-se d'ella que percebeu melhor as palavras incoherentes do amigo.

O irmão do Mathilde pediu a Gonçalo Pereira que fosse chamar um dos criados para o ajudar a conter o pobre febricitante. Gonçalo levantou-se logo, mas ao entrar no corredor recuou com mostras de assustado. Pela porta aberta viam-se as arvores do jardim e o céo cheio de estrellas.

-- Sr. D. Luiz, sr. D. Luiz! gritou elle com a mais bem fingida anciedade.

-- O que é? Pelo amor de Deus, não grite assim.

-- Aquella porta... está aberta, v. ex.ª não vê? Esta noite a tentativa de assassinio foi feita ao pé do seu jardim. Ha inimigos occultos que tramam a ruina d'esta casa, sr. D. Luiz.

-- Socegue, talvez fosse algum dos criados que a abrisse. Vamos a ver, e o mancebo chegou á porta e chamou em voz baixa e depois mais alta; vendo que ninguem lhe respondia de fóra, fechou a porta e voltou para ao pé de Gonçalo que tremia a bom tremer. Já estavam ambos rodeados pelos criados que tinham acudido aos gritos de Gonçalo e até Dolores tinha acordado sobresaltada e saíra do seu quarto. D. Lopo, preso na cama, gritava que lhe explicassem o que succedia e ninguem sabia responder-lhe. Rodrigo da Silveira, que tinha tambem ficado em casa do velho fidalgo corria para ao pé do filho. No meio do alvoroço geral, só D. Luiz permanecia tranquillo, procurando serenar todos os espiritos.

Deu-se busca a toda a casa e só faltava entrar no quarto de Mathilde. Todos se admiravam ao ver que só a donzella não apparecia. Bateram repetidas vezes á porta do seu quarto, e ninguem respondeu; viram então que estava só fechada no fecho e Dolores entrou seguida pelo filho. Um minuto depois D. Luiz tinha a mãe desmaiada nos braços e vacillava livido como se um ferro ardente lhe tivesse entrado no coração. Não tinham encontrado ninguem no quarto.

Só D. Luiz comprehendeu toda a extensão da sua desgraça, porque lhe lembravam as palavras de Pedro da Silveira.

O infeliz irmão, prostrado pela dôr, não podia soltar nem um grito, nem uma palavra. Quando voltou a si e correu a dar ordens para que não dessem a seu pae a fatal noticia, era tarde. As exclamações dos criados e as lamurias de Gonçalo Pereira tinham chegado ao quarto do D. Lopo. As primeiras palavras do filho, respondeu elle já agonisante:

-- Amanhã findava o praso de tres dias que eu lhe tinha marcado para casar com Pedro ou para me matar com a sua desobediencia. Preferiu matar-se... Que Deus lhe perdoe.

-- E tu, Lopo? perguntou Dolores, ajoelhando lavada em lagrimas ao pé do leito do marido.

-- Eu? manda chamar um padre, Luiz. A minha ultima hora está proxima.

Fizeram a vontade ao moribundo. O confessor demorou-se largo tempo com elle; quando saiu, mal podia conter as lagrimas, que lhe marejavam os olhos. Com a uncção evangelica das suas palavras tinha conseguido desviar da fronte da filha criminosa a maldição paterna, mas o padre era homem e não tinha podido contemplar sem compaixão a horrivel agonia moral, que levava D. Lopo á sepultura.

No dia seguinte pela manhã as torres de uma das freguezias de Lisboa dobravam a finados. D. Lopo tinha morrido. Ao mesmo tempo um navio saía do porto de Lisboa. Quando ia perto da barra, uma mulher vestida de preto subiu ao tombadilho, e d'ahi disse um ultimo adeus á patria. Era Mathilde. Na sua fronte pallida viam-se as sombras de uma profunda tristeza, os labios desmaiados tremiam-lhe convulsamente e a brisa do mar seccava-lhe no rosto lagrimas mais amargas do que as ondas do oceano. O conde de Berville estava ao lado de Mathilde, affagava-lhe os cabellos e enlaçando-lhe com o braço a delgada cintura, dizia-lhe phrases cheias da mais carinhosa paixão. A filha de D. Lopo não respondia; perdida nas suas pungentes reflexões ficava estranha a tudo o mais. Luciano, percebendo o que lhe avivava as saudades, fel-a descer para a camara e não a deixou mais subir ao tombadilho, senão quando avistaram as costas da França.

Deixemol-os por emquanto e vejamos o que se passa em casa da familia de D. Lopo.

XXII

Tinham passado seis mezes, e D. Luiz estava só com sua mão na vasta sala onde já o temos visto mais vezes. Ia-se approximando a noite. A chuva batia com violencia nas altas vidraças e trovões repetidos echoavam ao longe. O mancebo ainda de luto não pronunciava uma palavra. A serena gravidade da sua physionomia parecia ter ainda augmentado, e misturava-se-lhe agora não sei que nuvem de intima tristeza. Tinha soffrido muito n'aquelles ultimos tempos e a sua dôr fôra sempre silenciosa. Os caracteres como o d'elle não esvaem as maguas em alluviões de palavras; deixam-as minar o coração em angustioso silencio. A morte do pae, a fuga de Mathilde, a ruina quasi total da sua casa, a contradicção entre os seus verdadeiros principios politicos e aquelles que tinha por dever de sua honra ostentar, tudo isto abatia o animo do filho de D. Lopo. Quando D. Luiz pensava no conde do Berville e nos dois acontecimentos fataes de que este homem tinha sido causa, não podia vencer um intimo desejo de vingança. Mas D. Luiz olhava para a mãe, lembrava-se de Martha e murmurava: não posso. Tinha tornado mais de uma vez a falar a Pedro da Silveira nos inconvenientes que teria para Martha o casamento projectado no tempo em que a familia de D. Lopo não estava ainda tão perseguida pela adversidade, mas Rodrigo não o queria ouvir, ou perguntava-lhe se já não amava sua filha. A este ultimo argumento calava-se D. Luiz, que a amava ainda mais desde que a morte e a desgraça tinham diminuido tanto o circulo dos seus affectos. Entretanto não se resolvera ainda nada a tal respeito, quando Dolores acceitou a missão de acabar com os escrupulos do filho.

Começou, dizendo-lhe com um sorriso:

-- Vae-se preparando uma noite horrivel, não poderás ir ver Martha.

-- Se minha mãe me dispensar a companhia, não será decerto nem a chuva nem os trovões que me impedirão de sair de casa, respondeu o mancebo saindo da sua profunda meditação.

-- Isso sei eu, mas se não te dispensar a companhia com medo da tempestade?

-- Ficarei então, minha mãe.

-- Pois sim, mas ha um meio de acompanhares tua velha mãe, sem deixares de ver Martha. Rodrigo da Silveira falou-me hontem e disse-me que desejava que o casamento se fizesse este mez. Não deves hesitar mais tempo.

-- Bem sei que não devo. Minha mãe, eu nunca fui sonhador, nunca me importaram presentimentos, mas ha seis mezes que dia e noite me não sae da cabeça a idéa de que vou fazer Martha infeliz, unindo as nossas duas existencias.

-- Que dizes, Luiz?

-- Não continue, disse elle, lendo-lhe nos olhos o pensamento. Martha é uma creatura angelica e eu amo-a como tal. Nunca a imagem de outra mulher veio desviar o meu coração do affecto immenso que só ella soube inspirar-me. Mas a idéa de ir dever tudo á sua familia e ainda mais o receio de que ella venha a achar-se infeliz na obscura situação em que terá de viver casando commigo, tudo isto faz com que eu tenha desejado esmagar de todo o coração persuadindo Rodrigo da Silveira de que devo velar melhor pelo futuro da filha. O meu amor dar-me-ia forças para todos os sacrificios, menos para ver desgraçada a meu lado a unica mulher a quem poderei dar o nome de esposa.

-- Dar-te-ia tambem forças para a matar? perguntou Dolores fitando no filho um olhar cheio de branda autoridade.

-- Para a matar!

-- Sim; não vês como ella vae definhando todos os dias; não percebes o desgosto que a vae minando! Ella não diz nada, não se queixa, mas eu percebo tudo e Rodrigo tambem. Martha não comprehende as tuas duvidas, imagina que ellas provém do motivo que mais lembra a um pobre coração de mulher. Julga que tem uma rival. Vê como para a salvares a estás matando.

-- Oh! minha mãe, porque m'o não disse mais cedo! E eu tambem já começava a duvidar d'ella. Agora percebo a frieza, o constrangimento com que ás vezes me recebe, a desegualdade que ha tempos noto no seu caracter. Vê, minha mãe como nos enganamos ambos. Eu cuidava que Martha se ia arrependendo de que tinha promettido e ella julgava-me já ingrato á sua tão nobre e tão desinteressada affeição. Era esta duvida que me detinha muito mais do que todas as outras. Ainda bem que tudo se esclareceu. Um raio do alegria illuminou a fronte do mancebo, emquanto continuava com alvoroço: Minha mãe não se engana? eu ainda sou para Martha o noivo escolhido do seu coração?

-- Ainda, meu caro ingrato, respondeu da porta uma pessoa, que n'aquelle instante acabava de entrar.

A mãe e o filho, embebidos na conversação que tanto os interessava, não tinham ouvido o ruido do uma carruagem, que parara no pateo da casa.

-- Tu aqui, Pedro, e a escutares! disse D. Luiz, apertando a mão do amigo, sem disfarçar o jubilo que lhe enchia a alma.

Pedro sorriu-se e respondeu em voz baixa:

-- Martha veio tambem. íamos a entrar quando te ouvimos falar tão bem della; não podemos resistir e escutámos.

D. Luiz já não quiz ouvir mais, correu á sala próxima e viu Martha com as faces banhadas de lagrimas emquanto um sorriso indefinivel lhe brincava na formosa bocca.

-- Martha, disse D. Luiz, ajoelhando diante d'ella, perdoas-me? Agora já sabes tudo.

-- Perdoo, meu Luiz, e tu perdoas tambem as minhas loucas desconfianças?

Responderam-lhe palavras de estremoso affecto e a donzella radiante do ventura dirigiu-se para a sala pela mão do noivo. Ajoelharam ambos diante de Dolores. A viuva de D. Lopo ergueu os olhos ao céo e deixou cair as mãos sobre as duas frontes que se inclinavam respeitosas para ella.

Rodrigo da Silveira chegou depois. Dolores contou-lhe o que se tinha passado. O santo velho sentiu que lhe retiravam ura peso de sobro o coração e abraçou o noivo de sua filha. Seguiu-se uma d'estas scenas de familia que nenhum pincel descreve; o coração adivinha-as quando escuta a voz dos seus melhores instinctos, das cordas que dentro d'elle resoam vibradas pelas puras alegrias, que, filhas dos grandes affectos, Deus deixa ás vezes passar na terra como mensageiras aladas das celestiaes venturas.

Só Pedro da Silveira permanecia triste no meio do contentamento geral. Sentado numa das extremidades da sala, folheava distrahido um livro. Seis mezes de dôr tinham feito do moço de vinte e nove annos um homem quasi de quarenta. Cortavam-lhe a fronte duas rugas profundas, alvejavam-lhe muitos dos cabellos e nos labios cerrados tinha a expressão cheia de melancolia, que traz o habito das longas e silenciosas meditações. Pedro estivera dois mezes em perigo de vida, porque uma imprudencia de Gonçalo Pereira, dando-lhe a conhecer tudo quanto ainda ignorava a respeito de Mathilde, veio augmentar a gravidade dos seus padecimentos physicos exacerbando-lhe a excitação moral.

Teve depois uma longa convalescença e quando o vimos ao pé dos noivos ainda a sua saude inspirava cuidados. Queriam que elle fosse viajar, mas Pedro recusava sempre, assegurando que em toda a parte o perseguiria o seu cruel padecer, pois que o sentia n'alma.

-- A morte seria para mim um grande allivio, dizia elle a D. Luiz, mas conheço que é egoismo não fazer um esforço para viver. Sinto agora que o suicidio não é senão a moeda falsa da coragem. Devemo-nos todos a todos. Acceito a vida como um dever, já que não posso prezal-a como uma ventura.

No caracter de Pedro havia uma differença notavel desde que o calice das amarguras lhe chegara aos labios. O poeta, o scismador tinha conhecido verdadeiras angustias; os seus sonhos já não eram tão vagos, a sua imaginação já não se elevava tão ligeira, impellida pelo sopro ardente do enthusiasmo; envolvera-o uma mortalha. O mundo parecia-lhe uma vasta scena onde se representava o mais triste dos espectaculos, unindo-se os brados da tragedia ao riso convulso da farça. No meio d'este cahos achava-se elle extraordinariamente isolado. Quando vemos morrer no coração um grande affecto, o primeiro que excedeu todos os outros, morre tambem a innocencia do sentimento, o perfume virginal da alma que se dá toda inteira. Pode haver depois outros affectos profundos, mas nenhum d'elles se esquiva á analyse da reflexão. Não aconteceu a Pedro da Silveira como a muitos infelizes a quem um grando desengano tornou para sempre egoistas.

Apagaram-lhe n'alma as chammas do juvenil ardor, mas as cinzas restantes deviam mostrar sempre que alli houvera um immenso volcão. E entretanto morrera para elle toda a esperança. A viuvez d'alma não tem consolações, não as deseja, nem as procura, não quer acabar, compraz-se na propria dôr, porque tudo lhe parece escarneo ao pé do que perdeu. Tal devia ser a vida de Pedro da Silveira; antevia-o elle junto ao tumulo da sua extincta mocidade, dos seus dias cheios de luz, das suas tardes embalsamadas, e das suas noites serenas, povoadas pelos sonhos do seu inmenso amor. São tristes estas horas em que a alma se despede das suas illusões mortas, procurando costumar-se ao frio do sudario que ha de arrastar até ao tumulo pela arida senda da quasi completa indifferença.

D'ahi a um mez casou D. Luiz com a filha de Rodrigo da Silveira. O contentamento do honrado velho era sem limites. Pagava n'aquelle dia tudo quanto devera ao velho fidalgo e via cumprido o mais querido desejo dos seus ultimos annos. Pedro fez o que pôde para encobrir o luto que lhe pesava n'alma ainda aggravado pelo pungente espinho que o aspecto das festivas nupcias lhe cravava no coração.

XXIII

Era ao sol posto de um formoso dia de verão.

N'uma das provincias menos importantes da França, viam-se as ruinas de um palacio, outr'ora padrão de bellezas architectonicas. Só um dos lados de edificio conservava ainda inteiros os muros e as fundas janellas, todas rodeadas de primorosas esculpturas, cujo lavor delicadissimo era um solemne triumpho da arte. N'este lado do palacio havia vestigios de reparos muito recentes; era o unico habitado. Extensas avenidas iam perder-se em brenhas selvaticas onde a mão do homem não entrava desde muitos annos. N'uma d'estas avenidas á sombra d'arvores seculares passeiavam Mathilde e o conde de Berville. Ao chegar perto de uma das clareiras do bosque deram com uma capella mal acabada de reconstruir.

O conde voltou-se para Mathilde, cujo olhar o interrogava e disse:

-- Era uma surpreza que te queria fazer. Não costumamos vir tão longe; nunca desconfiaste, não é assim? E grande a distancia d'aqui á aldeia. Fraca e doente como estás faz-te mal ir alli tantas vezes para ouvir missa. Poderás ouvil-a nesta capella, que brevemente estará prompta.

-- Obrigada, Luciano, disse Mathilde, cuja surpreza cada vez crescia mais.

-- Julgavas-me herege, não é assim? Admiras-te de que eu tivesse a lembrança de reconstruir este altar? Tens razão. Tambem não quero que me consideres convertido. O meu fim é apenas ver-te mais contente, ha tres mezes que estamos aqui e quantos sorrisos tenho eu visto n'esses labios, que se quizessem podiam fazer-me adivinhar o céo? E os teus olhos, Mathilde, sempre cheios de lagrimas. Oh! não me interrompas; bem sei que não choras diante de mim, mas cuidas que não adivinho, que não percebo tudo? Dize-me, querida, és feliz aqui?

-- Feliz, eu! e Mathilde escondeu as faces nas mãos emquanto lagrimas ardentes corriam de seus formosissimos olhos.

-- Bem sei que o não és, disse o conde sem poder disfarçar a impaciencia que lhe fazia tremer a voz. Mas, continuou elle animando-se, fazes-me ao mesmo tempo infeliz a mim. Amei-te quando te vi graciosa, cheia de vivacidade, promettendo mudamente ao homem que amasses fazer-lho da vida um jardim todo encantos e prazeres. Hoje amo-te ainda como então, tenho-te ao pé de mim, mas estás-me sempre gelando com essa tua mortal tristeza. Não era isto o que eu tinha sonhado, Mathilde, não era assim que tu promottias amar-me.

-- Luciano, não sei; não posso vencer a tristeza que te afflige. Sabes que te amo a ponto de ter esquecido... tudo por ti. Se o que me pedes dependesse da minha vontade, não me verias triste nem mais um momento. E que o amor faz calar todas as vozes menos a... da consciencia, acabou ella baixinho, encostando a formosa cabeça ao hombro de Berville.

N'este momento os olhos de Mathilde ergueram-se para o conde e este pôde ler n'elles uma d'essas phrases ardentes de paixão que o enlevavam e que eram o secreto condão, que o prendia á filha de D. Lopo.

-- Mathilde, disse o conde, cerrando-lhe os olhos com beijos, és tão linda assim! Porque me não dás sempre estas alegrias intimas? Se me queres salvar, meu anjo, emprega a doce influencia do teu amor, adormece com ella os maus impulsos do meu coração. Não te lembres do passado; vive só para mim.

-- Luciano, meu Luciano, continuou Mathilde com ineffavel brandura, ha passados que se não esquecem.

-- Nem mesmo quando o amor nos pede esse esquecimento?

-- Nem assim. Já to disse. O amor destroe tudo menos a...

-- Não continues. E se eu descobrisse o meio de impôr silencio a essa consciencia, tornarias a ser a Mathilde que eu vi n'outro tempo?

Na physionomia da filha de D. Lopo passou um relampago de alegria, emquanto murmurava ao ouvido de Luciano.

-- Farei o que quizeres; és o meu senhor. O mundo para mim és tu; não tenho mais nada. Quero-te, como ao meu unico thosouro, mas tem piedade de mim. Sou fraca, só o teu affecto me dá animo; não o esqueças quando me vires triste e a paciencia te faltar.

-- Não, minha Mathilde. Esqueçamos agora tudo isso. Deixa-me gozar a ventura de te ver assim como te desejo. São raros estos momentos. Mas prometteste... e tambem eu hei de cumprir, accrescentou elle todo entregue ao ardor da sua paixito.

A noite ia-se approximando e os dois voltaram para o palacio. Mathilde estava radiante de formosura, a esperança tinha afugentado do seu espirito as trevas que o opprimiam sempre desde que partira do Lisboa. O conde contemplava-a n'um extasi indefinivel. Nunca a tinha amado tanto, nunca se sentira tão disposto a fazer todos os sacrificios para assegurar uma felicidade que o encantava.

A singeleza da vida campestre, a solidão a que já nao estava costumado desde muito tempo, a dôr profunda mas resignada da filha de D. Lopo, tinham acordado na alma do altivo conde uns rostos de consciencia, que ainda ahi jaziam juntos com o sentimento da honra, innato em todas as organisações verdadeiramente viris, e cujo poder a paixão esmaga muitas vezes, sem nunca o destruir do todo.

Mais cedo ou mais tardo saem lampejos das suas cinzas, e é isto o que faz que na vida do homem mais depravado venha ás vezes surprehender-nos uma nobre acção, uma subita homenagem ao bem, com que elle lava muitas manchas e apaga o sulco de muitas lagrimas. Estranhas contradicções da natureza humana! Ninguem as negará, por pouco que tenha estudado os caracteres e esses homens que a opinião marca com o seu estygma fatal, registrando ao mesmo tempo as suas momentâneas hesitações no caminho da depravação.

O conde de Berville na epoca em que falamos estava atravessando um periodo da existencia em que a regeneração é ainda possivel. Mas para que esta se realise é preciso que se deem circumstancias excepcionaes, é preciso que estas circumstancias não desappareçam emquanto não estiver de todo consolidada a metamorphose moral que originaram. Mau será quebrar-se antes d'isso um só annel da cadêa; tanto basta para tudo ficar perdido.

Luciano levantou-se no outro dia de madrugada, montou a cavallo e partiu para a aldeia mais visinha. Sahiu sem prevenir Mathilde. O conde, chegando á aldeia, apeiou-se á porta do presbyterio e demorou-se muito tempo a falar com o cura, homem do mais de setenta annos, que tinha por suas mãos banhado nas aguas do baptismo a cabeça do nosso heroe. Era a segunda vez que o conde o procurava desde que viera habitar a sua casa de Berville. Quando Luciano deixou o presbyterio vinha tambem com elle o bom padre. Emquanto os dois se desviavam travou-se o seguinte dialogo entre duas velhas, que d alli perto os tinham estado a observar.

-- Ora Deus queira que não aconteça mal ao nosso cura. Seguir assim aquelle negregado. Nosso Senhor me perdoe. Isto não é dizer senão a verdade. Parece que tem pacto com Belzebut, porque não ha por esse mundo rapariga que lhe resista, segundo dizem.

-- E verdade. Hontem mesmo lá vi eu uma nos jardins, que era mesmo uma figura de cêra, e elle todo rendido. Se o visse! tão differento de modos que nem parecia o mesmo que fala á gente como se as palavras lhe custassem milhões.

-- Ah! viu-a? Você sempre é feliz. Já eu não sou assim. Ainda não pude ver-lhe a sombra. Dizem que é hespanhola.

-- Hespanhola, ou coisa que o valha. Bonita é ella.

-- Ai tempos, tempos! Se os paes vissem como o filho lhes anda a envorgonhar os ossos!

-- Ainda esta é o menos. E as dividas que elle fez em Paris e as noites infernaes em que apostava ao jogo tudo quanto tinha?! N'esse tempo passou aqui com um rancho d'amigos tão bons como elle. Depois não houve mais quem o visse. Disseram que tinha vendido tudo e que estava pobre como Job. Tambem não foi mal feito, Deus mo perdoe. Mas que terá elle a dizer ao cura? Veja como vão entretidos.

-- E já são com esta duas vezes, que aquelle maldito aqui vem. Temos historia, ou ou me engano muito. De mais a mais elles estavam mal desde aquelle caso da moleira. Quando o marido a matou e fugiu, o padre foi procurar o conde, e disse-lhe meia duzia de verdades que elle não gostou muito do ouvir. Tambem foi o demonio da presumpção que a perdeu; eu bem lhe dizia que assim havia de acontecer. Não cabia em si quando o fidalgo se desfazia todo em finezas; bem caro o pagou.

-- E a outra, a que endoideceu?!

-- É verdade; tambem nunca lhe pesou muito o juizo. Quando ella se deitou da ponte abaixo na ultima das furias que lhe deu, passou o conde, viu o ajuntamento do povo, perguntou o que era aquillo e ainda me parece que estou a ver d'aqui a cara que elle fez logo que o soube. Parecia tão defunto como ella e foi-so para casa, sem dizer palavra, mas d'ahi a poucos dias já tinha voltado outra vez á vida diabolica que tem sempre levado. Deus o affaste de onde possa fazer mal.

O conde de Berville chegando ás primeiras avenidas de que já falamos, mostrou ao padre a capella, pedindo-lhe que o esperasse alli; depois dirigiu-se para o palacio, onde Mathilde o esperava anciosa.

A filha de D. Lopo já perdera a animação ficticia, que na vespera lhe tinham dado as palavras de Luciano. A noite é a mãe das chimeras; o alvorecer da manhã, mata-as quasi sempre. Mathilde caíra outra vez na sua profunda melancolia; felizmente pôde disfarçal-a a tempo, lembrando-se do que Berville dissera na vespera.

-- Vem commigo, querida. Hontem não viste as obras que mandei fazer no interior da capella. Tinham levado a chave para a aldeia e fui hoje lá buscal-a, disse o conde com um modo jovial, que elle não tinha usualmente.

-- Não sei que te acho hoje, pareces-mo mudado.

-- Para peior?

-- Não, para melhor. O que é isto?

-- É a felicidade.

A filha de D. Lopo abafou um suspiro, porque sabia quanto lhe custava similhante felicidade.

Chegaram ambos á entrada da capella e o conde disse com muito affecto:

-- Entra o verás que não sou indigno do teu sacrificio.

Mathilde não teve tempo para duvidar. O conde levou-a ao pé do sacerdote que os esperava o que em poucas palavras lhe explicou o que vinha alli fazer. Meia hora depois entraram dois velhos amigos do conde e o padre abençoou a união da filha de D. Lopo do Menezes com o conde de Berville.

Tudo isto parecia a Mathilde uma visão, um sonho, em que se não queria fiar. Á saida da capella, Luciano beijou-lhe a mão, dizendo:

-- Condessa de Berville.

-- Tua mulher, murmurou a noiva, lançando-se-lhe nos braços e suspirando depois uma revelação, que nem as auras ouviram, tão baixo ciciavam os labios tremulos da nova condessa.

D'ahi a alguns mezes Luciano e Mathilde tinham um filho.

XXIV

Passara um anno depois do nascimento da criança. Ia já sendo difficil reconhecer no fidalgo provinciano, todo entregue aos pacificos entretenimentos da vida domestica, o brilhante conde de Berville, a espada mais valente do seu regimento, o voluvel D. Juan do mundo elegante.

Mathilde estava cada vez mais formosa; ficava-lhe bem a maternidade, esse verdadeiro diadema da mulher. Mais de uma vez tinha ella escripto para Lisboa cartas cheias de supplicas, em que pedia ao pae e á mãe perdão para a sua desobediencia. A filha de D. Lopo ignorava que já não tinha pae. O conde detestava as lagrimas, incommodavam-n'o todas as afflicções; não julguem porém que a causa d'isto fosse exaggerada sensibilidade, era apenas egoismo. Mostrava-se intolerante para com tudo que podesse prejudicar a lei que tinha estabelecido e segundo a qual todos deviam contribuir para elle gozar a maior somma de prazer possivel. Portanto Berville, prevendo a dôr de Mathilde, e os seus resultados, occultou-lhe cuidadosamente tudo o que occorrera depois da sua saida do Lisboa; interceptou tambem todas as cartas cscriptas pela mulher á familia, chegando a convencel-a de que era loucura esperar indulgencia do orgulho personificado. A pobre senhora, não recebendo nunca resposta ás suas cartas, acreditava o homem que ella amava mais do que nunca.

O conde sabia servir-se da intelligencia e da seducção com que a natureza o favorecera para dominar o ente fraco, cuja existencia quasi que absorvera. Effectivamente Mathilde não tinha vida propria. Via o que lhe indicava o olhar imperioso de Luciano, estudava-lhe a physionomia para adivinhar o momento em que devia sorrir, a occasião em que devia falar. Mathilde já não ousava mostrar a graciosa originalidade do seu espirito; deixava-lhe esmorecer a chamma, e só reverberava a luz esplendida em que ella descuidosa fôra queimar as azas. O amor quando attinge ao grão de timida devoção, adormece muitas vezes a intelligencia, principalmente quando se não dão lances extraordinarios, em que possa expandir-se nos arrojados voos da mais completa dedicação.

Berville estranhava a miudo a mudança que se ia operando no caracter de Mathilde, e não lh'a agradecia. Era enygmatica a organisação d'aquelle homem; a contrariedade encolerisava-o, a obediencia enfadava-o, admirava-se quando lhe resistiam, desagradava-lhe tambem a facil condescendencia.

No seu coração dominava o orgulho e com elle um desprezo atroz, que lhe fazia encarar as cousas mais serias como simples brinquedos, criados para realisarem os caprichos da sua phantasia.

Uma tarde tinha Mathilde o filho adormecido nos braços e o conde passeiava diante d'ella, silencioso e com aspecto um pouco carregado. A esposa seguia-o silenciosa com a vista, mas não ousava interrogal-o.

De repente sentiu-se parar uma carruagem no pateo do palacio e d'ahi a pouco entrava na sala um homem todo vestido de preto. O recem-chegado desfez-se em cortezias e entregou a Berville uma carta cuidadosamento lacrada. O conde empallideceu ao lel-a. Era o seu procurador em Paris que o avisava do perigo imminente, que ameaçava a sua fortuna.

Quando tudo se julgava conciliado, apparecera mr. d'Églemont, um dos parentes mais chegados de La Rochenay, e que era um homem de caracter rijo como o ferro, poderoso e influente pela immensa fortuna que tinha sabido adquirir.

D'Églemont tinha uma apparencia rachitica e enfezada. Era muito baixo, um pouco corcunda e coxo, tinha uma cabeça enorme, barba aspera e bravia, cabello indisciplinavel, nariz pequenissimo e bocca de grandeza descommunal. Este todo caricato fazia de d Églemont a victima favorita dos que se dedicam ao facil mister de fazer espirito á custa do proximo. Luciano de Berville fôra dos mais implacaveis em ridicularisar o infeliz corcunda. Alguns dos seus gracejos chegaram aos ouvidos de d'Églemont e eram de tal ordem que este jurou vingar-se.

D. Églemont não assistiu á leitura do testamento do barão de La Rochenay; era homem riquissimo e independente; repugnava-lhe correr para apanhar migalhas. Entretanto quasi um anno depois soube que Luciano tinha chegado a França e estava vivendo na sua casa do Berville; disseram-lhe que elle casara alli, e o informador, que era um dos parentes desenganados pelas ultimas vontades de La Rochenay, falou das clausulas do testamento que parecia imporem a Berville a obrigação de casar com a filha do defunto barão. D'Églemont ficou pensativo e um sorriso de intima satisfação illuminou-lhe as desgraciosas feições. No outro dia o vingativo corcunda partiu para Paris, examinou muitos dos papeis relativos d'herança do seu parente e, vencendo todos os obstaculos a peso de ouro, apresentou-se em casa de sua prima. Julia de La Rochenay estava recebendo a visita de dois primos que lhe vinham a miudo apresentar os protestos da sua desinteressada estima. A intelligencia de Julia era menos do que mediocre, e o seu aspecto physico era de uma feialdade desanimadora. Baixa, gorda e corada como uma romã descascada, com os olhos quasi brancos a desapparecerem-lhe nas maçãs do rosto, com um dedo de testa, cabellos raros e sem côr, eis o retrato da interessante noiva que o barão tinha legado ao conquistador Berville.

-- Prima, disse d'Églemont quando os outros primos partiram, creio que ainda venho a tempo para a salvar e para vingar-me.

-- Salvar-me! Então eu corro algum perigo? Andam-me sempre a dizer cousas tão exquisitas desde que meu pae morreu; nem eu sei onde tenho a cabeça!

A pobre senhora nunca o soubera, coitada!

-- Logo o pensei: Estes homens que d'aqui saíram são uns ambiciosos cobardes, que passam a vida a querer apanhar a fortuna por meios vergonhosos. Desprezados por seu pae querem explorar agora a credulidade da prima. Veem-na só, privada de conselhos e dispõem-se a abusar.

-- Mas que hei de eu fazer? Eu não entendo nada d'isto, deverei recolher-me a um convento?

-- Se quizer ha um meio mais facil de fugir a similhantes perseguições. O homem a quem seu pae confiou a missão de a proteger não fez caso d'esse dever e é hoje marido de outra mulher.

-- Sempre o esperei. Que sou eu, pobre rapariga sem belleza, sem espirito, quasi sem educação, para casar com o conde?!

-- E o coração, prima, não faz caso d'elle? não sabe que é a prenda mais preciosa que uma senhora póde offerecer a um homem de bom? E o seu coração deve ser um thesouro, privada de affeições desde que nasceu, não é verdade? Não chore, se quizer não será sempre assim, e d'Églemont, movido de compaixão recordava-se do toda a sua vida, em que não havia tambem nem um só dia marcado pela suave lembrança de uma verdadeira affeição correspondida.

Julia prerompera em soluços; nunca lhe tinham falado ao coração como n'aquelle momento; esqueceu a feialdade do primo e deitou-se-lhe de joelhos aos pés.

D'Églemont estava commovido até ao intimo d'alma, como todos os entes extremamente desfavorecidos pela natureza e que vêem uma vez recebidas as suas palavras sem o sorriso de escarneo, que habitualmente ellas despertam; levantou a prima e fazendo-a sentar com um gesto de affectuosa autoridade, disse-lhe:

-- Julia, eu sou rico, muito rico até, mas tenho vivido sempre só, fugindo de todos, porque não via senão indifferença, interesse e ingratidão. A minha sorte tem sido muito parecida com a sua, mas valeu-me a minha energia e a força do despreso com que lhes fui pagando affronta por affronta. A prima não tem estes recursos, é uma senhora e pensam que ha de ser victima resignada.

-- O que hei de eu fazer, o que hei de eu fazer? murmurava entre soluços a filha de La Rochenay, sem comprehender metade do que lhe diziam.

D'Eglemont resolveu-se a falar claro.

-- Quer a prima ser minha mulher? disse elle.

-- Sua mulher! E o senhor não me engana tambem?

O corcunda sorriu da simplicidade da pergunta, que não tinha nada d'offensivo á vista da pessoa que a fazia.

-- Eu, prima! Venho para a salvar e para a vingar. Bem vê que não é o interesse que me guia. Tenho muito mais do que me é preciso para comprar bem caros os prazeres que o mundo vende áquelles que os não podem obter d'outro modo.

-- Eu não sei, endoudeço, isto não é para mim!

-- Então, prima, não se afflija. Se a incommodo retiro-me e nunca mais me verá. Prometto ainda assim protegel-a quanto estiver na minha mão.

-- Não se vá embora. Faz-me tanta falta um amigo sincero! Agora é que eu vejo o que é. Meu pae era meu amigo, mas...

-- Está bom, Julia, de hoje em diante não ha de sentir mais essa falta.

Quinze dias depois celebrava-se o casamento dos dois primos, dignos emulos do par horrendo, descripto por Mery.

D'Églemont tinha o genero de intelligencia privativo dos corcundas e d'alguns outros entes para quem a natureza foi madrasta -- intelligencia subtil, flexivel, insinuante, e mais do que tudo pertinaz e paciente. Os espiritos d'esta tempera são admiravelmente proprios para calcular o que lhes convém e para tirar partido de todas as circumstancias que se apresentam; quando uma vez formaram um plano não o deixam senão depois de realisado; mais habeis do que fortes, nunca se arriscam a peito descoberto e levam sempre comsigo as armas necessarias para a defeza.

D'Églemont partiu para Paris com a mulher, documento vivo de que precisava para fortalecer as suas pretenções no pleito que ia intentar contra o conde de Berville. O corcunda queria retribuir os gracejos do elegante e para o fazer precisava do consentimento de Julia; ora podia elle faltar-lhe se algum dos primos, que lhe andavam a namorar a riqueza, aproveitasse a idéa e se insinuasse pelo mais forte dos laços no animo da filha do barão do La Rochenay. O astuto corcunda percebeu o perigo e evitou-o a custa da sua liberdade. Eil-o pois em Paris, assustando já com os seus bem dispostos preparativos o herdeiro da immensa fortuna do barão.

Luciano, logo que teve conhecimento da proxima tempestade, saiu de Berville, levando comsigo a mulher e o filho, mas sem dizer a Mathilde o motivo de tão subita partida.

Alguns mezes depois o conde de Berville tinha tomado outra vez todo o verniz parisiense, que a vida provinciana embaciara um pouco. O conde admirou-se do papel que tinha representado desde o seu regresso de Portugal e vendo-se outra vez no theatro das suas brilhantes loucuras d'outr'ora, envergonhava-se quasi da apparencia de virtude em que vivia depois de certo tempo. Os ruidosos prazeres da nova Roma escarneciam as suaves delicias que o tinham prendido na sua Tibur. O vicio brilhante tornava a apparecer-lhe com as suas mais seductoras fórmas, e ante esse idolo tão adorado Luciano curvava a cabeça e pedia perdão por lhe ter desertado os altares.

A reparação que n'um momento de apaixonado enlevo tinha offerecido a Mathilde, parecia-lhe uma incrivel criancice e até as suas santas alegrias de pae se lhe afiguravam ridiculas.

O homem velho renascia; o descanço forçado não tinha feito senão remoçar o poder dos pessimos instinctos que eram a nórma da sua existencia.

Berville entrou no vertiginoso circulo onde se tinham passado as proezas da sua mocidade e começou uma nova serie de aventuras tão loucas como as primeiras que o tinham tomado celebre. Quem visse o conde n'esta epoca da sua vida notaria infallivelmente a sede de prazeres, o enthusiasmo febricitante com que elle se arremessava ao labyrintho, onde já uma vez se tinha perdido.

Mathilde vivia em Paris muito retirada. Fosse porque fosse o conde nunca a apresentou na sociedade. Ella tambem não o desejava. Tinha-lhe voltado á consciencia toda a amargura da sua situação, desde que percebia que a sua presença era mais um peso do que uma felicidade para Luciano. A condessa via fugir todas as delicias da vida intima, que um instante adivinhara á sombra das arvores de Berville.

O conde, todo entregue aos seus novos prazeres deixava-a só durante muitas horas e quando voltava ouvia umas vezes com distracção e outras vezes com impaciencia as queixas cheias de meiguice com que a inexperiente Mathilde o recebia. Pouco a pouco deixou de ser para ella o homem extremadamente cortez que todas as senhoras citavam nas salas como modelo de cavalleirosa galanteria. Poder-se-hia suppôr que tentava indemnisar-se em casa do papel que representava fóra. Da sua paixão pela formosa filha de D. Lopo quasi que nem restavam as cinzas; quereria até arrancal-a da memoria como recordação de um acaso desgraçadissimo. E a pobre Mathilde a perceber isto tudo, e mais ainda!

Por uma maneira de reflectir, infelizmente bastante vulgar, o conde recusava a sua estima á victima dos seus fataes caprichos. Disse um profundo moralista que a mulher desde o momento em que se deixa resvalar para o abysmo não passa de um idolo derribado, mesmo aos olhos d'aquelle que de joelhos lhe supplicou a queda. O sentimento d'esta amarga verdade era o que mais torturava o coração da infeliz Mathilde. Salvou-a do desespero a religião, que, bebida com o leite quasi nunca desapparece de todo, e o amor maternal, esteio que ampara a mulher nas mais difficeis provações.

D'Églemont proseguia activamente a sua demanda, mas a justiça tem delongas, que nem sempre podiam vencer a influencia e o dinheiro do marido de Julia, porque se lhe oppunham eguaes meios da parte de Berville. Foram assim passando perto de tres annos, durante os quaes Mathilde viu morrer até os ultimos vestigios do sentimento que tinha inspirado a Luciano.

Estava então em Paris uma d'essas mulheres fatalmente seductoras, que teem o condão de enlouquecer os adoradores que lhe caem aos pés implorando um sorriso. Era hespanhola, chamava-se Rosita; tinha todos os encantos e todos os defeitos das ardentes filhas da Hespanha. Nada mais diremos a seu respeito. O assumpto dispensa grande copia do explicações. Não nos pertence levantar o veu que encobre as scenas ora grotescas, ora vergonhosas a que deu causa a presença de Rosita em Paris. Berville figurou em muitas d'ellas e um dia, sem uma palavra de despedida para Mathilde, viram-n'o seguir uma carruagem que percorria presurosa a estrada de Madrid. Rosita voltava á patria; o conde seguia o seu mais recente capricho.

XXV

Uma manha ao romper d'alva saíam tres ou quatro homens de uma elegante casa de Madrid; no desalinho do fato, na expressão indecisa dos olhos raiados de vermelho e nas faces ainda incendidas, trahiam elles symptomas irrecusaveis da orgia a que tinham assistido. Ao mesmo tempo apeava-se de uma diligencia um viajante de pouco mais de trinta annos, pedindo ao conductor que lhe ensinasse a hospedagem mais commoda que poderia encontrar.

Um dos homens que primeiro notamos pareceu reconhecer o viajante e, ouvindo-lhe falar em hospedagem, dirigiu-se para elle e disse n'um tom de profunda ironia:

-- Tem a minha casa ás suas ordens, meu valente cunhado. O viajante, ao ouvir a voz que assim o interpellava, recuou como se tivesse sentido a peçonha de um reptil e ficou alguns instantes mudo do surpreza.

-- Então não acceita? O que está vendo? perguntou o outro animado pelo riso dos companheiros.

-- Estou vendo a infamia que chega a glorificar-se do seu aviltamento.

-- Vamos mais do vagar. Antes de falar tão alto a respeito do aviltamento lembre-se dos brios com que procurou vingar a honra de sua irmã.

-- Esperava então um duello? Não viu que eu não o iria propor ao homem que assassinava á noite o rival a quem ainda de manhã tinha estendido a mão? Vingança! fala em vingança! Não a pedia minha irmã, pedia-a o meu amigo moribundo, meu pae que o seu vil procedimento, sr. conde, precipitou no tumulo. Essas eram vozes que o meu coração entendia; minha irmã tinha morrido para mim e foram as suas proprias mãos que a mataram; o cadaver do suicida não clama vingança contra ninguem.

-- Então porque não vingou as outras duas victimas, meu soberbo leão?

-- Diz bem; mas o que não se fez póde ainda fazer-se, respondeu o viajante com os dentes já cerrados pela colera. Depois accrescentou:

-- Já não existe a pessoa que me deteve na hora em que eu ia procurar o covil do lobo, que uma noite se intrometteu no sanctuario da minha familia. Minha mãe, porque se oppoz a tua voz ao meu fatal dever? murmurou elle.

-- Que filho tão obediente! A cobardia sempre quer ter desculpa.

-- Basta, exclamou o offendido.

-- Acceite sempre mais isto, e o conde de Berville a quem já terão reconhecido, lançou ao rosto do viajante a luva, que durante esta scena tinha estado a amarrotar na mão.

D. Luiz de Menezes, que era o insultado, fez-se livido. Os curiosos presentes esperavam o desenlace. Ao cabo do um momento de silencio D. Luiz disso algumas palavras, a que o conde respondeu:

-- Quando quizer.

-- Daqui a duas horas um de nós ha de deixar de existir.

-- Estarei á sua disposição com todo o gosto, disse o conde sempre ironicamente.

Os dois separaram-se então e D. Luiz entrou para uma hospedaria; fechou-se no seu quarto e depois de passeiar algum tempo como louco conseguiu serenar o animo e encarar friamente a sua situação.

D. Luiz estava casado havia perto de cinco annos e só agora Martha tinha esperança de vir a ser mãe. Dolores morrera havia mezes exactamente quando de Hespanha sua patria chegara a noticia de uma restituição, que devia melhorar muito a sua fortuna. D. Luiz vinha recebel-a para obedecer a uma das ultimas vontades de sua mãe. Entrava em Madrid quando viu o conde do Berville.

O desgraçado marido de Martha da Silveira escrevia-lhe depois do fatal encontro:

«Conheço que vão realisar-se os tristes presentimentos do que falei a teu pae nas vésperas do nosso casamento. Vi hoje um homem que avivou na minha memoria todas as scenas tristissimas que envenenaram a minha vida desde o momento em que Mathilde esqueceu o que devia ao seu nome e á sua honra. Agora vejo bem que fui criminoso unindo a tua innoccncia ao meu destino. Ha lances que transformam a missão de um homem; a minha não podia ser ornar de flôres a tua existencia quando a agonia de meu pae, a mocidade de Pedro destruida e a fama da nossa casa coberta de luto estavam pedindo que vivesse só para as vingar. Percebo agora tudo isto no meio da febre que me confunde o cerebro. Disse-m'o aquelle homem maldito; ainda ouço o timbre escamecedor da sua voz, ainda sinto na face o roçar da sua luva. Vaes ser infeliz, Martha, o infeliz por rainha causa! Eu não tinha nascido para ser amado por ti, para sentir a celeste consolação das tuas palavras nas horas em que a tristeza mo opprimia o coração, para ler no teu sorriso angelico a unica approvação que eu ambicionava, para viver emfim cercado da suave atmosphera em que tu respiras e que enches de luz com a tua meiga presença. Devo-te os momentos de verdadeira felicidade, que passei na terra.

Não levo para a eternidade nenhuma outra recordação saudosa. Maguas, soffri muitas, mas nenhuma tão profunda como a que me dilacera o peito n'esta hora solemne é a do ter devastado a tua vida, obrigando-te a plantar as flôres do tumulo junto á rosa brilhante da tua mocidade. Perdôa-me e vive para o ente infeliz, que não ha do ter n'este mundo ninguem a quem dê o nome de pae. D'aqui a uma hora terei uma balla no peito, ou verei morto a meus pês o conde do Berville. Diz-mo o coração que a victima serei eu, Martha, adeus; perdôa ao teu desgraçado marido em nome d'esta terrivel hora d'expiação.» D. Luiz de Menezes não se enganava. O duello era de morte; no fim do combate Martha estava viuva e o conde do Berville, já então livre dos fumos alcoolicos que lhe tinham exaltado as idéas pela madrugada, voltava do campo trazendo mais um remorso para juntar aos que lhe manchavam a existencia.

Martha recebeu a noticia da morte do marido com uma resignação assustadora para quem lhe conhecia a organisação minimamente affectuosa. Quasi que não se queixava, mas a vida começou a extinguir-se-lhe como lampada esquecida no santuario.

Assim continuou até ao dia em que lhe nasceu uma filha. Poz-lhe o nome de Luiza para lhe recordar o pae, que nunca devia conhecer. Martha lia muitas vezes a ultima carta de seu marido, mas faltavam-lhe forças para viver, como elle lhe pedia n'essas linhas traçadas momentos antes de morrer.

Martha tinha pelo marido uma cega affeição, que se manifestara em vida de D. Luiz por uma dedicação cheia de affectuosa timidez. E esta a forma mais pura de que póde revestir-se o amor de esposa. Sara, Rachel e Sephora amaram assim. As paginas da Biblia estão cheias destes sublimes affectos, em que a mulher ergue respeitosamente um altar no coração o depile sobre elle a imagem querida do esposo. Martha succumbia; a saudade consumia-lhe o coração. A sua vida esteve suspensa de um fio desde o nascimento de Luiza; quinze dias durou esta agonia e no fim d'elles a orphã de pae perdia tambem a mãe.

XXVI

O conde de Berville ainda estava em Hespanha quando soube que d'Églemont tinha ganho emfim o pleito com que lhe andava a ameaçar a fortuna havia já tres annos. Tinha já vendido a sua propriedade do Berville e restava-lhe apenas um cantinho de terra n'uma provincia retirada onde nunca tinha ido. Sorria-lhe pouco tal asylo depois da faustosa existencia de que o privavam inesperadamente, porque o conde nunca tinha supposto, que d'Églemont triumpharia.

O conde já tinha passado a epoca da aurea mocidade, mas ainda conservava um vigor extraordinario que bem se revelava nas fórmas agora quasi athleticas do seu vulto elegantemente marcial. Um bello dia passou-lhe pela cabeça uma d'essas resoluçoes semi-theatraes, que servem nos casos extremos os homens da sua tempera. Julgou que a Europa já não lhe podia dar novos prazeres, tinha o maior despreso pelas pessoas e pelas cousas de que vivera rodeado, mas apezar de tudo ainda não tinha chegado ao ponto em que os caracteres como o d'elle recorrem ao duvidoso descanço que lhes offerece a baila de uma pistola.

Luciano foi a Paris, visitou uma vez sua mulher, a quem não disse adeus porque aborrecia as scenas patheticas, pareceu hesitar um pouco á vista do filho e partiu depois para Africa, fazendo parte de um regimento francez que se ia bater n'essas longiquas paragens.

Mathilde nos primeiros momentos não comprehendeu o que se passava, nem mesmo procurou muito comprehendel-o. A desgraça conheci-a tão bem que nem já contava esconder-se d'ella.

A condessa de Berville teve a explicação de tudo quando uns homens lhe vieram dar ordens á sua casa, mandando-a sair em nome da lei. A infeliz senhora abraçou-se ao filho e saiu sem proferir uma palavra; disseram-lhe que o seu unico refugio era o canto de terra em que falamos, resto irrisorio da grande fortuna do conde. Foi para alli que Mathilde se encaminhou.

Chegando ao seu destino, a filha de D. Lopo achou-se n'uma cabana habitada por dois velhos quasi octogenarios, rendeiros da acanhada fazenda.

A nobre senhora pediu ao par plebeu um asylo, que esta nova edição de Philemon e Baucis lhe concedeu, não tanto por amor d'ella como por amor da criança que levava pela mão.

Quasi que ainda não falamos do Henrique, o filho de Mathilde. Nunca o pincel profano desenhou na tella imagem d'amores mais seductora do que era a d'esta criança nas horas das suas loucuras infantis, nunca o pintor sagrado achou para representar a belleza dos anjos modelo que fosse superior ao vulto gracioso do filho de Mathilde nas horas do quietação, que eram n'elle muito mais frequentes do que as primeiras.

Henrique tinha cabellos louros e annelados, tez alva e diaphana, olhos de um azul esplendido o bocca graciosamente talhada. Era na attitude, nos gestos e na linguagem que estava comtudo o seu verdadeiro talisman. Henrique era uma d'estas crianças adoraveis, cuja presença é um balsamo para todos, um iman que une os corações e os desejos mais oppostos. Era quasi impossivel negarlhe alguma cousa, tão insinuantes eram as suas palavras, tão encantadora a meiguice dos seus requebros infantis.

Mathilde depois de ficar alguns dias inteiramente prostrada pela dôr e pelos incommodos da viagem, recuperou pouco a pouco algum animo e começou a examinar a sua situação. Via-se n'uma pobre choupana, cujos velhos habitantes mal podiam tirar o pão quotidiano das leiras de terra que cultivavam.

A condessa de Berville tinha comsigo algumas joias e essas eram a sua unica propriedade, salvo a residencia occupada pelo velho par e agora tambem refugio da nobre filha de D. Lopo de Menezes. A pobre senhora encarou o futuro e viu-o chegar todo negro, trazendo comsigo o espectro da miseria. Estas idéas juntas á recordação do passado abateram-lhe outra vez as forças physicas e moraes. Mathilde esteve mais de dois mezes gravemente enferma.

Quando melhorou viu que o seu fraco thesouro tinha diminuido de um modo assustador e ella não tinha ainda outro recurso. As joias iam desapparecendo e cada vez se approximava mais o espectro medonho.

Foi em tal situação que Mathilde se lembrou do trabalho. Mas o que havia de fazer a filha de D. Lopo, a condessa de Berville? Não a detinham considerações de vaidade humana; essas tinha-as deixado com pedaços do coração pelo caminho da sua existencia, fertil em intimas humilhações que são as que mais doem; o que a assustava era a falta absoluta de pratica.

Entretanto Mathilde desde que o marido começara a abandonal-a para seguir o turbilhão da sociedade parisiense tinha concentrado quasi toda a affeição e cuidado no filho que a Providencia lhe dera. Foi assim que mesmo no tempo da sua brilhante fortuna tinha tomado o costume de ser verdadeiramente mãe de Henrique. Logo de manhã abria as brancas cortinas do leitosinho e recebia assim o primeiro sorriso do seu formoso anjo. A noite era tambem ella quem lhe ensinava o primeiro balbuciar da oração e quem velava a seu lado até que o somno viesse cerrar-lhe as palpebras. Mathilde tinha o filho todo o dia ao pé de si, preparava-lhe o fato, tratava d'elle com um exclusivismo quasi ciumento. Este era o unico trabalho que em toda a vida conhecera, mas a affeição que o determinava tornaria ligeiras muito mais pesadas tarefas.

Mathilde, pela officiosa intervenção da sua velha hospedeira, obteve algum trabalho na aldeia, mas os seus dedos delicados nunca tinham manejado as telas grosseiras de que se vestem os filhos do povo.

Muitas vezes as lagrimas lhe corriam dos olhos apoz experiencias infelizes, mas para lhe dar nova coragem bastava o suave olhar do filho a interrogal-a na sua expressiva linguagem. Mathilde enxugava logo as lagrimas e pegava outra vez na malfadada costura.

Assim passaram os compridos serões de um inverno bem assignalado na existencia da filha de D. Lopo, porque foi durante elle que travou conhecimento com as amargas provações que acompanham a pobreza. A mãe era forte contra si, mas receiava tudo para o filho.

Era no principio da primavera quando perto da noite o céo, toldando-se de pesadas nuvens annunciou a approximação do uma trovoada. Cedo começou o fuzilar do raio e o rugir do trovão; a chuva caia em torrentes alagando as campinas. O dia estivera lindo; succedia-lhe o medonho apparato da tempestade.

Mathilde com o filho nos braços repetia as prece dirigidas a Deus pelos dois velhos, quando á porta da choupana, perdida no meio do descampado, soaram repetidas pancadas.

Os velhos abriram a porta e pouco depois entrou na pequena quadra um homem de um physico quasi indiscriptivel, cuja edade seria difficil adivinhar no seu rosto tão disforme como o seu corpo enfezado.

Acompanhava-o um enorme cão da Terra-Nova. O recemchegado foi sem cerimonia para ao pé da lareira, sacudiu a agua que lhe escorria do casaco sem reparar na senhora e na criança que desprevenidas recebiam esta chuva artificial.

Mathilde offereceu-lhe uma das tres cadeiras que havia em casa. O mysterioso hospede agradeceu-lhe com um ligeiro aceno de cabeça e continuou silencioso como até alli. O cão deitou-se-lhe aos pés. Henrique contemplava o grupo fitando n'elle o seu olhar intelligente, cuja profunda expressão contrastava com a delicadeza das suas feiçães infantis. Depois com a intrepidez da innocencia foi-se chegando para ao pé do cão e passou-lhe a furto a mão pelo dorso, olhando ao mesmo tempo para o dono como se o temesse mais do que o formoso animal. Entretanto este voltou-se e mostrando os dentes acordou com o latido o dono, absorto em funda reflexão.

-- Que temos Tiger? disse o homem, vendo pela primeira vez a criança que recuava assustada.

-- Não fuja, accrescentou elle chamando Henrique, dê-me a sua mão e verá como o Tiger a vem lamber.

Henrique ia recuar, mas um olhar da mãe levou-a até perto do homem, cujo torvo aspecto o fazia interiormente tremer. O cão, vendo o dono tratar amigavelmente o rapazinho, deixou-se acariciar e pousou a cabeça no collo de Henrique.

Os dois velhos, que tinham ido buscar alguma coisa para offerecerem ao visitante, voltaram então.

-- Temol-o de volta cedo este anno, sr. d'Églemont, disse um d'elles.

Mathilde via-o pela primeira vez, mas ao ouvir-lhe o nome fez-se pallida; ia correr para o filho e tiral-o de ao pé d'aquelle homem, quando a deteve ainda a tempo um instante de reflexão.

-- E a senhora tambem já veio? perguntou a velha.

-- Quem é esta criança? disse d'Églemont sem fazer caso da pergunta.

-- É filho d'esta senhora, que é... um volver d'olhos de Mathilde interrompeu a confidencia, que ella não queria fosse feita ao parente do seu marido.

-- Que é... continuou d'Églemont, cujo forte não parecia ser a delicadeza.

-- Que é minha mãe, respondeu a criança, como quem ia pôr fim a todas as duvidas.

D'Eglemont sorriu ao ouvir esta lição indirecta dada pelos labios rosados de uma criança encantadora.

-- E teu pae onde está? disse d'Églemont.

A criança olhou para a mãe e viu que ella reprimia a custo as lagrimas.

-- Não sei; a mamã não m'o quer dizer.

-- Pobre orphão, disse d'Églemont, entendendo a seu modo a resposta de Henrique. Depois continuou:

-- Como se chamava teu pae?

-- Chamava-se Luciano e conde de Berville.

D'Eglemont repelliu instinctivamente a criança, que foi correndo refugiar-se ao pé da mãe.

O marido da filha de La Rochenay voltou-se então para Mathilde e disse:

-- A senhora é a condessa de Berville?

-- Sou, respondeu ella.

-- Tinham-me dito que estava em Africa com seu marido.

-- Era talvez alli o meu logar, mas meu marido não o entendeu assim.

-- Foi elle que para aqui a mandou?

-- E este o unico asylo que me resta.

-- E como póde viver aqui? perguntou elle, mirando a pobre apparencia da casa.

-- Vivo, respondeu a filha de D. Lopo, com um resto da antiga altivez.

-- E seu filho, que ha de ser d'elle no futuro?

-- O que a Providencia quizer, respondeu Mathilde.

-- Mas bem sabe que é preciso ajudar a Providencia.

-- Hei do fazel-o até onde chegar a minha fraqueza.

D'Églemont calou-se e pareceu reflectir profundamente. A tempestade ia desapparecendo, as nuvens dispersavam-se pelo céo e a chuva tinha cessado. Henrique brincava com o cão e repartia com elle a merenda. Mathilde sentara-se ao serão e os dois velhos entretinham-se, falando em voz baixa.

Por fim d'Églemont levantou-se, saudou a todos com um dos seus orgulhosos meneios de cabeça e disse a Henrique:

-- Até um dia d'estes, meu amigo. Deus te conserve a meiga confiança, e o corcunda ia beijar a criança, mas recuou com um sorriso de triste ironia, como quem estava costumado a ser mal correspondido em similhantes casos.

Henrique, como se lhe adivinhasse a intenção, estendeu-lhe a fronte pura, toda coroada de anneis de ouro. D'Eglomont beijou-a e saiu sem pronunciar uma palavra.

-- Tinham-mo dito que o sr. d Églemont não vinha este anno para aqui, observou Mathilde pouco depois.

-- É verdade, respondeu o velho, assim m'o tinham dito o administrador da casa e o capellão, mas com um homem d'estes nunca se sabe coisa nenhuma ao certo. Tem muito dinheiro e quintas sem conta, de modo que nem elle mesmo sabe em qual d'ellas ha de ir passar algum tempo.

-- Mas nem por isso a riqueza lhe dá grande satisfação, disse a velha. É raro quando alguem o vê sorrir. E a mulher, essa coitada cada vez tem o juizo menos claro.

-- Pois é verdade o que dizem de Mme. d'Églemont? perguntou Mathilde.

-- Então o que ha de ser? Não ha ninguem que o não saiba. O marido tem grande desgosto com isso, mas não lhe deixa faltar nada.

A conversação continuou muito tempo n'este sentido.

D'Églemont veio d'ahi a alguns dias á choupana habitada pela condessa de Berville; falou pouco a Mathilde, mas acariciou Henrique e escutou-lhe o seu palrar infantil. O corcunda estava encantado ao ver esta criança que se lhe sentava no collo sem receio nem escarneo.

D'Églemont foi conquistando o coração affectuoso da criança. Levava-o ás vezes a passeiar e um dia chegou a apresental-o a Mme. d'Églemont. Esta senhora tinha então as faculdades intellectuaes quasi inteiramente paralysadas, mas o coração feminino é tão propenso aos piedosos affectos que elles sempre se divisam atravez das mais densas trovas do espirito. Julia quando lhe disseram que tinha diante dos olhos o filho do conde de Berville, abandonado pelo pae e reduzido a viver pelo trabalho da mãe, abraçou-o o murmurou algumas palavras coherontes e acabou pedindo que lhe trouxessem mais vezes a criança.

Tinham passado cinco annos; a existencia de Mathilde e a de seu filho não variara muito na apparencia. D'Églemont vinha buscar a muido Henrique e pedia á mãe licença para o levar a sua casa, mas fora d'isto quasi nunca dirigia a palavra a Mathilde. Similhante frieza offendia-a ás vezes, tinha desejos de recusar ao corcunda o prazer que lhe dava a companhia de Henrique, mas ao mesmo tempo uma voz secreta bradava-lhe no intimo d'alma: Tem paciencia, as dores do orgulho são uma expiação.

Henrique acabava de fazer dez annos e sabia apenas ler, quando um dia d'Églemont disse a Mathilde no tom sacudido que lhe era habitual:

-- E preciso tratar da educação d'esta criança.

-- Bem o sei. É esse o meu constante pensamento, mas que educação lhe hei de dar?

-- A que lhe compete pelo seu nascimento e pelo nome de seus avós.

-- Oh! essa poderia servir lhe só de estorvo para o futuro, ainda mesmo que eu tivesse meios para dar-lh'a. Henrique não ha de viver da grandeza passada, não hei de preparal-o para seguir a vida ociosa d'aquelles que nascem na classe a que elle pertence pelo nascimento, mas donde o expulsa a falta de uma boa herança.

-- Mas quem lhe diz que Henrique não poderá ainda ser rico? disse d Églemont fitando n'ella um olhar que parecia querer penetrar-lhe n'alma.

-- Quem m'o diz? Não é preciso muito para adivinhar o futuro pelo presente. Nas minhas noites cheias de desassocego e de planos, nunca vejo remedio para esta fatal verdade. Deus queira ao menos que o meu amparo não falte a meu filho. É o unico que lhe resta e tão fraco que bastante receio lhe seja quasi inutil.

Os olhos de Mathilde arrasaram-se-lhe de lagrimas.

D'Églemont parecia combater as ultimas hesitações que ainda tinha para a execução de um projecto ha muito formado no seu espirito. Finalmente foi elle quem rompeu o silencio, dizendo:

-- Por motivos que não quero agora recordar julguei conveniente encarregar-me de fazer executar no seu verdadeiro sentido o testamento do barão de La Rochenay. Póde dizer que assim a empobreci e a seu filho, mas a verdade é que ambos chegariam ao mesmo resultado se a herança perdida tivesse ficado toda nas liberaes mãos do conde de Berville. No que succedeu ha até uma vantagem, porque ainda é possível a restituição. A Providencia, minha senhora, apresentou-me um dia seu filho e é sobre a gentil cabeça d'essa criança que eu desejo depôr o perdão das injurias passadas. Percebi a tempo que é difficil punir n'este mundo os culpados sem ferir innocentes; mas como já disse, tranquillisa-me a idéa de que a minha intervenção foi um bem, porque salvei o futuro de Henrique, constituindo-me depositario do dinheiro, que seu pae a estas horas teria já gasto em prodigalidades. As palavras que hoje lhe ouvi a respeito da educação de Henrique confirmam a idéa que eu já tinha de que se não lembraria de explorar o affecto, que essa criança me inspirou; mas considero-me eu obrigado a exploral-o e restituo desde já a seu filho a herança que me veio ás mãos pelo processo por mim intentado contra o conde de Berville. Minha mulher consente em tudo; agora falta só obter o seu consentimento, sra. condessa; decida se posso ou não tornar felizes os ultimos annos da minha vida, desempenhando os deveres de pae para com uma criança, a quem involuntariamente precipitei um dia nas visinhanças da miseria.

Mathilde não sabia o que havia de responder, tal era a surpreza que lhe causava esta linguagem tão extraordinaria nos labios do similhante homem.

O tom de benevola confidencia com que d'Églemont falava era tambem uma novidade para Mathilde, cujo espirito se recusava ainda a acreditar na realidade do que ouvia. O visconde percebeu-lhe a muda incerteza e disso:

-- Póde crer na sinceridade do que digo. Amanhã lhe apresentarei as escripturas em boa forma. Só lhe peço que isto seja um segredo para todos até ao dia em que Henrique fizer vinte e cinco annos. Então será senhor absoluto da herança, que hoje lhe restituo, com a condição de a administrar até á sua maioridade. Não se admire da minha resolução. Não tenho filhos, estou cançado de pagar só com despreso os escarneos do mundo: quero mudar o plano da minha vida e dar-lhe um fim mais util. Henrique ha de reconciliar-me com a humanidade; na sua alma de criança vê-se o germen de todos os nobres sentimentos; entretanto até o melhor terreno precisa de cultura. Não recuse á minha velhice esta ultima consolação.

Mathilde não pôde resistir por mais tempo á evidencia dos factos, apertou pela primeira vez a mão de d'Églemont e disse-lhe com a voz entrecortada pelos soluços:

-- Confio-lhe o futuro de meu filho. Seria orgulho insensato recusar o auxilio que Deus me envia, quando tão poucas razoes tinha para o esperar.

Foi assim que Henrique veio a ser o filho adoptivo do rico d'Églemont, cujo nome juntou ao do seu pae para satisfazer o desejo do homem que tão nobremente o tratara.

Henrique tinha vinte annos quando leu n'um jornal a noticia da morte de seu pae. O conde falleceu n'Africa, victima da sua funesta tendencia para o duello. Luciano morreu no campo a que arrastara um dia o desgraçado D. Luiz de Menezes. Mas na Africa a existencia do conde de Berville não saiu da obscuridade até ao momento em que uma questão insignificante com outro militar o levou á sepultura.

Luciano, apezar de ter alguns dotes admiraveis era um d'estes homens que só ficam bem á luz de uma aureola de ouro. O prestigio esvaiu-se-lhe com a energia que sabe combater a desgraça e sair victoriosa das ruinas amontoadas pela adversidade.

Henrique passou em Paris alguns annos da sua mocidade. Saiu da capital da França para percorrer alguns paizes da Europa. Voltando d'esta primeira viagem mostrou desejos de visitar a patria da mãe. O portuguez era lingua familiar ao mancebo desde a infancia, porque Mathilde lh'a ensinara.

Henrique sabia que sua mãe tinha nascido em Portugal, mas ignorava todas as circumstancias da sua ida para França. Mathilde conservava sempre a esse respeito o mais inviolavel segredo. Quando o filho lhe falou na projectada viagem, só obteve respostas evasivas. Soffria n'esse tempo o mancebo os primeiros symptomas de uma doença, que a medicina julgou poderia vir a ser fatal se o não fizessem mudar promptamente de clima. Aproveitou elle o ensejo e em vez do ir para a Italia, como lhe aconselhavam, pediu que o deixassem visitar Portugal, promettendo residir na Madeira algum tempo. A mãe consentiu ao cabo de muitas instancias, impondo-lhe a condição de viajar com o nome de d'Églemont, supprimindo o de Berville e recommendando-lhe que se abstivesse de falar em Lisboa no nome ou na nacionalidade de sua mãe.

Foi assim que Henrique chegou a Lisboa, occultando o nome e o titulo pelos quaes seu pae fôra alli conhecido. O mancebo não comprehendeu o motivo d'este mysterio, devido ao demasiado zelo maternal de Mathilde. Veio Henrique a Cintra, como contamos no principio d'este romance, viu alli D. Luiza de Menezes e amou-a com todo o enthusiasmo do seu coração de vinte annos, sem adivinhar o passado tristissimo que poderia separal-os. Soube-o depois da noite em que o seu verdadeiro nome pronunciado n'uma sala de baile fez desmaiar a sobrinha de Pedro da Silveira.

XXVII

Henrique saiu do baile logo depois d'esse acontecimento. Estava no hotel havia pouco tempo quando entrou o visconde de Lorval, que lhe deu algumas explicações ácerca do que se acabava do passar.

-- Meu caro, vejo que ha em tudo isto um mal-entendu horrivel. Fazem-se mil conjecturas a proposito do motivo que o levou a occultar o seu verdadeiro nome e dirigem-se a mim para eu resolver todas as duvidas, como se eu estivesse mais adiantado do que elles.

-- Mas, diga-me, o nome que herdei de meu pae, e que um acaso revelou hoje, foi o unico motivo do que presenceiamos?

-- Então que quer? Eu não sabia, ou antes já não me lembrava e ainda que me lembrasse era o mesmo, porque não podia adivinhar que o sr. d'Églemont era filho do conde de Berville, pois que ninguem m'o disse, nem mesmo o senhor.

-- Pelo amor de Deus, explique-se, insistia Henrique, fazendo a diligencia para perceber alguma coisa no meio das phrases obscuras do visconde.

-- É uma historia muito velha e de que já quasi ninguem se lembrava, mas o incidente d'hoje veio dar vida nova a essa recordação, guardada apenas na memoria do mulheres e de homens que eram moços ha trinta annos e que a foram desenterrar agora. Quando a ouvi, notei que me não era extranha de todo, porque soube na infancia grande parte d'ella, mas depois saiu-me a pouco e pouco da cabeça. Tambem, quando o apresentei ao Silveira, não podia nem de leve suppôr que o sr. d'Églemont tivesse alguma relação com o conde de Berville.

-- Mas tudo isso não explica nada: rogo-lho que me diga a verdade.

-- A verdade! Pois como a posso eu saber melhor do que o senhor. Agora o que me confunde, o que não posso combinar com a habitual seriedade do seu caracter é este mysterio que adoptou para se apresentar em casa de seus parentes, porque ninguem duvida de que foi este o verdadeiro motivo que o trouxe a Portugal.

-- Em casa de meus parentes! mas que parentes? Sr. visconde, esta occasião é mal escolhida para gracejos.

-- Tambem eu assim o julgo e não comprehendo como o senhor quer proseguir no seu mysterio quando vê que elle foi levar o desassocego ao seio de uma familia, onde o sr. conde foi recebido com a maior confiança, disse o visconde de Lorval já bastante descontente.

-- Mas, não nos entendemos. Juro-lhe pela minha honra que nenhum motivo occulto me trouxe a Portugal. A mudança de nome, que tanto os assusta, foi uma simples recommendação de minha mãe, que não me explicou os motivos porque a fazia. Agora, que alguem revelou o segredo, não tenho duvida nenhuma em confirmar a revelação. Sou filho do conde de Berville e não sei porque este nome ha de fazer desmaiar a sr.ª D. Luiza de Menezes.

-- Sua prima, quer dizer, emendou o visconde, recebendo com o sorriso da duvida os protestos de Henrique.

-- Minha prima! o que diz?

-- Então não é filho da sr.ª D. Mathilde de Menezes?

-- Minha mãe nunca me disse o appellido da sua familia, mas sei que se chama Mathilde, respondeu Henrique.

-- Não é portugueza, sua mãe?

-- Não tem que ver; sua mãe é irmã de D. Luiz de Menezes, morto em duello ha quasi vinte annos por seu pae o conde do Berville. Comprehende agora que póde não ser agradavel para uma filha o nome do homem que a fez orphã.

A surpreza pintava-so no rosto de Henrique para quem tudo o que o visconde dizia era novidade.

-- Mas um duello costuma ser um combate em que os riscos são eguaes e o que sobrevive não póde comparar-se a um assassino.

-- Salvo se, agglomerando injurias sobre injurias e pondo-lhes em publico um sello do infamia, arrasta acintosamente ao campo o adversario, a quem a sociedade já não concede outro refugio dentro do campo da honra.

-- Mas então quaes foram as causas d'esse duello? deve sabel-o, já que está tão bem informado ácerca de tanta coisa que me diz respeito e que eu ignorei até hoje, perguntou Henrique com mal reprimida colera.

-- Ha assumptos que são excessivamente delicados para se falar sobre elles ás pessoas que principalmente interessam, disse o visconde já meio abalado pela expressão de sinceridade com que Henrique affirmava a sua ignorancia.

-- Eu tenho o direito de querer saber a que se referem as allusões com que me tem offendido desde que entrou n'este quarto.

-- Mas pode não ter paciencia para o ouvir e eu confesso que sentiria muito ver acabar desastrosamente as nossas relações de amizade.

-- Affianço-lhe que a duvida lhes não é menos prejudicial. Preciso saber em que se fundam as suas palavras.

-- Pois é crivel que o não saiba? Lembre-se que foi o senhor quem o exigiu, e o visconde inclinando-se disse algumas palavras ao ouvido de Henrique.

-- Minha mãe! Elles teem razão. O meu procedimento tem o aspecto de uma imperdoavel vileza. Mas vou escrever a minha mãe; ella ha de permittir que eu esclareça tudo. Agora percebo porque não queria que eu fizesse esta viagem. Pobre mãe! não querias córar diante de teu filho. Porque não tiveste mais confiança n'elle, porque o não julgaste melhor? Tinhas-lhe poupado estes instantes d'angustia. O mancebo pronunciou estas palavras em voz baixa, com o rosto escondido nas mãos e os olhos arrazados de lagrimas. O visconde acabava de revelar-lhe todo o passado de Mathilde, fazendo-lhe ao mesmo tempo conhecer o modo desvantajoso como o mysterio do seu procedimento seria interpretado pela sociedade, sempre prompta a julgar segundo as apparencias. Henrique viu que precisava tomar uma resolução qualquer afim de apagar a mancha que a opinião geral ia já lançando sobre o seu carácter. O amor que lhe inspirara Luiza e que julgava correspondido era mais uma circumstancia que vinha aggravar a sua situação. Podiam agora dizer que o trouxera a Lisboa a idéa de renovar a scena representada vinte e cinco annos antes, só com a difterença de serem outros agora os actores. Podiam accusal-o ainda mais fortemente de que a seu pae, porque este seduzira Mathilde pobre e filha de um homem desprestigiado pelas revoluções politicas, emquanto elle, Henrique, tinha requestado o coração de uma riquissima herdeira, sobrinha e unico affecto de um homem influente pelo fausto e pela opulencia da sua casa. Entretanto o moço conde de Berville tinha a seu favor a tranquillidade da consciencia. Cumpria distruir a triste convicção formada no primeiro momento pela familia Silveira de que Henrique tinha representado até alli um papel previamente estudado; cumpria justificar a sua sinceridade e a ignorancia dos factos succedidos, em que o nome de seu pae tinha figurado de modo que todos julgavam impossivel uma reconciliação entre os dois ramos da familia.

O visconde de Lorval saiu do quarto de Henrique, sem saber ainda que idéa havia de adoptar no meio do cahos em que se debatiam as reflexões mundanas e as declarações que acabava de ouvir.

O visconde tinha vivido demais na sociedade para acreditar em assomos de franqueza, o seu espirito preguiçoso costumara-se a seguir a rotina; incumbia o proximo de pensar em seu logar e acceitava ordinariamente as opiniões já estabelecidas. Foi por estes motivos que depois de percorrer o circulo das suas relações quotidianas, chegou a casa de Pedro da Siveira firmemente convencido de que seria ridicula ingenuidade acreditar nos protestos de um homem tão unanimemento accusado. Combien de sots faut-il pour composer un public? dizia um famoso escriptor, falando de uma peça que ia ser brevemente julgada pelas plateias. Infelizmente poder-se-ia repetir a mesma pergunta a respeito da sociedade, que se encarrega de absolver ou de condemnar os delictos praticados no seu seio. O peior é que, esclarecidas ou não, as sentenças d'essa sociedade são sempre validas e não ha d'ellas recurso para outro tribunal. Resta por certo a consciencia, mas esta serve só para a tranquillidade intima e não livra da frieza e do desprezo que ha de receber em toda a parte o réo condemnado.

Henrique adivinhou tudo isto o sentiu a necessidade de uma justificação immediata; dirigiu-se a casa de Pedro da Silveira em tres dias suecessivos e foi-lhe sempre negada a entrada sob varios pretextos; o visconde de Lorval tinha repartido as horas de modo que poucas podia já consagrar ao seu companheiro de outr'ora; todas as outras pessoas com quem Henrique travara relações iam-se afastando d'elle, servindo-se dos estratagemas tão vulgarmente empregados na sociedade quando pronuncia um anathema contra alguem. Pedro da Silveira não apparecia e era sabido que Luiza estava gravemente enferma. Henrique escreveu-lhe, mas não obteve resposta alguma. Viu-se d'este modo abandonado a si mesmo n'uma das crises mais importantes da sua vida; o seu espirito entregava-se ás conjecturas mais diversas, que ora acceitava como fundadas, ora regeitava como absurdas.

Algumas paginas do seu diario descrevem a situação com a verdade e a singeleza de quem escreve só para si. -- Eil-as:

« Hoje escrevi a minha mãe. Ha tres dias que o devia ter feito, mas o meu espirito dominado por uma idéa fixa não podia fugir-lhe; pensava em obter o perdão do Luiza. Empreguei o ultimo meio que me restava para o conseguir -- escrevi-lhe. Não me respondeu; dizem que está doente. No meio da atmosphera de duvida e de desconfiança em que vivo ha tres dias, perturba-se-me o espirito a ponto que já não sei distinguir a verdade. Sel-o-ha a doença de Luiza, ou será isto um pretexto inventado para me desviarem d'ella?

«Contei a minha mãe como vim a conhecer a familia Silveira, falei-lhe do louco amor que me inspirou Luiza, descrevi-lhe os meus projectos para o futuro e disse-lhe depois como todos elles caíram por terra em consequencia do que se passou no baile. Fez-me bem escrever tudo isto; nas dôres como nas alegrias o coração não póde estar só. Valeu-me o affecto de minha mãe.

« E Luiza? Será ella injusta como todos? Ha instantes em que daria toda a minha vida para estar um momento ao pé d'ella para lhe dizer a verdade, porque sei que ella não duvidava se a seus pés eu lhe jurasse que não sou culpado. Queria ver mais uma vez nos seus olhos a expressão de infinita meiguice que me fascinou e decidiu para sempre o meu destino. Mas eu hei de falar-lhe. Horrorisa-me a idéa de ser assim condemnado sem que me ouçam, sem que admittam ao menos a possibilidade de uma explicação.

«Ha só uma opinião que eu queria ganhar para a minha causa, uma que, se eu podesse contar com ella, seria bastante para me fazer desprezar todas as outras; é a de Luiza. Amo-a ainda mais desde que me mostraram o abysmo, que, segundo dizem, nos separa. »

Alguns dias depois Henrique escreveu:

«Já não duvido; Luiza está doente. Tenho passado horas inteiras a contemplar á noite a janella do seu quarto, agora tão silencioso e apenas alumiado por uma frouxa luz. A cabeça allucina-se-me ás vezes quando alli estou á espera do que me venham dar noticias de uma existencia, que só agora conheço quanto está intimamente ligada á minha, porque me faz estremecer a idéa de a perder, como se sentisse o coração morrer-me no peito.

Revolto-me contra as ordens que me separam d'ella, saio ás vezes com a firme tenção de entrar, de vencer todos os obstaculos, mas em meio do caminho soccorre-me outra vez a razão. Ha momentos em que só me lembra o nome d'ella, em que a meus olhos só apparece a sua imagem, como se toda a natureza tivesse deixado de existir, deixando-a só no Universo. Contemplo-a então com toda a devoção da minha alma, e balbucio alguns sons inarticulados, porque em toda a linguagem falada não acho uma só palavra que lhe diga o meu immenso affecto. Como sou feliz n'esses instantes d'extasi inebriante em que perco a consciencia do frio positivismo para ajoelhar idealmento ante o anjo querido dos meus sonhos! Mas depois é mil vezes mais horrivel a saudade que me dilacera o coração quando volto á inevitavel realidade, phantasma devorador que se sustenta das nossas illusões, arrancando-as ainda palpitantes e ardentes do seio em que mysteriosamente as guardamos.»

Mais tarde Henrique escrevia:

«Luiza está melhor. Consegui ter noticias d'ella por uma velha criada, mas nem a prppria doente suspeita que eu esteja tão bem informado. Já não vejo pairar sobre a minha existencia a sombra funesta que ameaçava enlutal-a para sempre quando Luiza esteve em perigo de vida. Vivo inteiramente só.

Dou longos passeios por estes campos deliciosos, que os homens vão abandonando porque o outomno já está em meio. A serra de Cintra é a unica confidente dos pensamentos contradictorios que se debatem no meu seio. Aprendi alli a comprehender um dos livros em que minha mãe me ensinava a ler portuguez; é o livro das Saudades de Bernardim Ribeiro. Para entender os poetas é preciso ter soffrido. Ama-se na poesia o que nos recorda a dôr passada ou o que descreve com toques de uma verdade sublime a que estamos soffrendo. Só apreciamos a missão do poeta quando, identificados com elle pelo sentimento, se nos repercutem dentro d'alma as vibrações dolorosas ou risonhas das cordas da sua lyra. A serra de Cintra está para mim tão infimamente ligada á imagem de Bernardim, que se me affigurava ás vezes vel-o caminhar a meu lado pelo meio dos rochedos musgosos e das arvores já quasi desfolhadas. Na minha imaginação, exaltada pelo continuo scismar, desenham-se ás vezes algumas daquellas apparições, que o namorado trovador tão vividamente descreve. Mas elle viu desapparecer a sua Beatriz, viu-a soltar o vôo para os jardins d'Italia. Quando o poeta saudoso alli a foi procurar já não achou a amante, viu apenas a princeza, que descontente lhe estranhava o procedimento; minha Luiza, estarei eu tambem condemnado a perder-te para sempre?...»

No dia 25 d'outubro Henrique escrevia:

« Ainda a não tornei a ver. Dizem que a saudade é uma pena cheia do suave amargura; eu acho-a um supplicio horroroso. O estado da minha alma é ás vezes tão agitado que adivinho o que será a loucura.

«Minha mãe não me respondeu ainda. Se ao menos ella me mandasse uma palavra de consolação no meio d'esta febre que me consome a existencia! Luiza não sae de casa; o tio tambem não. Teem sido inuteis todas as tentativas que tenho feito para lhe falar. É cruel esta silenciosa vingança de Pedro da Silveira.

«Fiquei esta noite em Collares. De madrugada entrei na quinta do Dias, onde tantas vezes vi Luiza. A natureza mudou como a nossa situação. Correu sobre ambas um véo d'immensa tristeza. As flores do jardim murcharam todas, as magnolias deixaram pender para o chão as largas folhas amarelladas, nos caramanchões solitarios já não volteiam myriades do insectos, reproduzindo nas assetinadas azas todos os cambiantes da luz, as aves partiram já em busca d'outros climas e os seus gorgeios melodiosos já não saudam a aurora, rompendo desgarrados do meio das moitas de floridos arbustos; o verdenegro cedro, serve de fundo a este quadro, que as frias palletas do outomno já cobriram com as suas tintas desmaiadas.

Até a agua caindo incessante da cascata parece ter estudado uma toada melancholica para não interromper com festivo ruido a apparencia severa, que a natureza vae pouco a pouco tomando. Quando saí do jardim atravessei a inatta de castanheiros ainda ha pouco tão viçosa e tão cheia de brandos murmurios. Hoje as folhas seccas gemiam debaixo dos meus passos, como gemem em meu peito as esperanças mortas da minha vida para sempre erma de affecto. Caminhei muito tempo debaixo d'aquellas arcadas movediças, vendo atravez do entrelaçado dos troncos ainda meio vestidos de folhas as nuvens que passavam impellidas pelo vento, imagem pungente da minha vida em que tudo são nuvens tão densas que não deixam chegar a meus olhos nem um só raio de luz clara e animadora.

Depois subi ao mirante de onde se gosa um dos mais bellos panoramas que nos offercce Collares.

«Fui depois visitar o convento do Carmo, ruinas perdidas no meio de um oasis de verdura. O pequeno claustro e as cellas desertas não falaram á minha imaginação. Os conventos para serem imponentes precisam da magnificencia do Eseurial, ou da humildade dos Capuchos. Entrei na capella profanada; ainda havia no chão vestígios da ultima festividade, deixados pelas derradeiras tochas que arderam ante aquelles altares, agora feitos pedaços e d'onde arrancaram as imagens santas. O templo abandonado já não ouve senão o rugido do vento, que lhe faz estremecer as portas e as janellas carcomidas, ou o cair monotono da chuva que, escorrendo ao longo das paredes lhes vae pouco a pouco minando os alicerces. Percorri o jardim; poderia ter-me sentado á sombra das camelias tão bellas e abundantes em Collares.

« Perdi-me depois no meio da matta que cerca o convento. Divaguei longo tempo pelos seus meandros caprichosos, debaixo das arvores copadas que mal deixavam passar a luz baça e triste de um carrancudo céo d'outomno. Os medronheiros trepam pelas ribanceiras quasi a prumo, que se elevam de ambos os lados da tortuosa senda aberta na montanha e deixam apparecer ainda alguns fructos vermelhos por entre a ramada viçosa e espessa. Os pinheiros erguem mais alto o tronco esguio e balouçam ao sopro do vento os cimos verdenegros.

«Sempre gostei da solidão, mas agora mais do que nunca sinto o que ella vale para os que a sabem gozar. Quando estou só governo a minha phantasia; no mundo visivel não ha limites que se lhe opponham; então Luiza deixa de ser a mulher que me condemna sem me ouvir e toma a ser o anjo luminoso que sonhei.

«Mas sou muito desgraçado. O que é este mundo da ficção em que me embrenho tão a miudo?

A realidade tem-me acordado mil vezes com o seu braço de feno, tenho-lhe sentido o pezo no coração, mas o meu anmquilamento depois d'esses extasis encantados nunca foi tão profundo como agora.

A seguinte nota é a ultima escripta no diario de Henrique.

«Vi hoje Luiza atravez dos vidros da sua janella. Está tão pallida e ainda assim tão formosa! Quando me viu, retirou-se logo; voltou um instante depois e respondeu ao supplicante olhar que eu lhe dirigia com um triste meneio de cabeça; levantou a mão em signal de adeus e fugiu outra vez. Hontem iria jurar que ella já me não amava; hoje... meu Deus... não sei que intimo jubilo se apoderou de mim desde que a vi. Mas que loucura a minha! Foi tão pouco, foi um lampejo apenas e é já bastante para desviar os meus pensamentos do amargurado declive a que elles se iam costumando!

« Esta manhã o dia estava magnifico. Era um contraste com o d'hontem. Eu amo o sol. Sinto duplicar-se-me a vida nos dias esplendidos d'este clima abençoado. O primeiro raio de sol, que me despertou esta manhã, batendo na janella do meu quarto, foi para mim um brilhante prenuncio de esperança; entrou-me no coração e fortaleceu-lhe todas as fibras.

«Fui hoje ver a praia das Maçãs, passei algumas horas sentado perto das rochas batidas pelo mar. As ondas azuladas vinham quebrar-se a meus pés, cobrindo de um manto de neve os penedos escalvados e ennegrecidos; mais longe desenrolavam-se em borbotões de escuma sobre a areia da praia. A voz do Oceano tem um mysterio, uma solemnidade incomparavel. E uma voz soberana, que se eleva acima de todas as outras conhecidas na natureza, que as domina, que as obriga ao silencio. O movimento incessante das ondas, aquelle combate esteril e eterno, que ellas travaram no seio dos seus abysmos contra os limites que lhes algemam o selvatico impulso, é a imagem mais profundamente melancholica das lutas infindas que dilaceram a humanidade, sempre detida pela fatal barreira da morte, que lhe diz: aqui virás quebrar a furia das tuas paixões. E ainda ha quem negue a existencia de Deus, quem não ouça essas respostas formidaveis, que a sua immensa grandeza envia eternamente aos vermes que o insultam.

«São mais do sete horas, a noite está bella e cheia de serenidade. Sinto outra vez o sangue a escaldar-me as veias, a esperança que sustinha o meu animo desde pela manha começa a abandonar-me; renova-se o combate que ha mais do quinze dias me está minando a existencia. Isto ha de acabar. Amanhã tomo uma resolução extrema. Se Pedro da Silveira não quizer ouvir-me, saio de Portugal, fujo d'esta terra onde a sombra das muitas venturas passadas vem continuamente escarnecer a angustia presente. Oh! se o orgulho vencesse o coração! se eu podesse pizar aos pés as cinzas do meu amor n'um impeto da minha dignidade offendida! A situação em que estou parecerá ridicula a outros, a mim não, que vejo n'ella empenhada a minha honra e a felicidade do meu futuro.

«Não sei que tem este quarto hoje, suffoco, vou sair. Talvez seja esta a ultima noite que passo em Cintra. Amanhã estará tudo decidido. »

Enganava-se; a decisão devia-a elle ouvir n'aquella mesma noite.

Caminhava Henrique para Seteaes quando sentiu parar uma carruagem pouco adiante do logar onde elle estava, ouvindo depois distinctamente a voz de Pedro da Silveira, que dava algumas ordens. Henrique correu até á portinhola da carruagem e viu alvejar roupas de mulher ao lado do vulto sombrio do velho; a carruagem partiu logo, sem que os passageiros dessem pelo homem que alli os tinha reconhecido.

Henrique ficou um instante immovel; depois, por um movimento d'automato, começou a seguir a carruagem, que a trote se desviava de Cintra. O ruido das rodas extinguiu-se depressa no espaço, mas Henrique caminhava sempre, como se o impellisse alguma sina teimosa. Quem o avistasse então, julgal-o-ia louco. Tinha nos olhos extraordinario brilho, as faces pallidas e encovadas, os cabellos desordenados, a fronte rigida e branca como marmore; o chapéo tinlia-lhe caído no movimento apressado com que correra ao ouvir a voz do tio de Luiza, os labios, ora cerrados, ora convulsos entreabriam-se-lhe a miudo para pronunciar o nome querido da donzella.

E deveras o desventurado moço não tinha consciencia do que estava fazendo. Vira passar Luiza, adivinhava que a levavam para longe d'elle. Esta era a sua idéa fixa; iria ao fim do mundo para estorvar a realisação do plano, que um acaso lhe fizera descobrir. Tal preoccupação era absoluta demais para lhe deixar antever a inutilidade provavel do meio que estava empregando. Effectivamente o modo mais certo do tornar a ver Luiza não era seguir a pé a carruagem que a levava.

A noite corria tranquilla o Henrique não descançava; a estrada desenrolava-se-lhe erma ante os olhos, mas elle percorria-a firme, como se o guiasse de longe uma estrella protectora; já havia perto de duas horas que se pozera a caminho, quando avistou na estrada uma massa negra e inerte. Chegando mais perto viu dois criados com a libré da casa de Pedro da Silveira e reparou que entravam n'uma azinhaga visinha, levando pelas redeas dois cavallos. Henrique aproximou-se do vulto negro, que primeiro tinha notado, e viu que era a carruagem por elle tão perseguida. No primeiro momento não comprehendeu nada do que se passava e, obedecendo ainda á allucinação que o trouxera até alli, entrou na azinhaga apoz os criados. Henrique, conservando-se a alguma distancia, viu-os entrar n'uma casa de pobre apparencia e então á luz baça de um candeeiro pôde avistar a nobre figura de Pedro da Silveira em pé sobre o estreito limiar. O tio de Luiza trocou algumas palavras com os criados, estes entraram com os cavallos n'um telheiro visinho e o amo desappareceu, fechando a porta da humilde casa.

Henrique não percebeu o que elle disse; a sua imaginação exaltada por continuos abalos, soffridos sem poder desabafar na expansão de uma inteira confidencia, cobria de caracter mysterioso esta scena passada n'um descampado.

Depois de examinar o terreno com um olhar ainda vago e admirado, achou-se encostado a uma sebe, formada pelos ramos entrelaçados do varios arbustos; esta sebe separava da estrada uma leira de terra mal cultivada e ia findar nas paredes da casa onde estava Pedro da Silveira. Henrique procurou o logar mais fraco d'esta barreira e entrou no terreno tão pouco guardado. Instantes depois achava-se perto das janellas baixas da habitação. Um murmurio de vozes veio despertal-o, mostrando-lhe a singularidade da sua situação. Toda a nobreza do seu caracter pareceu revoltar-se contra o sentimento que o dominava assim e o obrigava a córar da propria fraqueza. Sem forças entretanto para fugir d'aquelle logar, deixou-se cair sobre um tosco banco de madeira e sentiu a prostração apoderar-se-lhe dos membros cançados; quiz erguer-se e nâo pôde; a cabeça reclinou-se-lhe inerte sobre o parapeito de uma janella proxima; percorreu-lhe as veias um frio intenso e as suas palpebras cerradas deixavam ver em torno das orbitas o circulo negro alli estampado pelas ultimas vigilias. Os cabellos de Henrique, impellidos pela brisa, iam espalhar-se sobre o parapeito que lhe servia de travesseiro.

Tinha passado algum tempo depois que o filho de Mathilde caíra n'um repouso similhante ao da morte, quando uma mulher vestida de branco abriu de leve a janella a que o mancebo se encostara; vinha ella embebida em profundo meditar e fitou o céo com um olhar cheio de lagrimas e ardentes suppliças; tinha as niveas mãos cruzadas sobre o peito; as formas debeis e elegantes estremeciam-lhe do quando em quando, trahindo no sobresalto nervoso alguma preoccupação.

Finalmente a donzella, saindo da profunda abstracção que a dominava, arredou com impaciencia as tranças que lhe vinham beijar o collo e com um gesto de profunda magua deixou cair as mãos sobre o parapeito. Os dedos enredaram-se-lhe n'uns fios de finissima séda. Luiza, porque era ella como já terão adivinhado, ia dar um grito mas extinguiu-se-lhe a voz na garganta quando reeonheceu no moço adormecido Henrique d'Églemont. Obedecendo á voz do coração e toda entregue ao sentimento de uma felicidade suprema, Luiza inclinou-se e disse ao ouvido do mancebo:

-- Henrique, meu Henrique!

Luiza pronunciou este nome n'esse tom intimo de affecto verdadeiro que não se tinge, porque só do coração peide partir nos momentos solomnes em que a palavra deixa de ser a mascara do pensamento.

Henrique abriu os olhos, viu Luiza, e sem dizer uma palavra cobriu-lhe as mãos de beijos e de lagrimas. Luiza chorava tambem. Foi n'aquelle instante que ambos conheceram completamente o muito que se amavam.

-- Minha querida, és tu, és a minha Luiza... vejo-te outra vez e choras commigo... não foges, tens piedade do mim. Como és linda, como eu te amo!

-- Meu Henrique, fiz-te soffrer. Perdoas-me?

-- Perdoar-te!? Que tem o condemnado a perdoar ao anjo que lhe traz a salvação?

E os dois, esquecidos de tudo menos do santo egoismo do amor, disseram alli mil segredos d'esses que os labios dos amantes balbuciam trémulos na primeira hora do felicidade que lhes faz esquecer as maguas da ausencia.

As fugitivas confidencias do Luiza e do Henrique tinham sido sempre interrompidas pela desconfiada attenção das pessoas que os rodeavam. Agora só os escutava a silenciosa noite.

Mas todas as coisas teem um acordar n'este mundo e principalmente o exigem as situações mal definidas.

Foi Henrique quem tomou o difficil caminho das explicações.

-- O que significa este procedimento de teu tio? Porque te trouxe elle como fugitiva de Cintra e te veio esconder aqui?

A donzella entristeceu com as primeiras palavras de Henrique, sorriu ás segundas o respondeu:

-- Não era este o nosso destino quando saimos de Collares; devíamos a esta hora estar em Lisboa.

Quebrou-se uma das rodas da carruagem quando meu tio, receiando que me fizesse mal a aragem da noite, deu ordem ao cocheiro para apressar a marcha dos cavallos. Só poderemos continuar ámanhã o nosso caminho. Não sabíamos o que fazer, mas felizmento ao voltar da azinhaga encaminhou-nos para esta pousada uma pobre velha, que me conhecia de Cintra, onde já me serviu n'uma noite, que eu bom quizera esquecer.

-- Amas-me menos desde então?

-- Bem vês que não, Henrique.

-- Dizes a verdade, não é assim? Sabes que é um crime dizer certas coisas quando o coração fica frio e deixa falar só os labios?

-- Henrique, eu nunca te accusei; nunca duvidei de ti, disse a donzella em tom de meiga reprehensão.

-- Nunca, Luiza! Não o sentiu assim o meu coração que soffreu desde a noite do baile, sem te ouvir nem uma palavra de conforto. O que era o teu silencio senão a peior, a mais terrível das accusações?

-- Podia parecel-o e ainda mal que assim o pensaste, mas na minha consciencia nunca pôde entrar a duvida apezar do mysterio que no baile revelaram.

Todas as supposições, todos os receios morriam ante a convicção profunda de que não podia enganar-me.

E esta convicção dava-m'a só o meu amor, que resistiu firme a todas as razões com que procuraram mostrar-me a sua loucura. Queixas-te do meu silencio, e que havia de eu fazer? Escrever-te, quando depois do que se passou não recebi de ti nem uma só linha, nem uma só palavra, que podesse fortalecer-me contra a lucta que ia começar e que tenho sustentado até agora sósinha?!

-- Mas eu escrevi-te, Luiza. Escrevi-te cartas em que te explicava tudo, em que te provava a fatalidade, que me trouxe até aqui enganado.

-- Essas cartas, não as recebi.

-- Ha aqui uma traição indigna. O visconde de Lorval assegurou-me que as fizera chegar ao teu poder.

-- O visconde nunca me falou desde a noite do baile.

-- Mas ia todos os dias a tua casa.

-- Falava só com meu tio, porque eu não saia do meu quarto.

-- É infame este procedimento. Depois de ter quasi suppiicado a minha confiança, trahir-me assim! Elle dizia-me que ia desfazer o engano, que escrevesse eu, porque elle se encarregava do resto. Estes meios indirectos repugnavam ao meu caracter. Não recorri a elles, senão depois de perdida toda a esperança de ser ouvido por teu tio.

-- Mas que interesse tinha o visconde em desviar as cartas do seu destino? Não é sobre elle que peza a maior responsabilidade do que succedeu? Não devia elle aproveitar todos os meios para justificar o homem, que apresentara como seu amigo?

-- Isso julga-o a tua alma candida, que ainda ignora a corrupção que se esconde debaixo do polimento mundano. Foi no ultimo extremo que eu aproveitei os offerecimentos do visconde; julgava-o moralmente insignificante e os homens d'esse genero não podem inspirar confiança; todos os meios lhes servem e é quasi impossovel querer-lhes mal, porque a maior parte das vezes nem sabem o que fazem. Mas vejo agora como és boa. Sem saberes nada que podesse justificar-me, ficaste sempre a minha Luiza, tão meiga, tão cheia de confiança como nos dias em que nenhuma suspeita tinha ainda vindo toldar o céo azul da nossa felicidade. Vou dizer-te agora tudo. Queres ouvir-me?

-- Quero e depois... tambem eu tenho coisas muito serias a dizer-te.

Então Henrique contou tudo o que vae narrado nos capitulos precedentes ácerca da sua infancia e da sua mocidade.

-- Assustas-me, querida, com essa expressão tão triste que vejo no teu rosto, disse elle no fim contemplando-a com amor. Vê como te amo. Tenho até ciumes dos pensamentos que te fizeram melancholica desde criança. Queria que só eu existisse na tua imaginação.

-- E a saudade dos que morreram tambem não m'a permittes?

-- Se essa saudade me não separa de ti... murmurou elle, apertando com impeto apaixonado a mão fria do Luiza.

-- Meu Henrique, era a esse respeito que eu queria falar-te... e sempre o animo a faltar-me. E que tambem eu te amo muito; quero repetir-t'o antes de dizer o rosto. Meu pobre Henrique, disse Luiza acariciando-o com um olhar aquecido pela chamma do mais ardente affecto, deveremos separar-nos d'aqui a instantes, e quem sabe se para sempre.

-- Luiza, não me enlouqueças com essa horrorosa ameaça.

-- Nâo sou eu que t'a faço, continuou ella cada vez com mais ternura, é meu tio que a repete todos os dias em nome de meus paes, que eu não conheci e que jurei respeitar na pesssoa que os representa ao pé de mim. Eu não serei tua esposa, Henrique, mas não o serei tambem de mais ninguem.

Disse a meu tio que era esta a minha resolução.

Respondeu-me: «Ficarás solteira.» Os odios não devem, não podem ser hereditarios, principalmente quando é um coração de mulher que temde os abrigar. Peço a Deus que me dê coragem para o meu sacrificio. Parte, vae para ao pé de tua mãe, procura um refugio no seu coração, dize-lhe que foste amado, muito amado... pede-lhe que te escolha uma esposa... uma mulher, que seja para ti... o que eu não posso... o que eu não hei de nunca ser... Confia-lhe a missão do te fazer feliz... e esquece-te do mau sonho em que eu te appareci.

Luiza não pôde continuar. O pranto embargava-lhe a voz, as mãos tremiam-lhe convulsas ao apertar as do amante, ia dizer-lhe adeus, mas a palavra fatal expirava antes de lhe chegar aos labios.

Henrique contemplava-a absorto, escutava até á minima inflexão da sua voz, deixava-se levar do inebriante encanto de ver dominada assim pela paixão a formosa mulher, que lhe tinha inspirado o sentimento mais forte da sua vida. No fim, sempre fascinado, começou a falar-lhe com ineffavel meiguice:

-- Partir, querida, depois do que ouvi, depois de ter sentido as lagrimas do teu coração escaldarem-me as faces! Antever o céo e renunciar a elle! Como julgaste que eu podia ter esse louco heroismo? Confiar a outra mulher a minha felicidade! Só uma mulher póde dar-me a felicidade e essa mulher és tu. Deixaste falar a tua alma e nenhuma das tuas palavras foi perdida para mim. Levam-te para Lisboa? Tambem eu irei para lá. Hei de ver-te, has de ver-me, e ainda um dia seremos felizes. E senão, quero ao menos morrer perto de ti, na terra em que viveres. Ha recordações, que são allivio inexgotavel para as maiores amarguras. A lembrança d'esta noite nunca ha de sair-me do coração; hei-deguardal-a como um balsamo para as dôres que vierem dilaceral-o.

-- Meu Henrique, como hei de eu dizer-te adeus? Tens razão. Não nos tornarmos a ver é impossivel. Eu morria. Ainda agora estava louca quando te falava em outra mulher. Quem te havia do amar como eu te amo?

As nuvens, que toda a noite tinham pairado pelo céo, iam-se agora amontoando no horizonte; a lua tinha já escondido a sua luminosa face e a luz das estrellas ia esmorecendo cada vez mais baça no céo já meio forrado de negro. Era uma d'estas mudanças tão vulgares no outomno em que no fim da noite se vae preparando o dia tempestuoso que ha de succeder ao brilhante esplendor da vespera.

Luiza, notando o aspecto sombrio de céo, assustou-se quando Henrique lhe disse que ainda tinha de ir aquella noite até Cintra, afim de partir definitivamente para Lisboa na próxima manhã. Elle sorriu, dizendo-lhe:

-- Mandava-me ainda ha pouco para França e não receiava os perigos da viagem para quem levava no coração a mais devoradora das saudades, receia agora que eu vá até Cintra, correndo apenas o risco de apanhar alguns choviscos e levando n'alma a certeza de ser amado pela minha formosa Luiza! Dize-me, querida, não sentes agora mais forte a esperança de virmos a vencer tudo quanto se oppõe á nossa união?

-- O que eu sinto mais forte é a minha confiança no teu amor. O mais só Deus...

-- E Deus não ha de faltar-nos, porque não é o Deus da vingança, é o Christo da misericordia.

Henrique e Luiza despediram-se mil vezes antes de se separarem. E tão difficil deixar a felicidade quando se receia encontrar depois em logar d'ella uma dôr eterna!

XXVIII

Cinco dias depois da scena descripta no capitulo antecedente, estava Luiza pallida e abatida n'uma das salas da sua casa em Lisboa. A quadra era vasta e de aspecto severo. Era a bibliotheca de Pedro da Silveira. As janellas altas e esguias tinham fartas cortinas de damasco vermelho, que tingiam com a sua côr afogueada a luz do dia, cujo brilho assim quebrado ia illuminar frouxamente os moveis do pau santo, primorosamente entalhado. Encostada a uma das paredes via-se uma estante, cujas columnas elegantemente torneadas e rematadas por esplendidos capiteis e cimalha de apuradissimo trabalho, pareciam vergar ao pezo dos livros. No fundo da sala avultava um enorme armario de pau santo, cujas portas almofadadas eram cobertas de finissimos lavores. Bufetes, contadores e cadeiras de pau santo completavam a austera mobilia, escrupulosamente sujeita ás antigas fórmas da arte. Nas paredes viam-se feixes d'armas, quadros primorosos e entre elles alguns retratos de familia.

Luiza estava entretida a examinar os ultimos e ao fital-os parecia recompor a ordem de successos importantes; mas para a recomposição faltava-lhe uma figura, que em vão procurava alli. Via os retratos d'alguns velhos, o de uma mulher loura, branca, diaphana e com uma expressão etherea que não era d'este mundo; logo em seguida o de um homem de trinta annos, cuja cabeça eminentemente formosa tinha o cunho de uma profunda energia dominada por uma profunda serenidade; proximo estava o de outro homem, grave, sonhador e triste, como diziam as linhas melancholicas do seu rosto mais sympathico do que bello. Mas as imagens dos avós, dos paes e do tio pediam na imaginação de Luiza uma outra e esta era a de Mathilde do Menezes, a mãe de Henrique.

A donzella passeiava lentamente no sombrio aposento, quando de subito parou e correu depois a abrir uma porta que lhe ficava fronteira; entrou no quarto de Pedro da Silveira e alli, sem mais reflexões nem perda de tempo, subiu a uma das altas cadeiras que o guarneciam e arredou com violencia uma cortina, que antes apenas deixava adivinhar a rica moldura de um quadro. Luiza viu então na tella assim descoberta um retrato encantador. Era o de uma mulher na primavera da vida; a sua physionomia apresentava um mixto seductor de graça e de orgulho, de languidez e de paixão; os olhos tinha-os grandes e rasgados, as sobrancelhas fortes e recurvadas, a fronte lisa e altiva, o nariz pronunciadamente aquilino, os labios rosados, breves e com um leve franzir d'ironia, o collo alto inclinava-se-lhe um pouco com a orgulhosa ondulação do cysno; as espaduas e os braços eram dignos do cinzel, e tudo isto mostrava que o original d'aquelle retrato devia ser um dos mais formosos typos da belleza feminina. Adivinhava-se alli uma d'essas mulheres, cuja presença accende nos animos exaltados a inextinguivel chamma da paixão illimitada.

Luiza ficou muito tempo sem desviar os olhos da radiante imagem. Era a primeira vez que a donzella ousava correr a cortina mysteriosa. Na infancia tinham-lh'o prohibido e ella sempre passara perto d'aquelle quadro occulto, como se passa diante do um objecto para nós cheio de supersticiosas ameaças.

Depois Luiza foi perdendo esse sentimenteo de receio, mas continuou a respeitaras ordens do seu tio sem discutir os motivos que as ditavam. A curiosidade natural da mulher, exacerbada pelo interesse com que a donzella anciava saber tudo quanto tinha relação com o passado ameaçador, em cujo nome lhe ordenavam o sacrificio do seu maior affecto, foi porém mais forte um dia do que as severas leis da obediencia.

A donzella não teve tempo para se arrepender do que fizera. Quando o extasi com que contemplava o retrato da mãe de Henrique começava a enfraquecer para dar logar á pausada reflexão, Luiza sentiu retinir a campainha; era o tio que voltava do seu passeio matutino.

A cortina tornou outra vez a occultar o quadro e a donzella correu ligeira para a sala, onde primeiro a encontramos. A commoção sobresaltou-lhe o animo quando viu o tio e procurou ler-lhe no rosto cançado o signal das magnas, que ella tinha adivinhado com o seu instincto de mulher atravez do segredo tão guardado pelo infeliz irmão de Martha da Silveira.

Entretanto o respeito tolheu a expansão das idéas que havia instantes se tinham apoderado do espirito da donzella.

Pedro da Silveira tinha envelhecido ainda mais nos ultimos dias; os abalos moraes chegavam-lhe sempre ao intimo d'alma. A sua organisação não era das que o soffrimento endurece, pertencia ao numero das que só a morte póde tornar insensiveis.

-- Fizeram-me um pedido que te não devo occultar, ainda que tenho quasi a certeza de que sei já o que vaes responder, disse Pedro da Silveira no seu tom habitual d'affectuosa gravidade. Depois continuou:

-- O visconde de Lorval pediu-me hontem a tua mão.

-- E meu tio... disse a donzella com mal disfarçado susto.

-- Eu prometti consultar a esse respeito a tua opinião; mais nada.

-- E permitte que eu a diga sinceramente?

-- Do outro modo seria formalidade inutil perguntaria.

-- Então peço-lhe que diga ao visconde de Lorval que o seu projecto é impossivel, e que...

-- Agradeces muito a sua lembrança, não é assim? concluiu Pedro da Silveira.

Luiza reparou na sombria expressão que tomara o rosto do tio e disse-lhe:

-- Affligiu-o a minha resposta? Não mo ordenou que fosse sincera? E como quer que eu fale do outro modo a respeito do visconde de Lorval? Se o tio soubesse, mas espero ainda poder dizer-lh'o um dia.

-- Não é a resposta que me afflige, filha; é o motivo que a ditou.

O sangue subiu ás faces de Luiza emquanto respondia:

-- Ainda que eu nunca tivesse visto Henrique, não acceitaria livremente para marido o visconde de Lorval. Agora muito menos desde que sei que a baixeza do sentimentos é egual n'elle ao acanhamento de espirito. Para meu tio isto é um enygma, mas asseguro-lhe que as minhas palavras se fundam em factos incontestaveis e que o futuro poderá ainda revelar-lhe.

-- Não é minha tenção obrigar-te a acceitar um marido que não seja da tua escolha e concordo em que o visconde não é dos pretendentes mais difficeis de recusar. Não mo custa affirmal-o, apezar de não poder decifrar o enygma a que te referes. Deixo-te a liberdade de recusares a felicidade que qualquer homem digno de ti venha offerecer-te, mas reservo para mim a de evitar que te despenhes num abysmo só porque sonhaste encontrar n'elle a ventura, disfarçada em peripecias de romance. Dizendo estas palavras o tio retirou-se e entrou no gabinete a que já nos referimos. No rosto de Luiza transpareceu o desalento que lhe ia dentro d'alma. Depois a donzella começou a pensar no procedimento do visconde de Lorval, mas eram inuteis todos os esforços da sua razão para adivinhar o motivo que lh'o tinha ditado. Que não era o amor percebia-o a donzella, comparando o sentimento exaltado de Henrique com o frivolo galanteio do visconde. O episodio das cartas confiadas por d'Églemont ao visconde e que elle desviara de seu destino, davam ao recente pedido do elegante o caracter de um plano maduramente pensado, mas Luiza, reconhecendo tudo isto, não passava além, porque a austera pureza do seu espirito não tinha ainda soffrido as rudes provas da experiencia.

E entretanto o caso tinha facil explicação. O visconde, na sua moderna qualidade de commensal assiduo de Pedro da Silveira, era o diario consultado em Cintra pelos que desejavam conhecer tudo quanto se referia á scena do baile. O visconde illustrava-a com ineditos commentarios e era muito para ver a simplicidade hypocrita com que sob pretexto de defender Henrique, amontoava contra o infeliz moço as accusaçôes mais prejudiciaes que a imaginação lhe suggeria.

Uma vez o visconde estava exercitando a lingua viperina sobre o seu thema favorito, quando alguem o interrompeu dizendo-lhe:

-- Ora quem nos diz que não anda ahi ciume?

-- Não ha ciume sem amor; e eu não amo.

-- Pois fazes mal, acudiram de outro lado. Parece-me que o dote da sobrinha do Silveira sempre ha de valer algumas pulsações, ainda que não sejam senão quantas bastem para um pretendente lhe fazer crer que ainda tem coração.

-- Pois ahi mesmo é que está a difficuldade. A sr.ª D. Luiza não acredita em qualquer palpitação nervosa, não a enganam as apparencias, que essas já empregaste, visconde! não negues que é tempo perdido, observou um estroina, que tinha riscado da memoria as verdades que se não dizem.

-- Ora adeus... foi uma d'essas cortes sem significação que se vêem na sociedade a cada instante, principalmente entre primos.

-- Não teve significação, porque tua prima lh'a não deu, continuou o teimoso interlocutor.

-- E tambem porque eu nunca lhe dei o minimo caracter de seriedade; se lh'o tivesse dado...

-- Vem-me agora dizer que não estavas a esta hora casado com tua prima, se ella o tivesse querido.

-- Nunca lh'o perguntei.

-- Directamente, não affirmo, mas todos nós sabemos como essas coisas se fazem; não estejas agora com ingenuidades. Mas vamos a saber, o tio deixa-a casar com o francez?

-- Não deixa; pois isso era possivel?

-- E a sobrinha o que diz?

-- Resigna-se, que é o costume das mulheres n'estes casos.

-- Ainda teem outro, visconde, e com esse podias tu aproveitar, ainda que fosse só para me provares que me engano na idéa que faço do modo como tua prima julga as tuas pretenções, disse com ironia o seu implacavel contradictor.

-- E então qual é? perguntou o visconde.

-- É acceitarem logo a côrte do primeiro homem que lh'a faz.

O visconde de Lorval mordeu os beiços, e depois contrafazendo-se disse n'um tom que tinha desejos de ser ironico:

-- Porque não aproveitas para ti o conselho?

-- Não é conselho; é apenas tomar ao pé da letra as tuas palavras. Eu não gosto só de ouvir o que se diz, gosto tambem de provar que entendo o que se quer dizer.

O visconde tinha começado a sorrir de um modo exquisito, como quem calcula probabilidades favoraveis. Depois de algum silencio respondeu lentamente:

-- Já vejo que as tuas palavras são um desafio.

-- Entende-as como quizeres. Creio que eras meio confidente no que se passou, apezar das tuas antigas pretenções. Uma mulher do espirito disse um dia que de confidente a amante vae um passo. Vê lá não escorregues ao dal-o. Escolhe bem o caminho.

-- E qual deverei escolher?

-- O quê! precisas agora lições de prudencia, meu conquistador visconde? Estás em boas relações com o tio?

-- Nas melhores possiveis.

-- Então que esperas? Um tio que não quer deixar casar a sobrinha com o homem que ella escolheu está quasi sempre nas melhores disposições para advogar a causa de outro qualquer pretendente.

-- Olha que no fim de contas vou estando convencido de que tens muito mais juizo do que se pensa, disse o visconde cada vez menos descontente comsigo.

-- Pois bem! damos-te quinze dias para provares o que affirmaste ainda agora.

-- Eu não affirmei nada.

-- Mau! já te expliquei como costumo entender o que oiço.

-- Então acreditas que sigo a maxima de Taleyrand, que nos diz, como sabes, que a palavra foi dada ao homem para disfarçar o pensamento.

-- E até vou mais longe, porque me parece que lhe serve tambem para disfarçar a falta absoluta do dito pensamento. Agora mãos á obra e lembra-te que d'aqui a quinze dias tenciono ir dar-te os parabens, reconhecendo em ti o ditoso noivo de uma das mais interessantes herdeiras que ha na sociedade de Lisboa. Vê como isto já tem seus ares de comprimento. Prometto speeck solemne n'esse dia e vou já começar a fazer os apontamentos para elle.

-- Valeu! disseram mais tres ou quatro rapazes, que tinham assistido silenciosos a esta conversação.

O visconde ficou convencido de que era para elle ponto d'honra responder com o triumpho ás duvidas ironicas que lhe apresentavam. D'alli em diante teve uma idéa fixa. Julio de Lorval não era má pessoa e os seus defeitos passariam quasi desapercebidos se elle não tivesse o pessimo costume de se dirigir em tudo pela opinião alheia, escolhendo quasi sempre mal os directores do seu procedimento.

No mesmo dia em que o visconde tinha ouvido os conselhos officiosos que acima vão registrados viu Henrique d'Églemont, a quem falou com a amabilidade propria de um homem, que nasceu nas salas, e soube aproveitar bem as complicadas lições, que alli se recebem o habilitam qualquer pessoa a viver na apparencia em santa paz com o genero humano, prejudicando-o na realidade tanto quanto é preciso para o triumpho dos proprios interesses.

Esta exquisita moral, funda-se no seguinte principio: Fazer aos outros exactamente o que nâo queremos que elles nos façam.

O visconde procurou saber as intenções de Henrique e, como não ha intelligencia mediocre que não seja superior á de um namorado entregue ao desespero, Lorval conseguiu facilmente o que desejava. Quando viu que Henrique ia escrever á prima, pensou logo nos meios de evitar que as cartas do filho do conde de Berville chegassem ás mãos de Luiza e d'alli passassem ás de Pedro da Silveira, cujo amor á justiça podia fraquejar um instante ante as poderosas recordações dos acontecimentos mais tristes da sua vida, mas só para erguer-se mais forte, logo que algum argumento irrecusavel lhe mostrasse a equidade da rcacção. Lorval offereceu-se para medianeiro ao pé de Luiza, mas o seu verdadeiro intuito era impedir a reconciliação.

Ia todos os dias visitar Pedro da Silveira e nunca se esquecia de o indispor cada vez mais com Henrique, fazendo continuas allusões á influencia que a sua apparição em Portugal poderia ter no futuro de Luiza. O visconde preparava assim o terreno para offerecer a sua mão á donzella como instrumento salvador na conjunctura que elle dizia ser extremamente delicada. Já vimos o resultado de tão generosas intenções. N'essa arriscada partida o visconde perdeu algum sentimento que ainda lhe restava de honra e de dignidade.

Falemos agora de Luiza. A donzella estava ainda só; o tio, depois de permanecer algum tempo encerrado nos seus quartos, tinha tornado a sair.

Subito parou uma carruagem no pateo da casa e logo apoz veio um criado entregar a Luiza um bilhete do visita tarjado de preto.

-- Onde está esta senhora? perguntou com voz convulsa Luiza, depois do ler n'um relance o nome escripto no cartão.

-- Está alli, disse o criado, apontando para a porta por onde tinha entrado. Quer que a mande entrar?

-- Não é preciso. Saia por alli, disse-lhe a donzella, indicando-lhe outra saida.

Logo que o criado desappareceu, Luiza correu apressadamente o reposteiro que a separava da visita e viu diante de si uma mulher toda vestida de preto e com o rosto coberto por um véo de renda, tão bordado que era quasi impossivel adivinhar atravez d'elle as feições da recem-chegada. Esta percorreu com o olhar a sala o vendo que estava só com a donzella, disse-lhe com uma suave tristeza, que traia commoção intima.

-- Creio que estou falando á filha de D. Luiz de Menezes?

-- Sim... minha senhora, respondeu Luiza tremula e anciosa.

-- Minha senhora! Tem razão; deve falar-me como a uma pessoa estranha. Que mais sou eu aqui?

E emquanto dizia estas palavras a recem-chegada tirou o véo e Luiza viu então um rosto encovado e cheio do sulcos profundos, olhos cujo brilho quasi de todo amortecido denunciava vigilias e lagrimas, labios comprimidos, e aos cantos da bocca essas linhas profundas, que o continuo pesar vae cavando pouco a pouco; emmolduravam-lho o rosto dois bandós de cabello quasi inteiramente branco.

Luiza contemplava a dolorosa expressão pintada na physionomia d'aquella mulher, cujo porte altivo traia uns longos de elegancia e em cujas feições regulares um artista descobriria vestigios quasi extinctos de uma grande bellcza. Luiza comparava na sua imaginação o que via agora com o retrato descoberto pela manhã e, obedecendo á duvida que lhe assaltava o espirito, disse:

-- Mas é deveras D. Mathilde de Menezes irmã de meu pae?

-- E mãe de Henrique, minha filha, respondeu a condessa de Berville estendendo os braços para Luiza.

A donzella deixou cair a fronte sobre o seio d'aquella mulher, verdadeiro espectro do que fôra.

As duas assim enlaçadas soluçaram algum tempo. Foi a condessa quem primeiro tornou a falar, sentando-se junto de Luiza e apertando-lhe ambas as mãos nas suas.

-- Tens as feiçães de tua mãe, mas ella era loura e tu és morena e tens como teu pae cabellos pretos e ondados. Pobre menina! Ha muitos annos que és orphã?

-- Desde que nasci.

-- Desde que nasceste! E eu só ha poucos dias soube que teus paes tinham morrido. Como é fatal o primeiro passo que se dá fóra do bom caminho. Depois é tudo descer, descer com os olhos fechados sem ver onde se vae parar ou onde a vertigem nos faz cair, até que nos acordam os dolorosos resultados da queda. E eu ha vinte annos que acordei, ha vinte annos que não sei o que é uma hora de verdadeira alegria! E não está completa a minha longa expiação. Deus quer ainda tirar-me a unica affeição que me resta, o meu pobre Henrique.

Mathilde dizia estas palavras n'um tom de voz sacudido e olhando vagamente em torno de si, como uma pessoa que sente as idéas confundirem-se-lhe no cerebro.

-- Mas seu filho está bom. Não o viu ainda? não lhe falou?

-- Bom, meu filho! Ha tres dias e tres noites que me não tiro do ao pé da cabeceira do seu leito e não me conheceu senão um instante atravez do delirio da febre. Ha tres dias que não ouço senão o teu nome, Luiza, e as palavras que elle te dirige, julgando-te alli perto. O medico disse-me esta manhã que uma commoçào muito forte poderia ainda salvar meu filho. Na ultima carta que recebi d'ello falava-me de ti n'uma linguagem tão exaltada e em que se percebia tanto desespero que não hesitei um intante e parti logo para rogar a teu tio que não faça espiar a Henrique a culpa que foi só minha e que só deve pezar sobre os meus hombros.

-- O coração adivinhava-me alguma desgraça. Mas como havemos do salval-o? Diga-m'o, pelo amor de Deus.

-- Onde está teu tio? E preciso que eu lhe fale, é preciso que a tua voz arranque o espirito do meu pobre filho aos desvarios, da febre. E a vida do meu filho que peço. Dize, Luiza, não o amas?

-- Amo, minha mãe, disse a donzella em voz baixa, aterrada pelas palavras que ouvia.

-- Então não percamos um instante, previne teu tio da minha visita.

-- Meu tio saiu e Deus sabe agora quando voltará disse a donzella, escondendo nas mãos as faces todas banhadas de lagrimas.

N'este momento assomava á porta Pedro da Silveira, que tinha chegado até alli sem que o sentissem.

-- Volto agora mesmo, minha filha. Que tens? porque choras assim? disse Pedro sem dar pela presença de Mathilde.

-- Meu tio, sou muito infeliz. Peço-lhe que tenha piedade do que eu soffro e do que elle está soffrendo. Supplico-lh'o em nome dos que já não existem. No céo é tudo perdão. Elles perdoaram decerto. Perdoe tambem!

E Luiza estava ajoelhada diante do tio, cobrindo-lhe as mãos de lagrimas, emquanto os soluços faziam estremecer todo o seu corpo, como estremece a fragil haste que o vento dobra até ao chão.

Pedro da Silveira olhava para ella surprehendido e não sabia o que responder. A condessa de Berville levantou-se então e erguendo Luiza nos braços, disse-lhe:

-- Retira-te.

A donzella odedeceu. Mathilde e Pedro, ambos mudos, hirtos e immoveis contemplaram-se alguns segundos em silencio. Ambos procuravam na memoria a imagem que em cada um d'elles a ausencia tinha conservado com as vividas côres da mocidade e cada um d'elles duvidava da evidencia do que via, tão fracos eram os vislumbres de similhança que existiam entre estas duas prematuras ruinas e o retrato do que eram havia trinta annos.

-- Sr. Pedro da Silveira, disso Mathilde, rompendo o silencio, póde estranhar o modo como eu me apresentei, na sua casa, mas uma mãe que deseja salvar seu filho não tem tempo para reparar em todas as conveniencias.

-- Não sei como a salvação de seu filho póde depender de mim, disse Pedro mais pallido do que um defunto.

-- Quando eu era moça existia um homem para quem a generosidade e a justiça eram as unicas regras da vida. Este homem chamava-se Pedro da Silveira e teria morrido antes do que praticar uma acção que fosse contraria a esses dois sentimentos.

-- Tambem eu conheci esse homem, minha senhora. Existe apenas hoje d'elle uma sombra e essa, tendo perdido quasi tudo, não perdeu ainda o amor á justiça e ás idéas generosas, mas já se não deixa levar pelo fogo da imaginação, principalmente quando é o futuro de uma orphã que depende do seu consentimento.

-- Mas quem lhe disse que Henrique podia comprometter a felicidade d'esse futuro?

-- Os homens que desejam inspirar confiança não recorrem a meios traiçoeiros para a obter. Eu podia perdoar muita coisa ao filho do conde de Berville, ao falso Henrique d'Églemont não devo perdoar nada.

-- Mas não é falso. Meu filho usa esse nome desde a infancia e se não entrou em Portugal com o titulo do conde, que só ha tres annos lhe pertence, foi porque assim lho ordenei. Henrique quando veio aqui nem sequer sonhava que viria encontrar parentes de sua mãe e, encontrando-os, não podia reconhecel-os, porque eu nunca lhe falei d'elles. Sabe que a falta do sinceridade não é o defeito do meu caracter. Nunca soube mentir. Ha mais de vinte annos que a minha vida é um tormento continuado, um castigo incessante. Só tinha um allivio, era meu filho o meu filho deixei-o agora moribundo. Leia esta carta. Foi a ultima que elle me escreveu.

Pedro da Silveira percorreu a carta e no fim disse:

-- Mas affirmo-lhe que não recebi uma só linha escripta por seu filho depois da scena do baile que poz em alboroto todos os maldizentes que a presencearam. Não falei a seu filho porque em minha casa dei ordem para que não entrasse ninguem excepto o visconde de Lorval, a quem eu mesmo mandei chamar para ter explicações sobre o que se passava. O visconde tinha-me apresentado seu filho, mas depois reconhecendo o engano em que o fizeram cair desviou de si toda a responsabilidade ácerca do que succedera.

-- Mas eu estou certa de que Henrique não mentiu quando me assegurou ter empregado todos os meios para lhe dar as explicações necessarias. Não poderá haver em tudo isto alguma traição?

Pedro da Silveira ficou algum tempo meditando; a verdade ia-se esclarecendo para elle.

-- Talvez, disse elle emfim, rememorando o recente procedimento do visconde do Lorval, tão em desharmonia com o que devia esperar-se d'elle na difficil conjunctura em que estava o homem do quem se dissera amigo.

-- Se além do que já disse eu lhe apresentar dentro em alguns dias provas irrecusaveis da injustiça com que Henrique foi aqui julgado e escriptas pela mão do visconde d'Églemont, seu protector e amigo, poderei então pedir-lhe para meu filho a mão de nossa sobrinha.

-- De nossa sobrinha, disso v. ex.ª, e são justamente essas palavras que recordam mais do que nenhumas outras os grandes obstaculos que a minha consciencia oppõe a essa união, disse Pedro da Silveira, cada vez mais pallido e desviando os olhos da vista inquisidora de Mathilde, que o fitava com a teimosa tenacidade de mãe, que não sabe desanimar emquanto-lhe resta no Calvario das dores humanas alguma senda espinhosa onde possa ir buscar a salvação do filho.

-- Sr. Pedro da Silveira, essas palavras, se as entendo bom, são uma injuria a um homem, que já não existe, e a uma mulher, que expiou bastante um erro n'este mundo para que os homens deixem a Deus o cuidado de a julgar.

-- Eu não podia injuriar a filha de D. Lopo de Menezes e nem serei eu quem julgue o erro que lhe attribuem, quando na minha imaginação a vejo sempre pura e immaculada como nos tempos em que a via donzella ainda ao lado do minha irmã, como a phantasiei no dia em que dentro da minha alma cobri a sua imagem querida de um sudario, que nunca mais deve erguer-se, dizendo ao coração: Ahi tens morta aquella que amaste; se te disserem que vive responde que esse retrato que ficou na terra póde enganar a muitos, não a ti, que viste como era differente o original e sentiste nas fibras mais intimas o frio da sua morte. Tambem não julgue que os meus sentimentos d'hoje se ressentem da ferida que me fez no peito o conde de Berville. Desviemos tudo quanto me possa tocar pcssoalmente; é demais para me justificar a memoria do quatro finados, que d'além tumulo estão condemnando até a idéa da alliança que me propõe.

-- Faz-me estremecer. Quero saber tudo. Que importa mais um golpe? não tenho eu já sentido como a justiça humana é implacavel? até meu pae e minha mãe deixaram sem rosposta as supplicas, que uma desgraçada lhes escrevia com as lagrimas mais amargas do coração.

-- Seu pae! Como havia de elle responder-lhe, se morreu na mesma noite em que soube que tinha perdido a sua filha unica.

-- Meu pae morreu n'essa noite! E minha mãe, minha mãe? perguntou Mathilde, avivando-se-lhe ainda mais a expressão exaltada, que a não abandonara desde o principio da conversação.

-- Sua mãe morreu um anno depois, chorando todos os dias a filha, de quem esperou até ao ultimo suspiro um appello ao affecto maternal, uma palavra, que lhe rogasse perdão.

-- E eu a julgar-me abandonada de todos quando eram elles que tinham razão para julgar que eu os esquecera completamente, quando iam ambos descendo á sepultura, levados pela minha ingrata mão! Mas Luiz e Martha como acabaram? Não hesite. Bem vê que tenho direito a saber quando começaram os lutos, que eu hei de agora trazer para sempre no coração. Ha pouco falou-me em quatro finados; contámos já dois. Meu irmão pertence tambem ao numero dos que estão condemnando Henrique?

-- Pertence, respondeu com voz fraca Pedro da Silveira.

-- Pertence, porquê?

-- Porque foi morto em Madrid n'um duello pelo conde de Berville, de quem recebeu os mais violentos insultos.

-- E Martha, tambem ella, perguntou Mathilde toda tremula, como que vergando ao peso de uma accusação horrivel.

-- Martha morreu dois mezes depois.

-- Todos ! Matei-os eu a todos! Mas fui eu, não foi Henrique. Perdoem-lhe por piedade os crimes de sua mãe.

Mathilde disse estas palavras de joelhos; ao pronunciar a ultima despediu do peito um grito agudissimo e caiu desmaiada no chão.

Quando saiu do desmaio, a condessa de Berville estava louca.

Foi angustiosa a noite que Pedro da Silveira passou depois d'esta grande desgraça; aquellas horas envelheceram-n'o mais do que todos os annos passados; na manhã seguinte tinha os cabellos todos brancos, o porte mais quebrado e as rugas do rosto mais fundas. A noite velada pelo amigo de D. Luiz de Menezes ao pé da mulher que amara toda a vida e que, depois de trinta annos do ausencia, lhe apparecia, como para lhe fazer presencear o anniquilamento de um brilhante espirito e o desabar das ruinas de uma esplendida belleza, foi uma d'essas noites de agonia que até na eternidade poderiam parecer seculos.

Ao romper a manhã, perdida toda a esperança de fazer recuperar a razão á desgraçada Mathilde, Pedro saiu de casa e foi ao hotel, onde lhe disseram que estava Henrique d'Églemont.

Quando á noite o mancebo se despediu do Luiza, em vez de voltar para Cintra, como tinha dito, resolveu seguir logo para Lisboa.

Que lhe importavam já os ermos alcantis, os valles viçosos, as aguas palradeiras, as fragas escumosas, as soberbas ondas, uma vez que Luiza ia para longo do todas estas bellezas? O affecto que une duas almas a ponto de formar d'ellas uma só é uma luz formosissima que illumina aos olhos dos que se amam, tudo quanto contemplam juntos; mas se um desapparece, a magica influencia esvae-se tambem e parecem-nos então quasi insipidas as scenas admiradas sob o seu dominio. Até que Henrique chegou a Lisboa não cessou nunca a chuva fina o teimosa, que principiara a cair logo que elle para alli se dirigiu. No céo pardacento estendia-se até aos confins do horizonte um pesado e monotono véo. Não era uma noite do tempestade com todos os seus formosos horrores, era simplesmente um d'esses tempos insupportaveis, que estão tão longe da bonança como da tempestade, o que parecem inventados de proposito para dar spleen á humanidade. Henrique entretanto percorria o caminho alagado, sem sentir a chuva incessante que lhe ia pouco a pouco chegando aos membros enregelados. Não sei o que o susteve até chegar a Lisboa, mas depois de ahi entrar pela madrugada, as forças physicas, exhaustas por continuas commoçõos moraes, abandonaram-n'o inteiramente e uma febre violenta seguiu o somno lethargico em que primeiro caiu. Foi durante os mais fortes accessos d'esta febre que Mathilde velara á cabeceira do filho, sem este a reconhecer. Quando Pedro da Silveira entrou no quarto do doente, estava elle no primeiro intervallo lucido que a febre lhe deixara. O mancebo pallido e extenuado esteve algum tempo sem ver a visita inesperada; notava-se-lhe nos olhos uma expressão vaga que fazia temer um novo accesso. Henrique quasi que não podia falar e o medico fez mil recommendações ao tio de Luiza para que elle graduasse a commoção a que ia sujeitar o doente, de modo que ella fosse forte sem ser violenta.

A vista da desgraça succedida, resolveram todos occultar a Henrique a visita de sua mãe.

Pedro da Silveira chegou-se ao pé d'elle, pegou-lhe na mão e disse-lhe, fitando-o com bondade:

-- Conhece-me, Henrique?

O mancebo olhou para elle com esse olhar indeciso que magoa tanto as pessoas que espreitam no rosto de um doente os symptomas de vida ou de morte que alli vem pintar-se; reconheceu o homem que lhe falava e fez um movimento para retirar a mão que elle lhe apertava.

-- Dê-me a sua mão. Agora sou um amigo que vem ver outro amigo, ou antes um pae que vem ver o seu filho, disse Pedro.

-- Não tenho amigos, não tenho pae.

-- Amigos ha de ter todos quantos o conhecerem bem; pae tem um já, se quizer -- é o que tem servido de pae á sua noiva.

-- A minha noiva?! Eu não tenho noiva, disse Henrique, fechando as palpebras e deixando cair a cabeça quasi inerte sobre o travesseiro.

-- E Luiza? murmurou-lhe ao ouvido Pedro, comprehendendo toda a gravidade da situação.

-- Luiza? Ah sim ! Essa ha de ser minha noiva no céo, porque é só lá que os paes perdoam, respondeu o mancebo, animando-se um pouco.

-- Tambem perdoam na terra, Henrique.

-- Isso não, porque na terra já elles não existem, e os que os substituem antes querem matar um filho do que perdoar-lhe os erros de seu pae.

Pedro recuou como se um punhal o ferisse no coração. Agora queria salvar a todo o transe o filho do conde de Berville, porque o tio de Luiza no meio de todas as amarguras da sua vida tinha ao menos a ventura de não ter nunca sentido os horrores do remorso; a consciencia era o ultimo asylo d'aquelle homem, e se Henrique succumbisse como poderia elle em rigor conserval-a pura?

-- Henrique, Luiza ha de ser sua esposa, juro-lh'o pelas cinzas do meu melhor amigo, pela memoria de minha santa irmã.

Estas palavras não foram bastantes para fazer brilhar clara nos olhos do mancebo a luz da intelligencia. Pedro então desceu á rua, chegou ao pé da carruagem que o tinha trazido, e dando a mão a uma mulher que alli estava envolta n'uma ampla capa, levou-a até ao quarto do enfermo.

Luiza levantou então o véo que lhe cobria o rosto, inclinou-se para d'Églemont, e disse-lhe rompendo em soluços: -- Serei tua esposa, Henrique. Já não ha impossíveis, já não ha duvidas. Podemos amar-nos e ser felizes.

Henrique pareceu resuscitar ao ouvir esta voz tão querida.

-- É verdade, Luiza? disse elle emfim profundamente commovido e apertando nas mãos a formosa cabeça da donzella. Tu, querida, seres minha! e o mancebo imprimiu-lhe na fronte um beijo apaixonado.

Depois Henrique caiu desfallecido, mas a vida voltou-lhe depressa e ao abrir os olhos sentiu-se amparado pelos braços de Luiza e do Pedro da Silveira. D'Églemont, pegando nas mãos de ambos, beijou-as; correram-lhe pelas faces alguns lagrimas: a resurreição estava completa.

D'ahi a um mez celebrava-se o casamento de Henrique e de Luiza, e logo apoz partiram ambos para Italia, tencionando passar por França, onde o noivo queria apresentar Luiza a sua mãe. Henrique não suspeitava o que tinha acontecido; é verdade que não recebia ha muito cartas de sua mãe, mas o visconde d'Églemont, a quem Pedro tinha prevenido, escrevera-lhe em nome do Mathilde, attribuindo o seu silencio a uma indisposição pouco grave, mas demorada. Foi durante a viagem que Luiza revelou ao marido á terrivel verdade.

O filho de Sara chorava a morte da mãe que estremecia. Enviou-lhe Deus uma esposa formosa que soube inundar-lhe de affecto o coração, e as lagrimas do hebreu seccaram-se-lhe nos olhos.

Henrique sentiu tambem as suas volverem-lhe dos olhos ao coração, e d'alli as foram expulsando as meigas caricias da sua linda noiva.

Não quero dizer com isto que não fosse profunda a dôr que o mancebo sentiu no dia em que soube o estado da mãe, mas Henrique já então era responsavel pela felicidade da esposa, e, fazendo d'essa responsabilidade o seu primeiro dever, achou no seu inteiro cumprimento o balsamo mais proprio para suavisar o duro golpe, que o ferira no seu affecto de filho.

O visconde de Lorval, quando se realisou o casamento do Luiza, foi victima dos epigrammas que de todos os lados choviam sobre elle, onde quer que o vissem as pessoas que n3o ignoravam o modo como elle tinha representado o papel de pretendente infeliz.

Um dia partiu para uma terra de provincia e alli durante todo o verão empregou-se em adquirir o nome de influente em politica. No fim de varios manejos, em que a consciencia nem sempre ficou desassombrada, chegou a Lisboa com o mandato que lhe dava uma cadeira em S. Bento. O novo deputado abraçou d'alma e coração a politica pessoal e promette vir a ser notavel no seu genero, para o que lhe ha de prestar grandes serviços a extraordinaria mobilidade da sua epiderme. Nã pensa em casar, emquanto a perspectiva de um dote avultado lhe não dourar as cadeias do matrimonio.

O visconde d'Églemont, o velho amigo do Henrique pediu a Pedro da Silveira que fizesse partir a desgraçada Mathilde para Paris, onde todos os esforços da sciencia foram empregados para restituir ao seu espirito a lucidez perdida, mas nenhuma luz pôde romper as trovas espessas, que lhe cercaram o cerebro de uma noite tão duradoira como a sua existencia.

A filha de D. Lopo conhecendo todas as consequencias do seu procedimento quando evocaram na sua presença todas as victimas que elle tinha feito, perdeu em minutos de intenso soffrer toda a energia d'alma, toda a firmeza de pensamento com que os annos e o infortunio tinham engrandecido a sua intelligencia, já de si elevada. Em vez do facho brilhante, ficou a luz amortecida da alampada; mas essa luz tremula, que apenas se via bruxulear, era uma grande lição.

Pedro da Silveira parece ter já fechado em vida o livro da existencia. Passam-se os dias e os annos sem que se lhe note no animo ou no corpo a mais pequena mudança. A noite em que Mathilde enlouqueceu, deixou-o como agora está. N'aquella noite a velhice acabou de lhe estampar no rosto o seu cunho, que tão prematuro veiu para o amigo de D. Luiz de Menezes.

Desde o casamento da sobrinha leva Pedro da Silveira vida quasi de eremita. Deixou todas as relações essencialmente mundanas. Amigos e conhecidos não tem agora outros que não sejam os desgraçados. A sua alma, ferida até ao amago, não podia supportar a estreita esphera dos prazeres; precisava de outra que o não magoasse continuamente pelo completo contraste. Aprendeu na severa escola da experiencia a extrema delicadeza necessaria para suavisar as miserias da humanidade, e nunca a sua mão se engana quando em segredo vae ser o instrumento discreto da sua intelligente caridade.

FIM.